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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AMALDIÇOADO / Ronda Thompson
O AMALDIÇOADO / Ronda Thompson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O AMALDIÇOADO

 

Casada e viúva no mesmo dia, a maravilhosa lua de mel da socialite Amélia Sinclair é bem atípica. Mas também, o é Amélia – rebelde e impulsiva - casar-se com Robert Collingsworth foi a única coisa sensata que ela fez. Agora ele está morto e ela deve fugir das cruéis criaturas que a perseguem – mesmo que isso signifique ter de confiar em um estranho. Bem, talvez não um completo estranho. Amélia já havia visto Gabriel Wulf tempos atrás nas movimentadas ruas de Londres; desde então ele a assombra em sonhos. Mas em carne e osso, Gabriel é muito mais hipnotizante do que ela jamais imaginou, e muito mais complexo.

Gabriel Wulf, o forte, o sensato – a família e a maldição que se abateu sobre eles são suas únicas prioridades; há pouco tempo para mulheres e nenhum para o amor. Agora, ele deve proteger uma atraente mulher – e não apenas dos perigos que vagam na floresta ao redor deles. Gabriel tem segredos muito escuros que Amélia não deve saber e nem entenderia. Mas ela já despertou seu coração...e a fera dentro dele. Seria Amélia a chave de sua salvação ou a arquiteta de sua própria destruição?

 

         Maldita seja a bruxa que me amaldiçoou.

         Eu pensei que seu coração era puro.

         AH! Nenhuma mulher entende o dever,

         Seja ele a família, o nome ou a guerra.

         Eu não encontrei modo algum de quebrá-la

         Nenhuma poção, encantamento ou façanha.

 

         Do dia em que ela rogou a maldição,

         Ela passará de semente a semente.

 

         Traído pelo amor, meu próprio idioma falso,

         O nome de família, antes meu orgulho,

         Tornou-se a besta que me assombra.

         E na hora da morte da bruxa

         Ele me chamou a seu lado.

         Sem clemência, nenhuma compaixão,

         Ela falou antes de morrer:

 

         “Procure e encontre seu pior inimigo,

         Seja bravo e não fuja.

         O amor é a maldição que te prende

         Mas é também a chave para te libertar.”

 

         Sua maldição e charada é minha destruição,

         Essa bruxa que eu amei e com a qual não pude casar.

         Batalhas eu lutei e ganhei,

         E ainda derrotado eu fiquei em meu lugar.

         Aos Wulfs que sofrem meus pecados,

         Aos filhos que não são nem homens nem bestas,

         Desvendem o enigma que eu não resolvi

         E se livrem dessa maldição.

               Ivan Wulf

         No ano do Senhor de 1715.

 

                   Collingsworth Manor, Inglaterra, 1821

Seu marido ia matá-la. O pensamento atingiu Lady Amélia Sinclair Collingsworth no momento em que as mãos de Lorde Collingsworth se fecharam em sua garganta. Mas as mãos dele geralmente macias não se pareciam com mãos na escuridão. Elas pareciam...garras. Era sua noite de núpcias, e o tímido marido de Amélia não estava agindo nem timidamente nem como o cavalheiro com quem ela tinha se casado pela manhã em Londres. O que estava acontecendo com ele?

- Robert, você está me machucando! – ela ofegou, presa debaixo dele na cama onde tinha planejado perder sua inocência, não sua vida.

Seu noivo riu. Não um riso que soasse normal. Sua voz estava profunda e distorcida, como se a garganta dele estivesse cheia de pedras. Sentiu seus dedos-garras se movendo para baixo do pescoço, rasgando a camisola que usava do colarinho à cintura. Amélia gritou, lutando debaixo dele, que era surpreendentemente pesado para um homem a quem seu pai se referiu uma vez como de “aparência frágil”.

- Robert, por favor! – ela implorou. – Você está me assustando!

O riso novamente. Aquele que fazia os cabelos em sua nuca ficarem eriçados.

– Robert não está aqui. – ele rosnou.

O que ele queria dizer com isso? Amélia estaria tendo um pesadelo? Talvez ela acordasse dentro de instantes e se veria na casa de seus pais em Londres. Talvez ela não tivesse se casado nessa manhã diante da grande presença da nata social londrina. Talvez ela não tivesse viajado até a propriedade de campo de Robert para uma curta lua de mel antes de viajarem ao exterior para uma extensão da celebração de suas núpcias.

- Estou sonhando. – Amélia sussurrou, tentando se confortar. – Acordarei daqui a pouco.

Robert latiu uma curta risada e saiu de cima dela. Amélia podia respirar novamente. Havia sons de roupas rasgando e ela pensou que Robert estaria agora destruindo seu próprio camisolão de dormir. Sonho ou não, o coração disparado dentro do peito de Amélia e a dor dos arranhões sobre o pescoço pareciam reais. Cada instinto que ela possuía gritava para que ela fugisse...enquanto ainda podia.

Ela rolou até a beira da cama, pensando em escapar. Dedos magros a puxaram com força de volta, então Robert estava em cima dela...só que ele estava nu...e sua pele não se parecia com pele. Parecia pêlo.

Amélia transformou as unhas em garras e atacou os olhos dele. Robert uivou como um animal ferido. Ela empurrou com todas as forças e rastejou para longe dele. Rolando, Amélia aterrisou no solo com uma pancada. Ela rapidamente engatinhou para longe da cama. Por timidez, que ela não tinha nem um pouco, Robert havia insistido para que as lâmpadas ficassem apagadas. A escuridão era tão pesada quanto um manto. Onde estava a porta?

- Vadia!

O sibilar distorcido fez com que arrepios percorressem a espinha de Amélia e ela congelasse no lugar. Ela estava com medo de se mover. Medo de que ele descobrisse sua localização. Tateando pelo chão, sua mão encontrou com a perna de um móvel. Uma escrivaninha, ela se lembrou, tendo visto o quarto adjunto de Robert anteriormente quando subiu para um descanso antes do jantar.

Vagarosamente Amélia ficou de joelhos. Ela procurou pelo tampo até que seus dedos agarraram algo frio e fino. Antes de ela ter tempo de identificar o objeto, ela foi puxada para trás e bateu contra o piso de madeira.

- Você é minha agora.

Embora ela não conseguisse ver Robert na escuridão, Amélia o sentiu se agigantando sobre ela. O hálito dele era podre, como o de um animal que come carne crua. Sua cabeça doía onde ela havia atingido o chão. O pescoço ardia por causa dos arranhões. Robert empurrou sua camisola para cima e forçou seus joelhos a se afastarem. A sensação das garras lisas e afiadas contra suas coxas fez com que a bile subisse em seu estômago.

Agora esse homem, essa coisa, que não podia ser Robert, a estupraria. A mãe de Amélia havia lhe dito que ela tinha de se submeter mansamente a Robert em sua noite de núpcias. Que ela devia fazer tudo o que ele lhe pedisse. Ao diabo que ela o faria! Agarrando com força o fino e frio objeto que tinha nas mãos, ela o levou para o alto e atacou.

Ouviu-se um som, um som que lhe lembrou do cozinheiro enfiando a faca na carne de carneiro crua. Robert subitamente uivou de novo, depois caiu de costas. Com o coração ainda disparado, Amélia virou-se de bruços e engatinhou para longe. Ela esperava que as mãos em forma de garras a agarrassem pelo pé a qualquer momento, esperava que Robert a matasse em sua raiva ferida. Ao invés disso, a porta de sua suíte adjunta foi subitamente arrombada.

Amélia havia deixado uma vela queimando em seu quarto. O brilho suave delineou a silhueta de um homem – um homem quase tão alto quanto uma árvore e forte como uma. A luz da vela dançava entre as faixas de seus cabelos dourados. Agora Amélia sabia que tinha de estar sonhando. Ela sonhava sempre com esse homem.

- Que diabos está acontecendo aqui? – ele disse com voz de comando.

Estranho. Ele nunca havia falado em seus sonhos antes. Se tivesse, ela teria conjurado apenas a voz com que ele havia falado agora. Profunda, baixa, perturbadoramente sensual. Apenas Lorde Gabriel Wulf teria uma voz assim. Apenas ele viria arrombar seus pesadelos para salvá-la. Mas é claro que ele não poderia realmente estar aqui. Isso realmente não poderia estar acontecendo. Ela riu da própria imaginação, mas ela não pode ignorar a ponta de histeria que o riso continha.

- Quem está aí? – ele perguntou.

Ele conversaria com ela se ela respondesse? Seu sonho ficava cada vez mais absurdo. – Lady Amélia. – ela respondeu. – Collingsworth. – ela acrescentou, então reprimiu outra risadinha. – Ou eu era. Acabei de matar meu marido.

Uma pausa estranha seguiu-se à sua declaração. A silhueta entrou mais para dentro do quarto. Amélia notou a forma escura de uma arma na mão dele. Oh, tristeza. Ele atiraria nela agora? O pesadelo passaria de Robert tentando matá-la para Gabriel Wulf se tornar o assassino?

- Onde está Lorde Collingsworth?

Amélia supunha que mesmo em sonhos ela tinha de responder para um homem carregando uma arma. – Lá, no chão ao lado da cama. – Se ela estivesse sonhando, e tinha de estar, o pesadelo era muito vívido. Ela jurava que sentia o sangue escorrendo pelo pescoço. – Robert...ele tentou me ferir. Ele...não é ele mesmo.

Por que ela se incomodava em explicar qualquer coisa quando nada em seu sonho fazia o menor sentido Amélia não sabia dizer. Mas talvez num nível mais profundo ela entendesse por que sonharia que seu marido de um dia tinha se tornado um monstro e por que Lorde Gabriel Wulf tinha aparecido para salvá-la. A sociedade era o verdadeiro monstro.

Fazer o que se esperava dela vinha como uma punição. Gabriel Wulf representava o lado rebelde de sua natureza. Ele representava a liberdade.

- Robert não está aqui.

Que ele repetisse as mesmas palavras que Robert rosnara para ela eriçou os pêlos de seus braços. Mais do que a lembrança dos eventos anteriores a enervava. Se Robert não estava lá, onde ele estaria?

Uma forma escura subitamente se projetou atrás do anjo loiro de Amélia. Um relampejar prateado brilhou na escuridão. O objeto se movia para baixo num movimento de esfaquear, direto para o ombro de Gabriel. Houve sons de briga. Uma pistola foi acionada. Amélia gritou e fechou os olhos, cobrindo os ouvidos com as mãos. Ela gritou novamente quando alguém a tocou.

- Não tenha medo. Não vou machucá-la.

Como um homem podia possuir uma voz que era altamente sensual e que ainda assim acalmava ao mesmo tempo? Ninguém poderia. Não a menos que fosse uma invenção de sua imaginação. Amélia se agarrou ao fino fio de sanidade e o manteve com ela. Ela podia acordar agora. Acordar antes de se jogar nos braços dele. Antes de o conforto se tornar algo mais. Mas ela não acordou, nem se jogou para cima de Lorde Gabriel Wulf. A porta do quarto de Robert de repente se abriu. Uma pequena chama brilhou lá.

- Milady? – uma voz feminina chamou. – Ouvi um tiro. O que está acontecendo?

Olhos arregalados de medo, uma figura magra pairava na porta. Amélia não conseguia se lembrar do nome da criada. Ela havia sido a única a cumprimentar Amélia e Robert quando chegaram a Collingsworth Manor. A garota, magra como uma vara e por volta da altura de Amélia, usava um vertido puído, um avental e uma touca que lhe cobria totalmente os cabelos. Amélia achava que ela tinha cerca de quinze anos e era certamente muito nova para assumir as responsabilidades que tinha em Collingsworth Manor.

Robert tinha ficado muito nervoso ao saber que todos os seus criados, menos a garota, tinham partido. Apenas um homem tinha ficado tomando conta do estábulo. Seu marido disse para Amélia subir e descansar enquanto ele verificava o que estava acontecendo. Mas mais tarde, quando a garota havia ido buscar Amélia para o jantar, Robert estava agindo completamente diferente. Ele não quis discutir sobre o que descobrira.

- Milady? – a garota chamou novamente.

- Traga a luz até aqui, garota! – Gabriel Wulf ordenou. – Rápido!

Como de uma grande distância, Amélia viu a chama tremeluzente da vela se aproximando. A garota se curvou ao lado dela, a vela jogando um brilho assombrado pelo quarto escurecido. O olhar de Amélia procurou por Gabriel Wulf. Ela o vira uma vez cavalgando pelas ruas de Londres com o irmão mais velho, Lorde Armond Wulf. Naquela época ela tinha achado Gabriel Wulf o homem mais lindo que já tinha visto...e ele ainda era.

Era ele mesmo. Ela devia estar olhando embasbacada para ele como uma criada, mas ele estava ocupado olhando para ela, provavelmente procurando sinais de ferimentos, possivelmente olhando para seus seios, que sem duvida estavam aparecendo pela frente rasgada da camisola. Ele gentilmente tocou o pescoço dela e Amélia se contraiu. O olhar dele subiu para encontrar o dela. Na turva luz da vela, os olhos dele se arregalaram um pouco.

- Você! – ele disse suavemente, embora ela não tivesse idéia do que ele queria dizer com isso.

A cabeça de Amélia começou a girar. Sua visão ficou borrada. A escuridão se fechou ao redor dela, e o rosto de Gabriel Wulf se distanciava cada vez mais. Ela nunca havia desmaiado em sua vida, mas compreendeu que era exatamente isso que estava prestes a fazer.

 

Lorde Gabriel Wulf pegou a mulher inconsciente em seus braços e se levantou. Se não estivesse com a adrenalina correndo em seu sangue como um fogo selvagem nesse momento, ele estaria mais consciente da ferida da faca em seu ombro e da ainda mais séria ferida de bala em sua coxa. Ele carregou a mulher para o quarto adjacente e a colocou na cama.

- Água. – ele disse por cima do ombro para a criada. – E panos limpos para lavar o sangue.

Ele tocou o pescoço da lady novamente. Dois arranhões profundos desfiguravam sua pele pálida. Ele olhou para o rosto dela, certificando-se de que ela era, de fato, quem ele pensava que era. A pele dela era como mármore branco. Macios cachos loiros emolduravam seu rosto, e os olhos dela, quando abertos, tinhas cílios abundantes e eram azuis como o ovo do pintarroxo. Seu rosto era oval e ela tinha uma leve covinha no queixo.

Ela era linda, o que supostamente era a razão de ela ter atraído seu olhar nas ruas de Londres meses atrás para começar. Ele nunca a encontrara, mas desde daquele dia ele sonhava com ela. Frequentemente.

- A água, milorde.

Mesmo carregando uma jarra de louça com água e panos de limpeza enfiados debaixo do braço, a jovem criada se movia tão silenciosamente quanto a noite se transformava em madrugada. Ela colocou a jarra próxima a uma bacia que ficava ao lado da cama.

- Onde estão os outros criados? A governanta chefe? – ele perguntou à garota.

- Partiram. – ela sussurrou. – Todo mundo partiu. Assustados.

Gabriel despejou a água fresca da jarra na bacia vazia. – Assustados com o que? – Ele passara uma grande parte da infância em Collingsworth Manor e nunca houve nada a se temer por aqui.

Por um momento a garota não respondeu. Gabriel olhou para ela. – Temo que se contar ao senhor, milorde, o senhor pensará que tenho sou uma louca.

- Tente. – ele disse secamente. Gabriel estava tentando muito ignorar a dor em seu ombro, o latejar em sua perna e o fato de que acabara de atirar em seu amigo de infância.

- Feras, milorde. – a garota murmurou. – As feras na floresta que cercam a casa. Às vezes são lobos. Mas às vezes são homens.

Um homem normal realmente pensaria que a garota fosse louca. Gabriel não era um homem normal. – Você viu essas criaturas, garota?

Abaixando os olhos, ela acenou com a cabeça. – Sim, milorde.

Gabriel pegou os panos limpos que a garota trouxera e mergulhou um na água. – E ainda assim você ficou quando todos os demais fugiram? Você é assim tão corajosa?

Ela levantou a cabeça rapidamente e a sacudiu de modo vigoroso. – Não, milorde. Eu não tinha para onde ir. Não tenho família a não ser meu irmão, e ele está fora trabalhando Deus sabe onde. Era nova aqui na casa quando esse negócio começou. Ninguém me convidou para que eu fosse junto. Era cada um por si quando eles fugiram.

Tocando gentilmente no pescoço da mulher inconsciente, Gabriel perguntou. – Por que você não atendeu quando chamei lá embaixo? Vi que havia luzes acesas pela casa.

- Não atendo a porta por esses dias. – ela disse. – Não com esses negócios estranhos ocorrendo.

Gabriel ainda não estava certo com que “negócios” ele tinha se deparado. O que levara Robert a atacar a própria noiva? A atacar Gabriel também. Ele apenas parara em Collingsworth Manor por causa do latejar da ferida em sua coxa e por seu estar cavalo manco. Não havia ninguém no estábulo quando ele deixara seu cavalo.

Ele havia considerado em simplesmente roubar um dos cavalos de Robert e continuar até Wulfglen, sua propriedade familiar, que fazia fronteira com Collingsworth Manor, mas ele e Robert haviam sido amigos de infância. A consciência exigia que Gabriel pelo menos pedisse para usar um dos cavalos.

Quando ninguém respondera aos chamamentos de Gabriel à porta, ele se resignara de que realmente seria forçado a levar um dos cavalos de Robert e se explicar mais tarde. Então ouvira os gritos. Ele tentou a porta novamente, mas estava firmemente trancada. Lembrando-se da árvore que ele e seus irmãos frequentemente desciam próxima ao quarto de Robert, quando iam nadar nus tarde da noite num lago não muito distante da casa, Gabriel escalou a árvore para conseguir entrar na casa.

Uma vez dentro da casa, os gritos o conduziram até esse quarto, onde ele compreendeu que vinham realmente da suíte adjacente. A dama gemeu e ele olhou para ela novamente. A camisola dela estava rasgada, e embora ele tentasse não notar, seus seios pálidos estavam parcialmente expostos à sua visão. Ele desviou os olhos.

- Cuide dela. – ele disse a garota, colocando o pano ensangüentado de lado. – Ache algo para cobri-la.

Ele se levantou, pegou uma vela e foi para o quarto ao lado. Gabriel meio que esperava que Robert o atacasse novamente, embora estivesse completamente certo de que o tiro de pistola a curta distância tinha matado o homem. Ele ainda não conseguia acreditar que tinha matado Robert ou que seu amigo de infância o esfaqueara. O Robert que ele conhecera era um garoto tímido e frágil.

A amizade entre eles havia acabado anos atrás. Todas as amizades anteriores de Gabriel haviam acabado quando se descobriu que a família Wulf era amaldiçoada.

Aproximando a vela do chão, embora ele não tivesse necessidade de mais luz, Gabriel procurou pela área. Ele via muito bem na escuridão, mas o que via o confundia. Não era Robert Collingsworth que jazia morto no chão vitima de ferimento de bala.

- Garota. – ele chamou. – Venha aqui,

Quieta como um rato ela apareceu ao lado dele.

- Quem é esse homem? – Gabriel perguntou a ela.

A criada respirou profundamente. – É Vincent. Ajudante de estábulo – o único que não fugiu. O que ele estava fazendo no quarto de dormir do patrão?

Uma questão que Gabriel também queria que fosse respondida. O que o homem estava fazendo, ou tentando fazer, era óbvio. Ele estava nu. Onde estava Robert? Como ele deixara algo assim acontecer?

- Atenda a dama. – Gabriel disse a garota. – Vou procurar por Lorde Collingsworth.

- Não vá lá para fora. – ela advertiu. – O senhor pode não voltar.

Gabriel suspeitava que a imaginação da menina a fizesse ver coisas, embora soubesse que existiam coisas como homens mudando de forma. Anos antes, o pai de Gabriel se matara por causa de tal transformação. A mãe de Gabriel seguira o pai para a sepultura pouco tempo depois, como resultado do choque ou loucura. Toda a sociedade acreditava que os Wulfs eram amaldiçoados com a insanidade, e eles foram então excluídos do círculo social. Gabriel sempre pensou que a sociedade era caso de risos. Se apenas fosse um mero caso de loucura.

Gabriel se encaminhou para a porta que levava ao corredor. – Feche aquela porta. – ele indicou a do quarto adjacente, embora ela estivesse precariamente presa em suas dobradiças. Um resultado do pé de Gabriel.

- E quanto a... a ele? – a garota indicou com a cabeça o corpo no chão.

- Cuidarei dele mais tarde. – ele garantiu a ela.

Depois de deixar o quarto de Lorde Collingsworth, Gabriel soprou a vela que carregava. Ele tinha uma extraordinária visão no escuro. Ele tinha uma audição extraordinariamente boa. Ele tinha um bom número de coisas extraordinárias sobre ele. Ele decidiu checar os quartos do andar superior primeiro.

Nada parecia fora de lugar no piso superior. Foi somente nas escadas que conduziam ao piso inferior que ele começou a tomar consciência de seus ferimentos novamente. Por meses ele havia procurado por seu irmão mais novo Jackson. O tolo tinha desaparecido de Londres, e Gabriel prometera ao irmão mais velho, Armond, que encontraria Jackson. Não fora fácil rastreá-lo.

Finalmente, Gabriel encontrou a trilha de Jackson em uma pequena vila chamada Whit Hurch. Gabriel cavalgara até a vila para perguntar se alguém sabia ou não sobre as andanças de seu irmão, apenas para ser emboscado por aldeões raivosos carregando forcados e mosquetes. Os aldeões obviamente o confundiram com Jackson. Gabriel levou um tiro na coxa antes de ser capaz de subir em seu cavalo e conseguir fugir da multidão.

Eles o perseguiram. Ele gastou boa parte de uma semana tentando enganá-los. Ele passara boa parte de outra fazendo seu caminho de volta à Wulfglen. Por tudo que sabia, seu irmão idiota havia voltado para casa. Agora isso.

Os salões lá embaixo estavam vazios. O escritório, também. Na cozinha, uma panela de ensopado fervia em fogo brando no fogão. Gabriel mancou até a despensa. Não muito bem abastecida, e vazia a não ser pelos artigos essenciais. Ele encontrou uma porta que conduzia para baixo ao porão de armazenagem.

As escadas rangeram devido a seu peso. Sua coxa latejava. Estava mais escuro que o breu, mas ainda assim, ele via as formas. Um rato apressado – mercadorias que precisavam de uma temperatura mais fresca para não estragarem. O porão cheirava como sujeira úmida e... ele parou. Gabriel fechou os olhos por um momento e inalou. Morte.

Gabriel se aprofundou dentro do porão, já certo do que encontraria. Robert jazia sobre o chão sujo e úmido, olhando sem ver para cima, seu rosto uma máscara de horror, uma mão agarrada ao coração. Ele estava morto.

 

Aquele cheiro horrível. Amélia voltou da escuridão com rapidez. Ela lutou para remover o cheiro ruim que estava debaixo de seu nariz.

- Pronto, milady. São apenas os sais que a trouxeram de volta.

Amélia tossiu. Ela olhou ao redor do quarto, confusa. Não era seu quarto em Londres. O pesadelo voltou rapidamente. Calafrios subiram por sua pele. Estaria sonhando ainda? Deus, ela esperava que sim.

- Me belisca. – ela sussurrou para a criada. – Me belisca para que eu possa acordar.

Os grandes olhos da garota se suavizaram. – A senhora não está sonhando, milady. A senhora levou um terrível susto.

Amélia olhou para a porta que unia seu quarto ao de seu marido. Estava fechada, mas estava estranhamente aprumada nas dobradiças. Gabriel Wulf havia arrombado a porta. Ou ela pensara que era Gabriel Wulf.

- Havia um homem...

- Eu sei, milady. – a garota disse. – Do estábulo, e não sei como ele conseguiu entrar na casa, ou no quarto do jovem senhor. Ele está morto agora. O outro homem o matou.

A cabeça de Amélia começou a rodar novamente. – O que? De que homem do estábulo você está falando?

- Vincent. – a garota respondeu. – Ele está morto no quarto ao lado. Não conheço o outro homem. Alto como um carvalho e quase tão largo nos ombros. Não tenho idéia de como cada um dos homens entraram na casa. Eu mesma tranquei as portas.

- Mas. – Amélia esfregou as têmporas doloridas. – Mas era Lorde Collingsworth no quarto ao lado. Eu o vi à luz das velas quando ele bateu na porta e me convidou a me juntar a ele.

A garota franziu a testa. Ela sacudiu a cabeça novamente. – Não era seu marido lá. Vincent, do estábulo. Foi ele quem tentou machucá-la. O outro homem saiu à procura do senhor.

Deitando-se contra os travesseiros, Amélia tentava digerir o que a garota lhe contara. Fora Robert quem chamara Amélia para se juntar a ele na cama. Como podia o que essa criada disse ser verdade? Mas por que ela mentiria para Amélia? E se não era um pesadelo, era realmente Gabriel Wulf quem saíra à procura de Robert?

E se fosse, o que Gabriel Wulf estaria fazendo em Collingsworth Manor?

A porta do quarto dela se abriu. Um gigante loiro entrou. Lorde Gabriel Wulf. Ele olhou para Amélia, depois para a garota. – Você arranjaria algo para que bebêssemos? Algo forte?

A garota acenou. Ela se moveu em direção à porta, mas hesitou, seus olhos arregalados e amedrontados. – Tem certeza de que é seguro?

- Está tudo bem. – Wulf disse. – Não há ninguém na casa. Eu me certifiquei.

Relutantemente, a garota continuou se dirigindo para a porta.

- Traga um pouco do ensopado que está no fogão. – Wulf disse a ela. – A dama provavelmente precisa de alimento.

Amélia olhou para Gabriel Wulf cautelosamente. Era uma noite para se ter cautela, se ela de fato não estivesse sonhando. – O que o senhor está fazendo aqui?

Ele oscilou um pouco e olhou ao redor do quarto. – Uma daquelas cadeiras delicadas se quebraria debaixo de mim. – Ele indicou duas cadeiras Queen Anne colocadas perto da lareira de Amélia. – Posso me sentar na cama? É minha perna.

Ela notou uma mancha escura cobrindo a coxa da calça de camurça dele. – O senhor está ferido?

Sem esperar pela permissão dela, ele mancou para frente e largou-se no macio colchão dela. – Foi por isso que parei. Por isso e porque meu cavalo está manco. Planejava pedir para Lorde Collingsworth um cavalo emprestado e continuar até Wulfglen, mas...

Ainda confusa, Amélia sussurrou. – A garota disse que o homem no quarto ao lado não é Robert. Eu lhe digo que tem de ser. Foi ele quem bateu em minha porta e me convidou para me juntar a ele.

Cílios escuros e espessos cobriam o olhar de Wulf até que ele olhou para ela. Os olhos dele eram verdes vivos, não acastanhados, nenhum pouco de castanho – verdes, como a primavera. Pêlos escuros sombreavam sua mandíbula forte. Seus cabelos eram loiros escuros com mechas tão claras que quase pareciam prateadas na luz das velas. Para um homem grande, suas feições eram refinadas. Pequeno nariz reto, sobrancelhas escuras, altas maçãs do rosto e uma boca perfeitamente esculpida para combinar com o resto de sua aparência. Ele era de tirar o fôlego.

- Lorde Collingsworth está morto. – Wulf disse com simplicidade. – Eu o encontrei no porão de armazenamento.

Amélia o encarava inexpressivamente. Ela temia que estivesse em choque e as palavras dele não conseguiam penetrar em sua mente. Os eventos que conduziam ao agora não podiam penetrar. Ela não amava Robert. Ela se casara com ele porque ele era um bom partido e seus pais o aprovaram. Amélia havia tentado se enganar tentando acreditar que um dia viria a amá-lo, mas ela não acreditava no amor. “Amor” era uma palavra bonita usada no lugar de “desejo” ou “dever”.

- Morto. – ela repetiu, abalada, embora pouco tempo atrás ela achasse que ele estava morto no quarto ao lado. – Morreu de que?

Wulf passou a mão pelo rosto. – Pelo que pude observar, do coração. Não encontrei nenhum arranhão nele.

Lágrimas queimavam os olhos dela. Amélia as afastou. Não importava se ela amava ou não Robert; ele era seu marido. Ela não o desejava morto. Mimada e protegida a vida toda, Amélia havia esperado que seu jovem marido continuasse nesse caminho. Agora ele estava supostamente morto. E o homem no quarto ao lado supostamente não era seu marido mesmo. Não fazia sentido.

- Isso não pode estar acontecendo. – ela sussurrou. – Eu juro para o senhor, era Robert no quarto ao lado comigo anteriormente. Não houve tempo para que trocassem de lugar.

Wulf escorregou para perto da bacia que estava no criado mudo, agarrou um pano e o torceu. – Seu pescoço. – ele disse. – Está sangrando de novo.

Ela ainda sentia o ardor dos arranhões. Ele limpou a área gentilmente. Amélia teve a boa vontade de olhar para si mesma, aliviada ao descobrir que estava coberta por uma fina manta. Seu penhoar estava colocado ao lado dela na cama.

Sua camisola era fina e um pouco ousada para uma recém casada, mas Amélia sempre tinha sido um pouco ousada. O material transparente se rasgara facilmente debaixo das...garras de Robert. Ela estremeceu.

- Vou acender o fogo. – Lorde Gabriel obviamente interpretou sua reação como sendo de frio. Ele colocou o pano que usara para limpar o sangue de seu pescoço na bacia, levantou-se e mancou em direção à lareira.

A garota entrou pouco depois. Um aroma celestial flutuava de duas tigelas fumegantes na bandeja que a criada carregava. Amélia juraria que não conseguiria comer numa hora dessas, mas seu estômago não concordou dando um pequeno rugido.

- Eu trouxe o ensopado. – a garota se dirigiu a Wulf. – E uma garrafa de brandy. Achei que poderia ajudar a aquecer a dama.

Apesar de jovem, a menina parecia ser madura para a idade. Amélia, contudo, sabia que estava próximo da histeria. Os eventos da noite pareciam irreais. Como um sonho, ou melhor, um pesadelo. Collingsworth Manor havia lhe provocado uma sensação de temor no momento em que ela e Robert chegaram.

A casa não era tão grande quanto imaginara. Era construída com pedra branca esfarelada. Arbustos sem folhas e espinhentos cercavam a casa. Morte. Todo o verde que cercava a casa estava morto e mal conservado. Havia um lindo arco que conduzia ao quintal, mas a hera que conseguira sobreviver era pouca e feia. Todas as persianas precisavam de pintura. A casa parecia estar desmoronando. A condição da propriedade rural de Robert a surpreendera. A surpreendera e agoniara.

Robert havia garantido ao pai dela que cuidaria apropriadamente dela. Que ela teria sempre o melhor, como estava acostumada. Seu noivo rira ao ver sua expressão quando chegaram a Collingsworth Manor. Robert lhe dissera que ela teria liberdade total para tornar a casa apresentável novamente.

Como solteiro, Robert admitiu que não tinha talento para tal coisa e nem se interessava por elas. Seus cavalos eram tudo o que mais lhe interessava em Collingsworth Manor. Os cavalos e a rica terra para plantação... mas os campos pareciam negligenciados quando passaram por eles. Robert não disse nada, mas ela percebeu que ele ficou meditando sobre o assunto no restante da viagem. Chegar e descobrir que a maioria dos criados havia fugido apenas piorou o mau humor dele.

- O cocheiro. – Amélia subitamente se lembrou. – e o lacaio. Eles nos acompanharam de Londres. Devem estar no estábulo.

Agora com o fogo queimando atrás dele, Wulf mancou de volta para a cama. – Não havia ninguém no estábulo. – garantiu a ela. – Eu entrei chamando para não ser confundido com um ladrão de cavalos.

- Talvez eles tenham fugido como todos os outros. – a garota disse suavemente.

Ao falar, a garota atraiu a atenção de Wulf. – Coloque a bandeja aqui. – ele instruiu, apontando para uma arca com espelho. Ele se contraiu e esfregou o ombro. Sangue manchava sua camisa bem como suas calças empoeiradas.

Amélia se lembrou que Robert, ou melhor, quem quer que estivesse no quarto ao lado com ela, havia esfaqueado Lorde Gabriel. E assim estava ele, fazendo confusão por causa de uns arranhões no pescoço dela, enquanto o homem poderia estar sangrando até a morte.

- Lorde Gabriel, - Amélia chamou. – por favor, venha e sente-se. O senhor precisa cuidar desses ferimentos.

Ao invés de obedecer, ele caminhou até a arca, levantou a garrafa de brandy, encheu dois copos, bebeu o conteúdo de um, e trouxe o outro para ela.

- Há tempo de sobra para isso depois. – ele disse estendendo o copo para ela. – Beba isso. Vai queimar no começo, mas depois a senhora se sentirá fortalecida.

Ele não precisou pedir duas vezes. Amélia pegou o copo, trouxe-o aos lábios e bebeu o conteúdo sem parar. Quando terminou, notou a sobrancelha de Wulf arqueada. – Já bebi brandy antes. – ela explicou. – Na realidade, foi sua cunhada, Lady Wulf, que me apresentou a ele.

- Rosalind?

Ela concordou com a cabeça. – Somos as melhores amigas.

Wulf então se sentou, e na beira da cama dela. – Como a senhora sabe o meu nome?

Quão tola Amélia se sentia agora por todas as horas que passara pensando em Gabriel Wulf quando deveria estar pensando em Robert, que ao menos lhe fizera a corte. Ela apenas vira Lorde Gabriel uma vez, e ele permanecera em seus pensamentos. Mesmo nessa manhã, quando ela dizia os votos, a imagem dele apareceu em sua mente.

- Eu o vi uma vez em Londres. Mais tarde, eu o reconheci no retrato que fica na casa de sua família na cidade. Rosalind me disse o seu nome. – Ela levantou o copo vazio. – Posso beber mais?

Wulf olhou para a garota, que rapidamente pegou a garrafa. Enquanto a criada servia, Amélia tentou juntar suas forças. Sentindo os olhos de Gabriel sobre ela, ela se forçou a pelo menos bebericar o líquido dessa vez. – O senhor se voltaria enquanto visto meu penhoar? Quero me levantar e minha camisola está rasgada.

Por um breve segundo, os olhos de Wulf se moveram pelo corpo dela e subiram novamente. – Eu percebi.

Era uma coisa estranha a se dizer perante tudo o mais que estava acontecendo. Ele percebera que sua camisola estava rasgada, seus seios pulando para fora. Apesar de estranho, fez com que ela sentisse um formigamento por ele ter percebido. Amélia não era tão pudica quanto seu jovem marido. Ela havia chocado Robert frequentemente durante a corte deles. Depois ele a chocara. Só que, supostamente, não havia sido Robert quem a atacara.

- A senhora deve permanecer na cama. – Wulf disse. – Estou certo que damas com sua sensibilidade podem desmaiar novamente, e, verdade seja dita, meu ombro dói tanto que não tenho certeza se poderei carregá-la uma segunda vez.

A resposta dele a chocou um pouco. Não era uma coisa muito cavalheiresca de se dizer, mas Amélia sabia que Gabriel Wulf não era um cavalheiro. Isso era, ela supunha, parte de seu charme sombrio para ela. – Eu não vou desmaiar. – ela disse com certeza, e rezou para que fosse verdade. – Se o senhor não se virar, eu simplesmente vou desnudar meus seios para o senhor.

Suas sobrancelhas se elevaram. Agora ela havia conseguido chocá-lo. Amélia teria sorrido se as circunstancias não tivessem lhe roubado essa capacidade.

- Talvez o senhor deva se retirar por um momento, milorde, enquanto eu ajudo a dama a vestir o penhoar.

Amélia quase tinha se esquecido da presença da garota.

- Ele mal consegue ficar em pé sem oscilar nos próprios pés. – Amélia rejeitou a sugestão. – Se ele desmaiar, duvido que nós duas juntas consigamos levantá-lo.

O canto da boca de Gabriel se elevou, numa sugestão de sorriso. – Acredito que ambos fomos devidamente colocados em nosso lugar. – ele disse a garota.

A criada não sorriu, mas se aproximou para ajudar Amélia a vestir o penhoar.

- Qual é mesmo o seu nome? – Amélia perguntou a ela.

- Mora, milady. – ela respondeu.

- Mora diz que existem feras cercando a casa. Lobos que se transformam em homens, e vice versa. A senhora acredita em tais coisas, Lady Collingsworth?

Wulf mantinha o olhar fixo em frente enquanto Mora ajudava Amélia a vestir o penhoar. Era estranho ser chamada de “Lady Collingsworth”. Esposa por um dia e agora viúva. Amélia tinha dificuldade em captar o que estava acontecendo...mas não estava louca.

- Claro que não. – ela respondeu. – Sem ofender a menina, mas tais coisas são folclore. Histórias criadas para assustar crianças nos vilarejos para que elas não fiquem vagando a esmo e se percam nas florestas.

Amarrando as fitas de seu penhoar, Amélia observou a garota, esperando demonstrar nessa expressão que ela não a culpava por acreditar em coisas que não existiam. Elas tinham experiências muito diferentes.

A garota, em resposta, apenas desviou os olhos, abaixando a cabeça de forma submissa.

- Mora, você poderia pegar os itens necessários para cuidarmos dos ferimentos de Lorde Gabriel?

Mora deslizou silenciosamente para fora do quarto. Amélia passou ao lado de Wulf se dirigindo à arca com espelho, pegou uma tigela de ensopado e levou até ele. Ela nunca havia servido a ninguém antes, exceto chá, mas sob as atuais circunstâncias pensou que era melhor não se comportar de forma muito afetada.

- Penso que vai precisar se fortalecer. – ela disse. – Está com fome?

Quando ele pegou a tigela, seus dedos roçaram nos dela. As mãos dele não eram macias...não como as de Robert, mas um estranho formigamento correu pelo seu braço. – Não me lembro da última vez que comi algo descente. – ele admitiu. – Estou sempre correndo.

Amélia sentiu as pernas subitamente vacilantes debaixo da camisola rasgada. Com medo de realmente desmaiar novamente, ela se sentou ao lado dele na cama, embora considerasse tal coisa inapropriada. – Correndo? – ela perguntou.

Apesar do fato de que Wulf provavelmente estivesse faminto, ele comia com modos. Ele mastigou e engoliu antes de responder. – Procurando por meu irmão Jackson. Ele desapareceu de Londres alguns meses atrás.

- Lorde Jackson? – Amélia olhou para ele. – Eu o vi essa manhã em meu casamento. Seu irmão e a adorável esposa dele, Lady Lucinda.

Wulf estava com a colher próxima à boca. Ele a abaixou. – Esposa?

Presumindo pela expressão atônita que Lorde Gabriel não estava ciente das recentes núpcias de seu irmão mais novo, Amélia perguntou. – O senhor não sabia que seu irmão havia se casado?

Ele havia comido umas duas colheradas de seu ensopado, mas colocou a tigela no criado mudo ao lado dela. – Eu nem mesmo sabia que ele havia voltado para casa, quanto mais que tinha se casado.

Agradecida por qualquer distração no momento, Amélia disse. – Houve certo escândalo ligado ao fato. Dizem que Lady Lucinda é uma bruxa, mas eu gosto dela. E a criança é adorável.

Os olhos de Lorde Gabriel, tão verdes quanto as primeiras gramas da primavera, se arregalaram. – A criança?

- Um menino. – ela acrescentou. – Seu nome é Sebastian. Não se parece em nada com o pai, veja bem, mas é um lindo bebê mesmo assim.

Wulf correu uma mão sobre seus cabelos e sacudiu a cabeça. – Preciso ir para casa.

Amélia sentia mais do que a dor da saudade de seu lar. Ela queria ir para casa, também. Ela ansiava por estar lá nesse minuto, segura debaixo do teto de seus pais.

Mora entrou, seus braços carregados. Gabriel se aproximou e pegou um jarro com água limpa e os panos que estavam com a garota. Mora despejou os itens restantes sobre a cama. Havia bandagens, tesouras e um par de pinças de aparência imunda.

- Trouxe tudo o que me lembrei de trazer. – a garota disse. – Já cuidei de um ou dois arranhões antes.

Amélia não tinha a menor idéia de como cuidar de coisa alguma a não ser de sua higiene pessoal ou comparecer a seus eventos sociais. Ela se sentiu um tanto quanto inútil e se perguntava se seria capaz até mesmo de olhar para as feridas de Gabriel, quanto mais de enfaixá-las.

- Verei o ombro primeiro. – a garota disse. – O senhor vai precisar tirar a camisa, milorde.

Ele o fez sem nem mesmo pensar, puxando a camisa rasgada e suja de suas calças justas, então a tirando pela cabeça, embora se contraísse novamente por ter de movimentar o ombro. Amélia pensou que não suportaria olhar, mas ao contrario, ela parecia não conseguir desviar os olhos.

O peito dele era macio, de um bronzeado profundo, e ele tinha mamilos achatados e cor de cobre. Seu estômago não tinha um grama de gordura. Seus ombros eram largos e musculosos, então ela viu a ferida, o sangue e teve de desviar os olhos.

- Não está tão ruim. – a menina murmurou. – Poderia ser pior. Não acho que precisará de pontos para fechar.

O estômago de Amélia girou. Ela caminhou de forma instável até a arca. O cheiro do ensopado que havia feito seu estômago roncar anteriormente, agora lhe dava náuseas. Ao invés disso, ela alcançou a garrafa de brandy.

- Eu não beberia muito disso. Pode deixá-la nauseada.

Ela olhou por cima dos ombros e viu Wulf observando-a enquanto a garota enfaixava seu ombro. Agora que a ferida estava coberta pela faixa branquinha, Amélia achou que podia olhar para ele sem se sentir enjoada. – Não faz efeito sobre mim. – disse a ele. – Bebi bastante uma tarde com Lady Wulf e nunca senti qualquer efeito ruim.

- Precisamos conservar nossa mente afiada. – ele a advertiu apesar de sua resposta.

Amélia franziu a testa para ele. – Se mais alguma coisa ruim acontecer essa noite, prefiro estar bêbada como um gambá.

Ele quase sorriu novamente, e ela ficou imaginando como seria ele sorrindo. Quando ele falava, ela via que ele tinha dentes brancos e certinhos. A garota recuperou a atenção dele.

- Agora a perna. – o rosto de Mora ficou vermelho. – O senhor vai ter que tirar as calças, milorde.

Apenas o pensamento de ver Gabriel Wulf nu, fez com que Amélia fosse inundada pelo calor. Ela olhou seu copo de brandy. Talvez fosse o álcool. Uma recém casada não deveria ter tais pensamentos com outro homem em sua noite de núpcias. Ela colocou o copo de lado e se virou para ele.

- O senhor pode usar o cobertor que está na cama para se cobrir. – ela disse. – Mora e eu ficaremos de costas enquanto o senhor se despe.

Ele deu de ombros como resposta. – Para mim não faz diferença de modo algum. – ele se levantou e começou a desamarrar suas calças empoeiradas e manchadas de sangue. Amélia percebeu que nem ela nem a jovem criada haviam se afastado da visão até que ele quase tinha terminado.

- Mora, junte-se a mim. – ela instruiu. A garota veio obedientemente se postar ao lado dela. Amélia levou um minuto a mais para realmente se desviar da visão de Gabriel Wulf perto de tirar suas calças na frente de Deus e de quem mais se importasse em olhar.

Ambas, Mora e ela ficaram encarando a arca com espelho. Amélia passou o tempo todo evitando a tentação de olhar pelo espelho na esperança de ver Wulf despido. O álcool devia tê-la de fato afetado, e ainda assim ela agarrou a garrafa para se fortalecer novamente.

- É melhor deixar sobrar um pouco disso. – disse Mora. – Vou precisar para limpar a ferida depois de ter tirado a bala dele.

Curiosa, Amélia perguntou.

– Ele lhe disse que tinha sido baleado?

A garota enrubesceu.

– Não. Não foi preciso. Já vi tais feridas antes. Não cresci num lugar particularmente descente, milady.

- Tudo bem, estou coberto. – Wulf disse atrás delas, interrompendo a conversa. – Rápido, garota. Ainda tenho muito a fazer essa noite.

Elas se voltaram para ver Gabriel sentado na cama. O cobertor estava amarrado ao redor de sua cintura, aberto de tal forma a permitir que a perna ferida fosse cuidada. Amélia nunca tinha visto a perna nua de um homem antes. Apesar de a moda masculina deixar pouco à imaginação nessa época, era totalmente diferente ver a perna nua de um homem do que simplesmente ver a forma dessa perna delineada através das calças justas ou dos colantes.

Mesmo ferida, a perna de Gabriel Wulf era algo a ser admirado. Era longa e musculosa e coberta por pêlos loiros. Amélia ficou olhando bestificada conforme Mora entrava em ação. Ela supôs que observou todo o procedimento, parada de forma entorpecida enquanto a garota retirava a bala da coxa de Gabriel Wulf com a longa pinça de aparência suja. Ele cerrou os dentes e o suor brotou em sua testa, mas fora isso, ele reclamou pouco.

- A bebida, milady. – Mora pediu a ela. – Se a senhora não se importar em me passar a garrafa.

Grata por ter algo a fazer, Amélia pegou a garrafa da bandeja e trouxe até a cama. Ela tomou outro gole da garrafa antes de entregá-la a Mora. A garota, por sua vez, ofereceu o brandy a Gabriel.

- Para se fortalecer. – ela disse. – Vai arder ferozmente.

Ele concordou, pegou a garrafa, bebeu, e a devolveu. Uma excitação estranha percorreu Amélia ao pensamento dele colocar a boca onde a dela havia estado. Como se sentisse que ela o observava, o olhar verde de Wulf se levantou para ela. Ele a olhou bem dentro dos olhos enquanto a menina derramava a bebida sobre sua coxa ensangüentada.

Ele nem mesmo estremeceu.

- Agora vou ter de dar pontos. – Mora disse. – Então estará terminado. Se o senhor a mantiver limpa como vem fazendo, ela cicatrizará.

Wulf não respondeu. Ele continuou a encarar Amélia, e ela suspeitava que ele o fizesse para se distrair da dor. Ousada como era algumas vezes, ela começou a se sentir desconfortável devido ao intenso olhar dele. Amélia suspeitava que ele quase pudesse enxergar através de seu fino penhoar. Ela não era tão tímida quanto uma jovem deveria ser. Uma vez, ela fora corajosa o bastante para molhar seu vestido em um evento social. Sua mãe quase desmaiara quando vira Amélia surgir do quarto de visita superior, onde inúmeras outras damas estavam fazendo a mesma coisa.

Ainda assim, algo no modo como ele a observava...como uma raposa olha para um coelho, a deixava nervosa. E ela já estava nervosa o suficiente com tudo o que acontecera. Ela precisava fazer alguma coisa para evitar ficar pensando nisso.

- Vou ver se consigo encontrar algo limpo para o senhor vestir. – ela ofereceu. – Robert. – sua voz falhou e ela precisou de um momento para se recuperar. – Robert não era tão grande quanto o senhor, mas talvez eu consiga encontrar algo.

- Não precisa se preocupar com isso. – ele disse, e seu olhar finamente se afastou do dela para mirar a porta que separava esse quarto do de Robert. – Não vou pedir para que volte para lá.

De certa forma, Amélia precisava ver o corpo. Pelo menos para se convencer de que o homem não era Robert. Como sua mente poderia estar tão confusa? Como o homem conseguira enganá-la.

- Posso fazer isso. – ela sussurrou, incerta de quem ela estava tentando convencer mais: a si mesma ou a Gabriel Wulf.

 

Amélia levou uma vela com ela. Ela temia que a porta, mal e mal segura sobre suas dobradiças, caísse quando ela a abrisse. Ela não queria olhar para o chão onde sabia que o corpo do impostor jazia. Ela teria evitado isso, mas essa era sua intenção, além de tentar encontrar alguma roupa limpa para Gabriel Wulf usar. Respirando profundamente, ela olhou para o chão. Não havia ninguém lá.

Ela suspirou de alivio. Wulf obviamente havia removido o corpo durante ou depois de sua busca por Robert. Mais calma agora, Amélia caminhou até o guarda roupa de Robert e abriu as portas. Ela pensou que um camisolão serviria como camisa para Lorde Gabriel. Calças de qualquer tipo ela imaginou que não serviriam para ele. Ele era muito mais alto do que Robert, e as pernas dele, bem, suas coxas eram quase do tamanho de um tronco de árvore.

Agarrando um camisolão, ela se voltou e pegou a vela que havia deixado de lado. Algo brilhou no chão perto da cama. Parecia ser um abridor de cartas de prata. Sangue tingia a ponta dele. Ela estremeceu; então ela notou algo mais no chão. Amélia colocou o camisolão debaixo do braço, abaixou-se e pegou o objeto. Parecia ser a garra de um animal. Ela rapidamente o jogou.

Ao entrar no quarto adjacente, ela viu Mora acabando de se levantar do chão ao lado do paciente.

- Acho que terminei. – a garota disse a ela.

Amélia colocou a vela no banco próximo à cama e desdobrou o camisolão. – Isso vai ter que servir por enquanto. – disse.

Wulf pegou a roupa e começou a vesti-la, colocando primeiro seus braços musculosos nas mangas. Amélia estava encarando novamente.

- Muito obrigada por ter...por ter removido o homem. Pensei que devia olhar para ele apenas para me certificar de que não era Robert, mas...

- O que? – Wulf parou sua tarefa de passar o camisolão por sua cabeça. – O que você acabou de dizer?

- O corpo, você o removeu...não é?

Ele passou o camisolão pela cabeça e saiu da cama num instante. A porta quebrada não sobreviveu à violência com que ele a abriu e caiu das dobradiças. Chocada, Amélia simplesmente o observava. Ela o ouviu no quarto ao lado, ouviu-o praguejar, então o som de pés correndo pelo corredor.

Mas espere, não eram pés correndo que ela ouviu no corredor. Era o som de cavalos correndo. O estábulo!

Amélia abriu a porta e saiu pelo corredor. Ela captou o brilho do camisolão branco que Gabriel usava descendo pelas escadas. Ela olhou em seu quarto e viu a pistola dele colocada sobre a arca.

- Fique aqui. – ela instruiu Mora, apressando-se em pegar a pistola. Amélia saiu correndo do quarto e desceu as escadas. Lorde Gabriel havia deixado a porta da frente escancarada, e como ele conseguiu destravar tudo e ainda estar à frente dela, Amélia não tinha idéia. A poeira cobria o ar úmido lá fora, e ela tossiu. Alguém a agarrou por detrás.

- O que a senhora está fazendo aqui fora?

Amélia quase gritou; então ela sucumbiu contra ele com alívio. – A pistola. Achei que o senhor ia precisar.

Wulf estendeu a mão para frente e tirou a pesada pistola da mão dela. Amélia queria mais um tempinho para simplesmente se apoiar nele. Ele era sólido, forte e representava segurança.

- Alguém afugentou os cavalos. – ele disse. – Pretendo ir ao estábulo e descobrir quem. Volte para dentro da casa. Tranque as portas.

O que quer que a mente dela pudesse ou não aceitar essa noite, Lorde Gabriel representava segurança para Amélia. Ele a havia resgatado de um impostor inclinado a possuí-la à força. Ela não queria Lorde Gabriel fora de suas vistas. – Vou com o senhor. – ela insistiu.

Quando ele suspirou, seu hálito quente roçou o ouvido dela. Ela estremeceu. – Não posso cuidar de você e de mim ao mesmo tempo. – ele argumentou. – Faça o que eu digo, mulher!

Em choque, meio embriagada, o que quer que fosse, Amélia não era do tipo que tolerava esse tipo de fala de um homem. “Mulher?” Ele a chamara de “mulher”? – Eu raramente faço o que os homens que são meus parentes me ordenam – ela o informou. – Certamente não vou aceitar ordens de um estranho. Aposto que estou mais segura andando com um homem grande e forte como o senhor do que me escondendo dentro de casa com uma garota assustada!

As mãos dele estavam quentes através do fino tecido do penhoar de Amélia quando ele a virou para encará-lo. – Aquela garota está mostrando melhor bom senso do que você. Ela pelo menos sabe ficar quieta e não discutir com seus...

Ela piscou para ele. Estava escuro, mas a lua crescente tornava as feições dele legíveis. – Com seus o que? – ela perguntou – Seus superiores? Era isso que o senhor ia dizer?

Wulf não respondeu. Ele sacudiu a cabeça e murmurou algo junto com o texto – Deus nos livre das mulheres independentes. – Ele passou por ela. – Faça o que quiser, então. É o seu pescoço.

Amélia reconsiderava agora que ele realmente lhe dera permissão para segui-lo a um possível perigo. Ela olhou para trás, para a casa. Tudo estava escuro exceto a vela brilhando no quarto lá em cima. Ela viu o rosto pálido de Mora pressionado contra o vidro. A garota não inspirava a menor confiança de que seria útil de qualquer maneira caso Amélia fosse atacada novamente.

Gabriel estava na metade do caminho para o estábulo. Mesmo sem nada além do camisolão, suas longas pernas nuas, ele era uma visão formidável. Ela achou melhor ficar com ele.

 

A dama o desconcertava. Gabriel sabia que ela o seguia. Ela não era como qualquer outra senhorita de sociedade que ele conhecera, não que ele conhecesse muitas. Ela não era como suas noções preconcebidas de uma senhorita de sociedade. Talvez tivesse sido o brandy que lhe dera coragem, pois ele esperava que histeria e soluços constantes fossem mais o normal depois de ter sido atacava e enviuvado na mesma noite. Ao invés disso, a mulher o seguia no escuro, usando apenas um penhoar fino que revelava mais do que escondia.

Seu ombro e coxa doíam, mas ele tentava se concentrar na tarefa presente. O cheiro da dama o distraia. A lady no todo o distraia. Tudo nela o confundia. Do fato de tê-la visto antes e não ter sido capaz de esquecê-la, ao modo como ela mexia com ele, como nenhuma outra mulher mexera até agora. Ele se sentia atraído por ela desde o momento que a vira lá em cima, e em circunstâncias que tornavam ridículo qualquer outro sentimento além de preocupação pela segurança dela e tristeza por sua perda.

Gabriel não podia estar tendo tais pensamentos sobre uma mulher recém casada e agora viúva...uma que se casara com seu amigo de infância, Robert Collingsworth. Se ela estava decidida a segui-lo, contudo, Gabriel queria saber onde ela estava. Ele parou antes das portas do estábulo, que estavam escancaradas uma vez que os cavalos haviam sido soltos de suas baias. Quando Lady Collingsworth chegou ao lado dele, ele colocou um dedo nos lábios para avisá-la a ficar calada. Juntos, eles se arrastaram para dentro do estábulo. Não havia luz acesa e pairava um silêncio mortal.

Gabriel olhou ao redor, sua mão fechada na pistola que ele havia esquecido. Era vergonhoso para ele ter se esquecido de pegar a arma, mas ele sempre se saia bem com seus punhos na maioria das brigas. Ele ouviu o correr dos ratos no palheiro – o ranger do couro quando os arreios e os freios balançavam com a brisa através da porta aberta. Uma carruagem estava lá parada. Ele a notara antes quando cavalgara para dentro, mas não prestara muita atenção nela.

Onde estavam o condutor e o lacaio? Gabriel tinha o forte pressentimento de que sabia. Ele se voltou para Lady Amélia.

– Fique aqui. – ele disse; então caminhou até a carruagem e abriu a porta. Dois corpos jaziam lá dentro, ambos os homens com a garganta cortada. Ele rapidamente fechou a porta e voltou para Lady Collingsworth, agarrou o braço dela, e a conduziu na direção das portas do estábulo.

- O que foi? – ela sussurrou. – O que você viu?

Ele não respondeu. Algo estava terrivelmente errado em Collingsworth Manor. Ele tinha de levar a dama para dentro da casa e trancar as portas novamente. Eles estavam quase lá quando os uivos começaram. Ele e Lady Collingsworth congelaram em seu caminho.

O barulho vinha da floresta ao redor. Perto. Muito perto. Lobos? Que Gabriel soubesse os lobos estavam extintos há muito tempo na Inglaterra. E lobos não abriam baias e afugentavam cavalos. Eles não se atiravam na cama com uma recém casada e fingiam ser seu marido. Eles não assassinavam homens sem motivos.

- Parece que há uma centena deles. – a dama sussurrou ao lado dele.

Som, Gabriel sabia, viajava facilmente na floresta ao redor de Collingsworth Manor. Ele duvidava que houvesse tantos lobos como parecia. Ele também sabia ouvindo a direção de onde vinha cada uivo que respondia que eles estavam cercados.

 

Amélia abriu os olhos para uma visão confusa. Ela não estava em sua cama na casa de Londres. Do outro lado do quarto, um homem estava de pé de costas para ela, olhando pela janela aos primeiros raios da madrugada. Ele usava um camisolão e calças de camurça empoeiradas com botas até os joelhos. Seus cabelos passavam do colarinho, loiros escuros exceto pelas mechas mais claras. Gabriel Wulf. E ela não estava segura e protegida na casa dos pais. Ela estava no meio de um pesadelo.

- O senhor dormiu pelo menos um pouco? – ela perguntou. Lorde Gabriel se voltou da janela. Amélia tentou não prender a respiração. Bom Deus, ele era lindo, e obviamente era preciso mais do que estar aterrorizada para uma mulher não notar.

- Achei que era melhor permanecer acordado.

Ela olhou ao redor. – Onde está Mora? – Ele se aproximou da cama e ficou parado olhando para Amélia. – Lá embaixo. Ela disse que ia preparar o desjejum para nós. Uma jovenzinha muito prática, aquela lá.

Como oposto a uma nada prática, Amélia entendeu, como ela mesma. Ela deixou a afirmação para lá.

Havia coisas mais importantes com que se preocupar. – O que vamos fazer? – perguntou a ele.

Ele correu os dedos pelos cabelos. – Precisamos partir para Wulfglen.

Amélia franziu a testa. – Quer dizer andando? Os cavalos se foram.

Sem ser convidado, ele se sentou na beirada da cama. Amélia supôs que era muito bom para ele que ela não fosse muito prática, pois ela sabia que era uma indecência ele fazer tal coisa.

- A pé, levaríamos alguns poucos dias. – ele disse. – Mas se o fizermos pela estrada principal, podemos encontrar alguém que nos dê uma carona.

Collingsworth Manor ficava um pouco fora do caminho comum. Amélia sabia disso pela viagem de ontem. Os campos eram distantes e a área ao redor da casa era completamente cheia de árvores. – Teríamos de viajar através da floresta. – ela disse. – Considerando-se tudo, não creio que seja uma boa idéia.

- Por causa dos lobos?

Amélia considerou a pergunta. – Por causa do que quer que, ou antes, quem quer que seja que esteja matando as pessoas por aqui, O cocheiro e o lacaio estavam mortos, não é?

Seus olhos verdes se desviaram dela. Ele não respondeu, o que foi resposta suficiente para ela. – Não acredito que os lobos que ouvimos noite passada sejam lobos normais.

Amélia se lembrou da sensação de garras contra seu pescoço, do cheiro do hálito fétido, da sensação de pêlo contra sua pele. Ela estremeceu. Mas estava sendo ridícula, e ele também. – É claro que são lobos. – ela disse. – Não me diga que a garota o assustou com tais coisas.

- Depois do que aconteceu a senhora noite passada, a senhora não está com medo? – ele desafiou.

Ela não queria pensar sobre a noite passada. Amélia não conseguia fechar sua mente sobre o que acontecera a ela. – Noite passada, eu estava histérica. – ela disse. – Eu não poderia ter ouvido e sentido o que pensei ter acontecido no quarto ao lado. Devo ter imaginado tudo.

Ele levantou uma sobrancelha escura. – O que ouviu e sentiu?

Como se fechando os olhos pudesse bloquear a memória, Amélia tentou. Apenas que o pesadelo estava lá esperando por ela. Ela rapidamente os abriu de novo. – Eu fui atacada por um homem que se fingiu ser Robert. Ele deve se parecer muito com ele para ter me enganado.

Wulf deu de ombros. – Na realidade não. Ele devia ter a mesma altura, a mesma constituição, mesma cor de cabelo, mas não se parecia em nada com Robert. Eu o vi, lembra-se?

Amélia se levantou da cama e começou a andar de um lado ao outro. – Tem de haver uma explicação lógica. – ela insistiu.

Lorde Gabriel se levantou e bloqueou seu caminho. Ele se aproximou e gentilmente a tocou no pescoço. – E há uma explicação lógica para esses arranhões? Há uma explicação lógica do porque o homem em quem atirei, e considerei morto, de algum modo conseguiu fugir do quarto ao lado e desaparecer? Há uma explicação lógica do porque Robert está morto na despensa e dois outros homens estão mortos no estábulo, com as gargantas cortadas?

