Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O AMOR É MAIS FORTE DO QUE A MORTE
Naquele dia, 3 de Setembro, às 9 horas da manhã, quando brilhava um radioso sol de fim de Verão, houve uma colisão na esquina entre a Avenida Jorge V e os Campos Elísios. O caso passou despercebido e a polícia não levantou qualquer auto; até os peões mais não fizeram do que olhar com indiferença.
Um ciclista fora contra uma rapariga que atravessava a rua. Não houve mortos nem feridos, apenas uma bicicleta avariada e, aqui e além, espalhados no asfalto, três telas, um cavalete, uma paleta e tubos de tintas. Apareceu um carro, que parou; mas o condutor, depois de dirigir uma careta trocista ao ciclista e um olhar apreciador à rapariga, virou para os Campos Elísios e infiltrou-se no seio da circulação parisiense, aventura que, àquela hora, exige toda a atenção de qualquer pessoa.
Pierre de Sangries, embora atordoado pelo choque, não ficou durante muito tempo estendido no chão. Levantou-se num salto e, com alguns pontapés enraivecidos, atirou para a valeta os restos da bicicleta, das telas e do cavalete. Depois, voltou-se para a rapariga, que, sentada no asfalto, friccionava o joelho; antes que pudesse ir em seu auxílio, porém, a desconhecida levantara-se e dirigira-se para o passeio, coxeando levemente.
Imbecil! disse ela. Você é cego?
Talvez. Pierre de Sangries endireitou-se, ajeitando o tecido fino do casaco nos ombros, enquanto fitava melancolicamente os despojos da sua bicicleta. Se eu acreditar nas propostas dos negociantes de quadros que avaliam as minhas pinturas, cada vez me convencerei mais de que, de facto, devo ser cego... Está ferida, menina?
Não... como vê...
Mas está a coxear...
Já passou...
Ela voltou-se bruscamente e quis afastar-se, mas Pierre reteve-a pela manga do vestido, em delicioso chiffon tricolor... um vestido muito patriótico! Olhe para esta infeliz Gudule! exclamou o rapaz ao mesmo tempo.
Deixe-me!
Ela virou a cabeça para lhe dirigir um olhar cortante. Tinha olhos azuis-escuros, num rosto oval, emoldurado por uma profusão de caracóis louros, que brilhavam como metal, à luz dos raios de sol velados pela bruma da manhã. Estou lixado disse Pierre.
A jovem tentou libertar-se dele, o que deu muito mais nas vistas do que a colisão ocorrida momentos antes, porque é sempre intrigante ver uma rapariga resistir a um homem, nas ruas de Paris.
Ban! continuou Pierre, lançando um olhar conivente aos homens que o fitavam com ar reprovador. Seria mais proveitoso receber lições para ser domador de feras! Gudule era o meu único capital e o que é que me resta dela? Nunca mais poderá servir-me!
A rapariga não respondeu e concedeu-lhe apenas um olhar que perdera toda a intensidade e que lhe transformou o rosto, dando-lhe uma expressão de impenetrável indiferença. Depois, voltou-se devagar e afastou-se num passo rígido, como se fosse um autómato, e apressou-se... Após alguns passos, pôs-se a correr e desapareceu na onda dos transeuntes.
Menina! gritou Pierre, escandalizado. Não se vá embora! Você matou Gudule! Isto merece um copo!
Mas ela levava um bom avanço sobre ele e corria mais. Durante algum tempo ainda lobrigou o vestido dela como uma bandeira entre o ondear da multidão, até que foi alvo de alguns olhares masculinos hostis. Só então, acalmado o seu impulso, ergueu os braços num gesto de impotência e, lentamente, regressou à esquina da Avenida Jorge V, onde um polícia, perplexo, se debruçava sobre os restos da sua bicicleta e as telas engradadas.
1 Alusão às três cores da bandeira francesa vermelho, azul e branco (N da T)
Isto é seu? perguntou ele a Pierre, como se se tratasse duma barata-gigante ou dum monstro pré-histórico.
Pierre de Sangries respondeu com um sinal afirmativo de cabeça e baixou-se para reunir as telas espalhadas e atá-las.
Era a minha bicicleta disse ele.
E conseguia andar nisto?
Era um feérico meio de locomoção, com um bocado de esforço...
Pierre olhou com tristeza os restos de Gudule. Como é que uma bicicleta ficara feita em pedaços por causa duma colisão tão insignificante? Insignificante? Meu Deus, o choque, apesar de tudo, fora forte... A rapariga devia ter sofrido com isso... era impossível que tivesse ficado incólume... Quem sabe se teria lesões internas, se teria dores, hemorragias, e talvez o guiador a tivesse magoado. Ela... mas quem é ela? Porque não a impedi de se ir embora?
Mas agora está aos bocados concluiu o polícia.
É preciso encontrá-la! disse Pierre, impetuosamente, enquanto apanhava o guiador. Oiça... tenho que saber onde está!
O parafuso que o senhor perdeu? Os dedos do polícia tamborilavam sobre o belo coldre do revólver. O senhor sabe que é proibido circular com um veículo neste estado? Tire-me esta porcaria daqui e depressa! Desimpeça a passagem! Senão terá de esclarecer tudo no comissariado da polícia do bairro!
O chui continuava a olhar para os destroços da bicicleta.
Cala o bico pensou Pierre enquanto apanhava as duas rodas e o quadro da bicicleta, que tinha sido pintado de verde dezanove vezes seguidas, o que fizera com que os conhecidos, nas cercanias de Saint-Germain-des-Prés, chamassem à velha bicicleta a ”lata de tinta com rodas”.
Sabe quanto vale uma bicicleta quando apenas se consegue vender um quadro de seis em seis meses?
Faço uma ideia; não seria melhor mudar de ofício?
E então, quem pintará o nascer do Sol sobre Paris?
Ponha-se a andar! resmungou o polícia, que, depois de hesitar, se curvou para ajudar Pierre a apanhar o cavalete e os pincéis que tinham rolado para a valeta.
Chegou mesmo a ajudá-lo a empurrar a bicicleta para o outro lado dos Campos Elísios, onde a encostou a um candeeiro.
Paris.
Duas sílabas amargas e doces ao mesmo tempo.
De certeza que ela ficou ferida pensou Pierre depois de ficar sozinho junto da bicicleta desfeita. Quem sabe se desmaiou por aí, numa rua qualquer, se uma ambulância a conduziu ao hospital... e o médico de serviço nas urgências, depois de a examinar, lhe perguntou: ”Que foi que lhe aconteceu, menina? Onde? Quando? Ninguém se preocupou com o seu estado? Trouxeram-na para aqui muito tarde...” Claro está que ele não iria ao ponto de lhe dizer ”demasiado tarde”, e ela estará tão fraca que nem lerá a verdade nos olhos do médico.
Pierre meteu a mão no bolso e retirou de lá um maço de cigarros todo amachucado. Acendeu um, com os dedos trémulos. Sentia-se alagado em suor e decerto não era o sol matinal o responsável por isso. Aspirou longamente o fumo, mas daquela vez o cigarro não exerceu sobre ele o seu efeito calmante, deixou-lhe apenas uma leve irritação na garganta.
Vejamos, ela vinha da minha esquerda recapitulou ele, e atirou-se para debaixo das minhas rodas... Eu vi-a avançar e pensei: nada má, a pequena, mas, meu Deus, ela não vê nada! Ela prosseguiu e olhou-me bem de frente. Ainda pude pensar: não é possível que não pare, quando está a ver que vai bater em mim... sim... e depois, aquela maldita campainha! Quem se lembraria de que uma campainha de bicicleta, que nunca é utilizada, pode enferrujar! Bem me fartei de carregar na alavanca... e nada... também o danado travão de trás! Aquela maldita Gudule nunca obedeceu ao travão traseiro! Era impossível, em dois segundos, escapar ao que era inevitável!...
Pierre acabou de fumar o cigarro, depois, juntou o que restava da sua bicicleta e, transportando tudo aquilo, subiu os Campos Elísios até à passagem subterrânea que conduz ao Arco do Triunfo. Ali, longe de olhares, acariciou pela última vez a máquina torcida.
Adeus, Gudule, não tenho coragem de te levar para a sucata... tu hás-de conseguir encontrar um fim para a tua vida de vagabundo, sem a minha ajuda.
Depois, meteu o cavalete e as telas debaixo do braço e, suspirando, voltou-se, para prosseguir o seu caminho ao longo da passagem que dá para o Arco do Triunfo.
Quando regressou à luz do dia, reparou que a folhagem das árvores na praça já apresentavam a tonalidade outonal. Desde o Arco do Triunfo, as avenidas, dispostas cm estrela, vestiam-se de ouro.
”Meu Deus! Se eu conseguisse pôr isto na tela!” pensou Pierre. Já não rne importaria de ter sofrido fome e frio em Paris!”
Para algumas pessoas, Paris não é uma cidade, é uma fatalidade.
Convém sabermos quem era Pierre de Sangries.
De aristocrático tinha apenas o nome, que recebera da mãe, Lorette de Sangries. Quanto ao resto, a sua história era do género de Sam Famille.
A avaliar pelas fotografias, Lorette de Sangries era uma linda morena de longos cabelos. Educada num convento, afastada das realidades do mundo, sucumbira num belo dia (e não durante a noite, o que tornava o seu caso mais grave) perante a investida dum homem cujo nome ignoraria para sempre. Claro que ele tinha um nome, Pierre, e foi tudo quanto ela pôde adiantar quando, seis semanas depois, foi ao médico por causa duma suposta crise de apendicite e soube por este que dali a oito meses poderia passear num carrinho de bebé o inexplicável mal.
O conselho de família, logo a seguir reunido, resolveu apresentar queixa contra o pensionato, por negligência grave no dever de vigilância relativamente a uma criança confiada à sua guarda. Mas ninguém se deixava enganar quanto ao resultado do processo, e a linda Lorette foi então submetida a um
1 Sem Família romance de H Malot, escritor francês do final do século XIX, que relata a vida dum rapazinho abandonado (N da T)
interrogatório sistemático para a obrigar a revelar que espécie de pessoa era o ignóbil indivíduo era assim que chamavam ao homem atraente que, na memória de lorette, não correspondia, de modo algum, àquela definição grosseira. Onde se tinham conhecido? Como acontecera ”aquilo”? Como é que aquele acto infame pudera consumar-se? Esta última pane do interrogatório fora confiada à mãe da jovem, pois o pai não se sentia com coragem para fazer tais perguntas.
As verdades, por vezes, são acabrunhantes; assim foram as respeitantes à aventura de Lorette. Esta confessou que encontrara Pierre durante uma excursão do colégio. Enquanto a sua classe, dirigida pela irmã Marie-Ange, fazia uma pausa no passeio, Lorette, disfarçadamente, afastara-se do rebanho. E foi apenas por pura curiosidade que lhe aconteceu o que nós sabemos, no fundo dum vale arenoso, por detrás da estalagem escolhida pela madre superiora para termo daquele inocente passeio ao campo. Mas Lorette tinha imaginado que as coisas se passariam doutra maneira e por essa razão não fizera mais perguntas quando, depois de lhe perguntar como se chamava, ele se limitara a responder secamente que se chamava Pierre.
Após esta conversa íntima, a senhora de Sangries saiu da sala a chorar, pousou no marido, que a esperava atrás da porta, um olhar acabrunhado e articulou com dificuldade: ”Charles, somos os pais duma jovem perdida! após o que mergulhou numa terrível enxaqueca e foi fechar-se no quarto.
Lorette foi afastada de Paris e instalou-se nos arredores de Dole, em casa dum velho tio, onde deu à luz um filho. Deu-lhe o nome de Pierre e, como ela continuava a afirmar desconhecer a identidade do pai, não houve outra solução, conforme à lei, senão dar à criança o apelido da mãe: Sangries. A família, profundamente chocada, durante três anos esforçou-se para encontrar uma família que adoptasse a criança, mas sem resultado, pois Lorette repetia teimosamente: ”Não abandonarei o meu filho!”
Fizera Pierre há pouco quatro anos quando sua mãe morreu com uma septicemia, causada por um arranhão sofrido quando corria descalça na floresta, com o filho. Ao princípio, não parecia nada de grave, mas durante a noite o sangue começou a latejar com violência nas artérias da perna atingida. Pela manhã surgiu febre; ao meio-dia, a perna estava tão inchada que foi preciso transportar Lorette de ambulância para a clínica mais próxima; no entanto, a jovem já estava inconsciente quando lá chegou.
Tentaram tudo: amputação da perna atingida, tratamentos perigosos... Lorette de Sangries não voltou a si e morreu a arder em febre.
Quanto a Charles de Sangries, tinha a sua opinião sobre o assunto: ”Foi o garoto que a matou”, dizia, com dureza. ”Se ela não tivesse dado à luz aquele miúdo, não iria correr para a floresta, como uma tonta” o que era de uma lógica brilhante.
Tendo por tutor um espírito tão esclarecido, Pierre foi imediatamente confiado a um orfanato, os Pupilos da Caridade Cristã, instalado num sinistro edifício de tijolo vermelho, algures no XVIII Bairro, perto do local de cruzamento de linhas da gare do Norte, pelas quais, dia e noite, os comboios passavam com estrondo. Mas quanto a isto, era uma questão de hábito.
Em contrapartida, Pierre não conseguiu habituar-se aos sopapos brutais do padre Laluc, director do orfanato. Só conhecera até então as meigas carícias da sua jovem e linda mãe e recordava-se ainda do refúgio tépido onde se aninhava, entre os seios dela, da sua voz discreta, levemente velada, que o adormecia todas as noites. Laluc, bruto de físico e de grande nariz vermelho, dirigia-se a ele tratando-o por bastardo ”por quem lhe pagavam apenas o dinheiro suficiente para lhe limpar o rabo”. Se acontecia a Pierre, assaltado por uma indizível tristeza infantil, molhar a cama, de noite, Laluc batia-lhe, como se estivesse na eira a malhar trigo com o mangual.
A criança suportou esta existência durante dois anos, ao longo dos quais as sovas aumentaram em número e em violência, pois Pierre impulsionado por uma irresistível inspiração pusera-se a pintalgar as paredes com tudo o que apanhava à mão, giz, carvão, mostarda, marmelada, manteiga enfim, tudo o que proporcionava a mínima coloração era empregue, à guisa de pintura, pelas suas pequenas mãos ágeis.
O padre Laluc foi-se enraivecendo. Charles de Sangries, avô cada vez menos tolerante, recusou-se a pagar os prejuízos causados pelo indesejável neto, alegando uma vez que tais estragos eram certamente imputáveis à ”falta de vigilância”, além de que estava absolutamente farto daquele garoto!
No dia seguinte em que Pierre fez seis anos, Laluc deu-lhe os parabéns quebrando-lhe a concha da sopa na espinha. Cheio de equimoses, o rapazinho foi para a cama a cambalear. Tinha pintalgado um resplandecente pôr-de-soi nas paredes dos sanitários, servindo-se de xarope de romã e de compota de laranja... Mas na manhã seguinte encontraram a sua cama vazia. A janela ficara aberta, e ninguém compreendeu ainda, no orfanato de XVIII Bairro, como é que uma criança de seis anos conseguira evadir-se descendo por uma parede de tijolo.
Nunca mais encontraram o pequeno Pierre, pois, pela primeira vez na sua vida depois da morte da mãe ele teve sorte. Um mendigo, ou melhor, um vagabundo, deu com o garoto ao alvorecer da manhã, à beira duma linha, no cais das mercadorias. Logo calculou as possibilidades que o céu lhe oferecia. Ensinou Pierre a pedir, com as diferentes variantes no estender da mão, e a dirigir às pessoas, a tremer, um olhar suplicante, e concluiu que Pierre era um aluno dotado.
Até aos dez anos de Pierre, mendigaram através da França, ganhando o pão de cada dia, pois desde os nove anos que Pierre já pintava os seus quadros, primeiro com tubos de tinta roubados nos droguistas e, depois, já apreciado, comprava-os. ”Tu és genial!” repetia-lhe o seu amigo vagabundo, que se chamava Symphorien. ”Sabes o que isto quer dizer? Um dia ficarás podre de rico!”
Palavras proféticas! Mas Pierre não pôde lembrá-las mais tarde ao seu velho companheiro. Por um Inverno glacial, Symphorien morreu, muito burguesmente, de pneumonia, no Hospital dos Padres do Bom-Socorro. Pierre até pintou toda uma parede da capela do hospital para lhes pagar os cuidados e as despesas ocasionados pelo enterro. Tinha então catorze anos, era um rapaz comprido como um dia sem pão, magro e pálido, com uma cabeça de pastor, de cabelos encaracolados, de olhos vivos, sagazes, prontos para verem e avaliarem tudo.
Depois da morte de Symphorien foi à escola pela primeira vez. Era uma criança abandonada, um novo Gaspard Hauser. Em quatro anos, aprendeu o que os outros tinham demorado nove a fixar. Foi em Concarneau, na Bretanha, sob o sopro do oceano, nos Lazaristas, a quem os Padres do Bom-Socorro o tinham confiado.
No entanto, Pierre não tinha perdido o seu amor pela pintura. E a capela da escola foi por ele enriquecida com diversos frescos e com um retrato da Virgem, em que reproduziu as feições da mãe, seráfica aparição de longos cabelos negros, cujo olhar exprimia todo o amor do mundo. Quando atingiu os dezoito anos, o director da escola disse-lhe que nada mais podia ensinar-lhe e deu-lhe cinquenta francos para a viagem, o que lhe permitiu partir de Concarneau.
Voltou a Paris, onde se juntou aos pintorzecos famélicos da Praça do Tertre. De noite, com mais quatro companheiros, acolhia-se numa cave malcheirosa de Montmartre. Vivia à custa dos retratos que pintava dos turistas, americanos na sua maioria. Pierre não gastava na bebida o produto do seu trabalho, nem o metia no decote das prostitutas, mas comprou Gudule, em segunda mão, no Marche aux Puces; Gudule, uma bicicleta inesquecível...
Tudo isto acontecera há nove anos.
Paris tinha ganho um pintor genial, mas Paris ignorava tal coisa naquele dia 3 de Setembro, quando Pierre de Sangries, depois de encostar a sua bicicleta pintada dezanove vezes ao corrimão duma escada, na Praça da Étoile, desapareceu na passagem subterrânea que dava para o Arco do Triunfo.
Olhar Paris da plataforma do Arco do Triunfo é uma visão que corta a respiração e, quando se é novo, tem-se vontade de colocar as duas mãos sobre o coração, porque talvez esteja à nossa espera, na floresta de flechas e de torres da capital, um rosto, um desejo, um amor.
Pierre acabava de instalar o cavalete encostado a um dos parapeitos, com a paleta e a caixa de tintas pousadas a seus pés. Então, experimentando uma angústia que se lhe tornara
1 Mercado das Pulgas, o equivalente parisiense da Feira da Ladra de Lisboa. (N. da T.)
familiar, contemplou o extraordinário espectáculo e tudo aquilo que o pincel não podia reproduzir: Paris sob o sol. A plataforma estava praticamente deserta, pois os bandos de turistas só depois das dez começavam a invadi-la. Mal se ouvia o ruído do tráfego na praça, o qual só chegava lá acima como um rumor abafado, uma harmonia em surdina, que constitui uma das particularidades de Paris. ”Um canto solar”, teria dito Henry, o Vermelho, mas uma comparação tão bela apenas poderia ser inspirada a um poeta desprezado pelos editores e pelos críticos. Henry, o Vermelho, Claude Puy... Pierre sorriu, pensativo; nove horas... A esta hora ainda ele dormia, evidentemente, cheirando a vinho e a suor de mulher, e ninguém jamais saberia onde é que ele ia buscar o dinheiro para gozar todos esses prazeres.
De repente, viu-a. Um minuto antes ainda ela estava na plataforma, decerto chegara na última viagem do ascensor. Segurava com as duas mãos a cabeleira que o vento agitava e aproximou-se do parapeito, parando bruscamente, como se alguém lhe tivesse batido no peito. Pareceu reflectir durante uns instantes, largou os cabelos e, de repente, apoiando-se na pedra, tentou transpor o obstáculo.
Pierre saltou do banco de abrir e fechar e conseguiu agarrar a saia que a corrente de ar enfunava, formando em volta das longas pernas da rapariga como que uma corola. Com um puxão violento, segurou o tecido e a jovem caiu para trás, nos braços dele. Rolaram no chão da plataforma, instintivamente agarrados um ao outro, até à esquina direita do parapeito. Ela defendia-se e dava-lhe murros e, de novo, o rapaz notou o olhar cortante que atormentava aquele pálido rosto oval.
Deixe-me! arquejou a jovem, dando murros nos antebraços de Pierre. Porque é que se meteu nisto? Trata-se da minha vida e não da sua!
Conseguiu libertar-se com um violento encontrão, mas Pierre agarrou-a novamente pelo corpo do vestido. A rapariga continou a debater-se, o tecido fino cedeu e rasgou-se, com ruído, ficando dele uma parte na mão de Pierre. A jovem olhou fixamente para os seios cobertos apenas por um pequeno soutien branco guarnecido de rendas e tapou-os com as mãos abertas, recuando até à parede.
Não se meta na minha vida! repetiu ela.
A sua voz tinha uma entoação estranha, que não correspondia àquele corpo, àquele rosto. No entanto, deve ter um timbre quente, acariciador, pensou Pierre, teimosamente. Neste momento, a voz dela parece irreal, torturada, estrangulada, como se sangrasse...
Deixe-me em paz!
Pierre deixou-se ficar com as mãos estendidas, que apertavam ainda os farrapos do vestido.
Mal consigo segurá-la disse ele, mas juro que voltarei a fazê-lo se torna a armar em parva! Realmente, por causa de Gudule não valia a pena fazer isto!
Patife! Grande patife! exclamou ela, com violência. Repentinamente, desfez-se em lágrimas e tirou as mãos do peito, para esconder o rosto nelas. Depois, voltando-se, apoiou a cabeça na parede. Ao soluçar todo o seu corpo tremia. Era uma sorte que não houvesse ninguém no Arco do Triunfo naquela manhã! ”Devo ter um ar sinistro, com estes bocados de tecido na mão. Ninguém acreditaria na minha história”, disse Pierre para si.
Afastou-se dela alguns passos, para dar uma vista de olhos junto da porta do ascensor. Tranquilizado, voltou para trás. A jovem já não soluçava... Ela voltou-se para ele ao senti-lo aproximar-se e apanhou com as mãos os restos do corpo do vestido, para ocultar o soutien.
Está contente, não é verdade? disse ela. A voz mudara de novo. O choro tornara-a mais clara e agora era límpida, mas transparecia nela uma certa emoção. O meu salvador! Porque me impediu de me atirar?
Daqui? Do cimo do Arco do Triunfo? Impossível, minha menina!
O que quer isso dizer?
”Ora ainda bem que ela já discute”, pensou Pierre, enquanto se sentia invadir por um estranho sentimento de felicidade. ”Quando uma pessoa quer suicidar-se não discute. Apesar de tudo, consegui fazê-la falar na morte como se se tratasse dum problema.” Meteu os pedaços de tecido na algibeira esquerda das calças e, com a outra mão, tirou do bolso um maço de cigarros amarrotado.
Usando um vestido azul, branco e vermelho, você não pode atirar-se do Arco do Triunfo para a Praça da Êtoile, isso seria o cúmulo do mau gosto!
Que é que o meu vestido tem a ver com o assunto? disse ela, com dureza.
Nenhum dos franceses até à medula que andam por esta praça lhe perdoaria tal coisa. E especialmente a si, a mais encantadora das raparigas...
Ela fitava-o com os olhos muito abertos, um tudo nada interrogadores. Depois, inclinou a cabeça e pareceu reflectir: será ele realmente assim tão idiota, ou quer provocar-me? Pierre, que lia esta pergunta nos seus grandes olhos azuis, dirigiu-lhe um sorriso algo constrangido.
Eu sou alemã acabou ela por dizer.
Então é isso! Ela já não salta, pensou ele. Nem agora nem... enquanto eu estiver com ela. Mas, durante quanto tempo mais? O que irá acontecer esta noite, amanhã, ou mesmo dentro duma hora? A plataforma da Étoile não é muito indicada para praticar o seu desporto favorito! concluiu ele.
Atrave-se a chamar-lhe desporto? exclamou ela, furiosa.
Os seus belos lábios carnudos retraíram-se, como um traço de tristeza num rosto pálido, desamparado.
Devia ter ido para a Torre Eiffel murmurou ele. Com um gesto violento, ela lançou a cabeça para trás:
Puseram lá um gradeamento, já não se consegue. Também lá fui...
Ainda há as pontes... A ponte Alexandre III, romântica como convém, seria bastante adequada...
Nado bem de mais para isso.
Atire-se para debaixo dum autocarro!
E se ele tiver bons travões?
Você, realmente, é uma rapariga exigente. Outra ideia: a gare do Norte! Um comboio rápido...
Seria atroz! Eu não gostaria de ficar despedaçada...
A rapariga pousou no seu interlocutor um grande olhar azul. Estavam tão perto um do outro que ela sentiu-lhe o calor...
Porque é que o senhor quer que eu me mate? perguntou ela, baixinho.
Eu? A ideia, perfeitamente idiota, era sua. Julguei que lhe daria novas forças propondo-lhe alguns meios seguros de se suicidar... Venha cá!
Pegou-lhe na mão, bruscamente, e forçou-a a olhar a paisagem para além dos Campos Elísios: Paris banhada de sol até à linha do horizonte, que constituía apenas um fio de ouro esticado por trás do Sacré-Coeur, envolvido por uma nuvem de brancura resplandecente.
Olhe para isto, por favor disse Pierre, segurando-a com mão de ferro quando ela fez menção de resistir, mas desistiu ao sentir, quando recuou, a dureza dos ossos do ombro dele. Olhe para esta animação, para esta alegria de viver, para a felicidade de estar no mundo, de ver o sol e as flores, de ouvir os pássaros, de sentir o vento na pele, de ver as nuvens passar, estendido na erva... Você era capaz de renunciar a tudo isto?
Odeio esta vida! disse a rapariga.
De cabeça atirada para trás, apoiava a face direita contra o ombro dele. Fechara os olhos e pareceu-lhe encantadora naquela posição.
Odeio a vida repetiu ela.
Por causa dum homem! Com a mão esquerda, Pierre afastou os cabelos que o vento atirara sobre o rosto da linda rapariga. Um maldito imbecil, com certeza... um homem!
Sim disse ela numa voz clara, sem ódio nem dor. ”Já passou”, queria dizer aquele sim.
Foi-se embora?
Não.
Arranjou outra?
Ele tem sempre outra.
Então mande passear esse tipo e viva a sua vida!
Tagarela!
É um conselho cheio de lógica, menina.
A jovem abanou a cabeça várias vezes e depois mergulhou o olhar nos Campos Elisios e, estremecendo de repente perante aquela altura, pareceu contrair-se:
Não posso mandá-lo embora... nunca... disse a meia-voz, só posso matar-me! Estou grávida...
Acha que isso é uma razão suficiente para se atirar do cimo do Arco do Triunfo?
Ele afastou-a do parapeito, pois ela recomeçava a tremer e Pierre não estava bem certo de ter dominado completamente a sua ideia de morrer.
”Eu teria muito que contar acerca da minha linda mamã, menina”, pensava ele, enquanto a guiava até ao ascensor. ”A minha mãe não achou que fosse caso para se atirar no espaço... Pôs-me neste mundo depois de ter cavado um caminho, tal com uma ratazana que roesse a parede da sua prisão... Daí não resultou grande coisa, é certo: só um Pierre de Sangries, pintor desconhecido, escritor de ”histórias” que ninguém lê, para quem o acto de comer se resume em escolher embalagens, caixas ou sacos num grande armazém parisiense... mas com isto consegue alimentar o homem. Minha linda, não se ponha a pensar que sou um zé-ninguém: encarrego-me de pintar anúncios vistosos... Ainda há oito dias tive a sorte de dar à luz um cartaz para a firma Bebé Feliz. Tratava-se dum garoto sorridente dentro duma banheira cheia de espuma, proveniente do líquido ”Sopro de Primavera”. O miúdo tinha sido emprestado pela jovem Maguitte, uma vizinha que já arranjou três filhos sem ter pai para eles. Três! E ainda não se lembrou do Arco do Triunfo.”
Vamos tomar um café? disse ele, interrompendo o curso dos seus pensamentos.
Olhou para o corpo do vestido que tinha rasgado e para o pequeno soutien. Mas a rapariga já não escondia a sua nudez com as duas mãos, tinha os punhos contra as têmporas, como se o cérebro estivesse a pontos de estoirar.
Sabe que tinha a intenção de lhe fazer esta proposta quando você deu cabo da Gudule continuou ele. Foi aquela a primeira tentativa de sucídio?
Nem sequer o vi.
Mas fixou-me bem nos olhos!
E apesar disso, não o vi... Eu não via nada... Compreende?
Vamos tomar um café?
Nesta figura? E com um gesto do queixo apontava o vestido rasgado. Mesmo em Paris, teria um ar demasiado decotado...
Vamos a minha casa.
Pelo olhar interrogativo que ela lhe lançou, Pierre percebeu que a rapariga continuava na defensiva e abanou a cabeça, com ar divertido:
É evidente que parece que estou a armar-lhe uma cilada, mas engana-se. Quero apenas oferecer-lhe uma chávena de café e nada mais!
Onde é que mora?
Em Saint-Germain-des-Prés, na Rua Princesa.
Ora aí está uma rua que tem um nome que a mim, que sou estrangeira, me parece imponente disse ela com voz fatigada.
Não passa duma caverna da pré-história que foi conservada intacta... Apenas a altearam e presentemente chama-se um prédio!
Você é pintor?
Sou, Pierre de Sangries... Inclinou-se, na esperança de que ela declinasse também o nome, mas a rapariga ficou calada. Até à data, produzi quatrocentas e trinta e uma obras que não se vendem... Com certeza que depois da minha morte irão ornamentar os salões de alguns milionários...
Ela esboçou um sorriso dorido que produziu em Pierre o efeito duma carícia:
O que acaba de dizer-me também não é lá muito alegre continuou com doçura. Você é pobre?
Se se refere ao dinheiro, sou o mais pobre que é possível ser-se; mas se pensar na alegria de viver, o tipo mais rico do universo é um mendigozito comparado comigo! Esboçou um gesto na direcção do ascensor e disse: Não quer ir-se embora, menina, como se chama?
O meu nome é Eva... Eva Bader...
Como é que uma jovem que usa o nome mais velho da humanidade pode lançar assim a sua vida no abismo?
Talvez por essa mesma razão: sinto-me tão velha como o nome que tenho...
À entrada do ascensor, pararam olhando um para o outro, durante um segundo. Tinham tido o mesmo pensamento e recuaram um passo. O elevador subia e vinha lá de baixo o eco de várias vozes confundidas. Chegavam os primeiros turistas.
Oh! O meu vestido! disse ela.
Tenho cola na minha caixa de tintas... se colarmos o tecido...
Como?
Sobre a sua pele, Eva...
Pela primeira vez ele chamava-lhe Eva, que pronunciava Ev..., o que tinha uma bela ressonância de camaradagem fraterna, sem equívoco... Ela sentiu uma espécie de alívio.
Nada mais podemos fazer, em minha casa descolamos tudo.
Acha que consegue, Pierre?
Ele não respondeu, admirado por ela lhe ter chamado Pierre e feliz por lhe ouvir pronunciar o seu nome. Como é diferente o mesmo nome pronunciado por cada mulher! Quando Monky, a sua amante, lhe chamava Pierre parecia que até os lençóis estremeciam!
Monky...Tinha esperanças de que ela já se tivesse ido embora... Duas horas antes, ele pusera-a fora da cama, porque ela tinha que posar para fotografias de modas no costureiro Bioggia, na Rua do Faubourg Saint-Honoré, onde a esperava um fotógrafo completamente louco que trazia o costureiro ”pelo beicinho”.
Espero que tudo corra bem! Seria lamentável que você tivesse que trazer o tecido colado à pele até ao ano dois mil. Pois eu aposto que nós vamos viver a aurora do terceiro milénio!
Ela riu-se e Pierre pôde admirar a transformação do seu rosto, mas nada disse, porque a verdadeira beleza, exige silêncio. Um leve rubor invadiu as faces pálidas da jovem e o sol reflectia-se-lhe no ouro da cabeleira, transformando-a numa massa resplandecente que coroava os dois grandes lagos azuis que eram os seus olhos, onde luziam os pontos negros das pupilas.
Só penso na sua chávena de café disse ela. Não vejo mais nada. Desde o meio-dia de ontem que não como nada... e também não dormi.
Comecemos por reparar os estragos. Pierre levou-a até junto do cavalete, abriu a caixa de tintas e tirou de lá um tubo de cola.
A senhora Beugnon de Birague com certeza tem café feito, pensou ele, ”porque eu não tenho um só grão dele no quarto...
Quando vir Eva, há-de emprestar-me alguma coisa, apesar de ter jurado que não voltaria a fazê-lo! Dir-lhe-ei: Senhora Beugnon, deixe falar só o seu coração e faça mais esta boa acção... não por mim, mas por esta linda rapariga que está tão triste...”.
Despache-se, Pierre disse Eva. O rapaz estremeceu e respondeu com um aceno. Os visitantes estão a chegar.
Ele destapou o tubo de cola, retirou da algibeira das calças o pedaço de tecido que lá metera, deitou-lhe alguns pingos de goma que espalhou e colou tudo sobre o soutien de Eva. Ao fazê-lo, tocou-lhe no peito pela primeira vez. Eva ficou imóvel porque se tratava apenas duma simples ”reparação” e não duma carícia. No entanto, um sentimento estranho apoderava-se de Pierre, invadindo todo o seu ser e atingindo-lhe as mãos. Ao alisar o tecido, as suas mãos rodearam dois globos firmes e os seus nervos sensíveis registaram-lhes os contornos, do mesmo modo que um cego vê com as pontas dos dedos e pode fazer surgir a beleza na sua escuridão.
Acho que isto se aguenta! disse ele tirando as mãos, não sem desgosto.
Eva olhou-o com ar grave, interrogador e, de repente, ele sentiu-se envergonhado até ao mais fundo de si mesmo.
Confio em si, Pierre disse ela, com lentidão.
Há bofetadas que não se vêem, nem se ouvem, mas que nem por isso magoam menos. Pierre atirou o tubo de cola para dentro da caixa de lata.
Se você quiser, vou levá-la disse ele, em voz rouca.
Aonde?
A sua casa.
Já não tenho ”casa”.
Não sabe onde há-de dormir esta noite?
Não! Ela voltou-se, como se a visão de Paris, lá em baixo, lhe fizesse tonturas. Eu tinha decidido dormir doutra maneira...
Em Paris, há sítios onde se deve morar. São os ”bons endereços” que atestam uma confortável conta no banco e são sinónimo de bem-estar ou de posições capazes de virem a proporcionar sucesso. Assim, os representantes duma casta privilegiada, mas recente, gabam-se, de bom grado, de habitarem nos bairros residenciais situados do outro lado do Bosque de Bolonha ou de Neuilly e, ainda mais longe, na direcção de Saint-Cloud, de Sèvres, de Versalhes. Quem for possuidor de uma habitação nesses locais, a não ser que seja uma viúva arruinada, vestígio duma fauna extinta, tem a certeza de não precisar de forçar a entrada seja onde for: é convidado para toda a parte e pode convidar para sua casa.
A família Chabras possuía, desde 1890, uma elegante mansão na margem do Sena, em Bolonha. Moradia soberba, dotada de galerias ornamentadas de colunas, de escadarias que desciam até ao parque, de canteiros à francesa, bordejados de roseiras, de lagos, de fontes de repuxo, de buxos talhados cujas circunvoluções rodeavam estátuas brancas que indicavam o caminho para uma gruta enfeitada com conchas.
Fernand Chabras achava tudo aquilo idiota, mas como o seu avô construíra aquele conjunto, cuja disposição seu pai conservara piedosamente, suportava habitar naquele ambiente afectado, cujo estilo era, ao mesmo tempo, falso e exagerado. Sua mulher, Myrna, que era americana, gostava daquele fausto que ela patenteava aos olhos de Paris inteiro, nove vezes por ano, por ocasião dos seus famosos cocktails. Tinham um único filho, Julien, que aos vinte e seis anos era ainda estudante, sem esperanças de obter qualquer diploma, e para quem o Castelo da Aurora era o complemento natural e necessário à sua personagem de filho dos Chabras. Guiava, com perigosa velocidade, um ”Maserati” amarelo, fazia grande consumo de raparigas encantadoras, mas decepcionava o autor dos seus dias por não pensar em ligar-se seriamente a nenhuma delas e menos ainda em casar.
Em resumo, o álcool, a velocidade e as curvas bem distribuídas bastavam-lhe mas por vezes abusava dessas delícias. A fortuna dos Chabras mergulhava as raízes fortes no domínio dos produtos químicos e no fabrico de alimentos sintéticos, cujo império cresce de dia para dia. Por isso, as estroinices do querido Julien, por mais desvairadas que fossem, eram rodeadas por um silêncio benevolente.
No Castelo da Aurora, aquele dia 3 de Setembro começou como os outros dias. James, o butler britânico, que Myrna Chabras demorara seis semanas a escolher, em Londres, entre nove candidatos, fizera desfilar o pessoal doméstico diante de si, para se assegurar da perfeição da apresentação daquele e da vigilância dos seus subordinados. Estes continuavam ainda perfilados no vestíbulo, lançando olhares furtivos ao relógio de pêndulo, parecendo-lhes já ouvir a voz venenosa e solene do mordomo a formular qualquer reparo cortante dirigido à retardatária.
Isto porque a demoiselle aupair alemã, Eva Bader, faltava à chamada. Encontrava-se há seis meses em casa dos Chabras para aprender francês junto duma família parisiense fora, pelo menos, o que prometera a organização que se ocupava das trocas de estudantes.
Quando chegou ao Castelo da Aurora, Eva, desde o primeiro olhar, ficara deslumbrada pelo seu esplendor. Mas igualmente deslumbrado ficara Julien Chabras, ao encontrar Eva na grande cozinha onde almoçava o pessoal, composto por duas criadas de quarto, o jardineiro, o motorista, o cozinheiro indonésio e, finalmente, pelo mordomo, James. O ”círculo familiar era um puro eufemismo e Eva apercebera-se disso logo no primeiro dia, quando Myrna Chabras a recebera e lhe estendera a ponta dos dedos, num cumprimento bem diferente dos fortes apertos de mão à alemã, e lhe dissera:
Vai sentir-se bem em nossa casa, Eva. James encarregar -se-á de si...
Como é que aquela orquídea apareceu entre vocês, que são como cactos! exclamou nessa mesma noite Julien Chabras, sentado à mesa redonda da refeição familiar, que decorria na ”sala vermelha”.
O rapaz estava sozinho com a mãe, visto Fernand Chabras se encontrar uma vez mais em viagem, de visita a uma das onze fábricas, onde se sentia perfeitamente à vontade e podia
1 Em inglês, no texto: mordomo. (N. da T
2 Jovem que trabalho numa casa remunerada unicamente pelo alojamento e alimentação, normalmente, num país estrangeiro, onde aprende a língua deste. (N. da T.)
passear-se em mangas de camisa pelas grandes secções de fabrico.
É uma estudante alemã respondeu Myrna Chabras. Deixa-a em paz, Julien, nada de namoricos em casa! Prometeste ao teu pai e a mim que assim seria!
Isto acontecera ha seis meses atrás.
Como seis meses podem parecer curtos... e infinitos na memória.
Acontecera naquela primeira noite de Junho. Ao cair da noite, Eva Bader nadava clandestinamente na grande piscina que era interdita ao pessoal. Atrás de si, erguia-se a majestosa mansão, como um monstro adormecido de cem olhos fechados. A colunata que bordejava o terraço do qual partiam as escadarias que desciam para os relvados do parque, entre filas de lagos de mármore, assemelhava-se a uma queixada gigantesca, de dentes cerrados.
Era naquelas horas que a saudade se apoderava da jovem. Eva nunca admitiria que viria a lembrar carinhosamente o interior da casa dos pais! A fábrica de móveis de Colónia. ”Com Bader, o conforto adere!” frase publicitária duma estupidez desarmante que a fizera sorrir quando a vira, na sala de estar do casal Bader, entre duas canecas de litro de cerveja e quatro garrafas de vinho do Reno. Realmente, é demasiado fácil! Já não se usa isto! pensara ela, mas nada dissera. Entre Eva e o pai havia trinta e um anos de distância. É uma coisa que salta aos olhos dizia para si mesma, ao ouvi-lo falar, ele tem opiniões de fóssil... O nosso mundo moderno vai triturá-lo... e ele nem dá por isso!
Mas, àquelas horas da noite, durante o calor abafante, a vida aparecia, de repente, a Eva sob um aspecto diferente. Tantas coisas lhe vinham à ideia! A voz do pai, quando, à noite, regressava da loja de móveis e começava a gritar logo à entrada da porta: ”Else! Venho morto de sede! Hoje fartei-me de pairar! Mas como resultado obtive a venda de dois armários de parede, uma mobília de quarto e dos cortinados condizentes...
22 000 marcos! Dá cá uma cerveja, Else!”
E os serões... A ver televisão, evidentemente. Bebia-se e mastigava-se diante do aparelho; as notícias e os comentários sobre a política eram a especialidade da casa: a política de Leste seguida pelo governo. Hubert Bader participara na campanha da Rússia, de 1940 a 1944. Ganhara a medalha dos feridos (fora ferido sem gravidade por duas vezes), outra medalha de lata, que lhe recordava os artelhos gelados durante o Inverno assassino de 1941, na Rússia...”Aqueles gajos, só assim é que se conhece a Rússia! E aquela maldita política que adoptam para com o Leste! Você já esteve na Rússia? Não como turista, em Moscovo, mas a combater?”
Hubert Bader, por vezes, era impossível, mas ali, no Castelo da Aurora, fazia falta à filha, enquanto repousava, toda nua, na relva tépida, donde vinha o calor dum dia de Junho misturado com o aroma das rosas e o perfume do jasmim tardio que floria no caramanchão que dava acesso ao roseiral.
Era um breve momento de nostalgia, durante o qual surgiam revelações que magoam: somos felizes em nossa casa, apesar de não ser ”evoluído” acreditar em tal. Mas o coração e os sentimentos não reflectem sobre as coisas, sentem apenas o vazio dum mundo novo e desconhecido.
Uma voz fê-la estremecer. Puxou a toalha para cobrir a nudez ainda molhada e, bruscamente, voltou-se deitando-se sobre o ventre. Distinguiu uma sombra que se alongava entre o baloiço e o chapéu-de-sol que ficara aberto.
Eu já desconfiava, mas ninguém quer acreditar em mim... dizia a voz, de timbre suave, habituada às palavras meigas. Uma ninfa aparece no parque!
Senhor Chabras disse Eva. Eu... sei bem que é proibido tomar banho na piscina, mas pensei que já estava toda a gente a dormir, em casa... Se for contar isto...
Está há pouco tempo connosco, menina...
Julien Chabras aproximava-se, a sua sombra cresceu e concretizou-se num corpo de desportista, vestido apenas com um calção minúsculo. No peito, oscilava-lhe uma medalha de ouro, suspensa duma corrente reluzente, enquanto se sentava na relva, junto de Eva, e prosseguia:
Se assim não fosse, já saberia que, quando todos adormecem, em casa, é quando eu acordo... Vamos nadar umas braçadas na piscina, quer?
Não ficou zangado?
Que ideia! A minha mãe manda aqui como se fosse a Pompadour... Só não tem admiradores. Há uns dois anos, experimentou algo de parecido com uma paixoneta por Bertrand de Douzenac, da velha nobreza de espada, já um bocado fanado, mas ainda ao ataque. No entanto, apostaria que os seus avanços não foram além de algumas carícias nos seios dela, que ainda têm um certo encanto...
Como é que pode falar desse modo da sua mãe? Deitou-se, novamente de costas e estendeu-se sobre a toalha de banho. Porque me conta essas coisas?
Para a libertar do receio que sente relativamente à nossa grande dama: você vai banhar-se na piscina quantas vezes quiser, vou falar nisso à minha mãe.
Ele estendeu-se ao lado de Eva, cruzou os braços debaixo da nuca e tocou na jovem com o pé, como por acaso, mas não se afastou e foi Eva quem desfez o contacto, retirando a perna.
Veio para cá para aprender francês? perguntou Julien.
Vim. Comecei a estudar Filologia, línguas românicas, e já ensinei, mas não sou boa professora, receio bem...
Meu Deus, que horror!
O quê?
A ideia de que você pode vir a ser professora. Os estudos, para mim, foram traumatizantes!
Era mau aluno?
Não era mau, era catastrófico! Dei cabo de quatro preceptores, mas os conhecimentos do Papá conseguiram que eu acabasse o liceu e agora sou estudante de Sociologia...
Teve um riso surdo, rolou sobre a relva e colocou, distraído, uma mão sobre o ventre de Eva, que o afastou, em silêncio. A tepidez do solo era agradável naquela noite calma, apenas perturbada pelo murmúrio das fontes.
E agrada-lhe esta vida? perguntou ela, de súbito.
Só se é jovem uma vez, minha linda.
Se toda a gente pensasse desse modo!
Graças a Deus que um inútil como eu é contrabalançado por um milhão de activos trabalhadores!
Julien Chabras apoiou a cabeça numa das mãos para olhar para Eva com um ar feliz. A franqueza dele agradava-lhe. Não é um herdeiro inconsciente, pensava ela, é um preguiçoso honesto que nem se dará ao trabalho de compreender seja o que for do império dos Chabras. Mas sabe confessá-lo com um encanto mesmo francês!
Um pouco desconcertada, Eva ergueu-se e rodeou com os braços os joelhos unidos. A água da piscina parecia tinta preta, lisa, imóvel; apenas a margem de mármore branco se distinguia na escuridão.
Sabe que é muito bonita? perguntou Julien, de repente.
Ela estremeceu e apertou contra os ombros o roupão de banho.
Na sua colecção deve haver raparigas ainda mais bonitas! respondeu. Ser bonita... uma boneca, faz o mesmo efeito!
Se pensa assim, como hei-de exprimir-me? Ajude-me, Eva...
Até sabe o meu nome?
Foi a primeira informação que pedi a James quando a vi na cozinha. Sentou-se também e apoiou as mãos na relva. Bem, se não é bonita, então o que é? Uma rapariga que olhamos com prazer...
Não vamos nadar? disse ela, para evitar responder-lhe.
Com certeza!
Levantou-se dum salto e, com passos leves, correu até junto da base duma estátua onde manobrou um comutador invisível que acendeu os projectores da piscina e inundou de claridade os arcos de roseiras e cujo reflexo subiu até às copas frondosas e imóveis das grandes árvores, criando uma visão mágica e melancólica dum jardim encantado.
Vamos! disse Julien ao mergulhar de cabeça na água que se tornara dum azul resplandescente. Desapareceu, voltou à superfície e fez-lhe sinal com os dois braços. Ó minha ninfa, porque espera?
Na água, chocaram um no outro e os seus lábios uniram-se.
Porque não se defendera, ela não poderia dizê-lo. Talvez a culpa fosse daquele maldito instante de nostalgia. Ou talvez da recordação do seu pai, berrando desde a entrada da porta: ”Else!
Que dia! Já, depressa, traz-me uma caneca de cerveja bem cheia!”
A 27 de Agosto, Eva disse a Julien Chabras:
Fui consultar um médico, não há dúvidas de que espero um filho.
Julien respondeu, rindo:
Bravo! E de quem?
Eva não o compreendeu logo. Sentou-se na cama de repouso que estava no quarto de Julien, aquela mesma cama na qual julgara conhecer toda a felicidade do mundo, e cruzou os dedos sobre os joelhos.
O que estás a dizer? perguntou ela, devagar.
Estou a perguntar de quem, querida? De quem é o filho?
Ele repetiu a frase duas vezes, encheu dois copos de Calvados ! e deitou neles pedaços de gelo que tilintaram; só bebia Calvados gelado.
Tens a ousadia de me perguntar uma coisa dessas? disse Eva. És tu quem mo perguntas?
Evidentemente que sou eu! Sobretudo eu. Aproximou-se dela e estendeu-lhe um copo: Ora pensa um pouco...
Não é preciso pensar: tu foste o primeiro homem que eu conheci... tu bem o sabes...
Eu sei? Disseste-me?
Tu sentiste...
Ele fez uma careta e agitou o copo, fazendo tilintar os pedaços de gelo.
A virgindade pode fingir-se, minha querida... O seu rosto bronzeado, de traços bem definidos, transformou-se numa confusão de rugas de hilaridade. Conheci uma rapariga, a Dora, que andava de cama em cama a fazer-se virgem. Fartava-se de gastar tinta vermelha...
1 Calvados: aguardente de cidra. (n. da T.)
Ela olhou-o demoradamente, em silêncio, de lábios cerrados, e durante esse tempo não foram apenas os seus olhos que mudaram de expressão, também os seus sentimentos se transformaram.
Na verdade, tu és nojento disse ela, de repente. Sim, és um repelente porco! Um suíno envolvido em sedas de ouro! É por isso que te acariciam, Julien, em vez de te darem pontapés!
Ele não ficou nada ofendido e continuou a rir, levantando o copo de Calvados à altura dos olhos. Só quando ela deixou cair brutalmente a mão sobre o peito do rapaz e que o álcool inundou a camisa de seda de Julien, é que este compreendeu que ela falava a sério.
Endoideceste? sibilou ele. Estás a ficar histérica, como tantas outras?
Espero um filho! disse ela, em voz alta. Um filho teu!
No teu lugar, eu não teria tanta certeza disso!
Ela encolheu os ombros, como se tivesse sentido frio, de repente, e disse:
Repete o que disseste, peço-te... A sua voz vacilou.
”Este é que é o Julien”, pensava ela, abatida. ”É realmente este o homem que eu amei? O meu primeiro amor? Um amor cheio de encantos, mágico, infinito? Cheguei, na verdade, a amar este homem que me olha com cinismo e que me trata como se eu fosse uma puta a pedir-lhe aumento de preço? É isto o meu amor...”
Se tens a certeza... disse ele, despreocupadamente.
O professor Vernère confirmou.
Vernère é um bom médico. Para a semana vamos ao Labarousse, que resolve todos os problemas por três mil francos.
Queres que dê cabo dele? disse ela em voz surda.
Vês alguma solução melhor?
Também é teu filho, Julien.
Falas como as nossas avós!
Mas eu quero ter este filho, Julien disse ela baixinho.
Então é isso? Dum trago, bebeu o resto que estava no copo e encostou-se à parede: Então é isso: servindo-se da cama e depois da criança para ter acesso à massa dos Chabras! Não está mal pensado, garota! Estamos perante uma variante pacífica dos métodos de conquista germânicos!
Cala-te disse ela, em voz inexpressiva. Julien, peço-te que te cales.
Porquê? No meu quarto, em minha casa, digo o que quiser! Com que então, uma loirinha atrevida quer apanhar o Julien Chabras! E suspira, treme... Tens talento, minha querida... Se fizermos as contas a cada hora de amor e somarmos o total, em milhões, que representa uma noite passada contigo, és a amante mais cara da história moderna...
És ignóbil disse ela subitamente, demasiado cansada. As palavras de Julien feriam-lhe os ouvidos como se viessem de muito longe, como se fossem proferidas por um demente.
Pronto! Vamos amanhã tratar desse assunto definitivamente.
Não!
Então, que queres fazer? Vais ter com os meus pais e dizes-lhes: o meu ventre vai crescer e o culpado é o vosso filho! A mamã fará troça de ti e o papá quererá indemnizar-te e oferecer-te-á uma boa quantia em dinheiro. Mas será necessário tudo isso? Graças a Lábaro usse, tudo entrará nos eixos em poucos instantes e a vida continuará...
Desprezo-te! disse Eva, levantando-se. Repeliu Julien, que queria detê-la, e dirigiu-se para a porta. Realmente, não passas dum pobre poltrão!
E que mais? E que mais? gritou ele, de repente. Correu atrás dela, agarrou-a por um braço e puxou-a brutalmente para si, obrigando-a a fazer meia volta: Repito-te que te enganas nos cálculos!
Eu não calculo nada. Tenho uma criança dentro de mim, é só isso!
Ele largou-a e continuou a rir, embora com menos vivacidade; a sua alegria soava falso.
Tu utilizas a pior maneira de negociar comigo! disse ele empurrando-a para fora do quarto. Pensa bem, querida!
A 2 de Setembro, Julien Chabras deu um pequeno cocktail no terraço que dominava o parque. Tinha convidado, dizia ele, todo o seu grupo do Clube de Ténis e também os grupos da Sociedade Hípica e do Iate Clube. Certamente, apenas rapazes elegantes e simpáticos, supunha a senhora Chabras, que fora também convidada apesar de não ser frequente ele misturar a mãe nas suas pequenas reuniões. Mas desta vez dera a entender que haveria uma ”surpresa”, uma revelação divertida! A dona da casa dava voltas à cabeça, sem resultado: mas Julien era tão imaginativo!
Às 7 horas da tarde, Eva apareceu no terraço transportando uma grande bandeja de prata carregada de sanduíches. Foi recebida com enorme ovação, o que surpreendeu a senhora Chabras, que estava habituada a mais moderação, ainda que se tratasse da juventude dourada posterior a 68... e além disso, entre aqueles jovens de cabelos compridos não reconhecia um só rosto. Entretanto, quando Eva avançava no meio dos convidados, todos aqueles desconhecidos se lançaram sobre ela para a cobrirem de beijos, de carícias, para lhe darem beliscões no rabo e nos seios. Ela não podia defender-se, segurando a grande bandeja, e o seu olhar desesperado procurou Julien na multidão. Este, de pé junto da mãe, ria a bandeiras despregadas, por efeitos, certamente, dum lastro mais avantajado do que o habitual do seu Calvados preferido. Mas Myrna Chabras parecia tão horrorizada como Eva, a sua demoiselle au pair. Conhecia, em parte a vida desregrada do filho, mas nunca, até ali, a ressaca dos seus excessos tinha atingido as paredes do Castelo da Aurora.
É horrível! exclamou ela, no cúmulo da indignação.
O tom da sua voz foi tal que os jovens, decididamente desconhecidos e onde teria Julien ido buscar aquela fauna pavorosa? se afastaram de Eva. Apenas um Charles qualquer não a largava, beijando-lhe a nuca e acariciando-lhe as coxas.
Largue a menina Bader! Julien, explica-me este espectáculo odioso!
Mamã... Julien Chabras dirigiu um gesto autoritário aos seus camaradas, que, como mais tarde veio a saber-se, eram apenas figurantes, rapazes esfomeados, vagos conhecidos, drogados, que ele recrutara nas cercanias da universidade e aos quais pagara. Mamã, estás a assistir a uma reunião de carácter sensacional: todos estes rapazes são pais da mesma criança!
