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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AMOR DE LADY LIANA / Jude Deveraux
O AMOR DE LADY LIANA / Jude Deveraux

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Os mais belos cavalheiros ingleses rendiam homenagens à rica Liana Neville, mas o desacreditado guerreiro Rogam Peregrine era o único que não ocultava seus intensos desejos. Suas ardentes carícias converteram em fogo líquido o sangue de Liana, e ela jurou que este homem magnífico e selvagem seria seu.Em um gesto audaz, a delicada beleza lhe outorgou sua mão -e o mais rico dote do país. Mas ele estava envolvido em uma feroz disputa: pelo amor traído, os irmãos mortos e o lar ancestral usurpado. No castelo de Rogam, Liana organizaria seu sítio de amor... para resgatar o espírito arrasado e conquistar o coração indomável desse homem...

 


 


Capítulo 1
Inglaterra, 1445

—Parte sua filha ou vou eu —disse asperamente Helen Neville, as mãos na cintura, o olhar cravado em seu marido Gilbert. Ele estava comodamente instalado no assento acolchoado da janela, o sol atravessando as persianas de madeira pintadas de azul da velha janela de pedra. Estava coçando as orelhas de seu cachorro favorito, e saboreava apetitosos pedaços de carne moída.
Como de costume, Gilbert não respondeu a sua reclamação e ela fechou os punhos, irritada. Gilbert tinha doze anos mais e era o homem mais preguiçoso que Helen conhecera. Em que pese a que dedicava todos seu tempo à equitação, seguindo a pista de um falcão, seu ventre era volumoso e aumentava dia após dia. É obvio, ela o desposou por seu dinheiro, por sua baixela de ouro, seus milhares de hectares de terra, seus oito castelos (dois dos quais ele jamais vira), seus cavalos e seu exército de homens, os formosos vestidos que ele podia oferecer a ela e suas duas filhas. Helen lera uma lista das propriedades de Gilbert Neville e respondeu afirmativamente à proposta de matrimônio sem pedir sequer uma entrevista com o candidato.
E agora, um ano depois do casamento, Helen se perguntava: Se tivesse conhecido Gilbert e sido advertida de sua ociosidade, teria se perguntado quem administrava suas propriedades? Contava com os serviços de um mordomo de hierarquia superior? Sabia que ele, tinha só uma filha legítima, uma jovem pálida, de atitude tímida, que não havia dito uma palavra a Helen antes do matrimônio; mas possivelmente Gilbert tinha um descendente ilegítimo que administrava suas posses.
Depois que se casaram, Helen soube que tinha um marido tão preguiçoso na cama como fora dela e descobriu quem administrava as propriedades dos Neville.
Liana! Helen desejava não ter ouvido jamais esse nome. Essa filha de Gilbert, de aspecto terno e atitude tímida, era o demônio disfarçado. Liana, como sua mãe antes dela, dirigia tudo. Ocupava um lugar frente à mesa do mordomo, enquanto os camponeses pagavam suas rendas anuais. Percorria a cavalo a campina, vigiava os campos e ordenava a reparação dos tetos quebrados. Liana determinava quando um castelo se converteu em um lugar excessivamente sujo e as colheitas eram muito escassas, de modo que os arrendatários recebiam a ordem de desalojá—lo. Durante o último ano, Helen três vezes se inteirou de situações semelhantes, ao ver que uma criada preparava sua bagagem.
De nada servira explicar a Gilbert ou a Liana que ela era agora a senhora da propriedade, e que a jovem devia renunciar a seu poder em favor de sua madrasta. Ambos se limitaram a olhar com curiosidade a Helen, como se um dos canais de pedra da fonte tivesse começado a falar; depois, Liana retornara a suas tarefas como administradora e Gilbert a sua eterna preguiça.
Helen tentou lidar por iniciativa. Durante um certo tempo tivera êxito, até que descobriu que cada criado pedia a confirmação de Liana antes de executar uma ordem.
A princípio, as queixa de Helen a Gilbert foram moderadas, e geralmente depois que ela o agradava na cama.
Gilbert lhe prestou escassa atenção.
—Deixa que Liana faça o que lhe agrade, não pode impedi—la. Seria impossível detê—la, como tampouco a sua mãe, como não se poderia impedir a queda de um penhasco. Era e é melhor afastar—se de seu caminho.
Depois, continuou dormindo, mas Helen permaneceu acordada a noite inteira, seu corpo ardendo de cólera.
Pela manhã decidira que também ela seria um penhasco. Tinha mais anos que Liana, e se fosse necessário podia demonstrar muito mais astúcia. Depois do falecimento de seu primeiro marido, e de que seu irmão mais novo herdasse a propriedade, Helen e suas duas filhinhas foram afastadas por sua cunhada. Helen teve que suportar que as tarefas que outrora estiveram sob sua responsabilidade ficassem a cargo de uma mulher mais jovem e muito menos competente. Quando chegou a proposta de Gilbert Neville, Helen se jogou sem vacilar sobre a oportunidade de voltar a ter seu próprio lar, sua própria casa. Mas agora o usurpava uma jovem miúda e pálida, que devia ter casado e abandonado o lar de seu pai vários anos antes.
Helen tratou de falar com Liana, explicar os prazeres que podia achar na companhia de seu próprio marido, seus filhos e sua casa.
Liana a olhou com aqueles grandes olhos azuis e luminosos, parecia tão submissa como um anjo que adornava o teto da capela.
—Mas, quem atenderá as propriedades de meu pai? —limitou—se a perguntar.
Helen chiou os dentes.
—Eu sou a esposa de seu pai. Farei o que for necessário.
Liana entrecerrou os olhos e contemplou o suntuoso vestido de Helen, com sua larga cauda e o profundo decote na frente e atrás, que deixava descoberto uma parte considerável dos formosos ombros, o colo com seus acolchoados e seus exuberantes bordados e sorriu.
—O sol a queimaria se usasse isso.
Helen tratou de defender—se.
—Vestiria—me apropiadamente. Estou segura que posso montar tão bem como você. Liana, não está bem que continue na casa de seu pai, tem quase vinte anos. Deveria ter seu próprio lar, seu próprio...
—Sim, sim —disse Liana. —Sem dúvida tem razão, mas agora tenho que ir. Ontem à noite houve um incêndio na aldeia, e devo examinar os danos.
E Helen permaneceu ali, o rosto avermelhado, o humor sombrio. Do que lhe servia ser a esposa de uns dos homens mais ricos da Inglaterra, viver em diferentes castelos onde as riquezas ultrapassavam tudo o que jamais ela acreditara ser possível? De todas as paredes penduravam grossas e coloridas tapeçarias, todos os tetos estavam pintados com cenas bíblicas; e cada cama, cada mesa e cada cadeira estava revestida com tecidos bordados. Liana organizara um quarto para as mulheres que se dedicavam exclusivamente a tecer as tapeçarias. A comida era excelente, pois atraía os bons cozinheiros com excelentes salários, dando de presente a suas esposas vestidos debruados de pele. As latrinas, o fosso, os estábulos, o pátio sempre estavam limpos, porque a Liana agradava o esmero.
Helen pensou: Liana, Liana, e levou os punhos às têmporas. Para os criados se tratava sempre do que lady Liana desejava, o que lady Liana ordenara, ou inclusive o que estabelecera a primeira esposa de Gilbert. A julgar pelo poder que exercia na administração das propriedades de Neville, diria—se que Helen não existia.
Mas quando suas duas filhinhas começaram a citar as palavras de Liana, a cólera da mãe alcançou o nível máximo. A pequena Elizabeth pedira seu próprio pônei, Helen sorriu e respondeu que o teria. A menina se limitou a olhá—la e disse:
—Pedirei a Liana —e saiu correndo.
Este incidente determinou que Helen apresentasse agora um ultimato a seu marido.
—Sou menos que nada nesta casa —disse a Gilbert. Não se incomodou em baixar a voz, embora soubesse bem que os criados que estavam ao redor a escutavam. Eram os serventes de Liana, homens e mulheres bem treinados e obedientes, que conheciam tanto a generosidade como a cólera de sua jovem ama e que se fosse necessário estavam dispostos a dar a vida por ela.
—Ou parte sua filha ou vou eu —repetiu Helen.
Gilbert examinou a bandeja de alimentos que tinham a forma dos doze apóstolos. Escolheu a São Paulo, e o meteu na boca.
—E o que devo fazer com ela? —perguntou pezarosamente. Não havia muitas coisas na Terra que pudessem excitar o interesse de Gilbert Neville. A comodidade, um eficaz falcão, um ágil cão, a boa comida e a paz eram tudo o que pedia da vida. Não tinha ideia do que sua primeira esposa fizera para acrescentar a riqueza que seu pai lhe deixara nem do enorme dote que ela contribuiu ao matrimônio; tampouco sabia o que sua filha fazia. Segundo ele via as coisas, as propriedades se administravam sozinhas. Os camponeses trabalhavam a terra; a nobreza caçava; o rei ditava as leis. E ao parecer, as mulheres brigavam.
Vira a bela e jovem viúva Helen Peverill quando ela atravessava a cavalo as terras de seu falecido marido. Os cabelos negros lhe caíam sobre as costas, o busto generoso quase transbordava o vestido e o vento pegava as saias às coxa fortes e sãs. Gilbert sentiu um acesso incomum de sensualidade e comentou com seu cunhado que lhe agradaria desposar Helen. Depois, Gilbert não fez muito, até que Liana lhe disse que chegara o momento das núpcias. Logo depois de uma sensual noite de bodas, Gilbert se sentiu satisfeito com Helen e esperou que ela fosse fazer o que as mulheres faziam com o passar do dia, mas não foi assim. Ela começara a renegar e reprovar ninguém menos que Liana, que era uma menina tão branda e bonita, sempre ocupando—se de que os músicos executassem as canções que agradavam Gilbert e ordenando às criadas que lhe trouxessem comida, e durante as largas noites de inverno relatando contos para entretê—lo.
Não podia compreender por que Helen desejava que Liana partisse.
Foi tão quieta que um apenas avisava que a jovem estava perto.
—Imagino que Liana pode ter um marido se o deseja —disse Gilbert, bocejando. Acreditava que as pessoas faziam o que desejavam. Supunha que os homens trabalhavam nos campos de sol a sol porque isso era o que preferiam.
Helen tratou de serenar—se.
—É obvio, Liana não quer ter um marido. Por que teria que desejar que um homem lhe dissesse o que deve fazer, quando aqui goza de liberdade absoluta e exerce um poder absoluto? Se eu tivesse tido esse prestígio no lar de meu finado marido, jamais teria partido. —Elevou as mãos em um gesto de cólera impotente. —Exercer poder, e que não terei que atender a um homem! A vida de Liana é o céu na Terra. Jamais sairá daqui.
Embora Gilbert não compreendesse as queixa da Helen, seus gritos começavam a incomodá—lo.
—Falarei com Liana e verei se interessa—lhe alguém como marido.
—Terá que lhe ordenar que se case —disse Helen. —Tem que escolher um candidato e dizer que o despose.
Gilbert olhou seu cão e sorriu ao recordar.
—Uma vez contrariei a mãe de Liana... uma só vez. Não quero cometer o mesmo engano e contrariar sua filha.
—Se não conseguir que saia de minha casa, lamentará ter provocado minha contrariedade —disse Helen, antes de voltar—se e sair da habitação.
Gilbert coçou as orelhas de seu cão. Esta nova esposa era um cachorrinho com um leão em comparação com a primeira. Para falar a verdade, não podia entender por que Helen estava zangada. Jamais lhe passara pela mente que uma pessoa pudesse desejar realmente responsabilidades. Escolheu uma figura de São Marcos e a comeu com gesto preocupado. Recordou com imprecisão que alguém o advertira que não era bom ter duas mulheres sob o mesmo teto. Possivelmente conviria falar com Liana e ver o que opinava dessa ideia de casamento. Se Helen cumprisse sua ameaça e se mudasse para outra propriedade, sentiria saudades na cama. Mas se sua filha com efeito se casasse, talvez o fizesse com alguém que fosse dono de bons falcões de cria.
—Bem —disse em voz baixa Liana —minha estimada madrasta quer me expulsar de meu próprio lar, da casa engrandecida e enriquecida graças a minha mãe, da propriedade que eu administrei durante três anos.
Gilbert pensou que a cabeça começava a doer. Helen o repreendera na véspera horas e horas. Ao parecer, Liana ordenou que se construíssem novas casas no povoado protegido pelas muralhas que estava ao pé do castelo e Helen se horrorizou porque a jovem projetava empregar o dinheiro dos Neville para pagar estas casas, em lugar de deixar aos camponeses a tarefa de resolver os gastos. Helen se zangara tanto e dera gritos tão estridentes que os seis falcões de Gilbert saíram voando de seus cabides em direção às vigas. Estavam encapuzados para mantê—los tranquilos e o vôo às cegas, por impulso do pânico, provocou que uma ave quebrasse o pescoço. Gilbert compreendeu que era necessário fazer algo; não suportava a ideia de perder outro de seus amados falcões.
Sua primeira ideia foi revestir de armaduras às duas mulheres e que combatessem para determinar quem continuava na casa e quem partia; mas ambas tinham armas mais duras que o aço: as palavras.
—Parece—me que Helen acredita que será... bem... que se sentirá mais feliz em sua própria casa, com seu marido e uns meninos.
Gílbert não imaginava a possibilidade de ser mais feliz que na propriedade dos Neville, mas, quem sabia como reagiam as mulheres?
Liana se aproximou da janela e olhou mais à frente do pátio interior, dos espessos paredões do castelo, lá abaixo, para o povoado rodeado de muralhas. Era nada mais que uma das propriedades de sua família, só uma de muitas que ela administrava. Sua mãe dedicara largos anos a ensinar a Liana o modo de tratar às pessoas, verificar as notas do mordomo e obter anualmente um ganho que podia usar—se para comprar mais terra.
Liana se encolerizara quando seu pai disse que pretendia desposar a uma viúva jovem e bonita porque não lhe agradava a ideia de que outra mulher tentasse ocupar o lugar de sua mãe, e teve o pressentimento de que haveria dificuldades; mas Gilbert Neville possuía sua própria veia de obstinação e sinceramente acreditava que devia permitir lhe fazer sua vontade quando e onde desejasse muito. Em geral, Liana se sentia satisfeita porque ele não era um desses homens que pensavam unicamente na guerra e nas armas. Dedicava—se a seus cães e seus falcões, e deixou os assuntos mais importantes primeiro nas mãos de sua esposa e depois de sua filha.
Até agora, pois estava casado com a vaidosa Helen, cuja preocupação principal era o ganho para comprar mais e mais luxuosas roupas e que tinha cinco mulheres que dedicavam longas jornadas a costurar seus vestidos. Uma mulher se limitava exclusivamente a pregar as pérolas naturais que adornavam os trajes. Só no último mês, Helen adquirira vinte e quatro peles, e umas semanas antes comprara peles de arminho sem prestar ao assunto mais atenção do que se tratasse de uma cesta de trigo. Liana sabia que se transferisse a Helen a administração das propriedades, sua madrasta exploraria os camponeses embora fosse só para ter outro cinturão de ouro com diamantes.
—Bem? —perguntou Gilbert, que estava atrás de Liana.
Pensou: As mulheres! Se não conseguia uma resposta de sua filha não poderia sair a caçar nesse dia. Conforme estava comportando—se Helen, possivelmente montasse um cavalo e o seguisse, nada mais que para continuar lhe repreendendo.
Liana se voltou para seu pai.
—Diga a minha madrasta que me casarei se encontrar um homem conveniente.
Gilbert pareceu aliviado.
—Isso parece bastante justo. Direi, e se sentirá feliz.
Começou a caminhar para a porta, mas de repente se deteve, a mão sobre o ombro de sua filha em uma incomum amostra de afeto. Gilbert não era um homem que prestasse atenção ao passado, mas neste momento desejava não ter conhecido Helen e não haver se casado com ela. Nunca notara que cômodo estava com sua filha, que atendia as simples necessidades de seu pai e de vez em quando uma criada se ocupava de suas necessidades mais carnais. Encolheu—se de ombros. Era inútil lamentar—se pelo que não poderia mudar.
—Encontraremos um jovem ardente que lhe dará uma dúzia de filhos para entretê—la —disse e saiu da habitação.
Liana se deixou cair sobre o colchão de plumas de sua cama e com um gesto de mão ordenou à criada que saísse do quarto. Elevou as mãos e viu que tremiam. Certa vez enfrentara uma multidão de camponeses armados com foices e tochas, só com a companhia de três criadas aterrorizadas; entretanto, manteve erguida a cabeça e distraída a atenção da chusma, pois lhes entregara os mantimentos que tinha na casa e dado trabalho em sua terra. Também lutou com soldados bêbados e certa vez evitou que um pretendente muito entusiasta a violasse. Se pôde evitar um desastre atrás de outro, foi graças a sua serenidade, sua segurança e sua paz mental.
Mas a ideia do matrimônio a aterrorizava. Não se tratava só de temor, mas sim de um terror profundo e escuro. Dois anos atrás vira sua prima Margaret casada com um homem eleito pelo pai da moça. Antes do matrimônio escreveu sonetos de amor dirigidos à beleza de Margaret, que estava acostumada a dizer que seu iminente matrimônio era uma união de amor e que ansiava por chegar o momento de iniciar sua vida com esse homem amado.
Depois do matrimônio, o homem mostrou sua verdadeira personalidade. Vendeu a maior parte do imenso dote de Margaret para pagar suas dívidas, abandonou—a em um castelo antigo, em ruínas e frio, com uns poucos criados e se dirigiu a corte, onde gastou a maior parte do restante do dote da jovem em jóias destinadas a suas muitas prostitutas da nobreza.
Liana sabia que era muito afortunada porque podia dedicar—se a administrar as propriedades de seu pai. Reconhecia que uma mulher carecia de poder a menos que um homem outorgasse. Alguns solicitaram sua mão desde que ela tinha quatro anos. Esteve comprometida uma vez, aos oito anos, mas o jovem faleceu antes de que ela completasse os dez. Depois, seu pai jamais se incomodou em aceitar outras ofertas e assim Liana pôde evitar discretamente o matrimônio. Quando um pretendente insistia em sua petição, tudo o que Liana fazia era recordar a Gilbert o caos que esse matrimônio provocaria; e assim, seu pai rechaçava o oferecimento.
Mas agora a ambiciosa Helen estava interfirindo. Liana contemplava a possibilidade de transferir a administração das propriedades a sua madrasta e retirar—se ao castelo de Gales. Sim, esse seria um lugar bastante afastado. Poderia viver ali na intimidade e logo tanto Helen como seu próprio pai esqueceriam que existia.
Liana ficou de pé, os punhos fechados contra os lados do corpo, o singelo vestido de veludo sem adornos roçando o piso de mosaicos. Helen jamais lhe permitiria viver em paz, perseguiria—a até os limites da Terra para assegurar—se de que sua enteada se sentisse tão desventurada como aparentemente era o caso de todas as mulheres casadas.
Liana pegou seu espelho de mão de uma mesinha posta junto à janela e contemplou sua própria imagem. Apesar de todos os poemas de amor que escreveram alguns jovens entusiastas que desejavam desposá—la, e das canções que os trovadores transeumtes (que ela mesma pagava) haviam cantado não acreditava ser bela. Via—se muito pálida, muito loira, muito... muito inocente para ser uma beleza. Helen era formosa, com seus penetrantes olhos escuros que sugeriam a todos que ela guardava secredos, com seu modo intenso de olhar os homens. Liana às vezes pensava que a razão pela qual podia controlar tão facilmente os criados era sua própria falta de sexualidade. Quando Helen atravessava o pátio, os homens interrompiam o que estavam fazendo e a olhavam, mas se levavam a mão à frente em atitude de respeito para Liana, não se detinham a olhá—la, nem sorriam nem se acotovelavam uns aos outros quando ela passava.
Aproximou—se da janela e olhou para o pátio. O ajudante do ferreiro brincava com uma bonita leiteira e as mãos do moço procuravam o corpo redondo e bem formado da jovem.
Liana se afastou, pois o espetáculo lhe parecia muito doloroso. Ela jamais seria perseguida por um jovem. Jamais poderia descobrir se um jovem desejava persegui—la. Os servidores de seu pai sempre a tratariam com o respeito devido a sua hierarquia e ao lhe falar a chamavam "minha senhora". Os pretendentes fariam os maiores esforços para obter sua mão porque lhes interessava apoderar—se do dote. Pouco importaria que ela fosse corcunda ou tivesse três olhos; inclusive assim lhe esbanjariam termos floridos e formulariam exaltados elogios a sua beleza. Certa vez um cavalheiro lhe enviara um poema a respeito de seus pés bem formados. Como, se jamais os tinha visto!
—Minha senhora.
Voltou o olhar para sua donzela Joice, que estava de pé na soleira e que era o mais próximo a uma amiga que Liana tinha. Contava só dez anos mais que ela, e por isso mesmo era quase uma irmã. Sua mãe empregara Joice com o fim de que cuidasse de Liana quando esta era apenas uma menina e a própria Joice era também pouco mais que uma adolescente. A mãe ensinara a sua filha a administrar as propriedades, mas quando Liana tinha um pesadelo, era Joice quem a reconfortava e acompanhava no curso de suas enfermidades infantis, ensinando coisas que não eram precisamente os detalhes da administração das propriedades. Joice lhe explicara como nasciam os meninos, e o que desejava fazer o homem que tentasse violá—la.
—Minha senhora —disse Joice, que sempre punha cuidado em mostrar respeito para sua jovem pupila. Liana podia permitir—se adotar uma atitude amistosa, mas Joice tinha consciência do lugar que ocupava, sabia que algum dia podia encontrar—se sem um teto sobre a cabeça nem comida sobre a mesa. Não se apressava a formular conselhos que podiam ser indesejados.
—Há uma rixa na cozinha e...
—Joice, agrada—lhe seu marido?
A criada vacilou antes de responder. O castelo inteiro sabia o que lady Helen exigia e as pessoas estavam convencidas de que se Liana partisse, as propriedades de Neville se veriam arruinadas no máximo em seis anos.
—Sim, minha senhora, agrada—me.
—Escolheu—o ou teve que aceitá—lo?
—Lady Neville o escolheu, acredito que quis me agradar de modo que me encontrei casada com um homem jovem e são e cheguei a amá—lo.
Liana a olhou com atenção.
—Seriamente?
—Oh, sim, minha senhora, isso acontece frequentemente. —Joice sentiu que neste tema pisava em terreno firme. Todas as mulheres abrigavam sentimentos de temor antes do matrimônio. —Quando alguém passa junto ao homem as largas noites de inverno, o amor é consequência frequente.
Liana afastou o olhar. Pensou: Se alguém passa o tempo junto ao homem. Se o marido ambicioso não a rechaça. Voltou os olhos para sua criada.
—Joice, sou bonita? Quero dizer, tão bonita que um homem sinta interesse por mim e não por tudo isto?
Com um gesto do braço indicou o leito com o dossel de seda, a tapeçaria que cobria a parede norte, os objetos de prata sobre a mesa de penteadeira, os móveis de carvalho esculpido.
—Oh, sim, minha senhora —respondeu prontamente Joice. —É muito bonita, em realidade é bela. Nenhum homem, elevado ou humilde, poderia resistir. Seus cabelos...
Liana interrompeu a mulher com um gesto de mão.
—Vejamos esse assunto da rixa na cozinha.
Não pôde evitar um acento de desalento na voz.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 2

—Seis meses! —gritou Helen a seu marido. —Ao longo de seis meses sua filha esteve encontrando defeitos nos homens! Nenhum lhe parece "apropriado". Digo que se em um mês mais não sair daqui, irei com esse filho que levo em meu ventre e jamais voltarei.
Gilbert olhou pela janela a chuva que caía e amaldiçoou a Deus, que lhe enviava duas semanas de mau tempo e que além disso criara as mulheres. Observou que Helen se acomodava melhor na cadeira com a ajuda de duas criadas. Segundo o modo como se queixava, parecia que nenhuma mulher sofrera antes uma gravidez; mas o que o surpreendia era sua própria complacência ante a perspectiva de outro filho e a possibilidade de ter finalmente um varão. As palavras e o tom de Helen o irritavam, mas estava disposto a fazer tudo o que ela quisesse pelo menos até que seu filho nascesse e estivesse são e bom.
—Falarei com ela —disse Gilbert com voz surda, temeroso de outra cena com sua filha. Mas agora compreendia que uma das duas teria que partir e como Helen era capaz de produzir filhos, Liana devia ser a que se afastasse.
Um criado encontrou Liana e o pai se reuniu com ela em uma das habitações de hóspedes frente ao solar.
Gilbert abrigava a esperança de que a chuva cessasse logo e ele pudesse sair de novo com seus falcões, em lugar de continuar lutando com esse desagradável assunto.
—Sim, pai? —perguntou Liana da porta.
Gilbert a olhou e vacilou um momento. Parecia—se tanto a sua mãe, e a toda custa ele desejava abster—se de ofendê—la.
—Muitos homens vieram nos visitar desde que sua mãe...
—Minha madrasta —corrigiu Liana. —Desde que minha madrasta anunciou ao mundo que eu estava pronta para a venda e era uma cadela em zelo que necessitava o serviço de um macho. Sim, muitos homens vieram ver nossos cavalos, nosso ouro, nossas terras, e também, como de passada, à feia filha de Neville.
Gilbert se sentou. Rogava ao céu que não existissem as mulheres. A única fêmea admitida seria a do falcão, nem sequer aceitaria éguas ou cadelas.
—Liana —disse com expressão fatigada, —é tão bonita como sua mãe e se me vejo obrigado a suportar um jantar mais em companhia de homens que lhe explicam minuciosamente que notável é sua beleza renunciarei para sempre à comida. É possível que amanhã ordene que me sirvam a mesa nos estábulos. Pelo menos os cavalos não se dedicam a me explicar que branca é a pele de minha filha, que radiante seus olhos, que áureos seus cabelos, que rosados seus lábios.
Liana não respondeu com um sorriso.
—Então, tenho que escolher um desses mentirosos? Estou obrigada a viver como a prima Margaret, enquanto meu marido gasta o dote?
—O homem com quem Margaret se casou era um estúpido, e ele teria sido capaz de avisar. Cancelou uma caçada para entreter—se com a esposa de outro homem.
—Então, devo me unir com um homem que prefere a caçada? Essa é a solução? Possivelmente deveríamos organizar um torneio de falcoaria, e o que fosse dono do falcão mais eficaz me receberia como prêmio de seus esforços. Isso é muito mais sensato que todo o resto.
A Gilbert agradava bastante a ideia, mas com sensatez, absteve—se de dizê—lo.
—Vejamos um pouco, Liana. Alguns dos homens que vieram de visita me agradaram. O que me diz desse William Aye? É um indivíduo arrumado.
—Todas minhas criadas opinaram o mesmo. Pai, esse homem é um estúpido. Tratei de lhe falar da estirpe dos cavalos que tem em seus estábulos e não tinha ideia do assunto.
Gilbert se sentiu impressionado ante a revelação. Um cavalheiro devia conhecer seus próprios cavalos.
—E o que me diz de sir Robert Fitzwaren? Pareceu—me bastante inteligente.
—Assegurou a todos que era inteligente. Também que era ousado, forte e valente. De acordo com suas palavras, venceu em todos os torneios nos quais participou.
—Entretanto, ouvi que foi desmontado quatro vezes no ano passado em... Oli, compreendo o que quer dizer. Sua reputação pode ser um sobrecarca.
A Gilbert iluminou o olhar.
—O que opina de lorde Stephen, o filho de Whitington? Aí tem um homem feito para ti. É arrumado, rico e saudável e também inteligente. O moço sabe dirigir um cavalo e um falcão. —Gilbert sorriu. —E acredito que sabe algo das mulheres. Inclusive vi que esteve lendo algo para você.
A julgamento de Gilbert, o conhecimento da leitura era uma carga desnecessária para uma pessoa.
Liana recordou os cabelos castanhos de lorde Stephen, seus alegres olhos azuis, a habilidade com o alaúde, o modo de controlar um cavalo bravo e como lera fragmentos de Platón. Era encantador com todos os que o conheciam e na casa as pessoas o adoravam. Havia dito a Liana não só que era formosa e certamente, em um corredor escuro a abraçara e a beijara até que a ela lhe cortou o fôlego e depois murmurou: —Agradaria—me levá—la comigo à cama.
Lorde Stephen era perfeito. Impecável. Entretanto, havia algo... Talvez o modo de olhar os copos de ouro alinhados sobre a borda da chaminé no solar ou o olhar duro que cravava no colar de diamantes de Helen. Havia nele algo que não lhe inspirava confiança, mas Liana não podia dizer o que era. Não poderia afirmar que estava mal que ele se interessasse na riqueza dos Neville; mas Liana desejara ver um pouco mais de sensualidade em seus olhos, um desejo mais vivo por sua pessoa e não por sua riqueza.
—Bem? —insistiu Gilbert. Pode assinalar algum defeito do jovem Stephen?
—Em realidade, nada —disse Liana. —Ele..
—Magnífico, então o problema está resolvido. Informarei a Helen e ela pode começar a organizar as bodas. Assim se sentirá satisfeita.
Gilbert se separou de Liana e ela se sentou sobre a cama; o corpo lhe pesava como se fosse feito de chumbo. Assunto concluído, teria que casar—se com lorde Stephen Whitington. Passar o resto de sua vida com um homem a quem ainda não conhecia e que exerceria um poder absoluto sobre ela. Poderia golpeá—la, encarcerá—la, reduzi—la à miséria e faria tudo isso com um direito perfeito e legal.
—Minha senhora —disse Joice da porta —o mordomo pede para vê—la.
Liana voltou os olhos por volta da criada e durante um momento piscou sem ver.
—Minha senhora?
—Sela meu cavalo —disse Liana e pensou: Maldito seja o mordomo. Ansiava por uma boa cavalgada, com o cavalo movendo—se bravo sob seu corpo. Possivelmente se fizesse bastante exercício poderia esquecer o que lhe esperava.
Rogam, o mais velho do restante da família Peregrine, ficou de cócoras e contemplou o castelo que se elevava no horizonte. Seus escuros olhos estavam carregados de pensamentos e de temor. Preferiria confrontar um combate do que o que o esperava hoje.
—Adiar a coisa não conseguirá que seja mais fácil —disse por trás seu irmão Severn.
Os dois eram altos e de largas costas, como o pai. Mas Rogam tinha herdado dele uma mecha vermelha entre os cabelos escuros e em troca Severn, que tinha nascido de outra mãe, tinha carcaterísticas faciais mais delicadas e os cabelos frisados de ouro. Este último também se impacientava com mais facilidade e agora estava inquieto ante a imobilidade de seu irmão maior.
—Ela não será como Jeanne —argumentou Severn e atrás os vinte cavalheiros cessaram de mover—se e contiveram a respiração. Inclusive Severn cessou de respirar um momento, temeroso de haver—se excedido.
Rogam ouviu seu irmão mas não expressou o sentimento que o percorreu ao escutar o nome de Jeanne. Não temia a guerra; não temia enfrentar—se com animais; tampouco a morte, mas a ideia do matrimônio o induzia a vacilar.
Abaixo corria um fundo riacho e Rogam quase podia sentir a água fria em seu corpo. Levantou e aproximou—se de seu cavalo.
—Retornarei —disse a seu irmão.
—Um momento! —reprovou—lhe Severn, segurando as rédeas. — Teremos que permanecer aqui e esperar enquanto você decide se possui ou não valor suficiente para visitar uma jovenzinha?
Rogam não se incomodou em responder e em troca olhou seu irmão com dureza.
Severn soltou a rédea. Às vezes, pensava que Rogam com esses olhos podia derrubar muros de pedra. Embora passasse a vida inteira com seu irmão maior, Severn sentia que sabia muito pouco dele; Rogam não era um homem que revelasse muito de si. Em sua juventude, quando essa cadela da Jeanne o traíra de um modo tão público, Rogam encerrara—se em si mesmo e nos dez anos transcorridos desde aquela ocasião, ninguém pudera penetrar sua couraça externa de dureza.
—Esperaremos —disse Severn, afastando—se e dando espaço a Rogam.
Quando Rogam partiu, um dos cavalheiros que estava perto de Severn grunhiu.
—Às vezes, uma mulher muda um homem —disse.
—Não é o caso de meu irmão —apressou a responder Severn. —Não existe mulher que tenha força suficiente para mudá—lo. —Sua voz trasbordava orgulho. O mundo ao redor deles podia transformar—se de um dia para outro, mas Rogam sabia o que desejava e como consegui—lo. —Que uma mulher modifique meu irmão? —perguntou ironicamente.
Os homens sorriram ante a impossibilidade de semelhante ideia.
Rogam desceu a ladeira da colina e depois durante um momento ao longo de riacho. Não estava seguro do que desejava fazer; só ansiava atrasar o momento em que tivesse que aproximar—se da herdeira dos Neville. Repelia—lhe o que um homem tinha que fazer por dinheiro. Quando se inteirou de que a herdeira estava a venda, por assim dizê—lo, disse a Severn que fosse procurá—la e que a trouxesse com seus vagões de riquezas móveis e os títulos de algumas das propriedades do pai. Ou melhor ainda, que retornasse só com o ouro e os documentos, e deixasse para trás a mulher. Severn lhe respondeu que um homem tão rico como Gilbert Neville só aceitaria o primogênito dos Peregrine, o homem que chegaria a ser duque apenas os Peregrine eliminassem os Howard da face da Terra.
Como de costume, o corpo de Rogam se endureceu de ódio, o que estava acostumado a acontecer quando pensava nos Howard, que eram a causa de todo o mal que sofreram os Peregrine durante três gerações. Eram a razão pela qual ele agora tinha que desposar uma herdeira solteirona, a causa pela qual agora não estava no lar autêntico dos Peregrine, a residência que os Howard roubaram. Usurparam—lhe sua primogenitura, seu lar e inclusive sua esposa.
E Rogam se disse que o matrimônio com esta herdeira podia aproximá—lo um passo mais da recuperação do que lhe pertencia por direito próprio.
Havia um clarão entre as árvores e o riacho formava uma curva e ali se via um formoso lago rodeado de pedras. Obedecendo a um impulso, Rogam desmontou, e começou a tirar as roupas, despindo—se até a tanga assegurada à cintura. Entrou na água gelada e começou a nadar com toda a intensidade e a rapidez que era capaz. O que precisava era uma caçada intensa e prolongada para gastar a energia acumulada em seu corpo; mas a natação podia ser um recurso igualmente eficaz.
Nadou quase uma hora e saiu do lago, ofegando por causa do esforço. Deitou—se sobre um retalho de suave pasto verde, à luz do sol e logo dormiu.
Dormiu tão profundamente que não ouviu a contida exclamação da mulher que se aproximou do lago em busca de água. Tampouco advertiu—se de que a jovem retrocedia para o amparo das árvores e o observava.

Liana cavalgou esporeando energicamente seus arreios e assim conseguiu distanciar do cavalheiro de seu pai, que tentava manter o ritmo. Os homens de Gilbert comiam em lugar de treinar, e ela conhecia os atalhos da região melhor que seu acompanhante; era fácil escapar deles. Quando pôde afastar—se dirigiu ao lago que se encontrava ao norte do castelo. Ali estaria sozinha e poderia pensar em seu iminente matrimônio.
Estava ainda a certa distância do lugar quando viu entre as árvores uma espécie de mancha vermelha. Ali havia alguém. Liana amaldiçoou sua sorte e amaldiçoou sua tolice, que a induziu a separar—se de seu acompanhante. Deteve seu cavalo, atou—o a uma árvore e avançou em silencio para o lago.
O vermelho correspondia ao vestido da esposa de um camponês que vivia no povoado e tinha três pequenos campos além das muralhas. Liana viu que a mulher estava de pé, absolutamente imóvel e tão absorta no que olhava que não ouviu que ela se aproximava. Movida pela curiosidade, esta começou a avançar em silêncio.
—Minha senhora! —exclamou a jovem. —Eu... vim buscar um pouco de água.
Seu nervosismo acentuou a curiosidade de Liana
—O que estava olhando?
—Nada importante, devo ir, meus filhos me necessitam. – Você estava longe do lago com o jarro vazio? – Liana passou junto à mulher, olhou entre os arbustos e imediatamente viu o que atraíra a atenção da camponesa. Deitado sobre o pasto, iluminado pelo sol, havia um homem de aspecto esplêndido: alto, de largas costas, cintura estreita, o corpo musculoso, com uma cara de queixo forte e bigodes escuros e os cabelos longos e negros que despediam reflexos vermelhos à luz do sol. Liana o examinou dos pés até a cabeça, os olhos aumentados pelo interesse enquanto observava a pele cor de mel do corpo nu. Não tinha ideia de que um homem podia ser tão belo.
—Quem é? —murmurou à esposa do camponês.
—Um forasteiro —respondeu a mulher, sussurrando.
Perto dele havia uma pilha de roupas de lã. Por causa das leis suntuárias, frequentemente era possível adivinhar a posição econômica e a situação de uma pessoa observando suas roupas. Este homem não usava peles e nem sequer os adornos de coelho permitidos às classes inferiores. Não tinha junto ao corpo um instrumento musical, de modo que não era um músico nômade.
—Possivelmente é um caçador —murmurou a esposa do camponês. —Às vezes devem caçar animais para o senhor. Por causa das bodas necessitarão mais presas.
Liana dirigiu um rápido olhar à camponesa. Todos estavam a par do que acontecia no castelo? Ela viera aqui precisamente para pensar em suas bodas. Voltou os olhos para o homem deitado sobre o pasto: parecia um jovem Hércules, uma massa de força e músculos agora adormecida, um vigor que só esperava que despertasse. Se lorde Stephen se parecesse com este homem, Liana não se oporia tanto ao matrimônio. Mas inclusive adormecido este homem irradiava mais energia que lorde Stephen, revestido com toda sua armadura. Durante um momento ela sorriu e imaginou a cena em que diria a Helen que decidira contrair matrimônio com um pobre caçador; mas de repente seu sorriso se dissipou, porque em realidade duvidava de que este jovem a aceitasse, embora Liana chegasse acompanhada com carros carregados de prata e ouro. De todos os modos, ao menos durante um dia lhe agradaria representar o papel de moça camponesa, para comprovar se era suficiente mulher para interessar a um homem bonito.
Voltou—se para a esposa do camponês.
—Tire o vestido.
—Minha senhora!
—Tire o vestido, dê—me isso e volta para castelo. Procura a minha criada Joice e diga—lhe que ninguém deve vir me buscar.
A mulher empalideceu.
—A criada jamais falará com uma pessoa como eu.
Liana tirou do dedo um anel de esmeralda e o entregou.
—Por aí perto há um cavalheiro que provavelmente está me buscando. Entregue isso e ele a levará onde está Joice.
A expressão da mulher passou do temor à astúcia.
—É um homem bonito, não é?
Liana a olhou com os olhos entrecerrados.
—Se ouvir uma palavra disto na aldeia, lamentará. Agora, fora daqui.
Despachou a camponesa, vestida só com uma roupa interior de tecido áspero, pois Liana não estava disposta a permitir que esse sujo corpo roçasse o veludo de sua luxuosa túnica.
O vestido camponês que Liana ficou era muito diferente de sua roupa, de cintura alta e ampla saia. A áspera lã se aderia a seu corpo do pescoço até debaixo dos quadris, revelando as curvas esbeltas de sua figura. A lã era áspera, suja e cheirava mal, mas revelava muito. Recolheu—se até os cotovelos as mangas, duras por causa de anos de manchas de gordura. A saia lhe chegava só aos tornozelos, bastante curta, de modo que Liana podia caminhar livremente e inclusive correr entre os matagais.
Depois de colocar o vestido, Liana sentiu que estava preparada para confrontar o que a esperava. Espiou entre os ramos para olhar o homem de novo. Voltou a recordar todas as ocasiões em que vira os camponeses rindo e perseguindo—se uns aos outros pelos campos. Certa vez espionou um jovenzinho dando de presente uma flor a uma moça. Esse homem divinamente bonito lhe ofereceria flores? Possivelmente teceria uma grinalda para seus cabelos como fizera um cavalheiro em sua honra uns meses antes, salvo que desta vez a coisa seria real. Desta vez o homem lhe ofereceria flores em comemoração a sua pessoa, e não pela riqueza de seu pai.
Removeu o pesado adorno de sua cabeça, o toucado, com o qual escondia seus cabelo, escondeu—o entre os matagais e seus longos cabelos desceram sobre suas costas. Liana avançou para o claro em direção a ele. Não despertou nem sequer quando ela tropeçou com uma pilha de pedras.
Aproximou—se mais, mas o homem não se moveu. Em efeito, era um homem bonito e suas formas precisamente as que Deus queria para um homem. Liana ansiava pelo momento em que ele a visse. Às vezes lhe haviam dito que seus cabelos eram como um bordado de fios de ouro. Ele pensaria o mesmo?
As roupas estavam empilhadas não longe do jovem; ela se aproximou dos trajes e elevou a camisa, sustentando—a com o braço estendido, as mãos sobre as longas bordas dos ombros. A lã era de uma malha áspera e Liana pensou que suas próprias criadas sabiam tecer melhor.
Enquanto contemplava a camisa viu algo estranho e se inclinou para frente para olhar melhor. Piolhos! A camisa estava infestada de piolhos.
Com um grito de repulsão, jogou a camisa.
Um instante antes o jovem dormia no chão e em um segundo se levantou e se apresentou ante ela em toda sua gloriosa nudez. Em efeito, era um indivíduo magnífico: alto, de poderosa musculatura, sem um grama de gordura. Os abundantes cabelos chegavam aos ombros, eram escuros mas pareciam quase vermelhos à luz do sol; e em seu grosso queixo crescia uma mata de cabelos avermelhados. Tinha os olhos verde—escuros e olhavam intensamente por causa da emoção.
—Como está? —perguntou Liana, alargando a mão para ele, a palma para cima. Estaria disposto a dobrar o joelho ante ela?
—Atirou minha camisa ao pântano —disse ele, irritado, olhando de sua altura à bonita loira de olhos azuis.
Liana retirou a mão.
—Estava infestada de piolhos.
—O que devia dizer a um caçador supondo que fosse seu igual? Belo dia, não é? Quer me encher a jarra de água? Bem, isso parecia o mais provável.
Dirigiu—lhe um olhar estranho.
—Pode tirar do pântano minha camisa e lavá—la, hoje tenho que ir a certo lugar.
A voz era muito agradável mas não a agradou o que ele dizia.
—É bom que a camisa tenha afundado. Já disse que estava cheia de piolhos. Talvez deseja recolher presas. Estou segura de que podemos encontrar...
Viu assombrada que o homem a agarrava pelos ombros, obrigava—a a voltar—se para o lago, empurrava—a.
—Tira minha camisa do pântano e lava—a.
Liana pensou: Como se atrevia a tocá—la sem permissão! E pretendia que lhe lavasse a camisa! Decidiu que partiria imediatamente, retornaria a suas próprias roupas e seu cavalo e à segurança do castelo de seu pai. Voltou—se, mas ele a agarrou o antebraço.
—Moça, não ouve bem? —disse, obrigando—a a girar. —Ou retira a camisa dali ou jogo você sobre ela.
—Jogar—me? —perguntou Liana. Estava a um passo de lhe dizer quem era e o que ela faria ou deixaria de fazer quando de repente viu os olhos do homem. Olhos bonitos, sim, mas também perigosos. Se lhe dizia que era lady Liana, filha de um dos homens mais ricos da Inglaterra, não a capturaria para cobrar resgate?
—Eu... devo retornar a meu marido e... e meus filhos. Tenho muitos filhos —disse falando entrecortadamente. Tinha—lhe encantado a auréola de poder deste homem quando dormia, mas quando lhe agarrava o braço não lhe agradava tanto, nem coisa parecida.
—Bem —disse ele —se tiver tantos pirralhos saberá lavar uma camisa.
Liana voltou a olhar para a massa negra e enlodada, onde só podia ver a manga da camisa. Não tinha ideia do modo de lavar uma roupa e a possibilidade de tocar esta, infestada de piolhos, repelia—a.
—Mi... minha cunhada se encarrega de lavar a roupa —disse, e se sentiu muito satisfeita consigo mesma porque pensara numa ideia tão boa. —Voltarei para casa e a envio. Ela a lavará de boa vontade.
Ele não disse uma só palavra e assinalou o pântano.
Liana compreendeu que ele não estava disposto a permitir que se afastasse. Com uma careta, caminhou para o atoleiro e se inclinou para alcançar a borda da manga. Não pôde chegar, de modo que se estirou mais... depois mais.
Caiu de frente sobre o abundante e espesso lodo, seus braços se afundaram até os cotovelos e a cara ficou totalmente suja. Durante uns instantes se debateu para sair mas não tinha em que agarrar—se. Então, um braço desceu e a pôs em terra firme. Liana permaneceu ali, cuspindo uns instantes, mas ele a empurrou para o lago.
De barriga para baixo no pântano e depois de barriga para cima, caiu de costas na água gelada.
Conseguiu ficar de pé e começou a sair da água.
—Vou a minha casa —murmurou, sentindo—se a beira das lágrimas. Joice me preparará uma bebida quente e acenderá fogo, e depois...
O homem a tirou do braço.
—Aonde vai? Minha camisa continua ali.
Ela olhou os frios olhos verdes e o temor que lhe inspirara antes desapareceu. Quem acreditava que era? Não tinha direito de lhe dar ordens, embora acreditasse que ela era a mais baixa das camponesas. De modo que se acreditava o amo, não é?
Estava completamente molhada e tinha frio, mas a cólera irradiava seu próprio calor. Esboçou o que conforme acreditava era um sorriso destinado a seduzi—lo.
—Seus desejos são ordens para mim —murmurou, conseguindo mostrar um rosto imperturbável quando ele resmungou satisfeito, como se essa tivesse sido a resposta que ela devia oferecer.
Deu—lhe as costas, sob uma árvore encontrou uma vara larga e retornou ao pântano. Pescou a camisa, sustentou—a um momento com o extremo da vara e depois, com toda sua força, jogou—a contra ele, golpeando—o de cheio no rosto e no peito.
Enquanto ele se desprendia da camisa, Liana pôs—se a correr. Conhecia os bosques melhor que um forasteiro qualquer, avançou em linha reta para uma árvore oca e desapareceu em seu interior.
Ouviu—o penetrar no bosque, muito perto, e sorriu para si mesma porque não poderia achá—la. Esperaria até que se afastasse, aproximaria de seu cavalo, que estava do lado oposto do lago e voltaria para sua casa. Se era um caçador, no dia seguinte o receberia no castelo de seu pai e teria a satisfação de escutar suas desculpas pela conduta que mostrara hoje. Possivelmente tomaria emprestado um dos vestidos de Helen, alguma roupa adornada com peles, e uma tiara preciosa. Reluziria tão intensamente que ele teria que proteger os olhos para evitar o deslumbramento.
—Já pode sair —disse ele, de pé frente à árvore oca.
Liana conteve a respiração.
—Quer que vá buscá—la? Ou corte a árvore ao redor de suas orelhas?
Liana não podia acreditar que ele sabia realmente onde estava. Certamente simulava, não se moveu.
O comprido braço penetrou no oco, agarrou—a pela cintura e a tirou dali, aproximando—a de seu peito. Tinha o rosto manchado de lodo negro mas os olhos ardiam e durante um momento Liana pensou que ele queria beijá—la. O coração começou a pulsar com força.
—Está faminta, não é? —comentou ele e seus olhos a olharam com expressão risonha. —Bem, não tenho tempo. Outra mulher me espera. —
Separou—a de si e obrigou—a a retornar ao lago.
Liana chegou à conclusão de que limitar—se a aparecer ante ele com um bonito vestido não seria suficiente.
—Obrigarei—o a que se arraste —murmurou.
—Quer fazer isso? —disse ele, que a ouvira.
Ela se voltou bruscamente para enfrentá—lo.
—Sim —disse entre dentes. —Conseguirei que se arraste. Lamentará haver me tratado assim.
Ele não sorriu e de fato seu rosto parecia esculpido em mármore. Mas seu olhar mostrava que estava se divertindo.
—Terá que esperar um momento, pois agora me proponho a obrigá—la a lavar minhas roupas.
—Antes prefiro...
Mas não completou a frase.
—Sim? —Diga seu preço e verei se posso pagá—lo.
Liana se afastou. Era melhor terminar de uma vez, lavar as roupas e livrar—se dele. Agora o poder estava em suas mãos, mas no dia seguinte ela seria a que dirigiria as rédeas... e o látego e as cadeias, pensou com um sorriso.
Ela se deteve a beira do lago, negando—se a obedecer nem sequer com a aparência do consentimento. A atitude de Liana pareceu diverti—lo ainda mais. Recolheu sua camisa lamacenta e a jogou contra o peito da jovem, de modo que em um gesto instintivo ela a recebeu.
—Também pode lavar estas roupas —disse, e pôs sobre os braços de Liana os restantes dos trajes infestados de piolhos. Depois, ajoelhou—se e lavou o lodo que lhe manchava o rosto.
Liana conteve uma exclamação e deixou cair as roupas ao chão.
—Ande depressa —disse ele. —Necessito dessas roupas para cortejar uma mulher.
Liana compreendeu que quanto antes terminasse, antes se livraria dele. Levantou a camisa e a afundou na água e depois a golpeou contra uma pedra.
—Ela não o quererá —assegurou Liana. —Possivelmente lhe agrade sua aparência mas se tiver um pouco de critério, jogar—se—á da muralha do povoado antes de aceitar sua mão.
Ele deitara sobre o pasto, ao sol, a cabeça descansando sobre as mãos, enquanto a olhava.
—Oh, sim, aceitar—me—á. A questão é saber se eu a quero, não estou disposto a me casar com uma bruxa. Aceitarei—a unicamente se for amável e falar em voz baixa.
—E se for estúpida —adicionou Liana. Queria matar os piolhos, de modo que tomou uma pedra e começou a castigar as roupas. Quando virou a camisa, viu os minúsculos buracos que a pedra estava perfurando. Os olhos aumentaram horrorizados e depois sorriu. Sim, tinha—lhe lavado as roupas, mas quando terminasse, os trajes pareceriam a rede de um pescador. —Só uma mulher estúpida poderia aceitá—lo! —disse em voz alta, com a esperança de distrai—lo do que ela estava fazendo.
—As mulheres estúpidas são melhores —respondeu ele. —Não desejo uma inteligente, estas nos conduzem a problemas. Ainda não terminou com isso?
—Estão sujas e necessitam muita lavagem —disse com a maior doçura possível. A ideia de que ele apareceria na casa de uma jovem com as roupas completamente perfuradas lhe agradava. —E suponho que as mulheres lhe provocaram muitas dificuldades na vida —disse Liana. A vaidade deste jovem era entristecedora.
—Muito poucas.
Ele estava observando—a atentamente e a Liana não agradava o modo como a olhava. Apesar de suas roupas úmidas, conseguia que ela se sentisse muito acalorada. Agora o via cochilando e tranquilo, mas ela presenciara sua cólera e percebera a violência que aninhava sob sua pele.
—Quantos filhos disse que tem? —perguntou ele com voz serena.
—Nove —afirmou Liana em voz alta. —Nove varões, todos grandes e fortes como o pai. E os tios —adicionou nervosamente. —Meu marido tem seis irmãos enormes, fortes como touros, e de muito mau caráter! Nunca vi gente assim. Justamente, a semana passada...
—Que mentirosa é. —respondeu ele com voz serena, descansando de novo a cabeça no chão, sem olhá—la. —Jamais esteve com um homem.
Ela cessou de golpear as roupas.
—Tive uma centena de homens —disse, mas se retificou. —Quero dizer que estive com meu marido centenas de vezes e...—Estava fazendo o papel de tola. —Aqui tem suas roupas. Oxalá a ardência o torture até a morte. Merece um corpo coberto de piolhos.
Ela estava de pé, e deixou cair as roupas úmidas sobre o ventre duro e liso. Ele não se encolheu sequer por causa do frio e a olhou com olhos que pareciam quentes e urgentes. Liana desejava afastar—se e sabia que agora era livre; mas por alguma razão, permaneceu ali, de pé, seus olhos unidos aos do forasteiro.
—Tão bom trabalho merece uma recompensa. Incline—se para mim, mulher.
Liana sentiu que seu corpo dobrava os joelhos ante ele, e que ele se levantava para sair a seu encontro; apoiou sua ampla mão na nuca da jovem, seus dedos agarraram os cabelos e aproximaram dos seus os lábios da jovem.
Poucos homens trataram de beijar Liana mas nunca demonstraram uma técnica tão completa. A diferença de suas maneiras, os lábios do forasteiro eram suaves e quentes e ela fechou os olhos para senti—lo melhor.
O beijo era tudo o que ela esperava que fosse, os braços de Liana rodearam o pescoço do desconhecido, enquanto apertava seu corpo contra seu peito sentindo através de suas frias roupas a pele quente pelo sol. Ele moveu seus lábios sobre os de Liana, entreabrindo—lhe brandamente a boca, e ela respondeu à sugestão. As mãos de Liana se elevaram até os cabelos do jovem. Estavam limpos graças ao banho que tomara antes e os sentiu tão quentes que lhe pareceu que podia perceber os matizes vermelhos de algumas mechas.
Quando ele terminou de beijá—la e se afastou, ela manteve fechados os olhos e se inclinou para ele, porque desejava continuar.
—Bem, já é suficiente —disse ele, com voz que expressava satisfação. —Um beijo virginal para uma virgem. E agora, retorna a sua casa, a quem deveria havê—la protegido e não volte a perseguir homens.
Liana abriu bruscamente os olhos.
—Perseguir homens? Eu não estive...
Ele lhe deu um beijo rápido, com uma piscada nos olhos, antes de levantar—se.
—Estava me espiando dos arbustos. Deveria aprender o que é a luxúria, antes de tentar inspirá—la. Agora, vá antes de que mude de ideia e lhe dê o que anda procurando. Hoje preciso atender assuntos mais importantes que os problemas de uma virgem faminta.
Liana não necessitou muito tempo para reagir, em poucos segundos levantou—se.
—Prefiro morrer no inferno antes de ter fome de indivíduos como você.
Ele se deteve quando já tinha começado a colocar uma perna em um par de calças úmidas.
—Sinto—me tentado a obrigá—la a tragar o que disse. Não —disse e reatou o movimento anterior. —Tenho outras coisas que fazer. Possivelmente mais tarde, quando já estiver casado, possa vir a reunir—se comigo. Verei se então disponho de tempo para você.
Não havia palavras profanas suficientemente baixas para descrever o que Liana estava sentindo.
—Voltará para ver—me —conseguiu dizer. —Oh, sim, voltará a ver—me, mas não acredito que se mostre tão arrogante quando nos encontrarmos outra vez. Roga por sua vida, camponês.
Passou rapidamente junto a ele.
—Faço—o todos os dias —gritou ele. —E não acredito...
Ela não ouviu o resto da frase, pois uma vez que se infiltrou no bosque, recuperou o vestido e o toucado e correu para seu cavalo. O animal esperou sem mover—se enquanto Liana tirava o vestido de lã. Jogou—o no chão e o pisoteou, afundando—o na terra.
—Repugnante! —disse. —Gente suja e asquerosa —murmurou. —E acreditava que a vida dos camponeses era romântica. Via—os tão livres!
—Não têm a ninguém que os proteja —disse a seu cavalo. —Se meu guarda ou lorde Stephen estivessem aqui, esfolariam esse porco obrigando—o a arrastar—se pelo chão. Riria vendo como esse demônio ruivo beija o sapato de lorde Stephen. O que farei com ele, Belle? —perguntou ao cavalo. —O potro? O esquartejamento? Que o estripem? Que o queimem na fogueira? Sim, isso me agrada. Ordenarei que o queimem, servirei o jantar e sua morte pelo fogo será a diversão.
Vestida de novo com seus próprios trajes, montou e dirigiu um olhar de ódio em direção ao lago. Tratou de imaginar a morte violenta do indivíduo, mas recordou seu beijo e meneou a cabeça como se desejasse afastar esses pensamentos. Outra vez tentou pensar na morte pelo fogo, mas não foi fácil imaginar esse belo corpo amarrado ao poste.
—Selo amaldiçoado! —exclamou e esporeou seu cavalo.
Percorrera uma curta distância quando encontrou cinquenta dos cavalheiros de seu pai, revestidos de pesada armadura, como se estivessem indo à guerra. Agora decidiram me buscar perto do lago, disse—se Liana. Por que não apareceram quando ele a jogava na água ou a obrigava a lavar suas roupas... ou quando estava beijando—a?
—Minha senhora! —exclamou o cavaleiro que partia à frente. —Estivemos procurando—a. Sofreu algum dano?
—Em realidade, sim —disse ela, irritada. —No bosque, sobre o lado leste do lago há...
Interrompeu—se. Não sabia por que, mas de repente cinquenta homens contra um camponês desarmado lhe pareceu uma situação muito injusta.
—O que há, minha senhora? —Iremos matá—lo.
—Vi um enxame tão grande das mariposas mais bonitas que jamais encontrei —disse e ofereceu ao soldado seu deslumbrante sorriso. —Esqueci—me do passar do tempo, lamento ter preocupado as pessoas. Retornamos?
Obrigou seu cavalo a voltar—se e cavalgou para frente dos homens, que se sentiam muito desconcertados pelo que ela fizera. É obvio, era melhor esperar e dizer a seu pai o ocorrido, e como a tratou esse homem terrível. Sim, isso era o mais oportuno. A atitude que ela estava adotando era a mais razoável, seu pai saberia como resolver a situação. Possivelmente o encerraria em um barril coberto de pregos. Esse efeito parecia uma boa ideia.

