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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AMOR ME PERSEGUE / Tami Hoag
O AMOR ME PERSEGUE / Tami Hoag

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

Devon Stafford era uma mega-estrela das bilheterias. Toda mulher queria ser como ela; todo homem queria levá-la para a cama. Mas, há cerca de um ano, ela desapareceu sem deixar vestígios... Como biógrafo, Jake Gannon está atrás de pistas que possam levá-lo até essa diva e escrever sobre sua vida. Porém, quando seu carro enguiça numa cidadezinha na costa da Carolina, ele se vê obrigado a reconhecer que terá de adiar seus objetivos.

Ali, Jake fica conhecendo uma motorista de guincho chamada Dixie La Fontaine. Está na cara que ela não é nenhuma celebridade, mas tem um fascínio pessoal irresistível que o deixa encantado e ao mesmo tempo intrigado. É óbvio que ela nada sabe sobre uma artista de cinema desaparecida. Contudo, para seu espanto, Jake percebe que Dixie sabe muita coisa... E ele está determinado a descobrir tudo... até mesmo usar seu poder de sedução se for preciso...

 

 

 

 

Com o braço esquerdo sobre a janela aberta, Jake Gannon guiava o Porsche pela estrada costeira, ao norte de Charleston. A sua direita, o Atlântico estendia-se até o infi­nito mais azul que o céu e salpicado de ondas brancas.

Jake até poderia apreciar tanta beleza, se sua mente não estivesse concentrada em coisas mais importantes. Sempre encarara cada tarefa sua com perfeccionismo e, até o mo­mento, a única pista que possuía se revelara inútil. Era como se Devon Stafford, uma das atrizes mais badaladas do momento, tivesse simplesmente deixado de existir.

A necessidade de discrição tornava sua tarefa difícil. Não poderia fazer perguntas diretas, pois estas alerta­riam muita gente, principalmente a própria sra. Stafford. Contudo, sofreria de bom grado a inconveniência do anoni­mato. Precisava encontrar a mulher, escrever a história de sua ascensão à fama, e de sua subsequente fuga para longe dos holofotes.

Em três curtos anos, Devon Stafford subira de aspirante a estrela à queridinha da América, tanto no cinema como na televisão, ganhando três grandes prêmios em longas me­tragens, e conquistando sua própria série de tevê semanal:

Wylde Time, a história de Chyna Wylde, um cirurgião de pronto-socorro e detetive amador. Tomara-se o mais recente ícone do sex appeal e do glamour... E então, desaparecera.

Tudo que se sabia era que ela discutira com seus pro­dutores sobre ter ganhado alguns quilos ao deixar de fu­mar. Dificilmente uma razão para dar as costas ao sucesso, mas o fato era que, independentemente disso, ela sumira. Ninguém a via ou sabia dela fazia um ano.

Como biógrafo, Jake tinha de desenterrar os segredos de gente como Devon Stafford. Não para expor essas pessoas à maneira dos repórteres de tablóides, mas para descobrir o que as tomara marcantes. Tinha de trazer à superfície todos os sonhos escondidos, as emoções que as impulsio­navam, o passado que as assombrava. Precisava mostrar tanto as superfícies polidas quanto as fendas milimétricas que corriam sob estas. Apresentar o famoso ao público como gente comum que se tomara, por alguma razão, uma lenda maior que sua própria vida.

Era uma carreira de que gostava, e ele era bom no que fazia. Nos últimos seis anos, desde que deixara o corpo de fuzileiros da Marinha, vivia disso, escrevendo como A. J. Campion. Preservara o próprio nome para o dia em que fi­nalmente tivesse um romance de mistério vendido e publi­cado. Mistério era seu primeiro amor, mas biografias eram, em alguns casos, misteriosas por si mesmas.

Como agora. Devon Stafford era uma incógnita que ele tinha toda a intenção de desvendar.

A mídia a perseguira como um cão de caça nos primeiros meses depois de seu desaparecimento, sem sucesso. Mas, ele a encontraria. Devon Stafford era seu objetivo e, com seu perfeccionismo, ele cavaria cada pista, cada pedaço de informação a respeito dela, por mais insignificante e trivial que fosse. Quando Jake Gannon se determinava um objeti­vo, ele o alcançava. Ponto final.

Admitia ter razões pessoais para querer encontrá-la e convencê-la a contar sua história. Ficara encantado com Devon Stafford da primeira vez em que a vira numa tela de cinema. Ela era deslumbrante, com sua cabeleira loira até a cintura, os vibrantes olhos verdes e os lábios carnudos, que imploravam por ser beijados. Seu corpo era um sonho: esguio, mas com curvas sutis. Era uma Vênus, uma Afrodite. Era perfeita. E, como todo e qualquer homem de sangue quente do planeta, ele sentia os hormônios ferverem a cada vez que se deparava com ela.

Porém, havia algo mais em relação a Devon que a torna­va especial. Alguma coisa intangível, que a tomava quase resplandecente na tela. Ela tocava o coração de todos, e era isso o que ele mais queria capturar em palavras. Precisava estudar o quebra-cabeça que era Devon Stafford, e explicá-lo ao mundo de um jeito que todas as peças se encaixassem no lugar.

Primeiro, porém, tinha de encontrá-la.

De repente, o Porsche deu um solavanco, e fez um ruído estranho. Jake franziu o cenho, procurando sinais de alerta no painel de instrumentos. O indicador da temperatura do motor ultrapassara a escala. O carro sacolejou, e começou a soltar fumaça por sob o capô.

— Não se atreva — Jake ordenou com voz tensa.

Apertou o volante com as mãos fortes. Passou o olhar ao redor para ver onde estava. Em algum lugar entre o Nada e o Lugar Nenhum, percebeu. Só oceano e estrada vazia até onde a vista conseguia alcançar. Droga, droga, mil vezes droga!

Adiante, uma placa verde indicava a saída para um lugar chamado Toca da Mula, e ele soltou um suspiro de alívio.

— Se me levar até a Toca da Mula, eu lhe comprarei um novo parachoque, amigo — prometeu ao carro. — Aplicarei condicionador de couro em todo o estofamento e polirei à mão todos os eixos das suas rodas.

Dixie cantarolava, sentindo-se infinitamente livre e fe­liz. Era sexta-feira, e o sol de inverno afundava ao Oeste. O dia fora agradável, e a noite seria perfeita para dar um passeio pela praia deserta e depois se aninhar no sofá com uma manta, um livro e uma caneca de chocolate quente. Talvez Sylvie Lieberman aparecesse para jogar Palavras Cruzadas. E, quem sabe, conseguisse convencer a prima a descer do sótão para jantar.

Girou o volante para fazer a curva, e o enorme guincho subiu a ladeira, roncando como se reconhecesse a vítima que fora resgatar. Dixie soltou um assobio ao avistar o Porsche azul-noite. Lindo carro!

Acendeu o pisca-pisca amarelo e passou pelo automóvel luxuoso, parando logo atrás dele. Placa da Califórnia. Um turista, provavelmente.

Saltou do guincho e aproximou-se para se concentrar no dono do carro, que a encarava, boquiaberto: trinta e poucos

O Porsche saiu da rodovia e desceu a estrada de mão dupla, entre dunas e tufos esparsos de capim. Cerca de seis quilômetros à frente, no topo de uma colina com vista para o Atlântico, estava a Toca da Mula. Tão perto e, mesmo as­sim, tão longe.

— Vamos, vamos — Jake entoou, movendo-se no banco como se pudesse empurrar o carro. O Porsche estremeceu, assobiou e travou a direção hidráulica quando o motor mor­reu completamente.

Jake saltou do veículo e parou ao lado, encarando-o como se pudesse intimidá-lo com a ferocidade de sua carranca. Chutou um pneu. Depois, fez a única coisa que poderia fa­zer, já que não tinha absolutamente nenhuma habilidade com máquinas: entrou no carro, pegou o celular e rezou para que a Toca da Mula tivesse um reboque.

anos, bonito, loiro, corpo esculpido, roupas bem alinhadas. Era grande, notou, com ombros largos e quadris estreitos. Californiano, na certa.

Prendeu a respiração. Havia algo irresistível naquele olhar de absoluta confusão que lhe juntou as sobrancelhas acima dos óculos de sol.

— Esqueça, Dixie — ela murmurou por entre os dentes, quando uma perigosa sensação de fraqueza a invadiu. — Já chega de californianos.

Como se ele estivesse interessado... Homens assim gostavam de "Barbies", o que ela não era nem tinha vontade de ser.

Parou na frente do Porsche e plantou as mãos nos quadris.

— O que houve? Estourou a mangueira, a correia? Ou é algo pior?

Ele a encarou com suspeita por um longo momento antes de encontrar a voz.

— Chamei um guincho — disse, com ar imbecilizado. Dixie sorriu.

— E conseguiu um. É essa coisa grande, com a luz pisca-pisca em cima, e os cabos do guindaste, aí atrás.

O sujeito olhou para o guincho e, mais uma vez, cerrou as sobrancelhas.

— Mas você é mulher.

— Assim me disseram.

— Olhe, não sou nenhum chauvinista — ele começou, sarcástico. — Só não esperava ser atendido por uma mu­lher. Acredito firmemente na igualdade entre os sexos.

— Contanto que nenhuma mulher se meta a mexer em seu Porsche, é isso? — Dixie disparou sem rodeios.

Jake soltou um resmungo. Era só o que faltava. Já não bastava o golpe em seu ego por ter de pedir ajuda? Uma mulher vir em seu socorro era o mesmo que esfregar sal numa velha ferida. Sem dizer que estava passando por preconceituoso.

Olhou para a moça de cima a baixo. Tinha cerca de trin­ta anos e não era muito alta. O corpo "violão" encontrava-se espremido nos jeans justos e um suéter marrom salientava-lhe o formato e o tamanho dos seios. A face era oval, com um narizinho reto e uma boquinha insolente. Os cabelos casta­nhos, revoltos e ondulados estavam presos acima das orelhas.

Não era em nada o tipo de mulher com quem ele normal­mente sairia, ou mesmo que olharia duas vezes. Porém, quan­do ela o encarou com aquele brilho malicioso nos olhos cor de avelã, sentiu o inconfundível despertar do desejo. Um desper­tar quente e vagaroso a se espreguiçar em suas entranhas.

Estranho.

Tinha de admitir, porém: a moça era bonita. Curvilínea, uma "gata".

Mas isso não a qualificava para mexer em seu Porsche.

Ele não tinha filhos, pois ainda tinha de encontrar a es­posa perfeita. Não possuía nenhum cachorro, porque viaja­va muito. Mas tinha seu Porsche. E todos os seus considerá­veis instintos possessivos e protetores se direcionavam para o carro. Não permitia que qualquer um o tocasse.

— Que fim levou Eldon? — ele perguntou, por fim. Empurrou os óculos escuros para o alto da cabeça e cravou o olhar na mulher.

A respiração de Dixie ficou presa nos pulmões. Os olhos do forasteiro eram tão azuis como o mar num dia sem nu­vens. Eram intensos, de um azul elétrico e perfeito.

Desviou o olhar, recompondo-se com um esforço que não foi lá muito bem-sucedido. Felizmente, era boa em encobrir as reações.

— Foi a um casamento — explicou, as batidas do coração se acelerando.

Uma garota poderia se afogar em todo aquele azul. O homem era uma perdição. E ela sempre tivera uma queda por homens grandes e fortes. Até mesmo a carranca dele era bonita.

— Mesmo que Eldon estivesse aqui, teria me mandado em seu lugar — completou, indolente.

Afastou-se, e respirou fundo o ar frio em outra tentativa de aclarar a mente. Apontou na direção do carro.

— Podemos abrir o capô dessa beleza? Está começando a escurecer.

Jake insinuou-se entre a mulher e seu amado Porsche, tentando protegê-lo como um pai faria com seu filho.

— Não vamos nos apressar — disse, com um sorriso ten­so. — Pode ser que só precise de um pequeno descanso.

Dixie endereçou-lhe um olhar irônico.

— Isso é um carro, não um puro-sangue.

— Essa é a sua opinião.

Ela revirou os olhos e levou as mãos aos quadris.

— Você pode não acreditar, mas, ao lado de Eldon, eu sou a melhor mecânica na Toca da Mula. Agora, tente ignorar que estou de sutiã, e me diga o que o carro fez antes de parar.

Jake duvidava de que alguém mais na Eldon's Gas and Go preenchesse uma roupa do jeito que ela preenchia. Resolveu explicar os problemas do carro; pelo menos assim não se distrairia a imaginar que tipo de sutiã ela usava.

— Bem... Ouvi um barulho como o de um martelo, depois um chiado e, então, uma nuvem branca saiu do capô.

A informação foi recebida com uma expressão pesarosa.

— Quanto tempo dirigiu depois disso?

— Não muito. Alguns quilômetros. — Ela entreabriu os lábios e Jake corrigiu: — Não, espere. Pode ser apenas um quilômetro e pouco. É que parecia mais longe. Eu estava "pisando" pela maior parte do caminho. Tenho certeza de que está só um pouco quente.

— É óbvio que não entende nada de mecânica. Era uma afirmação, não uma pergunta.

O orgulho de macho de Jake se eriçou. Ele endireitou os ombros largos e projetou o queixo num ângulo truculento, mas o único argumento que surgiu foi absolutamente infantil:

— E daí?

A verdade é que sua inabilidade com máquinas ficara evidente desde tenra idade. Tanto que ele aterrissara no pronto-socorro no mesmo dia em que ganhara seu primeiro — e último — jogo de ferramentas. Podia ter declarado que não era machista, mas, na realidade, tinha gravado no cé­rebro que homens deveriam ser bons com máquinas. E ele não era. Era másculo, atleta... mas teria de entregar seu Porsche a uma morena.

Sua salvadora enxotou-o para o lado, soltou a trava e ergueu o capô do Porsche. Jake a observou tatear o motor, verificando correias e mangueiras, fazendo o tipo de "hum" que os médicos fazem quando querem deixar preocupada uma pessoa doente.

— Tem certeza de que sabe o que está fazendo? — ele perguntou, as mãos comichando de vontade de empurrá-la para longe.

Ela se debruçou sobre as entranhas do carro, arrebitando o bumbum redondo ao tentar examinar mais de perto, um acessório de aspecto horrível, cheio de fios.

A atenção de Jake desviou-se momentaneamente do carro para o traseiro em questão. O suéter da moça subira até a cintura, revelando nádegas deliciosamente roliças. Ele era, tradicionalmente, um apreciador de pernas, mas aquele ân­gulo lhe dava uma nova perspectiva das formas femininas.

Ela se endireitou, puxou um trapo sujo de óleo do bolso da frente, e tirou a tampa do radiador com cuidado.

Jake sentiu as batidas do coração se acelerar. Afastou a imagem do bumbum da mente e inclinou-se ao lado dela sobre o motor.

— Não estou gostando dessa sua cara...

Dixie virou a cabeça. Ele estava logo ali. Perto o bastante para que sentisse o cheiro de menta em seu hálito. Perto o bastante para poder ver três diferentes nuances de dourado em seus cabelos e a leve sombra de barba na face... Perto o bastante para se beijarem, se ela tivesse perdido completa­mente o bom senso.

— Não há nada em seu radiador — murmurou, sem fôle­go, dominando o desejo.

Ele pestanejou, parecendo que estava hipnotizado, e de­pois pigarreou.

— Isso é ruim — disse apenas, o olhar desviando-se para os lábios carnudos. — Até eu sei que é mim. O que faremos?

Dixie recolocou a tampa do radiador, fez um gesto para que o estranho se afastasse, e fechou o capô.

— Nada, a não ser guinchar o carro para poder examiná-lo melhor. Pode ser a bomba d'água, uma mangueira, um furo no radiador... — Olhou para ele com uma expressão grave. — Podia ter fundido o motor, sabia?

Um gemido escapou da garganta do forasteiro, que empalideceu visivelmente.

Dixie deu-lhe um tapinha de consolo no braço. Pobrezinho. Ela bem que gostaria de lhe dar um abraço, mas achou me­lhor não.

Foi até o guincho para prepará-lo.

Jake sentiu as pernas fracas ao pensar na possibilidade de ter o motor do carro fundido. Senhor, o que André di­ria quando ele voltasse a Los Angeles? O mecânico tratava todos os carros de seus clientes como se fossem crianças. Era um pediatra de carros importados, recomendado de dono para dono, num reverente boca a boca. Um motor de Porsche fundido poderia levar o francês às lágrimas.

O som do macaco hidráulico arrancou-o dos pensamentos, e Jake voou para a traseira do carro. Longas lanças de aço emergiam do guincho: o tipo de coisa que se via em ferros-velhos para içar veículos e jogá-los em um monte de sucata.

De repente, sua imaginação visualizou as hastes empalando o Porsche. Ele se atirou de braços abertos sobre o carro.

— Não!

Dixie abriu a boca, estupefata. Manejou os pedais e abai­xou as barras que deslizariam sob as rodas traseiras do car­ro para erguer o veículo do chão.

— Melhor sair daí, querido, ou será esmagado. Pode se sentar aqui na cabine do guincho, se for muito doloroso para você observar.

Constrangido, Jake caminhou até a porta do guincho e subiu do lado do passageiro, enquanto ela descia pelo outro lado. O que havia com ele? Onde estava seu orgulho? Como se dispusera a passar por um perfeito idiota?

A mulher obviamente sabia o que estava fazendo. Habilidade mecânica não tinha nada a ver com sexo.

Mas ela era tão frágil. Jamais imaginara que uma moto­rista de guincho fosse tão... mulher.

— O que esperava, Gannon? Arnold Schwarzenegger com seios? — resmungou para si, forçando os pensamentos a tomar outro rumo.

Podia começar sua busca por Devon Stafford na Toca da Mula. Um fragmento de informação dizia que ela passara um verão nessa cidade da costa da Carolina quando menina. E uma recordação de infância bem podia ter seduzido uma atriz. A Toca da Mula não era a escolha mais lógica para começar, porém ele realmente não tinha opções agora.

E se o motor tivesse fundido?

Sentiu o coração apertado e um nó alojou-se como uma pedra em sua garganta. Seu lindo Porsche...

Sua salvadora abriu a porta da cabine do guincho e er­gueu-se até o banco do motorista.

— Prontinho. Seu "xodó" está içado e sem nenhum arra­nhão. Pode relaxar.

Jake esboçou um sorriso envergonhado.

— Desculpe-me se agi como um idiota. É que é meu pri­meiro Porsche e...

Ela ergueu a mão para interrompê-lo.

— Não precisa explicar. Sei tudo sobre homens e car­ros. Conheci um sujeito, uma vez, que tinha uma Ferrari Testarossa. Perdeu um eixo na Rodovia Ventura, na hora do rush. Ele se jogou sobre o capô e chorou como uma crian­ça. Dava pena de ver.

— Posso imaginar.

Jake estudou as feições delicadas mais atentamente. O aroma sutil de um perfume insinuou-se pelo cheiro de óleo e fumaça de cigarro que impregnava a cabine. Lírios do vale. O aroma penetrou no depósito ordenado de sua memória, e ficou arquivado para referência futura.

Dixie o fitou, enervada com a pontada que lhe aqueceu o ventre. Fazia algum tempo que não pensava em homens "daquele jeito". Não tivera ocasião para isso, nem energia, ocupada que estivera consigo, curando-se e se pondo inteira outra vez.

Entretanto, aquele era um sorriso deslumbrante, cati­vante, notável.

Belo homem. Os dentes também eram brancos e bem-feitos; como tudo nele, aliás.

Ele era perfeito. Mais uma razão pela qual precisava se livrar logo do sujeito. Já satisfizera sua busca por perfeição.

— Tem ido à Califórnia? — Jake perguntou só para que­brar o silêncio e a sedosa teia de tensão sexual que, de re­pente, se estendera sobre os dois. A moça não era seu tipo, recordou-se mais uma vez. Era mais chegado a loiras esguias e altas, não morenas exuberantes e curvilíneas.

Ela pendeu a cabeça para a frente, dirigindo a atenção à folha de registro amassada sobre a prancheta suja. Os cabe­los castanhos caíram dos lados da face como um véu.

— Estive nas redondezas — desconversou. — Vou preci­sar de seu nome e endereço para nossos registros.

— Jake Gannon, Rua Grafton, 6868, Santa Mara, Califórnia — ele recitou, obediente. Observou-a, curioso. — E você é...?

Ela ergueu a cabeça, os olhos redondos sob a beira da franja.

— Dixie. Dixie La Fontaine — respondeu, prendendo a respiração quando ele estendeu a mão e limpou-lhe a ponta do nariz.

— Graxa — justificou-se, o olhar cravado no dela confor­me o magnetismo entre os dois aumentava. — Tinha graxa no nariz.

— Ah.

Ela abaixou a cabeça outra vez para olhar a folha de registro. Tonta. O que tinha na cabeça para reagir a um estranho daquele jeito? Um estranho da Califórnia, ainda por cima!

Esqueça, Dixie, querida. Se, e quando for procurar alguém, ele tem de ser um velho e bom sulista, que goste de frango frito e torta de chocolate com nozes, e também de dançar no baile da Legião Americana com moças que tenham o mínimo de carne!

Bastava olhar para Jake Gannon para saber que ele pertencia ao tipo de casta que vivia nas academias de gi­nástica, comia granola no café da manhã, e se encolhia à simples menção da palavra "gordo". Jake era a imagem da Califórnia. E ela possuía coisas mais importantes a focar em sua vida do que uma imagem.

— Pretende ficar em algum lugar por aqui? — quis sa­ber. — Vamos precisar de um telefone por meio do qual pos­samos encontrá-lo.

— Esse é o meu próximo problema. — Jake sorriu de um jeito encantador, exibindo duas covinhas. — Eu não tinha planos de ficar aqui. Há algum motel ou algo assim na Toca da Mula?

Com um sorriso enviesado, Dixie colocou a prancheta de lado e deu a partida no guincho.

— "Algo assim". Ele fez uma careta.

— Acha que terei problema em conseguir um quarto sem reserva?

— Não se preocupe com isso — ela resmungou, confor­mada com a possibilidade de tê-lo mais perto do que queria. — Conheço muito bem o gerente.

La Fontaine. Jake remoeu o nome na mente, alvoroça­do. O nome de solteira da mãe de Devon Stafford era La Fontaine. Talvez Dixie fosse uma prima distante.

Passou os olhos por ela, procurando alguma semelhança.

— O que foi? — ela perguntou, com rispidez, tirando a mão do volante para esfregar o nariz. — Mais graxa?

— Não, nada. Eu só estava admirando o jeito que você dirige o guincho.

— Ah... Obrigada.

Ele esticou-se um pouco, mudando de posição para poder estudá-la melhor. Tudo a respeito de Devon Stafford era estonteante, lembrou. Desde a cabeleira loira até a estru­tura delicada da face, com as maçãs do rosto salientes e cheias, os lábios cheios. Dixie também tinha uma aparência interessante. O rosto oval o fazia pensar nas mulheres de outrora. Seria uma beldade nos tempos do cinema mudo, mas não lembrava nenhuma atriz de cinema.

Seu olhar desviou-se para a boca e o arco perfeito do lábio superior. Não era tão carnudo ou sensual como o de Devon Stafford, mas havia uma ligeira semelhança. Chegou mais perto. Ela o encarou com suspeita e ele esboçou um sorriso, inclinando a cabeça para analisar a linha do nariz e o ân­gulo do queixo.

O olhar de Dixie desviou-se da estrada repetidas vezes para fitá-lo. O homem a olhava de um jeito meio estranho, quase com intimidade.

Esticou a mão direita e tocou a bolsa na lateral do banco, engolindo em seco.

— Se é algum tarado, vou lhe dizer com franqueza: te­nho uma arma aqui, e sei muito bem como usá-la.

Jake recostou-se na porta do guincho com uma garga­lhada. Mas parou ao cravar os olhos na ponta do cano do 38 apontado para seu peito.

— Ei, não sou nenhum pervertido — declarou, espantado.

Fitou-a, incrédulo, tentando pensar em como poderia de­sarmá-la. Conhecia alguns métodos, mas, se a arma dispa­rasse na cabine, alguém poderia se ferir, ou o guincho sair da estrada e seu Porsche sofrer perda total.

Não gostou da idéia, tampouco de continuar com o revól­ver apontado para ele.

Dixie diminuiu a velocidade até parar o guincho, e enca­rou-o com expressão dura. Era difícil imaginar Jake Gannon como um psicopata. Ele parecia absolutamente respeitável. Mesmo assim, ela sabia, melhor que ninguém, como as apa­rências podiam enganar.

— Como vou saber se está dizendo a verdade? — exigiu.

— Sou um sujeito decente — Jake falou, seco. — Sou ex-fuzileiro, pago meus impostos, voto em todas as eleições...

Dixie fez uma careta.

— Ted Bundy era republicano, e isso não o impediu de ser um serial killer. — Apontou a roupa de Jake com o cano da pistola. — Até se vestia assim como você!

— Vários homens usam calças cáqui e nem todos são homicidas!

— Acho que não — ela admitiu, irritada. Abaixou o cano da arma. Estreitou os olhos para fitá-lo, porém. — Jura que não é nenhum maníaco?

Que mulher aceitaria o juramento de um homem suspei­to? Jake entrou no jogo mesmo assim. Afinal, era ela quem segurava o revólver e o apontava para uma parte muito im­portante de sua anatomia.

— Juro — falou com convicção. — Juro pela vida de mi­nha mãe.

— Ama sua mãe tanto assim?

— Sim, mas não muito. Nada insano, do tipo Psicose. Se quiser, posso lhe dar o número dela. Enquanto isso, será que pode apontar essa coisa para outro lugar? Creio que prefiro morrer de uma vez a levar uma bala onde você está mirando neste exato momento... Sou meio sentimental para com as minhas coisas.

As faces de Dixie tingiram-se de vermelho quando ela olhou para a ponta do cano da arma. Era evidente que Deus não deixara nenhum detalhe passar despercebido quando fabricara aquele homem.

— Desculpe — resmungou, virando a pistola alguns graus à esquerda, e desviando rapidamente o olhar da braguilha.

— Está desculpada — Jake respondeu secamente. — Isso quer dizer que acredita em mim?

— Acho que sim.

Ela enfiou a arma de novo na bolsa e pousou a mão no câmbio.

— Sinto muito, mas uma moça tem de ser cautelosa hoje em dia, sabe? Quero dizer, aqui estou eu, sozinha numa es­trada, dirigindo um guincho na companhia de um califor­niano, que não tenho a mínima idéia de quem seja. O carro quebrado poderia ser uma trama para atrair alguma pobre alma inocente para suas garras.

Ele arqueou uma sobrancelha.

— Que imaginação.

— Eu leio jornais, sabia? — Ela se indignou, tomando a dar a partida e recostando-se ao banco. — Também vejo as notícias na tevê. O mundo está cheio de malucos. Não quero ser grosseira, mas, pelo visto, a maioria deles vem da Califórnia.

Jake sufocou o impulso de rir, pois a arma ainda estava ao alcance da moça. Não parecia prudente antagonizar uma mulher que guiava um guincho de uma tonelada e carrega­va uma arma na bolsa. Assim, desviou o assunto para um terreno mais seguro.

— Posso lhe assegurar, srta. La Fontaine: sou apenas um sujeito comum. Não tenho esqueletos no armário, no porão, no quintal ou em qualquer outro lugar. Sou escri­tor. Costuma ser uma profissão não violenta, embora tenha seus momentos de tensão.

Ela pisou no freio, fazendo Jake deslizar pelo assento e bater a cabeça no parabrisa.

— É escritor? — ela perguntou, com algo semelhante a pânico nos olhos. — Que tipo de escritor? Não é repórter, é?

Jake esfregou a cabeça, pestanejando, a atenção dividi­da entre a reação extrema de Dixie e o latejar na testa.

— Não, não sou repórter. Não precisa puxar a arma ou­tra vez — disse, com sarcasmo. — Posso perguntar por que se importaria, se eu fosse um? — Ele ergueu a mão. — Não tem de responder, se isso for aborrecê-la e levá-la a cometer um ato impulsivo.

Talvez ele tivesse se deparado com algo aqui, pensou, as ba­tidas do coração se acelerando. Poderia estar no rastro certo.

Tinha de andar com cuidado. Se Devon Stafford descon­fiasse de que havia alguém na sua trilha e escapulisse, sua caçada poderia arrastar-se indefinidamente.

— Tem alguma coisa contra repórteres?

— É que um repórter de Charleston veio para cá um tem­po atrás — Dixie respondeu, um pouco hesitante. — Chegou aqui agindo amigavelmente, perguntando às pessoas todo tipo de coisa sobre a vida na Toca da Mula. Então sua his­tória foi publicada, e todos na cidade compraram o jornal. — Ela respirou fundo e sacudiu a cabeça. — O imbecil fez pouco da cidade e de tudo e todos que havia nela. E todo mundo pensando que ele era um bom sujeito...

Jake sentiu o coração se apertar ao ver os olhos da moça se encherem de lágrimas, e o queixo delicado tremer ligei­ramente. Dixie o fitou, constrangida. Fungou e pestanejou, o que, estranhamente, deu-lhe uma vontade absurda de confortá-la, de passar os braços em tomo dela e protegê-la daquele mundo cruel.

Incrível, mas aquela moça conseguira tocar algo dentro dele e trazer à tona todos os seus instintos de macho guardião. Dixie parecia extremamente meiga e muito sincera. Além do mais, era muito bonita, e tinha seios maravilhosos...

— Desculpe, sr. Gannon — ela murmurou. Enxugou os cílios molhados com o dorso da mão. — Eu não pretendia ficar tão comovida. É que esse tipo de coisa...

Parou, e deixou que o silêncio falasse de seus sentimentos.

— Está tudo bem — ele murmurou, completamente co­movido com a fervorosa confissão. — Eu compreendo.

Compreendia, de verdade, mesmo que não estivesse sen­do de todo transparente. Não gostou da sensação de escon­der a verdade, porém não tinha escolha. Tendo em vista sua recente experiência, se ele revelasse o verdadeiro propósito de estar na Toca da Mula, era bem possível que Dixie sacas­se o revólver e o matasse a tiros.

Pelo menos, poderia se consolar com o fato de que sua presença ali não magoaria ninguém. Mesmo que encon­trasse Devon Stafford, nada poderia advir de mim. Havia sempre a chance de ela não querer partilhar sua história com o mundo, embora ele estivesse determinado a fazer seu melhor para convencê-la do contrário.

Tirou um lenço branco do bolso e o estendeu a Dixie, ain­da sob o fascínio de sua repentina fragilidade. Aproximou-se protetoramente, enquanto ela enxugava as lágrimas. Quando ela o encarou e esboçou um ligeiro sorriso, Jake sentiu-se como se tivesse sido golpeado no peito com um martelo.

— Obrigada — ela murmurou ao lhe devolver o lenço, a voz embargada e sensual. — Foi muito meigo de sua parte. Compreensão é certamente uma qualidade rara num ho­mem...

Jake recuou, meio aturdido.

— De qualquer maneira, já deu para ver como somos des­confiados. — Ela riu. — O povo daqui nunca se deu muito bem com estranhos que chegam fazendo todo tipo de perguntas.

— Não é uma atitude comum para uma cidade turística.

— Para ser franca, nunca nos saímos muito bem nesse quesito — ela confessou, engatando a marcha. — As pesso­as costumam gostar de lugares mais chiques, como a praia de Myrtle. Apesar de tudo, temos lá nossos frequentadores. — Ela o olhou de soslaio. — Se não é repórter, que tipo de escritor é?

— De mistério — Jake respondeu, detestando que a fra­se soasse como uma mentira. — Ou pelo menos serei, assim que tiver uma chance de revisar meu livro e vendê-lo.

— Um escritor de mistério? — Dixie endereçou-lhe um sorriso radiante. — Isso é ótimo! E o que quer dizer com "serei"? Se estiver trabalhando num livro, já é um escritor. E não deixe que ninguém lhe diga o contrário. É o esforço que conta.

Jake a encarou, impressionado com aquela sabedoria sim­ples. E ainda mais surpreso com o modo como aquilo penetra­va direto em seu coração, mexendo em um canto vulnerável que ele preferiria ignorar. Gostava de se imaginar como um profissional durão, mas, na verdade, o fracasso em vender seu manuscrito lascara a rocha de sua autoconfiança.

As palavras de Dixie acalmaram aquela pequena mágoa escondida.

Rumaram para o Eldon's Gas and Go, e sua atenção se desviou para outras questões. Sentiu um aperto na boca do estômago. O lugar não era o que alguém chamaria de moder­no. Pelo menos desde os tempos do Ford Bigode. As bombas de combustível eram antigas, daquelas com cúpulas de vidro no topo, muito semelhantes aos robôs dos filmes de ficção cien­tífica dos anos cinqüenta. A garagem era escura, um lugar cavernoso, de aspecto sujo. Muito diferente dos ambientes im­pecáveis que seu Porsche frequentava. As paredes e prateleiras estavam lotadas de todo tipo de coisa imaginável, e todas pretas de graxa. E tudo abrigado numa estrutura de madeira, que dava a impressão de ter sobrevivido a furacões demais.

— Não deixe que as aparências o enganem, sr. Gannon — Dixie observou com um tom de censura na voz. — As coisas nem sempre são o que parecem.

Jake pestanejou.

— Tenho certeza de que é um ótimo lugar — ele respon­deu, quase não conseguindo se mostrar convincente. — É que sendo da cidade, estou mais acostumado a...

— Perfeição? — ela sugeriu secamente.

Ele percebeu uma ponta de amargura na voz delicada e voltou-se para fitá-la, mas Dixie já saía do guincho. Apontou o Porsche, declarando que iria deixá-lo pendurado na tra­seira. Assim seria menos tentador, caso alguém tivesse a idéia de dar uma volta com ele.

Jake sentiu o estômago se contrair outra vez com o pen­samento, esquecido de que, graças ao sofisticado sistema de segurança, o carro não iria à parte alguma.

