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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AMERICANO TRANQUILO / Graham Greene
O AMERICANO TRANQUILO / Graham Greene

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O AMERICANO TRANQUILO

 

Depois do jantar sentei-me no meu quarto, na Rua Catinat, à espera de Pyle: ele dissera: "Chegarei quando muito às dez horas», e quando bateu a meia-noite senti-me incapaz de ficar quieto por mais tempo, desci as escadas e saí. Um grupo de velhas de calças pretas agachava­-se no patamar: estávamos em Fevereiro e provavelmente sentiam de­masiado calor na cama. Um condutor de trishaw pedalava lentamente em direcção à margem do rio, e no local de desembarque dos novos aviões americanos brilhavam lampiões. Em toda a extensão da rua não havia sinal de Pyle.

Podia acontecer, evidentemente, que por qualquer razão o tives­sem retido na legação da América, mas nesse caso teria certamente te­lefonado para o restaurante - era extremamente meticuloso quando se tratava de pequenas cortesias. Voltei-me para entrar em casa e vi uma rapariga que esperava no vão da porta seguinte. Não conseguia ver-lhe a cara, apenas as calças de seda branca e a comprida túnica florida, mas apesar disto sabia de quem se tratava. Esperara tantas ve­zes que eu chegasse a casa neste mesmo sítio e a esta mesma hora!...

- Phuong (o que significa Fénix, mas hoje em dia nada existe que seja fabuloso e possa renascer das próprias cinzas. Antes que ela tives­se tempo de o dizer eu sabia que esperava Pyle) - disse-lhe. - Ele não está aqui.

- Je sais. Je t'ai vu seul à la fenêtre.

- Podes esperar lá em cima - disse-lhe. - Não deve tardar. - Posso esperar aqui.

- Não é conveniente. A polícia pode levar-te.

Ela seguiu-me pelas escadas acima. Pensei em várias graças iróni­cas e desagradáveis, mas os seus conhecimentos de francês e inglês não eram suficientes para que ela atingisse a ironia e, o que é mais es­tranho, não me apetecia magoá-la nem magoar-me a mim mesmo. Quando chegámos ao patamar as velhas viraram as cabeças e logo que passámos as suas vozes elevaram-se e depois baixaram como se esti­vessem a cantar em coro.

- De que estão a falar?

- Pensam que voltei para casa.

            No meu quarto a árvore que eu arranjara para o ano novo chinês deixara cair a maior parte das suas flores amarelas. Jaziam entre as te­clas da minha máquina de escrever. Apanhei-as.

- Tu es troublé - disse-me Phuong.

- Não é seu costume. É um homem tão pontual... Tirei a gravata e os sapatos e deitei-me na cama.

            Phuong acendeu o fogão de gás e pôs água a aquecer para o chá. Podia ter acontecido há seis meses.

- Ele diz que vais partir brevemente - disse-me.

- Talvez.

- Ele é muito teu amigo.

- Agradece-lhe em meu nome.

            Reparei que tinha um penteado diferente, deixando agora o cabelo negro cair, liso, até aos ombros. Lembrei-me de que Pyle criticara em tempos o complicado penteado que ela achava ser próprio da filha de um mandarim. Fechei os olhos e vi-a de novo como fora: 'o silvo do vapor, o tilintar de uma chávena, uma determinada hora da noite e a promessa de tranquilidade.

- Ele não se demorará - disse-me, como se eu necessitasse de ser confortado pela sua ausência.

Perguntei-me no que falariam quando estavam juntos: Pyle era muito sério e eu aturara-lhe as dissertações sobre o Oriente, que ele conhecia há meses, tantos quantos eu o conhecia há anos. Outro dos seus temas preferidos era a democracia e tinha ideias definidas e irri­tantes sobre o que os Estados Unidos estavam a realizar a favor do mundo. Em contrapartida, Phuong era de uma ignorância maravilhosa: se porventura o nome de Hitler surgisse numa conversa ela interrom­pia-a para perguntar de quem se tratava. A explicação era tanto mais difícil quanto ela nunca conhecera um alemão ou um polaco e as suas noções de geografia da Europa eram extremamente vagas, embora, evidentemente, quando se tratava da princesa Margarida, soubesse muito mais do que eu. Ouvi-a pousar um tabuleiro aos pés da cama.

- Ele ainda está apaixonado por ti, Phuong?

Levar uma anamita para a cama é como que levar um pássaro: chil­reia e canta sobre a nossa almofada. Houve tempo em que pensei que nenhuma delas cantava como Phuong. Estendi a mão e toquei-lhe no          braço - também os seus ossos eram frágeis como os dos pássaros.

- Ainda está, Phuong?

Ela riu e ouvi-a acender um fósforo. Apaixonado? Talvez se tratasse de uma daquelas frases que não entendia.

- Posso preparar-te o cachimbo? - perguntou-me.

Quando abri os olhos ela já acendera a lamparina e o tabuleiro es­tava preparado. A luz dava-lhe à pele um tom de âmbar escuro e ela debruçou-se sobre a chama com uma expressão de concentração,           aquecendo a pequena pasta de ópio, rodando com a agulha.

- Pyle ainda não fuma? - perguntei-lhe.

-Não.

- Deves convencê-lo; caso contrário não voltará.

Entre eles existia a superstição de que um amante fumador de ópio voltava sempre, nem que estivesse em França. A capacidade sexual de um homem podia ser prejudicada pelo fumo, mas elas preferiam sem­pre o amante fiel ao amante potente. Phuong amassava a pequena bo­la de pasta quente na margem convexa da taça e já cheirava a ópio. Não existe qualquer cheiro que se assemelhe. O despertador ao lado da cama indicava meia-noite e vinte, mas o meu estado de tensão de­saparecera. Pyle esfumava-se. A lamparina iluminava a cara de Phuong enquanto cuidava do longo cachimbo e se debruçava sobre ele com a mesma atenção solene que teria dedicado a uma criança. Eu gostava do meu cachimbo: mais de sessenta centímetros de bambu direito, com marfim em ambas as extremidades. A taça encontrava-se a dois terços da extremidade superior, tal um convólvulo invertido, com a margem convexa polida e escurecida pelo frequente amassar do ópio. Com um movimento de pulso ela introduziu a agulha na pequena cavidade, libertou o ópio e inverteu a taça sobre a chama, segurando o cachimbo para que se mantivesse firme. A conta de ópio borbulhava brandamen­te, regularmente, à medida que eu aspirava.

O fumador experiente consegue aspirar de uma só vez todo o ca­chimbo, mas eu precisava sempre de chupar várias vezes. Depois dei­tei-me para trás, com a cabeça encostada à almofada de cabedal, en­quanto ela preparava o segundo cachimbo.

            - Sabes? É realmente claro como a água. Pyle sabe que eu fumo sempre umas cachimbadas antes de me deitar e não quer interromper­-me. Amanhã de manhã passará por cá - disse-lhe.

A agulha entrou novamente e eu fumei o segundo cachimbo. Quan­do o pousei disse:

- Não há motivo para preocupações. Não há mesmo o mínimo motivo.

Bebi um gole de chá e levei a mão ao seu sovaco.

- Quando me deixaste - disse - foi uma sorte ter isto a que me agarrar. Na Rua de Ormay há uma casa bastante boa. Nós, os Euro­peus, complicamos as coisas mais insignificantes. Não devias viver com um homem que não fuma, Phuong.

- Mas ele vai casar comigo - respondeu-me. - Já falta pouco tempo.

- Tens razão; o caso assim muda de figura.

- Queres que te prepare novo cachimbo?

- Quero.

Pus-me a pensar se no caso de Pyle não aparecer ela consentiria em dormir comigo aquela noite; mas eu sabia que depois de quatro cachimbadas já não a desejaria. Evidentemente que seria agradável sentir a meu lado, na cama, a sua coxa Cela dormia sempre de costas), e quando .de manhã acordasse podia principiar o dia com um cachim­bo em vez de o começar com a minha própria companhia.

- Pyle já não vem - disse. - Fica aqui, Phuong.

Ela estendeu-me o cachimbo e abanou a cabeça.

Logo que aspirei o ópio, tanto a sua presença como a Sua ausência passaram a ter pouca importância.

- Por que é que o Pyle não veio? - perguntou-me.

- Como queres que saiba?

- Foi falar com o general Thé?

- Não faço a mínima ideia.

- Ele disse-me que se não pudesse jantar contigo viria aqui ter.

- Não te preocupes. Ele vem. Arranja-me outro cachimbo.

Quando ela se debruçou sobre a chama lembrei-me do poema de Baudelaire:

 

Mon enfant, ma soeur...

 

E o resto?

 

Aimer à loisir,

Aimer et mourir

Au pays qui te ressemble.

 

Ao longe, nos cais, dormiam os barcos dant l'humeur est vagabande. Pensei que, se a cheirasse, a sua pele teria uma ténue fragrância de ópio e que a sua cor seria idêntica à da pequena chama. Vira as flores do seu vestido junto dos canais do Norte; era tão indígena como uma erva, e eu nunca mais quisera voltar para o meu país.

- Quem me dera ser o Pyle - disse em voz alta, mas o sofrimento era limitado e suportável; o ópio encarregara-se disso. Alguém bateu à           porta.

- É o Pyle - disse ela.

- Não é. Ele não bate assim.

Alguém bateu de novo com impaciência. Ela levantou-se apressa­damente, fazendo estremecer a árvore amarela, que novamente espa­lhou as pétalas das suas flores sobre a máquina de escrever. A porta      abriu-se.

- Monsieur Foulair? - indagou alguém.

- O Fowler sou eu - respondi. Não me ia incomodar por um po­lícia. Sem levantar a cabeça, conseguia ver os seus calções de caqui.

Ele passou a explicar num francês vietnamita quase incompreensí­vel que precisavam de mim imediatamente - já - rapidamente – na Sureté.

- Na Sureté francesa ou vietnamita?

- Francesa.

Dita por ele a palavra soava como «françung».

- De que se trata?

Ele não sabia: as suas ordens eram as de me levar.

- Toi aussi - disse a Phuong.

- Diga vous quando se dirige a uma senhora - disse-lhe. - Co­mo sabia que ela estava aqui?

Repetiu simplesmente que eram estas as suas ordens.

- Irei amanhã de manhã.

- Agora - disse o homenzinho, cuidado e obstinado.

Não valia a pena discutir, e consequentemente levantei-me, pus a gravata e calcei os sapatos. A polícia aqui tinha a última palavra: podia retirar-me o direito de circulação; podia proibir-me de assistir às confe­rências de imprensa; podia mesmo, caso quisesse, recusar-me o visto de saída. Estes eram os métodos legais vigentes, mas a legalidade não era essencial num país em guerra. Eu conhecia um homem que súbita e inexplicavelmente ficara sem cozinheiro: conseguira localizá-lo na Sureté vietnamita, mas os oficiais garantiram-lhe que o haviam liberta­do, após o interrogatório. A família nunca mais o viu. Talvez se tivesse juntado aos comunistas; talvez se tivesse alistado num dos exércitos particulares que abundam em redor de Saigão: os hoa-haos ou os cao­daístas ou o general Thé. Talvez estivesse numa prisão francesa. Talvez estivesse alegremente em Cholon, o subúrbio chinês, a ganhar dinhei­ro com raparigas. E era possível que o seu coração não tivesse resisti­do ao interrogatório. Eu disse:

- Não vou a pé. Terão de me pagar um trishaw.

            Era indispensável manter uma certa dignidade. Por esta mesma ra­zão recusei o cigarro que o oficial da Sureté francesa me ofereceu. De­pois dos três cachimbos sentia-me com as ideias claras e alerta: era-me possível tomar decisões daquele tipo com facilidade e sem perder de vista o problema fundamental: que quereriam eles de mim? Encontrara Vigot por v_rias vezes em festas; reparara nele porque me parecera in­congruentemente apaixonado pela mulher, que o ignorava, uma loura vistosa e falsa. Agora eram duas da manhã e ele estava sentado, cansa­do e deprimido, envolvido no fumo do cigarro e no calor opressivo, com uma pala verde sobre os olhos e um livro de Pascal aberto sobre a secretária, para matar o tempo. Quando me opus a que interrogasse Phuong fora da minha presença cedeu imediatamente, com um único suspiro, que porventura representava o seu cansaço de Saigão, do ca­lor ou de toda a condição humana.

Disse em inglês:

- Lastimo ter sido forçado a pedir-lhe que viesse aqui.

- Não me pediram. Ordenaram-me.

- Ah, esta polícia indígena... eles não percebem.

Tinha os olhos fixos numa página de Les Pensées, como se ainda es­tivesse absorto naqueles tristes argumentos.

- Desejava fazer-lhe algumas perguntas... acerca de Pyle.

- É preferível fazer-lhas directamente.

Virou-se para Phuong e interrogou-a secamente em francês.

- Há quanto tempo vive com Monsieur Pyle?

- Há um mês... não sei bem - respondeu Phuong.

- Quanto lhe pagou ele?

- Não tem o direito de lhe fazer uma tal pergunta - disse-lhe. - Ela não está à venda.

- Ela já viveu consigo, não viveu? - perguntou abruptamente.

- Durante dois anos.

- Sou um correspondente cuja missão é fazer reportagens sobre a vossa guerra... sempre que me deixam. Não me peça que também con­tribua para a vossa secção de escândalos.

- Que sabe sobre Pyle? Peço-lhe que responda às minhas pergun­tas, senhor Fowler. Não me agrada fazê-las. Mas isto é sério. Peço-lhe que me creia quando lhe digo que é muito sério.

- Não sou um informa dor. O senhor sabe tudo quanto lhe posso dizer sobre Pyle. Tem trinta e dois anos, trabalha na Missão de Auxílio Económico e é de nacionalidade americana.

- O senhor fala como se fosse um seu amigo - disse Vigot, olhando para Phuong. Um polícia indígena entrou com três chávenas de café.

- Talvez prefira chá - perguntou Vigot.

- E sou amigo dele - disse-lhe. - Por que não? Há-de chegar o dia em que regresse à minha terra. Não posso levá-la comigo. Ela fica bem com ele. Trata-se de um acordo razoável. E ele, segundo diz, vai casar-se com ela. E até é possível que o faça, sabe? A seu modo é um tipo decente. Sério. Não é como esses malditos barulhentos do Conti­nental. É um americano tranquilo - defini-o precisamente como se ti­vesse dito "um lagarto azul», "um elefante branco».

Vigot disse «Sim». Parecia procurar sobre a secretária palavras que exprimissem o que pretendia dizer tão precisamente como eu fizera. "Um americano muito tranquilo». Ficou ali sentado no pequeno gabine­te escaldante aguardando que um de nós falasse. Um mosquito zum­biu preparando-se para o ataque e eu examinei Phuong. O ópio torna­-nos perspicazes - talvez pela mera razão de nos acalmar os nervos e aquietar as emoções. Coisa alguma, nem mesmo a morte, nos parece excepcionalmente importante. "Phuong», pensei, "não se apercebera do seu tom de voz, melancólico e final, e o seu inglês era muito mau». Sentada naquela dura cadeira de escritório não deixara ainda de es­perar pacientemente por Pyle. Naquele momento eu já deixara de   esperar e percebi que Vigot se apercebera das nossas duas atitudes.

- Como foi que o conheceu? - perguntou Vigot.

Porquê explicar-lhe que fora Pyle quem me conhecera? Vira-o, em Setembro passado, atravessar o largo em direcção ao bar do Continen­tal: uma cara manifestamente jovem e inexperiente que nos foi atirada como um dardo. Com aquelas pernas esgalgadas, o cabelo cortado muito curto e o olhar de quem tem o hábito de horizontes extensos parecia incapaz de maldade. As mesas na rua estavam quase todas ocupadas.

- Importa-se que me sente? - perguntou-me, sério e cortês. - Chamo-me Pyle. Sou novo na terra - e encolheu-se na cadeira e pediu uma cerveja. Depois olhou apressadamente para cima, para a luz crua do meio-dia.

- Foi uma granada? - perguntou, excitado e esperançoso.

- Provavelmente o escape de um automóvel - disse-lhe, e de re­pente fiquei com pena do seu desapontamento.

Esquecemo-nos tão rapidamente da nossa própria juventude! Hou­ve tempo em que eu próprio tinha interesse por aquilo que, à falta de melhor termo, chamam notícias. Mas as granadas tinham-se tornado cediças; não passavam de uma anotação na última página do jornal lo­cal: tantas na passada noite em Saigão, tantas em Cholon. Nunca atin­giam a imprensa europeia. Do cimo da rua chegavam as maravilhosas silhuetas direitas - as calças de seda branca, as longas e cingidas túni­cas, com desenhos rosa e lilás, abertas até à coxa. Contemplei-as com a nostalgia que eu sabia ir sentir quando deixasse para sempre aquelas paragens.

- São lindas, não acha! - perguntei-lhe por cima do copo de cer­veja, e Pyle deitou-lhes uma olhadela apressada, já elas começavam a subir a Rua Catinat.

- Acho - disse com indiferença (era do tipo sério). - O ministro preocupa-se muito com estas granadas. Diz que seria muito embaraço­so se se desse um acidente... com um de nós, claro.

- Com um de vocês? Sim, devia ser sério. O Congresso não gosta­ria. - Por que razão nos apetece arreliar os inocentes? Talvez há dias ele ainda andasse a passear pelo parque de Boston com os braços atravancados pelos livros que estava a ler sobre o Oriente e os proble­mas da China. Nem mesmo ouviu o que eu lhe disse: estava já absorvi­do nos dilemas da democracia e nas responsabilidades do Ocidente: estava resolvido - soube-o dentro de muito pouco tempo - a prati­car o bem, não em relação a qualquer indivíduo, mas a um país, a um continente, a um mundo. Agora estava no seu elemento, com o uni­verso inteiro à sua disposição para melhorar.

- Está na morgue? - perguntei a Vigot.

- Como sabe que morreu? - Era uma pergunta tola de polícia, indigna de um homem que lia Pascal, indigna também do homem que tão estranhamente gostava da mulher. Não se pode gostar sem intuição.

- Não sou culpado - retorqui.

Disse para comigo que era verdade. Pyle não fazia sempre o que queria? Procurei qualquer sentimento dentro de mim, nem que fosse ressentimento pela suspeita de um polícia, mas nada encontrei. «A res­ponsabilidade cabia a Pyle, e a mais ninguém. Não é preferível estar-se morto?», argumentava o ópio dentro de mim. Mas olhei cautelosa­mente para Phuong porque para ela era duro. A seu modo devia ter gostado dele; não gostara ela de mim e não me abandonara para viver com Pyle? Ligara-se à juventude e à esperança e à seriedade e agora tudo isto lhe falhara mais do que a idade e o desespero. Ela estava ali sentada a olhar-nos e eu pensei que ela não tinha ainda percebido. Talvez fosse uma boa ideia eu conseguir levá-la dali antes que o com­preendesse. Estava pronto a responder a quaisquer perguntas desde que pudesse acabar rápida, e no entanto ambiguamente, a entrevista por forma a dizer-lhe tudo mais tarde, a sós, longe dos olhos do polí­cia e das cadeiras duras do gabinete e do globo nu em torno do qual rodopiavam as borboletas.

Disse a Vigot:

- Quais são as horas que lhe interessam?

- Entre as seis e as sete.

            - Às seis tomei uma bebida no Continental. Os criados devem lembrar-se. Às seis e quarenta e cinco caminhei até ao cais para ver o desembarque dos aviões americanos. À porta do Majestic vi Wilkins, do Associated News. Depois entrei no cinema ao lado. Devem provavel­mente recordar-se - foi-lhes necessário arranjarem-me troco. Dali tomei um trishaw até ao Vieux Moulin - creio que cheguei cerca das oito e meia - e jantei sozinho. Estava lá o Granger -:- pode perguntar­-lhe. Depois meti-me em novo trishaw para voltar para casa, por volta das dez menos um quarto. É muito possível que consiga encontrar o condutor. Esperava que Pyle chegasse às dez, mas ele não apareceu.

- Qual a razão por que o esperava?

- Ele telefonara-me. Disse que necessitava de falar comigo sobre um assunto importante.

- Faz ideia do que seria?

- Não. Para Pyle tudo era importante.

- E esta rapariga que ele tinha? Sabe onde se encontrava?

- Esperava-o na rua à meia-noite. Estava preocupada. Não sabe de nada. Não vê que ela ainda continua à espera dele?

- Vejo - disse Vigot.

- E não pode realmente acreditar que o matei por ciúmes; e ela, que razões podia ter? Pyle ia casar-se com ela.

- Sim, tem razão.

- Onde o encontrou?

- Dentro de água, por baixo da ponte que leva a Dakow.

O Vieux Moulin estava junto da ponte. Nesta havia polícia armada e o restaurante tinha uma grade de ferro de protecção contra as grana­das.

Não era seguro atravessar-se a ponte de noite, dado que, depois do escurecer, toda a região mais afastada do rio estava nas mãos dos vietcongues. Devo ter jantado despreocupadamente a uns vinte e cin­co metros do seu cadáver.

- A chave do problema está em ele se ter envolvido em sarilhos. - Para lhe falar francamente - disse Vigot - não posso dizer que tenha grande pena. Estava a fazer muito mal.

            - Deus nos guarde sempre - disse-lhe - dos inocentes e dos bons.

            - Dos bons?

- Sim, dos bons. À maneira de Pyle. O senhor é católico. Não po­de admitir o caminho que ele seguia. E, de qualquer modo, ele não passava de um maldito americano.

            - Importa-se de o identificar? Lastimo. Faz parte da rotina, de uma rotina pouco agradável.

Não me dei ao trabalho de perguntar a razão por que não esperava por alguém da legação americana: eu conhecia-a. Os métodos france­ses, segundo os nossos padrões frios, são um tudo-nada antiquados: acreditam na consciência, no sentimento de culpa, em ser necessário confrontar o criminoso com o objecto do seu crime, porquanto pode perder a presença de espírito e trair-se. Enquanto ele descia as escadas de pedra em direcção ao local onde zumbia, na cave, o sistema de re­frigeração, repeti para mim mesmo que estava inocente.

. Tiraram-no para fora como se fosse um tabuleiro de gelo e eu olhei para ele. As feridas estavam congeladas até à placidez. Eu disse: - Vê, não se abrem com a minha presença.

- Comment?

            - Não é este um dos objectivos? Prova por uma coisa ou por ou­tra? Mas vocês congelaram-no até ficar rígido. Na Idade Média não ha­via frigoríficos para congelação.

- Reconhece-o?

- Ah! Sim.

            Mais do que nunca tinha um ar deslocado: devia ter ficado em casa. Vi-o num álbum de família, montando a cavalo num rancho, to­mando banho em Long Island, fotografado com os seus colegas num apartamento de um vigésimo terceiro andar. Ele pertencia aos arranha­-céus e aos elevadores expressos, aos gelados e aos Martinis secos, ao almoço com leite e sanduíches de galinha no Merchant Limited.

- Não morreu disto - disse Vigot apontando para uma ferida no peito. - Foi afogado na lama. Encontrámos-lhe lama nos pulmões.

- Trabalharam depressa.

- Neste clima é indispensável.

Introduziram novamente o tabuleiro e fecharam a porta. A borra­cha serviu de amortecedor.

- É-lhe de todo impossível ajudar-nos? - perguntou Vigot.

- Absolutamente impossível.

Phuong e eu voltámos a pé para casa; já não era preciso manter a dignidade. A morte fez desaparecer a vaidade - mesmo aquela vaida­de do homem enganado, que não deve mostrar a sua dor. Ela ainda não se tinha apercebido do que se tratava e eu não tinha técnica sufi­ciente para lho contar lenta e docemente. Era um correspondente: pensava em grandes títulos. "Oficial americano assassinado em Saigão.» Quando se trabalha num jornal não se aprende o processo de comuni­car as más notícias com prudência, e mesmo agora era-me necessário pensar no meu jornal e perguntar-lhe:

- Importas-te de esperar enquanto eu envio um telegrama? Deixei-a na rua enquanto mandava o meu telegrama e depois vol­tei ao seu encontro. Não passava de um gesto: sabia muito bem que os correspondentes franceses já deviam estar informados ou, no caso de Vigot se ter portado decentemente (o que era possível), os censores reteriam o meu telegrama até os franceses terem mandado o deles. O meu jornal seria o primeiro a receber a notícia proveniente de Paris. Não que Pyle fosse muito importante. Nunca seria possível telegrafar os detalhes da sua verdadeira carreira, dizer que antes de morrer fora o responsável de pelo menos cinquenta mortes, dado que iria prejudi­car as relações anglo-americanas e o ministro ficaria contrariado. O mi­nistro tinha um imenso respeito por Pyle - Pyle fora bem classificado em... num daqueles assuntos em que os Americanos se graduam: tal­vez em relações públicas ou em ,arte teatral, talvez mesmo em estudos orientais (ele lera muitos livros).

- Onde está o Pyle? - perguntou Phuong. - Que queriam eles?

- Vem para casa - disse-lhe.

- O Pyle também vem?

- É tão provável que vá até lá como a qualquer outro sítio.

            As velhas continuavam a tagarelar no patamar, na relativa frescura.

Quando abri a porta percebi imediatamente que o meu quarto sofrera uma busca: estava tudo muito mais arrumado do que eu jamais seria capaz de deixar quando saísse.

- Mais um cachimbo? - perguntou-me Phuong. - Está bem.

Tirei a gravata e os sapatos; o interlúdio terminara: a noite era qua­se igual às do passado. Phuong agachou-se aos pés da cama e acendeu a lamparina. Mon enfant, ma soeur - pele cor de âmbar. Sa douce langue natale.

- Phuong - disse. Ela amassava o ópio na taça. - Il est mort, Phuong. - Segurava a agulha na mão e fitou-me como uma criança que tenta concentrar-se, franzindo as sobrancelhas.

- Tu dis?

- Pyle est mort. Assassiné.

Ela pousou a agulha e sentou-se sobre os calcanhares, fitando-me. Não houve cena, nem lágrimas, simplesmente reflexão - a reflexão prolongada e solitária de alguém a quem é necessário alterar todo um rumo de vida.

- É melhor ficares aqui esta noite - disse-lhe.

Baixou a cabeça em concordância, e pegando na agulha começou novamente a aquecer o ópio. Naquela noite acordei de um daqueles curtos mas profundos sonos do ópio que duram dez minutos mas dão a sensação de toda uma noite de repouso, e encontrei a mão onde sempre a tivera durante a noite: entre as suas pernas. Ela dormia e mal lhe ouvia a respiração. De novo, depois de tantos meses, não estava só, e no entanto, de repente, com raiva, lembrando-me de Vigot lá na polícia, com a sua pala para os olhos, nos corredores sossegados e de­sertos da legação e na pele macia e sem pêlos sob a minha mão, pen­sei: "Teria sido realmente eu o único a gostar de Pyle?»

 

Na manhã em que Pyle chegou ao largo junto do Continental eu estava farto dos meus colegas americanos da imprensa: grandes, baru­lhentos, acriançados e de meia-idade, cheios de graças azedas contra os franceses, que, no fim de contas, combatiam nesta guerra. Periodi­camente, completada e arrumada uma missão e retirados os mortos da cena, eles eram chamados a Hanói, a quase quatro horas de voo, o co­mandante fazia-lhes uma alocução, pernoitavam na Pousada da Im­prensa, que apregoavam ter o melhor barman de toda a Indochina, eram enviados por avião até ao mais recente campo de batalha a uma altitude de 900 metros (o limite do alcance da artilharia pesada) e de­pois reconduzidos, intactos e com grande barulho, como se se tratasse de um divertimento escolar, ao Hotel Continental, em Saigão.

Pyle era sossegado, parecia modesto. Naquele primeiro dia fora-me necessário algumas vezes chegar-me para a frente para ouvir o que di­zia. E era muito, muitíssimo sério. Por várias vezes parecia encolher-se dentro de si mesmo com o barulho da imprensa americana no terraço de cima - o terraço que tinha fama de ser mais seguro contra as gra­  nadas de mão. Mas Pyle não criticava quem quer que fosse.

- Já leu algum livro de York Harding? - perguntou.

- Não. Creio que não. O que é que ele escreveu?

Olhou para um milk bar*1  do outro lado da rua e disse com um ar sonhador:

 

*1 Bar em que são servidas bebidas não alcoólicas.

 

- Aquela soda fountain*1 tem bom aspecto.

Quanta saudade da sua terra estaria por detrás daquela sua estra­nha forma de observar uma cena tão pouco familiar? Mas não tinha eu, no meu primeiro passeio pela Rua Catinat, reparado em primeiro lugar na loja com o perfume de Guerlain e procurado consolo na ideia de que, no fim de contas, a Europa só estava a trinta horas de voo? Ele desviou o olhar do bar com relutância e disse:

            - O York escreveu um livro intitulado O Progresso da China Verme­lha. É um livro muito profundo.

            - Não li. Você conhece o autor?

            Ele baixou a cabeça solenemente e mergulhou no silêncio. Mas quebrou-o de novo uns momentos depois para modificar a impressão que deixara.

- Não o conheço bem - disse. - Só estive com ele umas duas vezes. - Agradou-me que tivesse dito isto, que considerasse jactância dizer-se conhecido de... como se chamava ele?.. York Harding. Vim a saber mais tarde que Pyle tinha um imenso respeito pelos escritores que ele chamava sérios. Este termo excluía os romancistas, os poetas e os dramaturgos, a menos que focassem assuntos a que ele dava o no­me de contemporâneos, e mesmo assim era sempre melhor ler as coi­sas tratadas sem rodeios, como no caso de York.

Eu disse:

- Sabe, quando se vive durante muito tempo num sítio deixa-se de ler a seu respeito.

            - Evidentemente que gosto sempre de saber o que o homem local           pensa - respondeu-me cautelosamente.

            - E depois comparar com o que York diz?

            - Sim. - Talvez notasse a ironia porque acrescentou, com a sua delicadeza habitual: - Sentir-me-ia extremamente grato se você algu­ma vez tivesse ocasião de me fazer um resumo dos aspectos funda­mentais. Sabe? York esteve aqui há mais de dois anos.

Gostei da sua lealdade para com Harding - quem quer que fosse esse Harding. Era uma variante em relação às difamações e ao cinismo imaturo dos jornalistas. Disse-lhe:

            - Beba mais uma cerveja enquanto eu tento dar-lhe uma ideia de tudo isto.

            Comecei, ao mesmo tempo que ele me olhava atentamente como um aluno modelo, por explicar a situação no Norte, em Tonquim,

 

*1 Outro termo para designar o mesmo tipo de estabelecimento.

 

onde naquele momento os franceses se agarravam ao delta do rio verme­lho que abrangia Hanói e o único porto do Norte, Haiphong. Aqui cul­tivava-se a maior parte do arroz, e logo que as colheitas amadureciam começava infalivelmente a luta anual pelo arroz.

- Isto quanto ao Norte - disse. - Os Franceses, pobres diabos, só poderão aguentar-se se os Chineses não decidirem ajudar os Viet­congues. Uma guerra na floresta, na montanha e nos pântanos; arro­zais onde nos enterramos até aos ombros e o inimigo desaparece sem se saber como, enterra as armas e veste um trajo de aldeão... Mas em Hanói podemos apodrecer confortavelmente no meio da humidade. Eles aí não atiram bombas. Deus sabe porquê. Pode chamar-lhe uma guerra perfeita.

- E aqui no Sul?

            - Os Franceses dominam as estradas principais até às sete da tar­de: depois desta hora dominam as torres de vigia e as cidades... em parte. O que não significa que se esteja seguro, ou não existiriam gra­des de ferro em frente dos restaurantes.

Quantas vezes já explicara tudo isto! Eu era um disco posto a girar para esclarecer os recém-chegados: o membro do parlamento em visi­ta, o novo ministro britânico. Por vezes acordava de noite dizendo: ..Vejamos, por exemplo, o caso dos caodaístas.» - Ou dos hoa-haos ou dos binh xuyen, de todos os exércitos privativos que vendiam os seus serviços por dinheiro ou vingança. Os estrangeiros achavam-nos pito­rescos, mas nada há de pitoresco na traição e na falta de confiança.

- E por último - disse-lhe -, há D general Thé. Era o chefe das forças caodaístas, mas está nas montanhas a lutar com ambos os lados: os franceses, os comunistas...

- York escreveu que o que faltava ao Oriente era uma terceira for­ça - disse Pyle.

Talvez eu devesse ter reparado no brilho fanático, na resposta rápi­da a uma frase, na musicalidade mágica dos números; quinta coluna, terceira força, sétimo dia. Se eu me tivesse apercebido da direcção em que caminhava aquele jovem e incansável cérebro era possível que nos tivesse poupado a todos, mesmo ao próprio Pyle, muitos dissabo­res. Mas deixei-o na aridez esquelética dos elementos fundamentais e fui dar o meu passeio diário pela Rua Catinat. Teria de aprender à sua custa quais os verdadeiros elementos fundamentais: o ouro dos arro­zais sob o sol achatado do fim da tarde; as canas frágeis dos pescado­res pairando sobre os campos como mosquitos; as xícaras de chá so­bre a plataforma de um velho abade, com a sua cama e os seus calendários comerciais, os baldes e as chávenas partidas e o lixo de to­da uma vida em torno da sua cadeira; os chapéus das raparigas, em forma de concha, reparando a estrada onde explodiu uma mina; o ouro e o verde-tenro e os vestidos coloridos do Sul, e no Norte os castanhos­-escuros e os fatos pretos e o círculo das montanhas inimigas e o zum­bir dos aviões. Quando cheguei contava os dias da minha missão tal co­mo um estudante risca no calendário os dias do trimestre; pensava que estava preso ao que restava de Bloomsbury Square, ao autocarro 73 passando pelo pórtico de Euston e à Primavera local de Torrington Place. Agora, no jardim do largo, os bolbos estavam floridos, e era-me indiferente. Queria os meus dias pontuados por aquelas detonações súbitas que tanto podiam vir de um tubo de escape como das granadas, queria ter diante dos olhos aquelas gentis figuras com calças de seda deslocando-se com graciosidade pela tarde húmida, queria Phuong. A minha casa deslocara-se quinze mil quilómetros.

Virei junto à casa do alto-comissário, onde a Legião Estrangeira fa­zia guarda com os quépis brancos e as dragonas escarlates, atravessei junto da catedral e voltei ladeando o muro lúgubre da Súreté vietnami­ta, que parecia cheirar a urina e a injustiça. E no entanto também isto era estar em casa, tal como os corredores sombrios dos andares supe­riores que evitamos quando somos crianças. Nas barracas junto dos cais estavam expostas as novas revistas obscenas: Tabu e Ilusão; e os marujos bebiam cerveja sentados no chão, alvos fáceis para uma bom­ba caseira. Pensei em Phuong, que devia estar a regatear o preço do peixe na terceira rua à esquerda quando se desce, antes de se dirigir ao milk bar para beber o seu refresco das onze horas (naqueles tempos eu sabia sempre onde ela se encontrava), e o Pyle desapareceu fácil e naturalmente do meu pensamento. Nem mesmo o mencionei a Phuong quando nos sentámos para almoçar no nosso quarto da Rua Catinat, ela com o seu melhor vestido de seda florida, porque havia dois anos que nos tínhamos encontrado no Grand Monde, em Cholon.

 

Nenhum de nós o mencionou quando acordámos na manhã que se seguiu à sua morte. Phuong levantara-se antes de eu estar bem acorda­do e tinha o chá pronto. Não se tem ciúmes dos mortos e nessa manhãpareceu-me fácil recomeçar a nossa vida em comum.

            - Ficas esta noite? - perguntei a Phuong tão naturalmente quanto me foi possível, enquanto comia os croissants.

            - Terei de ir buscar a minha mala.

            - A polícia pode lá estar - disse. - É preferível que eu vá con­tigo. - Foi o mais perto que estivemos de falar em Pyle, nesse dia.

Pyle tinha um apartamento numa moradia nova junto da Rua Du­ranton, perto de uma daquelas ruas principais que os Franceses cons­tantemente subdividiam em honra dos seus generais - de modo que a Rua de Gaulle depois do terceiro cruzamento se transformava em Rua Leclerc e mais tarde ou mais cedo mudaria abruptamente para Rua De Lattre. Devia ter chegado da Europa por via aérea alguém impor­tante porque havia um polícia olhando para o pavimento em cada dez metros da estrada que levava à residência do alto-comissário.

No caminho coberto de areia que conduzia ao apartamento de Pyle havia várias motocicletas, e um polícia vietnamita examinou O meu cartão de jornalista. Não consentiu que Phuong entrasse na casa e con­sequentemente eu fui procurar um oficial francês. No quarto de banho de Pyle, Vigot lavava as mãos com o sabonete de Pyle e enxugava-as com a toalha de Pyle. O seu fato tropical tinha uma mancha de óleo na manga: "do óleo de Pyle», pensei.

- Alguma novidade? - perguntei.

- Encontrámos o carro dele na garagem. Não tem gasolina. Deve ter saído de trisbaw... ou no carro de outra pessoa. Talvez tivessem es­vaziado o depósito.

            - Talvez tivesse ido a pé - disse-lhe. - Sabe muito bem como são os Americanos.

            - O seu carro ardeu, não é verdade? - continuou pensativamente. - Não tem um novo?

            - Não, não tenho.

- Não é problema de grande importância.

- É verdade, não é.

- Tem alguma opinião? - perguntou.

- Até as tenho de mais - respondi-lhe.

- Conte-mas.

- Pode ter sido assassinado pelos vietcongues. Já mataram bastan­te gente em Saigão. O seu corpo foi encontrado no rio, junto da ponte que conduz a Dukow, território vietcongue, logo que a vossa polícia se retira, à noite. Ou pode ter sido morto pela Sureté vietnamita: já hou­ve casos. Talvez não gostasse dos amigos que ele tinha. Talvez fosse   morto pelos caodaístas porque conhecia o general Thé.

- Conhecia?

- Dizem que sim. Talvez tivesse sido morto pelo general Thé por conhecer os caodaístas. Talvez fosse morto pela hoa-haos por se atirar às concubinas do general. Talvez fosse simplesmente morto por al­        guém que pretendia roubar-lhe o dinheiro.

- Ou talvez se trate de um simples caso de ciúme - disse Vigot. - Ou talvez fosse a Sureté francesa - continuei - por não lhe agradarem os contactos que ele tinha. Tem a certeza de que procura as pessoas que o mataram?

- Não procuro ninguém - disse Vigot. - Estou simplesmente a fazer o meu relatório. Desde que se trate de um acto de guerra... Ora, há-os aos milhares, que morrem todos os anos.

- Pode riscar-me da sua lista - disse-lhe. - Não estou envolvido nesse assunto. Nada envolvido - repeti. Fora um dos artigos do meu credo. Dado o estado da condição humana, deixá-los lutar, deixá-los matar, eu nada tinha com o caso. Os meus colegas jornalistas intitula­vam-se correspondentes; eu preferia a designação de repórter. Escrevia o que via: não actuava - o simples facto de emitir uma opinião é de certo modo actuar.

- O que o traz aqui?

- Vim buscar as coisas de Phuong. Os seus polícias não a deixa­ram entrar.

- Bom, então vamos procurá-las.

- É simpático da sua parte, Vigot.

Pyle tinha dois quartos, uma cozinha e uma casa de banho. Fomos ao quarto de cama. Sabia onde Phuong guardava a mala: debaixo da cama. Puxámo-la os dois para fora; continha as suas ilustrações. Tirei do guarda-fato a sua parca roupa, duas túnicas boas e o seu outro par de calças. Tinha-se a sensação de que estavam ali dependuradas havia poucas horas, de não pertencerem à casa, de estarem de passagem, como uma borboleta num quarto. Encontrei as suas pequenas cuecas triangulares numa das gavetas, assim como a colecção de lenços de pescoço. Havia realmente muito pouco a meter dentro da mala, menos do que na minha terra se leva para um fim-de-semana.

Na sala, um retrato dela com Pyle. Tinham sido fotografados no jar­dim botânico junto de um grande dragão de pedra. Ela segurava pela trela o cão de Pyle: um chow preto com a língua da mesma cor. Um cão demasiadamente preto. Meti a fotografia na mala.

- O que aconteceu ao cão? - perguntei a Vigot.

- Não está aqui. Pode ser que o tivesse levado consigo.

- Talvez volte e então pode analisar a terra agarrada às suas patas.

- Não sou o Lecoq ou o Maigret, e estamos em guerra.

Dirigi-me à estante e examinei as duas filas de livros: a biblioteca de Pyle. O Progresso da China Vermelha, O Desafio à Democracia, O Papel do Ocidente - as obras completas de York Harding. Muitos relatórios de congressos, um livro com frases vietnamitas, uma história da guerra nas Filipinas, as obras de Shakespeare, da Livraria Moderna. Com que livros descansava? Encontrei noutra prateleira as suas leituras leves: um Thomas Wolfe de bolso, uma antologia misteriosa intitulada O Triunfo da Vida e uma selecção de poesia americana. Havia também um livro de problemas de xadrez. Não parecia grande coisa para encerrar um dia de trabalho, mas era preciso não esquecer que tivera Phuong. Es­condido por detrás da antologia havia um livro forrado a papel intitu­lado A Fisiologia do Casamento. Talvez estivesse a estudar os problemas sexuais, tal como estudara o Oriente... no papel. E a palavra mágica     era o casamento. Pyle não temia as complicações.

A sua secretária estava praticamente nua.

- Você fez uma limpeza total - disse a Vigot.

- Ah - disse Vigot. - Foi-me necessário tomar conta dessas coi­sas em nome da legação americana. Você sabe com que rapidez se  espalham os boatos. Podia dar-se um roubo. Selei todos os seus papéis. - Disse tudo isto com aspecto grave.

- Qualquer coisa comprometedora?

- Não podemos permitir-nos encontrar coisas comprometedoras quando se trata de um aliado - disse Vigot.

- Importa-se que eu leve um destes livros como recordação? - Viro a cara para a outro lado.

Escolhi O Papel do Ocidente e meti-o na mala juntamente com a rou­pa de Phuong.

- De amigo para amigo - disse Vigot -, não há nada que me possa dizer confidencialmente? O meu relatório já está encerrado. Foi assassinado pelos comunistas. Talvez se trate do começo de uma cam­panha contra o auxílio americano. Mas aqui entre nós... ouça, estamos a falar em seco, que lhe parece irmos até à esquina beber um vermute cassiS?

- É ainda muito cedo.

- Ele não lhe fez quaisquer confidências na última vez que o viu?

-Não.

- Quando foi isso?

- Ontem de manhã, depois do grande estrondo.

Vigot fez uma pausa para que a minha resposta penetrasse – em mim e não nele; ele interrogava com lealdade.

- Você não estava em casa quando ele o procurou ontem à noite?

- Ontem à noite? Devo ter estado. Não pensei...

- Pode acontecer que lhe seja necessário um visto de saída. Sabe que podemos demorá-lo indefinidamente.

            - Acha realmente - disse-lhe - que eu quero regressar ao meu país?

            Vigot olhou pela janela o dia brilhante e sem nuvens. Disse com tristeza:

- A maior parte das pessoas quer.

- Gosto disto aqui. Na minha terra tenho... problemas.

- Merde - disse Vigot. - Eis o adido económico americano. ­E repetiu com sarcasmo: - Adido económico.

- É melhor ir-me embora. Vai querer selar-me a mim também. Vigot disse com um ar cansado:

- Desejo-lhe boa sorte. Ele vai ter um sem-fim de coisas a di­zer-me.

            Quando saí, o adido económico estava junto do seu Packard e ten­tava explicar qualquer coisa ao chauifeur. Era um homem gordo, de meia-idade, com um traseiro exagerado e uma cara que parecia nunca ter necessidade de navalha. Chamou:

- Fowler. Pode explicar a este maldito chauJfeur...?

Eu expliquei.

- Mas foi exactamente isso que eu lhe disse. Ele finge sempre que não percebe francês.

- Talvez seja uma questão de pronúncia.

- Estive três anos em Paris. A minha pronúncia chega para um destes danados vietnamitas.

- A voz da democracia - disse-lhe.

- Que diz?

- Parece-me que é um livro de York Harding.

- Não percebo onde quer chegar. - Olhou desconfiadamente pa­ra a mala que eu trazia na mão.

- Que tem aí dentro? - perguntou.

            - Dois pares de calças de seda branca, duas túnicas de seda, umas quantas cuecas, acho que três pares. Tudo de fabrico nacional. Nada de auxílio americano.

- Esteve lá em cima?

- Estive.

- Já sabe o que se passa?

-Já.

- É uma coisa terrível, terrível.

- O ministro deve estar muito perturbado.

            - Se lhe parece! Ele é agora .o alto-comissário e pediu uma entre­vista ao presidente. - Pôs a mão no meu braço e arrastou-me para longe dos automóveis.

- Você conhecia bem o jovem Pyle, não é verdade? Não me posso conformar com o que lhe sucedeu. Conhecia o pai dele. O professor Harold C. Pyle; já deve ter ouvido falar nele...

- Não, nunca ouvi.

- É a maior autoridade mundial em erosão subaquática. Não viu, no mês passado, o seu retrato na capa da Time?

            - Ah, parece-me que me recordo. Um penhasco esboroando-se ao fundo e óculos com aros de ouro em primeiro plano.

            - Esse mesmo. Tive de rascunhar o telegrama para a família. Foi horrível. Gostava daquele rapaz como se fosse meu filho.

- Nessas condições você é um parente próximo do pai.

Ele olhou-me com os seus olhos castanhos e húmidos e disse:

- Que diabo lhe aconteceu? Não são maneiras de falar quando uma jóia de rapaz...

- Desculpe. A morte atinge as pessoas de maneira diferente. - ­Talvez ele tivesse efectivamente gostado de Pyle. - Que dizia você no telegrama?

Ele respondeu-me literalmente e com um ar sério:

- «Lamento comunicar seu filho morreu como soldado pela demo­cracia.» O ministro assinou-o.

- Como um soldado - disse. - Não acha que pode causar con­fusões? Refiro-me à gente lá da terra. A Missão de Auxílio Económico não tem parecenças com o Exército. Também dão PurpIe Hearts *1?

Ele disse numa voz baixa, tensa de ambiguidade:

- Tinha um cargo especial.

- Ah! Evidentemente todos desconfiávamos disso.

- Ele não dava à língua, pois não?

- Ah! não - respondi-lhe, e a frase de Vigot veio-me à ideia: «Era um americano muito tranquilo.»

            - Tem alguma ideia - perguntou-me - das razões porque eles o mataram? E quem o fez?

Subitamente fiquei furioso; estava farto deles todos com as suas lo­jas privativas para venda de Coca-Cola, os seus hospitais ambulantes e os seus wyde-cars e os seus canhões quase, mas não absolutamente, úl­timo modelo. Respondi:

- Sim, tenho. Mataram-no porque era demasiadamente inocente para continuar a viver. Era novo, ignorante e parvo e meteu-se em sari­lhos. Tal como qualquer de vocês, não fazia a mínima ideia de todo o problema e vocês deram-lhe dinheiro e os livros de York Harding so­ bre o Oriente e disseram-lhe: «E agora é andar para a frente. Conquiste o Oriente em prol da democracia.» Nunca viu o que quer que fosse de que não tivesse ouvido falar numa sala de conferências, e os escritores e as conferências fizeram dele um idiota. Quando tinha um cadáver diante dos olhos nem mesmo conseguia aperceber-se das feridas. Uma ameaça vermelha, um soldado da democracia.

