Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O AMOR NOS TEMPOS DE CÓLERA
Parte II
Enquanto dava os seus primeiros passos na Companhia fluvial das Caraíbas e escrevia cartas grátis no Portal dos Escrivães, os amigos de juventude de Florentino Ariza foram tendo a certeza de que a pouco e pouco o perdiam e irrecuperavelmente. Assim era. Contudo, quando voltou da viagem pelo rio ainda via alguns deles na esperança de atenuar a lembrança de Fermina Daza, jogava bilhar com eles, foi aos últimos bailes, prestava-se à sorte de ser rifado entre as raparigas, prestava-se a tudo o que lhe parecesse bom para voltar a ser quem fora. Depois, quando o tio Leão XII o aceitou como empregado, jogava dominó com os colegas do escritório no Clube do Comércio e estes começaram a aceitá-lo como um dos seus quando já só conversava sobre a empresa de navegação, que não mencionava pelo nome completo mas pelas iniciais: a CFC. Mudou até a maneira de comer. Da indiferença e irregularidade que tinha tido até então à mesa passou a ser igual e austero até ao fim dos seus dias: uma chávena grande de café simples ao pequeno-almoço, uma posta de peixe cozido com arroz branco ao almoço, e uma chávena de café com leite com um bocado de queijo antes de se deitar. Bebia café a toda a hora, em qualquer parte e em qualquer circunstância, chegando a tomar trinta chaveninhas por dia: uma infusão semelhante ao petróleo em rama que preferia ser ele próprio a preparar e do qual sempre tinha um termo à mão. Era outro, apesar dos seus firmes propósitos e dos seus esforços ansiosos para continuar a ser o mesmo que tinha sido antes do tropeço fatal com o amor.
A verdade é que nunca voltaria a sê-lo. A recuperação de Fermina Daza foi o único objectivo da sua vida e estava tão certo de o conseguir mais cedo ou mais tarde que convenceu Trânsito Ariza a continuar a restauração da casa para que estivesse em estado de a receber fosse qual fosse o momento em que se desse o milagre. Ao contrário da sua reacção face à proposta editorial do Secretário dos Namorados, Trânsito Ariza foi, então, muito mais longe: comprou a casa a dinheiro e iniciou a sua remodelação completa. Fizeram uma sala de visitas onde fora o quarto, construíram no andar de cima um quarto para o casal e outro para os filhos que viessem a ter, os dois muito amplos e bem iluminados, e onde tinha sido a antiga feitoria do tabaco, fizeram um grande jardim com todas as variedades de rosas, ao qual Florentine Ariza pessoalmente consagrava as primeiras horas do dia. A única coisa que ficou intacta, como testemunho de gratidão para com o passado, foi a loja de miudezas. A parte de trás da loja, onde sempre dormira Florentine Ariza, deixaram-na como sempre esteve, com a rede pendurada e a mesa de escrever atulhada de livros em desordem, mas ele passou a usar o quarto previsto para o casal no andar de cima. Era o maior e o mais fresco da casa e tinha um terraço interior onde era muito agradável passar algum tempo à noite por causa da brisa do mar e das emanações das roseiras, mas também era o que melhor correspondia ao rigor trapista de Florentino Ariza. As paredes eram lisas e ásperas, de cal viva, e como mobília não tinha mais do que uma cama de presidiário, uma mesinha-de-cabeceira com uma vela no gargalo de uma garrafa, um guarda-fatos antigo e um jarro com o seu prato e a sua bacia.
As obras demoraram quase três anos e coincidiram com um restabelecimento momentâneo da cidade, devido ao auge da navegação fluvial e ao tráfego comercial, os mesmos factores que tinham sustentado a sua grandeza durante os tempos coloniais e que a converteram durante mais de dois séculos na porta da América. Mas também foi essa a época em que Trânsito Ariza manifestou os primeiros sintomas da sua doença incurável. As suas clientes de sempre vinham à loja cada vez mais velhas, mais pálidas e escorridas e ela não as reconhecia depois de ter passado metade da vida a lidar com elas, ou trocava os assuntos de umas com os das outras. O que era muito grave em negócios como o seu, nos quais não se assinavam papéis para proteger a honra, a própria e a alheia, e a palavra de honra era dada e aceite como garantia suficiente. De início pareceu que estava a ficar surda, mas logo se tornou evidente que era a memória que se lhe escoava. De modo que acabou com o negócio de penhores e o tesouro das bilhas deu para acabar de mobilar a casa e ainda sobraram muitas das jóias antigas mais prezadas da cidade, cujos donos não tiveram meios para as resgatar.
Florentino Ariza tinha então de atender a vários compromissos ao mesmo tempo, mas nunca lhe faltou o ânimo para aumentar as suas experiências de caçador furtivo. Depois da experiência enganosa com a viúva de Nazaret, que lhe abriu caminho para os amores de rua, continuou a caçar durante vários anos avezinhas órfãs da noite, sempre na ilusão de encontrar algum alívio para a dor de Fermina Daza. Mas depois já não podia dizer se o seu costume de fornicar sem esperanças era uma necessidade da consciência ou um mero vício do corpo. Ia cada vez menos à casa de passe, não só porque os seus interesses tomavam outros rumos, como porque não gostava que o vissem lá noutras andanças que não fossem as muito domésticas e castas que lhe conheciam. No entanto, em três casos de aflição, recorreu à facilidade de uma época que não tinha conhecido: disfarçava de homens as amigas que temiam ser reconhecidas e entravam juntos na casa de passe com ares de borguistas que tinham perdido a noite. Não faltou quem se desse conta, pelo menos por duas vezes, de que ele e o suposto acompanhante não iam até à cantina mas sim para o quarto, e a reputação já bastante manchada de Florentino Ariza sofreu o golpe de misericórdia. Por fim deixou de ir e as raras vezes em que o fez não foi para se pôr em dia por causa dos atrasos mas exactamente para o contrário: procurar um refúgio para se recompor dos excessos.
Não era para menos. Não tinha saído ainda do escritório, por volta das cinco da tarde, e já andava nas suas caçadas de gavião à volta das capoeiras. No princípio contentava-se com o que a noite lhe trazia. Recrutava criadas nos jardins, negras no mercado, bonitonas nas praias, americanas nos barcos de Nova Orleães. Levava-as para os molhes onde meia cidade fazia o mesmo mal se punha o Sol, levava-as para onde podia e, às vezes, até para onde não podia, pois não foram poucas as ocasiões em que teve de se enfiar à pressa num saguão escuro e fazer o que fosse possível, de qualquer maneira, por trás da porta.
A torre do farol foi sempre um refúgio feliz que ele evocava com nostalgia quando tinha tudo resolvido no alvorecer da velhice, porque era um sítio bom para se ser feliz, principalmente a noite, e pensava que alguma coisa dos seus amores daquela época chegava até aos navegantes em cada volta do feixe de luz. De modo que continuou a ir ali, mais que a qualquer outra Pane, enquanto o seu amigo, o faroleiro, o recebeu encantado, com uma cara de idiota que era a melhor garantia de discrição para as avezinhas assustadas. Havia uma casa em baixo, junto ao estrondo das ondas a desfazerem-se contra as escarpas, e onde o amor era mais intenso porque tinha algo de naufrágio Mas Florentine Ariza preferia a torre da luz depois de cair a noite, porque se avistava toda a cidade, as luzes dos pescadores no mar e ainda as dos pântanos ao longe.
Datavam desse época as suas teorias demasiado simplistas sobre a relação entre o físico das mulheres e as suas aptidões para o amor. Desconfiava do tipo sensual, das que pareciam capazes de comer cru um caimão, e que costumavam ser as mais passivas na cama. O seu tipo era o oposto: essas rãzinhas esquálidas por quem ninguém se dava ao trabalho de voltar-se para trás para as ver na rua, que pareciam ficar em nada quando despiam a roupa, que davam pena pelo estalar dos ossos ao primeiro impacte, e que, no entanto, podiam deixar pronto para o caixote do lixo o mais falador dos sujeitos. Tinha tomado apontamentos dessas observações prematuras com a intenção de escrever um suplemento prático do Secretário dos Namorados, mas o projecto teve a mesma sorte do anterior depois de Ausência Santander o voltar do avesso e do direito com a sua sabedoria de cão velho, de o recompor mentalmente, de o subir e descer, de o voltar a fazer como novo, destruir os seus virtuosismos teóricos e ensinar-lhe a única coisa que tinha de aprender para o amor: que à vida ninguém ensina.
Ausência Santander tivera um casamento convencional durante vinte anos, do qual lhe ficaram três filhos, que por sua vez se tinham casado e tido filhos, de modo que ela se prezava de ser a avó com a melhor cama da cidade. Nunca ficou esclarecido se foi ela que abandonou o marido ou se foi este que a abandonou a ela, ou se ambos se tinham abandonado ao mesmo tempo, quando ele foi viver com a sua amante de sempre e ela se sentiu livre para receber em pleno dia pela porta principal Rosendo de Ia Rosa, comandante de navio fluvial, a quem tinha recebido de noite muitas vezes pela porta das traseiras. Foi ele mesmo, sem o pensar duas vezes, quem lá levou Florentine Ariza.
Levou-o a almoçar. Levou também um garrafão de aguardente caseira e os ingredientes de melhor qualidade para fazer um cozido épico, como só era possível com as galinhas de quintal carne de osso tenro, porco da pocilga e os legumes e as hortaliças das aldeias do rio. Florentine Ariza não se mostrou, no entanto, desde o primeiro momento, tão entusiasmado com as excelências da cozinha nem com a exuberância da dona como com a beleza da casa. Gostava da casa em si mesma, luminosa e fresca, com quatro janelas grandes que davam para o mar e, ao fundo, a vista completa da cidade antiga. Gostava da quantidade e do esplendor das coisas que davam à casa um aspecto confuso e ao mesmo tempo severo, com todo o tipo de primores artesanais que o comandante Rosendo de Ia Rosa tinha trazido de cada viagem, até já não haver lugar para mais nada. No terraço que dava para o mar, em cima da sua argola privativa, uma catatua da Malásia com uma plumagem de brancura inverosímil e uma quietude pensativa que dava muito que pensar: o animal mais bonito que Florentine Ariza jamais vira.
O comandante Rosendo de Ia Rosa entusiasmou-se com o entusiasmo do convidado e contou-lhe pormenorizadamente a história de cada coisa. Enquanto o fazia, bebia aguardente em goles curtos, mas sem parar. Parecia de cimento armado: enorme, peludo em todo o corpo menos na cabeça, com um bigode como uma imensa broxa e uma voz de cabrestante, que só podia ser sua, e de uma gentileza requintada. Mas não havia corpo que resistisse à maneira como ele bebia. Antes de se sentar à mesa tinha acabado com metade do garrafão e caiu de bruços sobre o monte de copos e garrafas com um lento fragor de demolição. Ausência Santander teve de pedir ajuda a Florentino Ariza para arrastar até à cama o corpo inerte de baleia encalhada, e para o despir assim adormecido. Depois, num laivo de inspiração agradecido por ambos à conjunção dos seus astros, despiram-se ambos no quarto ao lado sem terem combinado, sem sequer o terem sugerido, e continuaram a despir-se mais de sete anos sempre que podiam, quando o comandante andava em viagem. Não havia riscos de surpresas, porque este tinha o costume de bom navegante de avisar a sua chegada ao Pono com a sirene do navio, mesmo de madrugada, primeiro com três longos rugidos para a esposa e para os seus nove filhos e depois com dois entrecortados e melancólicos para a amante.
Ausência Santander tinha quase cinquenta anos, e notavam-se-lhe, mas também tinha um instinto tão pessoal para o amor que não havia teorias artesanais ou científicas que o entorpecessem. Florentine Ariza sabia pelos itinerários dos navios quando podia visitá-la e ia sempre sem se fazer anunciar à hora que quisesse do dia ou da noite e não houve uma só vez em que ela não estivesse à espera dele. Abria-lhe a porta como a mãe a criara até ter completado os sete anos: completamente nua mas com um laço de organdi na cabeça. Não o deixava dar nem mais um passo sem lhe tirar a roupa, porque sempre pensou que dava azar ter um homem vestido dentro de casa. Isto foi motivo de constante discórdia com o comandante Rosendo de Ia Rosa, porque ele tinha a superstição de que fumar nu era de mau agoiro e às vezes preferia atrasar o amor do que ter de apagar o seu infalível charuto cubano. Por seu lado, Florentine Ariza era muito dado aos encantos da nudez e ela tirava-lhe a roupa com um invariável deleite mal fechava a porta, sem lhe dar tempo sequer para ele a cunprimentar, nem de tirar o chapéu nem os óculos, beijando-o e deixando-se beijar com beijos desenfreados e desapertando-lhe os botões de baixo para cima, primeiro os da braguilha, um a um, depois de cada beijo, a seguir a fivela do cinto, e, em último lugar, o colete e a camisa, até o deixar como a um peixe vivo aberto ao meio. A seguir sentava-o na sala e tirava-lhe as botas, puxava-lhe as calças pelos pernis para que elas saíssem ao mesmo tempo que as cuecas compridas até aos tornozelos, e, por fim, desapertava-lhe as ligas das barrigas das pernas e tirava-lhe as meias. Florentine Ariza deixava então de a beijar e de deixar-se beijar para fazer a única coisa que lhe correspondia naquela cerimónia pontual: soltar o relógio de corrente do colete e tirar os óculos, metendo as duas coisas nas botas para ter a certeza de não se esquecer delas. Sempre tomou essa precaução, sempre sem se esquecer, quando se despia em casa alheia.
Mal tinha acabado de o fazer já ela o assaltava, sem lhe dar tempo para mais nada, no próprio sofá onde acabava de o despir e só de vez em quando na cama. Metia-se-lhe debaixo e apoderava-se dele todo para ela toda, encerrada dentro de si, tacteando de olhos fechados na sua total escuridão interior, avançando por aqui, retrocedendo, corrigindo o seu rumo invisível, tentando outra via mais intensa, outra forma de andar sem naufragar na marisma de mucilagem que fluía do seu ventre, perguntando-se e respondendo-se a si própria com um zumbido de moscardo na sua gíria nativa onde estava esse algo nas trevas que só ela conhecia e ansiava só para ela, até que sucumbia sem esperar por ninguém, atirando-se sozinha no seu abismo com uma explosão festiva de vitória total que fazia tremer o mundo. Florentine Ariza ficava exausto, incompleto, flutuando no charco dos suores dos dois, mas com a impressão de não ser mais que um instrumento de gozo. Dizia: «Tratas-me como se fosse mais um.» Ela soltava um riso de fêmea livre e dizia: «Pelo contrário: como se fosses menos um.» Pois ele ficava com a impressão de que ela lhe tirava tudo com uma voracidade mesquinha, e de orgulho ferido saía lá de casa com a determinação de não voltar. Mas passado pouco tempo acordava sem motivo, com a lucidez fantástica da solidão no meio da noite e a recordação do amor ensimesmado de Ausência Santander revelava-se-lhe como aquilo que era: uma armadilha da felicidade que o aborrecia e atraía ao mesmo tempo, mas da qual era impossível fugir.
Num certo domingo, dois anos depois de se conhecerem, a primeira coisa que ela fez quando ele chegou, em vez de despi-lo, foi tirar-lhe os óculos para beijá-lo melhor e foi dessa maneira que Florentine Ariza soube que ela começara a amá-lo. Apesar de se sentir tão bem desde o primeiro dia naquela casa de que já gostava como sua, nunca lá tinha permanecido mais de duas horas de cada vez nem nunca ficou lá a dormir, e só uma vez para comer porque ela lhe fizera um convite formal. Na realidade não ia lá a não ser para o que ia, levando sempre a prenda única de uma rosa solitária, e desaparecia até à seguinte e imprevisível ocasião. Mas no domingo em que ela lhe tirou os óculos para o beijar, em parte por isso e em parte porque ficaram a dormir depois de um amor tranquilo, passaram a tarde nus na enorme cama do comandante. Ao despertar da sesta, Horentino Ariza ainda conservava a lembrança dos guinchos da catatua, cuja estridência metálica estava no sentido oposto da sua beleza. Mas o silêncio era diáfano no calor das quatro, e Pela janela do quarto via-se o perfil da cidade antiga com o sol da tarde nas costas, as suas cúpulas douradas, o seu mar em chamas até à Jamaica. Ausência Santander estendeu a mão aventureira procurando por tentativas o bicho imobilizado, mas Florentino Ariza afastou-lha. Disse: «Agora não. Sinto uma coisa esquisita, como se nos estivessem a ver.» Ela tornou a alvoroçar a catatua com o seu riso feliz. Disse: «Esse pretexto nem a mulher de Jonas o engole.» Nem ela, claro, mas achou-o bom e ambos se amaram durante um longo momento mas sem voltarem a fazer amor. Às cinco, ainda o Sol estava alto, ela saltou da cama, nua até à eternidade e com o laço de organdi na cabeça e foi buscar qualquer coisa para beber à cozinha. Mas não chegou a dar um passo fora do quarto quando deu um grito de espanto.
Não podia acreditar. Os únicos objectos que restavam na casa eram os candeeiros pendurados. Tudo o mais, os móveis assinados, as carpetas indianas, as estatuetas e os gobelinos, as incontáveis peças decorativas de pedrarias e metais preciosos, tudo quanto tinha feito da sua casa uma das mais acolhedoras e bem mobiladas da cidade, tudo, até a catatua sagrada, tudo se evaporara. Levaram as coisas pelo terraço que dava para o mar sem perturbar o amor. Só ficavam os salões desertos com as quatro janelas abertas e um letreiro pintado a broxa grossa na parede do fundo: «E bem-feito por andarem a brincar.» O comandante Rosendo de Ia Rosa nunca conseguiu perceber por que motivo Ausência Santander não apresentou queixa do roubo nem tentou contacto algum com os traficantes de coisas roubadas, nem autorizou que se voltasse a falar da sua desgraça.
Florentino Ariza continuou a visitá-la na casa roubada, cujo mobiliário ficou reduzido a três tamboretes de couro que os ladrões esqueceram na cozinha, e ao quarto onde eles estavam. Mas visitou-a com menos frequência do que antes, não por causa da desolação da casa, como ela supunha e lhe chegou a dizer, mas por causa da novidade do carro de passageiros puxado a mulas do princípio do novo século, que para ele foi um ninho pródigo e original de avezinhas soltas. Apanhava-o quatro vezes por dia, duas para ir para o escritório e duas para voltar para casa, e, às vezes, enquanto lia e a maioria das vezes em que fingia ler, conseguia estabelecer pelo menos os primeiros contactos para um encontro posterior. Mais tarde, quando o tio Leão XII lhe pôs à disposição um carro puxado por duas mulazinhas pardas de xairéis dourados, iguais aos do presidente Rafael Nunez, lembraria com saudade os tempos dos transportes públicos como os mais frutuosos das suas andanças de falcoeiro Tinha razão: não havia pior inimigo dos amores secretos do que um carro à espera a uma porta. E de tal modo que quase sempre o deixava escondido em casa e ia a pé para as suas rondas de altanaria, pois assim não ficariam nem os sulcos das rodas no pó. Por isso evocava com tanta nostalgia o velho carro de passageiros com as suas mulas macilentas, cheias de peladas, dentro do qual bastava um olhar de soslaio para saber onde estava o amor. Contudo, no meio de tantas lembranças enternecedoras, não conseguia recordar o de uma avezinha desamparada, cujo nome não conheceu e com quem apenas chegou a viver metade de uma noite frenética, mas que bastara para lhe amargar para o resto da vida as inocentes desordens do Carnaval.
Tinha chamado a sua atenção no carro pela impavidez com que seguia no meio da algazarra da paródia pública. Não devia ter mais de vinte anos e não parecia estar muito interessada no Carnaval, a não ser que estivesse disfarçada de inválida: tinha o cabelo muito claro, comprido e liso, solto naturalmente sobre os ombros e uma túnica de pano ordinário sem qualquer enfeite. Estava completamente alheada da barafunda das músicas nas ruas, das mãos-cheias de pó-de-arroz, dos jorros de anilina que atiravam aos passageiros do carro, cujas mulas iam brancas de polvilho e levavam chapéus de flores durante aqueles três dias de loucura. Aproveitando-se da confusão, Florentino Ariza convidou-a a comer um gelado, porque não pensou que desse para mais. Ela olhou-o sem surpresa. Disse: «Aceito com muito gosto, mas aviso-o que estou louca.» Ele riu-se e levou-a a ver o desfile dos carros da varanda da geladaria. Depois enfiou um dominó alugado e meteram-se os dois pela ronda de bailes da Praça da Alfândega e gozaram juntos como noivos acabados de nascer, pois a indiferença dela foi parar no extremo oposto à medida que a noite avançava: dançava como uma profissional, tinha imaginação e audácia para a paródia e um encanto arrasador.
- Não sabes o sarilho em que te meteste comigo - gritava mona de riso na febre do Carnaval. - Sou louca de manicómio.
Para Florentine Ariza aquela era uma noite de retorno aos desmandos cândidos da adolescência, quando o amor ainda não o tinha desgraçado. Mas sabia, mais por desengano que por experiência, que uma felicidade tão fácil não podia durar muito. Por isso é que antes que a noite começasse a decair, como acontecia sempre depois da atribuição dos prémios às melhores fantasias, propôs à rapariga que fossem assistir ao amanhecer no farol. Ela aceitou agradada, mas só depois que acabassem de distribuir os prémios.
A Florentine Ariza ficou-lhe a certeza de que aquela demora lhe salvou a vida. Com efeito, a rapariga tinha-lhe feito um sinal para irem para o farol quando dois cérberos e uma enfermeira do manicómio da Divina Pastora lhe caíram em cima. Andavam à procura dela desde que fugira às três da tarde, não só eles como toda a força pública. Tinha decapitado um guarda e ferido gravemente outros dois com uma catana que tirara ao jardineiro porque queria sair para ir dançar no Carnaval. Mas a ninguém ocorrera que estivesse a dançar na rua mas sim escondida nalguma das muitas casas que tinham passado a pente fino até às cisternas.
Não foi fácil levá-la. Defendeu-se com umas tesouras de podar que tinha escondidas no corpete e foram precisos seis homens para a meterem na camisa-de-força, enquanto a multidão, que se juntara na Praça da Alfândega, aplaudia e regozijava convencida de que a captura sangrenta era uma das tantas farsas do Carnaval. Florentino Ariza ficou desfeito e, na Quarta-Feira de Cinzas, foi pela primeira vez à Rua da Divina Pastora com uma caixa de bombons ingleses para ela. Ficava a ver as reclusas que lhe gritavam todo o tipo de impropérios e de piropos das janelas, enquanto ele as alvoroçava com a caixa de bombons para ver se tinha a sorte de fazer com que ela assomasse também às grades de ferro. Mas nunca a viu. Meses mais tarde, ao apear-se da carruagem puxada pelas mulas, uma garotinha que ia com o pai pediu-lhe um bombom de chocolate da caixa que ele levava na mão. O pai ralhou-lhe e pediu desculpa a Florentino Ariza. Mas ele deu a caixa à garota pensando que aquele gesto o redimia de toda a amargura, e acalmou o pai com uma palmadinha no ombro.
- Eram para um amor que já foi à vida - disse-lhe.
Como compensação do destino, foi também nesse meio de transporte que Florentino Ariza conheceu Leona Cassiani, que foi a verdadeira mulher da sua vida, ainda que nem ele nem ela jamais o soubessem, ou jamais tivessem feito amor. Ele sentira-a antes de a ver quando voltava para casa no carro das cinco: foi um olhar material que lhe tocou como se fosse um dedo. Ergueu os olhos e viu-a, no extremo oposto, mas muito bem definida entre os outros passageiros. Ela não desviou o olhar. Pelo contrário: manteve-o com tanto descaramento que ele não podia pensar mais nada do que aquilo que pensou: negra, jovem e bonita, mas puta sem dúvida alguma. Afastou-a da sua vida porque não podia conceber nada mais indigno do que pagar o amor: nunca o fez.
Florentino Ariza desceu na Praça dos Canos, que era o terminal da carreira, escapuliu-se a toda a pressa pelo labirinto das lojas porque a mãe o esperava às seis, e quando saiu do outro lado da multidão ouviu o ressoar de saltos de mulher alegre na calçada e voltou-se para ver e para se convencer do que já sabia: era ela. Estava vestida como as escravas das gravuras, com uma saia rodada de folhos, que se levantava com um trejeito de dança para passar por cima dos charcos das ruas, um decote que lhe descobria os ombros, uma série de colares coloridos e um turbante branco. Ele conhecia-as da casa de passe. Acontecia frequentemente chegarem às seis da tarde só com o pequeno-almoço e então não tinham outro remédio senão usar o sexo como se fosse uma navalha de salteador de estrada e encostá-la à garganta do primeiro que encontrassem na rua: a picha ou a vida. A procura de uma última prova, Florentino Ariza mudou de caminho, meteu-se pela Rua do Candeeiro, e ela seguiu-o cada vez mais de perto. Então ele deteve-se, voltou-se, barrou-lhe a passagem no passeio, apoiado com as duas mãos no guarda-chuva. Ela pôs-se-lhe à frente.
- Estás enganada, minha linda - disse. - Eu não o dou. Claro que dás - disse ela. - Vê-se na tua cara.
Florentino Ariza lembrou-se de uma frase que ouvira em criança ao médico de família, seu padrinho, a propósito da sua Prisão de ventre crónica: «O mundo está dividido entre os que cagam bem e os que cagam mal.» Sobre esse dogma, o médico tinha elaborado toda uma teoria sobre a personalidade, que considerava mais certa do que a astrologia. Mas com as lições dos anos, Florentino Ariza expô-la de outra maneira«O mundo está dividido entre os que engatam e os que não engatam.» Desconfiava destes últimos: quando descarrilavam, isso representava para eles algo de tão insólito que alardeavam o amor como se acabassem de inventá-lo. Os que o faziam frequentemente, por sua vez, viviam só para isso. Sentiam-se tão bem que se portavam como sepulcros selados, porque sabiam que da discrição dependia a sua vida. Nunca falavam das suas proezas, não se abriam com ninguém, armavam-se em distraídos ao ponto de ganharem fama de impotentes, frígidos, e principalmente de maricas tímidos, como era o caso de Florentino Ariza. Mas compraziam-se neste equívoco porque também o equívoco os protegia. Constituíam uma loja maçónica hermética, cujos sócios se reconheciam entre si no mundo inteiro, sem necessidade de uma língua comum. Daí que Florentino Ariza não se surpreendesse com a resposta da rapariga: era uma dos seus, e, portanto, sabia que ele sabia que ela sabia.
Foi o erro da sua vida, como a sua consciência lho recordaria hora após hora, dia após dia, até ao último dia. O que ela queria suplicar-lhe não era amor, e menos ainda amor pago, mas sim um emprego no que quer que fosse, fosse como fosse e com que salário fosse na Companhia Fluvial das Caraíbas. Florentino Ariza sentiu-se tão envergonhado com a sua própria conduta que foi com ela ao chefe do pessoal e este deu-lhe um lugar de categoria mínima na secção geral, que ela desempenhou com seriedade, modéstia e consagração durante três anos.
Os escritórios da CFC estavam, desde a sua fundação, diante do cais fluvial, sem nada em comum com o porto dos transatlânticos no lado oposto da baía, nem com o atracadouro do mercado na baía das Animas. Era um edifício de madeira com telhado de zinco, de duas águas, uma longa varanda com pilares na fachada e várias janelas com redes de arame nos quatro costados, das quais se viam inteiros os navios no cais como se fossem quadros pendurados na parede. Quando os precursores alemães o construíram, pintaram de encarnado o zinco dos telhados e de branco brilhante os tabiques de madeira, de modo que até o próprio edifício tinha qualquer coisa de navio fluvial. Depois pintaram-no todo de azul, e na altura em que Florentino Ariza começou a trabalhar na empresa era um barracão sujo sem cor definida e nos telhados cheios de ferrugem havia remendos de placas novas sobre as placas originais. Por trás do edifício, num pátio de caliça cercado por redes de arame de capoeira, havia dois grandes armazéns de construção mais recente e, ao fundo, um desaguadouro fechado, sujo e malcheiroso, onde apodreciam os dejectos de meio século de navegação fluvial: restos de navios históricos, desde os mais antigos de uma só chaminé, inaugurados por Simão Bolívar, até alguns tão recentes que até tinham ventoinhas eléctricas nos camarotes. Na sua maioria tinham sido desmantelados para utilizar os materiais noutros navios, mas muitos encontravam-se em tão bom estado que parecia possível dar-lhes uma demão de pintura e lançá-los ao mar, sem espantar as iguanas nem derrubar as ramadas de grandes flores amarelas que os tornavam mais nostálgicos.
No andar de cima do prédio estava a secção administrativa, em gabinetes pequenos mas cómodos e bem equipados, como os camarotes dos navios, já que não tinham sido feitos por arquitectos civis mas sim por engenheiros navais. Ao fim do corredor, como qualquer empregado, o tio Leão XII dava despacho num gabinete igual a todos os outros, com a única diferença de que todas as manhãs ele encontrava uma jarra de vidro com qualquer tipo de flores perfumadas em cima da sua secretária. No rés-do-chão encontrava-se a secção dos passageiros, com uma sala de espera de assentos rústicos e um balcão de atendimento onde se expediam os bilhetes e se tratava das bagagens. No fim de tudo estava a confusa secção geral, cujo nome em si mesmo já dava uma ideia de como eram latos os seus atributos e onde acabavam por morrer de morte ruim todos os problemas que ficavam por resolver no resto da empresa. Aí estava Leona (-assiani, perdida atrás de uma carteira escolar entre um montão de sacas de milho arrumadas e papéis sem solução, no dia em que o tio Leão XII foi pessoalmente ver que raio de ideia poderia ter para que a secção geral servisse Para alguma coisa. Ao fim de três horas de perguntas, de suposições teóricas e de averiguações concretas com todos os empregados presentes na sala, voltou para o seu gabinete, preocupado com a certeza de não ter encontrado solução alguma para tantos problemas, antes pelo contrário: novos e variados problemas para nenhuma solução.
No dia seguinte, quando Florentine Ariza entrou no seu gabinete encontrou um memorando de Leona Cassiani, que lhe rogava que o estudasse e o mostrasse imediatamente ao tio, caso lhe parecesse pertinente. Fora a única que não dissera uma palavra durante a inspecção da tarde anterior. Tinha-se mantido rigorosamente na sua digna condição de empregada por favor, mas no memorando fazia notar que não o fizera por negligência mas por respeito às hierarquias da secção. Era de uma simplicidade alarmante. O tio Leão XII propusera-se uma reorganização a fundo, mas Leona Cassiani pensava no sentido oposto, pela simples lógica de que a secção geral realmente não existia: era o caixote do lixo dos problemas embaraçosos mas insignificantes que as outras secções sacudiam dos ombros. A solução, consequentemente, era eliminar a secção geral e devolver os problemas às secções de origem para que lhes achassem solução.
O tio de Leão XII não fazia a menor ideia de quem era Leona Cassiani nem se lembrava de ter visto alguém que pudesse sê-lo na reunião da tarde anterior, mas quando leu o memorando chamou-a ao seu gabinete e conversou com ela à porta fechada, durante duas horas. Falaram um pouco de tudo, de acordo com o método que ele usava para conhecer as pessoas. O memorando era de mero senso comum e a solução, com efeito, deu o resultado desejado. Mas o tio Leão XII não se importava com isso: importava-se com ela. O que mais lhe chamou a atenção foi que os seus únicos estudos, depois da primária, tinham sido na Escola de Chapelaria. Além disto, andava a aprender inglês, em casa, por um método rápido sem mestre, e há três meses que tinha aulas nocturnas de dactilografia, uma profissão nova e de grande futuro, como antes se dizia do telégrafo e se dissera das máquinas a vapor.
Quando saiu da entrevista, o tio Leão XII já tinha começado a chamá-la como a chamaria sempre: xará Leona. Tinha decidido eliminar de uma só vez a secção conflituosa e dividir os problemas para que fossem resolvidos por aqueles que os criavam, de acordo com a sugestão de Leona Cassiani, e tinha inventado para ela um lugar sem nome e sem funções definidas, que, na prática, era o de sua assistente pessoal. Nessa tarde, depois do enterro sem honras da secção geral, o tio Leão XII perguntou a Florentino Ariza onde é que ele tinha ido buscar Leona Cassiani e ele respondeu-lhe com a verdade.
_- Então volta à carruagem e traz-me todas as que encontrares como essa - disse-lhe o tio. - Com mais duas ou três assim, pomos o teu galeão a flutuar.
Florentino Ariza interpretou isso como uma piada típica do tio Leão XII, mas no dia seguinte viu-se sem o carro que lhe tinham atribuído seis meses antes e que agora lhe tiravam para que continuasse à procura de talentos ocultos nos transportes públicos. Leona Cassiani, pelo seu lado, perdeu muito depressa os escrúpulos iniciais e deitou para fora tudo o que com tanta astúcia guardara nos primeiros três anos. Passados outros três tinha abarcado o controlo de tudo e nos quatro seguintes chegou às portas da secretaria-geral, mas negou-se a entrar porque estava um só escalão abaixo de Florentino Ariza. Até então tinha estado sob as suas ordens e queria continuar assim, ainda que a realidade fosse outra: o próprio Florentino Ariza não se dava conta de que era ele quem estava sob as ordens dela. Assim era: ele não tinha feito mais do que cumprir o que ela sugeria na Direcção-Geral para o ajudar a subir contra as maquinações dos seus inimigos
ocultos.
Leona Cassiani tinha um talento diabólico para manobrar os segredos e sabia estar sempre onde devia no momento próprio. Era dinâmica, silenciosa, duma sábia doçura. Mas quando era indispensável, com a dor na alma, soltava as rédeas a um carácter de ferro maciço. No entanto, nunca o usou para si. O seu único objectivo foi o de varrer a escada a qualquer preço, com sangue se necessário fosse, para que Florentino Ariza subisse até onde se propusera, sem calcular muito bem a sua própria força. Ela tê-lo-ia feito de qualquer maneira, claro está, por uma indomável vocação de poder, mas a verdade foi que o fez de modo próprio apenas por gratidão. Tal era a sua determinação que até mesmo Florentino Ariza se perdeu nas suas manobras e num momento infeliz tentou cortar-lhe o passo pensando que ela tentava cortar-lho a ele. Leona Cassiani pô-lo no seu lugar.
- Não se engane - disse-lhe. - Eu afasto-me disto tudo quando você quiser, mas pense bem.
Florentino Ariza, que, com efeito, não tinha pensado, pensou-o então o melhor que pôde e entregou-lhe as armas O certo é que no meio daquela guerra sórdida dentro duma empresa em crise perpétua, no meio dos seus desastres de falcoeiro sem sossego e a ilusão cada vez mais incerta de Fermina Daza, o impassível Florentino Ariza não tinha tido um momento de paz interior diante do espectáculo fascinante daquela negra brava besuntada de merda e de amor na febre da luta. E tanto assim que muitas vezes se lamentou, em segredo, de que ela não tivesse sido realmente o que ele julgou que ela era na tarde em que a conheceu, para ter limpo o rabo aos seus princípios e ter feito amor com ela mesmo que fosse pago com pepitas de ouro puro. Pois Leona Cassiani continuava a mesma daquela tarde na carruagem, com os mesmos vestidos de escrava fugida, os seus turbantes aloucados, as suas arrecadas e pulseiras de osso, aquele monte de colares e os anéis de pedras falsas em todos os dedos: uma leoa de rua. O muito pouco que os anos lhe tinham acrescentado por fora era para seu bem. Navegava numa maturidade esplêndida, os seus encantos de mulher eram mais inquietantes, e o seu corpo ardente de africana ia-se adensando. Florentino Ariza, em dez anos, não voltara a insinuar-se-lhe, pagando assim a severa penitência do seu erro original e ela tinha-o ajudado em tudo, excepto nisso.
Uma noite em que ficou a trabalhar até muito tarde, como acontecia frequentemente desde que a mãe morrera, Florentino Ariza preparava-se para sair quando viu que havia luz no gabinete de Leona Cassiani. Abriu a porta sem bater e aí estava: sozinha à secretária, absorta, séria, com uns óculos novos que lhe davam um ar intelectual. Florentino Ariza deu-se conta, com um pânico ditoso, de que se encontravam os dois sozinhos na casa, estavam desertos os cais, a cidade adormecida, a noite eterna no mar tenebroso, o bramido triste de um barco que levaria mais de uma hora a chegar. Florentino Ariza apoiou-se no guarda-chuva com as duas mãos, tal como o fizera na Rua do Candeeiro para lhe cortar a passagem, só que agora o fez para que não se notasse a desarticulação dos seus joelhos.
Diz-me uma coisa, leoa da minha alma - disse -, quando é que vamos sair disto?
Ela tirou os óculos sem surpresa, com um domínio total, e deslumbrou-o com o seu riso solar. Nunca o tinha tratado por tu.
__ Ai, Florentino Ariza - disse-lhe -, há dez anos que estou aqui sentada à espera que mo perguntes.
já era tarde: a ocasião ia com ela na carruagem das mulas, tinha estado sempre com ela na mesma cadeira em que estava sentada, mas agora fora-se para sempre. A verdade é que depois de tantas cachorrices enterradas que tinha feito por ele, depois de tanta sordidez suportada para ele, ela tinha-se-lhe adiantado na vida e estava muito para lá dos vinte anos de idade que ele tinha a mais do que ela: envelhecera para ele. Gostava tanto dele que em vez de o enganar preferiu continuar a amá-lo ainda que tivesse de lho dar a saber de uma forma brutal.
_ Não - disse-lhe. - Ia sentir que me deitava com o filho que nunca tive.
Florentino Ariza duvidou que tivesse sido a sua última palavra. Pensava que quando uma mulher diz que não fica à espera que insistam antes de tomar a decisão final, mas com ela era diferente: não podia arriscar enganar-se uma segunda vez. Retirou-se de boa vontade e até com uma certa graça que não lhe era fácil manter. A partir dessa noite, qualquer sombra que pudesse ter havido entre eles dissipou-se sem amarguras e Florentino Ariza percebeu por fim que se pode ser amigo de uma mulher sem dormir com ela.
Leona Cassiani foi o único ser humano a quem Florentino Ariza esteve tentado a revelar o segredo de Fermina Daza. As poucas pessoas que o conheciam começavam a esquecê-lo por motivos de força maior. Três delas tinham-no levado para a sepultura sem dúvida alguma: a mãe, que já o havia apagado da memória muito antes de morrer; Gala Placidia, morta de velhice ao serviço da que foi quase uma filha, e a inesquecível Escolástica Daza, que lhe tinha levado dentro de um missal a primeira carta de amor que recebera na vida e que não podia estar ainda viva ao fim de tantos anos. Lorenzo Daza, de quem então não sabia se era vivo ou morto, podia tê-lo contado à Irmã Franca de Ia Luz, tentando evitar a expulsão, mas era POUCO provável que o tivessem divulgado. Ficavam por contar onze telegrafistas da longínqua província de Hildebranda Sanchez, que manusearam os telegramas com os seus nomes completos e moradas exactas e ainda Hildebranda Sanchez e a sua corte de primas indómitas.
O que Florentino Ariza ignorava era que o doutor Juvenal Urbino devia ser incluído na lista. Hildebranda Sanchez tinha-lhe contado o segredo numa das suas muitas visitas dos primeiros anos. Mas fê-lo de um modo tão casual e num momento tão inoportuno, que ao doutor Urbino não lhe entrou por um ouvido e saiu-lhe pelo outro, como ela pensou, pois não lhe entrou por ouvido nenhum. Hildebranda, com efeito, tinha referido Florentino Ariza como um dos poetas escondidos que, segundo ela, tinham possibilidade de ganhar os Jogos Florais. O doutor Urbino só dificilmente se conseguiu lembrar de quem era, e ela disse-lhe, sem que fosse indispensável mas sem ponta de malícia, que esse fora o único noivo que Fermina Daza tinha tido antes de se casar. Disse-lho convencida que havia sido tão inocente e efémero que acabava por ser comovedor. O doutor Urbino respondeu sem olhar para ela: «Não sabia que esse tipo era poeta.» E apagou-os da memória naquele momento, entre outras coisas porque a sua profissão o tinha habituado a lidar eticamente com o esquecimento.
Florentino Ariza reparou que os depositários do segredo, com excepção da sua mãe, pertenciam ao mundo de Fermina Daza. No seu estava só ele, só com o peso opressivo de uma carga que muitas vezes tinha necessitado partilhar, mas ninguém até então lhe havia merecido tanta confiança. Leona Cassiani era a única possível, e só aguardava o modo e a oportunidade. Estava a pensar nisso precisamente na abafada tarde estival em que o doutor Urbino subiu as escadas empinadas da CFC, com uma pausa em cada degrau para sobreviver ao calor das três, e apareceu ofegante no gabinete de Florentino Ariza ensopado em suor até às calças e disse com um último fôlego: «Acho que nos vai cair em cima um ciclone.» Florentino Ariza tinha-o visto ali muitas vezes, à procura do tio Leão XII, mas nunca como então tivera a impressão tão nítida de que aquela aparição indesejável tinha algo a ver com a sua vida.
Era a época em que também o doutor Urbino havia superado os escolhos da sua profissão, e andava quase de porta em porta como um mendigo de chapéu na mão a recolher contribuições para as suas iniciativas artísticas. Um dos seus contribuintes mais assíduos e pródigos foi sempre o tio Leão XII, que naquele preciso momento tinha começado a sua sesta diária de dez minutos, sentado na poltrona de molas do escritório. Florentine Ariza pediu ao doutor Juvenal Urbino o favor de esperar no seu gabinete, que era contíguo ao do tio Leão XII e, de certo modo, servia-lhe de sala de espera.
Tinham-se visto em diversas ocasiões, mas nunca se haviam encontrado assim, frente a frente, e Florentino Ariza sofreu mais uma vez a náusea de sentir-se inferior. Foram dez minutos eternos, durante os quais se levantou três vezes, na esperança de que o tio tivesse acordado antes de tempo, e bebeu um termo inteiro de café. O doutor Urbino não aceitou nem uma chávena. Disse: «Café é veneno.» E continuou a ligar uns temas aos outros sem sequer se preocupar em ser ouvido. Florentino Ariza não podia suportar a sua distinção natural, a fluidez e a precisão das suas palavras, o seu hálito recôndito a cânfora, o seu encanto pessoal, a maneira tão fácil e elegante com que conseguia que até as frases mais frívolas, só porque ele as dizia, parecessem essenciais. De repente o médico mudou de tema abruptamente:
- Gosta de música?
