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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AMOR E O PODER - P.3 / Colleen McCullough
O AMOR E O PODER - P.3 / Colleen McCullough

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Numa das suas raras cartas para Rutílio Rufo, que o destinatário recebeu em Setembro, Mário escrevia o seguinte:

Bem sei que devia escrever com mais frequência, velho amigo, mas o problema é que não sou um bom correspondente. Agora, as tuas cartas são como um pedaço de cortiça atirado a um náufrago, cheias como estão de ti; sem floreados nem formalismos. Isso mesmo! Consegui fazer estilo, mas não calculas com que esforço.

É verdade que tens ido ao Senado aturar os grunhidos do nosso Suíno contra os custos que o Estado tem de suportar para manter um exército de capite censi mais um ano parado no extremo dos Alpes? E como conseguirei obter o meu quarto mandato como cônsul pela terceira vez consecutiva? Evidentemente, é o que tenho de fazer Senão, perco tudo. Porque o próximo ano, Públio Rutílio, será o ano dos Germanos. Pressinto-o. Sim, admito que ainda não tenho bases para dizê-lo, mas quando Lúcio Cornélio, e Quinto Sertório regressarem, estou certo de que será isso o que dirão. Não recebo notícias deles desde o ano passado, quando vieram trazer-me o rei Copillus. E embora me alegre por os meus dois tribunos da plebe terem conseguido condenar Quinto Servílio Cepião, ainda me sinto triste por não ter podido fazê-lo eu mesmo, tendo Copillus por testemunha, Mas não faz mal. Quinto Servílio teve a recompensa que merecia. É pena que Roma nunca mais ponha a vista em cima do ouro de Tolosa; teria de ser usado para pagar muitos exércitos de capite censi.

 

 

 

 

Por aqui, a vida corre como de costume. A Via Domícia está agora como nova desde Nemauso até Ocelum, o que irá, de futuro, facilitar a marcha às legiões. Estava em ruínas. Algumas partes não eram reparadas desde que o tata do nosso Pontifex Maximus por aqui passou, hádois anos. As inundações, geadas e o escoamento de cargas de água súbitas tornaram o trabalho árduo. Claro que não é o mesmo que construir uma estrada nova, Uma vez colocadas as pedras, a base permanece lá para sempre. Mas os homens, carroças e montadas não Podem passar em segurança pelos altos e baixos das pedras salientes. A superfície superior de

areia e pó de pedra têm de ficar lisas como cascas de ovo e ser regadas até formarem um bloco parecido com argamassa. Acredita no que te digo: neste momento, a Via Domícia é um crédito para os meus homens.

A propósito, também construímos uma passagem através dos pântanos do Ródano, de Nemauso a Arelas. E estamos a acabar um novo canal desde o mar até Arelas, através dos lodaçais, pântanos e bancos de areia. Todos os gregos importantes de Massília me agradecem profundamente, como hipócritas que são. Mas faço notar que essa gratidão não fez baixar os preços do que quer que vendam ao meu exército!

Caso venhas a ouvir falar nisso e a história chegue até ti distorcida - como sempre acontece nas histórias que se contam acerca de mim e dos meus - vou contar-te o que aconteceu a Caio Lúsio. Se bem te recordas, é o filho da irmã da minha cunhada. Caio Lúsio veio ter comigo como tribuno dos soldados. Só que não era esse opapel que ele queria junto dos soldados. O meu chefe dapolícia militar veio ter comigo há duas semanas com o que pensou ser uma notícia péssima. Caio Lúsio fora encontrado morto nas barracas dos soldados, rasgado da garganta ao estômago com o mais perfeito golpe de espada que qualquer comandante podia exigir de um soldado. O culpado entregou-se; também é bom rapaz, dos melhores, segundo me disse o seu centurião. Acontece que Lúsio era maricas e tinha um fraco por este soldado. E estava sempre a importuná-lo, nunca o largava, Então passou a ser motivo de troça nas centúrias, e todos faziam gestos efeminados e agitavam as pestanas. O desgraçado do jovem soldado não podia sobrepor-se-lhe. Resultado: o assassínio. Seja comofor, tive de julgá-lo em tribunal militar, e devo dizer-te que tive grande prazer em absolvê-lo com um louvor, uma promoção e uma bolsa cheia de dinheiro. Lá voltei afazer um pouco de estilo literário.

O assunto também teve efeitos positivos para mim. Em primeiro lugar, consegui provar que Lúsio não era meu parente em linha directa. E em segundo lugar, foi uma hipótese de mostrar aos soldados que o seu general faz cumprir a justiça como deve ser, sem favoritismo pelos membros da suafamília. Devem existir ocupações possíveis para um maricas, mas está provado que as legiões não são o melhor lugar, não concordas, Públio Rutílio? Imaginas o que teríamos feito a Lúsio na Numância? Não teria escapado com uma morte decente; teria ficado a cantar em tom de soprano. Embora se acabe sempre por crescer. Nunca me esquecerei do choque que tive ao ouvir algumas das coisas que se disseram de Cipião Emiliano no seu funeral! Não sei se serão histórias verdadeiras, pelo que conheci dele, Era um sujeito estranho, mas penso que surgem sempre histórias destas acerca dos homens que não procriam.

E estou achegar aofim. Ah, introduzi este ano algumas mudanças no pilum e espero que a nova versão se torne modelo padrão. Se tiveres algum dinheiro de parte, compra algumas acções numa das novas fábricas dedicadas ao seu fabrico. Ou então, cria tu mesmo uma fábrica - desde que o edifício te pertença, os censores não podem acusar-te de práticas não-senatoriais, não é verdade?

De qualquer modo, o quefizfoi mudar o desenho da junção da haste deferro com a de madeira. O pilum é uma peça muito eficaz em comparação com a lança do tipo hasta, mas não há dúvida de que é muito mais dispendiosa. Tem uma pequena ponta com barbela em vez da grande ponta em forma defolha; uma longa haste de ferro e uma haste de madeira talhada de forma a adequar-se ao arremesso em vez da pega da antiga haste. Ao longo dos anos, tenho vindo a reparar que o inimigo adora apanhar exemplares do pilum, e por isso provoca propositadamente as nossas tropas inexperientes, atacando quando elas não conseguem atingir os escudos inimigos. A seguir, ou guardam o pilum para usar noutra altura ou no-lo lançam de volta.

Ora eu descobri um modo de unir a haste de ferro à de madeira com um prego fraco. Mal o pilum sofre qualquer embate, parte-se pela junta e o inimigo não pode voltar a lançá-lo contra nós ou partir com ele. Além do mais, nas batalhas que ganharmos, os armeiros podem apanhar os pedaços partidos e voltar a uni-los. Isso poupa-nos dinheiro e vidas, pois o inimigo não pode voltar a arremessar os bocados. E não tenho mais notícias. Escreve em breve.

Rutílio Rufo pousou a carta com um sorriso. Não era demasiado elaborada nem graciosa, nem escrita com grande estilo. Mas era esse o estilo de Caio Mário. Ele era como as suas cartas. No entanto, a sua obsessão com o consulado era preocupante. Por um lado, entendia o que levava Caio Mário a permanecer no cargo de cônsul até os Germanos serem derrotados: Mário sabia que mais ninguém os venceria. Por outro lado, Rutilio Rufo era um romano que pertencia demasiado à sua classe para aprovar sequer que se desse a menor importância aos Germanos. Estaria Roma tão modificada pelas inovações políticas de Mário que a Roma de Rómulo já não fazia sentido? Rutílio Rufo desejava conhecer a resposta a essa questão. Era muito difícil gostar de um homem como ele gostava de Mário e viver com o rasto de tradições arruinadas que esse homem deixava atrás de si. O pilum, por Juno! Não poderia ele deixar nada como estava?

Públio Rufo sentou-se e respondeu à carta. Porque gostava de Caio Mário.

O Verão tem sido bastante calmo, pelo que receio não ter muitas novidades, querido Caio Mário. Nada de importante, pelo menos. O teu estimado colega Lúcio Aurélio Orestes, o cônsuljúnior, não se encontra de boa saúde; mas a saúde dele já não era boa quando foi eleito. Não entendo por que motivo ficou, excepto talvez por sentir que merecia o cargo. Ainda se está para ver se o merecia realmente ou não. De certo modo, duvido da primeira hipótese.

As notícias quase se resumem a um ou dois escândalos, mas sei que os apreciarás tanto como eu. Tem interesse notar que ambos têm a ver com o teu tribuno daplebe, Lúcio Apuleio Saturnino. Como sabes, éum sujeito extraordinário. Uma contradição pegada. Costumo pensar que é pena Escauro tê-lo excluído. Estou certo de que Saturnino entrou para o Senado com a intenção clara de ser o primeiro Apuleio a ocupar a cadeira curul. Agora, está morto por deitar abaixo o Senado atéos senadoresficarem reduzidos a máscaras de cera. Sim, ouço-te dizer que estou a ser demasiado pessimísta e que exagero, e que a minha visão das coisas se encontra deformada pelo meu amor à tradição Mas ainda assim, tenho razão! Desculpar-me-ás, espero, por nomear as pessoas apenas pelo cognomen. A carta vai ser longa e assim pouparei palavras.

Saturnino foi vingado. O quepensas disto? É um facto, espantoso que muito honra o nosso venerado Princeps Senatus, Escauro. Tens de admitir que é um homem muito melhor que o seu fiel companheiro Suíno. Mas é essa a diferença entre um Emílio e um Cecílio.

Sabes - sei que o sabes pois fui eu que to contei - que Escauro permaneceu no cargo de procurador do aprovisionamento de cereais e passa o tempo entre óstia e Roma, a fazer a vida negra aos comerciantes, que não têm lucros nenhuns. A incrível estabilidade dos preços dos cereais durante as duas últimas colheitas apesar da escassez apenas se deve a um único homem: Escauro!

Sim, vou terminar o panegírico e continuara história. Parece que quando Escauro estava em óstia há dois meses, encontrou um agente comprador de cereais que trabalha habitualmente na Sicília. Não há necessidade de te pôr a par da revolta dos escravos aí ocorrida, porque lês regularmente os despachos oficiais do Senado. Só quero dizer-te que me parece que este ano enviámos o homem certo para governar a Sicília. Lúcio Licíno Lúculo poderá ser um aristocrata demasiado altivo, mas é tão minucioso nos relatórios que envia para a Assembleia como no campo de batalha,

Acreditas que um pretor idiota - um dos Servílios de ascendência mais dúbia (não achas uma boa expressão?) que conseguiu comprar o cargo de augure com o dinheiro do seu patrono Aenobarbo e agora se intitula Caio Servilio Augure! teve a ousadia de acusar Lúculo de ter prolongado deliberadamente a guerra na Sicília para assegurar a prorrogação do seu comando até ao próximo ano?

E em que se baseava para fazer essa acusação espantosa?, ouço-te perguntar. É que depois de Lúculo ter derrotado o exército escravo de um modo tão decisivo, não se apressou a tomar Triócala e deixou mortos no campo de batalha trinta e cinco mil escravos, aumentando assim a oposição a Roma dos grupos de escravos resistentes da área de Heracleia Minoa! Lúculo fez o que devia: depois de ter derrotado os escravos em combate, levou uma semana a ocupar-se dos mortos e a acabar com os grupos de resistentes antes de ir para Triócala, onde os escravos sobreviventes se tinham rendido. Mas Servílio, o Augure, diz que Lúculo devia ter ido até Triócala o mais depressa possível logo a seguir ao combate, pois - alega ele opânico era tal entre os escravos, que estes se teriam rendido imediatamente! Mas acontece que quando Lúculo chegou a Triócala os escravos tinham dominado o pânico e decidido continuar a lutar. E como recebeu Servílio, o Augure, esta informação?, perguntarás. Pelos seus augúrios, naturalmente! De que outra forma podia saber em que estado de espírito se encontrava uma multidão de escravos rebeldes fechados numa fortaleza impenetrável? E alguma vez te pareceu que Lúculo possuía a desonestidade suficiente para travar uma batalha, e a seguir delinear um plano que lhe garantisse a prorrogação do mandato como governador? Que sórdido! Lúculo procedeu de acordo com a sua natureza: arrumou alfa antes de passar a beta.

Fiquei chocado com o discurso de Servílio, o Augure, e mais chocado ainda quando Aenobarbo Pontifex Maximus começou a vociferar o seu apoio à série disparatada das suas alegações! É evidente que todos os generais de segunda linha que não percebem nada de batalhas acharam que Lúculo era infame! A seu tempo se verá, mas não te surpreendas se ouvires dizer que a Assembleia decidiu em primeiro lugar, não prorrogar o comando de Lúculo, e em segundo lugar, dar o cargo de governador da Sicília a Servílio, o Augure. Que apenas iniciou esta caça ao traidor para se tornar governador da Sicília no próximo ano! É um posto fácil para alguém tão inexperiente como ele, já que Lúculo fez todo o trabalho que era preciso fazer. A derrota em Heracleia Minoa fez com que os escravos sobreviventes se fechassem numa fortaleza de onde não podem sair, porque Lúculo os cercou. Lúculo conseguiu levar os agricultores suficientes de volta às suas terras, de forma a assegurar a colheita deste ano, e os campos da Sicília já não estão a ser devastados pelo exército de escravos. O novo governador, Servílio Augure, só precisará de entrar no cenário já montado, fazendo vénias à direita e à esquerda e recolhendo os louros. Caio Mário, a ambição aliada à falta de talento é das piores coisas do mundo.

Edepol, edepol, já divaguei demasiado! Fui tomado de indignação pela desgraça de Lúculo. Lamento-o profundamente. Mas voltemos à história de Escauro

em Óstia e à hipótese de ele se encontrar com o comerciante de cereais da Sicília. Quando se pensou que um quarto dos escravos dos campos da Sicília seriam libertados antes da colheita do ano passado, os mercadores calcularam que um quarto dessa colheita ficaria abandonada nos campos devido à falta de mão-de-obra para apanhar o trigo. Por isso ninguém teve o cuidado de comprar essa última parte. Até ao período de duas semanas durante o qual Nerva libertou oitocentos escravos italianos. E o agente de Escauro pertencia ao grupo que percorreu a Sicília durante as tais duas semanas, comprando freneticamente o último quarto da colheita a um preço ridículo. A seguir, os plantadores intimidaram Nerva a fechar os tribunais de libertação, e de súbito, a Sicília voltou a ter mão-de-obra suficiente par a garantir a recolha da totalidade da safra. E assim, o último quarto, vendido por uma ninharia, pertencia agora a uma ou a várias pessoas desconhecidas, e vislumbrava-se o motivo do aluguer de todo e qualquer silo vazio existente entre Putéolos e Roma. O último quarto iria ser armazenado nesses silos até ao ano seguinte, quando era provável que a insistência de Roma para que os escravos italianos fossem libertados tivesse dado origem a uma produção menor do que a colheita da Sicília. E o preço dos cereais fosse alto.

Só que aquelas pessoas desconhecidas não contavam com a revolta dos escravos. A colheita não se fez. Por isso, o grande esquema para ter um lucro enorme a partir do último quarto da colheita não resultou e os silos continuaram vazios.

No entanto, voltemos às duas semanas frenéticas em que Nerva libertou alguns escravos italianos e ao grupo de compradores que se dispersaram para comprar o resto dos cereais: mal isto sucedeu e os tribunais foram fechados, o nosso grupo de compradores foi atacado por bandidos e foram todos mortos. Ou foi o que os bandidos pensaram. Um deles o que falara com Escauro em Óstia fingiu que estava morto e sobreviveu.

Escauro pressentiu qualquer coisa. Que intuição! E que cabeça! Percebeu logo tudo, embora o comprador de cereais não tenha compreendido. E como gosto dele, apesar do seu conservadorismo encapotado! A farejar como um terrier, descobriu que essas pessoas desconhecidas não eram senão o teu colega consular do ano passado, Caio Elávio Fímbria e o governador deste ano da Macedónia, Caio Mémio! No ano passado haviam lançado uma pista falsa ao nosso terrier Escauro que o levava directamente ao questor de Óstia: nada menos que o nosso turbulento tribuno da plebe Lúcio Apuleio Saturnino.

Mal recolheu todas as provas, Escauro levantou-se e pediu duas vezes perdão a Saturnino; uma vez na Assembleia e outra nos Comícios. Estava envergonhado mas não perdeu a dignitas, como é evidente. Toda a gente adora uma pessoa que saiba fazer um pedido de desculpas sincero e elegante. E devo dizer-te que Saturnino

nunca atacou Escauro quando regressou à Assembleia como tribuno da plebe. Saturnino também se levantou, uma vez na Assembleia e outra nos Comícios, dizendo a Escauro que nunca tivera ressentimentos, que percebera a astúcia dos verdadeiros patifes, e estava agora extremamente grato por ter recuperado a sua reputação. E assim, Saturnino também não perdeu a dignitas. Todos adoram uma pessoa que saiba receber com modéstia uma desculpa gentil.

Escauro também atribuiu a Saturnino a tarefa de acusar Fímbria e Mémio no seu novo tribunal de traição, e, como era de esperar, Saturnino aceitou. E agora estamos ansiosos por ver muita lenha e pouco fumo quando Fímbria e Mémio forem julgados. Imagino que serão condenados num tribunal composto por cavaleiros, pois muitos dos cavaleiros que se dedicavam ao negócio dos cereais perderam dinheiro, e Fímbria e Mémio são considerados culpados por tudo o que aconteceu na Sicília. E o resultado é que por vezes os verdadeiros patifes apanham o que merecem. A outra história de Saturnino é muito mais engraçada e intrigante. Ainda não consegui entender o que nos anda a preparar o nosso tribuno da plebe.

Há cerca de duas semanas apareceu no Fórum um sujeito que subiu aos rostros então livres, pois não havia reunião dos Comícios e os oradores amadores tinham decidido tirar uma folga e anunciou a todos que o seu verdadeiro nome era Lúcio Equício, que era um homem liberto e cidadão romano de Firmum Picenum, e agora ouve, Caio Mário, pois isto é magnífico! que era filho ilegítimo de Tibério Semprónio Graco!

O homem trazia a história na ponta da língua. Resumindo, é a seguinte: a sua mãe era uma mulher romana liberta de condição humilde que se apaixonou por Tibério Graco, o qual também se apaixonou por ela. Mas é óbvio que a sua ascendência não era de molde a permitir-lhes casar, pelo que ela se tornou sua amante e passou a viver numa casa pequena mas confortável numa das herdades de Tibério Graco. A seu devido tempo, nasceu Lúcio Equício a mãe chamava-se Equícia.

Depois, Tibério Graco foi assassinado e Equícia morreu logo a seguir, deixando o filho pequeno a cargo de Cornélia. Mas a mãe dos Gracos não gostava da ideia de ter sido escolhida para tutora do bastardo do seu próprio filho, e entregou-o aos cuidados de um casal de escravos da sua herdade de Miseno. A seguir, ordenou que o vendessem como escravo a pessoas de Firmum Picenum.

Lúcio Equício, segundo diz, não sabia quem era. Mas se fez as coisas que diz ter feito, não era criança nenhuma quando morreu o pai, Tibério Graco, e nesse caso está a mentir. De qualquer modo, depois de ter sido vendido, trabalhou tão diligentemente e tornou-se tão amado pelos donos, que na altura da morte do seu pater famílias, não só foi alforriado como herdou afortuna da família, pois

não havia herdeiros de sangue, por assim dizer. A sua educação fora excelente e o rapaz meteu-se em negócios com o dinheiro que herdara. Ao longo dos muitos anos que se seguiram, serviu nas nossas legiões e pela história que conta, deveria ter cerca de cinquenta anos, quando na verdade parece ter trinta.

Então, encontrou um sujeito que fez um grande alarido acerca da sua parecença com Tibério Graco. Sempre soubera que era italiano e não estrangeiro, e segundo diz, sempre se interrogara sobre a sua paternidade. Encorajado pela descoberta de que era parecido com Tibério Graco, localizou o casal de escravos em cuja casa o alojara Cornélia, a mãe dos Gracos, e soube da história do seu nascimento. Não é magnífico? Ainda não decidi se isto é uma tragédia grega ou uma farsa romana.

É evidente que os nossos crédulos frequentadores do Fórum ficaram furiosos, e daí a um ou dois dias Lúcio Equício era considerado em todo o lado como filho de Tibério Graco. É pena que os seus filhos legítimos já estejam mortos, não achas? Lúcio Equício tem, com efeito, uma semelhança notável com Tibério Graco - e bem inquietante, por sinal: fala como ele, anda como ele, faz os mesmos gestos e até coça o nariz do mesmo modo. O que me espanta é o facto de a parecença ser demasiado perfeita. Assemelha-se mais a um gémeo do que a um filho. Os filhos não se assemelham aos pais em todos os pormenores, como tenho reparado, e muitas mulheres a quem alguém faz um filho ficam profundamente agradecidas por isso, e passam grande parte da sua energia pós-parto garantindo ao pai do seu rebento que este é o retrato vivo do tio-avô Tidlipus. Caramba!

A seguir, o Senado inteiro vê Saturnino levar o seu Lúcio Equício e subir com ele aos rostros, e encorajar Equício a reunir apoiantes. Não passara ainda uma semana e já Equício era o herói de Roma, tanto dos tribunos da plebe como dos homens dos capite censi; negociantes, empregados de loja, artesãos, pequenos proprietários rurais a nata da Quarta e Quinta Classes. Sabes a quem me refiro, Todos eles adoravam o chão que os irmãos Gracos pisavam; todos esses homens diligentes que nem sempre têm direito ao voto mas votam nas suas tribos com a frequência suficiente para se sentirem superiores aos homens libertos e aos capite censi. São daqueles homens demasiado orgulhosos para aceitarem a caridade mas que não têm dinheiro que chegue para pagar os preços astronómicos dos cereais.

Os Pais Conscritos do Senado, em especial os que usam togas debruadas a púrpura, começaram a ficar um pouco preocupados com esta adulação e também um pouco aborrecidos, graças à participação de Saturnino, que é o verdadeiro mistério. No entanto, o que poderiam fazer? Por fim, o nosso novo Pontifex Maximus, Aenobarbo (tem uma nova alcunha que se lhe adapta na perfeição: pipinna, propôs que a irmã dos Gracos (e viúva de Cipião Emiliano, como se alguma vez pudéssemos esquecer as rixas que aquele casal tinha!) fosse levada aos rostros, para se confrontar com o alegado impostor.

Isso aconteceu há três dias. Saturnino ficou de lado, a sorrir com ar de tolo - só que não é tolo, e por isso, o que andará a tramar? e Lúcio Equício fitava aquela mulher encarquilhada com um olhar ausente. Aenobarbo Pipinna fez uma pose pontifical, pegou em Semprónia pelos ombros o que não lhe agradou muito, porque o sacudiu como a uma aranha peluda e perguntou com voz de trovão: Filha de Tibério Senprónio Graco Sénior e de Camélia Africana, reconheces este homem?

Como se esperava, ela respondeu secamente que nunca o vira na vida, e que o seu muito querido e amado irmão Tibério nunca romperia os laços sagrados do matrimónio, pelo que tudo aquilo era um completo disparate. A seguir, começou a espancar Equício com a sua bengala de marfim e ébano, e a cena transformou-se na mímica mais vergonhosa que alguma vez se viu. Não deixo de pensar que Lúcio Camélia Sila deveria ter lá estado. Teria delirado com aquilo!

No final, Aenobarbo Pipinna (adoro aquela alcunha! Imagina que lhe foi dada por Metelo Numídico!) teve de arrastá-la dos rostros, com toda a audiência às gargalhadas e Escauro a rir até às lágrimas, que aumentaram ainda mais quando Pipinna e o Bacorinho o acusaram de leviandade pouco própria de um membro do Senado.

Mal Lúcio Equício voltou a ficar sozinho nos rostros, Escauro foi ter com ele e perguntou-lhe se conhecia aquele velho horror. Equício respondeu que não, o que provava que, ou não dera ouvidos à apresentação de Aenobarbo, ou estava a mentir. Mas Saturnino explicou-lhe com simpatia e em breves palavras que era a tiazinha Semprónia, irmã dos irmãos Gracos. Equício pareceu surpreendido, disse que nunca vira a sua Tia Semprónia e que muito o espantaria que Tibério Graco nunca tivesse falado à irmã da sua amante e do filho, que viviam numa das herdades de Semprónio Graco.

A multidão gostou do bom senso patente na resposta dele, e continua a acreditar implicitamente que Lúcio Equício é filho bastardo de Tibério Graco. E o Senado para já não falar de Aenobarbo está indignado. Todos compartilham dessa disposição, à excepção de Saturnino, que se desfaz em sorrisos, de Escauro, que se limita a rir, e de mim. Vejamos o que vai acontecer!

Públio Rutílio deu um suspiro e esticou a mão dorida, desejando conseguir ter a dificuldade de Caio Mário a escrever cartas; talvez fosse levado a incluir todos os pormenores deliciosos que constituíam a diferença entre uma missiva de cinco parágrafos e outra de cinquenta e cinco.

E isto, Caio Mário, é tudo o que tenho a dizer-te. Se ficar aqui sentado mais um momento que seja, pensarei em histórias mais divertidas e ainda adormeço com o nariz dentro do tinteiro. Gostava que houvesse um modo de salvaguardares o teu comando que fosse melhor e mais de acordo com a tradição romana do que voltares a concorrer ao consulado. Nem vejo bem como poderás resolver isso. Mas devo dizer que o farás. Mantém-te de boa saúde. Lembra-te de que já não és nenhum franganote, és um galo velho, e por isso tem cuidado para não caíres e partires algum osso. Voltarei a escrever-te quando acontecer alguma coisa de interessante.

Caio Mário recebeu a carta no início de Novembro e preparou-se para lê-la com grande animação quando Sila chegasse. Sila regressara de vez, visto que cortara o enorme bigode pendente e os cabelos. E enquanto Sila tomava banho na maior das felicidades, Mário leu-lhe a carta, ridiculamente feliz por Sila estar de volta para partilhar prazeres daquele género.

Instalaram-se os dois no gabinete privado do general e Mário deu instruções para não ser incomodado, nem mesmo por Mânlio Aquílio.

- Tira esse maldito colar! pediu Mário quando Sila, vestido de toga, à romana, se inclinou, pondo à vista aquele enorme ornamento de ouro.

Mas Sila abanou a cabeça, sorrindo e tocando nas magníficas cabeças de dragões que formavam os extremos do círculo quase completo do colar.

- Não me parece que alguma vez venha a tirá-lo, Caio Mário. É bárbaro, não achas?

- Não é próprio de um romano resmungou Mário.

- O problema é que se tornou o meu talismã da sorte, por isso não posso tirá-lo, pois arrisco-me a que a minha sorte se vá com ele - Sila instalou-se num leito com um suspiro de volúpia. Oh, a felicidade de voltar a reclinar-me como um homem civilizado! Há tanto tempo que sento o rabo em bancos duros de madeira, que já começava a pensar que teria sonhado que existiam raças que se reclinavam para comer. E como é bom regressar à contenção. Tanto os Gauleses como os Germanos fazem tudo até ao excesso: comem e bebem até vomitarem por todo o lado, ou então quase morrem à fome quando fazem incursões ou travam combates sem se lembrarem de levar provisões. Ah, mas são ferozes, Caio Mário! Corajosos! Digo-te, se tivessem um décimo da nossa organização e autodisciplina, não poderíamos vencê-los.

- Felizmente para nós, não têm nem um centésimo de cada uma dessas qualidades, e por isso podemos derrotá-los. Pelo menos, parece-me que é o que estás a sugerir. Bebe este vinho; é de Falerno.

Sila bebeu em goles grandes mas com lentidão.

- Vinho! Néctar dos deuses, bálsamo para um coração desolado, remédio para o espírito! Como terei conseguido viver sem ele? - Sila riu-se.

- Tanto me faz se não voltar a ver um chifre de cerveja ou uma caneca de hidromel até ao fim da vida! O vinho é civilizado. Não provoca vómitos, nem peidos, nem estômagos dilatados; a cerveja transforma um homem numa cisterna ambulante.

- Onde está Quinto Sertório? Espero que esteja bem.

- Vem a caminho mas viajámos separados, e queria falar-te em particular, Caio Mário - respondeu Sila.

- Como queiras, Lúcio Cornélio, desde que me ponhas a par dos acontecimentos - explicou Mário, olhando-o afectuosamente.

- Nem sei por onde começar.

- Então, começa pelo princípio. Quem são eles? De onde vêm? Há quanto tempo andam em viagem?

Sila fechou os olhos, enquanto saboreava o vinho.

- Eles não se intitulam Germanos e também não se consideram um único povo. Compõem-se de vários povos: os Cimbros, os Teutões, os Marcomanos, os Queruscos e os Tígurínos. A pátria dos Címbros e dos Teutões é uma longa e vasta península a norte da Germânia, vagamente descrita por alguns dos geógrafos gregos, que lhe chamaram o Quersoneso Cimbro. Parece que a metade mais distante a norte era a pátria dos Cimbros e a metade que se ligava ao continente da Germânia seria a pátria dos Teutões. Embora se considerem povos separados, é muito difícil detectar as características físicas específicas de cada um desses povos, apesar de as suas línguas terem algumas diferenças, o que não os impede de se entenderem.

”Não eram nómadas mas também não cultivavam cereais nem se dedicavam à agricultura tal como nós a entendemos. Parece que estavam mais habituados à humidade no Inverno do que à neve, e o solo dava-lhes uma erva magnífica durante todo o ano. Por isso viviam inteiramente da criação de gado bovino e do cultivo de aveia e centeio. Alimentam-se de carne de vaca e bebem leite, comem alguns legumes, pão preto e papas de aveia.

”E na altura da morte de Caio Graco, há cerca de vinte anos, tiveram um ano de inundações. Havia demasiada neve nas montanhas para alimentar os seus grandes rios, caiu demasiada chuva dos céus, houve ventanias ferozes e ondas muito altas. O oceano Atlântico cobriu toda a península. E quando o mar recuou, o solo estava demasiado salgado para que a erva pudesse nascer, e os poços ficaram salobros. Então, construíram carroças, reuniram o gado e os cavalos sobreviventes e partiram em busca de uma nova pátria.”

Mário escutava atento, cheio de interesse e entusiasmo, sentado muito direito na cadeira, esquecido do vinho.

- Todos eles? Quantos eram? - perguntou.

- Não foram todos. Os idosos e os mais fracos levaram uma paulada na cabeça e foram enterrados em enormes elevações tumulares. Apenas os guerreiros, as mulheres jovens e as crianças migraram. Segundo a minha estimativa, foram cerca de seiscentos mil os que atravessaram o vale do enorme rio que conhecemos por Elba, rumo ao sudoeste.

- Mas creio que essa parte do mundo é pouquíssimo povoada - comentou Mário, franzindo as sobrancelhas. - Porque é que não se fixaram ao longo do Elba?

Sila encolheu os ombros.

- Quem sabe, se eles mesmos desconhecem o motivo? Devem ter-se colocado na mão dos seus deuses, à espera de um sinal divino que lhes mostrasse terem encontrado uma nova pátria. Certamente não se depararam com grande oposição à medida que iam avançando, pelo menos ao longo do Elba. Por fim, chegaram à nascente do rio e viram montanhas altas pela primeira vez na vida. O Quersoneso Cimbro era liso e baixo.

- É evidente que podia ser inundado pelo oceano - afirmou Mário, e levantou logo uma mão, dizendo: - Não. Não tinha a intenção de ser sarcástico, Lúcio Cornélio! Não tenho jeito para falar, nem tenho muito tacto - Mário levantou-se para voltar a encher a taça de Sila. - Suponho que as montanhas os afectaram imenso.

- Com efeito. Os seus deuses eram deuses celestes, mas quando viram aquelas enormes torres cujas pontas tocavam nas nuvens, começaram a adorar os deuses que, segundo acreditavam, viveriam por baixo dessas torres, afastando-os do solo. Desde então, nunca mais se afastaram das montanhas. No quarto ano, atravessaram uma vertente alpina e passaram das águas do Elba para as do Danúbio, um rio que conhecemos melhor. E depois, viraram rumo ao leste, seguindo o Danúbio em direcção às planícies dos Getas e dos Sármatas.

- Então, era para aí que se dirigiam? - perguntou Mário. - Para o mar Euxino?

- Assim parece - respondeu Sila. - No entanto, os Bóios impediram-nos de penetrar na bacia do Norte da Dácia e viram-se obrigados a seguir o curso do Danúbio no ponto em que este descreve uma curva apertada para o sul, ao entrar na Panónia.

- Os Bóios são Celtas - lembrou Mário, meditativo. - Os Celtas e os Germanos não se misturaram, suponho,

- Não, de modo nenhum. Mas o que me parece interessante é os Germanos não terem decidido fixar-se em parte alguma e lutar pela posse da terra. Mudavam de terra ao menor sinal de resistência das tribos locais. E retiraram-se das terras dos Bóios. Até que, algures perto da confluência do Danúbio com o Tísia e o Savão, depararam com uma nova muralha de Celtas, desta vez Escordiscos.

- Os nossos inimigos! - exclamou Mário, com um sorriso. - Não é reconfortante descobrir que temos um inimigo em comum com os Escordiscos?

Sila levantou uma sobrancelha ruiva.

- Considerando que isso aconteceu há cerca de quinze anos e não soubemos de nada, é pouco reconfortante - disse, secamente.

- Hoje não digo coisa com coisa, pois não? Perdoa-me, Lúcio Cornélio. Tu tens estado a viver tudo isso, e eu estou para aqui sentado, entusiasmado com as minhas descobertas - desculpou-se Mário.

- Não faz mal, Caio Mário, eu entendo - disse Sila, sorrindo.

- Continua, continua!

- Talvez um dos seus maiores problemas tenha sido o facto de não terem nenhum chefe à altura. Nem nada que se parecesse com um... um plano principal, já que não encontro melhor palavra para descrevê-lo. Penso que se limitaram a esperar pelo dia em que algum rei poderoso lhes desse autorização para se fixarem numa parte das suas terras que estivesse livre.

- E é evidente que os reis poderosos não costumam fazer isso - comentou Mário.

- Não. De qualquer modo, voltaram para trás e começaram a dirigir-se para o oeste - prosseguiu Sila -, só que abandonaram o Danúbio. Primeiro, seguiram o curso do Savão, depois, viraram um pouco para o norte e apanharam o curso do Dravus, que acompanharam até chegarem à nascente. Nessa altura, já vinham a caminhar há mais de seis anos permanecendo só alguns dias no mesmo local.

- Não viajam em carroças? - perguntou Mário.

- Raramente. Como as carroças são atreladas ao gado, não são conduzidas mas guiadas. Só em caso de doença ou de parto é que as usam como veículos de transporte - explicou Sila, suspirando no fim. - É claro que todos sabemos o que aconteceu a seguir: entraram na Nórica, nas terras dos Tauriscos.

- Pediram auxílio a Roma, Roma enviou Carbão para tratar da saúde aos invasores e Carbão perdeu o seu exército - respondeu Mário.

- E, como sempre, os Germanos evitaram os sarilhos - comentou Sila. - Em vez de invadirem a Gália Italiana, dirigiram-se para as montanhas altas e voltaram a seguir o curso do Danúbio, um pouco a leste do seu ponto de confluência com o Aenus. Os Bóios não iam deixá-los seguir para o leste, por isso avançaram para oeste ao longo do Danúbio, atravessando as terras dos Marcomanos. Por motivos que não pude aprofundar, um grande grupo de Marcomanos reuniu-se aos Cimbros e aos Teutões nesse sétimo ano da migração.

- E a tempestade? - perguntou Mário. - Aquela que interrompeu a batalha entre os Germanos e Carbão e salvou alguns homens de Carbão. Houve quem acreditasse que os Germanos tinham considerado o temporal como um sinal da ira divina, e foi isso que nos salvou da invasão.

- Duvido - disse Sila tranquilamente. - Estou certo de que quando o temporal rebentou, os Cimbros, que combateram Carbão, e se encontravam mais perto dele, fugiram aterrados, mas não acredito que isso os tenha desviado da Gália Italiana. A resposta certa parece ser simplesmente eles nunca terem gostado de travar guerras para conquistar território.

- É fascinante! E nós que os consideramos hordas de bárbaros ansiosas por chegarem à Itália! - Mário olhou para Sila intensamente. - E a seguir o que aconteceu?

- Desta vez, seguiram o curso do Danúbio até à nascente. No oitavo ano, juntou-se-lhes um grupo de verdadeiros Germanos, os Queruscos, que vieram das suas terras à volta do rio Visurge, e no nono ano, reuniu-se-lhes um povo da Helvécia, os Tigurinos, que parecem ter vivido a leste do lago Lemano e são mesmo Celtas. Tal como o são, segundo creio, os Marcomanos. No entanto, tanto os Marcomanos como os Tigurinos são Celtas muito germânicos.

- Então não detestam os Germanos?

- Detestam-nos muito menos do que aos Celtas! - comentou Sila, a sorrir de dentes à mostra. - Há séculos que os Marcomanos estavam em guerra com os Bóios, e os Tigurinos com os Helvécios. Por isso, penso que quando as carroças dos Germanos passaram, julgaram que seria uma mudança agradável avançar para lugares desconhecidos. Quando a migração atravessou o jura, entrando na Gália Comata, era constituída por muito mais de oitocentos mil homens.

- E caíram todos em cima dos pobres Éduos e Ambarros - disse Mário. - E permaneceram no local.

- Durante mais de três anos - assentiu Sila. - Os Éduos e os Ambarros eram povos mais brandos; é que foram romanizados, Caio Mário! Foram postos no lugar por Cneu Domício para que a nossa província da Gália Transalpina ficasse mais segura. E os Germanos estavam a começar a gostar do nosso pão branco, em que se pode espalhar manteiga! E ensopavam-no no seu suculento molho de carne. E misturavam-no nos seus terríveis pudins de sangue.

- Falas com sentimento, Lúcio Cornélio.

- Pois falo! - com o sorriso a esmorecer, Sila observou a superfície do vinho com um ar meditativo, e depois olhou para Mário, de olhos a brilhar. - Elegeram um rei - contou Sila subitamente.

- Oh, oh! - retorquiu Mário, com suavidade.

- Chama-se Bóiorix, e é Cimbro; os Cimbros são o povo mais numeroso.

- Mas Bóiorix é um nome Celta - contrapôs Mário. - Bóiorix; Bóios. São um povo formidável. Há colónias de Bóios por todo o lado: na Dácia, na Trácia, na Gália-de-Longos-Cabelos, na Gália Italiana, na Helvécia... Quem sabe? Talvez tenham há muito estabelecido uma colónia entre os Cimbros. Afinal de contas, se esse Bóiorix diz que é Cimbro, é porque é. Não podem ser tão primitivos que não possuam conhecimentos genealógicos.

- Com efeito, os seus conhecimentos genealógicos são muito reduzidos - afirmou Sila, apoiando-se no cotovelo. - Isso não se deve ao facto de serem particularmente primitivos, mas sim porque toda a sua estrutura é diferente da nossa. E diferente da estrutura de qualquer outro povo que viva na orla do mar Central. Não são agricultores, e quando os homens não possuem terra que cultivem ao longo de várias gerações, não desenvolvem o sentido do lugar. Isso leva a que também não desenvolvam o sentido da família. A vida tribal... a vida grupal, se preferires... é mais importante. Comem em comunidade, o que para eles é mais sensato. Quando se tem por casa uma cabana e não existe cozinha, ou se a casa é sobre rodas e sem cozinha, é mais fácil matar animais grandes e assá-los inteiros para alimentar toda a tribo.

”Os seus conhecimentos genealógicos relacionam-se com a tribo, ou com o grupo de tribos individuais que compõem a tribo como um todo. Têm canções acerca dos seus heróis, mas exageram os seus feitos de um modo desproporcionado em relação aos factos: um chefe de tribo de há apenas duas gerações porta-se como Perseu ou Hércules, de modo que se torna demasiado vago como homem. O seu conceito de lugar também é vago. E o seu cargo, seja ele chefe, guerreiro, sacerdote ou xamane, tem precedente sobre a identidade deles como indivíduos. O homem individual transforma-se no seu cargo! Afasta-se da sua família, que não se eleva com ele. E quando morre, o cargo passa para alguém que a tribo escolhe, sem qualquer respeito por aquilo a que chamaríamos direitos familiares. As suas ideias acerca da família são muito diferentes das nossas, Caio Mário.” Sila levantou-se para se servir de mais vinho.

- Tens estado mesmo a viver com eles! - disse Mário, sobressaltado.

- Teve de ser! - Sila deu um golo que diminuiu o nível do vinho na taça e juntou-lhe água. - Não estou habituado - afirmou com ar surpreendido. - Não faz mal, hei-de retomar as minhas capacidades. - Sila encolheu os ombros. - Consegui infiltrar-me entre os Cimbros enquanto ainda tentavam atravessar a custo os Pirenéus. Isso teria ocorrido em Novembro do ano passado, quando regressei da visita que te fiz.

- Como? - perguntou Mário, fascinado.

- Estavam a começar a sofrer os custos de uma guerra prolongada, tal como nós os sofremos, em especial após Arausio. Como a nação inteira, excepto os idosos e os enfermos, se move como um todo, um guerreiro que morra deixa atrás de si uma viúva e órfãos. Essas viúvas tornam-se um encargo, a menos que os seus filhos homens tenham idade para se fazerem guerreiros num curto espaço de tempo. Por isso, as viúvas têm de disputar novos maridos entre os guerreiros que não tenham idade para já terem mulheres. Se uma mulher consegue ligar-se a si e ao filho a outro guerreiro, pode continuar como antes. A sua carroça serve de dote. Embora nem todas as viúvas possuam carroças. E também nem todas as viúvas encontram novos parceiros. Possuir uma carroça é uma grande ajuda. Dispõem de um certo período de tempo para as novas disposições: três meses, isto é, uma estação. Ao fim desse período de tempo, são mortas, bem como os seus filhos, e os membros da tribo que não têm carroças tiram à sorte as carroças vazias. Matam os que são considerados demasiado

velhos para contribuir produtivamente para o bem-estar da tribo e as crianças excedentes do sexo feminino.

Mário fez uma careta.

- E eu a pensar que nós é que éramos duros! Mas Sila abanou a cabeça.

- O que é ser-se duro, Caio Mário? Os Germanos e os Gauleses são como quaisquer outros povos. Estruturam a sua sociedade de forma a poderem sobreviver como povo. Os que passam a ser um sorvedoiro que a comunidade não pode sustentar têm de partir. E o que é melhor: deixá-los à deriva sem ninguém que olhe por eles, ou dar-lhes um golpe na cabeça? Morrer lentamente de fome e de frio, ou morrer rapidamente, sem dor? É assim que eles têm de ver as coisas.

- Suponho que sim - concordou Mário, relutante. - Pessoalment delicio-me muito com os nossos idosos. Escutá-los vale a comida e o abrigo que lhes damos.

- Mas isso é porque podemos sustentar os nossos idosos, Caio Mário! Roma é muito rica. Por isso, Roma pode sustentar pelo menos parte daqueles que não contribuem com nada de produtivo para a vida da comunidade. Mas não condenamos o abandono de crianças indesejadas, pois não? - perguntou Sila.

- Claro que não!

- Então, onde está a diferença? Quando os Germanos encontrarem uma pátria, passarão a ser mais parecidos com os Gauleses. E os Gauleses expostos aos Gregos e Romanos parecer-se-ão mais com os Gregos ou os Romanos. O facto de terem uma pátria permitirá aos Germanos abrandarem as suas normas; adquirirão suficiente riqueza para alimentar os seus idosos e as suas viúvas carregadas de filhos. Eles não são habitantes de cidades, são gente do campo. As cidades têm regras diferentes, nãO reparaste? As cidades geram a doença para afastar os idosos e os enfermos, e diminuem o sentido que o agricultor tem do lugar e da família. Quanto maior Roma se tornar, mais se aproximará dos Germanos. Mário coçou a cabeça.

- Perdi-me, Lúcio Cornélio. Retoma o assunto, peço-te! O que te aconteceu? Arranjaste uma viúva e juntaste-te a uma tribo como um guerreiro?

Sila assentiu.

- Exactamente. Sertório fez o mesmo numa tribo diferente, motivo pelo qual não nos temos visto muito, a não ser ocasionalmente, para comparar apontamentos. Tanto um como o outro, encontrámos uma mulher com uma carroça que não conseguira encontrar um novo parceiro. Isso aconteceu depois de nos termos estabelecido nas nossas tribos como guerreiros, claro, e antes de partirmos para vir visitar-te no ano passado; e encontrámos as nossas mulheres logo que chegámos.

- Eles não vos rejeitaram? - perguntou Mário. - Afinal de contas, vocês faziam o papel de Gauleses e não de Germanos.

- É verdade. Mas Quinto Sertório e eu lutamos bem. Nenhum chefe tribal desdenha bons guerreiros - gabou-se Sila, sorrindo.

- Pelo menos, não tiveste de matar romanos! Embora não duvide que o fizessem, se tivesse sido necessário.

Certamente - disse Sila. - Não farias o mesmo?

É evidente que faria. O amor é para muitos e o sentimento para poucos - comentou Mário. - Um homem tem de combater para salvar os primeiros, nunca os segundos - Mário animou-se. - A menos que tenha a oportunidade de fazer as duas coisas.

- Eu era um gaulês dos Carnutos, servindo como guerreiro cimbro

- contou Sila, achando o filosofar de Caio Mário tão confuso como este achara o seu. - Mesmo no início da Primavera houve um grande conselho composto por todos os chefes de todas as tribos. Nessa altura, os Cimbros tinham-se afastado o mais possível para o Oeste, esperando penetrar na Espanha pela zona mais baixa dos Pirenéus. O conselho decorreu nas margens do rio a que os Aquitanos chamam Aturro. Tinham surgido notícias de que todas as tribos dos Cantabros, Asturos, Vetões, Lusitanos do Oeste e Vascões se haviam juntado no lado espanhol das montanhas para combater uma eventual passagem dos Germanos para as suas terras. E neste conselho, de repente, de modo completamente inesperado, surgiu Bóiorix!

- Lembro-me do relato de Marco Cota depois de Arausio - recordou Mário. - Foi um dos dois chefes que tombaram, e o outro era Teutobod, dos Teutões.

- É muito novo - afirmou Sila -, deve ter cerca de trinta anos, não mais. Monstruosamente alto e de constituição hercúlea. Com pés que pareciam ser do tamanho de um siluro. Mas o mais interessante é que a sua mente é semelhante à nossa. Tanto os Gauleses como os Germanos têm padrões de pensamento tão diferentes de quaisquer povos do mar Central que nos parecem bárbaros! Ao passo que durante os últimos nove meses, Bóiorix mostrou ser um tipo de bárbaro muito diferente. Por uma razão:

aprendeu a ler e a escrever em latim e não em grego. Penso que já te disse que quando um gaulês sabe ler e escrever, fá-lo geralmente em latim e não em grego.

- Bóiorix, Lúcio Cornélio! - disse Mário. - Bóiorix! Sorrindo, Sila retomou o tema.

- Voltando a Bóiorix: ocupa uma posição forte nos conselhos há cerca de quatro anos, mas esta Primavera suplantou toda a oposição e foi escolhido para chefe supremo. Chamar-lhe-íamos rei, certamente, pois reservou para si a decisão final em todas as situações, e não receia discordar do conselho.

- Como é que o escolheram para rei? - perguntou Mário.

- À antiga - explicou Sila. - Nem os Germanos nem os Gauleses fazem eleições, embora por vezes votem em conselho. Mas é mais provável que as decisões do conselho sejam tomadas por quem permanece sóbrio durante mais tempo, ou tenha a voz mais alta. Quanto a Bóiorix, tornou-se rei por prerrogativa de combate. Aceitou todos os que o desafiaram e matou-os. Não o fez num recontro singular: enfrentou um por dia, até não haver mais ninguém que o desafiasse. Eram ao todo onze os guerreiros que disputavam o seu direito. E ficaram a morder o pó, à boa maneira de Homero.

- Ser rei por matar os rivais... - comentou Mário, pensativamente.

- Que satisfação há nisso? É verdadeiramente bárbaro! Se se matar um rival numa discussão ou no tribunal, ele sobreviverá para voltar a lutar. Nenhum homem devia deixar de ter rivais. Vivo, sobressai à vista deles, porque é melhor do que eles. Morto, não tem ninguém à vista de quem sobressair.

- Estou de acordo - disse Sila. - Mas no mundo bárbaro, tal como no mundo ocidental, a ideia é matar todos os rivais; é mais seguro.

- O que aconteceu a Bóiorix depois de se ter tornado rei?

- Disse aos Cimbros que não iriam para Espanha. Que existiam lugares muito mais fáceis, tais como a Itália. Mas disse-lhes que primeiro se juntariam aos Teutões, aos Tigurinos, aos Marcomanos e aos Queruscos. E então, passaria a ser rei tanto dos Germanos como dos Cimbros. Sila voltou a encher a taça, com muita água.

- Passámos a Primavera e o Verão a caminho do Norte, através da Gália-de-Longos-Cabelos. Atravessámos o Garona, o Líger e o Sena, e entrámos depois nas terras dos Belgas.

- Os Belgas? - murmurou Mário. - Viste-os?

- Evidentemente - respondeu Sila com naturalidade.

- Deve ter havido guerra da grande.

- De modo nenhum. É que o rei Bóiorix dedicou-se àquilo a que chamaríamos abrir negociações. Até à nossa viagem no Verão através da Gália-de-Longos-Cabelos, os Germanos não tinham revelado qualquer interesse em negociar. Por exemplo, sempre que deparavam com um dos nossos exércitos no caminho, enviavam-nos uma embaixada pedindo autorização para atravessarem o nosso território. Como era de esperar, sempre lha negámos. Então, afastavam-se e nunca mais voltavam para uma segunda tentativa. Nunca regatearam, nem pediram para se sentar à mesa das negociações, nem tentaram descobrir se estaríamos prontos a aceitar deles qualquer coisa que desse origem a nova ronda de propostas. Ao passo que Bóiorix se portou de modo muito diferente: negociou uma passagem para os Cimbros através da Gália-de-Longos-Cabelos,

- Ah, sim? E negociou com quê?

- Comprou os Gauleses e os Belgas com carne, leite, manteiga... e trabalho nos campos. Trocou o gado pela melhor cerveja deles e pelo seu trigo, e ofereceu-lhes guerreiros para ajudarem a arar o solo extra necessário para produzir o suficiente para todos - explicou Sila.

As sobrancelhas de Mário agitavam-se furiosamente. É um bárbaro esperto!

Com efeito é-o, Caio Mário. E em perfeita paz e amizade, seguimos o curso do rio ísara para o norte, a partir do Sena, e chegámos por fim às terras de uma tribo de Belgas denominada Aduátucos. Basicamente, os Aduátucos são Germanos que vivem ao longo do rio Mosa, espalhados pela corrente do Sabe e na orla de uma vasta floresta a que chamam das Arderias. Esta espalha-se para leste do Mosa até ao Mosela, e, a menos que sejas Germano, é impenetrável. Os Germanos da Germânia propriamente dita vivem nas florestas e usam-nas de modo semelhante ao que damos às fortificações.

Mário pensava intensamente, pois as suas pestanas continuavam a serpentear como se possuíssem vida própria.

- Prossegue, Lúcio Cornélio. Estou a achar o inimigo germano cada vez mais interessante.

Sila inclinou a cabeça.

- Imaginei que acharias. Os Queruscos são originários de uma parte da Germânia não muito distante das terras dos Aduátucos, e afirmam que estes são seus parentes. Por isso convenceram os Teutões, os Tigurinos e os Marcomanos a irem com eles para as terras dos Aduátucos, enquanto os Cimbros se encontravam a sul observando os Pirenéus. Mas quando nós, dos Cimbros, aparecemos em cena em fins de Sextilis, a acção não foi de modo nenhum feliz. Os Teutões haviam hostilizado os Aduátucos e os Queruscos, ao ponto de haverem muitas escaramuças, bastantes mortes e um sentimento desfavorável que nós, Cimbros, quase podíamos ver crescer.

- Mas o rei Bóiorix resolveu tudo isso? - perguntou Mário.

- O rei Bóiorix resolveu tudo! - disse Sila, com um sorriso, Estabeleceu uma colónia de Aduátucos e a seguir, convocou um enorme conselho dos Germanos migrantes: Cimbros, Teutões, Tigurinos, Queruscos e Marcomanos. Nesse conselho, anunciou que não era apenas rei dos Cimbros mas o rei de todos os Germanos. Teve de travar alguns duelos, mas não com os seus verdadeiros rivais, Teutobod, dos Teutões, e Getorix, dos Tigurinos. Eles próprios pensavam um pouco como os Romanos, pois ambos decidiram que gostavam de viver, e eram muito mais incómodos ao rei Bóiorix vivos do que mortos.

- E como descobriste tudo isso? - perguntou Mário. - Já eras chefe nesta altura? Assististe ao conselho

Sila tentou fazer um ar recatado, já que a humildade não fazia parte do seu carácter.

- Com efeito, já era guerreiro. Não um guerreiro muito importante; tinha apenas a importância que me permitia ser convidado para os conselhos. A minha mulher Hermana, que pertence aos Queruscos e não aos Cimbros, deu à luz dois rapazes gémeos mal chegámos ao Mosa, e isso foi considerado tão bom augúrio que o meu estatuto de chefe tribal foi elevado ao de guerreiro, mesmo a tempo de participar no grande conselho de todos os Germanos.

Mário desatou a rir.

- Queres dizer com isso que nos anos que se seguem, algum pobre romano se irá voltar contra meia dúzia de pequenos germanos parecidos contigo?

- É possível - disse Sila, sorrindo.

- E contra alguns pequenos Quintos Sertórios?

- Um, pelo menos.

Mário abrandou o tom.

- Continua, Lúcio Cornélio.

- É muitíssimo esperto, o nosso Bóiorix. Faça o que fizer, não podemos menosprezá-lo, pois é um bárbaro. Porque surgiu com uma grande estratégia de cuja concepção terias orgulho. Acredita que não exagero. Mário ficou tenso.

- Acredito em ti! Qual é a sua grande estratégia?

- No próximo ano, o mais tardar em Março, mal o tempo o permita, os Germanos tencionam invadir a Itália em três frentes - informou Sila.

- Quando digo Março, refiro-me à altura em que os oitocentos mil homens deixarão as terras dos Aduátucos. Bóiorix deu a todos seis meses para terminarem a viagem do rio Mosa até à Gália Italiana.

Mário e Sila inclinaram-se para a frente.

- Bóiorix dividiu-os em três unidades separadas. Os Teutões devem invadir a Itália pelo oeste. Representam cerca de um quarto de milhão do número total; serão comandados pelo seu rei, Teutobod, e, nesta fase, planeiam descer o rio Rôdano e seguir ao longo da costa da Ligúria em direcção a Gênova e Pisa. Suponho, no entanto, que com Bóiorix a cargo da invasão, antes de começarem, terão mudado a sua rota para a Via Domícia e o desfiladeiro do monte Geneva. O que os levará ao longo do Pó, até à Taurásia.

- Ele anda a aprender Geografia e Latim, não anda? - perguntou Mário, com um sorriso.

- Eu disse-te que Bóiorix sabia ler. Também expôs prisioneiros romanos à tortura; nem todos os que perdemos em Arausio morreram. Quando iam parar às mãos dos Cimbros, Bóiorix mantinha-os vivos até descobrir o que queria. Não podemos culpar os nossos homens por terem colaborado - Sila fez uma careta. - Os Germanos recorrem regularmente à tortura.

- Isso significa que os Teutões seguirão a rota que a hoste inteira tomou antes de Arausio - afirmou Mário. - Como planeiam os outros entrar na Gália Italiana?

- Os Cimbros são o mais numeroso dos três grandes grupos germanos - expôs Sila. - Ao todo, são no mínimo quatrocentos mil homens. Enquanto os Teutões vão descer em linha recta do Mosa até ao Arar e ao Ródano, os Cimbros descerão o Reno até ao lago Brigantino, seguirão para norte do lago, atravessando a linha divisória das suas águas até à nascente do Danúbio. Seguirão para leste ao longo do Danúbio até chegarem ao Aenus e entrarão na Gália Italiana pelo desfiladeiro de Breno. O que os levará até ao Ádige, perto de Verona.

- Comandados pelo próprio rei Bóiorix - acrescentou Mário, e encolheu a cabeça entre os ombros. - Isto cada vez me agrada menos.

- O terceiro grupo é o mais pequeno e menos coeso - prosseguiu Sila. - Os Tigurinos, Marcomanos e Queruscos. Cerca de duzentos mil. Serão comandados por Getorix, dos Tigurinos. No início, Bóiorix ia enviálos em linha recta através das grandes florestas germanas: a Floresta Hercínia, a Floresta Gabreta, etc., e mandá-los para o sul, até à Nórica, através da Panónia. Depois deve ter duvidado que cumprissem as ordens e decidiu que viajariam com ele do Danúbio até ao Aenus. A partir daí, prosseguirão a sua caminhada ao longo do Danúbio até chegarem à Nórica, e virarão para o sul. Entrarão na Gália pelos Alpes Cárnicos, o que os levará a Tergeste, não muito longe de Aquileia.

- E cada grupo tem seis meses para fazer a viagem, dizes tu? - perguntou Mário. - Imagino que os Teutões cumprirão o prazo, mas os Cimbros têm uma viagem muito mais longa, e os híbridos a mais longa de todas.

- É aí que te enganas, Caio Mário - contrapôs Sila. - Com efeito, desde o ponto de partida, no Mosa, a distância que cada um dos grupos tem a percorrer é bastante idêntica. Os três percursos envolvem a travessia dos Alpes, mas apenas os Teutões atravessarão um campo nunca percorrido. Os Germanos vaguearam por todo o lado nos Alpes durante os últimos dezoito anos! Foram desde a nascente do Danúbio até à Dácia; percorreram o Reno da nascente até ao Helella; foram da nascente do Ródano até Arausio. São veteranos dos Alpes.

Mário assobiou por entre os dentes.

- Júpiter, Lúcio Cornélio, é brilhante! Mas irão realmente conseguir? Bóiorix conta que cada um dos grupos chegue à Gália Italiana em... Outubro?

- Penso que os Teutões e os Cimbros chegarão lá; são bem chefiados e fortemente motivados. Quanto aos outros, não posso ter a certeza. Nem poderá tê-la Bóiorix, pelo que suspeito.

Sila levantou-se do leito e começou a andar pelo gabinete.

- Há mais uma coisa, Caio Mário, e é muito grave. Ao fim de dezoito anos de errância sem casa, os Germanos estão fatigados. E estão desesperados por se fixarem. Imensos rapazes atingiram a idade de se tornarem guerreiros sem nunca terem conhecido uma pátria. Até se ouviu falar num regresso ao Quersoneso Cimbro. O mar recuou há muito tempo e o terreno voltou ao seu estado inicial.

- Quem me dera que regressassem! - disse Mário.

- É demasiado tarde para isso - afirmou Mário irrequieto, andando dum lado para o outro. - Habituaram-se a apreciar pão branco com crosta, onde podem espalhar manteiga, e a ensopá-lo no molho da carne, e a usá-lo nos seus horríveis pudins de sangue. Agrada-lhes o calor do sol do Sul e a proximidade das grandes montanhas brancas. Primeiro a Panónia e a Nórica, a seguir, a Gália. O nosso mundo é mais rico. E agora que têm Bóiorix, tomaram a decisão de conquistá-lo.

- Enquanto eu estiver neste cargo, não o farão - disse Sila, e descaiu na cadeira. - É tudo? - perguntou.

- É tudo, e no entanto não é nada - retorquiu Sila, um pouco triste.

- Podia ficar dias inteiros a falar deles, mas isto é o que precisas de saber como introdução.

- E a tua mulher, os teus filhos? Deixaste que fossem abatidos por não terem um guerreiro que os sustentasse?

- Não é engraçado? - perguntou Sila. - Não consegui fazê-lo! Quando chegou a hora de partir, descobri que não era capaz. Por isso, levei Hermana e os rapazes para os Queruscos da Germânia. Eles vivem a norte do Chatti, ao longo do rio Visurge. A tribo dela pertence aos Queruscos, embora se chamem Marsos. Estranho, não te parece? Nós temos os nossos Marsos e os Germanos têm os seus. O nome pronuncia-se exactamente da mesma maneira. E isto faz pensar... Como chegámos até aqui? Estará na natureza dos homens vaguear em busca de novas pátrias? E nós, Romanos, fartar-nos-emos algum dia da Itália e migraremos para outro local? Tenho pensado muito sobre o mundo desde que me juntei aos Germanos, Caio Mário.

Por um motivo que Sila não conseguiu compreender, a última parte do seu discurso quase emocionou Mário até às lágrimas; por isso, disse num tom mais suave do que o habitual:

- Alegra-me que não a tenhas deixado morrer.

- Também eu, embora não tenha tido tempo para isso. Receava não te encontrar antes das eleições consulares, pois achei que as minhas informações constituiriam um enorme auxílio - Sila aclarou a garganta. Com efeito, encarreguei-me, em teu nome, claro, de concluir um tratado de paz e aliança amigável com os Marsos da Germânia. Pensei que, de certo modo, os meus filhos germanos viriam a ter uma vaga ideia do que é Roma. A Hermana prometeu ensiná-los a pensar bem de Roma.

- Não voltarás a vê-la? - perguntou Mário.

- Claro que não! - respondeu Sila vivamente. - Nem aos gêmeos. Caio Mário, não tenciono voltar a deixar crescer o cabelo ou o bigode, nem viajar para as terras à volta do mar Central. Uma dieta de carne de vaca e leite e manteiga e papas de aveia não se adequa ao meu estômago romano, nem gosto de passar sem tomar banho, nem gosto de cerveja. Fiz o que podia por Hermana e pelos miúdos, colocando-os num lugar onde facto de não terem um guerreiro não implicará que tenham de morrer. Mas disse a Hermana que tinha de tentar encontrar outro homem. É sensato e decente. Se tudo correr bem, sobreviverão os três. E os meus rapazes crescerão bons Germanos. Guerreiros valentes, espero! E muito maiores do que eu, também espero! Mas se a Fortuna não desejar que eles sobrevivam, não terei conhecimento disso, pois não?

- É bem assim, Lúcio Cornélio - Mário olhou para as mãos, que envolviam a sua taça, e pareceu surpreendido por os seus nós estarem brancos.

- A única altura em que dou crédito às alegações do Metelo Suíno acerca das tuas origens rústicas - afirmou Sila, com ar meramente divertido - é quando algum incidente desperta a tua sentimentalidade adormecida de camponês.

Mário olhou para ele.

- O pior, Sila, é que nunca saberei o que te move! O que faz as tuas pernas subirem e baixarem, o que faz girar os teus braços, o motivo porque ris como um lobo. E o que realmente pensas. Isso, nunca o saberei.

- Se te servir de consolação, cunhado, nunca ninguém o saberá. Nem eu - disse Sila.

Nesse Novembro, parecia que Caio Mário nunca viria a ser cônsul no ano seguinte. Uma carta de Lúcio Apuleio Saturnino afastou todas as esperanças num plebiscito que o autorizasse a concorrer in absentia pela terceira vez.

O Senado não voltará a ficar de braços cruzados, pois a grande maioria de Roma está convencida de que os Germanos não virão. Nunca. Defacto, os Germanos transformaram-se numa nova Lâmia, um monstro usado tão frequentemente e durante tanto tempo para espalhar o terror por todos os corações que acabou por perder o efeito.

Naturalmente, os nossos inimigos construíram uma grande história à volta do facto de estarmos há dois anos a consertar as estradas e a escavar canais na Gália Transalpina, e por a nossa presença aí, com um grande exército custar ao Estado mais do que ele pode suportar, especialmente com o trigo ao preço actual.

Testei o eleitorado em relação ao assunto da tua candidatura in absentia pela terceira vez, e o resultado foi muito desanimador. As tuas hipóteses seriam um pouco melhores se viesses a Roma apresentar-te. Mas se o fizeres, é evidente que os teus inimigos alegarão que a dita emergência na Gália Transalpina afinal não existe.

Contudo, fiz o que podia por ti, principalmente no que diz respeito à recolha de apoios no Senado, para que possas ao menos prorrogar o teu estatuto com comando proconsular. Isto significa que os cônsules do próximo ano serão teus superiores. E para terminar, uma nota alegre: o consular preferido para o próximo ano é Quinto Lutado Catulo César. Os eleitores estão tão cansados de vê-lo candidatar-se todos os anos, que decidiram livrar-se dele votando-o. Espero que esta te encontre de boa saúde.

Quando Mário acabou de ler a breve missiva de Saturnino, ficou muito tempo sentado, com um olhar carregado. Ainda que as notícias fossem desanimadoras, havia um tom confiante na carta; como se também Saturnino estivesse a decidir se Caio Mário era um homem do passado e se ocupasse a realinhar as suas prioridades. Caio Mário não atraía os eleitores. Tinha perdido o poder dos cavaleiros. Porque os Germanos eram uma ameaça muito menor do que a guerra dos escravos da Sicília e o abastecimento de cereais; Lâmia, o monstro, morrera.

Lâmia, o monstro, não tinha morrido, e Lúcio Cornélio Sila estava vivo para prová-lo. Mas de que servia enviar Sila a Roma para testemunhar este facto quando ele, Caio Mário, não tinha desculpa para acompanhá-lo? Sem apoio nem poder, Sila não prevaleceria; teria de contar a sua história a demasiados homens separados do seu comandante, homens que achariam tão perturbante a ideia de um aristocrata romano se mascarar de gaulês durante quase dois anos, que acabariam por mandar Roma rejeitar a história de Sila por a acharem pouco firme, duvidosa, inaceitável. Não: ou seguiriam os dois para Roma, ou não seguia nenhum.

Caio Mário pegou em papel branco, pena e tinta e escreveu a Lúcio Apuleio Saturnino.

Poderás considerar-te vingado, Lúcio Apuleio, mas lembra-te que fui eu que te permiti sobreviver até isso acontecer. Ainda estás em dívida para comigo e espero de ti a lealdade de um cliente.

Não deduzas que não posso ir a Roma. Ainda pode surgir uma oportunidade. Ou pelo menos, espero que ajas como se eu fosse aparecer em Roma. Passarei a expor o que pretendo. É da necessidade mais premente adiar as eleições consulares, tarefa que tu e Caio Norbano, como tribunos da plebe, são bem capazes de executar Fá-lo-ão. Com todo o coração. Dedicando à tarefa toda a vossa energia Depois, espero que uses a tua inteligência inata para escolher a oportunidade que te permita fazer pressão sobre o Senado e o Povo para que me chamem a Roma.

Hei-de ir a Roma, não duvides. Por isso, se quiseres subir muito mais alto do que o tribunato da plebe, compete-te permanecer o homem de Caio Mário.

E, no fim de Novembro, um vento vindo do leste soprou a Caio Mário um beijo da deusa Fortuna na forma de uma segunda carta de Saturnino, que chegou por via marítima dois dias antes do correio do Senado e os seus despachos chegarem a Glanum Muito humildemente, Saturnino dizia o seguinte:

Não duvido que venhas a Roma. Nem havia passado um dia após ter recebido a tua nota severa quando o teu estimado colega Lúcio Aurélio Orestes, o cônsul júnior, morreu subitamente. E, ainda sentindo o flagelo da tua desaprovação, aproveitei esta oportunidade de obrigar o Senado a chamar-te. Não fora esse o plano dos políticos, os quais, através do Presidente da Assembleia, recomendaram aos Pais Conscritos que escolhessem um cônsul suffectus para a cadeira curul deixada vazia por Orestes. Mas sorte espantosa! no dia anterior, Escauro fizera um longo discurso na Assembleia, dizendo que a tua presença na Gália Transalpina era uma afronta à credulidade de todos os Homens de Bem, que tinhas sido tu a criar o pânico dos Germanos para seres eleito ditador. É evidente que mal Orestes morreu, Escauro mudou completamente de tom: como a Assembleia não se atrevia a chamar-te para exerceres as funções eleitorais de cônsul com os Germanos a ameaçar a Itália, devia-se escolher um cônsul sufecto para levar a cabo as eleições.

Como não tive tempo de começar a usar o meu tribunato para adiar quaisquer eleições, parece-me agora desnecessário fazê-lo. Em vez disso, fiz um belo discurso na Assembleia, dizendo que o nosso estimado Escauro Princeps Senatus não podia querer duas coisas ao mesmo tempo Ou havia uma ameaça dos Germanos ou não. E escolhi tomar o seu discurso do dia anterior como a expressão da sua opinião honesta, a ameaça germana não existia, pelo que não havia necessidade de preencher a cadeira curul do falecido cônsul júnior com um suffectus. Não, disse eu, Caio Mário tem de ser chamado, Caio Mário deve por fim realizar a tarefa para que foi eleito: desempenhar os deveres de um cônsul. Não foi preciso acusar Escauro de ter alterado o seu ponto de vista para se adaptar às novas circunstâncias do segundo discurso; todos entenderam.

Espero que esta chegue antes do correio oficial. A época do ano favorece mais o mar do que a terra. Não é que não sejas perfeitamente capaz de descobrir a sequência dos acontecimentos ao leres a comunicação do Senado! Soque se esta chegar antes, ainda tens algum tempo extra para planeares a tua campanha em Roma. Estou a começar a pôr as coisas a mexer entre os eleitores, e quando chegares a Roma, deverás ter a mais respeitável delegação dos mais proeminentes do Povo a pedir-te que te candidates ao consulado.

- Vamos partir! exclamou Mário rejubilante para Sila, estendendo-lhe a carta de Saturnino. Prepara as tuas bagagens; não há tempo a perder. Dirás à Assembleia que os Germanos vão invadir a Itália em três frentes separadas no Outono do próximo ano, e eu direi aos eleitores que sou o único homem que pode detê-los.

- Até onde devo chegar? disse Sila, espantado.