- Pensei que você era amigo dele - disse-me com um ar repro­vador.

- Fui seu amigo. Teria gostado de o ver ler, lá na sua terra, os su­plementos dos domingos e interessar-se pelo basebol. Gostaria de o saber feliz com uma rapariga americana estandardizada, com assinatu­ra num clube de obras literárias.

Ele aclarou a voz com um ar embaraçado.

 

1 Condecoração concedida pelos EUA, a todos os soldados feridos em combate.(N. do R)

 

- Claro que me tinha esquecido daquele infeliz assunto. Eu estava do seu lado, Fowler. Ele portou-se muito mal. Devo dizer-lhe que tive uma longa conversa com ele acerca da rapariga. Sabe... eu tinha a van­tagem de conhecer o professor e a senhora Pyle...

- O Vigot está à sua espera - disse e afastei-me. Só então repa­rou em Phuong e quando me voltei para o olhar ele contemplava-me com um ar de perplexidade dolorida: o eterno irmão mais velho que não consegue compreender.

 

A primeira vez que Pyle viu Phuong foi novamente no Continental, talvez dois meses depois de ele ter chegado. A noite começava com a frescura súbita que vem logo que o Sol baixa, e as velas nas tendas das ruas laterais já estavam acesas. Os dados batiam nas mesas onde os franceses jogavam o quatre vingt-et-un e as raparigas das calças de seda branca desciam, a Rua Catinat, nas suas bicicletas, a caminho de casa. Phuong bebia um copo de sumo de laranja e eu uma cerveja e estáva­mos silenciosos, satisfeitos por estarmos juntos. Nessa altura Pyle diri­giu-se para nós por entre as mesas e eu apresentei-os. Tinha a mania de olhar fixamente para uma rapariga como se nunca tivesse visto ne­nhuma e depois corava.

- Gostaria de o convidar e à senhora para a nossa mesa. Um dos nossos adidos...       .

Era o adido económico. Sorriu-nos alegremente do terraço supe­rior, um sorriso rasgado e quente de acolhimento, cheio de confiança, comparável ao homem que conserva os amigos porque usa desodori­zante adequado. Já ouvira por várias vezes chamarem-lhe Joe, mas nunca chegara a saber o seu apelido. Puxou ruidosamente as cadeiras e chamou o criado embora todo o resultado de uma tal actividade no Continental só pudesse resultar numa escolha entre cerveja, brande com soda e vermute cassis.

- Não pensava vê-lo aqui, Fowler - disse-me. - Estamos à espe­ra da rapaziada que voltou de Hanói. Parece que a luta foi das boas. Você não esteve lá com eles?

            - Estou farto de fazer quatro horas de voo para assistir a uma con­ferência de imprensa.

            Olhou-me com um ar de reprovação e disse:

            - Estes tipos estão na verdade cheios de entusiasmo. Podiam ga­nhar o dobro se se dedicassem a negócios ou à rádio, e sem quaisquer riscos.

            - Talvez tivessem de trabalhar - respondi.

            - Dá a impressão de cheirar a luta como cavalos de batalha ­continuou com um ar exultante, não prestando a mínima atenção às palavras que lhe desagradavam. - Veja o Bill Granger, por exemplo. É impossível afastá-lo de qualquer escaramuça.

            - Você deve ter razão. Vi-o metido numa, há poucas noites... No bar do Sporting.

- Você sabe muito bem que não era a isso que eu me referia. Dois condutores de trishaw pedalaram furiosamente Rua Catinat abaixo e estacaram, em pose fotográfica, diante do Continental. No primeiro vinha o Granger. O outro trazia uma trouxa pequena, cinzen­ta, silenciosa, que Granger começou a tirar para a rua.

- Ora vamos, Mick - disse. - Vamos lá. - Depois entrou em discussão com o condutor acerca do preço. - Aqui tens - disse. - É pegar ou largar - e atirou ao chão por cinco vezes moedas a perfazer a quantia precisa para que o homem se abaixasse e as apa­nhasse.

O adido económico, com um ar nervoso, disse:

- Estes rapazes merecem distrair-se um pouco. Granger lançou o seu fardo sobre uma cadeira. Depois reparou em Phuong.

- Olha o malandro do Joe. Onde a encontraste? Não sabia que ain­da eras capaz de assobiar. Desculpem, mas vou ver onde é a retrete. - Tratem do Mick.

- Maneiras rudes de tropa - disse eu.

Pyle, com um ar sério, corando novamente, disse:

- Nunca vos teria convidado para esta mesa se tivesse pensa­do que...

A trouxa cinzenta agitou-se na cadeira e a cabeça caiu sobre a me­sa como se estivesse desligada do corpo. Suspirou, um longo suspiro sibilante de infinito tédio, e depois ficou imóvel.

- Conhece-o? - perguntei a Pyle.

- Não, não o conheço. Não é jornalista?

- Ouvi o Bill chamar-lhe Mick - disse o adido económico.

- Não há um novo correspondente da U.P.?

- Não é este. Eu conheço-o. Não pertencerá à vossa Missão Eco­nómica? Você não pode conhecer todos os seus colegas. Há-os às cen­tenas.

            - Não me parece que seja dos nossos - disse o adido económico. - Não me lembro dele.

            - Podemos procurar o seu cartão de identidade - sugeriu Pyle.

            - Por amor de Deus, não o acorde. Um bêbedo já nos chega. E o            Granger deve saber quem ele é.

Mas não sabia. Voltou do lavabo com um ar triste.

- Quem é esta tipa? - perguntou com ar taciturno.

- A menina Phuong é amiga do Fowler - disse Pyle secamente.

- Queremos saber quem é...

- Onde a foi ele encontrar? Nesta terra é preciso ter muito cuida­do. - E acrescentou h.lgubremente: - Graças a Deus que apareceu a penicilina.

- Bill - disse o adido económico. - Queremos saber quem é o Mick.

- Sei lá!...

- Mas foi você quem o trouxe.

- As rãs não aguentam o scotch. Adormeceu.

- É francês? Pareceu-me que você lhe chamara Mick.

- Tinha de lhe chamar qualquer coisa - disse Granger. Debru­çou-se por forma a aproximar-se de Phuong e disse:

            - Ouça. É consigo que estou a falar. Quer outra laranjada? Está comprometida para esta noite?

- Ela está comprometida todas as noites - disse eu.

O adido económico disse apressadamente:

- Como vai a guerra, Bill?

- Houve uma grande vitória a noroeste de Hanói. Os franceses re­capturaram duas aldeias sem nunca nos terem informado de que as ti­nham perdido. Muitas mortes do lado dos vietcongues. Não lhes foi ainda possível fazer uma estimativa, mas informar-nos-ão dentro de uma ou duas semanas.

- Corre o boato de que os vietcongues entraram em Phat Diem, queimaram a catedral e correram com o bispo - respondeu o adido económico.

            - Em Hanói não nos falaram nesse assunto. Isso não é uma vi­tória.

            - Uma das nossas brigadas de médicos não conseguiu passar para lá de Nam Dinh - disse Pyle.

- Você conseguiu chegar até aí, Bill? - perguntou o adido econó­mico.

- Quem pensa você que eu sou? Sou um correspondente com uma ordem de circulação onde estão marcadas as minhas limitações. Meto-me num avião até ao aeroporto de Hanói. Põem à nossa dispo­sição um automóvel que nos conduz aos alojamentos da imprensa. Fazem um voo sobre as duas cidades que recapturaram e mostram­-nos as bandeiras tricolores. Àquela altitude quem pode saber ao cer­to de que bandeiras se trata? Depois temos uma conferência de im­prensa e um coronel explica-nos tudo o que estivemos a observar. Em seguida entregamos os telegramas ao censor. Depois bebemos uns copos. É o melhor barman da Indochina. E por fim regressamos de avião.

Pyle franziu as sobrancelhas à cerveja.

- Você menospreza-se, Bill - disse o adido económico. - Veja, por exemplo, aquela reportagem sobre a Estrada 66... como lhe cha­maram vocês? O caminho para o Inferno: era digna de um Pulitzer. Sa­be a quem me refiro... àquele homem com a cabeça em estilhaços ajoelhado na vala e o outro que você viu caminhando como num so­nho...

- Você pensa que eu era capaz de me aproximar daquela maldita estrada? Stephen Crane descrevia uma guerra sem nunca a ter visto. E por que não eu? Isto não passa de uma reles guerra colonial. Quero outra bebida. E depois vamos arranjar uma rapariga. Você tem a sua.       Eu também. quero uma.

Eu disse a Pyle:

- Você acha que há alguma coisa de verdade no boato sobre Phat Diem?

            - Não sei. É importante? Se o é, gostaria de ir até lá dar uma vista de olhos.

            - Importante do ponto de vista da Missão Económica?

            - Ora você sabe que não é possível fazer-se uma limitação rígida. A medicina também é uma espécie de arma, não acha? Estes católicos devem ser bastantes contra os comunistas, não lhe parece?

- Negoceiam com os comunistas. Quem fornece ao bispo as vacas e o bambu para construções são os comunistas. Não me parece que sejam exactamente a terceira força de que fala o York Harding - dis­se-lhe, para o arreliar.

- Acabem com isso - gritou Granger. - Não posso perder a noi­te inteira aqui. Vou até à Casa das Quinhentas Raparigas.

            - Gostaria que você e a menina Phuong jantassem comigo... ­- disse Pyle.

- Você pode comer no Chalet - interrompeu Granger - enquan­to eu me atiro às pequenas da casa ao lado. Vamos daí, Joe. Você pelo menos é um homem.

Parece-me que foi então, enquanto tentava definir o que realmente era um homem, que senti pela primeira vez afeição por Pyle. Estava sentado, ligeiramente desviado de Granger, rodando com a caneca de cerveja, com uma expressão de alheamento resoluto. Disse a Phuong:

- Deve cansar-se com estas conversas profissionais... sobre o seu país.

- Comment?

- Que vão fazer do Mick? - perguntou o adido económico.

- Deixá-lo aqui - respondeu Granger.

- Não pode fazer uma coisa dessas. Você nem mesmo sabe como ele se chama.

            - Podíamos levá-lo connosco e entregá-lo aos cuidados das pe­quenas.

            O adido económico deu uma gargalhada estrondosa e comunicativa. Parecia uma cara vista na televisão.

- Vocês, os jovens, podem fazer o que quiserem, mas eu já estou demasiadamente velho para brincadeiras. Vou levá-lo comigo para casa. Você não disse que ele era francês? - perguntou.

- Pelo menos falava francês.

- Se conseguirem metê-lo no meu carro...

Quando o automóvel se afastou Pyle meteu-se com o Granger num trishaw e Phuong e eu seguimos num outro pela estrada que conduz a Cholon. Granger fizera uma tentativa para ir no trishaw com Phuong, mas Pyle impedira-o. Enquanto nos levavam pela longa estrada do su­búrbio até à cidade chinesa cruzámo-nos com uma comprida fila de carros blindados franceses, cada um deles com um canhão e um ofi­cial, silencioso e imóvel, qual busto esculpido sob as estrelas e o céu negro, liso e côncavo: mais complicações provavelmente com um exército privado, como os de Bin Xuien, que dirigia o Grand Monde e as casas de jogo de Cholon. Era uma terra de barões rebeldes: Como a Europa na Idade Média. Mas que faziam aqui os Americanos? Colombo ainda não lhes descobrira a América.

- Gosto daquele rapaz, do Pyle - disse a Phuong.

- É tranquilo - disse-me, e o adjectivo que ela foi a primeira a usar aderiu como a alcunha de um colegial, até ao ponto de o ouvir ao próprio Vigot, com a sua pala verde, enquanto me falava da morte de Pyle.

Mandei parar o trishaw à porta do Chalet e disse a Phuong:

_ Entra e arranja uma mesa. Parece-me melhor ir ver o que se pas­sa com Pyle.

Foi o meu primeiro instinto: protegê-lo. Nunca me ocorreu que houvesse uma maior necessidade de me proteger a mim próprio. A inocência pede sempre silenciosamente protecção, quando seria muito mais sensato precavermo-nos contra ela: a inocência é como um leproso mudo que perdeu o guizo e vagueia pelo mundo sem más in­tenções.

            Quando cheguei à Casa das Quinhentas Raparigas, Pyle e Granger já tinham entrado. Perguntei no posto de polícia militar junto da entrada:

            - Deux américains?

Era um jovem soldado da Legião Estrangeira. Parou de limpar o re­vólver e estendeu o polegar em direcção à porta, ao mesmo tempo que dizia uma graça em alemão. Não a percebi.

No imenso pátio aberto para o céu estava-se na hora do descanso. Havia centenas de raparigas, estendidas na relva ou sentadas sobre os calcanhares, conversando com as companheiras. As cortinas dos pe­quenos cubículos em redor do pátio não estavam corridas. Deitada numa cama, os tornozelos cruzados, sozinha, estava uma rapariga can­sada. Em Cholon havia desordens e as tropas tinham sido confinadas nos quartéis e não havia trabalho: o domingo do corpo. Restava aque­le bando de raparigas que zaragateavam, arranhavam-se e gritavam para me recordar que os velhos costumes permaneciam. Lembrei-me da velha história de Saigão sobre um visitante que perdera as calças enquanto tentava pôr-se a salvo no posto da polícia. Aqui não havia qualquer protecção aos civis. Se lhes apetecia invadir território militar tinham de tomar as suas precauções e solucionar os seus problemas.

Eu aprendera uma técnica: dividir é conquistar. Escolhi uma de en­tre o enxame que se juntara à minha volta e conduzi-a lentamente atéao local onde pyle e Granger se debatiam.

            - Je suis un vieux - disse-lhe. - Trop jatigué  - Ela riu parvamen­    te e insistiu. - Mon ami - disse-lhe - il est tres riche, tres vigoureux.

            - Tu es safe - respondeu-me.

Dei com Granger afogueado e triunfante, como se considerasse es­tas demonstrações um tributo à sua masculinidade. Uma das raparigas dava o braço a Pyle e tentava arrastá-lo docemente para fora da roda. Empurrei a minha rapariga para junto das outras e chamei:

- Pyle, estou aqui.

Olhou-me por cima das cabeças das raparigas e disse:

- É terrível. Terrível.

Pode ter sido da luz do lampião, mas pareceu-me lívido. Ocorreu­-me ser muito possível que fosse virgem.

- Vamos, Pyle - disse-lhe. - Deixe-as ao cuidado do Granger. Reparei que levava a mão à algibeira das calças. Não me espantava que tencionasse ficar com as algibeiras limpas de piastras e notas.

            - Não seja parvo, Pyle - gritei-lhe asperamente. - Vai provocar uma zaragata.

            A minha rapariga tentava voltar para junto de mim e dei-lhe um no­vo empurrão até ao círculo interior em torno de Granger.

- Non, non - disse -, je suis un anglais pauvre, tres pauvre. - De­pois agarrei no braço de Pyle e arrastei-o para fora com a rapariga pendurada no seu outro braço, como peixe no anzol. Duas ou três ra­parigas tentaram interceptar-nos antes de atingirem o portão onde estava de guarda o soldado, mas sem grande convicção.

- Que faço agora com esta? - disse Pyle.

- Não o maçará, vai ver - e nesse instante ela largou-lhe o braço e mergulhou na escaramuça em torno de Granger.

            - Acha que lhe não acontecerá nada de grave? - perguntou Pyle,             inquieto.

            - Tem o que pretendia: mulheres.

            A noite lá fora parecia muito sossegada, cortada simplesmente por novo esquadrão de carros blindados que faziam lembrar pessoas com um mesmo objectivo.

            - É terrível. Nunca poderia acreditar... - disse Pyle. Depois conti­nuou com respeito e tristeza: - Eram tão bonitas!

Não invejava Granger; lastimava que uma coisa boa (e a beleza e a graça são certamente aspectos de virtude) fosse manchada ou maltra­tada. Pyle era capaz de se aperceber do sofrimento quando este estava mesmo em frente dos seus olhos (não escrevo isto com intuito de o escarnecer; porque afinal muita gente há que não se apercebe).

- Vamos até ao Chalet. Phuong está à espera.

- Desculpe - disse-me. - Esqueci-me por completo. Você não devia tê-la deixado só.

- Ela não corre perigo.

- Queria simplesmente certificar-me de que o Granger estavabem... - Mergulhou novamente nos seus pensamentos, mas ao entrar­mos no Chalet disse com amargura: - Esquecera-me da quantidade de homens que...

 

Phuong guardara-nos uma mesa junto do recinto de dança; a or­questra tocava um número que há cinco anos estivera em moda em Paris. Dois pares vietnamitas dançavam, pequenos, cuidados, distantes, com um ar de civilização que nós não conseguíamos igualar (reco­nheci um deles, um contabilista da Banque de l'Indo-Chine, e a sua mulher). Sentia-se que nunca vestiam descuidadamente, que diziam sempre o que era preciso, que nunca eram vítimas de paixões desor­denadas. Se a guerra parecia medieval, eles eram o futuro século XVIII. Seria de esperar que o Sr. Pham-Van-Tu escrevesse, nas horas livres, poemas augustos, mas por acaso eu sabia que ele estudava Words­worth e escrevia poemas sobre a natureza. Passava as férias em Dalat, tudo o que encontrara de mais parecido com a atmosfera dos lagos in­gleses. Quando se aproximou curvou-se ligeiramente. Perguntei-me o que estaria a acontecer a Granger a vinte e cinco metros mais acima na estrada.

Pyle pedia desculpa a Phuong em mau francês por tê-la feito esperar.

- C'est impardonnable - disse.

- Onde estiveram? - perguntou-lhe Phuong.

- Fui levar o Granger a casa.

- A casa? - disse, e ri e Pyle fitou-me como se eu fosse um outro Granger.

            Subitamente vi-me como ele me via, um homem de meia-idade, com os olhos ligeiramente injectados, principiando a engordar, desgra­cioso no amor, talvez menos barulhento do que Granger, mas mais cínico, menos inocente. E vi por momentos Phuong como a vira pela primeira vez no Grand Monde, passando pela minha mesa ao dançar, com um vestido de baile branco, com dezoito anos, acompanhada por uma irmã mais velha decidida a arranjar-lhe um bom casamento com um europeu. Um americano comprara um bilhete e quisera dançar com ela: estava ligeiramente bêbedo, nada que pudesse ser perigoso, e provavelmente era novo na terra e julgava que as hospedeiras do Grande Monde eram prostitutas. Enquanto davam a primeira volta ao recinto de dança ele apertou-a muito, e de repente vi-a dirigir-se à ir­mã e ele ficar só, sem saber o que fazer, perdido entre os outros pares, sem perceber o que acontecera nem porque acontecera. E a rapariga cujo nome eu desconhecia sentou-se calmamente, bebendo de vez em quando um gole de laranjada, possuindo-se completamente.

- Peut-on avoir l'honneur? - disse Pyle com a sua pronúncia horrí­vel, e logo em seguida vi-os dançar silenciosamente no outro extremo da sala, Pyle segurando-a tão longe dele que dava a impressão de que de um momento para o outro se romperia o contacto. Ele dançava muito mal e ela fora a melhor dançarina que eu conhecera nos seus tempos do Grand Monde.

Fora um namoro prolongado e frustrante. Se me tivesse sido possí­vel oferecer-lhe casamento e um dote tudo se teria passado sem com­plicações e a irmã mais velha, sempre que estivéssemos juntos, desa­pareceria silenciosa e diplomaticamente. Mas foram precisos três meses para que eu conseguisse vê-la a sós durante uns momentos, nu­ma varanda do Majestic, enquanto na sala ao lado a irmã não parava de perguntar quando tencionávamos entrar. No rio Saigão, à luz de ar­chotes, descarregava, um cargueiro vindo de França; as campainhas dos trishaws tocavam como se fossem telefones e eu parecia um jovem e inexperiente idiota que não consegue dizer palavra. Voltei desenga­nado para a minha cama da Rua Catinat, e não poderia sonhar que quatro meses depois ela estivesse deitada a meu lado, com a respira­ção ligeiramente ofegante, rindo como que de surpresa porque nada se passara exactamente como ela esperara.

- Monsieur Foulair.

            Estivera a vê-los dançar e não reparara que a irmã me fazia sinais da mesa onde estava. Ela caminhou até junto da minha mesa e com re­lutância convidei-a a sentar-se. A nossa amizade acabara na noite em que ela adoecera no Grand Monde e eu levara Phuong a casa.

- Há já um ano que o não via - disse-me.

- Vou muito frequentemente a Hanói.

- Quem é o seu amigo? - perguntou-me.

- Um tipo chamado Pyle.

- Que faz ele?

- Pertence à Missão Económica Americana. Você conhece o géne­ro: máquinas eléctricas de coser para as desgraçadas costureiras.

- Mas há-as?

- Não sei.

- Mas não usam máquinas. Não há electricidade nos sítios onde vivem. - Era uma mulher muito literal.

- É melhor perguntar ao pyle - disse-lhe.

- Ele é casado?

Olhei para o recinto de dança.

- Quanto a mim, nunca se aproximou de uma mulher mais do que aquilo.

- Dança muito mal.

- Dança mal, sim.

- Mas parece simpático e de confiança.

- Sim, parece.

- Importa-se que me sente à vossa mesa durante uns instantes? Os meus amigos são muito insípidos.

A música acabou e Pyle inclinou-se cerimoniosamente para Phuong e depois reconduziu-a à mesa e puxou-lhe a cadeira para que se sentasse. Percebi que ela gostara do seu ar cerimonioso. Pensei em tudo o que ela perdia nas suas relações comigo.

- É a irmã de Phuong - disse a Pyle, e ele corou.

- É de Nova Iorque? - perguntou-lhe ela.

- Não. Sou de Boston.

- Também fica nos Estados Unidos?

- Ah, sim, fica. Fica, sim.

- O seu pai é comerciante?

- Não é bem. É professor.

- Um professor? - perguntou ela com um ligeiro tom de desa­pontamento.

            - Bem, é uma espécie de autoridade em certos assuntos. Há muita gente que o consulta.

            - Sobre a saúde? É médico!

            - Não é bem isso. É doutor em engenharia. Sabe tudo o que se passa na erosão subaquática. Sabe o que é isso?

            - Não, não sei.

Pyle disse, tentando fazer uma graça:

- Bom, então deixo ao pai a tarefa de lhe explicar.

- Ele está aqui?

- Ah, não, não está.

-Mas há-de vir?

- Não. Foi simplesmente uma graça - disse Pyle desculpando-se.

- Você tem outra irmã? - perguntei à menina Hei.

- Não, não tenho. Porquê?

- Deu-me a impressão de que sondava as possibilidades de casa­mento do senhor Pyle.

- Só tenho uma irmã - respondeu a menina Hei e deixou cair a mão com força sobre o joelho de Phuong, como um presidente de uma assembleia que restabelece a ordem com o seu martelo.

            - Tem uma irmã muito bonita - disse Pyle.

            - É a rapariga mais bonita de Saigão - disse a menina Hei, como que a corrigi-lo.

            - Não duvido.

            - São horas de pensarmos em jantar. A rapariga mais bonita de Saigão também precisa de comer - disse eu.

            - Não tenho fome - disse Phuong.

- É frágil - continuou com firmeza a menina Hei. Na sua voz transparecia uma nota de ameaça. - Necessita de cuidados. Merece que os tenham. É muito, mesmo muito leal.

            - O meu amigo é um homem cheio de sorte - disse Pyle com um ar grave.

            - Adora crianças - disse a menina Hei.

            Eu ri e depois olhei para Pyle: ele fitava-me com um ar surpreendi­do e escandalizado e repentinamente ocorreu-me que estava genuina­mente interessado no que a menina Hei tinha a dizer. Enquanto enco­mendava o jantar (embora Phuong me tivesse dito que não tinha fome eu sabia que ela comeria um bom bife tártaro com dois ovos crus e os respectivos «etcéteras») ouvi-o discutir muito a sério o problema dos filhos.

- Sempre pensei que gostaria de ter muitos filhos - disse. – Uma família numerosa é um maravilhoso centro de interesse. Conduz à es­tabilidade do casamento. E também é bom para as próprias crianças. Ser filho único é uma enorme desvantagem. - Nunca o ouvira falar tanto.

- Que idade tem o seu pai? - perguntou a menina Hei com gula.

- Tem sessenta e nove anos.

- As pessoas de idade adoram os netos. É uma grande infelicidade que os pais da minha irmã já não sejam vivos e não possam regozijar­-se com os seus filhos. Quando ela os tiver, já se vê - acrescentou, lançando-me um olhar dolorido.

- E que você os não possa gozar - disse Pyle desnecessariamen­te, a meu ver.

- O nosso pai era de muito boas famílias. Era mandarim em Hué.

- Já encomendei os vossos jantares - disse.

- Para mim não - disse a menina Hei. - Tenho de me juntar aos meus amigos. Gostaria de estar novamente com o senhor Pyle. Talvez você possa combinar o encontro.

- Quando voltar do Norte - disse-lhe.

- Vai ao Norte?

- Acho que já é tempo de ir ver o que se passa com a guerra.

- Mas os correspondentes já voltaram - disse Pyle.

- É a melhor altura para ir. Não encontrarei o Granger.

- Então tem de vir jantar com a minha irmã e comigo depois de Monsieur Foulair partir. - E acrescentou com cortesia impertinente: - Para a distrair.

Quando ela se afastou Pyle disse:

- Que mulher culta e interessante. E fala inglês tão bem.

- Diz-lhe que a minha irmã trabalhou em Singapura, no comércio - disse-me Phuong orgulhosamente.

- Ah sim? Que género de trabalho?

- Importações e exportações. Ela sabe estenografia - traduzi. - Quem me dera que tivéssemos na Missão Económica gente do seu género.

            - Falar-lhe-ei nisso - disse Phuong. - Ela gostaria de trabalhar para os Americanos.

Depois do jantar dançaram novamente. Eu também danço mal e não tenho a falta de sentido do ridículo de Pyle - ou tê-la-ia tido nos primeiros tempos, quando me apaixonei por Phuong? Devo ter dança­do muitas vezes com Phuong no Grand Monde, antes da noite memo­rável em que a menina Hei adoeceu, memorável só pela oportunidade de conversar com ela. Pyle não se aproveitava dessa oportunidade quando se aproximaram de novo; estava menos tenso, era tudo. E se­gurava-a ligeiramente mais perto, mas estavam ambos silenciosos. De repente, enquanto lhe olhava para os pés, tão leves e precisos e domi­nadores da confusão dos dele, senti-me novamente apaixonado. Mal podia acreditar que dentro de uma, de duas horas, ela voltaria comigo para aquele quarto tosco, com a retrete comum e as velhas acocoradas no patamar.

Desejei nunca ter ouvido os boatos sobre Phat Diem, ou pelo me­nos que os boatos se não referissem à única cidade no Norte onde as minhas relações de amizade com um oficial de marinha francês me permitiam entrar sem censura e sem fiscalização. Uma notícia sensa­cional publicada antecipadamente? Nunca naqueles tempos, em que o mundo só se interessava pelas notícias sobre a Coreia. Uma oportuni­dade de morte? Por que havia eu de querer morrer se Phuong dormia todas as noites a meu lado? Mas eu conhecia a resposta a esta per­gunta. Desde criança que não acreditava na permanência e no entanto desejava-a. Receava constantemente perder a felicidade. Este mês, no próximo ano, Phuong deixar-me-ia. E se não fosse para o ano, dentro de três anos. A morte era o único valor absoluto do meu mundo. Per­dendo-se a vida, nada mais se podia perder em todo o sempre. Inveja­va aqueles que conseguiam acreditar num deus, e não confiava neles. Sentia que conservavam a coragem com uma fábula sobre o imutável e o permanente. A morte era muito mais certa do que Deus, e com a morte acabava-se a possibilidade de o amor poder morrer de um dia para o outro. Desfazia-se o pesadelo do aborrecimento e da indiferença. Nunca poderia ter sido um pacifista. Matar um homem era certamente conceder-lhe um benefício incomensurável. Ah, sim, toda a gente, sis­tematicamente, em toda a parte, queria bem aos inimigos. E cabia aos amigos estarem reservados para a dor e para a estupidez.

            - Desculpe-me ter-lhe roubado a menina Phuong - disse a voz de Pyle.

- Eu não sou dançarino, mas gosto de a ver dançar. - Falava-se dela invariavelmente na terceira pessoa, como se não estivesse presente. Por vezes, tal como a paz, parecia invisível.

Começaram as primeiras atracções da noite: um cantor, um prestidigitador, um comediante - muito obsceno, mas quando olhei para Pyle era evidente que ele não conseguia seguir o calão. Sorria quando Phuong sorria e ria pouco à vontade quando eu ria.

- Onde está o Granger? - disse, e Pyle olhou-me com um ar de censura.

Depois começou a grande atracção da noite: um grupo de travestis. Vira já vários durante o dia, subindo e descendo a Rua Catinat, com o queixo ligeiramente azulado, ondulando as ancas. Agora, com vestidos de noite decotados, jóias e seios falsos e vozes roucas, tinham um as­pecto pelo menos tão apetecível como o da maior parte das mulheres europeias de Saigão. Um grupo de jovens da força aérea assobiou-lhes e eles agradeceram-lhes com um sorriso esfuziante. Espantou-me a sú­bita violência do protesto de Pyle:

- Fowler, vamo-nos embora. Já chega, não acha? Isto não é coisa própria para ela.

 

Vista do campanário da catedral a batalha era simplesmente pito­resca, um cliché semelhante àqueles aspectos da guerra dos bóeres publicados numa velha Illustrated London News. Um avião lançava víve­res, em pára-quedas, a um posto isolado no calcaire, essas estranhas montanhas da fronteira do Aname gastas pelo tempo, fazendo lembrar pilhas de pedra-pomes. E porque voltava sempre ao mesmo local para descer, era como se não se movesse, e o pára-quedas parecia imóvel, a meio caminho do solo. Da planície subiam continuamente as detona­ções dos morteiros, com o fumo tão sólido como a pedra, e no merca­do as labaredas brilhavam palidamente à luz do sol. As minúsculas fi­guras dos pára-quedistas deslocavam-se numa só fila ao longo dos canais, mas a esta altitude pareciam imóveis. O próprio padre sentado a um canto da torre mudou de posição enquanto lia o breviário. Àque­la distância a guerra parecia muito arrumada e muito limpa.

Eu viera de Nam Dinh numa barcaça antes do amanhecer. Não po­díamos atracar na estação naval porque estava cortada pelo inimigo, que cercava completamente a cidade num raio de trezentos metros, e o barco entrou pelo lado da praça toda em fogo. Éramos um alvo fácil à luz das chamas; por uma razão ou por outra ninguém disparou sobre nós. Estava tudo quieto, exceptuando o estalar e o crepitar das banca­das a arder. Da margem do rio chegava-me o ruído de uma sentinela se nega lesa mudando de posição.

Conhecera Phat Diem antes do ataque - a estreita e longa rua com bancadas de madeira, interrompida de cinquenta em cinquenta metros por um canal, por uma igreja, por uma ponte. De noite era exclusiva­mente iluminada por velas ou por pequenas lamparinas de óleo (em Phat Diem só existia luz eléctrica nos alojamentos dos oficiais france­ses) e noite e dia a rua estava apinhada e barulhenta. A seu modo, de uma maneira estranha e medieval, sob a protecção e ã sombra do bis­po príncipe, tem sido a cidade com mais vida de todo o país. Quando atraquei e me dirigi ao quartel dos oficiais, era a mais morta. Destro­ços, vidros partidos, cheiro de tinta e estuque queimados, a longa rua deserta até perder de vista, lembrava uma artéria de Londres, de ma­drugada, terminado o alarme: esperava-se encontrar uma tabuleta avi­sando: .Bomba que não explodiu».

A parede frontal do alojamento dos oficiais rebentara e as casas do outro lado da rua estavam em ruínas. Depois de deixar Nam Dinh, en­quanto descia o rio, o tenente Peraud contara-me o que acontecera. Era um rapaz sério, um mação, e para ele tudo aquilo era como que o castigo pelas superstições dos seus camaradas. O bispo de Phat Diem visitara em tempos passados a Europa e adquirira certa devoção por Nossa Senhora de Fátima, a visão da Virgem que, segundo crêem os católicos, aparecera a um grupo de crianças em Portugal. Quando re­gressou ao seu país construiu em sua honra uma gruta nos terrenos da catedral, e celebrava o Seu dia todos os anos com uma procissão. Des­de o dia em que as autoridades dispersaram o exército privativo do bispo, as relações com o coronel comandante das tropas vietnamitas e francesas tornaram-se tensas. Este ano o coronel que tinha certa sim­patia pelo bispo dado que para ambos o seu país era mais importante que o catolicismo - teve um gesto de amizade e caminhou, acompa­nhado dos seus oficiais mais graduados, à cabeça da procissão. Em tempo algum se juntara maior multidão em Phat Diem para honrar Nossa Senhora de Fátima. Mesmo muitos budistas - que constituíam cerca de metade da população - não quiseram perder a festa, e aque­les que não tinham fé em qualquer destes deuses acreditavam que, por qualquer forma, todas aquelas bandeiras, aqueles turíbulos e a custó­dia dourada afastariam a guerra dos seus lares. O que restava do exér­cito do bispo - a fanfarra - ia à frente da procissão, e os oficiais franceses, piedosos por ordem do coronel, seguiam como meninos de coro, atravessavam o portão que conduzia aos domínios da catedral, passavam pela estátua branca do Sagrado Coração, erguida numa ilha do pequeno lago em frente da catedral, por sob o campanário com asas abertas à maneira oriental e entravam na catedral de madeira es­culpida com os seus pilares gigantescos feitos de troncos de árvores e altar trabalhado em laca escarlate, mais budista do que cristão. Chovia gente de todas as aldeias entre os canais, das regiões baixas onde os arrozais verdes e as sementeiras douradas substituem as tulipas e os moinhos.

Ninguém reparara nos agentes do Vietcongue que também se ha­viam juntado à procissão, e naquela noite, enquanto o batalhão comu­nista avançava pelos desfiladeiros do calcaire até à planície de Tonquim, sob os olhos impotentes do posto francês das montanhas sobranceiras, os agentes avançados atacaram Phat Diem.

Agora, passados quatro dias, com a ajuda dos pára-quedistas, O ini­migo recuara de um quilómetro e daí cercára a cidade. Era uma derro­ta: não permitiam jornalistas, nem deixavam enviar telegramas porque os jornais só podiam falar de vitórias. Se as autoridades tivessem tido conhecimento dos meus intuitos ter-me-iam detido em Hanói, mas quanto mais nos afastamos do quartel-general mais fraco se torna o controlo até que, quando se chega ao alcance de tiro do inimigo, so­mos tratados como visitas bem-vindas: o que é uma ameaça para o es­tado-maior, em Hanói, uma preocupação para o coronel em Nam Dinh, é uma brincadeira para o tenente no campo de batalha, uma, distracção, uma manifestação de interesse por parte do mundo exte­rior, de modo a que ele possa durante algumas bem-aventuradas horas dramatizar-se um tudo-nada e ver, numa falsa luz heróica, os seus feri­dos e os seus mortos.

O padre fechou o breviário e disse:

            - Bom, isto já está. - Era europeu, embora não fosse francês por­ que o bispo nunca teria tolerado na sua diocese um padre francês. Disse, como que desculpando-se: - Sabe, preciso de vir aqui para conseguir descansar um pouco daqueles pobres diabos. - O ruído dos morteiros parecia aproximar-se, ou talvez fosse o inimigo que se resolvia a responder. A grande dificuldade era encontrá-los: havia uma dúzia de frentes estreitas, e entre os canais, os edifícios das herdades e os arrozais as oportunidades de cair numa emboscada eram nume­rosas.

Em baixo, de pé, sentada ou deitada estava toda a população de Phat Diem. Católicos, budistas, pagãos, todos tinham reunido os seus objectos mais valiosos: um fogão, uma lamparina; um espelho, um guarda-vestidos, algumas esteiras, uma gravura sagrada - e procurado abrigo nos domínios da catedral. Aqui, no Norte, logo que anoitecesse o frio seria cortante e a catedral já estava cheia: não havia mais onde se abrigarem; as próprias escadas que conduziam ao campanário ti­nham todos os degraus ocupados, e a cada momento chegava mais gente aos portões, com filhos e objectos de uso caseiro às costas. Qualquer que fosse a sua religião, pensavam que ali estariam seguros. Enquanto observávamos este espectáculo, vimos um rapaz com unifor­me vietnamita e armado de espingarda abrir caminho: foi detido por um padre, que lhe tirou a arma.

O padre a meu lado disse, à laia de explicação:

- Aqui somos neutros. Estamos em território de Deus.

            Eu pensei: «Que estranha e miserável população que Deus tem no seu reino, assustada, regelada, faminta (‘Não faço ideia de como va­mos alimentar esta gente', dissera-me o padre); poder-se-ia supor que a um grande rei era possível realizar mais do que isto.» Mas depois pensei: «Onde quer que se vá é sempre o mesmo - não são os gover­nos mais poderosos que têm as populações mais felizes.»

Lá em baixo já tinham improvisado pequenas lojas.

- Parece uma imensa feira, não acha?, mas sem uma única cara ri­sonha - disse-lhe.

- Ontem à noite sofreram terrivelmente com o frio. Somos força­dos a manter as portas do mosteiro fechadas, caso contrário invadir­-nos-iam - respondeu o padre.

- Vocês conseguem livrar-se do frio lá dentro? - perguntei-lhe.

- Nem por isso. E nunca conseguiríamos alojar nem uma décima parte desta gente. - Continuou: - Sei o que está a pensar. Mas pare­ce-nos essencial, pelo menos a alguns de nós, mantermo-nos em boa saúde. Temos o único hospital de Phat Diem e as únicas enfermeiras que existem são estas freiras.

- E o vosso cirurgião?

- Faço o que posso.

Foi então que reparei que tinha a sotaina manchada de sangue. - Veio aqui à minha procura? - perguntou-me.

- Não. Queria recuperar a calma.

            - Perguntei-lhe isto porque ontem à noite estive aqui com um ho­mem. Queria confessar-se. Estava ligeiramente assustado com o que vira junto dos canais. Não podemos condená-lo.

- As coisas estão más para esses lados?

- Os pára-quedistas apanharam-nos num fogo cruzado. Pobres al­mas. Pensei que talvez sentisse o mesmo.

- Não sou católico. Creio que, a seu ver, nem mesmo sou cristão. - Os efeitos do medo sobre os homens são estranhos.

- Não no meu caso. Se porventura acreditasse num deus qualquer, continuaria a detestar a ideia de uma confissão; estar ajoelhado num dos vossos confessionários: expor-me perante outro homem. Deve desculpar-me, mas a meu ver é mórbido... até mesmo pouco viril.

- Ah - disse-me com um ar bem disposto -, o senhor deve ser um bom homem. Provavelmente nunca teve muito de que se arre­pender.

Olhei para as igrejas que se erguiam a intervalos regulares entre os canais, em direcção ao mar. No segundo campanário houve um brilho de luz.

- Vocês não conservaram todas as igrejas neutras - disse-lhe.

- É impossível. Os franceses concordaram em não intervir nos do­mínios da catedral. Não podemos esperar mais do que isto. O que está agora a observar é um posto da Legião Estrangeira.

- Vou andando. Adeus, padre.

- Adeus e felicidades. Cautela com os atiradores imprevistos.

            Vi-me forçado a abrir caminho por entre a multidão para conseguir sair, para passar pelo largo e pela estátua branca com os seus açucara­dos braços abertos e atingir a longa rua. Conseguia alcançar quase um quilómetro e meio para cada lado, e além da minha pessoa só havia dois outros seres vivos em toda aquela extensão - dois soldados com capacetes camuflados que se afastavam lentamente, rua acima, com as metralhadoras prontas a disparar. E digo seres vivos porque no vão de uma porta havia um morto com a cabeça na estrada. Os únicos ruídos eram o zumbir das moscas aglomeradas sobre o corpo e o ranger das botas dos soldados, que se tornava cada vez menos perceptível. Afas­tei-me rapidamente do cadáver, virando a cabeça para o lado oposto. Alguns minutos mais tarde, quando olhei para trás, estava só com a minha própria sombra e, fora o ruído que eu fazia, reinava o silêncio. Tive a sensação de ser como que um alvo numa carreira de tiro. Ocor­reu-me que se me acontecesse qualquer coisa naquela rua podiam passar-se muitas horas até darem comigo: o tempo suficiente para que as moscas se juntassem.

Depois de atravessar dois canais virei por uma rua que conduzia à igreja. Uma dúzia de homens estavam sentados no chão, disfarçados de pára-quedistas, enquanto que dois oficiais examinavam um mapa. Ninguém me prestou atenção quando me juntei a eles. Um dos ho­mens, com a comprida antena de um emissor portátil, disse: - Já po­demos avançar - e todos se levantaram.

Perguntei-lhes no meu mau francês se os podia acompanhar. Uma das vantagens desta guerra consistia no facto de uma cara europeia ser, só por si, um passaporte: era impossível suspeitar-se que um euro­peu fosse um agente inimigo.

- Quem é o senhor? - perguntou o tenente.

- Escrevo acerca da guerra - disse.

- É americano?

- Não, sou inglês.

- Trata-se de um encontro insignificante, mas se quer vir connosco... - Começou a tirar o capacete de aço.

- Não, não - disse-lhe. - Isso é para os combatentes.

- Como preferir.

            Contornámos a retaguarda da igreja em fila indiana, com o tenente à cabeça, e parámos por momentos à beira do canal para que o solda­do com o emissor portátil contactasse as patrulhas dos dois flancos. As balas dos morteiros rasgavam o ar sobre as nossas cabeças e explo­diam fora do nosso alcance. Tínhamos anexado mais alguns homens na parte detrás da igreja e agora éramos uns trinta. O tenente explicou­-me em voz baixa, apontando com um dedo para o mapa:

- Nesta aldeia aqui a estimativa é de trezentos. Talvez com o intui­to de se juntarem para esta noite. Não sabemos. Ainda ninguém os conseguiu encontrar.

- A que distância?

- Cento e cinquenta metros.

            Pela rádio vinham chegando notícias e nós avançámos em silêncio. À nossa direita havia o canal em linha recta, à esquerda o mato rasteiro e campos e mais mato. «Tudo em ordem», murmurou o tenente, ao mesmo tempo que fazia um gesto tranquilizador quando recomeçámos a avançar. Vinte metros depois abria-se à nossa frente outro canal, com o que restava de uma ponte: uma só prancha sem balaustrada. O te­nente fez-nos o sinal de desdobrar e nós agachámo-nos com as caras viradas para o território desconhecido à nossa frente, a uns dez me­tros, do outro lado da prancha. Os homens olharam para a água e de­pois, como que devido a uma palavra de comando, simultaneamente, desviaram os olhos. Por momentos não consegui ver o que eles esta­vam a observar, mas quando vi, não sei porquê, pensei no Chalet e nos homens disfarçados de mulher e nos jovens soldados que assobia­vam e Pyle que dizia: «Isto não é nada próprio para se ver»,

O canal transbordava de cadáveres: fez-me pensar num guisado com carne em excesso. Os corpos sobrepunham-se: uma cabeça cin­zenta cor de foca, anónima como um convicto com o couro cabeludo rapado, boiava na água. Não havia sangue: provavelmente fora arrasta­do pela água já há muito. Não faço ideia de quantos seriam: deviam ter sido apanhados num fogo cruzado quando tentavam regressar, e tenho a impressão de que cada um de nós, ali na margem do canal, pensava: -Dois podem brincar àquele jogo». Desviei os olhos; não queremos que nos lembrem o pouco que valemos, a rapidez, a simplicidade e o ano­nimato da morte. Embora racionalmente eu desejasse a morte, tinha medo do acto, tal como uma virgem. Gostaria que a morte chegasse com aviso prévio, de modo a que eu pudesse preparar-me. Para quê? Não sabia. A menos que fosse para varrer com os olhos o pouco que deixava.

O tenente estava sentado ao lado do homem com o emissor portá­til e fitava o chão entre os pés. O aparelho começou a crepitar instru­ções e, com um suspiro, como se o tivessem acordado, o tenente levantou-se. Os movimentos daqueles homens tinham uma estranha camaradagem, como se fossem todos iguais e estivessem ocupados nu­ma tarefa que já haviam realizado juntos vezes sem fim. Ninguém es­perava que lhes dissessem o que fazer. Dois dos homens dirigiram-se à prancha e tentaram atravessá-la, mas o peso dos braços desequilibra­va-os e foram forçados a escarranchar-se e avançar aos poucos e pou­cos. Outro encontrara uma barcaça escondida entre uns arbustos, junto do canal, e empurrou-a até junto do tenente. Seis meteram-se na bar­caça e ele, à vara, começou a dirigi-la para a outra margem, mas esbar­rámos com um montão de cadáveres e encalhámos. Ele desviou a bar­caça com a vara, introduzindo-a no lodo humano, e um dos cadáveres desprendeu-se e veio flutuar, completamente estendido, junto da bar­caça, como um banhista estendido ao sol. Depois ficámos novamente libertos e logo que chegámos à outra margem apressámo-nos a sair, sem mesmo olharmos para trás. Não houve tiros: estávamos vivos. A morte recuara provavelmente até ao próximo canal. Ouvi alguém por detrás de mim dizer, muito a sério: «Cott sei dank». Exceptuando o tenente, eram quase todos alemães.

À nossa frente havia um grupo de. dependências de uma quinta: o tenente foi o primeiro a entrar, agarrando-se ao muro, e nós segui­mo-lo, em fila indiana, intervalados de dois metros. Depois os homens, novamente sem qualquer ordem, dspersaram pela quinta. Estava abandonada: nem uma simples galinha fora esquecida, embora nas pa­redes do que fora a sala de estar houvesse duas horrendas oleografias do Sagrado Coração e da Mãe com o Filho, que emprestavam um as­pecto europeu àquele grupo de edifícios em ruínas. Sabia-se que aquela gente acreditava, embora não compartilhássemos das suas cren­ças; eram seres humanos e não simplesmente cadáveres ressequidos e cinzentos.

Grande parte da guerra consiste em estar sentado sem fazer nada, esperando por alguém. Dado que não existe qualquer garantia do tem­po de vida que ainda nos resta, não vale a pena começar a pensar seja no que for. Como tantas outras vezes, as sentinelas avançaram. O que quer que se movesse agora à nossa frente era considerado inimigo. O tenente marcou o mapa e comunicou pela rádio a nossa posição. O silêncio do meio-dia envolveu-nos; os próprios morteiros estavam silenciosos e não se viam aviões no céu. Um homem escarafunchava com um pequeno tronco no esterco do pátio. Passado algum tempo era como se tivéssemos sido esquecidos pela guerra. Assim Phuong se não tivesse esquecido de mandar limpar os meus fatos. Um vento frio agitou a palha do pátio e um homem foi pudicamente aliviar-se atrás de um celeiro. Tentei lembrar-me se pagara ao cônsul inglês em Hanói a garrafa de uísque que me cedera.

Dispararam dois tiros e eu pensei: Agora é que é. Vai começar». Não precisava de outros avisos. Esperei, com uma sensação de alegria, que chegasse a tal coisa permanente.