O coração de Amélia afundou. Lágrimas subiram a seus olhos. – Robert. – ela sussurrou. – Não posso acreditar que ele se foi. Fico pensando que isso é um pesadelo e que vou acordar a qualquer momento e tudo vai estar como antes.

Suas palavras suavizaram o olhar de Wulf sobre ela. – Desculpe-me. Fui insensível ao dizer essas coisas. Tenho certeza de que a senhora se importava profundamente com Robert.

Importava-se? Amélia não tentou se enganar imaginando que amava seu marido. Ela sentia que ele estivesse morto, mas levar isso longe demais seria hipócrita. – Eu me importava com ele. – ela admitiu. – Achei que ele seria um bom marido. Sua morte me entristece, mas não vou fingir que ele era o grande amor de minha vida. Não acredito no amor.

Um leve sorriso surgiu no canto da boca sensual de Wulf. – Com certeza, seja franco.

Ela levantou o queixo. – O senhor preferiria que eu mentisse?

A expressão ligeiramente sonhadora dele se desvaneceu. – Compreendo que raramente uma união feita em Londres tenha algo a ver com amor, mas a senhora poderia ter mentido. Robert não está mais aqui para desmentir.

Ela não ia deixar que ela a perturbasse. – Mentir para ajudar a quem? – ela desafiou. – Ao senhor?

Ele se aproximou, agigantando-se sobre ela. Ele tinha um tamanho realmente intimidador e Amélia lutou para não dar um passo para trás.

- Ele foi meu amigo.

Ela se encheu de culpa. Sentiu o rosto queimar. – Sinto muito. – ela disse. – O senhor deve pensar que sou terrivelmente fria.

Wulf se virou e voltou para a janela. – Não penso que é terrivelmente nada, Lady Collingsworth. Eu mal a conheço.

A cabeça de Mora apareceu na porta e Amélia se assustou. – O desjejum está pronto. – Mora disse. – Fiquei imaginando se devo trazer aqui par cima ou se ambos descerão para comer?

Amélia não podia dizer que não estava contente com a distração. Por que doía Lorde Wulf ter tão casualmente a dispensado e a seus sentimentos? Talvez por causa dos sonhos tivera com ele. Em certo nível, ela sentia como se o conhecesse. O que era tolice. Ela não sabia nada sobre ele.

- Lá embaixo está bom. – Wulf respondeu. – Não há motivos para você ficar subindo com bandejas. Estou certo que está tão cansada quanto nós dois.

Lorde Gabriel tinha mais consideração do que Amélia. Ela estava pensando que seria bom comer aqui em cima e voltar para a cama, para fugir da realidade mais um tempinho. Quando Wulf olhou para ela pedindo confirmação, o que mais ela poderia responder além de – É claro. Se ambos descerem, eu me juntarei a vocês tão logo me vista?

Mora concordou com a cabeça e apressou-se a sair. Wulf caminhou pelo quarto. Ele lançou a Amélia um olhar de curiosidade antes de sair e fechar a porta atrás dele. Amélia supôs que ele pensou que ela não conseguiria nem mesmo se vestir sozinha, e percebeu que nunca o fizera, não completamente sozinha. Ela se dirigiu ao guarda roupa, onde seus vestidos tinham sido colocados na tarde anterior. A visão de seus luxuosos vestidos lhe trouxe um pouco de conforto. Eles a lembravam de sua velha vida, aquela que ela vivera ainda ontem.

Escolher um vestido de dia azul claro com mangas curtas e bufantes parecia uma alegre futilidade considerando-se que ela era viúva agora. Amélia supunha que se consolar pensando que realmente ficava bem de preto com sua cor suave também era uma insensibilidade. Mas que escolha tinha? Não era como se ela tivesse imaginado que precisaria de cores sombrias em sua lua de mel. Ela não tinha escolha a não ser usar o que havia trazido. Amélia despiu o penhoar e a camisola rasgada. Casar-se e enviuvar no mesmo dia certamente causaria um escândalo.

Seus pais não ficariam contentes. Ela raramente fizera algo na vida que os agradasse, então anos atrás decidiu que seria boa em desagradá-los. Uma vez ela prometera a Duquesa mãe de Brayberry, uma amiga dos famosos Irmãos Wulfs, que um dia ela seria a mulher mais chocante de toda a Inglaterra. Ela supunha que esse era um bom começo.

Subitamente Amélia estava com raiva. Raiva de Robert por colocá-la nessa situação estranha. Sua vida supostamente era para ter melhorado com o casamento; ao invés disso, tudo estava dando terrivelmente errado. Era para ela ter acordado essa manhã como uma mulher, suas indiscrições passadas com seus pais esquecidas, perdoadas. Robert supostamente tinha de fazê-la feliz. Ele tinha prometido. Ele nunca dissera nada sobre morrer. Ele nunca dissera uma palavra sobre nada disso. Nada sobre o terror em Collingsworth Manor e que ela poderia estar correndo perigo aqui.

Certamente não sobre lobos que nem sempre eram o que pareciam ser. Amélia imediatamente conduziu seus pensamentos numa direção diferente. Ela não queria pensar sobre isso. Ela não queria pensar sobre a noite passada. Ao invés disso, ela tentou se concentrar em se vestir. Seu espartilho era um problema. Amélia tentou amarrá-lo na frente com a intenção de virá-lo para trás, mas ela o apertara muito e não conseguia girá-lo como devia ser feito. Ela quebrou a unha tentando. Isso foi a proverbial gota que fez o copo transbordar.

Seus joelhos subitamente cederam e ela foi ao chão. Um nó lhe subiu à garganta. Seus olhos se umedeceram. Ela os fechou bem apertados e lutou contra o desespero que crescia dentro dela. Foi inútil. Primeiro um leve soluço escapou de sua garganta, depois um lamento. Então as comportas se abriram. Por mais superficial que ela tentasse ser, por mais que ela quisesse se distanciar da dor, do medo, de encarar o que acontecera noite passada e do fato de que Robert estava morto, Amélia não conseguiu.

Foi como se toda uma vida de emoções tivesse se unido contra ela nesse exato momento, nessa hora sombria. Ela desmoronou completamente. Por quanto tempo ela ficou sentada chorando, ou antes, se lamuriando como um gatinho que tivesse sido deixado na chuva, Amélia não conseguia dizer. Ela perdeu a noção do tempo e somente voltou ao presente quando sentiu uma mão sobre seu ombro. Ela quase gritou. Sua cabeça se levantou rapidamente e ela de repente estava encarando Lorde Gabriel face a face.

- Achei melhor subir e ver por que a senhora estava demorando. – ele disse. – Não pretendi assustá-la.

Se ele não pretendia assustá-la, ele não devia se mover tão silenciosamente. Amélia enxugou o rosto com a barra de sua anágua. Ocorreu a ela, quando o olhar dele abaixou por um momento antes de voltar a encará-la, que ela vestida somente com sua camisa, uma anágua e ser espartilho retorcido.

- Não consegui virar meu espartilho corretamente. – ela explicou.

Ele levantou uma sobrancelha. – Tudo isso por causa de seu espartilho?

Amélia fungou. – Eu também quebrei uma unha. – Ela acrescentou.

O olhar dele se suavizou sobre ela novamente, e isso fez ocorrer coisas engraçadas dentro dela. – Eu lhe ajudo. – ele disse; então se levantou, estremecendo. Ele a colocou de pé e a virou de costas para ele. Seus dedos eram seguros e firmes nas fitas enquanto ele afrouxava o espartilho e o puxava na posição correta, antes de começar a apertá-lo.

- Acho que o senhor teve experiência com esse tipo de coisa antes. – ela disse num tom seco.

Wulf riu suavemente. – Na realidade não. Mas suponho que já vi mulheres suficientes livrando-se de suas roupas para entender como funciona um espartilho.

Amélia não sabia bem como devia se sentir sobre isso. Em seus sonhos com Gabriel Wulf, não havia outras mulheres envolvidas.

- Quão apertado você deseja?

Considerando-se tudo o que acontecera, talvez ela devesse deixar um tanto quanto frouxo para o caso de ser forçada a correr por sua vida. – Não muito apertado. – ela respondeu. – Acho que devo ser capaz de respirar.

- Acho que a senhora não precisa disso. – As mãos dele eram quentes ao redor de sua cintura, tão quentes que ela sentia o calor delas. – Sua cintura é pequena o suficiente sem ele.

Melhor desviar seus pensamentos da direção para onde estavam indo. Não era certo, e certamente não depois dela ter desmoronado e realmente chorado pelo pobre Robert. Ela podia ser uma garota chocante, mas mesmo ela sabia que não se devia chorar por um homem num minuto e desejar outro no seguinte.

- Estou feliz por não amá-lo. – ela sussurrou. – Não creio que seria capaz de agüentar a dor. Já está ruim o suficiente.

Gentilmente, Gabriel a virou para encará-lo. – Ele merece pelo menos algumas lágrimas de sua esposa, e meu respeito, pela amizade que um dia compartilhamos. Talvez um minuto de silêncio entre nós, pelo pobre Robert.

Amélia acenou e fechou os olhos. Ela espiou por sobre os cílios um segundo depois para ver se Gabriel também fechara os dele. Os cílios dele produziam uma mancha escura contra as altas maçãs do rosto. Ela imaginava por que ele sendo loiro tinha pêlo facial escuro. O contrate era muito bonito.

Tudo nele era muito bonito, fisicamente de qualquer forma. Ele a fazia se sentir muito delicada com seus ombros largos e sua altura impressionante. Ele abriu os olhos e subitamente eles estavam se encarando.

Ela sabia que devia desviar os olhos, mas se sentiu subitamente hipnotizada. Foi quando percebeu o cheiro dele. Suas narinas alargaram-se levemente num esforço para identificá-lo, mas não conseguiu. Ela nunca tinha sentido cheiro igual antes. Mas espere...ela tinha. No dia em que visitara Lucinda Wulf e tinha conhecido o irmão mais novo de Lorde Gabriel, Jackson.

O calor se juntou em seu estômago e se espalhou em todas as direções – para cima pelo peito, pescoço e rosto, para baixo pelas pernas e mais especificamente entre elas. Seus mamilos endureceram. Seus lábios se separaram e ela não conseguia respirar normalmente. Ele poderia fazer qualquer coisa a ela e ela não resistiria. O pensamento entrou em sua mente mesmo quando ela tentava negá-lo. O corpo superou a mente e ela deu um passo na direção dele. Ele puxou o ar de forma irregular, mas ainda assim os olhos dele perfuravam os dela e ele não se afastou.

Ela queria as mãos dele nela. Sua boca. Ela queria deitar com ele sobre a cama lá atrás e entregar a ele o que nenhuma recém casada ainda deveria possuir. Sua inocência. Como se ele lesse seus pensamentos, Gabriel se aproximou e a tocou. A mão dele era grande e calosa devido ao trabalho, mas quente sobre a pele dela. Vagarosamente ela subiu através do braço até o pescoço dela, então na nuca quando ele a puxou mais para perto. Ela ainda o olhava dentro dos olhos quando eles subitamente brilharam com uma estranha luz azul.

Sua mente estava pregando peças nela, Amélia raciocinou. Talvez ela ainda estivesse sonhando. Ela devia estar, pois, apesar de estar muito atraída por Gabriel Wulf, com tudo o que acontecera ela não poderia querer beijá-lo. E ela queria. Ela queria desesperadamente.

Ele deslizou a mão que estava atrás do pescoço dela, agarrando o rosto antes de o polegar traçar o formato de sua boca.

– Tão tentadora.

Os lábios dele estavam tão próximos que ela quase os sentia sobre os dela sem tocar. Amélia fechou os olhos e se ergueu nas pontas dos pés.

Era errado, deliciosamente errado, ela sabia disso, mas por meses ela imaginara como seria beijar Gabriel Wulf. Quente, firme, as primeiras sensações que se registraram quando os lábios dele tocaram levemente os dela. Uma mistura de hálitos antes de a mão dele deslizar para trás da cabeça dela novamente e ele inclinar a boca dele sobre a dela. Ele separou os lábios dela e penetrou com sua língua, provocando a dela numa dança. Era mais potente do que qualquer brandy, o beijo dele.

Amélia estava completamente perdida. Perdida na sensação, perdida no cheiro dele – senti-lo – o calor que se espalhava por ela. Seu coração martelava no peito; seu sangue corria quente nas veias. Os castos beijos de Robert não eram nada comparados a isso, não a fizeram sentir nada comparados a esse. Era como se afogar em chocolate. Era como nada que ela havia experimentado antes.

Ele provocou seus lábios, os mordicou, os sugou, então os reclamou novamente, um mestre na sedução, embora ela não pudesse dizer que ele soubesse disso. Era como se ele estivesse à mercê de suas emoções, exatamente como ela estava, e como ela, incapaz de combatê-las.

Amélia se apoiou contra a solidez dele. Ele a empurrou para trás, não para longe dele, mas na direção da cama atrás deles. Ela foi desejando de coração. Ela foi sem pensamentos ou dúvidas. Ela foi sem culpas.

Pouco depois os joelhos dela bateram contra a cama e ela caiu para trás. Apoiando-se nos cotovelos, olhou para ele. Os olhos dele ainda tinham o brilho azulado. O peito largo subia e descia dentro do camisolão que pertencera a seu marido. Ele a queria; não havia como se enganar com o desejo nos olhos dele quando eles a percorreram da cabeça aos pés. Ele deu um passo na direção dela, parecia que ele ia se juntar a ela na cama, mas subitamente parou.

Como se a noite tivesse virado dia, escuridão em luz, ele piscou e se afastou dela. – Que diabos estou fazendo? – ele perguntou com voz rouca. Ele olhou ao redor como tentando se lembrar de onde estava, quem era, e talvez quem era ela, também. O olhar dele fixou-se na porta quebrada que unia seu quarto à suíte principal. Ele fechou os olhos por um momento antes de olhar novamente para ela.

- Perdoe-me. Não tinha o direito. – Foi tudo o que disse antes de atravessar apressadamente o quarto, sair, e fechar a porta firmemente atrás dele.

Tremendo, Amélia o acompanhou com os olhos. Bom Deus, o que tinha acabado de acontecer? Como ela pudera se comportar tão ousadamente com ele quando seu pobre marido ainda nem havia sido enterrado? Verdade, Amélia sabia que ela era uma criatura sensual. Ela estivera muito mais interessada na noite de núpcias do que Robert.

Ela o havia chocado uma vez colocando sua língua dentro da boca dele quando ele finalmente tivera coragem de beijá-la, mas mesmo ela não havia se comportado com ele como acabara de fazer com Gabriel Wulf.

Amélia cobriu o rosto com as mãos. Talvez estivesse louca. Não podia mais se enganar acreditando que tudo o que acontecera desde ontem a noite fosse um sonho. Se ela estivesse sonhando com Gabriel Wulf ainda agora, ele não teria se afastado dela. Ao invés disso ele teria subido na cama e a transformado em mulher. O que ela devia fazer agora? Amélia não podia ficar escondida aqui em cima o dia todo. Decisões tinham de ser tomada. Realidades precisavam ser encaradas.

Havia apenas uma coisa a se fazer. Vestir-se e descer. A única coisa pior do que ter de encarar Gabriel Wulf novamente seria se forçar a descer ao porão de armazenamento e ver o corpo de Robert. Mas ela devia. Para aceitar que Lorde Collingsworth realmente havia partido, ela devia vê-lo por si mesma.

 

Gabriel fez uma desanimada tentativa de comer. Os bons modos diziam que ele devia esperar Lady Collingsworth juntar-se a eles, mas, certo como o inferno existia, ele não tinha bons modos. Ele pensou que estaria faminto já que pouco comera durante a semana que passou enquanto seguia seu caminho para casa, mas sua fome não era de comida. Era por ela. A mulher no andar de cima. Droga, o que estava acontecendo com ele? Ele era um homem acostumado a ter controle de suas emoções, controle de sua vida. Subitamente, ele não tinha controle de nenhuma dessas coisas.

Ele sentiu o cheiro dela antes de ela entrar na sala de jantar. Seus sabonetes perfumados mascaravam a maior parte, mas debaixo do perfume, ela tinha o cheiro de musk feminino e promessas quentes que um homem não podia ignorar. Gabriel tinha de ignorá-las.

A garota, Mora, estava sentada de frente a ele, parecendo fora de lugar na mesa de jantar. Eles conversaram apenas amenidades. Quando Lady Collingsworth entrou na sala, Gabriel se levantou, como lhe fora ensinado no tempo em que bons modos ainda eram importantes. A lady estava adorável em seu vestido azul de musselina enfeitada com raminhos. Ela prendera o longo cabelo para cima, em um tipo de penteado, embora ele parecesse preso ao acaso e algumas partes já começavam a cair pelas costas delas.

Ele não tinha idéia do que acontecera lá em cima. Por que ele se comportado daquela maneira. Por que sonhara com essa mulher antes. Por que quase perdera o controle com ela. Por que cedera ao impulso de beijá-la – a viúva de seu amigo de infância, que ainda nem mesmo tinha sido enterrado. Gabriel tinha desejado mais do que beijá-la. Muito mais.

- Desculpem-me, estou atrasada. – disse a dama, sentando-se. – Já decidimos algo?

Ela estava bem fingindo como se nada desconfortável tivesse acontecido lá em cima entre eles. Ela nem mesmo ficou vermelha. Gabriel decidiu seguir o exemplo dela. – Não. – ele respondeu, sentando-se novamente. – Ainda acho que devemos dar um jeito de partirmos para Wulfglen, onde vocês duas ficarão em segurança.

- Não podemos partir. – Mora sussurrou, levantou seus grandes olhos para eles. – Não com as feras esperando por nós na floresta. Eles estão planejando alguma coisa, gravem minhas palavras.

Lady Collingsworth colocou um guardanapo em seu colo e se virou na direção da garota. – Lobos não planejam. – ela disse. – Decidi que nossa imaginação nos venceu noite passada. Hoje, devemos examinar nossa situação de maneira racional. Talvez fosse melhor se nós partíssemos de Collingsworth Manor e nos dirigíssemos para Wulfglen.

- Isso lhes daria a vantagem. – Mora murmurou suavemente. – Perdoe-me por minha audácia, milady, mas acredito que ficaremos mais seguros ficando aqui. Talvez eles partam logo.

Estudando a garota, Gabriel pegou sua colher e contemplou o mingau diante de si. – O que a faz pensar assim, Mora? Por que eles subitamente partiriam?

A garota estava obviamente desconfortável em ser o centro das atenções. Ela contorceu-se um pouco na cadeira e puxou sua touca mais para baixo encobrindo o rosto. – Por causa de Vincent. – ela respondeu. – Acho que ele era um deles. Já que ele não conseguiu o que quer que fosse queria com a lady, talvez ele vá embora agora.

Gabriel olhou para ver a reação de Lady Collingsworth. O rosto dela empalideceu e sua mão se dirigiu automaticamente para os arranhões no pescoço. – O que ele queria era óbvio. – ela disse. – Ele queria que eu acreditasse que ele era Lorde Collingsworth e me submetesse a ele.

Inclinando-se para frente, Gabriel rudemente colocou os cotovelos na mesa, embora soubesse que era falta de educação. – Se a senhora acreditava que era Robert, por que não se submeteu a ele? Por que gritou? Por que lutou com ele?

O rosto de Lady Collingsworth encheu-se de cor. Então, ela podia corar afinal de contas. – O homem estava me machucando. Ele ficava rindo...só que, sua voz não parecia...humana.

- Eu lhe disse. – Mora disse suavemente. – Estou convencida que ele era um deles.

Já que Mora estava falante, Gabriel tinha algumas perguntas que gostaria que ela respondesse. – Como Vincent conseguiu entrar na casa? Eu chequei as trancas enquanto procurava por Lorde Collingsworth. Estava tudo muito bem fechado.

A garota deu de ombros. – Creio que pelo porão de armazenamento. Há uma porta que dá lá para fora. Não pensei que alguém entraria por lá. A verdade é que relaxei a guarda quando o jovem senhor retornou. Eu estava muito feliz em deixá-lo decidir como manter a mim e a senhora seguras.

O que Mora disse fazia sentido. Robert fora encontrado no porão de armazenamento. Ele provavelmente ouvira algo lá embaixo e fora investigar. – Você contou a Lorde Collingsworth que os lobos que viram homens assustaram e afugentaram os criados e os trabalhadores do campo?

De repente os olhos de Mora se encheram de lágrimas. Ela sacudiu a cabeça. – Fiquei com medo que ele pensasse que era louca e me mandasse embora. Devia ter lhe dito logo. Devia tê-lo avisado. Ele morreu porque eu não o fiz.

A menina parecia genuinamente perturbada com a situação. Gabriel não tinha idéia de como consolá-la. Ele não estava acostumado a lidar com mulheres e suas tendências a chorar. Para sua surpresa, foi Lady Collingsworth quem se levantou da cadeira e se dirigiu à garota, colocando uma mão no ombro que estremecia.

- Não foi sua culpa, Mora. – ela disse. – Lorde Collingsworth, bem, ele não teria acreditado nessa história mais do que eu. Não sei o que está acontecendo, mas a culpa não é sua.

A garota tocou timidamente a mão de Lady Collingsworth. – Bendita seja por dizer isso, milady. - A criada parecia tão surpreendida pela demonstração de gentileza de Lady Collingsworth quanto Gabriel.

Ele não esperava gentileza com uma criada da parte de Lady Collingsworth. Ele não esperava a paixão que ela mostrara lá em cima. Ela se tornava cada vez mais intrigante para ele a cada momento. Ela se voltou após confortar a menina e olhou para Gabriel.

- Preciso vê-lo. – disse suavemente. – Não posso acreditar que Robert se foi se não o vir.

A dama agiu como se acreditasse que Robert tivesse partido muito facilmente lá em cima, mas não fora culpa dela. Gabriel era o culpado. Fora o seu cheiro que atraíra Lady Collingsworth – o que a fizera agir irracionalmente com ele. Seu irmão mais novo, Jackson, lhe contara sobre esse “dom” particular que todos os irmãos Wulf possuíam.

Gabriel, que soubesse, nunca o usara sobre mulher alguma. Talvez não pudesse ter evitado lá em cima. Talvez o cheiro simplesmente fluísse dele quando ele estivesse irracionalmente atraído por uma mulher.

- Preciso enterrar Robert. – Gabriel disse. – Ele e os dois do estábulo.

Lady Collingsworth respirou profundamente. – Robert merece um enterro apropriado. Com seus amigos ao seu redor chorando sua passagem. E como explicarei...quero dizer, se ele foi assassinado...

- Não existem provas de que tenha sido assassinado. – Gabriel a relembrou. – Eu lhe disse, não há um arranhão nele. É como se tivesse morrido de susto.

A dama estremeceu e ele percebeu que não se preocupou com a sensibilidade dela. Gabriel estava acostumado a mulheres, mas ele preferia que elas fossem de má-reputação e mundanas como ele próprio. Ele não tinha idéia de como lidar com uma borboleta delicada tão linda de se olhar, mas totalmente inútil quando tinha de lidar com as duras realidades da vida.

- Não podemos manter Robert e os outros dessa maneira. – ele disse. – Eles merecem descansar em paz.

A dama tinha se endireitado com a mão colocada no encosto da cadeira de Mora. Ela tinha uma expressão corajosa, mas Gabriel notou que sua mão estava tremendo. – Creio que tem razão. – ela concordou. – Mas, por favor, pelo menos enterre Lorde Collingsworth no cemitério da família. Sei que deve haver um em algum lugar da propriedade próximo à casa.

- Não muito longe daqui. – Gabriel disse. Quando ela levantou uma sobrancelha, ele explicou. - Nós brincávamos lá algumas vezes quando garotos. Escondíamos-nos atrás dos túmulos e pulávamos um nos outros.

Lady Collingsworth acenou concordando. – Por favor, gostaria de vê-lo agora.

- Mas seu desjejum, milady. – Mora disse. – A senhora precisa de forças.

A dama sacudiu a cabeça. – Percebi que perdi o apetite assim que vi a comida na minha frente. É melhor resolver esse assunto.

- Então irei junto para oferecer meu apoio. – a garota disse.

Lady Collingsworth apertou o ombro da menina com gratidão. Gabriel colocou o guardanapo de lado e se levantou. Ele parou para puxar a cadeira de Mora, um gesto que pareceu surpreender a criada tanto quanto o carinho de Lady Collingsworth anteriormente. Gabriel raciocinava que era melhor para Lady Collingsworth ver o corpo do marido. Ela precisava de algum tipo de encerramento com relação ao que acontecera noite passada.

Embora Gabriel ainda não estivesse certo do que estava acontecendo em Collingsworth Manor, ele pelo menos poderia permitir que a dama tivesse seu luto. Gabriel tentou não mancar enquanto liderava o caminho até o porão de armazenamento.

O porão de armazenamento fazia Amélia lembrar de uma cripta, com suas dimensões escuras e cheiros úmidos e frescos. Suas pernas tremiam debaixo do vestido, mas ela colocou um pé diante do outro e seguiu Gabriel Wulf através dos degraus barulhentos. Mora seguia atrás dela, e ela estava feliz por essa presença extra. Força nos números. Enquanto ela se movia mais para baixo dentro do porão, ela tentava se preparar mentalmente para a tarefa de ver o corpo de Robert.

Embora tivesse comparecido a velórios no passado, a maior parte era de velhos parentes. Parecia um sacrilégio que alguém tão jovem pudesse morrer. Mas Robert nunca fora o retrato da vitalidade da juventude. Ele não gostava de dançar, ela se lembrou. Ele sempre ficava com falta de ar logo depois.

- Ele está aqui. – Wulf disse, segurando uma lanterna que pouco servia para dispersar a escuridão. Amélia se abraçou. Quando Lorde Gabriel lançou a luz da lanterna no chão, não havia nada lá.

Ele franziu a testa, então andou ao redor do porão, lançando a luz nos cantos. Tudo o que Amélia viu foram sacos de batatas, uma cesta de cenouras e uma de cebolas, mas nenhum corpo.

- Ele se foi. – Wulf disse.

- Eles devem tê-lo levado. – Mora sussurrou.

- Maldição. – Wulf praguejou. – Nunca me ocorreu que o corpo de Robert também sumiria, e eu devia ter pensado nisso.

Amélia estremeceu no ar úmido e mofado. – Por que alguém o levaria?

Wulf não parecia nem um pouco satisfeito com esse acontecimento. – Mais importante no momento é como?

Mora caminhou até um canto escuro. – A porta do porão de armazenamento, milorde. – ela relembrou. – Alguém o carregou para fora dessa maneira.

Lorde Gabriel se juntou a garota e iluminou os degraus de terra. – Mora, precisamos bloquear essa porta.

A criada concordou. – Sim, milorde, mas temos de fazê-lo do lado de fora. Devemos sair da segurança da casa?

Ele considerou. – Pelo menos ainda é dia. – ele disse finalmente. – E eu tenho a pistola. Acho que temos tempo suficiente para que eu possa dar uma olhada nessa porta.

Amélia tinha visões de abrir a porta do porão aqui debaixo apenas para se confrontar com um assassino esperando do outro lado. – Acho que devemos dar a volta através da casa até lá fora.

Wulf olhou para os degraus na escuridão. – Provavelmente uma sábia idéia. – ele concordou. – Posso olhar pelas janelas antes de sair e ver se não tem alguém escondido.

Com o assunto decidido, Wulf as conduziu pelas escadas de volta a casa. Depois de checarem a vista lá fora de vários pontos, Wulf destrancou a porta da frente e a escancarou. Amélia ficou atrás dele enquanto ele removia a pistola que estava colocada no cinto as suas costas, escondida pelo camisolão que lhe chegava ao meio das coxas.

- Eu lhe garanto que os corpos que estavam na carruagem também desapareceram. – ele disse. – Quem quer que sejam essas pessoas, e estou convencido que há vários deles, eles encobrem suas pistas muito bem.

- Não são pessoas. – Mora sussurrou atrás deles; - Pelo menos não pessoas normais. Guardem minhas palavras.

Amélia evitou um novo calafrio. Isso era ridículo. Temer algo que não existia. Lobos eram lobos, homens eram homens, e isso era tudo. Ela tentou esquecer a garra que havia encontrado no chão do quarto de Robert.

- Vou ver o estábulo primeiro. – Wulf estendeu a pistola na direção de Mora. – Você sabe como usar uma arma, Mora?

A garota se encolheu atrás dele. – Nunca toquei em uma – ela disse. – Já vi inúmeras vezes o que elas podem fazer a um corpo.

O olhar dele se voltou para Amélia. Ele pareceu desconsiderar a possibilidade antes mesmo de formular a pergunta. Que ele assim o fizesse a irritou. – Eu sei como usar uma pistola. – ela disse. – Na realidade, sou excelente atiradora.

A confissão de sua habilidade o fez erguer uma sobrancelha escura.

Amélia supôs que devia se explicar. – Quando era mais jovem, estava determinada a vencer meu irmão em todas as coisas ditas masculinas. Principalmente para aborrecer meu pai. – ela acrescentou.

Os lábios dele subiram no usual meio sorriso. – Por que isso de repente não me surpreende. – ele observou. Lorde Gabriel entregou a pistola a Amélia – Fiquem aqui na varanda até eu voltar.

A pistola pesava em sua mão, mas Amélia agradecia esse peso. Representava uma medida de segurança. O que, ela imaginava, enquanto via Wulf se afastar, ele planejava fazer se fosse confrontado no estábulo? Um pensamento lhe ocorreu.

- Mora, - ela se voltou para a garota. – Certamente há outras armas pela casa. Para caçada e coisas assim?

- Não tem mais. – a garota disse suavemente. – Os criados levaram tudo o que podiam quando fugiram. Para proteção.

- É uma vergonha eles terem deixado você para trás, para começar, mas indefesa também, é indesculpável. – Amélia murmurou. A verdade sobre isso era que Amélia não ligaria a mínima para o apuro de uma criada antes de ter sido engolida por esse pesadelo. A garota era tão jovem, parecia tão indefesa que Amélia não podia evitar se sentir enraivecida a favor dela.

- Bondade sua em se preocupar, milady. – Mora disse. – Mas para ser honesta, não aconteceu muita coisa antes. Não até noite passada. Não até ele chegar.

Mora fez sinal com a cabeça na direção de Gabriel. Amélia subitamente se perguntou como Wulf tinha entrado na casa noite passada. Ela não se lembrava de tê-lo ouvido se explicando. Mas estava sendo boba suspeitando dele. Lorde Gabriel podia vir de uma família de párias entre a alta sociedade de Londres, de uma família que diziam ser amaldiçoada com a loucura, mas sua família ainda mantinha a riqueza. Sua melhor amiga era casada com o irmão dele. Não havia nada de suspeito sobre Gabriel Wulf. Ele salvara sua vida noite passada.

Wulf desapareceu dentro do estábulo pouco depois. Foi quando Amélia percebeu. – Ouça – ela sussurrou para Mora.

A garota olhou para ela. – Não ouço nada, milady.

Amélia segurou a arma com mais força. – Eu sei. Deveria haver sons. Passarinhos cantando nas árvores. Insetos zumbindo. Está totalmente quieto.

Mora esfregou os braços. – A senhora está sentindo isso? – ela perguntou. – Olhos nos observando?

Percorrendo os olhos pelas árvores que cercavam a mansão, Amélia não viu nada. Mas Mora estava certa. Amélia se sentia como se estivesse sendo observada. Se Lorde Gabriel não voltasse do estábulo logo, ela levaria Mora para dentro da casa e trancaria todas as portas novamente.

Amélia deu um suspiro de alivio quando Wulf saiu do estábulo. Ele estava franzindo a testa. Mesmo assim, ele era tão lindo que ela não conseguia evitar ficar encarando-o. Da mesma forma que fizera em Londres meses atrás, até que finalmente sua acompanhante lhe deu um tapa na cabeça por ser tão ousada em publico.

- Os corpos desapareceram, como suspeitei. – Gabriel disse ao aproximar-se delas. – Não vi nenhuma pista. Mora, mostre-me onde é a porta exterior para o porão.

A garota acenou concordando, embora fosse visível que ela não queria ficar lá fora em campo aberto. Gabriel pegou a pistola da mão de Amélia. Os dedos deles se tocaram levemente e novamente um formigamento estranho subiu pelo braço dela. Ela achou pela ligeira tensão da mandíbula dele que ele também o sentiu.

- Temos de dar a volta até os fundos da casa. – Mora disse. – Por aqui.

Os três se afastaram da varanda e caminharam ao redor da mansão. Felizmente, os arbustos cheios de espinhos que cercavam a casa também tornavam difícil o acesso para as muitas janelas do piso inferior, Amélia notou.

- Antigamente nasciam rosas selvagens neles. – Wulf disse a ela, como se percebesse seu interesse nos arbustos. – Isso quando a mãe de Robert ainda era viva. Ele se descuidou delas depois que ela morreu.

- Como o senhor entrou na casa noite passada? – Pronto, ela tinha de perguntar e esclarecer esse assunto de uma vez.

Lorde Gabriel indicou com a cabeça um alto carvalho que lançava sombra sobre um lado da casa. – Quando garotos, nós costumávamos descer por aquela árvore tarde da noite para fugirmos e irmos nadar em um lago não muito longe daqui. Lembrei-me disso e escalei a árvore. A janela do quarto onde Robert dormia quando criança não estava trancada. Devemos nos certificar de que todas as janelas estejam trancadas quando voltarmos para a casa.

- Sim. – ela concordou.

- É aqui. – Mora parou diante de uma porta de madeira que jazia no chão. – Veja. – ela suspirou, indicando a porta.

Profundas marcas de garras danificaram a madeira velha, como se algo tivesse a escavado. Amélia estremeceu novamente. Wulf estudou a porta.

- Não vejo maneira de protegê-la do lado de fora. Trarei para cima o que você achar necessário, Mora; então protegerei a porta que conduz ao porão fechando de dentro da casa.

- Do modo como fala, parece que temos de transformar a casa em uma fortaleza. – Amélia comentou.

- Sim. – ele respondeu. – Pelo menos até decidirmos fazer algo diferente.

Um pensamento ocorreu a Amélia. Um que lhe deu esperanças. – Certamente alguém virá para...

Wulf olhou para ela. Ele parecia medir suas palavras; finalmente sacudiu a cabeça. – Sinto que devo ser honesto. Tanto Collingsworth Manor quanto Wulfglen são relativamente isoladas. E com a senhora em lua de mel, duvido que alguém pense em se intrometer em sua privacidade.

Malditas sejam as pessoas que tem consideração, pensou Amélia. – Não somos esperados em Londres antes de um mês. Meus pais esperam que fiquemos aqui até a partida de nosso navio para o exterior. Uma extensão da lua de mel. Não sentirão nossa falta até lá.

- Não sei se temos provisões para passar o mês. – Mora se preocupou. – Os criados levaram a maior parte quando fugiram.

- Não é necessário se preocupar ainda. - Wulf advertiu a garota. – Nem mesmo temos certeza sobre exatamente o que nos ameaça.

- É claro, milorde. – Mora se desculpou.

Amélia tinha a incomoda sensação de que Wulf estava tentando protegê-la da verdade sobre a situação deles, mesmo tendo dito que tinha de ser honesto com ela. A razão era óbvia. Ele não acreditava que ela pudesse lidar com a verdade. E ainda assim, lá em cima, ele a beijara. Ele a quisera. Isso, ela supunha, não o tornava diferente da maioria dos homens. Sempre observando o exterior de uma mulher e julgando. Estranhamente, nunca a perturbara antes que somente seu rosto e corpo atraíssem aos homens. Agora isso a perturbava.

Algo a perturbava ainda mais. Olhando pela floresta, ela pensou ter visto uma sombra se mover. E então outra.

- Vamos, senhoras. – Wulf cortou, e olhando para ele, Amélia percebeu que ele também as vira. – Temos de voltar para a casa e passar o dia nos preparando.

Ele conduziu Amélia e Mora na direção da porta da frente. Uma arma. Muito pouco mantimento. – Preparar para o que exatamente? - ela perguntou.

Ele ficou em silêncio por um momento. Então respondeu. – Para a noite. E para o que quer que ela trouxer.

 

Amélia checou e rechecou as janelas no andar superior. Mora e Gabriel foram buscar o necessário no porão de armazenamento e Gabriel fez uma barreira na porta. Todos se sentavam na sala de visitas enquanto o dia virava noite. Um fogo vivo queimava na lareira. Gabriel cochilava depois de Mora ter verificado seus ferimentos. Amélia imaginava que o homem estava exausto. A menina também inclinara a cabeça para trás e fechara os olhos. Amélia estava muito excitada para descansar. Além do que, alguém tinha de manter a vigília, e parecia que ela fora a escolhida.

Até seu casamento com Lorde Robert Collingsworth, os deveres de Amélia tinham sido praticamente inexistentes, com a exceção de encontrar um marido adequado. Ela nunca tivera de se preocupar se passaria fome por que a despensa não estava bem abastecida ou tivera de temer pela própria vida. Nunca tivera de se questionar sobre o que era real ou o que era imaginação. Ela nunca olhara para as sombras e se sentira ameaçada com o que via ou não.

Tudo mudara no dia de seu casamento. O absurdo de sua situação a deixava irritada e nervosa. Ela desejava ter praticado bordado quando estava crescendo ao invés de competir com seu irmão mais novo nos esportes masculinos. Então ela poderia possivelmente se sentar e ficar dando pontos para ter o que fazer.

Chá parecia o paraíso e ela quase se inclinou sobre o sofá para cutucar Mora e pedir que lhe preparasse uma xícara. Amélia parou, compreendendo que era hora de aprender a se virar sozinha. Pelo menos até eles estarem bem seguros longe de Collingsworth Manor. Preparar chá não era tão difícil. Amélia tinha certeza de que conseguiria.

Ela ignorou o fato de que mais cedo ela pensara que conseguiria se vestir sem ajuda também. Além de ser humilhante, a memória estava ligada a pensamentos com Lorde Gabriel. A sensação das mãos quentes dele contra sua pele, a emoção dele a beijando, a desejando. E, como ele dissera, o que ocorrera naquele breve momento de insanidade era errado. Maldosamente, deliciosamente errado.

Amélia se levantou do sofá. Dirigiu-se à porta da sala de visitas, mas parou diante de Gabriel. Dormindo, com suas feições relaxadas, ele se parecia mais com o jovem no retrato pendurado no salão da residência dos Wulf. Um cacho de cabelo estava caído sobre um olho e ela estava tentada a se aproximar e o afastar para o lado. Por que esses sentimentos ternos para com um estranho? Por que não os tinha para com o pobre Robert?

O que ela precisava era de distração. Chá, ela relembrou, e se dirigiu para a cozinha. O fogão ainda aceso devido ao modesto jantar que Mora havia preparado. Uma chaleira já estava colocada sobre o fogão. Amélia tocou a tampa e tirou a mão depressa. Ela enfiou o dedo queimado na boca. Ela olhou para fora e se maravilhou com o brilho da lua e como conseguia ver bem na escuridão. Lembrando-se das sombras que vira anteriormente, seu olhar vagou pela linha de árvores próximas da casa.

Segundos depois seu coração quase parou de bater. Lá, entre a abundante vegetação, ela avistou a forma de um homem. Pouco depois ele cambaleava pelo quintal. Ela o viu claramente na luz do luar.

- Robert. – ela suspirou. – Wulf! – Amélia chamou. – Lorde Gabriel!

Gabriel estava ao lado dela num piscar de olhos. – O que?

Amélia apontou – Veja, é Robert!

Robert tropeçou no quintal. Caiu de joelhos, estendendo uma mão como se implorando para Amélia.

- Fique aqui. – Lorde Gabriel disse, e então se foi.

Ficar aqui? E se realmente fosse Robert dessa vez? Amélia nunca vira o seu corpo. Talvez Lorde Gabriel estivesse enganado. Talvez Robert não estivesse morto. Amélia correu atrás de Gabriel. Mora havia se mexido e agora estava parada na porta, seus olhos arregalados.

- Ele me disse para trancar a porta atrás dele. – ela disse. – O que está acontecendo?

- Fique aqui. – Amélia repetiu a instrução de Gabriel para ela. – Fique atenta a nosso retorno, mas se você vir algo ou alguém diferente, tranque a porta.

Amélia saiu apressadamente. Ela deu a volta na casa e viu Lorde Gabriel parado a poucos passos do homem, a arma apontada.

- Não. – ela gritou. Amélia correu até Lorde Gabriel e colocou a mão sobre seu braço. – Acredito que seja realmente Robert. Ele precisa de nossa ajuda!

- Volte já para a casa! – Wulf rosnou. – Não é Robert, Amélia. Robert está morto.

Como ele podia ter tanta certeza? O homem parecia Robert para Amélia. Então ele a chamou.

- Amélia.

Os cabelos em sua nuca se eriçaram. Era a mesma voz que ouvira no quarto escuro em sua noite de núpcias. Amélia tropeçou para trás.

Gabriel engatilhou a pistola. – Quem é você? – ele exigiu.

O homem com o rosto de Robert não respondeu. Seus olhos brilhavam estranhamente na escuridão. Então ele falou, ou melhor, ele repuxou os lábios e rosnou. O casaco dele estava aberto e Amélia viu o sangue que manchava sua camisa. Sangue, ela suspeitava, que vinha da ferida onde Gabriel Wulf atirara nele.

Diante dos olhos de Amélia, o homem começou a se transformar. Suas feições mudaram para as de outro homem...ela o reconheceu agora. Ele estava cuidando do estábulo quando eles chegaram. Então ele começou a se transformar em outra coisa. Algo não humano. Seus dentes cresceram; pêlos cresceram em seu corpo. Sua forma começou a se virar e transformar, a encolher. Foi quando Lorde Gabriel atirou nele pela segunda vez. O homem, coisa, o que fosse, foi jogado para trás.

Os uivos começaram. Ao redor deles o som ecoava na noite. – Maldição. – Wulf praguejou. – Era uma armadilha para nos atrair para fora. Corra, Amélia! Corra para a casa!

Ela ouviu as instruções dele. Ela sabia que tinha de correr, mas era como se estivesse congelada. Congelada de medo e choque. Wulf praguejou novamente; então a pegou nos braços e correu na direção da casa.

Mesmo em choque, Amélia ouvia os sons de galhos de árvore quebrando atrás deles. O que quer que estivesse na floresta estava vindo atrás dela e de Gabriel Wulf. Ela também percebeu como ele se movia rápido, como ele a carregava sem esforço. Como um homem com a perna ferida corria tão rápido? Como qualquer homem conseguia correr tão rápido?

Eles chegaram até a porta e ele a empurrou com o ombro, jogando Mora para trás no processo. Ele correu para dentro e quase jogou Amélia para a assustada garota. Os joelhos de Amélia estavam instáveis como os de um potro recém nascido, mas ela conseguiu se manter em pé, surpresa de que Mora tivesse força para segurá-la.

A garota parecia pesar um pouco mais do que um gatinho molhado. Wulf tinha quase fechado a porta quando algo colidiu com ela. Uma mão entrou. Uma mão que não era nem humana nem de animal. Uma mão coberta de pêlo grosso, com longas garras saindo das pontas dos dedos.

Amélia gritou. Wulf jogou o corpo contra a porta, e aquilo que estava do outro lado uivou de dor, retirando a mão. Então Lorde Gabriel fechou a porta e a trancou. Ele deu um passo para trás e apontou a pistola para a porta.

- Mora, leve Lady Collingsworth até a sala de visitas, longe de qualquer janela.

Juntas, Mora e Amélia se dirigiram à sala da frente, onde um fogo vivo ainda queimava, parecendo zombar do interminável pesadelo. Amélia estava em choque; ela sabia disso. Suas mãos e seus pés estavam gelados. Mora a ajudou a se sentar no sofá e encolheu-se ao lado dela, os olhos da garota arregalados e amedrontados.

Através da porta, Amélia viu as luzes sendo apagadas. Logo a casa estava mergulhada em total escuridão.

Ela não ouvia nada, nada além do bater de seu coração. Quanto tempo ficaram sentadas esperando ela não sabia dizer, mas finalmente Gabriel entrou no sala.

- Eles se foram... por enquanto. – Ele se ajoelhou perante Amélia, pegou as mãos geladas dela nas dele e começou a esfregar.

- Como o senhor sabe que eles se foram, milorde? – Mora sussurrou, sua voz amedrontada.

Sim, a mente de Amélia gritou, embora ela não conseguisse falar. Como ele sabia?

- Confie em mim. – ele respondeu. – Eles fugiram de volta para a floresta. Não os vi mais.

- Está escuro lá fora. – Mora disse. – Talvez o senhor apenas não os enxergue. Talvez eles ainda estejam lá.

Gabriel desviou os olhos de Amélia. Ele lançou um olhar severo para a garota. – Não é necessário preocupar ainda mais a dama, Mora. Eles se foram. Vá para a cozinha e prepare uma xícara de chá quente para Lady Collingsworth.

A garganta de Amélia finalmente relaxou o suficiente para que conseguisse falar. – Algo mais forte seria melhor. – ela disse.

- Já usamos todo o brandy. – Mora respondeu suavemente.

Gabriel continuava a esfregar as mãos de Amélia entre as dele, e ela começou a sentir o calor dele se espalhando nela.

– Veja o que consegue arranjar. – ele disse a Mora. – Mesmo cherry usado para cozinhar é suficiente, mas traga o chá também.

A garota se levantou de onde estava encolhida, pegou uma vela e a acendeu no fogo, então saiu da sala tão silenciosamente quanto um rato.

- O que são essas coisas? – Amélia perguntou a ele. – Como eles conseguem fazer aquilo? Como podem se transformar em animais? Como podem se transformar em outra pessoa?

Gabriel não tinha certeza de como responder. Poderiam homens se transformar em lobos? Sim, ele sabia disso como fato. Ele havia visto o próprio pai se transformar em um durante o jantar anos atrás. Os Wulfs foram amaldiçoados por uma bruxa há muito tempo atrás. A transformação tinha a ver com a lua cheia e com o coração de um homem. Mas Gabriel nunca ouvira sobre uma criatura assumindo a aparência de outra pessoa.

- Gabriel? – Amélia repetiu.

Os grandes olhos azuis dela revelavam choque e medo, como esperado. A mesma expressão que veria neles se ela soubesse que Gabriel não era um homem normal também. Ele também era parte das sombras.

- Não sei o que eles são. – ele finalmente respondeu a ela. – Mas sei que Robert está morto, Amélia. Você deve plantar esse fato firmemente em sua mente para que eles não consigam enganá-la novamente.

Ela enrugou a testa. – Como você sabe que o homem no porão era Robert mesmo? Talvez fosse outro impostor. Talvez Robert ainda esteja vivo. Talvez ele tenha ido procurar ajuda.

Explicar seria difícil, mas Gabriel sabia que devia. Amélia tinha de entender de uma vez por todas que seu marido estava morto e que nenhuma ajuda chegaria.

- Todas as pessoas têm um cheiro. Um que as identifica. – ele disse. – Eu tenho uma habilidade incomum de identificar uma pessoa através de seu cheiro. Eu sei que era Robert no porão. Quando éramos garotos, seu cheiro tinha um certo...odor de doença. Ele ainda o carregava como homem.

Amélia olhou para ele. – Eu tenho um cheiro que me identifica?

- Sim. – ele respondeu, abaixando-se para tirar os delicados sapatos dela. Como ele suspeitava, os pés dela estavam tão gelados quanto as mãos. Ele começou a esfregá-los. – Embora você os disfarce com sabonetes cheirosos e perfumes. Por causa disso, é difícil eu sentir o cheiro natural de uma mulher.

- Você tem algumas habilidades um tanto extraordinárias. – ela comentou. – Lá fora, nunca vi um homem correr tão rápido quanto você, e ainda por cima carregando outra pessoa.

As circunstâncias o forçaram a contar com suas estranhas habilidades, e ele imaginava o que mais Amélia Collingsworth descobriria a respeito dele. – Eu estava assustado. – ele disse.

Quando ela não respondeu, ele levantou os olhos para ela. Os olhos azuis o encararam ousadamente. – Não acredito que você tema alguma coisa. – ela disse.

Mora escolheu esse momento para entrar com um copo de liquido vermelho. – Cherry para cozinhar. – ela declarou, e o entregou a Gabriel.

- Vou trazer o chá agora. – a garota disse e saiu.

Gabriel levou o copo até os doces lábios de Amélia. Ela bebeu o cherry com a mesma facilidade com que bebera o brandy noite passada.

- Prefiro o brandy. – ela declarou. – Cherry é muito doce.

Ele não conseguiu evitar em sorrir para ela. Lady Amélia era uma jovem muito incomum. Quanto mais tempo passava com ela, mais consciente se tornava de como ela era especial. Ainda assim, aqui não era o lugar dela. Ela pertencia a Londres, em um salão de bailes, usando um vestido bonito e fazendo as cabeças se voltarem com um sorriso.

- O que você disse sobre as pessoas terem cheiros pessoais. – ela disse, colocando o copo de lado. – Creio que tem razão. Não havia percebido isso até hoje.

Ele olhou para ela. – Por que hoje e não ontem?

Ela umedeceu os lábios. Eles eram rosados e cheios e o faziam pensar em coisas que eram melhor serem deixadas em paz.

– Porque você tem um. Um cheiro. – ela esclareceu. – Lá em cima mais cedo, quando nós, quando você veio me procurar, eu o senti. Fez com que me sentisse estranha.

Gabriel abaixou os olhos para os pés delicados. Qualquer explicação verdadeira a faria desconfiar dele, e ele precisava que ela confiasse nele por agora. Ele precisava protegê-la. – Ouvi dizer que às vezes um homem pode liberar um odor que atrai as mulheres. Algo no suor. Pelo menos foi o que meu irmão Jackson me contou.

- Você não estava suando.

Ele voltou a olhar para ela. – Nem estou particularmente limpo nesse momento. – ele apontou. – Faz tempo que não tomo um banho decente. – Ele decidiu tentar tornar o ambiente mais leve, embora fosse quase impossível dada às circunstâncias. – Deve ser essa a razão por você ter se sentido atraída por mim lá em cima mais cedo. Sou o patinho feio de minha família.

- Isso é obviamente uma questão de opinião. – ela disse. – E o que aconteceu anteriormente é também obviamente algo que ambos devemos esquecer.

Era duro esquecer quando eles estavam tão próximos um do outro, quando ele estava com as mãos na suave pele dela. Os pés dela eram delicados e ele queria verificar se suas pernas eram tão macias quando o resto dela. Os pés dela estavam suficientemente aquecidos, ele decidiu, e recolocou os delicados sapatos.

- Chá. – Mora anunciou, carregando uma bandeja com um bule e três xícaras. A garota colocou a bandeja numa mesa próxima e começou a servir. Gabriel se levantou da posição ajoelhada diante de Amélia. Sua coxa protestou imediatamente. Ele mancou até uma cadeira colocada do outro lado e se sentou.

As mãos de Mora tremiam visivelmente enquanto ela entregava a xícara de chá primeiro para Amélia e depois para Gabriel. Ele tinha de dar crédito a garota por manter a compostura. Mesmo Lady Collingsworth, ele admitiu, não havia desmaiado ou ficado histérica. Ele achava que tinha muita sorte.

- Mora, Lady Collingsworth comentou que você foi criada com histórias sobre folclore e superstição. É verdade?

A garota se sentara próxima a Lady Collingsworth e bebia o chá. – Creio que sim. – ela respondeu.

- Você já ouviu histórias sobre homens se transformando em lobos?

Mora se mexeu nervosamente ao lado de Lady Collingsworth. – É claro, milorde. Todos ouvem essas histórias, não é?

- Verdade. – Gabriel concordou. – Mas e sobre homens que conseguem assumir a aparência de outra pessoa. Já ouviu qualquer história sobre isso?

Olhando para sua xícara, Mora parecia estar pensando. – Os Wargs. – ela finalmente respondeu. – Talvez eles possam fazer algo parecido com isso.

Gabriel se inclinou para frente em sua cadeira. – Os Wargs?

- Criaturas da floresta. – a garota completou. – Dizem que eles vivem nas florestas da Europa há séculos. Eles constroem suas casas lá como qualquer criatura da floresta. Dizem também que não se sabe se algum deles está por perto porque eles são muito bons em se misturar no ambiente.

- E esses Wargs, eles podem mudar de forma?

A garota concordou com a cabeça. – Assim dizem as lendas. Como a lady disse antes, os pais usam os Wargs para impedirem as crianças de vagarem pela floresta. Já ouvi dizer que um Warg pode fingir ser o pai ou a mãe e atraí-las. Claro que depois as comem.

A xícara de Lady Collingsworth chacoalhou contra o pires. Gabriel percebeu que devia ter questionado Mora sobre folclore camponês quando a dama não estivesse presente. Ela já tinha o suficiente para lidar por essa noite.

- Você deve ir para a cama. – ele disse à dama. Incluindo Mora no movimento de seus olhos. – As duas. Ficarei acordado e vigilante.

- Dificilmente conseguiria dormir agora. – Lady Collingsworth disse. – E isso antes da agradável estória da hora de dormir. Além do mais, meus joelhos ainda estão tremendo de tal forma que duvido que consiga subir as escadas.

Sua perna estava doendo, mas Gabriel se levantou, caminhou até onde ela estava sentada, e levantou Lady Collingsworth em seus braços novamente. Ela pesava pouco mais do que um saco de farinha. Ela iniciou um leve protesto, mas ele a ignorou. Subir as escadas o fez cerrar os dentes contra a dor em sua coxa machucada. Chegando lá em cima, ele se dirigiu até o quarto dela e a colocou na cama.

Os braços dela ainda estavam enroscados em seu pescoço, e ele olhou para as adoráveis feições dela. Seus olhos estavam pesados de sono apesar dos protestos que fizera lá embaixo, e Gabriel ficou pensando se o cherry finalmente começara a fazer efeito sobre ela. Para sua surpresa, ela se inclinou na direção dele, seus lábios tão próximos que ele poderia facilmente beijá-la. E ele queria, percebeu. Ela o cheirou; então os lábios cheios se separaram e ela passou a língua hipnotizante sobre eles.

- Você realmente precisa de um banho. – ela sussurrou. – Você deve estar suando novamente.

 

Gabriel precisou de uma grande dose de força de vontade para não se inclinar e beijar Lady Amélia Collingsworth. Ela devia estar bêbada. Ou por causa do cherry ou por causa do cheiro que ele estava exalando. Ao invés disso, ele gentilmente desenroscou os braços dela de seu pescoço e a deixou para que ela pudesse dormir. Gabriel desejou que pudesse fazer o mesmo.

Ele estava cansado até os ossos e suas feridas doíam. Mora tinha se oferecido para refazer os curativos para ele, mas ele disse que ele mesmo os refaria. Ele estava esgotadamente cansado para fazê-lo, então se sentou numa cadeira próxima ao fogo no salão de visitas e descansou a cabeça contra a almofada. Com todas as coisas que deveriam estar passando por sua mente agora, ele estava surpreso pela visão que o assombrava.

Era a visão de Amélia no piso superior quando voltara para se certificar de que as mulheres estavam bem acomodadas. Ela estava usando uma camisola de macio algodão branco enquanto Mora escovava seus longos cabelos. As pálpebras de Amélia estavam pesadas, seus lábios inchados e rosados, ele pensou que talvez por causas dos beijos que trocaram pela manhã. Nenhuma das duas percebeu que ele havia subido com cuidado para verificar se tudo estava correndo de acordo. Mas quando ele olhou para Lady Collingsworth algo dentro dele se mexeu. Desejo? Ele tinha que assumir que sim, já que esse era a única emoção que ele se permitia sentir por mulheres.

Gabriel passara sua vida evitando todas as emoções a não ser as mais básicas. Ele se dedicara à direção de Wulfglen e se sentia muito satisfeito lá junto dos cavalos, uma mulher ocasionalmente para satisfazer suas necessidades masculinas quando essas levavam a melhor sobre ele. Ele não era como Armond, que necessitava de interação social com outras pessoas, ou como Jackson, que tinha fraqueza por bebidas e mulheres e que se entregava a ambos com muita freqüência. Gabriel se considerava o sensato.

Mas o que estava acontecendo em Collingsworth Manor não fazia sentido. O que eram aquelas criaturas que podiam assumir a aparência de outra pessoa? Então com a mesma facilidade assumir a forma de um lobo? O que eles queriam com Amélia? E por quanto tempo ele, Amélia e Mora conseguiriam evitar que invadissem a casa? As chances deles seriam melhores na floresta entre as criaturas? Conseguiriam evitá-las e chegarem a Wulfglen em segurança? Sua cabeça doía com todas essas perguntas rodando dentro dela e com a fadiga.

Ele precisava descansar para conseguir pensar claramente. Gabriel tentou clarear a mente, e de algum modo durante o processo ele cochilou; pelo menos ele achou que tinha. Ele acordou alarmado. Tinha ouvido algo.

Uma figura fantasmagórica estava parada nas escadas, pois Gabriel a viu de sua vantajosa posição de dentro da sala. Seus longos cabelos loiros flutuavam ao redor dela enquanto ela caminhava até o final da escada e se virava para ele. A decente camisola que ela usava não ficou tão decente com o brilho do fogo se apagando revelando sua silhueta. A forma de suas longas pernas o provocava enquanto ela se movia sem hesitação para ele. Ele observava, hipnotizado, até que ela parou diante dele.

- Lady Collingsworth? – ele perguntou suavemente. – O que está fazendo aqui embaixo?

Ela se inclinou e colocou um dedo contra os lábios dele como se para calá-lo. Pouco depois sua boca substituiu o macio toque do dedo. Ele estava muito surpreso para reagir. Gabriel simplesmente ficou sentado, observando as sombras que os cílios dela faziam contra o rosto, absorvendo a macia sensação da boca dela contra a dele. O doce perfume dela o envolveu, acendeu seu sangue e quando ela passou a língua sobre os lábios dele, ele se abriu para ela. Ele se repreendeu a tarde toda por seu comportamento com ela pela manhã, dissera a si mesmo que nada disso aconteceria entre eles novamente.

E ainda assim algo nela o atraia, o tinha atraído desde o momento que a vira em Londres. Ele se aproximou e enfiou os dedos nos cabelos dela, puxando-a para seu colo. O traseiro redondo aninhou-se contra ele fazendo com que uma onda de prazer o percorresse. Ele poderia ter estado meio adormecido pouco tempo atrás, mas estava completamente alerta agora.

Ele penetrou a boca dela com sua língua e ela timidamente respondeu ao desafio. Ele penetrava profundamente dentro da boca dela, pensando que gostaria de penetrá-la em outro lugar também. Esse outro lugar pressionava seu colo com força e seu quadril empurrou para cima involuntariamente. Gabriel se afastou dela. Os olhos dela estavam apenas meio abertos quando olhou para ele debaixo dos longos cílios.

- Volte para a cama, Lady. – ele disse. – Vá agora, enquanto ainda pode.

Ela abaixou a cabeça como se envergonhada, os longos cabelos caindo sobre o rosto para esconder sua expressão dele.

- Não é que eu não a deseje. – ele disse, o que parecia estranho já que ele nunca se explicara para ninguém, muito menos se preocupara em ferir os sentimentos de alguém. – É errado. Você sabe que é errado. Volte para a cama.

Graciosa como um gato, ela se desenrolou do colo dele e se afastou. Ele a observou indo embora, a silhueta de suas pernas ainda quase o levando a fazer algo de que ambos se arrependeriam. Ele queria pará-la, trazê-la de volta para seus braços e continuar a pecar. Ele queria muito fazer isso. Apenas quando ela subiu as escadas novamente ele relaxou. Ele nunca conhecera uma mulher como ela, pelo menos não uma dama.

Ele pensava que elas eram bobas, criaturas castas interessadas apenas e chapéus, vestidos e sapatos. E é claro em maridos ricos. Amélia era uma mulher sensual, engraçada algumas vezes, passional. Ela o intrigava.

Era isso que acontecera com seus irmãos? Tinham caído sobre o feitiço de uma mulher? Veja aonde os tinha levado. À ruína. Ao casamento. A esquecer a maldição que estava sobre eles. Gabriel não estava na posição de ficar brincando com fogo. Ele tinha muito o que fazer no momento. Ele precisava manter sua inteligência, e Amélia Collingsworth atrapalhava enormemente seu julgamento.

Mesmo agora seus pensamentos estavam centralizados nela, quando devia estar pensando sobre um plano para fugir de Collingsworth Manor.

Ele se levantou e caminhou até o fogo que se extinguia, usando um atiçador para aumentar as chamas. Toda sua vida ele fora responsável apenas por si mesmo e pela direção de Wulfglen. Criar cavalos para a venda. Agora ele era responsável por duas estranhas. Uma, uma menina, e a outra uma mulher muito feminina. Como ele poderia vencer as feras na floresta? Como poderia proteger melhor Lady Collingsworth e Mora? E se, Deus o ajudasse, ele falhasse?