Eva, imóvel, permanecia no mesmo lugar, com os braços caídos, incapaz de se mexer.
O que significa isto? ouviu Eva a senhora Chabras perguntar, e percebeu a resposta de Julien:
Mamã, então ainda não percebeste nada? Esta menina é uma rapariga despachada: espera um miúdo e todos os que tomaram parte no acontecimento têm a sensação de fazer parte duma grande família: catorze pais... isto promete, pelo menos, dar origem a um campeão!
”Vou morrer”, pensava Eva, ”éde mais... Julien”, gritava ela interiormente, porque preparaste esta cena! Os teus catorze cúmplices vão jurar que foram meus amantes e quem acreditará em mim se eu disser que não conheço nenhum deles?” Eva, o que diz a isto? ouviu Myrna Chabras perguntar-lhe, numa voz um pouco rouca. Eva, é verdade... Eva continuava calada, depois, voltou-se, lentamente e abandonou o terraço num passo sacudido de boneca de corda. O quê? com todos... ouviu ela ainda dizer Myrna Chabras. É escandaloso!
Depois, Eva entrou na sala vermelha e começou a correr. Quase voou até ao cimo da escada que levava ao seu quarto, fechou-se à chave e só então se pôs a gritar, de rosto escondido na almofada, a gritar com todas as suas forças o sofrimento de ter perdido a fé no amor.
Babette, sobe ao quarto da menina Bader e vê onde ela está! disse James, o mordomo, naquela manhã, com certa irritação, que não lhe roubava nada da sua dignidade. Não vamos esperar por ela mais tempo para distribuirmos o serviço. Babette, a responsável pela rouparia e pelas louças na casa dos Chabras, respondeu com um sinal de cabeça e correu à cozinha, donde partia uma escada reservada ao pessoal, que levava aos andares superiores e que fora concebida desse modo para servir de saída de emergência, em caso de incêndio.
Três minutos depois, apareceu, debruçando o rosto alterado sobre o corrimão da escadaria grande que descia até à entrada.
James ergueu o olhar pouco satisfeito e disse:
Então?
A menina Eva não está lá.
O que é que quer dizer ”lá”?
A cama não foi utilizada e sobre a almofada está uma carta dirigida ao senhor Julien.
Babette, vá prevenir o senhor Julien disse James, voltando-se para o resto do pessoal, em cujos olhos leu várias interrogações, que afastou com um gesto autoritário. Um bom mordomo ouve, vê, entende muitas coisas... e esquece-as. Além do senhor Julien, não está mais ninguém em casa acrescentou ele num tom gelado e impecavelmente britânico. Vamos aproveitar para fazer limpeza geral ao terraço e às escadarias.
Babette teve dificuldade em acordar Julien e em tirá-lo da cama. Começou por bater à porta durante um quarto de hora, até que ele, finalmente, veio abri-la, com uma barba de vinte e quatro horas, de rosto amarelecido pelo álcool, a voz pastosa, os olhos injectados e lacrimosos e o hálito azedo. Encostou-se ao montante da porta e olhou hostilmente para Babette:
Você consegue ser suficientemente louca para me acordar hoje? ralhou ele. Aos meus olhos, já não passava dum verdadeiro espantalho, com a mania de limpeza pela casa toda, mas agora o efeito que exerce sobre mim é o dum verdadeiro algoz!
A menina Bader não se encontra no quarto dela respondeu a empregada, renunciando a insurgir-se contra os ofensivos comentários do herdeiro dos patrões.
Não está no seu... Julien passou a mão pelo rosto e continuou: O quê?
Nem abriu a cama.
Não abriu a cama? Isso nem parece dela! Geralmente até abre a cama com muito gosto!
Não era o dia da folga dela...
Ora... Os gatos machões sobem para os telhados à luz do mínimo raio de luar...
Na almofada dela está uma carta dirigida ao senhor.
A mim? Julien fez uma careta de troça. Vamos lá ver isso!
Entrou novamente no quarto, vestiu um roupão de seda crua e seguiu Babette, que subiu, à frente dele, as escadas que, dois andares acima, terminavam nos quartos do pessoal.
O quartinho de Eva estava impecavelmente arrumado. Julien pegou na carta, meteu-a na algibeira do roupão e abriu o armário e depois as gavetas da cómoda.
Deixou tudo aqui, senhor exclamou Babette, os vestidos as roupas... O senhor compreende isto?
Um momento!
Julíen Chabras aproximou-se da janela do sótão, inclinada, e rasgou o sobrescrito na carta, que desdobrou. O papel continha apenas algumas linhas escritas à pressa:
Seria inútil amaldiçoar-te: Quando muito, seria ”fora de moda! Continua a existir tal como és: a vida se encarregará de te apresentar a factura. Já não há contas a ajustar entre nós. Passei um traço por cima de tudo: de ti, de mim, da criança. Para sempre.
Julien tornou a dobrar a carta e meteu-a de novo na algibeira. Não sentia qualquer temor, nem piedade, nem remorsos, nem medo, nem sequer o desejo de se opor a que acontecesse o pior. Sentia apenas uma sede ardente e aspirava beber um grande copo de vodka, misturada com Bitter Lemon.
O que é, senhor atreveu-se a perguntar Babette, rompendo o longo silêncio. O que foi que aconteceu?
Nada! O que queria que fosse? disseJulien, com um riso tranquilizador. Não aconteceu nada. Eva voltou para a Alemanha, ao que parece, Paris não lhe convinha. Quanto ao seu comportamento, podemos apreciá-lo doutra maneira! Depois, indicando o guarda-fatos aberto, disse descuidadamente: Ela diz que não lhe interessam as coisas que cá deixou. Pode dar isso tudo às írmãzinhas dos Pobres, a menina Bader não voltará.
Hesitou ainda, lançou um olhar pelo quarto, a cama, às gavetas abertas, onde a roupa de Eva estava cuidadosamente arrumada e, por fim, voltou-se de repente e saiu do quarto.
Enquanto descia a escada amachucou a carta no fundo do bolso, depois, ao chegar ao seu quarto, rasgou-a e colocou os pedaços num grande cinzeiro e queimou-os. Enquanto as pequenas chamas consumiam ainda o papel, o telefone tocou e, no receptor, soou uma voz feminina, jovem e um pouco fatigada.
Acordei-te, querido? Porque te foste embora? A nossa noite foi tão curta... amo-te... amo-te...
E Julien Chabras respondeu, enquanto via os restos da carta a arder:
Também eu penso em ti, meu amor. Gostarias de ir comigo, de carro, para Saint-Tropez, no próximo fim-de-semana?
Não é uma rua de que se possa falar com vaidade, a Rua Princesa, mas, apesar disso, os seus habitantes orgulham-se dela. Com seis metros de largura e medindo apenas oitenta e oito de comprimento, nem por isso deixa de dever o nome a uma princesa da casa de Guise, e as pessoas cultas sabem que nela viveu Clairon i e que Chardin 2 ali pintou, de 1720 a 1757. Ricas recordações habitam as casas antigas, de águas-furtadas ornamentadas com frontões e mísulas. Mas, acima de tudo, é bom viver naquela rua, em plena liberdade, por detrás dos postigos aos quais as intempéries roubaram a cor, durante os anos sem conta que decorreram. Realmente, desde que se põe o pé na Rua Princesa, ninguém tem de se preocupar seja com o que for; ali, cada um ”vive a sua vida”, numa comunidade confiante com os talos de couve e com os numerosos ratinhos pretos que correm em todas as direcções, nos pátios e nas caves, sem fazerem mal a ninguém. Decerto que eles também sabem que a Rua Princesa é um paraíso para aqueles que apreciam um verdadeiro paraíso.
É aqui disse Pierre, detendo-se diante duma casa velha, à qual dirigiu um amigável cumprimento de cabeça.
1 Mile. Clairon, actriz trágica, francesa, intérprete de Voltaire (século XVIII). (N. da T.)
2 Pintor francês do século XVIII. (N. da T.)
A fachada era dum cinzento acastanhado e apresentava grandes manchas lívidas nos locais em que o reboco se desfizera. A porta, que estava aberta, mostrava, desde o limiar, um corredor escuro. Atravessado no degrau, quase em cima de passeio, estava deitado um cão reboludo, gordo mesmo, sobre o qual incidia o débil raio de sol que penetrava obliquamente na rua; algures, na vizinhança, ouvia-se uma forte discussão entre um homem e uma mulher. Ele chamava-lhe puta, ela qualificava-o de burro capado. Duas casas adiante, um velho, sentado numa cadeira de vime, segurando junto da orelha uma corneta acústica, saboreava, com expressão radiante, aquela disputa conjugal.
Onde é?
Daqui não se vê, é mesmo junto do telhado e não tem janela para a rua. É uma espécie de estúdio, mas não se ponha a imaginar um quarto à moda de Murger! Mimi Pinson 2, infelizmente, já vai longe, com o seu regalo para agasalhar as mãos... e as suas violetas... Era caso para se dizer: ”Mimi, que já não era ela...” A realidade é ainda mais dura... No entanto, hoje você tem sorte, ainda tenho dois francos no bolso, o que chega para fazer aparecer um pequeno almoço na nossa frente...
Retirou das mãos de Eva as telas engradadas, perguntando a si mesmo como havia de fazer para pôr a senhora Beugnon ao corrente da situação. Pierre tinha a certeza de que ela já estava à espreita, como um monstro maciço que vigiava a entrada do prédio como se estivesse a guardar o acesso directo ao céu. Devia reconhecer-se que a senhora Beugnon tinha o dom da ubiquidade, pois não havia nada na Rua Princesa que ela desconhecesse, tal como nada lhe passava despercebido na casa de que ela era a porteira exemplar, além de ser ao mesmo tempo a ”mãe” de cada um dos locatários, como ela própria o dizia. Todavia, isto não a impedia de se transformar numa fúria, que dardejava fogo e chamas sobre qualquer indivíduo que, na sua opinião, ”não convinha ao género da casa”. Não era possível
1 Murger, escritor francês do século XIX, autor de Cenas da Vida Boémia. (N. da T.)
2 Mimi Pinson, personagem dum conto de Musset. (N. da T.)
evitar a senhora Beugnon, pois ela, como Caronte no reino dos mortos, dava conta de tudo o que se passava desde a entrada da porta.
Pierre teve um sobressalto. Eva apoiara-se a ele e parecendo tão pesada que quase deixou cair as telas.
Quando é que subimos? disse ela, numa voz quase infantil. Estou morta de fadiga, quase durmo em pé!
Vamos já!
Pierre encostou as telas à parede e depois, rodeando com um braço a cintura de Eva, conduziu-a para casa. O cão gordo levantou a cabeça, dirigiu a Pierre um intenso olhar, agitou a cauda feia e comprida, desprovida de pelos, e refastelou-se novamente na sua réstia de sol.
Na obscuridade do vestíbulo recortou-se um vulto enorme. Eva arregalou os olhos penosamente, pois as pálpebras pesavam-lhe como chumbo; agarrou-se à manga de Pierre e ficou imóvel.
Nesse momento, veio ao encontro deles um matagal de cabelos chamejantes e pareceu-lhes que uma tonelada de perfume doce desabava sobre eles. A passagem estava obstruída por algo que tinha forma humana e que usava um avental às pintas azuis. Em seguida, uma voz áspera apanhou-os em cheio, como um pano molhado gigante que lhes fosse lançado sobre os rostos.
Pierre, o que é que arrastas contigo?
A senhora Beugnon... Eva, é a senhora Beugnon disse Pierre, a mãe de todos nós. Sem ela, eu ainda seria menos do que sou!
Ora aqui está um elogio, minha menina, que vai custar-me mais dez francos, já sei o que gasta a casa!
A senhora Beugnon encaminhou-se para Pierre, que afastou de Eva, e inclinou-se para a examinar à sua vontade, numa inspecção que seria decisiva.
Estou cansada disse Eva, encostando-se à parede suja da entrada. Desculpe-me, minha senhora, vou adormecer...
Ela quis matar-se disse Pierre, e eu não tive coragem de a deixar fazê-lo...
Quis matar-se? A senhora Beugnon ergueu a cabeleira incandescente e, de repente, as suas mãos possantes apoderaram-se de Eva, que colocou à sua frente como se fosse a haste duma bandeira. Se ela quis morrer, em parte alguma pode estar melhor do que em minha casa!
A senhora Beugnon personificava a eterna porteira parisiense e ainda mais: a comadre, tal como apenas se vê em Paris, e talvez só no Quartier Latin 1 e em Montmartre 2. Mulher que falava alto, de coração na mão, que compreendia todos os desgostos, que fala com aspereza a toda a gente e também... orgulhosa como uma princesa... por ter sido desposada, na sua juventude, pelo descendente duma nobre família decadente, o qual afiava facas nas ruas, assinalando a sua passagem com o toque duma campainha pendurada na banca de trabalho, que ia empurrando à sua frente. Amaury Beugnon de Birague, que se tornara artesão, alcoólico e doente dos pulmões, não durou muito, pois morreu jovem, mas a senhora Beugnon, que, nas grandes ocasiões, usava o apelido de Biraque, guardara do seu companheiro, que nunca desesperara de ascender a outro nível social, uma certa propensão para a megalomania. Apesar disso, a sua vida diária era preenchida pelo constante interesse que concedia aos artistas e aos estudantes da sua rua e até do seu bairro, pois o seu império abrangia a Rua do Four, a Rua do Dragon e mais longe ainda. Como não tivera filhos, distribuía a sua ternura desabrida pelos pintorzecos e pelos jovens emagrecidos pelo trabalho nocturno. Todos estes se arrastavam de bom grado até ao antro enegrecido que lhe servia de alojamento e onde havia sempre uma bebida de álcool quente ou um café prontos para os reconfortarem. Em troca, a senhora Beugnon ouvia inúmeras confidências, sabia o segredo de algumas torpezas e, em certos dias, julgava acolher no seu vasto seio toda a dor do mundo. Porque em casa dela podia-se chorar até se querer, ou então, discutir-se até construir outro mundo, por muito
1 Quartier Latin Bairro Latino, o bairro dos estudantes, em Paris. (N. da T.)
2 Montmartre o bairro dos artistas. (N. da T,)
pouco quente que a cabeça estivesse. Aquela mulher era o exutório sentimental dos malditos de Saint-Germain-des-Prés, mas era também o seu anjo bom.
Vejo que tens um problema, Pierre disse a senhora Beugnon, depois de ter transportado Eva, meio arrastada e meio ao colo, até à sua cozinha.
Depois de sentada numa cadeira, a jovem adormecera quase em seguida.
É verdade reconheceu Pierre, impunha-se um pequeno almoço copioso, mas estou sem cheta!
O que não é um problema, mas é um hábito, segundo me parece.
A porteira lançou a Eva um olhar experimentado, que se justificava por quarenta anos passados num cubículo de porteira em Paris.
É uma rapariga como deve ser concluiu.
Com certeza, é alemã...
Passávamos bem sem uma bochesse !
É uma rapariga séria... está grávida!
A senhora Beugnon deitou um olhar destruidor a Pierre, soprou o ar pelas narinas e, com o polegar, apontou o tecto.
Monky ainda está lá em cima.
Minha vida! Ela devia estar no estúdio há que tempos!
Ainda está na pildra.
Pierre sentou-se à mesa da cozinha, diante de Eva e, metendo as mãos pelos cabelos, coçou a cabeça. Monky, pensava ele, vai piar como um pavão quando vir Ev! E, depois, vai atirar com tudo ao ar... sim... tudo o que apanhar à mão.
Temos que deitar Eva disse finalmente Pierre, no tom mais diplomático que pôde, ela não pode ficar a dormir nesta cadeira!
Então vai tirar quem está na tua cama!
Senhora Beugnon! disse Pierre em tom suplicante, quem é que consegue alguma vez tirar Monky duma cama? Posso pedir-lhe...
1 Feminino de boche, designação pejorativa dada em França aos Alemães. (N. da T.)
Não! cortou a senhora Beugnon, numa voz esganiçada.
Senhora Beugnon...
Desiste desse disparate!
Ela. dirigiu-se para o armário da cozinha e, abrindo uma gaveta, tirou de lá um enorme pente, com o qual se pôs a desembaraçar a rutilante cabeleira. Aquela era uma luta que travava diariamente, desde há dez anos, quando começara a pintar a sua juba de leão.
Pierre, és um cagarola!
No que diz respeito a Monky... reconheço que o sou. Mas só tenho três chávenas e uma cafeteira de bico partido. Porque hei-de deixar que ela atire tudo contra a parede? Senhora Beugnon, a senhora poderia fazê-lo melhor do que eu...
Se fosse eu, agarrava-a pelo pescoço e punha-a de lá para fora!
Era isso que eu queria dizer.
Que juventude sem genica! Ah! Como o mundo está mudado!
Olhou novamente para Eva, que dormia, e depois, arrastando os chinelos, dirigiu-se para a porta, esticando o avental, como um soldado que cuida do seu aspecto antes de aparecer no pátio do quartel. Mas, no limiar da porta, parou e olhou ainda uma vez mais para Pierre, que endireitava um dos seus cigarros amachucados.
Ela pode voltar, ou acabou-se de vez?
O quê?
Ó meu tonto, não se pode dosear com exactidão um ”despejo” em regra!
Então, é definitivo! Se for preciso, eu sei onde poderei encontrar Monky.
Só por dizeres isso, bem merecias uma sova! A senhora Beugnon estendeu um braço, gordo como um poste. A cafeteira de esmalte está no armário da direita, mas põe só quatro colheres... está contado!
Obrigada, senhora Beugnon disse Pierre, atirando-lhe um beijo. A senhora é uma nascente no meio do deserto!
A porta fechou-se bruscamente. Eva, no seu sono, estremeceu, mas não acordou.
O que ela tinha andado, desde o Arco de Triunfo até à Rua Princesa porque não havia dinheiro para o metro, depois duma noite passada a vaguear por Paris, à qual se seguira a tentativa de suicídio, tudo tinha contribuído para que ela mergulhasse numa espécie de letargia. Pierre, apesar de tudo, tivera esperanças de pintalgar Gudule ainda uma última vez, o suficiente para sentar Eva no quadro da bicicleta, mas, ao chegar junto do muro ao qual a deixara encostada, pôde verificar que a Gudule tinha desaparecido. Não há mulher, nem objecto, por mais decrépitos que sejam, que não encontrem quem os queira...
Pierre atirou a cabeça para trás e pôs-se a escutar os sons provenientes da escada. Vai começar... Os gritos de Monky, ela grita como ninguém... Monky...
Pierre debruçou-se sobre a mesa e contemplou o rosto de Eva, descontraído, pálido, as longas pestanas escuras, os seus cabelos, que lembravam meadas com delgados fios de ouro misturados, o nariz esguio, o queixo redondo, com uma leve covinha, e os lábios carnudos da linda boca que já não estava crispada num desespero sem limites. O peito, sobre o qual continuavam colados os pedaços do vestido rasgado, elevava-se levemente.
Pierre encostou-se à parede, acendeu o cigarro amassado e aspirou o fumo, que engoliu. Se a senhora Beugnon estivesse presente, teria ralhado novamente, ao lembrar-se do irmão que morrera com um cancro no pulmão. Eva..., pensava Pierre, estranhamente fascinado por aquela desconhecida vinda da Alemanha que trazia um filho no ventre. Eva, o que vamos fazer contigo? Não me refiro a hoje, mas a amanhã e aos dias que hão-de vir? Eu sou um gajo pobre, só poderei sustentar-te como um vadio sustenta o seu cão. E, no entanto, não sou um inútil e poderia muito bem arranjar um emprego melhor do que carregador de volumes nas Halles das 4 às 7 horas da manhã! Mas, simplesmente, como também pinto, tenho que reservar algum tempo para trabalhar... embora, para poder ter-te comigo, seja capaz de pintar tudo o que me mandarem:
1 Halles, antigo mercado abastecedor de Paris, recentemente demolido. (N da T)
marinhas, cujas ondas embalam navios perdidos, galinhas depenadas numa paisagem cheia de minúcias... enfim, estou pronto a executar os piores cromos por ti, para que tu tenhas um pouco de repouso...
Esmagou o cigarro no pires e, de repente, a situação pareceu-lhe desesperada. Com certeza que Eva amanhã acordará disposta a encarar o seu caso com um espírito mais objectivo e... fugirá!
Este pensamento angustiou-o subitamente, e ele nem sequer quis admitir que tal pudesse acontecer.
Não era sem motivo que os vizinhos da senhora Beugnon a evitavam quando ela estava zangada. Pondo de parte que não se podia discutir com ela, desde que já tivesse formado a sua opinião e aliás, ela estava sempre na razão, ninguém tinha energia suficiente para tentar acalmá-la.
Monky teve o azar de estar de costas voltadas para a porta quando foi empurrada brutalmente do exterior; por isso, percebeu apenas que alguém entrava no aposento. Espreguiçou-se como uma gata, proporcionando um espectáculo que poria desvairado qualquer macho. Estava nua e o seu corpo esguio e flexível de modelo, de pele nacarada, reluzia à luz de Outono que entrava a jorros pela grande vidraça. A perfeição de tal visão era apenas perturbada pela alta e feia chaminé da casa vizinha, com o seu catavento de ferro enferrujado, que volteava ao sabor da brisa, com um ranger lamentoso.
Pierre, meu totozinho, estás contente? Esta manhã não me apetecia ir ter com aquele idiota do Bioggia e...
Pierre não está contente coisa nenhuma! exclamou a senhora Beugnon, severamente, numa voz que ressoou na pobre mansarda como um gongo.
Monky voltou-se dando um grito agudo e tapou os seios com uma das mãos, pondo a outra mais abaixo, e ficou imóvel naquela posição, como se fosse a própria estátua da inocência. Os seus grandes olhos pintados fixaram a porteira fingindo perfeitamente um certo receio.
Deixa-te de fitas, minha cara! disse a senhora Beugnon, deixando a porta aberta atrás de si. Ontem estavas na cama com ele e nem piaste quando eu entrei. Vamos, veste-te e ala!
Onde está Pierre? perguntou Monky sem se mexer, conservando pudicamente as mãos sobre o corpo.
Pierre já não mora aqui.
Conseguiu pô-lo na rua, velha bruxa de cabelos vermelhos?
A voz da rapariga tornava-se estridente.
Quanto à senhora Beugnon, suportava muitas coisas, com excepção das alusões respeitantes à sua cabeleira. Ao pronunciar aquelas palavras, Monky perdeu para sempre qualquer esperança de reconciliação com ela.
Olhem-me para esta estrumeira! berrou a porteira. Ah! Pobre idiota, tens a ousadia de me insultar! Agitou no ar as mãos enormes, como pás de madeira. Olha para as minhas patas, meu alfenim, e adivinha o que te espera!
Os modelos aprendem a vestir-se e a despir-se num tempo mínimo, pois cada gesto é ensaiado e programado com antecedência. Assim, Monky desistiu do duelo verbal, da discussão épica, à parisiense, sob o olhar chamejante da senhora Beugnon, que lhe fazia girar nas veias um susto invencível. Por isso, contentou-se em fazer uma espantosa demonstração de como vestir-se o mais rapidamente possível e correu para a porta.
Só se voltou para olhar para trás quando chegou ao andar de baixo, já no último degrau da escada. A senhora Beugnon estava debruçada no corrimão, lá em cima, com a face de megera coroada pela cabeleira de fogo.
Hei-de encontrar Pierre sibilou Monky, pronta a galgar rapidamente os degraus, em caso de perigo. Não é assim tão simples como julgas, minha velha, porque eu amo o meu Pierre!
Depois, desceu, de escantilhão, até ao fim da escada, e saiu de casa como um furacão, fazendo estremecer o cão gordo que continuava instalado ao sol, atravessado no degrau, parando,
1 No original francês, battoir: pá, de madeira, com a qual as lavadeiras tradicionais francesas batiam a roupa, nos lavadouros. (N. da T.)
por fím, diante do velhote que estava sentado na sua poltrona de vime. A disputa conjugal na casa vizinha terminara, já não havia nada para escutar.
Ela pôs-me na rua! choramingou Monky. Sim, aquela bruxa expulsou-me! Se o senhor vir o meu Pierre, conte-lhe por mim!
Qual Pierre? disse o velho.
Monky virou-lhe as costas e desandou, concluindo:
Aqui só há idiotas!
Pierre, que tinha encontrado a caixa de biscoitos da senhora Beugnon, restaurava as forças à custa de bolinhos de manteiga quando a porteira apareceu novamente na cozinha. Ele lançou-lhe um olhar incrédulo, espantado, pousou o biscoito que trincava e disse, em voz abafada:
Não pode ser!
O quê? respondeu a porteira, bamboleando-se em direcção ao fogão. Meu Deus! Nem sequer foi capaz de aquecer o café? Isso, não, mas tens muita habilidade para não fazeres nada!
Então, senhora Beugnon... começou Pierre. Não conseguiu mandar a Monky embora?
O quê? repetiu a senhora Beugnon, enquanto enchia a chaleira.
Ela já não está lá em cima?
Fugiu! esclareceu a senhora Beugnon, acendendo o gás. Depois, limpou as mãos ao avental.
Pierre inspirou profundamente, como um evadido que acabou de passar a fronteira.
Sem protestar? Sem partir nada? Não ouvi barulho.
Teve a ousadia de me insultar, a propósito da cor do meu cabelo!
Meu Deus... Matou-a?
Estive quase a fazê-lo... Mas ela escapou-se como uma doninha. A senhora Beugnon encostou-se ao varão do fogão, enquanto a chaleira, por detrás de si, começava a chiar. Ela tem um corpo bem feito, mas na cabeça só tem vento. Pierre, o que lhe prometeste tu?
Nada. Servia-me de modelo.
Na cama?
Isso, era em vez do salário! Não tenho dinheiro. O rapaz tirou três chávenas e três pires do armário e estendeu à senhora Beugnon a caixa de lata que continha o café moído. Monky foi-se mesmo embora?
Já me ouviste dizer alguma mentira? ralhou a senhora Beugnon.
E não volta?
Disso não tenho a certeza.
Se voltar, será obrigada a passar diante da sua porta?
Não será o melhor caminho para ela. A senhora Beugnon inclinou-se para a frente e afastou da testa os cabelos ruivos. Tinha uns olhos pequenos, verdes, cheios de bondade. Sou assim tão feia, Pierre?
A senhora é única, devia ser imortal, como Paris! exclamou Pierre.
Tinha dúvidas de que o seu pensamento fosse inteiramente alcançado pela senhora Beugnon, mas exprimia-se com comovida convicção.
A chaleira apitou. Eva estremeceu e abriu os olhos. O seu olhar enevoado vagueou pelo aposento e deteve-se na mesa.
Há café, pão, queijo... Se tem fome, menina... disse a senhora Beugnon, ao mesmo tempo que servia o café, que cheirava deliciosamente. E tu, Pierre, vai lá acima, faz a cama e não te esqueças de arejar o quarto... sabes bem porquê...
Pierre obedeceu e afastou-se, enquanto a senhora Beugnon punha a mesa e ia buscar um pão comprido e estaladiço, a manteiga e um pedaço de queijo branco. Finalmente, meteu o cabo duma faca na mão de Eva e, ao afastar a mão da da jovem, acariciou-lhe levemente os cabelos, durante uma fracção de segundo, e deixou ficar depois a mão, imóvel, leve, alada, sobre a cabeça dourada de Eva. Naquele gesto havia mais ternura maternal do que alguém atribuiria à senhora Beugnon, também chamada de Birague, nos seus dias de arrogância.
Depois da pequena refeição, que Eva tomou num estado de invencível torpor, a senhora Beugnon e Pierre levaram-na, praticamente ao colo, para o quarto de Pierre, onde, quase de seguida, ela voltou a adormecer.
Meu Deus, ela está extenuada! observou a senhora Beugnon, quando Eva se deitou na cama de Pierre, cujos lençóis a porteira mudara, pois era ela quem lhe cuidava das roupas. Ela está mais morta que viva... Então, ainda não tinhas percebido, meu cabeça dura?
Não, não tinha pensado nisso. Pierre sentou-se à cabeceira da cama, junto de Eva, e afastou-lhe os cabelos louros do rosto sereno. Viemos numa corrida desde a Étoile até aqui, pelo caminho mais longo, pois eu pensei que enquanto andasse a meu lado não lhe ocorreria a ideia do suicídio. As coisas que eu lhe contei... Para a impedir de pensar!
E agora?
Está a dormir.
Mas depois, pateta?
A senhora Beugnon sentou-se com cuidado numa cadeira colocada diante dum cavalete, pois conhecia o mau estado do mobiliário. Atrás dela, o cavalete ostentava um estudo de nu, a carvão, uma sílfide de longas pernas, numa posição um pouco inclinada, que lembrava, dos pés à cabeça, o arco tenso de Eros. Isso era..., Monky...
A senhora Beugnon fez um gesto com o polegar, por cima do ombro:
Tencionas pintá-la como a esta puta?
Monky, no fundo, é boa rapariga.
Que me importa isso! Ela é uma insolente!
Não...
Não, o quê? rosnou, ameaçadora, a senhora Beugnon.
Não, Eva não me servirá de modelo para nus... Aliás, não sei se alguma vez chegarei a pintá-la.
E se tal acontecer, será como Nossa Senhora!
Mãezinha Beugnon, isso também é um exagero! Pierre levantou-se. Eva, toda enrolada sobre si mesma,
tinha-se atravessado na cama, ocupando-a a toda a largura. Dormia como uma criança e parecia que, a qualquer momento, iria chuchar no polegar.
Bem vê, eu não sei nada dela continuou Pierre, ela não trazia qualquer mala, nem carteira... nada!
O que é compreensível, se queria atirar-se do Arco do Triunfo. Mas ela deve viver em qualquer lado, alguém deve estar preocupado com a sua falta, os seus vestidos estão pendurados algures, num armário. Tinha conhecidos, amigos, talvez até um amante...
Evidentemente! Alguém lhe fez o filho! respondeu Pierre.
A senhora Beugnon reagiu a estas palavras com um resmungo irritado.
Não lhe fizestes perguntas, não foi? prosseguiu ela.
Não. Com certeza que ela falará, depois de dormir.
”E fugirá, pensava ele, ”é o que vai acontecer. Vai agradecer-me, prometer que não pensará mais na morte, dirá que se tornou razoável, sim... e depois... ir-se-á embora. Quem poderá impedi-la? Um dia nasce, depois passa... e muitos seres humanos são apenas uma luz fugaz na continuação dos dias que se sucedem uns aos outros.”
Devias ficar com ela junto de ti concluiu a senhora Beugnon, como se lhe adivinhasse os pensamentos. Por vezes, a sua intuição chegava a assustar.
Aqui? Pierre lançou um olhar em redor. Pela primeira vez, saltava-lhe aos olhos a miséria da sua instalação. De belo, havia apenas aquela janela através da qual se via o céu de Paris e a chaminé da casa vizinha. ”Condizem um com o outro”, reconhecia-o agora. E, por fim, disse: Senhora Beugnon, já lhe devo nove meses de aluguer.
Dez. Mas não discutamos isso agora.
Não posso sustentar Eva!
Só terás de mexer-te um pouco mais. Trabalho é coisa que não falta em Paris.
Quem sabe se ela aceitaria? Quando acordar, verá a sua existência sob um ângulo diferente, pessoal.
A senhora Beugnon apoiou os cotovelos nos joelhos afastados e pousou a cabeça nas mãos fortes.
”O que a gente faz, quando é preciso, meu rapaz”, pensava ela. ”Quando perdi Amaury, nem hesitei... Lavei escadas e transportei de noite os grandes cestos cheios de roupa, no meio do vapor das lavandarias. Naquele tempo, ainda não havia máquinas de lavar, que vieram modificar tudo... Eu não nasci com estas grossas mãos vermelhas, meu rapaz... devo-as a cinco anos de barreias, mas, ao fim desse tempo, atingi o meu fim! Esta casa da Rua Princesa estava à venda e, quando fiz a aquisição, o executor da herança beijou-me, porque eu era o vigéssimo segundo comprador que se apresentava e todos os outros tinham fugido logo. Eu comprei a barraca, mas ninguém sabe que a casa me pertence... Eu alimento a lenda segundo a qual um ricaço a mantém como recordação duma jovem que amou debaixo deste tecto. Esta história agrada muito. As rendas são depositadas em meu nome, no Credit Lyonnais, e eu, perante os locatários, sou a porteira. Julgas tu que eu poderia deixar passar em branco dez meses de renda se tivesse atrás de mim um senhorio? Mas estes cabeças de vento não se dão ao trabalho de pensar!
O que é que ela faz? perguntou a senhora Beugnon, de repente.
Pierre estremeceu, pois estava justamente a pensar na maneira de procurar Eva, se ela, na verdade, se fosse embora.
É estudante e tinha tenções de ser professora, mas actualmente está a preparar-se para obter um diploma de línguas românicas.
Uma intelectual! suspirou a senhora Beugnon. Não será fácil pô-la a fazer outra coisa qualquer! Mas o retrato daquela puta que está atrás de mim tem mesmo que ficar ali?
Porque não?
Ela poderia assustar-se...
Não há nada de mais natural do que um pintor executar trabalhos académicos!
Ela poderia julgar que tu só pintas rabos!
Se pensa assim, minha senhora...
Ele levantou-se, tirou a tela do cavalete e substituiu-a por uma pintura completamente pronta. Era o que mais havia nas paredes do sótão. Esta, era uma paisagem cheia de sol... o sol, que lhe fazia sempre recordar a sua jovem mãe.
Devias começar imediatamente continuou a senhora Beugnon.
O quê?
A ganhar dinheiro. Ou tencionas ficar agarrado a essa cama a vê-la dormir? Isso não dá nada.
Tenho... tenho medo disse Pierre, numa voz angustiada.
Do bater das portas?
Medo de que ela tenha desaparecido quando eu voltar.
E a porteira, para que serve, meu casmurro? A senhora Beugnon indicou-lhe a porta, e, com ar severo, disse:
Vai ter com o senhor Callac e leva-lhe três quadros... Nada de paisagens, só retratos!
Callac! Acha que sim?
Pierre hesitava. A galeria de Marius Callac, no cais de Montebello, era conhecida pelas suas exposições de pintores modernos em voga. Quem tivesse uma obra na montra de Callac estava lançado, e quem expusesse um quadro na sua galeria tinha subido o primeiro degrau da escala do sucesso. Mas também aquele que tivesse sido recusado por Callac podia mudar de ofício, sem qualquer hesitação. Os olhos de Callac nunca se enganavam. Pierre de Sangries já tinha sido recusado três vezes por Callac.
Dá-lhe cumprimentos meus. Vá, cala-te, pega nos quadros e põe-te a mexer! A senhora Beugnon bateu com a palma da mão nos joelhos: Se queres ter êxito, não comeces pelo Marche aux Puces!
Pierre escolheu três cabeças de camponeses que retirou duma pilha de quadros e atou-os, com um fio. Depois, deteve-se, indeciso, no limiar da porta.
O que é que temos ainda? perguntou a senhora Beugnon.
Posso ficar descansado quanto a Eva...
Já embora! exclamou a senhora Beugnon. Se dizes mais alguma coisa, considero-me insultada!
Depois, ficou sozinha com Eva, que olhou em silêncio, tão intensamente que aquele belo rosto adormecido depressa se confundiu no seu pensamento com outro rosto, que o espelho lhe mostrava todos os dias, há muito tempo.
Ela tinha a tua juventude. murmurou a senhora Beugnon, mas os cabelos eram negros como ébano, parecia que eram untados todos os dias. Era a rapariga mais linda do Quartier Latin... Mas, o que acontece às raparigas bonitas? Vão dando a cada homem um pouco da sua magia, até ao dia em que dela já nada mais resta...
Ela levantou-se sem ruído e dirigiu-se para a cama para cobrir Eva. Foi então que o seu olhar foi atraído pelo vestido rasgado e colado, em que ainda não tinha notado, e atribuiu aquela desordem a uma terrível luta contra a morte. Pierre não era rapaz que rasgasse o vestido duma rapariga por outras razões.
Deves ter mãe... disse ela, quase com severidade, e mesmo sem mãe ninguém está inteiramente só, se desejar que o compreendam. Ir atirar-se do cimo do Arco do Triunfo porque se ficou grávida! Se todas as raparigas que ficam grávidas contra a sua vontade fizessem o mesmo, choveriam nos passeios, como os ouriços dos castanheiros no Outono.
Depois, silenciosamente, dirigiu-se para a porta, saiu e rodou o puxador devagar. Lá em baixo, sentou-se à mesa da cozinha. Pela porta do seu cubículo, que ficara aberta, via a escada da casa. Foi então que a senhora Beugnon desdobrou o jornal, para continuar a leitura do folhetim do romance que tanto lhe agradava.
Nem sequer um percevejo, por mais achatado que fosse, conseguiria escapar à sua vigilância.
Meia hora depois, a campainha do telefone tocou no cubículo da senhora Beugnon. Era Marius Callac, o qual, sentado no seu exíguo escritório, fungava com nervosismo antes de pronunciar cada palavra.
Pense antes de falar, por favor! disse-lhe a senhora Beugnon, do outro lado do fio, à maneira de aviso. Eu sabia que me telefonaria, Marius!
Celeste, em nome da nossa velha amizade, permita-me que lhe pergunte quem é o maldito animal que acaba de me aparecer aqui com uma recomendação sua?
Marius Callac pertencia ainda à geração que sabia que a senhora Beugnon se chamava Celeste e fora a dona do rosto mais radioso, coroado por pesadas tranças cor de asa de corvo, sobrepujando um corpo longo, esbelto e gracioso, cerca do ano de 1913... num mundo distante, em que os transportes públicos chiavam, puxados por cavalos, em que os automóveis circulavam ruidosos e estranhos, em que os cavaleiros passeavam os seus chapéus altos, tudo isto envolvido na enganadora sedução duma paz sem fim.
Este fanfarrão, que é, pelo menos, pretensioso, diz que se chama Pierre de Sangries. Callac fungou mais uma vez. Só a sua recomendação, Celeste, me impediu de o pôr a nadar pela quarta vez! Colocou três ”cabeças de camponeses” em cima do meu balcão! Incríveis! Ao olhar para elas, julgar-se-ia que ele aprendeu a pegar nos pincéis por correspondência! Celeste, estou indignado: trata-se de alguma brincadeira?
Então, compre esses quadros, Callac replicou, impávida, a senhora Beugnon.
Se eu comprasse aquelas porcarias, teria que cuspir no primeiro espelho que encontrasse pela frente!
Ofereça a Pierre cem francos por cada um dos quadros!
Celeste! Apesar de tanto amor a que você não correspondeu, não sou um fantoche que possa ser manobrado dessa maneira!
Vamos, sejam trezentos francos, Marius! Amanhã, depositarei essa quantia na sua conta!
Que loucura! Não me leve a mal, Celeste, mas porque é que não dá você mesma esse dinheiro a este borra-botas!
Porque é preciso que ele julgue que vendeu alguma coisa!
E logo a mim! Para ele se gabar disso! Fique sabendo que isto vai prejudicar-me imenso!
Pierre é um génio cujo valor você ainda não reconheceu!
Génio? Um génio? Então ele disfarça-o muito bem!
Marius, sou eu quem lho diz. Fixe este nome: Pierre de Sangries. Ficaria zangada consigo se você o reconhecesse demasiado tarde!
Eu já cheguei tarde uma vez, Celeste: se, em 1914, nós...
Isso já passou, Marius. A senhora Beugnon sorriu e no seu rosto passou um relâmpago de graciosidade, o que acontecia raras vezes. Dê então os trezentos francos a Pierre, o que vai alegrar o seu coração e alargará o seu horizonte tão longe como o pego azul de Vaccarès!
Porque é que refere essa paisagem, Celeste? perguntou Callac, em voz comovida.
O pego de Vaccarès, na Camarga, o sol, o céu e o mar infinitos, dois dias antes da declaração da guerra... Um amor que desabrochara entre os tufos de ervas que cheiravam a sal. Quando a guerra acabou, aquela paixão dos anos perdidos usava já o nome de Celeste Beugnon de Birague.
Meu Deus, pergunto a mim mesmo porque é que não desempenha há mais tempo o papel de anjo-da-guarda em relação a este deplorável Pierre de Sangries.
Porque Eva ainda não tinha aparecido, Marius.
Não tinha aparecido... Eva? repetiu Callac, desorientado.
”Pobre Celeste”, pensou ele imediatamente, ”é a idade que a faz variar, pois ela já tem os seus sessenta anos feitos. Mas aqueles impiedosos cabelos vermelhos baralham os anos, de tão surpreendentes que são!”
Não percebes nada disto, Marius retomou a voz, do outro lado do fio. E até riu, o que mais desconcertou Callac. Ao menos uma vez, aprende a ser um anjo bom e tenta fixar o nome de Pierre de Sangries! Ele tem semelhanças com Van Gogh.
E ela desligou o telefone, antes que Callac tivesse tempo de protestar. A senhora de Beugnon afirmava que se ”dizem ou escrevem demasiadas coisas inúteis e é por isso que se perde aquilo que verdadeiramente conta”.
Eva acordou por sentir frio.
E, no entanto, não era a frescura exterior que provocava os arrepios que lhe sacudiam o corpo todo; era o relaxamento dos seus nervos que tinham sido tão violentamente postos à prova. Puxou a roupa até ao queixo, encolheu-se, com os dentes a baterem, e deixou-se agitar pela corrente glacial que a percorria. Ignorava o que poderia pôr termo àqueles tremores, mas pensava: ”Vou morrer! O meu coração não vai aguentar! Tenho o sangue gelado! Sinto frio porque o meu coração já não bate.
Quando este frio chegar ao cérebro, tudo acabará, tudo.” O facto de conseguir pensar não lhe causava espanto. Mordia os lençóis, escondia a cabeça na almofada e fachava os olhos. Mas a corrente glacial durou pouco tempo e sucedeu-lhe um grande cansaço, agradável, em certa medida, estranho, como se o seu peso aumentasse lentamente. Ela ergueu os olhos para o tecto inclinado e o seu olhar deteve-se na grande vidraça por detrás da qual se via o céu, dum azul cerúleo, mas cortado em dois por uma chaminé de tijolo sobre a qual volteava preguiçosamente um catavento enferrujado.
As paredes estão forradas de jornais, observou enquanto aspirava o cheiro das tintas a óleo e o odor já arrefecido dos cigarros escuros que flutuava na atmosfera do quarto. ”Mas está ali um cavalete, uma tela que representa uma colina sob um céu dourado. Parece que a colina está coberta de vinha. Será na Provença? Onde estou eu?” E a rapariga nem se atrevia a mexer-se, com receio de voltar a sentir aquele frio terrível. ”Será este o quarto de Pierre?”, perguntava a si mesma. ”Quem me trouxe para aqui? A mulher ruiva... comi qualquer coisa, não me lembra o quê... e até bebi café, pelo menos senti-lhe o aroma, que me pareceu excelente. Else, onde está esse café?, berrava Hubert Bader no fim da refeição tomada em família. E obrigatoriamente bebia duas chávenas de café e um conhaque, graças ao qual os negócios se lhe apresentavam risonhos durante toda a tarde.”
”O café no terraço de Saint-Cloud... catorze rapazes trocistas e atrevidos que a apalpavam e a voz insolente dejulien, que gritava: Mamã, esta menina é muito desembaraçada! A criança vai com certeza ser um campeão... Deixe-me morrer! Peço-lhe... peço-lhe... ah! Não se pode ser mais ingénua...”
Puxou a roupa sobre a cabeça e ficou à espera de que o coração parasse, mas ele continuava a bater, parecia até acalmar-se, já podia respirar mais profundamente e sentia-se melhor, estirando-se naquele leito desconhecido. Novamente o cheiro da tinta, da madeira envernizada, de fumo arrefecido, enchia as suas narinas, enquanto a feia chaminé a olhava através da janela de vidro, como se fosse uma criatura agressiva e cheia de curiosidade, com um chapéu alado.
Entretanto, lá em baixo, Pierre acabava de entrar. Com os braços carregados de sacos de plástico, transpunha o limiar a dançar e a assobiar e corria a depositar um beijo na crina leonina da senhora Beugnon.
Beugnon querida! exclamou ele, pousando a sua carga de embrulhos, ainda há milagres neste mundo! Callac comprou-me três quadros! Pagou a dinheiro, trezentos francos! O que me diz a isto? As minhas cabeças de cus-cor-de-terra! Meu senhor, disse-lhe eu, não sei o que o inspira... mas, se os meus três camponeses agradam aos seus olhos, faria bem em dar uma olhadela ao resto das minhas obras! Mas ele não respondeu, meteu-me o dinheiro na mão e empurrou-me para fora da loja. Está a ficar velho, o bom Callac! Noutros tempos, teria encarado os meus quadros como insultos à sua pessoa!
E a seguir foste esvaziar um supermercado! disse, com severidade, a senhora Beugnon, pensando ao mesmo tempo que ele era mais honesto para consigo próprio do que ela teria suposto. Sabes porque não insisti para que Callac se interessasse pelos teus quadros? Porque há-de vir um dia em que as paisagens que fazes serão pagas por mil vezes mais do que Callac te deu hoje! O que compraste?
Vinho, pasta de carne, um frango, um queijo, caviar...
Pierre, estás maluco!
Vamos festejar, querida mamã Beugnon!
Por causa dos trezentos francos?
Só Callac vale um fogo de artifício!
Sentou-se à mesa da cozinha, rodeou com os braços o monte de volumes e apertou-o contra o peito, amorosamente.
E também por causa de Eva... sabe... continou, com severidade, porque ela consente em viver de novo. Três quadros comprados por Callac! Minha senhora, penso que Eva me dá sorte.
Se julgas isso, é bom, Pierre concordou a senhora Beugnon, levantando-se com um suspiro. Talvez ela já tenha acordado acrescentou. Vou acender o forno para assar a preciosa criação que trouxeste.
Sem fazer ruído, Pierre abriu a porta do sótão e meteu a cabeça lá dentro. A cama estava colocada numa espécie de pequena alcova e não podia ver-se da porta, tanto mais que havia uma cortina a dividir o aposento em dois, para isolar um discreto espaço para as lavagens. Como nada se mexesse, avançou, nas pontas dos pés. Num canto havia um velho fogão eléctrico, em cima duma mesa que balouçava. Ao lado, saía da parede uma torneira, que gotejava sempre, há mais dum ano. Por baixo dela, e colocada no lava-loiças improvisado, estava uma tigela de esmalte já lascado em vários pontos, que recolhia as gotas que caíam com intervalos regulares, provocando um ruído metálico. Pierre já estava tão habituado àquele som insistente que certamente se sentiria incomodado se deixasse de o ouvir. Mergulhou as mãos nas algibeiras do casaco e retirou de lá algumas caixas de conserva, que colocou cuidadosamente sobre a mesa de ferro pintado na qual se encontrava o fogão. Depois, do bolso interior, tirou meia garrafa de vinho ”rose” da Provença, que considerava um verdadeiro luxo.
Não vale a pena andar nos bicos dos pés! Não estou a dormir! disse Eva.
Pierre voltou-se, ligeiro, e pôs a garrafa de vinho debaixo da torneira aberta, para o refrescar.
Como se sente? O que poderia perguntar-lhe, sem ser isto?, pensou.
Melhor respondeu ela.
O dia está quente, lá fora, demasiado quente para Setembro.
Mas aqui está frio.
A janela é virada a norte. Um pintor deve receber a luz de norte...
Porquê?
Porque a luz é mais clara.
Mas você pinta como se tudo estivesse inundado de sol. A conversa morreu. Ele abriu uma lata de pasta de carne,
foi buscar um prato e uma faca, meteu uma colher de café na pasta e sentou-se junto à cabeceira de Eva.
Sirva-se disse ele.
Assim, com a colher? Isso não é muito gordo?
Não sei. Encolheu os ombros, enquanto ela pousava o prato sobre a cama. E, de repente, perguntou: Onde é que tem as suas coisas?
Ela estremeceu, e novamente a boca adquiriu uma expressão severa.
Vou comprar outras disse ela, depois dum momento de silêncio.
Então, tem dinheiro?
Hei-de ganhá-lo.
Onde viveu até agora, Eva? Talvez pudesse recuperar as suas roupas! Tudo o que lhe pertence!
Nunca mais entrarei naquela casa! disse ela, com uma precipitação arquejante.
Trata-se, então daquele... homem? perguntou Pierre, que, sem o conhecer, começava a odiá-lo.
Também se trata dele.
Você vivia com ele?
Não.
Não quer contar-me nada?
Para quê? Já acabou.
Mas os seus pais, na Alemanha? Você ainda tem pais?
Eles não devem saber de nada. Nunca!
São assim tão burgueses?
Pelo contrário, até são muito evoluídos. Ela ergueu-se para a cabeceira da cama, apoiando-se à parede, e envolveu-se na roupa: É outra coisa, Pierre. Eu disse-lhes que me arranjaria sozinha! Sou forte e hei-de lutar para vencer. Não se preocupem. Mas o que aconteceu foi isto: não consegui o que queria, e o que é que me resta da antiga força? E eu não sou do género de me encostar à piedade dos outros.
Você fala como se tivesse cem mil anos!
As vezes, sentimo-nos tão velhos como isso!
A senhora Beugnon está a assar um frango para nós continuou Pierre. Creio que ela está à espera de que você fique por cá.
Ela sorriu, com uma certa tristeza, e deixou vaguear o olhar pelo quarto. Pierre compreendeu o que ela pensava e pousou o prato com a pasta de carne no chão.
Vou fazer aqui muitas mudanças disse ele. Em primeiro lugar, precisamos doutra cama, de dois assentos... bancos de abrir, por exemplo, uma mesa e, se você quiser, um tapete, eu pinto um no soalho... Ele seguiu o olhar dela e continuou: Quanto às paredes, já me deram muito que fazer. À esquerda, temos, na íntegra, O Medo de Viver, de Bordeaux, falta-me só o décimo sétimo folhetim, se calhar serviu para acender o lume. À direita, junto da janela, é o domínio da política. Ah! São sempre as mesmas mentiras, as mesmas promessas, os mesmos insultos! Só os políticos é que mudam. Por cima da sua cama, situam-se as variações da Bolsa, das quais não sei o que fazer... porque não tenho sucesso suficiente na minha arte para me preocupar com isso. Explique-me lá porque é que Picassso é um génio sublime quando pinta um olho no lugar do umbigo e é considerado um pintor de segunda se pintar um campo de trigo onde nos apetece deitar para sonhar um pouco?
Ele calou-se. Para quê dizer todas aquelas coisas? pensava ele. Que interesse poderia ela ter naquilo? Eva já ultrapassou o choque e vai levantar-se agora e dizer-me: ”Pierre, obrigada por tudo, mas agora tenho de ir-me embora...” E ninguém terá o direito de retê-la.
Creio que poderia sentir-me bem aqui disse ela, subitamente.
Pierre cruzou as mãos atrás das costas, sentia-se tão desesperadamente idiota que elas lhe tremiam sem que conseguisse dominar-se.
Eva, o que foi que disse?
Que hei-de ler o romance da parede do lado esquerdo desde o princípio ao fim.
Ev...
Ele quis agarrar-lhe as mãos, mas ela escondeu-as apressadamente debaixo da roupa.
Só queria agradecer-lhe, Ev, você dá-me sorte. Estive hoje na loja de Callac...
Ela saltou da cama, espreguiçou-se e passou os dedos, abertos, pelos cabelos.
Penso que poderia dar lições de alemão.
Aqui? Em Saint-Germain-des-Prés?
- Ponho um anúncio ou então irei trabalhar numa loja num gabinete de traduções ou até num jardim de infância Há tantas possibilidades! Não quero que você pense que tem a obrigação de me sustentar só porque me impediu de me atirar do Arco do Triunfo.
Ev, não vamos falar nisso nunca mais disse ele. Vamos esquecer aquele momento. Promete?
Ele estendeu-lhe a mão. Ela hesitou e olhou para a palma da mão dele, aberta, como se fosse ler o futuro num espelho.
Isso acabou, Ev, tem que compreender continuou Pierre, a meia voz, acabou.
Não, vai crescer dentro de mim, durante nove meses.
Havemos de saber enfrentar também essa situação, Ev. Ela respondeu por um breve sinal de cabeça e pôs a mão na dele, para logo a retirar, como se tivesse sentido uma queimadura. Depois, aproximou-se da janela e olhou o mar ondulante dos telhados de Paris. Era uma floresta de empenas, de chaminés, uma confusão de varandas trabalhadas, de vasos de flores, de cortinas enfunadas pelo vento, sem esquecer os ninhos dos pombos, os múltiplos excrementos, as antenas de televisão e as cordas estendidas para estender roupa. Numa pequena varanda de ferro, no segundo andar da casa que ficava à esquerda, estava uma rapariga estendida ao sol, toda nua, em cima duma toalha de banho vermelha. Parecia que estava a tomar banho em sangue. À direita, uma velha regava uma mistura de gerânios de várias cores, que se destacavam contra parede estragada.
Chama-se Castelo da Aurora disse ela, baixinho, numa voz branda, infantil, que fazia doer. É em Boulogne, a casa de Fernand Chabras...
O magnate dos produtos químicos?
Sim.
O velho?
Não, o filho, Julien.
Vou buscar as suas coisas, e quanto ajulien, parto-lhe a cara!
Ele é mais forte!
Sei alguns golpes de judo, bastante eficientes. Fui criado entre hienas...
E o que ganha com isso, Pierre?
Ela voltou-se e sorriu, mas os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
Parto-lhe os ossos! berrou Pierre. Ev, não chore, suplico-lhe, não quero que chore na minha casa. Hei-de partir a cara a todos os que a façam chorar!
Dirija-se a James, o mordomo, ou a Babette, a governanta. Não ganhará nada em andar à pancada com Julien!
Eva tentou arrancar o tecido colado à pele do peito, mas não conseguiu e ficou com uma comichão terrível.
O tecido está colado à minha pele disse. Que cola é esta?
É uma cola insolúvel na água.
Mas com certeza que se pode tirar?
Penso que sim, mas como?
Pelo vão da escada chegou até eles a voz tonitroante da senhora Beugnon, que, de pé na entrada do rés-do-chão, rugia, com a cabeça atirada para trás. Os seus gritos chegavam ao sexto andar, como se viessem através dum amplificador.
O frango está pronto! Desçam!
Não tenho fome nenhuma disse Eva.
Não faz mal, Ev... Pierre deu-lhe o braço e conduziu-a para a porta. Temos de ir comer, senão ela sentir-se-á ofendida no mais fundo do seu coração.