Capítulo 3

Rogam viu afastar—se a jovem e lamentou não ter tido tempo para ela. Teria—lhe agradado tocar essa pele branca... e esses cabelos! Tinham a cor da crina de seu cavalo quando era jovenzinho.
Um corcel morto em combate pelos Floward, recordou com amargura, e de um puxão colocou a meia tecida.
O dedo grande emergiu por um buraco. Sem pensá—lo muito, acomodou melhor os dedos médios para cobrir o espaço vazio e voltou a calçá—las. O dedo pequeno se enganchou à altura do tornozelo. Desta vez, suas próprias roupas atraíram a atenção de Rogam. Levantou as calças, pô—las a contraluz e assim viu centenas de minúsculos orifícios. No momento, as meias conservavam sua forma por mero costume, mas em poucos dias mais começariam a desfiar—se. Elevou a camisa ao sol, viu que também estava cheia de buracos e que outro tanto acontecia com a túnica de lã.
Pensou encolerizado: Ao demônio com essa jovenzinha presunçosa. Propunha—se desposar à herdeira dos Neville e estavam caindo do corpo seus próprios trajes. Se alguma vez voltasse a encontrar essa mulher, já veria o que...
Rogam interrompeu os pensamentos e examinou de novo a camisa. Essa mulher não queria lavar as roupas, o que desejava era uma boa queda no pasto e como não o conseguiu, vingou—se dele; a vingança era algo que Rogam entendia muito bem.
Apesar de sua cólera, apesar do fato de que agora teria que confrontar o gasto de comprar roupas novas, olhou a luz do sol que se filtrava pelos orifícios de sua camisa e fez algo que poucas vezes fazia. Sorriu. Essa mulher atrevida não lhe temia. Arriscou—se a receber uns golpes merecidos quando se dedicou a lhe furar as roupas. Se apanhá—la, haveria... Sempre sorrindo, pensou que provavelmente lhe teria dado o que ela desejava.
Lançou a camisa ao ar, recebeu—a ao cair e começou a vestir—se. Agora via com boa disposição a possibilidade de casar—se com a herdeira dos Neville. Possivelmente depois do matrimônio encontraria a beleza loira e veria se podia lhe dar o que ela ansiava. Possivelmente a levaria consigo e talvez lhe faria os nove pirralhos que ela afirmava ter.
Depois de vestir—se, montou e voltou para a margem, onde esperavam seu irmão e os homens.
—Esperamos bastante tempo —disse Severn. —Agora se sente mais valoroso? Pode enfrentar à moça?
O bom humor de Rogam desapareceu.
—Se quer conservar essa língua que tem, deixa—a quieta. Montem e partamos. Vou casar—me com uma mulher.
Severn se aproximou de seus arreios, que esperava, e quando pôs o pé no estribo, algo azul no pasto atraiu sua atenção. Recolheu—o e viu que era um pedaço de tecido. Deixou—o cair novamente e não pensou mais nele enquanto cavalgava detrás de seu obstinado irmão.
—Minha senhora —disse de novo Joice, e esperou. Mas Liana não respondeu. —Minha senhora! —repetiu a criada em voz mais alta, mas tampouco agora houve resposta. Joice olhou Liana, que estava frente à janela, sua mente muito distante. Mantivera a mesma atitude da véspera, ao retornar de seu passeio. Possivelmente era o matrimônio iminente. Essa manhã enviaram o mensageiro a lorde Stephen, talvez se tratasse de algo completamente diferente. De todos os modos, Liana não dissera uma palavra a ninguém. Joice saiu em silêncio da habitação e fechou a pesada porta de carvalho.
Liana não dormira durante a noite e renunciou a seus intentos de trabalhar. Permaneceu sentada frente à janela de seu quarto e olhava fixamente a aldeia que se estendia debaixo. Observava às pessoas que caminhavam depressa, riam e amaldiçoavam.
A porta se abriu ruidosamente.
—Liana!
Era impossível não fazer caso da voz irritada e carregada de ódio de sua madrasta. A jovem voltou para ela um olhar frio.
—Que deseja?
Não podia contemplar a beleza de Helen sem recordar o rosto sorridente de lorde Stephen, seus olhos que se fixavam na bandeja de ouro depositada sobre a borda da lareira.
—Seu pai deseja que venha ao salão, tem hóspedes.
Na voz da Helen havia certa irritação que incitou a curiosidade de Liana.
—Hóspedes?
Helen se voltou.
—Liana, não acredito que deva vir. Seu pai a perdoará em realidade, perdoa—lhe tudo. Diga que já viu esse homem e não o quer. Assegure que entregou seu coração a lorde Stephen e não quer outra pessoa.
Agora, Liana efetivamente estava interessada.
—Que homem é esse?
Helen se voltou para olhar a sua enteada.
—É um dos terríveis Peregrine —respondeu. —Provavelmente não os conhece, mas as terras de meu anterior marido estavam perto das que ocupa esta gente. Apesar de sua antiga linhagem, são pobres como um carroceiro... e mais ou menos igualmente limpos.
—E bem, o que têm que ver comigo estes Peregrine?
—Dois chegaram ontem à noite e o mais velho afirma que veio para desposá—la. Helen elevou as mãos ao céu. Muito próprio de gente como eles. —Não pedem sua mão... anunciam que uma dessas sujas bestas veio para casar—se com você.
Liana recordou outro sujo indivíduo, um homem que a beijara e ridicularizou—a.
—Estou comprometida com lorde Stephen. Já se enviou a aceitação de sua proposta.
Helen se sentou na cama e por causa de sua fadiga lhe afundaram os ombros.
—É o que disse a seu pai, mas não quer me escutar. Estes Peregrine lhe trouxeram como presente dois enormes falcões, dois grandes falcões originais, como o sobrenome que eles levam, e Gilbert passou a noite inteira com eles relatando uma anedota de falcoaria atrás de outra. Está convencido de que são os melhores homens da terra. Não percebe seu fedor e pobreza. Não faz caso das anedotas a respeito de sua brutalidade, o pai destes dois mandou à tumba quatro esposas.
Liana olhou tranquilamente a sua madrasta.
—Por que se inquieta com quem me caso? Um homem não é tão bom como outro? O que desejas é que saia de sua casa de modo que, acaso importa com quem precisamente contraio matrimônio?
Helen levou a mão ao ventre cada vez mais volumoso.
—Nunca entenderá —disse com expressão fatigada. —Somente quero ser a ama em meu próprio lar.
—Enquanto eu parto e vou à casa de um indivíduo que...
Helen elevou uma mão.
—Cometi um engano quando quis falar contigo. Está bem, vê com seu pai, permita que se case com este homem, que provavelmente a castigará; que se apoderará de cada centavo de seu dote e não a deixará sequer as roupas que leva postas. As roupas! Nada significam para estes homens. O mais velho veste pior que os ajudantes de cozinha. Quando se move, consegue—se ver os orifícios de seus sujos trajes. Helen ficou de pé e se separou da cama. —Pode me odiar, se quiser, mas rogo ao céu que não arruíne sua vida só para fazer o que digo que não faça.
Saiu da habitação.
Liana não estava muito interessada neste novo visitante que anunciara seu propósito de desposá—la. Homens pelo estilo já levavam meses visitando sua casa noite e dia. Por sua parte, ela não conseguia ver muita diferença entre uns e outros: alguns eram velhos, outros jovens; alguns eram inteligentes, e outros não. O que os unia era o desejo de apoderar—se da fortuna de Neville. O que queriam era...
—Buracos nas roupas? —pensou Liana em voz alta, os olhos muito grandes. —Buracos nas roupas?
Joice entrou na habitação.
—Minha senhora, o senhor do castelo...
Liana passou depressa a frente de sua criada e desceu correndo a íngreme escada de espiral. Tinha que ver esse candidato, precisava vê—lo antes de que ele o fizesse. Ao pé da escada correu para a porta, atravessou o pátio, passou junto aos cavaleiros que vagabundavam por aí, os cavalos que esperavam os cavaleiros, os jovenzinhos que descansavam ao sol e entrou na cozinha. Os enormes fornos abertos irradiavam um calor muito intenso, mas Liana continuou correndo. Abriu bruscamente uma porta que estava perto do cano de deságue e subiu íngremes degraus de pedra que levavam a galeria dos músicos. Levou—se um dedo aos lábios para impor silêncio ao violinista quando viu que este começava a falar.
A galeria dos músicos era um balcão de madeira que dava sobre um extremo do grande salão, com um alto corrimão de madeira que impedia de ver os músicos. Liana se aproximou de um canto e olhou para o salão.
Era ele.
O jovem que vira na véspera, o mesmo que a beijou, estava sentado à direita de seu pai, e um enorme falcão encarapitado em um cabide, entre os dois. A luz de sol que provinha das janelas parecia incendiar o vermelho de seus cabelos.
Liana se apoiou na parede, sentindo que lhe pulsava o coração com força. Não era um camponês, havia dito que vinha para cortejar uma mulher e se referia a ela. Sua visita tinha por objetivo casar—se com ela.
—Minha senhora, sente—se bem?
Liana afastou com um gesto o violinista e olhou os homens que estavam abaixo, não muito segura do que via. Com seu pai se encontravam dois homens, mas em realidade ela podia ver só um. O moreno parecia dominar o salão com seu vigoroso corpo desabado na cadeira e a intensidade com que falava e escutava. O pai de Liana ria e o loiro também, mas seu homem mantinha uma expressão séria.
—Seu homem? Liana abriu muito grande os olhos quando compreendeu o que ocorreu.
—Como se chama? —murmurou ao violinista.
—Quem, minha senhora?
—O moreno —disse ela, impaciente. —Ali, esse, aí abaixo.
—Lorde Rogam —respondeu o músico. —E seu irmão é...
—Rogam —murmurou ela, sem prestar atenção ao loiro. —Rogam, está bem. Ergueu a cabeça. —Helen —disse, abriu bruscamente a porta e pôs—se a correr de novo. Passou outra vez pela cozinha, deixou atrás uma rixa de cães em relação com a qual os homens cruzavam apostas, atravessou o pátio pavimentado em busca da torre sul, subiu a escada, quase derrubou duas criadas que tinham os braços carregados de roupa lavada e entrou no solar. Helen estava sentada frente ao bastidor de uma tapeçaria e logo moveu os olhos quando ela entrou correndo.
—Fale—me dele —exigiu Liana, ofegante por causa da carreira.
Helen continuava irritada por causa dos comentários formulados por Liana uma hora antes.
—Nada sei de nenhum homem, não sou mais que uma criada em minha própria casa.
A jovem tomou um tamborete localizado contra a parede e foi sentar—se frente a Helen.
—Diga—me tudo o que sabe a respeito deste Rogam. É o que pediu minha mão? Cabelos vermelhos? Corpo grande e pele morena? Olhos verdes?
Todos os que estavam no solar ficaram paralisados. Lady Liana nunca demonstrara antes o mínimo interesse por um cavalheiro.
Helen olhou preocupada para sua enteada.
—Sim, é um formoso jovem mas, você não nota nada mais que sua beleza?
—Sim, sim, sei, suas roupas estão infestadas de piolhos. Ou o estavam até que eu... diga—me o que sabe dele —exigiu Liana.
Helen não entendia absolutamente a sua enteada, nunca a vira tão vivaz, tão ruborizada e bonita. Um sentimento de temor começava a dominá—la. Liana, essa jovem razoável, equilibrada e amadurecida, não podia render—se ante a beleza de um homem. Nos últimos meses visitaram o castelo centenas de homens bonitos, e nenhum deles...
—Explique!
Helen suspirou.
—Não sei muito deles. É uma família de longa data. Afirma—se que seus antepassados combateram ao lado do rei Artur, mas faz umas poucas gerações o chefe dos Peregrine cedeu o ducado, a sede da família e o dinheiro aos parentes de sua segunda esposa e por isso se declararam legítimos seus filhos maiores. Depois de sua morte, a viúva contraiu matrimônio com um primo e o filho de Peregrine se converteu em Howard; agora estes são donos do título e as terras que antes pertenciam aos Peregrine. É tudo o que sei. O rei declarou bastardos a todos os Peregrine e só ficaram dois vastelos velhos e em ruínas, um condado sem importância e nada mais.
Helen se inclinou para Liana.
—Vi onde vivem, é repulsivo. O teto desmoronou em vários lugares. A sujeira é indescritível, não lhes importa a sujeira, os piolhos ou a carne semeada de vermes. Vivem para uma só coisa, que é vingar—se dos Howard. Este indivíduo, Rogam, não quer uma esposa. Quer o dinheiro dos Neville para fazer a guerra aos Howard.
Helen fez uma pausa e prosseguiu:
—Peregrine são homens horríveis. Interessa—lhes unicamente a guerra e a morte. Quando eu era menina havia seis irmãos, mas quatro morreram. Possivelmente só vivem estes dois, ou talvez esses homens engendram filhos como coelhos.
Respondendo a um impulso, Helen tomou a mão de Liana.
—Por favor, não tenha em conta este candidato. Devoraria—a viva ao café da manhã.
Liana sentiu que a cabeça dava voltas.
—Sou de uma fibra mais resistente do que você acredita —murmurou.
Helen retrocedeu um passo.
—Não —murmurou. —Não pense nisso. Não pode contemplar a possibilidade de se casar com esse homem.
Liana afastou o olhar de sua madrasta. Possivelmente havia outra razão pela qual Helen desejava afastá—la de Rogam. Talvez o desejasse para ela mesma. Ou possivelmente foram amantes, quando Helen morava perto dos Peregrine, na época em que seu primeiro marido vivia.
Liana preparava—se para dizer algo quando Joice entrou na habitação.
—Minha senhora —disse a Liana —Sir Robert Butler chegou.—Pede sua mão em matrimônio. Empurrou Liana para frente. – Vá ter com ele – disse, sussurrando.
Vacilando, Liana atravessou o pátio exterior para onde esperava seu cavalo.
—Abrigara a esperança de conquistar sua mão porque me interessam as terras de seu pai —disse sir Robert com voz amável —mas agora que a vi, devo reconhecer que você mesma é suficiente prêmio.
—Oh! —Liana se deteve e se voltou para olhá—lo. —Meus olhos são como esmeraldas ou como safiras?
Os olhos do jovem se aumentaram pela surpresa.
—Eu diria como safiras.
—Minha pele é como marfim ou como o cetim mais fino?
Ele esboçou um leve sorriso.
—Eu diria que como as pétalas da rosa mais branca.
O olhar de Liana adquiriu uma expressão dura.
—E meus cabelos?
O sorriso de sir Robert se alargou.
—Seus cabelos estão ocultos.
Ela arrancou o adereço que levava na cabeça.
—Ouro? —perguntou irritada.
—A luz do sol derramando—se sobre o ouro.
Ela se afastou com impaciência e não chegou a ver a risada contida de sir Robert.
—Permitirá lhe escoltar na cavalgada? —perguntou cortesmente o jovem. —Juro pela alma de minha mãe que não elogiarei um só aspecto de seu formoso corpo. Direi que é uma bruxa se assim o desejar.
Ela não o olhou e se aproximou de seu cavalo, que já estava sendo selado pelo ajudante do estábulo. Não via nada humorístico no que ele dizia. É obvio, afirmaria que era uma bruxa. Diria tudo o que ela desejasse que expressasse.
Descartou—o enquanto atravessavam a porta exterior, cruzavam a ponte levadiça e avançavam para o bosque próximo. Liana não prestou atenção ao rumo que seguiam mas em todo caso seguiu para o lago. Sabia que atrás sir Robert se via em dificuldades para manter o ritmo, mas nem por isso diminuiu a marcha.
Quando se deteve perto da margem do lago permaneceu um momento imóvel sobre o cavalo, recordando a cena da véspera: Rogam deitado sobre o pasto. Sorriu ao recordar a expressão de seu rosto quando lhe jogou no peito as roupas enlodadas.
—Minha senhora é tão boa amazona como bela —disse sir Robert enquanto refreava seu cavalo junto ao que ela montava. Quando Liana começou a desmontar, ele afirmou que devia ajudá—la.
Liana passou duas horas com ele à beira do lago, e comprovou que era um cavalheiro perfeito. Um homem amável, considerado, agradável e culto e a tratava como se ela fosse uma frágil flor que podia quebrar—se em um instante. Falou—lhe de canções de amor e modas e supôs que ela estava vivamente interessada no que acontecia na corte do rei Enrique. Três vezes Liana tratou de orientar a conversação para a administração das terras e o preço da lã, mas sir Robert não quis saber de nada disso.
Enquanto estava com ele, Liana pensava constantemente em seu encontro do dia anterior com lorde Rogam. É obvio, um homem terrível, um indivíduo sujo, imperioso e arrogante, repartindo ordens como se ela fosse sua escrava. É obvio, ela estava vestida de camponesa e ele sabia muito bem que era conde ou se o que Helen dissera era certo, possivelmente, em realidade, podia aspirar ao título de duque. Mas nele havia algo, algo vigoroso e magnético, que determinava que Liana dificilmente pudesse pensar em outra coisa que não fosse Rogam.
—Possivelmente eu possa lhes ensinar a nova dança, lady Liana.
—Sim, certamente.
Estavam caminhando um ao lado do outro por um largo rastro de carretas, através do bosque. Duas vezes ele propusera sustentar seu braço, mas ela negou.
—Como deseja um homem que atue uma esposa? —perguntou Liana.
Não notou que o peito de sir Robert se inchava de orgulho pois a pergunta confirmava suas esperanças.
—A esposa tem que oferecer conforto e apoio, organizar o lar, gerar filhos. A esposa tem que dar amor ao homem.
Ela o olhou com o sobrecenho arqueado.
—E toda a terra que o pai possa ceder?
Sir Robert sorriu.
—É obvio, isso também é útil.
Liana voltava a franzir o sobrecenho ao recordar as palavras de Rogam: “Não me casarei com uma bruxa. Aceitarei—a unicamente se for amável e falar docemente.”
—Suponho que a todos os homens agradam as mulheres submissas e obedientes —respondeu ela.
Sir Robert a olhou com desejo, desejo tanto por sua beleza como pela riqueza que ela podia contribuir. Por sua parte, a jovem podia ser uma bruxa; em realidade bem lhe agradava sua aspereza, mas não estava disposto a dizer tal coisa a uma mulher, era melhor lhe explicar que devia ser obediente e esperar que tudo saísse bem.
Caminharam em silêncio mas a cabeça de Liana dava voltas. Por que devia contemplar sequer a união com um homem como lorde Rogam? Nada o recomendava. Tinha—a tratado com a maior rudeza possível, embora ele acreditasse que Liana era uma camponesa. Provavelmente beijasse sua mão e diria frases tenras sobre o perfume de sua pele, se soubesse quem era. E ali se perguntou: E os piolhos que teriam começado a subir por seu braço?
Olhou sir Robert e ofereceu—lhe um débil sorriso. Era um jovem limpo, amável e aborrecido. Oh, muito, mas muito aborrecido.
—Você me beijaria? —perguntou, obedecendo a um impulso.
Sir Robert não necessitou que o dissesse duas vezes. Brandamente, abraçou—a e apertou seus lábios sobre os de Liana.
Liana sentiu que corria risco de dormir. Retrocedeu um passo e o olhou surpreendida. De modo que essa era a razão pela qual contemplava o matrimônio com lorde Rogam.
Desejava—o. Quando ele a beijou, ela estremecera. Quando ele estava de pé frente a Liana, quase nu, seu próprio corpo sentira ondas de calor. Agora mesmo, sir Robert podia tirar—se até a última de suas roupas e Liana sabia que não sentiria nada.
—Liana —murmurou sir Robert e avançou um passo para ela.
Esta se voltou com tal presteza que o movimento de ar que ela provocou agitou os cabelos do jovem.
—Devo retornar. Devo dizer a meu pai que aceito o matrimônio.
Sir Robert se assombrou tanto que permaneceu imóvel um momento, incapaz de fazer um só gesto. Depois, correu atrás de Liana, abraçou—a e começou a lhe beijar o pescoço e a garganta.
—Oh, querida minha, graças a você sou o homem mais feliz da Terra. Não sabe o que isto significa para mim, há um ano os incêndios destruíram nossa propriedade, quase tinha perdido a esperança de reconstruir tudo o que se queimou.
Ela se separou do jovem.
—Acreditei que desejava meus cabelos dourados e meus olhos de safira.
—É obvio, também isso.
Agarrou as duas mãos de Liana entre as suas e começou beijá—las entusiastamente. Ela as retirou e correu para seu cavalo.
—Terá que encontrar outra pessoa que o ajude na reconstrução, decidi me casar com o chefe dos Peregrine.
Sir Robert emitiu um alarido de autêntico horror enquanto corria atrás dela e agarrava—lhe o braço.
—Não pode contemplar a possibilidade do casamento com nenhum deles. São...
Ela elevou uma mão para contê—lo.
—A você não corresponde decidir. Retornarei a minha casa e pode permanecer aqui ou me acompanhar. Quando em efeito retorne, sugiro que você e seus homens saiam da propriedade dos Neville e vão procurar outra herdeira que ajude a reparar as propriedades danificadas. E da próxima vez, possivelmente possa cuidar melhor dessas propriedades e impedir os incêndios antes de que comecem.
Aproximou—se de seu cavalo e montou.
Sir Robert a olhou um momento e sua decepção começou a dissipar—se. Possivelmente estaria melhor sem essa mulher—macho porque o matrimônio com uma mulher como ela podia ser infernal. Talvez conviesse mais perder um pouco de terra que atar—se a ela pelo resto de sua vida.
Pensou: Não, não queria saber de nada com ela. Malditos esses Peregrine! As mulheres pareciam sentir—se atraídas por eles, apesar de sua sujeira e de sua luta permanente para reconquistar terras e títulos que não lhes pertenciam. Pensou com certa satisfação que se Liana se casasse com um desses Peregrine, no prazo de três anos seria uma mulher velha e gasta, porque a usaria pior que a um cavalo de arado.
Montou e a seguiu, era melhor reunir seus homens e sair imediatamente. Não suportava a ideia de assistir à cerimônia matrimonial da formosa lady Liana com um desses Peregrine. Encolheu—se de ombros, o assunto já não lhe interessava.
Liana, de pé frente a seu pai e sua madrasta no solar, anunciou que se dispunha a casar com lorde Rogam.
—Moça, é uma decisão sábia —disse Gilbert. —O melhor falcoeiro de toda a Inglaterra.
A face da Helen adquiria lentamente um matiz púrpura.
—Não faça isso —disse ofegante. —Está tentando me ofender.
—Fiz o que queria e escolhi o marido —disse friamente Liana. —Acreditei que se sentiria satisfeita comigo.
Helen tratou de acalmar—se, afundou—se pesadamente em sua poltrona e elevou as mãos ao teto em um gesto de rendição.
—Está bem, você ganha. Pode ficar aqui, administrar a propriedade e dirigir os criados. Fica com tudo, para que eu possa me importar. Quando for me reunir com o Criador, não quero a pesar sobre minha consciência a culpa de ter obrigado a filha de meu marido a aceitar esta morte em vida. Venceu, Liana. Isso lhe agrada? E agora, vá, sai de minha vista. Pelo menos me deixe esta habitação, onde nem você nem sua mãe morta governarão.
Liana se assombrou ante o discurso de sua madrasta e pensou no que ouvira enquanto se voltava para sair da sala. Estava quase na porta quando compreendeu o que Helen quis lhe dizer e retornou depressa.
—Não —disse com certo apresso na voz —quero me casar com esse homem. Em realidade, vi—o antes. Ontem estivemos sozinhos um momento e...
Olhou—se as mãos, a face púrpura.
—Oh, santo Deus, ele a violou —disse Helen. —Gilbert tem que enforcá—lo.
Gilbert e Liana exclamaram ao uníssono: —Não!
—Os falcões... começou Gilbert.
—Ele não... —disse Liana.
Helen elevou as mãos para reclamar silêncio e apertou o ventre. Não duvidava de que seu filho nasceria com cascos em lugar de pés humanos depois do inferno que sua enteada provocara durante a gravidez.
—Liana, o que fez essa besta?
Ela pensou: Obrigou—me a lavar as roupas, beijou—me.
—Nada —disse. —Nem sequer me tocou. —Durante a missa teria que fazer penitência por essa mentira. —Ontem, enquanto cavalgava, encontrei—o e eu... —Ela o que? Simpatizou com ele? Apaixonou—se? Odiou—o? Provavelmente todas essas coisas, mas qualquer que fosse o sentimento que lhe inspirava, era intenso. —E quero aceitar sua proposta de casamento —concluiu.
—Boa eleição —disse Gilbert. —O moço é realmente um homem.
—É uma estúpida, Liana —murmurou Helen, intensamente pálida. —Raramente uma jovem tem um pai tão fraco que lhe permite escolher seu próprio marido e agora compreendo por que é assim. Nunca imaginara que seria tão estúpida. —Suspirou. —Agora a responsabilidade é sua. Quando golpeá—la, e se ainda conserva a vida, pode retornar aqui e atenderemos suas feridas. Agora, vá. Não suporto vê—la.
Liana não se moveu.
—Não desejo me reunir com ele antes da cerimônia —disse.
—Pelo menos, agora mostra um pouco de sensatez —disse sarcasticamente Helen. —Mantenha—se afastada dele todo o possível.
Gilbert estava comendo uvas.
—Ele não pediu para vê—la, imagino que o de ontem foi suficiente, não é? Sorriu e piscou os olhos para sua filha. Não recordava quando uma mulher lhe agradara tanto. Os moços Peregrine podiam ser um pouco brutos, mas eram assim porque se tratava de homens, não de janotas governados por mulheres.
—Suponho que é assim —disse Liana. Temia que se ele a visse antes e descobrisse que era a mulher que lhe jogara as roupas na cara, negaria—se a desposá—la. Não lhe agradava as bruxas, e se Rogam desejava uma mulher de fala doce, ela teria que ser uma esposa de fala doce.
—Bem, é bastante fácil arrumar isso —disse Gilbert. —Direi que tem varíola e que ele pode trocar anéis com uma substituta. Fixaremos as bodas para... —Olhou para Helen, mas ela se mantinha silenciosa, imperturbável. —Três meses. Está de acordo, filha?
Liana olhou para Helen e em lugar de odiar sua madrasta, recordou que ela estava disposta a permitir que ela permanecesse como solteirona na casa dos Neville. Possivelmente, depois de tudo, Helen não a odiava.
—Precisarei de vestidos —disse amavelmente Liana. —Utensílios para meu novo lar. Acredita que poderá ajudar—me a escolher o que necessito?
Helen tinha uma expressão sombria.
—Não posso conseguir que mude de ideia?
—Não —respondeu Liana —não pode.
—Então, ajudarei—a. Se morrer, colaborarei em preparar seu cadáver para o enterro e portanto tenho que assisti—la também nisto.
—Obrigada —disse Liana sorrindo, e saiu da habitação, sentindo—se maravilhosamente ágil e feliz. Teria muito o que fazer durante os três meses seguintes.
O estandarte dos Peregrine, um falcão branco rampante sobre fundo vermelho, com os crânios de três cavalos em diagonal sobre o ventre do falcão, ondulava sobre o acampamento. Alguns homens dormiam em tendas ou sob as carretas de bagagem, mas Rogam e Severn descansavam no chão sobre mantas, os corpos rodeados por armas.
—Não compreendo por que aceitou casar—se com você —repetiu Severn. Era algo que o desconcertava desde o momento em que Gilbert Neville disse que sua filha concordara com o matrimônio. Rogam se limitara a encolher—se os ombros e começora a negociar o que devia incluir—se no dote. Nem o jovem nem Gilbert pareceram estranhar que a noiva, depois de rechaçar a maior parte dos candidatos da Inglaterra, aceitasse Rogam sem nem sequer vê—lo.
—Recusou a mão de todos os restantes —disse Severn. —Certamente, não aprovo que se permita a uma moça escolher marido, mas, por que se negaria ante um homem como Stephen Whitington?
Rogam se voltou de lado, afastando—se um pouco de seu irmão e resmungou: —A moça tem boa cabeça, escolheu bem.
Então tocou a Severn o turno de resmungar.
—Nisto há mais do que me diz. Ouça, não terá seduzido essa jovem quando estavam sozinhos?
—Jamais a vi. Estava muito atarefado tratando de seduzir Neville com o fim de que se desprendesse de seu ouro. Possivelmente golpeou a moça e insistiu com quem devia casar—se, que é precisamente o que devia fazer desde o começo.
—Possivelmente —disse Severn. —Mas ainda acredito que você...
Irritado, Rogam olhou da sombra para seu irmão.
—Já disse que não vi a jovem, estive com Neville de manhã até a noite.
—Exceto quando se separou de nós, antes de chegar ao castelo de Neville.
—Eu não... —começou a dizer Rogam, e interrompeu—se, recordando a jovem que se queixava da sujeira dos trajes que ele usava. Tinha—a esquecido por completo até esse momento. Teria que recordar que devia procurá—la quando voltasse três meses mais tarde, para as bodas.
—Não vi a herdeira —disse em voz baixa Rogam. —Seu pai seguramente arrumou todos os detalhes. É um estúpido e poderia comprar sua alma por uma dúzia de falcões.
—Duvido de que tivesse que pagar tanto —burlou Severn, e depois fez uma pausa. —E a herdeira não lhe inspirou curiosidade? Agradaria a mim ver a mulher com quem vou casar antes da cerimônia. Poderia ser obesa e velha e...
—O que me importa como é esta esposa? O que desejo são suas terras. Agora, dorme, irmãozinho, pois amanhã é quarta—feira, e neste dia terá que gastar muita energia.
Severn sorriu na escuridão. No dia seguinte veria Iolanthe e tudo voltaria a ser igual. Três meses mais tarde lady Liana Neville se incorporaria a suas vidas e suas existências continuariam da mesma maneira pois se parecesse com o pai, ela devia ser uma cosinha temerosa e covarde.

 

 

 


capítulo 4

—Não, não, não, minha senhora, as boas esposas não gritam. As boas esposas obedecem a seus maridos —assessorou Joice. Estava fatigada e exasperada, lady Liana pedira que lhe ensinasse a ser uma boa esposa, mas Liana exercera o controle das propriedades durante muito tempo e era quase impossível obter que entendesse como devia comportar uma esposa.
—Inclusive quando ele se comporta em forma estúpida? —perguntou Liana.
—Especialmente quando é um estúpido —respondeu Joice. —Aos homens agradam acreditar que sabem tudo, que sempre têm razão e exigem a fidelidade absoluta de suas mulheres. Não importa o quanto se equivoque seu marido, pretenderá que você o apóie nisso.
Liana escutou atentamente estas palavras. Não era o que sua mãe pensava do matrimônio e tampouco Helen tinha essa atitude. E nenhuma delas podia considerar uma esposa bem amada, pensou Liana com uma careta. Durante o último mês ela chegara a compreender que desejava que seu matrimônio fosse muito diferente dos dois que ela mesma conhecia, não queria viver em uma atmosfera de ódio pelo resto de sua vida. Aparentemente sua mãe não importou o fato de que desprezasse a seu próprio marido e essa era também a atitude da Helen; mas Liana queria que sua vida fosse diferente. Certa vez vira uma união de amor, um casal cujos membros, depois de anos de haver se casado, ainda se olhavam longamente e permaneciam muitas horas juntos conversando. Liana queria essa classe de matrimônio.
—E ele preferirá a obediência antes que a sinceridade? —perguntou Liana. —Se se equivocar, não devo dizer—lhe?
—É claro que não, aos homens agrada pensar que suas esposas acreditam quase que são deuses em tudo. Cuidam de sua casa, dão—lhes filhos, e quanto a opinião, dizem que eles sabem muito mais dessas coisas que elas porque a esposa não é mais que uma mulher.
—Não é mais que uma... —repetiu Liana, tratando de entender o ponto. O único homem a quem ela conhecera realmente, era seu pai, e odiava pensar no que seriam as terras dos Neville se sua mãe não as tivesse administrado.
—Mas meu pai...
—Seu pai não é como a maioria dos homens —disse Joice com o maior tato possível. Assombrou—a que lady Liana lhe pedisse conselho a respeito dos homens, embora parecesse que em todo caso era necessário abordar o tema. Convinha que sua ama soubesse como eram realmente os homens antes de que se unisse a pessoas como esses Peregrine. —Lorde Rogam não lhe concederá a mesma liberdade que tem com seu pai.
—Não, suponho que não —disse em voz baixa Liana. —Assegurou—me que não está disposto a casar—se com uma bruxa.
—Nenhum homem quer saber de nada com alguém que se pareça com uma bruxa, quer uma mulher que o elogie, que atenda a sua comodidade e que seja complacente na cama.
Liana acreditava que podia resolver facilmente esses aspectos.
—Não estou segura de que lorde Rogam se interesse muito pela comodidade, tem as roupas sujas e não se banha com frequência.
—Ah, nesse aspecto uma esposa pode ter muito poder. A todos os homens agrada a comodidade, desejam certos pratos de comida, certa taça para beber sua bebida favorita e embora seu lorde Rogam saiba ou não, sem dúvida lhe agrada uma casa ordenada e tranquila. Sua esposa deve atender as rixas entre os criados e cuidará que a mesa esteja carregada de mantimentos deliciosos. Podem substituir suas roupas rasgadas e sujas por outras novas, de melhor qualidade. Esses são os caminhos que levam ao coração de um homem.
—E se suas terras se encontram em uma situação desastrosa, eu...
—Bem, isso é assunto do homem, não deve preocupar à mulher —alegou com firmeza Joice.
Liana pensou que possivelmente era mais fácil administrar propriedades que agradar a um homem, não estava segura de que pudesse recordar todas as normas a respeito do que agradava e desagradava a um homem.
—Está segura de tudo o que diz? Se me encerrar no solar e me ocupar exclusivamente das coisas da casa, isso conquistará o coração de meu marido?
—Estou segura, minha senhora. Bem, quer provar este novo vestido?
Durante três meses Liana provou novos trajes, ordenou peles, brocados italianos e jóias. Pôs a bordar a todas as mulheres que sabiam usar a agulha e não só ordenou seu próprio guarda—roupa, mas também mandou confeccionar um esplêndido conjunto de roupas para lorde Rogam. A única vez que seu pai prestou atenção ao que acontecia, foi comentar que o noivo devia vestir—se por conta própria, mas Liana não lhe deu atenção.
Quando não estava com Helen trabalhando em seu novo enxoval, Liana se dedicava a fiscalizar a preparação do dote. Toda a riqueza dos Neville que não se expressava nas terras, adotava a forma de bens móveis. Fontes e jarras de ouro foram envoltas em palha e depositadas em carros, até mesmo os preciosos copos de cristal. Liana acumulou tapeçarias, roupa branca, mobília de carvalho esculpido, velas, almofadões e colchões de plumas. Havia carretas de ricos tecidos, peles e uma grande arca com cintas de ferro cheio de jóias e outro de moedas de prata.
—Necessitará de tudo isto —disse Helen. —Esses homens vivem sem a mínima comodidade.
Liana sorriu ao ouvir isto, porque possivelmente a comodidade que ela forneceria contribuiria para que seu marido a amasse.
Helen viu o sorriso espectador de Liana e gemeu, mas não tentou voltar a falar do tema com ela, pois vira que era impossível raciocinar com a jovem. Limitou—se a despojar de suas riquezas o castelo dos Neville e não ofereceu conselhos a Liana.
As bodas seriam relativamente modestas, pois os Neville não eram muito apreciados entre a aristocracia e a realeza do país, dado que o pai do Gilbert comprara seu título ao rei apenas uns anos antes de sua morte. Ainda havia muitas pessoas que recordavam a época em que os Neville eram nada mais que mercadores ricos e duros que cobravam por um artigo cinco vezes mais que o que pagavam. Liana se alegrou da desculpa que lhe permitia economizar o gasto de uma enorme celebração, para levar mais ao castelo dos Peregrine.
A jovem não dormiu muito na véspera das bodas: repassou mentalmente o que aprendera a respeito da forma de agradar ao marido e tratou de imaginar sua nova vida. Como seria compartilhar o leito com o belo lorde Rogam? Pensou no momento em que ele a tocaria e acariciaria e dirigiria—lhe delicadas palavras. Decidira que não se casaria com os cabelos descobertos e que usaria um toucado com jóias, pois sabia que seus longos cabelos de linho eram o recurso mais atrativo de sua pessoa e desejava compartilhá—lo somente com ele na noite das bodas. Imaginou longos passeios juntos, rindo, de mãos dadas ou sentados frente ao fogo numa fria noite de inverno, lendo em voz alta para ele, ou jogando damas. Possivelmente a aposta seria um beijo.
Sorriu na escuridão ao pensar no que ele diria quando descobrisse que se casou com a mulher do lago. Certamente, essa mulher tinha sido uma bruxa, mas a esposa de Rogam seria lady Liana, recatada, discreta e afetuosa. Imaginou a gratidão de seu marido quando trocasse esses trajes sujos e grosseiros que agora levava por finas sedas e lãs. Fechou os olhos por um momento e fantasiou vendo—o incrivelmente bonito, vestido de veludo escuro, possivelmente verde, com uma corrente de jóia que se estenderia de um dos largos ombros ao outro.
Iniciaria—o nos prazeres do banho com sais perfumados de rosa, possivelmente depois lhe esfregaria azeite sobre a pele, inclusive entre os dedos dos pés, pensou com um suspiro de prazer celestial. Imaginou—o deitado sobre um leito de plumas limpo e brando, rindo os dois ao recordar o primeiro encontro como se mostraram infantis porque não reconheceram desde o primeiro momento que cada um estava destinado ao outro.
Pouco antes do alvorada adormeceu com um sorriso nos lábios, mas foi despertada uns instantes mais tarde por um horrendo estrondo no pátio, abaixo. A julgar pelos gritos dos homens e a ressonância do aço, estavam sendo atacados. Quem descera a ponte levadiça?
—Oh, meu Deus, não permita que morra antes de casar—me com ele —rogou Liana enquanto saltava da cama e punha—se a correr.
No corredor Helen também apressava e o mesmo parecia acontecer com a metade dos habitantes do castelo.
Liana abriu passo através do caos e se aproximou de sua madrasta.
—O que acontece? O que passou? —gritou para impor—se ao ruído.
—Seu noivo finalmente chegou —disse irritada Helen. —Ele e todos seus homens estão bêbados. Agora, alguém que não aprecie muito sua própria vida terá que conseguir que esse noivo seu desmonte, se vista e recupere a sobriedade na medida necessária para pronunciar seus votos ante você. —Fez uma pausa e dirigiu um olhar de simpatia a sua enteada. —Liana, hoje sacrifica sua vida —disse em voz baixa. —Que Deus tenha piedade de sua alma.
Helen começou a descer a escada em direção ao solar.
—Minha senhora —advertia Joice, que estava detrás, —deve retornar a sua habitação. Não pode vê—la no dia de suas bodas.
Liana retornou a sua habitação e inclusive permitiu que Joice a deitasse de novo, mas não pôde dormir. Outra vez Rogam estava sob o mesmo teto que ela, e logo... logo estaria ali, compartilhando sua cama. Só os dois. Sozinhos, no íntimo silêncio da habitação. Perguntou—se do que falariam, sabiam tão pouco um do outro; possivelmente conversariam primeiro sobre o modo de aprender a montar ou talvez lhe explicaria onde vivia. Esse castelo dos Peregrine seria o novo lar de Liana e ela desejava conhecê—lo, tinha que determinar onde penduraria as tapeçarias de sua mãe e quais eram os melhores lugares para exibir as fontes de ouro.
Sentia—se tão satisfeita com seus próprios pensamentos que adormeceu um momento, até que Joice veio despertá—la e quatro donzelas que tentavam conter as risadas começaram a vesti—la de brocado vermelho com uma anágua de seda de ouro. Seu toucado de duas pontas era também vermelho, bordado com fios de ouro adornado por centenas de minúsculas pérolas que lhe caíam sobre as costas.
—Bela, minha senhora —disse Joice, com lágrimas nos olhos. —Nenhum homem poderá afastar os olhos de você.
Liana assim o esperava. Abrigava a esperança de ser fisicamente tão atrativa para seu marido como ele o era para ela.
Cavalgou montando de lado em um cavalo branco até a igreja e estava tão nervosa que mal viu a multidão alinhada ao longo do caminho, que a gritos formulava o desejo de que ela tivesse muitos filhos. Seus olhos se fixavam em um lugar à frente, para ver o homem que estava de pé junto à porta da igreja. Tinha as palmas úmidas quando se aproximou. Possivelmente lhe jogaria uma olhada, comprovaria que era a mulher que o golpeara com um objeto sujo de lodo e recusaria desposá—la?
Quando esteve o bastante perto para examiná—lo, Liana sorriu orgulhosa porque o via tão belo como ela imaginou com a túnica de veludo verde que lhe confeccionara. A túnica mal alcançava o extremo superior das coxas, e as pernas fortes e musculosas estavam solidamente embainhadas nas escuras meias tecidas. Sobre a cabeça levava um gorro curto de pele, com um grande rubi que cintilava sobre a faixa.
Tanto se inchou de orgulho ao vê—lo que as costelas doeram ao pressionar sobre os sustentos de aço do espartilho. Depois, conteve a respiração quando ele desceu a escadaria da igreja e avançou para ela. Ajudaria—a a descer do cavalo, sem esperar a que seu pai, que cavalgava diante, encarregasse—se disso?
O cavalo de Liana, movia—se com irritante lentidão. Possivelmente ele notou que era a mulher do lago e se sentia satisfeiro. Talvez ela estivesse nos pensamentos de Rogam nos últimos três meses, como ele estivera nos de Liana.
Mas Rogam não se aproximou. Em realidade, por isso ela pôde ver, nem sequer olhou na direção onde ela estava. Em troca, aproximou—se do cavalo de seu pai e segurou a guia. O cortejo inteiro seduzido, enquanto Liana observava: Rogam falava com seu pai com firmeza. A noiva olhou desconcertada, até que Helen esporeou seu cavalo e se aproximou de sua enteada.
—O que acontece agora a esse demônio vermelho? —cuspiu Helen. —Esses dois estão equivocados se acreditarem que esperaremos enquanto eles falam de falcões.
—Já que ele será meu marido, suponho que devemos esperar —disse friamente Liana. Já estava farta das queixa da Helen contra Rogam.
Helen cravou esporas e se aproximou de seu marido, mas Liana não podia ouvir o que diziam por causa do ruído da multidão, mas notou sua cólera. Gilbert permaneceu impassível e inclusive se recostou nos arreios, enquanto Helen se dirigia a Rogam encolerizada; este se limitou a olhá—la com rosto inexpressivo.
Liana abrigava a esperança de que ele nunca a olhasse assim. Um momento depois Rogam passeou o olhar ao redor, parecia ver pela primeira vez à multidão e como de passada incluiu Liana, que esperava em silencio sobre seus arreios. A jovem conteve a respiração enquanto os olhos frios de Rogam a examinavam da cabeça aos pés. Não notou reconhecimento em seu olhar e se alegrou, porque não desejava arriscar—se que ele se negasse a contrair matrimônio. Quando os olhos de Rogam encontraram os de Liana, esta inclinou a cabeça, com a esperança de parecer modesta e obediente.
Um instante depois, levantou a cabeça e viu Rogam que retornava a escadaria da igreja e Helen que se aproximava sobre seu cavalo.
—O homem com quem pretende se casar —disse Helen com um gesto zombador —estava pedindo a retribuição correspondente a doze cavalheiros mais. Disse que partiria agora mesmo e deixaria você aqui se não recebesse o que pedia.
Liana abriu os olhos, alarmada.
—E meu pai aceitou?
Helen fechou os olhos um momento.
—Aceitou. Agora, terminemos com isto de uma vez.
Incitou seu cavalo para pô—lo atrás do de Liana.
Gilbert ajudou desmontar a sua filha e ela subiu a escada para reunir—se com seu marido. A cerimônia foi breve e os termos não diferentes do que tinham sido durante séculos. Liana manteve os olhos baixos durante toda a cerimônia, mas quando prometeu mostrar—se "total e obediente na cama e na mesa", a multidão a aplaudiu. Duas vezes olhou de lado para Rogam, mas pareceu que ele simplesmente estava impaciente por acabar de uma vez como ela mesma, pensou Liana com um sorriso.
Depois que os declararam marido e mulher, a multidão repetiu as vivas e os dois cônjuges, as famílias de ambos e os convidados entraram para ouvir a missa, pois as bodas era assunto oficial e portanto se celebrava fora da igreja mas a missa pertencia a Deus. O sacerdote benzeu o matrimônio e começou a celebrar a oração.
Liana permaneceu sentada em silêncio, ao lado de seu marido, escutando as fórmulas latinas durante um período que lhe pareceu prolongar—se por horas inteiras. Rogam não a olhou nem a tocou. Bocejou algumas vezes, coçou—se outras tantas e estendeu as largas pernas em direção ao corredor. Em certo momento Liana pensou que escutava um ronco de Rogam, mas o irmão lhe deu um beliscão e Rogam se endireitou no assento duro de madeira.
Depois da missa, o grupo retornou cavalgando para castelo, enquanto os camponeses lhes jogavam grãos de cereal e gritavam: Abundância! Abundância!
Por três dias com suas noites todos os homens, as mulheres e os meninos receberiam quanto alimento e bebida pudessem consumir.
Uma vez que passaram a ponte levadiça e entraram no pátio interior, Liana deteve seu cavalo e esperou que seu marido a ajudasse a desmontar. Em troca, viu que Rogam e seu irmão Severn desmontavam e se aproximavam dos carros carregados que esperavam junto ao muro de pedra.
—Preocupa—se mais por suas riquezas que por você —disse Helen, enquanto um criado ajudava a desmontar Liana.
—Já disse o que desejava – ela replicou asperamente. —Não sabe tudo, possivelmente tem razões que justificam sua atitude.
—Sim, por exemplo que não é humano —disse Helen. —É inútil recordá—la o que fez, agora é muito tarde. Entramos para comer? De acordo com minha experiência, os homens sempre voltam para casa quando estão famintos.
Mas Helen se equivocava, porque nem Rogam nem seus homens entraram para compartilhar o festim que havia custado a Liana semanas de trabalho. Em troca, permaneceram fora, percorrendo os vagões carregados com o dote. Sentou—se sozinha, à direita de seu pai, pois o lugar que correspondia a seu marido permaneceu vazio. Ao redor ouviu os murmúrios dos convidados, que a olhavam com expressão de simpatia. Manteve alto o queixo e se negou a manifestar que estava ofendida, disse—se que era conveniente que o marido se interessasse por sua propriedade porque um homem a quem preocupavam tanto suas posses provavelmente não as perderia no jogo.
Depois de um par de horas, quando a maior parte das pessoas terminaram de comer, Rogam e sua escolta entraram no salão. Liana sorriu, pois estava segura de que ele viera para desculpar—se e explicar o que o retivera, mas em troca, Rogam se deteve ao lado de Gilbert, estendeu a mão entre este e Helen, apoderou—se de um grande pedaço de carne assada e começou a mastigá—la.
—Três carros estão cheios de colchões de pluma e artigos de vestir. Quero—os cheios de ouro —disse Rogam com a boca cheia.
Gilbert não tivera nada a ver com a preparação dos carros e portanto não podia responder a queixa de Rogam. Abriu a boca para falar, mas não disse nada.
Helen não tinha o mesmo problema.
—Os colchões são para a comodidade de minha filha. Não acredito que o lugar em que vocês vivem disponha nem sequer do conforto mais elementar.
Rogam voltou os olhos frios e duros sobre ela e Helen quase retrocedeu.
—Quando quero a opinião de uma mulher, peço—a. —Voltou os olhos para o Gilbert. —Agora praticarei uma recontagem, se tiver me enganado, pagará. —Separou—se da mesa depois de engolir a carne, limpou—se as mãos gordurentas na bela túnica de veludo que Liana confeccionara. —E vocês podem guardar suas plumas.
Helen ficou imediatamente de pé e enfrentou Rogam. Ele era muito mais alto que ela e abundantemente mais corpulento, mas se ergueu, rígida ante ele, pois a cólera lhe infundiu valor.
—Sua própria esposa, a esposa que decidiu ignorar, vigiou a carga desses carros e não lhe enganou. Com respeito aos artigos domésticos, ou a acompanham ou ela continuará aqui, na casa de seu pai. Escolha agora, Peregrine, ou eu farei anular o matrimônio. Uma filha minha não sai nua de minha casa.
Todos os que estavam no salão ficaram em silêncio, só chegou a ouvir o grunhido de um cão em um canto e também esse som logo cessou. Os convidados, os acrobatas, os cantores, os músicos e os palhaços interromperam o que estavam fazendo, e olharam ao noivo, alto e bonito e a elegante mulher que se enfrentavam.
Durante um momento pareceu que Rogam não sabia o que dizer.
—Realizou—se o matrimônio.
—Mas não se consumou —respondeu acidamente Helen. —Será fácil anulá—lo.
A cólera se acentuou nos olhos de Rogam.
—Mulher, não me ameace, as coisas da jovem são minhas e tomarei o que queira. —Retrocedeu um passo e agarrou a Liana, de um braço, arrancando—a de sua cadeira. —Se a virgindade da moça é um problema, tomarei agora.
Esta declaração determinou que a multidão meio ébria pusesse—se a rir e a risada se acentuou quando Rogam subiu com Liana a escada e desapareceu da vista.
—Minha habitação... —disse nervosamente Liana, sem saber exatamente o que estava acontecendo. Somente sabia que finalmente estaria sozinha com esse magnífico homem.
Rogam abriu bruscamente a porta de um quarto de hóspedes que fora atribuído ao conde de Arundel e a sua esposa. A criada da condessa estava pregando alguns objetos.
—Fora —ordenou Rogam à criada e ela se apressou a obedecer.
—Mas minha habitação está... —começou a dizer Liana. Não era assim como deviam fazer coisas, ela devia ser despojada de suas roupas por suas criadas e uma vez nua se deitaria entre lençóis limpos e puros; ele se aproximaria e a beijaria e acariciaria.
—Esta habitação é bastante boa —disse ele, empurrou—a sobre a cama, agarrou a borda da saia e a jogou sobre a cabeça de Liana.
Esta se debateu sob várias capas grossas de tecido, e conteve uma exclamação quando o peso considerável de Rogam a cobriu. Um momento depois gritou de dor quando ele a penetrou. Não estava preparada para isto e tratou de afastar—se mas pareceu que ele não notou, enquanto começava a empurrá—la com movimentos rápidos e prolongados. Liana chiou os dentes para evitar seus próprios gritos e fechou os punhos para conter o sofrimento.
Uns minutos depois ele terminou e se derrubou junto a ela, inerte e fadigado. Liana necessitou um momento para recuperar—se da quebra de onda de dor, mas quando abriu o olhos pôde ver os cabelos escuros de Rogam e sentiu sua suavidade contra a face. Seu rosto se afastou dela, mas os cabelos grossos e limpos cobriam a face e a testa de sua esposa. Agora ela o sentia muito pesado e ao mesmo tempo muito leve. Os largos ombros cobriam o corpo pequeno de Liana e entretanto os quadris de Rogam pareciam tão largos como os de sua mulher.
Elevou uma mão e cobriu—lhe os cabelos, afundou os dedos nas mechas, também o nariz, e inalou a fragrância do corpo masculino.
Lentamente, ele voltou o rosto para Liana, as pálpebras pesadas de fadiga.
—Dorme um pouco —disse em voz baixa.
Ela sorriu aos olhos fechados de Rogam e acariciou seus cabelos, que caíam sobre a têmpora. Ele tinha as pestanas grosas, o nariz bem formado, a pele escura e cálida e tão delicada como a de um menino. As faces estavam sombreadas pelos bigodes mal barbeados, mas isso não prejudicava a terna suavidade de sua boca.
O dedo de Liana percorreu a têmpora de seu marido e desceu pela face até a boca. Quando lhe tocou o lábio inferior, Rogam abriu os olhos, de surpreendente cor verde. Liana pensou: Agora me beijará, e durante um momento conteve a respiração, enquanto ele a olhava.
—Uma loira —murmurou Rogam.
Liana lhe sorriu, pois pareceu que a cor de seus cabelos agradava a seu marido. Levou—se uma mão ao toucado, com um gesto o tirou e os largos cabelos caíram como uma cascata.
—Quis guardá—los para você —murmurou. —Supunha que lhe agradariam.
Ele tomou uma mecha dos finos cabelos dourados e o enroscou ao redor de seus dedos.
—É...
Deteve—se sem terminar a frase e toda a suavidade desapareceu de seu rosto. Imediatamente se separou dela e levantou, olhando—a com hostilidade.
—Vista—se, vá ver essa madrasta infernal e diga que o matrimônio está consumado. Diga que não haverá anulação; pode se preparar, pois partimos esta noite.
Liana cobriu as pernas nuas com a saia e se sentou na cama.
—Esta noite? Mas a celebração do matrimônio se prolonga dois dias mais. Para amanhã organizei um baile e...
Rogam arrumou depressa suas próprias roupas.
—Não tenho tempo para bailes nem para esposas polêmicas. Se for assim como pretende começar, pode ficar aqui com seu pai e eu levarei as coisas. Meus homens e eu partimos em três horas. Que esteja ou não ali, pouco me importa.
Voltou—se e saiu da habitação, fechando com forte golpe a porta.
Liana permaneceu sentada no mesmo lugar, muito aturdida para fazer algo. De modo que se propunha deixá—la ali!
Depois de golpear brandamente a porta, Joice entrou na habitação.
—Minha senhora? —disse.
Liana olhou sua donzela e em seus olhos se lia todo o assombro que experimentava.
—Parte em três horas e diz que posso ir com ele ou ficar. Não lhe importa o que faça.
Joice se sentou na cama e tomou a mão de Liana.
—Acredita que não necessita de uma esposa, todos os homens pensam assim. A você corresponde demonstrar que em efeito ele precisa da companhia de uma esposa.
Liana se separou de sua criada e quando moveu as pernas sentiu uma pontada de dor.
—Machucou—me.
—Sempre é assim a primeira vez.
Ficou de pé e a cólera começou a dominá—la.
—Jamais fui tratada assim, não se incomodou sequer em assistir a seu próprio festim de bodas, tive que estar sozinha ali, suportando as olhadas e os sorrisos compassivos das pessoas. E isto! Voltou os olhos para sua própria saia. O mesmo teria recebido se me violasse. Farei—o saber com quem está tratando.
Tinha a mão sobre o ferrolho da porta quando as palavras de Joice a detiveram.
—E ele a olhará com o mesmo ódio com que olhou lady Helen.
Liana se voltou.
—Viu como a desprezou —continuou Joice, e de repente se sentiu muito poderosa. Sua jovem pupila podia ser bela e rica, mas agora a estava escutando e obedecendo. —Acredita—me, sei o que querem os homens como lorde Rogam, se atrever a desafiá—lo odiará como odeia a sua madrasta.
Liana esfregou os dedos da mão direita. Ainda podia sentir o roce dos cabelos de Rogam contra sua própria pele, recordando que nos olhos de seu marido durante um momento pôde ver refletida uma doce expressão e não desejava renunciar a isso.
—O que devo fazer? —murmurou.
—Deve obedecer —disse Joice com firmeza. —Estar pronta em três horas. Lady Helen certamente protestará se partir, mas deve estar junto a seu marido até contra ela. Já disse que os homens desejam que suas esposas sejam leais.
—Com lealdade cega? —perguntou Liana. —Inclusive agora, que se equivoca?
—Sobre tudo agora, quando se equivoca.
Liana escutou o conselho, mas ainda não podia entender sua atitude.
Ao ver que sua jovem ama se sentia confundida, Joice continuou falando.
—É necessário que domine sua cólera. Todas as mulheres casadas alimentam sentimentos de irritação e guardam para elas mesmas. Já o verá, aprenderá a dominar tanto a ira, que se converterá em um modo de vida para você.
Liana começou a dizer algo, mas Joice a interrompeu.
—Comece seus preparativos, porque do contrário a abandonará.
Liana saiu da habitação sentindo—se muito confusa. Faria tudo o que pudesse para demonstrar que podia ser boa esposa e se isso a obrigava a conter a irritação, que assim fosse. Demonstraria que podia ser a mais fiel das esposas.
Quando lorde Rogam desceu os degraus de pedra, o belo rosto deformado pelo sobrecenho franzido, a primeira pessoa com quem cruzou foi lady Helen.
—O fato está consumado e não haverá anulação. Se tiver que adicionar algo aos carros, faça—o agora, pois partimos em três horas.
Quis reatar seu caminho, mas Helen o impediu.
—Impedirá que minha enteada tenha seu próprio festim de bodas?
Rogam não entendia por que estas mulheres armavam tanto escândalo. Se o que queriam era comida, eles podiam levá—la em abundância.
—A moça não passará necessidades —respondeu, tratando de atenuar o ódio que refletiam os olhos de Helen, não estava acostumado a que as mulheres o detestassem. Em geral, comportavam—se como a jovem com quem se casou; adoravam—no e o olhavam com emotivos olhos.
—Com você passará necessidade —adicionou Helen —como as esposas de seu pai sentiram falta de calor e companhia. —Sua voz abaixou um pouco. —Como Jeanne Howard passou necessidades.
Helen retrocedeu um passo quando viu a reação de Rogam. Seus olhos se endureceram e a olhou com tal cólera que ela começou a tremer.
—Mulher, nunca volte a se aproximar de mim —disse friamente, com voz grave. Depois continuou seu caminho, sem fazer caso dos gritos dos convidados que lhe propunham aproximar—se para beber e saiu ao pátio.
Pensou: Jeanne Howard. Pudesse retorcer o pescoço desta mulher por mencionar Jeanne, mas o episódio lhe recordou que devia andar com cuidado com esta nova esposa e que não podia permitir que uns bonitos olhos azuis e uns cabelos loiros o desviassem de seu caminho.
—Parece decidido a esfaquear alguém —disse jovialmente Severn. Tinha a cara avermelhada devido ao excesso de comida e bebida.
—Está pronto para partir? —grunhiu Rogam. —Ou esteve muito ocupado deitando—se com as mulheres, antes de atender o essencial?
Severn estava acostumado a irritabilidade constante de seu irmão e bebera muito vinho, de modo que agora este não o incomodava.
—Antecipei a seus desejos, irmão, e enchi um carro com comida. Deixamos os colchões de plumas ou os levamos?
—Deixe—os —resmungou Rogam, mas vacilou. Recordou as palavras de Helen Neville: "Como Jeanne Howard passou necessidades", e sentiu que uma faca lhe revolvia as tripas. A moça com quem se casou... como se chamava? Parecia bastante simples.
—Que tenha seus colchões de plumas —grunhiu a Severn, e foi inspecionar seus homens.
Severn viu afastar—se seu irmão e perguntou—se como seria sua bonita e miúda cunhada.

 


Capítulo 5

Liana se vestiu depressa, porque queria assegurar—se que todos os seus novos trajes estivessem empacotados, e ordenar a suas criadas que recolhessem seus artigos pessoais. Três horas era um tempo muito breve quando tinha que preparar—se para uma nova vida.
E enquanto ela corria de um lado para o outro, Joice a exortava.
—Não se queixe —dizia Joice. —Os homens detestam às mulheres que o fazem. Deve aceitar o que ele lhe ofereça; nunca expresse uma só palavra de protesto. Digam que se alegra de suspender o festim das bodas e também de dispor de só três horas para preparar a partida; aos homens agrada que suas mulheres sorriam e se mostrem alegres.
—Ainda não deu sinais de que lhe agrado —disse Liana. —Não prestou a mínima atenção, exceto para eliminar o risco de uma anulação —disse com certa amargura.
—Isso levará anos —respondeu Joice. —Eles não entregam facilmente seu coração, mas se perseverar o amor chegará.
Liana pensou: E isso é o que desejo. Ansiava que aos poucos seu bonito marido a amasse e necessitasse. Se contiver um pouco de cólera de vez em quando ele poderia fornecer o resultado desejado, que assim fosse.
Esteve pronta antes das três horas e desceu a escada para despedir—se de seu pai e sua madrasta. Gilbert estava bêbado e falava de falcões com vários homens e mal disse uma palavra de despedida a sua única filha; mas Helen a abraçou com força e desejou a melhor sorte do mundo.
Fora, com os cavalheiros Peregrine montados e esperando para iniciar a marcha, o grande estandarte com o falcão branco à cabeça, Liana experimentou um momentâneo sentimento de terror. Estava deixando para trás tudo o que ela conhecia e confiando sua sorte a estes estranhos. Permaneceu imóvel um momento e com os olhos procurou seu marido. Rogam, montando um grande corcel, aproximou—se dela e Liana elevou um braço para proteger o rosto do cascalho que voava pelo ar.
—Monta seu cavalo e partamos, mulher —ordenou e aproximou—se do chefe do grupo.
Liana escondeu os punhos fechados entre as dobras de sua saia. Pensou: Domina sua cólera e tratou de acalmar—se ante a grosseria de seu marido.
Do pó surgiu a figura de Severn, o irmão de Rogam, que lhe dirigiu um sorriso.
—Minha senhora, posso ajudá—la a montar? —perguntou.
Liana afrouxou o corpo e sorriu ao belo cavalheiro. Estava tão mal vestido como Rogam, seus cabelos dourados eram muito compridos e estavam desordenados, mas pelo menos sorria. Ela apoiou a mão no braço estendido de Severn.
—Será uma honra —acrescentou Liana e caminhou com ele para o cavalo que esperava.
Ela acabava de montar quando Rogam se voltou para eles. Não a olhou e franziu o sobrecenho a seu irmão.
—Se tiver terminado sua tarefa de ajudante da dama, vem comigo —ordenou Rogam.
—Possivelmente sua esposa queira cavalgar adiante conosco —disse intencionalmente Severn sem olhar a Liana.
—Não quero mulheres —replicou asperamente Rogam, que tampouco olhou a sua esposa.
—Não acredito que... —começou a responder Severn, mas Liana o interrompeu, porque compreendeu que não agradaria a seu marido que ela fosse a causa de uma discussão com o irmão.
—Prefiro ficar aqui disse em voz alta. Sentirei—me mais segura rodeada pelos homens e você, senhor —disse a Severn —é necessário... a meu marido.
Seu cunhado franziu o sobrecenho e a olhou.
—Como queira —disse e com uma breve inclinação da cabeça esporeou seu cavalo e ficou junto a seu irmão, à frente do cortejo.
—Oh, excelente, minha senhora —elogiou Joice, que montava em seu cavalo, aproximou—se de sua ama. —Agora agradou—o. Lorde Rogam olhará com bons olhos a uma esposa obediente.
Enquanto cruzavam o pátio, atravessavam a ponte levadiça e saíam ao poeirento caminho, Liana espirrou por causa do pó.
—Fui a esposa obediente, mas agora devo cavalgar detrás de dez cavaleiros e meia dúzia de carros —murmurou.
—Mas em compensação triunfará —replicou Joice —já o verá. Quando compreender que é obediente e fiel, vai amá—la.
Liana tossiu e esfregou o nariz por causa do pó. Era difícil pensar no amor e na lealdade quando mantinha a boca cheia de terra.
Cavalgaram horas inteiras, Liana ocupando sempre o mesmo lugar, no centro da procissão; nenhum dos homens de seu marido lhe falou. A única voz que ouviu foi a de Joice, que a exortava a respeito da obediência e o dever. E quando Severn lhe perguntou se se sentia cômoda, Joice respondeu por sua ama, dizendo que se lorde Rogam desejava que sua esposa estivesse ali, é obvio que lady Liana se sentia feliz no lugar indicado.
Liana dirigiu a Severn um sorriso descolorido e sufocou—se novamente com uma nuvem de pó.
—Esse homem demonstra muito interesse por sua pessoa —demarcou Joice depois de que Severn se afastou. —Será melhor que lhe indique o quanto antes qual é seu verdadeiro lugar.
—Só se mostra amável —disse Liana.
—Se aceitar sua bondade, provocará problemas entre os irmãos. Seu marido se perguntará onde está sua fidelidade.
—Não estou muito segura de que meu marido nem sequer me tenha cuidado —resmungou para si mesmo Liana.
Joice sorriu através do pó que as envolvia. À medida que passava o tempo se sentia mais e mais poderosa. Quando era menina, lady Liana nunca a tinha escutado e várias vezes Joice foi castigada porque Liana se mostrava desobediente e incorria em travessuras. Mas ao fim existia algo que ela conhecia e que sua ama ignorava.
Continuaram viajando até a noite; Liana notou que Joice e as seis donzelas restantes caíam de cansaço, mas não se atreveu a pedir a seu marido que detivesse a marcha; estava muito excitada para descansar. Essa noite seria sua noite de bodas, essa noite dormiria em braços de seu marido. Essa noite a acariciaria, tocaria seus cabelos, beijaria—a. Um dia cavalgando em meio de um pouco de terra bem valeria a recompensa que a esperava mais adiante.
Quando realmente se detiveram para acampar, os sentidos de Liana estavam instigados pela expectativa. Um dos cavalheiros a ajudou a desmontar e Liana ordenou a Joice que se ocupasse das demais mulheres. Olhou ao redor em busca de seu marido e viu que desaparecia entre as árvores.
Atrás, Liana teve vaga consciência das queixa de seus serventes, que não estavam acostumadas a cavalgar seguido tantas horas, mas não tinha tempo para elas. Tomando—se seu tempo e tratando de parecer indiferente, seguiu seu marido até o interior do bosque.
Rogam respondeu a um chamado da natureza no bosque e depois se afastou até mais na escuridão, em direção ao regato. Com cada passo que dava, esticava mais os músculos. Tinham viajado para chegar até ali mais horas que quando o faziam sem carros carregados, e agora a escuridão era tão absoluta que tinha que avançar ao longo da margem no escuro.
Passou um momento antes de achar o montículo, a pilha de pedras de um metro e meio de altura que ele formara ali para assinalar o lugar em que seu irmão mais velho morreu, abatido pela espada de um Howard. Permaneceu um momento, tratando de adaptar sua visão a débil luz da lua que feria as cinzas pedras, e sua mente evocou de novo os sons do combate: Rowland e seus irmãos caçando; e aquele, que se sentia seguro porque estavam a dois dias de viagem de cavalo das terras dos Howard em realidade, a terra dos Peregrine. Afastou—se da proteção de seus homens e, sentado à beira do rio, bebia sozinho um jarro de cerveja.
Rogam sabia por que seu irmão preferia estar sozinho, e por que com tanta freqüência bebia pelas noites até perder o sentido. Perseguia—o a lembrança da morte de três irmãos e do pai todos à mãos dos Howard.
Tinha visto seu amado irmão afastar—se, refugiando—se na escuridão, e não tentou lhe deter, mas indicou a um cavalheiro que o seguisse e vigiasse, para protegê—lo enquanto estivesse deitado na inconsciência do álcool.
Rogam ao ver as pedras recordou e de novo se amaldiçoou, porque essa noite dormira. Um leve ruído o despertou, ou possivelmente não foi um som a não ser uma premonição. Saltou da manta estendida sobre o chão, agarrou sua espada e pôs—se a correr, mas foi muito tarde. Rowland estava deitado junto ao riacho, uma espada Howard lhe atravessara o pescoço e o sujeitava ao chão. O cavalheiro que vigiava também estava morto, com o pescoço mutilado.
Ante o espetáculo jogou para trás a cabeça e emitiu um grito prolongado, estridente e penetrado de dor.
Seus homens e Severn chegaram imediatamente e revisaram os bosques procurando os atacantes de Howard. Encontraram dois, primos longínquos de Oliver Howard, e ocuparam—se de que suas mortes fossem prolongadas e lentas. Terminou por fim com a vida de um deles quando mencionou Jeanne.
A eliminação dos dois Howard nada fez para lhe devolver seu irmão nem aliviou seu sentimento de responsabilidade, agora que era o mais velho dos Peregrine; sua tarefa era proteger Severn, e ao jovem Zared. Tinha que ampará—los, atender a suas necessidades e sobre tudo conseguir a restituição das terras dos Peregrine, as terras que os Howard roubaram de seu avô.
Seus sentidos estavam amortecidos pela evocação, mas ao ouvir o ruído de um ramo partindo girou e apoiou sua espada no pescoço da pessoa que estava atrás: era uma jovem e durante um momento não pôde recordar de quem se tratava. Sim, a moça com quem se casou essa manhã.
—O que quer? —perguntou asperamente. Desejava estar sozinho com seus pensamentos e as lembranças de seu irmão.
Liana olhou a espada que apontava para seu pescoço e engoliu a saliva.
—Isso é um túmulo? —perguntou vacilante, recordando tudo o que Helen a previnira a respeito da violência destes homens. Agora que ele tinha seu dote podia matá—la, tudo o que devia fazer era dizer que a descobrira com outro homem e que este escapara sem receber seu castigo.
—Não —disse secamente Rogam, que não tinha a mínima intenção de lhe falar de seu irmão, ou para o caso de outra coisa qualquer. —Volta para acampamento e fique lá.
Liana esteve a beira de dizer que ela iria aonde lhe desse vontade, mas a advertência de Joice no sentido de que devia ser obediente a levou a conter—se.
—Sim, é obvio, retornarei —disse submissa. —Voltará comigo?
Rogam desejava ficar ali, mas ao mesmo tempo não queria que ela andasse sozinha pelo bosque. Embora não pudesse recordar o nome de Liana, agora era uma Peregrine e portanto uma inimiga dos Howard. Certamente a essa gente agradaria capturar outra mulher Peregrine.
—Está bem —disse a contra gosto. —Retornarei contigo.
Liana experimentou um breve estremecimento de prazer que lhe percorreu o corpo e se disse que Joice tinha razão. Ela obedecera submissa a seu marido e ele estava disposto a acompanhá—la de volta ao acampamento. Esperou que Rogam lhe oferecesse o braço, mas, ele não o fez. Em troca, voltou—lhe as costas e começou a caminhar. Liana correu atrás dele uns passos, mas então o vestido lhe enganchou em um tronco caído.
—Espera! —gritou. Enroscou—me o vestido.
Rogam retornou a ela e como sempre, pareceu que o coração de Liana pulsava mais acelerado quando ele estava perto.
—Afaste as mãos —disse Rogam.
Liana olhou—o nos olhos, viu como se refletia neles a luz da lua, e não soube nada mais... até que ele descarregou a espada sobre o tronco e cortou um bom pedaço da saia. Olhou assombrada o prejuízo sofrido por seu vetido e ficou muda. Essa seda bordada lhe havia custado as rendas trimestrais de seis imóveis.
—Agora, vamos —ordenou Rogam e de novo lhe deu as costas.
Liana se disse: engula a cólera! Reprime sua irritação e não a demonstre. Uma mulher parece sempre boa e afetuosa, uma mulher não assinala os defeitos do marido. Tratando de manter a calma, começou a seguir Rogam e se perguntou se ele esperava a noite de bodas com tanta expectativa como ela.
Com cada passo que dava, Rogam recordava com maior intensidade ainda a morte de seu irmão. O período de dois anos fizera muito pouco para amortecer a lembrança: aqui, ele e Rowland falaram de comprar cavalos. Aqui, ele e Rowland comentaram sobre a morte de James e Basil oito anos antes. Aqui, Rowland dissera que era necessário proteger a Zared. Aqui...
—Poderia me dizer algo de seu castelo? Terei que saber onde posso pendurar minhas tapeçarias.
Rogam esquecera que a moça o acompanhava. William, que tinha três anos mais que Rogam, era um jovem de dezoito anos e suas últimas palavras foram para recordar a necessidade de recuperar as terras dos Peregrine, porque isso daria sentido a sua morte.
—É uma construção grande? —perguntou a moça.
—Não —respondeu asperamente Rogam. —É muito pequeno, é o refugo dessa cadela Howard.
Deteve—se no limite de bosque e olhou assombrado o acampamento: ante ele havia muito colchões de plumas distribuídos no chão. Teria sido o mesmo que acendessem tochas e tocassem trompetistas para anunciar aos Howard onde estavam.
Irritado, aproximou—se do acampamento e chegou onde estava seu irmão, que conversava e sorria a uma das donzelas dos Neville. Golpeiou—lhe o ombro para obrigá—lo a voltar—se.
—Que estupidez é esta? —perguntou. Por que não convidamos aos Howard para que venham e nos cortem a cabeça?
Severn aplicou a sua vez um murro sobre o ombro de Rogam.
—Estamos bem defendidos e se distribuíram apenas uns poucos colchões para as mulheres.
Rogam descarregou outro tranco no peito de Severn.
—Quero—os fora de minha vista, as mulheres podem dormir no chão ou retornar a Neville.
Severn fechou o punho e o descarregou em seu irmão, mas o corpulento Rogam nem sequer se moveu.
—Alguns homens querem dormir com as mulheres.
—Nesse caso, é melhor ainda que não durmam muito cômodos. Se chegar um Howard, estaremos preparados... como não o estivemos a noite que mataram Rowland.
Severn, assentiu ao ouvir isto e foi ordenar a alguns soldados que recolhessem os colchões de plumas.
De pé na beira do bosque, Liana viu seu marido e seu cunhado golpear—se como se fossem inimigos jurados. Conteve a respiração, não que a rixa terminasse em derramamento de sangue mas, depois de uns minutos em que disseram frases em voz grave e gutural, separaram—se e Liana respirou fundo. Olhou ao redor e notou que algumas de suas mulheres observavam atentamente, mas nenhum dos cavalheiros Peregrine pareceu interessar—se no áspero diálogo de seus amos. Entretanto, Liana sabia que um desses golpes teria derrubado à maioria desses cavalheiros.
Nesse momento Joice se aproximou correndo, a cara contraída pelo sentimento.
—Minha senhora, não têm tendas, teremos que dormir no chão, não estou acostumada —disse finalmente com expressão de horror.
Geralmente, durante suas viagens, Liana, o pai, a madrasta, e a maioria das mulheres, se não eram hóspedes de outro latifundiário, dormiam em suntuosas tendas. Como transladavam com eles, de castelo em castelo, a maioria de seus móveis, armavam camas e inclusive mesas no interior das tendas.
—E não há comida quente —continuou dizendo Joice —temos somente carnes frias que foram retiradas do festim das bodas. Duas mulheres estão chorando.
—Nesse caso, terão que secar suas lágrimas —resmungou Liana. —Você me disse que uma boa esposa não se queixa, isso vale também para suas donzelas.
Liana estava muito excitada a respeito da perspectiva da noite de bodas para preocupar—se com as carnes frias e as tendas.
Ao ouvir um ruído, ambas se voltaram para ver os cavalheiros Peregrine retirar os colchões de plumas e devolvê—los ao interior dos carros.
—Não! —exclamou Joice, aproximando—se deles.
Durante a hora seguinte reinou o caos, enquanto Liana convencia suas donzelas de que dormissem no chão, sob as estrelas. Retirou sacos cheios de peles que estavam empilhados nos carros e ordenou que os depositassem no chão, com o couro contra o pasto, e isso ajudou a conter as lágrimas. Alguns cavalheiros Peregrine rodearam com seus braços às mulheres e as reconfortaram.
Liana ordenou que arrumassem para ela algumas peles estendidas fora do acampamento, à sombra de um carvalho. Joice a ajudou a tirar o vestido rasgado e a colocar uma camisola de linho limpa; depois, Liana se deitou e esperou. E esperou. E esperou. Mas Rogam não se aproximou e como não descansara a noite passada, este fato e a viagem prolongada determinaram que dormisse, apesar de tentar permanecer acordada para receber o marido. Mas adormeceu com um sorriso nos lábios, consciente de que seu marido viria despertá—la.
Rogam se deitou entre as ásperas mantas de lã, perto de Severn, como sempre fazia durante suas viagens.
Sonolento, Severn se voltou para ele.
—Acreditei que agora tinha esposa.
—Os Howard atacam, e eu estarei me divertindo com uma moça —disse sarcasticamente Rogam.
—É uma cosinha linda —disse Severn.
—Se lhe agradar os coelhos, o único modo de saber de quem se trata é olhar a cor do vestido. Hoje é quinta—feira?
—Sim —respondeu Severn. —E estaremos em casa na sábado de noite.
—Ah, bem —resmungou Rogam em voz baixa. —Então, não comerei coelho durante o jantar de sábado.
Severn se voltou e conciliou o sonho, mas Rogam permaneceu acordado uma hora mais. Suas lembranças deste lugar eram muito intensas e não lhe permitiam dormir e além disso sua mente estava ocupada pelos planos a respeito do que faria com o ouro de Neville agora que o tinha. Teria que construir máquinas de guerra, contratar e equipar cavalheiros, comprar mantimentos para o prolongado sítio que os esperava, pois reconquistar as terras dos Peregrine implicaria um prolongado período de guerra.
Nenhuma só vez pensou em sua nova esposa, que o esperava no extremo oposto do acampamento.
À manhã seguinte o humor de Liana não era precisamente o melhor que exibisse no curso de sua vida. Joice se aproximou de sua ama com uma corrente de queixa originadas nas donzelas. Os cavalheiros Peregrine lhes tinham feito o amor com bastante rudeza e duas das mulheres estavam machucadas e doloridas.
—Melhor machucadas e doloridas que saudáveis e confortáveis —resmungou Liana. Traga o vestido azul e o toucado e diga a elas que cessem de queixar—se ou eu lhes darei verdadeiro motivo de queixa.
Liana viu seu marido entre as árvores e de novo tratou de conter a cólera. Todos os matrimônios eram assim? Todas as mulheres sofriam uma injustiça atrás de outra e tinham que morder a língua? Realmente era este o curso do amor?
—Vestia uma túnica de cetim azul com um cinturão dourado adornado com diamantes. Havia também pequenos diamantes sobre o alto e acolchoado toucado que usava. Possivelmente hoje a olharia com desejo, possivelmente na véspera se envergonhou ante a idéia de dormir com ela em uma situação em que todos seus homens estavam ao redor. Sim, talvez esses eram os motivos de seu comportamento.
Essa manhã, ele nem a saudou. Em realidade, passou a seu lado uma vez e nem sequer a olhou, foi exatamente como se não a tivesse reconhecido.
Liana montou seu cavalo com a ajuda de um cavalheiro e de novo cavalgou no centro dos homens, entre o pó e esterco de cavalo.
Por volta de meio—dia começou a inquietar—se, viu que Severn e Rogam estavam à cabeça da fila, envolvidos no que parecia uma conversação séria e quis saber o que lhes interessava tanto.
—Minha senhora! —disse alarmada Joice. —Aonde vai?
—Como meu marido não vem para mim, eu irei a ele.
—Não pode fazer isso —disse Joice, com os olhos muito grandes. —Aos homens não agradam as mulheres atrevidas, você deve esperar até que ele venha.
Liana vacilou, mas seu aborrecimento se impôs.
—Já o verei disse, e esporeou seu cavalo até que esteve junto a seu cunhado, com Rogam do lado oposto. Severn a olhou mas Rogam não, e nenhum dos dois lhe dirigiu uma palavra de saudação.
—Necessitaremos todo o grão que seja possível recolher dizia Rogam. Temos que armazená—lo e nos preparar.
—E o que me diz dos cinquenta hectares sobre o caminho norte? Os camponeses dizem que esses campos não produzem e que as ovelhas estão morrendo.
—Morrendo, vá! —resmungou Rogam. Estou seguro de que esses bastardos as vendem aos mercados que passam por aqui e guardam o dinheiro. Envia alguns homens para que queimem umas poucas casas e flagelem vários camponeses e veremos se as ovelhas continuam morrendo.
Esse era um tema no que Liana se sentia útil. Os problemas relacionados com as ovelhas e os camponeses foram o centro de sua vida durante anos e não pensou na possibilidade de "obedecer" ou de calar sua própria opinião.
—Aterrorizar os camponeses nunca serve de nada —disse em voz alta, sem olhar a nenhum dos dois. —Acima de tudo, terá que averiguar se o que dizem é certo, poderia haver muitas causas: é possível que a terra esteja esgotada, que a água seja má, ou que se pronunciou uma maldição contra as ovelhas. Se não for nenhuma destas coisas e os camponeses estão nos enganando, podemos expulsá—los. Tenho descoberto que a expulsão é tão eficaz como a tortura e muito menos... desagradável. Quando estivermos ali, ocuparei—me do assunto.
Voltou—se para sorrir aos homens.
Liana não pôde entender a expressão que viu nos rostos de Rogam e Severn.
—Também poderiam ser as sementes —adicionou. —Houve um ano em que um cogumelo destruiu todas nossas sementes e...
—Para trás! —disse—lhe Rogam. —Volta com as mulheres, se quiser a opinião de uma, pedirei—a —afirmou no mesmo tom com que tivesse dito que perguntaria a seu cavalo sobre o problema dos grãos antes de fazê—lo a uma mulher.
—Eu só estava... —começou a explicar Liana.
—Se disser uma palavra mais atarei—a no interior de uma carreta —afirmou Rogam, com olhar duro e irritado.
Liana engoliu sua própria irritação, voltou galopando seu cavalo e retornou com as mulheres.
Severn foi o primeiro a falar quando de novo os dois estiveram sozinhos.
—A água? O que pode ter de mau a água? E uma maldição. Acredita que os Howard pronunciaram uma maldição contra nossas ovelhas? E como podemos evitá—lo?
Rogam olhava para frente e pensou: Condenada mulher. O que tentava fazer? Interferir no trabalho dos homens? Uma vez permitira a interferência de uma, em uma oportunidade consentiu escutar a uma mulher e pagou—lhe com a traição.
—Não há maldição, somente camponeses ambiciosos —disse Rogam com firmeza. —Eu mostrarei a quem pertence a terra que eles cultivam.
Severn refletiu um momento porque padecia do mesmo ódio para as mulheres que marcava seu irmão. Comentava muitas coisas com Iolanthe, comprovando frequentemente que as respostas que lhe oferecia eram sensatas e úteis. Possivelmente essa herdeira dos Neville tinha mais qualidades que o que ele acreditara a primeira vez que a viu.
Voltou—se e a olhou: estava sentada, o corpo rígido sobre o cavalo, as costas erguida, os olhos chamejantes de fúria. Severn sorriu a seu irmão.
—Agora a ofendeu —disse jovialmente. —Esta noite não se mostrará tão doce contigo; descobri que um presente geralmente melhora o humor de uma mulher. Ou possivelmente sejam úteis os cumprimentos, diga que seus cabelos são como o ouro e que sua beleza o induz a sacrificar até a alma.
—O único que me move é o ouro que está nos carros, não o de seu cabelo. E acredito que será melhor que esta noite tome a uma das donzelas para evitar que continue pensando nos cabelos das mulheres.
Severn continuou sorrindo.
—Enquanto você dorme com sua bonita esposa e faz alguns filhos?
Rogam pensou: Filhos, pimpolhos que o ajudassem a lutar contra os Howard, que vivessem nas terras dos Peregrine quando ele as recuperasse. Filhos que trotassem a seu lado, a quem ensinar a lutar, a cavalgar e a caçar.
—Sim, darei—lhe filhos —disse finalmente Rogam.
Liana, depois de seu enfrentamento com Rogam, estava convencida de que Joice tinha razão. Necessitaria um tempo para acostumar—se à obediência, a escutar e a calar suas próprias ideias.
Essa noite voltaram a acampar e de novo Liana estendeu várias peles sob uma árvore longínqua, mas tampouco desta vez Rogam se aproximou dela. Não lhe falou e nem sequer a olhou.
Liana se negou a chorar e recusou recordar as palavras de advertência de Helen, mas em troca, reviveu o episódio junto ao lago, quando ele a beijara. Pareceu que dessa vez ele achava desejável; mas não era o caso agora. Dormiu inquieta e despertou antes da alvorada, quando o resto do acampamento ainda estava mergulhado no sonho. Levantou—se, uma mão sobre as costas doloridas, e entrou no bosque.
Quando inclinara para beber de um regato, teve consciência de que alguém a olhava e ao voltar—se bruscamente, viu nas sombras um homem de pé. Conteve uma exclamação e levou uma mão ao pescoço.
—Não abandone a segurança do acampamento sem um guarda —disse a voz grave de Rogam.
Ela teve intensa consciência de que cobria sua nudez só com a fina túnica de seda e que seus cabelos caíam sobre suas costas; e ele vestia só suas calças e o tecido o cobria da cintura aos pés; o largo peito estava nu.
Avançou um passo para Rogam.
—Não podia dormir —disse em voz baixa. Ansiava que ele estendesse as mãos para tomá—la, que a apertasse entre seus braços. —Dormiu bem?
Ele a olhou com o sobrecenho franzido. Por certa razão, parecia—lhe conhecida, como se a tivesse visto antes. Era uma figura bastante tentadora nessa primeira luz da manhã, mas ele não sentia um desejo ardente de tomá—la.
—Retorna ao acampamento —disse e deu as costas.
—Por todos os... —disse Liana, sussurando, mas se conteve. Havia alguma razão que justificava que esse homem a ignorasse? Joice lhe assegurava que ela seria capaz de fazer—se indispensável para ele quando estivesse em seu lar. Ali, poderia atender a sua comodidade e ocupar—se de suas muitas necessidades.
E além disso, pensou satisfeita, compartilhariam uma cama.
Apressou—se para alcançá—lo.
—Chegamos hoje ao castelo Peregrine?
—É o castelo Moray —disse ele com voz tensa. —Os Howard ocupam as terras dos Peregrine.
Ela quase tinha que correr para segui—lo e sua larga túnica se enganchava nos ramos e nas pedras.
—Ouvi falar deles, roubaram—lhe as terras e título, verdade? Se não fosse por eles, agora seria duque.
Ele se deteve bruscamente frente a Liana e olhou—a irritado.
—Moça, essa é sua esperança? Casar—se com um duque? Por isso se uniu a mim e rechaçou o resto?
—Caramba, não, nada disso —disse Liana, assombrada. —Casei—me contigo porque...
—Sim? —perguntou ele.
Liana não podia confessar que ele a excitava, que seu coração pulsava rapidamente inclusive agora, quando estavam tão perto um do outro e que ela desejava mais que tudo tocar a pele nua do peito masculino.
—Aqui estão —disse Severn, que se aproximara sem ser visto e sua presença economizou a Liana o problema da resposta. —Os homens estão preparados para partir. Minha senhora —disse, assentindo com a cabeça a Liana.
Os olhos de Severn a examinaram tão atentamente que ela se ruborizou e voltou o olhar para Rogam, para comprovar se ele vira algo, mas não foi assim. Pusera—se a andar em direção ao acampamento, deixando Liana no lugar em que estava. Retornou sozinha ao acampamento, seguindo a vários metros de distância aos dois irmãos.
—É mais bonita do que acreditava a princípio —disse Severn a seu irmão enquanto cavalgavam.
—Não me interessa absolutamente —disse Rogam. —Uma pessoa que representa o papel de "esposa" não me interessa.
—Eu teria imaginado que lutaria com todas suas forças se alguém tratasse de tomá—la.
Severn estava brincando com seu irmão, mas logo que disse estas palavras se arrependeu. Dez anos atrás alguém, em efeito, tentara apoderar—se da esposa de Rogam e ele lutou com tanta ferocidade para recuperá—la que dois de seus irmãos morreram.
—Não, não lutaria por ela —disse Rogam em voz baixa. —Se desejas essa mulher, toma—a. Para mim é menos que nada, o ouro que me trouxe é tudo o que quero dela.
Severn franziu o sobrecenho ao ouvir as palavras de seu irmão, mas não disse mais nada.