Com um suspiro, seguiu Dixie para dentro do escritório do posto.

— Deixarei um bilhete para Eldon — disse ela, procu­rando papel e lápis na confusão do balcão.

Havia cartas, recibos de cartão de crédito, papéis de bala, trapos sujos e velas de ignição entre a desordem. Jake teve de enfiar as mãos nos bolsos para resistir ao impulso de endireitar as coisas. Fora criado em meio à ordem pelo pai fuzileiro naval e a mãe perito-contadora, e era um segui­dor fiel da filosofia "um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar". Uma bagunça como aquela o deixava doen­te. Viu, horrorizado, quando Dixie finalmente encontrou um bloco sujo e uma caneta esferográfica, que parecia ter sido mastigada por roedores vorazes. Com a caneta entre o polegar, o indicador e o dedo médio da mão esquerda, ela inclinou-se para escrever o bilhete.

— Quanto tempo acha que Eldon levará para consertá-lo quando voltar? — Jake perguntou, notando, meio distraído, o modo estranho com que ela segurava a caneta.

— Difícil dizer. — Ela terminou o bilhete, assinou-o com um floreio e ergueu a cabeça. — Pode levar cinco minutos ou cinco dias. E pode demorar mais se você fun...

Ele ergueu a mão para cortar-lhe a frase.

— Por favor, não diga isso de novo — falou por entre os dentes.

Dixie mordeu o lábio.

— Como eu dizia... depende se ele tiver de mandar bus­car as peças ou não. Eldon não tem muitos pedidos de peças de Porsche. Tem algum lugar onde precisaria estar?

— Tenho algumas... pesquisas a fazer. — Jake suspirou e, incapaz de se conter, endireitou uma caixa empoeirada de chicletes sobre o balcão. Em essência, estava onde preci­sava estar. Mas não conseguiria fazer muita coisa se conti­nuasse a pé. — Há alguma locadora de carros por aqui?

— Não. Mas Eldon poderia lhe emprestar um carro. Terá de falar com ele, de qualquer modo. Só não garanto um Porsche.

Jake endereçou-lhe um sorriso.

— Contanto que seja um carro que me leve para onde preciso ir...

— Certo. — Dixie torceu o nariz conforme o observava ajeitar um calendário de parede. O homem só faltara ter um ataque diante da bagunça no posto, e era provável que fosse se desinfetar depois de ter estado lá dentro. Era mesmo um almofadinha.

— Não creio que haja uma empresa de táxis por aqui também?

— Não — ela respondeu. — Mas eu lhe darei uma caro­na até os chalés. Vou para aquele lado mesmo.

— Obrigado. Seria ótimo. Dixie... — Jake a segurou pelo ombro quando ela rumou para um jipe surrado.

Ela se voltou, sentindo-se vacilante e estranha. O toque penetrara em sua pele como eletricidade, percorrendo-lhe os seios, drenando a força de seus joelhos. E embora tivesse sido casual, reforçara grandemente o fato de que ela o acha­va muito atraente.

Está com problemas, Dixie, querida.

Se ele tentasse beijá-la, ela não seria capaz de repudiá-lo, pensou, oscilando ligeiramente. Céus, ele não era seu tipo. E ela não era o tipo de garota que deixava que estra­nhos a beijassem.

Mas havia um limite para resistir a tanto magnetismo, e Jake Gannon tinha uma carga inteira disso.

Inclinou-se sob a pressão da mão em seu ombro e ergueu o rosto, desejando ter passado um pouco de brilho nos lábios.

— Sim?

— Eu só queria agradecer — ele murmurou. — Por me ajudar.

Sua atenção concentrou-se nos lábios rosados. Teve von­tade de beijá-la. Vontade de passar os braços em tomo da­quele corpo cheio de curvas e plantar um beijo naquela boca carnuda.

Incrível. Dixie extraía de dentro dele as emoções mais profundas, apenas com um olhar ou uma palavra. O jeito que ela o fitava o fazia sentir-se incrivelmente másculo e forte, e mesmo assim, terno.

— Não quero que pense que sou apenas outro grossei­ro, morador da cidade grande — resmungou. — Estou real­mente agradecido por seu esforço. É muito boa gente.

— Entendo — ela falou, as esperanças murchando como um balão furado.

Suas faces tingiram-se de vermelho. Claro que ele não iria beijá-la. Ela cheirava a óleo diesel e tinha graxa no na­riz. Já era um espanto que aquele perfeccionista e metido a tivesse tocado.

Boa gente. Que raiva!

Também, o que ela queria? Devia estar contente por ele considerá-la "boa gente".

Mas a verdade era que estava mais irritada do que um gato molhado.

— Falo sério — ele insistiu. — Excluído o fato de ter sa­cado aquele revólver para mim, você foi muito gentil.

— Não há de quê — ela respondeu, seca. — Tenho mes­mo um coração muito generoso.

Não era só o coração que era generoso, Jake pensou ao observá-la rumar para o Porsche, os quadris gingando, o traseiro ondulando sob os jeans apertados.

Sacudiu a cabeça quando o desejo apertou-se como um nó em sua virilha. Aquilo não era próprio dele. Suas pai­xões eram normalmente sadias, civilizadas, controladas. Não era o tipo de homem que perdia a cabeça por um trasei­ro num par de jeans justos, Era óbvio que estava sofrendo de alguma espécie de insanidade temporária induzida pela perda do carro.

Tiraram do Porsche seus pertences pessoais, e Jake to­mou o cuidado de pegar a caixa de arquivos sobre Devon Stafford. Não convinha que a srta. La Fontaine descobrisse as pilhas de fotos, anotações e artigos que ele acumulara, ou teria de se explicar a Dixie e seu amigo, o revólver, pensou com um sorriso.

Ela era uma "gata", e não havia como não gostar disso.

Colocou a caixa no assoalho do jipe, atrás do banco do passageiro, e a máquina de escrever portátil em cima.

— Sobrou alguma coisa no carro?

— Um par de pesos.

— Eu pego.

— Não, pode deixar — Dixie insistiu, e emendou em voz baixa: — Sou boa gente, você sabe.

Jake a observou, conforme ela trazia os halteres, um em cada braço, cambaleando e jogando os pesos no banco tra­seiro enquanto praguejava contra a mania da ginástica. Os pesos bateram contra uma valise e voltaram. Dixie soltou um grito e saltou para trás. Olhou furiosa para ele, como se aquilo tudo fosse sua culpa.

— Pronto — disse, ofegante, antes de endereçar a ele um sorriso forçado. — Sinto-me uma nova mulher. Amanhã, quem sabe, eu nem precise do guincho para erguer os carros.

Jake reprimiu um sorriso. Resolveu guardar para si mes­mo o fato de os halteres só pesarem quatro quilos e meio.

Deu a volta pela frente do jipe, enquanto Dixie enfiava uma velha jaqueta de couro e sentava-se ao volante. Hesitou ao ver o que o esperava. O banco parecia uma área de desas­tre, lotada de embalagens de lanche, restos de batata frita e latas de refrigerante. Uma coleção de colares baratos de miçangas pendia do retrovisor.

Depois de limpar os farelos com pôde, Jake acomodou-se, mas logo saltou e levou a mão até uma fenda no assento. Arrancou dela um enorme pente roxo, com longos dentes de aspecto perigoso.

Dixie soltou uma exclamação de surpresa e o tirou da mão dele.

— O pente de De... Nossa! Procurei isto por toda parte!

Jake sentiu verdadeiras bolhas de excitação fervilhando no peito. Os cabelos castanhos e macios de Dixie certamen­te não precisavam de um pente daquele tamanho. Mas uma mulher de cabeleira longa e loira, sem dúvida precisaria. Além do mais, o pequeno deslize da moça não lhe passara despercebido. O pente de De... ela havia dito.

Sorriu, triunfante. Tinha se deparado com alguma coisa ali, podia apostar. E a bela Dixie La Fontaine era a chave para aquele enigma.

 

A Toca da Mula não era lá essas coisas, e tudo precisava de uma demão de tinta. Assim, Dixie e Jake seguiram lenta­mente pelo centro comercial da cidade, composto de apenas uma rua e meia dúzia de estabelecimentos, a maior parte já fechados àquela hora. As duas exceções ficavam em frente uma da outra, ambas próximas ao mar: o Restaurante de Frutos do Mar do Clem, e o Bar Magnólia do Leo.

— Está com fome? — Dixie perguntou. A hora do jantar chegara e se fora no que dizia respeito ao seu estômago. Depois de se acostumar a um suprimento constante de comi­da sólida outra vez, este se tomara muito exigente, e Dixie não via razão para não ceder a tais reclamações. Sofrera por muito tempo em nome da imagem perfeita. Agora tinha coi­sas mais importantes em que pensar. Como observar o céu tomar-se iridescente conforme o sol se erguia do Atlântico, e ouvir as crianças brincando na praia.

Viu o olhar de Jake pousar no luminoso de néon cor-de-rosa do Clem com cautela.

— Acha que é uma boa idéia comer frutos do mar num lugar que vende isca viva?

— Contanto que não peça alguma coisa frita...

— Não como fritura.

Mais um partidário da boa forma, Dixie pensou com amargura, relanceando os olhos pelo físico maravilhoso. Outro "rato de academia", na certa. Provavelmente bebia água engarrafada da Suíça, e corria todas as manhãs.

Não era seu tipo de jeito nenhum. Ela estava farta de gente que se preocupava mais com o colesterol do que com os amigos.

Por que tinha de achá-lo tão atraente?

— Que tal o café perto do bar?

O Café Trulove tinha um ar tão antigo, que saíra de moda e voltara a ser fashion outra vez. Tinha cortinas de chintz à janela e uma placa que dizia "Bem-Vindo", mas as luzes estavam apagadas.

— Fechado — Dixie resmungou. — Fica aberto só para o desjejum e o almoço.

Jake olhou para o relógio.

— É hora do almoço para mim.

— Não por aqui. Aqui o almoço é ao meio-dia. O jantar é à noite, e as irmãs Trulove não fazem jantar, pois atrapalha a novela. Além disso, estão com oitenta anos. Vão dormir às oito e meia.

Dixie seguiu para a área sem calçamento em frente ao bar e estacionou.

— Leo nos arrumará alguns sanduíches. É mais do que você vai conseguir nos chalés.

— Não há serviço de quarto?

Ela meneou a cabeça, os hormônios se agitando. Tinha todo tipo de serviço de quarto em mente no que dizia respei­to a Jake Gannon, mas era melhor nem tocar no assunto.

Entraram no Bar Magnólia com um pequeno coro de "Olá, Dixie", seguido de total silêncio, durante o qual todos os olha­res se fixaram em Jake. O bar cheirava a fumaça de cigarro e cerveja. O assoalho de madeira crua estava coalhado de cascas de amendoim. Três homens se sentavam nos bancos de vinil, e duas senhoras idosas ocupavam uma mesinha re­donda, perto de uma tevê de tela enorme. As mesas em nicho, ao longo da parede dos fundos, estavam vazias.

Dixie fez uma apresentação geral, conforme se empoleirava na banqueta do bar.

— Olá, pessoal. Este é Jake Gannon, da Califórnia. O carro dele quebrou e ele ficará aqui até Eldon consertá-lo.

Um murmúrio de simpatia ecoou entre os homens, en­quanto um comercial de desodorante ocupava a tela da tevê. Dixie apontou para cada uma das pessoas, dizendo seus no­mes: Bubby Bristol, Joe Dell Ward e Leo Vencour, o dono do estabelecimento. As irmãs Trulove, Cora May e Divine, reca­tadas damas sulistas, com vestidos floridos e cabelos cor de algodão. Todos acenaram a cabeça gentilmente para Jake.

No instante em que o programa recomeçou, porém, a atenção geral tornou a se concentrar na tevê.

Um homem dentuço, com uma peruca horrível, girava a Roda da Fortuna na tela. O ponteiro parou nos mil e qui­nhentos dólares, e o sujeito anunciou que iria parar por ali, o que provocou resmungos e vaias dos clientes do bar.

— O sujeito é mais "tapado" que um tijolo!

— Que droga!

As duas senhoras de cabelos brancos bufaram com re­provação.

Dixie balançou a cabeça.

— Vai ver o coitado precisa desse dinheiro para cuidar dos filhos, e não quer se arriscar a perder tudo e deixar as crianças ao Deus dará pelo resto da vida... Ninguém sabe que tipo de pressão ele pode estar enfrentando.

Resmungos de "imagine" brotaram do grupo.

Jake endereçou a Dixie um olhar curioso. A voluptuosa motorista do guincho tinha um coração de manteiga.

Por alguma razão, a idéia o agradou.. Outra vez teve von­tade de beijá-la. Mas Dixie o encarou com um ar aborrecido, e enfiou-lhe um cardápio de capa de plástico nas mãos.

Leo levantou-se da cadeira e foi para trás do balcão ano­tar os pedidos. Era um homem alto e magro, de seus sessen­ta anos, com cabelos grisalhos penteados para trás e feições de cão de caça.

— O que vai ser?

— Para mim, o de sempre — Dixie respondeu com um sorriso.

Jake ergueu os olhos do cardápio com uma expressão de dúvida.

— O peru é no pão branco?

— Branco tomo a neve — garantiu Leo.

Jake fez uma careta, provocando uma ruga de espanto no dono do bar.

— Os tomates são orgânicos?

As sobrancelhas do homem se juntaram ainda mais.

— Cresceram na terra, se é isso que você quer dizer. Dixie revirou os olhos.

— Cresceram na estufa de Macy Vencour, e a pior coisa que ela põe neles é cerveja vencida.

Jake ignorou o tom impaciente e deu um sorriso para o dono do bar.

— Quero uma cerveja light e o sanduíche de peru, sem o pão e sem a maionese, obrigado.

— Mas isso não é um sanduíche, é? — indagou Leo. Depois seguiu para a cozinha, meneando a cabeça.

Dixie bufou, irritada.

— Você é pior que minha tia-avó Suki. Ela ainda sofria da vesícula; pelo menos tinha uma desculpa.

— Acontece que pão branco está cheio de conservantes químicos — Jake a informou. — O corpo humano é um tem­plo, você sabe disso.

E você venera o seu todo dia.

Dixie mordeu a língua para impedir o comentário de es­capar de sua boca. Não conseguiu evitar, porém, de pensar que não se importaria em fazer uma pequena adoração ao templo de Jake.

Maldisse a si mesma no mesmo instante.

Era culpa de Jake Gannon que suas emoções estivessem alvoroçadas. Desde que voltara à Toca da Mula, ela era uma pessoa perfeitamente normal e agradável... Depois que sua depressão tinha amainado, claro.

Então, ele surgira com aqueles olhos e Porsche azuis, fazendo-a recordar-se de que era uma mulher, e trazendo lembranças de um tipo de vida que a tomara miserável.

Leo voltou e colocou um prato na frente de cada um de­les. Lado a lado, a comida parecia um guia do "Sim e Não" para uma boa saúde. A de Jake consistia em peito de peru fatiado num leito de alface e tomate. O sanduíche de Dixie destacava-se como uma torre: presunto coberto de queijo cheddar, cercado por duas fatias grossas de pão branco.

Jake franziu a testa.

— Vai mesmo comer isso aí?

— Não — ela respondeu, com irritação —, vou acondicioná-lo numa cápsula do tempo e enterrá-lo para a poste­ridade.

Ele ergueu as mãos num gesto de rendição.

— O corpo é seu.

— Tem razão, e farei com ele o que eu bem entender.

— Tudo bem — ele resmungou. — Não vai puxar aquela arma para mim de novo, vai?

Dixie o encarou, zangada, e empurrou o prato. Nada como alguém metido a nutricionista para tirar a graça de comer.

— Jake, o que aconteceu com o carro? — Bubby Bristol perguntou, procurando outra fonte de diversão. Na tela da tevê, os créditos para o programa rolavam sobre a imagem dos apresentadores, que acenavam em despedida.

— Ferveu. Pode ser a mangueira — explicou Jake, ten­tando falar como se entendesse alguma coisa de mecânica.

— Ou a bomba d'água — lembrou Bubby, concordando. Aparentava uns trinta anos e tinha a compleição de um lenhador: olhos e cabelos pretos, de fios tão grossos que dava a impressão de usar uma pele de castor na cabeça.

Jake tomou um gole da cerveja.

— O radiador estava seco até os ossos.

Um olhar horrorizado passou pela face quadrada de Bubby.

— Tomara que você não tenha fundido o motor.

Jake tentou forçar uma risadinha, mas soou como se ti­vesse se engasgando. Olhou para o prato, já sem apetite.

Dixie tentou divertir-se, mas não conseguiu. Jake ficara tão pálido como o pão assassino de seu sanduíche.

O pobre parecia uma criança, cujo presente de Natal mais bonito fora esmagado sob o peso de uma tia gorda.

Estendeu o braço e afagou-lhe a mão num gesto de con­solo. Imediatamente, foi como se pequenas faíscas fizessem formigar seus dedos.

— Conheço um sujeito que passou por isso uma vez — Joe Dell contou, empurrando a caneca na direção de Leo para que a enchesse. — Quebrou o bloco do motor, imagine. A coisa toda travou: a transmissão e tudo mais. Teve de vender o carro como sucata.

Jake se encolheu e Dixie se condoeu por ele.

— Joe, francamente! Não vê que o coitado já está ar­rasado? Estamos falando de um Porsche novo, pelo amor de Deus!

Os homens gemeram todos juntos. No silêncio, a música tema do programa de tevê soou alegre ao fundo.

Assim que o apresentador anunciou o convidado, Dixie fez menção de pegar o controle remoto que estava sobre o balcão, mas Jake a superou, a mão se deslocando com a ra­pidez de um bote de serpente.

— É meu programa favorito — ele disse, endereçando-lhe um sorriso enquanto apertava o botão do volume.

Na tela, a imagem de Devon Stafford assomou de forma bombástica, com um sorriso sedutor a lhe erguer os cantos dos lábios, a cabeleira platinada espalhando-se em tomo do rosto perfeito em um desalinho sensual. O cenário mudou para uma tomada externa do lar palaciano de Stafford, nas colinas de Hollywood. Enquanto um jardineiro caminhava pelo gramado, caçando folhas secas com uma vara de bambu, um correspondente da emissora, de pé na calçada em frente, relatava que no primeiro aniversário de seu sumiço, a sra. Stafford ainda não fora localizada e a busca continuava.

— Imagine só — Jake resmungou, baixando o volume da tevê. — Uma mulher bela e talentosa como essa some sem uma palavra para ninguém. Que loucura.

Ninguém no bar disse uma palavra por um longo mo­mento. Cora May Trulove adormecera na cadeira e ressonava baixinho. Bubby abriu um amendoim e jogou as cascas no chão.

— Nem me diga — resmungou, sacudindo a cabeça.

— Estamos todos de luto — declarou Joe Dell. — O pro­grama Wylde Time era o favorito de todos daqui. Pelo me­nos, da maioria dos homens. Ver Devon Stafford caçar cri­minosos era o suficiente para erguer um homem do caixão.

— Entendo o que quer dizer — Jake disse com um sorriso. — Eu não me importaria em naufragar numa ilha com ela.

— Você e qualquer outro homem de sangue vermelho nas veias!

— Aquela boca...

— Aquele cabelo...

— Aqueles seios...

Dixie limpou a garganta com força, as sobrancelhas for­mando um "V" sobre os olhos tempestuosos.

— Detesto fazer chover nesse festival de testosterona, mas ela é apenas uma atriz, tenham dó! Não descobriu a cura para o câncer, nem uma solução para o fim da fome no mundo. Tampouco imaginou um jeito fácil de dobrar lençóis com elástico. Vocês agem como se ela fosse Deus no Céu e Devon Stafford na Terra... Eu, pelo menos, não sinto a me­nor falta dela.

Os homens a encararam como se ela tivesse proclamado uma blasfêmia, exceto Leo, que a fitou com um olhar longo e franco.

— Não precisa ficar toda ouriçada, Dixie — disse baixi­nho. — É natural que os homens babem por causa de Devon Stafford.

— Ela é apenas uma estrela de cinema — ela rebateu, exasperada. — Grande coisa!

— Estamos falando aqui da mulher perfeita — Jake in­terveio.

— Cabelo até o traseiro e um sutiã tamanho GG. Esses são seus ingredientes para uma mulher perfeita? — inda­gou Dixie, irônica. Estava fervendo de raiva e sabia que es­tava prestes a explodir, mas não conseguiu evitar. Se havia um assunto que a deixava irada era o culto à perfeição. E não ajudava em nada ver que o primeiro homem pelo qual se sentia atraída em anos idolatrasse Devon Stafford.

— Uma "cinturinha de pilão" também não cairia nada mal — Bubby acrescentou à lista dos atributos femininos desejáveis.

— E lábios de Angelina Jolie — Joe Dell adicionou, mui­to sério. Todos os homens concordaram com um gesto de cabeça.

— Pois isso não cheira nem fede para mim — Dixie sibilou. Saltou do banquinho e puxou o zíper da jaqueta com um gesto brusco. — Inacreditável. Não ouvi uma só pala­vra sobre inteligência, compaixão ou força de caráter. Até onde sei, a mulher perfeita que vocês descrevem poderia muito bem ser uma daquelas bonecas infláveis que perver­tidos compram dos anúncios de revistas pornográficas... Deveriam se envergonhar.

Dixie ignorou o ar apatetado de Bubby e Joe e se concen­trou na especulação que viu nos olhos de Jake. Encarou-o por sob os longos cílios.

— Acabaram de demonstrar que, de fato, os homens pensam mesmo com uma pequena parte de sua anatomia, a qual nem mesmo deve estar ligada ao cérebro.

A srta. Divine concordou e sorriu gentilmente.

— São todos iguais. Não passam de moleques.

— Até o dia em que morram de velhice — Dixie comple­tou por entre os dentes. Lançou a Jake um olhar flamejan­te: — Vamos, Gannon.

Jake tomou um último gole da cerveja, olhando-a de sos­laio, depois deu boa-noite aos novos conhecidos e a seguiu.

 

— Presumo que você não seja uma grande fã de Devon Stafford — Jake disse, calmamente, quan­do Dixie bateu a porta do jipe e girou a chave na ignição. Observou-a, enquanto faziam uma curva fechada, o casca­lho voando pelo paralama. Algo sutil parecido com sofri­mento e incerteza passou por seus olhos, e depois sumiu, banido pela irritação.

— Não tenho nada contra Devon Stafford.

— A não ser que ela seja a mulher perfeita.

— A perfeição está no olhar de quem vê — ela retrucou. O jipe sacolejou pela estradinha esburacada. — Eu, pes­soalmente, não creio em perfeccionismo.

— Não no caso de Devon Stafford — Jake contestou. Dixie bufou e meneou a cabeça.

— Isso é o que você diz.

Antes que Jake pudesse argumentar, ela o interpelou:

— Por que está tão interessado nessa mulher afinal? Está planejando escrever sobre ela ou algo assim?

— Sou apenas um fã. E, como a maioria das pessoas, estou curioso. Por que uma grande estrela sumiria assim? Tem a ver com dinheiro? Um escândalo sexual? Um proble­ma com drogas?

Dixie entrou na calçada de uma grande casa de praia, e parou em frente a uma velha garagem cheia de tranquei­ras. Desligou o motor e olhou pelo parabrisa.

— Talvez ela apenas queira ficar sozinha — disse, em voz baixa. — Alguém pensou nisso? Quem sabe ela só deseje um pouco de paz.

Jake observou o jogo de sombras na face de Dixie. Podia sentir que ela lutava para manter um escudo erguido, e se esforçava para não falar muito. A reação não era de alguém desvinculado do assunto. Dixie La Fontaine sabia de algu­ma coisa.

— Sabe de algo que o resto de nós não sabe? — pergun­tou suavemente, conforme se inclinava para mais perto, com a desculpa de avaliar a resposta.

— Não — Dixie respondeu depressa demais. Respirou fundo, encarando-o com raiva. — Isso me deixa irritada, é tudo. Por que querem tanto saber o motivo de ela ter abando­nado Hollywood? Por que as pessoas caçavam Greta Garbo? Por que não deixam Elvis descansar em paz? Só porque são celebridades, as pessoas pensam que têm direito de saber cada coisinha a respeito deles. Estrelas são apenas gente debaixo do glamour. Deveriam poder ter segredos e vidas privadas como qualquer outra pessoa.

Jake inclinou-se ainda mais, perto o bastante para per­ceber o cheiro sutil do perfume de Dixie. Com um sorriso cínico a lhe entortar um canto da boca, ergueu o dedo para traçar o contorno do nariz delicado.

— Sabe um bocado sobre as estrelas, não, Dixie?

Ela teve de inclinar a cabeça para trás para fitá-lo. Jake estava perto demais. Podia sentir o poder de sua aura más­cula a pressioná-la, mas, que Deus a ajudasse, ela não que­ria escapar. A tensão sexual zumbiu em torno deles como um campo de força magnética.

— Não — murmurou, resistindo ao impulso de estender a mão e afastar as mechas de cabelos dourados que lhe caíam pela testa. Quase se esqueceu de respirar. Jake era tão lin­do, e seu olha tão intenso... — Mas conheço um monte de gente. Muita gente mesmo.

Talvez ele devesse ter perguntado se Dixie conhecia Devon Stafford. Sabia que poderia insistir no assunto ago­ra, e era provável que conseguisse uma resposta. Ela estava desestabilizada, nervosa.

Não poderia fazer isso, porém. Algo naqueles olhos o co­movera; algo que pedia silenciosamente para que ele não a pressionasse. Já se sentia como um canalha por enganá-la a respeito de seu propósito ali. Ia contra seu código de honra mentir sobre alguma coisa. Aquele sermão de Dixie sobre o direito das celebridades completara essa sensação.

Bem gostaria de se defender, mas, agora, isso estava fora de questão. Tinha vontade de contar a ela que não se dedicava a sensacionalismos. Que era um homem íntegro, alguém em quem se podia confiar.

Porém, estava preso na armadilha que ele próprio havia armado.

Recostou-se no banco, rompendo o encanto sensual da proximidade entre ambos. Olhou pela janela. Havia luz nos dois pequenos chalés. A casa diante da qual estavam era maior: dois andares erguidos como camadas de um bolo de casamento. Como as outras, empoleirava-se em estacas de aspecto reforçado. O andar térreo era circundado por um terraço fechado, e as janelas no sótão estavam iluminadas. Ao pé dos degraus, uma placa desgastada balançava com a brisa da noite: "Alugam-se Chalés".

Jake suspirou. Haveria bastante tempo para resolver a pequena embrulhada a respeito de sua identidade e seu ob­jetivo. E não teria de arrancar uma confissão de Dixie. Se ela soubesse onde Devon Stafford estava se escondendo, ele acabaria conseguindo tal informação. Não precisaria arra­sar as defesas da moça. Tinha todo tempo de mundo. Afinal, Devon Stafford já sumira havia um ano. Que diferença faria alguns dias a mais?

— Obrigado pela carona — agradeceu com um suspiro.

Cometeu o erro de relancear os olhos para Dixie e se viu novamente dominado pelo avassalador desejo de beijá-la. Ela parecia tão frágil e meiga, engolida pela jaqueta gros­seira, os olhos cor de avelã a fitá-lo com cautela. Era uma mulher precisando de um beijo.

Ele não era um homem dado a comportamentos impulsi­vos, mas havia algo em Dixie que provocava o caos em seu autocontrole. Inclinou-se para ela com um sorriso sexy.

— Obrigado por tudo, Dixie. De verdade. Você é mesmo "gente fina".

A frase a atingiu como uma pedra. "Boa gente", "gente fina"!

Ela cerrou o maxilar, pronta para dizer a Jake Gannon exatamente onde ele poderia pregar seus rótulos.

Mas antes que tivesse a chance de fazê-lo, ele colou a boca à sua.

A explosão de sensações foi estarrecedora, bloqueando qualquer idéia de resistir ou reagir. Experimentou o gos­to dele, a firmeza dos lábios, o poder másculo e inebriante da língua. Foi um ataque de surpresa aos seus sentidos, e, sem dúvida, um ataque muito bem-sucedido. Não conseguia lembrar-se de um beijo que a tivesse afetado tanto. Na ver­dade, não conseguia lembrar-se nem do próprio nome.

Aconchegou-se a ele, as mãos subindo para agarrar os mús­culos sólidos de seus braços. O homem era uma rocha de masculinidade. Cada sistema de alarme seu lhe dizia que Jake Gannon representava uma confusão em dose cavalar, mas as sirenes não pareceram penetrar a névoa ardente do desejo. Havia muito tempo não era beijada assim. Tempo demais.

Houvera homens antes, claro. Mas estes nunca tinham beijado a verdadeira Dixie. Tinham beijado um ideal de fe­minilidade, e deixado a mulher dentro sozinha e solitária. Jake Gannon não estava beijando um ideal. Seus lábios continuavam a explorar os dela, e aquilo era tão bom que Dixie não queria que acabasse nunca.

Ele se afastou lentamente, tão aturdido quanto ela pró­pria. Devia ter sido apenas um beijo de boa-noite, nada mais. Um beijinho para satisfazer sua curiosidade.

Mas, agora, ele se sentia muito longe de estar satisfeito. Sentia-se carregado, embriagado, fervente. Havia tamanha nuvem de vapor em seu cérebro que, por um momento, não conseguiu se lembrar do que estava fazendo ali, além de ter perdido a cabeça por uma motorista de guincho. Era como se tivesse levado uma pancada na cabeça.

— Você me beijou — acusou Dixie, erguendo dois dedos para tocar os lábios. — Por quê?

Jake sustentou o olhar de suspeita com sua melhor ex­pressão.

— Porque sim.

Não podia admitir que não sabia a razão. Um homem não confessava tais coisas a uma mulher; em particular a uma familiarizada com armas de fogo.

— Isso não é motivo — Dixie rebateu, irritada. Era óbvio que se tratara apenas de um impulso hormonal. Que elo­gioso. — Talvez esteja acostumado a andar pela Califórnia beijando mulheres a torto e a direito, mas isso não é muito bem visto por aqui, sr. Gannon. Vai acabar levando um soco no meio da cara, senão algo pior.

Ele fez uma careta.

— Foi só um beijo. Não faça disso um caso para a Polícia Federal. Não levei na esportiva quando sacou aquele 38 para mim?

— Ora, pelo amor de Deus, eu não disparei a arma! — ela esbravejou. — Nem tinha balas. Acha mesmo que eu teria coragem de andar com uma arma carregada por aí? Que tipo de pessoa acha que sou?

Ele entreabriu os lábios, pasmado.

Dixie virou-se no banco para encará-lo, os braços cruza­dos diante do peito.

— Ficou tão alvoroçado pensando em Devon Stafford, que resolveu se consolar comigo, é isso? — resmungou, lu­tando contra a mágoa e alimentando-a ao mesmo tempo.

Jake resmungou por entre os dentes. Como se metera naquela confusão? Era um homem calmo, de cabeça fria, centrado. Vivia uma vida ordenada, regrada. Bastara duas horas com Dixie para fazê-lo sentir-se como numa secado­ra de roupas, sacudindo no ciclo pesado. Meneou a cabeça, incrédulo.

— É melhor eu fazer o check in.

— Acho bom mesmo — Dixie resmungou, comprimindo os lábios. O cretino. O mínimo que ele poderia fazer era ne­gar a acusação.

— Sabe onde eu posso encontrar o gerente?

— Sei.

— Onde?

Dixie soltou um imenso suspiro.

— Está olhando para ela.

Jake pestanejou, depois cerrou as sobrancelhas.    

— Mas você é a motorista do guincho.

— É uma cidade pequena, sr. Gannon. Se precisar, tam­bém trabalho como encanadora, às vezes.

O constrangimento a invadiu, e Dixie praguejou intima­mente. Não tinha nada do que se envergonhar. Não havia nada de errado em dirigir um guincho ou consertar vaza­mentos. Eram profissões perfeitamente honradas.

Só que, de repente, sentiu um súbito desejo de que Jake Gannon a visse como algo mais além do "pau-para-toda-obra" da cidade. Desejou que ele a olhasse e enxergasse além da "boa gente" com graxa no nariz.

Pior ainda, desejou que ele a visse como mulher.

O que havia com ela? Não deixara tudo isso para trás? Não se livrara da necessidade de ser o que outra pessoa julgava perfeito ou desejável? Não jurara ser apenas ela mesma dali para a frente? Somente a velha e simples Dixie La Fontaine?

Agora ali estava ela, querendo que Jake Gannon a olhas­se e ficasse embasbacado.

Droga. Bem que ela soubera, no instante em que o avis­tara, que Jake era um problema. Só não havia suspeitado de que tamanho.

— E então? — ele indagou, quebrando o silêncio tenso que os envolvera. — Tem vaga para um cliente sem reserva?

— Um chalé — ela murmurou. A última coisa de que precisava era daquele Adonis perambulando por ali, fazen­do-a pensar em coisas estúpidas como roupas, maquiagem e em contar calorias. Deveria ter chamado o Automóvel Clube e despachado o sujeito para a praia de Myrtle, onde ele encontraria ninfetas de biquíni em abundância.

— Ficarei com ele.

— Que bom. — Ela abriu a porta do jipe e saltou.

Estavam a meio caminho dos degraus da casa, quando um bando de cachorros se aproximou, latindo e sacudindo os rabos. Dixie largou a maleta que segurava e se prepa­rou para o ataque. Três dos quatro animais saltaram sobre Jake de uma vez: um labrador de três pernas, um vira-lata que parecia mestiço de golden retriever e cocker spaniel, e um welsh corgi. Os dois maiores lamberam-no na face com entusiasmo. As pernas curtas do corgi não permitiam que ele chegasse tão longe, por isso se consolou em lhe lamber o joelho. O quarto cachorro, um pastor alemão tão grande como um pônei, partiu para cima dele com ímpeto.

— Cuidado! — Dixie berrou.