- Apenas até onde tiver de ser. Eu apresentarei o assunto e exporei o que descobrimos. Tu testemunharás que são verdadeiros, mas não de modo que a Assembleia entenda que te transformaste num bárbaro, Mário adquiriu uma expressão magoada. Há coisas, Lúcio Cornélio, que é melhor deixar por dizer. Eles ainda não te conhecem o suficiente para compreenderem que tipo de homem és. Não lhes dês informações que possam usar mais tarde contra ti. Tu és um patrício Romano. Por isso, deixa que eles pensem que os teus feitos audaciosos foram executados na pele de um patrício Romano.

Sila assentiu.

- É manifestamente impossível andar por entre os Germanos como um patrício Romano!

- Mas eles não o sabem afirmou Mário com um sorriso.

- Lembras-te do que Públio Rutílio dizia na sua carta? Os generais de cadeirão, chamou-lhes ele. E são também espiões de cadeirão, tanto os de primeira linha como os de segunda. Não percebem nada das normas de espionagem! e Sila começou a rir.

- Com efeito, gostava de poder pedir-te para manteres o bigode e o cabelo compridos por uns tempos. Podia vestir-te de germano e exibir-te no Fórum. E sabes o que aconteceria, não sabes?

Sila suspirou.

- Sim. Ninguém ia reconhecer-me.

- Exacto. Por isso, não vamos fatigar excessivamente a sua imaginação romana. Eu falo primeiro e tu pegas na minha deixa - explicou Mário.

Para Sila, Roma não tinha nada do calor político ou doméstico que tinha para Mário. Apesar da sua execução brilhante como questor - às ordens de Mário - e da sua carreira brilhante como espião - também às ordens de Mário - era apenas mais um daqueles jovens senadores de futuro promissor que caminhavam na sombra do Primeiro Homem de Roma. A sua carreira política também não progredia com a rapidez necessária, especialmente tendo em consideração a sua entrada tardia para o Senado. Era um patrício, o que o impedia de tornar-se um tribuno da plebe; não tinha dinheiro suficiente para se candidatar à edilidade curul e não estava no Senado há tempo suficiente para concorrer como pretor. Era esse o aspecto político da questão. Em casa, Sila encontrou um ambiente azedo e enervante, poluído por uma mulher que bebia demasiado e era desmazelada com os filhos, e por uma sogra que o detestava tanto a ele como à sua própria situação. Era esse o aspecto doméstico da questão.

O ambiente político havia de melhorar para ele - Sila não estava tão deprimido que não o visse. Mas o ambiente em casa não podia senão deteriorar-se. E o que dificultava ainda mais a sua vinda a Roma era o facto de passar agora da sua mulher germana para a mulher romana. Durante cerca de um ano vivera com Hermana, numa atmosfera mais alheia ao seu mundo aristocrático do que o fora o mundo dos antros da Subura. E Hermana era a sua consolação, o seu único ponto de referência naquela bizarra sociedade bárbara.

Não lhe fora difícil juntar-se à cauda do cometa cimbro; pois Sila era mais do que um simples guerreiro corajoso e robusto: era um guerreiro que pensava. Muitos germanos ultrapassavam-no em valentia e força física. Mas enquanto eram feitos de um metal puro, Sila era o carácter definitivo temperado: tão hábil como corajoso, tão astuto como forte. Sila era o pequeno homem face ao gigante, o homem que, para vencer o combate, não tinha outra opção senão pensar. Por isso, chamou logo a atenção na batalha contra as tribos espanholas nos Pirenéus, e foi aceite na confraternidade guerreira.

Depois, ele e Sertório concordaram que, para se unirem àquele estranho mundo de forma a poderem subir o suficiente para terem acesso aos planos de acção dos Germanos, teriam de ser mais do que meros soldados úteis. Teriam de participar plenamente na vida tribal. Então, separaram-se, escolheram tribos diferentes e escolheram as suas mulheres do grupo de mulheres que haviam enviuvado recentemente.

Sila reparara em Hermana porque ela também era um ser a parte e não tinha filhos. O seu homem fora o chefe dessa tribo dos Cimbros; senão, as outras mulheres da tribo nunca teriam tolerado a sua Presença. Com efeito, ela usurpara um lugar que devia ter sido ocupado por uma mulher dos Cimbros. E as mulheres furiosas já estavam a aniquilá-la em pensamento quando Sila - um meteoro entre os guerreiros - subiu para a sua carroça, estabelecendo assim os seus direitos sobre ela. Os dois estrangeiros ficariam juntos. Não houve qualquer tipo de sentimento ou atracção na base da escolha de Hermana; simplesmente, ela precisava mais dele do que uma mulher dos Cimbros dentro do enclave da tribo, e também devia à tribo muito menos do que qualquer mulher dos Cimbros na mesma situação. Assim, se Hermana descobrisse a origem romana de Sila, era muito menos provável que o denunciasse do que se pertencesse aos Cimbros.

Em relação às mulheres romanas, ela era muito vulgar. Na sua maioria, eram altas, robustas mas elegantes, com pernas altas e seios fartos, louras, de olhos azuis - e de rostos esbeltos, se se pudesse perdoar a fealdade das suas bocas enormes e os seus narizes pequenos e direitos. Hermana era bastante mais baixa do que Sila (que, em relação aos Romanos tinha uma altura respeitável: seis pés menos três polegadas), e mais cheia do que a maioria das outras mulheres. Embora o cabelo fosse extremamente espesso e longo e daquela cor indeterminável universalmente conhecida por cinzento cor de rato, e os seus olhos de um cinzento fulvo, que condizia com a cor dos cabelos. Quanto ao resto, era bastante germana: ossuda, com o nariz semelhante a uma lâmina direita e curta. Hermana tinha trinta anos e nunca tivera filhos; se o seu homem não fosse o chefe, e ainda para mais autoritário ao ponto de recusar-se a abandoná-la, Hermana teria morrido.

O que a distinguia e motivara a escolha de dois homens de qualidade superior um a seguir ao outro não era óbvio visto do exterior. O seu primeiro homem considerava-a diferente e interessante, mas não conseguia ser mais específico. Sila via-a como uma aristocrata natural, uma senhora miudinha e reservada, mas que irradiava um poderoso magnetismo sexual.

Ajustavam-se muito bem em todos os aspectos, pois ela era suficientimente inteligente para ser pouco exigente, sensata o bastante para não o estorvar, suficientemente apaixonada para fazer do leito um prazer, articulava bem as palavras, o que fazia com que fosse interessante comunicar com ela, e era suficientemente empreendedora para não lhe dar trabalho. Os animais de Hermana estavam sempre devidamente reunidos, atados, mugidos, emparelhados e tratados. A sua carroça estava sempre em óptimas condições, com a coberta esticada e remendada, o tabuleiro de madeira sempre oleado, as grandes rodas oleadas com uma mistura de manteiga e gordura de assado na junção dos eixos e cavilhas de segurança, e nunca faltavam raios ou segmentos aos aros. As panelas, canecas e vasilhas de Hermana estavam sempre limpas; as provisões eram arrumadas cuidadosamente, protegidas da humidade e dos ladrões; a roupa e tapetes eram arejados e cerzidos; as facas de cozinha estavam sempre magnificamente afiadas; nunca punha as suas bugigangas num local de que fosse esquecer-se. Hermana era, de facto, tudo o que a Julilla não era; exceptuando o facto de Julilla ser uma romana de boas famílias.

Quando descobriu que estava grávida - o que sentiu logo - ambos ficaram encantados; Hermana tinha uma razão que Sila não tinha. Estava agora vingada aos olhos da tribo à qual não pertencia, e a culpa da sua esterilidade anterior era agora atribuída inteiramente ao chefe morto. Facto esse que não agradou nada às mulheres da tribo, que há muito a odiavam. Não era que pudessem fazer muito contra isso, pois quando os Cimbros, partiram para o norte no seu percurso para as terras dos Aduátucos, Sila era o novo chefe. Podemos inferir que Hermana teve muita sorte.

E em Sextilis, ao fim de uma gestação cansativa mas sem queixas, Hermana deu à luz dois rapazes gémeos, grandes, saudáveis e ruivos; Sila chamou a um deles Herman e ao outro Cornel. Esgotara o cérebro a pensar num nome que de algum modo perpetuasse a sua gens, Cornélia, mas não soasse demasiado estranho na língua germana. ”Cornel” fora a solução.

Os bebés eram exactamente como dois gémeos devem ser: tão parecidos, que os pais tinham dificuldade em distingui-los; gostavam de estar juntos; estavam mais interessados em prosperar do que em chorar. Era raro nascerem gémeos, e o seu nascimento neste casal estrangeiro era visto como um augúrio com a importância suficiente para assegurar a Sila a chefia de um grupo inteiro de pequenas tribos. Consequentemente, Sila foi ao grande conselho para o qual Bóiorix convocou os germanos dos três povos, depois de o rei dos Cimbros ter acalmado a fricção entre Aduátucos e Teutões, sem derramamento de sangue.

Durante algum tempo, Sila soube que em breve teria de partir, mas adiou a partida até depois do grande conselho, consciente de que estava preocupado com o que devia ser para ele um assunto menor: o que aconteceria a Hermana e aos seus filhos quando ele se fosse embora? Nos homens da tribo devia poder confiar, mas as mulheres não eram de confiança, e em qualquer situação doméstica tribal, as mulheres prevaleceriam. Mal Sila desaparecesse, Hermana morreria espancada, mesmo que os seus filhos fossem autorizados a sobreviver.

Era Setembro e o tempo era essencial. No entanto, Sila tomou uma decisão que ia tanto contra os seus interesses como contra os de Roma, Embora mal tivesse tempo para isso, antes de voltar a ir ter com Mário, levaria Hermana de volta ao seu povo da Germânia. Isso implicava ter de contar-lhe quem era. Ela ficou mais fascinada do que surpreendida; Sila viu os olhos dela voltarem-se para os seus filhos numa interrogação, como se agora entendesse a importância daqueles filhos de um semideus. No rosto dela não havia mágoa mas gratidão quando ele lhe explicou que partia para sempre, quando lhe disse que a entregaria aos Marsos da Germânia, na esperança de que o seu povo a protegesse e lhe permitisse viver.

No princípio de Outubro, às primeiras horas da noite, deixaram o enclave gigantesco de carroças germanas. Escolheram para as carroças e animais um local de onde a partida não fosse tão notada. Quando o dia rompeu ainda deambulavam por entre as carroças dos Germanos, mas ninguém lhes prestou atenção, e dois dias depois chegaram por fim perto do acampamento.

O acampamento dos Aduátucos não distava mais de cem milhas do acampamento dos Marsos através de terreno plano. Mas entre a Gália-de-Longos-Cabelos dos Belgas e a Germânia corria o maior rio de toda a Europa Ocidental: o Reno. Sila tinha de fazer passar a carroça da sua mulher para o outro lado do rio. E tinha de proteger a sua família dos salteadores. Fez tudo isso à sua maneira, muito simplesmente e com raPidez, confiando na sua ligação com a deusa Fortuna, que não o abandonou.

Quando chegaram ao Reno, encontraram as margens cheias de gente, e ninguém tinha interesse em atacar uma carroça solitária com apenas um germano e dois gémeos ruivos nos braços da mãe. Uma barca suficientemente grande para levar a carroça atravessava o rio regularmente pelo) preço de um pote de trigo precioso; como o Verão fora relativamente seco, a água estava muito calma, e Sila conseguiu passar todos os animais e a carroça de Hermana até ao outro lado do rio por três potes de trigo.

Uma vez na Germânia, fizeram francos progressos, pois não havia aqui grandes florestas e faziam-se pequenas culturas simples, que serviam mais para forragem de Inverno para o gado do que para o consumo humano. Na terceira semana de Outubro, Sila encontrou a tribo de Hermana, os Marsos, e deixou-a ao seu cuidado. E concluiu o seu tratado de paz e amizade entre os Marsos germanos e o Povo de Roma.

No momento da partida choraram lágrimas de grande pesar, sofrendo mais com a separação do que tinham imaginado. Com os gémeos ao colo, Hermana seguiu Sila a pé até o seu cavalo se cansar, e aí ficou, gritando, até muito depois de ele ter desaparecido de vista para todo o sempre. A caminho do sudoeste, a cavalo, os olhos de Sila estavam tão ofuscados pelas lágrimas que teve de confiar no instinto de orientação do animal durante muitas milhas.

O povo de Hermana havia-lhe dado uma boa montada e Sila pôde trocá-la por outra excelente ao fim do dia, e assim sucessivamente, durante os doze dias que levou a percorrer o espaço que o separava da nascente do rio Amísia, onde se encontravam os Marsos, até ao acampamento de Mário, e Glanum. Sila fez corta-mato durante todo o percurso, evitando as montanhas altas e as florestas mais cerradas, seguindo o curso dos grandes rios: do Reno até ao Mosela, do Mosela ao Arar, do Arar até ao Ródano.

Tinha o coração tão pesado, que teve de forçar-se a reparar no terreno e nos povos por que passava, embora uma vez tenha dado consigo a falar no gaulês dos Druidas, reparando que era fluente em germano de diversos dialectos e em gaulês dos Carnutos... ”Eu, Lúcio Cornélio, senador de Roma!”

Mas o que nem ele nem Quinto Sertório descobriram dos planos através dos Aduátucos acerca dos Germanos apenas foi descoberto na Primavera seguinte, muito depois de Sila e Sertório terem abandonado as suas vidas e as suas mulheres germanas. Quando os muitos milhares de carroças começaram a rolar e as três grandes hostes se dividiram para invadir a Itália, os Cimbros, Teutões, Tigurinos, Queruscos e Marcomanos deixaram uma coisa bem importante para trás, à guarda dos Aduátucos, até ao seu regresso: um exército de seis mil dos seus melhores homens para proteger os Aduátucos das incursões de outras tribos. E todas as suas riquezas tribais: estatuetas, carros e arreios de ouro, objectos votivos de ouro, moedas e barras de ouro, várias toneladas do melhor âmbar e vários outros tesouros recolhidos ao longo da sua migração, para acrescentar ao que lhes pertencia há várias gerações. O único ouro que os Germanos levaram no início do seu percurso era o que usavam. Todo o restante ficou escondido, entregue aos cuidados dos Aduátucos, tal como os Volcos Tectósagos de Tolosa haviam procedido em relação ao ouro dos povos gauleses.

Por isso, quando Sila voltou a ver Julilla comparou-a com Hermana, e achou-a desleixada, descuidada, ignorante, desordenada e pouco metódica, e... detestável. Pelo menos, tinha aprendido desde o último encontro a não se atirar a ele à vista dos servos. Contudo, pensou Sila penosamente durante o primeiro jantar que fazia em casa, o facto de ter sido poupado a essa prova física devia-se certamente à presença de Márcia, e não ao esforço de Julilla para lhe agradar. É que Márcia impunha a sua presença: rígida, empertigada, carrancuda, pouco afectuosa, intransigente. Não envelhecera com graciosidade, e ao fim de tantos anos de felicidade como esposa de Caio Júlio César, a viuvez para ela constituía um grande fardo. Além de que Sila suspeitava que ela deveria odiar ser mãe de uma filha com tantos defeitos como Julilla.

Não era de admirar, já que ele próprio detestava ser casado com uma mulher com tantos defeitos. No entanto, não era prudente abandoná-la, pois Julilla não era nenhuma Metela Calva, que dormia indiscriminadamente com todos, humildes e nobres. A fidelidade talvez fosse agora a sua única virtude. Infelizmente, a bebida não piorara ao ponto de ser publicamente conhecida como bêbeda. Márcia fazia um enorme esforço para esconder esse aspecto. O que implicava que estava fora de questão um divórcio diffarreatio (mesmo que ele estivesse disposto a sofrer essa coisa terrível).

Porém, era impossível viver com ela. As suas exigências físicas eram tantas e tão irregulares que Sila não sentia qualquer emoção para além de uma sensação de incómodo horrível e total. Mal via Julilla, todo o seu corpo se encolhia como um dos caracóis de Públio Vagiennius. Não tinha vontade de tocar-lhe, nem queria que ela o fizesse.

Era fácil para uma mulher romana dissimular o desejo e o prazer sexuais, mas um homem não podia fingir. Se os homens eram por natureza mais sinceros do que as mulheres, pensou Sila, isso devia-se certamente ao órgão que tinham entre as pernas e os impedia de mentir nos encontros sexuais; o que marcava muito a vida sexual masculina. E se houvesse algum motivo para a atracção dos homens pelas mulheres, isso devia-se ao facto de o fazer amor não exigir nenhum acto de fé.

Nenhuma destas cogitações trazia bons augúrios a Julilla, que não fazia ideia do que o seu marido pensava, mas ficava destruída pela prova do pouco que ele sentia. Em duas noites consecutivas fora rejeitada, enquanto Sila dominava a paciência e dava desculpas cada vez menos convincentes. E na terceira manhã, Julilla levantou-se ainda mais cedo do que Sila, para poder beber vinho à vontade ao pequeno-almoço, sendo apanhada em flagrante pela mãe.

Daí resultou uma discussão tão azeda e rabugenta entre as duas mulheres que as crianças desataram a chorar, os servos eclipsaram-se e Sila fechou-se no seu tablinum, lançando pragas às duas mulheres. Pelos pequenos fragmentos da discussão que conseguiu apanhar, Sila deduziu que o assunto não era novo, nem era o primeiro confronto entre as duas. Num tom de voz tão alto que podia ser ouvido no templo da Magna Mater, Márcia alegou que as crianças estavam a ser completamente ignoradas pela mãe. Num grito que chegava até ao Circo Máximo, Julilla retorquiu que isso acontecera por Márcia lhe ter roubado o afecto dos filhos. O recontro durou mais do que devia: mais uma indicação, pensou Sila, de que tanto o assunto como os argumentos tinham sido amplamente explorados em ocasiões anteriores. Discutiam quase por hábito. A discussão acabou no átrium, mesmo à porta do gabinete de Sila, onde Márcia informou Julilla de que ia levar as crianças e a ama a dar um grande passeio e não sabia quando estaria de volta mas, para seu bem, Julilla devia estar sóbria quando ela regressasse.

Tapando os ouvidos para não ouvir os soluços patéticos e as súplicas que os pequenos dirigiam à mãe e à avó, Sila tentou pensar como os seus filhos eram belos. Ainda estava deliciado por vê-los ao fim de tanto tempo; Cornélia Sila tinha agora mais de cinco anos, e o pequeno Lúcio Sila, quatro. Estavam no seu direito e já tinham idade suficiente para sofrerem, como Sila bem se lembrava, pelas suas recordações de infância, enterradas mas nunca esquecidas. Se havia piedade no seu abandono dos gémeos germanos, residia no facto de aqueles serem ainda dois bebés. Teria sido muito mais duro separar-se dos seus filhos romanos, dado que já eram pessoas. Sila lamentava-os profundamente. E também os amava profundamente, com um tipo de amor que nunca sentira por qualquer homem ou mulher. Eram desinteressados e puros, perfeitos e sem sombra de corrupção. A porta abriu-se: Julilla precipitou-se no gabinete enrolada em panos, com os punhos cerrados e o rosto vermelho de raiva. E do vinho.

- Ouviste? perguntou ela.

Sila pousou a pena.

- Como podia deixar de ouvir? - perguntou, num tom cansado. Todo o Palatino ouviu.

- Aquela velha! Aquela provocadora encarquilhada! Como se atreve a acusar-me de deixar os meus filhos ao abandono?

”Digo, ou não?” interrogou-se Sila. ”Por que motivo a suportarei? Por que não vou buscar a minha caixinha de pó branco da fundição de Pisa e não o despejo no vinho dela até lhe caírem os dentes e a língua se lhe enrolar toda e as mamas lhe incharem e explodirem como bolas de sabão? Por que não vou colher uns cogumelos sem mancha à beira de um carvalho e não lhos dou a comer até que se desfaça em sangue por todos os orifícios? Por que não lhe dou o beijo por que anseia e não lhe agarro o pescoço escanzelado como fiz a Clitumna? Quantos homens matei com espada, punhal, seta, veneno, pedra, machado, pau, com uma correia de couro ou mesmo com as mãos? O que tem ela a mais que todos os outros?” Sila descobriu logo a resposta. Julilla realizara o seu sonho. Julilla dera-lhe sorte. E era uma Romana Patrícia, sangue do seu sangue. Mais depressa mataria Hermana.

Mesmo assim, as palavras não podiam matar esta senhora romana dura e enérgica, pelo que Sila poderia servir-se à vontade das palavras.

- É verdade que deixas os teus filhos ao abandono - disse-lhe. - Foi essa a primeira razão por que trouxe para cá a tua mãe.

Julilla arfou de um modo teatral, como se sufocasse; pôs as mãos à volta do pescoço.

- Oh! Como te atreves? Nunca abandonei os meus filhos, nunca!

- Que disparate. Nunca te importaste nada com eles - afirmou Sila no mesmo tom fatigado e paciente que tinha adoptado assim que entrara naquela casa maldita. - A única coisa que te importa, Julilla, é a garrafa de vinho.

- E quem pode culpar-me por isso? - perguntou a rapariga, deixando tombar as mãos ao longo do corpo. - Quem pode honestamente culpar-me por isso? Estou casada com um homem que não me quer, que ja nem consegue endireitá-lo quando estamos na mesma cama e o tenho na boca e o chupo até me doerem os maxilares?

- Se vamos ser explícitos, importas-te de fechar a porta? - pediu ele.

- Porquê? Para os nossos queridos servos não ouvirem? Que grande hipócrita és, Sila! E de quem é a culpa, tua ou minha? Porque será que nunca tens a culpa? A tua fama como amante é demasiado conhecida nesta cidade para poder acusar-te de impotência! Sou logo eu a única que tu não queres! Eu! A tua própria mulher! Nunca olhei para outro homem, e o que ganho eu com isso? Ao fim de quase dois anos fora, nem consegues levantá-lo quando me torno irrumator! - os seus enormes olhos amarelados encheram-se de lágrimas. - O que te fiz eu? Oh, Sila, olha para mim com um olhar de amor, toca-me como se tocam aqueles a quem se ama, e nunca mais beberei uma gota de vinho até ao fim da vida! Como posso amar-te como te amo sem receber nada em troca?

- Talvez isso seja uma parte do problema - disse Sila, cinicamente indiferente. - Não gosto de ser amado em excesso. Não está certo. Com efeito, até é pouco saudável.

- Então, diz-me como posso deixar de te amar! - Julilla chorava. Não sei como fazê-lo! Achas que se soubesse não o faria? Era em três tempos! Rezo para deixar de te amar! Anseio por isso! Mas não consigo. Amo-te mais do que à vida.

Sila suspirou.

- Talvez a solução seja cresceres um pouco. Mais pareces uma adolescente. De corpo e de mente, ainda não passaste dos dezasseis anos. Só que já não tens essa idade, Julilla. Tens vinte e quatro. Tens uma filha de cinco anos e um filho que vai fazer quatro.

- Talvez os meus dezasseis anos tenham sido a última altura em que fui feliz - disse Julilla, esfregando as palmas das mãos nas bochechas cheias de lágrimas.

- Se não és feliz desde os dezasseis anos, não podes atribuir-me a culpa - disse Sila.

- Tu nunca tens a culpa de nada, pois não?

- Com efeito - afirmou ele, com ar superior.

- E as outras mulheres?

- O que têm elas?

- É possível que uma das razões para a tua falta de interesse por mim desde que voltaste se deva ao facto de teres uma mulher na Gália.

- Não é uma mulher - corrigiu ele gentilmente -, é uma esposa. E não é na Gália mas na Germânia.

Julilla ficou boquiaberta.

- Uma esposa?

- À maneira dos germanos. E dois gémeos com uns quatro meses de idade - Sila fechou os olhos, para não deixar transparecer a dor. - Sinto muito a falta dela. Não é estranho?

Julilla conseguiu fechar a boca e dissimular a dor,

- É bonita? - perguntou, num murmúrio.

Sila abriu os seus olhos claros, surpreendido.

-A Hermana? Não, de modo nenhum! É atarracada e já passa dos trinta. Não tem um centésimo da tua beleza. Nem é tão loura como tu. Nem é a filha de um chefe ou de um rei. É apenas uma bárbara.

- Porquê?

Sila abanou a cabeça.

- Não sei. Só sei que gostei muito dela.

- O que tem ela que eu não tenha

- Um bom par de seios - respondeu Sila, encolhendo os ombros mas como não sou grande apreciador de seios, não deve ser por isso. Hermana trabalhou arduamente; nunca se queixou, nunca esperou nada de mim... Não, não é isso. É antes o facto de ela nunca ter esperado que eu fosse o que não sou. - Sila assentiu, sorriu com ternura. - Sim, deve ser isso. Ela pertencia a si mesma e por isso não me sobrecarregou. Tu és uma corrente de chumbo presa ao meu pescoço. Hermana era um par de asas atadas aos meus pés.

Sem uma palavra, Julilla saiu do gabinete. Sila levantou-se, segui u-a até à porta e fechou-a.

Mas Sila mal tinha tido tempo de retomar os seus rascunhos - pois não pudera escrever nada de jeito nessa manhã - quando a porta voltou a abrir-se. O mordomo ficou parado à porta como um tronco de madeira inanimado.

- Sim?

- Uma visita, Lúcio Cornélio. Podes receber?

- Quem é?

- Dir-te-ia o nome, dominus, se o soubesse - explicou o mordomo com firmeza. - O visitante preferiu dar-me um recado para te transmitir - ”Cílax envia Cumprimentos.”

O rosto de Sila ficou resplandecente como a superfície polida de um espelho; nasceu-lhe um sorriso de encanto. Um dos da velha truPe! Um dos tantos mimos, comediantes e actores outrora conhecidos! Oh, magnífico! O simplório do mordomo quejulílla comprara não sabia de nada. Os escravos de Clitumna não serviam para Julilla.

- Manda-o entrar!

Sila tê-lo-ia reconhecido em qualquer lugar, em qualquer altura. Porém, como mudara! Transformara-se num homem.

- Metróbio! - exclamou Sila, pondo-se se de pé e olhando automaticamente para a porta, para ver se estava fechada. Estava. As janelas não estavam fechadas, mas não fazia mal, pois existia uma regra rígida em casa de Sila: ninguém podia ficar num lugar de onde pudesse ver para dentro do seu gabinete através das janelas da colunata.

Metróbio devia ter agora vinte e dois anos, pensou Sila. Era bastante alto para um grego. A longa trunfa de caracóis fora cortada rente e transformada num corte masculino, e a pele do queixo e das bochechas, antigamente branca, apresentava agora a sombra azulada de uma barba rija e bem barbeada. Mantinha o perfil de um Apolo Praxíteles e algo da serenidade epicena; era como um mármore de Nícias tão verosímil que podia sair da base e começar a andar, mas guardara o segredo do seu mistério, a sua origem.

O controlo marmóreo da beleza perfeita quebrou-se então; Metróbio olhou para Sila com verdadeiro amor, e, sorrindo, estendeu-lhe os braços. Os olhos de Sila encheram-se de lágrimas; os lábios tremiam-lhe. Ao contornar a mesa de trabalho, Sila embateu num dos cantos, mas nem reparou. Dirigiu-se a Metróbio e este abraçou-o, e pousou o queixo no ombro dele e os braços enrolados à sua volta. Sila sentiu-se como se tivesse finalmente chegado a casa. E quando se beijaram, o seu beijo foi delicado: o entendimento desenvolvera-se e o acto de fé foi feito sem conhecimento ou dor de qualquer espécie.

- Meu rapaz! Meu belo rapaz! - exclamou Sila, e chorou de gratidão por algumas coisas não terem mudado.

No exterior das janelas abertas do gabinete de Sila, Julilla viu o marido acolher-se nos braços do belo jovem, viu-os beijarem-se, escutou as palavras de amor que trocaram, viu-os precipitarem-se no leito e iniciar as intimidades iniciais de uma relação tão antiga e tão gratificante para ambos que aquilo era apenas um regresso. Julilla não precisou que ninguém lhe dissesse que era esta a razão por que o seu marido a rejeitara, e a que a levava a beber e a vingar-se não dando atenção aos filhos. Os filhos do marido.

Antes que se libertassem das roupas, Julílla virou costas e dírigíu-se de cabeça erguida e olhos secos para o quarto que partilhava com Lúcio Cornélio Sila. O seu marido. Ao lado do quarto havia um cubículo onde guardavam as roupas, mais cheio, agora que Sila regressara a casa, pois a armadura estava pendurada numa estrutura em forma de T, o elmo tinha um suporte especial e a espada com o punho de cabeça de águia estava encostada à parede, com a bainha e o cinto.

Julilla não teve dificuldade em retirar a espada, mas foi-lhe mais difícil desembainhá-la. Por fim, conseguiu tirá-la da bainha e arfou quando a lâmina lhe trespassou a mão até ao osso. Ficou surpreendida por conseguir sentir dor física, e a seguir afastou a surpresa e a dor, pois eram-lhe irrelevantes. Sem hesitar, pegou na espada pela águia de marfim, virou-a para si e foi de encontro à parede.

O golpe não fora bem executado. Julilla tombou num charco de sangue com a espada cravada na barriga e o coração num ritmo galopante; o barulho da sua respiração ressoava-lhe nos ouvidos como alguém que se aproximasse às escondidas para lhe roubar a vida e a virtude. Como já não possuía nenhuma delas, o que lhe importava? Então, sentiu a terrível agonia e o Calor do seu próprio sangue a abandoná-la. Mas ela pertencia à linhagem dos Júlios Césares; não pediria auxílio, nem se arrependeria da sua decisão durante o tempo que lhe restasse. Nem por um momento pensou nos seus dois filhos; a única coisa em que pensava era na sua estupidez, ao amar durante tantos anos um homem que gostava de homens.

Era motivo suficiente para morrer. Não se exporia à risota dos outros, às troças das outras mulheres de sorte, casadas com homens que gostavam de mulheres. À medida que o sangue lhe vertia do corpo levando consigo a vida, a sua mente febril começou a acalmar, até que ficou petrificada. Oh, que maravilha poder enfim deixar de amá-lo! Tinham-se acabado os tormentos, a angústia, a humilhação, o vinho. Pedira ao marido que lhe ensinasse o modo de deixar de gostar dele e ele mostrara-lho. Acabara por ser tão amável para ela, o seu querido Sila. Os últimos momentos lúcidos foram para os filhos; ao menos neles deixava algo de si. E Julilla mergulhou nas doces águas do Oceano da Morte, desejando aos filhos uma vida longa e muita felicidade.

Sila voltou a sentar-se à mesa de trabalho.

- Está aí vinho; enche-me a taça - disse para Metróbio.

O homem era tão semelhante ao rapaz, quando o rosto se lhe animava! Assim, era mais fácil recordar que o rapaz se propusera abandonar todos os luxos pela hipótese de viver na penúria com Sila.

Com um sorriso brando Metróbio trouxe o vinho e sentou-se na cadeira dos clientes.

- Sei o que vais dizer, Lúcio Cornélio: ”Não podemos fazer disto um hábito.”

- Sim. Entre outras coisas - Síla bebeu um gole de vinho e fitou Metróbio com um olhar severo. - Não é possível, querido rapaz. Só uma vez por outra, quando a necessidade ou a dor ou o que quer que seja se tornar insuportável. Estou a um palmo de tudo o que desejo, pelo que não posso ficar contigo agora. Se estivéssemos na Grécia, sim. Mas não estamos. Estamos em Roma. Se eu fosse o Primeiro Homem de Roma, sim. Mas não sou eu, mas sim Caio Mário.

Metróbio ficou desanimado.

- Compreendo.

- Continuas no teatro?

- Claro. É a única coisa que sei fazer. Além de que Cílax foi um bom professor, verdade seja dita. Por isso, nunca me faltam papéis, e não tenho muito tempo para descansar - Metróbio aclarou a garganta e pareceu um pouco constrangido. - A única diferença é que me tornei um actor sério.

- Sério?

- Exactamente. Acontece que não tinha jeito para a comédia. Quando era criança, sim, mas quando me cansei das asas de Cupido e da irrequietude, descobri que o meu verdadeiro talento era para a tragédia e não para a comédia. Por isso, agora entro em peças de Ésquilo e de Átio em vez das de Aristófanes ou Plauto. Não estou arrependido.

Sila encolheu os ombros.

- Ao menos poderei ir ao teatro sem me trair por estares a fazer o papel de ingénua desafortunada. Possuis a cidadania?

-Não, ai de mim!

- Verei o que posso fazer - com um suspiro, Sila pousou a taça e juntou as mãos como um banqueiro. - Vamos encontrar-nos, mas não muito frequentemente, e nunca mais aqui. Tenho uma mulher bastante doida em quem não posso confiar.

- Era maravilhoso se pudéssemos encontrar-nos de vez em quando.

- Tens uma casa razoável, ou continuas a viver com Cílax? Metróbio pareceu espantado.

- Pensei que sabias! Mas como podias saber, se não vives em Roma há anos? Cílax morreu há seis meses. E deixou-me tudo o que possuía, incluindo o apartamento.

- Então, serão aí os nossos encontros - Sila levantou-se. - Vem, vou acompanhar-te à porta. E incluir-te-ei na lista dos meus clientes, para que, se precisares de vir cá, tenhas uma razão válida para isso. Enviarei uma mensagem para tua casa antes de aparecer.

Um beijo desprendeu-se dos belos olhos escuros à despedida, mas não houve palavras nem nada que desse a entender ao mordomo ou ao porteiro que aquele homem extremamente belo era algo mais que um antigo cliente.

- Dá saudações minhas a todos, Metróbio.

- Não estarás em Roma para os jogos teatrais?

- Receio bem que não - lamentou Sila, sorrindo com naturalidade.

- São os Germanos.

E assim se despediram, na mesma altura em que Márcia descia a rua à frente das crianças e da ama. Sila esperou por ela e acolheu-a à porta.

- Márcia, peço-te que venhas ao meu gabinete.

Com um olhar desconfiado, Márcia entrou de esguelha no gabinete à frente dele e sentou-se no leito, onde, reparou Sila apavorado, havia uma mancha molhada mesmo à vista.

- Se não te importas, senta-te na cadeira - disse.

Ela sentou-se, olhando-o com ar carrancudo, de queixo erguido e lábios apertados.

- Sogra, sei bem que não gostas de mim e não pretendo de modo nenhum tentar mudar os teus sentimentos - começou Sila, fazendo por parecer à vontade, despreocupado. - Também não foi por gostar de ti que te pedi que viesses viver para minha casa. Estava preocupado com os meus filhos. E ainda estou. E devo agradecer-te de todo o coração os teus cuidados. Tens tratado deles muito bem. Voltaram a ser pequenos Romanos. Márcia perdeu um pouco da frieza.

- Alegra-me que penses isso.

- Consequentemente, as crianças já não constituem a minha preocupação principal. A questão agora é ajulilla. Ouvi a tua discussão com ela esta manhã.

- Toda a gente ouviu! - afirmou Márcia com dureza.

- Sim, é verdade... - Sila deu um suspiro profundo. - Depois de teres levado as crianças, teve uma discussão comigo que também toda a gente ouviu, ou pelo menos muita gente. Queria perguntar-te se fazes alguma ideia do que devemos fazer.

- Infelizmente, pouca gente sabe que ela bebe para poderes divorciar-te por esse motivo, que é a tua única razão de queixa - expôs Márcia, sabendo bem que tinha sido ela a ocultá-la. - Penso que tens de ser paciente.

Ela bebe cada vez mais; não poderei ocultá-lo por muito mais tempo. Mal seja do conhecimento de todos, podes rejeitá-la sem seres condenado - explicou a mãe de Julilla.

- E se isso acontecer enquanto eu estiver fora?

- Eu sou a mãe dela; posso afastá-la. Se isso ocorrer na tua ausência, mandá-la-ei para a tua villa de Circeios. E quando regressares, podes divorciar-te e fechá-la noutro lugar qualquer. A seu tempo, acabará por beber até à morte - Márcia levantou-se, ansiosa por sair dali, sem dar mostras do grau de sofrimento que sentia. - Não gosto de ti, Lúcio Cornélio, mas não te culpo pela situação penosa de Julilla.

- Gostas de algum dos teus genros ou noras? - perguntou Sila. Márcia resmungou.

- Só de Aurélia.

Sila acompanhou-a até ao átrium.

- Onde estará Julilla? - perguntou, lembrando-se de que não a vira desde a chegada de Metróbio. Um arrepio percorreu-lhe a espinha.

- Deve estar deitada à espera de um de nós - disse Márcia. - Sempre que começa o dia com uma discussão, costuma continuá-lo até ficar bêbeda e desmaiar.

O desagrado fez baixar os lábios de Sila.

- Não a vejo desde que saiu do meu gabinete a correr. Tive a visita de um velho amigo logo a seguir, e estava a acompanhá-lo à porta quando apareceste com as crianças.

- Ela não costuma atrasar-se tanto - disse Márcia, e olhou para o mordomo. - Viste a tua ama? - perguntou.

- A última vez que a vi, ia para o quarto de dormir - respondeu. Devo chamar a criada?

- Não. Não te incomodes - Márcia olhou para Sila de esguelha. Parece-me que devíamos ir imediatamente vê-la os dois, Lúcio Cornélio. Talvez seja razoável se lhe dissermos o que lhe acontecerá se não sair daquele chiqueiro.

E então, encontraram Julilla, torcida e imóvel. As suas belas roupas de lã tinham absorvido a maior parte do sangue, pelo que estava agora vestida de um tom escarlate ferrugento, como uma Nercide saída de um vulcão.

Márcia apertou o braço de Sila, cambaleante; ele pôs-lhe um braço à volta dos ombros, mantendo-a direita.

Mas a filha de Quinto Márcio Rex fez um esforço e dominou-se.

- Era uma solução com que não estava a contar - disse suavemente.

- Nem eu - disse Sila, habituado ao assassínio.

- O que lhe fizeste? Sila abanou a cabeça.

- Tanto quanto me lembro, nada que pudesse provocar isto. Podemos perguntar aos servos; eles ouviram pelo menos metade da discussão.

- Não me parece aconselhável interrogá-los - afirmou Márcia, e virou-se subitamente para Sila, buscando abrigo no seu corpo. - Em muitos aspectos, Lúcio Cornélio, é esta a melhor solução. Prefiro que as crianças sofram o choque da sua morte à desilusão lenta que traria a sua bebedeira. Agora, têm idade para esquecer. Mas mais tarde, recordar-se-iam - Márcia encostou o rosto ao peito de Sila. - Sim, é a melhor solução - uma lágrima escapou-se-lhe por debaixo da pálpebra fechada.

- Vem, vou levar-te ao teu quarto - disse ele, conduzindo-a para fora do cubículo cheio de sangue. - Nem me lembrei da espada. Que parvo!

- Por que havias de lembrar-te?

- Intuição - respondeu Sila, que sabia exactamente o que levarajulilla a ir buscar a espada e usá-la; assistira ao encontro com Metróbio pela janela do gabinete. Márcia tinha razão. Era a melhor solução. E ele nem tinha precisado de mexer um dedo.

A magia não falhara; quando decorreram as eleições consulares após os novos tribunos da plebe terem entrado em funções, no décimo dia de Dezembro, Caio Mário voltou a ser eleito cônsul. Ninguém podia desacreditar o testemunho de Lúcio Cornélio Sila nem a afirmação de Saturnino de que ainda havia um homem capaz de derrotar os Germanos. O antigo receio dos Germanos voltou a inundar Roma como uma enchente do Tibre, e, uma vez mais, a Sicília deixou de ocupar o primeiro lugar na lista de crises que nunca, mas nunca pareciam diminuir.

- Porque mal eliminamos uma, surge logo outra, vinda não se sabe donde - disse Marco Emílio Escauro a Quinto Cecílio Metelo Numídico Suíno.

- Incluindo a Sicília - acrescentou o cunhado de Lúculo, em tom venenoso. - Como pôde Caio Mário dar o seu apoio àquele pipinna do Aenobarbo, quando insistiu para que Lúcio Lúculo fosse substituído como governador da Sicília? E ainda por cima, por Servílio, o augure! Não passa de um Homem Novo sob o disfarce de um nome antigo!

- Estava a puxar-te o rabo, Quinto Cecílio - afirmou Escauro. Caio Mário está-se nas tintas para quem governa a Sicília, agora que os Germanos vêm mesmo a caminho. Se querias que Lúcio Lúculo ficasse, teria sido melhor que tivesses estado calado; então, Caio Mário não se teria lembrado que tu e Lúcio Lúculo são importantes um para o outro.

- Os cargos senatoriais têm de ser bem inspeccionados - disse Numídico. - Vou candidatar-me ao lugar de censor!

- Bem pensado! Com quem?

- Com o meu primo Caprário.

- Oh! Ainda melhor, por Vénus! Fará tudo o que lhe mandares.

- Está na altura de purgarmos o Senado, para já não falar dos cavaleiros. Não tenhas medo que serei um censor rigoroso, Marco Emílio! afirmou Numídico. - Saturnino sai, bem como Gláucia. São homens perigosos.

- Não faças isso! - exclamou Escauro, hesitando. - Se não o tivesse acusado enganadamente de desvio dos dinheiros dos cereais, poderia ter-se tornado um político diferente. Nunca me libertarei das culpas no caso de Lúcio Apuleio.

Numídico ergueu as sobrancelhas.

- Meu caro Marco Emílio, estás a precisar muito de um tónico! As razões que levam esse homem ganancioso a agir assim não têm a menor importância. O que interessa neste momento é ele ser o que é. E tem de sair - Numídico soprou ar pelas narinas, furioso. - Ainda não estamos arrumados! - disse. - E pelo menos no próximo ano, Caio Mário tem um homem a sério como colega, em vez daqueles bonecos de palha, Fímbria e Orestes. Tentaremos conseguir que Quinto Lutácio entre em algum combate, e anunciaremos por Roma inteira o mais pequeno êxito do seu exército ao som de trombetas.

O eleitorado também votara em Quinto Lutácio Catulo César para cônsul; um cônsul subalterno em relação a Mário, mas como Mário dissera, é ”um espinho no meu flanco”.

- O teu irmão mais novo foi eleito pretor - informou Sila.

- E vai para a Espanha Ulterior, lindamente afastado do caminho. Encontraram Marco Emílio Escauro, que se separara de Numídico no fim das escadas do Senado.

- Devo agradecer pessoalmente o teu trabalho na questão do fornecimento de cereais - disse Mário, em tom cortês.

- Desde que haja trigo à venda em qualquer parte do mundo, Caio Mário, não é muito difícil - afirmou Escauro com igual cortesia. - O que me preocupa é o dia em que não se vender trigo em lado nenhum.

- Não é provável que aconteça para já! Suponho que a Sicília voltará ao normal na próxima colheita.

Escauro atacou logo.

- Desde que não se perca tudo o que foi ganho quando aquele tolo tagarela do Servílio Áugure assumir as funções de governador! - exclamou Escauro causticamente.

- A guerra na Sicília já acabou - disse Mário.

- Esperemos que sim, cônsul. Não estou assim tão certo disso.

- E aonde tens ido buscar o trigo nos últimos dois anos? - perguntou Sila rapidamente, para evitar o desacordo expresso de Escauro.

- À Província da Ásia - respondeu Escauro, deixando-se afastar do assunto, pois gostava mesmo de ser curator annonae, o encarregado do abastecimento de cereais.

- Mas com certeza não há um grande excesso de produção - sugeriu Sila.

- Quase um modius, com efeito - disse Escauro, satisfeito consigo mesmo. - Não, devemos agradecer ao rei Mitríades do Ponto. É muito novo mas imensamente empreendedor. Depois de ter conquistado todas as terras a norte do mar Euxino e conseguido o controlo das terras produtoras de cereais do Tânais, do Borístenes, do Hípanis e do Danastro, está agora a criar um lucro extra para o Ponto, embarcando o excesso dos Cimérios para a Província da Ásia e vendendo-o a Roma. Além do mais, vou seguir a minha intuição e voltar a comprar cereais na Província da Ásia no próximo ano. O jovem Marco Lívio Druso irá como questor para a Ásia e encarreguei-o de me representar neste assunto.

Mário resmungou:

- De certeza que vai visitar o sogro, Quinto Servílio Cepião, em Esmirna, enquanto se encontra lá.

- Sem dúvida - disse Escauro maliciosamente.

- Nesse caso, manda o jovem Marco Lívio Druso enviar as contas dos cereais a Quinto Servílio Cepião - sugeriu Mário. - Ele tem mais dinheiro para pagá-las do que o Tesouro!

- Isso é uma afirmação infundada.

- De acordo com o rei Copillus, não.

Um silêncio incómodo pairou por um momento, antes de Sila perguntar:

- Que quantidade desses cereais asiáticos chega até nós, Marco Emílio? Ouvi dizer que o problema da pirataria piora de ano para ano.

- Cerca de metade, não mais - respondeu Escauro, com um ar triste. -Todas as enseadas e portos escondidos das costas da Panfília e da Cilícia abrigam piratas. É evidente que são principalmente negreiros, mas se puderem roubar cereais para alimentar os escravos que roubam, asseguram grandes lucros, não é? E os cereais que restam são-nos vendidos ao dobro do preço por que os pagámos inicialmente, nem que seja por nos garantirem que chegará até nós sem ser roubado... pela segunda vez.

- É espantoso - concluiu Mário - que mesmo entre os piratas existam intermediários. Porque é isso que eles são! Roubam, e depois voltam a vender-nos o produto do roubo. Lucro limpo. Está na altura de fazermos qualquer coisa, Princeps Senatus, não concordas?

- É bem verdade - concordou Escauro com vivacidade.

- O que sugeres?

- Uma comissão especial para um dos pretores: um governo errante, se é que isso existe. Esse pretor receberia barcos e forças navais, e teria a função de limpar todos os ninhos de piratas ao longo das costas da Panfília e da Cilícia - indicou Escauro.

- Podíamos nomeá-lo governador da Cilícia - sugeriu Mário.

- Que excelente ideia!

- Muito bem, Princeps Senatus, convoquemos os Pais Conscritos quanto antes e façamo-lo.

- De acordo - disse Escauro, transbordando de bondade. - Sabes, Caio Mário, poderei odiar tudo o que defendes, mas adoro a tua capacidade de agir sem transformar tudo num novo jogo de circo.

- O Tesouro vai berrar como uma Vestal convidada a jantar num bordel - disse Mário, sorrindo.

- Que berre! Se não acabarmos com os piratas, o comércio entre o Leste e o Oeste cessará. Barcos e forças navais - repetiu Escauro, pensativamente. - Quantos?

- Oito ou dez frotas completas, e digamos... dez mil homens bem treinados. Se tivermos assim tantos - disse Mário.

- Podemos arranjá-los - garantiu Escauro, confiante. - Se for necessário, podemos contratar alguns de Rodes, de Halicarnasso, de Cnido, de Atenas, de Éfeso... Não te preocupes que havemos de encontrá-los.

- Devíamos confiá-los a Marco Antônio - afirmou Mário.

- Porque não ao teu irmão? - perguntou Escauro, surpreendido. Mas Mário sorriu, imperturbável.

- Tal como eu, Marco Emílio, o meu irmão é um campónio. Ao passo que todos os Antónios gostam do mar.

Escauro riu-se.

- Quando não estão à deriva!

- É verdade. Mas ele é bom, o nosso pretor Marco António; Penso que saberá cumprir a missão.

- Concordo contigo.

- E entretanto - disse Sila, a sorrir -, o Tesouro terá tanto com que se entreter a choramingar e a queixar-se do dinheiro gasto na compra de cereais e na perseguição dos piratas, que nem reparará no montante que vai pagar aos exércitos de capite censi. Porque Quinto Lutácio também terá de recrutar soldados dos capite censi para formar o exército.

- Oh, Lúcio Cornélio, estás há demasiado tempo ao serviço de Caio Mário! - exclamou Escauro.

- Estava a pensar o mesmo - respondeu Mário inesperadamente. Mas não disse mais nada.

Sila e Mário partiram para a Gália Transalpina em fins de Fevereiro, depois das exéquias de Julilla; Márcia concordara em ficar em casa de Sila para cuidar das crianças durante algum tempo.

- Mas - disse em tom ameaçador - não podes esperar que fique aqui para sempre, Lúcio Cornélio. Agora que estou a chegar aos cinquenta, apetece-me mudar para a costa da Campânia. Os meus ossos não gostam do clima húmido da cidade. É melhor voltares a casar, dar a estas crianças uma mãe decente e alguns meios-irmãos e irmãs para brincarem.

- Isso terá de esperar que a questão dos Germanos esteja resolvida explicou Sila, tentando manter um tom cortês.

- Muito bem; depois dos Germanos - disse Márcia.

- Daqui a dois anos - avisou ele.

- Dois? Um, com certeza!

- Talvez, embora eu duvide. Conta com dois anos, sogra,

- Nem mais um dia, Lúcio Cornélio.

Sila olhou para ela, com uma sobrancelha erguida em ar de troÇa. É melhor começares a procurar uma esposa para mim.

Estás a brincar?

- Não. Não estou a brincar! exclamou Sila, cuja paciência andava um pouco esgotada ultimamente. Como pensas que posso partir para ir combater os Germanos e ao mesmo tempo procurar uma esposa em Roma? Se queres mudar-te logo que eu regressar, é melhor escolheres-me uma esposa que queira ser escolhida.

- Que tipo de esposa?

Tanto me faz! Só quero que seja meiga para os meus pequenos disse Sila.

Por esta e outras razões, Sila estava muito contente por deixar Roma. Quanto mais tempo aí permanecesse, mais desejo teria de ver Metróbio; e quanto mais visse Metróbio, mais quereria vê-lo. E não podia exercer sobre o Metróbio adulto a mesma influência e domínio que tivera sobre ele em rapaz. Metróbio estava agora numa idade em que também tinha a sua palavra a dizer quanto à evolução da relação. Sim, era melhor estar longe de Roma! Só sentiria a falta dos seus filhos tão queridos. Encantadores. Completa e totalmente adoráveis. Sila podia passar fora muitas luas, mas mal reaparecia, recebiam-no de braços abertos e com milhões de beijos. Por que não seria assim o amor adulto? Mas a resposta, pensou, era bem simples. No amor adulto, as pessoas estavam demasiado preocupadas consigo mesmas e pensavam demasiado.

Sila e Mário tinham deixado o cônsul júnior, Quinto Lutácio Catulo César, na angústia do recrutamento de um novo exército e a queixar-se em voz alta por este ter de ser composto por homens dos capite censi.

Claro que tem de ser composto por capite censi - disse Mário. Não venhas chorar e queixar-te no meu ombro por causa disso. Não fui eu que perdi oitenta mil soldados em Arausio nem todos os outros que perdemos em combate!

Este argumento fez calar Catulo César, que adquiriu um ar aristocrático, apertando os lábios.

Gostava que não lhe atirasses à cara crimes deste género disse Sila.

Então, ele que deixe de atirar-me à cara os capite censi - rosnou Mário.

Sila desistiu.

Felizmente, as coisas na Gália correram como deviam; Mânio Aquílio mantivera o exército em boa forma com a construção de mais pontes e aquedutos e um número enorme de canais. Quinto Sertório regressara, mas tornou a ir ao encontro dos Germanos, porque, como disse, era onde podia ser mais útil; acompanharia o trajecto dos Cimbros e informaria Mário sempre que pudesse. E as tropas estavam a começar a tremer, na expectativa da acção que iriam ter este ano.

Naquele ano deveria ter havido um Fevereiro extra intercalado - inserido - no calendário, mas a diferença entre o antigo Pontifex Maximus e Aenobarbo, o novo, era agora evidente: Aenobarbo não via qualquer mérito em manter o calendário a par das estações. Por isso, quando era Março no calendário, ainda era Inverno, visto que agora o calendário começava a avançar à frente das estações. Num ano de apenas 355 dias, tinha de ser intercalado um mês extra de vinte dias, tradicionalmente no fim de Fevereiro. Mas essa decisão cabia ao Colégio de Pontífices, e se os membros não fossem mantidos à altura por um Pontifex Maximus consciente, o calendário acabaria por descambar, como agora sucedera.

Felizmente, chegou uma carta de Públio Rutílio Rufo pouco depois de Sila e Mário terem retomado a rotina da vida num acampamento militar no extremo dos Alpes.

Este ano promete ser recheado de acontecimentos, pelo que o meu maior problema é saber por onde começar. É evidente que todos estavam à espera que saísses do caminho, e juro que mal havias chegado a ócelo quando as ratazanas começaram afazer cabriolas pelo baixo Fórum Romano, Como se divertem!

Começarei pelo nosso precioso par de censores, Suíno e o seu inofensivo primo, o Bode. O Suíno tem vindo a anunciar - desde quefoi eleito, mas teve o cuidado de não falar nisso perto de ti - que tenciona ”purgar o Senado”, como ele diz,

Há uma coisa que se pode dizer a seu favor: não serão censores venais, e todos os contratos do Estado serão tratados de forma adequada e consentidos de acordo com o preço e o mérito. No entanto, já hostilizaram o Tesouro pedindo uma enorme quantia para consertar e remodelar alguns dos templos que não tinham verbas suficientes, para já não falar das pinturas e bancos de mármore das latrinas das três moradas estatais dos flamines maiores, e das casas do Rex Sacrom e do Pontifex Maximus. Pessoalmente, gosto dos bancos de madeira das latrinas. O mármore é tão frio e duro! Houve umapequena briga animada quando o Suíno mencionou o Domus Publicus do Pontifex Maximus, sendo o Tesouro da opinião que o nosso novo Pontifex é suficientemente rico para poder oferecer a tinta e Os bancos de mármore das latrinas.

Depois, começaram a tratar dos contratos vulgares - e fizeram-no bem. As propostas eram abundantes, havia muita oferta, e duvido que venha a haver muita chicana.

Haviam-se movido rápida e silenciosamente até este ponto, pois o que lhes interessava verdadeiramente era rever a lista de senadores e de cavaleiros. Não tinham passado dois dias depois de os contratos estarem acabados juro que fizeram o trabalho de dezoito meses em menos de um! - quando o Suíno convocou um concio da Assembleia do Povo para ler as descobertas dos censores acerca da plenitude ou baixeza moral dos Pais Conscritos do Senado. No entanto, alguém deve ter dito antecipadamente a Saturnino e a Gláucia que os seus nomes iam ser eliminados, pois quando a Assembleia reuniu estava cheia de gladiadores e outros rufias que não costumam assistir às sessões dos Comícios.

E mal o Suíno anunciou que ele e o Bode iam excluir Lúcio Apuleio Saturnino e Caio Servílio Gláucia da lista de senadores, a assistência entrou em ebulição. Os gladiadores atacaram os rostros e arrastaram-no de lá; depois, passaram-no de uns para os outros, dando-lhe bofetadas com as mãos enormes e calejadas. Era uma nova técnica: nada de paus ou troncos de madeira mas mãos abertas. Teoricamente, suponho que as mãos não matam senão de punhos fechados. O mínimo de violência, segundo ouvi dizer. Que patético! Tudo aconteceu tão depressa e estava tão bem organizado que o Suíno foi assim até ao início do Clivus Argentarias antes de Escauro, Aenobarbo e outros Homens de Bem terem conseguido apanhá-lo e abrigá-lo no templo de Júpiter Optimus Maximus. Aí, viram que tinha o rosto do dobro do tamanho, os olhos fechados, os lábios rachados em diversos pontos, o nariz jorrava como uma fonte, tinha as orelhas retalhadas e as sobrancelhas cortadas. Aos olhos de todos, parecia umpugilista grego nos Jogos Olímpicos.

A propósito, o que achas do termo que tem sido aplicado à facção ultra-conservadora, os Boni, os Homens de Bem? Escauro diz que foi ele que o inventou, depois de Saturnino ter começado a chamar-lhes políticos. Mas devia lembrar-se que há muitos de nós com idade para sabermos que Caio Graco e Lúcio Opímio chamavam boni aos homens das suas facções. Voltemos à minha história!

Depois de ter sabido que o primo Numídico estava a salvo, o primo Caprário conseguiu restabelecer a ordem nos Comícios. Mandou os seus mensageiros fazer soar os trompetes e gritou que não concordava com as descobertas do seu colega sénior, pelo que Saturnino e Gláucia permaneceriam nos seus postos senatoriais. Dir-se-ia que o Suíno perdeu esta batalha, mas não me agradam os métodos de combate de Saturnino. Limita-se a dizer que não teve nada a ver com a violência mas se sente grato por o Povo o apoiar com tanta veemência.

Talvez penses que as coisas ficaram por aqui, mas não! Os censores procederam então à avaliação financeira dos cavaleiros, depois de terem mandado construir um novo tribunal perto do Poço de Cúrcio. É uma estrutura de madeira feita especificamente para esse fim, com um lanço de escadas de cada lado, para que haja uma certa ordem entre os entrevistados; sobem por um dos lados, passam à frente da mesa dos censores e descem pelo outro lado. Bem feito. Sabes que os cavaleiros ou os que querem ser cavaleiros têm de entregar documentos respeitantes à sua tribo, local de nascimento, cidadania, serviço militar. bens, capital e rendimentos.

Embora demorem algumas semanas a descobrir se os candidatos têm realmente rendimentos mínimos de 400 000 sestércios anuais, nos primeiros dias, o espectáculo atrai sempre uma multidão. E foi o que aconteceu quando o Suíno e o Bode começaram a inspeccionar as listas de cavaleiros. O desgraçado do Suíno estava cá um espectáculo! As suas nódoas negras estavam mais amarelas que negras e os golpes tinham-se tornado uma rede de linhas escuras congestionadas, Porém, os olhos haviam-se aberto o suficiente para lhe permitir ver. Deve ter desejado que não se lhe abrissem quando viu o que viu na tarde daquele primeiro dia no novo tribunal!

Nada menos que Lúcio Equício, o autoproclamado filho bastardo de Tibério Graco! O sujeito entrou a passos largos quando chegou a sua vez, e ficou parado à frente de Numídico e não de Caprário. O Suíno ficou paralisado ao ver Equício escoltado por um pequeno grupo de escribas e funcionários, carregados de livros de contas e documentos. Depois virou-se para o secretário e disse que o tribunal encerrara, de modo que lhepedia que mandasse embora a criatura que estava à suafrente.

- Tens tempo para me receber - disse Equício.

- Muito bem; o que pretendes? - perguntou, ameaçador.

- Quero inscrever-me na lista dos cavaleiros - disse Equício.

- Nunca o serás durante o lustrum destes censores! - rosnou o nosso Homem de Bem, o Suíno.

Devo dizer que Equício era paciente, Olhando para a multidão que rodeava o tribunal (e parecia que os gladiadores e rufias estavam de volta. Disse: - não podes recusar-me, Quinto Cecílio, pois preencho todos os requisitos,

- Todos, não! - afirmou Numídico. - Estás desclassificado no requisito mais básico de todos; não és um cidadão romano.

- Sou sim, estimado censor - retorquiu Equício em voz alta. - Tornei-me cidadão de Roma pela morte do meu dono, que ma concedeu por testamento bem como o nome e todos os seus bens. O facto de ter voltado a adoptar o nome da minha mãe não tem qualquer importância. Possuo a prova da minha alforria e adopção. Além disso, estive ao serviço das legiões durante dez anos; como cidadão romano e não como auxiliar.

- não vou inscrever-te na lista dos cavaleiros, e quando começar o censo também não te inscreverei como cidadão romano disse Numídico.

Mas cabe-me esse direito explicou Equício, muito claramente. Sou um cidadão romano; a minha tribo é a Suburana; servi durante dez anos nas legiões; sou um homem respeitável; possuo quatro ínsulas, dez tabernas, cem iugera de terra em Lanúvio, mil iugera de terra e um pórtico de mercado em Firmum Picenum e um rendimento anual de mais de quatro milhões de sestércios, o que também me permite concorrer ao Senado dito isto, fez um estalido com os dedos para chamar o secretário, que estalou os dedos para chamar os escravos, que avançaram carregados com montes de papéis. Tenho provas, Quinto Cecílio.

- Não me interessam os teus papéis. És um reles novo-rico e tanto me faz que tenhas testemunhas ou não. És um ambicioso! - gritou o Suíno. Não te inscreverei como cidadão romano e muito menos como membro do Ordo Equester. Estou-me nas tintas para ti. proxeneta! Agora, rua!

Equício virou-se para a multidão, abriu os braços estava de toga e falou.

Ouviram? perguntou. Eu, Lúcio Equício, filho de Tibério Semprónio Graco, vejo serem-me negados a cidadania e o estatuto de cavaleiro!

O Suíno levantou-se e avançou tão depressa que Equício mal deu por ele; a seguir, o nosso valente censor deu um murro em cheio no maxilar de Equício, que caiu de rabo com a cabeça a andar à roda. Depois do murro, Suíno deu a Equício um pontapé que o fez tombar no meio da multidão.

Mijo para todos vós! rugiu, brandindo os punhos aos espectadores e gladiadores. Vão-se embora daqui e levem convosco esse monte de trampa!

Então, voltou a repetir-se tudo de novo, simplesmente desta vez os gladiadores não tocaram na cara do Suíno. Arrastaram-no para fora do tribunal e bateram-lhe com os punhos, unhas, dentes e botas. Por fim, foram Saturnino e Gláucia esqueci-me de dizer-te que eles estavam por lá, escondidos que avançaram e tiraram Numídico das mãos dos atacantes. Imagino que não estava nos seus planos matar Numídico. Então, Saturnino subiu ao tribunal e mandou fazer silêncio para que Gaprário falasse.

Não estou de acordo com o meu colega e assumirei a admissão de Equício nas fileiras do Ordo Equester gritou com ar desgraçado e pálido. Penso que nunca devia ter visto tanta violência em nenhuma das suas campanhas militares.

Inscreve o nome de Equício! bramiu Saturnino. E Caprário inscreveu o nome nas listas.

Ide todos para casa! exclamou Saturnino.

E todos se dirigiram prontamente para os lares, transportando Lúcio Equício aos ombros.

O Suíno ficou num estado deplorável. Teve sorte por não ter morrido, na minha opinião. Oh, como estava furioso! E fartou-se de criticar o primo Bode por este ter voltado a ceder. O pobre primo Bode estava quase em lágrimas, incapaz de defender os seus actos.

Larvas! São todos umas larvas! repetia o Suíno vezes sem conta, enquanto tentávamos envolver-lhe as costelas (tinha várias partidas) e descobrir os outros ferimentos que se escondiam debaixo da toga. Sim, tudo aquilo dava vontade de rir. Mas deuses, Caio Mário! Não se pode deixar de admirar a coragem do Suíno!

Mário levantou os olhos da carta, franzindo as sobrancelhas.

- O que andará a tramar o Saturnino? perguntou.

Mas a mente de Sila estava ocupada com um assunto muito menos importante.

- Flauto! exclamou Sila subitamente.

- O quê?

- Os boni, os Homens de Bem! Caio Graco, Lúcio Opímio e o nosso próprio Escauro dizem que inventaram o termo boni para nomear as suas facções, mas Flauto chamava boni aos plutocratas e outros patronos há cem anos! Lembro-me de ter ouvido esse termo numa exibição dos Captivi, de Flauto: a peça foi posta em cena quando Escauro era edil curul, por Téspis! Eu tinha a idade exacta para poder começar a assistir a peças de teatro.

Mário fitou-o, espantado.

Lúcio Cornélio, não te preocupes com quem inventou palavras sem interesse e dá atenção às coisas importantes! Basta falarem-te em teatro e esqueces tudo o resto.

Desculpa! disse Sila, com ar impenitente. Mário retomou a leitura.

Passamos agora do Fórum Romano para a Sicília, onde têm acontecido as coisas mais desagradáveis, algumas divertidas e outras verdadeiramente incríveis.

O que passo a contar é já do teu conhecimento, mas vou refrescar-te a memória, pois detesto histórias esfarrapadas. No fim da última campanha, Lúcio Licínio Lúculo colocou-se à frente da fortaleza dos escravos, para que os rebeldes se rendessem. Lançou o pânico entre eles, mandando um mensageiro contar-lhes a história da fortaleza do inimigo que avisou os romanos de que tinha comida suficiente para resistir durante dez anos, ao que os romanos responderam que não importava, pois tomariam o forte no décimo-primeiro ano.

De facto, Licínio Lúculo fez um óptimo trabalho. Cercou Triócala com rampas, torres de cerco, abrigos, estacas, catapultas e barricadas, preenchendo o enorme vazio em frente às muralhas. Depois, construiu um acampamento igualmente magnífico para os seus homens, tão fortificado que, mesmo que os escravos quisessem sair de Triócala, não conseguiriam entrar no acampamento de Lúculo. E aí passou todo o Inverno, à espera. Os seus homens estavam bem instalados e tinha a certeza de que o seu comando seria prorrogado.

Em Janeiro, chegou a notícia de que Caio Servílio Augure era o novo governador, e com o despacho oficial vinha uma carta do nosso querido Metelo Numídico Suíno, que comunicava os pormenores escabrosos, o modo escandaloso como Aenobarbo tinha agido com a cumplicidade do seu rapaz, o Augure.

Tu não conheces muito bem o Lúculo, Caio Mário. Mas eu conheço-o. Como muitos dos seus semelhantes, Lúculo apresenta sempre um ar calmo, indiferente e insuportavelmente altivo. Do género ”eu sou Lúcio Licínio Lúculo, pertencente à família mais antiga e prestigiosa da nobreza romana, e têm muita sorte por me dignar a prestar-vos atenção de tempos a tempos”. Mas sob essa fachada há um homem muito diferente: sensível, fanaticamente consciente das desconsiderações, apaixonado, terrível na sua fúria. E quando Lúculo recebeu a notícia, reagiu com a mesma calma e resignação que se esperaria dele. Depois, começou a destruir todas as peças de artilharia, a rampa e a torre de cerco, a tartaruga, os abrigos, o desfiladeiro de cascalho, os degraus, tudo. E queimou tudo o que podia, e levou baldes e baldes de cascalho e de terra para longe de Triócala, em mil direcções diferentes. Depois, destruiu o próprio acampamento e todos os materiais aí existentes.

Pensas que lhe bastou? Não; aquilo era apenas o início! Destruiu todos os documentos relativos à sua administração de Siracusa e do Lilibeu e mandou os seus dezassete mil homens marchar até ao porto de Agrigento.

O seu questor deu provas de grande lealdade e foi cúmplice em tudo o que Lúculo quis fazer. O pagamento do exército chegara, e havia dinheiro em Siracusa proveniente das pilhagens após a batalha de Heracleia Minoa. Lúculo começou então a multar todos os cidadãos não-romanos da Sicília pelos prejuízos causados ao anterior governador, Públio Licínio Nerva, e acrescentou esse dinheiro ao que já tinha. A seguir, usou algum do dinheiro que viera para uso de Servílio, o Augure, no aluguer de barcos para o transporte dos seus soldados.

Lúculo embarcou os seus homens a partir da praia de Agrigento e deu-lhes os últimos sestércios que conseguira arranjar. Os homens formavam um grupo heterogéneo, o que prova que os capite censi da Itália estão hoje tão esgotados como as outras classes, no que diz respeito ao fornecimento de tropas. Para além dos veteranos italianos e romanos que reunimos na Campânia, tinha uma legião e algumas coortes extra da Bitínia, da Grécia e da Tessália macedónica: foi ao pedir estes homens ao rei Nicomedes da Bitínia que lhe respondeu não ter homens para ceder, visto que os agricultores romanos os tinham feito escravos. Foi uma referência bastante impertinente ao facto de termos libertado os escravos dos Aliados Italianos: Nicomedes pensou que o seu tratado de amizade e aliança connosco devia levar à emancipação dos escravos da Eitínia! Lúculo alistou-o, evidentemente, bem como os seus soldados bitínios.

Agora esses soldados regressaram à Bitínia, e os soldados romanos e italianos foram mandados para a Itália e para Roma com as cartas de desmobilização. E, após ter apagado todas as marcas do seu governo dos anais da Sicília, Lúculo partiu.

A seguir à sua partida, o rei Trifão e o seu conselheiro Atenião saíram de Triócala e voltaram a pilhar e saquear a Sicília. Estão agora perfeitamente convencidos de que ganharão a guerra e apregoam a lengalenga seguinte: ”Em vez de seres um escravo, sê dono de um escravo!” Não houve sementeira de cereais e as cidades estão a ser invadidas por refugiados vindos das zonas rurais. A Sicília voltou a ser uma verdadeira Ilíada de calamidade.

Foi com esta situação maravilhosa que deparou Servílio, o Augure. É claro que não podia acreditar no que via, e começou a enviar cartas atrás de cartas. lamentando-se ao seu patrono, Aenobarbo Pipinna.

Entretanto, Lúculo regressou a Roma e iniciou os preparativos para o que era inevitável. Quando Aenobarbo o acusou na Assembleia de ter destruído deliberadamente bens de Roma - em particular os instrumentos de cerco e acampamentos, Lúculo limitou-se a dizer com um ar altivo que pensava que o novo governador devia querer começar as coisas à sua maneira. E que ele, Lúculo, gostava de deixar as coisas como as encontrara, e fora precisamente o que fizera no fim do seu mandato: deixara a Sicília tal como a encontrara. O pior desgosto de Servílio, o Augure, era a falta de um exército: deduzira que Lúculo deixaria ficar as suas legiões. Porém, não enviara a Lúculo nenhum pedido formal. Por isso, Lúculo insistia que na ausência de um pedido de Servílio, o Augure, tinha o direito de fazer o que entendesse com os seus soldados. E entendera que os soldados seriam desmobilizados.

Deixei a Servílio, o Augure, uma nova mesa, limpa de todas as minhas acções explicou Lúculo na Assembleia. Caio Servílio Augure é um Homem Novo, e os Homens Novos têm a sua maneira própria de fazer as coisas. Por isso, considerei que estava a fazer-lhe um favor.

Sem um exército, Servílio, o Augure, pouco pode fazer na Sicília. E com Catulo César a passar pelo crivo os poucos recrutas que a Itália possa lançar na sua rede, é pouco provável que a Sicília tenha um novo exército este ano. Os veteranos de Lúculo estão dispersos por todo o lado, a maioria deles de bolsas bem recheadas, e não têm grande vontade que os encontrem.