 


Capítulo 6

Avistaram o castelo Moray ao meio—dia: Liana nunca contemplara um espetáculo mais deprimente. Era de estilo antigo, construído para proteção e permaneceu sem mudanças durante mais de cento e cinquenta anos. As janelas eram aberturas para disparar flechas, a torre tinha paredes espessas e um aspecto de refúgio impenetrável. Os homens se alinhavam detrás das muralhas, destruídas em alguns lugares, como se o castelo tivesse sido atacado mas nunca reparado.
À medida que se aproximavam, Liana percebeu o aroma do lugar, que dominava o de seus próprios cavalos e os corpos sujos dos cavalheiros Peregrine. O fedor do castelo.
—Minha senhora —murmurou Joice.
Liana não olhou sua donzela e cravou a vista à frente. Helen falara da sujeira do lugar, mas Liana não estava preparada para isto.
Chegaram primeiro ao fosso: todas as letrinas do castelo desaguavam nesse espelho protetor de água espessa pelos excrementos e resíduos da cozinha e sobre tudo por ossos putrefatos de animais. Liana manteve alta a cabeça e os olhos à frente e a seu redor as donzelas tossiam e tinham náuseas por causa do fedor.
Cavalgaram em fila indiana por um túnel comprido e baixo, em cima Liana viu três aberturas destinadas às grosas grades aguçadas de ferro que podiam cair sobre os intrusos. Ao extremo do túnel havia um só pátio, cuja extensão era a metade do pátio exterior do castelo de sir Neville; mas albergava o triplo do número de pessoas. Seu olfato que já se sentia ofendido agora se adicionava ao ouvido. Os homens martelavam o ferro vermelho sobre bigorna; os cães ladravam; os carpinteiros martelavam, os homens gritavam uns com outros tratando de impor—se ao ruído.
Liana mal podia acreditar na realidade deste ruído e o fedor dos estábulos e as fossas, parecia como se não tivessem sido limpas em muitos anos.
A sua direita, uma donzela gritou e seu cavalo se inclinou sobre o de Liana, que voltou os olhos para ver o que atemorizara a jovem. Um urinol instalado no terceiro piso se abria sobre o pátio e uma cascata de urina caía e salpicava a parede e terminava em um fundo atoleiro de água suja que cobria parte do piso.
Depois do grito da donzela nem Liana nem as outras mulheres disseram uma palavra mais. Estavam muito horrorizadas para falar.
À direita havia duas escarias de pedra, uma que levava à única torre e a outra conduzia ao edifício mais baixo, de dois pisos, com teto de ardózia. Nesse pequeno castelo não havia pátio interior nem exterior, nem separação entre o senhor e os vassalos. Todos viviam juntos neste reduzido espaço.
Ao final da escadaria, Liana viu duas mulheres. Ambas a procuraram entre os recém chegados, até que a viram, então uma delas a assinalou e ambas riram. Pôde ver, que eram criadas, mas a sujeira do lugar demonstrava claramente que não faziam nada. Liana se disse que logo as corrigiria e ensinaria a abster—se de rir em presença de seus superiores.
As moças desceram depressa os degraus e quando rodearam o precário muro de pedra, Liana pôde vê—las: ambas eram de baixa estatura e busto proeminente, cintura estreita e quadris largos, com abundantes cabelos castanhos toscos e sujos, pendurando sobre as costas em largas tranças. Usavam roupas bem ajustadas, de modo que revelavam todas suas formas e caminhavam com um balanço insolente e exagerado dos quadris. Atravessaram com passos lentos o pátio, de modo que os grandes peitos se agitavam sob o vestido; a maioria dos homens interrompeu suas tarefas para olhá—las.
Enquanto um cavalheiro ajudava Liana a descer do cavalo, a jovem viu que as mulheres se aproximavam de Rogam. Ele estava repartindo ordens a alguns homens a respeito dos carros dos Neville, mas Liana viu que se tomava seu tempo para examinar às moças. Uma delas se voltou e dirigiu a ela um olhar tal de triunfo, que os dedos da jovem esposa sentiram desejos de lhe cruzar a cara.
—Entramos, minha senhora? —perguntou Joice submissa. —Possivelmente dentro esteja...
Sua voz se apagou.
Era evidente que seu marido não se propunha mostrar o novo lar e a esta altura das coisas Liana não esperava nada semelhante. Supôs que a escadaria que as insolentes criadas desceram levava às habitações do senhor do castelo, de modo que elevou suas saias e começou a subir; no trajeto afastou com os pés alguns ossos do que parecia um ave morta.
Ao final da escadaria havia uma ampla habitação; a porta de acesso estava dividida pelo que outrora deve ter sido uma formosa folha de madeira esculpida, mas agora se viam tochas cravadas nela e pregos para pendurar maças e lanças. Depois de passar as amplas folhas de madeira da porta, uma das quais pendurava de uma só dobradiça, abria—se uma habitação de uns quinze metros por oito, com um teto tão alto como larga era a sala.
Liana e suas donzelas entraram em silencio neste lugar, porque não havia palavras para expressar o que viam. Era mais que sujeira. O piso parecia o lugar que recebeu todos os ossos de todas as comidas consumidas ali durante mais de cem anos. As moscas formavam enxames ao redor dos restos cobertos de vermes, e Liana pôde ver coisas que se negou a pensar o que eram que se deslizavam sob a grosa capa de refugos.
As teias de aranha com suas gordas ocupantes penduravam do teto quase até o piso, as lareiras no extremo leste do salão tinham quase um metro de cinzas. O único móvel na habitação consistia em uma grossa mesa formada por uma lâmina de carvalho enegrecido e oito cadeiras rotas e rachadas, cobertas de manteiga de anos de comidas.
Havia várias janelas na habitação, algumas a uns cinco metros de altura, mas o cristal e as persianas tinham desaparecido, e assim o aroma do fosso, o pátio e a sala se mesclavam.
Quando uma das donzelas que estava detrás afogou uma exclamação e começou a desmaiar, Liana não compadeceu.
—De pé! —ordenou. —Ou do contrário teremos que deitá—la sobre o piso.
A jovem reagiu imediatamente.
Fazendo de tripas coração e recolhendo a saia de seda, Liana cruzou a sala em direção à escada que estava no canto noroeste. Também aqui os degraus estavam cobertos de ossos, palha esmagada até converter—se em pó e o que era possivelmente um rato morto.
—Joice, vem comigo —disse por cima do ombro —e que as demais permaneçam aqui.
Depois de subir oito degraus uma habitação se abria à esquerda e um banheiro à direita. Olhou a habitação mas não entrou nela. Continha uma mesinha redonda, duas cadeiras e centenas de armas.
Liana continuou subindo a escadaria circular, com a tímida Joice detrás, até que chegou ao segundo piso da torre. Ante ela se abria um corredor curto e baixo e depois de avançar poucos metros por ele se chegava a uma porta que se abria à direita. Era um dormitório com um sujo colchão de palha no piso e a palha era tão velha que enchia apenas as duas cobertas de grosseiro tecido. Desta habitação se passava a uma latrina.
Joice se adiantou um passo e baixou a mão, como dispondo—se a tocar as duas mantas que estavam ao pé do colchão.
—Piolhos —foi tudo o que disse Liana e continuou caminhando pelo corredor.
Entrou no solar, uma habitação ampla e espaçosa iluminada pela luz que provinha de numerosas janelas. Sobre a parede sul havia uma escada de madeira que levava ao terceiro piso. Um movimento a certa altura induziu a Liana a levantar os olhos: ao longo das vigas esculpidas que sustentavam as vigas do teto havia cabides de madeira e nelas estavam encarapitados os falcões, todos encapuzados e sujeitos pelas patas. Eram peregrinos, falcões, açores e gaviões. As paredes estavam manchadas de excrementos das aves e a sujeira jorrara até formar duros montículos no piso.
Liana levantou um pouco mais a saia e caminhou sobre o sujo piso para o lado leste da habitação. Havia três arcos, o central constituía um pequeno quarto, com uma folha de madeira que mal se pendurava, enquanto a outra tinha desaparecido. Contra a parede de pedra uma pequena piscina utilizada pelo sacerdote para batismos depois da missa.
—É sacrilégio —disse Joice, pois se tratava de um oratório privado, um lugar sagrado para dizer a missa em presença da família.
—Ah, mas aqui temos uma vista excelente do fosso —disse Liana, aparecendo à janela e tratando de pôr um pouco de humor nesse espantoso lugar. Mas Joice não riu nem sorriu.
—Minha senhora, o que faremos?
—Trataremos de que meu marido esteja confortável —disse Liana com voz firme. —Em primeiro lugar, prepararemos dois dormitórios para esta noite. Um para meu marido e eu —não pôde impedir o rubor que lhe tingiu a face —e outro para ti e minhas donzelas. Amanhã nos ocuparemos do resto do lugar. Agora, basta de ficar imóvel, olhando. Vá procurar essas mulheres que estão aí abaixo, um pouco de trabalho curará a insolência.
Joice temia estar sozinha no castelo, mas a atitude de sua ama lhe provocou coragem. Receava do que espreitava nas sombras e nos cantos. Se alguém a atacasse, quanto tempo passaria até que achassem seus ossos entre os restantes?
No solar, Liana passou às habitações dos lados do oratório. Lá os excrementos das aves eram menos evidentes e pôde notar que sob a sujeira, as paredes tinham diferentes cenas pintadas. Depois de limpá—las poderia ordenar que as reparassem, e ali, sobre a parede oeste, ao fundo, penduraria uma tapeçaria. Durante um momento quase pôde esquecer os aromas da habitação, o som detestável do movimento das asas dos pássaros e o ruído do que estava movendo—se, fosse o que fosse, sob os restos amontoados no piso.
—Minha senhora, não querem vir —disse Joice, sem fôlego da porta.
Liana retornou à realidade.
—Quem não quer vir? Meu esposo?
Joice estava indignada.
As criadas. As criadas de lorde Rogam. Quando disse que deviam limpar, riram de mim.
—Seriamente? —disse Liana. —Vejamos o que me dizem.
Estava disposta a brigar com ferocidade. Mostrou—se tão obediente e engolira tanta cólera durante os últimos dias que desejava dar saída para sua irritação, e as criadas que a assinalavam com o dedo e riam, era um alvo excelente.
Desceu furiosa a íngrime escada, atravessou a câmara do senhor, desceu pela escadaria exterior e entrou no pátio sujo e ruidoso. As duas faxineiras a quem vira antes estavam vadiando perto do poço e permitindo que três jovens cavalheiros extraíssem cubos de água para elas, uma vez que roçavam os bustos proeminentes contra os braços dos homens.
—Vocês! —disse Liana as que estavam mais perto —venham comigo.
Liana começou a caminhar por volta do castelo, mas de repente notou que nenhuma das criadas estava seguindo—a. Voltou—se e comprovou que ambas lhe sorriam, como se soubessem algo que ela ignorava. Liana nunca vivera a experiência de uma criada que a desobedecesse, estando sempre apoiada pelo poder de seu pai.
Durante um momento, não soube o que fazer. Podia sentir os olhos de todos os que estavam no pátio fixos nela e compreendeu que era o momento de afirmar seu domínio como senhora do castelo, mas não podia fazê—lo se não estava segura de contar com o respaldo de seu marido.
Rogam estava perto da parede do fundo do pátio, dirigindo a descarga de um carro que continha várias armaduras completas, que eram parte da dote de Liana. Irritada, ela atravessou o pátio esquivando—se de três cães que brigavam e pisando em uma pilha de vísceras decompostas de ovelhas.
Sabia o que desejava dizer, as exigências que queria formular, mas quando Rogam se voltou para ela, irritado porque o interrompia, sua confiança desapareceu. Ela desejava tanto agradá—lo, ansiava que seu olhar mudasse ao olhá—la. Agora, parecia que ele tratava de recordar quem era a jovem.
—As criadas não me obedecem —disse com voz neutra.
Ele a olhou consternado, como se o problema de Liana nada tivesse que ver com ele.
—Desejo que as criadas comecem a limpar, mas não me obedecem —insistiu Liana.
Esta resposta pareceu aliviar o desconcerto de Rogam. Voltou—se para os carros.
—Limpam o que é necessário, acreditei que você havia trazido criadas.
Ela ficou entre ele e o carro.
—Três de minhas donzelas são damas, e as outras... bem, há muito que fazer.
—Deforma essa armadura e deformarei sua cabeça —gritou Rogam a um homem que estava descarregando o carro. Olhou a Liana. —Não disponho de tempo para as criadas e o lugar está bastante limpo. Agora, vá e deixe—me descarregar estes carros.
Desinteressou—se dela como se não existisse; Liana permaneceu ali de pé, olhando as costas de Rogam, e sentindo cravados nela os olhos de todos os homens e sobre tudo das duas mulheres. Bem, Helen lhe advertira a respeito disto, assim era o matrimônio. Um homem a cortejava até que a conseguia e depois uma mulher era menos que... menos que um pedaço de ferro. É obvio, no caso de Rogam ela não merecera o galanteio.
Agora, sabia que devia manter a toda custa sua dignidade. Não olhou a direita nem a esquerda e em troca caminhou em linha reta para os degraus de pedra, subiu a escadaria e entrou no castelo. Detrás, chegou a ouvir o ruído do pátio que recomeçava com força triplicada, e inclusive ouviu algumas agudas risadas femininas.
Seu coração pulsou depressa por causa da humilhação recebida. Helen lhe dissera que estava mal acostumada por causa do poder que exercia na propriedade dos Neville, mas Liana não tivera verdadeira ideia do que sua madrasta sugeria. Suspeitava que poucas pessoas compreendiam o quanto era diferente da sua própria a vida de outros indivíduos. Ela esperava que sua vida conjugal fosse um pouco diferente, mas este sentimento de impotência, como se ela mesma não existisse, era algo completamente novo para Liana.
Certamente assim era como Helen se sentia na residência dos Neville quando os criados obedeciam a Liana e não à própria Helen.
—Sentia—se como eu agora, e entretanto era boa comigo —murmurou Liana.
—Minha senhora —disse Joice em voz baixa.
Olhou piscando para sua criada, e viu medo desenhado no rosto da mulher. Agora, Liana não parecia tão segura de si mesmo como tinha sido no caso antes das bodas. No momento, sentia—se fatigada para pensar no que faria no futuro. Agora, as necessidades imediatas tinham a ver com a comida e um lugar para dormir.
—Envia Bess, diga que veja onde estão as cozinhas e que traga alimento.... esta noite não desejo comer em companhia. Depois, ordena que subam ao solar parte de minha roupa de cama. —Elevou uma mão para impedir que Joice falasse. —Não sei como conseguirei algo, parece que necessito de poder no lar de meu marido. —Tratou de evitar que sua voz expressasse autocompaixão, mas não o conseguiu. —E traz umas pás, esta noite esvaziaremos de sujeira duas habitações e assim poderemos dormir. E amanhã... —interrompeu—se, porque não lhe agradava pensar no manhã. Se necessitava de poder, embora fosse repartir ordens a uma criada, seria uma prisioneira, exatamente como se a encerrassem em uma masmorra.
—Averigua tudo o que possa a respeito deste lugar —disse Liana, como de passagem. —Onde está lorde Severn? Possivelmente ele possa... nos ajudar.
Não havia muita energia na voz de Liana.
—Sim, minha senhora —disse submissa Joice e saiu da habitação.
Com movimentos lentos, Liana subiu a escada circular que levava ao solar. Os falcões se moveram em seus cabides quando ouviram os movimentos da jovem e voltaram a aquietar—se. Se o castelo inteiro não tivesse mostrado um tapete de restos, o que as pessoas produziam pelo mero feito de viver, ela poderia acreditar que estava deserto. Era tão diferente da casa de seu pai, onde os habitantes entravam e saíam dos quartos e riam e brincavam. Havia somente homens, os rostos duros e sombrios, com cicatrizes no corpo e armas nas mãos. Não se viam meninos, e tampouco mulheres, exceto as duas rameiras que riam de Liana e se negavam a obedecê—la.
Olhou para baixo, ao fosso, e à luz cada vez mais tênue viu a cabeça de uma vaca flutuando em um líquido negro e espesso. Esse lugar seria de agora em adiante seu lar, ali teria que conceber filhos e criá—los. E o amor que receberia era o que podia provir de um marido que aparentemente a esquecia mal deixava de vê—la uma hora.
Como conseguiria que ele a amasse? Possivelmente se ela e suas criadas limpassem o castelo, se Liana conseguisse convertê—lo em um lugar apropriado para viver, ele se alegraria de havê—la tomado como esposa. Pensaria nela, e não só como a pessoa que vinha adicionada a um dote.
E a comida, pensou Liana. Possivelmente traria bons cozinheiros e cobriria a mesa de Rogam de pratos deliciosos e agradáveis ao paladar. Estava segura de que o homem que comia bem, que dormia entre lençóis limpos, que vestia trajes bonitos, tinha que sentir satisfeito com a mulher que possibilitava tudo isso.
E depois estava o leito. Liana ouvira suas criadas dizerem que uma mulher que agradava a um homem na cama, podia controlá—lo. Ao chegar a noite já teria o dormitório limpo e ele iria procurá—la, pois ao dispor de um lugar íntimo para os dois, desejaria estar com sua esposa. Liana sorriu pela primeira vez desde que alcançaram a vista do castelo Moray. Só precisava mostrar—se paciente e o que desejava, com o tempo, converteria em realidade.
Uns minutos depois, suas sete donzelas chegaram ao solar, os braços carregados de mantimentos, travesseiros e mantas, e todas falando com mesmo tempo.
Liana necessitou um momento para compreender o que as mulheres diziam. Lorde Severn estava com uma pessoa a quem chamavam a Dama e não era provável que o visse durante três ou quatro dias. Fora a Dama e suas donzelas, havia só oito mulheres em todo o castelo.
—Não trabalham —disse Bess —e ninguém quis me dizer o que fazem.
—E as chamam segundo os dias da semana. Domingo, Segunda—feira, Terça—feira, e assim por diante, exceto uma que se chama Suplente. Parece que não têm outros nomes —disse Alice.
—E a comida é espantosa, a farinha está cheia de carunchos e areia. O padeiro assa tudo no pão.
Bess se inclinou para frente.
—Estavam acostumados a comprar pão de um padeiro do povo, mas ele iniciou julgamento contra os Peregrine por falta de pagamento e...
—E o que? —perguntou Liana, tratando de mastigar um pedaço de carne que poderia usar para fabricar arreios.
—Os Peregrine derrubaram a porta da casa do padeiro e... usaram como privada as gavetas cheias de farinha.
Liana deixou no prato a carne indigesta. As mulheres limparam um assento sob a janela e todas se sentaram ali. Do piso térreo chegavam os sons do aço contra o aço, dos homens que gritavam, da comida mastigada com a boca aberta. Ao parecer, o marido de Liana e seus homens estavam alimentando—se na habitação do térreo, mas ninguém pensou em convidar a esposa do senhor.
—Puderam averiguar qual é o dormitório de lorde Rogam? —perguntou Liana, tratando de conservar sua dignidade.
As mulheres se olharam, uma expressão compassiva nos olhos.
—Não —murmurou Joice. —Mas certamente uma sala muito ampla que vi ao passar, é sua habitação.
Liana assentiu. Ainda não havia sentido bastante forte para subir os degraus de madeira do solar e ver as habitações de acima ou o que era mais provável, que classe de sujeira havia ali. Se no solar guardavam aves, possivelmente haveria porcos no dormitório do piso alto?
Necessitaram—se duas horas de duro trabalho para limpar dois dormitórios. Liana desejava ajudar, mas Joice recusou permiti—lo, e ela compreendeu. No momento suas donzelas eram quase seus iguais, pois todas se sentiam perdidas e sós nesse lugar estranho e fedorento; mas Joice não desejava que sua ama perdesse a autoridade que exercia sobre essas mulheres. De modo que Liana permaneceu no assento da janela do solar e manteve perto do nariz uma laranja salpicada de cravos para combater o fedor do fosso.
Quando por fim a habitação esteve preparada, não limpa, mas pelo menos podia caminhar—se sem tropeçar com ossos e restos, uma das criadas persuadiu um ferreiro que subisse os colchões e com a ajuda de Joice, Liana se despiu e se deitou. Permaneceu acordada um momento, esperando que chegasse seu marido, mas ele não apareceu.
Pela manhã, despertaram os ruídos estridentes e os imundos aromas. O que ela acreditava um pesadelo, era a realidade.
A primeira hora Rogam entrou no salão do térreo e viu Severn sentado à mesa, a cabeça descansando sobre as mãos com expressão fatigada, comendo pão e queijo.
—Não esperava vê—lo por um tempo. Quer sair a caçar comigo?
—Sim —respondeu Severn. —Necessito descanso depois da noite com o Io. Você não parece fatigado. Sua esposa não o incomodou muito ontem à noite?
—Ontem à noite foi sábado —respondeu Rogam.
—E não o passou com sua mulher?
—Não, por ser sábado.
Severn coçou o braço.
—Desse modo nunca terá filhos.
—Está disposto a sair ou não? Já me ocuparei dela. Talvez a próxima vez... não sei quando será. Não é uma pessoa que esquente o sangue de um homem.
—Onde está agora?
Rogam se encolheu de ombros.
—Possivelmente no piso alto. Quem sabe?
Severn bebeu um sorvo de vinho para tragar o resto do pão e cuspiu areia ao piso, o que seu irmão fazia não era coisa de sua incumbência.
Durante três dias Liana e suas criadas trabalharam limpando o solar. E por três dias ela temeu descer ao térreo porque não se atrevia a enfrentar as pessoas do castelo Moray. Todos sabiam que seu marido a rechaçara e que não só recusava dormir com ela mas também se negava a lhe conceder poder sobre seus criados.
De modo que Liana permaneceu sozinha, sem ver o marido e sem relacionar—se com as pessoas do castelo. Disse—se que não estava conquistando com sua submissão o amor do marido, mas sim nem sequer lhe prestava atenção, sem lhe importar se ela se mostrava submissa ou maliciosa.
Na tarde do quarto dia se atreveu a subir pela escada de madeira. O piso alto estava tão sujo como tinha sido o caso do solar, exceto ali não havia sinal de que ninguém tivesse vivido durante anos. Perguntou—se onde dormia as pessoas do castelo e quase instantaneamente imaginou formando um confuso amantoado no piso.
Caminhou pelo corredor espionando um dormitório vazio atrás de outro, assustando os ratos ao passar e levantando pequenos redemoinhos de pó detrás. Quando se dispunha a descer outra vez, pareceu—lhe ouvir o movimento de uma roca: elevou—se as saias, correu até o dormitório mais afastado e abriu bruscamente a pesada porta.
Sentada em um lugar da habitação banhado pelo sol havia uma mulher mais velha muito bonita, de sobrancelhas e cabelos escuros, trabalhando com uma roca. O quarto estava limpo, tinha móveis estofados e as janelas mostravam todos seus cristais. Certamente se tratava da Dama a quem lorde Severn visitava, ou possivelmente era uma tia ou outra parente.
—Passa, querida, e fecha a porta antes de que ambas nos sufoquemos com o pó.
Liana fez o que lhe pedia e sorriu.
—Não sabia que aqui havia alguém, em vista do estado em que se encontra tudo.
Sentia—se muito confortável com esta agradável mulher e quando lhe indicou uma cadeira com um gesto da cabeça, Liana se sentou.
—É terrível, não é? —disse a dama. —Rogam não prestaria atenção à sujeira embora formasse um colchão tão espesso que ele tivesse que avançar nadando.
Liana cessou de sorrir.
—Não me prestaria atenção embora eu estivesse me afogando nessa sujeira —sussurrou, porque sua intenção não era que a dama a escutasse.
Mas ela a ouviu:
—É obvio, não prestaria atenção em você. Os homens nem sequer vem as mulheres boas que se ocupam de que suas roupas estejam prontas e seu mantimentos bem preparados, e que lhes dão filhos sem reclamar nada.
Liana a olhou fixamente.
—E quais são as mulheres que lhes interessam?
—As que são como Iolanthe. —Sorriu a Liana. —Você a conhece, é a noiva do Severn. Bem, em realidade não a noiva. Para falar a verdade, Io é a esposa de um homem muito rico, muito velho e muito estúpido. Io gasta o dinheiro desse homem e vive aqui com Severn, que não é velho nem endinheirado e nem estúpido.
—Ela vive aqui? Prefere viver nesta... nesta...
—Tem suas próprias habitações sobre a cozinha, que são o melhor lugar do castelo. Io exige sempre o de melhor qualidade.
—Reclamei ajuda às criadas —disse amargamente Liana —mas não consegui nada.
—Há exigências e exigências —disse a dama, enquanto fiava o linho. —Amas muito a Rogam?
Liana desviou o olhar e nem sequer se inquietou ante sua própria familiaridade com esta mulher. Estava muito cansada de falar unicamente com as criadas.
—Acredito que antes de amá—lo, aceitei me casar com ele porque foi o único homem que se mostrou sincero comigo. Não elogiou minha beleza e sim cravou os olhos no ouro de meu pai.
—Rogam sempre é sincero, nunca finge ser o que não é, nem se ocupa do que não lhe importa. É certo, e eu não lhe importo —disse Liana com tristeza.
—Mas por outro lado, você vai se encontrar, não é assim, querida? A Liana que se oculta da risada das criadas não é a que administrava as propriedades de seu pai, a mulher que certa vez enfrentou a uma multidão de camponeses irritados.
Liana não perguntou como era possível que essa mulher soubesse tais coisas a respeito de sua pessoa, mas sentiu que lhe enchiam os olhos de lágrimas.
—Não acredito que um homem pudesse amar a essa Liana, Joice diz que aos homens agrada...
—E quem é Joice?
—Minha donzela. Em realidade, é quase uma mãe para mim. Diz que...
—E sabe tudo o que terá que saber dos homens? Foi criada por um, casou—se com outro, é a mãe de muitos?
—Bem, em realidade não; cresceu comigo. Antes era órfã e vivia nas habitações das mulheres. Está casada, mas não tem filhos; em realidade, vai a seu marido só três vezes ao ano, de modo que... Oh, compreendo o que você quer dizer. Joice não teve muita experiência com os homens.
—Não, imaginava. Recorda, querida, ninguém luta pela mulher que limpa a casa de um homem; luta—se pela que às vezes usa o látego.
Essa observação provocou a risada de Liana.
—Parece—me inconcebível que eu possa esgrimir um látego frente a lorde Rogam.
—Só uma camisa manchada de lodo —respondeu a dama com uma expressão de regozijo. De repente, moveu a cabeça. —Alguém sobe a escada, por favor, vá, não quero que me incomodem.
—Sim, é obvio —respondeu Liana e saiu da habitação, fechando a porta. Quase retornou para lhe perguntar como estava ciente do episódio da camisa, mas Joice apareceu ao final da escada e disse que a necessitava.
Liana passou o resto do dia no solar, com a única companhia de suas criadas, mas a cada momento recordava as palavras da mulher. Estava muito confusa sobre o curso de ação mais conveniente. Pensou na possibilidade de ir a Rogam e exigir que obrigasse os criados a obedecê—la, mas a ideia lhe pareceu ridícula, ele se limitaria a lhe dar as costas. Não podia conceber que a escutasse só porque ela formulasse reclamações em voz alta. É obvio, Liana sempre podia ameaçá—lo com uma espada, mas a ideia quase lhe provocou risada, de modo que a única alternativa que restava era esperar. Possivelmente um dia ele chegaria ao solar, talvez para retirar um de seus falcões e veria que ali estava limpo, e desejaria continuar ali, e se aproximaria dela, com olhos apaixonados, e...
—Minha senhora? —disse Joice. Já é tarde.
—Sim —disse Liana com voz grave. De novo teria que deitar—se em seu leito vazio e frio.
Várias horas depois despertou para ouvir um ruído estranho e ver uma luz.
—Rogam! —exclamou com voz afogada e se voltou par ver, não a seu marido, a não ser a um moço alto, muito bonito, com os cabelos escuros e sujos, compridos até os ombros e uma puída túnica de veludo sobre meias enrugadas. Estava junto à parede, um pé sobre um tamborete, o cotovelo apoiado no joelho, comendo uma maçã e olhando—a à luz de uma grossa vela.
Liana se levantou da cama.
—Quem é, e o que faz em minha habitação?
—Vim vê—la —disse ele.
Devia ser mais jovem que o que sua estatura indicava, porque ainda não mudara a voz.
—Já me viu, de modo que agora... fora daqui!
Liana não estava obrigada a suportar as insolências no quarto que elegera eleito como dormitório.
Ele mastigou ruidosamente a maçã e não fez o menor intento de sair.
—Imagino que já faz bastante tempo que está esperando meu irmão.
—Seu irmão? —Liana recordou as palavras de Helen, quando lhe havia dito quantos Peregrine ainda restavam.
—Sou Zared —disse o moço, retirando o pé do tamborete e jogando pela janela o miolo da maçã. Já a vi, é como dizem e Rogam não virá esta noite.
Pôs—se a andar para a porta.
—Um momento! —chamou Liana com uma voz que induziu ao moço a deter—se e voltar—se. —Por que diz que sou como dizem? E onde está meu marido, que não pode vir esta noite?
Liana abrigava a esperança de que o moço afirmasse que Rogam estava em uma missão secreta, a serviço do rei, ou possivelmente pronunciara um voto provisório de castidade.
—Hoje é quarta—feira —disse Zared.
—O que tem a ver o dia da semana com meu marido?
—Ouvi dizer que as conheceu, são oito. Uma para cada dia da semana, e a restante o dia em que uma das mulheres tem moléstias femininas. Às vezes duas delas têm moléstias femininas ao mesmo tempo e então Rogam se mostra insuportável. Possivelmente nesse momento venha vê—la.
Liana não estava segura, mas lhe pareceu que começava a entender.
—Essas criadas —murmurou. – Quer dizer que meu marido dorme com uma diferente cada noite? Que elas são como... um calendário?
—Antes ensaiou ter uma cada dia do mês, mas disse que isso o obrigava a ter muitas mulheres no castelo e decidiu arrumar—se com oito. Severn é completamente diferente. Afirma que Iolanthe lhe satisfaz. É obvio, é o...
—Onde está? A irritação começava a dominar Liana. A irritação que se engoliu desde a primeira vez que viu Rogam, começava a difundir—se por suas veias, e agora estava vomitando—a e tinha um sabor tão imundo como o líquido do fosso. —Onde está ele?
—Rogam? Dorme cada noite em um lugar diferente. Vai aos quartos que correspondem aos dias, diz que elas têm ciúmes se vier a esta habitação. Esta noite, como é quarta—feira, certamente está no piso alto, em cima das cozinhas, a primeira porta à esquerda.
Liana saltou da cama, seu corpo uma massa viva de cólera. Tinha todos os músculos tensos.
—Não pensa ir ali, não é? A Rogam não lhe agrada que o incomodem durante a noite e posso assegurar que seu caráter não é agradável. Certa vez, ele...
—Ele ainda não viu meu caráter —disse Liana com os dentes apertados. —Ninguém me trata assim e vive para contá—lo. Ninguém!
Passou na frente de Zared, saiu ao corredor e do sustento da parede retirou uma tocha chamejante. Tinha posta uma bata e caminhava com os pés descalços sem advertir os ossos que pisava ao caminhar e quando um cão quis cruzar—se em seu caminho, usou a tocha como uma espada e o animal, afastou—se.
—Ouvi dizer que era como um coelho —disse Zared —que vinha detrás, com uma expressão de assombro no rosto. Mas esta esposa não parecia um coelho enquanto descia a escada e atravessava o salão do térreo.
O que se propunha fazer a esposa de Rogam? Qualquer que fosse seu propósito, Zared sabia que era necessário chamar Severn.

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 7

Liana não sabia muito bem onde estavam as habitações construídas sobre a cozinha, mas achou—as quase instintivamente. O instinto era o único que lhe restava para orientar seus passos, porque seu cérebro estava ocupado pelas lembranças das humilhações sofridas desde o momento das bodas. Ele não pediu para vê—la antes do matrimônio, exigiu mais dinheiro na porta da igreja, tinha—a violado depois do casamento e só para consumar o matrimônio, não porque a desejasse no mínimo. Durante dias inteiros se desinteressou—se dela, jogando—a no interior deste castelo que era um esgoto e nem sequer a apresentara a seus habitantes para lhes dizer que era sua esposa.
Desceu a escada que levava ao pátio e depois subiu os estreitos degraus de pedra que conduziam ao que segundo ela imaginava era a cozinha, e mais tarde, uma íngrime escada de pedra em espiral. Algo pegajoso se deslizou sob seus pés mas não lhe prestou atenção. Tampouco teve em conta as pessoas que estavam começando a levantar—se de suas camas e a segui—la, olhando interessada essa jovem que segundo todos diziam era um coelho submisso e bondoso, a mulher que o senhor levara ao castelo.
Liana continuou descendo a escada e em certo momento descarregou um chute a um rato excessivamente entusiasta que tratara de morder os dedos de seus pés; finalmente, chegou ao piso alto. Abriu em silêncio a primeira porta da esquerda e entrou na habitação. Ali, deitado de barriga para baixo, o belo corpo nu, o corpo que outrora inspirara tantos desejos, estava seu marido. E a sua direita, dormindo, a criada gordinha e também nua que se negara a obedecer a Liana.
Não pensou no que estava fazendo, aproximou a tocha a um canto do colchão, um dos que ela havia trazido da casa de seu pai e logo pôs fogo a outro canto.
Rogam despertou quase imediatamente, reagindo instantaneamente. Arrastou a mulher que estava dormindo fora da cama em chamas e se levantou de um salto. A moça despertou, começou a gritar e continuou gritando quando Rogam a jogou no fundo da habitação. Arrancou da cama a manta acesa e começou a golpear as chamas que começavam a estender—se. A porta se abriu bruscamente, entrou Severn e ajudou seu irmão a apagar o fogo antes de que alcançasse as vigas do teto de madeira. Quando por fim as chamas se apagaram, os dois irmãos jogaram pela janela os restos chamuscados do colchão, que caíram ao fosso. Os gritos da criada cessaram, mas agora estava encolhida em um canto da habitação, os olhos carregados de terror. Emitia breves gemidos.
—Basta de gritos! —ordenou Rogam. —Não foi mais que um pouco de fogo —adicionou e seguiu o olhar da moça até onde estava Liana, que ainda sustentava a tocha. Rogam necessitou apenas um momento para compreender o que acontecera e então não pôde acreditar no que ocorreu em realidade.
—Incendiou a cama, tratou de me matar —afirmou e se voltou para o Severn. —Está com os Howard, captura—a e queima—a pela manhã.
Antes de que seu irmão pudesse responder, antes que algum dos muitos espectadores entre eles Zared, que se reunira na porta, pudesse replicar, estalou a cólera de Liana.
—Sim, tratei de matá—lo —disse e avançou para ele aproximando a chama da tocha, —e oxalá o tivesse obtido. Humilhou—me, desonrou—me, ridicularizou—me...
—Eu? —inquiriu Rogam, completamente assombrado. Poderia lhe arrebatar facilmente a tocha, mas estava satisfeito em olhá—la com esses cabelos loiros e a fina bata, à luz do fogo. E o rosto! Esta era a jovem ele acreditara feia? —Respeitei—a em todos os aspectos. E mal me aproximei de você.
—Certo! —gritou ela, avançando outro passo para Rogam. —Deixou—me sozinha em minha própria festa de bodas, deixou—me sozinha a noite de bodas.
Rogam tinha a expressão de um homem acusado injustamente.
—Já não é virgem. Ocupei—me disso.
—Violou—me! —gritou—lhe Liana.
Agora Rogam começava a zangar—se. A seu entender, jamais violara uma mulher no curso de sua vida. Não porque se opusesse moralmente ao feito, mas sim porque com seu rosto e seu corpo nunca fora necessário chegar a isso.
—Não fiz tal coisa —murmurou, contemplando o busto de Liana, agitado sob a bata.
—Parece—me que nossa presença aqui não é necessária —disse em voz alta Severn, mas Rogam e Liana estavam tão absortos um no outro que não o ouviram. Severn empurrou os outros fora da habitação e fechou a porta detrás de si.
—Mas ela tem que ser castigada —disse Zared. —Quase matou a Rogam.
—É uma mulher interessante —disse reflexivamente Severn.
—Tem minha habitação! —gemeu Quarta—feira, com uma manta chamuscada ao redor de sua nudez.
Severn sorriu.
—Poderia tirar mais que seu quarto, vá dormir com Domingo. E você —ordenou a Zared —deite—se.
Enquanto isso Liana e Rogam se enfrentavam. Este sabia que devia castigar Liana depois de tudo, poderia matá—lo, mas agora que sabia que sua ação era nada mais que o acesso de ciúmes de uma mulher, compreendeu que o assunto não devia preocupá—lo.
—Teria que ordenar que a castiguem.
—Coloque uma mão em cima de mim, e a próxima vez incendiarei seus cabelos.
—Vamos, olhe um pouco... —disse Rogam. Ela estava indo muito longe. Ele aceitava suportar as pequenas birras das mulheres depois de tudo, eram mulheres, mas isto lhe parecia muito.
Liana o ameaçou com a tocha e Rogam parecia não notar absolutamente que estava completamente nu.
—Não, agora é a vez de ouvir—me. Permaneci em silêncio, sem fazer nada, enquanto você me ignorava e desprezava. Permite que essas... esses seus Dias riam de mim. De mim! A dama do castelo. Sou sua esposa, e tratará—me como o mereço. De modo que, Deus me ajude, tratará—me com cortesia e respeito —não reclamo amor —ou será melhor que nunca durma perto de mim, porque pode acontecer que não volte a despertar.
Rogam estava mudo. Uma coisa era ser ameaçado por um inimigo, mas esta mulher era sua esposa!
—Nenhuma mulher me ameaça —disse com voz grave.
Liana aproximou a tocha e ele, com um rápido gesto, a tirou e a agarrou pela cintura. Pensava tirá—la da habitação, levá—la abaixo e trancá—la no calabouço, mas quando estava perto do rosto de Liana, sua cólera se converteu em desejo. Jamais desejara a uma mulher tanto como a esta. Morreria se não pudesse tê—la.
Apoiou a mão sobre o ombro de Liana e começou a lhe tirar a bata.
—Não! —disse ela, afastando—se de Rogam, mas ele estava cego de paixão, seu cérebro concentrado no ânsia de possui—la. Com a mão agarrou os cabelos de Liana e a atraiu para ele.
—Não —murmurou ela, seus lábios contra os de seu marido. —Não voltará a me violar. Poderá me fazer o amor a noite inteira, mas não me violará.
Rogam se sentiu desconcertado por essas palavras. As mulheres se entregavam, tinham—no seduzido, mas nunca uma delas lhe formulou exigências. E de repente, acatou seu pedido. Jamais pensara na possibilidade de agradar ou não a uma mulher; mas desejava agradar a esta.
As mãos sobre os ombros de Liana se afrouxaram, até que os dedos logo que roçavam a pele e a atraiu brandamente. Em geral, não estava acostumado a incomodar—se muito beijando as mulheres com quem se deitava, porque elas sempre se mostravam ansiosas por atrai—lo, e beijá—las era mera perda de tempo. Mas queria beijar esta mulher.
Liana jogou para trás a cabeça e o aceitou, sentindo a suavidade de sua boca e suas mãos, que se elevavam para lhe tocar os cabelos. Os lábios de Rogam se moveram sobre os de Liana, envolvendo—os, a ponta de sua língua a penetrou, e ela gemendo, apoiou seu corpo contra o dele.
Rogam não pôde continuar esperando—a. Seus braços se fecharam sobre ela, uma mão agarrou a coxa de Liana para levantar sua perna direita e rodear com ela a cintura de Rogam. Em seguida, a outra mão elevou a perna esquerda.
Como tinha tão escassa experiência com o sexo, Liana não sabia muito bem o que estava acontecendo, mas adorava os beijos e a sensação de suas nádegas nuas contra a pele de Rogam. Não estava preparada quando ele golpeou as costas de sua esposa contra a parede de pedra e penetrou—a com toda a força de um homem que utiliza um tronco para atacar uma porta fechada. Liana gritou, impulsionada pela dor e o protesto, mas seu rosto estava enterrado nos músculos do peito de Rogam, e ninguém a ouviu.
Pareceu que ele continuaria durante horas seus ataques profundos e duros e a princípio Liana odiou o ato, o homem, tudo o que lhe estavam fazendo, mas depois de um momento abriu muito grandes os olhos, pois sentiu um profundo prazer interior que começava a difundir—se por todo seu corpo.
Lançou uma exclamação de surpresa, agarrou os cabelos de Rogam e atirou com força enquanto aproximava sua boca a dele.
Sua súbita paixão foi suficiente para levar Rogam ao climax e com um arremesso final, ele caiu inerte sobre Liana, apertando com força as costas da jovem contra as pedras, enquanto se apoiava sobre ela, o coração pulsando com força.
Liana queria mais. Não sabia muito bem o que desejava, mas o que recebera não era suficiente. Suas unhas se afundaram nos ombros de Rogam.
Rogam afastou a cabeça do ombro de Liana e a olhou sobressaltado, porque notou que não a agradara. Nesse momento soltou as pernas da jovem, separou—se dela, começou a procurar suas calças entre os restos caídos no piso.
—Agora pode ir —murmurou, sentindo que a cólera o dominava.
Liana estava animada pelo ato de amor muito breve.
—Tenho um dormitório frente ao solar, e está preparado para nos receber.
—Nesse caso, pode ir e dormir —disse Rogam irritado, mas quando se voltou para olhá—la, sua cólera se dissipou. Ela tinha os olhos brilhantes e vivazes, os cabelos lhe caíam em desordem. Rogam quase a agarrou outra vez, mas em um ato de vontade obrigou a suas mãos a permanecer imóveis, ao lado do corpo. Disse—se que as mulheres que eram novas sempre lhe pareciam excitantes.
Liana não tentou reprimir a cólera que sentia, a imagem de Rogam na cama com outra mulher era muito recente e dolorosa.
—Para que possa se deitar com outra mulher? —disse zangada.
—Caramba, não —disse ele, surpreso. —Para que eu possa dormir. Aqui não há colchão.
Esta declaração, formulada com tanta solenidade, provocou o sorriso de Liana.
—Vem comigo —disse ela em voz baixa, oferecendo a mão. —Tenho uma cama limpa e cheirosa, pronta para nos receber.
Rogam não desejava aceitar sua mão, sabia que não devia dormir com ela, porque aprendeu por experiência que quando passava toda a noite com uma mulher, ela começava a acreditar que era a proprietária do homem. Certa vez fora "possuído" por uma mulher e... bem, apesar de todos seus pensamentos razoáveis, aceitou a mão de Liana, e o sorriso com que ela o olhava se acentuou.
—Vem —murmurou a jovem e Rogam a seguiu como um cão levado pela corda; ambos desceram a escada em direção à cozinha, e saíram ao pátio. Agora tudo estava em silêncio e ela se deteve para elevar o olhar para as estrelas.
—São belas, não são?
Ao princípio, Rogam não soube a que se referia. As estrelas eram úteis para conhecer o caminho quando viajava de noite.
—Suponho que assim é —murmurou. A luz da lua sobre os cabelos de Liana lhe conferiam matizes prateadas.
Ela retrocedeu um passo e apoiou—se em Rogam, suas costas contra o peito de seu marido. Assim imaginara o matrimônio; seu marido sustentando—a sob a luz da lua. Mas Rogam não tentou rodeá—la com os braços, de modo que Liana fechou as mãos sobre os pulsos de Rogam, guiou os braços e apoiou—os sobre seus próprios ombros.
Rogam se sobressaltou um momento. Era pura perda de tempo estar ali fora, em meio da noite, junto a uma jovenzinha, os olhos cravados no céu. No dia seguinte tinha muito que fazer. Mas então aproximou seu nariz dos cabelos de Liana, cheirou a fragrância limpa e penetrante e já não pôde recordar o que devia fazer pela manhã.
—Como se chama? —murmurou, os lábios junto aos cabelos de Liana. Sempre teve dificuldades com os nomes das mulheres, e vários anos atrás decidiu lhes atribuir uma data, em lugar de seu nome.
Liana não permitiu que sua humilhação se manifestasse.
—Sou lady Liana, sua esposa —disse, voltou—se e ofereceu o rosto para que ele a beijasse. Mas como não o fez, ela aproximou os lábios da face de Rogam e ao mesmo tempo suas mãos acariciaram sua nuca, apoiou a cabeça contra o ombro de Rogam e apertou seu corpo contra o de seu marido.
Rogam se encontrou sustentando—a, ali, os dois de pé, os corpos muito juntos. Nunca fizera coisa parecida, as mulheres estavam destinadas a contribuir com o sexo, a dar o que um homem necessitava, a fazer o que um homem queria. Não era para deter—se no centro de um pátio e permanecer ali abraçados. Um gesto semelhante não tinha sentido; entretanto, sentia—se impotente para atuar.
Liana ouviu um movimento detrás, possivelmente alguém insone. Não estava acostumada ao matrimônio, e por isso imediatamente se sentiu em falta, já que mantinha um contato tão íntimo com um homem.
—Vamos, saiamos daqui antes de que nos descubram.
De novo Rogam a seguiu degraus acima, passou frente à câmara principal e subiu ao corredor que conduzia ao solar. Aqui estava o dormitório que antes pertencera ao pai de Rogam e a suas esposas. Fazia vários anos que não entrava ali. Esta moça, esta Liana, pendurou uma tapeçaria sobre a parede, várias velas grossas e fragrantes estavam acesas. Uma cama contra a parede, e sobre ela a sagrada cruz.
Rogam retrocedeu um passo, mas a moça lhe sustentou a mão.
—Vamos, tenho vinho, bom vinho italiano e servirei uma taça.
Rogam não soube muito bem como ela conseguiu, mas um momento depois ele estava nu e deitado na cama, suave e limpa, um jarro de prata com vinho na mão e ela pressionando sobre seu ombro; o braço de Rogam a sustentava e seus dedos jogavam com os cabelos da jovem.
Liana aconchegou seu corpo contra o de Rogam, como se estivesse tentando fundir—se a ele. Desejava formular tantas perguntas sobre o castelo e as pessoas. Quem era a dama a quem vira fiando? Saber mais a respeito de Iolanthe de Severn. E por que Zared não estava atribuído a um cavalheiro, e não treinava?
Mas essa noite suportara muitas emoções e agora estava excessivamente cansada para falar. Apoiou a mão sobre o pêlo do peito de Rogam, sentiu seu corpo, grande e forte junto ao dele e, satisfeita, afundou—se no sonho.
Rogam ouviu a respiração suave e compassada de Liana dormindo e pensou que devia partir. Tinha que deixá—la agora e procurar outro lugar para deitar—se. Recordou como incendiara a cama, se ele não despertasse, poderia morrer queimado. Em justiça, ela deveria estar agora na masmorra, e à alvorada ele a ataria a um poste e a queimaria... exatamente como ela tentara fazer com ele. Mas não moveu um dedo e em troca, levantou a mão de Liana que repousava sobre seu próprio peito e a olhou com curiosidade. Disse—se que era uma mão pequena, débil e inútil e isso foi pouco antes de dormir, sempre abraçado a ela.
Quando despertou, era plena manhã e ele podia ouvir o ruído do pátio, abaixo. Com a luz do dia todos seus sentidos se avivaram. Estava entrelaçado com a moça como se fossem as raízes de uma árvore. Separou—a de seu lado, saiu da cama e avançou para o guarda—roupa. Havia um urinol no quarto contíguo ao dormitório e Rogam se deteve para aliviar sua bexiga.
Liana despertou e estirou—se preguiçosamente na cama, nunca havia se sentido tão bem no curso de sua vida. Isso era o que devia ser o matrimônio: deter um momento no pátio, nos braços do marido e elevar os olhos para as estrelas, dormir em seus braços, despertar e ver que estava perto e ouvi—lo no quarto contiguo. Ele saiu da latrina, coçando o peito nu e bocejando.
—Bom dia —disse Liana, movendo as pernas sob as mantas.
A mente de Rogam estava no trabalho da jornada. Agora que tinha o ouro dos Neville, podia começar a contratar cavalheiros que lhe ajudassem a lutar contra os Howard. É obvio, teria que adestrá—los bem porque a maioria eram caipiras preguiçosos que tinham tanta força como um menino. E falando de ociosos, era melhor que arrancasse Severn da cama dessa bruxa, pois do contrário seu irmão não teria força para nada. Saiu da habitação sem olhar uma só vez, nem lembrar—se de sua esposa. Liana se sentou agitada na cama quando ele saiu sem saudá—la. Jogou com a idéia de correr atrás dele e... O que? Recostou—se sobre os travesseiros e sorriu. Enquanto ela se mostrava discreta, total e obediente, não lhe tinha feito conta. Ao tratar de matá—lo com o fogo Rogam passou a noite com ela. A dama que fiava lhe advertiu que os homens nunca combatiam pelas mulheres que eram submissas e compassivas. Possivelmente Rogam lutaria por uma mulher que tratava de queimá—lo?
—Minha senhora! —disse excitada Joice ao irromper na habitação, sem cessar de falar um instante.
Os pensamentos de Liana estavam tão absortos em seu marido que a princípio não ouviu as palavras do Joice.
—O que? A Dama de Fogo? De que falas?
Quando começou a captar a história, pôs—se a rir. Ao parecer, o episódio da cama incendiada de Rogam por Liana percorrera toda a aldeia, além disso do castelo e aplicaram—na o apelido de Dama do Fogo.
—Dois dos Dias já retornaram à aldeia com seus pais —disse Joice, —e as outras lhe temem.
Havia orgulho na voz de Joice e Liana pensou que isso era irônico, provindo dela, que lhe aconselhou submissão. Se tivesse continuado atendendo os conselhos de Joice, a noite da véspera jamais teria existido.
—Magnífico! —disse com firmeza Liana, afastando as mantas e saindo da cama. —Aproveitaremos o medo enquanto exista, possivelmente você e as mulheres restante deveriam falar de veneno e... víboras sim, isso é bom. Se uma criada não fizer seu trabalho, é possível que eu lhe coloque víboras na cama.
—Minha senhora, não acredito que...
Liana se voltou para sua criada.
—Não acredita o que, Joice? —Que não devo usar meu próprio critério? Pensa que deveria continuar me apoiando em seus conselhos?
Joice compreendeu que perdera a influência que exercia sobre sua ama.
—Não, minha senhora —murmurou. Quis dizer...
Não completou a frase.
—Traga o vestido de seda verde e vem me pentear —disse Liana. Hoje começo a limpar minha casa.
Os habitantes do castelo Moray comprovaram que o Coelho Pálido em efeito se converteu na Dama do Fogo. Estavam acostumados a trabalhar para os irmãos Peregrine, que reclamavam cinco coisas ao mesmo tempo a cada pessoa, mas esta mulher, com seu vestido verde brilhante, suas grosas tranças loiras que lhe caíam sobre as costas, exigia dez vezes tanto trabalho como os amos. Obrigou a todos os homens e cavalheiros a renunciar a suas tarefas habituais e colocou—os a recolher lixo. Retiraram—se pazadas e mais pazadas de cinzas das lareiras. Encheu—se um cubo atrás de outro com ossos e sujeira e se jogou o conteúdo nos carros agora vazios dos Neville e a carga saiu do castelo. Liana conseguiu que Zared lhe trouxesse três jovens mais e os quatro se dedicaram a matar ratos. Enviou homens à aldeia em busca de mulheres que escovassem as paredes, os pisos e os móveis. Também contratou homens que com redes, dragassem o fosso, e quando estes gradeados já não se afundaram na sujeira e flutuaram na superfície da água ordenou que se cavasse uma sarjeta para drenar a sujeira – no evento de que essa massa se movesse, pensou Liana. Os homens retrocederam ante a ordem, mais temerosos da espada de lorde Rogam que do fogo de Liana.
—Meu marido o autorizará —afirmou Liana aos dois trabalhadores que tinha frente a ela e que temiam por suas vidas.
—Mas, minha senhora —disse um —o fosso está destinado a nossa defesa e.....
—Defesa! —exclamou Liana. Um inimigo poderia atravessá—lo caminhando, conforme está agora. —Mas, por muito que falou, os homens não quiseram começar a cavar e Liana chiou os dentes. —Bem, onde está meu marido? Irei vê—lo e arrumaremos isto entre nós.
—Minha senhora, está golpeando os camponeses.
Liana necessitou um momento para compreender.
—O quê?
—Alguém está roubando e lorde Rogam castiga os homens até que alguém lhe diga quem são os ladrões.
Liana levantou as saias e correu para o interior de castelo. Enquanto selavam seu cavalo, informou—se do lugar em que estavam Rogam e seu irmão e minutos depois cavalgava furiosamente o campo de madeira, acompanhada por seis cavalheiros armados.
O espetáculo que a recebeu foi horroroso: um homem estava amarrado a uma árvore com as costas ensanguentadas por causa das chicotadas. Outros três permaneciam de pé, tremendo de terror, enquanto um quarto sustentava em alto um chicote ensanguentado. Quatro mulheres e seis meninos estavam perto, chorando, e duas delas ajoelhadas, pediam compaixão a Rogam. Seis cavalheiros Peregrine estavam a um lado de Rogam e Severn, que sustentava uma animada conversação, aparentemente indiferentes ao que acontecia ao redor.
—Alto! —gritou Liana, desmontando quando seu cavalo ainda estava correndo. Deteve—se frente aos encolhidos camponeses.
—Não os matem —disse, olhando a expressão dura de Rogam.
Este e seus homens se impressionaram tanto que o cavalheiro baixou o látego um segundo.
—Severn, leve—a —ordenou Rogam.
—Eu descobrirei quem o rouba gritou ela —afastando—se antes de que Severn pudesse capturá—la. —Entregarei os ladrões para castigá—los, mas não pode golpear a esta gente tomada ao azar.
Seus gestos e suas palavras, em efeito, silenciaram a todos. Desde Rogam até os meninos cujo pai estava amararado à árvore.
—Você? —disse Rogam, tão surpreso, como todos.
—Dê—me duas semanas de tempo —disse Liana, sem fôlego —e encontrarei seu ladrão; os camponeses, quando estão aterrorizados, não produzem boas colheitas.
—Aterrorizados... —começou a dizer Rogam, e então desapareceu seu desconcerto. —Demônios, tira—a daqui —ordenou a seu irmão.
O grosso braço de Severn agarrou a cintura de Liana e retirou a jovem do lugar que ocupava, frente aos três condenados. Liana pensou depressa.
—Apostarei que posso descobrir seus ladrões em duas semanas. Tenho um cofre de jóias que não viu: esmeraldas, rubis e diamantes. Darei—lhe isso se não os apresento em duas breves semanas.
De novo Rogam e sua gente calaram e a olharam fixamente. Todos se perguntavam que classe de mulher era, e Rogam era o que mais desconcertado se sentia.
A mão de Severn tirada da cintura de Liana se afrouxou, ela se aproximou de seu marido e o olhou enquanto apoiava sua palmas sobre o peito do senhor.
—Comprovei que o terror provoca terror, tratei antes com ladrões, deixa isto por minha conta. Se não obtiver o que persigo, em duas semanas pode matar a todos e terá as jóias.
Rogam atinou unicamente a olhá—la. Quase o queimara na véspera e agora apostava com ele como um homem e interferia em seus assuntos; estava quase decidido a enviá—la à masmorra.
—Poderia dar procuração das jóias —ouviu que dizia sua própria voz enquanto a olhava e recordava quão viva lhe parecera a noite anterior. Uma súbita onda de desejo se apoderou dele e se voltou para evitar a tentação de tocá—la em presença de seus homens.
—Estão bem escondidas —murmurou, apoiando a mão sobre o corpo de Rogam. O mesmo desejo agora percorria o corpo de Liana.
Rogam rechaçou a mão da jovem.
—Leve com você esses bastardos ladrões —disse asperamente, movido só pelo desejo de afastar—se dela. —Em duas semanas terei as jóias e terei ensinado uma lição a uma mulher —disse, tratando de diminuir a importância ao assunto para evitar perder prestígio frente a seus homens, mas um olhar a seu irmão e a outros demonstrou que não tinham muita vontade de rir. Todos observavam Liana com profundo interesse.
Rogam amaldiçoou furtivamente.
—Montemos —grunhiu e caminhou para seu cavalo.
—Um momento —disse Liana, correndo atrás dele. O coração lhe golpeava, pois sabia que o que estava por dizer era muito temerário. —Que recebo se ganhar a aposta?
—O que? —perguntou—lhe Rogam, olhando—a, hostil. —Recebe os condenados ladrões. Que mais deseja?
—Você —disse ela, as mãos nos quadris, sorridente. —Se ganhar a aposta, quero que seja meu escravo por um dia inteiro.
Rogam a olhou assombrado; teria que arrancar parte da pele desta mulher e ensiná—la qual era o comportamento próprio de uma esposa. Não disse uma palavra e calçou o pé no estribo de madeira.
—Um minuto, irmão —disse Severn, sorrindo. Estava dominando sua própria impressão com mais rapidez que o resto. Ninguém, incluindo ele, vira que alguém desafiasse Rogam salvo o caso de uns poucos homens e um número ainda mais reduzido de mulheres. —Acredito que deveria aceitar a aposta da dama, depois de tudo não pode perder. Jamais encontrará os ladrões, estivemos buscando—os durante meses, o que tem a perder?
Rogam, o queixo decidido, o olhar frio, olhou seus cavalheiros e depois os camponeses. Ganharia a estúpida aposta e despacharia essa mulher antes de que voltasse a interferir.
—De acordo —disse, e sem dirigir um olhar mais a Liana montou seu cavalo e partiu em galope. Sua mente estava escurecida pela irritação. Condenada cadela, zombou—se dele em presença de seus homens!
Sua cólera não se atenuou quando chegou ao castelo. Tão logo transpôs a porta, firmou—se na arreios para ver incrédulo seus homens, os peões e as mulheres, todos cavando sujeira, varrendo e esfregando.
—Que me pendurem —murmurou Severn, que estava ao lado de seu irmão, os olhos fixos em um velho cavalheiro que cravava uma forquilha em uma pilha de esterco de um metro e meio de altura.
Rogam sentiu como se seus próprios homens estivessem traindo—o, jogou a cabeça para trás e emitiu um grito de guerra sangrento, prolongado e terrível e as pessoas que estavam no pátio se detiveram.
—Ao trabalho! —rugiu a seus homens. —Não são mulheres! Ao trabalho!
Não esperou para ver se o obedeciam, em troca desmontou e subiu colérico os degraus que levavam ao grande salão e passou à habitação privada que estava a um lado. Esse lugar era dele e somente dele. Fechou com um forte golpe a porta e se sentou frente à velha cadeira de carvalho que pertencera ao chefe dos Peregrine durante três gerações.
De repente, ficou de pé e olhou a cadeira com hostilidade, tinha um pouco de água fria no assento, alguém esteve esfregando—o. Tão irritado que mal que podia ver; passou o olhar pela habitação e viu que estava limpa. Os montões de restos do piso, as teias de aranha que uniam às armas penduradas da parede tinham desaparecido; não se viam ratos, a gordura da mesa e as cadeiras foram limpas.
—Matarei—a —disse entre dentes. —Ordenarei que a esquartejem, ensinarei—lhe quem é o dono das terras dos Peregrine e quem governa seus homens.
Mas quando apoiou a mão na porta viu uma mesinha contra a parede, recordando que a mãe do Zared a usava mas fazia vários anos que não a via. Perguntou—se se esteve na habitação todo este tempo e simplesmente não a notara. Sobre a mesa, bem ordenada, uma pilha de papel, um artigo precioso, limpo e caro; ao lado, um tinteiro de prata e meia dúzias de plumas, as pontas afiadas e preparadas para usá—las. O papel e as plumas atraíram Rogam como uma chama à mariposa. Durante meses lhe rondava a idéia destinada a uma catapulta, uma máquina de madeira de guerra que podia arrojar grandes pedras com muita força. Estivera pensando que se pudesse construi—la com duas manivelas em lugar de uma, obteria um braço lançador muito mais alto que arrojaria as pedras com mais ímpeto. Várias vezes tentou desenhar suas idéias no pó do chão, mas não conseguira riscar uma linha bastante precisa.
—Essa mulher pode esperar – murmurou, aproximou—se da mesa e lenta e torpemente começou a riscar seu desenho. Não dirigia a pluma com a mesma familiaridade que demonstrava com a espada. Foi—se o sol, acionou uma pederneira, acendeu a vela e continuou desenhando laboriosamente sua catapulta.