 

Ela precisava de um banho e Amélia não se importava que estranhos acontecimentos que estivessem ocorrendo em Collingsworth Manor, ela pretendiam conseguir um. Mora a ajudou a colocar carvão no fogão e puseram grandes baldes de água para aquecer. Elas fizeram com que Gabriel carregasse uma banheira de cobre escada abaixo e a colocasse diante do fogo na sala de visitas. As portas podiam ser fechadas para fins de privacidade. Amélia decidiu que todos se banhariam, especialmente Gabriel, que exalava aquele cheiro estranho que a atraia.

O homem tinha se comportado estranhamente com ela toda a manhã. Ele a ficava observando como que esperando algum tipo de reação por parte dela. Estaria ele esperando que ela estivesse envergonhada com o que acontecera lá em cima ontem? Para ser honesta, Amélia não estava tão envergonhada quanto deveria estar. Ela não estava certa de não estar nem um pouco envergonhada. Ao invés disso, ela estava esperançosa de que o incidente se repetisse.

Sobre o terrível incidente que acontecera noite passada ela escolheu não pensar muito sobre ele. Se o fizesse, sabia que ficaria histérica. Por isso focalizou-se nessa tarefa comum, algo que a fizesse sentir que o mundo não estava desmoronando ao seu redor.

- Você me acompanharia até lá em cima? – ela perguntou a Wulf. – Pensei em olharmos nos outros quartos para vermos se encontramos algo melhor para você usar. Sem mencionar uma navalha e um afiador.

Ele passou a mão sobre o pêlo escuro em seu rosto. – Você compreende que temos mais com que nos preocupar do que se estamos bem apresentáveis?

Ela franziu a testa para ele. – Minha mãe sempre dizia que só porque sua vida está em ruínas, você não precisa se entregar. – Quando ele virou os olhos para cima, ela completou. – Por favor, eu preciso fazer isso agora. Não quero pensar na noite passada, ou hoje à noite, ou amanhã. Quero apenas um banho quente.

Os olhos dele se suavizaram – a expressão que fazia as entranhas dela virarem pudim. – Tudo bem. – ele disse. – Mora, fique atenta aqui embaixo. – ele instruiu a garota. – Até agora essas criaturas parecem agir apenas durante a noite, mas não devemos baixar nossa guarda. Chame se ver ou ouvir qualquer coisa suspeita.

Mora passou o braço sobre a testa úmida. – Com certeza, milorde. Penso que milady tem razão. É bom fazer algo normal. E eu nunca vi as criaturas se moverem sem ser durante a noite, também. Podemos nos confortar com isso.

- Não muito. – Gabriel advertiu a menina antes de se voltar e seguir Amélia para fora da cozinha e subir as escadas. Eles chegaram ao segundo patamar e pararam no quarto dela para pegar os sabonetes e uma muda limpa de roupa. Ela estava indecisa entre um vestido de seda listrado em rosa e um de tafetá lilás.

- Nenhum deles.

Ela se voltou e viu Gabriel inclinado contra o batente da porta observando-a. – Desculpe-me?

- Nenhum desses vestidos. – ele especificou. – Algo mais sensato. Algo em que você possa se mover.

Amélia franziu a testa e olhou para dentro do guarda roupa. Verdade seja dita, ela não tinha nada muito sensato. Ela localizou um vestido de dia cinza e o pegou.

- Esse serve. – Wulf comentou.

- É feio. – ela protestou. – Nem tenho certeza de que é meu. Parece algo que minhas criadas usariam.

- Resistente então. – Wulf disse. – Sensato.

Ela queria discutir. Talvez ela não precisasse de algo em que fosse fácil se movimentar. Amélia não tinha pensado em trazer roupas “correndo por sua vida” junto com ela. Talvez fosse justamente por isso que esse vestido tivesse sido obviamente incluído erroneamente junto com suas coisas.

- Os apetrechos de barba de Robert devem estar no quarto ao lado. – ela disse. – Eu os pegaria para você, mas não quero voltar lá. Nunca mais.

- Compreensível. – Wulf disse, e se afastou da porta desaparecendo no corredor. Ela o ouviu no quarto ao lado pouco depois. Amélia pegou uma camisa e calcinhas limpas e as escondeu em sua trouxa.

- Consegui o que preciso.

Ela se voltou e viu Gabriel na porta novamente, uma pequena bolsa na mão. Amélia olhou para as roupas sujas dele. – Fico imaginando se encontraremos algo para você em algum dos outros quartos. Sei que você é grande demais para usar qualquer coisa além dos camisolões de Robert.

Wulf deu de ombros. – O pai dele era um homem grande. Tenho certeza de que Robert guardou algumas roupas dele por aqui em algum lugar.

Amélia se aproximou dele. – Então você conheceu os dois? Os pais de Robert?

Afastando-se para permitir que ela passasse, ele respondeu. – Quando eu era mais novo. Antes...antes das coisas mudarem.

Lorde Gabriel obviamente estava falando sobre a suposta maldição que assombrava os irmãos Wulfs. O escândalo que fizera com que a antes influente família deles fosse evitada por toda a sociedade, com exceção de um poucos...bem, apenas um de que ela tinha conhecimento, a Duquesa Mãe de Brayberry.

- Não acredito que você seja amaldiçoado sabe. – ela disse, movendo-se pelo corredor até o primeiro quarto. – Acredito que seus pais foram desafortunados.

- Dadas nossas circunstâncias, que conveniente.

Ela olhou para ele por cima dos ombros. – Eu dancei com seu irmão mais velho em público. – ela declarou. – Creio que a sociedade logo os perdoarão.

Um leve sorriso apareceu na boca perturbadora. – Nos perdoará de que? Sermos loucos?

Amélia se dirigiu até um escuro guarda roupa de carvalho e abriu as portas. – Bem, por tudo, suponho. – ela respondeu.

- Meu coração vibra de alegria com essa possibilidade.

O sarcasmo dele a fez contorcer os lábios. – Eles são muito rudes. – ela admitiu, notando que os panos dentro do guarda roupas eram em sua maioria lençóis velhos e afins. Ela fechou as portas e passou por Wulf voltando para o corredor. – Eu, pelo menos, acho as regras e tradições tolas deles um tanto cansativas. Pessoas escandalosas são bem mais interessantes.

- E foi por isso que você se casou com um homem que não amava apenas para agradá-los.

Amélia se voltou apressadamente, quase colidindo com Wulf. – E o que você sabe sobre amor? – ela exigiu. – Quem é você para me julgar?

Ele estava com um sorrisinho sarcástico no rosto. Apagou-se. – Como bem sabe, não sou ninguém. E você está certa; não sei nada sobre amor. Nem me importo em saber.

Embora Amélia tivesse declarado a ele que não acreditava no amor, doeu um pouco ouvi-lo fazer eco a seus sentimentos. Ela supunha que era certo os homens se apaixonarem por ela; ela simplesmente não precisava sentir esse sentimentos tolos ou fortes por eles. – Então temos algo em comum. – Ela se voltou e marchou para o quarto mais próximo. Juntos, ela e Gabriel procuraram nas gavetas e no guarda roupa. Não encontraram nada, mas tiveram sorte dois quartos mais adiante.

- E sobre ontem à noite?

Eles não haviam conversado desde que declararam seu desinteresse recíproco pelo amor. Ambos estavam examinado um guarda roupas onde havia umas poucas peças penduradas. Peças que pareciam estar perto de servirem em Gabriel.

Ela olhou para ele. – Ontem à noite?

Ele revirou os olhos. – Não finja que não aconteceu nada!

O estômago dela subitamente girou. – Você está falando sobre o homem...ou o que quer que fosse? Por favor, me perturba pensar sobre isso. Eu quero me esquecer disso mais um tempinho.

Gabriel sacudiu a cabeça. – Não, não é disso que estou falando. Estou falando sobre mais tarde, quando você desceu as escadas.

Amélia estava com dificuldade em se lembrar de muita coisa sobre a noite passada. Ela suspeitava fortemente que Mora tinha colocado algo no chá para que ela adormecesse. Subitamente ela achou que sabia o que devia ter acontecido. – Oh, meu Deus, não me diga que eu tive uma crise de sonambulismo.

Ele piscou. – Como?

O calor lhe subiu ao rosto. – Um péssimo hábito que tenho desde a infância. O que eu fiz? Cantei? Dancei? Toquei um instrumento? Deus sabe que recebi mais convite para pernoitar quando criança do que as outras garotas por essa razão. Soube que sou uma diversão.

Ele piscou novamente. – Totalmente. – ele lhe garantiu. – E você não se lembra de nada?

Ela tentou. – Não. Nadinha. O que eu fiz?

Ele desviou os olhos e correu a mão pelos cabelos. – Nada. Você desceu as escadas e ficou parada sobre mim por um momento, depois voltou para a cama.

Amélia suspirou. – Graças aos céus. Soube que mantive conversas sérias enquanto estava adormecida. É embaraçante. Eu adverti Mora sobre isso enquanto ela escovava meus cabelos, talvez pressentindo que os eventos dos dois dias passados pudessem provocar uma crise. Já que somos companheiras de quarto, achei que ela devia saber dos meus maus hábitos.

Fora Gabriel quem insistira para que as duas mulheres dividissem o quarto. Amélia se sentiu desconfortável no inicio, mas sentiu-se mais segura com mais alguém no quarto com ela.

- Creio que isso explica o que você estava fazendo. – ele finalmente respondeu, embora ainda parecesse um pouco confuso. – Fico feliz em saber que você é sonâmbula. Não precisarei ficar imaginando o que você está fazendo caso ocorra novamente.

- E pode acontecer. – ela garantiu a ele, segurando uma camisa de tecido branco contra ele e decidindo que serviria. – Faço isso mais quando estou nervosa com alguma coisa. Ou assim penso, já que sempre os relatos de minhas grandes travessuras geralmente se centralizavam sobre um evento que tinha me perturbado de alguma forma.

- E você tem certeza de que não se lembra de nada?

Olhando para ele, ela respondeu. – Estou certa. Por que? Fiz algo de que deva me lembrar?

Ele a encarou por um momento, então respondeu. – Não.

Amélia deu de ombros e colocou a camisa sobre o braço junto com seus trajes. – Se você encontrar calças, traga para baixo. Você não se importa se Mora e eu tomarmos banho primeiro, não é?

Gabriel olhou para si mesmo. – Provavelmente é uma sábia idéia, já que deixarei a água imunda. Já faz algum tempo que desfrutei desse luxo. Estou certo de que a água está quente agora. Descerei logo para encher a banheira para vocês.

- Seu ombro. – ela se preocupou.

Ele deu de ombros. – Não é nada. Já tive arranhões piores.

Eles ficaram parados se olhando até que a tensão cresceu. Amélia se perguntou se ele estava se lembrando sobre a manhã de ontem quando ficaram juntos sozinhos. Ela estava. Lembrando-se e desejando que ele a beijasse novamente, não levando em conta o quão inadequados eram esses pensamentos. Talvez ela quisesse simplesmente desviar seus pensamentos. Qualquer coisa para não pensar sobre a noite passada e o que vira lá fora.

- Você deseja mais alguma coisa?

A voz dele, já baixa, beirava a sedução. Ela se excitou. – Não. – ela respondeu. Como ela não sabia o que dizer, ela saiu do quarto e desceu as escadas. Depois de colocar as roupas e os acessórios de banho na sala de visitas, ela foi até a cozinha. O vapor assobiava nos baldes sobre o fogão. Ela olhou ao redor procurando por Mora.

A porta do porão de armazenamento estava aberta. As pesadas travas que Gabriel tinha colocado contra a porta tinham sido removidas. Arrepios subiram em seus braços. Por que a porta estava aberta? E onde estava Mora?

- Mora? – Amélia chamou nas escadas. – Mora, você está aí embaixo?

Silêncio.

Amélia deu um passo na direção da porta. – Mora, responda! – ela chamou novamente.

- Sou eu, milady. – Mora finalmente respondeu. – Estou apenas pegando um pouco de batatas para o cozido dessa noite. Pensei ter pedido para Lorde Gabriel pegar um pouco para mim, mas não achei nada.

- Você não devia estar aí embaixo! – Amélia chamou. – Suba imediatamente!

- Eu sei, fiquei me dizendo que não era correto descer até aqui sozinha, mas não quis pedir para o Lorde descer. O corpo dele não ficará curado se ele continuar a se mexer como vem fazendo. E, além disso, ele disse que estávamos seguras durante o dia.

- O que está acontecendo? – Gabriel estava parado na entrada da cozinha, um par de calças escuras dobradas sobre seu braço. – Por que essa porta está aberta?

- É Mora. – Amélia disse a ele. – Ela desceu para buscar um pouco de batatas.

- Garota estúpida. – ele praguejou, então colocou as calças sobre o encosto de uma cadeira e atravessou a cozinha. Ele passou pela porta e desceu as escadas rapidamente.

Amélia prendeu a respiração até que os dois voltaram minutos depois. Mora tinha umas poucas batatas enroladas no avental e Gabriel parecia que prestes a soltar fumaça pelos ouvidos. Ele rapidamente fechou a porta e começou a recolocar os objetos contra ela.

- Nunca vá lá para baixo sozinha! – ele disse a Mora quando terminou. – No que estava pensando? Você é idiota?

Os olhos da garota se encheram de lágrimas. – Só queria fazer um bom cozido...e não queria que machucasse seu ombro novamente. Não vai sarar se o senhor continuar se mexendo. Além disso, o senhor disse que aquilo que está na floresta não sai durante o dia.

Ele olhou no rosto da garota. – E se eu estiver errado? E se uma daquelas criaturas estivesse esperando lá embaixo por você? Você não colocou somente a si mesma em perigo, mas a todos nós por ter deixado aberto o acesso para casa.

As lágrimas desciam pelo rosto de Mora. – Fiquei escutando bastante tempo antes de descer. Eu saberia se um deles estivesse lá.

Ele abriu a boca, Amélia estava certa, para continuar a repreender a garota, mas ela interferiu. – Por favor, pare! – ela pediu a ele. Então se aproximou e colocou um braço ao redor dos ombros de Mora. – Não percebe o quanto a entristeceu? Ela não pretendia causar mal algum.

Gabriel se afastou, mas a raiva continuava estampada em suas belas feições. – Preciso que Mora entenda o perigo do que acabou de fazer. – ele prosseguiu. – Você compreende, Mora?

A garota concordou com a cabeça. – Foi tolice. Estou tão acostumada a fazer as coisas para os outros e não o contrário que achei natural descer para buscar as batatas.

Amélia apertou os ombros de Mora. – Estamos seguros. – ela disse a Gabriel. – A garota compreende que cometeu um erro. Por favor, carregue os baldes até a sala de visitas e encha a banheira. Vamos deixar Mora se banhar primeiro para que ela se acalme.

- Tudo bem. – ele finalmente concordou, mas somente depois de encarar Mora tempo suficiente para fazê-la explodir em novos soluços. – Depois de cuidarmos de nossa higiene, vamos conversar sobre o que precisamos fazer para sairmos dessa situação.

Sentindo que era melhor concordar com Gabriel enquanto ele estivesse nervoso, Amélia concordou. Ela conduziu Mora até a mesa e a ajudou a tirar as batatas envolvidas pelo avental enquanto Gabriel se ocupava em carregar os pesados baldes até a sala para encher a banheira. Amélia havia declarado que todos estavam seguros, mas no fundo da mente, bem no fundo, ela sabia que era uma mentira. Eles estavam seguros por agora. Mas por quanto tempo mais?

 

Mora foi soluçando para o banho. Amélia sentiu muita pena da garota e se ofereceu para ajudá-la, mas Mora sacudiu a cabeça e resmungou que desejava ficar sozinha. Amélia admitiu que provavelmente fizera a oferta porque nunca vira Mora sem aquela horrenda touca cobrindo-lhe os cabelos. Amélia era sempre a primeira a dormir e a última a acordar; assim, nunca vira Mora se vestir para dormir ou pela manhã. Amélia suspeitava que a garota experimentara seu perfume e não podia recriminá-la, então ela fez com que seus sabonetes e outros itens fossem colocados a disposição.

Enquanto a garota se banhava, Amélia sentou-se à mesa da cozinha de frente a Gabriel. Ele estava com a expressão pensativa, e ela se manteve em silêncio a maior parte do tempo. O que Mora tinha feito fora tolo e perigoso, mas como Amélia já havia dito, não causara mal algum.

- Você deve deixar isso para lá. – ela finalmente disse.

Ele olhou para cima como se tivesse se esquecido que ela estava sentada perante ele. – Não entendo o que deu nela para fazer algo tão tolo. – ele disse.

- Ela é jovem. – Amélia defendeu a criada. – E como ela disse, acostumada a fazer as coisas para os outros ao invés de as terem feitas para ela.

A expressão dele não se suavizou. – Ainda assim, você pensou que ela estava muito amedrontada para se aventurar fora de casa sozinha.

Amélia deu de ombros. – Ela disse que ficou ouvindo na porta para se certificar de que não ouvia nada se movendo lá embaixo. Ela também disse que não queria esforçar seus ferimentos. Mora apenas mostrou ter consideração.

Ele rosnou uma resposta, mas não disse mais nada. O silêncio se estendeu entre eles. O ar ficou carregado e Amélia não conseguia respirar...e o cheiro dele, parecia pairar ao redor dela. Ela olhou do outro lado da mesa e viu que ele a encarava. Ela poderia se perder nos profundos olhos verdes...e o fez. As pupilas deles pareciam se dilatar enquanto ela o encarava, a ficarem maiores e longitudinais ao invés de redondas. O olhar dele abaixou até sua boca e ela jurava que seus lábios formigaram como se os tivesse tocados com os dele novamente.

- Me desculpem, mas já acabei meu banho.

Apenas quando Gabriel desviou os olhos, Amélia pode fazer o mesmo. Mora parecia bem limpa e tinha colocado um vestido de trabalho limpo, mas a garota ainda usava a touca medonha sobre a cabeça.

- Você não acha que a touca sufoca dentro de casa, Mora? – Amélia perguntou. – Por favor, não pense que deva usá-la para manter uma aparência de servidão. Lorde Gabriel e eu não nos importamos dadas as circunstâncias. A garota abaixou a cabeça. O rosto da garota ficou rosado. – É contra minha religião mostrar meu cabelo, milady. Fazer isso é sinal de orgulho, e todos sabem que orgulho é pecado.

Amélia olhou para Gabriel do outro lado da mesa. Ele simplesmente levantou uma sobrancelha. Embora já tivesse ouvido sobre tal religião, Amélia realmente nunca havia pensado que orgulho fosse um pecado. Se alguém tinha orgulho de sua aparência, e daí? Percebendo que isso era um assunto superficial, ela se levantou da mesa.

- Vou me apressar para que a água ainda fique quente para você. – ela disse a Gabriel. – Seja gentil. – ela acrescentou baixinho.

Seja gentil? Nenhuma mulher jamais deu ordens a Gabriel para ser gentil, bem, exceto sua mãe. Ele observava Mora enquanto ela amarrava o avental ao redor da cintura pequena e se ocupava em descascar as batatas que buscara com o risco da vida deles. Ele não queria ter sido mau com a menina. As lágrimas dela o afetaram, mas ela tinha de compreender que o que havia feito não colocara somente ela em perigo, mas a ele e a Amélia também.

- Peça desculpas por ter perdido a paciência com você, Mora. – ele finalmente disse. – Fiquei nervoso por você nos ter colocado em risco. Queria apenas que compreendesse a seriedade do que fez.

- Eu compreendi. – ela disse suavemente, sem se voltar para olhar para ele. – O que fiz foi errado e não farei isso novamente.

Ele tentou relaxar. Desde que entrara na cozinha e vira a porta do porão de armazenamento aberta, seu corpo se posicionara para se defender. Ele gostava de lutar, Gabriel admitia. No passado, era uma forma de aliviar a tensão que surgia por ser um solitário – de seus raros encontros com mulheres e de suas ainda mais raras visitas a Londres. Ele havia se envolvido em muitas brigas de tavernas no passado, mas nunca tinha enfrentado o que estava enfrentando agora. Ele nem mesmo tinha certeza do que estava enfrentando.

- Essas criaturas, Mora. Você disse que elas apareceram pouco depois de você ter sido contratada pela governanta chefe da casa. O que eles fizeram para afugentar todo mundo?

Ela se manteve do outro lado do aposento, usando a pequena faca com precisão enquanto descascava as batatas. – Nunca os vi fazer nada. – ela admitiu. – Mas Constance, a lavadeira, disse que um deles se dirigiu a ela uma noite como homem e lhe disse que todos deviam partir. Ela disse então que o homem se transformou em lobo bem diante dos olhos dela.

Gabriel coçou os pelos do queixo. Ele estava ansioso por se barbear e tomar um banho. – E todos fugiram, somente com a palavra dela?

Mora olhou para ele. Ela se endireitou. – A mulher era respeitada entre todos os empregados. Ela trabalhou para os pais do jovem patrão. Ninguém pensou que ela estava mentindo.

- Estranho. – ele disse, mais para si mesmo. – Que fosse preciso tão pouco para convencer todos a fugir.

- Desculpe-me por dizer isso, milorde, mas não é pouca coisa ver um homem se transformar em lobo, ou o contrario, Não é?

O olhar dela o enervou um pouco. Como se ela olhasse mais profundamente dentro dele do que ele gostaria que fizesse. Como se ela soubesse a verdade sobre ele e sua família. Mas ela não poderia saber. Todos acreditavam que o que assombrava os irmãos Wulfs era a loucura. Ninguém sabia da verdade. Ou sabiam? Ele ficava pensando nos irmãos, agora casados. Tinham escapado da maldição? Ela caíra sobre eles? Ele precisava saber, mas não iria descobrir nada parado em Collingsworth Manor.

- Suponho que seja estranho. – ele finalmente respondeu a ela. – Se alguém acredita em tais coisas.

- Ver é acreditar. – ela comentou, voltando a sua tarefa. – O senhor e a senhora viram agora.

Ao mencionar a senhora, Mora fez com que os pensamentos dele se voltassem para a sala de visitas. Estaria Amélia nua agora, esticada e relaxada em seu banho? Por mais que tentasse afastar seus pensamentos de tais visões, ele não conseguia evitar. Gabriel ainda não conseguia acreditar que Amélia não se lembrava de ter descido noite passada e praticamente o seduzido. Estaria fingindo que não se lembrava?

- Mora, Lady Collingsworth lhe disse algo sobre ser sonâmbula?

A menina pegou as batatas que tinha descascado e as partiu, colocando-as numa panela fervendo sobre o fogão. – Sim. Ela me advertiu de que às vezes anda dormindo para que eu não me assustasse. Agora que estamos dividindo a cama e tudo. Nunca vi ninguém fazer isso, mas já ouvi falar.

- Você a ouviu sair da cama noite passada?

Mora se voltou e olhou para ele. – Não. Dormi como uma pedra, estava exausta. Ela fez isso noite passada?

Pelo menos ele soube que Amélia não mentira lá em cima. – Sim. Ela desceu, embora não se lembre disso hoje.

- Pobre mulher. – Mora falou, voltando a fazer o cozido. – Enviuvar na noite de núpcias, e agora tudo isso. Ela está enfrentando tudo melhor do que eu imaginava que uma delicada flor da sociedade como ela conseguiria, não concorda, milorde?

- Sim. – ele admitiu.

- E ela é tão gentil. – Mora acrescentou. – Nunca tinha trabalhado para a nobreza antes de vir para essa casa, mas sempre me disseram para não esperar por gentileza da parte deles. Ouvi dizer que vivem em círculos fechados e não ligam a mínima para as criadas. A menos que elas sejam bonitas e o senhor queira...bem, o senhor sabe.

Gabriel não sabia, não realmente. Quando estava crescendo, antes de a maldição visitar seu pai e a vidas deles se transformarem em um inferno, eles tinham criadas. Gabriel não se lembrava de ninguém em sua família ser rude com eles; ele nem mesmo se lembrava deles. Eram como fantasmas na casa que mantinham tudo na mais perfeita ordem. Ele teve de aprender a fazer tudo por si mesmo. Os homens queriam o dinheiro que os Wulfs ofereciam para trabalhar para eles, ajudantes de estábulos e afins, mas nenhuma mulher.

Se os Wulfs queriam ter as roupas lavadas, tinham de levá-las para uma mulher numa vila próxima chamada Hempshire. As mulheres ansiavam pelo dinheiro dos Wulfs desde que não tivessem que trabalhar para eles em Wulfglen.

Ele tinha saudades de sua casa, de seus irmãos, e subitamente soube que ele, Amélia e Mora tinham de partir de Collingsworth Manor e irem para Wulfglen a pé. A força está nos números, e os números pareciam estar do lado errado no momento. Ele contaria a Amélia e Mora tão logo tivesse se banhado. Ele contaria a elas durante o jantar que Mora estava ocupada preparando.

Amélia entrou surpreendentemente após um curto espaço de tempo parecendo rosada e limpa e um tanto quanto envergonhada com a simplicidade de seu vestido. – O banho é todo seu. – ela disse a ele. – Mas temo que você ficará com o mesmo perfume meu e de Mora por causa dos sabonetes que usamos.

Ele deu de ombros. – Muito melhor do que o cheiro que estou agora. – Ele se levantou da mesa sentindo uma fisgada na coxa onde Mora extraíra a bala e dera os pontos. Seu ombro doía, também, mas se Mora pensasse que ele não estava sarando de maneira apropriada, nem pensar na tarefa que ela tentaria realizar então. Ele fez o que pode para não mancar enquanto saia da cozinha.

A sala de visitas estava agradavelmente quente e cheia de vapor. Ele fechou os olhos por um momento e simplesmente respirou o perfume do sabonete. O cheiro de Amélia...e agora o de Mora também, ele supunha. Gabriel se despiu apressadamente, feliz por se livrar das calças de camurças manchadas. Ele removeu as faixas de suas feridas e entrou na água. Um longo suspiro de contentamento partiu de seus lábios quando ele se acomodou na banheira. Já que não havia mais ninguém esperando para se banhar, ele não teve pressa.

 

- Você acha que ele está bem lá dentro? – Amélia perguntou a Mora. Gabriel já estava tomando banho há algum tempo.

Mexendo o ensopado que agora estava cozinhando lentamente no fogão, Mora deu de ombros. – Imagino que ele esteja apreciando a água quente. A senhora pode ir lá e ver se ele está bem se está tão preocupada.

Mora devia saber que sua sugestão não era apropriada, mas sendo da classe baixa, talvez ela não percebesse. Se Amélia tivesse feito essa pergunta a qualquer uma de suas criadas, uma delas teria se apressado para averiguar o assunto. Amélia sentia falta de sua criadagem de Londres, mas Robert havia lhe assegurado que alguém em seu quadro estaria qualificada a assumir o papel de sua criada pessoal.

É claro que não havia mais criados em Collingsworth Manor quando chegaram. Ela supunha que devia dizer a Mora que não seria apropriado que Amélia fosse ver como ele estava, que ela acidentalmente poderia pegá-lo despido, mas por que se importar sob as circunstâncias?

Agora aí estava um pensamento intrigante. Ver Gabriel Wulf nu. Amélia já o vira nu da cintura para cima, tinha visto a perna dele...ela não podia imaginar o quão impressionante seria a extensão e a largura dele sem roupa alguma. Bem, ela conseguiria imaginar se tentasse. Mas não o faria.

- Posso ajudar? – ela perguntou a Mora, precisando de uma distração de seus pensamentos perigosos.

- A senhora poderia ir colocando a mesa para nós. – Mora sugeriu. – O ensopado ficará pronto daqui a pouco. Não tinha muita coisa para colocar nele. Nenhuma carne, pelo menos. Ainda tem um pouco de pão e de queijo. Acho que vai dar para nos satisfazer.

Soou maravilhoso para Amélia. Durante toda a vida ela fora alimentada com as mais finas comidas preparadas pelas melhores cozinheiras, e agora, aqui estava ela, auxiliando a ajudante de cozinha a colocar a mesa. E ansiosa por uma refeição que a teria feito torcer o nariz mimado. Quão dramaticamente sua vida tinha mudado no espaço de um dia. Ela não teria acreditado que coisas assim pudessem acontecer. E especialmente a ela. Por alguma razão, ela sempre pensou que ser rica e privilegiada tinha um certo grau de segurança.

Ela sempre fora protegida, mimada, recebera o melhor de tudo. Raramente tinha feito algo ou ido a algum lugar sem que alguém a acompanhasse. Era, de certo modo, asfixiante. Talvez fosse por isso que ela vivia se rebelando. Agora ela daria qualquer coisa para estar cercada por criados e por sua família.

Mora já havia deixado as tigelas e colheres no balcão ao lado da bomba d´água. Amélia simplesmente tinha de transferir tudo para a mesa. Não levou muito tempo. Ela estava arrumando a última tigela quando Gabriel retornou. A visão dele quase lhe deixou sem fôlego.

Ele estava vestido com uma camisa branca aberta no pescoço e calças pretas que o vestiam de uma maneira quase indecentemente justa. Elas delineavam a forma poderosa de suas coxas. Seus cabelos estavam molhados e escovados para trás revelando suas feições bem esculpidas, seu rosto agora macio como o bumbum de bebê.

- Oh Deus. – ela não pode evitar o suspiro. Ele sorriu para ela, e ela jurou que seus joelhos enfraqueceram.

Gabriel caminhou até a mesa e disse de maneira direta. – Fiz um plano enquanto me banhava e quero compartilhá-lo com vocês duas.

Mora trouxe a panela de ensopado para a mesa, servindo uma pequena porção para si e para Amélia e uma porção considerável para Gabriel. A garota então pegou o pão e o queijo. Gabriel ajudou as duas a se sentarem. Depois se sentou também.

- Precisamos sair daqui. – ele disse. – Estamos muito vulneráveis presos como estamos dentro dessa casa.

Mora ofegou. – Mas não estaremos correndo mais perigo lá fora, entre eles? – ela perguntou. – Pelo menos temos as paredes para nos proteger. Para mantê-los afastados.

Ele sacudiu a cabeça. – Seria muito fácil eles nos forçarem a sair. Eles podem esperar até que nossa comida acabe e estejamos fracos demais para enfrentá-los. Obstruir nosso fornecimento de água. Inúmeras coisas.

Amélia estremeceu. Ela não tinha pensado em nada disso. Ela imaginava se mesmo agora as criaturas não estariam tramando algo sinistro contra eles.

- Ele está certo, Mora. – ela disse. – Se partirmos durante o dia, se embalarmos alimentos, teremos uma chance.

- Eu preferiria morrer de fome a ser devorada por um deles. – Mora murmurou.

- Já decidimos. – Gabriel disse a menina. – Você tem de vir conosco, Mora. Não posso em sã consciência deixá-la para trás.

Amélia sentiu uma emoção a percorrer pelo cavalheirismo dele, ainda que fosse seguida por um tremor de medo sobre o que acabaram de decidir. Pelo menos eles estavam fazendo planos para escapar. Planejar era melhor do que não fazer nada. Mora, ela sentia, não estava convencida. Amélia estendeu o braço e bateu de leve na mão dela.

- Discutiremos mais depois de comer. Precisarei que você me ajude com os mantimentos. Você sabe bem melhor o que devemos levar do que eu com relação a comida...

- Senhoras. – Gabriel interrompeu.

Amélia olhou para ele do outro lado da mesa. Ele estava sentado muito quieto, suas narinas levemente alargadas. – Não há tempo para planejar. – ele disse. – Eles colocaram fogo na casa.

Ela pensou que ele estava brincando, mas ele não brincaria com uma coisa dessas. Amélia não sentia cheiro de fumaça. Mas espere, sim, um ligeiro cheiro. Então não havia tempo para pensar. Gabriel colocou-se em ação.

Gabriel se levantou da cadeira. Ele olhou pela cozinha e viu a fumaça penetrando pela porta do porão de armazenamento. Maldição, eles iriam queimar a casa a partir do chão. Aproximando-se ele agarrou o braço de Mora e a puxou da cadeira, satisfeito por Amélia ter tido o bom senso de se por de pé.

- Vamos. – ele disse às mulheres. – Temos de ir agora.

- Mas, mas não devemos tentar apagá-lo. – Mora engasgou. – E comida e roupas? Não podemos simplesmente fugir para dentro da noite sem nada!

- Temos de ir! – Gabriel repetiu. – Eles esperam que percamos nosso tempo juntando tudo o que pudermos. Nossa melhor chance de fugir é agora, nesse exato momento.

- A arma – Amélia murmurou. – Você a pegou?

Ao invés de responder, ele a removeu da cintura da calça. – Sairemos pela frente!

Amélia o seguiu facilmente, mas a menina fincou os pés no chão. Gabriel a arrastou junto. Uma vez que ele segurava a pistola numa não e o braço de Mora na outra, Amélia correu na frente e tateou pelas trancas. Ela abriu a porta pouco depois. Eles foram cumprimentados por um homem, seus olhos brilhantes, seus dentes pontudos exibidos num rosnado.

Gabriel levantou a arma e atirou no homem. Mora gritou e Gabriel a puxou atrás dele, todos tropeçando sobre o cadáver do homem. Gabriel soltou Mora tempo suficiente para gritar: - Corram na direção das árvores!

A garota congelou. Amélia pegou no braço dela puxando Mora junto com ela enquanto corriam. Gabriel as seguia, a pistola armada e pronta, olhando para frente, para trás, para de onde quer que a ameaça pudesse surgir. Ele se surpreendeu por não serem subitamente atacados. Era isso o que as criaturas queriam, que eles saíssem da casa.

E como ele suspeitava, eles deviam ter acreditado que Gabriel e as mulheres lutariam para apagar o fogo ou que pelo menos perdessem tempo juntando o que podiam. No momento, Gabriel estava com a vantagem. Ele não a estragaria.

A pistola estava firmemente apoiada em sua mão enquanto ele corria atrás das mulheres. Mesmo ferido, Gabriel facilmente se aproximou de Amélia e Mora. A garota tropeçou em um toco e ele percebeu que tinha vantagens que as mulheres não tinham. Ele via claramente no escuro. Ele pegou a mão gelada de Amélia na sua e a instruiu a segurar a de Mora; então as conduziu em passo tão rápido quando ousava, puxando-as através da floresta, entre as densas árvores, dentro da densidade do perigo que sentia ao redor deles.

Gabriel conhecia um atalho para Wulfglen. Quando garotos, ele e seus irmãos o usavam frequentemente para visitar Robert. À cavalo a viagem levava algumas poucas horas; à pé, sendo perseguido, poderia levar dias. Ele parou por um momento para analisar a situação, para permitir que Amélia e Mora pudessem respirar; então as puxou para frente. Gabriel agora se lembrava de um lugar onde poderiam passar a noite em relativa segurança. Era a caverna de um animal que ele e seus irmãos descobriram quando exploravam a área ao redor do lago onde nadavam. Gabriel e as mulheres precisavam de água, e um lago a forneceria para eles. Se a água não era das mais limpas, ainda assim serviria.

- Por aqui. – ele instruiu.

 

O verão estava quase terminando e agora Amélia sentia o frio no ar noturno. Gabriel finalmente parou e permitiu que elas descansassem. A luz da lua iluminava um pequeno lago e estava mais fácil ver agora que estavam em campo aberto, mas ao redor deles não se ouvia nenhum som noturno. Era assustador. Ela esfregou os braços e puxou o ar fresco da noite para dentro dos pulmões. Sua garganta estava seca, ou do medo ou da apressada jornada através da floresta.

Ela observava Gabriel. Ele estava parado imóvel como se ouvindo, como se cheirando o ar. Certamente ele não estava fazendo isso, ela disse a si mesma. Ele estava apenas respirando. Depois de poucos momentos, ele pareceu relaxar.

- Bebam aí do lago. – ele disse a elas. – A água não é das mais limpas, mas não acho que vai nos matar.

Mora não hesitou. Ela rapidamente foi para a beira da água, inclinou-se e começou a beber. Amélia umedeceu os lábios, mas havia tão pouca umidade em sua boca para ajudar em seus esforços. Agora Gabriel se curvou ao lado de Mora e também bebeu com as mãos em conchas. Amélia se forçou a se mover e se inclinar ao lado de Gabriel.

- Tem gosto de que? – ela perguntou a ele.

- Peixe. – ele respondeu.

Amélia detestava peixe. Ela estremeceu.

- Não é tão ruim. – Mora ajudou, secando a boca com a manga do vestido. – Mas provavelmente seja bom que esteja escuro e não possamos ver. Aposto que a água tem coloração esverdeada.

O pensamento revirou o estômago de Amélia. – Creio que vou esperar até encontrarmos uma água mais limpa.

Gabriel levantou a cabeça e olhou para ela. – Há um riacho que corre através da floresta. – ele admitiu. – Mas podemos demorar uns dois dias até chegarmos lá. Beba agora.

Seu tom era de ordem. Amélia queria recusar; ao mesmo tempo, ela queria beber. Ela respirou fundo e colocou as mãos na água gelada. O primeiro golinho lhe deu ânsia. Gabriel não estava exagerando. Tinha mesmo gosto de peixe. Ela se forçou a beber apesar de a água ter um gosto horrível.

- O que vamos fazer agora? – Mora perguntou.

A luz da lua brilhou sobre ele, destacando as mechas loiro-prateadas em seus cabelos. – Conheço um lugar onde poderemos dormir – ele respondeu. – É bem ali.

Todos se levantaram da beira do lago. Gabriel as conduziu para o que parecia ser um grande buraco no chão. – Temos de que descer. – disse a elas. – Vou primeiro. Vocês me seguem.

- Aí dentro. – Amélia torceu o nariz. – Parece sujo.

Gabriel suspirou. – Está no solo; é claro que é sujo. Você prefere ficar aqui fora e tentar a sorte com o que quer que possa estar nos seguindo?

Amélia não preferia, mas ela odiava espaços pequenos. – Parece terrivelmente escuro lá embaixo – ela comentou.

Mora deu um passo a frente. – Eu vou atrás de Lorde Gabriel. – ela disse. – Apesar de não gostar de espaços pequenos. – ela resmungou, e Amélia quase a beijou por ela ter reclamado.

Gabriel apressou-se a descer pelo buraco. Devido a seu tamanho, ficou um pouco apertado, e só de vê-lo fazendo isso fez com que Amélia prendesse a respiração. Pouco depois ele desapareceu.

Mora cutucou Amélia. – Imagine se tem algo mais dentro desse buraco. – ela disse. – Quando se encontra um buraco no chão, geralmente tem um animal dentro dele.

O pensamento fez com que os pêlos nos braços de Amélia se eriçassem. – Isso não está ajudando em nada. – ela disse. – O único consolo, creio, é que se tiver um animal lá embaixo, vai atacar primeiro Lorde Gabriel.

Mora a surpreendeu por dar risada. Ela nunca tinha ouvido a menina rir antes. Aliviou um pouco da tensão que Amélia sentia por ter de entrar no buraco.

- Tudo bem, pode vir Mora. – Gabriel chamou e sua voz fez eco. – Apresse-se, precisamos nos esconder.

A garota parou de rir rapidamente. Ela respirou fundo e começou a descer pelo buraco. Amélia não podia olhar sem sentir sua garganta se fechando. Ela olhou ao redor. Aqui estava ela, na escuridão da noite, no meio da floresta com dois virtuais estranhos. Seu vestido estava manchado e sujo. Ela tinha gosto de peixe na boca, e por tudo o que sabia, era alvo dos olhares de alguma criatura que podia se transformar em homem ou lobo.

Um cheiro lhe chamou a atenção. Hortelã? Enquanto Mora continuava a descer o buraco, Amélia procurou pela fonte do cheiro. Encontrou o lugar bem na hora que Gabriel a chamou. Agarrando um punhado, ela guardou as folhas dentro do bolso e retornou ao buraco. Por mais medo da escuridão e de lugares fechados que Amélia tinha, Gabriel estava certo. Ela preferia enfrentar o que estava aqui embaixo com eles do que ficar lá em cima sozinha enfrentando o que pudesse acontecer.

Amélia respirou fundo e começou a descer. Poeira subia ao redor dela enquanto ela se apressava para baixo. A caverna lá embaixo era maior o que ela imaginara; pelo menos ela conseguia enxergar bem por causa da pouca luz da luz que entrava lá de cima. Gabriel se aproximou e a puxou para ele, e os três aconchegaram-se no chão sujo. Devido à proximidade entre eles, Amélia dividiu as folhas de hortelã com alegria.

Depois de se aconchegarem para se aquecerem, Gabriel instruiu as mulheres a dormirem um pouco. Amélia não conseguia dormir. Ela estava aninhada contra Gabriel, e o corpo forte e duro dele não era um bom travesseiro. Ele irradiava calor corporal, porém, e somente por esse motivo ela não estava tentada a achar uma posição mais confortável. Amélia se recostava em um dos lados dele e Mora do outro. Ela já estava ouvindo os suaves roncos de Mora e invejava a garota por conseguir dormir tão facilmente sob as presentes condições.

- Temos de provocá-la por causa do ronco amanhã.

Amélia deu um pulo. Ela tinha pensado que Gabriel estivesse dormindo. – Uma libra que ela não vai nem sorrir. – ela sussurrou. – Mora não tem muito senso de humor.

Gabriel se moveu para que conseguisse encará-la. – Estou surpreso com o seu. – ele disse. – Quando a vi em Londres, não era algo que teria esperado de você.

Amélia se apoio em um cotovelo. – Você se lembra de mim, então? – O pensamento a agradou mais do que deveria. Ela vivia se esquecendo que estava de luto. Não ajudava em nada nunca ter visto o corpo de Robert. Era como se sua mente se recusasse a pensar na morte dele, apesar de Gabriel ter lhe dito que deveria.

- Sim. – ele finalmente admitiu. – Você ficou em minha mente por alguma razão.

Sabendo que não deveria confessar, ela disse. – E você na minha.

- Não por um tempo terrivelmente longo. – ele disse fazendo graça. – Você se casou.

Amélia se perguntou o que mais ela deveria ter feito? Esperado por ele? Tentado arranjar um encontro com ele através de sua amiga Rosalind? Implorado para ser convidada a Wulfglen para poder estar perto dele? – Fiz o que era esperado de mim. – ela afirmou. – Você é um homem. Não tem idéia da pressão que a sociedade e os pais exercem sobre uma garota para fazer o casamento correto. Queria viver a minha vida. Era a única maneira de eu conseguir isso.

Ele se estendeu a mão e afastou um cacho de cabelo caído na testa dela. – E agora o que você vai fazer? – ele perguntou.

Ela lutou para não corar de prazer com o toque dele e com a histeria que começava a crescer. Amélia ainda não teve tempo de pensar no que iria fazer. Ela só tinha tempo para pensar no que estava acontecendo agora.

- Realmente não sei. – ela respondeu. – Acho que vou voltar para a casa de meus pais, muito embora seja estranho. Sou uma viúva, mas realmente nunca fui uma esposa.

Wulf se manteve em silêncio por um momento, então falou. – Jovens viúvas, acredito, são tão procuradas no mercado de casamento quanto as jovens debutantes.

Amélia supunha que ele tinha razão, mas essa compreensão lhe deu pouco conforto. Ela já passara pela caça ao marido uma vez; não estava ansiosa por passar por isso novamente.

- Conte-me o que sabe sobre meus irmãos e suas esposas. – ele disse. – Está tudo parecendo bem com eles? Da última vez que saí de Londres atrás de Jackson, Armond estava tendo problemas com o irmão de criação de sua esposa. O assunto foi resolvido?

A menção do irmão de criação de Rosalind fez Amélia estremecer. O homem tinha sido muito bonito, mas exalava um ar de maldade que fazia a pele de Amélia se arrepiar. – O irmão de criação está morto. – ela respondeu. – A casa se incendiou. A mãe dele morreu junto.

Os olhos de Wulf brilhavam na escuridão, mas isso devia ser devido à luz da lua que entrava lá de cima. – Muito ruim para a madrasta. – ele comentou. – Mas então, eles parecem felizes juntos? Armond e Rosalind?

- Oh sim. – ela garantiu a ele. – Se eu acreditasse em amor, eu diria que eles se amam. E Jackson e Lucinda também. Rosalind está grávida. – ela o informou. – Ela ainda não disse nada, mas realmente é óbvio, mesmo ela vestindo-se de forma a disfarçar seu corpo.

- Uma criança? E Jackson já tem um filho?

Ela não sabia se devia ou não expressar sua opinião e a opinião de muitos com relação ao filho de Jackson. Por que não? Amélia se decidiu. Quem poderia saber se os dois estariam vivos amanhã? – Não acho que seja filho de Jackson. – ela confidenciou. – O bebê não se parece em nada com ele, mas eu irmão cuida da criança como se fosse dele, o que acredito seja o mais importante.

Gabriel bufou. – Não o vejo nesse papel. Se fosse Jackson aqui com duas mulheres, ele não estaria simplesmente dormindo.

Amélia deveria parecer chocada com a insinuação dele, mas estava muito cansada. Ela simplesmente disse o que estava em sua mente. – Penso que se uma mulher não desejar que uma bruxa lhe lance uma maldição, não vai olhar duas vezes para Jackson Wulf esses dias.

- Você acredita em tais coisas, Amélia? Em bruxas e maldições?

O uso de seu nome de batismo deveria desagradá-la, dado ao pouco tempo que se conheciam, mas não o fez. Amélia gostou do uso de uma forma mais intima de se dirigir a ela, e ela tinha de admitir que pensava nele como Gabriel e não Lorde Gabriel. O que ele tinha perguntado? Sobre bruxas e maldições e se ela acreditava em tais coisas.

- Dois dias atrás, não. Agora, não tenho tanta certeza.

Ele se inclinou mais para perto. – Tais coisas a amedrontam?

Novamente, ela estava muito cansada para não ser apenas honesta. – Sim.

Ele se aproximou ainda mais, seus lábios quase tocando os dela. – Eu a amedronto?

Espreitando-o através dos cílios, ela examinou se o que estava sentindo no momento tinha a ver com medo. Sim, seu coração batia mais rápido, mas a reação não tinha origem em estar amedrontada.

- Por que deveria ter medo de você? – ela perguntou. – Você é meu protetor. Minha melhor amiga está casada com seu irmão. Poderia estar morta, ou pior, se não fosse por você. Por que me pergunta se estou com medo de você?

- Sem considerar todas as coisas que mencionou, sou um estranho para você.

Como Amélia poderia dizer a ele que ele não era um estranho? Que tinha memorizado as feições dele? Que ele a visitava em sonhos? Que ela pensava em beijá-lo muito antes de a oportunidade surgir? Que ela havia pensado em fazer mais coisas além de beijá-lo? Ela não podia dizer isso a ele.

- Suponho que seja. – ela admitiu. – Mas no momento, você é tudo o que tenho entre eu e o que quer que aquelas criaturas desejem.

Ele se afastou e se acomodou sobre suas costas, olhando para o luar. – Seja honesta.

Ela riu por causa de seu tom seco e se aninhou ao lado dele para se aquecer. Eles não falaram mais nada, e sem a distração da conversa, Amélia se tornou completamente consciente dele. Do leve som da respiração dele, a sensação dura dele pressionado contra ela. E seu cheiro. Ela nem sempre o percebia. Mas notou agora e tentou identificar do que a fazia se lembrar.

Condimentos. Não tão forte quanto cravo da índia, nem tão doce como canela, mas algo entre eles. O cheiro se curvava ao redor dela e ela se pegou pensando se seria diferente beijá-lo agora que o rosto dele estava lisinho do que quando tinha barba? Se seria diferente senti-lo pressionado contra ela quando estivessem deitados do que em pé?

- Você me beijou quando teve a crise de sonambulismo.

Ele a assustou novamente. E, bom Deus, foi como se ele soubesse que ela estava pensando em beijos. – O que? – ela perguntou.

Gabriel se virou novamente. – Não ia contar nada a você, mas você desceu e me beijou.

Amélia estava contente por estar escuro. Seu rosto subitamente estava quente. – Você está mentindo para mim? Eu juro que não me lembro de nada ter acontecido entre nós dois.

- Não estou mentindo. – ele garantiu a ela. – Mas foi diferente de quando você me beijou lá em cima.

A mudança de posição dele os aproximou, ou melhor, os alinhou de modo perturbador. Corpo contra corpo. – Creio que foi você quem me beijou lá em cima. – ela apontou. – E diferente como?

Ela supôs que o silêncio dele significasse que ele estava pensando no assunto. – Faltou....paixão. – ele finalmente respondeu. – Era como se você estivesse apenas executando um ato.

Já era rude o bastante mencionar o incidente, se é que tinha realmente acontecido, mas criticar sua técnica de beijar era ainda pior. – Eu estava dormindo. – ela o relembrou. – E obviamente não tive inspiração suficiente para acordar.

Os dentes dele brilharam brevemente na escuridão quando ele sorriu. – Não disse que não foi bom. Simplesmente disse que foi diferente.

- E foi muito rude de sua parte mencioná-lo. – ela rebateu. Amélia estava dolorosamente envergonhada por procurá-lo durante o sono e beijá-lo. Suas defesas estavam baixas, tal ação falava de seu desejo inconsciente de ter intimidade com ele, e ele era esperto o bastante para compreender isso.

- Está bem aquecida?

Ela estava mais quente do que momento antes devido ao calor da vergonha, - Estou bem. – ela respondeu.

- Então devemos dormir. Temos uma longa jornada amanhã.

A conversa tinha ao menos a distraído momentaneamente do apuro em que estavam. Amélia não estava pronta para retornar ao pesadelo em que sua vida tinha se transformado. Ela duvidava que conseguisse dormir com todas as preocupações a atormentando. Ela realmente não sabia nada sobre Gabriel Wulf. Nada além de que ele era alto, com um corpo maravilhoso e bonito como o pecado. Nada além de que ele podia seduzir uma mulher com um beijo e seu cheiro.

Ela supunha que ele era um cavalheiro. Qualquer outro homem teria fugido da situação em Collingsworth Manor a toda velocidade e deixaria que ela e Mora enfrentassem o que o destino lhes trouxesse. Mas ele havia ficado e as defendera. Oferecera sua proteção. As conduzira com segurança quando a casa foi incendiada. Eles não viram fumaça ou chamas à distância. Gabriel declarou que provavelmente tenha sido uma tática para assustá-los e os forçarem a sair da casa. O que funcionou.

Os suaves roncos de Mora continuaram. Amélia desejou que eles a embalassem para dormir, mas ela simplesmente ficou lá deitada encarando a lua que estava bem acima. O frio a atingiu novamente e ela estremeceu. Gabriel a puxou mais para perto. Ela não se afastou. Aninhando-se próximo, Amélia colocou a cabeça debaixo do queixo dele. Ela ouviu a forte batida do coração dele debaixo do ouvido, sentiu a longa estatura dele pressionada contra ela.

Ele começou a acariciar seus cabelos. Ela os tinha apenas os puxado para cima depois do banho e agora ela estava certa de que ele estava quase todo solto. Era tranqüilizante, o carinho dos dedos dele em seus cabelos, e também era perturbador. O cheiro estranho dele a envolvia. Ela tentou bloqueá-lo prendendo a respiração, mas isso apenas o tornava mais forte a cada vez que ela ficava sem ar.

Bem devagar, a mão dele deslizou de seus cabelos até as suas costas. Era para ela conseguir dormir? Se o toque dele era destinada a acalmá-la, o contrário estava acontecendo.

Amélia estava consciente das mãos dele na curva de suas costas. Desceu um pouco mais e a pressionou contra ele. Ela engoliu o súbito nó que se formou em sua garganta. Estavam quadril contra quadril, e ela sentiu a óbvia saliência na frente das calças dele.

Ele gemeu pouco depois. A mão dele se afastou dela e ele se deitou de costas. Ela olhou para ele através dos cílios. Ele olhava para a lua. Ela ficou bem quietinha, esperando para ver se ele a tocaria novamente, mas ele não o fez. Era como se ele tivesse recuperado o controle sobre o que o tinha levado a tocá-la primeiramente. Uma pena, Amélia pensou.

Bem lá no fundo de sua alma maldosa, ela estava esperando que ele a beijasse novamente. Talvez esperando para provar a ele que ela não tinha falta de paixão. Ela tinha de considerar que uma vez que ela estava num estado de sonambulismo e não se lembrava de nada do encontro deles, quanta vantagem ele teria tirado da situação. Seria bem da sorte dela que ele a tivesse desvirginado e ela não se lembrasse disso. Mas não, ela tinha certeza de que isso não tinha acontecido.

Ela teria visto os sinais, além disso, ele teria contado se as coisas tivesse ido além de um beijo. E Amélia percebeu que ela não tinha mais motivos para manter sua preciosa virgindade. Ela era uma mulher casada...uma viúva agora. Ninguém esperaria que ela fosse casta. Ou esperariam?

Se não houve consumação entre ela e Robert, ela ainda assim poderia reclamar as posses dele? Uma grande parte sendo agora o dote que seu pai havia estabelecido para ela. Robert não tinha parentes; ela sabia disso. Ele uma vez comentara que os homens da família dele não viviam o suficiente para chegar à velhice. Pobre Robert, ele também não.

A culpa quase a consumiu. Aqui estava ela, deitada perto de outro homem e desejando que ele a beijasse enquanto Robert ainda nem havia sido enterrado. Embora ela não amasse o marido de apenas um dia, ela devia ter respeito por ele.

E ela o faria, Amélia se decidiu. Ela não abrigaria pensamentos perigosos sobre Gabriel Wulf até que seu período de luto terminasse. Mas isso demoraria um ano e ela ao menos estaria viva para ver o amanhã? O pensamento de morrer virgem a entristecia grandemente. Bem, na realidade, o pensamento de morrer a entristecia grandemente. Talvez ela não devesse guardar luto por Robert por um ano inteiro...talvez sob certas circunstâncias um dia ou dois seriam suficientes.

Tendo esgotado completamente sua mente, Amélia se aninhou próxima a Gabriel, arrancando outro suave gemido dele ao fazer isso, e tentou dormir.

 

Gabriel cutucou Amélia para que ela acordasse. – Precisamos ir embora.

Ela gemeu, depois gemeu novamente quando ele se sentou, levando embora seu maravilhoso calor corporal. Mora já estava acordada, olhando para o buraco lá em cima.

- Como vamos fazer para subir até lá? – ela perguntou.

- Eu as levantarei. – Gabriel respondeu. – Vê aquelas raízes enterradas no solo? Agarre-se nelas e se esforce para subir o resto do caminho até o topo.

Amélia estava agradecida por Mora ir primeiro. Ela precisava observar para ver como ela procederia. A criada acenou com a cabeça e permitiu que Gabriel a levantasse. Era bom que Amélia e Mora fossem de constituição pequena, Amélia pensou. Menos esforço para Gabriel. Ela sabia que o ombro dele ainda devia doer, já que a ferida ainda não teve tempo para cicatrizar.

Ele levantou Mora com pouco esforço. Debaixo das mangas da agora suja camisa dele, Amélia viu os músculos se destacarem. Os braços dele eram maravilhosamente esculpidos. Mora se estendeu para alcançar as raízes que estavam enterradas no solo.

- Teste-as primeiro. – Gabriel advertiu. – Certifique-se de que são fortes o suficiente para agüentar seu peso.

A garota fez o que foi instruído. Quando encontrou uma raiz que parecia vigorosa o bastante para suportá-la, se agarrou a ela puxou-se para cima. Pouco depois a menina se arrastou para fora do buraco. A cabeça dela apareceu, olhando para eles lá embaixo.

- Quero que você ajude Amélia quando ela chegar perto do topo. – Gabriel disse para Mora.

Amélia calculava que conseguiria se sair tão bem quanto Mora. O fato de Gabriel obviamente não pensar o mesmo feriu seu orgulho. Ela não era indefesa, pelo amor de Deus! Mas ela queria sair desse buraco e ficar apontando o erro dele apenas prolongaria seu presente desconforto.

- Sua vez, Amélia. – disse Gabriel.

Ela se arrastou até onde ele estava ajoelhado. Ele colocou as mãos na cintura dela e a levantou do chão. Amélia sentiu a respiração quente dele na pele logo acima do decote do vestido. O rosto dele estava encostado em seus seios, e seus mamilos enrijeceram. Era vergonhoso. Com que facilidade ele a afetava. Amélia ficou imaginando se todas as mulheres reagiam a ele da mesma maneira. Mora não parecia afetada, mas Mora era apenas uma garota. Talvez seus sentimentos femininos ainda não estivem desenvolvidos. Amélia desejava que os seus não estivessem.

- Alcance! – Gabriel disse, e ela percebeu que a voz dele estava mais rouca que o normal.

Amélia tentou. Não conseguiu. As mãos de Gabriel desceram até os quadris dela e ele a levantou mais alto. Seus dedos conseguiram agarrar duas grossas raízes que se destacavam do solo.

Mora estendeu os braços através do buraco. Amélia percebeu que tinha de se puxar para cima para conseguir alcançar as mãos da garota. Ela também imaginou se Mora teria força suficiente para ajudá-la a sair.

Uma tentativa de se alçar para cima usando seus pés contra a úmida parede da caverna fez com que a poeira se levantasse ao redor dela. O buraco acima começou a desaparecer. Mora gritou e puxou os braços para cima. Então Amélia caiu. Gabriel a agarrou e numa confusão de braços e pernas eles rolaram para o fundo da caverna. Ele estava em cima dela e Amélia quase não conseguia respirar, mas também ela não conseguiria respirar de qualquer maneira, a poeira estava muito densa dentro da caverna. E estava escuro. Mais escuro do que a meia noite.

Gabriel podia estar espremendo-a, mas Amélia compreendeu que ele também a estava protegendo. A terra continuava a cair do topo a caverna, pedaços caindo mais sobre Gabriel do que sobre Amélia. Ela estava com medo de ser enterrada viva. Amélia pressionou o rosto contra o pescoço dele e fechou os olhos bem apertados. Por quanto tempo ficou agarrada a ele ela não fazia idéia. Pareceu uma eternidade antes de não mais ouvir o barulho da terra caindo sobre as costas de Gabriel.

- Você está bem? – ele disse próximo ao ouvido dela.

- Acho que sim. – ela sussurrou. – E você?

- Sim, estou bem. Precisamos ficar deitados bem quietos até eu descobrir se mais nada vai cair sobre nós.

Lá em cima, eles ouviram Mora os chamando. – Não responda. – Gabriel advertiu suavemente. – Pode-se fazer com que mais terra caia sobre nós.

Amélia odiava não responder aos chamados da menina, mas o que mais ela podia fazer? E o que exatamente eles iriam fazer? Ela suspeitava que não houvesse muito ar na pequena caverna em que eles estavam. Apenas esse pensamento fez com que o pânico a corroesse.

- Você precisa relaxar, Amélia. – Gabriel disse contra a orelha dela. – Respire devagar.

Certamente ele sentia o rápido subir do peito dela – seu coração disparado. Ela tinha de se acalmar, mas sob essas circunstâncias ela não sabia como. – Vou tentar. – ela disse. – Mas tenho problemas com lugares pequenos e fechados. Meu irmão uma vez me prendeu em um armário escuro durante horas.

Ele ficou em silêncio por um momento; então a curiosidade obviamente o venceu. - Por que ele fez isso?

Amélia não foi cuidadosa em suas palavras. – Porque ele era um bastardo miserável que adorava pregar peças em todos. Nós estávamos brincando de esconde-esconde daquela vez.

Gabriel a surpreendeu por rir em seu ouvido.

Ela ficou tensa debaixo dele. – Não vejo motivo para risos levando-se em conta nossa presente situação. – ela disse de mau humor.

Quando parou de rir ele disse. – Não. Mas nunca conheci uma dama que bebesse e praguejasse e fizesse ambos tão bem.

Um rubor seria apropriado, mas Amélia não se preocupou em conseguir um. Wulf não o veria de qualquer modo. – Meu irmão não é mais tão ruim agora. – ela admitiu. – E eu não estava acima de fazer uma ou outra travessura.

- Você? – ele disse com desdém. – E você parece um anjo!

Amélia não era nenhum anjo. Ela tinha um lado bem maldoso. Eles podiam morrer a qualquer momento e ela ainda estava abrigando pensamentos indecentes sobre Gabriel Wulf. Ainda imaginando coisas que não devia imaginar. Pensamentos em como seria a sensação se os dois estivessem nus agora.

- Como vamos fazer para sairmos? – ela perguntou. Era sobre isso que ela deveria estar pensando.

Vagarosamente, ele rolou para longe dela. Ele se sentou, embora o teto da caverna não fosse alto o suficiente para que ele o fizesse. – Vou cavar para que possamos sair. – ele respondeu.