Lúculo bem sabe que se arrisca a ser processado, mas não me parece que isso o preocupe. Teve a satisfação de destruir por completo qualquer hipótese de ajudar Servílio, o Augure, a ganhar os louros à sua custa. E Lúculo está mais interessado nisto do que em evitar ser processado. Por isso, tem feito tudo o que pode fazer para proteger os seus filhos, pois obviamente imagina que Aenobarbo e o Augure usarão o novo tribunal de traição composto por cavaleiros para mover um processo contra ele, garantindo a condenação. Lúculo transferiu todos os bens que pôde para o filho mais velho, Lúcio Lúculo, e deu o mais novo, agora com treze anos de idade, a adoptar aos Terêncios Varrões. Não há nenhum Marco Terêncio Varrão nesta geração e a família é extremamente próspera.

Escauro disse-me que o Suíno que anda muito perturbado com tudo isto e tem razão, pois se Lúculo for condenado, terá de acolher em sua casa a sua escandalosa irmã Metela Calva, diz que os dois rapazes juraram vingar-se de Servílio, o Augure, logo que tenham idade para o fazer. Parece que o rapaz mais velho, Lúcio Lúculo Júnior, está muito amargurado, o que não é de espantar. Se é exteriormente parecido com o pai, por que motivo não há-de igualmente parecer-se com ele no interior? E execrável ser votado à desgraça pela ambição presunçosa de Augure, um nocivo Homem Novo.

E é tudo, de momento. Manter-te-ei informado. Gostava de poder estar aí para te auxiliar com os Germanos, não porque precises da minha ajuda mas porque me sinto excluído quanto a esse problema.

Mário e Sila só souberam que os Germanos estavam a preparar-se para se mudarem para as terras dos Aduátucos quando o mês de Abril do calendário já ia avançado, e passou mais um mês até Sertório chegar com a notícia de que Bóiorix reunira o número suficiente de povos germanos para concretizar o seu plano. Os Cimbros e o grupo heterogéneo liderado pelos Tigurinos seguiu o curso do Reno, e os Teutões partiram para o sudoeste, descendo o Mosa.

Temos de partir do princípio de que os Germanos chegarão aos limites da Gália Italiana no Outono divididos em três grupos diferentes afirmou Mário, ofegante. Gostaria de estar lá para saudar Bóiorix pessoalmente quando ele descer o Ádige, mas não seria sensato. Primeiro terei de atacar e enfraquecer os Teutões. Espero que sejam o primeiro grupo a chegar, pelo menos até ao rio Druência, pois só a partir daí terão de atravessar território alpino. Se conseguirmos obter uma derrota completa sobre os Teutões, devemos ter tempo para atravessar o desfiladeiro do monte Gen... e interceptar Bóiorix e os Cimbros antes de entrarem na Gália Italiana.

- Não te parece que Catulo César pode acabar com ele sozinhw perguntou Mânio Aquílio.

- Não - respondeu Mário, muito simplesmente.

Mais tarde, a sós com Sila, Mário discorreu sobre as hipóteses que o seu colega júnior tinha contra Bóiorix. Porque Quinto Lutácio Catulo César comandaria o seu exército para norte do rio Ádige mal este estivesse treinado e equipado.

- Teremos cerca de seis legiões, e ele tem toda a Primavera e o Verão para prepará-las. Mas Catulo César não é um general. Esperemos que Teutobod chegue em primeiro lugar, esperemos conseguir derrotá-lo, atravessar os Alpes muito depressa e reunirmo-nos a Catulo César antes que BóIorix chegue ao lago Benaco.

Sila ergueu uma sobrancelha.

- As coisas não irão ser assim - disse, convencido de que tinha razão. Mário suspirou.

- Sabia que ias dizer isso!

- E eu sabia que sabias que ia dizê-lo - afirmou Sila, a sorrir. - Não é provável que qualquer das duas divisões que viajam sem Bóiorix consigam um tempo melhor do que os Cimbros. O problema é que não terás tempo para estar em cada um dos lugares no momento exacto.

- Então, ficarei aqui à espera de Teutobod - informou Mário, que acabara de tomar essa decisão. - Este exército conhece bem toda a região entre Massília e Arausio, e os homens precisam de uma vitória ao fim de dois anos de inacção. Aqui, têm muito boas hipóteses de vencer, Por isso, é aqui que eu devo ficar.

- Faço questão de salientar esse ”eu”, Caio Mário - comentou Sila, gentilmente. - Também tens algum plano para mim?

- Tenho. Desculpa, Lúcio Cornélio, por te ter tirado uma hipótese bem merecida de limpar o sebo a meia dúzia de Teutões, mas tenho de enviar-te como legado sénior ao serviço de Catulo César. Aceitar-te-á, pois és um patrício - explicou Mário.

Amargamente desiludido, Sila olhou para as suas mãos.

- Que utilidade posso ter ao serviço do exército errado?

- Não me preocuparia tanto se não visse todos os sintomas de Silano, Cássio, Cepião e Málio Máximo no meu cônsul júnior. Mas vejo, LúciO Cornélio! Catulo César não tem qualquer noção de estratégia ou de tácticas, pensa que, por ser de boas origens, os deuses lhas enfiaram no cérebro a nascença e que surgirão na altura certa. Mas como sabes, as coisas não são assim!

- Sei - assentiu Sila.

- Se Bóiorix e Catulo César se encontrarem antes de eu chegar à Gália Italiana, Catulo César cometerá qualquer terrível erro militar e perderá o exército. E se alguém o deixar fazer isso, não vejo como iremos ganhar. Dos três grupos, são os Cimbros os mais numerosos e os que tem o melhor comando. Além de que não conheço a configuração do terreno na Gália Italiana, no extremo do rio Pó. Só conseguirei vencer os Teutões com menos de quarenta mil homens se conhecer a região.

Sila tentou manter o ar de domínio superior, mas aquelas sobrancelhas derrotaram-no.

- Mas o que esperas que eu faça? - perguntou. - É Catulo César que comanda o exército e não Cornélio Sila! O que esperas que eu faça? Mário estendeu a mão e apertou o braço de Sila acima do pulso.

- Se o soubesse, poderia controlar Catulo César daqui - disse. - Lúcio Cornélio, conseguiste sobreviver mais de um ano entre os inimigos bárbaros como se fosses um deles. Tens uma inteligência tão penetrante como a tua espada e usas extremamente bem as duas. Não duvido que farás tudo o que for necessário para salvar Catulo César de si próprio.

Sila reteve a respiração.

- Então, as minhas ordens são salvar o seu exército a qualquer preço?

- A qualquer preço.

- Incluindo o próprio Catulo César?

- Incluindo o próprio Catulo César.

A Primavera encheu-se de flores e o Verão chegou, triunfante como um general no seu desfile triunfal. Depois, expandiu-se, quente e seco. Teutobod e os Teutões vieram em marcha constante através das terras dos Éduos e entraram nas terras dos Alóbrogos, que ocupavam toda a área entre o alto Ródano e o rio ísara, muitas milhas ao sul. Os Alóbrogos eram guerreiros e tinham um ódio secular a Roma e aos Romanos; mas esta hoste germana havia percorrido aquelas terras três anos antes e não queria os Germanos como seus suseranos. A luta foi feroz e o avanço teutónico abrandou. Mário começou a impacientar-se e a pensar como correriam as coisas a Sila, agora que uma parte do exército de Catulo César na Gália Italiana estava acampado perto do Pó.

Catulo César marchara pela Via Flamínia ao comando de seis novas legiões incompletas nos fins de Junho. A falta de homens era tão grave que não conseguira recrutar mais. Quando chegou à Bonónia Pela Via Aemilia, seguiu pela Via Annia até à grande cidade fabril de Patávio; ficava bastante para o leste do lago Benaco, mas era uma rota melhor para um exército em marcha do que as estradas laterais que predominavam na Gália Italiana. De Patávio, Catulo César percorreu uma dessas estradas mal conservadas que iam dar a Verona e montou aí o seu acampamento de base.

Até aqui, Catulo César não fizera nada que Sila pudesse apontar, no entanto compreendia agora o que levara Mário a transferi-lo para a Gália Italiana e ele considerara na altura uma tarefa menor. Militarmente, poderia sê-lo, mas Mário não se enganara na sua avaliação de Catulo César, pensou Sila. Soberbamente aristocrata, arrogante, extremamente autoconfiante, fazia-lhe lembrar Metelo Numídico. O problema era que o teatro de guerra e o inimigo que Catulo César defrontava eram muito mais perigosos do que aqueles com que se confrontava Metelo Numídico. E Metelo Numídico tivera Caio Mário e Públio Rutílio Rufo como legados, além da recordação de uma experiência salutar num chiqueiro da Numância. Ao passo que Catulo César nunca se encontrara com Caio Mário durante a sua ascensão militar; cumprira o serviço obrigatório como cadete e fora tribuno dos soldados com homens menores, ao comando de guerras menores: Macedónia, Espanha... A guerra em grande escala sempre fugira dele.

A recepção de Catulo César a Sila não foi prometedora, pois embora tivesse escolhido os seus legados antes de partir de Roma, quando chegou à Bonónia encontrou Sila à sua espera com uma directiva do comandante supremo Caio Mário, dizendo que Lúcio Cornélio Sila fora designado seu legado sénior e segundo comandante. Era uma atitude arbitrária e despótica, mas Caio Mário não tivera outra alternativa. Os modos de Catulo César para com Sila eram glaciais e a sua conduta era obstrucionista. Apenas as origens de Sila lhe valiam, mas mesmo isso era enfraquecido pelo seu passado obscuro. Além do mais, Catulo César invejava Sila, pois via nele um homem que não só tinha vivido acções em teatros de guerra importantes, mas também fora brilhante na sua Missão de espionagem entre os Germanos. Se tivesse sabido do verdadeiro papel de Sila nessa missão, ainda veria Sila com maior suspeita do que antes.

Com efeito, Mário mostrara a sua genialidade habitual ao enviar Sila em vez de Mânio Aquílio, que também poderia ter provado o seu mérito de cão-de-guarda; é que Sila enervava Catulo César: era como se este sentisse permanentemente que havia uma sombra a persegui-lo - mas quando se virava, não via nada. Não havia legado sénior mais útil, mais disposto a tirar dos ombros de um general muito ocupado o fardo da administração diária e da inspecção do seu exército. E no entanto, Catulo César sabia que havia qualquer coisa errada. Por que motivo lhe enviara Mário este sujeito, senão por qualquer razão tortuosa?

Sila não tencionava acalmar os receios e suspeitas de Catulo César; pelo contrário, queria mantê-lo desconfiado e receoso, de forma a ganhar sobre ele um ascendente que poderia usar quando e se fosse necessário. Entretanto, encarregara-se de travar conhecimento com todos os tribunos militares e centuriões do exército e com muitos dos soldados. Entregue aos seus planos, ao longo dos treinos e exercícios que efectuava mal o acampamento foi montado perto de Verona, Sila foi-se tornando o legado sénior que todos os subordinados conheciam, respeitavam, e em quem confiavam. Sila precisava que as coisas se passassem assim, para o caso de ter de eliminar Catulo César.

Não era sua intenção mutilar ou matar Catulo César; o seu estatuto de patrício levava-o a proteger os outros nobres, nem que fosse de si próprios. Não sentia qualquer afecto por Catulo César mas sentia-o pela sua classe.

Os Cimbros tinham-se saído bem sob o comando de Bóiorix, que conduzira a sua divisão e a de Getorix até à confluência do Danúbio com o Aenus. Aí, deixou Getorix com uma viagem relativamente pequena para percorrer sozinho, e os Cimbros desceram o Aenus, em direcção ao sul. Em breve, atravessavam as terras alpinas dos Brenos, uma tribo de Celtas que recebera o nome do primeiro Breno. Esta tribo controlava o desfiladeiro de Breno, o mais baixo de todos os desfiladeiros que davam para a Gália Italiana, mas não podia impedir Bóiorix e os Cimbros de o transporem.

No fim do mês de Quinctilis do calendário, os Cimbros chegaram ao local em que o rio Ádige se unia ao Isarcus, que haviam seguido desde o desfiladeiro de Breno. Aí, no meio de prados verdejantes, os Cimbros espalharam-se um pouco para admirar a altura das montanhas contra o céu limpo. E foi aí que os descobriram os batedores de Sila.

Embora se presumisse preparado para todas as eventualidades, Sila não imaginara aquela com que tinha agora de se confrontar; não conhecia Catulo César o suficiente para prever a sua reacção à notícia de que os Cimbros se encontravam no vale do Ádige, prontos para invadir a Gália Italiana.

- Enquanto eu for vivo, nenhum germano porá um pé em solo italiano! - exclamou Catulo César em alta voz quando o assunto foi discutido em conselho. - Nenhum germano porá um pé em solo italiano! repetiu, erguendo-se imponentemente da sua cadeira e observando para os seus oficiais superiores um a um. - Vou dar ordem de marcha.

Sila olhou espantado.

- Ordem de marcha? - perguntou. - Ordem de marcha para onde?

- Para o Ádige, evidentemente - respondeu Catulo César, com uma expressão onde estava patente que considerava Sila um imbecil. - Farei os Germanos recuar para lá dos Alpes antes que algum nevão antecipado o torne impossível.

- Até que parte do Ádige subiremos? - perguntou Sila.

- Até os encontrarmos.

- Num vale estreito como o Ádige?

- Com certeza - respondeu Catulo César. - Ficaremos em grande vantagem em relação aos Germanos. O nosso exército é disciplinado, ao passo que o deles é uma enorme populaça desorganizada. É a melhor alternativa.

- A melhor alternativa é aquela onde as legiões tiverem espaço para desdobrarem em linha - sugeriu Sila.

- Há espaço mais do que suficiente no Ádige para o desdobramento de que necessitamos - e Catulo César recusou-se a ouvir mais argumentos. Sila deixou o conselho com a cabeça a fervilhar, pois os planos que fizera para os Cimbros tinham-se tornado inúteis; ensaiara o modo de apresentar a sua melhor alternativa para que Catulo César pensasse que tinha sido o autor do plano. E agora, era o próprio Sila que se via não só sem planos como também sem capacidade de formular nenhum. A menos que conseguisse convencer Catulo César a mudar de ideias.

Mas Catulo César não mudaria de ideias: deu ordens ao exército para marchar ao longo do Ádige até ao ponto em que este corria algumas milhas para o leste do lago Benaco, o maior dos delicados lagos alpinos que enchiam as vertentes dos Alpes Italianos. E o pequeno exército de vinte e dois mil soldados, dois mil cavaleiros e cerca de oito mil não combatentes marchou para o norte, onde o vale do Ádige se tornava mais estreito e ameaçador.

Por fim, Catulo César chegou ao posto comercial de Tridentum. Aí, elevavam-se três enormes picos denteados que haviam dado ao local o nome de ”Três Dentes”. O Ádige corria agora veloz, em águas fundas, pois a sua nascente vinha de montanhas onde as neves nunca derretiam por completo, e alimentavam o rio durante o ano inteiro. Para lá de Tridentum, o vale era ainda mais estreito; a estrada que ia dar à aldeia terminava no local onde o rio rugia sob uma longa ponte de madeira assente em pilares de pedra.

A cavalo à frente dos seus oficiais séniores, Catulo César olhou em volta, e meneou a cabeça, satisfeito.

- Isto faz-me lembrar Termópilas - disse. - É o lugar ideal para deter os Germanos até eles desistirem e recuarem em direcção ao norte.

- Todos os espartanos de Terinópilas morreram - comentou Sila. Catulo César ergueu as sobrancelhas com arrogância.

- E que importância tem, se repelirmos os Germanos?

- Mas eles não irão recuar, Quinto Lutácio! Se recuarem nesta altura do ano, só encontrarão neve mais para o norte; as suas provisões são reduzidas, e as plantas e cereais da Gália Italiana não se encontram a muitas milhas de distância - Sila abanou a cabeça com veemência. - Não os deteremos aqui - disse.

Os outros oficiais estremeceram, impacientes; todos tinham reparado no nervosismo de Sila desde o início da marcha até ao Ádige, e o bom senso avisava-os de que os actos de Catulo César eram disparatados. Sila não escondera o nervosismo; para impedir Catulo César de perder o exército, precisava do apoio dos seus oficiais.

- Lutaremos aqui - anunciou Catulo César, inamovível. Tinha a mente cheia de visões do imortal Leónidas e do seu pequeno grupo de Espartanos. Que importância tinha a morte prematura do corpo se a recompensa fosse a fama duradoura?

Os Cimbros estavam muito próximos. Mesmo que Catulo César quisesse, teria sido impossível avançar mais para norte de Tridentum. Apesar disso, Catulo César insistiu em atravessar a ponte com todo o seu exército e montar um acampamento no lado errado do rio, num lugar tão estreito que o acampamento se alongava por várias milhas de norte a sul, visto que as legiões se seguiam umas atrás das outras, ficando a última acampada perto da ponte.

- Tenho sido muito bem tratado - disse Sila ao centuriãoprimuspilus da legião mais próxima da ponte, um samnita encorpado de Atina chamado Cneu Petreio; a sua legião também era Samnita e era composta por auxiliares dos capite censi samnitas.

- Por que dizes que tens sido bem tratado? - perguntou Cneu Petreio, que observava a água da beira da ponte; esta não tinha balaustrada mas um parapeito baixo feito de barrotes.

- Tenho estado ao serviço de Caio Mário - respondeu Sila.

- Sorte a tua - comentou Cneu Petreio. - Esperava vir a ter essa hipótese - resmungou o homem com uma voz ridícula. - Mas não me parece que algum de nós venha a tê-la, Lúcio Cornélio.

Estava com eles outro homem, o comandante da legião, que era um tribuno eleito dos soldados, nada menos que Marco Emílio Escaurojúnior, filho do Presidente da Assembleia (e uma grande desilusão para o seu valente pai). Escauro Júnior abandonou a contemplação do rio para fitar o centurião.

- O que queres dizer com isso? - perguntou. Cneu Petreio voltou a resmungar:

- Iremos todos morrer aqui, tribunus.

- Morrer? Todos nós? Porquê?

- O que Cneu Petreio quer dizer, jovem Marco Emílio - explicou Sila pesarosamente -, é que fomos conduzidos para uma situação militar impossível por mais um incompetente de altas famílias.

- Não, estás completamente enganado - concordou o jovem Escauro ansiosamente. - Lúcio Cornélio, reparei que não compreendeste a estratégia de Quinto Lutácio quando ele a explicou.

Sila piscou o olho ao centurião.

- Explica-a tu então, tribunum militum! Sou todo ouvidos.

- Bem, os Germanos são em número de quatrocentos mil, e nós somos apenas vinte e quatro mil. Por isso, não podemos enfrentá-los num campo de batalha aberto - expôs o jovem Escauro, encorajado pelos olhares fixos dos dois militares. - A única forma que temos de derrotá-los é apertá-los numa frente que não seja mais vasta do que aquela que o nosso exército puder abranger, e atacar essa frente com as nossas capacidades superiores. Quando se aperceberem de que não se podem mexer, retirar-se-ão, que é a atitude habitual dos Germanos.

- É então assim que vês a situação - disse Cneu Petreio.

- É esta a situação! - retorquiu o jovem Escauro, impaciente.

- É esta a Situação! - repetiu Sila, desatando a rir.

- É esta a situação - repetiu Cneu Petreio, também a rir.

O jovem Escauro ficou espantado a observá-los, começando a temer tanta animação.

- Por favor, digam-me: qual é a graça? Sila enxugou os olhos.

- Tem graça, porque é irremediavelmente ingénuo - Sila ergueu a mão e varreu com ela as montanhas como se usasse um pincel, - Olha para ali! O que vês?

- Montanhas - respondeu o jovem Escauro, cada vez mais espantado.

- Carreiros, caminhos, atalhos, é o que nós vemos! - emendou Sila.

- Não reparaste naqueles pequenos socalcos que fazem as montanhas parecer saias de Minoa? Basta os Cimbros chegarem até ao topo pelos socalcos e cercam-nos em três dias. E então, jovem Marco Emílio, ficaremos entre o martelo e a bigorna. Seremos esmagados como escaravelhos.

O jovem Escauro ficou tão pálido que Sila e Petreio se dirigiram automaticamente na sua direcção, segurando-o para que não caísse à água, já que nada do que caísse naquele rio sobreviveria.

- O nosso general fez um mau plano - afirmou Sila duramente. Devíamos ter esperado pelos Cimbros entre Verona e o lago Benaco, onde teríamos mil alternativas e terreno suficiente para apanhá-los decentemente.

- Então, porque é que ninguém o diz a Quinto Lutácio? - sussurrou o jovem Escauro.

- Porque ele é mais um desses cônsules empertigados - disse Sila. Só ouve a algaraviada que tem dentro da cabeça. Se fosse um Caio Mário, ouvia. Mas isto é um non sequitur; Caio Mário não precisaria que lho dissessem! Não, jovem Marco Emílio, o nosso general Quinto Lutácio Catulo César pensa que é melhor lutar como em Termópilas. E, se te recordas da História, saberás que aquele pequeno caminho à volta da montanha foi o bastante para dar cabo de Leónidas.

O jovem Escauro pôs a mão na boca, pediu desculpa e dirigiu-se sobressaltado para a sua tenda.

Sila e Petreio ficaram a vê-lo afastar-se de mão na garganta.

- Isto não é um exército, mas sim um fiasco - comentou Petreio.

- Não. O exército é pequeno mas bom - contestou Sila. - O fiasco são os seus chefes.

- Exceptuando tu, Lúcio Cornélio - disse Petreio.

- Exceptuando eu.

- Tens alguma ideia em mente? - disse Petreio.

- Com efeito, tenho - e Sila sorriu, mostrando os seus grandes dentes.

- Posso perguntar qual?

- Penso que podes, Cneu Petreio. Mas prefiro responder-te ao lusco-fusco, sim? No local de reunião do teu acampamento - disse Sila. Passaremos o resto da tarde a convocar todos os primus pilus e centuriões principais das coortes para uma reunião ao lusco-fusco - Sila fez cálculos rápidos. - São ao todo setenta homens. Mas são setenta que contam. Agora, vai-te, Cneu Petreio! Leva as três legiões deste lado do vale, que eu montarei a minha mula fiel e levarei as três do outro’extremo.

Os Cimbros tinham chegado nesse mesmo dia a um local a norte das seis legiões de Catulo César; entraram no vale muito antes das suas carroças e depararam com as defesas do acampamento romano. E aí permaneceram, fervilhando, enquanto a notícia se espalhava pelas legiões e os Romanos iam espreitar a norte, pelos fracos peitoris, o espectáculo aterrador de uma enorme multidão de homens gigantescos.

A reunião de Sila no acampamento das legiões samnitas demorou pouco tempo. Quando acabou, havia ainda suficiente luz no céu para os participantes poderem seguir Sila através da ponte, até à aldeia de Tridentum, onde Catulo César estabelecera o seu estado-maior em casa do magistrado local. Catulo César também convocara uma reunião para discutir a chegada dos Cimbros, e estava ocupado a queixar-se da ausência do segundo-comandante quando Sila entrou na sala apinhada.

- Aprecio a pontualidade, Lúcio Cornélio - disse, friamente. - Senta-te, por favor, para podermos começar a planear o ataque de amanhã.

- Lamento, mas não tenho tempo para me sentar - replicou Sila, que

não trazia vestida a couraça mas sim a protecção de cabedal e pteryges, e vinha com a espada e o punhal embainhados.

- Se tens coisas mais Importantes a fazer, vai! - afirmou Catulo César, de rosto vermelho.

- Não tenciono ir a lado nenhum - explicou Sila a sorrir. - As coisas importantes que tenho a fazer estão exactamente nesta sala, e a mais importante de todas é que não haverá batalha amanhã, Quinto Lutácio. Catulo César levantou-se.

- Não haverá batalha? Porquê?

- Porque terás de enfrentar um motim e sou eu o seu instigador! Sila sacou da espada. - Venham, centuriões! -chamou. - Ficaremos apertados mas cabemos todos.

Nenhum dos homens que se encontravam na sala disse uma palavra que fosse: quer devido à fúria quer por terem ficado aliviados - Catulo César e os outros (nem todos os oficiais concordavam com a batalha do dia seguinte) - quer ainda por terem ficado desconcertados. Setenta centuriões entraram na sala e rodearam Sila, deixando livre um espaço de cerca de três pés entre eles e os oficiais de Catulo César, agora todos de pé, literalmente encostados à parede.

- Serás lançado da Rocha Tarpela por isto! - exclamou Catulo César.

- Se tiver de ser, aceito-o - disse Sila, embainhando a espada. - Mas quando é que um motim é apenas isso? Até onde deve um soldado obedecer à cegas? Será patriótico ir de livre vontade ao encontro da morte quando o general que deu as ordens é um imbecil?

Era evidente que Catulo César não sabia o que dizer; não conseguia encontrar a resposta adequada para uma honestidade tão brutal. Por outro lado, era demasiado orgulhoso para pronunciar queixas inarticuladas e sentia-se demasiado seguro para não dar resposta. Por fim, exclamou, com uma dignidade glacial:

- Isto é insustentável, Lúcio Cornélio! Sila assentiu.

- Estou de acordo; é insustentável. De facto, a nossa presença aqui em Tridentum é insustentável. Amanhã, os Cimbros encontrarão as centenas de carreiros e gado, cabras, cavalos e lobos, que atravessam as montanhas. Não há uma Anopaea, mas centenas delas! Tu não és Espartano, Quinto Lutácio. És Romano, e surpreende-me que vejas Termópilas como Espartano e não como Romano! Não aprendeste como Catão, o Censor, usou o caminho da Anopaea para cercar o rei Antíoco? Ou o teu tutor achava que Catão, o Censor, era de origens demasiado humildes para servir de exemplo a alguém além-hubris? No caso de Termópilas, é Catão, o Censor, que merece a mínha admiração e não Leónidas e a sua guarda real, totalmente liquidada! Os Espartanos estavam dispostos a morrer com o único intuito de atrasar os Persas o suficiente para que a frota grega tivesse tempo de se preparar em Artemísio. Só que não resultou, Quinto Lutácio. Não resultou! A frota grega pereceu e Leónidas acabou por morrer em vão. E terá Termópilas influenciado o curso da guerra contra os Persas? É evidente que não! Quando a seguinte frota grega obteve a vitória em Salamis, nada teve a ver com Termópilas. Podes dizer honestamente que preferes a elegância suicida de Leónidas à argúcia estratégica de Ternistócles?

- Estás a ver mal a situação - disse Catulo César, furioso por ver o seu orgulho em farrapos graças àquele Ulisses impostor; a verdade era que o que mais o preocupava não era o destino do seu exército ou o dos Cimbros, mas sim sair dali com a dignitas e auctoritas intactas.

- Não, Quinto Lutácio, tu é que estás a ver mal a situação - afirmou Sila. - O teu exército é agora meu por direito de insubordinação. Quando Caio Mário me enviou aqui - Sila pronunciou o nome com suavidade, no meio do silêncio total - deu-me apenas uma ordem: conseguir que este exército sobreviva intacto até ele poder vir assumir o seu comando, E isso só poderá acontecer quando Caio Mário tiver derrotado os Teutões. Caio Mário é o nosso comandante supremo, Quinto Lutácio, e neste momento estou a agir de acordo com as suas ordens. Quando as ordens de Mário colidem com as tuas, obedeço às dele e não às tuas. Se permitir que esta imbecil brincadeira militar continue, este exército morrerá no campo de batalha em Tridentum. Mas não vai haver batalha nenhuma em Tridentum. O exército vai bater em retirada esta noite. Em bloco. E sobreviverá para poder combater noutra altura, quando as hipóteses de vitória forem infinitamente maiores.

- Jurei que nem um germano poria um pé em solo italiano - disse Catulo César -, e não renunciarei à minha promessa.

- Como a decisão não é tua, Quinto Lutácio, não estás a renunciar à promessa - comentou Sila.

Quinto Lutácio Catulo César era um daqueles senadores da velha-guarda que se recusavam a usar o anel de ouro como sinal do seu cargo; em vez dele, usava o anel de ferro dos antigos senadores, e quando elevou a mão num gesto autoritário para os homens que enchiam a sala, o dedo indicador não deixou escapar um raio dourado; descreveu uma mancha cinzenta pelo ar. Totalmente silenciosos até vislumbrarem aquela mancha, os homens agitavam-se agora, mexiam-se, suspiravam.

- Saiam - ordenou Catulo César. - Esperem lá fora. Quero falar com Lúcio Cornélio a sós.

Os centuriões viraram costas e saíram, seguidos dos tribunos dos soldados, do estado-maior e dos legados séniores. Quando Catulo César ficou sozinho com Sila, dirigiu-se para a sua cadeira e sentou-se com lassidão.

Catulo César estava numa situação difícil e sabia-o. Fora o orgulho que o levara até ao Ádige; não o orgulho por Roma ou pelo seu exército mas o orgulho pessoal que o levara a anunciar que nenhum germano Pisaria o solo italiano. E a seguir recusara retratar-se, mesmo que fosse

à custa de Roma ou do seu exército. À medida que penetrava no vale, fora-se apercebendo do seu erro; mas o orgulho não lhe permitia admitir que errara. Quanto mais subia o rio Ádige, mais desanimado se sentia. E quando chegara a Tridentum e pensara na sua semelhança com Termópilas apesar da ausência de semelhanças geográficas imaginara uma morte digna para todos eles, salvando assim a sua honra, o seu orgulho fatal. Tal como Termópilas ficara na História, o mesmo aconteceria em Tridentum. A queda de meia dúzia de homens corajosos seria esquecida face a um inimigo imensamente superior em número. Forasteiro, vai dizer aos Romanos que aqui jazemos, por obediência às suas ordens! Com um monumento magnífico, e peregrinações, e poemas épicos imortais.

Ver os Cimbros avançar até ao extremo norte do vale trouxera Catulo César à razão, e a seguir Sila completara o processo. Era evidente que ele tinha bons olhos, atrás dos quais existia um cérebro, mesmo que este se enevoasse facilmente com a grandeza da suadignitas; os seus olhos tinham reparado nos numerosos socalcos que formavam degraus gigantescos nos declives verdejantes do topo das montanhas, e o seu cérebro apercebera-se da rapidez com que os Cimbros podiam contorná-los. Aquela região não era um desfiladeiro escarpado mas sim um vale alpino disposto num ângulo tal que as tropas não podiam desdobrar-se em fila e muito menos ter espaço para manobras militares.

Catulo César não conseguira sair-se bem deste dilema sem perder a face, e no início, o facto de Sila ter invadido a sua reunião parecera fornecer-lhe a solução: podia acusá-lo no Senado de ter amotinado as tropas, e levar a julgamento por traição todos os oficiais envolvidos, tanto Sila como todos os centuriões. Mas essa solução em breve deixara de fazer sentido. A rebelião era o mais grave dos crimes militares, mas uma rebelião que o deixava sozinho contra todos os oficiais e todo o seu exército (Catulo César percebeu logo que nenhum dos homens presentes na sala se recusaria a participar na rebelião) fez com que o bom senso se sobrepusesse àquela enorme estupidez. Se a batalha de Arausio nunca tivesse acontecido se Cepião e Málio Máximo não tivessem conspurcado para sempre o conceito de imperium do general romano aos olhos do Povo Romano, e mesmo de algumas facções do Senado as coisas passar-se-iam doutro modo. Mas Catulo César compreendeu muito rapidamente, após o aparecimento de Sila, que se insistisse que houvera um motim, seria ele o único culpado aos olhos do mundo romano, e seria ele o réu no tribunal especial criado por Saturnino.

Por isso, Catulo César respirou fundo e tentou a reconciliação.

Não quero voltar a ouvir falar em motim, Lúcio Cornélio afirmou. Não tinhas necessidade de tornar tão públicos os teus sentimentos. Devias ter vindo falar comigo em particular. Se tivesses procedido desse modo, poderíamos ter resolvido o assunto a sós.

Não estou de acordo, Quinto Lutácio disse Sila com gentileza. Se tivesse vindo falar contigo em privado, ter-me-ias mandado passear. Precisavas de uma boa lição.

Catulo César apertou os lábios; olhou do alto do seu comprido nariz romano; era um belo membro de um belo clã, louro e de olhos azuis, altivo.

Estiveste demasiado tempo ao serviço de Caio Mário comentou.

Este tipo de conduta não é digno de um patrício como tu.

Sila bateu com a mão na saia de tiras de couro, fazendo agitar as franjas e ornamentos de metal.

Oh, por todos os deuses, pára com essa verborreia, Quinto Lutácio! Estou enjoado com tanto exclusivismo! E antes de começares com as tuas tiradas acerca do nosso superior comum, Caio Mário, deixa-me recordar-te que tanto na carreira das armas como no comando militar, ele está para todos nós como o farol de Alexandria está para uma vela insignificante! Nem tu nem eu somos militares inatos! Mas a minha vantagem sobre ti é ter aprendido com o farol de Alexandria, pelo que a minha vela brilha mais do que a tua!

Esse homem é exagerado! disse Catulo César entredentes.

Não é, não! Podes balir e bramir à vontade, Quinto Lutácio, Caio Mário é o Primeiro Homem de Roma! O homem do Arpino derrotou-vos a todos e com vantagem.

Surpreende-me o teu apoio, mas prometo-te, Lúcio Cornélio, que não o esquecerei.

Aposto que não disse Sila, com severidade.

Lúcio Cornélio, aconselho-te a mudar de rumo nos próximos anos

sugeriu Catulo César. Senão, nunca chegarás a pretor, e muito menos a cônsul!

- Oh, adoro ameaças! - disse Sila em tom casual. - Quem estás a tentar enganar? As minhas origens permitem-no, e se chegar uma altura em que tenhas vantagem em agradar-me, é o que farás! Sila olhou para Catulo César manhosamente. Um dia, serei o Primeiro Homem de Roma. A árvore mais alta do mundo, tal como Caio Mário. E ninguém

pode cortar árvores assim tão altas. Quando tombam, é porque apodreceram por dentro.

Catulo César não respondeu, e Sila sentou-se numa cadeira e inclinou-se, servindo-se de vinho.

- Falemos do nosso motim, Quinto Lutácio. Desengana-te se pensas que não tenciono levá-lo até ao fim.

- Admito que não te conheço, Lúcio Cornélio, mas estes meses chegaram para perceber que haverá muito pouca coisa a que não estejas disposto para fazeres a tua vontade - disse Catulo César. Depois olhou para o seu anel de ferro de senador, como se pudesse retirar daí inspiração. já o disse antes e repito-o: não quero voltar a ouvir falar em motim engoliu em seco sonoramente. - Seguirei a decisão do exército de bater em retirada. Sob uma condição: que a palavra ”motim” não volte a ser pronunciada.

- Concordo, em nome do meu exército - disse Sila.

- Gostaria de ser eu mesmo a dar a ordem de retirada. Depois disso, suponho que já deves ter planeado a tua estratégia.

- É absolutamente necessário que sejas tu a dar a ordem de retirada, Quinto Lutácio. Tal como a ordem que irás dar aos homens que ficarem a aguardar a nossa saída - afirmou Sila. - E, com efeito, tenho uma estratégia planeada. É muito simples: ao romper da aurora, o exército levantará o acampamento e retirar-se-á o mais depressa possível. Todos devem estar do outro lado da ponte, ao sul de Tridentum, antes de escurecer. Os auxiliares samnitas são os que se encontram mais perto da ponte, pelo que poderão guardá-la até todos a terem atravessado e seguirão em último lugar. Preciso imediatamente de uma unidade de engenheiros, pois mal o último sanita tiver passado a ponte, teremos de destruí-la. É pena ser feita de pilares de pedra que não poderemos desmantelar, permitindo aos Germanos poder reconstruí-la. No entanto, não são engenheiros, e por isso levarão muito mais tempo do que nós a destruí-la, e a sua estrutura poderá cair quando Bóiorix mandar passar os homens. Se quiser dirigirse para o sul, terá de atravessar o rio aqui, em Tridentum. Por isso, temos de fazer que se atrase.

Catulo César levantou-se.

- Então acabemos com esta farsa de uma vez por todas. - Depois de pronunciar estas palavras, Catulo César saiu da sala, calmo e com um controlo total sobre si: começara já a processar a reparação da sua dignitas e auctoritas. - A nossa posição aqui é indefensável, pelo que ordeno

uma retirada total - disse em tom seco e claro. - Dei a Lúcio Cornélio instruções quanto ao modo como deve proceder, por conseguinte acatarão as suas ordens. No entanto, quero que fique bem claro que a palavra ”motim”nunca foi pronunciada. Entendido?

Os oficiais assentiram num murmúrio, contentes porpoderem esquecer a palavra.

Catulo César virou-se ao voltar a entrar.

- Podem ir-se embora - disse, por cima do ombro.

Quando o grupo se dispersou, Cneu Petreio juntou-se a Sila e dirigiram-se à ponte.

- Correu tudo muito bem, Lúcio Cornélio. Ele portou-se melhor do que eu esperava. Melhor que alguns da sua laia.

- Ele tem inteligência por detrás de toda aquela arrogância - disse Sila muito simplesmente. - Mas tem razão, ninguém pronunciou alguma vez a palavra ”motim”.

- Não a ouvirás saída dos meus lábios! - disse Petreio com fervor. Era noite escura mas a ponte estava iluminada por archotes, e atravessaram os barrotes separados sem grande dificuldade. No fim da ponte, Sila passou à frente dos centuriões e dos tribunos que os seguiam e falou-lhes:

- Preparem-se todos para partirmos ao primeiro raio de sol. As unidades de engenheiros e todos os centuriões devem apresentar-se uma hora antes. Tribunos dos soldados, acompanhem-me.

- Estou muito contente por ele estar connosco! - disse Cneu Petreio ao segundo centurião.

- Também eu. Mas não estou nada contente por aquele estar entre nós - comentou o segundo-centurião, apontando para Marco Emílio Escauro Júnior, que seguia Sila e os outros tribunos.

Petreio resmungou:

- Concordo contigo; causa-nos preocupações. Mas ficarei de olho nele amanhã. Podemos não ter ouvido falar de nenhum ”motim” mas os nossos homens do Sâmnio não hão-de ser enganados por um idiota romano, seja ele filho de quem for.

Ao romper do dia, as legiões começaram a mover-se. Tal como todas as manobras de tropas romanas bem treinadas, a retirada iniciou-se num silêncio notável e sem qualquer confusão. A legião mais distante da ponte foi a primeira a atravessá-la, seguida pela segunda legião mais afastada de modo que o movimento do exército se efectuou como o enrolar de um tapete. Felizmente a coluna de carga e todos os animais, excepto alguns cavalos reservados para os oficiais superiores, haviam sido deixados ao sul da aldeia e da ponte. Sila despachara-os pela estrada ao primeiro raio de sol, muito antes de partirem as legiões, e dera ordens para que metade do exército passasse à frente da coluna de carga e a outra metade a seguisse até Verona. Porque quando se afastassem de Tridentum, Sila sabia que os Cimbros não avançariam à velocidade necessária para os alcançarem.

De facto, os Cimbros estavam tão ocupados a investigar os carreiros pelos socalcos das montanhas, que só uma hora depois do nascer do Sol perceberam que os Romanos tinham batido em retirada. A confusão reinou até Bóiorix chegar, impondo a ordem na sua enorme hoste. Entretanto, a coluna romana movera-se com bastante rapidez; quando os Cimbros finalmente se formaram para atacar, a legião mais afastada da ponte já a atravessava a grande velocidade.

As unidades de engenheiros trabalhavam febrilmente por entre as vigas e contrafortes da ponte desde muito antes do nascer do Sol.

- É sempre a mesma coisa! - queixou-se o engenheiro-chefe a Sila, quando este veio ver como corriam as obras, - Sempre que há pressa em deitar uma ponte abaixo, aparece-me uma ponte romana perfeitamente construída.

- Achas que vais conseguir? - perguntou Sila.

- Assim o espero, legatus! No entanto, a ponte não tem nem uma amarra ou uma cavilha. As bases e os machos estão todos encaixados. E não posso deitar a ponte abaixo depressa sem uma grua maior do que a nossa, mesmo que tivesse tempo de montá-la. Receio que terá de ser à força, e ficará um pouco oscilante quando os últimos homens a atravessarem - avisou o engenheiro-chefe.

Sila franziu o sobrolho.

- Como é ”à força”?

- Vamos serrar os contrafortes e vigas principais.

- Continua, homem! Mandei vir cem cabeças de gado para te ajudarem. Chegam?

- Terão de chegar - respondeu o engenheiro-chefe, afastando-se para ver as obras de um ângulo diferente.

A cavalaria dos Cimbros avançou aos berros pelo vale, levando à frente as armações abandonadas de cinco acampamentos romanos, pois após a construção das muralhas e valas de rotina não houvera tempo de construir mais nada. Apenas a legião samnita se econtrava ainda no extremo da ponte e saía do acampamento quando os Cimbros se introduziram entre eles e a ponte, barrando-lhes o caminho. Os Samnitas dispuseram-se em fileiras e prepararam-se para enfrentar o ataque, de lanças em riste.

Do outro lado da ponte, Sila esperou pela primeira investida da cavalaria, ansioso por ver a atitude do comandante da legião samnita. O comandante era o jovem Escauro, e Sila lamentou não ter substituído aquele rapaz tímido - em comparação com o seu destemido pai - no comando. Mas agora era tarde; Sila não podia voltar a atravessar a ponte, visto que não tinha suficientes homens consigo e não confiava em Catulo César, pelo que não podia dar-lhe o comando da retirada. Ele também tinha de sobreviver. Sila não queria chamar a atenção dos Cimbros para a existência da ponte, pois se os bárbaros a vissem, veriam também cinco legiões romanas e uma coluna de carga em marcha para o sul, e não resistiriam a persegui-los. Se necessário, poria os animais a puxar as correntes que os ligavam à ponte minada; mas mal o fizesse, deixaria de haver qualquer esperança para a legião samnita.

Sila deu consigo a berrar:

- Faz uma investida, jovem Escauro, uma investida a norte! Fá-los recuar e leva os teus homens para a ponte!

Levadas pelo impulso da investida, as primeiras colunas de cavalaria dos Cimbros tinham passado o acampamento samnita, e as colunas da retaguarda recuavam para dar espaço para as colunas da frente se virarem, avançando depois a galope. Atacariam então o acampamento samnita a cavalo e esmagariam tudo, de modo que as hordas de guerreiros sem montada pudessem arrasar o que restasse. A partir daí, a cavalaria transformar-se- ia numa enorme pá que levaria os Samnitas para o norte, ao encontro da infantaria dos Cimbros.

A única hipótese dos Samnitas era atravessar a frente de colunas de cavaleiros da retaguarda, impedir as colunas da frente de voltar à carga e abater as montadas de ambas as colunas com as suas lanças, enquanto os que não estivessem envolvidos no combate se dirigiam rapidamente para a ponte. Mas onde estava o jovem Escauro? Por que motivo não fazia nada? Dentro em pouco, seria demasiado tarde!

Os aplausos das três centurias que se encontravam com Sila precederam a visão da investida dos Samnitas, pois Sila procurava um tribuno dos soldados montado a cavalo e foi um homem sem montada que conduziu a ofensiva, Era Cneu Petrei o, o centurião primus pilus.

Juntando-se à gritaria dos seus homens, Sila deu saltos de alegria quando os Samnitas que não estavam a combater desataram a correr em bloco pela ponte, impedindo a interferência dos Cimbros. As colunas da frente de cavalos dos Cimbros caíam às centenas face à chuva de lanças dos Samnitas; os guerreiros tentavam libertar-se das montadas abatidas emaranhando-se numa confusão crescente à medida que as lanças penetravam nos flancos e pescoços dos cavalos. Encurraladas pelos Samnitas, as colunas da retaguarda da cavalaria dos Cimbros não tiveram melhor sorte. Por fim, era a cavalaria destroçada dos Cimbros que impedia o avanço dos seus próprios guerreiros sem montada. E Cneu Petreio atravessou a ponte atrás do último dos seus homens sem que nenhum germano o perseguisse.

Muito antes de tudo isto já os bois tinham começado a sua tarefa, pois o esforço das várias centenas de animais atados aos pares não era imediatamente visível: depois dos animais da frente, puxaram os seguintes, e assim por diante até as correntes se retesarem e a ponte começar a ceder. Como a ponte era sólida, à semelhança de todas as pontes romanas, aguentou-se muito mais tempo do que o previsto pelo engenheiro-chefe, um sujeito pessimista, tal como todos os seus colegas. Mas por fim um dos contrafortes separou-se, e por entre rugidos, palmadas, estalidos e berros, a ponte de Tridentum sobre o Ádige cedeu. As vigas de madeira desceram pela correnteza e afastaram-se rapidamente como palhas a balançar numa fonte de jardim,

Cneu Petreio tinha um ferimento, mas não era grave; Sila encontrou-o sentado enquanto os cirurgiões da legião lhe retiravam a cota de malha; tinha no rosto uma mistura de lama, suor e excrementos de cavalo, mas parecia estar em boa forma e na posse de todos os sentidos.

- Não toquem nessa ferida antes de a limparem, mentulae! - rosnou Sila. - Comecem por lavar bem todos os excrementos! Não vai esvair-se em sangue, pois não, Cneu Petreio?

- Cneu Petreio, não! - garantiu o centurião com um sorriso amplo.

- Conseguimos, Lúcio Cornélio! Fizemo-los passar todos, e só ficou uma meia dúzia de mortos do outro lado!

Sila baixou-se e aproximou a cabeça da do centurião para que ninguém mais o ouvisse.

- O que aconteceu ao jovem Escauro? Petreio fez uma expressão triste.

- Cagou-se todo em vez de pensar, e quando lhe perguntei o que devia fazer entregou-me o comando. Teve um colapso. Está bem, o desgraçado; alguns dos rapazes levaram-no até ao outro lado da ponte. É pena, mas lá está! Não tem nada da coragem do pai: nem um bocadinho. Devia ter ido para bibliotecário.

- Não consigo exprimir o meu contentamento por teres sido tu que lá estavas e não qualquer outro primus pilus. Não pensei! E quando comecei a pensar, arrependi-me por não tê-lo substituído - afirmou Sila.

- Não faz mal, Lúcio Cornélio, tudo acabou em bem. Ao menos, apercebeu-se das suas limitações.

Os cirurgiões estavam de volta com água e esponjas que chegavam para lavar uma dúzia de homens; Sila levantou-se para deixá-los trabalhar, e estendeu o braço direito. Cneu Petreio também estendeu o seu, e os dois homens exprimiram tudo o que sentiam naquele aperto de mão.

- Mereces a coroa de ervas - disse Sila.

- Não! - afirmou Petreio, embaraçado.

- Sim. Salvaste a vida a uma legião inteira, Cneu Petreio, e quando um homem sozinho salva uma legião da morte, recebe a coroa de ervas. Eu próprio tratarei disso - disse Sila.

Seria essa a coroa de ervas que julilla vira no seu futuro há tantos anos?, pensou Sila, enquanto descia a encosta para mandar preparar uma carroça para transportar Cneu Petreio, o herói de Tridentum. Pobre Julilla! Pobre Julilla... Nunca conseguira fazer nada bem, e talvez o mesmo acontecesse nos seus atritos contra as estranhas manifestações da deusa Fortuna. Julilla fora a única Júlia que não nascera com o dom de fazer os homens felizes. Então, a mente de Sila dedicou-se a coisas mais importantes; não era agora que Lúcio Cornélio Sila ia começar a culpar-se pelo destino de Julilla. O seu destino não tinha nada a ver com ele; fora ela própria que o traçara.

Catulo César levou o seu exército de volta ao acampamento perto de Verona antes de Bóiorix conseguir fazer passar a última carroça pela última das diversas pontes vacilantes e iniciar a descida até às planícies luxuriantes do rio Pó. No início, Catulo César insistira para que combatessem os Cimbros perto do lago Benaco; mas Sila, agora firme no seu posto, não o permitira. Em vez disso, dissera a Catulo César que avisasse todas as cidades e aldeias desde a Aquileia, no Leste, até Como e Mediolano, no Oeste: a Gália Transalpina Italiana ia ser evacuada de todos os cidadãos romanos detentores dos Direitos Latinos e Gauleses que não estivessem dispostos a confraternizar com os Germanos. Os refugiados deviam dirigir-se para o sul do Pó e abandonar a Gália Transalpina aos Cimbros.

- Comportar-se-ão como porcos em cama de bolota - comentou Sila confiante, veterano de um ano de permanência entre os Cimbros. - Quando virem as pastagens e a paz que se sente entre o lago Benaco e a margem norte do Pó, Bóiorix não terá mão no seu povo. Vais ver que se dispersarão em todas as direcções.

- Vão saquear, devastar, queimar tudo - disse Catulo César.

- Sim, e esquecer-se do que deviam estar a fazer, nomeadamente de invadir a Itália. Anima-te, Quinto Lutácio! Ao menos esta parte da Itália é na sua maioria terra dos Gauleses da vertente italiana dos Alpes, e esses não vão vasculhar o Pó até o verem tão limpo como um homem esfomeado deixa uma carcaça de frango. O nosso povo terá partido muito antes de chegarem os Germanos, levando consigo todos os seus bens. A terra ficará para nós; voltaremos quando Caio Mário chegar.

Catulo César estremeceu, mas ficou calado; sabia como Sila podia ser mordaz. Mas acima de tudo, sabia como podia ser cruel: frio, inflexível, determinado. Era estranho que fosse amigo íntimo de Caio Mário, embora fossem cunhados. ”Será que Sila também se tinha visto livre da sua Júlia?”, pensou Catulo César, que durante as muitas horas de pensamento dedicadas a Sila se lembrara de um boato que correra entre os irmãos do clã de Júlio César e as suas famílias na altura em que Síla surgira da obscuridade para a vida pública e casara com a Júlia-Julilla. Dizia-se que Sila arranjara o dinheiro para a sua carreira matando a... mãe?... a madrasta?... a amante?... o sobrinho? Catulo César pensou que quando regressasse a Roma faria questão de averiguar a verdade desse boato. Não iria usá-lo banal e ruidosamente, nem de imediato; só queria deixá-lo de lado para usá-lo no futuro, quando Lúcio Cornélio quisesse concorrer ao cargo de pretor. Não quando fosse edil: iria dar-lhe esse prazer, assim como o levaria ao escoamento ruinoso da sua bolsa. Quando fosse pretor.

Depois de as legiões se terem instalado no acampamento, perto de Verona, Catulo César sabia que a primeira coisa a fazer era avisar Roma o mais depressa possível da catástrofe do Ádige; se não o fizesse, suspeitava que Sila o faria através de Caio Mário, por isso era importante que a sua versão fosse a primeira. Como os dois cônsules estavam em campanha, os despachos eram enviados ao Presidente da Assembleia, Marco Emílio Escauro Princeps Senatus, e foi a este que Catulo César enviou o relatório, bem como uma carta particular que contava os acontecimentos em mais pormenor. Catulo César confiou-os ao jovem Escauro, filho do Princeps Senatus, ordenando-lhe que fosse a galope entregar a encomenda a Roma.

- É o nosso melhor cavaleiro - disse Catulo César a Sila com malícia. Sila fitou-o com o mesmo desprezo irónico e superior que mostrara durante a conversa acerca do motim.

- Sabes, Quinto Lutácio, possuis o tipo de crueldade mais requintada que já conheci - disse Sila.

- Pretendes dar uma contra-ordem? Tens poder para fazê-lo Mas Sila encolheu os ombros e virou costas.

- O exército é teu, Quinto Lutácio, por isso faz o que quiseres. E Catulo César fez o que queria: mandou a Roma o jovem Emílio Escauro a toda a velocidade, com a notícia da sua própria desgraça.

- Marco Emílio Júnior, se te dei esta tarefa foi porque não conheço pior castigo para um cobarde com as tuas origens familiares do que levar ao próprio pai a notícia do seu fracasso tanto militar como pessoal - explicou Catulo César, num tom comedido, pontifical.

O jovem Escauro, pálido, cabisbaixo, com muitas libras a menos em relação ao que tinha duas semanas antes, pôs-se em sentido e tentou não olhar para o general. Mas quando Catulo César lhe indicou a sua missão, os olhos do jovem Escauro - uma versão mais clara e menos bonita dos olhos verdes do pai - fixaram-se com relutância no rosto altivo de Catulo César.

- Por favor, Quinto Lutácio! - disse, aflito. - Por favor, peço-te que mandes outro mensageiro! Deixa-me encarar o meu pai quando sentir que estou preparado para isso!

- Estarás preparado, Marco Emílio Júnior, quando Roma estiver afirmou Catulo César num tom glacial, cheio de desprezo. - Partirás para Roma a galope e entregarás o despacho ao Princeps Senatus. Poderás ser cobarde em combate, mas és um dos melhores cavaleiros e o teu nome é suficientemente ilustre para te permitir obter boas montadas durante todo o trajecto. Não tens razões para temer! Os Germanos estão muito para o Norte e por isso não depararás com nenhuma ameaça no Sul.

O jovem Escauro galopou em direcção a Roma pela Via Ápia e pela Via Cássia; era um trajecto curto mas penoso. A cabeça elevava-se e descia ao ritmo do galope, e os dentes entrechocavam-lhe como o bater do coração, num som curiosamente reconfortante. De vez em quando, falava sozinho.

- Se pudesse encher-me de coragem, não acham que o faria? - perguntou ao vento, à estrada e ao céu, seus ouvintes fantasma. - O que posso fazer se não sou corajoso, pai? Donde vem a coragem? Porque não terei recebido a minha quota-parte? Como poderei explicar-te a dor e o medo, o terror que senti quando aqueles terríveis selvagens avançaram aos berros e gritos como as Fúrias? Não consegui mexer-me! Nem pude controlar os intestinos, quanto mais o coração! Senti-o inchar cada vez mais até rebentar, até cair inanimado, feliz por ter morrido! E depois, ao acordar, descobri que ainda estava vivo e cheio de terror, sem poder conter os intestinos. Os soldados que me salvaram lavavam no rio a minha merda, à minha vista, com um tal desprezo, um tal ódio! Oh, pai, o que é a coragem? Onde ficou a minha? Pai, ouve-me, deixa-me tentar explicar-te! Como podes culpar-me por algo que não possuo? Pai, ouve-me!

Mas Marco Emílio Escauro Princeps Senatus não quis ouvir. Encontrava-se no Senado quando o filho veio com a encomenda de Catulo César, e quando chegou a casa, o filho fechara-se no quarto, tendo deixado ao mordomo um recado dizendo ao pai que trouxera uma missiva do cônsul e esperaria que a lesse e mandasse chamá-lo ao quarto.

Escauro decidiu ler logo o despacho, com um ar severo mas agradecido por as legiões estarem a salvo. A seguir, leu a carta de Catulo César, soletrou as terríveis palavras uma a uma, afundando-se cada vez mais na cadeira até ficar a meia altura, e os olhos encheram-se de lágrimas que formaram enormes borrões no papel. Era óbvio que Escauro conhecia bem Catulo; não se surpreendeu e ficou profundamente agradecido por um legado tão forte e destemido como Sila ter estado por perto para proteger aquelas tropas tão valiosas.

Mas Escauro imaginara que, na agonia, o filho iria descobrir a coragem, a valentia que Escauro cria existir em todos os homens, ou pelo menos em todos os da sua família. Aquele rapaz fora o único filho que tivera. E agora, a sua linhagem ia terminar na vergonha e na ignomínia! Mas o destino estava certo, se era essa a maneira de ser do seu único filho.

Escauro inspirou e tomou uma decisão. Não haveria dissimulação, reabilitação ou desculpas: isso era para Catulo César. O seu filho era um cobarde comprovado; abandonara as tropas na hora de maior necessidade, de um modo mais humilhante do que se tivesse fugido: o rapaz borrara-se todo e desmaiara. Tinham sido os soldados a salvá-lo, quando devia ter acontecido o contrário. Escauro resolveu suportar aquela vergonha com a coragem de sempre. Que o filho sentisse a troça de toda a cidade!

já sem lágrimas, de rosto composto, Escauro chamou o mordomo e quando este apareceu, encontrou o amo muito direito, sentado na cadeira, de mãos entrelaçadas sobre a mesa.

- Marco Emílio, o teu filho está ansioso por ver-te - informou o mordomo, consciente de que algo de grave se passava, pois o JOvem estava a agir de modo muito estranho.

- Diz a Marco Emílio Escaurojúnior - transmitiu-lhe Escauro que embora o deserde não lhe retirarei o nome de família. O meu filho um cobarde, um cão rafeiro poltrão, mas Roma inteira o associará ao nosso nome. Diz-lhe que não mais o verei até morrer. E ainda que não é bem-vindo nesta casa, nem que venha pedir à porta. Diz-lhe isto! Diz-lhe que enquanto for vivo, nunca mais o admitirei à minha presença! Vai, diz-lhe isto! Diz-lhe!

Estremecendo com o choque e chorando pelo desafortunado jovem, de quem gostava - e censurando-se porque nos últimos vinte anos poderia ter avisado o pai de que o filho não tinha coragem, força física ou recursos internos - o mordomo foi dizer ao jovem Escauro o que o pai mandara.

- Obrigado - disse o jovem, fechando de seguida a porta, sem no entanto a trancar.

Quando o mordomo se arriscou a entrar no quarto do jovem algumas horas mais tarde, pois Escauro perguntara se aquele que deixara de ser seu filho já saíra de casa, encontrou o jovem Escauro morto no chão. Acabara por ser a única vítima que a sua espada considerara indigna, fazendo-a imergir afinal no próprio sangue.

Mas Marco Emílio Escauro Princeps Senatus manteve a palavra. Recusou-se a ver o filho, apesar de morto. E expôs no Senado a litania dos desastres ocorridos na Gália Italiana com a habitual energia e sentido de humor, incluindo o relato franco e fiel da cobardia e do suicídio do filho. Não se poupara nem mostrara mágoa.

Depois da sessão, quando Escauro esperava Metelo Numídico nas escadas do Senado, interrogou-se se os deuses lhe teriam concedido tanta bravura que não tivesse restado nenhuma para o filho, tal era a coragem necessária para esperar ali por Metelo Numídico enquanto os senadores passavam por ele a correr, compadecidos, ansiosos, tímidos, sem vontade de parar.

- Oh, meu caro Marco! - exclamou Metelo Numídico mal ficaram sós. - Caríssimo Marco, o que poderei dizer?

- Acerca do meu filho, nada - respondeu Escauro, com um raio de calor a furar os restos de gelo no seu peito; como era bom ter amigos! Em relação aos Germanos, como conseguiremos evitar o pânico em Roma?

- Oh, não te preocupes com Roma - tranquilizou-o Metelo Numídico, calmamente. - Roma sobreviverá. O pânico durará um dia, o dia seguinte e o outro ainda, e no próximo dia de mercado tudo terá voltado ao normal! Alguma vez ouviste falar de gente que se mudasse por no lugar que habitam não haver tendência para terramotos, ou por terem um vulcão fumegante ao pé da porta?

- É verdade; ninguém o faz. Pelo menos, até uma viga cair e esmagar a avozinha, ou a velhota cair num poço de lava - disse Escauro, profundamente contente por descobrir que conseguia ter uma conversa normal e até rir um pouco.

- Não tenhas medo que havemos de sobreviver, Marco - Metelo Numídico engoliu e mostrou a sua coragem, dizendo: - Caio Mário continua à espera dos Germanos que tem à sua conta. Se ele for vencido, então, teremos razões para nos preocuparmos. Porque se Caio Mário não conseguir derrotá-los, ninguém conseguirá.

Escauro pestanejou, interpretando o gesto de Metelo Numídico como algo de tão heróico que era melhor não fazer comentários; além do mais, convinha-lhe ordenar ao cérebro que se esquecesse para sempre do facto de Metelo Numídico alguma vez ter admitido que Caio Mário era a melhor alternativa para Roma... e o seu melhor general.

- Quinto, tenho apenas uma coisa a referir acerca do meu filho, e depois podemos fechar esse livro - disse Escauro.

- O que é?

- A tua sobrinha, a tua protegida, Metela Dalmática. Este maldito episódio incomodou-te muito e também a ela. Mas diz-lhe que teve uma saída de sorte. Não teria sido nenhuma alegria para uma Cecília Metela descobrir que casara com um cobarde - afirmou Escauro bruscamente.

De súbito deu consigo a caminhar, e ao virar-se viu Metelo Numídico parado, pasmado a olhar para ele.

- Quinto? Quinto? Há algum problema? -perguntou Escauro, voltando para junto do amigo.

- Problema? - perguntou Metelo Numídico, voltando a si. - Por amor, não, não há nenhum problema! Oh, meu caríssimo Marco! Acabei de ter uma ideia esplêndida!

- Sim?

- Porque não casas tu com a minha sobrinha Dalmática? Escauro gaguejou.

- Eu?

- Sim, tu! És viúvo há vários anos e agora não tens nenhum filho para herdar o teu nome ou a tua fortuna. Isso, Marco, é que é uma tragédia - comentou Metelo Numídico com grande afecto e insistência. É uma rapariguinha gentil e tão bonita! Vamos, Marco, enterra o passado, começa tudo de novo! Além do mais, é muito rica.

- Eu não seria melhor do que aquele bode inquieto, Catão, o Censor

- alegou Escauro num tom que continha a hesitação suficiente para mostrar a Metelo Numídico que estava disposto a aceitar se a oferta fosse a sério. - Quinto, eu tenho cinquenta e cinco anos!

- Estás pronto para outros cinquenta e cinco.

- Olha para mim! Vá, olha para mim! Careca, com barriga, mais encarquilhado que o elefante de Aníbal, a começar a curvar, atacado de reumático e de hemorróidas... não, Quinto, não!

- A Dalmática é suficientemente nova para achar num avô o tipo de marido certo - asseverou Metelo Numídico. - Oh, Marco, dar-me-ia tanto prazer! Vamos, o que dizes?

Escauro pôs a mão na careca, arfando mas sentindo ao mesmo tempo um novo alento dentro de si.

- Acreditas sinceramente que poderia resultar? Achas que eu poderia ter uma nova família? Estaria morto antes de eles crescerem!

- Por que hás-de morrer novo? Pareces-me uma daquelas coisas egípcias: preservado para durar mais mil anos. Quando morreres, Marco Emílio, Roma abalará até aos alicerces.

Começaram a caminhar ao longo do Fórum em direcção às Escadas de Vesta, embrenhados na discussão à qual davam ênfase levantando a mão direita.

- Já viste aqueles dois? - perguntou Saturnino a Gláucia. - Aposto que estão a planear a queda de todos os demagogos.

- Aquele Escauro é uma trampa de velho sem coração - criticou Gláucia. - Como pôde falar daquele modo acerca do filho?

Saturnino fez um trejeito com a boca.

- Porque a família interessa mais do que os indivíduos que compõem. Mas foi uma táctica brilhante. Mostrou ao mundo que não falta coragem na família dele! O filho ia perdendo uma legião

romana, mas ninguém culpará Marco Emílio nem se virara contra a sua família.

Em meados de Setembro, os Teutões haviam atravessado Arausio e aproximavam-se da confluência do Ródano e do Druência; na fortaleza romana perto de Glanum os ânimos estavam cada vez mais exaltados.

- É bom comentou Caio Mário para Quinto Sertório enquanto faziam a inspecção.

- Há anos que esperávamos por isto afirmou Sertório.

Não têm medo, pois não?

Acreditam que os chefiarás bem, Caio Mário.

A notícia do fiasco em Tridentum fora trazida por Quinto Sertório, que de momento abandonara o disfarce de Cimbro; vira Sila em segredo e recebera uma carta para Mário com a descrição dos acontecimentos, e esta terminava informando-o de que o exército de Catulo César se dirigira para um acampamento de Inverno perto de Placência. Depois chegou uma carta de Rutílio Rufo, dando o ponto de vista da situação em Roma.

Suponho que terá sido tua a decisão de enviar Lúcio Cornélio para ficar de olho no nosso arrogante amigo Quinto Lutácio, e aplaudo-a calorosamente. Circulam todo o tipo de boatos, mas ninguém parece ser capaz de destrinçar a verdade, nem mesmo os boni. Certamente já sabes através dos ofícios de Lúcio Cornélio que mais tarde, quando o assunto germano estiver acabado, invocarei a minha amizade para contigo para que me dês a explicação verdadeira. Até agora, ouvi falar de motim, cobardia, confusões e crimes militares. O mais fascinante é a brevidade e - ousarei dizê-lo? a honestidade do relatório de Quinto Lutácio para a Assembleia. Mas será mesmo honesto? Uma mera admissão de que, ao deparar com os Cimbros, percebeu que Tridentum não era o local adequado para um combate e bateu em retirada para salvar o seu exército, destruindo primeiro uma ponte e atrasando o avanço dos Germanos. Tem de haver mais! Posso ver o teu sorriso enquanto lês.

Este lugar fica muito morto sem os cônsules. Lamentei muito Marco Emílio, claro, e imagino que também o lamentas. O que pode um homem fazer ao perceber que criou um filho indigno de usar o seu nome? Mas o escândalo morreu depressa, por duas razões. Primeiro, porque todos respeitam muito Escauro (esta carta vai ser longa, pelo que perdoarás o modo cognomenj, quer gostem dele quer não, e quer concordem ou não com as suas medidas. A segunda razão é muito mais sensacional. O velho culibonia astucioso (que tal o trocadilho?) deu a toda a gente um novo tema de conversa: casou com a amada do seu filho, Cecília Metela

Dalmática, agora à guarda de Metelo Numídico Suíno. A rapariga tem dezassete anos! Se não fosse tão cómico, choraria. Embora não a conheça, ouvi dizer que é um amor, muito amável e bonita um pouco difícil de crer que tenha vindo daquele estábulo, mas acredito! Devias ver o Escauro como ririas! Anda positivamente emproado. Estou a pensar seriamente em dar um passeio pelas melhores salas de aula de Roma à procura de uma menina núbil para ser a nova senhora de Rutílio Rufo!

Vamos ter uma séria falta de cereais este Inverno, ó cônsul sénior, para te recordar os deveres ligados ao teu cargo que os Germanos te impossibilitaram de resolver. No entanto, disseram-me que em breve Catulo César deixará Sila ao comando em Placência, regressando a Roma para o Inverno. Estou certo de que não há novidades em relação a ti. A questão de Tridentum fortaleceu a tua candidatura in absentia para outro consulado, mas Catulo César não irá concorrer a nenhumas eleições até depois de te encontrares com os teus Germanos! Isso deverá ser muito difícil para ele, pois para bem de Roma espera que tenhas uma vitória grandiosa, mas para seu bem está ansioso por que caias redondo sobre o teu podex de camponês. Se venceres, Caio Mário, serás certamente cônsul no próximo ano. A propósito, foi uma manobra inteligente libertar Mânio Aquíliopara concorrer ao consulado. O eleitorado ficou terrivelmente impressionado quando ele chegou, declarou a sua candidatura e a seguir disse muito firmemente que ia voltar par a combater contigo os Germanos, mesmo que isso implicasse não poder estar em Roma para as eleições e acabar por falhar a candidatura. Se derrotares os Germanos, Caio Mário e enviares Mânio Aquílio de volta imediatamente terás um colega júnior com quem poderás trabalhar, para variar.

Caio Servílio Gláucia, companheiro do teu quase-cliente Saturnino sei bem que é um comentário desagradável! anunciou que vai candidatar-se a tribuno da plebe. Será como um gatarrão entre os pombos! Por falar nos Servílios e voltando à escassez de cereais, Servílio, o Augure, prossegue a sua desgraça na Sicília. Como te disse numa missiva anterior, estava mesmo à espera que Lúculo lhe entregasse de mão beijada tudo o que estabelecera a tanto custo. Agora, todos os dias em que há mercado e com a regularidade dos movimentos intestinais de quem come ameixas, a Assembleia recebe uma carta onde Servílio, o Augure, se lamenta da sua sorte e reitera que processará Lúculo assim que regressar a Roma. O rei-escravo está morto Sálvio ou Trifão, era como se intitulava e foi eleito o grego asiático chamado Atenião. Este é mais esperto do que Sálvio Trifão. Se Mânio Aquílio for eleito teu cônsul júnior, talvez seja boa ideia enviá-lo para a Sicília e arrumar a questão de uma vez por todas. Neste momento, é o rei Atenião que governa a Sicília e não Servílio, o Augure. Porém, a minha queixa acerca da confusão da Sicília é puramente

semântica. Sabes o que aquele culibonia velho e desprezível teve a lata de dizer na Assembleia no outro dia? Refiro-me a Escauro, que lhe caia o aparelho promativo pelo uso excessivo! ”A Sicília”, rugiu, ”tornou-se uma Ilíada de calamidade!”, e todos correram para ele no fim da sessão e o cobriram de elogios xaroposos por ter inventado um epigrama tão bem feito! Como soubeste pela minha missiva anterior, esse epigrama pertence-me! Deve ter-me ouvido dizê-lo, o maldito!

Agora, volto ao assunto dos tribunos da plebe deste ano. Têm sido muito desinteressantes razão pela qual, embora estremeça ao dizê-lo, estou bastante contente por Gláucia se ir candidatar no ano que vem. Roma é um lugar muito chato sem uma ou duas rixas decentes a decorrer nos Comícios. Mas tivemos há pouco um dos mais estranhos incidentes tribúnicws, e os boatos circulam a grande velocidade.

Há cerca de um mês, chegaram à cidade doze ou treze sujeitos com trajos notáveis” casacos de cores brilhantes entretecidos com ouro puro que lhes chegavam aos pés, jóias tombando-lhes das barbas, caracóis e lóbulos das orelhas; cabeças de onde pendiam belos lenços bordados. Senti-me como se estivesse no meio de um cortejo. Apresentaram-se como sendo uma embaixada e pediram para ser recebidos pelo Senado numa sessão especial. Mas depois de o nosso venerado e rejuvenescido ladrão de expressões, Escauro Princeps Senatus, ter examinado as suas credenciais de um modo brincalhão, negou-se a conceder-lhes audiência alegando que não tinham estatuto oficial. Diziam vir do santuário da Grande Deusa em Pessino, na Anatóha Frigia, e ter sido mandados pela Grande Deusa a desejar felicidades a Roma na sua luta contra os Germanos! Ouço-te perguntar: Mas por que motivo havia a Grande Deusa de ligar aos Germanos? Andamos todos intrigadíssimos com este assunto e estou certo de que foi por isso que Escauro recusou qualquer contacto com estes sujeitos garridos.