Naquele mesmo dia, depois do almoço, Pierre encontrou-se diante do portão de ferro, de desenho complicado, do Castelo da Aurora. Naquele momento, fora aberto pelo mecanismo eléctrico comandado do castelo, que manobrava os batentes pesados. Ao cimo da avenida coberta de gravilha, por detrás dum tufo de árvores, rugiu um motor, e depois apareceu um ”Maserati” amarelo limão, que se lançou velozmente para a saída.
Pierre deu graças à sorte que tão rapidamente o colocava perante o adversário e pôs-se no meio da avenida, de mãos nas algibeiras. O ”Maserati” travou e parou a um metro dele, depois de ter buzinado três vezes, sem resultado. Uma cabeça de cabelos castanhos e rosto bronzeado debruçou-se na janela, para encarar Pierre.
Se eu não preferisse o meu carro à sua carcaça tinha-lhe passado por cima! gritou o condutor.
Perfeito! exclamou Pierre, enquanto fechava os punhos dentro dos bolsos.
”Eva”, pensava ele, com tristeza, ”Eva! Como é que alguém pode apaixonar-se por isto! Será possível que tenhas querido matar-te por causa disto!”
Saia daí, idiota!
Pierre não se mexeu e perguntou, com exagerada cortesia:
O senhor é que é Julien Chabras?
Julien era incapaz de adivinhar o perigo nas inflexões daquela voz.
Quem havia de ser? respondeu, grosseiramente.
Julien era alto, bem constituído, um verdadeiro desportista, Pierre acabava de o constatar. ”Vamos”, pensou ele, ”primeiro duas bofetadas e um directo da esquerda... um outro na face direita e depois uma rasteira...”
O que é que quer de mim? gritou Julien, que se aproximara, entretanto.
Naquele momento, James saía de casa, seguido por dois buldogues, mas Pierre não podia vê-los.
Tenho um recado para si disse ele a Julien, e vou entregar-lho com todo o prazer!
E avançou.
Julien Chabras, estendido no chão, olhava com espanto o homem que o esbofeteara e socara inesperadamente. Quis levantar-se dum salto, por mero reflexo contra uma situação absolutamente aberrante, mas o segundo impulso veio com a inverosímil conclusão de que o tinham deitado ao chão, a ele, Julien Chabras, sem razão aparente, só para gozo do patife que estava de pé diante dele.
Levantou as pernas, mas Pierre, habituado aos golpes de resposta, pois durante oito anos de vida errante tinha tido tempo de adquirir uma formação exemplar nesse domínio, retorquiu com um sorriso zombeteiro:
Fica onde estás! Antes que te pusesses em pé já estavas no chão outra vez!
Quem é você? gritou Julien Chabras. A humilhação que sofria devorava-o como se fosse um ácido corrosivo. Você é doido!
Deixe-me que lhe diga continuou Pierre que há uma distância tão grande como daqui à lua entre fazer um filho e reconhecer-lhe a paternidade!
Olha! Então é isso! articulou Julien, ofegante. Você é o novo amante de Eva? Parabéns! É o décimo quinto papá...
Julien fez uma careta de maldade e quis levantar-se, mas Pierre pôs um pé sobre a mão direita de Chabras, que é um golpe malvado como tudo... Fazendo força por meio duma pressão da anca, magoava a mão de Julien regulando a dor que causava, o que podia ir desde a simples pressão de defesa até ao apoiar forte do calcanhar nas costas da mão.
Chabras compreendeu logo que precisava de ganhar tempo e continuou estendido. Tinha esperanças de que em casa se apercebessem de que algo de anormal se passava junto do portão. De qualquer modo, deviam ter-se apercebido de que não tinham sido dadas as duas buzinadelas habituais que constituíam o sinal para fecharem o portão.
”James vai chegar dum momento para o outro,” pensava Julien, ”e se ele trouxer os cães...”
O que quer dizer com esses quinze? perguntou Pierre.
Então ela não lhe contou? Julien dilatou as narinas. Pierre intensificou a pressão. Você refere-se a uma criança que dizem ser meu filho, não é? E eu tenho catorze amigos que, sob juramento, poderão testemunhar que, na época em causa...
Calou-se e apertou os lábios. Pierre apoiou o calcanhar que fez estalar os ossos da mão prisioneira. Uma dor infernal atravessou Julien, mas este aguentava bem, só a fronte se lhe inundava de suor.
Porco! disse Pierre, em voz rouca Repelente criatura! Foi assim que deste cabo dela? Evidentemente que ela não podia lutar contra ti! Catorze porcos, meninos-família cúmplices, prontos a jurarem fosse o que fosse... Merecias que eu te desse cabo do focinho!
Vindos da casa, ouviam-se latidos. ”Os cães de guarda!” pensou Julien radiante. ”James vem aí! A situação vai mudar, patife, e daqui a um minuto terás que te safar para salvares o cu!”
E Julien, bruscamente, pôs-se de lado e rebolou até ao pé do seu Maserati, dando um violento encontrão contra a perna de Pierre. Esta reacção deu efeito, pois Pierre não a esperava. James! berrou Chabras Solte os cães! Os cães! E assobiou aos cães, numa nota aguda que eles compreenderam imediatamente. O seu ladrar tornou-se frenético e Pierre viu-os então... dois longos corpos esguios, fulvos, que corriam como duas flechas.
Esta partida está perdida, observou para consigo, rápido como um relâmpago. Agora, posso fugir sem me envergonhar.
Eu voltarei, Julien! gritou ele. Não te hei-de largar, hei-de agarrar-me a ti como um piolho!
Então, deu uma reviravolta e desatou a fugir antes que os dois cães tivessem chegado até ao ”Maserati”.
Até à vista! berrou Julien. Serás sempre bem recebido!
Depois, torceu-se de riso enquanto Pierre corria como nunca o fizera na vida, perseguido pelos cães que só pararam quando ele conseguiu apanhar um táxi que estava estacionado junto da estrada que ladeava o Sena. O motorista abrira completamente a porta e fazia-lhe sinais com os dois braços.
Isto podia ser sério disse o homem. Aqueles malditos animais tinham um ar feroz! Donde é que eles vinham?
E batera com a porta logo que Pierre se atirou para dentro do carro. Os cães, que tinham ficado indecisos junto do táxi, fitaram na sua presa, já fora do seu alcance, os olhos injectados de sangue e depois, em passo descuidado, afastaram-se dali e desapareceram entre os arvoredos.
Nem o motorista do táxi, nem Pierre ouviram James assobiar aos cães. A respiração ofegante de Pierre era tão ruidosa que abafava qualquer outro som.
Devíamos chamar a polícia disse o motorista do táxi, mas o senhor fez mal em fugir à vista dos cães, pois isso excitou-os ainda mais; nestes casos, o melhor é ficar no mesmo sítio.
Da próxima vez! disse Pierre, com um sorriso amargo. ”Ele bebera”, pensou, ”e teria rido na mesma se os cães
me tivessem despedaçado! Quer seja Eva, eu, ou outra pessoa, um ser humano não conta para ele! Os seus advogados hão-de sempre levar a melhor e, sem falta, apareceriam logo catorze testemunhas que jurariam que eu provoquei os cães.
Não se pode enfrentar um Chabras!”
Aceitou o cigarro que o motorista lhe estendeu, acendeu-o e cortou o filtro com os dentes.
Aquele riso horrível não lhe saía dos ouvidos, aquele riso que parecia ter garras.
Quer que o leve a algum lado? perguntou o homem.
Não, obrigado, eu vou a pé.
Pierre abriu a porta e agradeceu-lhe também o cigarro.
Está a tremer? disse o homem.
Já passa... tudo vai passar...
Ergueu a mão, numa última despedida, e afastou-se na direcção do Bosque de Bolonha.
O motorista de táxi rodou ainda devagar, a acompanhá-lo, como se esperasse que ele caísse, mas quando Pierre o olhou e sorriu, abanando a cabeça, ganhou velocidade e desapareceu rapidamente.
Numa loja de novidades do boulevard Haussmann ele dera-se ao luxo de ir de metro até à Chaussée dAntin, comprou dois vestidos para Eva; eram baratos mas de cores alegres. A empregada, que tinha aproximadamente a estatura de Eva, pô-los na frente, para que ele pudesse apreciá-los melhor. Pierre achou que eram lindos e desejou que Eva pensasse do mesmo modo.
Transportando um grande saco de plástico cor-de-rosa, dirigiu-se então para a margem esquerda e, com o coração sobressaltado, subiu o passeio da Rua Princesa.
A senhora Beugnon era capaz de conseguir prodígios, na Rua Princesa ninguém tinha dúvidas acerca disso. Mas para ela conseguir descolar do peito de Eva o emplastro de tecido colocado por Pierre sem ferir a pele delicada seria preciso um passe de magia.
Uma ideia destas só podia ser tua! atirou ela a Pierre, quando este apareceu no seu cubículo-cozinha, com o saco cor-de-rosa.
Ele não entendeu logo a que se referia a senhora Beugnon, só quando viu um pedaço de tecido tricolor que flutuava dentro duma tigela de esmalte é que percebeu. Um cheiro qualquer feriu-lhe as narinas, era um dissolvente bastante incomodativo.
”Este soluto era também a minha única esperança de descolar aquele emplastro”, disse ele para consigo, ”mas não tive a coragem de o utilizar! Como reagirá a epiderme de Eva?”
Fiz-lhe um penso com uma pomada calmante para o peito disse a senhora Beugnon, como se tivesse lido o pensamento dele. Depois, estendendo o dedo indicador para o saco cor-de-rosa, com um olhar severo, acrescentou: Que mais inutilidades é que tu compraste?
Dois vestidos para Eva.
Julgava que ela tinha um armário cheio deles no seu maldito Castelo da Aurora!
E tem, mas estão guardados por dois cães ferozes!
Cães ferozes?
Julien Chabras soltou-os para me perseguirem!
E tu fugiste, hem? Ah, esta juventude medricas!
A senhora não faria outra coisa.
Eu? Ela ergueu as mãos que pareciam pás: Eu tinha-lhes torcido os pescoços! Um com cada uma das mãos!
E alguém que olhasse para a senhora Beugnon de Birague, naquele instante, ficaria convencido de que ela teria conseguido fazê-lo. Pierre deu um suspiro e pegou outra vez no saco de plástico cor-de-rosa que pousara sobre a mesa.
Eva está lá em cima?
Onde é que havia de estar? Os teus amigos estão lá, em volta dela, como se fosse uma rainha.
Mas Deus! Não podia impedir isso? gritou Pierre.
Agarrou rapidamente no saco e correu para fora do cubículo como um homem que leva o diabo no seu encalço. Mas, logo nos primeiros degraus da escada, chegou até ele, vindo do sexto andar, o riso de Eva. Parou, estupefacto, e susteve a respiração: uma voz de baixo... É Claude Puy, conhecido por Henry, o Vermelho, um poeta sem leitores e, é isso... o riso dela!
Porque ela também ri, num riso musical, irresistível... Agarrou-se ao corrimão, repentinamente feliz. ”Não subas agora”, disse para consigo. ”Se ela te vir, o seu riso extinguir-se-á. Vens da casa de julien, terás que dizer que ele te soltou os cães. Quando ela olhar para ti, as recordações voltarão e, com elas, a imagem da sua vida arruinada... Concede-lhe alguns momentos de alegria...”
Desta vez, ouvia-se a voz de François Delmare, alcunhado de ”Breviário”, estudante de Teologia, de opiniões revolucionárias, que pretendia suprimir as cerimónias de todas as igrejas e difundir o serviço divino apenas pela televisão.
O riso de Eva soou novamente: com certeza que o ”Breviário” contava uma das suas histórias picantes...
Depois, chegou até ele uma voz que era ao mesmo tempo trémula e gritante, a de Pompom, cujo verdadeiro nome ninguém sabia, mas que tinha sido homem-serpente num circo. Era zarolho e gabava-se de possuir um segredo: ”A melhor maneira de lamber o próprio...”
Pierre achou que chegara o momento de aparecer, pois Eva certamente estaria farta de tantas brincadeiras. Os meninos-velhos que povoam as noites cinzentas de Saint-Germain-des-Prés exercem somente uma sedução fugaz. Por isso, subiu rapidamente os degraus a dois e dois e irrompeu no seu estúdio no momento em que Pompom executava um dos seus números, durante o qual desarticulava o esqueleto de tal maneira que Henry, o Vermelho, comentou em voz profunda:
Se ele der um peido, acertará no crânio à queima-roupa! Eva ria, ria, sentada na cama, com os ombros cobertos por um xaile espanhol emprestado pela senhora Beugnon. Segurava na mão um copo de vinho, oferecido por Pompom, que não conseguia beber, e Pierre nunca a vira tão satisfeita.
Mas, ao vê-lo, apesar de a sua boca ainda rir, já os olhos se lhe tornavam graves e lhe dirigiam uma pergunta apaixonada.
Cá está o felizardo! gritou o homem-serpente.
O que fazem aqui? ralhou Pierre, bruscamente zangado, ao ver os miseráveis companheiros. Vamos, todos daqui para fora! E agarrou Pompom pela gola do casaco, obrigando-o a pôr-se de pé. Saiam daqui!
Pierre é o nosso melhor amigo, menina resmungou Henry, o Vermelho, dirigindo-se a Eva. Por isso, desculpamos-lhe o carácter pachorrento. É um cretino! E... como está a ver, não tem educação...
E os três acólitos, muito dignos, retiraram-se.
Pierre, porque os expulsou desta maneira? perguntou Eva, quando a porta se fechou.
Ela continuava sentada sobre a cama, com o copo de vinho na mão, e Pierre só então reparou que havia ali uma cama de campismo, além da que já existia no estúdio. Com certeza era uma iniciativa da senhora Beugnon.
Eles estavam a portar-se como macacos duma floresta do Equador. Perdoe-me, Ev, não ter evitado isto!
Achei os seus amigos muito divertidos...
São doidos.
Não são mais doidos do que você, Pierre...
Tem razão. Abriu o saco de plástico e estendeu um dos vestidos na frente dela: Sou ciumento, Ev... Não dou a nenhum homem o direito de olhar para si quando puser este vestido pela primeira vez...
Eu? Comprou este vestido para mim? Colocou o copo no chão, junto da cama. Pierre, você perdeu o juízo! Se calhar, roubou-o!
Com esta embalagem e o recibo da caixa? Não, Ev. Callac comprou-me três quadros! E isso para um artista é como se fosse a cura da cegueira para um peregrino de Lourdes!
E põe-se logo a atirar o dinheiro pela janela?
Comprei-lhe dois vestidos, Ev... Acha que isto é ser pródigo? Você deu-me sorte e... tenho esperança... de que eu também... lhe... Procurava as palavras e achava-se tão idiota que nem deu conta de que ao segurar o vestido nos braços erguidos escondia, com ele, o próprio rosto perante Eva. São vestidos muito baratos, Ev, mas devem ficar-lhe bem, tenho a certeza, e há-de vir um dia em que lhe pagarei vestidos no Yves Saint-Laurent!
Já está a dizer disparates, Pierre.
Bem sei. Aproximou-se da cama, sempre com o vestido à frente. Eu gostaria que você esquecesse os vestidos que usou até agora...
Ela compreendeu-o, estendeu a mão, afastou um pouco o tecido de algodão colorido e olhou para ele, muito séria, assim que o rosto de Pierre ficou visível:
Nada? perguntou ela, com doçura.
Nada.
Não conseguiu falar com James, o mordomo?
Não. Limitei-me a conhecer os dois cães de guarda.
Jimmy e Jacky...
Não houve tempo para apresentações!
Volte-se, Pierre!
Ela tirou-lhe o vestido das mãos e ele voltou-se e encaminhou-se para a janela. Lá fora, o crepúsculo invadia os telhados de Paris. O sol, ao lançar os seus raios em viés, provocava reflexos metálicos nos telhados de ardósia e as janelas eram como rectângulos luminosos que se assemelhavam aos olhos chamejantes dum animal apocalíptico.
Já está disse Eva.
Pierre virou-se, lentamente. O vestido estava um pouco comprido. A vendedora das Galerias devia ser mais alta; se não fosse isso, ficar-lhe-ia a matar.
Vamos pô-lo três centímetros mais curto disse Eva e o outro vestido, troca-se...
Você tem razão disse Pierre, encolhendo os ombros, devo ter tanto gosto como um vagabundo!
Os vestidos são lindos, mas gostaria de trocar o segundo por umas calças de ganga e uma camisola... Deu duas voltas ao compartimento e, de repente, voltou a tela que estava pousada no cavalete. O corpo nu de Monky brilhava à luz da lâmpada pendurada no tecto. Ou acha que eu sou do género de mulher que só pode andar bem vestida? Com o polegar, apontou o nu provocante: Ela nunca usava calças de ganga?
O que importa isso? Ele tirou a tela do cavalete e atirou-a para um canto. Monky usava os fatos mais variados! disse ele, com mau humor. Amanhã vou queimar este quadro.
Porquê? Acho-o muito belo!
Quero suprimir certas recordações... tal como você!
Não posso tirar qualquer partido das minhas recordações, Pierre, mas as suas pinturas, mesmo que se chamem Monky, constituem o seu capital.
Vou buscar qualquer coisa para comer disse ele. A conversa tomava um caminho que lhe desagradava. Peço-lhe, Ev, experimente o outro vestido... é muito diferente!
O jantar já está aqui à sua espera disse Eva, indicando a mesa, na sombra, com o pequeno fogareiro eléctrico. A senhora Beugnon teve a maçada de trazer tudo para cima...
Então, vou buscar o vinho.
O vinho também já está a refrescar no lavatório.
Ela hesitou, um pouco apenas, e desabotoou o vestido, que despiu pela cabeça e depois tirou o outro do saco cor-de-rosa. Pierre olhava-a fixamente. Ela movimentava-se vestida só com as meias-calças, as cuecas e o soutien, e eram os seus olhos de artista, não os de homem, que lhe diziam como ela era bela.
Eva enfiou o outro vestido, que era mais curto do que o primeiro e lhe moldou o corpo como uma luz solar, à claridade das duas lâmpadas eléctricas: uma chama cor de laranja.
Ficamos com ele disse Pierre arquejante, e... se você for trocá-lo, rasgo todos os meus quadros!
Não sou assim tão difícil de convencer disse ela, e passeava o olhar sobre toda a sua pessoa, enquanto as mãos acariciavam o vestido, num gesto terno de quem toma posse. Depois, fatigada, ficou com os braços caídos ao longo das ancas: Este vestido também é muito bonito, Pierre, obrigada. Hei-de pagar-lhos com o primeiro dinheiro que eu ganhar!
Se se atreve a repetir o que acaba de dizer... Depois, fizeram as honras ao jantar da senhora Beugnon.
Foi um instante de abençoada paz, que Pierre saboreou com a consciência profunda de estar a viver algo de excepcional.
Amanhã vou procurar trabalho disse Eva, de repente. Pierre olhou-a reprovadoramente e disse:
Só mesmo uma alemã pode pensar em trabalho durante uma boa refeição!
E porque não havia de pensar? Já é tempo! A que horas vai levantar-se amanhã?
Pierre viu então surgir no seu pensamento as grandes Halles de Paris e disse para consigo que na manhã seguinte iria apresentar-se lá bem cedo, para ser o primeiro a ser escolhido.
Levanto-me às três horas, Ev.
De verdade? disse ela, incrédula.
De verdade. Amanhã talvez venha a ser um dia importante para todos nós!
E nós estamos para aqui na conversa? Pierre, você tem que dormir!
Ela pôs-se de pé, num salto, rolhou a garrafa, juntou a loiça e levou-a para o lava-louça e colocou a cafeteira sobre o fogareiro eléctrico.
O que está a fazer? perguntou Pierre.
Vou lavar isto e pôr tudo nos sítios enquanto você se deita. Não gosto de deixar tudo em desordem atrás de mim e também não gosto de ser inútil!
Estas últimas palavras, no futuro, iriam ser muito importantes para ambos.
Depois, estendeu-se cada um em sua cama. Entre eles havia um espaço de dois metros e o cavalete. Pela grande janela do tecto inclinado penetrava uma claridade fraca; o céu parecia estar ao alcance da mão. Era um infinito de nuvens, de estrelas, de raios de lua, que apagava todas as coisas mesquinhas do amargo dia-a-dia.
Este é o meu refúgio a dois passos do céu... murmurou Pierre na escuridão. Quando, à noite, vejo as nuvens passarem por cima da minha cabeça, tão perto que até me parece estar deitado sobre uma delas, sou feliz, Ev, compreende -me?
Com certeza, Pierre. A sua voz tinha de novo uma inflexão infantil. É um quarto maravilhoso... Boa noite, Pierre.
Boa noite, Ev...
”Este foi o primeiro dia”, dizia ele para consigo. ”Mas o que irá acontecer? Como serão os dias seguintes, esta longa sucessão de dias... com Eva... sem Eva... E como poderia haver dias sem Eva?...”
Tarde, pela noite fora, Pierre ouviu-a chorar; não se moveu, mas cerrou os punhos.
”Que eu seja maldito” ”pensou, ”se nós não dominarmos esta situação. Ev, não chores... Chorar neste quarto é o mesmo que renunciar.”
Pierre de Sangries conseguiu um emprego num armazém nas Halles, o reino dos alimentos, onde não há tréguas, nem de noite nem de dia, porque o ventre de Paris vibra de intensa e constante actividade. Pierre sentara-se às três horas e meia da manhã diante das portas de depósito das bananas. A banana cria imensos problemas. Chega às Halles em cachos ainda verdes que são pendurados em vastas divisões que servem de estufas até tomarem a bonita cor amarela-clara que devem apresentar. Algumas vezes, os cachos amadurecem depressa e, se os frutos têm manchas, o preço diminui. O trabalho dum empregado de armazém consiste, portanto, em escolher e retirar os cachos de bananas no momento mais propício à sua venda. A escolha dos cachos dependia, de facto, mais especialmente de Robert, o mestre das bananas, primeiro caixeiro do patrão, Emmanuel Thierry. Era uma personagem saturada de cidra normanda e que, sem dúvida, percebia mais ainda de maçãs. Estava ligado ao patrão por uma velha amizade e pela Resistência. Mas Emmanuel Thierry tinha a fama de se vingar nos carregadores dos dissabores que lhe infligia o seu velho camarada, que se tornara um grande preguiçoso. Pierre, que já tinha padecido nas Halles, ao longo de outras noites, conhecia o sujeito que, enquanto o patrão não chegava, lhe explicou: ”Meu rapaz, é preciso ter o dom da banana, é como quando se lida com as mulheres, tem que se saber até onde se pode ir... e isto não se aprende! Uma banana é tão caprichosa como uma virgem que quer que a f... e ao mesmo tempo se recusa... Vamos, meu rapaz, começa e escolhe os primeiros cachos!”
Viu-se que Pierre tinha o dom da banana. Pelas 6 horas, o próprio patrão apareceu.
Quem é você? perguntou ele ao ver Pierre, que chegava, a manobrar um carrinho eléctrico carregado de cachos.
Sou pintor, senhor respondeu Pierre.
O que é que sabe de bananas?
Pintei-as várias vezes, senhor, e sempre como é devido! Emmanuel Thierry franziu as pálpebras, fitou os cachos
dourados acumulados, sem dizer palavra e pareceu reflectir.
Seria capaz de pintar um cartaz?
Com certeza, senhor.
Não é só uma banana, mas um cartaz que desperte a vontade de comer bananas! Veja se inventa qualquer coisa, mas cuidado com as indecências, não quero nada disso! Porque a banana inspira esse género de coisas... Quero um cartaz que se possa colar em todas as lojas e que dê vontade de comprar bananas. Você será capaz?
Quando é que o senhor quer que lhe traga o projecto? disse Pierre, saltando do carrinho.
Amanhã! Comigo, as coisas não se arrastam! De acordo, mestre?
Está bem, vou ficar aqui mais um pouco, em companhia das bananas, para ver se me inspiro...
Thierry fitou o seu novo empregado com ar incrédulo, tocou na testa com o indicador e afastou-se da estufa sem ter lançado aos quatro ventos os seus ”protestos” quotidianos.
Emmanuel fala para ti como se fosses alguém! Tu és educado, meu velho constatou Adolphe, e isto não é nada o costume dele!
”Eis-me a passar do grande Callac para Thierry, o milionário das Halles! É um bom começo! Será que todos eles vêem que trago Eva no coração?”, dizia Pierre para si mesmo.
O tempo mudara. A claridade matinal rompia por entre pesadas nuvens e tinha dificuldade em se impor. O Outono estava à porta, demasiado cedo para Paris, cujas avenidas retinham a plenitude dum Verão ardente cheio de sol. Algumas belas raparigas arriscavam-se ainda a um banho de sol, apesar de as árvores já ostentarem as suas tonalidades douradas, mas as folhas ainda não caíam. Era um daqueles dias que conseguiria que o mais rabujento dos hipocondríacos gostasse de Paris.
A senhora Beugnon, naquele dia muito ”de Birague, voltava cedo da sua primeira discussão matinal com o leiteiro da praça de Saint-Sulpice. Subiu os seis andares da sua casa e entrou no quarto onde Eva estava ocupada a ler o romance de Henry Bordeaux O Medo de Viver, que cobria a parede da esquerda. O aposento estava perfeitamente arrumado, limpo, arejado, as camas estavam feitas e a mesa posta e, na pequena mesinha de ferro, estava tudo preparado para o pequeno almoço. Ela esperava Pierre como se estivesse habituada a fazê-lo há anos: ele estava para chegar das Halles. Eva usava o vestido novo, cor de laranja chamejante, e tinha apanhado os cabelos no cimo da cabeça, com uma pinça de desenho que encontrara na caixa de tintas de Pierre.
Ele deve estar a chegar! disse a senhora Beugnon, lançando um olhar ao relógio, que no seu pulso gordo parecia um grão de café. Que vida, minha pobre pequena! gemeu ela, deixando-se cair na velha poltrona de pelúcia que trouxera lá de baixo para Eva.
Tinha conseguido domesticar um pouco a sua juba vermelha, dando-lhe uma forma definida, na medida do possível, o que lhe tornava a cabeça estranhamente avantajada. Outrora... quando?... ela devia ter sido lindíssima, do que ainda restavam vestígios no feitio da cabeça, na cor das pupilas, no desenho dos lábios e no nariz fino. A parte inferior do rosto também era delicada, com excepção do duplo queixo, e o seu pescoço gordo, muito empoado, tinha sido, certamente, longo e esguio. E se assim não fosse, como poderia Callac ter chamado ”meu cisne” à jovem Celeste? Mas a senhora Beugnon também tinha um gosto desmedido pelo pó-de-arroz, que usava como outras mulheres usam luvas e no qual afogava todas as suas rugas, desde as mais ténues até às irreparáveis.
Tu olhas para mim como se eu fosse um fóssil! resmungou a senhora Beugnon, estatelada na poltrona.
Estou a admirar os seus cabelos!
Estás a troçar de mim! Eles metem-te medo! Encostou-se e estendeu as pernas, umas pernas esguias, bem modeladas, que eram o último vestígio de beleza. Parecia impossível que elas conseguissem aguentar aquele corpo maciço. São um protesto, um protesto contra a idade! Estás a ver, eu queria não envelhecer nunca. Quando apareceram os primeiros cabelos grisalhos, senti isso como se fosse um castigo de Deus... e pintei-os de ruivo a cor ruiva é inatacável... Não se sabe ao certo o que fica por baixo... é uma cor que aniquila todas as outras... Mas, falemos a sério, já pensaste nalguma coisa, minha filha?
Vou procurar trabalho, minha senhora.
Tenho um emprego para ti.
Mas... isso é maravilhoso!
Tenho, sim, um emprego na loja de Marius Callac; ele ainda nem sabe, mas isso não tem importância. Há anos que precisa duma secretária e priva-se dela porque isso lhe custaria mil e quinhentos francos por mês, o que seria metade da tarifa normal, mas aquele velho avarento com certeza que conseguiria contratar uma rapariga por esse preço de negreiro. No entanto, prefere ficar no escritório até à uma hora da manhã, a escrever tudo à mão... tal como se fazia há cinquenta anos! Ele tem agora mais de oitenta anos, o idiota! E já só vê dum olho! Vai ter com ele, Ev, e tratarás imediatamente da correspondência do dia.
E se ele não quiser?
Tem que querer!
A senhora Beugnon uniu as mãos. Em cada uma delas usava um anel: na esquerda, uma esmeralda e na direita, um rubi. Estas pedras serão verdadeiras? perguntava Eva a si própria. Como é que uma pobre porteira poderia ter jóias tão sumptuosas? Quem é esta senhora Beugnon? Os habitantes da sua rua estão tão habituados a vê-la que já nem se preocupam com estas perguntas! Até o próprio Pierre não vê que ela representa uma personagem muito pouco... coerente.
Vais dizer àquele velho unhas-de-fome que já é tempo de ele dar cabo de si com mais moderação... Ah! Ele foi um cavalheiro bem janota, podes crer... mas já há algum tempo atrás... A senhora Beugnon levantou-se penosamente. Vai ter com Callac! Quanto a mim, vou a casa dos Chabras, à sua casa de passe de Bolonha!
Não! Não vá lá! Eva precipitou-se para ela e agarrou-lhe as mãos. Suplico-lhe que não vá!
Os Chabras ainda te devem dinheiro?
Eu não quero aquele dinheiro!
Não o queres? Dinheiro é dinheiro! Exigir o que nos devem não é comportar-se como uma puta!
Libertou-se das mãos de Eva; era inútil discutir com ela.
Põe a água ao lume, minha querida acrescentou ela, oiço Pierre lá em baixo, na minha cozinha e não é bom sinal se ele começa por entrar na minha casa. É um bom rapaz, é preciso dar-lhe força... eu ajudo-o como posso, mas não pertenço à sua geração. Ele tem o maldito orgulho dos Sangries... que aliás nós, os nobres, temos todos... ainda que estejamos a morrer de fome. Deves ser amável para ele.
Eva respondeu com um aceno de cabeça. Ser amável! pensava ela... Mas, neste caso, qual dos dois salvava o outro?
O sumptuoso palacete chamado Castelo da Aurora ficara entregue à criadagem. Os donos da casa estavam todos fora. Julien Chabras, prudentemente, tinha-se eclipsado em direcção a Samt-Tropez, na noite seguinte ao seu encontro violento com Pierre de Sangries. Levara consigo a bela Mizzi, a sua conquista mais recente, de longas pernas, cabelos curtos, desgrenhados, rapariga exaltada, provocante e sem complexos, na companhia da qual se podia ”fazer uma asneira” na Costa. Julien alegrava-se por exibir uma rapariga de tipo novo, inédito. Aliava, desse modo, o útil ao agradável, pois desejava vivamente evitar um encontro com Pierre ou com Eva. Por isso, em Orly, tomou um dos aviões a jacto privativos da firma Chabras.
A senhora Myrna Chabras, por seu lado, na manhã seguinte, partiu para o seu castelo na margem do Loire. Ela pressentia que o incidente que tivera como protagonista a demoiselle au patr não estava encerrado e esperava que se lhe seguissem outros dissabores; prudentemente, escolhera a atitude de se afastar.
Quanto a Fernand Chabras, o patrão da casa, nem suspeitava de nada, pois encontrava-se numa das suas fábricas de produtos químicos, em Orleães, onde respirava o mau cheiro dos seus produtos e se deleitava a fazer declarações espirituais, tais como: ”Estamos a viver a era da química, a questão é saber se sobreviveremos a ela...”
O pessoal da casa andava numa fona, sob as ordens de James. Os lustres eram postos a brilhar, limpavam-se os grandes tapetes de Aubusson e areavam-se as pratas. Os cães de guarda, soltos no parque, contornavam os muros que rodeavam os jardins e, através do portão, olhavam para a estrada, para o bosque, para o Sena.
Espere-me aqui! disse a senhora Beugnon, em tom autoritário, dirigindo-se ao motorista.
Ela pavoneara-se num táxi, mas percorreu a pé os poucos metros que a separavam do portão, ostentando uma expressão particularmente resoluta, que não mudou quando viu dois cães. Estes, deitados ao lado do arruamento, debaixo duns arbustos, olhavam-na fixamente, ao mesmo tempo que os beiços deixavam entrever os caninos fortes.
A senhora Beugnon entreabriu o cesto que costumava levar às compras e retirou dele um enorme pilão de esmagar batatas, tal como os que se vêem nos antiquários que enriquecem à custa da nostalgia que as pessoas sentem relativamente ao passado. Depois, a senhora Beugnon premiu o botão que fazia funcionar o mecanismo do telefone interno.
Ouviu-se uma voz que gritou, em resposta ao chama mento:
O que deseja?
Sou a distribuidora dos jornais disse ela, lembrando-se mesmo a propósito de que nos dias 4 ou 5 de cada mês os distribuidores dos jornais costumavam receber o dinheiro dos fregueses.
Sem dúvida que isto era mais astucioso do que dizer, como de início ela pensara fazer: ”Sou eu, a senhora Beugnon de Birague. Decerto não vai fazer-me esperar!”
Os cães estão junto do portão? perguntou uma voz de timbre um pouco nasalado.
Quais cães? perguntou a senhora Beugnon, que olhava fixamente os cães, nos olhos.
Está bem, vou abrir... se os cães se aproximarem, não se mexa, que eu vou já!
Obrigada, senhor.
Tocou uma campainha, a senhora Beugnon empurrou o batente do portão e entrou, soltou depois a porta, que se fechou, e começou a subir a rua que conduzia à casa. O motorista do táxi baixou o vidro da janela e, interessado, debruçou-se. Os acontecimentos deste género constituem as ”delícias” da existência dos motoristas de táxi.
Os cães ergueram-se, indolentemente, espreguiçaram-se, olhando um para o outro, como se estivessem a combinar alguma coisa, e chegaram à conclusão de que a senhora Beugnon estava farta de viver... pelo que se lançaram sobre ela, atacando-a.
A senhora Beugnon parou, subitamente ficou imóvel como um penedo. Dardejou o olhar sobre os olhos injectados de sangue dos dois cães, à espera do momento propício... Depois, ergueu o pilão, e desferiu a pancada com tal força que se ouviu um ruído surdo, que lembrava a ressonância duma grande caixa. O primeiro cão caiu de lado, como se tivesse sido atingido por um raio, de patas a tremer.
Com o segundo cão, não foi tão fácil, pois ele tivera tempo de fincar os dentes na carteira de skai da visitante e encarniçava-se contra ela, como se quisesse arrancar as tripas a alguém.
Uma segunda pancada do pilão pôs termo àquele equívoco. O colosso olhou a senhora Beugnon com evidente surpresa e depois, voltando-se, esgueirou-se, a ganir, por baixo dos arbustos mais próximos.
Que mulher espantosa! exclamou o motorista de táxi, com ênfase, num tom baixo e cantante ao mesmo tempo.
A maneira como a senhora Beugnon tinha resolvido a questão dos cães despertou em James uma espécie de temor primitivo, o qual aumentou ainda mais quando ele a viu à espera, diante da porta blindada da casa.
Ignora-se o que se passou exactamente e ninguém o deixou adivinhar, posteriormente. Forçoso é contentarmo-nos com o relato sucinto da senhora Beugnon, o qual terminou por estas palavras: em relação a mim, foram muito amáveis... Não houve qualquer dificuldade... Primeiro, tem que estabelecer-se um certo contacto, vocês, os jovens, são demasiado contraídos...
Vinte minutos depois, a senhora Beugnon voltou a aparecer na avenida, seguida de James, que transportava duas pesadas malas de viagem de couro amarelado. Trazia, atirados sobre o ombro, dois casacos de senhora e um guarda-chuva, que segurava pelo cabo de forma curva. Os cães, amedrontados, permaneceram escondidos nos rododendros. Como cães de guarda a sua carreira acabara.
O motorista de táxi saiu da viatura e abriu apressadamente a bagageira, onde James colocou as malas, dobrando depois cuidadosamente os casacos que colocou sobre elas, com o guarda-chuva. O seu rosto parecia de pedra, mas um pouco pálido e como que repentinamente envelhecido.
Obrigada, James disse a senhora Beugnon, num tom muito educado.
Ela remexeu na carteira e meteu-lhe na mão uma moeda de cinco francos. James ficou tão surpreendido que fechou a mão, em vez de deixar que a moeda caísse no passeio.
Tive muito gosto, James! gritou a senhora Beugnon. Se precisar de alguém para fornecer informações a seu respeito, já sabe onde eu moro...
Não me esquecerei, minha senhora.
O táxi arrancou. A senhora Beugnon, satisfeita, recostou-se, mas depressa o seu olhar se tornou ansioso, ao ver como os algarismos saltavam no mostrador do taxímetro, provocando-lhe um mal-estar crescente.
Quanto terei que pagar até à Rua Princesa? perguntou ela, angustiada, ao seu condutor.
A senhora é transportada a expensas da companhia respondeu o motorista, dirigindo-lhe um largo sorriso, pois mostrou-me aquele Paris de que me falava o meu pai...
Ele exprimia-se num francês que era ao mesmo tempo duro e aveludado, embora com o sotaque parisiense. A senhora Beugnon olhou-o de través.
O senhor é russo?
Sou, sim, minha senhora, o meu pai foi general do czar e depois conduziu o primeiro táxi parisiense com aquecimento...
Como é que se chama?
Vladimir Andrejevitch, príncipe Globotkin...
Hoje foi um dia em cheio, príncipe!
A senhora Beugnon cruzou as pernas, com certa dificuldade. Estava a chover e o asfalto reluzia, o que constitui uma das indisíveis belezas de Paris.
Vamos tomar um café! propôs a senhora Beugnon de Birague.
Com todo o prazer.
Pararam no cais Kennedy, diante da porta dum rés-do-chão que dava entrada para uma cave. Era um restaurante à maneira da velha Rússia, situado no XVI Bairro, mas modesto, frequentado principalmente por refugiados de 1920... Sombras, velhas senhoras vestidas de negro, que tinham sido outrora belas damas de cabeças adornadas de kakochnik nos bailes da corte imperial, serviam os clientes de rostos expressivos, que sonhavam ao olharem para os montes de zakousktl e de pirochki 2 que se destacavam em cima dos aparadores cobertos por panos bordados.
Pierre bebera o seu café e sentia-se cheio de entusiasmo só por pensar em desenhar um cartaz para o negociante de bananas, seu patrão. Mas ainda não lhe ocorrera qualquer ideia.
Vou mudar de vestido... disse Eva.
E intimamente, pensava: ”Só nos conhecemos há alguns dias e já estou a mentir-lhe! Decididamente, a vida normaliza-se.”
Quando eu voltar, quero ver um esboço continuou ela. Mostra do que és capaz, Pierre!
Eva inclinou-se para ele, tomou-lhe a cabeça entre as mãos e depôs um beijo rápido nos cabelos de Pierre. Este deixou cair o bloco de papel e o lápis e quis retê-la, mas já ela estava junto da porta e o ameaçava com um gesto, enquanto agitava o cesto.
E não tentes encostar-te a mim disse ela.
Todo o seu semblante ria e iluminava a humilde habitação que estava obscurecida por um dia de Outono sem sol.
O quê, Ev, tu não me beijaste?
Nos cabelos! Não te ponhas já a imaginar coisas!
Vou desenhar o cartaz mais belo que se fez depois de Toulouse-Lautrec!
Isso seria um erro. Tu és Pierre de Sangries, não te esqueças disso. Não deves ser um segundo Monet ou Van Gogh, mas deves procurar ser um primeiro O primeiro Sangries!
1 Iguarias várias que se comem antes das refeições, na Rússia e na Polónia (N da T)
2 Especialidade russa, constituída por pastelinhos de massa com recheio de carne ou peixe (N da T)
Dirigiu-lhe ainda um outro aceno com a cabeça e apertou o polegar com os outros dedos.
Pierre, pensa nisso!
”Meu Deus, amo-a”, pensou ele depois de a porta se fechar sobre ela. Amo-a e é como um fogo que me devora. Meu Deus, impede-me de sucumbir, pois apenas Tu sabes que este amor é impossível.
A galeria do senhor Callac, no cais Montebello, vista do exterior, era uma loja de aspecto anónimo. Apenas uma tabuleta dourada com letras de esmalte negro conferia uma certa dignidade a modesta fachada, conhecida em todo o Paris. ”O quê, você tem um quadro exposto no Callac? Os meus parabéns, mestre!” Na pequena montra que dava para a rua, encontrava-se, solitário, em exposição um vaso chinês da segunda dinastia Ming. Parecia que Callac não julgara nenhum dos pintores digno da honra de figurar na sua montra. Os génios são raros e Callac fazia ponto de honra em ser o mecenas de novos talentos. Aquele vaso na montra, excluindo qualquer pintura, tinha dado muito que falar. O velho já espalha o seu veneno, murmurava-se nos meios artísticos, nos cafés literários de Saint -Germain-des-Prés, do Lipp ao Flore, do Deux Magots à Coupole. Já é tempo de a galeria passar a ser dirigida por um jovem! Ele não tem um sobrinho na Camarga? É certo que ele próprio é pintor, pobre-diabo e além disso é parvo... Mas nada mais se sabia, pois Callac conseguira mergulhar no mistério a sua vida privada. E quanto a falar-lhe, meu Deus, quem poderia opor-se com êxito ao sopro do mistral?
Eva deteve-se por momentos, hesitante, diante da pequena loja, contemplando o vaso chinês. Estava com medo de empurrar a porta da entrada para dizer de súbito: a senhora Beugnon mandou-me para ser sua secretária! Impossível, apesar dos cordiais encorajamentos da sua protectora. E, no entanto, seria um emprego mais agradável do que o de vendedora no Printemps ou nas Galerias Lafayette, onde teria que ficar horas e horas de pé, numa atmosfera sufocante, obrigada a aturar os humores dos clientes. Mas era duvidoso que precisassem dos seus serviços naqueles armazéns: tantas eram as jovens parisienses que todos os dias ali esperavam junto dos postos de colocação! Os Trois Quartiers ou a Samaritaine continuam a ser o sonho das jovens provincianas que procuram emprego.
Eva respirou fundo e depois abriu o fecho e entrou na galeria Callac. Ao contrário do que esperava, nenhuma campainha tocou e a sala que se situava atrás da montra estreita que dava para a rua estava deserta. Encontrou-se sozinha no meio de uma quantidade de pinturas e de esculturas. Já não havia espaço, os quadros tocavam uns nos outros, e no centro do aposento estavam agrupados os pedestais sobre os quais Callac expunha as esculturas de mármore ou de bronze.
Eva olhou em volta e, intimidada, ficou de pé no meio da sala. Ela ignorava que Callac se encontrava sentado no seu escritório, junto dum televisor que lhe permitia ver tudo o que se passava na galeria, graças a quatro câmaras ocultas. Junto do visor, havia um quadro com três botões, um dos quais servia para comandar a descida duma grade de aço em frente da porta de entrada e da montra, outro para chamar a polícia e finalmente o terceiro ligava uma sirene de apito lancinante, situada no telhado do edifício. Callac, apesar de ser avarento até às raias da perversão, vivendo ainda do passado, apreciava muito as possibilidades da técnica moderna em matéria de segurança.
Marius Callac permanecia sentado, na sua poltrona de couro, na expectativa, e observava a joven visitante com olhar crítico. Ela vagueava como alguém que estivesse perdido num labirinto e à beira das lágrimas. Não prestava atenção a nenhum dos quadros que a rodeava, embora se detivesse junto dum Modigliani autêntico e, aliás, invendável. Além do mais, não tinha ar de quem pudesse dar-se ao luxo de tal aquisição. Callac resolveu examinar aquele caso de mais perto e saiu do seu antro. Eram pouco mais de nove horas, ou seja, um momento do dia em que os bons clientes da galeria nunca ali apareciam, por estarem ainda a dormir ou entregues aos cuidados dos seus massagistas.
Menina... disse Callac.
Eva voltou-se. A senhora Beugnon não lhe tinha descrito o dono daquele lugar e ela estava à espera de ver aparecer um velho curvado, mas quem a interpelava era um homem de idade magro, alto e de porte elegante, com uma ampla cabeleira de neve que lhe lembrava a juba leonina da senhora Beugnon, excepto na cor. A sua fisionomia aristocrática apresentava uma rede de rugas e de sulcos, cujos olhos, nariz e boca pareciam pertencer a outro rosto; era um semblante marcado que evocava uma paisagem lunar. O mais espantoso eram os óculos, de lentes muito espessas. Quem os usava devia estar a dois passos da cegueira.
Senhor Callac... gaguejou Eva, lançando sobre ele um olhar petrificado pelo temor.
Quem havia de ser? respondeu, laconicamente Callac, de acordo com o que se dizia a seu respeito, ou seja, sem qualquer cortesia.
Mas onde estava então o belo cavalheiro de que falara a senhora Beugnon?
Sou Eva Bader... disse ela. Callac ergueu a sobrancelha esquerda.
Não conheço, menina.
Venho oferecer-lhe os meus serviços como secretária...
Como... quê?
Callac foi apanhado desprevenido, o que nunca lhe acontecia.
Não estou enganada... Disseram-me que o senhor precisa duma secretária.
Quem é que disse tal coisa?
A senhora Beugnon de Birague, senhor.
Ah! Então é isso!
Callac não se mexeu. Não era possível surpreender-lhe o olhar por detrás das lentes dos óculos, as quais reflectiam as obras de arte da galeria. Eva sentia a garganta apertada. ”Continua”, dizia corajosamente para consigo, mas com o coração desesperado. ”Fala, fala, claro que seria muito mais fácil dar meia volta e sair pela porta fora!”
A senhora Beugnon envia-lhe os seus cumprimentos, senhor disse ela, com firmeza.
Obrigado. Callac parecia ter recuperado a calma. Mas são cumprimentos que fazem lembrar as mensagens que os Gregos da Antiguidade enviavam àqueles que pretendiam ludibriar...
Senhor, não vim até aqui escondida num cavalo de madeira e não tenciono destruir a sua galeria...
E quem é a menina? perguntou com dureza.
Sou alemã, vim au pair para Paris, com a intenção de continuar os meus estudos...
Nesse caso, vá à Rua Jean-Calvin, à recepção de estrangeiros...
Não foi uma organização de estudantes quem me mandou cá, eu estava em casa da família Chabras...
Fernand Chabras? Callac, subitamente, mostrou-se interessado. É uma boa casa, menina.
Depende do que se entenda por boa casa...
É uma das melhores de Paris. Callac conhecia todas as casas dos coleccionadores... O que o levou inevitavelmente a fazer outra pergunta a Eva! E, se estava em casa de Chabras, como é que conheceu a senhora Beugnon?
”Entre ti, Celeste, e os Chabras, há um abismo”, pensava Callac. ”Infelizmente, Celeste, houve um tempo em que tu estavas destinada a conhecer os sucessos dos grandes salões de Paris, para os quais parecias ter nascido. Mas depois, qual deusa descida do Olimpo, durante a guerra, casaste com um nobrezito falido e votado à miséria. Há reveses da sorte dos quais nunca mais se consegue sair.”
Estou há pouco tempo em casa da senhora Beugnon.
Deixou a família Chabras?
Era a única solução, senhor.
Callac adivinhou que, em segundo plano, existia um rancor com o qual nada tinha a ver. Por outro lado, Celeste encarregara-se do caso, segundo parecia, e isso, infelizmente, já lhe dizia respeito. Pela segunda vez, Celeste impunha-lhe uma pessoa à qual não sabia que destino havia de dar. Primeiro, tinha sido aquele pintor sem talento, Pierre de Sangries, e agora, era uma jovem alemã que ela tentava introduzir no seu escritório! Callac nunca tivera secretária e mantinha uma reduzida correspondência de negócios com o auxílio duma máquina
1 Alusão ao estratagema do cavalo de Tróia, que ocultava no seu bojo tropas gregas (N da T)
de escrever muito velha que seria digna de figurar no Museu de Artes e Ofícios.
Não preciso de qualquer ajuda declarou finalmente Callac. A senhora de Birague enganou-se.
Mas ela pede-lhe, também, que se lembre da Camarga...
Estas palavras foram como que um grito de aflição e outra coisa não eram. Eva tinha prometido a si própria não repetir aquela frase da senhora Beugnon, por desconfiar de que ela se relacionasse com inesquecíveis recordações, que se tratasse dum caso de consciência, ou ainda que envolvesse uma chantagem inadmissível. Fosse como fosse, Callac reagiu imediatamente, como um jogador de boxe que acaba de receber um directo.
Venha para o meu escritório, menina disse ele, com uma certa doçura na voz, mas não tire daí a conclusão de que aceito a sua oferta de serviços...
Já conhecemos o escritório... exíguo, repleto de papelada, de correio que nunca foi respondido, de livros de contas, de apontamentos que Callac ia esquecendo à medida que os escrevia. Encostados às paredes, havia montes de telas sem molduras que esperavam a sua vez de figurarem na galeria. Eva viu entre elas as duas cabeças de camponeses que Pierre pintara; estavam encostadas ao radiador, sozinhas, como se estivessem de castigo, aguardando que as deitassem para o lixo. Ao vê-las, sentiu-se profundamente emocionada e decidiu lançar-se ao combate contra Marius Callac. Todos os homens têm o seu ponto fraco, antes de mais nada, era preciso conhecê-lo. A lenda de Siegfried e da folha de tília colada ao seu ombro continua a exprimir uma realidade.
Sentado em frente de Eva, Callac serviu-se duma chávena de chá acompanhada dum cálice de conhaque cor de âmbar. Era o seu segundo pequeno almoço daquela manhã, ao qual acrescentava uma torrada, pois o primeiro tomara-o às 6 horas. Aliás, como um homem idoso dorme pouco, era às primeiras horas do dia que o seu génio de homem de negócios se manifestava mais activamente. Vários pintores desconhecidos tinham sido descobertos por Callac à luz alvacenta da manhã.
Quer uma chávena de chá, menina? disse ele, subitamente.
Tomo antes um conhaque, senhor... se for possível.
Eva sorriu com aquele sorriso que tocava fortemente o coração dos homens, pois ela sorria, com a boca e com os olhos, duma maneira tão sedutora que a tensão dos que eram olhados por ela subia logo. Quanto a Marius Callac, não pareceu nada surpreendido e foi buscar um segundo copo de balão a uma prateleira.
Bebo chá com o meu conhaque há sessenta e dois anos disse ele, e foi o que me permitiu enfrentar as agruras da vida.
Eva respondeu inclinando a cabeça; de repente, sentia uma espécie de respeito por aquela revelação, embora vaga, duma vida íntima ignorada.
Depois, bebeu o seu conhaque em quatro goles, enquanto Callac a fitava através das lentes grossas, como se a observasse de longe. Também ele ficara calado.
Quanto quer? disse ele, bruscamente.
Por pouco ela não deixou cair o copo em cima da mesa e respirou fundo.
Contrata-me? perguntou, ofegante.
Só lhe fiz uma pergunta. Quanto pede de ordenado?
Mil francos.
Por esse preço, podia alugar um computador, menina. Se a senhora Birague lhe meteu na cabeça...
Oh! De modo nenhum, senhor! Ela só disse que o senhor pagaria metade do salário normal, ou então preferia escrever tudo à mão.
Ela disse isso? Callac pegou na garrafa e encheu novamente o copo. Até então, ninguém soubera, nem mesmo a senhora Beugnon, que Callac mantinha relações tão íntimas com o conhaque. Isso é mentira, menina, pois tenho uma máquina de escrever excelente, que vale mil francos!
Callac saboreava o seu conhaque como um entendido, enquanto Eva contemplava a desordem que a rodeava: era de enloquecer, mas reinava ali uma sábia organização, pois Callac conseguia sempre encontrar o que pretendia e, no seio duma ordem rigorosa, ficaria completamente perdido.
Callac compreendeu o olhar de Eva e serviu-lhe um segundo cálice de conhaque, desta vez cheio até acima, o que constituía uma espécie de muda homenagem, um esboço de camaradagem.
Seiscentos francos, em meio tempo.
A senhora Beugnon também falou nessa quantia. O coração de Eva batia desordenadamente.
E o que lhe disse a senhora Beugnon a respeito da Camarga?
Nada. Disse apenas que lhe desse os seus cumprimentos.
Conhece a Camarga?
Infelizmente, não conheço, senhor.
É uma região onde se deseja lançar raízes para sempre. Lançou um olhar para o visor do aparelho de televisão. Acabam de entrar dois senhores. Seiscentos! Pense nisso, menina, mas tenho de ir, estão ali à minha espera.
Ficando sozinha, Eva sorriu e pensou, dirigindo o olhar para uma imagem invisível: ”Senhor Callac, o senhor não é má pessoa, o que acontece é que tem medo de ceder às fraquezas do seu generoso coração...”
Esvaziou o copo, tirou o casaco e lançou-se ao trabalho.
Abriu o correio que chegara naquele dia e classificou-o.
O príncipe Vladimir Andrejevitch Globotkin, motorista de táxi, estava instalado no cubículo da senhora Beugnon e bebia café por uma enorme chávena almoçadeira. Sentia-se melhor.
Terminara uma noite estafante e saboreava o seu tempo de repouso que duraria até depois do jantar. O seu pai, príncipe russo e proprietário dum táxi, pusera ao volante o seu sócio Alexandre Metvejevitch Savarine, cujo pai possuía ainda gigantescos domínios na região de Kazan e usava o título de conde. Depois de fugir da Rússia, tinha realmente morrido de fome em Paris, debaixo da ponte de Alexandre III, que celebrava a memória dum dos seus czares. Vagabundo até à medula, mas de acordo com a sua categoria social, que não esquecia, nunca pudera admitir a ideia de trabalhar para ganhar dinheiro. Quanto ao filho, era bem diferente... tornou-se motorista de táxi, privilégio que, naquela época, estava reservado aos emigrantes russos em Paris.
O aparecimento do príncipe motorista no antro da senhora Beugnon tinha um motivo especial: depois do incidente do Castelo da Aurora, ilustrado pelo pilão de amassar, manipulado com tanta força como destreza pela senhora Beugnon contra os dois cães de guarda, mas principalmente depois da conversa que o motorista tivera com a sua passageira, no restaurante russo do cais Kennedy, surgira-lhe uma boa ideia.
Quando aparece uma boa inspiração, o melhor é agir imediatamente. E foi assim que o príncipe Globotkin, em vez de ir para a sua cama, depois duma noite de trabalho, se dirigiu para a Rua Princesa e, logo à entrada, deu de caras com a senhora Beugnon, que, como de costume, estava de guarda, no limiar do seu paraíso.
Entre, príncipe! disse ela, num tom que lhe pareceu bastante aristocrático.
No entanto, se, na véspera, junto ao Castelo da Aurora, ela tinha um aspecto mais ou menos humano, apesar de extravagante, naquele momento, na sua própria casa, no cubículo, a sua personalidade impressionou de tal modo o príncipe-motorista que este ficou, por momentos, sem fala. Obedeceu à senhora Beugnon, que lhe indicava uma cadeira, bebeu sossegadamente o café que ela serviu e provou o bolo de Sabóia que acabava de sair do forno.