Apanhou-o de surpresa. Na verdade, Florentino Ariza assistia a quanto concerto ou representação de ópera era apresentado na cidade, mas não se sentia capaz de manter uma conversa crítica ou bem informada. Tinha o sangue doce para a música em moda, sobretudo para as valsas sentimentais, cuja afinidade com as que ele próprio compunha em adolescente ou com os seus versos secretos não era possível negar. Bastava-lhe ouvi-las uma vez, de passagem, para imediatamente não haver poder de Deus que lhe tirasse da cabeça o fio da melodia durante noites inteiras. Mas essa não seria uma resposta séria para uma pergunta tão séria de um especialista.
- Gosto de Gardel - disse.
O doutor Urbino compreendeu-o. «Estou a ver», disse, «está na moda.» E escapuliu-se pelo relato dos seus novos e numerosos projectos, que havia de realizar, como sempre, sem subsídio oficial. Fez-lhe notar a inferioridade descorçoadora dos espectáculos que era possível trazer agora e os esplêndidos do século anterior. Assim era: fazia um ano que andava a vender assinaturas para trazer o trio Cortot-Casals-Thibaud ao Teatro da Comédia, e não havia ninguém no Governo que soubesse quem eram, enquanto naquele mesmo mês estavam esgotados os lugares para a companhia de dramas policiais Ramón Caralt, para a Companhia de Operetas e Zarzuelas de Manolo de Ia Presa, para Los Santanelas, inefáveis transformistas mímico-fantásticos que trocavam de roupa em cena num instante de um relâmpago fosforescente, para Danyse D’Altaine, que se anunciava como antiga bailarina do Folies Bergère, e até para o abominável Ursus, um energúmeno basco que lutava corpo a corpo com um touro de lide. No entanto, não era para se lastimar, se os próprios Europeus estavam a dar mais uma vez o mau exemplo de uma guerra bárbara quando nós começávamos a viver em paz depois de nove guerras civis em meio século, que, bem contadas, podiam ser uma só: sempre a mesma. A Florentine Ariza, o que mais lhe chamou a atenção naquele discurso cativante foi a possibilidade de reviver os Jogos Florais, a mais soante e perdurável iniciativa que o doutor Juvenal Urbino tinha concebido no passado. Teve de morder a língua para não lhe contar que tinha sido um participante assíduo daquele concurso anual que chegou a interessar poetas de grande nome, não só do resto do país como de outros países das Caraíbas.
Apenas começada a conversa, o vapor quente do ar arrefeceu subitamente e uma tempestade de ventos cruzados sacudiu portas e janelas com forte estrondo e o gabinete rangeu até aos alicerces como um veleiro à deriva. O doutor Juvenal Urbino não pareceu aperceber-se. Fez uma ou outra referência casual aos ciclones lunáticos de Junho e, de repente, sem que viesse a propósito, falou da sua esposa. Não só a tinha como a sua mais entusiástica colaboradora como era ela a própria alma das suas iniciativas. Disse: «Eu não seria ninguém sem ela.» Florentine Ariza escutou-o impassível, aprovando tudo com um movimento leve de cabeça, sem se atrever a dizer nada com medo de que a voz o atraiçoasse. Porém, mais duas ou três frases bastaram-lhe para compreender que o doutor Juvenal Urbino, no meio de tantos compromissos absorventes, ainda tinha tempo de sobra para adorar a esposa quase tanto como ele, e essa verdade aturdiu-o. Mas não pôde reagir como teria gostado, porque o coração pregou-lhe então uma dessas partidas de putas que só acontecem ao coração: revelou-lhe que ele e aquele homem, que ele tivera sempre na conta de seu inimigo pessoal, eram vítimas de um mesmo destino e compartilhavam o azar de uma paixão comum: dois animais de canga unidos no mesmo jugo. Pela primeira vez, nos intermináveis vinte e sete anos de espera que já somara, Florentino Ariza não pôde resistir à pontada de dor de que aquele homem admirável tivesse de morrer
para ele ser feliz.
O ciclone passou ao largo, mas as suas rajadas destruíram em quinze minutos os bairros dos pântanos e causaram prejuízos em meia cidade. O doutor Juvenal Urbino, satisfeito mais uma vez com a generosidade do tio Leão XII, não esperou que amainasse completamente e levou, por distracção, o guarda-chuva pessoal que Florentino Ariza lhe emprestou para chegar ao carro. Mas este não se importou. Pelo contrário: ficou contente a pensar no que pensaria Fermina Daza quando soubesse quem era o dono do guarda-chuva. Estava ainda perturbado pela emoção da entrevista quando Leona Cassiani passou pelo seu gabinete e pareceu-lhe uma oportunidade única para lhe revelar o seu segredo sem mais rodeios, como quem rebenta um furúnculo que não o deixava viver: agora ou nunca. Começou por perguntar-lhe o que pensava do doutor Juvenal Urbino. Ela respondeu quase sem pensar: «É um homem que faz muitas coisas, talvez de mais, mas acho que ninguém sabe o que ele pensa.» Depois reflectiu, desfazendo a borracha do lápis com os seus dentes afiados e grandes de negra enorme e, no fim, encolheu os ombros para rematar um assunto que não lhe dava cuidados.
- Se calhar é por isso que faz tantas coisas - disse – para não ter que pensar. Florentino Ariza tentou retê-la.
- O que me dói é que tenha de morrer - disse.
- Toda a gente tem de morrer - disse ela.
- Sim, mas este mais do que toda a gente.
Ela não percebeu nada: voltou a encolher os ombros sem falar e saiu. Foi então que Florentino Ariza soube que nalguma noite incerta do futuro, numa cama feliz com Fermina Daza, lhe contaria que não revelara o segredo do seu amor nem sequer à única pessoa que tinha merecido o direito de sabê-lo Não: não o revelaria nunca, nem à própria Leona Cassiani, não porque não quisesse abrir para ela o cofre onde o tinha tão bem guardado ao longo de meia vida, mas porque só então se deu conta de que tinha perdido a chave.
Não era isso, contudo, o mais perturbador daquela tarde Ficava-lhe a nostalgia dos seus tempos jovens, a recordação vivida dos Jogos Florais, cujo impacte ressoava cada 15 de Abril na região das Antilhas. Foi sempre um dos seus protagonistas mas sempre, como em quase tudo, um protagonista secreto’ Tinha participado várias vezes desde o concurso inaugural e nunca obteve nem a última menção honrosa. Mas não se importava, porque não o fazia pela ambição do prémio, mas sim porque o certame tinha para ele uma atracção adicional: Fermina Daza foi a pessoa encarregue de abrir os sobrescritos lacrados e proclamar os nomes dos que tinham ganho na primeira sessão, e desde então ficou estabelecido que continuaria a fazê-lo nos anos seguintes.
Escondido na penumbra dos óculos, com uma camélia viva a latejar-lhe na botoeira da lapela, pela força da sua ansiedade, Florentino Ariza viu Fermina Daza a abrir os três sobrescritos lacrados no palco do antigo Teatro Nacional, na noite do primeiro concurso. Perguntou-se o que aconteceria no coração dela quando descobrisse que era ele o vencedor da Orquídea de Ouro. Estava certo de que reconheceria a letra e que naquele momento evocaria as tardes de bordados sob as amendoeiras do parque, o perfume das gardenias secas das cartas, a valsa confidencial da deusa coroada nas madrugadas de vento. Não aconteceu. Pior ainda: a Orquídea de Ouro, o galardão mais cobiçado da poesia nacional, foi atribuído a um imigrante chinês. O escândalo público que provocou aquela decisão insólita pôs em dúvida a seriedade do certame. Mas a decisão foi justa e a unanimidade do júri tinha uma justificação na excelência do soneto.
Ninguém acreditou que o autor fosse o chinês premiado. Tinha chegado nos fins do século anterior, fugido do flagelo da febre-amarela que assolou o Panamá durante a construção do camínho-de-ferro dos dois oceanos, juntamente com muitos outros que por aqui ficaram até morrer, vivendo à chinesa, proliferando à chinesa, e tão parecidos uns com os outros que ninguém os conseguia distinguir. No princípio não eram mais de dez, alguns deles com as mulheres, os filhos e as suas tralhas, mas em poucos anos deixaram a transbordar quatro ruelas dos arrabaldes do porto com novos chineses intempestivos que entravam no país sem deixar rasto nos registos alfandegários. Alguns dos jovens tornaram-se patriarcas veneráveis com tanta pressa que ninguém explicava como é que tinham tido tempo de envelhecer. A intuição popular dividiu-os em dois tipos: os chineses bons e os chineses maus. Os maus eram os das tascas lúgubres do porto, onde tão depressa se comia como um rei como se morria à mesa diante de um prato de ratazana com girassóis e das quais se suspeitava que não eram mais que uma boa capa para o tráfico de brancas e de tudo. Os bons eram os chineses das lavandarias, herdeiros de uma ciência sagrada, que devolviam as camisas mais limpas do que se fossem novas, com os colarinhos e os punhos como hóstias recém-engomadas. Foi um destes chineses bons quem derrotou nos Jogos Florais setenta e dois rivais bem apetrechados.
Ninguém percebeu o nome quando Fermina Daza o leu, transtornada. Não só porque era um nome insólito, mas porque, de todos os modos, ninguém sabia de ciência certa como se chamavam os Chineses. Mas não foi preciso pensar muito porque o chinês premiado surgiu do fundo da plateia com esse sorriso celestial que têm os chineses quando chegam cedo a casa. Tinha concorrido tão seguro da sua vitória que levava vestida, para receber o prémio, a camisola de seda amarela dos ritos da Primavera. Recebeu a Orquídea de Ouro de dezoito quilates e beijou-a de felicidade no meio das troças atroadoras dos incrédulos. Não se alterou. Esperou no meio do palco, imperturbável como o apóstolo de uma Divina Providência menos dramática do que a nossa, e, no primeiro silêncio, leu o soneto premiado. Ninguém o entendeu. Mas quando passou a nova revoada de apupos, Fermina Daza voltou a lê-lo, impassível, com a sua afónica voz insinuante, e o assombro impôs-se a partir do Primeiro verso. Era um soneto da mais pura estirpe parnasiana, Perfeito, atravessado por uma brisa de inspiração que traía a cumplicidade de uma mão mestra. A única explicação possível era que algum poeta dos grandes tivesse concebido aquela brincadeira para fazer pouco dos Jogos Florais e que o chinês se tivesse prestado a fazê-la com a determinação de guardar o segredo até à morte. El Diário dei Comercio, o nosso jornal tradicional, tentou reemendar o prestígio civil com um ensaio erudito, e a dar para o indigesto, sobre a antiguidade e a influência cultural dos Chineses nas Caraíbas, e o seu direito merecido de participarem nos Jogos Florais. Quem escreveu o ensaio não duvidava que o autor do soneto fosse na realidade aquele que dizia sê-lo e justificava-o sem delongas logo no título: «Todos os Chineses são poetas.» Os promotores da conjura, se a houve, apodreceram nos seus sepulcros com o segredo. Pelo seu lado, o chinês premiado morreu sem confissão com uma idade oriental e foi enterrado com a Orquídea de Ouro dentro do caixão, mas com a amargura de não ter conseguido obter em vida a única coisa por que suspirava, que era o seu crédito como poeta. Por causa da sua morte invocou-se na imprensa o incidente esquecido dos Jogos Florais, reproduziu-se o soneto com uma vinheta modernista de donzelas túrgidas com cornucopias de ouro, e os deuses custódios da poesia valeram-se da ocasião para porem as coisas nos seus lugares: o soneto pareceu tão mau à nova geração que já ninguém pôs em dúvida que na realidade tinha sido escrito pelo chinês falecido.
Florentine Ariza teve sempre aquele escândalo associado à recordação de uma desconhecida opulenta que estava sentada ao seu lado. Tinha reparado nela no princípio da função, mas depois esquecera-a no susto da espera. Chamou-lhe a atenção pela sua brancura de nácar, pela sua fragrância de gorda feliz, pelo seu imenso peito de soprano coroado com uma magnolia artificial. Tinha um vestido de veludo preto, muito justo, tão preto como os olhos ansiosos e cálidos, e tinha o cabelo ainda mais preto, puxado na nuca com uma travessa de cigana. Usava brincos pendentes, um colar do mesmo género e anéis iguais em vários dedos, todos com brilhantes, e um sinal pintado a lápis na face direita. Na confusão dos aplausos finais, olhou para Florentine Ariza com uma aflição sincera.
- Acredite que lastimo com toda a minha alma - disse.
Florentine Ariza impressionou-se, não pelas condolências, que de facto merecia, mas pelo espanto de que alguém conhecesse o seu segredo. Ela esclareceu-o: «Apercebi-me pela maneira como lhe tremia a flor na lapela enquanto abriam os sobrescritos.» Mostrou-lhe a magnolia de pelúcia que tinha na mão e abriu-lhe o coração.
Foi por isso que eu tirei a minha - disse.
Estava a ponto de chorar pela derrota, mas Florentine Ariza fez-lhe mudar o ânimo com o seu instinto de caçador nocturno.
- Vamos chorar juntos para qualquer sítio - disse.
Acompanhou-a até casa. Já na porta, posto que era quase meia-noite e não havia ninguém na rua, convenceu-a a convidá-lo a tomar um brande enquanto viam os álbuns de recortes e fotografias de mais de dez anos de acontecimentos públicos, que ela dizia ter. O truque já então era velho, mas dessa vez foi involuntário, porque tinha sido ela quem falara dos seus álbuns enquanto caminhavam, vindos do Teatro Nacional. Entraram. A primeira coisa que Florentino Ariza observou, da sala, foi que a porta do único quarto se encontrava aberta e que a cama era grande e sumptuosa, com uma colcha de brocado e cabeceiras com ramagens em bronze. Essa visão perturbou-o. Ela deve ter-se dado conta porque adiantou-se pela sala e fechou a porta do quarto. Depois convidou-o a sentar-se num canapé de cretone florido onde estava um gato a dormir e colocou na mesa de centro a colecção dos álbuns. Florentino Ariza começou a folheá-los sem pressa, pensando mais nos passos seguintes do que no que estava a ver, e logo levantou o olhar e viu que ela tinha os olhos marejados de lágrimas. Aconselhou-a a chorar quanto quisesse, sem pudor, pois nada aliviava como o pranto, mas sugeriu-lhe que soltasse o corpete para chorar. Apressou-se a ajudá-la, porque o corpete estava ajustado à força nas costas com uma longa costura de cordões cruzados. Não precisou de acabar, pois o corpete acabou por se abrir sozinho, pela pressão interna, e as astronómicas tetas respiraram à vontade.
Florentino Ariza, que não perdeu nunca o nervosismo da primeira vez, mesmo nas ocasiões mais fáceis, arriscou-se a uma carícia epidérmica no colo com a ponta dos dedos, e ela retorceu-se com um gemido de menina mimada sem deixar de chorar. Então ele beijou-a no mesmo sítio, muito ao de leve, como o fizera com os dedos e não o pôde fazer pela segunda vez porque ela se voltou para ele com todo o seu corpo monumental, ávido e quente, e ambos rolaram abraçados pelo chão. O gato acordou no sofá com um gritinho e saltou-lhes em cima. Eles procuraram-se por tentativas como caloiros apressados e encontraram-se de qualquer maneira, revolvendo-se sobre os álbuns desfolhados, vestidos, ensopados de suor e mais preocupados em fugir aos arremessos furiosos do gato que ao desastre amoroso que cometiam. Mas a partir da noite se guinte, com as feridas ainda abertas, continuaram a fazê-lo por vários anos.
Quando se deu conta de que tinha começado a amá-la, já estava ela na plenitude dos quarenta e ele ia completar trinta Chamava-se Sara Noriega e tivera um quarto de hora de celebridade na sua juventude por ter ganho um concurso com um livro de versos sobre o amor dos pobres, que nunca foi publicado. Era professora de Urbanidade e Instrução Cívica nas escolas oficiais, e vivia do seu ordenado numa casa alugada no colorido conjunto da Passagem dos Noivos, no antigo Bairro de Getsémani. Tinha tido vários amantes de ocasião, mas nenhum com ilusões matrimoniais, porque era difícil que um homem do seu meio e do seu tempo desposasse uma mulher com quem tivesse dormido. Ela também não tornou a alimentar essa ilusão depois do seu primeiro noivo oficial, ao qual amou com a paixão quase demente de que era capaz aos dezoito anos, ter fugido ao seu compromisso uma semana antes da data prevista para a boda e a deixou perdida num limbo de noiva enganada. Ou de solteira usada, como então se dizia. No entanto, aquela primeira experiência, se bem que cruel e efémera, não lhe deixou nenhuma amargura, mas sim a convicção deslumbrante de que com casamento ou sem ele, sem Deus ou sem lei, não valia a pena viver se não fosse para ter um homem na cama. O que Florentine Ariza mais gostava nela era que enquanto fazia amor tinha que chuchar uma chupeta de criança para chegar à glória plena. Chegaram a ter uma colecção de todos os tamanhos, formatos e cores que encontraram no mercado, e Sara Noriega pendurava-as à cabeceira da cama para dar com elas às cegas nos seus momentos de urgência extrema.
Ainda que ela fosse tão livre quanto ele e talvez não se tivesse oposto a que as suas relações fossem abertas, Florentino Ariza arrumou-as desde o princípio como uma aventura clandestina. Deslizava pela porta de serviço, quase sempre de noite e muito tarde, e escapava-se em pontas de pés pouco antes do amanhecer Tanto ele como ela sabiam que numa casa tão partilhada e povoada como aquela os vizinhos, no fim de contas, deviam estar mais ao par do que se passava do que fingiam estar. Mas ainda que fosse uma simples fórmula, Florentino Ariza era assim, como o seria com todas até ao fim da sua vida. Nunca cometeu um erro, nem com ela nem com nenhuma outra, nunca incorreu em qualquer inconfidência. Não exagerava: só numa ocasião deixou um rasto comprometedor ou uma prova escrita e isso poderia ter-lhe custado a vida. Na verdade comportou-se sempre como se fosse o esposo eterno de Fermina Daza, um esposo infiel mas tenaz, que lutava sem tréguas para se libertar da sua servidão, mas sem causar-lhe o desgosto de uma traição.
Um tal hermetismo não podia prosperar em equívocos. A própria Transito Ariza morreu convencida de que o filho concebido por amor e criado para o amor estava imunizado contra todas as formas de amor devido à sua primeira adversidade juvenil. No entanto; muitas pessoas menos benévolas que estiveram muito perto dele, que conheciam o seu carácter misterioso e a sua preferência por vestimentas místicas e loções raras, partilhavam a suspeita de que não era imune ao amor mas sim à mulher. Florentino Ariza sabia-o e nunca fez nada para o desmentir. Isso tão-pouco preocupou Sara Noriega. Como as outras incontáveis mulheres que ele amou, e ainda as que lhe davam prazer e que obtinham prazer com ele sem o amarem, aceitou-o como aquilo que era na realidade: um homem de passagem.
Acabou por aparecer em casa dela a qualquer hora, sobretudo nas manhãs de domingo que eram as mais tranquilas. Ela abandonava o que estivesse a fazer, fosse o que fosse, e consagrava-se de corpo inteiro a fazê-lo feliz na enorme cama excessivamente adornada que sempre esteve arranjada para ele, e na qual nunca permitiu que se incorresse em formalismos litúrgicos. Florentino Ariza não compreendia como é que uma solteira sem passado podia ser tão sábia em assuntos de homens, nem como podia manobrar o seu corpo doce de toninha com tanta agilidade e tanta ternura como se se movimentasse debaixo de água. Ela defendia-se dizendo que o amor, antes de qualquer outra coisa, era um talento natural. Dizia: «Ou se nasce sabendo ou não se sabe nunca.» Florentino Ariza retrocia-se de ciúmes regressivos pensando que ela talvez fosse mais sabida do que parecia, mas tinha de os engolir inteiros, porque também ele lhe dizia, como lhes disse a todas, que ela tinha sido a sua única amante. Entre outras muitas coisas que lhe agradavam menos, teve de se resignar a ter na cama o gato enfurecido, ao que Sara Noriega enluvava as garras para que não o desfizesse à unhada enquanto faziam amor.
Contudo, quase tanto como fornicar na cama até ao esgotamento, ela gostava de consagrar as fadigas do amor ao culto da poesia. Não só tinha uma memória assombrosa para os versos sentimentais do seu tempo, cujas novidades se vendiam em folhetos populares a dois centavos, mas também pregava nas paredes com alfinetes os poemas de que mais gostava, para os ler em voz alta a qualquer hora. Tinha feito uma versão em hendecassílabos pares dos textos de Urbanidade e Instrução Cívica, como os que se usavam para a ortografia, mas não conseguiu obter a aprovação oficial. Era tal o seu arrebatamento declamatório que às vezes continuava a recitar aos gritos enquanto fazia amor e Florentino Ariza tinha de lhe meter a chucha na boca à força, como se fazia com as crianças para pararem de chorar.
Na plenitude das suas relações, Florentino Ariza tinha-se perguntado qual dos dois estados seria o amor, o da cama turbulenta ou o das tardes tranquilas dos domingos e Sara Noriega sossegou-o com o argumento simples de que tudo o que fizessem nus era amor. Disse: «Amor da alma da cintura para cima e amor do corpo da cintura para baixo.» Sara Noriega achou que esta definição era boa para um poema sobre o amor dividido, que escreveram a quatro mãos e que ela apresentou nos quintos Jogos Florais, convencida de que ninguém tinha participado até então com um poema tão original. Mas tornou a perder.
Estava furibunda enquanto Florentino Ariza a acompanhava a casa. Por qualquer coisa que não sabia explicar, tinha a convicção de que a manobra havia sido tramada contra ela por Fermina Daza, para não premiar o seu poema. Florentino Ariza não lhe prestou atenção. Estava de humor sombrio desde a entrega dos prémios, pois fazia muito tempo que não via Fermina Daza e, naquela noite, teve a impressão de que sofrera uma mudança profunda: pela primeira vez se lhe notava a olho nu a sua condição de mãe. Não era uma novidade para ele, pois sabia que o filho já ia à escola. No entanto, a sua idade maternal não lhe parecera antes tão evidente como naquela noite, tanto pelo diâmetro da cintura e o seu andar um pouco ofegante, como pelas hesitações na voz ao ler a lista dos prémios.
Tentando documentar as suas recordações, voltou a folhear os álbuns dos Jogos Florais enquanto Sara Noriega arranjava qualquer coisa para comer. Viu cromos de revistas, postais amarelecidos dos que se vendiam como recordações nos portais de loja e foi como uma passagem fantasmagórica pela falácia da sua própria vida. Até então fora sustentado pela ficção de que era o mundo quem passava, os costumes, a moda: tudo menos ela. Mas naquela noite viu pela primeira vez de forma consciente como ia passando a vida de Fermina Daza e como passava a sua própria, enquanto ele não fazia mais nada do que esperar. Nunca tinha falado dela com ninguém porque se sabia incapaz de dizer o seu nome sem que se lhe notasse a palidez dos lábios. Mas nessa noite, enquanto folheava os álbuns, como em tantas outras vigílias de tédio dominical, Sara Noriega teve uma dessas tiradas acidentais que gelavam o sangue.
- É uma puta - disse.
Disse-o ao calhas, vendo uma gravura de Fermina Daza disfarçada de pantera negra num baile de máscaras e não precisou de mencionar ninguém para que Florentino Ariza soubesse de quem falava. Temendo uma revelação que o perturbasse para toda a vida, este apressou-se numa defesa cautelosa. Alegou que só conhecia Fermina Daza de vista, que nunca tinham passado dos cumprimentos formais e não sabia nada do que se passava na sua intimidade, mas dava como certo que era uma mulher admirável surgida do nada e enaltecida pelos seus próprios méritos.
- Por obra e graça de um casamento por interesse com um homem de que não gosta - interrompeu-o Sara Noriega. E a maneira mais baixa de se ser puta.
Com menos crueza mas com igual rigidez moral, a mãe de Florentino Ariza tinha-lhe dito o mesmo ao tentar consolá-lo das suas desventuras. Abalado até ao tutano, não encontrou uma réplica oportuna para a inclemência de Sara Noriega e tentou fugir ao tema. Mas Sara Noriega não lho permitiu até que acabasse de desabafar contra Fermina Daza. Por um laivo de intuição que não teria conseguido explicar, estava convencida de que tinha sido ela a autora da conspiração para lhe escamotear o prémio. Não havia qualquer razão para acreditar nisso: não se conheciam, jamais se tinham visto, e Fermina Daza não tinha nada a ver com as decisões do concurso, se bem que estivesse ao corrente dos seus segredos. Sara Noriega disse de uma maneira terminante: «Nós, as mulheres, somos adivinhas.» E pôs termo à discussão.
Desde esse momento, Florentine Ariza viu-a com outros olhos. Também para ela passavam os anos. A sua natureza fecunda murchava sem glória, o seu amor demorava-se em soluços e as suas pálpebras começavam a mostrar a sombra das velhas amarguras. Era uma flor de ontem. Além do mais, na fúria da derrota tinha-se descuidado na conta dos seus brandes. Não estava na sua noite: enquanto comiam o arroz de coco requentado, quis determinar qual tinha sido a contribuição de cada um no poema derrotado, para saber quantas pétalas da Orquídea de Ouro teria correspondido a cada qual. Não era a primeira vez que se entretinham em torneios bizantinos, mas ele aproveitou a ocasião para se vingar da ferida recém-aberta, e enredaram-se numa disputa mesquinha que lhes remoeu aos dois os rancores de quase cinco anos de amor dividido.
Quando faltavam dez minutos para as doze, Sara Noriega trepou numa cadeira para dar corda ao relógio de pêndulo e tinha-lhe acertado a hora de memória, talvez a querer dizer sem dizer que era hora de se ir embora. Florentino Ariza sentiu então a urgência de cortar pela raiz aquela relação sem amor e arranjou maneira de ser ele a tomar a iniciativa: como faria sempre. Rogando a Deus que Sara Noriega o convidasse a ficar na sua cama de modo que ele pudesse dizer que não, que tudo tinha acabado entre eles, pediu-lhe que se sentasse a seu lado quando acabou de dar corda ao relógio. Mas ela preferiu manter-se à distância na poltrona das visitas. Florentino Ariza estendeu-lhe então o indicador molhado de brande para que ela o chupasse, como gostava de fazer nos preâmbulos do amor de outra época. Ela evitou-o.
__ Agora não - disse. - Estou à espera de uma pessoa.
Desde que fora repudiado por Fermina Daza que Florentino Ariza tinha aprendido a reservar-se sempre a última decisão. Em circunstâncias menos amargas teria insistido no assédio a Sara Noriega, com a certeza de acabar a noite a rebolar-se com ela na cama, pois estava convencido de que uma mulher que se deita com um homem uma vez, continua a deitar-se com ele sempre que ele o quiser, sempre que a saiba enternecer. Tinha suportado tudo por essa convicção, tinha passado por cima de tudo, mesmo nas questões mais baixas do amor, desde que não concedesse a nenhuma mulher nascida de mulher a oportunidade de tomar a decisão final. Mas naquela noite sentiu-se tão humilhado, que tomou o brande de um trago, fazendo todos os possíveis para que se lhe notasse o rancor, e foi-se embora sem se despedir. Nunca mais se voltaram a ver.
A relação com Sara Noriega foi uma das mais longas e estáveis de Florentino Ariza, ainda que não fosse a única que manteve naqueles cinco anos. Quando percebeu que se sentia bem com ela, sobretudo na cama, mas que nunca conseguiria substituir Fermina Daza por ela, recrudesceram as suas noites de caçador solitário e arranjava-se de maneira a poder repartir o seu tempo e as suas forças até onde elas lhe chegassem. No entanto, Sara Noriega conseguiu o milagre de o aliviar por uns tempos. Pelo menos pôde viver sem ver Fermina Daza, ao contrário do que acontecia antes, quando interrompia a qualquer hora o que estivesse a fazer para a ir procurar pelos rumos incertos dos seus presságios, nas ruas mais impensáveis, em sítios irreais onde era impossível que estivesse, vogando sem sentido com umas ânsias no peito que não lhe davam tréguas enquanto não a visse, por um instante que fosse. O rompimento com Sara Noriega, pelo contrário, alvoroçou-lhe de novo as esperanças adormecidas e sentiu-se outra vez como nas tardes do parque e das leituras intermináveis, mas desta vez agravadas pela urgência de que o doutor Juvenal Urbino tinha de morrer.
Sabia desde há algum tempo que estava predestinado a fazer feliz uma viúva, e que ela o faria feliz, e isso não o preocupava, pelo contrário: estava preparado. De tanto as conhecer nas suas mcursões de caçador solitário, Florentino Ariza acabaria por saber que o mundo estava cheio de viúvas felizes. Tinha-as visto enlouquecer de dor diante do cadáver do esposo, suplicando que as enterrassem vivas dentro do mesmo caixão para não enfrentarem sem ele os azares do futuro, mas à medida que se iam reconciliando com a realidade do seu novo estado, via-se como ressurgiam das cinzas com uma vitalidade revigorada Começavam a viver como parasitas de sombras nos casarões desertos, tornavam-se confidentes das criadas, amantes das suas almofadas, sem nada que fazer ao fim de tantos anos de cativeiro estéril. Desperdiçavam as horas que sobravam a pregar na roupa do falecido os botões que nunca tinham tido tempo de repor, passavam e voltavam a passar as suas camisas de colarinhos e punhos de goma para que estivessem sempre impecáveis. Continuavam a pôr o seu sabonete na casa de banho, a fronha com as suas iniciais na cama, o prato e os talheres no seu lugar à mesa, para o caso de voltarem da morte sem avisar, como costumavam fazer em vida. Mas naquelas missas de solidão iam tomando consciência de que eram outra vez donas do seu arbítrio, depois de terem renunciado não só ao seu nome de família como à sua própria identidade, e tudo isto em troca de uma segurança que não passou de mais uma das suas tantas ilusões de noivas. Só elas sabiam quanto pesava o homem que amavam com loucura e que talvez as amasse, mas que tinham tido que continuar a criar até ao último suspiro, dando-lhe de mamar, mudando-lhe as fraldas sujas, distraindo-o com historinhas de mãe para lhes aliviar o terror de sair de manhã e dar de cara com a realidade. E, no entanto, quando o viam sair de casa, instigado por elas próprias a engolir o mundo, então eram elas que se ficavam com o terror de que o homem não voltasse nunca. Isso era a vida. O amor, se o houvesse, era uma coisa à parte: outra vida.
No ócio reparador da solidão, em compensação, as viúvas descobriam que a forma honrada de viver era à mercê do corpo, comendo só por fome, amando sem mentir, dormindo sem terem de fingir-se adormecidas para fugir à indecência do amor oficial, donas por fim do direito a uma cama inteira só para elas na qual ninguém lhes disputava a metade do seu lençol, a metade do seu ar que respiravam, a metade da sua noite, até que o corpo se saciava de sonhar com os seus sonhos próprios e acordava só. Nos seus amanheceres de caçador furtivo, Florentine Ariza encontrava-as à saída da missa das cinco, amortalhadas de negro e com o corvo do destino sobre o ombro. Mal o avistavam na claridade da alva, mudavam de passeio com passos miúdos e entrecortados, passos de passarinho, pois só o facto de passarem perto de um homem podia manchar-lhes a honra. Porém, ele estava convencido de que uma viúva desconsolada, mais que qualquer outra mulher, podia levar dentro dela a semente da felicidade.
Tantas viúvas na sua vida, desde a viúva de Nazaret, tinham tornado possível que ele vislumbrasse como eram as casadas felizes depois da morte dos maridos. O que até então tinha sido para ele uma mera ilusão converteu-se, graças a elas, numa possibilidade que se podia agarrar com as mãos. Não via razões para que Fermina Daza não fosse uma viúva igual, preparada pela vida para o aceitar a ele tal como era, sem fantasias de culpa pelo marido morto, decidida a descobrir com ele a outra felicidade de ser feliz duas vezes, com um amor de uso quotidiano que fizesse de cada instante um milagre de viver, e com outro amor, só dela, preservado de todo o contágio pela imunidade da morte.
Talvez não tivesse sido tão entusiasta se tivesse, ao menos, suspeitado que Fermina Daza estava bem longe daqueles cálculos imaginários, quando começava apenas a avistar o horizonte de um mundo onde tudo estava previsto, menos a adversidade. Ser rico, naquele tempo, tinha muitas vantagens e também muitas desvantagens, claro, mas meio mundo suspirava por vir a sê-lo como a possibilidade mais provável de alcançar a eternidade. Fermina Daza repudiara Florentine Ariza num lampejo de maturidade que pagou imediatamente com uma crise de remorsos, mas nunca duvidou que a sua decisão tinha sido acertada. Naquele momento não soube explicar-se que causas ocultas da razão lhe tinham dado aquela clarividência, mas muitos anos mais tarde, já nas vésperas da velhice, descobriu-as, de repente e sem saber como, numa conversa casual sobre Florentine Ariza. Todos os intervenientes conheciam a sua condição de delfim da Companhia das Caraíbas na sua época áurea, todos tinham a certeza de já o terem visto muitas vezes, até de terem tido negócios com ele, mas nenhum conseguia identificá-lo na memória. Foi então que Fermina Daza teve a revelação dos motivos inconscientes que a impediram de o amar. Disse: «É como se em vez de ser uma pessoa fosse uma sombra.» Assim era: a sombra de alguém a quem ninguém conheceu nunca. Mas enquanto resistia aos assédios do doutor Juvenal Urbino, que era o homem oposto, sentia-se atormentada pelo fantasma da culpa: o único sentimento que era incapaz de suportar. Quando o sentia chegar, apoderava-se dela uma espécie de pânico que só conseguia controlar quando encontrava alguém que lhe aliviasse a consciência. Desde muito pequena, quando se partia um prato na cozinha, quando alguém caía, quando ela entalava um dedo numa porta, voltava-se assustada para o adulto que estivesse mais perto e apressava-se a acusá-lo: «Foi por tua culpa.» Ainda que na verdade não lhe importasse quem era o culpado nem convencer-se da sua própria inocência: bastava deixá-la estabelecida.
Era um fantasma tão evidente que o doutor Urbino deu-se conta a tempo até que ponto ameaçava a harmonia da sua casa, e assim que o via chegar apressava-se a dizer à esposa: «Não te preocupes, meu amor, a culpa foi minha.» Pois nada receava tanto como as decisões súbitas e definitivas da sua mulher e estava convencido que sempre tinham a sua origem num sentimento de culpa. No entanto, a confusão pelo repúdio de Florentino Ariza não se resolveu com uma frase de consolação. Fermina Daza continuou a abrir a janela da varanda, de manhã, durante longos meses e sentia sempre a falta do fantasma solitário que a espreitava no parque deserto, via a árvore que fora dele, o banco menos visível onde se sentava a ler pensando nela, a sofrer por ela, e tinha de voltar a fechar a janela, suspirando: «Pobre homem.» Sofreu até mesmo o desencanto de que ele não fora tão pertinaz quanto ela o julgou, quando já era demasiado tarde para remendar o passado e não deixou de sentir por vezes a ansiedade tardia por uma carta que nunca chegou. Mas quando teve de enfrentar a decisão de se casar com Juvenal Urbino, sucumbiu numa crise maior, ao dar-se conta de que não tinha razões válidas para o preferir depois de ter repudiado, sem razões válidas, Florentino Ariza. De facto, gostava tão pouco deste como do outro, mas, além disso, conhecia-o pior e as suas cartas não tinham a febre das cartas do outro, nem lhe havia dado tantas provas comovedoras da sua determinação. A verdade é que as pretensões de Juvenal Urbino nunca tinham sido apresentadas em termos de amor, e era, no mínimo curioso que um católico praticante como ele só lhe oferecesse bens terrenos: a segurança, a ordem, a felicidade, números imediatos que uma vez somados talvez se pudessem parecer com o amor: quase o amor. Mas não o eram, e estas dúvidas aumentavam a sua confusão, porque também não estava convencida de que o amor fosse na realidade o que mais falta lhe fazia para viver.
Em todo o caso, o factor principal contra o doutor Juvenal Urbino era a sua parecença mais do que suspeita com o homem ideal que Lorenzo Daza tinha desejado com tanta ansiedade para a sua filha. Era impossível não o ver como a criatura de uma confabulação paterna, ainda que na realidade não o fosse, mas Fermina Daza estava convencida de que o era desde que o viu entrar em sua casa pela segunda vez para uma visita médica não solicitada. As conversas com a prima Hildebranda acabaram por a confundir. Pela sua própria situação de vítima, esta tendia a identificar-se com Florentino Ariza, esquecendo-se até de que talvez Lorenzo Daza a tivesse mandado vir para que ela influísse a favor do doutor Urbino. Deus sabia o esforço que Fermina Daza fizera para não a acompanhar quando a prima foi conhecer Florentino Ariza no telégrafo. Também ela teria gostado de o ver outra vez para o confrontar com as suas dúvidas, falar com ele a sós, conhecê-lo a fundo para ter a certeza de que a sua decisão impulsiva não a ia precipitar numa outra mais grave, que era capitular na guerra pessoal contra o pai. Mas fê-lo, no minuto crucial da sua vida, sem tomar minimamente em conta a beleza viral do pretendente, nem a sua lendária riqueza, nem a sua glória precoce, nem nenhum dos seus muitos méritos reais, mas sim aturdida pelo medo da oportunidade que lhe fugia e a iminência dos vinte e um anos que eram o seu limite confidencial para render-se ao destino. Bastou-lhe esse minuto único para assumir a decisão, como estava previsto nas leis de Deus e dos homens: até à morte. Então dissiparam-se todas as dúvidas, e pôde fazer sem remorsos o que a razão lhe indicou como sendo o mais decente: passou uma esponja sem lágrimas por cima da recordação de Florentino Ariza, apagou-o por completo, e, no espaço que ele ocupava na sua memória, deixou florescer um campo de papoilas. A única coisa que consentiu foi um suspiro mais profundo do que o habitual, o último: «Pobre homem.»
As dúvidas mais temíveis, porém, começaram assim que regressou da viagem de núpcias. Ainda não tinham acabado de abrir os baús, desencaixotar os móveis e esvaziar as onze caixas que trouxe para tomar posse como dona e senhora do antigo palácio do marquês de Casalduero, e já se tinha dado conta com um vagido mortal de que estava prisioneira na casa errada e, pior ainda, com o homem que não era. Precisou de seis anos para sair. Os piores da sua vida, desesperada pelo azedume de Dona Blanca, a sogra, e o atraso mental das cunhadas, que se não tinham ido apodrecer vivas numa cela de clausura era porque já a carregavam dentro de si.
O doutor Urbino, resignado a pagar os tributos da estirpe, fez-se surdo às suas súplicas, confiando que a sabedoria de Deus e a infinita capacidade de adaptação da sua esposa acabariam por pôr as coisas nos seu devido lugar. Doía-lhe a deterioração da mãe, cuja alegria de viver contagiava, noutro tempo, o desejo de estar vivo até aos mais incrédulos. Era verdade: aquela mulher formosa, inteligente, de uma sensibilidade humana nada comum no seu meio, tinha sido durante quarenta anos a alma e o corpo do seu paraíso social. A viuvez tinha-a amargurado ao ponto de se duvidar que fosse a mesma e tinha-a tornado mole, azeda e inimiga do mundo. A única explicação possível da sua degradação era o rancor de que o esposo se tivesse sacrificado de livre vontade por uma meda de negros, como ela dizia, quando o único sacrifício justo teria sido o de sobreviver para ela. Em todo o caso, o casamento feliz de Fermina Daza tinha durado o mesmo que a viagem de núpcias e o único que a podia ajudar a impedir o naufrágio final estava paralisado de medo perante o poder da mãe. Era a ele e não às cunhadas imbecis e à sogra meio louca a quem Fermina Daza atribuía a culpa da armadilha fatal em que tinha sido apanhada. Suspeitava demasiado tarde que por trás da sua autoridade profissional e do seu fascínio mundano, o homem com quem se tinha casado era um débil sem redenção: um pobre diabo com ares de valente pelo peso social dos seus apelidos.
Refugiou-se no filho recém-nascido. Tinha-o sentido sair do seu corpo com o alívio de quem se liberta de algo que não é seu e tinha sofrido com o próprio espanto ao comprovar que não sentia o menor afecto por aquele vitelo nonato que a parteira lhe mostrou em carne viva, sujo de sebo e de sangue e com o cordão umbilical enrolado ao pescoço. Mas na solidão do palácio aprendeu a conhecê-lo, conheceram-se, e descobriu um grande alvoroço que não se amam os filhos por serem filhos mas sim pela grande amizade que surge quando os criamos. Acabou por não tolerar nem nada nem ninguém que não fosse ele na casa da sua desventura. Deprimia-a a solidão, o jardim de cemitério, a indolência do tempo nos enormes aposentos sem janelas. Sentia-se enlouquecer nas noites dilatadas pelos gritos das loucas do manicómio vizinho. Envergonhava-a o costume de pôr a mesa de banquetes todos os dias, com toalhas bordadas, serviços de prata e candelabros de funeral, para que cinco fantasmas jantassem uma chávena de café com leite e almojávenas. Detestava o terço ao fim da tarde, os salamaleques à mesa, as críticas constantes à sua maneira de pegar nos talheres, de andar com passos extravagantes de mulher da rua, de vestir-se como se estivesse no circo e até a sua maneira provinciana de tratar do esposo e de dar de mamar ao bebé sem cobrir o seio com a mantilha. Quando fez os primeiros convites para o chá das cinco da tarde, com bolachinhas imperiais e doce de flores, segundo uma moda recente em Inglaterra, a Dona Blanca opôs-se a que em sua casa se bebessem remédios para suar a febre em vez de chocolate com queijo derretido e rodelas de pão de iuca. Nem os sonhos se lhe escaparam. Certa manhã em que Fermina Daza contou que tinha sonhado com um desconhecido que passeava nu a atirar mãos-cheias de cinza pelos salões do palácio, Dona Blanca interrompeu-a secamente: •7- Uma mulher decente não pode ter esse género de sonhos. A sensação de estar sempre em casa alheia, somaram-se duas desgraças maiores. Uma era a dieta quase diária de beringelas em todas as suas formas, que Dona Blanca recusava alterar por respeito para com o falecido esposo, e que Fermina Daza fazia tudo para não comer. Detestava beringelas desde garota, mesmo antes de as ter provado, porque sempre achara que tinham cor de veneno. Só que dessa vez teve de admitir que alguma coisa se tinha modificado para bem da sua vida, porque com cinco anos havia dito à mesa isso mesmo e o pai obrigou-a a comer até ao fim tudo o que estava na caçarola e que era a quantidade prevista para seis pessoas. Pensou que ia morrer primeiro pelos vómitos de beringela moída e depois pela tigela de óleo de rícino que a fizeram tomar à força para a curarem do castigo. As duas coisas misturaram-se-lhe na memória como um único purgante, tanto pelo sabor como pelo pavor ao veneno e nos almoços abomináveis do palácio do marquês de Casalduero tinha de desviar o olhar para não chamar a atenção pela náusea glacial do óleo de rícino.