Jake mal teve tempo de passar os braços com força pela caixa de arquivos antes que o cão investisse sobre ele, fa­zendo festa. O choque o fez cambalear pela calçada, e ele se agarrou à caixa, imaginando seu conteúdo se esparramar pelo quintal; fotos de Devon Stafford flutuando por toda parte; Dixie revistando a bolsa em busca da arma e da mu­nição solta...

O cão parecia resolvido a fazer dele um parque de di­versões, e começou a correr em círculos ao redor de suas pernas, saltando e se retorcendo de alegria, enquanto solta­va ensurdecedores latidos. Jake atirou-se para os degraus, erguendo a caixa.

— Quieto! — Dixie esbravejou, mas o malandro já seguia para a praia com os comparsas.

— Era um cachorro ou um cavalo? — Jake indagou, in­crédulo, sentando-se na escada, chocado.

— Sinto muito. — Ela mordeu o lábio. Estendeu a mão e tentou tirar os pelos da perna da calça de Jake. — Aquele é Bob Dog... É apenas um filhote. Fica um pouco empolga­do com visitas. Teria tido mais chance se tivesse largado essa caixa. O que há aí dentro, afinal? Porcelana de famí­lia? — perguntou, erguendo uma das abas e tentando es­piar dentro.

Jake afastou os dedos curiosos e se levantou de um salto.

— Meu manuscrito. Eu preferiria que você não olhasse. Sabe como é: escritores são muito supersticiosos a respeito de seu trabalho antes do lançamento.

— Tudo bem. — Ela deu de ombros e começou a subir as escadas para a recepção.

— Onde moram "os cães dos Baskerville"? — Jake per­guntou. — Algum lugar por aqui?

— São meus.

Jake soltou um gemido, depois a seguiu para dentro da pequena sala, preparado para o pior. Dixie abriu a porta e gatos saltaram em todas as direções, tal qual cobras de uma caixa surpresa. Embora o lugar estivesse abarrotado de mobília antiga, ainda havia um caminho livre para se andar lá dentro.

Coleções de todos os tipos espalhavam-se por toda par­te. As paredes eram cobertas de suvenires: velhas placas de anúncios, animais selvagens empalhados, antigas ferra­mentas, equipamentos esportivos obsoletos.

Jake fechou os olhos por um segundo. Sentia-se como se houvesse entrado no quarto de despejo de um museu de segunda classe.

— Incrível — foi tudo que conseguiu resmungar. Dixie revirou os olhos.

— Não é obrigado a ficar aqui se não quiser, Gannon.

— Eu não disse nada...

— Uma expressão vale por mil palavras.

— Escute, eu não estava esperando um ambiente da Casa Vogue — ele falou em defesa própria. — Mas tem de concordar que este lugar é meio sufocante à primeira vista.

— Pode até ser — ela concordou. — Isso tudo aí pertence a Levander Wakefield, o dono dos chalés. Só estou adminis­trando o negócio enquanto ele viaja pelo mundo.

— Tem muitos hóspedes aqui? — Jake perguntou.

— Os clientes de sempre. Dois, para ser exata. — Dixie pegou uma chave do meio da bagunça. — Sylvie Lieberman é viúva. O marido era um grande agente literário em Nova Iorque. Talvez tenha ouvido falar de Sid Lieberman? De qualquer forma, Sylvie mora aqui praticamente o ano in­teiro. Há também Fabiano, que ocupa os dois chalés do lado norte porque é artista e não quer nenhum vizinho. Ter gen­te muito perto atrapalha seu "fluxo criador".

Em algum lugar acima deles, no sótão, um baque surdo ecoou. Dixie voltou os olhos para o teto e Jake fez o mesmo, antes de fitá-la em uma indagação muda.

— Gatos — ela resmungou.

Outro baque, acompanhado por débeis acordes de uma música pop.

— Estão fazendo aeróbica? — ele indagou.

— Por que não vamos até seu chalé? — Dixie sugeriu, caminhando de propósito para a porta.

Jake sorriu e a seguiu para fora. Ela não era sutil, mas era determinada... e bonita demais.

A noite caíra, e um vento frio soprava do oceano, agitan­do o capim alto que crescia ao lado da trilha. Dixie cami­nhou com segurança, acompanhada por um trio de gatos.

Subiram os degraus da varanda aberta de um chalé, e ela acendeu a luz ao lado da porta. Mais uma vez, foram saudados pelo labrador de três pernas e outro gato.

— Abby perdeu a perna numa armadilha. Seu dono ia matá-la porque não servia mais para caçar. Os donos de Bob Dog não imaginavam que ele fosse ficar tão grande. Honey, foi um acidente e seus donos não quiseram nenhum dos filhotes da ninhada porque não eram puros para terem pedigree. Hobbit, o Corgi, tinha mania de mastigar tudo. Eram todos uns enjeitados.

— E você os recolheu — Jake deduziu.

— Tenho o coração mole. — Ela pegou a maleta dele e a levou para dentro.

Jake passou o olhar para o grupo disparatado de ani­mais. Evidentemente, Dixie era do tipo que não negava abrigo a quem precisava de cuidado. Era uma verdadeira pastora de ovelhas desgarradas.

Sentiu um aperto no peito, imaginando se ela teria idéia de que acabara de deixar entrar um lobo em seu rebanho.

O chalé foi uma agradável surpresa: limpo e sóbrio, resumindo-se a uma cozinha e a uma combinação de sala e área de refeição, além de um pequeno quarto e um banheiro. A mobília era uma mescla eclética de pechinchas de venda de garagem, mas tudo asseado e impecável. Um tapete tran­çado em tons de azul cobria o chão de madeira em frente à minúscula lareira. Almofadas em patchwork aninhavam-se junto aos cantos do sofá. Era o tipo de ambiente que ele sempre imaginava como o retiro de um escritor: aconche­gante, claro, com uma escrivaninha, estantes de livros, e a vista do oceano à distância. O tipo de lugar em que um homem poderia se enfiar e esquecer o resto do mundo.

Dixie conduziu-o por um tour rápido pelo chalé, apon­tando os itens essenciais, como o termostato, e mostrando como dar a descarga no banheiro sem disparar a válvula. Mostrou-lhe o armário de roupas de cama, e como abrir o abafador da lareira, tudo no tom eficiente e formal de uma verdadeira corretora de imóveis.

Estava se afastando dele um pouco mais a cada minuto, percebeu. Mas ele não viera até ali para se envolver, pois tinha um único objetivo. E não queria mais pensar em sedu­zi-la a troco de uma história. Não queria ser desonesto.

— O telefone está ligado, assim você poderá telefonar para Eldon na segunda de manhã e verificar seu bebê — ela con­tinuou, parando diante da porta. — Se precisar de algo, sabe onde me encontrar. Eu o ajudarei se puder. Sabe como é, sen­do eu boa gente e tudo mais... — emendou com sarcasmo.

Praguejando baixinho, Jake percorreu a distância até a porta em três passadas. Empurrou a tela de vai-vem e esti­cou o pescoço para a varanda.

— Dixie...

Ela voltou-se, no patamar da escada, com um gato zaro­lho nos braços.

— Obrigado por aceitar outro desgarrado — ele comple­tou em tom de desculpas.

Dixie quase caiu na risada. Jake Gannon não era ne­nhum desgarrado. Esguio e belo, era um puro-sangue em todo o sentido da palavra. Fora apenas por uma insana re­viravolta do destino que ele terminara na soleira de sua porta naquela hora particular de sua vida, depois que ela jurara não ceder a homens que nunca olhavam abaixo da superfície. Endereçou-lhe um sorriso hesitante, e voltou-se de novo para a escada.

— Dixie... — ele tornou a murmurar. — Eu a beijei por­que tive vontade.

O coração dela falhou uma batida. Ele a beijara porque ti­vera vontade? Beijara a ela, uma "ninguém" da Toca da Mula, porque ele, o belo e perfeito Jake Gannon, tivera vontade?

O problema era que ele ainda não sabia por que o havia feito. Dixie podia ver isso nos olhos claros, na linha franzida da testa, na postura defensiva dos ombros atléticos. Não havia razão nenhuma para se encher de esperança.

Sem uma palavra, virou-se e se afastou.

Jake bateu a testa contra a moldura da porta enquanto ela subia a trilha com o bando de bichos enjeitados em fila atrás dela. Eu a beijei porque tive vontade... Por que tinha falado aquilo? Não dissera a si mesmo que não pretendia enganá-la?

Então por que não havia conseguido tirar os olhos de seu adorável gingado enquanto ela andava? Droga!

Não deveria estar prestando atenção ao que se relacionava a nenhuma outra mulher além da adorável Devon Stafford.

Com relutância, desviou os olhos de Dixie e olhou para o sótão que coroava a casa, onde uma luz âmbar delineava a silhueta de um corpo esguio e feminino contra a veneziana. O corpo esticou-se numa direção, depois na outra, movendo-se graciosamente, uma cascata de longos cabelos despen­cando de um lado.

Se aquilo fosse um gato, ele comeria toda a máquina de escrever.

Soltou a tela de vai-vem e seguiu pela sala até a escriva­ninha, onde abriu a caixa de arquivo. Com uma expressão pensativa, pegou uma foto oito por dez de Devon Stafford. Um vestido preto brilhante agarrava-se a seu corpo delgado como seda molhada, enfatizando sua compleição esguia. A cabeleira mundialmente famosa, de fios platinados, tomba­va em torno de seus ombros como uma cascata. Devon fazia biquinho para a câmera, e seus lábios eram como morangos maduros, cheios e tentadores, num contraste perfeito com os planos delicados da face.

Era ela a quem ele viera procurar. A maravilhosa e per­feita Devon.

Dixie deitou-se na cama, ouvindo o zumbido da tevê no outro andar. Fez uma careta para o teto. Às vezes gostaria de não ser uma alma tão caridosa. Naquela noite, gostaria de ter a casa para si, de estar completamente sozinha para poder entregar-se à sensação de solidão que a assaltava.

Não era uma pessoa dada a surtos de autopiedade. Acreditava firmemente que a vida era o que uma pessoa fa­zia dela. Por algum tempo, o que fizera da sua fora uma ba­gunça, mas conseguira dar a volta por cima. E ultimamente andava tão contente, tão feliz. Agora, tudo parecia ter se descosturado como uma roupa barata. O surgimento inesperado de Jake Gannon tolhera sua sensação de calma, e ressuscita­ra necessidades que ela esquecera por conveniência.

Risadas soaram ao alto, seguidas de batidas. Dixie le­vantou-se da cama. Pegou o taco de golfe a um canto, subiu na cama e bateu no teto algumas vezes. Quase imediata­mente o barulho cessou.

Deitou-se de novo, dessa vez de bruços, e olhou pela ja­nela. A luz no chalé de Jake estava acesa.

Ele era como o belo estranho dos velhos faroestes, pen­sou. Chegando à cidade sem aviso, desconhecido, pertur­bando a tranqüila superfície das plácidas vidas das pessoas como uma pedra jogada numa lagoa. Além de atraente, ir­radiava sex-appeal como uma fornalha exala calor. Era um lembrete de seu passado, de sua vida anterior. Uma recor­dação do charme sedutor das coisas belas.

Uma lembrança que ela não desejava.

Jake não ficaria ali por muito tempo. Apenas uns poucos dias, até que Eldon consertasse o Porsche. Logo iria em­bora, e sua vida se acomodaria novamente naquela rotina tranqüila que ela amava... ou quase, pois teria de esperar a prima vagar o sótão antes que as coisas realmente retor­nassem ao normal.

Mas isso iria acontecer em algum momento. Assim que Dee desse um jeito nas coisas por si mesma.

Jake Gannon estava apenas de passagem, lembrou a si mesma pela enésima vez. Tudo que precisava fazer era con­servar o bom senso e certificar-se de que ele não levasse seu coração junto quando partisse.

 

— Pensei que não fosse viver tanto para ver um homem assim tão bonito! — Sylvie Lieberman exclamou, cutucando Dixie no ombro.

Estavam sentadas lado a lado na escada da varanda, compartilhando o café da manhã e uma vista do oceano. Jake acabara de passar praticando jogging, com os cachor­ros pulando nos calcanhares.

Aos sessenta anos, Sylvie era elegante e muito ligada à moda. Naquela manhã, vestia um conjunto esportivo com uma echarpe de seda esvoaçando no pescoço. As mãos bem-feitas ostentavam jóias e algumas manchas e rugas da ida­de, mas o rosto se mostrava incrivelmente liso, graças ao cunhado, um cirurgião plástico de Scarsdale.

— Meu Deus, Dixie — ela prosseguiu. — Ele é maravi­lhoso! Não me contou que ele era tão deslumbrante!

— Ele é bonito — Dixie resmungou, afagando Cyclops, o gato de um olho só, com um ar ausente.

— O que há com você? O homem é um "arraso"! — Sylvie tomou a cutucaria, derramando o café que ela bebericava aos poucos.

— Sylvie!

— Oh, me desculpe. — Ela levou a mão cheia de jóias ao peito. — Mas não tenho culpa de ter hospedado um "deus grego" nos chalés e não ter avisado! Às vezes não sei qual é o problema com você, moça. Deveria ir a um bom ginecologista verificar o nível dos seus hormônios.

— Não há nenhum problema com meus hormônios — Dixie replicou, os olhos acompanhando o progresso de Jake pela praia. Ele tinha uma bela passada. As coxas musculosas e as canelas firmes exibiam-se, bronzeadas, sob o short azul-marinho de corrida complementados por uma camise­ta cinza.

Ela suspirou, sem conseguir tirar os olhos daquelas per­nas magníficas de atleta. Continuou a observá-lo até que ele e os cachorros eram apenas pontos nos limites ao sul da propriedade.

Não, não havia nada de errado com seus hormônios. Estavam funcionando num torvelinho desde o momento em que ela conhecera Jake Gannon. Tanto que se enfiara na cama em busca de descanso, na noite anterior, e tudo que havia conseguido fora sonhar com um homem inacre­ditavelmente bonito, e sorriso de Robert Redford. Acordara mal-humorada como um urso pulguento, maldizendo a Jake Gannon e a si mesma. Afinal, viera para a Toca da Mula em busca de paz. Expulsara todos os seus demônios, acomoda­ra-se numa vida de rotina confortável, e não queria essa rotina interrompida.

— Não preciso disso — resmungou, olhando para Jake, que fazia a volta e rumava para a praia com os cães a segui-lo.

— Claro que precisa! — Sylvie exclamou, a voz cheia de compreensão. — Você é uma jovem adorável e precisa de um companheiro. Não pode lutar contra a natureza.

— Talvez eu até pudesse me acostumar com um homem em minha vida — Dixie ponderou. — Mas não com esse.

— O quê? Está maluca? — Sylvie perguntou, incrédula. — Ele é lindo de morrer!

As palavras lhe trouxeram uma dolorosa onda de lem­branças. Lembranças de alguém que fizera justamente isso: havia morrido em busca da perfeição. Sua querida e doce amiga, que quisera tão desesperadamente agradar a pessoas que não se importavam com nada além de lucro. Gente que acreditava que garotas bonitas eram uma coisa a ser usada e jogada fora.

Como teria sido fácil para ela, Dixie, matar-se na busca desses mesmos atributos. Também, ela, fora coagida impla­cavelmente a alcançá-la; não para seu bem, mas para o de outros.

Pensou na prima, escondida no sótão que dera tudo de si para atingir essa meta.

Não, pensou Dixie. Não precisava de um homem que era um monumento à qualidade que mais desprezava hoje em dia: a perfeição.

Sylvie deu-lhe um abraço compassivo.

— Não pode atrelar tudo ao passado, minha querida. Tudo ficou para trás agora. Acha que todos que a conhecem aqui, todos que a amam, não sabem como você sofreu? Está tudo acabado. Comece a viver de novo, Dixie!

— Estou vivendo muito bem — ela argumentou. — Não preciso de um californiano para tomar minha vida mais completa.

— Não, mas é uma bela cobertura para se pôr no bolo, não é? — Sylvie sorriu. Seu olhar tomou a se fixar em Jake, que mudara a rota e agora subia um aclive.

— Ele é todo certinho — Dixie sibilou, como se ele fosse adepto de uma religião similar ao satanismo.

— Homens podem ser treinados, você sabe. Faça um es­forço. Você pode arrancar isso dele.

Ela revirou os olhos. Sylvie falava como se Jake fosse um casaco com um rasgo na manga, uma pechincha numa loja de saldos que ela poderia pegar e consertar.

— Bom dia, senhoras — ele cumprimentou com um es­tonteante sorriso, ao parar ao pé da escada com as mãos na cintura. Os cachorros todos se lançaram num monte exaus­to a seus pés, porém Jake mal ofegava, Dixie notou com desgosto.

— Não vai me apresentar ao seu amigo? — Sylvie inda­gou, dando-lhe uma cotovelada nas costelas.

Dixie esfregou a costela dolorida com uma careta.

— Sylvie Lieberman, Jake Gannon. Jake é escritor, Sylvie.

— É mesmo? — A mulher sorriu, radiante, apertando a mão de Jake efusivamente. — Meu Sid, que Deus o tenha, era agente literário. O que tem escrito, Jake? Talvez eu te­nha lido algo seu. Você não me é estranho, sabia?

O sorriso dele endureceu.

— Acho pouco provável que me conheça. Estou traba­lhando num mistério, mas nem sequer o lancei.

— Nossa, eu poderia jurar que... — Sylvie deixou o pen­samento divagar, passando o nó dos dedos pela boca, pen­sativa.

Jake desviou a atenção para Dixie.

— Resolvi fazer um pouco de exercício. Não quer vir jun­to? Está vestida para isso.

Dixie passou os olhos pelas velhas calças de moletom cinza e a camiseta com capuz.

— Não são roupas para ginástica. Eu as uso para ficar em casa. Também não faço exercícios. É contra minha religião.

— Ora, vamos. — Jake riu. — É bom para você. Todo mundo precisa fazer o sangue circular. — E, com sorte, sol­tar a língua a respeito da moça que vive no sótão, ele acres­centou mentalmente.

Dixie bufou, olhando para Honey e Hobbit, que faziam sua melhor imitação de mortos. Bob Dog rolou de costas e ganiu.

— Acabou com meus cachorros e agora quer acabar co­migo? Não, obrigada.

Sylvie deu-lhe um tapa no braço.

— O que há com você, menina? Tem algo errado com suas pernas? Não pode sair para um passeio com o rapaz?

Era uma idéia tentadora. Ela bem poderia "passear" com Jake, e começar aquele seu projeto de reforma, para tomá-lo mais humano e menos certinho. Mas o que poderia obter, além de confusão? A satisfação de fazê-lo gozar a vida?

Talvez. Mas Jake não ficaria ali por tempo suficiente para qualquer mudança de longo prazo.

Isso torna a coisa segura para você tentar, não é mes­mo?, uma vozinha traiçoeira murmurou no fundo de sua mente. Nos poucos dias em que Jake permanecesse ali, quem sabe ela pudesse causar alguma impressão nele. E não haveria tempo para algo catastrófico acontecer com seu coração, haveria?

Levantou-se, sentindo uma sensação estranha: mescla de relutância e determinação.

— Acho que um passeio pela praia pode ser uma boa idéia. Cansei de ficar sentada aqui com Sylvie me fraturan­do as costelas.

— Ótimo. — Jake sorriu, virou-se e rumou para a praia com passadas longas e enérgicas. Lançou um olhar por so­bre o ombro. — Vamos — disse, batendo palmas com entu­siasmo. — Vamos acelerar esse coração.

O velho espírito de competição espicaçou Dixie a apressar

O passo, mas ela se conteve, retardando-se e forçando Jake a diminuir o ritmo.

— Eu costumava correr — contou, inclinando-se para pegar uma concha. E continuou a caminhar calmamente, examinando o rosado suave da peça delicada. — Oito quilômetros por dia. Estirei o músculo da perna, e quase arruinei meus joelhos. Caminhar é mais agradável, não acha? Eu nunca havia notado todas as cores do oceano quando pas­sava correndo.

Jake olhou para a água ondulante, para o sol desenhan­do um rio de ouro derretido, para as nuances sempre mutantes de azul, marinho, ardósia, turquesa. Era lindo. Não faria mal caminhar e desfrutar um pouco daquela beleza enquanto tentava arrancar algumas respostas de Dixie.

Abaixou-se e pegou uma vareta que boiava, jogando-a para longe. Imediatamente, Abby arrojou-se atrás do peda­ço de pau, agitando o rabo.

Na varanda do chalé mais ao norte, um homem de pei­to nu e longos cabelos loiros estava agachado, apontando e olhando para a distância. Jake diminuiu o passo. O sujeito tinha a compleição e os traços duros de um lutador.

— Aquele é Fabiano fazendo seu tai chi — Dixie expli­cou. — Alega que é um bálsamo para a alma.

— Ouvi dizer. Conheci um major que punha toda a fé nisso.

— E quanto a você?

— Acho que minha alma já está calejada... E a sua?

Dixie vacilou. Havia uma preocupação verdadeira nos olhos claros. Ele não estava perguntando apenas para ser educado: realmente queria saber. Talvez não fosse apenas outro rosto bonito, enfim. Talvez ela não tivesse sido justa ao rotulá-lo como uma criatura vazia, preocupada apenas com as aparências.

Fabiano os avistou. Interrompeu a meditação, saltou da varanda e disparou na direção dos dois, os longos cabelos esvoaçando, os olhos escuros falseando. Estava vestido com calças de couro preto coladas às pernas, e um cinto largo que, sem dúvida, ele próprio fizera com a pele de algum animal.

Jake voltou-se para Dixie, erguendo um braço como se para protegê-la. O louco se avultou sobre eles, estacando a dois passos e levando a mão para trás das costas como um pirata prestes a sacar um punhal.

De imediato, Jake interpôs-se entre ele e Dixie, arqueando os ombros largos e avaliando o oponente, porém ela o rodeou e endereçou ao gigante um radioso sorriso.

— Pode ficar tranqüilo, Fabiano... Jake também é nosso hóspede e vai ficar por uns dias.

O homenzarrão o encarou com olhar estreito.

— Ainda bem — falou, com um forte e indeterminado sotaque. Em seguida, estendeu a mão enorme. — Fabiano. Muito prazer. — Voltou-se para Dixie, sorrindo. — A nossa menina, aqui, é doce como mel. Não podemos tirar os olhos de cima dela, que os marmanjos atacam.

Dixie enrubesceu e Jake retribuiu o sorriso enquanto li­vrava a mão de um aperto que poderia moer pedra.

— Imagino.

— Homens! — Dixie exclamou. — Isso é tudo em que pensam? Há mais na vida do que apenas sexo, sabiam?

— Mas nada tão bom como você — declarou o brutamontes, levando a mão às costas para produzir um ouriço-do-mar. — Para sua coleção.

Ela soltou uma ligeira exclamação e apanhou o bichinho redondo e peludo.

— Nossa, não se acha desses por aqui!

O grandalhão deu de ombros, assumindo um ar filosófico.

— Às vezes encontramos justamente o que não estamos procurando.

Dixie deu um pulo e o beijou na face.

— Preciso voltar para o meu trabalho — resmungou

Fabiano. Apoiou as mãos na cintura e sorriu de novo para Jake.

— E quanto a você, meu amigo, se partir o coração de Dixie, é um homem morto. Jake sorriu de volta.

— Eu bem que gostaria de ver você tentar...

Com uma risada, o rapaz fez um gesto de despedida e voltou para seu chalé. Dixie inspecionou o ouriço-do-mar mais uma vez e o enfiou no bolso da camiseta.

— Sujeito esquisito — comentou Jake, divertido. — Que sotaque é aquele?

— O pai é grego e a mãe é sueca.

— Combinação interessante. — Recomeçaram a cami­nhar pela praia. Jake respirou fundo o ar marinho e o exa­lou. — Pensei que ele ia arrancar a minha cabeça.

— Fabiano é mesmo intimidador.

Ele endereçou-lhe um olhar de soslaio.

— Seu revólver também. Mas ele parece um daqueles homicidas maníacos por esteróides.

— As pessoas nem sempre são o que parecem. Um escri­tor de mistério deveria saber disso.

— Talvez essa seja a razão de eu não ter vendido meu livro ainda. Que tipo de artista é Fabiano?

— Não sei ao certo — admitiu Dixie. — Sei que pinta, mas não vi nenhum de seus quadros. Como eu disse, ele é todo supersticioso. Vem para cá todo mês de novembro e vai embora em maio, sabe-se lá para onde.

— Quem sabe esteja estudando a possibilidade de usar o crescimento excessivo dos próprios cabelos como um meio alternativo de pintura — Jake sugeriu com uma risada.

Dixie o encarou, reprimindo um sorriso.

— Ah, entendi. Você acha linda a cabeleira de Devon Stafford, mas em Fabiano ela não passa de uma excentri­cidade.

— No caso dele, eu chamaria de frescura.

— Como você é sexista. Jake fechou a carranca.

— Não sou, não.

— Sim — Dixie afirmou. — Acha que todas as mulhe­res deveriam ser magrelas e peitudas e ter um monte de cabelos como Devon Stafford. Você mesmo disse isso.

— Eu não disse isso!

— Eu só descrevi sua versão da mulher mais perfeita do mundo — Dixie se defendeu, desgostosa, recriminando-se mentalmente por ser tão masoquista. — Não pode negar.

Ele meneou a cabeça.

— Eu nunca disse que todas as mulheres deveriam pare­cer Devon Stafford. Apenas que ela era um ideal.

— Um ideal absurdo. — Dixie parou e se virou para ad­mirar o oceano, cruzando os braços diante do peito.

— Essa é a sua opinião. — Jake parou atrás dela, observando-a atentamente. — Acontece que eu creio que as pes­soas possam se aprimorar. Li em algum lugar que Devon Stafford dava duro para manter a aparência.

— Claro, ela podia arcar com esse tipo de despesa. Ganhava um "zilhão" de dólares por ano. E o engraçado é que, para ganhar esse dinheiro, tinha um preparador que a fazia "malhar" como um cavalo três horas por dia. Quem sabe, se fizesse umas flexões a mais, depois, tinha permis­são para comer um chocolatinho...

Jake estudou a expressão de Dixie, curioso.

— Por que está falando no pretérito? Ela não está morta. Dixie evitou-lhe o olhar.

— Bem... Não... Acho que não — falou, hesitante. — Mas ela sumiu, não sumiu? É pretérito, se ela não faz mais essas coisas.

— Como sabe que ela não as faz mais?

— Você está se esquecendo do "x" da questão — ela lem­brou, ainda se recusando a encará-lo. — Para a maioria das pessoas com empregos comuns, vidas normais, amigos e famílias, não vale a pena ser escravo da aparência. Eu, por exemplo, tenho coisas melhores a fazer com meu tempo do que me torturar com halteres nas pernas. Quero dizer, posso não ter os mais belos quadris, mas tenho tempo para prestar atenção ao mundo ao meu redor.

Ela deu alguns passos pela praia e inclinou-se para pe­gar uma lata de cerveja trazida pela água, dando a Jake uma clara visão do quanto seus quadris dispensavam exer­cícios. Ele engoliu em seco, tentando se controlar para não apalpar as deliciosas curvas. Contrariado, sentiu o sangue ferver, esquecido do objetivo principal em levá-la para aque­le passeio.

Controle-se, Gannon. Não faz tanto tempo assim que desfrutou de companhia feminina. Porém, conforme olha­va para Dixie, com a brisa do mar a lhe alvoroçar os ca­belos e boca carnuda apertada em um gesto amuado, não conseguiu nem lembrar o nome da pessoa com quem havia estado. Fosse quem fosse, devia ser um exemplo descorado de feminilidade comparado à Dixie, com suas curvas volup­tuosas e seios fartos.

— Gosto dos seus cabelos — comentou, as palavras sain­do pela boca sem a permissão do cérebro.

Ela o encarou, assustada, algo de que o macho primitivo em Jake extraiu um prazer perverso. Ele sorriu.

— São moderninhos.

— Moderninhos? — Dixie repetiu, incrédula.

O sujeito tinha o dom de incitá-la à violência. Primeiro, ela era "boa gente", depois era "gente fina", agora seus cabe­los eram "moderninhos". Animadoras de torcida eram moderninhas. Cãezinhos poodles eram moderninhos.

Decididamente, ela não queria que Jake Gannon a fitas­se e visse algo "moderninho" nela. Queria que a olhasse e visse...

O quê?

A pergunta a fez enrijecer. O que ela queria que Jake Gannon visse? Uma sílfide anoréxica com lábios aumenta­dos por colágeno?

Abalada, afastou-se.

— Tenho de voltar para casa.

Virou-se sem olhar para Jake. Ele era uma provação. Era belo demais para não ser desejado, e desejo era algo que ela havia "riscado de seu caderninho" por enquanto. Não tinha ido para a Toca da Mula à toa. Tinha ido para aquele lugar em busca de sossego.

Sua vista borrou-se, e Dixie percebeu, com surpresa, que tinha os olhos marejados de lágrimas.

Mãos fortes se fecharam em seus braços. O gesto era fir­me, porém gentil.

— Dixie, o que foi? — Jake indagou num tom preocupa­do. — O que eu disse de errado?

— Não foi nada. Eu preciso voltar, é isso.

— Por que tanta pressa? — ele murmurou, cedendo ao impulso de puxá-la contra si só para poder sentir o chei­ro sutil de lírios do vale que exalava dela. Sua lógica não fora consultada e seus hormônios tinham resolvido: Dixie La Fontaine era irresistível. Deslizou as mãos pelos braços macios, procurando transmitir conforto. — Desculpe. Acho que nem sempre sei dizer a coisa certa.

Ela forçou uma risada.

— Isso deve ser inconveniente para um escritor.

— Você não sabe nem a metade. — Fitou aqueles olhos cheios de incerteza e, como se tivesse vida própria, seu in­dicador traçou o contorno da boca sensual, provocando uma onda de calor entre ambos. — Vai me ensinar a dizer a coisa certa, Dixie?

Respostas fantasiosas, respostas românticas, respostas sugestivas. Dixie impediu todas de serem pronunciadas.

Não sabia o que dizer, de qualquer maneira. No dia an­terior, sua vida era tão calma e segura como um lago. Hoje parecia o oceano, encrespado e imprevisível. E o pior: tinha a nítida impressão que estava prestes a mergulhar de ca­beça nesse mar revolto. Estarrecida, descobrira-se desejando um homem que não deveria desejar, pensando em coisas que deixara para trás, e, mesmo assim, não conseguia evitar.

Apesar de tudo, das diferenças e da razão, havia muita coisa em Jake Gannon de que ela realmente gostava. A ter­nura naqueles olhos azuis era como o céu de verão. A genti­leza das mãos, a prontidão em protegê-la de Fabiano... Sob a aparência de modelo de capa de revista havia um homem bom. Alguém que valia a pena conhecer mais a fundo. Um homem que valia a pena resgatar e...

— Eu deveria ser mímico — ele disse com voz rouca, in­terrompendo seus pensamentos. — Sou melhor mostrando o que quero do que dizendo...

No tempo que Dixie levou para puxar a respiração, Jake inclinou a cabeça e comprimiu a boca na sua. Ela se acon­chegou contra ele, deixando a lata de cerveja cair, as mãos subindo para se agarrarem à camiseta justa. Pendeu a ca­beça para trás, convidando-o a aprofundar o beijo. Sentiu o gosto ligeiramente salgado dos borrifos do mar e suspirou. Jake tinha tudo o que ela desejava fazia um longo tempo e negara a si mesma.

Talvez fosse mais seguro continuar negando, mas Dixie não deu atenção ao fato. Não podia. Não quando Jake esta­va assim tão perto, não quando a abraçava daquela manei­ra. Sua proximidade anulava qualquer cautela.....

Ele soltou um gemido e ela respondeu com um suspiro, os lábios se abrindo para oferecer total acesso. O beijo tor­nou-se mais ardente, lento e explorador; mas não exigente. Jake a saboreava, era isso. Era um beijo de descoberta.

Quando ele finalmente ergueu a cabeça, uma espécie de assombro se refletia em seus profundos olhos azuis.

A insensatez ameaçava dominar Jake. Se não achasse que Fabiano poderia esquartejá-lo, teria derrubado Dixie na areia e feito amor com ela bem ali, onde as ondas que­bravam.

Aquele tipo de impulso não era muito próprio dele. Era algo maluco e selvagem. Mas maravilhoso...

Ao buscar de novo os lábios à sua espera, Jake vis­lumbrou uma forma esbelta e familiar pelo canto do olho. Levantou a cabeça, estreitando o olhar para focá-lo nos cha­lés. Emudecido, soltou Dixie e deu dois passos em direção ao complexo de casas.

— O que foi? — ela indagou, confusa.

Sentindo os joelhos repentinamente fracos, deixou-se sentar na areia molhada. Jake quase saíra correndo, mas a visão fugidia desaparecera.

Frustrado, ele fez meia-volta e custou um segundo para se dar conta de que Dixie o fitava com raiva.

— Vi alguém saindo do seu chalé.

— Sylvie, na certa — ela falou, obrigando-se a se pôr de pé.

— Só se arranjou um metro de cabelos platinados desde que nos encontramos, meia hora atrás.

— Existe uma coisa chamada peruca, você sabe — Dixie resmungou, fazendo uma careta ao limpar a areia das calças.

— Por que Sylvie poria uma peruca? — ele quis saber. — Seus cabelos me pareceram bonitos.

— E eu vou saber? — ela retrucou, com secura. — Sabe-se lá o que passa na cabeça das pessoas... Meu tio-avô, Nub, costumava gostar de cortar garrafas de água sanitária e fa­zer chapéus com elas. Por que alguém haveria de querer fazer isso? Talvez Sylvie apenas tenha cedido a algum im­pulso maluco de posar como Barbie.

— Ou talvez não fosse Sylvie. — Ele a encarou com um olhar firme.

Droga, pensou Dixie. Estava diante de um escritor de mistério: um sujeito que provavelmente enxergava pistas no cereal matinal. Um californiano bisbilhoteiro, que não descansaria até que tivesse colocado as coisas em seus de­vidos lugares.