Chame-me Vladi, minha senhora respondeu ele, quando conseguiu falar de novo.
Vladi! Isso é nome de cão! O senhor é ou não é príncipe?
E, nos dias de hoje, o que vale um príncipe russo?
Cada um vale aquilo que julga valer! respondeu, severamente, a senhora Beugnon. Eu não trocaria o que sou nem por um título de marquesa! Príncipe, o que o traz por aqui?
O príncipe Globotkin pegou noutro pedaço de bolo de Sabóia. Que aroma de massa saborosa e perfumada! Depois, estendeu a grande chávena que a senhora Beugnon voltou a encher.
Que delicioso café! Sabe, minha senhora, tive uma noite... uma noite canadiana, está tudo dito. Apanhei em Montmartre um grupo de viajantes do Quebec. As putas piavam em todas as ruas das redondezas, duas casas ficaram destruídas, quatro tipos foram para a cadeia, dois proxenetas argelinos juraram vingar o sangue derramado e os canadianos foram atrás das gajas pela Rua dos Três Irmãos! Que espectáculo! Depois daquilo tudo, foi preciso transportá-los para o hotel, em seis carros, e não havia nenhum que não estivesse ferido. Até me parecia que guiava uma ambulância depois duma batalha. Finalmente, posso descansar.
Em minha casa? E porquê?
Esta pergunta justificava-se pela sua lógica: como é que a senhora Beugnon podia substituir o conforto, bem merecido, duma boa cama?
Eu conheço esse Julien Chabras...
Não me diga!
Um patife, minha senhora!
A quem o diz, príncipe!
Não me refiro à história da sua Eva e do seu Pierre; eu conheço Julien Chabras porque o vi dar um pontapé no cu dum colega meu, depois de lhe ter dado cabo dum guarda-lamas num cruzamento ... É verdade, e antes que ele pudesse contornar a viatura, para lhe dar o endereço da sua companhia de seguros! Isto impressionou-me, bem como o desconhecido talento de Pierre de Sangries. Devia fazer-se alguma coisa por ele...
Quem? Os negociantes de quadros? Os directores das galerias ou dos museus? A senhora Beugnon suspirou tristemente. Isso é um sonho, príncipe! Pierre já tentou tudo, mesmo os meios mais penosos. Olhe, se ele se vestisse com um fato feito duma cortina, usasse os cabelos até aos ombros e uma barba que lhe chegasse ao umbigo, talvez se interessassem por ele. Nos dias que vivemos, a modéstia é um vício suicida. Mas ele não gosta de se salientar e recusa-se a recorrer à encenação habitual dos artistas da moda. E, no entanto, ali está quem poderia seduzir, interessar, ser lançado!
Evidentemente, se ele fizer como Van Gogh e ficar à espera de que o descubram ou de que a loucura se apodere dele... Discuti este problema com os meus colegas e camaradas continuou o príncipe Vladimir, apoderando-se duma terceira dose do bolo de Sabóia.
Pierre jamais conduziria um táxi!
A minha ideia é outra, minha senhora! disse o príncipe.
Mastigando, com prazer, deitou um olhar ao vestíbulo da entrada, que podia ver-se pela porta entreaberta do cubículo. Um rapaz alto, magro e desengonçado descia as escadas, e, vendo um estranho sentado à mesa em casa da senhora Beugnon, fez um gesto vago com a mão e saiu do prédio. Mas antes subiu a gola do impermeável azul e desapareceu na bruma que envolvia tudo.
Era ele? perguntou o príncipe.
Era, com efeito, Pierre de Sangries disse a senhora Beugnon, com uma pontinha de orgulho.
Um rapaz simpático... E a sua Eva, está lá em cima?
Não... A senhora Beugnon consultou o relógio de pulso. Deve ter tido que fazer no seu novo emprego, pois ainda não me telefonou...
Se ela tivesse telefonado, isso poderia ser importante?
Sim. Já tinha uma tirada engatilhada.
Callac devia calcular isso. Apesar de lhe apetecer fazer algumas perguntas, até àquele instante tinha evitado explicar-se com Celeste.
E então, qual é o plano que me quer apresentar? Explique-me lá isso! disse, severamente, a senhora Beugnon.
E tirou de cima da mesa o prato com o bolo, que pôs sobre o armário, enquanto dizia para si: Pouco falta para ele dar cabo do meu bolo de Sabóia! Já se sabe que os russos comem como ninguém! Nasceu em Paris, mas conserva essa qualidade!”
Formamos uma sociedade de quarenta e dois motoristas de táxi, todos russos brancos, minha senhora. O que é pouco, se considerarmos que em Paris há doze mil e quinhentos táxis. A nossa vida é dura! A tarifa é fixada pela Prefeitura da Polícia e se não fossem as gorjetas... levaríamos uma vida de ratos...
Está a ver se me leva algum? perguntou a senhora Beugnon, que tinha desprezo pelos circunlóquios. Previno-o de que se enganou na porta.
A senhora não me está a compreender continuou o príncipe, imperturbável. Suponho que o seu Pierre de Sangries tenha conseguido juntar quarenta e cinco quadros no seu escritório, não? Proponho que, no interior de cada um dos táxis da nossa sociedade, sejam pendurados um ou dois deles, nas costas dos bancos da frente, bem diante do ou dos clientes instalados no banco de trás... O princípio segundo o qual tudo o que é extraordinário exerce um poder convincente há-de verificar-se: é quase certo que, pouco a pouco, todos os quadros se venderão e até que viremos a receber encomendas.
O príncipe Vladimir ergueu-se, foi buscar a quarta dose do Sabóia e serviu-se doutra chávena de café simples. A senhora Beugnon não se opôs, de tão excitada que estava, de faces em fogo.
O que lhe parece? concluiu o tentador.
Acho genial! exclamou a senhora Beugnon, sufocada. Qual é a percentagem que pede?
Vinte por cento, minha senhora.
Ladrão de cavalos do Cáucaso! Kalmouk ! feroz!
Vladimir Andrejevitch não se sentiu insultado com isso; estava resolvido a ganhar a partida e, por isso, fez um sorriso sedutor, sentando-se novamente à mesa da cozinha, de pernas estendidas. Usava belas botas forradas de pele de borrego, pois as noites de Outono são frias e húmidas.
A senhora exalta-se como as donas de casa russas no mercado de Kalytch, o que me alegra! Mas repare que os bons negócios são aqueles em que ambas as partes ficam satisfeitas. Vinte por cento é bem razoável para uma exposição dum género tão original. Talvez que para Pierre de Sangries seja a oportunidade da sua vida, e lembre-se de que outros grupos de motoristas de táxi podem vir a juntar-se a nós! disse o príncipe, enquanto sacudia, com um piparote aristocrático, uma migalha de bolo que se lhe prendera na gola do casaco.
É justo! A senhora Beugnon sentou-se na frente do seu hóspede e pôs-se a fazer os cálculos. Quarenta e dois quadros expostos em quarenta e dois táxis, a cem francos cada um, é um preço de favor... Se pensarmos no que custa jantar no Maxim’s, teremos de subir para o dobro... para evitar tal afronta ao talento de Pierre... Digamos, então, duzentos francos,
Mongol. (N. da T.)
o que, vezes quarenta e dois táxis, faria a soma de oito mil e quatrocentos francos...
A senhora a fazer contas é uma maravilha.
Príncipe, o senhor ignora o que eu estou a calcular exactamente.
Veja que contamos obter em quatro semanas a venda do lote todo uma vez que além dessa data limite não exporemos quadros nos nossos carros, isto é uma decisão irrevogável!
Bom, duzentos francos cada quadro, dos quais teremos de deduzir os malditos vinte por cento para vocês, ficaremos, portanto, com cento e sessenta francos. E que não haja discussões!
De acordo, esse é o preço mais baixo, mas eu proponho que subamos os preços, conforme o sucesso... Há-de haver alguns que não largaremos por menos de quinhentos francos.
Daqui a alguns anos, príncipe, essas obras só poderão ser adquiridas desembolsando milhões!
Minha senhora, o que vamos fazer é chamar a sorte! O príncipe levantou-se, com elegância, bebeu o café dum só trago e agasalhou o pescoço. Lá fora, a chuva caía fortemente e a água gorgolejava sem descanso na conduta que descia das goteiras ao longo da parede da cozinha.
Só haverá uma dificuldade, minha senhora. O fisco!
Quem passou fome durante anos e anos sem que o Estado se tenha preocupado com isso tem o direito, ao menos uma vez, de comer à vontade sem ter que partilhar com o Estado! Esta é a moral dos vagabundos que dormem debaixo das pontes, e é lógico. Ou sabe o senhor se algum museu, ou alguma instituição pública, compraria uma obra de Sangries.
Outro problema importante: Pierre conseguirá fornecer pinturas que cheguem com continuidade?
Meu Deus! A senhora Beugnon enfiou os dedos na sua cabeleira rutilante. Isso é que não acredito. Pierre jamais poderá pintar quadros em série!
Ãmen! Acabemos com isto... um verdadeiro êxito exigiria uma corrente constante de pintura, constantemente à disposição dos vendedores. Com certeza que o seu artista só pinta aquilo que lhe agrada acrescentou o príncipe, respeitosamente... E não poderia ele, mesmo assim, inspirar-se numa bela jovem, que reproduzisse indefinidamente... Na sua protegida, Eva, por exemplo? A senhora fala com o artista, ou prefere que seja eu?
Deixe-me tratar disso...
E a senhora Beugnon mergulhou num mundo de pensamentos que a absorveram de tal maneira que nem se despediu do seu visitante. Pierre decerto não aceitaria entregar-se a uma ”arte alimentícia”, nem confiaria as suas obras a quarenta e dois táxis, mesmo que fossem guiados por príncipes ou condes russos.
A senhora Beugnon, finalmente, levantou o auscultador do telefone e marcou um número.
Ou viu-se uma voz jovem, alegre.
Galeria Callac...
”Até que enfim, um raio de sol!” A senhora Beugnon sentiu-se comovida quase até às lágrimas.
Um beijo para ti minha querida! disse ela com voz tonitroante... Raios, um beijo!
O Outono apoderara-se definitivamente de Paris, fazendo-se acompanhar duma chuva lúgubre que fizera cair as folhas das árvores e impregnara as casas dum frio húmido que propagava constipações e fortes gripes.
Entretanto, quarenta e dois táxis-exposições percorriam Paris a notícia vinha em todos os jornais que lhe dedicavam entre cinco a sete linhas. Os condutores desses veículos certamente tinham como missão levar ao conhecimento do público o nome e a obra de Pierre de Sangries, um pintorzeco lamentável, como o classificava um crítico de arte, que acrescentava: ”Se este método fizer escola, em breve veremos quadros expostos no interior dos urinóis!”
Pierre de Sangries era, finalmente, o assunto de muitas conversas, mas não exactamente no sentido desejado pelo príncipe Vladimir, motorista de táxi e da sua sócia na empresa, a senhora Beugnon de Birague. Paris inteira fartou-se de rir durante quarenta e oito horas, depois do que a cidade se esqueceu dele, devorado que foi, como tantas outras celebridades passageiras.
Quanto a Marius Callac, sentia uma tal vergonha ao evocar o facto, que no entanto todos ignoravam ou seja, que tinha estado relacionado com Pierre, que, durante quinze dias, recusou-se a atender Celeste ao telefone, apesar de esta ligar para ele três vezes por dia. Todavia, Callac abençoava o instante em que Eva entrara na galeria. É certo que não conseguia encontrar nada do que procurava no escritório, onde reinava agora uma arrumação perfeita, mas bastava-lhe pedir o que queria e logo lhe era apresentado. Callac abstinha-se de manifestar a sua satisfação e continuava a ser o velho unhas-de-fome rabugento conhecido de todos, representando a personagem do eterno ”tanso”, mas quando acendia o cigarro de Eva estabelecia-se entre eles uma atmosfera idílica.
Com Pierre, as coisas eram diferentes.
Continuava a pintar, mas não para o príncipe Vladimir e os seus quarenta e dois colegas. Pintava Eva em todas as telas que começava. A senhora Beugnon sentira aproximar-se aquele estado de alma e considerava-o como uma catástrofe. É certo que, no passado, ele pintara Monky, mas, se desenhava aquela boneca erótica de longas pernas, ia depois para a cama com ela e tudo era ”normal”, como dizia a porteira. Muitas vezes, acontecia-lhe pintar outra coisa nas mesmas telas: uma caixa de conservas ou um tubo de pasta dentífrica, e o quadro transformava-se num cartaz ou numa tabuleta que se vendia facilmente. Pelo contrário, a inspiração a que ele se entregava de momento, na opinião da senhora Beugnon, era absolutamente infrutífera. Era Eva, como uma ninfa num campo de trigo, como uma visão essencialmente solar, ou Eva num vinhedo provençal, como um delírio colorido no qual só se conseguia distinguir alguma coisa se o observador se afastasse dois metros e fizesse apelo a toda a imaginação de que dispunha.
É fascinante! Genial! afirmava a senhora Beugnon, peremptoriamente, e Pierre atirava as cores sobre a tela com uma alegria vulcânica.
Mas quem é que queria comprar aquilo? Pode-se pintar assim quando se é um Sisley... Sangries, ninguém conhece... perdão. Paris inteiro rira à sua custa! Mas isso é pior do que estar morto.
Era espantoso que o próprio Pierre não desse por nada disto! Num dia em que Vladimir Andrejevitch, em casa da senhora Beugnon, se entregava à fúria que lhe provocavam as apreciações da crítica a respeito de Pierre, este respondeu-lhe, com toda a calma:
Pergunto a mim mesmo porque é que todos perdem a cabeça. O que se passa? Eles dizem apenas a verdade! Tudo o que pintei até hoje e que vocês passeiam através de Paris não passa duma merda. Daqui em diante, vou pintar de outra maneira!
E continuava a representar Eva no meio da natureza grandiosa, banhada pela claridade solar, onde as cores jorravam do astro incandescente.
Callac, a quem Eva levou um daqueles quadros, qualificou-o como uma ”pintura feita com ranho”; mas outra apreciação não era de esperar vinda dum perito.
Todavia, a experiência dos táxis teve uma consequência desastrosa: o sr. Emmanuel Thierry, grossista de bananas, retirou a Pierrre a encomenda do cartaz que deveria elogiar as virtudes da banana e deu ordem ao chefe do armazém, Adolphe, para contratar outro ajudante. Não disse a razão de tal mudança, mas Pierre conseguiu saber as verdadeiras razões de tal desgraça por meio duma garrafa de Calvados que ofereceu a Adolphe. É claro que Thierry não alimentava qualquer hostilidade em relação a Pierre de Sangries, pelo contrário, admirava até a sua habilidade para o negócio, mas eram os russos quem passeava os quadros de Pierre pela cidade e o senhor Thierry era alérgico aos russos, pois não podia esquecer que fora um russo que, em 1952, o corneara, acabando, finalmente, por lhe roubar a mulher. Ora esta possuía metade do negócio, e uma experiência deste género marca uma pessoa.
Não há nada a fazer, Pierre respondera Adolphe, tristemente. Ainda se os táxis fossem conduzidos por antigos combatentes...
Não foram os antigos combatentes que tiveram a ideia, mas sim os russos...
Uma ideia russa nunca pode ser boa concluiu Adolphe, à margem de qualquer consideração política.
Apesar das críticas mais acesas, a ideia da exposição dos táxis do príncipe Globotkin revelou-se rentável. Em menos dum mês, venderam-se trinta quadros e no decurso da última semana, o conde Seraphinovitch fez saber, pela rádio, que a última obra de Pierre acabava de ser vendida a um americano pela importância de seiscentos francos. Foi uma apoteose e festejada como tal.
Depois disto, a empresa paralisou por falta de mercadoria. No entanto, os amigos de Pierre, incluindo o poeta Henry, o Vermelho, insistiram para que ele pintasse cromos e vistas sugestivos do Sacré-Coeur de Montmartre, do Pont-Neuf ou até do Sena, junto da Torre Eiffel, assuntos todos eles capazes de darem bom lucro.
Não sou nenhuma puta! exclamara Pierre, subitamente malcriado para a senhora Beugnon, que lhe exaltava as delícias duma existência cheia de estabilidade. Sei o que quero e o que posso fazer e não pretendo manchar o meu nome! acrescentara ele.
Naquele momento, possuíam 7450 francos, os quais não tinham sido depositados no banco, mas se encontravam no armário da cozinha da senhora Beugnon, ao abrigo de todos os riscos.
Não julgues que estás rico! repetia ela a Pierre.
Este, andava a pintar um triplico que, em vez de cenas religiosas, representava uma paisagem em três partes. Era uma visão ao mesmo tempo cheia de sol e de melancolia e, no entanto, fascinante; era uma recordação de infância da terra da sua jovem mãe.
Quem é que vai comprar isto? perguntava a senhora Beugnon. Convence-te bem de que sete mil francos podem derreter-se como a neve ao sol...
Também me seria penoso vendê-lo respondeu Pierre, sorrindo. Mas, mãezinha Beugnon, não se zangue, pois eu sei que me compreende, tal como Eva...
Como Eva! A senhora Beugnon sentou-se numa das poltronas de pelúcia: Quando é que te casas com ela?
1 Basílica do Sagrado Coração, situada no alto da colina de Montmartre. (N. da T.)
2 Ponte Nova. (N. da T.)
Pierre não a olhou sequer, continuando a misturar cuidadosamente as cores, um amarelo de ouro com um pouco de vermelho.
Nunca! disse, por fim.
Pierre, estás doido? Ela luta a teu lado, cozinha e trata da casa, vocês vivem como marido e mulher...
Isso não é verdade, mãezinha... interrompeu Pierre.
A senhora Beugnon passou as mãos pela cabeleira; era evidente que o mundo estava a tornar-se incompreensível para ela.
Então vivem como? Como irmão e irmã? Tu não és...
Não, minha senhora.
Queres que ela se vá embora, idiota?
Não se pode conservar uma mulher senão dormindo com ela? Então que se vá embora!
Não gostas dela?
Mãezinha, essa é a pergunta mais estúpida que jamais lhe ouvi fazer.
Aplicou o seu amarelo solar sobre a tela, com o auxílio duma espátula, e parecia que ele brilhava, com um calor concentrado, um calor do qual ele sentira a nostalgia durante toda a sua vida.
Noutros tempos, não me teria feito essa pergunta, minha senhora... Está a ficar velha!
A pior ofensa que podiam fazer à senhora Beugnon era exprimir tal constatação. Ela levantou-se dum salto, bateu o chinelo até à porta, saiu e fechou o batente com um estrondo que ecoou.
Pierre pousou a paleta e aproximou-se da grande janela de cremalheira. Lá fora continuava a chover e o céu cinzento estava saturado de nevoeiro. A alta e feia chaminé da vizinha vomitava um fumo espesso e amarelado.
”Vocês todos pensam conhecer-me tão bem e afinal nada sabem de mim”, pensava ele. ”É assim mesmo e não deve mudar, até que, num dia qualquer, adivinhem a verdade. Já não falta muito tempo, Eva...”
Dali a algum tempo, Pierre e Eva tiveram uma explicação, à noite. Estavam deitados, o fogo ronronava no fogão de ferro fundido, a chuva fustigava a vidraça. Entre as camas de Pierre e de Eva estava o tríptico, colocado no cavalete, e se eles quisessem ver-se um ao outro tinham que debruçar-se para fora das camas.
Pierre, tenho de te agradecer disse Eva, de repente.
O quê? perguntou ele.
Porque não tentaste fazer de mim tua amante.
Então, estavas à espera disso?
Estava disse ela, com franqueza, seria lógico.
E como reagirias tu?
Ela ficou pensativa por um instante e depois disse:
Isso não se pergunta, Pierre.
Tens razão, aliás, nunca to perguntei.
Calaram-se de novo e lançaram um olhar para o tecto, alumiado pelo reflexo longínquo de um anúncio luminoso qualquer. A chuva tamborilava no telhado e aumentava mais o sentimento delicioso de estar quentinho numa cama.
O senhor Callac aumentou-me hoje cem francos disse ela.
Parabéns, Ev. Ele estendeu-se ao comprido e apoiou as mãos contra as coxas. Venceste e vencerás sempre, não é verdade? Quando é que te vais embora?
Pierre, estás doido?
Podes ter outras ambições, além dum quarto forrado de jornais velhos.
Vira-te para lá e dorme! disse ela, quase malcriadamente. Dizes cada asneira! Aliás, ainda não acabei de ler o folhetim que está na parede da esquerda!
Nem vale a pena. É um assunto idiota: trata-se dum homem e duma mulher que, por amor, acabam por se devorar.
Com certeza que é uma boa refeição concluiu ela, fechando a luz.
Por vezes, jantavam num pequeno restaurante, mas não se afastavam das imediações de Sain-Germain-des-Prés, e vagueavam à chuva, abrigados por um chapéu-de-chuva preto, vestígio da herança deixada pelo defunto Amaury Beugnon de Birague, amolador de facas de profissão. Aliás, aquele chapéu enorme era célebre entre os vendedores ambulantes da Rua Mouffetard, desde que a senhora Beugnon tinha batido com ele nas costas duma vendedeira de fruta que lhe tinha vendido, à socapa, três pêras podres no meio das outras...
A senhora Beugnon, enquanto eles passeavam, estalava de ciúmes, ao pensar que os seus protegidos preferiam talvez a cozinha do restaurante à sua. Esperava por eles, sentada à mesa, coberta com um oleado vermelho, e pela porta entreaberta espreitava-lhes a chegada recebendo-os habitualmente com a mesma pergunta:
O que é que comeram?
Na maior parte das vezes, Pierre e Eva jantavam na Augustine, na Rua do Sena, onde se sentiam muito à vontade, abancados diante de generosas doses, bem quentes e suculentas. Foi a caminho de Augustine que o viram, numa noite de Novembro, uma noite tão escura e tão molhada, tão ventosa e tão hostil, que as pessoas só pensavam em se esgueirar junto às paredes e em se refugiar o mais depressa possível num sítio quente
Ele estava sentado em frente dum respiradouro donde vinha um pouco de calor proveniente do subsolo. A chuva escorria por ele e, quando levantava a cabeça, os seus olhos redondos fitavam o mundo com um olhar desesperado.
Era o cão mais miserável e mais feio que Eva tinha visto na vida.
Ela estacou e chamou Pierre, que continuara a andar com o guarda-chuva na mão.
Olha! disse ela acocorando-se junto do pequeno animal, que tremia, encharcado.
O cão permaneceu sentado, sentindo no dorso o sopro quente do respiradouro do qual não queria afastar-se. Mas ergueu um pouco a cabeça, levantou o traseiro e pôs-se a agitar tristemente aquilo que lhe fazia as vezes de cauda.
Pierre voltou atrás e com o guarda-chuva cobriu a cabeça de Eva, que continuava debruçada sobre o animal.
Aqui está um exemplar perfeito de bastardia disse ele. Desde a orelha esquerda até à ponta do rabo tem amostras de todas as raças.
Ele está triste observou Eva.
Vamos constipar-nos se ficarmos aqui especados!
Os cães também se constipam e tossem como os seres humanos. Ela passou a mão sobre o pequeno animal miserável. O cão nem se mexeu. Porque é que ele fica aqui à chuva, Pierre?
Pergunta-lhe! Talvez goste de banhos de chuveiro!
Se ele falasse, agora estaria a chorar!
Ele não pensa nisso, está a abanar a cauda. Pierre ergueu Eva, pegando-lhe no braço. Receio que os meus sapatos se liquefaçam se ficarmos parados. Queres convidar o cão para jantar? Senhor cão, esta noite temos guisado de carnes brancas, com arroz, gostaria de provar?
Ele está tão sozinho Continuou Eva, e tu fazes troça dele porque nunca sentiste a solidão.
Continuaram o caminho e entraram no pequeno restaurante, mas a noite parecia estragada. A solidão, pensava Pierre, haverá alguém que queira ensinar-me alguma coisa a esse respeito? Eu tinha seis anos quando me sentei entre as linhas da gare do Norte, onde o Symphorien me encontrou. Nessa idade, já se tem algum tino? Certamente que sim, porque ninguém me perguntou se eu tinha frio, se estava molhado, se tinha fome ou precisava dum carinho.
Jantaram sem alegria, pagaram à senhora Augustine, que tinha o hábito de fazer as contas na toalha de papel, e saíram de novo para a rua.
O cão estava então sentado diante da porta do restaurante e olhava-os com ar interrogador, com uns olhos tão grandes e tão redondos que nem mesmo Pierre pôde fazer de contas que não o via.
Ó rafeiro disse ele, antes que Eva pudesse intervir, procura outro abrigo... porque este que acabas de encontrar é tão desgraçado como tu!
O cão baixou a cabeça. A chuva encharcara-lhe o pelo e, quando Pierre e Eva se afastaram, as suas patas curtas mas fortes levaram-lhe o corpo desajeitado, cuja fealdade era realçada pela corrida, em perseguição deles. Era uma criaturinha transbordante de ternura.
Vai-te embora, rafeiro! disse Pierre por várias vezes. Vai-te embora! Depois, ele deitou uma olhadela a Eva, que caminhava a seu lado, estranhamente silenciosa. Fala com ele, Ev disse, talvez te compreenda.
Tu não o queres e ele bem o percebe.
”Quando eu não queria compreender”, pensava Pierre, ”apanhava pontapés. E então, percebia depressa e tinha só seis anos. Era um bastardo, como este cão.”
Continuaram a andar, em silêncio, encostados um ao outro, debaixo do guarda-chuva; chovia fortemente e o cão trotava atrás deles.
Ev, diz qualquer coisa! refilou Pierre, exasperado pelo mutismo dela.
O que queres tu que eu diga? respondeu ela, sem o olhar. Não passa dum cão... que vai certamente morrer por aí.
Pierre, ao ouvir estas palavras, sentiu como que uma lâmina atravessá-lo todo. Parou, de repente, arrancado às suas reflexões. O cão interrompeu a corrida, com as quatro patas metidas na água que inundava o passeio. Os olhos dele procuraram Eva e pôs-se a tremer de medo.
Vem cá, cão! disse Pierre, que se curvou e tomou nos braços o monte de pelos molhados. Um cão francês nunca se rende!
Ele não tem um Arco do Triunfo à sua disposição fez notar Eva.
Não falemos nisso, Ev disse Pierre, numa voz rouca.
Foi a última vez, prometo-te. Ela estendeu os braços e pegou no cão, que se encostou ao seu peito com gratidão e rosnou de contente. A senhora porteira vai dar-te comida disse ela, encostando a si a cabeça redonda do cão.
Pierre tinha dúvidas acerca disso, mas não disse nada sobre o assunto:
Agora já não estás sozinho, Bolhas...
Pierre, que segurava o guarda-chuva que abrigava Eva, olhou fixamente o feio cão.
Como é isso, Bolhas? disse ele.
Este cão chama-se ”Bolhas”.
E porquê?
Foi um nome que me veio à ideia, de repente...
É escusado fazer perguntas a uma mulher sobre as razões duma ideia súbita.
Bolhas? E porque não? Um cão tão desprovido de beleza pode muito bem usar um nome assim vulgar.
Agora, somos quatro continuou Eva, enquanto subiam a Rua Princesa como uma verdadeira família.
Quatro, pensava Pierre. É verdade, com a criança que não parava de crescer. Mas já há algumas semanas que não se falava nisso, parecia que se tinham esquecido. A criança... uma verdadeira família.
Tudo isto eram constatações a que ele se entregava sozinho e que lhe cortavam a respiração. Reconhecia que seria útil falar nisso a uma pessoa de confiança e quanto mais depressa melhor. Mas, a quem? De qualquer modo, a Eva, nunca. Esta começara a construir todo o seu pequeno universo feliz e tranquilo, no qual queria introduzir o seu filho, o qual não se veria obrigado a fugir dum orfanato e a pedir esmola, na companhia dum vagabundo.
”Eu quero viver”, pensava Pierre, ”viver, viver!”
Mas, com quem poderia falar dessa aspiração? Ele sabia que nem mesmo com Deus e existia Deus? poderia conversar acerca dessa vida.
A senhora Beugnon mostrou-se ainda mais desconcertante do que parecia.
Não enxotou o Bolhas para a rua, evitou dizer: que era um cão horroroso, e preparou-lhe uma refeição de flocos de aveia misturados com restos de peixe. Aquela mistela cheirava bastante mal, mas o Bolhas apreciou-a imenso e devorou-a, lambendo até o prato vazio. Depois disso, subiu até ao sexto andar.
Quando Eva apagou a luz, Bolhas estava deitado entre as duas camas, sobre uma esteira de fibras de coqueiro, e ressonava fortemente. Mas devia ser fita, pois quando Eva acordou, na manhã seguinte, sentiu-o aninhado de encontro a ela, na cama. Quente e peludo, lançou-lhe um olhar infinitamente meigo.
Numa tarde de Novembro, Eva, como todos os dias, voltou da galeria Callac cerca das 19 horas. Mas, ao invés do que era habitual, não entrou alegremente no prédio e a senhora Beugnon não ouviu os seus passínhos no vestíbulo da entrada. Daquela vez, Vladimir Andrejevitch tirava Eva do seu táxi e conduzia-a, ou melhor, arrastava-a, até à entrada da porta, onde se deteve para chamar, aos gritos:
Senhora Beugnon! Ajude-me! Depressa!
A senhora Beugnon deixou cair a couve-flor que cortava cuidadosamente, e Bolhas, que se lançara em corrida, desde o sexto andar, apareceu, de escantilhão, no rés-do-chão e pôs-se a ganir lamentosamente quando reconheceu Eva. Pierre surgiu no cimo das escadas e perguntou:
O que é que há?
Pierre, vem cá abaixo berrou Globotkin. Fizeram uma coisa horrível!
Quando Pierre entrou, a correr, na cozinha da senhora Beugnon, acabavam de deitar Eva no velho sofá. Estava pálida e assustada, segurava o ventre com as duas mãos e respirava com dificuldade.
Não é nada, Pierre disse ela, quando ele caiu de joelhos junto dela e lhe tomou a cabeça entre as mãos. Não é nada, acredita, apenas tive medo, medo... e depois, Vladi passou, por acaso, com o táxi. Não dramatizem!
O que aconteceu? perguntou Pierre, numa voz inexpressiva.
Os olhos de Eva pareciam afundados nas órbitas rodeadas de olheiras roxas. Os lábios estavam pálidos, exangues, e começavam a inchar no canto esquerdo.
Vladi! Desembucha! berrou ele, por fim.
Foi uma coisa horrível, repito...
O príncipe acendeu um cigarro, com as mãos trémulas. A senhora Beugnon corria dum lado para o outro, abria a torneira da água quente, depois a da água fria, trazia uma garrafa de conhaque, outra de Calvados, sem saber o que havia de fazer.
Foi assim começou Globotkin. Viro para a rua do Hotel Golbert e vejo três rapazes que fogem, daqueles gajos, sabes, vestidos de couro dos pés à cabeça, calças e casaco, muito justos, daqueles canalhas que nunca atacam sozinhos, mas apenas em bandos, como os lobos. E vejo Eva, encostada à parede, encolhida, mas dando sempre pontapés. Estava de tal modo desorientada que nem dava conta de que já estava sozinha. Amparei-a, para a arrastar para o meu táxi e, ala, para casa! Ele fumava precipitadamente, soprando o fumo pelas narinas. E isto aconteceu ao cair da noite! Apenas a alguns passos do cais Montebello! Ela não estava só, Pierre, havia transeuntes na rua, homens fortes que se deixaram ficar quietos, de calças borradas, com certeza. ”Cobardes! Porcos!”, gritei-lhes, para me responderem, em coro: ”E deixávamo-nos cortar às postas?” Dali a pouco vi os três malandrins a fugirem numa moto barulhenta, pelo Boulevard Saint-Michel.
Ev... disse Pierre, baixinho, enquanto lhe acariciava o rosto e lhe beijava as pálpebras e a boca inchada. Ev... Ev..., o que é que te fizeram? Depois, teve um sobressalto de angústia, olhou, apavorado, para a senhora Beugnon e gritou: Porque não chamam um médico?
É inútil! Para quê? Eva ergueu a mão e fez um gesto para a senhora Beugnon, que, a tremer, pegara no auscultador do telefone. Realmente, não aconteceu nada... só me bateram na boca... tentou sorrir, mas apenas conseguiu crispar os lábios.
Ainda hoje vou conseguir saber onde é o esconderijo deles continuou o príncipe Vladimir. Três dos meus colegas foram atrás deles e vamos saber onde é o antro dos lobos!
E de que é que isso vai servir-nos? disse Pierre. Ele lavava o rosto da jovem, com água morna. O Bolhas, sentado aos pés de Eva, lambia-lhe a mão pendente.
Somos quarenta e dois russos! prosseguiu Globotkin, atirando o cigarro para o fogão de aquecimento que a senhora Beugnon estava a encher até acima. Nós, os russos, sabemos como é que se castigam os lobos!
Parecia, realmente, que Eva estava apenas ”chocada”. Meia hora depois, já subiu as escadas para ir deitar-se. Fez isso tudo sem ser ajudada e troçou de Pierre e de Vladi, que queriam transportá-la. Ficou, depois, estendida de costas e, sobre a roupa, pôs-se a apalpar o ventre. Abanou a cabeça, enquanto Bolhas começava a ganir baixinho; era o seu instinto que o fazia pressentir o perigo.
Cala-te, Bolhas disse ela, num murmúrio. Pierre lidava no canto que servia de cozinha e não a ouvia. Não me atraiçoes, Bolhas, assim é melhor para todos nós...
Durante a noite, Eva sentiu dores e começou a perder sangue.
Quando a ambulância veio buscá-la, Eva torcia-se com dores e a senhora Beugnon ajoelhou-se diante dela para meter um pacote de algodão entre as coxas da jovem.
Amo-te disse-lhe Pierre, Ev, amo-te, não há nada no mundo que eu ame mais do que te amo a ti!
A ambulância dobrava as esquinas bruscamente e os pneus guinchavam no asfalto molhado. O farol azul rodava no cimo da viatura e a sirene lançava o seu grito dilacerante pela noite fora.
”Como as ruas podem parecer infinitas!”, pensou Pierre. ”Como as pequenas distâncias por vezes nos parecem intermináveis e achamos invencíveis as leves dificuldades!”
A Clínica Laennec fica a pouca distância da Rua Princesa, indo pela Praça de Saint-Sulpice, pela Rua de Vieux-Colombier e, depois à esquerda, a seguir à Cruz Vermelha, vira-se para a Rua de Sèvres. Algumas ruas, apenas, mas longas, sem fim...
Amo-te repetiu ele e, subitamente, escondeu o rosto na mão aberta de Eva e chorou: Só poderei viver se ficares ao pé de mim.
Durante uma hora Eva permaneceu entre as mãos dos cirurgiões. Foi uma hora que, para Pierre, parecia não mais ter fim. Durante aquela hora compreendeu, pela primeira vez, o carácter da eternidade e qual o significado das palavras dum filósofo: ”O inferno está dentro de nós próprios!”
Uma enfermeira tinha-o afastado para uma sala pequena cuja porta em vidro despolido dava para o grande corredor. No extremo deste, uma porta de vaivém, em vidro, guardava um mundo interdito: ”Bloco Operatório”, estava escrito no vidro despolido. Naquele corredor reinava um silêncio estranho, um silêncio de morgue. Sentia-se a presença da morte, que estava no seu domínio, por detrás daqueles batentes translúcidos, nas cinco salas de operações, e que esperava, lançando, de vez em quando, um olhar por cima do ombro do cirurgião. Ela esperava... Tal como Pierre de Sangries, que ficara fechado naquela sala, enquanto lhe diziam umas palavras sem qualquer apelo: ”O senhor será informado do que se for passando.”
De vez em quando, Pierre via passar algumas enfermeiras, ou cirurgiões, como rápidas sombras no corredor, tão silenciosas como fantasmas, de batas azuis, barretes nas cabeças, calçando botas esterilizadas, que depois atiravam para um recipiente, do outro lado da porta de vidro, e que iam buscar a um armário, colocando-as nos pés antes de desaparecerem por trás da porta de vaivém.
Idas e vindas silenciosas... Depois, duas macas onde estavam estendidas mulheres pálidas, tapadas até ao queixo, foram engolidas pela porta de vidro. Do lado oposto, chega outra maca, empurrada por dois enfermeiros, na qual um lençol oculta uma forma humana, cuja cabeça, apoiada de lado, tem a cor da cera, de olhos fechados. É uma mulher gorda, Pierre distingue-lhe o opulento seio esquerdo, sob o tecido esticado, mas o lado direito é plano. Pierre apoiou a testa no vidro e sentiu que um suor frio lhe escorria pelo corpo.
Era a primeira vez que se encontrava num hospital e, também pela primeira vez, esperava, junto duma sala de operações. Detestava as clínicas, detestava tudo quanto fosse doença, não podia nada contra isso. Obscuramente, no recanto mais secreto da sua memória o das recordações de infância, existia aquela visão imprecisa, mas inesquecível: uma maca na qual estava estendida a sua linda mãe, levada para fora de casa por dois homens de uniforme; Pierre corria atrás deles e gritava: Mamã! Mamã! Leva-me!” Ela não respondia, parecia estar tão distante... E quando voltou a vê-la estava muito pálida, rígida, deitada em almofadas de rendas, e não lhe respondeu quando a chamou de novo. ”Ela agora é um anjo!”, ouviu alguém dizer atrás de si, numa voz molhada de lágrimas. Mas o que é um anjo? Aos quatro anos, como é que se pode entender isto? A única coisa que ele compreendia era que ela não lhe respondia, e depois puseram uma tampa sobre a mãe, como fazia o ferrador de Travaux, quando fechava a sua caixa de ferramentas.
Desde então, por causa dum sentimento profundamente radicado dentro de si, detestava tudo quanto estava doente, moribundo. Nunca visitava os seus amigos quando estavam doentes, de cama, nem jamais assistira a um enterro e rasgava as participações, quando as recebia. Nunca entrava numa clínica, tal como nunca pintara um quadro que representasse uma paisagem de Inverno, porque o Inverno é o declínio, a morte, é o funeral dum ano, a agonia da Natureza. Todo o seu entusiasmo se virava para a Primavera, com todo o seu potencial de esperança, e para o Verão, com a sua abundância de força e claridade.
Naquele momento, de pé, encostado ao vidro daquela sala anónima, vigiava o corredor com um olhar fixo, via ir e vir as macas, respirava o cheiro agoniativo que lhe provocava cãimbras no estômago e, como se regressasse aos seus quatro anos, não compreendia que um ser que reinava no seu coração pudesse não mais voltar.
O seu único pensamento era Ev. Ev, Ev, e era como se um disco riscado rodasse sem descanso no seu cérebro. Voltarás, Ev? Não me deixes sozinho. Aquela maldita porta de vidro despolido vai abrir-se e tu estarás novamente aqui, viva. Não é possível que não voltes.
Uma hora. Uma hora é bastante para quebrar um ser humano.
Por várias vezes abriu a porta, bruscamente, saindo para o corredor, quando via aparecer um enfermeiro, e sempre lhe respondiam: Não temos ainda qualquer informação para si.
Mas, pelo menos devem saber se Eva Bader... pois vem da sala de operações balbuciava ele.
Há cinco blocos operatórios e catorze mesas de operações, caro senhor explicou-lhe um velho enfermeiro, que se comoveu ao ver que Pierre escorria suor.
Hoje continuou o homem tivemos três acidentes graves de trânsito... com este maldito tempo... As estradas parecem sabão! E os rapazes têm a mania da velocidade, como se fossem loucos. Nada posso dizer-lhe a respeito de Eva Bader.
Ao fim de uma hora, Pierre estava completamente desorientado. No meio do corredor, precipitava-se sobre as enfermeiras e comportava-se de tal modo que já se falava nele para lá das portas duplas. Um jovem médico saiu dum dos blocos, tirou as botas e empurrou Pierre para a sala de espera.
O senhor, porte-se como deve ser disse ele, em voz alta. Se toda a gente se mostrasse tão impaciente como o senhor...
Porque é que Eva ainda não saiu da sala de operações? O que lhe estão a fazer? Porque é que demora tanto tempo? E gritava, contra a sua vontade. Aqueles gritos pareciam ser independentes de si mesmo, ouvia a própria voz como se viesse das paredes lisas, dum branco gélido. Porque não me dizem a verdade?
O jovem cirurgião olhava para ele de sobrancelhas franzidas. Realmente, que merda de dia, pensava ele. Desde as sete horas da manhã que estavam a operar! Parecia uma cadeia de montagem, numa fábrica. As intervenções sucediam-se; depois, uma chávena de café, de tempos a tempos, e uma curta pausa, enquanto se desinfectavam as mãos e já o doente que se seguia estava estendido na mesa. Havia dias assim... Amputação... ressecção... Hoje ainda iriam estar a trabalhar pela noite fora. E ali estava um rapaz que fazia um barulho dos diabos! Que merda de dia!
Essa Eva, é sua mulher? perguntou o jovem operador.
Não disse Pierre, num sobressalto.
É sua noiva?
Não.
Então, porque faz este barulho todo? Sente-se disse ele, indicando-lhe uma cadeira forrada de tecido a imitar couro. Não percebo porque o deixaram entrar! Quem permitiu a sua entrada? Só os parentes próximos...
É preciso que ela viva! gritou Pierre. Doutor, compreende, é preciso que ela continue a viver! Façam tudo o que puderem!
Nunca deixamos de o fazer! replicou o cirurgião, num tom ácido. Quais são então as suas relações com a doente?
Vivemos juntos.
Julguei...
Não!
Espere um pouco!
O operador saiu, empurrou o batente da porta e escolheu no armário outro par de botas esterilizadas e depois desapareceu por detrás dos vidros despolidos. ”Proibida a entrada! Bloco Operatório.”
”Mais um débil mental!”, pensou ele, mas, mesmo assim, perguntou a uma enfermeira em que sala se encontrava Eva Bader e soube que estava na Sala III, com um aborto espontâneo.
Sim, porque também os há! comentou ele, para a enfermeira, atónita.
E pôs-se a pensar no não! lançado pelo seu interlocutor de acaso que fora a encarnação visceral do pensamento. Depois, afastou-se, deixando atrás de si uma enfermeira estupefacta.
Finalmente, viu-a regressar do reino dos mortos pelo menos, era o que Pierre pensava, numa maca que a restituía ao reino dos vivos, conduzida por um enfermeiro e uma enfermeira. Tal como a velhota que sofrera a ablação do seio, estava estendida, coberta com um lençol que a tapava até ao queixo. O seu corpo delgado, infantil, parecia tão frágil aos olhos de Pierre como se na sala de operações tivessem reduzido Eva ao mínimo.
E era como se ele já não tivesse forças para chegar até junto da porta e abri-la. Ficou ali, de olhos pregados na maca que rodava pelo corredor, acariciando com o olhar aquele rosto pálido, emoldurado por uma cabeleira desgrenhada e húmida de suor, a qual, sem o seu esplendor dourado, lembrava um sol despedaçado. Seguiu-a com os olhos, enquanto lentamente a levavam para o ascensor, cujas portas se fecharam sobre ela. Mais uma goela monstruosa que a devorava, que lha roubava.
Pierre quis gritar, mas já era tarde. ”Parem! Quero ver se está viva, se pode ver-me, reconhecer-me! Parem, então! Porque a levam tão depressa? Mataram-na? Porque não se mexe? Já não tem sangue nas veias... não se pode ser assim tão pálido...”
Sentiu que lhe pousavam uma mão no ombro e voltou-se, dum salto. Devia ter um ar horrível, pois o médico que não vira nem sentira entrar ficou por instantes sem poder falar-lhe.
É o senhor Sangries? perguntou ele.
Sou... balbuciou Pierre. Sim, sou eu. Como é que o doutor sabe o meu nome?
A menina Eva pediu-me que o tranquilizasse.
Ela pediu-lhe... pediu-lhe... Pierre passou as duas mãos sobre o rosto que estremecia e sentiu-se cair num poço. Está viva!
Claro que está viva. Até está muito bem. Perdeu sangue, mas não há motivos para receios. Demos-lhe duas injecções. Demorou um pouco mais porque a placenta apresentava dificuldades. O senhor compreende...
Não gaguejou ele, não percebo nada.
Infelizmente, não pudemos salvar a criança...
A criança... Ele abanou a cabeça, como um boneco mecânico. A criança...
Era um rapaz...
Um rapaz repetiu Pierre.
Vocês são ambos tão jovens, ainda podem ter dez filhos! O médico sorria. Acabava de fazer uma observação consoladora, razoável e pensava que ela tranquilizava o seu interlocutor. A menina Bader estará completamente restabelecida dentro de três semanas, mas e sorriu, de homem para homem, aconselho uma certa prudência durante os dois primeiros meses. Está a entender-me?
Estou, sim, doutor. Pierre respirou fundo. Posso ver Eva?
Com certeza. Depois, com um olhar crítico, o médico avaliou Pierre. A sua expressão jovial tornou-se grave, pois tinha que abordar a fase delicada da conversa: Como é que se deu este... acidente? O aborto foi provocado por um traumatismo do abdómen. A pele apresentava equimoses, como as que são produzidas por um choque ou um pontapé. Teve alguma discussão violenta com a doente?
Eu?
Pierre encostou-se à parede, ficando, de repente, com as pernas moles e, no entanto, tinha uma vontade louca de despachar um murro magistral na cara do médico. Depois, acalmou-se. Como é que ele poderia adivinhar o que se passara? disse para consigo.
Julga-me capaz disso, doutor? conseguiu dizer, de garganta apertada.
Na nossa profissão, nada nos espanta respondeu o doutor.
Eva foi atacada em plena Paris, ao cair da noite; dos inúmeros transeuntes que presenciaram a cena, ninguém fez nada, todos continuaram o seu caminho...
Não é possível!
O doutor tirou os óculos de aros de ouro e limpou-os com uma ponta da bata. Apesar de não ter motivos para tal, era como se experimentasse uma espécie de vergonha...
Mas, enfim, pode-se reagir!
Doutor, iria o senhor enfrentar um trio de tipos armados com correntes de bicicletas?
O médico calara-se, embaraçado. Depois, disse, com certa resignação:
Pois, pois, a violência do nosso tempo... é uma herança da guerra.
A guerra... isso foi há vinte e oito anos, doutor. Naquele tempo, não havia ”blusões negros É antes a herança duma geração de filhos demasiado mimados, com o pretexto de os compensar pelas privações dos tempos difíceis! Pierre arquejava, de tal modo este assunto o empolgava; não podia prosseguir a sua entusiástica exposição, mas, depois de enxugar o rosto, mesmo assim, continuou: Na sua mesa de operações, há momentos, o doutor teve o rosto do mundo novo, daquele mundo que nos prometiam que seria justo e generoso... Espezinharam o ventre de Eva, doutor, diante de toda a gente, à luz do dia... Queriam arrancar-lhe a cruz e o fio que usa ao pescoço e ela defendeu-se... Será então proibido resistir quando querem tirar-nos o que é nosso?
Acalme-se, pois, ao menos uma vez, a sorte está do lado da vítima. Ela não sofreu lesões internas, o baço não foi atingido, daqui a três semanas estará de pé... Se não fosse a perda da criança... eficolheu os ombros, apertou a mão de Pierre, com uma espécie de impulso de camaradagem, e afastou-se pelo longo corredor. Voltou-se ainda uma vez, para dizer: Pode ir ver a doente, no quarto 247, parece-me, no segundo andar, pergunte pela menina Amélie...
Pouco depois, Pierre, à cabeceira de Eva, mostrava-se, como de costume, um simpático rapaz de humor jovial. Era-lhe difícil representar o papel; parecia-lhe, até, que não teria forças para tanto. Mas, contra o que esperava, conseguiu-o tão bem que, no seu íntimo, se sentiu envergonhado. ”Como podemos mentir tão facilmente!”, pensava. ”Porque eu tive que aprender a mentir desde a infância, quando olhava para as pessoas com ar de cão escorraçado... o que rendia bom dinheiro e Symphorien, o meu pai adoptivo, sentado junto de mim, recolhia o dinheiro, com ar embrutecido, mesmo imbecil, de olhar turvo, debaixo do velho manto com que cobria a cabeça.
O médico contou-te tudo? perguntou Eva, que, ainda enfraquecida, recebia na veia do braço esquerdo glicose, que corria gota a gota, para a agulha enterrada na sua carne. A enfermeira penteara-a e ela já não tinha um ar tão desgraçado como quando seguia na maca.
Tu sabia-lo desde ontem, Ev?
Desconfiava.
E não tentaste nada para...
Não foi melhor assim, Pierre?
Era um rapaz.
Eu sei.
O médico disse que ainda podemos ter dez filhos! exclamou Pierre, com fingida alegria, acariciando-lhe a mão.
Para isso, são precisos dois, Pierre disse ela, enquanto olhava para o tecto branco.
O reflexo da lâmpada de cabeceira projectava círculos concêntricos de luz. Lá fora, a chuva fustigava os vidros e a noite estava escura como breu.
Não lhe disseste que o filho era teu? continuou ela.
Não.
Eu também não.
Aliás, ele não tem nada com isso.
Absolutamente.
Ela virou a mão e prendeu nela os dedos de Pierre, que a acariciavam. ”Meu Deus, como eu a amo”, pensava Pierre de garganta contraída. ”Como hei-de aguentar viver com ela como se fôssemos irmãos...”
Sabes escrever à máquina? perguntou ela, de repente.
Pierre abanou a cabeça, negativamente.
Mal e só com dois dedos. Henry, o Vermelho, o nosso poeta, ensinou-me qualquer coisa, só aquilo que ele sabe, para poder escrever por dia dez stories que ninguém lê! Ele até já escreveu três romances que andam pelos editores e suspeita de que eles lhes pegam quando querem rir um bocado. Quanto a mim, como sabes, também escrevo novelas.
Amanhã de manhã tens de ir para a loja do senhor Callac. Ele conta comigo para lhe fazer o correio.
Para a loja do Callac? Podes já contratar um cirurgião para proceder às reparações do meu físico: o velho vai dar cabo de mim!
Diz-lhe que vais substituir-me!
Ele deve preferir comer a correspondência a entregar-ma.
Podemos experimentar, Pierre. Peço-te... Ela apertou a mão dele na sua. Vocês todos não conhecem o verdadeiro Callac. Na realidade, está tão solitário como nós. Tem apenas os seus quadros e as suas estátuas e tenho a impressão de que, por vezes, os detesta, por lhe terem absorvido a vida, todo o seu ser!
Pierre acabou por rir com gosto:
Vais ver que me põe fora a pontapé!
Pierre permaneceu junto de Eva até que apareceu a enfermeira da noite, que o mandou embora. As concessões têm limites e aquela ultrapassara já tudo quanto era possível.
No corredor mal iluminado, Pierre fez finalmente a pergunta que, desde que entrara na clínica, o atormentava, embora não tivesse querido preocupar Eva a tal respeito, uma vez que ela parecia nem pensar nisso. Estava tão aliviada, tão feliz, ainda que isso tivesse acontecido à custa dum drama, que se contentara com dar-lhe um beijo fraterno na testa quanta crueldade! no momento em que a deixou.
Minha senhora disse ele à enfermeira que estava sentada no cubículo da recepção daquele andar, isto aqui é uma clínica particular, não é?
Sim, é o serviço do Professor Mauron. Tem qualquer reclamação a fazer?
Não... não... Pierre fez um gesto que interrompeu a conversa. Está tudo muito bem, só me preocupam as despesas. Onde é que devo...?
Amanhã, de manhã, o senhor dirige-se à direcção. A enfermeira da noite sorriu: estes jovens maridos, sempre inquietos! Tudo se há-de arranjar!
Isso seria um sonho, comentou Pierre, em pensamento, sorrindo de través, sim... um sonho.
Boa-noite, minha senhora.
Boa-noite. E acrescentou, lembrando-se de Eva e julgando que fazia bem: Não se preocupe.
Isso também seria bom de mais, respondeu ele bom de mais...
Voltou-se e saiu da clínica. O serviço do Professor Mauron, pensava Pierre, enquanto descia, no elevador, até ao rés-do-chão. E num quarto particular. Teria cara de Rothschild? Não teria coragem de aparecer na direcção da clínica. E o mais tardar dentro de três dias vão pôr Eva na rua!
O príncipe Vladimir estava à espera de Pierre na cozinha da senhora Beugnon. Devorava um bolo, segundo um hábito já estabelecido. Daquela vez, era uma tarte de maçãs, ainda fumegante, o que daria cabo de qualquer estômago que não fosse russo.
A senhora Beugnon, excitadíssima, gesticulava nas costas do príncipe, quando viu Pierre no vestíbulo, e chegou a levar o indicador à testa.
Já sabemos quem são, Pierre! gritou Vladimir Andre jevitch, com a boca cheia.
Ele só diz asneiras, não lhe dês ouvidos! exclamou a senhora Beugnon, interrompendo o príncipe. Como está Eva? Perdeu o bebé, não foi? É caso para rir, ou para chorar? Como é que ela encarou isso? Um aborto, não é o fim do mundo, eu própria fiz três! Amaury era muito ardente e o facto de estar sempre ao ar livre não o enfraquecia. Por duas vezes fui eu mesma que os fiz, com uma agulha de fazer malha, outra vez, utilizei água com sabão e os médicos não perceberam nada.
Não havia nada que a senhora Beugnon não tivesse vivido, e naquele instante falava sem descanso, na esperança de distrair Globotkin, mas este não foi nisso.
Quando ela tomava fôlego, Vladimir Andrejevitch explicou:
Eles estão em Montparnasse, numa cave que, oficialmente, passa por ser um ”centro de juventude”. A quadrilha é composta por doze blusões negros e hoje estão todos reunidos para o serão. Dois colegas meus estacionaram os táxis por ali perto e estão à espera...
Não lhe dês ouvidos! gritou ainda a senhora Beugnon.
Doze gajos daqueles! Vão dar cabo de vocês! Pierre, não tens nada de brigão. Pensa nas tuas mãos, nos teus olhos! O que é que um artista pode fazer com as mãos e os olhos em mau estado?
Eles bateram na Eva como se fosse um pedaço de carne do talho disse Pierre, em voz surda.
Olhou para Vladimir e ambos se compreenderam.
Mãezinha, não deu uma sova numa vendedeira de fruta por causa de duas pêras podres?
Era diferente, ela não estava armada como eles estão, com sequeiras e correntes de bicicletas!