Porém, ninguém entende o que pretendem. Os orientais são tão vigaristas que um Romano que valha o pão que come fecha a sua bolsa e amarra-a debaixo do sovaco logo que os vê. Mas estes não são vigaristas! Andam por Roma a espalhar dinheiro como se as suas bolsas não tivessem fundo. O chefe deles é um espécime extremamente pomposo chamado Battaces. Salta bem à vista, pois tem vestes de ouro genuíno por todo o corpo e na cabeça uma enorme coroa de ouro maciço. Já tinha ouvido falar em vestes de ouro mas nunca pensei chegar a vê-las, a menos que fosse ver o rei Ptolomeu ou o rei dos Partos.

As mulheres desta nossa imbecil cidade ficaram doidas com Battaces e a sua escolta, ofuscadas com tanto ouro, e deitando as mãozinhas gananciosas a quaisquer pérolas ou carbúnculos que caíssem duma barba ou... Não digas mais, Públio Rutílio’ Limito-me a acrescentar com delicadeza refinada que eles não são, e repito-o: não são eunucos.

De qualquer modo, seja por a mulher ser uma dessas damas romanas, seja por motivos mais altruístas, o tribuno da plebe Aulo Pompeio levantou-se nos rostros e acusou Battaces e os seus sacerdotes de serem charlatães e impostores, e pediu a sua expulsão; de preferência montados em burros e cobertos de alcatrão e penas. Battaces não aceitou a diatribe de Aulo Pompeio e foi queixar-se ao Senado. Algumas mulheres daquele digno organismo devem ter ficado infectadas, ou então foram injectadas de entusiasmo pelos embaixadores, porque a Assembleia mandou logo Aulo Pompeio calar-se e desistir de atormentar aquelas personagens importantes. Os Pais Conscrítos mais puristas alinharam com Aulo Pompeio, pois não cabe ao Senado disciplinar um tribuno da plebe pela sua conduta nos Comícios. Seguiu-se então uma discussão sobre se Battaces e o seu grupo constituíam ou não uma embaixada, apesar da decisão anterior de Escauro. Como ninguém conseguia encontrar Escauro presumo que devia estar a procurar mais epigramas nos meus discursos, ou mais epiderme nas saias da mulher a questão ficou por resolver.

Então Aulo Pompeio continuou a rugir dos rostros como um leão, e a acusar as damas de Roma não só de cupidez mas também de luxúria. A seguir, Battaces foi até aos rostros seguido de belos sacerdotes e belas damas romanas como um peixeiro com uma fila de gatos vadios atrás de si. Felizmente, eu estava lá sabes como as coisas se passam em Roma! Avisaram-me, claro, tal como a toda a cidade, e assisti a uma farsa extraordinária, muito melhor do que Sila poderia esperar ver num teatro: Aulo Pompeio e Battaces atacavam-se apenas verbalmente mais velozes que Flauto, com o nosso nobre tribuno da plebe a insistir que o opositor era um charlatão, e Battaces insistindo que Aulo Pompeio estava a brincar com a ira, pois a Grande Deusa não gostava que insultassem os seus sacerdotes. A cena acabou com Battaces a proferir uma terrível maldição de morte a Aulo Pompeio em grego, pelo que todos perceberam. Eu achava que ela gostaria de ser cumprimentada em frigia.

E agora vem aparte melhor, Caio Mário! Assim que foi proferida a maldição, Aulo Pompeio começou a sufocar e a tossir. Saiu a cambalear dos rostros e tiveram de ajudá-lo a ir para casa, onde ficou de cama nos três dias que se seguiram, cada vez mais doente. E ao fim de três dias... morreu! Revirou os dedos dos pés e deixou de respirar. Podes imaginar o efeito que isso teve em toda a gente, desde os que se encontravam no Senado às damas de Roma. Battaces pode ir aonde quiser, fazer o que quiser. As pessoas abrem-lhe alas como se sofresse de um tipo de lepra dourada. Recebe jantares gratuitos’, a Assembleia mudou de ideias e recebeu formalmente a embaixada (ainda não há vestígios de Escauro!), as mulheres andam sempre à sua volta, e ele sorri e acena, concede bênçãos, e age como se fosse Zeus.

Estou espantado, enjoado, adoentado e cerca de mil outras coisas desagradáveis. A grande questão é: como terá Battaces feito aquilo? Terá sido inspiração divina ou algum veneno desconhecido? Aposto na última hipótese, mas eu sou um Céptico, se não um completo Cínico.

Caio Mário riu até ficar com dores, e depois foi tratar da questão dos Germanos.

Um quarto de milhão de Teutões atravessaram o rio Druência mesmo a leste do local em que este desaguava no Ródano, e começaram a avançar para a fortaleza romana. A coluna dispersa espalhava-se por várias milhas, com os seus cento e trinta mil guerreiros a ocupar os flancos e a vanguarda; a sua cauda sinuosa era composta por um enorme aglomerado de carroças, gado e cavalos conduzidos pelas mulheres e crianças. Havia poucos homens idosos e ainda menos mulheres idosas. À frente dos guerreiros vinha a tribo dos Ambrões, ferozes, orgulhosos, valentes. O último grupo de carroças e animais vinha na retaguarda a vinte e cinco milhas de distância.

Os batedores germanos tinham encontrado a cidadela romana, mas Teutobod, o rei, estava confiante. Marchariam para Massília não obstante a oposição de Roma, pois em Massília a maior cidade de que já tinham ouvido falar, exceptuando Roma encontrariam mulheres, escravos, comida, luxo. Depois da satisfação de saqueá-la e queimá-la, virariam para o leste ao longo da costa, a caminho de Itália, porque embora Teutobod tivesse descoberto que a Via Domícia sobre o desfiladeiro do monte Geneva estava em perfeitas condições, acreditava que a rota costeira o levaria mais depressa até Itália.

A colheita estava ainda nos campos e foi esmagada pela hoste; nenhum deles, nem mesmo Teutobod, se preocupava que algum cuidado pudesse preservar os cereais para a colheita e o armazenamento no Inverno seguinte. Os Germanos tinham as carroças cheias de provisões pilhadas por todo o lado por onde haviam passado; quanto aos cereais no campo, o que fora pisado pelo homem podia ainda servir de alimento ao gado bovino e equino. Os cereais por colher seriam usados apenas para forragem.

Quando os Ambrões chegaram ao sopé da colina onde se elevava a fortaleza romana, nada aconteceu. Mário não se mexeu, nem os Germanos se deram ao trabalho de atacá-lo. Mas como Mário não representava uma barreira mental, os Ambrões pararam e os outros guerreiros agruparam-se atrás dele, até formarem um carreiro de germanos espalhados pela colina como formigas para verem chegar Teutobod. Primeiro tentaram experimentar o exército romano com assobios, apupos, insultos e um desfile dos cativos que tinham sido torturados. Nenhum romano respondeu; nenhum se arriscou a sair. Depois a hoste atacou em massa, num assalto frontal singular que avançou e se abateu em vão contra as fortificações magníficas do acampamento de Mário; os romanos lançaram algumas lanças contra alvos fáceis, mas não fizeram mais nada.

Teutobod encolheu os ombros. Os seus guerreiros encolheram os ombros. Os romanos que ficassem! Não era muito importante. E a hoste germana contornou a base da colina como um mar que rodeasse uma grande rocha e desapareceu em direcção ao Sul, com os vários milhares de carroças a chiar na sua retaguarda durante sete dias e todas as mulheres e crianças germanas a olhar a cidadela aparentemente desabitada enquanto a lenta cavalgada prosseguia em direcção a Massília.

Mas logo que a última carroça desapareceu no horizonte, Mário partiu a toda a brida com as suas seis poderosas legiões. Calma, disciplinada, rejubilante por ter enfim chegado a altura da batalha, a coluna romana seguiu os Germanos às escondidas, enquanto estes se acotovelavam ao longo da estrada de Arelas para Aquae Sextiae, ponto a partir do qual Teutobod tencionava conduzir os guerreiros até ao mar. Depois de atravessar o rio Ars, Mário ocupou uma posição perfeita na margem sul, no topo de uma crista íngreme rodeada de colinas suaves, e entrincheirou-se aí, numa vertente que dava para o rio.

Mantendo-se à cabeça, trinta mil guerreiros Ambrões chegaram ao vau e depararam com um acampamento romano cheio de elmos emplumados e lanças. Mas era um acampamento normal, presa fácil; sem esPerar por reforços, os Ambrões atravessaram o ribeiro de águas pouco fundas e atacaram monte acima.

Os legionários romanos passaram a muralha frontal a toda a largura e desceram o monte, ao encontro de uma horda de bárbaros indisciplinados e aos berros. Primeiro lançaram as suas pila com um efeito devastador, a seguir desembainharam as espadas e giraram os escudos em volta, e avançaram para o combate como se fizessem parte de uma gigantesca máquina. Poucos Ambrões conseguiram voltar a atravessar o vau; ficaram para trás trinta mil mortos dispersos ao longo do declive. As baixas de Mário foram quase nulas.

A acção terminou em menos de meia hora; daí a uma hora, os Ambrões tinham sido empilhados, formando um talude de corpos nus as espadas, colares, escudos, braceletes, peitorais, punhais e elmos haviam sido lançados para dentro do acampamento romano ao longo do vau; o primeiro obstáculo a ultrapassar pela leva seguinte de Germanos seria esta muralha feita com os seus próprios mortos.

A outra margem do Ars estava agora cheia de uma massa irritada de Teutões, que olhavam confusos e irados para a enorme muralha de Ambrões mortos e para o acampamento romano no topo da crista, onde os milhares de soldados assobiavam e cantavam, os insultavam, apupavam e vaiavam, eufóricos com a vitória. Porque era a primeira vez que um exército romano matava um grande número de homens do inimigo germano.

Era evidente que se tratava unicamente de um combate preliminar. A acção principal ainda estava para vir. Ninguém duvidava que ainda estava para vir. Para completar o plano, Mário escolheu três mil dos seus melhores soldados de cavalaria e mandou-os atravessar o rio nessa noite sob o comando de Mânio Aquílio; deviam esperar que o combate geral começasse, e atacar os Germanos pela retaguarda quando a batalha estivesse no auge.

Quase nenhum legionário dormiu nessa noite, tal era a exaltação; mas no dia seguinte, ao ver que não havia qualquer movimentação por parte dos Germanos, ninguém se ralou com o cansaço. A inactividade dos bárbaros constituía uma preocupação para Mário, que não queria ver o seu objectivo atrasar-se só por os Germanos terem decidido não atacar. Mário precisava de uma vitória decisiva e estava decidido a obtê-la. Mas na outra margem do rio os Teutões tinham acampado aos milhares, sem nenhuma defesa além do enorme número de homens, enquanto Teutobod tão alto no seu cavalo gaulês que os pés quase varriam o chão percorria o vau acompanhado de uma dúzia de guerreiros. Passeou a montada miseravelmente sobrecarregada para cima e para baixo, para a frente e para trás durante todo o dia, com duas enormes tranças loiras como o trigo sobre a couraça de ouro e as asas de ouro do elmo a brilhar ao sol sobre as orelhas. Mesmo à distância se podia ver a ansiedade e indecisão patentes no seu rosto barbeado.

O dia seguinte rompeu sem nuvens como os dias anteriores, prometendo um grau de calor que em breve transformaria a área numa massa de putrefacção fervente; Mário não tencionava permanecer onde estava até a doença se tornar uma ameaça maior do que o inimigo.

Está bem disse a Quinto Sertório, vamos arriscar. Já que não atacam, serei eu a dar início à batalha, avançando contra eles. Perderemos a vantagem que teríamos se fossem eles a atacar subindo o monte, mas mesmo assim as nossas hipóteses são melhores aqui do que em qualquer outro lugar, e Mânio Aquílio está em posição. Faz soar as cornetas, dispõe as tropas, enquanto vou dirigir-lhes um discurso.

Era essa a prática habitual; nenhum exército romano iniciava uma acção militar importante sem uma alocução pública. Em primeiro lugar, porque assim todos podiam ver o general bem vestido para a guerra, em segundo, porque essa alocução servia para levantar o moral, e por último, porque era a única oportunidade de o general informar mesmo o mais insignificante dos legionários do modo como tencionava vencer. A batalha nunca decorria exactamente de acordo com o seu plano todos o sabiam mas a alocução do general dava aos soldados uma ideia daquilo que o general queria que fizessem; e se reinasse uma confusão maior que o normal, permitia aos soldados pensarem por si. Muitos exércitos romanos tinham vencido batalhas por os seus soldados saberem o que o general pretendia deles e por o terem feito quando não havia nenhum tribuno por perto.

A derrota dos Ambrões actuara como um tónico. As legiões iam vencer, todos os homens estavam em perfeitas condições físicas, tinham as armas e armaduras polidas e o equipamento sem uma mancha. Apertadas no espaço aberto a que chamavam o seu fórum de reunião, as tropas formaram filas para ouvir Caio Mário. Segui-lo-iam até ao Tártaro, se necessário, visto que o adoravam.

Muito bem, cunni, chegou o dia! gritou Mário dos rostros improvisados. Fomos demasiado bons, é esse o nosso problema! Agora, eles não querem combater! Por isso, vamos enraivecê-los a tal ponto que pudessem vir combater-nos dentro da boca de um dragão! Vamos atravessar a nossa muralha, descer o declive e começar a empurrar os corpos mortos! Vamos dar pontapés nos seus mortos, cuspir-lhes em cima, mijar-lhes em cima se for preciso! E não se enganem: serão muitos mais milhares deles do que vocês poderão contar, seus mentulae ignorantes! E não teremos a vantagem de ficar aqui empoleirados como galos; teremos de combatê-los frente a frente; e isso significa ter de olhar para cima! Porque eles são mais altos que nós! São gigantes. Isso preocupa-nos?

Não! responderam em uníssono Não, não, não!

- Não! - repetiu Mário. - E porquê? Porque somos legiões de Roma! Seguiremos as águias de prata até à morte ou à glória! Os Romanos são os melhores soldados do mundo! E vocês, os soldados dos capite censi de Caio Mário, são os melhores soldados de Roma.

Os soldados aplaudiram-no durante o que pareceu uma eternidade, histéricos de orgulho, de lágrimas a correr pelos rostos e um grau de prontidão insuportável em todas as fibras do seu ser.

Muito bem! Vamos saltar a muralha e dar-lhes uma tareia! Não há outra forma de vencer esta guerra se não pusermos de joelhos estes selvagens furiosos! É a luta! E continuar até não haver mais nenhum selvagem furioso de pé! Mário virou-se para o lugar onde seis homens envolvidos em peles de leão com açaimos sobre os elmos e patas de animais atravessadas nas cotas de malha seguravam as varas de prata polida dos estandartes que suportavam as seis águias de prata de asas abertas. Ali estão elas, as vossas águias de prata! Emblemas de coragem! Emblemas de Roma! Emblemas das minhas legiões! Sigam as águias para a glória de Roma!

Mesmo no meio de tal exaltação não havia perda de disciplina; ordenadas e sem pressas, as seis legiões de Mário saíram do acampamento e desceram a encosta, virando-se para protegerem os flancos, pois o local não era adequado para a cavalaria. Apresentaram as fileiras em forma de foice aos Germanos, que tomaram o partido do rei Teutobod à primeira demonstração de desprezo pelos mortos dos Ambrões. Atravessaram o vau e avançaram para a frente romana, que nem sequer vacilou. Os primeiros germanos tombaram à rajada de pila atiradas com extrema exactidão; há mais de dois anos que os soldados de Mário andavam a praticar.

A batalha foi longa e esgotante, mas nem as linhas romanas foram quebradas, nem as águias de prata foram arrancadas aos seis aquiliferi. Os mortos dos germanos eram cada vez mais, juntando-se aos Ambrões, e mais germanos continuavam a atravessar o vau em substituição dos que tombavam. Até Mânio Aquílio e os seus três mil soldados atacarem a retaguarda germana, aniquilando-a.

A meio da tarde, os Teutões já não existiam. Animados pela tradição militar e pela glória de Roma e comandados por um general extraordinário, trinta e sete mil legionários romanos excelentemente treinados e bem equipados escreveram uma parte da história militar em Aquae Sextiae ao derrotarem mais de cem mil guerreiros germanos em dois combates. Oitenta mil cadáveres foram acrescentados aos trinta mil Ambrões ao longo do rio Ars; pouquíssimos Teutões escolheram viver, preferindo morrer com a honra e o orgulho intactos. Por entre os mortos, encontrava-se Teutobod. E os vencedores ficaram com o produto das pilhagens, muitos milhares de mulheres e crianças e dezassete mil guerreiros. Quando surgiram os enxames de negreiros vindos de Massília para comprar os despojos, Mário deu o produto da venda aos seus soldados, embora por tradição o dinheiro da venda de prisioneiros-escravos revertesse unicamente para o general.

- Eu não preciso do dinheiro, e eles ganharam-no - disse Mário, e sorriu, lembrando-se da quantia colossal que os massiliotas tinham cobrado a Marco Aurélio Cota para fazer a travessia de barco até Roma, levando a notícia dos acontecimentos de Arausio. - Vejo que os magistrados de Massília nos enviaram um voto de agradecimento por termos salvo a sua bela cidade. Acho que vou enviar-lhes a conta por a terem salvo.

Mário deu a Mânio Aquílio o seu relatório para o Senado, e mandou-o partir para Roma a galope.

- Podes levar as notícias e concorrer ao consulado - disse. - Mas não te atrases!

Mânio Aquílio não se atrasou e chegou a Roma por estrada em sete dias. A carta foi entregue ao cônsul júnior, Quinto Lutácio Catulo César, para ser lida na Assembleia; Mânio Aquílio, inamovível, recusou-se a fazer comentários.

Eu, Caio Mário, cônsul sénior, tenho por dever comunicar ao Senado e Povo de Roma que hoje, no campo de Aquae Sextiae, na província romana da Gália Transalpina, as legiões sob o meu comando derrotaram por completo o povo dos Teutões Germanos. O número de Germanos mortos é de cento e treze mil, os Germanos cativos são dezassete mil homens e cento e trinta mil mulheres e crianças. Há trinta e duas mil carroças, quarenta e um mil cavalos e duzentas mil cabeças de gado. Decretei que o produto dos saques, incluindo os homens vendidos como escravos, deverão ser divididos proporcionalmente entre os meus homens. Viva Roma

Roma inteira exultou de alegria, as ruas encheram-se de multidões

- dos escravos aos membros mais ilustres - a chorar, a dançar, a aplaudir, a beijarem-se. E Caio Mário foi eleito cônsul sénior in absentia para o ano seguinte, tendo Mânio Aquílio por seu colega júnior. o senado decidiu por voto uma festa de acção de graças em sua honra com a duração de três dias, e o Povo outros dois.

- Sita falou nisso - salientou Catulo César para Metelo Numídico, depois de a confusão ter esmorecido.

- Ah! Não gostas do nosso Lúcio Cornélio! O Sila! De que falou ele?

Disse qualquer coisa acerca da árvore mais alta da floresta não poder ser cortada por ninguém. Caio Mário tem imensa sorte Eu nem consegui convencer o meu exército a lutar, e ele derrota um povo inteiro quase sem perder um homem lamentou-se Catulo César, melancólico.

- Qual sorte, qual quê! disse vigorosamente Públio Rutílio Rufo, que estava a ouvir a conversa. A cada um o reconhecimento que merece!

O que os deixou com pouco mais que dizer (escreveu Rutílio Rufo a Caio Mário) Como sabes, não posso aprovar todos estes consulados sucessivos nem as atitudes de alguns dos teus amigos mais ambiciosos. Mas confesso que fico exasperado quando deparo com inveja e malevolência vindos da parte de homens que deviam ser suficientemente grandes para serem magnânimos. Esopo descreveu-os bem: são uvas azedas, Caio Mário. Alguma vez ouviste coisa mais absurda do que atribuir à sorte o êxito que tu tens e que lhes falta? A verdade é que é um homem que cria a sua própria sorte. Apetece-me cuspir quando os ouço depreciar a tua maravilhosa vitória.

Mas deixemos este assunto, senão tenho uma apoplexia. Por falar dos teus amigos mais ambiciosos, Caio Servílio Gláucia que iniciou o tribunato da plebe há oito dias já começou a fazer uma bela tempestade nos Comícios. Convocou o primeiro contiopara discutir uma nova lei que se propõe promulgar para desfazer o trabalho daquele herói de Tolosa, Quinto Servílio Cepião que o seu exílio em Esmirna dure para sempre! Não gosto dele; nunca gostei! Gláucia vai devolver aos cavaleiros o tribunal de casos de extorsão, com todo o tipo de floreados. A partir daqui se a lei for votada, o que me parece que vai acontecer o Estado poderá exigir a reparação de danos sofridos, bens que foram alvo de apropriação indevida ou fundos desviados dos seus receptores, bem como dos primeiros culpados. Por isso, enquanto antigamente um governador ganancioso podia pôr os seus ganhos desonestos em nome da tia Lícia, do tatá da mulher, Lúcio Tidlipus, ou mesmo de alguém tão óbvio como o filho, sob a nova lei de Gláucia, a tiazinha Lícia e Lúcio Tidlipus e o filho passarão a estar envolvidos.

Suponho que haverá nisto alguma justiça, mas aonde nos levam leis destas, Caio Mário? É uma lei que confere demasiado poder ao Estado, para já não falar do dinheiro! Serve para criar demagogos e burocratas, é o que é! Há algo de terrivelmente tranquilizante em estar-se na política para enriquecer. É normal. É humano. É perdoável. É compreensível. Devemos ter cuidado é com os que estão na política para mudar o mundo. São eles que provocam os maiores danos, os homens de poder e os altruístas. Não é saudável pensar nos outros antes de nós próprios. Os outros não merecem tanto como nós. Alguma vez te disse que era um Céptico? Pois sou-o. Embora às vezes só às vezes! me interrogue se não estarei também, em certa medida, a tornar-me um Cínico.

Diz-se que em breve voltarás a Roma. Mal posso esperar! Quero ver a cara do Suíno quando te puser a vista em cima. Catulo César foi nomeado procônsul da Gália Italiana, como devias prever, e já foi reunir-se ao seu exército em Placência. Toma cuidado com ele: se puder tentará retirar-te os créditos da tua próxima vitória. Espero que Lúcio Cornélio Sila seja tão leal como dantes, agora quejulilla está morta.

Na frente diplomática, Battaces e os seus sacerdotes preferiram finalmente regressar, e os lamentos das várias damas bem-nascidas podem ouvir-se no mínimo até Brindíúo. Neste momento temos entre nós uma embaixada muito menos temível e infinitamente mais agoirenta. Vem da parte daquele homem perigosíssimo que conseguiu conquistar a maior parte do território à volta do mar Euxino - o rei Mitríades do Ponto. O rei pede um tratado de amizade e aliança. Escauro não lhe é favorável. Interrogo-me porquê. A sua posição poderá ter alguma coisa a ver com as intrigas ferozes dos agentes do rei Nicomedes, da nossa aliada amigável, a Bitínia? Edepol, edepol, lá estão de novo as minhas terríveis tendências cépticas! Não, Caio Mário, não são tendências cépticas! Pelo menos, ainda não o são.

Em conclusão, alguns mexericos e notícias particulares. O Pai Conscrito Marco Calpúrnio Bíbulo teve um filho e herdeiro, dando origem a grandes expressões de alegria da parte de vários Domícios Aenobarbos e Servílios Cepiões, embora faça notar que os Calpurnos Pisões conseguiram manter um ar indiferente. E conquanto talvez seja o destino de alguns idosos veneráveis casar com raparigas da escola, é um destino mais comum ceder ao abraço da Morte. Caio Licínio, o nosso grande escritor, morreu. Lamento muito o seu falecimento. Era um chato de morte, mas oh, como a sua escrita era espirituosa! Também lamento e desta vez com profunda sinceridade que a tua velha profetisa síria, Marta, tenha morrido. Não é novidade para ti, sei que Júlia te escreveu, mas sentirei a falta daquela velha bruxa. O Suíno espumava pela boca sempre que a via ser transportada por Roma na sua sinistra liteira de púrpura. A tua querida e maravilhosa Júlia jura que também sentirá a falta de Marta. A propósito, espero que saibas apreciar o tesouro com que casaste. Não conheço muitas mulheres que sentissem mágoa pela morte de uma convidada que viesse passar um mês e fosse ficando, em especial uma convidada que achava fino cuspir no chão e urinar no tanque dos peixes.

Termino com um eco do teu comentário. Como pudeste dizer aquilo, Caio Mário? Viva ”Roma! ”Que presunção!

 

Sila tinha razão: os Cimbros nem sequer estavam interessados em atravessar o Pó. Tal como vacas deixadas à solta numa enorme pastagem, ficaram satisfeitos na margem leste da Gália Italiana-Transpadana a olhar para a outra margem, rodeados de tanta riqueza agrícola e pastoral que não ligaram às exortações do seu rei. Bóiorix era o único que se preocupava; Bóiorix foi o único que ficou profundamente deprimido ao receber a notícia da derrota dos Teutões em Aquae Sextiae. Quando a esta se acrescentou a notícia de que os Tigurinos-Marcomanos-Queruscos tinham ficado desencorajados e regressado às suas pátrias, Bóiorix desesperou. A sua estratégia grandiosa fora arruinada por uma combinação de factores: a superioridade das armas romanas e a frouxidão germana, e agora começava mesmo a duvidar da sua capacidade de dominar o seu povo, os Cimbros.

Bóiorix sentia ainda que eles, a mais numerosa das três divisões, podiam conquistar a Itália sozinhos mas só se conseguisse ensinar-lhes as lições inestimáveis da unidade colectiva e da autodisciplina individual.

Ao longo do Inverno que se seguira a Aquae Sextiae, Bóiorix guardou os pensamentos para si, entendendo que não podia fazer nada até o seu povo estar farto daquele lugar ou comer todos os seus alimentos. Como não eram agricultores, a segunda possibilidade era mais provável, mas nunca nas viagens anteriores Bóiorix vira tanta fertilidade; uma tal capacidade de alimentar e continuar a alimentar. Se a Gália Italiana-Transpadana era um feudo dos Romanos, não admirava que Roma fosse tão importante. Ao contrário da Gália-de-Longos-Cabelos, não havia aqui vastas florestas intactas; em vez disso, os carvalhos seleccionados em vários estados davam uma colheita generosa de bolotas para muitos milhares de porcos durante o Inverno. O resto da região era cultivada: trigo-miúdo nos locais onde o Pó tornava o solo demasiado pantanoso, trigo onde O solo era suficientemente seco; grãos-de-bico e lentilhas, tremoços e feijões em todos os tipos de solo. Mesmo na Primavera - quando os agricultores migravam ou receavam fazer a sementeira - os cereais cresciam, tantas eram as sementes que tinham ficado inactivas no solo.

O que Bóiorix não conseguia era vislumbrar a estrutura física da Itália; se tal tivesse acontecido, teria podido anunciar que a Gália-Transpadana seria a nova pátria dos Cimbros; e se o tivesse feito, talvez Roma o tivesse deixado ficar, já que os Romanos não consideravam a Gália Italiana-Transpadana uma região de importância vital, e a sua população era Celta na sua maioria. Porque a estrutura física da Itália impedia que as incríveis riquezas do vale do rio Pó tivessem qualquer utilidade para a península italiana. Todos os rios corriam entre o Leste e o Oeste, e a imponente cordilheira dos Apeninos dividia a Itália peninsular da Gália Italiana, da margem do Adriático à costa da Ligúria. Com efeito, a Gália Italiana-Transpadana era um país muito particular, que podia dividir-se em dois países: um ao Norte e o outro ao Sul do grande rio.

Assim, Bóiorix retomou os seus propósitos quando a Primavera deu lugar ao Verão e começaram a surgir os primeiros pequenos rebentos de uma terra já totalmente gasta. Os cereais tinham-se mesmo semeado por si, mas eram escassos e não pareciam estar a formar espigas, vagens ou tufos; extremamente astuciosos, como criaturas inteligentes que eram, os porcos existiam cada vez em menor número; e o meio milhão de animais que tinham sido trazidos pelos Cimbros tinham pisado tudo o que não haviam comido e transformado em pó árido.

Era a altura certa de partirem; quando Bóiorix foi ter com os seus guerreiros, instigando-os, estes incitaram o povo. E no início de junho o gado foi recolhido, os cavalos reunidos e as carroças aparelhadas. Os Cimbros voltaram a juntar-se num enorme grupo e dirigiram-se para Leste subindo o rio ao longo da margem norte do Pó em direcção a regiões mais romanizadas que rodeavam a grande cidade de Placência.

Em Placência estava o exército romano de cinquenta e quatro mil homens. Mário concedera duas das suas legiões a Mânio Aquílio, que fora para a Sicília no princípio do ano para negociar com o rei-escravo Atenão; a derrota dos Teutões tinha sido tão definitiva que nem era necessário deixar quaisquer soldados a guarnecer a Gália Transalpina.

A situação tinha certas semelhanças com a do comando em Arausio: mais uma vez, o comandante sénior era um Homem Novo, e o comandante júnior pertencia à alta aristocracia. Mas a diferença entre Caio Mário e Cneu Málio Máximo era enorme; Mário, o Homem Novo, não era pessoa para aceitar os disparates de Catulo César, o aristocrata. Catulo César recebeu ordens bruscas acerca do que deveria fazer e para onde ir, e explicaram-lhe bem os motivos dessas ordens e a direcção a tomar. Só lhe exigiam que obedecesse, e Catulo César sabia bem o que aconteceria se não o fizesse, pois Caio Mário perdera algum tempo a explicar-lhe. Com a máxima franqueza.

- Pode dizer-se que estiquei uma linha para tu pisares, Quinto Lutácio. Se puseres um dedo fora dela, mandar-te-ei para Roma tão depressa que nem saberás como lá chegaste - avisou Mário. - Não aceitarei que me preguem partidas à moda de Cepião! Preferia muito mais ver Lúcio Cornélio no teu lugar, e é ele que te substituirá se pensares sequer em desviar-te dessa linha. Entendido?

- Não sou um subalterno, Caio Mário, e não me agrada ser tratado como se o fosse - disse Catulo César, muito corado.

- Olha, Quinto Lutácio, não me interessa o que sentes! - disse Mário com uma paciência exagerada. - Só me interessa o que fazes. E vais fazer simplesmente o que te digo, e mais nada.

- Não prevejo qualquer dificuldade em seguir as tuas ordens, Caio Mário. São ordens tão específicas como pormenorizadas - disse Catulo César, de melhor humor. - Mas repito que não tens necessidade de falar comigo como se eu fosse um oficial subalterno! Sou o teu segundo-comandante.

Mário fez um sorriso desagradável.

- Também não gosto de ti, Quinto Lutácio - disse. - Não passas de mais um daqueles medíocres da classe alta que pensam possuir um tipo qualquer de direito divino para governar Roma. Na minha opinião és um indivíduo que não conseguiria gerir um bar que estivesse situado entre um bordel e um clube masculino! E a nossa colaboração processar-se-á do seguinte modo: eu dou as ordens e tu executa-las à letra.

- Sob protesto - afirmou Catulo César.

- Sob protesto, mas executando-as - disse Caio Mário.

- Não podias ter tido um pouco mais de tacto? - perguntou Sila a Mário mais tarde, nesse mesmo dia, depois de ter suportado as passadas de Catulo César na sua tenda, a perorar contra Mário durante uma hora.

Para quê. - perguntou Mário, genuinamente surpreendido.

Porque em Roma ele é importante! E também é importante aqui, na Gália Italiana! disse Sila abruptamente. O acesso de fúria cessou; Sila olhou para Caio Mário, que não se arrependera, e abanou a cabeça. Oh, és impossível! E juro-te que estás cada vez pior.

Sou um homem velho, Lúcio Cornélio. Cinquenta e seis anos. Tenho a idade do nosso Princeps Senatus, que todos consideram um velho.

Isso é porque o nosso Princeps Senatus já faz parte da mobília do Fórum, e é careca e está cheio de rugas comentou Sila. Tu ainda és o vigoroso comandante em campo, e por isso ninguém te considera um velho.

Sou velho demais para aturar alegremente sujeitos tolos como o Quinto Lutácio disse Mário. Não tenho tempo para passar horas a alisar as penas aos galos estropiados só para eles manterem uma boa impressão de si mesmos.

Não digas que não te avisei! lembrou Sila.

Na segunda metade de Quinctilis, os Cimbros agruparam-se no sopé dos Alpes ocidentais, dispersos por uma planície denominada Campli Raudi, perto da pequena cidade de Vercelas.

Porquê aqui? perguntou Mário a Quinto Sertório, que acompanhara os Cimbros no seu trajecto para o leste.

Bem gostava de saber, Caio Mário, mas nunca consegui aproximar-me de Bóiorix lamentou-se Sertório. Os Cimbros parecem pensar que vão regressar à Germânia, mas alguns dos guerreiros que conheço julgam que Bóiorix continua decidido a dirigir-se para o sul.

Está demasiado a oeste disse Sila.

Os guerreiros pensam que Bóiorix está a tentar apaziguar os povos levando-os a acreditar que muito em breve atravessarão os Alpes de volta para a Gália-de-Longos-Cabelos, e no próximo ano estarão de novo no Quersoneso Cimbro. Porém, vai mantê-los na Gália Italiana o tempo suficiente para atravessar os desfiladeiros alpinos e apresentar-lhes depois uma alternativa bastante fraca: permanecerem na Gália Italiana e morrerem de fome durante o Inverno, ou invadirem a Itália.

É uma manobra demasiado complicada para um bárbaro disse Mário com cepticismo.

A lança de peixe com três dentes na Gália Italiana também não fazia parte da tua estratégia bárbara lembrou-lhe Sila.

- São como abutres - disse Sertório subitamente.

- Como? - perguntou Mário, encolhendo os ombros.

- Apanham os ossos de tudo o que lhes aparece à frente, Caio Mário. Deve ser por isso que continuam a andar. Ou talvez uma praga de gafanhotos seja uma comparação melhor: comem tudo o que encontram à vista e seguem viagem. Os Éduos e os Ambarros levarão vinte anos a eliminar os estragos de quatro anos de hospitalidade concedida aos Germanos. E digo-te, os Aduátucos pareciam muito desanimados quando parti.

- Então como conseguiram permanecer na sua terra natal durante tanto tempo? - perguntou Mário.

- Eram menos. Os Cimbros tinham a sua enorme península, os Teutões possuíam toda a terra para sul, os Tigurinos estavam na Helvécia, os Queruscos estavam ao longo do Visurge, na Germânia, e os Marcomanos viviam na Terra dos Bóios.

- O clima destas regiões é muito diferente - disse Sila quando Sertório se calou. - A norte do Reno chove o ano inteiro. Por isso a erva cresce muito depressa e é suculenta, doce e macia. E os Invernos também não são tão duros, ao que parece - pelo menos perto do oceano Atlântico como estavam os Cimbros, os Teutões e os Queruscos. Mesmo no fim do Inverno cai mais chuva que neve ou gelo. E podem apascentar o gado em vez de cultivar os campos. Não acho que os Germanos vivam deste modo por isso fazer parte da sua natureza. Acho que os Germanos vivem da forma que lhes foi ditada pela sua terra natal.

Mário olhou para cima, por debaixo das sobrancelhas.

- Então parece-te, por exemplo, que aprenderiam a cultivar os campos se ficassem na Itália o tempo suficiente ?

- Sem dúvida - respondeu Sila.

- Nesse caso, é melhor obrigá-los a travar um combate decisivo este Verão e acabarmos com isto... e com eles. Durante cerca de quinze anos Roma tem vivido à sombra deles. Não consigo dormir descansado na minha cama se na noite anterior antes de fechar os olhos tiver pensado em meio milhão de Germanos a vaguear pela Europa à procura de um Elísio que deixaram para trás, algures ao norte do Reno. A migração germana tem de parar. E o único modo certo de travá-la é com espadas romanas.

- Estou de acordo - disse Sila.

- Também eu - afirmou Sertório.

- Não tens nenhum rebento entre os Cimbros? - perguntou Mário a Sertório.

- Tenho,

- Sabes onde?

- Sei.

- Óptimo. Quando isto acabar, podes mandar a criança e a mãe para onde quiseres; mesmo para Roma.

- Obrigado, Caio Mário. Vou mandá-los para a Espanha Citerior disse Sertório, a sorrir.

Mário ficou admirado.

- Para a Espanha? Porquê a Espanha?

- Gostei de lá estar, quando estava a aprender a ser celtibero. A tribo onde fiquei tomará conta da minha família germana.

- ÓptiMo! Agora, bons amigos, vejamos como podemos travar a batalha com os Cimbros.

Mário travou a sua batalha no último dia de Quinctilis do calendário, tendo a data sido formalmente fixada numa conversa entre Mário e Bóiorix. Mário não era o único que estava cansado de anos de indecisão. Também Bóiorix ansiava por acabar com aquilo.

- O vencedor ficará com a Itália - disse Bóiorix.

- O vencedor ficará com o mundo - retorquiu Mário.

Tal como em Aquae Sextiae, Mário travou um combate de infantaria, com a escassa cavalaria disposta de forma a proteger duas enormes alas de infantaria compostas pelos soldados da Gália Transalpina divididos em dois grupos de quinze mil. Entre esses grupos, Mário colocou Catulo César e os seus vinte e quatro mil homens menos experientes, formando o centro; os soldados veteranos nas duas alas mantê-los-iam firmes e contidos. Mário comandava a ala esquerda e Sila a da direita; Catuo César, a do centro.

Quinze mil soldados de cavalaria dos Cimbros começaram o combate, magnificamente vestidos e equipados, e montados nos enormes cavalos do Norte em vez dos pequenos póneis gauleses. os soldados germanos usavam elmos com a forma da cabeça de um monstro mítico de boca aberta, plumas rígidas de cada lado para conferir ao cavaleiro uma estatura ainda maior; usavam uma protecção peitoral de ferro e uma espada longa, e transportavam um escudo redondo e branco, bem como duas lanças pesadas.

Os cavaleiros formavam uma linha de cerca de quatro milhas com largura de quatro homens. Mesmo atrás deles estava a infantaria dos Cimbros, mas quando eles atacaram, viraram para a direita, arrastando os Romanos; era uma táctica destinada a afastar a linha romana o suficiente para a direita, de modo a permitir à infantaria dos Cimbros flanquear a direita de Sila e atacar os Romanos pela retaguarda.

As legiões estavam tão ansiosas por lutar que o plano germano ia quase resultando; depois Mário conseguiu travar as suas tropas e acolheu o embate da carga de cavalaria, deixando para Sila a primeira arremetida dos soldados de infantaria dos Cimbros, enquanto Catulo César, ao centro, combatia tanto a cavalaria como a infantaria.

Foram a boa forma romana e o seu treino e astúcia que venceram no campo de Vercelas, visto que Mário esperava que a batalha fosse travada antes do meio-dia, e por isso já se perfilara com as suas linhas voltadas para o Oeste. Foram os Cimbros que tiveram o sol da manhã a bater-lhes nos olhos, e foram eles igualmente que não conseguiram aguentar o ritmo. Habituados a um clima mais fresco e ameno e cheios de carne que tinham comido ao pequeno-almoço os Cimbros combateram os Romanos dois dias antes do solstício de Verão, sob um céu sem nuvens e uma sufocante camada de pó. Enquanto para os legionários isso apenas constituía uma pequena contrariedade, para os Germanos era uma fornalha cruel. Sucumbiram aos milhares, de línguas ressequidas, com as armaduras tão escaldantes como a protecção formada pelos pêlos de Hércules; os elmos eram um fardo ardente, as espadas pareciam de chumbo.

Por volta do meio-dia já não existiam combatentes dos Cimbros. Oitenta mil homens, incluindo Bóiorix, tombaram no campo de batalha; o resto fugiu para ir às carroças avisar as mulheres e crianças e atravessar os Alpes com o que pudessem levar. Mas não era possível conduzir as cinquenta mil carroças a galope, nem levar o meio milhão de gado reunido em uma ou duas horas. Os que estavam mais perto dos desfiladeiros alpinos do vale dos Salasos fugiram; os outros não. Muitas das mulheres recusaram-se a ser cativas e mataram-se com as suas crianças; outras mataram também os guerreiros fugitivos. Mesmo assim, sessenta mil mulheres e crianças dos Cimbros foram vendidas como escravas, tal como vinte mil guerreiros.

Dos que fugiram até ao vale dos Salassos e passaram para a Gália Transalpina pelo desfiladeiro de Lugdunum, poucos foram os que chegaram a passar pelo castigo dos Celtas. Os Alóbrogos assaltaram-nos com um prazer feroz, tal como os Sequanos. Cerca de dois mil cimbros acabaram por reunir-se aos seis mil guerreiros que tinham ficado com os Aduátucos; e foi aí, no local onde o Mosa acolhia o Sabe, que os últimos sobreviventes da grande migração se estabeleceram de vez, vindo mais tarde a denominar-se Aduátucos. Apenas a enorme acumulação de riquezas lhes recordava que haviam sido em tempos uma hoste germana com mais de três quartos de milhão de homens; mas as riquezas não eram para gastar: estavam só à sua guarda para o caso de chegarem mais romanos.

Preparado para uma guerra de outro tipo, Catulo César compareceu ao conselho que Mário convocou depois de Vercelas e encontrou um Mário delicado, afável, desejoso de aceder a todos os seus pedidos.

- Meu caro, é evidente que terás um triunfo! - disse Mário, dando-lhe uma palmada nas costas. - Leva dois terços das pilhagens! Afinal de contas, os meus homens também ficaram com os despojos de Aquae Sextiae, e eu dei-lhes o produto da venda dos escravos, e por isso eles sairão da campanha favorecidos em relação aos teus homens, ao que julgo; a menos que tenciones dar o dinheiro dos escravos. Não? É perfeitamente compreensível, meu caro Quinto Lutácio! - afirmou Mário, enquanto lhe punha nas mãos um prato de comida.

- Meu caro, eu nunca sonharia ficar com todos os créditos! Por que iria fazê-lo se os teus soldados lutaram com igual perícia e entusiasmo?

- perguntou Mário, retirando-lhe o prato de comida e substituindo-o por uma taça de vinho a transbordar. - Senta-te, senta-te! É um grande dia! Hoje poderei dormir em paz.

- Bóiorix está morto - disse Sila, sorrindo de contentamento. - Está tudo acabado, Caio Mário. Definitivamente acabado.

- E a tua mulher e filho, Quinto Sertório? - perguntou Mário.

- Salvos.

- Excelente. Excelente! - Mário observou as pessoas que se encontravam na tenda do general, demasiado pequena para tanta gente, e até as suas sobrancelhas pareciam reluzir. - E quem quer levar a Roma a notícia de Vercelas? - perguntou.

Duas dúzias de vozes responderam; muitas dúzias mais não disseram nada mas os seus rostos adquiriram uma expressão de ansiedade. Mário olhou-os um por um, e finalmente pousou o olhar no homem que fora objecto da sua decisão.

- Caio Júlio - disse Mário -, és o escolhido. És meu questor, mas não é essa a razão principal. Pelo facto de deteres um posto de comando superior representas-nos a todos. Nós temos de permanecer na Gália Italiana até estar tudo arrumado. Mas também és meu cunhado e de Lúcio Cornélio; corre nas veias dos nossos filhos sangue da tua família.

E o Quinto Lutácio é um Júlio César. Por isso, está certo que seja um Júlio César a levar a notícia da vitória a Roma - Mário virou-se e olhou para todos os presentes. - É justo? - perguntou.

- É justo - responderam todos, em coro.

- Que belo dia para entrar para o Senado - disse Aurélia sem poder tirar os olhos do rosto de César; como estava moreno e tão viril! - Agora fico contente por os censores não te terem admitido antes de teres partido ao serviço de Caio Mário.

Caio Júlio ainda estava exaltado, ainda vivia os momentos gloriosos em que, depois de entregar a carta de Mário ao Presidente da Assembleia, vira com os seus próprios olhos o Senado de Roma receber a notícia do fim da ameaça dos Germanos. Os aplausos; as exclamações; os senadores que dançavam e os que choravam; o espectáculo de Caio Servílio Gláucia, chefe do colégio de Tribunos da Plebe, a correr de toga cingida ao corpo desde a Cúria até aos Comícios para ir gritar a notícia dos rostros; as presenças augustas de homens como Metelo Numídico e Aenobarbo Pontifex Maximus apertando as mãos solenemente e tentando mostrar mais dignidade que exaltação.

- É um presságio - disse para a sua mulher, olhando-a com admiração. Como era bela, sem quaisquer marcas dos mais de quatro anos de vida na Subura como senhoria de uma ínsula.

- Um dia, serás cônsul - disse Aurélia, confiante. - Sempre que pensarem na nossa vitória em Vercelas, lembrar-se-ão que foste tu que trouxeste a notícia para Roma.

- Não - disse ele com suavidade -, pensarão em Caio Mário.

- E em ti - insistiu a esposa extremosa. - Foi a tua cara que eles viram; eras o seu questor.

Caio Júlio suspirou, aconchegou-se no leito da sala de jantar e bateu com a mão no espaço livre ao lado dele.

- Vem cá - disse.

Sentada correctamente na sua cadeira de espaldar direito, Aurélia olhou para a porta do triclinium.

- Caio Júlio! - exclamou.

- Estamos sós, minha querida esposa, e não sou assim tão rigoroso que me agrade estar separado de ti por uma mesa na primeira noite que estou em casa - e voltou a bater no leito. - Vem para aqui, mulher! Imediatamente!

Quando o jovem casal fora viver para a Subura, a sua chegada tinha sido suficientemente notável para torná-los objecto da curiosidade de todos os que viviam a várias ruas da ínsula de Aurélia. Era bastante habitual os senhorios pertencerem à aristocracia, mas já não era costume serem residentes; Caio Júlio César e a mulher eram aves raras, e como tal eram alvo de uma atenção maior do que a habitual. Apesar de ser enorme, a Subura era uma aldeia cheia de gente e de mexericos, e que gostava acima de tudo de sensações novas.

Todas as previsões iam no sentido de o jovem casal não aguentar; a Subura, grande niveladora das pretensões e do orgulho, em breve lhes mostraria que o seu lugar era no Palatino. Que acessos de histeria a senhora iria ter! Que acessos de mau humor e desdém o senhor teria! Ah! Ah! Era o que diziam os casos difíceis da Subura. E esperavam alegremente.

Nada disso aconteceu. A senhora, como mais tarde descobriram, não se escusava a ir fazer as suas compras nem a ser explicitamente desagradável para qualquer sujeito mal-intencionado que tentasse fazer-lhe propostas imorais nem tinha medo se um grupo de mulheres da zona a rodeava quando ela atravessava o Vicus Patricii, tentando dizer-lhe que voltasse para o Palatino, que era lá o seu lugar. Quanto ao senhor, era - e não havia outra palavra que se lhe aplicasse um verdadeiro cavalheiro: imperturbável, delicado, interessado em tudo o que lhe dizia qualquer elemento da comunidade, útil em relação aos testamentos, alugueres e contratos.

Dentro de pouco tempo, já eram respeitados. Por fim, eram amados. Muitas das suas qualidades eram novidades, como por exemplo a tendência para se meterem na sua vida e não indagarem acerca da dos outros; nunca se queixavam nem criticavam, nem se achavam mais importantes do que as outras pessoas. Quem falava com eles sabia que podia contar receber sempre deles um sorriso genuíno, interesse verdadeiro, cortesia e sensibilidade. Embora no início isso fosse considerado artificial, os habitantes daquela parte da Subura acabaram por perceber que César e Aurélia eram exactamente o que pareciam ser.

Para Aurélia, a aceitação local era muito mais importante que para César; era ela que se ocupava dos negócios da Subura, e a senhoria de um edifício de apartamentos muito populoso. No princípio não fora fácil, embora Aurélia só tenha entendido a razão disso depois da partida de César. Aurélia começara por pensar que as suas dificuldades resultavam da falta de hábito e de experiência. Os agentes que lhes tinham vendido

a ínsula haviam-se oferecido para tratar da cobrança das rendas e das negociações com os inquilinos, e César concordara com a ideia, e por isso a esposa obediente assentira. César nem captou a mensagem inconsciente que ela lhe transmitira ao contar-lhe tudo acerca dos inquilinos.

- Aquilo em que me custa mais acreditar é a variedade - contou ela com uma expressão viva no rosto e sem a compostura habitual.

Ele fez-lhe a vontade, perguntando:

- Variedade?

- Bem, os dois pisos superiores são constituídos principalmente por homens livres; gregos, na sua maioria; que parecem ganhar a vida correndo atrás dos seus ex-donos, e têm horríveis rugas na cara, e mais namorados do que esposas. Nos pisos principais há todos os tipos de gente: um pisoeiro e a família, Romano; um oleiro e a família, Romano; um pastor e a família... Sabias que havia pastores em Roma? O homem guarda as cabras no Campus Lanatarius até serem ser vendidas para o matadouro. Não é fascinante? Perguntei-lhe por que motivo não vivia mais perto do local onde trabalha, mas respondeu-me que tanto ele como a mulher são da Subura, e não podia imaginar viver em qualquer outro lugar, e ainda que não se incomoda nada com o passeio - explicou Aurélia, ainda mais animada. Mas César franziu o sobrolho.

- Não sou um snobe, Aurélia, mas não sei se será bom entrares em conversas com os teus inquilinos. És esposa de um Júlio e tens certos padrões de conduta. Nunca se deve ser peremptório ou indelicado com esta gente, nem ser superior a eles, mas partirei em breve e não quero que a minha esposa tome os conhecidos por amigos. Tens de manter-te um pouco afastada das pessoas que te alugam os apartamentos. É por isso que gosto que sejam os agentes a fazer a cobrança das rendas e sejam teus consultores de negócios.

O rosto dela entristeceu-se, a rapariga olhou-o desanimada e gaguejou.

- La... lamento, Caio Júlio, nã... não pensei. Não fiz qualquer proPosta; só pensei que era interessante saber o que cada um deles fazia.

- Claro que é interessante - disse o marido, reconfortante e também consciente que de certo modo a maçara. - Conta-me mais coisas.

- Há um retor grego que vive com a família e um professor romano que vive com a família; quer alugar os dois quartos do apartamento ao lado do seu quando vagarem, de modo a poder ter aqui a sua escola.

- Aurélia lançou um olhar rápido a César, e acrescentou, contando ao marido a primeira mentira. - Foram os agentes que me contaram.

- Parece-me satisfatório - comentou. - Quem mais temos, meu amor?

- O andar acima do nosso é muito estranho. Há um mercador de especiarias que tem uma mulher tremendamente arrogante, e um inventor! É bacharel e tem o apartamento completamente atafulhado de modelos de gruas, bombas e moinhos incríveis - explicou a esposa, voltando a soltar demasiado a língua.

- Queres dizer com isso que estiveste no apartamento de um bacharel? - perguntou César.

Aurélia contou a segunda mentira, com o coração a bater de modo incómodo.

- Não, Caio Júlio, a sério! O agente pensou que seria bom se eu o acompanhasse nas suas voltas, e fosse conhecer os inquilinos e ver como eles vivem.

César descontraiu-se.

- Ah, está bem! Claro. E o que inventa esse teu inventor?

- Travões e roldanas de retorno, suponho. Mostrou-me como funcionam num modelo de uma grua, mas disse que eu não tinha jeito para a técnica, e por isso acho que aquilo para mim não fez sentido nenhum.

- Os inventos devem render-lhe bastante, se pode viver naquele piso - disse César, com a sensação desconfortável de que a mulher perdera muito da animação inicial, mas sem a intuição suficiente para perceber de quem era a culpa.

- Para as roldanas tem um acordo com uma fundição que faz muitos trabalhos para grandes empreiteiros, mas é ele que fabrica os seus próprios travões num alojamento pequeno que possui ao fim da rua - Aurélia inspirou de modo irregular e passou aos inquilinos menos vulgares. - E temos um piso inteiro de judeus, Caio Júlio! Disseram-me que gostam de viver perto de outros judeus, porque têm muitas leis e interditos que, por acaso, parecem ter sido eles a infligir a si mesmos. É um povo muito religioso! Compreendo a xenofobia: à vista deles, todas as outras pessoas parecem de uma grande miséria moral. Trabalham todos por conta própria, principalmente porque repousam ao sétimo dia. Não é um sistema estranho? Com um feriado do mercado em Roma ao oitavo dia da semana e as festas e festividades, não se adaptam aos padrões não-judeus. Por isso fazem contratos entre si, em vez de terem empregos normais.

- Que extraordinário! - exclamou César.

- São todos artesãos e eruditos - disse Aurélia, tendo o cuidado de manter um tom desinteressado. - Um dos homens, suponho que Shimon, é um escriba excelente. Belo trabalho, Caio Júlio; verdadeiramente belo! Trabalha apenas em grego. Nenhum deles tem muito boas noções de latim. Sempre que um editor ou um autor tem uma edição especial de uma obra para pôr a um preço mais alto do que o habitual, vai ter com Shimon, que tem quatro filhos também a aprender o ofício de escribas. Frequentam a escola do nosso professor romano e ainda a sua escola religiosa, pois Shimon quer que os filhos sejam tão fluentes em latim como em grego e aramaico e... hebreu, segundo julgo. Mais tarde, terão sempre trabalho de sobra em Roma.

- Todos os judeus são escribas?

- Não, só Shimon. Há um que trabalha com ouro e faz contratos com algumas lojas no Porticus Margaritaria. E temos um escultor de retratos; um alfaiate; um armeiro; um artesão de têxteis; um pedreiro; e por fim, um comerciante de bálsamos.

- Espero que não trabalhem todos lá em cima! - exclamou César, alarmado.

- Só o escriba e o ourives, Caio Júlio. O armeiro tem uma oficina no cimo da Alta Semita, o escultor aluga espaço a uma grande empresa no Velabro, e o pedreiro tem um pátio perto das docas de mármore do porto de Roma - sem querer, os olhos cor de púrpura de Aurélia começaram a brilhar. - Eles cantam muito. Devem ser músicas religiosas. É um tipo de cânticos muito estranho: oriental e sem melodia. Mas é bom para variar dos choros de bebés.

César estendeu uma mão para pôr no devido lugar um fio de cabelos que tombara no rosto dela; a esposa era mesmo uma rapariguinha de dezoito anos.

- Suponho que os nossos judeus devem gostar de viver aqui - disse ele.

- Com efeito, todos parecem gostar de viver aqui - assentiu a mulher. Nessa noite, depois de César ter adormecido, Aurélia ficou deitada a seu lado e verteu algumas lágrimas. Não lhe ocorrera que numa ínsula da Subura, César esperasse da sua parte o mesmo tipo de conduta que esperaria de uma esposa que vivesse no Palatino. Não compreenderia que aqueles alojamentos apertados não proporcionavam as diversões ou passatempos de que podia disfrutar uma mulher do Palatíno? Era evidente que não entendia. Tinha o tempo todo tomado pela sua carreira florescente, e por isso passava os dias nos tribunais, a falar com senadores importantes como Marco Emílio Escauro Princeps Senatus, a proceder à cunhagem, e nas diversas arcadas e colunatas onde os senadores incipientes iam aprender a profissão. Não havia marido mais gentil, bem-humorado e respeitoso; mas Caio Júlio César ainda via a esposa como um caso muito especial.

A verdade era que nascera em Aurélia o desejo de governar sozinha a ínsula e dispensar os agentes. Fora isso que a levara a ir falar com os inquilinos de todos os pisos e descobrir que tipo de pessoas eram. Aurélia gostara deles, não via qualquer razão para não poder lidar pessoalmente com eles. Até falar com o marido, e entender que a pessoa preciosa da esposa era uma mulher muito especial, uma mulher que se elevava do alto dadignitasJuliana; nunca teria autorização para fazer nada que pudesse ser depreciativo para a família do marido. As origens de Aurélia eram suficientemente parecidas com as dele para poder apreciar e entender isso; mas como poderia preencher os seus dias? Não ousava pensar que contara duas mentiras ao marido. Em vez disso, ficou a fungar até adormecer.

Felizmente, o seu dilema foi temporariamente resolvido por uma gravidez. Em certa medida isso acalmou-a, embora não sofresse de nenhum dos incómodos habituais. Rosada, cheia de saúde e juventude, recebera suficiente sangue novo dos seus pais para não vir a possuir a fragilidade das raparigas da antiga-nobreza; além do mais, habituara-se a caminhar várias milhas por dia para não enlouquecer de tédio, tendo por protecção mais do que adequada nas ruas a sua gigantesca serva particular, Cardixa.

César foi transferido para o serviço de Caio Mário na Gália Transalpina antes do nascimento do primeiro filho, e lamentou deixar uma mulher tão difícil, tão vulnerável.

- Não te preocupes, ficarei perfeitamente bem - garantiu-lhe ela.

- Vai para casa da tua mãe bastante antes de o tempo chegar - ordenou o marido.

- Deixa isso comigo, hei-de arranjar-me - foi tudo o que conseguiu prometer.

É claro que Aurélia não foi para casa da mãe; teve a criança no seu apartamento, auxiliada não por quaisquer físicos do Palatino, mas apenas pela parteira local e por Cardixa. Após um trabalho de parto rápido e fácil, deu à luz uma menina, mais umajúlia, tão loura, de olhos muito azuis e tão bela como deveria ser qualquer Júlia.

- Vamos chamar-lhe ”Lia”, para abreviar - comunicou à mãe

- Oh, não! - exclamou Rutília, que achava ”Lia” um nome demasiado vulgar e pouco imponente. - Que tal Julilla?

Aurélia abanou a cabeça com firmeza.

- Não, isso é um diminutivo - disse a rapariga. - A nossa menina será ”Lia”.

Mas Lia não crescia; chorou seis semanas a fio, até que a mulher de Shimon, Rute, veio ter com Aurélia ao seu apartamento e ironizou em relação às histórias que Aurélia lhe contou acerca dos médicos, dos avós Cota preocupados, das cólicas e constipações.

- O que aí tens é um bebé com fome - disse Rute com o seu forte sotaque grego. - Não tens leite, rapariga!

- Oh, onde vou arranjar uma ama-de-leite? - perguntou Aurélia, profundamente aliviada por aquilo que reconheceu imediatamente como a verdade, mas sem saber o que fazer para convencer o pessoal de que era preciso partilhar os alojamentos dos servos com mais uma pessoa.

- Não precisas de nenhuma ama-de-leite, rapariga - comentou Rute.

- O prédio está cheio de mães a amamentar. Não te preocupes, todas daremos leite à pequenina.

- Posso pagar-vos - ofereceu Aurélia hesitante, cuja sensibilidade lhe permitia perceber que não devia parecer condescendente.

- O quê, criatura? Deixa isso comigo, rapariga. E zelarei para que todas lavem primeiro as tetas! A pequenina tem de recuperar; não queremos que adoeça.

E a pequena Lia ganhou uma ínsula inteira de amas-de-leite, e a espantosa quantidade de mamilos que lhe eram metidos na boca parecia incomodá-la tanto como a mistura de leite grego, romano, judeu, espanhol e sírio perturbavam a sua digestão. Lia começou a recuperar.

O mesmo aconteceu à mãe, mal recobrou do parto e dos cuidados de um bebé em choro permanente. Porque com a partida de César, o carácter de Aurélia começou a afirmar-se. Em primeiro lugar, despachou-se dos familiares do sexo masculino, que César tinha encarregado de ficarem de olho nela.

- Se precisar de ti, pai - disse a rapariga a Cota, com firmeza -, mandar-te-ei chamar.

- Tio Públio, deixa-me em paz! - exclamou para Rutílio Rufo.

- Sexto Júlio, parte para a Gália! - pediu ao irmão mais velho do marido.

Depois olhou para Cardixa e esfregou as mãos de contentamento.

- Sou enfim dona da minha vida! - disse. - Oh, vão ocorrer grandes mudanças!

Começou pelas paredes do apartamento, onde os escravos que ela e César tinham comprado logo após o casamento dominavam o jovem casal, em vez de acontecer o contrário. Liderados pelo mordomo, um grego chamado Eutychus, sabiam bem que Aurélia não tinha motivos suficientes para denunciá-los a César; pois a rapariga soubera que César não via as coisas da mesma maneira que ela, e era distraído demais para reparar em algumas coisas, especialmente nos assuntos domésticos. Mas em apenas um dia, Aurélia pusera os servos a dançar à sua maneira e a fazer a sua vontade apenas com um discurso e um horário. Caio Mário teria aprovado totalmente o discurso, dado que era curto e de uma franqueza de tirar o fôlego, proferido no tom e nos modos de um general.

- Uuuuhhh! - exclamou o cozinheiro Murgus para Eutychus, o mordomo. - E eu a pensar que ela era meiga!

O mordomo rolou os sedutores olhos de longas pestanas.

- E eu? Pensei que podia esgueirar-me para o seu quarto e consolá-la um pouco durante a ausência de Caio Júlio... Que engano! Antes ir para a cama com um leão!

- Pensas que ela teria a coragem de provocar uma terrível perda financeira ao vender-nos a todos com más referências? - perguntou o Murgus, cozinheiro, estremecendo com a ideia.

- Tinha coragem suficiente para nos mandar crucificar - criticou o mordomo.

- Uuuuhhh! - gemeu o cozinheiro.

Depois deste encontro, Aurélia foi directamente falar com o inquilino do outro apartamento do rés-do-chão. A conversa inicial com César acerca dos inquilinos pusera termo à sua decisão de se livrar imediatamente desse inquilino; nem chegara a mencioná-lo ao marido, percebendo que não veria a situação do mesmo modo que ela. Mas agora podia agir, e foi o que fez.

O outro apartamento do rés-do-chão tinha acesso pelo interior da ínsula; Aurélia só tinha que atravessar o pátio ao fim do saguão. Porém isso daria à sua visita uma formalidade que não queria dar. Por isso, entrou pela porta da frente do apartamento do inquilino. Para tal, teve de sair pela porta principal da sua casa, indo dar ao Vicus Patricii, virou à direita e caminhou ao longo da fila de lojas por ela alugadas até ao cume do edifício onde ficava a taberna da encruzilhada. Daí, virou à direita, na Subura Minor e percorreu a outra fila de lojas também alugadas por ela, acabando por chegar à porta da frente do segundo apartamento do rés-do-chão.

O inquilino era um actor famoso chamado Epafrodito, e de acordo com os registos vivia ali há bastante mais de três anos.

- Diz a Epafrodito que a senhoria deseja falar-lhe - disse ao porteiro. Enquanto esperava na sala de recepção - que era do tamanho da sua - verificou as condições, experiente como se tornara em rachas, lascas, tinta a escamar e problemas semelhantes, e suspirou; a sala era melhor que a dela, e tinha sido pintada com frescos recentes em que havia faixas de frutos e flores suspensos por Cupidos com covinhas, que pairavam por entre cortinas pintadas com um ar convincente.

- Não posso acreditar! - exclamou uma bela voz, em grego. Aurélia voltou-se para enfrentar o inquilino. Era mais velho do que sugeriam a voz, a fama no palco ou a visão do outro lado do pátio: um homem de cerca de cinquenta anos, com uma peruca de um amarelo-dourado na cabeça e um rosto cuidadosamente maquilhado, vestindo uma túnica flutuante de púrpura de Tiro, com grupos de estrelas bordados. Embora muitos homens usassem imitações de púrpura de Tiro, a sua era genuína; era mais negra do que púrpura, e o seu brilho mudava de tonalidade com a luz, cobrindo-a de reflexos cor de ameixa e carmesim profundo. Estes tons viam-se habitualmente em tapeçarias, mas Aurélia só vira trajos de púrpura de Tiro genuína uma vez na vida, na sua visita à villa de Cornélia, a mãe dos Gracos, que exibia com orgulho uma túnica roubada por Emílio Paulo ao rei Perseu da Macedónia.

- Em que é que não podes acreditar? - perguntou Aurélia, também em grego.

- Em ti, querida! Tinha ouvido dizer que a nossa senhoria era linda e tinha olhos cor de púrpura, mas a realidade ofusca o que eu tinha imaginado à distância, deste lado do pátio! - disse ele, trauteando; tinha uma voz mais melodiosa que ridícula, apesar do tom efeminado. - Senta-te, senta-te! - convidou.

- Prefiro ficar de pé.

Epafrodito parou e virou-se para ela, erguendo as negras sobrancelhas arranjadas.

- Vieste tratar de negócios!

- Com certeza.

- Nesse caso, como poderei ser-te útil? - perguntou.

- Podes mudar de casa - respondeu Aurélia.

Ele sobressaltou-se; ficou boquiaberto; elevou as mãos até ao pescoço; uma expressão de terror estampou-se-lhe no rosto.

- O quê?

- Concedo-te um prazo de oito dias - informou a senhoria.

- Mas não podes! A minha renda está paga, como sempre! Trato do apartamento como se me pertencesse! Explica-me os teus motivos, domina - disse Epafrodito, agora num tom muito duro e com um olhar cuja masculinidade desmentia por completo o ar do seu rosto pintado.

- Não me agrada o teu modo de vida - disse Aurélia.

- O meu modo de vida é da minha conta - disse Epafrodito.

- Não é contigo quando tenho de educar a minha família num pátio onde se passam cenas impróprias para os meus olhos, quanto mais para os de uma criança - explicou a rapariga. - Não é contigo quando meretrizes e prostitutos se escapam para o pátio para prosseguirem as suas actividades.

- Pendura cortinas - sugeriu Epafrodito.

- Não farei tal coisa. Pôr cortinas não me satisfaz. Os habitantes da minha casa têm olhos e ouvidos.

- Lamento muito que penses assim, mas essa questão não é relevante - disse ele bruscamente. - Recuso-me a partir.

- Nesse caso, contratarei beleguins para te expulsar.

Usando a sua arte para crescer em estatura até parecer estar em posição superior, Epafrodito aproximou-se dela e conseguiu fazer a destemida Aurélia recordar-se de Aquiles escondido no harém do rei Licomedes de Ciros.

- Escuta - disse ele -, gastei uma fortuna a transformar este lugar a meu gosto, e não tenciono sair daqui. Se tentares fazer truques como mandar cá beleguins, processar-te-ei. Logo que saias dos meus aposentos irei directamente ao tribunal do pretor urbano, apresentar queixa contra ti.

A cor púrpura dos olhos de Aurélia envergonhava as imitações da púrpura de Tiro, assim como o seu olhar.

- Podes fazê-lo à vontade! - disse Aurélia gentilmente. - Ele chama-se Caio Mémio e é meu primo. No entanto, estamos em má altura para processos, pelo que terás de falar primeiro com o seu ajudante. É um senador novo, mas conheço-o bem. Pergunta por ele; chama-se Sexto Júlio César. É meu cunhado - a rapariga afastou-se e inspeccionou as paredes pintadas há pouco tempo, o dispendioso chão de mosaicos que não havia em mais nenhum apartamento alugado. - Sim, tudo isto é muito bonito! Ainda bem que tens mais gosto na decoração de interiores que nas companhias. Mas deves saber que os melhoramentos feitos em alojamentos alugados pertencem ao senhorio, e que, à face da lei, o senhorio não é obrigado a pagar qualquer compensação.

Passados oito dias, Epafrodito partira, lançando pragas às mulheres, e sem conseguir fazer o que decidira: mutilar os frescos e escavar o chão de mosaicos; Aurélia mandara para o apartamento um par de gladiadores contratados.

- Excelente! - exclamou, esfregando as mãos. - Agora, Cardixa, posso procurar um inquilino decente.

O processo de aluguer de um apartamento tinha várias fases; o senhorio pendurava um aviso à porta da sua casa e outros nas paredes das suas lojas, fazia o mesmo no lado de fora dos banhos e latrinas públicas e em qualquer parede das casas dos seus amigos, fazendo depois divulgar oralmente a notícia. Como a ínsula de Aurélia era conhecida por ser particularmente segura, não havia falta de pretendentes a inquilinos, que ela própria entrevistou. Alguns agradaram-lhe; outros pareceram-lhe dignos de confiança; a outros, não teria alugado o apartamento, nem que fossem os únicos interessados. Mas como nenhum mostrou ser o que ela esperava, prosseguiu a procura e as entrevistas.

Passaram sete semanas até encontrar o inquilino ideal: um cavaleiro e filho de cavaleiro, de nome Caio Mário; era da idade de César e a mulher da idade de Aurélia; eram cultos e educados; tinham casado na mesma altura que César e Aurélia; tinham uma bebé da idade de Lia; e uma confortável situação financeira. A esposa chamava-se Priscila, nome que devia ter derivado do cognomen do pai e não da sua gens, mas durante os largos anos que a família Mário viveu na ínsula, Aurélia nunca descobriu o nome próprio de Priscila. Os membros da família Mário eram corretores e mediadores de contratos, e o pai de Caio Mário vivia com a segunda esposa numa casa espaçosa no Quirinal. Aurélia teve o cuidado de verificar tudo isto, e quando os inquéritos o confirmaram, alugou a Caio Mário o apartamento do rés-do-chão pela bela quantia de dez mil denários por ano; os murais e mosaicos dispendiosos de Epafrodito ajudaram a firmar o contrato, assim como a promessa de Aurélia de que os futuros contratos passariam a ser negociados pela firma Caio Mário e Caio Mário.

Não existiam mais agentes a recolher rendas; a partir daí, Aurélia tencionava ser ela própria a gerir a ínsula. Todos os apartamentos seriam alugados de acordo com um contrato escrito que podia ser renovado de dois em dois anos. Os contratos incluíam cláusulas de penalização por danos, e cláusulas para proteger os inquilinos do risco de extorsão por parte do senhorio.