— Aposto que você era o tipo de criança que desmontava todos os brinquedos só para ver como funcionavam — ela resmungou, mal-humorada.

Jake olhou para os tênis e praguejou baixinho.

— Será que podia me dar uma carona até o centro da cidade? — perguntou, de repente. — Preciso comprar umas coisas.

Ela lhe deu um tapinha nas costas, num gesto de falsa camaradagem.

— Por que não? — respondeu, com um sorriso desenhado nos lábios. — Sou gente boa, não sou? Se precisar de algo, é só pedir à moderninha aqui... — acrescentou, cuspindo cada palavra como uma bala de revólver.

Jake a fitou, perplexo. A mulher estava fumegando, mas por quê?

Porque ele vira sua hóspede misteriosa de relance, ou porque ele desistira de um segundo beijo?

 

Jake não vira sinal da mulher na cidade. Mantivera o olhar atento, enquanto passeava pelos três corredores da Mercearia do Harper, e também quando seguira Dixie até a loja de ferragens para comprar buchas e pregos. Durante o resto do dia, não encontrara vestígio de sua caça na rua, ou em qualquer lugar em tomo dos chalés.

À noite, entretanto, assistira à outra exibição de aeróbi­ca do outro lado da veneziana da janela do sótão.

O domingo trouxe-lhe a mesma falta de sorte. Recusara o convite bastante frio de Dixie para uma ida até a igre­ja, esperando que a mulher do sótão aparecesse ao julgar que todos tinham saído. Não foi esse o caso, e ele terminou passando a maior parte do dia numa espreguiçadeira, na varanda do chalé, relendo seu manuscrito, e sendo observa­do pelos gatos enjeitados de Dixie. Fabiano aparecera para uma cerveja, um pouco mais tarde, e enfrentara seu inter­rogatório sobre a hóspede misteriosa morando no sótão de Dixie com um olhar vago.

No fim, o dia fora até agradável: ele aproveitara a vista e o som do mar, e se esticara numa cadeira com seu livro.

Porém, não fora muito lucrativo no tocante a atingir seu objetivo.

Dixie o evitara durante o resto do domingo e ele havia permitido o distanciamento. Não entendia bem o que estava acontecendo entre os dois. A atração que sentia afastava sua mente do trabalho, distorcendo seu foco, e isso o deixa­va incomodado.

Sempre fora de uma determinação cega. Agora, sentia-se levado para duas direções ao mesmo tempo.

Se Dixie escondera Devon Stafford ali, fora muito bem-sucedida durante um ano. Nenhuma pista vazara para os tablóides. Ninguém levantara uma só suspeita sobre a atriz estar escondida na costa da Carolina. A Grécia, Monte Carlo, e até Mazatlán, no México, tinham sido esquadrinha­dos por repórteres. Mas ninguém jamais mencionara a Toca da Mula.

Jake sorriu consigo. Esconder uma estrela fugitiva, afi­nal, não era uma tarefa assim tão difícil.

Mas ele havia encontrado Devon Stafford, pensou, com o coração acelerado. Podia sentir nas estranhas. A conexão com o nome La Fontaine, as demonstrações de aeróbica na janela, o vislumbre daquela cabeleira famosa e da figura esguia... Tinha de ser ela.

Tentara encontrar uma comprovação mais consistente para seu palpite, revirando os arquivos em busca dos nomes de parentes que Dixie havia mencionado. Contudo, o agente de Devon resolvera que o mistério aumentaria a sedução em torno dela, e pouco se sabia sobre seus antecedentes. Só se conhecia seu nome verdadeiro, Dee Ann Montrose, e o so­brenome de solteira de sua mãe: La Fontaine. Nada mais.

Sua tentativa de encontrar alguma menção a uma tia-avó de nome Suki, e seus problemas de vesícula, fora frus­trada. Também não encontrara nenhuma referência a um tio-avô chamado Nub, e seu pendor para chapéus feitos com garrafas de alvejante. Muito menos algo sobre uma parente curvilínea e impetuosa de nome Dixie.

 

Dixie, que sempre demorava a sair da casa, dando à sua hóspede uma excelente cobertura, sem dúvida. Meia hora antes, ele ouvira o ronco de um motor do lado de fora, e avis­tara de relance um lampejo de cabelos platinados esvoa­çando pela janela aberta de um Thunderbird cor-de-rosa conforme este pegava a estrada. Praguejando contra sua falta de carro, pedira uma carona a Dixie, alegando precisar de nova ida à cidade. Tinham combinado de se encontrar no jipe às onze. Ela ainda não havia aparecido, e já tinham se passado quinze minutos da hora marcada. Pontualidade, aparentemente, era outra característica de que os dois não compartilhavam.

Sentado no jipe antigo, ele se viu admirando a lealdade de Dixie. Ela estava decidida a negar a existência de outra pessoa em sua casa, não importava o que acontecesse.

Bufou, exasperado. Desde que chegara à Toca da Mula, ele passava mais tempo imaginando o que motivava Dixie a adotar tal atitude do que pensando em Devon Stafford. Dixie tinha um segredo, era óbvio, e ele precisava saber qual era. Como sempre, quando defrontado com um mistério, as engrenagens de sua mente funcionavam como loucas, revi­rando fatos e pistas, buscando por retalhos de informações e impressões que armazenara.

Todos esses mecanismos continuavam trabalhando... só que no mistério errado.

— Este lugar está mexendo com a minha cabeça — res­mungou, numa triste constatação.

Passou o olhar pela desordem do banco da frente para distrair-se. Havia uma pequena pilha de conchas do mar no chão, restos de um saco de lanche, três latas de refrigerante vazias e um brinco. Franzindo a testa, ele fixou a atenção no punhado de colares de miçangas pendurado no espelho retrovisor. Rolou as contas polidas entre os dedos.

Gravações minúsculas nas contas vermelhas atraíram seu olhar. Havia uma letra em tinta preta em cada conta: 2 D 4 LUCK J, com um coraçãozinho desenhado na conta seguinte ao "J"

— Para "D", para dar sorte, "J" — murmurou consigo. Sorte para quê? E quem diabo, era "J"?

Jake nunca chamaria de ciúme a pontada que sentiu no peito. Não era do tipo ciumento. Era prático e controlado.

E ciúme de quê? De uma mulher que acabara de conhe­cer, e que era o oposto de tudo o que ele sempre quisera na vida? Absurdo.

O que sentia era impaciência.

Olhou o relógio, soltou um suspiro pesado, chutou a lata de refrigerante.

Por fim, a porta da casa de praia se abriu. Dixie desceu os degraus e saiu para a calçada, parando para afagar os cães. Jake a observou, o coração aquecendo-se ao vê-la, lin­da e curvilínea, nas velhas calças jeans e no suéter preto de gola olímpica.

— Estou "de quatro" como um adolescente boboca — constatou, amargo.

Nunca caíra de paixão por nenhuma mulher. Sentira atração, claro, estabelecera relacionamentos razoáveis, com regras e sem muitos vínculos. Porém, nunca ficara assim tão apaixonado. Nunca perdera o controle.

A idéia de que Dixie o estivesse privando de seu famoso autocontrole sem nem mesmo querer o irritou um pouco. E também o excitou.

— Desculpe por fazê-lo esperar — ela disse, sem um sinal sequer de arrependimento na voz, ao se acomodar ao volante. — Mas tive de lavar os cabelos e o condicionador acabou. Depois Mavis Randal telefonou e ficou falando sem parar. Jake soltou um suspiro sob medida, obrigando-se a ser paciente e tentando não prestar atenção ao modo como o suéter justo se moldava aos seios dela.

— Não tem problema.

Dixie reprimiu um sorriso. Mentira. Se Jake cerrasse o maxilar com mais força, seus lindos dentes iriam rachar. Ela havia se demorado de propósito, por pura teimosia, e deveria ter se desculpado sinceramente. Mas faria bem a Jake perder a hora de vez em quando.

— Pode ir se acostumando com isso.— anunciou, divertida.

— Com o quê?

— A esperar. Temos nosso próprio ritmo por aqui. A pala­vra "pressa" nunca fez parte do vocabulário sulista. A Toca da Mula não é nem um pouco parecida com a Califórnia.

— Até agora, eu diria que não é parecida com qualquer lugar em que já estive neste planeta — Jake replicou, mal-humorado.

Dixie ligou o motor do jipe, dividida entre pensar que uma dose da Toca da Mula faria bem a Jake e desejar sim­plesmente que ele fosse embora, reformado ou não.

Reprimiu um sorriso. Algo lhe dizia que, assim que ele pusesse os olhos em Eldon, iria como um raio para o tele­fone mais próximo e chamaria um guincho de Charleston. Resgataria seu precioso Porsche e depois estaria fora de sua vista para sempre.

Suspirou longamente. Por que a idéia lhe provocava mais ansiedade do que alívio?

Droga, pensou, mordendo o lábio. Depois de tudo pelo que passara, ainda se dispunha a perder a cabeça por um homem.

— Quando acha que vai ficar pronto? — Jake perguntou.

Eldon afastou-se do Porsche, enxugando as mãos num trapo pouco mais limpo que seus dedos cheios de graxa. Mastigou o toco do charuto, e depois o tirou da boca e cus­piu no chão. Tudo isso enquanto fazia uma série de caretas. Atrás dele estava Júnior, um carvalho com cara de gente.

— Pode levar, uma semana, talvez duas — resmungou por fim. — Tudo depende de quanto tempo a mangueira le­var para chegar aqui.

Jake fitou o Porsche, depois lançou um olhar para o ho­mem à sua frente. Pela primeira vez, desde que quebrara o braço, aos seis anos, poderia chorar em público.

Seu primeiro impulso, ao se deparar com Eldon, fora de mandar rebocar o carro para algum outro lugar, onde os mecânicos não se parecessem com figurantes de alguma fita de Hitchcock.

Mas, era importante que deixasse o Porsche nas mãos cheias de graxa do estranho rapaz. Aquilo era um teste, sem dúvida.

Ele pôde sentir o olhar de Dixie sobre si. Sabia que ela estava louca para que ele caísse fora.

Malditos hormônios. Iria deixar seu automóvel de oiten­ta mil dólares nas mãos de uma versão caipira do Hulk, só para impressionar uma mulher.

Respirou fundo. Ele poderia agüentar. Era Jake Gannon, ex-fuzileiro naval.

Mas suava frio e sentia as pernas bambas.

— Por mim está ótimo — conseguiu dizer, apesar do nó na garganta. — Não tenho pressa, mesmo... Posso escrever aqui, tão bem como em qualquer lugar.

As feições de Eldon se fecharam numa carranca. Ele sa­cou uma enorme chave inglesa do bolso e bateu-a na palma da mão.

— É escritor?

— Sim — ele confirmou com calma.

Eldon deu mais um passo, e Junior assomou logo atrás. Jake manteve-se impassível, com um sorriso em um dos cantos da boca.

— Está tudo bem, Eldon. — Dixie veio em seu socorro. — Jake é um escritor de mistério, não um repórter.

O mecânico continuou com o olhar cravado nele.

— Está hospedado nos chalés?

— Estou.

— Mexa com Dixie e vai arranjar um enorme mistério. — Eldon inclinou-se para a frente, e o cutucou com a chave inglesa. — Uma gracinha sua, e Junior irá desová-lo em tantos lugares, que aqueles policiais metidos a besta da Califórnia jamais encontrarão o suficiente de você para le­var de volta numa lancheira!

Junior rosnou, concordando.

— Eldon! — Dixie adiantou-se e arrancou-lhe a ferra­menta, batendo com ela no braço do mecânico. — Pelo amor de Deus! Jake é um hóspede meu! Não veio aqui para pro­curar confusão. Está lhe confiando seu Porsche novinho em folha, e você ainda age como se fosse um troglodita? Deveria se envergonhar. — Lançou um olhar fulminante na direção de Junior. — Vocês dois, aliás.

Junior recuou com uma expressão contrita:

— Só estamos cuidando de você.

Dixie reprimiu um sorriso, que provocou uma mancha de rubor nas faces do grandalhão.

— Estou bem, podem ficar tranqüilos — garantiu, afa­gando carinhosamente o rosto do rapaz.

Junior sorriu timidamente e remexeu os pés, sem graça. Mais uma vez, Jake se viu assaltado pelo ciúme. Lembrou-se das letras no colar de contas: "2 D 4 LUCK J". Seria "J" de Junior?

Mas o que isso importava?, indagou a si mesmo, um tan­to contrariado.

— Há algo acontecendo entre você e Junior? — pilhou-se perguntando pouco depois, enquanto saíam da garagem.

— Eu e Junior? — Dixie fez uma careta. — Claro que não. De onde tirou essa idéia?

Ele esboçou um sorriso que não lhe chegou aos olhos.

— O sujeito estava quase babando em cima de você.

Ela riu.

— Imagine. Junior é como um irmão para mim.

— Um irmão grande e babão — Jake disse, fervilhando de raiva.

Deu a volta até o lado do passageiro e abriu a porta do jipe com um tranco.

Dixie o observou com ar divertido. Ele agia como se esti­vesse com ciúme.

Mas, claro que não estava, disse a si mesma. Homens como Jake Gannon não tinham ciúme de mulheres iguais a ela.

Levou os dedos até os lábios, entretanto, como se pudes­sem trazer de volta o gosto dos dele.

— Eldon e Junior são mecânicos de primeira linha — ga­rantiu, em parte para distrair-se, em parte para tranqüili­zar Jake por ter lhes deixado o Porsche. — Eldon tem mãos de cirurgião, só que cheias de graxa.

— E quanto a Junior? — Jake lembrou, irritado, amas­sando e amontoando as embalagens de lanche no chão do jipe. — O que ele tem, além de um cérebro do tamanho de uma ervilha?

— Um diploma de engenharia do Instituto de Tecnologia da Georgia — Dixie replicou, com doçura. — Ele faz proje­tos. Tem clientes por todo o Sul. Consertar carros é apenas um hobby.

Jake suspirou e jogou a cabeça para trás, para depois lançar um olhar tão humilde em sua direção, que Dixie sen­tiu o coração se apertar.

— Eu mereci, não é?

— Mereceu.

— Perdão. Acho que sou um produto típico de uma socie­dade que julga o livro pela capa — ele concedeu, observando-a atentamente.

— Eu sei. — Ela desviou os olhos. E como sabia. A so­ciedade moderna era obsessiva quanto à imagem. E ela só poderia culpar a mídia e às "Devon Staffords" da vida por fazerem as pessoas terem expectativas tão irreais. Apontou para os dois homens na garagem.

— O que fizeram e disseram... Foi puro teatro, sabia? Eles não fariam mal a uma pulga. Nenhum dos dois.

— Não fiquei muito preocupado, sinceramente. Ela deu de ombros.

— Eu só queria que você soubesse. Jake a encarou por um longo tempo.

— Primeiro, Fabiano me dá um aviso, depois esses dois. No último sábado, o sujeito da loja de ferragens me seguiu com um grampeador, pronto para me grampear na parede se eu olhasse para você do jeito errado... Agem como cães de guarda quando está por perto. Por que isso?

Ela sorriu, constrangida.

— Não sei. É o jeito dos homens daqui, acho.

Jake inclinou-se para ela. De uma coisa ele sabia com certeza: Dixie era incrivelmente linda quando ficava abor­recida.

— Não creio — replicou, com voz rouca. — É você mesma, Dixie La Fontaine. Inspira qualquer homem a defende Ia com unhas e dentes.

Dixie tratou de desviar o olhar. Precisava fazer isso ou se derreteria toda.

— Não acho que Dixie La Fontaine inspire os homens a fazer alguma coisa.

— É uma tola se pensa assim — Jake murmurou, deslizando o nó dos dedos pela maciez da face dela.

Não estava mentindo. Dixie o inspirava a comportar-se de uma maneira que o intrigava. Cada vez que ficava a dois passos dela, cada vez que ela voltava aqueles grandes olhos cor de avelã para ele, algo muito sério acontecia. Ele perdia o prumo. Perdia o bom senso.

Havia algo muito especial em Dixie. Mesmo quando não fazia nada, era como se tivesse uma aura de encantamento em tomo de si. Quando ela decidia fazer charme, como fize­ra minutos antes com Junior, era o suficiente para tirar o chão de um homem.

— Há algo em você — ele murmurou quase para si mes­mo. — Algo de que gosto muito.

Dixie olhou para o azul hipnótico dos olhos dele quase sem fôlego.

— Se me disser que sou "chique", eu quebro seu nariz.

Jake esboçou um sorriso provocador, e a malícia faiscou em seu olhar.

— Mas você é chique...

Ela jogou o punho para trás, porém Jake o segurou com facilidade, aproveitando para puxá-la para seus braços.

Dixie canalizou sua raiva para o beijo, procurando-lhe a boca agressivamente. Lábios nos lábios, dentes se chocan­do, línguas duelando... Logo a raiva se desfazia como fuma­ça, substituída pelo desejo. O sabor de Jake preencheu seus sentidos e ela se aconchegou ao peito largo, entregando-se à carícia, ao prazer de ser abraçada e desejada. Sentia-se pequena e frágil, tão delicada como um frasco de cristal, tão sensível como a primeira flor da primavera.

Esqueceu-se de que estavam estacionados atrás da ga­ragem de Eldon, entre pilhas de sucata. Não se lembrou de que se encontravam na cabine de um jipe. Concentrou-se apenas em beijar Jake, em saboreá-lo, maravilhando-se com a perícia dele naquela arte. Deixou-se absorver pelo momento, pela pressão da boca ávida, pela sensação ine­briante dos dedos que começavam a traçar o contorno de seu seio. Perdeu de vista quem era ou quem fora.

Depois do que lhe pareceu uma eternidade, ele ergueu a cabeça. Só uma fração de centímetro, o suficiente apenas para sorrir com ternura e másculo triunfo. Passou a língua pelo lábio inferior.

— Fica mais gostosa quando ferve de raiva — provocou, a voz rouca, fazendo o coração de Dixie dar um salto.

O desejo acumulou-se perigosamente em seu ventre. Num gesto de autopreservação, ela plantou a mão livre no peito de Jake e tentou empurrá-lo. Ele não se moveu, mos­trando a ela que faria o que bem entendesse. Depois, soltou-lhe a mão com relutância.

— Há algo em você com que eu nunca me deparei antes, Dixie — ele repetiu. — Você é especial.

De repente, o medo quebrou o encanto. Dixie sentiu-se em carne viva, como se todas as suas terminações nervosas tivessem sido expostas.

— Não, não sou. Sou apenas uma mulher, como todas as outras — afirmou, olhando para Jake com a mágoa e a raiva causada por uma velha ferida. — Não há nada diferente em mim. Sofro de TPM, choro em filmes água-com-açúcar, e não gosto de que visitantes, apenas de passagem pela cida­de, brinquem com meus sentimentos.

Jake a encarou, sério.  

— É isso que pensa que estou fazendo?

— Não é? — Dixie questionou, amarga. Ela poderia apenas entrar no jogo e se divertir, aproveitando o que ele tivesse para oferecer... Mas não era assim que funcionava seu coração.

Além do mais, estava cansada até os ossos de fingir. Fingira o bastante pela vida inteira.

— Não — Jake respondeu por fim.

Ela piscou, aturdida. Que Deus a ajudasse, aquilo não era em absoluto o que esperava ouvir.  

— Não? — ela repetiu, zonza.      

— Não.

— O que está acontecendo, Jake? — conseguiu perguntar.

— Não tenho certeza. — Ele passou a mão pelos cabelos e massageou a nuca. Parecia vagamente intrigado. — Não é algo que eu tenha planejado.

O olhar de Dixie recaiu sobre as embalagens que ele pu­sera a um canto.

— Imagino.

Jake acompanhou o olhar dela e sorriu. Um sorriso sen­sual, autodepreciativo.

— Mas não é o bastante para me fazer recuar — ele com­pletou, embora parecesse surpreso consigo.

Dixie sentiu o coração disparar.

— Nossa...

O comentário débil deixou seus lábios quase num sus­piro. E agora, Senhor, o que poderia fazer? Sentia-se como se tivesse aberto a Caixa de Pandora às avessas. Em vez de coisas terríveis e assustadoras, o que saíra lá de dentro fora um homem sensível, bonito, sensual e perturbador.

E ela não se julgava capaz de rejeitá-lo.

Fazia um longo tempo que não se permitia um romance. E parecia uma eternidade desde que um homem mostrara esse tipo de interesse sem um motivo por trás.

Dixie estremeceu diante da perspectiva de lançar a pre­caução pelos ares com Jake. Estava apavorada. E empolga­da. Não sabia o que fazer. Havia dito a si mesma que jamais se interessaria por um perfeccionista como Jake, mas isso, quando estivera convencida de que ele não se interessaria por ela de jeito nenhum. Saber que Jake a via com outros olhos mudava tudo.

Maldisse os próprios sentimentos. Como podia agir tão imaturamente? Agarrava-se aos seus princípios apenas quando eram desafiados?

Enfiou a chave na ignição, apenas relanceando os olhos para Jake.

— É melhor voltarmos — disse. — Tenho de desentupir o ralo da banheira de Sylvie.

 

Sylvie Lieberman tinha uma inclinação natural para o drama, tendo sido, inclusive, integrante de um grupo da Broadway. Ali, o seu Sid, que Deus guardasse sua alma, a tinha visto pela primeira vez. Fincara o pé na entrada do palco até vê-la sair com o resto do elenco, e depois a seguira até o Sardi's. Tomado de uma timidez sem precedentes, fora incapaz de falar com ela, mas a seguira dez passos atrás durante todo o caminho, até que ela gritara, chamando a polícia. Em algum lugar entre o indiciamento e a tomada das impressões digitais, os dois tinham esclarecido o mal-entendido. E se casaram um mês depois. Isso encerrara a carreira de Sylvie no teatro. Porém, ela decidira transferir sua verve criativa para seus jantares.

Dixie olhou ao redor da sala de estar e jantar do chalé da amiga, sorrindo. O tema do jantar daquele mês era Café Internacional. Sylvie passara a maior parte do dia decoran­do, cobrindo as mesas com toalhas em xadrez vermelho, e colocando em exibição a miscelânea de objetos que reunira durante suas viagens pelo mundo com Sid: máscaras tri­bais africanas, canecas de cerveja alemãs, um peso de pa­pel da Torre Eiffel, biscuits de Stafford, um pequeno gongo chinês. Velas derretiam, encaixadas no gargalo de garrafas de chianti, e seda indiana colorida recobria os abajures. O arranjo do centro da mesa de jantar era um vaso com uma dúzia de bandeirinhas de várias nações. Os convidados ha­viam sido instruídos a trazer um prato diferente de comida, usando receitas de uma cozinha estrangeira.

Pela primeira vez em dias, Dixie sentia-se tranqüila. Estaria no meio de seus amigos mais íntimos ali. Uma noi­te com eles lhe daria a oportunidade de relaxar, de afastar o turbilhão de sentimentos que Jake provocava.

Ainda remoendo o pensamento, entrou na cozinha e qua­se derrubou seu bolo Floresta Negra no chão. Inclinado sobre o fogão, provando a sopa chinesa de repolho, estava Jake.

Sylvie virou-se com um sorriso radiante. Estava vestida num sári de seda púrpura, que ondulava a cada gesto.

— Meu Deus, Dixie, já era hora! Pensei que não chegaria nunca! — exclamou, colocando o bolo no balcão. Enganchou-se ao braço dela, e a empurrou para a frente. — Olhe quem eu convidei... Jake! Ele não está lindo esta noite?

Bonito não era bem a palavra. Dixie o fitou, tímida e sem fala, como poucas vezes estivera na vida. Notou a cami­sa café caprichosamente passada, contrastando com a pele bronzeada, a gravata de seda combinando, atada num nó perfeito. Até mesmo o vinco das calças era impecável.

Bonito era pouco. O homem estava deslumbrante.

Como de costume, Sylvie cutucou-a nas costelas.

— Ele é demais, não é? — comentou sem nenhuma vergonha.

Um sorriso sensual brincou nos lábios de Jake.

— Essa adulação toda vai subir à minha cabeça — dis­se, com ironia. — Na verdade, estou até me sentindo meio tonto... Quem sabe Dixie não vai até a varanda comigo para respirarmos um pouco de ar fresco.

— Mas...

Sylvie a empurrou de pronto.

— Vá, vá! Acha que não sei me virar numa cozinha? Meu Sid, que Deus o tenha, sempre disse que eu poderia dar au­las aos melhores chefs.

— Mas... — Dixie ainda tentou protestar.

Jake a segurou gentilmente pelo braço, e a levou, para o largo terraço com cadeiras de varanda e almofadas floridas. Recostou-se a um pilar, cruzando os braços e os tornozelos.

— Pensei que era melhor resgatá-la antes que ela lhe fraturasse uma costela — falou com um sorriso.

Dixie não disse uma palavra. Olhou para qualquer lugar, menos para ele. Planejara ter um alívio para sua confusão mental naquela noite e, em vez disso, fora lançada bem no meio do redemoinho.

— Não se pode prever onde um raio vai cair, você sabe — Jake murmurou, como se lesse seus pensamentos. Depois, com uma graça indolente, afastou-se do pilar e encurtou a distância entre os dois.

— Eu só não estava pronta para isso — ela murmurou, nervosa.

Engoliu em seco. Passara muito tempo em isolamen­to emocional, curando velhas mágoas, recobrando forças. Esquecera-se de como era ser mulher: da atração, do namo­ro, das faíscas e do calor do desejo.

— Não vim aqui para magoar você, Dixie — Jake decla­rou. — Quero que acredite em mim.

A honestidade pungente nos olhos azuis comoveu-a de um modo estranho. Encarou-o com um ar curioso, e, num impulso, estendeu a mão para afastar uma mecha de cabe­los que lhe caíra sobre a testa.

— Sei disso. — Baixou o olhar. — Não ligue, estou ner­vosa... Às vezes acho que você é bom demais para ser ver­dade, é isso. Nunca um homem como você olhou para mim duas vezes.

— Tenho minhas dúvidas a esse respeito, mas posso lhe garantir: olhei para você bem mais de duas vezes... E gostei do que vi em todas elas.

Estava sendo sincero, refletiu Jake. Dixie o deixava em­basbacado. Não importava que não fosse alta e loira, com o corpo de uma deusa de academia. Ela o enfeitiçara comple­tamente.

Resolvera entregar-se ao sentimento. Naquela manhã, no banco da frente do jipe, livrara-se da lógica e da razão. Dixie era um mistério. E o único jeito de decifrá-la era ex­plorá-la, afrouxar o autocontrole, para variar, e permitir-se ser arrastado pela correnteza que ela representava.

Havia todos os tipos de confusão esperando por ele corren­te abaixo, e ele sabia disso. Ficara sem saída ao não contar a Dixie a verdade sobre o que viera fazer ali. Porém, não poderia consertar isso agora. Não quando ela parecia tão vulnerável. Não quando ela se mostrava tão preparada para ser magoada. Iria postergar a verdade um pouco mais, e confiar que ela compreendesse seus motivos quando chegasse a hora.

Tomou-a pelas mãos e a puxou pelo terraço, sorrindo.

— Está linda esta noite.

Ela abriu um sorriso tímido e deu de ombros.

— Eu me arrumei direitinho.

— Eu diria que sim. — Ele a fez dar um giro, admirando-lhe o vestido. Era um tubinho de tricô macio, num belo tom cáqui, e abraçava cada curva voluptuosa de seu corpo com uma graça sutil. O decote comportado, na frente, abria-se em um "V" na parte de trás, revelando um trecho da pele sedosa das costas. Nas orelhas, usava brincos redondos de madrepérola e, no pescoço, uma corrente de ouro com um pequeno amuleto que atraiu seu olhar, e provocou-lhe uma vaga sensação de reconhecimento.

— Muito diferente... — comentou, pegando a delicada réplica em ouro de uma estrela-do-mar.

Dixie sentiu o coração disparar.

— Uma amiga me deu, faz muito tempo — contou, presa entre o turbilhão de emoções que Jake lhe inspirava e uma onda de tristeza. — Ela faleceu.

Dixie detestava aqueles eufemismos: "faleceu", "se foi"...

Jeanne estava morta. Ponto final. Mas não conseguia sequer elaborar tal frase. Era tão definitiva. Mesmo agora, mais de um ano depois, gostaria de acreditar que havia um modo de desfazer a tragédia.

— Sinto muito — Jake murmurou, sofrendo com ela ao ver a dor toldar-lhe os olhos. — Não quer me falar sobre sua amiga?

— Um dia desses — ela prometeu com um sorriso triste.

Apoiou as mãos na grade da varanda. Quem sabe um dia pudesse contar a Jake tudo sobre Jeanne Parmantel. Algo nele lhe dizia que poderia abrir seu coração.

Entretanto aprendera, a duras penas, a ser reservada. Aprendera a guardar para si os sentimentos, pois nem todo mundo se importava. A maioria só queria saber de si. Não era prudente confiar.

Mesmo assim, queria confiar em Jake.

O som de portas de carro batendo atrás do chalé anun­ciou a chegada de Leo e Macy Vencour. Fabiano também descia a trilha, os braços musculosos carregados de longos filões de pão e várias garrafas de vinho.

— Parece que vamos ter um banquete esta noite. — Lançou um olhar de soslaio para Jake. — Pelo menos para aqueles que não são fanáticos por alimentação saudável e têm arrepios diante de um bolo Floresta Negra...

— Não sou assim tão rígido — Jake retrucou, voltando-se para fitá-la com um olhar transbordante de promessas sensuais, e virilidade saindo pelos poros. — Aliás, acredito fielmente que devemos nos entregar ao prazer com freqüên­cia... E você?

Dixie o encarou, hipnotizada como um ratinho diante de um predador. Sabia que ele não falava de comida e umedeceu os lábios, tendo uma dificuldade enorme em reencon­trar a voz.

— Quem sou eu para dizer o contrário?

Jake deixou a foto escorregar dos dedos e cair dentro da caixa, com uma ruga de preocupação vincando a testa. Retalhos de lembranças e vagos pressentimentos rodopiavam em seu cérebro. Dois e dois não estavam somando quatro.

Olhou para o retrato. Naquela noite, de um jeito ou de outro, iria descobrir algo sobre a mulher no sótão. Tinha de resolver o problema antes de prosseguir em alguma dire­ção: com seu projeto ou com Dixie.

Perguntas discretas tinham resultado em nada. Fabiano não lhe revelara nada, sempre dando de ombros e fitando-o com aquele olhar aparvalhado quando ele investigava a res­peito. Quando ele dissera a Sylvie que ela ficara ótima com aquela peruca loira platinada, a mulher se limitara a lhe dar um murro no braço, rindo.

Ficar de tocaia tampouco se mostrara eficiente. A dama misteriosa parecia ter um sexto sentido, sabendo quando ele a observava ou não. Era quase como se o provocasse com sua rotina noturna de dança, para depois fugir em plena luz do dia.

Quanto mais esperava, mais confuso ele ficava. Costu­mava ter um raciocínio linear, mas naquele caso nada fazia sentido. Por isso era hora de entrar em ação.

Enfiou um par de luvas pretas de couro e desligou a luz do chalé. Esgueirou-se pela porta e fundiu-se à noite sem luar, com suas calças jeans pretas e a camiseta da mesma cor. Num andar furtivo e silencioso, seguiu pela trilha rumo a casa onde, no sótão, a luz âmbar brilhava na janela. O resto do chalé estava no escuro.

Ele havia levado Dixie até a porta depois do jantar na casa de Sylvie. Dera-lhe um beijo intenso e a deixara: uma das coisas mais difíceis que tinha feito. Cada fibra em seu corpo ansiara por aceitar o convite nos olhos dela, porém ele resistira ao desejo. Havia perguntas a responder, e pretendia encontrar as respostas da maneira mais correta possível.

Os cães o encontraram na trilha, abanando os rabos, e ele jogou-lhes um biscoito, seguindo, depois, até a garagem. Estava preparado para perder um bom tempo procurando a escada no meio da bagunça, mas, por sorte, esta se en­contrava do lado de fora, recostada à parede. Com muito cuidado, ergueu-a do chão e deu a volta na casa, com Hobbit em seus calcanhares. Logo, Abby e Honey se juntavam a eles dois. Com um suspiro, ele jogou o resto dos biscoitos que havia trazido no bolso.

O rugido do oceano abafava qualquer outro ruído. Concentrado em seu objetivo, e com os olhos fixos na ja­nela do sótão, respirou fundo e pisou no primeiro degrau. Quando a escada balançou, conteve o fôlego até que a coisa se firmasse e, subiu o mais silenciosamente que pôde. Tinha de chegar ao peitoril, erguer-se, espiar e ir embora. Mais um pouco, e estaria lá.

— Moleza — murmurou consigo.

Foi nesse exato momento que Bob Dog entrou em cena. O pastor alemão apontou na lateral do chalé, latindo, entu­siasmado. Jake se encolheu e rezou para que o cachorro se contentasse com biscoitos, mas sua prece não foi atendi­da. Bob, sempre, ávido por aventuras, ergueu-se e plantou as patas enormes no quinto degrau da escada...

Dixie continuou deitada, olhando para o teto. No sótão, Dee assistia a um programa de tevê, soltando altas garga­lhadas. Irritada, Dixie olhou para o canto onde estava o taco de golfe, mas desistiu da idéia. Que diferença fazia se sua prima era capaz de ser mais barulhenta que uma trupe de palhaços? Tinha a sensação de que não pregaria os olhos naquela noite de qualquer jeito.

Depois de tudo que acontecera durante o dia: o incidente no carro, a cena na varanda de Sylvie, estava certa de que não iria para a cama sozinha. Dera luz verde a Jake, todas as dicas de que não o rejeitaria se ele pedisse.

Claro que não havia dito abertamente estar disposta a ir para a cama com ele. Não era seu estilo. Por mais libera­da que fosse, nunca fora capaz de ser sexualmente agres­siva. Gostava da idéia de o homem ser o instigador de um relacionamento,físico. Se isso manchava sua imagem de mulher moderna, paciência.