Mas a senhora tinha um valente guarda-chuva na mão! A senhora Beugnon procurou outros argumentos, mas não os encontrou. Com certa resignação, continuou:
Pierre, assumiste responsabilidades perante Eva. Como poderás satisfazê-las se ficares deitado numa cama de hospital?
Ele não correrá perigo garantiu Globotkin. Se os chamarmos pela rádio, juntaremos vinte e dois táxis. Pierre não será mais do que um espectador.
Ora aqui está, realmente, uma vingança baixa! Isso é terrorismo! Isso é... é... mesmo russo! gritou a senhora Beugnon.
Aquilo foi uma espécie de grito de guerra, mas ela foi apanhada desprevenida logo a seguir.
Os teus amigos vão também continuou o príncipe, fazem questão disso.
Duvido que prestem para alguma coisa resmungou Pierre.
Mas não poderás impedi-los?
Pierre, não vás! ordenou a senhora Beugnon.
Mãezinha...
Não voltes a chamar-me assim! Se fores com eles, transformar-me-ei num dragão!
E isso, para que servirá? perguntou callmamente Vladi.
Eles atacaram Eva para a roubarem disse Pierre, lentamente. Ela defendeu a sua cruz de ouro e, na luta, ficou sem o filho, minha senhora. O ventre dela está coberto de hematomas e o cirurgião disse que teve muita sorte por não ter sofrido nenhuma lesão interna como consequência de tais brutalidades. Eles deram-lhe pontapés no ventre. Minha senhora, deixe-me passar e não se ponha diante da porta!
A senhora Beugnon olhou fixamente Vladimir Andrejevitch. O seu maxilar inferior pendeu-lhe, os olhos, ainda belos, rolaram-lhe nas órbitas, como se fosse ela quem estivesse a sofrer tais torturas.
Disse que lhe deram pontapés? perguntou, numa voz estrangulada.
Sim.
Ela afastou-se para o lado e deixou a porta livre.
Deus te proteja, meu rapaz disse a senhora Beugnon, numa voz repentinamente maternal e trémula. Tem razão em agir desse modo, bem o sabe... mas o mundo inteiro tem a cabeça virada ao contrário. Já nem se sabe onde está a razão.
Eles passaram diante da senhora Beugnon e embrenharam-se no vestíbulo. Mas, de repente, Pierre voltou atrás e deu um beijo na fronte abundantemente empoada da senhora Beugnon.
Depois correram para o táxi de Globotkin.
Relatório do tenente da Polícia René Branne, do Comissariado do XIV Bairro:
”As 22 horas, o Comissariado da Polícia foi avisado de que tinha havido uma violenta desordem no Clube Juventude 2000, na Avenida Denfert-Rochereau. Foram enviados imediatamente dois carros-patrulha para o local, aonde chegaram às 0e 35. No clube e na rua, o silêncio era total, a rua estava deserta de transeuntes e não haviam sinais de violência. Notava-se, apenas grande concentração de táxis, anormal àquela hora, mas estes dispersaram rapidamente. Soube-se, mais tarde, que, no café Creole, do Boulevard Montparnasse, tinha havido uma grande reunião, por causa da remodelação da decoração, o que explicava a presença de tão grande número de táxis.
Ao penetrarem no Clube Juventude 2000, os agentes da força pública encontraram o seguinte:
René Branne, agente da Polícia.”
Cerca das 2 e 30 da manhã, Vladimir Andrejevitch e Pierre apareceram novamente na Rua Princesa. A senhora Beugnon ainda estava a pé e encontrava-se no meio da cozinha, bem iluminada, tão imponente como a estátua dum comandante, junto da gigantesca cafeteira de café que acabara de preparar, ao qual juntara uma garrafa de conhaque velho.
Foram chegando em três táxis... alguns motoristas russos, os amigos de Pierre e Bolhas, que tinha sido baptizado como ”o cão mais feio de Paris”. Surgira misteriosamente no meio da desordem e Pierre afirmava que ele seguira o táxi, a correr, o que teria sido uma verdadeira corrida olímpica.
Aquilo foi muito simples explicou o príncipe, quando todos se reuniram em volta da senhora Beugnon.
Primeiramente, tinham lavado com água fria os sinais das pancadas e os ferimentos que todos traziam nos rostos ou nas mãos. Pierre, tivera também necessidade de se refrescar, pois não se contentara com o papel de espectador. Trazia um olho ”ao peito”: fora o Bolhas que o obrigara a passar à acção. Com efeito, este aparecera de surpresa no Clube Juventude 2000 e, com uma valentia extraordinária, metera-se no meio da confusão. No momento em que ferrava os dentes no rabo dum dos blusões negros, um camarada deste, vindo em seu socorro, tentara feri-lo com uma faca; para Pierre foi o sinal de passar à acção. Empunhando uma cadeira, batera à sua volta, salvara o Bolhas do perigo e não cessara de combater mesmo no centro da luta.
Foi uma operação precisa, breve, perfeitamente conduzida concluiu Globotkin, erguendo o seu copo de conhaque. Agora, eles sabem que doze mil e quinhentos motoristas de táxis lhes fazem frente e que os trazemos debaixo de olho!
Depois disto, bebeu o seu conhaque duma só vez e atirou o copo contra a parede, onde se estilhaçou.
São assim os homens concluiu a senhora Beugnon, sempre prontos para andarem à chapada... Provocadores, que se há-de fazer!
Festejaram até de manhã e o príncipe até cantou uma barcarola da sua terra, o que o lançou numa terrível tristeza, apesar de nunca ter posto os pés na Rússia.
Na manhã seguinte, às 9 horas em ponto, tal como Eva lhe pedira, Pierre compareceu na loja do senhor Callac.
O velho, que estava sentado à sua secretária, bebia um café generosamente molhado com conhaque e, pelo mostrador da televisão ia vigiando a entrada da galeria. Quando viu Pierre de Sangries, bateu o punho na secretária; mas como Pierre não trazia nenhum quadro debaixo do braço, sentiu-se relativamente tranquilizado; no entanto, ele podia ter pousado os seus horrores no passeio, junto da porta... sabe-se lá?
Callac ergueu-se e entrou na galeria com o ar altivo que alguns lhe admiravam e outros detestavam.
Olha! disse ele, antes mesmo de Pierre ter podido explicar a razão da sua visita. Estou a ver que um colega já o brindou com um olho negro... Vem ter comigo para que lhe faça o mesmo ao outro?
Por vezes dava vontade de estrangular Callac, mas Pierre calou-se, esperando novas proezas verbais, pronto a dar provas duma paciência sem limites. Mas Callac decidiu economizar as suas munições e manteve-se calado. Ficaram assim por momentos, frente a frente, em silêncio, o que permitiu que Pierre olhasse o fascinante Callac, os seus olhos azuis claros, o rosto burilado por um número de anos próximo do século. Era impressionante.
A quem pretende vender um quadro? perguntou finalmente Callac.
Que quadro, senhor?
E o seu olho, tão lamentavelmente ornamentado a negro...
Saiba o senhor que ficou assim por causa de Eva...
Ela acabou finalmente por lhe dar um murro bem merecido? Valente rapariga! Amo-a como se fosse minha filha. Mas o que está a dizer torna-a ainda mais interessante aos meus olhos. Onde é que ela está?
Na Clínica Laennec.
Você bateu-lhe, em resposta? Seu canalha!
Perdão, senhor Callac. O velho parecia realmente decidido a agir. Permita-me que lhe explique tudo: ela foi atacada na rua, ontem à tarde e, durante esta noite, os meus amigos e eu ajustámos contas com os agressores. Pode ler a notícia, logo, no France-Soir. Foi ela quem me mandou cá para a substituir...
Eva mandou-o cá? A você? Esta é forte! Enfim, venha comigo, rapaz... E conte-me o que aconteceu. Eva foi atacada? É incrível!
Pierre encontrou-se no escritório, no lugar habitual de Eva, e bebeu quatro cálices de conhaque, para obedecer ao seu anfitrião. Este entregara-se a uma actividade febril, telefonara para o hospital, para pedir uma entrevista com o Professor Mauron; depois, para um florista, para encomendar um grande ramo de rosas, que deveria ser entregue a uma jovem doente e, por fim, fitando Pierre bem de frente, disse-lhe:
Está a par do trabalho de escritório?
Estou mentiu Pierre, com ar seguro.
Sabe escrever à máquina? continuou Callac, sempre secamente.
Com certeza, senhor Callac.
Então, porque é que pinta?
Pierre tinha uma resposta azeda na ponta da língua, mas, por amor de Eva, limitou-se a encolher os ombros, o que lhe fez recordar a solidão do Bolhas, o pequeno cão abandonado, sentado à chuva, à espera de que uma boa alma tivesse pena dele. As 11 horas, Pierre tinha lido a correspondência, respondera a algumas cartas inspirando-se nas cópias que Eva guardava e tinha tomado nota de tudo e posto as coisas em ordem. Callac estava a discutir com um rico amador de pintura que queria pagar a compra dum Bernard Buffet em duas prestações o que Callac se recusava a admitir.
Estou de acordo disse Pierre, quando Callac veio ter com ele. O amador deixara-se convencer e pagara a pronto. Ainda há quatro entregas para fazer e eu posso encarregar-me disso, senhor, pois sirvo para tudo, até para transportar quadros!
Callac sentou-se e, depois de se servir de aguardente, passou a garrafa a Pierre, dizendo:
Você ama Eva?
Pierre, que não esperava por aquela pergunta, sobressaltou-se:
Sim, senhor Callac.
Por causa dela correu um grande risco.
Não foi assim tão heróico, senhor, o cãozito Bolhas fez tanto como eu!
Ficou com um olho ferido, o olho dum pintor! Callac olhou fixamente o visor do aparelho de televisão interna: estava vazio, pois na galeria, não havia ninguém, mas, naquele momento, ele não queria olhar para Pierre: Amanhã, traga-me um dos seus retratos de Eva disse ele. Evidentemente que isso não significa nada a seu respeito.
À noite, Pierre deteve-se no cubículo da senhora Beugnon, com os braços carregados de âsteres, para levar a Eva. Sentou-se à mesa da cozinha e olhou demoradamente o Bolhas, ”o cão mais feio de Paris”, que, deitado diante do fogão, abanava a cauda, preguiçosamente.
Mãezinha, sabe que o Bolhas acaba de vender um dos meus quadros a Callac?
Pierre penetrou no serviço do Professor Mauron com a sensação de brincar aos aventureiros, personagem que só com dificuldade poderia assumir, dado que não tinha qualquer experiência na arte de enganar os outros. Sentia-se, na verdade, muito pouco à vontade.
À luz do dia, a clínica pareceu-lhe diferente de quando a vira, no decorrer da noite dramática em que Eva tinha sido operada. O quarto de Eva tinha uma casa de banho, luxuosos armários de portas laçadas, um rádio-televisor, e assemelhava-se mais a um apartamento num hotel de luxo. Pierre, ao ver aquilo, nem teve coragem de imaginar as despesas que tal instalação originaria. Sentou-se à cabeceira de Eva e beijou-a, colocando os ásteres sobre a cama. A enfermeira, que ele encontrara no corredor, pôs-se logo à procura duma jarra. Naquele hospital, eram simpáticos e rápidos no serviço.
”Quanto custará uma diária neste estabelecimento?”, perguntava Pierre a si mesmo, ”duzentos e cinquenta, trezentos francos? Mais? E as visitas do Professor Mauron? Cada um dos seus apertos de mão deve ser fogo. Isto é uma ameaça que paira sobre mim, daqui a pouco aparece-me um daqueles senhores da direcção que vai pedir-me que entregue uma provisão. Quanto trago eu comigo? Vá lá, uns trezentos e cinquenta francos... o que talvez chegue para pagar um dia!”
Tu estás magnífica, Ev disse ele, alegremente Ev... na verdade, és uma beldade criada para se refastelar num leito!
O seu olhar encontrou o dela, de passagem, e Pierre refugiou-se numa brincadeira complicada.
Pompom acha que o Bolhas podia fazer um número no Variétés, colaborando com ele. Imagina que o Bolhas descobriu uma nova maneira de se exprimir: pisca os olhos aos seus interlocutores, mas nem sempre está bem disposto e tem as suas manias! É preciso ter cuidado, se uma cara não lhe agrada!
Onde é que arranjaste esse belo ornamento negro no olho, Pierre? perguntou Eva, que nem sequer sorrira quando ele evocou as gracinhas do Bolhas.
Apanhei com o meu tríptico... mesmo em cima do olho.
Pierre, não mintas! Ela ergueu-se um pouco, nas almofadas. Andaste à pancada!
O senhor Callac pede-me que te dê os seus cumprimentos... disse ele, embaraçado, pois as rosas vermelhas que Callac enviara estavam junto de Eva, sobre a mesa de cabeceira. O primeiro dia com ele foi insuportável...
Com quem andaste à pancada, Pierre?
Imagina só: o Bolhas vendeu um quadro! Contei ao senhor Callac as aventuras do Bolhas e ele diz-me...
Andaste à pancada por minha causa!
Ele disse o mesmo.
Pierre!
Ev...
Olharam-se e foi o fim de todas as mentiras, de todos os segredinhos. O que cada um deles lia nos olhos do outro só tinha significado para os seus próprios corações.
Sim disse, por fim, Pierre. Esta manhã, ao alvorecer... encontrámo-los. Os colegas de Vladi infligiram-lhes uma séria derrota. E eu encontrei-me no meio da confusão por causa do Bolhas, que, por ter ferrado os dentes no rabo dum adversário, estava prestes a receber uma facada na sua destemida carcaça! Sim, porque ele lutou como um herói! Tem um coração de leão!
Deixa de te portares como a avestruz, escondendo-te atrás do Bolhas! Com uma mão nervosa, brincava com os ásteres e desfolhou algumas corolas. Eles podiam ter dado cabo de ti! Podiam ter-te estropiado para o resto da vida, com as suas correntes de bicicletas, com as soqueiras e as facas, sei lá com que mais? Nem sequer pensaste em mim?
Só pensei em ti, Ev!
Na vingança. Esse gosto primitivo da vingança! E se te tivessem deixado aleijado para sempre?
Ele deu um fundo suspiro e agarrou a mão dela, que desfolhava as flores.
Tiveste medo por minha causa, Ev? Foi verdade que tiveste medo por mim?
Naturalmente que tive medo por tua causa, idiota! esclamou Eva com mais dureza do que teria desejado. Na verdade, era a declaração de amor mais fora do vulgar e ao mesmo tempo a mais franca que podia fazer-se. Tu não és violento!
Claro que não!
É por isso que eu te amo, Pierre.
Era a segunda declaração de amor.
”Como foi que eu mereci tanta felicidade”, pensava ele. Tanta felicidade e o imperioso dever de fugir... O que eu exijo de mim mesmo em breve estará para além das minhas forças humanas...”
Bateram à porta. A enfermeira de serviço meteu a cabeça pela abertura: um rosto vermelho de indignação, ela parecia muito excitada e disse, numa voz que deixava transparecer uma tempestade:
Pode chegar aqui por um instante? Parece que o seu cão não se contentou em segui-lo até aqui, onde é proibida a sua presença, mas também julga que é ele quem manda... Não se pode entrar nem sair do corredor, pois ele está a guardar a porta, ferozmente!
Pierre correu para o corredor. Então, o Bolhas tinha-o seguido, desde a Rua Princesa até à Clínica Laennec? Até tinha subido dois andares!
Ao afastar-se, Pierre ouvia ainda o riso de Eva, que enchia o quarto com as suas ressonâncias cristalinas.
À entrada do corredor, no segundo andar, de patas afastadas e dentes à mostra, sem se deixar intimidar pelos cabos de vassouras ou punhos que o ameaçavam, encontrava-se ”o cão mais feio de Paris”.
O senhor é que é o dono deste animal apocalíptico? perguntou um velho médico que, prudentemente, se encostara à parede, para prevenir qualquer eventualidade.
Mas, ao ver Pierre, Bolhas deu um salto para os seus braços e depois encostou o focinho húmido ao pescoço do dono, soltando um grande suspiro de cão... Um suspiro de cão feliz.
Pretende levar este animal ao gabinete do Professor Mauron? perguntou a efermeira-chefe, horrorizada, quando Pierre começou a afastar-se.
Com certeza, o que havia eu de fazer? Uma vez que tenho que ir falar com o Professor, não posso deixá-lo aterrorizar a Clínica Laennec em peso!
O Professor Mauron esperava Pierre num aposento cujas paredes estavam cobertas de estantes carregadas de livros e diante duma mesa não menos atafulhada de processos e de apontamentos. Levantou-se quando Pierre apareceu, com o Bolhas nos braços. A secretária, que se encontrava na antecâmara, renunciara a qualquer protesto, quando o cachorro lhe lançara um olhar irresistível.
Não sabia o que havia de fazer para acalmar o meu cão, senhor Professor disse Pierre, com as duas mãos cruzadas sobre o dorso do Bolhas, todo encostado no seu ombro. Acredite que isto me contraria, tanto mais que tenho razões para pensar que vamos ter que falar dum assunto que me preocupa seriamente. Mas como Eva se encontra no seu serviço e eu próprio me dirigi para cá, não sei que ideias puderam surgir na cabeça do nosso cão!
Desde que gosto de cães compreendo melhor os seres humanos, disse um filósofo. Sente-se continuou o professor, indicando-lhe uma velha poltrona de couro.
A sua amabilidade desarmou Pierre, que tinha tomado a decisão de ”dizer toda a verdade” ao professor. A maneira como este o acolheu, com simplicidade, desarmava-o na sua atitude de homem prestes a atingir o fundo da desolação.
Já foi à direcção?
Não, senhor professor.
Bom, vai começar pensava Pierre, que colocou o Bolhas em cima dos joelhos, suspirando profundamente.
Este animal é o resultado de múltiplos cruzamentos, é verdadeiramente extraordinário reconheceu o professor.
Eu fazia tenção de passar pela direcção depois de falar com o... senhor começou Pierre, de garganta seca.
Normalmente, não me ocupo destes assuntos, mas passa-se algo de estranho e eu gostaria que me desse alguns esclarecimentos a tal respeito. As várias despesas de hospitalização e tratamento referentes à menina Bader foram pagas adiantadamente, esta manhã, por intermédio de dois notários, por ordem de pessoas anónimas, ao que me parece.
É impossível... disse Pierre, desconcertado.
Não tinha conhecimento disto? Talvez tenha feito um depósito num dos seus notários, prevendo casos desta natureza?
De certeza que não, senhor professor!
Isto é tanto mais enigmático quanto os notários guardam absoluto silêncio sobre o caso. O professor inclinou-se sobre a secretária e pegou num sobrescrito: Há cerca de uma hora, recebi um terceiro pagamento antecipado, desta vez acompanhado dum endereço; é um cheque enviado por um príncipe Globotkin.
Vladimir... articulou Pierre, comovido
Este, conhece.
É meu amigo. Pierre acariciava a cabeça de Bolhas, sem dar conta de que a mão lhe tremia. Então eles cotizaram-se para pagarem as despesas de Eva, ainda se encontram amigos neste mundo...
Quem não conhece os russos brancos de Paris, meu caro senhor? A sua generosidade na amizade, bem como os seus talentos de artistas!
Este príncipe é motorista de táxi, senhor professor.
Ah, sim? E qual o cheque que devemos aceitar? Realmente, era esta pergunta que eu queria fazer-lhe.
Um dos cheques anónimos, senhor professor! Pierre levantou-se, apertando Bolhas contra o peito: Senhor professor, sabe o que é a felicidade?
A felicidade é uma noção absolutamente subjectiva.
Quando se sente o desejo de continuar a viver, será isto um sinal de felicidade, senhor professor?
O professor olhou Pierre com certa surpresa e, depois, pensativamente. Uma pergunta destas só os velhos a fazem a si próprios, no fim dos seus dias.
Você goza ainda de todos os privilégios da juventude, senhor Sangries. Depois, ergueu-se da sua poltrona e contornou-a. Bolhas não lhe rosnou, o que provava claramente que incluía o professor no número das pessoas dignas da sua confiança. Permite que lhe faça uma pergunta indiscreta?
Com certeza, doutor.
Você não tem dinheiro? E a menina Bader também não?
Restam-nos trezentos francos até ao fim do mês. Eu sou pintor, senhor professor.
Oh, diabo!
É como diz!
E não suspeita da identidade dos seus benfeitores anónimos?
Não faço a mínima ideia. Pierre teve um sorriso um pouco triste. Nunca tive qualquer benfeitor, a não ser a senhora Beugnon...
Talvez fosse ela!
Certamente que não! Pierre teve um riso constrangido. A senhora Beugnon de Birague tem o hábito de regatear sempre que faz qualquer compra, é o terror dos pequenos comerciantes do bairro...
Então este enigma nunca será resolvido. Mas, o que é que o senhor pinta? perguntou o professor, com cortesia.
Todavia, não foi ao ponto de apertar a mão de Pierre, pois o Bolhas manifestava um certo nervosismo devido ao esforço prolongado para se comportar exemplarmente.
Pierre encostou-se à porta:
O sol, senhor professor... pinto o sol, a incandescência que é a vida.
Como Van Gogh.
Mas eu não tenciono cortar uma orelha!
Não me parece capaz de um tal gesto. O sorriso do professor tomou a expressão de bondade paternal, mas sem qualquer piedade, o que encantou Pierre. Quer pregar uma partida aos seus benfeitores anónimos? Eu mando devolver todos os cheques e o senhor pintará para mim até o pagamento da ”dívida” ficar liquidado.
O senhor não sabe no que se mete. Pierre apertou tanto o Bolhas contra o coração, que este rosnou, em sinal de protesto. Eu devo ser o pintor menos dotado de Paris, tal como o Bolhas é o cão mais feio.
O que não o impediu de encontrar pessoas que apreciem as suas pinturas? Traga-me amanhã uma das suas obras. O que é que pinta actualmente?
Eva... disse Pierre, baixinho. Apenas Eva, o sol e Eva...
É um tema magnífico disse o professor com um gesto de encorajamento. Se o senhor souber pintar como sabe amar, o mundo inteiro há-de falar de si, um dia.
Como se estivesse assombrado, Pierre saiu do gabinete. No interminável corredor, encostou-se à parede. Mal via os médicos, as enfermeiras, os doentes, que, espantados, o olhavam, quando se cruzavam com ele. Pintar como sei amar...”, repetia para consigo. ”Se tal fosse possível, eu criaria obras como nunca olhos humanos viram.”
A Polícia do XIV Bairro fez investigações em vão.
O tenente Branne tinha a impressão de esbarrar numa parede de borracha quando entrava em pormenores, no decorrer dos interrogatórios. Os blusões negros do Clube Juventude
2000 falavam de tudo, da socialização da polícia, da luta de classes, da destruição da burguesia reinante, etc., mas quando se abordava aquela noite misteriosa que marcara a sua derrota, fechavam-se num mutismo estranho. Decerto se passara qualquer facto muito importante durante aquela noite, o qual transformara os jovens associados valentes em cordeiros que fugiam às explicações por desmaios em série. O tenente Branne quebrava a cabeça a estudar a questão e não avançava um passo.
Vinte e três motoristas de táxi, entre os quais rapazes com as dimensões de armários-frigoríficos, que não sabiam exprimir-se por palavras, mas não hesitavam em bater. Um gajo gorducho, de barba ruiva, que a polícia encontrara a pintar uma poesia na parede, no meio da confusão da luta. Um rapazito cujo esqueleto parecia de borracha, que ninguém conseguiu apanhar, porque escorregava entre os dedos, como se fosse um sabonete, e finalmente um tipo alto e descarnado, que, quando todos os combatentes tinham esgotado as forças, passeava entre os destroços do local, murmurando orações. Tudo isto, tendo como pano de fundo a ameaça: temos doze mil motoristas de táxi prontos a ajustarem contas com vocês!
Quem aguentaria aquilo e, especialmente, quem poderia contá-lo?
No entanto, o tenente Branne, ao interromper os interrogatórios, tinha dito:
Não desisto de esclarecer completamente este caso. Só pode tratar-se dum ajuste entre duas quadrilhas de delinquentes e isto aconteceu no meu bairro! Temos que salvar a honra, camaradas!
Naquela mesma tarde, enquanto Pierre pintava, no sótão, Bolhas dormia na sua cama e Henry, o Vermelho, preparava um grogue, a senhora Beugnon de Birague telefonou ao senhor Callac.
Ah! É você, Celeste! Ele reconhecera a voz dela, à primeira sílaba. Ia justamente falar-lhe: apesar de todos os direitos que uma antiga e tão grande paixão lhe confere sobre mim, permita-me que lhe diga que, desta vez, foi longe de mais!
Não diga asneiras, Manus rugiu a senhora Beugnon, tão alto que Callac, assustado, afastou o receptor da orelha. A que propósito é que se mete nos meus assuntos de família?
De família? Callac sentou-se e, com a mão esquerda, pegou na garrafa de conhaque. Nunca lhe pedi a honra de conhecer a sua família!
Pierre e Eva constituem a minha família! gritou a senhora Beugnon. O Dr. Foulandre, meu notário continuou ela, disse-me que o senhor tinha mandado pagar, secretamente, a conta da clínica. Não se faz, Marius!
E o meu notário, Dr. Dumoulin, descobriu igualmente que você se encarregara de pagar as despesas da clínica, que só a mim dizem respeito! Sim, porque Eva é minha empregada.
Está a comportar-se como se ela fosse sua amante!
Celeste! Isso é infame! Confesso que esta criança conquistou a minha afeição, podia ser minha neta; enfim, iluminou a minha vida e estou-lhe grato por isso, Celeste! E o que venho eu a saber? O meu notário diz-me que a clínica do Professor Mauron recusou o cheque porque a despesa já estava paga. Foi você!
Ah!
Callac sobressaltou-se, tivera a impressão de que, do outro lado do fio, a senhora Beugnon caíra da cadeira. Bebeu apressadamente um gole de aguardente e disse para o aparelho, numa voz inquieta:
Celeste, o que é que tem? Diga qualquer coisa! Sente-se mal? Fale, peço-lhe!
Você também, Marius? retomou a voz da senhora Beugnon, desta vez em tom normal, o que nela era sinal dum profundo abalo.
O que quer dizer com isso?
Também lhe devolveram o cheque?
Isto põe-me fora de mim! Na verdade, devolveram-me o cheque. Uma terceira pessoa pagou, um desconhecido, que se permitiu vir em auxílio da nossa Eva!
A voz da senhora Beugnon voltava ao timbre habitual.
Trata-se, talvez, da família Chabras! continuou Callac.
Como você é ingénuo, Marius! exclamou Celeste a plenos pulmões. Para os Chabras, Eva já não existe. Acha possível que Eva tenha uma vida dupla?
Com certeza que não, Celeste. Callac bebeu um longo gole.
Um amante oculto?
Punha as mãos no fogo por ela...
Marius, volte atrás algumas dezenas de anos: eu era uma rapariga muito bem guardada, o meu pai trazia-nos debaixo de olho e, mesmo assim, nós encontrámo-nos na Camarga.
Nunca o esquecerei, Celeste.
Callac olhava o frasco de aguardente com ar sonhador. ”O que é que me ficou da vida?”, pensava ele. ”Paredes cobertas de quadros, riquezas que ninguém virá a herdar, serões solitários em frente da televisão, o frasco de aguardente champanhesa ao alcance da minha mão. A vida é uma porcaria quando não sabemos porque é que vivemos.”
Nós éramos bem manhosos, não éramos, querida?
Quem é o terceiro pagador? Estou a rebentar de inquietação, Marius!
Amanhã havemos de sabê-lo. Vou falar com Mauron. Hei-de arrancar-lhe o segredo, com a ajuda dum Sisley que ele anda a cobiçar...
Boa noite, Marius!
A conversa ficou por ali, mas entre eles ficavam muitas coisas por dizer. Não se podem recuperar os dias perdidos, mas pode ainda sofrer-se por causa deles e era este desgosto que naquela noite atormentava os dois velhos.
Há recordações de que as pessoas se alimentam, como quem vai matar a sede à Fonte de Juventude.
Resta tirar a limpo esta questão: por que razão Pierre, ao voltar da Clínica Laennec, não disse nada à senhora Beugnon acerca do que ficou combinado entre ele e o Professor Mauron?
A resposta é simples: porque tinha medo. Estava aturdido pela frase que Mauron lhe lançara ao rosto: ”Pinte tão bem como ama!”
No seu regresso, Pierre trocara apenas algumas palavras com a senhora Beugnon.
Como era hábito, ela estava na cozinha, com a porta aberta e, vendo que ele vinha a caminho de casa, deteve-o com a sua voz imperiosa:
O que quer isto dizer, entra-se assim em casa à sorrelfa, como um malfeitor, sem sequer pensar em comer? Fiz miolos com molho ”poulette”2. Vai fazer-te bem!
Estou arrasado, mãezinha disse ele. Comi na clínica...
É isso, comes a ração duma doente, na hora da visita! Conta-me, fala de Eva, meu pateta!
Vai sair da clínica daqui a quinze dias... e está bem.
O que lhe disseste acerca do olho negro?
Disse-lhe a verdade. Boa noite, minha senhora.
Chegado lá acima, ele sentou-se adiante do cavalete e retirou o pano que cobria a tela começada a pintar e que representava Eva, no estilo dum velho ícone russo. Iniciara-a três dias antes, movido por um súbito impulso.
Era de tarde. Eva estava junto da grande janela, através da qual olhava o ouro avermelhado do sol-poente e aquele halo ardente rodeava-lhe a cabeça como a auréola que envolve as cabeças santas, nas velhas imagens piedosas.
1 Fontaine de Jouvence, no lexto ronte de água fabulosa, que restituía a juventude perdida, muito falada nos romances de cavalaria (N da T)
2 Molho feito com manteiga, um pouco de vinagre e uma gema de ovo (N da T)
Ao olhar para a tela, naquele momento, o que via parecia-lhe horroroso e, no entanto, não tinha coragem de destruir o esboço.
”Será Eva uma santa aos meus olhos?”, perguntava a si mesmo. ”Não a vejo doutra maneira, quando estou sozinho e penso nela? Não a imagino deitada na cama, nua e tão humana, sedutora e até provocante? Nesses momentos, não sinto o desejo de me lançar sobre ela, tirando a minha roupa, para estar com ela, como acontece nos meus sonhos? Eva é um corpo vivo, acessível, cheio de desejos, de seios palpitantes, de coxas que se abrem. Acima de tudo, não é ela isso mesmo, para mim?”
”Não, eu nunca serei um grande pintor, o Professor Mauron acaba de mo dizer, nunca eu conseguirei pintar do mesmo modo como amo Eva... isso seria um verdadeiro caos transposto para a tela...”
À uma hora da manhã, Vladimir Andrejevitch apareceu na Rua Princesa. A senhora Beugnon ainda não se deitara e, sentada à mesa da cozinha, fazia uma paciência. Mimoseou o príncipe com um grunhido pouco acolhedor em matéria de boas-vindas. Dava vontade de perguntar quando é que ela dormia, o que era um mistério tão impenetrável como as revelações fornecidas pelas cartas que ela consultava.
Esta tarde, tratámos de pagar a despesa com o internamento na clínica. Eva, se quiser, pode ficar lá um mês inteiro disse Globotkin, enquanto desabotoava o casaco, pois na cozinha da senhora Beugnon reinava um calor de estufa.
Na Rua Princesa, ninguém se lembrava de ter visto a senhora Beugnon ornada das graças da sua juventude ardente e ao mesmo tempo langorosa. E, por isso, o espectáculo da gorda senhora, cujos dedos roliços percorriam as filas de cartas, não despertava nenhuma reminiscência nostálgica.
Então foram vocês? disse ela, finalmente. Príncipe, eu tenho vontade de te beijar!
Vladimir preferiu esquivar-se em direcção às escadas, para escapar aos possíveis beijos, e a senhora Beugnon, como compensação, ligou o telefone para Callac, para lhe participar o seu entusiasmo, e berrou para o aparelho:
O benfeitor desconhecido foram os nossos motoristas de táxi!
Callac sacudiu o receptor, sem fôlego, e teve a impressão de ter perdido o pé neste mundo demasiado irracional.
Quais motoristas de táxi? articulou.
Ora, vai-te deitar outra vez e dorme, Marius ralhou a senhora Beugnon. A juventude actual vale mais do que nós valíamos! concluiu ela, antes de desligar.
Callac não percebeu nada, mas também não conseguiu adormecer de novo. Sentado na cama, ruminou, preocupado, perguntando a si mesmo se Celeste não estaria um pouco desarranjada da cabeça.
A coisa complica-se! declarou Vladimir Andrejevitch sentando-se sobre a cama de Eva. Deu um beijo na cabeça do Bolhas, pôs-se à procura dos cigarros numa das algibeiras do casaco e, finalmente, continuou: Tens um álibi entre as cinco e as sete horas, Pierre?
Estava no hospital, junto de Eva.
Estás com sorte, porque... o príncipe acendeu o cigarro.
Ontem, entre as cinco e as sete, Julien Chabras foi abatido com um tiro, diante do portão do Castelo da Aurora.
Os jornais da manhã anunciavam todos em grandes títulos o acontecimento. Afinal a família Chabras contava-se entre as duzentas mais importantes.
A Polícia não suspeitava de ninguém. Fernand Chabras ainda sugeriu a possibilidade de certas represálias da esquerda... Myrna Chabras tinha sofrido um terrível choque e estava de cama, com três médicos ao pé.
Os factos eram claros: Julien passeava os cães de guarda no parque, um carro parara em frente do portão e só fora disparado um tiro, mas a vítima havia sido atingida exactamente entre os olhos. Tratara-se de um tiro de espingarda, pois, àquela distância, um tiro de revólver não teria tanta precisão.
James testemunhava naquela ocasião, conservava a sua expressão distante, especificamente britânica ter visto a viatura do crime, um grande ”DS Citroen”, mas há bastantes em Paris.
Para a senhora Beugnon, ocupada a ler a imprensa da manhã, diante dum copioso pequeno almoço, o relato do assassínio parecia-lhe menos excitante do que a entrada, de rompante, do príncipe Globotkin, que atirou um sobrescrito sobre a mesa. Este, tinha o timbre da Clínica Laennec. Mas o príncipe, que não perdia o sentido das responsabilidades, agarrou com mão lesta a grande chávena de café simples que a senhora Beugnon lhe estendia.
Levaram isto hoje ao escritório central dos táxis: é o nosso cheque que era destinado a Eva! Vem acompanhado destas palavras: ”Já está tudo pago”.
Isso não é verdade! A senhora Beugnon, com um gesto da mão, afastou os jornais da mesa e puxou para si o sobrescrito que Globotkin ali depusera. O seu rosto carnudo que, àquela hora, ainda não estava coberto pela carapaça habitual de pinturas, pareceu tornar-se maior: E o príncipe aceitou isto ?
Evidentemente que não. Telefonei para a direcção: pagaram já a caução relativa a dez dias por intermédio do Credit Lyonnais.
Foi Callac, ele tem uma conta no Credit Lyonnais, que eu sei. Que Tartufo aquele! Conseguiu ultrapassar-nos a todos! Mas eu não vou encaixar isto, como ele pensava talvez! Vou mostrar-lhe a madeira com que me aqueço, pouco me importa que, hoje mesmo, ele compre um quadro de Pierre!
Vladimir achou prudente sair da Rua Princesa, onde reinava aquele clima de vingança.
Para Callac, o dia começou de maneira diferente.
Este, passara uma noite em claro e encontrava-se sentado no seu pequeno escritório, quando Pierre chegou, transportando um dos seus quadros envolvido num pano e lançou um olhar à objectiva, oculta, da televisão interna.
Bom dia, senhor disse ele, sabendo que tanto a visão da sua pessoa, como a sua voz, seriam transmitidas a Callac, no pequeno écran. Posso colocar já o quadro no cavalete?
O cavalete para observação era uma ideia de Callac. Quando lhe apresentavam uma tela, para venda, esta era automaticamente colocada no meio da galeria e Callac absorvia-se num exame minucioso. O dia estava sombrio, uma capa de nevoeiro pesava sobre Paris, nas ruas, os carros circulavam com os faróis acesos... mas ali, na galeria Callac, o sol brilhava, de repente, aquele sol que tudo transforma.
Calac, de pé, diante do cavalete, olhava fixamente para aquela pintura, através das lentes espessas, e calava-se. Pierre sentia a vergonha crescer dentro de si.
Vou tirá-lo daí disse ele, numa voz abafada, realmente, ele nem vale as tintas que gastei. Desculpe-me.
Pierre, você já esteve na Provença? perguntou Callac, calmamente.
Já... até fui para lá a pé e pedi esmola em todos os cantos conhecidos. Aos dez anos, fingia que era epiléptico. Tínhamos dias bem bons!
E na Camarga! Callac acentuou esta palavra com uma certa solenidade.
Essa época não foi boa. Por lá, é inútil pedir esmola, quem quiser ter dinheiro tem que trabalhar, mas raramente se encontrava trabalho. Apesar disso, andámos a marcar gado.
Callac olhou novamente para a obra de Pierre. O dia cinzento que penetrava na galeria parecia ter sido aniquilado. Aquele era um dia de Verão, como os que vivera teria sido há um século? na companhia de Celeste.
É preciso que você parta qualquer dia, de carro, para a Camarga, com Eva, Pierre continuou Callac. Não se podem pintar paisagens num sótão, tendo em primeiro plano uma horrível chaminé e mesmo em frente do próprio quarto uma prostituta. Vamos, não core, Eva contou-me tudo. Sim, você deve ir para a Camarga!
Para isso, tenho que ganhar dinheiro disse Pierre, embrulhando a tela.
Callac empertigou-se como se tivesse recebido um choque eléctrico. Bruscamente, o dia cinzento invadira de novo toda a galeria.
O senhor bem vê prosseguiu Pierre, tenho que trabalhar para Eva e não tenho tempo para fazer como Van Gogh, deixando-me morrer de fome.
Quer casar com Eva?
Não.
Callac examinou Pierre com um olhar perscrutador e pareceu-lhe que ele estava um pouco desamparado.
Eva é boa de mais para servir só de amiguinha, digo-lho muito a sério, Pierre. Você foi-me muito simpático durante dois dias, mas isso agora mudou, se só gosta de Eva fisicamente...
Nunca amarei outra mulher tanto como amo Eva. E nunca amei senão ela... O que me impede de casar com ela.
Nunca na vida ouvi coisa mais idiota! Callac voltou-se: Venha para o meu escritório e trate do correio. Voltaremos a falar disso.
Foi um dia dos mais movimentados e os clientes sucederam-se. Callac desenvolvia uma espantosa actividade, gracejava, dizia uma ou outra piada a Pierre, de passagem, era inacreditável.
Naquela manhã, Callac meteu em caixa uma quantia que dava vertigens a Pierre.
Com a centésima parte disso, eu sentir-me-ia um dos grandes deste mundo disse ele, mais tarde, a Callac, o qual lhe respondeu num tom fatigado:
É esse o seu defeito, Pierre. Você calcula tudo a dividir por cem, o que não o deixará nunca avançar. Aliás, vendi o seu quadro por mil e duzentos francos. Pegue no meu livro de cheques e preencha você mesmo o seu cheque. E vendo que, de repente, os olhos de Pierre brilhavam, acrescentou, num tom negligente: Nem todos são entendidos, é preciso saber... e, por isso, pude vender o seu quadrozeco à baronesa X, recalcando dentro de mim a vergonha duma acção tão desleal!
A cozinha da senhora Beugnon parecia um campo de batalha. O acrobata Pompom, o estudante de Teologia, o poeta Henry, o Vermelho, o príncipe Vladimir e cinco colegas seus, motoristas de táxi, todos russos, estavam ali reunidos. Sentados em volta da senhora Beugnon, esperavam a chegada de Pierre. Toda a casa cheirava ao bolo de Sabóia e a café.
O que disse Callac? gritou a senhora Beugnon, logo que viu Pierre. Ele pagou a conta da clínica de Eva?
Callac? E porquê Callac?
Pierre tirou o cheque da algibeira do casaco e exibiu-o, de braço estendido.
Vamos, deixa-te de fitas, explica-te! gritou a senhora Beugnon, tirando-lhe o cheque da mão para o ler.
O que diz ele de Eva?
Eva? Pierre sentou-se, fez uma breve pausa e disse:
Quem paga a conta da clínica sou eu...
Tu?
Foi um grito geral, mas a voz da senhora Beugnon abafava todas as outras:
Com a miséria que ele te paga, não podes ir longe! O teu cheque só chega para pagar alguns dias na clínica do Professor Mauron.
O que se passa é o seguinte: vou pintar para o professor!
Pierre lançou um olhar em seu redor e viu apenas rostos incrédulos. Eu sei. Houve três pagamentos, dois anónimos e outro feito por você, Vladi. O professor e eu combinámos as coisas de modo a eles serem restituídos... Meus amigos, finalmente, sou capaz de fazer alguma coisa por Eva! Posso fazer algo mais do que olhar para ela e pintar-lhe o retrato. E no ano que vem vou levá-la a Provença!
Os cinco dias que se seguiram foram chuvosos e sem história, se deixarmos de nos debruçar sobre alguns assuntos secretos, que só interessam a poucas pessoas.
A polícia criminal sabia finalmente que o tiro que matara Julien Chabras fora disparado por uma ”Mauser” automática; quanto ao grande ”Citroen” negro, trazia matrícula falsa. Aliás, aventavam-se várias hipóteses e enumeravam-se todas as pessoas susceptíveis de terem desejado suprimi-lo: só o número das amantes abandonadas chegaria para povoar uma grande aldeia. As famílias destas poderiam aumentar o número dos assassinos, sem falar nos homens aos quais Julien roubara as mulheres, as noivas ou as amantes.
Mas no XIV Bairro, o tenente René Brance tinha encontrado, por fim, um indício revelador. Um dos blusões negros, aquando dos interrogatórios a que foi submetido sem descanso, fizera alusão a uma certa personagem mística que, no decorrer da desordem no Clube Juventude 2000 citava a Bíblia, constantemente, enquanto ia distribuindo socos. Especialmente, proclamava: ”O Senhor fez cair sobre Sodoma uma chuva de fogo...”
O tenente Brance redigiu sobre este caso uma nota confidencial e foi chamado à ordem pelos superiores que pensavam, por seu lado, que alguém tinha interesse em meter a Polícia a ridículo.
Quanto a Pierre, pintava.
De manhã, punha em ordem a correspondência de Callac, de tarde ia ao hospital visitar Eva e sentia o amor pesar-lhe sobre o coração.
Depois, ia buscar o Bolhas, que ficava a esperá-lo no cubículo do porteiro do hospital, o qual, todos os dias, repartia um pãozinho com o animal. Caminhavam, em seguida, lado a lado, pelas ruas que a chuva miúda fazia brilhar, encostados às paredes e, por vezes, entravam num botequim. Era uma vida calma e feliz. No quinto dia, Eva veio receber Pierre ao corredor; foi uma surpresa comovente. Um e outro abriram os braços, correndo, e abraçaram-se apaixonadamente. A enfermeira Amélie limpou uma lágrima. Depois, foram visitar o Bolhas, ao cubículo do porteiro. O cãozito rebolou-se no chão, numa crise louca de alegria, latindo ensurdecedoramente.
Naquela mesma tarde, a senhora Beugnon de Birague foi pela primeira vez visitar Eva à clínica. Mas não foi sozinha; acompanhavam-na, em cortejo, os amigos fiéis, Henry, o Vermelho, o teólogo, o príncipe Vladimir. A senhora Beugnon vestira o seu melhor fato, com estola de peles e pinturas no rosto, em profusão.
Daqui a oito dias, saio! anunciou-lhes Eva quando todos rodearam a sua cama. E então, iremos à Alemanha para vermos os meus pais. Pierre ainda não sabe de nada, vai ser o meu presente de Natal!
Nessa tarde, a senhora Beugnon e o Professor Mauron, a sós, tiveram uma longa conversa. A bem dizer, foi uma coisa inesperada, pois a senhora Beugnon entrou-lhe no gabinete, depois de ter aterrorizado a secretária que estava de guarda à porta. Mauron estava sentado diante duma tela colocada numa das prateleiras da biblioteca. Pierre tinha trazido o quadro naquele dia, era uma das obras que reservara para Eva e para si mesmo: representava uma planície infinita como o céu que se lhe sobrepunha e, naquela natureza transbordante, estava Eva, que parecia nascer da profusão das flores recentemente desabrochadas.
Acha que ele é dotado? perguntou a senhora Beugnon, colocando-se por detrás da cadeira do professor. Ou o senhor compra apenas os quadros que um macaco embriagado pintaria com a mesma habilidade?
É a senhora Birague? respondeu o professor, sem qualquer surpresa e sem desviar os olhos do objecto da sua contemplação. O senhor Sangries falou-me muito da senhora. Porque é que ninguém reconhece o talento dele?
Porquê? Porque ele não sabe fazer a sua própria publicidade! O senhor doutor é só ginecologista?
Sim, minha senhora.
Mesmo assim, tenho que falar nisto: Pierre preocupa-me. Ele come, mas emagrece cada vez mais e por vezes tem a pele tão amarela como a duma puta. Estou a exprimir-me claramente?
E até com uma precisão exemplar, minha senhora! O professor voltou-se para a senhora Beugnon: Devia dizer-lhe que consulte um médico da clínica!
Ele não é pessoa de ir ao médico.
E se o médico for ter com ele?
Nesse caso, teria que o pôr a dormir para o auscultar!
Já falou nisso com a menina Bader?
Ainda não.
Parece que ela constitui todo o universo dele; tente atacar a praça por esse lado, minha senhora.
A senhora Beugnon ficou cerca de meia hora no gabinete do professor. Quando ela saiu, este foi acompanhá-la até ao patamar da escada, com grande espanto da sua secretária. Em frente da clínica, estavam dois táxis à espera, com a sociedade do costume, os semivagabundos extravagantes e bons rapazes, que é uma fauna que parece estar sempre em vias de extinção mas cujo vigor não esmorece, como, felizmente, se pode constatar.
pois que ela representa, neste mundo, um dos derradeiros refúgios da fantasia.
Eva saiu da clínica oito dias antes do Natal e a sua partida foi festejada com flores e cumprimentos, o que levaria a crer que ela era mulher de algum chefe de Estado ou mesmo uma estrela de cinema. O táxi de Globotkin estava ornamentado com tuberosas e rosas.
Pierre, durante os últimos dias, pintara com um entusiasmo próximo do delírio. Ia entregando as obras ao professor Mauron, até que este lhe disse:
Senhor Sangries, já ultrapassou largamente o valor da despesa de Eva, mas lá por isso não deixe de pintar, pois aquilo que está a criar representa a sua libertação!
Depois, encontraram-se de novo na Rua Princesa, lá em cima, no sótão, o seu pequeno universo fechado, de paredes forradas de jornais velhos, com a vista dos telhados de Saint-Germain-des-Prés, a vizinhança da horrível chaminé e o espectáculo da putazinha Marie Lelong, a quem chamavam Pussy, que tinha a cama ou seja, o seu instrumento de trabalho exactamente colocada diante da janela.
Era muito tarde quando Eva se despiu para se deitar e fê-lo sem hesitações nem pudores, como uma coisa natural. Pierre, sentado diante do cavalete, olhava-a em silêncio, enquanto ela enchia o aposento, como uma aparição esbelta e branca que se movimentasse sem ruído.
Vem, Pierre disse ela, depois de estar deitada. Vem!
Ele não se mexeu, mas continuou a olhá-la, deslumbrado, sustendo a respiração.
Isso, não disse ele, isso, não!
Eu amo-te, Pierre respondeu ela. Perante isso, que força têm as estúpidas resoluções?
O Professor Mauron fez-me prometer ter cuidado contigo...
Com certeza que não me vais fazer mal, Pierre...
Ele não respondeu, acabrunhado porque devia falar, em vez de fazer amor com ela simplesmente. Mas ficou sentado em frente do cavalete até que Eva adormeceu, fatigada pelo regresso a casa, tão festejado pelos amigos. Só então, Pierre foi para a sua cama, sem ruído, deitando-se vestido, de punhos cerrados sobre a boca, enquanto lágrimas silenciosas lhe rolavam pelas faces.
Três dias depois, partiram para a Alemanha, conduzidos até à estação do Norte pelo príncipe e carregados de lambarices para a viagem, oferecidas pela senhora Beugnon.
Pretendia esta impressionar com tais prodigalidades os pais de Eva, que assim compreenderiam, na sua germânica Colónia, que a filha tinha em Paris uma segunda mãe, capaz de velar por ela. E a senhora Beugnon, que ficara a vê-los partir, derramara torrentes de lágrimas.
Exactamente naquele dia, a senhora Chabras, mãe, que se refugiara em Antibes, atormentada pelo desgosto, lembrou-se da sua demoiselle au pair, Eva... Julien não fora morto com uma arma de origem alemã? E não tinha sido falado que aquela desavergonhada estava grávida e atribuía a paternidade da criança a Julien? Não tinha desaparecido ela de repente, para se acolher em casa de uns quaisquer habitantes do bairro de Saint-Germain-des-Prés? E não se teria ela vingado, como alemã manhosa que provavelmente era?
Uma polícia competente e Paris pode gabar-se de a ter não desiste tão depressa... e, enquanto Pierre e Eva, sem suspeitarem de nada, seguiam no rápido e tinham já devorado o primeiro embrulho de bolos da senhora Beugnon, antes mesmo de chegarem a Namur, já os telex retiniam em Paris e em Colónia, nas sedes das respectivas polícias:
É intimada a comparecer... Suspeita de ter assassinado Julien Chabras, com a ajuda do seu amante Pierre de Sangries: Eva Bader. Morada dos pais: Klettenberg Eberhardtweg, 19, Colónia.”
A máquina da justiça punha-se em movimento, mas a tarefa era difícil. Até em Paris já se manifestava uma certa desorientação a respeito deste caso.
A senhora Celeste Beugnon de Birague fazia grande reboliço na Brigada Criminal, no Qual dês Orfèvres cujos funcionários foram por ela apelidados de ”imbecis” e de ”caçadores de peidos”. A presença do Professor Mauron, chamado para declarações, como testemunha que fornecia um álibi aos suspeitos, não evitou que as investigações sobre o assunto prosseguissem.
Para enfrentar certas situações não é preciso ter maneiras de grande senhora.
Na verdade, nada mudara, nada era diferente do passado, quando Eva e Pierre pagaram o táxi diante da casa da Eberhardtweg que tinha o número 19.
Pierre, é certo, penetrava num mundo novo, o qual examinava com olhos de pintor e achava um pouco cinzento. Mas para Eva, na verdade, nada tinha mudado. Apesar de ter anunciado telegraficamente a sua chegada a Colónia, ninguém viera esperá-la à estação. Ela bem sabia o ritmo de vida da família. O pai trabalhava desde manhã à noite, na sua loja de móveis, e a mãe preenchia todo o dia com os preparativos do serão familiar, para que este fosse tão confortável, íntimo e cordial quanto possível e, segundo a boa e velha tradição alemã, incluía uma sólida refeição acompanhada com cerveja, a televisão, a leitura dos jornais, os acontecimentos políticos tudo misturado, evidentemente, as peripécias acontecidas na loja e o inevitável relatório sobre o bom ou mau rendimento do dia.
Era um pequeno mundo fechado sobre si mesmo, dotado da precisão dum computador, nos seus hábitos. Para Eva Bader, era impensável que alguma coisa pudesse alterar aquela fortaleza de tranquilidade burguesa, que apenas era perturbada pelas manifestações de Hubert Bader quando se tratava de pagar adiantadamente qualquer contribuição às Finanças. Então, levantava-se o vento da revolta:
1 à letra: Cais dos Ourives; é onde se localiza a sede da Polícia Judiciária francesa. (N. da T.)
Trabalhamos para quê? Quem se esforça tem que pagar, andamos a fossar para nada! Fizemos a guerra para...
E depois, Hubert Bader falava da Rússia, do caminho sangrento percorrido pelos exércitos invasores até ao coração do país gigantesco, da secção sanitária, do batalhão do seu coronel, cujo fundo das calças fora rasgado por um estilhaço de granada e que corria, com o rabo ao léu, a gritar: ”Sigam-me! Sigam-me!” Na cervejaria, esta anedota fazia sempre sucesso; quanto a Else, contentava-se com um doce sorriso. Quando se ouve repetir a mesma história durante trinta anos...
Tudo era igual, naquele dia. O pai Bader trabalhava na sua loja e conseguia vender uma mobília de quarto de estilo rústico a um cliente que pretendia adquirir uma mesa redonda; Else Bader, em casa, esperava o marido e a filha, junto dum assado de carne seca, que seria acompanhado por bolinhas de massa cozidas em água e por cidra doce, que ela própria fazia, tudo isto precedido dum caldo de ovo e, porque se tratava dum grande dia, ela mesma tinha comprado um barril de cerveja fina, muito fermentada, tal como é apreciada nas margens do Reno.
A ideia vinha de Hubert Bader. Como Else propusesse que fosse servido um vinho leve de Bordéus, uma vez que recebiam um francês, Hubert insugira-se:
O que quer isso dizer? Este rapaz está de visita a minha casa, na Alemanha! Se eu fosse a França, não iria beber lá cerveja, mas sim vinho tinto. Também devo oferecer a Pierre ostras Mouton-Rothschíld?
Else ficou sem fala, admirada por Hubert saber tanto acerca de vinhos franceses. É certo que muitas vezes se fala disso nos folhetins dos jornais ilustrados.
Estás a ver? disse Eva, enquanto o táxi se afastava e eles ficaram sozinhos diante da casa, esta é a casa onde eu nasci.
É uma bela casa disse Pierre.
Ele admirava a construção do século XIX, as janelas altas, as varandas com grades de caprichosos desenhos e também o friso de estuque que rematava o telhado, apoiado em pesadas cariátides que contemplavam a rua com os seus olhos vazios.
Foi bombardeada em 1943 continuou Eva, vendo que Pierre ficava calado. O papá reconstruiu-a, tal como era dantes, pois ele é tradicionalista! Pierre continuava em silêncio e ela disse: Tradicionalista como os Franceses!
Entremos! disse Pierre, que, naquele momento, olhava para a grande porta de madeira esculpida. Vocês têm uma porteira como a senhora Beugnon?
Cá não existe tal coisa.
É pena, assim, os alemães ficam privados duma preciosa dose de humanidade!
Dois minutos depois, tudo pareceu bem diferente. Else Bader apertou a filha contra o coração e pôs-se a chorar, como boa mãe alemã que era, repetindo:
Meu Deus, minha filha, que bom aspecto tu tens, realmente, que belo aspecto!
Na verdade, Eva retocara as faces com cuidado. Depois, Else apertou a mão de Pierre de Sangries. Este inclinou-se, graciosamente, para lhe beijar a mão.
Estou encantado, minha senhora...