A outra desgraça foi a harpa. Um dia, muito consciente do que lhe queria dizer, Dona Blanca dissera: «Não acredito em mulheres decentes que não saibam tocar piano.» Foi uma ordem que até o filho tentou discutir, pois os melhores anos da sua infância tinham sido passados nas galeras das aulas de piano, ainda que já adulto, lho tivesse agradecido. Não podia imaginar a esposa submetida à mesma condenação, aos vinte e cinco anos e com uma personalidade como a dela. Mas tudo quanto conseguiu da mãe foi que trocasse o piano pela harpa, com o argumento pueril de que era o instrumento dos anjos. E foi assim que trouxeram de Viena a harpa magnífica que parecia de ouro e que soava como se o fosse e que foi uma das relíquias mais apreciadas do Museu da Cidade, até as chamas o terem consumido com tudo quanto tinha dentro. Fermina Daza submeteu-se a essa condenação de luxo numa tentativa para impedir o naufrágio com um sacrifício final. Começou com um professor de professores que mandaram vir de propósito da cidade de Mompox, e que morreu de repente ao fim de quinze dias, e continuou durante vários anos com o músico principal do seminário, cujo hálito de coveiro distorcia os arpejos.
Até ela se surpreendia com a sua obediência. Pois ainda que não o admitisse no seu foro interno, nem nas discussões em surdina que travava com o marido nas horas que dantes consagravam ao amor, tinha-se envolvido mais depressa do que julgava no emaranhado de convenções e preconceitos do seu novo mundo. No princípio tinha uma frase ritual para afirmar a sua liberdade de critério: «Que vá prà merda o leque, que o tempo é de brisa.» Mas, depois, ciosa dos seus privilégios bem ganhos, receosa da vergonha e da troça, mostrava-se disposta a suportar até a humilhação, na esperança de que Deus se apiedasse por fim de Dona Blanca, que não se cansava de lhe suplicar nas suas orações que lhe mandasse a morte.
O doutor Urbino justificava a sua debilidade com argumentos de recurso sem se perguntar sequer se não iriam contra a sua Igreja. Não admitia que os seus conflitos com a mulher tivessem origem no ar rarefeito da casa, mas sim na própria natureza do casamento: uma invenção absurda que só podia existir pela graça infinita de Deus. Era contra toda a razão científica que duas pessoas que mal acabavam de ”se conhecer, sem qualquer parentesco entre si, com personalidades diferentes, com culturas diferentes e até com sexos diferentes, se vissem comprometidas de um momento para o outro a viverem juntas, a dormirem na mesma cama, a partilharem dois destinos que talvez estivessem determinados em sentidos divergentes. Dizia: «O problema do casamento é que acaba todas as noites depois de fazer amor e tem de se voltar a reconstruí-lo todas as manhãs antes do pequeno-almoço.» Pior ainda o deles, dizia, surgido de duas classes antagónicas e numa cidade que ainda continuava a sonhar com o regresso dos vice-reis. A única argamassa possível era algo de tão improvável e volúvel quanto o amor, se existisse, e no caso deles não existia quando casaram, e o destino não tinha feito mais nada do que colocá-los diante da realidade quando estavam prestes a inventá-lo.
Esse era o estado das suas vidas na época da harpa. Tinham ficado para trás os acasos deliciosos dela a entrar enquanto ele tomava banho, e, apesar das discussões, das beringelas venenosas, e apesar das irmãs dementes e da mãe que as pariu, ele tinha ainda suficiente amor para lhe pedir que o ensaboasse. Ela começava a fazê-lo com as migalhas do amor que ainda lhe sobravam da Europa e os dois iam-se deixando atraiçoar pelas recordações, suavizando-se sem querer, amando-se sem dizer e acabavam a morrer de amores pelo chão, lambuzados de espumas perfumadas enquanto ouviam as criadas a falar deles no tanque da roupa: «Se não têm mais filhos é porque não os fazem.» De vez em quando, ao voltarem de uma festa maluca, a nostalgia bem escondida por trás da porta derrubava-os num único assalto e então acontecia uma explosão maravilhosa onde tudo era outra vez como dantes e por cinco minutos voltavam a ser os amantes desmedidos da lua-de-mel.
Mas excepto essas ocasiões raras, um dos dois estava sempre mais cansado que o outro à hora de se deitarem. Ela demorava-se na casa de banho a enrolar os seus cigarros de papel perfumado, a fumar sozinha, reincidindo nos seus amores de consolação como quando era jovem e livre em sua casa, única dona do seu corpo. Tinha sempre dores de cabeça, ou fazia calor de mais, ou fazia de conta que estava a dormir, ou estava outra vez com o período, o período, sempre o período.
E tanto assim que o doutor Urbino se tinha atrevido a dizer numa aula, só pelo alívio de um desabafo sem confissão, que ao fim de dez anos de casadas as mulheres chegavam a ter o período até três vezes por semana.
Desgraças chamando desgraças, Fermina Daza teve de enfrentar no seu pior ano o que teria de acontecer mais cedo ou mais tarde irremediavelmente: a verdade sobre os negócios fabulosos e nunca conhecidos do pai. O governador provincial que chamou Juvenal Urbino ao seu gabinete para o pôr ao corrente dos desmandos do sogro resumiu-os numa frase: «Não há lei divina nem humana que esse tipo não tenha atropelado.» Algumas das suas jigajogas mais graves tinham sido feitas à sombra do poder do genro e teria sido difícil não pensar que este e a mulher não estivessem ao corrente. Ciente de que a única reputação que havia a proteger era a sua, por ser a única que ainda estava de pé, o doutor Juvenal Urbino fez intervir todo o peso do seu poder e conseguiu abafar o escândalo com a sua palavra de honra. De modo que Lorenzo Daza saiu do país no primeiro barco, para não voltar nunca mais. Regressou à sua terra de origem como se fosse uma dessas viagenzinhas que se fazem de vez em quando para enganar a nostalgia e, no fundo dessa aparência, havia qualquer coisa de verdade: já há algum tempo que subia nos barcos da sua pátria só para beber um copo de água das cisternas abastecidas nos mananciais da sua terra natal. Foi-se embora sem dar o braço a torcer e tentando ainda convencer o genro de que fora vítima de um conluio político. Partiu a chorar pela sua menina, como chamava a Fermina Daza desde que se casara, a chorar pelo neto, pela terra onde se tornou rico e livre e onde conseguiu a proeza de fazer da filha uma senhora requintada à força de negócios escuros. Partiu envelhecido e doente, mas viveu ainda muito mais do que algumas das suas vítimas desejariam. Fermina Daza não pôde reprimir um suspiro de alívio quando lhe chegou a notícia da sua morte e não guardou luto por ele para evitar perguntas, fflas durante vários meses chorava com uma raiva surda sem saber porquê quando se fechava na casa de banho para fumar, e é que chorava por ele.
O mais absurdo da situação é que nunca pareceram tão felizes em público como naqueles anos de infortúnio. Pois, na verdade, foram os anos das suas maiores vitórias sobre a hostilidade soterrada de um meio que não se resignava a aceitá-los como eles eram: diferentes e amigos das novidades, e, portanto, transgressores da ordem tradicional. Contudo, tinha sido essa a parte fácil para Fermina Daza. A vida mundana, que lhe trazia tanta insegurança antes de a conhecer, não era mais que um sistema de pactos atávicos, de cerimónias banais, de palavras previstas, com o qual, em sociedade, se entretinham uns aos outros para não se assassinarem. O signo dominante desse paraíso de frivolidade provinciana era o medo do desconhecido. Ela definira-o de um modo mais simples: «O problema da vida pública é aprender a dominar o terror; o problema da vida conjugal é aprender a dominar o tédio.» Tinha-o descoberto depressa com a nitidez de uma revelação quando entrou a arrastar a interminável cauda de noiva no vasto salão do Clube Social, de ar rarefeito pelas exalações misturadas de tantas flores, o brilho das valsas, a multidão de homens suados e mulheres trémulas que a observavam sem saberem ainda como haviam de conjurar aquela ameaça deslumbrante que o mundo exterior lhes enviava. Acabava de fazer vinte e um anos, e as suas saídas não tinham ido além da casa ao colégio, mas bastou-lhe um olhar circular pela sala para compreender que os seus adversários não estavam dominados pelo ódio mas paralisados pelo medo. Em vez de os assustar mais, como ela estava, fez-lhes a gentileza de os ajudar a conhecerem-na. Ninguém foi diferente do que ela queria que fosse tal como lhe acontecia com as cidades, que não lhe pareciam nem melhores nem piores, mas como ela as fez no seu coração. Apesar da sua chuva perpétua, dos seus lojistas sórdidos e da grosseria homérica dos seus cocheiros, recordaria Paris sempre como a cidade mais bela do mundo, não porque de facto o fosse ou não o fosse, mas porque ficou vinculada à nostalgia dos seus anos mais felizes. O doutor Urbino, pelo seu lado, impôs-se com armas iguais às que usavam contra ele, só que as manejava com mais inteligência e com uma solenidade calculada. Nada acontecia sem elesos passeios cívicos, os Jogos Florais, os acontecimentos artísticos, as tômbolas de caridade, os actos patrióticos, a primeira viagem em balão. Em tudo estavam eles e quase sempre na origem e à frente de tudo. Ninguém podia imaginar, nos seus anos de desgraças, que pudesse existir alguém mais feliz do que eles nem um casal tão harmonioso.
A casa abandonada pelo pai proporcionou a Fermina Daza um refúgio próprio contra a asfixia do palácio familiar. Mal se conseguia escapar dos olhos do público, ia às escondidas ao Parque dos Evangelhos e aí recebia as novas amigas e algumas antigas do colégio ou das lições de pintura: um substituto inocente da infidelidade. Vivia horas agradáveis de mãe solteira com o muito que ainda tinha das suas recordações de menina. Voltou a comprar corvos perfumados, recolheu gatos da rua e entregou-os aos cuidados de Gala Placidia, já velha e um pouco limitada pelo reumatismo, mas ainda com ânimo para ressuscitar a casa. Voltou a abrir o quarto da costura onde Florentino Ariza a viu pela primeira vez, onde o doutor Juvenal Urbino a mandou deitar a língua de fora para tentar conhecer-lhe o coração, e transformou-a num santuário do passado. Uma tarde de Inverno, ao ir fechar a janela da varanda antes que desabasse a tempestade, viu Florentino Ariza no seu canto sob as amendoeiras do parque, com o fato do pai, apertado à sua medida e o livro aberto sobre o colo, mas não o viu como então o tinha visto, por acaso, várias vezes, mas sim na idade com que ele lhe ficou gravado na memória. Teve medo de que aquela visão fosse um aviso da morte e teve pena. Atreveu-se a dizer para consigo que talvez tivesse sido feliz com ele, só com ele naquela casa que ela tinha restaurado para ele com tanto amor como ele tinha restaurado a sua para ela, e a simples suposição assustou-a, porque lhe permitiu dar-se conta dos extremos da infelicidade a que tinha chegado. Então apelou para as suas últimas forças e obrigou o marido a discutir sem evasivas, a enfrentá-lo, a questionar com ela, a chorarem juntos de raiva por terem perdido o paraíso, até que ouviram cantar os últimos galos e se fez luz por entre os reposteiros do palácio, e acendeu-se o sol, e o marido, inchado de tanto falar, esgotado por não ter dorjnido, com o coração fortalecido de tanto chorar, apertou os cordões dos botins e o cinto, apertou tudo o que ainda tinha para apertar e disse que sim, que iam procurar o amor que tinham perdido na Europa: amanhã mesmo e para sempre. Foi uma decisão tão certa que combinou como Banco do Tesouro, seu administrador universal, a liquidação imediata da vasta fortuna familiar, espalhada desde os seus princípos em todo o tipo de negócios, investimentos e papéis sagrados e lentos, e da qual ele só sabia claramente que não era tão enorme quanto dizia a lenda: apenas o suficiente para não ter de pensar nela. Fosse o que fosse transformado em ouro registado, devia ser movimentado a pouco e pouco pelos seus bancos no exterior até não lhes ficar, a ele e à esposa, nesta pátria inclemente, nem um palmo de terra onde cair mortos.
Porque Florentino Ariza existia, na realidade, ao contrário do que ela se propusera acreditar. Estava no cais do transatlântico da França quando ela chegou com o marido e o filho no landó dos cavalos de ouro e viu-os descer como tantas vezes os tinha visto nos actos públicos: perfeitos. Iam com o filho, educado de uma maneira que já deixava antever como seria em adulto: tal como foi. Juvenal Urbino saudou alegremente Florentino Ariza, com o chapéu: «Vamos à conquista da Flandres.» Fermina Daza acenou-lhe com a cabeça e Florentino Ariza descobriu-se, fez uma leve reverência e ela olhou para ele sem um gesto de compaixão pelos estragos prematuros da sua calvície. Era ele, tal como ela o via: a sombra de alguém a quem nunca conheceu.
Florentino Ariza também não estava no seu melhor momento. Ao trabalho, mais intenso de dia para dia, aos seus fastios de caçador furtivo, à calmaria dos anos, juntara-se a crise final de Trânsito Ariza, cuja memória acabara sem recordações: quase em branco. Até ao ponto de, por vezes, se voltar Para ele, vê-lo a ler no seu cadeirão de sempre e perguntar-lhe admirada: «E tu és filho de quem?» Ele respondia-lhe sempre a verdade, mas ela logo o interrompia outra vez.
- Mas diz-me uma coisa, filho - perguntava-lhe -, quem é que sou eu?
Tinha engordado tanto que não podia mexer-se e passava o dia na loja onde já não havia nada para vender, a embonecar-se desde que se levantava com os primeiros galos até à madrugada do dia seguinte, pois dormia muito poucas horas. Punha grinaldas de flores na cabeça, pintava os lábios, empoava a cara e os braços e, no fim, perguntava a quem quer que estivesse com ela como tinha ficado. Os vizinhos já sabiam que esperava sempre a mesma resposta: «Es a Carochinha Martinez.» Esta identidade usurpada à personagem de um conto infantil era a única que a deixava satisfeita. Continuava a baloiçar-se, a abanar-se com o ramalhete de grandes plumas rosadas, para voltar a recomeçar: a coroa de flores de papel, o almíscar nas pálpebras, o carmim nos lábios, a crosta de alvaiade na cara. E novamente a pergunta a quem se encontrasse perto: «Como fiquei?» Quando se converteu no alvo das troças da vizinhança, Florentine Ariza mandou desmontar, numa noite, o balcão e as cómodas da antiga loja, emparedou a porta da rua, arranjou o local de acordo com a descrição que ela fazia do quarto da Carochinha Martinez, e ela nunca mais voltou a perguntar quem era.
Por sugestão do tio Leão XII tinha arranjado uma mulher de idade que tratasse dela, mas a coitada andava sempre mais a dormir do que acordada e, por vezes, dava a impressão de que também ela se esquecia de quem era. De modo que Florentino Ariza ficava em casa desde que saía do escritório até conseguir que a mãe adormecesse. Não tornou a jogar dominó no Clube do Comércio, nem voltou a ver durante muito tempo as poucas amigas de longa data com quem continuava a conviver, pois algo de muito profundo se tinha modificado no seu coração depois do seu horroroso encontro com Olimpia Zuleta.
Tinha sido fulminante. Florentino Ariza acabara de levar o tio Leão XII a casa, no meio de uma daquelas tempestades de Outubro que nos deixavam em convalescença, quando, do carro, viu uma rapariga miúda, muito ágil, com um fato cheio de folhos de organdi que mais parecia um vestido de noiva. Viu-a a correr de um lado para o outro, num sobressalto, porque o vento lhe tinha levado a sombrinha pelos ares em direcção ao mar. Ele resgatou-a no carro e desviou-se do seu caminho para a poder levar a casa, uma velha ermida adaptada para ser habitada, toda voltada para o mar, cujo pátio cheio de pombais via-se da rua. Pelo caminho ela contou-lhe que se tinha casado há menos de um ano com um homem que vendia loiça no mercado e que Florentino Ariza já vira muitas vezes nos navios da sua empresa, a desembarcar caixotes com todo o tipo de tarecos para vender e com uma multidão de pombas numa gaiola de vime como a que usavam as mães nos navios fluviais para levar as crianças recém-nascidas. Olimpia Zuleta parecia ser da família das vespas, não só pelas ancas levantadas e o busto exíguo, como por toda ela: o cabelo de fio de cobre, as sardas, os olhos redondos e vivos mais afastados do que o normal e uma voz afinada que só utilizava para dizer coisas inteligentes e divertidas. Florentino Ariza achou-a mais graciosa do que atraente e esqueceu-a assim que a deixou em casa, onde vivia com o marido e com o pai deste e mais membros da família.
Uns dias depois, voltou a ver o marido no porto, a embarcar mercadoria em vez de a desembarcar e quando o navio zarpou, Florentino Ariza ouviu claramente a voz do diabo. Nessa tarde, depois de acompanhar o tio Leão XII, passou como que por acaso pela casa de Olimpia Zuleta e viu-a, por cima da cerca, a dar de comer às pombas alvoraçadas. Gritou-lhe do carro, por cima da cerca: «Quanto custa uma pomba?» Ela reconheceu-o e respondeu-lhe com voz alegre: «Não são para vender.» Ele perguntou-lhe: «Então como é que se faz para se ter uma?» Sem deixar de continuar a deitar comida às pombas, ela respondeu-lhe: «Leva-se a pombeira no carro quando se dá com ela perdida no meio da chuva.» De modo que Florentino Ariza chegou a casa naquela noite com uma prenda de gratidão de Olimpia Zuleta: um pombo-correio com uma anilha de metal na pata.
Na tarde seguinte, à mesma hora da comida, a bela pombeira viu a pomba que oferecera de volta ao pombal e pensou que tivesse fugido. Mas quando a agarrou para a observar deu-se conta de que trazia um papelinho entalado na anilha: uma declaração de amor. Era a primeira vez que Florentino Ariza deixava uma marca escrita, e não seria a última, ainda que nesta altura tivesse tido a prudência de não assinar. Ia a entrar em casa na tarde do dia seguinte, quarta-feira, quando um garoto da rua lhe entregou a mesma pomba dentro de uma gaiola, com um recado decorado de que aqui lhe manda isto a senhora das pombas e manda-lhe dizer que, por favor, a guarde bem fechada na gaiola porque senão pode voltar a voar e esta é a última vez que é devolvida. Não soube como interpretar: ou a pomba perdera a missiva pelo caminho, ou a pombeira tinha resolvido armar-se em parva, ou enviava a pomba para que ele lha voltasse a mandar. Neste último caso, no entanto, o que teria sido natural era que ela lhe devolvesse a pomba com uma resposta.
No sábado de manhã, depois de pensar bastante, Florentine Ariza voltou a mandar a pomba com outra carta sem assinatura. Dessa vez não teve de esperar até ao dia seguinte. À tarde o mesmo garoto voltou a levar-lha noutra gaiola, com o recado de que lhe mandava outra vez a pomba que voltara a fugir-lhe, que anteontem lha devolvera por boa educação e que agora lha devolvia por pena, mas que agora não lha devolvia mais se ela tornasse a fugir. Trânsito Ariza entreteve-se com a pomba até muito tarde, tirou-a da gaiola, arrulhou-a nos braços, tentou adormecê-la com canções de ninar e então deu-se conta de que trazia na anilha da pata um papelinho com uma só linha: «Não aceito cartas anónimas.» Florentine Ariza leu-o com o coração enlouquecido, como se fosse o culminar da sua primeira aventura e mal conseguiu dormir nessa noite, dando saltos de impaciência. No dia seguinte, muito cedo, antes de sair para o escritório soltou outra vez a pomba com um bilhete de amor assinado com o seu nome bem legível e pôs-lhe também na anilha a rosa mais fresca, mais acesa e perfumada do seu jardim.
Não foi assim tão fácil. Ao fim de três meses de assédios, a bela pombeira continuava a responder o mesmo: «Eu não sou dessas.» Mas nunca deixou de receber as mensagens ou de aparecer nos encontros que Florentine Ariza arranjava de maneira a parecerem casuais. Estava irreconhecível: o amante que nunca deu a cara, o mais ávido de amor mas também o mais mesquinho, o que não dava nada mas queria tudo, o que não permitiu que ninguém lhe deixasse no coração uma marca da sua passagem, o caçador clandestino meteu-se pela rua principal num arrebatamento de cartas assinadas, de ofertas galantes, de rondas imprudentes à casa de uma pombeira, mesmo em duas ocasiões em que o marido não andava em viagem nem estava no mercado. Foi a única vez, desde os seus primeiros tempos, que se sentiu trespassado por uma lança de amor.
Seis meses apôs o primeiro encontro, viram-se finalmente num camarote de um navio fluvial que se encontrava em reparação de pintura no cais fluvial. Foi uma tarde maravilhosa. Olimpia Zuleta tinha um amor alegre, de pombeira alvoraçada, e gostava de ficar nua durante várias horas, num repouso lento que para ela tinha tanto amor quanto o amor. O camarote estava desmantelado, pintado pela metade e o cheiro de terebintina era bom para se levar como recordação de uma tarde feliz. Então, por culpa de uma inspiração insólita, Florentino Ariza destapou uma das latas de tinta vermelha que estava ao alcance do beliche, molhou o indicador e pintou no púbis da bela pombeira uma flecha de sangue dirigida para sul e escreveu-lhe um letreiro no ventre: «Esta pomba é minha.» Nessa mesma noite, Olimpia Zuleta despiu-se à frente do marido sem se lembrar do letreiro e ele não disse nem uma palavra, nem sequer se lhe alterou a respiração, nada, apenas foi à casa de banho buscar a navalha enquanto ela vestia a camisa de dormir e degolou-a de um só golpe.
Florentino Ariza só o soube muitos dias mais tarde, quando o esposo fugitivo foi capturado e contou aos jornais as razões e a forma do crime. Durante muitos anos pensou com temor nas cartas assinadas, fez as contas aos anos de prisão do assassino que o conhecia muito bem devido aos seus negócios nos barcos, mas não receava tanto a navalhada no pescoço nem o escândalo público como o azar de que Fermina Daza ficasse a conhecer a sua deslealdade. Nos anos de espera, a mulher que tratava de Trânsito Ariza teve de demorar-se no mercado mais tempo que o previsto por causa de um aguaceiro fora de estação, e, quando voltou a casa, deu com ela morta. Estava sentada na cadeira de baloiço, pintalgada e florida como sempre, e com os olhos tão vivos e um sorriso tão malicioso que a sua guardiã só se deu conta de que estava morta ao fim de duas horas. Pouco antes tinha dividido entre as crianças da vizinhança, a fortuna em ouro e pedrarias das bilhas enterradas debaixo da cama, dizendo-lhes que as podiam comer como se fossem caramelos, e não foi possível recuperar algumas das mais valiosas. Florentino Ariza enterrou-a na antiga fazenda de La Mano de Dios que ainda era conhecida como o Cemitério da Cólera e semeou sobre a sua sepultura um jardim de rosas.
Logo nas primeiras visitas ao cemitério, Florentine Ariza descobriu que muito perto dali estava enterrada Olimpia Zuleta, sem lápide, mas com o nome e a data escritos com o dedo no cimento fresco da sepultura e pensou, horrorizado, que se tratava de uma ironia sangrenta do esposo. Quando o roseiral floriu deixava-lhe uma rosa no túmulo, caso não houvesse ninguém à vista, e mais tarde plantou-lhe um pé cortado do roseiral da mãe. As duas roseiras floriam tão luxuriantemente que Florentino Ariza tinha de levar a tesoura e outras ferramentas de jardinar para as manter em ordem. Mas foi superior às suas forças: ao fim de alguns anos as duas roseiras tinham crescido como ervas ruins entre as sepulturas, e o bom do cemitério da peste passou, a partir daí, a chamar-se Cemitério das Rosas, até ao dia em que um alcaide menos realista do que a sabedoria popular mandou arrancar durante a noite todas as roseiras e colocou-lhe um letreiro republicano no arco da entrada: «Cemitério Universal.»
A morte da mãe deixou Florentino Ariza novamente condenado aos seus compromissos paranóicos: o escritório, os encontros por turnos calculados com as amantes crónicas, as partidas de dominó no Clube do Comércio, os mesmos livros de amor, as visitas dominicais ao cemitério. Era a ferrugem da rotina, tão denegrida e tão receada, mas que a ele o protegera da consciência da idade. Contudo, num domingo de Dezembro, quando já as roseiras dos túmulos tinham vencido a tesoura, viu as andorinhas nos cabos da luz eléctrica recém-instalada e, de repente, deu-se conta de quanto tempo tinha passado desde a morte da mãe e quanto desde o assassínio de Olimpia Zuleta, e também quanto tempo desde aquela outra tarde desse Dezembro longínquo em que Fermina Daza lhe mandou uma carta a dizer-lhe que sim, que o amaria para sempre. Até então tinha-se comportado como se o tempo só passasse para os outros e não para ele. Justamente na semana anterior tinha-se encontrado na rua com um desses casais que se casaram graças às cartas escritas por ele e não reconheceu o filho mais velho, que era seu afilhado. Resolveu a atrapalhação com o espavento convencional: «Caramba que está feito um homem!» Continuava a ser assim, mesmo depois do corpo lhe ter começado a enviar os primeiros sinais de alarme, porque sempre tivera a saúde de ferro dos adoentados. Trânsito Ariza costumava dizer: «A única doença que o meu filho teve foi a cólera.» Confundia a cólera com o amor, claro, desde muito antes de se lhe baralhar a memória. Mas de qualquer maneira enganava-se, porque o filho tinha tido em segredo seis blenorragias, se bem que o médico dissesse que não eram seis mas uma única que voltava a aparecer depois de cada batalha perdida. Além disso, tinha tido um furúnculo, quatro quistos e seis impigens, mas nem a ele, nem a qualquer outro homem teria ocorrido contá-los como doenças mas sim como trofeus de guerra.
Com os quarenta anos acabados de fazer, teve de ir ao médico por causa de dores indefinidas em várias partes do corpo. Depois de muitos exames, o médico dissera-lhe: «São coisas da idade.» Voltava sempre para casa sem sequer se perguntar se tudo aquilo tinha alguma coisa a ver com ele. Pois o único ponto de referência do seu passado era o dos seus amores efémeros com Fermina Daza e só aquilo que tivesse alguma coisa a ver com ela é que tinha alguma coisa a ver com as contas da sua vida. De modo que na tarde em que viu as andorinhas nos cabos da luz, reviu todo o seu passado desde a sua recordação mais antiga, reviu os seus amores de ocasião, os incontáveis obstáculos que tivera de ultrapassar para chegar a um cargo de chefia, os inúmeros incidentes que lhe provocaram a sua determinação encarniçada de que Fermina Daza fosse sua e ele dela, passando por cima de tudo e indo contra tudo, e só então descobriu que a sua vida estava a gastar-se. Estremeceu com um arrepio nas entranhas que o deixou sem luz e teve de largar as ferramentas de jardinagem e apoiar-se à parede do cemitério para não ser derrubado pelo primeiro embate da velhice.
- Porra - disse, aterrado -, faz tudo trinta anos!
Assim era. Trinta anos que também tinham passado para Fermina Daza, evidentemente, mas que, para ela, haviam sido os mais gratos e reparadores da sua vida. Os dias de horror do alácio de Casalduera tinham sido relegados para o caixote do hxo da memória. Vivia na sua casa nova de La Manga, dona e senhora do seu destino, com um marido que voltaria a preferir entre todos os homens do mundo se tivesse de escolher outra vez, com um filho que continuava a tradição da estirpe na Escola de Medicina, e uma filha tão parecida com ela quando tinha a mesma idade, que às vezes perturbava-a a impressão de sentir-se repetida. Tinha voltado três vezes à Europa desde aquela viagem desgraçada que previra para não mais voltar a fim de não viver num susto perpétuo.
Deus deve ter escutado finalmente as orações de alguém: passados dois anos de estarem em Paris, quando Fermina Daza e Juvenal Urbino mal tinham começado a procurar o que restara do amor entre os escombros, um telegrama de meia-noite acordou-os com a notícia de que Dona Blanca de Urbino estava gravemente doente, e quase chegou ao mesmo tempo um outro com a notícia da sua morte. Regressaram imediatamente. Fermina Daza desembarcou com uma túnica de luto cuja amplitude não bastava para disfarçar o seu estado. Estava grávida outra vez, com efeito, e a notícia deu origem a uma canção popular mais maliciosa do que malévola, cujo estribilho esteve na moda durante o resto do ano: Que é que tem, que é que tem a bela em Paris, que sempre que lá vai, volta cá pra parir. Apesar da ordinance da letra, o doutor Juvenal Urbino pedia que a tocassem nas festas do Clube Social, durante muitos anos, como prova da sua boa disposição.
O nobre palácio do marquês de Casalduero, de cuja existência e brasões nunca se encontraram dados concretos, foi vendido primeiro à Tesouraria Municipal por um preço adequado e, mais tarde revendido, por uma fortuna, ao Governo Central, quando um investigador holandês andou a fazer escavações para provar que aí se encontrava o verdadeiro túmulo de Cristóvão Colombo: o quinto. As irmãs do doutor Urbino foram viver para o convento das salesianas, em reclusão sem votos, e Fermina Daza ficou na antiga casa do pai até estar terminada a Quinta de La Manga. Entrou nela com passadas firmes, entrou para mandar, com os móveis ingleses trazidos na viagem de núpcias e o resto das coisas que mandou vir depois da viagem de reconciliação, e, a partir do primeiro dia, começou a enchê-la com todo o tipo de animais exóticos que ela mesma ia comprar nas escunas das Antilhas. Entrou com o marido recuperado, o filho bem criado, com a filha que nasceu quatro meses depois de terem chegado e que baptizaram com o nome de Ofélia. O doutor Urbino, por sua vez, percebeu que era impossível voltar a ter a esposa de um modo tão completo quanto a tivera na viagem de núpcias, porque a parte do amor que ele queria era a que ela tinha dado aos filhos com o melhor do seu tempo, mas aprendeu a viver e a ser feliz com os resíduos. A harmonia tão desejada culminou por onde menos esperavam, num jantar de cerimónia em que serviram um prato delicioso que Fermina Daza não foi capaz de identificar. Começou com uma boa dose, mas gostou tanto que repetiu com outra igual e estava a lamentar-se por não se servir de uma terceira por princípios de boas maneiras quando ficou a saber que acabava de comer com um prazer insuspeitado dois pratos a transbordar de puré de beringelas. Perdeu com elegância: a partir de então, na Quinta de La Manga, passaram-se a servir beringelas de todas as maneiras, quase com tanta frequência como no Palácio de Casalduero, e eram tão apreciadas por todos que o doutor Juvenal Urbino alegrava os momentos livres da sua velhice repetindo que gostaria de ter outra filha para lhe pôr o nome mais benquisto lá de casa: Beringela Urbino.
Fermina Daza já sabia nessa altura que a vida privada, ao contrário da vida pública, dava muitas voltas e era imprevisível. Não lhe era fácil estabelecer diferenças reais entre as crianças e os adultos, mas, em última análise, preferia as crianças, porque tinham critérios mais certos. Acabado de dobrar o cabo da maturidade, deixou finalmente de se rever nos outros e começou a avistar o desencanto de não ter sido nunca o que sonhava ser quando era jovem, no Parque dos Evangelhos, mas sim algo que nunca se atreveu a dizer nem sequer a si mesma: uma criada de luxo. Em sociedade, acabou por ser a mais amada, a mais mimada e por isso a mais temida, mas em nada exigia de si mesma rigor maior ou se perdoava menos do que no governo da casa. Sentiu-se sempre a viver uma vida emprestada Pelo marido: soberana absoluta de um vasto império de felicidade edificado por ele e só para ele. Sabia que ele a amava para alem de tudo, mais do que ninguém no mundo, mas só para ele: ao seu santo serviço.
Se havia alguma coisa que a mortificasse era a cadeia perpétua das refeições diárias. Não chegava que estivessem prontas a tempo: tinham de ser perfeitas e de ser exactamente o que ele queria comer sem que antes lhe fosse perguntado. Se o fazia alguma vez, como uma das tantas cerimónias inúteis do ritual doméstico, ele nem sequer levantava os olhos do jornal para responder: «Qualquer coisa.» Dizia-o sinceramente, com o seu jeito amável, porque não se podia conceber marido menos despótico. Mas, à hora de comer, não podia ser qualquer coisa mas sim exactamente o que ele queria e sem a mínima falha’ que a carne não soubesse a carne, que o peixe não soubesse a peixe, que o porco não soubesse a sarna, que o frango não soubesse a penas. Mesmo quando não era época de espargos tinha de os encontrar a qualquer preço para que ele pudesse deleitar-se com o cheiro da sua própria urina perfumada. Não era a ele a quem ela deitava as culpas: deitava-as à vida. Bastava que tropeçasse numa dúvida para que afastasse o prato na mesa e dissesse: «Esta comida foi feita sem amor.» Nesse sentido conseguia rasgos fantásticos de inspiração. Certa vez mal provou um chá de macela e devolveu-o com uma só frase: «Esta porcaria sabe a janela.» Tanto ela como as criadas ficaram admiradas porque não se sabia que alguém tivesse alguma vez bebido uma janela fervida, mas quando provaram o chá tentando perceber, perceberam: sabia a janela.
Era um marido perfeito: nunca apanhava nada do chão, nem apagava a luz, nem fechava uma porta. Na escuridão da manhã, quando faltava um botão na roupa, ela ouvia-o dizer: «Faziam falta duas mulheres: uma para amar e a outra para pregar os botões.» Todos os dias, ao primeiro gole de café e à primeira colherada de sopa fumegante, lançava um grito alucinante que já não assustava ninguém e, a seguir, um desabafo: «No dia em que me for desta casa ficarão a saber que me fartei de andar sempre com a boca queimada.» Dizia que nunca se cozinhavam almoços tão apetitosos e diferentes como nos dias em que ele não os podia comer por ter tomado um laxativo, e estava tão convencido que era uma perfídia da esposa que acabou por não o tomar se ela não o tomasse com ele.
Farta de sua incompreensão, pediu-lhe uma prenda insólita para o dia do seu aniversário: que fizesse ele, por um dia, as tarefas domésticas. Ele aceitou, divertido e, com efeito, tomou posse da casa assim que amanheceu. Serviu um pequeno-almoço esplêndido, mas esqueceu-se que a ela lhe faziam mal os ovos estrelados e que não tomava café com leite. Depois deu as instruções para o almoço de aniversário com oito convidados e tratou do arranjo da casa, e foi tal o seu esforço para a governar melhor do que ela, que antes do meio-dia teve de capitular sem um gesto de vergonha. Logo no primeiro momento se dera conta de que não fazia a menor ideia de onde estavam as coisas, principalmente na cozinha, e as criadas deixaram-no remexer em tudo à procura de cada coisa, pois também elas entraram no jogo. Às dez horas ainda não se tinham tomado as decisões para o almoço porque ainda não estava acabada a limpeza da casa nem se havia arrumado o quarto, a casa de banho ficou por lavar, esqueceu-se de pôr o papel higiénico, de mudar os lençóis e de mandar o cocheiro ir buscar os filhos, além de trocar os serviços das criadas: mandou a cozinheira fazer as camas e pôs as criadas a cozinhar. Às onze, quando já estavam quase a chegar os convidados, era tal o caos na casa que Fermina Daza reassumiu o comando, morta de riso, mas não com a atitude triunfante que lhe teria querido adoptar mas sim comovida de compaixão pela inutilidade doméstica do marido. Ele respirou pela ferida com o argumento de sempre: «Pelo menos não me saí tão mal como te sairias tu a tratar doentes.» Mas a lição foi útil e não só para ele. Com o decorrer dos anos ambos chegaram, por caminhos diferentes, à conclusão sábia de que não era possível viverem juntos de outra maneira, nem amarem-se de outra maneira: nada neste mundo era mais difícil do que o amor.
Na plenitude da sua nova vida, Fermina Daza via Florentino Ariza em diversas ocasiões públicas e tanto mais frequentemente quanto mais ele subia no seu trabalho, mas aprendeu a vê-lo com tanta naturalidade que por mais de uma vez se esqueceu de o cumprimentar por distracção. Ouvia falar dele amiúde, porque no mundo dos negócios a sua escalada cautelosa mas imparável na CFC era um tema constante. Via-o melhorar os seus modos, a sua timidez dissipava-se com um certo distanciamento enigmático, ficava-lhe bem um ligeiro aumento de Peso, convinha-lhe a lentidão da idade e tinha sabido resolver com dignidade a calvície devastadora. A única coisa que continuou sempre a desafiar o tempo e a moda foram os seus fatos sombrios, os casacos anacrónicos, o chapéu único, as gravatas de poeta, o guarda-chuva sinistro. Fermina Daza foi-se habituando a vê-lo de outra maneira e acabou por deixar de o relacionar com o adolescente lânguido que se sentava a suspirar por ela no meio da ventania das folhas amarelas do Parque dos Evangelhos. Em todo o caso, nunca o viu com indiferença e alegrou-se sempre com as boas notícias que lhe davam dele porque a pouco e pouco a aliviavam da sua culpa.
No entanto, quando já o julgava completamente apagado da memória, reapareceu donde menos o esperava transformado num fantasma das suas nostalgias. Foram as primeiras auras da velhice, quando começou a sentir que sempre acontecia algo de irreparável na sua vida quando ouvia trovejar antes de chover. Era a ferida incurável do trovão solitário, pedregoso e pontual, que ribombava todos os dias de Outubro às três da tarde na serra de Villanueva, e cuja recordação ia ficando mais recente com os anos. Ao passo que as recordações novas se confundiam na memória ao fim de poucos dias, as da viagem lendária pela província da prima Hildebranda iam-se tornando tão nítidas que pareciam de ontem, com a clareza perversa da nostalgia. Lembrava-se de Manaure, a da serra, da sua rua única, recta e verde, dos seus pássaros de bom agoiro, a casa dos espantos onde acordava com a camisa ensopada com as lágrimas inesgotáveis de Petra Morales, morta por amor muitos anos antes naquela mesma cama onde ela dormia. Lembrava-se do sabor das goiabas de então que nunca mais tinha voltado a ser o mesmo, dos pressentimentos tão intensos que o seu rumor se confundia com o da chuva, das tardes de topázio de San Juan del Cesar, quando ia passear com a sua corte de primas barulhentas e ia de dentes bem cerrados para que o coração não lhe saísse pela boca à medida que se aproximavam do telégrafo. Vendeu de qualquer maneira a casa do pai porque não podia suportar a dor da adolescência, ver da varanda o parquezinho desolado, o perfume sibilino das gardenias nas noites de calor, o susto do retrato de dama antiga na tarde de Fevereiro em que se decidiu o seu destino e, fosse para onde fosse que se dirigisse a sua memória, sempre tropeçava na recordação de Florentine Ariza. No entanto, sempre teve serenidade suficiente para se dar conta de que não eram recordações de amor nem de arrependimento, mas sim a imagem de um dissabor que lhe deixava um rastro de lágrimas. Sem o saber, estava ameaçada pela mesma armadilha de compaixão que perdera tantas vítimas desprevenidas de Florentine Ariza.
Ligou-se ainda mais ao marido. E precisamente na época em que ele mais precisava dela, porque lhe levava a palma em dez anos de desvantagem a tactear sozinho pelo nevoeiro da velhice, e com as desvantagens piores de ser homem e mais débil. Acabaram por se conhecer tão bem que em menos de trinta e dois anos de casados eram um único ser dividido e sentiam-se incomodados com a frequência com que adivinhavam, sem querer, os pensamentos, um do outro, ou pelo acidente ridículo de um se antecipar, em público, ao que o outro ia dizer. Tinham lidado juntos com as incompreensões quotidianas, os ódios instantâneos, as maldadezinhas recíprocas e os fabulosos relâmpagos de glória da cumplicidade conjugal. Foi a época em que se amaram melhor, sem pressas e sem excessos, e foram os dois mais conscientes e mais agradecidos pelas suas vitórias inverosímeis contra a adversidade. A vida ainda lhes depararia outras provas mortais, evidentemente, mas já não importava: estavam na outra margem.
Por causa das celebrações da entrada do século houve um programa de comemorações públicas repleto de novidades, a mais memorável das quais foi a primeira viagem em balão, fruto da iniciativa inesgotável do doutor Juvenal Urbino. Metade da cidade concentrou-se na praia do Arsenal para apreciar a subida do enorme balão de tafetá com as cores da bandeira, que levou o primeiro correio aéreo a San Juan de Ia Ciénaga, umas trinta léguas para nordeste em linha recta. O doutor Juvenal Urbino e a esposa, que tinham conhecido a emoção do voo na Exposição Universal de Paris, foram os primeiros a subir na barquinha de vime, com o engenheiro de voo e seis convidados ilustres. Levavam uma carta do governador provincial para as autoridades municipais de San Juan de Ia Ciénaga, onde se declarava, para que ficasse na História, que aquele era o primeiro correio transportado pelos ares. Um cronista de El Diário dei Comercio perguntou ao doutor Juvenal Urbino quais seriam as suas últimas palavras se perecesse na aventura, e ele não se deteve a reflectir na resposta que haveria de merecer-lhe tantas injúrias:
- Na minha opinião - disse - o século dezanove muda para toda a gente menos para nós.
Perdido no meio da cândida multidão que cantava o Hino Nacional enquanto o balão ganhava altura, Florentino Ariza concordou com alguém a quem ouviu comentar na confusão que aquela aventura não era própria para uma mulher e muito menos da idade de Fermina Daza. Mas, bem vistas as coisas, não era assim tão perigosa. Ou, pelo menos, não tão perigosa quanto deprimente. O balão chegou ao seu destino sem contratempos, depois de uma agradável viagem pelo céu de um azul inverosímil. Voaram bem, muito baixo, com vento sereno e favorável, primeiro pelas encostas das cristas nevadas e depois sobre a vastidão da Ciénaga Grande.
Do céu, como Deus as via, observaram as ruínas da mui antiga e heróica cidade de Cartagena das índias, a mais bela do mundo, abandonada pelos seus habitantes por causa do pânico da cólera, depois de ter resistido a todo o género de incursões dos Ingleses e às tropelias dos bucaneiros durante três séculos. Viram as muralhas intactas, os tojos que cresceram pelas ruas, as fortificações devoradas pelos amores-perfeitos, os palácios de mármore e altares de ouro com os seus vice-reis apodrecidos pela peste dentro das armaduras.