Passados alguns minutos, começou a achar que tinha exagerado na dose de recato.

— Bobeou... dançou — murmurou para si mesma, virando-se de lado, enquanto a frustração lhe apertava a boca do estômago.

Pelo modo como Jake a havia beijado quando a levara para casa, tinha imaginado se conseguiriam fazer todo o caminho até o quarto... Mas ele recuara, lhe dera um beijo e fora embora.

Poderia tê-lo chamado de volta, pensou, reeditando a cena na cabeça. Visualizou-se dizendo seu nome, Jake virando-se lentamente, uma luz iluminando o perfil aquilino. Claro que teria uma lua. O que era uma cena romântica de noite, na praia, sem o luar? Ele parava ao pé da escada e a fitava com um olhar ardente. Depois, subia os degraus de dois em dois e a erguia do chão.

A cena cortava para a penumbra do quarto, os dois nus, os lençóis amarrotados entre eles, a paixão permeando o ar enquanto faziam amor loucamente...

Dixie esmurrou o travesseiro. Pena não ser tão boa em sedução na vida real como era na imaginação. Quem sabe poderia estar ela mesma fazendo um pouco de barulho em seu quarto, em vez de ouvir a tevê da prima através do teto.

Um ruído e um baque soaram do lado de fora da janela. Em seguida, Bob Dog se pôs a latir energicamente.

Foi um grito abafado de homem, que a fez saltar da cama, enfiar-se no quimono e amarrá-lo às pressas. Agarrou o taco de golfe e correu para a janela, já imaginando um gatuno. O que deveria fazer? Telefonar para a polícia? Alertar Dee? Gritar e esperar que Fabiano a ouvisse?

Espiou lá fora, não vendo nada a princípio. Em seguida, divisou uma forma humana.

— Jake!

Escancarou a veneziana, e pôs meio corpo para fora, boquiaberta. Jake agarrava-se pelas pontas dos dedos ao peitoril estreito, logo abaixo de sua janela; o corpo pendu­rado sobre o pequeno telhado inclinado do primeiro andar da casa. No chão, os cachorros o fitavam, latindo vigorosa­mente. Todo agitado, Bob Dog saltava de um lado a outro da escada caída.

— Que diabo está fazendo pendurado aí?! — Dixie excla­mou, afastando um punhado de cabelos dos olhos.

— Tentando não cair — Jake balbuciou com um gemido de esforço, firmando os dedos no peitoril.

— O que aconteceu?!

— Aquele seu cachorro maluco tentou subir a escada co­migo — ele disse, o humor piorando conforme a força dos braços começava a se exaurir.

Dixie franziu a testa.

— Ora, não vá culpando assim o pobre do Bob Dog. Ele é apenas um filhote e gosta um bocado de você. O que estava fazendo com essa escada, posso saber?

Jake a encarou, vermelho como um pimentão.

— Dixie, importa-se em discutir isso numa hora mais conveniente? A ameaça de ficar tetraplégico acaba com meu dom natural de conversar!

— Só um minuto.

Ela voltou para o quarto, ajoelhou-se ao lado da cama e puxou debaixo desta um rolo de corda, cuja ponta já se encontrava amarrada com firmeza em tomo de um pé. O aparato era para o caso de um dia o chalé de madeira pegar fogo — uma mulher prevenida valia por duas —, mas tam­bém serviria para uma emergência como aquela.

— Pronto — anunciou, jogando o rolo pela janela. A cor­da voou pelo espaço, desenrolando-se e incitando os cães.

Jake agarrou-se à ela, e começou a escalar a parede até a janela. Dixie estendeu-lhe a mão e puxou-o com toda a força que tinha. Jake tropeçou no peitoril, agarrou-se a ela instintivamente, e os dois desabaram sobre o colchão.

— Ufa! — Jake esboçou seu sorriso mais malicioso e er­gueu-se nos cotovelos para fitá-la — Não saiu bem do jeito que planejei, mas serve.

— O que você planejou? — ela quis saber, o coração aos saltos. Ele era inacreditavelmente lindo. A luz do abajur deixava seus cabelos da cor do bronze polido. Parecia rude, forte e terrivelmente másculo debruçado sobre ela.

Ao pensar que dez segundos antes, ele estivera pendu­rado do lado de fora da janela, Dixie sentiu-se tomada por um imenso pânico.

— Seu idiota! — gritou, um terror tardio subindo aos olhos na forma de lágrimas. Agarrou um travesseiro e o ata­cou repetidas vezes. — Podia ter morrido, sabia? Podia ter caído e quebrado o pescoço! Quem está pensando que é? O Homem-Aranha?

— Ei! — Ele levou a mão ao ouvido, se pôs em pé e incli­nou-se para trás para escapar dos golpes.

As lágrimas começaram a correr soltas pelo rosto de Dixie. Tremendo, ela sentiu o acesso de energia se esvair.

No segundo seguinte, Jake a puxava para si e a envolvia nos braços.

Dixie agarrou-se ao peito largo, chorando convulsiva-mente. Enterrou o rosto no pescoço dele, precisando de seu calor. Ele estava a salvo. Estava ah.

— Ei... — ele murmurou, enfiando a mão pelas mechas revoltas dos cabelos dela. — O que aconteceu com a mulher de sangue frio que estava me interrogando enquanto eu me pendurava naquele peitoril?

— Está chorando e molhando toda a sua camiseta — ela fa­lou com voz embargada. Passou os braços em tomo da cintura dele num abraço forte. — Você quase me matou de susto!

— Desculpe — Jake sussurrou, e inclinou-se para depo­sitar-lhe um beijo no topo da cabeça. Esfregou a face contra os fios sedosos, aspirando seu delicioso perfume de lírios. Dixie se importava com ele, pensou, e a idéia o aqueceu por inteiro. Abraçou-a com mais força e beijou-a na orelha. — Jamais pretendi assustá-la... Era para ser uma surpresa.

Mordeu o lábio, preocupado. Se tinha de inventar algu­ma coisa, por que não isso? Afinal, havia desejado estar no quarto de Dixie desde o princípio.

Uma risadinha escapou dos lábios dela. Dixie pendeu a cabeça para trás e o encarou.

— Estava subindo até aqui só para me surpreender? Jake esboçou um sorriso débil.

— Consegue imaginar outra razão?

— Não consigo pensar de jeito nenhum desde que conhe­ci você — ela confessou com voz rouca.

O sorriso dele aumentou.

— Pois eu consigo pensar numa porção de coisas quando a tenho nos braços... — Empurrou-a de volta para a cama, caindo com ela outra vez sobre os lençóis floridos e o edredom macio. Inclinou a boca sobre a dela num beijo transbordante de paixão, o poder da atração entre os dois expulsan­do sua determinação em esclarecer as questões pendentes. Com Dixie tão quente e disposta em seus braços, saber onde Devon Stafford estava era de menos. Dixie era o mistério que ele queria explorar no momento, o mais lenta e intima­mente que lhe fosse possível.

Ela se moveu sob ele com um gemido, enterrando as mãos em seus cabelos, adorando a sensação das mechas sedosas entre os dedos, exultando com a textura aveluda da língua que escorregava contra a sua. Jake tinha um gosto bom, e a sensação de tê-lo contra seu corpo era o Céu.

Deslizou as mãos pelos ombros e costas largos, erguen­do a barra da camiseta, desnudando a carne firme e macia.

Ele interrompeu o beijo apenas para se livrar da peça e jogá-la no chão. Dixie sorriu.

— Não vai dobrá-la e colocá-la no lugar?

— Estou mais interessado em pôr você no lugar — ele murmurou, debruçando-se melhor sobre ela, a voz rouca atiçando todas as suas terminações nervosas.

O olhar de Dixie desviou-se para os músculos dos ombros e do peito de Jake. Eram perfeitamente esculpidos; e a pele bronzeada coberta por uma leve camada de pelos dourados. Sob os dedos, sentiu as batidas fortes de seu coração.

— E onde é o meu lugar? — ela quis saber, provocante, erguendo os olhos para os dele.

— Em torno de mim — ele respondeu no ato, abaixando-se para beijá-la com volúpia. — Bem apertada, quente...

Dixie soltou uma exclamação quando ele pressionou o corpo rijo contra o dela. Um gemido débil escapou-lhe da garganta com a sensação deliciosa do peso de Jake acomodando-se sobre seu corpo. Já podia imaginar como seria tê-lo dentro de si: quente, pulsando bem fundo em seu ventre.

— Oh, minha nossa... — murmurou, deslizando as mãos pelas costas largas ao mesmo tempo em que arqueava os quadris de encontro aos dele.

— Quero você, Dixie — Jake sussurrou, o hálito quente se mesclando ao dela. — Eu a desejei desde o primeiro mo­mento.

— Já me ganhou — ela confessou num tom sedutor, passando as unhas pelos músculos bem torneados. — Aproveite.

O último traço de sanidade escapou da mente de Jake. Sua missão original foi completamente esquecida. Tudo em que pensava agora era em Dixie. Não conseguia saciar-se do gosto dela, tampouco da sensação de ter suas curvas ma­cias comprimindo-se aos contornos de seu corpo. Como das outras vezes em que ficara muito perto dela, a essência de

Dixie expulsou de seu cérebro toda a capacidade de racioci­nar. Não havia nenhuma lógica naquilo. Apenas calor e ma­gia, e um desejo que incinerava seu âmago. A atração que brotara entre os dois desde o princípio superava tudo mais.

Jake afastou a boca da dela e a fez descer pelo pesco­ço macio, distribuindo beijos, traçando o caminho primeiro com os dedos. Demorou-se na base da'garganta, passando a ponta da língua pela leve depressão da clavícula. Pôde sen­tir a pulsação acelerada, e tão ritmada quanto a sua.

Escorregou a mão pelo quimono sedoso até um seio. A seda era fria e macia sob sua palma, o monte abaixo, farto e quente. O mamilo enrijeceu sob seu toque e Dixie arquejou quando, num gesto estudado, ele inclinou a cabeça e com­primiu a língua contra a carne intumescida. Molhou o teci­do e depois o soprou suavemente. Dixie estremeceu.

Jake encontrou a faixa do quimono, e, com enervante lentidão, desatou-a até que os lados do tecido se abriram, revelando a pele nua por baixo. Traçou o contorno das cos­telas, que subiam e desciam com a respiração entrecortada. Com a ponta do dedo, puxou o lado esquerdo do robe, reve­lando mais.

Dixie era tudo que uma mulher deveria ser: macia, fe­minina. A luz âmbar e as sombras enfatizavam os planos, as depressões e os montes. A curva do quadril era um arco gracioso que subia até a cintura estreita. Os seios, fartos na medida certa. As aréolas formavam um círculo perfeito em castanho-escuro.

O coração dele deu um salto quando seu olhar pousou na pequena tatuagem logo abaixo dos seios: uma minúscula borboleta. Os detalhes eram impecáveis, as cores, magnífi­cas: amarelo-ouro, safira, fúcsia e esmeralda.

Era linda. Única. Era de Devon Stafford.

Já não havia nenhuma dúvida. As suspeitas sutis e os pressentimentos vagos subiram até a superfície de sua mente como bolhas de ar vindas das profundezas lodosas de seu sub­consciente. O colar com a estrela-do-mar, o perfume de lírio do vale, o modo estranho com que ela segurava uma caneta.

Compreensão é certamente uma qualidade rara em um homem...

A frase era de um filme de Devon Stafford: "A Febre da Lua Cheia". E Dixie a usara na noite em que tinham se conhecido. Confundira-o com isso, e o deslumbrara com seu charme.

Agora, a tatuagem. Era uma evidência irrefutável.

Dixie. A curvilínea Dixie, simples e despretensiosa, era Devon Stafford, a fugitiva glamourosa, o símbolo sexual da década.

Jake a fitou em choque, analisando os cabelos castanhos e cortados, o rosto suave, sem maquiagem. Ela o observava, os grandes olhos cheios de expectativa e incerteza. Não pa­recia em nada a mulher que tomara Hollywood de assalto. As longas madeixas loiro-platinadas tinham sumido, assim como o corpo esbelto de deusa de academia. E quanto aos vibrantes olhos verde-esmeralda? Lentes de contato, é cla­ro. E o biquinho sensual? Injeções de colágeno havia tem­po absorvidas, na certa. O ídolo desaparecera. Todo aquele tempo ela estivera debaixo de seu nariz, disfarçada em seu eu verdadeiro.

— O que foi? — ela perguntou, o tremor na voz traindo o medo de que ele a julgasse desprovida de encantos.

— Nada — Jake murmurou. — Nada. Nada, a não ser que ele fora um idiota.

Como Dixie o acusara mais de uma vez, tinha julgado pe­las aparências. Ela não se parecia com a mulher da tela, e ele rejeitara todas as pistas e ignorara os pressentimentos. Mas, o que mais havia negligenciado fora o fato de que a mulher na tela não existia realmente. Devon Stafford era uma produção de Hollywood. E eles não estavam mais em Hollywood.

Uma centena de pensamentos rodopiou em sua cabeça. Teorias, perguntas... Por que ela havia sumido? O que acon­tecera de errado? Que amiga ela havia perdido?

Jake calou todas quando Dixie ergueu-se nos cotovelos e o fitou, os olhos marejados de lágrimas.

— Jake? — indagou, a voz tão débil como um fio. — Não me quer mais?

Seu coração derreteu-se diante da pergunta e da dor nos olhos dela. Não importava quem ela havia sido. Naquele instante, era uma mulher vulnerável e meiga duvidando de si mesma.

E ele estava apaixonado por ela. Não por Devon Stafford, a mulher ideal, mas por Dixie La Fontaine. A meiga e inse­gura Dixie, tão cheia de sombras no olhar, mas cujo coração era maior do que o planeta.

— Eu a quero mais do que o ar que respiro — murmurou com voz embargada. E era verdade. Seu corpo ansiava tan­to por se unir ao dela, que chegava a doer.

Dixie soltou um suspiro trêmulo de alívio.

— Precisamos fazer algo a respeito — disse, rindo. Em seguida sentou-se devagar, empurrando Jake até que ele se aprumasse. O quimono escorregou-lhe do ombro, mas ela ignorou o fato, a atenção centrada no homem à sua frente.

Por um instante, ficara apavorada que o tivesse perdi­do. A insegurança travara-lhe a garganta e inundara-lhe os olhos. Ela se gostava do jeito que era: corpo cheio, curvilí-neo. Mas Jake era um perfeccionista, e sua idéia de perfei­ção feminina era um fantasma loiro: uma criatura delgada com longos cabelos em cascata e lábios cheios. Uma mulher que não mais existia no mundo real.

Por um segundo, ela quase desejou ser Devon Stafford outra vez.

Não. Não poderia. Nem para Jake nem para ninguém. Era Dixie La Fontaine, e Jake Gannon teria de amá-la como ela era, ou não amá-la de jeito nenhum.

Jake murmurou algo em seu ouvido num tom de pura ado­ração, e espalmou as mãos em seus seios, para depois erguê-los e massageá-los. Enterrou a face entre eles com um suspi­ro, enquanto massageava os mamilos entre os polegares.

Verdadeiras faíscas pareceram cortá-la, afogando-a em deliciosas sensações. Quando ele se endireitou, ela o beijou no peito demoradamente. Comprimiu os lábios sobre a pele acima do coração, saboreando seu gosto. Deixou as mãos percorrê-lo por inteiro, memorizando cada linha e mon­te musculoso. Brincou com os mamilos planos, do mesmo modo que ele fizera com ela, depois correu a língua sobre eles, rindo do arrepio que o sacudiu. Com olhos semicerrados, observou o modo como ele contraiu a superfície bem torneada do estômago, a trilha de pelos que desaparecia sob a cintura das calças escuras.

Jake prendeu a respiração quando ela enfiou dois dedos dentro do cós e soltou o botão da casa. Dixie puxou o zíper para baixo, um centímetro de cada vez, e o ruído pareceu encher o quarto. A braguilha se abriu, revelando cuecas brancas como a neve que se esticavam para contê-lo. Ela sorriu de leve e tocou a ponta do membro gentilmente.

Jake gemeu, ofegante. Afastou-se dela e deixou a cama, livrando-se das calças e da cueca. Então, virou-se para ela, nu e magnífico, e com um brilho perigoso nos olhos claros.

— Agora, vamos pôr as coisas em seus devidos lugares... — falou, num tom sedoso e sensual de ameaça.

Dixie sorriu, arquejante.

Ele se arremessou sobre a cama e ela soltou um gritinho, fingindo se debater quando ele a apertou contra as cober­tas. Depois gemeu baixinho quando ele escorregou sobre ela, comprimindo o membro contra suas partes íntimas e tomando o bico empinado do seio na boca.

Sugou-a avidamente. Um seio, depois o outro, atormen­tando os mamilos com os lábios e a língua, enquanto a mão se movia para provocá-la mais abaixo. Seus dedos penetra­ram pelo ninho de pelos escuros entre as coxas, explorando-a. Dixie levantou os quadris da cama num convite, mas ele ape­nas a provocou, tocando-a, acariciando-a, sem satisfazê-la; limitando-se a atiçar o fogo que queimava dentro dela, até ela pensar que iria se consumir em uma única labareda.

Enquanto isso, a boca sugava-lhe o seio, enviando ondas de prazer até o âmago de seu desejo.

Dixie implorou sem qualquer vergonha, mas em vão. Jake parecia resolvido a enlouquecê-la. Enlevada, ela se sentiu como se estivesse prestes a se atirar em um precipício. Teria saltado de bom grado, porém ele recuou no último segundo. Ajoelhou-se e a encarou, a expressão ainda tensa de desejo.

— Detesto mencionar isso agora — murmurou, ofegante —, mas receio não estar devidamente preparado.

— Parece ótimo para mim — Dixie se queixou com um gemido, devorando-o com os olhos antes de estender a mão para acariciá-lo. Encontrou-o rijo, quente e pulsante.

— Eu falo em proteção — ele esclareceu. Ela piscou, confusa. Depois, sorriu.

— Só um minuto — falou, saltando da cama esquecida de sua impressionante nudez, e correu até a enorme cômo­da junto à parede.

Tentou como louca recordar-se de onde colocara a emba­lagem. Tinha certeza de que a guardara ali.

Abriu uma gaveta, jogou um sutiã e um par de calcinhas por sobre o ombro e, depois, gritou de alegria ao encontrar seu prêmio.

— Descobriu o Santo Graal? — Jake indagou, rindo, apoiando-se na montanha de travesseiros distribuídos pela cabeceira de bronze da cama.

— Coisa melhor! — Dixie exclamou, correndo de volta para a cama. Aninhou-se junto a ele e sacudiu um envelope diante de seus olhos. — Três amostras grátis... Vieram pelo correio.

Jake examinou o conteúdo dos envelopes enquanto, ou­sada, ela se entregava à tarefa de lhe explorar o corpo com as mãos.

— Camisinhas coloridas? — Ele riu, mas o sorriso se transformou num gemido quando ela abaixou a cabeça, tomando-o na boca. Seu corpo inteiro ficou tenso, como um arco retesado. — Pensando bem, sempre estou disposto a experimentar coisas novas... — gemeu, excitado. Puxou-a para cima, para dentro de seu abraço, e rolou-a para baixo do corpo, enredando os dois em meio aos lençóis.

Penetrou-a devagar, deliciando-se com a sensação e lu­tando para controlar-se ao mesmo tempo. Dixie suspirou de prazer ao ser preenchida por ele. Mais uma vez, arqueou os quadris, aceitando tudo o que ele tinha para lhe dar, recebendo-o bem fundo e agarrando-se a Jake como se à própria vida. Queria que ele a amasse com o corpo e com a alma.

Nunca desejara um homem tão desesperadamente como desejava Jake Gannon. Tudo acontecera depressa demais, mas não havia como negar. Estava apaixonada por ele e nada parecia mais certo. E, piedade, Senhor, nada fora tão bom quanto aquilo em toda sua vida!

A paixão explodiu em tomo dos dois como um tempo­ral, aniquilando todo o raciocínio e controle. Jake enterrou-se nela, a necessidade elementar de marcá-la como sua a impulsioná-lo para além da gentileza e da autodisciplina. Era a primeira vez que perdia todas as reservas com uma mulher, e essa percepção o deixou com uma sensação de assombro e deslumbramento.

Tais sensações foram superadas por outras, no entanto: Dixie quente e apertada em tomo dele; Dixie com lágrimas nos olhos quando duvidara que ele a desejasse.

Como podia? Ele não apenas a desejava. Queria consumi-la, queria perder-se dentro dela para nunca ser encontrado outra vez. Ela era o paraíso: um mar de fogo e ternura entre­gando-se sem reservas, recebendo-o com absoluta alegria.

Dixie o chamou pelo nome e gritou de prazer, arqueando-se, pedindo mais. Foi de encontro a cada investida, contorcendo-se, agarrada às costas e quadris dele. Sentia-se, livre, inebriada, e prestes a explodir. A atração que os envolvera desde o momento em que tinham se encontrado pela primeira vez a apavorara, e ela lutara contra ela com todas as forças. Agora que abdicava da luta e se entregava por completo, a rendição se mostrava incrível.

A velha cama de bronze protestou sob o assalto do de­sejo desenfreado, gemendo e batendo contra a parede. Um abajur tombou no criado-mudo, derrubando uma pilha de livros no chão.

Mas a tempestade continuou, sem trégua. Jake gemeu e arquejou, murmurando palavras de urgência, súplicas, or­dens. Dixie respondeu com uma espécie de canto que subiu num crescendo até explodir num grito, conforme ele se enter­rou nela numa última estocada poderosa. A explosão do êx­tase roubou o que lhe restava de fôlego, e ela sentiu a mente se toldar conforme as cores de um caleidoscópio rodopiavam por sua cabeça. Agarrou-se a Jake com braços e pernas, ancorando-se nele enquanto o mundo girava ao redor.

Seus gemidos decresceram até um leve suspiro. Uma in­crível lassidão tomou conta de seu corpo, e Dixie sentiu-se afundar ainda mais no colchão sob o peso de Jake. Abriu os olhos e sorriu.

— Nossa... — murmurou apenas. Ele sorriu, ofegante.

— Tirou a palavra da minha boca.

Debruçou-se sobre ela para beijá-la de novo, mas uma série de baques surdos, no teto, o fizeram erguer a cabeça. Virou-se de lado, apoiou-se em um dos cotovelos e lançou um olhar curioso para o alto, franzindo o cenho.

— Tem gente tentando dormir, viu? — Veio a voz femi­nina através do forro.

Dixie sentiu o rubor subir ao rosto e levou a mão à boca para reprimir o riso. Jake estreitou o olhar para fitá-la com seus lindos olhos azuis.  

— Dixie, querida... — falou, calmamente. — Quem, afi­nal, está morando em seu sótão?

 

Dixie ergueu-se e se aninhou junto ao monte de traves­seiros, puxando o lençol para enfiá-lo sob os braços. Encarou Jake, cheia de expectativa.

— Você tem de jurar que não dirá uma palavra a uma alma viva. Dar sua palavra de honra de ex-fuzileiro — pe­diu, solenemente.

— Dixie... — Ele revirou os olhos.

— Falo sério, Jake. Eu jurei segredo e já estou com pro­blemas. Você também vai ter que jurar.

— Tudo bem, eu juro — ele falou, sentando-se ao lado dela. Inclinou-se e endireitou o abajur no criado-mudo para acendê-lo novamente. A luz âmbar espalhou-se pelo quarto, banhando as feições sérias de Dixie.

— Por sua honra? — ela insistiu.

— Por minha honra. — Jake suspirou. — Agora vai me contar ou terei de correr até lá para ver quem é?

— Não se atreva. — Ela beliscou-lhe a barriga. — Se pensa que vou dividir você com outras, pode tirar o cavali­nho da chuva, Jake Gannon. Sei que é da Califórnia, onde as pessoas se metem em todo tipo de coisa esquisita, mas sou uma moça antiquada e de família.

Ele riu com vontade.

— Está bem, está bem... Agora quer fazer o favor de me contar quem está morando nesse sótão?

Ela respirou fundo, e suspirou, resignada.

— Minha prima Dee, de Myrtle. Delia La Fontaine. Está escondida no sótão por causa do noivo, Tyler Holt.

Ele franziu o cenho.

— Ele estava abusando dela, por acaso? Por que ela não foi à polícia?

— Não é nada disso. Quero dizer, Tyler fala de um jeito bem grosseiro, às vezes, mas não iria machucá-la. — Baixou os olhos, tristonha. — Delia tinha cabelos loiros e compridos, e era muito bonita do seu jeito. Mas Tyler vivia insistindo para que ela os deixasse mais platinados e ondulados. Dizia que ficaria muito mais sexy e parecida com... — Engoliu o resto da frase ao se recordar de seu papel involuntário na tragédia. — Enfim, Dee enfiou na cabeça que tinha de ficar do jeito que Tyler queria. Mandou clarear e fazer permanente no cabelo. Não sabemos se foi a combinação de química, uma alergia ou outra coisa, mas o fato é que os cabelos dela se partiram na raiz. Dee ficou praticamente careca e está apa­vorada que Tyler a veja assim e desista do noivado.

Os ombros largos de Jake começaram a sacudir confor­me ele lutava para manter a risada presa no peito. Apertou os lábios e ficou quase roxo, mas perdeu a batalha. Quando ele ergueu a mão para tentar abafar o riso, Dixie agarrou um dos travesseiros e o atacou.

— Não se atreva a dar risada! Não tem graça nenhuma! Gostaria de perder os cabelos assim?

— Já passei por isso... Esqueceu que fui fuzileiro? — Jake lembrou, quase cuspindo as palavras. — Sua prima poderia se alistar na marinha, que tal?

Dixie agrediu-o outra vez com o travesseiro enquanto ele se dobrava de tanto rir.

— Está sendo cruel, Jake. Minha pobre prima escondida no sótão, morrendo de medo da rejeição do homem que ama, e você aí, se esbaldando de rir.

— Desculpe — ele murmurou, ainda com lágrimas nos olhos. Assumiu um ar arrependido. — Sinto muito. É que... é uma história muito estranha, você tem de admitir.

— É uma tragédia, isso sim — Dixie disse com tristeza. Tinha medo de imaginar quantas outras mulheres podiam es­tar passando pela mesma situação, ou se sentiam miseráveis por não conseguirem se parecer com Devon Stafford.

Jake ficou sério ao perceber sua expressão. Pensou nas coisas que ela havia dito e pôde enxergá-las com mais cla­reza. Assim como ele, Tyler Holt era um dos muitos que tinham escalado Devon Stafford para o papel de mulher perfeita. E Dixie, que hoje abominava a imagem de perfei­ção, culpava-se por tudo que acontecera com a prima. Por meio de artifícios que ele só poderia imaginar, um dia ela se transformara num ícone de glamour. Sua prima Delia, ao contrário, não alcançara essa meta fugidia. Na verdade, tinha feito tudo errado, e Dixie, que era mestre em acolher enjeitados, recebera a prima de braços abertos.

— Quer dizer que ficou com pena de Dee e, como sempre faz diante dos aflitos, decidiu abrigar sua prima — ele dis­se, baixinho, acariciando-lhe a ponta do nariz.

Dixie fechou a cara, nada à vontade com sua imagem de santa. Tentava apenas ser uma pessoa decente, e isso era, para ela, tudo.

— Ora, bolas! A pobre precisava de alguém para olhar por ela. Você deveria vê-la sem a peruca... Parece que aca­bou de fugir de uma prisão.

— Ela não pode estar pior do que aquele seu gato za­rolho. — Jake afastou-lhe uma mecha de cabelo dos olhos, num gesto temo.

— Não, nem tanto... — ela admitiu, reprimindo o riso.

Ele passou um braço em tomo dos ombros pequenos e se inclinou para beijá-la nos lábios e na ponta do nariz. Dixie aninhou-se junto a ele, enlaçando-o pela cintura e enterran­do a cabeça na curva de seu ombro.

— Mas isso machuca meu coração — ela murmurou. — Dee se desgasta tanto para agradar Tyler. Deveria confiar que ele a amasse de qualquer jeito. Se ele a ama apenas por seus cabelos ou por sua aparência, que tipo de amor é esse? Se é assim, ele não vale todo esse sacrifício. Gostaria que ela enxergasse isso. Eu queria...

Deixou a frase morrer e apertou os olhos com força, lutando contra uma onda repentina de pesar e sofrimen­to. Queria tantas coisas. Gostaria de nunca ter ido para Hollywood, de nunca ter ficado tão obcecada na busca da fama, de nunca ter perdido a perspectiva. Queria que as pessoas percebessem que havia coisas mais importantes do que cabelos loiro-platinados e uma cintura fina para tomá-las felizes. Gostaria de ter feito Dee enxergar isso antes de ela ficar careca. E gostaria, mais do que tudo, de poder ter feito Jeanne entender isso antes que fosse tarde demais.

— Ei... — Jake ergueu-lhe o queixo ao perceber seu tormento, e sentiu-se partido em dois. — Não é sua culpa.

Quis confortá-la mais efetivamente, mas não ousou re­velar que sabia de seu segredo. Não queria que ela soubesse ainda de sua descoberta. Não poderia contar que as peças daquele quebra-cabeça sobre Devon Stafford finalmente co­meçavam a se encaixar, e que ele já tinha uma idéia do motivo de ela ter deixado o estrelato para trás.

Suspirou profundamente. Tudo o que podia fazer agora era abraçá-la bem forte.

Dixie forçou um sorriso.

— Não falei sério quando afirmei que você era cruel. É o homem mais meigo que conheço. Sempre tratou bem todos os meus amigos.

Gosto deles — ele admitiu, dando de ombros. — Bem... Acho melhor guardar meu julgamento sobre Eldon até ver o que ele faz com o meu bebê.

Dixie sorriu e o abraçou.

— É um sujeito muito decente para quem tem essa ima­gem de playboy da Califórnia. E tão romântico... Nunca imaginei que teria coragem de escalar as paredes do chalé como o Zorro, só para me ver.

— Pensei que fosse como o Homem Aranha. — Jake sor­riu de lado. — De qualquer modo, garanto que, da próxima vez, virei pela porta da frente, com flores, como qualquer homem apaixonado e normal.

Esquecida do lençol, Dixie ajoelhou-se na cama, os olhos fixos em Jake.

— Está apaixonado? Mesmo? — perguntou, tão esperan­çosa que sentiu medo.

— Você ainda duvida? — Ele sorriu devagar, afagando-lhe os cabelos. — Acho melhor acreditar nisso, moça.

— Eu quero acreditar — Dixie murmurou, comovida. — Quero muito.

— Precisa ser convencida, é isso?

Jake escorregou para os travesseiros, puxando-a consi­go. Rolou-a para baixo do corpo e a distraiu, acariciando-lhe os seios com o nariz, enquanto tateava os lençóis ao lado. Ergueu a cabeça com um lindo sorriso e um brilho malicioso nos olhos. Balançou duas pequenas embalagens diante de Dixie.

— Azul ou amarela?

Dixie ficou acordada, ouvindo a chuva tamborilar na janela e a respiração tranqüila de Jake. Aconchegou-se ao corpo forte, a cabeça apoiada no ombro largo, a perna enrodilhada à dele. Sentia o braço formigar, mas não conseguia se afastar. Jake era tão quente e sólido... Era como se agar­rar a uma rocha numa tempestade.

Por outro lado, o turbilhão dentro dela também era cau­sado por ele. Como Jake podia ser, ao mesmo tempo, uma tormenta e um abrigo? Ele era o último homem pelo qual ela poderia se apaixonar: exigente, perfeccionista... Tudo do que ela vinha fugindo. E, ironicamente, era também o único por quem ela poderia ter se apaixonado: temo, forte, honesto...

Suspirou. Gostaria de lhe confiar seus segredos, mas tinha medo. Era muito prematuro. Tudo acontecera tão depressa... Ela nem mesmo pensara em romance. A rotina tranqüila dos últimos tempos a fizera esquecer coisas como magnetismo e química.

Jake surgira, provocando todo tipo de ondulação nas águas calmas de sua existência.

Fechou os olhos, atormentada. Seus instintos lhe diziam para confiar nele, para se soltar, para amá-lo... Mas eles já haviam se enganado antes.

Imagens de seus dias em Hollywood passaram por sua memória como slides de férias antigas. Imagens de gente que ela conhecera, de gente em quem confiara, de gente que, no fim, agira apenas em benefício próprio.

Lembrou-se, principalmente, da última conversa com seu agente, o homem a quem entregara seu destino. Na ocasião, Altovelli negociava seu novo contrato com os produtores de Wylde Time, e tinham discutido por causa dos cinco quilos que ela havia ganhado quando parara de fumar, durante o intervalo da temporada. Ele dizia que pareciam onze na tela. Queria que ela emagrecesse antes do início da nova estação, porém ela rejeitara a idéia. Em parte por teimosia, em parte porque percebera que estava quase se matando de inanição. Sua saúde já começara a sofrer com a dieta e a agenda brutal de trabalho. Tanto que tinha sido hospita­lizada ao fim da temporada anterior por alguns dias, e um médico a alertara sobre o perigo que rondava seus hábitos.

A única coisa com que as pessoas ao seu redor estavam preocupadas, no entanto, era que ela se parecesse com a mesma Devon Stafford que já lhes rendera milhões. Não interessava que ela se sentisse melhor daquele jeito, ou que julgasse que o peso a mais lhe ficava bem.

Naquele dia, Altovelli havia perdido todo o controle. Aos berros, chegara a jogar um artigo sobre uma dieta à base de brócolis em sua cara.

— Faça alguma coisa, pelo amor de Deus! — gritara, os olhos falseando de raiva. — Deixe de comer, comece a fumar de novo, sei lá... Mas perca essa gordura, ou nossos lucros vão para o espaço! Entendeu?

Ela entendera muito bem. Naquele momento, enxergara exatamente quem era Altovelli. Não era seu amigo. Não era seu pai. Era apenas um homem que lhe arranjara um nome artístico, e que a vendia pela maior oferta, embolsando dez por cento de tudo o que ela ganhava. Era esse o seu negócio. Ela era apenas um negócio, um nome numa marquise, um rosto num pôster iluminado.