 

 

 

 

 

Capítulo 8


Depois de que Rogam se afastou dos camponeses, Liana necessitou de um momento para acalmar seu coração. Certamente, não estava alcançando sua meta, que era agradar ao marido, não é? Pôde ver a forma escura do corpo de Rogam ainda vestindo os objetos que usara nas bodas, que acumulavam gordura dia após dia, enquanto ele cavalgava para o castelo e quis alcançá—lo e desculpar—se. Doera—lhe ver o sentimento de cólera em seus olhos. Possivelmente era melhor quando ele a ignorava. Possivelmente era melhor...
—Minha senhora, obrigada.
Liana voltou os olhos e viu uma camponesa magra, de expressão fatigada, a cabeça inclinada sob o capuz puído, que recolhia a barra do vestido de Liana e o beijava.
—Obrigada —repetiu a mulher.
Os outros camponeses se aproximaram e inclinaram—se ante ela; sua humilhação impressionou a Liana desagradavelmente. Detestava ver que as pessoas se rebaixasse assim. Os camponeses que viviam nas terras de seu pai eram indivíduos corpulentos e saudáveis e em troca a estes os via amarelos por causa da fadiga, a má saúde e o medo.
—De pé, todos —ordenou Liana, e esperou, enquanto a obedeciam lentamente, com crescente temor nos olhos. —Que todos me escutem. Ouviram meu marido: quer os ladrões, e vocês os entregarão.
Viu que as olhadas se endureciam ao ouvir essas palavras. Essa gente tinha orgulho, um orgulho que os induzia a proteger os ladrões dos castigos de um amo duro.
A voz de Liana se suavizou.
—Mas primeiro é necessário comer. Você —assinalou a um homem que, se não fosse pela intervenção de Liana, agora teria as costas ensanguentadaa, vá e sacrifica a vaca mais gorda que encontre nas terras dos Peregrine, também duas ovelhas, as traga aqui para assá—las. Comerão, porque nas próximas semanas será necessário trabalhar muito.
Nenhum dos camponeses se moveu.
—Está ficando tarde. Depressa!
Um homem se ajoelhou e seu rosto expressava sofrimento.
—Minha senhora, lorde Rogam castiga à pessoa que toca o que é dele. Não podemos matar seus animais ou comer seu grão, guarda—o tudo e o vende.
—Isso era assim antes de que eu chegasse —disse pacientemente Liana. —Agora, lorde Rogam não necessita do dinheiro tanto como antes. Vão e matem os animais, eu confrontarei a cólera do senhor. – Engoliu a saliva ao dizer isto, mas não podia permitir que os camponeses adivinhassem o medo que ela sentia. —Bem, onde está a padaria? A do homem que promoveu julgamento contra meu marido.
Liana necessitou horas para pôr em movimento o que se propunha fazer. Duas semanas era muito pouco tempo e pôs para trabalhar os seis cavalheiros que a acompanhavam, que a princípio estavam de pé, em silêncio e olhavam com essa expressão especial de satisfação que os homens têm quando uma mulher faz algo que não está ao alcance deles mesmos.
Liana ordenou que cortassem um campo, entregassem o grão ao padeiro e usassem as vagens para reparar os deteriorados tetos dos camponeses. Ordenou a um cavalheiro que vigiasse a limpeza coletiva das ruas, semeadas de excrementos humanos e animais. Outro cavalheiro fiscalizou a higienização dos camponeses, que se viam tão sujos como as ruas. A princípio, afligiu—a a negativa dos mercados de aceitar sua palavra de que seriam pagos, mas ao recordar o episódio do ataque dos homens de seu marido ao padeiro, perdoou—os e entregou moedas de prata da bolsa que levava em seu cavalo.
Caía o sol quando retornou ao castelo de Moray e sorriu quando viu dois cavalheiros que cabeceavam sonolentos em suas montarias. O plano de Liana era obter que os camponeses se sentissem bastante confortáveis, de modo que demonstrassem fidelidade ao amo e não a uns poucos ladrões que provavelmente compartilhavam sua captura com os famintos agricultores. Não seria fácil depurar uma aldeia no período de duas semanas, mas ela o tentaria.
Ao aproximar—se do castelo o fedor do fosso chegou a seu olfato e Liana compreendeu que necessitaria da permissão de Rogam para drenar a sarjeta antes de que os homens começassem a trabalhar, mas uma vez que esteve na proteção dos muros, notou a diferença. Havia menos sujeira no chão, pouco lixo empilhado nos estábulos e ao redor das casas baixas construídas ao longo dos muros. Quando ela entrou, os trabalhadores a olharam e alguns levaram a mão à cabeça, em sinal de respeito. Liana sorriu para si mesmo, agora começavam a prestar—llhe atenção.
Subiu a escada que levava ao grande salão: ali as mulheres concentraram seus esforços, mas ainda não estava de tudo limpo, ao menos segundo as normas que Liana aplicava; seria necessário caiar totalmente as paredes e já agora ela podia atravessar o piso de mosaico sem tropeçar com os ossos.
No salão, usando a mesa e as cadeiras limpas, estavam sentados Severn e Zared, as cabeças inclinadas. Sobre a mesma mesa uma larga pilha de ratos mortos, as mais gordos que Liana jamais vira. Tinham todo o aspecto de troféus de guerra.
—O que é isto? —perguntou ela com voz áspera, despertando os dois irmãos. O mais novo lhe ofereceu um sorriso e Liana pensou de novo que era um bonito moço, de rosto sem pelos.
—Nós os matamos —anunciou com orgulho Zared. —A propósito, sabe contar, não é? Rogam também, mas não tanto como para calcular quantas há aqui.
Liana não desejava aproximar—se dos animais, mas Zared estava tão orgulhoso que ela considerou que tinha que agradá—lo. Começou a contar e à medida que ela o fazia, Zared arrojava os ratos mortos pela janela, ao fosso que estava debaixo. Liana quis protestar, mas uns ratos não iriam piorar o estado da água. Um dos animais ainda estava vivo e Liana estremeceu quando Zared descarregou o punho sobre a cabeça do roedor. Severn sorriu, orgulhoso.
A jovem contou cinquenta e oito ratos, e quando todos desapareceram da mesa, sentou—se junto a Severn com expressão fatigada e passou o olhar pelo salão.
—Cinquenta e oito! —exclamou Zared. —Esperem até que Rogam saiba.
—Alguém esqueceu de tirar esses ossos —reprovou Liana com expressão fatigada, os olhos fixos na parede a certa altura sobre a dupla lareira. Ali penduravam seis crânios de cavalos, ela não notara antes sua presença e se disse que talvez porque estavam cheios de teias de arnha.
Percebeu que Severn e Zared a olhavam assombrados, como se de repente ela tivesse um olho no meio da testa. Liana examinou seu próprio vestido, que estava sujo, mas não muito.
—Acontece algo? —perguntou.
—Esses são os cavalos Peregrine —disse Zared em um tenso murmúrio.
Ela não tinha idéia do que o jovem queria dizer, de modo que olhou Severn. O bonito jovem estava passando de uma expressão de assombro a uma espécie de cólera fria e profunda, mesma que até esse momento Liana acreditara que só era possível em Rogam.
Quando falou, Severn o fez com voz tranqüila.
—Os Howard sitiaram o castelo de Bevan e nossa família passou fome. Meu pai, a mãe do Zared e meu irmão William morreram ali. Meu pai se aproximou dos muros e pediu aos Howard que deixassem livre sua mulher, mas eles não aceitaram. Severn baixou a voz. Antes de morrer, comeram os cavalos. —Voltou—se para os ossos que penduravam da parede. —Esses cavalos. —Voltou os olhos para Liana, e parecia que jogavam faíscas. —Nós não esquecemos e os crânios não serão retirados dali.
Liana olhou horrorizada os esqueletos. Ter tanta necessidade que alguém se veja reduzido a comer cavalos! Esteve a um passo de dizer que os camponeses dos Peregrine estavam condenados a um sítio vitalício, e que provavelmente se alegrariam de ter pangarés para saciar sua fome; mas se absteve.
—Onde está meu marido? —perguntou Liana um momento depois.
—Em sua sala de meditação —disse animosamente Zared, enquanto Severn dirigia ao jovem um olhar de advertência.
Liana não insistiu, porque agora compreendia mais que a princípio. Possivelmente havia motivos que explicavam a cólera de seu marido, sua obsessão pelo dinheiro.
Ficou de pé.
—Se me desculparem, devo ir banhar—me. Digam a meu marido que eu...
—Um banho? —perguntou Zared, e sua expressão era a mesma que se Liana houvesse dito que se propunha saltar dos parapeitos.
—É muito agradável, deveria tentá—lo —esclareceu Liana, sobre tudo porque Severn e Zared eram agora os mais sujos do salão.
Zared se acomodou melhor na cadeira.
—Acredito que omitirei isso. Seriamente disse aos Dias que voltassem para sua casa pelas noites?
Liana sorriu.
—Sim, fiz isso. Boa noite, Severn. Boa noite, Zared.
Começou a subir a escada, e se deteve quando ouviu as vozes dos dois irmãos.
—Essa mulher tem coragem —ouviu dizer Zared.
—Ou é completamente estúpida —respondeu Severn.
Liana continuou subindo e uma hora mais tarde, em seu dormitório, estava inundada em uma banheira de madeira cheia de água quente perfumada, observando o movimento das chamas sobre a lenha.
A sua direita a porta se abriu bruscamente e com ruído e Rogam entrou como um furacão em um dia sereno.
—Mulher, chegou muito longe —rugiu. —Não a autorizei a despedir minhas mulheres.
Liana voltou a cabeça para olhá—lo: Rogam estava unicamente com sua ampla camisa branca, que ia até as coxas, um largo cinturão de couro ao redor da cintura e suas calças. Tinha as mangas enroladas até os cotovelos e mostrava os antebraços musculosos e marcados por cicatrizes.
Liana sentiu que sua testa começava a transpirar. Ele continuava gritando, mas ela não sabia o que seu marido estava dizendo. Ficou de pé na banheira, o corpo esbelto e firme, o busto generoso, a pele rosada e cálida por causa da água quente.
—Por favor, quer me dar uma toalha? —perguntou com voz suave no silêncio que se fez então, pois Rogam parara de falar.
Rogam logo que pôde olhá—la, ficou com a boca aberta. Apesar de que tivera muitas mulheres, nunca sentiu o prazer de olhar, realmente olhar a uma, e agora parecia que jamais veria nada tão belo como essa mulher de pele rosada, com a cascata de cabelos loiros que lhe chegavam até os joelhos.
Pensou: Não lhe permitirei que aproveite de seu corpo para me induzir a esquecer o que fez hoje. Seus pés deram um passo para ela e Rogam estendeu a mão para tocar a curva do seio feminino.
Liana se disse que não devia perder a cabeça. Sim, desejava este homem, desejava—o muito, mas queria algo mais que uns poucos minutos de prazer. Estendeu a mão e desatou as cordas da camisa de Rogam à altura da garganta e lhe acariciou a pele com as pontas dos dedos.
—A água está ainda quente —disse com voz grave. —Possivelmente me permita que o lave.
Um banho era uma grave perda de tempo a julgamento de Rogam, mas a ideia de ser lavado por uma mulher nua...
Em poucos segundos se despojou de suas roupas e quando esteve de pé, nu ante ela e todo ele ereto Rogam tratou de apanhá—la. Mas Liana, rindo, esquivou—o.
—Seu banho, senhor —disse, e Rogam descobriu que estava metendo—se na banheira.
A água quente suavizou sua suja pele e as ervas que flutuavam na água cheiravam bem; mas o melhor de tudo era a mulher, sua esposa, esta bela...
—Leah? —pergunto Rogam, olhando—a enquanto ela se ajoelhava sobre o extremo da banheira, e seus peitos, com os mamilos rosados e eretos, roçavam apenas a beirada da banheira.
—Liana —respondeu ela e sorriu.
Começou a lavá—lo, esfregando os braços, o peito, as costas e o rosto com as mãos ensaboadas. Ele se recostou sobre o extremo da banheira e fechou os olhos.
—Liana —murmurou. Pareceu—lhe recordar imprecisamente que essa mulher fizera algo desagradável esse mesmo dia, mas agora não podia imaginar do que se tratava. A via tão pequena e angelical, tão rosada e branca, que ele não podia supor que fizera nada que merecesse a desaprovação de seu marido.
Levantou as pernas de modo que ela pudesse lavá—las, e depois a obedeceu quando lhe disse que ficasse de pé, e suas mãos pequenas, mornas e ensaboadas, lavaram—no entre as pernas. O prazer que sentiu pelo tato de Liana foi tão entristecedor que derramou sua semente sobre essas pequenas mãos. Os olhos de Rogam se abriram alarmados, e para ocultar sua vergonha lhe aplicou um brusco empurrão sobre o ombro que quase a enviou voando contra a parede.
—Machucou—me —exclamou Liana.
Rogam havia matado muita gente e jamais sentiu o mínimo arrependimento, mas a exclamação desta moça pulsou nele certa tensão. Não tivera a intenção de machucá—la, era somente que se sentiu envergonhado frente a ela. Consternado, notou de repente que saía da banheira e ajoelhava—se junto a Liana.
—Deixe—me ver —disse e inclinou—a para frente. Ao golpear contra as pedras da parede, sua pele se irritou, mas sem abrir—se.
—Não é nada —disse. —Sua pele é muito frágil, isso é tudo. —Passou a mão grande, tajeada e calejada sobre as costas pequena e esbelta. —É como a pele do ventre de um potro recém—nascido.
Liana o olhou e quase emitiu uma risada, mas se conteve. Em troca, girou o corpo entre os braços de Rogam e apoiou a cabeça sobre o ombro de seu marido.
—Agradou—lhe, o banho, não é?
Rogam sentiu que avermelhava o rosto por causa da vergonha provocada pela lembrança, e depois, ao olhá—la e ver a piscada de seus olhos, compreendeu que ela estava zombando. Vira seus irmãos rir com outras mulheres, entretanto ele encontrou muito poucas coisas que fossem cômicas nas mulheres. Não obstante, esta mulher conseguia que ele sentisse de outro modo.
—Agradou—me muito o banho —ouviu que dizia sua própria voz e ele mesmo se assombrou.
Liana emitiu uma risada contra o ombro de Rogam.
—É possível repetir o gozo? —perguntou astutamente. —Ou é seu último gozo?
Durante um momento Rogam contemplou a possibilidade de castigá—la por sua insolência, mas depois deslizou a mão sobre o traseiro nu da jovem.
—Acredito que posso me esforçar outra vez.
E então fez algo que jamais tentasse antes: elevou—a em braços, caminhou até a cama e ali a depositou brandamente.
Enquanto estava de pé ante ela e a contemplava, não sentiu desejos de jogar—se sobre Liana, de penetrá—la e depois tornar a dormir, como estava acostumado a fazer. Possivelmente era por causa de seu anterior "gozo", como ela havia dito, ou talvez desejava tocá—la como ela fizera; deitou—se ao lado da jovem, apoiado em um cotovelo, e estendeu a outra mão para sentir a pele do ventre de sua esposa.
Liana não tinha ideia de que tudo isto era novo para Rogam, mas assim imaginara que seria deitar—se com um homem. Ele explorou seu corpo com a mão, como se antes jamais tivesse visto uma mulher. Liana fechou os olhos enquanto Rogam lhe acariciava as pernas, deslizava—se entre suas coxas e seus dedos se fechavam sobre a redondez suave e firme e retorciam o pêlo da púbis. A mão de Rogam subiu pelo ventre, o polegar percorreu o lado do umbigo, e depois, lenta, muito mas muito lentamente, a mão subiu até um dos seios. Aprisionou primeiro um e depois o outro e seu polegar roçou apenas o mamilo sensível, duro e pequeno.
Ela abriu os olhos para olhá—lo, viu doçura nos olhos de Rogam, e de repente compreendeu por que aceitara casar—se com ele. Intuiu que sob sua rudeza, sob a dura casca protetora, existia uma suavidade que ele jamais manifestara a ninguém. Um estremecimento percorreu o corpo de Liana, quando pensou na dor que este homem devia ter experimentado no curso de sua vida e que o convertera no ser frio e insensível que manifestava ao mundo. Mas de todos os modos, convenceu—se que Rogam que o mundo via não era a verdadeira personalidade deste homem.
Amo—o, pensou. Amo—o com toda minha alma e todo meu ser, e que Deus me perdoe, vou conseguir que também ele me ame.
Liana aproximou sua mão do queixo de Rogam e acariciou a barba crescida, que agora estava fofa por causa de vários dias sem barbear—se, pois parecia que ele o fazia somente uma vez por semana. Disse—se: Conseguirei que me necessite e obterei que se sinta suficientemente seguro, de modo que eu possa ver certa doçura em seus olhos, inclusive quando estou vestida.
Este pensamento a induziu a sorrir e aproximou o corpo ao de Rogam. Ele a apertou com força e Liana pôde sentir a paixão que o dominava enquanto suas mãos lhe acariciavam as costas, sua boca cobria a sua e a beijava com ardor. Os lábios de Rogam desceram por seu pescoço e finalmente chegaram a seus peitos. Liana se arqueou para trás, e emitiu um grito de prazer.
Rogam tinha consciência das reações de Liana e graças ao episódio da banheira podia controlar sua própria necessidade. As mulheres que ele tivera eram virgens temerosas ou mulheres muito dispostas e experimentadas e sempre desejando agradá—lo. É obvio, nenhuma lhe propusera banhá—lo e nenhuma tampouco tinha deixado papel e plumas em sua habitação. Possivelmente se tratava só do desejo de pagar uma dívida, mas em todo caso o agradava sentir que esta mulher se estremecia sob as mãos inquietas do homem. O prazer que ela sentia também agradava a Rogam.
Os lábios de Rogam seguiram o mesmo caminho que suas mãos com o passar do corpo de Liana, e assim ele descobriu que o aroma e o sabor de sua pele era doce e fresco, tão diferente do que exalavam as criadas dos Dias, que às vezes fediam tanto que ele as expulsava da cama. Esta moça cheirava a fumaça de lenha e ervas.
Quando sua cabeça se elevou novamente à altura dos lábios de Liana, Rogam se surpreendeu ao perceber quanto a desejava. As mãos dela agarraram seus ombros, e quando a penetrou, ela o buscou com uma força e uma energia iguais às dele.
Nunca passara tanto tempo na cama com uma mulher! Ela era incrivelmente sensual, e em certo momento o obrigou a ficar de costas e jogou—se em cima e seus cabelos envolveram aos dois como um cárcere suave mas sólido.
Rogam nunca antes tivera em conta o prazer da mulher; mas esta, com seus gemidos e suspiros, seus primeiros movimentos em um sentido e depois em outro, acentuou febrilmente seu próprio prazer, até que acreditou que podia morrer. Quando por fim terminou, foi uma experiência que o comoveu, impressionou—o da ponta dos dedos dos pés até a cabeça.
Desabou—se sobre a moça e em lugar de afastá—la, como estava acostumado a fazer com as mulheres que levava a sua cama, abraçou—a com força como se ele estivesse afogando—se e ela fosse uma madeira flutuante.
Liana se aconchegou contra seu corpo. Parecia que ele se derramava sobre ela como se houvesse sido o molho que se derruba sobre um pudim. A jovem nunca havia se sentido tão bem no curso de sua vida.
—É maravilhoso —murmurou. —O melhor que jamais me aconteceu. Sabia que o matrimônio com você seria assim.
Rogam desprendeu os braços que a sustentavam e se moveu para o extremo da cama, mas Liana o acompanhou, a cabeça sobre o ombro de Rogam, o braço sobre o peito, uma coxa cruzando as pernas de seu companheiro. Sentia—se mais feliz que nunca, mais feliz que o que acreditava ser possível.
Não imaginava o torvelinho que comovia Rogam. Ele desejava afastar—se, e entretanto não atinava a mover—se.
—Como era seu irmão William? Tinha cabelos vermelhos como você? —perguntou Liana.
—Não tenho cabelos vermelhos —disse indignado Rogam.
—Quando ilumina o sol, sua cabeça parece um fogo —replicou Liana. —William era como você?
—Nosso pai tinha os cabelos vermelhos, mas eu herdei os negros de minha mãe.
—Então, ambos tinham a cabeleira vermelha.
—Eu não... —disse Rogam, mas calou e quase sorriu. —De fogo, é?
Todas as mulheres que conhecera lhe diziam que ele tinha cabelos negros, sem rastros do vermelho de seu pai. Isso era o que ele desejava, e portanto era o que lhe asseguravam.
—E os outros irmãos? Também eram ruivos?
Pensou em seus irmãos agora mortos, e recordou que jovens e fortes eram. Que bem lutavam! Jamais teria pensado que chegaria o dia em que ele seria o mais velho dos Peregrine e assumiria a responsabilidade de tudo.
—Rowland, Basil e James tinham uma mãe morena, de modo que todos tiveram cabelos negros.
—E o que me diz de Severn e Zared?
—A mãe do Severn era loira como... —Deixou inconclusa a frase e continuou deitado, olhando seus próprios dedos e unindo—os aos de Liana. Devia jogá—la da cama e dormir um pouco, em lugar de evocar com ela lembranças dolorosas. Mas recordar seus irmãos como se estivessem vivos não lhe era angustiante.
—Como eu —disse Liana, sorrindo. —E também foi a mãe de Zared, que tem deste modo cabelos negros?
Liana não viu o sorriso de Rogam na penumbra.
—Sim, em efeito. Zared é moreno porque sua mãe também foi. A de Severn morreu ao dar a luz.
—Então, seu pai teve quatro esposas e sete filhos?
Rogam vacilou antes de responder.
—Sim —disse.
—Certamente foi agradável contar com vários irmãos. Eu muitas vezes desejei que minha mãe tivesse outro filho. Frequentemente se divertiam juntos ou lhe puseram aos cuidados de outras pessoas?
Sentiu que o corpo de Rogam se endurecia e se perguntou que engano cometera.
—Em nossa vida não houve divertimento e tampouco atribuíram a outras pessoas. —Agora estava falando com voz fria. —Desde que aprendemos a caminhar nos treinaram para a guerra. Os Howard mataram William quando ele tinha dezoito anos, James e Basil aos vinte e vinte e um, e por último RowIand faz dois anos, antes de que completasse os trinta. Agora, eu devo proteger Severn e Zared.
Pegou—a pelos ombros e elevou—a um pouco, para olhá—la nos olhos.
—Eu matei James e Basil e o fiz por uma mulher e prefiro morrer antes de que isso aconteça outra vez. Afaste—se de mim, e mantenha assim.
Ele a jogou sobre o colchão de plumas, desceu da cama e começou a colocar a roupa.
—Rogam, não tive a intenção de... —começou a dizer Liana, mas ele já partira. —Maldito seja, maldito seja... —lamentou—se, descarregando o punho sobre o travesseiro, deitou—se sobre as costas e cravou o olhar no teto pintado de branco. —Por que havia dito que ele matara seus irmãos? E por uma mulher? Que mulher? —perguntou em voz alta. Comerei isso ao café da manhã.
A ideia a reconfortou e o pensamento de que haveria também outras noites a acalmou. Mas sobre tudo pensou no momento de ganhar a aposta. Se os camponeses entregassem os ladrões, Rogam seria seu escravo um dia inteiro. O que faria com ele? Obrigá—lo a fazer amor todo o dia? Possivelmente ter uma jornada completa com ela seria o bastante, ou que tivesse que acompanhá—la e responder suas perguntas. Começou a adormecer—se.
À manhã seguinte Liana se levantou cedo, com a intenção de procurar seu marido, mas o que viu no térreo a induziu a esquecer—se provisoriamente de Rogam. No grande salão não havia ninguém, de modo que desceu, saiu ao pátio e começou a subir a escada que levava a sala dos homens. Não estivera antes nesse setor e não a surpreendeu que estava tão sujo como antes estava o resto do castelo. No enorme salão, de dobro de extensão que o principal, havia uns duzentos homens sentados sobre bancos sujos, frente a mesas gordurentas, comendo pão impregnado de areia e bebendo vinho azedo. Ninguém lhe prestou atenção quando ela entrou e todos continuaram coçando—se, gritando, tragando e arrotando e peidando.
A boa disposição de Liana e o sentimento de triunfo desapareceram. Saiu do salão em silêncio e passou ao pátio, à luz do sol.
Severn estava de pé perto da parede meridional, acariciando o peito de um grande falcão.
—Onde está meu marido? —perguntou ela.
—Esta manhã partiu em direção a Bevan —respondeu Severn, sem olhá—la.
—Bevan? Onde sua família foi sitiada?
Ele lhe dirigiu um rápido olhar e devolveu o ave ao cabide.
—Isso mesmo.
—Quando retornará?
Seu cunhado se encolheu de ombros e se afastou.
Liana o seguiu, elevando as saias para poder caminhar depressa.
—Isso foi tudo? Partiu? Sem dizer uma palavra a ninguém? E não explicou quando se propunha retornar? Quero que autorize os homens a esvaziar o fosso.
Severn se deteve, voltou—se e a olhou.
—Esvaziar o fosso? Mulher, está louca? Os Howard poderiam...
—Cruzá—lo caminhando, conforme está agora —disse Liana, olhando com hostilidade a Severn. —Quando retornará meu marido?
A expressão severa desapareceu do rosto de Severn e seus olhos começaram a piscar.
—Meu irmão saiu antes da alvorada e se limitou a dizer que se dirigia ao castelo de Bevan. Se você lhe pediu que ordenasse esvaziar o fosso, imagino que isso teve certa relação com sua partida.
Liana não disse uma palavra.
—Teme ordená—lo você mesma, não é? —disse Severn, e começou a sorrir.
Liana não pôde impedir o rubor de sua face, pois ele tinha adivinhado qual era a situação.
—Não autorizarei isso e em seguida retornará Rogam e verá o fosso vazio —adicionou Severn e se voltou novamente.
Liana permaneceu de pé olhando—o enquanto se afastava. Não lhe agradava que Rogam se afastasse, mas acreditava que possivelmente poderia melhorar mais facilmente as coisas no castelo e a aldeia enquanto ele não estava. Severn era um homem muito mais brando que Rogam, isso era evidente para ela e parecia que possivelmente havia um modo de persuadi—lo, o mesmo método que ela utilizava para convencer seu pai de que fizesse tudo o que a Liana desejava muito: a comida.
Liana enviou a Joice a ordem de que lhe trouxesse seu precioso livro de receitas, endireitou seu toucado e subiu a escada em direção à cozinha.
Era tarde na noite quando Liana foi deitar—se, sozinha. Estava esgotada mas também feliz, pois agora obtivera a permissão necessária para cavar uma sarjeta que permitisse drenar o fedido fosso.
Necessitou o dia inteiro, mas conseguiu limpar um pouco as cozinhas e o salão dos homens, e serviu a Severn e aos cavalheiros Peregrine, um banquete digno de um rei. Apresentara—lhes carne assada, rosada e suculenta, capão com molho de laranjas, coelho cozido com cebolas e passas, bolos de espinafre e queijo, ovos em molho de mostarda, pêras condimentadas, bolos e mousse de maçã.
Quando Severn e seus homens cessaram de abarrotar—se, Liana compreendeu que podia obter deles o que desejasse muito. Enquanto se aplaudia o ventre repleto, Severn não só aceitou o pedido de sua cunhada, mas também ofereceu sua ajuda para cavar. Ela sorriu, disse—lhe que isso não seria necessário, e apresentou—lhe uma fonte carregada de geléia doce.
Se fosse tão fácil conquistar meu marido, pensou Liana, enquanto se afundava fatigada no colchão de plumas. Evitou pensar no que Rogam estaria fazendo no castelo de Bevan. Nos braços de outra mulher?
Rogam estava sentado frente a lareira do castelo de Bevan, tão indiferente a rófia e a desordem que havia ao redor como estava acostumado a mostrar—se no castelo Moray. Tinha os olhos só para a bonita e jovem camponesa que estava ante ele.
Essa manhã quando saiu de Moray, não sabia muito bem por que partia. Sabia unicamente que ao despertar, seu primeiro pensamento foi para esse demônio fêmea de cabelos loiros com quem se casou. Coçou as picadas das pulgas que com muito gosto abandonaram o velho colchão sobre o qual se deitou, para saltar a seu corpo, e então compreendeu que desejava distanciar—se um pouco, no tempo e no espaço, dessa moça que era sua esposa.
Ordenou a alguns homens que se preparassem e todos saíram a cavalo e se detiveram na aldeia para recolher Quinta—feira, porque desejava levá—la consigo. Mas esta retrocedeu, chorou e rogou que não a obrigasse a ir com ele, pois a Dama de Fogo a mataria. Rogam se afastou aborrecido da jovem. Ouviu as mesmas queixa e protestos de lábios de Domingo e Terça—feira, de modo que foi a Bevan sem mulheres.
Este castelo se elevava, isolado, sobre uma alta e íngrime colina; antes de começar a ascensão se deteve na aldeia que estava ao pé, apoderou—se da primeira moça bonita e de aspecto saudável que viu e a pôs sobre sues própria arreios. Agora a moça estava de pé, tremendo ante Rogam.
—Cessa de tremer —ordenou, com o cenho franzido. Era mais jovem do que imaginara a princípio. Viu que se acentuava o tremor e franziu mais o sobrecenho. —Vem aqui e dê—me um beijo —ordenou.
As lágrimas começaram a descer sobre a face da moça, mas de todos os modos ela se adiantou para ele e lhe deu um rápido beijo na face. Rogam lhe agarrou os gordurentos cabelos, aproximou a boca da jovem de seus próprios lábios e a beijou faminto. Sentiu que a jovem se estremecia entre seus braços.
Soltou—a e ao empurrá—la caiu ao piso.
—Meu senhor, por favor, não me façam mal —rogou a moça. Farei o que diga, mas por favor não me faça mal.
O desejo de Rogam se apagou. Recordava muito bem a jovem que desejava, uma mulher que não cheirava a gordura e esterco de porco.
—Fora daqui —disse baixo. —Vá antes de que mude de ideia —uivou ao ver que a moça estava muita assustada para mover—se. Rogam se voltou e ela saiu rapidamente da habitação.
Aproximando—se de um dos barris que havia contra a parede, serviu—se um jato de cerveja escura e amarga em um sujo jarro de madeira. Um dos cavalheiros estava dormindo perto e Rogam descarregou um chute em suas costelas.
—Levante —ordenou —e traz uns jogos de dados. Necessito algo que me ajude a dormir esta noite.

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 9


Liana aproximou a mão a suas costas dolorida. Rogam estava ausente há duas longas semanas e nesse período ela realizou milagres no castelo e na aldeia. A princípio, os camponeses não quiseram lhe obedecer porque temiam a cólera de lorde Rogam. Mas quando uns poucos aceitaram suas ordens e não foram castigados, o resto começou a acreditar nela.
Repararam—se as casas da aldeia, compraram novos trajes para vestir, e sacrificaram animais para alimentar às pessoas famintas. Por volta do fim das duas primeiras semanas, os camponeses olhavam a Liana como se ela fosse um anjo.
A limpeza do castelo e a aldeia provocou satisfação nela, exceto em um aspecto; o número de meninos ruivos dispersos em qualquer parte. A princípio, ela acreditou que era uma coincidência que Rogam tivesse os mesmos cabelos de cor escura, tão peculiares, que apareciam em alguns aldeãos. Mas quando um menino de uns oito anos a olhou com a mesma expressão dura de seu marido, Liana quis saber quem era o pai do pequeno.
Os camponeses que estavam ao redor interromperam suas tarefas e em silêncio cravaram os olhos no piso. Liana repetiu sua pergunta, e finalmente, uma jovem se adiantou: Liana a identificou como um dos Dias, que estava acostumado a dormir com Rogam.
—Lorde Rogam é o pai —disse esta, desafiante.
Liana sentiu que ao redor os camponeses se encolhiam, como se esperassem receber golpes.
—Quantos filhos de meu marido há aqui?

—Mais ou menos uma dúzia. —A moça elevou ainda mais o queixo. —E o que levo em meu ventre.
Liana permaneceu imóvel um momento, incapaz de mover—se ou falar. Não sabia se estava mais zangada com seu marido por ter tantos bastardos ou porque este deixava que seus próprios filhos vivessem na pobreza. Compreendia que os camponeses a observavam, esperando para ver que fazia e respirou profundamente.
—Reúnam os meninos e enviem—nos ao castelo, eu me ocuparei de suas necessidades.
—Com as mães? —disse a moça e sua atitude demonstrava que ela mesma experimentava um sentimento de triunfo.
Liana olhou, hostil, a jovem,
—Você pode escolher: deixar o menino a meu cuidado ou assume a responsabilidade de criá—lo. Mas não, não receberei as mães dos meninos.
—Sim, minha senhora —disse obediente a moça, inclinando a cabeça.
Perto dela, Liana ouviu que umas poucas mulheres comentavam a decisão de Liana com amostras de assentimento.
Era tarde quando saiu da aldeia e sentiu desejos de meter—se na cama, ao lado de Rogam. Como de costume, começou a sonhar acordada a respeito do que lhe pediria quando ele fosse seu escravo por um dia. Possivelmente organizasse uma comida junto a um riacho, só para eles dois, ou talvez o obrigasse a que lhe falasse. Nada mais que conseguir que passeasse um dia com ela, uma hora com ela, ambos completamente vestidos, seria um êxito. Alguém dissera que ele a incluía na mesma categoria que às mulheres dos Dias quer dizer, para a cama e nada mais.
O repique dos cascos de seu cavalo sobre a ponte de madeira que permitia atravessar o fosso, agora vazio, devolveu—a à realidade. Detrás, cavalgavam os cavalheiros Peregrine, sempre presentes e silenciosos.
As dependências do castelo estavam agora quase limpas e Liana pôde subir a escada para chegar ao salão sem tropeçar em resíduos.
Uma vez acima, evitou Joice, que tinha uma lista de perguntas e queixa e subiu aos dormitórios do piso alto. Durante as últimas semanas Liana procurara várias vezes à Dama, a senhora com quem conversou essa primeira semana e que lhe recordou que os homens nunca lutavam pelas mulheres discretas e submissas. Mas a porta de sua habitação sempre estava enclausurada com ferrolho.
Os quartos do piso alto estavam agora limpos e as criadas de Liana ocupavam alguns; mas a maior parte estavam vazios, esperando a aparição de hóspedes. Ao extremo do corredor a habitação usualmente fechada, desta vez se encontrava aberta. Liana se deteve um momento para olhar à mulher e a luz do sol que caía sobre seus cabelos trançados, enquanto se inclinava sobre um bastidor de tecer.
—Boa tarde, querida —disse, voltando—se e sorrindo com simpatia. —Por favor, entra e fecha a porta, há corrente de ar.
Liana fez o que lhe pedia.
—Vim lhe ver antes, mas não havia ninguém. Rogam foi ao castelo de Bevan.
De novo teve a sensação de que a conhecia sempre,
A mulher separou fios de seda escarlate.
—Sim, e você fez uma aposta com ele. Será seu escravo por um dia?
Liana sorriu, caminhou para a Dama, e por cima de seu ombro contemplou o tecido sujeito pelo bastidor. Era um fragmento de tapeçaria, a imagem quase completa de uma esbelta senhora loira com a mão sobre a cabeça de um unicórnio.
—Poderia ser sua imagem —replicou sorrindo a Dama. —Como se propõe ocupar seu dia com Rogam?
Liana sorriu, sonhadora.
—Possivelmente um longo passeio pelo bosque, passar o dia juntos e sozinhos. Nem irmãos, nem obrigações no castelo, nem cavalheiros... somente os dois. Quero que ele... consagre—me toda sua atenção. —Como a Dama não replicasse, Liana a olhou e viu que o sorriso se esfumou. —Não aprova.
—Não me corresponde julgar —murmurou. —Mas por outro lado, acredito que ele e Jeanne estavam acostumados a passear juntos.
—Jeanne?
—Jeanne Howard.
—Howard! —proferiu Liana, contendo uma exclamação. —Os mesmos Howard que são os inimigos jurados dos Peregrine? Quase não ouço falar de outra coisa desde que me casei... que os Howard roubaram as terras dos Peregrine, que mataram alguns deles, que os obrigaram a passar fome. Estão dizendo que Rogam certa vez cortejou a uma Howard?
—Rogam esteve casado com Jeanne antes de que ela fosse uma Howard.
Liana se sentou junto à janela, o sol sobre as costas.
—Diga—me tudo —pediu.
—Rogam esteve casado com Jeanne Randel quando ele tinha só dezesseis anos e ela quinze. Seus pais e seu irmão William foram sitiados em Bevan no ano precedente e os três filhos maiores dos Peregrine estavam muito atarefados fazendo a guerra aos Howard e portanto não tinham tempo para casar—se. Decidiram que Rogam contrairia enlace, conseguiria o dote da moça e daria alguns filhos que mais tarde ajudariam na luta. Rogam se opôs ao matrimônio, mas seus irmãos o convenceram.
A Dama se voltou para olhar Liana.
—Ao longo de sua vida, Rogam conheceu somente privações e sofrimento. Não todas as cicatrizes que tem no corpo provêm dos combates, seus irmãos e seu pai também contribuíram.
—De modo que "convenceram" a Rogam de que se casasse —disse Liana baixo.
—Sim, mas depois de vê—la não se mostrou relutante: era uma mulher miúda e bonita, tão discreta e bem falante. A mãe havia falecido quando ela era pequena e como pupila do rei foi criada em um convento pelas monjas. Possivelmente o passo de um convento ao matrimônio com um Peregrine não era uma situação especialmente fácil para uma menina.
A Dama olhou a Liana, mas esta não respondeu. Essa manhã tinha descoberto a uma dúzia de filhos legítimos de seu marido e pela tarde se inteirava que tivera outra esposa.
A Dama continuou falando.
—Acredito que Rogam começou a apaixonar—se por ela. Nunca tinha gozado de uma vida agradável e suponho que a suavidade de Jeanne o fascinou. Lembro que certa vez retornaram de um passeio e ambos tinham flores nos cabelos.
Liana desviou o olhar, pois queria evitar que a dor que se manifestava em sua face fosse percebida por sua interlocutora. Dava de presente flores a sua primeira esposa e não podia recordar o nome da segunda.
—Já estavam a uns quatro meses casados quando os Howard se apoderaram de Jeanne enquanto ela e Rogam estavam sozinhos no bosque. Rowland advertira Rogam de que não saísse sozinho, mas este se acreditava imortal, que quando estava com Jeanne nada podia danificá—lo. Parece—me que estiveram nadando quando... —a Dama olhou o rosto de expressão dolorida de Liana... —e cochilaram quando os homens de Oliver Howard caíram sobre eles e apoderaram—se de Jeanne. Rogam não pôde chegar a sua espada mas conseguiu arrancar de seus cavalos a dois dos Howard, estrangulando a um deles antes que os restantes pudessem afastá—lo. Acredito que um dos Peregrine acabava de matar o irmão menor de Oliver e este estava de um humor terrível, ordenando a seus homens que sustentassem Rogam enquanto lhe disparava três flechas, não para matá—lo, a não ser para lhe demonstrar o poder que exercia. Depois, Oliver e seus homens se afastaram com Jeanne a cavalo.
Liana olhou fixamente a mulher e imaginou a terrível cena.
—E o que fez Rogam? —murmurou.
—Voltou a pé para o castelo —disse a Dama. Seis quilômetros, com três feridas sangrantes, caminhando para onde estavam seus irmãos. No dia seguinte atacaram os Howard. Cavalgou com seus homens e lutou contra seus inimigos, até que ao terceiro dia caiu do cavalo, com febre muito alta. Recuperou o sentido depois de quase duas semanas e tinham morrido seus irmãos Basil e James.
—Disse que ele matou seus irmãos —observou Liana.
—Rogam sempre tomou muito a sério suas responsabilidades. Ele, Rowlan e o jovem Severn lutaram contra os Howard por mais de um ano. Os Peregrine não tinham a força ou o dinheiro necessários para montar um ataque sério ao castelo dos Howard, grande e forte, mas lutaram como puderam, roubando os fornecimentos dos Howard, queimando as casas dos camponeses, envenenando os poços aos quais podiam chegar. Foi um ano sangrento, e então...
A Dama não completou sua própria frase.
—E então o que? —apressou—a Liana.
—E então Jeanne retornou a Rogam.
Liana esperou, mas a Dama não disse mais. Sua agulha entrava e saía veloz da seda da tapeçaria.
—O que aconteceu quando Jeanne retornou?
—Tinha uma gravidez de seis meses, o filho de Oliver Howard e estava muito apaixonada por ele. Devia ver Rogam, pedir que concedesse a anulação do matrimônio porque desejava casar—se com Oliver.
—Pobre moço —disse finalmente Liana. —Como é possível que lhe fizesse isso? Ou Oliver Howard a obrigou a dar esse passo?
—Ninguém havia forçado Jeanne. Amava Oliver e ele correspondia. Em realidade, este proibira de ver Rogam, propunha—se matar ao marido da mulher a quem amava. Acredito que Jeanne sentia algo por Rogam, porque me parece que sua visita lhe salvou a vida. Este voltou aqui depois de ver Jeanne e enquanto solicitava a anulação, os Peregrine e os Howard cessaram de guerrear.
Liana ficou de pé e caminhou até o fundo da habitação e ficou em silêncio durante vários minutos. Finalmente, voltou—se para olhar a Dama.
—De modo que Rogam e Jeanne estavam acostumados a passear juntos pelo bosque, não é assim? Nesse caso, organizarei uma celebração, dançaremos, trarei cantores e acrobatas e...
—Como em suas bodas?
Liana cessou de falar e recordou o dia de suas bodas, quando Rogam a ignorara.
—Desejo que ele passe um tempo comigo disse. Não me presta atenção, salvo na cama. Quero ser mais para ele... que um dia da semana. Quero que ele...
—Que deseja dele?
—Quero o que rameira da Jeanne Howard teve e desprezou! —disse Liana com violência. —Quero que Rogam me ame.
—E o conseguirá dando passeios pelo bosque?
A Dama pareceu regozijar—se.
De repente, Liana se sentiu muito fatigada. Seu sonho de um marido que passeava com ela e sustentava sua mão, não coincidia com o homem que, depois de receber três flechas continuava lutando durante dias inteiros. Recordou quando Zared disse que Rogam estava em seu quarto de meditação. Bem, não era estranho que se entregasse a suas reflexões; que nunca sorria; que não queria ter nada a ver com outra esposa.
—O que posso fazer? —disse em voz alta. —Como lhe demonstro que não sou Jeanne Howard? Como consigo que Rogam me ame?
Olhou à Dama e esperou.
Mas esta balançou a cabeça.
—Não tenho resposta para você. Possivelmente seja uma tarefa impossível. A maioria das mulheres se sentiriam satisfeitas com um marido que não as golpeia e que aproveita a outras mulheres para satisfazer suas necessidades. Rogam lhe dará filhos e os filhos podem ser de grande conforto para uma mulher.
Liana apertou os lábios.
—Os filhos que crescerão para combater e morrer frente aos Howard? Devo permanecer indiferente enquanto meu marido assinala os crânios dos cavalos e a insígnia para meus filhos odiar? Rogam se apodera de tudo o que pode me arrancar, pelo que pode obter dos camponeses, de tudo o que fica ao alcance da mão, para fabricar máquinas de guerra. Seu ódio é mais importante para ele que uma vida sobre a Terra. Tem filhos com as moças camponesas, e permite que os meninos passem necessidades. Se ao menos durante um dia pudesse esquecer os Howard, não tomar em conta que agora é o mais velho dos Peregrine. Se consegue compreender como seu ódio está provocando a morte lenta de sua gente, nesse caso, possivelmente poderia...
Interrompeu—se, os olhos muito abertos.
—Poderia o que?
Liana falou com voz grave.
—Faz umas semanas os camponeses me pediram permissão para celebrar o dia de São Eustásio. É obvio, concedi a permissão. Se Rogam pudesse ver esta gente, falar—lhes... possivelmente se conhecesse seus próprios filhos...
Agora, a Dama sorria.
—Raramente se afastou de sua família e duvido que aceite passar um dia a sós com você. Na oportunidade em que esteve sozinho lhe arrebataram a esposa e a seu tempo isso provocou a morte de seus dois irmãos. Não, não aceitará facilmente o que lhe solicite.
A Dama voltou os olhos para a porta e escutou.
—Parece—me que sua criada está buscando—a, agora deve partir.
—Sim —disse Liana, distraída, seu pensamento concentrado no que falara. Caminhou para a porta, voltou—se e olhou à mulher. Posso vê—la de novo? Sua porta frequentemente tem o ferrolho posto.
A Dama sorriu.
—Sempre que me necessite, aqui estarei.
Liana retribuiu o sorriso e saiu da habitação. Ouviu em seguida o movimento do ferrolho na porta. Sentiu um impulso de chamar, pensara em formular certas perguntas à Dama, mas parecia que nunca conseguia recordá—las quando estava nessa habitação.
Mudou de idéia, caminhou pelo corredor e desceu a escada. Em efeito, Joice estava procurando—a. Lorde Rogam retornara e pouco depois chegaram quase todos os camponeses da aldeia, trazendo um carrinho de mão. Sobre ela jaziam dois mortos, um pai e seu filho.
—Aí estão seus ladrões —disse Joice, com os olhos muito grandes. —Precisamente como disseram, os camponeses os enforcaram. Alguns cavalheiros afirmam que procederam assim para evitar que lorde Rogam os torturasse. Dizem que os ladrões eram como Robin Hood, que compartilhavam tudo o que roubavam e os camponeses os amavam. Mas os penduraram por você, minha senhora.
Liana esboçou uma careta ante essa duvidosa honra, alisou a saia e desceu a escada para reunir—se com seu marido. O coração lhe pulsava com força.
Rogam não desmontara e os últimos raios do sol iluminavam seus cabelos, o grande corcel que montava fazia acrobacias perigosas, pois sentia a cólera de seu amo. Rogam passava o olhar por todos os cantos do castelo e franzia o sobrecenho ao ver a limpeza do lugar e ao observar os limpos camponeses, limpos que perderam seu aspecto macilento e espectral.
Liana intuiu que haveria dificuldades, podia vê—lo no rosto bem formado de Rogam.
—Ganhei a aposta —disse com a voz mais alta que estava a seu alcance, tratando de atrair a atenção de Rogam sobre ela e de afastá—la dos camponeses. Como estava em uma posição vantajosa, ao final da escadaria de pedra, sua voz chegava às pessoas que estavam abaixo.
Ela o olhou, contendo o fôlego, enquanto Rogam movia seu cavalo para contemplá—la. Recorda—me, pensou Liana com prazer e o que é melhor ainda, deseja—me. Seu coração começou a pulsar com mais força.
Mas então lhe cortou o fôlego, porque viu os olhos de Rogam. Parecia zangado com ela... não só zangado, mas também furioso. Sem dúvida, essa era a face que mostrava ante os Howard. Não sou sua primeira esposa, pensou Liana enquanto mantinha alto o queixo e tratava de dominar o tremor de seu corpo. Desejava subir depressa a escada, meter—se em seu dormitório e ocultar—se sob as mantas, queria afastar—se do feroz olhar desse homem.
—Ganhei —disse com esforço. —Vem, será meu escravo.
Voltou—se, porque já não podia suportar a hostilidade de Rogam e subiu ao solar. Possivelmente uns poucos minutos a sós na capela a serenariam.
Rogam a viu afastar—se, desmontou e entregou as rédeas a um peão ruivo. Viu ir—se o moço e pareceu—lhe que era uma figura conhecida.
—Escravo de uma mulher durante um dia? —disse Severn, que estava ao lado de seu irmão; e em sua voz fala um vislumbre de bom humor.
Rogam olhou, hostil, a Severn.
—Autorizou o vazamento do fosso? E isto? Com um gesto do braço incluiu o pátio, agora muito diferente e aos mortos no carrinho de mão.—Tudo isto é tua idéia? Apenas lhes dou as costas...
—O mérito pertence a sua esposa, não a mim —disse Severn sem perder o bom humor. —Nestas poucas semanas fez mais que você e eu...
Interrompeu—se ao ver que Rogam passava a seu lado e começava a subir a escada.
—Agora cessarão as execuções? —atreveu—se a perguntar um dos camponeses. Severn tinha seu próprio caráter, também ele subiu a escada, dois degraus por vez. Zared era a única pessoa que estava no salão principal.
—Aonde foi? —perguntou Severn.
Zared assinalou a habitação que eles denominavam o quarto de meditação. Por tradição pertencia ao chefe da família Peregrine, o pai dos irmãos, depois a Rowland, e agora a Rogam. Sua intimidade era sagrada e quando um homem entrava ali, não podia incomodar—lhe por nada menos importante que um ataque iminente.
Severn subiu os poucos degraus que o separavam da porta e a abriu sem vacilar,
—Saia daqui, vá para o inferno —rugiu Rogam e sua voz demonstrava o que sentia.
—Para escutar que os homens afirmam que meu irmão é um covarde? Para lhes ouvir comentar que é incapaz de pagar uma aposta?
—A aposta com uma mulher —zombou Rogam.
—Mas uma aposta aceita em público, frente a mim, a seus homens, inclusive frente aos camponeses. —Severn se serenou. —Por que não lhe dá o que reclama? Provavelmente o obrigará a cantar um dueto com ela ou a trazer flores. É tão grave ser o escravo de uma mulher só um dia? E especialmente desta. Aaprentemente, o único que lhe interessa é uma casa limpa e... e você. Só Deus sabe por que, Zared e eu tivemos que suportar centenas de perguntas a respeito de sua pessoa.
—E sem dúvida lhe revelaram tudo, parece que lhes agrada falar com as mulheres. Você e essa duquesa casada.
—Não diga nada do qual possa se arrepender —advertiu Severn. —Sim, falo com o Iolanthe que tem uma cabeça inteligente e parece que o mesmo acontece a sua esposa. Acertou quando disse que conseguiria que os camponeses trouxessem os ladrões. Durante dois anos flagelamos e golpeamos às pessoas e continuavam nos roubando, o único que ela fez foi alimentá—los e obrigá—los a banhar—se e os tem comendo em sua mão.
—Acostumarão tanto a consumir a carne de nossas vacas que cessarão de trabalhar e quererão que lhes subministremos todo o necessário. O que pedirão depois? Vestidos de seda? Corte para defender do frio invernal? Línguas de pavão para o jantar?
—Não sei —respondeu sinceramente Severn —mas em efeito, a mulher ganhou a aposta.
—É como os camponeses. Se lhe der o que reclama hoje, o que pedirá amanhã? Pretenderá administrar toda a propriedade? Também lhe permitirei sentar—se no tribunal e julgar? Possivelmente deveria lhe encomendar o treinamento dos homens.
Severn olhou longamente seu irmão.
—Por que a teme?
—Temer? —uivou Rogam. —Poderia parti—la em duas com as mãos limpas, ordenar que a encerrem, enviá—la com suas altivas donzelas, ao castelo de Bevan e não voltar a vê—la jamais. Poderia...
Interrompeu—se e se desabou pesadamente em uma cadeira.
Severn olhou assombrado a seu irmão: aí estava corpulento, forte e invencível, o homem que jamais fraquejava antes de uma batalha e agora parecia um menino atemorizado. O espetáculo não era agradável porque Rogam sempre se mostrava seguro de si mesmo, sempre sabia que atitude tomar, nunca vacilava quando tinha que adotar uma decisão, jamais se detinha quando resolvia algo. Não, corrigiu—se Severn, Rogam não só era firme, sabia o que era necessário fazer.
Severn caminhou para a porta.
—Apresentarei alguma desculpa aos homens. É obvio, um Peregrine não pode ser escravo de uma mulher, a idéia mesma é absurda.
—Não, espera —respondeu, sem olhar a seu irmão. —Fui um estúpido ao aceitar a aposta, nunca acreditei que podia me trazer os ladrões. Vá vê—la e pergunte o que pretende de mim, possivelmente só deseja um ou dois vestidos novos. Não quero esbanjar o dinheiro, mas os darei.
Como Severn não respondeu, Rogam voltou os olhos para seu irmão.
—E bem, tem outra coisa que fazer? Vá procurá—la.
Severn sentiu que uma quebra de onda de calor lhe subia pelo pescoço.
—Possivelmente ela quer algo... bem, algo pessoal de você. Se ela me tivesse como escravo um dia inteiro, provavelmente ataria a uma cama... —interrompeu—se ao ver a expressão interessada nos olhos de Rogam. —Quem sabe o que sua esposa deseja de você? Talvez quer que lhe ate uma cauda de burro e que esfregue os pisos. Quem sabe? Esta mulher escuta mais do que fala, acredito que sabe mais de nós do que o que nós sabemos dela.
—Como uma boa espiã —adicionou Rogam com voz surda.
Severn elevou as mãos.
—Espiã ou não, agrada—me o aroma que agora tem este lugar. Vá ver o que quer sua esposa, parece uma pessoa bastante singela.
Saiu da habitação e fechou a porta detrás de si.
Uns minutos mais tarde Rogam deixou o quarto de meditação e subiu a escada que levava ao solar. Os últimos anos tinha ido ali unicamente quando necessitava de um falcão. Mas os falcões tinham desaparecido, e os muros pareciam quase úmidos por causa do recente pintura onde penduravam três grandes tapeçarias; o primeiro que Rogam pensou ao vê—las foi que podia vendê—las por ouro. Havia cadeiras, mesas, tamboretes e bastidores de costura das mulheres dispersos pela habitação.
As que estavam ali interromperam seu bate—papo quando o viram e olharam como se Rogam fosse um demônio chegado do inferno. Em um extremo, sentada frente a uma janela, estava sua esposa. Rogam recordou o olhar sereno de Liana, mas sobre tudo evocou a sensação de seu corpo.
—Fora —foi tudo o que ele disse e permaneceu de pé esperando enquanto as mulheres, assustadas, saíam depressa.
Quando os dois estiveram sozinhos, Rogam não se aproximou mais de Liana. A seu julgamento, o melhor era que o separassem dela ao redor de dez metros.
—O que pretende de mim? —perguntou, as sobrancelhas escuras unidas em um artifício entre as sobrancelhas. —Não farei o papel de parvo frente a meus homens, não esfregarei pisos nem usarei uma cauda de burro.
Liana piscou assombrada e depois sorriu.
—Jamais me agradou obrigar a outro que pareça estúpido. —Com movimentos muito lentos, elevou as mãos e tirou o toucado, permitindo que seus largos cabelos loiros descessem sobre os ombros e as costas e moveu um pouco a cabeça. —Sem dúvida, está fatigado depois de sua viagem, vem e sente—se a meu lado, aqui tenho vinho e guloseimas.
Ele permaneceu no mesmo lugar, olhando—a com hostilidade.
—Tenta me atrair?
Liana o olhou exasperada.
—Sim, tento—o, e isso o que tem de mau? É meu marido e faz semanas que não o vejo. Vem, me diga o que fez durante sua ausência e eu contarei o que achamos no fosso. Tirou de uma mesa um copo de prata, encheu—o de vinho, e aproximou de Rogam.
—Prova—o, vem da Espanha.
Rogam tomou o copo e bebeu, sem afastar o olhar dela, e observou surpreso a taça; o vinho era delicioso.
Liana pôs—se a rir.
—Trouxe comigo algumas receita e convenci seus cozinheiros de que as experimentassem. —Apoiou a mão sobre o braço de seu marido e brandamente começou a aproximá—lo do assento junto à janela. —Olhe, Rogam, poderia me ser muito útil, sua gente é tão obstinada... —era como falar com as pedras. —Veja, isto prova, é uma conserva de pêssego. E talvez o agrade este pão... não tem areia.
Antes de que Rogam soubesse o que estava fazendo, acomodou—se na brandura de um assento acolchoado e ingeria um manjar delicioso atrás de outro e perdia tempo escutando um montão de tolices frívolas a respeito da limpeza. É obvio, devia estar fora, treinando—se com seus homens, mas não se moveu.
—Quantas moedas de ouro? —perguntou.
—Encontramos seis moedas de ouro, doze de prata e mais de uma centena de cobre no fosso. Havia também oito cadáveres, e os enterramos. —Fez o sinal da cruz. —Olhe, está desconfortável, deite—se e apóia a cabeça em meu colo.
Rogam sabia que devia ir—se, ainda não perguntara a respeito da aposta, mas estava fatigado e o vinho o relaxava. Estendeu as pernas sobre o comprido assento e apoiou a cabeça no suave colo de Liana. A seda de sua saia roçava apenas a face de Rogam e acariciava as têmporas e os cabelos com as pontas dos dedos, suaves e dóceis. Quando Liana começou a cantarolar, ele fechou os olhos.
A jovem contemplou a seu belo marido dormindo em seu colo e sentiu desejos de que esse momento se prolongasse eternamente. Parecia muito mais jovem quando dormia, pois desaparecia o mau humor que prejudicava sua beleza e o peso de sua responsabilidade não gravitava tanto sobre seus largos ombros.
Dormiu pacificamente quase uma hora, até que Severn entrou na habitação com o ruído de vinte e cinco quilos de armadura.
Rogam, acostumado a uma reação instantânea, sentou—se sobressaltado.
—O que aconteceu? —perguntou e agora, outra vez, já não havia suavidade em sua fisionomia.
Severn olhou primeiro a seu irmão e depois a sua cunhada. Jamais o vira olhar a uma mulher antes da noite e muito menos apoiar sua cabeça no regaço da dama. Era surpreendente ver tanta brandura em seu duro irmão mais velho e de repente, Severn franziu o sobrecenho.
Estivera do lado de sua cunhada, mas em realidade a obstinação de Rogam determinava que frequentemente Severn adotasse a posição contrária quando discutia com seu irmão mais velho. Mas isto não lhe agradava, nem lhe agradava que esta mulher induzisse a Rogam a esquecer suas obrigações. Apenas umas horas antes este temera o momento de reencontrar sua esposa, depois de uma ausência de várias semanas. Severn se mostrara um tanto divertido ante esta atitude, mas possivelmente Rogam tinha motivos para temer o poder desta mulher. Era possível que ela o levasse a esquecer seus deveres? Sua honra? Ela procurava manter a paz com os camponeses; mas suas atitudes pacíficas, levavam—na a tentar que Rogam esquecesse a guerra dos Peregrine contra os Howard?
A Severn não agradava que seu irmão mais velho mudasse. Não queria ver suavizados seu áspero perfil. Uma coisa era jogar infantilmente com uma mulher e outra muito distinta descuidar das obrigações para deitar—se à tarde com ela.
—Não tinha ideia de que hoje era um dia sagrado, destinado ao prazer —disse sarcasticamente Severn. —Peço que me desculpem, deixarei que os homens se instruam sozinhos, sem minha presença, e irei julgar as disputas dos camponeses, uma vez que você está muito... atarefado.
—Vá treinar os homens —replicou asperamente Rogam. —Eu ditarei justiça, e se não quiser se ver mastigando essa língua que tem, mantenha quieta.
Severn voltou a tempo para dissimular um sorriso. Esse era seu irmão, o homem que grunhia e franzia o sobrecenho, o homem que o tratava como se ele fosse ainda um moço. Estava bem que a mulher mudadesse o castelo, mas a Severn não agradava que tentasse mudar Rogam; pensou com uma careta: Como se pudesse fazê—lo! Nada nem ninguém podia modificar Rogam.
Liana sentiu desejos de jogar algo a Severn, embora compreendeu o sentido de sua atitude, percebeu sua incredulidade em seus olhos quando viu Rogam dormido sobre seu colo. Parecia que todos conspiravam para evitar que houvesse a mínima doçura na vida de Rogam. Levantou uma mão e a apoiou sobre o ombro de seu marido.
—Talvez pudesse ajudá—lo a julgar, frequentemente colaborava com meu pai —disse.
Em realidade, depois da morte de sua mãe ela assumira a responsabilidade absoluta de solucionar as disputas dos camponeses porque seu pai não desejava que o incomodassem.
Rogam ficou imediatamente de pé e a olhou, hostil.
—Mulher, chega muito longe. Eu julgarei, eu repartirei justiça entre meus camponeses.
Ela ficou de pé.
—E até agora o tem feito muito bem, não é verdade? —disse irritada. – Matá—los de fome é sua ideia de justiça? Acredita que necessitam que lhes caia sobre a cabeça o teto de suas casas? Se dois homens vierem a você com uma diferença, o que faz? Enforca—os a ambos? Justiça! Não tem ideia do que a palavra significa. Somente sabe castigar.
Liana viu a cólera no rosto de Rogam e teve a certeza de que ele estava disposto a adicioná—la à extensa lista de pessoas a quem desejava destruir.
Oprimida pela fúria de Rogam quase retrocedeu, mas uma grande força de vontade a obrigou a manter—se firme.
De repente, mudou a expressão nos olhos de Rogam.
—E o que faria com um homem que roubou a vaca de outro? Convidaria—os a que se banhem juntos? Possivelmente lhes ordenaria que se limpassem as unhas duas vezes por dia, como castigo?
—Caramba, não, eu... começou a dizer Liana, e então compreendeu que ele estava zombando. Seus olhos faiscaram. —Obrigaria—os a suportar seu mau caráter um dia inteiro. Isso, e o aroma de seu corpo depois de várias semanas sem higiene, seria suficiente.
—Sim? —respondeu—lhe em voz baixa e avançou para ela. —Parece que não se importa meu mau aroma.
Aproximou—a de um braço e Liana estreitou seu corpo contra o de Rogam. Não, aparentemente não lhe importava seu aroma, seu mau caráter, sua hostilidade, ou seus desaparecimentos. Ele a beijou, a princípio brandamente, depois cada vez com mais intensidade, até que sentiu todo o peso de corpo de Liana contra o seu, tão robusto.
Rogam afastou sua boca dos lábios de Liana mas mesmo assim a reteve.
—E o que me exigirá durante minha escravidão? Passaremos todo o dia deitados? Plantará frente a mim coberta só com minha armadura e apresentará suas reclamações?
Liana abriu os olhos. Que ideia interessante, pensou, e quase respondeu afirmativamente a sugestão, mas conseguiu dominar sua sensualidade.
—Quero que se vista de camponês e vá comigo a uma feira.
Rogam piscou um momento, depois a soltou tão bruscamente que ela golpeou contra a parede.
—Jamais —disse, e seu rosto mostrou de novo uma expressão colérica. —Quer provocar minha morte, sim, é uma espiã. Os Howard...
—Malditos sejam os Howard! —gritou Liana. —Não me importam absolutamente. Só desejo que passe um dia comigo, os dois sozinhos. Sem guardas que nos vigiem, sem irmãos que lhe critiquem porque se atreve a passar uma hora com sua esposa. Quero um dia inteiro contigo vestida. Aqui é impossível porque não o deixam em paz, por isso peço que durante um dia deixe de ser lorde Rogam e compartilhe comigo umas horas no festival dos camponeses. – Acalmou—se um pouco e apoiou as mãos sobre os antebraços de Rogam. —Por favor —disse. —São pessoas humildes e seus prazeres são simples. Será um dia de baile, de bebida e comida. Acredito que se propõem representar uma obra. Não pode me dedicar um dia?
A face de Rogam não demonstrou quanto lhe atraía a proposta de Liana. Um dia dedicado à diversão...
—Não posso me apresentar desarmado ante os camponeses. Eles...
—Não o reconhecerão, além disso a metade dos habitantes da aldeia são filhos de seu pai... ou seus.
Disse isto com certa repulsão.
Rogam se sentiu impressionado ante a insolência de Liana. Deveria encerrá—la uns minutos depois de casamento.
—E acredita que tampouco a identificarão?
—Não sei como me disfarçarei. Usarei um emplastro sobre um olho. Os camponeses nunca imaginarão que o senhor e sua esposa estão com eles. Um dia, Rogam, por favor...
Inclinou—se para ele e Rogam cheirou a lavanda que se desprendia dos trajes de sua esposa.
Ouviu sua própria voz que dizia: —Sim. —E ele mesmo não pôde acreditar.
Liana jogou os braços em seu pescoço e o encheu de beijos. Não chegou a ver a expressão de assombro de Rogam, uma reação que pouco a pouco se suavizou. Durante um momento, um momento muito breve, ele também a abraçou e não era uma carícia sexual a não ser só uma manifestação de prazer.
Desprendeu—se imediatamente dela.
—Devo ir – murmurou, afastando—se um pouco. —E você fique aqui, não interfira no funcionamento de meu tribunal.
Ela tratou de parecer ofendida, mas se sentia muito feliz para obtê—lo.
—É obvio, não farei tal coisa, sou uma esposa boa e obediente, e submeto a meu marido em tudo. Só tento conseguir que minha vida seja mais agradável.
Rogam não sabia muito bem se ela estava zombando ou não; realmente, precisava frear tanta insolência.
—Devo ir —repetiu e quando lhe ofereceu a mão e Rogam descobriu que vacilava, quase fugiu da habitação. Enquanto descia depressa a escada pensou: Iria com ela à feira e depois a enviaria definitivamente a Bevan. E ordenaria que seus Dias retornassem, sim, faria isso. Esta esposa estava descontrolando—se completamente e interfirindo em sua vida.
Mas inclusive enquanto pensava em despachá—la, também contemplava a possibilidade de levar essa noite seu corpo ao dormitório.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 10