Voaram sobre as palafitas das Trojas de Cataca, pintadas de cores doidas, com currais para criar iguanas comestíveis e pencas de balsaminas e astromélias nos jardins lacustres. Centenas de miúdos nus atiravam-se à água excitados com a gritaria de todos, atiravam-se das janelas, atiravam-se dos telhados das casas e das canoas que manobravam com uma habilidade espantosa e mergulhavam como sáveis para irem buscar as trouxas de roupa, os frascos de xarope para a tosse, os alimentos que a bela mulher do chapéu de plumas lhes atirava caridosamente da barquinha do balão.
Voaram sobre o oceano de sombras das plantações de bananeiras, cujo silêncio se elevava até eles como um vapor letal, e Fermina Daza lembrou-se de quando tinha três, talvez quatro anos, e passeava pela floresta sombria pela mão da mãe, que também era quase uma garota no meio de outras mulheres vestidas de musselina, como ela, com sombrinhas brancas e chapéus de rede. O engenheiro do balão, que ia observando a terra com um binóculo, disse: «Parece que estão mortos.» Passou os binóculos ao doutor Juvenal Urbino e este viu os carros de bois entre as sementeiras, as sebes ao longo da linha do comboi^, os canais gelados, e onde quer que poisasse os olhos viu corpos humanos espalhados. Alguém disse que a cólera estava a fazer
estragos entre as populações da Ciénaga Grande. O doutor Urbino, enquanto falava, não deixou de olhar pelos binóculos.
- Mas deve ser um tipo de cólera muito especial porque cada cadáver levou um tiro de misericórdia na nuca.
Pouco depois estavam a voar sobre um mar de espuma e desceram sem novidade numa grande praia ardente, cujo solo gretado de salitre queimava como ferro em brasa. Aí se encontravam as autoridades sem outra protecção contra o sol senão os guarda-chuvas de todos os dias, e também as escolas primárias a agitarem bandeirinhas ao compasso dos hinos, as rainhas de beleza com flores esturricadas e coroas de cartão dourado, e a papaieira da próspera povoação de Gayra, que era, naqueles tempos, a melhor de toda a costa caraíba. A única coisa que Fermina Daza queria era ver outra vez a sua terra natal, para a comparar com as suas recordações mais antigas, mas não permitiram que ninguém o fizesse pelo risco da peste. O doutor Juvenal Urbino entregou a carta histórica, que entretanto se misturou com outros papéis e nunca mais ninguém soube dela, e toda a comitiva esteve a ponto de se asfixiar no torpor dos discursos. No fim, levaram-nos em mulas até ao embarcadouro do Pueblo Viejo, onde o pântano se juntava ao mar porque o engenheiro não conseguiu fazer com que o balão voltasse a subir. Fermina Daza tinha a certeza de ter passado por ali com a mãe, quando era muito pequena, numa carroça puxada por uma junta de bois. Já mais crescida, contara-o por diversas vezes ao pai e ele morreu a teimar que não era possível que ela se lembrasse.
- Lembro-me muito bem dessa viagem e foi assim - disse-lhe ele -, mas fizemo-la pelo menos cinco anos antes de tu nasceres.
Os membros da expedição em balão voltaram três dias depois ao porto de origem, estragados por uma noite má de tempestade e foram recebidos como heróis. Perdido entre a multidão, evidentemente, estava Florentine Ariza, que reconheceu no semblante de Fermina Daza as marcas do pavor. Porém, nessa mesma tarde, voltou a vê-la numa exibição de ciclismo, também patrocinada pelo marido e não tinha já nenhum vestígio do cansaço. Conduzia um velocípede insólito, que mais Parecia um aparelho de circo, com uma roda dianteira muito alta, onde ela ia sentada e uma posterior, muito pequena, que servia apenas de apoio. Ia vestida com uns calções largos às riscas coloridas que provocaram o escândalo das senhoras mais velhas e o desconcerto dos cavalheiros, mas ninguém ficou indiferente à sua habilidade.
Essa, e tantas outras ao longo dos anos, eram imagens efémeras que apareciam subitamente a Florentine Ariza, ao acaso, quando lhes apetecia, e que voltavam a desaparecer da mesma maneira deixando no seu coração um trilho de ansiedade. Mas marcavam a pauta da sua vida, pois tinha conhecido as sevícias do tempo, não tanto na sua própria carne como nas mudanças imperceptíveis que notava em Fermina Daza cada vez que a via.
Certa noite entrou na Estalagem do Sancho, um restaurante colonial de alto gabarito, e ocupou o canto mais afastado, como costumava fazer quando ia comer sozinho os seus lanches de passarinho. De repente viu Fermina Daza no grande espelho do fundo, sentada à mesa com o marido e mais dois casais, e num ângulo em que a podia ver reflectida em todo o seu esplendor. Estava indefesa, conduzindo a conversa com uma graça e um riso que estrepitava como fogo-de-artifício e a sua beleza era mais radiosa sob os enormes lustres de pingentes: Alice tinha voltado a atravessar o espelho.
Florentine Ariza observou-a à sua vontade, de respiração suspensa, viu-a comer, viu-a provar apenas o vinho, viu-a gracejar com o quarto Sancho da estirpe, viveu com ela um momento da sua vida, naquela sua mesa solitária, e durante mais de uma hora flanou sem ser visto no recinto vedado da sua intimidade. Depois tomou mais quatro chávenas de café para fazer tempo até a ver sair, misturada no grupo. Passaram tão perto dele que conseguiu distinguir o seu cheiro entre as lufadas dos outros perfumes dos seus acompanhantes.
Desde essa noite, e durante quase um ano, perseguiu obstinadamente o proprietário da estalagem, oferecendo-lhe o que ele quisesse, em dinheiro ou em favores, o que fosse que ele mais ansiasse na vida, para que lhe vendesse o espelho. Não foi fácil, pois o velho Sancho acreditava na lenda de que aquela preciosa moldura talhada por ebanistas vienenses era gémea de outra que pertencera a Maria Antonieta e que tinha desaparecido sem deixar rasto: duas jóias únicas. Quando, por fim, cedeu, Florentine Ariza pendurou o espelho na sua casa, não pelos primores da moldura, mas sim pelo espaço interior que, durante duas horas, tinha sido ocupado pela imagem amada.
Quase todas as vezes que viu Fermina Daza ela ia pelo braço do marido, num arranjo perfeito, movendo-se ambos num espaço próprio, com uma espantosa fluidez de siameses que só discordava quando o cumprimentavam. Com efeito, o doutor Juvenal Urbino apertava-lhe a mão com um afecto cálido e, em certas ocasiões, até se permitia uma palmada no ombro. Ela, pelo contrário, mantinha-o condenado ao regime impessoal dos formalismos e nunca fez o mínimo gesto que lhe permitisse suspeitar que se lembrava dele nos seus tempos de solteira. Viviam em dois mundos divergentes, mas enquanto ele fazia todo o tipo de esforços para diminuir a distância, ela não deu um só passo que não fosse no sentido inverso. Passou-se muito tempo antes dele se atrever a pensar que aquela indiferença não passava de uma couraça contra o medo. Essa ideia surgiu-lhe de repente, no baptismo do primeiro navio de água doce construído nos estaleiros locais, que foi também a primeira ocasião oficial em que Florentino Ariza representou o tio Leão XII como primeiro vice-presidente da CFC. Esta coincidência fez com que o acto se revestisse de uma solenidade especial e não faltou ninguém que tivesse algum significado na vida da cidade.
Florentino Ariza estava a receber os seus convidados no salão principal do navio, ainda a cheirar a tinta fresca e a alcatrão derretido, quando rebentou uma salva de palmas no cais e a banda atacou uma marcha triunfal. Teve de reprimir a atrapalhação já quase tão antiga quanto ele, quando viu a formosa mulher dos seus sonhos de braço dado com o marido, esplêndida na sua maturidade, a desfilar como uma rainha de outro tempo entre a guarda de honra em uniforme de parada, sob uma chuva de serpentinas e pétalas naturais que lhe atiravam das janelas. Ambos respondiam com a mão às ovações, mas ela era tão deslumbrante que parecia ser a única no meio da multidão, toda vestida de um dourado imperial, desde os sapatos de salto alto e as caudas de raposa ao pescoço, até ao chapéu-sino.
Florentine Ariza esperou-os na ponte, juntamente com as autoridades provinciais, no meio do estrondo da música e dos foguetes e dos três bramidos intensos do navio que deixaram o cais saturado de vapor. Juvenal Urbino saudou a fila de recepção com aquela naturalidade tão sua que fazia com que cada um pensasse que lhe tinha um afecto especial: primeiro o comandante do navio em uniforme de gala, depois o arcebispo, depois o governador com a esposa e o alcaide com a sua, e depois o chefe militar da praça, que era um andino recém-chegado. A seguir às autoridades estava Florentine Ariza, vestido de escuro, quase invisível entre tantas personalidades. Depois de cumprimentar o comandante da praça, Fermina Daza pareceu vacilar diante da mão estendida de Florentino Ariza. O militar, disposto a apresentá-los, perguntou-lhe a ela se não se conheciam. Ela não disse nem que sim nem que não, mas estendeu a mão a Florentino Ariza com um sorriso de salão. Aquilo tinha acontecido por duas vezes no passado e iria acontecer mais vezes, mas Florentino Ariza assimilou-o sempre como um comportamento próprio do carácter de Fermina Daza. Porém, naquela tarde, perguntou-se com a sua infinita capacidade de ilusão, se uma indiferença tão encarniçada não seria um subterfúgio para disfarçar um sofrimento de amor.
Só a ideia bastou para lhe alvoroçar os sentimentos. Voltou a rondar a quinta de Fermina Daza com a mesma ansiedade com que, há tantos anos atrás, o fizera no Parque dos Evangelhos, mas não com a intenção calculada de que ela o visse, mas sim com o único propósito de a ver para saber que continuava no mundo. Só que então lhe era difícil passar despercebido. O Bairro de La Manga ficava numa ilha semidesértica, separada da cidade histórica por um canal de águas verdes e,coberta por matagais de icaqueiros, que, nos tempos coloniais, tinham sido esconderijos de namorados de domingo. Em anos mais recentes haviam demolido a velha ponte de pedra espanhola e construíram uma de material mais moderno com candeeiros de globos para dar passagem aos novos transportes puxados a mulas. No princípio, os habitantes de La Manga tiveram de suportar um suplício que não tinha sido tomado em conta no projecto, que era dormir tão perto da primeira central eléctrica que a cidade teve, que a trepidação era idêntica a um tremor de terra contínuo. Nem o doutor Juvenal Urbino, com toda a sua influência, conseguiu que a mudassem para onde não estorvasse, até que intercedeu a seu favor a sua comprovada cumplicidade com a Divina Providência. Uma noite rebentou a caldeira da central com uma explosão pavorosa, voou por cima das casas novas, atravessou metade da cidade pelo ar e destruiu a galeria principal do antigo Convento de São Julião Hospitaleiro. O velho edifício em ruínas tinha sido abandonado no princípio daquele ano, mas a caldeira causou a morte de quatro presos que tinham fugido no princípio da noite da prisão local e estavam escondidos na capela.
Aquele subúrbio tranquilo, com tão belas tradições de amor, não foi, desta feita, muito propício aos amores contrariados, quando se converteu num bairro de luxo. As ruas eram poeirentas de Verão, pantanosas de Inverno e desoladas durante todo o ano, e as poucas casas estavam escondidas entre jardins frondosos, com varandas de mosaicos, em vez das sacadas salientes de antigamente, como se tivessem sido feitos de propósito para desencorajar os namorados furtivos. Vá lá que naquela época se impôs a moda de passear de tarde nas velhas vitórias de aluguer, adaptadas para um só cavalo e o passeio acabava num recanto donde se apreciavam os crepúsculos fascinantes de Outubro melhor do que da torre do farol, e viam-se os tubarões sigilosos à espreita na praia dos seminaristas, e o transatlântico das quintas-feiras, enorme e branco, que quase se podia tocar com as mãos quando passava pelo canal do porto. Florentino Ariza costumava alugar uma vitória, após um dia de trabalho árduo no escritório, mas não lhe baixava a capota, como era costume fazer-se nos meses de calor, e ficava escondido no fundo do assento, invisível na sombra, sempre sozinho, e mandando seguir por rumos imprevistos para não provocar os maus pensamentos do cocheiro. A única coisa do passeio que realmente o interessava era o pártenon de mármore cor-de-rosa meio oculto entre bananeiras e mangueiras frondosas, réplica pobre das mansões idílicas dos algodoais da Luisiana. Os filhos de Fermina Daza regressavam a casa pouco antes das cinco. Florentino Ariza via-os chegar no carro da família e, a seguir, via o doutor Juvenal Urbino sair para as suas visitas médicas de rotina, mas em quase um ano de rondas não conseguiu nem sequer vislumbrar a imagem celeste que buscava.
Uma tarde em que insistiu no passeio solitário, apesar de estar a cair a primeira chuvada devastadora de Junho, o cavalo escorregou na lama e caiu. Florentine Ariza deu-se conta, horrorizado, de que estavam em frente da quinta de Fermina Daza, e suplicou ao cocheiro, sem pensar que a sua consternação o podia trair:
- Aqui não, por favor - gritou-lhe -, em qualquer outro sítio menos aqui.
Perturbado por aquela ordem, o cocheiro tentou levantar o cavalo sem o desatrelar e o eixo do carro partiu-se. Florentine Ariza saiu como pôde e suportou a vergonha, sob os rigores da chuva, até que outros passeantes se ofereceram para o levar a casa. Enquanto esperava, uma criada da família Urbino tinha-o visto com a roupa encharcada, atolado na lama até aos joelhos e levou-lhe um guarda-chuva para que ele se resguardasse no terraço. Florentine Ariza não sonhara nunca com tanta sorte nem no mais alucinado dos seus delírios, mas naquela tarde teria preferido morrer a deixar-se ver por Fermina Daza em semelhante estado.
Quando viviam na cidade velha, Juvenal Urbino e a família iam, aos domimgos, a pé de casa à catedral, para a missa das oito, que era um acto mais mundano que religioso. Mais tarde, quando mudaram de casa, continuaram a ir de carro durante vários anos, e, por vezes, demoravam-se em tertúlias de amigos sob as palmeiras do parque. Mas quando construíram o templo do seminário conciliar em La Manga, com praia privativa e cemitério próprio, só iam à catedral em ocasiões de grande solenidade. Ignorando estas alterações, Florentine Ariza esperou vários domingos no terraço do Café da Paróquia, vigiando a saída das três missas. Depois, ao dar-se conta do seu engano, foi à igreja nova, que esteve em moda até há poucos anos, e aí encontrou o doutor Juvenal Urbino com os filhos, pontualmente às oito nos quatro domingos de Agosto, mas Fermina Daza não estava com eles. Num desses domingos visitou o novo cemitério contíguo, onde os residentes de La Manga estavam a construir os seus panteões sumptuosos, e o coração sobressaltou-se-lhe quando encontrou à sombra das grandes ceibas o mais sumptuoso de todos, com vitrais góticos e anjos de mármore, e com as lápides para toda a família em letras douradas. Entre elas, claro, a de dona Fermina Daza de Urbino de Ia Calle, e a seguir a do esposo, com um epitáfio comum: «Juntos também na paz do Senhor.»
Até ao fim desse ano Fermina Daza não assistiu a nenhum dos actos civis nem sociais, nem sequer aos de Natal, nos quais ela e o marido costumavam ser protagonistas de luxo. Mas onde a sua ausência foi mais notada foi na sessão inaugural da temporada de ópera. No intervalo, Florentino Ariza surpreendeu um grupo onde, sem dúvida, falavam dela mas sem a mencionar. Diziam que alguém a tinha visto entrar no transatlântico da Cunard, rumo ao Panamá, numa certa meia-noite de Junho, e que levava um véu escuro para que não se lhe notassem os estragos da enfermidade vergonhosa que a ia devorando. Alguém perguntou que mal tão terrível poderia ser para se atrever a atacar uma mulher de tanto poder e a resposta que recebeu estava saturada de bílis negra:
- Uma dama tão distinta só pode ter a tísica.
Florentino Ariza sabia que os ricos da sua terra não tinham doenças curtas. Ou morriam de repente, quase sempre nas vésperas de uma festa de gala que deixava de se fazer por causa do luto, ou iam-se apagando em doenças lentas e abomináveis, cujos pormenores acabavam por ser do domínio público. A reclusão no Panamá era quase uma penitência obrigatória na vida dos ricos. Submetiam-se ao que Deus quisesse no Hospital dos Adventistas, um enorme barracão branco metido no meio dos aguaceiros pré-históricos do Darién, onde os doentes perdiam a conta da pouca vida que lhes restava, e em cujos quartos solitários com janelas de juta ninguém podia saber com certeza se o cheiro a ácido fénico era de saúde ou de morte. Os que se restabeleciam regressavam a casa carregados de prendas fabulosas que distribuíam às mãos-cheias com uma certa angústia para que lhes perdoassem a indiscrição de continuarem vivos. Alguns voltavam com o abdome atravessado por costuras horrorosas que pareciam ter sido feitas com fio de sapateiro, levantavam a camisa para mostrá-las às visitas, comparavam-nas com as de outros que tinham morrido sufocados pelos excessos da felicidade, e, pelo resto dos seus dias, continuavam a contar e a voltar a contar as aparições angélicas que tinham visto sob os efeitos do clorofórmio. Por outro lado, nunca ninguém conheceu a visão daqueles que não regressaram e, entre estes, os mais tristes: os que morreram desterrados no pavilhão dos tísicos, mais pela tristeza da chuva que pelas moléstias da doença.
Assim deitado a adivinhar, Florentine Ariza não sabia o que teria preferido para Fermina Daza. Mas mais do que nada preferia a verdade, mesmo que fosse insuportável, e por muito que a procurasse não deu com ela. Parecia-lhe inconcebível que ninguém pudesse dar-lhe, pelo menos, um indício que confirmasse a versão. No mundo dos navios fluviais, que era o seu não havia mistério que se pudesse manter, nem confidência que se pudesse guardar. No entanto, ninguém tinha ouvido falar da mulher do véu negro. Ninguém sabia nada, numa cidade onde tudo se sabia, e onde se sabiam muitas coisas mesmo antes de acontecerem. Sobretudo as coisas dos ricos. Mas também ninguém tinha nenhuma explicação para o desaparecimento de Fermina Daza. Florentine Ariza continuava a rondar La Manga, a ouvir missas sem devoção na basílica do seminário, a assistir a actos cívicos que nunca lhe teriam interessado noutro estado de espírito, mas o passar do tempo só fazia com que aumentasse o seu crédito na versão. Tudo parecia normal em casa dos Urbino, excepto a falta da mãe.
No meio de tantas averiguações, encontrou outras notícias que não conhecia, ou que não procurava, e, entre elas, a da morte de Lorenzo Daza na aldeia cantábrica onde tinha nascido. Lembrava-se de o ter visto durante muitos anos nas movimentadas guerras de xadrez do Café da Paróquia, com a voz estragada de tanto falar e mais gordo e áspero à medida que sucumbia nas areias movediças de uma velhice ruim. Não tinham voltado a dirigir-se a palavra desde aquele ingrato pequeno-almoço de anis no século anterior, e Florentine Ariza tinha a certeza de que Lorenzo Daza continuava a recordá-lo com tanto rancor quanto ele, mesmo depois de ter conseguido para a filha o casamento rico que se transformara na sua única razão pára continuar vivo. Mas estava tão decidido a encontrar uma informação inequívoca sobre a saúde de Fermina Daza que tinha voltado ao Café da Paróquia para a obter do pai, na altura em que aí se celebrou o torneio histórico em que Jeremiah de Saint-Amour enfrentou sozinho quarenta e dois adversários. Foi assim que soube que Lorenzo Daza tinha morrido e alegrou-se do fundo do coração, mesmo sabendo que o preço daquela alegria podia ser o de continuar a viver sem a verdade. Por fim, aceitou como certa a versão do hospital dos desenganados, sem outro consolo senão a do conhecido refrão: «Mulher doente, mulher para sempre.» Nos seus dias de desalento, conformava-se com a ideia de que a notícia da morte de Fermina Daza, caso acontecesse, lhe chegaria de qualquer maneira sem ter de a procurar.
Não lhe chegaria nunca. Pois Fermina Daza estava viva e sã como um pêro na fazenda onde a sua prima Hildebranda Sanchez vivia esquecida do mundo, a quilómetro e meio da povoação de Flores de Maria. Tinha partido sem alarido, de comum acordo com o marido, os dois atarantados como adolescentes com a única crise grave por que tinham passado em tantos anos de casamento estável. Tinha-os surpreendido no repouso da maturidade, quando já se sentiam a salvo de qualquer emboscada da adversidade, com os filhos crescidos e bem criados e com o futuro aberto para aprenderem a ser velhos sem amarguras. Tinha sido uma coisa tão imprevista para ambos que não a quiseram resolver com gritos, com lágrimas e intermediários, como era a prática corrente nas Caraíbas, mas antes com a sabedoria das nações da Europa, e à força de não ser nem daqui nem dali, acabaram a chapinhar numa situação pueril que não era de parte alguma. Por fim, ela tinha decidido ir-se embora, sem sequer saber porquê, nem para quê, só por raiva, e ele não havia sido capaz de a persuadir devido à sua consciência de culpa.
Fermina Daza, com efeito, tinha embarcado à meia-noite, no maior sigilo e com a cara coberta por um véu de luto, mas não num transatlântico da Cunard com destino ao Panamá, mas num naviozinho de carreira regular de San Juan de Ia Ciénaga, a cidade onde nasceu e viveu até à puberdade, e cuja nostalgia se lhe ia tornando insuportável com os anos. Contra a vontade do marido e os costumes da época, não levou outro acompanhante além de uma afilhada de quinze anos que se criara ao serviço da casa, mas tinham participado a sua viagem aos comandantes dos barcos e às autoridades de cada porto. Quando tomou a decisão inabalável, anunciou aos filhos que ia descansar três meses para a casa da tia Hildebranda, mas estava decidida a ficar lá. O doutor Jovenal Urbino conhecia muito bem a firmeza do seu carácter e estava tão preocupado que aceitou com humildade, como se fosse um castigo de Deus pela gravidade das suas culpas. Mas ainda não se tinham perdido de vista as luzes do barco, e já os dois estavam arrependidos das suas fraquezas.
Apesar de terem mantido uma correspondência formal sobre o estado dos filhos e outros assuntos domésticos, passaram-se quase dois anos sem que nem um nem outro encontrasse um caminho de volta que não estivesse minado pelo orgulho. Os filhos foram a Flores de Maria passar as férias escolares do segundo ano e Fermina Daza fez o impossível por parecer contente com a sua nova vida. Essa foi pelo menos a conclusão que Juvenal Urbino tirou das cartas do filho. Além disso, nesses dias, esteve por lá o bispo de Riohacha em visita pastoral, montado sob um pálio na sua célebre mula branca com xairel bordado a ouro. Atrás seguiam-no peregrinos de comarcas remotas, acordeonistas, vendedores ambulantes e comidas e amuletos, e a fazenda esteve durante três dias a transbordar de inválidos e de doentes, que, verdade seja dita, não vinham por causa dos doutos sermões e das indulgências plenárias mas sim pelos favores da mula, da qual se dizia que fazia milagres às escondidas do dono. O bispo tinha sido muito íntimo da casa dos Urbino de Ia Calle, desde os seus anos de padre recém-formado, e, certo dia, deu uma escapada das suas azáfamas para ir almoçar na fazenda da Hildebranda. Depois do almoço, onde só se falou de assuntos terrenos, chamou Fermina Daza à parte e quis ouvi-la em confissão. Ela negou-se, de um modo amável mas firme, com o argumento explícito de que não tinha nada que se arrepender. Ainda que, pelo menos conscientemente, esse não fosse o seu propósito, ficou com a ideia de que a sua resposta chegaria onde tinha de chegar.
O doutor Juvenal Urbino costumava dizer, não sem um certo cinismo, que aqueles dois anos amargos da sua vida não haviam sido culpa sua, mas sim do mau hábito que tinha a sua mulher de cheirar a roupa da família e a que ela própria despia? para saber pelo cheiro se tinha de a mandar lavar, mesmo que à primeira vista parecesse limpa. Fazia-o desde criança e nunca pensou que se notasse tanto até que o marido se deu conta logo na noite de núpcias. Deu-se conta também de que fumava pelo menos três vezes por dia fechada na casa de banho, mas isso não lhe chamou a atenção, porque as mulheres da sua classe costumavam fechar-se em grupos para falarem de homens e fumar, e até beberem aguardente de dois tostões até ficarem caídas no chão com uma bebedeira de pedreiro. Mas o hábito de enfiar o nariz em quanto roupa encontrasse pela frente, não só lhe pareceu disparatado como nocivo para a saúde. Ela levava-o a brincar como levava tudo o que não queria discutir e dizia que não era só para efeitar que Deus lhe tinha posto na cara aquele diligente nariz de verdilhão. Certa manhã, enquanto ela andava nas compras, a criadagem pôs a vizinhança num alvoroço à procura do filho de três anos que não conseguiam encontrar em nenhum canto nem recanto da casa. Ela chegou no meio do pânico, deu duas ou três voltas, como um cão a farejar um rasto, e encontrou o filho a dormir dentro de um roupeiro onde ninguém pensou que se pudesse esconder. Quando o marido, atónito, lhe perguntou como o tinha encontrado, respondeu-lhe:
- Pelo cheiro a coco.
A verdade é que o olfacto não lhe servia só para lavar roupa ou para encontrar crianças perdidas: era o seu sentido de orientação em todas as coisas da vida, e sobretudo da vida social. Juvenal Urbino observara-o com o decorrer do casamento, sobretudo no princípio, quando era uma recém-chegada a um ambiente predisposto contra ela há já trezentos anos, e, no entanto, gesticulava entre copas de corais afiados sem tropeçar em ninguém, com um domínio das coisas que não podia ser senão um instinto sobrenatural. Essa faculdade temível, que tanto podia ter a sua origem numa sabedoria milenar como num coração de quartzo, teve a sua hora de desgraça num malfadado domingo antes da missa, quando Fermina Daza cheirou, por mera rotina, a roupa que o marido usara na tarde anterior e sofreu a sensação perturbadora de ter tido um homem diferente na cama.
Cheirou primeiro o casaco e o colete enquanto tirava da botoeira o relógio de corrente e tirava a lapiseira, a carteira e as Poucas moedas soltas dos bolsos e ia pondo tudo em cima do toucador, e depois cheirou a camisa enquanto tirava o alfinete de gravata e os botões de punho de topázio e o botão de ouro do colarinho postiço, depois cheirou as calças enquanto tirava o porta-chaves com onze chaves e o canivete com cabo de madrepérola, e cheirou, por fim, as cuecas, as meias e o lenço de linho bordado com o seu monograma. Não tinha a menor sombra de dúvida: em cada uma das peças havia um cheiro que não tinham tido em tantos anos de vida em comum, um cheiro impossível de definir, porque não era nem de flores nem de essências artificiais, mas de algo próprio da natureza humana. Não disse nada, nem voltou a sentir aquele cheiro todos os dias, mas já não metia o nariz na roupa do marido com a curiosidade de saber se era para mandar lavar mas sim com uma ansiedade insuportável que lhe estava a carcomer as entranhas.
Fermina Daza não sabia onde situar o cheiro na rotina do esposo. Não podia ser entre a aula matinal e o almoço, pois supunha que nenhuma mulher em seu juízo faria amor à pressa a tais horas, e menos ainda com uma visita, enquanto estava preocupada porque tinha de varrer a casa, fazer as camas, ir ao mercado, preparar o almoço, e talvez receando que a escola lhe mandasse um dos filhos para casa antes da hora, por ter apanhado uma pedrada, e a encontrasse nua às onze da manhã num quarto por arrumar e, para cúmulo dos cúmulos, com um médico em cima. Sabia, por outro lado, que o doutor Juvenal Urbino só fazia amor de noite e, melhor ainda, na escuridão absoluta, e em último caso antes do pequeno-almoço ao trinar dos primeiros pássaros. Depois dessa hora, como ele dizia, era maior o trabalho de se despir e voltar-se a vestir do que o prazer de um amor de galo. De modo que a contaminação da roupa só podia suceder nalguma das visitas médicas, ou em qualquer momento sonegado às suas noites de xadrez e de cinema. Neste último caso era difícil de esclarecer, porque, ao contrário de tantas amigas suas, Fermina Daza era demasiado orgulhosa para espiar o marido ou para pedir a alguém que o fizesse por ela. O horário das”visitas, que era o que parecia mais fácil para a infidelidade, era também o mais fácil de vigiar, porque o doutor Juvenal Urbino conservava um relatório minucioso de cada um dos seus clientes, incluindo o estado das contas dos honorários, desde que os visitava pela primeira vez até os despedir deste mundo com uma cruz final e uma frase pelo bem-estar da sua alma.
Ao fim de três semanas, Fermina Daza não tinha encontrado o cheiro na roupa durante vários dias, voltou a dar com ele quando menos o esperava e encontrara-o mais forte do que nunca durante vários dias consecutivos, ainda que um deles tivesse sido um domingo de festa familiar em que ela e ele não se separaram nem por um momento. Certa tarde deu consigo no escritório do marido, contra o seu hábito e até contra os seus desejos, como se não fosse ela mas sim uma outra que estivesse a fazer algo que ela jamais faria, a decifrar com uma primorosa lupa de Bengala as intrincadas notas das visitas dos últimos meses. Era a primeira vez que entrava sozinha nesse escritório saturado de vapores de fenol, atulhado de livros encadernados em peles de animais desconhecidos, de gravuras esmaecidas de grupos escolares, de pergaminhos de honra, de astrolábios e punhais de fantasia coleccionados durante anos. Um santuário secreto que encarou sempre como a única parte da vida privada do seu marido a que ela não tinha acesso porque não estava incluída no amor, e por isso as poucas vezes que estivera ali tinha sido com ele, sempre para assuntos breves. Não se sentia no direito de entrar sozinha e, ainda menos, para fazer indagações que não lhe pareciam decentes. Mas ali estava. Queria encontrar a verdade e procurava-o com uma ânsia apenas comparável à do terrível temor de a encontrar, instigada por um tufão incontrolável mais imperioso do que a sua altivez congénita, mais imperioso ainda do que a sua dignidade: um suplício fascinante.
Não pôde tirar nada a limpo, porque os pacientes do marido, excepto os amigos comuns, faziam também parte do seu domínio estanque, pessoas sem identidade que não se conheciam pela cara mas pelas dores, não pela cor dos olhos ou pelas evasões do coração mas pelo tamanho do fígado, o sarro na língua, os grumos na urina, as alucinações nas noites de febre. Pessoas que acreditavam no seu marido, que julgavam viver por ele, quando de facto viviam para ele e acabavam reduzidas a uma frase escrita por ele, pelo seu punho e letra no fim da página do expediente médico: «Sossega que Deus te espera à porta.» Fermina Daza deixou o gabinete ao cabo de duas horas inúteis com a sensação de se ter deixado tentar pela indecência. Estimulada pela imaginação, começou a descobrir as mudanças do marido. Achava-o evasivo, sem apetite à mesa e na cama, propenso à exasperação e às réplicas irónicas e, quando estava em casa, já não era o homem tranquilo de antes, mas um leão enjaulado. Pela primeira vez desde que se casaram vigiou os seus atrasos, controlou-os ao minuto, e contava-lhe mentiras para lhe arrancar verdades, e logo a seguir sentia-se ferida de morte pelas suas contradições. Uma noite acordou sobressaltada por um estado fantasmagórico: era o marido que olhava para ela no escuro com uns olhos que lhe pareceram carregados de ódio. Sofrera um arrepio idêntico quando, na flor da juventude, via Florentine Ariza aos pés da cama, só que a sua aparição não era de ódio mas de amor. Além disso, desta vez não era uma fantasia: o seu marido estava acordado às duas da manhã e tinha-se sentado na cama para a ver a dormir, mas quando ela lhe perguntou porque o fazia, ele negou. Voltou a deitar a cabeça na almofada e disse:
- Deves ter sonhado.
Depois dessa noite e por outros episódios semelhantes dessa época em que Fermina Daza já não sabia muito bem onde acabava a realidade e começava a ficção, teve a revelação extraordinária de que estava a enlouquecer. Por fim, verificou que o marido não comungara na quinta-feira de Corpo de Deus como também não o fizera em nenhum dos domingos das últimas semanas, nem arranjara tempo para os retiros espirituais daquele ano. Quando lhe perguntou a que se deviam aquelas mudanças insólitas da sua saúde espiritual, recebeu uma resposta meio confusa. Esta foi a chave decisiva porque ele nunca deixara de comungar numa data tão importante desde que fizera a sua primeira comunhão, aos oito anos. Assim se deu conta não só de que o marido se encontrava em pecado mortal como tinha resolvido continuar nele, uma vez que não recorria ao auxílio do seu confessor. Nunca tinha imaginado que se pudesse sofrer tanto por uma coisa que parecia ser completamente o oposto do amor, mas era assim que ela estava e resolveu que a única solução para não morrer era deitar fogo ao covil de víboras que lhe empeçonhava as entranhas. Assim foi. Uma tarde pôs-se a passajar meias no terraço enquanto o marido acabava a leitura diária depois da sesta. Então, interrompeu o lavor, levantou os óculos para a testa, e interpelou-o sem o mais leve sinal de aspereza:
- Doutor.
Ele estava imerso na leitura de A Ilha dos Pinguins1, o romance que toda a gente andava a ler naquela altura, e respondeu-lhe sem vir ao de cima: «Oui.» Ela insistiu:
Olha para mim.
Assim o fez, olhando para ela sem a ver pela bruma dos óculos de ler, mas não precisou de os tirar para se queimar no fogo do seu olhar.
O que é que foi? - perguntou.
Sabê-lo-ás melhor do que eu - disse ela.
Não disse nada. Voltou a baixar os óculos e continuou a passajar as meias. O doutor Juvenal Urbino ficou então a saber que as longas horas de ansiedade tinham acabado. Ao contrário da maneira como ele antevia aquele instante, não foi uma sacudidela sísmica do coração mas sim um tiro de paz. Era o grande alívio por ter acontecido mais cedo do que tarde o que tarde ou cedo tinha de acontecer: o fantasma da menina Barbara Lynch entrara finalmente em casa.
O doutor Juvenal Urbino tinha-a conhecido quatro meses antes, à espera de vez na consulta externa do Hospital da Misericórdia, e logo aí se deu conta de que algo irreparável acabava de suceder no seu destino. Era uma mulata alta, elegante, de ossos grandes, com a pele da mesma cor e da mesma natureza terna do melaço, vestida, naquela manhã, com um fato vermelho com pintas brancas e um chapéu do mesmo género com umas abas muito amplas que lhe davam sombra até às pálpebras. Parecia ser de um sexo mais definido que o resto dos humanos. O doutor Juvenal Urbino não atendia no serviço externo, mas sempre que por ali passava com algum tempo livre entrava para lembrar aos seus alunos mais velhos que não há melhor medicamento que um bom diagnóstico. De modo que arranjou maneira de estar presente no exame da mulata imprevista, fazendo tudo para que os seus discípulos não lhe notassem um gesto que não parecesse casual e praticamente não olhando para ela, mas registou muito bem na memória os dados da sua identidade. Nessa tarde, depois da última visita,
Romance do escritor francês Anatole France (1844-1924). (N. do E.)
fez com que o carro passasse pela direcção que ela dera na consulta e aí estava, com efeito, a apanhar o ar fresco de Março na varanda.
Era uma típica casa antilhana, toda pintada de amarelo, até ao tecto de zinco, com janelas de juta e potes de cravos e fetos pendurados no portão e construída sobre estacas de madeira na marisma de Mala Crianza. Um turpial1 cantava numa gaiola pendurada no beiral. No passeio em frente havia uma escola primária, e as crianças, que saíam em tropel, obrigaram o cocheiro a manter as rédeas firmes para evitar que o cavalo se espantasse. Foi uma sorte, porque a menina Barbara Lynch teve tempo de reconhecer o doutor. Cumprimentou-o com um aceno de antigos conhecidos, convidou-o a tomar um café enquanto esperava que passasse a desordem e ele tomou-o, encantado, contra o seu hábito, ouvindo-a falar de si própria, que era a única coisa que lhe interessava desde essa manhã e a única coisa que lhe ia interessar, sem um minuto de paz, nos próximos meses. Em certa ocasião, recém-casado, um amigo dissera-lhe diante da esposa que mais cedo ou mais tarde teria de enfrentar uma paixão enlouquecedora, capaz de pôr em risco a estabilidade do seu casamento. Ele, que julgava conhecer-se a si mesmo, que conhecia a fortaleza das suas raízes morais, rira-se do prognóstico. Pois bem: aí o tinha.
A menina Barbara Lynch, doutora em Teologia, era a única filha do reverendo Jonathan B. Lynch, um pastor protestante, negro e escorreito, que andava numa mula pelo casario miserável da marisma, pregando a palavra de um dos tantos deuses que o doutor Juvenal Urbino escrevia com letra minúscula para os diferençar do seu. Falava um bom castelhano, com uma pedrinha na sintaxe, cujos tropeços frequentes lhe aumentavam a graça. Fazia vinte e oito anos em Dezembro, divorciara-se há pouco de outro pastor, discípulo do pai, com quem esteve mal casada dois anos e não lhe tinha ficado vontade de reincidir. Disse: «Não tenho outro amor que o meu turpial.» Mas o doutor Urbino era demasiado sério para pensar que o tivesse dito com intenção. Pelo contrário: interrogou-se, confun
Pássaro parecido com o verdilhão. (N. da T.)
dido, se tanta facilidade junta não seria uma armadilha de Deus para depois lho cobrar com juros, mas logo afastou a ideia como se fosse um disparate teológico devido ao seu estado de confusão.
Já quando se ia a despedir fez um comentário casual sobre a consulta médica dessa manhã, sabendo que se há coisa de que os doentes gostam é de falar das suas mazelas, e ela foi tão generosa a falar das dela que ele prometeu voltar no dia seguinte, às quatro em ponto, para lhe fazer um exame mais minucioso. Ela assustou-se: sabia que um médico desse nível estava muito acima das suas possibilidades, mas ele tranquilizou-a: «Nesta profissão arranjamos maneira de que os ricos paguem pelos pobres.» Depois tomou nota no seu caderno de bolso: «Menina Barbara Lynch marisma de Mala Crianza, sábado, 16 horas.» Meses mais tarde, Fermina Daza havia de ler aquela ficha aumentada com os pormenores do diagnóstico e do tratamento, e com a evolução da doença. O nome chamou-lhe a atenção e logo lhe ocorreu que devia ser uma dessas artistas saídas dos barcos da fruta de Nova Orleães, mas a direcção fê-la pensar que era mais natural que fosse da Jamaica, e negra, é claro, e afastou-a sem dor dos gostos do marido.
O doutor Juvenal Urbino chegou ao encontro de sábado dez minutos antes da hora, e a menina Lynch ainda não tinha acabado de se vestir para o receber. Desde os seus tempos de Paris, quando tinha de se apresentar para um exame oral, que não sentira tensão semelhante. Estendida na cama de linho, com uma ténue combinação de seda, a menina Lynch era de uma beleza interminável. Tudo nela era grande e intenso: os músculos de sereia, a pele a fogo brando, os seios atónitos, as gengivas diáfanas de dentes perfeitos e todo o seu corpo irradiava um vapor de boa saúde que era o cheiro humano que Fermina Daza encontrava na roupa do marido. Tinha ido à consulta externa porque sofria de qualquer coisa a que ela chamava com muita graça «cólicas torcidas», e o doutor Urbino pensava que era um sintoma que não devia ser encarado com ligeireza. De modo que apalpou os seus órgãos internos com mais intenção do que atenção, e, enquanto isso, ia-se esquecendo da sua própria sabedoria e descobrindo que aquela criatura magnífica era tão bela por dentro como por fora, e então abandonou-se às delícias do tacto, já não como o médico mais conceituado do litoral caraíba, mas como um pobre homem de Deus atormentado pela desordem dos instintos. Só uma vez lhe havia acontecido uma coisa assim na sua severa vida profissional e tinha sido esse o seu dia de maior vergonha, porque a paciente, indignada, afastou-lhe a mão, sentou-se na cama, e disse-lhe«O que você quer pode ser que aconteça, mas não será assim.» A menina Lynch, pelo seu lado, abandonou-se às suas mãos, e quando não tinha já qualquer dúvida de que o médico não estava a pensar na sua ciência, disse:
- Eu julgava que isto não era permitido pela ética.
Ele estava tão ensopado em suor como se tivesse saído vestido de um tanque, e enxugou as mãos e a cara com uma toalha.
- A ética - disse - imagina que nós, os médicos, somos de ferro.
Ela estendeu-lhe uma mão agradecida.
- O facto de eu o achar não quer dizer que não se possa fazer - disse. - Imagine o que será para uma pobre negra como eu se em mim reparar um homem tão sonante!
- Não deixei de pensar em si nem por um instante - disse ele.
Foi uma confissão tão trémula que teria sido digna de pena. Mas ela pô-lo a salvo de todo o mal com uma gargalhada que iluminou o quarto.
- Eu sei, desde que o vi no hospital, doutor - disse.
- Sou negra, mas não sou estúpida.
Não foi nada fácil. A menina Lynch queria a sua honra limpa, queria segurança e amor, por essa ordem, e julgava merecê-lo. Deu ao doutor Urbino a oportunidade de a seduzir, mas sem entrar no quarto, ainda que estivesse sozinha em casa. O mais longe aonde chegou foi deixar que ele repetisse a cerimónia de apalpação e auscultação com todas as violações éticas que ele quisesse, mas sem lhe tirar a roupa. Ele, pelo seu lado, não conseguiu largar o bocado depois de o morder, e perseverou nos seus assédios quase diários. Por razões de ordem pratica, a relação continuada com a menina Lynch era-lhe quase impossível, mas era demasiado fraco para parar a tempo, como depois também o seria para continuar em frente. Foi o seu limite.
O reverendo Lynch não tinha uma vida regular. Em qualquer momento saía na sua mula, carregada com bíblias e folhetos de propaganda evangélica de um lado, e de provisões do outro, e voltava quando menos se esperava. Outro inconveniente era a escola em frente, porque as crianças cantavam as suas lições a olhar para a rua pelas janelas e o que melhor viam era a casa do passeio oposto, com as portas e as janelas abertas, de par em par, desde as seis da manhã, e viam a menina Lynch a pendurar a gaiola no beiral para o turpial aprender as lições cantadas, viam-na com um turbante colorido a cantá-las também ela com a sua brilhante voz caraíba enquanto tratava dos afazeres da casa, e viam-na depois, sentada no alpendre, a cantar sozinha em inglês os salmos da tarde.