Droga, aquela não era nem mesmo sua face verdadei­ra. Não passava de um esboço melhorado: lábios polpudos, cheios de solução salina e proteína, olhos de um verde lumi­noso graças à magia da ciência ótica. A verdadeira Dee Ann Montrose, a garota que crescera com o apelido de Dixie nas colinas da Carolina do Norte, tivera seu sotaque eliminado da fala, o corpo remodelado. As longas madeixas platinadas com que sonhavam os homens do mundo inteiro, eram, na maior parte, apliques tingidos.

A desilusão fechara seu cerco sobre ela num cemité­rio, quando se vira sozinha enquanto o caixão de Jeanne Parmantel descia para um túmulo frio e negro. Ninguém mais se importara em vir. Ninguém se interessara, porque, afinal, quem era Jeanne Parmantel? Apenas outra ninguém que não fora boa o bastante, ou magra o bastante, ou sexy o bastante. Não fora Devon Stafford. Não fora nada.

A velha dor voltou a rasgá-la, e ela apertou Jake en­quanto as lágrimas ultrapassavam a barreira de seus cílios. Agarrou-se ao corpo forte conforme a tempestade desabava em seu íntimo, ansiosa por contar tudo a ele. Queria que Jake a abraçasse e embalasse, enquanto ela purgava o coração,da tristeza e da culpa.

Bem no fundo, no espaço mais sagrado de seu coração, no entanto, sentiu medo. Queria tão desesperadamente que ele amasse Dixie La Fontaine, que não tinha coragem de lhe confessar que um dia fora Devon Stafford.

Sem dar indicação de que estava acordado, Jake virou-se e a abraçou com força. Dixie começou a chorar, tentan­do disfarçar a respiração arfante e o tremor dos ombros. Procurava não acordá-lo, ele sabia. Qualquer que fosse o sofrimento terrível que a atormentava, era pessoal demais para ser compartilhado.

Respirou fundo. Destroçava-o vê-la chorar daquele jeito. Sua vibrante e jovial Dixie, de olhos luminosos e sorriso en­solarado, esvaindo-se em lágrimas...

A raiva o devastou. Ela era tão meiga, tão leal, tão boa... O que teriam feito para deixá-la naquele estado?

Quem sabe Devon Stafford fosse a culpada?, refletiu, acalmando os instintos protetores e pondo o cérebro para raciocinar. Talvez Dixie simplesmente não conseguisse mais conciliar a imagem glamourosa com a mulher que era na verdade.

Mas, por que isso a fazia desabar mais do que a chuva lá fora? Por que estava tão agoniada em seus braços?

Gostaria que ela lhe contasse. Queria que confiasse nele, que se abrisse no escuro do quarto. Queria confortá-la, queria entendê-la. Queria que acreditasse nele o bastante para compartilhar as lágrimas e a dor que a dilaceravam. Magoava-o o fato de ela compartilhar o corpo com ele, mas não a alma.

Jake suspirou profundamente. Estava apaixonado e, ao que tudo indicava, aquele era um amor de verdade. Não ape­nas uma atração que conduzira a um relacionamento está­vel, com regras e vínculos. Não havia nada razoável no modo como ele se sentia abraçando Dixie e ouvindo-a lutar contra as lágrimas. O que sentia por ela era amor. Queria Dixie com tudo que ela era, com tudo que ela fora, Queria acobertá-la para sempre na proteção e abrigo de seus braços...

Mas ela continuava chorando sozinha.

Ele não conseguiu suportar. Fora treinado para resistir a qualquer interrogatório inimigo, fortalecido para agüen­tar tortura... Porém os soluços abafados e contidos de Dixie o dilaceravam.

Seu orgulho que fosse para o inferno. Não se importava se ela não lhe contasse o motivo. Só não poderia suportar que ela continuasse tentando ocultar sua dor.

Afastou os cabelos da face de Dixie, limpando as lágri­mas com os dedos. Pousou beijos temos em suas pálpebras, para depois ir de encontro aos lábios trêmulos com um beijo suave.

— Não chore, meu amor — murmurou, comovido. Dixie ergueu os olhos para os dele, aflita.

— Desculpe — sussurrou em meio a um soluço. Não que­ria perturbar o sono de Jake e não pretendia que ele a pe­gasse chorando.

Buscou coragem para enfrentar as perguntas. Claro que ele faria perguntas. Ela o recriminara mais de uma vez por não olhar abaixo da superfície, mas estava enganada. Jamais conhecera um homem tão inquisitivo, sempre ten­tando ver dentro das coisas.

Na casa de Sylvie, ela o observara recolher bocados de informações sobre cada um e passá-las por seu cérebro ana­lítico, tentando encaixar as peças. Agora, teria razões su­ficientes para buscar respostas que ela ainda não estava preparada para dar.

Jake, todavia, nada perguntou. Beijou-a apenas, mur­murando palavras de conforto. Suas mãos carinhosas acal­maram-na, aliviando a tensão dos músculos, aquecendo o frio que a sacudia intimamente.

— Jake — ela sussurrou, comovida. — Faça amor comi­go, por favor.

Ouviu o tom de desespero na própria voz, e pensou que agora não escaparia a um interrogatório.

Mas ele não pronunciou uma só palavra. Beijou-a outra vez, virando-a com um ligeiro movimento dos quadris. Debruçou-se sobre ela, aquecendo-a com seu calor e sua força.

Já haviam atingindo o clímax da paixão, chegando à ple­nitude com ardor, mas, dessa vez foi diferente: uma relação mais terna, mais gentil, tão delicada como um novo botão na primavera.

Disposto a confortá-la, a transportá-la para longe do so­frimento, Jake foi cauteloso, preocupado em lhe dar prazer. Incitou seu fogo gradualmente, com carícias leves e medidas.

Dixie deixou-se amar com abandono. Fechou os olhos, deixando as sensações varrerem suas dúvidas e seu sofri­mento. Concentrou-se na sensação de tê-lo dentro de si e, quando a satisfação chegou finalmente, os últimos vestígios de angústia se desvaneceram.

Ela o acariciou de leve, mas quando ele se virou para beijá-la na boca, Dixie já havia adormecido.

Com a mente ainda revolta por um turbilhão de pergun­tas e sensações, ele acomodou-se para descansar pelas úl­timas horas da noite. Continuava unido ao corpo de Dixie, porém ainda ansiava por lhe tocar a alma.

Dixie sorriu, radiosa, para a garçonete, a srta. Divine Trulove. Divine retribuiu o sorriso, os olhinhos azuis falsean­do. O sol que entrava pela janela transformava a nuvem de cabelos brancos num halo em tomo da cabeça, e ela parecia saída de uma pintura antiga.

— Bom dia, Dixie, querida — saudou calorosamente. Pegou o bloco de notas e o lápis do bolso do avental.

— Bom dia — ela respondeu de bom grado. — Quero um pedaço de torta de chocolate e nozes com chantilly e um copo grande de leite.

— No café da manhã? — Jake, sentado do outro lado da mesa, fitou-a, chocado.

Divine tirou-lhe o cardápio da mão sem delicadeza e o cutucou no ombro com ele.

— Nossa Dixie pode comer o que quiser como café da manhã, sr. Gannon — declarou, feroz.

— Sim, senhora.

— Não gostamos de estranhos intrometidos, querendo nos dizer o que fazer — ralhou a mulher com voz cortan­te, ainda que macia. Esperando uma resposta, endireitou o laço no decote do vestido, os olhos ainda fixos em Jake.

— Não, senhora — ele concordou.

Divine suspirou, aparentemente satisfeita. Dobrou a pá­gina do talão de pedidos, molhando a ponta do lápis com a língua e posicionou-o a exatos dez centímetros dos olhos.

— Agora, sr. Gannon, o que gostaria para o desjejum nesta bela manhã?

— Suco de laranja, torradas de pão integral e uma tigela de cereais com morangos, por favor.

— Fatias de pêssego — ela o corrigiu. — Os morangos estão muito maduros hoje. Além disso, todas aquelas sementinhas não fazem bem para sua vesícula.

Jake pestanejou, espantado.

Divine anotou o pedido e, ao enfiar o talão no bolso do avental, sacudiu a cabeça, inconformada.

— Vou lhe trazer alguns ovos com bacon por conta da casa. E um mingau de aveia também. Um homem preci­sa manter sua energia... Faz bem para sua constituição. E você vai comer tudinho — ameaçou, quando ele fez menção de protestar.

Dixie abafou uma risada enquanto a garçonete de oiten­ta e cinco anos rumava para a cozinha, arrastando os sapa­tos ortopédicos.

— A srta. Divine foi diretora de uma escola para rapa­zes. Acho melhor você se cuidar.

Jake fez uma careta.

— Ela quer que eu coma como um lenhador e permi­te que você peça torta de chocolate e nozes no café da ma­nhã.... Tem idéia da quantidade de gordura e açúcar que vai ingerir?

— Não. — As sobrancelhas de Dixie se juntaram. — Mas o fato de ser um maníaco pela boa forma não lhe dá o direito de estragar minha alegria.

— Não estou contando calorias, Dixie. Só falei isso por­que me importo com você — Jake replicou. — Torta de cho­colate com nozes no café da manhã não é exatamente uma refeição saudável.

— Não como isso todo dia — ela protestou, a raiva dissipando-se. Jake se importava com ela. Não queria que arrui­nasse a saúde, era isso. Sorriu de leve, encarando-o com um olhar travesso por baixo dos longos cílios. Debaixo da mesa, esfregou-lhe a canela com os dedos do pé. — Hoje é um dia especial... Estou celebrando a nós dois.

Ele tomou a mão dela e sorriu. O charme de Dixie era ir­resistível, ainda mais forte em pessoa do que na tela, e mes­mo destacado da imagem glamourosa de Devon Stafford. Ela o fazia sentir-se másculo e protetor, possessivo e arden­te. Debruçou-se sobre a toalha xadrez, o olhar cravado nos lábios sensuais.

— O que está celebrando a respeito de nós? — pergun­tou, a voz baixa e rouca, os olhos faiscando.

Dixie estremeceu visivelmente e inclinou-se para ele, mordendo o lábio cheio com um delicioso sorriso.

— Você sabe o quê.

— Não... Talvez deva me mostrar.

— Mas este é um lugar público — ela murmurou, fingindo-se escandalizada, enquanto arrepios corriam por sua espinha.

Ele soltou uma risadinha maliciosa e se aproximou ain­da mais.

— É mesmo? Por que só consigo ver você?

De repente, a face ainda barbada de Eldon apontou ao lado dela, por trás da bancada do outro reservado. Dixie sol­tou um gritinho de surpresa e levou a mão ao coração. Jake se recostou ao assento e encarou o mecânico, exasperado.

— Com licença, Dixie, pode me emprestar o ketchup? — perguntou o rapaz, estreitando o olhar para Jake como se ele fosse um cão vadio.

Dixie estendeu o frasco de molho por sobre o ombro.

— Esse sujeito não a está incomodando, está?

— Não, Eldon!

— Está querendo alguma coisa que não deveria?

Dixie virou-se, as faces tão vermelhas como o conteúdo do frasco que o mecânico tinha na mão.

— Obrigada por se preocupar, mas será que poderia fa­zer a gentileza de nos deixar a sós? — pediu, seca.

Eldon endereçou um último olhar a Jake, cuja tradução foi clara: "Não dê uma de engraçadinho, pois tenho o seu Porsche à minha mercê". Em seguida deslizou para o banco do outro lado.

Dixie revirou os olhos e Jake praguejou baixinho.

— Sinto muito — ela murmurou. — Ele apenas...

— Está cuidando de você, eu sei — Jake terminou por ela. Estendeu a mão e a acariciou na face, demonstrando que não estava zangado. Depois se acomodou no assento, pensativo.

Quantos conheciam a outra identidade de Dixie? A quantos ela confiara seu segredo? Aqueceu-lhe o coração pensar em como eles a aceitavam e protegiam, mimando-a e cuidando de seu bem-estar. Porém, isso o fazia sentir-se um forasteiro. Não apenas na Toca da Mula, mas na vida de Dixie.

Quando ela confiaria nele o bastante para lhe revelar seu segredo? Quanto tempo levaria antes que ele se tomas­se parte de sua família?

Passou o olhar pelo pequeno café, observando os amigos de Dixie. Quem era ele ali? O lobo em pele de cordeiro, esgueirando-se para agarrar a ovelhinha. Um escritor procu­rando uma história.

Mas o livro não era mais seu objetivo principal, Jake ad­mitiu ao olhar para a mulher diante de si. Estava obcecado por Dixie. Tinha de saber tudo sobre ela, ou se sentiria in­completo. E isso porque a amava.

— O que foi? — ela perguntou, olhando para ele com as sobrancelhas franzidas. — Tenho alguma coisa no rosto? — quis saber, esfregando o queixo com o punho.

— Você está linda — Jake murmurou, pousando os bra­ços sobre a mesa. — Como sempre.

Ela enrubesceu.

Jake não conseguiu acreditar. Dixie já devia ter ouvido essa mesma frase de alguns dos homens mais famosos do mundo e, no entanto, agora corava de vergonha. Claro que ali não era Devon Stafford, o símbolo sexual. Apenas a ino­cente e insegura Dixie La Fontaine.

— Eu te amo — ele falou baixinho, sem tirar os olhos dos dela.

Não planejara dizer aquilo. O sentimento era ainda mui­to novo para ele. Porém as palavras tinham emergido do recanto mais profundo de seu ser.

Dixie sentiu todo o sangue drenar da cabeça. Entreabriu os lábios, os olhos se arregalando.

Olhou para Jake, perplexa. Ele era lindo. Os cabelos es­tavam revoltos pela brisa da manhã. Os olhos muito azuis tinham o mesmo tom da camisa que ele usava por cima de uma camiseta branca, com os punhos enrolados três vezes, revelando os braços bronzeados.

E ele a amava.

Pestanejou, a vista borrada pelas lágrimas.

— Não pode estar falando sério... — murmurou com um sorriso incrédulo.

A expressão de Jake suavizou-se ainda mais ao fitá-la. Duas covinhas surgiram em suas faces, acompanhando-lhe o estonteante sorriso.

— Acho que você não esperava ouvir isso.

Dixie não soube o que dizer. Permitira-se sonhar com isso, claro, mas não esperar. Desistira de ter expectativas, pois estas sempre se mostraram perigosas.

Não, ela não esperava ouvi-lo dizer isso, mas as palavras preencheram sua alma.

— Não quer dizer que eu não queria ouvir — conseguiu murmurar por fim.

— Que bom — Jake sorriu, aliviado.

Ela sorriu de volta. Ele parecia tão forte, tão... perfeito.

O medo agarrou-a pela garganta, tenaz. Depois de tan­tos meses de solidão tranqüila, de repente sentia que sua vida havia disparado como um cavalo em fuga, arrastando-a consigo.

E as complicações assomavam num enorme rebanho logo atrás, só esperando para atropelá-la como no estouro de uma manada.

O amor podia ser uma coisa maravilhosa e desastrosa ao mesmo tempo. Podia ser empolgante ou terrível. Significava compartilhar tudo, confiar ao outro seus mais delicados sen­timentos e mais profundos segredos. Obrigava a escancarar os defeitos, os sonhos e o passado, e a desnudar as partes mais sensíveis do coração e da alma.

Com Jake, seria fazer tudo isso com um homem que ela mal conhecia.

Não vim aqui para magoar você, Dixie. A frase voltou à sua memória tão claramente como se ele tivesse acabado de dizê-la.

Divine aproximou-se, curvada, as costas frágeis dobradas como um galho de salgueiro com o peso da bandeja.

Jake levantou-se de um salto.

— Pode deixar — ofereceu-se para ajudá-la, solícito.

A mulher o encarou com um olhar de aprovação, depois endereçou um sorriso e uma piscadela para Dixie.

— Arrumou um bom namorado, Dixie querida... Mesmo que seja da Califórnia.

Ela deixou escapar uma risada nervosa.

— Assim espero, srta. Divine.

Caíram numa agradável rotina na semana seguinte. Jake corria na praia com os cachorros de manhã, e depois Dixie ia caminhar com ele. Dividiam uma xícara de café e conversavam com Sylvie. Às vezes com Fabiano, se ele não estivesse ocupado com o tai chi ou a pintura. Em seguida, Dixie ia arrumar a máquina de lavar de alguém, ou atender a um chamado para Eldon, ou apenas visitar as amigas, deixando Jake trabalhar em seu romance de mistério. De noite, passeavam pela praia outra vez e sempre retomavam ao chalé para fazer amor.

Era um arranjo confortável, Jake tinha de admitir, mas havia uns poucos detalhes que o incomodavam. Eldon não terminara seu Porsche, Dixie ainda não lhe dissera que o amava, e o nome Devon Stafford não fora nem sequer men­cionado.

Resolveu dar um tempo a ela. Não poderia esperar que ela simplesmente vomitasse um segredo que escondera do resto do mundo durante um ano.

Entretanto, isso o consumia. A falta de confiança dela o magoava e, ao mesmo tempo, o impedia de lhe revelar sua outra identidade.

Em algum momento, ele desistira da idéia de escrever a história de Devon Stafford. Quanto mais conhecia Dixie, quanto mais fascinado se sentia por ela, menos desejava com­partilhá-la com outras pessoas. Ele a queria toda para si.

Parecia uma coisa milagrosa ter se apaixonado. Nunca havia pensado muito nisso até então. Sempre imaginara que fosse terminar com uma mulher que compartilhasse de suas concepções a respeito de saúde e cuidados físicos, or­dem e lógica... Mas Dixie detestava exercícios, comia o que gostava, e o conceito de ordem lhe fugia inteiramente. Era seu oposto em quase tudo, e o deixava maluco.

Revirou a caixa que continha todas as suas anotações e arquivos, e que ele ignorara por completo desde a chega­da à Toca da Mula. Separou a foto mais recente de Devon Stafford: uma instantânea tirada quando ela saía de uma reunião com seu agente. Ela olhara para a câmera, os olhos reluzindo com o que pareciam lágrimas. Os lábios cheios estavam voltados para baixo, denotando sofrimento. E pa­recia magra demais para estar saudável.

Jake ouviu a porta de tela bater e deixou a foto cair na caixa. Fechou a tampa e guardou-a numa prateleira acima da escrivaninha.

— Juro que não vou espiar. — Dixie sorriu. Chegou por trás dele, passou os braços em tomo de sua cintura e es­fregou a face em suas costas, inalando profundamente seu perfume másculo.

— Eu a deixarei ler quando acabar — ele prometeu, virando-se para enlaçá-la. — Antes de qualquer outra pessoa.

— Vai mesmo? Eu...

Dixie interrompeu-se. Jake parecia tenso, aborrecido, como se estivesse trabalhando sob uma terrível emoção.

Estendeu a mão e alisou a ruga de preocupação que lhe vin­cava a testa.

— O que foi?

— Nada. — Ele suspirou. — Acho que me envolvi demais com a minha heroína.  

— Verdade? Como ela é? Jake pensou por um instante.

— Um pouco perdida, insegura. Ainda é um mistério para mim. Algo a está assombrando, mas ainda não desco­bri o quê.

Dixie franziu a testa. Gostaria de dizer que conhecia al­guém assim, que ela era assim, mas se conteve. Fitou-o com ar curioso.

— Você a imagina ou não sabe o que vai escrever?

— Às vezes funciona assim.

— Aposto que isso o deixa louco.

Ele sorriu e afastou as mechas de cabelos que estavam nos olhos de Dixie.

— Deixa, mas dou conta. O que quer fazer?

— Nada especial. Pensei que, talvez, se não estivesse nos estertores de um ataque criativo, quisesse sair para um passeio de barco. Achei que poderia levar minha velha lan­cha até a ilha do Cavalo e fazer um piquenique.

— Boa idéia. Vou providenciar a comida. Dixie fez uma careta.

— Nada de tofu ou coisa do gênero, está bem? Já vou avisando, se aparecer na minha frente com um maço de bró­colis, não serei responsável por meus atos!

— Pode ficar tranqüila. Providencie a sobremesa; assim, se eu levar algo muito saudável você ainda terá sua cota de açúcar refinado. Que tal?

— Parece que está caçoando de mim, isso sim — ela re­clamou, fazendo um biquinho.

— Não é nada disso. Só quero contribuir para o passeio.

Mas, se ainda acha que estou caçoando de sua queda por doces, sinta-se livre para rir das minhas habilidades mecâ­nicas e ficamos quites.

— Desculpe — ela falou, envergonhada. — É que sendo fanático como é pela boa forma física, temo que me obrigue a viver de salsão e emagrecer até secar.

— Não sou imbecil a ponto de querer transformá-la numa anoréxica — ele afirmou, inclinando-se para beijá-la no pescoço, enquanto apalpava-lhe as nádegas arredonda­das. — Adoro esse corpo cheio de curvas, não percebe?

Dixie ofegou quando Jake puxou-lhe os quadris, fazen­do-a sentir sua excitação crescente. Correspondeu ao beijo avidamente, acolhendo a investida da língua quente.

O tempo correu enquanto os dois se concentravam em dar prazer um ao outro.

Apartaram-se por um segundo, em busca de ar. Dixie sorriu e o abraçou, pestanejando com uma súbita e violenta emoção.

— Às vezes penso que você é bom demais para ser de verdade, Jake Gannon.

Ele a encarou com um sorriso travesso.

— Acho que esse é meu único grande defeito.

Combinaram de se encontrar atrás da casa às duas ho­ras da tarde. Jake pediu o jipe emprestado para ir até a cidade e providenciar o lanche. Enquanto isso, Dixie pre­parava a cesta de piquenique com utensílios e um pote de caramelos feitos em casa, além de chocolates e amêndoas confeitadas. Sylvie supervisionava a arrumação, sentada à mesa da cozinha.

— Só posso dizer uma coisa, Dixie: quero o melhor para você, minha amiga, pois é como uma filha para mim. Que Deus me perdoe se algum dia eu lhe der um mau conselho... Mas tem de contar a ele, querida.

— Sei disso — Dixie murmurou. — Só não estou pronta.

— O que está esperando, o apocalipse?

— É difícil, Sylvie. Gosto de saber que ele me ama do jeito que sou agora. Do jeito que sempre fui. Tenho medo de que Jake queira me transformar de novo em Devon Stafford, pois não farei isso por nada deste mundo.

— O que a faz pensar que ele quer Devon em vez de Dixie? Ela soltou uma risada sem graça.

— Devon Stafford é a mulher ideal para Jake. Ele diz que me adora, mas, se tivesse a chance de ter Devon Stafford, acha que não iria agarrá-la?

— Ele ama você, querida — Sylvie falou suavemente, levantando-se. Pousou as mãos em seus ombros e os aper­tou afetuosamente. — Não deveria guardar dele esse se­gredo. Meu Sid, sempre disse que o que mais causa danos às pessoas são seus segredos... Conte tudo a Jake, Dixie. Hoje mesmo.

— Talvez eu conte — ela replicou, apenas para acalmar a amiga. Olhou o relógio e soltou uma exclamação. — Nossa, olhe a hora! — Pegou a cesta de piquenique, a jaqueta e rumou para a saída.

Sylvie a seguiu, sorrindo. Dixie abriu a porta da varan­da, e a fechou de novo ao se deparar com uma picape preta que estacionava em frente.

— Oh, meu Deus! É Tyler Holt!

— Delia está aqui? — Sylvie perguntou, alarmada.

— Não, foi a Charleston pesquisar sobre implantes de cabelo.

Sylvie murmurou algo por entre os dentes em ídiche.

— Essas mulheres... Vê a confusão que fazem com todos esses segredos?

Dixie obrigou-se a deixar o chalé. Não sabia o que era pior: encarar Tyler Holt ou aceitar a realidade das palavras de Sylvie. Escolheu a primeira. Pelo menos, ela poderia tourear Tyler com suas habilidades de atriz.

Quando ela descia os degraus, Jake chegou, estacionou ao lado da picape e saltou do jipe, olhando para Holt com ciúme. Tyler o ignorou e caminhou na direção de Dixie, os olhos estreitados, os lábios comprimidos em uma linha fina. Era alto, com cabelos negros ondulados e olhos escuros. Um belo homem, quando não exibia aquele ar petulante.

— Onde ela está? — indagou à queima-roupa.

Dixie assumiu uma pose agressiva, erguendo o queixo de leve.

— Ela quem?

— Você sabe muito bem — bufou o rapaz. — Delia, claro.

— Eu já disse que ela não está aqui, Tyler. — Dixie o encarou com um olhar glacial.

Tyler a olhou por alguns segundos, depois virou o rosto, os olhos dardejando.

Dixie suspirou. Tyler Holt não era exatamente um ca­valheiro. Além da aparência, não conseguia imaginar o que Delia vira nele.

— Ela ligou para você? — indagou com cuidado.

— Ligou, mas não quer me dizer onde está, e isso está me enlouquecendo.

Ela deu de ombros e afastou os cabelos da testa.

— Se ela não quer lhe contar, é porque deve ter seus motivos.

Tyler a encarou com raiva e apontou um dedo ameaça­dor diante de seu rosto.

— Se ela estiver ligando daqui, eu vou descobrir. Tenho um amigo que trabalha na companhia telefônica e pode rastrear qualquer chamada que quiser assim... — Estalou os dedos.

Dixie estreitou o olhar.

— É tão cheio de si, Tyler Holt, que não sei como não sai flutuando por aí!

Ele bufou, amargo. Depois ficou em silêncio, aparente­mente ponderando quais seriam suas opções. Então deixou cair os ombros

Quando voltou a encará-la, a dor em seus olhos era tan­ta, que Dixie sentiu o coração se apertar.

— Pelo amor de Deus, Dixie, conte onde ela está. Sinto uma falta imensa dela! Delia não quer me dizer por que fugiu. Não consigo dormir de noite, pensando se foi algo que eu fiz...

Ela mordeu o lábio. Jake estava encostado indolente-mente no capô do jipe, observando-a com atenção. Engoliu em seco.

— Sinto muito, Tyler, não posso dizer. Isso é entre você e Delia... Terá de se arranjar com ela.

O rapaz olhou com tristeza para as botas, as mãos nos quadris. Apertou os lábios e soltou um novo suspiro, para em seguida fazer meia-volta e seguir para a picape, apenas relanceando o olhar na direção de Jake.

Dixie o observou se afastar, sentindo os segredos que ela se obrigava a guardar pesando no estômago como um tijolo.

— Por que não contou a ele? — Jake perguntou, pegando a cesta da mão dela para colocá-la no assento traseiro, junto à geladeira portátil.

— Não posso. Prometi a Delia.

— O sujeito está sofrendo, Dixie. Ele a ama. Não acha que merece saber a verdade?

— Não cabe a mim contar.

— E quanto a toda aquela conversa a respeito da ver­dade? Você mesma disse que ela deveria confiar que ele a amasse, independentemente das circunstâncias.

— Não posso tomar essa decisão por ela.

— Só por si mesma? — ele murmurou.

— O que quer dizer com isso?

Jake desviou o olhar e meneou a cabeça.

— Nada. Acho apenas que poderia ter um pouco mais de piedade do pobre rapaz.

Dixie o fitou, exasperada.

— Ora, vocês, homens... Foi Tyler quem começou essa confusão em primeiro lugar.

Ela deu a volta e se acomodou no banco do motorista, ajustando o cinto com um tranco. Jake subiu do outro lado e bateu a porta.

— O cabelo de Delia caiu por culpa dele? — ele indagou com sarcasmo.

— Foi culpa dele que ela tentasse parecer com alguém que não era — Dixie esbravejou. E culpa minha por tê-lo inspirado, emendou em seu íntimo.

Pendeu a cabeça para trás e fechou os olhos, sentindo-se vazia de todo espírito de luta. Guardar aquele segredo de Jake já era ruim o bastante. Não precisava discutir com ele sobre os problemas dos outros também.

— Vamos brigar por causa disso? — Encarou-o. — Eu queria que hoje fosse um dia divertido e que tivéssemos uma bela tarde.

Jake suspirou e esfregou a nuca.

— Desculpe-me. Eu não pretendia provocar uma discus­são. Não é da minha conta, de qualquer maneira. Só não gosto de ver as pessoas sofrendo por causa de segredos tolos — falou baixinho.

Dixie voltou o olhar para o parabrisa em pânico. Deveria contar tudo a Jake naquele instante. Mas, se lhe aborrecia saber que Delia e Tyler tinham segredos, o que não faria quando soubesse que ela era Devon Stafford?

Não. Ainda estava insegura demais sobre o que poderia acontecer depois que soltasse aquela "bomba". Tinha medo da reação de Jake e desejava muito passar aquela tarde em paz com ele. Dixie La Fontaine o queria para si por um pou­co mais de tempo...

Respirando fundo, guardou silêncio e girou a chave na ignição.

 

Chegaram à ilha, a tensão entre os dois dissipando-se conforme a proa da lancha cortava a água azul. Dixie sentia-se como se tivesse recebido o adiamento de uma pena de morte. Não tinha gostado de discutir com Jake, assim como não gostava de guardar segredos dele.

Porém, tinha bolado um jeito de sair daquela confusão. Era parte da razão pela qual o trouxera à ilha: começar a livrar-se da situação desagradável aos poucos, num lugar onde sempre encontrara certa paz.

Jake saltou para a doca e estendeu a mão para ela. Amarraram a lancha e pegaram a bagagem, seguindo para a praia. Dixie examinou as tábuas da plataforma, distin­guindo as que substituíra com as próprias mãos, e sorriu como se estas fossem sua propriedade. Passara muito tem­po naquela ilha tentando curar sua dor. Quisera fazer algo que fosse construtivo, na acepção literal da palavra, e tra­balhar na doca fora o primeiro passo que dera para recons­truir a vida.

— É um lugar especial para você, não? — Jake adivi­nhou, ao colocar a geladeira portátil na areia, próxima aos restos de uma fogueira.

— Sim — ela respondeu apenas. Colocou a cesta de pique­nique no chão e estendeu a manta, imaginando o quanto ele realmente podia enxergar com aquele seu olhar intenso.

— Posso ver por quê. É muito tranqüilo.

Era mesmo, Dixie refletiu, enquanto se ajoelhava para tirar as coisas da cesta.

Olhou ao redor. O vento soprava forte do sudeste, tra­zendo uma tempestade. O trajeto até ali fora turbulento, e sua velha lancha enfrentara com bravura algumas vagas.

O lugar, porém, era abrigado por um trecho de floresta. Um esconderijo que sempre lhe dera uma sensação de calma.

Agarrou-se a isso como se fosse uma âncora.

Jake ajoelhou-se ao lado dela e passou um braço por sua cintura, puxando-a para perto.

— Obrigado por me trazer a seu lugar especial.

Ela sorriu, aceitando o beijo temo. Então levantaram-se e se puseram a recolher lenha para uma fogueira, cami­nhando lado a lado num silêncio amigável.

Dixie podia sentir Jake observando-a, esperando, anali­sando. Talvez sentisse que ela o trouxera ali por uma razão, mas nada exigiu, limitando-se a aguardar pacientemente.

A que enorme distância ele estava dos homens que ela conhecera em seus dias de Devon Stafford... O olhar pene­trante de Jake era ao mesmo tempo reconfortante e intimi­dador. Agradava-lhe que ele se importasse o bastante para fitá-la assim, mas também se sentia apavorada com o que ele pudesse ver.

Com outros homens, ela sempre fora capaz de se escon­der. Se não por trás da aparência, por meio de seu talento como atriz. Com Jake, não tinha certeza de poder se escon­der por muito tempo. Se fossem construir algo duradouro, ela sabia que não poderia agir daquela maneira.

Contudo, continuava com a sensação de que iria cair num abismo e, por isso, se mantinha afastada da borda.

Postergava o inevitável com a desculpa de aproveitar a tar­de com Jake, mas a ansiedade a consumia por dentro.

Jake acendeu o fogo num piscar de olhos. As chamas es­talaram e saltaram com um calor agradável, aquecendo-os quando os dois se acomodaram lado a lado sobre a manta.

— Meus cumprimentos, sr. Gannon. Sabe acender um fogo como ninguém.

— E eu nem tirei suas roupas ainda... — Jake riu, incli­nando-se para lhe mordiscar o lóbulo da orelha.

— Não era nisso que eu estava pensando! — Dixie deu-lhe um soco fingido no braço.

— Ai! — ele reclamou, exagerado. — Está ficando tão cruel como Sylvie.

— Você mereceu. Eu o elogio pelo simples talento de atear fogo à lenha com alguns fósforos, e você transforma o cum­primento numa insinuação.

— Adquiri essa habilidade no corpo de fuzileiros.

— De insinuação? Ah, isso seria muito útil num tempo de guerra — Dixie ironizou. — Poderia retalhar o inimigo com essa sua sagacidade.

Jake a agarrou e torturou com cócegas, aproveitando para insinuar os dedos por dentro da jaqueta.

— Isto é o que você ganha por ser insubordinada. Dixie arquejou, contorcendo-se toda.

— Ensinam isso também na marinha? Que pouca ver­gonha...

— Ei. — Jake aproximou o rosto do dela exibindo sua carranca mais feroz. — Não fale mal dos fuzileiros navais ou vai ficar sem seus caramelos.

— Não precisa ficar nervoso. — Dixie fingiu desculpas, sentando-se e endireitando a jaqueta. — Não sabia que era tão cruel.    

— Acha que sou cruel? — Jake riu. — Pois meu velho a deixaria a pão e água por uma semana.

— Ele era fuzileiro também?

— Era não, é. E o será até o fim dos tempos... Brigadeiro General Thaddeus J. Gannon.

Dixie arqueou as sobrancelhas, impressionada.

— E o que fez você, Jake Gannon, dar baixa? Com seu amor pela ordem, pelo preparo físico e tudo mais, com cer­teza parece um homem de carreira.

Ele suspirou e fitou o oceano, tristonho.

— Meu pai sempre pensou do mesmo modo.