A sala de estar de Aurélia transformou-se num escritório cheio de livros de contas; o tear foi a única coisa que ficou dos antigos passatempos. E Aurélia lançou mãos à obra na descoberta de como era complicado ser senhoria. Depois de ter recolhido os documentos dos primeiros agentes, a rapariga descobriu que havia arquivos para todo o tipo de coisas: pedreiros, pintores, estucadores, vendedores diversos, taxas de água, títulos de propriedade de terrenos, contas e recibos. Como em breve descobriu, uma grande parte dos rendimentos teria de ser gasta imediatamente. A par com a água e os esgotos, o Estado recebia uma pequena contribuição por cada uma das janelas da ínsula, por cada porta que desse para a rua e cada escada de acesso às portas. E embora a ínsula fosse inegavelmente bem construída, havia sempre reparações a fazer. Entre os comerciantes inscritos na lista, encontravam-se alguns carpinteiros; estudando as datas, Aurélia encontrou um homem que parecia ter feito muito trabalho e estado bastante tempo ao serviço. Por isso mandou chamá-lo e ordenou-lhe que mudasse as telas de madeira que dividiam o saguão.

Aurélia acalentava este projecto desde que se mudara para a ínsula com César; descobrira em si o desejo de fazer um jardim, e sonhara transformar o descuidado pátio interior num oásis que fosse um prazer para todos os que viviam no prédio. Mas tudo conspirara contra ela, começando pelo problema com Epafrodito, que também tinha autorização para usar o pátio. César nunca vira o que se passava em casa de EpafrodÍto; o actor tinha a perspicácia de assegurar-se de que a devassidão só ocorria quando César não estava em casa. E, como Aurélia veio mais tarde a descobrir, César achava que todas as mulheres tinham tendência para exagerar.

Fixaram-se telas de madeira incomodamente densas a partir do Piso superior entre as colunas das varandas que davam para o pátio. Isso impedia os moradores do piso de cima de disfrutar da vista. Era evidente que as telas mantinham a privacidade do pátio - e ajudavam a conter o barulho constante que vinha dos apartamentos - mas também convertia o saguão numa lúgubre chaminé castanha de nove pisos de altura, e o pátio na sua igualmente desolada lareira, não permitindo a entrada de luz para os inquilinos que moravam nos pisos superiores, impedindo-os também de apanhar ar fresco.

Por isso, assim que lhe foi possível a seguir à partida de César, Aurélia mandou chamar o carpinteiro para arrancar as telas todas.

Ele olhou-a como se ela tivesse enlouquecido.

- Qual é o problema? - perguntou a rapariga, espantada.

- Domina, ficarás com merda e urina pelos joelhos dentro de três dias avisou ele -, para não falar do que quer que lhes apeteça mandar cá para fora, desde o cão à avozinha morta ou às bebés.

Aurélia sentiu uma onda rubra cobrir-lhe a cara até as orelhas ficarem a arder. O que a aterrorizou não foi a verdade franca da afirmação do carpinteiro mas a sua própria ingenuidade. ”Tola, tola, tola! Por que não pensara naquilo? - Porque”, respondeu para si mesma, ”uma vida inteira a passar pelas portas e escadas de prédios e apartamentos não podia dar a alguém que sempre vivera numa grande habitação privada a mais pequena ideia do que se passava no seu interior.” O tio Cota não teria sido mais rápido a adivinhar a finalidade daquela tela de madeira.

Aurélia apertou as mãos contra as suas bochechas coradas e lançou ao carpinteiro um olhar tão adorável entre o divertido e o confuso, que ele sonhou com ela durante quase um ano, aparecia regularmente para ver como as coisas estavam e melhorou o nível de trabalho pelo menos em cem por cento.

- Obrigada - disse-lhe ela fervorosamente.

No entanto, a partida do revoltante Epafrodito dava-lhe a grande oportunidade de começar a fazer um jardim no pátio, e foi então que Caio Mário, o novo inquilino, revelou a sua paixão pela jardinagem.

- Posso ajudar-te? - pediu ele.

Era difícil dizer ”não” depois de ter passado tanto tempo à procura dos inquilinos ideais.

- Claro que podes ajudar.

Este facto deu origem a mais uma lição. Através de Caio Mário, Aurélia aprendeu que uma coisa era sonhar fazer um jardim magnífico; outra coisa era fazê-lo. A rapariga não tinha nem jeito nem arte para tal coisa, ao contrário de Caio Mário. Com efeito, ele era genial na jardinagem. Antigamente, a água da casa de César gorgolejara nos esgotos, mas agora era canalizada para uma pequena cisterna no pátio e alimentava as plantas que Caio Mário produzia com uma rapidez espantosa - na sua maioria roubadas, segundo contara a Aurélia, da mansão do seu pai no Quirinal, e ainda a quem quer que possuisse um arbusto ou uma videira, uma árvore ou mesmo mato prometedor. O inquilino sabia como enxertar uma planta fraca num rizoma forte da mesma espécie; sabia que plantas precisavam de um pouco de visco e quais precisavam da terra ácida de Roma; conhecia as alturas certas do ano para semear, transplantar ou podar. Em doze meses, o pátio - nos seus trinta por trinta pés - era um local frondoso e as trepadeiras subiam por grades dispostas nas colunas em direcção ao pedaço de céu mais acima.

Um dia Shimon, o escriba judeu, veio visitá-la, muito estranho aos seus olhos de romana, com os longos anéis de cabelo enrolados à volta do pequeno crânio.

- Domina Aurélia, o quarto piso tem um favor muito especial a pedir-te - disse-lhe.

- Se puder concedê-lo, Shimon, podes ter a certeza que o farei - disse ela com um ar sério.

- Compreenderemos se recusares, pois o que te pedimos é uma invasão da tua privacidade - explicou Shimon escolhendo as expressões com a mesma delicadeza que geralmente dedicava ao seu trabalho. - Mas, se te dermos a nossa palavra de honra de que nunca abusaremos do nosso privilégio lançando fora detritos, podemos retirar as telas de madeira da varanda do nosso saguão? Poderíamos respirar um ar melhor e ver o teu belo jardim.

Aurélia ficou radiante.

- Terei muito prazer em conceder-vos este favor - concordou ela. Porém, também não posso aprovar o uso das janelas que dão para a rua para a descarga do lixo. Tens de prometer-me que todos os vossos desperdícios serão transportados até à latrina pública do outro lado da rua e despejados no esgoto.

Encantado, Shimon prometeu.

E as telas que rodeavam a varanda do saguão foram retiradas do quarto piso, apesar de Caio Mário pedir que fossem mantidas no lugar onde cobriam as colunas, para que as suas trepadeiras pudessem continuar a crescer. O piso judeu iniciou uma moda: a seguir foram o inventor e o mercador de especiarias do piso acima a pedir para as tirar, seguidos pelos do terceiro piso, do sexto, do segundo e do quinto, até que por fim, só o amontoado de homens livres do último Piso mantinham as telas.

Na Primavera antes da batalha de Aquae Sextiae, César fez uma viagem apressada através dos Alpes, trazendo despachos para Roma, e da sua breve visita resultou uma segunda gravidez para Aurélia, que deu à luz outra menina em Fevereiro do ano seguinte. Mais uma vez, o parto decorreu em casa, assistido apenas pela parteira local e Cardixa. Desta vez, Aurélia estava alertada para a falta de leite, e a segunda pequena Júlia - que sofreria a vida inteira o diminutivo de ”Ju-Ju” - foi logo colocada à frente dos peitos de uma dúzia de mães lactentes, dispersas pelos vários pisos da ínsula.

”Ainda bem”, dizia César em resposta à carta em que Aurélia lhe anunciava o nascimento de Ju-ju, ”que já temos as duas Júlias tradicionais. No próximo grupo de despachos que eu traga para o Senado, começaremos com os Júlios.”

As palavras do marido assemelhavam-se muito ao que Rutília, a mãe dela, lhe havia dito para a consolar por só ter dado à luz meninas.

- Devias saber que estavas a falar em vão - comentou Cota, divertido.

- Sim... bom! - exclamou Rutília com irritação. - Francamente, Marco Aurélio, aquela minha filha desnorteia-me! Quando tentei animá-la, limitou-se a elevar as sobrancelhas e dizer que o sexo dos seus filhos lhe era completamente indiferente, desde que fossem saudáveis.

- Mas isso é uma atitude maravilhosa! - protestou Cota. - Como os casais da nossa família que têm posses para alimentar os filhos desistiram de mostrar as filhas à nascença há mais de quatrocentos ou quinhentos anos, é bom que uma mãe acolha bem as suas filhas.

- É evidente! É a única atitude! - exclamou Rutília asperamente. Não. Não é da compostura dela que me queixo, é da forma exasperante que tem de fazer os outros sentir-se tolos por dizerem aquilo que é óbvio!

- Eu amo-a - disse Rutílio Rufo por entre risadas, tomando partido pela sobrinha.

- Pois! - exclamou Rutília.

- A menina é bonita? - perguntou Rutílio.

- É delicada, que outra coisa podias esperar? Aqueles dois não podiam ter um filho feio, nem que o tivessem concebido a fazer o pino - comentou Rutília, sentindo-se picada.

- Vamos lá, isto é que é uma nobre e decente senhora romana? ralhou Cota, piscando o olho a Rutílio Rufo.

- Espero que te caiam os dentes! - vociferou Rutília, e atirou-lhes com almofadas.

Pouco depois do nascimento de Ju-ju, Aurélia viu-se obrigada a resolver a situação da taberna do cruzamento. Era uma tarefa que sempre evitara, pois embora a taberna estivesse alojada na sua ínsula, não Pagava renda, visto que era o local de reunião de uma irmandade religiosa; apesar de não ter estatuto de templo ou aedes, era ”oficial”, e estava registada nos livros do pretor urbano.

Mas era um incómodo. Parecia que as actividades que se desenrolavam à sua volta e dentro dela nunca terminavam, mesmo durante a noite, e alguns dos seus frequentadores eram muito rápidos a empurrar gente para o passeio mas muito lentos a limpar a constante acumulação de lixo na mesma secção do passeio.

Cardixa foi a primeira a conhecer um aspecto mais obscuro da irmandade religiosa da taberna do cruzamento. Fora enviada à pequena loja ao lado da porta principal de Aurélia para comprar unguento para o rabo de Ju-ju, e encontrou a proprietária - uma velha mulher da Galácia que era especialista em remédios, tónicos e panaceias - encostada à parede, enquanto dois homens com mau aspecto discutiam qual dos grupos de jarros e garrafas iriam destroçar primeiro. Graças a Cardixa, não destroçaram nada. Cardixa é que os destroçou. Depois de os homens terem partido gritando imprecações, Aurélia ouviu a história da velha mulher aterrorizada que não pudera pagar a cota de protecção.

- Todas as lojas têm de pagar uma cota à irmandade do cruzamento para permanecerem abertas - disse Cardixa a Aurélia. - Dizem que têm um serviço para proteger os empregados das lojas dos roubos e da violência, mas os únicos roubos e violência que estes sofrem é às suas mãos, quando a cota de protecção não foi paga. Como sabes, dominila, a desgraçada da velha Galácia enterrou o marido há pouco tempo, e como lhe fez um enterro muito caro, agora não tem dinheiro.

- Está decidido! - exclamou Aurélia em tom marcial. - Anda, Cardixa, vamos resolver isto.

E saiu pela porta da frente, passou pelas suas lojas do Vicus Patricii, parando em cada uma delas para obrigar o dono a falar-lhe das cotas de protecção. Por alguns deles descobriu que o negócio da irmandade se estendia muito para lá das lojas da sua ínsula, e acabou por percorrer a vizinhança, deslindando uma incrível história de extorsão. Até as duas mulheres que geriam a latrina pública do outro lado da Subura Millor - por negócio com a firma que detinha o contrato com o Estado - tinham sido obrigadas a pagar à irmandade uma percentagem do dinheiro que lhes davam os patronos que tinham o suficiente para poderem pagar uma esponja com que se limpavam depois de defecarem; quando a irmandade descobriu que as duas mulheres também tinham um serviço de recolha e limpeza de penicos de vários apartamentos que não haviam revelado, partiram todos os penicos e as mulheres tiveram de comprar outros. Os banhos ao lado da latrina pública eram privados - tal como todos os banhos em Roma - mas constituíam um negócio lucrativo. Também aqui a irmandade cobrava cotas que asseguravam os clientes de que não ficariam dentro de água quase até se afogarem.

Quando Aurélia terminou a investigação estava tão zangada que achou sensato ir para casa e acalmar-se antes do confronto com a irmandade no seu antro.

- Do lado de fora da minha casa! - disse Aurélia a Cardixa. - Da minha casa!

- Não te preocupes, Aurélia, dar-lhes-emos o que merecem - afirmou Cardixa para a tranquilizar.

- Onde está a Ju-ju? - perguntou Aurélia, respirando fundo.

- Lá em cima, no quarto piso. Esta manhã é a vez de Rebeca lhe dar a mamada.

Aurélia apertou as mãos.

- Por que não terei leite? Estou tão seca como uma velha! Cardixa encolheu os ombros.

- Algumas mulheres produzem leite; outras não. Ninguém sabe porquê. Não fiques triste: é este assunto da irmandade que te arrelia. Bem sabes que ninguém se importa de dar uma mamada à Ju-ju. Vou mandar um dos servos lá acima para pedir à Rebeca que fique com a menina por algum tempo, e a seguir vamos desalojar aqueles desgraçados.

Aurélia pôs-se em pé.

- Anda, vamos acabar com isto.

O interior da taberna estava muito escuro; Aurélia ficou à porta na contraluz, no auge de uma beleza que a acompanhou durante toda a vida. O barulho lá dentro parou imediatamente, mas recomeçou logo em toda a sua ira quando Cardixa surgiu atrás da ama.

- É o paquiderme que nos bateu esta manhã! - exclamou uma voz no meio das trevas.

Os bancos arrastaram-se. Aurélia entrou e olhou em volta; Cardixa seguia atrás dela, muito atenta.

- Quem é responsável por vocês, seus campónios? - inquiriu Aurélia. De uma mesa num canto do fundo levantou-se um homem baixo e magro com cerca de quarenta anos e um ar indesmentivelmente romano.

- Sou eu - disse, avançando. - Lúcio Decúmio, às tuas ordens.

- Sabes quem sou eu? - perguntou Aurélia.

Lúcio Decúmio assentiu.

- Estás a usufruir... sem renda!... dos meus alojamentos - disse ela.

- Estes alojamentos não te pertencem a ti, senhora - disse Lúcio Decúmio -, mas sim ao Estado.

- Não pertencem ao Estado - disse Aurélia, e olhou em volta, agora que os seus olhos se tinham habituado à luz fraca. - Este lugar é uma perfeita desgraça. Vocês não tomam conta dele. Ordeno que o evacuem.

Ouviu-se um suspiro colectivo. Lúcio Decúmio apertou os olhos e fez um ar atento.

- Não podes desalojar-nos - disse.

- Repara só!

- Vou fazer queixa ao pretor urbano.

- Vai; podes ir! Ele é meu primo.

- Então, recorrerei ao Pontifex Maximus.

- Lá está; também é meu primo.

Lúcio Decúmio bufou, com um som que tanto podia significar desprezo como riso.

- Não podem ser todos teus primos!

- Podem e são - o magnífico maxilar de Aurélia avançou. - Não confundas as coisas, Lúcio Decúmio, tu e os teus rufias nojentos vão sair daqui.

O homem ficou a olhar pensativamente Para ela, com uma mão a coçar o queixo, e o que podia ser um sorriso oculto no fundo dos olhos cinzento-claros; depois, afastou-se e indicou delicadamente a mesa onde estivera sentado.

- E se discutíssemos o nosso pequeno problema? - perguntou, cOM uma suavidade semelhante à de Escauro.

- Não há nada para discutir - contrariou Aurélia. - vocês vão sair.

- Há sempre espaço para a discussão. Vamos sentar-nos, senhora disse Lúcio Decúmio, lisonjeiro.

E Aurélia reparou que algo de terrível lhe estava a acontecer; começava a gostar de Lúcio Decúmio! O que era manifestamente ridículo; mas não deixava de ser um facto.

- Muito bem - disse. - Cardixa, fica de pé atrás da minha cadeira. Lúcio Decúmio arranjou uma cadeira e sentou-se num banco.

- Uma gota de vinho, minha senhora?

- De modo nenhum.

- Oh!

- Então?

- Então o quê? - perguntou Lúcio Decúmio.

- Foste tu que quiseste discutir o assunto - salientou ela.

- Exacto, fui eu - Lúcio Decúmio aclarou a garganta. - Qual era mais precisamente a tua objecção, senhora?

- A tua presença debaixo do meu tecto.

- Isso é muito vago, não é? Podemos chegar a um acordo: diz-me o que te desagrada e verei se podemos resolver isso - sugeriu Decúmio.

- A delapidação. A imundície. O barulho. A ideia de que são donos

da rua e destes alojamentos quando nada disso é verdade - começou Aurélia, contando os argumentos pelos dedos. - E o teu pequeno negócio da vizinhança! Aterrorizar vendedores indefesos para te pagarem dinheiro que não podem pagar! Que coisa desprezível!

- O mundo, senhora - disse Decúmio, inclinando-se para a frente com um ar muito sério -, está dividido em carneiros e lobos. É natural. Se não fosse natural, não haveria muito mais carneiros do que lobos, ao passo que todos sabemos que por cada lobo há no mínimo mil carneiros. Podes considerar-nos os lobos locais. Não somos tão maus como os lobos. Temos dentes pequenos, damos uma ou duas mordidelas, nada de pescoços partidos.

- Isso é uma metáfora revoltante - disse Aurélia - e não muda a minha posição. Têm de sair.

- Oh, pobre de mim! - exclamou Lúcio Decúmio, recostando-se. - Pobre, pobre de mim! - e lançou-lhe um olhar. - São mesmo todos teus primos?

- O meu pai era o cônsul Aurélio Cota. O meu tio é o cônsul Públio Rutílio Rufo. O meu outro tio é o pretor Marco Aurélio Cota. O meu marido é o questor Caio Júlio César - Aurélia encostou-se na cadeira, elevou um pouco mais a cabeça, fechou os olhos e disse com um ar enfatuado. - E além do mais, Caio Mário é meu cunhado.

- O meu cunhado é o rei do Egipto! - disse Lúcio Decúmio a rir, saturado de nomes.

- Então, sugiro que voltes para o Egipto - replicou Aurélia, nada incomodada com o sarcasmo. - O cônsul Caio Mário é meu cunhado.

- Sim, e é claro que a cunhada de Caio Mário vai viver numa ínsula no cu da Subura! - afirmou Lúcio Decúmio, duvidoso.

- A ínsula é minha. É o meu dote, Lúcio Decúmio. O meu marido é o filho mais novo, por isso de momento vivemos na minha ínsula na Subura. Mais tarde, iremos viver para outro lado.

- Caio Mário é mesmo teu cunhado?

- Até ao último pêlo das suas sobrancelhas. Lúcio Decúmio suspirou.

- Eu gosto de viver aqui - disse -, por isso é melhor fazermos negociações.

- Quero que saiam daqui - insistiu Aurélia.

- Tenho alguma razão do meu lado - afirmou Lúcio Decúmio. - Os membros desta loja são os guardas do sacrário do cruzamento. Havemos de ficar bem.

- Isso não é resposta! - exclamou Aurélia. - Qual é a diferença entre aterrorizar a nossa vizinhança e fazer o mesmo em qualquer outro lugar?

- O que os olhos não vêem e os ouvidos não ouvem, o coração não chora - disse o homem, genuinamente surpreendido com a estupidez dela. - Isto é um facto, senhora.

Tinham chegado à porta principal da casa dela. Aurélia parou e olhou-o pesarosamente.

- Farás como entenderes, Lúcio Decúmio. Mas nunca me digas para onde transferiste a tua... operação, como lhe chamas.

- juro que ficarei calado, senhora! Calado, mudo e paralítico! - passou-lhe à frente para bater à porta da casa, que foi aberta pelo mordomo com um entusiasmo suspeito. - Ah, Eutychus, não te vejo na irmandade há alguns dias - lembrou Lúcio Decúmio em tom suave. - Da próxima vez que a senhora te der folga, espero ver-te na loja. Vamos lavar e pintar o sítio para agradar à senhora. Temos de manter satisfeita a cunhada de Caio Mário, não é?

Eutychus fez um ar acabrunhado.

- Pois é - respondeu.

- Então estavas a guardar segredo? Por que não nos disseste quem era a senhora? - inquiriu Lúcio Decúmio com a maior das delicadezas.

- Como virás a reparar com o passar dos anos, Lúcio Decúmio, não conto nada acerca da minha família - disse Eutychus com altivez.

- Malditos gregos; são todos iguais - comentou Lúcio DecúMIO, sacudindo o cabelo castanho e liso. - Bom dia, senhora. Tive muito prazer em conhecer-te. Se a loja puder ajudar-te em qualquer coisa, diz-me.

Quando a porta se fechou atrás dela, Aurélia olhou para o mordomo, impassível.

- O que podes alegar em tua defesa? - perguntou.

- Domina, eu tenho de estar inscrito! - queixou-se o homem. - Sou o mordomo dos senhorios: não posso deixar de estar inscrito!

- Saberás, Eutychus, que podia ter-te mandado açoitar por isto disse Aurélia, permanecendo impassível.

- Sei - murmurou ele.

- Um açoite é o castigo estabelecido, não é?

- É - murmurou o mordomo.

- Nesse caso, tens sorte por eu ser mulher do meu marido e filha do meu pai - avisou a patroa. - Penso que Caio Júlio, o meu sogro, explicou melhor a questão. Pouco antes de morrer disse que nunca compreenderia como qualquer família podia viver na mesma casa com aqueles que açoitava, fossem eles seus filhos ou seus escravos. No entanto, há outras formas de lidar com a deslealdade e a insolência. Nunca julgues que não estou preparada para aceitar a perda financeira que significaria vender-te com más referências. E sabes bem que assim é: em vez de dez mil denários receberia um milhar de sestércios. E o teu novo dono seria tão duro que te açoitaria impiedosamente, pois chegarias às suas mãos com fama de seres um mau escravo.

- Compreendo, domina.

-Ainda bem! Podes continuar a pertencer à irmandade do cruzamento; compreendo a tua situação. E aconselho-te a seres discreto acerca de nós - Aurélia dirigiu-se para sair mas parou pouco depois. - O Lúcio Decúmio tem emprego?

- É o encarregado da loja - disse Eutychus, menos à vontade do que nunca.

- Estás a esconder qualquer coisa.

- Não, não!

- Vamos, conta-me tudo!

- Bem, domina, não passa de um boato - avisou E utychus. - Ninguém sabe muito bem. Mas alguém o ouviu dizer, embora pudesse ser mera gabarolice. Ou podia estar a dizer aquilo para nos assustar.

- Dizer o quê?

O mordomo empalideceu.

- Ele diz que é um assassino.

- Ecastor! E quem assassinou ele? - perguntou Aurélia.

- Creio que afirma ter morto o sujeito númida que foi apunhalado no Fórum Romano há alguns anos - disse Eutychus.

- Será que as surpresas não param disse Aurélia, e depois foi ver o que estavam a fazer os bebés.

- Devem ter partido o molde depois de a terem feito - comentou Eutychus para Cardixa.

A enorme serva gaulesa estendeu uma mão e colocou-a sobre o ombro do belo mordomo tal como um gato podia ter prendido um rato pousando-lhe uma pata sobre a cauda.

- E partiram mesmo - disse ela, dando a Eutychus um abanão ostensivamente amigável. - É por isso que todos temos de tomar conta dela.

Pouco tempo depois Caio Júlio César regressou da Gália Italiana com a mensagem de Mário, de Vercelas. Limitou-se a bater à porta aberta pelo mordomo que o ajudou a carregar para dentro a bagagem enquanto César ia ter com a mulher.

Aurélia estava no jardim interior a atar pequenos sacos de gaze à volta das uvas maduras na arbor de Caio Mário, e embora tivesse ouvido passos, não se virou.

- Não julgava que a Subura tinha tantos pássaros, e tu? - perguntou a rapariga a quem quer que fosse a passar. - Mas como este ano decidi que havemos de comer uvas, quero ver se isto resulta.

- Aguardá-las-ei com ansiedade - disse César.

A esposa voltou-se, deixando a gaze esvoaçar até ao chão; a alegria estampava-se-lhe no rosto.

- Caio Júlio!

O marido esticou os braços; Aurélia correu para ele. Nunca um beijo fora tão ardente, nem tão rapidamente seguido por uma dúzia de outros. O som de palmas trouxe-os de volta à realidade; César olhou para cima, para a clarabóia, viu as balaustradas das varandas cheias de gente rejubilante, e acenou-lhes.

- Uma grande vitória! - exclamou. - Caio Mário aniquilou Os Germanos! Roma não mais terá de temê-los!

Deixando os inquilinos a festejar e espalhar a notícia pela Subura antes que o Senado ou o Povo tivessem sido informados, César pôs un braço à volta dos ombros de Aurélia e caminhou com ela até ao estreito átrio que ficava entre a sala de recepção e a arca da cozinha; virou-Se na direcção do seu gabinete, mostrando-se satisfeito com a arrumação, a limpeza, a decoração barata mas de bom gosto. Havia vasos de flores por toda a parte: uma nova faceta de Aurélia, pensou, e interrogou-se com alguma expectativa se ela poderia comprar tantos rebentos.

- Tenho de falar imediatamente com Marco Emílio Escauro - disse mas não queria ir a sua casa antes de visitar a minha. Como é bom estar em casa!

- É maravilhoso - disse Aurélia com a voz a tremer.

- Ainda será mais maravilhoso hoje à noite, esposa, quando estivermos a conceber o nosso primeiro rapaz - disse o marido voltando a beijá-la. - Oh, como senti a tua falta! Comparada contigo, nenhuma mulher tem qualquer atractivo, e é essa a verdade. Poderei tomar um banho?

- Vi a Cardixa entrar há momentos e por isso espero que já esteja pronto - Aurélia encostou-se ao marido com um suspiro de prazer.

- E tens a certeza de que não é demasiado para ti tratar da casa,

tomar conta das nossas filhas e de tudo isto? - perguntou ele. - Sei que me dizes sempre que os agentes receberam mais comissões do que deviam, mas...

- Não dá incómodo nenhum, Caio Júlio. É um prédio muito ordeiro e os teus inquilinos são muito bons - disse ela com firmeza.

- Até resolvi um pequeno problema que tinha com a taberna do cruzamento, por isso agora está tudo calmo - Aurélia riu-se para ele, falando depois em tom casual. - Não calculas como todos passam a ser colaboradores e bem-comportados mal descobrem que sou cunhada de Caio Mário!

- Tantas flores! - exclamou César.

- Não são lindas? São uma dádiva perpétua que recebo duas vezes por semana.

César estreitou-a nos braços.

- Isso significa que tenho um rival?

- Não me parece que vás ficar preocupado quando o conheceres afirmou Aurélia. - Chama-se Lúcio Decúmio; é um assassino.

- Um quê?

- Não, querido, estou a brincar - disse ela para o tranquilizar. Parece-me que diz isso para manter o ascendente sobre os companheiros. É o homem que toma conta da taberna.

- Onde arranja ele as flores? Aurélia riu suavemente.

- A cavalo dado não se olha o dente - disse. - Na Subura, as coisas são diferentes.

Foi Públio Rutílio que informou Caio Mário dos acontecimentos em Roma depois de César ter entregue a carta da vitória.

Há maus sentimentos no ar, principalmente devido ao facto de teres conseguido fazer aquilo a que te propuseras: eliminar os Germanos. E o Povo está tão agradecido que, se te candidatares ao consulado, voltarás a obtê-lo. A palavra dictator anda na boca de todos os nobres, e pelo menos a Primeira Classe começa a repetila. Sim, sei que tens como clientes muitos cavaleiros importantes da Primeira Classe, mas tens de compreender que toda a estrutura política e tradicional de Roma está feita de modo a desencorajar as pretensões dos homens que se elevam acima dos seus semelhantes. O único ”primeiro” que aceitam é o primeiro entre iguais; mas ao fim de cinco consulados, três dos quais in absentia, começa a ser extremamente difícil esconder o facto de te elevares acima daqueles que consideramos teus iguais. Escauro está desgostoso, mas com ele conseguirias tu lidar se tal fosse necessário. Não, o verdadeiro monte de excrementos no fundo da taça de ponche é o nosso amigo Suíno, competentemente ajudado pelo seu filho gago, o Bacorinho.

A partir do momento em que foste para o leste dos Alpes para te reunires a Catulo César na Gália Italiana, o Suíno e o Bacorinho trataram de aumentar numa escala completamente desproporcionada as contribuições para a campanha de César contra os Cimbros. Por isso, quando chegou a notícia da vitória de Vercelas e a Assembleia reuniu no templo de Belona para debater coisas tais como o triunfo e os votos da acção de graças, havia muita expectativa quando o Suíno se levantou para falar.

Resumindo, ele sugeriu que só fossem festejados dois triunfos: o teu em Aquae Sextiae e o de Catulo César em Vercelas! Ignorando por completo o facto de seres tu e não Catulo César o comandante de campo em Vercelas! O argumento que alegou é puramente legalista: participaram na batalha dois exércitos, um comandado pelo cônsul, tu, e o outro pelo procônsul, Catulo César. Segundo afirmou o Suíno, a quantidade de despojos era desanimadoramente reduzida e seria totalmente ridículo festejar dois triunfos. Assim, visto que ainda não celebraste o teu triunfo em Aquae Sextiae, esse podia ficar para ti, e Catulo César ficaria com o triunfo a que tem direito, por Vercelas. Seria supérfluo atribuir-te um segundo triunfo por Vercelas.

Lúcio Apuleio Saturnino levantou-se logo para opor objecções mas foi apupado. Como este ano ele é um privatus, não detém nenhum cargo que pudesse ter obrigado os Pais Conscritos a prestar- lhe mais atenção. A Assembleia votou doistriunfos, sendo o teu apenas por Aquae Sextiae a batalha do ano passado, e por isso menos significativa e Vercelas a batalha deste ano e a mais importante aos olhos de todos, como prerrogativa de Catulo César. Com efeito, à medida que a notícia do triunfo de Vercelas for correndo a cidade, as pessoas pensarão que não tiveste nada a ver com a derrota dos Cimbros na Gália Italiana e que Catulo César foi o herói. A tua própria estupidez entregando-lhe a maior parte dos despojos e todos os estandartes germanos capturados no campo de batalha fez com que a questão ficasse encerrada. E quando és expansivo e a tua generosidade natural vem ao de cima que cometes os maiores disparates, e é essa a verdade.

Não sei o que poderás fazer. Está tudo decidido, votado e arquivado. Estou muito zangado, mas os políticos (como Saturnino lhes chama) ou os boni (como lhes chama Escauro) ganharam redundantemente, e nunca terás o prestígio que te era devido pela derrota dos Germanos. Há anos divertiu-nos muito obrigar o Metelo a tomar aquele banho de lama com os seus amigos porcinos, e demos-lhe uma alcunha que por sinal também é o termo infantil para designar os órgãos genitais femininos. Mas agora acho que o homem não é um suíno mas sim um perfeito cunnus. Quanto ao bacorinho, também não será uma menina a vida inteira: outro perfeito cunnus.

Basta. Agora é que vou ter a tal apoplexia! Vou terminar esta missiva dizendo-te que a Sicília está bela. Mânio Aquílio tem feito um trabalho excelente, o que apenas diminui a importância de Servílio, o Augure. No entanto, Servílio fez o que prometera: processou Lúculo num tribunal de traição. Lúculo insistiu em proceder à sua própria defesa, e com todos aqueles cavaleiros ranhosos não valeu de nada à sua causa, dado que se mostrou em toda a sua altivez, que o júri interpretou como se lhe fosse dirigida. E era mesmo! O Lúculo é mais um idiota teimoso. Como era de esperar, condenaram-no: penso que todos inscreveram DAMNO nas tabuinhas. E a sentença foi de uma crueldade inacreditável! Como não pode escolher para o seu exílio um local a menos de mil milhas de Roma, só lhe restam dois lugares possíveis: Antióquia e Alexandria. Lúculo preferiu prestar honras ao rei Ptolomeu Alexandre em detrimento do rei Antíoco Grifo. E o tribunal retirou-lhe todos os seus bens: casas, terras, investimentos e imóveis urbanos.

Lúculo não esperou que o expulsassem. Nem se deu ao trabalho de esperar para ver em quanto orçavam os seus bens, mas pôs a pega da mulher ao cuidado do Suíno, que é irmão dela; será uma pequena punição para ele! O filho mais velho, agora de dezasseis anos e um homem aos olhos do Estado, ficou entregue a si mesmo. Não te parece interessante que ele não tenha entregue o seu rapaz tão dotado aos cuidados do Suíno mais novo, que tem agora catorze anos, já tinha sido adoptado. Chama-se Marco Terêncio Varrão Lúculo.

Escauro disse-me que ambos os rapazes tencionam processar Servílio, o Augure, mal Varrão Lúculo puder usar a toga de adulto: como deves imaginar, a despedida foi dilacerante. Escauro diz que Lúculo decidiu morrer depois de chegar a Alexandria. E parece que os dois rapazes acreditam que o tatá vaifazê-lo. O que magoa mais os Licínio Lúculo é o facto de toda esta dor e pobreza lhes ter sido infligida por um Homem Novo insignificante e arrogante como Servílio, o Augure. Vocês, Homens Novos, não fizeram amigos no que diz respeito aos filhos do Lúculo.

De qualquer forma, quando os filhos dele tiverem idade para um após o outro, processarem Servílio, o Augure, isso acontecerá no novo tribunal de crimes por extorsão criado por outro Servílio de origens obscuras, Caio Servílio Gláucia. Por Pólux, Caio Mário, aquele sujeito sabe mesmo fazer leis! O edifício é blindado e invulgar, mas funciona. Passou de novo para as mãos dos cavaleiros - o que não agrada nada aos governadores mas está bem acabado. A recuperação de bens desviados abrange agora os últimos beneficiários, bem como os primeiros que os roubaram; qualquer pessoa condenada no tribunal não pode falar em reuniões públicas onde quer que seja; os detentores dos Direitos Latinos que tiverem êxito ao processarem um malfeitor serão recompensados com a total cidadania romana; e há agora uma suspensão de actividades no meio dos processos judiciais. O antigo processo passou à história, e o depoimento das testemunhas, como os poucos casos ouvidos o demonstraram, é agora muito menos importante que as intervenções dos próprios defensores. Isto constitui uma enorme vantagem para os grandes defensores.

E assunto não menos importante, embora tenha sido guardado para o fim o Saturnino voltou a ter complicações. Sinceramente, Caio Mário, receio pela sua sanidade mental. Falta-lhe lógica. Tal como creio que falta ao seu amigo Gláucia. São tão brilhantes, e no entanto tão instáveis, tão loucos! Ou talvez não saibam como querem que sejam as suas carreiras. Até o pior demagogo tem um padrão, uma lógica dirigida para a pretura e o consulado. Mas não vislumbro essa lógica em nenhum deles. Odeiam o velho estilo de governo, odeiam o Senado... mas não têm nada a propor em sua substituição. Talvez sejam o que os Gregos denominam por expoentes de anarquia. Não sei ao certo.

Seja como for, os pratos da balança viraram-se recentemente em desfavor do rei Nicomedes da Bitínia no que diz respeito à embaixada do rei Mitríades do Ponto. O nosso jovem amigo das lonjuras no extremo leste do Euxino enviou embaixadores suficientemente perspicazes para descobrirem a fraqueza secreta de todos os Romanos: o dinheiro! Como não chegaram a lado nenhum com a sua petição de amizade e aliança, começaram a comprar senadores. Pagaram bem, e posso dizer-te que Nicomedes tinha motivos para ficar preocupado.

Então Saturnino fez um discurso nos rostros no qual condenava todos os membros do Senado que se preparavam para abandonar Nicomedes e a Bitínia a favor de Mitríades do Ponto. Disse que o nosso tratado com a Bitínia existia há anos, e que o Ponto era o inimigo tradicional da Bitínia. Disse ainda que o dinheiro mudara de mãos, e Roma não ia abandonar o seu amigo e aliado de cinquenta anos só para encher meia dúzia de bolsas senatoriais.

Há quem alegue eu não estava lá para ouvir que ele disse algo como: ”Todos sabemos como pode sair caro aos senadores idosos e decrépitos casar com raparigas joviais acabadas de sair da escola. Os colares de pérolas e braceletes de ouro são muito mais caros que uma garrafa do tónico que Ticino vende na sua barraca do Cuppedenis... E quem diz que uma rapariguinha jovial não faz mais efeito que o tónico de Ticino.” Estava também a troçar do Suíno, e perguntou à multidão: ”Os nossos rapazes da Gália Italiana?”

O resultado foi que alguns dos embaixadores do Ponto levaram uma tareia e foram queixar-se ao Senaculum. Então o Escauro e o Suíno pregaram um sermão a Saturnino no seu tribunal de traição, acusando-o de semear a discórdia entre Roma e uma embaixada acreditada de um monarca estrangeiro. No dia do julgamento, Gláucia, o nosso tribuno da plebe, convocou uma reunião da Assembleia da Plebe e acusou o Suíno de ter feito mais uma tentativa para se ver livre de Saturnino, já que não conseguira fazê-lo quando era censor. E os gladiadores contratados que Saturnino parece encontrar sempre na altura certa apareceram na sala, e cercaram os jurados com um ar tão ameaçador que o júri desistiu do processo. Os embaixadores do Ponto regressaram logo sem o seu tratado. Estou de acordo com Saturnino: seria muito mesquinho abandonar o nosso amigo e aliado de cinquenta anos em favor do seu inimigo tradicional só por esse inimigo ser agora muito mais rico e poderoso.

Basta, basta, Caio Mário! Só queria informar-te dos triunfos antes de chegarem os despachos oficiais, que o Senado não te enviará tão depressa. Gostava que houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer, mas duvido que haja.

Há, pois! exclamou Mário ameaçadoramente, depois de ter lido a carta. Pegou numa folha de papel e demorou bastante tempo a escrever o rascunho da carta. Depois mandou chamar Quinto Lutácio Catulo César.

Catulo César chegou todo entusiasmado, pois no correio alugado que trouxera a missiva de Rutílio Rufo para Mário também vinha uma carta de Metelo Numídico para Catulo César, e outra de Escauro para Catulo César.

Foi uma decepção descobrir que Mário já sabia do voto dos dois triunfos; Catulo César deliciara-se a imaginar a cara de Mário ao ouvir a notícia. No entanto, isso era uma consideração de menor importância, UM triunfo era um triunfo.

- Por isso, se não te importasses, gostaria de voltar a Roma em Outubro - disse Catulo César indolentemente. - Celebrarei o meu triunfo antes, já que, como cônsul, não podes partir tão cedo.

- Não te autorizo a partir - retorquiu Mário, alegre mas delicadamente. - Regressaremos juntos a Roma no fim de Novembro, tal como foi planeado. Com efeito, acabo de enviar ao Senado uma carta que tem a ver connosco. Queres ouvir o seu conteúdo? Não te incomodarei com a minha escrita: vou lê-la em voz alta.

Mário tirou um papelinho da mesa desarrumada, desdobrou-o e leu-o a Catulo César.

Caio Mário, cônsulpela quinta vez, agradece ao Senado e ao Povo de Roma a sua preocupação e consideração no que diz respeito aos seus triunfos e aos do seu segundo-comandante, o procônsul Quinto Lutácio Catulo. Elogio os Pais Conscritos pela sua admirável parcimónia ao decretarem apenas um triunfo para cada um dos generais de Roma. No entanto, ainda estou mais preocupado que os Pais Conscritos com os custos desta longa guerra. Tal como Quinto Lutácio. Por isso, Caio Mário e Quinto Lutácio partilharão apenas um triunfo entre si. Que Roma inteira seja testemunha da harmonia e amizade existente entre os generais. que irão desfilar juntos. Por conseguinte, tenho o prazer de informá-los que Caio Mário e Quinto Lutácio irão festejar o triunfo nas Calendas de Dezembro. juntos, Viva Roma.’

Catulo César empalideceu.

- Estás a brincar! - disse.

- Eu? A brincar? - Os olhos de Mário pestanejaram por baixo das sobrancelhas. - Nunca, Quinto Lutácio!

- Eu... eu não consinto!

- Não tens escolha possível - disse Mário docemente. - Eles pensaram que me tinham vencido, não foi? O caro Metelo Numídico Suíno e os seus amigos... e os teus amigos! Pois nunca nenhum de vocês há-de vencer-me.

- O Senado decretou dois triunfos, e hão-de ser dois triunfos! - exclamoo Catulo César a tremer.

- Oh, bem podes insistir, Quinto Lutácio. Só que não servirá de nada, pois não? Podes escolher: ou celebramos o triunfo juntos no mesmo desfile, ou então farás figura de tolo. Assunto arrumado.

E assim foi. A carta de Mário chegou ao Senado, e o triunfo único foi anunciado para o primeiro dia do mês de Dezembro.

Catulo César não tardou a vingar-se. Escreveu ao Senado queixando-se de que o cônsul Caio Mário usurpara as prerrogativas do Senado e Povo de Roma ao conceder a cidadania total a mil soldados auxiliares de Camerinum, no Piceno, em pleno campo de Vercelas. Catulo César também o acusou de exceder a autoridade consular ao anunciar que ia fundar uma colónia de legionários veteranos de Roma na pequena cidade da Eporédia, na Gália Italiana. A carta dizia o seguinte:

Caio Mário criou esta colónia inconstitucional para deitar a mão ao ouro aluvial que é recolhido do leito do Dúria Major, na Eporédia. O procônsul Quinto Lutácio Catulo salienta ainda que foi ele e não Caio Mário que ganhou a batalha de Vercelas. Como prova, tem em sua posse trinta e cinco estandartes germanos contra dois que se encontram à guarda de Caio Mário. Como vencedor de Vercelas, exijo que todos os cativos sejam vendidos como escravos. Caio Mário insiste em ficar com um terço deles.

Em resposta, Mário fez circular a carta de Catulo César pelos soldados do seu exército e do de Catulo César; tinha um acrescento lacónico do próprio Mário, dizendo que o produto da venda desse terço dos cativos cimbros capturados depois de Vercelas se destinava ao exército de Catulo César. O seu exército, salientou, já recebera o produto da venda dos escravos teutónicos depois de Aquae Sextiae, e não queria que os soldados do exército de Catulo César se sentissem totalmente abandonados, pois sabia que Quinto Lutácio como era seu direito guardaria para si o produto da venda dos dois terços de escravos cimbros que lhe competiam.

Gláucia leu as duas cartas no Fórum em Roma, e o Povo riu até não poder mais. Todos sabiam bem quem era o verdadeiro vencedor e quem se preocupava mais com as suas tropas do que consigo.

Terás de parar com esta campanha para desacreditar Caio Mário aconselhou Escauro Princeps Senatus a Metelo Numídico, senão voltarás a ser esbofeteado da próxima vez que entrares no Fórum. E aconselho-te a escreveres a Quinto Lutácio dizendo-lhe que faça o mesmo. Gostemos dele ou não, Caio Mário é o Primeiro Homem de Roma. Foi ele que ganhou a guerra contra os Germanos, e sabe-o Roma inteira. Ele é o herói popular, o semideus popular. Se tentares abatê-lo, a cidade inteira unir-se-á para te abater, Quinto Cecílio.

- Estou-me nas tintas para o Povo! - vociferou Metelo Numídico, que começava a sentir a tensão de ter de alojar a irmã, Metela Calva, qualquer amante de origens humildes convidado por ela.

- Temos outras hipóteses - sugeriu Escauro. - Podes voltar a candidatar-te ao cargo de cônsul. Acredites ou não, faz dez anos que foste cônsul! É mais que certo que Caio Mário voltará a candidatar-se. Não seria maravilhoso selar o seu sexto consulado tendo por colega um inimigo como tu

- Oh, quando nos veremos livres desta doença incurável chamada Caio Mário? - gritou Numídico desesperado.

- Espero que não demore muito - afirmou Escauro, que obviamente não estava desesperado. - Um ano; duvido que demore mais.

- Provavelmente, nunca.

- Não, não, Quinto Cecílio, desistes com tanta facilidade! Tal como Quinto Lutácio, deixas que as tuas ideias sejam dominadas pelo ódio que sentes por Caio Mário. Pensa! Ao longo dos seus cinco consulados eternos, quanto tempo passou Caio Mário em Roma?

- Alguns dias. Mas o que interessa isso para a questão?

- Interessa tudo para a questão, Quinto Cecílio! Caio Mário não é um grande político, embora tenha de admitir que possui um cérebro formidavelmente perspicaz. Caio Mário é um brilhante soldado e estratego. Garanto-te que não sobreviverá nos Comícios e na Cúria quando o seu mundo se reduzir a isso. Não havemos de deixá-lo sobreviver! Vamos esPicaçá-lo como um touro, cravar os dentes na sua carcaça e não os desferrar. E havemos de deitá-lo abaixo. Espera e verás - Escauro parecia totalmente seguro do que dizia.

Metelo sorriu, surpreendido com as perspectivas anunciadas por Escauro.

- Sim, compreendo, Marco Emílio, Muito bem, candidatar-me-ei a cônsul.

- Excelente. Hás-de ser eleito: por mais que eles adorem Caio MárIO, é impossível que tal não aconteça depois de exercermos toda a nossa influência na Primeira e Segunda Classes.

- Oh, estou ansioso por ser seu colega! - Metelo Numídico esticou os músculos, espreguiçando-se em segredo. - Hei-de fechar-lhe todas as portas! Vai ter uma vida miserável.

- Desconfio que também iremos receber um apoio inesperado - anunciou Escauro com ar felino.

- Que apoio?

- Lúcio Apuleio Saturnino vai candidatar-se a outro mandato como tribuno da plebe.

- É uma notícia terrível! Em que medida pode ajudar-nos? - perguntou Numídico.

- Não, é uma notícia excelente, Quinto Cecílio, acredita em mim. É que quando fores cônsul e cravares os dentes no lombo de Caio Mário, e o mesmo fizer eu e mais meia centena deles, Caio Mário não resistirá a pedir auxílio a Saturnino. Eu conheço-o: Caio Mário domina-se muito, mas quando isso acontecer, escoucinhará em todas as direcções como um touro espicaçado. E não resistirá a usar Saturnino. E acho que Saturnino deve ser o pior instrumento que Caio Mário poderia usar. Espera e verás!

- exclamou Escauro. - Hão-de ser os seus próprios aliados a fazê-lo tombar.

Saturnino ia a caminho da Gália Italiana para visitar Caio Mário, mais ansioso por firmar uma aliança com Caio Mário do que o inverso, naquela fase; porque Saturnino estava a viver na arena política, ao passo que Mário ainda se encontrava no Elísio do comando militar.

Encontraram-se numa pequena cidade da costa de Como, nas praias do lago Lário, onde Caio Mário alugara uma villa pertencente ao falecido Lúcio Calpúrnio Pisão, que morrera com Lúcio Cássio em Burdígala. Mário estava mais cansado do que alguma vez admitiria confessar a Catulo César, dez anos mais novo; despachou o cônsul júnior para o extremo da província para assistir à sessão do tribunal criminal e civil, e foi muito calmamente gozar umas férias, deixando o comando entregue a Sila.

Como era natural, quando Saturnino apareceu, Mário convidou-o para ficar; os dois homens instalaram-se confortavelmente a conversar num cenário que tinha como pano de fundo um lago muito mais belo que qualquer outro da Itália.

Caio Mário não se atrapalhou; quando chegou a altura de abordar o assunto, atacou logo.

- Não quero Metelo Numídico para meu colega consular do próximo ano - disse abruptamente. - Tenho em mente Lúcio Valério Flaco; é um homem maleável.

- Adaptar-se-ia bem a ti - afirmou Saturnino -, mas receio que não consigas impô-lo. Os políticos já estão a reunir apoios para Metelo Numídico - Saturnino fitou Mário com curiosidade. - De qualquer modo, por que te candidatas a um sexto mandato? Com a derrota dos Germanos, podes descansar à sombra dos louros colhidos.

- Quem me dera poder fazer isso, Lúcio Apuleio. Mas a minha missão não está cumprida só por termos vencido os Germanos. Tenho ainda de desmobilizar dois exércitos dos capite censi, ou antes, tenho uma de seis enormes legiões, e Quinto Lutácio tem uma de seis legiões muito reduzidas. Mas considero ambos os exércitos da minha responsabilidade, porque Quinto Lutácio acha que pode dar-lhes as gulas de marcha e esquecê-los.

- Continuas decidido a dar-lhes terras? - perguntou Saturníno.

- Continuo. Se não o fizer, Roma ficará mais pobre em vários aspectos. Em primeiro lugar, porque iriam entrar em Roma e em Itália mais de cinquenta mil legionários veteranos com pouquíssimo dinheiro nos bolsos, que gastariam em meia dúzia de dias, tornando-se uma perpétua fonte de trabalhos onde quer que vivam. Se houver uma guerra voltarão a alistar-se, caso contrário, serão um verdadeiro incómodo - disse Mário. Saturnino inclinou a cabeça.

- Estou a entender.

- Tive esta ideia quando estava em África, e foi isso que me levou a querer que as ilhas africanas fossem reservadas para os veteranos se fixarem. Tibério Graco queria alojar os pobres de Roma na Campânia para tornar a cidade mais confortável e segura e injectar o campo de sangue novo. Mas a Itália era um erro, Lúcio Apuleio - afirmou Mário com ar sonhador. - Precisamos de romanos de origens humildes nas nossas províncias, especialmente se forem soldados veteranos.

A vista era muito bonita, mas Saturnino não reparava.

- Todos ouvimos o discurso acerca de levar o estilo de vida de Roma até às províncias - disse. - E todos ouvimos a resposta de Dalmático. Mas não é esse o nosso assunto, pois não, Caio Mário?

Os olhos de Mário faiscaram debaixo das sobrancelhas.

- Que perspicácia! Claro que não! - Mário inclinou-se para a frente,

- Roma gasta muito dinheiro a enviar exércitos para as províncias para aplacar rebeliões e fazer cumprir as leis. Repara no caso da Macedónia: tem duas legiões em serviço permanente; apesar de não serem legiões romanas, custam ao Estado dinheiro que podia ser melhor aplicado. E se vinte ou trinta mil veteranos romanos se fixassem em três ou quatro colónias na Macedónia? A Grécia e a Macedónia estão desabitadas há um século ou mais: toda a gente saiu de lá. Por toda a parte se vêem cidades-fantasmas! E os senhorios romanos ausentes possuem enormes propriedades das quais retiram pouca produção e rendimento, pois são avaros no emprego de homens e mulheres locais. E sempre que os Escordiscos atravessam a fronteira há uma guerra, e os senhorios queixam-se ao Senado, e o Governo tem de acudir a vários fogos para lidar por um lado com os saqueadores Celtas, e por outro com as cartas iradas vindas de Roma. Eu daria melhor uso às terras na posse dos senhorios romanos ausentes. Povoá-las-ia com colónias de soldados veteranos. Ficariam muito mais populosas e constituiriam uma guarnição em caso de guerra.

- E tiveste esta ideia em África - disse Saturnino.

- Enquanto distribuía grandes extensões de terreno a romanos que raramente ou nunca visitarão África. Irão colocar lá capatazes e grupos de escravos para trabalhar os campos, ignorando as condições naturais e o seu povo, impedindo a África de se desenvolver e deixando-a à mercê de qualquer outrojugurta que apareça. Não quero que as terras das províncias deixem de pertencer a Roma; só quero que em algumas parcelas dessas terras exista um grande número de profissionais romanos bem treinados que possamos visitar quando for necessário - Mário viu-se obrigado a encostar-se para não trair a sua expectativa. -já houve um pequeno exemplo de como as colónias de veteranos em países estrangeiros podem ser úteis em tempos de necessidade. O primeiro grupo que instalei na ilha de Meninge ouviu falar da rebelião dos escravos da Sicília, organizou-se em unidades, alugou alguns barcos e chegou a Lilibeu mesmo a tempo de impedir que a cidade fosse tomada por Atenão,

o escravo.

- Compreendo aonde queres chegar, Caio Mário - afirmou Saturnino.

- É um plano formidável.

- Mas irei ter oposição, nem que seja por a ideia partir de mim afirmou Mário, suspirando.

Um pequeno arrepio percorreu a espinha de Saturnino, que virou bruscamente a cabeça e fingiu admirar o reflexo das árvores, das montanhas e do céu no espelho perfeito do lago. Mário estava cansado! Mário estava a abrandar o passo! Mário não tinha a mínima vontade de ser cônsul pela sexta vez!

- Ouviste os gritos e protestos que choveram em Roma por eu ter concedido a cidadania aos maravilhosos soldados de Camerinum? - inquiriu Mário.

- Ouvi. Toda a Itália ouviu a algazarra - respondeu Saturnino - e toda a Itália gostou do teu acto. Mas Roma e os políticos não gostaram.

- E por que razão não haviam eles de ser cidadãos romanos? - perguntou Mário, furioso. - O facto é que lutaram melhor que quaisquer outros, Lúcio Apuleio. Se pudesse, concedia a cidadania a todos os homens de Itália - Mário inspirou, - Quando digo que quero terras para os veteranos dos capite censi, refiro-me apenas a isso. Terras para todos eles: Romanos, Latinos... e Italianos.

Saturnino assobiou.

- Isso é chamar sarilhos! Os políticos nunca aceitarão tal coisa,

- Eu sei. O que não sei é se terás a coragem de o defender.

- Nunca me preocupei muito com a coragem - afirmou Saturnino com ar pensativo -, por isso não conheço a coragem que tenho. Mas julgo ter a suficiente para o defender, Caio Mário.

- Não precisas de subornar ninguém para garantir a minha eleição: não hei-de perder - avisou Mário. - Contudo, não há razão para não contratar alguns sujeitos que distribuam subornos para o cargo de cônsul júnior. E também para ti, se precisares de ajuda, Lúcio Apuleio. E ainda para Servílio Gláucia; julgo que vai candidatar-se a pretor.

- Vai. Ambos teremos prazer em aceitar auxílio com vista à nossa eleição. Em contrapartida faremos o que for necessário para te ajudar a obter as tuas terras.

Mário retirou da manga um rolo de papel.

-já fiz algum trabalho: esbocei o tipo de decreto que me parece necessário. Infelizmente, não sou dos melhores legisladores, enquanto tu és. Porém, e espero que não ponhas objecções ao que vou dizer, Gláucia é um génio na legislatura. Serão os dois capazes de formular leis notáveis a partir dos meus gatafunhos incipientes?

- Ajuda-nos a alcançar os nossos cargos, Caio Mário, e juro-te que te faremos essas leis - garantiu Saturnino.

Não podia haver qualquer dúvida quanto ao alívio que percorreu o corpo robusto do cônsul sénior; Mário inclinou-se.

- Deixa-me consegui-lo, Lúcio Apuleio, e juro-te que não me preocuparei se não vier a ser cônsul pela sétima vez - afirmou.

- Pela sétima vez?

- Segundo reza uma profecia, hei-de ser cônsul sete vezes. Saturnino riu.

- Porquê? Ninguém julgaria possível que um homem viesse a ser cônsul seis vezes. Mas tu hás-de sê-lo.

Estava a decorrer a eleição do novo Colégio dos Tribunos da Plebe quando Caio Mário e Catulo César comandaram os seus exércitos para o sul em direcção a Roma e ao seu triunfo comum; havia muitos candidatos: mais de trinta para os dez lugares, e na sua maioria pessoas a cargo dos políticos, pelo que a campanha foi amarga e violenta.

Gláucia, presidente dos actuais dez tribunos da plebe, foi escolhido para presidir às eleições do futuro colégio; se as eleições Centuriais para cônsules e pretores já tivessem decorrido, não poderia desempenhar esse cargo, porque o seu estatuto de pretor-eleito o teria desqualificado. Assim, nada o impedia de conduzir as eleições tribunícias,

As eleições decorreram no vão dos Comícios, com Gláucia a presidir aos rostros e os outros nove tribunos da plebe a extrair as sortes para saber a ordem de votação das trinta e cinco tribos e ordenar cada uma delas quando chegasse a sua vez de votar.

Muito dinheiro mudara de mãos, algum em proveito de Saturnino, mas muito mais em proveito dos candidatos anónimos apoiados pelos políticos. Todos os homens ricos dos bancos conservadores da frente tinham esgravatado bem nos seus cofres, e compravam-se votos para homens como Quinto Nónio de Piceno, um político insignificante de tendência solidamente conservadora. Embora Sila não tivesse tido influência na sua entrada para o Senado nem na sua candidatura ao tribunato da plebe, Quinto Nónio era irmão do cunhado de Sila; quando Cornélia Sila, sua irmã, casara com um membro da rica família de proprietários rurais de Nónio, do Piceno, o esplendor do seu nome inspirou os homens da família do marido a tentarem a sorte no cursus honúrum. O filho dela estava a ser preparado para a tentativa mais séria, mas o tio decidiu ver o que podia fazer primeiro.

Foi uma eleição cheia de surpresas. Por exemplo, Quinto Nónio do Piceno conseguiu entrar facilmente, ao contrário de Lúcio Apuleio Saturnino. Havia dez lugares para tribunos da plebe, e Saturnino ficou em décimo primeiro.

- Não... posso... acreditar! - exclamou Saturnino sobressaltado. Não posso acreditar! O que aconteceu?

Gláucia arqueava as sobrancelhas; de súbito, até mesmo as suas hipóteses de ser pretor pareciam reduzidas. Depois encolheu os ombros, deu uma palmada nas costas de Saturnino e desceu dos rostros.

- Não te preocupes - disse -, ainda é possível que as coisas mudem.

- O que é que pode mudar o resultado de umas eleições? - inquiriu Saturnino. - Não, Caio Servílio. Não tenho qualquer hipótese!

- já venho ter contigo... aqui. Fica aqui, não vás já para casa - Pediu Gláucia, e desapareceu na multidão.

Ao ouvir-se apresentado como tribuno da plebe, Quinto Nónio do Piceno quis logo regressar à sua nova e dispendiosa casa nas Carinas. Aí o esperavam a mulher, a cunhada, Cornélia Sila e o filho, ansiosos por conhecer os resultados e suficientemente provincianos para duvidarem das hipóteses de Quinto Nónio.

No entanto, Quinto Nónio teve maior dificuldade do que imaginara em abandonar a área do Fórum, pois de poucos em poucos metros alguém o detinha para lhe dirigir amistosas felicitações; como a delicadeza natural não lhe permitia despachar quem o felicitava, viu-se forçado a demorar-se, sorrindo e fazendo vénias, apertando uma centena de mãos.

Um por um, os companheiros de Nónio foram-se afastando, e por fim este entrou na primeira rua do trajecto que o levaria a casa; a sua única companhia eram três amigos íntimos que também viviam nas Carinas. Quando foram atacados por uma dúzia de homens armados de paus, um desses amigos conseguiu fugir e voltar ao Fórum para pedir auxílio, mas encontrou-o completamente deserto. Felizmente, Saturnino e Gláucia estavam a conversar com outros homens perto dos rostros; Gláucia estava corado e um pouco desmazelado. Quando ouviram o grito em pedido de auxílio, acudiram todos a correr. Mas era já tarde. Quinto Nónio e os seus dois amigos já estavam mortos.

- Edepol.’- exclamou Gláucia levantando-se depois de ter verificado que Quinto Nónio estava realmente morto, - Quinto Nónio acaba de ser eleito tribuno da plebe; sou eu que presido às eleições - encolheu Os ombros. - Lúcio Apuleio, encarregas-te de mandar levar Quinto Nónio a casa? É melhor eu ir ao Fórum tratar do dilema eleitoral.

O choque de encontrar Quinto Nónio e os amigos ensopados em sangue deixou os que tinham vindo em seu socorro sem saber o que fazer, incluindo Saturnino; ninguém reparou na artificialidade de Gláucia. Nem mesmo o próprio. Em pé nos rostros, a gritar para um Fórum Romano deserto, Caio Servílio Gláucia anunciou a morte do recém-eleito tribuno da plebe Quinto Nónio. A seguir comunicou que o candidato que vinha em décimo primeiro lugar substituiria Quinto Nónio no novo colégio: e esse candidato era Lúcio Apuleio Saturnino.

- Está tudo arranjado - disse Gláucia com complacência mais tarde, em casa de Saturnino. - És agora um tribuno da plebe legalmente eleito, escolhido para ocupar o lugar de Quinto Nónio.

Gláucia perdera muitos dos seus escrúpulos desde os acontecimentos que o tinham demitido do seu lugar como questor em Ostia, mas Saturnino ficou tão chocado que olhou para Gláucia admirado.

- Não foste tu...

Gláucia colocou a ponta do indicador de um dos lados do nariz e sorriu para Saturnino por debaixo das sobrancelhas.

- Se não me fizeres perguntas, Lúcio Apuleio, não te contarei mentiras - disse.

- É pena, era bom sujeito.

- Pois era. Mas é a sua sorte: ter acabado morto. Era o único que vivia nas Carinas, e por isso foi eleito. Em mais de um sentido. É muito difficil fazer alguma coisa no Palatino; não há gente suficiente nas ruas.

Saturnino suspirou e afastou a depressão com um encolher de ombros.

- Tens razão. E eu entrei. Agradeço-te a tua ajuda, Caio Servílio.

- Não penses nisso - retorquiu Gláucia.

O escândalo foi difícil de abafar, mas era impossível provar que Saturnino estivera implicado num assassínio quando o próprio amigo do morto que sobrevivera podia testemunhar que tanto Saturnino como Gláucia estavam no baixo Fórum na altura em que o crime fora praticado. Falava-se, mas era conversa fiada, como Gláucia comentou com desdém. E quando Aenobarbo Pontifex Maximus pediu a repetição das eleições tribunícias, não conseguiu nada; Gláucia criara um precedente para lidar com uma crise particular que nunca tinha ocorrido.

- Conversa fiada! - repetiu Gláucia, desta vez no Senado. - As alegações de que Lúcio Apuleio e eu estivemos implicados na morte de Quinto Nónio não têm qualquer fundamento. Quanto ao facto de ter substituído um tribuno da plebe morto por outro vivo, penso ter feito o que se esperava de qualquer funcionário que presidisse a umas eleições: agir! É indiscutível que Lúcio Apuleio ficou em décimo primeiro lugar e que as eleições foram bem conduzidas. Indigitar imediatamente Lúcio Apuleio como sucessor de Quinto Nónio era tão lógico como conveniente. O contio da Assembleia da Plebe que convoquei ontem conferiu aos meus actos o apoio total, como todos podem verificar. Pais Conscritos, este debate é tão inútil como infundado. Considero o assunto arrumado - disse Caio Servílio Gláucia.

Caio Mário e Quinto Lutácio Catulo César celebraram juntos o triunfo no primeiro dia de Dezembro. O desfile comum foi um golpe de génio, pois não havia a menor dúvida de que Catulo César, cuja quadriga seguia a do outro cônsul, seu superior, era nitidamente o segundo. O nome que se ouvia da boca de todos era o de Caio Mário. Havia mesmo um carro alegórico muito feliz montado por Lúcio Cornélio Sila - que, como de costume, fora encarregado de organizar o desfile - mostrando Caio Mário dando aos homens de Catulo César autorização para recolherem os trinta e cinco estandartes dos Cimbros, visto que ele já tinha capturado muitos na Gália.

A seguir, durante a sessão no templo de Júpiter Optimus Maximus, Mário discursou com paixão acerca dos seus feitos: a atribuição da cidadania aos soldados de Camerinum e a escavação do vale dos Salassos com vista a implantar uma colónia na pequena Eporédia. O anúncio de que se candidataria a um sexto consulado foi recebido com grunhidos, sarcasmos, gritos de protesto... e aplausos. Os aplausos eram muito superiores. Quando o tumulto esmoreceu, Mário anunciou que a sua parte das pilhagens seria usada para a construção de um novo templo dedicado ao culto da Honra e Virtude militares; aí seriam alojados os troféus do seu exército e o templo ficaria situado no Capitólio. Anunciou ainda que construiria um templo dedicado à Honra e Virtude militares em Olímpia, na Grécia.

Catulo César ouviu o discurso de Mário com um aperto no coração, pois sabia que se quisesse manter a reputação, teria de doar a sua parte dos despojos a um monumento público semelhante, em vez de investi-lo para aumentar a sua fortuna particular - que já era enorme, mas não tanto como a de Mário.

Ninguém ficou surpreendido quando a Assembleia Centurial elegeu Caio Mário pela sexta vez, e numa posição superior. Caio Mário não era apenas e incontestavelmente o Primeiro Homem de Roma; muitos começavam também a chamar-lhe o Terceiro Fundador de Roma. O Primeiro fora Rómulo. O Segundo, Marco Fúrio Camilo, responsável pela expulsão dos Gauleses da Itália trezentos anos antes. Por isso, parecia apropriado atribuir a Caio Mário o epíteto de Terceiro Fundador de Roma, visto que também rechaçara uma invasão de bárbaros.

As eleições consulares não deixaram de ter surpresas; Quinto Cecílio Metelo Numídico Suíno não conseguiu ser eleito cônsul júnior. Era este o ponto alto de Caio Mário, que ganhou, mesmo em relação ao seu colega subalterno; Mário declarara o seu firme apoio a Lúcio Valério Flaco, que foi eleito. Flaco detinha um importante cargo sacerdotal perpétuo, o de flamen Martialis os sacerdotes especiais de Marte e tornara-se por isso um homem sossegado, obediente e subordinado. A companhia ideal para o autoritário Caio Mário.

Mas ninguém se surpreendeu por Caio Servílio Gláucia ter sido eleito pretor, visto que era o homem de Mário, e Mário subornara generosamente os eleitores. A única surpresa foi o facto de ele ter aparecido em primeiro lugar na votação e ter sido nomeado praetor urbanus, o mais importante dos seis pretores eleitos.

Pouco depois das eleições, Quinto Lutácio Catulo César anunciou publicamente que iria doar a sua parte dos despojos dos Germanos a duas causas religiosas; a primeira era a compra do lugar da casa de Flaco no Palatino que ficava ao lado da sua casa com vista a construir aí um magnífico pórtico para alojar os trinta e cinco estandartes dos Cimbros que apanhara no campo de batalha em Vercelas; o segundo era a construção, no Campo de Marte, de um templo à deusa Fortuna como Fortuna do Dia de Hoje.

Quando os novos tribunos da plebe entraram em funções no décimo dia de Dezembro, começou a diversão. Eleito pela segunda vez tribuno da plebe, Lúcio Apuleio Saturnino dominou o colégio por completo, e tirou partido do medo provocado pela morte de Quinto Nónio para levar a cabo os seus intentos na área legislativa. Embora continuasse a negar vigorosamente qualquer implicação no assassínio, lançava pequenos comentários em privado aos outros tribunos da plebe que ficavam com razões para pensar se não acabariam como Quinto Nónio caso tentassem contrariá-lo. O resultado era que permitiam a Saturnino fazer exactamente o que muito bem lhe apetecia; nem Metelo Numídico nem Catulo César conseguiam convencer qualquer tribuno da plebe a interpor um único veto.

Oito dias depois de ter entrado em funções, Saturnino apresentou o primeiro de dois projectos de lei que sugeriam a entrega de terras públicas aos veteranos dos dois exércitos germanos; as terras situavam-se todas no estrangeiro, na Sicília, na Grécia, Macedónia e no continente de África. O projecto de lei também incluía uma nova cláusula: o próprio Mário devia ter a autoridade para atribuir pessoalmente a cidadania romana a três colonos italianos em cada colónia.

O Senado opôs-se furiosamente.

- Este homem - exclamou Metelo Numídico - nem vai favorecer os seus soldados romanos! Quer terra para todos indiscriminadamente, sejam eles romanos, latinos ou italianos. Não há nenhuma diferença! Nenhuma distinção para os homens de Roma! Pergunto-vos, caros senadores, o que pensam deste homem? Roma terá alguma importância para ele É evidente que não! Porque havia de ter? Ele não é Romano! É Italiano! E favorece a sua gente. Um milhar de homens libertos do campo de batalha, ao passo que os soldados romanos não receberam qualquer agradecimento. O que mais podemos esperar de um homem como Caio Mário?

Quando Mário se levantou para responder, nem conseguiu fazer-se ouvir; por isso, abandonou a Cúria Hostília e ficou nos rostros, dírigindo-se aos frequentadores do Fórum. Alguns estavam indignados; mas como era o seu favorito, escutaram-no.

- Há terra que chegue para todos! - gritou. - Ninguém pode acusar-me de dar tratamento preferencial aos Italianos! Uma centena de lugera por soldado! Ah, porquê tanto?, ouço-vos perguntar. Porque, Povo de Roma, estes colonos vão para sítios muito mais duros que a nossa amada Itália. Farão plantações e colheitas em solos áridos e climas agrestes, onde para ter uma vida decente um homem tem que ter mais terra do que na nossa amada Itália.

- Lá está ele! - vociferou Catulo César das escadas do Senado, com voz esganiçada. - Lá está ele! Ouçam o que ele diz! Não é Roma! Itália! A Itália, sempre a Itália! Ele não é romano, nem se importa com Roma!

- A Itália é Roma! - vociferou Mário. - São ambas uma e a mesma coisa! Sem uma, a outra não conta, nem pode existir! Os Romanos e os Italianos não perdem a vida por Roma nos exércitos romanos? E se isso é assim, e ninguém pode negá-lo, por que há-de ser um dos exércitos diferente do outro?

- A Itália! - gritou Catulo César. - Sempre a Itália!

- Que estupidez! - berrou Mário. - Os primeiros terrenos serão atribuídos a soldados romanos e não italianos! Isto servirá como prova da minha parcialidade pela Itália? E não será melhor que dos milhares de legionários veteranos que irão para estas colónias, três dos italianos que se encontram entre eles se tornem cidadãos romanos? Eu disse três, povo de Roma! E não três mil italianos! Nem trezentos italianos, povo de Roma! Três. Uma gota num oceano de homens! Uma gota numa gota num oceano de homens!

- Uma gota de veneno num oceano de homens! - gritou Catulo César das escadas do Senado.

- O projecto de lei poderá dizer que os soldados romanos receberão os seus terrenos em primeiro lugar, mas onde se diz que os primeiros terrenos serão os melhores? - berrou Metelo Numídico.