Mas nada aconteceu. Mais uma vez eu tinha preparado demasiada­mente o acontecimento». Passados uns longos minutos entrou uma das sentinelas e comunicou ao tenente qualquer coisa. Apanhei as pala­vras: …Deux civils».

- Vamos ver o que se passa - disse-me o tenente. - E, seguindo a sentinela, fomos avançando por um carreiro coberto de erva, enla­meado, aberto entre dois campos. A dez metros das dependências da quinta, numa vala estreita, encontrámos o que procurávamos: uma mulher com um rapazinho. Estavam nitidamente mortos. Na testa da mulher havia uma pequena pasta de sangue e a criança dir-se-ia que dormia. Tinha cerca de seis anos e parecia um feto no útero, com os pequenos joelhos ossudos encolhidos.

- Malchance - disse o tenente.

            Abaixou-se e virou a criança. Tinha ao pescoço uma medalha que representava um santo e eu pensei: .0 feitiço não dá resultado». Sob o seu corpo havia um pedaço de pão já trincado. Pensei: «Detesto a guerra».

- Acha que já chega o que viu? - interrogou o tenente. Falava com fúria, quase como se eu fosse o responsável daquelas mortes: aos olhos do soldado o civil é possivelmente o homem que o contratara para matar, que inclui o remorso do crime no ordenado e se livra de responsabilidades. Voltámos à quinta e sentámo-nos mais uma vez so­bre a palha, em silêncio, abrigados do vento que, como um animal, parecia saber que a noite estava próxima. O homem que escarafuncha­ra no esterco fora aliviar-se e aquele que se aliviara estava a escarafun­char. Pensei que naqueles momentos de calmaria, depois de as senti­nelas terem tomado as respectivas posições, aquela gente devia ter pensado que não havia perigo em sair da vala. Quanto tempo teriam lá estado? O pão estava muito duro. Provavelmente moravam nesta quinta. O rádio recomeçou a dar sinal. O tenente informou, com ar cansado: - Vão bombardear a aldeia. Estão a chamar patrulhas para a noite. Pusemo-nos de pé e iniciámos a nossa viagem de regresso, de novo desviando-nos com a vara do montão de cadáveres e passando em fila pela igreja. Não nos havíamos afastado muito e no entanto parecia­-nos um percurso suficientemente grande para ter como único resulta­do a morte daqueles dois seres. Os aviões andavam novamente lá por cima e à nossa retaguarda recomeçou o bombardeamento.

Quando cheguei aos alojamentos dos oficiais, onde ia passar a noi­te, já escurecia. A temperatura era de um grau acima de zero e o único calor existente era o do mercado em chamas. Uma das paredes fora destruída por uma bazooka, e as portas trancadas e as cortinas de lona não conseguiam evitar as correntes de ar. O dínamo eléctrico não fun­cionava e tivemos de improvisar barricadas de caixotes e livros para manter as velas acesas.

Joguei ao Quatre vingt-et-un com um certo capitão Sorel, a troco de dinheiro comunista. Porque eu era um convidado não podia jogar a troco de bebidas. A sorte passava monotonamente de um lado para o outro. Abri a minha garrafa de uísque numa tentativa de nos aquecer um pouco e os outros juntaram-se em redor da nossa mesa.

- É o primeiro copo de uísque que bebo desde que saí de Paris. - ­disse o coronel.

Entrou um tenente que acabara a ronda às sentinelas.

- É possível que tenhamos uma noite calma - disse.

- Não atacarão antes das quatro - disse o coronel. - Tem uma pistola? - perguntou-me.

-Não.

            - Vou-lhe arranjar uma. Guarde-a debaixo da almofada. - E acres­centou cortesmente: - Vai achar o colchão bastante duro. E às três e meia começam os morteiros. Nós tentámos dispersar quaisquer con­centrações.

- Quanto tempo vai durar ainda?

- Quem sabe? Não podemos distrair mais tropas de Nam Dinh. Is­to não passa de uma diversão. Se nos conseguirmos aguentar só com o auxílio que nos deram há dois dias poderemos considerar o caso uma vitória.

O vento soprava novamente e tentava entrar. A cortina de lona en­tufou (lembrei-me de Polónio, apunhalado por trás da tapeçaria) e a chama da vela estremeceu. As sombras eram espectaculares. Podíamos ser uma daquelas companhias de actores que representam em celeiros.

- Os vossos postos têm-se aguentado?

- Tanto quanto sabemos, têm. - E continuou com um ar de imenso cansaço: - Isto não é nada, percebe? É uma escaramuça sem importância em comparação com o que se está a passar a cem quiló­metros, em Hoa Binh. Isso é que é uma batalha.

- Mais um copo, coronel?

- Não, obrigado. O vosso uísque inglês é óptimo, mas é preferível guardar um pouco para a noite; pode vir a ser preciso. Parece-me que, se me derem licença, vou tentar dormir umas horas. Capitão Sorel, dei­xo ao seu cuidado certificar-se de que o senhor Foulair tem tudo o que necessita: uma vela, fósforos, um revólver. - E foi para o quarto.

Foi o sinal para todos nós. Tinham posto um colchão para mim no chão, num pequeno armazém, e eu estava rodeado de caixotes. Fiquei pouco tempo acordado - a dureza do chão era como que um des­canso.

Perguntei-me, mas sem ciúmes, se Phuong estaria em casa. Nesta noite, a posse de um corpo parecia qualquer coisa de muito insignifi­cante - talvez eu tivesse visto durante o dia muitos corpos que não pertenciam a ninguém, nem mesmo a eles próprios. Todos nós nos gastávamos. Quando adormeci sonhei com Pyle. Dançava sozinho num palco, muito direito, com os braços estendidos para um par invi­sível, e eu estava sentado num banco semelhante aos dos músicos e observava-o, com uma pistola na mão, não fosse alguém interferir no seu bailado. Um programa suspenso no palco, como nos números de music-hall, dizia: «A Dança do Amor. Certificado de 1.a classe... Houve alguém que se moveu lá atrás no palco e agarrei a pistola com mais força. Depois acordei.

Tinha a mão na pistola que me haviam emprestado e no vão da porta, com uma vela na mão, estava um homem. Tinha um capacete de aço cuja sombra lhe escondia os olhos e só percebi que se tratava de Pyle quando lhe ouvi a voz. Disse com timidez:

- Lastimo imenso tê-lo acordado. Disseram-me que podia dormir aqui.

Eu ainda não estava completamente desperto.

- Onde foi arranjar esse capacete? - perguntei.

- Oh, emprestaram-mo - disse com um ar vagaroso. Arrastava uma mochila militar e começou a tirar lá de dentro um colchão-saco forrado de lã.

            - Você está muito bem equipado - disse-lhe, tentando lembrar­ -me da razão que levava qualquer de nós a estar ali.

- É uma mochila de viagem vulgar das nossas equipas de auxílio médico. Emprestaram-ma em Hanói.

Sacou de um termo e de uma pequena lamparina de álcool, de uma escova de cabelo, de apetrechos para a barba e de uma lata de provisões. Olhei para o relógio: eram quase três horas.

 

Pyle continuou a tirar as suas coisas da mochila. Empilhou alguns caixotes, sobre os quais colocou o espelho de fazer a barba e mais ob­jectos.

- Duvido que consiga arranjar água - disse-lhe.

- Tenho que chegue no termo para de manhã.

Sentou-se sobre o colchão-saco e começou a descalçar as botas.

- Como diabo conseguiu chegar até aqui? - perguntei-lhe.

- Deixaram-me passar até Nam Dinh, para ver a nossa equipa contra o tracoma e depois aluguei um barco.

- Um barco?

- Uma espécie de barcaça, não sei como lhe chamam. Para lhe di­zer a verdade, fui forçado a comprá-la. Não custou muito cara.

- E desceu o rio sozinho?

- Não foi muito difícil, sabe? A corrente estava a meu favor. - Você é doido.

- Oh, não. O único perigo foi ao desembarcar.

- Ou ser morto por uma patrulha naval, ou por um avião francês. Ou aparecer um vietcongue que lhe cortasse o pescoço.

Riu timidamente.

- Em todo o caso, aqui estou.

- Porquê?

- Oh, por duas razões. Mas não quero privá-lo de dormir.

- Não tenho sono. Os canhões vão começar a disparar dentro de pouco tempo.

            - Importa-se que ponha a vela noutro sítio? A luz está demasiada­            mente viva. - Parecia nervoso.

            - Qual é a primeira razão?

            - Há dias você levou-me a pensar que este sítio tinha bastante interesse. Lembra-se, quando estávamos com o Granger e com...         Phuong?

            - Sim, e depois?

            - Pensei que não era má ideia vir até cá ver o que se passava. Para lhe dizer a verdade, estava ligeiramente envergonhado com o Granger.

- Percebo. Não é difícil.

- Na realidade não havia qualquer dificuldade, não acha? Começou a brincar com os atacadores e houve um silêncio prolon­gado.

- Não estou a ser perfeitamente honesto - disse por fim.

- Não?

- A verdade é que vim para o ver.

- Você veio até aqui para me ver?

- É verdade.

- Porquê?

Ele desviou os olhos dos atacadores e olhou-me, angustiosamente embaraçado.

- Tinha de lhe dizer... Apaixonei-me pela Phuong.

Eu ri. Não consegui dominar-me. Ele era tão imprevisível e tão sério...

            - Não podia esperar que eu regressasse? Na próxima semana esta­rei em Saigão - disse-lhe.

            - Você podia morrer. Não era decente. Além de que não sei se se­ria capaz de não procurar Phuong durante esse tempo.

            - Quer com isso dizer-me que «conseguiu» não a procurar?

            - Com certeza. Você não pensa que eu seria capaz de lhe dizer

sem que você soubesse!

- Há muita gente que o faz. Quando é que isso aconteceu? - Creio que foi naquela noite no Chalet, quando dancei com ela.

- Não me pareceu que se tivesse apaixonado suficientemente por ela.

Ele olhou-me com um ar de perplexidade. Se o seu comportamen­to me parecia de um louco era óbvio que o meu lhe era inexplicável.

- Sabe? Parece-me que foi ao ver todas aquelas raparigas naquela casa. Eram tão bonitas. Ela podia ser uma delas. Quis protegê-la ­- disse.

- Não creio que ela precise de ser protegida. A menina Hei já o convidou para sair com elas?

- Já, mas eu não fui. Tenho-me mantido afastado. - E disse com um ar lúgubre: - Tem sido horrível. Sinto-me um canalha, mas peço­-lhe que acredite que se fossem casados... eu nunca me intrometeria entre vocês.

- Você parece estar bastante seguro de que vai «conseguir» intro­meter-se.

Pela primeira vez irritara-me.

- Fowler, eu não sei o seu nome de baptismo...

- Chamo-me Thomas. Porquê?

- Posso chamar-lhe Tom, não posso? Sinto que de certo modo isto nos aproxima. Refiro-me ao facto de gostarmos da mesma mulher.

- Que tenciona fazer em seguida?

Ele sentou-se entusiasticamente e encostou-se aos caixotes.

- Agora que você já sabe tudo, as coisas têm um aspecto diferente. Vou pedi-la em casamento, Tom.

- Prefiro que me chame Thomas.

- Ela terá de escolher entre nós. É bastante leal.

Mas seria efectivamente leal? Senti pela primeira vez o arrepio pre­monitório da solidão. Era fantástico, e no entanto, no entanto... Ele po­dia ser um fraco amante, mas eu era o homem pobre. Ele tinha na mão a infinita fortuna da respeitabilidade.

            Começou a despir-se e eu pensei: «Ele também tem a seu favor a juventude». Como era triste invejar Pyle...

- Eu não posso casar-me com ela. Tenho mulher em Inglaterra. Nunca consentiria no divórcio. Pertence à Igreja anglicana... caso isso lhe diga alguma coisa - disse-lhe.

            - Lastimo imenso, Thomas. E a propósito, chame-me Alden, caso queira...

            - Prefiro continuar a chamar-lhe Pyle. É com este nome que pen­  so em si.

            Ele meteu-se no saco-cama e estendeu a mão em direcção à vela.

            - Safa! Sinto-me feliz por este assunto estar arrumado, Thomas. Tenho andado muito aborrecido com esta história.

            Era absolutamente óbvio que já o não estava.

            Quando a vela se apagou eu mal distinguia o contorno do seu ca­belo, cortado muito curto, destacando-se à luz das chamas lá fora.

- Boa noite, Thomas. Um sono descansado - e mal pronunciou aquelas palavras, tal como uma deixa numa má comédia, os morteiros abriram fogo, zumbindo, gritando, explodindo.

- Santo Deus - disse Pyle - É um ataque?

- Tentam evitar um ataque.

- Bom, então já não vamos poder dormir.

- Não. Acabou-se.

- Thomas, quero que você saiba o que eu penso sobre o modo como aceitou tudo isto... acho que você foi estupendo, estupendo, não há outra palavra para o classificar.

- Obrigado.

- Você já viu tanta coisa por esse mundo fora que eu ainda não vi... Sabe? Boston é em muitos aspectos, ligeiramente... sufocante, mes­mo quando se não é um Lowell ou um Cabot. Gostaria que você me             aconselhasse, Thomas.

- Acerca de quê?

- De Phuong.

- Se fosse a si não confiaria muito nos meus conselhos. Sou par­cial. Quero ficar com ela.

            - Oh, mas eu sei que você é honesto, absolutamente honesto, e, acima de tudo, queremos ambos o seu bem.

            Subitamente, não consegui suportar por mais tempo a sua infantili­dade.

- Não me interessa o seu bem. Pode ficar com ele. Só quero o seu corpo. Quero-a na cama comigo. Prefiro destruí-la e dormir com ela, a ter de... de zelar pelo seu maldito bem - disse-lhe, com irritação.

- Oh! - ouvi numa voz fraca, na escuridão.

Continuei:

- Se você só se interessa pelo seu bem, então, por amor de Deus, deixe Phuong em paz. Tal como as outras mulheres, ela prefere uma boa... - o estampido do morteiro veio impedir os ouvidos bostonia­nos de ouvir a palavra anglo-saxónica.

Mas em Pyle havia a qualidade do implacável. Tinha decidido que eu me estava a portar bem e eu não o podia desiludir.

- Eu sei o que você está a sofrer, Thomas.

- Eu não sofro.

- Oh, sim, você sofre. Eu sei bem o que passaria se fosse forçado a abdicar de Phuong.

- Mas eu não abdiquei.

- Thomas, eu também dou muita importância à parte física, mas perderia todas as esperanças se soubesse que Phuong era feliz.

- Ela é feliz.

- Não pode sê-lo; nunca na situação em que está. Sente a falta de filhos. .

- Você acredita em todos aqueles disparates que a irmã...

- Muitas vezes uma irmã percebe melhor...

- Ela tentava simplesmente impingir-lhe essa teoria, Pyle, porque pensa que você tem mais dinheiro do que eu. E não há dúvida que o conseguiu.

- Só tenho o que ganho.

- Mas pelo menos o câmbio é-lhe favorável.

- Não esteja azedo, Thomas. São coisas que sucedem. Só desejava que tivessem acontecido com qualquer outra pessoa e não consigo. Estes morteiros são nossos?

- Sim, são nossos. Você fala como se ela me fosse deixar, Pyle.

- Evidentemente que pode acontecer que ela escolha ficar con­sigo - disse-me, sem convicção.

- Que faria você nesse caso?

- Pediria uma transferência.

- Porque não se vai embora, Pyle, sem ocasionar complicações?

- Não seria justo para ela, Thomas - disse-me muito a sério. Nunca conheci um homem cujos motivos para provocar complicações fossem tão bons. E acrescentou: - Parece-me que você não com­preende Phuong muito bem.

E ao acordar naquela manhã, meses mais tarde, com Phuong a meu lado, eu pensei: "E você compreendeu-a? Teria conseguido anteci­par esta situação? Phuong, que dorme feliz a meu lado, e você morto?. O tempo traz as suas vinganças, mas a vingança parece-nos muitas ve­zes amarga. Não seria preferível que não tentássemos compreender, que aceitássemos a realidade de que não é possível um ser humano compreender outro, a mulher o seu marido, o amante a amante, os pais os filhos? Talvez seja por esta razão que os homens inventaram Deus - um ser capaz de compreender. Talvez que se eu quisesse ser compreendido, ou compreender, me enganasse a mim próprio para conseguir acreditar. Mas sou um repórter: Deus só existe para os escri­tores de artigos de fundo.

            - Tem a certeza que há alguma coisa a perceber? Por amor de Deus, bebamos um uísque. Há muito barulho para uma discussão.

            - É um pouco cedo - disse-me Pyle.

            - É muito tarde.

Enchi dois copos e Pyle levantou o seu e olhou a luz da vela atra­vés do uísque. Todas as vezes que se ouvia uma detonação a mão tre­mia-lhe, e no entanto fizera aquela viagem disparatada desde Nam Dinh.

- É estranho que nenhum de nós possa desejar ao outro felicida­des - disse-me. E por isso bebemos em silêncio.

 

Pensara que só me ausentaria de Saigão uma semana, mas passa­ram-se quase três até eu poder regressar. Em primeiro lugar foi mais difícil sair da região de Phat Diem do que entrar. A estrada entre Nam Dinh e Hanói estava cortada e não podiam dispensar transporte aéreo para um repórter que nem mesmo devia ali estar. Depois, quando che­guei a Hanói, os correspondentes tinham para ali sido enviados de avião para resumirem a última vitória e no aparelho que os reconduzia não havia lugar para mim. Pyle saíra de Phat Diem na mesma manhã em que chegara: levara a cabo a sua missão - falar-me acerca de Phuong - e nada mais o prendia. Deixei-o a dormir quando o fogo dos morteiros cessou, às cinco e meia, e quando regressei à cantina para beber uma xícara de café e comer umas bolachas ele já não estava.

Presumi que fora dar uma volta: quem desce o rio desde Nam Dinh não se assusta com alguns atiradores emboscados; era-lhe tão impossí­vel imaginar a dor que podia sofrer ou o perigo que podia correr co­mo lhe era impossível conceber a dor que podia causar aos outros. Em dada ocasião - isto passou-se meses depois - não me contive e pisei-o propositadamente para que tomasse contacto com a dor e recordo-me de que ele virara a cara e olhara para o sapato sujo com perple­xidade dizendo: "Preciso de engraxar os sapatos antes de falar com o ministro». Eu sabia que ele já começara a formar as frases segundo o estilo que aprendera com o York Harding. Contudo, à sua maneira, ele era sincero: era pura coincidência que os sacrifícios fossem todos fei­tos pelos outros até àquela última noite sob a ponte do Dakow.

Só depois de regressar a Saigão, enquanto bebia café, é que soube como Pyle conseguira convencer um jovem oficial da marinha a levá­-lo numa barcaça de desembarque, a qual, depois de uma patrulha ro­tineira, o deixou sub-repticiamente em Nam Dinh. A sorte estava com ele e regressou a Hanói com a sua equipa contra o tracoma vinte e quatro horas antes de a estrada ser oficialmente dada como cortada. Quando cheguei a Hanói ele já partira em direcção ao Sul, e deixara­-me 'uma carta entregue ao barman dos alojamentos da imprensa.

«Meu caro Thomas» , escrevera, «não sou capaz de lhe dizer quanto o achei estupendo naquela noite. Devo dizer-lhe que quando entrei naquela casa tinha o coração muito pequenino. (Como estaria o seu coração durante todo o percurso pelo rio abaixo?) Não existem muitos homens capazes de encarar o caso com tanta calma. Você foi estupen­do e eu já não me sinto tão vil como me sentia antes de falar consigo». (Seria ele o único que interessava?, perguntei-me raivosamente. E con­tudo sabia não ser isto o que ele queria dizer. Para ele o problema pas­sava a ser muito mais fácil logo que deixasse de se sentir vil: eu sentir­-me-ia mais feliz, Phuong sentir-se-ia mais feliz, o mundo inteiro seria mais feliz, incluindo o adido económico e o ministro. A Primavera che­gara à Indochina logo que Pyle cessou de se sentir vil.) «Esperei aqui por si durante vinte e quatro horas, mas se não partisse hoje não con­seguiria regressar a Saigão antes de uma semana, e todo o meu traba­lho está no Sul. Disse aos rapazes que trabalhavam nas equipas de tracoma para entrarem em contacto consigo; você vai gostar deles. São uns tipos formidáveis e estão a realizar um trabalho de grande enverga­dura. Não se preocupe com o facto de eu chegar a Saigão antes de si. Prometo-lhe não ver Phuong até você chegar. Não quero pensar um dia que por alguma razão não fui leal. Cordialmente, Alden.»

De novo aquela suposição calma de que «um dia» quem perderia Phuong seria eu. Basear-se-á a confiança na taxa do câmbio? Costumá­vamos falar em qualidades esterlinas. Teremos agora de falar em amor dólar? Um amor dólar, evidentemente, incluiria o casamento e os dias do júnior e da mãe, embora mais tarde pudesse incluir Reno ou as Ilhas Virgens ou qualquer outro sítio aonde hoje em dia eles vão con­sumar os seus divórcios. Um amor dólar tinha boas intenções, uma consciência tranquila, e para o diabo o resto do mundo. Mas o meu amor não tinha intenções: conhecia o futuro. Tudo quanto se podia fa­zer era tentar tornar o futuro menos duro, segurá-lo suavemente quan­do chegasse, e o próprio ópio tinha o seu valor num caso como este. Mas nunca previ que o primeiro futuro que eu teria de apresentar a Phuong fosse a morte de Pyle.

Eu fui - porque nada melhor tinha a fazer - à conferência da im­prensa. Evidentemente que Granger estava lá. Presidia um jovem coro­nel francês demasiadamente belo. Falou na sua língua e um oficial su­balterno traduziu. Os correspondentes franceses estavam sentados uns junto dos outros como se pertencessem à equipa de futebol rival. Foi­-me difícil concentrar-me no que o coronel dizia; pensava constante­mente em Phuong e se Pyle tivesse razão e eu a perdesse? O que          aconteceria então?

O intérprete disse:

- O coronel informa-vos que o inimigo sofreu uma dura derrota e teve perdas consideráveis: equivalentes a um batalhão completo. Os últimos destacamentos tentam atravessar o rio Vermelho em jangadas improvisadas. São constantemente bombardeados pelas forças aéreas.

O coronel passou a mão pelo seu elegante cabelo amarelo e, agi­tando o ponteiro, bamboleou-se ao longo dos mapas na parede. Um correspondente americano perguntou: quais eram as perdas dos Fran­ceses?

O coronel percebeu perfeitamente o significado da pergunta (era normal fazê-la quando a conferência chegava a este ponto) mas parou, o ponteiro apontado para cima, com um sorriso simpático, que lem­brava o de um professor estimado, até que lha traduzissem. Então o in­térprete respondeu com ambiguidade paciente:

- O coronel diz que as nossas perdas não foram importantes. Não se conhece ainda o número exacto.

Ei-lo, o sistemático sinal de complicação iminente. Poder-se-ia pen­sar que mais cedo ou mais tarde o coronel acabasse por encontrar um processo de lidar com esta classe refractária, ou que o reitor nomeasse outro membro do seu corpo docente mais eficiente em manter a ordem.

- Será possível que o coronel nos queira fazer acreditar que teve tempo para contar os mortos do inimigo e não o teve para contar os seus? - perguntou Granger.

O coronel teceu pacientemente a sua teia de evasão, apesar de sa­ber perfeitamente que logo em seguida iria ser destruída por nova per­gunta. Os correspondentes franceses estavam mergulhados num silên­cio lúgubre. Se os correspondentes americanos conseguissem forçar o coronel a uma declaração, eles aproveitá-la-iam imediatamente mas não faziam coro quando se tratava de lançar uma armadilha a um compatriota.

- O coronel diz que estamos a obrigar as tropas inimigas a recuar.

É possível contar os mortos à retaguarda da linha de fogo, mas en­quanto se estiver a travar batalha não devem esperar que as unidades francesas apresentem números.

- Não se trata do que "nós» esperamos - disse Granger, mas sim do que o état-major sabe ou não. Será possível que nos queira conven­cer de que os pelotões não transmitem as suas perdas pelos emissores portáteis à medida que se vão dando?

A paciência do coronel começava a esgotar-se. Eu pensei que teria sido preferível que ele se tivesse desmascarado de princípio e nos dis­sesse com firmeza que conhecia o número de mortos mas que o não diria. Afinal de contas a guerra era deles e não nossa. Não tínhamos direitos especiais no que respeitava às informações. Não éramos força­dos a lutar com os deputados das esquerdas em Paris ao mesmo tem­po que lutavam contra as tropas de Ho Chi Minh entre os rios Verme­lho e Negro. Nós não morríamos.

Repentinamente o coronel disparou a informação de que as perdas francesas haviam sido numa proporção de uma para três, e depois vol­tou-nos as costas e olhou furiosamente para o mapa. Aqueles homens que tinham morrido pertenciam-lhe, eram seus camaradas do Exército, tinham frequentado a mesma classe em Saint-Cyr - não eram núme­ros, como para Granger.

- Agora sim, agora podemos chegar a uma conclusão - disse Granger; e varreu, com um olhar de triunfo idiota, os seus colegas; os franceses, de cabeça baixa, tomavam as suas tristes notas.

- Já se não pode dizer o mesmo no caso da Coreia - disse eu, com deliberada incompreensão; mas tudo o que consegui foi dar uma nova ideia a Granger.

- Pergunte ao coronel - disse Granger - qual vai ser a próxima atitude dos Franceses. Ele diz que o inimigo tenta atravessar o rio Negro...

- O rio Vermelho - corrigiu o intérprete.

- A cor do rio não me interessa. O que queremos saber é qual vai ser a atitude dos Franceses.

- O inimigo foge.

            - O que vai acontecer quando atingirem a outra margem? O que farão vocês então? Irão simplesmente ficar quietos na margem oposta e considerar o assunto arrumado?

Os oficiais franceses escutavam com paciência e tristeza a voz inso­lente de Granger. Hoje em dia também se exige humildade aos sol­dados.

- Vocês vão mandar-lhe cartões de boas-festas?

O capitão interpretava cuidadosamente, até ao pormenor de cartes de Noi?!. O coronel concedeu-nos um sorriso frígido.

- Não mandaremos cartões de boas-festas - disse.

Creio que a juventude e a beleza do coronel irritavam Granger. O coronel não era - pelo menos segundo a maneira de ver de Gran­ger - um homem cem por cento.

- Vocês não lhes mandam muito mais - disse.

Subitamente o coronel começou a exprimir-se em inglês, em bom inglês:

            - Se já tivessem chegado os armamentos prometidos pelos Ameri­canos nós teríamos mais a oferecer-lhes.

Apesar da sua elegância, era um homem simples. Acreditava que um correspondente tinha mais amor à honra do seu país do que às no­tícias.

            Granger disse secamente (ele era eficiente: tinha as datas bem arru­madas na cabeça):

            - Quer com isso dizer que ainda não chegou um só dos forneci­mentos prometidos para o princípio de Setembro?

- Exactamente.

Granger conseguira a notícia que queria; começou a escrever.

- Lastimo - disse o coronel - mas esta notícia não é para publi­cação: serve simplesmente para vos dar uma ideia do que se passa.      

- Mas, coronel - protestou Granger -, é uma notícia de interesse. Podemos mesmo ajudá-lo.

- Não, trata-se de um assunto para os diplomatas.

- Mas qual o mal que daí pode advir?

Os correspondentes franceses estavam perplexos; falavam muito pouco inglês. O coronel infringira as regras. Murmuravam entre eles com um ar furioso.

- Eu não sou juiz - disse o coronel. - Os jornais americanos po­diam dizer: «Ora, os Franceses estão sempre a protestar, sempre a pe­dir». E em Paris os comunistas fariam a acusação de que «os Franceses derramam o seu sangue pela América e a América nem sequer lhes manda um helicóptero em segunda mão». Não resultaria daí qualquer benefício. Continuávamos a não ter helicópteros, e o inimigo lá estaria, a vinte e cinco quilómetros de Hanói.

- Pelo menos posso publicar isso, não posso? Que vocês têm grande necessidade de helicópteros?

- Pode dizer - disse o coronel - que há seis meses tínhamos três helicópteros e que hoje só temos um. Um - repetiu, com um mis­to de amargura e espanto. - Pode dizer que quando nesta guerra um soldado fica ferido, não com ferimentos graves, mas simplesmente feri­do, sabe que é muito provável que passe à categoria dos mortos. Doze horas, ou talvez vinte e quatro, numa maca até à ambulância, transpor­tado por maus caminhos, depois um colapso, talvez uma emboscada, e a gangrena. É preferível morrer imediatamente.

            Os correspondentes franceses debruçaram-se para a frente numa tentativa de compreensão.

- Podem escrever isso - disse, a beleza a acentuar-lhe mais o ar venenoso. - Interprétez - ordenou, e saiu da sala, deixando ao capi­tão a tarefa pouco comum de traduzir de inglês para francês.

- Toquei-lhe na ferida - disse Granger com satisfação, e foi para um canto do bar escrever o seu telegrama. O meu não levou muito tempo a redigir: nada havia que eu pudesse enviar de Phat Diem que os censores deixassem passar. Se o assunto fosse suficientemente im­portante poderia ter-me metido num avião até Hong Kong e tê-lo en­viado de lá, mas porventura existiam notícias suficientemente impor­tantes para que eu me arriscasse à expulsão? Tinha as minhas dúvidas. Ser expulso significava o fim de toda uma vida; significava a vitória de Pyle, e quando regressei ao hotel lá estava de facto a sua vitória, que me esperava no cacifo da correspondência, o fim - o telegrama de congratulações pela minha promoção. Dante nunca se lembrou deste suplício para os seus amantes condenados. Paolo jamais alcançou o Purgatório.

Subi ao quarto nu e servi-me da torneira da água fria, que pingava (em Hanói não havia água quente), e sentei-me na beira da cama, sob a trouxa do mosquiteiro, que parecia uma nuvem inchada. Eu passava a ser o novo redactor da secção de assuntos estrangeiros. Chegaria to­das as tardes às quinze e meia àquele edifício tristonho, perto da esta­ção de Blackfriars, com uma placa de lord Salisbury junto do elevador. Tinham-me enviado a boa nova de Saigão, e perguntei-me se já te­ria chegado aos ouvidos de Phuong. Nunca mais seria um repórter. Teria de ter opiniões, e em troca deste parco privilégio despojavam-me da última esperança que me restava na competição com Pyle. À sua candura eu tinha a contrapor a experiência, e a idade no jogo sexual é tão bom trunfo como a juventude. Mas agora eu já nem tinha a ofere­cer-lhe o limitado futuro de mais doze meses, e o futuro representava um trunfo. Invejei o oficial que, tão saudoso da sua terra, estava con­denado a correr o risco de morte. Teria gostado de conseguir chorar, mas os canais estavam tão secos como os canos da água quente. Oh! Eles podiam ficar com a Inglaterra - eu só desejava o meu quarto da Rua Catinat.

 

Em Hanói, depois do escurecer, vinha o frio e as luzes eram mais fracas do que as de Saigão, mais de acordo com os vestidos sombrios das mulheres e o estado de guerra. Subi a Rua Gambetta até ao Bar Pax - não queria beber no Metrópole com os oficiais franceses, com as suas mulheres e namoradas - e quando cheguei ao bar apercebi­-me de um troar distante de canhões vindo dos lados do Hoa Binh. Durante o dia o barulho do tráfico amortecia-o, mas agora, exceptuan­do as campainhas das bicicletas que os condutores de trishaws tocavam em procura de passageiros, reinava o silêncio. Pietri estava sentado no seu lugar do costume. Tinha um crânio estranho, alongado, que lhe as­sentava nos ombros tal uma pera sobre um prato; era oficial da Sureté e tinha-se casado com uma tonquinesa engraçada, a quem pertencia o Bar Pax. Era mais um daqueles a quem não interessava grandemente voltar à sua terra. Era corso, mas preferia Marselha, e a Marselha prefe­ria ainda o seu bánco na Rua Gambetta. Perguntei-me se porventura já    conheceria o conteúdo do meu telegrama.

- Quatre vingt-et-un? - perguntou.

- Porque não?

Começou a jogar e pareceu-me impossível que eu alguma vez pu­desse ter uma outra vida, longe da Rua Gambetta e da Rua Catinat, do gosto insípido do vermute cassis, do barulho confortável dos dados e do ruído dos canhões deslocando-se como um ponteiro de relógio ao       longo do horizonte.

- Vou-me embora - disse-lhe.

- Para casa? - perguntou-me Pietri enquanto fazia quatro-dois-um.

- Não. Para Inglaterra.

 

Pyle convidara-me para aquilo a que ele chamava uma bebida, mas eu sabia muito bem que ele não bebia. Passadas algumas semanas aquele fantástico encontro em Phat Diem parecia inacreditável: os pró­prios detalhes da conversa apresentavam-se menos nítidos. Eram como as letras desaparecidas num túmulo romano, sendo eu o arqueólogo que tentava preencher as lacunas com a parcialidade que o meu diplo­ma me conferia. Chegou-me a ocorrer que ele estivesse a entrar comi­go e que a conversa não tivesse passado de uma máscara humorística e complicada para atingir o seu verdadeiro intuito, dado que já corria em Saigão que ele estava ocupado num daqueles serviços tão inepta­mente intitulados secretos. Talvez estivesse a fornecer armas america­nas a uma terceira força - à fanfarra do bispo, ao que restava dos seus jovens e apavorados recrutas sem salário. O telegrama que me es­perara em Hanói ficou no meu bolso. Não fazia sentido mostrá-lo a Phuong. Seria estragar com lágrimas e zangas os poucos meses que nos restavam. Com receio de que ela tivesse um parente na secção de        emigração eu só pediria a autorização de saída à última hora.

- O Pyle vem cá às seis - disse-lhe.

- Vou ver a minha irmã - respondeu-me.

- Tenho a impressão que ele gostaria de te ver.

- Ele não gosta de mim nem da minha família. Quando estiveste fora ele nem uma só vez foi ver a minha irmã, embora ela o tivesse convidado. Ela ficou muito magoada.

- Mas não tens necessidade de sair.

- Se ele tivesse interesse em estar connosco ter-nos-ia convidado para irmos com ele ao Majestic. Só quer falar contigo... sobre assuntos      de negócio.

- Em que negoceia ele?

- Dizem que ele importa muitas coisas.

- Que coisas?

- Medicamentos, drogas...

- São para as equipas de tracoma, no Norte.

- Talvez. A Alfândega não pode abrir os pacotes. Pertencem ao correio diplomático. Mas já houve um engano e despediram o homem que o originou. O primeiro-secretário ameaçou fazer parar todas as im­   portações.

- E que havia no caixote?

- Plástico.

- Para que queriam eles o plástico? - perguntei negligentemente.

Depois de Phuong sair escrevi para minha casa. Dentro de alguns dias partia um homem para Hong Kong e podia enviar daí a carta. Sa­bia que nada tinha a esperar do meu apelo, mas não queria acusar-me um dia de não ter feito tudo o que me era possível. Escrevi ao redactor principal e disse-lhe que o momento era inoportuno para se proceder a uma mudança de correspondente. Em Paris o general De Lattre esta­va moribundo; os franceses estavam prestes a abandonar completa­mente Hoa Binh; e o Norte nunca estivera em tão forte perigo. Eu não servia - disse-lhe - para redactor de uma secção de assuntos estran­geiros; era um repórter, não tinha opiniões firmes acerca do que quer que fosse. Na última página cheguei ao ponto de lhe fazer um apelo pessoal, embora fosse pouco provável que alguma simpatia humana conseguisse sobrepor-se às luzes fortes, às palas verdes e às frases es­tereotipadas: «o bem do jornal», «a situação requer...».

Escrevi: «Por razões particulares desagrada-me sair do Vietname. Não me parece que consiga realizar um bom trabalho em Inglaterra, onde me esperam não só problemas económicos como também fami­liares. Na realidade, se me fosse possível, preferia demitir-me a voltar a Inglaterra. Menciono isto para lhe mostrar a força da minha objecção. Não creio que tenha tido razões para me achar um mau corresponden­te, e é o primeiro favor que lhe peço.» Depois reli o meu artigo sobre a batalha de Phat Diem, para que seguisse para Hong Kong. e ali fosse metido no correio. Os franceses já não fariam grandes objecções; o cerco fora levantado, uma derrota podia transformar-se numa vitória. Depois rasguei a última página da minha carta; não valia a pena. As  razões de «ordem particular» transformar-se-iam num motivo de graçolas à boca calada. Partiam do princípio de que todos os correspondentes tinham a sua rapariga indígena; o redactor-chefe diria a sua graça ao redactor da noite, que levaria a sua inveja até à sua vivenda em Streat­ham, se deitaria com ela ao lado da mulher fiel, que há anos e anos trouxera de Glasgow. Eu conseguia imaginar tão bem o género de ca­sa onde não existe clemência: no vestíbulo havia uma bicicleta escan­galhada, alguém partira o cachimbo predilecto, e na sala havia uma ca­misa de criança à espera que lhe pregassem um botão. «Razões de ordem pessoal»: quando eu estivesse a tomar uma bebida no Clube da Imprensa não quereria que as suas piadas me lembrassem Phuong.

Bateram à porta. Abri-a e Pyle entrou com o seu cão preto à frente. Olhou por cima do meu ombro e não viu mais ninguém.

- Estou só - disse-lhe. - Phuong está com a irmã. - Ele corou. Reparei que vestia uma 'camisa havaiana, mas bastante discreta na cor e no desenho. Fiquei surpreso. Dar-se-ia o caso que o tivessem acusa­do de actividades não americanas?

- Espero que não tenha vindo interromper... - disse.

- De maneira alguma. Quer uma bebida?

- Obrigado. Tem cerveja?

- Desculpe. Nós não temos geleira; mandámos buscar gelo. E se for um uísque?

            - Mas pequeno, se faz favor. As bebidas fortes não são muito do meu agrado.

- Só com gelo?

- Com muita soda, se a tiver.

- Não o via desde Phat Diem.

- Recebeu a minha carta, Thomas?

            Logo que usou o meu nome de baptismo foi como que uma decla­ração de que não fora uma graça, de que não estava a encobrir qual­quer outra coisa, de que estava efectivamente aqui para me levar Phuong. Reparei que cortara recentemente o cabelo; dar-se-ia o caso que a camisa havaiana tivesse a função da plumagem de macho?

- Recebi a sua carta. O que eu devia fazer era pregar-lhe uma sova.

. - Você tem toda a razão, Thomas. Mas eu fiz boxe e sou muito mais novo.

- Tem razão, não seria grande táctica.

            - Sabe, Thomas, e estou certo de que você sente o mesmo, não gosto de falar em Phuong sem ela estar presente. Pensei que ela esti­vesse em casa.

- Então que assunto acha que devemos discutir... sobre plásticos?

- Não contava surpreendê-lo.

- Você já sabe disso?

- Foi Phuong quem me falou no assunto.

-Mas como pode ela...?

- Pode estar certo de que a notícia já correu a cidade. Mas é assim tão importante? Você vai meter-se a fabricar brinquedos?

- Não gostamos que se saibam os detalhes da nossa campanha de auxílio. Você conhece a nossa Assembleia. Além disso somos visitados por senadores. Tivemos uma grande complicação com as equipas de tracoma porque estavam a empregar determinado medicamento, e não      um outro.

- Continuo a não perceber o assunto do plástico.

O cão preto estava sentado no chão, ofegante, ocupando demasia­do espaço. A sua língua parecia uma bolacha queimada. Pyle disse com um ar vago:

- Sabe? Nós pretendemos desenvolver umas quantas indústrias lo­cais e somos forçados a tomar precauções com os franceses. Eles que­rem que tudo seja comprado em França.   .

- Não os censuro. As guerras precisam de dinheiro.

- Você gosta de cães?

- Não, não gosto.

- Sempre pensei que os Ingleses gostassem muito de cães.

- Nós pensamos que os Americanos gostam de dólares, mas há certamente excepções.

- Não sei o que faria sem o Duke. Sabe? por vezes sinto-me tão só...

- Você tem muitos companheiros entre os seus camaradas.

- O primeiro cão que tive chamava-se Príncipe. Dei-lhe este nome em memória do Príncipe Negro. Você lembra-se, o tipo que...

- Chacinou todas as mulheres e crianças em Limoges.

- Não me lembro disso.

- Os compêndios de história passam por cima do assunto.

Estava-me reservado ver repetidamente aquele olhar de dor e desapontamento, que lhe transformava os olhos e a boca, sempre que a realidade não condizia com as ideias românticas que ele alimentava, ou quando alguém que admirava ou de quem gostava descia abaixo do nível inacessível que ele marcara. Lembro-me de que uma vez apa­nhei York Harding num erro crasso e depois vi-me forçado a consolá­-lo: «Errar é humano». Ele riu com nervosismo e disse: «você deve achar que eu sou parvo, mas.» pensava que ele era quase infalível».

E acres­centou: «O meu pai ficou muito entusiasmado com ele na única vez que lhe falou, e o meu pai é muito exigente».

O enorme cão preto chamado Duke, depois de ter estado ofegante o tempo suficiente para se achar com direito a mais ar, começou a agi­tar-se pelo quarto.

- Importa-se de dizer ao seu cão que esteja quieto?

- Desculpe. Duke. Duke. Senta-te, Duke.

            O Duke sentou-se e começou a lamber ruidosamente o sexo. Enchi os copos e consegui, ao passar por ele, interromper-lhe a toilette. O sossego pouco durou; começou a coçar-se.

- O Duke é muito inteligente - disse Pyle.

- E o que aconteceu ao Principe?

- Nós estávamos numa quinta em Connecticut e foi atropelado.

- Você teve pena?

- Ah, tive muita pena. Gostava imenso dele, mas é preciso ser-se realista. Não era possível ressuscitá-lo.

- E se você perder Phuong também vai ser realista?

- Certamente. Espero sê-lo. E você?

            - Tenho as minhas dúvidas. Pode mesmo acontecer que perca o juízo. Já pensou nisso, Pyle?

- Gostaria que você me chamasse Alden, Thomas.

- Prefiro não o chamar assim. Pyle tem... associações. Já pensou no assunto?

- Claro que não pensei. Você é o tipo mais decente que jamais en­contrei. Quando me lembro da sua atitude ao chegar a...

- Recordo-me de ter pensado antes de adormecer quanto seria conveniente que houvesse um ataque e você morresse. A morte de um herói. Pela democracia.

- Não faça troça, Thomas.

- Mudou a posição das pernas, pouco à vontade. - Devo parecer-lhe um tanto ou quanto parvo, mas sei perceber quando você está a brincar.

- Mas não brinco agora.

            - Eu sei, se você quiser dizer a verdade, que só deseja o bem dela.

Foi então que ouvi os passos de Phuong. Desejara vezes sem fim que ele tivesse partido antes de ela chegar. Ele também os ouviu e re­conheceu. Disse: «Ei-la», embora só tivesse tido uma noite para lhe aprender os passos. Até o cão se pôs de pé junto da porta, que eu dei­xara aberta para entrar o fresco, como se já a considerasse um membro da família de Pyle. Eu não passava de um intruso.

- A minha irmã não estava em casa - disse Phuong, e olhou cau­telosamente para Pyle.

Perguntei-me se estaria a falar verdade ou se a irmã lhe teria orde­nado que voltasse rapidamente para casa.

- Lembras-te do senhor Pyle? - disse-lhe.

- Enchantée. - Mostrava as suas melhores maneiras.

- Tenho imenso gosto em tornar a vê-la - disse ele corando.

- Comment?

- Ela não fala muito inglês - disse eu.

- E eu falo pessimamente o francês. Mas estou a ter lições. E per­cebo... se a menina Phuong falar lentamente.

- Servirei de intérprete - disse-lhe. - O, sotaque local é de difícil assimilação. Vamos, que quer dizer? Senta-te, Phuong. O senhor Pyle veio aqui para falar contigo. Tem a certeza - acrescentei, dirigindo­-me a Pyle - que não quer que os deixe sós?

- Quero que você ouça tudo o que tenho a dizer-lhe. De outro modo não seria leal.

            - Então vamos a isso.

            Ele disse solenemente, como se tivesse decorado um papel, que ti­nha um imenso amor e respeito por Phuong. Começara a senti-lo na noite em que com ela dançara. Fazia-me ligeiramente pensar num mordomo que mostra o «grande palácio» a um grupo de turistas. O grande palácio era o seu coração, e só nos consentiam uma olhadela sub-reptícia. Eu traduzia meticulosamente o que ele dizia - soava ain­da pior - e Phuong tinha as mãos no colo, como se estivesse atenta no cinema.

- Ela percebeu isto? - perguntou-me.

- Tanto quanto me é possível dizer, acho que sim. Você não quer que eu acrescente uns floreados, pois não?

            - Oh, não, traduza simplesmente. Não pretendo influenciá-la emocionalmente.

-Ah!

- Diga-lhe que quero casar com ela.

Eu disse-lhe.

- Que respondeu ela?            .

- Perguntou-me se você falava seriamente. Eu disse-lhe que você era um tipo sério.

            - A situação deve ser estranha. O facto de eu lhe pedir para você traduzir.

            - Bastante estranha.

            - E no entanto parece-me tão natural.. Não nos devemos esque­cer de que você é o meu maior amigo.

-Agradeço a honra.

- Se estivesse em apuros seria a si que eu iria procurar.

- E estar apaixonado pela minha companheira é como estar em apuros?

- Com certeza. Quem me dera que isto fosse com outra pessoa, Thomas.

            - Então, o que se segue agora? Que você não pode viver sem ela?

            - Não, isso é demasiadamente emocional. E não é perfeitamente verdadeiro. Ser-me-ia necessário partir daqui, mas tudo passa.

            - Enquanto você pensa no que quer dizer importa-se que eu meta            umas palavrinhas a meu respeito?

            - Com certeza que não, Thomas. É perfeitamente justo.

            - Então, Phuong, vais deixar-me? Ele casa contigo. Eu não posso. Sabes porquê?

            - Vais partir? - perguntou-me, e eu pensei na carta do redactor­-chefe, dentro do meu bolso.

-Não.

- Nunca?

- Como pode alguém prometer uma tal coisa? Nem ele o pode. O casamento desmancha-se. Muitas vezes desmancha-se mais rapida­mente do que uma ligação como a nossa.

            - Eu não quero ir - disse-me, mas a frase não era reconfortante:

continha um «mas» não expresso. Pyle interrompeu-nos:

            - Parece-me que devo pôr as cartas na mesa. Não sou rico. Mas quando o meu pai morrer herdarei cerca de cinquenta mil dólares. A minha saúde é boa - tenho um certificado médico de há dois me­     ses e posso dizer-lhe qual foi a minha última contagem de glóbulos.

- Não sei traduzir isso. Para que serve?

- Para nos assegurar de que poderemos ter filhos.

- É assim que vocês amam na América? Baseando-se nos rendi­ mentos e na contagem de glóbulos?

            - Não sei, é a primeira vez que me acontece. Se eu estivesse em casa talvez a minha mãe falasse com a mãe dela.

            - Sobre as vossas respectivas contagens de glóbulos?

            - Não faça troça, Thomas. Reconhece que sou bota-de-elástico. Você sabe bem que eu me sinto perdido no meio desta situação.