— Como ele reagiu quando decidiu deixar a marinha? Jake soltou uma risada curta.

— Eu lhe direi assim que ele resolver falar comigo. Atualmente só conversamos por intermédio de minha mãe. — ele respondeu com um suspiro. — A carreira no corpo de fuzileiros era a que eu havia planejado. Mas acordei, um dia, e me descobri desejando outra coisa. Algo que não esta­va lá... — Baixou o olhar para o fogo. — Tinha de encontrá-la. Mesmo que isso significasse desistir de um bocado de coisas... Ou passaria a vida inteira sentindo como se algo estivesse faltando. — Virou-se para Dixie. — Entende o que quero dizer?

— Sim — ela respondeu baixinho, desviando o olhar. Atiçou o fogo com um pedaço de pau, provocando uma chuva de faíscas alaranjadas. — Sei muito bem o que quer dizer. E só posso dizer que teve sorte em encontrar o que queria.

Jake percebeu quando a mente de Dixie voltou-se para um lugar distante, lançando uma sombra de tristeza em seus olhos. Seus instintos de entrevistador lhe diziam que ele obteria respostas, que a janela da oportunidade estava aberta, mas não foi capaz de formular as perguntas.

Esperou que a história brotasse de Dixie espontanea­mente. Os minutos se passaram, excruciantes. A verdade tinha de vir dela; não ser arrancada por ele.

Dixie deixou cair o graveto e pegou o pingente da estre­la-do-mar entre os dedos, num gesto que Jake a vira fazer muitas vezes.

— A amiga que me deu isto... — começou, os olhos fixos no fogo. — Seu nome era Jeanne Parmantel — completou com um longo suspiro. — Ficamos amigas quando traba­lhávamos juntas como garçonetes em Los Angeles. Ela era de uma pequena cidade na Geórgia e queria ser atriz. Era uma estrela em sua terra... A família e os amigos fizeram uma verdadeira festa quando conseguiram mandá-la para Hollywood, pois todos tinham certeza de que ela seria um sucesso. — Soltou uma risada irônica. — Porém, ela nunca conseguiu isso. — Fez uma longa pausa. — Todo dia Jeanne acordava com esperanças de que um milagre acontecesse. Mas toda noite, quando voltava para casa, era ainda apenas uma garçonete. Não importava o que fizesse, o que tentas­se, a que ponto estivesse disposta a chegar. Nunca era a pessoa certa para o papel em questão.

Dixie fungou e enxugou uma lágrima fugidia.

— Veja como você tem sorte, encontrando o que queria — prosseguiu, esboçando um sorriso triste. — Quero dizer, sei que não lançou seu livro ainda, mas é um escritor, e era isso o que você desejava.

— O que aconteceu à sua amiga? — Jake perguntou sua­vemente.

Dixie olhou para a fogueira outra vez, como se visuali­zasse as lembranças ali, nas chamas.

— Jeanne era a moça mais bonita, lá na Georgia, mas havia montes de moças bonitas em Hollywood. Ali ela era apenas outra face. No entanto, estava determinada a ven­cer. Por isso fez tudo o que estava ao seu alcance: tomou aulas, privou-se de comer, "malhou", tingiu o cabelo, fez ci­rurgia plástica... Queria tanto ser uma estrela.

Um nó se alojou em sua garganta conforme as lembranças a tomavam de assalto. Apertou a estrela-do-mar, até que as saliências do pingente enterraram-se em seus dedos.

— Ela me deu isto de Natal e disse: "Isto é o que eu vou ser Dixie: uma estrela". Mas tudo o que conseguiu ser foi garçonete. — Calou-se e lutou contra outra onda de sofri­mento destroçando as defesas que ela construíra. — Ela se matou — murmurou, por fim. — Em 22 de dezembro de 1989.

Abraçando os joelhos, Dixie abaixou a cabeça e chorou pela amiga. Chorou também por si mesma. Não passava um dia sequer sem que se culpasse. Jeanne apenas seguira seu exemplo. Ambas tinham chegado a extremos para alcançar o que outras pessoas julgavam como perfeição. O que Jeanne perdera de vista, para começar, fora sua individualidade. Enfiara na cabeça que tinha de ser outra Devon Stafford.

Mas o mundo não precisava de outra Devon Stafford, precisava de uma Jeanne Parmantel... E agora ela estava perdida para sempre.

Se ao menos ela tivesse percebido mais cedo o que era realmente importante. Se, ao menos, tivesse sido capaz de convencer Jeanne. Se, ao menos, estivesse lá quando a ami­ga precisara dela em sua hora mais sombria, quando a mor­te parecera preferível à dor do fracasso.

Sentiu o braço de Jake deslizar por seus ombros, porém ele não tentou puxá-la. Apenas a abraçou, afagando seus cabelos num movimento lento. Deixou-a ter seu momento de privacidade. Deixou-a lamentar a perda, e ela o amou por isso. Acabara de compartilhar com ele a coisa mais do­lorosa de seu passado: a lembrança de Jeanne. Algo que ela precisava manter intacta. Não queria que ninguém tentasse desmantelar essa lembrança com palavras banais. Queria apenas compreensão.

Quando o momento passou; quando superou o pior do sofrimento, Dixie virou-se para Jake. Abrigou-se em seus braços e comprimiu a face contra o peito largo. Agora, pre­cisava de conforto, e Jake o deu sem reservas, envolvendo-a em seu calor e em sua força.

— Sinto tanta saudade dela — Dixie murmurou, debulhando-se em outra torrente de lágrimas.

— Imagino — Jake sussurrou contra seus cabelos. Abraçou-a e embalou-a, olhando para o fogo. Destroçava-o saber que ela se culpava pela morte da amiga. O tempo todo ele suspeitara de que algo a assombrava, mas nunca imagi­nara que fosse assim terrível, tão devastador como aquela culpa. Podia sentir a dor dentro de Dixie. Ela se agarra­ra à culpa e se punia, ao mesmo tempo em que procurava compensar seu suposto erro adotando enjeitados, aleijados e criaturas imperfeitas. Ele não teria como curá-la, a não ser com amor e tempo.

Inclinou a cabeça e beijou-lhe as lágrimas, oferecendo um lenço. Dixie assoou o nariz, depois recostou a cabeça em seu ombro.

— Não podemos viver a vida dos outros — Jake disse, pensando não apenas em Dixie e na amiga, mas em si mes­mo e no pai.

— Não. Mas, a vida ficaria um bocado mais fácil.

— Já temos trabalho suficiente, tentando dirigir nossas próprias vidas — ele argumentou. Correu as mãos por ela, até empalmar-lhe os seios. Massageou-os suavemente, es­boçou um sorriso brincalhão e remexeu as sobrancelhas. — Eu, por exemplo, estou com as mãos cheias.

Dixie sorriu. Ele era realmente um sujeito bom, um bom amigo. Permitira que ela se entregasse à dor, e agora a per­suadia a deixar o passado para trás e voltar-se para o pre­sente. Jeanne era uma lembrança para nunca ser esqueci­da, mas sua realidade era Jake, com ela, ali e agora.

Um longo gemido de prazer escapou de sua garganta con­forme os dedos dele massagearam seus seios, os polegares apertando os mamilos rijos. Inclinou-se quando Jake pendeu a cabeça para beijá-la.

Foi o mais temo dos beijos: quente, meigo e doce. Fez crescer seu ânimo e afastou a escuridão das recordações. Ofereceu-lhe compreensão e conforto, e convidou-a a cele­brar a vida em vez de chorar a morte.

Ela se pôs de joelhos. Jake se ajoelhou também, sem inter­romper o beijo ou as carícias. As línguas de ambos se encon­traram num jogo excitante, e ela o saboreou, pensando que nunca se satisfaria o bastante, mesmo que vivesse cem anos.

Os dedos de Jake deixaram os seios, movendo-se para os botões da camisa. Ele a desabotoou, e depois puxou a camisa para fora das calças. Suas mãos estavam frias, e Dixie estremeceu quando ele afagou suas costelas e o ven­tre. Arrepios a percorreram toda, concentrando-se na boca do estômago.

Por um segundo, Jake atrapalhou-se com o fecho do su­tiã, que se soltou, por fim. Dixie arquejou contra os lábios quentes quando seus seios saltaram para o ar frio, sendo imediatamente cobertos por mãos geladas. Logo, porém, a sensação daqueles dedos longos a apertá-la e afagá-la, en­cheu de fogo seu sangue..

Ergueu-lhe a camisa com impaciência, precisando tocá-lo, sentir a pele contra a sua, comprimir o corpo forte contra o seu. Mas Jake a segurou. Ela correu as mãos na pele ma­cia, adorando a sensação da carne rija sobre os músculos. Traçou o contorno dos peitorais e passou os polegares pelos mamilos lisos, deliciando-se com o modo com que enrijeciam a seu toque. Tentou mais uma vez aconchegar-se, mas ele a conteve, as mãos ainda a lhe empalmar os seios.

Dixie afastou os lábios dos dele e inclinou-se, depositando beijos no peito largo. Seus dedos deslizaram até a cintura, sorrindo ao ver que ele puxava o fôlego a cada centímetro que ela descia. Ele se contraiu quando ela descreveu círculos em tomo do umbigo e brincou com o botão de metal logo abaixo.

Sorrindo, ela se inclinou mais, e beijou-lhe o umbigo en­quanto abria o botão dos jeans. Puxou o zíper, liberando o membro pulsante das calças. Fez o mesmo com as cuecas, puxando-as para baixo, provocando-o, acariciando-o até que o corpo inteiro de Jake tremia. Satisfeita, fechou a mão so­bre o eixo firme, numa carícia gentil.

Jake conteve a respiração ofegante. Fechou os olhos e mergulhou os dedos nos cabelos de Dixie, concentrando-se no prazer que ela lhe proporcionava. Sua respiração quente e úmida, os lábios macios como seda levando-o à loucura. Com um gemido, estremeceu de novo, o corpo todo sacudido, como se o chão se agitasse num violento terremoto. Lutou para agarrar-se ao resto de controle que ameaçava perder.

Incapaz de agüentar por mais tempo, segurou Dixie pelos ombros e puxou-a contra si, quase esmagando-a em seu abraço. Colou a boca na dela num beijo quente e famin­to. Queria consumi-la, absorver cada parte de seu corpo e alma. Uma necessidade insana de possuí-la, de reclamá-la, de se unir a ela o dominou. Seus quadris investiram, ávidos, mas tudo o que encontrou foi um pedaço frustrante de jeans ainda a cobri-la.

Numa rota descendente de beijos e mordidas ao longo do pescoço dela, lutou contra o fecho das calças, puxando-as para baixo junto com as calcinhas de seda e renda. Deslizou os dedos entre as coxas roliças, tateando o ninho macio de pelos escuros, procurando o coração quente e úmido de sua intimidade. Dixie arqueou os quadris, movendo-se em ago­nia enquanto ele a acariciava.

Excitado, Jake tocou as curvas generosas das nádegas e a puxou mais contra si, roçando o membro intumescido contra sua carne nua.

Dixie gritou, a respiração arquejante. Agarrou-se aos ombros dele, movendo-se instintivamente, o desejo crescen­do a um ritmo assustador.

— Oh, Jake, por favor — choramingou. — Quero você dentro de mim... Não me faça esperar mais.

Ele gemeu, mordiscando-lhe o lóbulo da orelha. A coroa aveludada de seu membro investia contra ela e, incapaz de esperar mais, Dixie o tomou na mão e tentou guiá-lo. Num piscar de olhos, estava de costas sobre a manta, apenas es­perando. Jake a fitou, os olhos azuis semicerrados.

— Quero você, Dixie — murmurou, a voz bem rouca. — Você inteira.

Dixie estremeceu. Queria que Jake se tornasse parte dela. Ela o desejava com todo o coração, com toda alma, e sentia-se apavorada de precisar dele tão desesperadamen­te. Velhas mágoas tentavam impedi-la de se entregar de forma tão intensa, e, no entanto, ela ainda queria Jake. E, se pensava assim, era porque estava segura de que ele fos­se se apossar de seu coração sem parti-lo, de que ele fosse amá-la como ela era e tratá-la com carinho.

Fechou os olhos e rezou que estivesse certa. Quando os abriu, e fitou o olhar intenso e expectante de Jake, disse:

— Venha, Jake.

Ele entendeu a resposta, tudo dentro dele imobilizando-se numa calma idêntica ao olho de um furacão. Tinha prometido a si mesmo não forçá-la, não extrair o que Dixie não estivesse pronta a entregar. Mesmo assim, pedira que ela lhe desse tudo, não porque precisava dominá-la, mas porque a amava. O amor desprovia as pessoas do orgulho e do controle. Ele amava Dixie, e nada mais desejava a não ser que ela correspondesse a esse amor.

Olhou bem dentro daqueles olhos grandes e límpidos, e viu tudo que esperava ver: amor, desejo e esperança. Mas também uma ponta de incerteza e vulnerabilidade.

— Quero você, Jake — ela murmurou, os lábios úmidos e trêmulos. — Eu te amo.

O alívio fluiu através dele numa maré crescente. Comovido, roçou boca pela curva da face delicada, en­quanto lhe afastava os cabelos com a ponta dos dedos.

— Céus, Dixie — ele murmurou com voz embargada pela emoção. — Não imagina como eu precisava ouvir você dizer isso.

Beijou-lhe os lábios, o queixo. Abriu a jaqueta e a cami­sa, e sugou a ponta de cada seio, depois a pele abaixo do umbigo. Com mãos gentis, tirou-lhe os jeans e os sapatos. Correu as mãos pelas pernas delgadas, deliciando-se com sua maciez. Massageou-lhe os pés, maravilhando-se ao ver como eram pequenos e delicados. Ergueu um deles e o bei­jou no arco, fazendo-a estremecer.

Dixie permaneceu deitada de costas, a fitá-lo, embeveci­da com todo aquele carinho e atenção. Sorriu ao vê-lo beijar um pequeno sinal de nascença atrás do joelho, de um modo tão reverente quanto beijara seus lábios, com a mesma pai­xão que dedicara aos seus seios. As mãos fortes a acaricia­vam como se ela fosse uma escultura sem preço, da qual ele precisasse memorizar cada detalhe.

Jake separou-lhe as coxas e a beijou avidamente, inti­mamente, a língua explorando-a sem pressa. As chamas da paixão saltaram dentro de Dixie, devorando-a e fazen­do crescer a necessidade que latejava em seu âmago como uma dor física. Suas costas se arquearam, erguendo-se da manta, e seus dedos se fecharam nos cabelos de Jake para puxá-lo mais contra si.

Ele ergueu-se por fim e se debruçou sobre ela. Impeliu os quadris e a penetrou com uma única investida, vendo-a arfar de prazer.

— Tudo de mim, Dixie... — murmurou, roçando os lábios na concha de sua orelha. — Quero que você tome tudo de mim, e me dê tudo de você, porque eu te amo.

Ela ofegou, enterrando as unhas nos músculos rijos de suas costas.

— Eu sou sua, Jake.

Fizeram amor lentamente, intensamente, olhando-se nos olhos, concentrando-se em cada sensação. O céu escu­receu, tomou-se púrpura, e o sol afundou como uma bola flamejante, espalhando fogo pelo horizonte.

Dixie sentiu o clímax se aproximando, tão poderoso e urgente como as ondas do mar, e tentou agarrar-se a um resto de razão por um instante, receosa do poder daque­le sentimento, temerosa daquilo que viria depois. Porém, isso estava além de suas forças, e viu a última muralha de suas defesas desabar, demolida onda após onda, conforme as sensações a consumiam.

Jake se sentiu contrair sobre ela, o corpo rígido, e um ge­mido ressoou fundo por seu peito largo. Agarrou-se a Dixie num forte abraço, e ela correspondeu com outro, apertando com força, o coração comprimido ao dele.

Depois de um longo momento, ele ergueu a cabeça e a encarou, afastando os cabelos dos olhos, a expressão tema, porém atenta. Esperava por alguma coisa. Dixie podia sen­tir. Mas estava exausta demais para descobrir o que era. Deixou que ele a fitasse dentro dos olhos, deixou que visse tudo que ela estava sentindo.

Finalmente, ele esboçou um leve sorriso.

— Estou com o traseiro gelado... Quando é que ficou tão frio aqui?

— Esteve sempre frio. Nós é que estávamos muito ocu­pados para perceber.

— Acho que tem razão... — Ele puxou a ponta da manta sobre seus corpos. Virou-se de lado com ela nos braços, en­rolando a coberta sobre ambos. — Eu estava mais preocu­pado em pensar no quanto eu te amo.

— Tem muito jeito com as palavras, sr. Gannon — ela murmurou, batendo os cílios de um jeito coquete. — Deveria ser escritor.

— Acha mesmo? Pois penso que tenho mais jeito com as mãos... — ele falou, arrancando dela uma risada quando lhe fez cócegas.

De repente, ficou sério e a beijou intensamente. Quando ergueu a cabeça de novo, fitou-a tão circunspecto como ela nunca o vira antes.

— Dixie, precisamos conversar.

Ela segurou o ar, sentindo o pânico enrodilhar-se em seu estômago. Havia se comprometido. Prometera a Jake tudo que era, tudo que fora, mas a perspectiva de se abrir por completo a fez estremecer. Contaria, prometeu a si mesma, mas precisava de um pouco mais de tempo para se prepa­rar. Já revelara muito do passado. Não julgava ter forças para mais, naquele dia.

— Não com o estômago vazio — decidiu, forçando um sorriso. — Estou morta de fome, você não?

Jake sentou-se, deixando a manta cair até a cintura.

— Também estou com fome.

Com fome da verdade, completou consigo. Suspirou. Dixie lhe fizera uma promessa, mas estava fu­gindo dela.

— Não fique zangado comigo — ela pediu, sentando-se ao lado dele. Seus olhos eram diferentes sob a luz da foguei­ra: mais dourados que castanhos. E imploravam por com­preensão, por mais tempo. Jake se viu maldizendo a mulher à sua frente por ser uma atriz tão boa. Dixie mascarava as emoções apenas com um olhar, com uma sutil nuance de expressão.

Ela pousou a mão em seu braço.

— Não fique assim, Jake. Sei que precisamos conversar. Só não quero que seja agora, está bem? Tudo aconteceu muito depressa. Deixe-me recuperar o fôlego. Podemos con­versar até ficar roucos amanhã, se você quiser. Por favor...

Jake sentiu-se como um cretino, embora soubesse muito bem que não a pressionara muito. Ele a amava. E merecia que ela lhe contasse a verdade. Queria tudo resolvido entre os dois para que pudessem esquecer o passado e olhar para o futuro.

Entretanto, as lágrimas que toldaram os olhos de Dixie foram sua ruína. Sentiu sua determinação desmoronando-se como um castelo de areia.

Abraçou-a e beijou-lhe o topo da cabeça.

— Sua fome é só de comida? — indagou, malicioso. Ela soltou uma risada e revirou os olhos, inconformada.

— Por enquanto — elaborou com um lindo sorriso.

Dixie acordou aos poucos, o corpo saciado, a mente tol­dada pela névoa agradável do misto de sonho com as lem­branças da noite anterior. Enterrou-se entre as cobertas, a cabeça se aninhando num travesseiro fofo que cheirava igual a Jake: um cheiro limpo, másculo. Puxou o lençol e o edredom até o queixo, suspirando.

Tinham jantado na praia, enrolados na manta, e sentado tão perto do fogo quanto se atreveram. O lanche que Jake comprara consistia em peito de frango frio, pão de alho e salada de macarrão, que ele mesmo fizera. Dividiram meia garrafa de vinho branco, e se deram bocados de chocolate, devotando boa parte do tempo em lamber os dedos e os lá­bios um do outro. Dixie vibrara de alegria ao fazer Jake co­mer açúcar, e Jake sorrira de satisfação ao conseguir fazer Dixie consumir uma refeição saudável. Empataram o jogo.

O trajeto de volta à Toca da Mula pareceu demorar uma eternidade. Conforme o tempo mudara, o mar se tomara mais bravio. Dixie se vira forçada a conduzir a pequena lan­cha rapidamente, quando tudo que desejara era um passeio demorado, com muito tempo para olhar as estrelas e para desfrutar o embala da água. Só que não havia estrelas, e o balanço da água era suficiente para enjoar um marujo ex­periente.

O vento soprar durante a noite inteira, e ela podia di­zer, pelo frio na ponta do nariz, que a temperatura caíra consideravelmente. Virou-se, pensando em se aconchegar a Jake, mas ele se fora.

Recordou-se vagamente de ele tê-la beijado na testa e saído da cama, dizendo alguma coisa sobre sua corrida ma­tinal. O homem era um fanático. Ela, definitivamente, tinha de se esforçar mais para convencê-lo a reduzir as atividades e relaxar. Aquela era uma manhã em que ele bem poderia se esquecer de correr, e fazer exercícios de um jeito muito mais agradável...

Dixie espreguiçou-se e sorriu, afundando-se na cama ou­tra vez. Tinham voltado da marina, encontrado a picape de Tyler Holt estacionada atrás da casa, e as luzes acesas nas janelas do sótão. Sem uma palavra, os dois haviam descido a trilha, e caminhado até o chalé de Jake, com os cães e os gatos seguindo atrás.

Dixie imaginou se Delia e Tyler haviam esclarecido as coisas entre eles. Esperava que sim. Queria que a prima fosse feliz.

E também queria sua casa de volta. A cama de Jake não era nem de perto tão confortável como a sua, o que ela po­deria até ignorar enquanto faziam amor. Quando estavam juntos, não tinha consciência de mais nada além do calor e do prazer de amá-lo.

Sentou-se, e recostou-se aos travesseiros, encolhendo os joelhos e puxando as cobertas até o queixo. A luz cinzenta entrava pela janela como uma névoa espessa. Pelo vidro, podia ver o oceano cor de granito, pontilhado de ondas bran­cas, cuspindo espuma pela praia. O céu parecia baixo, e nu­vens cinzentas rolavam, prontas para desabarem.

Não havia sinal de Jake, mas Dixie sabia que ele estava lá fora, as longas pernas devorando a extensão da praia, o vento nos cabelos, os olhos de um azul intenso cravados num ponto distante.

Como ele tinha alguma energia de sobra depois da noi­te anterior estava além de sua compreensão. Tudo que ela queria fazer era ficar na cama e aconchegar-se a ele pelo resto do dia.

Todavia, forçou-se a se levantar. Dissuadira Jake sobre a urgência de abrir seu coração, querendo mais tempo para preparar-se. Mas tinha chegado a hora, concluiu, com os nervos já à flor da pele.

Precisava montar o cenário com cuidado. Primeiro, iria tomar um banho e se vestir: podia usar as mesmas calças jeans e uma das camisas de Jake. Nada glamouroso, pois queria enfatizar quem era agora, não quem fora. Faria um bule de café e traria alguns dos bolinhos de canela que as­sara no dia anterior. E faria torradas de pão integral para aplacar o senso de nutrição de Jake. Deixaria que ele to­masse uma ducha e se vestisse, e depois se sentariam à mesa e ela simplesmente lhe contaria tudo.

Não seria nenhum "Deus nos acuda". Ser Devon Stafford fora um trabalho, e ela se demitira dele. Jake estivera no corpo de fuzileiros e saíra, ou seja, tinham passado pela mesma coisa. Ela iria revelar tudo, acabar com os segredos, dar as respostas às suas perguntas, e depois poderiam en­trar na próxima fase do relacionamento.

Tomou banho em tempo recorde, e secou os cabelos com o secador de Jake, no máximo, o que fez os fios ficarem arre­piados em tomo da cabeça. Tentou abaixá-los com as mãos, mas desistiu.

Seus cabelos, porém, eram a menor de suas preocupa­ções. Depois de se enfiar nos jeans e numa camisa grossa de flanela xadrez que encontrou no armário de Jake, ela correu para casa tropeçando nos gatos e cachorros pelo caminho.

O carro de Tyler Holt ainda estava lá. Ou ele e Delia ti­nham feito as pazes, ou ela o matara. Conhecendo a ambos, Dixie imaginou que as probabilidades eram meio a meio.

— Meu Deus, Dixie, parece que levou um susto! — Sylvie exclamou, abrindo a porta da varanda. — O que fez com seus cabelos?

Ela parou e levou a mão ao coração.

— Céus, Sylvie. Quase me fez ter um ataque cardíaco! — Subiu os degraus da varanda, passando por vários gati­nhos aninhados no patamar. — O que está fazendo escondida aqui, afinal?

Sylvie fez uma expressão de incredulidade e ergueu as mãos pesadas de jóias para os céus.

— Eu não estava escondida. Vim apenas pedir empres­tado um pouco de café.

Dixie a encarou com um ar sério.

— Café... Sei. O fato de estar aqui não tem nada a ver com sua curiosidade em saber o que aconteceu entre Tyler e Delia.

— Tyler está aqui? Eu nem sabia — afirmou a mulher, pestanejando com ar inocente.

Dixie revirou os olhos e passou pela amiga, seguindo para a cozinha. A casa estava silenciosa, a não ser pelos miados de Cyclops, que a seguira pedindo o desjejum.

— Você não me engana, Sylvie Lieberman — disse, rin­do, enquanto pegava uma lata de comida de gato e colocava um conjunto de tigelas no chão. — Queria saber se eles fize­ram as pazes ou não.

— E você não?

— Espero que tenham feito. E espero que Tyler tenha bom senso suficiente para dizer a Delia que ele ainda a ama, mesmo que pareça uma refugiada de Chernobyl.

Abriu o armário, pegou uma embalagem de café e bateu a porta depressa, antes que a lataria amontoada lá dentro caísse sobre ela.

— E quanto a você e o "Mr. Mundo"? — Sylvie perguntou com malícia. Espiou dentro de um pote de plástico sobre a mesa e pegou um bolinho de canela. — Contou a ele?

— Ainda não. Vou contar depois do café.

— É melhor, mesmo — Sylvie falou, mordiscando o bo­linho. — Guardar esse segredo dele não pode resultar em bem nenhum.

Dixie recostou-se ao balcão e friccionou as têmporas.

— Não me pressione mais, Sylvie, por favor. Já estou nervosa o suficiente.

— Tudo vai ficar bem. Confie em mim, conheço essas coi­sas — Sylvie garantiu, passando o braço pelos ombros dela. Apertou-a com um carinho maternal. — Meu Sid, sempre disse que eu tinha um sexto sentido a respeito das pessoas. Jake é um bom sujeito.

Dixie engoliu em seco.

— Espero que tenha razão, porque estou tão louca de amor por esse homem, que estou de cabelo em pé.

— Está-se vendo...

— Seu café — Dixie resmungou, enfiando o pacote na mão da amiga.

— Que café? — Sylvie indagou com ar abobalhado. — Ah... Meu café, claro. — Pegou a embalagem e a prendeu na curva do braço como uma bola de futebol. Em seguida belis­cou-a na face e seguiu para a porta. — Obrigada, querida. E boa sorte. De coração.

Dixie esboçou um sorriso. Sylvie era uma boa amiga.

Jake corria para o chalé quando Dixie voltou com os bolinhos de canela. Ele diminuiu o passo, desviando-se do bando de cachorros que se amontoavam aos seus pés. Dixie sentiu o corpo se aquecer só de olhá-lo quando ele se abai­xou para afagar as cabeças dos cães.

— Ei, moça — protestou, mostrando as covinhas em um sorriso. — Essa me lembra uma camisa minha...

Dixie fez um muxoxo.

— Quem mandou não estar na cama para me abraçar quando acordei? Quem não tem cão, caça com gato...

— Estou aqui agora — ele falou com voz baixa, numa promessa sensual.

Pegou-a pela nuca com a mão forte e pousou-lhe um beijo na boca. Pretendia que fosse apenas um carinho, mas no instante que os lábios de ambos se juntaram, o beijo trans­formou-se em algo intenso, até que eles gemeram de prazer. Bob Dog tentou enfiar o nariz entre eles. Sem conseguir, sentou-se na trilha e soltou um uivo lamentoso.

— Ciúme — Jake resmungou. Beliscou o queixo de Dixie e seguiu para a escada. — Vou tomar uma chuveirada, de­pois podemos tomar o café da manhã.

E conversar, seu olhar dizia claramente. Dixie engoliu em seco, mas concordou.

— Vou fazer o café.

— Ótimo. Ei... Mudou o cabelo? — Ele lançou um olhar divertido por sobre o ombro. — Parece maior.

— Entre no chuveiro, Gannon, antes que eu atice meus cachorros contra você.

Os preparativos para o café levaram cinco minutos. Dixie andou pelo chalé, ouvindo os sons do chuveiro e os alertas de tempestade que vinham do rádio. Estava nervo­sa demais para sentar, nervosa demais para comer. E não havia nada na casa de Jake para consertar, mesmo que ela se sentisse inclinada a fazer isso. O lugar era um primor, um típico retiro de escritor que se via nas revistas. Mesmo a escrivaninha encontrava-se impecável: a máquina de escre­ver coberta, as canetas no porta-lápis, o papel empilhado.

Debruçou-se sobre o tampo como uma criança que tivera permissão de olhar, mas não tocar. Estava curiosa a res­peito do livro de Jake, porém prometera respeitar sua su­perstição em não querer que outra pessoa o visse antes que estivesse pronto. Mesmo assim, se pudesse vê-lo de relan­ce... Uma página ou duas... Mas não havia nenhuma página solta. Escritores, na televisão, eram sempre representados com uma cesta de lixo ao lado da escrivaninha transbordan­do de bolas de papel jogadas fora. A cesta de Jake estava mais limpa que a de sua casa, sem nem mesmo um papel de bala.

Dixie voltou a atenção para as prateleiras sobre a mesa. Jake as enchera de livros de referência, e com a caixa de papelão que continha seu misterioso manuscrito. O peso se mostrava demasiado para as tábuas frágeis. Os parafusos estavam se soltando no topo dos trilhos de montagem. Se não fossem apertados logo, a coisa toda poderia desabar.

Pegando um canivete do bolso de trás, ela subiu no tam­po da escrivaninha.

No instante em que encaixou o canivete na fenda, o pa­rafuso se soltou. As prateleiras se inclinaram perigosamen­te, e tudo despencou como um deslizamento de pedras. Ela saltou para o chão, levando as mãos à cabeça, e se encolhen­do conforme os livros caíram num monte. A caixa tombou como uma rocha, virando sobre a escrivaninha. Ela ainda se atirou para tentar segurá-la, mas era tarde demais. A caixa abriu e papéis se espalharam por toda parte.

— Oh, meu Deus, ele vai me matar!

Ajoelhou-se no meio da bagunça e começou a juntar os papéis, aflita para colocá-los de volta na caixa. Mas suas mãos se imobilizaram quando seu cérebro lentamente per­cebeu para o que ela estava olhando.

Havia recortes de jornais e revistas. Alguns velhos e amarelados, alguns em papel grosso e brilhante. Páginas inteiras e pedaços de folhas. Todos eles sobre um mesmo assunto: Devon Stafford.

Sentiu um nó gelado de medo instalar-se em seu estô­mago. Suas mãos remexeram a confusão por conta própria, como se pertencessem à outra pessoa. Aturdida, observou-as pegarem foto após foto. Todas dela. Da imagem que deixara para trás. Fotos coloridas, em branco em preto, fotografias de publicidade, instantâneos de paparazzi.

Alguém fizera anotações em várias delas com uma ca­neta preta: "E se ela tingiu os cabelos? E se os cortou?" Em uma das fotos, um grande círculo grosso fora desenhado em torno da estrela-do-mar que ela usava no pescoço. Dixie le­vou a mão ao amuleto, como se para confortá-lo, embora este a tivesse denunciado.

Havia pilhas de páginas manuscritas e anotações dati­lografadas ao redor dela. Perguntas e conjecturas sobre o desaparecimento de um símbolo sexual.

Jake estava escrevendo um mistério realmente. E o mis­tério era sobre ela.

A vista de Dixie borrou-se de lágrimas. Ele sabia o tem­po todo. De alguma forma, Jake a rastreara até a Toca da Mula, e ficara observando, reunindo os fatos, pesquisando sobre o assunto em profundidade.

Seu estômago contraiu-se dolorosamente, e ela compri­miu a mão sobre ele como se tivesse levado um soco.

Ele sabia. Jake Gannon não se apaixonara por Dixie La Fontaine. Viera até ali obcecado por Devon Stafford e a en­contrara. Ela o recebera em sua casa, em seu corpo, em seu coração, e ele nada mais era do que outro homem procuran­do capturar uma estrela.

Céus, ela se julgara tão esperta. Uma atriz tão consuma­da, que ninguém descobriria seu disfarce.

Pois era uma amadora comparada a Jake Gannon, con­cluiu, com um doloroso nó na garganta. Ele representara

O papel de homem apaixonado, e ela mordera a isca como uma completa idiota.

Pelo canto dos olhos, viu ele parado na seleira da porta entre o quarto e a sala. Estava descalço, usando jeans e um suéter azul-marinho, os cabelos molhados e penteados com os dedos. Fechou os olhos como se uma dor lancinante o atingisse e praguejou baixinho por entre os dentes. Ela per­maneceu onde estava, no centro das evidências.

Jake deu um passo hesitante.

— Dixie, eu posso explicar...

— Aposto que pode. — Ela deixou as folhas de papel caí­rem das mãos e se espalharem pelo assoalho. — Assim como explicou por que veio até aqui. Como explicou que me ama.

— Dixie...

— É realmente muito bom com palavras, Jake Gannon — ela falou, amarga, olhando para uma foto de seu eu an­terior: uma mulher maravilhosa, sexy, loira, magra, uma aberração que ela passara a detestar. — Acreditei em cada frase com que me gratificou.

— Não é o que você pensa...

— Não? — Dixie se levantou e limpou as mãos nas fral­das da camisa que emprestara de Jake. — Eu lhe direi o que penso. Penso que veio aqui à procura de Devon Stafford, e penso que veio planejando escrever sobre ela e ganhar rios de dinheiro. Vai me dizer que não é verdade? Porque, se vai, acho que será a primeira vez que não acreditarei em você.