Mas apesar da oposição, foi aprovado na Assembleia da Plebe o primeiro projecto de lei referente a terras que tinham pertencido a Roma durante alguns anos e que esta arrendara a senhorios ausentes.

Quinto Popédio Silão, que era agora o chefe dos Marsos não obstante ser relativamente novo, viera a Roma ouvir os debates acerca dos projectos de lei referentes às terras; fora convidado por Marco Lívio Druso e estava alojado em sua casa.

- Fazem uma barulheira enorme em relação à oposição de Roma e Itália, não achas? - perguntou Silão, que nunca tinha ouvido Roma discutir esse assunto.

- Com efeito discutem - respondeu Druso com ar triste. - É uma atitude que só o tempo há-de mudar. Vivo nessa esperança, Quinto Popédio.

- E no entanto, não gostas de Caio Mário.

- Detesto aquele homem. Mas votei nele - disse Druso.

- Só passaram quatro anos desde que lutámos em Arausio - disse Silão, meditativo. - Sim, acho que tens razão. Isto há-de mudar. Antes de Arausio, duvido muito que Caio Mário tivesse qualquer hipótese de incluir soldados italianos entre os colonos.

- Foi graças a Arausio que os escravos italianos que pagavam dívidas foram libertados - lembrou Druso.

- Alegra-me pensar que não morremos em vão. E no entanto... olha para a Sicília. Aí os escravos italianos não foram libertados. Morreram.

- Sinto uma mágoa profunda pela Sicília - disse Druso, corando. -

Os culpados foram dois senadores romanos séniores egoistas e demasiado corruptos. Dois miseráveis mentulae! Poderás não gostar deles, Quinto Popédio, mas admite que um Metelo Numídico ou um Emílio Escauro não sujaria a bainha da toga numa fraude de cereais.

- Sim, admito - disse Silão. - Contudo, Marco Lívio, acreditam que ser Romano é pertencer ao clube mais exclusivo da Terra, e ao qual nenhum Italiano merece pertencer por adopção.

- Adopção?

- Não é isso que significa a concessão da cidadania romana? A adopção na família de Roma?

Druso suspirou.

- Tens razão. A única coisa que muda é o nome. Conceder a cidadania a alguém não transforma um italiano ou um grego em romano. E à medida que o tempo passa, o Senado vai-se opondo cada vez mais duramente à criação de romanos artificiais.

- Então - afirmou Silão -, talvez nos caiba a nós, Italianos, tornarmo-nos Romanos artificiais, com a aprovação do Senado ou sem ela. Ao primeiro seguiu-se um segundo projecto de lei, relacionado com todos os novos terrenos públicos que Roma adquirira durante as guerras germanas. Era de longe o projecto mais importante, pois estas terras estavam completamente virgens, não tinham sido exploradas por grandes agricultores ou criadores de gado, e tinham outras riquezas além do gado e dos cereais: minérios, gemas, pedra. Todas estas terras ficavam situadas no centro da Gália Transalpina, perto de Narbona, Tolosa e Carcassona, além de uma zona na Espanha Citerior que se rebelara quando os Cimbros estavam a dificultar a vida aos romanos no sopé dos Pirenéus.

Havia muitas empresas e cavaleiros ansiosos por se expandirem até à Gália Transalpina; tinham esperado que a derrota dos Germanos fornecesse uma oportunidade, e esperavam que os diversos patronos do Senado lhes garantissem o acesso ao novo agerpubficus Galiae. Descobrir que a maior parte de tudo aquilo ia para os soldados dos capite censi provocou neles uma fúria só vista nos piores dias dos irmãos Gracos.

E à medida que o Senado ia endurecendo a sua posição, o mesmo acontecia com os cavaleiros da Primeira Classe, outrora os melhores defensores de Mário. Agora, vendo-se privados da hipótese de serem senhorios na Gália distante, tinham-se tornado seus inimigos de morte. Os agentes de Metelo Numídico e Catulo César circulavam por todo o lado, e sussurravam, sussurravam...

- Mário oferece o que é do Estado como se mandasse tanto nas terras como no Estado - dizia-se, e em breve o que era um murmúrio transformou-se num grito.

- Anda a conspirar para dominar o Estado. Por que outro motivO quereria ser cônsul, agora que acabou a guerra com os Germanos?

- Roma nunca deu terras aos seus soldados!

- Os italianos estão a receber mais do que merecem!

- A terra tirada aos inimigos de Roma pertence exclusivamente aos Romanos, e não aos Latinos e Italianos!

- Ele começa pelo agerpublicus no estrangeiro, mas antes que dêmos por isso, estará a distribuir o agerpublicus da Itália. E irá dá-lo aos Italianos!

- Ele intitula-se o Terceiro Fundador de Roma, mas quer é ser rei! E assim por diante. Quanto mais Mário vociferava nos rostros e no Senado que Roma precisava de criar colónias de romanos nas suas províncias, que os veteranos constituiriam guarnições necessárias, que era preferível que as terras romanas no estrangeiro fossem povoadas com muitos homens insignificantes em vez de meia dúzia de grandes homens, mais dura se tornava a oposição. Em vez de diminuir com o tempo, aumentava, ficava cada vez mais forte, mais vigorosa. Até que lentamente, subtílmente, quase sem que se notasse, a atitude pública em relação à segunda lei agrária de Saturnino começou a mudar. Muitos dos políticos do Povo

- e havia políticos entre os frequentadores habituais do Fórum, tal como os havia entre os cavaleiros mais influentes - começaram a duvidar que Mário tivesse razão. Nunca tinham visto tal oposição.

- Não pode haver tanto fumo sem pelo menos algum fogo - começaram a dizer entre si e aos que os escutavam, por serem políticos.

- Não é apenas uma mera escaramuça do Senado como no caso da Sicília: é demasiado implacável para isso.

- Quando um homem como Quinto Cecílio Metelo Numídico, que já foi censor e cônsul, e cuja bravura enquanto censor todos recordamos, vê aumentar cada vez mais o número de apoiantes, alguma razão deve ter do seu lado.

- Ouvi dizer ontem que um cavaleiro de cujo apoio Caio Mário precisa desesperadamente troçou dele em público! A terra de Tolosa que Caio Mário lhe prometeu pessoalmente vai agora ser dada aos veteranos dos capte censi.

- Alguém me contou que ouviu Caio Mário dizer que tenciona conceder a cidadania a todos os Italianos.

- Este é o sexto consulado consecutivo de Caio Mário. Alguém o ouviu dizer um dia destes ao jantar que nunca deixaria de ser cônsul! Há-de candidatar-se ano após ano até morrer.

- Quer mesmo ser o rei de Roma!

A campanha de boatos de Metelo Numídico e Catulo César começou a dar os seus frutos. E, subitamente, até Gláucia e Saturnino começaram a temer que o segundo projecto de lei das terras fosse votado ao fracasso.

- Tenho de ter essas terras! - gritou Mário desesperado para a mulher, que esperara pacientemente durante vários dias, na esperança de que ele acabasse por discutir com ela aquelas questões. Não porque tivesse ideias novas a expor ou coisas positivas a dizer, mas porque sabia que era a única pessoa amiga que Mário tinha perto de si. Sila fora mandado de volta para a Gália Italiana após o triunfo, e Sertório fora de viagem até à Espanha Citerior para ver a mulher e o filho.

- Caio Mário, haverá assim tanta necessidade disso? - perguntou Júlia. - Fará assim tanta diferença que os teus soldados não recebam as terras Os soldados romanos nunca receberam terras; não há qualquer precedente. Não poderão dizer que não tentaste.

- Não estás a compreender - afirmou o marido, impaciente. - isto já não tem nada a ver com os soldados, mas sim com a minha dignitas, a minha posição na vida pública. Se o projecto de lei não for aprovado, deixarei de ser o Primeiro Homem de Roma.

- Lúcio Apuleio não poderá dar uma ajuda?

- Tem tentado. Os deuses sabem como tem tentado! Mas em vez de ganhar terreno, está a perdê-lo. Sinto-me como Aquiles no rio, incapaz de libertar-me da inundação por as margens continuarem a ceder. Os boatos são incríveis, Júlia! E não há modo de combatê-los, porque nunca são ditos às claras. Se eu fosse culpado de um décimo das coisas que dizem de mim, há muito que estaria a empurrar uma pedra pelo Tártaro acima.

- É impossível contrariar as campanhas de difamação - comentou Júlia, tranquilizando-o. - Mais cedo ou mais tarde, os boatos tornam-se tão bizarros que toda a gente acorda. É o que também há-de acontecer neste caso. Eles mataram-te mas continuarão a apunhalar-te até Roma inteira ficar farta. As pessoas são horrivelmente ingénuas e crédulas, mas mesmo os mais crédulos atingem um ponto de saturação. O projecto de lei há-de ser aprovado, Caio Mário, tenho a certeza. Mas não apresses demasiado as coisas; espera que a opinião volte a estar do teu lado.

- Sim, o projecto de lei pode ser aprovado tal como dizes, Júlia. Mas o que impede a Assembleia de derrubá-lo na ausência de Lúcio Apuleio, sem que eu tenha um tribuno da plebe igualmente capaz para combater a Assembleia? - resmungou Mário.

- Estou a compreender.

- Estás?

- Com certeza. Sou uma Júlia dos Césares, esposo, o que significa que cresci no meio das discussões políticas, embora o meu sexo me impossibilite de seguir uma carreira pública - Júlia mordeu o lábio. - É um problema, não é? As leis agrárias não podem ser feitas da noite para o dia: levam muito tempo... anos e anos. É preciso determinar as terras, dividi-las, encontrar os homens cujos nomes foram escolhidos para ocupá-las, as comissões e comissários, o pessoal adequado... enfim, é um processo interminável.

Mário sorriu.

- Tens falado com Caio Júlio!

- Tenho. Com efeito, considero-me mesmo uma especialista no assunto

- Júlia deu uma palmada no lugar vazio no extremo do leito. - Vem sentar-te, meu amor!

- Não posso, Júlia.

- Não há forma de proteger esta lei?

Mário parou, virou-se e olhou para ela por debaixo das sobrancelhas.

- Há...

- Diz-me qual - sugeriu ela gentilmente.

- Caio Servílio Gláucia pensou nisso, mas Lúcio Apuleio está furioso, e por isso tenho os dois homens às minhas costas a tentar dobrar-me, e não sei bem...

- É uma novidade assim tão recente? - perguntou a esposa, que conhecia a reputação de Gláucia.

- Suficientemente recente.

- Peço-te, Caio Mário, conta-me!

Era um alívio poder contá-la a alguém que não tinha interesses pessoais diferentes dos seus, pensou Mário, fatigado.

- Eu sou um militar, Júlia, e gosto de soluções militares - disse. No exército todos sabem que quando dou uma ordem, é a melhor possível de acordo com as circunstâncias. E todos me obedecem sem questionar, porque me conhecem e confiam em mim. Esta parte de Roma também me conhece, e devia confiar em mim! Mas confia? Não! Estão com tanta vontade de ver as suas ideias concretizadas que nem escutam as ideias dos outros, mesmo que sejam melhores. Mal entro no Senado, já sei que antes de chegar a esse lugar horrível terei de trabalhar numa atmosfera de ódio e armadilhas que me esgota mesmo antes de começar! Estou demasiado velho e habituado ao meu modo de agir para me incomodar com eles, Júlia! São todos uns idiotas, e vão matar a República se continuarem a fingir que as coisas não mudaram desde a infância de Cipião Africano! As minhas colónias de soldados fazem tanto sentido!

- Pois fazem - afirmou júlia, escondendo a consternação. Ultimamente o marido parecia extenuado, mais velho do que era, e estava a ganhar peso pela primeira vez na vida (todo aquele tempo sentado em reuniões, em vez de andar ao ar livre!) e o seu cabelo estava subitamente a tornar-se cinzento e mais fino. Era nitidamente mais saudável para o corpo de um homem fazer a guerra do que fazer leis. - Caio Mário, acaba de contar-me! - insistiujúlia.

- Este segundo projecto de lei contém uma cláusula adicional inventada especialmente por Gláucia - explicou Mário, voltando a caminhar, e deixando as palavras sair em catadupa. - Cada senador tem de jurar que aprovará a lei para sempre até cinco dias depois do projecto de lei ser aprovado.

Júlia não conseguiu controlar-se: sobressaltou-se, levou as mãos às bochechas, olhou para Mário consternada e disse a palavra mais forte do seu vocabulário.

- Ecastor!

- Chocante, não é?

- Caio Mário, Caio Mário, nunca te perdoarão se incluires essa cláusula no projecto!

- Pensas que não o sei? - gritou ele, elevando as mãos como garras ao tecto. - Mas o que mais posso fazer? Tenho de obter esta terra!

Júlia humedeceu os lábios.

- Estarás na Assembleia durante muitos anos - disse. - Não podes continuar a lutar para que a lei seja aprovada?

- Continuar a lutar? Quando é que irei parar? - perguntou Mário.

- Estou farto de lutar, Júlia!

Júlia troçou:

- Oh! Caio Mário cansado de lutar? Lutaste a vida inteira!

- Mas não foi uma luta semelhante a esta - tentou explicar. - Esta luta é suja; não há regras. E nem se sabe quem são nem onde estão Os inimigos. Não me importo de ter por arena um campo de batalha. Ao menos, o que aí se passa é rápido e limpo; e o melhor geralmente ganha. Mas o Senado de Roma é um bordel cheio das mais vis formas de vida e de conduta. Passo os dias a rastejar em lodo! Digo-te, JúlIa, preferia banhar-me no sangue de um campo de batalha! E quem for suficientemente ingénuo para pensar que a intriga política não arruina mais vidas do que qualquer guerra, merece tudo o que a política lhe reservar!

Júlia levantou-se e aproximou-se dele, obrigou-O a parar de andar dum lado para o outro e tomou-lhe as mãos.

- Detesto dizer isto, meu amor, mas o Fórum político não é a arena certa para um homem tão directo como tu.

- Mesmo que ainda não soubesse isso, agora sei-o muito bem - disse o marido, melancólico. -julgo que a cláusula especial de juramento de Gláucia terá de ir avante. Mas como o Públio RLItíliO me está sempre a perguntar, aonde nos levarão todas estas novas leis? Estaremos realmente a substituir as leis más por outras boas? Ou estaremos apenas a substituir as más por piores?

- Só o tempo o dirá - respondeu Júlia calmamente. - Aconteça o que acontecer, Caio Mário, nunca te esqueças que há sempre crises enormes no governo, que as pessoas proclamam sempre aterrorizadas que esta ou aquela lei nova será o fim da República, que Roma deixou de ser Roma. Sei isto porque li que já Cipião Africano o dizia de Catão, o Censor! E é provável que qualquer Júlio César anterior o dissesse acerca de Bruto quando ele matou os filhos na altura em que tudo começou. A República é indestrutível, e todos sabem isso, mesmo quando gritam que vai morrer. Não te esqueças deste facto.

O bom senso da mulher estava por fim a acalmá-lo; Júlia notou com satisfação que os olhos dele estavam menos congestionados, e a sua pele perdia o matiz da cólera. Estava na altura de Mudar de assunto.

- A propósito, o meu irmão Caio Júlio gostaria de ver-te amanhã, por isso aproveitei a oportunidade para o convidar a ele e à Aurélia para o jantar, se achares bem.

Mário resmungou:

- Claro! É isso! Tinha-me esquecido! Ele vai para a Cercina instalar a minha primeira colónia de veteranos, não vai? - Caio Mário pousou a cabeça nas mãos, que afastou das de júlia.

- Não vai! Deuses, que memória a minha! O que se passa comigo, Júlia?

- Nada - disse a esposa para o tranquilizar. - Precisas de descansar, de preferência algumas semanas longe de Roma. Mas como isso não é possível, por que não vamos juntos ter com o jovem Mário?

O filho era um homenzinho extremamente belo que ainda não tinha nove anos: alto, robusto, louro, com um nariz suficientemente romano para agradar ao pai. Se as tendências do rapaz eram mais físicas que intelectuais, isso também agradava a Mário. O facto de ser ainda filho único entristecia mais Júlia do que Mário, pois ela não tivera êxito em nenhuma das outras duas vezes que estivera grávida a seguir à morte do irmão mais novo, e começava agora a recear que fosse incapaz de levar mais uma gravidez até ao termo. No entanto, Mário estava satisfeito com aquela criança, e recusava-se a acreditar que fosse possível ter mais filhos.

O jantar foi um grande êxito; a lista de convidados incluía apenas Caio Júlio César, Aurélia e Públio Rutílio Rufo, tio de Aurélia.

César partia para a Cercina, em África, no fim do intervalo de oito dias de mercado; ficara muito satisfeito com a comissão e só havia uma coisa a contrariá-lo.

- Não estarei em Roma para o nascimento do meu primeiro filho disse, com um sorriso.

- Aurélia, não! De novo? - perguntou Rutílio Rufo resmungando. Vai ser outra rapariga, verás. E onde vão arranjar outro dote?

- Bah, tio Públio! - retorquiu Aurélia, que não estava arrependida, enfiando na boca um pedaço de galinha. - Em primeiro lugar não precisaremos de dotes para as nossas filhas. O pai de Caio Júlio obrigou-nos a prometer que não iríamos ser como aqueles Césares arrogantes que afastam as filhas da mácula da plutocracia. Por isso, tencionamos casá-las com homens rurais insignificantes mas incrivelmente ricos - outros pedaços de galinha tiveram o mesmo fim que o primeiro. - E já tivemos duas raparigas. Agora, vamos ter rapazes.

- De uma vez? - perguntou Rutílio Rufo, de olhos a brilhar.

- Era bom que fossem gémeos! Os Júlios tiveram alguma vez gémeos?

- perguntou a intrépida mãe à cunhada.

- julgo que sim - respondeu Júlia, encolhendo os ombros. - O nosso tio Sexto teve gémeos, embora um tenha morrido; César Estrabão é gémeo, não é?

- Exacto - respondeu Rutílio Rufo com um sorriso. - O nosso desgraçado amigo estrábico, nada em cognomes, e um deles é ”Vopiscus”, o que significa que é o gémeo sobrevivente. Mas ouvi dizer que tinha recebido uma nova alcunha.

O tom maldoso com que disse isto chamou a atenção de todos; Mário deu voz à interrogação.

- Qual?

- Cresceu-lhe uma fístula nas partes inferiores, por isso um espirituoso disse que ele tinha um ânus e meio e começou a chamar-lhe Sesquiculus - troçou Rutílio Rufo.

Todos desataram a rir, incluindo as mulheres, a quem era permitido ouvir esta obscenidade suave.

- Também há gémeos na família de Lúcio Cornélio - disse Mário, enxugando os olhos.

- Porque dizes isso? - perguntou Rutílio Rufo, pressentindo outro mexerico.

- Como todos sabem, embora Roma não o saiba, Sila viveu entre os Cimbros durante um ano. Arranjou uma mulher, uma Querusca chamada Hermana. E ela deu à luz dois rapazes gêmeos.

A hilariedade de Júlia desvaneceu-se.

- Foram capturados? Mortos? - perguntou,

- Edepol, não! Ele levou-a de volta para o seu povo na Germânia antes de vir ter comigo.

- É um sujeito engraçado, aquele Lúcio Cornélio - afirmou Rutílio Rufo, meditativo. - Não é muito bom da cabeça.

- Aí é que te enganas, Públio Rutílio - disse Mário. - Nenhum homem tem a cabeça tão solidamente implantada nos ombros como Lúcio Cornélio. Diria mesmo que é o homem do futuro no que diz respeito a Roma.

Júlia deu uma risadinha.

- Sila seguiu como uma flecha para a Gália Italiana depois do triunfo

- disse. - Ele e a mãe discutem cada vez mais.

- Bem - afirmou Mário corajosamente -, é compreensível! A tua mãe é a única pessoa que consegue fazer-me ficar deprimido.

- Uma mulher adorável, a Márcia - comentou Rutílio Rufo recordando o passado e acrescentando rapidamente quando todos os olhos se viraram para ele. - Pelo menos para ver. Nos velhos tempos.

- Teve imenso trabalho para encontrar uma nova mulher para Lúcio Cornélio - disse César.

Rutílio Rufo ia sufocando com um caroço de ameixa.

- Eu estava a jantar em casa de Marco Emílio há alguns dias - contou num tom de voz maliciosamente agradável - e se ela não fosse casada com outro, até apostava que Lúcio Cornélio tinha encontrado uma esposa.

- Não! - exclamou Aurélia, inclinando-se para a frente na cadeira.

- Oh, tio Públio, conta-nos!

- A pequena Cecília Metela Dalmática - informou Rutílio Rufo.

- A esposa do Princeps Senatus? - guinchou Aurélia.

- Essa mesmo. Lúcio Cornélio olhou para ela quando foram apresentados, ficou mais vermelho que o seu cabelo e passou todo o Jantar sentado a olhá-la como um pateta.

- Quem diria - comentou Mário.

- Pois é! - exclamou Rutílio Rufo. - Até Marco Emílio reparou. Bem, ele tem reacções absurdas em relação à sua pequenina Dalmática. Por isso, mandou-a para a cama depois do prato principal. A rapariga saiu com um ar muito desiludido. E lançou um olhar tímido a Lúcio Cornélio à saída. Ele até entornou o vinho.

- Desde que não entorne o vinho no colo dela... - afirmou Mário de modo severo.

- Oh, não, outro escândalo, não! - exclamou júlia. - Lúcio Cornélio não pode causar mais nenhum escândalo. Caio Mário, não podes dar-lhe uma achega?

Mário fez o ar de mal-estar que os maridos fazem quando as esposas lhes pedem que façam tarefas não-masculinas,

- Com certeza que não!

- Porquê? - perguntou júlia, para quem o seu pedido era sensato.

- Porque a vida privada de um homem só diz respeito a ele mesmo. Muito havia ele de agradecer-me se eu metesse o nariz na sua vida! júlia e Aurélia pareciam ter ficado desiludidas.

Apaziguador como sempre, César aclarou a garganta e disse:

- Como parece que Marco Emílio Escauro terá de ser morto com um machado daqui a mil anos, não penso que necessitemos de preocupar-nos com Lúcio Cornélio e Dalmática. Creio que a mãe já escolheu a noiva; e ouvi dizer que Lúcio Cornélio está de acordo, por isso iremos receber convites para o casamento mal ele regresse da Gália Italiana.

- Quem é? - perguntou Rutílio Rufo. - Não soube de nada!

- Élia, a única filha de Quinto Élio Tuberão.

-já tem uma certa idade, não tem? - perguntou Mário.

- Quase quarenta, é da idade de Lúcio Cornélio - disse César confortavelmente. - Ao que parece, ele não quer mais filhos, e a mãe achou que uma viúva sem filhos era a escolha ideal. É uma senhora bastante bela.

- De uma família antiga - acrescentou Rutílio Rufo. - Rica!

- Então, tanto melhor para Lúcio Cornélio! - afirmou Aurélia Calorosamente. - Não posso evitar gostar dele!

- Tal como todos nós - disse Mário, piscando-lhe o olho. - CaiojúliO, esta afirmação de admiração não te causa ciúmes?

- Oh, tenho rivais mais sérios do que meros legados patrícios disse César a sorrir.

Júlia olhou para ele.

- A sério? Quem?

- Chama-se Lúcio Decúmio e é um homenzinho sujo de cerca de quarenta anos, com pernas magras, cabelo oleoso e a tresandar a alho - disse César, escolhendo a passa mais gorda do prato dos frutos secos. A minha casa está permanentemente cheia de magníficos vasos de flores: da época, fora de época, isso pouco importa para Lúcio Decúmio, que envia flores novas cada quatro ou cinco dias. E visita a minha mulher, bajulando-a da forma mais enjoativa. E está tão contente com o nascimento do nosso filho que às vezes tenho sérias apreensões.

Pára com isso, Caio Júlio! exclamou Aurélia a rir.

Quem é ele? perguntou Rutílio Rufo.

- O guardião daquilo a que chama o colégio do cruzamento, e que Aurélia tem de alojar sem receber renda explicou César.

- Lúcio Decúmio e eu temos um acordo disse Aurélia, roubando a passa que César tinha na mão e trincando-a.

Que acordo?

Lúcio Decúmio é um assassino respondeu Aurélia.

Quando Saturnino introduziu a segunda lei agrária, a cláusula que estipulava o juramento caiu no Fórum como um trovão; não como um raio joviano, mas antes como o ribombar dos velhos deuses, os verdadeiros deuses, os deuses sem rosto, os numina. Não só se exigia um juramento a cada senador, como também, em vez da jura habitual no templo de Saturno, a lei de Saturnino ordenava que o juramento fosse feito em céu aberto, no templo sem telhado de Semo Sancus Dius Fidius no baixo Quirinal, onde o deus sem rosto nem mitologia tinha apenas uma estátua de Caia Cecília mulher do rei Tarquínio Prisco de Roma a humanizar a sua morada. E as divindades em cujo nome o juramento era feito não eram as grandes divindades do Capitólio mas os pequenos numina sem rosto que eram verdadeiramente romanos os Di Penates Publici, guardiões da bolsa e despensa públicas os Lares Praestites, guardiões do Estado e Vesta, guardiã do lar. Ninguém conhecia as suas feições, de onde vinham ou mesmo de que sexo eram, se é que tinham sexo; limitavam-se a ser. E eram importantes. Eram Romanos. Eram as imagens públicas dos deuses mais privados, as divindades que governavam a família, a mais sagrada das tradições romanas. Nenhum romano podia fazer um juramento a estas divindades e depois infringi-lo, pois isso traria a desgraça e a desintegração à sua família, ao lar, à própria bolsa.

Mas a mente legalista de Gláucia não se abandonara apenas ao temor sem rosto dos izumina sem nome; para convencer os senadores a fazerem o Juramento, a lei de Saturnino considerara até o caso daqueles que se recusassem a fazê-lo: ser-lhes-ia interdito obter fogo e água dentro de Itália, pagariam a multa de vinte sestércios de prata e era-lhes retirada a cidadania.

- O problema é que ainda não fomos suficientemente longe com a rapidez necessária - comentou Metelo Numídico para Catulo César, Aenobarbo Pontifex Maximus, Metelo Suíno, Escauro, Lúcio Cora e o seu tio Marco Cota. - O Povo não está pronto para rejeitar Caio Mário... irá aprovar este projecto de lei. E terá de jurar - estremeceu. - E se eu jurar, terei de cumprir o juramento.

- Nesse caso, o projecto não pode ser aprovado - disse Aenobarbo.

- Não há nenhum tribuno da plebe com coragem suficiente para o vetar - afirmou Marco Cora.

- Nesse caso, temos de combatê-lo com a religião - disse Escauro, lançando a Aenobarbo um olhar significativo. - A outra parte meteu a religião no assunto, por isso, não há motivo para que não façamos o mesmo.

- Acho que já sei o que queres - disse Aenobarbo.

- Pois eu não sei - afirmou Lúcio Cota.

- Quando chegar o dia da votação do projecto de lei e os áugures auscultarem os auspícios para se assegurarem de que não há infracção da lei divina, faremos com que os augúrios não sejam auspiciosos - expÔs Aenobarbo. - E continuaremos a considerar os augúrios pouco auspiciosos até que um dos nossos tribunos da plebe tenha a coragem de opor o veto por motivos religiosos. Isso acabará com a lei, pois o Povo cedo se farta das coisas.

O plano foi posto em prática; os augúrios foram declarados pouco auspiciosos pelos áugures. Infelizmente Lúcio Apuleio Saturnino também era áugure - uma pequena recompensa que lhe fora dada por insistência de Escauro, quando este tinha recuperado a sua reputação - e não concordou com a interpretação dos augúrios.

- É um truque! - gritou para a Plebe que se encontrava no vão dos Comícios. - Olhem para eles, os lacaios dos políticos do Estado! Não há qualquer problema com os augúrios. Isto é uma forma de abalar o poder do Povo! Todos sabemos que Escauro Princeps Senatus e Metelo Numídico e Catulo César chegarão aos maiores extremos para privar os nossos soldados da sua justa recompensa - e isto prova que já chegaram a extremos! Interferiram deliberadamente com a vontade dos deuses!

O Povo acreditou em Saturnino, que tomara a precaução de colocar gladiadores por entre a multidão. Quando um ou outro tribuno da plebe tentava interpor o veto dizendo que os augúrios eram pouco auspiciosos, que tinha ouvido o trovão, que qualquer lei aprovada naquele dia seria nefas, sacrílega, os gladiadores de Saturnino actuavam. Enquanto Saturnino declarava em voz vibrante que não permitiria o veto, os seus rufias contratados tiravam o desgraçado tribuno dos rostros e levavam-no pelo Clivus Agentarius até às celas das Lautúmias, onde o mantinham até o final da sessão. O segundo projecto de lei sobre as terras foi votado, e o Povo e as suas tribos aprovaram-no, pois a sua cláusula de juramento tornava-o suficientemente novo para intrigar os frequentadores habituais da Assembleia da Plebe; o que aconteceria se ele se tornasse lei, quem resistiria, como iria reagir o Senado? Não se podia perder! O Povo estava na disposição de descobrir o que aconteceria.

No dia a seguir a aprovação do projecto de lei, Metelo Numídico levantou-se no Senado e anunciou com grande dignidade que não faria o juramento.

- A minha consciência, os meus princípios, a minha própria vida dependem desta decisão! - vociferou. - Pagarei a multa e exilar-me-ei em Rodes. Mas não farei o juramento. Ouviram, Pais Conscritos? Não... farei... o... juramento! Não posso jurar apoiar o que quer que se oponha totalmente ao mais íntimo do meu ser. Quando é que o perjuro é renegado? Qual é o pior crime: jurar apoiar uma lei à qual me oponho, ou não jurar? Podem responder a isto por si mesmos. A minha resposta é que o maior crime é jurar. Por isso, digo-te, Lúcio Apuleio Saturnino, e a ti, Caio Mário: Não... farei... o... juramento! Prefiro pagar a multa e ir para o exílio.

A sua posição causou uma impressão profunda, pois todos os presentes sabiam que ele estava a falar a sério. As sobrancelhas de Mário pararam, encontraram-se acima do nariz, e Saturnino fez um trejeito com os lábios. Os murmúrios começaram; as dúvidas e descontentamento manifestaram -se, persistiram, aumentaram.

- Vão dificultar as coisas - sussurrou Gláucia da sua cadeira curul, perto da de Mário.

- Se não encerrarmos a sessão, recusar-se-ão todos a fazer o juramento - murmurou Mário, levantando-se de seguida e encerrando a sessão. Ide para casa e meditai durante três dias acerca das graves consequências que ocorrerão caso não façam o juramento. É fácil para Quinto Cecílio: tem dinheiro para pagar a multa e para lhe assegurar um exílio confortável. Mas quantos de vós podem dizer o mesmo? Ide para casa, Pais Conscritos, e meditai durante três dias. Esta Assembleia voltará a reunir daqui a quatro dias, e então, tendes de decidir-vos, pois não podemos esquecer que a lex Appideia agraria secunda tem um prazo.

”Não podes falar-lhes assim”, disse Mário para si mesmo enquanto caminhava sobre o chão da sua enorme e bela casa abaixo do templo de juno Moneta, e a mulher observava sem saber o que fazer e o filho, habitualmente atrevido, se escondia no quarto dos brinquedos.

”Não podes falar-lhes assim, Caio Mário! Eles não são soldados. Nem sequer são oficiais subordinados, apesar de eu ser cônsul e eles serem na sua maioria funcionários de segunda linha e os seus rabos gordos nunca venham a saber o que é estar sentado numa cadeira curul de marfim. Todos eles sem excepção se consideram iguais a mim, Caio Mário, seis vezes cônsul desta cidade, deste país, deste império! Tenho de vencê-los, não posso expor-me à ignomínia da derrota. A minha dignitas é imensamente maior do que a deles, por mais que digam o contrário. E não posso vê-la manchada. Sou o Primeiro Homem de Roma. Sou o Terceiro Fundador de Roma. E depois de morrer, terão de admitir que eu, Caio Mário, o provinciano italiano que não sabia grego, fui o homem mais importante da história da nossa República, do Senado e Povo de Roma.”

Os seus pensamentos não foram além disto durante a prorrogação de três dias que dera aos senadores; não o abandonava o temor de perder a sua dignitas caso fosse vencido. E na madrugada do quarto dia, Mário partiu para a Cúria Hostília decidido a ganhar - e sem pensar nas tácticas que os políticos poderiam usar para derrotá-lo. Tivera um cuidado especial com a aparência, pois não queria que se notasse que andara às voltas há três dias, e desceu a Colina dos Banqueiros seguido dos seus doze lictores, como se mandasse em Roma.

A Assembleia reuniu com um silêncio pouco habitual; pouquíssimos bancos foram arrastados, Pouquíssimos homens tossiram, pouquíssimos participantes arrastaram os pés e murmuraram. O sacrifício foi feito impecavelmente e os augúrios foram declarados auspiciosos para a sessão.

Mário levantou-se com uma majestade terrível, era um homem imponente dominando completamente a situação. Embora não tivesse pensado na possível linha de acção dos políticos, delineara a sua orientação até ao mais pequeno pormenor, e no seu rosto estava patente a confiança que sentia.

- Eu também passei os últimos três dias a meditar, Pais Conscritos

- começou Mário, de olhos fixos num espaço vazio entre os senadores que o escutavam e não em qualquer rosto particular, amigo ou inimigo. Ninguém sabia para onde se dirigiam os olhos de Mário, pois as sobrancelhas só permitiam vê-los de perto. Enfiou a mão esquerda na parte da frente da toga, onde esta tombava em muitas pregas belamente ordenadas desde o ombro esquerdo até aos tornozelos, e desceu do estrado curul para o chão. - Um facto é indubitável - deu alguns passos e parou. - Se esta lei for válida, todos teremos de jurar cumpri-la - deu mais alguns passos. - Se esta lei for válida, todos temos de fazer o juramento - dirigiu-se para as portas, virou-se de forma a ficar de frente para ambas as alas da Assembleia. - Mas ela será válida? - perguntou Mário ruidosamente,

A pergunta tombou num silêncio insondável.

-já está! - sussurrou Escauro Princeps Senatus para Metelo Numídico. Está acabado! Acaba de matar-se!

Mas Mário, de costas para as portas, não ouviu. Por ISSO, não parou para meditar; prosseguiu:

- Há entre vós quem insista que nenhuma lei aprovada nas circunstâncias da aprovação da lex Appuleia agrária secunda pode ser válida. Ouvi a validade da lei ser contestada por dois motivos diferentes: por um lado, porque tinha sido aprovada desafiando os augúrios, e por outro, por ter sido aprovada apesar de ter sido cometida violência contra a sacrossanta pessoa de um tribuno da plebe legalmente eleito.

Mário Começou a caminhar pela sala e depois parou.

- É evidente que o futuro da lei está em dúvida. A Assembleia do Povo Plebeu terá de reexaminá-la à luz de ambas as objecções quanto à sua validade - Mário deu mais um pequeno passo e estacou. - Mas não é essa a questão com que nos confrontamos hoje, Pais Conscritos. A nossa preocupação é mais imediata - mais um pequeno passo. - A lei em questão ordena-nos que juremos cumpri-la. E é isso que viemos hoje aqui debater. Hoje é o último dia em que podemos fazer o juramento de cumprimento da lei, pelo que a questão é urgente. E hoje, a lei em questão é válida. Por isso, temos de jurar cumpri-la.

Mário avançou depressa, chegou perto do estrado, virou-se e caminhou devagar até às portas, de onde se voltou para encarar de novo ambas as alas da Assembleia.

- Pais Conscritos, hoje faremos todos o juramento. Fá-lo-emos por instrução específica do Povo de Roma. São eles os legisladores! Nós, do Senado somos apenas os seus servidores. Por isso, faremos o juramento. Isso não fará diferença para nós, Pais Conscritos! Se no futuro a Assembleia do Povo Plebeu decidir reexaminar esta lei e considerá-la nula, também os nossos juramentos serão nulos - a sua voz era triunfal, - É isso que temos de compreender! Qualquer juramento que façamos para fazer cumprir uma lei permanece enquanto a lei for válida. Se a Assembleia do Povo decidir anular a lei, anulará também os nossos juramentos.

Escauro Princeps Senatus acenava sapiente e ritmicamente; para Mário, parecia que ele concordava com todas as suas palavras. Mas Escauro estava a acenar sapiente e ritmicamente por um motivo completamente diferente. Os movimentos da sua cabeça acompanhavam as palavras que ia dizendo a meia-voz para Metelo Numídico:

- Apanhámo-lo, Quinto Cecílio! Finalmente, apanhámo-lo! Ele cedeu; não aguentou a distância. Obrigámo-lo a admitir para toda a Assembleia que há uma dúvida quanto à validade da lei de Saturníno. Vencemos a estratégia da raposa do Arpino!

Exaltado por estar certo de ter a Assembleia do seu lado, Mário voltou para o estrado com um ar muito sério, subiu-o e ficou em frente da sua cadeira curul de marfim trabalhado para fazer a peroração.

- Eu próprio farei primeiro o juramento entre nós - disse ele, a voz da razão. - E se eu, Caio Mário, vosso cônsul sénior há mais de quatro anos, estou preparado para jurar, o que poderá esse juramento custar aos ocupantes desta sala? Conferenciei com os sacerdotes do Colégio dos Dois Dentes, e o templo de Semo Sancus Dius Fidius está pronto para nos acolher. Não é assim tão longe! Vinde. Quem me acompanha?

Ouviu-se um suspiro, um leve murmúrio, o som das solas dos sapatos a raspar no chão à medida que a imobilidade era quebrada. Os membros das bancadas posteriores começaram a levantar-se.

- Uma pergunta, Caio Mário - disse Escauro.

A Assembleia voltou a ficar em silêncio. Mário assentiu.

- Queria a tua opinião pessoal, Caio Mário. Não é a tua opinião oficial. A tua opinião pessoal.

- Se dás valor à minha opinião pessoal, Marco Emílio, conceder-ta-ei, naturalmente - disse Mário. - Qual é a questão?

- Qual é a tua opinião pessoal - perguntou Escauro, projectando a voz por toda a Círia. - A lex Appuleia agrária secunda é válida à luz do que aconteceu quando foi aprovada?

Silêncio. Silêncio total. Ninguém respirava. Nem Caio Mário, que estava demasiado ocupado a atravessar a zona em que o seu excesso de autoconfiança o colocara para pensar sequer em respirar.

- Queres que repita a pergunta, Caio Mário? - perguntou Escauro com voz doce.

Mário humedeceu os lábios ressequidos. Para onde poderia ir, o que poderia fazer? ”Acabaste por escorregar, Caio Mário. Caíste num poço donde não podes sair. Porque não terei sabido que esta pergunta tinha de ser feita pelo único verdadeiro cérebro existente entre eles? Terei ficado subitamente cego pela minha própria inteligência? A pergunta tinha de ser feita! E eu nem pensei nisso. Nem uma só vez durante estes três longos dias.

”Não tenho opção. O Escauro tem o meu escroto na mão e tenho de dançar ao ritmo dos seus apertos. Ele derrubou-me. Porque não tenho opção. Agora, terei de dizer a esta Assembleia que pessoalmente considero esta lei nula. Senão, ninguém jurará cumpri-la. Fi-los acreditar que havia uma dúvida, fi-los acreditar que a dúvida tornava lícito o juramento. Se recuar, perco-os. Mas se disser que, pessoalmente, considero a lei nula, estou perdido.”

Mário olhou para a bancada dos tribunos, viu Lúcio Apuleio Saturnino inclinado para a frente, de mãos apertadas, com a expressão rígida, os lábios entreabertos.

”Perderei este homem que é tão importante para mim se disser que considero a lei nula. E perderei o maior legislador que Roma conheceu, Gláucia... juntos, poderíamos endireitar a Itália, apesar de tudo o que os políticos pudessem fazer. Mas se disser que considero a sua lei nula, perdê-los-ei para sempre. E no entanto... no entanto, tenho de dizê-lo. Porque se não o fizer, estes cunni não farão o juramento e os meus soldados não receberão as terras. É tudo o que posso salvar desta confusão: as terras para os meus homens. Estou perdido. Perdi.”

Quando a perna da cadeira de marfim de Gláucia raspou a laje de mármore, metade dos membros do Senado saltaram; Gláucia observou as suas unhas de lábios enrugados e rosto inexpressivo. Mas o silêncio manteve-se.

- Parece-me melhor repetir a pergunta, Caio Mário - disse Escauro.

- Qual é a tua opinião pessoal? Esta lei é válida ou não

- Parece-me... - Mário parou, franzindo o sobrolho com ferocidade,

- Pessoalmente, parece-me provável que a lei seja nula - disse.

Escauro bateu com as mãos nas ancas com um estalido.

- Agradeço-te, Caio Mário! - levantou-se e virou-se para sorrir para os membros das bancadas atrás de si, depois voltou-se para sorrir aos da frente. - Pais Conscritos, se um homem como o nosso Caio Mário, herói e conquistador, considera a lex Appuleia nula, por mim, tenho o maior prazer em fazer o juramento! - e fez uma vénia a Saturnino e a Gláucia.

- Caros membros do Senado, como vosso Princeps Senatus, sugiro que nos dirijamos todos de imediato ao templo de Semo Sancus!

- Alto.’

Todos pararam. Metelo Numídico bateu as palmas. Do fundo da bancada superior surgiu o seu servo, curvado, arrastando ruidosamente duas sacas pesadas pelos degraus de seis pés de largura. Depois de colocar as duas sacas ao pé de Metelo Numídico, o servo voltou para a bancada superior e transportou para baixo outras duas sacas. Vários senadores olharam para o que se empilhava contra a parede e fizeram sinal aos servos para estes ajudarem. O trabalho correu então mais depressa, até se encontrarem quarenta sacas à volta do banco de Metelo Numídico, que se levantou.

- Não farei o juramento - declarou. - Não farei o juramento só por o cônsul sénior me dar um milhão de certezas de que a lex Appuleia é nula! Aqui estão vinte talentos de prata em pagamento da minha multa, e declaro que amanhã de madrugada seguirei para o exílio em Rodes. A confusão foi geral.

- Ordem! Ordem! Ordem! - gritava tanto Escauro como MárioQuando a ordem prevaleceu, Metelo Numídico olhou para trás, e falou por cima do ombro para alguém que estava na bancada do fundo.

- Questor do Tesouro, peço-te que avances - disse.

Apareceu um homem jovem e com aspecto apresentável, com olhos e cabelos castanhos, de toga fulgurante, perfeitamente pregueada; era Quinto Cecílio Metelo, o Bacorinho, filho de Metelo Numídico Suíno - Questor do Tesouro, coloco à tua guarda estes vinte talentos de prata como pagamento da multa que me foi atribuída por me ter recusado a cumprir a lex Appuleia agrária secunda - disse Metelo Numídico. Contudo, enquanto a Assembleia se encontra reunida, exijo que o dinheiro seja contado, para que os Pais Conscritos possam ter a certeza de que não falta um denário sequer.

- Todos confiamos na tua palavra, Quinto Cecílio, - disse Mário, sorrindo sem o mínimo vestígio de diversão.

- Mas eu insisto! - exclamou Metelo Numídico. - Ninguém sairá daqui até ser contada a última moeda - tossiu. - O total, segundo creio, devem ser cento e trinta e cinco denários.

Todos se sentaram com um suspiro. Dois funcionários da Assembleia foram buscar uma mesa e colocaram-na no lugar de Metelo Numídico; este ficou em pé. A sua mão esquerda apertava a toga e a mão direita estava estendida em repouso, com as pontas dos dedos ligeiramente inclinadas sobre a mesa. Os funcionários abriram uma das sacas e elevaram-na; depois, deixaram o seu conteúdo tombar em cascata, amontoando-se perto da mão de Metelo Numídico. O jovem Metelo fez sinal aos funcionários para que estes segurassem a saca vazia aberta do seu lado direito, e começou a contar as moedas, empurrando-as rapidamente para a sua mão direita, em concha abaixo da borda da mesa. Quando a mão estava cheia, ele despejava o seu conteúdo na mesa.

- Espera! - disse Metelo Numídico. Metelo Bacorinho parou.

- Conta-as em voz alta, questor do Tesouro!

Ouviu-se um suspiro, um horrível murmúrio colectivo.

Metelo Bacorinho voltou a pôr todas as moedas na mesa e recomeçou:

-Uuuuuma... duuuuas... trêêêês... quaaaatro...

Ao pôr do Sol, Caio Mário levantou-se da sua cadeira curul.

- O dia terminou, Pais Conscritos. A nossa questão não terminou, mas nesta Assembleia as sessões formais terminam quando o Sol se põe. Por isso, sugiro que nos dirijamos agora ao templo de Semo Sancus e façamos os nossos juramentos. Têm de ser feitos antes da meia-noite, senão violaremos uma ordem do Povo - Mário olhou para o local onde ainda se encontrava Metelo Numídico e o filho continuava a contagem. Estavam longe de acabar, embora a gaguez tivesse melhorado quando lhe passara o nervoso.

- Marco Emílio Escauro Princeps Senatus, é teu dever permanecer aqui e fiscalizar o resto desta longa tarefa. Espero que o faças. E concedo-te a devida autorização para fazeres o teu juramento amanhã. ou o dia seguinte, se a contagem ainda se estiver a processar amanhã - um sorriso frouxo franzia os cantos dos lábios de Mário.

Mas Escauro não sorriu. Lançou a cabeça para trás e desatou a rir-se em gargalhadas estrondosas.

No fim da Primavera, Sila regressou da Gália Italiana, e pediu para ser recebido por Caio Mário imediatamente, depois de ter tomado banho e mudado de roupa. Achou Mário com mau aspecto, descoberta essa que não o surpreendeu. Até no extremo mais a Norte do país os acontecimentos relacionados com a aprovação da lex Appuleia não tinham sido omitidos. Caio Mário não tinha necessidade de voltar a contar a história; limitaram-se a olhar um para o outro em silêncio e tudo o que tinha de passar-se entre eles a um nível básico processou-se sem palavras.

No entanto, mal a emoção se desvaneceu um pouco ao fim da primeira taça de vinho, Sila abordou os aspectos mais desagradáveis do assunto.

- A tua credibilidade sofreu enormemente - afirmou.

- Eu sei, Lúcio Cornélio.

- É o Saturnino, segundo ouvi dizer. Mário suspirou.

- E podes culpá-lo por odiar-me? Ele fez meia centena de discursos dos rostros, nem sempre para assembleias convenientemente convocadas. Em todos eles, acusou-me de tê-lo traído. Como Saturnino é um orador brilhante, a história da minha traição não perdeu nada no estilo em que ele as contou às multidões. E ele arrasta as multidões. Não só os frequentadores habituais do Fórum mas homens da Terceira, Quarta e Quinta Classes que parecem estar fascinados ao ponto de aparecerem no Fórum para ouvi-lo sempre que têm folga.

- Ele fala assim tão frequentemente? - perguntou Sila.

- Fala todos os dias!

Sila assobiou.

- Isso é uma novidade nos anais do Fórum! Todos os dias? Quer chova quer faça sol? Sejam sessões formais ou não?

- Todos os dias. Quando o pretor urbano, o seu companheiro inseparável, Gláucia, obedecendo às ordens do Pontifex Maximus, informoo”

Saturnino de que não podia discursar em dias de mercado, feriados ou dias não-comiciais, Saturnino ignorou-o por completo. E como é tribuno da plebe, ninguém tentou expulsá-lo - Mário franziu as sobrancelhas, preocupado. - Consequentemente, a sua fama espalha-se cada vez mais, e vemos agora um tipo totalmente novo de frequentadores do Fórum: os que vêm apenas para ouvir as arengas de Saturnino. Ele tem - não sei o que lhe chamarias, mas penso que os Gregos têm uma palavra para isso - kharishia. Eles sentem o seu entusiasmo, ao que julgo, porque, não sendo frequentadores habituais do Fórum, não possuem conhecimentos de retórica, e pouco lhes interessa o modo como agita o dedo mindinho ou varia o estilo ao andar. Não, ficam ali especados a olhar para ele, cada vez mais excitados com o que diz, e acabam aplaudindo-o furiosamente.

- Teremos de tê-lo debaixo de olho, não é? -perguntou Sila; e olhou para Mário com um ar sério. - Por que fizeste isso?

Mário não arranjou pretextos; respondeu imediatamente:

- Não tive outra hipótese, Lúcio Cornélio. A verdade é que não sou... não sei ser... suficientemente tortuoso para inspeccionar todos os recantos necessários se quiser manter-me um passo ou dois à frente de homens como o Escauro. Ele apanhou-me em flagrante. Reconheço-o de livre vontade.

- Mas de certo modo, salvaste o esquema - disse Sila, tentando reconfortá-lo. - O segundo projecto de lei das terras continua nas tabuinhas, e não julgo que a Assembleia da Plebe, nem sequer a Assembleia do Povo, vá anulá-la. Ou pelo menos, disseram-me que era assim que estavam as coisas.

- É verdade - confirmou Mário sem parecer reconfortado; encolheu a cabeça entre os ombros, e suspirou. - Foi Saturnino que venceu e não eu, Lúcio Cornélio. É o seu sentido do ultraje que mantém a Plebe firme. Perdi-os - Mário contorceu-se, lançou as mãos à cabeça. - Como vou sobreviver até ao fim do ano? já é uma provação ter de caminhar através da torrente de vaias e apupos vindos da zona dos rostros sempre que Saturnino está a discursar, mas quanto a entrar na Cúria... odeio-o! Odeio o sorriso hipócrita no rosto desagradável de Escauro, abomino o sorriso afectado na cara de camelo do Catulo: não fui feito para a arena política, e essa é uma verdade que só agora comecei a descobrir.

- Mas tu subiste o curjui honoruin, Caio Mário! - exclamou Sila. Foste um dos grandes tribunos da plebe! Conheceste a arena política e adoraste-a, senão nunca terias sido um grande tribuno da plebe.

Mário encolheu os ombros.

- Oh, nessa altura era novo, Lúcio Cornélio. E tinha um bom cérebro. Mas não sou um animal político.

- E vais ceder o centro do palco a um ganancioso como o Saturnino? Isso não me parece do Caio Mário que conheço - disse Sila.

- Não sou o Caio Mário que conheces - respondeu Mário com um sorriso ténue. - O novo Caio Mário está muito, muito cansado. É tanto um estranho para ti como para mim, acredita!

- Então, vai passar fora o Verão, peço-te!

- Tenciono ir - afirmou Mário -, logo que dês o nó com a Élia. Sila sobressaltou-se, depois riu.

- Deuses, tinha-me esquecido por completo! - Pôs-se de pé graciosamente; era um homem bem constituído no auge da vida. - É melhor ir para casa e pedir à nossa sogra para me receber, não é? Não há dúvida que ela se tem esforçado - Sila estremeceu - por deixar-me.

Mário não ligou ao arrepio, concentrando-se no comentário.

- Sim, está ansiosa. Comprei-lhe uma pequena villa perto da nossa de Cumas.

- Então, vou para casa tão veloz como Mercúrio procurando um contrato para pavimentar a Via Ápia! - Sila estendeu a mão. - Toma conta de ti, Caio Mário. Se a Élia ainda quiser, dou o nó imediatamente - o ocorreu-lhe uma ideia, e Sila riu. - Tens toda a razão! Catulo César parece um camelo! Que altivez monumental!

júlia estava à espera do lado de fora do gabinete para falar com Sila antes de ele sair.

- O que te parece? - perguntou ansiosamente.

- Ele vai ficar bem, irmãzinha. Derrotaram-no e está a sofrer. Leva-o para a Campânia, fá-lo banhar-se no mar e espojar-se nas rosas.

- É o que farei logo que te cases.

- Eu caso-me, eu caso-me! - exclamou Sila, erguendo as mãos em sinal de rendição.

Júlia suspirou.

- Há uma coisa a que não podemos escapar, Lúcio Cornélio: meio ano no Fórum esgotou mais o Caio Mário do que dez anos no campo de batalha com os seus exércitos.

Parecia que todos precisavam de descansar, pois quando Mário partiu para Comas, a vida pública de Roma manteve-se numa inércia tépida.

Um por um, os notáveis abandonaram a cidade, insuportável durante o pino do Verão, quando todo o tipo de febres entéricas grassavam entre a Subura e o Esquilino, e mesmo o Palatino e o Aventino eram discutivelmente saudáveis.

A vida na Subura não preocupava excessivamente Aurélia: vivia numa caverna fresca, com a protecção das plantas do pátio e das paredes grossíssimas da ínsula. Caio Mário e a mulher, Priscila, estavam nas mesmas condições que ela e César, dado que Priscila também estava no termo da gravidez, e o seu bebé era esperado na mesma altura que o de Aurélia.

As duas mulheres eram muito bem tratadas. Caio Mário era sempre prestável e Lúcio Decúmio aparecia todos os dias para saber se estava tudo bem. As flores continuavam a chegar regularmente, aumentadas desde a gravidez com pequenas prendas de carnes doces, especiarias raras, tudo o que Lúcio Decúmio pensasse que podia satisfazer o apetite da sua querida Aurélia.

- Como se eu tivesse perdido o apetite! - contava ela, rindo, a Públio Rutílio Rufo, outra visita habitual.

O seu filho, Caio Júlio César, nasceu no décimo terceiro dia de Quinctilis, pelo que o nascimento foi registado no templo de Juno Lucina como tendo ocorrido dois dias antes dos Idos de Quinctilis, de estatuto patrício e categoria senatorial. Era muito comprido, e por isso pesava mais do que parecia; era muito forte; era solene e calado, não tinha tendência para choramingar; tinha o cabelo tão claro que era quase invisível, embora ao perto se notasse que tinha muito cabelo; e o primeiro tom dos seus olhos era de um azul claro acinzentado com uma orla dum azul tão escuro que parecia negro.

- Este teu filho é qualquer coisa! - disse Lúcio Decúmio, olhando fixamente para a cara do bebé. - Olha-me para aqueles olhos! Devem assustar a tua avó!

- Não digas essas coisas, verruga horrível! - resmungou Cardixa, que estava fascinada por este primeiro filho.

- Dá uma vista de olhos lá por baixo - pediu Lúcio Decúmio, deitando os dedos sujos aos cueiros do bebé. - Oh, oh! - disse alegremente.

- Exactamente como eu pensava! Nariz grande, pés grandes e pila grande!

- LÚcio Decúmio! - repreendeu Aurélia, escandalizada.

- Basta! Fora! - vociferou Cardixa pegando-lhe pelo cachaço e pondo-o fora da porta principal como uma mulher mais pequena a pôr um gato na rua.

Sila fez uma visita a Aurélia quase um mês após o nascimento da criança, explicando que ela era a única pessoa sua conhecida em Roma, e pedindo desculpa caso estivesse a impor-se.

- Claro que não! - exclamou ela, contente por vê-lo. - Espero que possas ficar para o jantar. Ou se não puderes hoje, talvez possas vir amanhã. Tenho tanta falta de companhia!

- Posso ficar - disse ele sem fazer cerimónia. - Só voltei a Roma para ver um velho amigo meu que está com febre.

- Quem é? Alguém que eu conheça? - perguntou ela, mais por delicadeza do que por curiosidade.

Mas por um momento, pareceu-lhe que a pergunta não era bem-vinda, ou talvez fosse dolorosa; a expressão no rosto dele interessou-a muito mais do que a identidade do amigo doente, pois era uma expressão triste, infeliz, zangada. Depois, esbateu-se, e ele sorriu com o à-vontade habitual.

- Duvido que o conheças - disse. - Metróbio.

- O actor?

- Esse mesmo. Conheci muita gente do teatro. Antigamente. Antes de ter casado com a Julilla e de ter entrado para o Senado. Um mundo diferente. - Os seus estranhos olhos claros vaguearam pela sala de recepções. - Mais parecido com este mundo, só que mais imperfeito. Tem graça! Agora, parece-me um sonho!

- Pareces lamentá-lo - disse Aurélia suavemente.

- Não, não o lamento.

- E o teu amigo Metróbio irá melhorar?

- Sim! Só tem febre.

Tombou um silêncio que não era desconfortável e foi quebrado por Sila sem palavras, quando se levantou e atravessou o grande espaço aberto que dava para o pátio como uma janela.

Isto é adorável. É.

E o teu filho? Como é ele? Ela sorriu.

- Vais vê-lo muito em breve.

- Excelente - Sila ficou a olhar para o pátio.

- Lúcio Cornélio, está tudo bem? - perguntou ela.

Ele virou-se então, a sorrir; Aurélia pensou que era um homem atraente de um modo pouquíssimo comum. E como os seus olhos eram desconcertantes:

tão claros, tão rodeados de escuridão. Tal como os olhos do seu próprio filho. E, por qualquer motivo, aquele pensamento causou-lhe um arrepio.

- Sim, Aurélia, está tudo bem - respondeu Sila.

- Gostava de pensar que estás a contar-me a verdade.

Ele abriu a boca para responder, mas nesse momento entrou Cardixa com o pequeno herdeiro do nome de César.

- Vamos para o quarto piso - disse Cardixa.

- Mostra-o primeiro a Lúcio Cornélio, Cardixa.

Mas as únicas crianças por quem Sila se interessava eram os seus dois filhos, e por isso espreitou respeitadoramente para a cara do bebé, e olhou depois para Aurélia, para ver se ficara satisfeita.

- Podes ir, Cardixa - disse, livrando Sila do seu suplício. - Quem é esta manhã?

- A Sara.

Ela voltou-se para Sila com um sorriso agradável e natural.

- Não tenho leite! Por isso, o meu filho vai buscar alimento a vários lados. É uma das grandes vantagens de viver numa grande comunidade como uma ínsula. Há sempre pelo menos meia dúzia de mulheres a amamentar, e todas são simpáticas e oferecem-se para alimentar os meus bebés.

- Vai crescer a gostar do mundo inteiro - disse Sila. - Os teus inquilinos são quase o mundo inteiro.

- Pois são. Isso torna a vida interessante. Sila voltou a fixar o olhar no pátio.

- Lúcio Cornélio, só estás parcialmente aqui - acusou ela brandamente. - Passa-se alguma coisa! Não podes contar-me? Ou é um daqueles problemas que só podem ser discutidos entre homens?

Sila foi sentar-se no leito oposto ao dela.

- É que nunca tenho sorte com as mulheres - disse abruptamente. Aurélia pestanejou.

- Em que sentido?

-As mulheres que eu... amo. As mulheres com quem me caso. Interessante; era-lhe mais fácil falar do casamento do que do amor.

- De qual se trata?

- Um pouco de cada. Apaixonado por uma; casado com a outra.

- Oh, Lúcio Cornélio! - Aurélia olhou para ele com agrado genuíno mas sem o mínimo desejo. - Não te perguntarei nomes, pois não os quero saber. Faz-me tu as perguntas. Tentarei dar-te as respostas.

Sila encolheu os ombros.

- Não há muito a dizer! Casei com a Élia, que foi escolhida pela nossa sogra. Depois dajulilla, eu queria uma perfeita matrona romana: alguém como ajúlia, ou como tu se fosses um pouco mais velha. Quando a Márcia me apresentou a Élia, julguei que seria o ideal: calma, calada, bem-disposta, atraente, é boa pessoa. E pensei: ”Excelente! Tenho por fim a minha matrona romana. Como não posso amar ninguém, por isso posso casar-me com alguém de quem possa gostar.

- Creio que gostaste da tua mulher germana - afirmou Aurélia.

- Sim, muito. Ainda sinto a falta dela em aspectos particulares. Mas como não é romana, não serve para um senador em Roma. Decidi então que a Élia seria como a Hermana - Sila riu-se sonoramente. - Mas enganei-me! Afinal a Élia é lenta, prosaica e aborrecida. É, de facto, boa pessoa, mas ao fim de algum tempo com ela, começo a bocejar!

- É boa para os teus filhos?

- Muito boa. Aí não há razão de queixa! - ele voltou a rir, - Devia tê-la contratado para ama; teria sido o ideal. Adora as crianças e as crianças adoram-na.

Sila falava agora quase como se ela não existisse, ou como se não fosse importante como ouvinte mas sim como uma presença que lhe dava uma desculpa para dizer em voz alta o que pensava há muito tempo.

- Logo que regressei da Gália Italiana, convidaram-me para um jantar na casa de Escauro - prosseguiu Sila. - Fiquei um pouco lisonjeado; um pouco apreensivo. Imaginei se iam estar lá todos: o Metelo Suíno e os outros e tentei afastar-me de Caio Mário. Lá estava ela, coitada. A mulher de Escauro. Por todos os deuses do mundo, porque tinha de ser ela a estar casada com o Escauro? Ele podia ser seu bisavÔ! Dalmática. É o nome dela. É uma forma de manter na linha os milhares de Cecílias Metelas. Mal a vi, amei-a. Pelo menos, penso que é amor. Também há piedade nisto, mas como nunca deixo de pensar nela, acho que tem de ser amor. E está grávida. Não é repugnante? Ninguém lhe perguntou O que queria, claro. O Metelo Suíno deu-a ao Escauro como se dá um favo de mel a uma criança. Toma, o teu filho está morto, aqui tens o prémio de consolação! Faz outro filho! Repugnante. E no entanto, se me conhecessem, seriam eles que ficariam repugnados. Não sei por quê, Aurélia. Eles são mais imorais do que eu! Mas seria impossível fazê-los ver as coisas dessa maneira.

Aurélia aprendera muito desde que se mudara para a Subura; todos falavam com ela, desde Lúcio Decúmio até aos homens livres que se amontoavam nos dois pisos superiores. E as coisas aconteciam; coisas nas quais a senhoria estava envolvida, gostasse ou não; coisas que teriam chocado profundamente o seu marido se as soubesse, Aborto. Feitiçaria. Crime. Roubos com violência. Violação. Delirum tremens e outras dependências piores. Loucura. Desespero. Depressão. Suicídio. Tudo isso acontecia em todas as ínsulas, e acabava do mesmo modo; não valia a pena levar esses casos ao tribunal dopraetorurbaniís! Eram os habitantes que os resolviam e era executada do modo mais sumário uma severa justiça. Olho por olho, dente por dente, vida por vida.

À medida que ouvia, Aurélia compunha uma imagem de Lúcio Cornélio Sila que não estava muito longe da verdade. Entre os aristocratas que o conheciam, ela era a única que compreendia as suas origens, e também entendia as dificuldades que a sua natureza e a educação tinham provocado. Ele reclamara o seu direito de primogenitura mas estava também permanentemente marcado pelos antros de Roma.

E à medida que Sila falava de um assunto, a sua mente vagueava por outros que não ousava dizer à sua ouvinte: como desejara desesperadamente a mulher-criança grávida de Escauro, e não inteiramente pela carne ou pelo espírito. Ela era ideal para os seus propósitos. Mas era casada com Escauro confarreatio, e ele estava comprometido com a entediante Élia, desta vez não pelo sistema de confarreato! O divórcio era terrível; Dalmática ensinava-lhe uma lição que ele já aprendera a esse respeito. Mulheres. Nunca teria sorte com mulheres; sabia-o no seu íntimo. Seria por causa do seu outro lado? Que relação gloriosa, maravilhosa, com Metróbio! E no entanto, não tivera mais desejo de viver com Metróbio do que com Julilla. Talvez fosse isso: não gostava de partilhar-se. Era demasiado perigoso. Oh, mas sentira desejo por Cecília Metela Dalmática, esposa de Marco Emílio Escauro Princeps Senatus! Repugnante. Não costumava pôr objecções à relação entre homens velhos e noivas muito novas. Neste caso era pessoal. Como estava apaixonado por ela, era especial.

- E Dalmática, gostou de ti, Lúcio Cornélio? - perguntou Aurélia, penetrando nos seus pensamentos.

Sila não hesitou.

- Oh, sim! Não tenho dúvidas.

- E o que vais fazer?

Sila estremeceu.

- Fui longe demais, paguei demasiado! não posso parar agora, Aurélia! Mesmo que eu tivesse uma história com a Dalmática, os boni tratariam de arruinar-me. Também ainda não tenho muito dinheiro. Só o suficiente para me manter no Senado. Ganhei algum com os Germanos, mas não mais do que a minha parte. E não vou subir facilmente o resto do caminho. Eles sentem em relação a mim o mesmo que em relação a Caio Mário, embora por razões diferentes. Nenhum de nós se conforma com os seus malditos ideais. Mas não conseguem entender por que motivo nós temos capacidades e eles não. Sentem-se usados, abusados. Eu tenho muito mais sorte do que Caio Mário. Pelo menos, tenho sangue patrício. Mas está manchado com a Subura. Actores. Vida grosseira. Não sou um dos Homens de Bem - Sila inspirou. - Apesar disso, vou ultrapassá-los, Aurélia! Porque sou o melhor cavalo da corrida.

- E o que acontecerá se o prêmio não valer o esforço? Sila abriu muito os olhos, espantado com o disparate.

- Nunca vale o esforço! Nunca! Não é por isso que qualquer de nós corre. Quando nos aparelham para as nossas sete voltas da corrida, é contra nós que corremos. Que outro desafio podia existir para Caio Mário? É o melhor cavalo. Por isso, corre contra si próprio. Tal como eu. Eu sou capaz. Vou conseguir! Mas isso só me diz respeito a mim mesmo.

E ela corou do seu disparate.

- Claro - levantando-se, Aurélia estendeu a mão. - Vem, Lúcio Cornélio! Está um belo dia apesar do Calor. A Subura está completamente entregue a si própria: todos os que podem deixar Roma no Verão partiram. Só ficaram os pobres e os dementes! E eu. Vamos dar um passeio, e quando voltarmos, jantaremos. Enviarei uma mensagem ao tio Públio para que venha ter connosco; penso que ainda está na cidade - Aurélia fez uma careta. - Tenho de ser cuidadosa, entendes, Lúcio CornélIO? O meu marido confia em mim tanto como me ama, o que já é muito. Mas não gostaria que eu desse origem a mexericos, e eu tento ser uma esposa tradicional. Ficaria horrorizado ao pensar que eu não te convidara para jantar. Mas se o tio Públio puder vir, Caio Júlio elogiar-me-á Sila olhou-a com afecto.

- As ideias absurdas que os homens têm em relação às esposas! Não és de longe a criatura sobre quem Caio Júlio divaga nos jantares militares em campanha.

- Eu sei - disse a rapariga. - Mas ele não sabe.

O calor do Vicus Patricii envolvia-lhes as cabeças como um cobertor sufocante; Aurélia arfou e curvou-se.

- Isto ajuda-me a decidir! Não pensei que estivesse tanto calor! Eutychus pode Ir a correr até às Carinas buscar o tio Públio; aguentará o exercício. E nós ficaremos sentados no jardim - ela conduziu-o, continuando a falar. - Anima-te, Lúcio Cornélio! Estou certa de que tudo acabará bem. Volta para Circeios e para a tua mulher bela e aborrecida. A seu tempo gostarás mais dela. E será melhor para ti não tornares a ver sequer Dalmática. Que idade tens?

O sentimento encurralado começava a soltar-se; o rosto de Sila iluminou-se, o sorriso tornou-se mais natural.

-Este ano é um marco, Aurélia. Fiz quarenta anos no dia de Ano Novo.

- Ainda não és nenhum velho!

- Em alguns aspectos, sou. Ainda nem fui pretor e já tenho um ano além da idade habitual.

- Estás outra vez melancólico e não há necessidade disso. Olha para o nosso velho cavalo de batalha, Caio Mário! O seu primeiro consulado foi aos cinquenta, oito anos além da idade certa. Se o visses pronto para participar na corrida de Marte, considerava-lo o melhor cavalo? Apostarias que seria ele o Cavalo de Outubro? No entanto, fez todos os seus grandes feitos depois dos cinquenta.

- É bem verdade - concordou Sila, e sentiu-se mais animado. - Que deus da fortuna me sugeriu que viesse visitar-te hoje? És uma boa amiga, Aurélia. Uma ajuda.

- Talvez um dia me vire para ti em busca de auxílio.

- Só terás de pedir - Sila olhou para cima, para as varandas nuas dos pisos superiores. - És corajosa! Não há telas. Eles não abusam do privilégio?

- Nunca.

Sila riu-se com risadas de divertimento genuíno,

- Creio que tens todos os casos difíceis da Subura na palma da tua mãozinha!

Assentindo, sorrindo, Aurélia embalou-se para trás e para a frente no seu banco de jardim.

- Gosto da minha vida, Lúcio Cornélio. Sinceramente, não me importo se Caiojúlio nunca conseguir juntar o dinheiro para comprar aquela casa no Palatino. Aqui na Subura, estou ocupada, sou produtiva, estou rodeada de todo o tipo de pessoas interessantes. É a minha corrida.

- Apenas com um ovo na taça e um golfinho em baixo - disse Sila terás muito que correr.

- Tal como tu - afirmou Aurélia.

Era evidente quejúlia sabia que Mário nunca passaria o Verão inteiro em Cumas, embora ele tivesse falado como se não voltasse a Roma antes do início de Setembro; mal o seu equilíbrio começasse a voltar ao normal, ficaria ansioso por voltar à luta. Por isso, ela dava graças por cada dia que passava, pois ao chegar ao campo, Mário deixava atrás tanto a togapraetexta dos políticos como a couraça militar e tornava-se por algum tempo um proprietário rural como os seus antepassados. Os dois nadavam na pequena praia abaixo da sua magnífica villa, e empanturravam-se de ostras frescas, caranguejos, gambas e atum; passeavam pelos montes pouco povoados por entre uma profusão de rosas que enchiam o ar com o seu perfume; recebiam pouco e fingiam estar fora sempre que aparecia gente. Mário construiu um barco de várias espécies para o jovem Mário, e divertiu-se quase tanto como ele com a sua imitação instantânea de um peixe de profundidade. Júlia pensou que nunca fora tão feliz como durante esse Verão tranquilo em Cumas. Dando graças por cada dia que passava.