Gabriel sabia que não havia muito ar dentro da caverna; ele também sabia que Amélia estava a beira do pânico. Ele tinha de proceder rápida e cuidadosamente já que não tinha certeza de quanto tempo o teto acima deles agüentaria antes de cair sobre eles. Ele deslizou sobre a poeira úmida e comprimida da caverna escavada de onde a terra tinha caído sobre eles a partir da abertura. Acima, ele ainda via uma porção de luz, embora a abertura estivesse agora muito mais estreita do que quando tinham descido ontem à noite.

Não havia ferramentas que pudesse usar para escavar, então ele teria de usar as mãos. Ele começou a trabalhar. O crescente pânico de Amélia era uma força palpável dentro da pequena caverna. Sem nada para distraí-la, ela estava reagindo a seu medo de infância de estar trancada em um lugar de onde não conseguia sair. Gabriel pensou que conversar a manteria distraída, embora ele não fosse costumeiramente um homem muito falante.

- Fale-me mais sobre sua família. – ele pediu a Amélia.

Ele pensou que ela não fosse responder, que o medo a tivesse dominado e lhe roubado a habilidade; então ela disse. – É uma família típica. Pai e Mãe casados porque era uma boa união. Parecem satisfeitos um com o outro. Meu irmão é três anos mais novo do que eu. Sinto saudades deles.

Gabriel olhou por sobre os ombros. Amélia parecia muito pequena e amedrontada, como uma garotinha, embora ele soubesse com certeza que ela não era uma garotinha. Ele estava muito consciente dela fisicamente.

- Também tenho saudades de meus irmãos. – ele admitiu. – Somos muito mais próximos do que a maioria, talvez porque por muito tempo somente tínhamos uns aos outros.

Maldição, ele nunca tinha admitido algo tão pessoal a uma mulher. Eram as circunstâncias, Gabriel se assegurou. Ele tinha que continuar a conversa para evitar que ela entrasse em pânico e possivelmente os colocasse em um perigo ainda maior.

- Bem, nunca achei que era justo. – ela disse. – O modo como a sociedade julgava sua família por algo que seus pais fizeram. O modo como eles sempre tiram as piores conclusões. Como quando a garota foi encontrada morta no estábulo da casa da cidade de sua família. Todos naturalmente pensaram que Lorde Wulf fosse o responsável.

Focalizando em sua lenta escavação, ele disse. – Podemos ser muitas coisas, mas não somos assassinos. – Então ele se lembrou de que ele e Armond se preocuparam imaginando que Jackson pudesse estar ligado à morte da mulher. Apenas porque a hora do assassinado coincidia com o fato de Jackson estar na cidade e mais tarde, quando outro assassinato ocorreu, ele estava em Londres novamente. Gabriel compreendeu que era errado pensar, mesmo que por um momento, que Jackson pudesse machucar uma mulher. Jackson amava as mulheres e elas o amavam.

- Você se sente amargurado?

A pergunta o surpreendeu. E o confundiu um pouco. – Amargurado por quê?

- Por ter negado seu direito de se socializar com os de sua classe social? De ser forçado a viver nas sombras da sociedade? Eu acho que eu ficaria.

Gabriel continuou a cavar. Ele era amargurado? – Nunca me preocupei em fazer parte da sociedade. A maioria deles são bobos e superficiais. Preguiçosos e arrogantes. Não, não me sinto amargurado.

Ela bufou. – Mas você é julgador. Você não pode julgar todos pelas ações e opiniões de uns poucos.

Ele olhou para ela por cima dos ombros. – É claro que eu posso. – ele lhe disse. – Especialmente quando a sociedade que você defende são como ovelhas conduzidas por cães pastores. Eles não conseguem pensar por si mesmos; precisam que lhes digam no que acreditar e que opinião devem ter sobre cada assunto ou cada pessoa.

- Isso não é verdade. – ela argumentou. – Eu gosto de pensar que sou um individuo, que sou livre para formar minhas próprias opiniões. E a expressá-las. – ela acrescentou. – Se você julga todos pelo que acredita serem uns poucos, você é tão culpado por ser um esnobe.

Ela era dogmática, obviamente, e Gabriel percebeu que achava esse um traço atraente sobre ela. E ele supunha que ela estava certa e ele era julgador. Talvez um pouco cínico. Ele havia pensado em colocá-la numa categoria em que acreditava que a maioria das damas de sua classe se situava, mas ela estava em uma categoria própria. Verdade seja dita, ele não poderia se considerar um juiz apropriado das damas de sua classe social. Ele nunca passara muito tempo perto delas. Ele supunha que era um hipócrita. Nenhumas das coisas que admitia ser eram piores do que ele realmente era. Amaldiçoado.

Ele cavou o caminho até o pequeno buraco, a terra que havia escavado tornava realmente menos difícil de atingi-lo do que anteriormente. Cuidadosamente, ele começou a alargar o buraco. Ele colocou a cabeça para fora e olhou ao redor. Não viu Mora em lugar algum, e felizmente, não viu nenhuma companhia indesejada.

- Amélia, vou me arrastar para fora. Você vem atrás de mim caso precise ajudá-la.

Permitir que ela fosse primeiro seria melhor, mas Gabriel sabia que se ele descesse poderia provocar outro desmoronamento.

- Estou com medo. – ela sussurrou. – E se a terra começar a deslizar novamente? Ficaria presa aqui sozinha.

- Isso não vai acontecer. – ele lhe assegurou, e esperava que estivesse certo. – Apenas tenha cuidado quando estiver subindo. Tente não se apressar.

- Qualquer coisa para sair daqui. – ela disse, e ele ficou aliviado por ela mostrar coragem e determinação para encarar seu medo.

Gabriel içou-se para fora do buraco. O chão ao redor do buraco estava altamente instável. Era o paraíso respirar o ar não coberto por poeira. Ele se deitou de bruços, olhando para dentro do buraco.

- Tudo bem, venha, Amélia. – ele instruiu. – Devagar e com calma.

Lá embaixo, ele a viu aparecer. Ela olhou para ele, seu rosto um pálido oval na escuridão.

- Arraste-se sobre a barriga. – ele a instruiu. – Apenas se mova devagar e cuidadosamente.

Ela começou a se mover, então, como se o medo a dominasse, ela se arrastou muito rapidamente para o topo o que fez com que a terra começasse a deslizar ao redor dela novamente. Gabriel arremessou-se para frente e agarrou o braço dela; então ele a puxou, rolando para longe do local onde o chão começou a desmoronar ao redor deles. Em poucos segundos, a caverna havia desaparecido completamente.

Amélia ofegava para respirar ao lado dele. Ambos se sentaram e olharam para o lugar que poderia ter se tornado seu túmulo. Estavam cobertos de poeira, mas estavam vivos.

- Você salvou minha vida. – ela sussurrou. – De novo.

Ele se aproximou e limpou uma mancha de sujeira do rosto dela. – Vamos procurar Mora. – Ele se levantou e estendeu a mão para ajudá-la.

Era estranho, mas toda vez que se tocavam, ele sentia um formigamento o percorrer. Uma corrente. Ele a ajudou a se levantar, e juntos caminharam até o lago. Eles viram Mora pouco depois, sentada na beira da água.

Ela olhou para cima quando eles se aproximaram. Seus olhos se arregalaram e ela colocou a mão contra o coração. – Pensei que os dois tinham morrido. – ela disse. – Não sabia o que fazer. Não podia voltar para Collingsworth Manor.

- Estamos bem. – Amélia garantiu a ela, escovando a poeira das saias de seu vestido resistente. – Não podíamos responder por medo de causar mais desmoronamento.

Mora parecia envergonhada. – Fiquei com medo de ficar lá porque achei que poderia cair lá dentro com vocês. Acho que sou uma covarde.

Gabriel se curvou ao lado da garota e lavou as mãos sujas no lago. – Você poderia ter facilmente provocado um desmoronamento pior. – ele garantiu a ela. – Você fez bem em se afastar.

A garota acenou na direção do lago. – Enquanto estava sentada aqui pensando no que fazer, reparei naquele pequeno buraco lá onde uns peixes entraram e não conseguiram sair e estava pensando em tentar pegá-los para comer.

Ele achou que era estranho que Mora pensasse em comer quando estava tão preocupada sobre o destino deles. Como se percebesse a mesma coisa, ela ficou vermelha.

- Tinha de pensar em mim. – ela disse. – Em como sobreviver aqui sem o senhor e a senhora.

Amélia se abaixou ao lado de Gabriel. Torceu o nariz para a água esverdeada, então começou a lavar as mãos. – Acredito que estava sendo prática. – ela disse à garota. – E você é muito mais ajuizada que muitas jovenzinhas, Mora. Você não tinha como procurar ajuda.

Mora sacudiu a cabeça. – Não, não poderia, milady. Estava com medo de me aventurar sozinha na floresta.

- Tudo fica bem quando acaba bem. – Amélia garantiu à menina. – Como faria para comer o peixe se conseguisse pegar um? – ela perguntou.

Mora riu e tirou sua faca de descascar batatas do bolso. – Limparia com isso. Mas teria de comê-lo cru.

Gabriel viu que Amélia empalideceu. – Eu odeio peixe cozido. – ela disse. – Não consigo me imaginar comendo um cru.

Ele sorriu levemente. – Tente. – ele disse antes de sair para pegar um.

 

Gabriel levantou a mão sinalizando a Amélia e Mora a pararem. Ele ouviu, seu olhar mapeando as árvores ao redor deles tentando identificar o som. Lá estava novamente. Um rangido. Uma roda? Era obviamente algum tipo de veiculo vindo pela estrada a alguns metros à esquerda deles. Ele tinha decidido não usar a estrada. Se estivessem sendo caçados, e certamente estavam, a estrada seria o lugar mais lógico para procurá-los.

- Por que paramos? – Amélia sussurrou atrás dele.

- Vem vindo alguém. – ele respondeu. – Vamos nos aproximar da estrada e observar.

- Não estou ouvindo nada. – ela disse depois de uma pausa.

Ele lhe lançou um olhar que geralmente silenciava qualquer um que pensasse em perturbá-lo tagarelando à toa. Como ele suspeitou, não funcionou com ela.

- Bem, não estou. – ela bufou.

Gabriel os conduziu adiante. A vegetação ficou mais abundante quando se aproximaram da estrada. Os arbustos e galhos enroscando em suas roupas e cabelos. Pelo menos nos cabelos dele e de Amélia. Mora era sábia por usar uma touca. Ele esperava que Amélia reclamasse, mas ela não o fez, ainda que sua expressão lhe mostrasse claramente que ela não estava satisfeita.

O estômago dela roncou e ele soube que deveria tê-la obrigado a comer o peixe cru pela manhã. Ela realmente teve ânsias e teimou e ele se apiedou no final e permitiu que ela ficasse sem comer. Ela devia estar faminta. Inferno, ele estava faminto e tinha conseguido se forçar a comer o peixe cru.

Quando a estrada estava à vista, Gabriel encontrou um lugar onde poderiam se agachar e se esconder. Ele não achava que teria tanta sorte de quem quer que estivesse descendo a estrada fosse um de seus irmãos, que ele esperava terem retornado de Londres recentemente.

- Onde estão? – Amélia sussurrou ao lado dele. – Posso ver a estrada perfeitamente e não vejo ninguém.

A audição dele era superior a dela. Mas ele não podia explicar isso a ela, não sem fazê-la temê-lo como temia as criaturas que os caçavam.

- Paciência é uma virtude. – ele comentou.

- Pouco me importa ser virtuosa. – ela contra-argumentou. – Prefiro uma carona até Wulfglen, um bom banho quente, uma muda de roupas limpas e um estômago cheio.

Ela sempre conseguia. Seu atrevimento o fazia sorrir, e Gabriel não estava acostumado a ser tão facilmente entretido. A própria proximidade de Amélia o levava ao desejo. Ele a havia beijado duas vezes, e queria muito fazê-lo novamente. Seus pensamentos não deviam estar no que desejaria fazer com Lady Collingsworth, mas focalizado na situação deles e como fazer para manter as mulheres vivas e fora de perigo.

Eles se sentaram em silêncio. O estômago de Mora roncou e Gabriel pensou em como arranjariam comida. Ele poderia facilmente caçar alguma coisa, mas seriam idiotas em acender um fogo. Conduziria quem quer que os estivessem procurando diretamente até eles. Ele retirara as mulheres da casa com segurança, mas sem comida e abrigo, quanto tempo as manteria seguras?

Finalmente uma carroça puxada por um homem, outro andando a seu lado, surgiu na visão deles. Ambos pareciam camponeses. Um andava com uma bengala; um bastão era o que realmente era. Nenhum deles era particularmente grande. Gabriel não via sinais de armas, o que não queria dizer nada. Eles pareciam inofensivos...mas as aparências geralmente enganam.

- Lá estão eles. – Amélia sussurrou, sua visão agora capaz de enxergar a carroça e os dois homens. – Você acha que eles podem nos ajudar?

- Eles não têm cavalos. – ele disse desapontado. – Duvido que tenham algo para nos dar. Não vejo como podem nos ajudar. Melhor deixá-los passar.

- Não nos ajudar? – ela ecoou, seus grandes olhos azuis se arregalando. – Por que não nos ajudariam? Três homens são melhor do que apenas um quando o assunto é proteção. Podemos nos oferecer para pagá-los se nos acompanharem até Wulfglen.

Ela tinha um galho nos cabelos e ele o retirou para ela. – Teríamos de contar a eles do que estamos fugindo. – ele apontou. – Imagino que pensarão que somos loucos, não é?

- Suspeito que se forem dessa região não ficarão tão surpresos. – Mora opinou. – E são camponeses, o que é fácil de se perceber. Provavelmente cresceram ouvindo as mesmas historias que eu quando pequenos. Eles acreditam em contos estranhos mais facilmente do que a maioria.

- Talvez eles pelo menos tenham comida para nos dar. – Amélia comentou. – Qualquer coisa. Eu prometo que não vou reclamar.

A esperança nos olhos dela foi sua ruína. Ela estava faminta, Mora estava faminta, e Gabriel se sentia incompetente para cuidar delas de maneira apropriada. Ele nunca teve de cuidar de ninguém além de seu irmão mais novo antes. Certamente não de duas mulheres. Gabriel tinha umas poucas moedas guardadas no bolso. Quando ele saíra à procura de Jackson, ele nunca imaginou que levaria tanto tempo ou que sairia tão caro.

- Está bem. – ele concordou. – Mas vou sozinho. Vocês duas fiquem aqui escondidas nos arbustos. Entenderam?

As mulheres concordaram com a cabeça e ele se levantou da posição agachada, suas coxas doendo de todo o esforço que enfrentou noite passada e na manhã de hoje. Fez com que os pontos que Mora lhe deu se abrissem, mas ele não diria nada a ela. Tinham coisas piores com que se preocupar.

Gabriel caminhou até a estrada e se dirigiu até os homens. Eles pararam quando o viram, olhando desconfiados enquanto ele se aproximava. Ele deixou as mãos caídas ao lado do corpo para que pudessem perceber que não estava armado, embora a pistola ainda estivesse na cintura de sua calça debaixo da camisa.

- Boa tarde. – ele cumprimentou.

Nenhum dos homens respondeu, mas nenhum deles sacou uma arma, então Gabriel continuou a caminhar até eles.

- Tive um contratempo. – ele disse. – Meu cavalo me derrubou e estou andando há dois dias. Por acaso vocês teriam comida para me arrumar?

Os homens se entreolharam. – O senhor pode pagar? – um perguntou.

- Tenho um pouco de dinheiro, não muito. – ele respondeu. Ele provavelmente tinha mais do que esses homens ganhariam em um ano, mas somente um tolo deixaria tal fato ser conhecido. Não era que Gabriel não pudesse enfrentar os dois homens se eles tentassem alguma coisa, mas ele não queria lutar na frente das mulheres se isso pudesse ser evitado.

- Quanto você tem? – um dos homens perguntou quando ele se aproximou.

- Isso depende do que vocês têm para vender. – Gabriel respondeu.

Os dois homens andaram até a traseira da carroça. – Estamos levando mantimentos para nossas famílias. – um disse. – De outra forma não teríamos muito. Mas se o senhor tem dinheiro para pagar pelo que levar, acho que poderemos substituir as mercadorias facilmente.

Gabriel deveria sentir-se aliviado, mas ele não planejava baixar a guarda até que a troca fosse feita e os homens estivessem longe das vistas. Eles removeram uma lona esfarrapada e exibiram as mercadorias. Havia muito mais coisas na carroça do que ele havia imaginado.

- Temos uma grande família. – um dos homens resmungou. – Dá muita despesa alimentar a todos.

A maioria das mercadorias Gabriel não poderia utilizar. Farinha, açúcar, coisas para fazer massas que não teriam utilidades para eles. – Preciso de algo que me sustente até conseguir chegar a minha casa. – ele especificou. – Vocês têm carne seca? Pão? Cidra?

- Onde fica sua casa? – um dos homens perguntou.

Gabriel não ia dizer a eles. Muitos tinham ouvido falar dos irmãos Wulfs. Se o escândalo ligado a seu nome não assustasse os homens, a riqueza ligada a seu nome os tornaria gananciosos.

- Três ou quatro dias de caminhada daqui. – foi tudo o que disse. – Nunca caminhei por aqui antes, então não tenho certeza da distância.

- Está sozinho, é? – um dos homens perguntou, seu olhar examinando a área.

Os sentidos de Gabriel entraram em alerta. – Sim. – ele respondeu.

- Não é uma boa coisa. – o outro homem disse, sorrindo para ele. – Essas estradas são perigosas para um homem sozinho.

- Especialmente um tão fino quando você. – o outro acrescentou. – Percebe-se facilmente que o senhor não é um trabalhador. Um dândi de Londres pode enfrentar mais problemas do que a maioria das pessoas sozinho por essas estradas.

Ambos riram. Gabriel sorriu agradavelmente para eles. Deixe-os pensar que ele era um dândi. Ele olhou para as mercadorias novamente. Enquanto se ocupava olhando para as coisas, ele estava esperando que um, se não os dois homens tentassem alguma coisa.. Ele se fez de alvo fácil para eles apesar de seu tamanho. Eles não deviam esperar que ele soubesse se defender. Eles teriam uma surpresa.

- Gabriel! Cuidado!

Ele olhou para cima e viu Amélia parada na estrada. Por causa da distração, ele não estava preparado para o golpe quando ele veio. O homem com o bastão acertou Gabriel entre os ombros, mirando na cabeça, ele suspeitou, mas não era alto o bastante para atingi-la. O golpe o desestabilizou. O homem podia ser baixo, mas tinha força.

- Não nos disse que tinha companhia. – o outro homem provocou Gabriel. – Ela é uma visão para os olhos cansados, aquela lá.

- Linda. – o homem com o bastão disse, então balançou.

Gabriel evitou o golpe, que novamente visava sua cabeça. Ele tinha dito a Armond um dia que as regras da sociedade não mais se aplicavam a uma família banida pela aristocracia. Boas maneiras era algo que Gabriel abandonara muito tempo atrás, e ainda assim, o incomodava lutar na frente de Amélia. Cavalheiros não sujeitavam damas da alta sociedade a tal vulgaridade, ou assim ele fora ensinado.

- Hei, tem outra. Uma para mim e outra para você. – o homem com o bastão gorjeou.

Mora devia ter se juntado a Amélia na estrada. Gabriel usou a distração das mulheres em sua vantagem, dando um passo a frente para agarrar o bastão do homem. Ele o levantou e atingiu o homem com força no rosto. A força quebrou o nariz dele e fez com que o sangue jorrasse pelo rosto.

- Hei! – o outro homem gritou.

Gabriel se aproximou e lhe deu um soco certeiro que o fez cambalear para trás. O homem com a face ensangüentada atacou Gabriel. Ambos caíram no chão poeirento. Gabriel dificilmente lutava pela regras de Oxford. Ele rolou, ficou de pé e chutou o homem nas costelas. O homem gemeu e trouxe o joelho até o peito. Gabriel parou para tirar o cabelo do rosto e passar a manga da camisa pelos lábios ensangüentados. Foi atacado pelas costas.

O outro homem tinha recuperado o bastão do amigo e claramente pretendia bater em Gabriel até deixá-lo inconsciente. Ele levou um golpe nas costas. O bastão caiu com força bem em cima do ombro machucado e ele reprimiu um gemido.

Girando para encarar o homem, Gabriel ficou chocado quando viu Amélia pulando em cima do homem por detrás.

O homem gritou e facilmente se livrou do leve peso dela. Então ele a empurrou e ela caiu pesadamente no chão sujo. Gabriel viu tudo vermelho.

Ele atacou o homem e facilmente o livrou do bastão. Com seu temperamento fervendo, Gabriel quebrou o bastão em dois. Os olhos do homem quase saltaram das órbitas.

- Não se bate em mulher. – Gabriel disse, bem baixo, quase um rosnado. – Seus pais não lhe ensinaram isso?

Ao invés de responder, o homem se afastou, virou-se e correu na direção contrária.

- Espere! – o outro homem gritou, balançando-se para se por em pé. Ele correu atrás de seu parceiro.

Correndo para o lado de Amélia, Gabriel a ajudou a se levantar.

– Está machucada? – ele perguntou.

Ela sacudiu a cabeça,

- Fiquei apenas sem fôlego por um momento.

Gabriel suspirou de alivio. Então ficou zangado.

– O que você estava pensando? Eu lhe disse para ficar escondida.

Os cabelos dela tinham se soltado da trança que Mora tinha feito antes de saírem pela manhã. Pequenos cachos loiros emolduravam seu rosto marcado pela sujeira, e ainda assim ela conseguia parecer uma princesa. Amélia colocou as mãos sobre os quadris.

– Pensei que você precisasse de ajuda. – ela respondeu. Seu olhar subitamente pousou no bastão quebrado que jazia no chão. – Acho que estava errada. Seus grandes olhos azuis se levantaram para ele. – Como você conseguiu quebrar aquilo ao meio? Nunca vi um homem fazer nada parecido com isso antes!

Gabriel permitira que sua raiva o dominasse. Não era algo que ele devia fazer em frente de pessoas normais, como Amélia. Ao invés de responder-lhe, ele olhou pela estrada na direção de Mora. – Venha, Mora. – ele chamou. – Pegue os mantimentos para nós. Você sabe melhor o que precisamos.

A garota se dirigiu até eles.

- Você não me respondeu. – Amélia o lembrou. – Como você consegue quebrar um bastão assim grosso ao meio como se não fosse mais do que um pequeno galho?

Ele não podia explicar sua força incomum melhor do que sua visão incomum ou sua superior audição. Mas Gabriel sabia que devia oferecer algum tipo de explicação.

– Você já viu homens brigando antes, Amélia?

Ela franziu a testa para ele.

– Bem, não, nunca, mas ainda assim...

Gabriel caminhou até a traseira da carroça com Mora. – A raiva dá forças ao homem que ele não teria de outra maneira. O idiota teve sorte por eu não ter lhe quebrado o pescoço tão facilmente quanto quebrei o bastão. Ele não devia ter tocado em você.

- Botou aqueles dois para correr. – Mora comentou enquanto procurava entre os mantimentos. – Pensei que homens bem nascidos lutassem com melhores modos. Ela olhou para ele estranhamente por debaixo dos cílios e Gabriel achou que era melhor desviar a atenção das mulheres para outra coisa que não suas habilidades de luta.

- O que precisamos daqui? – ele perguntou à menina.

Mora tinha separado uns poucos itens do resto. – Carne conservada não precisa ser cozida. – ela disse. – Dois pães de forma. Queijo. Maçãs. Um jarro de cidra para quando não encontrarmos água.

Puxando a lona esfarrapada do vagão, Gabriel a colocou no chão para empacotar os mantimentos. Amélia ainda o olhava com certa suspeita. Ele lhe jogou uma maçã para distraí-la. Faminta como estava, funcionou. Uma vez que tinham tudo o que precisavam, ele amarrou a lona e a transferiu para o ombro. Ele procurou em seu bolso, pegou algumas moedas e as jogou na traseira da carroça.

- O senhor os está pagando? – Mora exclamou. – Depois do que tentaram fazer ao senhor?

Gabriel havia sido bem educado em sua vida. Ele mantinha esses valores, ele supunha, apesar do que mais tarde aconteceu com sua família. – Se não pagar pelo que peguei, me tornarei um ladrão, e não seria melhor do que eles. Vamos, precisamos sair da estrada.

Com o ombro ardendo, a perna pulsando, ele conduziu as mulheres para fora da estrada e de volta aos arbustos. Pelo menos agora tinham comida, então não passariam fome. Mas quanto faltava para quem quer que os estivessem caçando os encontrassem? Gabriel não via sinais de perigo. Ele não sentia o cheiro nem de homem, nem de fera os seguindo. Era assustador. O deixava mais nervoso do que se tivessem de lutar a cada passo do caminho até agora. Como tudo o mais que lhe acontecera desde que chegara a Collingsworth Manor, isso não fazia o menor sentido.

 

Já estava quase anoitecendo quando eles pararam para descansar. Amélia estava quase cansada demais para conseguir mastigar a carne conservada que tinham conseguido na carroça, mas tentou e não reclamou. Ela observava Mora enfaixar o ombro de Gabriel usando faixas rasgadas de sua anágua. O bastão havia reaberto a ferida novamente, mas Mora disse que não era tão sério.

O olhar de Amélia passeava pelo peito poderoso de Gabriel, os músculos salientes de seus braços. Ele era forte como um touro, qualquer um percebia isso, mas seria qualquer homem forte o bastante para quebrar um grosso bastão ao meio como se fosse um simples galho novo? Ela não precisava ter visto uma briga antes para saber que a força de Gabriel não era normal.

E como ele parecia saber quando parar e esperar, quando se mover, quando descansar e quando se apressar? Ela o observara e era quase como se ele ouvisse coisas que ninguém mais ouvia, visse coisas que ninguém mais via. Amélia achava que estava sendo tola. Talvez o que ele disse era verdade e durante uma luta um homem realmente tenha mais força do que pareceria humanamente possível. Gabriel brincara nessa floresta quando era menino. Talvez fosse por isso que se sentisse familiarizado com ela. Ela temia que estivesse se tornando paranóica com tudo o que lhe acontecera desde a chegada a Collingsworth Manor.

- Agora a perna, - Mora disse, fazendo com que Amélia abandonasse seus pensamentos. – Devo olhá-la também.

- A perna está bem. – Gabriel vestiu sua camisa. Ele alcançou um pão e cortou um pedaço. – Se vocês quiserem se limpar no riacho, é melhor irem agora. Vamos nos acomodar logo para dormir.

- Estou muito cansada para me importar com limpeza. – Amélia disse. E ela estava. Ela sentia que dormiria assim que fechasse os olhos. Além disso, a água deveria estar gelada e ela já estava ansiosa para se acomodar ao lado de Gabriel e deixar que o corpo dele a aquecesse. Ela gostaria que pudessem acender um fogo para poderem se sentar perto, mas Gabriel dissera que não seria seguro.

- Eu vou. – Mora disse. – Preciso lavar as mãos.

- Não se demore. – Gabriel instruiu. – Se ouvir ou ver algo suspeito, me chame. Eu ouvirei.

O olhar de Amélia percorreu o lugar isolado onde passariam a noite. O riacho ficava perto, alinhado com as árvores para uma boa proteção. Ela supunha que se Mora gritasse, o som chegaria até eles facilmente. Ela deveria ir com a menina, mas suas pernas se recusavam a obedecer aos desejos da mente. Ao invés disso, ela terminou de mastigar a fibrosa carne seca e a engoliu.

- Como referência futura, quando eu estiver num confronto, de hoje em diante, se eu lhe disser para ficar escondida, você deve me obedecer. – Gabriel disse.

O olhar dela voltou-se para ele. O luar dançava nos cabelos dele, quase iluminando as pálidas mechas que entremeavam a cor mais escura. – De nada. – ela disse. – Se eu não tivesse distraído os homens, você não conseguiria a vantagem.

Ele a encarou de volta com intensidade. – Se eu não tivesse conseguido a vantagem, você faz idéia do que eles planejavam fazer com você?

A possibilidade não lhe ocorrera. Amélia assumia que um homem não bateria em uma mulher; é claro que se provara rapidamente que ela estava errada. Ela também achava que nenhum camponês ousaria assaltar uma dama de sua classe social. Errado novamente, ela supunha. – Não pensei sobre isso no momento. – ela admitiu.

- Já percebi que você tem uma grande inteligência dentro dessa sua linda cabecinha. Você deveria utilizá-la com mais freqüência. E a partir de hoje, você deve ouvir minhas instruções e me obedecer em tudo, Amélia.

Que elogio mais duvidoso. Amélia tinha decidido que ser viúva não seria tão ruim. Ela não teria mais que responder a ninguém, e agora ele estava sugerindo que ela obedecesse a ele.

- Você não é meu marido, meu pai ou tem qualquer parentesco comigo. – ela disse. – Não que eu planejasse obedecer quem era ou é de qualquer modo, mas isso não vem ao caso. Como cavalheiro é seu dever proteger a mim e a Mora. Como uma dama, não tenho obrigação alguma para com você, exceto ser agradecida.

Ele deu uma mordida no pão e mastigou devagar, encarando-a o tempo todo. Isso a enervou mais do que se ele tivesse gritado com ela. Ela se contorceu no tronco onde havia sentado.

Depois de engolir, ele disse.

– Isso aqui não é um chá social a que estamos freqüentando. Isso é vida ou morte. E eu não sou um cavalheiro. Tornaria minha tarefa de protegê-la e a Mora muito mais fácil se vocês escutassem minhas instruções e as obedecessem. Se você não deseja chegar viva a Wulfglen, então suponho que a escolha seja sua.

Ela piscou para ele. Ela esperava que ele insistisse.

– Você não se importa se eu viver ou morrer?

Ele limpou a boca com as costas da mão; então olhou novamente para ela com seus olhos perturbadores.

– Se não me importasse, não pediria.

A admissão dele imediatamente desarmou seu nervosismo. Amélia se sentiu boba por discutir com ele em primeiro lugar. É claro que ele se importava com o que acontecesse com ela e Mora. Ele não estaria com elas se não se importasse. Ele se arriscara hoje para que elas pudessem comer à noite. Ela deveria ser mais agradecida a ele.

- Você é mais galante do que admite. – ela disse. – Foi uma boa lição a que ensinou a Mora hoje sobre ladrões. Você diz que não é um cavalheiro, mas não o vi agir de maneira que me levasse a acreditar em sua afirmação. É óbvio que você foi muito bem educado por seus pais, apesar do que fizeram mais tarde.

Desviando os olhos, ele percorreu a linha de árvores próxima ao riacho como se procurando por Mora. Amélia tinha atingido um ponto doloroso para ele. Ela estava curiosa, e ela nunca fora do tipo que continha sua curiosidade.

- Você pensa neles com freqüência. – ela perguntou, - Em seus pais?

Gabriel não olhou para ela quando respondeu. – Não.

Ela achou a resposta estranha. – Por que não? Você deve ter memórias agradáveis de sua vida de antes. Quero dizer antes deles...

- Não penso neles. – ele interrompeu, voltando a olhar para ela. – Ou em minha vida de antes. Deixe esse assunto em paz.

Amélia tentou. Ela falhou. – Mas por que...

- Porque dói. – ele interrompeu novamente. Como se tivesse revelado muito de si mesmo, ele desviou os olhos novamente. Ele olhava para a escuridão como se visse coisas que ela não podia ver.

Gabriel Wulf poderia ser um homem, grande, forte, bonito, mas agora Amélia via algo mais nele. Ela viu sua vulnerabilidade. Ela viu o jovem que ele deveria ter sido um dia, machucado pelas decisões impensadas de seus pais. Ela se levantou e foi se ajoelhar ao lado dele.

- Sinto muito. - ela disse. – Não quis mexer em memórias dolorosas.

Ele olhou para ela, agora escondendo a vulnerabilidade que ela vira momentos antes. – Sim, você queria. Porque você é uma mulher e é isso que as mulheres fazem. Vocês nunca se satisfazem a menos que estejam arrancando alguma emoção de um homem. Raiva, desejo, dor, é tudo a mesma coisa para vocês.

Amélia piscou para ele. Que horrível conceito ele tinha sobre mulheres. – Você nunca teve uma amiga? – ela perguntou. – Uma mulher a quem pudesse confiar todos os seus segredos? Todas as suas esperanças e sonhos? Você ao menos gosta de mulher?

Os olhos dele, agora com um ligeiro brilho azulado, se moveram sobre ela. – Mulheres têm suas serventias. Não, eu não as odeio.

O sangue subiu para seu rosto. Ela entendeu a insinuação dele e a enraiveceu que ele tivesse uma visão tão desfavorável das mulheres...que ele pudesse vê-la da mesma maneira. – Se você pensa dessa maneira, você realmente não gosta de mulheres.

Ele se inclinou mais para perto dela. – É isso o que você quer, Amélia? – sua voz estava muito baixa. Arrepiou os braços dela. – Você quer que eu goste de você? Que compartilhe minhas esperanças e sonhos com você?

Olhando bem dentro dos olhos dele, ela se sentiu tentada a dizer a primeira coisa que lhe veio à mente. Sim. Ela queria que ele gostasse dela. Ela queria que ele compartilhasse seus pensamentos mais profundos com ela. Mas não podia confessar tudo isso a ele. Ela mal enviuvara e ele era um homem que tinha sido amigo de seu falecido marido. Julgando pelo que ele acabara de dizer, ele também era um homem que não saberia o que fazer com o amor de uma mulher se ela o entregasse a ele. E, além disso, Amélia não acreditava no amor.

- Suponho que você poderia começar dizendo-me por que desenvolveu essa horrível atitude para com as mulheres, ou é apenas comigo com quem você está zangado?

A pergunta dela fez com que o sorriso sensual que pairava na boca dele desaparecesse. Ele se afastou dela. – Não estou zangado com você. Um pouco aborrecido com seus atos de hoje, colocando-se em risco quando eu podia controlar a situação sozinho. Mais do que um pouco aborrecido, pois você parece ter dificuldade em seguir instruções simples.

Ele queria estar no comando, Amélia entendeu. Ele era o homem, e por isso o mais inteligente, o mais forte entre eles. Era uma atitude que a maioria dos homens compartilhava. Uma que a deixava louca. Amélia tinha problemas ao lidar com homens que pensavam que por ela ser bonita era também inútil, exceto para decoração. Ela sabia que sua atitude não era totalmente aceita em seu circulo social. Pelo menos Robert a tinha tratado condescendentemente fingindo estar interessado em seus pontos de vista e opiniões sinceras sobre tudo.

- Mulheres, juntamente com crianças, são feitas para serem vistas, não ouvidas. É isso o que você está dizendo?

Gabriel correu a mão pelo cabelo e bufou. – Parece-me que é você que está conduzindo toda a conversação e colocando palavras em minha boca enquanto o faz. Realmente é simples. Tudo o que quero é que você siga minhas instruções enquanto estivermos na floresta. Depois que estiver segura, realmente não me importa o que você venha a fazer.

Amélia supunha que adorava discussões estimulantes tanto quanto o próximo, mas as palavras dele a machucaram. Ele apenas se preocupava com seu dever, ou com o que achava que era seu dever. Que era colocá-la em segurança. Ele não se importava com ela, como pessoa. E isso significava que quando a beijara, ele apenas o fizera por ela ter inspirado algo nele além de suas nobres intenções. A incomodava que ela se importasse quando ele obviamente não o fazia. E ela temeu que sua expressão a entregasse.

Ela se levantou. – Deve ir procurar Mora. – ela disse. – E provavelmente me lavar já que vou para lá, embora, como já disse, esteja tão cansada que preferiria ir dormir. É claro que apenas irei com sua permissão. – ela acrescentou sarcasticamente.

O lábio dele ondulou. Um meio sorriso. – Permissão concedida. – ele devolveu também sarcasticamente.

Com as costas retas, Amélia partiu para o riacho. Ela sentiu os olhos dele a seguindo. Ele não era nem um pouco o homem que ela moldara com a ajuda de seus tolos sonhos. Em sua imaginação, ele tinha compartilhado todos seus segredos e sonhos com ela, e ela tinha compartilhado os dela com ele. Ela não fazia a menor idéia de que ele era fechado e reservado, um homem solitário, embora tivesse sido tolo da parte dela achar que ele não era exatamente o que ele era. Os irmãos Wulf sempre foram encobertos pelo mistério. Ela certamente deveria ter levado isso em conta.

Amélia compreendeu naquele momento que a razão por não ter pensado racionalmente sobre Gabriel Wulf no passado era simplesmente porque ela nunca pensara racionalmente sobre qualquer coisa. Ela se convencera de que era diferente de suas aborrecidas amigas debutantes; então entrara para o mercado de casamentos como um cordeiro no matadouro exatamente como todas elas. Casara-se com um homem a quem não amava porque ele era a escolha sensata para seus pais.

Ela fizera o que era esperado dela. Ela não fora chocante nem corajosa no final das contas. A compreensão a deprimiu um pouco. Se Amélia tivesse tido coragem suficiente para recusar a proposta de casamento de Robert, ela não estaria agora nessa situação. Ela ainda estaria segura e abençoadamente ignorante do fato de o mundo não ser o que ela percebia ao primeiro olhar.

Perdida em suas reflexões, ela se surpreendeu quando se deparou com Mora semi despida e sem a touca puída sem a qual Amélia nunca a tinha visto.

Na luz do luar, os cabelos loiros claros de Mora brilhavam em ondas até seus quadris. Ela estava de costas, seu vestido de trabalho e sua camisa estavam abaixados até sua cintura enquanto ela se lavava. Havia faixas de amarrar no chão ao lado dela.

- Mora? – Amélia chamou, para não assustá-la, mas é claro que o fez. A garota pulou e girou. Com um pensamento posterior, Mora espalmou as mãos sobre os seios, mas não antes de Amélia dar uma olhada neles. E não eram seios de uma menina.

- Sinto muito. – Amélia disse, e ela sabia que deveria ficar de costas e conceder privacidade a Mora, mas ela não podia evitar encarar. Então olhou para as faixas caídas no chão e soube para o que serviam. – Por que você amarra seus seios, Mora? Por que esconde seus cabelos?

Mora olhou desafiadoramente para ela por um momento, depois como se se lembrasse, ela abaixou a cabeça. Seus gloriosos cabelos deslizaram sobre os ombros escondendo-lhe o rosto. – Foi idéia de meu irmão. – ela respondeu. – Ele tinha medo por eu trabalhar numa rica residência onde o senhor pudesse me notar. Ele disse que eu devia amarrar os seios e esconder meus cabelos e fingir ser mais nova do que sou para que não trouxesse vergonha sobre mim mesma.

Amélia se aproximou. – Quantos anos você tem?

Voltando-se de costas, Mora pegou as faixas do chão e começou a amarrar seus seios. – Fiz dezoito no outono passado.

A criada era um pouco mais nova do que Amélia, e Amélia não se considerava uma criança. – Você acha que tem de seguir os desejos de seu irmão, mesmo que não esteja mais em Collingsworth Manor? Você está comigo e com Gabriel.

Levou um pouco de tempo até Mora terminar com sua amarração e puxar a camisa e o vestido para o lugar. – Lorde Gabriel é um homem. Um homem jovem e viril. Não acho que meu irmão gostaria que ficasse me mostrando para ele.

Quando Mora se voltou para encarar Amélia novamente, ela viu pela primeira vez como a garota era realmente adorável. Ela tinha feito todo o possível para parecer simples e desinteressante. Como um inseto que muda sua cor para se misturar com um galho ou uma folha para que ninguém o notasse.

- Você realmente pensa que Gabriel tiraria vantagem de você dessa maneira? – Amélia sabia que apesar de ele afirmar não ser um cavalheiro, bem no fundo ele era, querendo ou não. – Como você pode desconfiar dele quando ele arrisca a própria vida por nós?

A menina, Amélia tinha de parar de pensar nela como uma menina, abaixou os olhos e mordiscou seu carnudo lábio inferior. – Eu quero acreditar nele. – ela admitiu. – Mas sei que ele deseja a senhora. E se ele voltar esse desejo para mim simplesmente porque a senhora é uma dama e ele não pode se comportar da maneira como gostaria de fazer?

Amélia estava chocada com a sinceridade de Mora. – Lorde Gabriel foi um bom amigo de meu marido. – ela disse. – Eu acabei de enviuvar. Você não deve dizer tais coisas.

Torcendo seus cabelos num nó atrás do pescoço, Mora perguntou. – Por que? É verdade. Eu vejo o jeito como ele olha para a senhora, e o modo como a senhora olha para ele.

O calor queimou o rosto de Amélia. Deus, seria ela tão óbvia em sua atração por Gabriel Wulf? Mora colocou a touca horrorosa na cabeça e voltou a ser a garota sem graça que Amélia e Gabriel pensavam que era.

- A senhora não vai contar a ele, não é? – Mora perguntou. – Eu me sentiria desconfortável se ele me considerasse mulher. Sinto-me mais segura enquanto todas as atenções masculinas dela estiverem focalizadas na senhora, milady.

Amélia não estava certa se não se sentiria desconfortável com Gabriel olhando para Mora como mulher também. Era um ciúmes que ela não tinha nada de sentir. Ainda assim, ela se sentia dividida a respeito de enganá-lo. Amélia se aproximou da beira da água para se lavar.

- Não contarei a ele por agora. – ela finalmente disse. – Mas em algum momento, você deve fazê-lo. Não é educado enganar um homem que está dando o melhor de si para proteger sua vida, Mora.

Mora se acomodou ao lado dela. – Eu sei, milady. Eu contarei a ele. Não é realmente tão importante que ele saiba, não é?

Amélia supunha que não tinha tanta importância. A única coisa que Mora estava escondendo de Gabriel era que ela não era uma garotinha e que ela era bem mais bonita do que ele provavelmente imaginava. – Acho que não. – ela admitiu. – Mas, ainda assim, lembre-se de que me prometeu que contaria a ele em algum momento.

Mora acenou concordando. Timidamente ela perguntou. – A senhora me falaria de sua vida em Londres? A senhora era como uma princesa lá?

Londres e sua vida pareciam um sonho. Amélia deu de ombros. – Não, eu não era uma princesa. Mas meu pai é um duque e eu tenho uma certa posição sobre meus pares. Eu realmente reclamava frequentemente de que a vida em Londres era aborrecida. Eu daria qualquer coisa para estar tão aborrecida novamente.

A garota se aproximou e deu uma palmadinha no ombro de Amélia. – Acho que sua vida deve ter sido muito magnífica mesmo. – Mora disse. – Todos os bailes que a senhora freqüentou. Os adoráveis vestidos feitos para a senhora. E a senhora é tão bonita. Tenho certeza de que teve muitos pretendentes a perseguindo.

Pensando bem, Amélia achava que realmente teve todas essas coisa, mas ela nunca prestara muita atenção a elas. Ela tinha tudo como certo. Ela considerava muitas coisas como certas. Mas não queria pensar sobre isso. Ao invés de responder para Mora, ela disse. – Fale-me sobre sua vida, Mora. Você disse que era órfã, mas você tem um irmão, certo?

Mora mergulhou a mão na água gelada. – Sim. Ele cuidou de mim quase minha vida toda. Então disse que era hora de eu sair para o mundo e me sustentar sozinha. Fiquei feliz por ter conseguido emprego em Collingsworth Manor, mas então, como sabe, as coisas não saíram tão bem.

A água fria não era muito estimulante bem como estava desconfortavelmente gelada. Mas a conversa estava boa. Nunca tinha ocorrido a Amélia fazer amizade com alguém da classe trabalhadora. Bem, por que não? Tudo o mais em sua vida mudara. – Espero que possamos ser amigas. – ela disse a Mora. – Acho que diante das circunstâncias, nós duas precisamos de uma.

- Nunca pensei em ser amiga de uma grande dama. – Mora respondeu. – Esperava esfregar seus assoalhos e que a senhora nem mesmo me notasse.

E provavelmente assim teria sido, Amélia admitiu, se sua vida não tivesse mudado de modo irreversível em Collingsworth Manor. – Creio que é estranho como as coisas às vezes funcionam. – ela disse, pensando que também era estranho ela estar na companhia de Gabriel Wulf quando ela apenas ousara sonhar com ele. E pensar em Gabriel a fez perceber que elas já demoraram muito. Ele viria procurar por elas caso elas não voltassem logo.

Amélia lavou a boca e pegou uma folha de menta em seu bolso para refrescar o hálito. Ela ofereceu uma a Mora; então juntas elas se levantaram e voltaram para onde deveriam dormir essa noite.

Eles tinham encontrado dois cobertores velhos na carroça dos homens e os tinham trazido. Gabriel os abrira no chão. Ele ainda estava sentado onde Amélia o tinha visto antes, embora ele tivesse se movimentado para posicionar os cobertores.

- Vamos nos deitar sobre um e nos cobrir com o outro. – ele disse. – Pelo menos deverá nos aquecer.

Dado o tamanho que as formas escuras dos cobertores faziam no chão, Amélia notou que eles teriam de dormir muito próximos.

Gabriel se levantou. – Vou me lavar antes de me juntar a vocês. – ele disse.

Mora se abaixou na tarefa de arrumar os cobertores, mas Amélia ficou observando ele se afastar. Ela adorava o modo como a luz da lua dançava sobre as mechas mais claras nos cabelos dele. Sua figura alta fazia uma formidável sombra, enquanto ele se movia para o riacho. Então percebeu o que ele tentava muito esconder. Ele estava mancando novamente.

Ele tinha dito a Mora que a ferida em sua coxa estava melhorando. Ele disse que estava bem. Amélia imaginou se isso era mesmo verdade.

- A cama está pronta. – Mora disse. – Não é apropriado que nós duas durmamos com um homem. – ela acrescentou num sussurro calmo.

- Não é apropriado que nenhuma de nós duas durmamos com um homem. – Amélia apontou. – Mas é mais seguro, e ele é quente. Ou você não notou?

Mora sorriu para ela. – Isso ele é. – ela admitiu. – Libera um bom calor. Mas não é um bom travesseiro, porém. – ela acrescentou.

Amélia franziu a testa. Então Mora também percebera? Amélia entrou debaixo do cobertor. O chão era duro, os cobertores provavelmente tinham piolhos. Mas ela não pensaria sobre isso, pois se o fizesse, ela temia que começaria a gritar e não mais pararia. Ao invés disso, ela tentou se lembrar de como tinha sido sua vida apenas três dias atrás. Ela tentou se lembrar do rosto de Robert. Ele tinha sido bonito com sua aparência pálida e seus olhos escuros. Mas cada vez que tentava trazer suas feições à memória, ele se tornava uma fera, com garras e presas e pêlos.

Ela estremeceu. Os suaves roncos de Mora soaram pouco depois. Amélia nunca conhecera alguém que dormisse tão rápido quanto a criada. Mas talvez Mora estivesse acostumada a cair na cama exausta pelos seus afazeres, encontrando o sono facilmente. Amélia ficou deitada acordada até Gabriel retornar. Ela se aproximou mais de Mora para abrir espaço para ele.

Em silêncio, ela o ouviu respirar fundo quando se curvou para entrar debaixo do cobertor próximo a ela.

- É sua perna novamente, não é? – ela sussurrou. – Dói mais do que você nos fez acreditar.

Ele não respondeu.

- Talvez devêssemos descansar amanhã. Permitir...

- Durma, Amélia. – ele interrompeu. – Você sabe que não podemos parar. Que não podemos descansar até chegarmos a Wulfglen.

Ela não sabia disso. E ela imaginava que ele soubesse o que era melhor para ele. Ou ela esperava que eu soubesse. Ela começou a tremer pouco depois. Gabriel a alcançou e a puxou mais para perto. Amélia se aninhou a quentura dele. Ele parecia mais quente do que o normal, ela percebeu. Bom Deus. Todos estavam fingindo. Mora fingia ser mais nova e sem graça. Gabriel fingia que sua perna não estava doendo. E Amélia fingia que não estava afetada pela proximidade dele. Seu calor. Seu cheiro. Tudo nele.

- Não quis dizer aquilo. – ele disse suavemente. – Sobre não me importar. Eu me importo com o que acontece com você. Eu me importo com o que acontece com Mora. Às vezes, não se importar é muito mais simples.

Amélia concordou com ele. Ao invés de seguir seus sentimentos por Gabriel Wulf todos aqueles meses atrás, recusando-se a casar com Robert e perseguindo o que seu coração lhe dissera no momento em que vira Gabriel em Londres, ela tinha feito o mais simples. O que era esperado dela.

- Não sou quem pensava que eu era. – ela disse. – Talvez isso me assuste mais do que qualquer coisa que me tenha acontecido desde que cheguei a Collingsworth Manor.

Amélia se surpreendeu quando ele passou a mão pelos seus cabelos. – Raramente algum de nós consegue ser o que quer na vida. Você não é o que eu pensava que fosse, também. Você tem mostrado uma surpreendente força face tudo o que vem lhe acontecendo. Eu admiro você, Amélia.

Ele a admirava? Bem, não era uma declaração de amor, mas então ela vivia se esquecendo que nenhum deles acreditava no amor. O que quer que fosse,foi suficiente para lhe encher de calor. Foi o suficiente para que ela conseguisse passar a noite, e nas circunstâncias em que se encontravam, passar a noite era tudo o que tinham.

- Boa noite, Gabriel. – ela sussurrou, então se aconchegou mais perto dele, permitindo que a quentura dele aquecesse seu corpo, e as palavras dele aquecessem seu coração.

 

Gabriel sabia que não podia esconder a piora de seu estado de Amélia e da garota. Ele acordou banhado em suor. Amélia se afastara dele durante o sono como se precisasse fugir de seu calor. Ele havia dado uma olhada na ferida noite passada no riacho. Estava inchada e supurada. A ferida tinha de ser lancetada e cauterizada. Ele não tinha ferramenta nem fogo para fazer isso. Seus planos tinham de ser alterados.

As mulheres tinham levantado o acampamento, com o pouco que tinham. Amélia tinha ajudado sem reclamar. Por agora, sua vida mimada de Londres tinha sido relegada aos confins de sua mente. Ele a admirava por isso. Que ela conseguisse se adaptar. Ela era mais forte do que ele imaginara. Ela era mais forte do que sabia.

- Há uma vila chamada Hempshire onde poderemos chegar ao cair da noite se nos apressarmos hoje. – ele disse às mulheres. – Pensei que nosso plano original de chegarmos a Wulfglen fosse mais importante do que o atraso de nos desviar de nosso caminho para passarmos até a vila poderia nos custar. Mas agora é importante irmos para a vila antes.

Amélia veio se colocar perto dele. Seus longos cabelos estavam torcidos em um nó atrás da cabeça. Ela não se não parecia com uma grande dama agora, mas ele não podia afirmar que ela ainda não fosse tão atraente como quando estava finamente vestida. De fato, ela estava ainda mais atraente, pelo menos para um homem como Gabriel.

- É sua perna novamente, não é? – ela repetiu a pergunta que lhe fizera noite passada. – Está infeccionada.

- O que? – Mora se apressou para se juntar a eles. – O senhor disse que estava bom. O senhor disse...

- Eu sei o que disse. – ele interrompeu a menina. – Pensei que conseguiria agüentar até termos chegado a Wulfglen. A ferida precisa ser lancetada, cauterizada. Há um ferreiro lá que sempre coloca ferradura em meus cavalos. Ele pode fazer isso. E nós poderemos conseguir comida, cavalos ou talvez até mesmo algum tipo de transporte. Estaremos seguros lá. Pelo menos até partirmos novamente.

- E você acredita que conseguiremos chegar a essa vila antes do anoitecer? – Amélia perguntou.

- Se nos movermos depressa. – ele repetiu. – E não encontrarmos problemas pelo caminho.

Olhando ao redor, Amélia esfregou os braços no ar frio do amanhecer. – Por que eles não nos alcançaram? Por que não os vemos? Ou pelo menos os ouvimos?

Gabriel vinha se perguntando a mesma coisa. Era como se o problema que tinham encontrado em Collingsworth Manor tivesse permanecido por lá. Por que os homens, criaturas, o que quer que fossem não os perseguiram? Ele não estava reclamando. Ele achava estranho, era tudo.

- Não sei. – ele respondeu a ela. – Mas devemos nos considerar afortunados e esperar que nossa sorte continue. Vamos partir.

Levantando-se do tronco apodrecido onde estava sentado, ele tentou não estremecer com a dor na perna. Que a ferida tivesse infeccionado o deixava enraivecido. Gabriel supunha que era o forte. O sensato. Aquele no controle de suas emoções e situações o tempo todo. Nesse momento ele se sentia fraco, e ele abominava a fraqueza em qualquer um, principalmente em si mesmo.

O pai de Gabriel tinha sido um fraco. Tomara o caminho mais fácil para acabar com seus problemas. A mãe de Gabriel, ainda mais fraca. Eles precisavam que ela fosse forte por eles, os ajudassem, os guiassem, os amassem apesar do sangue ruim que lhes corria pelas veias. Sangue amaldiçoado. Ela os havia abandonado para trilharem sozinhos seus caminhos. Sterling tinha sido fraco. Fugindo quando não passava de um menino, correndo daquilo de que nenhum deles poderia escapar. Jackson, com seu amor pelas prostitutas e bebidas, também era um fraco. Armond tinha surpreendido Gabriel. Ele pensara que eles dois eram os mais fortes, pelo menos em vontade. Mas Armond encontrara sua fraqueza. Uma mulher.

Ele tinha de resistir à tentação que era Amélia. Ele admitira coisas para ela que nunca admitira para mais ninguém. Ele sentia coisas por ela que não sentira por mais ninguém. Ele não podia se dar ao luxo de perder a cabeça dado a situação em que se encontravam. Ele com toda a maldita certeza não podia se dar ao luxo de perder seu coração. Não para ela, não para qualquer mulher. Nunca.

Nem ele tinha desejado falar a ela sobre seus pais na noite passada. Ele se ressentia deles, Gabriel admitiu. Ele os considerava fracos. E embora compartilhasse o sangue amaldiçoado de seu pai, ele tinha jurado que não seria como o homem. No passado ele não havia formado nenhuma opinião a respeito das mulheres porque realmente não tivera necessidade, com exceção de sua mãe. Ela o ensinara que as mulheres mentem. Que não devia confiar seu coração às mulheres. E com relação a sonhos e esperanças, ele não se permitia tê-los. Pareciam tolices sem sentido para um homem sem futuro.

Mas Amélia o tentava a se abrir com ela. Ele tinha sentimentos por ela que era melhor conter.

- Vamos? – Amélia perguntou.

Gabriel percebeu que estava encarando-a. Mora riu quando ele sacudiu a cabeça para clareá-la e partiu na direção de Hempshire. Amélia carregava os cobertores, Mora a lona com os alimentos. Gabriel se sairia bem se conseguisse colocar um pé na frente do outro.

O dia passou numa agonia. Já era ruim o bastante a perna ficar latejando como estava, mas ter que esconder a dor era ainda pior. Ele sabia que Amélia e Mora insistiriam em parar se soubessem que caminhar estava se tornando uma verdadeira tortura para ele. Quando o sol começou a se por, ele não podia mais esconder que estava mancando. Em frente, através das árvores, ele viu telhados, fumaça subindo de chaminés. Ele sabia que suas companheiras ainda não podiam vê-los, então não disse nada, mas a visão de quão perto estavam de seu destino o manteve andando.

- Não podemos parar e descansar? – Amélia perguntou pouco depois. – Meus pés estão doendo.

- Os meus também. – Mora rapidamente acrescentou.

Ele cerrou os dentes e continuou andando. Ele ouviu Amélia suspirar atrás dele, mas ela não disse mais nada. Ele imaginava que os pés dela estavam doendo, mas sabia que ela apenas reclamara por causa dele. Ele gostou disso, embora tentasse não fazê-lo.

- Espere!

Ele parou devido à instrução sussurrada de Amélia. Ele se voltou para olhá-la. Ela fechou os olhos e inspirou. – Sinto cheiro de fumaça.

- Fogos para se cozinhar e afins. – ele lhe assegurou. – Estamos quase lá.

Ela abriu os olhos e seu rosto se iluminou. Maldição, ela era linda. – Por quanto tempo poderemos ficar? Tempo suficiente para pagarmos por um banho e uma cama?

Ele precisava levar Amélia e Mora para algum lugar enquanto o ferreiro cuidava de sua perna. – Um banho com certeza. – ele respondeu. – Há uma taverna na vila. Estou certo de que se pode pagar por um banho num dos quartos superiores.

- Soa como o paraíso. – Amélia suspirou atrás dele.

- Comida quente também seria bom. – Mora acrescentou. – Algo que não tenha de se mastigar por dois dias antes de engolir.

Amélia riu e até mesmo Gabriel achou fácil sorrir. Ele tinha certeza de que eles eram uma visão estranha quando entraram na vila pouco depois. A noite caia rapidamente. Ele levou Amélia e Mora até a taverna primeiro. O piso inferior estava vazio. Os fregueses deviam vir para tomar um gole depois de jantarem em casa. O homem polindo o balcão marcado franziu a testa ao ver Gabriel.

- Sem brigas. – ele disse antes que Gabriel pudesse cumprimentá-lo. - Acabei de consertar o lugar depois de sua última visita, Wulf.

Gabriel riu para ele. – Não foi tão ruim assim, Nate. Além disso, paguei mais do que o suficiente para substituir as cadeiras e mesas quebradas.

- É verdade. – o homem resmungou. – Suponho que possa quebrar o lugar todo desde que continue pagando mais do que o suficiente para consertar tudo. Teria um bom lucro com você.

Sentindo os olhares curiosos de Amélia e Mora, Gabriel voltou aos negócios. – Tenho duas damas comigo que gostariam de um banho quente e uma refeição quente também.

- Tenho os dois. – Nate disse. – É melhor que as mulheres estejam em segurança e longe daqui antes de os homens começarem a chegar para beber.

Tirando duas moedas do bolso, Gabriel as depositou no balcão marcado. – Confio que as damas estarão seguras com você. Preciso ver Bruin.

- Elas ficarão bem. Mas Bruin não está mais por aqui. – Nate disse a ele. – Pegou a família e desapareceu poucos dias atrás. Temos um novo homem. Parece bom. Têm vários rostos novos desde que veio aqui da última vez.

Gabriel se voltou para as mulheres.

– Vocês ficarão bem aqui até eu voltar. Tomem seus banhos e comam. Como segurança. – Ele retirou a pistola de trás das calças e a escorregou para o bolso de Amélia.

Ela colocou a mão no braço dele. – Tem certeza que não devemos ir com você? Não há um médico por aqui que possa cuidar de sua perna?

Ele sacudiu a cabeça. – Não, o ferreiro é o melhor que consigo arranjar. Você e Mora fiquem aqui até eu voltar. Entenderam?

- Mas...

- Você disse que seguiria minhas instruções. – ele a relembrou.

Ela levantou uma sobrancelha, perfeitamente arqueada e um tom mais escura do que seus cabelos loiros. – Na floresta, eu disse que obedeceria a você. E isso era uma mentira mesmo quando o disse.

Ele tentou não sorrir. – Fiquem aqui. – ele disse para as duas mulheres. Gabriel saiu mancando da taverna.

O celeiro do ferreiro ficava no final da estrada. Havia cavalos no curral dos fundos, Gabriel percebeu.

Bom. Ele não tinha muito dinheiro, mas talvez mesmo um pequeno depósito para um cavalo e uma charrete seria o suficiente. Se Bruin ainda vivesse na vila, Gabriel sabia que seria. Ele fazia negócios com ele frequentemente, tendo até mesmo visitado a cabana onde ele morava algumas vezes quando tinha de ir buscar o homem.

Gabriel também encontrara muitas desculpas para visitar a vila...e a taverna. Não tanto para beber. Ele não compartilhava o gosto por bebidas de seu irmão mais novo, mas geralmente bastava Gabriel aparecer na taverna para começar uma boa briga. Os homens ficavam estúpidos quando bebiam, e um geralmente conseguia dizer a coisa errada para ele antes do final da noite.

Lutar ajuda a liberar as tensões de um homem. É claro que outras coisas eram melhores, mas ele tentava passar com o mínimo de companhia feminina possível através dos anos.

Era irônico que agora estivesse amarrado a uma, pelo menos até conseguir levá-la com segurança para Wulfglen. Se ele conseguir pelo menos chegar até lá. Ele ouviu a batida da forja antes de entrar no celeiro. O calor do fogo tornava quase insuportável ficar dentro do abafado celeiro. Gabriel esperou até o homem parar de martelar antes de chamar.

- O que aconteceu a Bruin? Estive aqui há quatro meses atrás e ele não me disse nada sobre ir embora.

O camarada era grande, com grandes braços. Sua camisa estava ensopada de suor e agarrada a seu peito de tambor. Ele passou o enorme braço sobre a testa. – Não sei o que aconteceu ao homem que dirigia o lugar antes de eu chegar. Ele e sua família partiram uma noite, pelo que ouvi. Estava aqui de passagem, mas como já tenho experiência, concordei em assumir o local. – Aproximando-se o homem estendeu a mão suada. – Mullins é o meu nome.