Else Bader só compreendeu ”minha senhora”, mas a maneira como Pierre falara pareceu-lhe duma requintada educação. Eva servia de intérprete.
Ele diz que está feliz, mamã.
Ele só fala francês?
Infelizmente, só, mas já lhe ensinei algumas palavras de alemão... para o ano, já saberá qualquer coisa!
Para o ano? Vocês vão casar-se?
Havemos de falar nisso com o papá. Teremos todo o tempo preciso para discutir o assunto!
Como se impunha, mostraram a casa a Pierre: a sala, o escritório do dono da casa, a sala de jantar, o quarto dos amigos, a cozinha, o quarto de Eva e até as casas de banho. Quanto ao quarto de dormir dos pais, por ser o domínio privado de Hubert e de Else, não foi mostrado ao convidado. Enfim, a casa era um exemplo de uma calma vida burguesa, que decorria entre pesado mobiliário, poltronas macias, cortinas diáfanas protegidas por cortinados duplos de seda pesada, com almofadas sobre as camas e tapetes do Oriente. Era o menos que se podia ter, quando se possuía uma loja de móveis! Não eram ricos, mas viviam bem, tinham lutado por isso durante toda a juventude.
Em resumo, a vida, por muito louca que pudesse parecer, tinha, apesar de tudo, uma finalidade.
No fim duma meia hora, Hubert Bader telefonou à família:
Vou chegar uma hora mais tarde do que previa: tenho clientes importantes na loja, dum pequeno hotel cujo mobiliário pretendem reformar. Estou desolado, Else. A menina já chegou? Ela que venha ao telefone!
A menina pegou no telefone, sorrindo em silêncio.
”É o costume”, pensava ela, ”o papá que vem tarde mais uma vez e a mamã que se aflige por causa das bolinhas que não podem ficar à espera dentro de água e que não podem ser mantidas quentes!”
É bom que tenham chegado, meninos! disse Hubert Bader, do outro lado do fio. Já mostraste ao teu francês as minhas condecorações que estão no expositor?
Não, papá. Eva encostou-se à parede: as coisas passavam-se como se ela não tivesse estado ausente de casa, como se, para ela, aquele mundo não se tivesse transformado completamente e não se tivesse tornado mais real, mas, de certo modo, mais compreensível, como que iluminado de dentro. Mas julgo que ele já as viu, porque está sentado mesmo em frente, no sofá.
As minhas fotografias do tempo da guerra estão na primeira gaveta do lado esquerdo, podes mostrar-lhas.
Achas que lhe interessarão, papá?
E porque não? Devem ter interesse para um francês! A voz do pai traía o espanto. Quando estive em Paris, com o coro do meu regimento, fomos visitar o Arco do Triunfo. Que quantidade de bandeiras, de condecorações, de uniformes! Foste visitar o Arco do Triunfo, filha?
Fui, sim, papá, uma vez...
Ela fechou os olhos o elevador... que sobe tão depressa até ao terraço e que parece nunca mais chegar, quando se decidiu morrer. E o terraço varrido pelo vento, a vista, que causa vertigens, sobre as grandes avenidas que dele partem, como raios duma estrela. E lá em baixo, o vazio, que significa o fim de todos os tormentos. Depois, uma mão que vem desviar-nos do parapeito, antes que tenha havido tempo para saltar...
A que horas vens, papá? perguntou ela depois duma pausa.
Pelas nove horas, mas comecem a comer!
Temos bolinhas de massa e carne assada, papá, sabes, as bolinhas...
Estou a tratar de móveis, móveis novos para um hotel, tanto pior para as bolinhas!
Estar em casa... Que sentimento estranho, delicado, duma felicidade pueril e, apesar disso, cheio de revoltas e de críticas contidas... ou não, quando se regressa dum mundo que evolui sem cessar, que tem de ser reconquistado-constantemente e se regressa à doçura almofadada, cordialmente aburguesada. Mas, bolas! Mesmo assim, é bom voltar.
Cerca das 9 horas, chegou Hubert Bader. Estacionou o carro na garagem junto da casa, meteu debaixo do braço um grande saco de plástico que continha provisões do supermercado e recapitulou as frases que tinha preparado em francês para receber com cordialidade Pierre de Sangries. No saco, trazia latas de pasta de fígado, coxas de rãs, duas garrafas de vinho rosado da Provença, vários queijos franceses e um pão feito com manteiga, que na Alemanha se julga constituir a alimentação habitual dos Franceses. Da parte de Hubert Bader era um gesto de especial amabilidade.
Pierre estava sentado ao lado de Eva, no sofá da sala. Levantou-se imediatamente um rapaz bem educado, constatou Hubert Bader quando o dono da casa apareceu. Else estava na cozinha e deitava as bolinhas de massa em água a ferver, depois de ter preenchido o tempo a explicar a Pierre quais os seus gostos em matéria de pintura, partilhados pelo marido, que, na loja, tinha tido várias ocasiões de vender quadros, especialmente daqueles que pintavam os artistas da cidade de Dusseldorf. Paisagens dos Alpes, marinhas, caminhos da floresta, ao gosto romântico, por vezes com um veado em primeiro plano, e, sobretudo cabeças de frades amantes da bebida, de homens da montanha a fumarem cachimbo, eram os mais procurados. A venda era menor no que respeitava às imagens piedosas, Nossa Senhora e os anjos; o que predominava era o gosto moderno, explicava Else, com ar entendido.
Quanto aos quadros ultramodernos, todos esborratados, o meu marido não os aceita! acrescentou ela. Ele costuma dizer que um cão poderia pintá-los da mesma maneira, se molhasse a cauda nas tintas! E Eva traduzia:
A mamã está a dizer-te que amanhã iremos ao centro, à feira de Natal...
Pierre sorria, educadamente, e muito se admirava de que frases tão longas em alemão fossem tão curtas traduzidas em francês.
Seja bem-vindo, senhor Sangries disse Hubert Bader na língua de Voltaire à entrada da sala. Logo à primeira impressão, achou muito simpático aquele jovem vestido de fazenda castanha, um pouco usada. Apertou-lhe as mãos, sacudindo-as com força, à boa maneira alemã, e acrescentou, com desenvoltura: Como está? Sente-se, por favor!
Pierre sentou-se de novo e viu-se então que a reserva de frases francesas estudadas por Hubert Bader estava fortemente desfalcada, mas ele dera provas de boa vontade. E assim, ficaram a olhar-se com uma certa hostilidade, sorrindo timidamente, de vez em quando, à espera de que lhes surgisse qualquer ideia que reanimasse a conversa.
Estás com bom aspecto, minha filha! disse Hubert Bader. Sentes-te bem?
Nós estamos muito bem, papá.
Nós?
Bader lançou um rápido olhar a Pierre. Os pais das raparigas crescidas ouvem sem qualquer agrado aquele nós que implica a existência dum outro homem.
Nós vivemos juntos, papá.
Essa agora!
Hubert Bader foi o primeiro a reconhecer que aquela exclamação era idiota, mas saber, de repente, que a própria filha vive com um desconhecido abala qualquer pessoa...
Vocês... vão casar-se? continuou ele, depois duma pausa.
Talvez.
Uma vez que vivem juntos...
Nós habitamos juntos, papá...
E isso não é a mesma coisa?
Nem sempre, papá.
Hubert Bader dirigiu a Pierre um olhar grato. Não há dúvidas de que é um rapaz sério”, pensou. ”Ainda que tal coisa pareça pouco provável, deve ser verdade, pois Eva não mente. Porque se há-de sempre pensar o pior das situações? É certo que, como diz o meu bom amigo Krummeins, quanto mais envelhecemos mais grosseiros nos tornamos.”
Porque é que nunca escreveste a dizer que precisavas de dinheiro? perguntou Bader. Já sei, já sei que queres ser independente. Então, já não estás em casa do grande fabricante de produtos químicos? Como se chamava ele?
Chabras.
É isso.
Não. Saí de lá, papá, e agora sou secretária do senhor Callac, que é negociante de quadros.
Arte? Isso não dá nada! E inclinou-se para Pierre: Você é pintor, segundo me disse Eva...
Sou sim, senhor, não sei fazer mais nada respondeu Pierre, baixando um pouco a cabeça.
E Eva traduziu:
Sim, é uma bela profissão, mas em Paris é difícil ser célebre, pois a cidade está cheia de pintores. Depois, vivamente, acrescentou: Mas isso não é uma razão para trocar Paris por outra cidade!
Hubert Bader fez sinal de ter compreendido, mas também ele se admirava por uma frase tão curta em francês poder ser tão comprida em alemão. Realmente, o francês era uma língua elegante!
A refeição da noite foi ”substancial”, como se diz na Germânia. Uma deliciosa carne fumada assada, acompanhada dum molho com passas de Corinto e bolinhas tufadas como balões. Couves de Bruxelas, não demasiado cozidas, que rangiam nos dentes. Else Bader era uma boa cozinheira e quando Hubert Bader estava bem disposto elogiava-a bastante, o que para ela representava sempre a maior satisfação.
O barril de cerveja foi aberto, ao sair bem fresco do frigorífico, e, ainda que a bebida não o encantasse muito Pierre, mesmo assim bebeu aquele produto das fábricas de Colónia e brindou com Hubert, declarando, amavelmente:
Excelente!
Depois, sentaram-se em círculo. Hubert fumava o seu charuto, Pierre e Eva, cigarros, enquanto Else petiscava biscoitos de chocolate. A conversa foi um pouco difícil, mas Hubert Bader tinha a certeza de que a filha traduzia fielmente o que diziam.
Quando ele dizia: ”Um dos problemas mais delicados do Mercado Comum são os camponeses franceses!” Eva traduzia: ”O pai acha que deviam pensar também nos pintores na Comunidade Europeia!”
Se Hubert contava: ”Quando estive em França com o 22.° I.D., aquartelado nos arredores de Châlons-sur-Marne, descobrimos uma adega cheia de garrafas de vinho e, garanto-lhe, Pierre, que a 4ª companhia se embriagou de tal maneira que os vossos recrutas nos teriam virado de pantanas se tivessem sabido tal coisa!” Eva traduzia: ”O meu pai visitou recentemente, os cemitérios militares, durante uma viagem a Châlons-sur-Marne, e ficou profundamente impressionado!”
Mas entendiam-se o melhor possível, cada um achando que o outro era muito amável. Quando Pierre se despediu, para ir deitar-se no quarto dos amigos, a conversa tornou-se mais íntima. Hubert Bader serviu-se de mais uma caneca de cerveja do barril e assoou-se com ruído. Tal como dantes, pensou Eva, quando as notas da escola não eram muito boas e eram discutidas pormenorizadamente.
Se bem percebi prosseguiu Bader, este Pierre de Sangries deve ser nobre, mas pobre; é pintor, mas ninguém o conhece nem lhe compra os quadros.
Nem todos podem ser Picassos ou Dalis, papá respondeu Eva.
Mas ele podia ser um Peter Foliate! Todos os anos vendo, pelo menos, quarenta das suas paisagens dos Alpes e sei que ele tem mais dez outros vendedores que abastece regularmente. Tem uma vivenda em Dusseldorf, sobre o Reno!
Pierre é um artista, papá!
E não é arte pintar uma paisagem alpestre, de tal modo que nos parece sentir o cheiro das ervas! O que pinta, então, o teu Pierre? Bom, não vou entrar em discussõezinhas, como tu dizes, mas se ele pretende sustentar uma família tem que agir convenientemente. O que é que ele pinta, realmente? à esquerda, em cima, um olho, em baixo, à direita, um pé, no meio, uma espiral e alguns círculos?
Isso seria um Picasso e valeria milhões.
E eu acho que o mundo está a enlouquecer. Antes da guerra, no Centro Alemão de Arte...
Papá, já não estamos nessa época!
Mas é preciso comer e beber como antes da guerra, porque não se pode viver só de amor! A propósito de... amor, que projectos têm vocês? Ele é um rapaz simpático, concordo, e se tem que ser com um francês, isso é contigo, apesar de haver milhões de rapazes alemães... Mas tu és maior...
Papá, é de Pierre que eu gosto.
Else Bader pôs-se a chorar baixinho, maternalmente, comovida com a felicidade da filha. Talvez lembrasse também as suas recordações. Depois de trinta e um anos, que era feito do seu amor? Trinta e um anos antes, conhecera Hubert, durante um ataque aéreo, quando este se refugiara no mesmo abrigo subterrâneo onde se encontrava a família Kleinkamp. Ele estava de licença, ostentando a cruz de ferro, e era bastante directo, sem complexos. Desde o primeiro olhar, Else Kleinkamp apaixonara-se por ele e tinham casado, quando Clónia era apenas um montão de ruínas, numa conservatória em que viam, sobre a mesa, ao lado duma jarra com primulas, um capacete de aço, uma máscara antiga e uma lanterna portátil. Tiveram a sorte de não se dar qualquer ataque aéreo durante as formalidades do casamento. Tinham conhecido uma época difícil, mas o amor que sentiam um pelo outro iluminava tudo.
Mandar-lhes-ei um cheque todos os meses disse Bader, bebendo a cerveja dum trago, até que possam manter-se sem ajudas.
Mantemo-nos perfeitamente e saberemos arranjar-nos sozinhos, papá!
De qualquer modo, posso perfeitamente mandar dinheiro à minha filha única!
Pierre é demasiado orgulhoso para permitir que nos sustentes, já o conheço bem
Demasiado orgulhoso! Com a barriga vazia! Torno a repetir, ele é muito simpático, mas não poderia ser outro qualquer?
Não, para mim, não.
Eva olhava os pais. A mãe compreendia-a; para ela, só existira Hubert. Os outros homens estavam para além do seu universo. Elas não podiam adivinhar o que pensava Hubert Bader, ocupado a encher mais uma caneca de cerveja.
Temos que nos habituar a ver a juventude embrenhar-se em caminhos semeados de ciladas, talvez porque abrimos para ela estradas fáceis de mais... Vamos deitar-nos concluiu ele, esvaziando a caneca. Amanhã tenho que ir a uma fábrica, em Frechen. Por causa da instalação dum escritório... Voltaremos a falar de tudo isto, minha filha.
Mas não se falou em nada durante os dois dias que se seguiram.
À uma hora da manhã, a campainha da porta da entrada tocou, de modo imperioso, em casa dos Bader. Dois inspectores da Polícia, à paisana, e dois agentes fardados encontravam-se em baixo, na escadaria. Quando Hubert apareceu à janela, dirigiram-se-lhe, dizendo:
Abra, por favor! Tem em sua casa um tal Pierre de Sangries?
E, já no corredor, quando Pierre apareceu, de pijama azul, disseram-lhe, num tom severo:
O senhor é Pierre de Sangries? Procuramo-lo a pedido da Polícia francesa, com a qual colaboramos, ao abrigo de certas convenções internacionais. Somos obrigados a detê-lo, por suspeita de assassínio.
Um quarto de hora mais tarde, Pierre e Eva eram conduzidos ao Comissariado-Geral de Colónia, num carro da Polícia. Hubert Bader, na entrada da casa, rodeava com um braço os ombros da mulher, debulhada em lágrimas e, sarcasticamente, comentava:
Sempre desejei ter um genro assim! A rapariga deve estar doida!
Em Paris, naquela mesma noite, a situação esclarecera-se, ao ponto de permitirem o regresso da senhora Beugnon e do Professor Mauron a suas casas, não sem terem ameaçado a senhora Beugnon de que seria apresentada queixa contra ela, pela polícia parisiense, se continuasse a chamar ”sacos de piolhos” aos seus funcionários...
É infame! gritava ainda a senhora Beugnon, na sala de espera do comissariado, apesar das tentativas do Professor Mauron para a acalmar.
A sua voz retumbante acordava todos os ecos do imenso edifício, onde reinava o silêncio nocturno.
Pierre, um assassino? O meu pequeno Pierre? Senhor professor, será possível que eles tenham excrementos dentro do crânio, em vez de cérebros?
Na verdade, não é possível minha senhora...
E Mauron, dando o braço à senhora Beugnon, arrastou-a para a saída, onde o polícia de sentinela olhou com receio o monstro de cabeleira vermelha que passava na sua frente agitando os braços, enquanto exclamava:
Verá que, para vergonha deles, a verdade em breve se há-de saber! Que polícia nós temos! É preciso chamar a atenção dos jornais, senhor professor! Lá porque um Chabras foi assassinado, é o meu Pierre quem paga as favas! Vamos ao Figaro, ao France-Soir, ao Combat...
A cólera da senhora Beugnon só acalmou lentamente, mas não foi às redacções dos jornais. O príncipe Vladimir, que a esperava diante da Prefeitura da Polícia, levou-a no seu táxi e depositou-a em casa. O Professor Mauron sentou-se ao volante do seu ”DS”. O álibi de Pierre era inatacável: quando Julien Chabras fora abatido com um tiro Pierre encontrava-se à cabeceira de Eva. Mauron levara à Polícia quatro das suas enfermeiras que o testemunharam.
Nunca se deve dizer que é fácil a missão da Polícia!
Todavia, se é que pode fazer-se uma crítica a tal respeito, diremos que, por intermédio da rádio, rapidamente tinham mandado prender Pierre, em Colónia, mas quanto a soltarem-no, depois de confirmado o seu álibi, tiveram muito menos pressa. Só na manhã seguinte os colegas alemães foram informados, talvez porque, a nível mais alto, se pense que uma noite passada na prisão não faz mal a ninguém e pode até servir de lição para o futuro.
Lamentamos muito disse o Comissário da Polícia de Colónia quando recebeu a mensagem de Paris. Os nossos colegas de Paris já autorizaram que saiam, mas quando se trata dum assassínio... todas as cautelas são poucas. Enfim, tudo acabou bem, feliz Natal, menina!
Eva estava sentada num banco, no Comissariado, onde passara a noite toda, apesar de ser contra o regulamento.
Não sairei daqui sem que seja provada a inocência de Pierre! declarara ela.
E ninguém duvidara da sua decisão inabalável. Assim, passara a noite naquele banco, bebera café simples com os que ficaram de serviço nocturno, lera os primeiros números dos jornais, que ainda cheiravam a tinta, e ouvira a mensagem emitida de Paris, pela rádio.
Cerca das 9 horas da manhã, Pierre foi solto. Ele não esperava que Eva tivesse passado a noite inteira no Comissariado. Estreitar am-se nos braços um do outro, beijando-se como se fossem separar-se para sempre e só caíram em si, um pouco envergonhados, quando o comissário de serviço tossiu levemente e disse, com ar divertido:
Desculpem, mas não podemos fornecer-lhes uma cama! De manhã, Hubert Bader comentava amarguradamente:
Eis ao que nós chegámos: é-se suspeito de assassínio e nem sequer se dignam informar quem foi assassinado! Antigamente...
Pela primeira vez, em trinta anos, Else deixara o marido a falar sozinho e dirigira-se para a cozinha, onde se encontravam Pierre e Eva. Hubert seguiu-a e, ao ver Pierre, comentou com ironia:
Ora aqui está o nosso assassino a beber um merecido café!
Como Eva fosse responder-lhe, ele fez um gesto decidido:
Acho que há muitas coisas a esclarecer. Contra a minha vontade, tive que me habituar à tua maneira moderna de ver as coisas, minha filha, mas não é facilmente que se aceita um genro que é acusado de assassínio! Vamos lá a saber, de que se trata?
Eva e Pierre demoraram toda a manhã e grande parte da tarde a contar, ora em alemão, ora em francês, as suas histórias, primeiro diferentes e depois confundidas uma na outra. Evitaram falar na hora passada no cimo do Arco do Triunfo, bem como do incidente revoltante da maldita festa de Julien Chabras... Quanto à criança que Eva esperava, não foi mencionada, nem o seu aborto... O que ficou, das suas narrativas, foi que Julien Chabras perseguira Eva assiduamente e que ela abandonara a casa que, na verdade, apresentava demasiados perigos para a sua virtude. Depois disso, Pierre travara conhecimento com ela, num café das margens do Sena, o que era muito romântico, muito parisiense e perfeitamente convincente.
Isto não é mentir, dizia Eva para se tranquilizar a si mesma, enquanto olhava Pierre. Para quê, assustá-los? Para quê, arrancá-los ao seu calmo universo? O passado era o passado e de nada serviria falar nele.
Fosse como fosse, Hubert Bader contentou-se com o que lhe contaram. Pela primeira vez, desde há seis anos, não foi à loja de tarde, confiando a conclusão dos negócios ao seu vendedor principal.
Sempre fui hostil a Paris disse Hubert Bader, depois de ouvir a confissão deles. Não tenho qualquer queixa contra o seu país natal, Pierre, e Paris é uma cidade magnífica, um dos berços da civilização, mas também é o caminho de muitos vícios! Eva, minha filha, traduz isto para ele: Pierre, não poderia você vir pintar para Colónia? O último andar da nossa casa está vazio.
E Eva traduziu: ”O Papá agradece-te por me teres dado forças quando eu precisei... e deseja-te muito êxito em Paris; tal como nós, ele acha que a polícia deu provas de ser idiota, quando te prendeu!”
Pierre acenou com a cabeça, à guisa de agradecimento e, depois, disse, com amabilidade:
Senhor, fiz muito pouco por Eva, ela ajudou-me muito mais a mim. Nunca poderei agradecer-lhe devidamente!
Tartufo! exclamou Eva, segura de que não a compreenderiam.
O que diz ele? perguntou Bader, interessado.
Pierre diz e, intimamente, pediu perdão aos pais que tem mais possibilidades em Paris.
Vocês devem saber melhor do que nós. Hubert Bader consultou o relógio. Já não vale a pena ir à loja esta tarde. Que lhes parece tomarmos um bom Bordéus?
Mas, mais tarde, quando se encontrou sozinho no quarto com a sua Else, confessou:
Vai ser difícil para mim habituar-me a um genro francês. O que se pode dizer quando ignoramos a língua um do outro? Um pintor! E eu que alimentava a esperança de que a pequena me traria para casa um homem que tomasse o meu lugar nos negócios!
Suspirou, apagou a luz, deitou-se de lado adormeceu.
Em Paris pode-se manobrar a opinião pública rápida e eficazmente. Para tanto, basta ter uma vontade de ferro, como a da senhora Beugnon. A sua nova amizade pelo Professor Mauron parecia ter-lhe dado novas energias.
Ela anunciou a sua visita a Marius Callac, que não voltara a vê-la desde o seu casamento. Mesmo depois de ter ficado viúva, não mais a vira e os seus contactos tinham sido apenas telefónicos. No entanto, para Callac, permanecera deslumbrante a recordação daquela radiosa Celeste que se escapara secretamente com ele, para ir à Camarga e que, num domingo de céu límpido e sol resplandecente, se deitara junto dele na erva, enquanto sobre as suas cabeças passavam os flamingos rosados, a voar.
Ela vem aí!
Este golpe de teatro transformava o mundo de Callac. Mais modestamente, fez o mesmo que Celeste, naquela manhã. Tentou disfarçar um pouco o desgaste causado pelo tempo, comprou uma camisa clara, uma gravata discreta, uns sapatos novos, o que lhe proporcionou grande alegria, pois ter sapatos novos era uma longínqua recordação e, finalmente, apesar destas despesas que não estavam nos seus hábitos, foi cortar o cabelo. Além disto, a sua impaciência esteve prestes a fazer com que ele celebrasse aquele dia incomparável com uma boa dose de conhaque, mas resistiu e fechou o frasco tentador no cofre forte, dentro do qual conservara dois Sisley, cujo paradeiro ninguém sabia e que eram invendáveis; finalmente, durante todo o dia, andou para trás e para a frente na galeria, dando, por vezes, saltos nervosos, como se fosse um galo de combate ao qual já tivessem colocado os esporões de aço.
As 17 h 28, parou um táxi diante da galeria de Callac. O príncipe Globotkin, que vinha ao volante, desceu para abrir a porta. Callac, que estava atrás da cortina que separava a montra do interior da loja, recuou, assustado. Aquilo que saltava para o passeio era uma mulher monstruosa, de cabelos cor de cenoura e rosto pintalgado. É certo que trazia um casaco de vison azulado, que lhe descia quase até aos pés, mas não conseguia fazê-la parecer bela.
Callac bateu em retirada até ao meio da galeria, perguntando-se o que poderia ele vender àquela enorme dama, talvez aquele Van Leuven de 1643, um holandês desconhecido, mas que, como quadro, era muito decorativo.
Callac colocara de novo os óculos, quando se abriu a porta da loja, para deixar passar a dama, que entrou como um tufão. O táxi ficou à espera. Vladimir Andrejevitch sentou-se no seu lugar e pegou no Figaro, que trazia no banco ao lado.
Então! disse a gigante, fazendo sobressaltar Callac. És tu, Marius?
Celeste! As lentes dos óculos de Callac embaciaram-se, como se os seus poros libertassem um vapor quente. És tu! Meu Deus, não te teria reconhecido!
Tu também não estás muito bonito disse a senhora Beugnon. Estás esquelético, acabado, meio cego! Como é que consegues vender quadros e compará-los? Marius, eu não teria jamais vindo procurar-te se na minha vida não se tivessem passado coisas estranhas! Quanto tempo é preciso para organizar, em Paris, uma exposição de quadros?
Callac estava demasiado atordoado pelo aspecto de Celeste para poder pensar racionalmente.
Um mês articulou ele, com voz pouco segura.
Vamos abri-la daqui a três dias. Valeu?
Impossível! Callac começava a romper-se. Celeste, porque arranjaste essa aparência irreconhecível?
O que tens tu com isso, hem? Daqui a três dias... vamos ao assunto... Paris tem de ser informada de que o jovem pintor cheio de talento Pierre de Sangries vai expor no Callac.
Isso custa uma fortuna...
Queres levar a massa para a cova, velho avarento? Tens herdeiros ?
Tenho respondeu Callac, e depois de ter respondido é que se apercebeu da alegria que lhe proporcionava aquele ”tenho”.
Tens algum filho? continuou a senhora Beugnon, tirando o casaco de peles.
Ela trazia um vestido que encomendara numa modista que livrara a sua responsabilidade do resultado. Callac encheu o peito de ar, por várias vezes, como se pretendesse acumular forças.
Aquele dia de sol, na Camarga, pensava ele, aquela deliciosa jovem, alta e flexível, contra o meu corpo, aquele rosto de anjo, aqueles contornos que pareciam desenhados por Rafael e a ternura inesquecível da suas mãos, da sua voz, dos grandes olhos, do seu corpo ágil. Meu Deus, como cinquenta e oito anos de vida podem ser cruéis...
Tu tens um filho? repetiu a senhora Beugnon, em voz alta.
Tenho um meio filho! disse Callac, em voz débil.
Como é que é possível ter só metade dum filho?
Mas é possível.
Eu devia ter desconfiado. Um filho completo, não conseguirias tê-lo, porque nunca levaste nada até ao fim. Mas, vamos direitos ao assunto: o professor Mauron junta-se a nós nesta empresa, bem como dois mil motoristas de táxi. Esta noite trazemos-te os quadros de Pierre. Toda esta cangalhada e fez um gesto amplo, que envolvia os tesouros de Callac põe-se de lado e, durante quinze dias, só haverá obras de Pierre de Sangries nas paredes! Até Pierre voltar da Alemanha. Nós encarregar-nos-emos da publicidade e dos convites; tu, avisarás os críticos e a imprensa. Quero que o grande Callac faça claramente constar que Pierre de Sangries é um pintor de primeira categoria! Então, Marius, ficas aí mudo e quedo, como se estivesses transformado em estátua! Fala, ao menos!
Que posso eu dizer, Celeste? murmurou Callac. Tirou os óculos e limpou-os com um pedacinho de pele de camelo que trazia sempre consigo. Tu levaste-me à certa!
Durante três dias, três mil quatrocentos e cinquenta e nove motoristas de táxi distribuíram por Paris folhetos publicitários aos seus clientes, acompanhados dum convite para a galeria Callac. Os jornais reproduziram a mesma publicidade. Durante três dias, Callac suportou aquilo que, aos seus olhos, era uma cruel humilhação. Telefonavam-lhe para saber porque motivo ele ia expor Pierre de Sangries e não expunha Bernard Buffet.
Mas, no quarto dia, aquando da inauguração da exposição de Pierre de Sangries, formou-se uma bicha de visitantes junto da porta da galeria. A Polícia mandou agentes para lá. A curiosidade, a ideia de que aqueles quadros poderiam vir a constituir um bom empate de capital, uma vez que Callac descobrira o pintor e o expunha, constituíam uma espécie de crédito apontado à eternidade.
Na tarde do sétimo dia, estavam vendidos setenta e sete quadros. Callac estava estafado e desejoso do seu conhaque, aferrolhado no seu ”tesouro”. A senhora Beugnon, sentada à secretária, observava o fluxo dos visitantes pela televisão interna, e fazia caretas de satisfação. Quando um membro da família Oppenheimer, um pouco antes do fecho, veio comprar dois Sangries, Callac teve a certeza de que no dia seguinte os jornais iriam falar na descoberta dum grande pintor.
O Natal em Colónia é muito parecido com todos os Natais do mundo cristão. Em casa dos Bader, além da inevitável árvore de Natal, havia de tudo o que pode sonhar-se, no que diz respeito a pãezinhos de mel a especiarias, com frutas, doces, bolos, ganso recheado com couve vermelha e até... um champanhe francês. Ouviram discos de música sacra, sentados em volta do pinheiro de Natal, à luz das velas. Quando ouviram todos os discos, Hubert Bader disse, emocionado:
Meus filhos, ainda que isto pareça fora de moda, desejo-vos muitas felicidades! Depois, beijou Eva, apertou Pierre contra o coração e estendeu aos dois jovens um bilhete: vale um automóvel, mas não um Rolls’’.
Obrigada, papá! disse Eva, baixinho. És um pai maravilhoso!
Foi então que Hubert Bader sentiu os olhos humedecerem-se-lhe.
A 29 de Dezembro, Eva e Pierre regressaram a Paris. Hubert Bader não foi acompanhá-los à estação, porque tinha entregas importantes a vigiar, uma das quais era uma cozinha completa. Mas Else chorou no cais e ainda gritou para Eva, através da janela do comboio:
Não esqueçam que têm sempre um lar aqui!
Depois, encontraram-se a sós no compartimento de primeira classe, cujos bilhetes tinham sido pagos por Bader, enquanto o comboio corria em direcção à fronteira. Os olhares de ambos perdiam-se nas grandes extensões cobertas de neve, aldeias, pastos e vales.
Tu tens uns pais perfeitos disse, de repente Pierre, receberam-me como a um filho!
Mas é isso que tu és para eles, Pierre respondeu Eva, com simplicidade. Eu disse-lhes.
O que é que lhes disseste? Pierre apertou o braço de Eva com mão de ferro, magoando-a, mas ela não se manifestou. Sim, o quê?
Que vamos casar-nos.
Mas isso não é verdade!
Tens a certeza disso ? Ela olhava-o com os seus belos olhos azuis, dois pedaços de céu. Então tu ainda não sabes?
O quê?
Que eu te amo, Pierre... e que tu também me amas.
Ele recostou-se no assento, de olhos fitos na paisagem imaculada que passava como um sonho, do outro lado do vidro. Devia correr para fora deste rápido, pensava ele. Mas era preciso ter coragem. Aquele que foge diante da verdade não é necessariamente um cobarde.
Ao longo de cento e dez anos de existência, a estação do Norte já assistira a alguns espectáculos extravagantes. Alguns velhos empregados do caminho de ferro não se admiraram muito por verem, assim que o TEE proveniente de Colónia entrou na estação, uma enorme mulher ruiva, com um casaco de vison, defendendo das agressões da multidão uma espécie de altar portátil, ou antes, um grande cesto de flores e um alto personagem, com ar de professor universitário, embora um pouco trocista, que dava a seguinte notícia aos que passavam: o célebre pintor Pierre de Sangries regressava ao seu lar parisiense, depois duma viagem de exposições triunfais por toda a Europa.
Foi uma recepção formidável. Quem passava no cais olhava em redor, com curiosidade, à procura dum velho crânio pelado, como o de Picasso, dum bigode de conquistador, como o de Salvador Dali, ou dum rosto levemente munificado, como o de Cocteau. Mas a sensação da recepção, além do ramo de flores transportado pela senhora Beugnon, foi certamente a aparição dum grupo de russos brancos, com as suas balalaicas, que logo soaram melodiosamente, como se fosse um voo de zangãos sobrevoando a taiga.
Vocês enlouqueceram? disse Pierre, quando o ”Breviário” e Henry, o Vermelho, vieram ao seu encontro.
Entretanto, os russos rodeavam o querido irmão, tal como outrora, em Schamjinsk, faziam ao senhor das terras, quando este regressava da cidade e os servos lhe testemunhavam a sua alegria por voltarem a vê-lo...
Vais ficar espantado, Pierre! gritou Henry, o Vermelho. Há oito dias, Paris, finalmente, faz-te justiça! E sabes que mais, Ev, o teu ”Nu com parras” está presentemente pendurado no vestíbulo de Philipe de Barincourt! Parece que todas as noites ele suspira ao olhar a tua imagem e chora a juventude perdida!
Meu Deus! O que fizeram vocês com os meus quadros? gritou Pierre, tentando sobrepor a voz ao ruído.
Vendemo-los! troou Henry, o Vermelho. Rapaz, que exposição de luxo! Callac ficou estafado, a senhora Beugnon
1 Floresta de coníferas, de folhas persistentes, características de regiões frias. (N. da. T.)
teve que o substituir na galeria... Para Callac, era o fim do mundo, enquanto Paris proclamava o esplendor daquela festa para os olhos!
Meu Deus balbuciava Pierre, aterrado. Meu Deus, o que fizeram comigo? Callac morreu?
Que ideia, está vivo e bem vivo! Toma conta das encomendas para ti, nova estrela que apareceu no firmamento das celebridades, Pierre de Sangries, o pintor prodigioso, o que não significa que ele tenha mais compreensão pelos tempos modernos, que considera totalmente decadentes.
Não compreendo nada continuou Pierre. Callac fez uma exposição dos meus quadros? Voltou-se para Eva, que, de olhos brilhantes, falava em voz baixa com o príncipe Globotkin. Ev, tu percebes alguma coisa?
Sim, Pierre, agora compreendo. Deu o braço a Pierre. Vamos para casa, penso que este Natal é o ”maior presente” da nossa vida. Afastou uma mecha rebelde da fronte e mergulhou o olhar nos estranhos olhos de Pierre... olhos dum castanho profundo, cuja íris tinha sempre um reflexo de âmbar. Pierre, porque é que não ficaste contente?
Ev, eles venderam-te!
Mas os quadros pintam-se para se venderem!
E tu estás ali exposta, nua, em casa dum desconhecido. O teu corpo é contemplado por olhos estranhos. Eu nunca teria consentido na venda daquelas telas. Como eu te vi ninguém deve ver-te jamais...
E és tu, um pintor, quem diz isso?
Já não sou pintor!
Calou-se bruscamente, baixou os olhos e depois, voltando-se novamente para o ”Breviário”, disse:
E tu, sabes no que me tornei?
O triunfal acolhimento foi então um pouco perturbado: um cão, excessivamente feio, rompeu a multidão de curiosos e, ladrando, lançou-se sobre Eva, saltando-lhe para o colo e lambendo-lhe o rosto com entusiasmo delirante...
Bolhas! gritou Eva, comovida por aquele testemunho de louca ternura.
Apertou-o nos braços, o que pôs termo à curiosidade dos basbaques, pois quem tem um cão tão feio pertence a um meio que não desperta o interesse de ninguém. Estes artistas quase sempre demonstram ter uma ”pancada” qualquer...
Então, na Alemanha como foi? gritou a senhora Beugnon, quando, finalmente conseguiu chegar até Pierre.
Beijou-o até quase o sufocar, mas notou imediatamente a expressão inquietante do olhar dele, e ficou contente por ter falado abertamente com o Professor Mauron.
Pierre, vais ficar maluco com tudo o que se passou!
Também acho! disse ele, com severidade. Depois, afastou um pouco a senhora Beugnon: Mãezinha, creio que vamos ter uma conversa bastante desagradável! Os meus quadros...
O teu estúdio foi forrado de novo!
Tiraram os jornais que cobriam as paredes? gritou Pierre, escandalizado.
Já devias conhecer o texto de cor.
Mas aquela era a minha casa, minha senhora.
E agora, tens paredes brancas, onde podes pintar como quiseres... cem vezes Ev, com certeza!
Nunca mais! Nunca mais! Terá que arrancar os tapetes novos e vendê-los!
Se derem dinheiro por eles, porque não, imbecil? Seis táxis conduziram depois os viajantes e a sua comitiva até à Rua Princesa, onde os vizinhos se debruçavam nas janelas, repentinamente orgulhosos por habitarem naquela viela, cujas fachadas arruinadas naquele momento esqueciam.
A travessia de Paris, de táxi, foi um acontecimento de características invulgares. Como tinham colocado as flores da recepção sobre o carro onde seguia a senhora Beugnon, Pierre e Eva, os transeuntes tomaram a fila de táxis por um cortejo de enterro a caminho do cemitério e alguns cavalheiros de idade tiraram os chapéus, conforme a velha tradição parisiense...
A senhora Beugnon tinha convidado metade dos habitantes da Rua Princesa, e os que não fossem incluídos nesse número tentavam descobrir o mistério de tal desfavor, difícil de aceitar. A senhora Beugnon tivera a ideia de transformar o vestíbulo contíguo ao seu cubículo numa espécie de taberna de aldeia, com bancos rústicos e mesas improvisadas carregadas de vitualhas até mais não poder... Foi uma bela confraternização de amizade citadina, último reduto das massas atormentadas pela solidão contra o anonimato.
Pierre agiu exactamente como a senhora Beugnon temia: subiu imediatamente ao estúdio. Quando abriu a porta, ficou mudo, absolutamente estupefacto, como se tivesse sido despojado de todos os seus bens terrestres.
O seu quarto ”à beira do céu” já não existia. É certo que a grande janela que dava sobre o telhado inclinado e donde se avistava o mar dos telhados de Paris continuava lá e ele podia ainda contemplar as trapeiras, as antenas, as telhas e ardósias, os minúsculos jardins suspensos, as varandas, as cordas de roupa e as paredes cobertas de letreiros publicitários. A pequena prostituta lá estava também, como sempre. Estava deitada, de janela aberta, retemperando as forças. O seio esquerdo repousava sobre a coberta, a perna direita saía-lhe da roupa. Dali a três horas, o despertador tocaria, ela tomaria banho, faria as suas pinturas e ligaria de novo o contacto do telefone para atender as chamadas dos clientes.
Tudo estava como quinze dias antes e, no entanto, tudo era diferente.
Aquelas paredes brancas... Lá se fora o romance em folhetim, que cobria uma das paredes, enquanto a outra ostentava as variações da Bolsa; noutro lado, o caminho dos gastrónomos, a política e, na alcova, o desporto. As vigas tinham sido pintadas e tudo parecia tão novo que fazia com que ele tivesse vergonha de usar um fato velho. Mas o pior era verem-se apenas alguns quadros encostados às paredes, as preciosas telas que não eram para vender tinham desaparecido; até os retratos de Monky, a rapariga de corpo maravilhoso, tinham sido vendidos.
O quarto estava deserto, faltava-lhe a desordem duma vida feliz, apesar de todos os azares. Tudo tinha sido arrumado, ”normalizado”...
Pierre, encostado à porta, não se atrevia a entrar naquele lugar que lhe parecia deserto. Eva passou por ele, com Bolhas a segui-la, num passo hesitante, de focinho levantado, testa franzida em fundas rugas, fingindo não ver o cesto colocado, em sua intenção, junto da cama de Eva.
Isto agrada-te, Ev? perguntou Pierre, a meia voz, vendo que ela ficava parada no meio do quarto, olhando para todos os lados.
Ele ouviu passos na escada: eram os amigos, com a senhora Beugnon à frente. Por momentos, ouviu a respiração ofegante dela. É difícil içar cento e trinta e tal quilos por uma escada acima.
Sinto frio aqui disse Pierre.
Nós ainda não sabemos o que se passou. Eva sentou-se à mesa sobre a qual estava um sobrescrito aberto, do qual tirou um cheque, que leu e estendeu a Pierre: 53 700 francos, por cinquenta quadros... disse ela, e a voz vacilou-lhe, de repente: ... expostos por Marius Callac. Já sabes o que se passou? Pierre, finalmente, és um homem!
E o que era eu antes disto?
Uma criatura parecida com o Bolhas.
O cão, ao ouvir o seu nome, saltou para cima da cama de Eva, o que, para ela, era o símbolo da felicidade canina.
Enfim acrescentou Eva, eis-te Pierre de Sangries, que já não precisa de pintar cartazes para supermercados!
E sabes porquê?
Pierre continuava imóvel, encostado à porta, passeando o olhar pelas paredes nuas e brancas e deixando-o depois perder-se ao longe, sobre os telhados de Paris. A neve começava a cair, em grandes flocos que ficavam colados aos telhados, às varandas e às janelas amansardadas, amontoando-se, pouco a pouco, num tapete espesso.
Não foi por eu ser um génio descoberto por Callac, mas apenas porque, por tua causa, corri o risco de ficar sem um olho, por apanhar um soco!
Ela calou-se, impressionada e, depois, num gesto cauteloso, como se manuseasse algo de muito frágil, pousou o cheque na mesa.
Tu não acreditas em ti, Pierre, é o que é... De que tens medo?
Meu Deus, eu queria viver! Amar! Pintar este mundo radioso, tal como eu o vejo, na sua claridade deslumbrante! Mas ninguém o vê como eu, ninguém dá o justo valor ao dom miraculoso que é a própria vida!
Gritava, naquele momento, sem dar por isso, e Eva fitava -o, adivinhando confusamente que alguma coisa dentro dele tentava libertar-se, sem conseguir escapar da sua prisão, pois destruiria tudo o que ainda dava a Pierre de Sangries forças para viver.
Eu queria explodir no seio de tanta alegria, sem por isso ficar destruído, compreendes? continuou ele. Queria testemunhar a toda a criação a minha gratidão por tudo o que ela nos deu, sem que eu próprio ficasse condenado às sombras onde tenho sempre frio!
Subitamente, calou-se. Atrás dele, no patamar ao cimo das escadas, a senhora Beugnon apareceu, soprando como um cachalote; um pouco mais abaixo, na escada, ouvia-se Henry, o Vermelho, gracejar com os outros.
Pierre, o que escondes de mim? disse Eva, calmamente. Estás em vias de fazer fortuna e revoltas-te contra a riqueza, ora isso não é normal.
É evidente que ele não é normal gritou a senhora Beugnon, especada no patamar. Andámos todos a trabalhar à doida, por causa dele, mergulhando Paris em publicidade, e quase me cuspiu na cara!
Senhora Beugnon, acho que Pierre, neste momento, prefere ficar sozinho disse Eva, baixinho.
E aquilo de que ninguém era capaz, ou seja, fazer calar a senhora Beugnon, conseguiu-o Eva com um olhar apenas.
A senhora Beugnon saiu do quarto onde acabara de entrar, voltou a fechar a porta e, com a sua voz potente, fez recuar o grupo de amigos. Mas, quando já estavam sentados à grande mesa posta na entrada, disse discretamente ao príncipe Globotkin:
O príncipe foi sempre o mais ajuizado deste grupo de amigos. Compreende o que se passa com Pierre? Tem ao alcance da mão a rapariga mais linda que existe e não lhe toca. Dum dia para o outro, tornou-se célebre e fica de trombas, os amigos querem festejar o acontecimento e ele foge, como um animal doente! Explique-me lá isto!
Tenho-o observado, minha senhora, e dá-me ideia de que ele trava consigo mesmo uma luta de morte. Como era ele antes de trazer Eva para cá?
Era um mariola igual aos outros! Sem um tostão, mas sempre fanfarrão, trazendo para a cama mais raparigas do que o número de camisas que tinha. Vadiava com os amigalhaços como um cão sem dono e... era feliz!
E desde que Eva está com ele?
Trabalha que se mata: desde a madrugada, nas Halles; depois do almoço, desenha cartazes e à tardinha, pinta. Finalmente, à noite com medo de Eva, vem sentar-se ao pé de mim e recorda-a e fala, fala, como se lhe restasse pouco tempo de vida.
Talvez seja exactamente isso que o aflige? disse Globotkin, gravemente. Todos já reparámos!
Também eu confessou a senhora Beugnon, limpando os olhos.
Uma franja de pestanas postiças ficou-lhe colada à mão, mas isso não a incomodou nada, sacudiu os dedos e as pestanas voaram por cima da mesa, como uma aranha, e aterraram sobre o doce gelado que o conde Dolekin, motorista do táxi número 1391, levava à boca. O conde deu um piparote nas pestanas postiças e disse:
E quem há-de levá-lo a um médico?
Será preciso isso? perguntou Globotkin.
Já era tarde quando o último conviva, um tal Poissant l, se despediu; o mais curioso era ele ser dono duma peixaria, como se o próprio nome fosse uma predestinação. Tinha também a incómoda particularidade de permanecer impregnado dum cheiro a maresia, certamente impossível de expulsar.
Minha senhora disse Poissant, à partida, tenho que lhe contar uma coisa, ao mesmo tempo que quero agradecer-lhe por se ter lembrado de me convidar para esta festa. Há cerca de três semanas, vi o senhor Sangries parado sobre a ponte Tournelle, segurando o ventre com as duas mãos e a torcer-se com dores; creio até que lhe rolavam lágrimas de sofrimento pelas faces magras. Ele não deu pela minha presença, porque eu estava encoberto por trás do expositor dum vendedor de livros. Estive a observá-lo durante bastante tempo. Depois, afastou-se, num passo hesitante, a cambalear como se
Poisson, em francês, significa peixe e pronuncia-se como Poissant (N. da T.)
estivesse embriagado, mas tive a impressão de que ele apenas tinha bebido água.
E a senhora Beugnon ficou sozinha, numa barafunda de pratos, chávenas, pontas de cigarro, cheiro de fumo arrefecido, comidas, tudo isto envolvido pelo perfume intenso com que ela própria completara a sua indumentária de festa.
Meu querido Pierre disse a senhora Beugnon entre dentes, não fiques doente, ou eu mandarei à fava o altar da Virgem para o qual prometi uma toalha bordada.
Durante aquela noite, Eva, às apalpadelas, foi ter à cama de Pierre e cobriu-o com a sua nudez branca e tépida. Ele continuou deitado, gelado, sem esboçar um gesto em direcção aos seios dela, ao seu ventre; não abraçou o corpo macio da jovem, não lhe enlaçou as coxas roliças com os joelhos. Ficou ali, deitado de costas, de olhos fixos no tecto pintado de branco, ou na grande janela através da qual se viam os telhados carregados de neve. E quando as mãos de Eva deslizaram sobre o corpo dele, Pierre retesou os braços, rangeu os dentes e, de repente, voltou-se de lado, deixou-se cair da cama e rebolou pelo soalho do quarto, na claridade pálida que os telhados cheios de neve projectavam no interior do aposento.
Volta para a Alemanha! disse ele, numa voz abafada, deixando-se ficar deitado no chão.
O Bolhas saltara sobre ele e lambia-lhe o peito.
Tens uns pais tão bons, uma casa encantadora... tens tanta vida dentro de ti... Meu Deus, Ev, vai-te embora!
Pierre, eu amo-te disse ela, como sempre que ele fazia aquela mesma cena. Eu fico contigo!
E eu ponho-te fora daqui!
Não és capaz!
O quê? Sabes lá quantas raparigas mandei embora? Passava uma noite com elas e depois... ala!
Uma noite? No que nos diz respeito, como podes falar em uma noite!
Não te amo! disse Pierre, em voz rouca. Acabas de me obrigar a dizer-to. Só posso ir para a cama com uma rapariga cujo corpo me excite. Tu não o consegues... Não dá nada...
Eu sei, Pierre. Ela deitou-se sobre a cama e Pierre viu-lhe os belos seios, o ventre liso, os cabelos de ouro, os enormes olhos azuis. Sim eu sei repetiu ela, os meus cabelos são baços, tenho os seios grandes de mais, as ancas muito largas, as pernas sem graça... Tu gostas duma sílfide, como Monky. Ela, sim, era maravilhosa. Além disso, eu estava grávida doutro homem, abortei. Eu sou...
Ou te calas, ou eu estrangulo-te! disse Pierre, que continuava deitado no chão e apertava o Bolhas contra si. Admitamos que fiques cá até ao fim do ano, Ev... depois, mando-te embora!
Então, restam-me ainda dois dias!
Ela sorriu e deitou-se novamente, atirando a roupa para trás e ficando nua, à claridade que a neve projectava. O Bolhas saltou dos braços de Pierre, correu para Eva, lambeu-lhe a mão que pendia fora da cama, depois correu novamente para Pierre e lambeu-lhe o rosto.
Este cão é mais inteligente do que tu disse ela, tranquilamente.
É um bastardo!
Não é o que tu dizes que és também?
Se eu tiver a ousadia de te amar, Ev, vais arrepender-te toda a vida!
É esse o teu problema, Pierre? Talvez eu assim não tenha oportunidade para me aborrecer?
Já uma vez te obriguei a descer do Arco do Triunfo...
Isso não acontecerá outra vez. Mas não é por tua causa, isso é a única coisa da minha vida futura que eu já sei...
Como eu detesto essa certeza!
Ele levantou-se, dum salto, e aproximou-se da janela. Em frente, como de costume, a pequena prostituta tratava da vida, enquanto um cliente gordo suava a fazer o seu trabalho. Era um espectáculo inestético, mas certamente que ele tinha pago o preço devido...
Pierre encostou-se à grande vidraça. A luz daquela noite de Inverno dava ao seu corpo nu, quase descarnado, uma tonalidade macilenta.
Para que te agarras a mim, que me tornei num esqueleto!
Mas és agora o célebre pintor Sangries, depressa engordarás. Ela deu uma risada que era como um soluço. Aliás, é clássico que um homem que se casa engorda!
Nós não casaremos nunca, Ev. Nunca! Desviou-se da janela e avançou para o meio do quarto. Compreendeste, por fim?
Como tu o dizes, compreendo, mas não como tu pensas!
Ao diabo os teus ares superiores! Ele encostou-se à parede e apertou os punhos fechados. Obrigas-me a expulsarte do meu quarto!
E eu vou instalar-me em casa da senhora Beugnon.
E eu vou-me embora desta casa. Saio de Paris.
Queres então voltar à tua vida de vagabundo errante, fingindo ataques epilépticos?
Se for preciso fazê-lo.
Os teus amigos, a começar pelo Vladimir, dar-te-ão uma sova!
Até podem matar-me! disse ele, gritando. E que seja amanhã já, quanto mais depressa, melhor. Não podiam prestar-me maior favor! Se eu não fosse cobarde, ter-me-ia atirado do Arco do Triunfo, com a coragem que tu tiveste!
Um francês, suicidar-se no Arco do Triunfo? Que falta de gosto! Sugiro-te antes a ponte de Alexandre, que é muito mais romântica! Há também a solução do tubo do gás, metido entre os dentes... Ele voltou a sentar-se, com as pernas penduradas fora da cama. Como é possível o que estou a ouvir hoje, senhor Sangries? Há algumas semanas apenas, alguém se serviu destas palavras para suavizar a infelicidade duma rapariga!
Continuo na minha decisão: vamos separar-nos a 2 de Janeiro !
Ele afastou-se da parede e dirigiu-se para a cama, isto é, para a de Eva, que estava vazia.
Não te lembres de vir ter comigo disse ele, puxando a roupa até ao pescoço. Estou na disposição de te bater!
Portanto, no dia 2 de Janeiro... estás a ouvir, Bolhas? disse Eva. O cão saltou para cima dela e aninhou-se junto da sua anca. No dia 2 de Janeiro, acabou-se o donozinho, Bolhas, teremos que ir até à Rôtisserie de la Reine Pédauque, para procurarmos, com o nosso melhor sorriso, outro donozinho cheio de dinheiro!
Não terás de o fazer! disse Pierre. Vou pedir ao Vladimir que te leve à força para casa dos teus pais, na Alemanha, nem que tenha de dar-lhe todo o meu dinheiro!
Na manhã seguinte, Pierre já tinha saído de casa há muito tempo quando Eva abriu os olhos. A senhora Beugnon estava estatelada numa cadeira, na sua cozinha, e explicava que, pela primeira vez, Pierre não lhe dissera aonde ia.
Já preveni Vladimir disse ela, ofegante, os camaradas dele hão-de encontrá-lo! E então, que Deus tenha piedade dele!
Eva comeu rapidamente e dirigiu-se à galeria Callac, para retomar o seu trabalho, mas Pierre já lá se encontrava, de expressão sombria, sentado à secretária. Pelo televisor, tinha visto logo Eva entrar. Nas paredes da galeria havia numerosos quadros de Sangries. Era um conto de fadas que se tornara realidade, na qual Pierre nem queria acreditar. Uma parte das suas obras ostentava um letreiro: vendido.
Callac estava apressado, naquela manhã, quando, em vez de Eva, que ele esperava, tinha visto entrar Pierre, que não vinha para trabalhar mas para discutir com o dono da casa.
Rapaz dissera o patrão, o seu talento está provado, mas a sua idiotice, também. Pense bem nisto, eu tenho que sair. Mas tenha atenção, se alguém vier para comprar um verdadeiro Sangries, regateie como um cigano que quer comprar um burro. Mas livre-se de dizer que é você o famoso Sangries, porque toda a gente, ao olhar para este delírio de cores, julga que você é um artista triunfante. Não faça asneiras, Pierre, dentro de dois anos, as suas telas vão valer milhões...
1 Restaurante cuja especialidade são os assados. (N. da T.)
”Dentro de dois anos!” Pierre olhara Callac como se este lhe tivesse cuspido na cara. Depois, deixara-o ali especado e fora para o escritório.
O correio está ali junto! disse Pierre para Eva, apontando um monte de cartas. Dei uma vista de olhos pela lista das vendas e vi que Callac recebeu quarenta e três encomendas, entre as quais dezanove retratos: vou pintá-los todos!
Pierre!
Ela ficou imóvel, junto da mesa, espantada com o seu próprio grito de alegria.
Mas sem ti! acrescentou ele, em voz surda, enquanto se levantava.
No televisor via-se entrar um casal que era seguido pelas diversas câmaras, até ao menor recanto da galeria. Detiveram-se diante de uma tela que representava uma paisagem, tendo ao centro um vulto de mulher com o rosto de Eva.
Sempre Eva.
Ele apenas pintava Eva.
Entretanto, Marius Callac estava sentado em frente do seu notário e discutia, em tom bastante alterado.
Vejamos, caro doutor, sempre o conheci mais diligente. Um inventário e uma avaliação dos meus bens, o que é isso para si? E, depois disso, um testamento! Até agora, como sabe, nunca o fiz, pois pouco me importava quem ficaria com a minha fortuna, depois da minha morte.