Liana contemplou o perfil de seu marido dormindo à luz do alvorecer e sorriu. Não devia lhe sorrir, mas o fazia. A noite precedente o esperara horas inteiras deitada, mas ele não apareceu. Finalmente, os lábios apertados, uma tocha na mão, ela foi buscá—lo no térreo.
Não precisou ir muito longe, estava no grande salão exatamente debaixo de seu dormitório, só com Severn, os dois total e absolutamente bêbados.
Severn levantou a cabeça da mesa e a olhou.
—Estávamos acostumados a nos embebedar —disse, com voz embolada. —Meu irmão e eu estávamos acostumados a estar sempre juntos, mas agora tem esposa.
—Mas ainda se embebedam juntos —disse ela com determinação. —Vamos —disse a seu marido. —Passe o braço sobre meus ombros, e vamos para a cama.
—As esposas mudam as coisas —resmungou detrás a voz de Severn.
Liana teve que apelar para todas as suas forças para ajudá—lo a subir a escada.
—Seu irmão necessita de uma esposa —disse a Rogam. —Talvez nos deixe em paz se tiver sua própria mulher.
—Terá que ser uma com muito dinheiro —disse Rogam, enquanto descarregava todo seu peso sobre Liana e concentrava a atenção na íngrime e estreita escada em espiral. —Muitíssimo dinheiro e muitíssimo cabelo.
Liana sorriu ao ouvir isto e abriu a porta do dormitório. Rogam avançou cambaleando até a cama e dormiu instantaneamente. Ela pensou: Lá se foi a noite consagrada ao amor e se aconchegou contra o sujo corpo de Rogam. Sim, ele tinha razão. Aparentemente não lhe importava absolutamente o fedor que despedia Rogam.
Todavia, no início da manhã e sorrindo para ele que ainda dormia, ela se sentiu alegre e feliz, porque era o dia que ambos passariam juntos. Durante um dia inteiro lhe pertencia.
—Minha senhora? —ouviu a voz de Joice através da porta.
—Sim —respondeu Liana e a empregada entrou, evitando que a porta rangesse.
Joice jogou uma olhada a Rogam e franziu o sobrecenho.
—Não estão prontos? —Os outros se levantarão em um momento mais e verão vocês.
Sua voz expressava toda a desaprovação provocada pelo plano de sua ama.
—Rogam —disse Liana, inclinando—se sobre seu marido e murmurando brandamente ao ouvido: —Rogam, meu amor, tem que despertar, hoje é a feira.
Ele levantou a mão e tocou a bochecha de Liana.
—Ah, Quinta—feira —murmurou. —Hoje é seu dia.
—Quinta—feira! —exclamou ela, e descarregou um golpe nas costelas de Rogam. —Acorda, montão de esterco bêbado. Sou sua esposa, não uma de suas mulheres.
Rogam levou uma mão ao ouvido e voltou—se pestanejando para olhá—la.
—Por que grita? Aconteceu algo?
—Acaba de me chamar com o nome de outra mulher. —Quando ele a olhou inexpressivo, porque não tinha ideia do que a incomodava, Liana suspirou. —Tem que se levantar, hoje é a feira.
—Que feira?
—Homens! —protestou Liana entre dentes. —A feira aonde prometeu me levar. Recorda a aposta? Tenho roupas preparada de camponeses e devemos sair do castelo tão logo se abram as portas. Minha donzela se trancará neste quarto o dia inteiro, eu dei a entender que o que desejo de você é um dia na cama, ninguém saberá que nos fomos.
Rogam se sentou.
—Tomou muitas atribuições —disse, franzindo o sobrecenho. —Meus homens devem saber sempre onde estou.
—Se souberem, falarão do assunto e todos os camponeses saberão quem é. Arrepende—se de ter dado sua palavra?
Rogam pensou que as mulheres que falavam de honra e de cumprir a palavra empenhada pertenciam à mesma categoria que os porcos com asas. Não deviam existir e se existiam eram uma condenada moléstia, porque não aceitavam permanecer em suas pocilgas.
Liana se inclinou para ele e seus formosos cabelos se derramaram sobre os braços de Rogam.
—Um dia de prazer —disse em voz baixa —não faremos outra coisa que comer, beber e dançar. Não terá que se preocupar com os guerreiros, não terá que se preocupar com nada. —Sorriu, como respondendo a uma inspiração. —E você poderá escutar se os camponeses sabem algo das atividades dos Howard.
Rogam refletiu a respeito disto.
—Onde estão as roupas?
Uma vez que ele se decidiu, Liana pôde induzi—lo a atuar com rapidez. Quando estivam vestidos, ela teve a certeza de que ninguém os identificaria... sempre que Rogam recordasse que devia afundar os ombros e manter a cabeça levemente inclinada, os camponeses não caminhavam como o fazia o senhor do lugar.
Saíram do dormitório e chegaram à entrada no momento em que os homens de Rogam estavam levantando o restelo. Ninguém os olhou e quando já estavam cruzando a ponte levadiça, sobre o fosso vazio, Rogam se deteve.
—Onde estão os cavalos? —perguntou.
—Os camponeses não montam cavalos, caminham.
Rogam franziu o sobrecenho. Permaneceu de pé ali, imóvel.
O primeiro pensamento de Liana foi lhe recordar que ele estava acostumado a caminhar com Jeanne Howard, mas se dominou.
—Vamos —chamou. —Perderemos a peça teatral se não nos apressarmos. Ou talvez possa comprar esse burro velho que está ali. Imagino que por umas poucas moedas.
—Não é necessário gastar dinheiro, posso caminhar tanto como um homem qualquer.
Caminharam os seis quilômetros que os separavam da aldeia; ao redor deles havia muita gente: forasteiros que chegavam para vender mercadorias, viajantes, parentes de outros lugares. Quando já se aproximavam da aldeia, Liana notou que Rogam começava a tranquilizar—se. Seu olhar ainda era cauteloso, pois era soldado e observava com suspeita às pessoas, mas como parecia que todos riam e aguardava atentos os acontecimentos do dia, parte de sua desconfiança se dissipou.
—Olhe isso —disse Liana, assinalando os estandartes que ondulavam no extremo superior das tendas levantadas pelos mercadores visitantes. —O que tomaremos no café da manhã?
—Deveríamos ter comido antes de sair —disse solenemente Rogam.
Liana esboçou uma careta e abrigou a esperança de que ele não a obrigaria a passar o dia inteiro sem comer para economizar umas poucas moedas. Organizou—se a feira em um campo deserto, frente às muralhas da aldeia.
—Este campo jamais voltará a produzir grão —resmungou Rogam. —Sobre tudo depois que toda esta gente o pisoteou.
Liana chiou os dentes e perguntou—se se definitivamente levar Rogam à feira fora uma idéia tão brilhante. Se ele dedicava todo dia a observar o que os camponeses faziam mal, depois teria muitas coisas pelas quais castigá—los.
—A peça teatral! —exclamou, Liana assinalando um grande cenário de madeira elevado em um extremo do campo. —Alguns atores vieram de Londres e toda a aldeia esteve trabalhando nisto a semana passada. Vamos, porque se nos atrasarmos não teremos assento.
Liana tomou a mão de Rogam e começou a arrastá—lo, levando—o até um dos bancos, no centro do público. Perto, uma mulher com uma cesta de verduras podres, que jogaria nos atores se não lhe agradasse o que faziam.
Liana fez gestos a Rogam para que olhasse as verduras.
—Poderíamos ter trazido algumas.
—Isso significa esbanjar a comida —grunhiu Rogam e Liana se perguntou outra vez se fora boa sua ideia.
Havia um pano de fundo remendado e sujo sobre o cenário e agora um homem vestido com roupas de arlequim, uma perna vermelha e a outra negra, o braço do lado oposto vermelho, e o outro negro, com uma túnica com iguais cores, saiu para anunciar que o nome da peça era A domesticação de lorde Abutre.
Por alguma razão, este anúncio provocou alegres gargalhadas das pessoas que estavam ao redor de Rogam e Liana.
—Imagino que é uma comédia —disse Liana, e adicionou, vendo a expressão severa de Rogam: —Oxalá seja uma comédia.
Retirou—se o pano de fundo e revelou uma cena sombria: havia várias árvores nuas em vasos de barro cobrindo o fundo e em primeiro plano um feio velho de cócoras sobre um montão de palha tingida de vermelho para que parecesse fogo. Sustentava sobre a palha uma vara da qual penduravam três ratos.
—Vamos, filha, o jantar está quase pronto —gritou o homem.
Atrás do pano de fundo apareceu à direita uma mulher —ou o que parecia sê—lo. Voltou—se para o público, mas em realidade era um homem horrível. O público gritou. Nos braços da suposta mulher havia uma grosa boneca de palha e quando a mulher se inclinou para depositar o "menino" e levantou—se, o público viu que tinha um busto enorme, tão enorme que seu peso a obrigava a dobrar o corpo. Olhou os ratos.
—Pai, parecem deliciosos. —disse com voz aguda e ficou de cócoras em frente ao velho.
Liana sorriu a Rogam e viu que ele mal prestava atenção à peça, olhava às pessoas que estava ao redor, como se tentasse descobrir inimigos.
Pela esquerda do cenário chegou outro ator, um homem alto, o tronco erguido, a cabeça bem alta, uma peruca de lã vermelha e sobre seu nariz um bico de papel parecido ao de um falcão.
—O que fazem vocês aqui? —perguntou o ator alto. —Sou lorde Abutre e vocês estão comendo meu gado.
—Mas, meu senhor —gemeu o pai —são só ratos.
—Mas são meus ratos —disse arrogante lorde Abutre.
Liana começou a sentir—se um pouco nervosa, esta peça não seria uma paródia de Rogam, seria?
Em cena, lorde Abutre agarrou pelo pescoço o velho e o obrigou a aproximar o rosto ao fogo de palha.
—Não, meu senhor. —exclamou a horrível filha que se levantou, enquanto a puída capa caía de seu abundante busto.
—Aha! —disse lorde Abutre com um gesto sensual. —Vem aqui, beleza.
A referência ao homem vestido de mulher qualificando—o de beleza provocou risadas do público.
A filha retrocedeu um passo, enquanto lorde Abutre se aproximava dela. Ele descarregou um chute sobre o menino de palha enviando—o pelo ar através do cenário.
Então lorde Abutre abriu sua larga capa. Pendurado da cintura e amarrado às pernas apareceu uma genitália enorme. Era de palha acolchoada, de quarenta e cinco centímetros de longitude e vinte de grossura e debaixo penduravam duas enormes cabaças redondas.
Liana sentiu uma profunda tristeza.
—Saiamos —disse a Rogam, quase gritando, porque o público gritava de risada.
Mas agora os olhos de Rogam estavam fixos na cena. Apertou uma mão sobre o ombro de Liana e obrigou—a a permanecer em seu lugar. Ela não teve mais alternativa que continuar olhando.
Em cena, lorde Abutre, com a capa aberta, atravessou o cenário atrás da mulher feia, até que ambos desapareceram. Instantaneamente, um dos filhos ruivos de Rogam apresentou—se ante o público e fez uma reverência, era sem dúvida o produto da união de lorde Abutre com a mulher.
Pela esquerda do cenário apareceu uma anciã trazendo um vulto escuro, que depositou no centro, não longe de onde o pai permanecia sobre o fogo de palha.
—Agora, filha, finalmente poderemos nos esquentar —disse, e pela direita apareceu outro homem muito feio vestido de mulher. Só que este homem se sobressaía por detrás e não por diante: tinha um traseiro acolchoado que poderia usar—se como uma prateleira e um peito absolutamente liso.
Enquanto a plateia observava isto, outro dos filhos ruivos de Rogam atravessou correndo a cena e o público rompeu a rir novamente.
Liana não se atrevia a olhar Rogam, era provável que no dia seguinte ordenasse arrasar a aldeia e esquartejar seus habitantes.
Em cena, enquanto a mãe e sua filha de volumoso traseiro esquentavam as mãos sobre a pilha de carvão, lorde Abutre reapareceu, seu bico de papel parecia ainda maior.
—Estão roubando meu combustível —gritou lorde Abutre.
—Mas não é mais que esterco de vaca —gemeu a anciã. —Estamos nos congelando.
—Querem fogo, darei—lhes fogo —disse lorde Abutre. Capturem—na e queimem—na.
Pela esquerda apareceram dois homens, brutos, corpulentos de feroz aspecto, com cicatrizes pintadas nas caras, de maneira que pareciam mais monstros que homens. Agarraram pelos braços a anciã enquanto ela gemia e gritava, arrastaram—na até o fundo da cena, ataram—na ali a uma das árvores e depositaram a seus pés molhos de palha tingidos de vermelho.
Enquanto isso, lorde Abutre olhava a filha.
—Ah, vem comigo, formosa —disse.
O homem muito feio que representava a filha voltou—se para o público, e pôs uma cara tão horrível —adiantou o lábio inferior para tocar a ponta do nariz —que inclusive Liana teve que rir. De novo lorde Abutre retirou sua capa para revelar a grotesca genitália e perseguiu a "moça" e ambos saíram da cena, enquanto detrás a mãe gritava. Dois meninos ruivos entraram correndo, um a cada lado do cenário e se chocaram no centro.
—Do lugar de onde viemos há mais —anunciou alegremente ao público um dos meninos.
Liana se preparava para insistir a Rogam que saíssem, quando sofreu uma emoção ainda mais intensa. Pela esquerda saiu uma jovem muito bonita vestindo uma larga túnica branca, com uma peruca loira e tranças que lhe chegavam até os pés. Liana compreendeu que esta atriz representava a ela mesma. E como a retratariam esses cruéis seres?
Pela direita apareceram lorde Abutre e um homem vestido de sacerdote. Este iniciou a cerimônia do matrimônio: lorde Abutre, sem dúvida aborrecido, nem sequer olhava a bonita jovem de branco. Em troca, representava para o público, enviava beijos às moças, piscava os olhos e de vez em quando abria a capa para mostrar o que tinha. A moça de branco mantinha inclinada a cabeça e as mãos unidas.
Quando o sacerdote os declarou casados, lorde Abutre agarrou os ombros da moça, elevou—a e começou a sacudi—la. Das roupas da jovem caíram moedas, e os homens de lorde Abutre correram para ajudar e apressaram—se a recolhê—las. Quando já não desprendeu mais dinheiro da dama de branco, ele a depositou no chão, deu—lhe as costas e saiu gracioso da cena, sempre paquerando com o público e abrindo e fechando a capa. A dama caminhou para o fundo da cena com a cabeça inclinada.
Imediatamente entrou um homem conduzindo uma vaca. Lorde Abutre se reuniu com ele no centro da cena.
—O que é isto? —perguntou lorde Abutre.
—Meu senhor —disse o homem —esta vaca comeu suas verduras.
Lorde Abutre deu umas palmadinhas na cabeça da vaca.
—As vacas precisam comer. —Começou a afastar—se, mas depois se voltou e olhou desconfiado ao homem. —E você, comeu alguma de minhas verduras?
—Comi um pedacinho de nabo que caiu da boca da vaca —disse o homem.
—Enforquem—no! —ordenou lorde Abutre e seus ferozes cavalheiros entraram correndo.
O homem se ajoelhou.
—Mas, meu senhor, tenho que alimentar seis meninos. Por favor, tenha piedade.
Lorde Abutre olhou seus homens.
—Pendurem a toda a família, haverá menos bocas para alimentar.
Os cavalheiros arrastaram o homem até o fundo da cena e puseram uma corda em seu pescoço. O camponês permaneceu de pé junto ao homem queimado pelo fogo, à velha amarrada à fogueria e à dama de branco. Esta olhou a essa gente e meneou com tristeza a cabeça.
De repente, entraram duas jovens bonitas e gordinhas a quem Liana identificou como dois dos Dias. O público, e sobre tudo os homens, aplaudiu e assobiou e os Dias se estiraram, inclinaram e fizeram todo o possível para exibir seus voluptuosos corpos. Liana olhou de esguelha para Rogam: estava sentado, imóvel como uma estátua, os olhos e a atenção concentrados na cena.
Respondendo ao instinto, ela estendeu a mão e tomou entre as suas a de Rogam e notou surpresa que ele aceitava o gesto.
Voltou os olhos para a representação; lorde Abutre retornou à cena, deteve—se ao ver os Dias e saltou sobre elas, abrindo sua capa. Os três caíram ao piso formando um monte confuso.
Ao ver isto a dama de branco recuperou vida. Não lhe tinha importado que seu marido a ignorasse durante as bodas, despojasse—a das moedas ou enforcasse um homem por comer um pedaço de nabo cuspido por uma vaca, mas sim importou—lhe o episódio com as outras mulheres.
Rasgou—se o vestido branco e mostrou que debaixo levava outro vermelho. Detrás de um vaso de barro com uma árvore sem folhas achou um toucado, também vermelho, ao qual estavam aderidas altas chamas de papel e o pôs sobre a cabeça, cobrindo a peruca loira.
—A Dama do Fogo! —gritou satisfeiro o público.
A Dama do Fogo, com seu vestido vermelho, tomou molhos de palha tingida de vermelho dos pés da anciã atada à árvore e começou a jogá—los às três pessoas grotescas no centro da cena. Os Dias se levantaram de um salto, gritando e atuando como se estivessem apagando o fogo de suas roupas e seus cabelos, e fugiram imediatamente.
A Dama do Fogo olhou lorde Abutre e de seu bolso extraiu uma coleira grande, das que usam para sujeitar um cão bravo. Assegurou—a ao pescoço de lorde Abutre, agarrou uma correia e levou o homem para fora da cena.
O público gritou, apaludiu, saltou sobre os bancos, dançou e em cena todos os mortos recuperaram vida. Apareceram seis filhos de Rogam e jogaram redes adornadas com flores sobre as árvores mortas, de modo que parecia que inclusive estas retornavam à vida. As pessoas em cena começaram a cantar, saíram todos os atores e a Dama de Fogo sujeitava lorde Abutre, que caminhava em quatro patas. Ele tratou de abrir a capa para mostrar—se ao público, mas a Dama de Fogo lhe atirou um golpe na cabeça e ele voltou a tranquilizar—se.
Finalmente caiu o pano de fundo e quando o público cessou de aplaudir e rir, começou a levantar—se dos bancos.
Rogam e Liana permaneceram sentados, nenhum dos dois se moveu, as mãos unidas sobre um joelho de Rogam.
—Realmente agora me parece que os camponeses não são tão simples —conseguiu dizer Liana.
Rogam se voltou para olhá—la e seus olhos lhe disseram que esse comentário, na verdade, era extremamente moderado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 11

O público, ao levantar—se saiu dos bancos, ria, uns aplaudindo as costas de outros, e recordando diferentes cenas da peça.
—Viu quando ... ?
—Agradou—me a parte em que...
Liana e Rogam permaneceram sentados no mesmo lugar, as mãos unidas, até que a última pessoa se retirou.
Gradualmente, à medida que conseguiu dominar a emoção, Liana sentiu que a dominava a cólera. Durante as últimas semanas desafiara a fúria de seu marido por esta gente, fatigou—se tratando de que estivessem alimentados e vestidos e agora lhe pagavam com esta... esta farsa que a ridicularizava.
Agarrou a mão de Rogam.
—Voltaremos a procurar seus homens —disse, incapaz de dominar sua irritação. —Veremos se esta gente é tão ingrata depois que seus homens acabem com ela, acreditam que conhecem a cólera dos Peregrine, mas não viram nada.
Rogam não respondeu e quando ela o olhou não parecia irritado, mas sim bem pensativo.
—Bem? —disse Liana. —Não queria vir e tinha razão. Retornaremos e...
—Quem representou o papel de lorde Abutre? —perguntou Rogam, interrompendo—a.
—Pareceu—me que era um dos filhos de seu pai —replicou secamente Liana. —Devo retornar sozinha?
Ficou de pé e tratou de passar a frente de Rogam, mas ele apertou sua mão e não lhe permitiu caminhar.
—Tenho fome —disse Rogam. Acredita que por aqui venderão comida?
Liana o olhou assombrada. Um momento antes ele se negou a gastar os poucos centavos necessários para comprar mantimentos.
—A peça teatral não o irritou?
Ele encolheu os ombros, como se não se importasse, mas havia algo mais profundo em seus olhos... algo que Liana quis descobrir.
—Jamais matei ninguém porque comesse meus ratos —disse com um tom um tanto desafiante. —Podem apoderar—se de todos os ratos que desejem.
—E o que me diz do emprego do esterco de suas vacas como combustível? —perguntou ela em voz baixa. Estava de pé entre as musculosas pernas de Rogam e ele continuava lhe sustentando a mão. Por certa razão, esse modo de sujeitá—la era algo mais íntimo que as primeiras vezes que se uniram no leito. Rogam dizia que a peça não lhe incomodava, mas o modo de reter Liana oferecia outra imagem do assunto.
—Nunca matei ninguém por isso —disse, o olhar perdido ao longe, —mas sim, o esterco fertiliza os campos.
—Entendo —disse Liana. —Tampouco chicotadas?
Rogam não respondeu, mas pareceu que lhe avermelhava a escura pele. Nesse momento ela experimentou um impulso muito maternal frente a ele. Não era um homem perverso, que gozasse matando ou vendo sofrer a outros; tratara de proteger sua família e de fornecer—lhes as coisas necessárias da melhor maneira possível.
—Tenho muita fome —disse ela, sorrindo a Rogam, —e vi uma barraca repleta de pão—doce de nata. Possivelmente alguns e um pouco de soro de manteiga reanimará os dois.
Ele aceitou que Liana o guiasse, esta desejava vivamente saber o que pensava seu marido. Quando Rogam deslizou a mão sob a grosseira camisa de lã de seu disfarce de camponês, retirou uma bolsa de couro e deu algumas moedas ao vendedor de pão—doce, Liana se sentiu mais alegre. É obvio, não podia estar segura, mas duvidava de que antes ele tivesse gasto dinheiro com uma mulher.
Rogam pagou um jarro de soro de manteiga e os dois compartilharam o conteúdo enquanto o vendedor esperava a devolução do recipiente de madeira.
Agora que satisfizera seu apetite, Liana pôde pensar com menos raiva sobre a peça teatral. Em realidade, ao rememorá—la, pareceu—lhe quase humorística. Ela jamais acreditou que os camponeses podiam ser tão atrevidos... ou tão sinceros.
Olhou o interior do jarro de madeira e tratou de evitar um sorriso.
—É possível que se equivocassem em relação aos ratos, mas acertaram no que tem que ver com certos atributos físicos do senhor —disse.
Rogam a ouviu, e a princípio não entendeu o que ela queria lhe dizer. E então recordou a genitália de palha ofensivamente exagerada de lorde Abutre e começou a sentir que lhe avermelhava o rosto.
—Tem uma língua muito afiada —disse, com o propósito de repreender a mulher.
—Se me lembro bem, minha língua o agradou.
—As mulheres não devem falar dessas coisas —disse ele severamente, mas seu olhar o traiu.
Pelo modo que ele a observava, Liana compreendeu que tinha despertado seu interesse.
—Seriamente se deitou com mulheres feias? Feias mas proeminentes adiante ou detrás?
Pareceu que ele estava disposto a repreendê—la outra vez, mas em lugar disso seu olhar se suavizou.
—Seu pai devia ter lhe ensinados algumas boas maneiras. Bem —disse, tirando das mãos de Liana o jarro vazio —se tiver acabado de me empobrecer com seu desmesurado apetite vamos ver esses jogos.
As brincadeiras de Liana o tinham divertido e se ele se sentisse satisfeito determinava que ela estivesse satisfeita. Enquanto caminhavam, Liana uniu sua mão a de Rogam e ele não a rechaçou.
—Voltarão a ser como antes? —perguntou Rogam, olhando à frente enquanto caminhavam.
Ela não tinha idéia do que ele queria dizer.
—Seus cabelos —disse Rogam.
Liana lhe apertou a mão e riu com vontade. Joice lhe havia tingido de negro os cabelos loiros e as sobrancelhas, de maneira que os camponeses não identificassem sua cabeleira tão peculiar. Agora não podiam ver—se muito sob o tosco tecido assegurado às tranças.
—A tintura desaparecerá com as lavagens —disse Liana, olhando Rogam. —Talvez você me ajude a lavá—lo.
Ele a olhou e em seus olhos se lia desejo.
—Possivelmente —disse.
Continuaram caminhando sem dizer uma palavra, as mãos unidas e Liana se sentiu muito alegre.
Rogam se deteve na periferia de um grupo de pessoas. Podia ver por cima das cabeças dos espectadores, mas Liana não estava em condições de fazer o mesmo. Ficou nas pontas dos pés, depois de cócoras, mas não conseguiu ver através das pessoas e puxou a manga de Rogam.
—Não posso ver —disse, quando ele a olhou. Liana teve uma visão romântica: ele a elevara sobre seus ombros e a sustentara; e comportando—se como se fosse o dono do lugar, o que em efeito era, abriu caminho através das pessoas até o fronte.
—Não atraia a atenção sobre nós —sussurrou ela, mas Rogam não lhe prestou atenção. Liana dirigiu descoloridos sorrisos de desculpa ao público que os rodeava, enquanto caminhava arrastada por Rogam.
Todos olhavam com curiosidade Rogam e sobre tudo prestavam atenção a seus cabelos, que sobressaíam sob o capuz de lã. Liana começou a experimentar um temor intenso, se essas pessoas, que odiavam tanto os Peregrine, descobrissem que o amo estava sozinho e desprotegido no meio do povo, sem dúvida o assassinariam.
—Outro dos bastardos do velho amo —ouviu murmurar um homem que estava perto. —A este nunca o vira.
Liana começou a soltar—se e por uma vez agradeceu a fertilidade dos Peregrine. Sempre agarrando a mão de Rogam, olhou o mesmo que ele, o espetáculo: Sobre um espaço plano e coberto de pasto, em meio de um amplo círculo, havia dois homens, ambos nus até a cintura, combatendo com largas varas de madeira que sustentavam com as duas mãos. Um deles de baixa estatura, corpo musculoso e braços curtos parecia guarda florestal ou lenhador. Tinha um aspecto muito vulgar.
Os olhos de Liana se cravaram no outro homem – com o mesmo olhar de todas as mulheres que estavam ali. Era o mesmo que representou o papel de lorde Abutre. Tinha mostrado uma figura charmosa em cena, mas agora, meio nu, a pele reluzente de suor, parecia um magnífico homem.
Não tão esplêndido como Rogam, disse—se Liana, e aproximou—se mais de seu marido. Este observava atentamente o combate, interessado no modo em que desempenhava este homem, um de seus meio—irmãos. É obvio, seus movimentos eram grosseiros e revelavam falta de adestramento; mas era rápido. O pequeno lenhador não estava a sua altura. Rogam afastou sua atenção do combate quando sua esposa se aproximou mais, voltando os olhos para ela, que estava observando seu meio—irmão com um interesse muito vivo, e Rogam começou a franzir o sobrecenho. Parecia que ela considerava desejável esse meio—Peregrine.
Rogam nunca havia sentido antes a picada do ciúme, compartilhava os Dias ou qualquer de suas mulheres com seus irmãos e seus homens. Enquanto não o incomodassem, não lhe importava o que faziam elas. Mas neste momento não lhe agradava o modo que sua esposa olhava esse indivíduo fracote, débil, torpe, incompetente, ruivo.
—Acredita que pode derrotá—lo? —disse um velho desdentado que estava ao lado de Rogam.
Rogam olhou altivamente ao ancião.
O homem emitiu uma risada áspera, e seu mau hálito impregnou o ar.
—Como todos os Peregrine —disse em voz alta —o antigo amo legou sua arrogância aos filhos.
O meio—irmão Peregrine que estava combatendo olhou o velho, a Rogam e surpreso afastou os olhos de seu adversário. O lenhador golpeou o jovem na cabeça. Este retrocedeu, levou a mão à têmpora e olhou o sangue que lhe manchava os dedos e com uma expressão de desgosto no rosto e com três fortes golpes enviou o lenhador ao chão.
Imediatamente se plantou frente a Rogam, que o olhava.
Liana observou que os dois homens tinham mais ou menos a mesma idade, mas Rogam era mais corpulento e para ela muito, muitíssimo mais bonito. Uma jovem que estava perto deixou escapar um suspirou de desejo. Liana agarrou com força a mão de Rogam e se aproximou ainda mais do corpo de seu marido.
—Bem, tenho outro irmão —disse o jovem.
Liana se disse que seu olhar era tão penetrante como o de Rogam, e algo nesses olhos lhe confirmou que o moço sabia quem era Rogam.
—Não... —começou a dizer Liana.
—Combatemos ou não frente às pessoas? —foi o desafio do jovem. —Ou o governa uma mulher? —Baixou a voz. —Como acontece a lorde Rogam?
Liana sentiu que lhe oprimia o coração, pois sabia que Rogam não poderia fugir do desafio. Os dois ignoraram cortesmente a última cena da peça, em que a Dama de Fogo sujeitava lorde Abutre, mas Liana sabia que Rogam tinha absoluta consciência do sentido da cena. Não permitiria que o insultasse duas vezes no mesmo dia.
Rogam lhe soltou a mão e entrou no círculo. Liana sabia que não podia fazer ou dizer nada sem pôr em risco a vida dos dois. Conteve a respiração, vendo os dois opositores mover—se simultaneamente no centro, um em frente ao outro. Eram muito parecidos: os mesmos cabelos, iguais olhos, queixo firme e decidido.
Rogam olhou a vara depositada no chão e, para horror de Liana, tirou—se o capuz que dissimulava seus traços e arrancou a camisa. Houve um momento de prazer quando ele jogou os trajes a Liana e ela os recebeu; mas então o temor de Liana se reavivou. Não duvidava de que agora alguém o reconheceria; não lhe agradava pensar em quem o identificaria, pois podia ser uma das mulheres com as quais se deitou, ou todas.
—A metade da aldeia —murmurou para si mesma.
Passeou o olhar pela multidão e viu dois dos Dias de pé, do lado oposto do círculo. As caras das mulheres revelavam desconcerto, mas Liana não duvidava de que logo elas saberiam que era Rogam.
Com movimentos rápidos começou a aproximar—se das mulheres.
—Se uma de vocês diz uma palavra, arrependerá —disse, quando chegou a elas. Uma dos Dias se assustou, a expressão de seu rosto revelava medo; mas a outra era mais audaz e inteligente, e percebeu o perigo que corriam Liana e Rogam.
—Quero que meu filho seja educado como um cavalheiro —disse a mulher.
Liana abriu a boca para rechaçar essa reclamação ofensiva e temerária, mas a fechou.
—Ocupará de que ninguém mais saiba —disse a sua vez.
A mulher olhou a Liana aos olhos.
—Direi às pessoas que vem de uma aldeia do sul e que eu o conhecia. E meu filho?
Liana não pôde deixar de admirar esta mulher que se arriscava tanto por seu filho.
—Seus filhos serão educados e treinados, envia—me amanhã.
Separou—se delas e voltou para o lugar que ocupava anteriormente.
Rogam e seu meio—irmão descreviam círculos um ao redor do outro, as largas varas sustentadas horizontalmente nas mãos. Eram homens imponentes, ambos jovens e fortes, de largas costas, quadris estreitos, os músculos bem formados.
Mas não se necessitava muita inteligência para compreender quem era melhor lutador. Era evidente que Rogam estava provando a seu meio—irmão, jogando com ele para descobrir o que sabia fazer, e em troca este, o olhar colérico, combatia com tudo o que tinha a seu alcance. O irmão atacou, Rogam se esquivou facilmente e com um rápido movimento descarregou a vara sobre a cavidade dos joelhos de seu opositor.
—Está acostumado a combater unicamente com mulheres? —provocou—o Rogam.
A cólera estava dominando o outro e o induzia a cometer enganos estúpidos.
—Antes ninguém derrotou Baudoin —disse o velho desdentado que estava ao lado de Liana. —Não lhe agradará ser vencido.
—Baudoin —disse em voz alta Liana, franzindo o sobrecenho. Não parecia boa ideia que Rogam o convertesse em inimigo como estava fazendo. Este passara a maior parte de sua vida treinando—se com varas e espadas e em troca o adversário sem dúvida passava quase todo seu tempo detrás de um arado.
Depois de um momento, foi evidente para todos os que observavam que Rogam começava a cansar—se deste jogo que não lhe exigia muito. Deteve—se frente a seu irmão, a vara em uma mão sustentando—a por um extremo e... o braço estendido.
Era uma atitude insultante e a simpatia de Liana foi para Baudoin, a quem se humilhava assim.
Os olhos deste se escureceram de ira e jogou—se sobre Rogam, no rosto uma expressão assassina. A multidão afogou uma exclamação.
Quase sem olhá—lo, Rogam deu um passo ao lado e descarregou sua vara sobre a nuca de Baudoin. O jovem caiu de barriga para baixo, inconsciente sobre o lodo e o pasto.
Sem lhe dirigir um só olhar de preocupação Rogam passou sobre o corpo inerte e aproximou—se de Liana, recebeu dela suas roupas e vestiu—se. Abriu caminho entre as pessoas sem olhar para Liana, mas sem dúvida esperando que ela o seguisse. Não fez caso de como os camponeses o rodeavam, aplaudiam—lhe as costas e felicitavam—no, convidando—o a beber com eles.
Rogam se sentia muito orgulhoso de si mesmo. Venceu o homem que provocava os olhares de desejo de sua esposa e demonstrou quem era o melhor e além disso estava orgulhoso da forma como fizera. Agora, ela não duvidaria de quem era superior. Poderia derrotar esse meio—irmão excessivamente crédulo em si mesmo com uma mão atada à costas.
Muito consciente de que Liana estava seguindo—o, dirigiu—se ao bosque. Desejava encontrar—se só com ela quando lhe demonstrasse como estava satisfeita com ele. Certa vez, depois de impor—se em um torneio, duas damas jovens foram a sua tenda para felicitá—lo. E essa foi uma noite para recordar!
Mas agora, tudo o que precisava era o elogio de sua esposa. Possivelmente o beijasse como fizera quando Rogam disse que iria com ela à feira. Continuou caminhando até que esteve na profundidade do bosque, voltou—se e olhou—a.
Não jogou os braços ao pescoço nem lhe dirigiu um desses sorrisos que ele recordava satisfeito: um sorriso que evocava em sua lembrança o prazer, a doçura e a risada.
—Venci —disse Rogam, os olhos brilhantes.
—Sim, venceu —confirmou Liana com voz neutra.
Ele não compreendeu o tom de Liana, era como se estivesse encolerizada com ele.
—Venci esse homem com bastante facilidade.
—Oh, sim, para você foi muito fácil. Foi fácil humilhá—lo, obter que as pessoas rissem dele.
Rogam não a entendia e não tentou fazê—lo. Desta vez sua mulher chegara muito longe. Preparou a mão para golpeá—la.
—Agora me castigará? Castigará outros que são mais fracos que você? A todos seus parentes? A mim, que sou sua esposa, e a seus irmãos. Por que não captura seus filhos, e os ata às árvores e os castiga?
Rogam se convenceu que esta mulher estava louca e suas e palavras necessitavam de sentido. Baixou a mão, voltou—se e começou a retornar à aldeia.
Liana o impediu a avançar.
—Em que estava pensando quando castigava tão cruelmente o moço? Conseguiu que passasse por tolo.
Neste momento, o temperamento de Rogam se manifestou. Agarrou—a pelos ombros e gritou.
—Desagradou—a ver que passasse por tolo? Preferia que eu fosse o derrotado? Teria lhe satisfeito que ele apoiasse a cabeça em seu regaço?
Afastou as mãos dos ombros de Liana, revelara muito do que sentia e começou a afastar—se.
Liana permaneceu de pé um momento, os olhos fixos no chão enquanto refletia o que Rogam havia dito. Lentamente compreendeu o sentido de suas palavras e teve que correr para alcançá—lo. Plantou—se frente a ele.
—Estava com ciúme —disse, e enquanto o olhava em sua voz se manifestava assombro.
Ele não respondeu e esquivando—se continuou caminhando.
Ela voltou a plantar—se frente a ele e apoiou as mãos sobre o peito de Rogam.
—Realmente golpeou esse moço só para me impressionar?
Rogam olhou ao longe, sobre a cabeça de Liana.
—Desejava provar sua força e sua velocidade e depois o assunto não me interessou. —Olhou a Liana e desviou os olhos. —Não é um moço, tem minha idade, ou possivelmente um pouco mais.
Liana começou a sorrir. Não lhe agradava o que ele fizera a seu meio—irmão, mas que agradável era pensar que seu marido estava com ciúme por causa do modo com que ela olhara outro homem.
—Pode ter sua mesma idade, mas não é tão forte como você, nem tão hábil, nem tão bonito.
—Estive muito longe de meus homens, é necessário que retornemos ao castelo.
Tinha o corpo rígido.
—Mas a aposta foi que você seria meu escravo por um dia inteiro —disse Liana, que não pôde evitar um leve gemido. – Vem, sentaremos no bosque, não precisamos retornar à feira.
Rogam se encontrou seguindo—a. Ela sabia como fazer para obter que esquecesse seu dever e responsabilidades. Desde que se casara com ela, Rogam descuidara de seu trabalho mais que durante toda sua vida.
—Vem, sente—se aqui, a meu lado —disse, indicando um lugar coberto de pasto e semeado de flores, junto a um riacho.
Pela expressão de Rogam, Liana compreendeu que ele ainda estava zangado e começou a sorrir, quando um movimento entre as árvores que estavam detrás atraiu sua atenção.
—Cuidado! —conseguiu gritar.
Rogam se afastou instintivamente e assim evitou a navalhada que estava dirigida a suas costas.
Liana permaneceu cravada no lugar, observando horrorizada como Baudoin atacava Rogam com uma faca. Viu sangue no braço de Rogam, mas no frenesi do momento não pôde determinar se a ferida era grave.
Desta vez Rogam não pôde submeter tão facilmente seu meio—irmão, Baudoin estava furioso e viera matá—lo.
Liana pôde fazer pouco mais que olhar enquanto os homens lutavam, caindo e rodando sobre o pasto, a faca relampejando de vez em quando entre os dois. A cólera aumentava as forças de Baudoin e Liana compreendeu que Rogam estava lutando por sua vida.
Ao olhar a seu redor, viu um galho curto e grosso. Recolheu—o, sustentando—o com as duas mãos, e depois se aproximou dos dois vigorosos adversários. Tinha que retroceder de um salto quando eles rodando a acercavam e avançar quando se afastavam. As duas cabeças, cada rosto afundado no corpo do outro, eram tão semelhantes que ela temia a possibilidade de golpear o homem errado.
E de repente, apareceu uma oportunidade. Baudoin desprendeu seu braço direito e elevou a faca sobre o pescoço de Rogam.
Um instante depois caiu impotente porque Liana descarregou o pau sobre sua cabeça.
Durante um momento Rogam não fez um só movimento, permaneceu deitado, seu meio—irmão inerte, deitado sobre ele. Não lhe agradava reconhecer que poderia estar morto se não fosse por uma... uma mulher.
Separou—se de si ao Baudoin, ficou de pé e não quis olhar sua esposa.
—Retornaremos e ordenarei aos homens que venham buscá—lo —murmurou.
—E o que farão seus homens? —perguntou Liana, enquanto revisava a ferida do braço de Rogam. Era só uma lesão superficial.
—Executarão—o.
—Seu próprio irmão? —perguntou Liana.
Rogam franziu o sobrecenho.
—Será rápido, não o queimarão nem o torturarão.
Liana refletiu um momento.
—Vá procurar os homens. Em um momento mais me reunirei com você.
Rogam a olhou e sentiu o batimento do coração de seu próprio sangue na têmpora.
—Quer permanecer aqui com ele?
Os olhos de Liana se cravaram nos de Rogam.
—Quero lhe ajudar a escapar de sua injustiça.
—Minha... ? —disse Rogam, surpreso. —Tentou me matar, se isso nada significar para você, para mim é muito.
Liana se aproximou dele e apoiou as mãos sobre os braços de Rogam.
—Perdeu tantos irmãos, a maioria meio—irmãos. Como pode aceitar a possibilidade de perder outro? Aceita este homem e treina—o. Treina—o para que seja um de seus cavalheiros.
Rogam se separou de Liana e olhou—a assombrado.
—Pretende me ensinar como devo dirigir meus homens? Pede—me que conviva com um homem que tentou me matar? Quer se livrar de mim, para poder ter este homem?
Liana elevou as mãos ao céu em um gesto de impotência.
—Que estúpido é! Escolhi você. Tem ideia do número de pretendentes que pediram minha mão? Ansiavam desesperadamente pelo dinheiro de meu pai e cortejaram—me de todos os modos imagináveis. Escreveram—me poesias, entoaram canções de comemoração a minha beleza. Mas você! Jogou—me em um pântano e ordenou—me que lavasse sua roupa e, estúpida de mim, aceitei me casar com você. E o que recebi em pagamento por minha estupidez? Outras mulheres em sua cama enquanto você me ignora, o fedor de seu corpo. E agora se atreve a me acusar de gostar de outros homens. Limpei esse esgoto que chama de sua casa, dava—lhe melhor comida, fui uma entusiasta companheira de sua cama, e atreve—se a me acusar de adultério? Vamos, mata este homem. O que me importa? Voltarei para meu pai e você poderá conservar o ouro, sem necessidade de lutar com uma esposa revoltada.
A cólera que sentia começava a dissipar—se e Liana sentiu—se fatigada e deprimida e a beira das lágrimas. Fracassara com Rogam. Exatamente como lhe advertiu Helen, fracassara.
—Que pântano? —foi tudo o que Rogam disse depois de um momento.
Liana estava engolindo as lágrimas.
—Junto ao lago —disse com voz fatigada. —Obrigou—me a lavar suas roupas. Bem, vamos? Ele despertará muito em breve.
Rogam deu um passo para ela, apoiou os dedos sob seu queixo e a obrigou a levantar a cabeça e a olhá—lo.
—Esquecera—me disso. De modo que é a bruxa que me furou as roupas?
Liana se separou dele.
—Dei—lhe de presente outros objetos. Vamos agora? Ou talvez eu deveria partir e você ficar para trás para matar seu irmão. Talvez ele tenha irmãs e possa raptá—las e formar um novo grupo de Dias.
Rogam lhe agarrou o braço e obrigou—a a olhá—lo. Sim, era a moça do lago. Recordou essa tarde, quando ele estava deitado, sabendo que o observavam, satisfeito ao descobrir que era uma bonita mulher. Ela demonstrara então que tinha caráter, e revelara ainda mais integridade quando aproximou a tocha de sua cama.
Ofereceu—lhe algo que não brindara uma mulher em muitos anos: sorriu—lhe.
Liana sentiu que lhe dobravam os joelhos ante o efeito desse sorriso. Seu rosto, estava transformado e adquirira uma doçura quase infantil. Este era o homem que sua primeira esposa vira? E se era assim, como podia explicar—se que o abandonara?
—Bem —disse —então, aceitou se casar comigo porque a joguei em um pântano?
Mas por notável que fosse sua atitude, ela não estava disposta a lhe responder... sobre tudo se usava esse tom de vaz. Rogam estavam dando a entender que ela era uma jovem camponesa tola e sensual, não muito melhor que uma de seus Dias. Voltou—lhe as costas erguidas, a cabeça alta e começou a caminhar para a aldeia.
Ele a alcançou e Liana quase não pôde acreditar no que acontecia quando a elevou em seus braços como se fosse uma menina e depois a jogou no ar.
—E agora, que planejou para mim? —perguntou enquanto a sustentava para evitar que caísse. —Voltará a me queimar a cama? Ou talvez agora se propõe incendiar todo o castelo? —Jogou—a no ar outra vez. —Por ser uma pessoa tão pequena, tem um modo muito enérgico de conseguir o que desejas.
Jogou os braços ao pescoço, para evitar cair.
—Isto está melhor —disse ele e beijou—lhe o pescoço.
A cólera de Liana se dissipou e Rogam soube porque pôde sentir a risada silenciosa de sua esposa contra seu próprio pescoço.
—Você! —disse Liana, e descarregou o punho sobre o ombro de Rogam. – Baixa—me. Matará seu irmão?
Ele a olhou e meneou a cabeça.
—Não esquece nada, não é?
Ela levantou uma mão e acariciou a face de Rogam. —Não —murmurou. —Quando decido o que quero algo, jamais o esqueço.
Os olhos de Rogam adquiriram uma expressão séria, enquanto a olhava, como se algo o desconcertasse, e começou a lhe responder, mas um gemido de Baudoin, deitado no chão detrás dos dois, atraiu sua atenção. Rogam se desprendeu de Liana com tal rapidez que ela golpeou contra uma árvore.
Quando recuperou o equilíbrio, viu Rogam de pé sobre seu meio—irmão, a faca na mão.
Liana começou a rezar. Rezou fervorosamente, com todo seu coração, pedindo que seu marido demonstrasse compaixão para o jovem.
—E como me matará?
Abriu os olhos e viu Baudoin de pé, erguido e orgulhoso frente a Rogam, sem demonstrar medo.
—Com o fogo? —perguntou Baudoin. —Ou seus torturadores trabalharão sobre mim? Seus homens estão ocultos no bosque e nos espiam? Queimarão a aldeia por causa da peça teatral?
Liana olhou os dois homens, Rogam de costas para ela, e conteve a respiração. Sabia que seu marido podia matar facilmente Baudoin se assim o decidisse e rogou que não o fizesse. Rogan passava a faca de uma mão a outra e guardava silêncio.
—Como ganha a vida? —perguntou finalmente Rogam.
A pergunta assustou Baudoin.
—Compro e vendo lã.
—É honesto?
A expressão do rosto de Baudoin mostrou sua cólera.
—Mais honesto que o homem que foi nosso pai, mais honesto que nossos ilustres irmãos. Eu não permito que meus filhos passem fome.
Liana não podia ver o rosto de Rogam e temeu que as observações de Baudoin significassem a sentença de morte do jovem.
Quando Rogam falou, fez com voz suave e um tanto vacilante.
—Nos últimos anos perdi vários irmãos, não quero perder outros. Se o levasse a minha casa, prestaria—me juramento de fidelidade? E o respeitaria?
Baudoin olhou atônito a Rogam... estava tão assombrado que não podia falar. Sempre odiara seus meio—irmãos que habitavam o castelo sobre a colina. Ele vivia na pobreza e em troca eles tinham tudo.
Liana notou a hesitação de Baudoin e pôde adivinhar seu significado. Também notou que a generosidade de Rogam logo se converteria em cólera se não fosse aceita prontamente. Com um movimento rápido ficou entre os dois homens.
—Tem filhos? —disse a Baudoin. —Quantos? Que idade têm? Quando vier viver conosco, ocuparei—me de sua educação. Podem ir à escola com os filhos de Rogam.
—Que filhos? —perguntou Rogam, olhando—a, hostil. Esse mercador de lã recusou—se a render—lhe homenagem! Devia tê—lo matado há uma hora atrás, mas não o fez por causa da interferência de sua esposa. Deu um passo para ela.
Liana agarrou o braço de Baudoin, de modo tal que estava protegendo—o e protegendo a ela mesma.
—É obvio, todos seus pequenos ruivos —disse vivazmente. —Sua esposa sabe costurar? —perguntou a Baudoin. —Necessito de mulheres que saibam costurar. Ou fiar. Ou tecer. Enquanto você treina com Rogam, ela pode me acompanhar. Rogam, por que não explica a seu irmão —destacou a palavra —que com você terá que trabalhar muito? Possivelmente prefira continuar comprando e vendendo lã.
—Devo tratar de persuadi—lo? —perguntou incrédulo Rogam. —Devo lhe explicar a comodidade do leito? Ou atrai—lo lhe oferecendo carne todos os dias?
Baudoin estava reagindo à emoção. Herdara a inteligência de seu pai e ninguém o acusou jamais de ser estúpido.
—Meu senhor, perdoe—me a hesitação —disse em voz alta, afastando de Liana a atenção de Rogam. —Agradeço—lhe muito seu oferecimento, e eu...—Fez uma pausa e endureceu o olhar. —Defenderei com a vida o nome dos Peregrine.
Rogam o observou longamente e Liana compreendeu que estava lutando com algo em seu foro íntimo. Por favor, rezou sem falar, por favor, acredite.
—Venha ver—me amanhã —disse finalmente Rogam. —Agora, vá.
Uma vez que Baudoin partiu, os olhos de Liana se encheram de lágrimas de alívio. Aproximou—se de Rogam, jogou os braços ao pescoço e o beijou.
—Obrigado —disse. —Muito obrigado.
—Sentirá tão agradecida quando me trouxerem com a espada desse homem no coração?
—Não acredito... —começou a dizer, mas em realidade não sabia se Rogam estava ou não certo. —Possivelmente cometi um engano. Talvez devesse lhe dar o cargo de escrivão, ou enviá—lo ao outro castelo, ele...
—Acredita que sou um covarde?
—Quando se trata de sua segurança, não quero correr riscos.
—Algumas mulheres haviam dito o mesmo antes —afirmou Rogam, —e depois se viu que não mereciam confiança.
Ela aproximou seus lábios aos de Rogam.
—Quem lhe disse isso? Jeanne Howard?
—Estava nos braços de Rogam e um instante depois se encontrava no chão, olhando o rosto que provocara o tremor de homens feitos e direitos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 12