Gabriel pegou a mão do homem e a apertou. – Lorde Gabriel Wulf. Geralmente trago meus cavalos a Hempshire para serem ferrados.

Mullins olhos para fora através da porta aberta. – Os trouxe com você?

- Não. – ele respondeu. Estou com um problema. Uma ferida supurada em minha coxa. Pensava em pedir a Bruin para lancetá-la e cauterizá-la.

O homem estremeceu. – Um serviço asqueroso. Você tem estômago para isso?

Gabriel levantou uma sobrancelha desafiante. – Você tem?

Mullins jogou a cabeça para trás e riu. – Isso eu tenho. Venha e sente-se que vou colocar uma faca no fogo.

Gabriel mancou até um banco de metal onde frequentemente se sentava e observava Bruin forjar as ferraduras para seus cavalos. Mullins sacou uma faca comprida e de aspecto sujo de sua bota e a colocou sobre o fogo alto.

- Não pensei que precisasse de algo assim por aqui. – Gabriel disse, acenando com a cabeça na direção da faca.

O homem deu de ombros. – Não estou aqui tempo suficiente para saber se preciso ou não. O pessoal por aqui parece ser decente em sua maioria. Estava viajando com meus dois primos quando paramos na taverna. Meus primos também ficaram. Eles me ajudam com os cavalos.

Gabriel olhou ao redor. O lugar estava cheio de sombras e ferros.

- Não estão aqui. – Mullins disse, como se soubesse que Gabriel estava procurando pelos homens. – Posso chamá-los, porém, se o senhor achar necessário que alguém o segure.

Ele sorriu. – Não há necessidade. - garantiu ao homem.

Mullins riu novamente, então pegou a faca. A lâmina estava vermelha. – Tire as calças, homem, e vamos a isso.

Levantando-se, Gabriel desamarrou suas calças e as desceu pelas pernas. Ele ficou agradecido pelo fato de a camisa que tinha pegado em Collingsworth Manor fosse cumprida o suficiente para esconder suas partes íntimas. Não que ele fosse tímido, mas se sentia muito vulnerável com um estranho carregando uma faca quente.

Mullins assobiou entre os dentes quando viu a ferida. – Precisa cortar mesmo. – ele disse. – Estou surpreso por você não estar fora de si com febre.

Era difícil de responder. Gabriel estava ocupado se preparando para a dor que viria. Ele acenou na direção da perna e o homem trouxe seu fedor e sua faca para perto.

- Pronto?

Novamente Gabriel acenou com a cabeça.

Gabriel não olhou, preferindo encarar a chama vermelha do fogo queimando na grande lareira. O homem fez o trabalho rapidamente. Ele cortou Gabriel antes de a dor chegar a seu cérebro. Quando chegou, ele cerrou os dentes para evitar gritar com a dor. Ele olhou para o corte. Pus e sangue borbulharam e escorreram pela coxa.

Mullins tirou um trapo sujo do bolso e o estendeu a Gabriel. Ele odiava ser rude, mas não ia colocar um trapo cheio de sujeira em sua ferida. Ao invés disso, ele rasgou a manga da camisa no ombro. Não estava muito limpa, mas pelo menos era a própria sujeira e suor. Mullins caminhou até o fogo e colocou a faca nas chamas novamente.

- Aposto como vai gritar dessa vez, - ele disse com um sorriso.

O homem parecia estar se divertindo muito à custa de Gabriel. Sua coxa doía como o diabo, mas ele sabia que tinha de apertar a ferida, tirar o possível da infecção dela antes de Mullins a fechar cauterizando-a novamente. Ele estava banhado em suor depois de ter conseguido apertar a ferida várias vezes. Sua manga estava ensopada de sangue e impurezas.

- Pronto? – Mullins disse novamente.

Respirando profundamente, Gabriel concordou.

- O senhor é forte. – Mullins disse, demonstrando respeito em sua voz rude quando voltou para perto de Gabriel. Mullins pressionou a faca contra a coxa de Gabriel.

A queimadura vermelho-quente da faca fez Gabriel pular. Ele quase vomitou com o cheiro de sua própria carne queimando. Sua mente gritou com a dor, mas ele fechou os lábios com força e engoliu a resposta. Mullins estava curvado ao lado dele. O homem removeu a faca e olhou para Gabriel.

- Ouvi dizer que era.

Com a dor obscurecendo sua mente, Gabriel não entendeu o que o ferreiro quis dizer. Enquanto Gabriel lutava contra a dor cortante, a sensação de queimado em sua coxa, o homem vagarosamente levantou sua faca, apontando a lâmina para a garganta de Gabriel.

- Forte. – o homem explicou. – Me disseram que deveria ficar de olho aberto caso aparecesse por aqui. Me disseram para cuidar de você.

A compreensão se registrou quando os olhos do homem começaram a brilhar na escuridão do celeiro. Ele era um deles. Maldição, Gabriel tinha deixado sua arma com Amélia.

- O que você quer? – ele conseguiu perguntar através da dor. – Quem são vocês?

Mullins sorriu, e seus dentes pareciam pontudos e afiados. – Queremos a mulher. – ele respondeu. – E você morto. Deve morrer qualquer um que ousar testemunhar nossos planos. Esperamos por um longo tempo.

Gabriel havia se colocado numa situação vulnerável. Algo que ele nunca teria feito se sua mente não estivesse anuviada pela dor na perna. Se ele conseguisse manter o homem, criatura, o que quer que Mullins fosse, falando tempo suficiente para se recuperar, ele poderia ter uma chance.

- O que você é? – ele repetiu.

Mullins aproximou a faca da garganta de Gabriel. – Um homem, assim como você. Um homem com dons.

Maldição? Dons? Gabriel imaginou que era questão de opinião. – Como os de sua espécie conseguem se transformar em outra pessoa?

- Nem todos conseguem. – o homem respondeu. – Os que possuem o dom praticam-no por anos. Mas chega de conversa.

Conversa era exatamente o que Gabriel precisava para se recuperar o suficiente para se defender. – Por que lancetar minha ferida, depois cauterizá-la se estava planejando me matar de qualquer maneira?

Mullins sorriu exibindo os dentes novamente. – Para fazê-lo sofrer ainda mais.

Gabriel desmoronou como se estivesse conformado com seu destino. Ele queria informações do homem e também precisava de um pouco mais de tempo para se recuperar do tratamento recebido. – Se você vai me matar, gostaria de saber quais são seus planos.

Mullins sacudiu a cabeça desgrenhada. – Não há razão para isso. Hora de morrer. Sinto muito, são ordens.

O homem cometeu o erro de levar a mão para trás para esfaquear com mais força. Gabriel usou a perna boa para chutar Mullins no rosto. Ele caiu de costas e Gabriel rapidamente ficou em pé. A dor percorreu sua perna, mas ele tentou ignorá-la e se concentrar em se defender. Sua perna machucada quase se dobrou debaixo dele quando ele chutou o homem novamente, mirando na faca em suas mãos. Mullins uivou de dor, então rolou e ficou de pé.

- Você não tem chance contra mim. – ele sibilou. – Melhor deitar e morrer.

- Você primeiro. – Gabriel disse, então se arremessou para frente e aplicou um sólido soco no rosto do homem. Mullins cambaleou para trás novamente, mas quando olhou para Gabriel, suas feições estavam contorcidas. Ele estava se transformando. As chances de Gabriel seriam melhores contra um homem ou contra uma fera?

Mullins se arremessou para frente, golpeando Gabriel com as longas garras que se projetavam dos dedos. Manobrar com sua perna machucada era difícil. Gabriel recebeu um arranhão no braço antes de conseguir se desviar.

Ele precisava de uma vantagem, e nesse momento estavam todas com Mullins. Para se fortalecer, Gabriel pensou em Amélia e Mora, abandonadas à mercê de Mullins e dos seus. A raiva conseguiu vencer a dor de Gabriel. Ela borbulhou dentro dele e Gabriel lhe deu as boas vindas, não lutou para controlar suas emoções como geralmente fazia. Quando Mullins rosnou baixo em sua garganta, Gabriel rosnou de volta.

A resposta fez com que Mullins parasse, ou Gabriel assumiu que essa era a razão do homem simplesmente parar e o encarar. As contorções das feições de Mullins deixavam Gabriel nervoso. Lembravam-no de um dia anos atrás quando seu pai se transformara na frente deles na mesa do jantar. Aquele pesadelo assombrara Gabriel por anos.

- Você é um de nós. – Mullins sibilou, sua voz distorcida, mas não tanto que Gabriel não pudesse entendê-lo.

- Não. – Gabriel sacudiu a cabeça. Ele levantou sua mão, tentando fechar os punhos, mas as garras projetando-se de seus dedos não permitiam. Gabriel olhou para sua mão por um momento, seu cérebro se recusando a reconhecer o que os olhos lhe mostravam.

A profunda risada de Mullins, distorcida, o que a tornava mais detestável, atraiu a atenção de Gabriel para a ameaça que o homem representava, não apenas para si, mas também para Amélia e Mora. Ele correu a língua pelos dentes. Estavam mais afiados, seus caninos maiores...como presas.

- Não sou como vocês. – ele cuspiu para Mullins, então encontrou a força que nunca tivera...não como um simples homem. Ele saltou para frente e passou as garras na garganta de Mullins. O homem ofegou, suas mãos deformadas segurando sua garganta. O sangue escorreu pelo pescoço, e suas pernas cederam debaixo dele. Gabriel ficou parado acima de Mullins, observando a vida se esvaindo dele. Apenas na morte Mullins recuperou sua forma de homem.

Gabriel puxou grandes golfadas de ar por entre as presas que cresceram em sua boca. Ele levantou a mão novamente, desejando que as garras se retraíssem. Nunca ele tinha chegado tão próximo da transformação. Por que agora? Mas ele pensou que sabia. Amélia... e a garota. Ele tinha de protegê-las, e protegê-las com tudo o que tinha, até mesmo sua maldição.

Dentro de poucos minutos, Gabriel sentiu a dor das garras se retraindo em seus dedos. Ele rosnou e cambaleou para se sentar novamente. Com a respiração irregular, ele agarrou e rasgou a outra manga de sua camisa. Gabriel enrolou o material ao redor da coxa latejante, puxou suas calças e se afastou o mais rapidamente que sua perna ferida permitia. Ele tinha de ir até Amélia e Mora agora. Ele tinha que tirar as mulheres da vila!

 

Amélia relaxava na pequena banheira, permitindo que a água quente a aliviasse. Não havia sabonetes perfumados. O sabão áspero provavelmente lhe arrancaria a pele, mas Amélia não se importava. Não no momento. Ela estava limpa. Ela estava segura. Havia esperança de chegarem a Wulfglen com vida.

Mora estava faminta e quis comer primeiro ao invés de se banhar. Amélia a deixou na cozinha nos fundos da taverna, aproveitando uma grande tigela de ensopado, pão fresco e grossas fatias de queijo. O estômago de Amélia roncara ao pensar no banquete que aguardava por ela quando tivesse energia para se levantar da água. O pensamente de vestir as roupas sujas tinha pouco apelo. Mas ela supunha que devia.

Suspirando, ela se levantou da banheira, grata pelo fogo que queimava na lareira e aquecia o quarto. Uma fina toalha tinha sido colocada ao lado para se secar. Amélia a pegou e começou a secar os cabelos. Ela mal havia começado a secar o corpo quando a porta subitamente se abriu com violência. Amélia gritou, levando a toalha aos seios. Gabriel estava parado no batente. Ele parecia um tanto selvagem. Seus olhos pareciam brilhar para ela e as mangas de sua camisa tinham sumido.

- Precisamos partir. – ele falou. – Agora!

- O que? – A fina toalha mal cobria Amélia dos seios ao começo das coxas. – O que está acontecendo?

- Vista-se rápido. – ele entrou no quarto e começou a juntar as roupas dela. Ele jogou as roupas íntimas de lado. Ele agarrou a pistola do bolso do vestido dela e a colocou debaixo da camisa na cintura da calça. Então estendeu o vestido esfarrapado para ela. – Vista isso.

- Mas minhas roupas íntimas. - Amélia protestou. – Não posso sair por aí sem...

- Não temos tempo! – ele quase gritou. – Eles estão aqui!

Calafrios percorreram os braços de Amélia, mas não tinha nada a ver com seu corpo ainda molhado. Ela entendeu o que ele dissera. Ele jogou o vestido para ela e se voltou para a porta.

- Vou buscar Mora. Encontre-nos lá embaixo. Rápido, Amélia! – Amélia largou a toalha e lutou com seu vestido sujo. Ela correu para a pilha de roupas íntimas e encontrou seus sapatos; no estado deplorável em que estavam, ela os vestiu e correu para baixo. Ela ouviu Gabriel discutindo com o dono da taverna.

- O que quer dizer com ela se foi? Foi para onde?

- Não sei. – o homem respondeu. – Deixei-a nos fundos, mas quando voltei para buscá-la como me pediu, ela não estava lá. A porta dos fundos estava aberta.

Amélia se juntou a Gabriel lá embaixo. – Onde está Mora? – ela sussurrou.

- Sumiu. – ele rosnou. – Talvez seqüestrada.

O coração de Amélia pulou. – Temos de encontrá-la.

Gabriel a puxou na direção da porta da taverna. – Não temos tempo. Temos de fugir agora.

Ele era forte e Amélia tinha dificuldades em lutar para se livrar dele, mas o fez. – Não podemos deixar Mora! Sem dizer o que aquelas feras farão com ela!

- Pare de lutar comigo! – Gabriel ordenou. – Eu vou voltar para buscá-la. Juro para você, mas agora, temos de tirar você em segurança da vila.

Amélia odiava o pensamento de deixar Mora para trás. Durante toda sua vida, Amélia somente se importara consigo mesma. O que ela mais queria e qual a melhor maneira de consegui-lo. Mora não era apenas uma criada; ela se tornara uma amiga. Mas Gabriel estava certo. Eles tinham de fugir antes...

Rosnados baixo vindos das sombras cortaram seus pensamentos. Olhos brilhantes os observavam. Amélia lutou para não gritar. Gabriel a puxou para um cavalo amarrado na frente da taverna. O animal se empinou, ou tentou, amarrado como estava ele não podia mais do que bater as patas nervosamente no lugar.

- O que está acontecendo? – Nate perguntou da porta da taverna.

- Vá para dentro! Tranque as portas! – Gabriel gritou para ele. – Há lobos vagando pela vila.

Amélia foi levantada até as costas do cavalo. O animal empinou novamente, e ela quase caiu para trás.

- Segure-se! – Gabriel gritou.

Ela passou os braços ao redor da cintura dele, fechou os olhos e pressionou o rosto contra suas costas largas. O cavalo disparou e eles estavam correndo pela estrada que cortava a vila. Ela não queria olhar para trás. Ela queria ficar de olhos fechados e rezar para que eles conseguissem fugir em segurança, sem que ela caísse do cavalo e quebrasse o pescoço, mas ela olhou.

Várias sombras escuras os perseguiam. Duas próximas aos calcanhares do cavalo. Ela remexeu na camisa de Gabriel, deslizou a mão por baixo dela e pelo estômago plano dele para pegar a pistola que estava em suas calças. Ela engatilhou a pistola com uma mão, virou-se e atirou, acertando o primeiro lobo.

Gabriel desviou-se da estrada, virando o cavalo tão rapidamente que Amélia quase caiu. Em sua luta para se segurar, ela derrubou a pistola. Eles dispararam pelos arbustos que se alinhavam com a estrada e através das árvores. Galhos rasgavam as roupas dela. Ela abaixou a cabeça e pressionou o rosto contra as costas de Gabriel novamente.

Parecia que cavalgaram um longo tempo. Amélia imaginava quando as feras os alcançariam, quando ela cairia do cavalo e certamente morreria, dado a velocidade com que Gabriel conduzia o animal. Amélia nunca tinha visto um homem conduzir um animal como Gabriel fazia. Girando e voltando, levando o animal para dentro da floresta, parecendo ser capaz de ver para onde estavam inda quando a escuridão já havia caído e Amélia não via nada além do negrume ao redor deles.

Subitamente, Gabriel parou o ofegante cavalo. Ele desceu, estendeu os braços e tirou Amélia das costas do animal. Ele estapeou a traseira do animal e o fez correr.

Amélia ofegou. – Por que fez isso? Agora estamos a pé novamente.

- Precisamos de abrigo. Conheço um lugar, mas o cavalo deve continuar na esperança de que eles o sigam. A pistola. – ele disse. – Preciso dela.

Amélia queria choramingar. – Eu a derrubei. – ela disse. – Foi quando o cavalo virou e era a pistola ou eu cair.

Ele ficou quieto por um momento. Ela sabia que ele estava chateado com a perda da arma. – Tudo bem, vamos então. Teremos de lutar com nossa inteligência essa noite.

Ele a pegou pela mão e eles correram através dos arbustos. Várias vezes Gabriel teve de parar um pouco e Amélia sabia que a perna devia estar doendo muito. A noite estava se fechando ao redor deles, tornando mais assustador o pensamento de que poderiam ser apanhados a qualquer momento.

Sombras e formas passavam num borrão. Eles se depararam com uma pequena cabana antes que Amélia conseguisse vê-la na escuridão. Não havia luz lá dentro. Nenhum cheiro de fogo saindo pela chaminé. A porta gemeu quando Gabriel a abriu. Ele a puxou para dentro e a fechou. Então ele ficou parado bem quieto, ouvindo.

Amélia também ficou ouvindo. A cabana estava silenciosa como um túmulo. O frio da noite lhe provocou arrepios na pele. Ela estremeceu, mas não sabia se era pelo frio ou por estar amedrontada.

- Aqui era onde Bruin e sua família viviam. Está abandonada. – Gabriel finalmente disse, sua voz baixa. – Fique aqui, volto num instante.

Apesar de sempre se mover silenciosamente, sua perna devia estar atrapalhando, pois ela o ouviu se arrastando pela cabana. Ele voltou pouco depois e ela sentiu o roçar de um cobertor de lã áspero sendo jogado em sua direção.

- Você deve tirar sua roupa, Amélia. – ele disse. – Os animais caçam pelo cheiro. Preciso levar nossas roupas para a floresta e me livrar delas.

Se qualquer outro homem tivesse pedido para ela se despir na frente dele, Amélia teria pensado que era um truque para seduzi-la. Ela sabia que Gabriel não pediria a menos que a vida deles corresse risco. Embora não fosse tímida, era estranho se despir na mesma sala com um homem, um que estava fazendo o mesmo, pelo barulho que ouvia. Depois de tirar o vestido, Amélia se enrolou no cobertor e entregou a roupa para Gabriel.

- Volto logo. Fique aqui dentro e bem quieta.

Ele saiu antes de ela poder argumentar. Amélia não queria ficar sozinha. Seu coração batia tão alto que qualquer um dentro do raio de um quilometro poderia ouvir. Com as pernas trêmulas, ela deslizou pela parede até o chão e esperou. O cobertor era áspero contra sua pele. Era a menor de suas preocupações. Ela estava começando a pensar que Gabriel não voltaria quando a porta se abriu. Ela quase gritou, mas ele a chamou suavemente.

- Aqui. – ela disse. – No chão.

Com um leve gemido ele se colocou ao lado dela. Ele estava com falta de ar. Quando se aproximou para tocá-lo ela também percebeu que ele estava completamente nu. Ela puxou as mãos para trás.

- Onde está seu cobertor?

- Não encontrei nenhum. – ele bufou. – A verdade é que eu sabia que me moveria melhor sem ter nada enrolado em mim que tivesse que ficar segurando. Com outro gemido, ele se levantou. Ela o ouviu ir à sala ao lado. Não muito tempo depois, ela o ouviu voltando e se encaminhar para algum lugar a sua direita. Quando ele se agachou ao lado dela novamente ele colocou um pedaço de pão velho nas mãos dela.

Faminta, Amélia partiu o pedaço de pão e o levou a boca. Tinha o gosto do paraíso.

- Tem um pouco de cidra. Algumas maçãs. Saíram apressadamente. Não levaram quase nada com eles.

- Por quê? – ela perguntou.

- Assustados, creio eu. – Gabriel respondeu. – Mullins, o novo ferreiro, veio para Hempshire para observar se nós passaríamos por aqui. Ele precisava de um motivo para estar aqui sem levantar suspeitas. Imagino que ele e seus homens assustaram Bruin e sua família durante a noite.

Um pensamento deixou os cabelos de Amélia em pé.

– Então, é aqui que eles estão se escondendo?

- Não. – Gabriel garantiu a ela. – Não sinto o cheiro deles aqui. Eles podem ter comido a comida que Bruin e sua família deixaram para trás. Imagino que ficaram morando no celeiro do ferreiro na vila. Não podiam se dar ao luxo de perder nossa passagem pela vila.

- Eles virão até aqui?

Ele não respondeu por um momento. – Acho que não. Eles vão pensar que queremos nos afastar de Hempshire o máximo que pudermos. Eles nos procurarão na floresta.

Amélia estava longe de se sentir confortada, mas no momento tinham um abrigo, pelo menos algo para comer e talvez um pouco de segurança. – E Mora? – ela sussurrou. – Não podemos deixá-la para trás. Não com essas feras. Eles a matarão!

Gabriel suspirou. – Minha primeira obrigação é levá-la com segurança para Wulfglen, Amélia. Sinto pela menina. Não quero deixá-la para trás. Na realidade vou voltar e tentar encontrá-la depois que você estiver segura.

Antes, a situação seria ideal para Amélia. Agora não mais. Ela não conseguia suportar o pensamento da pobre Mora à mercê das feras que a assustavam tanto. – Não vou até pelo menos ter tentado ajudar Mora. Estamos juntos em tudo isso, não é? O que pensaria de mim mesma se permitisse que você a deixasse para trás?

Gabriel não respondeu de imediato. – Ela não espera que fiquemos. – ele disse finalmente. – Você sabe disso.

- Um dia. – Amélia argumentou. – Amanhã, nós vamos até a vila e a procuraremos. Se não a encontrarmos, continuaremos em frente.

- É loucura voltar à vila. – ele disse. – Mora não espera que você se coloque em perigo por ela. Ela teve bom senso em não se colocar em perigo por você.

Amélia se lembrou de que Mora os deixara para se defenderem sozinhos quando a caverna desmoronara sobre ela e Gabriel. Talvez a garota não esperasse que eles a resgatassem se fosse capturada. Amélia não conseguia deixar de acreditar que tudo o que acontecera em Collingsworth Manor fosse culpa sua. Era Amélia a quem as feras queriam e Gabriel e Mora eram os inocentes de passagem.

- Um dia. – Amélia implorou. – Se não a encontrarmos, partiremos, prometo.

Ele ficou silencioso por tanto tempo que Amélia imaginou que ele havia caído no sono; então ele suspirou. – Um dia. – ele concordou.

– E eu vou procurá-la sozinho. Você ficará aqui.

Amélia sabia que estaria forçando sua sorte se discutisse com ele. Embora quisesse mais do que tudo fugir da ameaça que certamente os cercavam, ela se sentiu melhor sabendo que não abandonariam Mora sem antes tentar resgatá-la.

- Fico sempre pensando que tudo isso tem de ser um sonho. – ela disse suavemente. – Que eu acordarei na casa de meus pais em Londres e rirei muito com esse conto proporcionado pela minha imaginação.

Ela passou um pedaço de pão para Gabriel na escuridão.

- E se você estivesse sonhando e acordasse amanhã, ainda se casaria com Robert Collingsworth?

Amélia podia dizer com certeza de que não se casaria. Ela compreendia agora que deveria se casar com Robert por outros motivos além de agradar aos seus pais. Ela estava curiosa em saber por que Gabriel perguntou isso.

– Você gostaria que eu o fizesse?

A pergunta era corajosa, mas as circunstâncias clamavam por coragem. Ele não disse nada de imediato e ela pensou que ele não fosse responder.

– Não. – ele finalmente respondeu baixinho.

O coração dela disparou, não com medo dessa vez, mas com esperança.

– Por que não? – ela se arriscou um pouco mais.

Por que não? Realmente. Gabriel não sabia por que tinha respondido “não” à pergunta dela. Ele soube no momento em que a vira que ela não era para ele, não importava que não conseguisse tirá-la da cabeça. O que acabara de lhe acontecer em Hempshire não lhe deixava dúvidas a respeito do que ele era, do que facilmente se tornaria. Ele não era um marido adequado para mulher alguma. Ele sabia disso há muito tempo. Fora por isso que fizera o juramento junto com seus irmãos.

- Porque ele nunca a faria feliz. – ele disse. – Há diferença entre ser feliz e ser contente. Por que se conformar com um quando se pode ter o outro?

Ele sabia disso mais do que ninguém. Uma mulher como Amélia nunca deveria se conformar. Se conformar era para pessoas que não tinham escolha. Como ele.

- Você está bem aquecida? – ele rapidamente mudou de assunto. Gabriel tinha encontrado calças cossacos rústicas no pequeno quarto que Bruin dividia com a esposa. Colocá-las tinha sido doloroso. Ele procurara rapidamente por alguns itens femininos, mas a mulher do ferreiro era robusta e nada do que ela deixou para trás serviria em Amélia. Eles tinham um filho de cerca de dez anos. Na pior das hipóteses, Amélia provavelmente teria de usar as roupas do garoto.

- O cobertor é melhor do que nada, mas eu preferia estar vestida.

O fato de ela não estar vestida debaixo do cobertor de lã não era algo que Gabriel pudesse esquecer facilmente. Pensamentos de sua pele cremosa o torturavam. O que tinha acontecido em Hempshire o torturava. Por que ele quase se transformara? Ele nunca tinha feito isso. Fora o confronto com Mullins que despertou a maldição? Ou foi Amélia? Gabriel havia visto o olhar de repulsa e horror no rosto dela quando ameaçados pelos homens que podiam mudar de forma. Se ela soubesse sobre ele, ela ficaria tão apavorada e sentiria repulsa. Quanto tempo ele teria para ser somente um homem? Quanto tempo mais antes de a confiança que ela tinha nele se apagar?

- Há roupas na cabana que provavelmente servirão em você. – ele conseguiu encontrar a decência de dizer.

Ela não respondeu. Ele olhou para ela e viu que os olhos dela estavam fechados. Ela estava exausta. Ela devia estar com muito sono dadas as circunstâncias. Mas ela também devia ter muita confiança nele para baixar a guarda mesmo que por um minuto quando ainda poderiam estar em perigo.

Ele a alcançou e a trouxe para perto dele. Ela se aninhou próxima a ele, sua respiração quente dançando na pele do pescoço dele. Suas suaves curvas debaixo do cobertor grosseiro o provocavam. Ele correu os dedos pelos cabelos enrolados dela. Ela gemeu suavemente e se aninhou mais perto, seus lábios agora quase pressionados contra o pescoço dele. Seus sentidos rodopiaram, os mais básicos rapidamente emergindo. Seria a fera nele respondendo a ela ou simplesmente o homem?

A mão dele se apertou nos cabelos dela. Ele puxou a cabeça dela para trás para olhar para ela. Os cílios dela estremeceram e ela abriu os olhos. Ela não se afastou como ele esperava que fizesse. Melhor para ela se o tivesse feito. Os lábios dela se separaram. Ele não conseguia desviar os olhos deles. Tão doces e cheios. Então ele estava se inclinando na direção deles, como se não tivesse forças para parar.

 

Amélia sabia que ele ia beijá-la. Talvez fosse errado, mas ela queria sentir alguma coisa além de preocupação, medo, fome e frio. O dia em que se casara com Robert Collingsworth parecia estar num passado muito distante. A vida que vivera em Londres parecia irreal – como um sonho flutuando numa bolha. Agora havia apenas Gabriel e ela, e a escuridão que os rodeava.

- Você está acordada? – ele perguntou suavemente.

Ela presumiu que ele não pudesse ver que seus olhos estavam abertos. A única razão por ela ver os dele era porque eles brilhavam no escuro.

- Sim. – ela murmurou.

- Se eu beijá-la você se lembrará pela manhã?

Ela sorriu pela lembrança de seu sonambulismo em Collingsworth Manor.

– Eu me lembrarei. – ela prometeu a ele.

Os lábios dele roçaram os dela, quase como um sussurro no começo, antes de ele tomar completa possessão de sua boca. Amélia se abriu prontamente para ele, seu sangue se aquecendo quando a língua dele deslizou por entre sua boca aberta para acariciá-la. O cheiro dele enroscava-se ao redor dela. O calor se espalhou através de seus ossos gelados. Seus braços se enroscaram no pescoço dele, sem se importar que o cobertor caísse até a cintura. O contato de pele contra pele foi como o choque de tocar em metal quando havia estática no ar.

Gabriel gentilmente a puxou para cima dele de forma que ela ficasse de pernas abertas sobre ele. Seus mamilos endureceram contra a pele suave e quente dele. O calor que se irradiava dele não era uma quentura natural e ela se preocupou com a perna dele. Mas a mão dele deslizou pelo seu estômago e se fechou em seu seio e ela não conseguiu pensar em mais nada além da sensação. O polegar dele roçava o bico endurecido, extraindo um gemido de seus lábios.

- Quero saboreá-la bem aqui. – ele disse, vagarosamente traçando o círculo de seu mamilo.

Somente a sugestão a deixou dolorida. Amélia sabia que devia tentar recobrar o controle de suas emoções. Por mais chocante que ela fosse às vezes, nunca tinha ido tão longe com um homem antes. Mas Gabriel não era qualquer homem, e por mais que fingisse que não acreditava no amor, ela temia que o amor a havia encontrado de qualquer forma. Talvez o amor não fosse algo de que uma pessoa pudesse fugir quando fosse certo – quando fosse destinado.

- Eu quero que o faça. – ela disse corajosamente.

Ele se inclinou e beijou seu pescoço antes de curvar a cabeça para seus seios. O primeiro toque da boca quente contra seu mamilo foi como se um choque a percorresse. Ele provocou seu mamilo com a língua antes de levar o sensível botão para dentro da boca. Ele o sugou e o gentil puxão de sua boca fez os músculos do estômago dela se contraírem; mais embaixo ela começou a pulsar.

Ela torceu os dedos pelos cabelos dele. Ele provou um seio e depois o outro, provocando, saboreando até que ela ficasse sem fôlego – até que ela se contorcesse contra ele. Lá embaixo, sentia o membro endurecido dele pressionado contra ela. O que ela sentia era impressionante e um tanto quanto intimidante, mas então o cheiro dele dançou ao redor dela e ela ficou perdida na névoa do próprio desejo.

- Gabriel. – ela sussurrou. – faça-me sentir algo além de medo. Faça-me esquecer que essa noite pode ser nossa última.

Ele a puxou para trás para olhar para ela. Na escuridão, os olhos dele eram bolas gêmeas de fogo azul.

– Você não me conhece, Amélia. Não realmente. Você apenas vê o que eu quero que veja.

Ela queria conhecê-lo. Suas esperanças e sonhos – seus segredos. Mas essa noite ela queria conhecê-lo como nunca conhecera nenhum homem antes.

– Você vai me negar essa noite juntos? – ela perguntou. – Nenhum de nós sabe o que o amanhã trará!

Por um momento, ela pensou que ele fosse se recusar. Ele parecia lutar consigo mesmo, o que Amélia considerou humilhante. Ela sabia que era bonita, e sabia que Gabriel a achava fisicamente atraente. A maioria dos homens, ela imaginava, não teria recusado sua oferta sob quaisquer circunstâncias, mas também, Gabriel não era como a maioria dos homens.

Ela começou a se afastar, mas ele a impediu. Ele tremia quando a tocou. Era um elixir emocionante saber o quão fortemente ela o afetava. Ela se inclinou para frente e o beijou. A boca dele estava quente e correspondente. Lá embaixo, ele se pressionou contra ela e sua pulsação disparou. Ela pressionou de volta, roubando um leve gemido dele. Amélia estava sendo cuidadosa para não colocar o peso sobre a perna ferida dele, mas ela imaginava por quanto tempo mais conseguiria se lembrar de que ele não estava em condições físicas de fazer o que estavam fazendo.

O cheiro dele, os beijos, os toques, tudo trabalhava para lhe roubarem a razão. Não havia nada além de mãos e bocas e sensações. Nenhum lobo na porta. Nenhum perigo espiando nas sombras. Apenas ela, ele e a noite que se estendia ao redor deles.

O cobertor ainda estava enrolado na parte de baixo dela, mas debaixo dele ela estava nua. As calças rústicas que ele usava irritavam e ao mesmo tempo estimulavam sua pele sensível. Quando ele se curvou para saborear seus seios novamente, Amélia jogou a cabeça para trás. Ele esfregava sua ereção contra ela e ela se arqueava contra ele, pressionando até que a fricção quase a levou a loucura.

A mão de Gabriel deslizou de seu seio e ele a tocou lá, no ponto sensível entre suas pernas. Ela ofegou e se pressionou fortemente contra os dedos dele. Suas unhas se enterraram nos ombros dele. Ele a acariciava, seus dedos habilidosos tocando-a como a um fino instrumento até que ela começou a zumbir, até que ela se movesse com ele, contra ele, o que fosse preciso para manter a maravilhosa pressão crescendo dentro dela.

Gabriel sabia que devia tê-la recusado. Ele havia enganado Amélia. Ela não sabia quem ele realmente era. Ela não sabia sobre sua maldição e sobre a fera que rondava mesmo agora debaixo de sua pele. A fera que o forçava a ir em frente, que lhe dava forças quando ele sabia não ter nenhuma, que até mesmo entorpecia a dor em sua perna para tudo o que sentisse fosse seu desejo por ela – seu instinto de se acasalar. Ela o via como seu protetor, mas não havia ninguém para protegê-la dele. Nem ele mesmo.

A oferta que ela fizera era muito doce – esquecer por uma noite quem ela era e quem ele era e simplesmente ficarem juntos. Ela era a mais forte das tentações. A sensação da pele suave e macia, a umidade por entre as pernas, o cheiro dela, tudo combinava para roubar dele a habilidade de resistir a ela. Ele não podia parar; ele não queria parar.

Bem no fundo, ele sabia que era mais do que a fera forçando-o a tomá-la. Era o homem que queria ser apenas um homem aos olhos dela. Nem que fosse apenas por uma noite. Pela primeira vez desde que soube da maldição, ele deu boas vindas a sua fraqueza – sua falta de controle. Ele as abandonou pela simples alegria de sentir – a tentação de ser um homem fazendo amor com a mulher que desejava acima de todas as outras. Mas o homem ainda estava no controle...pelo menos por enquanto.

- Você deve me parar antes de eu não conseguir mais pensar racionalmente. – ele encontrou forças de adverti-la.

Os quadris dela se moveram e ela se pressionou contra ele.

– Não quero que pare. – ela respondeu sem fôlego. – Gabriel, por favor, não pare.

Ele acariciava a suavidade aveludada, o pequeno botão que controlava a paixão dela. Seu membro pulsava dolorosamente, faminto por se sentir envolvido por ela. Ele parou tempo suficiente para desamarrar as calças e se libertar. O gemido de desapontamento que ela deu o fez retornar rapidamente à fonte da frustração dela...e a dele.

Amélia pensou que fosse morrer quando ele parou a caricia estável. Então sentiu a dura e comprida extensão dele liberada das calças, sentiu-o pulsar conta ela e engoliu audivelmente. Ela não queria que ele parasse, mas novamente ela hesitou. A mãe dela havia contado alegremente sobre sangue e dor na primeira vez de uma mulher com um homem, fazendo soar pior do que deveria ser, Amélia tinha suspeitado, para dissuadi-la de se engajar em tais atividades antes do casamento. Talvez sua mãe não tivesse exagerado...

Então ele a tocou novamente e todas as dúvidas desapareceram. A pressão que estava crescendo subitamente estava de volta. Ela se movia não apenas contra os dedos dele, mas também contra a extensão dura de seu membro, tornando-o escorregadio com sua umidade. Mais e mais alto ela subia na crista de uma onda, mas ela queria mais. Ela o queria dentro dela. Ela se deslocou mais para cima de forma que a grande ponta do membro dele ficou subitamente posicionada em sua entrada.

As mãos dele se enrolaram nos cabelos dela e ele puxou o rosto dela para trás para que pudesse olhá-la nos olhos. – Você me empurra para além do meu controle. – ele disse, e somente o som da voz profunda quase a levou além do dela. – Tem certeza de que quer isso, Amélia? Se não quiser, é melhor falar agora, enquanto eu ainda tenho forças para perguntar.

Não havia mais volta para ela. Possivelmente não haveria um amanhã para ela. Ela teria Gabriel Wulf como seu amante essa noite, e o resto do mundo que se danasse. Ela esperara todo esse tempo para se tornar uma mulher, e agora compreendia, nos lugares secretos de sua mente, que havia esperado por ele. Robert tinha representado apenas um dever, um modo de agradar a outros e não a si mesma. Gabriel tinha arrancado seu coração de sua barreira protetora e o feito dele. Ela queria pertencer a ele. Coração, corpo e alma.

- Eu quero você! – ela sussurrou.

Ele gemeu suavemente em resposta; então ele a penetrou e a dor veio aguda e rápida, forçando um alto soluço de seus lábios. Ele envolveu os cabelos dela com força nas mãos e encostou a testa contra a dela.

- Sinto muito ter de machucar você. – ele disse. – Pensei que era melhor resolver essa parte logo para podermos continuar.

Ele não lhe deu tempo para responder antes de continuar. Mais profundamente dentro dela, esticando-a, forçando o ar a sair em pequenas golfadas. Ele era grande e Amélia reconsiderou sua decisão, pelo menos até que ele soltou seus cabelos e seus dedos voltaram a trabalhar sua mágica. A sensação combinada era o que estava faltando antes, e enquanto ele a acariciava, penetrando mais e mais fundo, a pressão crescia dentro dela.

Ela estava consciente de tudo sobre ele. Seu cheiro, a sensação de seu peito macio e musculoso contra seus seios – o calor que irradiava dele, o brilho em seus olhos enquanto ele a observava. O modo como a preenchia, sempre a preenchendo, conforme se movia fundo dentro dela. As mãos dele agarraram sua cintura e ele a levantou e abaixou até que Amélia entendeu o ritmo, também entendeu que se se posicionasse de certo modo, o estímulo que ele proporcionava com os dedos era desnecessário.

Ela usou os joelhos de cada lado dele para lhe dar sustentação, levantando-se e abaixando-se sobre o grosso membro até que a respiração dele estava tão forçada quanto a dela e os olhos dele cintilavam com um brilho azulado.

- Deus! – ele disse roucamente. Então a beijou.

Foi o elemento adicional, a boca dele reclamando a dela, a língua a penetrando como ele a penetrava lá embaixo, que a fez girar fora de controle. As unhas de Amélia se enterraram nos ombros dele e ela o cavalgou mais força, mais rápido até explodir em um milhão de pedaços. Enquanto ela se convulsionava ao redor dele, ela se separou dos lábios dele para mordê-lo no pescoço, gentilmente, e ela achou, não tão gentilmente. O calor fluiu através dela, ao redor dela, e ela sentiu que a alma tinha saído do corpo, girando e pairando acima dela. Ele ainda se movia dentro dela, prolongando o prazer que parecia continuar e continuar. Subitamente ele ficou tenso debaixo dela, suas mãos se fecharam em sua cintura e ele saiu de dentro dela.

Ela sentiu o morno esparramar das sementes dele na parte interna da coxa. O corpo dele sacudiu e convulsionou como o dela havia feito e ela soube que ele encontrara seu prazer. Ele a puxou para perto e ela descansou a cabeça no ombro dele, respirando pesadamente contra seu pescoço, ouvindo enquanto ele lutava para controlar a própria respiração. Foi a coisa mais gloriosa que Amélia tinha vivenciado.

- Deus! – ele disse novamente.

Amélia se aninhou mais próxima a ele e suspirou.

– Sou uma mulher agora.

Ele gentilmente acariciou os cabelos dela.

– Você sempre foi uma mulher. Uma mulher extraordinária.

Sua falta de experiência a fez ficar imaginando se o que havia acabado de acontecer entre eles tinha sido tão maravilhoso para ele quanto fora para ela.

– Eu lhe agradei?

Ele riu

– Se você tivesse me agradado mais, não acho que teria conseguido sobreviver.

O elogio a aqueceu quase tanto quanto o calor que irradiava dele. Quando seu corpo começou a registrar o choque do que Gabriel Wulf tinha acabado de fazer com ela, ela se lembrou do ferimento dele. Ela se afastou para olhar para ele.

- Sua perna. – ela sussurrou.

Gabriel a puxou mais para perto.

– Ao inferno com isso. – ele disse. – Você é um bom remédio. Até me esqueci de meu ferimento.

Amélia não estava convencida. Cuidadosamente, ela deslizou para sair de cima dele. Suas coxas estavam pegajosas com a semente dele e, ela imaginava, seu sangue virginal.

– O que eu não daria por um banho. – ela disse, acomodando-se ao lado dele antes de puxar o cobertor sobre eles.

- Isso eu não posso lhe dar, mas imagino que haja uma bomba de água e um balde lá fora. Vou buscar água para você se lavar.

Ela imaginava se ele até mesmo conseguiria se levantar. Amélia pensou em se oferecer para ir buscar água, mas sabia que Gabriel não a deixaria ir lá para fora, não enquanto não estivesse certo de que estavam seguros. Além disso, ela não estava certa de que suas pernas trêmulas pudessem sustentá-la. Ela ainda não tivera tempo de absorver o que acontecera entre eles, o que ela na realidade instigara. Ela cairia no conceito dele agora? Ele a amava? Ele certamente nunca dissera isso.

Enquanto o observava, ele se remexeu debaixo do cobertor enrolado em volta deles, obviamente se arrumando; então se levantou. Ele rosnou com a dor, mas não disse nada. Ele se curvou e ofereceu a mão a ela.

- Há um macio colchão de penas no outro quarto. Se estivesse pensando claramente, teria sugerido irmos para lá. O chão é duro e provavelmente não muito limpo.

Amélia estava agradecida pela escuridão esconder que ela corava. Ela havia copulado com Gabriel Wulf na cabana de um ferreiro e no chão. Ela tinha conseguido chocar até a si mesma. Se ele estivesse pensando claramente? Isso significava que ele estava fora de si quando fez amor com ela? Já estaria arrependido de suas ações? Ela deveria se arrepender das delas? Amélia não acreditava que conseguiria mesmo que quisesse. Seriam dessas duvidas e inseguranças repentinas que sua mãe tinha querido protegê-la? O medo atormentador que sentia dentro de si de que ele não sentisse por ela o mesmo que ela sentia por ele?

Já que ele estava parado com a mão estendida para ela, ela colocou sua pequena mão na dele. Ele a pôs de pé e ela arrumou o cobertor ao redor dos seios. Ele beijou o topo da cabeça dela e a virou na direção do quarto.

- Vá. Me juntarei a você num instante.

Ela foi, e Amélia sabia que estava sendo tola, mas por um momento quando ele abriu a porta e desapareceu, ela ficou pensando se ele voltaria.

 

Gabriel não estava tão cego de emoção para se esquecer de ser cuidadoso. Ele se moveu o mais silenciosamente que sua perna ferida permitia e encontrou a bomba de água e um balde perto dela como de costume. Milhares de emoções o assaltavam. Culpa, desapontamento por sua fraqueza, desejo de possuí-la novamente, preocupação por ter de abandoná-la. Mas ele não podia abandoná-la. Ela não estava segura sem ele...ela não estava segura com ele.

Ele olhou para cima, para a lua quase cheia. O lobo estava próximo agora; Gabriel o sentia. Teria se apaixonado por Amélia? A viúva do antigo amigo, uma mulher tão diferente dele quanto a noite do dia? Ele queria afirmar que não havia se apaixonado por ela. Que ela não era diferente das outras mulheres com quem obtivera prazer no passado, mas sabia que era uma mentira. Ela era diferente.

Talvez ele soubesse disso em um nível profundo desde o primeiro momento que a vira parada nas ruas de Londres. Talvez fosse essa a razão por ter sonhado com ela.

Agora que as brasas da luxúria estavam se apagando, sua perna doía como o inferno. Toda a racionalização do mundo não podia apagar o fato de que ele havia acabado de tirar a virgindade de Lady Amélia Sinclair Collingsworth. Um direito que deveria ter sido reservado a seu marido. Pelo menos reservado a um homem que pudesse lhe oferecer um futuro. Pelo menos por um homem que fosse apenas um homem e nada mais.

E agora Gabriel entendeu que estar com uma mulher com quem tinha ligações emocionais era diferente. Ele era diferente quando estava com ela. Ele gostou de lhe dar prazer, observar as expressões lhe atravessarem o rosto. Ele gostou muito disso. Ele subitamente queria muito ter outra experiência com ela novamente. Gabriel fez a bomba funcionar. Embora quase o matasse, ele se curvou e enfiou a cabeça debaixo da água gelada para clarear a mente. Ele não voltaria lá para dentro e faria amor com ela de novo, dessa vez no macio colchão no pequeno quarto que outro homem havia compartilhado com sua mulher. Gabriel jurou que não o faria, mas o lobo debaixo de sua pele o forçava a quebrar a promessa. A ignorar toda e qualquer promessa que fizera a si mesmo.

Poderia impedir o que sentia acontecendo com ele? Gabriel olhou para a lua, quase cheia no céu noturno. Por um momento ele simplesmente a encarou, hipnotizado. A lua o chamava, o seduzia tão facilmente quanto Amélia o seduzira. O lobo debaixo de sua pele se aproximou da superfície. A fera lhe dava forças, sussurrava pensamentos obscuros em sua mente. Ele ainda sentia o cheiro de Amélia nele.

Ele fechou os olhos e o inalou, deixou-o aquecer seu sangue e incendiar seu desejo por ela novamente. Olhando para a cabana escura, ele pegou o balde e se dirigiu para a casa e sua presa.

 

Gabriel estava tendo o sonho novamente. Aquele em que via seu pai se transformar em lobo à mesa do jantar. Só que não era apenas seu pai quem estava se transformando. Gabriel olhou para baixo e viu suas mãos, deformadas, cobertas de pêlos, longas garras projetando-se das pontas dos dedos. Então Mullins estava lá, rindo dele. – Você é um de nós. – ele sibilou e então riu novamente até que seu pescoço se abriu e o sangue espirrou da ferida. Gabriel acordou sobressaltado.

A principio, ele não fez idéia de onde estava ou por que. Então viu Amélia e a noite anterior voltou a sua mente. Ele havia retornado à cabana com toda a intenção de arrebatá-la novamente, mas quando parou sobre ela no pequeno quarto de dormir, vendo-a adormecida, suas feições como as de um anjo, o homem recuperou o controle sobre a fera. Ele se despiu das calças rústicas, lavou-se o melhor que podia, e deitou-se na cama com ela. E finalmente, conseguiu adormecer.

Amélia estava sentada na lateral da cama olhando para ele. Ela usava calças justas e uma camisa branca de amarrar no pescoço, embora seus seios não permitissem que ela a fechasse e oferecesse a ele uma visão hipnotizante do vale entre os seios. Ele via a cor escura dos mamilos através da camisa. Quando conseguiu desviar os olhos deles, notou que os cabelos dela tinham sido escovados e estavam amarrados para trás com uma fita preta. Ela parecia fresca e madura para ser colhida.

- Você deve ter achado as roupas do garoto. – ele disse. – Pela minha busca na noite de ontem soube que as roupas da mulher de Bruin não serviriam em você.

- Sim. – ela respondeu. – Sempre quis usar calças masculinas.

- Você não se parece com um homem nelas. – ele respondeu, permitindo que seu olhar a percorresse toda.

Ele achou que ela tinha corado. Ela se levantou da beirada da cama. – Encontrei comida. Não muita, mas um pouco de maçã desidratada e a outra metade do pão que me trouxe ontem à noite. Está com fome?

Ela voltou para a cama com os itens que havia recolhidos e ficou parada olhando para ele.

- Com fome de você. – ele respondeu honestamente.

Ela corou novamente, mas de prazer, ele pensou. – Você não está em condições de...bem, não deveria tê-lo seduzido noite passada. – ela admitiu.

- Arrependimentos, já? – Gabriel tentou se levantar, mas estremeceu. Rapidamente se ajeitou sobre os travesseiros, o cobertor áspero colocado sobre sua parte inferior.

- Não tenho arrependimentos. – ela anunciou antes de colocar a comida sobre a cama e se inclinar para pressionar a palma fria contra a testa dele. – Você está muito quente. Acho que está com febre.

Gabriel agarrou a mão dela e a trouxe aos lábios.

– Febre por você. – ele garantiu a ela.

Amélia retirou a mão e colocou as duas contra os quadris.

– Pare de tentar me seduzir. Você não está em condições; de fato, acho que não está em condições nem de procurar por Mora. Talvez eu deva ir.

Essas palavras o sossegaram.

– Isso não é uma opção. – ele garantiu a ela. – Eu vou. Quanto antes melhor, assim poderei levá-la daqui em segurança.

Ela elevou o queixo com covinhas.

– Eu posso ajudar. – ela insistiu. – Sei que pensa que sou relativamente inútil, mas...

- Eu não penso isso. – ele a interrompeu. – Podia pensar assim no começo. Eu a julguei mal.

E ele tinha. Amélia era uma mulher extraordinária. Uma amante extraordinária. Ela era corajosa e pensava nos outros e nada do que ele havia presumido que ela era a primeira vista. Ela era boa demais para ele, disso tinha certeza.

Ela sorriu suavemente para ele, depois franziu a testa rapidamente.

– Você me considera útil de que maneira? Lembro-me do que disse na floresta. Sobre mulheres servirem a um propósito.

Maldição. Como se as coisas já não fossem complicadas o bastante entre eles. Agora Gabriel tinha de apaziguar suas sensibilidades femininas, algo que nunca se importara em fazer antes.

- A vila é perigosa, Amélia. – ele explicou. – Não sei quem é amigo ou inimigo. Vou poder me concentrar melhor em encontrar Mora se souber que você está segura aqui.

Gradualmente, ela desfranziu a testa.

– Acho que tem razão. – Seus lindos olhos azuis repentinamente encheram-se de lágrimas. – Espero que Mora esteja viva. Sinto que é minha culpa. Se não a tivéssemos forçado a vir conosco...

- Ela já estaria morta. – Gabriel garantiu a ela.

- O homem que se passava por ferreiro disse que não queriam nenhuma testemunha viva. Isso inclui todos nós.

Gabriel se fortaleceu e se curvou para frente para alcançar as calças que Amélia tinha obviamente colocado nos pés da cama para ele. A dor percorreu sua perna, mas ele conseguiu pegar as roupas. Ele nunca teve uma mulher para cuidar dele antes. Não desde jovenzinho. Ele gostava disso. Jogando o cobertor velho de lado, ele conseguiu se por de pé. Vestir-se quase o matou, sem mencionar ter de ignorar Amélia, já que ela o encarava audaciosamente.

Ela não era tímida, sua Amélia. Gabriel imediatamente corrigiu o pensamento. Ela não era dele. Ela nunca seria dele exceto da maneira que havia sido dele noite passada. Se conseguissem chegar a Wulfglen em segurança, não teriam um futuro juntos. Especialmente não agora.

- A perna está com uma aparência horrível. – ela comentou. – Mas o resto de você é demais.

Ele arqueou uma sobrancelha enquanto amarrava as calças.

– Como pode saber? Você não tem muito com que comparar.

Ela sorriu e ele ficou pensando se ela tinha consciência de como era sedutor o seu sorriso. – Posso ser muitas coisas, mas não sou idiota. Você é um homem bonito, Gabriel Wulf. Se não tivesse escolhido se esconder no campo esses anos todos, imagino que poderia ter se tornado perito em afastar pretendentes indesejadas.

A razão de ele ter se escondido, roubou dele a habilidade de se divertir com as provocações de flerte dela. Quanto antes encontrasse Mora, mais rápido poderiam prosseguir e, ele esperava, atingir a segurança de Wulfglen. Gabriel não tinha idéia de quanto tempo poderia manter o lobo dentro dele sob controle, mas não era algo que queria que Amélia soubesse sobre ele. Ela que pensasse que ele era bonito, que pensasse qualquer coisa menos ele ser um monstro.

Gabriel calçou as botas. Vestiu uma camisa que Amélia tinha encontrado para ele. Então começou a procurar um local adequado para Amélia se esconder enquanto ele estivesse fora. Enquanto ele ia de aposento em aposento olhando para o chão, Amélia o seguia.

- O homem...criatura disse algo mais para você no celeiro do ferreiro? – ela perguntou. – Sobre o que estão planejando e o que tenho a ver com tudo isso?

Ele sacudiu a cabeça.

– Não, na verdade não. Apenas que estavam fazendo algum tipo de plano já há algum tempo.

- O que você está procurando? – ela perguntou minutos depois.

- Algum tipo de recorte no piso. Aposto como Bruin tinha uma pequena área debaixo do piso para guardar valores, talvez suas bebidas e mantimentos.

Ao invés de fazer comentários, Amélia começou a procurar também. Momentos depois ela o chamou da cozinha. – Aqui, Gabriel. Encontrei.

Ele se juntou a ela na pequena área onde ficavam o fogão e uma mesa com cadeiras de madeira. Ela estava abaixada no chão debaixo da mesa, tendo puxado um tapete puído para trás para exibir exatamente o que ele descrevera para ela.

Ele e Amélia afastaram a mesa. Curvar-se para agarrar o pequeno trinco da entrada escondida no chão doeu, mas ele conseguiu abrir. O cheiro de terra e de vegetais guardados subiu.

- Bom. – ele disse a ela. – Vamos deixar aberto. Se você ouvir alguém se aproximando enquanto eu não estiver, entre e feche a porta.

Ela concordou com a cabeça. – Tem certeza de que deve ir? – ela perguntou. – Posso ver como sua perna está doendo. Talvez devesse descansar hoje e ir à noite, sob o manto da escuridão.

A sugestão era plausível, mas Gabriel sentia que já havia esperado demais para ajudar a pobre Mora. – O tempo é importante. – ele disse. – Você sabe disso.

Ela mordeu o lábio inferior. – Sim, eu sei. Por favor, tenha cuidado Gabriel.

Aproximando-se, ele acariciou o rosto dela. Parecia natural se inclinar e beijá-la. Os lábios dele se uniram aos dela apenas por um momento antes dele se afastar, preparar sua força e se levantar da posição ajoelhada em que se encontrava. Depois de instruir Amélia a fechar a porta atrás dele, Gabriel deixou a segurança relativa da cabana para procurar Mora. Ele não tinha idéia do que encontraria na vila.

Ele refez seu caminho pela floresta de volta para a vila. Gabriel movia-se mais vagarosamente do que gostaria, mas a perna o segurava. Ele agora estava parado na cobertura da vegetação estudando a vila em frente. Hempshire parecia deserta. Ele se perguntava se o celeiro do ferreiro seria o primeiro lugar onde deveria procurar Mora.

Parecia natural. Mullins havia dito que tinha dois primos que o ajudavam. Gabriel estava apostando que os primos tinham os mesmos “dons” de Mullins. Colocando-se em movimento novamente, Gabriel tentou se manter escondido nas folhagens o quanto podia. Ela ficou mais rala quando chegou mais perto da vila. Felizmente, o celeiro do ferreiro ficava na final da vila bem próximo a ele.

Uns poucos cavalos caminhavam pelo curral nos fundos. Estava escuro noite passada quando ele roubara um deles e ele e Amélia fizeram aquela arriscada fuga da vila. Agora, à luz do dia, ele viu um cavalo que reconheceu. Sua própria montaria manca com a qual chegara a Collingsworth Manor. Ele apostaria que a maioria dos cavalos no curral tinham antes pertencido ao estábulo de Robert.

Gabriel se encostou contra o celeiro quando o atingiu, descansando a perna pulsante. Sua testa estava coberta de suor e ele ficou se perguntando se a febre o dominara. No silêncio, ele ouviu o murmúrio de vozes vindo de dentro do celeiro.

Reunindo suas forças, ele deu a volta pela lateral do celeiro até os fundos. Ele seria facilmente visível na entrada por qualquer um que passasse pela vila. Ele teve de passar pelos cavalos e eles resfolegaram e bateram a patas. Os cavalos geralmente se davam bem com ele, pelo menos seus próprios cavalos. Aquele com que cavalgara até Collingsworth Manor simplesmente o olhou com curiosidade, como se se perguntasse onde ele estivera e o que estava fazendo agora. Talvez os outros cavalos estivessem reagindo a seu cheiro, Gabriel compreendeu. Talvez tenha sido por isso que aquele que roubara noite passada tenha sido tão difícil de ser manejado. Ele devia ter sentido o cheiro do lobo nele.

Duas portas traseiras estavam abertas no estábulo. Gabriel parou nelas, ouvindo. As vozes estavam mais nítidas, mas não o suficiente para que conseguisse ouvir a conversação. Ele deslizou por entre as portas. Umas poucas baias ficavam no final do celeiro. Gabriel olhou cautelosamente em cada uma ao passar. Estavam vazias.

- Como eles conseguiram escapar de vocês? – um homem perguntou. – Havia apenas dois deles, pelo amor de Deus, e nenhum com nossos talentos.

- O homem maneja um cavalo como nunca vi ninguém fazer antes. – outro homem se defendeu. – E a mulher, ela atirou em nós.

- Temos de pará-los antes de eles chegarem a um local seguro. Esperamos muito para executar nossos planos. Não podemos permitir que eles estraguem tudo.

Gabriel ouviu um leve ronco no silêncio que se seguiu. – Quem você acha que acreditaria neles se eles conseguirem chegar a um local seguro? – alguém perguntou. – Mais provavelmente os dois serão considerados culpados pelo assassinato do marido e todos pensarão que são amantes.

- Wulf não seria levado a sério, talvez. A família dele não tem influência na sociedade. A mulher, porém, você sabe que temos planos para ela.

- Não era para acontecer dessa maneira. – um homem argumentou. – Vocês conhecem as regras promulgadas tempos atrás. Ela não está fraca ou sofrendo. O que planejamos para ela não é nada mais do que assassinato. Os cabelos na nuca de Gabriel se eriçaram. Ninguém iria machucar Amélia. Ele mataria qualquer homem ou fera que tentasse.

- Ela poderia ter vivido antes. Ela poderia ter sido útil, mas agora tudo mudou. O plano mudou, como bem sabem.

- A Senhorita Estou Podendo lá na taverna pensa que eles voltarão para buscá-la. – uma voz declarou. – Eu disse a ela que ela não passava de uma criada e que tinha muita fé nos dois de alta classe. Mas ela insiste que eles voltarão por ela. Ela declara que eles não são como os demais de sua classe.

- Ela está sendo bem guardada, correto?

- Sim, cinco homens estão de vigília caso ela esteja certa. Esperaremos mais uns dois dias para ver se pegaremos um peixão com uma isca menor; então teremos de sumir com ela.

O coração de Gabriel bateu audivelmente. Mora ainda estava viva, graças a Deus. Ele não chegara tarde demais, mas ela estava sob guarda pesada, seus seqüestradores obviamente esperando que ele fizesse exatamente o que estava fazendo e vindo resgatá-la. Como conseguir resgatá-la sem ser morto ou capturado no processo? Ele precisava de um plano, mas sua perna latejava e ele sentia a cabeça nublada. Pelo menos Mora estaria segura por mais uns dois dias enquanto eles esperassem para ver se ele voltaria para resgatá-la.

- Wulf. Ele é perigoso. Matou Mullins, e como o fez, eu gostaria de saber.

- Cortou-lhe a garganta como todos vimos. – outro homem informou.

- Mas como conseguiu dominá-lo para lhe cortar a garganta? – o mesmo homem perguntou. – Mullins era um homem difícil de se pegar de surpresa.

- Não sei, mas ele irá pagar por ter matado um dos nossos. Olho por olho. Não sentiremos qualquer culpa por matar aquele lá. Ele já matou muitos dos nossos.

Quantas dessas criaturas havia por aí? Gabriel se perguntou. Criaturas com algum tipo de plano. Ele ainda tinha de entender o qual seria, mas por agora ele sabia que não tinham intenção de permitir que ele ou Amélia vivessem. Saindo, Gabriel se moveu o mais silenciosamente que sua perna permitia através dos fundos do celeiro. Ele subitamente precisava ver Amélia, tocá-la, saber que ela estava em segurança.

 

Amélia se sentia inútil. Havia um pouco de mantimentos no buraco debaixo da mesa. Havia um fogão, provavelmente lenha lá fora para acendê-lo, mas ela não tinha idéia de como acender o fogo, muito menos de como cozinhar uma refeição decente. Gabriel precisava de mais alimentos do que vinha recebendo. Ele precisava se fortalecer para lutar contra a infecção que sem dúvida estava correndo seu corpo. Ela estava certa de que o que tinha acontecido noite passada entre eles não ajudara em sua condição.