O Louvre herdaria a colecção de quadros senhor.
Assim seria. Risque!
Os bens imóveis, terrenos, valores, as quotas nos vários negócios reverteriam para uma Fundação Callac, que teria como actividade a compra de objectos de arte, no estrangeiro, para certos museus franceses.
Risque!
Senhor Callac! O notário estava petrificado, sentado à vasta secretária: O senhor usa a Legião de Honra! O que é que lhe deu para privar a sua pátria daquilo que lhe tinha...
Sei muito bem o que faço e porquê, meu caro Raymond. Para que o meu testamento seja absolutamente válido basta que eu escreva por meu punho, tendo-o a si como testemunha: ”Tudo o que possuo, como bens móveis e imóveis, contas bancárias e quotas em diversos negócios, deve ser entregue à menina Eva, a quem instituo minha herdeira universal, com exclusão de qualquer outra pessoa.” Segue-se o endereço da minha herdeira, etc. Isto é o suficiente, doutor?
Como últimas disposições dum velho que está completamente senil é perfeitamente suficiente! disse o notário, friamente. Mas seria mais seguro juntar a esse testamento o certificado dum médico, atestando que o senhor está no pleno uso das suas faculdades mentais.
Obrigado! Um notário como o senhor outrora seria mandado para a fogueira! Callac inclinou-se sobre a mesa: E agora, Raymond, redija-me esse testamento, de modo que seja inatacável sob o ponto de vista jurídico!... É para isso que o senhor aí está!
Estará apaixonado, Callac? Quem é essa Eva Bader? Uma menina astuciosa! Que idade tem ela?
Raymond, ela tem vinte e dois anos. Considero-a como minha filha adoptiva, pelo menos, em pensamento... compreende?
Não, senhor
Quer ou não quer redigir esse testamento? rugiu Callac, ficando de repente com os óculos embaciados.
Vamos redigi-lo respondeu Raymond, num tom tão áspero que parecia que tinha engolido pregos. Por outro lado, o que acontecerá se nascer um filho? É uma eventualidade a considerar; agora, já espero tudo de si!
Callac e o seu notário insultaram-se ainda durante meia hora, recordando todos os nomes de aves que chamavam um ao outro quando eram crianças. Depois, ficaram amáveis a mais não poder ser. O testamento foi redigido e era juridicamente inatacável.
Agora, sei porque vivi concluiu Callac, depois daquele acto solene. Sempre pensei fazer de Celeste a minha herdeira.
O que é que temos agora? gritou Raymond, horrorizado. Mais complicações, não, suplico-lhe!
Celeste... Callac ergueu um olhar sonhador ao tecto de caixotão. Era uma miragem entre os canaviais da Camarga, Raymond; e um ser humano é qualquer coisa de terrível quando permanece vivo na memória e ressuscita sessenta anos depois em toda a sua realidade...
Era evidente que o dia 2 de Janeiro passaria sem que Pierre expulsasse Eva do seu quarto. No entanto, prevenindo um acto tão repreensível, a senhora Beugnon chamara o príncipe Globotkin em seu auxílio, bem como Henry, o Vermelho, o ”Breviário” e alguns motoristas de táxi russos. Ficaram reunidos no seu cubículo, durante todo o dia, à espera dum sinal vindo de cima, isto é, do sexto andar, para entrarem em acção, mas não tiveram que ”sovar” Pierre, como receavam. É certo que Callac reunira, na passagem do ano, a senhora Beugnon, Eva, Pierre e os camaradas de Pierre, para festejarem o êxito da exposição, o que fornecera a Henry, o Vermelho, ocasião para meter o pé na argola, ao anunciar, sem mais aquelas, o noivado de Pierre e de Eva...
Entretanto, Pierre dedicava-se inteiramente à sua pintura. Pintava ainda quando toda a gente estava já tonta de sono, depois dos festejos do Ano Novo. Pintava quando chegou a data crítica de 2 de Janeiro, estava a pintar a 3 de Janeiro. E chegou o dia 19, encontrando Pierre sempre diante do seu cavalete, a pintar a ponte de léna, rodeada de prestigiosas memórias.
É isto, rapazes! exclamou a senhora Beugnon, dirigindo-se ao grupo ao qual confiara a missão de se opor a qualquer catástrofe eventual. Ontem vi a ponte de léna que ele pinta e adivinhem quem é que está lá, a ver correr o Sena? Aposto que não adivinham!
E o médico? Ele já foi consultá-lo? perguntou Vladimir. Quando levamos Pierre ao médico? A pele dele está cada vez mais amarela.
Em 24 de Janeiro, Pierre e Eva compraram um carro. Tinham ainda em seu poder o ”vale” de Hubert Bader e Eva quis utilizá-lo, ainda que Pierre, na ocasião, tivesse dinheiro suficiente para pagar a viatura.
Não compraram um carro novo. O príncipe Vladimir, que foi escolhido como perito na matéria, acompanhou-os a um vendedor de carros usados. Havia lá um que serviria sem dúvida para provar a resistência dum automóvel através das vicissitudes da existência. O vendedor não o mencionou, de entrada, mas o Bolhas correu lá para dentro, sentou-se no banco traseiro e, atirando a cabeça para trás, soltou um grito de triunfo.
Levamos aquele! declarou Pierre.
Meu caro senhor disse o proprietário da loja, tenho aí cento e sete bons carros que seriam mais convenientes do que aquele.
Mas aquele agrada ao Bolhas, e isso basta!
O senhor pretende comprar um carro para o seu cão?
E porque não? Qual é o preço?
Quatrocentos francos... respondeu o homem, lançando um olhar desesperado a Vladimir. Este encolheu os ombros, em sinal de impotência.
O carro está em condições de circular? perguntou Pierre.
Talvez não fizesse a travessia do Sara... mas é rápido nas descidas. É de 1960...
1960! Pierre passou um braço em volta dos ombros de Eva. Tinha eu quinze anos, frequentava o liceu de Concarneau e fugia, porque não conseguia desabituar-me da vida errante de mendigo... Compramos este carro, caro senhor... E, depois, como as palavras lhe saíssem do fundo de si mesmo, pronunciou esta curta frase que ficaria no ouvido de Eva: Aguentará tanto como eu. Depois de amanhã viremos buscá-lo...
Na rua, o príncipe declarou:
Foi a última vez que tentei dar-lhe um conselho: aquilo não é um carro, é um monte de ferrugem com rodas! Se passar nele perto de mim, nem sequer o cumprimentarei!
A 10 de Fevereiro demorou todo esse tempo, o carro, pintado de novo, já tinha matrícula e livrete. O Bolhas procedeu ao baptismo erguendo a pata para o pneu esquerdo traseiro, numa prova notável de simpatia. Depois, sentou-se entre Pierre e Eva, no banco da frente, rosnando docemente quando o motor se pôs em marcha e o carro saiu da garagem.
Diante deles, estendiam-se as ruas de Paris e todas as estradas de França, da Europa, do mundo universo que eles iam conquistar, empoleirados em quatro rodas, com a alegria sem limites que é o quinhão da juventude.
O carro tinha agora a cor verde, de capota branca. O motor roncou depois de aquecer e das velhas rodas subia uma doce sinfonia que era como uma canção antiga.
Que nome vamos dar-lhe? perguntou Eva, abraçando o Bolhas. Tem que ter um nome!
Esta viatura vai levar-nos através do mundo disse Pierre. Vai conduzir-nos pelas ruas das cidades desconhecidas e pelos caminhos campestres que serão nossos.. .chamemos-lhe: ”Meus caminhos”... concordas?
”Meus caminhos”...
Eva acenou em sinal de concordância, depois, apoiou o queixo na cabeça do Bolhas, fitando Pierre; sentia-se feliz por o ver tão alegre, ao volante, como um garoto num carrinho eléctrico de feira.
”Meus caminhos...”! Pierre, seguirei contigo, para onde quer que vás! Neste Verão, queria ir à Provença continuou ela. Acho que bem podíamos oferecer esta viagem a nós dois, Pierre de Sangries!
Iremos também à Camarga disse ele, e andaremos a galope montados em cavalos brancos, em busca dos flamingos cor-de-rosa.
Depois, calou-se, certamente para se concentrar nas dificuldades do trânsito. Mas, por detrás da sua máscara de felicidade, pensava: ”Meu Deus, deixa-me caminhar ainda bem direito, mais este Verão. Poderás conceder-me mais esta graça?”
O mês de Fevereiro foi horrível. Não para Pierre e Eva, mas para todos aqueles que pensam que Paris é belo em Fevereiro. Porque é preciso confessar que Paris em certos Fevereiros o não é. Naqueles detestáveis dias, apareceu na loja de Callac a senhora Juana Blondiera, uma dama que era só jóias... o resto, não tinha importância. Dizia-me que era a viúva sul-americana mais rica da capital e é certo que não se privava de nada, nem mesmo dum ”salão” com pretensões literárias e artísticas... Várias estrangeiras ricas conseguiram, deste modo, organizar círculos
brilhantes, numa cidade onde as pessoas se deixam influenciar pelo dinheiro e pelos produtos exóticos.
Quero que o meu retrato seja feito pelo mestre Pierre de Sangries! bradou a dama, dirigindo-se a Callac.
Na verdade, ela disse mestre, o que fez passar um arrepio de desagrado pela espinha do negociante de quadros. Se a senhora Blondiera qualificava Pierre de mestre, era porque este, teoricamente, tinha conquistado Paris. E Callac jamais admitira tal possibilidade. Tirou os óculos e limpou-os cuidadosamente. Que Pierre fosse considerado como um principiante de valor médio, ainda era aceitável, mas que fosse tido por mestre! Callac, ao enfrentar este problema, sentia confusamente que já estava ultrapassado, que o tempo jogara contra ele. O encontro com a senhora Beugnon perdão, com a sua amada Celeste tinha-o abalado profundamente. Não se podem apagar sessenta anos, sob o único pretexto de que eles não foram vividos, pois cada ano, cada geração, possuem a sua própria felicidade inesquecível, cada época constrói algo de novo em volta da pessoa humana, coisas novas, cada vez mais completas. Talvez Pierre de Sangries fosse o pintor da sua própria época? Mas Callac não aceitava isso.
E como deseja ser pintada, minha senhora? perguntou Callac, numa voz um pouco estrangulada.
Como? A senhora Blondiera lançou um olhar sobre si, de alto a baixo; as jóias cintilavam. Quero que o meu retrato meça, no total, quatro metros de altura...
Enrolou os polegares no longo colar de pérolas e ergueu a cabeça para a luz que vinha do tecto.
Isso seria uma coisa gigantesca, minha senhora aventurou-se Callac, a reparar, e seria de mais, até para Pierre de Sangries.
Este retrato será colocado no meu salão de recepções, em Neuilly. O senhor conhece?
Naturalmente, Callac conhecia.
Vou transmitir o seu desejo ao senhor Sangries respondeu Callac, com prudência. Mas vai ser um preço...
Callac!... questões de dinheiro entre nós? disse a dama, consternada.
Vai custar-lhe trinta mil francos, minha senhora.
Pagos adiantadamente? É absolutamente justo!
A senhora Blondiera tirou o livro de cheques da carteira.
Pierre de Sangries”, pensava Callac, agora é que não me restam dúvidas: trinta mil francos adiantados!”
Quando a senhora Blondiera saiu, Callac achou que merecia uma boa dose de conhaque e Eva não se opôs a isso, quando soube as razões.
E não se diga que Fevereiro em Paris não é um presságio das esperanças da Primavera.
Minha senhora, prometi-lhe que exprimiria o essencial da sua personalidade disse Pierre, ao terminar o quadro que retratava a senhora Blondiera, de pé.
Pierre só vira a sua cliente quando ela tinha vindo a casa dele, na Rua Princesa, pois o pintor não era capaz de pintar no novo estúdio que Callac lhe arranjara, num dos cais do Sena. Aquelas sessões de pose punham toda a Rua Princesa em efervescência, pois a senhora Blondiera chegava de ”Cadillac”, conduzido por um motorista fardado, que ficava à espera dentro do carro, com todos os vidros fechados, como se estivesse prisioneiro numa ilha conquistada pelos piratas. A senhora Beugnon de Birague sentia o seu orgulho satisfeito, de certo modo, pela entrada em sua casa duma mulher conhecida de toda a sociedade parisiense.
É uma mulher tão chique e tão distinta explicava ela. Imediatamente percebeu quem eu era e me disse: o mestre espera-me, minha senhora, pode fazer o favor de me anunciar? Isto é que são boas maneiras, seus macacos! É assim que se faz, entre senhoras!
E eis que chegara o momento de apresentar o retrato terminado à rica cliente.
Pierre aproximou-se do enorme cavalete que tinha mandado fazer recentemente e retirou o pano verde que cobria o retrato.
Eva e Callac encontravam-se ao fundo do aposento, um tanto angustiados.
Fez-se um silêncio absoluto, por momentos, poucos, e depois Callac soltou um suspiro de desespero, apoiando-se no ombro de Eva. A senhora Blondiera estava representada sentada na poltrona forrada de brocado vermelho dourado que servira para as sessões, e ao ouvir o suspiro de Callac, articulou, profundamente comovida:
Fantástico! Sublime! Genial! Indescritível!
Esta última exclamação convinha perfeitamente à obra exposta perante os olhares de todos.
Sobre um fundo claro, matizado de azul e de fogo, via-se suspensa em cada um dos quatro ângulos da tela, a cabeça da senhora Blondiera, repetida quatro vezes, cada uma delas dirigindo o olhar para o centro do quadro, onde brilhava, cintilando, deslumbrante, em todo o seu fulgor, o famoso colar de diamantes e esmeraldas que a senhora Blondiera usara durante as sessões de pose e cuja magnificência parecia atrair as quatro cabeças, como se fosse um sol que atraísse quatro gotas de orvalho.
Formidável! disse ainda a senhora Blondiera, ofegante, de olhos fixos na tela.
Eu não lhe prometi que a representaria tal qual como a vejo? disse Pierre, sarcasticamente.
Mas o seu modelo navegava na embriaguez de se ver imortalizado de acordo com os seus desejos; nem tinha voz e, num impulso de gratidão, beijou-o nas duas faces, a chorar, e fugiu logo, como se receasse o excesso de emoção provocado pela contemplação da obra de arte.
Pierre disse então Callac, em voz baixa, Pierre...
Diga, senhor Callac?
Você é o mais impertinente, o mais matreiro, o mais talentoso dos pintores modernos que eu conheço! Acaba de arriscar tudo por tudo!
Fi-lo por Eva... disse Pierre com um ardor quase dilacerante. Enquanto eu viver com Eva junto de mim, o meu universo estará de acordo com o meu coração.
Mas os bons amigos, que, graças à senhora Beugnon, sabiam que o universo de Pierre e de Eva era apenas platónico, preocupavam-se com aquilo que lhe parecia uma grave anomalia, carregada dum pesado potencial de desgraça.
E aquele estado de coisas era tanto mais estranho e misterioso quanto todos se lembravam da maneira de viver de Pierre, alguns meses atrás. Não houvera somente Monky, mas muitas outras mais... Até que a senhora Beugnon, inquieta, chamou Pierre à sua cozinha, para lhe dizer:
Meu rapaz, até o homem mais vigoroso definha. Daqui a pouco estás um esqueleto!
E Pierre respondera, dando uma gargalhada:
Mãezinha, quando fui vagabundo aprendi todas as artimanhas para satisfazer as raparigas ao máximo com um mínimo de esforço!
E agora, o que acontecia? Ele dormia a dois metros de Eva, desprezando aquele corpo harmonioso, de seios opulentos, de ventre ornado por caracóis de cabelos de ouro, aquele corpo que cheirava a juventude e que irradiava um calor enfeitiçante.
Ela tem que o violar! dizia Henry, o Vermelho. E o resto far-se-á por si, com certeza que ele não vai gritar por socorro!
Talvez uma mudança de ares! propunha outro amigo, não há nada melhor para...
E chegou o mês de Maio. Os castanheiros de Paris estavam em flor, e Paris era finalmente a cidade com que se sonha, a Paris que perturba e cuja brisa, vinda do Sena, faz esvoaçar as saias das belas raparigas.
Daqui a um mês, partiremos de carro para a Provença disse Pierre a Eva, olhando o céu, que parecia uma seda azul estendida sobre os telhados, visto através da grande vidraça.
Disse aquilo porque nessa mesma manhã se tinha colocado, nu, em frente do espelho, para fazer um exame minucioso da sua pessoa. O seu corpo nada revelava, só as escleróticas estavam amarelas. Mas ele meditava, lembrando-se de que, desde meados de Janeiro, por quatro vezes julgara que as súplicas que dirigira àquele Deus reencontrado tinham sido vãs. Fora uma sorte que Eva nunca tivesse estado junto dele naqueles momentos, e que, assim, ele tivesse podido atirar-se para o chão, como um cão doente. Uma das vezes, acontecera à entrada duma cave, onde ficara enrolado, atrás dum pilar, de mãos comprimindo o ventre, na expectativa de saber como se morre plenamente consciente. Mas parecia que as coisas não aconteciam assim. Morrer é cruel, mas a última fase, a tomada de posse dum ser, pela morte, devia ser algo de tranquilo. Ninguém pôde ainda falar disso, mas Pierre acreditava que assim seria.
Quando é que partimos? perguntou Eva, beijando-o.
Exactamente a 22 de Junho.
E porquê nesse dia?
A 23 será domingo e eu queria ouvir de novo, depois de quinze anos de ausência, o pequeno sino duma aldeia da Provença onde estive hospedado, por indicação dos padres que me educaram, em casa dum velho cura de aldeia.
Entretanto, Callac tornava-se cada vez mais nervoso, à medida que o mês de Maio se aproximava e, com ele, o dia da partida de Pierre e de Eva para a Provença. As suas recordações de Celeste quase o asfixiavam, mesmo depois de ter visto no que ela se transformara. Apesar de todas as realidades, ela continuava a ser a jovem de tranças negras que ele desmanchara sobre a erva áspera da Camarga, para que os cabelos lhe flutuassem ao vento, como uma bandeira negra. Nuvem de cabelos negros contrastando com um céu azul como aço, ao mesmo tempo que os canaviais, da altura de um homem, balançavam ao vento quente. Como é que se pode esquecer, quando ainda resta um quase nada de coração?
Têm que ir à Camarga repetia Callac a Eva, quando estavam juntos no pequeno escritório. Nunca mais tive coragem de lá voltar, porque ali deixei demasiado de mim mesmo, mas se me trouxer um braçado de caniços cortados no pego de Ulmot e um pedaço de terra impregnada de sal, conseguirá fazer chorar este maldido Callac. Mas não tente enganar-me... porque eu conheço perfeitamente o aspecto das canas e do solo em redor do pego de Ulmot.
Finalmente chegou Junho e Paris revestiu-se da magia das suas noites azuis; o boletim meteorológico da rádio anunciou que o Sul já oferecia aos turistas a taça ardente dos seus dias de Verão.
No dia 22 de Junho chovia em Paris; o carro chamado Meus caminhos” estava estacionado em frente da porta na Rua Princesa, já atestado de gasolina, carregado com duas malas de viagem e dois sacos, acompanhados por dois bolos enormes de focinho baixo, amuado. Desagradava-lhe sair da Rua Princesa, deixar as suas cadelas vadias, os habitantes alegres, as comidas preparadas pela Senhora Porteira...
Callac possuía um mapa antigo, que era uma recordação sagrada, e dera-o a Pierre. Era um mapa da Camarga, com alguns círculos marcados a lápis vermelho nos locais onde havia estado com Celeste.
Traga-me fotografias desses locais todos, tal como estão agora dissera ele a Pierre. Na verdade, nada deve ter mudado, pois aquela região é a própria eternidade. Mas há homens que se encarregam de mutilar a beleza eterna!
Quando chegaram a Fontainebleau, a chuva parou. Desde então, o sol fez companhia ao pequeno e ruidoso veículo verde.
Numa estrada municipal perto de Tavaux, Pierre parou. Na frente deles erguiam-se algumas casas decrépitas dum velho lugar envolvido pelo calor do Sul.
Foi aqui disse Pierre, sem sair do carro, olhando através do vidro, com as mãos a apertarem o volante. Foi aqui que vivi com a minha mãe. Tinham-na mandado para longe de Paris porque eu nascera dum homem de que ela apenas sabia o nome próprio. E foi aqui que vieram buscar-me para me porem no orfanato. Aqui nasceu Pierre, o vagabundo, porque o seu avô era orgulhoso de mais para criar um bastardo. Rodeou o Bolhas com um braço e apertou contra o peito o rafeiro mais feio de Paris. E tu, Bolhas, como foi a tua vida? Em que recanto vieste ao mundo?
Olhou para o cão e beijou-o na cabeça hirsuta, voltando depois o olhar para Eva:
Se tu soubesses o que um cão significa para mim disse baixinho.
Depois, acelerou, fez meia volta e entrou novamente na estrada principal.
Eva não perguntou o que queriam dizer as últimas palavras de Pierre, pois sabia que ele, ao fazer um regresso ao passado, precisava de silêncio. Mas recordava também aqueles quadros que tinham sido vendidos, na sua maior parte, que representavam uma jovem mulher de olhos tristes e rosto delicado, a linda mãe de Pierre, rodeada da claridade do Sol. A única âncora de salvação que Pierre tivera neste mundo até que ela própria aparecera na sua vida, ela, Eva Bader, a demoiselle aupair que quisera atirar-se do cimo do Arco do Triunfo por causa de um filho. Era o mesmo destino. Seria nessa semelhança que residia o mistério do amor de ambos que, até àquele dia, mantivera os seus corpos intocados um pelo outro?
Nunca se deve subestimar o vigor dos veteranos: o monstro pintado de verde percorreu, num só dia, a distância que Pierre esperava andar em vinte e quatro horas. Ao crepúsculo, sob um céu riscado por nuvens vermelhas, cor de laranja, roxas, estirando-se por cima duma terra cor de tijolo, coberta de vinhedos, Eva compreendeu a razão pela qual um pintor deve ir à Provença, pelo menos uma vez na vida. Tinham chegado a uma minúscula aldeia, constituída por nove casas brancas e uma oficina de cerâmica cujos fornos tinham sido cavados na colina que dominava a aldeia. Aquele grupo de casebres chamava-se Puy de Saint-Rémy i e Pierre, antes de deter o veículo, explicou:
Vamos instalar-nos aqui. A cerâmica pertence a um dos amigos do nosso grupo de vagabundos, conhecido de Symphorien. Este tipo saiu de Paris há três anos, chamávamos-lhe Cabeça de Barro” porque, já naquele tempo, ele modelava bilhas numa roda feita por ele. Depois, pintava-as; é um rapaz fixe.
Tocou a buzina. Duma das grutas surgiu um indivíduo (Monte de São Remígio. (N. da T.)
alto, seminu, com uma barba abundante, bronzeado pelo sol. Com um olhar, apreciou o carro verde e bateu na testa com o indicador. Só depois se aproximou, reconheceu Pierre quando este saltava para fora do carro e abriu-lhe os braços, gritando:
Pierre! Sempre é verdade, finalmente, vieste! A Provença saúda-te, espera por ti, necessita da tua presença, sempre to disse! Mas ao ver Eva e o Bolhas, a sua atenção desviou-se imediatamente de Pierre. Quem é? Endoideceste?
Já te explico, meu velho.
O carro e o cão ficam-te a matar, mas... a rapariga? Ficaste milionário, rapaz?
Quase... Apresento-te Eva.
Muito prazer... O enorme rapaz de ombros fortes e barba hirsuta apertou a mão de Eva, enquanto com a outra fazia um gesto: A minha terra é vossa! disse É fácil de dizer, pois apenas tenho esta colina e o estábulo que está além. Mas quem vive aqui pensa que é dono de toda a região!
A noite veio encontrá-los debaixo dum abrigo de canas, a comerem costeletas de borrego grelhadas no lume de carvão de madeira e a beberem um vinho rosado de gosto picante. Sobre as suas cabeças, uma brisa vinda do mar fazia balançar dois candeeiros de petróleo e trazia até eles o cheiro das praias, apesar de ficarem ainda afastadas.
Pode-se viver só do fabrico de peças de barro? perguntou Eva, quando os grilos começavam a povoar a escuridão com infinitos trilos.
A terra exalava o calor do dia, com a fragrância duma mulher apaixonada.
Pode viver-se disto se se fizer a vida que eu faço. E aquele a quem chamavam Cabeça de Barro, ignorando toda a gente o seu verdadeiro nome, que ele não revelava, bebeu um gole num copo de barro envernizado, acabado de sair da sua oficina. Eu vivo disto e sou absolutamente independente!
Era evidente que o Cabeça de Barro poria a cama à disposição dos seus hóspedes, e foi dormir encostado a um dos fornos apagados, na encosta da colina, embrulhado em duas mantas. Tal como acontecera em Paris, Eva tomou posse da cama, enquanto Pierre se deitou num banco de madeira, atrás da mesa.
Vem para aqui! disse Eva, depois de apagar a lamparina.
Ev... Ele levantou-se e estendeu-se junto dela. Os corpos de ambos colaram-se um ao outro e ele sentiu o peito dela esmagar-se contra o seu e um braço de Eva passar-lhe sobre as ancas. Ev, suplico-te que me acredites, resta-nos ainda o bom senso: devemos resistir! Ainda que isso nos pareça uma loucura!
Tu amas-me disse ela, baixinho.
Naquele momento, Eva estava meio deitada sobre ele e o peso do corpo da jovem, o perfume da sua pele, o odor de flores da sua cabeleira atordoavam-no.
Se te amo! confessou ele, em voz rouca.
Diz-me: amo-te, Ev! Sim, porque eu sou Eva, Pierre, não sou a tua mãe!
Meu Deus, não é o que julgas, Ev! exclamou ele. Não existem mais palavras para mim.
Ele apertou-a contra si, refugiou a cabeça entre os seios dela, e, pela primeira vez, Eva sentiu que ele era um homem, o que lhe deu tanta alegria que quase a fez chorar.
Tu vais sofrer! gritava ele, entre os seios dela. Mais tarde compreenderás, Ev... amo-te de mais!
Depois, calaram-se, entregues apenas à realidade dos próprios corpos, como se as palavras tivessem perdido todo o significado. Saborearam o amor com uma intensidade que só era igualada pelo infinito do céu, enquanto os corpos ondulavam um sobre o outro e um dentro do outro e conheciam a revelação do pródigo que consente que dois seres humanos possam amar-se tão completamente que o seu desejo passará para além da eternidade.
Repousaram, por fim, na escuridão, na qual se confundiam os trilos de ouro dos grilos, sentindo-se tão unidos um ao outro como se fossem assim permanecer para sempre.
Vamos ficar aqui durante quanto tempo? perguntou Eva.
Oito dias, quinze, um mês, um ano... não sei.
Eva ergueu-se um pouco, para olhar para ele. Os olhos sombrios de Pierre brilhavam sobre o rosto dela.
Disseste a Callac? disse ela.
Não.
E a senhora Beugnon, sabe?
Ninguém sabe.
E tu próprio, desde Aquando o sabes?
Desde há uma hora. Atraiu a si a cabeça de Eva e fez deslizar as mãos abertas sobre os seios dela. Temos o vento, o céu, a terra e o mar... O que faríamos em Paris? Aqui, vou pintar tudo o que tu conseguiste fazer de mim.
No dia seguinte Eva ainda dormia, Pierre encontrou Cabeça de Barro junto do poço, a lavar-se. O Bolhas estava sentado ali perto, com ar infeliz, de olhar perdido ao longe, a sonhar, decerto, com as cadelas da Rua Princesa.
Onde fica o médico mais próximo daqui? perguntou Pierre.
Cabeça de Barro olhou-o, surpreso.
Só em Saint-Rémy há um que não é doido. Porquê? A menina está com os enjoos nocturnos?
Idiota! Pierre lavava a cara, com as duas mãos. É para a hipótese de eu...
Que hipótese?
Se eu morrer...
Nesse caso, o veterinário de Eygalières servirá muito bem. Cabeça de Barro riu-se dum modo hostil, quase provocante. Quando é que resolves morrer, Pierre?
É uma coisa que pode acontecer de repente.
Com certeza... Pierre sorriu, contrafeito:
Gostaria de ficar em tua casa, Cabeça de Barro!
Fica o tempo que te apetecer.
Talvez para sempre.
E porque não? Faz uma casita para ti, ao pé do estábulo. Uma vez por mês, passa por cá um viajante que leva a minha mercadoria e poderá levar também os teus quadros. Quanto custa cada um, Pierre?
Quinze mil francos.
Bravo, rapaz! disse o Cabeça de Barro inclinando-se perante semelhante patranha. Se disseres isso ao senhor Braillon, o vendedor de Saint-Rémy, ele vai pensar também que tens que ir ao médico.
Riu, de novo, ruidosamente, e depois, enchendo de ar matinal o largo peito bronzeado, dirigiu-se para a cozinha.
”Que força”, pensava Pierre. ”Oh! se eu tivesse uma parte dela, um décimo só que fosse, não seria pedir muito, o mundo pareceria bem diferente aos meus olhos!”
Ergueu os olhos para o Bolhas, que se coçava cuidadosamente.
Um cão! Ev... se tu soubesses o que significa para mim um cão! Vem cá, Bolhas!
Imediatamente, o Bolhas, dum salto, lançou-se nos braços de Pierre, o qual, apertando-o contra o peito, foi acordar Eva.
Ficaram dez dias em casa do Cabeça de Barro, dormindo na cabana que tinham construído em dois dias. Naquele tépido Verão, um tecto bastava, e dormia-se melhor rodeado de ar puro. No entanto, Pierre e Eva teriam preferido ter verdadeiras paredes a rodeá-los, que melhor escondessem o seu amor, apesar de o Cabeça de Barro ter declarado:
Aqui, não há vergonhas. Ou então, não se é digno de viver no seio da Natureza!
E depois disto modelou um gingantesco falo em argila, que cozeu num dos fornos e ofereceu a Eva um dia à hora do jantar, como quem oferece um ramo de flores a uma senhora. Pierre observou fixamente o objecto, e Cabeça de Barro percebeu que também Eva ficara embaraçada com aquele estranho presente, no qual pegou com repugnância, agradecendo-lhe apenas com indiferença. Entretanto, Cabeça de Barro, encantado, engolia um grande copázio de vinho, batendo com o punho no peito possante e bradando:
Foi feito do natural, menina. Isto não lhe desperta a curiosidade ?
Devias portar-te doutra maneira disse Pierre ao seu camarada, enquanto Eva, na cozinha, lavava a louça num alguidar cheio de água quente. Os dois homens estavam sentados na pequena colina, a fumarem, contemplando a paisagem. Ela não é uma puta, é a última vez que to digo! E eu amo-a! Ninguém pode avaliar quanto ela representa para mim!
Basta olhar para ela, para se ver o que vale dentro dos lençóis! disse, alegremente, Cabeça de Barro. Pierre, não me venhas com aldrabices, a alma, o coração, quando, afinal, o que a gente quer é pôr-se nelas!
O que seria da humanidade se só houvesse pessoas como tu!
E que mais é preciso aqui, neste pequeno paraíso? Entre a tua cama, o teu cantinho, o mar, o vento e o céu, lá por cima?
Cabeça de Barro olhava para baixo, para a encosta. Eva despejava o grande alguidar, tinha os músculos tensos, no esforço. Os seios empinavam-se-lhe e as calças de ganga desbotada colavam-se-lhe às ancas. Tinha os cabelos despenteados e não sabia que estava a ser observada, pois passou as mãos pelo rosto e abriu os braços, para respirar profundamente o ar da noite.
”Hei-de pintá-la assim”, pensava Pierre, feliz. ”Ela exprime toda a nostalgia humana, perante a beleza e a felicidade.”
Se eu fosse milionário, comprava-ta continuou Cabeça de Barro, cuspindo a beata que se lhe colara aos lábios. E, afinal, até sou milionário, uma vez que possuo toda a liberdade que pode imaginar-se! O que é que queres em troca?
Não lhe toques, Cabeça de Barro! Estás a ouvir? Não lhe toques!
Sou suficientemente honesto para te dizer antes de o fazer...
E eu matar-te-ei, Cabeça de Barro!
Com um pincel molhado em vermelhão? Começou a rir às gargalhadas e atirou-se para trás, caindo
sobre a erva. Quando ele cruzou as mãos debaixo da nuca, a sua caixa toráxica arqueou-se, os bicípites tornaram-se salientes.
Pierre prosseguiu, na Natureza, o mais fraco sabe sempre quando deve renunciar. Já observei, um dia, dois machos de raposa que disputavam uma fêmea.
Eu não sou uma raposa, Cabeça de Barro disse Pierre, com gravidade, porque se tocares na Eva, viro a Natureza toda do avesso e o verme atacará o elefante.
Levantou-se e desceu a encosta. O Bolhas seguiu-o de perto, parecendo que compreendia as palavras dos seres humanos.
Na quinta-feira, Adolphe Braillon, o vendedor ambulante, veio abastecer-se de vasos, potes, bilhas e pratos rústicos; pagou tudo, sem discutir, contou as novidades da vila e da política mundial, que pouco interessavam ao oleiro, e ficou na casa durante uma hora. Não viu Pierre, nem Eva, e o Cabeça de Barro não falou na presença deles. Pierre recusara-se a mostrar as telas já terminadas ao senhor Braillon.
Bom, cada idiota tem as suas ideias próprias. Até o homem das cavernas vivia de trocas, mas se queres rebentar de fome sentado em cima dos quadros, isso é contigo!
Foram também dez dias de sol e de amor, dez dias passados a pintar algures sobre uma colina, com as cores mágicas das quais se deprendia um só grito: ”Eu queria viver!”
Pierre ia de manhã, sozinho, pelos campos fora. Eva, pacatamente, renunciava a acompanhá-lo. Facto estranho, o Bolhas ficava junto dela, como se soubesse que era demasiado feio para inspirar o dono.
Andava aos saltos, em volta de Eva, olhava de lado para Cabeça de Barro, colocando-se entre ambos quando eles se falavam e rosnava sempre que o oleiro se aproximava de Eva a menos de um metro.
Menina, até o cão está apaixonado por si declarou Cabeça de Barro. E quem pode admirar-se disso? Tudo o que é macho torna-se animal feroz junto de si.
Ele esfregou o sólido peito nu e passou os dedos pela barba emaranhada.
De facto, está satisfeita com Pierre?
Prefiro não entender a sua pergunta disse ela. Estavam frente a frente, diante dum dos fornos de cozer as cerâmicas, perto dum monte de peças de barro.
Eva não podia fugir: atrás de si, estava o forno, aquecido ao máximo, e em volta dela, havia potes, bilhas, tendo na frente o homem que se dizia amigo de Pierre, armado de toda a sua força. Usava apenas uma cueca de banho e tinha o sexo erecto.
Estamos no coração do paraíso, minha linda continuou ele, você chamava-se Eva e eu, Adam Ratoulle! Isto não é um simples acaso, é o destino! Obedeçamos às leis da Natureza.
Eu amo Pierre, Adão.
Bem sei. Vê-se, cheira-se, até, quando vocês estão ao pé um do outro, mas é um sentimento contra a Natureza. Você precisa dum homem que, se for preciso, vá arrancar ao céu da Provença as estrelas que você desejar! Quer o planeta Vénus? Vamos, eu dou-lho, e depois gozaremos os dois, no meio das almofadas, até ficarmos sem forças! É disso que você precisa, Eva!
Creio que está absolutamente enganado, no que me diz respeito, Adam Ratoulle! disse Eva, em voz baixa. Mas, naquela mansidão, havia uma decisão feroz. O que me une a Pierre não é aquilo que modelou com argila, para me oferecer. Não é isso que importa na vida. E vou-me embora, tenho as costas a arder!
Gostaria de arrebatá-la nos braços e mostrar-lhe o que é um homem! continuou Cabeça de Barro.
Ora experimente!
Porque não diz, simplesmente, que não?
E ouvir-me-ia?
Evidentemente que não! Adam Ratoulle riu, mas havia nesse riso algo de falso, que só as mulheres sabem intuir. O que vai dizer a Pierre?
Se me deixar ir embora, não lhe digo nada. Ele está demasiado feliz e julga que você é seu amigo. Se não estiver de acordo, dir-lhe-ei tudo... o que seria uma catástrofe. E afinal, nada é mais banal do que esta situação: três seres humanos bastam para criar um inferno.
Adam Ratoulle riu de novo. Afastou-se e deixou-a passar, mas quando ela tinha dado três passos, agarrou-a pela camisa e deteve-a, puxando-a para si. Ela bateu-lhe com os punhos, desenvencilhou-se do abraço dele e correu para a cabana. Ratoulle seguiu-a, sem pressa, num passo descuidado, não a deixando afastar-se muito, como se ela apenas fosse à frente para preparar a cama e esperar por ele.
Quando ele entrou na pequena cozinha, Eva, de pé, diante da grelha, com os braços erguidos, brandia uma grande faca.
Você é daquelas raparigas que defendem o triângulo como quem defende uma fortaleza? bradou Ratoulle, que olhava para a faca na mão de Eva como se olhasse um brinquedo. Isso é uma coisa idiota, que diabo, você já não é virgem é uma coisa tão natural como beber e comer. E você, Eva, é o género de mulher que definha sem amor.
Cabeça de Barro, não avance! disse Eva, numa voz subitamente violenta.
Ratoulle tinha avançado um passo: se ele erguesse os braços, a partir daquele momento, ela teria que escolher entre abandonar-se-lhe ou desferir o golpe.
Largue essa estúpida faca, Ev! disse Adam Ratoulle em voz rouca.
Não! Juro que lha espeto!
Como quiser: arma contra arma! Com as duas mãos, agarrou as cuecas e puxou-as para baixo. Erguia-se na frente dela, a rir abertamente, nu, de sexo completamente erecto. Seja razoável, Ev, sou eu quem tem a arma mais forte! Largue essa faca! Seria você realmente capaz de espetar essa lâmina?
Você nem sonha do que eu sou capaz, Cabeça de Barro! disse Eva, com dureza. Pelo amor de Deus, não se mexa! Esta faca está afiada e eu tenho-a segura com força, com muita força!
Ela pôs também a outra mão no grande cabo de madeira e apontou a faca. Uns escassos cinquenta centímetros apenas separavam Adam Ratoulle da lâmina afiada... E ele ria-se a bandeiras despregadas, de mãos nas ancas, e atirava para a frente o baixo-ventre.
Que combate original, Ev! Você é uma mulher maravilhosa.
Entretanto, Pierre estava estendido algures entre as colinas, ao sol, a torcer-se de dor. Viera tão bruscamente e com tal violência que ele deixara cair tudo, o pincel, a paleta, para agarrar o ventre com as mãos e atirar-se para o chão. Sentia que o sangue lhe fugia do rosto e o cérebro se obscurecia, enquanto a carne parecia separar-se-lhe dos ossos e a dor aguda que o contraía todo se tornava tão forte que ele rebolava dum lado para o outro, mordendo a terra quente e cheirosa, para não gritar. Susteve a respiração, julgando que assim dominaria a dor... mas não resultou. Uma terrível verruma avançava dentro dele e sentia-se percorrer por correntes de fogo. O suor inundava-o e como o seu martírio se tornava cada vez mais insuportável e morder o chão não lhe proporcionava qualquer alívio, meteu punhados de erva na boca. Não gritar... acima de tudo, era preciso não gritar... pois se o fizesse até na cabana o ouviriam! Isto vai passar depressa, só começou há alguns segundos. Ele sabia bem como era, pois era a vigésima terceira crise que sofria, apesar de esta ser a mais terrível de todas, a mais longa, a mais carregada de ameaças: porque lhe anunciava que teria que correr contra o tempo, contra o relógio.
Quando aquele terrível sofrimento abrandou um pouco e dele ficou apenas aquilo a que Pierre, desde há dois anos, chamava os ”arrotos do meu hóspede”, ou seja, aquela dor larvada, latente, sempre presente, à qual era possível uma pessoa habituar-se, Pierre deitou-se de costas, de olhos fitos no céu sem nuvens e chorou. A paleta encontrava-se encostada à sua cabeça e, pelo repuxar que sentia na pele, sabia que tinha rolado o rosto sobre todas as cores preparadas sobre aquela. Agora, sob o sol, as tintas estavam a secar.
Que aspecto terei eu, perguntava a si mesmo. Não trago terebentina que chegue para limpar o rosto. O que vou dizer a Eva? E o Cabeça de Barro vai rir até me dar vontade de o assassinar, para acabar com aquele riso desdenhoso de animal possante! O que posso fazer? Que mentira seria admissível? Permaneceu ainda deitado por momentos, a pintura na cara ia-se tornando numacrosta sólida, a dor no ventre ia diminuindo, dela restava, apenas, uma impressão de paralisia nos pés. Isto era novo, mexeu cada um dos pés, os músculos obedeceram-lhe, mas, ao dar uma pancada contra uma pedra, não sentiu nada.
Não! disse ele, em voz abafada Não! Não quero!
E recomeçou a dar pontapés na grande pedra, até ter de novo sensibilidade. Batia com os pés com uma tal raiva de autodestruição que, quando os pés ficaram outra vez sensíveis, estavam inchados e vermelhos e mal se podia manter de pé. Mas já podia endireitar-se novamente. Apoiado no cavalete, contemplava a paisagem que o rodeava, aquela região abençoada, cheia de sol e de flores.
Via o fumo da cerâmica que subia no céu, se adelgaçava e desfazia ao longe. Ouvia outra vez os sons à sua volta, os cantos das aves, o bater de asas dum voo de pombas, um distante martelar no ferro... Em qualquer lado, pelas colinas além, um camponês afiava a foice. À sua esquerda passava um rebanho de ovelhas, estranhamente mudo, porque ele se situava no contravento.
”Boa ideia”, pensou ele, ”direi que um cão de pastor me fez cair e aterrei em cima da paleta. Cabeça de Barro vai morrer com riso! Mas é uma história verosímil.”
Dobrou o cavalete, apanhou tudo o que estava espalhado e esperou um pouco, até saber se o seu corpo ia protestar contra o esforço. Mas, como a carne guardasse silêncio, lentamente, foi descendo a colina, apoiando-se a cada passo nos pés do cavalete.
Conseguirás picar-me uma vez dizia Adam Ratoulle fazendo salientar os grossos bicípites, com certeza que me atingirás... mas já eu estarei em cima de ti e os golpes seguintes serei eu a dá-los!
Riu, com uma vulgaridade intolerável.
Não se mexa! gritou Eva, numa voz estrindente. Pense, ao menos, em Pierre!
Pierre! Hei-de pendurá-lo na parede, como um prato decorativo! respondeu Cabeça de Barro. Agora, trata-se apenas de nós dois! Há dez dias que andas a pavonear-te na minha frente. Quem poderia aguentar, a não ser que tivesse água nas veias? Antes de vires para cá, saltava para a minha motorizada e ia até Fontvieille. Já ao longe, as mulheres ouviam o barulho da moto e tiravam as saias! Devem pensar que eu morri! E tudo isto por tua causa!
Amanhã, continuaremos viagem, Pierre e eu. Hei-de encontrar um motivo qualquer para o decidir a partir. Meu Deus, não se mexa!
Ratoulle abriu os braços. Aquela faca que o ameaçava parecia-lhe ridícula e ia avançar.
Naquele mesmo instante, uma bola de pêlos saltou entre Eva e Ratoulle. Em silêncio, mas com uma violência devida à força do seu impulso, o Bolhas atirou-se às pernas de Ratoulle. Não lhe mordeu, contentou-se em ir de encontro aos tornozelos do gigante, o que o fez desequilibrar ao ponto de dar um passo em falso, escorregar e cair para a frente.
De braços abertos, com todo o peso do seu corpo, abateu-se sobre Eva. A longa faca que ela segurava ainda nas mãos estendidas à sua frente enterrou-se até ao cabo no peito de Ratoulle; e foi apenas quando os punhos de Eva tocaram na pele do homem, e a lâmina penetrara completamente no corpo dele, que ela largou a arma, soltando um grito.
Cabeça de Barro fitava-a, mudo, e nos seus olhos havia um espanto de incredolidade... Depois, uma névoa cobriu-lhe as pupilas e caiu de joelhos sobre o comprido banco de madeira, segurando com as duas mãos o cabo da faca... mas isso não era senão um reflexo que o seu cérebro já morto não conseguia comandar.
Foi então que um estranho som lhe saiu da boca, um ronco surdo, provocado pelo último suspiro.
Adam Ratoulle tombou na terra batida e já estava morto quando a cabeça bateu no solo. Perto desta, encontrava-se o Bolhas, silencioso, mas de dentes arreganhados até às gengivas. Quando o homem deixou de se mexer, Bolhas saltou por cima do corpo e foi ter com Eva. Esta continuava encostada à parede, de olhos fechados e pálpebras crispadas. Quando o Bolhas lhe lambeu a mão, abriu os olhos, lentamente, voltando a cabeça.
O que fizeste? disse numa voz neutra. Bolhas, que fizeste?
O cão pôs-se a ganir e aninhou-se nas pernas de Eva, que não resistiu a inclinar-se sobre ele para passar os dedos no seu pêlo eriçado. O cão mais feio de Paris continuava a gemer e os seus olhos cor de avelã eram como uma súplica infinita.
Agradeço-te, Bolhas disse Eva, num murmúrio. Tinha dificuldade em dizê-lo. Um homem está morto e eu
digo ”obrigada”. Depois, lembrou-se de que ela própria estava pronta a ferir com a faca e não se convencia de que teria sido capaz de o fazer.
Tomou o Bolhas nos braços e, a correr, voltou para a pequena cabana feita de tábuas. Só ali os seus nervos se relaxaram. Caiu em cima da cama assaltada por terríveis convulsões.
Bolhas, sentado ao seu lado, lambia-lhe as mãos.
Eva nem deu pela chegada de Pierre, pois mergulhara numa espécie de letargia, e quando ele veio acordá-la já era noite cerrada e apenas um crescente de lua, pendurado no firmamento, brilhava sobre o campo perfumado, empalidecido, povoado pelo canto dos grilos.
Ela sobressaltou-se, agarrou-se aos ombros de Pierre e gritou:
Pierre!
Mas ele deteve-a com uma mão e sentou-se junto dela, sobre a cama.
Enterrei-o... disse ele, com uma perfeita tranquilidade. Foi um trabalho terrível, ele devia pesar cerca de duzentos quilos. Levei oito horas a abrir a cova e a cobri-lo com terra.
Eu não o matei... balbuciou ela, acredita-me, embora estivesse pronta a matá-lo... mas o Bolhas interveio e foi ele quem o matou!
Este cão... Pierre fitou Bolhas, que estava feito numa bola, sobre a cama de Eva. Entre os tufos de pêlo, adivinhavam-se os seus grandes olhos castanhos que, naquele instante, o fixavam numa espera ansiosa. Eu sei que os cães podem matar...
Pierre, não acreditas em mim? Bolhas fez com que Adam se desequilibrasse, ele caiu e espetou-se em cima da minha faca...
Adam? Ele chamava-se assim? disse Pierre, passando a mão nos cabelos de Eva. Ninguém sabia o nome dele!
Adam Ratoulle... ele queria...
Eu sei, Ev, ele disse-me. E podia fazê-lo, pois tinha uma tal força que eu não poderia medir-me com ele e, certamente, não seria capaz de o matar, mas um cão foi capaz disso!
E agora, Pierre, ninguém vai acreditar-nos se contarmos que o Bolhas matou um homem como Adam Ratoulle!
Ele já está enterrado e ninguém sabe que estivemos aqui. Amanhã, de manhã, iremos para longe... para a Camarga.
Como se fôssemos assassinos em fuga. É horrível, Pierre.
O que é terrível é dois seres humanos não poderem ser felizes em parte alguma deste mundo disse Pierre. Porquê?
Porque a Humanidade é feita assim.
Isso não é uma explicação, Ev.
Mas não há outra, Pierre.
Ele deitou-se junto dela e olhou para as traves do tecto. O concerto dos grilos, entrecortado pelo breve sussurro dos sapos, nos pântanos próximos, enchia a noite. O perfume dos narcisos, dos cravos enormes e dos zimbros saturava a atmosfera.
Terias sido capaz de o matar? perguntou ele, de repente.
Ela respondeu, hesitante:
Talvez.
Terias tido coragem de desferir o golpe?
Não sei, mas julgo que sim. Tudo me ocorria ao mesmo tempo: o medo, o desespero, o nojo, o facto de estar numa situação sem saída, o meu amor por ti.
E o que farias, se o tivesses morto?
Iria entregar-me à Polícia de Saint-Rémy.
Ela voltou-se para ele, que trazia ainda o rosto a arder, por tanta terebentina ter utilizado para diluir as tintas que se lhe haviam colado à pele. Teria de comprar outras tintas em Aries, bem como telas, um bidão e pincéis.
Porque me perguntas isso? disse ela.
Eu nunca te deixaria entregares-te à Polícia.
E então é que seríamos mesmo assassinos em fuga.
Não... seríamos seres humanos em dificuldades... Seres humanos, Ev! Por vezes pergunto a Deus porque somos todos assim...
Diriges-te a Deus?
Nestes últimos tempos, sim. A partir dum certo momento, tem-se a possibilidade dum contacto com Deus.
Qual momento?
Provavelmente, é diferente para cada pessoa.
E a ti, quando foi que te aconteceu?
Há dois anos, quando um cão voltava à minha memória...
Parecia uma brincadeira, mas, de facto, era a amarga realidade. Mas Eva não o compreendeu, e como poderia, se ignorava aquilo que só Pierre sabia e, por vezes, ele próprio não chegava a compreender?
Vem cá, Bolhas! disse Pierre.
Estendeu a mão e Bolhas veio até ele e pousou o focinho húmido e frio no seu ombro.
Protegeste Eva e mataste um homem. Nunca deves abandonar Eva, sabes, Bolhas?
Na manhã seguinte, muito cedo, ao alvorecer, ainda antes que o sol dourasse o imenso céu ao qual se elevariam em breve as calhandras e os seus trilos, abandonaram a cerâmica do Cabeça de Barro e detiveram, por momentos, a viatura diante do seu túmulo, ao pé dum montículo de areia. Em silêncio, olhavam aquele lugar, que nada distinguia dos arredores. Pierre até lá plantara uma silva.
Apenas o Bolhas sentiu qualquer coisa, enrolou-se no banco de trás, feito numa bola, colocou o focinho entre as patas dianteiras e pôs-se a tremer, imperceptivelmente.
Quem não conheça a Camarga, aquele imenso delta do Ródano, com as suas ilhas, penínsulas, lagoas, salinas e pântanos, os seus rebanhos de touros negros e os bandos de flamingos cor-de-rosa e de patos de plumagem colorida, os seus inúmeros pegos, os cavalos de pelagem branca, sobre os quais galopam os guardas, atrás do gado; quem não viu o céu sobreaquecido, tenso, como que cintilante, sobre o mar e os canaviais, nem as ilhas cobertas de cardos azuis, de tamargueiras, quem não viu as garças prateadas, equilibradas só numa pata, nas lagoas, quem não respirou a magia daquela terra selvagem, cavalgando um cavalo branco, e não deslizou de barco, nos pântanos silenciosos, dificilmente poderá imaginar a Camarga.
Evidentemente que o ”progresso” avança ali lentamente: ao norte, plantaram vastos arrozais, construíram aldeias para férias, hotéis, herdades; mas a Camarga sobreviverá, seja no farol de Gacholle, nos pântanos de Beaudure, ou talvez mesmo no sítio escolhido por Pierre e Eva, ao qual tinham chegado por uma estrada de areia que conduzia a uma aldeia minúscula, de sete casas, chamada Paradis l.
Pierre e Eva encontraram alojamento em casa dum velho pescador que já não exercia o seu ofício e se entregava a culturas fantasistas, com que enchia o seu quinhão de terra. Dos antigos barcos fizera coelheiras; os cavalos brancos vagueavam em liberdade pelos arredores. Costumava emprestá-los quando havia festas nos lugarejos vizinhos.
Que te parece esta região? perguntava Pierre a Eva.
De mãos dadas, eles contemplavam as sombras do crepúsculo que invadia o campo, onde rebrilhavam, confundidos, lagos e céu.
Sentimo-nos tão pequenos disse ela, é angustiante...
Mas sentir-nos-íamos tão grandes se o compreendêssemos verdadeiramente! Hei-de pintar tudo isto, tudo! Quero dar uma expressão à eternidade, Ev, vou trabalhar como se os relógios não existissem...
”E nem fazem falta nenhuma”, pensava ele. ”Em mim, a vida vai secando e ninguém pode detê-la. Mas agora, é terrível sabê-lo. Antigamente, era um facto com o qual eu vivia, sabendo que tinha que saborear cada segundo da minha existência. Mas agora é uma maldição e cada hora que se escoa é uma parcela ardente de medo... pior ainda: quanto tempo ainda, meu Deus? Agora, que tenho Eva, a vida de repente tornou-se preciosa para mim!
Finalmente, sabia o que era o amor. Na sua situação, era uma felicidade da qual nasciam o terror, os tormentos, o desespero .
Os dois primeiros dias passaram-se a ministrar lições de equitação a Eva, com auxílio do velho pescador. Ela aprendeu rapidamente, os cavalos eram animais admiráveis, que
1 Paraíso. N. da T.)
conheciam a região e voltavam sempre à cavalariça. Durante cinco dias, Pierre e Eva percorreram tudo em redor, com os cabelos flutuando ao vento salgado. Depois, reuniram-se a um grupo de guardas, conduziram à sua frente os rebanhos de bovinos, e atravessaram também os pântanos, montando os cavalos que nadavam em direcção a uma ilha qualquer, onde depois repousavam, nus, ao sol, devidamente untados com óleo perfumado que afastava deles os mosquitos.
Faziam amor e viviam tão perfeitamente como filhos da Natureza, até que Eva disse, um dia:
Ouvi dizer, mas há muito tempo, que um jovem pintor de talento, Pierre de Sangries, foi até à Camarga para pintar obras imortais, mas terá sido um conto de fadas?
Só mais um dia! disse Pierre, indicando o Bolhas, que se metia por entre os canaviais para assustar as garças. Deixa-me viver mais um dia com ele! ergueu-se e lançou um olhar em redor: Sabias que, nesta mesma região, Callac e a senhora Beugnon viveram horas inesquecíveis? Aconteceu há sessenta anos e eles nunca o esqueceram!
Eu sei. Eram jovens como nós e certamente igualmente apaixonados!
Sessenta anos! Pierre deixou-se cair para trás e voltou os olhos para o céu. É uma duração impossível de conceber!
Porquê? Nessa altura, terás oitenta e oito anos. É assim tão extraordinário?