Rogam se voltou e começou a caminhar através do bosque, afastando—se dela e da aldeia.
Liana começou a correr atrás dele, alegrando—se de vestir uma curta saia camponesa enquanto saltava sobre os troncos caídos e esquivava—se das árvores. Mas não pôde alcançar Rogam, e em poucos minutos ele desapareceu de sua vista.
—Maldito seja e maldito seu temperamento —disse Liana em voz alta, e furiosa golpeou o chão com o pé.
Não notara que estava tão perto do riacho e que o solo descia ali bruscamente. O piso cedeu sob seu peso e começou a deslizar—se sobre as costas, em um lance de uns seis ou sete metros, gritando ao mesmo tempo que caía.
Quando chegou ao fundo Rogam estava ali; extraíra uma espada curta que ocultava sob a túnica. Agora, estava de pé e a olhava.
—Quem fez isto? perguntou.
Liana não teve tempo de benzer a boa sorte que lhe permitira recuperar Rogam.
—Caí —explicou. —Estava perseguindo—o e caí.
—Oh —disse ele, sem o mínimo interesse, enquanto guardava de novo a espada sob a roupa de tecido áspero.
Rogam permaneceu ali, absorto, como se não tivesse ideia do que faria depois.
—Leve—me até a água, escravo —ordenou Liana, estendendo a mão em um gesto arrogante. Como ele não se moveu Liana adicionou: —Por favor.
Rogam se inclinou, levantou—a e caminhou para o riacho. Ela rodeou—lhe o pescoço com os braços e apertou o rosto contra Rogam.
—Jeanne era bonita? —perguntou.
Ele a soltou na água fria como o gelo.
Cuspindo água, Liana emergiu para respirar e Rogam já estava afastando—se outra vez.
—É o pior escravo que existiu jamais! —gritou—lhe Liana. —Perderá a aposta.
Enquanto ela estava na água ele retornou e a julgar pela expressão de seu rosto Liana quase desejou que não houvesse retornado.
—Mulher, não perderei nenhuma aposta com você —disse com um resmungo grave. —Em minha vida há coisas que não competem a ninguém e... e...
—Jeanne Howard? —disse ela. Começavam a lhe tocar castanholas os dentes.
—Sim, essa mulher que provocou a morte de...
—Basil e James —disse ela.
Ele interrompeu e a olhou com hostilidade.
—Zomba de mim? —murmurou.
Os olhos de Liana tinham uma expressão de súplica.
—Rogam, jamais tive a intenção de zombar de algo tão terrível como a morte. Só estava perguntando a meu marido a respeito de sua primeira mulher. Todas sentimos curiosidade pelas outras mulheres que passaram pela vida de seu marido. Ouvi dizer tantas coisas de Jeanne e...
—Quem lhe falou?
—A Dama. —Como era evidente que Rogam não sabia a quem se referia, Liana adicionou: —Acredito que é a mulher de Severn, embora pareça um pouco mais velha que ele.
A expressão dura no rosto de Rogam se suavizou.
—Em seu lugar, eu não me atreveria a recordar a Iolanthe que é mas velha que Severn. Fez uma pausa. Io lhe falou de...
Pareceu que não podia pronunciar o nome de sua primeira esposa e isso incomodou a Liana. Ainda a amava tanto?
—Nunca falei com Iolanthe, mas a Dama a mencionou. Rogam, estou congelando. Podemos falar aqui? Ao sol?
Duas vezes Rogam se afastou dela quando mencionou o nome do Jeanne e em ambos os casos retornara; agora contemplava a possibilidade de permanecer com ela para "falar". Rogam agarrou a mão de Liana e tirou—a do riacho.
Quando estavam ao sol, ele cruzou os braços sobre o peito e endureceu o queixo. Jamais, jamais em sua vida voltaria a aceitar a ideia de passar um dia com uma mulher... e sobre tudo com esta. Tinha um talento especial para descobrir os pontos mais sensíveis de Rogam.
—Que deseja saber? —perguntou.
—Era bonita? Estava muito apaixonado por ela? Essa é a razão pela qual o castelo estava tão sujo? Jurou que jamais amaria outra mulher porque ela o machucou muito? Por que preferiu a Oliver Howard, antes que a você? Como é ele? Ela conseguia que risse? Por culpa de Jeanne nunca sorri? Acredita que um dia poderei substituí—la em seu coração?
Quando as perguntas por fim cessaram, Rogam estava ali, de pé, olhando para Liana. Tinha os braços de lado, seus lábios estavam entreabiertos em um gesto que sugeria assombro.
—Bem? —perguntou Liana, induzindo—o a falar. —Trata—se dela? Diga—me.
Rogam não estava muito seguro do que esperara ouvir quando lhe perguntou o que queria saber, mas em todo caso não pensou nessas perguntas frívolas, sem importância, sentimentais. Começou a piscar.
—Bela? —disse. —A lua temia aparecer sobre o castelo de Moray porque não podia competir com a beleza tic... de...
—Jeanne —disse pensativamente Liana. —Então, era muito mais bonita que eu.
Ele não podia acreditar que Liana tomasse a sério esta conversa. Para falar a verdade, não recordava como era sua primeira esposa, fazia tantos anos que não a via...
—Muito mais —disse com fingida seriedade. Era tão formosa que...—Procurou um termo de comparação. —...que os corcéis de guerra lançados à carga se detinham frente ela e comiam em sua mão.
—Oh! —exclamou Liana, sentou—se sobre uma pedra e suas roupas molhadas emitiam estalos. —Oh...
Rogam dirigiu um olhar de desgosto à cabeça inclinada ante ele.
—Nunca podia usar roupas bonitas, porque se o fazia machucava os olhos dos homens, tinha que vestir sempre roupas de camponesas, porque não queria cegar as pessoas. Se entrava a cavalo na aldeia, tinha que usar uma máscara, pois os homens se jogavam sob os cascos de seu cavalo. Os diamantes pareciam feios comparados com...
Liana levantou a cabeça.
—Zomba de mim. —Havia esperança em sua voz. —Que aspecto tinha realmente?
—Não me recordo, era jovem. Acredito que tinha cabelos castanhos.
Liana compreendeu que agora ele dizia a verdade e que não recordava muito da aparência de Jeanne.
—Como pode esquecer de alguém a quem amou tanto?
Ele se sentou no pasto, de costas para Liana, e contemplou o riacho.
—Eu não era mais que um jovenzinho e meus irmãos me ordenaram que me casasse com ela. Ela... traiu—me, traiu a todos. James e Basil morreram tentando recuperá—la.
Liana se aproximou dele e sentou—se a seu lado, o perfil úmido e frio de seu corpo junto aos trajes mornos e secos que ele vestia..
—Ela é o que o entristece?
—Entristece? —repetiu Rogam. —O que me entristece é a morte de meus irmãos. Vê—los morrer um por um, sabendo que os Howard se apoderaram de tudo o que eu sempre quis na vida.
—Inclusive de sua esposa —murmurou ela.
Rogam se voltou e olhou—a. Fazia anos que não pensava em sua primeira esposa como um assunto pessoal, não podia recordar seu rosto, seu corpo, nada do que se relacionava com ela. Mas enquanto olhava para Liana pensou que se ela desaparecesse, recordaria muitas coisas de sua pessoa... e não seria só seu corpo, disse—se assombrado. Recordaria alguma das coisas que ela havia dito.
Estendeu a mão e tocou a face úmida de Liana.
—É tão simples como parece? —murmurou. —Que alguém a ame ou acredita que ser bela é o assunto mais importante de sua vida?
A Liana não agradou parecer tão frívola.
—Posso vigiar as contas das propriedades, posso descobrir os ladrões, sei julgar os casos judiciais, também sei...
—Julgar? —perguntou Rogam, e se afastou um pouco para olhá—la.—Como é possível que uma mulher decrete uma sentença decente? Os julgamentos não se referem ao amor nem à pessoa que pode apresentar o piso mais limpo... têm que ver com problemas importantes.
—Dê—me um exemplo —disse serenamente Liana.
Rogam considerava que era melhor abster—se de sobrecarregar a mente de uma mulher com excessivo número de problemas graves; mas também desejava lhe dar uma lição.
—Ontem, um homem e três testemunhas se apresentaram com um documento assinado com um selo, que dizia que o homem era o dono de um imóvel; mas o proprietário precedente da moradia não aceitava partir. Esse homem aplicou seu selo ao papel como garantia de uma dívida. Bem, não se pagou a dívida, mas o primeiro proprietário continuava vivendo no imóvel. Como teria resolvido o assunto? —perguntou astutamente.
—Não falaria antes de ouvir o testemunho do primeiro proprietário, os tribunais reais opinaram que é muito fácil falsificar um selo. Se o homem tinha educação suficiente para possuir um selo, talvez também pudesse escrever seu próprio nome. Deve ter aplicado o selo e posto sua marca no papel. Também investigaria para determinar se as testemunhas eram ou não amigos do primeiro homem. Em geral, o caso não me parece válido.
Rogam a olhou assombrado. Realmente demonstrou—se que o documento era falso e que fora escrito por um homem que estava encolerizado porque viu sua jovem esposa falando com o filho do proprietário.
—Bem? —disse Liana. —Confio em que não terá enviado homens para jogar de sua terra esse pobre camponês.
—Não fiz tal coisa —replicou secamente Rogam. —Tampouco queimei a ninguém por comer ratos.
—Nem deixou grávida uma filha? —disse ela zombeteiramente.
—Não, mas a esposa do camponês era uma beleza. Tinha grandes...—Esboçou um gesto com as mãos diante do peito.
—Você! —gritou Liana, e se jogou sobre ele.
Rogam a agarrou, fingiu que o peso de Liana o derrubara e apertou—a com força contra seu corpo. Finalmente a beijou.
—Julguei bem, não é? O documento era falso?
Agora ela permanecia sobre o corpo de Rogam, sentindo os músculos fortes e duros de seu homem.
—Tem as roupas molhadas —disse ele. —Deveria tirá—las e colocá—las para secar.
—Não me distrairá. Esse documento, era ou não falso?
Ele levantou a cabeça para beijá—la de novo, mas Liana afastou o rosto.
—Era falso? —perguntou ela.
—Sim, era falso —disse Rogam, furioso.
Liana pôs—se a rir e começou a beijar—lhe o pescoço.
Rogam fechou os olhos. Em sua vida conhecera poucas mulheres que não o temessem. As enobrecidas da corte geralmente lhe davam as costas, de modo que Rogam se dizia que era preferível tratar com as criadas. E estas geralmente manifestavam temor frente a suas irritações e seus rechaços. Mas esta mulher ria dele, gritava... e recusava—se a obedecê—lo.
—Eu posso ajudar —dizia Liana.
—Ajudar em que? —perguntou Rogam.
—Nos julgamentos.
Agora, ela estava acariciando com sua língua o pescoço de Rogam.
—Sobre meu cadáver —disse ele alegremente.
Liana pôs—se a rir.
—Estou sobre seu corpo, mas não me parece que tenha morrido de tudo.
—É uma mulher obscena —disse ele, beijando—a.
—Castigará—me?
Ele apoiou a mão sobre a cabeça de Liana e com um movimento do corpo inverteu a posição de ambos e imobilizou Liana com um movimento da perna robusta.
—Deixarei—a sem forças.
—Impossível! —disse ela, e um instante depois a boca de Rogam lhe impediu de seguir falando.
Das árvores chegou o ruído de pessoas que caminhavam, mas a princípio os amantes não ouviram nada.
—Gaby, digo—lhe que a ideia não é boa – ouviu—se a voz de um homem.
—Eu sempre penso que quem nada arrisca nada ganha —respondeu uma mulher.
Liana sentiu que se endurecia o corpo de Rogam, e com um movimento rápido extraiu a curta espada e se ajoelhou sobre ela, em um gesto protetor.
Entre as árvores apareceram Baudoin e uma mulher pequena e gordinha com uma garotinha nos braços, um cachorro e um menino entre os dois adultos.
Liana e Rogam se limitaram a olhar, sem compreender o significado da aparição.
—Aí estão —disse a mulher, adiantando—se. —Baudoin me disse tudo, devem perdoar seu caráter. Sou sua esposa, Gabriela, mas todos me chamam Gaby; e esses são nossos filhos, Sarah e Joseph. Disse a Baudoin que se for viver com você, é necessário que o conheça. Meu pai foi um cavalheiro, não por certo um conde, mas um homem respeitável e eu sabia que Baudoin era filho de um senhor e por isso pedi a meu pai que me permitisse desposá—lo. —Dirigiu uma olhada de adoração ao jovem alto e bonito. —E jamais me equivoquei. Minha senhora, não tem frio com essas roupas úmidas? A tintura está desprendendo—se de seus cabelos manchando o rosto. Vejamos, ajudarei—a a arrumar isto.
Rogam e Liana, assombrados, não se moveram. Ainda estava ajoelhado junto a sua esposa, a arma preparada, protegendo Liana que estava debaixo. Quando a mulher chamada Gaby lhe ofereceu a mão, Liana não se moveu.
Baudoin rompeu o silêncio.
—Adiante —disse. —Todos fazem o que ela diz.
As palavras pareciam de censura, mas havia um sotaque afetuoso na voz. Na verdade, não parecia uma grade muito harmônica: Baudoin era alto, magro, muito bonito, e seu rosto expressava uma espécie de permanente irritação. Gaby era baixa, rechoncha, bonita mas não certamente bela e parecia que nascera com um sorriso no rosto.
Liana aceitou a mão que lhe oferecia a mulher e foi com ela ao riacho; estava acostumada que as mulher da classe de Gaby lhe temessem, mas desde o momento de sua chegada ao castelo dos Peregrine nada fora como ela conhecia.
—Agora, sente—se ali e tenha paciência —disse Gaby enquanto instalava sua filha no chão.
Voltou os olhos para Liana.
—Inteirei—me do que aconteceu esta manhã, os irmãos não deveriam brigar. Sempre disse a Baudoin que um dia seus irmãos do castelo veriam a luz e eu tinha razão. Baudoin é um bom homem, ele fará o que for necessário. Vejam, parecem duas ervilhas da mesma vagem.
Liana voltou os olhos para os dois homens: estavam de pé, um perto do outro, sem olhar—se nem falar. O menino estava entre eles, igualmente silencioso.
—Incline aqui e lavarei seus cabelos —ordenou Gaby
Liana fez o que lhe dizia.
—Seu marido fala tão pouco como o meu? —perguntou Gaby.
Liana não sabia muito bem o que fazer... se demonstrar—lhe cordialidade ou adotar outra atitude. Era estranho o modo que as roupas afetavam a disposição de uma pessoa. Se ela tivesse uasado seu melhor vestido de seda azul teria esperado que essa camponesa se inclinasse em sua presença, no entanto, agora que usava lã comum sentia quase como se fosse... bem, uma igual.
—Se o sujeitar a um lugar falará, mas não muito —disse finalmente Liana.
—Não renuncie à luta. Retrairá—se completamente se permitir. E obrigue a rir, faça—lhe cócegas.
—Cócegas? A água tingida de negro corria pelo rosto de Liana.
—Sim —disse Gaby. —Nas costelas. De todos os modos, são homens bons. Não regateiam seu afeto. Se a ama hoje, fará por toda a vida. Não será como certos homens que estão apaixonados e amanhã se interessam por outra mulher e uma terceira no dia seguinte. Bem, agora está melhor. Seus cabelos estão loiros de novo.
Liana se sentou e recolheu os cabelos úmidos.
—E agora não podemos retornar à feira. Alguém poderia me reconhecer.
—Não —disse Gaby com expressão séria. —Não quererão vê—los ali, esta manhã já se comentou quem seria o homem misterioso que derrotou Baudoin, não devem retornar.
Iluminou—lhe o rosto. —Mas eu trouxe alimentos, e podemos permanecer aqui, neste lugar tão bonito.
Gabriela não disse a Liana que gastou as economias de um ano no festim que trouxera consigo. Sob a aparência alegre e complacente de Gaby se escondia uma mulher muito ambiciosa mas não para ela mesma. O que desejava estava destinado a seu marido a quem amava mais que a vida.
Tinha completado doze anos quando viu pela primeira vez o bonito Baudoin, um jovem de olhar frio e determinou que o conquistaria por muito que isso lhe custasse. Seu pai aspirava a que ela conseguisse um bom matrimônio e não que se casasse com um bastardo sem futuro. Mas Gaby deciciu e suplicou e implorou e blasfemou, até que obteve que seu pai formulasse uma oferta ao padrasto de Baudoin.
Este se casou com ela por seu dote e os primeiros anos de convivência foram difíceis. Ele tivera muitas outras mulheres, mas o amor de Gaby foi mais firme que a sensualidade de Baudoin. Pouco a pouco ele começou a prestar—lhe atenção, a procurá—la para obter amor e conforto e quando nasceram os meninos, Baudoin descobriu que também isso lhe agradava.
Durante os seis anos de matrimônio, este passou da condição de um garanhão que saltava de uma cama a outra a de bem—sucedido mercador, que sentia prazer sobre tudo na intimidade com sua esposa e os filhos.
Essa manhã, ao ver lorde Rogam entre a multidão, reconheceu imediatamente seu meio—irmão. Pela primeira vez em anos sua antiga raiva se manifestou. Várias horas mais tarde encontrou Gaby e depois de muitos esforços dela para lhe arrancar a verdade, explicou—lhe o incidente no bosque. Sentia—se envergonhado por ter atacado um homem pelas costas, e revelou a Gaby o oferecimento que aceitara, mas adicionou que deviam abandonar a região e começar de novo em outro lugar, porque ele não podia suportar a ideia de enfrentar de novo lorde Rogam.
Gaby elevou uma rápida prece de agradecimento a Deus, que finalmente lhes oferecia essa oportunidade, e se dedicou a trabalhar sobre Baudoin. Utilizou todas as técnicas imaginárias para quebrar sua reserva. Uma vez obtido isso, compreendeu que tinha que trabalhar sobre o senhor e sua bondosa e compassiva esposa. E também soube que sua oportunidade era este dia, enquanto o senhor e sua esposa vestiam o traje camponês. No dia seguinte, quando eles estivessem cobertos de seda e a própria Gaby com vestes de lã, a distância entre eles seria excessiva.
Assim, retirara o dinheiro de seu esconderijo e com ele comprou carne de vaca, porco, frango, pão, laranjas, queijo, tâmaras e cerveja, depositou tudo em uma cesta e saiu em busca dos ilustres parentes de Baudoin. Não quis recordar a reputação de Rogam, refletida também na peça (e tampouco pensar que lorde Rogam vira Baudoin personificando—o, e em troca concentrou a atenção no esforço por mostrar—se entretida, como a semelhança dos dois cavalheiros.)
Liana não tinha muito o que dizer quando estava perto de Gaby, mas ninguém falava pois esta conversava tanto como um exército. A princípio, Liana se mostrou reservada com a mulher, não lhe agradava sua presunção nem o modo que se intrometeu no que devia ser um momento de solidão entre ela e Rogam.
Mas depois de um momento Liana começou a suavizar—se. Era tão agradável ouvir como outros falavam. A Rogam, ela tinha que lhe arrancar cada palavra e não havia hóspedes no castelo de Moray, ninguém com quem falar, exceto suas donzelas e a Dama que muito frequentemente permanecia detrás de uma porta fechada.
E além disso, a Liana agradava o modo que Gaby adorava Baudoin. Seu olhar percorria o corpo do jovem em uma atitude possessiva que era em parte a de uma esposa, em parte a de uma mãe e em parte a de um vampiro decidido a devorar a vida do moço. Liana pensou: agradaria—me saber se eu olho do mesmo modo a Rogam.
Os dois irmãos se olhavam com cautela, sem saber o que dizer ou como reagir um frente ao outro, até que Gaby sugeriu que Rogam ensinasse a Baudoin o modo de lutar com longas varas.
As cunhadas se sentaram no chão, comeram pão e queijo e olhavam como se treinavam os homens. Rogam era um bom professor, embora severo. Três vezes enviou Baudoin às águas frias do rio, mas Baudoin não por acaso era filho de seu pai. A quarta vez que Rogam quis jogá—lo na água, Baudoin fez um meio giro e foi Rogam quem terminou caindo de boca na água gelada.
Liana se levantou instantaneamente e correu para seu marido. Ele parecia tão assustado, sentado ali na água, que ela começou a rir, e assim fez Gaby. Inclusive Baudoin sorriu, Rogam necessitou um momento e também riu.
Liana estendeu a mão para ajudá—lo a levantar—se, mas sempre sorrindo ele a jogou na água, a seu lado.
—Isto não é justo —exclamou Liana. —Estava quase seca. —Rogam se levantou, elevou—a da água e levou—a a um lugar coberto de pasto e iluminado pelo sol e sentou—se ao seu lado. Tirou a camisa e como viu que Liana tremia, abraçou—a, de modo que ela se recostou contra seu peito, e disse—se que jamais sentira tão feliz em sua vida.
—O que há para comer? —perguntou Rogam —tenho muita fome.
Gaby extraiu da cesta saborosos alimentos e os quatro adultos e os dois meninos começaram a comer; geralmente, foi Gaby quem falou, relatando entretidas anedotas da vida aldeã. Mostrou notável tato quando foi necessário evitar toda referência às práticas de terrorismo que a família Peregrine aplicava aos habitantes da aldeia.
Liana intuiu que Rogam começava a afrouxar—se, formulou a Baudoin algumas pergunta sobre o comércio de lã e inclusive lhe perguntou se tinha ideia sobre o modo de melhorar a produção de lã dos Peregrine.
A garotinha Sarah mal sabia caminhar e de repente recolheu uma tâmara e com suas pernas gordinhas caminhou para Rogam com a ajuda de seu pai, deteve—se, olhou—o um momento, até que Rogam se voltou para observá—la. Ele nunca prestara muita atenção aos meninos, mas notou que era uma bonita criança, com intensos olhos escuros que o estudavam.
A criança lhe entregou a tâmara e quando Rogam aceitou, a pequena acreditou que isso era um convite. Voltou—se e saltou aos joelhos de Rogam, aconchegando—se contra seu peito.
Rogam olhou admirado os suaves cabelos enrolados.
—Para ela ninguém é estranho —disse Gaby. —Assim é minha Sarah.
—Pegue—a —sussurrou Rogam a Liana. —Tire—a de cima.
De repente, Liana pareceu surda.
—Ouça, Sarah, dá de presente estes figos a seu tio Rogam.
Com um gesto solene, a menina tomou um figo e aproximou—o da boca de Rogam, mas quando ele tentou tomá—lo com a mão, ela emitiu um grito de protesto. Com o ar de quem executa o ato mais difícil de sua vida, ele abriu a boca e permitiu que lhe colocasse o figo.
Liana manteve um fluxo permanente de conversa com Gaby e fingiu que não prestava atenção a Rogam e a menina, mas provia constantemente à pequena de tâmaras e figos. Quando a neném se cansou de alimentar seu tio, recostou—se sobre seu peito e dormiu.
Pouco tempo depois, o sol começou a descer no céu e Liana compreendeu que era hora de voltar para casa. Não desejava que um momento tão agradável terminasse e não queria retornar ao sombrio castelo de Moray, e possivelmente a um marido que a ignorava. Deslizou sua mão na de Rogam e apoiou a cabeça sobre o ombro de seu marido. Durante um longo momento permaneceram sentados, abraçados, a menina dormindo sobre os joelhos do guerreiro.
—Este foi o melhor dia de minha vida —murmurou Liana —oxalá não tivesse terminado.
Rogam a apertou com mais força. Foi um dia completamente ocioso, e ele se disse que nunca voltaria a mostrar—se tão frívolo, mas aceitou que fora... bem, agradável.
Sarah despertou e começou a chorar e assim todos entenderam que deviam retornar a seus respectivos lares.
—Virá amanhã? —perguntou Liana a Gaby e viu lágrimas de gratidão nos olhos da mulher. Já tinha concebido a ideia de converter Gaby na governanta da casa, ocuparia—se de que as criadas mantivessem limpo o castelo e Liana disporia de mais tempo para passá—lo com seu marido.
Poucos minutos depois, quando já estava anoitecendo, Rogam e Liana começaram a retornar lentamente para o castelo de Moray. As mãos unidas, mantiveram silêncio um momento.
—Oxalá não tivéssemos que voltar —disse Liana. —Queria que fôssemos como Gaby e Baudoin, vivêssemos em uma simples cabana, por aí e...
Rogam emitiu um resmungo.
—Pareceram—me muito dispostos a renunciar a sua simples cabana. Essa comida certamente lhes custou o salário de um ano.
—Meio ano —disse Liana com o tom de quem estava acostumada a dirigir livros de contas. —Mas se amam —adicionou sonhadoramente —vi—o nos olhos de Gaby. —Olhou a Rogam. Certamente eu o olho assim.
Este tinha os olhos cravados nos muros do castelo de Moray. Para eles fora fácil sair pela manhã. O que aconteceria se os Howard se disfarçassem de vendedores de verduras e solicitassem entrar? Teria que redobrar a vigilância.
—Ouviu o que disse? —perguntou Liana.
Possivelmente ele deveria ordenar que os camponeses a quem se permitia a entrada usassem um distintivo. É obvio, estas insígnias podiam roubar—se, mas...
—Rogam! —Liana se detivera e atirando—lhe a mão obrigou—o a suspender a marcha.
—O que acontece?
—Estava me escutando? —perguntou ela.
—Ouvi tudo o que disse —respondeu Rogam. —Possivelmente algo além do distintivo. Talvez...
—Que disse?
Rogam a olhou, inexpressivo.
—O que disse a respeito do que?
Ela apertou os lábios.
—Estava dizendo que o amo.
Possivelmente um santo e senha, que mudaria diariamente. Ou talvez o mais seguro seria designar certos camponeses, como os únicos que poderiam entrar; e jamais se permitiria a aparição de caras novas.
Com o grande abatimento de Rogam, sua esposa lhe soltou a mão e se adiantou, e pelo modo de caminhar parecia zangada.
—E agora o que é? —murmurou ele. Hoje fizera tudo o que ela desejava e ainda não parecia satisfeita.
—Algo aconteceu?
—Oh, então agora compreende que estou aqui —disse ela altivamente. —Espero não tê—lo incomodado dizendo que o amo.
—Não —disse ele sinceramente. —Acontece só que estava pensando em outra coisa.
—Não permita que minhas declarações de amor lhe interrompam —disse Liana perversamente. —Estou segura de que cem mulheres lhe juraram amor, todos os Dias. Por outra parte, antes inclusive teve Meses. E é obvio, Jeanne Howard provavelmente lhe disse isso todos os dias.
Rogam começava a compreender através da falta de lógica de Liana. Era outra dessas coisas femininas, nada grave.
—Ela não era Howard quando se casou comigo.
—Compreendo, mas não nega que lhe disse muitas vezes que o amava. Provavelmente ouviu tantas vezes que não significa nada vindo de mim.
Rogam pensou um momento.
—Não recordo que nenhuma mulher dissesse que me amava.
—Oh! —disse Liana, e voltou a tomar sua mão. Caminharam em silêncio uns minutos. —Você me ama? —perguntou ela em voz baixa.
Ele lhe apertou a mão.
—Fiz umas poucas vezes. E esta noite vou a...
—Não me refiro a essa classe de amor, quero dizer em seu interior, como amou a sua mãe.
—Minha mãe morreu quando eu nasci.
Liana franziu o sobrecenho. .
—Então, a mãe de Severn.
—Ela faleceu quando Severn nasceu, eu tinha dois anos e não me lembro.
—E a mãe de Zared? —perguntou Liana com voz doce.
—Não acredito que tenha sentido muito por ela, tinha medo de todos nós e estava acostumada a chorar muito.
—Alguém tentava reconfortá—la?
—Rowland lhe dizia que cessasse de chorar, porque precisávamos dormir um pouco.
Liana pensou na pobre mulher, só e em um castelo sujo, povoado de homens cuja principal preocupação era que seu pranto lhes perturbava o sonho. E era a esposa que morrera de fome no castelo de Bevan. Se Rogam não amou às mulheres de sua vida, certamente amara a seus irmãos.
—Quando seu irmão mais velho morreu...
—Rowland não morreu, os Howard o mataram.
—Está bem —disse ela impaciente —mataram—no, assassinaram—no. Sacrificaram—no injustamente sem provocação. Sentiu saudades depois de sua morte?
Rogam demorou um tempo para responder, enquanto a imagens de seu irmão, forte e poderoso, passavam por sua cabeça.
—Tenho saudades dele todos os dias —respondeu finalmente.
A voz de Liana se suavizou.
—Sentiria saudades se eu morresse? Por exemplo, se me atacasse a peste.
Ele a olhou: se ela morresse, a vida de Rogam retornaria ao que fora antes. Vestiria roupas infestadas de piolhos, comeria pão cheio de areia, retornariam os Dias. Ela não estaria perto para amaldiçoá—lo, ridicularizá—lo, envergonhá—lo em público, obrigá—lo a perder tempo. Franziu o sobrecenho. Sim, sentiria saudades.
E em efeito, não lhe agradava absolutamente a ideia da sentir saudades.
—Não teria que ir a outras feiras —respondeu Rogam e se separou dela.
Liana ficou cravada no mesmo lugar; não lhe agradou compreender o quanto lhe doíam as palavras de Rogam. Estiveram juntos muito pouco tempo e ele significava tanto para ela; mas era menos que nada para Rogam.
Disse—se que jamais permitiria que ele visse como a machucava, que sempre ocultaria sua dor. Acreditou que seu rosto era uma máscara inexpressiva e que não deixava transparecer nada; mas quando Rogam se voltou e viu sua bonita e miúda esposa com o lábio inferior se sobressaindo e os olhos cheios de lágrimas que não terminava de derramar, procurou em sua mente para compreender o que lhe acontecia. Acaso temia retornar ao castelo?
Aproximou—se dela e pôs os dedos sob o queixo da jovem mas ela o rechaçou.
—Nada lhe importa de mim —reprovou Liana. —Se eu morresse, poderia conseguir outra esposa rica e apoderar—se de seu dote.
Rogam estremeceu.
—Os matrimônios conduzem muitos problemas —disse. —Meu pai tinha a resistência de mil homens, suportou quatro matrimônios.
Apesar das intenções de Liana, as lágrimas começaram a descer por suas bochechas.
—Se eu morresse, sem dúvida jogaria meu corpo ao fosso. E boa viagem!
Rogam se mostrou confuso.
—Se você morresse, eu...
—Sim? —perguntou ela, olhando—o através das pestanas cheias de lágrimas.
—Eu... saberia que não vives.
Liana compreendeu que isso era tudo o que poderia lhe arrancar. Jogou os braços ao pescoço, e começou a beijá—lo.
—Sabia que se importava —disse.
Para consternação de ambos, as pessoas que estavam ao redor começaram a aplaudir. Estavam concentrados a tal extremo em sua própria conversa que não notaram as pessoas ao redor que os olhava e escutava com muita satisfação.
Rogam estava mais envergonhado que Liana, pegou sua mão e pôs—se a correr. Detiveram—se não longe dos muros do castelo e de repente também ele se sentiu contrariado porque o dia chegava a seu fim.
Perto havia um vendedor com uma bandeja de madeira sustentada por uma correia que passava sobre os ombros. Na mesma havia brinquedos pintados de madeira, que representavam homens saltando ao extremo de uma vara. Ao ver o olhar de Rogam, o vendedor se aproximou depressa e mostrou como funcionavam os divertidos bonecos. Quando Liana riu ao vê—los, Rogam descobriu que estava separando—se de duas preciosas moedas para comprar um.
Liana agarrou entusiastamente o boneco, se seu marido lhe tivesse dado esmeraldas, não lhe teriam agradado tanto. Olhou com amor a Rogam e este tratou de desviar os olhos. Um dia tão frívolo, esse esbanjamento de tempo e dinheiro investidos em uma jovenzinha que formulava perguntas estúpidas. Entretanto...
Passou—lhe o braço sobre os ombros e observou enquanto ela se entretinha com o brinquedo e se sentiu bem. Estava em paz, uma condição que acreditara que nunca alcançaria. Inclinou—se para frente e lhe beijou o cocuruto. Antes, nunca beijara uma mulher, salvo por sensualidade.
Liana apertou seu corpo contra o de Rogam e este compreendeu que a agradara. É obvio, era absurdo, mas por certa razão agradá—la o alegrava.
Com um suspiro de pesar, retomou a marcha para o castelo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 13


Severn estava sentado frente à mesa agora limpa, no grande salão, comendo queijo sem mofo e uma parte de carne perfeitamente assada e sorria.
Zared o olhou.
—Não quer compartilhar o que lhe faz graça?
—Um dia inteiro na cama com uma mulher —disse Severn. —Nem sequer eu acreditava que Rogam poderia fazê—lo, mas outra vez subestimei a meu irmão. —A expressão de seus olhos revelou o orgulho que sentia. —Sua esposa não poderá caminhar, provavelmente também hoje passará o dia na cama... descansando.
—Possivelmente seja Rogam que necessite repouso.
—Ora —resmungou Severn. —Não sabe nada dos homens. E sobre tudo dos homens como nosso irmão. Porá a essa mulher em seu lugar, já o verá. Depois do que aconteceu ontem, ela já não tentará governar este lugar, Rogam não descuidará do treinamento para apoiar a cabeça no regaço da dama. —Sua voz exibia amargura. —Agora, ela se encerrará em sua habitação e não tratará de interferir em nossas vidas. Basta desta limpeza constante e...
—A cozinha —interrompeu Zared. —Eu gosto mais do lugar tal como está agora. E certamente, a comida me agrada mais.
Severn apontou com a faca a Zared.
—O luxo pode ser a ruína de um homem e ninguém sabe melhor que nosso irmão. Rogam...
—Perdeu a aposta.
Severn entrecerrou os olhos.
—Sim, talvez perdera a aposta, mas conseguiu como pagamento o que ele desejava.
—Possivelmente —disse Zared, lubrificando uma grosa fatia de pão com a manteiga recém batida. —Mas por outro lado, ela impôs sua decisão a respeito do que desejava fazer, não é assim? E em efeito, ganhou a aposta, não? Descobriu os ladrões, o que você e Rogam não puderam fazer. E ela...
—Teve sorte —disse com obstinação Severn. —Uma sorte cega e estúpida. Sem dúvida os camponeses estavam dispostos a entregar os ladrões e ela apareceu no momento preciso.
—Aha! —disse Zared. —É obvio.
—Não me agrada seu tom —resmungou Severn.
—E não me agrada sua estupidez, essa mulher fez muitas coisas em pouco tempo e merece que lhe reconheça o mérito. E o que é mais, acredito que Rogam está apaixonando—se por ela.
—Apaixonando—se! —exclamou Severn. —Apaixonando—se! Rogam nunca se mostraria tão débil, teve cem, mil mulheres e nunca se apaixonou. Não faria tal coisa, é muito inteligente.
—Não se mostrou inteligente com Jeanne Howard.
O rosto de Severn começou a exibir um desagradável matiz púrpura.
—O que sabe dessa mulher? Era um menino quando ela vivia aqui e sua traição matou Basil e James. —Acalmou—se um pouco. —De todos os modos, Rogam sabe o que são as mulheres e sobre tudo o que são as esposas. —Olhou a Zared e sorriu. —E além disso, Rogam nunca se interessou por uma logo que deitou—se com ela. Depois do que aconteceu ontem, estará tão farto de Liana que provavelmente a enviará a Bevan e então as coisas retornarão aqui à normalidade.
—A normalidade significa ratos nas escadas e cadáveres no fosso? Severn, sabe o que acontece? Está com ciúme, não quer que seu irmão preste atenção a outra pessoa que não seja você. Não quer...
—Com ciúme! Direi—lhe o que me passa: temo que Rogam afaste sua atenção da traição dos Howard. Se esta mulher o abrandar, esquecerá de cuidar das costas e cravarão uma flecha nele. Um homem não pode ser um Peregrine e além disso usar saias. Deveria sabê—lo.
—Sei —disse Zared em voz baixa. —Mas o que passa se Rogam em efeito... a ama?
—Não a quererá, confia em mim. Conheço meu irmão melhor que ele mesmo. Nem sequer pode recordar o nome de sua esposa, de modo que não há perigo de que a ame.
Zared começou a lhe responder, mas um ruído na escada induziu a ambos a voltar—se.
Rogam e Liana entraram no salão, ambos resplandecentes com suas roupas de brocado de seda. Ele tinha os cabelos úmidos, como se acabasse de lavar—lhe e ambos caminhavam de braços dados.
Mais incomum que os trajes e a atitude, era a expressão de Rogam. Não podia dizer—se que estava sorrindo, mas parecia, e tinha os olhos brilhantes enquanto contemplava o rosto de sua esposa, que o olhava com adoração.
—Possivelmente —dizia Rogam.
—Teme que o contrarie na frente dos camponeses? —perguntou Liana.
—Que você me contrarie? —perguntou ele. —Uma coisa assim induziria aos camponeses a acreditar que você...domesticou—me.
Liana se pôs—se a rir e inclinou a cabeça para o braço de Rogam. Quando se aproximaram da mesa, pareceu que não notavam o profundo espanto que se manifestava nos rostos de Severn e Zared.
—Bom dia —disse alegremente Liana e se sentou à direita de Rogam. —Digam se minha comida não lhes agradar e falarei com o cozinheiro... depois da sessão do tribunal.
—Já vejo —disse Rogam com fingida seriedade. —E se não participar no tribunal, o que jantaremos?
Liana lhe dirigiu um sorriso tenro.
—O que sempre comeram, pão com areia, carne com vermes e para beber água do fosso.
Rogam voltou para Severn com os olhos faiscantes.
—Esta mulher me extorque, se não lhe permito participar dos casos judiciais, obrigará—me a passar fome.
Severn se espantara tanto ante este novo comportamento de seu irmão que não soube o que dizer, e como não confiava no controle de si mesmo, ficou de pé com tal rapidez que a cadeira caiu ao piso. Girou—se e saiu furioso da sala.
Rogam, que tinha convivido com irmãos que quase sempre demonstravam mau humor e irritação, não prestou atenção a Severn.
Não foi o caso de Liana. Voltou—se para Zared.
—O que lhe acontece?
O jovem se encolheu de ombros.
—Não lhe agrada equivocar—se, já se acalmará. Rogam, parece que ontem o passou bem.
Este começou a dizer algo em relação à feira, mas considerou melhor que só umas poucas pessoas soubessem onde estivera na véspera.
—Sim —disse em voz baixa —passei—o bem.
Zared viu que seu irmão olhava Liana com expressão maravilhada. Sem dúvida, agora Rogam recordaria o nome de sua mulher, pensou Zared, e de novo se perguntou se estava apaixonando—se. Como seria um Rogam apaixonado? Converteria sua sala de meditação em uma câmara para escrever poesia?
Zared permaneceu sentado em silêncio, olhou os dois cônjuges e viu um irmão que não se comportava como um Peregrine. Possivelmente Severn estava certo. Esse irmão jamais poderia encabeçar um ataque contra os Howard.
Quando Rogam terminou de comer, dirigiu a Liana um olhar sensual e disse: —Vem comigo, formosa —ante o qual Liana pareceu desarmar—se de risada.
Nesse ponto, Zared começou a concordar com Severn, este não era o irmão que Zared sempre conhecera, o Rogam que resmungava, franzia o sobrecenho e odiava.
Em silêncio, pensativo, o irmão menor abandonou a mesa, mas Rogam e Liana não notaram.
A cólera de Severn persistiu durante todo o dia. Pela tarde estava com os homens na área de treinamento e Rogam não apareceu.
—Provavelmente voltou para a cama com sua mulher —murmurou.
—Meu senhor? —perguntou o cavalheiro a quem Severn estava treinando.
Este descarregou sua cólera sobre o cavalheiro e atacou—o na instrução de combate com uma ferocidade que usualmente só usava no campo de batalha.
—Basta! —rugiu Rogam, que estava detrás. —Quer matar este homem?
Severn se deteve, espada em mão e se voltou para seu irmão. Ao lado de Rogam havia um homem que lhe parecia muito.
—O que faz aqui um dos bastardos de nosso pai? —rugiu Severn.
—Treinará conosco, encomendo—lhe isso. —Rogam começou a voltar—se, mas Severn deixou cair a mão sobre seu ombro e o obrigou a voltar—se.
—Que me pendurem se treinar o bastardo, se o quiser aqui, treina—o você. Ou devemos permitir que sua esposa o treine, uma vez que parece que ela governa agora a casa dos Peregrine? Foi ideia dela?
Severn estava muito perto da verdade, mas Rogam agarrou uma lança de ferro que arrancou das mãos de um cavalheiro.
—Engulirá essas palavras —gritou avançando para seu irmão.
Severn também tomou uma lança e lutaram larga e duramente, enquanto seus cavalheiros olhavam em silêncio, pois intuíam que esta não era uma das habituais brigas sem importância dos irmãos, a não ser um pouco mais profundo e mais grave.
Rogam, em realidade, não estava colérico, como acontecia a seu irmão. Sentia—se menos irritado que o que tinha sido o caso em muitos anos, de modo que se limitou a esquivar—se dos ataques de Severn.
Os dois se surpreenderam quando o pé de Rogam tropeçou com algo que havia detrás e caiu. Rogam começou a levantar—se mas Severn roçou o pescoço de seu irmão com o extremo afiado da lança de ferro.
—Isso é o que a mulher lhe faz —reprovou Severn. —Bem poderia castrá—lo, já lhe pôs uma corrente ao redor do pescoço.
A observação se parecia muito ao que os camponeses tinham sugerido na peça teatral e então a cólera de Rogam apareceu na superfície. Afastou a lança, levantou—se de um salto e foi em busca de Severn com as mãos nuas.
Seis cavalheiros saltaram sobre Rogam e quatro sobre Severn, para separá—los.
—Sempre foi um estúpido com as mulheres —gritou Severn. —Sua última esposa custou a vida de dois irmãos e acredito que quando tem esposa não significamos nada para ti.
Rogam se imobilizou.
—Soltem —disse a seus homens, e estes retrocederam um passo. Não deveriam intervir, ele era o senhor e tinha todo o direito de fazer o que tivesse que fazer com seu irmão.
Rogam se aproximou de Severn cujos olhos azuis ainda estavam acesos pela fúria e os cavalheiros o retinham.
—Dava—lhe outro irmão para que treine —disse com voz grave —e espero que o faça.
Voltou—se e caminhou de retorno ao castelo.
Várias horas depois Severn, coberto de suor, subiu a escada de pedra que estava sobre a cozinha e entrou nas habitações de Iolanthe. Ali, o luxo da sala ampla e ensolarada era assombroso: o ouro brilhava, os bordados de seda reluziam, as jóias que adornavam os vestidos das damas fulguravam, mas o que de longe parecia mais formoso na habitação era a própria Iolanthe. Sua beleza, figura, voz e movimentos eram todos perfeitos, de uma beleza tão deliciosa que frequentemente as pessoas não podiam falar quando a viam.
Quando percebeu a cólera de Severn, moveu uma mão ordenando a suas três damas que fossem a seus quartos. Verteu um delicioso vinho em um copo de ouro, entregou—o a Severn e quando este o esvaziou de uma só vez, ela voltou a enchê—lo.
—Explique—se —disse ela em voz baixa.
—Trata—se dessa condenada mulher —disse Severn.
Io sabia a quem se referia, porque este vinha queixando—se já fazia certo tempo da nova esposa de Rogam.
—É uma Dalila —adicionou. —Está apoderando—se da alma de Rogam, governa—o e domina os homens, os criados, os camponeses... inclusive a mim. Ordenou que minha habitação fosse caiada! Para ela não há lugar sagrado, invade o quarto de meditação de Rogam e ele nem sequer a repreende.
Io estava olhando—o com ar reflexivo.
—E o que passou hoje?
—Não sei como o fez, mas o certo é que persuadiu a Rogam de que trouxesse para o castelo a um dos bastardos de nosso pai, e eu devo adestrá—lo. É um comerciante de lãs.
Severn disse isto com verdadeiro horror.
—Por que tem esse fardo pela frente?
Severn desviou o olhar.
—Esse homem teve sorte com as varas e nunca será um cavalheiro, por muito que essa mulher o deseje. E ouvi dizer que ela esteve hoje junto a Rogam, julgando casos. O que fará depois? Ele lhe pedirá permissão para urinar?
Iolanthe observou Severn, percebeu seu ciúme e perguntou—se como era essa esposa de Rogam. Io se mantivera encerrada em seus bonitos quartos, abandonava—os só para passear—se pelas muralhas e observar o que acontecia debaixo. Ao princípio pensava que uma mulher jamais conseguiria mudar Rogam, um homem obstinado, insensível e consumido pelo ódio; mas o passar das semanas demonstrou que se equivocou. Iolanthe e suas damas viram assombradas como se limpava o castelo (Iolanthe e suas damas se negavam sequer descer a escada através da sujeira), e ela tinha escutado as moças da cozinha relatar anedotas durante horas a respeito do que estava fazendo a Dama de Fogo. Agradava—lhe sobre tudo o episódio quando lady Liana aproximara a tocha do colchão em que descansavam Rogam e uma de suas prostitutas.
—Deveria tê—lo feito faz muito tempo —disse então.
Io voltou os olhos para Severn.
—Então, ele a ama?
—Não sei, é como se essa mulher o tivesse enfeitiçado. Está lhe arrebatando sua força. Hoje, durante o treinamento eu o derrubei.
—Não é possível que isso tivesse a ver com o fato de que você estava zangado e ele não?
—Antes de que ela chegasse, Rogam sempre estava zangado. Agora... sorri!
Io não pôde evitar sorrir também. Fazia todo o possível para manter—se à margem da disputa entre os Peregrine e os Howard porque o único que lhe importava era Severn. É obvio, não falava com o jovem de amor. Muito tempo atrás adivinhara que a só menção da palavra amor ele poria—se a correr. E agora compreendeu que tinha razão, estava furioso porque seu irmão amava sua esposa.
Io se perguntou como fizera Liana para conseguir que Rogam lhe prestasse atenção. Não era por sua beleza, pois Io tinha visto mulheres realmente formosas tratando de seduzir Rogam e entretanto ele nem sequer olhava; e ouviu dizer que essa pequena esposa do senhor do castelo era bonita, mas certamente não uma beleza. Não era a formosura o que atraía os homens da família Peregrine, porque nesse caso Severn teria se apaixonado por Iolanthe.
Enquanto olhava Severn, cujo rostos de feições regulares estava manchado pela cólera, pensou que venderia sua alma ao demônio para obter que ele a amasse. Sim, ele lhe fazia amor, consagrava—lhe certo tempo, inclusive lhe pedia conselho para resolver alguns problemas; mas ela não se enganava acreditando que ele a amava, de modo que aceitava o que Severn lhe dava e nunca lhe permitia saber que desejava mais.
—Como é esta mulher? —perguntou—lhe.
—Intrometida —resmungou Severn. Intromete—se nos assuntos de todos, quer dirigir todo mundo... os cavalheiros, os camponeses, Rogam, a todos. E tem uma mentalidade muito simples, está convencida de que se limpa algo, resolverá o problema. Estou seguro de que acredita que se nos banhássemos com os Howard, poderíamos nos perdoar uns aos outros.
—Que aspecto tem?
—Comum, feia. Não sei o que lhe vê Rogam.
Tampouco sabia Io, mas queria averiguá—lo.
—Irei jantar amanhã de noite no grande salão —anunciou.
Durante um momento Severn se mostrou espantado. Sabia que Io não simpatizava com Rogam, e que o castelo, fora de seu apartamento, repelia—a.
—Bem —disse finalmente —possivelmente possa ensinar a Liana a comportar—se como uma autêntica mulher. Convida—a a passar o dia contigo, mantém—na fora do tribunal e os camponeses e longe de meu irmão. Possivelmente se obtiver que se ocupe de seus próprios assuntos, as coisas possam voltar a ser o que eram antes.
Io pensou: ou possivelmente ela possa me ensinar como deve comportar uma mulher. Mas não disse nada a Severn.
Por milésima vez apareceu Liana à janela. Ontem, Rogam havia voltado do campo de treinamento e seu bom humor tinha desaparecido. Do momento em que retornaram da feira, mostrou—se tão carinhoso, tão semelhante ao homem que Liana sentia que ele podia ser... mas de noite esteve áspero e irritado. Encerrou—se em seu quarto de meditação, como Zared o chamava, e não lhe permitiu entrar.
Nessa mesma noite, tarde, ele se aproximou da cama e se deitou ao lado de Liana; sonolenta, ela apertou seu corpo contra o de Rogam. Durante um momento temeu que ele a rechaçasse, mas de repente a agarrou e sem dizer uma palavra lhe fez amor violentamente. Liana quase se queixou de tanta ferocidade, mas seu instinto lhe aconselhou que se calasse, porque ele a necessitava.
Depois, ele a abraçou com força.
—Diga—me o que aconteceu —murmurou Liana.
Durante um momento, pensou que ele possivelmente falaria, mas Rogam se afastou, deu—lhe as costas e dormiu. Pela manhã abandonou o leito e se afastou sem dizer uma palavra.
De modo que agora ela estava esperando que ele retornasse do campo de treinamento para comer. Durante o jantar ele esteve com seus homens, deixando Liana só com suas damas e Zared, foi uma refeição solitária.
Io se vestiu cuidadosamente para descer; nunca prejudicava mostrar—se com a melhor aparência quando estava com um homem.
Ao entrar no grande salão, reinava um denso silêncio. Zared, Severn e Rogam estavam sentados, comendo e ninguém falava. Liana adivinhou que a cólera de Rogam tinha algo que ver com seu irmão, mas não tinha ideia da causa. Poderia haver perguntado a Zared, mas preferia que Rogam lhe contasse o que acontecera.
Sentou—se à esquerda de Rogam, começou a comer depois que lhe serviram e procurou um tema de conversação.
—Baudoin veio hoje? —perguntou.
Parecia impossível, mas o certo é que o silêncio se acentuou e como os dois maiores não disseram nada, Liana olhou Zared.
—Não é mau guerreiro —comentou o moço. —Mas pelo resto nosso pai sempre engendrou bons homens.
—Não é nosso irmão —resmungou Severn.
Zared o olhou com dureza.
—É meu irmão tanto como o é você.
—Eu lhe ensinarei quem é um Peregrine e quem não o é —replicou Severn.
Os três ficaram de pé ao mesmo tempo, Severn procurou o pescoço de Zared e Rogam se enfrentou com Severn.
A cena se viu interrompida pela chegada de uma mulher. Liana olhou sob o arco formado pelas mãos de Severn sobre o pescoço de Zared e abriu espantado os olhos. De pé na soleira se encontrava a dama mais formosa que jamais vira. Não, não era só bela: perfeita, impecável, um paradigma permanente de beleza. Estava embelezada de seda de ouro, de modo que a via radiante, como um pilar de luz de sol em uma noite escura.
—Vejo que nada mudou —disse. Sua voz era fria e cortante, e imediatamente conseguiu que todos se acalmasse. Adiantou—se com a graça de um anjo, quase flutuando, arrastando detrás vários metros de tecido debruado de pele.
—Severn —disse, e olhou—o como uma mãe poderia fazê—lo com um menino desobediente.
Este deixou cair imediatamente as mãos e pareceu um tanto envergonhado. Obediente, aproximou uma cadeira de Iolanthe, que depois de sentar—se, olhou aos três Peregrine, que ainda estavam de pé.
—Podem sentar—se —declarou, como uma rainha que reparte uma ordem.
Liana não podia afastar seus olhos dela. Era o que todas as mulheres ansiavam ser: tão formosa, tão elegante, tão graciosa... e o que era melhor, conseguia que os homens se mostrassem dispostos a servi—la.
—Io, nos honra com sua presença —disse Rogam. —Por que?
A hostilidade em sua voz era inequívoca e quando Liana o olhou, viu que quase havia um gesto de brincadeira em seus lábios, e essa brincadeira a agradou muito.
—Vim conhecer sua esposa —respondeu.
Liana quase perguntou: A mim? Mas se conteve e respirou fundo. Se Rogam esquecia de novo seu nome em presença desta formosa mulher, ela sentiria que o mundo se acabara.
—Liana, Iolanthe —apresentou—as e continuou comendo.
Por pouco, pensou Liana, e perguntou—se se o ferreiro poderia fabricar uma marca com seu nome e aplicá—la ao antebraço de Rogam, onde ele pudesse vê—lo quando o esquecesse.
—Olá —disse Liana. O que podia dizer a essa senhora? —Comprou o tecido de seu vestido em Londres?
—Na França, meu marido é francês.
—Oh! —dirigiu a Io um sorriso descolorido.
A comida foi de mal em pior, Rogam não falou; Severn não pronunciou uma palavra. Zared parecia tão intimidado como Liana pela dama. Só Iolanthe se mostrava confortável, três de suas próprias donzelas estavam de pé detrás de sua ama servindo—lhe seu alimento em fontes de ouro. Não dizia nada, mas observava com curiosidade ao resto sobre tudo a Liana, que se sentiu tão nervosa que não pôde tomar sua sopa.
Finalmente, Iolanthe ficou de pé para sair e Liana sentiu que o alívio lhe afrouxava os músculos.
—É muito formosa —disse a Severn.
Este, com o nariz afundado na terrina de sopa, limitou—se grunhir.
—Seu marido não está um pouco preocupado porque ela vive aqui com você?
Severn dirigiu para Liana um olhar carregado de ódio.
—Pode interferir nos assuntos de outras pessoas, mas não em meus. Io é meu assunto, não seu.
Liana se desconcertou ante a animosidade de Severn. Olhou a Rogam, esperando que ele se jogasse sobre seu irmão, mas parecia que Rogam não ouvira nada.
—Não pretendi lhe insultar —disse Liana. —E tampouco quero interferir. Só pensei que...
—Não quisera interferir! —burlou—se Severn. —É o único que tem feito desde sua chegada. Mudou tudo: o castelo, o terreno, os homens, os camponeses, meu irmão. Mulher, advirto—lhe que deve manter o nariz fora de meus assuntos e deixar em paz a Iolanthe, não quero que ninguém a corrompa.
Liana se recostou no respaldo de sua cadeira, assombrada ante este ataque. De novo olhou a Rogam. Por que ele não a defendia? Olhava—a interessado e de repente compreendeu que estava provando—a. Podia ser uma Peregrine por matrimônio, mas ainda devia demonstrar realmente se o era.
—Está bem —disse serenamente a Severn —podem ter tudo o que tinham antes de minha chegada. —Ficou de pé, aproximou—se da lareira, onde havia cinzas frias da manhã, apoderou—se da grande concha de sopa que estava perto e encheu—a deste pó. Atravessou a habitação para onde estava Severn, todas os olhares cravados nela; derrubou as cinzas sobre a comida e as roupas de seu cunhado. —Já está —disse. —Agora está sujo, como seu alimento. De hoje em adiante me ocuparei de que tenham tudo o que sempre tiveram.
Severn, manchados o queixo e as roupas, furioso ficou de pé. Suas mãos convertidas em garras procuraram o pescoço de Liana.
Esta empalideceu e retrocedeu um passo.
Mas não chegou a ela porque Rogam, sem afastar os olhos do osso cuja carne estava mastigando, moveu o pé no caminho de seu irmão e o enviou ao piso.
Quando Severn recuperou o fôlego, rugiu: —Será melhor que faça algo com esta mulher.
Rogam limpou a boca com a manga.
—Parece que pode cuidar—se sozinha.
Liana nunca se havia sentido tão orgulhosa em sua vida. Tinha passado na prova!
—Mas não me agradaria que lhe pusesse a mão em cima —continuou Rogam.
Severn ficou de pé e sacudiu as cinzas que cobriam suas roupas, impecáveis poucos minutos antes (Liana ordenara às criadas que lhe lavassem a roupa). Olhou de novo a jovem.
—Mantenha—se longe do Io —murmurou e saiu da habitação.
Liana se sentiu exultante, estes Peregrine tinham suas próprias normas de conduta, mas ela começava a entendê—las e, o que era melhor, Rogam em efeito a defendera. Não das frases odiosas, mas quando o irmão pudesse prejudicá—la fisicamente.
Sorrindo não só visivelmente mas também também no mais profundo de seu ser, Liana voltou a sentar—se à mesa.
—Mais ervilhas, Zared? —perguntou.
—Ervilhas, limpas? —perguntou Zared com fingido temor. —Como eu gosto das ervilhas? Limpas, como me agradam minhas roupas e meu quarto e os camponeses e os homens e meu irmão?
Liana riu e olhou seu marido, e este homem magnífico lhe piscou um olho.
Essa noite, mais tarde, Rogam a abraçou e a beijou e meigamente lhe fez amor. Ao parecer, o que estivera incomodando—o havia se resolvido.
Depois, ele não se afastou, apertou—a contra seu peito
Liana ouviu sua respiração suave e lenta enquanto dormia.
—Iolanthe não é a Dama —disse Liana com voz sonolenta.
—Que dama? —murmurou Rogam.
—A Dama que vive sobre o solar, a que me falou de Jeanne Howard. Não é Iolanthe, portanto, quem é?
—Ninguém vive sobre o solar... pelo menos ninguém vivia, até que você chegou.
—Mas... —disse Liana.
—Chega de falar e durma, ou deixo—a aos cuidados de Severn.
—Sim? —replicou ela fingindo que a proposta lhe interessava. —É terrivelmente belo. Talvez...
—Informarei a Iolanthe sobre isto que acaba de me confessar.
—Já estou dormindo —apressou a dizer Liana. Preferiria confrontar a Severn antes que a terrível Iolanthe.
Enquanto se sumia no sonho de novo se perguntou quem era a Dama.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 14

À manhã seguinte chegaram ao castelo Gaby e seus filhos, e por fim houve alguém com quem Liana pudesse falar. E o que era melhor, Gaby lhe explicou o desacordo de Rogam e Severn a respeito de Baudoin.
—Mas, meu marido me defendeu? —perguntou Liana.
—Oh, sim, minha senhora. Disse a lorde Severn que fechasse a boca. Este fez todo o possível para obter que meu Baudoin se retirasse, retornando à aldeia, mas meu Baudoin jamais partirá.
—Não —disse Liana com expressão resignada. —Parece que os Peregrine jamais abandonam ou retrocedem, nem sequer suavizam sua atitude.
—Não é assim, minha senhora —respondeu Gaby. —Lorde Rogam mudou desde que vocês chegaram. Ontem, enquanto cruzaram a ponte, lorde Rogam cessou em seus gritos para um dos cavalheiros e observou—os.
—Sim? —Essas palavras soaram muito doces nos ouvidos de Liana. —E em efeito me defende frente a seu irmão?
—Oh, sim, minha senhora.
Parecia que Liana não se cansava de escutar Gaby.
Às vezes estava persuadida de que não exercia a mínima influência sobre Rogam, que ele ainda não atinava a recordar como se chamava, mas agora sim; nessa mesma manhã a abraçou e beijou, murmurando seu nome ao ouvido.
Três semanas depois da chegada de Baudoin e Gaby, Rogam e Severn continuavam tão distanciados que apenas se falavam. Liana tentou que Rogam lhe explicasse a causa de sua irritação, mas ele não cedeu. No entanto, na cama a abraçava com força. Ela sentia a necessidade de Rogam de que Liana lhe desse toda a doçura que faltara durante sua infância.
Pelas noites, depois do jantar, às vezes ele chegava ao solar com Liana, instalava—se em uma poltrona estofada para escutar uma das damas que tocava o alaúde e cantava. Liana começara a lhe ensinar a jogar xadrez, e quando ele compreendeu que era um jogo de estratégia, bastante parecido à guerra, logo se converteu em um jogador eficaz. Zared se reunia com eles e Liana se sentiu satisfeita de ver o jovem sentado no piso, com as pernas cruzadas, sustentando uma meada de linho que uma das mulheres convertia em novelo. Uma noite Rogam estava sentado junto à janela com Zared muito perto, no piso; Liana pôde ver como seu marido estendia a mão e acariciava a cabeça de seu irmão. O moço lhe sorriu com uma expressão que demonstrava tanto amor, confiança e adoração que Liana sentiu que lhe dobravam os joelhos.
À medida que passavam os dias, ela notava que o amor por seu marido era mais profundo e mais intenso. Desde o começo soube que nele havia mais que o que mostrava às pessoas, que existia uma face doce em seu caráter.
Não era que esse aspecto tenro fosse facilmente visível, mantiveram algumas discussões realmente escandalosas. Rogam se negava a acreditar que Liana servisse para outra coisa que para o prazer da cama e fornecer—lhe comida e bebida. E não importava quantas vezes lhe demonstrou o contrário, ele não recordava e muito menos reconhecia algo que Liana fizera.
Embora tinha passado a prova e Rogam inclusive brincava a respeito com ela, em definitivo teve que disputar com ele para obter que lhe permitisse ajudar no julgamento das questões locais, recordando—lhe o episódio dos ladrões de ovelhas; mas isso não mudava as coisas. Rogam decidira que ela não podia intervir nos julgamentos e por muito que usasse razões ou argumentos lógicos, não conseguia dissuadi—lo.
Finalmente, Liana pôs—se a chorar. Rogam não era homem que se comovesse muito pelas lágrimas de uma mulher, mas detestava que Liana não sorrisse. Parecia acreditar que era obrigação de sua esposa mostrar—se sempre feliz e corajosa. Depois de um dia e meio contemplando seu rosto triste, Rogam cedeu e disse que podia acompanhá—lo durante as sessões do tribunal.
Ela jogou seus braços ao pescoço, beijou—o... e depois, beliscou—lhe as costelas.
Severn, ao entrar no grande salão, viu rodando os dois sobre o piso, o toucado de Liana desamarrado e os cabelos caindo sobre as costas, enquanto fazia cócegas no irmão mais velho, que rolava de rir. A cólera de Severn imediatamente os acalmou.
Liana pensou: Severn. Ainda a assombrava que seu cunhado pudesse lhe provocar tanta infelicidade. Depois de sua chegada, durante os primeiros tempos, parecia que ele estava de seu lado, mas ao mudar Rogam, também o fez Severn. Agora era quase como se a odiasse e fazia todo o possível para voltar Rogam contra sua mulher e este jamais mencionava o que estava acontecendo. Toda a informação vinha de Gaby. No campo de treinamento Severn ofendia seu irmão e ridicularizava—o porque se deixava dirigir por uma mulher.
Quanto mais conhecia Liana o que estava fazendo Severn, mais comodidades tratava de oferecer a Rogam. Pelas noites, às vezes, percebia que ele estava esgotado, como se em seu foro íntimo se livrasse um combate para determinar se devia entregar—se aos prazeres do solar onde ela reinava ou permanecer sozinho em sua câmara de meditação.
Esta câmara provocou a segunda rixa importante: depois que ele passou duas noites sozinho no quarto, Liana entrou. Não bateu na porta nem pediu permissão para fazê—lo, limitou—se a entrar, o coração pulsando com força. Ele gritou, blasfemou e protestou, mas em seus olhos havia algo que dizia a Liana que na realidade não lhe importava essa intromissão .
—O que é isso? —perguntou ela, assinalando a pilha de papeis sobre a mesa.
Ele blasfemou um pouco mais, mas finalmente lhe mostrou seus esboços. Ela não sabia muito de máquinas de guerra, só conhecia um pouco os artefatos dos campos, mas isso não era muito diferente. Formulou algumas sugestões, que foram eficazes.
Tinha sido uma bela noite, os dois juntos nesse recinto, inclinados sobre os papéis.
Várias vezes Rogam lhe perguntou: —Assim? ou: —Isto é melhor? ou: —Sim, acredito que assim poderia funcionar.
Como ocorria com freqüência, Severn arruinou a noite. Empurrou a porta entreaberta e permaneceu olhando—os.
—Ouvi dizer que ela estava aqui —declarou em voz baixa —mas não quis acreditar. Esta habitação era sagrada para nosso irmão Rowland e para nosso pai. Mas agora você permite que entre uma mulher. E para que? —Fez um gesto em direção aos esboços depositados sobre a mesa. —Para explicar—lhe o modo de construir máquinas de guerra? Em você não ficam nem restos de homem?
Liana, satisfeita, viu que quando Severn saiu se coçava furiosamente um braço, sabia que de novo os piolhos infestavam sua roupa e esperava que o comessem vivo. Voltou—se para seu marido.
—Rogam... —começou a dizer.
Mas ele já se pôs de pé. Deixou—a sozinha na habitação e pelo que ela soube posteriormente, não voltou a visitar o lugar.
Recordou a figura de Rogam, esmigalhado por essa luta íntima. Algo em sua personalidade desejava a doçura e ternura que lhe oferecia, mas por outro lado queria agradar a seu colérico irmão. Treinava e trabalhava muitas horas diárias, tratando de ser o líder dos Peregrine, de demonstrar a seus homens e sobre tudo a seu irmão que ainda era digno da posição que ocupava à frente de todos. E de noite nunca se rendia de tudo para gozar dos prazeres que Liana lhe oferecia.
Mas a terceira rixa derrubou o tabuleiro e determinou que Rogam se unisse ao Severn contra ela.
Liana fervia de fúria enquanto descia depressa a escada para dirigir—se ao salão. Ambos os irmãos estavam sentados frente à mesa, tomando o café da manhã tranquilamente, mas sem falar—se.
Liana estava tão irritada que mal podia falar.
—Você... seu irmão estava deitado com três mulheres esta manhã —cuspiu a Rogam.
Este olhou Severn, assombrado.
—Três? Eu nunca passei de quatro e à manhã seguinte estava esgotado.
—Quando foi isso? —perguntou Severn, como se Liana não estivesse ali.
—Faz um ano, no torneio de..
—Não me refiro a ele! —gritou Liana. —Falo de Zared! Seu irmãozinho, esse menino, passou a noite com três mulheres.
Os dois se limitaram a olhá—la estupidamente. Liana duvidou de que eles tivessem a mínima ideia de que havia algo mau em que Zared se deitasse com três mulheres.
—Não tolerarei —disse. —Rogam, tem que impedir isto.
Como se desejasse acentuar a fúria de Liana, os olhos de Rogam começaram a advertir.
—Sim, terei que fazer algo.
—Não adote comigo esse ar protetor, esse moço o admira, idolatra—o. Acredita que é o sol e a lua e estou segura de que não faz outra coisa que imitá—lo.
Severn sorriu e aplaudiu as costas de Rogam.
—Sim, é claro, imita a seu irmão maior —disse rindo.
Liana se voltou para Severn e sua irritação com ele agora era evidente.
—Pelo menos, Rogam faz um esforço. Mas você! Você, com uma amante casada vivendo sob o mesmo teto que este menino inocente.
Severn ficou de pé e a olhou com ódio.
—Minha vida não é assunto que lhe corresponda —gritou. —E Zared é...
Rogam ficou de pé e interrompeu seu irmão.
—Ocuparemo—nos de Zared.
—Como se ocupa de todo o resto, inclusive sua mulher ... ? – burlou Severn, e saiu furioso da habitação.
Rogam viu afastar—se seu irmão e desabou pesadamente em sua cadeira. As palavras de Severn o tinham comovido.
—Esse homem necessita uma esposa —disse Liana.
—Uma esposa? —perguntou Rogam. —Iolanthe arrancaria os olhos da rival.
Ele parecia tão deprimido, sentado ali, que Liana sentiu desejos de dizer algo que o distraísse.
—Teremos que achar uma mulher tão forte que possa dirigir Severn e Iolanthe.
—Não existe uma mulher assim.
Liana lhe acariciou a testa.
—Não? Eu consegui dominá—lo e é mais forte que vinte Severn e Iolanthe.
Havia dito isto em brincadeira, mas Rogam não pareceu interpretá—lo assim e olhou—a, os olhos brilhantes de cólera.
—Nenhuma mulher me controla —murmurou.
—Não quis sugerir... —começou a dizer Liana, mas ele ficou de pé, sua expressão ainda irritada.
—Nenhuma mulher me controla ou impõe—se a minha família. Mulher, volta para sua costura, onde deveria estar.
Deixou—a sozinha no salão todo o dia, a tarde e a noite. Ela estava aflita pela inquietação, porque tinha a certeza de que ele se encontrava com outra mulher.
—Matarei—a tão lentamente que ela rogará que lhe chegue a morte —murmurava Liana, enquanto caminhava por seu dormitório.
A meia—noite foi ver Gaby, arrancou—a dos braços de Baudoin e conseguiu que descobrisse onde estava Rogam. Ela não necessitou muito tempo para retornar e informar que Rogam estava no grande salão embebedando—se com meia dúzia de seus homens.
Em realidade, a notícia obteve que Liana se sentisse bem. Seu marido estava tão transtornado como ela pela discussão que mantiveram. Já não a ignorava, nem deixava de identificá—la entre um grupo de mulheres.
Quando por fim foi deitar, se não dormiu profundamente, pelo menos pôde conciliar o sonho.
Despertou antes do alvorada ao escutar o som inconfundível do aço contra o aço.
—Rogam —disse, o coração oprimido pelo temor. Colocou uma bata e pôs—se a correr.
À alvorada, os Howard tinham tratado de introduzir—se no castelo dos Peregrine. Arrojaram grandes ganchos sobre os parapeitos e começaram a subir pelas cordas.
Passaram muitos meses desde o último ataque dos Howard e os Peregrine estavam tão comprometidos em suas próprias disputas internas que terminaram por sentir—se seguros. A vigilância se atenuou e não mantinham os sentidos tão alerta.
Doze dos vinte atacantes escalaram o muro antes de que os sonolentos guardas que vigiavam os parapeitos conseguissem ouvi—los. Dois cavalheiros Peregrine pereceram sem haver sequer despertado.
Rogam, que dormia no grande salão mergulhado em um torpor alcoólico, despertou dificultosamente e Severn chegou ali antes de que Rogam tivesse consciência do que estava acontecendo.
—Inspira—me asco —disse Severn —jogou uma espada a seu irmão e saiu correndo do salão.
Rogam compensou o tempo perdido, se sua cabeça não se esclareceu instantaneamente, seu corpo recordou o prolongado treinamento. A chutes despertou a seus homens e poucos segundos depois estava no pátio combatendo ao lado de Severn e Baudoin.
Não necessitou muito tempo para liquidar os atacantes e quando Severn se dispunha a matar o último, Rogam o impediu.
—Por que? —perguntou ao invasor. —O que quer Oliver Howard?
—À mulher —respondeu. —Tínhamos que capturá—la e levá—la. —O homem sabia que morreria pouco depois e dirigiu a Rogam um olhar insolente. —Disse que seu irmão menor necessita de uma esposa e as mulheres Peregrine são excelentes para os Howard.
Rogam o matou: afundou uma faca em seu coração, revolveu—o e continuou revolvendo—o até que Severn o separou de um empurrão.
—Está morto —disse Severn. —Estão todos mortos. E também quatro de nossos homens.
O temor começou a insinuar—se no corpo de Rogam. Se Severn não estivesse ali.. ele se embebedou um pouco mais... se seus homens não tivessem ouvido... Talvez agora teriam Liana em seu poder.
—Quero que inspecionem este lugar —disse. —Que controlem todos os celeiros, os banheiros, os cofres. Quero ter a segurança de que aqui não há homens dos Howard. Em marcha! —gritou aos subordinados que estavam perto.
—Pelo menos se inquieta pelos Howard —disse Severn. —Mas só por ela colocou em perigo a vida de todos... a minha, a de Zared, inclusive a sua. Arrisca por ela a escassa propriedade que fica, não se importa que esta noite quatro de seus homens tenham morrido e uma dúzia esteja ferida, porque dormiu bêbado. E por quê? Por causa de uma briga com essa mulher? Matou dois irmãos por uma esposa. Necessitará que morra o resto dos Peregrine para se sentir satisfeito?
Nesse momento Liana desceu voando a escada, os longos cabelos loiros flutuando. A bata entreabrindo—se e mostrando as pernas esbeltas e nuas. Jogou—se sobre Rogam, e rodeou—lhe o pescoço com os braços.
—Está a salvo —exclamou e suas lágrimas umedeceram o ombro de Rogam. —Estava aterrorizada por você.
Durante um momento Rogam esqueceu os homens ensanguentados que estavam ao redor, assim como seu irritado irmão e abraçou à tremente Liana. Só graças à sorte ela ainda estava ali e não tinha sido capturada pelos homens de Howard. Acariciou—lhe os cabelos e a acalmou.
—Estou ileso —murmurou.
Levantou os olhos e viu a expressão de um de seus homens, um soldado de seu pai, um homem que tinha seguido Rowland à batalha, e viu repulsão no guerreiro. Desgosto porque um Peregrine estava ali, à luz do alvorada, com dois homens mortos a seus pés, fazendo carinhos em uma mulher.
Nas últimas semanas percebeu que seus homens o apoiavam frente a Severn, porque nunca fugira do treinamento; não o viram sentado no solar com sua esposa, sentado de noite escutando o canto das mulheres. Tampouco o viram permitindo que sua esposa lhe ajudasse a desenhar máquinas de guerra.
Mas agora, pelas expressões dos guerreiros, Rogam compreendeu que seus sentimentos de lealdade acabavam de modificar—se. Como seguir um homem que, por causa de uma disputa com sua esposa, estava muito bêbado para escutar os movimentos dos atacantes? Como podia ele controlá—los? Na peça teatral representada na aldeia, os camponeses mostraram como um indivíduo "domesticado" cuja esposa lhe pôs uma corrente e sujeitava—o com uma coleira. Naquele momento a ideia parecera absurda, mas agora Rogam compreendeu que a peça continha certo elemento de verdade.
Tinha que afirmar seu controle sobre os homens ou perderia definitivamente seu respeito.
Afastou bruscamente Liana e empurrou—a.
—Volta para a casa, mulher, onde deveria estar.
Liana, que tinha certa ideia da vergonha de Rogam, ajustou os ombros.
—Ajudarei. Quantos feridos há?
Voltou—se para o homem que olhava a Rogam com escasso respeito.
—Leva estes homens à cozinha, ali estarão mais protegidos e traz...
Rogam tinha que detê—la.
—Obedeça! —rugiu.
—Mas aqui há feirdos.
Seus homens, feridos e ilesos, observavam—no atentamente e Rogam compreendeu que era agora ou nunca.
—Casei—me contigo por seu dinheiro —disse com voz neutra, e em voz bastante alta para que ouvissem seus homens —e não por seu conselho ou sua beleza.
Liana sentiu como se recebesse um chute no estômago, quis responder, mas fechou—lhe a garganta e não pôde falar. Intuiu sorrisos ao redor dela. Estavam frente a uma mulher que fora posta em seu lugar. Voltou—se lentamente e começou a caminhar para o castelo.
Durante um momento Rogam quase a seguiu, mas se conteve.
—Transladem estes homens —disse. Essa noite tentaria compensá—la, possivelmente um presente. Tinha—lhe agradado muito esse bonequinho da feira, e talvez...
—Aonde os levamos? —perguntou Severn.
Rogam viu de novo respeito nos olhos de seu irmão.
—Ao grande salão —disse. —E traz sanguessugas para curá—los. Depois, que venham aqui os homens que hoje estavam de guarda.
—Sim, irmão —disse Severn, e durante um momento apoiou a mão no ombro de Rogam.
Este teve a impressão de que essa mão descarregava sobre ele uma pesada responsabilidade.
—Fê—lo —disse orgulhosamente Severn a Iolanthe —sabia que quando precisássemos estaria ali. Tivesse—o visto ontem pela manhã: "Casei—me contigo por seu dinheiro, não por seus conselhos ou sua beleza." Disse—lhe; agora, talvez ela deixe de intrometer—se nos assuntos dos Peregrine.
Io o olhou sem deixar de trabalhar em seu bordado. Tinha escutado todos os detalhes do episódio da véspera.
—Onde dormiu ontem à noite seu sábio irmão?
—Não sei. —Severn vacilou. —Possivelmente com seus homens; eu teria derrubado a porta do dormitório, essa mulher necessita que lhe deem uma lição.
Io observou que Severn se coçava; tinha sido muito agradável vê—lo limpo durante um tempo.
—Conseguiu que o castelo volte a ser o que era, seu irmão dorme com seus homens e imagino que se sente tão desgraçado como antes. Suponho que agora não sorri, não é?
Severn ficou de pé e foi para a janela. Zared havia dito que ele estava com ciúme e ele começava a perguntar—se se esse julgamento era certo. A véspera, Severn tinha se imposto: Obrigou a Rogam a desprezar publicamente sua esposa, a ordenar que se afastasse. E o que obtivera? As últimas vinte e quatro horas foram lamentáveis. Severn não notou o quanto tinha mudado Rogam desde que se casou com essa mulher.
Retornou em plenitude o antigo Rogam. No campo de treinamento era um chefe cruel, fraturou o braço de um cavalheiro que não demonstrou suficiente rapidez, abriu a face de outro. E quando ele protestou, um golpe de Rogam o enviou ao chão.
Severn se voltou para Io.
—Rogam está tão irritado como esteve sempre.
Iolanthe adivinhou os pensamentos de seu interlocutor, não havia malícia na personalidade de Severn... e essa era uma das razões pelas quais ela o amava. Mas a semelhança da maioria dos homens, não lhe agradava a mudança. Tinha amado e venerado seus irmãos maiores, viu—os morrer um por um, até que só ficou Rogam. E agora temia perdê—lo também.
—Então, o que pensa fazer para obter que se reconciliem? —perguntou Io, enquanto costurava o fio de ouro sobre o tecido.
—Reconciliem? —exclamou Severn. —E que Rogam descanse no solar a tarde inteira? Esta casa presenciará sua própria destruição, os Howard matarão—nos enquanto dormimos. E também...
—Rogam os matará à força de exercícios a não ser se modifique esta situação.
Severn abriu a boca para contradizê—la, mas não o fez, e se acomodou melhor na cadeira.
—Suponho que ela não é tão ruim —raciocinou ele depois de um momento. —E talvez o lugar em efeito necessitava de uma limpeza. —Olhou Io. —Está bem, muita limpeza, mas ela não tinha que...
Interrompeu—se, sem saber muito bem o que dizer.
—Não precisava absorvê—lo tão completamente —disse finalmente.
—Ama—o —disse Io. —E isso é fatal em uma mulher. —Olhou com amor a Severn mas ele não notou. Iolanthe admirava essa pálida e desajeitada Liana, que tinha sido capaz de fazer o que Io não conseguira. —Convida para jantar a Liana, dizendo que o convite vem de Rogam; e convida a Rogam da parte de Liana.
Severn coçou furiosamente o ombro.
—Acredita que ordenará lavar minhas roupas?
—Estou segura de que o fará, se devolver—lhe Rogam.
—Pensarei—o —disse Severn em voz baixa. —Se Rogam piora, considerarei—o.
—Acredita que pode me reconquistar tão facilmente? —perguntou Liana a Gaby. Estavam sozinhas na habitação, pois aquela despediu das restantes mulheres. —Acredita que um só convite que me envie obterá que volte me arrastando até ele? Depois de modo em que me humilhou?
—Mas minha senhora —disse Gaby em tom de súplica —às vezes os homens dizem coisas sem pensar e já passou uma semana inteira. Baudoin disse que lorde Rogam está pior que nunca, que jamais dorme nem dá descanso aos homens. Reforçou os guardas nos parapeitos, e o que pisca nada mais recebe que um turno de chicotadas.
—E isso o que me importa? Ele tem meu dinheiro; é o que quer.
O sentimento muito profundo de ofensa que ela experimentara ante as palavras de Rogam não se acalmou durante a última semana. Enganava—se ao acreditar que Rogam tinha o mínimo interesse nela, havia—a desposado por sua fortuna e dinheiro era tudo o que desejava dela. Agora que já o tinha, não precisava suportá—la mais. Não tentaria mediar entre Rogam e os camponeses, não o perseguiria para obter que lhe permitisse participar dos casos julgados no tribunal. De fato, possivelmente se iria com suas damas a outro castelo que ele possuía, ou possivelmente se retirasse a uma das propriedades que formavam seu dote se ele pudesse privar—se da renda correspondente.
—Propõe rechaçar seu convite? —perguntou Gaby.
—Reunirei uma série de fontes de ouro e as depositarei sobre a cadeira em lugar de minha pessoa. Isso o satisfará, assim não precisará olhar minha cara feia.
—Mas, minha senhora, estou segura de que ele não...
Gaby continuou falando, mas Liana não a escutava. O pensamento do ouro e de sua carência de beleza lhe tinham dado uma ideia.
—Ordena que venha o ferreiro.
—Minha senhora?
—Envie—me o ferreiro, tenho que encarregá—lo de uma tarefa.
—Se me disser do que se trata, eu...
—Não, é um segredo.
Gaby permaneceu imóvel no mesmo lugar.
—Pensa aceitar o convite?
—Oh, sim —respondeu Liana —aceitarei o convite de meu marido, ele terá meu ouro e não precisará olhar minha cara feia.
Gaby tampouco agora se moveu.
—Às vezes é melhor perdoar e esquecer que continuar brigando. O matrimônio é...
—Meu matrimônio se apóia no ouro e nada mais. Agora, parte.
—Sim, minha senhora —murmurou Gaby, e saiu do solar.
Três horas mais tarde, Liana estava vestindo—se para assistir ao jantar que seu marido a havia convidado. Joice a ajudava, pois Liana não desejava suportar a desaprovação de Gaby e certamente estava segura disto, não concordaria com seu plano.
Tampouco queria escutar a desaprovação da Dama. Quando Liana subiu a escada de solar, viu que a porta da Dama estava sem ferrolho e entreaberta.
—Sempre que precise estarei aqui —havia dito e era certo. Quando ocorria uma crise com Rogam, a porta se abria.
Mas nesta noite Liana não queria falar com a Dama, para que não a dissuadisse do que se preparava para fazer, estava muito ofendida e muito ferida para fazer outra coisa. Diria que o perdoava? Se procedia assim, o que faria ele da próxima vez? Podia humilhá—la diariamente e esperar que lhe perdoasse tudo.