            - E eu também o estou. Não acha preferível acabarmos com isto e jogar aos dados para ver qual de nós fica com ela?

            - Você agora está a tentar armar em forte, Thomas. Sei muito bem que, a seu modo, você gosta tanto dela como eu.

- Então vamos a isso, Pyle, continue.

- Diga-lhe que eu não espero que ela passe imediatamente a gos­tar de mim. Isso virá com o tempo, mas afianço-lhe que o que lhe ofe­reço é a segurança e o respeito. Não são coisas muito excitantes à pri­meira vista, mas talvez valham mais do que a paixão.

            - Ela pode sempre sentir isso com o seu chauifeur quando você estiver no escritório a trabalhar.

            Pyle corou. Pôs-se de pé com um ar embaraçado e disse:

            - Isso é uma piada imunda. Oponho-me a que a insultem. Você    não tem o direito...

            - Ela ainda não é sua mulher.

            - Que pode você oferecer-lhe? - perguntou-me, furioso. - Quan­do partir para Inglaterra, algumas centenas de dólares, ou vendê-la-á      juntamente com os móveis?

- Os móveis não me pertencem.

- Nem ela. Phuong, quer casar comigo?

- E quanto à contagem de glóbulos? E ao certificado de saúde? Vo­cê vai certamente precisar do dela. Talvez também lhe deva dar o meu. E o seu horóscopo? Não, isso é um costume indiano.

- Quer casar comigo?

- Fale-lhe em francês. Diabos me levem se vou continuar a servir­-lhe de intérprete.

Pus-me de pé e o cão rosnou. Fiquei furioso.

- Diga ao seu maldito Duke que esteja calado. Esta casa é minha e não dele.

- Quer casar comigo? - repetiu.

Dei um passo em direcção a Phuong e o cão rosnou novamente. - Diz-lhe que se vá embora e leve o cão - disse a Phuong. - Venha comigo agora - disse Pyle. - Avec Moi.

- Não - disse Phuong. - Não vou.

Subitamente toda a raiva que ambos sentíamos desapareceu: o pro­blema era perfeitamente simples, podia resolver-se com uma palavra de três letras. Senti um imenso alívio. Pyle tinha a boca ligeiramente      aberta e a sua cara mostrava perplexidade.

- Ela disse que não - expliquei.

- Ela sabe inglês que chegue para dizer isso.

Agora apetecia-me rir: como tínhamos sido parvos um com o ou­tro. Disse-lhe:

- Sente-se e beba outro uísque, Pyle.

- É preferível ir-me embora.

- Só mais um para o caminho.

- Não lhe devo beber o uísque todo. - Gaguejou.

- Consigo arranjar todo quanto quero através da legação.

Dirigi-me para a mesa e o cão arreganhou-me os dentes.

Pyle disse furioso:

- Para baixo, Duke. Está quieto. - Limpou o suor da testa.

- Thomas, peço-lhe imensa desculpa se porventura disse qualquer coisa menos conveniente. Não percebo o que me está a acontecer. ­Pegou no copo e disse com um ar amargo de quem tem pena: - Sem­pre acabou por ganhar o melhor de entre nós. Mas não a abandone, Thomas.

- Claro que nunca a abandonarei - disse-lhe.

Phuong perguntou-me:

- Acha que ele gostaria de fumar um cachimbo?

- Apetece-lhe um cachimbo?

- Não, obrigado. Eu nunca fumo ópio e nós temos regulamentos muito rígidos. Bebo isto e depois vou andando. Desculpe o Duke, que é geralmente muito sossegado.

- Fique para jantar.

- Se não se importa, prefiro estar só. - Sorriu de uma forma pou­co firme. - Se isto se viesse a saber diriam que nós nos comportámos de um modo bastante estranho. Gostaria imenso que você pudesse ca­sar com ela, Thomas.

- Ah, sim?

- Sim. Desde que vi aquela casa (sabe a qual me refiro, a casa perto do Chalet) tenho tido um medo terrível.

Bebeu rapidamente o uísque, a que não estava habituado, sem olhar para Phuong, e quando se despediu não lhe tocou na mão e fez uma cortesia pouco firme, desajeitada. Reparei que ela o seguiu com o olhar até à porta e quando passei pelo espelho olhei para a minha imagem: o primeiro botão das calças desabotoado, a barriga a desen­volver-se. Lá fora ele disse-me:

- Prometo não tornar a vê-la, Thomas. Isto não vai afectar as nos­sas relações, pois não, Thomas? Quando terminar esta missão vou pe­dir que me transfiram.

- E quando é isso?

- Dentro de cerca de dois anos.

Voltei para o quarto e pensei: "para quê tudo isto? Talvez tivesse si­do preferível que eu lhes tivesse dito que me ia embora». Ele só teria de transportar o seu coração esfacelado durante algumas semanas... A minha mentira até serviria para lhe tranquilizar a consciência.

- Queres que te prepare um cachimbo? - perguntou-me Phuong.

- Quero, mas espera um momento. Preciso de escrever uma carta. Era a segunda carta daquele dia, mas a esta não rasguei folhas, em­bora as esperanças de uma resposta fossem reduzidas. Escrevi:

 

Querida Helen: volto para a Inglaterra em Abril próximo para ocupar o lugar de redactor da secção de assuntos estrangeiros. Podes imaginar como isto me desagrada. A Inglaterra é o palco do meu falhanço. Era minha inten­ção que o nosso casamento fosse duradouro, tão duradouro como se eu parti­lhasse a tua fé cristã. Ainda hoje não consigo estar bem certo do que aconte­ceu para que tudo se estragasse (só sei que ambos tentámos todo o possível), mas creio que foi o meu génio. Sei bem quanto o meu génio pode ser mau e cruel. Parece-me que está um pouco melhor agora - o Oriente fez-me este favor - talvez não seja mais doce, mas está certamente mais moderado. Tal­vez a causa se encontre nos cinco anos que tenho a mais - numa altura em que cinco anos representam muito em relação ao que resta para viver. Tens sido extremamente generosa comigo e nunca me censuraste desde a nossa se­paração. Será possível que consigas ser ainda mais generosa? Sei bem que an­tes do nosso casamento me preveniste de que nunca aceitarias um divórcio. Eu aceitei o risco e não devo queixar-me. Contudo, é o divórcio que te venho pedir agora.

 

Phuong, junto da cama, disse-me que tinha o tabuleiro pronto.     

- Só um momento.

 

Podia enfeitar o ramalhete - escrevi - e dar ao problema um ar mais honroso e digno dizendo-te que se tratava do bem de outra pessoa. Mas não se trata, e sempre foi nosso costume dizermos a verdade um ao outro. E para meu bem, só para meu bem. Gosto muito de alguém; há mais de dois anos que vivemos juntos. Ela tem-me sido muito leal, mas sei bem que lhe não sou essencial. Se eu a deixar creio que se sentirá um pouco infeliz , mas não será  uma tragédia. Casar-se-á com outro homem, constituirá família. É uma estu­pidez da minha parte estar a dizer-te tudo isto. Estou a pôr a resposta na tua boca. Mas porque nunca te menti, talvez me creias se te disser que perdê-la será para mim o princípio da morte. Não te peço que sejas razoável - a ra­zão está toda do teu lado - ou que sejas clemente. Clemência é uma palavra demasiadamente forte para a minha situação, além de que eu não a mereço. Creio que o que tento pedir-te é que te comportes agora subitamente, irracional­mente, de um modo oposto ao que te é habitual. Quero que sintas... - hesitei quanto à palavra a empregar e depois não escolhi melhor - afeição e que actues antes de teres tempo para pensar. Sei bem que isto é mais fácil ao telifone do que a uma distância de mais de cinco mil quilómetros. Se fosses capaz de me telegrafar «Concordo»!

 

Quando terminei senti-me como se tivesse corrido durante muito tempo e magoado músculos pouco exercitados. Deitei-me na cama, enquanto Phuong me arranjava o cachimbo.

- Ele é novo - disse a Phuong.

- Quem?

- Pyle.

- Isso não é muito importante.

- Se me fosse possível casava-me contigo, Phuong.

- Eu acredito, mas a minha irmã acha que não.

- Estive a escrever à minha mulher. Pedi-lhe o divórcio. É a pri­meira vez que o tento. Tudo é possível.

- Muito possível?

- Não muito. Mas é possível.

- Não te preocupes. Fuma.

Inspirei o fumo e ela começou a preparar-me o segundo cachimbo. Perguntei-lhe novamente:

            - A tua irmã não estava realmente em casa, Phuong?

            - Já te disse, tinha saído.

            Era absurdo submetê-la a este amor pela verdade, um amor oci­dental, tal como o amor pelo álcool. O uísque que eu bebera com Pyle atenuou o efeito do ópio.

            - Menti-te, Phuong. Recebi ordens de voltar para Inglaterra - dis­se-lhe.

Ela pousou o cachimbo.

- Mas não vais?

- Se eu recusasse, de que iríamos nós viver?

- Eu podia ir contigo. Gostaria de ver Londres.

- Sem estarmos casados não te irias sentir feliz.

- Mas pode acontecer que a tua mulher concorde com o divórcio.

- Pode.

- Irei contigo em qualquer dos casos - disse-me. E era sincera, mas eu já lhe lia nos olhos o rumo dos pensamentos quando ela levan­tou novamente o cachimbo e começou a aquecer a pasta do ópio.

- Em Londres há arranha-céus?

A ingenuidade da sua pergunta enterneceu-me. Ela era capaz de mentir por cortesia, por medo, até mesmo para seu proveito, mas nun­ca teria a astúcia suficiente para manter escondida a sua mentira.

- Não, não há. Para os veres tens de ir à América.

Ela deitou-me uma olhadela fugidia por cima do cachimbo e regis­tou o engano. Depois, enquanto amassava o ópio, começou a falar ao acaso da roupa que usaria em Londres, da casa onde viveríamos, do metropolitano que ela conhecia através de uma novela, dos autocarros de dois andares.

- E iríamos de avião ou de barco?

- E' a estátua da Liberdade?.. - perguntou-me. - Não, Phuong, também é americana.

 

Os caodaístas, pelo menos uma vez por ano, realizam um festival na Santa Sé, em Tanyin, a oitenta quilómetros a noroeste de Saigão. Este festival celebra o ano tal da libertação, ou da conquista, ou é sim­plesmente uma festa budista, confuciana ou mesmo cristã. O caodaís­mo era o meu capítulo preferido nas conversas com os visitantes. O caodaismo, a invenção de um funcionário público de Cochim, é uma síntese das três religiões. A Santa Sé fica em Tanyin. Há um papa e cardeais do sexo feminino. Profecias por meio de uma planchet*1. Santo Vítor Hugo, Cristo e Buda, que nos olham do telhado da cate­dral, numa espécie de fantasia de Walt Disney sobre o Oriente, com dragões e cobras em technicolor. Os recém-chegados ficam invariavel­mente encantados com a descrição. Como explicar-lhes a tristeza de tudo aquilo: o exército privado, constituído por cinco mil homens ar­mados de morteiros feitos dos tubos de escape de velhos carros, ex­-aliados dos Franceses, que se declararam neutrais no momento de pe­rigo. O papa convidava para estas celebrações, que ajudavam a manter os camponeses sossegados, membros do Governo (que compareciam se os caodaístas estivessem na mó de cima) e o corpo diplomático (que enviava alguns segundos-secretários com as respectivas mulheres ou namoradas) e o comandante-chefe das tropas francesas, que desta­cava um dos seus generais de duas estrelas para o representar.

 

1 Prancha em forma de coração, assente sobre rodízios e com um lápis adaptado,       que dizem traçar palavras quando sobre ela se apoiam levemente os dedos.

 

Ao longo da estrada para Tanyin deslocava-se apressadamente uma torrente de carros oficiais e do corpo diplomático, e nos troços de es­trada mais expostos os soldados da Legião Estrangeira vigiavam os ar­rozais.

Para os altos comandos franceses aquele era invariavelmente um dia de certo modo inquietante. Para os caodaístas trazia provavelmente uma certa esperança. Que poderia existir de mais fácil para evidenciar a sua lealdade do que o facto de alguns convidados importantes serem abatidos a tiro fora do seu território?

De quilómetro em quilómetro elevava-se, acima dos campos chãos, uma pequena torre de vigia feita da lama, que lembrava um ponto de exclamação; e de dez em dez quilómetros havia um forte, de maiores dimensões, guarnecido de um pelotão de legionários, marroquinos ou senegaleses. Tal como em Nova Iorque, os carros mantinham-se à mesma velocidade, e também como em Nova Iorque tinha-se a sensa­ção de impaciência fiscalizada, de se vigiar o carro da frente e, pelo es­pelho, o de trás. Todos queriam chegar a Tanyin, ver o espectáculo e voltar para casa o mais depressa possível: o toque de recolher era às sete.

Passava-se dos arrozais dominados pelos franceses para os arrozais dos hoa-haos e depois para os dos caodaístas, que geralmente estavam em guerra com os hoa-haos: só as bandeiras das torres de vigia muda­vam. Nos campos irrigados viam-se rapazitos nus montados em búfa­los enterrados na lama até ao sexo; onde quer que os arrozais doura­dos estivessem prontos a colher, camponeses, com chapéus lembrando lapas, joeiravam o arroz de encontro a pequenos abrigos curvos de bambu entrelaçado. Os carros passavam rapidamente, pertencendo a um outro mundo.

Agora grande foco de atracção dos forasteiros em cada aldeia eram as igrejas dos caodaístas, estucadas de azul-pálido e cor-de-rosa, com um enorme olho de Deus sobre a porta. As bandeiras aumentavam: ranchos de camponeses avançavam pela estrada. Aproximavam-se da Santa Sé. À distância, a montanha sagrada elevava-se acima de Tanyin, lembrando um chapéu de coco verde - era ali que se aquartelava o general Thé, o dissidente chefe do estado-maior que proclamara re­centemente ser sua intenção combater franceses e vietcongues. Os caodaístas não faziam qualquer tentativa para o capturar, embora ele já . tivesse raptado um cardeal. Corria o boato de que ele o fizera com a conivência do papa.

aEm Tanyin parecia estar sempre mais calor do que em qualquer outra região do delta do Sul; talvez fosse a ausência de. água, talvez a lembrança das intermináveis cerimônias nos fizessem transpirar por simpatia: suor pelas tropas perfiladas enquanto se desenrolavam lon­gos discursos numa língua que não percebíamos; suor pelo papa, com as suas pesadas vestes orientais. Os cardeais femininos eram os únicos que na claridade escaldante, com as suas calças de seda branca, con­versando com os padres de capacete, nos conseguiam transmitir uma certa sensação de frescura: tinha-se a impressão de que as dezanove horas, os cocktails no terraço do Majestic e a brisa do rio Saigão nunca mais chegariam.

Depois da parada entrevistei o deputado do papa. Não tinha espe­rança em arrancar-lhe qualquer coisa de jeito e não me enganava: não passou de mero acto convencional. Fiz-lhe algumas perguntas sobre o general Thé.

- É um homem irreflectido - respondeu-me, e mudou de as­sunto.

Começou o seu discurso pré-preparado, esquecendo-se de que eu o ouvira havia dois anos. Fazia-me lembrar os discos que eu punha a tocar para os recém-chegados: o caodaísmo era uma síntese de reli­giões... a melhor entre todas... Já tinham enviado missionários até Los Angeles... os segredos da Grande Pirâmide. Vestia uma longa sotaina branca e acendia uns cigarros nos outros. Havia qualquer coisa nele de astuto e corrupto: a palavra «amor» surgiu muitas vezes. Eu estava certo de que ele sabia que todos nós nos encontrávamos ali para troçarmos do seu movimento; o nosso ar de respeito era tão falso como a sua fal­sa hierarquia, mas éramos menos astutos. A nossa hipocrisia de nada nos servia - nem mesmo para conseguirmos um aliado digno de con­fiança -, enquanto a dele trouxera armas, abastecimentos, até mesmo dinheiro.

- Obrigado, eminência.

Levantei-me para sair. Ele veio acompanhar-me à porta, espalhan­do a cinza do cigarro.

            - Que Deus abençoe o seu trabalho - disse com voz untuosa. - Lembre-se de que Deus ama a verdade.

            - Que verdade?

            - Na fé caodaísta conciliam-se todas as verdades, e a verdade é amor.

Trazia um enorme anel e quando me estendeu a mão tive a sensa­ção nítida de que esperava que eu o beijasse. Mas não sou um diplo­mata.

À luz do sol vertical vi Pyle: tentava em vão arrancar o Buick. Não sei porquê, mas nas duas últimas semanas, no bar do Continental, na única livraria decente, na Rua Catinat, por toda a parte eu dava a par e passo de cara com Pyle. E agora, mais do que nunca, ele acentuava a amizade que desde o início me impusera. Os seus olhos tristes interro­gavam-se mudamente sobre Phuong, enquanto os lábios expressavam, ainda com maior fervor, a força da sua afeição e da admiração - que Deus me perdoe - por mim.

Junto do carro estava um comandante caodaísta. Falava rapidamente. Quando me aproximei calou-se. Reconheci-o - fora um dos assisten­tes de Thé antes de o general se ter refugiado nas montanhas.

- Olá, comandante - disse-lhe. - Como vai o general?

- Que general? - perguntou-me com um sorriso tímido.

- Parece-me que na religião caodaísta se conciliam todos os gene­rais - respondi-lhe.

- Não consigo fazer com que este carro ande, Thomas - disse­-me Pyle.

            - Vou arranjar um mecânico - disse o comandante, e depois dei­xou-nos.

            - Eu vim interrompê-los.

            - Oh, não teve importância. Ele queria saber quanto custava um Buick. Esta gente, desde que a tratemos bem, é extremamente simpática.      Parece-me que os franceses não sabem manejá-la.

- Os franceses não confiam neles.

Pyle disse com voz solene:

- Os homens tornam-se merecedores de confiança sempre que mostramos confiar neles.

            Parecia uma máxima caodaísta. Comecei a sentir que o ar de Ta­nyin era demasiadamente ético para os meus pulmões.

- Vamos beber qualquer coisa - disse Pyle.

- Boa ideia. É exactamente do que eu estou a precisar.

- Trouxe um termo com sumo de lima.

Debruçou-se sobre a parte de trás do carro e começou a investigar o conteúdo de um cesto.

- Há por acaso gim?

- Não, desculpe, mas não tenho. Sabe? - disse-me, como para me animar. - O sumo de lima, num clima como este, faz muito bem. Tem... não sei bem que vitaminas. - Estendeu-me uma chávena e eu bebi.

- Pelo menos é um líquido - disse-lhe.

- Quer uma sanduíche? São muito boas. Têm um novo recheio chamado Vit-Saúde. Foi a minha mãe quem mo mandou.

- Obrigado, mas não tenho fome.

- Tem um gosto semelhante ao da salada russa, mas ligeiramente mais seco.

- Obrigado, mas não me apetece.

- Importa-se que eu coma uma?

- Não, com certeza que não.

Deu uma grande dentada e a sanduíche estalou com a mastigação. À distância, o Buda todo de pedra branca e rosa afastava-se da sua ca­sa ancestral, e o seu criado - outra estátua - seguia-o correndo. Os cardeais femininos encaminhavam-se para casa e o olho de Deus vi­   giava-nos no topo da porta da catedral.

- Sabe que nos preparam um almoço?

- Achei melhor não me arriscar. Sabe? Com este calor é preciso. Ter cuidado com a carne.

- Você não correria perigo. São vegetarianos.

- Talvez não haja realmente perigo, mas prefiro saber o que estou a comer. - E encheu de novo a boca com a sanduíche de Vil-Saúde.

 - Você acha que eles têm mecânicos de confiança?

- Sabem o suficiente para transformar o tubo de escape do seu carro num morteiro. Creio que os melhores morteiros são feitos com escapes dos Buicks.

 

O comandante voltou, e com uma continência elegante disse que mandara vir um mecânico do quartel. Pyle ofereceu-lhe uma sanduí­che Vil-Saúde, que ele recusou delicadamente. E disse, com um ar de homem do mundo:

- Nós temos tantos regulamentos no que respeita a comida... ­

Falava inglês maravilhosamente.

- É tão disparatado. Mas sabem o que acontece na capital de uma religião. Creio que deve acontecer o mesmo em Roma ou em Cantuária - acrescentou, ao mesmo tempo que me dirigia uma cortesia elegante e simples.

Depois ficou silencioso. Tive a sensação nítida de estar a mais. Não consegui resistir à tentação de arreliar o Pyle - é a arma dos fracos e eu sentia-me fraco. Não tinha juventude, seriedade, integridade, futuro. Disse:

- Parece-me que sempre vou comer uma sanduíche.

- Com certeza - disse Pyle. - Mas com certeza. - Fez uma pau­ sa antes de se debruçar sobre o cesto.

            - Não, de maneira alguma - disse-lhe. - Estava simplesmente a brincar. Vocês querem estar sós.

- Não pense nisso - respondeu-me Pyle. Era o mentiroso menos eficiente que eu jamais conhecera; tratava-se de uma arte à qual, como saltava à vista, ele nunca se dedicara. Explicou ao comandante:

- O Thomas é o meu melhor amigo.

- Eu já conhecia o senhor Fowler - disse o comandante.

- Vê-lo-e i antes de partir, Pyle. - E afastei-me em direcção à cate­dral. Lá, pelo menos, haveria um pouco de frescura.

Passei pelo Santo Vítor Hugo, com o uniforme da Academia Fran­cesa e uma auréola em redor do chapéu de três bicos, apontando para um pensamento nobre que Sun Yat Sen gravara numa placa, e depois cheguei à nave. Excluindo a cadeira papal, em torno da qual se enros­cava uma cobra de gesso, nada mais havia onde alguém se pudesse sentar. o chão de mármore reluzia como água e as janelas não tinham vidros - nós construímos as gaiolas com interstícios para dar entrada e o homem constrói a gaiola para a sua religião de um modo muito se­melhante: com dúvidas em aberto para o tempo e para as crenças, com possibilidade de inúmeras interpretações. A minha mulher encon­trara a sua gaiola com buracos, e eu por vezes invejava-a. Existe um conflito entre o sol e o ar: eu vivia demasiadamente ao sol.

Caminhei pela nave deserta - esta não era a Indochina de que eu gostava. Os dragões com cabeças lembrando leões trepavam pelo púl­pito; no tecto Cristo exibia o coração ensanguentado. o Buda estava sentado, como sempre, sem nada no colo: a escassa barba de Confúcio descia como uma cascata durante o tempo seco. Isto era representar. o grande globo sobre o altar era a ambição. O cesto de tampa movível de dentro do qual o papa tirava as suas profecias era impostura. Se es­ta catedral existisse há cinco séculos e não simplesmente há duas dé­cadas ter-se-ia dado o caso que tivesse adquirido uma espécie de po­der de convencimento nascido dos traços deixados pelos pés e da erosão praticada pelo tempo? Seria possível que alguém fácil de con­vencer como a minha mulher encontrasse ali a fé que não conseguia sentir pelos seus semelhantes? E se eu efectivamente tivesse desejado ter fé, tê-la-ia encontrado naquela sua igreja nonnanda? Mas eu nunca quisera ter fé. A função de um repórter é revelar e registar. Em toda a minha carreira nunca descobrira o inexplicável. O papa levava a 'cabo as suas profecias com um lápis inserto numa tampa móvel e os homens acreditavam. Numa visão em qualquer parte lá estava a planchette. Eu não tinha visões ou milagres no reportório da minha memória. Folheei ao acaso as minhas recordações, como se folheiam os retratos de um álbum: uma raposa que vira, à luz do fogo inimigo, em Orpington, correr junto de um galinheiro, longe da sua toca nos campos vizinhos. O cadáver de um malaio morto à baioneta, que uma patrulha gurkha trouxera de camião até uma mina em Pahang, com os camponeses chineses em redor, rindo com o choque nervoso, enquanto outro ma­laio lhe colocava uma almofada sob a cabeça sem vida. Um pombo so­bre uma prateleira de um quarto de hotel preparando-se para o voo. A cara da minha mulher, à janela, quando vim a casa para lhe dizer adeus pela última vez. Os meus pensamentos haviam começado e ter­minado com ela. Devia ter recebido a minha carta há mais de uma se­mana e o telegrama que eu não esperara não viera. Mas diz-se que se um júri se ausenta por muito tempo o prisioneiro pode ter alguma es­perança. Se dentro de mais uma semana não chegasse uma carta, dar­-se-ia o caso de eu poder começar a ter esperança? Dei-me conta de que os carros dos soldados e dos diplomatas começavam a movimen­tar-se: a festa acabara, até ao próximo ano. Começava a fuga para Sai­gão, tocava o recolher. Saí em procura de Pyle.

Estava de pé, numa pequena sombra, com o comandante. E nin­guém fazia o que quer que fosse ao seu carro. A conversa parecia ter terminado - qualquer que tivesse sido - e estavam silenciosos, cons­trangidos pela cortesia mútua. Juntei-me a eles.

            - Bom - disse. - Vou andando. E se você quer chegar antes do recolher também deve partir.

            - O mecânico ainda não apareceu.

            - Não deve tardar - disse o comandante. - Ele estava na pa­rada.

            - Você podia passar cá a noite - disse a Pyle. - Há uma missa especial. É uma cerimónia que se não deve perder. Dura três horas.

            - Devo regressar hoje.

- Você precisa de partir imediatamente para chegar a tempo. ­

E acrescentei contra minha vontade:

- Se quiser dou-lhe uma boleia e o comandante pode encarregar-se de lhe enviar amanhã o carro a Saigão.

- Dentro do território caodaísta não é preciso preocupar-se com o recolher - disse o comandante com um ar afectado. - Mas fora de­le... Não tenho dúvidas em enviar-lhe amanhã o seu carro.

- Com o escape intacto - disse-lhe, e ele sorriu com um ar ale­gre, elegante, eficiente, uma abreviatura militar de um sorriso.

 

Quando por fim partimos a procissão de carros levava uma boa dianteira sobre nós. Acelerei, numa tentativa de os ultrapassar, mas já tínhamos saído da Zona caodaísta e entrado na dos hoa-haos e ainda se não via nem mesmo uma nuvem de poeira. O mundo, naquele fim de tarde, estava plano e vazio. A região não sugeria emboscadas, e contudo, nos campos alagados, a poucos metros da estrada, um ho­ mem podia enterrar-se até ao pescoço. Pyle tossiu. Era o sinal de que se aproximava o momento das confi­dências.

- Phuong está bem de saúde? - perguntou-me.

- Nunca a conheci doente.

Uma torre de vigia afundou-se atrás de nós e uma outra apareceu. Lembravam pesos numa balança.

- Vi ontem a irmã de Phuong a fazer compras.

- Ela não o convidou para a visitar?

- Por acaso convidou-me.

- Não desiste de ter esperança.

- Esperança?

- De que você se case com Phuong.

- Ela disse-me que você vai partir.

- O mundo está cheio de boateiros.

- Você não seria capaz de me enganar, pois não, Thomas?

- De o enganar?

- Pedi que me transferissem. Não gostaria que ela ficasse aqui só, sem um de nós.

- Pensava que você ficava até terminar a sua missão.

- Cheguei à conclusão de que me seria impossível aguentar-me ­disse-me, sem intenção de se lastimar.

- Quando é que parte?

- Não sei. Eles acham que dentro de seis meses devo conseguir alguma coisa.

- E aguenta seis meses?

- Não tenho outra solução.

- Que razões é que você apresentou?

- Disse ao adido económico (você conhece-o), disse ao Joe mais ou menos o que se passava.

            - Ele deve achar que pelo facto de eu não consentir que você me roube a rapariga sou um patife.

            - Oh, não, ele tomou o seu partido.

            O carro engasgou-se, estremeceu. Creio que já estava assim desde há um minuto sem que eu me desse conta: estivera a analisar a per­gunta inocente de Pyle: «Você não seria capaz de me enganar?» Perten­cia a um mundo psicológico cheio de simplicidade, um mundo onde se fala de democracia e honra à maneira antiga, emprestando-lhes significado idêntico ao que aquelas palavras tinham para os nossos pais.

- Acabou-se a gasolina - disse-lhe.

- Acabou-se?

- Havia bastante. Enchi o depósito antes de partir. Aqueles malan­dros em Tanyin tiraram-na com um sifão. Eu devia ter reparado. É mesmo coisa deles deixarem-nos a gasolina suficiente para sairmos       da zona.

- Que vamos fazer agora?

- Parece-me que devemos conseguir chegar até à próxima torre de vigia. Talvez que eles tenham alguma gasolina.

Mas não estávamos em maré de sorte. O carro chegou até quinze metros da torre e depois parou. Fomos a pé até junto da torre e eu gri­tei em francês aos guardas que éramos amigos, que íamos subir. Não era meu desejo apanhar um tiro de uma sentinela vietnamita. Não obti­ve resposta. Ninguém espreitou.

- Você tem uma pistola? - disse a Pyle.

- Nunca ando armado.

- Nem eu.

As últimas cores do pôr do Sol, verde e ouro como os arrozais, es­coavam-se no horizonte do mundo plano. A torre, com o fundo cin­zento neutro do céu, parecia negra como tinta. A hora do recolher de­via estar próxima. Dei novo grito e ninguém me respondeu.

- Lembra-se por quantas torres passámos desde o último forte?

- Não prestei atenção.

- Nem eu. - O próximo forte devia ficar a pelo menos seis quiló­metros: uma hora de caminhada a pé. Gritei pela terceira vez, e a res­posta foi a continuação do silêncio.

- Parece estar deserta - disse. - Vou subir e ver o que se passa. - A bandeira amarela com riscas vermelhas, já desbotadas numa cor alaranjada, indicava que estávamos fora do território dos hoa-haos, já em zona do exército vietnamita.

            - Não lhe parece que se esperarmos aqui pode passar um auto­móvel? - disse Pyle.

            - Pode, mas eles podem aparecer antes disso.

            - E se voltássemos ao carro e acendêssemos as luzes? À laia de sinal.

- Santo Deus! Nem pensar nisso. - A escuridão já era suficiente para tropeçar enquanto procurava as escadas. O meu pé fez estalar qualquer coisa. Imaginei o ruído propagando-se através dos arrozais. Quem o ouvira? pyle perdera a nitidez e não era mais do que uma mancha à beira da estrada. Quando a noite caía era como o cair de uma pedra.

- Fique aqui até eu chamar - disse-lhe. Perguntei-lhe se o guarda não teria içado a escada, mas lá a encontrei. Apesar de o inimigo tam­bém a poder galgar, representava o único processo de fuga. Comecei a subir.

Li muitas descrições dos pensamentos que surgem nos momentos de grande medo: Deus, a família, uma mulher. Admiro-lhes a presença de espírito. Eu em nada pensei, nem mesmo no alçapão lá no alto. Du­rante aqueles segundos deixei de existir. Eu era o medo, nada mais. No cimo da escada bati com a cabeça porque o medo não sabe contar degraus, nem ouvir, nem ver. Em seguida, a minha cabeça atravessou o chão de terra, ninguém disparou, e o medo foi-se escoando lenta­mente.

 

Sobre o chão ardia uma pequena lamparina de óleo. Encostados à parede estavam dois homens acocorados, olhando-me. Um tinha uma metralhadora e outro uma espingarda, mas mostravam um medo igual ao que eu sentia.

Pareciam colegiais, mas quando se trata de vietnamitas a juventude desaparece como o sol: são rapazes e logo a seguir transformam-se em velhos. Regozijei-me com que a cor da minha pele e o formato dos meus olhos fossem por si sós como um passaporte. Agora nem o me­do os faria disparar.

Subi para o pavimento superior enquanto, falando para os tranqui­lizar, lhes dizia que tinha o carro na estrada, que se me acabara a gaso­lina. Que eles talvez tivessem alguma que eu pudesse comprar-lhes, o que não me pareceu provável logo que dei uma vista de olhos em re­dor. Aquela pequena sala redonda nada mais tinha do que uma caixa de munições para a metralhadora, uma minúscula cama de madeira e duas mochilas penduradas na parede. Frigideiras com restos de arroz        e pauzinhos indicavam que tinham estado a comer sem grande apetite.

- Nem mesmo que nos chegue para atingirmos o próximo forte? Um dos homens - o que tinha a espingarda - abanou a cabeça. - Então teremos de passar a noite aqui.

- C'est défendu.

- Por quem?

- O senhor é um civil.

- Não há quem me possa obrigar a ficar sentado na estrada à es­pera que me cortem o pescoço.

- É francês?

Só um dos homens é que falara. O outro tinha a cabeça virada para o outro lado e fitava a vigia. Não lhe era possível ver mais do que uma nesga de céu. Parecia escutar e eu pus-me também a ouvir. O silêncio tornou-se pleno de sons: de ruídos indefiníveis. Estalar, ranger, qual­quer coisa a arrastar-se, uma espécie de tosse e alguém a segredar. De­pois ouvi Pyle. Devia estar no começo da escada.

- Você está bem, Thomas?

- Suba - gritei-lhe. - Ele começou a subir a escada e o soldado silencioso mudou a posição da metralhadora. Não creio que tivesse ouvido o que nós tínhamos acabado de dizer: não era mais do que a reacção desajeitada de alguém que se assustou. Percebi que o medo o paralisara. Gritei-lhe asperamente, à laia de sargento:

- Largue essa arma! - E empreguei aquele género de obscenida­des francesas que me parecia não lhe serem estranhas. Obedeceu-me automaticamente. Pyle entrou na sala.

- Ofereceram-nos este abrigo até ao amanhecer - disse-lhe.

- Óptimo. - A voz de Pyle mostrava ligeira perplexidade. – Um destes tipos não devia estar de sentinela?

- Preferem não se arriscar a apanhar um tiro. Quem me dera que você tivesse trazido uma bebida um pouco mais forte do que sumo de lima.

            - Para a outra vez creia que não me esquecerei.

            - Temos uma longa noite à nossa frente. - Depois de Pyle chegar eu já não ouvia os ruídos. E os dois soldados pareciam menos tensos.

            - O que acontece se os vietcongues os atacam? - perguntou-me Pyle.

- Disparam e depois dão uma corrida. Lê-se isto todas as manhãs no Extrême-Orient: «Foi ontem à noite temporariamente ocupado pelos vietcongues um posto a sudoeste de Saigão».

            - É uma perspectiva pouco agradável.

            - Daqui até Saigão há quarenta torres iguais a esta. Há sempre a probabilidade de o azar cair sobre outros.

            - As sanduíches agora faziam-nos jeito - disse Pyle. - Acho que   um destes tipos devia estar lá fora a ver o que se passa.

            - Têm medo que uma bala venha ver o que se passa cá dentro.

            Depois de nos termos sentado os vietnamitas pareciam mais cal­mos. Inspiravam-me certa compaixão: não era tarefa fácil para dois ho­mens mal treinados ficarem ali sentados, noite após noite, sem nunca saberem quando os vietcongues iriam atravessar os arrozais e alcançar a estrada.

- Você acha que eles sabem que estão a lutar pela democracia? Devíamos ter aqui o York Harding para lhes explicar do que se trata­ -       disse a Pyle.

- Você está sempre a fazer troça de York.

- Faço troça de todos aqueles que desperdiçam tanto tempo a es­crever sobre coisas que não existem: conceitos mentais.

- Para eles existem. Você não os tem? Deus, por exemplo?

- Não tenho quaisquer razões que me levem a crer em Deus. E você tem-nas?

- Eu tenho. Sou unitário.

- Em quantos centos de milhões de deuses acreditam os homens? O deus dos próprios católicos difere consoante estão assustados ou fe­lizes ou famintos.

            - Se Deus realmente existe, talvez seja tão vasto que se apresente diferente a cada um de nós.

            - Como o grande Buda em Banguecoque - respondi-lhe. – Não se consegue ver todo de uma vez. Pelo menos esse fica quieto.

- Parece-me que você está simplesmente a tentar fazer-se forte. Tem de haver uma coisa em que acredite. Ninguém pode viver sem acreditar em qualquer coisa.

            - Oh, não sou discípulo de Berkeley. Acredito que tenho as costas encostadas a esta parede. Acredito que está ali uma metralhadora.

            - Não era a isso que me referia.

            - Até acredito nos meus comunicados, o que não acontece com a maior parte dos seus correspondentes.

            - Quer um cigarro?

            - Só fumo ópio. Dê um aos guardas. Sempre é bom estarmos de boas relações com eles. - Pyle levantou-se, acendeu-lhes o cigarro e voltou para o seu lugar.

            - Quem me dera que os cigarros tivessem um significado simbóli­co, como o sal - disse-lhe.

            - Você não tem confiança neles?

            - Não existe um único oficial francês a quem agradasse passar a

noite numa destas torres a sós com dois guardas assustados. Há mes­mo casos de pelotões entregarem os seus oficiais. Os vietcongues têm frequentemente mais sorte com um megafone do que com uma bazooka. E acho que têm razão. Eles também não acreditam no que quer que seja. Você e outros tipos do seu género tentam fazer uma guerra com a ajuda de indivíduos que não estão de todo interessados no assunto. - Eles não querem o comunismo.

- Mas querem arroz. Não querem morrer com um tiro. Querem que os dias sejam todos iguais. Não querem que uns tipos de pele        branca lhes digam quais são as coisas que devem querer.

- Se a Indochina se for...

- Eu conheço o disco. O Sião vai-se. A Malaia vai-se. A Indonésia

vai-se. E o que significa .ir»? Se eu acreditasse no seu Deus e numa vi­da no além apostava a harpa que me estaria destinada contra a sua co­roa dourada que dentro de quinhentos anos tanto Nova Iorque como Londres podem deixar de existir, mas que estes continuarão a cultivar arroz nos campos, a transportar os seus produtos até ao mercado pen­durados nos extremos de uma longa vara que põem ao ombro e a usar chapéus bicudos. Os rapazes irão sentados nos búfalos. Eu gosto dos búfalos, mas eles não gostam do nosso cheiro, do cheiro do europeu. E não esqueça: do ponto de vista do búfalo você também é europeu.   - Eles serão forçados a acreditar no que se lhes disser. Não pode­rão ter ideias próprias.

            - Ter ideias é um luxo. Você acha que um camponês, quando che­ga à noite à sua casa feita de lama, pensa em Deus e na democracia?

            - Você fala como se em todo o país nada mais houvesse do que camponeses. E a classe culta? Acha que vai ser feliz?

- Ah, não, não acho. Nós educámo-los segundo as nossas ideias. Ensinámos-lhes jogos perigosos e é por isso que estamos aqui à espe­ra, na esperança de que nos não cortem o pescoço. Merecíamos que o fizessem. Quem me dera que o seu amigo York também aqui estivesse. Gostaria de saber até que ponto apreciaria a situação.

- York Harding é um homem extremamente corajoso. Imagine que na Coreia...

- Não se alistou, pois não? Tinha bilhete de regresso. Quando se tem um bilhete de regresso a coragem transforma-se num exercício in­telectual, tal como as flagelações de um monge. Até que ponto serei capaz de aguentar? Estes pobres diabos não podem meter-se num avião e ir para casa. Olá - gritei-lhes - como se chamam vocês? ­Pensei que o facto de lhes conhecermos os nomes os aproximaria da nossa conversa. Não me responderam. Limitaram-se a fazerem-se mais pequenos por detrás das pontas dos cigarros.

- Pensam que somos franceses - disse.

- Esse é o fulcro da questão - disse Pyle. - Você não devia ser contra York. Devia ser contra os Franceses. Representam o colonia­lismo.

- Os ismos e as cracias. Prefiro os factos. Um proprietário de uma plantação de borracha bate nos trabalhadores. Óptimo, sou contra ele. O Ministério das Colónias não lhe deu ordens nesse sentido. É prová­vel que em França batesse na mulher. Já vi um padre, tão pobre que nem mesmo tinha uma muda de calças, trabalhar quinze horas por dia durante uma epidemia de cólera, só comendo arroz e peixe salgado, dizendo missa com uma xícara velha de madeira. Não creio em Deus e contudo sou pelo padre. Porque não chamar também a isto colonia­lismo?

- E é colonialismo. York diz que é muitas vezes culpa dos bons administradores ser tão fácil acabar com os maus sistemas.

- Há uma coisa que se não pode considerar um conceito mental: não há dúvidas de que todos os dias morrem uns quantos franceses. Eles não tentam levar esta gente com meias mentiras, como o fazem os seus políticos e os nossos. Já estive na Índia, Pyle, e conheço o mal que os liberais conseguem fazer. Nós já não temos um partido liberal: o liberalismo infectou todo, os partidos. Somos todos quer conserva­dores liberais quer liberais socialistas: todos temos a consciência limpa. Prefiro ser o explorador que luta pelo que tenta explorar e morre lu­tando. Olhe para a história de Burma. Nós invadimos-lhes o país e as diferentes tribos dão-nos apoio. Saímos vitoriosos. Mas, tal como vo­cês, os Americanos, nesse tempo não éramos colonialistas. Oh, não. Fazíamos a paz com o rei e tornávamos a oferecer-lhe a sua província e abandonávamos os nossos aliados, consentindo que os crucificassem e serrassem a meio. Estavam inocentes. Pensavam que nós íamos ficar. Mas éramos liberais e não queríamos ficar com uma má acção na cons­ciência.

- Isso passou-se há muito tempo.

- Faremos o mesmo aqui. Dar-lhes-emos estímulo e deixar-lhes­ -emos algum equipamento e uma indústria de brinquedos.

- Que indústria de brinquedos?

- Os seus plásticos.

- Ah, sim, já percebi.

- Não sei porque estou a falar sobre política. É um assunto que

me não interessa e sou repórter. Não estou engagé.

- Não está?

            - Só para termos um assunto de conversa. Simplesmente para

conseguirmos passar esta maldita noite. Eu não tomo partido. Ganhe quem ganhar, continuarei a fazer as minhas reportagens.

- Se eles ganharem, as suas reportagens serão mentiras.

- Há sempre processos e nunca reparei que os nossos jornais ti­vessem grande consideração pela verdade.

Creio que o facto de estarmos ali os dois sentados a conversar deu ânimo aos dois soldados: talvez tivessem pensado que o som das nos­sas vozes brancas - porque as vozes também têm a sua cor: as amare­las cantam, as negras gargarejam, enquanto as nossas só falam - daria uma sensação de número e assustasse os vietcongues. Pegaram nas ca­çarolas e começaram a comer, agarrando os grãos de arroz com os    pauzinhos, vigiando-nos por sobre o rebordo da caçarola.

- Então a sua opinião é que estamos perdidos.

- O problema não é esse. Não tenho grande desejo de vos ganhar. Gostaria de ver aqueles dois desgraçados felizes, é tudo. Gostaria que não fossem obrigados a estar sentados na escuridão, à noite, cheios de medo.

- É preciso lutar pela liberdade.

- Não tenho visto por cá americanos a fazê-lo. E, quanto à liber­dade, desconheço o significado dessa palavra. Pergunte-lhes. - Gritei­-lhes em francês. - La liberté, qu'est ce que c'est la liberté? - Eles conti­   nuaram a sorver o arroz, olharam-nos, e ficaram calados.

Pyle disse:

- Você quer que toda a gente seja construída segundo o mesmo molde? Está a discutir pelo prazer da discussão. É um intelectual. Tal como York ou como eu, você é pela importância do indivíduo.

            - E por que razão só descobrimos isso agora? Há quarenta anos             ninguém falava nesses termos.

            - É que nessa altura o indivíduo não estava ameaçado.

            - Quer você dizer que nós não estávamos ameaçados. Mas quem

se preocupava com a individualidade do homem no arrozal? E quem se preocupa hoje em dia? O único homem que os trata como gente é o comissário político. Esse vai até à choça onde eles vivem, pergunta­-lhes como se chamam e ouve-lhes as queixas; concede-lhes uma hora todos os dias, ensina-os. Não interessa o que lhes ensina: trata-os co­mo gente, como se valessem alguma coisa. Não vá pelo Oriente papa­gueando esse queixume sobre a ameaça ao espirito individual. Acaba­rá por se aperceber de que tomou o partido errado. Eles representam o indivíduo e nós representamos simplesmente o soldado n.º 23 987, uma unidade no meio da estratégia global.

            - Você não acredita nem sequer em metade do que me tem esta­ do a dizer.

- Talvez acredite em três quartas partes. Já aqui estou há muito tempo. Sabe? É uma sorte eu não estar engagé. Porque não me sentiria tentado a fazer certas coisas. Porque aqui no Oriente... não gosto do Ike. Gosto destes dois que aqui estão. Este país é deles. Que horas são? O meu relógio parou.

- Pouco passa das vinte e trinta.

- Mais dez horas e podemos pôr-nos a caminho.

- Vai fazer bastante frio - disse Pyle, ao mesmo tempo que estre­mecia com um arrepio. - Não estava a contar com isto.

            - Há água por todos os lados. Dentro do carro tenho um cobertor. Chegar-nos-á.

- Acha que é seguro?

- Ainda é cedo para os vietcongues.

- Deixe-me ir.

- Estou mais habituado à escuridão.

            Quando me pus de pé os dois soldados pararam de comer. Disse­-lhes: «le reviens, tout de suite». Balancei as pernas sobre o alçapão, en­contrei a escada e desci. É estranho quanto uma conversa pode dar tranquilidade, especialmente se os assuntos forem abstractos: parece tornar normais os ambientes mais estranhos. Já não me sentia assusta­do: era como se tivesse deixado um quarto para onde voltaria, a fim de continuar uma conversa. A torre de vigia era a Rua Catinat, o bar do Majestic, ou mesmo um quarto junto do Gordon Square.

Fiquei junto da torre durante um minuto até conseguir adaptar-me à escuridão. Havia estrelas, mas não havia luar. O luar lembra-me uma morgue, uma laje de mármore lavada pela luz fria de uma lâmpada nua. Mas a luz das estrelas é viva e nunca está quieta. É como se al­guém, na vastidão do espaço, tentasse comunicar uma mensagem amistosa, porque até os nomes das estrelas sugerem amizade. Vénus é qualquer mulher que se ame, as Ursas são os ursos da nossa infância, e creio que o Cruzeiro do Sul, para aqueles que, como minha mulher, crêem em Deus, pode representar um hino preferido ou uma prece junto da cama. Tive um arrepio tal como Pyle tivera há momentos. A noite estava bastante quente, mas os lençóis de água pouco profun­da a cada lado da estrada davam uma espécie de travo glacial à tempe­ratura. Encaminhei-me para o carro e durante alguns momentos tive a sensação de que já lá não estava. Fiquei abalado, embora me lembras­se de que tinha parado a uns quinze metros da torre. Foi-me impossí­vel caminhar com as costas direitas: dobradas, sentia-me menos vulne­rável.

Para tirar o cobertor precisei de abrir o porta-bagagens, e no silên­cio da noite o dique e o ranger assustaram-me. Não me agradava a ideia de representar o único ruído na noite plena de gente.

Com o co­bertor às costas baixei a tampa do porta-bagagens com mais cuidado do que a tinha levantado e, exactamente no momento em que senti fe­char-se, o céu do lado de Saigão acendeu-se e pela estrada fora retum­bou o estrondo de uma explosão. Ouvi uma metralhadora cuspir mais e mais fogo e depois ficar calada, mesmo antes de o retumbar ter ces­sado. Pensei: «Há quem já tenha a sua conta», e muito ao longe ouvi vozes gritarem de dor ou de medo ou mesmo de triunfo. Não sabia porquê, mas pensara sempre que o ataque viesse de trás, da estrada por onde tínhamos passado, e por momentos tive a sensação de que não era justo que os vietcongues estivessem entre nós e Saigão.