E tu, terás oitenta e dois! Ele fechou os olhos e pensou: ”Meu Deus, dá-me forças! Não me deixes gritar! Estamos a falar de sessenta anos e talvez não haja mais de sessenta dias, sessenta horas...” Ev, havemos de lembrar-nos deste dia, tal como os nossos amigos. Mas lembrá-lo-emos apenas para o reviver, pois nunca seremos velhos!
Quando ele compreendeu o duplo sentido das suas palavras, já era tarde de mais. Eva estava de novo nos seus braços e amaram-se uma vez mais, enquanto o Bolhas, deitado à distância, debaixo dum arbusto, ficava de guarda, lançando-lhes, de vez em quando, um olhar.
Foi no começo de Setembro eles viviam agora na Camarga como se nunca tivessem vivido noutro sítio e Pierre pintava quadros duma tal força como Eva nunca lhe vira pintar que, novamente, o raio se abateu sobre ele.
Pierre estava sozinho em frente do cavalete, mas, desta vez, não caiu com a cara sobre a paleta, atirou tudo para longe de si, antes de se deixar cair na erva. Só então permitiu que o sofrimento fosse mais forte do que ele e daquela vez chegou a gritar, porque Eva estava longe; ele tinha partido do carro, à procura duma paisagem, um velho moinho de velas destruídas, que se chamava, estranhamente, Moinho do Rochedo, apesar de não existir por ali qualquer rocha. O moleiro tinha-o cumprimentado e oferecera-lhe um copo de vinho, até tinha vindo ver como o artista representava o seu moinho. Foi ele que encontrou Pierre a torcer-se com dores, rebolando-se na erva, acometido de um sofrimento intolerável. Não perdeu tempo, carregou Pierre às costas vigorosas, habituado que estava a transportar pesados sacos de farinha, e levou-o até Amphise, uma aldeia grande, onde havia um médico.
Foi com espanto que o Dr. Rombard acolheu aquele doente, transportado as costas pelo moleiro, num tal estado, que teria sido melhor levá-lo para o hospital de Aries.
Doutor, é um pintor explicou o moleiro, pousando Pierre num sofá. Ele veio pintar o meu moinho e, de repente, caiu na erva. Quando o vi pela primeira vez, disse para comigo: este rapaz bem pode dizer que vem de Paris, mas a verdade é que está amarelo como se fosse chinês!
Está bem, Lucien, eu depois chamo-te.
Fechou a porta nas costas do moleiro, voltou para junto de Pierre e tacteou-lhe o pulso. Pierre estava deitado, de olhos fechados, coberto de suor, mas a dor diminuíra de intensidade. A crise passara, a paralisia dos membros manifestava-se novamente, mas ele sabia já que também ela passaria.
Chamo-me Pierre de Sangries disse ele, penosamente, quando o Dr. Rombard largou o seu pulso.
Tem estas crises muitas vezes?
É a vigésima quarta, doutor, tenho-as contado! respondeu ele, tentando sorrir.
Quando começaram?
Há mais de dois anos.
É lógico que foi a um médico, em Paris?
Fui.
Pierre voltou a cabeça para o Dr. Rombard, que tinha o rosto sulcado de rugas e uma cabeleira branca luxuriante. Os seus olhos exprimiam aquela bondade que tudo compreende. Os olhos eram azuis, sem idade, ao contrário da pele e dos cabelos.
Quando eu era criança, imaginava Deus parecido consigo, doutor disse Pierre, em voz baixa. Não é ridículo que me lembre disto, neste momento?
Gostaria de saber o diagnóstico do meu colega de Paris, disse o Dr. Rombard, cheio de paciência.
O que lhe parece, doutor?
Veio consultar-me para me chumbar?
Não vim a sua casa voluntariamente, foi o moleiro quem me trouxe. Aliás, já estou melhor.
Pierre quis levantar-se, mas a mão do doutor empurrou-o para a marquesa; tinha mais força do que Pierre poderia pensar.
Deixe-se estar deitado! Ainda não o examinei. Se é que o deseja...
Com certeza, doutor; estou com vontade de saber o que pensa disto... E descobriu o ventre.
O Dr. Rombard fez um exame rápido, palpou-lhe o abdómen, o fígado, o baço, calcou sobre os rins.
O que me parece? disse o doutor. Sem radiografias, sem análises, nada posso dizer. Pode haver inúmeras causas... O senhor pode ter cálculos na vesícula, uma hepatite crónica, uma inflamação antiga no pâncreas... Meu Deus, o senhor quer que eu o trate, ou que o ponha na rua?
O senhor não pode tratar-me; quanto à outra eventualidade, não vai executá-la...
Pierre sentou-se na marquesa e, desta vez, o doutor não o obrigou a deitar-se novamente.
A minha doença tem um longo preâmbulo, doutor. Tive uma infância infeliz, depois da morte da minha mãe, e fui um filho bastardo. Depois, na adolescência, vivi a vida errante dos vagabundos que andam de terra em terra. Não andava sozinho, pois tinha um amigo, um cão, um cão tão solitário como eu. Era um lindo cão, um setter a que eu chamara ”Mylord”. Mylord sabia dançar, de pé sobre as patas traseiras e, além disso, era um cão sábio. Mylord dormia encostado a mim e vivia apenas para mim. Morreu, também, por minha causa, pois afastou-me do caminho onde eu ia ser colhido por uma moto desgovernada, conduzida por um ébrio, e foi Mylord quem tombou debaixo das rodas assassinas. Mas Mylord abandonou-me apenas sob a aparência de corpo de cão: na realidade, permaneceu meu íntimo companheiro até hoje.
O Dr. Rombard ouvia Pierre sem o interromper, somente estendia o lábio inferior, e nos seus olhos azuis Pierre podia ler: isto não é possível... mas sim, é possível, a medicina já detectou casos semelhantes...
Eu não suspeitava de nada continuou Pierre, tranquilamente, até à idade de vinte e seis anos: vivia eu em Paris, com a temerária ambição de me afirmar como pintor aos olhos dos meus contemporâneos. E foi então que comecei a sentir as primeiras dores no fígado. Fiquei com uma cor de pele amarela e toda a gente julgou que eu era alcoólico. Depois de ter sofrido a quarta crise, apresentei-me à consulta, num grande hospital especializado em doenças de fígado. Fui radiografado, analisaram-me o sangue, as urinas, e depois um médico muito simpático veio ter comigo e disse-me, com toda a franqueza: Meu amigo, o seu caso não é nada animador, o senhor tem no fígado a parasita dum cão, um verme cujo nome latino me disse. E entretanto, eu só pensava em Mylord, que sempre fora meu amigo, que me salvara a vida e, agora, era quem me matava. O senhor já teve algum cão?, perguntou-me o médico. Ele lambia-o, por vezes? Dava-lhe beijos ”de cão”? E eu respondi: os beijos dele faziam parte do nosso número, quando nos exibíamos em público, nas praças das aldeias, em dias de feira... Então, disse o honesto médico, considere-se como um artista que foi vítima da sua própria arte... pois foi esse número com o cão que o matou. Tentei, a partir daí, matar o verme de Mylord, por todos os meios possíveis, mas foi em vão. Mylord estava profundamente implantado em mim Há dois anos que devora o meu fígado. Capitulei, não há cura possível. A única coisa que posso fazer é ganhar tempo...
Ele inclinou-se e olhou para o Dr. Rombard com expressão desesperada: Doutor, quanto tempo me resta ainda?
Cerca de dois meses, se continuar a abusar das suas forças e um ano se viver duma maneira razoável. O Dr. Rombard apertou as mãos uma contra a outra, com mais força: Como vê, não é só em Paris que existem médicos capazes de serem francos.
Agradeço-lhe, doutor. Pierre levantou-se, com esforço. Sentia nos membros um peso persistente. Compreendo: um ano, se viver como um velho, talvez numa clínica, com tubos, sondas, transfusões, etc. Mas eu sou jovem, prefiro viver ainda dois meses, livre como uma águia., e depois cair no nada. O doutor compreende-me?
Até o compreendo melhor graças à minha idade. O Dr. Rombard descruzou as mãos e colocou-as nos ombros de Pierre. Mas se eu fosse da sua idade e estivesse na sua situação, não sei... Talvez...
Abanou a cabeça, acompanhou Pierre à porta e confiou-o ao moleiro que o esperava.
Não é nada de grave, Lucien disse o Dr. Rombard, que captou a mensagem do olhar suplicante de Pierre. É apenas cansaço. Virando-se para Pierre, acrescentou a meia voz: Seja uma águia corajosa, porque a queda vai ser terrível.
Seguiu com o olhar o velho automóvel até ele desaparecer na curva da estrada. Pierre conduzia, de novo. O Dr. Rombard entrou em casa e sentou-se à secretária. Depois, tirou da algibeira uma folha de papel na qual escrevera algumas linhas à pressa. Antes de Pierre sair da sua crise, o Dr. Rombard tivera tempo de folhear o passaporte e os papéis de identidade que o moleiro lhe entregara quando estes tinham caído do bolso de Pierre.
O Dr. Rombard pegou no telefone e marcou o número das informações, dizendo:
Por favor, veja se encontra, em Paris, uma senhora Beugnon, na Rua Princesa, com telefone. Se encontrar, ligue-me para esse número.
Pierre pintava de novo diante do velho moinho, e em Paris o alarme já fora dado. A senhora Beugnon, pela primeira vez na vida, perdeu o domínio dos nervos. Gritou, falou bruscamente a Callac e suplicou-lhe que procurasse os melhores especialistas de França; rogou ao professor Mauron que a ajudasse e acabou por cair em lágrimas, nos braços do príncipe Vladimir, que, de acordo com os seus camaradas motoristas de táxi, logo se dirigira para a Rua Princesa.
Ele está a morrer! gritava a senhora Beugnon. O meu Pierre vai morrer! E ninguém pode salvá-lo! Ninguém! Vladimir, já alguma vez tinha ouvido dizer tal coisa: um verme transmitido por um cão devora-lhe o fígado! E ele está lá longe, de cama, na Camarga, e ninguém se preocupa com ele!
E Eva? disse o príncipe, desolado.
Eva não sabe de nada. Pierre, perante ela, finge que está bem, apesar de já saber, desde há dois anos, o estado em que está! Foi um médico do Sul quem me telefonou... Pierre está a viver num lugar chamado Paradis! O paraíso que se lixe!
Uma hora depois, Vladimir Andrejevitch Globotkin tomava a auto-estrada do Sul, em direcção à Camarga. Naquele momento, só havia uma solução possível: trazer Pierre de volta para Paris.
Marius Callac, pelo telefone, contactava os grandes especialistas de fígado da capital, que eram, quase todos, seus clientes. As informações que deles recolhia eram desanimadoras. Quando a senhora Beugnon lhe telefonou novamente, Callac não teve a coragem de lhe dizer a verdade.
Conseguiste alguma coisa? gritou ela.
Terá de ser hospitalizado imediatamente. Mas, se ele andava doente já há dois anos e não se fez nada para... Celeste eu... eu tenho que te dizer...
Não há esperanças, Marius?
Assim parece. Não há nada a fazer, quando o fígado está desfeito... não se pode substituí-lo...
Eram quase 19 horas quando se desenrolava esta conversa telefónica em Paris.
À mesma hora, Eva veio buscar Pierre ao moinho velho. Empoleirada no seu cavalo branco, trotava ao lado do automóvel e Pierre baixara o vidro para lhe gritar, levantando os olhos para ela:
Amo-te, Ev!
E ela respondeu-lhe, de cima da montada cuja pelagem tinha reflexos como a seda:
Também eu te amo, Pierre!
Ele então, acelerou e Eva pôs o cavalo a galope, com os cabelos flutuando ao vento, enquanto o ar salgado lhe fustigava a pele. As garças prateadas, ao elevarem-se dum pego, acompanharam-nos durante um pedaço do caminho, com os seus gritos dissonantes e o seu bater de asas ritmado.
Que vida! Que vida maravilhosa! Que felicidade ter licença para viver! Porque é que não podemos abraçar o mar, o sol, o vento? Porque não podemos mergulhar no braseiro do sol-poente? Porque não podemos banhar o coração no azul do céu?
Hoje, dei um grande passo em frente! gritou Pierre a Eva, que, sempre a galope, ia ultrapassá-lo. Consegui pintar como nunca!
Depois, ficou a segui-la com o olhar, enquanto ela galopava à frente do velho carro.
Acima da cabeça dela pairavam as garças de prata, a seu lado corria uma bola de pelos hirsutos: a soprar e a arquejar, Bolhas corria corajosamente ao lado do cavalo.
”Quando chegar o fim, hei-de afastar-me, sob um pretexto qualquer que inventarei, e matar-me-ei”, pensava ele. ”Ela não pode ver-me morrer miseravelmente. Pelo menos, quero poupar-lhe isso, já que não pude impedi-la de me amar!”
Eva voltou-se, sobre a sela, a rir e fazendo gestos na sua direcção. Ele respondeu-lhe, a rir também, tocou a buzina e até na chaparia do carro sentiu a vibração do solo, sob as patas do cavalo. E sentia também que as lágrimas lhe inundavam os olhos e rolavam pelas faces.
Dois meses ainda, se eu viver como uma águia!
Lançou um olhar ao poente esbraseado e pôs-se a soluçar.
Um carro, em velocidade moderada, demora um quarto de hora a cobrir a distância entre o velho Moinho do Rochedo e as casinhas caiadas do Paradis. Não existe uma estrada, propriamente dita, para lá, nem sequer um caminho, são antes carreiros traçados pelo pisar dos cavalos e pelas rodas das carroças. Pierre demorou mais de meia hora a chegar ao destino, mesmo carregando no acelerador.
Porém, naquele dia, não chegaram ao Paradis com a alegria que punham em ultrapassar-se à vez, agora o carro, à frente, agora o cavalo, num jogo cheio de riscos, de alegria de viver, sabendo ambos que, bem depressa, na pequena cabana de pescador, iriam cair nos braços um do outro,
A meio caminho entre dois pegos cobertos de aves de plumagem azulada, de flamingos e de altivas garças-reais, Pierre foi novamente acometido por aquele sofrimento a que o seu corpo esgotado não podia já oferecer resistência. Parecia-lhe que o fígado era cortado com uma faca. Agarrou-se ao volante, tirou o pé do acelerador e caiu, para a frente com a cabeça contra o vidro. O carro abrandou a marcha, o motor trabalhou ainda durante alguns segundos e, depois, parou. Eva levava certo avanço, não se apercebeu de que Pierre não a seguia, a não ser quando reparou que o Bolhas já não corria a seu lado. Voltara para trás, a ganir e, naquele momento, dava saltos junto da porta do carro.
Pierre tinha a boca aberta, como se o horrível sofrimento pudesse sair por ela. Não gritava, ofegava apenas, num ritmo precipitado, e tinha a impressão de que os pulmões se lhe liquefaziam. Com a cabeça um pouco de lado, tinha a têmpora esquerda apoiada no volante e via o Bolhas saltar contra a porta, vendo aparecer a querida cabeça do animal, de cada vez, durante um só segundo.
Cão disse Pierre... Foi a primeira palavra que ele conseguiu articular, uma palavra gravada no mais fundo dos seus tormentos, no coração daquele fogo devorador que devastava todo o seu ser. Cão, agora conseguiste destruir-me!
Dirigia-se a Mylord, desaparecido há muito tempo, o cão de vagabundo que, naquele tempo, tinha mais ”classe” do que o dono. Mas falava também para o Bolhas, o cão mais feio de Paris, e na palavra ”cão” ele punha tanto de desespero como de amor, tanto de raiva como de resignação, de gratidão e de maldição.
Eva voltou para trás, a galope.
Pierre gritava ela, ainda de longe. O que se passa? Não tens gasolina? Ao mesmo tempo, agitava um lenço de pescoço acima dos cabelos que ondulavam ao vento e, erguida nos estribos, deu uma risada sonora: Já te vou acudir! Pierre de Sangries, no seu automóvel puxado por um cavalo!
Ela parou perto do carro, viu o Bolhas aos saltos e a ganir, de encontro à porta, e a cabeça de Pierre caída sobre o volante, olhando-a com os grandes olhos sem expressão. Já não eram os olhos castanhos escuros de Pierre, mas apenas duas manchas no seu rosto amarelecido e magro.
Pierre! gritou ela, saltando do cavalo. O que se passa? Deixa-te de brincadeiras, então, Pierre!
Abriu violentamente a porta do calhambeque, e o primeiro a saltar lá para dentro foi o Bolhas, que se sentou ao lado de Pierre, lambendo-lhe as mãos, crispadas no volante, chorando como só os cães choram.
Eva segurou a cabeça de Pierre e ergueu-a um pouco. Ao contacto das mãos dela, ele tremeu todo, apesar do sol que queimava, como se estivesse acometido dum frio de morte. Batia os dentes, as mãos largaram o volante, os braços dele rodearam o pescoço de Eva, como se precisasse de se agarrar a ela para não sucumbir ao infernal sofrimento.
Pierre balbuciou ela, desorientada, Pierre... o que tens? Diz qualquer coisa, querido, uma palavra... uma palavra só... Pierre...
Eva sustinha-o com força e ele apertava-se de encontro a ela, como um animal assustado que procura refúgio, tremendo, admirando-se até de encontrar tanta força em si para não dar urros de dor.
Ele não podia falar e Eva perguntava-lhe sem descanso o que tinha, acariciava-lhe o rosto, que escorria suor, beijava-lhe os olhos, a boca fechada, de lábios unidos, e Bolhas olhava-os trémulo, como no dia em que o tinham recolhido, debaixo de chuva.
Vou levar-te a um médico... disse ela. Meu Deus... haverá ao menos algum, por aqui? Em Aries? Pierre...
Pierre, temos que ir a Aries. Não há médicos em parte nenhuma! Oh, esta Camarga, esta Camarga maldita! Pierre, podes mexer-te? Diz qualquer coisa, uma palavra... uma só. Ele sacudiu a cabeça, contra o peito de Eva e tentou respirar fundo, mas parecia-lhe que atiçava mais ainda o fogo que o devorava interiormente.
Médico, não dissera ele, numa voz apagada, que Eva nunca ouvira e acrescentou: Voltar... voltar.
Precisamos dum médico! gritou ela. Estás todo amarelo! Estarás com uma crise de fígado?
”Uma crise de fígado!” Pierre sorriu intimamente. ”Como as pessoas simplificam as coisas! E como tudo é simples, afinal. Existe um verme no meu fígado, um verme que me devora e ninguém pode matá-lo, ninguém pode colocar um fígado novo no meu corpo. É tão simples como isso! Uma crise de fígado é muito mais complicada! Isto é o fim... mas eu não sei como te hei-de dizer e tu não vais querer acreditar, já sei isso também... tal como ninguém pode compreender que um ser cujo amor foi a razão da sua vida se afaste subitamente. Porque o universo passa a ser apenas um caos sem formas nem cores. A incompreensão perante a morte é o grande drama dos seres humanos. Eu compreendo a morte... que é a manisfestação mais compassiva de Deus, para com as suas criaturas.
Voltar... disse ele, com dificuldade. Já a dor lhe percorria as mais finas ramificações nervosas do corpo. Voltar... voltar, Ev, suplico-te...
Ela parou de acariciá-lo e fê-lo deslizar para o banco ao lado do condutor, onde ele caiu para a frente, apoiando-se ao tablier, onde ficou encostado. O Bolhas saltou para o banco de trás e lambeu a nuca de Pierre. O cavalo branco olhava com indiferença para o interior do carro.
Eva pôs-se ao volante, rodou a chave da ignição e arrancou. Pierre cerrou os dentes quando o carro se pôs a oscilar naquele carreiro, e cada solavanco, cada irregularidade do solo, provocava uma dor aguda em todas as suas fibras. O cavalo seguiu a viatura com os olhos, fez meia volta e, tendo-a alcançado, seguiu-a de perto.
Pierre fechou os olhos e ouviu Eva, a seu lado, começar de repente a soluçar. Não podia falar-lhe, nem tranquilizá-la mentindo, nem consolá-la, porque não havia consolação possível.
Ele continuava com a cabeça encostada ao tablier rezava interiormente para chegar ao fim do caminho o mais depressa possível, ao lugar chamado Paradis, à pequena casa rústica, branca, à cama estreita, na penumbra duma alcova. Repousar, ficar deitado e esperar que a dor fosse cedendo terreno, que o verme parasse de roer... Ficar à espera da continuação da vida ou do fim dela... Ficar deitado... Eva... o anjo daqueles últimos meses... como é maravilhoso uma pessoa poder deitar-se!
Foi um percurso infernal.
Precisamente antes que o sol mergulhasse nas águas do pego de Vaccarès e que ao longe aparecessem as pequenas ruas da aldeia, a dor cedeu e a paralisia apoderou-se dos membros de Pierre, como era habitual. Eva deteve o carro diante da casa e Pierre ergueu-se penosamente, com um sorriso doloroso. Abriu a porta e agarrou-se com força, para se levantar do assento.
Deixa-te estar sentado! disse Eva, segurando-o energicamente. Estás louco, Pierre? Nós levamos-te para dentro. Não te mexas.
Ela deu um salto e correu para a outra porta, do carro, pois Pierre, que acabava de erguer-se, apesar de tudo, ficara de pé, arquejante, junto do carro, a que se encostou, ficando de olhos fixos no sol-poente. Era uma extinção triunfal, com a certeza do regresso na aurora do dia seguinte. ”Será que nós também voltamos?”, pensava ele.
Isto vai muito melhor disse Pierre, com dificuldade, quando Eva o amparou.
No entanto, estava contente por ela estar ali, feliz por poder apoiar-se nela, por ter o refúgio do ombro de Eva depois de cada passo que dava em direcção ao leito que desejava tanto, na penumbra apaziguadora do pequeno quarto.
Vês, já troto como um potro disse ele, após os primeiros passos. Também voltava ao uso da palavra com uma ressonância humana. Ev, porque choras? Não há motivo para isso.
Porque continuo a mentir ”pensava ele”, sim porquê agora? Como somos cobardes, mas é isto realmente cobardia? Não posso dizer-lhe a verdade... eu, pelo menos, não posso. Talvez Henry, o Vermelho, se saia bem da empresa. Ou a senhora Beugnon! Um deles dir-lhe-á, mas eu, não, principalmente eu, não, amo-a demasiado para lhe anunciar a minha morte, cara a cara.”
Lançou um olhar a Eva, que o amparava. Os cabelos louros estavam colados à fronte coberta de suor. Havia ainda lágrimas nos seus olhos, mas ele via claramente que ela estava um pouco aliviada duma angústia terrível, e que o facto de ele poder andar e falar de novo dissipava, em parte, a sua confusão.
Chegaram à pequena fazenda. O pescador tinha saído com dois cavalos, para ir a uma cudelaria turística. Chegara uma camioneta cheia de suecos e eram precisos reforços de cavalos. Pierre deixou-se conduzir até à cama e deitou-se nela.
Ergueu os olhos para o tecto e observou as traves, grosseiramente alinhadas, enegrecidas pelos anos, tortas. Entre elas, fora posto gesso, aplicado à colher de pedreiro, que tinham, simplesmente, deixado secar. Desviando o olhar, encontrou o de Eva.
O que é isto, Pierre? perguntou ela. E, vendo que ele ia falar, disse, com gravidade: Não! Quero a verdade, Pierre! Não é a primeira vez que tens uma crise destas, pois acabas de comportar-te como alguém que já sabe. Eu não sou cega!
Ev disse ele, em voz fraca. Ev, meu Deus... amo-te.
É a vesícula, Pierre?
Não.
Os rins?
Não.
O estômago?
Também não. Ev, se visses a tela que acabei de pintar em frente do moinho...
Intestinos?
Não.
Eva calou-se, pensativa. ”Ela nem se lembra do fígado”, disse ele, para si mesmo, quase feliz. Mas Eva, mesmo assim, perguntou:
É uma crise de fígado? Estás com cara de quem tem a icterícia. É isso?
E ele, sem ter que mentir, disse que não.
Amanhã iremos a Aries, de carro, para consultares um médico disse ela, num tom firme. Dizes que não a tudo, mas eu quero saber o que tu tens.
Amanhã vai estar um lindo dia disse Pierre, tomando a cabeça de Eva entre as suas mãos.
Estavam muito perto um do outro e fitavam-se.
Amanhã, vais fazer radiografias, meu caro disse ela, muito senhora de si. E, enquanto estiveres no hospital, levar-te-ei fotografias de flamingos cor-de-rosa. Não penses em mentir-me. Eu disse-te que já não existe a tua vida, nem a minha vida, mas apenas a nossa vida
Ev, é de tal modo atroz disse ele, cheio de coragem. ”Meu Deus, ajuda-me”, suplicava ele, interiormente.
”Ajuda-me a transpor este abismo!”
O que é que é atroz, Pierre.
Estou a morrer, Ev.
Depois, fez-se a calma entre eles, uma calma absoluta. O seu entendimento era total.
Não morrerás... disse ela, por fim. A voz de Eva era um tanto firme, mas, em segundo plano, estava todo o seu impotente terror. Não deixarei que morras assim, sem mais nem menos, tal como tu não me deixaste...
Mas, no meu caso, não se trata de saltar do cimo do Arco do Triunfo.
Seja qual for o teu mal, Pierre... eu não deixarei que isso aconteça.
Ele sorriu e fechou os olhos: ”Estás a ouvir, maldito verme do meu fígado: ela não deixará!”
Quero acreditar nisso disse ele, em voz alta. Depois, puxou para o peito a cabeça de Eva e ficaram assim
até se aperceberem de que o pescador voltava com os seus cavalos.
Vladimir Andrejevitch Globotkin chegou pelas 9 horas da noite ao lugar chamado Paradis. O seu táxi, com matrícula de Paris, despertou considerável espanto no pescador, que não estava habituado a visitas vindas de táxi, de Paris. Mas do carro saiu apenas o motorista e o velho pensou que aquela profissão devia ser muito rendosa, para o homem poder dar-se ao luxo de tais passeios.
Pierre continuava deitado na cama. Eva, sentada à mesa de madeira rústica, comia uma fatia de pão, enquanto observava Pierre e, interiormente, tentava persuadir-se de que ele não estava tão doente como dissera. Ao ouvir a buzina do automóvel, deu um salto em direcção à janela.
Não pode ser! gritou ela Mas que surpresa! Vladimir vem visitar-nos! Pierre! Vladi está aqui!
E saiu de casa a correr, como se fosse ao encontro dum salvador.
”Aqui anda a mão do Dr. Rombard”, disse Pierre para consigo, levantando-se, com precaução. ”Avisou a senhora Beugnon. Aproxima-se o fim da grande mentira.”
Apoiou-se na borda da mesa e ficou à espera do príncipe Vladimir. Ouvia Eva falar com o visitante e chegaram-lhe aos ouvidos estas palavras pronunciadas por Eva, enquanto se iam aproximando da porta:
Vladi, não é preciso tranquilizar-me. Pierre disse-me que vai morrer, mas não vai! Não se morre assim tão depressa...
Se ele te disse isso, mentiu novamente ouviu Vladimir responder-lhe. Porque há dois anos que ele está a morrer. Também só agora o soubemos.
Depois, entraram no quarto e detiveram-se no limiar. Pierre metera as mãos nos bolsos das calças.
Vladi, tu não és um amigo, és um brincalhão!
E tu dentro de dez minutos vais estar deitado no banco de trás do meu carro e vais calar a boca! gritou Vladimir, na sua voz tonitroante. Eva irá atrás de nós com o teu carro e as bagagens. Vamos, mexe-te, ou é preciso levar-te ao colo?
Eu fico! disse Pierre, tão decididamente como ele falara. Quero ficar aqui a pintar, enquanto puder! O que vou fazer para Paris?
Ev, tenho que o pôr a dormir, disse o príncipe Vladimir, tranquilamente. Se estiver consciente, não conseguiremos nada. Não estás a ouvi-lo? Ev, mas eu juro-te que se ele resiste, o amarro! Prometi que voltaria esta noite mesmo para Paris. Voltou-se para Pierre, que continuava de pé, encostado à mesa, sem se mexer. Estás a ouvir, idiota? O professor Mauron já tem um quarto guardado para ti no serviço dele. Callac já contactou os melhores especialistas...
Apesar disso, mendigos, ou não, todos morrem da mesma maneira. Pierre abanou a cabeça: Vladimir Andrejevitch, teimoso da velha Rússia, volta sozinho para Paris!
O príncipe deu dois passos em frente:
Estou a ver que tenho de empregar a força!
Pierre disse Eva, em voz baixa, Pierre.
Eva pronunciou o nome dele dum modo especial e Pierre baixou a cabeça; voltou-se, foi buscar à cama o velho casaco cheio de nódoas de tinta, atirou-o sobre os ombros e, passando por Globotkin e Eva, dirigiu-se para o táxi, abriu a porta e sentou-se lá dentro. O pescador encontrava-se diante da porta do estábulo onde pernoitava desde que o pintor e sua mulher tinham alugado a casa. Olhava, pasmado, para aquilo tudo, perguntando-se como é que um pintor pobre podia mandar vir um carro de Paris.
Espera, enquanto trato das bagagens disse Eva a Vladimir. Não demoro mais de meia hora. Quero ir atrás de vocês, sem os perder de vista.
Eu guio um carro, não guio um caracol respondeu Vladimir. Quanto podes dar?
Se o carro for embalado, vai aos 90 por hora!
Vou adormecer ao volante. Noventa à hora, numa auto-estrada! É mesmo preciso isso, Eva?
Tem que ser, Vladimir. Ela sorriu-lhe, com tristeza: Assim, ele poderá ver-me pelo retrovisor. Sei que não pode passar sem mim...
Dali a meia hora partiram. Eva pagara o aluguer ao pescador e o velho exclamara:
Minha senhora, não percebo nada disto!
Também eu não, caro senhor respondera Eva. Na vida, há certas coisas que não se compreendem, apesar de serem perfeitamente explicáveis. Adeus.
Adeus, minha senhora.
O velho seguiu os dois carros com o olhar, enquanto se afastavam, até ao momento em que as luzes desapareceram na noite.
Chegaram a Paris por uma madrugada chuvosa. Pierre dormia no banco de trás e nem chegou a saber que o pequeno automóvel verde se mostrou algo caprichoso e, por duas vezes, teve dificuldade em chegar a postos de gasolina, na auto-estrada, onde foi preciso limpar o carburador. Bolhas ia com Eva, sentado à frente, ao lado dela, fitando o carro grande que os precedia. Para Globotkin, foi um suplício ir tão devagar e, em Auxerre, quando o carrito fez greve pela terceira vez, propôs que se desembaraçassem daquele calhambeque, mas Eva recusou tal solução. O carro foi reparado e, apesar da chuva, aguentou-se até Paris.
Foram directamente para a Clínica Laennec, onde, naquela noite, o pessoal de serviço, médicos e enfermeiras, tinham vivido algumas das piores horas das suas carreiras. A senhora Beugnon, o ”Breviário”, Henry, o Vermelho, e Pompom, o homem-serpente, tinham-se instalado no quarto destinado a Pierre e ali ficaram, impacientes, à espera que o príncipe Globotkin chegasse, numa espera que se tornou histérica quando passou a hora prevista para a chegada.
Temos que prevenir a Polícia! exclamava a senhora Beugnon, em voz estentórica. Tem que se mandar um helicóptero de socorro! Então pagamos impostos para quê? Marius, não fiques aí especado a olhar para mim! Vai telefonar para os ministérios, conheces toda a gente que ocupa lugares importantes! Se o caso fosse contigo, já teria seguido uma esquadrilha de aviões!
Globotkin não pode vir a voar com o táxi! Quem sabe se Pierre se encontrava em estado tão grave que Globotkin teve de vir devagar. Devíamos ter mandado uma ambulância, mas não senhor, a Celeste manda lá um táxi! Se fosse eu, teria organizado as coisas doutra maneira!
Eu estava desesperada! gritou a senhora Beugnon. É fácil de compreender porquê! Estou sozinha no mundo, sem ninguém com quem desabafar, tenho que resolver tudo sozinha... E vem um Callac com olhos vítreos de peixe que deu à costa dizer-me: se fosse eu, fazia doutra maneira! Então, porque não abriste o bico mais cedo, hem?
Porque um certo senhor Birague veio meter-se de permeio... disse Callac, lentamente. E veio a primeira guerra mundial, Celeste. Acalma-te, tu e eu tínhamos obrigação de saber esperar...
A senhora Beugnon, sentada na beira da cama, olhava para Callac com expressão suplicante; este mantinha-se junto da janela, observando a rua. A entrada da clínica ficava diante dele, asfalto molhado sobre o qual a chuva caía, salpicando tudo. Era um universo húmido, desesperante, no qual começava a clarear uma luminosidade cinzenta. A aurora anunciava-se.
Vêm aí disse, de repente, Callac.
Dois carros penetraram no pátio, o táxi de Globotkin e o velho carro. Ao vê-lo, Pompom saltou como uma bola de borracha. Todos se precipitaram para a janela, empurrando o pobre Callac.
Meu querido Pierre disse a senhora Beugnon, em voz baixa. Meu pobre e querido Pierre...
Depois, fungou ruidosamente, tirou um lenço da algibeira da saia e assoou-se com tal violência que todos se assustaram.
Ele veio disse Callac, do fundo do quarto. Há-de fazer-se tudo o que seja humanamente possível para o salvar. Acreditem no velho Callac.
As dificuldades começaram pouco depois de terem entrado no rés-do-chão, onde Pierre foi recebido por dois médicos de serviço e duas enfermeiras. O porteiro comunicou a sua chegada ao serviço do Professor Mauron... Tudo estava a decorrer conforme as instruções fornecidas pelo director.
Quem complicou as coisas foi o Bolhas.
Um cão não tem o direito de entrar num hospital, mas tentem explicar isso ao Bolhas. Além disso, o porteiro que era amigo dele tinha-se reformado e quem o substituía começou a gritar logo que viu o cãozito:
Tirem-me daqui este animal!
Bolhas reagiu segundo os princípios usados na Rua Princesa e mordeu o pé do porteiro, depois avançou como doido pela escada acima e, graças ao seu instinto espantoso, logo descobriu o serviço do Professor Mauron. Ali chegado, farejou todos os cantos do corredor central, encontrou a pista da senhora Beugnon e seguiu-a até ao quarto reservado a Pierre. Porém, no caminho, apareceu-lhe a enfermeira de serviço nocturno, que quis opor-se aos seus projectos, mas ouviu a resposta dos seus superiores:
Deixe passar o cão, são ordens do patrão M
Os dois médicos e as duas enfermeiras encarregados de receberem Pierre, na realidade, representavam um inútil desdobramento de esforços. O diagnóstico era indiscutível, mas nem por isso deixaram de o examinar. O próprio Professor Mauron se ocupou disso, assistido pelos colegas. Pierre, aliás, fora admitido num serviço de ginecologia a título excepcional, obra da senhora Beugnon, que dissera ao Professor Mauron: ”Pierre virá para o seu serviço! Não me interessa que o senhor seja ginecologista ou que trate de pés chatos! Tenho confiança no senhor e os seus colegas do hospital, para mim, são desconhecidos...”
O Professor Mauron era um homem de grande valor moral. Concordou que a admissão de Pierre não dependia da natureza do seu mal e Pierre foi, portanto, recebido naquele serviço de ginecologia, onde lhe destinaram um quarto.
Meus senhores, Pierre de Sangries é um génio, que merece ser tratado de maneira excepcional. Nenhum de nós pode salvá-lo, mas nós agiremos de acordo com o facto de ele nos dar um fim digno da sua personalidade. Van Gogh morreu louco, Pierre de Sangries morre minado por um parasita é
1 Patrão, é a designação que se dá, em França, aos médicos que atingem uma situação de chefia, ou de docência, normalmente associada ao êxito financeiro. (N. da T.)
uma fatalidade análoga, só que o fim de Sangries nos foi confiado a nós.
O ascensor deteve-se, a porta automática abriu-se, as rodas duma maca chiaram. A senhora Beugnon, que aguardava Pierre no pequeno quarto, ficou pregada à cadeira. Callac não abandonara a janela, Henry, o Vermelho, encostava-se à parede, com a boca a tremer, e o homem-serpente limpava os olhos às escondidas.
Então, é assim que vamos recebê-lo? disse, subitamente, o ”Breviário”. Mas ele ainda não morreu! Está vivo! Até o ouço a discutir com um médico! Vocês parecem um grupo de carpideiras! Pierre sempre gostou de se rir. Vamos lá a ter um pouco de genica!... Pierre!
Abriu os braços e lançou-se no corredor. Ouviram então a voz de Pierre, que dizia, em tom cordial:
Como é bom voltar a ver-te, meu palhaço! Pierre regressara.
Pierre foi submetido a exames durante oito dias. Consentiu neles, embora conhecesse antecipadamente os resultados de todas as radiografias e análises de sangue. Os médicos falavam pouco e ele divertia-se a ouvi-los empregar termos eruditos e herméticos na sua presença, em vez de falarem claramente e de dizerem:
É um caso perdido, o fígado está destruído. Boa tarde, Pierre de Sangries.
Em contrapartida, o Professor Mauron falou francamente a Callac:
É mais grave do que supúnhamos. Não vou maçá-lo com explicações médicas, senhor Callac, declaro-lhe simplesmente que não há qualquer esperança de cura. Apenas poderemos aliviar...
O que quer dizer respondeu Callac, de coração amargurado, que só poderão suavizar-lhe a morte.
Exactamente. Peço-lhe o favor de transmitir isto mesmo à senhora Beugnon.
E o que deve fazer Pierre, nesta circunstância?
Pode voltar para casa. No domicílio poderão prestar-lhe os cuidados necessários. É inútil tê-lo aqui, sozinho, durante semanas, meses, talvez, para o assistirmos com cuidados que qualquer médico de clínica geral poderá prestar-lhe... Quando a coisa se tornar demasiado difícil... terá sempre uma cama aqui...
Muito difícil... é assim que vai acabar, não é verdade? disse Callac, em voz cansada.
Sim.
E quando será isso?
Ignoramo-lo. Vamos tentar atrasar a degradação do fígado e tentaremos talvez, também, destruir este maldito parasita, mas isto não é mais do que uma tentativa de retardamento.
E uma operação?
Um ser humano não pode viver sem fígado.
Pois, já mo tinha dito. Agradeço-lhe muito, senhor professor.
Naquele dia, Callac cumpriu a tarefa mais penosa da sua longa vida. Foi, de carro, até à Rua Princesa, levando consigo, para lhe dar forças, o príncipe Globotkin, e aventurou-se a entrar no velho prédio. A senhora Beugnon estava a preparar o regresso de Pierre. A casa toda cheirava deliciosamente a carne assada e a bolos acabados de fazer. Lá em cima, no quarto de Pierre, os amigos enfeitavam as paredes com grinaldas, como se se tratasse duma festa. Para eles, o facto de mandarem Pierre para casa tão depressa era bom sinal.
Sabe-se lá que ”sapateiro” bêbado Pierre terá consultado disse Henry, o Vermelho, aquele Dr. Rombard, na Camarga... decerto que nem é capaz de distinguir um arroto dum peido.
Que grande dia! exclamou a senhora Beugnon, quando Calac entrou no seu cubículo, enquanto o príncipe se apressava a elogiar os bolos, ainda quentes. Pierre está livre! O caso não é tão sériio como se pensou, Marras. O tratamento pode ser dirigido por um médico do bairro, já fui falar com o Dr. Vernier. Sim, hoje é um dia feliz! Olha, Marius, havemos de acender uma vela grande no altar de Nossa Senhora...
Concordo, Celeste disse, gravemente Callac. segurando as mãos da senhora Beugnon nas suas. Se as velas, as orações e todos os sacrifícios deste mundo valessem alguma coisa, não seria de hesitar, mas não há nada que possa salvá-lo.
Marius! A senhora Beugnon deixou-se cair numa das velhas poltronas. Não é verdade! Eles deixam-no sair... mandaram-no para casa!
Vale mais que ele acabe no ambiente que lhe é querido. Quando nada mais pode fazer-se... Para quê conservá-lo afastado de todos? Celeste, é duro enfrentar este calvário, mas teremos que o percorrer!
E Eva? Eva já sabe?
Sabe, Mauron já lhe disse, mas não acredita e repete que Pierre não morrerá! Isto é terrível, Celeste...
Ele abateu-se numa cadeira e pôs a mão sobre os óculos de espessas lentes. Ficou em silêncio. Entre eles, estavam dispostos os bolos cheirosos, em cima do fogão, a panela fervia devagar. Pelo vão da escada chegavam até eles ondas de música; lá em cima, no sexto andar, os amigos ouviam discos novos.
E Pierre também sabe? perguntou a senhora Beugnon.
Sim. Soube-o sempre. Callac recostou-se, dirigindo o olhar para o tecto amarelecido pelo fumo. Eu não podia compreender o seu júbilo, o seu frenesi de cores, nas telas que pintava. Agora é que compreendo tudo. Cada um dos seus quadros é um grito. Meu Deus, que capacidade de sofrimento existe naquele rapaz! Os seus quadros, um dia mais tarde, não terão preço.
E esteve quase a morrer de fome... porque ainda há idiotas como Callac.
Desta vez, Celeste, tens razão. Mas a maioria dos seres humanos são cegos e não o sabem.
O único ser que pareceu compreender exactamente a situação foi Bolhas.
Bolhas não largava Pierre, não dando importância a Eva, e ficava deitado aos pés do dono sempre que ele estava a pintar. Quando sobrevinham as crises, que obrigavam Pierre a atirar-se para o chão e que eram cada vez mais frequentes Bolhas lambia o suor que lhe cobria o rosto, se Eva não estivesse presente para o limpar com uma toalha.
Os comprimidos e injecções receitados pelo Dr. Vernier não faziam qualquer efeito. Ninguém, aliás, esperava que o fizessem, mas é insuportável para um médico não fazer nada pelo doente e abandoná-lo à sua sorte.
Callac falou com todas as sumidades médicas de França. Logo que ficavam ao corrente do diagnóstico e, sobretudo, do estado do doente, todos repetiam a mesma coisa, o que, passado pouco tempo, Callac já não tinha coragem de ouvir.
Em contrapartida, vendia as obras de Pierre por preços que, até ali, só os quadros de Buffet tinham alcançado. Mas a mais bela de todas, Callac recusou-se a vendê-la: era o ”Tríptico da Natureza”, como lhe chamava Pierre. Naquele quadro, estava todo o seu amor por Eva.
Se ele só tivesse pintado este quadro disse Callac à senhora Beugnon, mesmo assim, tornar-se-ia imortal.
No começo de Dezembro, Pierre teve uma febre, não muito alta, mas que não desaparecia. Eva tinha ido a Colónia. Callac já esgotara todas as celebridades médicas. Huberte Bader, por seu lado, depois de Eva lhe ter telefonado sobre o assunto, tinha tentado submeter o caso a especialistas alemães. Porém, estes tinham respondido com um embaraçoso silêncio, ou então, com a frase cruel, já bem conhecida:
A medicina tem os seus limites.
Carregada com as radiografias de Pierre, feitas em Paris, Eva dirigiu-se à clínica universitária de Bona. Ali, tinham pela primeira vez tentado a transplantação dum fígado, com êxito. Os jornais de todo o mundo haviam noticiado o facto e, ainda que, com a continuação, o órgão fosse rejeitado, a luta começara, não ficavam resignados à própria impotência. Se se faziam transplantações de corações, porque não os fariam de fígados? Ou porque não se ajudaria um fígado a trabalhar, como se faz com um coração fatigado?
Em Bona examinaram todos os documentos trazidos por Eva. Houve algumas conversas telefónicas entre Bona e Paris, enquanto Hubert Bader, mais comovido pelo amor da sua filha pelo pintor do que desolado com a doença deste, pedia a um professor alemão que telefonasse para hospitais americanos. Chegou a fazer-se um contacto com Tóquio e Osaka, onde, segundo constava, havia grandes especialistas de fígado que empregavam métodos novos de tratamento.
As respostas chegaram: para quê fazer o relato delas? Os médicos de Bona restituíram a Eva a documentação que ela trouxera e o chefe da clínica tentou, paternalmente, fazer-lhe compreender a verdade. Mas ela agarrava-se à sua louca esperança, segundo a qual um homem como Pierre não deve morrer. Ela, habitualmente tão lógica nos raciocínios, quando se tratava de Pierre deixava de escutar a razão.
É tarde de mais! disse, finalmente o chefe da clínica universitária de Bona, vendo que Eva continuava surda a todas as explicações. Minha filha, é apenas tarde de mais! Muitas vezes esquecemos que o ser humano é simplesmente matéria efémera e, além disso, bastante frágil. Há alguns anos, quando seria?, agora não podemos sabê-lo, o senhor Sangries ainda poderia ser salvo.
Doutor, eu não desisto disse Eva, reunindo os documentos. Não, eu não desisto! Deve existir um médico, em qualquer parte do mundo, que tenha feito uma descoberta que possa salvar Pierre!
O director da clínica não respondeu. Não se pode argumentar com uma pessoa que está num tal estado de desespero. Isso faz parte da vida diária dum médico; esta aterradora prova de recusa que quase todos os indivíduos humanos opõem à compreensão da palavra definitivo.
Todas as noites, Eva telefonava para Paris, de Colónia, aonde regressara. Nos primeiros dias, Pierre descia a escada e trocavam palavras de amor, diziam um ao outro quanto se desejavam, e como eram cruéis aqueles dias de separação.
Estou bem disse Pierre, numa noite. Comecei agora a pintar uma grande tela; representa o nosso velho pescador do Paradis, ao lado do seu barco transformado em coelheira. Por cima disto, o céu da Camarga.
Depois, nos dias seguintes, Pierre não veio ao telefone. A senhora Beugnon, do outro lado do fio, dizia:
Eu vou chamá-lo! Depois, Eva ouvia ressoar a voz dela no vão da escadaria. A voz de Pierre respondia e a senhora Beugnon voltava ao telefone para dizer: Está a pintar como um louco e manda dizer-te muitas coisas, mas não pode afastar-se do quadro...
Eva compreendia. Conhecia a maneira de trabalhar de Pierre, que, por vezes, pintava como se estivesse embriagado, e quando alguém lhe falava olhava através da pessoa como se esta fosse feita de vidro.
No quinto dia, como Pierre continuasse a não vir ao telefone, Eva ficou inquieta e disse:
Eu quero falar com ele, mãezinha. Grite lá para cima que eu quero falar-lhe. Talvez vamos a Tóquio na semana que vem, de avião...
É inútil, Eva... ele não virá respondeu a senhora Beugnon. Eu digo-lhe acerca de Tóquio...
Está a esconder-me qualquer coisa! Eva sustinha a respiração. Ouvia-se perfeitamente respirar, a senhora Beugnon. Pierre está pior? Teve outra crise?
Não teve crise nenhuma disse, firmemente a senhora Beugnon e está melhor do que na semana passada. Não te preocupes, Eva...
Depois, desligou e foi esse gesto que decidiu Eva a tomar o primeiro comboio para Paris.
Aconteça o que acontecer, minha filha dizia Hubert Bader, que, desta vez, viera à estação, pois às 13h19 não aparecem clientes a comprar móveis, aconteça o que acontecer, nós sempre te ajudaremos e a Pierre. Tudo o que possuímos está à vossa disposição. O Professor Brandes descobriu outro especialista de fígado em Estocolmo. Depois, telefonar-te-ei para Paris sobre isso, Ev.
Else Bader chorou um pouco quando o comboio começou a andar e Eva fazia a ambos grandes gestos de adeus, olhando os pais parados no cais.
”Porque teria a senhora Beugnon desligado de repente?”, pensava Eva, sentando-se no seu lugar. ”Porque é que nem sequer tentou chamar Pierre? Nem hoje, nem ontem, nem anteontem o chamou. Ele está a pintar, mas sei que não aguenta mais do que uma semana sem ouvir a minha voz...”
Apoiou a fronte no vidro frio do compartimento e olhou para a noite chuvosa. Também aqui chovia há quinze dias. Os campos estavam alagados.
”Pierre, iremos a Tóquio, de avião, ou a Estocolmo, ou ao Rio de Janeiro... Iremos a toda a parte onde haja um médico que possa curar-te. Eu não desisto! Não desisto! Pierre! Amo-te!”
Chegou de manhã à estação do Norte.
Na paragem dos táxis, viu o conde Perushkin, amigo de Vladimir, estacionado à frente da fila e ficou contente por ele estar ali. Fez-lhe sinal com a cabeça e ele correspondeu ao chamamento com certo constrangimento e, sem dúvida, embaraçado, pôs-se a mexer no aparelho de rádio, dizendo algumas palavras para o microfone; depois, avançou para o cruzamento.
Ninguém sabe da sua chegada, Ev disse ele, logo que Eva se sentou ao seu lado.
É uma surpresa para Pierre. Ela recostou-se e seguiu com o olhar o louco movimento matinal das ruas de Paris. Quando viu Pierre a última vez?
Há oito dias... O conde Perushkin olhava a direito na sua frente. Temos tido muito trabalho, um congresso, uma missa solene, andamos arrasados...
Como estava Pierre, de aspecto?
Bem, Ev. O conde Perushkin apertava o volante com tanta força que as falanges ficaram brancas. Estava com ar satisfeito, feliz...
Que bom!
Nada mudara na Rua Princesa, mas, mesmo assim, havia uma novidade: a senhora Beugnon não estava à espreita no seu cubículo. A porta da cozinha estava aberta, mas a porteira não se encontrava lá.
Deve estar a arrumar o quarto de Pierre disse Perushkin.
Ele beijou Eva na testa, apressadamente, fez meia volta e correu para o táxi, que fez arrancar com velocidade.
Lentamente, Eva subiu a escadaria familiar, pensativa, hirta, até ao quarto. Lentamente, entreabriu a porta, que depois abriu completamente.
Através do vidro da grande janela, a claridade da manhã batia no cavalete onde estava colocado o quadro inacabado que representava o pescador do Paradis, de cabelos brancos, com o seu barco povoado de coelhos.
Por trás disso, estava tudo o que constituíra o ambiente familiar de Pierre: a cama, com a coberta de pele que ambos tinham comprado umas semanas atrás, nas Galerias Lafayette, e, sobre a cama, estava o Bolhas, com o focinho entre as patas, olhando-a fixamente. Não se mexeu, não abanou a cauda; ficou ali como um animal de pelúcia, onde só tinham vida os grandes olhos tristes.
A senhora Beugnon, sentada na cama de Eva, tinha a cabeça baixa. O ”Breviário” estava encostado à parede, com as mãos cruzadas; Henry, o Vermelho, acabrunhado, estava sentado numa cadeira; o príncipe Globotkin estava ofegante. Foi então que Eva soube com quem o conde Perushkin tinha falado pelo telefone do seu táxi.
Ela lançou um olhar em redor, aproximou-se da cama de Pierre e sentou-se junto do Bolhas. O cão deslizou até ao pé dela, pôs-lhe a cabeça nos joelhos e começou a ganir, baixinho.
Quando foi? perguntou Eva, muito calma.
Há cinco dias respondeu Globotkin, vendo que ninguém se atrevia a falar.
Foi muito rápido... como uma luz que se apaga. Mas ele soube o que o esperava, pelo menos na véspera. Deixou uma carta para ti.
”Breviário” afastou-se da parede, tirou um sobrescrito do bolso do casaco e colocou-o perto de Eva, em cima da cama. Ela olhou a carta, mas não lhe tocou.
Ele exigiu que não te preveníssemos. Henry, o Vermelho, levantou-se e empurrou a cadeira. Nós obedecemos-lhe... Mas agora, não aguento mais!
O gigante de barba vermelha olhou para Eva, começou a chorar e saiu apressadamente do quarto. A senhora Beugnon estava imóvel... como um colosso de mármore que tivessem abandonado em cima da cama, permanecia imóvel e calada.
Não se pintara e os cabelos ruivos não estavam penteados para cima e presos no alto da cabeça. Via-se agora que era uma mulher muito velha, uma criatura infinitamente só e desamparada. Talvez Callac, à força de dedicação, conseguisse reanimar aquela senhora Beugnon de Birague, sem a qual uma Rua Princesa não é imaginável!
Quem estava com ele? perguntou Eva, com os olhos estranhamente fixos.
Todos nós...
O príncipe Globotkin amparou a senhora Beugnon pelos ombros. Ela levantou-se e saiu em silêncio. Pompom seguiu-a depois o ”Breviário”, finalmente Globotkin fechou suavemente a porta atrás de si.
Um frio sol de Inverno nascia sobre Paris. Começava mais um dia luminoso. Um daqueles dias que Pierre amara e a que chamava sempre os seus ”dias verídicos” porque as cores eram puras.
Eva deitou-se e puxou Bolhas para junto de si. Sob a cabeça, sentia a almofada na qual repousara a cabeça de Pierre.
Depois, lembrou todas aquelas manhãs em que ele repousara assim, a olhar para o céu de Paris, através da grande vidraça.
Para quê chorar, Bolhas? disse ela, baixinho. Porque tremes, pequenino? O que significa estar mortal Ele apenas foi para outro lugar, não pode separar-se de nós, enquanto vivermos estará connosco. Sabes o que Pierre desejou sempre? Que um pouco dele ficasse neste mundo. Nós conseguimos isso, Bolhas, porque eu vou ter um filho de Pierre.
Depois, calou-se, apertou o cãozito, fechou os olhos e abandonou-se àquele sentimento para o qual não existem palavras, nem explicações e ao qual se não pode fugir.
Revia a Camarga, as crinas ondeantes dos seus cavalos brancos, o voo dos flamingos cor-de-rosa sobre o pego de Vaccarès, o velho pescador e o seu barco sem mar, a cabana de Cabeça de Barro e a cama onde o filho que trazia dentro de si... E via também Pierre a galopar no seu cavalo, ao encontro do sol. O vento do mar despenteava-lhe os cabelos e ele voltava-se para trás, para lhe fazer sinais, a rir, Pierre, o conquistador do mundo, o louco pela vida.
Pierre.
Ela conservava as pálpebras crispadas, para não ver aquela manhã fria. No entanto, sabia que a vida retomava os seus direitos e que, dentro de momentos, ela teria que enfrentar o dia de hoje, o de amanhã, os anos todos que haviam de vir e que assim tinha de ser, por causa do filho de Pierre.
Ela seria capaz de enfrentar a solidão, o desgosto, o luto da sua vida tão cedo desfeita.
Mas a verdadeira vida não seriam os mortos, aqueles por quem se chora, mas de quem continuamos à espera? Não seriam os fracassos, as lutas vãs, a sua ternura perdida, tudo o que já não é possível?
E só então ela chorou e Bolhas veio lamber-lhe as lágrimas, deitando-se, depois, encostado ao seu ombro, morno e meigo, migalha de vida, faísca de amor que se consome como todos nós, no gelado seio do nada.
Konsalik
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