Liana ignorou o convite sugerido pela porta aberta da Dama e em troca se vestiu com a ajuda de Joice.
—Fora daqui! —gritou Rogam a Severn. Estavam em um dos quartos que havia sobre a cozinha, que outrora fora ocupado por um dos Dias. Já estava sujo, pois ninguém limpou em uma semana e um enorme rato mastigava um osso em um canto escuro.
—Pensei que talvez desejava usar algo que não cheirasse tão mal... isso é tudo. E talvez queria se barbear.
—Por que? —perguntou Rogam com expressão agressiva. Para comer com uma mulher? Tinha razão, tudo era melhor antes de que ela interferisse, acredito que a enviarei a Bevan.
—E quantos homens terão que sair daqui para protegê—la? Possivelmente os Howard...
—Os Howard podem apoderar—se dela, isso pouco me importa.
Ao dizer isto, Rogam estremeceu. Que essa cadela se fosse ao inferno! Tinha tratado de vê—la depois do incidente, mas ela mantinha fechada a porta. Seu primeiro impulso foi derrubar a porta e demonstrar quem era o senhor da casa; mas chegou à conclusão de que era estúpido preocupar—se. Que continuasse detrás da porta fechada se assim o desejava; isso não lhe importava. Havia dito a verdade quando afirmou que se casou com ela por seu dinheiro.
Mas durante a última semana, ele... bem, foi recordando certas coisas. A risada de Liana, o modo em que jogava os braços ao pescoço quando ele a agradava e suas opiniões e sugestões; evocou seu corpo morno e complacente durante a noite. Também as coisas que ela promovia: a música, a boa comida, um pátio que alguém podia atravessar caminhando sem tropeçar com uma pilha de esterco de cavalo; o dia na feira. Recordou os momentos em que a pegava pela mão, como Gaby lhe tinha lavado os cabelos.
Olhou com hostilidade a Severn. E desde que Io começou a mostrar—se menos amável comigo.
—Desde quando se importa se me visto ou não para minha esposa?
—Desde que encontrei areia em meu pão, faz dois dias.
—Envia—a de retorno com seu marido, e eu despacharei... mal pôde pronunciar seu nome ...eu enviarei longe Liana —disse em voz baixa.
—Provavelmente será melhor para ambos —afirmou Severn. —Pelo menos, haverá mais tranquilidade e poderemos trabalhar um pouco e não teríamos que nos preocupar com a possibilidade de que os Howard nos ataque para apoderar—se de nossas mulheres. Mas, por outra parte, os homens estão queixando pela qualidade do pão. Talvez...
Não terminou a frase.
Rogam olhou a túnica de veludo verde que Severn ainda vestia. Posto que lhe tinha enviado um convite, possivelmente isso significava que ela estava disposta a desculpar—se por havê—lo excluído do dormitório, e por permitir que houvesse areia no pão e ratos nos quartos. E se ela acessava a desculpar—se, talvez ele se mostrasse disposto a perdoá—la.
Liana esperou até que todos os homens de Rogam estivessem sentados no grande salão e Rogam, Severn e Zared ocupassem seu lugar ao redor da mesa principal. Joice ajustou o véu sobre o rosto de sua ama.
—Minha senhora, está segura? —perguntou sombriamente Joice e sua boca com os lábios apertados revelou um sentimento de desaprovação.
—Mais que segura —disse Liana e ajustou os ombros.
Todos os homens e as poucas mulheres que estavam no salão calaram quando Liana entrou, seguida por Joice que sustentava a longa cauda debruada de pele. O rosto de Liana estava coberto por um véu que lhe chegava até a cintura.
Com movimentos lentos e solenes, aproximou—se da mesa principal e permaneceu de pé, esperando, até que Severn deu uma cotovelada em Rogam e este ficou de pé e retirou a cadeira para que sua esposa se sentasse. Quando Liana o fez, os presentes continuaram em silêncio, cravando o olhar no senhor e sua esposa.
Aparentemente, Rogam não sabia como quebrar o silêncio.
—Desejas um pouco de vinho? —perguntou ao fim e sua voz arrancou ecos no amplo salão de alto teto.
Muito lentamente, Liana deslizou as mãos sob o véu e o elevou. Houve uma exclamação em todo o salão quando os presentes a viram: ao redor de seu rosto, penduradas em cordas asseguradas ao toucado, havia moedas: moedas de ouro, de prata e de cobre, que tinham, cada uma, perfurado um buraco para passar por ele uma corda, unido ao toucado.
Enquanto os assombrados presentes olhavam, Liana pegou uma tesoura e cortou uma moeda de prata que pendurava sobre sua testa.
—Meu senhor, isto será suficiente para pagar o vinho? —Cortou uma moeda de ouro. —Isto cobrirá o custo da carne?
Rogam a olhou aturdido, contemplando as moedas que ela separava.
—Não tema, meu senhor —disse Liana em voz alta. —Não comerei tanto que tenha que suportar minha feiura, estou segura de que a contemplação do dinheiro lhe agrada mais que minha cara feia.
Rogam cobrou uma expressão fria e sem dizer uma palavra a Liana, ficou de pé e saiu do salão.
Zared se voltou para Severn, que parecia a beira de um ataque e comentou alegremente:
—Come, Severn. Amanhã é provável que nos deem pedras com o pão e Rogam nos exercitará de tal modo no campo de treinamento que provocará nossa morte; foi muito sagaz com seus intentos de evitar que Liana interferisse.
Com toda a elegância e a dignidade de que era capaz, abandonou o salão.

 

 

 

 

Capítulo 15


—Não! —ordenou Liana asperamente a Gaby e Joice. —Não ponham isso ali, nem para cá. E certamente não mais à frente!
Joice saiu da habitação com a maior rapidez possível mas Gaby permaneceu ali, cravou o olhar na nuca de Liana e mordeu a língua. O que não significava que tivesse calado durante as duas semanas que passaram desde a terrível cena em que lady Liana apareceu com as fileiras de moedas; mas aprendeu que de nada lhe servia falar.
—Tem o que desejava —era tudo o que lady Liana dizia ante as súplicas de Gaby, que reclamava que ela e Rogam se decidissem a conversar.
E lorde Rogam era pior que sua esposa; Gaby induzira Baudoin a falar do tema com o senhor, mas este esteve a um passo de lhe cravar uma lança no peito.
De modo que, por causa da disputa entre amo e senhora, o castelo inteiro, assim como a aldeia, estavam sofrendo. Os padeiros se negavam a entregar pão fresco porque Rogam se negava a pagar; e Liana não queria ter nada que ver com a casa e portanto, de novo havia areia no pão, o pátio estava semeado de esterco porque ninguém ordenava aos homens que o limpassem. Os camponeses passavam fome, o fosso, que tinha menos do meio metro de água, já albergava meia dúzia de putrefatos esqueletos de vacas. Embora este fora antes o modo de vida normal, agora todos se queixavam: dos piolhos e as pulgas que povoavam suas roupas e dos resíduos que se viam obrigados a pisar; do mau humor de Rogam e porque lady Liana não fazia bem seu trabalho. (Ninguém parecia recordar como haviam se oposto a ela nos primeiros tempos.)
Em resumo, ao cabo de duas semanas não havia uma só pessoa, em um raio de quinze quilômetros, que não estivesse afetada por esta discussão entre o senhor e sua esposa.
—Minha senhora —começou a dizer Gaby.
—Não tenho nada que dizer —resmungou Liana. Duas semanas não foram suficientes para acalmar sua irritação. Apesar de todos os esforços possíveis para agradar a seu marido, para ser boa esposa, e ele a ignorara e humilhara em público. Ele, tão bonito, podia acreditar que as pessoas menos agraciadas do mundo não tinham sentimentos a respeito de sua falta de beleza, mas se equivocava. Se acreditava que ela era tão feia, Liana lhe evitaria a moléstia de olhá—la.
—Não se trata de mim —disse Gaby. —A senhora Iolanthe pede para vê—la.
Liana ergueu a cabeça.
—Severn se saiu com a sua, triunfou e seu irmão é o que ele quer que seja, portanto não vejo razão para ver a amante de Severn.
Gaby esboçou um sorriso.
Corre o rumor de que lorde Severn e sua... a senhora Iolanthe, também estão distanciados, possivelmente ela deseja fazer causa comum com você.
Liana ansiava conversar com alguém. Gaby insistia constantemente em que devia perdoar tudo a Rogam e acreditava que ela devia ir desculpar—se ante ele, mas a jovem estava segura de que Rogam a rechaçaria. Como era possível que uma mulher tão feia como ela exercesse influência sobre um homem como Rogam? E como uma mulher que tinha a beleza do Iolanthe podia compreender o problema de Liana?
—Diga que não posso aceitar —respondeu Liana.
—Mas, minha senhora, convida—lhe a seus aposentos. Dizem que antes jamais convidou ninguém a visitá—la.
—É? —exclamou Liana. —Eu devo ir a suas habitações? Eu, a senhora do lugar, devo visitar a amante casada de meu cunhado? Diga que não.
Gaby saiu da habitação e Liana voltou os olhos para seu bastidor de costura. Estava irritada por causa da presunção dessa mulher; mas por outro lado, também sentia curiosidade. O que tinha que a dizer a bela Iolanthe?
O convite se repetiu três dias seguidos e cada vez Liana o rechaçou. Mas ao quarto convite apareceu à janela e ao pátio, viu um dos Dias, o busto generoso pressionando sobre a grosseira lã do gordurento vestido e se voltou para Joice.
—Traz minha túnica de brocado vermelho, a que tem a anágua de seda de ouro, irei visitá—la.
Uma hora depois Liana estava vestida com objetos que destacavam suas melhores feições. Tinha que sair e cruzar o pátio para chegar à escada que conduzia às habitações de Iolanthe, e ao fazê—lo pôde sentir todas as olhadas cravadas nela. Mas olhou para frente e ignorou todo mundo.
Quando por fim chegou ao apartamento e uma criada abriu a porta, Liana necessitou de um momento para recuperar o domínio de si mesma e apagar de seu rosto a impressão de assombro. Nunca vira uma habitação tão luxuosa: fontes de ouro e prata em qualquer parte. Tapetes no piso, espessos, de complicados desenhos. As paredes estavam revestidas com tapeçarias de seda que representavam cenas delicadas, e com uma malha tão intrincada, de uma flor que mal tinha o tamanho de um polegar e incluía pelo menos uma dúzia de cores. O teto de vigas estava pintado com cenas pastorais. As janelas tinham painéis de vidro de cor, com retoques que reluziam como jóias.
E na habitação havia cadeiras esculpidas com assentos acolchoados, trabalhados bastidores de costura, belas arcas tachonadas de marfim. Tudo o que ela conseguia ver transbordava a beleza mais deliciosa.
—Bem—vinda —disse Iolanthe e sua túnica chapeada era o objeto mais formoso da habitação.
—Eu... —Liana respirou fundo para recuperar—se. —Tem algo a me dizer?
Um momento antes, ela pensara na possibilidade de manifestar a esta mulher que sua conduta era imoral e que passaria uma eternidade no inferno porque estava casada com um homem e vivia em pecado com outro; mas na presença de Iolanthe, essas palavras não foram a seus lábios.
—Deseja sentar—se? —Ordenei que preparem algo para comer.
Liana ocupou a cadeira oferecida e bebeu o vinho de um cálice de ouro engastado com rubis.
—Terá que ir a ele —disse Iolanthe. —É muito obstinado para ceder ante você, e além disso, duvido de que saiba como fazê—lo.
Liana depositou o cálice sobre uma mesinha e ficou de pé.
—Não a escutarei. Ele me insultou com frequência e a última ocasião foi a gota que encheu o copo.
Começou a caminhar para a porta.
—Um momento! —chamou Iolanthe. —Por favor, venha. Foi grosseiro de minha parte falar assim.
Liana sei voltou e Io sorriu:
—Perdoe—me. Ultimamente as coisas foram difíceis, Severn está de péssimo humor. É obvio, disse—lhe que toda a culpa é dele, que se não tivesse tido tanto ciúmes de seu irmão, Rogam jamais haveria dito que contraiu matrimônio por dinheiro, e você não teria que apelar às fileiras de moedas.
Liana voltou a sentar—se.
—É certo —disse e tomou outra vez sua taça de vinho. —Em presença de seus homens, disse que não podia suportar minha feiura.
Iolanthe contemplou a jovem loira. Então, pensou, não era pelo dinheiro, era que Rogam insultara a aparência física de sua esposa. Os dois irmãos eram homens tão bonitos e compreendia—se facilmente que uma mulher pudesse sentir—se intimidada por eles. Cada manhã Io estudava sua própria imagem em um espelho e a sua idade estava aprendendo a sorrir sem enrugar a pele ao redor dos olhos. Vivia aterrorizada ante a proximidade do momento em que Severn já não acreditaria que era bela. Não podia imaginar como se sentiria se Severn chegasse a dizer que desejava o dinheiro de seu marido e não à própria Iolanthe.
—Compreendo —disse finalmente.
—Sim —respondeu Liana —eu também compreendo. Pensei que poderia induzi—lo a me amar, pensei que podia chegar a ser indispensável para ele, mas na realidade nunca me necessitou. Tampouco acredito que seja útil a outras pessoas aqui. É uma situação irônica, minha madrasta tratou de me explicar isso mas não quis escutá—la. Pensei que eu sabia mais que uma mulher que tivera dois maridos e entretanto, estava certa, inclusive minha criada Joice teve razão, dizendo que os homens não desejavam ter esposa. Em meu caso, aconteceu não só que meu marido não me quis, mas também tampouco me quiseram seu irmão, suas amantes, seus homens, só me apreciou a Dama mas agora inclusive sua porta está fechada para evitar que eu entre.
Iolanthe escutou estas palavras de autocompaixão, e compreendeu perfeitamente o que acontecia a Liana. Enquanto uma mulher se sentia desejável manifestava confiança em si mesmo, podia pôr fogo à cama do marido quando a ocupava com sua amante; podia atrever—se a fazer uma aposta que ele perderia; provocar sua cólera cancelando as ordens que Rogam repartia ao pessoal do castelo. Mas quando acreditava que não era desejável, perdia grande parte de sua força e sua fé.
Io não tinha ideia do que convinha fazer. Não abrigava a esperança de conseguir que Rogam se aproximasse de Liana, porque era um homem obstinado, que não sabia o que lhe convinha e não o agradava a certeza de que uma mulher exercia a mínima influência sobre ele.
—Quem é a Dama? —perguntou Io, tratando de ganhar tempo enquanto meditava sobre o problema.
A princípio, mal prestou atenção à explicação de Liana, mas algo nas palavras da jovem atraiu sua atenção.
—Vive em uma habitação sobre o solar?
—Sim, um quarto só, que quase sempre está fechado, mas diria que adivinha quando estou em dificuldades, pois então se abre a porta. Foi minha melhor amiga desde que cheguei e falou—me de Jeanne Howard. Assegurou—me que os homens não lutam por conquistar a mulheres tímidas ou feias —adicionou Liana.
—É uma senhora mais velha, bastante bonita, com suaves cabelos castanhos?
—Sim. Quem é? Tive a intenção de perguntar—lhe, mas cada vez que a vejo... —interrompeu—se ao ver que Iolanthe agitava uma campainha de prata. Apareceu uma criada, Io murmurou algo ao ouvido da mulher e esta desapareceu.
Iolanthe ficou de pé.
—Há algum inconveniente em que nos aproximemos dessa habitação e conheçamos sua Dama?
—Está fechada, e assim esteve desde que eu... desde que fui jantar com meu marido.
—Ordenei a minha donzela que trouxesse a chave. Vamos?
A aparição individual de Liana um momento antes tinha paralisado aos que estavam no pátio; mas quando Io e ela saíram juntas, todos se detiveram para contemplar, atônitos, às duas mulheres. Era bastante incomum ver Iolanthe, mas parecia impossível acreditar que se encontrasse em companhia de outra mulher.
Liana não fez caso das pessoas que observavam de dentro e fora do castelo e conduziu Iolanthe ante a habitação da Dama.
—Quando não deseja que a incomodem, mantém fechada a porta. Acredito que deveríamos respeitar sua intimidade.
Io não respondeu e quando sua criada reapareceu com uma chave na mão, inseriu—a na fechadura.
—Não acredito... —começou a dizer Liana, mas se interrompeu. A habitação, que tinha sido o único lugar limpo do castelo no dia quando ela chegou, estava vazia. Não, vazia não, pois Liana pôde ver, sob as teias de aranha e os resíduos depositados ao longo de anos, os móveis da Dama: o banco estofado onde se sentou Liana e também o bastidor de costura da Dama. As janelas pelas quais tinha entrado a luz do sol estavam quebradas e um pássaro morto permanecia no chão.
—Não entendo —murmurou Liana. —Onde ela está?
—Morreu. Faz muitos anos.
Liana fez o sinal da cruz ao mesmo tempo que negou o que Iolanthe afirmava.
—Quer dizer que é um fantasma? Impossível, falei com ela, é tão real como você ou como eu. Disse—me coisas, coisas que outras pessoas ignoram.
Abriu muito grandes os olhos.
—Ouvi dizer que em efeito faz isso. Nunca a vi e tampouco Severn a conhece; não sei se Rogarem a viu ou não, mas outras pessoas a conheceram. Aparentemente, agrada—lhe ajudar às pessoas que a necessitam. Faz anos, uma criada que estava grávida, pensou jogar—se no fosso e de repente ouviu a Dama, como você a chama, que cantava e fiava e convenceu—a de que desistisse da ideia. Sabe por que ninguém vive nestes quartos? A metade dos homens se nega inclusive a entrar no solar para retirar os falcões, mas ninguém se atreve a chegar até aqui.
Liana estava tratando de compreender tudo isto.
—Ninguém me disse isso, nem sequer me sugeriu isso.
—Suponho que acreditaram que a limpeza acabaria com ela, jamais prejudica a nenhuma pessoa e por tratar—se de um fantasma, é uma presença benigna.
Liana caminhou sobre a capa de pó do piso e aproximou—se do bastidor de costura. Era um desenho antigo e inacabado, que representava uma dama e um unicórnio, o que tinha estado fazendo no dia da visita de Liana. De repente, Liana sentiu que perdeu uma amiga muito querida.
—Quem é? E por que persegue os Peregrine?
—A avó de Severn, e também de Rogam e Zared, era Jane, a primeira esposa do velho Giles Peregrine. O filho de ambos foi John, pai de Severn. Depois de sua morte, Giles se casou com Bess Howard e a família desta disse que Jane nunca estivera casada legalmente com Giles e que portanto os filhos de ambos eram bastardos.
—Este castelo e o de Bevan pertenciam à família de Jane; ela cresceu aqui.
—E por isso volta para perseguir seus habitantes.
—Anos depois de sua morte, estava nesta habitação quando seu filho John chegou ao castelo, depois que o rei o declarou ilegítimo. Ele fechou a porta deste quarto e nunca voltou a abri—la. Agora, só ela a abre. Algumas pessoas dizem que John foi um tolo, que sua mãe veio dizer—lhe algo e ele não quis escutá—la.
—Provavelmente tratou de lhe advertir que se mantivesse afastado das jovens da aldeia —disse amargamente Liana.
—Não —respondeu Io. —Todos acreditaram que ela desejava lhe dizer onde estavam os registros paroquiais.
—Que registros?
—John nunca pôde demonstrar que seus pais se casaram, todas as testemunhas do enlace faleceram ou desapareceram misteriosamente e ninguém pôde achar os registros que demonstravam a realização do matrimônio. A maioria acreditou que os Howard tinham destruído, mas alguns afirmavam que o velho Giles os ocultou para pô—los fora do alcance de sua ambiciosa segunda esposa. Sorriu. Se voltar a ver sua Dama, poderia lhe perguntar onde estão esses documentos. Se encontrasse, possivelmente o rei devolveria a Rogam e Severn as propriedades dos Peregrine e cessaria esta guerra com os Howard.
Liana contemplou a possibilidade de que Rogam a amasse se ela descobrisse os registros. Não, provavelmente não, continuaria sendo uma mulher feia, embora possuísse todas as riquezas do mundo.
—Temos que partir —disse —e fechar com chave a porta. É necessário respeitar a intimidade desta mulher.
Saíram da habitação, Io fechou a porta e entregou a chave a sua criada, que estivera esperando fora em silêncio.
—Ireis vê—lo? —perguntou Io.
Liana sabia a que se referia.
—Não posso, não me quer; anseia o ouro. E agora que o tem, certamente estará satisfeito.
—O ouro é um frio companheiro de cama.
Formou—se um nó na garganta de Liana.
—Tem essas mulheres. E agora, desculpará—me? Devo terminar um bordado.
Desceram a escada que conduzia ao solar e Iolanthe se despediu de Liana.
Essa noite, Severn foi às habitações do Iolanthe. Coxeava e tinha uma ferida no flanco da cabeça. Io repartiu uma ordem a sua criada e pouco depois estava lavando a cabeça dele com um tecido de linho.
—Matarei meu irmão —disse Severn entre dentes. É o único modo de detê—lo. Conseguiu convencer à esposa?
—Tive tanto êxito falando com ela como você conversando com seu irmão.
—Cuidado! —disse Severn, estremecendo—se. —Não quero outras feridas. Pelo menos, posso entender Rogam, mostrou—se muito tolerante com sua mulher, permitiu—lhe acompanhá—lo enquanto ele julgava os casos que chegaram ao tribunal, aceitou fazer o que ela quis na aldeia e inclusive lhe concedeu um dia inteiro na cama.
—Foi extremamente generoso —disse sarcasticamente Io.
—Em efeito, foi muito generoso, e nunca acreditei que se mostraria assim com uma esposa.
—É o que acredita? Que seu agradável irmão a traria para este sujo castelo para que vivesse com criados que a ridicularizam, ignorando—a, e que não recordaria como ela é até que a dama colocasse fogo no colchão?
—As mulheres! —murmurou Severn. —São criaturas tão lógicas.
—Minha lógica é excelente, seu irmão é quem...
Severn a sentou sobre seus joelhos e beijou—lhe o pescoço.
—Esqueçamos meu irmão.
Ela o afastou e ficou de pé.
—Quantas semanas leva sem banhar—se?
—Antes não se preocupava por saber se me banhava e não.
—Acreditava que o esterco de cavalo era seu aroma natural replicou Iolanthe.
Severn ficou de pé.
—Tudo isto é culpa desta mulher. Se ela...
—Se você não tivesse interferido, as coisas agora partiriam muito bem. O que se propõe fazer para reparar o dano que você mesmo provocou?
—Já falamos sobre isto, recorda—o? Eu esta disposto a reconhecer que me mostrei... bem, que exagerei um pouco com Rogam, de modo que respondendo a sua sugestão, enviei—lhes convites para jantar. E já viu o que resultou disso, não é? Essa cadela estúpida apareceu com sua coleção de moedas. Rogam devia aceitar a oferta de pagamento.
—O que deveria fazer é...
—Devia lhe dizer que é formosa – interrompeu—o. —Liana acredita que seu temperamental irmão não a deseja, não compreendo por que. Rogam é capaz de deitar—se com uma mulher embora lhe demonstre uma feminilidade muito duvidosa.
Severn sorriu orgulhosamente.
—É um autêntico macho, não é?
—Não discutamos minhas opiniões a respeito de seu irmão. Tem que conseguir que Rogam assegure a Liana que a vê formosa, e que a deseja mais que a todas as outras.
—É obvio. E de passagem, posso mover umas poucas montanhas. Desejas que troque de lugar a Londres enquanto estou nisso? Você nunca tentou obter que Rogam fizesse algo que ele não está disposto a realizar.
—Tornou a dormir com as criadas?
Severn esboçou uma careta.
—Não, e acredito que isso é a metade do problema. Não aconteceu tanto tempo sem mulher desde que... Pensou um momento. ...desde que os Howard se apoderaram de sua primeira esposa. Não me olhe assim —prosseguiu. —Meu irmão sabe tratar às mulheres, à margem de que esteja casado com elas ou não. Talvez necessita de uma precisamente agora e parece—me uma atitude compreensível, em vista do comportamento que mostrou sua esposa. Essa manobra com as moedas foi a gota que encheu o copo.
—Você decide —disse Io com voz amável. —Por que não convence a Rogam de que envie Liana de volta ao castelo de seu pai? Desse modo, poderá desembaraçar—se totalmente dela. Depois, pode trazer um carro carregado de formosas jovenzinhas, de maneira que seu irmão se deite com uma dúzia cada noite.
—E qual se ocupará de que nos sirvam bolos nas comidas? —murmurou Severn. —Maldição, Io! E maldita seja essa Liana. Malditas sejam todas as mulheres! Por que não podem deixar em paz a um homem? Rogam se casou com ela unicamente por seu dinheiro. Por que ele tinha que... que...
—A que se refere? —perguntou o com ar inocente. Por que tinha que apaixonar—se por ela? Por que tinha que começar a necessitar dela?
—Não quis me referir a isso. Malditos sejam ambos! Alguém deveria encerrá—los juntos em uma habitação e jogar a chave, os dois me provocam náuseas.
De repente, ergueu a cabeça.
—O que acontece?
—Nada. Só uma idéia..
Diga—me – suplicou Io.
Passou um momento antes de que Severn começasse a falar.
—Essa mesma noite Severn enviou uma oferenda de paz a Liana. Ela estava sentada, só com suas damas, como ocorria ultimamente. Em geral não se aproximava nenhum dos habitantes do castelo como se ela não existisse, ou como se desejassem assim, de modo que se sentiu muito surpresa quando um velho cavalheiro coberto de cicatrizes lhe trouxe um jarro de vinho e disse que lorde Severn o enviava a sua bela cunhada.
—Acredita que está envenenado? —perguntou Liana a Gaby.
—Possivelmente com uma beberagem de amor —respondeu esta. Nunca retrocedera em seus intentos de raciocinar com Liana.
O vinho estava condimentado com especiarias, chegou quente e Liana bebeu mais do que o que tinha pensado em fazer.
—De repente me sinto muito fatigada —disse. Estava tão cansada que lhe pesava muito a cabeça e não podia sustentá—la.
Nesse momento Severn entrou na habitação e as mulheres que acompanhavam a Liana contemplaram ao bonito gigante loiro, mas Severn tinha olhos só para Liana.
Gaby olhava alarmada a sua senhora: Liana fechou os olhos e sua cabeça caiu para trás.
—Acredito que lhe acontece algo.
—Dormirá um momento —disse Severn, separou—se do caminho Gaby e tomou em braços Liana.
—Meu Senhor! —exclamou Gaby. —Não pode...
—Estou fazendo —respondeu Severn, enquanto saía com Liana completamente adormecida e começava a subir a escada em espiral. Passou frente aos dormitórios que estavam sobre o solar, subiu outro lance, até que chegou a uma pesada porta de carvalho debruada de ferro. Moveu e corpo de Liana, sustentando—a com o ombro, enquanto pegava uma chave que pendurava do extremo de uma cadeia unida a seu cinturão e abriu a porta.
Era um quarto pequeno com um banheiro de um lado e outra grossa porta fechada que conduzia ao caminho que aparecia ao longo dos parapeitos. Essa habitação servia geralmente para albergar os guardas mas hoje isso desaparecera. Às vezes se utilizava o lugar como calabouço, e para isso o queria Severn.
Abriu a porta e permaneceu imóvel um momento enquanto seus olhos se adaptavam à escassa luz. Deitado na cama, completamente adormecido, estava Rogam; durante um momento Severn reconsiderou seu plano. Mas então um par de pulgas começaram a mover—se sobre suas costas, compreendeu que o que estava fazendo era o apropriado. Depositou sua cunhada sobre a cama, ao lado de seu irmão e tratou de caçar as pulgas.
—Bem —disse enquanto olhava os cônjuges. —Podem permanecer aqui até que tenhamos um pouco de paz.

 

 

 

 

 

Capítulo 16

Pela manhã, Liana necessitou de um momento para despertar, era como se não pudesse abrir os olhos. Estirou os braços, as pernas e gozou da suave calidez do colchão.
—Se quer comer algo, é melhor que se levante e sirva.
Abriu os olhos e viu Rogam sentado frente a uma mesinha, devorando frango, queijo e pão.
—O que está fazendo aqui? —perguntou Liana. —Por que me trouxe para este lugar? O vinho! Colocou algo nele.
—Foi meu irmão, meu irmão, cujo tempo sobre esta Terra é muito limitado, adicionou uma droga ao vinho.
—E trouxe—me aqui?
—Trouxe—nos a ambos, enquanto dormíamos.
Liana se sentou na cama e passou o olhar pelo quartinho nu: uma cama, uma mesa e duas cadeiras e uma prateleira para depositar uma vela.
—Entregou—nos aos Howard —disse em voz baixa. —Seu plano é lhes ceder o castelo?
Rogam a olhou como se ela fosse a idiota da aldeia.
—Meu irmão às vezes pode ser estúpido e também obstinado, mas não é um traidor.
—Então, por que fez isto?
Rogam voltou os olhos para o alimento.
Liana desceu da cama.
—Por que nos drogou e trouxe aqui?
—Quem sabe? Agora, come.
Liana sentiu que perdia a razão. Aproximou—se das portas, tratou de as empurrar, descarregou os punhos sobre a madeira e gritou reclamando que a liberassem, mas não, ninguém socorreu. Aproximou—se das duas estreitas frestas e gritou tratando de chamar a atenção dos que estavam no pátio, mas não houve resposta. Voltou—se para Rogam.
—Como pode comer? Quanto tempo estaremos prisioneiros? Como podemos sair daqui?
—Meu pai preparou este lugar para guardar prisioneiros, não podemos sair.
—Quer dizer, até que seu estúpido e prepotente irmão o permita. Por que me casei com um membro de uma família como esta? Talvez algum de seus homens tem um pouco de inteligência?
Rogam a olhou com expressão dura e Liana se arrependeu imediatamente do que havia dito.
—Eu... —começou a dizer.
Ele levantou uma mão.
—Pode voltar para seu pai logo que saiamos daqui.
Rogam se separou da mesa e caminhou até a estreita janela. Liana se aproximou dele.
—Rogam, eu...
Ele se separou da jovem.
Passaram o dia silenciosos e irritados. Liana olhava a Rogam e recordava que ele havia dito que o dinheiro era o único que lhe interessava. E então pensava: Seja. Retornaria a seu pai ou se refugiaria em uma de suas propriedades pessoais e viveria sem a família Peregrine e sem os crânios de cavalos pendurados sobre a moldura da lareira.
Os mantimentos chegavam a eles envoltos em um tecido, formando um vulto que podia passar pela fresta. Rogam recebia a comida e a gritos explicava a Severn o que se propunha lhe fazer quando estivesse livre. Levava sua comida ao extremo oposto da habitação e recusava a sentar—se à mesa com Liana.
Chegou a noite e ainda não se falavam. Ela se deitou na cama e se perguntou onde pensava dormir Rogam e começou a protestar quando ele se deitou a seu lado, dando—lhe as costas; mas definitivamente não disse nada, só tomou cuidado de que ele não a tocasse.
Mas quando as primeiras luzes do alvorada penetraram pela fresta, Liana despertou e descobriu que os braços de seu marido a estreitavam com força. Esquecendo as disputas e as diferenças, beijou a suave boca de Rogam.
Rogam instantaneamente despertou, e a beijou com toda a intensidade que sentia. Depois do beijo, ambos pareceram aturdir—se em uma confusão de roupas desprezadas, porque cada um procurava freneticamente a pele do outro. Uniram—se rapidamente e com todo entusiasmo, com uma paixão acumulada durante as últimas duas semanas.
Depois permaneceram um nos braços do outro, unidos pela pele transpirada, agarrando—se mutuamente. O primeiro impulso de Liana foi perguntar se acreditava que ela era realmente feia e se estava decidido a repudiá—la; mas se absteve.
—Vi o fantasma —disse finalmente.
—Na habitação que está aqui debaixo?
—É a Dama que eu acreditei que era Iolanthe. Recorda que disse que tinha mais idade que Severn? Falou—me de Jeanne Howard.
Rogam não respondeu e Liana se voltou para seus braços e o olhou.
—Você também a viu, não é? —perguntou depois de um momento.
—Não, não a vi. Não há fantasmas. É só...
—É só o que? Quando foi? Estava costurando ou fiando?
Ele demorou a responder um momento.
—Costurando a tapeçaria com o unicórnio.
—Disse a alguém?
—Até agora, não.
As palavras de Rogam originaram um sentimento de triunfo em Liana.
—Quando a viu? O que lhe disse?
Ele lhe falou em voz baixa.
—Foi depois que Oliver Howard... a levou.
—Jeanne.
—Sim, Jeanne —respondeu Rogam.
—Aproximou—se e disse—me que amava a Howard e que teria um filho dele e pediu—me que suspendesse a guerra. Deveria matar essa cadela com minhas próprias mãos.
—Mas não pôde.
—Seja como for, não o fiz, retornei aqui em busca de fornecimentos, tínhamos estado combatendo os Howard um ano inteiro —e uma manhã cedo disparei uma flecha para provar um arco, o vento desviou a flecha e levou—a para uma janela sobre o solar. Pelo menos, isso é o que pensei então. Também me pareceu ouvir o grito de uma mulher. Fui para ali e visitei os quartos de cima. Ninguém vivia nesse lugar fazia anos, por causa dos rumores sobre um fantasma. Meu pai estava acostumado a amaldiçoá—la, porque quando tinha convidados ela sempre aparecia e os assustava.
—E também o assustou quando foi procurar sua flecha?
—Eu estava então tão encolerizado com os Howard que pouco me importava um fantasma. Tinha perdido meus dois irmãos, e se necessitavam todas as flechas.
—E ela estava aí?
Liana viu que Rogam sorria apenas.
—Eu acreditava que um fantasma era uma presença brumosa, mas ela tinha um aspecto muito real, sustentava nas mãos minha flecha e repreendeu—me dizendo que quase a ferira. Nesse momento não pensei em que eu estivera disparando para o campo dos muros do castelo.
—Sobre o que falaram?
—Foi estranho, mas falei como nunca fizera com ninguém.
—Aconteceu—me o mesmo, conhecia tantas coisas de mim. Falaram de Jeanne?
—Sim, e disse—me que ela como esposa, não era a pessoa marcada.
Liana o olhou.
—Marcada para que?
—Não sei. Suas palavras me pareceram lógicas enquanto estava falando com ela, mas perderam sentido quando parti. Suponho que tinha certa relação com o poema.
Liana abriu muito grandes os olhos.
—Que poema?
Depois, e durante anos, não voltei a pensar nisso. Para falar a verdade, parecia mas bem uma adivinhação. Olhe...

Quando o vermelho e o branco formam o negro
Quando o negro e ouro se unem
Quando o indivíduo e o vermelho se fundem
Então você saberá.

Liana permaneceu imóvel nos braços de Rogam e pensou no enigma.
—Mas, o que significa?
—Não tenho ideia. Às vezes, eu estava na cama e pensava no assunto, mas não cheguei a nenhuma conclusão.
—O que pensa Severn? Ou Zared?
—Nunca perguntei a nenhum deles.
Liana se afastou um pouco de Rogam.
—Alguma vez lhe perguntou? Possivelmente tem certa relação com os registros da paróquia. A Dama é sua avó, e provavelmente é a pessoa que sabe onde estão os registros.
Rogam franziu o sobrecenho.
—É um fantasma, faz muito que morreu e possivelmente eu não a vi e sonhei com o enigma.
—Eu não sonhei a explicação que ela me deu a respeito de você e Jeanne Howard. A Dama me disse que era muito bonita e que você a amou profundamente.
—Mal conheci essa cadela Howard e não recordo que fosse particularmente bela. Certamente, nada parecido a Iolanthe.
Liana cobriu os seios nus com o lençol e se sentou.
—Ah, então deseja a Iolanthe, com ela poderia ter dinheiro e beleza.
O rosto bem formado de Rogam expressou a confusão que sentia.
—Iolanthe é uma cadela, estou seguro de que ela planejou tudo isto.
Com um gesto indicou a porta fechada.
—Por que? Quer me obrigar a perdoá—lo por haver dito em presença de seus homens que eu sou horrivelmente feia?
Rogam também se sentou na cama, a boca aberta em um gesto de assombro.
—Jamais disse coisa semelhante.
—Disse! Assegurou que tinha casado comigo por meu dinheiro, não por meus conselhos ou minha beleza.
A confusão de Rogam se acentuou.
—Somente disse a verdade, nem sequer a vi antes das bodas, exceto uma vez, e então não sabia quem era. Podia me casar por uma razão diferente que o dinheiro?
Liana sentiu as lágrimas de frustração que afluíam a seus olhos.
—Casei—me contigo porque pensei que você... que me desejava. Beijou—me quando não sabia que tinha dinheiro.
Rogam jamais tentara compreender a mente feminina, mas agora soube por que adotava essa atitude.
—Também a beijei quando soube que era rica. Começou a levantar a voz ao mesmo tempo que saía da cama e inclinava sobre ela. Beijei—a depois que se intrometeu quando eu estava castigando os camponeses, beijei—a depois que me levou a ver uma peça teatral que me mostrava como um estúpido, beijei—a...
—Porque sou sua esposa, e não por outra razão —disse ela. —Disse a todos que acreditava que eu era feia. Possivelmente não sou tão bela como Iolanthe ou tão bonita como sua primeira esposa, mas alguns homens afirmam que lhe agrada me olhar.
Rogam elevou as mãos em um gesto exasperado.
—Não é de tudo desagradável quando não está choramingando.
Ao ouvir isto Liana pôs—se a chorar, voltou a deitar, os joelhos recolhidos, e chorou com tanta intensidade que lhe tremiam os ombros.
Enquanto isso Rogam a olhava e a princípio sentiu unicamente irritação. Ela o acusava de algo, mas ele não sabia muito bem do que. Obtinha que parecesse que ele estava cometendo uma falta com tudo o que havia dito. Ele se limitou a lhe dizer a verdade, e falou assim para evitar que ela interferisse na relação do senhor com seus homens. Que demônios tinham que ver suas palavras com sua beleza ou sua feiura? E com o desejo? Acaso um momento antes ele não mostrara que a desejava? E maldição, ele não havia ficado com outra mulher em duas semanas inteiras. Duas semanas longas, longuíssimas
Rogam sabia que tinha todo o direito do mundo de zangar—se com ela. Ele devia ser quem recebesse conforto, mas ao vê—la chorar sentiu que se abrandava algo em seu foro íntimo. Quando ele era menino tinha chorado exatamente como ela estava fazendo agora, e seus irmãos maiores lhe atiraram chutes e riram dele.
Sentou—se na cama, perto da cabeça de Liana.
—Diga—me... o que acontece —começou vacilante, sentindo—se torpe e envergonhado.
Ela não respondeu e limitou—se a chorar com mais força.
Um momento depois ele a elevou em seus braços e sentou—a sobre seus joelhos, abraçando—a com força. As lágrimas de Liana lhe molharam o ombro enquanto acariciava seus cabelos e separava—os do rosto de sua esposa.
—O que acontece? —perguntou de novo.
—Acredita que sou feia, não sou bela como você ou Severn ou Zared ou Iolanthe, mas os menestreis têm composto poemas de comemoração a minha beleza.
Rogam começou a dizer que por dinheiro qualquer um fazia o que fosse; mas, sensatamente, absteve—se.
—Não é tão bela como eu, não é? Ou como Severn? Posso concordar com você se tratar—se de minha pessoa, mas temos porcos que são mais formosos que Severn.
—E também, sem dúvida, mais formosos que eu —respondeu ela e voltou a chorar.
—Acredito que agora está mais bonita que a primeira vez que a vi.
Liana ainda soluçando, levantou a cabeça para olhá—lo.
—O que significa isso?
—Não sei. —Ele acariciou seus cabelos. —Quando a vi na igreja, pensei que era um coelhinho descolorido e não pudesse distingui—la das restantes mulheres. Mas agora... —Olhou—a nos olhos. —Agora comprovo que é bastante agradável olhá—la. Eu... pensei em você as últimas semanas.
—Eu pensei em você cada minuto de cada dia. —Agarrou—se a ele. —Oh, Rogam, diga o que queira a respeito de mim... que sou estúpida, uma grande moléstia e que o chateio, mas por favor não me diga que sou feia.
Ele a abraçou com mais força.
—Nunca deve revelar seus segredos a uma pessoa, usará—los contra você.
—Mas eu confio em você.
E Rogam nesse momento pensou que a confiança de Liana era uma carga e uma responsabilidade. Afastou—a um pouco.
—Direi que é a mais bela das mulheres se não me desautorizar na presença de meus homens.
Tocou a Liana o turno de assombrar—se.
—Eu? Jamais faria tal coisa. Jamais!
—Você revogou minhas ordens aos camponeses.
—Sim, mas estava flagelando a pessoas inocentes.
—Tratou de me queimar na cama.
—Mas estava deitado com outra mulher —disse ela indignada.
—Separou—me de meu trabalho com guloseimas e música e bonitos sorrisos.
Ela sorriu, pois as palavras de Rogam a convenceram de que tinha acertado ao casar—se com ele.
—E desobedeceu minhas ordens na presença de meus homens.
—Quando?
Na manhã que os Howard atacaram.
—Eu só estava...
—Intrometendo—se —disse ele com expressão severa. —Não era seu assunto, se eu não tivesse bêbado, poderia haver... —interrompeu—se. Não desejava lhe dizer que enquanto ele estava mergulhado no sonho do álcool, —os Howard poderiam havê—la capturado.
—Poderia ter feito o que?
A expressão de Rogam mudou e Liana notou que ele estava ocultando algo.
—O que poderiam ter feito?
Rogam se separou dela e ficou de pé.
—Se esse condenado irmão não nos envia comida, enforcarei—o depois de queimá—lo.
—Se você não tivesse bêbado, eu poderia ter feito o que? —Liana se envolveu com um lençol e caminhou detrás de seu marido nu, que entrou no banheiro. Inclusive quando ele começou a usar o urinol, ela não vacilou. —Poderia ter feito o que?
Rogam esboçou uma careta.
—Se alguma vez capturar um espião dos Howard e buscar informação, enviarei—lhe.
—Poderia ter feito o que? —insistiu ela.
—Poderiam havê—la capturado —replicou secamente Rogam e voltou para a habitação.
—Os Howard queriam me capturar? —murmurou Liana.
Rogam estava colocando as calças.
—Aparentemente, eles sempre desejam o que têm os Peregrine: nossas terras, os castelos e as mulheres.
—Poderíamos lhes dar de presente as mulheres a quem vocês chama os Dias. —A Rogam estas palavras não lhe pareceram humorísticas. Liana se aproximou dele e rodeou o pescoço com os braços. —Essa manhã estava tão zangado porque houve perigo de que os Howard se apoderassem de mim? Então, Rogam, com efeito me ama.
—Não tenho tempo para o amor, vista—se, Severn pode vir.
Ela deixou cair o lençol, de modo que seu busto nu se apertou contra o peito de Rogam.
—Rogam, amo—te.
—Hmm! Faz várias semanas que não me fala, conseguiu que a vida de todos seja miserável, inclusive a habitação de Zared tem ratos. E estou tão leve por causa da falta de comida decente que meu cavalo já não me conhece. Minha vida era melhor quando nenhuma mulher dizia que me amava.
Mas suas palavras não coincidiam com a força do abraço que a retinha.
—Severn me ensinou algo —disse ela. —Juro que jamais voltarei a deixá—lo sozinho. Se me ofender, e sem dúvida o fará frequentemente, prometo lhe dizer por que estou zangada, jamais voltarei a me isolar de você.
—Eu não sou o que importa, mas os homens necessitam alimento decente e..
Ela ficou nas pontas do pé para beijá—lo.
—Rogam, você é quem me importa, jamais o trairei como fez Jeanne. Inclusive se os Howard me capturassem, continuaria amando—o.
—Eles jamais se apoderarão de outro Peregrine —disse ele com ferocidade.
—E agora, sou uma Peregrine? —perguntou ela sorrindo.
—Um tanto estranha, mas mais ou menos uma Peregrine —disse Rogam a contra gosto.
Ela o abraçou e não viu como Rogam sorria, os olhos fixos na cabeleira loira, o modo com que ele fechava os olhos enquanto a sustentava. Não lhe agradava pensar quanto tinha sentido saudades dela nos últimos dias ou a importância que chegou a ter um bate—papo frívolo com sua mulher. Viveu sem ela e tinha se arrumado muito bem; mas Liana insinuou em sua vida, literalmente havia apaixonado. A partir desse momento, nada foi o mesmo. O prazer, a doçura e o ócio nunca tinham sido parte da vida de Rogam, mas esta moça miúda incorporou todas essas coisas ao acontecer do senhor do castelo e era surpreendente com que rapidez ele se adaptou.
Separou—se dela e com suas grandes mãos, emoldurou o rosto de Liana.
—Acredito que meu estúpido irmão nos trancou aqui para conseguir que lhe limpe o quarto e fale com os padeiros.
—Oh? E quem me convencerá de que devo fazer o que ele quer?
—Possivelmente eu possa —disse intencionadamente Rogam e a sacudiu um pouco. —Disse a todos que uma vez passamos um dia inteiro na cama, talvez agora sua mentira se converta em realidade.
Fizeram amor longa e lentamente, pois a primeira paixão febril já estava esgotada. Exploraram cada um o corpo do outro com a mão e a língua e quando ao fim se uniram, foi um ato descansado, tranquilo e carinhoso. Liana não tinha ideia do modo em que Rogam a observava, como desejava agradá—la, como queria que ela gozasse do ato de amor.
Depois, um nos braços do outro, abraçaram—se.
—Enforcamos a seu irmão ou beijamos—lhe os pés? —murmurou Liana.
—Enforcamos —disse Rogam com voz firme. —Se houvesse um ataque...
Liana esfregou sua coxa contra a de Rogam.
—Se houvesse um ataque, estaria muito fraco para combater, de modo que não importaria.
—É uma mulher desrespeitosa, terei que castigá—la.
—Quem o fará? —perguntou ela com insolência. —Certamente não será um Peregrine mas um ancião esgotado.
—Já demonstrarei quem está esgotado —respondeu Rogam, tornando—se sobre ela e escutando as risadas de Liana.
Mas um golpe no piso, perto dos dois, atraiu a atenção de Rogam. Cobriu imediatamente o corpo de Liana com o seu, e olhou ao redor procurando a causa do ruído.
—Finalmente meu infernal irmão nos enviou comida.
—Separou—se de Liana, desceu da cama e aproximou—se do pacote que Severn tinha passado pela estreita fresta, e soltado de modo que caísse ao piso.
—Interessa—lhe mais a comida que eu? —perguntou ela.
—No momento, sim.
Levou o alimento à cama, e ali comeram e quando alguns farelos de pão caíram sobre os seios nus de Liana, Rogam os recolheu com a língua.
Permaneceram deitados todo o dia e Liana conseguiu que Rogam falasse de sua vida, de seus anos de menino, das coisas com que sonhara e pensara na infância. Ela não podia sabê—lo com certeza, mas pareceu que ele nunca falou assim com ninguém no curso de sua vida.
Ao entardecer, Liana mencionou a possibilidade de usar parte de seu dote para melhorar o castelo de Moray mas Rogam ficou mudo ante a ideia.
—Estas não são as terras dos Peregrine —disse. —Os Howard se apoderaram de...
—Sim, sim, já sei. Mas os Peregrine já vivem aqui há duas gerações, nossos filhos serão a terceira. O que acontecerá se necessitam cinco gerações mais para recuperar as terras dos Peregrine? Todos terão que viver em um lugar que tem goteiras no teto? Ou em um castelo tão pequeno como este? Poderíamos construir uma asa para o sul... uma coisa bem feita, com paredes reforçadas. Poderíamos adicionar uma capela e...
—Não, não, não —disse Rogam, ficando de pé e olhando—a, hostil. —Não investirei dinheiro neste minúsculo lugar, esperarei ter as terras que os Howard nos roubaram.
—E enquanto isso, gastará até o último centavo que eu trouxe para fazer a guerra? —Os olhos de Liana flamejaram. —Casou—se comigo para fazer a guerra?
Rogam começou a gritar que sim, que para isso se casou com ela, mas a expressão de seu olhar mudou.
—Casei—me com você por causa de sua beleza, que ultrapassa a de todas as mulheres —disse em voz baixa. —Incluída minha primeira esposa.
Liana o olhou, a boca aberta por causa do assombro; depois, saltou da cama e jogou—se sobre ele, rodeando—lhe a cintura com as pernas, os braços ao redor do pescoço.
—Meu belo marido, amo—o tanto —exclamou.
Rogam a abraçou com força.
—Gastarei o dinheiro como me parece apropriado.
—Sim, é obvio, e como obediente esposa jamais me oporei, mas me permita explicar algumas de minhas ideias para melhorar este lugar.
Rogam gemeu.
—Primeiro, separa—me de minhas mulheres, depois me joga em cima essa turma de pirralhos ruivos e agora se propõe a me dizer como gastarei o dinheiro que tanto me custou conseguir.
—Que tanto lhe custou conseguir! —exclamou Liana. —Nem sequer assistiu à festa de bodas que eu tinha preparado tão cuidadosamente, e insultou a minha madrasta.
—Necessitava que a insultassem, é preciso que lhe ponham uma mão no traseiro.
—E lhe agradaria fazê—lo? —perguntou Liana com malícia.
—Nem em sonhos queria tocá—la —disse ele em voz baixa, olhando a Liana à luz cada vez mais tênue do entardecer. —Agora, vamos comer, pois meu condenado irmão nos enviou o jantar.
Passaram a noite abraçados e quando já estavam quase dormindo, Rogam murmurou que estava disposto a "pensar" na reconstrução do castelo de Moray e Liana sentiu que tinha ganho uma grande batalha.
Quando despertou pela manhã, viu que Rogam cravava a vista à frente. Levantou—se, apoiando—se em um cotovelo, seguiu a linha de visão de Rogam e viu que a porta da habitação estava aberta. Liana não soube por que a novidade a deprimia tanto.
—Poderíamos fechá—la de novo —murmurou.
—Não —disse Rogam. —Devo confrontar o ridículo ante meus homens.
Liana não pensou nisso: como os cavalheiros de Rogam olhariam seu amo, que por causa de uma disputa com sua esposa fora trancado em uma habitação da torre.
Não tiveram tempo para formular teorias porque Gaby irrompeu, falando com toda a velocidade da qual sua língua era capaz. Ao parecer, Severn tinha difundido o rumor de que Rogam ordenou que sua esposa fosse trancada com ele na habitação, para castigá—la. A reputação de Rogam estava intacta.
—E a minha? —perguntou Liana.
—Acreditam que você é uma boa esposa —disse Gaby.
—Uma boa esposa? —exclamou Liana.
—Não lhe diga isso —interveio Rogam, —ou jamais teremos paz. Não quero mais camas incendiadas.
Gaby manteve fechada a boca e não formulou opinião a respeito do comportamento de Liana como esposa. Gaby, anos de amor e conquistara seu marido mediante generosidade e supunha que todas as mulheres tinham que fazer o mesmo.
A contra gosto, Liana saiu da habitação com sua calma. Tinha aprendido algo enquanto estava nesse quarto: que o que era importante para uma mulher, nem sempre era para um homem. Rogam não a tinha chamado de feia e o que era ainda melhor, não acreditava que fosse.
Não sabia muito bem por que, mas sentia que tinha chegado a uma ponte e tinha cruzado sem tropeçar. Liana não via obstáculos em seu futuro caminho.