Era como se inconscientemente nos estivéssemos a dirigir para o perigo e não a fugir dele, tal como agora me acontecia ao encaminhar­-me de novo para a torre. Ia a passo porque correr fazia mais barulho, mas o meu corpo queria correr.

Quando cheguei à escada gritei a Pyle: «Sou eu, Fowler». (Mesmo num momento como aquele não era capaz de usar o meu nome de baptismo quando se tratava dele.) O ambiente mudara dentro da torre. As caçarolas com arroz estavam novamente no chão; um dos homens encostara a espingarda à anca e estava sentado, encostado à parede, fi­tando Pyle, que estava ajoelhado junto da parede oposta, com os olhos fitos na metralhadora colocada entre ele e o segundo guarda. Dava a impressão de que começara a rastejar em direcção à arma e fo­ra obrigado a parar. O segundo guarda tinha o braço estendido para a metralhadora: ninguém lutara ou fizera ameaças. Parecia aquele jogo de crianças no qual, se somos apanhados a mudar de posição, nos mandam de novo para o coito a fim de recomeçarmos.

- Que aconteceu? - perguntei.

Os dois guardas olharam para mim e Pyle precipitou-se, arrastando a metralhadora para o seu lado.

- A que jogo se entregam vocês?

- Se eles vierem não tenho confiança nele com a metralhadora na mão.

- Já trabalhou com uma destas metralhadoras?

- Nunca.

- Óptimo. Nem eu. Espero que esteja carregada. Nunca seríamos capazes de a carregar.

Os guardas tinham aceitado a perda da metralhadora com resigna­ção. O que empunhava a espingarda baixou-a e colocou-a sobre as coxas; o outro acocorou-se de encontro à parede e fechou os olhos, como uma criança que se julga invisível na escuridão. Muito ao longe ouviu-se novamente a metralhadora: três rajadas e depois silêncio. O segundo guarda fechou os olhos com mais força.

- Eles desconhecem que nós não sabemos servir-nos dela – disse Pyle.

- Mas eles estão do nosso lado.

- Julguei que você não tinha lado.

- Touché. Quem me dera que os vietcongues julgassem o mesmo. - Sabe o que se está a passar lá ao longe?

            Eu citei mais uma vez o Extrême-Orient de amanhã: «Ontem à noite os rebeldes do Vietminh atacaram e capturaram temporariamente um posto a cinquenta quilómetros de Saigão».

- Você acha que estaríamos mais seguros nos campos?

- Ficaríamos muito molhados.

- Você não parece preocupado.

            - Estou cheio de medo, mas as coisas podiam ser piores. Não cos­tumam atacar mais do que três postos na mesma noite. A probabilida­de de não sermos atacados aumentou.

- Que é isto?

Era o ruído de um veículo pesado que se aproximava, dirigindo-se para Saigão. Fui espreitar à vigia e vi passar um tanque.

- É a patrulha - disse.

            O canhão deslocava-se de um lado para o outro na torre blindada. Apetecia-me chamá-los, mas para quê? Não tinham espaço lá dentro para dois civis.

Quando passaram o chão de terra estremeceu, e depois desapare­ceram. Olhei para o relógio: vinte horas e cinquenta e um minutos. Fi­quei à espera, esforçando-me por ver novamente as horas quando a luz batesse. Era como estar a avaliar a distância da faísca pelo tempo que levava até se ouvir o trovão. Passaram-se quase quatro minutos até que o canhão disparasse. Pareceu-me distinguir a resposta de uma bazooka e depois fez-se novamente silêncio.

            - Quando eles voltarem podíamos pedir-lhes uma boleia até ao acampamento - disse-me Pyle.

            O chão estremeceu com uma explosão.

- Se porventura voltarem - disse-lhe. - Isto pareceu-me uma mina. - Quando olhei novamente para o relógio já passava das vinte e uma e quinze e o tanque não regressara. Não se ouvira mais fogo.

            Sentei-me ao lado de Pyle e estendi as pernas.

            - Devemos tentar dormir - disse-lhe. - Nada mais podemos fazer.

- Não me sinto feliz com estes guardas - disse Pyle.

- Eles são inofensivos. A menos que apareçam os vietcongues.

- Ponha a metralhadora debaixo da perna, como medida de segu­rança.

Fechei os olhos e tentei imaginar que estava noutro sítio: sentado num daqueles compartimentos de 4.ª classe que havia nos comboios alemães antes de Hitler subir ao Poder, no tempo em que era novo e conseguia passar uma noite sentado sem sentir melancolia, em que os sonhos do acordar estavam cheios de esperança e não de medo. Era a hora a que Phuong costumava preparar-me os cachimbos. Teria uma carta à minha espera? Tinha esperança que não, porque sabia o que a carta diria e enquanto não chegasse eu sempre podia sonhar com o             impossível.

- Está a dormir? - perguntou-me Pyle.

-Não.

- Não acha melhor içarmos a escada?

- Começo a perceber a razão por que eles não a içam. É a nossa única saída.

- Quem me dera que o tanque voltasse.

- Já não volta.

Tentei olhar para o relógio em intervalos espaçados, mas os inter­valos nunca eram tão espaçados como me pareciam. Vinte e uma e quarenta, vinte e duas e cinco, e dez, e trinta e dois, e quarenta e um.

- Está acordado? - perguntei a Pyle.

- Estou.

- Em que está a pensar?

Ele hesitou.

- Em Phuong.

- E então?

- Estava a pensar no que ela estará a fazer.

- Posso dizer-lho. Já chegou à conclusão de que vou passar a noi­te em Tanyin. Não é a primeira vez que acontece. Está deitada na ca­ma e tem um pau de goma a arder para afastar os mosquitos. Folheia um velho Paris Match. Tal como os Franceses, tem uma paixão pela fa­mília real.

- Deve ser maravilhoso saber tudo - disse ele com um ar triste, e eu imaginei, no escuro, a expressão dos seus olhos meigos de cão. De­viam ter-lhe dado o nome de Fido, e não de Alden.

- Não posso saber ao certo, mas é muito provável que tenha acer­tado. Quando nada podemos fazer não vale a pena ter-se ciúmes. «Não há barricadas para uma barriga.»

- Por vezes detesto a maneira como você fala, Thomas. Sabe co­mo eu a vejo? Vejo-a fresca como uma flor.

- Pobre flor. Com tanta erva daninha em redor.

- Onde a conheceu?

- Quando dançava no Grand Monde.

- Dançava?! - exclamou, como se a ideia lhe fosse dolorosa. - É uma profissão perfeitamente respeitável. Não é razão para que fique preocupado.

- Você tem tanta experiência da vida, Thomas...

- Tenho muitos anos. Quando chegar à minha idade...

- Nunca tive uma rapariga. Não como deve ser. Aquilo a que se chama uma experiência.

            - Parece-me que vocês desperdiçam grande parte da vossa ener­gia a assobiar.

- Nunca disse isto a ninguém.

- Você é novo. Não é coisa que o deva envergonhar.

- Você já teve muitas mulheres, Fowler?

- Não sei bem qual é o significado de muitas. Só quatro mulheres tiveram alguma importância na minha vida e eu na vida delas. As ou­tras quarenta e tantas... não percebemos por que o fizemos. Por uma        noção de higiene e por obrigação social, ambas erradas.

- Você acha que são erradas?

- Gostaria de recuperar essas noites. Continuo apaixonado, Pyle, e não passo de uma casa em ruínas. Oh, também houve orgulho. É preciso muito tempo para já não nos sentirmos orgulhosos com o facto de nos desejarem. E quando olhamos em nossa volta e vimos to­dos aqueles que também são desejados, sabe Deus porque sentimos orgulho.

- Você não acha que eu sou anormal, pois não, Thomas?

- Não, não acho, Pyle.

- Não significa que eu não tenha necessidade, Thomas, exactamen­te como os outros. Não sou... esquisito.

- Não é tão necessário como se diz. Há uma grande dose de auto­convencimento. Eu, por exemplo, sei que só preciso de Phuong. Mas éuma coisa que se aprende com o tempo. Se ela não existisse eu era ca­      paz de passar um ano inteiro sem uma noite de insónia.

- Mas ela existe - disse-me, tão baixo que mal consegui ouvi-lo. - Começamos por ser promíscuos e acabamos, como os nossos avós, fiéis a uma mulher.

            - Devemos parecer muito ingénuos quando começamos pelo fim...

-Não.

- Isto não vem no Relatório Kinsey.

- Por isso. mesmo não parece ingénuo.

- Sabe, Thomas, é bom estar aqui a falar consigo sobre estes as­suntos. Já nem o perigo me parece tão grande.

            - Durante a guerra tínhamos a mesma sensação quando chegava um período de calma. Mas acabavam sempre por voltar.

            - Se alguém lhe perguntasse qual tinha sido a sua experiência se­xual mais profunda, que responderia você?

Era uma pergunta a que eu sabia responder: estar deitado de ma­nhã cedo observando uma mulher com roupão vermelho a escovar o cabelo.

- O Joe disse-me que a dele foi estar na Cama com uma chinesa e uma negra ao mesmo tempo.

- Quando tinha vinte anos talvez também tivesse pensado assim.

- O Joe tem cinquenta.

- Pergunto-me que idade mental lhe atribuem na guerra.

- Phuong era a rapariga com o roupão vermelho?

Gostaria que ele não me tivesse feito esta pergunta.

- Não, não era, essa mulher foi há mais tempo. Quando deixei a minha mulher.

- E que aconteceu?

- Também a deixei.

- Porquê?

- E porque não? Quando amamos comportamo-nos como uns idiotas. Tinha o pavor de a perder. Pareceu-me que estava diferente. Não sei se realmente o estava, mas não consegui suportar a incerteza por mais tempo. Precipitei-me para um fim tal como um covarde se precipita para o inimigo e ganha uma batalha. Queria acabar com a morte.

- Com a morte?

- Era uma espécie de morte. Depois vim para o Oriente.

- E conheceu Phuong?

-Sim.

- Mas com Phuong não tem a mesma sensação?

- Não é igual. A outra amava-me. Eu receava perder o amor. Ago­ra tenho simplesmente medo de perder Phuong. - Por que razão teria     eu dito uma tal coisa? Ele não precisava que o encorajasse.

- Mas ela gosta de si, não gosta?

- Não da mesma maneira que a outra. Não está na sua índole. Chamar-lhes crianças não passa de um cliché. Mas há um ponto em que são crianças. Elas gostam de nós pela bondade, a segurança, os presentes que lhes oferecemos. Odeiam-nos quando lhes batemos ou cometemos uma injustiça. Não percebem que se possa entrar numa sa­la e ficar apaixonado por uma desconhecida. Para um homem que já não é novo, Pyle, traz segurança: só nos fugirá de casa se a casa não for feliz.

            Não tivera intenção de o magoar. Percebi que o fizera quando me disse, tentando abafar a cólera:

            - Pode acontecer que ela prefira maior segurança ou mais bon­dade.

- Talvez.

- E você não receia que isto se dê?

- Não do mesmo modo que receava a outra.

- Você gosta dela?

- Oh, sim, Pyle, gosto. Mas da outra maneira só gostei uma vez.

- Apesar das quarenta e tantas mulheres - disse-me exaltada­mente.

- Estou certo de que fiquei abaixo da média apresentada por Kin­ser. Sabe, Pyle? As mulheres não gostam de virgens. E não estou certo de que «nós» gostemos, a menos que sejamos um caso patológico.

- O que eu disse não significa que seja virgem.

As minhas conversas com Pyle tomavam sempre um rumo grotesco. Seria a sinceridade que as fazia sair dos caminhos usuais? Na conversa dele nunca havia desvios.

- Podemos ter tido cem mulheres e continuarmos a ser virgens, Pyle. A maior parte dos vossos G.I. *1, que durante a guerra foram en­forcados por violação, era virgem. Nós, na Europa, não temos tantos. E regozijo-me porque assim seja. Fazem muito mal.

- Não consigo percebê-lo, Thomas.

            - Não vale a pena explicar-lhe. E já estou maçado com o assunto. Cheguei à idade em que o sexo não tem a mesma importância que a velhice ou a morte. Acordo preocupado com estes problemas e não com o corpo de uma mulher. Quero simplesmente não viver só duran­te a década que me resta, e é tudo. Não sei em que iria pensar durante todo o dia. Prefiro ter uma mulher de quem não goste. Mas se Phuong me deixasse, teria porventura energia para encontrar outra?

- Se ela não significa mais do que isso para si...

- Mais do que isto? Espere que chegue o momento em que você

 

*1 Soldado americano.

 

tenha medo de viver sozinho durante dez anos, tendo à sua frente uma casa de saúde. Vai ver que correrá numa direcção qualquer, fugirá mesmo da rapariga de roupão vermelho na ânsia de encontrar alguém, quem quer que seja, que o não abandone até você morrer.

- Então porque não volta para a sua mulher?

- Não é fácil viver-se com alguém que lesámos.

Ouviu-se uma longa rajada de metralhadora. Não devia ter sido a mais de dois quilómetros. Talvez uma sentinela nervosa disparando para as sombras. Talvez tivesse começado novo ataque. Assim fosse um ataque: aumentariam as possibilidades de sermos bem sucedidos.

- Está assustado, Thomas?

- Claro que estou. Completamente assustado. Mas por raciocínio sei que é melhor morrer desta maneira. Foi por isso que vim para o Oriente. A morte fica connosco.

            Olhei para o relógio. Já passava das vinte e três horas. Uma noite de oito horas e depois podíamos sossegar. Disse:

            - Parece-me que já falámos de quase tudo, exceptuando de Deus. É melhor deixá-lo para a madrugada.

- Você não é crente, pois não?

-Não.

- Para mim, sem Ele nada teria sentido.

- E para mim, com Ele nada o tem.

- Li uma vez um livro...

Nunca soube que livro Pyle lera (presumivelmente não era de York Harding ou de Shakespeare ou uma antologia de versos contemporâ­neos ou a Fisiologia do Casamento. Talvez fosse o Triunfo da Vida). Pela torre entrou uma voz. Parecia falar das sombras, através do alçapão:          uma voz cava e megafónica, que dizia qualquer coisa em vietnamita.

- Começou a complicação - disse a Pyle.

Os dois guardas escutavam, com as caras viradas para a abertura na parede e as bocas escancaradas.

- O que aconteceu? - perguntou Pyle.

Caminhar para a abertura era como que atravessar a voz. Olhei ra­pidamente para fora: nada vi. Nem conseguia distinguir a estrada, e quando tornei a olhar para dentro da sala a carabina apontava não sei bem se para mim se para a abertura. Mas quando me desloquei ao lon­go da muralha a carabina moveu-se, hesitou, manteve-me coberto. A voz continuou a repetir a mesma coisa. Sentei-me e ele baixou a ca­rabina.

- Que está ele a dizer? - perguntou Pyle.

- Não sei. Provavelmente encontraram o carro e estão a dizer a estes tipos que nos entreguem. É melhor pegar nessa metralhadora an­tes que tomem uma decisão.

- Ele dispara.

- Ainda não decidiu. Quando decidir disparará, aconteça o que acontecer.

Pyle mudou a posição de uma perna e a carabina subiu.

- Vou andar ao longo da muralha - disse a Pyle. - Quando vir que ele desvia os olhos, pegue na metralhadora.

            Quando me levantei a Voz parou de falar: o silêncio fez-me dar um pulo. Pyle disse asperamente:

- Largue a carabina. - Só tive tempo de pensar se a metralhadora estaria carregada (não me dera ao cuidado de verificar) e o homem largou a carabina.

Atravessei a sala e apanhei-a do chão. Depois a voz recomeçou; pareceu-me que não houvera alteração nem numa só sílaba. Talvez usassem um disco. Quando terminaria o ultimato?

- E agora? - perguntou-me Pyle, como um aluno que assiste a uma demonstração no laboratório. Dava a impressão de que nada da­quilo era com ele.

- Talvez uma bazooka ou talvez um vietcongue.

Pyle examinou a metralhadora.

- Não me parece que isto tenha qualquer mistério. Acha que dis­pare uma rajada?

- Não, deixe-os hesitar. Preferem ocupar o posto sem haver fogo e dá-nos algum tempo. É melhor sairmos daqui o mais rapidamente possível.

- Podem estar à nossa espera lá em baixo.

- Podem.

Os dois homens observaram-nos. Escrevo homens, mas duvido de que os dois conseguissem somar quarenta anos.

            - E estes? - perguntou Pyle, e depois acrescentou sem rodeios, chocantemente: - Acha que os mate?

Talvez quisesse experimentar a metralhadora.

- Não nos fizeram mal.

- Queriam entregar-nos.

- E porque não? Nada temos a ver com isso. Esta terra é deles. Descarreguei a carabina e pousei-a no chão.

- Você não lhes vai deixar isso, pois não? - perguntou-me Pyle.

- Estou velho de mais para correr com uma carabina na mão. E esta guerra não é minha. Vamos.

A guerra não era minha, mas gostaria que aqueles homens mergu­lhados na escuridão o soubessem. Apaguei a lamparina e pendurei as pernas no alçapão, procurando a escada. Ouvia os guardas segredar na sua linguagem cantante.

            - Corra em frente - disse a Pyle - em direcção ao arroz. Lembre-se de que há água. Com que profundidade, não sei. Está pronto?

            - Estou.

- Obrigado pela companhia. - É sempre um prazer.

Ouvi os guardas mexerem-se: perguntei-me se teriam facas. A voz megafónica falou peremptoriamente, como que a oferecer-nos uma úl­tima possibilidade. Na escuridão, sob os nossos pés, houve qualquer     coisa que se deslocou suavemente; podia ser um rato. Hesitei.

- Quem me dera ter qualquer coisa para beber - segredei. - Vamos.

Alguém subia a escada. Eu nada ouvia, mas a escadaria tremia sob os meus pés.

- Porque não avança - perguntou-me Pyle.

Não sei por que razão aquela aproximação silenciosa e furtiva me sugeria uma coisa. Só um homem seria capaz de subir a escada, e no entanto não me era possível pensar que fosse um homem como eu. Era como se um animal avançasse para matar, muito silenciosamente. e com a desumanidade de um outro tipo de ser vivo. A escada tremia e tremia e eu imaginei que lhe via os olhos a brilhar. Subitamente, não consegui suportar a situação por mais tempo e dei um salto e nada mais havia que o chão esponjoso, que me prendeu o tornozelo e o torceu como se fosse uma mão. Ouvi o Pyle descer a escada; percebi que me portara como um pobre e assustado idiota, que nem mesmo era capaz de reconhecer a sua própria tremura. E eu, que sempre pen­sara ser corajoso e não ter imaginação, tal como competia a um obser­vador fiel e a um bom repórter... Pus-me de pé e quase caí com a dor. Encaminhei-me para o arrozal, arrastando o pé, e ouvi o Pyle seguir­-me. Depois ouviu-se a explosão da bazooka e dei novamente com a cara no chão.

 

- Está ferido? - perguntou-me Pyle.

- Bati com a perna. Nada de grave.

- Então vamos - incitou-me Pyle.

Conseguia vê-lo porque estava coberto com uma poeira branca muito fina. Depois desapareceu, como uma fita no ecrã quando se fundem as lâmpadas do projector, mas a parte sonora continua. Ajoe­lhei-me com cautela sobre o joelho bom e tentei levantar-me sem fazer força com o tornozelo esquerdo, mas fui de novo ao chão, ofegante com a dor. Não se tratava do tornozelo: acontecera qualquer coisa à perna esquerda. Não estava preocupado: a dor aniquilava a preocupa­ção. Fiquei muito quieto no chão, na esperança de que a dor não vies­se novamente castigar-me. Contive a respiração, como se faz com as dores de dentes. Não pensei nos vietcongues, que dentro em breve fa­riam uma busca às ruínas da torre. Houve nova explosão: estavam a assegurar-se de que o campo estaria livre antes de se aproximarem.

Quando a dor diminuiu pensei que matar alguns seres humanos custa muito dinheiro: é incomparavelmente mais barato matar cavalos. Não devia estar absolutamente consciente, porque comecei a pensar que entrara por engano no pátio de um esfola dor de cavalos, o terror da minha infância na pequena cidade onde nasci. Pensávamos sempre que ouvíamos os cavalos relinchar de medo e depois a explosão do matador sem dor. Já passara algum tempo e a dor não se repetira. Eu estava deitado, imóvel, sustendo a respiração, o que me parecia muito importante.

Perguntei-me, com bastante lucidez, se não seria preferível arrastar-me na direcção dos campos. Podia acontecer que os vietcongues não tivessem tempo para procurar em sítios mais distantes. Já devia haver nova patrulha tentando localizar o primeiro tanque. Mas receava mais! a dor do que os vietcongues e deixei-me ficar quieto. Não ouvia Pyle.

Devia ter alcançado os campos. Depois ouvi chorar. O pranto vinha do lado da torre, daquilo que fora a torre. Não parecia o choro de um homem: parecia o choro de uma criança com medo da escuridão, mas receando gritar. Pensei que devia ser um dos dois rapazes: talvez o companheiro tivesse morrido. Talvez assim os vietcongues não lhe cortassem o pescoço. As guerras não se deviam fazer com crianças, e veio-me à memória um pequeno corpo enroscado numa vala. Fechei os olhos. Ajudava-me a afastar a dor. E fiquei à espera. Uma voz gritou qualquer coisa que não compreendi. Quase senti que me seria possí­vel dormir na escuridão, solidão e ausência de dor.

Então ouvi Pyle segredar-me:

- Thomas, Thomas.

Aprendera rapidamente o processo de andar sem fazer ruído: não o ouvira regressar.

- Vá-se embora - segredei-lhe em resposta.

Ele deu comigo e deitou-se a todo o comprimento a meu lado.

- Porque não veio? Está ferido?

- É a perna. Parece-me que a parti.

- Foi uma bala?

- Não, não. Foi um tronco ou uma pedra. Qualquer coisa lá na torre. Não sangra.

- Tem de fazer um esforço.

- Vá-se embora, Pyle. Eu não quero ir, dói-me muito.

- Qual é a perna?

- A esquerda.

            Arrastou-se até junto de mim e içou-me o braço até ao seu ombro. Apetecia-me chorar como o rapaz da torre e depois fiquei zangado, mas era difícil expressar zanga em segredo.

- Com um raio, Pyle, deixe-me em paz. Quero ficar aqui.

- Mas não pode.

Puxava-me para cima do seu ombro e a dor era insuportável.

- Não arme em herói. Eu não quero ir.

- Você tem de dar uma ajuda ou apanhar-nos-ão a ambos.

- Você...

- Cale-se. Podem ouvi-lo.

Chorava de vexame. Era impossível empregar uma palavra mais forte: Dependurei-me, encostado a ele, e fiquei com a perna esquerda a balouçar. Éramos como que concorrentes desastrados numa corrida de três pernas e nunca teríamos a mínima possibilidade de êxito se uma metralhadora não tivesse começado a fazer fogo, em rajadas cur­tas e rápidas, para os lados da estrada, na direcção da próxima torre. Podia ser uma patrulha a aproximar-se, podia ser que tivessem com­pletado a conta normal das três torres a destruir. Cobria o ruído da nos­sa fuga, lenta e desajeitada.

            Não estou certo de ter estado sempre consciente: creio que durante os últimos dez metros Pyle deve ter suportado quase todo o meu peso.

            - Cuidado agora. Vamos entrar - disse Pyle.

            À nossa volta o arroz seco sussurrava e a lama baixou e depois tornou a subir. Quando Pyle parou a água chegava-nos à cintura. Estava ofegante e qualquer coisa na sua respiração fazia lembrar uma rã gigante.

- Desculpe - disse-lhe.

- Não podia abandoná-lo.

A primeira sensação foi de alívio: a água e a lama sustinham-me a perna, meiga e firmemente, como uma ligadura, mas dentro em breve começámos a bater os dentes de frio. Perguntei-me se já passaria da meia-noite: se os vietcongues não viessem podíamos ter mais umas seis horas de tormento.

- Pode mudar ligeiramente de posição durante uns minutos? ­pediu-me Pyle.

Voltou-me a irritação injusta, que só a dor conseguia justificar. Não pedira que me salvassem ou que me adiassem a morte por um proces­so tão doloroso. Pensei com nostalgia na terra seca e dura onde estive­ra deitado. Fiquei como um guindaste, sobre um só pé, esforçando-me por aliviar Pyle, e quando me mexi os pés de arroz fizeram-me cóce­gas, arranharam-me e estalaram.

- Você 'salvou-me a vida... - disse a Pyle, e ele tossiu para dar a resposta convencional, mas eu continuei: - ...para que eu venha mor­rer aqui. Prefiro terra seca.

            - É melhor não falar - disse Pyle, como se se dirigisse a um invá­lido. - Precisamos de poupar as forças.

            - Quem lhe pediu que me salvasse a vida? Vim para o Oriente para morrer. Só a sua maldita impertinência...

            Cambaleei na lama e Pyle levantou-me o braço e colocou-o sobre o seu ombro.

- Acalme-se - disse-me.

- Você tem visto muitos filmes de guerra. Nós não pertencemos à marinha e você não pode ser condecorado com uma medalha.

- Chiú, chiú!

Ouvi passos vindos do extremo do campo. A metralhadora na es­trada deixou de fazer fogo e os únicos ruídos eram os passos e o ligei­ro sussurrar do arroz cada vez que respirávamos. Depois os passos es­tacaram: tive a sensação de que estavam do outro lado de uma sala. Senti a mão de Pyle empurrar-me lentamente, do meu lado bom, para baixo; afundámo-nos na lama, muito lentamente, por forma a que o arroz se agitasse o menos possível. Dobrado sobre um só joelho, com a cabeça toda para trás, mal conseguia manter a boca 'fora da água. Voltei a sentir a dor no joelho e pensei: «Se desmaio afogo-me». Sem­pre detestara e temera a ideia de morrer afogado. Por que razão não nos é dado podermos escolher a nossa morte?

Agora não se ouvia qualquer ruído; talvez eles estivessem a dez metros de nós e não esperassem mais do que um murmúrio, um tossir, um espirro... «Oh, Santo Deus», pensei, «vou espirrar». Se ele me tivesse deixado sozinho eu só teria a responsabilidade da minha própria vida e não da dele. E ele queria viver. Premi o lábio superior com três de­dos, como me ensinaram em criança quando brincávamos às escondi­das, mas o espirro continuou pronto a rebentar, e os outros, silencio­sos, no meio da escuridão, esperavam por ele. Estava a aproximar-se, a aproximar-se, e ei-lo...

Mas no mesmo instante em que espirrei os vietcongues lançaram uma rajada de metralhadora, traçando uma linha de fogo no arrozal, que envolveu o meu espirro no barulho estridente semelhante ao de uma máquina de perfuração de aço. Respirei fundo e mergulhei; ins­tintivamente evitámos a coisa amada: temos coquetismos com a morte idênticos ao da mulher que exige ser violada pelo amante. O arroz açoutou-nos as cabeças e a tempestade passou. Emergimos simulta­neamente para respirarmos e ouvimos os passos afastarem-se em di­recção à torre.

- Estamos salvos - disse Pyle.

No meio do meu sofrimento pensei se estaríamos nós salvos. À mi­nha frente a velhice, a cadeira de redactor, a solidão. E, quanto a ele, sabe-se agora que falou prematuramente. Preparámo-nos então para a vigia ao frio. Na estrada para Tanyin acendeu-se uma fogueira. Ardia alegremente, como que a celebrar um acontecimento.

- Lá vai o meu carro - disse a Pyle.

            - É uma pena, Thomas. Detesto ver a destruição de qualquer coisa.

            O depósito devia ter simplesmente a gasolina suficiente para o incendiarem. Você tem tanto frio como eu, Pyle?

- Não posso ter mais frio.

- E se saíssemos daqui e nos deitássemos na estrada ao comprido?

- Esperemos mais meia hora.

- É você quem suporta o fardo.

- Eu aguento. sou novo.

A sua intenção fora dizer uma graça, mas acertou-me como chapa­da de lama fria. Eu tencionara pedir-lhe desculpa pela forma como a minha dor se exteriorizara, mas ela manifestou-se novamente.

            - É certo que você é novo. É-lhe ainda possível esperar, não é verdade?

            - Não percebo onde quer chegar, Thomas.

            Passáramos juntos noites que mais pareciam semanas e ele conti­ nuava a compreender-me tão mal como o francês.

            - Teria sido preferível que você me tivesse deixado lá ficar - dis­se-lhe.

            - Nunca conseguiria encarar Phuong.

            E o nome dela ficou a pairar, como o lanço de um banqueiro. Eu peguei onde ele largou:

            - Então foi por ela que você o fez?

O que tornava mais absurdo e humilhante o meu ciúme era o facto de ser necessário exprimi-lo no mais ténue murmúrio: não tinha ento­nação, e o ciúme gosta de histriónica.

- Você pensa que a vai conquistar com estes actos heróicos. Mas está completamente enganado. Se eu tivesse morrido ela pertencer­-lhe-ia.

- Não era isso que eu queria dizer - disse-me Pyle. – Quando se está apaixonado deseja-se ser justo. É tudo.

E eu pensei que era verdade, mas não com a intenção inocente que ele emprestara à frase. Estar apaixonado é ver-se a si próprio co­mo a outra pessoa nos vê, é estar-se enamorado de uma imagem nos­sa, falsificada e engrandecida. Em coisas de amor somos incapazes de honradez: o acto de coragem nada mais significa do que representar um papel para uma audiência de dois espectadores. Era possível que eu já não estivesse apaixonado, mas ainda me recordava.

- Se eu estivesse no seu lugar tê-lo-ia abandonado.

- Oh, não, você não seria capaz de o fazer, Thomas.

E acrescentou, com um ar de complacência insuportável:

- Conheço-o melhor do que você a si próprio.

Furioso, tentei afastar-me dele e carregar com o meu próprio peso, mas a dor voltou a bramir como um comboio num túnel e encostei-me a ele com mais força antes de começar a afundar-me na água. Ele se­gurou-me com os dois braços e depois, centímetro por centímetro, co­meçou a arrastar-me em direcção à berma da estrada.

Quando chegámos deitou-me ao comprido na lama pouco profun­da do extremo do campo, e logo que a dor principiou a afastar-se e eu abri os olhos e deixei de suster a respiração tudo o que os meus olhos abrangiam era a complicada cifra das constelações: uma cifra estran­geira, que me era impossível ler. As estrelas não eram as do meu país. A cara dele deslizou sobre a minha, fazendo desaparecer as estrelas.

- Vou atingir a estrada à procura de uma patrulha, Thomas.

- Não seja parvo. Matá-lo-ão antes mesmo de saberem de quem se trata. Isso se os vietcongues o não apanharem.

            - É a nossa única solução. Você não pode ficar aí na água mais seis horas.

            - Então ponha-me na estrada.

            - Acha que a metralhadora lhe pode ser útil? - perguntou-me com um ar de dúvida.

            - Claro que não pode. Se a todo o preço quer ser um herói, pelo menos caminhe lentamente por entre o arroz.

            - Nesse caso a patrulha podia passar e eu não ter tempo de a chamar.

            - Você não fala francês.

            - Gritarei Je suis français. Não se preocupe, Thomas. Terei muito cuidado.

Antes que eu tivesse tempo para lhe responder já ele estava fora do alcance do segredar. Avançava com o mínimo de ruído que lhe era possível, parando frequentemente. Via-o à luz do carro em chamas, mas não se ouviu qualquer detonação; depois, passou para lá das cha­mas e então o silêncio tomou o lugar das pegadas. Ah, sim, ele mostra­va a sua cautela como a mostrara quando descera o rio até Phat Diem, a cautela de um herói numa história de aventuras para rapazes, de um herói tão orgulhoso da sua cautela como se ela fosse um emblema de escuteiro e absolutamente inconsciente do absurdo e irreal da sua aventura.

Deitado, pus-me à escuta dos tiros dos vietcongues ou de uma pa­trulha de legionários, mas nada ouvi. Ser-lhe-ia precisa uma hora ou mais para alcançar uma torre, se porventura conseguisse lá chegar. Voltei a cabeça de modo a conseguir ver os restos da nossa torre, um montão de lama, de bambu e de escoras que parecia afundar-se à me­dida que se afundavam as chamas do carro. Quando a dor desaparecia vinha a paz: uma espécie de dia do armistício dos nervos. Apetecia-me cantar. Pensei como era estranho que os homens da minha profissão só dedicassem duas linhas a uma noite como esta. Não passava de uma noite igual a todas as outras: o único elemento estranho era eu. Depois ouvi, vindo do que restava da torre, um choro baixo. Um dos guardas devia ainda estar vivo.

Pensei: «Pobre diabo, se o nosso carro não tivesse parado junto do seu posto ele ter-se-ia rendido, como quase todos o faziam, ou fugido logo que se ouvira o megafone pela primeira vez. Mas nós estávamos lá e eles não se atreveram a fazer o mínimo movimento. Quando parti­mos era tarde de mais. A responsabilidade daquela voz que chorava na escuridão cabia-me: orgulhara-me do meu desprendimento, de não fazer parte desta guerra, mas tinha tanta responsabilidade naqueles fe­rimentos como se tivesse feito fogo com a metralhadora, como Pyle quisera fazer.»

Fiz um esforço para me içar até à estrada. Queria reunir-me àquele homem. Tudo quanto podia fazer era compartilhar da sua dor. Mas a minha própria dor empurrava-me para trás. Deixei de o ouvir. Fiquei quieto, só conseguindo ouvir a minha dor, pulsando como um coração imenso. Contive a respiração e fiz uma prece ao Deus no qual não acreditava: «Fazei com que eu morra ou desmaie. Fazei com que morra ou desmaie». E então creio que desmaiei e nada mais senti até sonhar que as pálpebras se me haviam gelado e pegado uma à outra e que al­guém introduzira um escopro para as separar e eu queria prevenir esse alguém que não danificasse o globo ocular, mas não conseguia falar e o escopro entrou e vi brilhar à minha frente uma lanterna de algibeira.

- Estamos salvos, Thomas - disse-me pyle.

            Lembro-me disto mas não me recordo do que mais tarde Pyle des­creveu aos outros: que eu apontei com o braço numa direcção errada e lhes disse que havia na torre um homem de que era preciso que eles se ocupassem. Fosse como fosse, eu nunca seria capaz de fazer uma suposição tão sentimental como a de Pyle. Conheço-me e sei até que ponto sou egoísta. Não consigo sentir-me à vontade (e sentir-me à vontade é o que mais ambiciono) se alguém sofre e eu vejo ou ouço ou sinto o sofrimento. Os inocentes, por vezes, pensam erradamente que esta minha atitude representa ausência de egoísmo, quando tudo o que eu faço é sacrificar um pequeno bem por um bem maior (neste! caso deixar para mais tarde cuidarem do meu ferimento), por uma paz de espírito, num momento em que podia só pensar em mim e não nos outros.

Eles voltaram e disseram-me que o rapaz estava morto. E fiquei fe­liz. A própria dor foi desaparecendo depois da ferroada da injecção de morfina.

 

Subi lentamente as escadas do meu prédio na Rua Catinat, parando no primeiro patamar para descansar. As velhas, como sempre, tagarela­vam, acocoradas no chão à porta do urinol, o destino marcado nas ru­gas da cara tal como as outras pessoas o têm marcado na palma da mão. Quando passei ficaram silenciosas e pensei no que me poderiam contar, se eu conhecesse o seu idioma, sobre o que se passara en­quanto eu estivera no hospital da Legião, na estrada para Tanyin. Per­dera as chaves, quer na torre quer nos campos, mas mandara um reca­do a Phuong, que ela já devia ter recebido, se porventura ainda estivesse em casa. Este «se» representava a medida da minha incerteza. Não soubera notícias dela no hospital, mas Phuong tinha dificuldade em escrever francês e eu não sabia ler vietnamita. Bati à porta, que se abriu imediatamente, e pareceu-me que tudo estava na mesma. Obser­vei-a atentamente enquanto ela me perguntava como me sentia, tocava na perna estilhaça da e me oferecia o ombro para me apoiar, como se alguém pudesse apoiar-se com segurança a uma planta tão tenra.

- Como é bom voltar para casa - disse eu.

Ela confessou-me que tivera saudades minhas. Era isto que eu que­ria ouvir: dizia-me sempre o que me era grato ao ouvido tal como os cólis ao responderem às nossas perguntas, a não ser por acidente. E agora eu aguardava o momento do acidente.

- Divertiste-te?

- Oh, passei muito tempo com a minha irmã. Ela arranjou um emprego nos Americanos.

- Ah, sim? O Pyle ajudou a arranjá-lo?

- Não foi o Pyle. Foi o Joe.

- Quem é esse Joe?

- Tu sabes quem é. O adido económico.

- Ah, sim, já sei, o Joe.

Era um homem de quem ninguém se lembrava. Nem mesmo hoje seria capaz de o descrever. Tudo quanto recordo dele é a gordura, as faces barbeadas e empoadas e as gargalhadas fortes. O resto da sua identidade varreu-se-me e só ficou o nome de Joe. Há homens cujos nomes são sempre abreviados.

Estendi-me na cama com a ajuda de Phuong.

- Tens ido ao cinema?

- Vi uma fita engraçada no Catinat - e começou imediatamente a contar-me detalhadamente o argumento, enquanto eu procurava com os olhos um sobrescrito que pudesse conter um telegrama. Enquanto eu não perguntasse podia sempre pensar que ela se esquecera de me dizer, e ele podia ali estar sobre a mesa, junto da máquina de escrever, ou no guarda-fato, ou, por medida de segurança, na gaveta do armário onde ela guardava a colecção de lenços de pescoço.

- O administrador dos Correios (creio que era o administrador, mas é possível que fosse o presidente da Câmara) seguiu-os até casa, pediu uma escada emprestada ao padeiro e subiu à janela de Corrine, mas ela fora para outro quarto com François e ele não ouviu chegar Madame Bompierre e ela entrou e viu-o no topo da escada e pensou...

- Quem era Madame Bompierre? - perguntei-lhe, virando a cabe­ça para olhar o lavatório, onde por vezes ela empoleirava, entre lo­ções, coisas de que se não queria esquecer.

            - Eu disse-te. Era a mãe de Corrine e andava à procura de um ma­ rido porque era viúva...

            Sentou-se na cama e pôs-me a mão dentro da minha camisa.

            - Foi muito divertido - disse-me.

            - Beija-me, Phuong.

Não conhecia a coquetaria. Fez imediatamente o que lhe pedi e continuou com a história do filme. Se lhe tivesse pedido teria praticado o amor da mesma forma, tirando as calças sem uma pergunta e reto­mado depois o fio da história de Madame Bompierre e dos apuros do administrador dos Correios.

- Veio alguma coisa para mim?

- Veio.

- Porque não me deste?

- Ainda é cedo para começares a trabalhar. Deves ficar deitado e descansar.

- Mas pode não se tratar de um assunto de trabalho.

Ela entregou-me a carta e eu vi que já fora aberta. «Precisamos de quatrocentas palavras sobre a situação militar e política provoca da pela partida de Lattre», dizia.

            - Tens razão - disse-lhe. - É mesmo trabalho. Como o sabias? Porque abriste a carta?

            - Pensei que fosse da tua mulher. Tinha esperança que se tratasse de uma notícia agradável.

- Quem ta traduziu?

- Levei-a à minha irmã.

- Se fossem más notícias, ter-me-ias deixado, Phuong?

Ela esfregou a mão pelo meu peito, para me sossegar, sem se aper­ceber de que naquele momento eu precisava de palavras, por mais fal­sas que fossem.

            - Apetece-te fumar um cachimbo? Há uma carta para ti. Creio que deve ser dela.          .

            - Também a abriste?

            - Eu não abro as tuas cartas. Os telegramas são públicos. Até os empregados dos Correios os lêem.

            Este sobrescrito estava entre os lenços de pescoço. Tirou-o cautelosamente e colocou-o sobre a cama. Reconheci a letra.

- Se se tratar de uma má notícia, que vais tu...

            Eu sabia que só podia ser má. Se se tratasse de um telegrama podia significar um acto súbito de generosidade; uma carta só podia repre­sentar explicações, justificações... e por isso interrompi a minha per­gunta,. porque não era honesto pedir uma promessa que de antemão se sabe nunca poder ser cumprida.

- Que receias? - perguntou-me Phuong, e eu pensei: «Receio a solidão, o Clube da Imprensa e o quarto que simultaneamente é sala de estar, receio Pyle».

- Arranja-me um brande com soda. - Olhei para o princípio da carta: «Querido Thomas», e para o fim: «Afectuosamente, Helen> e fiquei    à espera do brande.

- É mesmo dela?

- É. - Antes de começar a leitura perguntei-me se deveria mentir ou dizer a verdade a Phuong.

 

Querido Thomas:

Não me surpreendeu receber a tua carta e saber que não estás só. Não és homem para ficar sozinho durante muito tempo, não é verdade? Agarras-te a uma mulher como a poeira se agarra a um casaco. Talvez conseguisse com­padecer-me mais do teu problema se não sentisse que te será muito mais fácil consolares-te logo que chegares a Londres. Sei que não me acreditarás, mas o que me faz ponderar e evita que eu te telegrafe um simples -não» é a pobre rapariga. Nós, as mulheres, ficamos geralmente mais comprometidas do que vocês.

 

Bebi um gole de brande. Nunca pensei que as feridas sexuais ficas­sem abertas durante tantos anos. Descuidadamente, sem escolher as palavras que empregara, eu fizera de novo sangrar as dela. Quem a poderia condenar de, por sua vez, procurar as minhas cicatrizes?             Quando nos sentimos infelizes magoamos os outros.

- É mau? - perguntou-me Phuong.

- Um tanto ou quanto dura. Mas ela tem todo o direito... Continuei a ler:

 

Acreditei sempre que tinhas gostado de Anne mais do que de qualquer de nós até ao momento em que fizeste as malas e desapareceste. Agora dás­-me a impressão de que tentas abandonar outra mulher, porque da tua car­ta deduz-se que não esperas uma resposta favorável». -Terei feito todo o pos­sível» - não é nisso que estás a pensar? Que farias se te telegrafasse: -Sim»? Casar-te-ias com ela? (Tenho de escrever -ela» porque não me disseste o seu nome.) Talvez casasses. É possível que, como todos nós, estejas a envelhecer e não te agrade viver sozinho. Eu própria, muitas vezes, sinto uma imensa solidão. Soube que Anne encontrou outro companheiro. Mas deixaste-a a tempo.

 

            Ela encontrara a crosta seca. Bebi novo gole. Lembrei-me da frase: «Um fluxo de sangue.»

            - Deixa-me preparar-te um cachimbo - disse Phuong.

            - Tudo o que queiras, tudo o que queiras.

Esta é uma das razões porque devia dizer «Não». (Não precisamos de tocar na razão religiosa porque nunca a compreendeste ou nela acreditaste.) O casamento não te impede de abandonar uma mulher, não é verdade? Só retarda o processo e seria muito injusto para esta rapariga se vivesses com ela durante tanto tempo como viveste comigo. Trazê-la-ias para Inglaterra, onde ela se sentiria perdida e estranha, e quando a deixassem sentir-se-ia terrivel­mente abandonada. Ela sabe servir-se de um gaifo e de uma faca ou não? Estou a ser rude porque neste momento penso mais no bem dela do que no teu. Mas, meu querido Thomas, também me lembro do teu.

 

Comecei a sentir-me mal. Há muito que não recebia carta de minha mulher. Forçara-a a escrevê-la e sentia a sua dor em todas as linhas. O sofrimento dela chocou com o meu: recomeçáramos o velho jogo de nos magoarmos um ao outro. Se ao menos fosse possível amar sem fazer mal... A fidelidade não chega: eu fora fiel a Anne e contudo ma­goara-a. Magoar é inerente ao acto de posse: somos demasiado mes­quinhos de ideias e de corpo para possuirmos outra pessoa sem a hu­milharmos. De certo modo regozijava-me porque minha mulher viesse ferir-me mais uma vez. Havia já muito que esquecera a sua dor e era a única recompensa que podia dar-lhe. Infelizmente os inocentes me­tem-se sempre em complicações. Existe invariavelmente, onde quer que seja, uma voz que chora numa torre.

Phuong acendeu a lamparina para o ópio.

- Ela consente que te cases comigo?

- Ainda não sei.

- Ela não fala nisso?

- Leva muito tempo a explicar o que tem a dizer.

E eu pensei: «Como te orgulhas de ser dégagé, de seres o repórter e não o escritor de artigos de fundo, e quantas asneiras fazes por detrás da tua fachada! A outra guerra é mais inocente do que esta. O morteiro faz menos estragos».

 

Se não seguir a minha convicção e disser "Sim», será bom para «ti»? Dizes que te chamaram a Inglaterra e sei bem quanto vais detestar voltar e que fa­rás tudo para suavizar a situação. És capaz de te casar e beberes um copo a mais. Quando foi da primeira vez nós fizemos uma tentativa honesta - tan­to tu como eu - e falhámos. Ao tratar-se de uma segunda vez não nos esfor­çámos tanto. Dizes que perder esta rapariga será o fim da tua vida. Houve tempo em que empregaste exactamente a mesma frase no meu caso - podia mostrar-te a carta, ainda a tenho - e é possível que tenhas dito o mesmo a Anne. Afirmas que sempre tentámos dizer a verdade um ao outro. Mas, Thomas, a verdade, quando se trata de ti, é sempre tão temporária... De que ser­ve discutir contigo ou tentar chamar-te à razão? É mais fácil tomar a atitude ditada pela minha fé, dado que a tua maneira de pensar é desrazoável, e es­crever-te simplesmente: eu não acredito no divórcio, a minha religião proíbe­-o, e portanto a resposta, Tbomas, é não, não.

 

Havia ainda mais meia página, que eu não li, antes de «Afectuosa­mente, Helen». Creio que me dava notícias do tempo e de uma tia velha de quem eu gostava. Não tinha razão para me lastimar; eu esperava es­ta resposta. Tinha muito de verdade. Desejaria que ela não tivesse pensado em voz alta, naquela carta tão longa, em que os pensamentos a magoavam a ela e a mim.

- Ela diz que não?

Eu respondi, praticamente, sem hesitação:

- Não tomou ainda uma decisão. Continua a haver esperança. Phuong riu.

- Dizes essa esperança com uma cara tão séria.

Ela estava sentada aos meus pés, como um cão no túmulo de um cruzado, preparando o ópio, e comecei a pensar no que devia dizer a Pyle. Depois de qua:tro cachimbos senti-me mais apto a encarar o futu­ro e disse-lhe que a esperança que nós podíamos ter era bastante boa porque a minha mulher ia consultar um advogado. Dentro de breves dias devia chegar o telegrama de libertação.

            - Isso não tem grande importância. Podias fazer-me uma doação

- disse-me Phuong, e pareceu-me ouvir falar a irmã.

            - Não tenho economias - respondi-lhe. - Não poderei nunca cobrir o lanço de Pyle.