Tinham de escolher uma hora a que as crianças não estivessem lá e só havia duas possibilidades: no intervalo do almoço, entre o meio-dia e as duas, que era também quando o doutor almoçava, ou ao fim da tarde, quando as crianças iam para suas casas. Esta última foi sempre a melhor hora, mas era também quando o doutor já tinha acabado as suas visitas e só dispunha de poucos minutos para chegar a horas de jantar com a família. O terceiro problema, e o mais grave para ele, era a sua própria condição. Não lhe era possível ir sem carro, que era muito conhecido, e tinha de estar sempre à porta. Teria podido fazer do cocheiro o seu cúmplice, como o faziam quase todos os seus amigos do Clube Social, mas isso estava completamente fora do alcance dos seus hábitos. Tanto assim que, quando as visitas à menina Lynch se tornaram por de mais evidentes, o próprio cocheiro da família, em libré, atreveu-se a perguntar-lhe se não seria melhor que voltasse mais tarde para o ir buscar para que o carro não ficasse tanto tempo estacionado à porta. O doutor Urbino, numa reacção estranha à sua maneira de ser, cortou-lhe imediatamente a palavra.
- Desde que te conheço é a primeira vez que te oiço dizer uma coisa que não devias - disse-lhe. - Pois bem, dou o dito por não dito.
Não havia solução. Numa cidade como esta era impossível ocultar uma doença enquanto o carro do médico estivesse à Porta. Às vezes, o próprio médico tomava a iniciativa de ir a pé, se a distância o permitia, ou ia num carro de aluguer, para evitar suposições maliciosas ou prematuras. No entanto, semelhantes enganos não serviam para muito, porque as receitas que se encomendavam nas farmácias permitiam decifrar a verdade a tal ponto que o doutor Urbino prescrevia remédios falsos juntamente com os correctos para preservar o direito sagrado dos doentes de morrerem em paz com o segredo das suas doenças Também podia justificar de várias formas honestas a presença do seu carro diante da casa da menina Lynch, mas não poderia ser por muito tempo, e ainda menos por tanto quanto ele teria querido: toda a vida.
O mundo tornou-se-lhe num inferno. Pois uma vez saciada a loucura inicial, ambos tomaram consciência dos riscos e o doutor Juvenal Urbino nunca se decidiu a enfrentar o escândalo. Nos delírios da febre, prometia tudo, mas depois que tudo passava, tudo voltava a ficar para depois. Porém, à medida que aumentava a ânsia de estar com ela, aumentava também o temor de a perder, de modo que os encontros foram-se tornando cada vez mais apressados e difíceis. Não pensava noutra coisa. Esperava as tardes com uma ansiedade insuportável, esquecia-se de outros compromissos, esquecia-se de tudo menos dela, mas, à medida que o carro se aproximava da marisma de Mala Crianza, ia rogando a Deus que um inconveniente de última hora o obrigasse a passar ao largo. Ia em tal estado de angústia que, às vezes, alegrava-se por ver da esquina a cabeça de algodão do reverendo Lynch a ler na varanda e a filha, na sala, a dar catequese às crianças do bairro com os Evangelhos cantados. Então ia feliz para casa para não continuar a desafiar a sorte, mas depois sentia-se enlouquecer de ansiedade para que o dia inteiro se transformasse nas cinco da tarde de todos os dias.
De modo que o namoro se tornou impossível quando o carro começou a ser demasiado evidente à porta e, ao fim de três meses, já era ridículo. Sem tempo para falarem, a menina Lynch metia-se no quarto assim que via entrar o amante perturbado. Tinha adoptado a precaução de vestir uma saia larga nos dias em que o esperava, uma magnífica saia da Jamaica com folhos de flores coloridas, mas sem roupa interior, sem nada, acreditando que a facilidade o ajudaria contra o medo. Mas ele desperdiçava tudo quanto ela fazia para o fazer felizSeguia-a a arquejar até ao quarto, ensopado em suor, e entrava de rompante a atirar tudo pelo chão, a bengala, a maleta de médico, o panamá, e fazia um amor assustado com as calças enroladas até aos joelhos, com o casaco abotoado para lhe estorvar menos, com o relógio de corrente no colete, com os sapatos calçados, com tudo, e mais preocupado em ir-se embora o mais depressa possível do que em viver o seu prazer. Ela ficava em jejum, à entrada do seu túnel de solidão, enquanto ele já estava a abotoar-se outra vez, exausto, como se tivesse feito o amor total sobre a linha divisória entre a vida e a morte, quando, na realidade, não tinha feito mais do que aquilo que o acto do amor tem de façanha física. Mas estava dentro da sua lei: o tempo à justa de dar uma injecção endovenosa num tratamento de rotina. Então regressava a casa, envergonhado pela sua fraqueza, com vontade de morrer, amaldiçoando-se pela sua falta de coragem para pedir a Fermina Daza que lhe tirasse as calças e lhe fizesse sentar o rabo num braseiro. Não jantava, rezava sem convicção, fingia continuar na cama a leitura da sesta enquanto a sua mulher dava voltas e mais voltas pela casa, pondo o mundo em ordem antes de se deitar. À medida que cabeceava sobre o livro, ia-se afundando a pouco e pouco no mangal inevitável da menina Lynch, nas suas emanações de floresta jazente, na sua cama de mortalha, e então não conseguia pensar em mais nada que nas cinco menos cinco da tarde de amanhã, e ela à espera dele na cama sem mais nada além do seu monte de esfregão escuro debaixo daquela saia maluca da Jamaica: o círculo infernal.
Há já alguns anos que começara a ter consciência do peso do seu próprio corpo. Reconhecia os sintomas. Lera-os nos textos, confirmara-os na vida real, em pacientes idosos sem antecedentes graves que de repente começavam a descrever síndromas perfeitas que pareciam tiradas dos livros de Medicina, e que, no entanto, acabava por se concluir que eram imaginárias. O seu professor de Pediatria de La Salpêtrière aconselhara-lhe este ramo da Medicina, como sendo a especialidade mais honesta, porque as crianças só adoecem quando estão, de facto, doentes e não podem comunicar com o médico com palavras convencionais mas sim com sintomas concretos de doenças reais. Os adultos, pelo seu lado, a partir de certa idade, ou tinham os sintomas sem as doenças ou, pior ainda: doenças gravês com os sintomas de outras inofensivas. Ele entretinha-os com paliativos, dando tempo ao tempo, até que aprendiam a não sentir os seus achaques à força de conviverem com eles no depósito de lixo da velhice. O que o doutor Juvenal Urbino nunca tinha pensado era que um médico da sua idade, que julgava já ter visto de tudo, não pudesse superar a inquietação de sentir-se doente quando não o estava. Ou pior: não acreditar que o estava por mero preconceito científico, quando talvez o estivesse de facto. Já aos quarenta anos, meio a sério meio a brincar, tinha dito na cátedra: «A única coisa de que preciso na vida é de alguém que me compreenda.» Mas quando se viu perdido no labirinto da menina Lynch, já não pensou nisso a brincar.
Todos os sintomas reais ou imaginários dos seus pacientes mais velhos acumularam-se-lhe no corpo. Sentia a forma do fígado com tal nitidez que podia saber o seu tamanho sem lhe tocar. Sentia o ronronar de gato adormecido dos seus rins, sentia o brilho furta-cores da sua vesícula, sentia o zumbido do sangue nas suas artérias. Às vezes acordava como um peixe, sem ar para respirar. Tinha água no coração, sentia-o perder o compasso por um instante, sentia que se atrasava uma pulsação como nas marchas militares do colégio, uma e outra vez, e, por fim, sentia-o recuperar porque Deus é grande. Mas em vez de apelar para os mesmos remédios de distracção que dava aos seus doentes, ficava encandeado pelo medo. Tinha razão: a única coisa de que precisava na vida, também aos cinquenta e oito anos, era de alguém que o compreendesse. De modo que recorreu a Fermina Daza, o ser que mais o amava e a quem ele mais amava neste mundo e com quem acabava de pôr a sua consciência em paz.
Isto sucedeu depois dela o interromper na sua leitura da tarde para lhe pedir que olhasse para ela e ele teve o primeiro indício de que o seu círculo infernal tinha sido descoberto. Porém, não percebia como, porque lhe teria sido impossível imaginar que Fermina Daza tivesse encontrado a verdade por simples olfacto. De todos os modos, e já há muito tempo, que esta não era uma cidade boa para se ter segredos. Passado pouco tempo de se terem instalado os primeiros telefones domésticos, vários casais que pareciam estáveis desfizeram-se por causa de intrigas de chamadas anónimas e muitas famílias atemorizadas suspenderam o serviço ou negaram-se a tê-lo durante anos. O doutor Urbino sabia que a sua esposa se respeitava tanto a si própria que não permitiria sequer uma tentativa de inconfidência anónima pelo telefone e não podia pensar em ninguém que fosse tão atrevido que o fizesse em nome próprio. Mas receava o velho sistema: um papel enfiado por baixo da porta por uma mão desconhecida podia ser eficaz, não só porque garantia o duplo anonimato do remetente e do destinatário, mas também porque a sua linhagem lendária permitia atribuir-lhe alguma relação metafísica com os desígnios da Divina Providência.
Os ciúmes não conheciam a sua casa: durante mais de trinta anos de paz conjugal, o doutor Urbino gabara-se em público, muitas vezes, e até então era verdade, de ser como os fósforos suecos, que só se acendiam na sua própria caixa. Mas ignorava qual podia ser a reacção de uma mulher com tanto orgulho como a sua, com tanta dignidade e com uma carácter tão forte, diante de uma infidelidade comprovada. De modo que depois de olhar para ela como ela lho pedira, não se lembrou de mais nada do que baixar outra vez os olhos para disfarçar a perturbação e continuou a fingir-se enleado nos doces meandros da ilha de Alça, enquanto pensava no qie havia de fazer. Fermina Daza, por seu lado, também não disse mais nada. Quando acabou de passajar as meias meteu as coisas sem qualquer ordem dentro da caixa de costura, deu, na cozinha, algumas instruções para o jantar e foi para o quarto.
Ele já tinha então a sua resolução tão bem tomada que às cinco da tarde não passou por casa da menina Lynch. As promessas de amor eterno, a ilusão de uma casa discreta só para ela onde ele pudesse visitá-la sem sobressaltos, a felicidade sem pressa até à morte, tudo quanto tinha prometido no meio das labaredas do amor ficou cancelado para todo o sempre. A última coisa que a menina Lynch teve dele foi um diadema de esmeraldas que o cocheiro lhe entregou sem comentários, sem um recado, sem um bilhete escrito, e dentro de uma caixinha embrulhada em papel de farmácia para que o próprio cocheiro julgasse que se tratava de um medicamento urgente. Não voltou a vê-la nem por acaso até ao fim dos seus dias e só Deus soube quanto sofrimento lhe custou esta resolução heróica e quantas lágrimas de fel teve de chorar fechado na retrete para sobreviver ao seu desastre íntimo. Às cinco, em vez de ir com ela, fez ante o seu confessor um acto de profunda contrição e no domingo seguinte comungou com o coração feito em pedaços mas com a alma tranquila. ’
Na própria noite da renúncia, enquanto se despia para dormir, repetiu a Fermina Daza a amarga litania das suas insonias matinais, as pontadas súbitas, a vontade de chorar ao entardecer, os sintomas cifrados do amor escondido que ele contava então como se se tratassem das infelicidades da velhice. Tinha de fazê-lo com alguém para não morrer, para não ter de contar a verdade e, ao fim e ao cabo, aqueles desabafos estavam consagrados nos rituais domésticos do amor. Ela ouviu-o com atenção, mas sem olhar para ele, sem dizer nada, enquanto ia recebendo a roupa que ele tirava. Cheirava cada peça sem nenhum gesto que traísse a sua raiva, enrolava-a de qualquer maneira e deitava-a para o cesto de vime da roupa suja. Não encontrou o cheiro, mas tanto fazia: amanhã será outro dia. Antes de se ajoelhar para rezar em frente do altarzinho do quarto, ele concluiu a história dos seus infortúnios com um suspiro triste e, além disso, sincero: «Acho que vou morrer.» Ela não pestanejou sequer para lhe responder:
- Seria o melhor - disse. - Assim estaremos os dois mais sossegados.
Anos antes, na crise de uma doença perigosa, ele havia falado na possibilidade de morrer e ela tinha-lhe atirado com a mesma resposta brutal. O doutor Urbino atribuiu-a à inclemência própria das mulheres, graças à qual é possível que a Terra continue a girar em volta do Sol, porque então ignorava que ela se defendia sempre com uma barreira de raiva para que não se lhe notasse o medo. E, nesse caso, o mais terrível de todos, que era o medo de ficar sem ele.
Naquela noite, pelo contrário, tinha desejado a morte com todo o ímpeto do seu coração e essa certeza alarmou-o. Depois, sentiu-a soluçar na escuridão, muito devagar, mordendo a almofada para que ele não a ouvisse. E isto acabou de o transtornar, porque sabia que ela não chorava facilmente por nenhuma dor do corpo ou da alma. Só chorava por uma raiva grande, e mais ainda se esta tinha a sua origem de alguma maneira no seu terror da culpa, e então, quanto mais chorava, com mais raiva ficava porque não conseguia perdoar-se a fraqueza de chorar. Ele não se atreveu a consolá-la, sabendo que teria sido como onsolar um tigre atravessado por uma lança, nem teve coragem para lhe dizer que os motivos do seu pranto tinham desaparecido nessa tarde e que haviam sido arrancados pela raiz, e para sempre, até da sua memória.
O cansaço venceu-o por uns minutos. Quando acordou, ela tinha acendido a ténue luz da mesinha-de-cabeceira e continuava com os olhos abertos, mas sem chorar. Algo de definitivo lhe aconteceu enquanto ele dormia: os sedimentos acumulados no fundo da sua idade através de tantos anos tinham sido remexidos pelo suplício dos ciúmes e vinham todos à tona, envelhecendo-a em segundos. Impressionado com as suas rugas instantâneas, os seus lábios murchos, as cinzas do seu cabelo, ele arriscou-se a dizer-lhe que fizesse por dormir: já passava das duas. Ela falou-lhe sem olhar para ele, mas já sem nenhum rastro de raiva na voz, quase com mansidão.
- Tenho o direito de saber quem é - disse.
E então ele contou-lhe tudo, sentindo que tirava de cima de si todo o peso do mundo, porque estava convencido de que ela sabia e que só faltava confirmar os pormenores. Mas claro que não era assim, de modo que enquanto ele falava ela voltou a chorar, e não com soluços tímidos como no princípio, mas com lágrimas soltas e salobres que lhe escorriam pela cara e lhe ardiam na camisa de noite, e lhe inflamavam a vida, porque ele não tinha feito o que ela esperara, com a alma por um fio, e que era negar-lhe tudo até à morte, indignar-se pela calúnia, desatar aos gritos mandando à merda esta sociedade filha da mãe que não tinha o menor pejo em espezinhar a honra alheia, e que se tivesse mantido imperturbável diante das provas irrefutáveis da sua deslealdade: como um homem. Assim, quando ele lhe contou que havia estado nessa tarde com o seu confessor, receou cegar de raiva. Desde o colégio que tinha a convicção de que a gente da Igreja carecia de qualquer virtude inspirada por Deus. Esta era uma dissonância essencial na harmonia da casa, que tinham conseguido ultrapassar sem acidentes. Mas que o marido tivesse consentido que o confessor se imiscuísse até esse ponto numa intimidade que não era apenas a sua, mas também a dela, era uma coisa que passava dos limites.
- E o mesmo que contar a um vendedor de banha da cobra - disse.
Para ela era o fim. Tinha a certeza de que a sua honra andava de boca em boca ainda antes de o marido ter acabado de cumprir a penitência, e o sentimento de humilhação que isso lhe causava era muito menos suportável que a vergonha, a raiva e a injustiça da infidelidade. E o pior de tudo, merda, com uma negra. Ele emendou: «Mulata.» Mas nessa altura toda a precisão estava a mais: ela tinha acabado.
- É a mesma treta - disse -, e só agora percebo: era um cheiro de negra.
Isto aconteceu numa segunda-feira. Na sexta-feira, às sete da tarde, Fermina Daza embarcou no navio de carreira regular de San Juan de Ia Ciénaga, só com um baú, em companhia da afilhada e com a cara coberta por um véu, para evitar perguntas que fossem feitas ao marido. O doutor Juvenal Urbino não foi ao porto, por acordo de ambos, depois de uma conversa esgotante de três dias, na qual decidiram que ela iria para a fazenda da prima Hildebranda Sanchez, na povoação de Flores de Maria, com o tempo suficiente para reflectir antes de tomar uma decisão definitiva. Os filhos, sem conhecerem os motivos, julgaram que era uma viagem muitas vezes adiada que até eles desejavam fazer há muito tempo. O doutor Urbino zelou para que ninguém da sua esferazinha pérfida pudesse fazer especulações maliciosas e fê-lo tão bem que se Florentine Ariza não encontrou nenhuma pista quanto ao desaparecimento de Fermina Daza foi porque não existiam, e não porque lhe faltassem os meios para a averiguação. O marido não tinha dúvidas de que ela voltaria a casa assim que lhe passasse a fúria. Mas ela partiu com a certeza de que a fúria nunca lhe passaria.
No entanto, iria aprender muito depressa que essa determinação excessiva não era tanto o fruto do ressentimento como da nostalgia. Depois da viagem de lua-de-mel tinha voltado várias vezes à Europa, apesar dos dez dias de mar, e sempre o tinha feito com tempo de sobra para ser feliz. Conhecia o mundo, tinha aprendido a viver e a pensar de outra maneira, mas nunca havia voltado a San Juan de Ia Ciénaga depois do frustrado voo de balão. O regresso à província da prima Hildebranda tinha para ela qualquer coisa de redenção, mesmo que fosse tardia. Não pensou nisso a propósito do seu desastre matrimonial: era muito mais antigo. A verdade é que a simples ideia de resgatar os seus amores de adolescente consolava-a da sua desdita.
Quando desembarcou com a afilhada em San Juan de Ia Ciénaga, apelou para as grandes reservas do seu carácter e reconheceu a cidade contra todas as advertências. O chefe civil e militar da praça, ao qual ia recomendada, convidou-a para uma volta na vitória oficial enquanto não saía o comboio para San Pedro Alejandrino, onde quis ir para comprovar o que lhe tinham dito, que a cama em que morreu o Libertador era tão pequena como a de uma criança. Então Fermina Daza voltou a ver a sua terra grande no marasmo das duas da tarde. Voltou a ver as ruas que mais pareciam areais com charcos cobertos de musgo e voltou a ver as mansões dos portugueses com os seus escudos heráldicos talhados no pórtico e gelosias de bronze nas janelas, em cujos salões sombrios se repetiam sem compaixão os mesmos exercícios de piano, titubeantes e tristes, que a sua mãe, recém-casada, tinha ensinado às meninas das casas ricas. Viu a praça deserta, sem uma árvore sobre o braseiro da caliça, a fileira de carros de capotas fúnebres com os cavalos a dormir em pé, o comboio amarelo de San Pedro Alejandrino, e, na esquina da igreja matriz, viu a casa maior, a mais bela, com um corredor de arcadas de pedra esverdeada e um portão de mosteiro, e a janela do quarto onde nasceria Álvaro muitos anos depois, quando já ela não tivesse memória para o recordar. Pensou na tia Escolástica, a quem continuava a procurar sem esperanças por céu e terra, e a pensar nela deu consigo a pensar em Florentine Ariza, no seu fato de literato e com o livro de versos debaixo das amendoeiras do parque, como raramente lhe ocorria quando evocava os seus anos ingratos do colégio. Depois de dar muitas voltas não conseguiu reconhecer a antiga casa familiar, porque onde supunha que estava só havia uma pocilga e ao voltar da esquina da rua dos bordéis, com putas de todo o mundo a dormir a sesta nas portas de entrada, para o caso de passar o correio com alguma coisa para elas. Não era a sua terra.
Desde o princípio do passeio que Fermina Daza cobrira metade do rosto com o véu, não por medo de ser reconhecida onde ninguém a podia conhecer, mas sim devido à vista dos mortos que inchavam ao sol por todo o lado, desde a estação do comboio até ao cemitério. O chefe civil e militar da praça disse-lhe: «É a cólera.» Ela sabia-o porque tinha visto os coágulos brancos na boca dos cadáveres encarquilhados, mas reparou que nenhum tinha o tiro de misericórdia na nuca, como na altura do balão.
- Assim é - disse-lhe o oficial. - Também Deus melhora os seus métodos.
A distância de San Juan de Ia Ciénaga ao antigo engenho de San Pedro Alejandrino era de apenas vinte e poucos quilómetros, mas o comboio amarelo levava o dia todo, porque o maquinista era amigo dos passageiros habituais e estes pediam-lhe o favor de parar a todo o momento para esticarem as pernas a andar pelos prados de golfe da companhia bananeira, e os homens tomavam banho nus nos rios transparentes e gelados que desciam da serra e, quando tinham fome, apeavam-se para ordenhar as vacas soltas nos prados. Fermina Daza chegou aterrorizada e teve apenas tempo para admirar os tamarindos homéricos onde o Libertador pendurava a sua rede de moribundo, e de comprovar que a cama onde morreu, tal como lhe tinham dito, não só era pequena para um homem de tanta glória como até o seria para um bebé prematuro de sete meses. No entanto, outro visitante que parecia saber tudo disse que a cama era uma relíquia falsa, pois a verdade era que tinham deixado morrer o «Pai da Pátria» deitado pelo chão. Fermina Daza estava tão deprimida com o que viu e ouviu desde que saiu de casa que, durante o resto da viagem, não se deleitou na recordação da viagem anterior, como tanto o tinha desejado, mas evitava passar pelas terras da sua saudade. Assim preservou-os e preservou-se a si mesma da desilusão. Ouvia os acordeões nos atalhos por onde fugia do desencanto, ouvia os gritos dos que assistiam às lutas de galos, as salvas de pólvora que tanto podiam ser de guerra como de paródia, e quando não havia outro remédio do que atravessar a povoação, cobria a cara com o véu para continuar a evocá-la como era antes.
Uma noite, depois de muito iludir o passado, chegou à fazenda da prima Hildebranda e quando a viu à espera, à porta, sentiu-se a ponto de desfalecer; era como ver-se a si própria no espelho da verdade. Estava gorda e decrépita, carregada de filhos indómitos que não eram do homem que continuava a amar sem esperanças, mas sim de um militar que gozava de uma bela reforma com quem casou por despeito e que a amou loucamente. Mas por dentro do corpo desvastado continuava a ser a mesma. Fermina Daza recuperou-se da impressão com alguns dias de campo e boas recordações, mas não saiu da fazenda senão para ir à missa ao domingo com os netos dos seus desordeiros cúmplices de antigamente, rapagões em cavalos magníficos e raparigas lindas e bem vestidas, como as mães o eram com a mesma idade, que iam de pé nos carros de bois, cantando em coro até à igreja da missão no fundo do vale. Só passou pela povoação de Flores de Maria, onde não estivera na viagem anterior porque pensava que não lhe ia agradar, mas quando a conheceu ficou fascinada. A sua infelicidade, ou a da povoação, foi que depois nunca a conseguiu recordar como era na realidade mas sim como a imaginara antes de a conhecer.
O doutor Juvenal Urbino tomou a decisão de ir buscá-la depois de receber a informação do bispo de Riohacha. A sua conclusão foi que a demora da esposa não se ficava tanto a dever a que não quisesse voltar mas sim ao facto de não saber como vencer o orgulho. De modo que foi sem a avisar, depois de uma troca de cartas com Hildebranda, pelas quais tirou a limpo que se tinham invertido os papéis das saudades da esposa: agora só pensava na sua casa. Fermina Daza estava na cozinha às onze da manhã, a preparar beringelas recheadas, quando ouviu os gritos dos moços, os relinchos, os disparos para o ar e a seguir os passos decididos no saguão, e a voz do homem:
- Mais vale chegar a tempo do que ser convidado.
Julgou morrer de alegria. Sem tempo para pensar, lavou as mãos de qualquer maneira, murmurando: «Obrigado, meu Deus, obrigado, que bom que és», pensando que ainda não havia tomado banho por causa das malditas beringelas que Hildebranda lhe tinha pedido sem lhe dizer quem vinha almoçar, Pensando que estava tão velha e feia e com a cara tão pelada por causa do sol que ele se ia arrepender de ter vindo quando a visse neste estado, maldito fosse. Mas enxugou as mãos como pôde com o avental, arranjou a aparência como pôde, chamou a si toda a altivez com que a sua mãe a deitara ao mundo para meter na ordem o coração tresloucado e foi ter com o homem com o seu doce andar de gazela, de cabeça levantada, de olhar lúcido, o nariz de guerra, e grata com o seu destino pelo alívio imenso de voltar para casa, ainda que não tão facilmente quanto ele julgava, claro, porque ia feliz com ele, claro, mas também decidida a fazê-lo pagar em silêncio os sofrimentos amargos que lhe tinham dado cabo da vida.
Quase dois anos depois do desaparecimento de Fermina Daza aconteceu um desses acasos impossíveis que Trânsito Ariza tinha qualificado como uma partida de Deus. Florentine Ariza não se tinha deixado impressionar de forma especial pela invenção do cinema, mas Leona Cassiani levou-o sem resistência à estreia espectacular de Cabina1, cuja publicidade se fundamentava nos diálogos escritos pelo poeta Gabriele D’Annunzio. O grande recinto ao ar livre do senhor Galileo Daconte, onde em algumas noites se tirava mais satisfação do esplendor das estrelas que dos amores mudos do ecrã, tinha ficado repleto por uma clientela selecta. Leona Cassiani seguia as peripécias da história com o coração apertado. Florentino Ariza, pelo seu lado, cabeceava de sono pelo peso fastidioso do drama. Por trás de si, uma voz de mulher pareceu adivinhar-lhe o pensamento:
- Meu Deus, isto é mais longo que uma dor!
Foi a única coisa que disse, talvez inibida pela ressonância da sua voz na penumbra, pois aqui ainda não vigorava o hábito e enfeitar os filmes mudos com o acompanhamento de piano, e na plateia em penumbra só se ouvia o sussurro de chuva do projector. Florentino Ariza não se lembrava de Deus a não ser nas situações mais difíceis, mas dessa vez deu-lhe graças com toda a sua alma. Pois mesmo que tivesse estado a cinquenta metros de profundidade teria reconhecido imediatamente aquela voz de metais em surdina que levava na alma desde a tarde em que a tinha ouvido dizer, no meio de um monte de folhas amarelas de um parque solitário: «Agora, vá-se embora e volte só quando eu lhe disser.» Sabia que estava sentada no banco atrás do seu, ao lado do inevitável marido, distinguia a
1 Filme realizado, em 1914, pelo italiano Rero Fosco (1882-1959). (N. do E.)
sua respiração quente e bem ritmada e inalava com amor o ar purificado pela boa saúde do seu alento. Não a sentiu corroída pela traça da morte, como costumava imaginá-la no abatimento dos últimos meses e evocou-a outra vez na sua idade radiante e feliz, com o ventre curvado pela semente do primeiro filho sob a túnica de Minerva. Imaginava-a como se estivesse a vê-la, sem olhar para trás, completamente alheio aos desastres históricos que transbordavam da tela. Deleitava-se com os aromas do perfume de amêndoas que lhe chegava vindo da sua intimidade, ansioso por saber como pensava ela que deviam apaixonar-se as mulheres do cinema para que os seus amores doessem menos que os da vida. Pouco antes do fim, com uma palpitação de alegria, deu-se conta de que nunca tinha estado tanto tempo tão perto de alguém a quem tanto amava.
Esperou que os outros se levantassem quando acenderam as luzes. Depois levantou-se sem pressa, aparentou abotoar distraidamente o colete que desapertava sempre durante a função, e encontraram-se os quatro tão perto uns dos outros que teriam que se cumprimentar de todas as maneiras, mesmo que algum deles não o tivesse querido fazer. Juvenal Urbino cumprimentou primeiro Leona Cassiani, a quem conhecia bem, e depois apertou a mão a Florentino Ariza com a gentileza habitual. Fermina Daza dirigiu aos dois um sorriso cortês, nada mais que cortês, mas ainda assim um sorriso de alguém que os tinha visto muitas vezes, que sabia quem eram e que, portanto, não tinham de lhe ser apresentados. Leona Cassiani correspondeu-lhe com a sua graciosidade mulata. Por sua vez, Florentino Ariza ficou sem saber o que fazer, de tal maneira estava atónito ao vê-la.
Era outra. Não havia no seu rosto qualquer indício da terrível doença em moda, nem de nenhuma outra, e o seu corpo ainda conservava o peso e a esbelteza dos seus melhores tempos, mas era evidente que os últimos dois anos tinham passado por ela com a severidade de dez mal vividos. O cabelo curto ficava-lhe bem, com uma curva de asa nas faces, mas já não era cor de mel e sim de alumínio, e os formosos olhos amendoados tinham perdido meia vida de luz por trás de uns óculos de avó. Florentino Ariza viu-a afastar-se de braço dado com o marido entre a multidão que saía do cinema e surpreendeu-se por estar num sítio público com uma mantilha de pobre e os chinelos de andar por casa. Mas o que mais o comoveu foi que o marido teve de a agarrar pelo braço para lhe indicar o caminho da saída, e mesmo assim calculou mal a altura e esteve a ponto de cair no degrau da porta.
Florentine Ariza era muito sensível a esses precalços da idade. Quando ainda jovem, interrompia a leitura dos versos nos parques para observar os casais de anciãos que se ajudavam a atravessar a rua e eram lições de vida que lhe tinham servido para avistar as leis da sua própria velhice. Na idade do doutor Juvenal Urbino naquela noite no cinema, os homens floresciam numa espécie de juventude outonal, pareciam mais dignos com as primeiras cãs, tornavam-se engenhosos e sedutores, sobretudo aos olhos das mulheres jovens, enquanto as esposas murchas se tinham de segurar aos seus braços para não tropeçarem até na própria sombra. Poucos anos depois, no entanto, os maridos despenhavam-se rapidamente no precipício de uma velhice infame de corpo e alma e então eram as suas esposas legítimas que tinham de os levar pelo braço como ceguinhos, sussurrando-lhes ao ouvido, para não ferir o seu orgulho de homem, que reparassem bem que eram três e não dois degraus, que havia uma poça de água no meio da rua, que esse pacote atirado no meio da estrada era um mendigo morto e ajudando-os com grande dificuldade a atravessar a rua como se fosse o único vau no último rio da vida. Florentine Ariza tinha-se visto tantas vezes nesse espelho, que nunca teve tanto medo da morte como da infame idade em que tivesse de ser levado pelo braço de uma mulher. Sabia que, nesse dia, e só nesse, teria de renunciar à esperança de Fermina Daza.
O encontro afugentou-lhe o sono. Em vez de levar Leona Cassiani no carro, acompanhou-a a pé pela cidade velha, onde os seus passos ressoavam como ferraduras de cavalos sobre o lajedo. Às vezes escapavam-se retalhos de vozes fugitivas pelas varandas, confidências de alcovas, soluços de amor tornados magníficos pela acústica fantasmagórica e a fragrância quente dos jasmins nas ruelas adormecidas. Mais uma vez, Florentine Ariza teve de chamar a si todas as suas forças para não revelar a Leona Cassiani o seu amor reprimido por Fermina Daza. Caminhavam juntos, com os passos contados, amando-se sem pressa como noivos velhos, ela a pensar nas graças de Cabíria e ele na sua própria desgraça. Um homem estava a cantar numa varanda da Praça da Alfândega e o seu canto foi-se repetindo por todo o recinto em ecos encadeados: Quando eu atravessava as ondas imensas do mar. Na Rua dos Santos de Pedra, exactamente quando se devia despedir dela diante da sua casa, Florentine Ariza pediu a Leona Cassiani que o convidasse para tomar um brande. Era a segunda vez que lho pedia em circunstâncias idênticas. Da primeira vez, dez anos antes, ela dissera-lhe: «Se sobes a esta hora terás de ficar para sempre.» Ele não subiu. Mas agora teria subido de qualquer maneira, mesmo que depois tivesse de faltar à sua palavra. Não obstante, Leona Cassiani convidou-o a subir sem compromissos.
Foi assim que se encontrou quando menos o pensava no santuário de um amor extinto antes de nascer. Os pais dela tinham morrido, o seu único irmão havia feito fortuna no Curaçau e ela vivia sozinha na sua antiga casa familiar. Anos antes, quando ainda não tinha renunciado à esperança de a fazer sua amante, Florentino Ariza costumava visitá-la aos domingos com o consentimento dos pais e, por vezes, à noite, até muito tarde, e tinha feito tantas sugestões ao arranjo da casa que acabou por reconhecê-la como sua. Contudo, naquela noite, depois do cinema, teve a sensação de que a sala de visitas tinha sido purificada das suas recordações. Os móveis haviam mudado de lugar, existiam outras gravuras penduradas nas paredes e ele pensou que tantas mudanças tão ostensivas tinham sido feitas de propósito para perpetuar a certeza de que ele não havia existido nunca. O gato não o reconheceu. Assustado pela peçonha do esquecimento, disse: «Já não se lembra de mim.» Mas ela respondeu-lhe, de costas, enquanto servia os brandes, que se isso o preocupava, que dormisse descansado porque os gatos nunca se lembram de ninguém.
Encostados no sofá, muito juntos, falaram deles, do que foram antes de se conhecerem certa tarde de quem sabe quando, no transporte das mulas. As suas vidas decorriam em gabinetes contíguos e nunca até então tinham falado de outra coisa que não fosse o trabalho de todos os dias. Enquanto conversavam, Florentino Ariza pôs-lhe a mão na coxa, começou a acariciá-la com o seu suave tacto de sedutor empedernido e ela deixou-o, mas não lhe devolveu nem um estremecimento de cortesia. Só quando ele tentou ir mais longe segurou-lhe na mão exploradora e deu-lhe um beijo na palma.
- Porta-te bem - disse-lhe. - Há já muito tempo que me dei conta de que não és o homem que eu procuro.
Quando era muito jovem, um homem forte e direito, cujo rosto nunca viu, derrubara-a de surpresa, no cais, tinha-a despido à pancada e fizera com ela um amor rápido e frenético. Atirada sobre as pedras, cheia de golpes por todo o corpo, ela quisera que aquele homem ficasse ali para sempre, para morrer de amor nos seus braços. Não lhe vira a cara, não lhe ouvira a voz, mas estava certa de o reconhecer entre mil pela sua forma, pelo seu tamanho e pela sua maneira de fazer amor. Desde então dizia a quem a quisesse ouvir: «Se alguma vez souberes de um tipo grande e forte que violou uma pobre negra da rua no Cais dos Afogados, num certo dia quinze de Outubro, por volta das onze e meia da noite, diz-lhe onde me pode encontrar.» Dizia-o por simples hábito, e dissera-o a tantos que já perdera as esperanças. Florentine Ariza tinha-lhe ouvido muitas vezes essa história da mesma maneira que ouviria os adeuses de um barco na noite. Quando deram as duas da manhã, tinham bebido três brandes cada um e ele sabia, realmente, que não era o homem que ela esperava, e ficou contente por sabê-lo.
- Bravo, leoa - disse-lhe ao sair -, matámos o tigre. Não foi só isso que se acabou naquela noite. O falso segredo do pavilhão dos tísicos roubara-lhe o sono, porque lhe infundiu a suspeita inconcebível de que Fermina Daza era mortal e, portanto, podia morrer antes do marido. Mas quando a viu tropeçar à saída do cinema, deu por sua própria conta mais um passo rumo ao abismo, com a revelação súbita de que era ele e não ela quem podia morrer primeiro. Foi um presságio, e dos mais temíveis, porque estava baseado na realidade. Para trás tinham ficado os anos de espera imóvel, das esperanças venturosas, mas no horizonte não se avistava mais nada que o insondável pélago das doenças imaginárias, as micções gota a gota nas madrugadas de insónia, a morte diária ao entardecer. Pensou que cada um dos momentos do dia, que antes tinham sido mais que seus aliados, seus cúmplices juramentados, começavam a conspirar contra ele. Poucos anos antes tinha acorrido a um encontro feliz com o coração oprimido pelo pânico do azar,
tinha dado com a porta sem ferrolho e os gonzos acabados de olear para ele entrar sem fazer barulho, mas arrependeu-se no último momento, receando causar a uma mulher alheia e prestável o prejuízo irreparável de morrer na cama dela. De forma que era razoável pensar que a mulher mais amada sobre a terra,
aquela por quem esperara de um século para o outro sem um suspiro de desencanto, teria apenas tempo de o levar pelo braço através de uma rua de túmulos lunares e canteiros de papoilas desordenadas pelo vento, para o ajudar a chegar são e salvo ao outro passeio da morte.
A verdade é que para os critérios da sua época, Florentine Ariza havia passado ao largo pelos arredores da velhice. Tinha cinquenta e seis anos, feitos bem feitos, e pensava que eram também muito bem vividos, porque foram anos de amor. Mas nenhum homem dessa época teria enfrentado o ridículo de parecer jovem na sua idade, mesmo que o fosse ou que o acreditasse, nem todos se teriam atrevido a confessar sem vergonha que ainda choravam às escondidas por um desaire do século anterior. Era uma época má para se ser jovem: havia uma maneira de vestir para cada idade, mas a da velhice começava pouco depois da adolescência e durava até ao túmulo. Era, mais que uma idade, uma dignidade social. Os jovens vestiam-se como os seus avós, tornavam-se mais respeitáveis com os óculos prematuros e a bengala era muito bem-vista a partir dos trinta anos. Para as mulheres só havia duas idades: a idade de se casarem, que não ia além dos vinte e dois anos, e a idade de serem solteiras eternas: as que ficavam para tias. As outras, as casadas, as mães, as viúvas, as avós eram uma espécie diferente que não fazia contas à sua idade em relação aos anos vividos, mas sim em relação ao tempo que lhes faltava para morrerem.
Florentine Ariza, pelo contrário, enfrentou as ameaças da velhice com uma temeridade obstinada, mesmo sabendo que tinha a estranha sina de parecer velho desde muito novo. No Princípio foi uma necessidade. Trânsito Ariza desmanchava e voltava a coser para ele as roupas que o pai decidia deitar fora, de modo que ia à escola primária com uns casacos que lhe chegavam ao chão quando se sentava e uns chapéus ministeriais que se lhe afundavam até às orelhas, apesar de terem a forma diminuída com recheio de algodão. Como também usava óculos de míope desde os cinco anos e tinha o mesmo cabelo índio da mãe, que era eriçado e forte como crina de cavalo seu aspecto deixava muito a desejar. Por sorte, depois de tantas desordens de governo por causa de inúmeras guerras civis sobrepostas, os critérios escolares eram menos selectivos que antes e havia uma confusão de origens e condições sociais nas escolas públicas. Crianças ainda por criar chegavam às aulas fedendo a pólvora de barricada, com insígnias e uniformes de oficiais rebeldes ganhos a chumbo em combates incertos e com as armas do regulamento bem visíveis no cinto. Defrontavam-se a tiro por qualquer discussão no recreio, ameaçavam os professores se lhes davam más notas nos exames e, um deles, estudante da terceira classe no Colégio La Salle e coronel de milícias na reforma, matou com uma bala o irmão Juan Eremita, prefeito da comunidade, porque disse na aula de catecismo que Deus era membro militante do Partido Conservador.
Por outro lado, os filhos das grandes famílias em desgraça andavam vestidos de príncipes antigos, e alguns muito pobres andavam descalços. Entre tantas invulgaridades, vindas de toda a parte, Florentino Ariza estava, de todos os modos, entre os mais invulgares, mas não tanto que chamasse exageradamente a atenção. O mais duro que ouviu foi o que alguém lhe gritou na rua: «O que é feio e pobre sonha com ouro a pensar em cobre.» De qualquer maneira, aquela vestimenta imposta pela necessidade era já, nessa altura, e foi-o pelo resto da sua vida, a mais adequada à sua índole enigmática e ao seu carácter sombrio. Quando lhe deram o primeiro cargo importante na CFC mandou fazer roupas à medida no mesmo estilo das do pai, de quem ele se lembrava como de um velhinho que tinha morrido com a venerável idade de Cristo: trinta e três anos. Assim, Florentino Ariza pareceu sempre ser muito mais velho do que de facto era. Tanto assim que a linguaruda Erigida Zuleta, uma amante fugaz que lhe dizia as verdades sem papas na língua, disse-lhe desde o primeiro dia que gostava mais dele quando se despia, porque nu tinha menos vinte anos. Contudo nunca soube como havia de o remediar, primeiro porque o seu gosto pessoal não dava para que se vestisse de outra maneira e, segundo, porque ninguém sabia como vestir-se de uma forma mais juvenil aos vinte anos, a não ser que voltasse a tirar do roupeiro os calções curtos e o gorro de grumete. Por outro lado, ele também não conseguia fugir à noção de velhice do seu tempo, de modo que era tão natural, ao ver Fermina Daza tropeçar à saída do cinema, que tivesse sido sacudido por um relâmpago de pânico de que a puta da morte lhe fosse ganhar irremediavelmente a sua encarniçada guerra de amor.
Até então, a sua grande batalha, travada de peito aberto e perdida sem glória, tinha sido a da calvície. Assim que viu os primeiros cabelos que ficavam enredados no pente, deu-se conta de que estava condenado a um inferno cujo suplício é inimaginável para quem não o padece. Resistiu durante anos. Não houve mistela nem elixir que não experimentasse, nem crendice em que não acreditasse, nem sacrifício que não suportasse para defender da devastação voraz cada polegada da sua cabeça. Aprendeu de cor as instruções do Almanaque Bristol para a agricultura porque ouviu alguém dizer que o crescimento do cabelo tinha uma relação directa com os ciclos de colheita. Deixou de ir ao seu barbeiro de sempre, que era solenemente careca, e trocou-o por um forasteiro recém-chegado, que só cortava o cabelo quando a Lua entrava em quarto crescente. O novo barbeiro começara a demonstrar que, na verdade, tinha a mão fértil, quando se descobriu que era um violador de noviças procurado por várias polícias das Antilhas, e levaram-no a arrastar correntes.