Mas Mário não regressou a Roma. Sem dor e subtilmente, a pequena apoplexia ocorreu durante a primeira noite do mês de Sírius, Sextilis; Mário só reparou ao acordar que a sua almofada estava molhada no lugar onde podia ter-se babado a dormir. Quando foi tomar o pequeno-almoço e encontrou Júlia no terraço observando o mar, olhou-a admirado por ela o fitar com uma expressão que nunca lhe tinha visto no rosto.

- O que se passa? - murmurou, com a língua pastosa e desajeitada, uma falta de sensação peculiar.

- A tua cara... - disse ela, empalidecendo.

Mário elevou as mãos para tocar-lhe, com os dedos da mão esquerda tão desajeitados como a língua.

- O que é? - perguntou.

- A tua cara. - está descaída do lado esquerdo - disse ela, e sufocou mal se fez luz no seu espírito. - Oh, Caio Mário! Tiveste uma apoplexia! Mas como ele não sentia dores nem tinha a consciência directa de qualquer alteração, recusou-se a acreditar até Júlia o levar a um grande espelho de prata polida para se ver. O lado direito do rosto estava firme, elevado, não muito enrugado para um homem da sua idade, ao passo que o esquerdo se assemelhava a uma máscara de cera a derreter ao calor de um archote, escorrida, abatida, a cair.

- Não sinto nenhuma diferença! - exclamou, espantado, - Não sinto diferença na minha mente, onde se sentem as doenças. A minha língua não me ajuda a pronunciar as palavras de modo adequado, mas a cabeça sabe como dizê-las, e estás a compreender o que eu digo e eu compreendo o que dizes: por Isso, não perdi a faculdade da fala! A minha mão esquerda atrapalha-se mas consigo movê-la. E não sinto nenhuma dor!

Quando ele, furioso e a tremer, se recusou a mandar vir um médico, Júlia desistiu, receando que a resistência o fizesse piorar; durante todo o dia, observou-o e pôde dizer-lhe, ao convencê-lo a ir para a cama pouco antes da meia-noite, que a paralisia parecia não ter variado desde a madrugada.

- Isso é com certeza bom sinal - disse-lhe. - Hás-de melhorar a tempo. Só tens de repousar, ficar aqui mais tempo.

- Não posso! Pensarão que não quero enfrentá-los!

- Se te visitarem, como tenho a certeza que farão!, poderão ver com os seus próprios olhos qual é o problema, Caio Mário. Queiras ou não, vais ficar aqui até melhorares - ordenou Júlia num tom autoritário que era novo na sua voz. - Não. Não discutas comigo! Eu tenho razão, e sei que a tenho! Se regressares a Roma neste estado, o que pensas que podes fazer senão ter outra apoplexia?

- Nada - resmungou o marido, e encostou-se na cama, desesperado. - Júlia, Júlia, como posso recuperar de uma coisa que me faz sentir mais feio do que doente? Tenho de recuperar! Não posso deixá-los derrotar-me, agora que tenho tanta coisa em jogo!

- Não vão derrotar-te, Caio Mário - afirmou Júlia com firmeza. A única coisa que te há-de derrotar é a morte, e não vais morrer desta pequena apoplexia. A paralisia há-de melhorar. E se repousares, se te exercitares com sensatez, se comeres com moderação, não beberes vinho e não te preocupares com o que está a acontecer em Roma, será muito mais rápido.

As chuvas da Primavera não caíram na Sicília nem na Sardenha, e foram escassas em África. Mais tarde, quando o pouco trigo que crescera começou a formar espigas, caíram chuvas torrenciais; as inundações e os pulgões destruíram completamente os cereais. Só de África veio uma pequena colheita para Putéolos e óstia. O que significava que Roma enfrentava o seu quarto ano de preços altos para os cereais e uma escassez que prenunciava a fome.

O cônsul júnior eflamen Alartialis, Lúcio Valério Flaco, deparou com os celeiros vazios abaixo dos rochedos do Aventino, ao lado do porto de Roma, e os celeiros particulares ao longo do Vicus Tuscus Poucos cereais tinham. Segundo os mercadores disseram a Flaco e aos seus edis, este pouco que havia poderia ser vendido por mais de cinquenta sestércios por modius, o correspondente a apenas treze libras. Eram poucas - se é que as havia - as famílias dos capite censi que podiam pagar um quarto desse valor. Havia outros alimentos mais baratos, mas a falta de trigo fazia aumentar todos os géneros alimentícios devido ao consumo excessivo e à produção limitada. E as barrigas habituadas a alimentar-se de bom pão não se satisfaziam com papas de aveia finas e nabos, a base da alimentação em tempos de fome. Os fortes e saudáveis sobreviviam; mas os idosos, os fracos, os muito jovens e os doentes morriam quase sempre.

Em Outubro, os capte censi começaram a ficar impacientes; frémitos de medo começavam a percorrer os habitantes comuns da cidade. Porque os capite censi de Roma privados de comida era uma perspectiva que ninguém que vivesse perto deles podia encarar sem medo. Muitos dos cidadãos da Terceira e Quarta Classes, que teriam sempre dificuldade em comprar cereais tão caros, começaram a arranjar armas para defenderem as despensas das depredações dos que possuíam menos que eles.

Lúcio Valério Flaco conferenciou com os edis curuis - responsáveis pelas compras de cereais do Estado, tanto para armazenamento como para venda - e pediu ao Estado fundos extraordinários para comprar cereais onde e do tipo que pudessem ser adquiridos - cevada, milho-miúdo, trigo. No entanto, poucos membros do Senado estavam verdadeiramente preocupados; demasiados anos de isolamento das classes inferiores separavam-nos dos motins dos capite censi.

Para piorar as coisas, os dois jovens que ocupavam o cargo de quesrores do Tesouro eram do tipo mais exclusivista e impiedoso de senadores, e não tinham os capite cens em grande consideração. Ao seren, eleitos questores, ambos tinham pedido para exercer o cargo dentro da cidade de Roma, declarando que tencionavam ”travar os escoamentos injustificados do Tesouro de Roma” - uma forma impressionante de dizer que não tencionavam autorizar a saída de dinheiro para os exércitos de capite censi ou para os cereais destes. O questor urbano - superior de ambos - era Cepião Júnior, filho do cônsul que roubara o ouro de Tolosa e perdera a batalha de Arausio; o outro era Metelo Bacorinho, o filho do exilado Metelo Numídico. Ambos tinham contas a ajustar com Caio Mário.

Não era habitual os senadores contrariarem as recomendações dos questores do Tesouro. Interrogados na Assembleia quanto ao estado dos assuntos fiscais, tanto Cepião Júnior como Metelo Bacorinho disseram terminantemente que não havia dinheiro para cereais. Graças às enormes quantias que tivera de dispender durante vários anos no equipamento, pagamento e alimentação dos exércitos de capite censi, o Estado estava falido. Os dois questores disseram que nem a guerra contra Jugurta nem a guerra contra os Germanos fizera entrar o dinheiro suficiente em pilhagens e tributos para acertar o balanço financeiro negativo do Estado. E os tribunos do Tesouro com os seus livros de contas ajudaram-nos a prová-lo. Roma estava falida. Os que não tinham dinheiro para pagar o preço dos cereais teriam de morrer à fome. Lamentavam-no, mas era essa a realidade.

No início de Novembro, corria por Roma inteira o boato de que não haveriam cereais do Estado a preços acessíveis, pois o Senado recusara-se a votar a atribuição de fundos com essa finalidade. O boato não mencionava más colheitas ou embirrentos questores do Tesouro; afirmava apenas que não haveria cereais baratos.

O Fórum Romano começou imediatamente a encher-se de multidões que lhe eram estranhas, e os frequentadores habituais do Fórum misturavam-se ou juntavam-se aos recém-chegados. Estas multidões de capite censi e da Quinta Classe eram tão desagradáveis como o seu mau-humor. Os senadores e outros homens de toga recebiam assobios de milhares de línguas ao percorrerem aquilo que consideravam como seu território, mas no início não se intimidaram com facilidade. Depois, os assobios transformaram-se em saraivadas de imundícies: fezes, estrume, lama fedorenta do Tibre, lixo apodrecido. Então, o Senado libertou-se de tais complicações suspendendo todas as actividades, deixando infelizes tais como banqueiros, mercadores cavaleiros, defensores e tribunos do Tesouro a sofrer a conspurcação das suas pessoas sem qualquer apoio senatorial.

Como não tinha a força necessária para tomar a iniciativa, o cônsul júnior, Flaco, deixou a questão pairar, enquanto Cepião Júnior e Metelo Bacorinho se congratulavam com um trabalho bem feito. Se morressem alguns milhares de capite censi durante o Inverno, ficariam menos bocas para alimentar.

Foi então que o tribuno da plebe Lúcio Apuleio Saturnino convocou a Assembleia da Plebe, e propôs uma lei relativa aos cereais. O Estado compraria todas as onças de trigo, cevada e milho-miúdo existentes na Itália e na Gália Italiana, e vendê-las-ia pela quantia ridícula de um sistércio por modus. Era evidente que Saturnino não se referiu a números impossíveis quanto ao embarque do que quer que fosse da Gália Italiana para regiões a sul dos Apeninos, nem ao facto de quase não haver trigo a sul dos Apeninos. O que queria era a multidão, e para isso, tinha de se colocar aos olhos dela como seu único salvador.

A resistência foi quase nula na ausência de um Senado reunido, pois a escassez dos cereais afectava toda a gente de Roma que se encontrava a um nível abaixo dos ricos. Toda a cadeia alimentar e os seus participantes estavam do lado de Saturnino. O mesmo acontecia à Terceira e Quarta Classes, e mesmo muitas das centúrias da Segunda Classe. Quando a curva de Novembro resvalava pelo declive que ia dar a Dezembro, Roma inteira estava do lado de Saturnino.

- Se as pessoas não podem comprar trigo, não podemos fazer pão! gritava a Associação dos Moleiros e Padeiros.

- Se as pessoas têm fome, não trabalham bem! - exclamava a Associação dos Construtores.

- Se as pessoas não podem alimentar os seus filhos, o que acontecerá aos seus escravos? - berrava a Associação dos Homens Livres.

- Se as pessoas têm de gastar o seu dinheiro em comida, não podem pagar as rendas! - bramia a Associação dos Senhorios.

- Se as pessoas têm tanta fome que começam a pilhar as lojas e derrubar as bancas dos mercados, o que nos acontecerá? - protestava a Associação dos Mercadores.

- Se as pessoas forem aos nossos lotes à procura de comida, não teremos produção para vender! - queixava-se a Associação dos Hortelãos.

A questão não se resumia a alguns milhares de homens dos capite censi morrerem à fome; mal os cidadãos pobres e remediados de Roma deixassem de poder comer, cento e um tipos de negócios e ofícios sofreriam com isso. A fome era uma calamidade económica. Mas o Senado não se reunia, nem mesmo em templos segundo o processo habitual, e Saturnino propôs uma solução. E a sua solução baseava-se numa premissa errada: de que havia cereais que o Estado podia comprar. Saturnino acreditava que existiam, achando que todos os aspectos da crise eram fabricados, e que a culpa era de uma aliança entre os políticos do Senado e os escalões mais altos dos donos dos cereais.

Os mil rostos no Fórum voltaram-se para ele como girassóis virados para o sol. Entusiasmado pela força do seu discurso, Saturnino começou a acreditar naquilo que gritava; começou a acreditar em cada um dos rostos que os seus olhos encontravam na multidão; começou a crer num novo modo de governar Roma. O que importava afinal o Senado? O que importavam os senadores, quando as multidões como esta os faziam meter o rabo entre as pernas e esgueirar-se para casa? Quando as apostas estavam na mesa e chegava o momento de lançar os dados, eram eles que contavam, aqueles rostos na enorme multidão. Eram eles que detinham o verdadeiro poder; os que pensavam tê-lo só o possuíam enquanto aqueles rostos no meio da multidão o permitissem.

Por isso, o que importava o consulado? O que importava o Senado? Conversa, fanfarronice, uma insignificância! Não havia exércitos em Roma nem mais perto de Roma que os centros de treino de recruta de Cápua. Os cônsules e o Senado detinham o poder sem o apoio das armas ou dos números. Mas no Fórum o poder era verdadeiro, ali estavam os números que sustentavam esse poder. Para que servia ser-se o Primeiro Homem de Roma? Não era preciso! Caio Graco também teria percebido isso? Ou teria sido obrigado a matar-se antes de o perceber?

”Eu”, pensou Saturnino, saboreando a visão dos rostos na multidão gigantesca, ”hei-de ser o Primeiro Homem de Roma! Mas não como cônsul. Como tribuno da plebe. São os tribunos da plebe e não os cônsules que detêm o poder genuíno. E se Caio Mário conseguiu ser eleito cônsul perpetuamente, o que impedirá Saturnino de ser eleito tribuno da plebe perpetuamente?”

No entanto, Saturnino escolheu um dia tranquilo para aprovar o seu projecto de lei dos cereais, principalmente porque teve a sabedoria de ver que a oposição dos senadores ao fornecimento de cereais baratos tinha de continuar a parecer arbitrária e elitista; por isso, não devia estar uma grande multidão presente no Fórum. Se tal acontecesse, o Senado teria a oportunidade de acusar a Assembleia da Plebe de desordem, motim, violência, e poderia denunciar a lei como nula. Saturnino continuava irritado com o segundo projecto da lei agrária, a traição de Caio Mário e o exílio de Metelo Numídico; o facto de a lei estar ainda gravada nas tabuinhas era obra sua e não de Caio Mário. Isso fazia dele o verdadeiro autor das concessões de terras para os veteranos dos capite censi.

Novembro tinha poucos feriados, em especial feriados em que Os Comícios pudessem reunir. Mas surgiu a sua oportunidade de encontrar um dia calmo quando morreu um cavaleiro fabulosamente rico, e os seus filhos organizaram jogos fúnebres gladiatoriais em sua honra. O local escolhido para os jogos - habitualmente o Fórum Romano - foi o Circo Flamínio, para evitar as multidões que se reuniam todos os dias no Fórum Romano.

Foi CepiãoJúnior que estragou os planos de Saturnino. A Assembleia da Plebe foi convocada; os augúrios eram auspiciosos; o Fórum tinha a sua frequência habitual, pois a multidão estava no Circo Flamínio; os outros tribunos da plebe estavam ocupados a tirar as sortes para saber a ordem da votação das tribos; e o próprio Saturnino não abandonava os rostros, exortando os grupos de tribos que se formavam no vão dos Comícios a votar segundo a sua orientação.

Na ausência manifesta de sessões senatoriais, Saturnino não pensara que alguns membros do Senado estivessem atentos ao que se passava no Fórum, pondo obstáculos aos outros nove tribunos da plebe, que se limitavam a fazer o que lhes mandavam. Mas havia membros do Senado que sentiam tanto desprezo pela conduta cobarde daquele organismo como Lúcio Apuleio Saturnino, Eram todos novos, questores que haviam entrado em funções esse ano ou há dois anos atrás, e possuíam aliados entre os filhos dos senadores e os cavaleiros da Primeira Classe que ainda não tinham idade para entrar no Senado ou nos lugares superiores das empresas dos pais. Reunindo-se em grupos em casa de uns e outros, eram chefiados por Cepião Júnior e Metelo Bacorinho, e tinham um conselheiro-confidente mais maduro para os orientar e dar finalidade ao que podia ter acabado apenas numa série de discussões iradas, submersas num excesso de vinho.

O seu conselheiro-confidente rapidamente se ia tornando o seu ídolo por ter as qualidades que os jovens tanto admiram: era ousado, intrépido, calculista, sofisticado, gostava de comer bem e de mulheres, era espirituoso, elegante e tinha uma impressionante folha de serviços em combate. Chamava-se Lúcio Cornélio Sila.

Com Mário de cama em Cumas por um período de tempo que parecia durar há meses, Sila encarregara-se de ver como as coisas corriam em Roma, de um modo que Públio Rutílio, por exemplo, nunca sonharia. O que motivava Sila não era propriamente a lealdade para com Mário; depois daquela conversa com Aurélia, Sila analisara detalhadamente as suas perspectivas no Senado, e concluíra que Aurélia tinha razão: tal como Caio Mário, seria aquilo a que um jardineiro chamaria um rebento tardio. Nesse caso, não fazia sentido procurar amizade e alianças entre os senadores mais velhos do que ele. Escauro, por exemplo, era um caso perdido. E como aquela decisão lhe dava jeito! Afastava-o da agradável noiva-criança de Escauro, que era agora mãe da bebé Emília Escaura. Quando soube que Escauro tivera uma filha, Sila sentiu um enorme prazer. Vinha mesmo a calhar para aquele velho bode turbulento.

Na mira de salvaguardar o seu futuro político ao mesmo tempo que protegia o de Mário, Sila começou a cortejar a geração senatorial mais nova, escolhendo como alvos aqueles que eram: maleáveis, passíveis de ser influenciados, não muito inteligentes, extremamente ricos, de famílias importantes ou tão arrogantemente seguros de si, que ficavam expostos a uma forma subtil de lisonja, Os seus alvos principais eram Cepião Júnior e Metelo Bacorinho; Cepião Júnior por ser um patrício intelectual com acesso a jovens como Marco Lívio Druso (que Sila nem tentava lisonjear), e Metelo Bacorinho por saber o que se passava entre os mais idosos Homens de Bem. Ninguém sabia lisonjear homens novos melhor do que Sila, mesmo que os seus propósitos não tivessem nada a ver com a sexualidade, e por isso em breve convivia com eles, mostrando-se sempre divertido com as suas atitudes joviais de um modo que lhes sugeria existir a esperança de ele mudar de ideias e levá-los a sério. Não eram adolescentes; os mais velhos só tinham menos sete ou oito anos do que ele, e os mais novos quinze ou dezasseis anos menos. Tinham a idade suficiente para se considerarem completamente formados e a juventude suficiente para um Sila os fazer perder o equilíbrio. E o núcleo de um seguimento senatorial que, a seu tempo, teria uma enorme importância para um homem decidido a ser cônsul.

Mas naquela altura, a preocupação principal de Sila era Saturnino, a quem vinha a observar desde que as multidões tinham começado a reunir-se no Fórum e começara a hostilização aos dignitários de toga. A preocupação de Sila não era que a lex Appuleia frumentária fosse aprovada ou não; o que Saturnino precisava era de uma demonstração de que as coisas não correriam como ele queria.

Quando cinquenta ou sessenta dos jovens patrícios se reuniram em casa de Metelo Bacorinho na noite anterior àquela em que Saturnino planeava aprovar a lei dos cereais, Sila encostou-se a escutar a conversa num estado de espírito aparentemente divertido, até que Cepião Júnior lhe caiu em cima e quis saber a sua opinião acerca do que deviam fazer.

Sila estava belo, com o cabelo ruivo-dourado cortado de forma a salientar as ondas mais atraentes, a pele estava imaculada, as sobrancelhas e pestanas sobressaíam (eles não sabiam, mas realçara-as com um traço de súbium, senão teriam desaparecido por completo), os olhos tinham a frieza apelativa dos olhos azuis de um gato.

- Acho que vocês são todos uns fanfarrões. - disse.

Metelo Bacorinho fora levado a crer que Sila não passava do cão amestrado de Mário; como qualquer romano, não achava mal que um homem se ligasse a uma facção, tal como assumia que esse homem não podia ser imparcial.

- Não somos fanfarrões - resmungou sem gaguejar. - Só que não sabemos qual é a táctica adequada.

- Opõem-se a um pouco de violência? - perguntou Sila.

- Não, quando serve para proteger o direito do Estado de decidir como gastar o dinheiro público de Roma - afirmou Cepião Júnior.

- Aí está - disse Sila. - O Povo nunca teve o direito de gastar os fundos públicos da cidade. Não nos opomos a que o Povo faça as leis. Mas o Senado deve fornecer o dinheiro que as leis do Povo exigirem... e o Senado pode negar-se a atribuir fundos. Se nos for retirado o direito de controlar os cordões à bolsa, não nos resta qualquer poder. O dinheiro é a única forma de tirar a força às leis do Povo quando não concordamos com elas. Foi isso que fizemos com a lei dos cereais de Caio Graco.

- Não impediremos que o Senado vote a atribuição de fundos quando esta lei for aprovada - disse Metelo Bacorinho, ainda sem gaguejar: quando estava com os amigos íntimos, não gaguejava.

- Claro que não! - exclamou Sila. - Nem impediremos que seja aprovada. Mas podemos mostrar a Lúcio Apuleio um pouco da nossa força. Quando Saturnino exortava os seus votantes a fazer o que era preciso quanto à lex Appuleia frumentária, as multidões dispersavam-se até ao Circo Flamínio e a sessão corria com a ordem que qualquer consular exigiria. Cepião Júnior entrou com duas centenas de seguidores no baixo Fórum Romano. Armados de paus e achas de lenha, eram na sua maioria sujeitos musculados com diafragmas moles, indicando que deviam ter sido gladiadores que agora tinham de alugar os seus serviços em qualquer tipo de tarefa que exigisse força ou violência. Contudo, os cinquenta jovens que estavam em casa de Metelo Bacorinho na noite anterior vinham à frente, liderados por Cepião Júnior. Lúcio Cornélio Sila não se encontrava entre eles.

Saturnino encolheu os ombros e observou impassível o grupo que atravessava o Fórum, depois virou-se para os Comícios e declarou encerrada a sessão.

- Não haverá cabeças partidas por minha culpa! - gritou aos votantes, fazendo dispersar os amontoados das tribos, alarmados. - Vão para casa e voltem amanhã! Então, aprovaremos a nossa lei!

No dia seguinte, os capite censi estavam de volta nos Comícios; não apareceu nenhum grupo de valentões do Senado para dissolver a sessão, e o projecto de lei dos cereais foi aprovado.

- Meu enormíssimo idiota - disse Saturnino a CepiãoJúnior quando se encontraram no templo de Júpiter Optimus Maximus, onde Valério Flaco achara que os Pais Conscritos estariam a salvo da populaça para discutirem o financiamento da lex Appuleia frumintária -, eu só estava a tentar aprovar uma lei válida numa assembleia convocada legalmente. Não havia multidões, o ambiente era tranquilo e os augúrios eram impecáveis. E o que acontece? Tu e os teus amigos idiotas aparecem para partir cabeças! - Saturnino virou-se para os grupos de senadores à sua volta. Não me lancem as culpas por a lei ter tido de ser aprovada no meio de vinte mil homens dos capite censi! A culpa é deste parvo!

- Este parvo culpa-se a si mesmo por não ter recorrido à força quando esta devia ter prevalecido! - gritou Cepião Júnior. - Devia ter-te morto, Lúcio Apuleio!

- Agradeço-te por teres dito isso em frente de todas estas testemunhas imparciais - disse Saturnino, a sorrir. - Quinto Servílio Cepião Júnior, acuso-te formalmente de traição menor, visto que tentaste impedir um tribuno da plebe de cumprir o seu dever e por teres ameaçado a sacrossanta pessoa de um tribuno da plebe.

- Estás a preparar uma bela queda, Lúcio Apuleio - comentou Sila.

- Pára enquanto é tempo, homem!

- Apresentei uma acusação formal contra Quinto Servílio, Pais Conscritos - explicou Saturnino, ignorando Sila como se ele não tivesse qualquer importância -, mas esse assunto pode ser deixado a cargo do tribunal de crimes por traição. Estou hoje aqui para exigir dinheiro,

Havia menos de oitenta senadores presentes, apesar da segurança do local, e nenhum era muito importante; Saturnino olhou para eles com desprezo.

- Quero dinheiro para comprar cereais para o Povo de Roma - disse,

- Se não o têm no Tesouro, sugiro que o peçam emprestado. Porque eu quero dinheiro!

Saturnino recebeu o dinheiro. Corado e a protestar, CepiãoJúnior, o questor urbano, recebeu ordens para fazer uma cunhagem especial de um armazenamento de emergência de barras de prata que se encontravam no templo de Ops, e pagar os cereais sem mais provocações.

- Ver-te-ei no tribunal - disse Saturnino docemente a Cepião Júnior quando a sessão terminou -, pois terei todo o prazer em ser eu mesmo a processar-te.

Mas foi aí que se excedeu; os cavaleiros jurados ficaram com aversão a Saturnino, e estavam a favor de Cepião Júnior quando a Fortuna mostrou também estar a favor dele. No meio do discurso da defesa, chegou uma carta urgente de Esmirna, informando o filho de Quinto Servílio Cepião que este morrera em Esmirna, rodeado por nada mais reconfortante do que o seu ouro. CepiãoJúnior chorou amargamente; o júri ficou emocionado e retirou as acusações.

Chegara a altura das eleições mas ninguém queria presidir-lhes, pois a turba continuava a reunir-se todos os dias no Fórum Romano e os celeiros continuavam vazios. O cônsul júnior, Flaco, insistia que as eleições deviam esperar até o tempo provar que Caio Mário não poderia conduzi-las; embora fosse sacerdote de Marte, Lúcio Valério Flaco pouco tinha a ver com Marte e não queria arriscar-se a superintender eleições num clima como aquele.

Marco Antônio Orador tivera uma campanha muito bem sucedida de três anos contra os piratas da Cilícia e da Panfília, que concluiu com um certo estilo a partir do seu quartel-general na Atenas deliciosamente cosmopolita e cultivada. Aí, reunira-se-lhe o seu bom amigo Caio Mémio, que, de regresso a Roma após ter governado a Macedónia, fora acusado no tribunal de extorsão de Gláucia ao mesmo tempo que Caio Flávio Fímbria, seu cúmplice no crime da burla dos cereais. Fímbria tivera uma condenação pesada mas Mémio tivera o azar de ser condenado por um voto. Fímbria escolheu Atenas como lugar de exílio, pois o seu amigo António passava lá muito tempo e ele precisava do apoio de Antônio para recorrer ao Senado e anular a sua condenação. Só por mero acaso conseguira satisfazer os custos daquela actividade dispendiosa. Enquanto era governador da Macedónia, tropeçara literalmente num tesouro escondido numa aldeia escordisca que capturara - cerca de cem talentos de ouro. Tal como Cepião em Tolosa, Mémio não vira razão para partilhar o ouro com alguém, pelo que não o fizera. Até ao dia em que deu algum ao necessitado António, em Atenas. E alguns meses mais tarde, voltou a ser chamado para Roma, onde recuperou o seu lugar no Senado.

Como a guerra dos piratas fora um êxito, Caio Mémio esperou em Atenas até que Marco António Orador estivesse pronto para regressar a Roma. A sua amizade desenvolvera-se e fizeram um pacto segundo o qual se candidatariam em conjunto ao consulado.

Estava-se no fim de Novembro quando António se instalou com o seu pequeno exército no Campo de Marte e exigiu um triunfo. O Senado, que não podia reunir em segurança no templo de Belona para tratar deste assunto, teve o maior prazer em conceder-lho. No entanto, António foi informado de que o seu triunfo teria de esperar até depois do décimo dia de Dezembro, pois as eleições tribunícias ainda não tinham decorrido e o Fórum Romano permanecia cheio de homens dos capite censi. Esperava-se que as eleições decorressem e o novo colégio tomasse posse no décimo dia do mês, mas segundo Antônio foi informado, um desfile triunfal tradicional estava fora de questão.

Antônio começou a achar que não conseguiria candidatar-se ao cargo de cônsul, porque até à celebração do seu triunfo teria de permanecer no Opomerum, o limite sagrado da cidade. Ele ainda detinha imperium, o que o colocava exactamente na mesma posição que um rei estrangeiro, proibido de entrar em Roma. E se não podia entrar em Roma, não podia apresentar-se como candidato às eleições consulares.

Mas o êxito da sua guerra tornara-o imensamente popular para os mercadores de cereais e outros homens de negócios, pois o tráfego no mar Central era mais seguro e previsível do que há meio século. Se ele pudesse apresentar-se como candidato ao consulado, tinha todas as hipóteses de ganhar a posição superior, mesmo contra Caio Mário. E apesar do seu papel na burla de cereais com Fímbria, as hipóteses de Caio Mémio não eram más, porque fora um adversário intrépido de Jugurta, e opusera-se com firmeza a Cepião, quando este retirara o tribunal de traição ao Senado. Como Catulo César dissera a Escauro Princeps Senatus, formavam um par popular para os boni entre os cavaleiros que constituiam a maioria da Primeira e Segunda Classes... E ambos eram infinitamente preferíveis a Caio Mário.

Todos esperavam que Caio Mário regressasse a Roma no último Instante, pronto para se candidatar ao seu sétimo consulado. A história da apoplexia fora verificada mas não parecia afectar muito Caio Mário, e os que tinham ido vê-lo a Cumas haviam regressado convencidos de que a sua mente não ficara afectada. Ninguém tinha dúvidas: Caio Mário ia candidatar-se.

A ideia de apresentar ao eleitorado dois candidatos que queriam candidatar-se como parceiros não agradava muito aos políticos; António e Mémio tinham hipóteses de quebrar o braço de ferro com que Mário detinha a cadeira curul. Simplesmente, Antônio recusava-se teimosamente a trocar o seu triunfo pelo consulado cedendo o seu imperium e atravessando o pomerum para se candidatar.

- Posso concorrer ao consulado no próximo ano - disse quando Catulo César e Escauro Princeps Senatus o foram visitar ao Campo de Marte. O triunfo é mais importante; é provável que não tenha outra guerra tão boa até ao fim da vida - e dessa opinião ninguém o demovia.

- Está bem - disse Escauro a Catulo César quando saíram abatidos do acampamento de Antônio -, teremos de modificar um pouco as regras. Se Caio Mário não se preocupa nada em infringi-las, porque havemos de ter tantos escrúpulos quando há tanta coisa em jogo?

Mas foi Catulo César que propôs aquela solução à Assembleia, reunida noutro lugar seguro, o templo de Júpiter Stator, perto do Circo Flamínio, com o número de membros necessário para que houvesse quorum.

- Vivemos tempos difíceis - disse Catulo César. - Habitualmente, todos os candidatos às magistraturas curuis devem apresentar-se ao Senado e Povo de Roma no Fórum Romano, para declararem as suas candidaturas. Infelizmente, a escassez de cereais e as constantes manifestações no Fórum Romano tornaram aquele local insuportável. Poderei pedir humildemente aos Pais Conscritos que mudem o tribunal dos candidatos... só por este ano, extraordinaríamente!... para uma convocação especial da Assembleia Centurial na saepta, no Campo de Marte? Temos de fazer qualquer coisa no que respeita às eleições! E se mudarmos a cerimónia dos candidatos curuis para a saepta, já é um começo. Pode decorrer o tempo exigido entre as declarações e as eleições. Também seria justo para Marco Antônio: quer candidatar-se ao consulado e não pode atravessar o Poplerum sem perder o seu triunfo, mas também não poderá celebrar o triunfo devido à falta de tranquilidade na nossa cidade assolada pela fome. Assim, já pode apresentar-se como candidato no Campo de Marte. Esperamos que as multidões regressem aos lares depois da eleição e tomada de posse dos tribunos da plebe, pelo que Marco Antônio poderá celebrar o seu triunfo assim que o novo colégio tomar posse, ao que se seguirão as eleições curuis.

- Por que estás tão certo de que as multidões irão para casa depois da tomada de posse do novo Colégio de Tribunos da Plebe, Quinto Lutácio? - perguntou Saturnino.

- Pensei que poderias responder a esta pergunta, Lúcio Apuleio! disse Catulo César agressivamente. - És tu que os levas para o Fórum, e estás lá a discursar para eles todos os dias, fazendo-lhes promessas que nem este augusto organismo pode cumprir! Como podemos comprar cereais inexistentes?

- Continuarei a discursar para a multidão depois do termo do meu mandato - afirmou Saturnino.

- Isso é que não continuarás - emendou Catulo César. - Quando voltares a ser um privatus, Lúcio Apuleio, nem que precise de cem homens e leve um mês a consegui-lo, hei-de achar alguma lei nas tabuinhas ou qualquer precedente que faça com que seja ilegal discursares nos rostros ou em qualquer outro local do Fórum!

Saturnino riu às gargalhadas; no entanto, ninguém cometeu o erro de pensar que estava divertido.

- Procura, se isso te contenta, Quinto Lutácio! Não fará diferença. Não vou ser um privatus depois de ter cessado o corrente ano tribunício, pois voltarei a ser tribuno da plebe! Sim, vou seguir as pisadas de Caio Mário, e sem os vossos impedimentos legais! Não há nada que impeça um homem de se candidatar a tribuno da plebe consecutivamente!

- Há os costumes e a tradição! - disse Escauro. - Isso basta para impedir todos os homens excepto tu e Caio Graco de tentarem um terceiro mandato. E devias aprender com o exemplo de Caio Graco; morreu na Gruta de Furrina, tendo por única companhia um escravo.

- Tenho melhor companhia do que isso - contradisse Saturnino. Os homens do Piceno não se abandonam uns aos outros. Não é, Tiro Labieno? Não é, Caio Saufeio? Não se livrarão de nós com tanta facilidade!

- Não provoques os deuses - ameaçou Escauro. - Eles gostam dos desafios dos homens, Lúcio Apuleio!

- Não temo os deuses, Marco Emílio! Os deuses estão do meu lado

- afirmou Saturnino, após o que abandonou a sessão.

- Tentei avisá-lo - disse Sila. - Prepara a sua desgraça.

- Também aquele - disse Catulo César a Escauro quando Sila não estava por perto.

- O mesmo se passa com metade do Senado - comentou Escauro, olhando em volta. - É um belo templo, Quinto Lutácio! Uma honra para Metelo Macedónico. Mas hoje sentiu-se a falta de Metelo Numídico depois encolheu os ombros, animou-se. - Vem, temos que apanhar o nosso estimado cônsul júnior antes que se esconda. Ele tanto pode oferecer o sacrifício a Marte como a Júpiter Optimus Maximus. Se fizermos uma suovetaurilia totalmente branca, teremos a aprovação divina para a cerimónia da candidatura curul no Campo de Marte!

- Quem irá pagar uma vaca branca, uma porca branca e uma ovelha branca? - perguntou Catulo César, apontando com a cabeça para o lugar onde Metelo Bacorinho e CepiãoJúnior conversavam. - Os nossos questores do Tesouro berrarão ainda mais alto do que as três vítimas sacrificiais.

- Penso que Lúcio Valério, o coelho branco, pode pagar - afirmou Escauro, sorrindo. - Ele tem acesso a Marte!

No último dia de Novembro, chegou uma mensagem de Caio Mário, convocando uma sessão do Senado para o dia seguinte, na Cúria Hostília. Desta vez, o tumulto do Fórum Romano não chegava para abrir caminho aos Pais Conscritos, tal era a sua ansiedade de ver como estava Caio Mário. A Assembleia estava apinhada, e todos tinham chegado antes do amanhecer nas Calendas de Dezembro para se lhe anteciparem. Enquanto esperavam, iam especulando.

Mário foi o último a entrar, alto, de ombros largos e com o ar orgulhoso de sempre; nada na sua postura sugeria invalidez; a mão esquerda encontrava-se dobrada normalmente à volta das dobras da sua toga debruada a púrpura. Ah, mas lá estava o seu pobre rosto para todos verem: o mesmo ar carregado do lado direito; uma caricatura triste do lado esquerdo.

Marco Emílio Escauro Princeps Senatus juntou as mãos e começou a aplaudir. As primeiras palmas ecoaram nas vigas nuas do velho átrio e ressoaram nas saliências rosadas das telhas de terracota que formavam o tecto e o telhado. Um por um, os Pais Conscritos juntaram-se-lhe, e quando Mário chegou à sua cadeira curul, toda a Assembleia o aplaudia. Mário não sorriu; sorrir seria acentuar a assimetria desajeitada do seu rosto de um modo tão insuportável que cada sorriso fazia quem o via desde Júlia a Sila - ficar com lágrimas nos olhos. Em vez de sorrir, Mário ficou em pé ao lado da sua cadeira curul, acenando com a cabeça e fazendo vénias até a ovação se extinguir.

Escauro levantou-se, com um grande sorriso nos lábios.

- Caio Mário, como é bom ver-te! A Assembleia tem estado terrivelmente monótona durante os últimos meses. Como Presidente da Assembleia, tenho o prazer de dar-te as boas-vindas.

-Agradeço-vos, Princeps Senatus, Pais Conscritos, membros do Senado - disse Mário num tom de voz perfeitamente claro. Apesar do que decidira, um ligeiro sorriso elevou o lado direito da sua boca, embora o lado esquerdo se mantivesse baixo. - Se é um prazer receberem-me, muito mais prazer tenho eu em estar aqui! Como vêem, tenho estado doente.

Mário respirou fundo; todos ouviram a sua respiração, tal como ouviram a tristeza na sua voz trémula.

- E embora a minha doença tenha passado, transporto as suas marcas. Antes de chamar esta Assembleia à ordem e começarmos a sessão, quero fazer uma afirmação. Não voltarei a candidatar-me ao consulado, por dois motivos: em primeiro lugar, a emergência que o Estado teve de enfrentar e resultou na honra sem precedentes que me foi concedida ao permitir-me candidatar-me a tantos consulados consecutivos está agora, enfim, concluída. Em segundo lugar, não penso que a minha saúde me permitisse desempenhar adequadamente os meus deveres. É manifesta a responsabilidade com que tenho de arcar pelo caos actual em Roma. Se eu tivesse estado em Roma, a presença do cônsul sénior teria ajudado.

É por isso que existe um cônsul sénior. Não acuso Lúcio Valério Flaco ou Marco Emílio ou qualquer outro funcionário deste organismo. O cônsul sénior tem que governar. Eu não tenho podido fazê-lo. E isso fez-me ver que não posso recandidatar-me. O cargo de cônsul sénior deve passar para um homem que esteja de saúde.

Ninguém pôs objecções. Ninguém se mexeu. Se o seu rosto torcido tivesse indicado que isto ia acontecer, o grau de espanto que todos sentiam naquele momento era uma prova do ascendente que Mário conquistara sobre eles durante os últimos cinco anos. Um Senado sem Caio Mário na cadeira curul? Impossível! Até Escauro Princeps Senatus e Catulo César estavam chocados.

Então, ouviu-se uma voz vinda da última fila, atrás de Escauro.

- A... a... ainda bem! - exclamou Metelo Bacorinho. - Agora, o meu p... p... pai pode re... re... regressar.

- Agradeço-te o elogio, jovem Metelo - disse Mário, olhando directamente para ele. - Deduzes que sou a única causa do exílio do teu pai. Mas sabes muito bem que não é isso que se passa. É a lei das terras que mantém Quinto Cecílio Metelo Numídico no exílio. E quero que todos os membros deste augusto organismo o recordem! Não haverá alteração de decretos, plebiscitos ou leis por eu deixar de ser cônsul!

-jovem tolo! - resmungou Escauro para Catulo César. - Se ele não tivesse dito aquilo, podíamos ter trazido Quinto Cecílio de volta no início do próximo ano sem grande alarido. Agora, não poderá regressar. Acho que está na altura do jovem Metelo receber um cognome.

- Qual? - perguntou Catulo César.

- P.. p.. P.. Pio! - vociferou Escauro. - Metelo Pio, o filho cumpridor, em eternas tentativas de trazer o seu tata de volta! E es... es... estragando tudo!

Era extraordinário ver a rapidez com que a Assembleia se lançou ao trabalho, agora que Caio Mário estava na cadeira curul; era extraordinária a sensação de bem-estar que espalhava pela Assembleia, como se, subitamente, as multidões no exterior tivessem deixado de importar desde a chegada de Caio Mário.

Informado da mudança em relação à apresentação dos candidatos curuis, Mário assentiu, e ordenou laconicamente a Saturnino que convocasse a Assembleia da Plebe e elegesse alguns magistrados; até isto estar resolvido, não Podiam ser eleitos outros magistrados.

A seguir, Mário virou-se para Caio Servílio Gláucia, sentado na cadeira do pretor urbano, à sua esquerda.

- Ouvi um boato, Caio Servílio - disse Mário a Gláucia -, segundo o qual tencionas candidatar-te ao consulado com base em invalidades que alegaste existirem na lex Villia. Peço-te que não o faças. A lex Villia annalis diz inequivocamente que um homem tem que esperar dois anos entre o fim da sua pretura e o início de qualquer consulado.

- Olha quem fala! - disse Gláucia com violência, desconcertado por encontrar hostilidade numa zona do Senado onde pensava obter apoio. - Caio Mário, como podes ter o descaramento de me acusar de pensar infringir a lex Villia, quando tu próprio a infringiste consecutivamente durante os últimos cinco anos? Se a lex Villia é válida, isso é uma afirmação inequívoca de que nenhum homem que foi cônsul pode candidatar-se pela segunda vez ao consulado antes de terem decorrido dez anos!

- Eu não me candidatei ao consulado senão da primeira vez, Caio Servílio - afirmou Mário sem elevar a voz. - Ele foi-me atribuído por três vezes, in absentia, por causa dos Germanos. Numa situação de emergência, todos os costumes... e até mesmo as leis!... se desmoronam. Mas quando o perigo deixa de existir, as medidas extraordinárias que foram tomadas também devem deixar de existir.

- Ah, ah, ah! - riu-se Metelo Bacorinho da última fila; era uma interjeição que se adequava perfeitamente à sua gaguez.

- A paz chegou, Pais Conscritos - disse Mário, como se ninguém tivesse falado -, por isso, retomemos os trabalhos. Caio Servílio, a lei proibe-te de concorrer ao consulado. E como sou eu que presido às eleições, não autorizarei que te candidates. Peço-te que o tomes como um aviso. Desiste da ideia graciosamente, porque não te fica bem. Roma necessita de legisladores com o teu inegável talento, e não podes fazer leis se as infringires.

- O mesmo te disse eu! - disse Saturnino em voz alta.

- Nem ele nem ninguém pode impedir-me - afirmou Gláucia num tom suficientemente alto para toda a Assembleia o ouvir.

- Ele há-de impedir-te - avisou Saturnino.

- Quanto a ti, Lúcio Apuleio - disse Mário, virando-se agora para o banco dos tribunos -, ouvi um boato segundo o qual tencionas candidatar-te a um terceiro mandato como tribuno da plebe, Isso não vai contra a lei. Por isso, não posso impedir-te. Mas posso pedir-te que desistas da ideia. Não dês uma nova interpretação à nossa noção do termo ”demagogo”. O que tens feito durante os últimos meses não é a prática política habitual de um membro do Senado de Roma. Com o nosso enorme corpo de leis e o nosso formidável talento para fazer a engrenagem do governo funcionar segundo os interesses de Roma, não há necessidade de explorar a credibilidade política dos mais humildes: são inocentes que não deviam ser corrompidos. É nosso dever olhar por eles e não usá-los para as nossas finalidades políticas.

-já acabaste? - perguntou Saturnino.

- Absolutamente, Lúcio Apuleio - e o modo como Mário Pronunciou a palavra sugeria várias interpretações.

O assunto ficara arrumado, pensava Mário enquanto se dirigia para casa com a sua nova postura astuciosa, usada para disfarçar uma ligeira tendência para arrastar o pé esquerdo, Como tinham sido estranhos e terríveis os meses que passara em Cumas, quando se escondera e vira o mínimo de pessoas possível por não aguentar o horror, a piedade, a satisfação maliciosa. O mais insuportável de tudo eram aqueles cujo amor por ele os fazia sofrer, como Públio Rutílio. A doce e suave Júlia transformara-se numa autêntica tirana, e proibira terminantemente todos, incluindo Públio Rutílio, de falar sobre política ou questões públicas. Mário não tivera conhecimento da crise dos cereais, não soubera das manobras sedutoras de Saturnino; a sua vida limitara-se a um regime austero de dieta, exercício e à leitura dos Clássicos. Em vez de um bom bocado de carnes fumadas com pão frito, comia melancia assada, pois Júlia ouvira dizer que impedia a formação de cálculos nos rins, na bexiga e no sangue; em vez de ir a pé para a Cúria Hostília, ia de carro a Baias e ao Miceno; em vez de ler as minutas senatoriais e os despachos das províncias, estudava laboriosamente Isócrates e Heródoto e Tucídides, e acabava sem acreditar em nenhum deles, pois não lhe pareciam homens de acção mas sim homens que se limitavam a ler.

Estava a resultar. Muito lentamente, Mário foi melhorando. Mas nunca mais tornaria a ser o mesmo, o lado esquerdo da sua boca não se elevaria e ele nunca mais conseguiria disfarçar o seu cansaço. O traidor enjaulado no seu corpo marcara-o aos olhos de todos. Foi o facto de tê-lo compreendido que acabou por motivar a sua rebelião; e Júlia, que se espantara por ele ter permanecido dócil durante tanto tempo, desistiu de imediato. Mário mandou chamar Públio Rutílio, e regressou a Roma para salvar o que pudesse.

Era evidente que Mário sabia que Saturnino não iria afastar-se do caminho, no entanto sentia a obrigação de avisá-lo; quanto a Gláucia, não constituía motivo de preocupação, pois a sua eleição não seria consentida. Pelo menos, as eleições iam agora prosseguir, com os tribunos da plebe marcados para o dia antes das Nonas e os questores para as Nonas, dia em que deviam entrar em funções. Eram essas as eleições mais perturbantes, pois tinham de decorrer no Fórum Romano, onde a multidão se amontoava todos os dias gritando obscenidades, insultando os homens de toga, brandindo punhos e escutando Saturnino com adoração.

A turba não insultou nem apupou Caio Mário, que passou pelo meio deles ao dirigir-se a casa depois daquela sessão memorável e não sentindo senão o Calor do seu apreço. Abaixo da Segunda Classe, todos viam Caio Mário com bons olhos; tal como os irmãos Gracos, era um herói. Havia quem olhasse para o seu rosto e chorasse por vê-lo afectado; havia quem nunca o tivesse visto em carne e osso, e, pensando que o seu rosto sempre fora assim, o admirasse ainda mais; mas ninguém tentava tocar-lhe. Todos abriam alas, e ele passava pelo meio da multidão com imponência mas humildemente, alcançando-os com o seu coração e a mente, Era uma comunhão sem palavras. E Saturnino, observando-o dos rostros, interrogava-se.

- A multidão é um fenómeno terrível, não é? - perguntou Sila a Mário nessa noite, ao jantar, na companhia de Públio Rutílio Rufo e de Júlia.

- É um sinal dos tempos - respondeu Rutílio.

- Um sinal de que não estivemos à altura deles - afirmou Mário, encolhendo os ombros. - Roma precisa de descanso. Desde os Caios Gracos que temos tido graves problemas: Jugurta; os Germanos; os Escordiscos; o descontentamento dos Italianos; as sublevações dos escravos; os piratas; as faltas de cereais; a lista é interminável. Precisamos de tréguas, de algum tempo para nos ocuparmos de Roma e não de nós mesmos. Esperemos consegui-lo quando melhorar o abastecimento de cereais.

- Tenho uma mensagem de Aurélia - informou Sila.

Mário, Júlia e Rutílio Rufo olharam-no com curiosidade.

- Costumas vê-la, Lúcio Cornélio? - perguntou Rutílio Rufo, o tio atento.

- Não sejas tagarela, Públio Rutílio, pois não há necessidade disso! Sim, vejo-a de tempos a tempos. Temos de dar-nos com a vizinhança; é por isso que lá vou. Está ali enfiada na Subura, que afinal também é o meu mundo - afirmou Sila, imperturbável. - Ainda lá tenho amigos e por isso Aurélia fica-me em caminho.

- Devia tê-la convidado para jantar! - exclamou Júlia, perturbada pelo lapso. - É fácil esquecermo-nos dela.

- Ela compreende - asseverou Sila. - Não entendas mal as minhas palavras; ela adora o seu mundo. Mas gosta de manter-se um pouco à parte do que se passa no Fórum e é essa a minha tarefa. Públio Rutílio, és tio dela e tentas evitar contar-lhe os sarilhos. Ao passo que eu conto-lhe tudo. E é de uma inteligência surpreendente.

- Qual é a notícia? - perguntou Mário, sorvendo água.

- Vem do seu amigo Lúcio Decúmio, o estranho sujeito que dirige o colégio da encruzilhada na ínsula dela, e reza assim: se consideras que têm estado no Fórum grandes multidões, então ainda não viste nada. No dia das eleições tribunícias, em vez de um mar haverá um oceano.

Lúcio Decúmio tinha razão. Ao nascer do Sol, Caio Mário e Lúcio Cornélio Sila dirigiram-se para o Arx do Capitólio e encostaram-se à parede baixa que separa o topo da escarpa das Lautúmias; que dá para o Fórum Romano. Tanto quanto conseguiam ver, havia um oceano de gente, denso, desde o Clivus Capitolinus até à Vélia: ordenado, sombrio, ameaçador, de cortar a respiração.

- Porquê? - perguntou Mário.

- De acordo com Lúcio Decúmio, estão aqui para fazer pressão. Os Comícios vão reunir-se para eleger os novos tribunos da plebe, ouviram dizer que Saturnino vai candidatar-se, e pensam que é ele a melhor esperança que têm de encher a barriga. A fome ainda mal começou, Caio Mário. E eles não querem que haja fome - disse Sila sem mudar o tom de voz.

- Mas eles não podem influenciar o resultado de uma eleição tribal, nem das eleições das Centúrias! Quase todos têm de pertencer às quatro tribos citadinas.

- É verdade. E não haverá muitos eleitores das trinta e uma tribos rurais além dos que moram em Roma - acrescentou Sila. - Hoje em dia o ambiente não é de molde a tentar os eleitores rurais. Por isso, só alguns deles irão votar. Eles sabem-no; não estão aqui para votar. Só cá estão para que nos apercebamos da sua presença.

- Foi ideia do Saturnino? - perguntou Mário.

- Não. A multidão de Saturnino foi a que viste nas Calendas e em todos os dias que se lhe seguiram. Insultuosos e blasfemos, é como lhes chamo. Não passam de escumalha. Frequentadores de colégios de encruzilhadas, ex-gladiadores, ladrões e descontentes, crédulos empregados de loja sofrendo com a pobreza, homens livres cansados de curvar-se perante os seus donos, e muitos que pensam que ganhariam um ou dois denários ao fazer Lúcio Apuleio tribuno da plebe.

- São mais do que isso - afirmou Mário. - São os partidários dedicados do primeiro homem que se colocar nos rostros e os levar a sério Mário mudou de posição, apoiando-se no pé esquerdo entorpecido. - Mas a gente que se encontra aqui hoje não tem a ver com Lúcio ApuleiO Saturnino. Não têm a ver com ninguém. Deuses, havia mais cimbros no campo de Vercelas do que os romanos que vejo aqui! E eu não tenho exército. Só tenho uma toga debruada a púrpura: o que é uma ideia tranquilizante.

- É, com efeito - concordou Sila.

- Mas não sei... Talvez a minha toga debruada a púrpura seja o exército de que preciso. Subitamente, Lúcio Cornélio, vejo Roma com outros olhos. Eles vieram hoje aqui para se mostrarem; mas estão todos os dias em Roma, nas suas ocupações. Dentro de uma hora, podem estar de novo ali à frente. E julgamos que somos nós que os governamos?

- E governamo-los. Eles não podem governar-se a si mesmos; colocam-se à nossa guarda. Mas Caio Graco deu-lhes pão barato a provar e os edis deram-lhes jogos a ver. Agora, aparece Saturnino e promete-lhes pão barato quando grassa a fome. Mas não pode cumprir a promessa e eles já começam a suspeitar da verdade. Foi por isso que vieram mostrar-se-lhe durante as eleições - comentou Sila.

Mário encontrara a sua metáfora.

- São um touro gigantesco mas amigável. Ao vir ter contigo quando tens um balde na mão, a única coisa que lhe interessa é a comida que sabe que está dentro do balde. Mas quando descobre que o balde está vazio, não se volta irado para marrar em ti; deduz muito simplesmente que escondeste a comida dentro de ti, e esmaga-te até à morte à procura dela sem sequer reparar que te transformou num monte de sangue debaixo dos pés.

- Saturnino traz um balde vazio - comentou Sila.

- Precisamente - disse Mário, e afastou-se da parede. - Vem, Lúcio Cornélio, vamos pegar o touro pelos cornos.

- E esperemos que não seja bravo!

Ninguém no meio da enorme multidão dificultou a passagem aos senadores e aos cidadãos com consciência política que lançavam os seus votos nos Comícios. Enquanto Mário subiu aos rostros, Sila ficou nas escadas do Senado com os outros senadores patrícios. Naquele dia, os eleitores da Assembleia da Plebe formavam uma ilha no oceano de espectadores silenciosos: uma ilha afundada, com os rostros semelhantes a uma rocha de superfície plana acima do vão dos Comícios e da linha do oceano. Claro que era esperada a escumalha de milhares de homens de Saturnino, o que levara muitos dos senadores e eleitores habituais a esconder facas e paus sob as togas, especialmente o pequeno grupo de jovens boni conservadores de Cepião Júnior. Ali estavam todos os humildes de Roma em protesto. As facas e os paus revelaram-se subitamente um engano.

Um a um, apresentaram-se os vinte candidatos à eleição como tribunos da plebe, enquanto Mário se mantinha alerta. O primeiro a apresentar-se foi o tribuno que presidia às eleições, Lúcio Apuleio Saturnino.

E a multidão começou a aclamá-lo com um barulho ensurdecedor, recepção que muito o surpreendeu, como Mário pôde reparar, mudando para um local de onde pudesse ver bem o rosto de Saturnino. Saturnino pensava, e os seus pensamentos eram claros: que partidários para um homem! O que não poderia fazer com trezentos mil romanos humildes às costas? Quem teria alguma vez a coragem de afastá-lo do tribunato da plebe quando este monstro o aclamava, mostrando a sua aprovação?

Os que apresentaram as candidaturas a seguir a Saturnino foram recebidos com um silêncio indiferente; Públio Fúrio; Quinto Pompeio Rufo, dos Pompeios de Piceno; Sexto Tício, cujas origens eram samnitas; e Marco Pórcio Catão Saloniano, ruivo de olhos verdes e ar extremamente aristocrático, neto de Catão, o Censor, camponês de Túsculo, e bisneto de um escravo celta.

Por fim apresentou-se Lúcio Equício, o autodesignado filho bastardo de Tibério Graco, a quem Metelo Numídico, quando era censor, tentara excluir das listas do Ordo Equester. A turba começou de novo a aclamar com grande entusiasmo; ali estava uma relíquia do amado Tibério Graco. E Mário descobriu a exactidão da sua metáfora do boi gigantesco e meigo, pois a multidão começou a avançar em direcção a Lúcio Equício, que se encontrava mais acima, na rocha dos rostros, sem prestar atenção ao seu poder. A vaga inexorável esmagava os que se encontravam nos Comícios e nas proximidades uns contra os outros. Pequenas ondas de pânico surgiram por entre os eleitores ao experimentarem o sentido sufocante de terror impotente que sentem todos os homens ao encontrarem-se no centro de uma força à qual não conseguem resistir.

Enquanto todos ficaram como que suspensos, o entorpecido Caio Mário avançou rapidamente e elevou os braços com as palmas das mãos voltadas para fora num gesto que ordenava: ALTO, ALTO, ALTO! A turba parou imediatamente, a pressão diminuiu um pouco, e agora as aclamações eram para Caio Mário, o Primeiro Homem de Roma, o Terceiro Fundador de Roma, o Conquistador dos Germanos.

- Depressa, imbecil! - vociferou para Saturnino, que parecia extasiado, fascinado pelo ruído que emanava das gargantas que aclamavam. Diz que ouviste trovejar... É urgente pôr termo à sessão! Se não os tirarmos dos Comícios, a multidão é tão grande que os mata! - Depois, ordenou aos arautos que fizessem soar as trompetas, e no meio do súbito silêncio, elevou de novo as mãos. - Trovoada! - gritou. - A votação far-se-á amanhã! Ide para casa, povo de Roma! Ide para casa, ide para casa!

E a multidão partiu.

Felizmente, a maioria dos senadores abrigara-se na sua Cúria, aonde Mário foi juntar-se-lhes logo que pôde. Como Mário reparou, Saturnino descera dos rostros e avançava corajosamente para o centro da turba, sorrindo e estendendo os braços como um daqueles místicos da Pisidia que acreditavam na imposição de mãos. E Gláucia, o pretor urbano? Subira aos rostros, e ficara a observar Saturno por entre a multidão, com o rosto iluminado por um enorme sorriso.

As caras que se voltaram para Mário quando este entrou na Cúria estavam mais pálidas do que iluminadas e faziam esgares em vez de sorrisos.

- E que grande salganhada esta! - exclamou Escauro Princeps Senatus, empertigado como de costume, mas visivelmente um pouco assustado. Mário observou os grupos de Pais Conscritos e disse, com grande firmeza:

- Ide para casa, por favor! A multidão não vos maltratará. Mas subi

o Argileto, mesmo que vos dirigeis para o Palatio. Se as vossas razões de queixa se limitarem à enormidade do percurso até casa, estareis bem. Agora ide! Ide!

Mário deu uma palmada no ombro daqueles que queria que ficassem: apenas Sila; Escauro, Metelo Caprário, o Censor; Aenobarbo Pontifex Maximus; Crasso Orador e o primo deste, Cévola, que eram os edis curuis. Como Mário notou com interesse, Sila foi ter com CepiãoJúnior e Metelo Bacorinho, sussurrou-lhes qualquer coisa e lançou-lhes o que pareciam palmadas equivocamente afectuosas no ombro quando eles abandonaram o edifício. ”Tenho de descobrir o que se passa”, disse Mário de si para si, ”mas mais logo. Quando tiver tempo. Se chegar a fazê-lo, a avaliar pela confusão.”

- Hoje vimos uma coisa inédita - começou Mário. - Assustador, não acham?

- Não me parece que tenham más intenções - afirmou Sila.

- Nem eu - replicou Mário, - Mas são ainda o touro gigantesco que não sabe a força que tem - Mário acenou para o seu escriba-chefe. Arranja alguém para presidir ao Fórum. Quero aqui o presidente do Colégio de Lictores imediatamente.

- O que sugeres que façamos? - perguntou Escauro. - Que adiemos as eleições da plebe?

- Não, até podemos terminá-las de uma vez por todas - declarou Mário positivamente. - Neste momento, o nosso touro é dócil, mas quem sabe a que ponto poderá chegar a sua fúria à medida que a fome se for agravando? Não vamos esperar até ter de pôr feno à volta dos cornos para avisar que arremeta, pois seremos atingidos no peito se ficarmos à espera. Mandei chamar o lictor principal porque penso que o nosso touro vai ser intrujado amanhã por uma cancela que atravessaria com facilidade. Mandarei os escravos públicos trabalhar toda a noite para montar uma barricada de aspecto inofensivo a toda a volta do vão dos Comícios e o terreno entre os Comícios e as escadas do Senado: o que costumamos montar no Fórum para isolar a área de combate dos espectadores durante os jogos fúnebres, porque o reconhecerão e não o tomarão por uma manifestação de medo da nossa parte. Depois, colocarei todos os lictores de Roma dentro da barricada, de túnicas debruadas em vez da toga, mas tendo por única arma bordões. Seja o que for que façamos, não podemos dar ao touro a ideia de que é maior e mais forte do que nós; os touros pensam, como sabem! E amanhã, levaremos a cabo as eleições tribunícias; pouco me importa que estejam aqui apenas trinta e cinco homens para votar. Hoje, quando se dirigirem para casa, irão de porta em porta aconselhar os senadores das vizinhanças a aparecerem amanhã para votar. Assim, garantiremos a presença de um membro de cada tribo, no mínimo. Pode ser um voto fraco, mas não deixa de ser um voto. Entendido?

- Entendido - respondeu Escauro.

- Onde esteve hoje Quinto Lutácio? - perguntou Sila a Escauro.

- Esteve doente, suponho - replicou Escauro. - Deve ser verdade; coragem não lhe falta.

Mário olhou para Metelo Caprário, o Censor.

- Tu, Caio Cecílio, tens a pior tarefa amanhã - avisou Mário - porque quando Equício se apresentar como candidato, terei de perguntar-te se lhe permites que se candidate. O que irás responder?

Caprário não hesitou.

- Responderei que não, Caio Mário. Um homem que foi escravo tornar-se tribuno da plebe? É impensável.

- Muito bem, é tudo, obrigado - disse Mário. - Ide, e trazei amanhã os nossos trémulos membros do Senado. Lúcio Cornélio, fica. Como vou pôr os lictores a teu cargo, é conveniente que estejas aqui quando chegar o superior deles.

A multidão voltou ao Fórum ao nascer do dia, encontrando o vão dos Comícios isolado pelas vedações simples de corda e postes que se viam sempre que se realizavam no Fórum jogos fúnebres de gladiadores. De poucos em poucos metros havia um lictor de túnica carmesim armado com um bordão comprido e grosso dentro do perímetro da barricada. Não tinha nada de mal. E quando Mário avançou e berrou a sua explicação, que não queria que ninguém fosse esmagado inadvertidamente, foi aclamado com o mesmo furor do dia anterior. O que a multidão não podia ver era o grupo que se encontrava no interior da Cúria Hostília, aí colocado por Sila muito antes do amanhecer: os seus cinquenta jovens membros da Primeira Classe, todos de couraças e elmos, espadas e punhais embainhados e transportando escudos. CepiãoJúnior, excitado, era porém apenas o seu vice-chefe, pois no comando estava o próprio Sila.

- Só avançaremos se eu o ordenar - ordenou Sila -, e não estou a brincar. Se alguém se mexer sem a minha ordem, matá-lo-ei.

Nos rostros estava tudo pronto; no vão dos Comícios havia um número de eleitores surpreendentemente grande reunido com cerca de metade do Senado, enquanto os senadores patrícios permaneciam, como sempre, nas escadas do Senado. Entre eles estava Catulo César, com um ar suficientemente doente para merecer uma cadeira; também se encontrava com eles o censor Caprário, outro homem cujo estatuto plebeu devia implicar a sua presença nos Comícios, mas que queria ficar onde pudesse ser visto por todos.

Quando Saturnino voltou a apresentar a sua candidatura, a turba aclamou-o histericamente; era visível que a sua imposição do dia anterior operara milagres. Tal como antes, os outros candidatos foram recebidos em silêncio. Até que, em último lugar, apareceu Lúcio Equício.

Mário virou-se para encarar as escadas do Senado, e elevou a sua única sobrancelha móvel numa pergunta muda a Metelo Caprário; e Metelo Caprário assentiu enfaticamente. Teria sido impossível fazer a pergunta em voz alta, pois a multidão continuava a aclamar Lúcio Equício como se não tencionasse parar.

Os arautos fizeram soar as trompetas, Mário avançou, fez-se silêncio.

- Este homem, Lúcio Equício, não pode concorrer às eleições para tribuno da plebe! - gritou Mário o mais alto que pôde. - Há uma ambiguidade acerca do seu estatuto de cidadão que o censor deve esclarecer antes de Lúcio Equício poder candidatar-se a qualquer cargo público ligado ao Senado e Povo de Roma!

Saturnino passou apressadamente por Mário e colocou-se no extremo dos rostros.

- Nego qualquer irregularidade!

- Declaro em nome do censor que existe uma irregularidade - informou Mário, impassível.

Então, Saturnino virou-se para apelar à multidão.

- Lúcio Equício é tão romano como qualquer de vós! - gritou. Olhem bem para ele! Um novo Tibério Graco!

Mas Lúcio Equício estava a observar o vão dos Comícios, um lugar não visível para a multidão, por ficar abaixo do nível desta, mesmo para os que se encontravam na frente. Aí, os filhos de senadores e os próprios senadores tiraram as facas e cacetes que traziam debaixo das vestes e avançaram como se quisessem arrastar Lúcio Equício para o meio deles.

Lúcio Equício, corajoso veterano de dez anos nas legiões - pelo menos de acordo com o que ele próprio contava - encolheu-se, virou-se para Mário e agarrou-se-lhe ao braço direito.

- Ajuda-me! - pediu, num queixume.

- Gostaria de ajudar-te com a ponta do pé, agitador imbecil - resmungou Mário. - No entanto, o assunto do dia é acabar de vez com esta eleição. Podes candidatar-te, mas se ficares nos rostros alguém vai linchar-te. O melhor que posso fazer para salvar-te a pele é pôr-te nas celas das Lautúmias até todos terem ido para casa.

Havia duas dezenas de lictores nos rostros, uma dúzia trazendo os fasces por pertencerem ao cônsul Caio Mário; o cônsul Caio Mário fê-los formar à volta de Lúcio Equício e marchar em direcção às Lautúmias, sendo o seu progresso através da multidão marcado por uma espécie de divisão do oceano de gente em resposta à autoridade inerente àqueles simples feixes de varas atados com cordões carmesim.

”Não posso acreditar”, pensou Mário, seguindo com os olhos a divisão do oceano de gente. Ao ouvi-los aclamar, pensar-se-ia que adoram o homem como não adoram nenhum deus. Deve parecer-lhes que prendi a criatura. Mas o que fazem? O que sempre, mas sempre fazem ao verem uma fila de lictores a marchar com fasces aos ombros e qualquer toga debruada a púrpura pavoneando-se atrás deles: afastam-se para dar passagem à majestade de Roma. Nem por um Lúcio Equício destruirão o poder dos feixes e da toga debruada a púrpura. Ali vai Roma. O que é um Lúcio Equício, quando tiver tudo terminado? Uma cópia patética de Tibério Semprónio Graco, a quem amavam muitíssimo. Não aclamam Lúcio Equício: aclamam a memória de Tibério Graco!”

E um novo tipo de emoção cheia de orgulho crescia em Caio Mário à medida que ia vendo aquela espinha dorsal de lictores limpar o oceano de romanos humildes; orgulho nos modos antigos e tradições de seiscentos e cinquenta e quatro anos, um orgulho ainda tão poderoso que podia virar uma maré maior do que a invasão germana apenas com o simples esforço de empurrar meia dúzia de feixes de varas. ”E aqui estou eu”, pensou Caio Mário, ”de toga debruada a púrpura, sem receio de nada por a ter vestida, e por saber que sou mais importante do que qualquer rei do mundo. Porque não tenho nenhum exército, e dentro desta cidade não há machados atravessados nas varas, nem um guarda-costas de espadas; e no entanto, afastam-se devido aos meros símbolos da minha autoridade, alguns paus e um pedaço de tecido sem forma, orlado com menos púrpura do que eles algum dia verão em qualquer inominável saltatrix tonsa que exiba os seus símbolos. Sim, preferia ser cônsul de Roma a ser rei do mundo.”

Os lictores regressaram das Lautúmias, e pouco depois voltou Lúcio Equício, a quem a multidão gentilmente salvou das celas e colocou de novo nos rostros com o mínimo de algazarra, quase como que pedindo desculpa, segundo pareceu a Caio Mário. E aí ficou ele, a tremer e num estado lastimável, desejando estar em qualquer outro lugar menos ali. Para Mário, a mensagem da turba era bem explícita: dêem-me de comer, tenho fome, não me escondam a comida.

Entretanto, Saturnino prosseguia com a eleição o mais depressa que podia, ansioso por acabar antes que acontecesse alguma calamidade. Tinha a cabeça cheia de sonhos em relação ao futuro, ao poder e majestade daquela multidão, e à forma como lhe mostrava a sua adoração. Aclamariam Lúcio Equício só por ele ser parecido com Tibério Graco? Aclamariam Caio Mário, aquele velho imbecil, por ter salvo Roma dos bárbaros? Ah, mas não aclamavam Lúcio Equício ou Mário do modo como o aclamavam a ele! E que material para um homem trabalhar: esta multidão não tinha nada a ver com a escumalha dos antros da Subura! Compunha-se de gente respeitável com as barrigas vazias mas cujos princípios se mantinham intactos.

Um a um, os candidatos avançaram, e as tribos votaram, enquanto os verificadores escrevinhavam apressados e tanto Mário como Saturnino observavam; até ao momento em que, por fim, chegou a hora de se ocuparem de Lúcio Equício. Mário olhou para Saturnino; Saturnino devolveu-lhe o olhar. Mário lançou um olhar para as escadas do Senado.

- O que queres que eu diga desta vez, Caio Cecílio Metelo Caprário Censor? - exclamou Mário. - Pretendes que continue a negar a este homem o direito de se candidatar às eleições, ou retiras a tua objecção?

Caprário lançou um olhar de impotência a Escauro, que olhou para Catulo César, de rosto cor de cinza, que por sua vez fitou Aenobarbo Pontifex Maximus, que se recusou a olhar para quem quer que fosse. Seguiu-se uma longa pausa; a multidão observava em silêncio, sem fazer a menor ideia do que se passava.

- Que se candidate! - gritou Metelo Caprário.

- Que se candidate - comunicou Mário a Saturnino.

E quando foram contados os votos, Lúcio Apuleio Saturnino surgiu em primeiro lugar para um terceiro mandato como tribuno da plebe; Catão Saloniano, Quinto Pompeio Rufo, Públio Fúrio e Sexto foram eleitos; e, em segundo lugar, apenas três ou quatro votos atrás de Saturnino, o ex-escravo Lúcio Equício foi eleito tribuno da plebe.

- Que colégio servil temos este ano! - exclamou Catulo César, com ar de troça. - Não só um Catão Saloniano mas também um homem livre! A República morreu - afirmou Aenobarbo Pontifex Maximus, lançando um olhar de ódio a Metelo Caprário.

- O que mais podia fazer? - baliu, o Metelo Bode.

Apareciam outros senadores, e a guarda armada de Sila, desprovida dos seus aprestos, emergiu do interior da Cúria. As escadas do Senado pareciam ser o lugar mais seguro, embora começasse a ser óbvio que a multidão voltava para casa depois de ter visto eleger os seus heróis. Cepião Júnior cuspiu na direcção da multidão.

- Adeus à escumalha por hoje! - proferiu de rosto contorcido. Olhem para eles! Ladrões, assassinos, violadores das próprias filhas!

- Não são escumalha, Quinto Servílio - emendou Mário severamente.

- São romanos e são pobres, mas não são ladrões e assassinos. E já estão fartos do milho miúdo e dos nabos. É melhor desejares que o amigo Lúcio Equício não os provoque. Eles têm-se portado muito bem ao longo destas malditas eleições, mas isso pode mudar à medida que o milho miúdo e os nabos forem ficando cada vez mais caros nos mercados.