Ela o encarou, furiosa, os olhos marejados. Recusava-se a deixá-las escorrer, convocando toda a sua reserva de orgu­lho. Sentiu a voz soar rouca com o esforço para manter sua devastação sob controle.

— Vai me dizer que não veio aqui procurando por Devon Stafford, Jake?

O silêncio dele foi tão incriminador como uma confissão.

Jake pendeu a,cabeça, tendo a gentileza ou a esperteza de parecer arrependido.

Dixie maldisse a si mesma. Queria que ele negasse tudo. Queria que se explicasse. Porém, sabia que havia apenas uma explicação.

Empurrou uma pilha de fotos com a ponta do tênis.

— Diga-me, quanto é que se paga por histórias sobre mim agora? Eu costumava valer uma nota... Um tablóide ofere­ceu meio milhão por um furo quando abandonei Hollywood. Isso encheria sua garagem de Porsches, não?

— Não é nada disso — ele falou, tenso, os músculos da mandíbula contraindo-se furiosamente.

Dixie avançou alguns passos em sua direção, os braços caídos ao lado do corpo.

— Continua curioso sobre quem foi Devon Stafford? Talvez eu possa lhe contar. Ser Devon Stafford é ter gente rondando você noite e dia por pensar que você é diferen­te, por pensar que é algum tipo de deusa, quando tudo não passa de uma grande mentira. É ver as pessoas tentando tocá-la, não porque você é alguém especial por dentro, mas porque é uma estrela fabricada. É ver sua melhor amiga se matar por não conseguir ser igual a você. E também é ouvir um homem dizer que a ama, e depois descobrir que não é com você que ele faz amor, mas com uma imagem inanimada, com a qual ele espera fazer dinheiro.

As lágrimas escorriam por suas faces sem controle ago­ra. Dixie se aproximou cada vez mais dele conforme falava, até parou a poucos centímetros. Encarou-o, tremendo dos pés à cabeça, os punhos cerrados ao lado do corpo.

— Divertiu-se muito com isso, Jake? Fechou os olhos e pensou em Devon Stafford enquanto fazia amor comigo?

— Não.

— Cafajeste! — ela berrou, esmurrando-lhe o peito. — Cafajeste mentiroso!

— Dixie, eu te amo.

Ela o esbofeteou com toda a força que reuniu.

— Como se atreve a me dizer isso? — exigiu, recuando um passo como se houvesse levado um choque. — Como ousa? Por quem me toma? Por uma coisinha patética que você pen­sa que pode comprar com algumas palavras bonitas?

Jake se sentiu mais tolhido pela amargura nas palavras do que pelos murros que Dixie lhe dera. Avançou para ela, os olhos tomados de dor.

— Eu te amo, Dixie. Se me deixar explicar...

— Eu vi a explicação, Jake — ela falou, apontando para a confusão no chão. — Quando ia me contar, afinal? No dia que o livro chegasse às livrarias? Quem sabe fosse me con­vidar para a noite de autógrafos? Seria um espetáculo e tanto, já pensou? Poderia me exibir em frente ao público e deixá-lo impressionado ao ver como aquela mulher perfeita tinha perdido todo o brilho.

— Pare com isso — Jake ordenou por entre os dentes. Agarrou-a pelos braços, os dedos enterrando-se em sua car­ne através da camisa de flanela. — É minha vez de falar!

Dixie o encarou, a expressão carregada pela mágoa e pela raiva.

— Teve várias chances de fazer isso, Jake Gannon — dis­se, desvencilhando-se dele com um tranco, para em seguida fazer meia-volta e sair correndo do chalé.

Jake praguejou baixinho, saiu para a varanda e desceu os degraus. Dixie corria adiante, os cabelos esvoaçando. Ele fechou a distância entre os dois facilmente, mesmo descalço.

Foi neste instante, que Bob Dog apontou na trilha bem à sua frente e se chocou contra suas pernas, derrubando-o.

Dixie aproveitou para rodear a casa da praia e saltar para dentro do jipe.

Jake sentou-se no chão, imprecando sem parar. O pastor alemão continuava postado a alguns passos de distância, latindo nervosamente.

Irritado, Jake apanhou um punhado de areia e a jogou no animal. Bob Dog parou de latir, endereçou-lhe um olhar ma­goado e esgueirou-se para longe com o rabo entre as pernas.

Hobbit sentou-se na trilha, as orelhas empinadas. Honey e Abby postaram-se ao seu lado, a encará-lo com um brilho acusador nos olhos, como se soubessem que ele magoara sua dona.

Jake afundou a cabeça entre as mãos, sentindo-se mais perdido e miserável do que nunca. Estava tudo acabado. Não encontrara um meio de contar a Dixie sobre seu ob­jetivo ao vir até ali, principalmente depois que ela não se mostrara disposta a lhe falar sobre o passado. Queria que ela confiasse nele desde o primeiro minuto e ficara magoado por ela não se abrir. Agora, Dixie poderia nunca mais estar ao seu alcance.

— A. J. Campion, o escritor de biografias. Eu sabia que o conhecia de algum lugar.

Uma voz feminina e cheia de mágoa soou em meio ao vento.

Jake ergueu a cabeça. Sylvie estava em pé ao lado da trilha, a forma esguia engolida por uma enorme capa de chuva. Era evidente, pela expressão em sua face, que ouvira parte da discussão.

— Eu devia ter me lembrado — completou, amargurada. Ele se levantou.

— Sei que isso parece ruim, Sylvie, mas juro a você que eu amo Dixie. Não me importo quem ela era. Amo quem ela é.

— Mas partiu o coração dela.      

— Eu não pretendia.

— O que pretendia, Jake? — ela exigiu, fria. — Escrever uma história? Foi isso que veio fazer aqui, não foi? Alguma vez lhe ocorreu que Dixie só queria ficar em paz?

— Eu queria saber por quê. Queria que ela me contasse por conta própria, com suas palavras. Se você sabe quem eu sou, então sabe como escrevo. Seria a história verda­deira de Devon Stafford, não alguma exposição sórdida. — Empurrou para trás os cabelos úmidos, agora cheios de areia. — Mas não dou a mínima para o livro agora. Não me importo se o resto do mundo nunca descubra nada sobre Devon Stafford. Eu quero Dixie. Eu amo Dixie. Ajude-me a tê-la de volta, Sylvie!

Sylvie o encarou por um longo momento, pesando as pa­lavras e a sinceridade por trás delas. Analisou-o com frieza: os braços largados ao lado do corpo, os ombros encolhidos contra o vento que a açoitava.

— Não posso fazer isso, Jake — respondeu, meneando a cabeça. — Isso é entre você e Dixie. Eu disse a ela para lhe contar sobre o passado. Disse que não resultaria nada de bom em guardar esse segredo... Você devia ter feito o mesmo. Agora, partiu o coração dela e não sei se alguém pode consertar isso, Jake. Dixie estava fragilizada quando chegou aqui. Precisava desesperadamente que as pessoas a amassem pelo que ela era na verdade. E essa mágoa que você lhe causou... Não sei o que posso fazer.

Ele fechou os olhos por um instante.

— Pode me emprestar a chave de seu carro.

Dixie dirigiu sem dar atenção às leis de trânsito ou ao estado deplorável do jipe. Seguiu pela velha estrada costei­ra, saltando e sacolejando pelos buracos e calombos.

No banco ao lado, Cyclops pulava como uma bola de pelo, as unhas enterradas no estofamento. Miava sem parar, os guinchos pontuando um concerto desafinado.

Ela não lhe deu atenção, porém. Agarrava-se ao volante, tirando a mão apenas ocasionalmente para limpar as lá­grimas que teimavam em escorrer por seu rosto, os soluços acompanhando os miados dissonantes do gato.

No rádio, outra notícia sobre a tempestade que se apro­ximava soou, alarmante. Dixie desligou. Não se importava se chovesse. Por ela o céu podia desabar. Isso não seria nada comparado à tempestade que a assolava por dentro.    

Maldição, por que havia confiado em Jake Gannon? Por que havia permitido apaixonar-se por ele? Soubera, no mi­nuto em que havia posto os olhos nele, que ele não seria nada além de problema. Ela o havia reconhecido no mesmo instante como um perfeccionista. Homens como ele não se interessavam por mulheres como ela. Procuravam por mu­lheres como Devon Stafford.

O que Jake tinha pensado? Que poderia persuadi-la a adotar de novo seu antigo "eu"? Que poderia chantageá-la com seu amor, obrigando-a a se esfaimar e a tomar injeções de colágeno? Acreditara que ela poderia enfrentar tudo isso para fazê-lo feliz, do jeito que Tyler Holt fizera com Delia? Era possível que desejasse tanto ser visto com um símbolo sexual? Ou tivera o único propósito de conseguir uma boa história?

Que diferença fazia?, concluiu, amarga. De qualquer maneira, ele a fizera de boba. Caíra de quatro por ele. Deus, ela era mesmo uma coisinha patética, precisando de amor tão desesperadamente que acreditaria em qualquer coisa que Jake lhe dissesse.

Engasgada com as lágrimas, enfiou o jipe numa vaga de estacionamento e pisou no freio. Os pneus mal pararam de chiar e ela já saltava do assento.

Cyclops saltou em seu peito, e ela seguiu correndo pelo deque da marina com o gato pendurado como um colar.

Fabiano irrompeu da loja de iscas quando ela se apro­ximou da porta. Um casaco preto era sua única concessão ao vento frio. O peito largo e os braços estavam nus, como sempre. Interceptou-lhe o caminho, os olhos escuros crava­dos no rosto dela.

— Para onde vai, Dixie? — quis saber. — O que a faz chorar?    

Dixie desviou os olhos, fungando, mas ele se recusou a deixá-la passar.

— Estou chorando porque estou magoada, só isso — ela explicou, na defensiva.

— Dixie, Dixie... — murmurou o rapaz com voz suave, a preocupação enrugando-lhe a testa enquanto tentava tocá-la no braço.

Cyclops chiou e o arranhou na mão. Fabiano recuou, lan­çando ao gato um olhar cauteloso.

— Foi aquele Jake Gannon, não foi?

Ela se recusou a responder, o que já era uma resposta em si. Olhou para os barcos que boiavam como rolhas no cais, enxugando o nariz com a mão e esbarrando em Cyclops no processo. O gato miou, saltou para o chão e correu para a doca.

Fabiano aproveitou para pousar as mãos em seus om­bros, encarando-a com ar sério.

— Vou matá-lo — disse apenas.

— Isso, vá em frente e acabe com ele... — Dixie respon­deu com ironia. — Vai resolver todos os meus problemas.

Tentou rodeá-lo, exasperada, mas Fabiano bloqueou-lhe o caminho como uma pilastra de pedra.

— Não é um bom dia para sair de barco — disse com firmeza. — A tempestade está chegando.

— Não me importo.

— Dixie, espere!

Ela fechou os olhos com força e bateu o pé no chão ao ou­vir o chamado que vinha do estacionamento. Jake corria na direção deles, as passadas a ressoar pela madeira da doca. Virou-se, furiosa.

— Deixe-me em paz.

— Dixie, por favor! — ele exclamou, ofegante, parando em frente a ela. — Vamos a algum lugar para conversar.

Ela fez o melhor que pôde para fechar a percepção ao fato de ele parecer tão esgotado. Concentrou-se em sua má­goa e raiva, e usou essas emoções para sustentá-la.

— Não vou conversar com você. Qualquer coisa que eu diga poderia terminar na manchete de um tablóide.

Jake pendeu a cabeça para trás por um momento, sol­tando um longo suspiro.

— Droga, Dixie, eu não escrevo para tablóides! Não vim aqui para explorá-la. Poderia me dar ao menos uma chance de me explicar?

Fabiano rodeou Dixie, bloqueando a visão de Jake.

— É melhor ir embora, Jake Gannon.

Jake rilhou os dentes, lutando contra a impaciência.

— Escute, Fabiano, quer dar o fora? Isso não é da sua conta!

O rapaz inflou o peito largo, os olhos escurecendo peri­gosamente.

— Nossa Dixie é da minha conta.

Jake tentou passar por ele, porém Fabiano moveu-se na mesma direção. Encararam-se como dois lutadores.

— Fico contente que todo mundo goste tanto de Dixie — Jake afirmou. — Mas eu a amo também, e preciso de uma chance para conversar com ela, portanto, dê o fora. Não quero ser obrigado a machucá-lo, meu chapa, mas mi­nha paciência está se esgotando.

— Acha que pode me machucar? — Fabiano soltou uma gargalhada sarcástica e arrogante, dando um passo amea­çador na direção dele.

Num impulso, Jake o acertou com um soco e o homenzar­rão caiu de costas na doca como uma sequóia derrubada. Dixie arquejou e ajoelhou-se ao lado dele.

— Fabiano! Você está bem? — Mordeu o lábio, nervosa, e sacudiu-o, tocando-lhe os cabelos, o ombro. — Está ferido?

Ele gemeu e se pôs de quatro, sacudindo a cabeça de um lado para outro como um touro.

Dixie olhou para Jake com ódio.

— Seu imbecil! — Avançou sobre ele e esmurrou-o no peito. — Quem pensa que é, batendo em meus amigos?!

— Ele ia bater em mim!

— Por que não pega o seu Porsche e volta para a Califórnia, onde tudo é lindo e perfeito, do jeito que você gosta, Jake Gannon?

— Não vou voltar. Não vou a lugar nenhum até conven­cê-la de que eu a amo.

— Pois vai ficar aqui até seus dentes caírem!

Dixie virou-se e correu pela doca com Cyclops logo atrás dela. Jake correu atrás dela também.

A chuva começava a cair. Gotas frias e fortes despen­cavam de um céu carregado. O vento uivava e assobiava pelos mastros nus dos veleiros, forçando suas amarras. Um trovão ribombou.

Dixie lutou com a trava de um portão do píer, mas conse­guiu abri-lo e fechou-o antes que Jake pudesse passar. Ele saltou por cima, caindo do outro lado e correndo atrás dela outra vez.

— Maldição, Dixie! — berrou, acima do vento. — Não pode fugir assim!

— Não me diga o que posso ou não posso fazer, Jake! — ela esbravejou, parando.

Jake a agarrou pelo braço e a virou para que ela o enca­rasse.

— Onde está seu bom senso? Vai se matar se sair de lancha com esse tempo. É isso o que quer? Quer se matar porque acha que sou um cafajeste?

Ela o fitou, esforçando-se para manter o ar de desafio nos olhos e não permitir que Jake visse o medo que sua pergunta despertara dentro dela. Uma lufada de vento fez a chuva cair mais forte, num ângulo que a fazia cortante como uma faca contra sua pele nua. Agitou seus cabelos, e as mechas molhadas açoitaram-lhe a face. A camisa enso­pada colava-se ao seu corpo.

Um raio estalou e correu pelo céu. Além do abrigo do cais, o mar estava revolto e bravio, ficando mais encapelado a cada minuto.

Será que realmente pensara em sair com aquele tempo?

Seu primeiro instinto fora fugir, afastar-se da dor, da vergonha, da própria fraqueza, de Jake e da ameaça que ele agora representava à sua vida tranqüila. Mas ele a impelia para a autodestruição?

Não, pensou, reunindo forças. Ela agüentaria firme e su­portaria qualquer coisa que viesse. A Toca da Mula era seu lar. Não se deixaria expulsar para a morte. Era feliz ali. Sim, haveria uma invasão da imprensa assim que a notícia vazasse. Mas o furor morreria, por fim, e a mídia se move­ria em busca de histórias mais sensacionais que a de uma estrela que abandonara Hollywood para voltar a ser uma pessoa comum e morar numa velha casa com um bando de animais enjeitados.

Suspirou dolorosamente. Ela fugira de seus problemas na Califórnia. Fugira da infelicidade. Mas agora havia se encontrado e não fugiria mais.

Desistiu da insanidade que estava prestes a fazer. Afastou-se de Jake, tirou as chaves da lancha do bolso e jogou-as a ele, com um sorriso amargo erguendo-lhe o canto da boca.

— Não vou a lugar nenhum com a lancha. Por que você mesmo não a usa e diz "alô" ao Rei Netuno por mim?

Com a cabeça erguida e os ombros eretos, virou-se e se afastou, com Cyclops correndo atrás dela na chuva, com a cauda empinada tal qual uma bandeirola.

— Você a ama de verdade, meu amigo? — Fabiano per­guntou com seu jeito esquisito, servindo dois copos sobre a mesa com o líquido claro de uma garrafa.

Jake olhou para os copos e para o tampo de madeira marcado. Estavam sentados na loja de iscas. O lugar fedia como o inferno mas, ao menos, estava quente e seco. O bal­conista fora substituir o cozinheiro no restaurante de Clem, e Fabiano havia ficado no lugar dele. Ao seu redor, vários resultados da perícia de Clem como taxidermista os encara­vam com olhos de conta.

— Eu amo Dixie — ele declarou mais uma vez. Engoliu metade do drinque, estremeceu e se retorceu; depois tentou focar a vista. A coisa desceu como ácido e deixou um sabor quente e doce de licor em sua garganta. Quando falou outra vez, sua voz soou áspera como o cascalho da praia. — Eu a amo mais que a minha própria vida. Eu a amo mais que meu Porsche. Eu a amo mais que tudo. — Terminou o drinque, mas tossiu, engasgado. — Que é isto, afinal? Solvente?

— Licor caseiro de anis — Fabiano explicou com um sor­riso de orgulho. Bateu no peito nu com a palma da mão. — Bom, não? Coisa que só um homem de verdade bebe.

— Lembre de mandar gravar isso em meu túmulo.

O rapaz jogou a cabeça para trás e soltou uma garga­lhada que sacudiu as vigas do teto. Jake franziu a testa e olhou melancolicamente pela janela. A chuva caía inces­santemente em lençóis gelados, o vento sacudindo os co­queiros como se fossem brinquedos. Trovões ribombavam e raios estalavam num dueto violento. Não havia vivalma na rua. Apenas alguns carros abandonados ao longo das calça­das onde a enxurrada rodopiava numa torrente espumosa. Naquele momento, o mundo parecia tão desolado como ele se sentia.

— Como está o queixo? — perguntou em voz baixa.

Fabiano fez uma careta, depois deu de ombros. Era evi­dente que encarava uma briga como um ritual masculino normal. Jake o avistara parado na doca, quando começara a seguir Dixie para longe do barco, e se preparara mentalmente para uma batalha que enfim não se materializou. Ao ver sua expressão de desolamento, Fabiano simplesmente lhe sorrira, batera a mão enorme em seu ombro, e o levara para o interior da loja de iscas, onde tinham conversado sobre a situação como velhos amigos.

— Preciso de um plano — Jake decidiu com um suspiro. Fabiano concordou.

— Dixie deve estar no bar Magnólia. É para onde tudo mundo vai quando uma tempestade brava chega. É tradição por aqui. Ali todo mundo conversa, conta histórias, assiste à Roda da Fortuna na tela grande da tevê. As irmãs Trulove fazem videoteipes.

Jake relanceou os olhos pela rua até o estacionamento do bar, onde os carros se alinhavam lado a lado, na chuva. O jipe de Dixie ainda estava lá, assim como a picape preta de Tyler Holt.

— Ela tem uma arma, sabia? — lembrou, preocupado. — Acha que atiraria em mim na frente de testemunhas?

Fabiano meneou a cabeça com veemência.

— Não acho que ela vá atirar em você. Não para machu­car, pelo menos. Ela também o ama.

Jake soltou uma risada ríspida.

— Neste exato momento, Dixie me odeia com todas as suas forças.

— Amor, ódio... — Os ombros enormes de Fabiano se moveram significativamente. Então ele estreitou os olhos e debruçou-se, numa postura conspiratória. — São muitas vezes a mesma coisa, sabia? Dixie o ama tanto que lhe deu seu coração. Se está zangada agora, é porque confiou em você. Tem de mostrar a ela que essa confiança não foi mal endereçada.

Jake piscou, surpreso. Parecia um conselho sábio vindo de um homem que vivia sem nenhuma companhia feminina.

— Isso é mais fácil falar do que fazer — retrucou, afa­gando uma doninha empalhada que havia ao lado.

Independentemente da fonte, o conselho era realmente razoável, pensou. A frágil confiança que Dixie depositara nele devia estar em frangalhos, tal qual a caixa dos manus­critos ainda no chão do chalé. Ela estava muito magoada para escutá-lo, muito furiosa até mesmo para olhar para ele sem partir para a violência.

Precisava fazer algo. Precisava mostrar a ela que...

Sentou-se ereto na cadeira, a empolgação estalando den­tro dele como estática.

Agarrou a doninha pelo pescoço e ergueu-a no ar como um troféu, gritando:

— Achei! É isso!

Virou-se para Fabiano, apontando o focinho arreganhado do bicho para ele.

— Que tipo de artista é você?

Fabiano afastou-se da doninha como se esta estivesse viva, encarando Jake com um olhar de cautela. Apertou os lábios e deu de ombros.

— Eu pinto, faço esboços, pequenas esculturas...

— Quanto tempo acha que eles ficarão lá no Magnólia?

— Vão entrar pela noite. É uma grande tempestade.

Jake levantou-se da cadeira, decidido. Bateu o focinho da doninha no ombro do grandalhão e sorriu como um vito­rioso, mostrando as covinhas.

— Você me faria um imenso favor, meu amigo?

— Tem certeza de que não quer companhia esta noite, Dixie? — Sylvie perguntou pela terceira vez. — Agora que Delia fez as pazes com aquele tonto do Tyler e voltou para Myrtle Beach, você ficará sozinha. Não quer mesmo que eu passe a noite aqui? Eu ficaria muito feliz com isso, embora minha sinusite vá me matar com todos os gatos que você tem... Mas é para isso que servem os amigos.

Dixie tirou a chave do jipe da ignição e olhou para sua enorme casa vazia. Estivera com os amigos durante o dia e metade da noite, mas nunca se sentira mais sozinha ou mais miserável desde que Jeanne morrera.

Todos tinham se mostrado compreensivos, como sempre. Leo e Macy Vencour a consolaram com uma conversa tranqüi­la. As irmãs Trulove, com torta de chocolate e nozes, e tam­bém com uns seis episódios eletrizantes de Roda da Fortuna. Eldon se oferecera para tocar fogo no Porsche de Jake e dei­xar os bombeiros acabarem com ele com as mangueiras.

Mas ninguém conseguiu fazê-la sentir-se melhor.

Não havia quem pudesse curar a dor de descobrir que fora lograda por quem amava. Isso era algo que exigia um longo e doloroso processo de recuperação.

E ela sabia disso mais do que ninguém.

A dor inundou-a de novo, e comprimiu-se no fundo de seus olhos. Por que um homem não poderia amá-la só por ela mesma?

Com um esforço, reprimiu as lágrimas.

— Não, obrigada, Sylvie. Eu realmente preciso ficar so­zinha esta noite.

A mulher franziu a testa e deu-lhe um tapinha no ombro.

— Compreendo. — Pegou a bolsa e puxou o capuz da capa de chuva. — Lembre-se, querida, é sempre escuro an­tes do alvorecer. Meu Sid, que Deus o tenha, costumava di­zer isso o tempo todo. Ele me deixava louca dizendo isso, mas, muitas vezes, tinha razão.

Dixie não conseguiu encontrar a voz para fazer um co­mentário. Não conseguia ver como aquela nuvem poderia ter uma borda prateada, como o escuro em seu coração veria o alvorecer; mas estava cansada demais para argumentar.

Sylvie saltou do jipe reclamando do tempo, e depois cor­reu pela trilha escura na direção de seu chalé.

A tempestade perdera a fúria, embora a chuva conti­nuasse, e alguns raios ainda o céu iluminassem.

Dixie não se importou em se proteger. Desceu do car­ro e caminhou pelo quintal, deixando a chuva molhar seus cabelos e umedecer sua nova camiseta vermelha *do Bar Magnólia. Seus tênis guinchavam. Nos braços, levava a ca­misa que tomara emprestado de Jake naquela manhã, toda embolada e ainda úmida da chuva.

Subiu os degraus da escada, vendo seus bichos preferin­do ficar secos debaixo da casa a cumprimentar a dona com seu entusiasmo habitual. Só Cyclops saltou atrás dela, espremendo-se pela porta assim que ela abriu uma fresta.

Dixie levou a mão para o interruptor de luz, ao lado da porta da sala, mas sua mão imobilizou-se antes que ela o tocasse. Havia três velas queimando sobre a mesa de café: velas cor de marfim, cuidadosamente colocadas em um cas­tiçal de bronze. Todas as revistas e álbuns de figurinha ti­nham sido arrumados. A mesa de mogno fora lustrada e brilhava como um lago ao luar. Ao lado das velas, havia uma caixa embrulhada em papel vermelho e dourado.

Intrigada, ela deixou cair a camisa e foi sentar-se no sofá. Olhou para a caixa por um momento, mordendo o lá­bio e afastando as mechas de cabelos molhados do rosto. Aquilo era, obviamente, coisa de Jake. Ninguém se daria ao trabalho de arrumar a mesinha daquela maneira. A caixa encontrava-se perfeitamente embrulhada, as velas cuidado­samente eretas. Era um presente de despedida, na certa.

Ela respirou fundo, dizendo a si mesma que não deveria abri-la.

Mas nunca na vida fora capaz de resistir a um presente.

Com gestos lentos, desfez o embrulho. Ergueu a tampa e a colocou de lado. Inclinou-se para espiar dentro da caixa com cautela, como se esperasse que uma cobra saltasse de dentro, mas não recuou quando viu o que havia lá.

Conteve a respiração e estendeu a mão com cuidado para pegar o presente.

Era um livro. Um livro feito à mão. A capa era um dese­nho a bico-de-pena de uma princesa de conto de fadas mon­tada num magnífico cavalo cinzento, com animaizinhos cor­rendo ao seu redor. Tinha sido feita num estilo que a fazia lembrar-se de pinturas medievais: bela e intricada, cheia de detalhes extravagantes. Havia toques de aquarela, cores suaves e delicadas, que davam aos animais uma aparência tridimensional. Não havia título e a história começava ime­diatamente na página seguinte.

Era uma vez uma linda princesa chamada Devon. Em seu reino, todos a amavam por sua beleza e doçura. Ela era muito, muito querida.

Mas Devon era uma princesa triste, pois achava que nin­guém a amava por aquilo que ela trazia dentro de si, em seu coração.

Assim, um dia, ela decidiu fugir para bem longe.

Dixie engoliu o nó na garganta e vacilou antes de virar a página. Sentou-se na beira do velho sofá com o fino manus­crito sobre os joelhos, e o leu à luz das velas.

A história também falava de um cavaleiro que partira em busca da princesa. Devon assumira a identidade de uma mulher comum, de nome Dixie, e vivia numa pequena al­deia próxima do mar. Tomara-se amiga do povo dali, e de vários animaizinhos. Todos tinham aprendido a amá-la por seu coração generoso e natureza doce.

Sem suspeitar que Dixie era a mulher de quem ele es­tava à procura, o cavaleiro apaixonou-se profundamente pela moça. Quando uma borboleta lhe contou que ela era na realidade a princesa perdida, ele não soube o que fazer. Não poderia contar a Dixie que viera procurar a princesa Devon, quando agora ela era a única dona de seu coração. Sua bus­ca não mais importava, pois ele encontrara algo bem mais especial do que uma princesa que o povo amava apenas pela beleza. Ele encontrara seu verdadeiro amor.

   Assim, resolveu dar-lhe algum tempo, conquistar sua confiança, deixá-la revelar seu segredo por ela mesma.

Mas, antes que isso acontecesse, ela o descobriu. Julgando que ele estava interessado apenas em capturá-la para recla­mar a recompensa, a princesa Devon o mandou embora.

Era onde a história terminava, com um desenho do cavalei­ro levando seu cavalo para longe, ambos de cabeças baixas.

Dixie olhou para o desenho através da névoa das lágri­mas, o coração partido em dois. Jake. Seu cavaleiro perfeito. Ela não lhe dera uma chance de se explicar. A evidência fora tão incriminadora, tão dolorosa... Mesmo agora ela tremia enquanto lutava contra a necessidade de acreditar nele e o medo de ser ferida outra vez. Agarrou o manuscrito nas mãos e mordeu o lábio conforme as lágrimas de dor e confusão ma­rejavam seus olhos e escorriam por suas faces.

— Eu não arrumei um final ainda — disse Jake, ao se materializar na escuridão da sala de jantar com Cyclops nos braços. Afagava o gato com a mão firme, mas seu olhar estava fixo nela.

Dixie sentiu que este ultrapassava suas barreiras e lhe chegava até a alma.

— Estou deixando o final em aberto para você. Ou a princesa vê a profundidade do amor do cavaleiro, ou o man­da embora para morrer com o coração partido.

Dixie apenas o fitou sem dizer nada. Observou-o colocar o gato no chão e ajoelhar-se diante da lareira para acender um fósforo nos gravetos da grelha. Conforme as chamas su­biram, Jake pegou uma caixa de papelão, ao lado, e tirou dela várias fotografias. Alimentou o fogo com elas, vendo como se enrolavam e se desintegravam.

— Estou apostando no primeiro final — disse, baixinho, enfiando a mão na caixa para pegar um punhado de recortes de jornal. — Mas é o seu livro, e você pode fazer o que quiser com ele.

Jogou os artigos nas chamas ávidas. A luz do fogo trans­formava sua bela face em bronze e fazia seus cabelos brilha­rem como ouro.

O coração de Dixie disparou. Robert Redford não tinha nada a ver com aquele homem, nem mesmo em seus dias de glória. Ou Jake era absolutamente sincero, ou o melhor ator com quem ela já representara.

Seus dedos se curvaram, tensos, em tomo da borda do manuscrito, enquanto ela encarava o que havia em seu coração. A verdade era que estava apaixonada por Jake Gannon, fosse ele culpado ou não, fosse perfeito ou não. Precisava decidir se teria coragem de lhe dar uma chance de magoá-la ainda mais, ou se preferia sofrer sozinha.

— É um bom livro. — Ela acariciou as páginas. — Baseado numa história real. Gosto de livros baseados em histórias reais.

Jake virou-se para fitá-la mais uma vez.

— Gosta de finais felizes?

— Quando posso ter um — ela respondeu, com cautela.

— Pode ter um agora.

Ele se afastou da lareira e rodeou a mesa para ajoelhar-se aos pés dela e fitá-la dentro dos olhos.

— Eu te amo, Dixie. Não sei o que mais posso lhe dizer.

— Mas veio aqui procurando por Devon Stafford.

— Ela não se compara à dama que fugiu com meu coração.

— E quanto à história que veio escrever?

— Não dou a mínima para este livro. Eu queria desco­brir quem era realmente Devon Stafford, o que era que a fazia brilhar de dentro para fora. Agora eu sei, mas não quero partilhar isso com o resto do mundo. — Estendeu a mão e tocou-a na face, endereçando-lhe um sorriso temo. — Não serei perfeito nesse caso. Quero mais é ser mesqui­nho. Quero você toda para mim.

Os lábios de Dixie se curvaram num sorriso incerto. Ela tamborilou os dedos sobre o manuscrito.

— Fez uns dois erros de datilografia aqui também. Jake sorriu, mostrando as covinhas.

— Só dois? Datilografei como um louco, e à luz de vela, a tarde inteira. Acho até que arranjei uma artrite. Não posso lhe dizer quantas vezes prendi meus dedos nas teclas.

Dixie correu a mão sobre a capa do livro outra vez, mara­vilhada com sua beleza. Tocou a assinatura debaixo de uma das patas do cavalo. — Fabiano fez a capa e as ilustrações?

— Sim. E entrou numa depressão artística porque decla­rou que a capa não estava perfeita. Não queria me deixar levá-la, mas eu disse que você era a última pessoa que se importaria se as orelhas do gato não estavam exatamente certas.

— Acho que me conhece muito bem, mesmo — ela con­fessou, baixinho.

— Não tão bem como eu conheceria se você se casasse co­migo e me deixasse ficar por perto pelos próximos cinqüenta ou sessenta anos. Não quero você como uma sex symbol pla­tinada, Dixie. Quero apenas seu coração e seu amor. Confie em mim para amá-la por quem você é, por favor.

Ela estremeceu diante da sinceridade que viu nos olhos de Jake, a alma ansiando por acreditar nele.

— Não se importa que eu não me pareça mais com Devon Stafford?

— Nem um pouco.

— Não se importa que eu que recolha cada enjeitado que surja à minha frente?

Ele meneou a cabeça.

— Não se importa que eu seja uma irremediável relaxa­da como dona de casa?

O sorriso de Jake endureceu-se.

— Teremos de conversar sobre isso.

Ela riu. Olhou longamente para Jake, absorvendo tudo a respeito dele: as linhas da face, os ombros largos, o jeito firme e inquisitivo no olhar. Nunca seria capaz de esconder muito dele. Jake enxergava cada atuação, cada máscara da mulher que ela era por dentro.

Não era isso que ela havia desejado o tempo todo? Um homem que a amasse por aquilo que ela era na verdade?

Pois ali estava ele: um deus grego ajoelhado aos seus pés com um gato zarolho aninhado junto ao colo. Como po­deria não amá-lo? Como poderia não lhe dar essa chance? Já entregara a Jake seu coração... O que seria de sua vida sem ele?

Confie em mim para amá-la por quem você é. As palavras ecoaram em sua mente. Dixie estendeu a mão e afastou os fios de cabelo que caíam pela testa de Jake.

— Você é bom demais para ser verdade.

— Não — ele contestou. — Mas sou o homem que a ama, Dixie. Por favor, não me mande embora.

Ela fechou os olhos e respirou fundo. Ela o amava e pre­cisava dele. Tinha jurado dar a Jake tudo que era, tudo que fora, tudo que tinha no coração.

Era hora de dar esse passo.

Com um sorriso trêmulo, pousou a boca sobre a dele num beijo temo e emocionado, e depois murmurou:

— O que me diz de trabalharmos neste final feliz? 

 

                                                                                Tami Hoag

 

 

                      

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