Por esses tempos, Florentino Ariza tinha recortado quantos anúncios para calvos encontrou nos jornais da bacia das Caraíbas, onde publicavam dois retratos, um ao lado do outro, do mesmo homem, primeiro liso como um melão, e depois mais peludo do que um leão: antes e depois de usar o remédio infalível. Ao cabo de seis anos tinha experimentado cento e setenta e dois produtos, além de outros processos complementares que apareciam nos rótulos dos frascos, e a única coisa que conseguiu com um deles foi um eczema do crânio, urticante e fétido, a que os curandeiros da Martinica chamavam «tinha boreal porque irradiava uma luminosidade fosforescente na escuridão. Recorreu por fim a quantas ervas de índios eram apregoadas no mercado público e a quantas mezinhas mágicas e poções orientais se vendiam no Portal dos Escrivães, mas quando começou a dar-se conta da burla já ostentava uma tonsura de santo. No ano zero, enquanto a guerra civil dos Mil Dias ensanguentava o país, passou pela cidade um italiano que fabricava perucas de cabelo natural por medida. Custavam uma fortuna e o fabricante não se responsabilizava por nada depois de três meses de uso, mas poucos foram os carecas desejosos de encontrar uma solução que não cederam à tentação. Florentino Ariza foi um dos primeiros. Experimentou uma peruca tão parecida com o seu cabelo original que até ele receava que se lhe eriçasse com as mudanças de humor, mas não conseguiu aceitar a ideia de levar na cabeça os cabelos de um morto. O seu único consolo foi que a avidez da calvície não lhe deu tempo de conhecer a cor das suas cãs. Um dia, um dos bêbados felizes do cais fluvial abraçou-o com mais efusão que de costume ao vê-lo sair do escritório, tirou-lhe o chapéu diante das troças dos estivadores, e deu-lhe um beijo sonoro na cabeça.
- Careca linda! - gritou.
Nessa noite, aos quarenta e oito anos, mandou cortar a escassa penugem que lhe ficava sobre a testa e na nuca, e assumiu totalmente o seu destino de calvo absoluto. A tal ponto que todas as manhãs antes do banho enchia de espuma não só o queixo, mas também as partes do crânio onde começassem a renascer pêlos, e deixava tudo como nádegas de bebé com uma navalha de barbeiro. Até então não tirava o chapéu nem dentro do escritório, pois a calvície dava-lhe uma sensação de nudez que lhe parecia indecente. Mas quando a assumiu de facto, atribuiu-lhe virtudes varonis das quais tinha ouvido falar e que ele menosprezava por serem simples fantasias de carecas. Mais tarde deu-se ao novo hábito de cruzar o crânio com os cabelos compridos da marrafa direita, e nunca mais o deixou. Mas mesmo assim continuou a usar o chapéu, sempre no mesmo estilo fúnebre, mesmo depois de se ter imposto a moda do chapéu de tartarita que era o nome local do canotier1.
Quanto aos dentes, porém, não os perdera por uma calanu
1 Em francês no original: chapéu de palha. N. do E.)
dade natural mas sim pelo trabalho de charlatão de um dentista ambulante que para lhe tratar de uma infecção vulgar decidiu aplicar remédios inadequados. O pavor das brocas mecânicas impedira Florentino Ariza de ir ao dentista apesar das suas frequentes dores de dentes, até que não foi capaz de as suportar mais. A mãe assustou-se ao ouvir durante toda a noite os gemidos inconsoláveis no quarto ao lado porque lhe pareceram ser os mesmos de outros tempos, já quase esfumados nas névoas da sua memória, mas quando lhe mandou abrir a boca para ver onde estavam as suas mágoas, descobriu que estava com um enorme abcesso.
O tio Leão XII mandou-o ao doutor Francis Adonay, um gigante negro de polainas e calças de montar que andava nos navios fluviais com um equipamento dentário completo dentro de uns alforges de capataz, e que mais parecia ser um agente de viagens de terror nas povoações do rio. Com uma só olhadela à sua boca, determinou que era preciso arrancar-lhe até os dentes e as raízes que tinha sãos, para o pôr de uma vez por todas a salvo de novos precalços. Ao contrário da calvície, aquele tratamento de cavalo não lhe deu qualquer preocupação, excepto o temor natural do massacre sem anestesia. Também não lhe desagradou a ideia da dentadura postiça, primeiro porque uma das nostalgias da sua infância era a recordação de um mago de feira que tirava as duas mandíbulas e as deixava a falar sozinhas em cima da mesa, e, segundo, porque lhe acabava de vez com as dores de dentes que o tinham atormentado desde criança, quase tanto e com tanta crueldade como as dores de amor. Não lhe pareceu um golpe astuto da velhice, como havia de lhe parecer a calvície, porque estava convencido de que apesar do hálito acre da borracha vulcanizada, a sua aparência seria mais limpa com um sorriso ortopédico. De modo que se submeteu sem resistir às tenazes em brasa do doutor Adonay e suportou a convalescença com um estoicismo de burro de carga.
O tio Leão XII tratou dos pormenores da operação como se tivesse sido na sua própria carne. Tinha um interesse singular por dentaduras postiças, contraído numa das suas primeiras navegações pelo rio de La Magdalena, e por culpa da sua devoção maniática pelo bei canto. Numa noite de lua cheia, por alturas do porto de Gamarra, apostou com um agrimensor alemão que era capaz de acordar as criaturas da selva a cantar uma romança napolitana do passadiço do comandante. Por pouco não ganhou. Nas trevas do rio ouviam-se os adejos das garças nos pântanos, o rabear dos jacarés, o pânico dos sáveis a quererem saltar para terra firme, mas, na nota culminante, quando se receou que o cantor rasgasse as artérias com a força do canto a dentadura postiça saltou-lhe da boca num fôlego final e afundou-se na água.
O navio teve de ficar três dias no porto de Tenerife enquanto lhe faziam outra dentadura de urgência. Ficou perfeita. Mas na navegação de regresso, ao tentar explicar ao comandante como tinha perdido a dentadura anterior, o tio Leão XII inspirou a plenos pulmões o ar ardente da selva, deu a nota mais alta que foi capaz, manteve-a até ao último alento, tentando espantar os jacarés deitados ao sol que apreciavam sem pestanejar a passagem do navio, e também a dentadura nova se afundou na corrente. Desde então teve cópias de dentes em todos os locais, em vários lugares da casa, na gaveta da secretária, e uma em cada um dos três navios da empresa. Além disso, quando comia fora de casa costumava levar outra de reserva no bolso, dentro de uma caixinha de pastilhas para a tosse, porque uma tinha-se-lhe partido ao tentar comer um torresmo num almoço campestre. Receando que o sobrinho fosse vítima de sobressaltos semelhantes, o tio Leão XII ordenou ao doutor Adonay que lhe fizesse logo duas dentaduras: uma de materiais baratos, para uso diário no escritório e outra para os domingos e feriados, com uma chispa de ouro no dente do sorriso, para lhe imprimir um toque adicional de veracidade. Por fim, num Domingo de Ramos, alvoroçado por sinos festivos, Florentine Ariza saiu à rua com uma identidade nova, cujo sorriso sem falhas lhe deixou a impressão de que alguém diferente dele tinha ocupado o seu lugar no mundo.
Isto foi por alturas da morte da sua mãe, e Florentine Ariza ficou sozinho em casa. Era um canto adequado ao seu modo de amar, porque a rua era discreta apesar de que as tantas janelas do seu nome fizessem pensar em demasiados olhos por trás das cortinas. Mas tudo isso tinha sido feito para que Fermina Daza fosse feliz, e só ela o seria, de modo que Florentino Ariza preferiu perder muitas oportunidades durante os seus anos mais frutuosos que macular a sua casa com outros amores. Por sorte, cada degrau que subia na CFC implicava novos privilégios, principalmente privilégios secretos, e um dos que lhe foi mais útil foi a possibilidade de usar os gabinetes durante a noite, ou aos domingos e feriados com o assentimento dos guardas. Uma vez, sendo primeiro vice-presidente, estava a fazer amor de urgência com uma das raparigas do serviço dominical, ele sentado numa cadeira do escritório e ela encavalitada em cima dele, quando, de repente, se abriu a porta. O tio Leão XII enfiou a cabeça como se se tivesse enganado no gabinete e ficou a olhar por cima dos óculos para o sobrinho aterrorizado. «Caralho!», disse o tio sem o menor espanto. «A mesma mania que tinha o teu pai!» E antes de fechar outra vez a porta, com a vista perdida no vazio, disse:
- E você, menina, continue, não se iniba. Juro-lhe por minha honra que não lhe vi a cara.
Não se voltou a falar disso, mas na semana seguinte foi impossível trabalhar no escritório de Florentino Ariza. Na segunda-feira os electricistas entraram num tropel para instalarem uma ventoinha de pás no tecto. Os serralheiros apareceram sem avisar e puseram tudo em estado de sítio ao colocarem um ferrolho na porta para que pudesse fechar-se por dentro. Os carpinteiros tiraram medidas sem dizerem para quê, os tapeteiros levaram amostras de cretones para ver se condiziam com a cor das paredes e, na semana seguinte, tiveram de meter pela janela, porque não cabia pelas portas, um enorme sofá de casal com estampados de flores dionisíacas. Trabalhavam às horas menos próprias, com uma impertinência que não parecia casual, e a todo aquele que protestasse davam a mesma resposta: «Ordens da Direcção-Geral.» Florentino Ariza não soube nunca se aquela intromissão foi uma amabilidade do tio, zelando pelos seus amores descarrilados, ou se era uma maneira muito sua de lhe fazer ver a sua conduta abusiva. A verdade, porém, não lhe passou pela cabeça: o tio Leão XII estimulava-o, porque também a ele lhe haviam chegado rumores de que o sobrinho tinha hábitos diferentes dos da maioria dos homens e isto preocupava-o por ser um obstáculo para o tornar no seu sucessor.
Ao contrário do irmão, Leão XII Loayza tinha tido um casamento estável que durou sessenta anos e sempre se prezou de nunca ter trabalhado aos domingos. Tivera quatro filhos e uma filha e a todos ele quis preparar para virem a ser os herdeiros do seu império, mas a vida confrontou-o com um desses casos que eram de uso corrente nos romances do seu tempo, mas que ninguém achava possível que sucedessem na vida real: os quatro filhos tinham morrido, um após outro, à medida que chegavam a posições de comando, e a filha carecia por completo de vocação fluvial, preferindo morrer a contemplar os barcos do Hudson duma janela a cinquenta metros de altura. E tanto assim foi que não faltou quem desse como certo o boato de que Florentine Ariza, com o seu ar sinistro e o seu guarda-chuva de vampiro, tinha feito qualquer coisa para que acontecessem tantas coincidências juntas.
Quando o tio se reformou, contra a sua vontade, por ordem dos médicos, Florentine Ariza começou a sacrificar de bom grado alguns amores dominicais. Ia fazer-lhe companhia no seu refúgio campestre, a bordo de um dos primeiros automóveis que se viram na cidade, cuja manivela de arranque tinha uma tal força de retrocesso que deslocara o braço ao primeiro condutor. Falavam durante muitas horas, o velho na rede com o seu nome bordado a fio de seda, longe de tudo e de costas para o mar, numa antiga fazenda de escravos, de cujos terraços floridos de astromélias se viam de tarde as cristas nevadas da serra. Fora sempre difícil para Florentine Ariza falar com o tio de qualquer outro assunto que não fosse a navegação fluvial e continuou a sê-lo naquelas tardes demoradas, nas quais a morte foi sempre um convidado invisível. Uma das preocupações recorrentes do tio Leão XII era que a navegação fluvial não passasse para as mãos de empresários do interior vinculadas a consórcios europeus. «Este negócio foi sempre de gente com genica», dizia. «Se os peraltas o apanham, voltam a dá-lo de bandeja aos alemães.» A sua preocupação tinha a ver com uma convicção política que gostava de repetir mesmo quando não vinha a propósito.
- Vou fazer cem anos e já vi mudar tudo, até a posição dos astros no universo, mas ainda não vi mudar nada neste país dizia. - Aqui fazem-se novas constituições, novas leis, novas guerras de três em três meses, mas continuamos como nos tempos coloniais.
Aos seus irmãos mações, que atribuíam todos os males ao fracasso do federalismo, respondias-lhe sempre: «A guerra dos Mil Dias foi perdida vinte e três anos antes na guerra de setenta e seis.» Florentino Ariza, cuja indiferença política tocava os limites do absoluto, ouvia estes arrazoados cada vez mais frequentes como quem ouvia o rumor do mar. Por outro lado, era um contestador severo quanto à política da empresa. Contra a opinião do tio, pensava que o atraso da navegação fluvial, que parecia estar sempre à beira do desastre, só podia remediar-se pela renúncia espontânea ao monopólio dos navios a vapor, concedido pelo Congresso Nacional à Companhia Fluvial das Caraíbas por noventa e nove anos e um dia. O tio protestava: «Essas ideias são da minha tocaia Leona que tas mete na cabeça com as suas historietas de anarquista.» Mas isto só era uma meia verdade. Florentino Ariza fundamentava as suas razões na experiência do comodoro alemão Juan B. Elbers, que tinha estragado o seu nobre engenho com a desmesura da sua ambição pessoal. O tio pensava que, pelo contrário, o fracasso de Juan B. Elbers não foi devido aos seus privilégios mas sim aos compromissos irreais que assumiu ao mesmo tempo e que tinham sido quase como pôr aos ombros a responsabilidade da geografia nacional: atribuiu-se o cargo de manter a navegabilidade do rio, as instalações portuárias, as vias terrestres de acesso, os meios de transporte. Aliás, dizia, a oposição virulenta do presidente Simão Bolívar não foi brincadeira nenhuma.
A maioria dos sócios tomavam aquelas discussões como desavenças conjugais, nas quais as duas partes tinham razão. A porfia do velho parecia-lhes natural, não porque a velhice o tivessse tornado menos sonhador do que sempre fora, como costumava dizer-se com demasiada facilidade, mas porque a renúncia ao monopólio devia parecer-lhe idêntica a deitar no lixo os trofeus de uma batalha onde ele e os seus irmãos tinham lutado sozinhos, em tempos heróicos, contra adversários poderosos de todo o mundo. Por isso ninguém o contrariou quando amarrou os seus direitos de tal modo que ninguém lhes Podia tocar antes da sua extinção legal. Mas, subitamente, quando Florentino Ariza já tinha deposto as armas nas tardes de meditação da fazenda, o tio Leão XII deu o seu consentimento para a renúncia do privilégio centenário, apenas com a condição honrável de que não se fizesse antes da sua morte.
Foi o seu último acto. Não voltou a falar de negócios, nem sequer permitiu que o consultassem, nem perdeu um só cabelo da sua esplêndida cabeleira imperial, nem uma pitada da sua lucidez, mas fez os possíveis para que não o visse ninguém que pudesse compadecer-se dele. Iam-se-lhe os dias a olhar para as neves perpétuas, do terraço, balouçando-se muito devagar numa cadeira de baloiço vienense, ao lado de uma mesinha onde as criadas lhe mantinham sempre uma cafeteira de café quente e um copo de água de bicarbonato com duas dentaduras postiças, que já não punha a não ser quando recebia visitas. Via muito poucos amigos e só falava de um passado tão remoto que era anterior à navegação fluvial. Contudo, adoptou um tema novo: o desejo de que Florentino Ariza se casasse. Exprimiu-lho várias vezes e sempre da mesma maneira.
- Se eu tivesse menos cinquenta anos - dizia-lhe - casava-me com a minha tocaia Leona. Não consigo imaginar esposa melhor.
Florentino Ariza tremia só de pensar que o seu labor de tantos anos se frustrasse à última hora devido a esta condição imprevista. Teria preferido demitir-se, deitar tudo borda fora, morrer do que falhar a Fermina Daza. Por sorte, o tio Leão XII não insistiu. Quando completou os noventa e dois anos reconheceu o sobrinho como único herdeiro e reformou-se da empresa.
Seis meses depois, por acordo unânime dos sócios, Florentino Ariza foi nomeado presidente da Junta Directiva e director-geral. No dia em que tomou posse do cargo, depois da taça de champanhe, o velho Leão na reforma pediu desculpa por falar sem se levantar da cadeira de baloiço e improvisou um breve discurso que mais pareceu uma elegia. Disse que a sua vida tinha começado e acabava com dois acontecimentos providenciais. O primeiro foi que o Libertador o carregara ao colo, na povoação de Turbaco, quando ia na sua viagem desditosa para a morte. A outra, tinha sido encontrar, contra todos os obstáculos que lhe interpusera o destino, um sucessor digno da sua empresa. No fim, tentando desdramatizar o drama, concluiu:
- A única frustração que levo desta vida é a de ter cantado em tantos enterros menos no meu.
Para encerrar a cessão, e porque não?, cantou a ária do «Adeus à vida» d’A Tosca. Cantou a capella, como mais lhe agradava, e ainda com uma voz firme. Florentino Ariza comoveu-se, mas só se lho notou pela tremura da voz com que agradeceu. Tal como tinha feito e pensado tudo quanto tinha feito e pensado na vida, chegava ao cume sem nenhuma outra causa que não fosse a determinação obstinada de estar vivo e em bom estado de saúde no momento de assumir o seu destino à sombra de Fermina Daza.
Contudo, não foi apenas a recordação dela a aompanhá-lo naquela noite na festa que Leona Cassiani lhe ofereceu. Acompanhou-o a recordação de todas: tanto as que dormiam no cemitério, pensando nele através das rosas que plantara em cima delas, como as que ainda apoiavam a cabeça na mesma almofada em que dormia o marido com os cornos dourados à luz da Lua. À falta de uma, desejou estar com todas ao mesmo tempo, como sempre quando estava assustado. Pois, mesmo nas suas épocas mais difíceis e nos seus momentos piores, tinha mantido algum vínculo, por frágil que fosse, com as incontáveis amantes de tantos anos: nunca perdeu o rastro das suas vidas.
Assim, naquela noite lembrou-se de Rosalba, a mais antiga de todas, a que ficou com o trofeu da sua virgindade, cuja recordação continuava a doer-lhe como no primeiro dia. Bastava-Ihe fechar os olhos para vê-la com o fato de musselina e o chapéu de longas fitas de seda, baloiçando a gaiola do bebé no convés do navio. Por várias vezes, nos numerosos anos da sua idade, tinha tido tudo preparado para a ir buscar, sem sequer saber aonde, sem conhecer o seu apelido, sem saber se era ela a quem procurava, mas certo de a encontrar em qualquer parte entre florestas de orquídeas. De cada vez, por um contratempo real de última hora, ou por uma falha intempestiva da sua vontade, a viagem era adiada quando já estavam prestes a levantar ferro: sempre por um motivo que tinha algo a ver com Fermina Daza.
Lembrou-se da viúva da Nazaret, a única com quem profanou a casa materna da Rua das Janelas, ainda que não tivesse sido ele, mas Trânsito Ariza, quem a mandou entrar. A essa consagrou-lhe mais compreensão que a qualquer outra, por ser a única que irradiava ternura bastante para, talvez, substituir Fermina Daza, mesmo sendo tão pouco hábil na cama. Mas a sua vocação da gata errante, mais indómita que a própria força da sua ternura, manteve-os aos dois condenados à infidelidade. No entanto, conseguiram ser amantes intermitentes durante quase trinta anos graças à sua divisa de mosqueteiros: «Infiéis, sim, desleais, nunca.» Foi, aliás, a única por quem Florentine Ariza se expôs: quando o avisaram que ia ter um enterro de indigente, fez-lhe o funeral à sua custa e assistiu sozinho ao enterro.
Lembrou-se de outras viúvas amadas. De Prudência Pitre, a mais antiga das sobreviventes, conhecida de todos como a Viúva de Dois, porque o era duas vezes. E da outra Prudência, a viúva de Arellano, a amorosa, que lhe arrancava os botões da roupa para o fazer demorar-se em casa dela enquanto ela lhos voltava a coser. E de Josefa, a viúva de Zúniga, louca de amor por ele, que esteve a ponto de lhe cortar a pila durante o sono com a tesoura de podar, para que não fosse de mais ninguém mesmo que não fosse dela.
Lembrou-se de Angeles Alfaro, a efémera e a mais amada de todas, que veio por seis meses para ensinar instrumentos de arco na Escola de Música e que passava com ele as noites de luar no terraço da sua casa, como a mãe a deitou ao mundo, tocando as mais belas suites no violoncelo, cuja voz parecia de homem entre as suas coxas douradas. Desde a primeira noite de luar que ambos ficaram de coração desfeito num amor de principiantes ferozes. Mas Angeles Alfaro partiu como chegou, com o seu sexo terno e o seu violoncelo de pecadora, num transatlântico embandeirado pelo esquecimento, e a única coisa que dela ficou nos terraços ao luar foram os seus gestos de adeus com um lenço branco que parecia uma pomba no horizonte, solitária e triste, como nos versos dos Jogos Florais. Com ela Florentino Ariza aprendeu aquilo que já muitas vezes tinha padecido sem o saber: que se pode estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, e por todas com a mesma dor, sem atraiçoar nenhuma. Solitário entre a multidão do cais, tinha dito num acesso de raiva: «O coração tem mais quartos do que uma pensão de putas.» Estava banhado num mar de lágrimas pela dor da despedida. Contudo, ainda o barco não tinha desaparecido na linha do horizonte e já a recordação de Fernina Daza voltara a ocupar todo o seu espaço.
Lembrou-se de Andrea Varón, em frente de cuja casa tinha passado na semana anterior, mas a luz alaranjada da janela da casa de banho advertiu-o de que não podia entrar: alguém se tinha adiantado. Alguém: homem ou mulher, porque Andrea Varón não se detinha em minúcias dessa natureza nas desordens do amor. De todas as que constavam da lista era a única que vivia do seu corpo, mas administrava-o a seu bel-prazer sem capataz. Nos seus melhores anos tinha feito uma carreira lendária de cortesã clandestina, que valeu o nome de guerra de Nossa Senhora de Todos. Deu volta à cabeça de governadores e de almirantes, viu chorar no seu ombro alguns dos homens mais célebres das armas e das letras, que não eram tão ilustres quanto pensavam, e até alguns que o eram. Foi verdade, por outro lado, que o presidente Rafael Reyes, apenas por uma meia hora apressada entre duas visitas acidentais à cidade, lhe atribuiu uma pensão vitalícia por serviços distintos no Ministério do Tesouro, onde jamais tinha sido empregada nem por um dia. Distribuiu as suas dádivas de prazer até onde o corpo lho permitiu, e ainda que a sua conduta imprópria fosse do domínio público, ninguém teria podido exibir uma prova cabal contra ela, porque os seus cúmplices insignes protegeram-na tanto quanto à própria vida, conscientes de que não era ela mas eles quem mais tinha a perder com o escândalo. Florentino Ariza violara, por ela, o seu princípio sagrado de não pagar, e ela violara o seu de não o fazer de graça nem com o marido. Tinham concordado no preço simbólico de um peso de cada vez, mas nem ela o recebia nem ele lho dava, mas metiam-no no porquinho-mealheiro até haver que chegasse para comprar qualquer peça ultramarina no Portal dos Escrivães. Foi ela que concedeu uma sensualidade diferente aos clisteres que ele usava para as crises de prisão de ventre, e convenceu-o a partilhá-los, a aplicarem-nos os dois juntos durante as suas tardes de loucura, tentando inventar ainda mais amor dentro do amor. Considerava uma sorte que no meio de tantos encontros de aventura a única que lhe fez provar uma gota de amargura foi a tortuosa Sara Noriega, que acabou os seus dias no manicômio da Divina Pastora, a recitar versos senis de uma obscenidade tão desaforada, que tiveram de a isolar para que não acabasse de enlouquecer as outras loucas. No entanto, quando recebeu a completa responsabilidade da CFG, já não tinha muito tempo nem tanto ânimo assim para tentar substituir Fermina Daza por quem quer que fosse: sabia-a insubstituível. Pouco a pouco tinha começado a cair na rotina de visitar as fixas, deitando-se com elas até onde lhe servissem, até onde fosse possível, até quando lhes durasse a vida. No domingo de Pentecostes quando morreu Juvenal Urbino, já só restava uma, uma só com catorze anos acabados de fazer e com tudo o que nenhuma outra tivera até então para o enlouquecer de amor.
Chamava-se América Vicuna. Tinha chegado dois anos antes da localidade marítima chamada Puerto Padre, recomendada pela família a Florentine Ariza, seu protector, com quem tinha um parentesco sanguíneo reconhecido. Mandavam-na com uma bolsa de estudos do Governo para formar-se como professora, com a sua trouxa e o seu bauzinho de folha que parecia de boneca, e a partir do momento em que desceu do barco com os botins brancos e a trança dourada, ele teve o pressentimento atroz de que iam dormir a sesta juntos em muitos domingos. Ainda era uma menina em todos os sentidos, com aparelho nos dentes e esfoladelas da escola primária nos joelhos, mas ele apercebeu-se imediatamente do tipo de mulher que seria muito em breve e cultivou-a para ele num lento ano de sábados de circo, de domingos de jardins com gelados, de fins de tarde infantis com os quais ganhou a sua confiança, o seu carinho, foi-a levando pela mão com uma suave astúcia de avô bondoso até ao seu matadouro clandestino. Para ela foi imediato: abriram-se-lhe as portas do céu. Eclodiu numa explosão floral que a deixou a flutuar num limbo de ventura e foi um estímulo eficaz para os seus estudos, pois manteve-se sempre no primeiro lugar da aula para não perder a saída do fim-de-semana. Para ele foi o recanto mais abrigado da enseada da velhice. Depois de tantos anos de amores calculados, o gosto desabrido da inocência tinha o encanto de uma perversão renovadora.
Coincidiram. Ela portava-se como aquilo que era, uma menina disposta a descobrir a vida sob a orientação de um homem venerável que não se surpreendia com nada, e ele portou-se conscienciosamente como o que mais temera ser na vida: um noivo senil. Nunca a identificou com Fermina Daza, apesar da parecença ser mais do que evidente, não só pela idade, pelo uniforme escolar, pela trança, pelo seu andar saltitante, mas até pelo seu carácter altivo e imprevisível. Mais ainda: a ideia da substituição, que tinha sido um tão bom aliciante para a sua mendicidade de amor, apagou-se por completo. Gostava dela pelo que ela era, e acabou por amá-la pelo que ela era com uma febre de delícias crepusculares. Foi a única com quem tomou precauções drásticas contra uma gravidez acidental. Depois de meia dúzia de encontros, não havia para nenhum dos dois outro sonho do que as tardes de domingo.
Considerando que era a única pessoa autorizada a tirá-la do internato, ia buscá-la no Hudson de seis cilindros da CFC e, às vezes, tiravam-lhe a capota nas tardes sem sol para passear pela praia, ele com um chapéu tétrico e ela a rir à gargalhada, a segurar com as duas mãos o gorro de marinheiro do uniforme escolar para que o vento não lho levasse. Alguém lhe tinha dito para não andar com o seu protector mais que o indispensável, nem comer nada que ele tivesse provado, nem ficar muito perto do seu hálito, porque a velhice era contagiosa. Mas ela não se importava. Os dois mostravam-se indiferentes ao que pudesse pensar-se deles, porque o parentesco era bem conhecido e, além disso, as suas idades extremas punham-nos a salvo de qualquer suspeita.
Acabavam de fazer amor no domingo de Pentecostes, às quatro da tarde, quando começaram os sinos a dobrar. Florentino Ariza teve de sobrepor-se ao sobressalto do seu coração. Na sua juventude, o ritual do toque a finados estava incluído no preço dos funerais e só se negava aos que fossem mesmo miseráveis. Mas depois da última guerra, na ponte dos dois séculos, o regime conservador consolidou os costumes coloniais e as pompas fúnebres tornaram-se tão caras que só os mais ricos as podiam pagar. Quando morreu o arcebispo Dante de Luna, os sinos de toda a província dobraram sem tréguas durante nove dias e nove noites, e foi tal o tormento público que o seu sucessor eliminou dos funerais o requisito do toque a finados, deixando-o reservado para os mortos mais ilustres. Por isso, quando Florentine Ariza ouviu dobrar os sinos na catedral às quatro da tarde de um domingo de Pentecostes, sentiu-se visitado por um fantasma da sua mocidade perdida. Nunca imaginou que fosse o toque a finados que sempre tinha desejado durante tantos e tantos anos, desde o domingo em que viu Fermina Daza grávida de seis meses, à saída da missa solene.
- Caramba - disse na penumbra -, tem de ser um tubarão muito grande para que dobrem por ele na catedral.
América Vicuna, completamente nua, acabou de acordar.
- Deve ser pelo Pentecostes - disse.
Florentine Ariza não era um perito, nem nada que se parecesse, em coisas da Igreja, nem tinha voltado a ir à missa desde que tocara violino no coro com um alemão, que, aliás, lhe ensinou a ciência do telégrafo, e de cujo destino nunca se teve notícia certa. Mas sabia, sem qualquer dúvida, que os sinos não tocavam por causa do Pentecostes. Havia, certamente, um luto na cidade e ele sabia-o. Uma comissão de refugiados das Caraíbas tinha estado em casa dele naquela manhã para o informar que Jeremiah de Saint-Amour aparecera morto nessa manhã no seu estúdio de fotógrafo. Ainda que Florentine Ariza não fosse seu amigo íntimo, era-o de muitos refugiados que sempre o convidavam para os seus actos públicos, e, sobretudo, para os seus enterros. Mas tinha a certeza de que os sinos não dobravam por Jeremiah de Saint-Amour, que era um incrédulo militante e um anarquista empedernido, e que, além do mais, tinha morrido pela sua própria mão.
- Não - disse -, para dobrarem assim só pode ser de governador para cima.
América Vicuna, com o pálido corpo atigrado pelas riscas de luz das persianas mal fechadas, não tinha idade para pensar na morte. Haviam feito amor depois do almoço e estavam deitados na ressaca da sesta, os dois nus sob a ventoinha de pás, cujo zumbido não bastava para ocultar a crepitação de granizo dos galináceos a andarem sobre o telhado de zinco aquecido. Florentine Ariza amava-a como tinha amado tantas outras mulheres casuais na sua longa vida, mas a esta amava-a com mais angústia que a qualquer outra, porque tinha a certeza de estar morto de velho quando ela acabasse a escola superior.
O quarto mais parecia um camarote de navio, com as paredes de ripas de madeira, muitas vezes pintadas por cima da pintura anterior, como os barcos, mas o calor era mais intenso que o dos camarotes dos navios do rio às quatro da tarde, mesmo com a ventoinha eléctrica pendurada por cima da cama, pela reverberação do telhado metálico. Não era um quarto propriamente dito, mas sim um camarote em terra firme mandado construir por Florentine Ariza atrás dos seus escritórios da CFC, sem mais propósitos nem pretextos do que ter um bom refúgio para os seus amores de velho. Nos dias úteis era difícil dormir lá com os gritos dos estivadores e a barulheira das gruas do porto fluvial, e os imensos bramidos dos navios no cais. No entanto, para a menina era um paraíso dominical.
No dia de Pentecostes planeavam ficar juntos até ela ter de regressar ao internato, cinco minutos antes do angelus, mas os dobres fizeram lembrar a Florentine Ariza a sua promessa de assistir ao enterro de Jeremiah de Saint-Amour e vestiu-se mais depressa que de costume. Antes, como sempre, teceu à menina a trança solitária que ele próprio lhe desfazia antes de fazerem amor, e pô-la em cima da mesa para lhe atar o laço dos sapatos do uniforme, que ela fazia sempre mal. Ajudava-a sem malícia e ela ajudava-o a ajudá-la como se fosse um dever: ambos tinham perdido a consciência das suas idades desde os primeiros encontros e tratavam-se com a confiança de dois esposos que tivessem ocultado tantas coisas nesta vida que já não lhes sobrava quase nada para se dizerem.
Os escritórios estavam fechados e às escuras por ser feriado, e no cais deserto só havia um navio com as caldeiras apagadas. O calor opressivo anunciava chuvas, as primeiras do ano, mas a transparência do ar e o silêncio dominical do porto pareciam de um mês benigno. Dali o mundo era mais cru que da penumbra do camarote e os dobres doíam mais mesmo sem se saber por quem eram. Florentino Ariza e a menina vieram para o pátio de salitre que tinha servido de porto negreiro aos Espanhóis e onde ainda se encontravam restos dos instrumentos de pesagem e de outros ferros carcomidos do comércio de escravos. O automóvel esperava-os à sombra dos armazéns e não acordaram o motorista adormecido sobre o volante enquanto não ficaram instalados nos assentos. O automóvel deu a volta Por trás dos armazéns cercados com arame de capoeira, atravessou o espaço do antigo mercado da baía das Animas, onde andavam uns adultos quase nus a jogar à bola, e saiu do porto fluvial por entre uma nuvem de poeira em brasa. Florentine Ariza tinha a certeza de que as honras fúnebres não podiam ser por Jeremiah de Saint-Amour, mas a insistência dos dobres fê-lo duvidar. Pôs a mão no ombro do motorista e perguntou-lhe, gritando-lhe ao ouvido, por quem estavam a dobrar os sinos.
- E por aquele médico, aquele dos bigodes - disse o motorista. - Como é o nome dele?
Florentine Ariza não precisou de pensar para saber de quem estava a falar. No entanto, quando o motorista lhe contou como tinha morrido, a ilusão momentânea desvaneceu-se, porque não lhe pareceu verosímil. Nada se parece tanto a uma pessoa como a forma da sua morte e nenhuma se podia parecer menos do que esta ao homem que ele imaginava. Mas era ele de facto, ainda que parecesse absurdo: o médico mais velho e mais conceituado da cidade, e um dos seus homens insignes por muitos outros méritos, tinha morrido com a espinha dorsal feita em pedaços, aos oitenta e um anos de idade, ao cair de um ramo de mangueira quando tentava apanhar um papagaio.
Tudo o que Florentine Ariza tinha feito desde que Fermina Daza se casara baseava-se na esperança desta notícia. Contudo, chegada a hora, não se sentiu tremer pela comoção do triunfo, que tantas vezes previra nas suas insónias, mas por um sobressalto de terror: a lucidez fantástica de que poderia ser ele o morto por quem tocavam os sinos. Sentada ao seu lado no automóvel que rodava aos saltos pelas ruas de pedra, América Vicuna assustou-se com a sua palidez e perguntou-lhe o que é que ele tinha. Florentine Ariza pegou-lhe na mão com a sua mão gelada.
- Ai, minha pequenina - suspirou -, faziam-me falta outros cinquenta anos para te contar.
Esqueceu-se do enterro de Jeremiah de Saint-Amour. Deixou a menina à porta do internato com a promessa de a ir buscar no sábado seguinte, e ordenou ao motorista que o levasse a casa do doutor Juvenal Urbino. Encontrou um tumulto de automóveis e carros de aluguer nas ruas contíguas e uma multidão de curiosos diante da casa. Os convidados do doutor Lácides Olivella, que tinham recebido a má notícia no apogeu da festa, chegaram num tropel. Não era fácil andar dentro de casa por causa da multidão, mas Florentine Ariza conseguiu abrir caminho até ao quarto principal, esticou-se por cima dos grupos que bloqueavam a porta e viu Juvenal Urbino na cama conjugal como tinha querido vê-lo desde que ouviu falar dele pela primeira vez, a chafurdar na indignidade da morte. O carpinteiro acabava de lhe tirar as medidas para o caixão. Ao seu lado, ainda com o mesmo vestido de avó recém-casada que tinha posto para a festa, Fermina Daza estava absorta e triste.
Florentino Ariza havia vivido antecipadamente aquele momento até ao mínimo pormenor desde os dias da sua juventude em que se consagrou por completo à causa desse amor temerário. Por ela tinha ganho nome e fortuna sem se deter de mais com os métodos, por ela tinha zelado pela sua saúde e aparência pessoal com um rigor que não parecia muito viril aos outros homens do seu tempo e tinha esperado por aquele dia como ninguém teria podido esperar por nada nem por ninguém neste mundo: sem um momento de desalento. A prova de que a morte havia intercedido, por fim, em seu favor infundiu-lhe a coragem que precisava para reiterar a Fermina Daza na sua primeira noite de viúva o juramento de fidelidade eterna e do seu amor para sempre.
A sua consciência não lhe negava que tinha sido um acto irreflectido, sem o menor sentido do como nem do quando e apressado pelo medo de que a ocasião não se voltasse a apresentar. Ele tinha-o querido, e até imaginado muitas vezes, de um modo menos brutal, mas a sorte não lhe dera escolha. Tinha saído da casa do luto com a dor de a deixar a ela no mesmo estado de comoção em que ele se encontrava, mas não poderia ter feito nada para o impedir, porque sentia que aquela noite temível estava escrita desde sempre no destino dos dois.
Não voltou a dormir uma noite inteira nas duas semanas que se seguiram. Perguntava-se desesperado onde estaria Fermina Daza sem ele, o que estaria a pensar, que iria fazer nos anos que lhe faltavam viver com a carga de assombro que ele lhe deixara nas mãos. Sofreu uma crise de prisão de ventre que lhe Pôs a barriga como um tambor e teve de recorrer a paliativos menos agradáveis que os clisteres. As suas moléstias de velho, que ele suportava melhor que os seus contemporâneos por conhecê-las desde jovem, acometeram-no todas ao mesmo tempo. Na quarta-feira foi até ao escritório depois de uma semana de faltas, e Leona Cassiani assustou-se ao vê-lo em semelhante estado de palidez e abandono. Mas ele tranquilizou-aera outra vez a insónia, como sempre, e voltou a morder a língua para que a verdade não lhe saísse por todas as goteiras que tinha no coração. A chuva não lhe deu uma trégua de sol para pensar. Passou outra semana irreal, sem poder concentrar-se em nada, a comer mal e a dormir pior, a tentar perceber sinais cifrados que lhe indicassem o caminho da salvação. Mas a partir da sexta-feira invadiu-o uma tranquilidade sem motivos que interpretou como um prenúncio de que nada de novo aconteceria, que tudo quanto havia feito na vida fora inútil e não tinha maneira de continuar: era o fim. Na segunda-feira, porém, ao chegar à sua casa, na Rua das Janelas, deu com uma carta que flutuava na água empoçada no saguão e reconheceu imediatamente no sobrescrito molhado a caligrafia imperiosa que tantas mudanças na vida não tinham feito mudar e até acreditou reconhecer o perfume nocturno das gardenias murchas, porque o coração já lhe dissera tudo logo ao primeiro assombro: era a carta que esperara, sem um momento de sossego, durante mais de meio século.
Fermina Daza não podia imaginar que aquela carta sua, instigada por uma raiva cega, pudesse ser interpretada por Florentine Ariza como uma carta de amor. Tinha posto nela toda a fúria de que era capaz, as palavras mais cruéis, os opróbrios que mais ferissem, injustos, aliás, que, no entanto, lhe pareciam ínfimos comparados com a dimensão da ofensa. Foi o último gesto de um amargo exorcismo, com o qual tentava conseguir um pacto de conciliação com o seu novo estado. Queria voltar a ser ela própria, recuperar tudo quanto tivera de ceder em meio século de uma servidão que a fizera feliz, sem dúvida, mas que, uma fez falecido o marido, não lhe deixava a ela nem os vestígios da sua identidade. Era um fantasma numa casa alheia, que de um dia para o outro se tinha tornado enorme e solitária e na qual vogava à deriva, perguntando-se angustiada quem estava mais morto: o que tinha morrido ou a que tinha ficado?
Não podia evitar um recôndito sentimento de rancor para com o marido por tê-la deixado sozinha no meio do oceano tenebroso. Tudo o que era dele lhe provocava o pranto: o pijama debaixo da almofada, as pantufas que sempre lhe pareceram de doente, a recordação da sua imagem a despir-se no fundo do espelho enquanto ela se penteava para dormir, o cheiro da sua pele que havia de continuar na dela por muito tempo depois da morte. Detinha-se a meio de qualquer coisa que estivesse a fazer e dava uma palmadinha na testa, porque, de repente, lembrava-se de algo que se esquecera de dizer-lhe A cada passo vinham-lhe à mente as tantas perguntas quotidianas que só ele podia responder-lhe. Certa vez ele tinha dito uma coisa que ela não podia conceber: os amputados sentem dores cãibras, cócegas, na perna que já não têm. Era como ela se sentia sem ele, sentindo-o estar onde já não se encontrava.
Ao acordar, na sua primeira semana de viúva, tinha-se voltado na cama, ainda sem abrir os olhos, à procura de uma posição mais cómoda para continuar a dormir, e foi, nesse momento, que ele morreu para ela. Pois só então teve consciência de que ele tinha passado a noite, pela primeira vez, fora de casa. A outra impressão foi à mesa, não por se sentir sozinha, como com efeito estava, mas pela certeza esquisita de estar a comer com alguém que já não existia. Aguardou que a sua filha Ofélia viesse de Nova Orleães, com o marido e as três garotas, para sentar-se outra vez a comer à mesa, não na de sempre, mas numa mesa improvisada, mais pequena, que mandou pôr no corredor. Até então não tinha feito nenhuma refeição normal. Passava pela cozinha a qualquer hora, quando tinha fome, metia o garfo nas panelas e comia um pedacinho de tudo sem o pôr num prato, de pé em frente do fogão, a conversar com as empregadas que eram as únicas com quem se sentia bem e com as que melhor se entendia. No entanto, por muito que o tentasse, não conseguia iludir a presença do marido morto: para onde quer que fosse, por onde quer que passasse, fosse o que fosse que fizesse dava com algo seu que lho recordava. E se por um lado lhe parecia honesto e justo que lhe doesse o que doía também queria, por outro lado, fazer todos os possíveis para não se regozijar com a sua dor. Assim, impôs-se a decisão drástica de desterrar da casa tudo quanto lhe recordasse o marido falecido, pois era a única coisa que lhe ocorria para continuar a viver sem ele.
Foi uma cerimónia de extermínio. O filho aceitou levar a biblioteca para que ela fizesse do escritório o quarto da costura que nunca teve depois de casada. Pelo seu lado, a filha levaria alguns móveis e numerosos objectos que lhe pareciam muito apropriados para os leilões de antiguidades de Nova Orleães. Tudo isto foi um alívio para Fermina Daza, ainda que não tivesse achado a mínima graça a que as coisas compradas por ela na sua viagem de núpcias fossem já relíquias de antiquários. Contra o espanto calado das criadas, dos vizinhos, das amigas próximas que vinham acompanhá-la naquelas noites, mandou atiçar uma fogueira num terreno vazio por trás da casa e aí queimou tudo o que lhe recordava o marido: as roupas mais caras e elegantes que se viram na cidade desde o século anterior, os sapatos mais finos, os chapéus que se pareciam mais com ele do que os seus retratos, a cadeira de baloiço da sesta, da qual se levantara pela última vez para morrer, incontáveis objectos tão ligados à sua vida que já faziam parte da sua identidade. Fê-lo sem uma sombra de dúvida por uma certeza absoluta de que o marido tê-lo-ia aprovado, e não só por higiene. Pois muitas vezes lhe tinha ele expressado o seu desejo de ser incinerado e não enclausurado na escuridão sem frestas de uma caixa de cedro. A sua religião impedia-lho, é claro: tinha-se atrevido a sondar o parecer do arcebispo, pelo sim pelo não, e este havia-lhe dado uma negativa rotunda. Era uma mera ilusão, porque a Igreja não permitia a existência de fornos crematórios nos nossos cemitérios, nem para uso de religiões diferentes da católica, e mais ninguém, além do próprio Juvenal Urbino, poderia ter pensado na conveniência de os construir. Fermina Daza não se esqueceu deste terror do esposo e, mesmo na confusão das primeiras horas, lembrou-se de mandar que o carpinteiro lhe deixasse o consolo de uma frincha de luz no caixão.