- Oh, não temos de preocupar-nos com isso! - disse Caio Mémio animadamente, contente por os tribunos terem sido eleitos na devida altura e a sua candidatura conjunta com Marco Antônio Orador parecer mais prometedora do que nunca. - As coisas hão-de melhorar daqui a uns dias. Marco Antônio informou-me de que os nossos agentes na Província da Ásia conseguiram comprar uma grande quantidade de trigo algures a norte do Euxino. A primeira frota que transporta o trigo deve chegar a Putéolos um destes dias.

Todos olharam para ele, boquiabertos.

- Bem - disse Mário, esquecido de que nunca mais poderia fazer um sorriso irónico, do que resultou uma careta medonha -, todos sabemos que tens o dom de prever o futuro do abastecimento de cereais, mas mais exactamente, como é que tomaste contacto com esta informação quando eu, o cônsul sénior, e Marco Emílio, aqui presente, Princeps Senatus e curator annonae!, não estamos a par dela?

Cerca de vinte pares de olhos estavam fixos no seu rosto; Mémio engoliu em seco.

- Não é segredo, Caio Mário. O assunto surgiu numa conversa, quando Marco Antônio regressou da última viagem a Pérgamo. Encontrou-se aí com alguns dos nossos agentes encarregados da compra de cereais e foram eles que lho contaram.

- E porque é que Marco Antônio não achou por bem informar-me, já que sou o curador do abastecimento de cereais? - perguntou Escauro com frieza.

- Porque, segundo suponho, tal como eu, deve ter partido do princípio de que estarias a par. Se os agentes escreveram, por que motivo não havias de estar a par?

- As cartas não chegaram - comentou Mário, piscando o olho a Escauro. - Posso agradecer-te, Caio Mémio, por teres trazido esta excelente notícia?

- É-o, de facto - disse Escauro, perdendo o mau humor.

- Para nosso próprio bem, esperemos que não rebente nenhuma tempestade que afunde os cereais no mar Central - afirmou Mário, que não era avesso à ideia de falar com alguns senadores e decidira que a multidão já estava suficientemente dispersa para ele poder ir para casa. - Dignos membros do Senado, encontrar-nos-emos aqui amanhã para as eleições questoriais. E no dia seguinte, iremos até ao Campo de Marte para ver os candidatos a cônsules e pretores apresentarem as suas declarações. Desejo-vos um bom dia.

- És um cretino, Caio Mémio, - disse Catulo César, ameaçador, da sua cadeira curul.

Caio Mémio resolveu que não precisava de discutir com um membro da alta aristocracia, e saiu atrás de Caio Mário, decidido a ir visitar Marco Antônio à sua villa alugada no Campo de Marte, para informá-lo dos acontecimentos do dia. Ao sair bruscamente, ocorreu-lhe a forma como ele e Marco Antônio poderiam obter mais mérito entre os eleitores. Garantiria que os seus agentes passassem pelas Centúrias quando se reunissem para testemunhar a declaração dos candidatos curuis daí a dois dias: podiam espalhar a notícia da chegada das frotas de cereais como se fossem ele e Marco Antônio os responsáveis por ela. A Primeira e Segunda Classes poderiam deplorar o custo dos cereais baratos ao Estado, mas depois de ver aquela multidão no Fórum, Mémio achou que deveriam considerar-se gratos ao pensar que o pão feito com esses cereais baratos mataria a fome aos Romanos.

Na madrugada do dia da apresentação dos candidatos na saepta, dirigiu-se do Palatino para o Campo de Marte, acompanhado por um ajuntamento exaltado de clientes e amigos, todos tendo a certeza de que ele e Antônio seriam admitidos. Alegres e divertidos, atravessaram com vivacidade o Fórum Romano na brisa fresca daquela manhã de fins de Outono, tremendo um pouco quando passaram pela sombra escura da Porta Fontinal, mas tendo a certeza de que a vitória os esperava na planície soalheira que se espalhava abaixo do Arx. Caio Mémio seria cônsul.

Outros homens caminhavam em direcção à saepta, em grupos, aos pares e trios, mas poucos seguiam sozinhos; um homem das classes com importância suficiente para votar nas eleições curuis gostava de estar acompanhado em público, pois isso aumentava a sua dignitas.

No ponto em que a estrada que descia o Quirinal se cruzava com a Via Larga, Caio Mémio encontrou cerca de cinquenta homens que escoltavam Caio Servílio Gláucia.

Espantado, Mémio deteve-se.

- Aonde pensas que vais nesse trajo? - perguntou, mirando a toga candida de Gláucia. Era especialmente descolorada ao sol durante vários dias, e a seguir perfeitamente branqueada com aplicações copiosas de giz em pó, a toga candida que só podia ser usada por quem se candidatasse a eleições para um cargo público.

- Vou candidatar-me ao consulado - informou Gláucia.

- Não vais, não - contrapôs Mémio.

- Ai isso é que vou!

- Caio Mário disse que não podias candidatar-te.

- Caio Mário disse que eu não podia candidatar-me - imitou Gláucia em voz piegas; depois virou ostensivamente as costas a Mémio e começou a falar com os seus seguidores em voz alta com tons estridentes de homossexual. - Caio Mário disse que eu não podia candidatar-me! Bem! Devo dizer que é um critério um pouco rigoroso que os verdadeiros homens não possam candidatar-se mas os homossexuais Já possam fazê-lo!

A troca de palavras fizera reunir espectadores, o que não era de estranhar naquelas circunstâncias, pois uma parte do divertimento geral das eleições eram as disputas entre candidatos rivais; o facto de esta contenda ter ocorrido antes de chegarem ao campo aberto da saepta pouca diferença fazia para o grupo de espectadores, que aumentava à medida que se lhe juntavam homens vindos da cidade até à Via Larga.

Dolorosamente consciente do seu público, Caio Mémio sofria. Toda a vida sofrera a maldição de ter demasiado bom aspecto, com o escárnio inevitável que implicava: era demasiado belo, não era de confiança, gostava de rapazes, era superficial, etc., etc. Agora Gláucia resolvera troçar dele em frente de todos aqueles homens, daqueles votantes. Oh, não era preciso lembrá-los da velha acusação de homossexual, principalmente naquele dia!

E, compreensivelmente, Caio Mémio enfureceu-se. Antes que alguma das pessoas que estavam com ele pudesse prever a sua intenção, avançou, pôs a mão no ombro esquerdo de Gláucia e arrancou a toga antiga. Então, quando Gláucia se virou para ver quem estava a atacá-lo, Mémio deu-lhe um soco valente na orelha esquerda. Gláucia caiu e Mémio lançou-se em cima dele, e ambos tinham agora as togas sujas e enegrecidas. Mas os homens de Gláucia tinham escondidos nas vestes paus e mocas que agora saíam à cena. Os homens de Gláucia misturaram-se com as fileiras dos desorientados companheiros de Mémio, lutando impetuosamente com furiosa satisfação. O grupo de Mémio desintegrou-se logo, e todos os seus membros desapareceram em várias direcções em busca de auxílio.

Numa atitude típica de observadores não envolvidos nos acontecimentos, o público não deu um passo para ajudar, limitando-se a ficar a ver com um interesse ávido; para lhes fazer justiça, ninguém ali sonhava que o que estava a ver não fosse uma mera rixa entre candidatos. As armas constituíram uma surpresa, mas não era inédito os apoiantes transportarem-nas.

Dois homens fortes levantaram Mémio do chão e seguraram-no a meio dos dois, debatendo-se furiosamente, enquanto Gláucia se levantou e deu um pontapé na sua toga destruída. Gláucia não disse uma palavra sequer. Apanhou um pau de qualquer pessoa que estava ao seu lado, e depois fitou Mémio longamente. Levantou o pau, seguro com as duas mãos como um malho; e bateu com ele na cabeça extremamente bela de Caio Mémio. Ninguém tentou interferir quando Gláucia se dobrou para acompanhar a queda de Mémio e continuou a bater repetidas vezes naquela cabeça que deixara de ser bela. Só quando a reduziu a polpa e miolos e salpicos é que Gláucia terminou o ataque.

Um olhar de frustração incrédula e ofendida surgiu então no rosto de Gláucia; deitou fora o pau ensanguentado e olhou para o seu amigo Caio Cláudio, que observava, lívido.

- Escondes-me até que possa fugir? - perguntou. Cláudio assentiu, sem conseguir dizer palavra,

A assistência começava a murmurar e avançar para o grupo, enquanto os outros homens corriam da saepta; Gláucia virou costas e correu em direção ao Quirinal, seguido pelos seus companheiros.

A notícia chegou a Saturnino quando este percorria a saepta de alto a baixo pedindo votos para a candidatura ilegal de Gláucia. Alguns olhares de ira escondida forneciam-lhe uma indicação dos sentimentos em relação à notícia do assassínio de Mémio, e ele estava marcado como amigo de Gláucia. Entre os jovens senadores e filhos de senadores começava a ouvir-se um zumbido furioso, enquanto alguns filhos dos cavaleiros mais poderosos se reuniam em torno dos seus colegas do Senado, com o misterioso Sila entre eles.

- Parece-me melhor sairmos daqui - sugeriu Caio Saufeio, eleito questor urbano apenas um dia antes.

- Tens razão, também me parece - concordou Saturnino, cada vez menos à vontade com a raiva que sentia à sua volta.

Acompanhado pelos seus homens de confiança do Piceno, Tiro Labieno e Caio Saufeio, Saturnino abandonou a saepta num ápice. Sabia aonde podia ter ido Gláucia: para casa de Caio Cláudio no Quirinal; mas quando lá chegou, Saturnino encontrou a porta fechada e trancada. Só depois de ter berrado consideravelmente é que Caio Cláudio a abriu e deixou entrar os três amigos.

- Onde está ele? - inquiriu Saturnino.

- No gabinete - respondeu Cláudio, que estivera a chorar.

- Tiro Labieno - pediu Saturnino -, vais chamar Lúcio Equício? Precisamos dele; a multidão acha-o maravilhoso.

- O que estás a tramar? - perguntou Labieno.

- Contar-te-ei quando me trouxeres Lúcio Equício.

Lívido, Gláucia estava sentado no gabinete de Caio Cláudio; quando Saturnino entrou, Gláucia olhou para ele mas não falou.

- Porquê, Caio Servílio? Porquê? Gláucia estremeceu.

- Não queria fazê-lo - afirmou. - Só que perdi o controlo.

- E perdeste a nossa hipótese em Roma - disse Saturnino.

- Perdi o controlo - repetiu Gláucia.

Passara a noite anterior à apresentação da candidatura naquela mesma casa, pois Caio Cláudio dera uma festa em sua honra; mais uma criatura do que homem, Caio Cláudio admirava o arrojo de Gláucia ao desafiar as provisões da lex Villia, e achou que a melhor forma de mostrar a sua admiração era usar parte do muito dinheiro que tinha para dar a Gláucia uma festa de despedida antes de ele seguir o caminho eleitoral. Os cinquenta homens que acompanharam Gláucia no trajecto até à saepta foram convidados para a festa, mas não havia mulheres entre eles; o resultado fora uma comédia notável apenas pelo exagero do consumo de álcool e pela biliosidade. De madrugada ninguém se sentia muito bem, mas tinham de ir com Gláucia até à saepta para dar-lhe apoio; parecera-lhes boa ideia levarem consigo paus e bordões. Sentindo-se tão mal como os outros, Gláucia fez um vomitório e tomou um banho, envolveu-se na toga branqueada e saiu com os olhos enfiados contra os mil martelinhos de uma grande dor de cabeça.

Encontrar o sorridente e imaculado Mémio, cuja bela nuca adquirira já a pose da vitória, era mais do que os nervos desgastados de Gláucia podiam suportar. Por isso, respondeu à oposição de Mémio com um insulto cruel, e quando Mémio lhe rasgou a toga, Gláucia perdeu todo o controlo. Agora o mal estava feito e não podia voltar atrás. Tudo estava em ruínas à volta da cabeça destruída de Mémio.

A presença silenciosa de Saturnino no gabinete era outro choque; Gláucia começou a compreender a enormidade do que fizera, as suas ramificações e repercussões. Não só destruíra a sua carreira, como era provável que também tivesse destruído a do seu melhor amigo. E isso é que Gláucia não suportava.

- Diz qualquer coisa, Lúcio Apuleio! - gritou.

Piscando os olhos, Saturnino emergiu do estado hipnótico em que se encontrava.

- Penso que só nos resta uma alternativa - disse calmamente. - Temos de trazer a multidão para o nosso lado e usá-la para fazer o Senado dar-nos o que queremos: cargos seguros, circunstâncias atenuantes para ti, a garantia de que nenhum de nós será processado. Mandei Tito Labieno Ir buscar Lúcio Equício, pois é mais fácil manejar as multidões se ele estiver presente - suspirou, cruzou as mãos. - Mal Labieno regresse, sairemos para o Fórum. Não há tempo a perder.

- Tenho de ir? - perguntou Gláucia.

- Não. Ficarás aqui com os teus homens e mandarás Caio Cláudio armar os seus escravos. E não deixes entrar ninguém antes de ouvires a minha voz, ou a de Labieno ou Saufeio - Saturnino levantou-se. - Até ao cair da noite, terei de ter Roma na mão. Caso contrário, será também o meu fim.

- Abandona-me! - disse Gláucia subitamente. - Não há necessidade disto! Horroriza-te com o que eu fiz e coloca-te à frente do grupo que exigirá a minha condenação! É a única hipótese. Roma não está preparada para uma nova forma de governo! A multidão está esfomeada, é certo. Está farta do mau governo. E quer justiça, é verdade, Mas não basta para partir cabeças e cortar pescoços. Podem aclamar-te até ficarem roucos. Mas não matarão por ti.

- Enganas-te - emendou Saturnino, que se sentia um pouco como se andasse sobre lã: leve, livre, invulnerável. - Caio Servílio, todos os homens que enchem o Fórum são em maior número e mais poderosos do que um exército! Não viste como os políticos caíram de joelhos? Não viste Metelo Caprário recuar face a Lúcio Equício? Não houve derramamento de sangue! Pode levar-se o Fórum ao rubro com os berros de uma centena de homens, e havia centenas de milhares deles! Ninguém irá desafiar aquela multidão, mas não será necessário armá-los ou mandá-los esmagar cabeças ou cortar pescoços. O seu poder reside no grande número! É uma massa que posso controlar, Caio Servílio! Só preciso da minha oratória, uma prova da minha dedicação à causa deles e um ou dois acenos de Lúcio Equício! Quem resiste ao homem que comanda a multidão como um gigantesco mecanismo de cerco? Os homens de palha do Senado?

- Caio Mário - afirmou Gláucia.

- Não, nem mesmo Caio Mário! E de qualquer modo ele está do nosso lado!

- Não está - replicou Gláucia.

- Poderá pensar que não está, Caio Servílio, mas o facto de a multidão o aclamar do mesmo modo que me aclama a mim e a Lúcio Equício fará os políticos e todos os membros do Senado vê-lo à mesma luz com que nos vêem! Não me importo de partilhar o poder com Caio Mário... por algum tempo. Está a ficar velho; teve uma apoplexia. Quem estranharia que morresse de outra apoplexia? - perguntou Saturnino com ansiedade.

Gláucia sentia-se melhor; endireitou-se na cadeira e olhou para Saturnino com uma mistura de dúvida e esperança.

- Poderá resultar, Lúcio Apuleio? Achas mesmo que pode resultar? Saturnino esticou os braços em direcção ao tecto, vibrando confiante e com um sorriso de alegria feroz estampado no rosto.

- Há-de resultar, Caio Servílio. Deixa tudo comigo.

Lúcio Apuleio Saturnino seguiu da casa de Caio Cláudio para os rostros no Fórum Romano, acompanhado por Labieno, Saufeio, Lúcio Equício e cerca de dez ou doze apoiantes próximos. Cortou caminho pelo Arx, sentindo que devia entrar na arena por cima, como um semideus que descesse de uma região elevada cheia de templos e divindades; por isso a sua primeira visão do Fórum foi do topo das escadas das Gemonias, que tencionava descer como um rei. O choque fê-lo parar. A multidão! Onde estava a multidão? Partira depois da eleição dos questores do dia anterior; e como nada mais iria acontecer no Fórum, não vira motivo para regressar. E como todos os acontecimentos do dia decorriam no campo verde da saepta, não se via um único membro do Senado.

Porém, o Fórum não estava deserto; talvez dois ou três mil membros da pior escumalha de Saturnino caminhavam de um lado para o outro, gritando e brandindo os punhos, exigindo cereais de graça caídos do céu. A desilusão que tudo aquilo causava por pouco não trouxe as lágrimas à superfície; depois, Saturnino olhou com firmeza para aqueles homens meio-destroçados que importunavam no extremo mais baixo do Fórum, e tomou uma decisão. Aqueles serviriam. Teriam de servir. Iria usá-los como ponta-de-lança; com eles, poderia arrastar a enorme multidão de volta para o Fórum. Porque faziam parte da multidão, enquanto ele não.

Desejando ter arautos que anunciassem a sua chegada, Saturnino desceu as Escadas das Gemónias e caminhou, com o pequeno grupo dos seus homens de confiança, a passos largos para os rostros com o objectivo de chamar a turba a reunir para escutar Lúcio Apuleio.

- Quirites! - foi como Saturnino se lhes dirigiu por entre as aclamações ruidosas, de braços estendidos, pedindo-lhes silêncio. - Quirites, o Senado de Roma está prestes a assinar as nossas sentenças de morte! Eu, Lúcio Apuleio Saturnino, tal como Lúcio Equício e Caio Servílio Gláucia, somos acusados de assassínio de um menino da nobreza, um boneco efeminado que apenas queria candidatar-se ao consulado para garantir que vocês, o Povo, continuassem a morrer de fome!

O grupo compacto que se encontrava nos rostros manteve-se imóvel e em silêncio, à escuta; Saturnino ganhou confiança e energia com os seus ouvintes atentos e alongou-se mais sobre o tema:

- Por que razão não recebestes cereais, mesmo depois de eu ter feito aprovar a minha segunda lei para que vos fossem distribuídos por uma ninharia? Porque a Primeira e Segunda Classes da nossa grandiosa cidade preferiram comprar menos cereais e vendê-los mais caros! Porque a Primeira e Segunda Classes da nossa cidade não querem que as vossas bocas esfomeadas se virem na sua direcção! Vêem-vos como cucos no ninho, uma extravagância de que Roma não precisa! Vós sois os capite censi e as classes mais baixas; já não sois importantes, depois de ganhas todas as guerras e de o dinheiro das pilhagens já estar a salvo nos cofres do Tesouro! Para quê gastar esse dinheiro a encher as vossas barrigas desprezíveis?, pergunta o Senado de Roma, e recusa-se a conceder-me os fundos necessários para comprar cereais para vos matar a fome! Isto porque daria muito, muito jeito ao Senado de Roma e à Primeira e Segunda Classes de Roma que várias centenas de milhares dessas barrigas desprezíveis encolhessem ao ponto de os seus donos morrerem de fome! Imaginem! Poupava-se tanto dinheiro, vagariam tantas daquelas ínsulas fedorentas e superpopuladas; Roma passaria a ser um parque verde e espaçoso! Enquanto vós vos matásseis para viver, eles passear-se-iam por agradáveis jardins, de barriga cheia e as bolsas repletas de dinheiro! Eles não querem saber de vós! Não passais de um impecilho do qual gostariam de se ver livres, e que melhor forma de fazê-lo senão através de uma fome introduzida artificialmente?

Saturnino conquistara-os, claro; resmungavam agora como cães famintos: a populaça enchia o ar de ameaças e de triunfo o coração de Saturnino.

- Mas eu, Lúcio Apuleio Saturnino, lutei durante tanto tempo e com tal ardor para vos encher as barrigas que agora vou ser eliminado por um crime que não cometi! - Aquela era boa; não tinha sido ele a cometer o crime, pelo que podia à sua vontade contar toda a verdade sem que o pusessem em causa! - Comigo perecerão todos os meus amigos, que também são vossos amigos. Lúcio Equício, aqui presente, herdeiro do nome e dos objectivos de Tibério Graco! E Caio Servílio Gláucia, que forja tão bem as minhas leis que nem os nobres que governam o Senado conseguem alterá-las! - Fez uma pausa, suspirou, e ergueu os braços num gesto de impotência. - E quando estivermos mortos, Quirites, quem ficará para olhar por vós? Quem irá prosseguir a nossa luta? Quem virá combater os privilegiados para vos encher as barrigas? Ninguém!

Os resmungos haviam-se transformado em rugidos; a disposição da multidão subiu de tom, em potencial violência. Estavam prontos a fazer o que ele quisesse.

- Quirites, é convosco! Ficais parados enquanto nós, homens inocentes que vos amamos e estimamos, seremos mortos? Ou íreis buscar armas a casa e correr por toda a vizinhança, chamando a multidão?

Começaram a sair dali, mas foram detidos pelos gritos de Saturnino:

- Vinde ter comigo aqui aos milhares! Ponde-vos sob a minha guarda! Antes do cair da noite, Roma pertencer-vos-á, porque também me pertence, e então encher-vos-emos as barrigas! Abriremos o Tesouro e compraremos cereais! Agora ide, trazei-me a cidade inteira, vinde ter comigo ao coração de Roma, e mostrai ao Senado e à Primeira e Segunda Classes quem governa a nossa cidade e o nosso império!

A turba espalhou-se em todas as direcções como uma miríade de pequenas bolas entrechocando-se ao toque de um martelo na borda que os cercava. Corriam gritando palavras incoerentes, enquanto Saturnino se dirigiu para os rostros para se encontrar com os seus homens de confiança.

- Maravilhoso! - exclamou Saufeio, torcendo-se.

- Vamos vencer, Lúcio Apuleio, vamos vencer - gritou Labieno. Rodeado de homens eufóricos que lhe davam palmadas nas costas, Saturnino contemplava a grandeza do seu futuro com uma pose principesca.

Foi então que Lúcio Equício desatou a chorar.

- Mas o que vamos fazer? - murmurou, enxugando o rosto com a ponta da toga.

- Fazer? O que te parece, imbecil? É evidente que vou tomar Roma!

- Com aqueles?

- Quem irá fazer-lhes frente? Além do mais, vão trazer uma multidão gigantesca. Ninguém poderá resistir-nos!

- Mas há um exército de marinheiros no Campo de Marte... duas legiões! - berrou Lúcio Equício, ainda a fungar e a tremer.

- Nenhum exército romano se aventurou a entrar em Roma a não ser para os desfiles triunfais. E nenhum homem que se aventurasse a mandar um exército entrar em Roma sobreviveria - disse Saturnino menosprezando o argumento; assim que estivesse bem controlado, Equício teria de ir também à vida, fosse ou não parecido com Tibério Graco.

- Caio Mário fá-lo-ia - alegou Equício, num soluço.

- Meu grande tonto, Caio Mário colocar-se-á do nosso lado! - afirmou Saturnino com desprezo.

- Isto não me agrada, Lúcio Apuleio!

- Não tem de te agradar. Se estás do meu lado, pára com a berraria. Se estás contra mim, serei eu a acabar com ela! - E dito isto, Saturnino passou um dedo pela garganta.

Um dos primeiros a responder ao pedido de auxílio dos amigos de Caio Mémio foi Caio Mário. Chegou ao local do confronto pouco depois de Gláucia e os seus amigos terem seguido à pressa para o Quirinal, e encontrou uma centena de membros das Centúrias, de toga, agrupados à volta do que restava de Caio Mémio. Abriram alas para deixar passar o cônsul; com Sila a seu lado, Mário fitou os restos moles da cabeça, e a seguir dirigiu o olhar para o lugar onde ainda se encontrava o bordão coberto de fragmentos de cabelos, músculos, pele e crânio.

- Quem fez isto? - perguntou Sila.

Uma dúzia de homens responderam em uníssono:

- Caio Servílio Gláucia.

Sila proferiu em tom nasal:

- O próprio?

Todos assentiram.

- Alguém sabe para onde foi?

Desta vez as respostas não coincidiram, mas Sila acabou por conseguir perceber que Gláucia e o seu grupo tinham passado a correr pela Porta Sanqualis em direcção ao Quirinal. Visto que Caio Cláudio estava entre eles, parecia provável que se dirigissem para a sua casa na Alta Semita.

Mário não se movera, não parara de contemplar Caio Mémio em silêncio. Sila tocou-lhe no braço com suavidade; Mário estremeceu então, limpando as lágrimas com uma prega de toga, pois não queria tirar o lenço, traindo a inépcia da sua mão esquerda.

No campo de guerra, isto é natural. No Campo de Marte abaixo das muralhas de Roma, é abominável! gritou, virando-se para os homens que o rodeavam.

Outros senadores séniores iam chegando, e entre eles encontrava-se Marco Emílio Escauro Princeps Senatus, que lançou um olhar rápido ao rosto de Mário, marejado de lágrimas; a seguir olhou para o chão e conteve a respiração.

Mémio! Caio Mémio? perguntou, incrédulo.

- Sim, Caio Mémio - respondeu Sila. - Assassinado por Gláucia, como afirmaram todas as testemunhas.

Mário recomeçara a chorar, mas não fez qualquer esforço para esconder as lágrimas de Escauro.

Princeps Senatus disse, convoco o Senado a reunir-se de imediato no templo de Belona. Estás de acordo?

- Estou - respondeu Escauro.

Alguns lictores começaram a debandar; a ordem do cônsul sénior deixava-os em respeito a várias centenas de passos, apesar da apoplexia.

Lúcio Cornélio, leva os meus lictores, chama os arautos, cancela a minha apresentação aos candidatos, ordena que oflamen Martialis se dirija ao templo da Vénus Libitina para nos levar a Belona os machados sagrados dos fasces e convoca o Senado disse Mário. Eu irei à frente com Marco Emílio.

Tem sido um ano terrível afirmou Escauro. Com efeito, apesar de todas as vicissitudes recentes, não me lembro de um ano tão terrível desde o último da vida de Caio Graco.

As lágrimas de Mário tinham secado.

Nesse caso, parece-me que estamos em atraso comentou.

Esperemos ao menos que não aconteça nada mais violento do que o assassínio de Mémio.

Mas provou-se que a esperança de Escauro era vã, embora no início tivesse parecido razoável. O Senado reuniu-se no templo de Belona e discutiu o assassínio de Mémio; havia um número suficiente de testemunhas oculares para provar a culpa de Gláucia.

No entanto disse Mário com firmeza, Caio Servílio tem de ser julgado por este crime. Nenhum cidadão romano pode ser condenado sem julgamento a menos que declare guerra a Roma, e não é esse o caso que temos entre mãos.

Receio bem que seja, Caio Mário disse Sila, entrando apressado.

Todos olharam para ele. Ninguém disse nada.

- Lúcio Apuleio, com um grupo de homens entre os quais se encontra o questor Caio Saufeio, tomou o Fórum Romano - anunciou Sila. Mostraram Lúcio Equício à multidão, e Lúcio Apuleio declarou que tenciona suplantar o Senado e a Primeira e Segunda Classes com uma norma do Povo criada por ele. Ainda não o aclamaram rei de Roma, mas já se fala disso pelas ruas e mercados daqui até ao Fórum: o que significa que se fala por toda a cidade.

- Posso usar da palavra, Caio Mário? - perguntou o Presidente da Assembleia.

- Fala, Princeps Senatus.

- A cidade está em crise - disse Escauro em voz baixa mas distinta tal como nos últimos dias de Caio Graco. Nessa altura, quando Marco Fúlvio e Caio Graco usaram da violência como a única forma de alcançarem as suas finalidades desesperadas, discutiu-se uma questão na Assembleia: Roma precisaria de um dictator para resolver uma crise tão urgente mas também tão curta? O resto é conhecido. A Assembleia recusou a ideia de escolher um dictator. Em vez disso, aprovou aquilo a que podemos chamar o seu decreto de ultimato: o Senatus de republica defendanda. Por este decreto, a Assembleia concedeu aos cônsules e magistrados o poder de defender a soberania do Estado da forma que considerassem necessária, e imunizou-os antecipadamente de processos e do veto tribunício.

Parou para olhar em volta com ar muito sério.

- Pais Conscritos, sugiro que resolvamos esta crise do mesmo modo: através de um Senatus Consultum de republica defendanda.

- Vamos votar - disse Mário. - Os que estiverem a favor passem para a minha esquerda; os que estiverem contra, para a minha direita - e passou para o lado esquerdo antes de todos.

Ninguém passou para o lado direito; a Assembleia aprovou por unanimidade o segundo Senatus Consultum de republica defendanda, o que não acontecera da primeira vez.

- Caio Mário - disse Escauro -, pelo poder que me foi conferido pelos membros desta Assembleia, nomeio-te cônsul sénior de Roma, para defenderes a soberania do Estado de acordo com o que achares próprio ou necessário. Além do mais, aqui declaro em nome desta Assembleia que não estarás sujeito ao veto tribunício, e que nada do que faças ou ordenes será usado contra ti em tribunal. Sob condição de agirem ao teu comando, esta missão e a sua imunidade estendem-se ao cônsul júnior, Lúcio Valério Flaco e a todos os pretores. Mas tu, Caio Mário, também terás o poder de escolher delegados entre os membros desta Assembleia que não ocupem o cargo de cônsul ou pretor, e, desde que actuem sob o teu comando, também participarão nesta missão e gozarão da inerente imunidade. - Pensando na cara que Metelo Numídico faria se estivesse presente para ver Caio Mário a ser virtualmente tornado dictator pelo próprio Escauro Princeps Senatus, este lançou a Mário um olhar malicioso, mas conseguiu esconder o sorriso. Encheu os pulmões de ar e bramiu: Viva Roma!

- Céus! - exclamou Públio Rutílio Rufo.

Mas Mário não tinha tempo nem paciência a perder com os espirituosos da Assembleia, que, como pensou, ficariam a proferir graças enquanto Roma ardesse à sua volta. Com uma voz firme mas calma, delegou em Sila o cargo de segundo-comandante, ordenou a abertura forçada do armazém de armamentos existente na base do templo de Belona e a sua distribuição por aqueles que não possuíssem armas nem armaduras próprias, e disse aos que as possuíam que fossem buscá-las a casa enquanto ainda podiam andar livremente pelas ruas.

Síla concentrou-se nos seus jovens auxiliares e deu-lhes ordens para dispersarem rapidamente; Cepião Júnior e Metelo Bacorinho eram os que estavam mais impacientes. A incredulidade ia cedendo lugar a uma afronta que quase excedia a simples fúria; era profundamente reprovável que um senador de Roma tentasse lançar mão das massas para ser eleito rei. As diferenças políticas foram esquecidas, as facções dissolveram-se; os ultraconservadores alinharam com os mais progressistas partidários de Mário, e todos se viraram obstinadamente contra o ambicioso do Fórum Romano.

Ao organizar o seu pequeno exército e quando os homens que esperavam para receber armas e armaduras acorriam lançando imprecações, Sila lembrou-se dela; não de Dalmática mas de Aurélia. Enviou à pressa quatro lictores à sua ínsula avisando-a que deveria trancar-se em casa, e com um recado dirigido a Lúcio Decúmio ordenando-lhe que nem ele nem os frequentadores da sua taberna fossem ao Fórum Romano nos próximos dias. Conhecendo Lúcio Decúmio como conhecia, era certo que não iriam ao Fórum de modo nenhum. Enquanto o resto da escumalha de Roma se alvoroçava pelo Fórum, fazendo barulho e batendo em transeuntes inocentes, o território que habitualmente patrulhavam estava deliciosamente aberto para um ou dois assaltos, e não havia dúvida de que fora essa a opção de Lúcio Decúmio. Mesmo assim, uma mensagem não fazia mal a ninguém, e Síla preocupava-se com a segurança de Aurélia.

Passadas duas horas, estavam todos a postos. Do lado de fora do templo de Belona ficava o grande pátio aberto que sempre fora conhecido por Território Inimigo. A meio das escadas do templo havia um pilar de pedra quadrado com cerca de quatro pés de altura. Quando se declarava uma guerra justa e legítima a um inimigo estrangeiro - e haveria guerras de outro tipo? - chamava-se um sacerdote fecial para atirar uma lança desse antigo pilar de pedra para o Território Inimigo. Ninguém sabia como ou por que motivo começara o ritual, mas passara a figurar na tradição e por isso era ainda observado. Mas agora não havia nenhum inimigo estrangeiro contra quem declarar guerra mas apenas um decreto senatorial a cumprir; assim, nenhum sacerdote fecial lançou a lança, e o Território Inimigo encheu-se de Romanos da Primeira e Segunda Classes.

O ajuntamento - de cerca de mil pessoas - estava agora preparado para a guerra, os peitos e costas estavam envoltos em couraças, aqui e ali viam-se grevas nas canelas e nas pernas, e todos tinham elmos de crista. Todos os homens se encontravam armados com a velha espada curta e o punhal romanos, e possuíam escudos ovais da época anterior à de Mário, de cinco pés de altura.

Caio Mário subiu ao pódio do templo de Belona e dirigiu-se ao seu pequeno exército:

- Lembrem-se de que somos Romanos e vamos entrar na cidade de Roma - disse, com gravidade. - Iremos atravessar o pomerium. Por isso, não chamarei às armas os marinheiros de Marco Antônio. Nós mesmos podemos resolver a questão; não precisamos de um exército profissional. Oponho-me firmemente a que haja mais violência além da rigorosamente necessária, e aviso-vos com toda a solenidade, em especial os mais novos, de que não quero ver nem uma lâmina levantada contra um homem que não possua outra. Levem paus e toros nos escudos, e usem apenas a parte lisa das vossas espadas. Sempre que possível, arranquem uma arma de madeira a algum dos membros da turba e usem-na em vez da espada, que ficará embainhada. Não irá haver pilhas de mortos e moribundos no coração de Roma! Isso traria azar à República, que cessaria de existir. Precisamos hoje de evitar a violência e não de causá-la.

Vocês são os meus soldados”, prosseguiu com firmeza, ”mas poucos estiveram ao meu comando até ao dia de hoje. Prestem, pois, atenção ao meu único aviso: os que desobedecerem às minhas ordens ou às ordens dos meus legados serão mortos. Não é altura para se formarem facções. Não existem hoje tipos diferentes de romanos. Muitos de vós não gostam dos capite censi e dos outros homens humildes de Roma. Mas lembro-vos... e prestem bem atenção!... Um romano dos capite censi é um romano e a sua vida é tão sagrada e protegida pela lei como a minha ou as vossas. Não vai haver nenhum banho de sangue. Mal vislumbre o mais pequeno passo nesse sentido, voltar-me-ei contra aqueles que levantarem as espadas; e de acordo com o decreto do Estado, os vossos herdeiros não podem exigir qualquer tipo de compensação se eu vos matar! Só irão receber ordens de dois homens: de mim e de Lúcio Cornélio Sila, aqui presente. Nunca de qualquer outro magistrado curul abrangido por este decreto. Não quero que haja nenhum ataque, a menos que eu ou Lúcio Cornélio dêmos ordens para tal. Vamos resolver isto com a maior calma possível. Comprenderam?

Catulo César puxou uma madeixa de cabelo com uma delicadeza trocista.

- Ouvimos e obedeceremos, Caio Mário. já estive sob o teu comando; sei que cumprirás o que disseste.

- Excelente! - afirmou Mário com cordialidade, ignorando o sarcasmo. Virou-se para o cônsul júnior: - Lúcio Valério, leva contigo cinquenta homens e vai até ao Quirinal. Se Caio Servílio Gláucia estiver em casa de Caio Cláudio, prende-o. Se ele se recusar a sair, tu e os teus homens deverão ficar de guarda sem tentar entrar. E mantém-me informado.

Era de madrugada quando Caio Mário comandou o seu pequeno exército para fora do Território Inimigo e entrou com ele na cidade pela Porta Carmentalis. Vindos do Velabro, apareceram na álca que ligava o templo de Castor e a Basilíca Sempronía, e apanharam completamente desprevenida a multidão que se encontrava no baixo Fórum. Armados com tudo o que tinham à mão - mocas, paus, facas, machados, picaretas, forquilhas - os homens de Saturnino tinham aumentado para cerca de quatro mil; porém formavam um bando miserável em comparação com os mil homens competentes que entraram no Fórum a marchar num grupo compacto e formaram em frente à Basilica Sempronia. Bastava olhar para os corpetes de couro, elmos e espadas dos recém-chegados para fazer metade deles desatarem a correr pelo Argileto acima e pelo lado ocidental do Fórum em direcção ao anonimato do Esquilino e à segurança do lar.

- Desiste, Lúcio Apuleio! - berrou Mário, o mais alto que podia, com Sila a seu lado.

No topo dos rostros com Saufeio, Labieno, Equício e uns dez outros, Saturnino olhou para Mário boquiaberto; depois, lançou a cabeça para trás e riu; o riso que tencionava mostrar-se confiante e desafiador soou a falso.

- São ordens tuas, Caio Mário? - perguntou Sila.

- Incumbiram-nos dessa missão - afirmou Mário. - É uma missão muito rápida e dura. Não iremos recorrer ao uso de espadas mas apenas de escudos. Nunca pensei que fosse uma multidão tão heterogénea, Lúcio Cornélio! Hão-de ceder depressa.

Sila e Mário fizeram a inspecção e prepararam o seu pequeno exército. Colocaram os escudos à frente dos soldados, alinharam-nos numa fila de duzentos homens de comprimento por cinco de largura.

E então Caio Mário gritou:

- Atacar!

A manobra teve êxito imediato. Uma massa sólida de escudos transportados de uma vez só atingiu a multidão como uma onda gigantesca. Tanto os homens como as armas de recurso voaram por todo o lado sem uma retaliação; então, antes que os homens de Saturnino tivessem conseguido organizar-se melhor, a muralha de escudos voltou a esmagá-los vezes seguidas.

Saturnino e os companheiros desceram dos rostros para se juntarem à barafunda, brandindo espadas. Não serviu de nada. Embora tivesse começado ansiosa por derramar sangue, a coorte de Mário gozava agora a novidade desta aproximação de aríete, e entrara num ritmo que colidia com a turba desordenada, empilhando os seus homens COMO pedras, afastando-se para voltar a formar a parede, entrechocando-se mais uma vez. Alguns dos homens da multidão foram pisados mas não houve batalha.

Passou pouco tempo antes de todos os homens de Saturnino terem abandonado o campo; terminara a grandiosa ocupação do Fórum Romano, e quase sem derramamento de sangue. Saturnino, Labieno, Saufeio, Equício, uma dúzia de romanos e cerca de trinta escravos armados subiram o Clivus Capitolinus para se barricarem dentro do templo de Júpiter Optimus Maximus, rogando ao Grande Deus que os socorresse e enviasse aquela multidão gigantesca de volta para o Fórum.

- Agora é que o sangue vai correr! - gritou Saturnino do pódio do templo no cimo do Capitólio num tom perfeitamente audível para Mário e os seus homens. - Far-te-ei matar romanos antes de morrer, Caio Mário! Hei-de ver este templo poluído com o sangue dos romanos!

- Talvez tenha razão - comentou Escauro Princeps Senatus, com ar extremamente satisfeito e feliz não obstante esta nova preocupação. Mário riu com vontade.

- Não! Ele apresenta-se como um daqueles animaizinhos indefesos com olhos ferozes, Marco Emílio. Acredita que existe uma explicação simples para este cerco. Vamos tirá-los de lá sem derramar uma só gota de sangue romano - virou-se para Sila. - Lúcio Cornélio, vai procurar os engenheiros da companhia das águas e manda-os cortar de imediato toda a água do Monte Capitolino.

O Presidente da Assembleia abanou a cabeça, espantado.

- Tão simples! Mas ao mesmo t’empo tão óbvio que desta vez nem pensaria em tal coisa. Quanto teremos de esperar até à rendição de Saturnino?

- Não muito. Têm estado sem beber. Amanhã devem render-se. Vou enviar um número suficiente de homens para cercar o templo e mandá-los atormentar cruelmente os nossos fugitivos com a falta de água.

- Saturnino é um sujeito desesperado - comentou Escauro.

Mário não concordou com a ideia e disse:

- É um político, Marco Emílio, e não um soldado. Não entende a força das armas mas sim o poder, e não sabe delinear uma estratégia praticável para si mesmo - o lado retorcido da cara de Mário assustou Escauro; aquele irónico olho murcho e o sorriso que arrepanhava o lado direito eram um espectáculo terrível de ver. - Se fosse eu que estivesse no lugar de Saturnino, Marco Emílio, terias motivos para estar preocupado! Porque nesta altura já me teria intitulado rei de Roma, e vocês seriam todos mortos.

Instintivamente, Escauro Princeps Senatus recuou um passo.

- Eu sei, Caio Mário - disse. - Eu sei.

- Seja como for - acrescentou Mário, bem disposto, afastando da vista de Escauro o lado feio do seu rosto -, felizmente não sou o rei Tarquínio, embora a família da minha mãe seja da região! Uma noite no quarto do Grande Deus há-de fazê-lo tornar a si.

Da multidão, os que tinham sido apanhados e presos logo no início foram cercados e colocados sob vigilância cerrada nas celas das Lautúmias, onde um apressado grupo de funcionários do censor separou os cidadãos dos não-romanos; os que não eram romanos foram logo executados, ao passo que os romanos teriam um julgamento sumário no dia seguinte e seriam depois atirados da Rocha Tarpela, no Capitólio.

Sila regressou quando Mário e Escauro começaram a afastar-se do baixo Fórum.

- Tenho uma mensagem de Lúcio Valério, do Quirinal - disse, com ar consideravelmente mais preparado para os acontecimentos do dia. Conta que Gláucia está em casa de Caio Cláudio, mas os seus ocupantes trancaram os portões e recusam-se a sair.

Mário fitou Escauro.

- Bem, Princeps Senatus, o que iremos fazer quanto a este assunto

- Porque não fazemos o mesmo que aqueles que se encontram na companhia de Júpiter Optimus Maximus e não resolvemos o assunto amanhã? Entretanto, deixemos Lúcio Valério guardar a casa. Depois da rendição de Saturnino, poderemos gritar a notícia por cima do muro da casa de Caio Cláudio, e ver depois o que acontece.

- É um bom plano, Marco Emílio. E Escauro desatou a rir.

- Caio Mário, toda esta conversa amigável contigo não irá aumentar a minha reputação entre os Homens de Bem! - disse atabalhoadamente, e agarrou o braço de Mário. - No entanto, Homem de Bem, estou muito contente por estares hoje connosco. O que dizes, Públio Rutílio?

- Digo... que não podias ter dito nada mais certo.

Dos homens que ainda se encontravam no templo de Júpiter Optimus Maximus, Lúcio Apuleio Saturnino foi o primeiro a render-se; Caio Saufeio foi o último. Os romanos que se encontravam com eles, ao todo uns quinze, foram presos nos rostros à vista de toda a gente que se tinha dado ao trabalho de lá ir: não muitos, pois a multidão ficara em casa. Mesmo à frente do seu nariz, os da multidão que possuíam a cidadania romana

- a grande maioria, pois não era uma sublevação de escravos - foram julgados num tribunal especial de traição e condenados a ser atirados da Rocha Tarpeia.

Saliente do lado sudoeste do Capitólio, a Rocha Tarpeia era um ressalto acima de um pequeno precipício que tinha apenas oito pés de altura; a morte dos que eram atirados devia-se à presença de um afloramento de rochas de pontas aguçadas que ficava imediatamente abaixo.

Os traidores foram levados até ao declive do Clivus Capitolinus, passaram as escadas do templo de Júpiter Optimus Maximus e foram até um lugar nas Muralhas Sérvias em frente do templo de Ops. A saliência da Rocha Tarpeia projectava-se para fora da muralha e o seu perfil via-se perfeitamente da parte mais baixa do Fórum Romano, onde a multidão surgiu subitamente para ver morrerem os partidários de Lúcio Apuleio Saturnino - multidões de barriga vazia, mas sem qualquer vontade de manifestar o seu descontentamento naquele dia. Só queriam ver alguém ser deitado da Rocha Tarpeia, pois isso não acontecia há muito tempo, e os boatos que corriam referiam já uma centena de mortos. Nenhum dos membros da multidão fitava Saturnino ou Equício com amor ou piedade, embora fossem os mesmos que os tinham aclamado tão vivamente durante as eleições tribunícias. Os boatos diziam que vinham a caminho frotas carregadas de trigo da Ásia, graças a Caio Mário. Por isso, foi Mário que aclamaram desordenadamente. O que queriam realmente ver, já que gozavam o feriado romano da tiragem das sortes, era o lançamento dos corpos da Rocha Tarpeia: a morte a uma certa distância como uma exibição acrobática, uma novidade.

- Não podemos marcar os julgamentos de Saturnino e Equício antes que os ânimos acalmem um pouco - comentou Escauro Princeps Senatus para Mário e Sila quando desciam as Escadas do Senado, enquanto a parada de homens em miniatura caía do extremo da Rocha Tarpeia no vazio.

Nem Mário nem Sila se enganaram: o que preocupava Escauro não era a multidão do Fórum mas os homens mais impulsivos e furiosos da sua espécie, que estavam cada vez mais agressivos agora que o pior já passara. O rancor passara da turba de Saturnino para o próprio Saturnino, com especial maldade reservada para Lúcio Equício. Os jovens senadores e os que ainda não tinham idade para o serem estavam num grupo no extremo dos Comícios, conduzidos por CepiãoJúnior e Metelo Bacorinho, e olhavam muito zangados para Saturnino e os seus companheiros dos rostros.

- O pior será quando Gláucia se render e vier juntar-se a eles - afirmou Mário pensativamente.

- Que miseráveis! - disse Escauro com desprezo. - Era de esperar que ao menos alguns deles fizessem o que deviam, tombando sobre as próprias espadas! Até o meu filho cobarde fez isso!

Mário anuiu:

- Estou de acordo. No entanto, estamos aqui para julgar por traição quinze deles, ou dezasseis, se Gláucia aparecer, e alguns indivíduos muito ressentidos lá em baixo fazem-me lembrar uma alcateia de lobos a olhar para uma manada de veados.

- Teremos de mantê-los em algum lugar pelo menos durante vários dias - lembrou Escauro -, mas onde? Por Roma, não devemos permitir que sejam linchados.

- Porquê - inquiriu Sila, dando a primeira contribuição para a discussão,

- Só provoca confusão, Lúcio Cornélio. Conseguimos evitar o derramamento de sangue no Fórum, mas a multidão vai aparecer em força para ver o julgamento por traição deste grupo dos rostros. Hoje podem estar entretidos com as execuções de homens sem interesse. Mas poderemos ter a certeza de que não vão ficar furiosos quando julgarmos Lúcio Equício, por exemplo? - perguntou Mário ponderadamente. - É uma situação muito difícil.

- Por que não terão tombado sobre as próprias espadas? - perguntou Escauro, rabujento. - Pensa no trabalho que nos teriam poupado! O suicídio é a admissão da própria culpa; não há julgamento, nem estrangulador no Carcer Tullianum: e não temos coragem para atirá-los da Rocha Tarpeia!

Sila ficou a ouvir, escutando as palavras mas a olhar pensativamente para Cepião Júnior e Metelo Bacorinho. Porém, não disse nada.

- Bem, preocupar-nos-emos com o julgamento na devida altura afirmou Mário. - Entretanto, temos de encontrar alguém que os coloque em lugar seguro.

- As Lautúmias estão fora de questão - disse Sila imediatamente. Se, por qualquer motivo ou por instigação de alguém, uma multidão enorme decidir ir salvá-los, as celas não oferecerão resistência, nem mesmo se pusermos de guarda todos os lictores. Não é Saturnino que me preocupa, mas aquele horrível Equício. Basta uma mulher tola desatar a chorar por o filho de Tibério Graco ir morrer, e podemos ter sarilhos - resmungou. - E como se não os houvesse em quantidade suficiente, olhem para aqueles brutos lá em baixo a babarem-se. Não se importariam nada de linchar Saturnino.

- Nesse caso - afirmou Mário alegremente -, sugiro que os fechemos no interior da Cúria Hostília.

Escauro Princeps Senatus ficou boquiaberto.

- Não podemos fazer isso, Caio Mário!

- Porquê?

- Aprisionar traidores na Casa do Senado? É... é como oferecer aos deuses em sacrifício um pedaço de bosta!

- Eles já conspurcaram o templo de Júpiter Optimus Maximus, tudo o que tem a ver com a religião do Estado terá de ser purificado. A Cúria não tem janelas absolutamente nenhumas e possui as melhores portas de Roma. A alternativa é alguns de nós oferecerem-se como voluntários para guardá-los em nossas casas; queres ficar com o Saturnino? Leva-o e eu levo o Equício. E penso que Quinto Lutácio devia ficar com Gláucia - disse Mário a sorrir.

- A Cúria Hostília é uma excelente ideia - comentou Sila, que continuava a olhar pensativamente para Cepião Júnior e Metelo Bacorinho.

- Grrr! - rosnou Escauro Princeps Senatus, não para Mário ou para Sila mas para as circunstâncias. A seguir, assentiu de forma decisiva. Tens toda a razão, Caio Mário. Receio bem que tenha de ser a Cúria Hostília.

- Óptimo! - exclamou Mário; deu uma palmada no ombro de Sila indicando-lhe que deviam seguir, e acrescentou com um sorriso torto e assustador: - Enquanto trato dos pormenores, Marco Emílio, terás a missão de explicar aos outros Homens de Bem a razão por que precisamos de usar como prisão a nossa venerável sala de reuniões.

- Obrigado! - exclamou Escauro.

- De nada.

Quando estavam fora do alcance de todos os homens que podiam ter importância, Mário olhou de relance para Sila com curiosidade.

- O que andas a tramar? - perguntou.

- Não sei se deverei contar-te - respondeu Sila.

- Peço-te que sejas cuidadoso. Não quero que te prendam por traição.

- Serei cuidadoso, Caio Mário.

Saturnino e os seus confederados tinham-se rendido no oitavo dia de Dezembro; no nono dia, Caio Mário voltou a convocar a Assembleia das Centúrias e ouviu a declaração dos candidatos às magistraturas curuis.

Lúcio Cornélio Sila não se incomodou a sair da saepta; estava ocupado com outras coisas, entre as quais se incluía dar longos passeios com Cepião Júnior e Metelo Bacorinho, e fazer uma ou outra visita a Aurélia, apesar de ter sabido por Públio Rutílio que ela se encontrava bem e que Lúcio Decúmio mantivera longe do Fórum Romano os homens grosseiros da taberna.

O décimo dia do mês era aquele em que os novos tribunos da plebe entravam em funções; mas dois deles, Saturnino e Equício, estavam encerrados na Casa do Senado. E todos temiam que a multidão voltasse a aparecer, pois parecia interessadíssima nos actos dos tribunos da plebe.

Embora Mário não quisesse autorizar o pequeno exército formado há três dias a ir ao Fórum Romano com espadas e armaduras, mandou fechar a Basílica Porcia aos habituais mercadores e banqueiros, e guardou-a apenas para armazenamento de armas e armaduras; no piso inferior ao fundo da Casa do Senado ficavam os escritórios do Colégio de Tribunos da Plebe, e era aí que deviam reunir-se de madrugada os oito homens que não estavam envolvidos na questão de Saturnino, após o que se daria início à sessão inaugural da Assembleia da Plebe o mais depressa possível e sem a menor referência aos dois homens ausentes.

Mas a madrugada ainda não rompera e o Fórum Romano estava completamente deserto quando Cepião júnior e Metelo Pio Bacorinho conduziram o seu grupo de assalto pelo Argileto em direcção à Cúria Hostília. Tinham vindo pelo caminho mais longo para não serem detectados pelos guardas, mas quando se espalharam à volta da Cúria, descobriram que tinham toda a área só para si.

Transportavam longas escadas que encostaram dos dois lados do edifício, chegando até ao cimo das antigas telhas das goteiras em forma de leque, frágeis e cobertas de líquenes.

- Lembrem-se - disse Cepião júnior para os seus soldados - de que não devem usar as espadas, como disse Lúcio Cornélio. Temos de seguir as ordens de Caio Mário.

Um a um, subiram as escadas até os cinquenta homens se encontrarem agachados na beira do telhado, que era pouco inclinada e desconfortável. No escuro, esperaram que a pálida luz vinda do leste mudasse de cinzento claro para dourado brilhante, e os primeiros raios de sol saíssem inesperadamente do Monte Esquilino, vindo banhar o telhado da Casa do Senado. Lá em baixo começavam a chegar algumas pessoas, mas as escadas também tinham sido colocadas no telhado da Cúria, e como ninguém se lembrou de olhar para cima, ninguém notou nada de extraordinário.

- Ao ataque! - gritou Cepião júnior.

Tinham de apressar-se, porque Lúcio Cornélio dissera que não teriam muito tempo: o grupo de assalto começou a arrancar telhas das estruturas de carvalho por entre as vigas de cedro maciças. A luz inundou a parede abaixo deles, pondo em evidência quinze rostos brancos que olhavam para cima, mais surpreendidos que assustados. E quando cada um dos homens que estavam no telhado tinha uma pilha de telhas a seu lado, começou a lançar-lhas à cara através da fresta que fizera. Saturnino caiu logo, bem como Lúcio Equício. Alguns dos prisioneiros tentaram esconder-se nos recantos mais distantes da sala, mas os jovens que estavam no telhado cedo aprenderam a atirar perfeitamente as telhas em qualquer direcção. A sala não tinha qualquer tipo de mobiliário, pois os utentes traziam consigo os seus bancos e os funcionários traziam uma mesa ou duas dos gabinetes do Senado, que ficava ao lado, no Argileto. Por isso não havia nada a proteger os prisioneiros da torrente de mísseis, mais eficazes como armas do que Sila suspeitara, O impacto tornava as telhas cortantes e cada uma pesava dez libras.

Quando Mário e os seus legados - incluindo Sila - chegaram, estava tudo acabado; o grupo de assalto desceu até ao chão, onde todos permaneceram em silêncio, sem tentar fugir.

- Devo prendê-los? - perguntou Sila a Mário.

Mário saltou, tão embrenhado estava nos seus pensamentos quando lhe fizeram a pergunta.

- Não! - respondeu. - Não vão para lado nenhum - e olhou para Sila de relance, dirigindo-lhe em silêncio com esse olhar uma pergunta; a resposta surgiu num abrir e fechar de olhos.

- Abram as portas - ordenou Mário aos lictores.

Lá dentro o sol expandia os seus raios sobre um manto de poalha que ia assentando e iluminou os montes de telhas cobertas de líquenes que se amontoavam por todo o lado, de cantos Partidos e escondidas, de um tom vermelho-ferrugem, quase da cor do sangue. Cinquenta corpos encontravam-se esmagados em pequenos amontoados ou abertos com pernas e braços torcidos, meio enterrados por entre as telhas esmigalhadas.

- Tu e eu, Princeps Senatus - afirmou Mário -, ninguém mais. juntos, entraram na sala e passaram de corpo em corpo, em busca de sinais de vida. Saturnino fora atingido tão súbita e eficazmente que nem tentara aninhar-se para se proteger, Tinha o rosto coberto por uma carapaça de telhas, e quando o destaparam olhava indefeso para o céu, com as pestanas negras cheias de pó das telhas e do estuque. Escauro dobrou-se para lhe fechar os olhos e estremeceu com enfado; havia tanto pó nas órbitas secas que as pestanas se recusavam a descer. Lúcio Equício tivera pior sorte: não havia nem um bocadinho do seu corpo que não tivesse sido ferido, cortado ou inchado por uma telha, e Mário e Escauro levaram imenso tempo a afastar o monte que o submergia. Saufeio - que correra para um canto - morrera atingido por um caco que parecia ter batido no chão e subido, indo alojar-se-lhe no canto do pescoço como uma enorme lança; tinha a cabeça quase separada do tronco. E Tiro Labieno fora atingido nas costas com a aresta comprida de uma telha inteira, tombara sentindo apenas a espinha a partir-se.

Mário e Escauro conferiram.

- O que vou fazer com aqueles idiotas? - perguntou Mário.

- O que podes fazer?

A metade direita do lábio superior de Sila elevou-se.

- Vá lá, Princeps Senatus! Aguenta uma parte desta carga com a tua velha carcaça descarnada! juro-te que nunca mais poderás livrar-te disto. Ou me apoias, ou então prepara-te para uma luta que dará aos acontecimentos de hoje o ar da festa Bona Dea das mulheres!

- Está bem, está bem! - concordou Escauro irritado. - Não queria dizer que não te apoiava, meu grande campónio sem imaginação! Só queria perguntar: o que podes fazer?

- Com os poderes que me foram conferidos pelo Senatum Consultum, posso fazer o que quiser, desde prender todos os homens daquele grupo corajoso que está lá fora até mandá-los para casa sem nenhuma punição verbal. Qual destas hipóteses te parece mais conveniente?

- O mais conveniente é mandá-los para casa. O mais adequado é prendê-los e acusá-los do assassínio de outros romanos. Como os prisioneiros não tinham sido julgados, eram ainda cidadãos romanos quando morreram. Mário arregalou a sua única sobrancelha móvel.

- Então, que decisão devo tomar, Princeps Senatus? A mais oportuna... ou a mais conveniente?

Escauro encolheu os ombros.

- A mais oportuna, Caio Mário. Sabe-lo tão bem como eu. Se tomares a decisão adequada abalarás tanto a árvore de Roma que o mundo inteiro poderá tombar com ela.

Saíram os dois do edifício e ficaram juntos no cimo das Escadas do Senado, olhando para os rostos das pessoas que se encontravam perto deles; além dessas escassas centenas, o Fórum Romano estava vazio, limpo, sonhador ao sol matinal.

- Proclamo uma amnistia geral! - gritou Mário o mais alto que podia.

- Vão para casa, jovens - ordenou ao grupo de assalto -, estão todos protegidos.

- Virou-se então para o grupo maior dos seus ouvintes. - Onde estão os tribunos da plebe? Aqui? Ainda bem! Convoquem uma reunião; a multidão já cá não está. Os primeiros assuntos do dia serão a eleição de dois novos tribunos da plebe. Lúcio Apuleio Saturnino e Lúcio Equício estão mortos. Chefe dos lictores, manda chamar alguns colegas teus e os escravos públicos, e limpem a barafunda que está dentro da Cúria Hostília. Entreguem às famílias os corpos para que sejam enterrados honrosamente, pois não tinham sido julgados pelos seus crimes e são ainda cidadãos romanos de prestígio.

Mário desceu as escadas e dirigiu-se para os rostros, pois era o cônsul sénior e presidia às cerimónias de posse dos novos tribunos. Se fosse patrício, o seu colega júnior teria tratado disso, motivo por que pelo menos um dos cônsules tinha de ser plebeu, para ter acesso ao concilium plebis.

Então, aconteceu o imprevisto, talvez Por a rede de boatos estar na sua melhor forma e a notícia se ter espalhado à velocidade da luz. O Fórum começou a encher-se de gente, milhares e milhares de pessoas acorriam apressadas do Esquilino, Célio, Viminal, Quirinal, Subura, Palatino, Aventino, ópio. Mário reparou logo que era a mesma multidão que se juntara no Fórum durante as eleições dos tribunos da plebe.

E, depois de passada a maior confusão e com um sentimento de paz no coração, Mário olhou para aquele oceano de caras e viu o que Lúcio Apuleio vira: ”uma Fonte de poder ainda por explorar, sem a astúcia que provinha da experiência e da educação, pronta para acreditar no kharisma egoísta de algum demagogo eloquente e mudar de opinião. No entanto, não é coisa para mim: não é nenhuma vitória o facto de se ser o Primeiro Homem de Roma por capricho dos crédulos. Gozei do estatuto de Primeiro Homem de Roma à moda antiga, a mais dura, combatendo os preconceitos e monstruosidades do cursus honorum.”

Caio Mário terminou os seus pensamentos: ”Mas farei um último gesto para mostrar a Escauro Princeps Senatus, Catulo César, Aenobarbo Pontifex Maximus e aos outros boni que se tivesse escolhido o modo de agir de Saturnino, estariam mortos dentro da Cúria Hostília, todos cobertos de telhas, e eu estaria a governar Roma sozinho. Porque estou para Saturnino como Júpiter está para Cupido.”

Avançou para o canto dos rostros que dava para o baixo Fórum e não para o vão dos Comícios, e estendeu os braços num gesto que parecia abraçar a multidão, chamá-la para si como um pai.

- Povo de Roma, regressai aos vossos lares! - gritou, em tom de trovão. - A crise já passou. Roma está salva. E eu, Caio Mário, tenho o grande prazer de anunciar que uma frota de navios transportando cereais chegou ontem ao porto de óstia. As barcas subirão o rio durante todo o dia de hoje, e amanhã haverá cereais dos celeiros estatais do Aventino a um sestércio por modius, o preço que a lei de cereais de Saturnino fez baixar. No entanto, Lúcio Apuleio está morto, e a sua lei foi anulada. Sou eu, Caio Mário, cônsul de Roma, quem vos dá estes cereais! O seu preço especial irá manter-se até ao termo do meu mandato, daqui a dezanove dias. Caberá aos novos magistrados decidir o preço que vocês irão pagar a seguir. O sestércio que vou cobrar-vos é a minha prenda de despedida, Quirites! Porque eu amo-vos, lutei e ganhei por vós! Nunca vos esqueçais disso! Viva Roma!

E desceu dos rostros por entre uma onda de aplausos, de braços acima da cabeça, despedindo-se da forma mais adequada: com o sorriso torcido, os seus lados bom e mau.

Catulo César ficou parado no mesmo lugar.

- Ouviste? - disse secamente a Escauro. - Acaba de oferecer a cobrança de dezanove dias de cereais... em seu nome! Isto vai custar milhares de talentos ao Tesouro! Como pode atrever-se a tanto?

- Vais subir aos rostros e contradizê-lo, Quinto Lutácio? - inquiriu Sila a sorrir. - Com todos os teus leais Homens de Bem ali a escapar-se?

- Maldito! - Catulo César por pouco não chorava.

Escauro desatou a rir.

- Pregou-nos mais uma partida, Quinto Lutácio! - disse, quando conseguiu falar. - Oh, aquele homem é um agitador! Passou-nos a conta para nós pagarmos! Odeio-o. Mas, por todos os deuses, também o amo!

- Marco Emílio Escauro, há alturas em que me é muito difícil compreender-te! - afirmou Catulo César, e afastou-se com o seu andar de camelo.

- Ao passo que eu, Marco Emílio Escauro, compreendo-te bem demais - afirmou Sila, rindo ainda mais do que Escauro.

Quando Gláucia se suicidou trespassando-se com a espada, e Mário englobou na amnistia Caio Cláudio e os seus seguidores, Roma suspirou de alívio; podia-se pensar que a briga do Fórum tinha terminado. Mas não era esse o caso. Os jovens irmãos Lúculos levaram Caio Servílio Áugure a julgamento no tribunal de casos de traição e a violência voltou a rebentar. Os senadores exaltaram-se, porque o caso dividiu os Homens de Bem; Catulo César e Escauro Princeps Senatus e seus seguidores estavam firmes do lado de Lúculo, enquanto Aenobarbo Pontifex Maximus e Crasso Orador se encontravam ligados a Servílio, o Áugure, por laços de patronato e amizade.

As multidões que tinham enchido como nunca o Fórum Romano durante os problemas com Saturnino haviam desaparecido, mas os frequentadores habituais do Fórum regressaram em força para ver o julgamento, atraídos pela juventude e veemência dos dois Lúculos: que estavam bem conscientes disso e tinham decidido usá-las da melhor forma possível. Varro Lúculo, o irmão mais novo, vestira a toga viril apenas alguns dias antes do julgamento; nem ele nem Lúcio Lúculo, de dezoito anos, precisavam ainda de fazer a barba. Os seus agentes, astuciosamente colocados por entre a populaça, murmuravam que aqueles dois pobres rapazes tinham acabado de receber a notícia da morte do pai, que estava no exílio; e que a família Licínio, com longas tradições de nobreza, só os tinha agora a eles para defender a sua dignitas.

O júri composto por cavaleiros decidira antecipadamente colocar-se do lado de Servílio, o Áugure, um cavaleiro que tinha sido elevado ao cargo que detinha no Senado pelo seu patrono Aenobarbo Pontifex Maximus. Mesmo quando o júri fora escolhido, houvera violência: os gladiadores contratados por Servílio, o Áugure, tentaram impedir a continuação do julgamento. Mas o pequeno grupo de jovens da aristocracia comandado por CepiãoJúnior e Pio Bacorinho afastara de cena os rufias, matando um deles. O júri entendeu o significado daquele gesto, e resignou-se a ouvir os irmãos Lúculos com maior compreensão do que decidira de início.

- Vão condenar o Áugure - disse Mário a Sila quando se afastaram, atentos a observar e a escutar.

- É o que vão fazer - concordou Sila, que estava fascinado por Lúcio Lúculo, o rapaz mais velho. - Brilhante! - exclamou quando o mais novo terminou o discurso - Gosto dele, Caio Mário!

Mas Mário não estava impressionado.

- É tão arrogante e altivo como o seu falecido pai.

- Todos sabem que apoias o Áugure - afirmou Sila muito depressa. A seta partiu veloz; Mário limitou-se a sorrir.

- Até apoiaria um macaco da Mauritânia, se isso dificultasse as coisas aos Homens de Bem que rodeiam o nosso amigo Suíno, que está ausente, Lúcio Cornélio.

- Servílio, o Áugure, é um macaco da Mauritânia - disse Sila.

- Estou inclinado a acreditar nisso; vai perder.

Essa previsão surgiu quando o júri (olhando para o grupo de jovens aristocratas de Cepião Júnior) votou um veredicto unânime de DAMNO, mesmo depois de ter ficado comovido até às lágrimas pelos impiedosos discursos de defesa de Crasso Orador e Múcio Cévola.

Como era de esperar, o julgamento terminou numa rixa que Mário e Sila observaram a uma distância considerável e com uma enorme satisfação a partir do momento em que Aenobarbo Pontifex Maximus deu um soco na boca de Catulo César, que estava intoleravelmente contente.

- Pólux e Linceu! - exclamou Mário, deliciado quando os dois começaram a lutar mais a sério. - Oh, dá-lhe, Quinto Lutácio Pólux! - berrou.

- A alusão não é má, já que todos os Aenobarbos juram que foi Pólux que tingiu as barbas de ruivo - comentou Sila quando um golpe bem dado encheu de sangue a cara de Aenobarbo.

- E é de esperar - disse Mário, saindo dali mal o combate acabou, com a derrota de Aenobarbo - que fiquem por aqui os acontecimentos deste ano terrível no Fórum.

- Oh, não sei, Caio Mário. Ainda temos de aguentar as eleições consulares.

- Vá lá que não irão decorrer no Fórum.

Dois dias mais tarde, Marco Antônio celebrou o seu triunfo, e outros dois dias depois foi eleito cônsul sénior para o ano seguinte; o seu colega no consulado seria Auto Postúmio Albino, cuja invasão da Numídia, dez anos antes, precipitara a guerra contra Jugurta.

- Os eleitores são completamente burros! - disse Mário para Sila relativamente exaltado. - Acabaram de eleger para cônsul sénior um dos melhores exemplos que conheço de ambição a par com a falta de qualquer espécie de talento! Têm memória de galinha!

- Diz-se que a prisão de ventre mental causa estagnação - afirmou Sila a sorrir apesar do surgimento de um novo receio. Esperava candidatar-se ao cargo de pretor nas eleições do ano seguinte, mas pressentia nos eleitores da Assembleia das Centúrias um estado de espírito que constituía um mau presságio para o futuro dos candidatos partidários de Mário. ”Mas como hei-de dissociar-me deste homem que foi tão bom para mim?”, perguntou a si mesmo sentindo-se infeliz.

- Felizmente prevejo que este ano vai ser mentalmente monótono, e Auto Albino não vai ter a oportunidade de estragar as coisas - prosseguiu Mário, que não conhecia os pensamentos de Sila. - Pela primeira vez desde há muito tempo, Roma não tem inimigos à altura. Podemos descansar. E Roma também vai poder descansar.

Sila fez um esforço, afastou da mente um cargo de pretor que se revelaria difícil de obter.

- E a tal profecia? - perguntou subitamente. - A Marta disse que ias ser cônsul de Roma por sete vezes.

- Serei cônsul de Roma por sete vezes, Lúcio Cornélio.

- Acreditas mesmo nisso.

- Acredito. Sila suspirou.

- Contentar-me-ia se chegasse a ser pretor.

A paralisia facial dava origem aos barulhos mais ridículos, e Mário fez um desses ruídos.

- Que disparate! - afirmou vigorosamente. - Vais ser cônsul, Lúcio Cornélio. Hás-de mesmo vir a ser o Primeiro Homem de Roma.

- Agradeço-te a fé que depositas em mim, Caio Mário - Sila dirigiu a Mário um sorriso quase tão torto como o dele. - E tendo em consideração a nossa diferença de idades, não serei teu rival - disse.

Mário riu.

- Seria uma verdadeira batalha de Titãs! Não corremos esse perigo

- afirmou com toda a certeza.

- Se vais retirar-te da cadeira curul e não tencionas frequentar a Assembleia, já não vais ser o Primeiro Homem de Roma.

- É bem verdade, Lúcio Cornélio, mas já possuo uma grande experiência! E assim que me abandonar esta terrível doença, regressarei.

- Entretanto, quem irá ser o Primeiro Homem de Roma? - perguntou Sila. - Escauro? Catulo?

- Nemo! - rugiu Caio Mário, e riu-se ruidosamente. - Ninguém! É isso o que tem mais piada! Nenhum deles pode ocupar o meu lugar! Rindo com Mário, Sila passou-lhe o braço por detrás das costas, apertou-o com afecto e saíram os dois da saepta, a caminho de casa. À sua frente erguia-se o Monte Capitolino; o sol frio da manhã incendiou-se, fazendo brilhar a quadriga da Vitória no cimo do frontão do templo de Júpiter Optimus Maximus e inundou a cidade de Roma de um ouro ofuscante.

- Faz-me doer os olhos! - exclamou Sila, que sentia realmente dores. Porém, não conseguia afastar a vista.

 

 

                                                                                                    Colleen McCullough

 

 

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