- Não te preocupes. Tudo pode acontecer. Há sempre processos. A minha irmã diz que tu podias fazer um seguro de vida e eu pensei quanto era realista da sua parte não diminuir a importância do dinhei­ro e não fazer grandes e comprometedoras declarações de amor.

Perguntei-me como iria Pyle suportar, com o decorrer do tempo, este espinho. Porque Pyle era um romântico; mas claro que no caso dele havia um dote razoável e o espinho podia deixar de picar, tal co­mo um músculo que se não exercita logo que desaparece a necessida­de da sua existência. Os ricos estavam invariavelmente por cima.

Naquela tarde, antes do fechar das lojas da Rua Catinat, Phuong comprou mais três lenços de seda para o pescoço. Sentou-se na cama e estendeu-os para eu ver, largando exclamações quanto à viveza das cores, enchendo um vácuo com a sua voz cantante, e depois, dobran­do-os cuidadosamente, colocou-os na gaveta, juntamente com a res­tante dúzia. Era como se colocasse os alicerces de um dote modesto. E eu preparei os meus loucos alicerces escrevendo nessa mesma noite a Pyle, com a clareza e perspicácia que o ópio nos proporciona, mas que não merecem confiança. Eis a carta que lhe escrevi: encontrei-a há dias dentro da Função do Ocidente, de York Harding. Ele devia ter esta­do a ler o livro quando recebeu a carta. Talvez a tivesse usado para marcar a página e depois continuasse a ler.

Meu caro Pyle escrevi, e foi a única vez que me senti tentado a es­crever Meu caro Alden, porque, no fundo, se tratava de uma carta de negócios de certa importância, pouco diferindo das outras cartas do mesmo tipo pelo facto de encerrar uma mentira.

 

Meu caro Pyle: Tenciono escrever-lhe do hospital para lhe dizer muito obrigado por aquela noite. Não há dúvida de que você me salvou de um fim desagradável. Já me vou mexendo com a ajuda de uma bengala: parece que a fractura se deu em bom sítio e a idade ainda não me atingiu os ossos tornando-os quebradiços. Temos de celebrar o caso brevemente com uma pa­ródia.

 

(A caneta emperrou na palavra celebrar e depois, tal como uma formiga que encontra um obstáculo, roqeou-a e seguiu outro ca­minho.)

 

Tenho outra coisa a celebrar e sei que você também se sentirá satisfeito,

dado que sempre afirmou que o que ambos desejávamos era o bem de Phuong. Quando cheguei esperava-me uma carta de minha mulher. Está pra­ticamente decidida a conceder-me o divórcio. Assim, você já não precisa de se preocupar com Phuong.

 

A frase era cruel, mas só me apercebi da sua crueldade quando reli a carta e então já não estava a tempo de a alterar. Se eu riscasse a frase era preferível rasgar a carta.

- De que lenço gostas mais? - perguntou-me Phuong. - Eu gos­to muito do amarelo.

- Sim, do amarelo. Olha, vai ao hotel deitar-me esta carta no correio. Ela olhou para a morada.

- Podia levá-la à legação. Poupavas um selo.

- Prefiro que a leves ao correio.

Depois deitei-me para trás e, com aquele relaxamento nervoso que o ópio dá, pensei: "Pelo menos, deste modo ela não me deixará antes de eu partir e talvez amanhã, depois de uns quantos cachimbos, eu consiga encontrar um processo para ficar».

 

A vida de todos os dias não pára, o que tem salvo muita gente da loucura. Tal como durante um ataque aéreo se verificou não ser possí­vel estar-se constantemente apavorado, assim sob o bombardeamento das tarefas rotineiras, dos encontros de acaso, das ansiedades impes­soais se perdem durante horas a fio os nossos medos pessoais. Os pensamentos de Abril já próximo, de deixar a Indochina, do futuro va­go sem Phuong eram afectados pelos telegramas, pelos boletins da im­prensa vietnamita e pela doença do meu assistente, um indiano cha­mado Domínguez (a sua família viera de Goa, via Bombaim), que me substituía nas conferências de imprensa de menor importância, tinha os ouvidos alerta em tudo o que tocava a boatos e opiniões e me leva­va as mensagens à censura e à secção de telegramas. Para meu benefí­cio, e com a ajuda de comerciantes indianos, em especial do Norte, em Haiphong, Nam Dinh e Hanói, ele montara o seu próprio serviço de espionagem e creio que ele conhecia com mais exactidão do que os altos comandos franceses a posição dos batalhões vietcongues no del­ta de Tonquim.

E, porque nós só nos servíamos dessas informações desde que ti­vessem categoria de notícias e nunca levávamos os nossos relatórios ao Serviço Secreto francês, ele tinha a confiança e a amizade de vários agentes vietcongues escondidos em Saigão-Cholon. O facto de ser um asiático, apesar do apelido, constituía indubitavelmente uma ajuda.

Eu gostava de Domínguez. Ao passo que normalmente os homens têm o orgulho à superfície, como uma doença de pele, e são sensíveis ao mínimo toque, ele tinha o seu profundamente escondido e reduzi­do ao mínimo de que um ser humano é capaz. Nos contactos diários com Domínguez só encontrávamos brandura, humildade e um amor absoluto da verdade. Para se lhe descobrir o orgulho seria preciso ser­-se casado com ele. Talvez a verdade e a humildade caminhem juntas; há tantas mentiras que resultam do nosso orgulho... Por exemplo, na minha profissão o orgulho do repórter leva-nos a querer publicar uma história melhor do que a do parceiro. E era sempre Domínguez quem me ajudava a não me importar, a resistir a todos aqueles telegramas de Inglaterra perguntando-me por que razão eu não suplantara a história de fulano ou sicrano ou o relatório de um outro, que eu sabia não re­presentarem a verdade.

Só me apercebi de quanto lhe devia depois de ele adoecer. Domín­guez chegava ao ponto de verificar se o depósito do meu automóvel estava cheio de gasolina, sem contudo, nem uma só vez, ter invadido a minha vida particular. Creio que era católico, mas esta minha hipótese só se baseava no seu nome e país de origem. Pelas conversas que tí­nhamos tanto podia adorar Krishna como fazer peregrinações anuais, flagelado por uma armação de arame, às caves de Batu. A sua doença foi misericordiosa, afastando-me temporariamente das torturas da an­siedade. Era eu quem agora tinha de assistir às monótonas conferên­cias de imprensa e coxear até à mesa do Continental para conversar com os colegas; mas não tinha o jeito de Domínguez para distinguir a verdade da mentira, e assim criei o hábito de o visitar no fim da tarde para discutirmos o que eu ouvira. Por vezes encontrava um dos seus amigos indianos sentado junto da cama estreita de ferro na casa que Domínguez compartilhava com outros, situada numa das ruas mais sórdidas perto do Boulevard Galliéni. Estava invariavelmente sentado sobre os calcanhares, muito direito, de modo que tínhamos a sensação de estar a ser recebidos por um rajá ou um padre, e não por um ho­mem doente. Por vezes, quando a febre era alta, o suor escorria-lhe pela cara, mas nunca perdia a clareza de pensamentos. Era como se a doença estivesse a atacar o corpo de outra pessoa e não o dele. A se­nhoria colocava junto da cama um jarro de sumo de lima, mas nunca o vi beber. Talvez achasse que beber seria admitir que a sede lhe perten­cia, que era o seu corpo que sofria.

De todos os dias em que o visitei recordo um particularmente. Dei­xara de inquirir como se sentia, com medo que a pergunta lhe pare­cesse uma censura, mas era sempre ele quem se interessava, com grande ansiedade, pela minha saúde, lamentando as escadas que eu era forçado a subir.

- Gostaria que conhecesse um amigo meu. Ele sabe uma história que devia ouvir - disse-me.

            - Sim?

            - Escrevi o seu nome, porque sei que o senhor tem dificuldade em se recordar dos nomes chineses. Evidentemente que não devere        mos usá-lo. Ele tem um armazém de sucatas de ferro no Quai Mytho.

- É assunto importante?

- Pode sê-lo.

- Pode dar-me um lamiré?

- Preferia que ouvisse a história da sua boca. Há qualquer coisa de estranho, mas eu não consigo perceber o que é.

O suor escorria-lhe pelas faces, mas ele deixava-o correr como se as gotas tivessem vida e fossem sagradas: tinha muito de hindu e nun­ca seria capaz de pôr em perigo a vida de uma mosca.

            - Até que ponto é que conhece o seu amigo Pyle?

            - Não o conheço bem. Os nossos caminhos têm-se cruzado, é tudo. Desde aquela vez, em Tanyin, que o não vejo.

            - Onde trabalha ele?

            - Na Missão Económica, mas esta designação abrange um sem-fim de pecados. Creio que se interessa pelas indústrias locais, nunca es­quecendo, evidentemente, os interesses americanos. Não me agrada a maneira como eles, por um lado, vão alimentando os Franceses na guerra e por outro os correm dos seus antigos negócios.

- Ouvi-o falar, há dias, numa recepção dada pela legação aos congressistas que estavam aqui de visita. Tinha recebido instruções para os pôr a par da situação actual.

            - Que Deus se compadeça do Congresso! Ele ainda aqui não está há seis meses.

- Falou das velhas potências coloniais - a Inglaterra e a França - e quanto vos era impossível ter esperança em ganhar a confiança dos Asiáticos. E então aqui entrava a América, com as mãos limpas.

            - Pois: Honolulu, Porto Rico, Novo México.

            - Houve então alguém que lhe perguntou quais eram as possibili­dades do Governo local de conseguir vencer os vietcongues, e ele res­pondeu que com uma terceira força isso seria possível. Que era sem­pre possível arranjar-se uma terceira força, isenta do comunismo e da mancha do colonialismo: uma democracia nacional, como ele lhe cha­mou. Era simplesmente necessário encontrar um chefe e mantê-lo fora do alcance das velhas potências coloniais.

- Tudo isso são coisas do York Harding. Ele leu os seus livros an­tes de vir para a Indochina. Falou nesse mesmo assunto durante a pri­meira semana após a sua chegada e nada aprendeu depois disso.

            - Pode dar-se o caso de ter encontrado o tal chefe - disse-me Domínguez.

            - Acha que isso teria grande importância?

            - Não sei. Desconheço o que ele faz. Mas vá falar com o meu amigo, que vive no Quai Mytho.

Fui a casa deixar uma nota a Phuong e depois desci num carro, ao pôr do Sol, até ao porto. No cais, ao lado dos navios e dos barcos de guerra cinzentos, havia mesas e cadeiras, e as pequenas cozinhas por­táteis fumavam e ferviam. No Boulevard de la Somme os cabeleireiros exerciam a sua actividade sob as árvores, e os adivinhos, com baralhos de cartas imundos, acocoravam-se encostados aos muros. Quando se penetrava em Cholon era como que entrar numa cidade diferente, on­de o trabalho começava com o pôr do Sol em vez de com ele findar. Era como que entrar num teatro de pantomima: os longos panos chi­neses, as luzes vivas e a multidão de figurantes conduziam-nos aos bastidores, onde de repente tudo era mais sombrio e sossegado. Um desses bastidores conduziu-me de novo ao cais e à confusão dos bar­cos chineses, onde os armazéns se espreguiçavam na sombra e não se via vivalma.

Tive dificuldade em encontrar a casa que procurava, e foi quase por mero acidente que a descobri. O portão do armazém estava aberto e vi os contornos picassianos das pilhas de ferro-velho iluminados por um velho candeeiro. Camas, banheiras, caçarolas para cinza, capots de automóveis, manchas de cores desbotadas onde quer que a luz inci­disse. Desci por uma passagem estreita e aberta nos despojos de ferro e chamei pelo Sr. Chou, mas não obtive resposta. Ao fundo do armazém havia uma escada que devia provavelmente conduzir à casa do Sr. Chou. A direcção que me tinha sido dada correspondia certamente às trasei­ras. Domínguez devia ter as suas razões. Até na escada havia ferro­-velho, pedaços de sucata que podiam ser úteis neste ninho de gra­lhas. No patamar havia um quarto grande, onde estavam sentados ou deitados todos os membros da família, dando-nos a impressão de um acampamento que espera a todo o momento ser atacado. Espalhadas por toda a parte viam-se xícaras de chá, numerosas caixas de papelão cheias de objectos impossíveis de identificar e malas de fibra já com as correias apertadas. Havia uma senhora idosa sentada sobre uma gran­de cama, dois rapazes e duas raparigas, um bebé que gatinhava pelo chão, três mulheres de meia-idade vestidas com velhas calças e jaque­tas castanhas à maneira dos camponeses, e dois velhos, a um canto, com casacos de mandarim de seda azul, jogando o mab-jong.

Ignoraram-me quando entrei: continuaram a jogar com rapidez, identificando as peças pelo tacto, e o ruído era semelhante ao dos sei­xos na praia quando a onda recua. Todos os outros me ignoraram do mesmo modo. Só um gato é que saltou para cima de uma caixa de pa­pelão e um cão magro cheirou-me e depois afastou-se.

- Senhor Chou? - perguntei.

            As duas mulheres abanaram as cabeças e todos os outros continua­ram a ignorar-me. Uma das mulheres passou uma xícara por água e encheu-a com o chá de um bule que uma caixa forrada de seda con­servava quente. Sentei-me aos pés da cama, junto da senhora idosa, e uma das raparigas trouxe-me a xícara: foi como se tivesse sido absorvi­do pela comunidade, tal como o gato e o cão. Talvez estes tivessem entrado pela primeira vez de uma maneira tão furtiva como eu. O be­bé gatinhou até onde eu estava, puxou-me pelos atacadores e nin­guém o repreendeu - no Oriente não se repreendem as crianças. Nas paredes havia três calendários comerciais, cada um deles com uma ra­pariga de faces muito rosadas, vestindo um alegre vestido chinês. Havia um grande espelho, no qual, por qualquer mistério, se lia Café de la Paix. Talvez tivesse acabado na sucata por engano: até eu me sentia já pertencendo a ela.

Bebi lentamente o chá verde e amargo, mudando constantemente a xícara sem pega de uma para a outra mão porque o calor me queima­va os dedos, e perguntei-me quanto tempo iria ali ficar. Fiz uma tenta­tiva em francês, perguntando à família quando voltava o Sr. Chou, mas ninguém me respondeu: provavelmente não me compreenderam. Lo­go que esvaziei a xícara elas tornaram a enchê-la e depois prossegui­ram com as suas ocupações: uma mulher passava a ferro, uma rapariga cosia, os dois rapazes faziam os seus trabalhos escolares, a velha olha­va para os pés, os minúsculos, aleijados pés da velha china. E o cão olhava para o gato, que continuava em cima das caixas de papelão.

Comecei a avaliar o que Domínguez precisava de enfrentar para ganhar a sua parca vida.

Um chinês extraordinariamente magro entrou na sala: parecia qua­se não ocupar espaço. Lembrava um dos pedaços de papel vegetal que separam os biscoitos dentro da caixa. O seu volume estava todo no que o pijama de flanela às riscas lhe emprestava.

- Senhor Chou? - perguntei.

Olhou-me com o olhar indiferente do fumador: as faces encovadas, os pulsos de recém-nascido, os braços de rapariguinha... Quantos anos e quantos cachimbos tinham sido necessários para o reduzirem a estas dimensões?

- O meu amigo senhor Domínguez disse-me que o senhor tinha qualquer coisa para me mostrar. Estou «mesmo.. a falar com o senhor Chou, não estou? - interroguei.

- Ah, sim - respondeu-me. Era o Sr. Chou, e depois indicou-me cortesmente que me sentasse. Era evidente que o objecto da minha visita se perdera algures nos cor­redores do seu crânio, que o fumo varrera. Queria mais uma xícara de chá? A minha visita constituía para ele uma grande honra. Passaram por água nova xícara e colocaram-na, como uma brasa, nas minhas mãos: o ordálio do chá. Fiz uma observação sobre a extensão da sua família.

            Olhou em redor, com uma ligeira surpresa, como se nunca a tives­se visto neste aspecto.

            - A minha mãe, a minha mulher, a minha irmã, o meu irmão, os meus filhos e os filhos da minha tia.

O bebé rolara dos meus pés e estava agora deitado de costas, es­perneando e dando gritos de alegria. Perguntei-me a quem pertence­ria. Nenhuma daquelas pessoas me parecia suficientemente jovem ­ou suficientemente idosa - para o ter produzido.

- O senhor Domínguez disse-me que se tratava de um assunto im­portante.

- Ah, o senhor Domínguez. Espero que esteja bem de saúde.

- Tem estado com febre.

- Esta época do ano é pouco saudável.

Eu não me convencera ainda de que ele se recordava quem era o Domínguez. Começou a tossir e, sob o casaco do pijama, a que falta­vam dois botões, a pele esticada vibrou como um tambor.

- O senhor também devia consultar um médico.

Um homem recém-chegado aproximou-se de nós: não o vira en­trar. Era um jovem cuidadosamente vestido à europeia. Disse em inglês: .

- O senhor Chou só tem um pulmão.

- Peço imensa desculpa...

- Fuma todos os dias cento e cinquenta cachimbos.

- Isso parece-me imenso.

- O médico diz que lhe fazem um mal terrível, mas o senhor Chou sente-se muito mais feliz quando fuma.

Dei um gemido de compreensão.

- Se me permite, apresento-me: sou o gerente do senhor Chou.

- Chamo-me Fowler. Venho da parte do senhor Domínguez. Ele disse-me que o senhor Chou tinha uma informação a dar-me.

            - A memória do senhor Chou está muito enfraquecida. Quer uma             xícara de chá?

            - Obrigado, já bebi três.

            A conversa lembrava as perguntas e respostas de um dicionário de frases.

O gerente do Sr. Chou tirou-me a xícara da mão e estendeu-a a uma das raparigas, a qual, depois de deitar novamente os restos para o chão, a tornou a encher.

_ Não está suficientemente forte - disse, e pegou na xícara, pro­vou o chá, passou cuidadosamente a xícara por água e tomou a enchê-la com chá de um outro bule. - Este está melhor? - pergun­tou-me.

- Muito melhor.

O Sr. Chou tossiu como que para falar, mas foi simplesmente para expectorar abundantemente num escarra dor de lata, decorado com flores cor-de-rosa. O bebé rolava sobre os resíduos do chá e o gato saltou de uma caixa para uma mala.

            - Talvez seja preferível falar comigo - disse o jovem. - Chamo­-me Heng.

            - Se não se importasse...

            - Vamos para o armazém - disse-me o Sr. Heng. – Estaremos mais sossegados.

Estendi a mão ao Sr. Chou, que a deixou ficar entre as suas com um olhar perplexo; relanceou depois os olhos pelo quarto apinhado, como se procurasse tentar saber qual era o meu papel no meio de toda aquela gente. O murmurar de seixos foi desaparecendo à medida que descíamos as escadas.

O Sr. Heng disse-me:

- Cuidado. Falta o último degrau - e acendeu uma lanterna de bolso para me guiar.

Estávamos de novo rodeados pelas camas e banheiras e o Sr. Heng conduziu-me por uma passagem lateral. Quando tinha dado uns vinte passos parou e fez incidir a luz da lanterna sobre um pequeno tambor     de ferro.

- Vê isto? - disse-me.

- De que se trata?

Fez rodar o tambor e mostrou-me a marca de fábrica: Diolacton.

- Continuo a não perceber do que se trata.

- Eu tinha aqui dois destes tambores. Vieram no meio de outra su­cata da garagem do senhor Phan Van Muoi. Conhece-o?

- Creio que não.

- A mulher é da família do general Thé.

- Continuo a não perceber bem...

- Sabe o que é isto? - perguntou-me o Sr. Heng, abaixando-se e pegando num objecto comprido e côncavo, semelhante a um pé de aipo, e que à luz da lanterna tinha um brilho de crómio.

- Pode ser um toalheiro.

- É um molde - disse o Sr. Heng. Era evidente tratar-se de um homem que se tornava enfadonho pelo prazer de dar informações. Fez uma pausa para que eu mostrasse de novo a minha ignorância. - Percebeu o que quero dizer com a palavra molde?

- Ah, sim, certamente, mas continuo a não ver...

- Este molde foi fabricado nos Estados Unidos. Diolacton é uma marca americana. Começa a perceber?

- Com toda a franqueza, não.

- Este molde tem um defeito. Foi por isso que o deitaram fora. Mas nunca devia ter sido misturado com a sucata. Nem o molde nem o tambor. Foi um engano. O gerente do senhor Muoi veio pessoalmente aqui. Não consegui encontrar o molde mas dei-lhe o outro tambor. Disse-lhe que era tudo o que eu tinha e ele explicou-me que os tam­bores lhe faziam falta para guardar produtos químicos. Evidentemente que não me perguntou pelo molde - isso seria desmascarar-se inge­nuamente - mas fez uma busca minuciosa. Mais tarde o senhor Muoi passou pela legação americana e pediu para falar com o senhor Pyle.

- O senhor tem um serviço secreto bem montado - disse-lhe.

Continuava a não perceber do que se tratava.

- Pedi ao senhor Chou para contactar o senhor Domínguez.

- Quer com isso dizer que conseguiu estabelecer uma relação qual­quer entre o Pyle e o general? Essa relação é muito fraca e não constitui uma novidade. Nesta terra toda a gente se dedica à espionagem.

            O Sr. Heng bateu com o tacão do sapato no tambor de ferro pinta­do a preto e o som transmitiu-se às camas.

- Senhor Fowler: o senhor é inglês. É neutro. Tem sido decente connosco. Consegue perceber que entre nós há gente cujas convicções são fortes, independentemente do lado a que essa gente possa per­tencer.

- Se tenta dizer-me que é comunista ou vietcongue, não se preo­cupe. Eu não me molesto. Não tenho partido.

- Se acontecer qualquer coisa desagradável em Saigão as culpas cair-nos-ão em cima. O meu comité gostaria que o senhor ficasse com uma ideia justa do que se passa. É por esta razão que lhe mostrei isto e mais isto.

- O que é o Díolacton? - perguntei-lhe. - Tem um nome que faz lembrar leite condensado.

- Tem alguma coisa de comum com o leite. - O Sr. Heng fez in­cidir o foco da lanterna no interior do tambor. No fundo, como se fos­se poeira, havia uma pequena quantidade de pó branco. - É um plás­tico americano. .

- Ouvi dizer que Pyle estava a receber plásticos para fazer brin­quedos. - Peguei no molde e olhei para ele. Tentei adivinhar-lhe o formato. O objecto não teria este aspecto: o molde era a imagem num espelho, invertida.

- Não se destina a brinquedos - disse o Sr. Heng. - É como que uma parte de uma barra.

- O formato é pouco vulgar.

- Não consigo aperceber-me da sua aplicação.

O Sr. Heng virou-me as costas.

- Só quero que se lembre do que viu - disse, enquanto se dirigia

para as sombras projectadas pelas pilhas de sucata. - Talvez chegue o

dia em que lhe seja necessário escrever sobre este assunto. Mas nunca

deve dizer que viu o tambor aqui. - Nem o molde? - perguntei. - O molde muito menos.

 

O primeiro encontro com alguém que nos salvou a vida (como é costume dizer-se) não é fácil. Eu não vira Pyle enquanto estivera no hospital da Legião, e a sua ausência e o seu silêncio, facilmente expli­cáveis (dado que se embaraçava mais facilmente do que eu), preo­cupavam-me muitas vezes sem razão, tendo como consequência que à noite, ainda não acalmado pela habitual pastilha para dormir, eu ima­ginava que ele subia as escadas, me batia à porta, se deitava a dormir na minha cama. Fora injusto com ele, e consequentemente juntava às minhas outras obrigações mais formais um sentimento de culpa. E ha­via ainda o remorso nascido da minha carta. (A que antepassados lon­gínquos caberia a responsabilidade desta minha estúpida consciência? Certamente a não tinham quando violavam e matavam no seu mundo paleolítico.)

Por vezes perguntava-me se deveria ou não convidar para jantar o homem que me salvara, se não deveria antes sugerir um encontro no bar do Continental para tomarmos ambos uma bebida. Era um proble­ma social pouco usual, dependente talvez do valor que cada um atri­bui à sua própria vida. Uma refeição e uma garrafa de vinho ou um uísque duplo? Isto preocupava-me havia alguns dias quando o proble­ma foi resolvido pelo próprio Pyle, que veio ter comigo e me chamou do outro lado da porta. Naquela tarde quente eu dormia, exausto com o esforço que fizera pela manhã para usar a perna, e não o ouvi bater.

- Thomas, Thomas. - O grito caiu no meio de um sonho em que eu estava mergulhado: caminhava por uma longa estrada, procurando uma transversal que nunca mais aparecia. A estrada desenrolava-se co­mo uma fita de telégrafo, com uma uniformidade que nunca se teria alterado se o sonho não fosse interrompido. De princípio uma voz que chora de dor numa torre e depois, repentinamente, a voz que fala co­migo:

- Thomas, Thomas.

- Vá-se embora, Pyle. Não se aproxime. Não quero que me salve - disse em voz baixa.

- Thomas. - Batia à minha porta, mas eu fiquei quieto, como se mais uma vez estivesse no arrozal e se tratasse de um inimigo. De re­pente dei-me conta de que já não batiam, que alguém falava lá fora em voz baixa e outra pessoa respondia. Falar em voz baixa é perigoso.

Eu sabia quem falava. Levantei-me da cama com cuidado, e com a ajuda da bengala cheguei até à porta do outro quarto. Talvez me tivesse deslocado com lentidão demasiada e eles me tivessem ouvido porque lá fora fez-se o silêncio. O silêncio, como as plantas, deita rebentos: parecia crescer sob a porta e espalhar as folhas pelo quarto onde eu estava. Era um silêncio de que eu não gostava e rasguei-o abrindo abruptamente a porta: Phuong estava no corredor e o Pyle tinha as mãos sobre os seus ombros: a atitude de ambos sugeria que se tinham afastado depois de dar um beijo.

- Que surpresa - disse-lhe. - Entre, entre.

- Não conseguia que você me ouvisse - disse-me Pyle.

- De princípio estava a dormir e depois não me apetecia ser per­turbado. Mas como «já» o fui é melhor entrar. - Disse em francês a Phuong: - Onde o encontraste?

- Aqui. No corredor - respondeu-me. - Ouvi bater e corri cá acima para lhe abrir a porta.

- Sente-se. Quer uma chávena de café? - disse a Pyle.

- Não. E nem mesmo me quero sentar, Thomas.

- Pois eu sou forçado a sentar-me. A minha perna cansa-se com facilidade. Recebeu a minha carta?

- Recebi. Preferia que você não a tivesse escrito.

- Porquê?

- Porque não passa de um chorrilho de mentiras. Eu tinha con­fiança em si, Thomas.

            - Quando existe uma mulher no meio nunca se deve confiar em quem quer que seja.

            - Então é melhor que você deixe de ter confiança em mim. Vou passar a vir aqui à socapa, sempre que você não estiver em casa; es­           crever-lhe-ei cartas com sobrescritos à máquina. Talvez eu esteja a crescer, Thomas. - Mas tinha lágrimas na voz e parecia mais novo do que nunca. - Não lhe era possível ganhar sem mentir?

- Não. Isto é comparável à duplicidade europeia, Pyle. Somos for­çados a compensar de qualquer maneira a nossa falta de abastecimen­tos. Contudo, devo ter sido pouco hábil. Como conseguiu você desco­brir as mentiras?

            - Foi a irmã dela. Agora trabalha com o Joe. Venho de estar com ela. Sabe que o mandaram voltar a Inglaterra.

            - Se é só isso... - disse-lhe, sentindo alívio. - Phuong também o sabe.

            - E a carta da sua mulher? Phuong também sabe o que ela dizia. A irmã leu-a.

            - Como foi isso?

            - Ela veio aqui ontem com Phuong quando você tinha saído, e Phuong mostrou-lha. Você não consegue enganá-la. Ela lê inglês.

- Agora percebo. - Não valia a pena ficar zangado. Era por de­mais evidente que o ofensor fora eu e Phuong provavelmente só tinha mostrado a carta por uma espécie de jactância: mas não se tratava de            uma prova de falta de confiança.

- Ontem à noite já sabias tudo isto? - perguntei a Phuong.

-Já.

- Reparei realmente que estavas bastante calada. - Toquei-lhe no braço. - Podias ter sido terrível, mas és a Phuong: não tens mau génio.

- Precisava de pensar - disse-me, e eu lembrei-me de como me apercebera pela irregularidade da sua respiração, ao acordar de noite, que ela não dormia. Estendera-lhe o braço e perguntara-lhe: - Le cau­chemar? - Ela costumava ter pesadelos quando veio para a Rua Cati­nat, mas ontem à noite abanara a cabeça perante a minha pergunta. Estava de costas viradas para mim e eu encostei uma perna ao seu cor­po: o primeiro passo no ritual das relações sexuais. E mesmo então       não me apercebi de que havia qualquer coisa que não estava bem.

- Não me pode explicar, Thomas, porque...

- É suficientemente evidente. Queria ficar com ela.

- Qualquer que fosse o preço que ela tivesse de pagar?

- Sim, qualquer que fosse o preço.

- Isso não é amor.

- Talvez não seja o amor que você conhece, Pyle.

- Eu quero protegê-la.

- Pois eu não quero. Ela não precisa de protecção. Quero-a perto de mim, quero-a na cama comigo.

- Contra sua vontade?

- Ela nunca ficaria contra vontade, Pyle.

- Depois disto ela não vai poder gostar de si.

As ideias de Pyle tinham esta simplicidade. Virei-me para ver onde Phuong estava. Fora para o quarto e endireitava a colcha sobre a qual eu estivera deitado. Depois tirou uma das suas revistas da prateleira e sentou-se na cama, como que absolutamente indiferente à nossa con­versa. Eu sabia de que revista se tratava: a história, por meio de foto­grafias, da vida. da rainha. Eu conseguia ver, voltado para cima, o co­che a caminho de Westminster.

- A palavra amor é uma invenção do Ocidente. Nós empregamo­-la por razões sentimentais ou para com ela encobrirmos a nossa obce­cação por uma mulher. Esta gente não tem obcecações. Se você não se acautelar, Pyle, vai sofrer muito.

- Se não fosse a sua perna ter-lhe-ia dado uma sova.

- Você devia estar-me grato e estar grato à irmã de Phuong. Agora pode seguir o seu caminho sem escrúpulos. E você é muito escrupulo­so, não é? A menos que se trate de plásticos.

- De plásticos?

- Queira Deus que você saiba o que está a fazer. Ah, sim, eu sei que as suas razões são boas. São-no sempre. - Tinha um ar perplexo e desconfiado. - Desejaria que você, por vezes, tivesse algumas ra­zões que fossem más. Talvez conseguisse perceber melhor os seres humanos. E isto também se aplica ao seu país, Pyle.

- Quero dar-lhe uma vida decente. Esta casa... fede.

- Nós encobrimos o cheiro com paus de goma. E você vai ofere­cer-lhe um frigorífico, um automóvel para ela guiar e o último modelo de aparelho de televisão e...

- E filhos - disse Pyle.

- Espertalhaços cidadãos americanos, prontos a depor.

- E você, que lhe vai dar? Não tenciona levá-la para Inglaterra.

- Não, não sou tão cruel como isso. A menos que tenha o dinhei­ro suficiente para lhe comprar um bilhete de regresso.

            - Vai continuar a guardá-la para ter alguém com quem ir para a cama até à sua partida.

            - Ela é um ser humano, Pyle. É perfeitamente capaz de tomar de­cisões.

            - Baseando-se em premissas falsas. Além de não passar de uma criança.

- Ela não é uma criança. É mais dura de roer do que você alguma vez o será. Conhece aquele tipo de polimento que não risca? Pois Phuong é assim. É capaz de sobreviver a uma dúzia de tipos como nós. Envelhecerá, mas é tudo. Pode sofrer com partos, com fome, com frio e com reumatismo, mas nunca ficará risca da, ir-se-á simplesmente definhando. - Mas ao fazer este discurso, enquanto observava Phuong, que virara a página (um grupo de família, com a princesa Anne), eu já sabia que estava a inventar uma personalidade, exactamente como Pyle o fizera. E recordei o primeiro ano tormentoso em que tentara tão for­temente compreendê-la, em que lhe implorara que me dissesse no que pensava e a assustara com a fúria absurda que os seus silêncios me provocavam. Até o meu desejo servira de arma, com aquela esperança que se tem de que, ao apontar-se a espada às entranhas da nossa ví­tima, ela se desconcerte e comece a falar.

            - O que você disse já chega - disse a Pyle. - Sabe tudo o que tem a saber. Faça o favor de se ir embora.

            - Phuong - chamou Pyle.

- Monsieur Pyle? - perguntou, levantando os olhos do Castelo de Windsor. E o seu formalismo num momento como aquele era simultaneamente cómico e tranquilizante.

- Ele enganou-a.

- Je ne comprends pas.

- Vá-se embora. Volte para a sua terceira força e para o York Har­ding e para a Função da Democracia. Vá brincar com os plásticos.

            Mais tarde vi-me forçado a admitir que ele tomara à letra as minhas instruções.

 

Só passados quase quinze dias sobre a morte de Pyle é que tornei a ver Vigot. Subia o Boulevard Charner quando o ouvi chamar-me do Le Clube. Naqueles tempos era o restaurante preferido pelos membros da Sareté; Como que numa atitude de desafio perante aqueles que os detestavam, eles almoçavam e bebiam no rés-do-chão enquanto o res­tante público comia no andar superior, fora do alcance de um bando­leiro com uma granada de mão. Juntei-me a Vigot e ele mandou vir um vermute cassis. - Quer jogá-lo?

- Se quiser - e tirei os dados do bolso para jogarmos o ritual qua­Ire vingt-et-un. Como estes números e os dados me fazem relembrar os anos de guerra na Indochina! Em qualquer ponto do mundo, sempre que vejo dois homens a jogar aos dados, volto às ruas de Hanói ou de Saigão ou aos edifícios bombardeados de Phat Diem. Vejo os pára­-quedistas, protegidos como as lagartas pelas suas estranhas manchas, vigiando os canais, ouço os morteiros a aproximarem-se, ou vejo uma criança morta.

- Sans vaseline - disse Vigot fazendo quatro-dois-um. Empurrou até mim o último fósforo. O calão sexual do jogo era comum a toda a Sareté; talvez tivesse sido inventado por Vigot e depois adoptado pelos seus subalternos, que no entanto não haviam adoptado Pascal. - Sous­-lieutenant. - Cada vez que se perdia um jogo subia-se de posto: joga­va-se até que um dos jogadores chegasse a capitão ou a comandante. Ele ganhou também o segundo jogo, e enquanto contava os fósforos disse-me:

- Encontrámos o cão de Pyle.

- Ah, sim?

- Provavelmente recusara-se a abandonar o corpo. O que é verda­de é que lhe cortaram o pescoço. Estava na lama, a uns vinte metros. Talvez se tivesse arrastado até lá.

- Você continua interessado no assunto?

- O ministro americano continua a maçar-nos. Graças a Deus que não temos a mesma preocupação quando morre um francês. Mas, evi­dentemente, a morte de um francês não tem a importância conferida pela raridade.

Jogámos primeiro a divisão dos fósforos e depois começámos o jo­go em si. A rapidez com que Vigot fazia quatro-dois-um era inacredi­tável. Reduziu os fósforos a três e eu fiz a jogada mais baixa que épossível.

- Nanette - disse Vigot, empurrando para mim dois fósforos. Quan­do se viu livre do último disse: - Capitaine - e eu chamei o criado para encomendar as bebidas.

- Há alguém, que consiga ganhar-lhe? - perguntei.

- É raro. Quer desforrar-se?

- Fica para a outra vez. Você dava um óptimo jogador, Vigot. Pra­tica outros jogos de azar?

            Ele sorriu com ar infeliz, e não sei porquê lembrei-me daquela sua mulher loura, que diziam enganá-lo com os seus subalternos.

- Ora - disse-me -, há sempre o maior de todos.

- O maior?

            - «Pesemos os ganhos e as perdas», citou, «ao apostarmos que Deus existe, avaliemos as duas probabilidades. O que ganhar ganha tudo; o que perder nada perde».

            Eu respondi-lhe com outra citação, também de Pascal - era a úni­ca que me lembrava.

            - «Tanto erra o que escolhe caras como o que escolhe coroas. Am­bos estão fora da verdade. A atitude justa é não apostar.»

- "Sim: mas é-se forçado a apostar. Não é facultativo. Somos lança­dos na aventura.» Você não segue os seus princípios, Fowler. Está enga­gé, exactamente como nós.

            - Não no que toca a religião.

            - Não estava a referir-me à religião. Para lhe dizer a verdade, esta­va a pensar no cão de Pyle.

            -Ah!

            - Lembra-se do que me disse sobre encontrar indícios nas patas, analisar a sujidade, etc.?      .

            -Ao que você me respondeu que nem era Maigret nem Lecoq.

            - Mas acabei por não me sair muito mal. Pyle costumava levar o cão quando saía, não costumava?

- Creio que sim.

- Era demasiadamente valioso para vadiar sozinho?

- Não seria muito seguro. Nesta terra comem os chows, não é ver­dade? - Ele começou a meter os dados no bolso. - São meus, Vigot.

- Desculpe. Eu estava a pensar...

- Porque me disse que eu estava engagé?

- Qual foi a última vez que viu o cão de Pyle, Fowler?

- Sabe Deus. Eu não tomo nota dos meus encontros com cães.

- Quando volta para Inglaterra?

- Não sei ao certo. Nunca gosto de dar informações à Polícia. É poupar-lhes trabalho.

- Gostaria de lhe fazer uma visita hoje à noite. Pode ser às dez? Is­to é, se estiver sozinho.

- Direi a Phuong que vá ao cinema.

- As suas coisas com ela já estão bem?

-Já.

- É estranho. Tive a impressão que você está... como direi... in­feliz.

- Há muitas razões para isso, Vigot - e acrescentei bruscamente: - Você tinha obrigação de perceber.

-Eu?

- Também não é um homem muito feliz.

- Oh, não tenho razão para queixas. «Uma casa destruída não é desgraçada.»

- De quem é isso?

- Continua a ser do Pascal. É um dos argumentos do orgulho pela desgraça. «Uma árvore não é desgraçada.»

- O que o levou a ser um polícia, Vigot?

- Houve vários factores. A necessidade de ganhar a vida, uma cer­ta curiosidade sobre as pessoas, e... gostar de Gaboriau.

- Talvez devesse ter sido padre.

- Naqueles tempos eu não lia autores que me orientassem nesse caminho.

            - Você continua a suspeitar que eu esteja implicado no caso, não é?

Ele levantou-se e bebeu o resto do vermute cassis.

- Gostaria simplesmente de ter uma conversa consigo. Depois de se ter afastado, pensei que me olhara com compaixão, como poderia ter olhado um prisioneiro, cuja captura fosse responsa­bilidade sua, que estivesse a cumprir prisão perpétua.

 

Eu «fora» castigado. Era como se Pyle, ao sair de minha casa, me ti­vesse condenado a tantas e tantas semanas de incerteza. Sempre que entrava em casa era na expectativa de uma calamidade. Acontecia por vezes que Phuong não estava e era-me impossível concentrar-me em qualquer trabalho até ao seu regresso dado que nunca me sentia segu­ro de ela voltar. Perguntava-lhe onde tinha estado esforçando-me por que na minha voz não transparecesse a ansiedade ou a desconfiança e por vezes ela respondia que estivera no mercado ou nas lojas e mos­trava-me um objecto comprovativo (a própria prontidão com que con­firmava a sua história me parecia, naquela altura, pouco natural), e por vezes fora ao cinema, e lá estava o pedaço de bilhete para o compro­var, ou estivera com a irmã. E então eu convencia-me de que era lá que ela se encontrava com Pyle. Nesses dias possuía-a com agressivi­dade, como se a odiasse. Mas o que eu odiava era o futuro. A solidão deitava-se comigo na cama e quando a noite chegava eu tomava-a nos meus braços. Ela não se modificara: cozinhava as minhas refeições, preparava-me os cachimbos, oferecia o seu corpo, com suavidade e doçura, ao meu prazer (mas já não era um prazer). E tal como nos pri­meiros tempos eu pretendera conhecê-la intimamente, agora queria ler-lhe os pensamentos, mas estes escondiam-se atrás de uma língua que eu não sabia falar. Não queria interrogá-la. Não queria obrigá-la a mentir (enquanto a mentira não se manifestasse claramente eu podia fazer de conta que continuávamos a ser um para o outro o que sempre tínhamos sido). Mas subitamente a minha ansiedade vencia e eu dizia:

- Quando viste Pyle pela última vez?

Ela hesitava... ou tentaria efectivamente recordar-se?

- Quando ele esteve aqui - respondia-me.

Comecei, quase inconscientemente, a atacar tudo o que era ameri­cano. As minhas conversas incidiam sobre a pobreza da literatura ame­ricana, os escândalos da política americana, a brutalidade das crianças americanas. Era como se fosse uma nação e não um homem, que esti­vesse a roubar-ma. Tudo o que a América fazia estava errado. Tornei­-me um maçador com o assunto da América, mesmo perante os meus amigos franceses, sempre prontos a compartilhar das minhas antipa­tias. Era como se tivesse sido atraiçoado. Mas não se é atraiçoado pelo inimigo.

Foi nessa altura que se deu o incidente das bombas de bicicleta.

Quando saí do Bar Imperial e voltei para a minha casa vazia (ela esta­ria no cinema ou com a irmã?) verifiquei haver uma carta metida por debaixo da porta. Era de Domínguez. Desculpava-se de continuar doente e pedia-me que estivesse à porta da grande loja à esquina do Boulevard Charner, pelas dez e meia do dia seguinte. Escrevia-me a pedido do Sr. Chou, mas eu suspeitava que era mais provável que ti­vesse sido o Sr. Heng quem reclamava a minha presença.

O assunto, como depois se verificou, não merecia mais do que um parágrafo, e um parágrafo humorístico. Não tinha qualquer relação com a triste e dura guerra do Norte, com aqueles canais em Phat Diem obstruídos pelos cadáveres cinzentos com dias e dias, com o bombar­dear dos morteiros, com o clarão branco dos napalms. Já esperava jun­to de uma bancada com flores havia cerca de um quarto de hora quan­do vi aproximar-se, vindo do lado do quartel-general da Silreté, na Rua Catinat, um camião repleto de polícias, rangendo os travões e fazendo chiar as rodas. Os homens saíram e correram para a loja, como se se tratasse de um ataque a um motim, mas não havia motim: só havia uma paliçada de bicicletas. Todos os grandes edifícios de Saigão estão rodeados de bicicletas: nem nas cidades universitárias do Ocidente há tantos ciclistas. Antes de ter tempo para preparar a máquina tinham le­vado a cabo aquela operação cómica e inexplicável. A polícia abrira caminho por entre as bicicletas e saíra com três delas, que transportara no ar, sobre a cabeça, até ao boulevard e deixara cair na fonte decora­tiva. E voltaram ao camião, afastando-se rapidamente pelo Boulevard Bonnard abaixo, sem que eu tivesse ocasião de falar com um dos polí­cias.

- Opération Bicyclette - disse uma voz. Era o Sr. Heng.

- De que se trata? De exercícios? Mas para quê? - Espere mais um pouco - disse-me o Sr. Heng.

Alguns ociosos aproximaram-se da fonte, onde ficara de fora uma roda, à laia de bóia, como que para assinalar aos barcos que não se deviam aproximar dos restos de naufrágio ali existentes. Um polícia     atravessou a rua, gritando e gesticulando.

- Vamos ver o que se passa - disse ao Sr. Heng.

- É preferível não irmos - respondeu-me, e depois olhou para o relógio. Os ponteiros marcavam onze horas e quatro minutos.

- Está adiantado - disse-lhe.

- Adianta-se sempre. - E naquele momento a fonte explodiu so­bre o pavimento. Um fragmento do rebordo decorativo bateu numa ja­nela e os vidros caíram, lembrando um aguaceiro num dia de sol. Nin­guém se magoou. Sacudimos a água e os vidros dos fatos. Na estrada havia uma roda de bicicleta que fez um barulho de pião, vacilou, e de­   pois caiu por terra.

- Devem ser agora onze horas - disse o Sr. Heng.

-Mas que diabo...?

- Pensei que lhe interessasse. «Espero» que lhe tivesse interessado. - Vamos beber qualquer coisa?

- Desculpe, mas não posso. Tenho de voltar para casa do senhor Chou. Mas deixe-me primeiro mostrar-lhe uma coisa. - Conduziu-me ao parque de estacionamento de bicicletas e indicou-me a sua.

- Re­pare com cuidado.

- É uma Raleigh.

- Não se trata disso. Olhe para a bomba. Não lhe faz lembrar qualquer coisa? - Sorriu com superioridade perante a minha perplexi­dade e depois afastou-se. Virou-se uma vez, disse-me adeus com a mão, e depois pedalou em direcção a Cholon e ao armazém de sucata. Na Súreté, aonde me dirigi para colher informações, percebi ao que ele se referira. O molde que eu vira no armazém tinha o formato de uma metade de bomba de bicicleta. Naquele dia, por toda Saigão, verificou­-se que as inocentes bombas de bicicleta não eram senão bombas de plástico, que explodiram ao bater das onze, com excepção dos sítios em que a polícia, actuando por informações recebidas, e que eu sus­peitava terem emanado do Sr. Heng, pudera antecipar as explosões. Era tudo bastante trivial: dez explosões, seis pessoas ligeiramente feri­das, e sabe Deus quantas bicicletas danificadas. Os meus colegas ­. exceptuando o correspondente do Extrême-Orient, que lhe chamou um outrage - sabiam que só lhes dariam uma coluna se troçassem do assunto.

Bombas de bicicleta era um bom cabeçalho. Todos eles deitavam as culpas sobre os comunistas. Fui o único a escrever que as bombas representavam uma manifestação do general Thé. E a redacção alterou o meu relato. O general já não constituía uma notícia de interesse. Não valia a pena gastar espaço a identificá-lo. Enviei ao Sr. Heng, através de . Domínguez, uma mensagem de pesar: fizera o que pudera. O Sr. Heng I mandou-me uma resposta verbal e delicada. Parecia-me que ele - ou , o seu comité vietcongue - se havia mostrado demasiadamente sensível. Ninguém culpava os comunistas nitidamente. De facto, se isso fosse possível, todo aquele assunto poder-lhes-ia simplesmente atribuir uma certa reputação de sentido do humor. «De que se lembrarão eles depois disto?», comentavam as pessoas nas festas. E para mim aquele incidente absurdo ficam imobilizado numa roda de bicicleta rodopiando alegremente, como um pião, no meio do boulevard. Nunca mencionei a Pyle o que ouvira sobre as suas ligações com o general. Deixá-lo brincar inofensivamente com plásticos: talvez assim não pensasse tanto em Phuong. Contudo, porque se deu o acaso de uma tarde eu me en­contrar nas vizinhanças, porque nada de melhor tinha a fazer, decidi visitar a garagem do Sr. Muoi.