Ela supunha que devia se sentir culpada, vergonha talvez por ter dado sua virgindade a um homem que não era seu marido, mas ela não conseguia sentir essas emoções. Havia tantas outras rolando dentro dela.

Cada segundo que Gabriel estava distante era uma tortura. Ela se preocupava com ele. Ela se preocupava com Mora e seu destino. E se Gabriel não voltasse? E se ela nunca mais o visse vivo novamente? Tais pensamentos faziam seu peito doer, tornavam difícil respirar. Tais pensamentos partiam seu coração. Ele era diferente de qualquer homem que conhecia. Ele era honrado e forte e misericordioso, mesmo se afirmasse que não era. Ele podia não ser o príncipe encantado com quem sonhara, mas era melhor. Ele era real.

Uma suave batida na porta a fez pular. Amélia se apressou até a porta trancada e ficou ouvindo. Pouco depois ouviu Gabriel chamando-a suavemente. Aliviada, ela destrancou e abriu a porta. Ele entrou mancando, viu uma cadeira e imediatamente se dirigiu a ela e se sentou. Os olhos dele não pareciam muito bons para ela.

- Você precisa de um médico, Gabriel. – ela se preocupou.

- Isso vai ter que esperar. – ele disse, então sorriu para ela. – Mora precisa ser resgatada.

O coração de Amélia pulou de alegria. – Ela está viva?

Ele acenou com a cabeça. – Está sendo mantida sob guarda na taverna. Eles acham que vamos voltar para resgatá-la. Estão usando-a como isca.

Amélia puxou uma cadeira e se sentou ao lado dele. Seus joelhos estavam fracos de alivio. – Como vamos fazer para resgatá-la?

Ele levantou uma sobrancelha escura. – Como eu vou, você quer dizer? Você não vai chegar nem perto da vila.

Esse arranjo teria sido considerado muito bom para ela antes. Amélia sabia que Gabriel não estava em condições de tentar o resgate de Mora, mas os dois juntos poderiam libertar a amiga.

- Eu sou capaz de ajudá-lo. – ela disse com severidade.

Ele suspirou. – Eu sei que você é corajosa, Amélia. Sei muito mais do que sabia no começo. Você é mais forte do que pensei que fosse. Se nada disso tivesse acontecido, se continuasse casada com Robert Collingsworth e seguisse sua vida, não acho que isso fosse algo que ele mesmo viesse a saber sobre você. E sinto muito por ele por causa disso. Por não ter tido a chance de descobrir que mulher extraordinária você é.

O coração dela derreteu. Gabriel não tinha dito que a amava, mas chegara bem perto. Talvez ele nem mesmo se desse conta disso. Ela rezava para que tivessem tempo para que ele o fizesse. Mas o tempo da pobre Mora estava se acabando.

- Quando você vai? – Amélia perguntou.

Ele passou a manga da camisa pela testa. – Essa noite, sob o manto da escuridão, como você sugeriu pela manhã. Você precisa estar pronta para correr quando eu voltar. Empacote o que puder de comida que encontrar. Talvez algumas roupas como essa que está usando para Mora. Ela poderá se mover mais rapidamente em roupas de homem.

Amélia colocou um prato de maçã desidratada, pão e queijo no colo dele. – Você precisa comer, Gabriel. Depois precisa descansar. Ainda acho que deveria ir junto para ajudá-lo.

Ela observou enquanto ele brincava com a comida. O fato de parecer estar sem apetite não era um bom sinal. – Você precisa confiar em mim, Amélia. – ele disse. – Você pode fazer isso?

Se não nele, em quem no mundo ela poderia confiar? Ele a mantivera viva e em segurança esse tempo todo; ela tinha fé de que ele continuaria a fazê-lo. Se pelo menos se estivesse fisicamente apto. – Eu confio em você. – ela disse, e por que ele não estava comendo muito de qualquer forma, ela tirou o prato do colo dele e o colocou na mesa. – Já para a cama.

Um preguiçoso meio sorriso se formou na boca sensual. – Isso é um convite?

Apesar do fato dele estar com os olhos vidrados, obviamente exausto e com dor, Amélia o achou quase irresistível. Ela abafou seus sentimentos femininos por ele e tentou fazer uma expressão carrancuda. – Nada disso. – ela disse. – Pelo menos até você melhorar.

- Posso ficar melhor se esse for seu desejo, Amélia.

O coração dela disparou no peito. Como ele poderia ser melhor do que tinha sido noite passada? O pensamento a intrigava, a teria intrigado mais em circunstâncias diferentes.

- E eu que pensei que você não era um libertino. – Ela retribuiu seu meio sorriso e o ajudou a se levantar da cadeira, conduzindo-o até o pequeno quarto de dormir e para o colchão de penas.

Depois que ele se sentou na beirada da cama, ela o ajudou a tirar as botas. Ela havia se lavado pela manhã com a água do balde que Gabriel havia trazido noite passada. O sangue em suas coxas tinha sido uma visão chocante. Prova definitiva de que ela não era mais uma donzela. Amélia foi até o balde, colocou um pouco de água numa tigela de louça, e pegando um pano que havia encontrado numa pilha de tecidos ela que ela assumiu que eram destinado a tais coisas.

Depois de torcer o pano, ela voltou para a cama. Gabriel estava encostado nos travesseiros. – Tire sua camisa. – ela disse. – A água fresca ajudará a abaixar sua febre.

Puxando a camisa pela cabeça, ele perguntou: - E quando você aprendeu tanto sobre como cuidar de doentes?

- Com Mora. – ela o informou. – Ela sabe muito sobre essas coisas. Enquanto você nos guiava pela floresta, prestando atenção a tudo o que nos rodeava, nós conversávamos. Eu estava preocupada com sua perna e ela me contou um pouco sobre ervas curativas e maneiras de abaixar a febre, e eu lhe contei um pouco sobre minha vida em Londres.

- Mora tem muita experiência para alguém tão jovem.

Amélia passou o pano molhado pela testa dele. – Eu deveria ter lhe contado uma coisa sobre Mora. – ela disse. – Prometi a ela que deixaria que ela lhe contasse, mas sinto que você deve saber.

Ele tinha fechado os olhos; agora estavam abertos. – O que tem Mora?

Descendo o pano do pescoço ao peito dele, ela respondeu. – Ela não é tão novinha. Talvez seja um ano mais nova do que eu. Ela escolheu esconder isso de nós amarrando os seios e usando a touca para fazê-la parecer sem graça. Ela pensou que tinha de se disfarçar para ficar segura enquanto trabalhava para a aristocracia. Seu irmão lhe assegurara que ela poderia ser desrespeitada se não o fizesse.

Os olhos verdes de Gabriel se estreitaram: - Quando ela lhe contou isso?

Amélia deu de ombros. – Ela não me contou. Eu a descobri uma noite se lavando no riacho sem a touca e as faixas. Ela me prometeu que contaria a você, mas ainda não tinha certeza se podia confiar em você. Ela pensou que você me desejava e poderia desviar suas atenções para ela, sabendo que não poderia seduzir uma dama com eu.

Os mamilos cor de cobre dele endureceram quando Amélia passou o pano molhado por eles. Ela ficou encarando, fascinada pelos mamilos dele endurecerem como os dela.

- Ela estava certa, eu desejava você. – ele admitiu. Quando ela olhou para ele, ele acrescentou. – Eu desejo você.

Amélia esperava que não fosse um simples caso de desejo para ele, embora ela uma vez tenha acreditado que desejo era a mesma coisa que amor. Ela sabia que isso não era verdade agora. Ela podia ter se sentido atraída por Gabriel Wulf no momento que o viu, podia ter flertado com pensamentos travessos sobre ele, mas foi só depois de conhecê-lo que ela realmente caiu sobre seu encanto.

- Então talvez ela fosse esperta em manter seu segredo. – Amélia respondeu, descendo o pano pelos músculos bem definidos do estômago dele.

Ele colocou a mão sobre a dela. – Ela não tinha por que me temer. – ele disse. – Fui muito bem educado para não tirar proveito de criadas. Recentemente descobri que quando quero uma mulher, somente aquela mulher me interessa.

Amélia engoliu audivelmente. Gabriel obviamente estava tentando seduzi-la. E estava funcionando. O que era ridículo devido ao estado dele. Ainda assim, o cheiro intoxicante dele pareceu subitamente mais forte. Ela não conseguia pensar claramente e sacudiu a cabeça no esforço de recuperar o controle. – Preciso olhar sua perna. Talvez pressionar um pano frio na ferida ajude a abaixar a febre.

- Vá em frente. – ele sugeriu, aquele meio sorriso pairando sobre seus lábios e seus olhos focalizados com atenção sobre ela.

Se ele pretendia deixá-la perturbada, conseguiu. Amélia tentou manter a mente na tarefa de cuidar dele, dizendo a si mesma que poderia cuidar dele sem ser seduzida no processo. Ela colocou o pano de lado e foi para desamarrar as calças dele. Se ela não tivesse entendido como funcionava as calças masculinas nessa manhã quando se vestiu, ela não teria sabido como proceder. Depois de ter desamarrado as calças ela segurou de ambos os lados e as desceu pelos quadris estreitos dele.

A masculinidade imediatamente saltou para fora, cumprida, dura, e intimidante o suficiente para que ela fugisse correndo se ainda fosse uma donzela. Ao invés disso, a visão dele completamente excitado fez com que o calor a percorresse inteira, todo ele se centralizando entre suas pernas. Ela sentia uma quase incontrolável necessidade de tocá-lo lá, fechar os dedos ao redor de sua largura e ver qual era a sensação.

- Vá em frente. – ele repetiu suavemente, como se tivesse lido a mente dela.

Ela se assustou, afastando os olhos da impressionante visão dele. Amélia supôs que ele não tinha lido a mente dela e estava apenas trazendo-a de volta a tarefa que estava fazendo. Ela pegou as calças dele novamente e as desceu pelas pernas, de maneira cuidadosa para não ser dura com a perna machucada. Pegando o pano, ela foi até o balde e a tigela para lavá-lo.

O homem não tinha vergonha. Ele nem mesmo puxou o cobertor velho para se cobrir enquanto ela estava de costas. Amélia fingiria não ter notado que ele estava esparramado nu na frente dela. Pele dourada, músculos e é claro a horrível ferida em sua coxa. O local onde a ferida tinha sido lancetada e cauterizada estava vermelho e inchado. Ela se sentou na beirada da cama e pressionou o pano fresco gentilmente contra sua coxa.

- Espero que isso ajude com sua febre. – ela comentou.

- Você me tem na cama, nu e a sua mercê. Há apenas uma coisa que poderá parar a febre que está me devastando por dentro agora.

Ela olhou para cima, imediatamente enlaçada pelos estranhos olhos dele. Seus lábios ficaram secos e ela inconscientemente os umedeceu. Certamente ele não estava bem o suficiente para fazer o que os olhos dele sugeriam que ele queria fazer. E ela não deveria encorajá-lo. Amélia tentou manter sua mente focalizada em banhá-lo. Ela correu o pano pela pele macia dele, seus dedos às vezes entrando em contado com a pele aquecida. Ela queria correr as mãos sobre ele, não o pano fresco. Ela queria sentir toda aquela carne musculosa pressionada contra a nudez dela.

A noite passada tinha sido maravilhosa, mas ela suspeitava que a maioria dos homens e mulheres não se amavam no chão enquanto o homem estava sentado encostado contra uma porta, a mulher montada em cima dele. Ela não podia evitar as partes intimas dele. Nem podia ignorar a constante lembrança de que ele estava excitado e obviamente desejoso de se engajar em atividades que não tinha forças para realizar.

Ele puxou o ar suavemente quando ela o tocou lá com o pano úmido. Ela estava cuidando dele, mas o tempo todo ela não conseguia tirar da mente o desejo de substituir o pano pelos seus dedos. Gabriel puxou o pano da mão dela pouco depois. Ela o olhou nos olhos, sem se surpreender com o calor que viu neles, mas surpresa por isso não ter provavelmente nada a ver com a febre. Ele pegou a mão dela e a guiou até seu membro endurecido. Os dedos dela se fecharam ao redor dele como se ela não os controlasse. Era como aço envolvido em veludo.

Quando ela segurou com mais força, ele fechou os olhos e gemeu. Com medo de machucá-la, ela retirou a mão.

- Não pare. – ele disse suavemente. – Adoro sentir suas mãos em mim.

- Não devemos. – ela sussurrou. – Você não está em condições de...

Ele subitamente se aproximou e a agarrou, puxando-o para cima dele.

– Acho que sou melhor juiz do que posso ou não fazer do que você. Quero fazer amor com você novamente. Quero senti-la debaixo de mim, sua pele contra a minha, quero lhe dar prazer de maneiras que nunca sonhou em conhecer.

Ela devia resistir a ele, não porque queria, mas porque não era certo. Não quando ele estava ferido. Não quando ele estava lutando contra a febre. Ela não era tão egoísta a ponto de comprometer a saúde dele por umas poucas horas de prazer. Mas o cheiro dele estava ao redor dela, enfraquecendo sua vontade. Ele era irresistível. Quando ele a pegou por detrás da cabeça, trazendo sua boca para a dele, ela não o impediu.

Gabriel sabia que era a luxúria quem o guiava. Não o tipo normal de luxúria que já tinha sentido antes, mas uma luxúria animal de acasalar-se com Amélia. Isso tinha entorpecido todos os sentidos, exceto o pulsar em seu pênis – a necessidade de estar dentro dela. E ainda assim, o homem queria mais do que uma rápida cópula, sua própria satisfação em encontrar o alivio da tortura de seu desejo por ela. O homem queria fazer amor lentamente com ela. O homem queria que ela sentisse o mesmo prazer que ele sentia. O homem queria ver a beleza do rosto dela quando encontrasse o prazer.

Ele a beijou, a seduziu com sua língua, pois sabia que ela estava pensando mais racionalmente do que ele. Gabriel queria que ela não se importasse com mais nada além do prazer que podia proporcionar-lhe. Por um tempo, ele queria que tudo o mais caísse no esquecimento. Ele queria que fossem apenas os dois, dando e recebendo.

A mão dele deslizou para baixo e puxou a camisa simples que ela usava, os lábios afastando-se apenas tempo suficiente para tirá-la pela cabeça. Os seios macios se pressionaram contra seu peito. A pele dela estava fresca e lisa como vidro em contrate com textura quente e dura da dele. Ela era a perfeição. A mão dele deslizou pelas costas dela, deu a volta e ficou entre eles para desamarrar a calça que ela estava usando. Ela estava usando os sapatos gastos quando ele tinha chegado à cabana. Ele a ouviu tirando-os e cada um caiu com uma suave batida no chão.

Juntos, ela e Gabriel se livraram da pouca roupa que ela usava. Ele a deitou de costas.

Enquanto ela o tocava, ele fazia o mesmo, Tocando em seus seios, curvando-se para provocar os mamilos, depois deslizando a mão pelo estômago liso até o macio pêlo entre as pernas dela. Ela as separou para ele, já não mais uma tímida donzela em sua primeira vez com um homem.

Não que ela tivesse sido tímida antes, ele se lembrou. Ele gostava disso nela. Que ela tinha vindo a ele com poucas inibições. A maioria dos homens preferiam uma esposa contida na cama e uma amante à mão. Com Amélia, um homem não precisaria de uma amante. Ela levou a mão ao sexo dele novamente e ele quase explodiu. Ele não estava acostumado a controlar suas necessidades na cama. As mulheres com quem havia se deitado no passado eram apenas um meio de aliviar sua luxúria. Ele nunca quis realmente fazer amor com elas.

Tinha sido superficial da parte dele, ele compreendeu. Como tinha medo de sentir mais do que deveria por qualquer mulher, isso também tinha sido uma defesa. Era tarde demais agora, então ele abaixou suas defesas e se permitiu o prazer de estar com uma mulher, essa mulher. Gabriel gentilmente retirou a mão dela de cima dele e deslizou através da pele sedosa, traçando uma trilha com sua língua até o umbigo dela. Desceu ainda mais até estar alojado entre as pernas dela, até poder lhe dar prazer com sua língua como tinha feito com seus dedos.

Ela ofegou suavemente. Seu corpo ficou tenso. Ele supôs que conseguira chocar até mesmo uma mulher que era ela mesma chocante em muitos sentidos. Então ele a amou com sua boca e sentiu-a se render a ele. As mãos dela lhe agarraram os cabelos, torcendo-os, pressionando-o contra ela. Ele amava o sabor e o cheiro dela. Incendiava seu próprio sangue fervente.

Seu membro pulsava. Seu instinto animal de reclamá-la se levantou. Ele a levou até a fronteira; então subindo pelo corpo dela, capturou-lhe os lábios e entrou em sua passagem quente e apertada. Era o céu e o inferno. Estar dentro dela. Ele queria explodir, derramar sua semente, mas se segurou, movendo-se dentro dela, posicionando-se de maneira a estimulá-la como havia feito com sua língua. A respiração dela ficou irregular e ela acompanhava seus movimentos. As unhas dela se enterraram nas costas dele e ele ainda a pressionava. Mais rápido, mais forte, até que ambos estavam suados e ofegando para respirar.

Ele sentiu os primeiros tremores do clímax dela, sentiu-a se apertar ao redor dele, e perdeu o controle. Ele a penetrou com mais força e ela explodiu, suas unhas enterradas nas costas dele, suas pernas o envolvendo. Ela gemeu o nome dele, e equilibrando-se na crista do próprio clímax, ele sabia que devia se retirar dela. Mas não podia. A fera dentro dele queria plantar sua semente, pois essa era a razão do animal copular. A continuidade da raça.

O clímax o dominou antes de ele conseguir raciocinar como um homem. Ele penetrou-a profundamente, derramando sua semente. Ele nunca tinha feito isso antes dentro de uma mulher. Ele sempre fora responsável com as mulheres com quem se deitara. Não apenas pelo próprio bem, mas pelo bem de qualquer criança que pudesse vir a ser gerada. Gabriel se apoiava sobre os cotovelos para não esmagar Amélia, e ela olhava para ele, suas feições tão bonitas que era quase doloroso para ele ficar olhando para ela.

Um sorriso saciado descansava nos lábios dela inchados pelos beijos, e mesmo embora ele estive tremendo com a força do clímax, ele se curvou e a beijou gentilmente. Gabriel rolou para o lado e a puxou junto com ele para que ainda ficassem unidos.

Ela se acomodou perto dele, e juntos tentaram voltar para a terra, vindos do paraíso.

Gradualmente a respiração deles se acalmou. Ele saiu de dentro dela, mas não a soltou. Ele gostava de senti-la em seus braços. Ele gostava muito disso. E ele estava tentado se enganar se quisesse usar um termo não ameaçador como “gostar” relacionado aos sentimentos que nutria por ela. Ele sabia que era muito mais profundo do que isso. O que estava acontecendo com ele era a prova, mesmo que tentasse negar esses sentimentos. Negá-los obviamente não tinha tanta importância com relação à maldição.

Ele brincava com os cabelos dela e ela estava passando para o sono. Gabriel devia descansar também. Agora que havia feito amor com ela, a dor na perna retornara. Era forte o bastante para fazer a bile subir a sua garganta. Pouco depois a primeira dor de estômago o percorreu. Foi tão afiada que lhe tirou o fôlego e fez seu corpo sacudir.

- O que está acontecendo? – Amélia murmurou sonolenta.

- Nada. – ele conseguiu dizer. – Preciso ir lá fora um pouquinho.

Ela não protestou quando ele deslizou para fora de seus braços. Gabriel conseguiu vestir suas calcas apesar da dor na perna e da náusea que lhe subia pelo estômago. Ele agarrou as botas e mancou pela cabana. Ele pensou que o ar fresco lá de fora poderia clarear sua mente, mas ele mal havia saído antes de outra dor aguda no estômago o fazer se dobrar. Ele derrubou as botas perto da porta e foi aos tropeções para longe da cabana, pensando que estava quase vomitando.

Com as mãos nos joelhos ele ficou esperando pela bile lhe subir à garganta. Então notou suas mãos. Pêlos as cobriam e garras se projetavam dos dedos. O suor lhe cobria a testa e ele sacudiu a cabeça, piscando, esperando que quando olhasse novamente não veria o que pensava ter visto. Mas ele viu. Outra dor o jogou ao chão. Gabriel puxou as pernas contra o peito. Seus próprios ossos doíam. Ele olhou para o céu, onde a lua cheia banhava o campo com sua luz brilhante. Estava acontecendo. Por mais que tentasse negar, ele sabia que era tarde demais para ele.

Deus o ajudasse. Deus ajudasse Amélia. Ela havia acabado de se deitar com um monstro. Agora não era a hora, maldição! Nunca seria uma boa hora para isso. Enquanto seu corpo começava a convulsionar, a mudar sua forma, Gabriel uivou sua dor e frustração. Bom Deus, o que ele faria a ela? Ele tentou freneticamente manter seus pensamentos humanos. Ele tinha fechado a porta ao sair? Sim, ele tinha certeza de que sim. Conseguiria entrar de qualquer maneira? O que estaria para acontecer com ele? Ou pior, com ela?

 

Amélia arriscou dar uma observada através da janela da cabana. Era mais uma das muitas que tinha dado desde que a madrugada começou a clarear o céu. Ela acordara no meio da noite e viu que Gabriel tinha saído. Embora soubesse que ele pretendia libertar Mora na calada da noite, Amélia não conseguia entender porque ele não a acordara antes de sair. Ela tinha de procurar roupas para Mora se trocar, juntar os mantimentos que pudesse encontrar e empacotá-los, e havia feito ambos, mas e se Gabriel e Mora voltassem desesperados para partirem e ela ainda estivesse dormindo?

Não fazia sentido. Certamente ela estava exausta, não apenas por ter feito amor com um homem com quem não deveria ter feito tal coisa, mas também por estar fugindo desde que saíram de Collingsworth Manor. Ainda assim, ela não conseguia acreditar que Gabriel não a acordara para fazer o que a tinha instruído e estar pronta para quando ele e Mora chegassem logo mais. Amélia imaginava se não havia conversado com ele mesmo dormindo, fazendo-o acreditar que estava acordada quando não estava. Mesmo assim, o fato de nem Gabriel nem Mora chegarem fazia seu estômago doer.

Ele teria sido capturado? Morto? Não, ela não podia acreditar nisso, mas assim mesmo essa possibilidade a torturava. Ela já havia deixado uma trilha no chão de tanto andar de um lado ao outro. Uma vez, ela ouvira um lobo uivando à distância e teve certeza de que eram as criaturas vindo buscá-la. Ela se escondera por mais de uma hora no espaço debaixo do chão, mas nenhum lobo veio. Nenhum homem arrombou a porta. Onde estava Gabriel? E quanto tempo devia esperar antes de sair e procurar descobrir por que ele não voltava?

Amélia não podia esperar muito mais. Melhor fazer algo construtivo do que continuar a se desesperar com pensamentos do que podia ou não ter acontecido com Gabriel. Se ele tivesse sido aprisionado, ela devia ajudá-lo a escapar. Como, ela não sabia. Não havia armas na casa. Ela e Gabriel haviam procurado e procurado. O ferreiro e sua família tinham até mesmo levado as facas da cozinha, embora tivessem deixado quase tudo o mais para trás.

Talvez ela conseguisse formular um plano no caminho para a vila, ela decidiu, e se apressou para a porta, destrancando-a e saindo para fora. A primeira coisa que viu foram as botas de Gabriel. Elas estavam lá fora e num lugar que não possibilitava a visão pela janela. Os pêlos em seu braço se eriçaram.

Ela não viu sinais de luta; ou então poderia acreditar que ele tivesse sido atacado e levado tão logo saísse da casa. E se esse fosse o caso as criaturas teriam entrado e provavelmente a matado enquanto dormia. Centenas de cenários percorriam sua mente enquanto ela se movia cuidadosamente para longe da segurança da cabana.

Ela não tinha se afastado muito quando o viu deitado no chão, nu, tremendo incontrolavelmente.

Um grito de medo saiu de seus lábios enquanto corria até onde ele estava. Amélia se abaixou ao lado dele e o tocou na testa. Ele estava queimando. Lágrimas lhe vieram aos olhos e correram através de seu rosto. – Gabriel. – ela grasnou.

Amélia não sabia o que fazer. Levá-lo para dentro, ela sabia, mas como? Ele tinha o dobro do tamanho dela. Ela deitou a cabeça dele em seu colo.

- Gabriel, pode me ouvir?

Ele gemeu suavemente, mas não respondeu.

Ela tentou novamente. – Gabriel, abra os olhos. Olhe para mim.

Seus longos cílios estremeceram. Ele abriu os olhos, mas estavam injetados e vidrados. – Amélia?

Um soluço de alívio partiu de seus lábios ao ouvirem-no responder. – Temos de levar você para dentro.

- O que aconteceu?

Amélia sacudiu a cabeça. – Não sei. Você tinha sumido pela manhã. Não consegue se lembrar de sair da cabana noite passada?

Sua testa úmida se enrugou. – Não...sim. – Quando ele olhou para ela novamente, ela viu algo mais nos olhos dele além de confusão. Ela viu medo.

- Você deve partir. – ele sussurrou. – Você não está segura comigo. Você não está segura aqui.

Ela ignorou as preocupações dele. Como poderia abandoná-lo? Ele estava doente, podia até mesmo estar morrendo. – Eu vou. – ela mentiu. – Mas apenas depois de levá-lo para dentro da cabana e para a cama.

- Você deve ir agora. – ele disse, e sua voz estava mais forte. – Agora, Amélia!

- Não. – ela argumentou. – Quando eu souber que você está seguro dentro da cabana. Então irei. Eu prometo, Gabriel.

Seu corpo ainda tremia, mas pelo menos ele se moveu, como se quisesse se por de pé e voltar para a cabana. Amélia o agarrou por debaixo dos braços, e juntos conseguiram fazê-lo ficar em pé. Então ela colocou o braço dele ao redor de seu ombro.

- Apóie-se em mim. – ela instruiu. – Eu o ajudo a andar.

Ele o fez, mas não completamente, ela percebeu. Amélia não suportaria o peso dele, mas a promessa dela de partir obviamente lhe deu forças que ele julgava não possuir. Era vagaroso, mas felizmente ele não havia se afastado muito da cabana antes de desmaiar noite passada.

Eles chegaram à cabana, passaram pela porta e entraram no quarto. Amélia o ajudou a deitar-se na cama e puxou o cobertor áspero sobre ele.

- Agora vá. – ele disse roucamente.

Ela o tinha aonde o queria; não havia mais necessidade de fingir que o abandonaria para obrigá-lo a fazer o que deveria. – Não vou abandoná-lo. – ela disse. – Não dessa maneira. Nem nunca. – ela acrescentou suavemente. – Eu amo você.

Por um momento ela pensou que os olhos dele se encheram de lágrimas, mas ela não podia ter certeza porque ele piscou e desviou os olhos dela. – Não deve. – ele disse. – Não pode. Não sou quem você pensa que sou. Por favor, vá Amélia. Quero que fique em segurança. Quero que tenha o futuro que merece. Vá para o leste. Fique na floresta. Você deve chegar a Wulfglen em no máximo dois dias. Você estará segura lá.

Ela não sabia se tinha um futuro, mas sabia que se tivesse um ela queria Gabriel Wulf como parte dele. – Feche os olhos; descanse. – ela o persuadiu. – Você se sentirá melhor depois de dormir um pouco. – Amélia se levantou e pegou um pouco de água e um pano limpo. Ela tentou lavar o rosto dele, mas ele agarrou seu pulso, surpreendentemente forte para um homem à beira da morte.

- Não vou me sentir melhor! - ele rosnou. – Não até você partir! Você não pode ficar aqui comigo. É suicídio!

Ele estava claramente fora de si. Ela não podia ajudá-lo. Ela precisava de alguém que pudesse. – Tudo bem. – ela disse. – Eu vou. Vou agora.

Gabriel soltou seu pulso, e foi como se toda a força tivesse sido drenada dele. Ela tinha de ir até a vila. Ela tinha de resgatar Mora, e juntas tinham de encontrar alguém para ajudar Gabriel. Ela começou a se levantar, então se inclinou sobre ele. – Você me ama, Gabriel?

Ele abriu os olhos, mas ela viu que foi preciso esforço. Ela pensou que ele não fosse responder, talvez não tivesse mais forças; então ele disse. – Parece que devo.

Então fechou os olhos e ela soube que ele tinha ficado inconsciente. Ela não pensava em nada além de salvá-lo, além de salvar Mora. Amélia se levantou e rapidamente remexeu nas roupas deixadas no guarda-roupa. Ela encontrou um casaco largo e um boné masculino. As botas do garoto eram um pouco grandes, mas ela encontrou um par de grossas meias de lã que ajudaria. Com uma olhadela por sobre os ombros, ela correu pela cabana e saiu pela porta.

Ela sabia a direção a pegar para voltar até Hempshire. Amélia ficou por entre as árvores até não ser mais possível. Ela se abaixou e esfregou as mãos na terra, depois as passou no rosto. Puxando o boné do bolso, ela enrolou os cabelos e colocou o boné na cabeça. Era bem largo, o que era bom, já que cobriria seu rosto.

Seu coração batia tão alto que soava em seus ouvidos, mas ela sabia que não podia voltar. Ela passara a maior parte da vida pensando somente em si mesma. Agora Gabriel precisava dela. Mora precisava dela, e ela não os desapontaria. Apenas uma mulher tão forte quanto Gabriel Wulf o poderia fazer feliz. E ela pretendia ser essa mulher.

A vila estava quase deserta, mas ela notou que algumas pessoas estavam por aí, e ela também presumiu que esses poucos que o faziam não eram aldeões comuns. Eles estavam observando, estavam esperando, mas eles esperavam por um homem loiro alto e uma mulher. Amélia manteve a cabeça abaixada e caminhou pela estrada até Hempshire. Ela esperava parecer com um órfão maltrapilho, o que não era uma visão incomum na Inglaterra. Seu coração batia mais rápido quando se dirigiu à taverna. Havia dois homens em frente. Amélia manteve a cabeça abaixada e passou por eles.

- Hei, você, menino. – um dos homens chamou. – O que te traz aqui a Hempshire?

Seu coração disparado subiu até a garganta. Amélia manteve a cabeça abaixada e tentou se lembrar o que podia do sotaque cockney que passou a vida ouvindo ser falado pelos criados de baixo escalão que trabalhavam para seus pais.

- Nada não, sir. – ela disse, fazendo a voz soar rouca. – Só de passagem. Tem migalhas sobrando aí na taverna?

Ela olhou por debaixo dos cílios para os homens. Eles eram tipos brutos. Um deles deu de ombros. – Dê a volto por trás até a cozinha. Tem sobras de nosso café da manhã.

Acenando, ela se apressou a fazer o que lhe foi instruído. Que sorte conseguir ter acesso a taverna. Ela tinha certeza de que havia guardas lá dentro, e como faria para passar por eles e chegar até Mora, ela não fazia a menor idéia. Um passo de cada vez, embora tempo fosse importante. Ela não ousaria deixar Gabriel sozinho por muito tempo na condição em que estava.

A porta dos fundos estava aberta, ela imaginou que era para deixar sair o calor do fogão. Amélia entrou. Baldes de água ferviam no fogão. Numa mesa rústica estavam as sobras do café da manhã. Ela pegou um bolinho duro e enfiou na boca. Um homem forte entrou e ela quase se afogou.

- O que está fazendo aqui, garoto? – ele exigiu

Engolindo o bolinho com um alto som, Amélia abaixou a cabeça. – Os homens lá na frente disseram que eu podia comer o resto do café. – ela disse. – Tenho dinheiro não e estou com fome. Estou indo pra Londres procurar serviço.

Embora não ousasse olhar para o homem, ela o sentiu estudando-a. – Quer ganhar uma moeda ou duas antes de ir?

Seria estranho se não quisesse, então Amélia acenou com a cabeça, o boné dançando em sua cabeça.

- Leve esses baldes até o primeiro quarto no topo das escadas. Encha a banheira.

Sua sorte estava durando. Ela presumia que eles mantivessem Mora prisioneira no primeiro andar, e agora tinha a desculpa para ir lá em cima e procurá-la. Amélia imaginava se conseguiria mesmo erguer os pesados baldes. Ela tinha de conseguir era só o que tinha de fazer. Outra oportunidade como essa não apareceria novamente.

- Vamos com isso. – o homem repreendeu. – Você pode comer depois de terminar.

Já planejando como tiraria Mora da taverna, e preocupada de que houvessem guardas postados no andar de cima, Amélia caminhou até o fogão. Ela pegou uma toalha grossa e a passou pela alça do balde, tendo aprendido sua lição em Collingsworth Manor. O homem roncou e foi para a outra sala. O balde era grande e pesado e Amélia precisou das duas mãos para carregá-lo. Enquanto ela se movia pesadamente pelo salão da taverna, ela viu o homem que dera a ordem conversando com outros dois, cada um com uma caneca de cerveja na mão, sentados esparramados numa mesa cheia de marcas.

- Encontrou alguém para fazer o ser serviço, não é. – um dos homens disse ao fortão, e todos riram.

Amélia manteve a cabeça abaixada e continuou a se arrastar. Quando chegou às escadas, imaginou como conseguiria subir com o pesado balde. Ela tinha de conseguir. Por Gabriel. Por Mora. Colocando a mente na tarefa, Amélia juntou suas forças e começou a subir. Os homens no salão comunal conversavam baixinho e não prestavam a menor atenção à ela. Seriam mesmo homens? Ela tinha de presumir que não. Ela sentia até os ossos gelados ao saber que estava em companhia de tais criaturas. Assustava-a mais do que pensar em como libertaria Mora sem ser feita prisioneira.

Ela não seria capaz de ajudar a Gabriel. Ela certamente não seria capaz de dizer a seus carrascos sobre a condição dele e onde se encontrava, não a menos que quisesse selar o destino dele. As escadas não eram tão altas, mas pareciam ser.

Finalmente ela chegou até o topo. Haviam quatro quartos; ela sabia disso devido a sua curta permanência no local. Todas as portas estavam fechadas exceto a mais próxima a ela, aquela onde deveria encher a banheira. Amélia se aproximou cuidadosamente dela, lutando com o balde fumegante.

A primeira vista, não viu ninguém na sala. Ela entrou. Lá, próxima à janela que dava para a rua lá embaixo, estava Mora. Amélia ficou tão feliz em vê-la que quase gritou. Ela mordeu o lábio para evitar fazê-lo e colocou o balde no chão.

 

- Encha a banheira, garoto. – Mora disse. – Presumo que seja para isso que esteja aqui.

O tom dela era um tanto confuso, como se ela tivesse permissão para dar ordens, mas Amélia não conseguia pensar além da alegria de encontrar Mora viva e obviamente bem. A jovem usava seu glorioso cabelo solto ao redor dela e um penhoar de sede que, depois de uma inspeção mais cuidadosa, Amélia percebeu ter sido parte de seu enxoval. Onde Mora o conseguira? Provavelmente as criaturas tinham saqueado Collingsworth Manor depois de forçá-los a fugir.

- Mora, - Amélia chamou suavemente. – Vim para resgatá-la.

A cabeça de Mora se virou rapidamente em sua direção, fazendo com que seus longos cabelos flutuassem a seu redor. Ela parecia um anjo ali perto da janela, o sol entrando para iluminar suas lindas feições. – Amélia. – ela suspirou.

Colocando um dedo sobre os lábios, Amélia a advertiu a ficar quieta. Amélia olhou significativamente por sobre os ombros. – Tem três deles no salão comunal e dois parados lá na frente. Não sei como conseguiremos passar por eles.

- Onde está Gabriel? – Mora perguntou, mantendo a voz num sussurro.

Os olhos de Amélia se encheram de lágrimas, mas ela rapidamente as afastou. Ela devia manter sua capacidade de pensar. – Ele está doente. Muito doente. Ele precisa de um médico, Mora. Vim ajudá-la a fugir, e pensei que juntas poderíamos encontrar alguém para ajudá-lo. Temo que ele morra se não o fizermos. A perna ainda está inflamada e agora ele tem febre.

- Onde você o deixou? – Mora perguntou, aproximando-se dela. – Espero que não em algum lugar onde possa ser facilmente descoberto.

- Claro que não! – Amélia garantiu a ela. – Estivemos nos escondendo numa cabana um pouco afastada da vila. O ferreiro e sua família moravam lá.

- Vocês ficaram porque ele não podia prosseguir? – Mora perguntou.

O fato de Mora querer questioná-la sobre Gabriel quando deveriam estar discutindo sobre como fugir testou a paciência de Amélia. Seus nervos já estavam no limite. Ela sacudiu a cabeça.

- Não. Poderíamos ter seguido em frente, mas não quis deixá-la para trás. Convenci Gabriel a ficar tempo suficiente para ver se ele conseguia encontrá-la.

Mora olhou para o chão por um momento. – Eu disse a eles que vocês voltariam por minha causa. – ela disse. – Eles disseram que não. Quase desejei estar errada.

A admissão de Mora confundiu Amélia. – Não temos tempo para isso. – ela sussurrou. – Precisamos planejar como escapar. Temos de encontrar ajuda para Gabriel.

Subitamente Mora passou por ela em direção à porta. Ela ficou parada bloqueando o caminho de Amélia. – Posso sair a hora que quiser. – ela disse. – É você quem deve ficar.

Uma horrível suspeita começou a se formar em Amélia. Ela deu um passo para trás. – Do que você está falando?

Mora não respondeu, mas seus olhos começaram a brilhar. Amélia ofegou e se aprofundou ainda mais no quarto. – Oh, meu Deus. – ela sussurrou. – Você é um deles!

A mulher se encolheu como se o medo de Amélia a ferisse. – Não me olhe dessa maneira. – ela ordenou. – Como se eu não fosse humana. Como se você me achasse repulsiva.

Amélia apenas conseguia sacudir a cabeça na negação da verdade. Ela não tinha previsto isso. – Por que? – ela conseguiu coaxar. – Por que você nos enganou?

Os olhos brilhantes de Mora endureceram. – Porque era meu dever. – ela respondeu amargamente. – O dever que sabia um dia seria meu desde que era uma garotinha. Eu faço parte do plano, um plano para o aprimoramento de meu povo. Minha vida nunca foi sobre o que eu pudesse desejar, mas do que era esperado de mim.

Amélia ainda estava cambaleando com o choque da traição de Mora. Ela não sentia simpatia pela mulher. – Você aceitou o dever de enganar e assassinar aqueles que protegeram você?

Mora se encolheu novamente. – Assassinato não fazia parte de nosso plano. – ela se defendeu. – Pelo menos não até Gabriel Wulf se intrometer. E suponho, para ser justa, até Vincent não conseguir cumprir seu papel como lhe foi ensinado. Para alguns, a fera é mais forte do que a pessoa. Vincent não teve controle sobre ela. Ela o controlou.

Agora que o choque estava começando a passar, Amélia combatia sua raiva. – E Robert? Vocês o assassinaram!

A enganadora endireitou as costas e caminhou até a cama. – Lorde Collingsworth não ia ficar muito tempo nesse mundo. Para facilitar nosso plano, nós temos um de nós trabalhando como médico em Londres. Seu falecido marido o visitou pouco antes do casamento. Seu coração era fraco, Amélia. Era um problema de família. Nós duvidávamos que ele até mesmo sobrevivesse a sua noite de núpcias. Então assumimos nossos lugares. Garantimos postos como empregados de Lorde Collingsworth e esperamos seu retorno para a noite de núpcias. Tínhamos de esperar até que ele morresse naturalmente, mas Vincent não quis aguardar. Ele queria reclamá-la. Ele tomou o assunto em suas próprias mãos.

Saber que Robert havia morrido assustado mortalmente deixava Amélia enjoada. – Como você pode se unir a essas criaturas, Mora? A esses assassinos?

O brilho retornou aos olhos de Mora. – Você teve uma vida mimada e tola, Amélia. Você não tem idéia do que é ser caçado por esporte. A passar fome porque a floresta não pode mais alimentar a seu povo. Antes os Wargs ficavam satisfeitos de se esconder e viver sua vida entre as criaturas da floresta, mas não podemos mais sobreviver escondidos. Agora usamos nossas habilidades para nos infiltrar nos altos escalões. Para ganhar poder para nosso povo. Um dia, governaremos o mundo.

Amélia estremeceu. Poderiam essas criaturas possivelmente realizar seus planos? Vincent tinha mudado sua aparência para se parecer com Robert. Se essas criaturas podem fazer isso, ela supostamente poderia assumir a vida de qualquer um. Mora, Amélia compreendeu, tinha sido um camaleão. A jovem até falava de maneira diferente agora. Ela estava educada. Tantas coisas eram agora óbvias quando antes não tinham sido.

- Você é a razão por não terem nos atacarem na floresta. – Amélia agora compreendia. – Eles não tinham por que nos atacarem quando tinham um deles infiltrado entre nós. Você se certificaria que não chegássemos a um local seguro.

Mora sentou-se nos pés da cama como se fosse uma rainha. Ela remexeu numa valise, uma que Amélia reconheceu como pertencente a ela. – Disse a eles que precisava de um tempo com você. – ela explicou. – Para aprender seus hábitos, suas expressões, seu padrão de fala. Nunca foi nosso plano eu tomar o seu lugar. Não se Vincent tivesse cumprido seu dever. Mas já que ele não o fez, decidiu-se rapidamente. Naquele dia no porão de armazenamento foi quando me contaram.

- Como você pode nos enganar mesmo agora? – Amélia sussurrou. – Eu a chamei de amiga.

Mora deu de ombros. – Eu tinha meu dever, da mesma forma como você tem os seus em sua sociedade. Você me chamou de amiga, mas se tivéssemos chegados à segurança, você rapidamente teria se esquecido do laço que se formou entre nós. Eu me tornaria a criada novamente perante seus olhos e nada mais.

Seria verdade? Talvez antigamente, mas Amélia havia mudado. – Você não me conhece nem um pouco. – ela disse para Mora. – Eu não me conhecia, não até fazer essa jornada. Você se ofendeu quando eu a chamei de animal, ainda assim age como um. Ninguém lhe ensinou sobre amor? Compaixão? Sem eles, você nunca será humana.

O rosto de Mora se coloriu. – Me ensinaram tudo o que precisava ser ensinado para que eu sobrevivesse. – ela atacou. – Eu conheço meu dever. O que causou tudo antes disso ser necessário. Vitória a qualquer custo.

- E agora seu dever é me matar. Para assumir meu lugar perante a sociedade. – Amélia disse. – Aqueles que me conhecem, aqueles que me amam, nunca serão enganados por você.

Mora levantou a sobrancelha. – Gabriel Wulf a conhece? Ele a ama? Eu o enganei uma vez, sabia. Em Collingsworth Manor.

Amélia levou apenas um instante para entender como e quando Mora tinha enganada a Gabriel. – Eu não tive crise de sonambulismo. – ela disse. – Mas ele mal me conhecia então. E mesmo assim, ele disse que o beijo que havia trocado comigo enquanto eu estava sonâmbula tinha sido diferente daquele que havíamos trocado mais cedo naquele dia. – Para aumentar o insulto, ela acrescentou. – Ele me disse que faltou paixão. Você não o enganaria agora.

O sorriso convencido de Mora se apagou. – Não? Se ele estiver vivo, talvez eu o veja, só para me testar.

- O que você vai fazer com ele? – Amélia perguntou.

Levantando-se da cama, Mora se juntou a ela. – Espero que nada. Espero que ele simplesmente morra de infecção. Será mais fácil para todos.

- Um assassinato a menos para encobrir. – Amélia atacou.

Com um dar de ombros, Mora abriu a porta. – O cocheiro e o lacaio de Collingsworth Manor nunca serão encontrados. O jovem lorde está agora descansando tranquilamente no campo, onde é óbvio que morreu devido a seu coração fraco. Assustada quando ele não retornou para mim, eu peguei um cavalo e tentei chegar até Wulfglen, onde sabia que minha amiga Rosalind e seu marido estariam. Quanto a Gabriel Wulf, ficarei muito triste por saber que ele morreu de febre em uma pequena vila tão próxima a sua casa, mas nunca encontrei o homem, então não vou fingir que lamentarei excessivamente por ele.

Parecia muito fantástico, muito fácil para Mora simplesmente entrar e roubar a vida de Amélia. – Você nunca vai conseguir levar isso adiante. – ela garantiu a mulher.

Novamente, Mora levantou a sobrancelha. – Não vou?

Diante dos olhos de Amélia, Mora começou a se transformar. Suas feições mudaram e Amélia estava subitamente olhando-se como num espelho. A cor do cabelo de Mora, seus olhos azuis, tudo lhe era vantajoso quando assumia a aparência de Amélia.

- Ainda acredita que não conseguirei enganar ninguém?

Mora havia aperfeiçoado a voz de Amélia. Estaria ela ainda tendo o pesadelo? Parecia muito mais plausível do que a verdade olhando-a nos olhos.

A enganadora sorriu. – Eu sou uma boa em mimetismo. Ao mesmo tempo, ainda não sei o suficiente sobre você para me sentir confortável tomando seu lugar. Eles permitiram que viva um pouco mais por causa disso. – ela disse. – Depois de ver se Gabriel ainda está vivo, ou se ainda está coerente para acreditar que sou você, voltarei aqui para interrogá-la mais.

- Estará desperdiçando seu tempo. – Amélia garantiu a ela.

Mora a ignorou. – Alguma última palavra que você deseja que eu transmita a ele, para tornar sua travessia mais fácil?

O temperamento de Amélia passou de fogo lento para incêndio. Ela não podia suportar o pensamento de Mora enganando Gabriel novamente. Dizendo palavras a ele que Amélia desejaria dizer. Tocando-o. Talvez o beijando pela última vez. Ela fechou as mãos em punhos. Ela partiu para cima de Mora usando suas unhas como garras e conseguindo marcar seu rosto antes de a mulher se recuperar. Mora agarrou os punhos de Amélia, sua força muito além da de uma mulher normal. Ela jogou Amélia através do quarto onde ela caiu sobre a cama.

Mora se transformou em si mesma e marchou até a porta. – Homens! – ela gritou. – O garoto é a mulher que estamos procurando, seus idiotas. Venham até aqui e a vigiem.

Amélia se sentiu nauseada. Não apenas tinha conseguido ser capturada; ainda tinha dado a Mora a localização de Gabriel. Eles o deixariam morrer, ou possivelmente o matariam... e era culpa de Amélia. O que ela ia fazer? Como poderia salvar Gabriel?

 

Ele tinha de fazer alguma coisa, mas Gabriel não conseguia se lembrar o que. Ele lutava para sair do manto escuro da inconsciência. Era muito mais tranqüilo, a escuridão, render-se a ela, mas algo o ficava importunando, encorajando-o a acordar, advertindo-o de que tinha algo importante a fazer. Ele sentiu uma mão fria contra sua testa. Ele estava queimando. Amélia estava com ele...mas espere, ele havia dito a ela para partir, não tinha?

Com esforço, ele abriu os olhos. Sua visão ficou borrada por um momento, e então lentamente um rosto entrou em foco acima dele. O rosto de Amélia. Ele havia dito a ela para partir, ele se lembrava disso, mas não se lembrava do por quê. E isso era importante. Ele se lembrava de ter feito amor com ela. Ele se lembrava dela aninhada perto dele no sono. Então se lembrou da dor. O havia levado a sair. Suas mãos estavam deformadas como em seus pesadelos. Pêlos as haviam coberto e longas garras se projetavam de seus dedos.

Depois ele não se lembrava de mais nada, não até de manhã, quando Amélia o havia levantado. Ele tinha ficado lá fora, nu e tremendo, queimando de febre. Ela o ajudara a entrar e ele ordenara que ela o deixasse. Embora não pudesse se lembrar, ele suspeitava que o lobo havia finalmente se libertado nele. Sua maldição estava sobre ele e Amélia não estava segura.

- Eu lhe disse para ir. – ele disse, e sua própria voz soava estranha para ele. Baixa e enrouquecida.

- Não pude deixá-lo como está. – Amélia disse. – Você me conhece bem, não é Gabriel?

Ele tinha aprendido a conhecê-la, como nunca acreditou que fosse conhecer uma mulher, como nunca quisera conhecer uma mulher. – Você não está segura aqui.

Ela afastou os cabelos da testa dele. – As criaturas não sabem onde estamos. Elas estão mais perto da vila para o caso de voltarmos por causa de Mora. Estarei segura aqui por enquanto.

Amélia não compreendia que ele poderia ser uma ameaça tão grande para ela quanto aqueles que os caçavam. Gabriel não tinha certeza. O que ele faria quando estivesse como lobo? Como se comportaria? Como uma fera enraivecida que a destroçaria membro a membro? Ou simplesmente teria a mentalidade de um animal? Perigoso se ameaçado, mas calmo se deixado em paz? Se ela ficasse e a infecção não o matasse, ela veria. Ela saberia. Ela ficaria apavorada e enojada.

- Você precisa ir agora. – ele conseguiu dizer. – Você pode chegar a Wulfglen em dois dias se andar rápido, se não parar para dormir. Você pode ir e trazer ajuda.

Novamente, ele sentiu a mão fresca contra sua testa. – Você estará morto quando eu voltar. – ela disse. – Não vou, e você não tem força para me forçar a ir. – a mão dela desceu atrás do pescoço dele e ela levantou sua cabeça, colocando um copo em sua boa. – Beba um pouco de água.

Ele estava morrendo de sede. Sua garganta estava seca e arranhando e ele bebeu para poder convencê-la a partir. A água fresca parecia o paraíso. Ele teria esvaziado o copo, mas ela subitamente o retirou.

- Não muito. – ela disse. – Do contrário você pode regurgitar.

Como Lady Amélia Sinclair Collingsworth sabia disso? Ela dissera que havia conversado com Mora com relação a cuidar de doentes, mas certamente haviam se fixado no que poderiam fazer por sua perna e não muito mais do que isso. Mora. Ele subitamente se lembrou do que mais ele tinha de importante a fazer.

- Mora. – ele falou.

Por um momento, Amélia pareceu assustada. – Como?

- Mora. – ele repetiu. – Tenho de ir resgatá-la. Eles disseram que iriam esperar dois dias antes de fazê-la desaparecer.

As feições tensas de Amélia relaxaram. – Você não está em condições de ajudar Mora. Melhor pensar em si mesmo agora. A garota vai ter que lidar com a situação por si mesma.

Por que Amélia estava agindo dessa maneira? Ele esperava tal atitude dela quando a conheceu em Collingsworth Manor. Mas ela não era assim. Ele aprendeu isso sobre ela. Ela não quisera deixar Mora para trás na noite em que fugiram da taverna, e ela não a abandonaria a própria sorte agora.

- O que há de errado com você? – ele perguntou. Uma friagem o percorreu e ele tremeu incontrolavelmente por instantes. A imagem dela se tornou confusa. Quando conseguiu falar novamente, ele continuou. – Você não abandonaria Mora a própria sorte. Você se importa muito com ela.

Algo atravessou suas adoráveis feições. Culpa? – Eu me importo mais com você. Eu amo você.

Gabriel se lembrou que ela dissera que o amava. Ele se lembrou do vôo que seu coração deu antes de afundar. Ele também se lembrou do que respondera a ela quando ela perguntara se ele a amava. Não fora o que ela merecera ouvir, mas também ela não merecia ser enganada por ele, e ele a havia enganado desde o começo. Ele a amava, como havia jurado nunca amar uma mulher. Ele fora fraco quando deveria ter se fortalecido contra ela. Ele estava fraco agora quando a febre o devastava, e estava fraco contra a maldição que havia sido lançada contra sua linhagem séculos atrás.

- Você não deve me amar. – ele disse. – Não sou digno de seu amor.

Amélia o observou com curiosidade. – Por que? - ela perguntou. – Por causa de sua família? Dos boatos sobre a loucura que um dia os atingirão? Por que você era amigo de Lorde Collingsworth e eu fui a esposa dele por um dia? Por que você é indigno?

A imagem dela ficou borrada e depois clara novamente acima dele. Ela tinha um arranhão no rosto que Gabriel não se lembrava de ter visto antes. Ele tentou levantar a mão para tocá-la, mas não tinha força. Gabriel pensou nas garras que se projetavam de seus dedos noite passada, imaginando se ainda estavam lá quando ela o encontrou inconsciente.

- O que aconteceu com seu rosto? – ele perguntou. – Como conseguiu esse arranhão?

O rosto dela ficou vermelho. – Não sei. – ela respondeu. – Mas um pequeno arranhão não tem importância alguma quando você está morrendo.

Gabriel podia muito bem estar morrendo, mas Amélia nunca admitiria isso. Era o mesmo que admitir a derrota. Ela tentaria convencê-lo de que ele não estava morrendo. Ela tentaria lhe dar esperança – forças para lutar. Agora ela agia como se esperasse que ele desistisse. O que aconteceria quando lua surgisse? Ele se transformaria apesar da febre e de estar tão fraco? Como lobo, estaria doente ou forte?

- Que horas são?

- É tarde. – ela respondeu. – Quase noite.

Ela tocou o rosto dele. Foi quando ele percebeu que as mãos dela estavam mais ásperas do que ele se lembrava. Verdade, elas tinham ficado mais ásperas desde a jornada através da floresta, mas ainda assim, ele achara que eram macias contra sua pele quando fizera amor com ela.

- Feche os olhos. – ela o persuadiu. – Vá para um lugar onde não existe dor. Nenhuma preocupação. Vá para um lugar onde seu sofrimento terminará.

Gabriel agarrou o pulso dela. Ela pulou. Ele a puxou com força mais para perto, surpreendendo-a que tivesse força para fazer isso. – Quem é você? – ele exigiu.

Por um segundo o rosto dela empalideceu. Ela umedeceu os lábios. Muito calmamente, ela respondeu. – Você sabe quem eu sou. A febre está fazendo você delirar.

Seria verdade? Gabriel estaria tendo alucinações? Não, ele conheceria Amélia em qualquer lugar, seu cheiro, seu toque. Essa não era Amélia. – Não sei quem você é, mas sei que não é Amélia. – suas narinas se alargaram. – Você está usando o perfume dela, mas ela não tem perfume com ela. Seu cheiro debaixo dele não é o mesmo que o dela. Mas conheço a quem esse cheiro pertence agora. Você nos enganou de muitas formas, Mora.

O sorriso suave dela se apagou. Os olhos azuis que olhavam para ele se endureceram. – Solte-me. – ela se irritou. Com força surpreendente, ela lutou para soltar-se dele. Ela se levantou da cama e ficou esfregando o pulso. – Que homem normal tem a habilidade de conhecer uma pessoa pelo cheiro? Eu achei estranho em Collingsworth Manor, e ainda acho. Ninguém mais seria capaz de dizer que não sou Lady Amélia Sinclair Collingsworth. E só aquele que poderia logo estará morto.

O súbito medo que Gabriel sentiu por Amélia sobrepujou a febre que o devastava. – O que você fez com ela? Se a machucou, eu vou...

- Vai o que? – Mora incitou. – Você não está em condições de me ameaçar. Se isso facilitar seu caminho para a morte, ela ainda está viva. Por enquanto. Eu preciso dela. Preciso saber sobre sua vida, seu passado, para que eu possa tomar seu lugar na sociedade.

Lutando para se levantar, Gabriel perguntou. – Pelo amor de Deus, por que? – Sua cabeça girou e ele caiu contra os travesseiros, lutando conta a tontura, lutando contra a náusea. – Qual é esse grande plano que vocês têm?

Mora tinha sabiamente se colocado fora do alcance dele. Ela deu de ombros. – Não é meu plano. É o plano dos Wargs. Eu sou simplesmente uma ferramenta que eles usam, assim como todos dentre nós que podem assumir a aparência de outra pessoa. Somos os fingidores. E nosso dever na vida é servir. Através de uns poucos, muitos serão beneficiados.

Gabriel não podia suportar olhar para Mora com o rosto de Amélia. – Mostre-se para mim. – ele disse. – Quero ir para o túmulo olhando o rosto de meu assassino. Apesar de eu ainda não estar certo do que você realmente é.

Por um breve momento ela pareceu triste. – Não sou sua assassina. O ferimento em sua perna, a febre, essas coisas é que o matarão. Não tenho necessidade de sujar minhas mãos. Quanto ao que sou, quase totalmente humana. Dizem que os Wargs foram abençoados pelos antigos deuses. Ele nos deram o poder de proteger a humanidade...mas a humanidade se voltou contra nós. Nós passamos a ser caçados, a ser expulsos, e logo aprendemos a viver nas sombras.

- Por que simplesmente não ficam por lá? – Gabriel sugeriu. – E você diz que não vai me matar, mas você vai matar Amélia depois de conseguir arrancar todas as informações que precisa. Ela não poderá fugir e se salvar por sua causa. Como você pode viver com sua traição?

Mora voltou às costas para ele. – Eu me arrependo por ela ter de se sacrificar por mim, embora não devesse, porque nossa sobrevivência é mais importante. Você me pergunta por que não permanecemos escondidos. Não podemos mais sobreviver nas florestas. Não há mais caça suficiente para nos alimentar. Estamos cansados de sermos caçados, de falarem sobre nós ao redor das fogueiras noturnas. Somos mais fortes do que os homens. Somos favorecidos. É apenas nosso direito governarmos.

Gabriel tinha dificuldades para compreender tudo o que ela dizia, devido a sua fraqueza. Alguma coisa não fazia sentido. – Em Collingsworth Manor, por que simplesmente não os deixou entrar? Por que fingir?

Quando Mora se voltou para encará-lo, ela não mais se parecia com Amélia. Ela não se parecia com a Mora que ele conhecia também. Como ela tinha conseguido se passar por uma mulher sem atrativos devia ser mais um truque. Seus cabelos eram longos e grossos e caiam até sua cintura fina, quase do mesmo tom de louro pálido de Amélia. Ela usava as roupas que Amélia usava quando ele a vira pela última vez também. Ela era quase da mesma altura, o mesmo tipo físico. Seus olhos eram azuis, embora mais escuros.

- Eu poderia ter feito. – ela admitiu. – Precisava obter a confiança de Amélia mesmo se ela fosse capturada. Precisava de tempo para estudá-la, para conhecê-la. Eu os convenci de que nos deixarem fugir seria melhor para nosso plano. Me daria o tempo que precisava, embora ainda haja muito que eu precise saber sobre ela.

- E agora entendo que você deve, pelo menos de alguma forma, ter semelhanças com a pessoa de quem vai tomar o lugar. – ele disse.

- Sim. – ela admitiu. Mora suspirou. – Chega de conversa. Você não deveria estar morrendo?

Agora que Mora tinha trazido o assunto a sua atenção, Gabriel percebeu que não se sentia tão fraco quanto antes. Ele ainda estava quente, mas não queimando. A chegada do lobo lhe dava forças? Tinha de ser, porque ele fora capaz de fazer amor com Amélia quando devia estar muito doente. O que mais o lobo faria por ele?

- Tem uma coisa que seu povo não pode planejar. – ele disse a Mora.

Ela levantou uma sobrancelha novamente, um gesto inconscientemente arrogante que lhe faria bem entre a sociedade.

- Alguns de nós simplesmente não se deita e morre. – A dor pairava logo debaixo da superfície, e Gabriel a permitiu vir. Como homem, ele não poderia salvar Amélia. Mas como algo mais do que um homem, ele ainda poderia lhe dar uma chance.

 

Amélia caíra numa armadilha. Mora chamou a atenção dos homens que pensaram que ela era um menino, e agora dois estavam parados na porta do quarto, um estava lá embaixo e dois lá fora. Eles não permitiriam que Amélia fugisse. Mora forçara Amélia a lhe entregar as roupas e, estranhamente, lhe oferecera o banho que havia solicitado para si mesma. Ela também ordenou que trouxessem comida para Amélia. Ela se sentiu como um peru na véspera do natal.

Ela tomara o banho, principalmente porque não se lavava de forma apropriada desde que fizera amor com Gabriel, e em parte porque precisava de tempo para pensar em sua situação e em como sair dela. Em sua valise, Amélia encontrou roupas. Sua própria roupa. Seu perfume. Tudo o que era necessário para Mora convencer as pessoas em Wulfglen de que ela era a perturbada Lady Collingsworth.

Rosalind veria através do disfarce de Mora? Tinham se tornado tão boas amigas que a esposa de Armond perceberia que a mulher se passando por Amélia era de fato uma impostora?

E por que Amélia estava se permitindo acreditar que se chegaria a esse ponto? Se Gabriel não estivesse doente, possivelmente morrendo, ela nunca abandonaria a esperança de ser resgatada. Mas ele estava, e o pensamento dele à mercê de Mora quase levava Amélia à loucura de preocupação e raiva. Depois de tudo o que ele fizera para protegê-la, para proteger até mesmo uma mulher que não necessitava de proteção, Amélia se sentia inútil agora que ele precisava que ela fosse forte. Nada em sua vida a preparara para o que acontecera em Collingsworth Manor em sua noite de núpcias, para o que vinha acontecendo desde então.