De todos os modos foi um holocausto inútil. Fermina Daza deu-se conta bem depressa de que a recordação do marido morto era tão refractária ao fogo como parecia sê-lo à passagem dos dias. Pior ainda: depois da incineração das roupas, não só continuava a ter saudade do muito dele que tinha amado como também, do que mais a incomodava: os barulhos que fazia ao levantar-se. Essas recordações ajudaram-na a sair dos mangais do luto. Mas, acima de tudo, tomou a decisão firme de continuar a vida recordando o marido como se não tivesse morrido. Sabia que o despertar de cada manhã continuaria a ser difícil, mas sê-lo-ia cada vez menos.
Ao fim da terceira semana começou a avistar as primeiras luzes. Mas à medida que aumentavam e se tornavam mais claras, ia-se apercebendo de que havia um fantasma atravessado na sua vida, que não lhe deixava um momento de paz. Não era o lastimável fantasma que a espiava no Parque dos Evangelhos e que ela costumava evocar na velhice com uma certa ternura mas sim o fantasma abominável do fato de verdugo e do chapéu encostado ao peito, cuja impertinência estúpida a tinha perturbado de tal maneira que já lhe era impossível não pensar nele Sempre, desde que o repudiou aos dezoito anos, que lhe ficara a convicção de ter deixado nele uma semente de ódio que o tempo não faria mais do que aumentar. Tinha contado com esse ódio em todos os momentos, sentia-o no ar quando o fantasma estava perto, ficava perturbada só de o ver, assustava-a de tal maneira que nunca encontrou forma de se comportar naturalmente com ele. Na noite em que ele lhe reiterou o seu amor, ainda com as flores do esposo falecido a perfumarem a casa, ela não pôde entender que aquele desplante não fosse senão o primeiro passo de quem sabe lá que sinistro propósito de vingança.
A persistência da sua lembrança aumentava-lhe a raiva. Quando acordou a pensar nele, no dia seguinte ao enterro, conseguiu tirá-lo da memória com um simples gesto da vontade. Mas a raiva voltava sempre e logo se deu conta de que o desejo de esquecê-lo era o estímulo mais forte para se lembrar dele. Então atreveu-se a evocar, pela primeira vez, vencida pela nostalgia, os tempos ilusórios daquele amor irreal. Tentava recordar com precisão como era o parque de então, as amendoeiras ao vento, o banco donde ele a amava, porque nada disso existia já como naquele tempo. Tinham mudado tudo, tinham tirado as árvores com o seu tapete de folhas amarelas e, no sítio da estátua do herói decapitado, haviam posto a de outro em uniforme de gala, sem nome, sem datas, sem motivos que a justificassem, sobre um pedestal aparatoso, dentro do qual tinham instalado os controlos eléctricos do bairro. A sua casa, vendida há já muitos anos, caía aos bocados nas mãos do Governo provincial. Não lhe era fácil imaginar Florentino Ariza como era então, e menos ainda conceber que aquele rapaz taciturno, com um ar tão desamparado à chuva, fosse aquela mesma ruína carunchosa que lhe tinha aparecido na frente sem nenhuma consideração pelo seu estado, sem o menor respeito pela sua dor e que lhe havia queimado a alma com uma injúria de chamas vivas que continuava a estorvar-lhe a respiração.
A prima Hildebranda Sanchez tinha vindo visitá-la pouco depois de ela ter estado na fazenda de Flores de Maria a refazer-se do mau bocado da senhorita Lynch. Tinha chegado velha, gorda, feliz, acompanhada pelo filho mais velho, que fora coronel do Exército, como o pai, mas que havia sido repudiado por ele por causa da sua actuação indigna na matança dos trabalhadores dos bananais em San Juan de Ia Ciénaga. As duas primas tinham-se visto muitas vezes e passavam o tempo a recordar a época em que se conheceram. Na sua última visita, Hildebranda estava mais nostálgica do que nunca, e muito afectada pelo peso da velhice. Para um maior deleite nas lembranças, trouxe a sua cópia do retrato de dama antiga que lhes tirara o fotógrafo belga na tarde em que o jovem Juvenal Urbino deu a estocada de misericórdia na voluntariosa Fermina Daza. A cópia desta tinha-se perdido e a de Hildebranda estava quase invisível, mas as duas se reconheceram através das brumas do desencanto: jovens e belas como jamais
voltariam a ser.
Para Hildebranda era impossível não falar de Florentino Ariza, porque sempre identificou a sua sorte com a dele. Recordava-o como no dia em que mandou o seu primeiro telegrama e nunca conseguiu tirar do coração a sua imagem de passarinho triste condenado ao esquecimento. Pelo seu lado, Fermina tinha-o visto muitas vezes, sem conversar com ele, claro, e não podia conceber que fosse o mesmo do seu primeiro amor. Sempre lhe tinham chegado notícias dele, como mais cedo ou mais tarde lhe chegavam as de todos aqueles que significassem qualquer coisa na cidade. Dizia-se que não se tinha casado por ser de hábitos diferentes, mas também não prestou atenção a isso, em parte porque nunca ligou a boatos e em parte porque se diziam coisas semelhantes de muitos homens acima de qualquer suspeita. Por outro lado, parecia-lhe estranho que Florentina Ariza persistisse nas suas roupas místicas, nas suas loções estranhas e que continuasse a ser tão enigmático depois de ter vencido na vida de uma maneira tão espectacular e, além do mais, tão honrada. Não lhe era possível acreditar que era o mesmo, e surpreendia-se sempre quando Hildebranda suspirava: «Pobre homem! Como deve ter sofrido!» Pois ela via-o sem dor há já muito tempo: era uma sombra apagada.
Contudo, na noite em que o encontrou no cinema, pouco depois do seu regresso de Flores de Maria, aconteceu algo de estranho no seu coração. Não ficou surpreendida por estar com uma mulher e, para além do mais, negra. Surpreendeu-a que estivesse tão bem conservado, que se comportasse com mais naturalidade, e não lhe ocorreu pensar que talvez fosse ela e não ele quem tinha mudado depois da irrupção perturbadora da senhorita Lynch na sua vida privada. A partir de então, e durante mais de vinte anos, continuou a vê-lo com olhos mais condescendentes. Na noite do velório do marido não só lhe pareceu compreensível que ali estivesse mas até o interpretou como o fim natural do rancor: um gesto de perdão e esquecimento. Por isso foi tão imprevista a reiteração dramática de um amor que para ela nunca havia existido, e numa idade em que nem ela nem Florentine Ariza tinham mais nada a esperar da vida.
A raiva mortal do primeiro impacte continuava intacta depois da cremação simbólica do marido e, quanto menos capaz ela se sentia de a dominar, mais crescia e se ramificava. Pior ainda: os espaços da memória onde conseguia apaziguar as recordações do falecido iam sendo ”ocupados, a pouco e pouco, mas inexoravelmente, pelo campo de papoilas onde estavam enterradas as recordações de Florentino Ariza. Assim, pensava nele sem gostar dele e, quanto mais pensava, com mais raiva ficava e com quanto mais raiva ficava mais pensava nele, até que se tornou numa coisa tão insuportável que lhe transtornou a razão. Então, sentou-se à secretária do marido falecido e escreveu a Florentino Ariza uma carta de três folhas irracionais, tão carregadas de injúrias e de provocações infames, que a deixaram com o alívio de ter cometido conscientemente o acto mais indigno da sua longa vida.
Também para Florentino Ariza aquelas três semanas tinham sido de agonia. Na noite em que reiterou o seu amor a Fermina Daza, havia vogado sem rumo pelas ruas maltratadas pelo dilúvio da tarde, perguntando-se aterrado que iria fazer com a pele do tigre que acabava de matar depois de ter resistido ao seu cerco durante mais de meio século. A cidade estava em estado de emergência pela violência das águas. Nalgumas casas havia homens e mulheres meio nus a tentarem salvar do dilúvio o que Deus quisesse, e Florentino Ariza teve a sensação de que aquele desastre de todos tinha algo a ver com o seu. Mas o ar era manso e as estrelas das Caraíbas estavam quietas no seu lugar. Depois, durante um silêncio das outras vozes, Florentino Ariza reconheceu a do homem que Leona Cassiani e ele tinham ouvido cantar muitos anos antes, à mesma hora e na mesma esquina: Da ponte me retirei banhado em lágrimas. Uma canção que de algum modo, naquela noite e só para ele, tinha qualquer coisa a ver com a morte.
Nunca como então lhe fez tanta falta Trânsito Ariza, a sua palavra sábia, a sua cabeça de rainha de brincadeira, enfeitada com flores de papel. Não o podia evitar: sempre que se encontrava à beira do cataclismo fazia-lhe falta o amparo de uma mulher. De modo que passou pela Escola Normal procurando a rota das atingíveis e viu que havia uma luz na longa fila de janelas do dormitório de América Vicuna. Teve de fazer um grande esforço para não incorrer na loucura de avô de a tirar de lá às duas da manhã, morna de sono entre as suas fraldas e ainda a cheirar a emanações de berço.
No outro extremo da cidade estava Leona Cassiani, só e livre, e, sem dúvida, disposta a oferecer-lhe às duas da manhã, às três, a qualquer hora e em qualquer circunstância, a compaixão que lhe fazia falta. Não seria a primeira vez que ele lhe batia à porta no ermo das suas insónias, mas compreendeu que ela era demasiado inteligente e que se amavam de mais para que ele fosse chorar no seu regaço sem lhe revelar o motivo. Ao fim de muito pensar, sonâmbulo pela cidade deserta, ocorreu-lhe que com nenhuma podia estar melhor do que com Prudência Pitre, a Viúva de Dois. Era dez anos mais nova que ele. Tinham-se conhecido no século anterior e se deixaram de se encontrar foi porque ela se havia empenhado em não deixar que a vissem como estava, meio cega, e deveras à beira da decrepitude. Assim que se lembrou dela, Florentino Ariza voltou à Rua das Janelas, meteu num saco de compras duas garrafas de vinho do Porto e um frasco de picles e foi vê-la sem sequer saber se estava na sua casa de sempre, se estava sozinha ou se estava viva.
Prudência Pitre não se tinha esquecido da senha das unhas raspando na porta, com que ele se identificava quando ainda se julgavam jovens ainda que já não o fossem, e abriu-lha sem perguntas. A rua estava às escuras e era quase invisível com o fato preto, o chapéu e o guarda-chuva de morcego pendurado no braço, e ela não tinha olhos para o ver a menos que fosse à luz do dia, mas reconheceu-o pelo reflexo do lampião na armação metálica dos óculos. Parecia um assassino com as mãos ainda ensanguentadas.
- Asilo para um pobre órfão - disse.
Foi a única coisa que lhe ocorreu dizer, só para dizer alguma coisa. Surpreendeu-o o quanto tinha envelhecido desde que a vira da última vez e teve consciência de que ela o via da mesma maneira. Mas consolou-se a pensar que, passado um momento, quando ambos se tivessem recomposto da surpresa inicial, notariam menos um no outro as mataduras da vida, e tornariam a ver-se tão jovens quanto o foram um para o outro quando se conheceram: quarenta anos antes.
- Parece que vais a um enterro - disse ela.
Assim era. Também ela tinha estado à janela desde as onze, como quase toda a cidade, a ver passar o cortejo mais concorrido e sumptuoso que se vira desde a morte do arcebispo De Luna. Tinham-na acordado da sesta os trovões da artilharia que faziam tremer a terra, a discórdia das bandas militares, a desordem dos cânticos fúnebres por cima do clamor dos sinos de todas as igrejas, que dobravam sem pausa desde o dia anterior. Tinha visto da varanda os militares a cavalo, em uniforme de parada, as comunidades religiosas, os colégios, as longas limusinas pretas da autoridade invisível, as carruagens de cavalos com morriões de plumas e xairéis de ouro, o caixão amarelo coberto com a bandeira na carreta de um canhão histórico, e, em último lugar, a fila das velhas vitórias abertas que continuavam a manter-se vivas para transportar as coroas. Tinham acabado de passar pela janela de Prudência Pitre quando desabou o dilúvio e o cortejo dispersou-se precipitadamente.
- Que maneira mais absurda de morrer - disse ela.
- A morte não tem o sentido do ridículo - disse ele e acrescentou com pena: - sobretudo na nossa idade.
Estavam sentados no terraço, frente ao mar, a ver a Lua com um halo que ocupava metade do céu, a ver as luzes coloridas dos barcos no horizonte, deleitando-se na brisa morna e perfumada depois da tempestade. Bebiam vinho do Porto e comiam picles com fatias de pão que Prudência Pitre cortava na cozinha. Tinham vivido muitas noites como essa, depois dela ter ficado viúva e sem filhos aos trinta e cinco anos. Florentine Ariza encontrou-a numa altura em que teria recebido qualquer homem que a quisesse acompanhar, mesmo que fosse alugado à hora, e conseguiram estabelecer uma relação mais séria e prolongada do que parecia possível.
Ainda que nunca o tivesse insinuado sequer, ela teria vendido a alma ao diabo para se casar com ele em segundas núpcias. Sabia que não era fácil submeter-se à sua mesquinhez, às suas necessidades de velho prematuro, à sua organização maníaca, à sua ansiedade de pedir tudo sem dar nada de nada, mas, em troca, não havia homem algum que se deixasse acompanhar melhor do que ele, porque não podia haver outro no mundo tão necessitado de amor quanto ele. Mas também não havia outro tão escorregadio, de modo que o amor não passou donde com ele sempre chegava: até onde não interferisse na sua determinação de se conservar livre para Fermina Daza. No entanto, prolongou-se por muitos anos, mesmo depois de ele ter arranjado as coisas para que Prudência Pitre se casasse de novo com um caixeiro-viajante que ficava três meses e andava em viagem outros três, e de quem teve uma filha e quatro filhos, um dos quais, segundo ela jurava, era de Florentine Ariza.
Conversaram sem se preocuparem com as horas, porque ambos estavam habituados a partilhar as suas insónias de jovens e tinham muito menos que perder com as suas insónias de velhos. Ainda que quase nunca passasse do segundo copo, Florentine Ariza não tinha recuperado o fôlego depois do terceiro. Escorria suor e a Viúva de Dois disse-lhe que tirasse o casaco, o colete, as calças, que tirasse tudo o que quisesse, porque, porra, no fim de contas, eles conheciam-se melhor despidos do que vestidos. Ele disse que o faria se ela o fizesse, mas ela não quis. Há algum tempo tinha-se visto nua ao espelho do roupeiro e compreendera então que já não teria coragem para deixar que nem ele nem ninguém a visse nua.
Florentine Ariza, num estado de exaltação que não tinha conseguido acalmar com quatro copos de vinho do Porto, continuou a falar do passado, das boas recordações do passado que eram o seu único assunto já há muito tempo, mas ansioso por encontrar no passado um caminho secreto para desabafar. Pois era disso que ele precisava: deitar a alma pela boca. Quando viu os primeiros alvores no horizonte tentou uma abordagem enviesada. Perguntou, de uma maneira que parecia fortuita«Que farias se alguém te propusesse casamento, assim como estás, viúva e na tua idade?» Ela riu-se, com um riso enrugado de velha e perguntou por sua vez:
- Dizes isso por causa da viúva de Urbinq? Florentino Ariza esquecia-se sempre, e quando menos devia que as mulheres pensam mais no sentido oculto das perguntas que nas perguntas em si, e Prudência Pitre mais que qualquer outra. Tomado de um pavor súbito pela sua pontaria arrepiante, barafustou pela porta falsa: «Pergunto-o por ti.» Ela voltou a rir: «Vai fazer troça da puta da tua mãe, que descanse em paz.» Então insistiu com ele para que dissesse o que queria dizer, porque sabia que nem ele nem nenhum outro homem a teria acordado às três da manhã, e ao fim de tantos anos sem a ver, só para beber vinho do Porto e comer pão com picles. Disse: «Isso só se faz quando se anda à procura de alguém com quem chorar.» Florentino Ariza bateu em retirada.
- Desta vez enganas-te - disse-lhe. - Esta noite tenho razões para cantar.
- Então cantemos - disse ela.
Começou a entoar com uma bela voz a canção em moda: Ramona, sem ti já não posso viver. Foi o final da noite, pois ele não se atreveu a jogar jogos proibidos com uma mulher que lhe tinha dado demasiadas provas de conhecer o outro lado da Lua. Saiu para uma cidade diferente, rarefeita pelas últimas dálias de Junho e para uma rua da sua juventude por onde desfilavam as viúvas de trevas da missa das cinco. Mas então foi ele e não elas quem mudou de passeio para que não lhe vissem as lágrimas que já não conseguia conter, não desde a meia-noite, como julgava, porque estas eram outras: as que levava entaladas na garganta há cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias.
Tinha perdido a noção do tempo, quando acordou, sem saber onde estava, em frente de uma janela deslumbrante. A voz de América Vicuna, a jogar à bola no jardim com as empregadas, trouxe-o à realidade: estava na cama da sua mãe, cujo quarto se conservava intacto, e onde costumava dormir para se sentir menos sozinho nas poucas ocasiões em que a solidão o inquietava. Em frente da cama estava o grande espelho da Estalagem de Sancho e bastava-lhe olhar para ele ao acordar para ver Fermina Daza reflectida no fundo. Soube que era sábado porque era o dia em que o motorista ia ao internato buscar América Vicuna e a levava para casa dele. Deu-se conta de que tinha dormido sem saber, sonhando que não conseguia dormir, com um sonho perturbado pela expressão da raiva de Fermina Daza. Tomou banho a pensar qual deveria ser o passo seguinte, vestiu-se muito devagar com as suas melhores roupas, perfumou-se e tratou do bigode branco de pontas afiadas, e, ao sair do quarto, viu do corredor do segundo andar a bela criatura em uniforme, que apanhava a bola no ar com aquela graça que em tantos sábados o tinha feito estremecer, mas que nessa manhã não lhe causou a menor perturbação. Acenou-lhe para que fosse com ele e, antes de entrarem no carro, disse-lhe desnecessariamente: «Hoje não vamos fazer coisinhas.» Levou-a à Geladaria Americana, cheia àquela hora com os pais que comiam gelados com os filhos sob as ventoinhas de grandes pás penduradas no tecto baixo. América Vicuna pediu um gelado de vários andares, cada um de uma cor diferente numa taça gigantesca, que era o seu preferido e o mais vendido porque exalava uma fumarada mágica. Florentino Ariza tomou café, fitando a menina sem falar, enquanto ela comia o gelado com uma colher de cabo muito comprido para chegar ao fundo da taça. Sem deixar de olhar para ela, disse-lhe de repente:
- Vou-me casar.
Ela olhou-o nos olhos com um lampejo de incerteza, segurando a colher no ar, mas logo a seguir se refez e sorriu:
- E mentira - disse. - Os velhinhos não se casam. Nessa tarde deixou-a no internato à hora do angelus, sob uma chuva teimosa, depois de terem visto juntos os fantoches do parque, de terem almoçado nas barracas de peixe frito do cais, de terem visto as feras enjauladas de um circo que acabava de chegar, de comprarem nos portais toda a variedade de doces para levar para o internato e de terem dado várias voltas pela cidade no automóvel aberto para que ela se fosse habituando à ideia de que ele era o seu tutor e não mais o seu amante. no domingo mandou-lhe o automóvel para ver se ela queria ir passear com as amigas, mas não quis vê-la, porque desde a semana anterior que estava plenamente consciente da idade de ambos. Nessa noite tomou a decisão de escrever a Fermina Daza uma carta de desculpas, embora fosse só para não capitular, mas deixou-a para o dia seguinte. Na segunda-feira, ao fim de exactamente três semanas de paixão, entrou em casa encharcado pela chuva e encontrou a carta dela.
Eram oito da noite. As duas empregadas estavam deitadas e tinham deixado no corredor a única luz permanente que permitia a Florentino Ariza chegar ao quarto. Sabia que o seu jantar, esturricado e insípido, estava na mesa da sala de jantar, mas a pouca fome que levava, depois de tantos dias a comer de qualquer maneira, evaporou-se-lhe com a comoção da carta. Custou-lhe acender a luz principal do quarto de tanto que lhe tremiam as mãos. Pôs a carta molhada em cima da cama, acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira, e com uma calma fingida que era um recurso muito seu para se acalmar, tirou o casaco ensopado e pendurou-o nas costas da cadeira, tirou o colete e colocou-o muito bem dobrado sobre o casaco, tirou a fita de seda preta e o colarinho de celulóide que já tinha passado de moda em todo o mundo, desabotoou a camisa até à cintura, desapertou o cinto para respirar melhor e, por fim, tirou o chapéu e pô-lo a secar ao pé da janela. De repente sobressaltou-se porque não soube onde estava a carta e era tal o seu nervosismo que se surpreendeu ao encontrá-la, pois já não se lembrava de a ter posto em cima da cama. Antes de a abrir enxugou o sobrescrito com o lenço, fazendo por não esborratar a tinta com que estava escrito o seu nome, e, enquanto o fazia, descobriu que aquele segredo já não estava partilhado só por dois, mas sim por três, pelo menos, pois quem quer que fosse que a tivesse trazido, devia ter-lhe chamado a atenção que a viúva de Urbino escrevesse a alguém, fora do seu mundo apenas três semanas após o falecimento do marido, com tanta premência que não mandara a carta pelo correio e com tanto sigilo que ordenara que não a entregassem em mão mas que a metessem por baixo da porta como um bilhete anónimo. Não teve de rasgar o sobrescrito, porque a cola tinha-se desfeito com a água, mas a carta estava seca: três folhas densas, sem cabeçalho, e assinadas com as iniciais do seu nome de casada.
Leu-a uma vez com toda a pressa sentado na cama, mais intrigado com o tom que com o conteúdo, e antes de passar à segunda folha já sabia que era exactamente a carta de impropérios que contava receber. Pô-la aberta sob a luz do candeeiro, tirou os sapatos e as meias molhadas, apagou, ao lado da porta, a luz principal e, finalmente, pôs a bigodeira de camurça e deitou-se sem tirar as calças e a camisa, com a cabeça em cima de dois grandes almofadões que lhe serviam de espaldar para ler. Assim releu a carta, desta vez letra a letra, esquadrinhando cada letra para que nenhuma das suas intenções ocultas ficasse por desentranhar, e leu-a depois mais quatro vezes até ficar tão saturado que as palavras escritas começaram a perder o seu sentido. Depois guardou-a sem o sobrescrito na gaveta da mesinha-de-cabeceira, deitou-se de costas com as mãos entrelaçadas sob a nuca e permaneceu durante quatro horas com a vista fixa no espaço do espelho onde tinha estado, sem pestanejar, mal respirando, mais morto do que um morto. À meia-noite em ponto foi à cozinha, preparou e levou para o quarto um termo de café espesso como petróleo em rama, meteu a dentadura postiça no copo de água bórica que sempre encontrava preparado para isso na mesa-de-cabeceira, voltou a deitar-se na mesma posição de mármore jazente, com variações momentâneas de quando em quando para tomar um gole de café, até que a criada de quarto entrou às seis com outro termo cheio.
A essa hora, Florentino Ariza já sabia qual ia ser cada um dos seus passos seguintes. Na verdade, os insultos não lhe tinham doído nem se preocupou em esclarecer as inculpações injustas, que podiam muito bem ter sido piores, sabendo o carácter de Fermina Daza e a gravidade do motivo. A única coisa que o interessou foi que a carta, por si só, dava-lhe a oportunidade e reconhecia-lhe o direito de resposta. Mais do que isso: exigia. De modo que a vida se encontrava agora no ponto para onde ele a tinha querido levar. Tudo o mais dependia dele e tinha a convicção firme de que o seu inferno privativo de mais de meio século ainda lhe preparava muitas provas mortais que ele estava disposto a enfrentar com maior ardor e maior dor e maior amor que todas as anteriores, porque seriam as últimas.
Cinco dias depois de ter recebido a carta de Fermina Daza quando chegou aos seus escritórios, sentiu-se a flutuar no vazio abrupto e inabitual das máquinas de escrever, cujo ruído de chuva tinha acabado por se notar menos que o seu silêncio Era uma pausa. Quando o ruído começou outra vez, Florentine Ariza espreitou pela porta do gabinete de Leona Cassiani e observou-a sentada em frente da sua máquina pessoal, que obedecia às pontas dos seus dedos como um instrumento humano. Ela soube-se observada e olhou para a porta com o seu terrível sorriso solar, mas não parou de escrever até chegar ao fim do parágrafo.
- Diz-me uma coisa, leoa da minha alma - perguntou Florentino Ariza. - Como te sentirias se recebesses uma carta de amor escrita nesse traste?
O gesto dela, que já não se surpreendia com nada, foi de surpresa legítima.
- Ora vê lá tu! - exclamou. - Imagina que nunca me tinha passado isso pela cabeça.
Para isso não tinha outra resposta. Também a Florentine Ariza não lhe tinha passado isso pela cabeça até essa altura e decidiu arriscar a fundo. Levou para casa uma das máquinas do escritório por entre os motejos cordiais dos subalternos: «Burro velho não aprende línguas.» Leona Cassiani, entusiasta de qualquer novidade, ofereceu-se para lhe dar lições de dactilografia ao domicílio. Mas ele estava contra as aprendizagens metódicas desde que Lotario Thugut lhe quis ensinar a tocar violino por música, com a ameaça de que iria precisar de pelo menos um ano para começar, cinco para ser aceitável numa orquestra profissional e toda a vida, a seis horas por dia, para tocar bem. No entanto, conseguiu que a mãe lhe comprasse um violino de cego e, com as cinco regras básicas que Lotario Thugut lhe deu, atreveu-se a tocá-lo em menos de um ano no coro da catedral, e a fazer serenatas a Fermina Daza, do cemitério dos pobres consoante a direcção dos ventos. Se isto tinha acontecido aos vinte anos com uma coisa tão difícil como o violino, não via por que motivo não poderia acontecer também aos setenta e seis com um instrumento de um dedo só como a máquina de escrever.
Assim foi. Precisou de três dias para aprender a posição das letras no teclado, outros seis para aprender a pensar ao mesmo tempo que escrevia e mais três para acabar a primeira carta sem erros, depois de rasgar meia resma de papel. Pôs-lhe um cabeçalho solene: Senhora, e assinou com a inicial do seu nome, como costumava fazer nos bilhetinhos perfumados da sua juventude. Mandou-a pelo correio, num sobrescrito com tarjas de luto como era de rigor numa carta para uma viúva recente e sem o nome do remetente no verso.
Era uma carta de seis folhas que não tinha nada a ver com nenhuma outra que alguma vez tivesse escrito. Não tinha nem o tom, nem o estilo, nem o fôlego retórico dos primeiros anos do amor, e a sua argumentação era tão racional e bem medida que o perfume de uma gardenia teria sido completamente deslocado. De certo modo foi o que mais acertadamente se pareceu com as cartas comerciais que nunca conseguiu fazer. Anos mais tarde, uma carta pessoal escrita com meios mecânicos teria sido quase ofensiva. Mas, nessa altura, a máquina de escrever era ainda um animal de escritório, sem ética própria, cuja domesticação para uso particular não estava prevista nos manuais de boas maneiras. Mais parecia um modernismo audaz, e assim o deve ter entendido Fermina Daza, pois na segunda carta que escreveu a Florentino Ariza, depois de receber mais de cento e quarenta dele, começava por pedir desculpa pela incerteza da sua letra, por não dispor de meios de escrita mais adiantados do que a caneta de aparo.
Florentino Ariza não se referiu sequer à carta tremenda que ela lhe tinha mandado, e tentou desde o princípio um método diferente de sedução, sem referência nenhuma aos amores do passado, nem ao passado propriamente dito: apagar e começar de novo. Era antes uma extensa meditação sobre a vida, baseada nas suas ideias e experiências das relações entre homem e mulher, que em tempos pensara escrever como complemento do Secretário dos Namorados. Só que agora a envolveu num estilo patriarcal, de memórias de velho, para que não se notasse muito que, na verdade, era um documento de amor. Antes escreveu muitos rascunhos à moda antiga, que demoravam mais a ser lidos de cabeça fria que a ser atirados ao lume. Sabia que qualquer descuido convencional, a menor leviandade nostálgica, podia remexer no seu coração o sabor amargo do passado e ainda que tivesse previsto que ela lhe devolvesse cem cartas antes de se atrever a ler a primeira, preferia que isso não acontecesse nenhuma vez. Por isso planeou tudo até ao último pormenor como se fosse uma guerra final: tudo tinha de ser diferente para suscitar novas curiosidades, novas intrigas, novas esperanças, numa mulher que já havia vivido em plenitude uma vida completa. Tinha de ser uma ilusão desatinada, capaz de lhe dar a coragem que lhe faria falta para deitar no lixo os preconceitos de uma classe que não tinha sido sua de origem, mas que havia acabado por sê-lo mais que qualquer outra. Tinha de ensiná-la a pensar no amor como um estado de graça que não era um meio para nada, mas sim um princípio e um fim em si mesmo.
Teve o bom senso de não esperar uma resposta imediata, pois bastava-lhe que a carta não lhe fosse devolvida. Não o foi, como não o foi nenhuma das seguintes, e à medida que passavam os dias acelerava-se a sua ansiedade, pois quantos mais dias passassem sem devoluções mais aumentava a esperança de uma resposta. A frequência das suas cartas começou condicionada pela habilidade dos seus dedos: primeiro uma por semana, depois duas, e, por fim, uma por dia. Alegrou-se com o progresso do correio desde os seus tempos de missivista, pois não teria corrido o risco de deixar que o vissem todos os dias na Estação dos Correios a pôr uma carta sempre para a mesma pessoa, nem a enviá-la por alguém que pudesse falar depois. Por outro lado, era muito fácil mandar um empregado comprar os selos para todo o mês e depois enfiar a carta num dos três marcos espalhados pela cidade velha. Depressa incluiu aquele ritual na sua rotina: aproveitava as insónias para escrever e, no dia seguinte, na ida para o escritório, pedia ao motorista que parasse um instante diante de um marco de esquina e ele próprio descia para ir deitar a carta. Nunca consentiu que o motorista o fizesse por ele, como o pretendeu numa certa manhã de chuva, e, por vezes, tomava a precaução de não levar só uma mas várias cartas ao mesmo tempo para que parecesse mais natural. O motorista não sabia, claro, que as cartas suplementares eram folhas em branco que Florentino Ariza endereçava a si próprio, pois nunca tinha mantido correspondência particular com ninguém, salvo o relatório como tutor que enviava todos os fins de mês aos pais de América Vicuna com as suas opiniões pessoais sobre o comportamento, o estado de espírito e a saúde da menina, e o bom andamento dos seus estudos.
Começou a numerar as cartas a partir do primeiro mês e a encabeçá-las com um resumo das anteriores como nos folhetins em fascículos dos jornais, por receio que Fermina Daza não desse conta de que tinham uma certa continuidade. Quando se tornaram diárias, trocou também os sobrescritos de tarja de luto por sobrescritos brancos e grandes e isto acabou de lhes dar a impessoalidade cúmplice das cartas comerciais. Quando começou estava disposto a submeter a sua paciência a uma prova maior, pelo menos até não ter a evidência de que estava a perder o seu tempo com o único método diferente que pôde conceber. Esperou, com efeito, sem os quebrantos de todo o género que lhe provocavam as esperas da juventude, mas com a porfia de um ancião de cimento sem mais nada em que pensar, sem mais nada que fazer numa companhia fluvial que nessa altura navegava sozinha com ventos propícios, e, além disso, convencido de que estaria vivo e com o perfeito domínio das suas faculdades de homem no dia de amanhã, de mais tarde ou de sempre em que Fermina Daza se convencesse, por fim, de que as suas ânsias de viúva solitária não tinham outro remédio senão descer para ele as suas pontes levadiças.
Entretanto, continuou com a sua vida normal. Prevendo uma resposta favorável, iniciou uma segunda renovação da casa para que fosse digna de quem teria podido considerar-se sua dona e senhora desde que foi comprada. Voltou a visitar Prudência Pitre várias vezes, como lhe tinha prometido, para demonstrar-lhe que a amava apesar dos estragos da idade, à luz do dia e de porta aberta e não só nas suas noites de desamparo. Continuou a passar por casa de Andrea Varón até encontrar apagada a luz da casa de banho e tentou embrutecer-se com as loucuras da sua cama ainda que fosse para não perder a regularidade do amor, de acordo com outra superstição sua, nunca desmentida até então, de que o corpo continua enquanto a gente continuar.
O único obstáculo foi o estado da sua relação com América Vicuna. Tinha repetido ao motorista a ordem de a ir buscar aos sábados ao internato às dez da manhã, mas não sabia que fazer com ela durante o fim-de-semana. Pela primeira vez não se interessou por ela e ela ressentia-se com a mudança. Mandava as empregadas levarem-na ao cinema, à tarde, aos coretos do parque infantil, às tômbolas de beneficência ou arranjava-lhe outros programas dominicais com outras colegas do colégio para não ter de a levar ao paraíso escondido por detrás dos seus escritórios, onde ela queria voltar sempre, desde que a levou lá pela primeira vez. Não se dava conta, nas nebulosas da sua nova ilusão, de que as mulheres podem tornar-se adultas em três dias, e que eram três os anos que tinham passado desde que a recebera no veleiro a motor de Puerto Padre. Por muito que a quisesse suavizar, a mudança foi brutal para ela, mas não pôde conceber o motivo. No dia em que lhe disse, na geladaria, que se ia casar, revelando-lhe uma verdade, ela sentiu o impacte do pânico, mas logo a seguir pareceu-lhe uma possibilidade tão absurda que a esqueceu por completo. Muito depressa compreendeu, porém, que ele se comportava como se fosse coisa certa, com evasivas inexplicadas, como se não tivesse sessenta anos mais e sim menos do que ela.
Numa tarde de sábado, Florentine Ariza encontrou-a a tentar escrever à máquina no seu quarto, e fazia-o bastante bem, pois tinha aulas de dactilografia no colégio. Tinha feito mais de meia página de escrita automática, mas em certos trechos era fácil distinguir uma frase reveladora do seu estado de ânimo. Florentine Ariza inclinou-se sobre o seu ombro para ler o que escrevia. Ela perturbou-se com o seu calor de homem, a sua respiração entrecortada, o perfume da sua roupa, que era o mesmo da sua almofada. Já não era a menina recém-chegada que ele despia peça por peça com conversinhas de bebé: primeiro os sapatinhos para o ursinho, depois a camisinha para o béu-béu, depois as cuequinhas às flores para o coelhinho e agora um beijinho na pombinha linda do seu papá. Não: agora era uma mulher nada e criada que gostava de ser ela a tomar a iniciativa. Continuou a escrever com um único dedo da mão direita, e, com a esquerda, tacteou à procura da perna dele, explorou, encontrou, sentiu-o reviver, crescer, suspirar de ansiedade, e a sua respiração de velho tornou-se pedregosa e difícil. Ela conhecia-o: a partir desse ponto ele ia perder o domínio, desarticulava-se-lhe a razão, ficava à mercê dela, e não haveria de dar com o caminho de volta enquanto não chegasse ao fim. Foi levando-o pela mão até à cama, como a um pobre cego da rua, e desfê-lo pedaço a pedaço com uma ternura maligna, salgou-o a seu gosto, deitou-lhe pimenta de cheiro, um dente de alho, cebola picada, o sumo de um limão, uma folha de louro até tê-lo temperado na travessa diante do forno pronto à temperatura certa. Não havia ninguém em casa. As criadas tinham saído, os pedreiros e os carpinteiros da reconstrução não trabalhavam aos sábados: tinham o mundo inteiro para eles os dois. Mas ele saiu do êxtase à beira do abismo, afastou-lhe a mão, endireitou-se, disse com voz trémula:
- Cuidado, não temos camisinhas.
Ela ficou durante um bom bocado de costas, na cama, e quando voltou ao internato, com uma hora de avanço, estava para além da vontade de chorar e tinha apurado o olfacto e afiado as unhas para encontrar vestígios da lebre escondida que lhe tinha transtornado a vida. Florentine Ariza, pelo seu lado, incorreu uma vez mais num erro de homem: pensou que ela se tinha convencido da inutilidade dos seus propósitos e havia resolvido esquecê-lo.
Sabia o que fazia. Ao fim de seis meses, sem o mínimo sinal, deu consigo a dar voltas na cama até amanhecer, perdido no deserto de uma insónia diferente. Pensava que Fermina Daza tinha aberto a primeira carta pela sua aparência ingénua, tinha chegado a ver a inicial conhecida de outras cartas de antigamente, e tinha-a deitado na fogueira do lixo sem se dar sequer ao trabalho de a rasgar. Ter-lhe-ia bastado ver os sobrescritos das seguintes para fazer o mesmo sem as abrir e assim até ao fim dos tempos, enquanto ele chegava ao término das suas meditações escritas. Não acreditava que existisse uma mulher capaz de resistir à curiosidade de meio ano de cartas quotidianas sem saber nem sequer de que cor era a tinta com que estavam escritas. Mas se existisse uma, só podia ser ela.
Florentine Ariza sentia que o tempo da velhice não era uma torrente horizontal mas sim uma cisterna sem fundo por onde desaguava a memória. Esgotava-se-lhe o engenho. Depois de rondar durante vários dias a Quinta de La Manga, compreendeu que aquele método juvenil não conseguiria arrombar as portas condenadas pelo luto. Uma manhã, ao procurar um número na lista telefónica, deparou por mero acaso com o dela. Telefonou. O sinal tocou muitas vezes e, por fim, reconheceu a voz séria e afónica: «Está lá?» Desligou sem falar, mas a distância infinita daquela voz inacessível abalou-lhe o espírito.
Por essa altura, Leona Cassiani festejou o seu aniversário e convidou um reduzido grupo de amigos para irem a sua casa Ele estava distraído e entornou o molho do frango. Ela limpou-lhe a lapela, molhando a ponta do guardanapo no copo de água e depois pôs-lho como babete para evitar um acidente maior: ficou como um bebé velho. Reparou que várias vezes durante a refeição tirou os óculos para os limpar com o lenço, porque lhe choravam os olhos. À hora do café adormeceu com a chávena na mão e ela tentou tirar-lha sem o acordar, mas ele reagiu, envergonhado: «Só estava a descansar a vista.» Leona Cassiani deitou-se surpreendida ao ver como já se lhe notava a velhice.
No primeiro aniversário da morte de Juvenal Urbino, a família enviou pagelas a convidar para uma missa comemorativa na catedral. Nessa altura, Florentino Ariza tinha mandado a carta número cento e trinta e dois sem ter recebido nenhum sinal de volta e isto impeliu-o a tomar a audaz decisão de assistir à missa mesmo sem ter sido convidado. Foi um acontecimento social mais faustoso que comovedor. Os bancos das primeiras filas, reservados com carácter vitalício e hereditário, tinham nas costas uma placa de cobre com o nome do dono. Florentino Ariza chegou com os primeiros convidados para se sentar num sítio por onde Fermina Daza não pudesse passar sem o ver. Pensou que os melhores seriam os da nave central, a seguir aos bancos reservados, mas era tanta a concorrência que nem aí encontrou um lugar livre e teve de se sentar na nave dos parentes pobres. Daí viu entrar Fermina Daza pelo braço do filho, vestida de veludo preto até aos pulsos, sem qualquer adereço, com uma fila contínua de botões da gola até à ponta dos pés, como uma sotaina de bispo, e um xaile de renda castelhana em vez do chapéu com rede das outras viúvas e de muitas outras senhoras ansiosas por o serem. O rosto descoberto tinha um brilho de alabastro, os olhos amendoados viviam com vida própria sob os enormes candelabros da nave central, e caminhava tão direita, tão altiva, tão dona de si, que não parecia ser mais velha que o filho. Florentino Ariza, de pé, apoiou a ponta dos dedos no encosto do banco até lhe passar a tontura, porque sentiu que ele e ela não estavam a sete passos de distância mas sim em duas épocas diferentes.
Fermina Daza suportou a cerimónia no banco familiar diante do altar-mor, de pé durante quase todo o tempo, com a mesma atitude com que assistia à ópera. Mas, no fim, infringiu as normas da liturgia e não permaneceu no seu lugar para receber a renovação das condolências, de acordo com os costumes vigentes, mas adiantou-se para agradecer a presença de cada um dos convidados: um gesto renovador que ia muito a par da sua maneira de ser. Cumprimentando uns e outros chegou aos bancos dos parentes pobres e, por fim, olhou à sua volta para se certificar de que não lhe faltava cumprimentar ninguém conhecido. Florentino Ariza sentiu então que um vento sobrenatural o fazia sair da sua órbita: ela tinha-o visto. Fermina Daza, com efeito, afastou-se dos seus acompanhantes com o à-vontade com que fazia tudo em sociedade, estendeu-lhe a mão e disse-lhe, com um sorriso muito doce:
- Obrigado por ter vindo.
Pois não só tinha recebido as cartas como as tinha lido com grande interesse e havia encontrado nelas sérios motivos de reflexão para continuar a viver. Estava à mesa, a tomar o pequeno-almoço com a filha, quando recebeu a primeira. Abriu-a pela curiosidade de estar escrita à máquina, e um rubor súbito lhe abrasou o rosto ao reconhecer a inicial da assinatura. Mas assimilou-o nesse mesmo instante e guardou a carta no bolso do avental. Disse: «São pêsames do Governo.» A filha surpreendeu-se: «Já chegaram todos.» Ela não se deu por achada: «É mais outro.» A sua ideia era queimar a carta mais tarde, longe das perguntas da filha, mas não pôde resistir à tentação de lhe dar uma vista de olhos. Esperava uma réplica merecida à sua carta de injúrias, que tinha começado a pesar-lhe na consciência no mesmo momento em que a enviou, mas desde o cabeçalho senhorial e os propósitos do primeiro parágrafo que compreendeu que alguma coisa tinha mudado no mundo. Ficou tão intrigada que se fechou no quarto para a ler sossegada antes de a queimar e leu-a três vezes sem retomar o fôlego.
Eram meditações sobre a vida, o amor, a velhice, a morte: ideias que tinham passado muitas vezes a esvoaçar como pássaros nocturnos pela sua cabeça, mas que se perdiam num monte de penas quando tentava apanhá-las. Aí estavam, nítidas, simples, tal como ela teria gostado de as dizer, e mais uma vez se lamentou por não ter o marido vivo para as comentar com ele, como costumava comentar, antes de adormecer, certos acontecimentos do dia. Assim se lhe revelava um Florentino Ariza desconhecido, com uma clarividência que não correspondia aos bilhetinhos febris da sua juventude nem ao seu comportamento sombrio de toda a vida. Mais pareciam as palavras do homem que à tia Escolástica pareceu inspirado pelo Espírito Santo e este pensamento voltou a assustá-la como da primeira vez. Em todo o caso, o que mais contribuiu para lhe acalmar os ânimos foi a certeza de que aquela carta de velho sábio não era uma tentativa de reiterar a impertinência da noite do luto, mas sim uma maneira muito nobre de apagar o passado.