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 17


Durante seis longas e gloriosas semanas, Liana foi a pessoa mais feliz da Terra. Ela e Rogam temeram que os homens os ridicularizassem, sem prever que se sentiam agradecidos porque de novo comiam bem e não havia ratos em suas habitações que em realidade não lhes importava qual era a causa da mudança.
E o castelo de Moray em efeito sofreu modificações. Os homens, em lugar de ignorá—la ou atacá—la, agora saudavam com respeito o passo de Liana, Severn se mostrava amável e cordial e Iolanthe começou a acompanhá—los no jantar. Mas o melhor de tudo era a mudança em Rogam. Seus olhos seguiam Liana em qualquer lugar que ela estava, ia a seu quarto de meditação só para retirar algo e em troca passava todas as noites no solar com Liana e suas damas. Severn, em lugar de opor—se a seu irmão começou a reunir—se com eles, como faziam Zared e Io.
A manhã que seguiu a uma dessas agradáveis noites Liana soube que teria um filho. Sempre tinha suposto que se sentiria mau, como tinha visto que era o caso de outras mulheres durante os primeiros meses, mas não foi assim.
Não estava fatigada, não sentia nada que fosse incomum, exceto agora mal entrava em seus vestidos. Levava as mãos ao ventre duro e grande, e sonhava com um garotinho ruivo.
—Minha senhora? —disse Gaby. —Sente—se bem?
—Muito bem, maravilhosamente, nunca me senti melhor. O que está fazendo?
Gaby sustentava uma cesta repleta de ervas.
—Lorde Rogam e Baudoin lutando caíram sobre um matagal de urtigas e preparei uma infusão destas ervas para aliviar sua dor.
Liana estremeceu, as urtigas podiam ser dolorosas. Perto da casa de seu pai crescia uma erva que aliviava essa irritação muito melhor que as que Gaby recolhera. Durante a primeira viagem ao castelo de Moray, Liana recordava havê—la visto à beira do caminho. A que distância estavam? Quinze, vinte quilômetros? Com um bom cavalo poderia chegar até lá e retornar ao anoitecer. E essa noite, enquanto esfregasse a erva sobre a pele dolorida de seu marido, falaria de seu filho.
Despediu—se de Gaby, não seria nada fácil escapar do castelo de Moray. Rogam tinha repartido ordens rigorosas no sentido de que nunca saísse do terreno sem escolta depois do ataque dos Howard, advertiu—lhe que não podia sair do castelo embora a acompanhassem todos os cavalheiros Peregrine.
Liana contemplou seu próprio vestido de brocado e sorriu. É obvio, se afastava como outra pessoa e não como lady Liana, nada tinha que temer. Procurou em uma arca ao pé da cama e encontrou os objetos de camponesa que tinha vestido no dia da feira. O que tinha que fazer era cobrir os cabelos, inclinar o rosto e roubar um cavalo.
Uma hora mais tarde estava galopando para o este, afastando do castelo de Moray e da aldeia, para chegar às ervas que trariam alívio a seu marido. O vento no rosto e os músculos do cavalo entre as pernas lhe pareciam maravilhosos. Riu alegremente ao pensar no menino que levava em seu ventre e na felicidade que era dela.
Estava tão absorta em seus pensamentos que não viu nem ouviu os cavaleiros que saíam do bosque e a rodearam antes de que ela os visse.
—O que lhes parece isto? —disse um dos cinco homens. Uma camponesa montando um animal tão bom.
Não necessitou que lhe explicassem quem eram esses homens. Estavam luxuosamente vestidos e demonstravam uma arrogância que unicamente podia provir de sua condição de vassalos de um homem poderoso. Eram gente dos Howard e a única esperança de Liana era que não descobrissem quem era.
—Roubei o cavalo —disse com voz desconsolada. —Oh, por favor, não digam a minha senhora.
—E o que nos dará se calar? —burlou—se um bonito jovem.
—O que queiram, senhor, o que queiram —disse Liana com voz chorosa.
Outro homem vinha atrás do primeiro grupo. Tinha mais idade, em suas têmporas havia cabelos cinzas e tinha o corpo sólido e musculoso; e além disso, o que parecia um gesto de irritação permanente no que poderia ter sido um rosto atrativo.
—Desmontem a moça e tomem o cavalo —ordenou. —É um cavalo dos Peregrine de modo que darei procuração dele.
Apesar de si mesmo, Liana dirigiu um olhar duro ao homem. Poderia ser Oliver Howard, o mesmo que tinha roubado a primeira esposa de Rogam? Liana inclinou a cabeça e começou a desmontar, mas dois homens a sujeitaram, buscando—lhe os peitos e os quadris. Ela se retorceu para esquivá—los... e o capuz se desprendeu de sua cabeça. Os longos cabelos loiros desceram sobre suas costas.
—Bem, bem —exclamou um dos cavalheiros, tocando—lhe os cabelos. —Acredito que esta trombadinha de cavalos me agrada.
—Traga—a aqui! —ordenou o homem de mais idade.
Com os braços sujeitos à costas, Liana foi obrigada a comparecer ante ele. Manteve os olhos baixos.
—Olhe—me —ordenou. —Olhe—me ou desejará haver obedecido.
Desafiante, e evitando que ele adivinhasse seu medo, Liana o olhou e quando ele a examinou, o permanente gesto de irritação de seu rosto pareceu diluir—se, até que, jogou para trás a cabeça e lançou uma gargalhada sem alegria.
—Bem, lady Liana, apresentarei—me. Sou Oliver Howard —disse finalmente. E você, minha estimada dama, deu—me o que anseio há muitos anos, entregou—me os Peregrine.
—Jamais —disse ela. —Rogam jamais se renderá a você.
—Nem sequer em troca de sua volta?
—Não se rendeu por Jeanne, e não o fará por mim —disse Liana, e abrigou a esperança de que sua voz fosse tão enérgica como suas palavras. No fundo, estava tremendo. O que pensaria Rogam quando esses homens a levassem?
Acreditaria que ela o traíra como fizera Jeanne muitos anos atrás?
—Levem—na —disse Oliver Howard a um de seus homens. —Que monte seu cavalo, frente a você. Se escapar custará a vida.
Liana se sentia muito deprimida para rechaçar as mãos do homem sobre seu corpo. Tinha a culpa do que estava acontecendo; só ela era a responsável pelo que lhe passava.
O homem que a sustentava sobre suas arreios lhe murmurou ao ouvido.
—Os Howard sabem seduzir as mulheres Peregrine. Desposá um deles? Divorciará do Peregrine para lhe converter em uma Howard, como fez a primeira?
Liana não se incomodou em responder e isso pareceu diverti—lo.
—Não importa o que faça —disse ele, rindo. —Lorde Oliver conseguirá que seu marido acredite que lhe converteu em uma Howard. Definitivamente, triunfaremos.
Liana se disse que Rogam jamais acreditaria que ela o traíra, mas no fundo tinha medo.
Cavalgaram dois dias inteiros e quando se detinham, de noite, amarravam Liana, sentada com o corpo apoiado contra uma árvore e os homens se alternavam para vigiá—la.
—Possivelmente teria que atribuir dois homens para me vigiar —burlou Liana de Oliver Howard. —Sou tão forte e poderosa que se corto as amarras, posso vencê—los.
Oliver não sorriu.
—É uma Peregrine, gente traiçoeira. Talvez o diabo a ajude a fugir.
Deu—lhe as costas e entrou em uma das três pequenas tendas escondida entre as árvores.
Durante a noite começou a chover, os homens que a vigiavam se alternaram e nenhum permaneceu sob a chuva mais de uma hora. Ninguém mencionou a possibilidade de desatar Liana e levá—la ao interior morno de uma tenda.
Pela manhã Liana tinha frio, estava molhada e exausta. O vassalo que a sustentava sobre seu cavalo não a sujeitava como antes e em troca, permanecia imóvel. Liana sentiu que seus músculos fatigados começavam a relaxar—se. Dormiu apoiada no corpo de seu carcereiro e não despertou até o pôr—do—sol, quando chegaram ao que Rogam denominava de as propriedades dos Peregrine.
Viram as torres a um quilômetro e meio de distância e ao aproximar—se, a letargia de Liana desapareceu. Nunca vira nada semelhante às estruturas que se elevavam ante ela. Não havia palavras que descrevessem a magnitude do lugar: vasto, enorme, grandioso. Todas pareciam inapropriadas. Havia uma série de seis "pequenas" torres que defendiam o túnel e a muralha externa que levava à entrada do muro interior do castelo e cada uma destas torres era mais satisfatória que a única do castelo de Moray.
Detrás das paredes interiores havia torres tão grandes que Liana as observou assombrada. Pôde ver outro muro dentro e edifícios com tetos de telhas.
Chegaram primeira a uma ponte de madeira sobre um fosso, tão largo como um rio. Em tempo de guerra, era fácil destruir a ponte. Cavalgaram sobre uma prancha de pedra, outra de madeira, e entraram no túnel. Sobre ela se abriam orifícios que nos combates se usavam para derramar sobre o inimigo azeite fervendo.
Quando emergiram à luz do entardecer, cruzaram outra ponte de madeira sobre outro fosso e por fim chegaram à porta interior, flanqueada por duas altas e maciças torres de pedra. De novo viu orifícios sobre eles, assim como as lanças de uma grade de ferro.
Entraram em um setor coberto de grama, com muitas casas de madeira construídas contra os muros. O lugar estava limpo, e tinha certo ar de prosperidade.
Continuaram cavalgando, por outro túnel, este flanqueado por duas torres que eram maiores que as de qualquer um dos castelos do pai de Liana. Dentro, amplas extensões de formosos pátios. Haviam edifícios de pedra com janelas de vidro: uma capela, um solar, um grande, salão, armazéns e pessoas que entravam e saíam com alimento e barris de bebidas.
Liana se firmou sobre o cavalo e contemplou o espetáculo: nem em seus acessos de imaginação mais febris tinha imaginado um lugar dessas proporções e essa riqueza. Pensou: Bem, por isso lutam os Peregrine, isto é o que provocou a morte de três gerações de Peregrine e pelo que odeiam tanto aos Howard.
Ao contemplar a abundância que havia ao redor começou a compreender melhor a Rogam. Não era estranho que olhasse com desprezo o pequeno e ruinoso castelo de Moray, que com suas muralhas incluídas, era apenas um terço do que havia depois dos muros interiores desta fortaleza.
Também pensou: Este lugar pertence a Rogam, onde seu corpo, sua atitude, seu poder harmonizariam bem.
—Levem—na à habitação da torre nordeste —disse Oliver Howard, e Liana foi arrancada do cavalo e meio arrastada através do comprido pátio em direção à alta torre de espessas paredes da ala nordeste. Os homens a obrigaram a subir as escadas de pedra em espiral e passaram frente a habitações que ela mal via, mas todas pareciam limpas e bem cuidadas.
Havia uma porta com barras de ferro no lugar mais alto da torre, um dos homens a abriu e empurrou Liana para o interior e uma vez ela dentro, fechou com chave. Era um quarto pequeno com um colchão em um esquadro de madeira, uma mesinha e uma cadeira em um dos cantos e uma porta que levava a um banheiro do lado oeste. Tinha uma janela que avistava ao norte; aparecendo, ela pôde ver as centenas de metros de muro exterior que rodeavam todo o lugar. Os homens passeavam pelos parapeitos e vigiavam.
—Para defender—se da minúscula força dos Peregrine —disse Liana amargamente.
Levou a mão à cabeça, sentiu—se enjoada e cansada. Passara a noite anterior atada a uma árvore, sob a chuva e isso, unido a todas as emoções que experimentara, esgotou—a. Aproximou—se da cama, deitou—se, e depois de cobrir—se com a manta de lã, adormeceu.
Quando despertou, era início da manhã seguinte. Levantou—se com muito esforço para ir ao banheiro, vacilou sobre seus pés e ao levar a mão à testa sentiu a pele muito quente. Alguém estivera na habitação: sobre a mesinha havia água, pão e queijo. Sorveu a água mas o alimento não a atraía.
Aproximou—se da porta e chamou com fortes golpes.
—Devo falar com Oliver Howard —gritou, mas se alguém a ouviu, não respondeu. Deslizou—se pelo lado da porta e ficou sentada sobre o frio piso de pedra. Devia estar acordada quando alguém entrasse no quarto. Precisava falar com Oliver Howard e convencê—lo de que a deixasse em liberdade. Se Rogam e Severn tratavam de resgatá—la, matariam—nos.
Dormiu e ao despertar estava deitada na cama sem a manta e banhada em sua própria transpiração. Novamente alguém estivera ali; abrindo a porta, levou—a a cama, sem despertá—la. Caminhou vacilante até a mesinha e serviu—se com uma taça de água; tinha as mãos tão fracas que mal pôde elevar o jarro e desabou—se atravessada sobre a cama.
Quando voltou a despertar, alguém estava sacudindo—a com brutalidade. Abriu os olhos com movimentos lentos e viu Oliver Howard inclinado sobre ela. A habitação às escuras, a vela acesa detrás dele, permitia vê—lo como uma silhueta confusa e apagada.
—Seu marido não tem interesse em lhe recuperar —disse ferozmente. —Desentendeu—se de todos os pedidos de resgate.
—Por que quer o pouco que ele tem? —perguntou.
Liana moveu os lábios secos e rachados. Como ele não respondesse, Liana continuou: —O nosso foi um matrimônio acordado, meu marido sem dúvida se alegra de que eu tenha desaparecido. Se perguntarem em nossa aldeia, ouvirão falar dos horrores que eu lhe infligi.
—Sei tudo, inclusive que foi desarmado à aldeia para assistir a uma feira. Se soubesse, nesse momento eu estaria ali e mataria este Peregrine como ele matou meus irmãos.
—Como mataram seus irmãos. —As palavras de Liana perderam toda sua força, pois estava muito fraca para levantar a cabeça. Mas inclusive exausta como estava, queria salvar a Rogam. —Que me deem a liberdade ou que me matem, pouco lhe importará —disse. —Mas assim que o fizer, tomará por esposa uma nova herdeira.
E Liana se disse: Se for logo, Rogam não terá tempo para atacar.
—Verei se em efeito não lhe importa —disse Oliver e fez um gesto a um de seus homens.
Liana viu cintilar a tesoura à luz da lua.
—Não! —exclamou e tratou de defender—se, mas as mãos do homem eram muito fortes. Lágrimas cálidas e febris rolaram por suas faces quando lhe cortou os cabelos, deixando—os compridos até os ombros.
—Eram o único belo de minha pessoa —murmurou.
Nem Oliver nem seus dois acompanhantes lhe prestaram atenção enquanto saíam do quarto. Seus cabelos cortados estavam nas mãos de Oliver.
Liana chorou por um longo tempo e nenhuma só vez levou a mão para sua mutilada cabeleira.
—Agora jamais me amará —repetia. Perto da alvorada mergulhou em um sonho inquieto e quando despertou estava muito fraca para descer da cama em busca de água. Voltou a dormir.
Despertou outra vez e sentiu um pano frio apertado sobre a testa.
—Agora, acalme—se —murmurou uma suave voz.
Liana abriu os olhos e viu uma mulher de cabelos grisalhos e olhar tão doce e gentil como de uma pomba.
—Quem é?
A mulher continuou molhando o tecido para enxugar a transpiração de seu rosto.
—Vamos, tomem isto. Aproximou uma colher aos lábios de Liana e sustentou—lhe a cabeça para que pudesse beber.
—Sou Jeanne Howard.
—Você! —exclamou Liana, atracando—se com a medicina de ervas. —Afaste de mim, é uma traidora, uma mentirosa, um demônio chegado do inferno.
A mulher esboçou um sorriso.
—E você é uma Peregrine. Pode tomar um pouco de caldo?
—Não de suas mãos, não, não posso.
Jeanne olhou Liana.
—Imagino que seja uma boa companheira para Rogam. Seriamente incendiou a cama? E foi jantar coberta de moedas? É certo que ambos se trancaram em uma habitação?
—Como sabe tudo isso?
Com um suspiro, Jeanne ficou de pé e aproximou—se de uma mesa, sobre a qual havia um pequeno caldeirão de ferro.
—Não conhece o quanto profundo é o ódio que se professam os Howard e os Peregrine? Cada um deles sabe tudo o que terá que saber sobre o outro.
Apesar da febre e a debilidade, Liana estava estudando Jeanne: esta era a mulher que provocara tanta fúria e parecia uma pessoa de aspecto comum, de estatura média, os cabelos castanhos...
Os cabelos! Liana levou a mão aos seus próprios. Com dó de si mesma, pôs—se a chorar.
Jeanne se voltou para ela, com a taça na mão, e olhou—a compassiva, enquanto Liana tocava as pontas de seu cabelo. A expressão de Jeanne mudou e sentou—se na cadeira que estava junto à cama.
—Vamos, coma, necessita do alimento. Seus cabelos voltarão a crescer, há coisas piores que isto.
Liana não podia cessar de chorar.
—Meus cabelos eram o único belo de minha pessoa. Agora, Rogam jamais voltará a me amar.
—A amá—la —disse com desgosto Jeanne. —Oliver provavelmente o matará; portanto, o que importa que Rogam ame ou não a uma mulher?
Liana reuniu forças suficientes para arrancar a taça da mão de Jeanne e enviá—la voando.
—Fora daqui! É a causa de tudo isto, se não tivesse traído a Rogam, ele não estaria nas condições em que se encontra.
Com expressão cansada, Jeanne recuperou a taça, depositou—a na mesa e foi sentar—se junto a Liana.
—Se eu partir, ninguém virá. Oliver ordenou que ninguém se ocupe de você. Mas a mim não se atrevem a negar—me a entrada
—Por que Oliver matará a quem contraria à mulher que ele ama? —disse Liana com maldade. —À mulher que traiu a meu marido?
Jeanne ficou de pé e aproximou—se da janela. Quando se voltou para olhar a Liana, seu rosto parecia ter envelhecido muitos anos.
—Sim, traí—o e minha única desculpa é que eu era uma jovem estúpida e ingênua. Deram—me em matrimônio a Rogam quando eu era apenas uma menina e tinha tantas ilusões a respeito de minha vida de casada; órfã desde muito pequena fui pupila do rei, de modo que cresci com as monjas... Ninguém me amava, necessitava—me ou notava a minha presença. Pensei que o matrimônio me daria uma pessoa a quem amar, que ao fim teria um verdadeiro lar.
Fez uma pausa e falou em voz mais baixa.
—Não conheceu os irmãos mais velhos, depois que Rogam e eu nos casamos, converteram minha vida em um inferno. Para eles, eu representava dinheiro, dinheiro para sua guerra contra os Howard e nada mais; se eu falava, ninguém escutava; se repartia uma ordem a um criado, ninguém obedecia. Dia após dia vivia em meio a uma sujeira inconcebível.
A cólera de Liana começava a dissipar—se, pois havia muita verdade nas palavras de Jeanne.
—Às vezes, Rogam vinha para ver—me de noite e em outras ocasiões estava com diferentes mulheres. —Jeanne cravou o olhar na parede que estava ao lado de Liana. —Era terrível —murmurou. —Para esses homens belos e odiosos eu era menos que uma órfã; em realidade, não era nada. Para eles, eu não existia. Falavam entre eles sem me fazer caso; se eu estava de pé no lugar que um deles desejava ocupar, empurrava—me a um lado. E a violência! —estremeceu—se ao recordá—la. —Quando as pessoas queriam atrair a atenção do outro, jogavam—lhe uma tocha à cabeça. Jamais compreendi como foi possível que qualquer deles chegasse à idade adulta.
Jeanne olhou a Liana.
—Quando soube que tinha incendiado sua cama, intuí que a razão estava de sua parte e era algo que Rogam podia compreender. Sem dúvida, aparentemente assim recordou a seus irmãos.
Liana não sabia o que dizer. Sabia que tudo o que afirmava Jeanne era certo. Conhecia como era carecer de existência própria. E em efeito, procedeu com justiça com Rogam, mas teria sido suficiente se ela tivesse que lutar com seus irmãos maiores? Tratou de reagir porque não queria fazer causa comum com essa traiçoeira mulher.
—E tudo isto —com um gesto assinalou a janela e o castelo inteiro —justificava sua traição? Dois irmãos morreram tentando lhe resgatar. Alegrou—a saber disso?
O rosto de Jeanne expressou cólera.
—Esses homens não morreram tentando conseguir que eu retornasse, não poderiam me haver reconhecido em uma multidão. Foi combatendo aos Howard. Enquanto vivi com os Peregrine, a cada momento ouvia dizer que os Howard eram perversos. E agora escuto o mesmo sobre os Peregrine, quando acabará esta horrível guerra?
—A traição não melhorou as coisas —respondeu Liana, e percebeu que sua energia começava a abandoná—la.
Jeanne respondeu com voz serena.
—Não, não contribuiu para promover a paz, mas Oliver foi tão bondoso comigo, e esta casa... interrompeu—se, para recordar melhor. Havia música, e risadas, e banheiras inundadas de água perfumada, e criados respeitosos e Oliver se mostrou tão atento e...
—Tão atento que lhe deu um filho —adicionou Liana.
—Depois do cruel trato de Rogam, Oliver era uma alegria na cama —replicou Jeanne, e ficou de pé. —Agora, deixarei—a, porque deve dormir. Retornarei pela manhã.
—Não quero —replicou Liana. —Posso me arrumar bem, sozinha.
—Como queira —foi a resposta de Jeanne e saiu da habitação. Apenas Liana ouviu o movimento do ferrolho, dormiu.
Durante três dias passou sozinha, e sua febre se agravou nesse quarto frio e desprotegido. Não comeu nem bebeu permanecendo na cama, meio adormecida e meio acordada, às vezes aquecida pela febre e outras os dentes tocando castanholas de frio.
Ao terceiro dia, Jeanne retornou e Liana a olhou como através de uma bruma.
—Temo que mentiram —disse Jeanne —disseram—me que estava bem e satisfeita. —Voltou—se, aproximou—se da porta e chamou o guarda. Levantem—na e sigam—me com ela —decidiu.
—Lorde Oliver ordenou que ela permanecesse aqui —disse o guarda.
—E eu estou contrariando suas ordens —sublinhou Jeanne. —E agora, se não quiser que lhe jogue na estrada, levanta—a.
Liana teve uma imprecisa consciência de que um par de braços fortes a elevavam.
—Rogam —murmurou.
Dormiu enquanto a desciam pela escada e despertou apenas um momento quando as mãos suaves das damas de companhia de Jeanne a despiram, banharam com cuidado e depositaram—na sobre um macio colchão de plumas.
Durante três dias Liana viu unicamente a Jeanne Howard quando esta dava—lhe caldo, ajudava—a a sentar—se no urinol, lavava a transpiração de seu corpo e sentava—se a seu lado. Nesse tempo nenhuma só vez Liana falou com Jeanne. Tinha total consciência de sua atitude traiçoeira para seu marido.
Mas ao quarto dia, sua decisão começou a diminuir. A febre tinha desaparecido e agora somente estava débil.
—Meu filho está bem? —murmurou, quebrando o silêncio que tinha mantido frente a Jeanne.
—Saudável e crescendo dia após dia. Necessita—se mais que um pouco de febre para prejudicar a um Peregrine.
—Necessita—se uma esposa traiçoeira —comentou Liana.
Jeanne cravou a agulha no bastidor, ficou de pé e começou a caminhar para a porta.
—Espere! —chamou Liana. —Peço desculpas, foi muito boa comigo.
Jeanne se voltou, verteu um líquido em um jarro e entregou—o.
—Beba isto. Tem um sabor detestável, mas necessita.
Obediente, tragou a horrível beberagem de ervas. Quando devolveu o jarro a Jeanne, perguntou: —O que aconteceu desde que me capturaram? Rogam atacou?
Jeanne demorou um momento em responder.
—Rogam enviou uma mensagem dizendo que... não a considerava sua esposa e que Oliver podia fazer o que quisesse com você.
Liana mal pôde conter uma exclamação.
—Temo que Oliver perdeu os estribos, ordenou que cortassem seus cabelos e enviassem—nos a Rogam.
Liana evitou o olhar compassivo de Jeanne.
—Entendo. Suponho que quando lhe levaram meus... cabelos —mal conseguiu dizer a palavra —sua atitude continuou sendo a mesma. —Voltou os olhos para Jeanne. —E agora, o que fará seu marido? Enviará—me em pedaços aos Peregrine? Uma mão hoje? Um pé amanhã?
—É obvio que não fará nada disso —replicou secamente Jeanne. Para falar a verdade, Oliver ameaçara fazer precisamente o que Liana mencionava, mas Jeanne sabia que não eram mais que palavras. Estava furiosa com seu marido porque aprisionara lady Liana; mas agora que ela estava aqui e que Rogam recusava morder a isca de peixe, Oliver não sabia muito bem o que fazer com ela.
—O que farão os Howard comigo? —perguntou Liana, apoiando—se em seus débeis braços para levantar—se. Jeanne entregou uma bata de veludo para cobrir o corpo nu e decidiu lhe responder com sinceridade:
—Não sei. Oliver comentou que possivelmente solicite ao rei que anule seu matrimônio e despose seu irmão menor.
Liana tratou de conter um grito.
—Alegro—me que Rogam não tenha arriscado sua vida e a de seus irmãos para me resgatar.
—Como lhe resta um só irmão, sua relutância é compreensível —respondeu Jeanne em um tom sarcástico.
—Se organizasse um ataque, sem dúvida obrigaria ao jovem Zared a lutar com os restantes homens.
Jeanne a olhou com atenção.
—Duvido—o, inclusive os Peregrine têm certas normas. —Fez uma pausa. —Ninguém lhe disse que Zared é uma moça? Ainda o vestem de homem?
Liana piscou.
—Uma moça? Zared é uma moça?
Recordou quando Zared esmagou a cabeça do rato com o punho, e Zared na habitação de Liana no meio da noite. Olhou com assombro a Jeanne, mas recordou a oportunidade em que ela mesma se zangou porque Zared dormiu com três mulheres. Como riam Severn e Rogam ao ver a cólera de Liana!
—Não —disse Liana, quase entre dentes. —Ninguém se incomodou em me explicar que Zared é na realidade uma moça.
—Tinha só cinco anos durante minha permanência ali, e acredito que os irmãos se sentiam envergonhados porque o pai tivera uma filha. Atribuíam a culpa a sua quarta esposa, uma mulher desconsolada e covarde, mas rica. Tratei de proteger Zared, um engano; é tão agressiva como seus irmãos.
—E eu sou uma tola ainda maior, pois nunca suspeitei —disse Liana. E pensou: E eles jamais se incomodaram em explicar o assunto, tinham—me excluído de suas vidas. Ela nunca foi uma Peregrine e agora não desejavam que retornasse.
Olhou a Jeanne.
—Não houve resposta dos Peregrine desde que receberam meus... meus cabelos?
Jeanne franziu o sobrecenho.
—Viram a Rogam e Severn caçando... e bebendo juntos.
—Certamente querem dizer celebrando. Pensei que... —Não conseguia dizer o que pensava. Acreditava que tinham chegado a necessitá—la, já que não a amá—la. Estava convencida que Severn a trancou com Rogam naquele quarto porque sentia saudades das coisas que ela proporcionava para todo o castelo.
Jeanne tomou sua mão e apertou—a.
—São Peregrine, não se parecem com ninguém, interessam—se só por sua própria gente. Para eles, as mulheres são um meio de conseguir dinheiro e nada mais. Não quero ser cruel, mas é necessário que saiba: os Peregrine agora têm seu dinheiro; portanto, para que lhes necessitam? Ouvi dizer que se empenhou em limpar o castelo e oferecer melhor comida, mas estes homens não apreciam este tipo de coisas. As chuvas da semana passada encheram pela metade o fosso e dizem que já há flutuando três cavalos mortos.
Liana sabia que o que Jeanne relatava era certo. Como podia ter acreditado que significava algo para Rogam? Agora, já não teria que suportar as intromissões de Liana em sua vida.
—E as mulheres? murmurou Liana.
—Já retornaram —respondeu Jeanne.
Liana respirou fundo.
—Então, o que farão comigo? Meu marido não me quer. Tampouco acredito que minha madrasta deseje meu retorno. Temo que seu marido terá que confrontar a situação.
—Oliver ainda não decidiu o que fará.
—Rogam e Severn devem estar rindo de boa vontade. Desembaraçaram—se de mim, conservam meu dote, e carregaram sobre as costas de seu inimigo uma bruxa fria e intrometida.
Jeanne pensou que essa era mais ou menos a situação mas não disse nada. Compartilhava o sofrimento de Liana, por que sabia como se sentia. As primeiras semanas, muito anos atrás, depois que Oliver Howard capturou Jeanne, ela tinha sofrido muito. Não amava a seu jovem marido nem simpatizava com seus prepotentes irmãos, mas doía que houvesse mortes por causa dela. Durante um tempo pareceu que Rogam também morreria abatido pelas flechas de Oliver, e quando ao fim sarou, descobriu que seus irmãos tinham morrido.
E em toda esta situação, Jeanne, marcada pelo sofrimento, estivera Oliver. Ele nunca se propusera a amar a jovem esposa de seu inimigo; mas a sua não tinha tido filhos e falecido um ano antes, de modo que ele se sentia sozinho, tanto quanto Jeanne, e assim se sentiram atraídos um pelo outro. Ao princípio ela se mostrou desafiante, para honrar a um marido que lhe havia dito muito poucas coisas amáveis e nunca demonstrara afeto, exceto possivelmente durante o ato sexual. Mas em muito pouco tempo a serena bondade de Oliver a suavizou. Enquanto além das muralhas ocorria a guerra e os homens morriam, nas habitações do castelo Jeanne permanecia nos braços de Oliver.
Quando este soube que lhe daria um filho, criou ciúmes furiosos. Seu ódio aos Peregrine se acentuou porque a mulher a quem ele amava, a mãe de seu filho, era a esposa de outro. Jeanne suplicou que permitisse ir ver Rogam para pedir a anulação do matrimônio; mas Oliver se encolerizou ante a ideia. Aterrorizava—o a possibilidade que Jeanne retornasse com os Peregrine ou inclusive que, ao ver Jeanne e inteirar—se da situação, Rogam a assassinasse.
Mas desafiando Oliver e arriscando sua vida, ela foi ao encontro de seu marido. Tinha sido muito difícil sair do castelo, que estava sitiado. Em uma noite escura e sem lua, suas damas a ajudaram a descer a muralha e um homem a quem se pagou bem levou—a em um bote através do fosso interior, depois ela correu, escondida, para o fosso exterior, onde outro bote a esperava. Havia gasto muito ouro para subornar os guardas dos parapeitos para que não dessem o alarme, mas conseguiu.
Com uma capa de áspero tecido sobre o vestido, atravessou facilmente o acampamento de Rogam sem que ninguém a identificasse. Se antes não estava segura, ao comprovar que as pessoas com quem convivera meses inteiros não a reconheciam teve mais confiança em si mesmo. Passou junto a Severn e Zared e nem sequer a olharam. Quando se encontrou com Rogam, ele não se alegrou de vê—la novamente e tampouco porque finalmente podia levantar o sítio. Jeanne lhe pediu que saíssem ao bosque, ele aceitou e sem perder um segundo explicou que chegara a amar a Oliver e que lhe daria um filho.
Durante um momento Jeanne temeu que ele a matasse. Em troca, agarrou—a pelo braço lhe dizendo que ela era uma Peregrine e que devia continuar com ele; que jamais a entregaria a um Howard. Até certo ponto, ela esquecera como eram os Peregrine e ante a perspectiva de não ver nunca mais ao Oliver e ter que passar o resto de sua vida no imundo castelo de Moray, Jeanne começou a chorar. Não recordava o que lhe respondeu, mas acreditava ter afirmado que se mataria se tivesse que viver com Rogam.
Em todo caso, ele a afastou empurrando—a contra uma árvore.
—Vá —disse. —Sai de minha vista.
Jeanne, então, pôs—se a correr e não se deteve até estar a salvo no interior da choça de um camponês. Nesse dia os Peregrine levantaram o sítio e um mês mais tarde Jeanne soube que Rogam solicitara ao rei a anulação do matrimônio.
Ela pôde evitar que Oliver se inteirasse de sua visita a Rogam e assim se economizou muitas acusações provocadas pelo ciúmes. Mas durante os anos que seguiram, ao redor deles flutuava a lembrança de que Jeanne fora outrora a esposa de um Peregrine. Durante muito tempo Oliver olhava com desconfiança a seu filho maior e certa vez Jeanne o surpreendeu inspecionando os cabelos do menino.
—Não tem fios vermelhos —esclareceu Jeanne. Desde a infância, ao Oliver tinham ensinado ódio para os Peregrine, mas agora os detestava mais. Parecia que os Peregrine tinham a primeira opção de tudo o que ele possuía: seu castelo e sua esposa.
De maneira que agora, muitos anos mais tarde, Oliver tratou de golpear aos Peregrine apoderando—se novamente de uma das esposas dessa família, mas desta vez Rogam não estava disposto a lutar. Não queria arriscar—se a perder outro irmão por uma mulher que desde o começo não tinha amado.
Jeanne olhou a Liana.
—Não sei o que acontecerá agora —disse sinceramente.
—Tampouco eu —foi a sombria resposta de Liana.


Capítulo 18


Liana deu o último ponto ao dragão bordado no tecido sujeito pelo bastidor e cortou o fio. Tinha terminado a capa do travesseiro em poucas semanas; tratava de manter ocupadas as mãos porque desse modo pensava menos.
Durante cinco longas semanas fora a prisioneira dos Howard. Depois que se recuperou na medida necessária para caminhar, tinham—lhe atribuído uma habitação de hóspedes, um lugar agradável e ensolarado, assim como todos os elementos de costura que necessitava. Jeanne lhe deu dois vestidos.
Fora dela, Liana não via ninguém, salvo os criados que deviam limpar e a estes lhes proibia falar. Os primeiros dias passeou pela habitação até que lhe fatigaram as pernas; mas depois começou a tossir e usou o complicado trabalho para afastar sua mente das notícias que Jeanne lhe trazia todas as noites.
Os Howard vigiavam de perto os Peregrine e informavam a Oliver. Viam Rogam todos os dias: treinava—se com seus homens, cavalgava com seu irmão e perseguia como um sátiro às jovens camponesas.
Oliver repetiu suas ameaças a Rogam e deixou propagar que Liana estava apaixonada por seu irmão. A resposta de Rogam tinha sido perguntar se o convidariam às bodas.
Liana cravou a agulha no tecido e espetou o polegar. Os olhos encheram de lágrimas e pensou: é uma suja besta. Diariamente repassava em sua memória as muitas coisas terríveis que Rogam lhe fizera. Se alguma vez conseguisse escapar dos Howard, não desejava voltar a ver jamais a um Peregrine. Abrigava a esperança de que todos, inclusive Zared, a moça disfarçada de homem, afundassem em sua própria sujeira e afogassem.
No início da sexta semana, Jeanne veio vê—la com uma expressão preocupada no rosto.
—O que aconteceu —perguntou Liana.
—Não sei. Oliver está zangado, mais zangado que nunca. Quer obrigar a Rogam combater. —Jeanne se sentou com expressão de desalento. —Não pude descobrir nada, mas possivelmente Oliver enviou um desafio pessoal a Rogam... uma sorte de julgamento de Deus.
—Isso resolveria definitivamente a disputa, o vencedor seria o dono deste castelo.
Jeanne ocultou o rosto entre as mãos.
—Pode se permitir dizer isso, Rogam é vários anos mais jovem que Oliver, mais corpulento e forte. Seu marido vencerá e o meu morrerá.
Durante as últimas semanas Jeanne chegara a conhecer muito bem a Liana, quase até o extremo de que podiam considerar—se amigas. Liana apoiou uma mão no ombro de sua interlocutora.
—Sei o que sente, antes eu acreditei amar a meu marido.
À direita se ouviu um ruído.
—O que foi isso? —perguntou Jeanne erguendo a cabeça.
—O homem que limpa o banheiro.
—Não sabia que houvesse alguém aqui, eu também estou acostumado a esquecê—lo. Vêm e vão tão discretamente —disse Liana. —Em minha casa... quero dizer, no castelo de meu marido, os criados eram incapazes e preguiçosos e não tinham ideia do modo de limpar.
De novo o ruído.
Liana se aproximou da porta do banheiro.
—Fora daqui —ordenou ao ancião curvado que nos últimos três dias se encarregava de limpar torpemente a habitação.
—Mas não terminei, minha senhora —gemeu o homem.
—Fora! —repetiu Liana, permanecendo de pé enquanto o velho se afastava coxeando e arrastando uma das pernas.
Quando estiveram sozinhas, voltou—se para Jeanne.
—O que respondeu Rogam ao desafio?
—Não acredito que o tenha enviado, Oliver não pode acreditar que conseguirá derrotar Rogam. Oh, Liana, isto tem que terminar.
—Então, deixem—me em liberdade —solicitou Liana. —Ajude—me a fugir e uma vez que eu desapareça, a cólera de Oliver se acalmará.
—Voltará para Rogam?
Liana desviou o olhar.
—Não sei. Tenho algumas propriedades pessoais. Possivelmente irei para lá, onde certamente poderei encontrar um lugar a que pertença, um lugar no qual eu não seja uma carga.
Jeanne ficou de pé.
—Acima de tudo, devo fidelidade a meu marido, não posso colaborar com sua fuga. Agora mesmo, não o agrada que lhe veja todos os dias. Não —disse com voz firme —se o traísse se sentiria humilhado.
Liana pensou: A traição. A história dos Howard e os Peregrine abundava em deslealdades.
Jeanne saiu bruscamente da habitação, como se temesse a possibilidade de mudar de ideia sob a influência de Liana.
No dia seguinte, Liana estava nervosa e sobressaltava—se com cada ruído. Abriu—se a porta, ela olhou com a esperança de ver Jeanne e inteirar—se das novidades; mas era unicamente o ancião encarregado da limpeza. Decepcionada, voltou os olhos para o novo tecido estendido sobre o bastidor.
—Leve a bandeja da comida e saia daqui —disse contrariada.
—E aonde irei? —perguntou uma voz tão conhecida por Liana que um calafrio lhe percorreu a coluna vertebral. Com um movimento muito lento levantou o olhar. De pé diante da pesada porta estava Rogam, um emplastro sobre um olho, uma corcunda e uma perna enfaixada de tal modo que parecia que estava deformada.
Sorria—lhe de maneira tal que Liana compreendeu que ele esperava vê—la saltando de alegria.
Em troca, Liana se apoderou de uma taça depositada sobre a bandeja do café da manhã e a jogou na cabeça de Rogam, que a esquivou e a taça golpeou contra a porta.
—Bastardo! —disse Liana. —Sátiro incorrigível, assassino mentiroso e trapaceiro. Não quero voltar a vê—lo. Uma por uma foi jogando as coisas que estavam sobre a bandeja e continuou com tudo o que pôde encontrar na habitação. —Deixou—me aqui, que apodrecesse. Cortaram—me os cabelos, mas não se importou. Não desejava ver—me, nunca me quis, nem sequer me disse que Zared era uma moça. Respondeu a Oliver Howard que pelo que eu lhe importava, podia fazer o que quisesse comigo, ria—te e festejava enquanto eu era prisioneira, foi caçar com Severn enquanto eu vivia encerrada neste quarto. Você...
—Era Baudoín —respondeu Rogam.
Esgotados os utensílios empregados como projéteis, Liana começou a arrancar as mantas da cama e a usá—las do mesmo modo, que voando pelo ar, foram aterrissando aos pés de Rogam. Agora, ao redor dele havia uma grande pilha de adornos, travesseiros e pratos.
—Merece tudo o que os Howard lhe fazem —gritou Liana. —Sua família está podre até a medula, quase morri de febre enquanto você passava bem. Estou segura de que não se importa, mas ataram a uma árvore toda a noite sob a chuva. Poderia ter perdido nosso filho, como se isso o preocupasse. Você nunca...
—Baudoin era quem saía a caçar, eu estava aqui —disse Rogam.
—Muito típico de um Peregrine: jogar a culpa a outro. O pobre e inocente pai de família. Ele se preocuparia se alguém cortasse os cabelos de sua esposa. Ele... —Fez uma pausa. Na habitação não havia nada mais para jogar em Rogam. —Aqui? Estava aqui?
Sua voz expressava suspeita.
—Estive aqui, buscando—a durante quase três semanas, mas o quarto que ocupava era um segredo bem guardado.
Liana não estava segura de acreditar.
—Como pôde estar aqui sem que ninguém soubesse? Os Howard lhe conhecem.
—Não tanto como acreditam, seus espiões viram Baudoin caçando e perseguindo as moças; não era eu. Eu estava aqui, disfarçado, limpando habitações, caiando paredes, varrendo pisos... e enquanto isso escutava.
Liana começou a prestar mais atenção, possivelmente as notícias que lhe tinham chegado a respeito de sua conduta eram falsas.
—Você limpou algo? —perguntou. —Devo acreditar nisso? Não saberia que extremo da vassoura tem que usar.
—Se agora tivesse uma, saberia que extremo usar em seu traseiro.
Era certo, Oh, Deus santo, era certo. Em efeito, estivera procurando—a. Os joelhos de Liana se afrouxaram e desabou sobre o colchão de plumas, afundou o rosto entre as mãos e começou a chorar como se lhe destroçasse o coração.
Rogam não se atreveu a tocá—la, permaneceu de pé no mesmo lugar, no centro da desordem, olhando—a fixamente. Não acreditara ser possível voltar a vê—la nunca mais.
No dia que a tinham capturado, quando ele caiu em um leito de urtigas e a pele queimava, imaginou que sua esposa lhe teria uma banheira preparada de água quente, que aliviaria sua dor. Mas ao subir a escada descobriu um solar povoado por mulheres que choravam. Não pôde tirar nada a limpo das criadas de Liana, mas Gaby, entre soluços, informou—lhe que os Howard capturaram Liana. Oliver Howard enviara uma mensagem em que dizia que em troca da devolução de Liana queria a entrega do castelo de Moray.
Sem dizer uma palavra, Rogam se dirigiu ao dormitório, sua intenção era passar um momento a sós e planejar sua estratégia, mas de repente descobriu que Severn e Baudoin o sujeitavam contra o piso. A habitação estava destruída. Possuído por uma cólera tão cega que ainda não recordava nada, levara uma tocha à habitação e dedicou—se a destruir tudo: os objetos de madeira, de ferro, de tecido. A cera das velas se mesclava com os lençóis rasgados. Com uma palmatória de ferro tinha destroçado as pernas das cadeiras de carvalho e o belo crucifixo de Liana era um montão de lascas. Em qualquer parte se viam retalhos dos vestidos de Liana: seda vermelha, brocado azul, seda de ouro, seda de prata. Quatro toucados permaneciam despedaçados e o enchimento saía pelas rasgaduras.
Severn e Baudoin derrubaram a porta e finalmente conseguiram sujeitar seu irmão, evitando que ele mesmo se ferisse.
Quando Rogam recuperou o sentido estava tranquilo, muito tranquilo. Tanto que Severn se encolerizou.
—Atacaremos —disse Severn. —Agora dispomos de dinheiro, podemos contratar mercenários e por fim expulsaremos os Howard do lar dos Peregrine.
Rogam olhou Severn e imaginou seu irmão lavado e depositado em um ataúde como tinha visto Basil e James quando lutaram para recuperar sua primeira esposa. Rogam sabia que não devia adotar atitudes temerárias, que tinha que pensar com claridade e com calma. Não podia atacar um lugar tão importante como as terras dos Peregrine sem um considerável trabalho de planejamento.
Durante dias trabalhou muito e com toda a fúria e obrigou seus homens a exercitar—se até o esgotamento em sua preparação para a guerra. De noite se detinha só quando já não tinha forças para continuar; e então caía em um sono sereno e profundo.
E apesar de tudo o que trabalhava, continuava sentindo saudades. Liana era a única pessoa em sua vida que tinha conseguido lhe fazer rir. Nem seu pai nem seus irmãos mais velhos tinham brincado jamais enquanto viviam e apesar de haver—se casado com essa moça pelo dinheiro que podia lhe contribuir, depois nada fora o mesmo. Era a única que se atrevia a criticá—lo; outras mulheres lhe temiam muito para queixar do trato que ele lhes dispensava e não diziam que estava equivocado. Pensou: essas mulheres careciam de valor, não lhe incendiavam a cama, não apareciam para jantar cobertas de moedas, não se atreviam a perguntar a respeito de sua primeira esposa.
Estava vigiando o embarque de algumas máquinas de guerra nas carretas, quando um cavalheiro Peregrine chegou com um pacote enviado pelos Howard. O cofrinho de carvalho tinha sido jogado por cima do muro com uma mensagem destinada a Rogam.
Rompeu a fechadura com um pico de ferro, retirou o vulto envolto em tecido e encontrou dentro os cabelos de Liana, mas conseguiu conservar a calma. Com esses cabelos de seda na mão começou a caminhar para a torre.
Severn o alcançou.
—Aonde vai? —perguntou.
—Este é um assunto entre Oliver Howard e eu —disse serenamente Rogam. —Vou matá—lo.
Severn obrigou seu irmão a voltar—se.
—Acredita que Howard aceitará um combate pessoal com você? Que confrontará uma luta limpa? É um homem de idade.
Rogam apalpou os cabelos que tinha na mão.
—Ele a machucou e por isso o matarei.
—Pensa no que faz —rogou Severn. —Será suficiente que se aproxime da entrada de seu castelo e ele ordenará que lhe atravessem com flechas. Depois, o que será de sua esposa? Vamos, ajude a preparar a guerra, atacaremos como corresponde aos Howard.
—Como corresponde! —exclamou Rogam, meio em brincadeira. —Como fizemos anteriormente? Então havia cinco irmãos Peregrine, e mesmo assim os Howard nos derrotaram. Como é possível que, pobres como somos, alimentemos a esperança de lutar contra os Howard? Levaremos nossa minúscula força, sitiaremos e Howard rirá de nós do alto de suas muralhas.
—E entretanto acredita que você, um só homem, pode fazer o que não está ao alcance de toda nossa força?
Rogam não tinha resposta para isso. Foi ao seu quarto de meditação, fechou a porta e esteve ali vinte e quatro horas. Finalmente, soube o que tinha que fazer. O dia que ele e Liana tinham ido à feira, viu com que facilidade os camponeses entravam e saíam do castelo de Moray. É obvio, sempre os viu, com seus cestos de galinhas, seus carrinhos de mão de três rodas carregadas de toscas mercadorias, muitos com suas ferramentas ao ombro para realizar trabalhos de reparação; mas nunca lhes prestou atenção. Só quando o próprio Rogam vestiu o traje camponês compreendeu com que liberdade entrava essa gente e como se introduzia no castelo sem que ninguém lhes fizesse perguntas. Mas se um homem com armadura e a cavalo se aproximava de menos de vinte quilômetros do castelo de Moray, tinha que enfrentar a seus cavalheiros armados.
Rogam convocou seus dois irmãos ao quarto de meditação e pela primeira vez incluiu Baudoin como membro da família. Disse—se que isso era o que faria Liana pois tinha contribuído no mais precioso dos dons: outro irmão. Rogam lhes explicou que planejava vestir—se de camponês e entrar sozinho na fortaleza dos Howard.
O grito de protesto de Severn espantou as pombas do teto. Gritou, desesperou e ameaçou, mas não pôde comover Rogam.
Baudoin, que guardara silêncio durante a explosão de Severn, finalmente falou.
—Necessitará de um bom disfarce, é muito alto, é muito fácil de identificar. Gaby lhe preparará um e nem sequer lady Liana poderá descobrir.
Nesse dia, Rogam, Gaby e Baudoin trabalharam esforçadamente para convertê—lo em um velho aleijado, torto e corcunda. Severn estava tão irritado que recusou colaborar, mas Rogam foi vê—lo e pediu—lhe ajuda. Este sabia que os espiões dos Howard os observavam, e queria que Severn os induzisse a pensar que ele ainda estava no castelo de Moray. Severn e Baudoin deviam obter que os Howard pensassem que este último era Rogam.
Aproximou—se sozinho da fortaleza dos Howard. Quando se despediram no bosque, Severn abraçou seu irmão, um gesto incomum entre os Peregrine, que não se manifestou antes de que Liana chegasse e abrandasse—os um pouco.
—Traga—a de volta —pediu Severn em voz baixa. —E... não quero perder mais irmãos.
—Encontrarei—a —dirigiu—lhe um último olhar: —Cuida de Zared.
Severn assentiu e Rogam começou a afastar—se.
Comprovou que o corpo inclinado e a necessidade de arrastar a perna lhe provocava dor nas costas; e os homens dos Howard que lhe repartiam ordens frequentemente sublinhavam suas exigências com chutes e empurrões. Prestou atenção aos rostos, abrigando a esperança de encontrá—los um dia no campo de batalha.
Percorreu o castelo retirando resíduos e refugos e fazendo todo o possível para aproximar—se e escutar as pessoas. No castelo se comentava muito a traição dos Peregrine e seus intentos de roubar o que por direito pertencia aos Howard. As pessoas falavam de Liana, opinando que não era bastante boa para o irmão menor de Oliver. Certa vez ao ouvir isto Rogam partiu em duas o cabo de uma vassoura, o que determinou que um cozinheiro o golpeasse com uma perna de cordeiro.
Comia o que podia roubar e como os Howard, instalados nas propriedades da família Peregrine, eram muito ricos, nunca notavam a falta dos mantimentos. Dormia em um canto dos estábulos ou nas gaiolas, com as aves.
Trabalhava, escutava e mantinha bem aberto o olho livre, tratando de identificar aos que podiam saber algo.
Durante a terceira semana, quando já estava perdendo as esperanças, um homem lhe atirou um chute no traseiro e o derrubou.
—Vem comigo, velho —disse.
Rogam se levantou, seguiu—o e enquanto subia as escadas já estava planejando a morte de seu ofensor. O homem lhe entregou uma vassoura.
—Entra ali e limpa —ordenou, retirando o ferrolho de uma grossa porta revestida de ferro.
Na habitação, Rogam permaneceu um momento piscando, pois ali estava Liana, seu belo rosto inclinado sobre um bastidor, os cabelos cobertos com um tecido branco. Ele não podia mover—se, permanecia de pé e olhava—a, Liana voltou os olhos para ele.
—Bem, adiante —disse. —Tem melhores coisas que fazer que olhar à prisioneira dos Howard.
Rogam decidiu em seguida lhe dizer quem era, mas então se abriu a porta, ele se meteu no banheiro, permanecendo junto à entrada para escutar. Emitiu um suspiro de alívio quando ouviu uma voz feminina, e enquanto continuava na mesma posição, Liana pronunciou o nome da mulher: Jeanne. Esta era a Jeanne com quem ele se casou muitos anos antes?
Saiu do banheiro e começou a caminhar pela habitação e nenhuma das duas lhe prestou a mínima atenção. Olhou a Jeanne, pensando que era sua primeira esposa, mas não estava seguro. O matrimônio com ela fora breve e terminara muito tempo atrás; além disso, não lhe deixou uma lembrança muito viva como esposa.
Escutou as duas mulheres comentar a respeito da indiferença que ele mesmo demonstrava, como se dedicava a beber e a caçar e se despreocupava absolutamente de sua esposa, a quem tinham prisioneira. Sorriu quando mencionavam o embaraço de Liana. Mas seu sorriso desapareceu ao notar que Liana acreditava em tudo o que Jeanne lhe dizia. Acaso as mulheres careciam de sentimentos de lealdade? O que tinha feito ele para merecer a desconfiança de sua esposa? Deu—lhe teto, alimentou—a além de lhe dar um filho e inclusive renunciara a suas mulheres por ela. E agora estava ali, para salvá—la dos Howard.
Sentiu—se tão aborrecido pela conduta desleal de Liana que embora realizasse acertos e subornasse guardas e vassalos com dinheiro que era necessário para outras coisas e fosse a sua habitação todos os dias, decidiu que era melhor abster—se de revelar sua identidade.
Agora estava ali, depois de tudo o que confrontrara para descobri—la e Liana nem sequer se mostrava agradecida.
—O que estava fazendo fora do castelo? —perguntou Rogam, franzindo o sobrecenho. —Ordenei que não saísse.
O tecido sobre a cabeça de Liana era muito fino quase transparente, e Rogam viu que pouco ficava dos cabelos de sua esposa. Pensou: se chegar a pôr minhas mãos sobre Oliver Howard, a morte desse homem será prolongada e dolorosa.
—Fui procurar ervas para acalmar seu ardor, Gaby havia dito que caiu em um leito de urtigas.
Agora, Liana soluçava audivelmente.
—Urtigas! —reprovou—lhe Rogam sussurrando. —Provocou tudo isto porque foi procurar ervas para acalmar o efeito das urtigas?
Liana começava a compreender que, em efeito, ele tinha vindo procurá—la, e que era falso tudo o que ela escutou a respeito de sua indiferença. Saltou da cama em um revôo de sedas, jogou os braços ao pescoço e deu—lhe um ardente beijo.
Ele a sustentou com tanta força que quase lhe quebrou as costelas.
—Liana —murmurou, a boca unida ao pescoço de sua mulher.
Liana lhe acariciou os cabelos e de novo os olhos encheram de lágrimas.
—Não me esqueceu —murmurou.
—Nunca —disse Rogam, e então sua voz mudou. —Não posso permanecer aqui mais tempo. Esta noite não há lua, virei buscá—la e iremos.
—Como?
Ela se afastou um pouco para olhá—lo. Parecia ter esquecido o quanto esplendidamente bonito era Rogam, inclusive desfigurado por várias semanas de descuido e sujeira, seu rosto era...
—Está me escutando?
—Com toda minha atenção —respondeu ela, apertando—se mais contra seu corpo.
—Comporte—se e escute. Não confie em Jeanne Howard.
—Mas ela me ajudou, pode dizer que me salvou a vida Eu ardia de febre e...
—Jura —disse ferozmente Rogam. —Jura que não confiará nela, não lhe diga que estive aqui. Traiu uma vez a minha família e se voltasse a fazê—lo eu não sobreviveria. Não poderia combater sozinho aos Howard. Jura.
—Sim —murmurou Liana. —Juro.
Ele apoiou as mãos sobre os ombros de Liana e dirigiu—lhe um último e longo olhar.
—Devo partir agora, mas esta noite virei buscá—la. Espere—me, e por uma vez trata de me ser fiel. —Sorriu apenas. —E limpa esta habitação. Aprendi a gostar da limpeza.
Beijou—a outra vez, com muita força e desapareceu
Liana esteve por um longo tempo contra a porta. Tinha vindo procurá—la, não se passava bebendo e caçando enquanto ela se encontrava prisioneira. Em troca, tinha arriscado sua vida ao entrar sozinho no domínio dos Howard. Tampouco demonstrou que não a necessitava.
Com expressão sonhadora, começou a recolher todas as coisas que lhe tinha jogado. Não desejava que Jeanne visse a desordem e formulasse perguntas.
Esta noite, pensou. Esta noite viria procurá—la. E quando começou a repensar com menos romantismo sobre este encontro, quando refletiu de um modo mais realista, teve medo. O que aconteceria se o apanhavam? Oliver Howard mataria a Rogam. Sentou—se na cama, as mãos fortemente unidas e o temor que começou a dominá—la endureceu o corpo.
Ao pôr do sol, o medo a dominou tão completamente que até sentiu como se estivesse olhando—se ela mesma de longe. Ficou de pé com movimentos lentos, tirou—se o vestido de seda que Jeanne emprestara substituindo—o pela roupa camponesa que usava no dia que a tinham aprisionado e voltou a colocar o vestido sobre o traje camponês e se sentou a esperar.
Todos os músculos de seu corpo estavam tensos enquanto se encontrava ali, sentada, imóvel, os olhos cravados na porta fechada. Percebeu o silêncio que começava a cair sobre o castelo à medida que os trabalhadores se deitavam. Um criado trouxe seu jantar sobre uma bandeja e acendeu uma vela, mas Liana não tocou no alimento. Em troca, esperou que a noite trouxesse Rogam.
Ao redor da meia—noite, a porta se abriu muito lentamente e Liana ficou de pé, os olhos aumentados pelo temor.
Jeanne entrou na habitação, fixando seu olhar na cama e sobressaltada, viu Liana.
—Acreditei que estavam dormindo.
—O que aconteceu? —perguntou Liana.
—Não sei. Oliver está muito zangado e dedicou—se a beber. Ouvi dizer... —Olhou a Liana. Não queria repetir o que tinha escutado. Em todos os assuntos exceto um, seu marido era um homem razoável; mas quando se tratava dos Peregrine perdia todo o sentido da proporção, da honestidade e a sensibilidade e hoje, Jeanne tinha ouvido dizer que Oliver se propunha matar a Liana e entregar o cadáver a Rogam. —Deve vir comigo disse Jeanne. É necessário que a esconda...
—Não posso —respondeu Liana. —Tenho que esperar aqui que...
—Esperar o que? —perguntou Jeanne. —O que? A quem espera?
—A ninguém —apressou—se a dizer Liana. —Nenhuma pessoa sabe que estou aqui, não é? Como poderia esperar alguém? Estava sentada aqui, e isso é tudo. —Fechou a boca, não podia dizer a Jeanne que Rogam viria procurá—la. Possivelmente esta informaria a Oliver. Mas se saía dali, como a encontraria Rogam? —Esta habitação é tão agradável —disse Liana. Prefiro permanecer aqui e não ir a outro lugar. Acredito que não poderia suportar um quarto gelado.
—Não é momento agora de pensar em luxos, estou preocupada com sua vida e se quiser que você e seu filho sobrevivam, venha comigo.
Liana compreendeu que não tinha alternativa e com o coração oprimido seguiu Jeanne; ambas desceram a escada iluminada por tochas. Saiu com ela da torre, cruzou o pátio interior mergulhado na escuridão e finalmente desceu os degraus de pedra que levavam ao porão de uma das torres. Ali viu enormes sacos de grãos, em alguns lugares empilhados quase até o teto. Era um lugar úmido, escuro, que cheirava a mofo; a única janela era uma fresta sobre sua cabeça.
—Não pretende que permaneça aqui —murmurou Liana.
—É o único lugar onde ninguém virá. O grão não será necessário até a primavera, de modo que ninguém entrará. Pus ali algumas mantas de lã e há um urinol no canto.
—Quem o esvaziará? —perguntou Liana. —O ancião que vem a meu quarto parece bastante estúpido, de modo que poderíamos chamá—lo.
—Não nesta situação. Virei amanhã de noite porque confio unicamente em mim mesma. —Temia que quando Oliver descobrisse o desaparecimento de Liana, oferecesse uma recompensa por ela e nesse caso, qualquer um poderia entregá—la. —Sinto muito, é um lugar horrível, mas é o único seguro; trate de dormir, virei amanhã.
Quando Jeanne saiu e jogou o ferrolho à porta, o som arrancou ecos na redonda habitação de pedra, com seu teto abobadado. A escuridão era absoluta e o lugar estava tão frio como só pode estar a pedra que nunca foi aquecida. Liana avançou tateando, tropeçando com os sacos de grãos, para encontrar as mantas deixadas por Jeanne. Quando as achou, tratou de fazer uma cama sobre os sacos, de superfície irregular, mas não havia modo de formar um leito cômodo.
Finalmente, deitada sobre os sacos duros e poeirentos e com duas pequenas mantas lhe cobrindo o corpo, pôs—se a chorar. Fora, seu amado Rogam arriscava a vida para encontrá—la. Rogou que ele não fizesse nada precipitado quando descobrisse que desaparecera, mas inclusive se ele guardava silêncio, nunca a encontraria nesse porão, pois nem os guardas nem os criados sabiam onde estava agora. Só Jeanne Howard conhecia o esconderijo de Liana.
Jeanne não veio no dia seguinte e Liana não tinha alimento nem água, tampouco luz nem calor. E quando o dia se converteu em noite, perdeu toda esperança. Rogam tinha razão em sua atitude frente a Jeanne: não era possível confiar nela. Liana começou a recordar que foi Jeanne quem lhe falou da despreocupação de Rogam ao inteirar—se de que a tinham aprisionado; Jeanne a induzira a acreditar na traição de Rogam.
Ela chegou na noite do segundo dia, em silêncio abriu a porta e entrou no porão frio e escuro.
—Liana —chamou.
A jovem estava muito cansada e ao mesmo tempo muito irritada para responder.
Tropeçando com os sacos de grãos Jeanne começou a avançar tateando pelo lugar, lançando uma exclamação quando tocou Liana.
—Trago—lhes comida e água, e outra manta.
Levantou a saia e começou a liberar pacotes. Aproximou uma cabaça de água aos lábios de Liana, que bebeu ansiosamente; depois lhe entregou carne fria, pão e queijo.
—Não pude vir ontem, Oliver suspeita que eu tive algo a ver com sua fuga e pôs a todo mundo a espiar a todos. Tenho medo de minhas próprias damas. Atinei a alegar enfermidade e ordenar que me trouxessem a comida em minha habitação, para lhe trazer algo de comer.
—Devo acreditar que renunciou a seu jantar por mim? —perguntou—lhe, a boca cheia.
Estava escuro e Liana não podia ver o rosto de Jeanne, mas houve uma pausa antes de que esta falasse.
—Aconteceu algo —disse Jeanne. —O que é?
—Não tenho ideia do que quer dizer. Estive aqui, sozinha, neste lugar gelado. Ninguém entrou ou saiu durante dois dias.
—E isso sem dúvida salvou sua vida —disse asperamente Jeanne. —É a esposa do inimigo de meu marido e corri muitos riscos para defender sua saúde e sua segurança.
—Que risco? Suas mentiras? —Liana desejou não ter falado.
—Que mentiras? Liana, o que aconteceu? O que ouviu? E como ouviu algo?
—Nada —respondeu Liana. —Estive encerrada e isolada de todo o mundo, não posso ter ouvido nada.
Jeanne se separou de Liana, seus olhos começavam a acostumar—se à escuridão, podia ver, as sombras dos sacos de grão e o perfil mais escuro de Liana. Jeanne respirou fundo e olhou a Liana.
—Decidi lhe dizer a verdade, toda a verdade. Meu marido se propõe a matá—la, é o que ouvi e por tal razão a retirei do quarto da torre, porque agora não lhe acredita útil. Nunca teve o propósito de capturá—la; simplesmente, cruzou em seu caminho, e ele atuou obedecendo a um impulso. Abrigava a esperança de obrigar a Rogam a entregar—lhe o castelo de Moray. O que ele deseja realmente é apoderar—se de tudo o que possuem os Peregrine.
Em sua voz havia um sotaque de amargura.
Jeanne continuou falando.
—Não sei o que fazer com você. Não posso confiar em ninguém e Oliver ameaçou de morte a quem fosse surpreendido prestando ajuda à prisioneira. Sabe que ainda está no castelo, porque depois de sua captura ordenou aos guardas observar o rosto de todos os camponeses que entram ou saem daqui. Inclusive agora, seus homens estão explorando o bosque que se estende fora das muralhas.
Jeanne fez uma pausa.
—Maldito seja Rogam! Por que não tentou obter sua volta? Jamais pensei que permitiria que um membro de sua família apodrecesse aqui.
—Não o permite! —disse Liana, e depois se mordeu a língua.
—Sim, você sabe de algo. —Jeanne agarrou pelos ombros a Liana. – Ajude—me a salvar sua vida, é só questão de tempo até que os homens de Oliver revistem este porão e não poderei lhe salvar se descobrirem.
Liana recusou falar porque Rogam lhe ordenara jurar que não confiaria em Jeanne e ela estava disposta a cumprir sua palavra.
—Está bem —disse Jeanne com expressão fatigada —como queira. Farei todo o possível para que saia o quanto antes daqui. Sabe nadar?
—Não —respondeu Liana.
Jeanne suspirou.
—Farei o que posso —murmurou e saiu pela porta.
Liana passou uma noite inquieta sobre os sacos de grão. Não podia dizer a Jeanne que Rogam estava no castelo, e que ele a ajudaria a fugir porque se revelasse o disfarce de Rogam, ela poderia informar a Oliver.
Por outra parte, e se Jeanne estava dizendo a verdade? Sim, era só questão de tempo antes de que a descobrissem. E se a capturassem, Rogam assistiria indiferente, protegido por seu disfarce de mendigo, e olharia em silêncio enquanto a matavam? Não, Rogam não guardaria silêncio e Oliver Howard o capturaria também.
Pela manhã, Liana ouviu ruídos que vinham da fresta, aberta na parede a grande altura. Necessitou bastante tempo, mas conseguiu mover os sacos de cinqüenta quilos até que formou uma pirâmide sobre a qual subiu e uma vez acima pôde ver pelo extremo inferior da larga fresta.
O castelo inteiro fervia de atividade, os homens e as mulheres corriam e gritavam, abriam—se de par em par as portas, os cavalos saíam dos estábulos, descarregavam—se os carros repletos de mercadorias. Liana compreendeu que estavam procurando—a.
Quando ficou nas pontas dos pés para ver melhor, ao fundo do pátio viu um mendigo velho e aleijado, uma corcunda nas costas, arrastando uma perna ao caminhar.
—Rogam —murmurou Liana e cravou um intenso olhar no homem, chamando—o para aproximar—se. Como se ele tivesse recebido uma mensagem, aproximou—se com passo lento.
Quando ele começou a caminhar, o coração de Liana pulsou rapidamente. A janela não ultrapassava em muito o nível do chão exterior e se ele se aproximasse o suficiente ela poderia chamá—lo. Quando a distância se encurtou, Liana conteve a respiração. Abriu a boca para chamá—lo.
—Eh! Você! —gritou a Rogam nesse instante um cavalheiro dos Howard. —Tem dois bons braços, saca daqui este carro.
As lágrimas fluíram aos olhos de Liana ao ver Rogam subir torpemente ao carro e afastar—se com o veículo. Sentou—se sobre os sacos de grão e começou a chorar, o que Jeanne lhe havia dito era certo. Oliver Howard estava removendo céu e terra em sua busca; e se não era hoje, ao dia seguinte a descobriria.
Um voz interior lhe disse que tinha que confiar em Jeanne, que sua única possibilidade de sobreviver era lhe dizer que Rogam estava perto e que tinha um plano de fuga. Se não confiava nela, certamente morreria mas se o fazia, existia uma possibilidade de que tanto Liana como Rogam vivessem.
Quando Jeanne chegou essa noite, Liana confrontava o sofrimento da indecisão.
—Arrumei tudo —disse Jeanne. —É o máximo que pude fazer, mas ignoro se será eficaz. Não me atrevi a confiar em nenhum dos homens de meu marido e temo que uma de minhas damas lhe esteja informando constantemente. Agora, venha comigo, não há tempo a perder.
—Rogam está aqui —disse Liana.
—Aqui? Neste porão?
A voz do Jeanne exibia intenso temor.
—Não, no castelo. Veio para ver—me no quarto da torre. Disse que tinha um plano e se propunha me levar na noite que você me trouxe aqui.
—Onde está? Depressa! Há gente esperando para lhe ajudar, e necessitamos urgentemente do apoio de seu marido.
Liana afundou os dedos no braço de Jeanne.
—Se nos trair, juro ante Deus que lhe perseguirei todos os dias de sua vida.
Jeanne fez o sinal da cruz.
—Se lhe apanharem, será porque perdeu um tempo valioso me ameaçando. Onde está?
Liana descreveu o disfarce de Rogam.
—Vi—o, deve lhe amar se arrisca a vir aqui, sozinho. Espere, retornarei.
Liana se deixou cair sobre uma pilha de sacos de grãos. Tinha chegado o momento em que saberia se tinha adotado a decisão certa. Se equivocou, podia dar—se por morta.

 

 

 

 


Capítulo 19


Jeanne irrompeu enfurecida no grande salão, seguida por duas damas vestidas de seda. O piso estava coberto de colchões de palha e ali dormiam os homens e os cães. Outros jogavam dados em um canto e um soldado acariciava uma donzela um pouco mais longe.
—O dreno de minha privada está tapado —anunciou. —Quero que alguém o limpe. Agora.
Os que estavam acordados prestaram atenção ao ver a senhora do castelo, mas ninguém se ofereceu voluntariamente para a desagradável tarefa.
—Enviarei alguém —começou a dizer um cavalheiro.
Jeanne viu Rogam, sentado com as costas apoiadas em uma parede, vestido com suas roupas. Sentiu os olhos de Rogam cravados nela.
—Este servirá. Venha comigo.
Voltou—se, com a esperança de que ele a seguisse e em efeito foi o que fez Rogam. Jeanne esperou até que estivessem protegidos pela sombra de uma parede, ordenou a suas duas damas que se retirassem e voltou—se para Rogam.
Antes de que ele pudesse retroceder, Jeanne estendeu a mão e arrancou—lhe o emplastro do olho.
—É você —murmurou. —Não podia acreditar que o que Liana me disse era verdade. Nem imaginava que a um Peregrine lhe importasse se uma mulher vivia ou morria.
A mão de Rogam agarrou a boneca de Jeanne, oprimindo—a dolorosamente.
—Cadela, onde está? Se tiver sofrido dano, farei—lhe o que devia ter feito faz anos.
—Solte—me, ou não voltará a vê—la.
Rogam não teve outro remédio que lhe obedecer
—O que lhe fez para conseguir que fale e de mim? Agradará—me matá—la se...
—Pode me cuspir mais tarde suas doces palavras —interrompeu secamente Jeanne. —Agora está escondida e proponho—me a tirá—la daqui, mas necessito de ajuda. Não sabe nadar, de modo que tem que cruzar em bote os dois fossos e você remará. Agora, aproxime da muralha que está do lado da torre nordeste. Verá pendurada uma corda, atravessa o pátio exterior, para o noroeste. Encontrará outra corda penduranda deste muro e debaixo verá amarrado um bote. Espera—a nele. Eu lhe ajudarei a chegar ali; depois, tocará—lhe cruzar o terreno e chegar ao fosso exterior.
—Devo acreditar em você? Estou seguro de que os soldados de Howard estarão me esperando.
—Minhas damas distrairão os guardas que cuidam das muralhas. Tem que acreditar em mim, não há outra solução.
—Se voltar a trair—me, eu...
—Parte! —ordenou Jeanne. —Está perdendo minutos preciosos.
Rogam se afastou depressa, mas arrastando a perna em caso de que alguém estivesse observando—o. Nunca se havia sentido tão nu no curso de sua existência. Sua vida e a de Liana estavam nas mãos de uma traidora e mentirosa. Por uma parte tinha a certeza de que quando chegasse à torre nordeste encontraria os homens esperando—o para assassiná—lo. Mas por outro lado sabia que era a única oportunidade. Durante dias esteve procurando Liana em vão, e não tivera mais sorte que os homens de Howard.
Não havia homens armados esperando—o na torre. Em troca, na escuridão, uma corda pendurada do extremo superior da muralha. Rogam tirou o emplastro do olho, retirou o recheio que formava uma corcunda em suas costas e desatou a perna. Tomou uma faca que ocultava sob a suja camisa, pôs entre os dentes e começou a subir.
Pensava encontrar os homens aguardando—o no final da corda, mas não havia ninguém. Em silêncio, desceu por outra corda que estava pendurava do lado oposto da muralha.
Uma vez que voltou a pisar em chão firme, correu escondido atravessando o espaço intermédio e quando ouviu risadas pregou o corpo à pedra escura da muralha exterior. Dois guardas passaram sem ver Rogam, que estava a poucos metros mais abaixo, com a corda pendurando nas sombras, à direita do lugar em que eles se encontravam.
Tinha que subir uma muralha mais antes de chegar ao fosso: perdeu minutos valiosos procurando a corda e começou a subir. Vamos, teve que deter—se, porque ouviu a voz de um homem seguida pela risada de uma mulher. Rogam esperou até que se afastaram e subiu ao parapeito largo e liso. A corda seguinte estava a certa distância, sobre a mesma muralha, e Rogam desceu depressa. Nas sombras, escondidoo entre altos juncos, havia um minúsculo bote com dois remos. Embarcou nele, escondeu—se e esperou. Manteve os olhos fixos no extremo superior do muro, olhando com tanta intensidade que rara vez piscou.
Passou longo tempo antes que espionasse as sombras escuras das cabeças, perto do extremo superior da muralha, no lugar onde tinham assegurado a corda. Tinha começado a perder a esperança; essa cadela Howard certamente tinha posto as cordas e preparado o bote, mas, traria Liana?
Rogam conteve a respiração sem afastar os olhos das duas cabeças que parecia que estavam falando. Pensou: Mulheres! Precisavam expressá—lo tudo em palavras. Para elas o bate—papo era o essencial. Falavam quando um homem tentava levá—las a cama, faziam—no quando um homem lhe dava de presente algo, queriam que ele explicasse por que lhes oferecia a graça. Mas o que era pior, falavam quando estavam no parapeito de uma muralha, rodeadas por homens armados.
E então, tudo aconteceu em poucos instantes. Uma das mulheres levantou as mãos como se quisesse golpear à outra. Rogam ficou de pé e correu para a muralha. Ouviu—se um grito feminino, lá em cima, e depois o movimento dos homens correndo ao longo da muralha. Rogam tinha as mãos sobre a corda, e se preparava para subir, quando Jeanne lhe gritou.
—Não! —vociferou. —Salve—se, Liana morreu. Não pode resgatá—la.
Rogam começou a subir pela corda e estava a um metro e meio do chão quando caiu e golpeou a terra. Acima alguém cortara a corda.
—Vá, estúpido —ouviu gritar Jeanne, e então sua voz se sossegou, como se alguém lhe aplicasse uma mão sobre a boca.
Rogam não perdeu tempo em vacilações, pois as flechas começaram a cair ao seu redor. Correu para o bote, mas duas flechas o tinham alcançado e estava afundando. Mergulhou—se na água fria do fosso e começou a nadar; as flechas zumbiam ao redor de sua cabeça.
Chegou à margem oposta e pôs—se a correr, escondido, ao longo da margem norte, exatamente frente aos muros. Os sonolentos guardas ao ouvir o alvoroço, começaram a despertar e a observar a estreita tira de terra entre os fossos interior e exterior. Quando viram movimento, dispararam suas flechas.
Rogam chegou ao fosso externo no instante mesmo em que uma flecha lhe roçou as costas, abrindo sua pele. Saltou e começou a nadar para o norte afastando—se das muralhas, em direção ao lago que alimentava os dois fossos. Era um nadador vigoroso mas estava perdendo sangue. Quando chegou à margem, conseguiu sair a terra com muito esforço. Permaneceu deitado um momento entre os juncos, expulsando a água dos pulmões e respirando com dificuldade, enquanto o sangue lhe cobria as costas.
Quando por fim pôde caminhar se dirigiu ao bosque e ouviu os cascos dos cavalos que montavam os homens de Howard, não muito distante. Ele e os soldados de Howard bancaram gato e rato o resto da noite e a maior parte do dia seguinte, pois Rogam se ocultava quando os ouvia perto e então eles giravam e ele voltava a esconder—se.
Ao anoitecer saltou sobre um cavalheiro Howard, cortou—lhe o pescoço e tirou—lhe o cavalo. Os homens o perseguiram mas Rogam esporeou sua montaria até que o animal sangrou, e assim conseguiu distanciar—se. À alvorada, o cavalo se deteve, negando—se a continuar e Rogam desmontou e começou a caminhar.
O sol estava alto no céu quando viu o perfil do castelo de Moray. Continuou andando e tropeçando com as pedras, pois seus músculos agora se negavam a responder depois de semanas de abuso. Um dos homens que vigiavam os parapeitos o viu e poucos minutos depois Severn cavalgava furiosamente para seu irmão, saltou do cavalo antes de que este se detivesse e sustentou Rogam no instante mesmo em que caía.
Severn teve a certeza de que seu irmão morria quando viu sangue em suas mãos; era o que emanava das costas de Rogam. Começou a levá—lo para o cavalo.
—Não —disse Rogam, afastando—se. —Deixe—me.
—Deixá—lo? Por todos os Santos, vivemos em um inferno. Ouvimos dizer que Howard tinham lhe matado ontem à noite.
—Sim, ele me matou —murmurou Rogam e se afastou.
Severn viu as feridas nas costas de seu irmão. Ainda estava ensanguentada e era bastante profunda, mas não era letal.
—Onde está ela?
—Liana? —perguntou Rogam. —Morreu.
Severn franziu o sobrecenho, começara a simpatizar com essa mulher, embora criasse muitos problemas, como todas as mulheres, mas não era covarde. Passou o braço sobre os ombros de Rogam.
—Encontraremo—lhe outra esposa. Desta vez será uma mulher bela e se quiser uma que incendeie a cama, também a acharemos. Apenas nós...
Severn não estava preparado para a reação de Rogam, que se voltou para ele, descarregando um punho sobre seu rosto e o enviou ao chão.
—Estúpido bastardo —exclamou Rogam, olhando com ódio a seu irmão. —Nunca entendeu nada. Você, com sua acompanhante aristocrática encerrada em seu apartamento, sempre a criticou, converteu sua vida em um inferno.
—Eu? —Severn levou a mão ao nariz ensanguentado e começou a levantar—se, mas um olhar ao rosto de Rogam o induziu a permanecer no mesmo lugar. —Eu não fui o homem que dormia com outras mulheres, eu não...
Interrompeu—se, porque a cólera desaparecera do rosto de Rogam, que se voltou e começou a adentrar—se no bosque.
Severn ficou de pé e aproximou—se de seu irmão.
—Minha intenção não foi insultar a memória de Liana, agradava—me, mas agora morreu e há outras mulheres. Pelo menos, ela não o traiu com Oliver Howard como fez sua primeira esposa. Ou sim? Por isso está tão irritado?
Rogam se voltou para seu irmão e ante o horror e a incredulidade de Severn, havia lágrimas que começaram a descer pela face de Rogam. Severn não soube o que dizer; ele nem sequer derramara lágrimas ante a morte de seu pai ou de seus irmãos.
—Amava—a —murmurou Rogam. —Eu a amava.
Severn estava muito incomodado para contemplá—lo, não podia suportar a ideia de que seu irmão chorasse e retrocedeu um passo.
—Deixarei o cavalo —resmungou. —Volta quando estiver pronto.
Afastou—se depressa.
Rogam se sentou pesadamente sobre uma pedra, o rosto afundado nas mãos e pôs—se a chorar. Tinha—a amado, tinha amado seus sorrisos, sua alegria, seu caráter, o prazer que ela extraía das coisas mais simples. E tinha contribuído com alegria a Rogam depois de uma vida inteira de ódio. Proporcionou—lhe roupas sem piolhos nem pulgas, mantimentos sem areia, obtendo que essa arrogante Iolanthe saísse de seu esconderijo, e embora ela mesma não sabia, conseguiu que Zared pedisse a Rogam que lhe comprasse algumas roupas de mulher.
E agora já não existia, vítima da guerra contra os Howard.
Possivelmente sua morte devesse acentuar o ódio de Rogam para os Howard, mas não foi assim. O que lhe importavam os Howard? Desejava recuperar Liana, a sua doce e carinhosoa Liana, que lhe jogava coisas quando estava zangada e beijava—o quando se sentia satisfeita.
—Liana —murmurou e chorou com mais intensidade ainda.
Não ouviu passos sobre a vegetação e sua dor era tão profunda que não se moveu quando uma mão suave lhe acariciou a face.
Liana se ajoelhou frente a ele e afastou as mãos de seu rosto. Contemplou o rosto banhado em lágrimas e lágrimas afluíram de seus próprios olhos.
—Estou aqui, meu amor —murmurou, e beijou—lhe as pálpebras quentes, e depois as faces. —Sã e salva.
Rogam só pôde olhá—la assombrado.
Liana lhe sorriu.
—Não tem nada que me dizer?
Ele a agarrou, colocou—a sobre seus joelhos e ambos caíram sobre o chão do bosque. As lágrimas de Rogam se converteram em risadas enquanto rodava e voltava a rodar com ela abraçada, as mãos apalpando o corpo, para assegurar—se de que ela era uma presença real.
Finalmente, deteve—se de costas, Liana sobre ele e sustentando—a com tanta força que ela mal podia respirar.
—Como conseguiu? —murmurou Rogam. —Essa cadela Howard...

Ela apoiou as pontas dos dedos sobre os lábios de Rogam.
—Jeanne —disse intencionadamente —salvou nossas vidas. —Sabia que uma de suas mulheres a traía e uns instantes antes de vir me buscar ouviu algo que a induziu a acreditar que sabia quem era. Enviou—me por um lado e foi com sua criada traidora pelo caminho que você seguira. A mulher pensou que Jeanne, envolta em uma capa, era eu mesma e tratou de apunhalá—la. Mas ela matou a desleal faxineira enquanto eu estava muito mais longe, perto da muralha. Teve que dizer que eu tinha morrido porque sabia que se não procedesse assim, você jamais sairia de castelo.
Acariciou a face de Rogam.
—Vi—o nadando e se os soldados de Howard não tivessem concentrado a atenção em você teriam me visto. Jeanne tinha cavalos preparados, de modo que nunca estive muito longe de você; mas viajou com tal velocidade que não consegui alcançá—lo.
O capuz de camponesa se soltou enquanto pulavam no chão, e agora seus cabelos estavam descobertos. Desciam brandamente sobre os ombros de Liana e Rogam os acariciou.
—Parecem—lhe feios? —murmurou Liana.
Ele a olhou, com amor nos olhos.
—Não há nada feio em você. É a mulher mais bela do mundo e eu a amo, Liana. Amo—a com todo o coração e a alma.
Ela sorriu.
—Permitirá que me ocupe dos casos apresentados ao tribunal? Poderemos ampliar o castelo de Moray? Cessará de lutar contra os Howard? E como chamaremos nosso filho?
A cólera começou a dominar Rogam, mas em seguida pôs—se a rir e a abraçou.
—Os julgamentos são assuntos de homens, não ampliarei esse montão de pedras, os Peregrine sempre combaterão os Howard, e nosso filho se chamará John, por meu pai.

—Gilbert, por meu pai.
—Para que cresça sendo um ocioso?
—Ou preferirá que dedique sua vida a embaraçar as camponesas e que ensine a seus filhos a odiar aos Howard?
—Sim —respondeu Rogam, abraçando—a e elevando os olhos ao céu. —Podemos discordar na maioria das coisas, mas em uma parece que concordamos. Tire essas roupas, mulher.
Ela jogou a cabeça para trás e olhou—o.
—Sempre fui obediente.
Rogam começou a falar, mas ela o beijou e durante várias horas ele não disse uma palavra mais.

 

 

                                                                  Jude Deveraux

 

 

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