Ainda assim, Amélia sobrevivera. Tinha feito o que fora necessário, o que Gabriel lhe dissera para fazer na maioria das vezes. E nesse processo, ela tinha descoberto coisas sobre si mesma que não conhecia antes. Ela estava com medo dos homens que a vigiavam, por saber que eram mais do que homens. Mas seu maior medo era por Gabriel. Mora havia dito que a infecção o mataria, mas e se Mora não tivesse paciência de esperar a morte chegar naturalmente para ele? Amélia tinha de fazer alguma coisa; só não sabia o que.

Olhando ao redor do quarto, ela procurou por algo que poderia ser usado como arma. O quarto tinha pouca mobília. A banheira ainda estava no meio do quarto, a água agora fria. Havia um jarro para despejar água fresca em uma bacia. Um candelabro. Amélia foi até ele e o pegou. Não era pesado o suficiente para deixar um homem inconsciente.

Ela olhou na valise novamente. Ela escolheu um vestido sensato para vestir depois de se banhar. Verdade seja dita, ela preferia as roupas do garoto. Era muito mais fácil de se mover nelas. Pela primeira vez desde que fugira dessa mesma taverna, ela usava roupas intimas novamente. Ela ficou com as botas robustas, sabendo que se conseguisse fugir, seriam de melhor utilidade do que os sapatos que estavam dentro da valise.

Amélia pegou seu perfume, abriu o delicado frasco e cheirou. Parecia mais forte do que se lembrava, e seus olhos arderam. Ela havia se acostumada a passar sem ele. Ela tinha guardado o vidro quando um pensamento lhe ocorreu. Ela olhou para o jarro robusto e a bacia. Pegando o vidro novamente, ela se dirigiu aos itens. O jarro estava cheio com água fresca. Amélia derramou um pouco na bacia; depois abriu o perfume e despejou o vidro inteiro na água. O cheiro era tão forte que seus olhos arderam novamente.

Ela levou o jarro até a banheira e despejou a água remanescente. Agora, o que fazer? Ela precisava que os homens posicionados do lado de fora entrassem no quarto. Pegando o vidro de perfume vazio, ela o arremessou contra a porta com toda a força. Ele se partiu. Rapidamente ela correu até a porta, curvou-se e pegou um grande pedaço de vidro. Ela mal teve tempo de voltar a sua posição em frente à bacia quando a porta se abriu.

Um dos homens entrou, o vidro triturando debaixo de sua bota.

– O que você está fazendo?

Colocando o afiado caco de vidro contra seu pulso, Amélia disse.

– Não vou tomar parte em seus planos. Vou me matar antes.

O homem arregalou os olhos. Ele gritou chamando o outro antes de se atirar para cima dela. Amélia derrubou o vidro, agarrou a bacia e jogou o conteúdo contra o rosto dele. O outro homem já estava quase chegando perto dela e ela girou a bacia e o atingiu em cheio no rosto. Ele cambaleou para trás e caiu no chão. O homem em quem tinha jogado o líquido tinha as mãos nos olhos, esfregando freneticamente.

- Deus, isso arde! – ele gritou, e Amélia soube que tinha apenas um momento antes de os dois se recuperarem. Ela pulou sobre o homem caído e saiu correndo pela porta, pelo corredor e escadas abaixo. Ela não conseguia ser silenciosa, não com as pesadas botas que usava. O homem de guarda no salão comunal a olhou da mesa onde estava sentado, a surpresa marcando suas feições.

- Hei! – ele gritou, lutando para se por de pé.

Amélia estava com a vantagem. Ela já estava em movimento e tomou a decisão de sair pela porta dos fundos. Ela tinha estado aberta e sem vigilância antes. Ela rezava para que continuasse assim. A cozinha estava super aquecida. Uma panela cozinhava em fogo baixo no fogão, sem dúvida o jantar que os homens estavam preparando. Ela a agarrou sem se importar se iria queimar as mãos. Tão logo o homem de vigília no térreo entrou, ela atirou o conteúdo da panela no rosto dele. Ele uivou com a dor e ela jogou a panela sobre ele como prevenção. Então ela chegou à porta dos fundos, que realmente ainda estava aberta. Ela saiu segundo depois, correndo por sua vida e pela de Gabriel.

 

A dor pegou Gabriel de surpresa. Veio tão rapidamente que ele não teve tempo para se preparar. Ele agarrou seu estômago e dobrou-se. Olhou para cima, ofegante de dor. Mora estava parada observando-o. Ele não viu vitória em seus olhos, mas, antes, uma triste resignação. Ela pensava que ele estava morrendo.

- Renda-se a ela. – ela disse suavemente. – Deixe a morte o levar rapidamente.

A transformação viria mais rápida se ele fizesse o que ela sugerira? Se ele se rendesse ao invés de lutar? Gabriel fechou os olhos e desejou o lobo com ele. A maldição que pairava sobre ele e modelava sua vida, que tinha roubado seus sonhos e seu futuro. Como ele odiava a fera que vagava debaixo de sua pele, mas dessa vez ele tinha de se render. Ele tinha de abaixar a cabeça. Seu orgulhou lutava contra essa noção, pois lhe lembrava da fraqueza que detestava nos outros. A fraqueza dentro de si mesmo.

Presas lhe cresceram na boca. Ele as sentiu com a língua. Enquanto encarava Mora através da névoa de dor que o consumia, ele viu o momento em que ela percebeu que ele não estava morrendo...que ele estava se transformando. Os olhos dela se arregalaram. Ela deu um passo para trás, embora ele imaginasse que fosse um gesto inconsciente.

Seus olhos ardiam dentro do crânio. As garras romperam através da pele de seus dedos e ele quase gritou com a dor. Ao invés disso, ele as ergueu para que ela visse.

- Você não planejou isso, não é? – ele perguntou, sua voz distorcida.

- Você é um de nós. – ela sussurrou, claramente chocada.

- Nunca. – ele rosnou. – Sou amaldiçoado! Não escolhi me tornar nesse monstro dentro de mim. Mas por Amélia, pela vida dela, alegremente o abraço!

A dor era excruciante, mas ele manteve seu foco em Mora e no que ela faria agora que sabia que não estava lidando com um moribundo, mas com uma criatura, não diferente de si mesma. Ela não fez o que ele esperava. Ela não mudou sua forma e se transformou em fera. Ela fugiu dele. A dor em sua perna não era nada se comparada com a dor da transformação, mas Gabriel se forçou a se levantar da cama. Ele tinha de resgatar Amélia, mesmo que fosse a última coisa que fizesse nessa vida.

 

Amélia corria. Ela tinha de chegar até Gabriel. Ela tinha de protegê-lo de Mora, se já não fosse tarde demais. O pensamento dele fraco e doente, à mercê de Mora, empurrava Amélia para a cabana com uma velocidade que ela nunca antes suspeitou conseguir.

Gritos soaram atrás dela. O alarme havia sido dado. Amélia puxou o vestido para cima e imprimiu mais velocidade. Era pior correr de botas do que de sapatos. Elas eram mais pesadas e maiores. Ainda assim, ela conseguiu fazer o melhor que podia, esforçando-se para chegar até a cabana. Ela sabia que as criaturas agora tinham conhecimento da cabana onde ela e Gabriel vinham se escondendo, mas ela precisava salvar Gabriel. Como fazer isso sem uma arma sequer, contra uma mulher que não era uma mulher comum, ela não sabia. Apenas que tinha de tentar.

Movimentando-se pela floresta, Amélia quase colidiu com uma forma escura. Ela mal evitou ir de encontro ao lobo. O animal hesitou, voltando-se na direção dela, e o coração de Amélia subiu à garganta. O animal exibiu as presas e rosnou baixinho. Em um abençoadamente ignorante tempo atrás, Amélia teria pensado que era simplesmente um lobo. Agora ela conhecia a verdade. Ela tinha a sensação de que sabia quem era esse lobo em particular também.

- Mora? – ela coaxou.

O lobo arremessou-se e a jogou no chão. Estava em cima dela momentos depois, rosnando em seu rosto. A criatura ia matá-la. O hálito do animal não fedia a carne crua, como o do homem que atacara Amélia em Collingsworth Manor. Estranhamente, a criatura tinha o cheiro do perfume que Amélia usava. Sua mente tinha dificuldade em assimilar como uma pessoa podia mudar sua forma e se tornar outra pessoa ou coisa.

Mora pensava racionalmente quando transformada em lobo? Se ela podia facilmente mudar sua forma para uma ou outra coisa, Amélia achava que Mora podia sim pensar racionalmente mesmo quando assumia a aparência de um lobo. Olhando dentro dos olhos brilhantes da fera, Amélia só podia pensar em uma coisa. Apelar para a pessoa que antigamente conhecia como Mora.

- Deixe-me ir até ele. – ela disse. – Por favor, Mora. Sei que você não quer realmente ferir nenhum de nós. Não importa o que você é, você ainda é humana.

O lobo rosnou novamente, abaixando as presas perigosamente para perto do pescoço de Amélia. Ela sentia o hálito dele, o calor da saliva que pingava de sua boca. Amélia estava hipnotizada pelo brilho dos olhos do lobo. Os olhos de Mora, ela percebeu.

- Nós éramos amigas. – Amélia sussurrou. – Eu me importava com você. Eu confiava em você.

Ela não fazia idéia se o lobo compreendia suas palavras, mas ela percebia que Mora compreendia seu medo. Até mesmo um animal sente isso na pessoa. O lobo a encarou mais um pouco; então saiu de cima dela. Amélia tinha medo de se mexer. Medo de que Mora reconsiderasse. O lobo olhou para cima abruptamente; depois se foi, como um rastro de fumaça na escuridão.

Amélia se levantou. Colocou a mãos sobre o coração acelerado, então se virou e correu na direção da cabana. Ela tinha dado apenas alguns passos quando parou e gritou. Uma alta sombra estava parada entre as árvores.

- Amélia?

- Gabriel – ela disse com um suspiro de alivio. Seu primeiro instinto foi correr na direção dele. Jogar-se em seus braços. Ela nunca ficara tão feliz em ver alguém na vida.

- Não. – ele disse quando ela deu um passo em direção a ele. – Corra, Amélia. E não pare, não importa o que veja ou ouça.

A voz dele estava estranha. Não parecia a dele. E como foi que ele conseguiu se levantar da cama, e ainda por cima caminhar na floresta? Ela pensou que ele estava morrendo quando o deixou.

- Como...

- Vá agora!

- Não sem você! – ela argumentou.

- Eu vou segui-la. – ele disse. – Estamos na floresta novamente. Faça o que eu mando.

Ela queria discutir mais. Amélia não tinha feito tudo o que fizera para deixá-lo para trás. Não havia tempo a perder; ela sabia disso e ele também. Os outros chegariam até eles a qualquer momento. Fossem como homens ou como lobos.

- Prometa que vai me seguir. – ela disse.

- Vá!

Ele quase rosnou a palavra para ela. Amélia ergueu a barra do vestido, amarrou ao redor da cintura e correu. Ela sabia que não poderia voltar à cabana. Não estariam mais seguros lá. Ela esperava que tivesse se encaminhando para leste. Um olhar por cima dos ombros e ela viu a sombra alta a seguindo. Pelo menos ele não havia mentido sobre isso.

Como ele podia segui-la era algo que ela ainda precisava entender. Não havia tempo para pensar sobre esse assunto. Havia apenas tempo para correr. Estava escuro, mas a lua cheia no céu ajudava a iluminar o caminho, embora as árvores fizessem sombra e ela ainda tivesse de ser cuidadosa.

Atrás dela, ela ouvia os uivos dos lobos. Eles estavam próximos. Muito próximos. Amélia olhou para trás novamente. Ela não viu Gabriel. Será que se movera muito rápido para ele? A perna dele não agüentou? Ela parou, puxando ar para os pulmões. Subitamente o som de animais brigando chegou até ela. Ou ela pensou que fosse o som de animais brigando. Talvez fosse o som dos lobos atacando Gabriel. Amélia abaixou-se ao chão, procurando freneticamente por algum tipo de arma. A única coisa que encontrou foi um grande galho. Agarrando-o, ela se voltou para refazer seus passos.

Um lobo subitamente apareceu no caminho atrás dela. Um grande lobo. O instinto de sobrevivência aflorou à superfície, e Amélia correu. Ela duvidava que um galho a protegeria da fera. Ela também duvidava de que pudesse vencê-la na corrida, mas se esforçou, o medo a dirigindo quando suas pernas e pulmões não agüentavam mais.

Enquanto corria, ela esperava que o animal se atirasse em suas costas e a derrubasse, como se fosse presa. Um olhar por sobre o ombro lhe mostrou que a fera ainda estava lá. Mas não parecia estar perseguindo-a. Parecia que a estava seguindo. E estava mancando. Ela continuou a correr, pulando sobre troncos caídos, tropeçando quando pisava numa toca de coelho, mas recuperando-se e correndo novamente.

Ela ficou com dor nos lados e sua respiração ficou irregular pouco depois. Suas pernas estavam fracas e trêmulas. Ela precisava parar e respirar, mas tinha medo. Onde poderia ir que um lobo não iria? E se encontrasse um lugar para se esconder, o lobo poderia simplesmente transformar-se em homem e vir atrás dela? Onde estava Gabriel? Onde quer que estivesse, havia um lobo entre eles. Ela tinha de parar pelo menos por tempo suficiente para Gabriel a alcançar. Talvez os dois juntos conseguissem se proteger da fera que a seguia.

Fazia anos desde Amélia subira numa árvore. Não desde que era uma menininha tentando roubar a afeição que o pai demonstrava a seu irmão mais novo. Ela achava que se soubesse atirar e cavalgar e subir em árvores tão bem quanto um menino, seu pai a consideraria digna de sua muita necessária atenção. É claro que mais tarde ela compreendeu que ele a amava, tinha carinho por ela realmente; ele era apenas um homem muito ocupado.

Ele tinha seus deveres. Sua mãe tinha os deveres dela, e ambos esperavam que Amélia tivesse os seus também. “Dever”, contudo, era um mundo frio e sem sentimentos. O amor era real e quente, e seus pais, se ela sobrevivesse a essa jornada, não ficariam felizes com qualquer ligação que viesse a ter com Gabriel Wulf. E ela planejava ter uma ligação com ele. E esperava que fosse uma muito longa.

Que Amélia estive tendo tais pensamentos era uma forte sugestão de que tinha enlouquecido desde que enviuvara. Talvez sua mente simplesmente precisasse de um descanso da constante pressão de correr para salvar sua vida. Com o vestido ainda erguido, e grata às botas mesmo que fossem tão grandes, Amélia escolheu uma árvore alta e começou a subi-la. Ela não tinha ido muito longe quando o lobo apareceu debaixo dela. O súbito medo espantou todos os outros pensamentos. Ela subiu ainda mais alto, então empoleirou-se em um galho, olhando para baixo, esperando que o lobo se transformasse e subisse atrás dela.

A fera simplesmente se sentou, olhando para ela. Ela olhou de volta, sentindo-se pouco segura e imaginando se subir na árvore tinha sido uma boa idéia. Ela tinha de descer alguma hora. Estreitando os olhos na escuridão, ela usou de sua alta posição como vantagem para procurar por entre a floresta atrás dela. Ela não viu sinais de Gabriel. Deus, estaria ele doente novamente? Tinha sido capturado? Ela queria retornar e descobrir, mas estava numa situação difícil também.

Depois de poucos minutos a encarando, o lobo se levantou e mancou para dentro da noite. Amélia ainda não daria um suspiro de alivio. Ela não se sentia segura e imaginava se algum dia se sentiria segura novamente. Exausta, ela se acomodou contra o grosso tronco da árvore, permitindo que suas pernas balançassem de cada lado do galho em que se sentava. Ela fechou os olhos um pouquinho. Apenas um pouquinho, depois encontraria a coragem de descer e voltar à procura de Gabriel.

 

Amélia acordou assustada. Ela tentou se endireitar, mas o chão debaixo dela parecia muito longe. Ela poderia ter caído se não tivesse instintivamente se agarrado a um grosso galho para se equilibrar. A manhã já tinha chegado, e mais uma vez, ela se surpreendeu por estar viva para vê-la. Ela procurou pelo chão ao redor. Nenhum sinal do lobo. Quando se moveu, seus músculos protestaram. Ela estava rígida e dolorida por ter dormido numa árvore, mas as coisas podiam ser muito pior. É claro que poderiam ser melhores, também. Gabriel poderia estar com ela, e o fato de que não estava era a única coisa que a motivava a descer da árvore e encarar o mundo novamente, ou antes, o mundo como ela viera a conhecê-lo.

Assim que desceu e se afastou da árvore, ela ficou parada quieta, ouvindo, como Gabriel frequentemente tinha feito em sua viagem para Wulfglen. Amélia estava começando a se perguntar se tal lugar realmente existiria. Se o mundo fora da floresta, onde pessoas normais continuavam a trabalhar e a viver suas vidas sem saber que homens e mulheres podiam se transformar em animais ou até mesmo em outras pessoas, existia, Ela compreendeu que jamais poderia voltar para aquele mundo novamente e ser quem era antes. Não sabendo o que sabia agora.

A sua esquerda ela ouviu um galho se partir. Sua cabeça se voltou para aquela direção. Suas narinas se alargaram levemente, como se ela fosse um animal tentando captar o cheiro do perigo. Ela estava pronta para fugir quando ele apareceu através da cobertura da densa folhagem. Os joelhos de Amélia, já enfraquecidos, quase cederam. Ele mancou em direção a ela, seus olhos verdes se misturando com a floresta. Gabriel precisava se barbear e suas roupas estavam rasgadas em diversos lugares. Ainda assim, ele conseguia, de alguma forma, se parecer com o príncipe de seus sonhos.

- Gabriel. – ela suspirou; então correu até ele.

Ele mancou mais rápido e quando se encontraram, ela se atirou em seus braços.

– Pensei que tivesse sido capturado, ou pior. – ela sussurrou, e subitamente não pode mais conter suas lágrimas.

Os fortes braços dele a enlaçaram e a trouxeram mais para perto. – Graças a Deus você está bem!

Amélia se agarrou a ele. – O que aconteceu com você? – ela perguntou. – Onde você foi? Pensei que estava atrás de mim, então não o vi mais e um lobo estava lá. Subi na árvore para escapar dele.

Ele passou a mão pelos cabelos dela. – O lobo tentou lhe ferir?

Ela se afastou para olhar para ele. – Não. E isso foi estranho. Ele só olhou para mim, então saiu mancando para dentro da noite.

- Precisamos nos mover. – ele disse. – Eles ainda estão atrás de nós. Não estamos longe de Wulfglen. Eles sabem que devem nos impedir de chegarmos à propriedade.

Ela queria ficar um pouco mais nos braços dele. Um momento para simplesmente o sentir pressionado contra ela. Saber que ele estava vivo e aqui com ela. Ela podia enfrentar qualquer coisa desde que ele estivesse ao seu lado. Gentilmente ele a afastou.

- Temos de ir, Amélia. – ele repetiu. – Agora.

Seu momento no paraíso tinha acabado. O inferno os aguardava e Amélia podia encarar isso, também, desde que não estivesse sozinha. Ele pegou sua mão na dele e juntos partiram para o leste. Eles se moviam o mais rápido que seu ferimento permitia, mas ele parecia melhor. Certamente ele não estava mais queimando de febre. Ela devia ter cedido de alguma forma.

- Mora foi até você? – Amélia perguntou. – Ela tentou matá-lo?

- Você sabe o que ela é?

- Sim. – Amélia respondeu. – Ela é um deles. Ela é a razão por não termos sido atacados antes. Ela queria passar um tempo comigo, para me estudar. Ela planeja assumir meu lugar perante a sociedade.

Gabriel franziu a testa. – Bem, ela não está conosco agora, então eles não se segurarão mais. Se nos confrontarmos com eles, quero que corra e não olhe para trás.

Ela apertou a mão dele. – Sei que devo seguir suas ordens quando estamos na floresta, mas não vou abandoná-lo novamente. Não deveria tê-lo feito noite passada. Eu teria morrido se algo tivesse acontecido com você.

Ele parou, voltando-se para encará-la. – Você poderia ter morrido se não tivesse feito exatamente o que fez. Sei que é corajosa, Amélia. Também sei que é esperta. Não quero que desperdice sua vida comigo.

Que coisa para se dizer. Amélia ficou momentaneamente bestificada. – Você desperdiçaria a sua comigo. - ela disse.

- Minha vida já esta desperdiçada.

O que ele estava dizendo? Ele não tinha os mesmos sonhos e esperanças que ela tinha? De que conseguiriam chegar à segurança e passariam o resto da vida juntos, mais sábios do que a maioria sobre o que acontecera a eles, mas também mais fortes? Mais fortes juntos.

- Você não me ama. – ela subitamente entendeu. Só porque ela o amava não significava que ele deveria amá-la também. E talvez tenha sido disso que sua mãe tentara poupá-la. A dor que subitamente irrompeu dentro de seu coração.

- Agora não é hora para isso. – ele cortou, puxando-a para segui-lo.

Amélia parou, puxando sua mão da dele. – E quando vai ser a hora, Gabriel? Nós nem sabemos se teremos o amanhã. Quando se não agora?

O olhar dele se suavizou por um momento. Ele engoliu. Então desviou os olhos e apertou o maxilar. – Vamos lá. Estou com esperança de chegarmos a Wulfglen antes do cair da noite.

Amélia sabia que apenas provaria o quão boba e mimada ainda podia ser se discutisse com ele. Ela o seguiu, não permitindo que ele segurasse sua mão dessa vez. E se eles conseguissem chegar a Wulfglen? Ele esperaria que ela voltasse para Londres, para a sociedade, e fingisse que nunca fizeram amor? Que nunca compartilharam essa aventura juntos? Ela não poderia retornar a essa vida. Ela queria ficar com ele. Ela queria usar calças masculinas e botas e andar de cavalo com ele. Ela queria conhecê-lo, e de repente ela percebeu que não o conhecia, não realmente.

- Fale-me de suas esperanças e sonhos. – ela disse, porque se ela fosse morrer, ela queria morrer sabendo pelo menos isso sobre ele.

Ele suspirou. – Amélia, poderemos fazer um tempo melhor se não usarmos a energia para conversar um com o outro.

- Eu preciso conhecê-los. – ela insistiu. – Não vai machucá-lo...

- Eu não tenho nenhum. – ele interrompeu. – Esqueça esse assunto, Amélia.

Ela não ia esquecer esse assunto. – Por que você não tem esperanças ou sonhos? Todo mundo tem.

Gabriel parou e se voltou para encará-la. – Eu não. Não os tenho porque nunca me permiti tê-los. São passatempos tolos para quem não tem nada melhor para fazer. Para aqueles que não aceitam sua vida como ela é. Para aqueles que não se aceitam como são.

Suas palavras frias a abalaram. – Sem duvidas seja honesto. – ela respondeu no mesmo tom seco que ele sempre usava. – Não é normal você pensar assim. – ela acrescentou. – Você compreende isso, não é?

Ele olhou por cima do ombro para ela. – Há muitas coisas sobre mim que não são normais. Você compreende isso, não é?

Sim, ela compreendia. Além do fato de a família dele ter sido banida da sociedade – de que ele escolhera se esconder na propriedade de campo, o que o tornara diferente da maioria dos homens a quem Amélia conhecera, ele também tinha estranhas habilidades. Ela sabia que às vezes ele podia ouvir coisas que ela não podia. Ver coisas que ela não via. Mesmo sentir cheiros que ela não conseguia. Ele tinha aquele cheiro intoxicante nele que a atraia...que poderia atrair qualquer mulher, ela supunha.

Os olhos dele não pareciam normais, especialmente durante a noite. Amélia não considerava nenhuma dessas coisas como motivos para não amá-lo. Como motivos para que ele se colocasse à margem da sociedade e desistisse de ter esperanças e sonhos.

- Eu já lhe disse que gosto de pessoas que são diferentes das demais. – ela disse. – Mas todo mundo deveria ter sonhos e esperanças para ajudá-los a enfrentar os tempos difíceis em suas vidas.

Gabriel olhou-a por cima do ombro novamente e arqueou uma sobrancelha. – Você passou por muitos tempos difíceis até agora, Amélia?

Ele estava sendo difícil hoje. Ela imaginou se a perna dele não estava doendo novamente. Eles estavam se movendo a passos rápidos apesar de ele estar mancando. – Não muitos. – ela admitiu.

- E suponho que se casou com Robert porque ele era diferente. – Ele fez um som de ronco. – Ele era tão igual aos outros quanto você poderia encontrar.

Isso era verdade. Não havia nada de único ou interessante em Robert. Ainda assim, não era educado falar mal dos mortos, e ele havia sido seu marido...por um dia. – Vincent o matou. – ela disse. – As criaturas têm um deles como médico em Londres. Ele sabia que Robert tinha o coração fraco. Eles deixaram seu corpo no campo para complementar a historia que Mora planejava contar quando aparecesse em Wulfglen triste pelo marido desaparecido. Eles tinham tudo planejado, Gabriel.

Na frente dela, ele parou novamente. Ele levou um momento passando as mãos pelos cabelos antes de se voltar para olhá-la. – Sinto muito. – ele disse. – Não deveria ter dito essas coisas sobre ele. Ele era um bom homem. Pelo menos ele foi um bom amigo antigamente. Não deveria ter dito o que disse sobre você, também. Você vem passando por coisas que muitos homens não agüentariam desde a sua noite de núpcias. Você tem as enfrentado melhor do que a maioria o faria também. Você é realmente única, Amélia, e não deveria estar aqui. Você deveria estar em uma sala de visitas encantando a todos, como encantou a mim.

Ele a achava encantadora? Amélia supunha que isso era pelo menos alguma coisa. Ela preferiria que ele a amasse, como ela o amava. Talvez tivesse que finalmente se resignar como o fato de que não poderia ter sempre o que queria. Ela certamente não queria estar nessa presente situação.

- Devemos continuar a caminhar. – Gabriel disse. Ele pegou na mão dela novamente. Amélia permitiu o contato, sentir sua pequena mão na mão grande e forte dele.

Talvez houvessem mais coisas sobre Gabriel Wulf que ela devesse questionar, e Deus sabia que tinha muito mais coisas que ela gostaria de conversar com ele. Entre elas como ele podia estar morrendo ontem e andando pela floresta com ela hoje? Onde ele tinha estado noite passada? Por que suas roupas estavam rasgadas? Como ele tinha fugido de Mora? Seriam as perguntas que ela faria a ele, se chegasse a Wulfglen.

Por agora, ele estava certo. Ela mal tinha energia de por um pé na frente do outro e se mover o mais rapidamente que ele pudesse forçá-la. Tentar obter mais informações de Gabriel quando a mente dele estava focalizada em uma coisa e somente em uma coisa simplesmente a deixaria exausta.

 

Gabriel sabia que Amélia tinha perguntas. Ele não tinha as respostas. Nenhuma que quisesse compartilhar com ela. Tudo em que podia se concentrar no momento era em se chegar próximo a Wulfglen. Levá-la para a segurança. Então poderia lidar com seus próprios problemas. A perna estava surpreendentemente melhor. Sua febre devia ter cedido alguma hora, talvez quando a transformação ocorreu.

Ele havia lutado com a dor enquanto seguia Amélia pela floresta; então tudo se tornou confuso. Ele não se lembrava de mais nada até que acordou pela manhã, novamente nu e tremendo. Ele refez seus passos e encontrou suas roupas, rasgadas e felizmente não muito longe do caminho que sabia Amélia havia tomado.

Enquanto se vestia e sua mente se clareava, ele percebeu que podia tê-la ferido. Gabriel nunca sentira tanto medo como o temor do que poderia ter feito a Amélia enquanto estava na forma do lobo. E ainda assim ele a feriria emocionalmente. Ele tinha de fazê-lo, pelo próprio bem dela. Ele não tinha nada a lhe oferecer antes de a maldição despencar sobre ele. Certamente não agora. Olhando em seu coração, ele tinha de admitir que o que acontecera com ele o envergonhava mais do que tudo.

Ele trabalhara duro a vida inteira para se fortalecer. Ele fechara as próprias emoções; ele se mantivera distante da sociedade. E assim mesmo, não tivera força suficiente para resistir ao amor, para derrotar a fera dentro dele. Ambos o haviam derrotado. Ele não estava zangado com Amélia. Estava zangado consigo mesmo.

E estava se fortalecendo para a inevitável separação deles tão logo chegassem a Wulfglen vivos. Ele não queria que ela soubesse da verdade. Ela o amava, ou foi o que disse. Por que ela o fazia estava além de sua compreensão. Ele não era como os dândis que com certeza a perseguiram em Londres. Ele não se parecia com ninguém que ela conhecesse. Exceto por Mora, e agora Amélia desprezava a garota a quem um dia protegera. Assim como desprezaria Gabriel se soubesse da verdade sobre ele.

- Espere. – Amélia subitamente parou.

- O que foi? – ele perguntou a ela.

- Acho que vi algo pelo canto dos olhos. – ela sussurrou. – Sombras se movendo de uma árvore a outra.

Gabriel a puxou para atrás dele. Ele ficara perdido no turbilhão de seus pensamentos e abaixara a guarda. Novamente, não como ele sempre agia. Ele ouviu. A floresta estava quieta. Muito quieta. Seu olhar percorreu a área que os cercava. Nada se movia, o que por si só era estranho. Ele fechou os olhos e cheirou o ar. No principio não tinha nenhum cheiro anormal; então um cheiro chegou até ele trazido pela leva brisa. O perfume de Amélia.

Gabriel abriu os olhos, virou-se para Amélia e disse: - Corra!

Ele não esperou pela reação dela. Gabriel agarrou a mão dela e partiu, puxando-a atrás de si. Ela poderia não conseguir acompanhá-lo, mas embora sua perna estivesse melhor, ele não estava completamente curado. Eles ouviram o som de botas atrás deles agora. Os gritos dos homens de uns para os outros. Por algum motivo, os outros não os perseguiam na forma de lobos, mas como homens. Gabriel imaginou se eles controlados pela noite, pela lua, como ele era.

Ele não viu a armadilha até ser tarde demais; homens nas árvores acima deles. Duas grandes redes jogadas do céu. Gabriel foi forçado a soltar a mão de Amélia, esperando evitar que a rede embaraçasse nele, mas ela era muito pesada e bem feita. Ao lado dele, Amélia lutava com sua própria rede. Seu rosto pálido, seus grandes olhos amedrontados. Droga, ele tinha falhado com ela novamente. Eles estavam presos.

 

O acampamento para onde foram levados não era muito longe, o que alegrou ironicamente a Gabriel porque as redes pesavam sobre eles e Amélia tinha tropeçado e quase caído mais de uma vez. Os pés deles estavam livres, mas as redes amarradas apertadas só permitiam que eles dessem passos curtos. Seus seqüestradores não queriam dar chances para que Gabriel e Amélia fugissem deles novamente. Ele estava com dor na boca do estômago. Ele tinha jurado proteger Amélia, pensou que estava fazendo um bom serviço, até descobrir que era por causa de Mora que não tinham sido caçados realmente...até agora.

Por que eles simplesmente não mataram Gabriel e Amélia quando tiveram chances, ele não sabia. Os homens que os cercaram e os conduziram para o acampamento tinham armas. Se Gabriel conseguisse mover seus braços, ele poderia ter lutado para agarrar a arma de um dos homens e abrir a tiros seu caminho e o de Amélia para a liberdade.

Uma barraca estava armada. Era uma estranha visão contra o áspero cenário da floresta. Uns poucos homens correndo de um lado ao outro pararam para observar enquanto eles se aproximavam. Gabriel estudou os rostos dos homens. Pareciam pessoas normais. Ele supunha que acharia estranho se ele também não se parecesse com um homem normal.

Um dos homens se aproximou. – Eles querem falar com ele antes. – ele disse aos outros. – A mulher fica aqui fora.

Gabriel não gostou do fato de que estavam separando ele e Amélia. Ele gostou menos ainda sabendo que ela ficaria aqui fora sozinha com esses homens, amarrada à rede, incapaz de se defender. O fato o encheu de raiva e ele tentou mover suas mãos para o lado e se libertar da rede. Dois homens estavam sobre ele em instantes, segurando seus braços de lado.

- Não precisa lutar. – uma voz feminina disse. – É inútil.

Ele olhou na direção da barraca. Mora estava parada lá. Ela estava vestida no que ele supôs ser as roupas refinadas de Amélia, roubadas depois que fugiram de Collingsworth Manor. Mora não se parecia com uma criada. Ela se parecia com uma lady, uma que poderia se misturar à aristocracia londrina mesmo não tomando a forma de Amélia Sinclair Collingsworth. Exceto por seus olhos. Havia uma selvageria neles que ela não conseguia disfarçar.

- Amélia não será machucada. – Mora disse. – Ainda não, de qualquer forma. Venha pacificamente ou isso poderá ser mudado.

Era pior que ele e Amélia tivessem sido capturados juntos. Gabriel sabia que eles a usariam contra ele se quisessem alguma coisa, e eles obviamente queriam, ou ele e Amélia teriam sido mortos assim que foram pegos. Tudo o que podia fazer no momento era ir para lá dentro e ver o que Mora queria. Ele tentou enviar a Amélia um olhar de tranqüilidade, embora não se sentisse tranqüilo com nada no momento.

- Tire a rede de cima dela. – ele ordenou. – Ela não é um animal.

Mora encontrou o olhar dele, levantando uma sobrancelha perfeitamente arqueada. Um leve sorriso se formou em seus lábios com a insinuação dele. – Amarre as mãos dela. – ela instruiu os homens. – Dêem-lhe água fresca e encontrem um lugar tranqüilo para ela descansar.

Embora Mora recitasse as ordens como se fosse uma rainha, uns poucos homens estavam claramente ressentidos com sua autoridade e suas ordens. Não houve discussão, porém, e Gabriel foi empurrado e conduzido para dentro da barraca. Havia almofadas no chão, uma pequena mesa cheia de comida e vinho. E havia outro homem dentro da barraca. Ele não era um guarda, Gabriel rapidamente supôs. O homem estava muito bem vestido.

- Você nos conduziu em uma boa caçada, Lorde Gabriel Wulf. – o homem disse. Ele indicou uma almofada no chão. – Por favor, junte-se a nós.

Gabriel não teve escolha. Um dos guardas que havia entrado com ele o jogou ao chão. – O que vocês querem? – ele foi direto ao ponto.

O homem levantou uma taça de vinho e bebeu. – Acredito que minha irmã já lhe tenha informado de nossos planos. – ele respondeu secamente. Ele lançou a Mora um olhar de reprovação. – Mora algumas vezes subestima muitas coisas.

Gabriel voltou seus olhos na direção de Mora, que corou levemente devido à reprimenda.

- E embora ela tenha grandes habilidades, Mora não é sempre a melhor juíza de caráter, também. - O homem o estudava do outro lado da baixa mesa de comida e bebida. – Ela deveria ter percebido que você era um de nós. Ela deveria ter sentido isso, mas estava muito ocupada estudando Lady Collingsworth e seus maneirismos, como fora dito para fazer, para questionar suas estranhas habilidades.

- Vá direto ao ponto, Raef. – Mora interrompeu. – Já fui censurada demais por minha desatenção.

Raef, supostamente o irmão de Mora, não se parecia em nada com ela. Mora tinha cabelos claros e pele clara, os cabelos de seu irmão eram tão pretos que eram quase azulados. Sua pele era mais azeitonada. A única coisa que tinham em comum era a cor dos olhos.

O homem bebeu outro gole de vinho. – Mora me convenceu de que você teria mais valor para nós vivo do que morto.

- Não vejo como. – Gabriel garantiu a ele.

Quando o irmão de Mora sorriu, seus dentes brilharam brancos contra a pele amorenada. – Penso que sabe.

É claro que Gabriel sabia. Eles queriam usá-lo, como queriam usar todo mundo para suas próprias vantagens. – Não faço parte da sociedade. – ele apontou. – Certamente você tem consciência disso.

- Talvez não agora. – o homem concordou. Ele olhou para Mora. – Mas com Lady Collingsworth como sua esposa, isso pode mudar.

Gabriel riu. – Você pensa que eu me casaria com sua irmã? Fingindo ser Amélia ou de qualquer outra forma? – Ele olhou para Mora e estreitou os olhos. – Preferiria dormir com uma serpente todas as noites. Confiaria muito mais na cobra.

Ele esperava que seu insulto enraivecesse Mora; ao invés disso, ela pareceu estranhamente ferida por ele. O que ela esperava? Ele cuidara dela durante a jornada deles. Ele a protegera, ele pensou. E verdade seja dita, ele também ficou enraivecido por não ter percebido a traição dela. Ele tinha ficado naturalmente alerta com ela no principio. Ele deveria ter prestado atenção a seus instintos iniciais.

- Mora fez o que foi ensinada a fazer e o que lhe foi dito para fazer. – Raef disse, e ele não mais parecia divertido com toda a situação. – Você é um de nós, queira ou não admitir isso. Por que não se unir a nós?

- Eu não sou um de vocês! – Gabriel rosnou. – Sou amaldiçoado. Não abraço o que me tornei. Eu me envergonho disso.

Raef colocou seu vinho de lado e estava próximo ao rosto de Gabriel tão rapidamente, que o pegou de surpresa. – Se não tivesse lhe sido dado nada mais em sua vida amaldiçoada do que suas extraordinárias habilidades, você pensaria diferente. Se você tivesse visto sua família passar fome, seus irmãos caçados como animais, você pensaria diferente. Guarde minhas palavras a esse respeito.

- O que vocês vão fazer com Amélia? – Gabriel exigiu.

O homem suspirou e se sentou. – A bela Amélia vai morrer. Sinto muito, mas tem de ser dessa maneira. Pela causa.

- Assim como vocês assassinaram o marido dela pela causa? – Gabriel perguntou. - Assim como matarão qualquer um em seu caminho e dirão que é pela causa?

Raef passou a mão pelas feições rudes, então encarou Gabriel por um momento, como se ponderando o que responder. Finalmente, ele disse: - Pelo que entendo, foi melhor para você que o marido esteja morto. Ele não a amava, você sabe. Ele apenas se casou com ela pelo grande dote que o pai dela disponibilizou. Todos os criados em Collingsworth Manor sabiam disso. Você viu a casa dele. Estava praticamente desmoronando. Ele mal tinha dinheiro para fazer o cultivo dos campos. Ele ia ter de vender seus preciosos cavalos se não encontrasse uma esposa rica, e rapidamente. E ele tinha um coração fraco. Nós simplesmente apressamos o seu fim.

Gabriel imaginava se o homem estava dizendo a verdade. Teria Robert se casado com Amélia apenas pelo dote dela? Que tristeza se esse fosse o caso. Robert era um idiota se isso fosse verdade. – Não conte isso a ela. – Gabriel disse baixinho.

O homem levantou uma sobrancelha negra. – Você está apaixonado por ela. Isso prejudica seu julgamento. Você deveria estar pensando em sua própria pele agora, e salvá-la.

- Não me importo com minha pele. – ele disse. – Me importo com a dela.

Mora entrou em seu campo de visão, ficando em pé atrás do irmão. – Lady Collingsworth sabe o que você é?

Gabriel não conseguiu olhar Mora nos olhos.

- Ela o desprezará. – ela garantiu a ele. – Assim como me despreza agora. Não exijo que me ame, nem mesmo que goste de mim. Juntos, podemos fazer muito por nosso povo.

Ele sacudiu a cabeça. – Nosso povo? Eu já lhe disse, não sou um de vocês. Seja o diabo que for que vocês sejam.

- Você não é como sua amada dama, também. – Raef falou. – Acho que você precisar ser lembrado desse fato. Acho que ela precisa ver exatamente quem você é. Mora acredita que a lua controle a mudança em você. Embora tenhamos aprendido a nos transformar quando desejamos, a lua ainda exerce um efeito sobre nós também. Torna mais difícil de controlar o lado animal de nossa natureza. Nós permitiremos que Amélia veja sua transformação essa noite. De manhã você poderá nos informar sua decisão.

Não havia nada pior do que o pensamento de Amélia vê-lo se transformar em fera bem diante de seus olhos. Saber que ela compreenderia que ele a enganara. Que ele tinha feito amor com ela sem dizer a ela o que ele era. Que ela havia confiado nele quando ele vinha mentindo para ela desde que se conheceram. Ele não era melhor do que Mora, que os enganara a ambos.

- Prefiro que me mate agora. – ele disse.

Raef sorriu, mesmo que tenha sido um sorriso triste.

 

Amélia estava aterrorizada. Depois de dias fugindo das criaturas, ela estava entre elas agora, à mercê delas, assim como Gabriel. As criaturas os mantiveram separados o dia inteiro. Ofereceram-lhe água para beber, até mesmo comida, embora ela tivesse recusado, sabendo que não a seguraria com o estômago embrulhado como estava. Pelo menos estava sentada numa sombra. Pelo menos ainda estava viva. Mas sabia que não seria por muito tempo.

Gabriel estava do outro lado do acampamento. Eles não tinham retirado a rede de cima dele como fizeram com ela. Seu anjo loiro tinha uma aparência de derrota. Ela esperava que fosse apenas fingimento da parte dele. Ela esperava que enquanto estivesse sentado quietinho ele estivesse pensando em um modo de livrá-los dessa situação. Ela tinha exaurido a própria mente nesse assunto. Eles estavam bem vigiados. Estavam protegidos. Não tinham armas. Era um péssimo cenário.

Ela pensou em se jogar aos pés de Mora, implorando pelas vidas dela e de Gabriel, mas sabia que não ajudaria em nada. Mora tinha sua causa para amar. Ela já provara que isso era mais importante do que a vida de duas pessoas que antes a haviam a ajudado e protegido. E ainda assim, Mora havia poupado Amélia naquela noite em que fugira da taverna. Poderia haver uma pequena esperança de sobrevivência se seus destinos estivessem somente nas mãos de Mora, mas obviamente haviam outros no acampamento de certa importância entre essas pessoas.

Amélia tinha visto um homem alto e de cabelos escuros entrar e sair da barraca. Aqueles que os vigiavam pareciam se aprumar quando ele aparecia, como se ele fosse da realeza. Amélia supôs que em diferentes circunstâncias ela o acharia bonito. Ele mal olhara em sua direção, como se ela não tivesse importância para ele. Um meio para um fim.

Duas vezes Amélia fora desamarrada e permitiram que ela cuidasse de sua higiene pessoal, mas sempre com um guarda parado a uma distância embaraçosamente curta. Ela teria coragem de lutar para tirar a arma de um dos homens? Conseguiria correr mais do que eles se fugisse? Ela teria de deixar Gabriel para trás, o que não podia fazer. Melhor tomar uma arma e fazer um refém. Alguém a quem pudesse facilmente trocar por Gabriel. Mora.

Amélia ficou remoendo a idéia enquanto a noite se aproximava. Ela observava dois homens que curiosamente tinha construído algo durante o dia, algo feito de grossos galhos amarrados juntos por uma corda. Apenas quando eles terminaram Amélia percebeu que era uma gaiola. Uma gaiola grande o bastante para prender um homem. Seu olhar se voltou para Gabriel. Ele também estava olhando para a gaiola, e sua expressão era tão obscura e perigosa que ela teria medo dele se não o conhecesse tão bem.

Mora e o homem moreno saíram da barraca. Amélia estava mais irritada por Mora ficar melhor em suas roupas do que ela mesma. Coelhos estavam sendo assados num espeto no meio do acampamento, e o cheiro da carne cozida fez seu estômago roncar. Almofadas foram trazidas da barraca e colocadas no chão próximo ao fogo. Mora acenou para o homem que vigiava Amélia e ele se aproximou e a pôs de pé, empurrando-a na direção onde os outros dois estavam sentados.

- Sente-se. – Mora instruiu a ela.

Amélia teria desobedecido se tivesse escolha. O guarda a forçou.

Mora olhou para onde estava Gabriel. – Ponham-no na gaiola. – ela instruiu.

O coração de Amélia se partiu quando viu três homens fortes forçarem Gabriel a ficar de pé e o arrastarem lutando até a gaiola. Um usou uma faca para cortar a rede de Gabriel antes de o jogarem para dentro, o portão no final protegido para que ele não pudesse sair. Não havia espaço suficiente para ele. Ele teve de puxar os joelhos pra cima para caber dentro da gaiola. Ele olhou para os companheiros de Amélia, seus olhos brilhando azuis na crescente escuridão.

- Gostaria de comer alguma coisa, Amélia? – Mora perguntou.

Ela não conseguiria comer agora, mesmo que o cheiro da carne fosse quase uma tortura. – Não precisa ser civilizada. – ela disse a Mora. – Sei que não é, mesmo que agora fique aí fazendo pose.

O homem sorriu como se divertido pela ousadia de Amélia. – Ela está certa, Irmã. Não há necessidade de oferecer conforto ao inimigo.

- Você conhece nossas regras, Raef. – Mora reagiu. – O mínimo de sofrimento possível. Devemos oferecer a ela o conforto que pudermos antes...

O silêncio que se seguiu podia ter soado alto na noite como os sinos dos mortos.

- E Gabriel? – Amélia perguntou. – Não vi vocês oferecendo a ele nenhum conforto o dia inteiro. Por que ele está nessa gaiola?

- Temos de prendê-lo de alguma maneira. – o homem respondeu ao invés de Mora. Ele se adiantou e cortou um pedaço de carne de coelho suculenta em um dos espetos. – Pensamos que vê-lo dessa forma pudesse soltar sua língua. Podemos torturá-lo se você não fornecer a Mora as informações que ela precisa a seu respeito.

Talvez fosse essa a razão por não terem matado Gabriel logo que o prenderam, Amélia raciocinou. Eles queriam usá-lo para arrancar informações dela. Ela havia jurado que não falaria, mas agora teria de reconsiderar. Amélia também tinha de encarar o fato de que uma vez que eles obtivessem o que queriam dela, não mais a manteriam viva. Como havia dito a Mora antes, ela não facilitaria para eles.

- Eu tenho uma irmã e dois irmãos. – ela mentiu. – O nome de minha irmã é Florence e os nomes de meus irmãos são Michael e...

- Sabemos sobre sua família e quem eles são. – o homem chamado Raef disse secamente. – Por favor, dê-nos credito por ter inteligência de descobrir esses detalhes rapidamente. Nós precisamos de informações particulares. Qual é sua cor favorita?

- Cor de rosa, é claro. – Sua cor favorita era azul.

- Qual sua relação com a Duquesa-mãe de Brayberry? – ele perguntou a seguir.

Amélia se surpreendeu com a pergunta. Essas pessoas sabiam mais do que ela suspeitara que soubessem sobre a alta sociedade. – Somos conhecidas. – ela admitiu. – Embora Sua Graça mal me tolere. Ela acredita que sou sincera. – Amélia duvidava que houvesse uma mulher mais sincera no mundo do que a duquesa. Ela encorajava comportamento semelhante entre todos que considerava como amigos.

- Como é sua relação com seus pais? – Mora perguntou.

De repente foi demais para Amélia compreender que essa mulher tentaria fazer seus pais acreditarem que ela era a filha deles. As lágrimas lhe fecharam a garganta e ela não conseguiu responder.

- Geralmente tentamos encontrar pessoas que não tenham parentes próximos. – Mora disse suavemente. – Era outra razão da escolha de Lorde Collingsworth.

- Fique quieta, Mora. – Raef estalou. – Você já falou demais. Você se esquece facilmente o que nos foi ensinado. Não precisa confortar a ovelha antes de conduzi-la ao matadouro. Nada do que disser vai fazer com que ela pense bem de você. De nenhum de nós.

Amélia supunha que não era ruim morrer por uma causa, só que não pela dos outros. A escuridão havia caído e estava difícil ver Gabriel dentro da gaiola. Tudo o que via eram seus olhos brilhantes fixos nela. Ela o encarou de volta, esperando enviar-lhe uma mensagem. Esperando que ele soubesse que ela verdadeiramente o amava e que talvez pudessem ficar juntos novamente antes da morte. Ela não se importava muito em morrer. Ela preferiria viver. Ela preferiria passar seus dias e noites com ele. Ela preferiria ter seus pequenos meninos loiros. Essa possibilidade parecia distante sob as presentes condições.

O jantar foi removido dos espetos e as porções divididas entre o grupo. Amélia se sentou em silêncio enquanto troncos eram adicionados ao fogo que ardia diante dela. Ela era capaz de ver Gabriel novamente na luz alaranjada das chamas, e por isso ela ficou agradecida. Ela se sentia mais forte quando podia vê-lo. Amélia sabia que tinha de ajudá-lo. Recusar a comida tinha sido uma tolice se pudesse usar isso como vantagem.

- Descobri que estou com fome. – ela disse, olhando para Mora. – Mas não posso comer com minhas mãos amarradas a minhas costas e não quer sofrer a humilhação adicional de ser ter a comida me servida na boca. Você ao menos pode me permitir alguma dignidade.

Mora olhou para o irmão. – Ela dificilmente seria páreo para todos nós. – ela disse. – Podemos desamarrar suas mãos para que ela possa comer?

Raef sacudiu a cabeça. – Ela já fugiu de nós uma vez. Você a subestima, Mora. Um erro com o qual já deveria ter aprendido.

Mora abaixou a cabeça subservientemente. Amélia mentalmente se amaldiçoou pelo irmão ser menos civilizado e menos confiante do que sua irmã. Como poderia tentar roubar a arma de alguém com as mãos amarradas? Talvez Gabriel tivesse um plano. Ela esperava que tivesse.

- Posso falar com Gabriel. – ela perguntou. – Posso lhe levar comida, água? Você disse que suas regras não incluíam tortura, e o que vocês tem feito com ele parece tortura para mim.

- As regras se aplicam somente para o tratamento de sua espécie. – Raef disse; então sorriu levemente à luz do fogo.

O que ele quis dizer com isso? Amélia imaginou. Mulheres, mas não homens, deviam ser tratadas com respeito? – É uma tortura para mim não poder falar com ele. Dizer coisas a ele que sinto deverem ser ditas se estamos tão próximos de sermos mortos.

Ela realmente esperava que seu pedido fosse negado. Raef olhou para o céu, olhou para a gaiola, e deu de ombros. – Talvez você devesse dizer adeus. Vá e dê uma boa olhada nele. Você. – ele fez sinal para um dos guardas que estavam próximos. – Leve-a para vê-lo.

O homem se abaixou e agarrou o braço de Amélia e a pôs de pé. Amélia foi conduzida até a gaiola. Gabriel estava de costas para ela. Ela se abaixou perante a gaiola.

- Gabriel. – ela disse suavemente. – Eles me permitiram conversar com você um pouquinho.

Ele não se voltou para olhá-la. Ele estaria se culpando por terem sido capturados? Ele tinha feito o que podia, ela sabia disso. Amélia olhou para o guarda. – Por favor, um pouco de privacidade? – ela perguntou.

O homem se afastou um pouco, mas não tanto quanto ela teria desejado. – Gabriel. – Amélia tentou novamente. – Fale comigo.

- Eles podem nos ouvir? – ele perguntou suavemente,

Amélia olhou para o guarda novamente. Ele parecia alerta, mas não particularmente interessado no que eles estavam dizendo.

– Não se falarmos bem baixinho. – ela respondeu. – Você tem um plano, Gabriel?

- Sim.

Ela soltou um suspiro de alivio, mas ficou imaginando porque ele não se virava para olhar para ela; então notou que ele estava tremendo.

– Está doente de novo? – ela sussurrou.

- Isso não tem importância. – ele disse. Ele alcançou atrás dele e jogou algo na direção dela. A gaiola jogava sombras lá dentro e Amélia alcançou o objeto. Era uma faca.

Ela imaginou como ele a tinha conseguido, então se lembrou do guarda usando uma faca para cortar a rede antes de jogá-lo dentro da gaiola. De algum modo ele a tinha roubado do guarda, que obviamente ainda não dera por falta da arma.

- Solte suas mãos. – Gabriel disse.

Amélia imaginou se conseguiria, com seus pulsos amarrados juntos como estavam.

– Você deve fazer isso, - ela sussurrou.

Ele sacudiu a cabeça.

– Estou tremendo muito. Poderia cortá-la. Use seus joelhos. Deslize a faca entre ele para prendê-la; então você poderá cortar as cordas em seu pulso.

Imaginando o que deveria fazer depois de liberar suas mãos, Amélia fez como ele instruiu. Ela estava agradecida por usar um vestido e poder esconder facilmente suas ações nas dobras da saia. A faca era afiada e ela não levou muito tempo para soltar as mãos.

- E agora?

- Finja que está querendo me ver melhor se dirija ao final da gaiola. – ele instruiu. – Use a faca nas cordas que prendem o portão junto ao chão. Eu poderei chutar a porta para abri-la. Apele para mim bem alto para que eu olhe para você antes de mudar de lado.

Então era por isso que ele estava de costas para ela. Muito esperto.

– Gabriel, por que você não olha para mim? – Amélia levantou a voz ao perguntar. – Por que não me deixa ver você? - Agora pareceria ser uma resposta natural que ela mudasse de posição onde pudesse vê-lo melhor.

Uma vez lá, Amélia se ajoelhou, escondendo o fato de que suas mãos estavam livres e nas cordas que prendiam a gaiola numa ponta.

- Como vamos conseguir fugir? – ela sussurrou.

Por um momento a tremedeira dele piorou.

– Vou criar uma distração. – ele disse finalmente e ela pensou que a voz dele soou estranha, - Você tem de correr, Amélia, e continuar correndo. Eu os segurarei o tempo que puder.

Ela não gostou do plano dele. Nenhum pouco.

– Não. – ela sussurrou. – Vamos fugir juntos.

Ele sacudiu a cabeça.

– Não vai funcionar, Amélia. Eles não apanharão antes de chegarmos ao perímetro do acampamento. Temos uma chance melhor de fugir se você fizer o que estou dizendo.

Ela teria uma chance melhor, Amélia queria argumentar. Para ela, isso soava como se ele não tivesse chance nenhuma.

– Cortei as cordas. – ela sussurrou. – Por favor, olhe para mim agora.

Antes de fazer o que ela pediu, ele disse.

– Coloque a faca em sua bota, Amélia. Você consegue usá-la se for obrigada? Se isso significar sua vida ao custo da vida de outra pessoa?

Mora, ela pensou. Ele estava perguntando se ela conseguiria usá-la contra Mora se tivesse de fazê-lo. Amélia não tinha certeza. Em auto defesa, sim, ela supunha que poderia. Ela não saberia a menos que tentasse. Mas não era isso que Gabriel precisava ouvir.

- Sim. – ela respondeu.

- Promete.

- Olhe para mim. – ela insistiu.

- Promete primeiro.

- Eu prometo. – ela disse, embora não tivesse certeza se não estava mentindo para ele, o que ela não queria fazer. Uma pessoa não devia mentir para alguém a quem amava. Não sem uma boa razão. Amélia pensou que tinha uma razão suficientemente boa no momento.

Ele se sentou tremendo por um momento; então lentamente ele se virou no pequeno espaço da gaiola para olhar para ela.

Ela gritou.

 

Amélia se afastou de Gabriel. Os olhos dele cintilavam num azul brilhante. Na tonalidade alaranjada devido ao fogo, suas feições pareciam distorcidas, como se seu rosto estivesse se redefinindo. Quando ele abriu a boca, presas brilharam brancas na escuridão. Ele estendeu uma mão para ela, suplicando, mas suas mãos estavam deformadas, longas garras projetavam-se de seus dedos. Isso não podia estar acontecendo. Era outro sonho. Outro pesadelo.

- Amélia. – Sua voz saiu distorcida. – Me perdoe.

Tudo o que ela pode fazer foi sacudir a cabeça numa negação.

- O que você pensa de seu herói agora? – Ela olhou para cima e viu Mora pairando sobre ela. – Ele enganou você, assim como eu enganei você. Olhe para ele e me diga que ainda o ama.

Amélia não podia olhar. Ela não queria. Ela queria negar o que tinha visto, negar a verdade, negar que tudo isso estava acontecendo com ela...com Gabriel. Teriam essas pessoas feito algo a ele? Poderiam fazer algo para uma pessoa se tornar como eles? Poderiam fazer o mesmo com ela?

- O que vocês fizeram a ele? – ela gritou para Mora.

Mora se abaixou ao lado dela. – Não fizemos nada a ele. É a maldição dele. Ele não lhe falou sobre isso enquanto a seduzia para levá-la para a cama, falou? Quando estava roubando seu coração? Vá em frente e diga a ele que o ama apesar dele ser uma fera. Apesar de ele tê-la enganado.

Amélia olhou para Gabriel, que, estranhamente, parecia estar ouvindo, esperando pela resposta dela, mesmo enquanto mudava de forma. Havia muitas emoções correndo dentro dela para que pudesse examinar a todas, menos uma. Ela tinha de fugir.

Com um alto brado, Gabriel subitamente chutou e derrubou o portão de sua gaiola. Ele saiu num piscar de olhos. Bem rapidamente ele foi atacado por dois dos guarda mais próximos. Ele lutou como um louco. Ele lutou como um animal. E com uma súbita iluminação, Amélia percebeu que ele estava lutando por ela. Essa era a distração que supostamente permitiria que ela fugisse.

Mora ainda estava ao lado dela, mas Amélia viu que ela tinha sido pega pela distração. Amélia rapidamente olhou ao redor do acampamento. Até mesmo o irmão de Mora tinha se levantado de sua almofada e parecia pronto a entrar na briga caso dos guardas não conseguissem segurar Gabriel. Amélia deslizou a faca dentro da bota; então começou a se afastar vagarosamente, para não atrair atenção para si mesma. Mesmo com o pensamento de fugir em sua mente, ela não conseguia tirar os olhos de Gabriel.

Suas presas estavam mais pronunciadas agora, seu nariz maior, seu corpo encurvado e deformado, e ainda assim ele lutava corajosamente. Ela estava quase chegando ao perímetro do acampamento quando ele finalmente ficou de quatro. Os homens se afastaram dele e ela o viu estraçalhando as roupas deles.

Parecia ter durado eternamente, a transformação, embora Amélia soubesse que realmente alguns poucos segundos tinham se passado antes de ele se levantar do chão, não mais um homem, mas um lobo. Sua pelagem era de coloração clara. Ele era gigantesco e ela percebeu que tinha sido ele o lobo que a seguira na noite em que escapara da taverna. O lobo que se sentara debaixo da árvore onde havia buscado refúgio, olhando para ela. O lobo que mancava.

Gabriel, ou antes, o lobo que tinha sido Gabriel, fugiu na direção contraria a de Amélia. Por todo o acampamento, os olhos dos homens começaram a brilhar, presas começaram a ser exibidas. Eles caçariam Gabriel na forma de lobo para que ele não tivesse vantagem sobre eles. E em algum momento, alguém perceberia que ela tinha desaparecido. Amélia se pôs de pé. Apesar de seus joelhos estarem trêmulos, ela correu pela floresta. Ela correu como nunca correra antes, agora mais condicionada pela fuga de Collingsworth Manor, pela sua jornada pela floresta em direção a Wulfglen.

Sua mente queria pensar sobre Gabriel e o que acabara de acontecer com ele, mas ela não permitiria isso. Ela poderia se partir se o fizesse. Ao invés disso, ela apenas pensou em fugir, em ficar distante das criaturas que sabia logo viriam atrás dela, se já não estivessem. Um alto coro de uivos ecoou na floresta atrás dela. Amélia engoliu um grito e continuou correndo.

Não havia segurança para ela na floresta. Nenhum lugar onde um lobo não poderia farejá-la. Nenhum modo possível que pudesse correr mais rápido que seus captores em caso de perseguição. Esses pensamentos quase a derrotaram. Ela queria parar e descansar. Parte dela queria desistir. Então ela sentiu o ligeiro perfume de fumaça no ar. Seriam as fogueiras noturnas queimando em Wulfglen? Ela estaria tão perto? Ou seria simplesmente o cheiro do acampamento que acabara de deixar para trás? Amélia parou.

Levou um momento para recuperar o fôlego; então tentou perceber de que lado o vento soprava. Na direção dela, ela percebeu, o que significava que a fumaça que tinha sentido não estava vindo detrás dela, mas de sua frente. Mas se ela conseguisse chegar a Wulfglen, teria lá o porto seguro que imaginara? Mora dissera que o que acontecera a Gabriel era sua maldição. Todos os irmãos Wulf eram supostamente amaldiçoados, pela insanidade, todos pensavam.