Era uma casa pequena, desarrumada, não muito diferente de um armazém de sucata, no Boulevard de la Somme. No meio havia um car­ro içado, com o capô aberto, lembrando o molde de um animal pré­-histórico, de boca escancarada, como os que se vêem nos museus de província que nunca ninguém visita. Não creio que alguém se lembras­se de que aquele carro estava ali. O chão estava coberto de aparas de ferro e de caixotes velhos: os vietnamitas não gostam de deitar fora o que quer que seja, do mesmo modo que um cozinheiro chinês, ao fa­zer a divisão de um pato por sete pratos diferentes, não dispensa se­quer uma unha. Perguntei-me qual a razão daquele acto de desperdí­cio em relação aos tambores vazios e ao molde estragado. Talvez o furto de algum empregado para ganhar algumas piastras, ou um suborno do. hábil Sr. Heng.

Não vi ninguém e entrei. «Talvez estejam escondidos», pensei, «com medo de uma visita da polícia. Era possível que o Sr. Heng tivesse os seus contactos na Sureté, mas mesmo assim era pouco provável que a polícia entrasse em acção. Do ponto de vista deles era preferível que se ficasse com a ideia de que as bombas eram comunistas».

À parte o carro e a sucata espalhada pelo chão de cimento, nada mais se via. Era difícil imaginar como podiam ter construído as bom­bas naquela casa. Não percebia bem o processo pelo qual se transfor­mava em plástico a poeira branca que eu vira no tambor, mas parecia­-me seguro que esse processo devia ser demasiadamente complicado para ser levado a cabo num sítio daqueles, onde inclusivamente as duas bombas de gasolina na rua pareciam abandonadas. Fiquei à porta a olhar a rua. No centro do boulevard, sob as árvores, os barbeiros exerciam a sua actividade. Um pedaço de espelho pregado a um tron­co de árvore reflectiu o brilho do sol. Uma rapariga, cujo chapéu lem­brava uma lapa, com dois cestos balouçando nos extremos de uma va­ra, passou a trote. O adivinho acocorado junto da parede da casa Simon Freres encontrara um cliente: um velho de pêra rala, como a de Ho Chi Minh, que observava impassivelmente o baralhar e o virar das vetustas cartas. Que futuro seria o seu para valer uma piastra? No Bou­levard de la Somme vivia-se a descoberto: toda a gente sabia tudo so­bre o Sr. Muoi, e contudo a polícia não conseguia arrancar-lhes confi­dências. A vida desta gente passa-se num nível onde não existem segredos, mas não se desce a este nível com a facilidade com que se desce à rua. Recordei as velhas que segredavam no patamar, junto do lavatório público: também elas ouviam tudo, e contudo eu não sabia o que elas sabiam.

Voltei à garagem e entrei no pequeno escritório ao fundo. Havia o habitual calendário comercial chinês e uma secretária desarrumada: preçários, um frasco de cola, uma máquina de somar, alguns clips, um bule e três xícaras de chá, muitos lápis por afiar, e, por desconhecidas razões, um bilhete-postal com a Torre Eiffel. York Harding podia escre­ver abstracções gráficas sobre uma terceira força, mas era aqui que se encontrava a chave de tudo: isto era a Indochina. Na parede da frente havia uma porta. Estava fechada, mas a chave encontrava-se na secre­tária, juntamente com os lápis. Abri a porta e entrei.

Era um pequeno barracão com o mesmo tamanho da garagem. Ha­via uma máquina que, à primeira vista, parecia uma gaiola feita de va­rões e de arames com numerosos poleiros, construída para encerrar uma ave adulta e sem asas. Dava a impressão de ter sido atada com trapos, mas os trapos deviam muito provavelmente ter servido à sua limpeza no momento em que o Sr. Muoi e os seus assistentes tinham recebido o aviso de que deviam partir. Encontrei o nome de um fabri­cante - alguém de Lyon, com o número de patente. Patente de quê? Liguei a corrente eléctrica e a velha máquina despertou: os varões ti­nham uma finalidade. A maquineta era como um velho que se esforça por reunir, pela derradeira vez, os destroços do seu vigor batendo com o punho, batendo... Era uma prensa, embora no mundo das prensas devesse ter pertencido à era do nicke/odeon. Mas neste país, onde nada se desperdiça, e onde tudo pode um dia vir ter para terminar uma car­reira (lembrei-me de ter visto o velho filme, O Roubo do Grande Com­boio, estremecendo no ecrã, conseguindo ainda entreter o público num cinema de uma ruazita em Nam Dinh), a prensa continuava a ser utili­zável.

Examinei-a mais de perto: vi traços de um pó branco. E pensei: «Dio/acton, um produto parecido com o leite». Não se viam vestígios de um tambor ou de um molde. Voltei ao escritório e dirigi-me à gara­gem. Apetecia-me dar uma pancadinha amigável no guarda-lama do velho carro: tinha talvez muito que esperar, mas lá chegaria o dia em que ele...

Tanto o Sr. Muoi como os seus assistentes deviam estar a estas ho­ras escondidos nos arrozais, a caminho da montanha sagrada onde o general Thé fazia o seu quartel-general. Quando por fim levantei a voz e chamei: «Monsieur Muoi», consegui imaginar que estava longe daque­la garagem e do bou/evard e dos barbeiros, de novo no meio dos cam­pos onde me refugiara, na estrada para Tanyin. «Monsieur Muoi!» Via um homem virar a cabeça por entre os pés de arroz.

Fui para casa a pé, e no patamar as velhas começaram a chilrear como carriças, linguagem que me era tão incompreensível como o conversar dos pássaros. Phuong não estava em casa: dela só havia umas linhas dizendo-me que estava com a irmã. Deitei-me sobre a ca­ma - ainda me cansava facilmente - e adormeci. Quando acordei vi que o ponteiro luminoso do meu despertador apontava para a uma e vinte e cinco e virei a cabeça esperando encontrar Phuong adormecida a meu lado. Mas a almofada não estava amachucada. Ela devia ter mu­dado o lençol naquele dia - havia vestígios do frio da lavandaria. Le­vantei-me e abri a gaveta onde guardava os lenços de pescoço; já lá não estavam. Fui à prateleira dos livros: a vida ilustrada da família real também desaparecera. Levara consigo o seu dote.

No instante de choque o pesar é diminuto: a dor principiou cerca das três horas da madrugada quando comecei a planear a vida que ti­nha ainda de viver e a relembrar recordações de modo a, por qualquer forma, poder eliminá-las. As boas recordações são as piores e eu tentei lembrar as más. Tinha prática. Já vivera tudo isto noutros tempos. Sabia que seria capaz de fazer o necessário, mas era tão mais velho... senti que a energia que me restava não chegava para uma reconstrução.

 

Fui à legação americana para falar com Pyle. Foi preciso encher um impresso à porta e dá-lo a um polícia militar.

- O senhor não declarou a razão da sua visita - disse-me.

- Ele sabe-a.

- Então tem uma entrevista marcada?

- Se prefere pôr as coisas nesse pé, tenho.

- Provavelmente deve parecer-lhe uma parvoíce, mas temos de ter muito cuidado. Aparecem aqui tipos muito estranhos.

- Sim, já ouvi dizer isso. - Mudou a pastilha elástica para a outra bochecha e entrou no elevador. Esperei. Não sabia o que ia dizer a Pyle. Era o género de cena que eu nunca representara. O polícia voltou. Disse, de má vontade:

- Pode subir. Sala 12-A. Primeiro andar.

Quando entrei na sala vi que Pyle não estava. Quem estava à secre­tária era o Joe, o adido económico. Continuava a não me lembrar do seu apelido. A irmã de Phuong observava-me da sua secretária de dac­tilógrafa. Seria triunfo o que eu lia naqueles olhos castanhos e ambi­ciosos?

- Entre, entre, Tom - disse-me Joe com um ar jovial. - Gosto muito de o ver. Como vai a perna? É raro ter-se a honra, cá na casa, de uma visita sua. Sente-se. Dê-me a sua opinião sobre a nova ofensiva. Vi ontem à noite o Granger no Continental. Vai novamente até ao Norte. Aquele rapaz é fino. Onde quer que haja notícias a colher lá está o Granger. Quer um cigarro? Sirva-se. Conhece a menina Hei? Nunca consigo recordar-me de todos estes nomes: é demasiado difícil para um tipo já com a minha idade. Eu chamo-a com "Olá... e ela gosta. Na­da deste colonialismo tacanho. Que dizem as vozes da terra, Tom? Não há dúvida de que vocês são uns tipos com bom ouvido. Tive imensa pena quando soube o que lhe aconteceu à perna. O Alden disse­-me que...

- Onde está o Pyle?

- Oh, o Alden não veio hoje ao escritório. Deve estar em casa. Trabalha muito em casa.

- O que ele faz em casa sei eu.

- O rapaz é fino. Hem, que disse você?

- Que pelo menos sei uma das coisas que ele faz em casa.

- Não percebo onde quer chegar, Tom. O Joe Lento: é como me chamam. Sempre fui assim. Hei-de sê-lo sempre.

            - Ele dorme com a rapariga com quem eu vivia: a irmã da sua dactilógrafa.

            - Não percebo nada do que está a dizer.

            - Pergunte-lhe. Foi ela quem arranjou tudo. O Pyle roubou-me a rapariga com quem eu vivia.   .

- Ouça lá, Fowler, eu pensei que você tinha vindo aqui para tratar de assuntos profissionais. Sabe que este escritório não é sítio próprio para cenas.

            - Vim ver o Pyle. Mas parece-me que ele deve estar a esconder-se.

            - Você é a última pessoa com direito a fazer uma observação des­sas. Depois de tudo o que Alden lhe fez...

            - Oh, sim, sim, com certeza. Salvou-me a vida, não salvou? Mas eu nunca lhe pedi que o fizesse.

            - Com grande perigo para ele próprio. O rapaz é valente.

- Não estou interessado na sua valentia. Há outras coisas nele que me interessam mais neste momento, em especial certas partes do seu corpo.

- Fowler, com uma senhora presente não devia fazer alusões dssas.

- Esta senhora e eu conhecemo-nos muito bem. Ela não conse­guiu limpar-me, mas pretende limpar o Pyle. Está bem. Sei que o meu comportamento não é dos melhores, mas vou continuar a comportar­-me mal. É um tipo de situação em que as pessoas se comportam mal.   

- Temos muito trabalho. Há um relatório sobre a produção de orracha...

- Não se preocupe, vou-me embora. Mas diga ao Pyle, se ele tele­fonar, que estive aqui. Ele pode achar que seria indelicado não retri­buir a visita.

Disse à irmã de Phuong:

- Espero que o contrato de doação tivesse sido reconhecido pelo otário, pelo cônsul da América e pela Igreja.

Saí para o corredor. Em frente havia uma porta onde se lia «o­mens». Entrei, tranquei a porta, e sentado, com a cabeça encostada à arede fria, chorei. Não tinha ainda chorado. Até nas retretes havia ar ondicionado, e passado pouco tempo o ar temperado e seco secou­-me as lágrimas, tal como nos seca o cuspo na boca e a semente no corpo.

 

Deixei tudo entregue a Domínguez e pus-me a caminho do Norte. Em Haiphong eu tinha amigos no Squadron Gascogne e passava horas no bar do aeroporto ou jogando à bola lá fora, no caminho coberto de areia. Oficialmente eu estava na frente de batalha: quando queria po­dia ser tão fino como Granger, mas isso para o meu jornal tinha tanto valor como a minha excursão a Phat Diem. Mas se a nossa profissão é escrever sobre a guerra, o respeito que nos devemos impõe-nos que de vez em quando compartilhemos dos respectivos riscos.

Não era fácil compartilhá-los, por pouco tempo que fosse, dado que de Hanói haviam ordenado que eu só participasse em incursões horizontais, que nesta guerra eram tão seguras como andar-se de auto­carro, pois que voávamos acima do alcance da artilharia pesada. Está­vamos isentos do perigo de tudo que não fosse um erro do piloto ou uma avaria do motor. Saíamos a horas certas e chegávamos a horas marcadas. Os carregamentos de bombas desciam diagonalmente e a espiral de fumo subia dos cruzamentos de estradas ou da ponte, e de­pois voltávamos para não perdermos a hora do aperitivo e atirávamos as bolas de ferro pelo caminho coberto de areia.

Uma manhã, na messe da cidade, enquanto bebia brandes com so­da com um jovem oficial que desejava ardentemente visitar Southern Pier, houve ordem de partida numa missão.

- Quer vir? - perguntou-me.

Eu disse que queria. Um ataque horizontal também matava o tem­po e os pensamentos. No automóvel, a caminho do aeroporto, ele ob­servou:

- É um ataque vertical.

- Pensei que me tinham proibido...

- Conquanto nada escreva sobre o assunto... Vai ver uma região perto da fronteira chinesa que não deve conhecer, perto de lai Chau.

            - Pensei que para esses lados já estava tudo sossegado e nas mãos dos Franceses...

- Estava. Mas recapturaram a região há dois dias. Os nossos pára-­quedistas estão a uma distância de poucas horas. Queremos conservar os viets com as cabeças metidas nas tocas até termos recapturado o posto. O que significa picar baixo e trabalhar com metralhadoras. Só podemos dispensar dois aviões: um deles já por lá anda. Assistiu algu­   ma vez a algum bombardeamento deste tipo?

- Nunca.

- Quando se não está habituado é um pouco desconfortável. O Squadron Gascogne só tinha dois pequenos bombardeiros B 26: os franceses chamavam-lhes prostitutas, porque, como as asas eram curtas, davam a impressão de não terem meios de sustentação. Sentei­-me sobre uma pequena chapa metálica, com as dimensões de um selim de bicicleta. Os meus joelhos ficaram encostados às costas do pi­loto. Subimos lentamente o rio Vermelho, que a esta hora era efectiva­mente vermelho. Tinha-se a sensação de se ter recuado no tempo e de o admirar com os olhos dos antigos geógrafos que lhe haviam dado aquele nome precisamente à hora em que o Sol poente o iluminava de margem a margem; depois, a 9000 pés, desviámo-nos em direcção ao rio Negro, verdadeiramente negro, cheio de sombras fora da incidên­cia da luz solar, e a imensa e majestosa paisagem de gargantas e pe­nhascos e florestas rodou e ficou por debaixo de nós, perfeitamente vertical. Era impossível largar-se uma esquadrilha naqueles campos verdes e cinzentos sem que dela houvesse mais vestígios que os deixa­dos por algumas moedas largadas num campo de trigo. Ao longe, ànossa frente, deslocava-se com movimentos de meiga um pequeno avião. Nós íamos substituí-lo.

Demos duas voltas sobre a torre e a aldeia rodeada de verdura e depois subimos helicoidalmente pelo céu deslumbrante. O piloto, que se chamava Trouin, virou-se para mim e piscou-me o olho. Os botões que controlavam as metralhadoras e a câmara das bombas estavam no volante. Quando nos preparávamos para picar senti aquela contracção de vísceras que acompanha qualquer acontecimento que experimenta­mos pela primeira vez: o primeiro baile, o primeiro jantar, o primeiro amor.

Quando o avião atingiu o ponto mais alto da sua subida lembrei­-me do Great Racer, em Wembley. Era impossível desistir: tínhamos caído na nossa própria armadilha. Tive somente tempo de ler no mos­trador 3000 metros. Depois picámos. Só havia sensações, a visão desa­parecera. Escorreguei até ficar completamente encostado às costas do piloto: tinha a sensação de ter o peito comprimido por imenso peso. Não me dei conta do momento em que largaram as bombas; depois ouvi a rajada da metralhadora e fomos inundados pelo cheiro da cordi­te e desapareceu-me o peso do peito à medida que subíamos e o que sentia como que caindo era o estômago, que descia em espirais, como um suicida, para o chão donde tínhamos vindo. Durante quarenta se­gundos Pyle deixara de existir: nem mesmo a solidão existira. A medi­da que subíamos numa trajectória curva eu via pela janela lateral o fumo apontado na minha direcção. Antes de picarmos pela segunda vez senti medo: medo de me sentir humilhado, medo de vomitar sobre as costas do piloto, medo que os pulmões envelhecidos não resistissem à pressão. Depois de termos picado pela décima vez só sentia irritação: aquilo já durava há muito tempo, eram horas de irmos para casa. Mais uma vez subimos a pique até fora do alcance das metralhadoras, des­viámo-nos, e o fumo apontou para o avião. A aldeia estava completa­mente rodeada de montanhas. Éramos forçados a aproximarmo-nos sempre da mesma maneira, pela mesma abertura. Não havia processo de variar de ataque. Quando picámos pela décima quarta vez eu pen­sei, liberto já do medo da humilhação: .Tudo o que eles têm a fazer é fixar a posição da metralhadora». Levantámos novamente o focinho pa­ra o ar seguro: talvez nem tivessem uma metralhadora. Aqueles qua­renta minutos tinham-me parecido intermináveis, mas não sentira a an­gústia dos meus problemas pessoais. Quando virámos para tomar a direcção de casa o Sol afundava-se: o instante do geógrafo passara, o rio Negro já não era negro e o rio Vermelho era todo ouro.

Descemos mais uma vez afastando-nos da floresta nodosa e des­contínua para nos encaminharmos para o rio, voando horizontalmente sobre os arrozais abandonados e dirigindo-nos como balas para um pequeno barco flutuando na água amarela. A metralhadora largou uma única rajada e o barco explodiu num repuxo de centelhas; nem nos demos ao trabalho de presenciar os esforços das nossas vítimas para sobreviver. Subimos e fomos para casa. Pensei de novo como pensara ao ver a criança morta em Phat Diem: «Odeio a guerra». Aquela escolha súbita e fortuita de uma vítima tinha qualquer coisa de extremamente chocante: o acaso levara-nos. a passar ali, chegara uma rajada, ­ não havia ninguém para retribuir o fogo e lá íamos de novo, depois de termos contribuído com a nossa quota-parte para o número de mortos no mundo. Coloquei os auscultadores para que o capitão Trouin me pu­desse falar.

- Vamos fazer um pequeno desvio. O pôr do Sol sobre o calcaire é maravilhoso. Você não deve perdê-lo - acrescentou com bondade, tal como um anfitrião que mostra as belezas da sua propriedade. E duran­te duzentos quilómetros seguimos o pôr do Sol sobre a Baie d'Along. A cabeça marciana de capacete olhou pensativamente para fora, para os pequenos bosques dourados incrustrados nas imensas bossas e ar­cos da pedra-pomes. E a ferida do crime deixou de sangrar.

 

Naquela noite o capitão Trouin insistiu em me levar à casa de ópio, embora ele não fumasse. Segundo dizia, agradava-lhe o cheiro e a sen­sação do sossego para terminar o seu dia de trabalho. Mas numa profis­são como a sua não lhe era permitido ir mais além. Havia oficiais que fumavam, mas esses pertenciam ao Exército: ele precisava de dormir. Deitámo-nos num dos pequenos cubículos em fila, como os dormitórios das escolas, e o proprietário chinês preparou-me os cachimbos. Desde que Phuong me deixara era a primeira vez que fumava. Do outro lado da sala estava uma linda mestiça, com maravilhosas pernas compridas, toda enroscada, já tendo fumado os seus cachimbos, lendo uma aceti­nada revista feminina. O cubículo ao lado do seu estava ocupado por dois chineses de meia-idade, que falavam de negócios, bebiam chá e tinham posto os cachimbos de parte.

- Aquele barco, esta tarde, estava a fazer algum mal?

- Quem pode sabê-lo? Temos ordem de fazer fogo sobre tudo o que nos apareça pela frente naquela região do rio - respondeu-me Trouin.

Fumei o primeiro cachimbo. Tentei não pensar em todos os ca­chimbos que fumara em casa. Trouin disse:

- O que aconteceu hoje... para um tipo como eu não é ainda o pior. Quando estávamos sobre a aldeia eles podiam ter-nos atingido e feito cair. O risco que nós corremos era tão grande como o deles. O que detesto são os bombardeamentos com napalm. A 9000 me­tros, sem poderem atingir-nos. - Fez um gesto de desespero. - Vê-se a floresta a incendiar-se. Só Deus sabe o que se veria do chão. Os po­bres diabos são queimados vivos, as chamas cobrem-nos como água, Ficam completamente encharcados no fogo. - E depois continuou, com raiva contra todo um mundo que não conseguia compreender: - Eu não estou a lutar numa guerra colonial. Você acha que eu era ca­paz de fazer tudo isto pelos colonos da Terre Rouge? Preferia ser julga­do em conselho de guerra. Nós estamos a combater nas vossas guerras e vocês só nos deixam as culpas.

- Quanto àquele barco... - disse-lhe.

            - Sim, o barco também. - Ele observava-me, enquanto eu me es­tendia para fumar o segundo cachimbo. - Invejo-lhe o processo de fuga.

- Você não sabe do que estou a fugir. Não é da guerra: a guerra não me interessa. Eu não tenho partido, não estou metido nela.

- Mas há-de estar. Lá chegará o dia.

- Não eu.

- Você ainda coxeia.

- Eles tinham todo o direito de me mandar uma bala, mas nem mesmo era isso o que estavam a'fazer. Destruíam uma torre. Devíamos sempre evitar patrulhas de demolição. Mesmo Picadilly.

- Há-de vir o dia em que aconteça qualquer coisa que o obrigará a tomar partido.

- Não, vou voltar para Inglaterra.

- Aquela fotografia que você em tempos me mostrou...

- Oh, já a rasguei. Ela deixou-me.

- Tenho imensa pena.

- A vida é assim. Nós deixamos as pessoas e depois a maré vira. Quase que me faz crer que existe uma justiça.

- Eu acredito. A primeira vez que fiz fogo com napalm pensei: "foi nesta aldeia que nasci. É aqui que vive o senhor Dubois, o velho ami­go de meu pai. O padeiro... em criança eu gostava dele; o padeiro vai a fugir por entre aquelas chamas que eu lancei. Os homens de Vichy não bombardearam o seu próprio país». Eu sentia-me pior do que eles. - Mas continua na sua tarefa.

            - Não passa de um estado de espírito. Só vem com o napalm. De resto penso que estou a defender a Europa. E você sabe que eles, eles também fazem coisas bastante monstruosas. Quando, em 1946, foram corridos de Hanói deixaram relíquias terríveis no meio da sua própria gente, quando suspeitavam de que nos tinham ajudado. Havia uma ra­pariga na morgue... não somente lhe tinham cortado os seios, como ti­nham mutilado o amante e metido o...

- É por tudo isso que eu não quero tomar partido.

- Não se trata de raciocínio ou de justiça. Todos nós, num mo­mento de grande emoção, somos capazes de tomar partido, e depois já não podemos recuar. A guerra e o amor: sempre foram comparados.

Olhou tristemente para o outro lado do dormitório, onde a mestiça se alongava mergulhada na sua imensa paz temporária. Disse-me:

- E não gostaria que as coisas fossem diferentes. Está ali uma ra­pariga cujos pais a obrigaram a seguir um determinado caminho. Quando este porto cair, qual será o seu futuro? A França é só em parte            o seu país...

- E crê que vai cair?

- Você é jornalista. Sabe melhor do que eu que não podemos ga­nhar. Sabe que todas as noites eles cortam e minam a estrada para Ha­nói. Sabe que perdemos anualmente todo um curso de Saint-Cyr. Em 50 quase fomos derrotados. De Lattre concedeu-nos dois anos de gra­ça: é tudo. Mas somos profissionais. Temos de continuar a lutar até que os políticos nos dêem ordem de cessar fogo. É provável que se reúnam e concordem numa paz que. podíamos ter conseguido logo de início. E estes anos de guerra não terão passado de um absurdo. ­A sua cara feia, que me piscara o olho antes de picarmos, tinha como que uma expressão de brutalidade profissional, lembrando uma más­cara de Natal pela qual espreitam, através dos buracos do papel, uns olhos de criança. - Você não pode compreender esse absurdo, Fow­ ler. Não está do nosso lado.

- Há outras coisas na vida que transformam os anos num absurdo. Pôs a mão sobre o meu joelho, num gesto estranho de protecção, como se fosse ele o mais velho.

- Leve-a para casa - disse-me. - É melhor do que um cachimbo.

- E quem lhe diz que ela vem?

- Eu já dormi com ela. E o tenente Perrin. São quinhentas piastras.

- É caro.

- Provavelmente também irá com trezentas. Mas numa situação destas não apetece regatear.

Mas o seu conselho não foi bom. O corpo de um homem tem uma certa limitação quanto aos actos que pode praticar, e as recordações haviam congelado o meu. Tudo o que as minhas mãos tocaram naque­la noite podia ser mais belo do que o que eu estava habituado. Mas nem só a beleza é armadilha. Ela usava o mesmo perfume, e subita­mente, no momento da penetração, o fantasma do que eu perdera mostrou-se mais poderoso do que o corpo ali estendido ao meu dis­por. Afastei-me e deitei-me de costas e o desejo foi-se escoando.

- Desculpa - disse-lhe, mas mentia. - Não percebo o que tenho.

Ela disse, com imensa doçura e incompreensão:

- Não se preocupe. Acontece muitas vezes. É do ópio.

- Sim, é do ópio. - E quem me dera que tivesse sido.

 

No regresso a Saigão sem que pela primeira vez houvesse alguém à minha espera deu-me uma sensação de estranheza. Quando cheguei ao aeroporto desejei poder dar outra morada ao condutor do táxi. Não a da Rua Catinat.

A dor será menor do que a que senti quando parti?», pensei. E ten­tei convencer-me de que era. Quando cheguei ao patamar reparei que a porta estava aberta. Uma esperança desrazoável cortou-me a respira­ção. Caminhei muito lentamente em direcção à porta. A esperança continuaria viva enquanto lá não chegasse. Ouvi uma cadeira ranger e quando cheguei à porta vi um par de sapatos. Mas os sapatos não eram de mulher. Entrei rapidamente, e quem se levantou desajeitada­ mente da cadeira de Phuong foi Pyle.

- Olá, Thomas.

- Olá, Pyle. Como conseguiu entrar?

- Encontrei o Domínguez. Vinha trazer o seu correio. Pedi-lhe que me deixasse aqui ficar.

- Phuong esqueceu-se de qualquer coisa?

- Oh, não, mas o Joe disse-me que você tinha ido à legação. Pen­sei que seria mais fácil conversarmos aqui.

- Sobre que assunto?

Ele fez um gesto de desorientação, como um rapaz que é forçado a falar numa reunião escolar e não consegue encontrar as palavras que as pessoas crescidas empregam.

- Você esteve fora?

- Estive. E você?

- Oh, eu tenho viajado por aqui e por ali.

- Continua a brincar com plásticos?

Riu com um ar infeliz e disse:

- As suas cartas estão ali.

Num relance vi que nada havia que de momento me pudesse interessar: uma carta do escritório, de Londres, várias que tinham todo o ar   de contas e mais uma do meu banco.

- Como vai Phuong?

A cara iluminou-se-lhe automaticamente, como aqueles brinquedos eléctricos que se movimentam com determinados sons.

            - Oh, está óptima - disse, e depois cerrou os lábios, como se ti­vesse dito mais do que era sua intenção.

            - Sente-se, Pyle. Desculpe eu ler isto. É do meu escritório.

Abri a carta. As surpresas podem ser muito inoportunas. O director dizia que tinha ponderado a minha última carta e que dada a situação confusa em que a Indochina se encontrava depois da morte do general De Lattre e da retirada de Hoa Binh, concordava com a minha suges­tão. Tinha nomeado um redactor temporário para os assuntos estran­geiros e gostaria que eu ficasse na Indochina pelo menos mais um ano. «O lugar cá ficará à sua espera», assegurava-me para me sossegar, com completa incompreensão. Estava convencido de que eu me im­portava com o emprego e com o jornal.

Sentei-me em frente de Pyle e tornei a ler a carta, que chegara tar­de demais. Durante alguns momentos senti ilação, como no instante        em que se acorda, antes de chegar a recordação.

- Más notícias? - perguntou-me Pyle.

-Não.

Tentei convencer-me de que não teria tido a mínima importância: um adiamento de um ano nunca poderia competir com um contrato de casamento.

- Vocês já se casaram? - perguntei-lhe.

- Não. - Corou (corava com muita facilidade). - Tenho estado à espera de obter uma licença especial. Podermos:..íamos então casar na    minha terra, decentemente.

- É mais decente por acontecer na sua terra?

- Bom, pensei... é-me tão difícil falar-lhe nestas coisas... Você é tão cínico, Thomas... Mas seria uma manifestação de respeito. O meu pai e a minha mãe assistiriam... ela como que entraria logo na família. É muito importante, dado o passado.

- O passado?

- Você sabe ao que me refiro. Não gostaria de a deixar por lá com o menor estigma...

- Você pensa deixá-la?

- Creio que sim. A minha mãe é uma mulher extraordinária... mostrar-lhe-ia a cidade, apresentá-la-ia às pessoas. Sabe, ajudá-la-ia a adaptar-se, E a preparar a minha casa.

Eu não sabia se devia ou não ter pena de Phuong... ela desejara tanto ver os arranha-céus e a estátua da Liberdade... Mas mal sabia o que os acompanharia: o professor e a Sr.ª Pyle, os clubes femininos; ir­-lhe-iam ensinar a jogar a canasta? Pensei como a vira pela primeira vez, no Grand Monde, com o seu vestido branco, movendo-se tão de­liciosamente sobre os seus pés de dezoito anos. E depois pensei na Phuong de há um mês, regateando o preço da carne nos talhos do Boulevard de La Somme. Iria ela gostar daquelas mercearias limpas, alegres, de Nova Inglaterra, onde inclusivamente o aipo vinha embru­lhado em celofane? Talvez gostasse. Eu não sabia. Inexplicavelmente, dei por mim a dizer o que Pyle podia ter dito havia um mês:

            - Tenha cuidado com ela, Pyle. Não force as coisas. Ela é capaz de sofrer exactamente como você ou como eu.

            - Mas certamente, Thomas, certamente.

            - Ela parece muito pequena e frágil e diferente das nossas mulhe­res. Mas não deve pensar nela como sendo um... como um enfeite,

- Sabe, Thomas, é estranho como tudo acaba sempre por se pas­sar de um modo diferente do que pensámos. Tenho andado apavora­do com a expectativa desta conversa. Pensei que você iria ser duro de roer.

- Lá no Norte tive tempo para pensar. Havia lá uma mulher... tal­vez eu tivesse visto a mesma coisa que você viu naquele prostíbulo. Foi bom que ela tivesse ido consigo. Podia acontecer que eu acabasse por a deixar aqui com um tipo como o Granger. Para quem ela não           fosse mais do que uma fêmea.

- E podemos continuar amigos, Thomas?

- Com certeza. Simplesmente prefiro não voltar a ver Phuong. O que há dela por aqui já me chega. Preciso procurar outra casa quan­      do tiver tempo.

Ele destraçou as pernas e levantou-se.

- Estou tão satisfeito, Thomas. Nem posso dizer-lhe quando o es­tou, Sei que já o disse, mas garanto-lhe que preferia que não tivesse si­do consigo.

- Ainda bem que foi você, Pyle.

A entrevista não se passara segundo as minhas previsões: sob as raivosas mas superficiais maquinações, a um nível mais fundo, o ge­nuíno plano de acção foi ganhando forma. Cada vez que a sua inocên­cia me inspirara cólera, um juiz dentro de mim fizera pender a balança para o seu lado, comparara o seu idealismo, as suas ideias mal alinha­vadas sobre os trabalhos de York Harding com o meu cinismo. Oh, sim, eu tinha razão quanto aos factos, mas não tinha ele também razão em ser jovem e se enganar, e não seria, de nós os dois, o melhor para compartilhar da vida de uma rapariga?

Demos um aperto de mão descuidado, mas um medo indefinido fez-me segui-lo até ao cimo das escadas e chamá-lo. Talvez que na­queles tribunais interiores onde se tomam as verdadeiras decisões também exista, além do juiz, um profeta.

- Pyle, não vá muito pelo que York Harding diz.

- York! - Do primeiro patamar, onde estava, levantou a cabeça e fitou-me.

- Nós somos os velhos povos coloniais, Pyle, mas aprendemos umas quantas realidades, aprendemos a não brincar com fósforos. Esta terceira força... é obra de um livro, e é tudo. O general Thé não passa de um bandido com um milhar de homens: não é uma democracia na­cional.

Dava a impressão de que estivera a olhar através de uma caixa de correio para ver quem eu era, e que agora, deixando cair a portinhola, impedira a entrada ao intruso indesejável. Não lhe via os olhos.

- Não percebo onde quer chegar, Thomas.

- Essas bombas de bicicleta. Foram uma boa graça, embora um homem tivesse perdido um pé. Mas Pyle, você não deve confiar num homem como o Thé. Não serão eles quem salvarão o Oriente do co­munismo. Nós conhecemos o género.          .

            . - Nós?

- Os velhos colonialistas.

- Pensei que você não tomava partido.

- Eu não tomo, Pyle. Mas se é preciso que alguém faça disparates, nessa organização a que você pertence, deixe que esse alguém seja o Joe. Vá para a sua terra com Phuong. Esqueça a terceira força.

            - Pode crer que aprecio muito os seus conselhos, Thomas - dis­se-me, muito formal. - Bom, até à vista.

            - Sim, até à vista.

 

As semanas foram-se passando, mas, não sei porquê, continuava a não procurar outro alojamento. Não se tratava de não ter tempo. A cri­se anual da guerra passara novamente: o quente e húmido crachin as­sentara no Norte. Os Franceses tinham deixado Hoa Binh, a campanha do arroz em Tonquim terminara, assim como terminara a campanha do ópio em Laos. Domínguez podia ocupar-se facilmente de tudo o que era preciso fazer no Sul. Por fim lá me arrastei para ver um apartamen­to no chamado Edifício Moderno (Exposição de Paris de 1934?), no ou­tro extremo da Rua Catinat, para lá do Hotel Continental. Era o pied­-à-ferre em Saigão de um plantador de borracha que voltava para a sua terra. Queria-o vender completo. Tinha várias gravuras do Salão de Pa­ris desde 1880 a 1900. O que mais tinham de comum era uma mulher com enormes seios e penteado extraordinário, envolta em gazes, que deixavam sempre expostas as imensas nádegas fendidas e escondiam o campo de batalha. No quarto de banho o plantador fora mais audaz com as reproduções de Reps.

- O senhor gosta de arte? - perguntei-lhe, e ele sorriu-me afecta­damente, como se fizéssemos parte da mesma conspiração. Era gordo, tinha um diminuto bigode negro e pouco cabelo.

- Os melhores quadros estão em Paris - disse-me.

Na sala de estar havia um cinzeiro extraordinário, alto, representan­do uma mulher nua com uma taça sobre o cabelo, e havia bibelôs de loiça representando raparigas nuas abraçadas a tigres e um outro mui­to estranho representando uma rapariga, de bicicleta, nua da cintura para cima. No quarto de dormir, em frente da imensa cama, havia um enorme quadro a óleo, envernizado, representando duas raparigas a dormir juntas. Perguntei-lhe o preço do apartamento, excluindo a co­lecção, mas ele não concordou em separar as duas coisas.

- O senhor não é um coleccionador? - perguntou-me.

-Não.

- Também tenho alguns livros que não me importaria de incluir, embora tencionasse levá-los comigo para França. - Abriu uma estante com portas de vidro e mostrou-me a sua biblioteca: edições ilustradas, caras, de Afrodite e de Nana, a Garçonne e alguns livros de Paulo de Kock. Senti-me tentado a perguntar-lhe se não se importaria de se ven­der, juntamente com a colecção: ficava bem ao seu lado, também ele fazia parte de uma época.

            - Quando se vive sozinho nos trópicos, uma colecção serve de companhia - disse-me.

Pensei em Phuong, só porque ela estava completamente ausente. E assim é sempre: quando fugimos para o deserto o silêncio grita-nos aos ouvidos.

- Não creio que o meu jornal consinta que eu compre uma colec­ção de arte.

            - Claro que não apareceria no recibo.

Senti-me satisfeito por Pyle não ter visto: aquele homem podia ter­-lhe servido de modelo para o seu imaginário «velho colonialista», que já era suficientemente repugnante. Quando saí eram quase onze e meia e desci até ao Pavillon para beber um copo de cerveja gelada. O Pavillon era o ponto de reunião das mulheres europeias e america­nas, onde elas bebiam café, e eu estava certo de que não iria encontrar Phuong. Na realidade sabia com precisão onde ela estava àquela hora do dia: não era rapariga que mudasse de hábitos, e portanto, ao vir do apartamento do plantador, eu atravessara a rua para evitar passar pelo milk bar onde a esta hora do dia ela bebia um batido de chocolate. Na mesa ao lado estavam duas raparigas americanas, limpas e cuidadas apesar do calor, comendo gelados. Tinham ambas malas a tiracolo so­bre o ombro esquerdo, perfeitamente iguais, com emblemas de latão representando águias. Também as pernas de ambas eram idênticas, compridas e esguias, e os narizes ligeiramente arrebitados. Comiam os gelados com um ar de concentração como se estivessem a levar a cabo uma experiência no laboratório do liceu. Perguntei-me se seriam cole­gas de Pyle: eram encantadoras, e também gostaria de as mandar vol­tar para a América. Acabaram os gelados e uma delas olhou para o re­lógio.

- É melhor irmos andando. É mais seguro.

Que entrevista teriam?

- O Warren disse que não devíamos ficar aqui depois das onze e vinte e cinco.

- Já passaram.

- Gostaria imenso de ficar. Não sei do que se trata. Sabes?

- Não sei bem, mas o -Warren disse que era preferível não fi­carmos.

- Achas que se trata de uma demonstração?

- Tenho visto tantas demonstrações - disse a outra com um ar cansado, como se fosse um turista farto de igrejas.

Ela levantou-se e pôs sobre a mesa o dinheiro para os gelados. An­tes de sair relance ou um olhar pelo café e os espelhos reflectiram-lhe o perfil sardento. Só ficou uma mulher francesa de meia-idade, com ar desleixado, que tentava em vão, mas cuidadosamente, arranjar a cara. Aquelas duas mal precisavam de se pintar: um rápido passar de batom, uma penteadela fugidia. Por instantes o olhar de uma delas viera pou­sar em mim: não se assemelhava ao olhar de uma mulher, mas sim ao de um homem, muito directo, especulando sobre a atitude a tomar. Depois virou-se rapidamente para a companheira:

            - É melhor irmos andando.    .

Ociosamente, observei-as saírem lado a lado para a rua inundada de sol. Era impossível conceber que qualquer delas pudesse alguma vez ser vítima de uma paixão desordenada: nada tinham que ver com lençóis amarrotados e suor do sexo... Levariam. para a cama desodori­zantes? Por momentos senti inveja do seu mundo esterilizado, tão dife­rente do que eu habitava que súbita e inexplicavelmente se estilhaçou. Dois espelhos fize­ram um voo na minha direcção e depois, a meio caminho, caíram ao chão. A francesa desmazelada estava de joelhos no meio dos destroços do que haviam sido cadeiras e mesas. A sua caixa de pó-de-arroz fica­ra aberta e ilesa sobre o meu colo, e não sei por que razão estranha fi­quei sentado exactamente onde estava, embora a minha mesa se tives­se juntado aos escombros que rodeavam a francesa. No café havia um som estranho de jardim: o cair de água de uma fonte. Olhei para o bar e vi filas e filas de garrafas partidas que se despejavam, formando um rio multicolor: o vermelho do porto, o laranja do Cointreau, o verde do chartreuse, o amarelo-opalescente do Pastis atravessavam o chão do café. A francesa levantou-se e procurou calmamente a caixa de pó-de­-arroz. Dei-lha e ela agradeceu-me com um ar formal, sentada no chão. Percebi que a não ouvira muito bem. A explosão dera-se tão perto que os meus tímpanos necessitavam de se restabelecer do cho­que da pressão.

Pensei com petulância: .Mais uma graça dos plásticos. E que espe­rará o senhor Heng que eu escreva agora?» Mas quando cheguei à Pla­ce Garnier as densas nuvens de fumo demonstravam que agora não se tratara de uma graça. O fumo provinha dos automóveis incendiados no parque de estacionamento, em frente do Teatro Nacional. Havia pe­daços de automóveis espalhados pela praça e na orla do jardim deco­rativo estava estendido um homem, sem pernas, contorcendo-se. Da Rua Catinat e do Boulevard Bonnard chegava constantemente mais gente. As sereias dos carros da Polícia, as campainhas das ambulâncias e dos bombeiros atacaram-me, simultaneamente, os tímpanos combali­dos. Durante um instante esquecera-me que Phuong devia estar no mílk bar, do outro lado da praça. Entre nós pairava o fumo. Os meus olhos não conseguiam penetrá-lo.

Saí para a praça e um polícia mandou-me parar. Tinham formado um cordão em redor, para evitar que a multidão aumentasse. E as ma­cas começavam a emergir desse cordão. Implorei ao polícia à minha frente:

- Deixe-me atravessar. Tenho uma amiga...

- Recue. Todos os que estão aqui têm amigos.

Afastou-se para dar passagem a um polícia e eu tentei segui-lo, mas ele puxou-me para trás.

- Sou jornalista - disse-lhe, e procurei em vão a carteira, onde ti­nha o meu cartão, não conseguindo encontrá-la. Dar-se-ia o caso de eu ter saído de casa sem a trazer?

- Pelo menos diga-me o que aconteceu ao milk bar - insisti.          O fumo começava a estar menos denso e tentei ver, mas a multidão

era tão compacta que nada consegui. Ele disse qualquer coisa que não consegui ouvir.

- Que disse?

- Não sei. Recue, está a impedir a passagem às macas - repetiu. Seria possível que eu tivesse perdido a carteira no Pavillon? Virei­-me para lá voltar e dei de cara com Pyle.

- Thomas! - exclamou.

- Pyle, por amor de Deus, onde está o seu passe da legação? Te­mos de atravessar a praça. Phuong está no milk bar.

- Não, não, não está.

- Está, Pyle. Tem por costume lá ir, às onze e meia. É indispensá­vel que a encontremos.

- Ela não está lá, Thomas.

- Como o sabe? Onde está o seu cartão?

- Preveni-a que não fosse.

Virei-me para o polícia, com a intenção de o empurrar para o lado e tentar atravessar a praça de uma corrida. Ele podia disparar: tanto me fazia. Mas nesse momento a palavra «preveni-a» chegou-me ao consciente. Peguei no braço de Pyle:

- Preveniu-a? Que quer você dizer com isso?

- Disse-lhe que não viesse aqui esta manhã.

Então comecei a ver claro.

- E o Warren? Quem é esse Warren? Ele também preveniu as rapa­rigas.

- Não percebo de quem você está a falar.

- É indispensável que entre os mortos não haja americanos não é? Uma ambulância abriu caminho pela Rua Catinat até à praça, e o polícia que me havia bloqueado o caminho afastou-se para o lado, a fim de lhe dar passagem. O outro polícia discutia. Empurrei Pyle para a frente até à praça, sem lhes dar tempo a que nos impedissem a pas­sagem.

Caímos numa congregação de enlutados. A polícia não podia evitar que mais gente entrasse na praça; mas não havia conseguido limpá-la dos sobreviventes e daqueles que tinham conseguido chegar em pri­meiro lugar. Os médicos estavam demasiadamente ocupados para se preocuparem com os mortos, e assim o campo ficara livre para os pa­rentes seus proprietários, porque pode ser-se proprietário de um mor­to exactamente como se é dono de uma cadeira. Sentada no chão, uma mulher amparava no colo os restos do seu filho: por uma espécie de modéstia, cobrira-o com o seu chapéu de palha de camponesa. Es­tava imóvel e silenciosa, e o que mais me impressionou foi o silêncio da praça. Lembrava uma igreja que eu visitara durante a missa; os úni­cos ruídos eram os do dizer da missa e de alguns europeus que aqui e além choravam e imploravam e ficavam novamente silenciosos, como que envergonhados pela modéstia, a paciência e o decoro do Oriente. Um torso sem pernas à beira do jardim continuava a contorcer-se co­mo uma galinha de cabeça cortada. A camisa do homem indicava que    se tratava provavelmente de um condutor de trishaw.

- É horrível - disse Pyle.

Olhou para os sapatos molhados e acrescentou, numa voz de al­guém que se sente doente:

- O que é isto?

- É sangue. Nunca viu sangue?

- Tenho de os limpar antes de ir falar com o ministro.

Não creio que ele soubesse bem o que estava a dizer. Era a primei­ra vez que via uma guerra autêntica: tinha descido o rio até Phat Diem como que numa espécie de sonho infantil, e a verdade é que aos seus olhos os soldados não contavam.

- Vê agora o que um tambor de Diolacton consegue fazer quando cai em más mãos? - Forcei-o, colocando a mão sobre o seu ombro, a olhar em redor. - A estas horas o largo está sempre cheio de mulhe­res e crianças: é a hora das compras. Porquê, escolher esta hora?

- Devia ter havido uma parada... - disse ele com voz fraca.

- E você tinha esperança de apanhar alguns coronéis. Mas essa parada foi cancelada ontem, Pyle.

_ Eu não sabia.

- Não sabia! - Empurrei-o para uma poça de sangue deixada por uma maca. - Você tinha obrigação de estar mais bem informado.

            - Estava fora - disse-me, olhando para os pés. - Eles, deviam ter desistido.

- E perdido uma oportunidade como esta? Acha que o general Thé é homem para perder uma demonstração destas? Isto é melhor do que uma parada. Numa guerra a morte de mulheres e crianças consti­tui uma notícia sensacional, a de soldados não. Isto vai aparecer em toda a imprensa mundial. O que você tem aí no sapato do pé direito representa a terceira força e a Nacional Democracia. Vá para casa e conte a Phuong como se deram estas mortes heróicas: algumas dúzias dos seus compatriotas deixaram de preocupar-vos.   .

Um padre baixo e gordo passou por nós apressadamente, com um prato tapado por um guardanapo. Pyle estivera silencioso durante bas­tante tempo e eu nada mais tinha a dizer. Na realidade já falara de mais. Ele estava pálido, com um ar amachucado, prestes a desmaiar, e eu pensei: "Não vale a pena. Ele há-de ser sempre inocente e não po­demos culpar os inocentes, eles nunca têm culpa. Tudo o que pode­mos fazer é fiscalizá-los ou eliminá-los. A inocência é uma espécie de loucura».

- O Thé nunca teria feito uma coisa destas. Estou absolutamente convencido disso. Houve algúém que o enganou. Os comunistas... ­disse Pyle.

As suas boas intenções e a sua ignorância constituíam uma arma­dura inexpugnável. Deixei-o na praça e subi a Rua Catinat até àquele ponto em que a catedral horrenda, cor-de-rosa, bloqueava o caminho.

Os fiéis começavam a entrar: devia-os confortar poderem rezar aos mortos pelos mortos.

Em contrapartida eu tinha razões para me sentir agradecido. Phuong não estava com vida? Não tinha sido «prevenida»? Mas tudo o que me vinha à ideia era aquele torso lá na praça, aquele bebé ao colo da mãe. Esses não tinham sido avisados: não eram suficientemente im­portantes. Se a parada se tivesse realizado, não estariam todos eles também lá, por curiosidade, para verem os soldados, para ouvirem os oradores e lhes atirarem flores? Uma bomba de cem quilos não faz dis­criminações. Quantos coronéis mortos serão precisos para justificar a morte de uma criança e a de um condutor de trishaw quando se está a construir uma frente nacional democrática? Mandei parar um trishaw motorizado e disse ao condutor que me levasse ao Quai Mytho.