Seriam Armond e Jackson iguais a Gabriel? E se fossem, sua amiga Rosalind saberia sobre seu marido? Lucinda saberia? Ou os irmãos Wulf mantinham seus segredos, da maneira como Gabriel fizera com Amélia? Será que eles iam querer matá-la porque ela sabia, como os outros a queriam morta? Subitamente Amélia percebeu que não tinha ninguém em quem confiar. Ninguém que não tivesse mentido para ela, a enganado.

Mas talvez isso não fosse verdade. Ela estava confusa. Gabriel tinha mentido para ela, a enganado, mas ele também a protegera. Mesmo essa noite ele tinha desejado se sacrificar por ela. Ela acreditava que o amava. Poderia amar um homem amaldiçoado como ele era?

Amélia tinha de tomar uma decisão. Ela não podia passar a noite toda parada tentando ordenar seus pensamentos e sentimentos. Os únicos pensamentos e sentimentos que tinha de ter no momento era como fazer para sobreviver essa noite. Ela tinha de tentar a sorte em Wulfglen. Mesmo que não tivesse ninguém na casa, os criados ainda estariam, não é? Pelo menos aqueles que fossem encarregados de cuidar do estábulo. Tendo tomado sua decisão, Amélia partiu na direção onde ainda sentia o vago cheiro de fumaça no ar. Não tinha ido muito longe quando foi atacada.

O lobo arremessou-se sobre ela vindo das sombras, jogando-a ao chão. Amélia rolou na poeira, então se afastou. Ela conhecia o lobo agora. Era Mora. Ela teria sido a primeira a perceber que Amélia havia fugido. Ela teria sido a primeira a vir atrás dela.

- Vou matar você. – ela disse a fera. – Se não me der escolha, protegerei a mim mesma.

O lobo arreganhou os dentes e rosnou para ela. Amélia estava quase feliz por Mora tê-la atacado na forma de um animal. Se ela tivesse de cumprir sua ameaça, seria mais fácil. Ainda assim havia uma coisa que essas pessoas não conseguiam mudar, que eram os seus olhos. Eram os olhos de Mora olhando para Amélia, não os olhos de uma fera.

- Deixe-me ir. – ela apelou para Mora. – Ninguém acreditaria em mim se eu falasse sobre você e os outros. Pensariam que eu enlouqueci. Quero a vida que planeja roubar de mim. Lutarei com você até o fim para mantê-la.

O lobo se aproximou. Amélia levantou a faca, sua mão agarrada ao curto cabo para poder cortar com toda sua força. O animal contraiu-se, como se fosse atacar, mas das sombras um lobo maior atirou-se contra Mora e a derrubou. Amélia reconheceu esse lobo também. Era Gabriel.

Lobo em posição de defesa contra lobo. Eles circulavam um ao outro, rosnando, os pelos do pescoço eriçados. Amélia engatinhou para longe deles, suas costas pressionadas contra uma árvore, a faca ainda segura na frente dela. As feras colidiram-se. Eram uma mancha para os olhos meramente humanos de Amélia, mas pelos sons da luta, ambos queriam sangue. Numa batalha de feras, Gabriel claramente levava vantagem. Ele tinha o dobro do tamanho de Mora e rapidamente a sujeitou. Amélia ouviu o lobo menor uivar; então se arrastou para longe, rastejando pelo chão, sangrando no ombro.

Amélia esperava que Gabriel acabasse com Mora, mas, ao invés disso, sua grande cabeça se voltou na direção dela. Ele caminhou até ela. Ela engoliu audivelmente e segurou a faca na frente dela.

- Fique longe, Gabriel. – ela sussurrou. – Não quero machucá-lo, mas o farei.

O lobo parou e ficou observando-a. Amélia não tinha idéia se Gabriel podia entendê-la na forma de lobo, como ela suspeitava que Mora e sua espécie podiam. Mora havia dito que ele não era o mesmo. Ele era amaldiçoado. As perguntas que ele fizera voltaram para assombrá-la nesse instante. Quando ele perguntara se ela mataria para se defender, ele não quis dizer apenas Mora ou seu povo. Ele quis dizer contra ele.

Ela poderia matá-lo se ele a atacasse? Seus olhos eram os olhos do homem que ela amava, ou pensava que amava. Se ele pudesse entender suas palavras, entender quem ela era, ele ainda era Gabriel debaixo daquele pêlo e presas, não era? Mora se moveu e o grande lobo imediatamente voltou sua cabeça e rosnou para ela. Ela ficou parada.

Gabriel não queria que Mora chegasse perto dela, Amélia compreendeu. Mesmo como um lobo, ele a estava protegendo. Ela abaixou a faca. O que quer que Gabriel Wulf fosse, ele não machucaria Amélia. Ela sabia disso com uma certeza que nunca tivera sobre algo ou alguém antes. Ele tinha mentido para ela. Ele a havia enganado, mas ela ainda podia confiar sua vida a ele. Mas e seu coração?

O cansaço se instalou em seus ossos. Ela inclinou a cabeça contra o tronco da árvore e fechou os olhos. No momento, Gabriel não permitiria que nada acontecesse a ela. No momento, ela estava segura.

 

Era horrível. Acordar nu e tremendo, confuso, tentando entender o que tinha acontecido a ele e onde ele estava. Gabriel se esticou, seus músculos protestando, como se ele tivesse sido virado do avesso. Sua perna estava melhor. Ou isso ou o resto dele estava tão ruim que a perna parecia um problema menor em comparação. Ele se esticou na fresca luz da manhã. Então se lembrou.

Amélia. Deus, onde ela estava? Teria fugido? Estranhamente, ele tinha uma recordação embaçada de tê-la visto na floresta... uma faca agarrada com força em sua mão. Ainda mais estranho, ele se lembrou do que ela tinha dito a ele. Ela dissera que o machucaria se não tivesse escolha. Ele não estava morto. Isso deixava a horrenda possibilidade de que ela pudesse estar. Gabriel se levantou do chão da floresta, nu. Então a viu um pouco mais a frente. Ela estava adormecida. Ele suspirou de alívio; então viu mais alguém.

Mora jazia no chão, humana, seus olhos fechados. Folhas a cobriam como um cobertor. Alguém poderia confundi-la com uma princesa das fadas, se não soubesse a verdade. A lâmina da faca ainda segura nas mãos de Amélia brilhou para ele quando a luz do sol conseguiu penetrar a pesada cobertura das árvores acima. Gabriel foi até ela; inclinou-se e removeu a faca da mão dela. Ela abriu os olhos. Por um doce momento, ela sorriu para ele. Então, quando o entendimento chegou a ela, o sorriso desapareceu e ela se pressionou contra a árvore, como se para fugir dele. Gabriel não tinha tempo para oferecer segurança de que ele era ele mesmo e que ela não tinha razão para ter medo dele.

Ele tinha que lidar com a ameaça de Mora de uma vez por todas. Gabriel nunca machucara uma mulher fisicamente, mas Mora mataria Amélia se tivesse outra chance. Ele não podia permitir que ela tivesse outra chance. Ele caminhou até onde Mora estava, abaixou-se, e colocou a faca em sua garganta. Ela abriu os olhos, e por instantes, como ele tinha se sentido anteriormente, ela parecia confusa. Os olhos dela se arregalaram ao vê-lo encurvado sobre ela, nu e com uma faca pressionada contra sua garganta. Ela tentou se mover, mas o gesto lhe fez gemer. As folhas caíram de seus ombros e Gabriel viu a feia marca de mordidas, o sangue.

- Você é minha inimiga, Mora. – ele disse a ela. – Você é um perigo para Amélia. É hora de acabar com suas ameaças.

Ele pensou em fazer um corte limpo e rápido; apesar do que ela tinha feito a ele e a Amélia, Gabriel não queria que ela sofresse. Subitamente uma mão pousou em seu ombro.

- Não, Gabriel. - Amélia suspirou.

Ele olhou para ela. A luz do sol dançava ao redor de sua cabeça loira como um halo. A compaixão nos olhos dela penetrou em seu coração.

- Ela podia ter me matado duas vezes e não o fez. Não creio que o dever dela é tão simples quando ela foi levada a pensar.

Gabriel olhou para baixo, para a mulher presa por sua faca. Mora olhou para Amélia. – Eles nos ensinam a como falar, como andar, como nos ajustar em qualquer posição, seja de criado, seja de patrão. Eles não nos dizem que nos importaremos. Eles não nos ensinam a matar sem consciência. Não estou certa de que estamos prontos para dominar o mundo ainda.

Mora os havia enganado antes. Gabriel não sentia compaixão por ela como Amélia sentia. Ele certamente não confiava em Mora. E ele não tinha Amélia a salvo em Wulfglen. Ele tinha de tomar uma decisão, e não era uma fácil, apesar da traição de Mora. Ele também havia enganado. Mora e seu povo estavam apenas tentando sobreviver. Ele devia entender isso, e talvez ele pudesse, se eles tivessem seguido suas próprias regras.

- Vocês falam de regras entre seu povo e então as descartam no momento em que as coisas não saem como planejadas. – ele disse a Mora. – Vocês têm patifes entre vocês, como Vincent, que machucaria Amélia ao invés de seduzi-la como devia ter feito. Vocês são mais feras do que humanos algumas vezes. Vocês nunca sobreviverão entre a sociedade civilizada.

- É algo em que se pensar.

Gabriel virou a cabeça e viu Raef parado não muito longe, uma pistola apontada para ele.

- Agora, solte minha irmã.

Raef não estava sozinho. Seus homens estavam atrás dele. Gabriel poderia acabar com a ameaça de Mora com um golpe de sua faca, mas haviam outros com quem lidar.

- Eu troco a vida dela pela de Amélia. – ele disse. – Deixe-a ir. Você pode fazer o que quiser comigo.

- Cavalheiro até o fim. – Raef disse, o sarcasmo habitual condimentando sua voz. – Isso não é algo que possa ser ensinado, infelizmente. Fico feliz por poucos de sua classe social possuírem esse traço.

- Raef. – Mora o chamou suavemente. – Faça o que ele diz. Deixe Amélia ir. Não consegui enganar esse homem quando assumi a forma dela; duvido então que consiga enganar outros que a conheçam bem. Matá-la é sem sentido e bárbaro. Ela me mostrou compaixão, e eu devo fazer o mesmo.

O irmão de Mora franziu a testa. Ele não abaixou a arma. – Eles contarão aos outros sobre nós.

- Contarão? – Mora desafiou. Ela tentou lutar para se sentar, lembrando-se que estava nua, ficou como estava. – Mesmo que o façam, a quem quer que o façam pensaram que ela enlouqueceu, e já se diz que a família dele é louca. Por que contariam? Ele não é melhor do que nós. Seria vantajoso para ele que a sociedade permanecesse ignorante.

Raef não pareceu totalmente convencido. Gabriel apertou a faca contra a garganta de Mora novamente para ajudar a convencê-lo. Se estivesse lidando apenas com um homem, Gabriel nunca usaria uma mulher como ferramenta de barganha, mas pela segurança de Amélia, ele o faria. Raef pareceu sentir a dedicação de Gabriel. Finalmente, ele abaixou a pistola.

- Tudo bem, Wulf. Eu troco a vida de minha irmã pela vida de sua adorada dama. E quanto a você, não temos utilidade para um homem que não compartilha de nossos objetivos. Afaste-se de Mora. Você e a mulher estão livres para partirem agora.

Gabriel ainda estava alerta. Essas pessoas os perseguiram por dias. Eles eram dedicados a sua causa. Haviam provado que matariam por ela. Ele achava difícil acreditar que o povo de Mora deixaria que ele e Amélia partissem.

- Ele vai manter sua palavra. – Mora disse, como se sentindo a hesitação de Gabriel. – Meu irmão e eu temos um pacto de honra com os Wargs, mas nem sempre concordamos com eles. É hora de voltarmos para as sombras. Pensar sobre essa experiência e avaliá-la. E é hora de vocês irem para casa.

Casa. Seria ou poderia ser a mesma coisa para Gabriel agora? Ele estava amaldiçoado. Ele havia enganada a mulher que amava. O que restara para ele? Viver sozinho? Ainda seria suficiente?

Ele sentiu a mão de Amélia em seu ombro novamente. – Deixe-a ir, Gabriel. Acabou, agora.

Vagarosamente, ele retirou a faca da garganta de Mora. – Nunca mais quero vê-la novamente. – ele disse a ela.

O sorriso que cruzou seus lábios era ao mesmo tempo frio e triste. – Você vai. Mas você não saber que sou eu.

Raef se adiantou, a pistola agora enfiada na cintura de sua calça. Ele jogou a valise de Amélia no chão, então estalou os dedos. Um de seus homens apareceu com um jogo de roupas simples e um grande par de botas. Ele colocou os itens no chão perto da valise. Enquanto Gabriel se apressava para vestir as calças, o homem entregou a Raef um cobertor. O irmão de Mora se curvou ao lado dela. Pouco depois ele se levantou carregando nos braços o corpo de Mora envolto no cobertor.

Ele parou diante de Gabriel. – Eu dei minha palavra a minha irmã dessa vez. – Raef disse. – Se nossos caminhos se cruzarem novamente, não serei tão civilizado.

- Nem eu o serei. – Gabriel garantiu ao homem.

Eles se encararam por um momento em um desafio silencioso. Finalmente, Raef se virou e se afastou, sua atitude como a de um príncipe. Ainda desconfiado, Gabriel observou Raef e seus homens entrarem na floresta. Pouco depois, ela os engoliu, como se eles nunca estivessem estado lá. Gabriel continuou olhando, forçando os olhos nas sombras da floresta até ter certeza de que eles haviam realmente desaparecido. Então, lentamente se voltou para encarar a mulher a quem havia enganado.

 

Uma barragem de emoções assaltou Amélia. Alivio por Raef e seus homens partirem, por ela estar segura, pelo pesadelo ter terminado; apenas que não havia acabado. Perante ela estava o homem que ela amava, apesar de ele tê-la enganado. Ele havia mentido para ela. Ele não era quem ela pensava que fosse. Como ela deveria se sentir em relação a ele? Como poderia supostamente retomar sua vida quando nada em sua vida era mais o mesmo?

Ele a encarava agora, esperando que ela dissesse alguma coisa, mas o que podia dizer? Como ela podia entender o que ele nunca explicara a ela?

- Você me enganou. – ela disse finalmente.

Gabriel não pode mais manter o olhar dela. Ele desviou os olhos, abaixou a cabeça e estudou o chão. – Sim. – ele respondeu.

– Eu enganei.

- O que é essa maldição que paira sobre sua família? – ela perguntou. – Por que não me disse a verdade desde o começo?

Ele olhou para ela com seus olhos verde floresta.

– No começo, se eu lhe contasse a verdade, você teria medo de mim. Você não permitiria que eu a ajudasse. Você não teria confiado em mim.

Isso era verdade. Depois do que acontecera a ela em Collingsworth Manor, tivesse Gabriel lhe dito que era diferente, que ele podia mudar de forma como os outros, ela teria pavor dele. Ainda assim...

- Mais tarde, você podia ter me contado. – ela disse. – Mais tarde, você deveria ter me contado.

Ele desviou os olhos dela novamente.

– Eu sei. – foi tudo o que disse.

Ela estava cansada dos segredos dele e os queria expostos agora. Ele lhe devia isso.

– Fale-me sobre sua maldição. Seus irmãos também sofrem com ela? As esposas deles sabem, ou eles guardam segredo como você?

Abaixando-se, Gabriel pegou a camisa que lhe fora deixada no chão e a deslizou pela cabeça.

– Todos os que são de nossa linhagem sofrem com a maldição. – ele respondeu. Um de nossos ancestrais foi amaldiçoado por uma bruxa muito tempo atrás. Mas a maldição tem de ser posta em movimento. Não tenho idéia se Armond sofre com ela como eu sofro agora, ou Jackson, embora já suspeitasse dele antes dele desaparecer.

Curiosa, Amélia aproximou-se dele.

– Deve ser posta em movimento? Pelo que?

Ele não respondeu. Ao invés disso, ele pegou as botas que estavam perto da valise dela e arrumou sua roupa.

- Pelo que, Gabriel? – ela repetiu.

Finalmente ele olhou para ela de novo.

– Pelas fraquezas de um homem.

A resposta dele a confundiu.

– Você que dizer doença? Aconteceu porque sua perna infeccionou?

Ele sacudiu a cabeça.

– Não. Eu quis dizer fraqueza. Uma falha de caráter – ser incapaz de resistir a coisas que um homem mais forte resistiria. Eu abaixei minhas defesas contra a maldição e agora ela me pegou.

Se a maldição estivesse simplesmente ligada às fraquezas de um homem, Amélia imaginou como não o havia afetado antes de agora. Certamente todos os homens têm fraquezas. – A maldição acabou de cair sobre você? Ou você já tinha a habilidade de mudar de forma desde o começo?

Gabriel caminhou até um tronco caído e se sentou. Ele ainda estava mancando um pouco, ela notou. – Não, ela caiu sobre mim nessa lua cheia, e eu não tenho a habilidade de me transformar. Eu não tenho escolha. Mas sabia sobre a maldição há muito tempo. Já sabia que era diferente dos outros homens.

Ela soubera que ele era diferente também. Mas com as outras ameaças apontadas para ela, ela nunca o considerou como uma também. E não deveria tê-lo feito, Amélia percebeu. Ele nunca tinha sido uma ameaça para ela, nem mesmo quando a lua o mudara. Ele ainda tinha sido seu protetor.

- O que acontece agora? – ela perguntou a ele.

Levantando-se do tronco, ele se aproximou e pegou a valise dela.

– Agora eu a levo até Wulfglen. Você segue com sua vida e eu vou ver o que vou fazer da minha.

As palavras dele caíram abruptas no ar ao redor dela. Era para ela supostamente esquecer o que lhe havia acontecido? O que acontecera a ele? Que ela o amava? Amava mesmo? Ele não era seu príncipe, ele era um homem amaldiçoado. Um homem que a havia enganado, não importando o quão certo ele pensava estar naquele instante. E mesmo assim ela queria acreditar nos sonhos que tivera sobre sua vida e a dele. Apesar de tudo o que acontecera, ela ainda tinha esperança. Subitamente ela entendeu por que ele não tinha esperanças ou sonhos.

- Foi isso o que aconteceu a seu pai, não foi? – ela perguntou.

Ele continuou caminhando.

– Sim. Ele era fraco, minha mãe também. A maldição os destruiu.

E, Amélia imaginou, destruiu seus filhos de certa forma. Protegida e mimada durante toda sua vida, ela supôs que não saberia julgar o que o suicídio do pai de Gabriel fizera a ele. Ou o falecimento de sua mãe logo após o fato do que deveria ter sido um choque para ele. Então os filhos foram deixados sozinhos com o medo entalhado neles de que suas vidas poderiam acabar em semelhante tragédia.

- Você não precisa seguir os passos deles. – ela disse. – Você não deve deixar que isso o destrua.

Parando, ele voltou-se para ela novamente.

– Se você pensa que estou planejando pegar uma pistola e estourar meus miolos, você está errada. – ele disse. – Se você pensa que vou continuar a ter uma vida normal como um homem normal, você também está errada nisso. Venha, Amélia. – ele acrescentou impacientemente. – Creio que você deve estar ansiosa para voltar à vida que foi forçada a deixar para trás nesses muitos dias. Em duas semanas, você terá esquecido até mesmo que isso aconteceu.

Ela estava abalada por ele dizer isso a ela. Ela não o seguiu.

– Você ainda pensa tão pouco de mim? – ela exigiu saber. – Que eu sou tão superficial? Que eu vou conseguir esquecer o que aconteceu comigo, conosco?

Ele parou adiante dela. Por um momento ele abaixou a cabeça, como se as perguntas dela o envergonhassem. Foi nesse momento que Amélia compreendeu que ele não confiava nela – que Gabriel Wulf nunca havia confiado em ninguém. Talvez nem em si mesmo.

- Você não me machucaria, – ela disse. – enquanto está na forma do lobo. Você me protegeu de Mora noite passada.

- Não sei disso. – ele mordeu, sua voz amarga. – Não consigo me lembrar de pensamentos ou do que acontece comigo enquanto a noite e a lua controlam a minha vida. Não posso ter certeza de que não a machucaria. Não poderia viver comigo mesmo se o fizesse.

Seu coração se suavizou e ela soube então que ainda o amava. Ela uma vez pensara que era muito superficial par amar, ou tinha muito medo, mas agora sabia que esse não era o caso. Havia lhe sido dado um grande teste para seu amor. Gabriel havia sido testado também.

- Você deve aprender a confiar, Gabriel – ela disse. – Se não em alguém mais, pelo menos em si mesmo. O que você considera fraquezas talvez sejam apenas emoções humanas.

Os olhos dele a perfuraram e ele deu um passo em direção a ela.

– Você sente nojo de mim agora? Você tem medo de mim? Você não está desejando não ter se entregado a mim?

Ela não tinha nojo dele. Nem tinha medo dele. E não, ela não negaria o amor que compartilhara com ele. O amor que fizeram um com o outro. Mas palavras convenceriam um homem tão desconfiado do mundo e aparentemente de todos que nele viviam?

Amélia encurtou a distância entre eles. Quando parou diante dele, ela se aproximou, colocou seus braços ao redor do pescoço dele e o beijou.

Gabriel tinha esperado desculpas, talvez mentiras para poupar seus sentimentos; ele não tinha esperado que Amélia o beijasse. Ele respirou o cheiro fresco dela, saboreou a sensação dos lábios macios pressionados contra os dele. Por que ele não lhe dava nojo? Por que ela não estava com medo dele? Por que ela não reagia a ele como tinha pensado que ela faria quando descobrisse a verdade? Estaria fingindo? Será que temia que se demonstrasse os verdadeiros sentimentos que tinha por ele, ele não a levaria até Wulfglen em segurança? E quão longe ela pretendia levar essa farsa?

Gabriel agarrou a cabeça dela e inclinou a boca sobre a dela. Ela se abriu desejosamente para ele e ele a saboreou, a explorou com medo de não ter outra oportunidade novamente. O corpo dela fundiu-se ao dele, suas curvas cheias pressionadas contra seus músculos duros. Ele estava em chamas num piscar de olhos. Talvez a fera dentro dele o governasse até mesmo quando o céu não estava escuro, a lua não estava cheia, ou talvez fosse apenas o homem que não pudesse resistir a ela. O homem que a amava, mas não podia lhe oferecer um futuro, mesmo que ela estivesse desejosa de compartilhar de sua vida amaldiçoada.

Com grande esforço, Gabriel terminou o beijo, a soltou, e se afastou.

– Não precisa se prostituir para mim. – ele disse. – Me certificarei de que chegue a Wulfglen em segurança. A fera somente me controla durante a noite.

Amélia fez outra coisa que o surpreendeu. Ela o esbofeteou. O rosto dela corou violentamente.

– Não estou tão certa disso. – ela atacou. – Você esta agindo como uma bem agora. – Ela marchou para adiante dele. – Talvez não lhe tenha ocorrido que não preciso de sua ajuda para chegar até Wulfglen. Qualquer idiota sabe identificar qual lado é o leste.

Ele ficou parado olhando para ela, muito abalado para responder por um momento; então se viu rindo. Ela se voltou para ele, colocou as mãos nos quadris e perguntou:

- O que você está achando tão engraçado?

- Você. – ele respondeu honestamente. – Você deveria estar tremendo nessas botas horrorosas que está usando; ao invés disso, você me beija, depois me esbofeteia e me coloca em meu lugar. Não é de se admirar que eu a ame. Não existe outra como você.

Gabriel percebeu o que acabara de admitir a ela quando a expressão enfezada dela se apagou e seus olhos se encheram de lágrimas. Ele queria tomar as palavras de volta, e ao mesmo tempo estava feliz por finalmente as ter dito. De finalmente tê-las admitido, mesmo para si mesmo.

Ela voltou até ele e erguendo a mão tocou no rosto dele suavemente.

– Por que é tão difícil para você dizer essas palavras? – ela perguntou, - Por que você considera seus sentimentos por mim como uma fraqueza?

- O amor é a maldição. – ele respondeu sem pensar.

Ela piscou para ele.

– O que?

Ele havia dito mais do que tinha pretendido.

– Deixe para lá; vamos.

Amélia agarrou o braço dele quando ele pensou em seguir em frente.

– O que você quis dizer com “o amor é a maldição”?

Ele sabia pela expressão dela que ela não desistiria sem algum tipo de explicação. E talvez ela merecesse a verdade de uma vez.

- “O amor é a maldição que te prende, mas também é a chave”. É uma citação de um poema escrito pelo primeiro Wulf amaldiçoado. – Ele nunca tinha entendido essa frase em particular da charada. Como o amor podia ser ambos: a maldição e a chave? A chave para o que?

- Eu sou a razão por você estar amaldiçoado pela lua agora. É isso o que você está me dizendo?

Gabriel não queria que ela se sentisse culpada. Ele certamente não queria que ela se sentisse endividada com ele. Ou, os céus proibissem, pena. Ele podia suportar quase tudo, menos isso. Tocando o rosto dela suavemente, como ela tinha feito a ele, ele disse.

– Não é sua culpa Amélia. – ele garantiu a ela. – É minha própria falta. Sabia das conseqüências e ainda assim me permiti ser fraco. Entregar meu coração quando sabia que não devia. Troquei tudo pela chance de ser apenas um homem perante seus olhos. Mesmo que por apenas uma noite.

Quando uma lágrima deslizou pelo rosto dela, ele a limpou com seu polegar.

– Não quero que chore. – ele disse, as lágrimas dela o fazendo se sentir mais culpado. – Quero que seja feliz. Quero que deixe tudo isso para trás e...

- Eu lhe disse uma vez que não acreditava no amor. – ela o interrompeu, sua voz emocionada.

– Pensava que fosse apenas uma palavra mais suave para desejo, ou dever. O que sinto por você vai além do desejo. Eu não tenho dever para com você. Foi quando descobri que eu acredito no amor e que eu amava você. Preciso saber que sou mais do que uma conseqüência para você, Gabriel. Você precisa entender que para amar precisa-se ser uma pessoa mais forte do que alguém que esconde seu coração do mundo. Você precisa entender que compaixão não é o mesmo que pena. Quando você aprender essas coisas, venha e me encontre.

Com isso, ela se afastou dele, pegou a valise que ele havia derrubado e caminhou para longe dele. Gabriel começou a ir atrás dela. Para pará-la, puxá-la para seus braços e beijá-la até que ela não conseguisse mais pensar direito. Mas ele não podia. Ela não entendia tudo o que seria obrigada a enfrentar se ficasse com ele. Uma vida solitária para Amélia Sinclair Collingsworth? Ele não podia imaginar isso, e não queria.

Não haveria filhos para eles. Ele teria de se afastar quando a maldição o visitasse. Ele teria de deixá-la sozinha. Com o tempo, ela poderia odiá-lo. Com o tempo, ela poderia abandoná-lo. Melhor deixá-la ir agora, embora o partisse ao meio fazer isso. Ele sabia que a amaria mais a cada dia e a dor de perdê-la seria insuportável. Como a dor de perder seus pais. A dor de compreender que sua vida estava amaldiçoada. A dor de deixar todos os seus sonhos e esperanças morrerem naquela noite dez anos atrás quando seu pai se transformara em lobo à mesa do jantar.

Mas por ela ele poderia se sacrificar. Não poderia? Gabriel a observou se movendo adiante dele. Ele não a pararia. Ele acompanharia seus passos até Wulfglen para se certificar de que ela chegaria à propriedade em segurança; então ficaria na floresta até que ela partisse.

 

Gabriel olhava para as luzes queimando nas janelas da residência de sua família, Wulfglen. Amélia devia estar lá dentro agora, cercada, ele esperava, pelos seus irmãos, ouvindo a história sobre como ela chegara até lá. Ele ansiava por estar lá, também, ao lado dela. Ele ansiava ser um homem comum que tinha tido uma extraordinária aventura. Mas, é claro, ele não era comum, nem nunca tinha sido.

Mesmo agora, enquanto a noite caia, ele sentia o lobo dentro dele preparando-se para emergir. Gabriel vagaria pela floresta de seu lar como uma fera. Por quanto tempo? Quanto tempo até poder voltar para casa?

- Fale-me sobre suas esperanças e sonhos.

Assustado, ele se virou e viu Amélia parada a curta distância dele.

– Pensei que estivesse dentro da casa. O que está fazendo aqui fora?

Ela deu de ombros, e por instantes ela parecia uma garotinha perdida com sua valise colocada ao lado dela no chão.

– É estranho, viajar por dias temendo por sua vida, apenas para quando seu destino está próximo, você não conseguir ir.

Gabriel estava confuso e mais do que um pouco preocupado por que a fera logo estaria sobre ele e Amélia não tinha se colocado em um lugar seguro.

– É claro que você pode ir. – ele disse. – É logo ali. – ele fez um gesto com a cabeça na direção da casa. – Tem alguém em casa ou todas as luzes não estariam acesas. Não tinha visto esse lugar assim iluminado em anos.

- Venha comigo. – ela disse suavemente.

Ele ansiava por ir, mas não podia.

– Você sabe que não posso. – ele disse. – Não agora. Não quando a noite está sobre mim. Você não deveria estar aqui. Tenho medo de machucá-la, Amélia.

- Você já o fez. – ela disse. – Mas não tenho medo de você quando se transforma na fera. Eu já lhe disse, você não me machucará. Além disso, talvez seus irmãos tenham encontrado uma maneira de contornar a maldição já que estão casados e felizes.

- Eu não sei. – ele disse. – Mas não estou ansioso por testar a sorte de que não a machucarei. E nem você deveria.

Ela deu um passo em direção a ele. – É aí que somos diferentes. Eu desejo tentar a sorte. Eu desejo confiar.

A teimosia dela era um traço que ele poderia achar estimulante sob diferentes circunstâncias.

– Não a quero aqui. – ele disse mais duramente do que queria. Ele tinha de fazê-la entender que ela devia ir. Mesmo que uma parte dele não quisesse que ela se fosse. Nunca.

Ela abaixou a cabeça e ele odiou ter de ser duro com ela. Amélia Sinclair Collingsworth podia amarrá-lo em seu mindinho com um beicinho ou uma lágrima. Ele sabia disso e desejava que pudesse passar o resto de sua vida mimando-a. Amando-a e fazendo amor com ela.

- Estou com medo. – ela sussurrou.

Medo? Ela não devia ter medo de mais nada agora, exceto dele. Mora e Raef tinham mantido sua palavra. A morte de Robert poderia ser rotulada como um acidente assim que Amélia reportasse seu desaparecimento e seu corpo fosse encontrado no campo. Ela seria uma viúva jovem, rica devido ao próprio dote, o qual Robert não tivera tempo de gastar. Collingsworth Manor pertenceria a ela, uma vez que Robert não tinha parentes vivos e Amélia tinha sido sua esposa, mesmo que por uma noite. Gabriel garantira que a consumação de seu casamento não pudesse ser questionada. O que ela tinha para temer?

Embora quisesse manter a distância entre eles, ele foi atraído para ela, parada na crescente escuridão, parecendo uma criança perdida. Ele caminhou até onde ela estava, estendeu a mão e levantou seu queixo.

- Do que você tem medo, Amélia?

Os olhos dela cintilavam com as lágrimas quando os ergueu para ele.

– Não quero voltar para o meu mundo sem você. Prefiro antes ficar aqui no seu.

Ela não podia desejar o que acabara de dizer. Como poderia trocar a vida brilhante que tinha conhecido pelas trevas? Por que iria querer fazê-lo? Ele não queria que ela o fizesse; nem mesmo em seus sonhos mais egoístas ele poderia negar a ela tudo o que ela merecia da vida. Foi então que Gabriel percebeu que ele tinha sonhos, que ele tinha esperanças. Amélia os havia dado a ele novamente.

- Deixe-me contar a você sobre minhas esperanças e sonhos. – ele disse. Ele se aproximou e gentilmente pegou os ombros dela entre as mãos e a puxou para perto. – Eu espero que você seja feliz. Eu espero que se torne a mulher mais chocante de Londres, porque você vai viver sua vida da forma que escolher, e não como os outros esperam que você o faça. Eu espero que você saboreie cada dia, porque agora você sabe o que é ter medo de que não haja mais amanhãs. E não importa o que acontecer comigo, eu sonharei com você. Eu sonharei em vê-la dançando em um salão de bailes em Londres, ou cavalgando com calças masculinas e botas, e isso aquecerá meu coração. Me ajudará a enfrentar o que quer que eu deva encarar.

Ela sorriu suavemente para ele.

– E você não tem sonhos e esperanças para si mesmo?

Ele pensou sobre isso por um momento. E percebeu que tinha.

– Ser corajoso como você é. Ser forte como você é. Amar como você ama, e confiar como você confia. Sentir compaixão e saber que isso não é vergonhoso. Entender que minhas fraquezas me tornam humano e então me unir a elas.

Os olhos dela eram do mais suave azul na escuridão crescente.

– Oh, Gabriel. – ela sussurrou. – Eu te amo tanto.

Ele não resistiu quando ela se levantou na ponta dos pés e o beijou. E em algum lugar de seu coração cansado, ele começou a acreditar que ela o amava. Que nenhum deles poderia ter fugido desse momento no tempo não importando o caminho que suas vidas tivessem tomado. Ele tinha sabido a partir do momento em que a vira nas ruas de Londres meses atrás que ela era especial.

- Eu te amo, também, Amélia. – ele disse contra os lábios dela. – E nenhuma maldição vai me fazer deixar de amá-la.

Ela se afastou para olhar para ele.

– Deixe-me ficar com você. Aqui fora na escuridão essa noite; então quando a manhã chegar iremos juntos para a casa.

A dúvida retornou imediatamente. Permitir que Amélia ficasse com ele? Enquanto a maldição o dominava? Enquanto ele se transformava numa fera para rondar pela noite? Poderia fazer o que ela pedira e confiar em si mesmo? Como poderia se logo ele não seria ele mesmo? E ainda assim, olhando nos olhos dela, Gabriel pensou que por ela, ele faria qualquer coisa.

- Por favor. – ela sussurrou. – Confie em mim; confie em si mesmo. Confie no nosso amor.

Ele ousaria? Deus, ele queria tanto isso. Espantar a nuvem negra que pairava sobre sua cabeça por dez anos. Caminhar na luz do sol com ela ao lado dele. Sentir-se inteiro. Sentir-se amado. Ser feliz apesar das adversidades que se empilhavam sobre ele. Viver cada momento com ela como se fosse o seu último. Os olhos dela diziam que ele podia...que suas esperanças e sonhos estavam a seu alcance. Poderia estender a mão para eles?

- Tudo bem, Amélia. – ele disse. – Confiarei em mim mesmo e em meu amor por você. E rezo a Deus para que ao fazer isso não cometa um erro.

Ele pensou em se inclinar e beijá-la novamente antes da escuridão o reclamar, mas a dor em seu estômago o atingiu tão rapidamente que o fez ofegar e tropeçar para longe dela. Ele caiu de joelhos.

- Está acontecendo, Amélia. – ele disse através dos dentes cerrados.

Ela se abaixou ao lado dele.

– Estou aqui com você. – ela disse. – Não estou com medo.

Ele estava. Não por si mesmo, mas por ela. Se Amélia tinha coragem de encarar a fera face a face, então ele também teria. Foi preciso toda sua força, toda sua vontade, toda a confiança enquanto ela pedia que ele o fizesse. Ele deixou a fera vir. Desafiou-a a roubar seus sonhos e esperanças. Gritou alto com a dor. Amélia ainda estava lá. Ele sentia sua mão fria contra sua testa.

Seus olhos começaram a ficar nublados, mas ele focalizou o bonito rosto dela.

– Eu amo você, Amélia. – ele disse.

- E eu amo você. – ela respondeu.

Algo começou a ferver dentro dele. Ele pensou que iria ficar enjoado e tentou se virar de bruços para vomitar, mas não foi bile que espirrou de sua garganta. Era uma luz azul. Sua boca se abriu mais e mais até que ele pensou que sua mandíbula se quebraria. Amélia se afastou dele, mas não correu. Ele a via através da neblina, sentia-se preso ao chão, incapaz de fazer qualquer coisa além de abrir ainda mais sua boca para a luz azul. Pareceu durar para sempre, pareceu arrancar suas entranhas para fora enquanto se esparramava para fora no ar. E enquanto ele observava ela flutuar acima dele, a luz tomou forma. A forma de um lobo.

Ela agora estava parada em seu peito e a pressão o esmagava. Ela abaixou a cabeça e o olhou nos olhos. Gabriel lutava para respirar. Amélia apareceu acima dele. Seu rosto estava pálido.

- Saia de cima dele! – ela gritou.

O lobo ergueu a cabeça e olhou para ela.

- Saia daqui, fera!

Inútil para fazer outra coisa a não ser ficar deitado, pois Gabriel se sentia como se tivesse sido espancado, ele viu a fera encolher-se diante das palavras dela; então ela desceu de cima dele e fugiu para a noite. A respiração de Gabriel voltou com um ofego. Amélia estava ajoelhada ao lado dele novamente.

- Gabriel! – lágrimas enchiam os olhos dela. – Gabriel, fale comigo! Diga-me que está tudo bem!

Ele precisou de mais um tempo para recuperar a respiração. Um pouco mais ainda para encontrar forças para estender a mão e puxá-la para baixo com ele. Ele a segurou apertada contra ele e sentiu as lágrimas dela em seu pescoço. E então a enormidade do que acabara de acontecer lhe atingiu. A fera o havia deixado. Ele sentia sua ausência. Na crescente escuridão, ele tinha dificuldade em ver as árvores lá na frente. Ele não podia ouvir nada mais do que os sons normais da noite ao redor dele.

- Ela se foi. – ele disse.

Amélia levantou a cabeça e olhou para ele.

– O que você quer dizer?

- A maldição, Amélia. Está acabada.

Os olhos dela se arregalaram.

– Tem certeza?

Ele tinha. E pela primeira vez em dez anos, ele se sentiu livre. Verdadeiramente livre. Ele a puxou para baixo para poder beijá-la.

– O amor é a maldição, mas é também a chave.

Enquanto seus lábios se encontravam, ele entendeu a charada. Ele entendeu que seu inimigo repousava nele mesmo. Sua inabilidade de confiar. O amor de Amélia lhe havia dado forças para vencer seu maior inimigo. E agora, ele estava livre para amá-la. Livre para se casar com ela. Livre para ter uma vida além daquela uma solitária que tinha escolhido para si mesmo. Era a maior alegria que jamais conhecera, sonhar novamente. Ter esperanças novamente.

Enquanto seus lábios permaneciam unidos, Gabriel sentiu sua força retornando. Seu ardor retornando bem rapidamente e ele queria possuí-la ali mesmo no chão. Fazer amor docemente com ela e saber que não a estava enganando. Que nunca mais a enganaria.

- Não acha que devíamos ir para casa? – ela perguntou entre beijos. – Adoraria um banho quente e uma cama macia. E você nos dois comigo.

Ele riu.

– Você é chocante, Amélia Sinclair Collingsworth...que logo se tornará Wulf.

Ela o empurrou e sorriu para ele; então franziu a testa.

– Não tão logo. Devo honrar meu período de luto de um ano.

O pensamento o fez gemer.

– Um ano? Duvido que a sociedade vá aprovar que eu durma em sua cama todas as noites até as núpcias. E eu totalmente pretendo fazer isso.

Amélia riu.

– Eu subitamente desenvolverei um grande amor em passar uma temporada com minha amiga Rosalind em sua propriedade de campo. Não posso voltar para Collingsworth Manor, Gabriel. Depois que nos casarmos, vamos demoli-la e transformar em pastagem para os cavalos.

Era um bom plano. Um sonho, uma esperança que ele nunca perderia. Gabriel liberou Amélia, se levantou e lhe estendeu a mão.

– Estou com saudades de meus irmãos. Preciso contar a eles o que aconteceu comigo. Se eu pude quebrar a maldição, eles também podem.

Ela pegou a mão dele e ele a ajudou a se levantar, abaixou-se e pegou a valise dela, e juntos caminharam em direção às luzes de Wulfglen. Gabriel subitamente imaginou o que seus irmãos pensariam dele exibindo a mulher a cujo casamento eles compareceram há apenas uma semana atrás. Ele sorriu pela desordem que certamente viria.

 

Gabriel ficou surpreso quando Hawkins veio atender à porta. O homem raramente visitava a propriedade de campo, mas sempre cuidava para que a casa da cidade estivesse pronta para quando os Wulfs chegassem. A expressão séria do homem não se alterou ao ver Gabriel parado à porta usando roupas de camponês e com uma mulher usando botas estranhas e com o vestido rasgado e sujo.

- Lorde Gabriel. – Hawkins disse formalmente. – Bem vindo ao lar.

O olhar do homem se moveu para Amélia.

– Lady Collingsworth. – ele disse, então fez reverencia antes de se endireitar e abrir mais a porta. Gabriel conduziu Amélia para dentro. Ele ouviu vozes vindas da sala de visitas frontal. Um homem que ele não reconheceu vinha caminhando pelo corredor carregando uma garrafa de brandy. Ambos pararam e se encararam.

- Quem diabos é você? – Gabriel perguntou a ele.

- Merrick. – o homem respondeu. – Quem diabos é você?

Ocorreu a Gabriel que o homem parado no corredor era a imagem escarrada de Jackson, só que de cabelos escuros.

- Merrick, onde está o brandy? – um homem saiu para o corredor. Gabriel não o reconheceu também...pelo menos por um instante. Seus olhos encheram-se de lágrimas quando ele finalmente o fez.

- Sterling. – ele falou roucamente.

Sterling Wulf, seu irmão caçula, a quem Gabriel não via há dez anos, olhou para ele.

– Gabriel. – ele disse. – Estávamos fazendo planos sobre você, e imaginando onde diabos você estava.

Gabriel colocou a valise no chão, soltou a mãos de Amélia e partiu para abraçar o irmão. Sterling tinha fugido depois da morte da mãe deles. Nenhum deles o tinha visto desde então. Eles temiam que ele estivesse morto.

- Bom Deus, homem, por onde andou? – Gabriel disse contra o ombro de Sterling.

- Viajando por aí com uma trupe circense. – ele respondeu. – Pelo menos até meu filho nascer. Então pensei que era melhor trazê-lo para casa.

- Seu filho? – Gabriel já achava chocante o suficiente ter Sterling em casa.

Sterling riu, olhou para o homem parado atrás deles e disse:

- Já conheceu nosso meio-irmão, Merrick?

Gabriel apenas negou com a cabeça em silêncio.

- Onde está o brandy? – Armond pisou no corredor. Ao ver Gabriel, ele deu um óbvio suspiro de alivio. – Gabriel, graças a Deus você finalmente chegou em casa. Estávamos planejando sair para procurá-lo.

Armond de aproximou e bateu no ombro de Gabriel.

Jackson veio ao corredor em seguida.

– Onde diabos foi todo mundo? Deixaram-me sozinho com as damas, não que eu me importe muito, mas Lucinda e eu queremos chá e pensei em pedir a Hawkins... – sua voz foi falhando ao notar Gabriel. – Já era hora de chegar em casa, Irmão. – ele resmungou. – Já estava começando a me preocupar com sua pobre pele.

Gabriel sorriu e puxou Jackson para um abraço. Todos os irmãos, com exceção de Merrick, que simplesmente retornou o abraço, se abraçaram. Então Gabriel viu que Armond apertou os olhos para as sombras.

- Lady Collingsworth? O que a senhora está fazendo aqui?

Gabriel se afastou de seus irmãos e a pegou pela mão, puxando-a para a luz.

– É uma longa história. – ele disse.

Armond olhou entre os dois.

– Hawkins! Traga mais brandy! – ele gritou.

- E chá! – Jackson acrescentou.

Uma hora depois, Amélia estava se ensaboando em uma banheira no andar de cima. Gabriel não havia se juntado a ela, como era o plano original deles. Ao invés disso, ela estava cercada por Rosalind, esposa de Armond; Lucinda, esposa de Jackson; Lady Anne Wulf, ex-Baldwin, esposa de Merrick; e Elise, que estava casada com Sterling, os dois com quem Amélia nunca havia se encontrado.

Depois de dias de isolamento, correndo pela própria vida, o quarto no andar superior parecia super iluminado e com uma multidão. Amélia sabia que os homens estavam enclausurados no escritório lá embaixo. Ela tinha certeza de que Gabriel estava contando a eles sobre a extraordinária aventura dele e de Amélia e sobre a dele mesmo. Ela, ao contrário, não sabia nem por onde começar a explicar o que acontecera em Collingsworth Manor.

Rosalind ajudou Amélia a lavar os cabelos. Ela se sentia confortada pela presença de sua amiga, mas se sentiria melhor com a de Gabriel. Era estranho, mas durante dias Amélia tinha esperado acordar de um pesadelo e agora ela realmente estava com medo de acordar em seu quarto em Londres e descobrir que tudo não passara de um sonho. Que Gabriel nem ao menos a conhecia, que nunca tinha feito amor com ela. Que não tinham jurado se casar dentro de um ano, quando seu período de luto terminaria.

- Quando sentir que quer falar sobre o que aconteceu, eu estarei aqui para ouvir. – Rosalind disse suavemente. – Nós estamos aqui para ouvi-la. – ela acrescentou, incluindo as mulheres paradas no quarto como um pequeno exército. – Todas nós vimos coisas que nenhuma pessoa comum viu. Nós entenderemos o que ninguém mais irá ou poderá entender.

A emoção fechou a garganta de Amélia.

– A maldição está quebrada então? – ela perguntou suavemente. – Para todos os irmãos Wulfs?

Rosalind sorriu, embora um pouco tristemente.

– Por enquanto. – ela respondeu, então inconscientemente ela pressionou a mão contra a perceptível saliência debaixo de seu vestido. – Quem sabe o que o futuro trará? Mas juntas nós seremos fortes contra o mal e dividiremos nossas alegrias.

Tendo terminado seu banho, Amélia procurou por uma toalha. Rosalind pegou uma bem fofa ao lado dela e a segurou aberta. Amélia se levantou da banheira, imediatamente envolvida pelo tecido macio. Ela foi conduzida para a penteadeira onde se sentou enquanto Rosalind escovava seus cabelos molhados.

- Diga-me, amiga, – Rosalind perguntou. – você ainda não acredita no amor?

Os olhos de Amélia se encontraram com os de Rosalind no espelho. Ela lhe sorriu.

– O que você acha?

Rosalind riu, como todas as mulheres reunidas no quarto.

– Acho que você foi capturada por um Wulf. – Rosalind disse. – Todas somos cativas, cativas de boa vontade. – ela acrescentou.

- Um aviso. – Lady Anne disse. – Os irmãos Wulfs parecem ser muito férteis. Não há uma mulher nesse quarto que não esteja grávida ou que já não seja mãe. Bem, exceto por você. – ela acrescentou. – Prepare-se para ser uma cativa bem inchada pela gravidez.

Não era um pensamento horrível; de fato, era um pensamento muito agradável, Amélia decidiu. Uma parte de seus sonhos era ter pequenos meninos correndo ao redor de sua saia parecidos com o muito bonito pai deles.

- Espero não estar inchada antes de poder me casar com Gabriel ano que vem. – ela disse, então percebeu o que confessara. Seu rosto queimou por um momento, mas não viu censura nos olhares afetuosos fixos nela. Ao invés disso, Lucinda, a esposa de Jackson, uma linda ruiva que diziam ser bruxa, aproximou-se e colocou a mão contra o estômago de Amélia.

Curiosa, Amélia observou quando a mulher fechou os olhos, parecendo perdida em um transe. Pouco depois, Lucinda abriu os olhos e sorriu para Amélia.

– Você não vai ter seu desejo atendido. – ela disse suavemente.

Amélia esperava que seu queixo não caísse. Certamente Lucinda não saberia o que Amélia possivelmente não poderia saber até passar um pouco mais de tempo, mas ela tinha um forte pressentimento de que Lucinda estava certa. Apenas esse pensamento fez Amélia se sentir quente e latejante por dentro.

- Você disse que queria ser a mulher mais chocante de Londres. – Rosalind a lembrou, então lhe apertou o ombro para acalmá-la. – Cuidado com o que deseja, Amélia.

 

Gabriel contara a seus irmãos a historia que conduzira a ele e a Amélia até Wulfglen. Ele se sentia um pouco estranho falando na frente de Merrick, a quem nem sabia que existia, mas o homem era claramente um deles, e Gabriel sabia que devia aceitá-lo como o resto de seus irmãos obviamente tinha feito. Cinco homens, todos amaldiçoados, mas agora livres. E tudo por causa do amor.

- Mora e Raef. – Armond falou, girando o brandy em seu copo. – Você acha que eles vão tentar esse plano novamente?

Gabriel tinha certeza disso. Apenas não estava certo de quando eles tentariam novamente. Ou o que eles poderiam fazer se eles tentassem. – A maldição foi quebrada para nós, mas junto com ela, perdemos nossos dons. – ele disse. – Poderíamos tê-los usado como vantagem se algum dia sentíssemos que fosse necessário rastrear esses outros. Se eles não jogarem de acordo com as próprias regras.

- Verdade. – Jackson disse. – Agora, somos como todo mundo.

Gabriel estava entretido vendo Jackson beber chá quando todos os outros homens da sala estavam com um copo de brandy. Ele estava orgulhoso do irmão. Ele obviamente lutara contra seus demônios e saíra vencedor, e sua esposa podia ser uma bruxa, mas era a mais linda que Gabriel já tinha visto. O bebê, Sebastian, tinha sido apresentado a Gabriel antes de Lucinda o levar para a cama, e embora Amélia lhe tivesse dito a verdade e o garoto não se parecesse em nada com Jackson, estava claro para Gabriel que seu irmão mais novo amava o garoto cegamente.

Seu sobrinho, Trenton era um bebê grande com cabelos loiros e olhos verdes que mais lembravam Gabriel do que Sterling, e ele imediatamente se afeiçoou ao bebê. Era um tanto quanto impressionante. Encontrar Wulfglen, antes um lugar tão quieto e solitário, transbordando de vida. Eles até mesmo tinham uma governanta. Mary era o nome dela e antigamente trabalhara para a madrasta de Rosalind. Hawkins, homem enfezado que era, tinha desenvolvido sentimentos por Martha, a ama seca de Sebastian. Jackson profetizara que a mulher não partiria mesmo quando o bebê fosse velho demais para precisar de seios cheios de leite.

- Desculpem, mas não pude deixar de ouvir. – Lucinda, a esposa de Jackson, entrou no escritório.

Gabriel foi imediatamente atingido pela beleza dela e o calor nos olhos dela quando olhou para o marido. Ela claramente amava o canalha, e para a surpresa de Gabriel, Jackson claramente a adorava. Estranho, mas Gabriel se lembrava de ter ouvido certos rumores quando Jackson tinha voltado do exterior cerca de um ano atrás de que ele tinha estado perseguindo uma Lady Anne Baldwin por toda a Europa. E agora essa mesma dama estava na casa, casada com o homem que era o meio irmão de Jackson.

Não havia tensão entre os casais, então Gabriel presumiu que o passado não era problema entre eles. Lucinda caminhou até o outro lado da sala para parar ao lado do marido. Jackson, travesso como sempre, puxou-a alegremente para seu colo.

- O que se passa em sua mente, Esposa? – Jackson perguntou. – Além de quando é que eu vou para a cama?

Lucinda ficou vermelha e deu uma leve cotovelada nas costelas dele. – Comporte-se. – ela disse. – Gabriel, ouvi suas preocupações sobre a perda dos dons que se foram com a maldição. Há algo que você deve saber, algo que não contei nem mesmo a Jackson.

- Você me conta tudo. – Jackson argumentou, assumindo uma expressão maliciosa de dor.

- Isso é sério. – ela disse, e a expressão de Jackson imediatamente ficou séria.

Lucinda se levantou do colo de Jackson e caminhou até uma grande janela que dava para o gramado frontal de Wulfglen. – Gostaria que todos vocês viessem até a janela por um momento.

Gabriel não teve escolha a não ser fazer o mesmo quando seus irmãos se levantaram e se uniram a Lucinda. Ele estava tremendamente cansado e queria subir e rastejar até a cama com Amélia. Ele se juntou aos outros na janela.

- Olhem para lá, junto da linha das árvores. – Lucinda instruiu.

Gabriel percebeu nesse momento que seu dom de ver facilmente no escuro tinha-se ido. Ele apertou a vista na direção que ela os tinha instruído a olhar e viu nada...no começo. Cinco pares de olhos brilhantes brilhavam na escuridão. Gabriel ficou tenso.

- Os outros, eles mentiram. Eles estão lá fora. – Ele imediatamente pensou em procurar armas para se protegerem, mas Lucinda o parou.

- Não, não são os outros de quem você falou. São os espíritos dos lobos que residiram dentro de cada um de vocês.

- Por que eles estão aqui? – Jackson perguntou à esposa. – O que estão esperando?

Ela olhou para cada um dos irmãos. – Por vocês os chamarem de volta.

- Chamá-los de volta? – Armond repetiu. – Por que diabos nós iríamos querer fazer isso? Trazer a maldição sobre nós novamente?

Lucinda sacudiu a cabeça.

– Não, não a maldição, porque a escolha é de vocês dessa vez. Apenas estão lá para o caso de precisarem deles.

Gabriel estava confuso.

– Mas como eles poderiam nos ajudar? Quando o lobo me dominava, ele não podia me lembrar de que fiz ou para onde fui. O dom não é um dom se não puder ser controlado.

- Mas ele pode ser controlado. – Jackson informou a ele. – Lucinda me ensinou como pensar como um homem, mesmo na forma do lobo. Se for necessário, tenho certeza de que ela pode ensinar a todos vocês também.

Gabriel não tinha ficado normal por tempo suficiente para saber se sentiria ou não falta dos dons que se foram com a maldição.

– Se preciso for. – ele concordou. – Até lá, eles podem ficar a postos.

A noite o venceu. Ele estava cansado, e queria estar com Amélia, apesar do fato de estar muito feliz por estar em casa, de ter todos os irmãos, mesmo àquele de quem nem sabia da existência, em casa com ele. Gabriel caminhou e pegou a garrafa com o que tinha sobrado do brandy e dois copos.

- Vou me retirar para meus aposentos. – ele disse a todos. – Nos veremos novamente amanhã cedo.

Ele não deixou de perceber que seus irmãos notaram o segundo copo em sua mão e arquearam as sobrancelhas. Gabriel apenas sorriu para eles e se dirigiu à porta para sair do escritório.

- Não levaria o brandy para Lady Collingsworth. – Lucinda disse à suas costas. – Chá seria melhor para o bebê.

A garrafa escapou das mãos dele.

– O que? – ele se voltou para a adorável bruxa. – O que você acabou de dizer?

- É melhor prestar atenção à ela. – Jackson levantou a voz, rindo como um idiota. – Ela sabe sobre essas coisas. Nosso próprio bebê está a caminho e ela soube bem antes de atrasar seu primeiro ciclo.

- Deus, é uma epidemia! – Armond observou secamente, e um a um, cada irmão começou a rir.

Sempre o sério, o sensato, Gabriel não se juntou a eles, pelo menos não por um momento. Ele nunca tinha ousado sonhar com crianças, de ao menos ter uma esposa. Mas Amélia o ensinara a sonhar novamente, a rir novamente, a ter esperança. Como podia um homem amaldiçoado por tanto tempo subitamente ser tão abençoado? Era tão simples quanto encontrar o amor e se render a ele.

 

Londres, dois anos depois.

O menino era a imagem escarrada de seu pai; não havia duvidas sobre isso. Ele partiria muitos corações algum dia, mas nunca o de sua mãe, Amélia tinha certeza. Seu nome era Treville, e toda a sociedade sabia que a criança não era do falecido marido de Amélia. Causara falatório, com certeza, mas Amélia não se importava com isso.

Se se importasse, não estaria nesse momento parada no meio de Hyde Park vestindo calças masculinas e botas. Ela e Gabriel haviam cavalgado por Rotten Row mais cedo. Sua escolha de vestuário tinha causado agitação, mas Amélia estava acostumada a causar agitações. Gabriel achava tudo muito divertido. Ela o observava agora, tão cheia de amor e orgulho por ele pertencer a ela, e ela a ele. Ele estava conversando com os pais dela, que tinham colocado um cobertor no chão e estavam com o pequeno Treville com eles. Eles amavam o neto cegamente, e finalmente, não importava o que Amélia tivesse feito de errado, eles a perdoaram.

Todos os Wulfs estavam em Londres no momento. A temporada havia começado e a Duquesa mãe de Brayberry estava ansiosa por ser a anfitriã do primeiro baile Wulf. Todos compareceriam simplesmente por curiosidade. Amélia pensou que deveria usar calças e botas no baile.

Isso faria com que todos comentassem e agradaria a velha senhora imensamente.

- Você está muito atraente nessas calças, Esposa. – Gabriel provocou, juntando-se a ela. – Tenho certeza de que vai ser uma febre amanhã. Mulheres usando roupas masculinas.

- Bem, talvez não amanhã, mas algum dia imagino que será. – ela disse, inclinando-se para lhe dar um rápido beijo. – Está nervoso por comparecer a seu primeiro evento social em anos?

- Preferiria estar em Wulfglen. – ele admitiu.

Surpreendentemente, Amélia também.

- Seus pais vão mimar esse menino. – ele disse, fazendo com que o olhar de Amélia se voltasse para o pai levantando Treville no ar até que ele gritasse deliciado. Amélia sorriu, observando-os. Seu sorriso desapareceu pouco depois.

- Ele vai ficar bem, não é? – ela perguntou suavemente.

Gabriel colocou o braço ao redor do ombro dela e a puxou para perto. – Ele vai ficar bem porque nos certificaremos de que ele fique. Se Treville for diferente, nós diremos a ele por que, e diremos a ele que isso não significa que a vida dele é amaldiçoada. Que isso não significa que ele não possa ter sonhos e esperanças, e uma vida como todos os demais.

Ela sentia segurança com Gabriel. Se ele dizia que as coisas dariam certo, então ela sabia que assim seria. Armond e Rosalind também tinham um filho. Um menino muito bonito. E o filho com covinhas de Jackson roubaria qualquer coração que seu irmão mais velho, Sebastian, não tomasse para si. Merrick e Anne tiveram uma filha. Uma linda menina e tão doce quanto a mãe. O filho de Sterling, embora ainda cambaleasse, parecia ter um dom com animais, como Sterling tinha.

A maldição que tinha roubado a vida deles lhes pagara decuplicadamente no final. Talvez tenha sido esse o presente de partida da bruxa para Ivan Wulf, apenas que ele nunca compreendera que podia haver um presente numa maldição. O que relembrava Amélia dos olhos brilhantes que vida todas as noites na escuridão. O espírito do lobo, esperando.

- Você não acha que iremos ver Mora ou Raef nessa temporada, acha? – ela perguntou.

Gabriel franziu a testa para ela. – Não acho que saberíamos que seriam eles se os víssemos.

- Você e seus irmãos irão caçá-los?

Era um assunto que eles sempre evitavam, mas Amélia tinha de saber dos planos de seu marido.

- Apenas se eles nos derem motivos. – ele respondeu. – Eles já nos forçaram a que nos juntássemos à sociedade novamente, querendo ou não. Alguém tem de proteger nossa raça da deles. – Ele acenou na direção do pai e da mãe de Amélia, que estavam rindo para o jovem Treville. – Quem protegerá aqueles que não fazem idéia dos que vivem nas sombras?

Amélia sabia que ele estava certo. Ela tinha desejado uma vez permanecer abençoadamente ignorante. Mas não mais. Apenas os fortes poderiam proteger os fracos, e apenas uma mulher forte poderia ficar corajosamente ao lado de seu guardião. Ela era essa mulher. A mulher de Gabriel. Sua esposa, sua amante, sua parceira.

- Vamos cavalgar enquanto mamãe e papai estão cuidando de Treville. Quero exibir nossos cavalos para que todos se apressem e venham comprá-los.

- Talvez eu encontre um lugar isolado onde possa roubar um beijo decente. – ele disse contra a orelha dela.

Ela riu. – Tenho certeza de que poderá roubar mais do que isso se tal local puder ser encontrado.

- Você é chocante! – ele disse, sorrindo para ela.

- Faço o melhor que posso. – ela argumentou, pegando a mão dele e o conduzindo até onde estavam os cavalos. Hoje, embora fossem simplesmente um casal comum aproveitando o dia no parque, eles eram um casal extraordinário. Ela não se preocuparia se um dia seu marido fosse forçado a abraçar o espírito do lobo novamente para proteger o país da invasão.

Lucinda havia confidenciado a ela que tal espionagem poderia ser realizada por outros homens. Homens sem a responsabilidade de filhos e esposas preocupadas com eles. Homens que desejosamente aceitariam uma maldição como um presente e lutariam por aqueles abençoadamente ignorantes. E se Lucinda assim dizia, geralmente aconteceria.

 

                                                                                Ronda Thompson  

 

                      

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