 

Tinha dado dinheiro a Phuong para ir com a irmã ao cinema. Era um processo de a afastar. Fui jantar com Domínguez e depois voltei para casa e fiquei à espera. Vigot apareceu às dez em ponto. Descul­pou-se, mas não ia beber porque estava muito cansado e podia ador­mecer. O dia fora muito comprido.

- Crimes, mortes súbitas?

- Não. Pequenos furtos. Alguns suicídios. Esta gente tem a loucura do jogo e quando não tem mais dinheiro para perder mata-se. Se eu ti­vesse sabido de antemão o tempo que teria de passar nas morgues tal­vez nunca tivesse escolhido a profissão de polícia. Não gosto do chei­ro de amoníaco. Olhe, acho que sempre vou beber uma cerveja.

- Desculpe, mas não tenho frigorífico.

- Ao contrário das morgues. Então um pequeno uísque inglês, se tiver.

            Recordei a noite em que fora com ele ao necrotério. Tinham tirado o cadáver de pyle como se fosse um tabuleiro de gelo.

- Então você já não volta para Inglaterra?

- E você tem andado a investigar a minha vida?

- Sim, tenho.

Estendi-lhe o copo de uísque por forma a que ele pudesse verificar como os meus nervos estavam calmos.

- Vigot, gostaria que você me dissesse a razão que o leva a pensar que eu estive envolvido na morte de Pyle. É uma questão de ter um motivo? Porque queria que Phuong voltasse? Ou acha que foi vingança de a ter perdido?

- Não, não acho. Não sou assim tão estúpido. Não é costume fi­car-se com um livro do nosso inimigo para recordação. Está ali, na pra­teleira, A Função do Ocidente. Quem é este York Harding?

            - É o homem que você procura, Vigot. Foi ele quem matou Pyle, lá de longe.

            - Não percebo.

            - É uma espécie de superjornalista: chamam-lhes correspondentes diplomáticos. Ele tem uma ideia e depois altera toda e qualquer situa­ção até que consiga coaduná-la à sua ideia. O Pyle veio para o Oriente cheio desta ideia do York Harding. Harding tinha aqui estado em tem­pos, durante uma semana, quando vinha de Banguecoque e ia a cami­nho de Tóquio. Pyle cometeu o erro de pôr em prática essa ideia. Har­ding falava de uma terceira força. Pyle arranjou-a: um pequeno impostor, um bandido com dois mil homens e alguns tigres mansos.             E meteu-se numa complicação.

- Isso nunca lhe acontece, não é verdade?

- Tenho evitado que me aconteça.

- Mas falhou, Fowler.

Não sei porquê, pensei no capitão Trouin e naquela noite, que me parecia ter passado há anos e anos, na casa de ópio em Haiphong. Que me dissera ele? Qualquer coisa acerca de todos nós acabarmos sempre por tomar partido, num momento de grande emoção. Eu disse a Vigot:

- Teria dado um óptimo padre. Que tem você que inspira confian­ça para uma confissão? Isto é, se porventura alguma coisa houvesse a      confessar.

- Nunca desejei confissões.

- Mas já as ouviu?

- De vez em quando.

-Será porque, tal como um padre, o seu ofício impõe, não que se si1nta chocado, mas que ofereça simpatia humana? «Monsieur Flic, tenho de lhe explicar exactamente as razões que me levaram a fazer num bo­lo o crânio daquela velha.» «Sim, Gustave, não se apresse e explique­          -me porque o fez.»

- Você tem uma imaginação fantástica. Mas não bebe, Fowler?

- Não acha de má táctica que um criminoso beba na presença de um oficial da Polícia?

- Eu nunca disse que você era um criminoso.

- Mas suponha que o álcool desencadeava, até num tipo como eu, o desejo de confissão? Na sua profissão não existe o segredo do confessionário.

- É raro que um homem que se confessa se preocupe por manter a confissão secreta: mesmo quando o confessor é um padre. As razões          que o levam a confessar-se são outras.

- Para se purificar?

- Nem sempre. Muitas vezes só pretende ver-se a si próprio com nitidez, tal como é. Por vezes está simplesmente farto de dissimula­ções. Você não é um criminoso, Fowler, mas gostaria de saber o que o         levou a mentir-me. Você esteve com Pyle na noite em que ele morreu.

- O que o leva a pensar isso?

- Não estou de maneira alguma convencido de que você o tivesse morto. Nunca usaria uma baioneta enferrujada.

- Enferrujada?

- É um dos pormenores que a autópsia revelou. No entanto, já lhe disse que não foi essa a causa da morte. Foi a lama do Dakow. Estendeu-me o copo para eu lhe servir outro uísque.

- Vejamos, você às seis e dez estava a beber uma bebida no Conti­nental, não é verdade?

- Estava.

- E às seis e quarenta e cinco esteve a falar com outro jornalista à

porta do Majestic?

            - Estive. Com o Wilkins. Já lhe disse tudo isto, Vigot. Naquela noite...

- Eu sei. Desde então dei-me ao trabalho de verificar o seu depoi­mento. É extraordinário como consegue lembrar-se de pormenores tão insignificantes.

            - Sou repórter, Vigot.

            - As horas não são perfeitamente exactas, mas não é possível ata­cá-lo pelo facto de você ter errado um quarto de hora aqui e uns dez minutos além. Não havia uma razão que o levasse a pensar que o tem­po era um factor importante. De facto, seria muito mais suspeito se vo­cê tivesse sido perfeitamente preciso.

- Não fui?

- Não. Você esteve a falar com o Wilkins às sete menos cinco.

- Mais outros dez minutos.

- Sim, tal como já lhe tinha dito. E quando chegou ao Continental tinham acabado de dar as seis.

            - O meu relógio anda sempre ligeiramente adiantado. Que horas tem você?

            - Dez horas e oito minutos.

            _ Pelo meu são dez horas e dezoito. Vê?

Não se deu ao trabalho de verificar.

- Então pelo seu relógio você errou vinte e cinco minutos na hora que me indicou como tendo estado a falar com o Wilkins. É um erro bastante considerável, não acha?

- Talvez eu tivesse automaticamente dado o desconto. Ou talvez tivesse acertado o relógio naquele dia. Faço-o às vezes.

- O que me interessa... é capaz de me deitar mais soda? Você pre­parou-me esta bebida sobre o forte... é o facto de você não estar abso­lutamente nada zangado comigo - disse Vigot. - Ser-se interrogado como eu o estou a fazer não é muito agradável.

- A situação desperta-me interesse, tal como um livro policial. E é preciso não esquecer que, como você já o afirmou, eu não matei o Pyle.

- Eu sei que você não estava presente quando o mataram.

- Não percebo qual é a sua intenção e o que quer provar ao de­vmonstrar que me enganei dez minutos aqui e cinco além.

- Fornece-nos uns intervalos, umas lacunas no tempo.

- Intervalos? Para quê?

- Para que Pyle pudesse vir aqui procurá-lo.

- Mas por que razão lhe interessa tanto provar isso?

- Devido ao cão.

- E à lama que ele tinha entre as unhas?

- Não era lama. Era cimento. Ele deve ter andado, enquanto se­guia Pyle naquela noite, sobre cimento ainda fresco. Lembrei-me de que no rés-do-chão deste edifício havia obras. Ainda as há. Passei por elas hoje à noite, ao entrar. Nesta terra trabalha-se até tarde.

            - E quantas casas haverá que estejam em obras e tenham cimento ainda fresco? Houve alguém que se lembrasse do cão?

            - Claro que lhes fiz essa pergunta. Mas se se lembrassem nada me teriam dito. Eu represento a Polícia.

Parou de falar e encostou-se para trás na cadeira, fitando o copo. Tive a sensação de que se lhe deparara qualquer analogia e que estava a quilómetros de distância. Uma mosca passeou-lhe pelas costas da mão e ele nem se deu ao trabalho de a enxotar, exactamente como Domínguez nunca o teria feito. Senti-me em presença de uma força imóvel e profunda. Podia, inclusivamente, estar a rezar.

Levantei-me, afastei as cortinas e entrei no quarto. Nada queria dele. Pretendi simplesmente afastar-me por momentos daquele silêncio sen­tado na cadeira. Os livros de imagens de Phuong estavam novamente na prateleira. Ela colocara entre os seus cosméticos um telegrama que me fora enviado: uma mensagem insignificante da sede de Londres. Não estava em estado de espírito para o abrir. Tudo era igual ao que fora antes de Pyle aparecer. Os quartos não mudam, os ornamentos fi­cam onde nós os colocamos: só o coração perece.

Voltei à sala de estar e Vigot levou o copo aos lábios.

- Nada tenho a dizer-lhe. Absolutamente nada - disse-lhe.

- Então vou andando. Não creio que seja necessário incomodá-lo de novo.

            Junto da porta virou-se para trás, como se lhe custasse abandonar a esperança: a sua esperança ou a minha.

- É estranho que você tivesse ido ver uma fita daquele gênero. Nunca pensei que gostasse desses dramas com gente mascarada. Que filme era esse? O Robin dos Bosques?

- Não, creio que foi Scaramouche. Precisava de passar tempo. E de       me distrair.

            - De se distrair?

            - Todos temos as nossas preocupações, Vigot - disse-lhe com cautela, à laia de explicação.

Depois de Vigot sair eu ainda tinha uma hora de espera à minha frente. À espera de Phuong, de companhia com vida. Era estranho co­mo a visita de Vigot me perturbara. Tinha a sensação de que um poeta me mostrara o seu trabalho para que eu o criticasse e que eu, com um gesto desastrado, o destruíra. Eu era um homem sem uma vocação. Não é possível considerar-se o jornalismo como uma vocação. Mas era-me possível reconhecer as vocações dos outros. Agora que Vigot partira para arquivar o seu dossier incompleto, desejava ter tido a cora­gem de o chamar e dizer: "Tem razão. É verdade que eu vi Pyle na noi­te em que ele morreu,..

 

A caminho do Quai Mytho cruzei-me com várias ambulâncias que saíam de Cholon a caminho da Place Garnier. Quase que era possível avaliar a velocidade com que as notícias se tinham espalhado pela ex­pressão das caras, que de princípio se viravam para alguém que, como eu, vinha da direcção da praça, com um ar expectante e de especula­ção. Quando entrei em Cholon vencera a corrida da grande novidade: a vida era normal, atarefada, contínua. Ninguém sabia de nada.

Dei com o armazém do Sr. Chou e subi as escadas que levavam à sua casa. Nada mudara desde a minha última visita. O gato e o cão deslocavam-se do chão para as caixas de papelão, destas para as ma­las, como peões num jogo de xadrez. O bebé gatinhava pelo chão e os dois velhos continuavam a jogar mab-Jang. Mas os jovens estavam au­sentes.

            Logo que cheguei à porta uma das mulheres começou a deitar chá numa xícara. A velha estava sentada na cama e olhava para os pés.

            - O senhor Heng está? - perguntei.  .

            Abanei a cabeça ao chá; o meu estado de espírito naquele momen­to não era de molde a permitir que eu começasse a ingerir uma nova série de xícaras daquela infusão trivial e amarga.

- Il faut absalument que je voie Mr. Heng. - Parecia-me impossível fazer-lhes compreender a importância do meu pedido. Mas creio que o facto de lhes ter recusa­do o chá com brusquidão provocou uma certa comoção. Ou talvez eu, tal como Pyle, tivesse sangue nos sapatos. O que é verdade é que, passado pouco tempo, uma das mulheres conduziu-me pelas escadas abaixo, por duas ruas barulhentas e embandeiradas, e deixou-me dian­te de uma casa que no país de Pyle se deveria chamar «agência funerá­ria», cheia de jarrões de pedra onde eventualmente se colocam os os­sos dos Chineses.

- Queria falar com o senhor Heng - disse a um velho chinês à porta. - Com o senhor Heng.

Parecia-me um bom local para descansar num dia que havia come­çado com a colecção erótica de um plantador e continuado com os ca­dáveres daquela gente assassinada na praça. Houve alguém que cha­mou lá de dentro e o chinês afastou-se para me dar entrada.

Foi o próprio Heng quem avançou com um ar cordial e me enca­minhou para uma pequena sala interior, rodeada daquelas cadeiras ne­gras, esculpidas, que se vêem em todas as salas de espera das casas chinesas. Cadeiras pouco confortáveis, nada acolhedoras, de que nin­guém se serve. Mas tive a sensação de que elas tinham acabado de ser utilizadas, porquanto sobre a mesa havia cinco pequenas xícaras, duas das quais não estavam vazias.

- Vim interromper uma reunião? - disse-lhe.

            - Um mero assunto de negócios sem importância - disse o Sr. Heng, rodeando a pergunta. - Tenho sempre imenso prazer em o ver, se­nhor Fowler.

- Venho da Praça Garnier.

- Sim, pensei que devia ser esse o assunto que o trazia aqui.

- Já sabe...

- Houve alguém que me telefonou. Acharam preferível que eu não fosse a casa do senhor Chou durante algum tempo.

- Mas o senhor nada tem a ver com o caso?

- É obrigação da Polícia encontrar um culpado.

- Foi novamente o Pyle?

- Foi.

- É uma coisa terrível, que se não devia fazer.

- O general Thé não é pessoa com grande poder de autodomínio. - E os plásticos não são para rapazes de Boston. Quem é o chefe

de Pyle, Heng?

- Tenho a impressão de que o senhor Pyle se chefia a si próprio. -Que 'é ele? O. S. S.?

- As iniciais não têm grande importância.

- E que posso eu fazer, Heng? É indispensável detê-lo.

- Pode publicar a verdade. Mas deixá-lo-ão publicar?

- O meu jornal não se interessa pelo general Thé. Só se interessa pelos seus compatriotas, Heng.

            - É sincero quando diz que é preciso impedir Pyle de continuar a fazer destas coisas, senhor Fowler?

- Gostaria que o tivesse visto, Heng. Disse-me que fora tudo um erro lamentável, que devia ter havido uma parada. Que precisava de limpar os sapatos antes de falar com o ministro.

            - O senhor podia contar à Policia tudo o que sabe.

            - Eles também não se interessam pelo general Thé. E pensa, por­ ventura, que se atreveriam a tocar num americano? Tem privilégios di­plomáticos. É licenciado pela Universidade de Harvard. O ministro tem muita estima por Pyle. Heng, vi uma mulher com um filho... escondia­-o debaixo do chapéu de palha. Não consigo deixar de pensar nisto. E em Phat Diem houve outros.

- Deve esforçar-se por manter a calma, senhor Fowler.

- Que irá ele fazer depois disto? Quantas bombas e crianças mor­tas se poderão obter com um tambor de Diolacton?

- Está disposto a ajudar-nos; senhor Fowler?

- Ele chega a esta terra, começa a fazer disparates e morre gente. Quem me dera que vocês o tivessem apanhado lá no rio, quando vi­nha de Nam Dinh. Ter-se-iam poupado muitas vidas

- Concordo consigo, senhor Fowler. É imprescindível detê-lo. Te­nho uma sugestão a fazer-lhe. - Do outro lado da porta houve al­guém que tossiu baixinho e depois expectorou ruidosamente.

- O senhor podia convidá-lo para jantar hoje consigo no Vieux Moulin. Entre as oito e meia e as nove e meia.

- Mas que resultaria...

- Falaríamos com ele durante o caminho.

- Ele pode estar comprometido.

- Talvez seja preferível pedir-lhe que passe por sua casa às seis e meia. A essa hora está livre e não faltará. Se porventura ele puder jan­tar consigo chegue à janela com um livro na mão, como que à procura            de mais luz.

- Mas porque escolheu o Vieux Moulin?

- Está perto da ponte que conduz a Dakow. Creio que não nos será difícil encontrar um sítio onde possamos conversar sem que nos inter­rompam.

- Que vai você fazer?

- Não me parece que isso lhe interesse, senhor Fowler. Mas pro­meto-lhe que actuaremos com todo o cuidado que a situação nos per­mitir.

Os amigos invisíveis de Heng deslocavam-se como ratos do outro lado da parede.

- Está disposto a fazer-nos isto, senhor Fowler?

- Não sei. Não sei.

- Mais tarde ou mais cedo - disse Heng, e eu lembrei-me do ca­pitão Trouin na casa de ópio - seremos forçados a tomar partido. Isto é, se pretendemos continuar a pertencer a raça humana.

 

Deixei na legação uma nota onde eu pedia a Pyle que me procu­rasse e depois subi a rua a caminho do Continental para tomar uma bebida. Já tinham limpo os destroços: a brigada de bombeiros fechara a praça. Naquela altura não tinha a menor ideia da importância que o tempo e o local iriam ter mais tarde. Cheguei mesmo a pensar em ficar ali sentado durante todo o fim da tarde e desmanchar o meu encontro. Depois pensei que se o avisasse do perigo que corria, e que eu desco­nhecia, talvez conseguisse assustar Pyle a ponto de o tornar inactivo. E assim acabei de beber a cerveja e fui para casa; logo que cheguei co­mecei a ter esperança de que Pyle não aparecesse. Tentei ler, mas as prateleiras nada tinham que conseguisse prender-me a atenção. Talvez eu devesse ter fumado um cachimbo, mas não havia quem o preparasse. Pus-me inconscientemente à escuta de passos e por fim ouvi-os. Bate­ram. Abri a porta, mas era Domínguez.            .

- Que há, Domínguez?

Olhou-me com um ar surpreendido.

- Que há? - Olhou para o relógio. - É a hora a que costumo vir. Tem telegramas?

- Desculpe. Tinha-me esquecido. Não, não tenho.

- Nem uma notícia sobre a bomba? Não quer mandar uma notícia?

- Oh, arranje-me você uma, Domínguez. Não sei bem porquê, mas creio que o facto de ter presenciado tudo aquilo me abalou ligei­ramente. Não consigo pensar no assunto em termos de um telegrama. - Dei uma palmada num mosquito que me zumbia ao ouvido e  Domínguez encolheu-se instintivamente.

- Não se assuste, Domínguez, não o consegui apanhar. - Ele sorriu tristemente. Não lhe era possível justificar esta relutância em tirar a vida: porque na realidade era cristão, um dos que haviam aprendido com Nero o processo de transformar em tochas os corpos humanos.

- Quer que lhe faça qualquer coisa? - perguntou-me. Não be­bia, não comia carne, não matava: invejava-lhe a brandura de pensa­mentos.

- Não, Domínguez. Hoje quero simplesmente ficar só. - Da jane­la vi-o afastar-se e atravessar a Rua Catinat. Em frente da minha janela estava estacionado um trishaw; Domínguez tentou ocupá-lo mas o con­dutor abanou a cabeça. Possivelmente esperava um cliente que entrara numa loja, dado que o local onde parara não era um parque de esta­cionamento para trishaws. Quando olhei para o relógio pareceu-me es­tranho verificar que só estava à espera havia pouco mais de dez minu­tos. Quando Pyle bateu nem lhe ouvira os passos.

            - Entre. - Mas, como de costume, quem entrou em primeiro lu­

gar- foi o cão.

            - Fiquei satisfeito ao receber o seu bilhete, Thomas... Esta manhã pensei que você estava furioso comigo.

            - Talvez estivesse. Não era um espectáculo muito agradável.

            - Você já sabe tanta coisa que não tem importância eu contar-lhe um pouco mais. Estive esta tarde com o Thé.

            - Esteve? Mas ele está em Saigão? Veio provavelmente ver os re­sultados da bomba.

- Isto fica entre nós. Tratei-o com muita severidade. - Falava co­mo um chefe de uma equipa escolar que apanhasse um dos rapazes a não praticar os treinos. No entanto perguntei-lhe com uma certa espe­rança:

- Desligou-se dele?

- Disse-lhe que se fizesse nova demonstração sem directivas nós nada mais teríamos a ver com ele.

- Mas você não se desligou dele completamente, Pyle? Empurrei com impaciência o cão, que me cheirava os tornozelos.

            - Não me é possível. (Senta-te, Duke.) No fundo é a nossa única esperança. Se, com a nossa ajuda, ele conseguisse alcançar o poder nós poderíamos confiar nele...

            - Quantas pessoas terão de morrer para que você se compe­netre...?

            No fundo eu sabia que estava a argumentar em vão.

- Me compenetre de quê, Thamas?

- De que em matéria de política nãa existe gratidão.

- Pela menos não nos detestarão como detestam os Franceses.

- Tem a certeza? Nós por vezes sentimos uma espécie de amor pelos nossos inimigos e de ódio pelos amigos.

- Fala como um europeu, Thomas. Esta gente não é complicada.

- Foi isso o que conseguiu aprender durante estes meses? Não me espanta que dentro em pouco as classifique de crianças.

- Bom... de certo modo...

- Aponte-me uma criança que não seja complicada, Pyle. Quando se é novo é-se um emaranhado de complicações. À medida que avan­çamos nas anos vamo-nos simplificando. - Mas de que servia falar com ele? As nassas argumentações ressumavam irrealidade. Eu come­çava a transformar-me antes de tempo num escritor de artigos de fundo.        Levantei-me e dirigi-me à estante.

- Que procura, Thomas?

- Oh, uma frase que em tempos me agradou. Quer jantar comigo, Pyle?

- Terei imenso gosto, Thomas. Estou imensamente satisfeito por você já não estar zangado comigo. Sei que não concorda com as mi­nhas ideias, mas podemos discordar e continuar a ser amigos, não é verdade?

- Não sei. Penso que não é possível.

- É preciso não esquecer que Phuong era muita mais importante de que tudo isto.

- Você acredita plenamente no que está a afirmar?

- Com certeza. Ela é a coisa mais importante do mundo para mim. E para si, Thomas?

- Para mim já não é.

- Esta coisa de hoje abalou-nos imenso, Thomas, mas vai ver que dentro de uma semana já nos teremos esquecido. Nós estamos tam­bém a ocupar-nos das famílias.

- Nós?

- Telegrafámos para Washington. Vamos obter autorização para dispormos de uma parte dos nossos fundos.

Interrompi-o.

- Na Vieux Moulin? Entre as nove e as nove e meia?

- Onde lhe agradar, Thomas. - Dirigi-me à janela. O Sal descera abaixo dos telhados. O condutor de trishaw continuava à espera do seu passageiro. Baixei a cabeça para olhar e ele levantou a cara na mi­nha direcção.

- Você está à espera de alguém, Thomas?

- Não, não estou. Procurava simplesmente uma passagem.

A fim de encobrir a minha acção comecei a ler, segurando o livro direito e virado para a derradeira noite:

 

Conduzo o meu carro pelas ruas e estou-me nas tintas,

 As pessoas olham para mim e perguntam quem sou;

E se por acaso atropelo um pulha,

Posso pagar os danos, quaisquer que eles sejam.

 Que bom ter dinheiro, hurra!

Que bom ter dinheiro!

 

            - Esse poema é muito estranho - disse-me Pyle com um ar de censura.

            - Foi escrito por um poeta adulto do século XIX. Não havia muitos.

            - Olhei novamente para a rua. O condutor do trishaw afastara-se.

            - As suas bebidas acabaram?

- Não, mas pensei que você não...

- Talvez esteja a tornar-me mais normal. É da sua influência. Você deve ter um efeito benéfico sobre mim, Thomas.

Fui buscar a garrafa e os copos: esqueci-me de um copo e depois foi preciso ir buscar água. Tudo o que eu fiz naquela noite levou mui­to tempo.

- Sabe?, a minha família é estupenda, mas é possível que seja ligeiramente rígida. Vivemos numa daquelas velhas casas de Chestnut Street, quando se sobe a encosta, do lado direito. A minha mãe colec­ciona objectos de vidro e o meu pai (quando não anda a desgastar os velhos penhascos) passa o tempo a procurar manuscritos de Darwin e suas cópias. Como vê, vivem no passado. Talvez fosse por isso que York me causou tanta impressão. Pareceu-me como que receptivo às condições actuais. O meu pai é um isolacionista - disse-me.

- Seria muito possível que eu me entendesse com o seu pai. Tam­bém sou isolacionista.

Para um homem habitualmente calado não havia dúvidas de que naquela noite Pyle estava muito falador. Não ouvi tudo o que ele disse porque os meus pensamentos estavam algures. Tentei convencer-me de que o Sr. Heng dispunha de meios diferentes do meio óbvio e cru. Mas eu sabia que numa guerra como esta não há tempo para hesita­ções: no caso dos Franceses a bomba de napalm e no caso do Sr. Heng uma bala ou a faca. Disse-me a mim próprio, já demasiadamente tarde, que não tinha feitio para juiz: deixaria que pyle falasse durante algum tempo e depois avisá-lo-ia. Ele podia passar a noite na minha casa. Não era natural que viessem aqui procurá-lo. Creio que falava da velha ama que tivera...

- Eu gostava mais dela do que da minha mãe. E que tortas que ela fazia! - quando o interrompi.

- Você agora anda armado? Desde aquela noite?

- Não, não ando. Temos ordens da legação.

- Mas você não está numa missão especial?

- De nada serviria. Se quisessem dar cabo de mim ser-lhes-ia sem­pre possível. Eu nunca vejo nada. Na escola chamavam-me Morcego porque de noite eu via tão bem como eles. Em dada ocasião, quando andávamos... - E recomeçou com as suas divagações. Voltei à janela.

Em frente estava parado um condutor de trishaw. Não tinha a certeza - eles são tão parecidos - mas pareceu-me que não era o mesmo. Talvez houvesse efectivamente um cliente. Ocorreu-me que Pyle esta­ria mais seguro na legação. Em virtude do meu sinal eles deviam já ter feito os seus planos para mais tarde, planos que envolviam a ponte de Dakow. Não percebia como nem porquê: não acreditava que ele fosse inconsciente ao ponto de atravessar a ponte depois do pôr do Sol. E o nosso lado da ponte estava sempre guardado por polícia armada.

            - Só quem fala sou eu - disse Pyle. - Não sei porquê, mas hoje à noite...

            - Continue - disse-lhe. - Não me apetece falar, é tudo. Talvez seja melhor desistirmos do jantar.

            - Não, não faça isso. Tenho-me sentido afastado de si desde...bom...

            - Desde que você me salvou a vida - disse-lhe, sem conseguir mascarar a amargura da ferida que eu próprio abrira.

- Não, não era a isso que me referia. Mas é bem verdade que nessa noite não parámos de falar. Como se se tratasse da nossa última noite. Fiquei a saber muita coisa a seu respeito, Thomas. Note, não concordo consigo, mas pode acontecer que no seu caso seja o caminho a seguir. Refiro-me a não tomar partido. Não há dúvida de que você se tem mantido firme na sua atitude. Continuou neutro, mesmo depois de fracturar a perna.

            - Há sempre o momento em que se atinge o ponto de viragem. Num momento de emoção...

- Você ainda não o atingiu. Duvido de que chegue a atingi-lo. E não creio que me seja possível mudar. A não ser com a morte ­acrescentou alegremente.

            - Nem mesmo com o que aconteceu esta manhã? Não é caso para

fazer alguém mudar de ideias?

- Houve mais uns quantos mortos na guerra. Foi uma pena, mas nem sempre é possível atingir o alvo. E no fundo morreram por uma causa justa.

- E se se tivesse tratado da sua velha ama, a que fazia as tortas de        fruta?

Ignorou este meu argumento fácil.

- De certo modo, podemos dizer que morreram pela democracia - disse-me.

- Não me seria possível traduzir isso em vietnamita. - Subitamen­te senti-me extremamente cansado. Desejei que se fosse rapidamente embora para a morte. Eu poderia então recomeçar a viver: a viver a partir do momento em que ele entrara na minha vida.

- Você nunca me toma a sério, não é verdade, Thomas? - lamen­tou-se, com aquela alegria de colegial que parecia ter reservado exac­tamente para esta noite. - Ouça, Phuong está no cinema. Que diz a passarmos a noite juntos? Não tenho mais nada para fazer. - Dava a sensação que alguém o orientava na escolha das palavras por forma a roubar-me todas as possíveis desculpas. Continuou: - E se fôssemos ao Chalet? Desde aquela célebre noite nunca mais lá voltei. A comida que eles servem é tão boa como a do Vieux Moulin e sempre há mú­sica.

- Prefiro não recordar essa noite.

- Desculpe. Por vezes comporto-me como um idiota. E que lhe parece um jantar chinês em Cholon?

- Para se jantar bem é indispensável encomendar com antecedên­cia. O Vieux Moulin assusta-o, Pyle? Está bem protegido por arame far­pado e na ponte há sempre polícias. E nunca lhe passaria pela cabeça atravessar a ponte até Dakow, pois não?

            - Não se trata disso. - Pensei que seria divertido fazermos uma noitada.

Fez um movimento e tombou o copo, que se estilhaçou no chão. - Boa sorte - disse mecanicamente. - Desculpe, Thomas. - Comecei a apanhar os pedaços de vidro e a colocá-los no cinzeiro. - Que diz, Thomas? - O copo partido lembrou-me as garrafas do Pavillon Bar esvaziando-se. - Avisei Phuong de que provavelmente sairia con­sigo. - Que mal escolhida era a palavra «avisar»! Apanhei o último fragmento de vidro:

- Tenho um encontro no Majestic e não estou li­vre antes das nove.

- Então terei de voltar ao escritório. Mas receio sempre que me apanhem lá e que depois já não possa sair.

Não havia grande mal em lhe oferecer esta oportunidade. - Não se preocupe se por acaso estiver atrasado. E caso o detenham no escri­tório passe por aqui mais tarde. Eu voltarei às dez, se você não apare­cer para jantar, e esperarei por si.

- Avisá-lo-ei...

- Não se incomode. Apareça no Vieux Moulin ou então cá por casa.

- Entreguei a decisão àquela entidade em que eu não acreditava: se quisesse, podia intervir. Um telegrama sobre a secretária, uma mensa­gem do ministro. A menos que se tenha o poder de alterar o futuro, a existência não é possível. - E agora vá-se embora, Pyle. Tenho coisas para fazer. - Senti-me estranhamente exausto ao ouvi-lo afastar-se, acompanhado pelo pisar das patas do cão.

 

Quando saí só encontrei trishaws na Rua d'Ormay. Desci a pé até ao Majestic e parei algum tempo para contemplar os bombardeiros americanos que estavam a descarregar. O Sol desaparecera e trabalha­vam à luz de lâmpadas de arco. Não pensava em arranjar um álibi, mas dissera a Pyle que ia ao Majestic e sentia uma repugnância inexplicável em dizer mais mentiras do que as absolutamente necessárias.

- Boa noite Fowler. - Era o Wilkins.

- Boa noite.

- Como vai essa perna?

- Já não me maça.

- Mandou um bom artigo?

- Deixei isso ao cuidado de Domínguez.

- Ah, disseram-me que você esteve presente.

- E é verdade. Mas hoje em dia há falta de espaço. Eles não que­rem notícias muito extensas.

- O prato perdeu o sabor, não é verdade? - disse-me Wilkins. - Devíamos ter vivido no tempo de Russel e do velho Times. - Men­sagens enviadas por meio de balões. Nesses tempos era possível escre­verem-se coisas de jeito. O Russel teria conseguido encher uma coluna com isto. O hotel de luxo, os bombardeiros, a noite a cair. Hoje a noite nunca cai. Se lhe parece, com as piastras que nos pagam por palavra. De cima, do alto do céu, vinha um som ténue de gargalhadas: tal co­mo Pyle, houve alguém que partiu um copo. O som caiu-nos em cima como pedaços de gelo. - «As luzes brilhavam sobre as mulheres  formosas e homens de valentia» - citou Wilkins com maldade. - Tem alguma coisa de especial para esta noite? Que diz a irmos comer qual­quer coisa?

- Já estou comprometido para jantar. No Vieux Moulin.

- Divirta-se. O Granger também vai. Eles deviam fazer uma propa­ganda especial nas noites em que Granger vai lá jantar. Para todos aqueles que gostem de ruídos de fundo.

Dei-lhe as boas-noites e entrei no cinema ao lado: Errol Flyn, ou talvez fosse Tyrone Power (quando usam trousses não consigo distin­gui-los) balouçava-se em cordas, saltava de varandins e andava a cava­lo de tronco nu pelo romper do dia em technicolor. Salvou uma rapari­ga, matou o inimigo e viveu uma vida de encantamento. Tratava-se de uma daquelas fitas para rapazes, mas estou certo de que ficariam mais bem preparados para a vida actual se lhes mostrassem o Édipo saindo do palácio de Tebas com os olhos escorrendo sangue. Hoje não há vi­das encantadas. A sorte estivera com Pyle em Phat Diem e na estrada de Tanyin, mas a sorte não é eterna e eles tinham duas horas para se prepararem e eliminarem qualquer possibilidade de um encantamento. A meu lado estava um soldado francês com a mão da namorada no co­lo e invejei-lhe a simplicidade da sua felicidade ou desgraça, qualquer que fosse o caso. Saí antes de a fita acabar e meti-me num trishawa ca­minho do Vieux Moulin.

O restaurante estava protegido das granadas com arame farpado e no fim da ponte havia de serviço dois polícias armados. O dono da ca­sa, que engordara com a suculenta cozinha da Bargonha, abriu-me passagem por entre o arame. No calor pesado da noite a casa cheirava a capões e a manteiga derretida.

- Pertence ao grupo do Monsieur Granjair? - perguntou-me.

- Não.

- Mesa para uma pessoa? - foi a primeira vez que pensei no futu­ro e nas perguntas a que teria de responder.

- Sim, para uma pessoa - respondi-lhe, e foi quase como se tivesse dito em voz alta que Pyle morrera.

Só havia uma sala e Granger e o seu grupo de amigos ocupavam uma enorme mesa ao fundo. Não havia vidraças, com receio dos vi­dros estilhaçados. Conhecia alguns dos convidados de Granger e cum­primentei-os com uma inclinação de cabeça antes de me sentar. Gran­ger desviou os olhos. Havia meses que não o via: desde a célebre noite em que Pyle se apaixonara só o vira uma vez. Era possível que naquela noite alguma minha observação ofensiva lhe tivesse penetrado o nevoeiro alcoólico, dado que estava com ar carrancudo sentado àcabeceira da mesa, enquanto Madame Desprez, a esposa de um ofi­cial, e o capitão Duparc, dos serviços de ligação da imprensa, baixa­vam a cabeça em sinal de aprovação e gesticulavam. Havia um homem alto, que eu cria ser hoteleiro em Pnom penh, uma rapariga francesa que eu nunca vira e mais duas ou três outras caras que eu só vira pe­los bares. Por uma vez parecia uma reunião sossegada.

Encomendei um pastis porque queria dar tempo a que Pyle chegas­se: os planos podiam alterar-se e enquanto eu não começasse a jantar tinha como que a sensação de ainda haver tempo para ter esperança. Depois tentei definir aquilo em que eu tinha esperança. Felicidades aos O. S. S., ou a qualquer que fosse o nome da sua quadrilha? Uma longa vida às bombas de plástico e ao general Thé? Ou dar-se-ia o ca­so de eu - coisa extraordinária - ter esperança num milagre? Um processo de discussão, conseguido pelo Sr. Heng, que não significasse simplesmente a morte? Teria sido tão mais fácil se tivéssemos morrido ambos na estrada de Tanyin... Levei vinte minutos a beber o pastis e depois encomendei o jantar. Pouco faltava para as nove e meia: ele já não viria.

Contra a minha vontade pus-me à escuta; à escuta de quê? De um grito? De um tiro? De algum movimento dos polícias lá fora? O que quer que acontecesse era muito provável que eu não ouvisse porque o grupo de Granger começava a aquecer. O hoteleiro, de voz agradável, mas não cultivada, começou a cantar, e com o estampido da abertura de nova garrafa de champanhe os outros fizeram o coro. Só Granger ficou calado. Iria haver zaragata? Eu não tinha físico para me bater com Granger.

Cantavam uma canção sentimental, e enquanto eu, sem fome, en­frentava um Chapon Duc Charles pensei em Phuong pela primeira vez desde que soubera que ela estava sã e salva. Recordei o que Pyle dis­sera, sentado no chão, enquanto esperávamos que os viets chegassem: "Ela tem a frescura de uma flor». Ao que eu respondera com petulân­cia: «Pobre flor». Ela nunca chegaria a ver a Nova Inglaterra ou a apren­der os segredos da canasta. Talvez nunca chegasse a conhecer o signi­ficado da segurança. Que direito tinha eu de considerá-la de menor valor do que os cadáveres lá na praça? O sofrimento não aumenta com o número: um só corpo pode conter todo o sofrimento sentido pelo mundo. À maneira de um jornalista, eu julgara em termos de quantida­de e atraiçoara os meus princípios; ficara tão engagé como Pyle e tinha a sensação de que jamais me seria fácil tomar uma decisão. Olhei para o relógio. Eram quase dez menos um quarto. Talvez ele tivesse acaba­do por ficar preso na legação; talvez aquele «alguém» em que ele acre­ditava tivesse actuado em seu favor, e Pyle estivesse neste momento no seu gabinete da legação preocupado no decifrar de um telegrama em código e dentro em breve galgasse as escadas até ao meu quarto da Rua Catinat. Pensei: «Se ele vier contar-lhe-ei tudo».

Granger levantou-se repentinamente da mesa e aproximou-se de mim. Nem mesmo viu a cadeira no seu caminho, tropeçou nela e pou­sou a mão na beira da minha mesa.

- Fowler - disse-me - venha comigo lá fora.

            Deixei sobre a mesa o dinheiro suficiente para pagar a conta e se­gui-o. O meu estado de espírito não era conforme a lutar com ele, mas naquele momento não me teria importado se ele me tivesse sovado até à inconsciência. Os processos para mitigar o remorso eram tão escassos...         Debruçou-se sobre o parapeito da ponte e os dois polícias ficaram

            a observá-lo a distância.

            - Preciso de falar consigo, Fowler - disse-me.

Aproximei-me até ao alcance da sua mão e fiquei à espera. Não se

mexeu. Parecia uma estátua simbólica de tudo o que eu odiava na América: tão mal desenhada e tão sem sentido como a estátua da Li­berdade.

Disse-me, sem fazer qualquer movimento:

- Você pensa que eu estou «grosso». Mas engana-se.

- Que se passa, Granger?

            - Tenho de falar consigo, Fowler. Esta noite não quero ficar ali sentado com aquelas rãs. Eu não gosto de si, Fowler, mas você fala in­glês. Uma espécie de inglês. - Estava encostado à ponte, volumoso e disforme à meia luz. Um continente inexplorado.

- Que quer, Granger?

            - Eu não gosto dos Ingleses. Não percebo como o Pyle o conse­gue tolerar. Talvez por ser de Boston. Eu sou de Pittsburgh e orgulho­-me disso.

- E porque não?

            - Lá está você. - Tentou, sem grande êxito, imitar o meu sota­que. - Vocês falam como se tivessem a boca cheia. São tão superio­res... Estão convencidos de que sabem tudo.

- Olhe, boa noite, Granger. Eu tenho uma entrevista.

- Não se vá embora, Fowler. Que diabo, você não tem coração? Eu não posso falar àquelas rãs.

            - Você está bêbedo.   - Bebi duas taças de champanhe e mais nada. E não acha que no meu lugar também estaria «grosso»? Tenho de partir para o Norte.

            - E que mal há nisso?

            - Oh, é verdade, ainda não lhe disse, pois não? Tenho a impres­são de que toda a gente sabe. Esta manhã recebi um telegrama da mi­nha mulher.

- Sim?

- O meu filho está com uma poliomielite. Está mal.

- Lastimo imenso, Granger.

- Não precisa de ter pena. O filho não é seu.

- Não pode meter-se num avião e ir até lá?

- Não posso. Eles querem uma história sobre umas malditas ope­rações militares de limpeza perto de Hanói e o Connolly está doente. (Connolly era o seu assistente.)

- Lastimo imenso. Gostaria de o poder ajudar.

- Ele faz hoje anos. Pela nossa hora faz oito anos às vinte e duas e meia. Foi por isso que eu arranjei, antes de saber o que se passava, es­ta festança com champanhe. Tinha de dizer isto a alguém, Fowler, e não posso falar com aquelas rãs.

- Actualmente há muitos tratamentos para a paralisia infantil.

- Eu não me importo que ele fique aleijado, Fowler. Só quero que viva. Se se tratasse de mim, eu aleijado de nada serviria. Mas ele é es­perto. Você sabe o que eu tenho feito ali dentro enquanto aqueles ma­landros cantam? Estive a rezar. Pensei que se Deus quer uma vida tal­vez não se importasse de levar a minha.

- Então você crê em Deus?

- Quem me dera acreditar - disse Granger.

            Passou a mão pela cara, como se lhe doesse a cabeça, mas o movi­mento nada mais era que um disfarce para limpar as lágrimas.

            - No seu caso embebedava-me.

- Oh, não. Não posso embebedar-me. Não quero pensar mais tar­de que na noite em que o meu filho morreu eu estava perdido de bê­bedo. A minha mulher não pode beber, não é verdade?

- Mas não pode dizer ao seu jornal que...

- O Connolly não está doente. Anda lá por Singapura atrás de uma mulher. E eu tenho de o encobrir. Se soubessem despediam-no. - Endireitou o corpo disforme e continuou: - Desculpe tê-lo feito perder tempo. Mas precisava de dizer isto a alguém. Agora tenho de voltar lá para dentro e começar com as saúdes. É estranho que tenha sido consigo, dado que você não me tolera.

- Eu podia fazer-lhe a reportagem. Fingiria ser o Connolly.

- O seu sotaque não engana ninguém.

- Não pense que eu não gosto de si, Granger. Tenho andado cego para muitas coisas...

            - Ora, você e eu somos como gato e cão. Mas agradeço-lhe a comiseração.

Seria eu afinal tão diferente de Pyle? Dar-se-ia o caso de também eu só me aperceber do sofrimento quando me forçavam, me empurra­vam para as complicações da vida?

Granger entrou e eu ouvi as vozes elevarem-se para o saudar. En­contrei um trishaw e fomos para casa a pedalar. Ninguém lá estava; sentei-me e fiquei à espera até à meia-noite. Depois, já sem esperança, saí e encontrei Phuong.

 

- Monsieur Vigot já veio falar contigo? - perguntou-me Phuong.

- Já. Saiu há um quarto de hora. A fita era boa? - Ela já trouxera o tabuleiro para o quarto e estava a acender a lamparina.

- Era muito triste, mas o colorido era lindo. Que queria Monsieur Vigot?

- Queria fazer-me algumas perguntas.

- Acerca de quê?

- Ora, perguntar-me isto e aquilo. Não creio que tencione maçar­-me novamente.

            - Gosto mais dos filmes que acabam bem. Estás pronto para co­meçar a fumar?

            - Estou.

            Estendi-me sobre a cama e Phuong entrou em actividade com a agulha.

- Cortaram a cabeça da rapariga - disse-me.

- Mas que coisa tão estranha para alguém fazer.

- Passou-se durante a Revolução Francesa.

- Ah, já percebo. Uma fita histórica.

- Apesar disso foi muito triste.

- Eu não consigo preocupar-me muito com essa gente de que re­za a História.

- E o seu amante voltou para o sótão onde vivia, sentia-se muito infeliz e escreveu uma melodia. Sabes? Era poeta, e dentro em breve todos aqueles que tinham tido influência na decapitação da sua namo­rada cantavam a cantiga que ele escreveu. Chama-se a Marselhesa.

- Não parece lá muito histórico.

- Enquanto eles cantavam ele ficou na orla da multidão com um ar muito amargo e quando sorriu percebia-se que ainda sentia mais amargura e que estava a pensar nela. Eu chorei muito e a minha irmã           também.

- A tua irmã chorou? Custa-me a acreditar.

- Ela é muito sensível. Aquele homem horrível, o Granger, tam­bém lá estava. Bêbedo e sem parar de rir. Mas não era nada engraçado. Era bem triste.

- Não o censuro. Tem uma coisa importante para celebrar. O filho está livre de perigo. Disseram-me hoje no Continental. Eu também gosto que as coisas acabem bem.

            Depois de fumar dois cachimbos deitei-me para trás com a cabeça encostada na almofada de cabe daI e pousei a mão no colo de Phuong.

            - Sentes-te feliz?

            - Claro que me sinto - respondeu-me descuidadamente. Eu não merecia uma resposta mais reflectida.

- Está tudo na mesma - menti. - Como há um ano.

- Pois está.

- Há muito tempo que não compras um lenço novo. Porque não vais amanhã fazer umas compras?

- É feriado.

- Tens razão. Tinha-me esquecido.

- Ainda não abriste o telegrama - disse Phuong.

- Não. Já me esquecia disso também. Esta noite não quero pensar em assuntos de trabalho. E já é muito tarde para mandar o que quer que seja. Diz-me mais coisas sobre a fita.

- Bem, então o seu amante tentou salvá-la. Introduziu-se na pri­são disfarçado com um fato de rapaz e um boné semelhante ao do car­cereiro, mas exactamente no momento em que ela atravessava o por­tão o cabelo da rapariga caiu e ouviram-se gritos: Une aristocrate, une aristocrate. Creio que este pedaço foi um erro. Deviam tê-la deixado fugir. Então poderiam ambos ter ganho muito dinheiro com aquela cantiga e i.clo para o estrangeiro, para a América... ou para a Inglaterra - acrescentou, pensando que se estava a portar com astúcia.

- Talvez não seja má ideia eu ler o telegrama. Só peço a Deus que não me mandem amanhã para o Norte. Quero ficar aqui sossegado contigo.

Ela tirou o sobrescrito de entre os boiões de creme e deu-mo. Abri­-o e li: Reconsiderei a tua carta stop actuo irracionalmente como era teu desejo stop dei ordens meu advogado começasse tratar divórcio motivo aban­dono stop Deus te proteja afectuosamente Helen.

- Tens de partir?

- Não, não tenho. Lê. Tens o que querias: tudo a acabar bem. Ela saltou da cama.

- Mas é maravilhoso. Tenho de ir dizer à minha irmã. Vai ficar tão

contente. Dir-lhe-ei: «Sabes quem sou? Sou a segunda senhora Fou­laire».

À minha frente, na estante, A Importância do Ocidente destacava-se como um retrato: o retrato de um jovem, de cabelo cortado muito cur­to, com um cão a seguir-lhe os passos. Já não podia prejudicar nin­guém. Eu disse a Phuong:

- Tens muitas saudades dele?

- De quem?

- De Pyle. - Era estranho como mesmo agora, quando falava com ela, me era impossível tratá-lo pelo nome de baptismo.

- Importas-te que eu vá já? A minha irmã vai ficar muito excitada com a notícia.

- Uma vez, quando dormias, chamaste por ele.

- Nunca me lembro do que sonho.

- Vocês podiam ter feito tantas coisas juntos. Ele era novo.

- Tu não és velho.

- E os arranha-céus? E o Empire State Building?

Ela hesitou ligeiramente e depois:

- Eu quero ver a garganta de Cheddar.

- Não é o Grande Canyon. - Puxei-a para a cama. – Tenho imensa pena, Phuong.

- Pena de quê? É um telegrama maravilhoso. A minha irmã...

- Sim, vai dizer à tua irmã. Mas dá-me primeiro um beijo. - A sua boca excitada deslizou sobre a minha cara e depois ela saiu.

Pensei no primeiro dia e em Pyle sentado a meu lado no Continen­tal, com os olhos fixos no bar de batidos do outro lado da rua. Desde que ele morrera a minha vida passara a correr bem. Mas como deseja­va que existisse alguém a quem eu pudesse dizer que tinha pena.

 

                                                                                            Graham Greene  

 

                      

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