As cartas seguintes acabaram por a tranquilizar. Queimou-as de todos os modos, depois de as ler com um interesse crescente, ainda que à medida que as queimava lhe fosse ficando um sentimento de culpa que não conseguia dissipar. Foi por isso que quando as começou a receber numeradas encontrou a justificação moral que desejava para não as destruir. A sua intenção inicial, em todo o caso, não era a de as conservar para ela, mas aguardar a oportunidade de as devolver a Florentine Ariza para que não se perdesse uma coisa que lhe parecia de tanta utilidade humana. O pior foi que o tempo passou e as cartas continuaram a chegar, uma em cada três ou quatro dias durante todo o ano, e ela não soube como devolvê-las sem que parecesse uma afronta que já não queria cometer e sem ter que o explicar numa carta que o seu orgulho se negava a escrever.
Tinha-lhe bastado aquele primeiro ano para assumir a viuvez. A recordação purificada do marido deixou de ser um obstáculo aos seus actos quotidianos, aos seus pensamentos íntimos, às suas intenções mais simples e converteu-se numa presença vigilante que a guiava sem a estorvar. Por vezes encontrava-o, não como uma aparição, mas em carne e osso, onde na verdade lhe fazia falta. Animava-a a certeza de que ele estava ali, ainda vivo mas sem os seus caprichos de homem, sem as suas exigências patriarcais, sem a necessidade esgotante de que ela o amasse com o mesmo ritual de beijos importunos e palavras ternas com que ele a amava. Agora compreendia-o melhor do que quando estava vivo, compreendeu a ansiedade do seu amor, a urgência de encontrar nela a segurança que parecia ser o suporte da sua vida pública e que, na realidade, nunca teve. Um dia, no cúmulo do desespero, ela tinha-lhe gritado: «Não te dás conta de como sou infeliz.» Ele tirou os óculos, num gesto muito seu, sem se alterar, inundou-a com as águas diáfanas dos seus olhos pueris e, com uma só frase, deitou-lhe em cima todo o peso da sua sapiência insuportável: «Lembra-te sempre que o mais importante num casamento não é a felicidade mas a estabilidade.» Logo nas suas primeiras solidões de viúva entendeu que aquela frase não escondia a ameaça mesquinha que lhe tinha atribuído em tempos mas a pedra de toque que lhes tinha proporcionado tantas horas felizes.
Nas muitas viagens pelo mundo, Fermina Daza comprava tudo o que lhe chamava a atenção pela sua novidade. Desejava-as por impulso primário que o marido tinha gosto em racionalizar e eram coisas bonitas e úteis enquanto estavam no seu meio de origem, nas montras de Roma, Paris, Londres ou nas daquela Nova Iorque trepidante do Charleston onde começavam a crescer os arranha-céus, mas não suportavam a prova das valsas de Strauss com espetadas de carne e batalhas de flores a quarenta graus à sombra. Assim que regressava com meia dúzia de baús verticais, enormes, de metal laqueado com fechaduras e cantos de cobre, como caixões de fantasia, dona e senhora das últimas maravilhas do mundo que, no entanto, não valiam o seu preço em ouro senão no momento breve em que alguém do seu mundo local as via por uma vez. Pois para isso tinham sido compradas, para que os outros as vissem uma vez. Ela tomara consciência da vaidade da sua imagem pública muito antes de começar a envelhecer e era amiúde que a ouviam dizer em casa: «Temos de nos livrar de tantas bugigangas que não nos deixam sítio para nada.» O doutor Urbino ria-se das suas intenções estéreis, pois sabia que os espaços que ficassem livres só serviriam para os encher de novo. Mas ela insistia, porque, na verdade, não havia sítio para mais nada, nem havia em nenhum sítio coisa alguma que na verdade fosse útil, como camisas penduradas nos puxadores das portas e casacos de Inverno europeu amarfanhados nos armários da cozinha. Havia por isso as manhãs em que se levantava com o espírito destemido e investia contra os roupeiros, esvaziava os baús, desmantelava os desvãos e armava um estado de sítio com os montões de roupa demasiado vista, os chapéus que nunca usou por não ter tido oportunidade enquanto estiveram em moda, os sapatos copiados por artistas da Europa dos que usavam as imperatrizes ao serem coroadas e que aqui eram desprezados pelas meninas da alta por serem idênticos aos que as negras compravam no mercado para andarem por casa. Durante toda a manhã, o pátio permanecia em estado de emergência e era difícil respirar em casa por causa dos vapores acres das bolas de naftalina. Mas a calma restabelecia-se em poucas horas, pois no fim ele compadecia-se de tanta seda deitada pelo chão, tantos brocados a mais e desperdícios de passamanaria, tantas caudas de raposas azuis condenadas à fogueira.
- É pecado queimar isto - dizia - com tanta gente que não tem nem que comer.
Assim, a queima ficava adiada, adiou-a sempre, e as coisas não faziam mais que mudar de lugar, os seus sítios de privilégio para as antigas cavalariças transformadas em depósitos de sobras, enquanto os espaços libertos, tal como ele dizia, começavam a encher-se de novo, a transbordar de coisas que viviam um momento e acabavam por morrer nos roupeiros: até à queima seguinte. Ela dizia: «Deviam inventar o que fazer com as coisas que não servem para nada mas que também não se podem deitar fora.» Assim era: aterrorizava-a a voracidade com que os objectos iam invadindo os espaços de viver, desalojando os humanos, empurrando-os para um canto, até que Fermina Daza os punha onde não se vissem. Pois não era tão organizada como se julgava, mas tinha um método próprio e desesperado para parecê-lo: escondia a desordem. No dia em que morreu Juvenal Urbino tiveram de desocupar metade do estúdio e amontoar as coisas nos quartos para ter um espaço onde velá-lo.
A passagem da morte pela casa trouxe a solução. Uma vez queimada a roupa do marido, Fermina Daza deu-se conta de que não lhe tinha tremido a mão e com o mesmo impulso continuou a acender a fogueira de tempos a tempos, deitando-lhe de tudo, velho e novo, sem pensar na inveja dos ricos nem na retaliação dos pobres que morriam de fome. Finalmente, mandou cortar pela raiz o tronco da mangueira até não ficar nenhum vestígio da desgraça e ofereceu de presente o papagaio vivo ao novo Museu da Cidade. Só então respirou a gosto numa casa como sempre a sonhara: ampla, fácil e sua.
Ofélia, a filha, fez-lhe companhia durante três meses e regressou a Nova Orleães. O filho trazia os seus para almoçar em família aos domingos e sempre que podia durante a semana. As amigas mais próximas de Fermina Daza começaram a visitá-la uma vez superada a crise do luto, jogavam às cartas diante do quintal pelado, experimentavam novas receitas de cozinha, punham-na em dia sobre a vida secreta do mundo insaciável que continuava a existir sem ela. Uma das mais assíduas foi Lucrecia dei Real dei Obispo, uma aristocrata à antiga com quem sempre manteve uma boa amizade e que se aproximou mais dela depois da morte de Juvenal Urbino. Entrevada pela artrite e arrependida do seu mau viver, Lucrecia del Real levava-lhe então não só a melhor companhia como a consultava sobre os projectos cívicos e mundanos que se preparavam na cidade, e isto fazia com que se sentisse útil por si mesma e não pela sombra protectora do marido. Contudo, nunca como então a identificaram tanto com ele, pois tiraram-lhe o nome de solteira pelo que sempre a tinham chamado e começou a ser a viúva de Urbino.
Parecia-lhe inconcebível, mas à medida que se aproximava o primeiro aniversário da morte do esposo, Fermina Daza sentia-se entrando num recinto sombreado, fresco, silencioso: a floresta do irremediável. Ainda não tinha muita consciência, nem a teria durante vários meses, de quanto a ajudaram a recuperar a paz de espírito as meditações escritas de Florentine Ariza. Foram elas, aplicadas às suas experiências, o que lhe permitiu entender a sua própria vida e esperar com serenidade os desígnios da velhice. O encontro na missa de comemoração foi uma oportunidade providencial de dar a entender a Florentino Ariza que também ela, graças às suas cartas de encorajamento, estava disposta a apagar o passado.
Dois dias depois recebeu uma carta diferente: escrita à mão, em papel de linho e com o nome completo de remetente bem visível no verso do sobrescrito. Era a mesma letra florida das primeiras cartas, a mesma vontade lírica, mas aplicadas num parágrafo singelo de gratidão pela deferência do cumprimento na catedral. Fermina Daza ficou a pensar nela, com as nostalgias num alvoroço, durante vários dias depois de a ler e com a consciência tão leve que na quinta-feira seguinte perguntou a Lucrecia del Real del Obispo, sem que viesse a propósito, se por acaso conhecia Florentino Ariza, o dono dos navios do rio Lucrecia respondeu-lhe que sim: «Parece que é um súcubo irremediável.» Repetiu a versão corrente de que nunca se lhe havia conhecido mulher, tendo sido tão bom partido, e que tinha um escritório secreto para onde levava os rapazinhos que perseguia durante a noite nos cais. Fermina Daza ouvira essa lenda desde que se lembrava e nunca acreditou nela nem lhe ligou importância. Mas quando a ouviu repetida com tanta convicção por Lucrecia del Real del Obispo, de quem também em tempos se dissera que tinha gostos esquisitos, não pôde resistir ao impulso de pôr as coisas no seu lugar. Contou-lhe que conhecia Florentino Ariza desde pequeno. Recordou-lhe que a mãe tinha uma loja de miudezas na Rua das Janelas e que também comprava camisas e lençóis velhos para desfiar e vender como ligaduras de emergência durante as guerras civis. E concluiu com segurança: «É gente honrada, feita à força de pulso.» Foi tão veemente que Lucrecia retirou o que disse: «Ao fim e ao cabo, também dizem o mesmo de mim.» Fermina Daza não sentiu curiosidade em se interrogar porque fazia uma defesa tão apaixonada de um homem que só fora uma sombra na sua vida. Continuou a pensar nele, sobretudo quando chegava o correio sem uma nova carta sua. Tinham-se passado duas semanas de silêncio, quando uma das empregadas a acordou da sesta com um sussurro de alarme:
- Minha senhora - disse-lhe -, está aí o senhor Florentino.
Aí estava. A primeira reacção de Fermina Daza foi de pânico. Chegou a pensar que não, que voltasse noutro dia a uma hora mais conveniente, que não estava em condições de receber visitas, que não tinham nada de que falar. Mas recompôs-se logo e mandou que o fizessem passar à sala e lhe levassem café enquanto ela se arranjava para o receber. Florentino Ariza tinha esperado à porta da rua, a arder sob o sol infernal das três, mas com as rédeas na mão. Estava preparado para não ser recebido, mesmo que fosse com uma desculpa amável e essa certeza dava-lhe tranquilidade. Mas a decisão do recado fê-lo estremecer até às entranhas e, ao entrar na sombra fresca da sala, não teve tempo para pensar no milagre que estava a viver, porque as vísceras se lhe encheram então com uma explosão de espuma dolorosa. Sentou-se sem respirar, acometido pela recordação maldita da cagadela de pássaro na sua primeira carta de amor e permaneceu, sem se mexer, na penumbra, enquanto passava a primeira rajada do arrepio, resolvido a aceitar qualquer desgraça nesse momento, menos aquele percalço injusto.
Conhecia-se bem: apesar da sua prisão de ventre congénita, os intestinos tinham-no atraiçoado em público três ou quatro vezes nos seus muitos anos e, nessas três ou quatro vezes, teve de render-se. Só nessas ocasiões e noutras de igual urgência se dava conta da verdade de uma frase que gostava de repetir por brincadeira: «Não acredito em Deus mas tenho medo dele.» Não teve tempo para o pôr em dúvida: fez por rezar qualquer oração de que se lembrasse, mas não a achou. Em criança, outra criança tinha-lhe ensinado umas palavras mágicas para acertar num pássaro com uma pedra: «Tiroliro se não te acerto meto-te um tiro.» Experimentou-as quando foi ao monte pela primeira vez, com uma fisga nova, e o pássaro caiu fulminado. Confusamente pensou que uma coisa tinha algo a ver com a outra e repetiu a fórmula com fervor de oração, mas não surtiu o mesmo efeito. Uma reviravolta das tripas, como um eixo de espiral, levantou-o do assento, a espuma do seu ventre cada vez mais espessa e dolorosa emitiu um queixume e deixou-o coberto de um suor gelado. A criada que lhe levava o café assustou-se com o seu aspecto de morto. Ele suspirou: «É do calor.» Ela abriu a janela, julgando agradar-lhe, mas o sol da tarde deu-lhe em cheio na cara e tiveram de a voltar a fechar. Ele percebera que não aguentaria nem mais um minuto quando apareceu Fermina Daza quase invisível na sombra e assustou-se ao vê-lo naquele estado.
- Pode tirar o casaco - disse.
Ter-lhe-ia doído mais que a cólica mortal se ela tivesse chegado a ouvir o borbulhar das suas tripas. Mas conseguiu sobreviver apenas um momento para dizer que não, que só tinha passado para perguntar quando poderia fazer-lhe uma visita. Ela, de pé, desconcertada, disse-lhe: «Mas se já cá está!» E convidou-o a ir até ao pátio onde faria menos calor. Ele recusou com uma voz que a ela mais lhe pareceu um suspiro de pena.
- Peço-lhe que seja amanhã - disse. Ela lembrou-se que amanhã era quinta-feira, dia da visita pontual de Lucrecia del Real del Obispo, mas deu-lhe uma solução irrefutável: «Depois de amanhã, às cinco.» Florentine Ariza agradeceu-lhe, fez uma despedida à pressa com o chapéu e saiu sem provar o café. Ela ficou perplexa no meio da sala, sem perceber o que acabava de acontecer, até se extinguir ao fundo da rua o petardear do automóvel. Florentino Ariza procurou então a posição menos dolorosa no assento de trás, fechou os olhos, afrouxou os músculos e entregou-se à vontade do seu corpo. Foi como voltar a nascer. O motorista, que depois de tantos anos ao seu serviço já não se surpreendia com nada, manteve-se impassível. Mas ao abrir-lhe a portinhola diante do portão de casa, disse-lhe:
- Tenha cuidado, Dom Floro, que isso parece a cólera. Mas era o mesmo de sempre. Florentino Ariza agradeceu-o a Deus na sexta-feira às cinco em ponto, quando a criada o conduziu através da sombra da sala até ao pátio e aí encontrou Fermina Daza ao lado de uma mesinha posta para duas pessoas. Ofereceu-lhe chá, chocolate ou café. Florentino Ariza pediu café, muito quente e muito forte, e ela disse à criada: «Para mim, o costume.» O costume era uma infusão bem carregada de diversas qualidades de chás orientais, que lhe levantavam o ânimo depois da sesta. Quando ela acabou com o bule e ele com a cafeteira, já ambos tinham ensaiado e interrompido vários temas, não tanto porque deveras os interessassem mas sim para iludir outros em que nem ele nem ela se atreviam a tocar. Estavam os dois intimidados, sem perceberem o que faziam, tão longe da sua juventude, na varanda axadrezada de uma casa de ninguém ainda a cheirar a flores de cemitério. Pela primeira vez estavam um na frente do outro a tão curta distância e com tempo suficiente para se verem em sossego, ao fim de meio século, e ambos se tinham visto tal como eram: dois anciãos com a morte a espreitá-los, sem nada em comum, além da recordação de um passado efémero que já não era deles mas de dois jovens desaparecidos que teriam podido ser seus netos. Ela pensou que ele se ia convencer finalmente da irrealidade do seu sonho e isso redimi-lo-ia da sua impertinência.
Para evitar silêncios incómodos ou temas indesejáveis, ela fez-lhe perguntas óbvias sobre os seus navios fluviais. Parecia mentira que ele, sendo o dono, só tivesse viajado uma vez, há muitos anos, quando não tinha nada a ver com a empresa. Ela não sabia o motivo e ele teria dado a alma para lho dizer. Ela também não conhecia o rio. O marido partilhava a aversão aos ares andinos e disfarçava-a com os argumentos mais variados: os perigos da altitude para o coração, o risco de uma pneumonia, a hipocrisia das pessoas, as injustiças do centralismo. Por isso conheciam meio mundo mas não conheciam o seu país. Actualmente havia um hidrovião Junkers que ia de aldeia em aldeia pela bacia do rio de La Magdalena, como um gafanhoto de alumínio, com dois tripulantes, seis passageiros e as sacas do correio. Florentino Ariza comentou: «É como um caixão a ir pelos ares.» Ela estivera na primeira viagem em balão e não tinha sofrido nenhum sobressalto, mas mal podia acreditar ser a mesma quê passou por tal aventura. Disse: «E diferente», querendo dizer que era ela quem tinha mudado, não as maneiras de viajar.
Às vezes o barulho dos aviões surpreendia-a. Tinha-os visto passar muito baixos, a fazerem manobras acrobáticas, no centenário da morte do Libertador. Um deles, preto como uma galinha enorme, passou a roçar pelos telhados das casas de La Manga, deixou um bocado da asa numa árvore próxima e ficou pendurado nos cabos eléctricos. Mas nem mesmo assim Fermina Daza assimilara a existência dos aviões. Nem sequer tivera a curiosidade de ir ultimamente à enseada de Manzanillo, onde amaravam os hidroaviões desde que as lanchas da Guarda Fiscal espantavam as canoas dos pescadores e os barcos de recreio, cada vez mais numerosos. Assim, velha como estava, tinham-na escolhido para receber Charles Lindbergh com um ramo de rosas, quando veio no seu voo de boa vontade, e não percebeu como um homem tão grande, tão loiro, tão bonito podia elevar-se num aparelho que parecia de lata amachucada e que dois mecânicos empurraram pela cauda para o ajudar a subir. A ideia de que uns aviões não muito maiores pudessem levar oito pessoas não lhe entrava na cabeça. Mas, pelo contrário, tinha ouvido dizer que os navios fluviais eram uma delícia porque não balouçavam como os do mar, mas enfrentavam outros perigos mais sérios, como os bancos de areia e os assaltos dos bandidos.
Florentino Ariza explicou-lhe que tudo isso eram lendas de outros tempos: os navios actuais tinham um salão de baile, camarotes tão amplos e luxuosos como quartos de hotel, com casa de banho privativa e ventoinhas eléctricas e desde a última guerra civil que já não havia assaltos armados. Explicou-lhe também, com a satisfação de um triunfo pessoal, que estes progressos deviam-se, mais que a qualquer outra coisa, à liberdade da navegação, pela qual ele tanto se batera, que tinha estimulado a concorrência: em vez de uma única empresa, como dantes, havia três muito activas e prósperas. Contudo, o rápido progresso da aviação representava um perigo real para todos. Ela tentou consolá-lo: os navios existiriam sempre, porque não eram muitos os doidos dispostos a meterem-se num aparelho que parecia ser contra a natureza. Por fim, Florentino Ariza falou dos avanços do correio, tanto no transporte como na distribuição, numa tentativa para que ela falasse das suas cartas. Mas não o conseguiu.
Pouco depois, porém, a oportunidade chegou espontânea. Tinham-se afastado muito do tema, quando uma criada os interrompeu para entregar a Fermina Daza uma carta recebida nesse momento pelo correio urbano especial, de criação recente, que utilizava o mesmo sistema de distribuição dos telegramas. Ela não encontrou os óculos como sempre acontecia. Florentino Ariza manteve-se sereno.
- Não será necessário - disse. - Essa carta é minha.
Assim era. Tinha-a escrito na véspera, num terrível estado de depressão por não ter podido superar a vergonha da sua primeira visita frustrada. Aí pedia desculpa pela impertinência de a querer visitar sem seu consentimento prévio e desistia da intenção de voltar. Tinha-a deitado no marco sem pensar duas vezes e quando reflectiu já era tarde de mais para recuperá-la. No entanto, não lhe pareceram necessárias tantas explicações, e pediu a Fermina Daza o favor de não ler a carta.
- Claro - disse ela. - Ao fim e ao cabo as cartas são de quem as escreve, não acha?
Ele deu um passo decidido:
- Assim é - disse. - Por isso é a primeira coisa que se devolve quando há um rompimento.
Ela passou a referência por alto, e devolveu-lhe a carta, dizendo: «É uma pena que não a possa ler. As outras foram-me muito úteis.» Ele respirou fundo, surpreendido por ela ter dito de um modo tão espontâneo muito mais do que ele esperava, e disse-lhe: «Não imagina como fico feliz por sabê-lo.» Mas ela mudou de assunto e ele não conseguiu reatá-lo no resto da
tarde.
Despediu-se passava das seis, quando começaram a acender as luzes da casa. Sentia-se mais seguro mas sem demasiadas ilusões, porque não esquecia o carácter volúvel e as reacções imprevistas de Fermina Daza aos vinte anos e não tinha razões para pensar que tivesse mudado. Por isso, atreveu-se a perguntar-lhe com uma humildade sincera se podia voltar noutro dia e a resposta voltou a surpreendê-lo:
- Volte quando quiser - disse ela. - Estou quase sempre sozinha.
Quatro dias depois, na terça-feira, voltou sem se anunciar e ela não esperou que servissem o chá para lhe falar de quanto tinham sido úteis as suas cartas. Ele disse que não eram cartas num sentido estrito, mas folhas soltas de um livro que teria gostado de escrever. Também ela o tinha interpretado dessa maneira. Tanto assim que pensava devolver-lhas, se ele não lho levasse a mal, para que lhes desse melhor destino. Continuou a falar do bem que lhe tinham feito no duro transe que estava a viver, e fazia-o com tanto entusiasmo, com tanta gratidão, talvez com tanto afecto que Florentino Ariza se atreveu a dar algo mais do que um passo decidido: um salto mortal.
- Antigamente tratavamo-nos por tu.
Era uma palavra proibida: «antigamente». Ela sentiu passar o anjo quimérico do passado e fez por evitá-lo. Mas ele foi mais a fundo: «Quero dizer, nas nossas cartas de antes.» Ela ficou aborrecida e teve de fazer um grande esforço para que não se lhe notasse. Mas ele deu-se conta e percebeu que tinha de avançar com mais tacto, ainda que o percalço lhe mostrasse que ela continuava a ser tão arisca como quando era nova, mas que tinha aprendido a sê-lo com doçura.
- Quero dizer - disse ele - que estas cartas são uma coisa muito diferente.
- Tudo mudou no mundo - disse ela.
- Eu não - disse ele. - E a senhora?
Ela ficou com a segunda chávena de chá a meio do caminho e fustigou-o com uns olhos que tinham sobrevivido à inclemência.
- Tanto dá - disse. - Acabo de fazer setenta e dois anos. Florentine Ariza recebeu a pancada em cheio no coração.
Tinha querido encontrar uma réplica com a rapidez e o instinto de uma seta, mas venceu-o o peso da idade: nunca se tinha sentido tão esgotado com uma conversa tão breve, doía-lhe o coração, e cada latejo repercutia com uma ressonância metálica nas suas artérias. Sentiu-se velho, triste, inútil, e com uma vontade tão urgente de chorar que não conseguiu dizer mais nada. Acabaram a segunda chávena num silêncio sulcado por presságios e quando ela voltou a falar foi para pedir a uma criada que lhe levasse a pasta das cartas. Ele-esteve prestes a pedir-lhe que as guardasse para ela, pois tinha cópias de papel químico, mas pensou que esta precaução não lhe pareceria nobre. Não havia mais nada que dizer. Antes de se despedir, sugeriu voltar na terça-feira seguinte à mesma hora. Ela perguntou-se se deveria ser tão condescendente.
- Não vejo que sentido teriam tantas visitas - disse.
- Eu não pensei que tivessem algum - disse ele.
De modo que voltou na terça-feira às cinco, e depois todas as terças-feiras seguintes, sem a convenção de anunciar-se, porque as visitas semanais tinham entrado na rotina dos dois ao fim do segundo mês. Florentine Ariza levava bolachinhas inglesas para o chá, castanhas em calda, azeitonas gregas, pequenas delícias de salão que descobria nos transatlânticos. Numa terça-feira levou-lhe a cópia do retrato dela com Hildebranda, tirada pelo fotógrafo belga há mais de meio século, que ele tinha comprado por quinze centimes num saldo de postais no Portal dos Escrivães. Fermina Daza não conseguiu perceber como tinha chegado ali nem ele o pôde entender senão como um milagre do amor. Certa manhã, enquanto cortava rosas no seu jardim, Florentino Ariza não conseguiu resistir à tentação de lhe levar uma na sua próxima visita. Foi um problema difícil na linguagem das flores por se tratar de uma viúva recente. Uma rosa vermelha, símbolo de paixão em chamas, podia ser ofensiva para o seu luto, as flores amarelas, que noutra linguagem eram as flores da boa sorte, eram expressão de ciúmes na linguagem comum. Já lhe haviam falado das rosas negras da Turquia, que talvez fossem as mais indicadas, mas não tinha conseguido obtê-las para as aclimatar ao seu pátio. Depois de muito pensar arriscou uma rosa branca, de que gostava menos que das outras por serem insípidas e mudas: não diziam nada. A última hora, para o caso de Fermina Daza ter a malícia de lhes atribuir algum significado, tirou-lhe os espinhos.
Foi bem recebida, como uma oferta sem intenções ocultas, e assim se enriqueceu o ritual das terças-feiras. E de tal maneira que, quando ele chegava com a rosa branca, já estava preparada uma jarra com água no centro da mesinha do chá. Uma terça-feira qualquer, ao pôr a rosa, ele disse de uma forma que parecesse natural:
- Nos nossos tempos não se usavam rosas mas sim camélias.
- É verdade - disse ela -, mas a intenção era outra e você sabe-o.
Assim foi sempre: ele tentava avançar e ela cortava-lhe o passo. Mas, nesta ocasião, apesar da resposta pontual, Florentino Ariza deu-se conta de que tinha acertado no alvo, porque ela teve de virar a cara para que não lhe notasse o rubor. Um rubor ardente, juvenil, com vida própria, cuja impertinência lhe remexeu o desagrado consigo mesma. Florentino Ariza teve o cuidado de passar para outros assuntos menos ásperos, mas a sua gentileza foi tão evidente que ela sentiu-se descoberta e isso aumentou a sua raiva. Foi uma terça-feira má. Ela esteve prestes a pedir-lhe que não voltasse, mas a ideia de um arrufo de namorados pareceu-lhe tão ridícula na idade e situação deles, que lhe deu um ataque de riso. Na terça-feira seguinte, quando Florentino Ariza punha a rosa na jarra, ela fez um exame de consciência e comprovou, com alegria, que não guardava o menor vestígio de ressentimento da semana anterior.
As visitas depressa começaram a adquirir uma incómoda am-familiar, pois o doutor Urbino Daza e a esposa apareciam às vezes, como que por acaso, e ficavam a jogar às cartas Florentino Ariza não sabia jogar, mas Fermina ensinou-o numa única visita e os dois enviaram ao casal Urbino Daza um desafio por escrito para a terça-feira seguinte. Estes encontros eram tão agradáveis para todos que se oficializaram com tanta rapidez como as visitas, e estabeleceram-se regras para o que cada um tinha de levar. O doutor Urbino Daza e a esposa, que era uma excelente pasteleira, contribuíam com tortas originais, sempre diferentes. Florentino Ariza continuou a levar as curiosidades que encontrava nos barcos da Europa e Fermina Daza arranjava sempre maneira de ter uma surpresa nova todas as semanas. Os torneios jogavam-se na terceira terça-feira de cada mês, e não se faziam apostas em dinheiro, mas o que perdesse tinha que trazer uma contribuição especial para a partida seguinte.
O doutor Urbino correspondia à sua imagem pública: era de escassos recursos, de modos bruscos e tinha uns sobressaltos repentinos, quer fosse de alegria ou de desgosto, e uns rubores inoportunos que faziam recear pelo seu vigor mental. Mas era, sem dúvida alguma, e notava-se-lhe de mais logo à primeira vista, o que Florentino Ariza mais temia que se dissesse dele: um bom homem. A mulher, pelo contrário, tinha uma vivacidade e uma centelha de plebeia, oportuna e certeira, que dava um toque mais humano à sua elegância. Não se podia desejar melhores parceiros para jogar às cartas e a insaciável necessidade de amor de Florentino Ariza ficou satisfeita pela ilusão de se sentir em família.
Certa noite, ao saírem juntos de casa, o doutor Urbino Daza pediu-lhe que almoçasse com ele: «Amanhã, ao meio-dia e meia em ponto, no Clube Social.» Era um manjar sofisticado com um vinho envenenado: o Clube Social reservava-se o direito de admissão por razões várias e uma das mais importantes era a condição de filho de pai incógnito. O tio Leão XII tivera experiências irritantes nesse sentido e o próprio Florentino Ariza passara pela vergonha de o mandarem sair quando já se encontrava sentado à mesa a convite de um dos sócios fundadores. Este, a quem Florentino Ariza fazia favores difíceis no comércio fluvial, não teve outro remédio senão levá-lo a almoçar a outro lado.
- Nós, que fazemos os regulamentos, somos os que temos maior obrigação de os cumprir - disse-lhe.
Não obstante, Florentino Ariza correu o risco com o doutor Urbino Daza, e foi recebido com um tratamento especial, ainda que não lhe tivessem pedido para assinar o livro dos convidados ilustres. O almoço foi rápido, os dois sozinhos, e decorreu em tom menor. Os temores, que inquietavam Florentino Ariza desde a tarde anterior em relação àquele encontro, dissiparam-se com o cálice de vinho do Porto do aperitivo. O doutor Urbino Daza queria falar-lhe da mãe. Por tudo quanto lhe disse, Florentino Ariza apercebeu-se de que ela lhe tinha falado dele. E ainda uma coisa mais surpreendente: mentira a seu favor. Contou-lhe que eram amigos desde crianças, que brincavam juntos desde que ela chegara de San Juan de Ia Ciénaga, que fora ele quem a iniciara nas primeiras leituras, pelo que tinha para com ele uma velha gratidão. Havia-lhe dito também que, frequentemente, ao sair da escola, passava muitas horas com Trânsito Ariza a fazer prodígios de bordados na loja, pois era uma professora eminente, e que se não continuara a ver Florentino Ariza com a mesma frequência, não tinha sido por sua vontade mas sim devido às divergências das suas vidas. Antes de chegar ao fundo das suas intenções, o doutor Urbino Daza fez algumas divagações sobre a velhice. Pensava que o mundo andaria mais depressa sem o estorvo dos anciãos. Disse: «A humanidade, como os exércitos em campanha, avança à velocidade do mais lento.» Previa um futuro mais humanitário, e por isso mesmo mais civilizado, em que os seres humanos fossem isolados em cidades marginais, donde não se pudessem valer de si mesmos, para evitar-lhes a vergonha, os sofrimentos, a solidão espantosa da velhice. Do ponto de vista médico, o limite podiam ser os sessenta anos. Mas, enquanto não se chegasse a esse nível de caridade, a única solução eram os asilos, onde os velhos se consolavam uns aos outros, identificavam-se nos seus gostos e nas suas aversões, nas suas alegrias e tristezas, a salvo das discórdias naturais com as gerações seguintes. Disse: «Os velhos, entre velhos, são menos velhos.» Pois bem: o doutor Urbino Daza queria agradecer a Florentino Ariza a boa companhia que fazia à sua mãe na solidão da viuvez, rogava-lhe que continuasse a fazê-lo para bem de ambos e comodidade de todos, e que tivesse paciência com os seus humores senis. Florentine Ariza sentiu-se aliviado com a solução da entrevista «Esteja descansado», disse-lhe. «Sou quatro anos mais velho que ela, e não só agora, mas desde antes, muito antes de você ter nascido.» Então, cedeu à tentação de desabafar com uma pincelada de ironia.
- Na sociedade do futuro - concluiu - você teria de ir agora ao cemitério, para nos levar, a ela e a mim, um ramo de antúrios para o almoço.
O doutor Urbino não tinha reparado até então na inconveniência da sua profecia e acabou por se meter num desfiladeiro de explicações que acabaram por baralhá-lo. Mas Florentine Ariza ajudou-o a sair. Estava radiante porque sabia que mais cedo ou mais tarde teria um encontro como aquele com o doutor Urbino Daza, para cumprir uma condição social inevitável: o pedido formal da mão da sua mãe. O almoço foi muito encorajador, não só pelo motivo em si, mas porque lhe demonstrou como seria fácil e bem recebido aquele pedido inexorável. Se tivesse contado com o consentimento de Fermina Daza, nenhuma ocasião teria sido mais propícia. Mais ainda: depois do que tinham falado durante aquele almoço histórico, o formalismo do pedido ficava a mais.
Florentino Ariza subia e descia as escadas com um cuidado especial, mesmo quando jovem, porque sempre tinha achado que a velhice começava com uma primeira queda sem importância e a morte seguia-se com a segunda. Parecia-lhe que a escada mais perigosa de todas era a do seu escritório, por ser empinada e de degraus estreitos e mesmo muito antes de ter de fazer um esforço para não arrastar os pés subia-a olhando bem para os degraus e agarrado ao corrimão com as duas mãos. Sugeriram-lhe muitas vezes que a trocasse por outra de menor risco, mas a decisão ficava sempre para o mês seguinte, porque lhe parecia que isso seria uma concessão à velhice. À medida que os anos passavam, demorava mais a subir, não porque tivesse mais dificuldade, como ele se apressava a explicar, mas porque cada vez subia com mais cautela. No entanto, naquela tarde, ao regressar do almoço com o doutor Urbino Daza, depois do cálice de vinho do Porto do aperitivo e do meio copo de vinho tinto à refeição, e sobretudo depois da conversa triunfal, tentou chegar ao terceiro degrau com um passo de dança tão juvenil que torceu o tornozelo esquerdo, caiu de costas e não se matou por milagre. No momento em que caía teve a lucidez suficiente para pensar que não ia morrer por causa daquilo, porque não era possível, na lógica da vida, que dois homens que tinham amado tanto durante tantos anos a mesma mulher pudessem morrer da mesma maneira apenas com um ano de diferença. Teve razão. Puseram-lhe uma couraça de gesso do pé à barriga da perna e obrigaram-no a ficar imobilizado na cama, mas continuou mais vivo do que antes da queda. Quando o médico lhe ordenou os sessenta dias de invalidez, não conseguia acreditar em tão grande desdita.
- Não me faça isto, doutor - implorou-lhe. - Dois meses dos meus são como dez anos dos seus.
Várias vezes tentou levantar-se segurando na perna de estátua com as duas mãos, mas a realidade venceu-o sempre. E quando, finalmente, voltou a andar com o tornozelo ainda dorido e as costas em carne viva, teve motivos de sobra para acreditar que o destino tinha premiado a sua perseverança com uma queda providencial.
O pior dia foi a primeira segunda-feira. A dor havia cedido e o prognóstico do médico era muito animador, mas ele negava-se a aceitar o fatalismo de não ver Fermina Daza na tarde seguinte, pela primeira vez em quatro meses. Não obstante, depois de uma sesta de resignação, submeteu-se à realidade e escreveu-lhe um bilhete de desculpas. Escreveu-o à mão, em papel perfumado e com tinta luminosa para se ler às escuras e dramatizou sem pudores a gravidade do percalço, tentando suscitar-lhe compaixão. Ela respondeu-lhe dois dias depois, muito comovida, muito amável, mas sem uma palavra a mais nem a menos, como nos grandes dias do amor. Ele agarrou a oportunidade com as duas mãos e voltou a escrever-lhe. Quando ela lhe respondeu pela segunda vez, ele decidiu ir muito mais longe que nas conversas cifradas das terças-feiras, e mandou instalar um telefone ao pé da cama, sob o pretexto de controlar o andamento diário da empresa. Pediu à telefonista da central que o pusesse em comunicação com o número de três algarismos que sabia de cor e desde a primeira vez que lhe tinha telefonado. A voz de timbre apagado, tensa pelo mistério da distância, a voz amada respondeu, reconheceu a outra voz e despediu-se após três frases convencionais de cumprimentos Florentino Ariza ficou desconsolado com a sua indiferença- es tavam outra vez no princípio.
Dois dias depois, porém, recebeu uma carta de Ferrnina Daza onde lhe rogava que não voltasse a telefonar-lhe. As suas razões eram válidas. Havia tão poucos telefones na cidade que a comunicação fazia-se através de uma telefonista que conhecia todos os assinantes, a sua vida e os seus enredos, e não tinha importância que não estivessem em casa: encontrava-os onde quer que estivessem. Em troca de tanta eficiência, mantinha-se a par das conversas, descobria os segredos da vida privada, os dramas melhor guardados e não raras vezes interferia num diálogo para apresentar o seu ponto de vista ou acalmar os ânimos. Por outro lado, ao longo daquele ano tinha sido fundado La Justicia, um vespertino cuja única finalidade era fustigar as famílias de apelidos ilustres, revelando nomes próprios e sem considerações de nenhum género, como represália do proprietário porque os seus filhos não tinham sido admitidos no Clube Social. Apesar da transparência da sua vida, Fermina Daza estava mais que nunca atenta a tudo que se dizia e fazia, mesmo com as amizades íntimas. De modo que continuou ligada a Florentino Ariza pelo fio anacrónico das cartas. A correspondência de ida e volta chegou a ser tão frequente e intensa que ele esqueceu-se da perna, do castigo da cama, esqueceu-se de tudo e consagrou-se completamente a escrever, numa mesinha portátil das que se usam nos hospitais para as refeições dos doentes.
Voltaram a tratar-se por tu, voltaram a trocar comentários sobre as suas vidas como nas cartas de antigamente, mas Florentino Ariza voltou a ir depressa de mais: escreveu o nome dela com furos de alfinete nas pétalas de uma camélia e mandou-lha numa carta. Dois dias depois recebeu-a de volta sem nenhum comentário. Fermina Daza não podia evitá-lo: tudo aquilo lhe pareciam criancices. E mais ainda quando Florentino Ariza persistiu em evocar as tardes de versos melancólicos no Parque dos Evangelhos, os esconderijos das cartas no caminho da escola, as aulas de bordado sob as amendoeiras. Com a dor na alma, ela pô-lo no seu lugar com uma pergunta que parecia casual no meio de outros comentários triviais: «Porque te empenhas em falar do que não existe?» Mais tarde repreendeu-lhe a teimosia estéril de não se deixar envelhecer com naturalidade. Essa era, segundo ela, a causa do seu mergulho e dos descalabros constantes na evocação do passado. Não percebia como um homem capaz de fazer as reflexões que tanto apoio lhe tinham dado para sobreviver à viuvez se baralhava daquela maneira infantil quando se tratava de as aplicar à sua própria vida. Os papéis inverteram-se. Então foi ela quem tentou dar-lhe novo ânimo para encarar o futuro, com uma frase que ele, na sua pressa atarantada, não conseguiu decifrar: «Deixa passar o tempo e veremos o que ele nos traz.» Pois nunca foi tão bom aluno como ela. A imobilidade forçada, a certeza cada dia mais lúcida da brevidade do tempo, a vontade louca de vê-la, tudo lhe demonstrava que os seus receios de uma queda tinham sido mais acertados e trágicos do que havia previsto. Pela primeira vez começou a pensar, de um modo racional, na realidade da morte.
Leona Cassiani ajudava-o a tomar banho e a mudar de pijama de dois em dois dias, aplicava-lhe clisteres, punha-lhe a arrastadeira, aplicava-lhe compressas de arnica nas úlceras das costas, fazia-lhe massagens, por conselho do médico, para evitar que a imobilidade lhe trouxesse outros males piores. Aos sábados e domingos substituía-a América Vicuna que em Dezembro daquele ano receberia o seu diploma de professora. Ele tinha prometido mandá-la para um curso superior no Alabama, por conta da companhia fluvial, em parte para amordaçar a consciência e, sobretudo, para não enfrentar as recriminações que ela não sabia como fazer, nem as explicações que ele lhe estava a dever. Nunca imaginou quanto ela sofria nas suas insónias no internato, nos seus fins-de-semana sem ele, na sua vida sem ele, porque nunca imaginou quanto o amava. Sabia por uma carta oficial do colégio que do primeiro lugar que sempre tinha ocupado passara para o último, e estava a ponto de ser reprovada nos exames finais. Mas ignorou o seu dever de encarregado de educação: não disse nada aos pais de América Vicuna, impedido por um sentimento de culpa que tentava escamotear, nem o comentou sequer com ela, pelo receio bem fundado de que pretendesse implicá-lo no seu fracasso. Por isso deixou as coisas como estavam. Sem se dar conta, começava a adiar os seus problemas na esperança de que a morte os resolvesse.
Não só as duas mulheres que tratavam dele, mas o próprio Florentine Ariza, se surpreendiam com o quanto se havia modificado. Apenas dez anos antes tinha assaltado uma das criadas por trás da escada principal da casa, vestida e de pé, e em menos tempo do que um galo filipino deixou-a em estado de graça. Teve que presenteá-la com uma casa mobilada para que ela jurasse que o autor da sua desonra era um vago noivo de domingo, que nem sequer a tinha beijado, e o pai e tios dela que eram bons segadores de cana, obrigaram-nos a casar. Não parecia que fosse o mesmo homem, aquele que ali estava a ser virado do direito e do avesso por duas mulheres que apenas há uns meses atrás o faziam tremer de amor, que o ensaboavam por cima e por baixo, secavam-no com toalhas de algodão egípcio e davam-lhe massagens em todo o corpo, sem que ele soltasse um suspiro de perturbação. Cada um tinha uma explicação diferente para o seu fastio. Leona Cassiani pensava que eram os prelúdios da morte. América Vicuna atribuía-lhe uma origem oculta cujo rastro não conseguia descortinar. Só ele sabia a verdade e tinha nome próprio. De todos os modos era injusto: mais padeciam elas a servi-lo que ele sendo tão bem servido.
Só três terças-feiras bastaram para que Fermina Daza se desse conta da falta que lhe faziam as visitas de Florentine Ariza. Passava muito bem o seu tempo com as amigas assíduas e ainda melhor à medida que o tempo a afastava dos hábitos do marido. Lucrecia del Real del Obispo tinha ido ao Panamá tratar de uma dor de ouvido que não passava com nada e voltou muito aliviada ao fim de um mês, mas a ouvir menos do que antes, com uma cornetinha que punha na orelha. Fermina Daza era a amiga que melhor tolerava as suas confusões de perguntas e respostas e isto era de tal modo estimulante para a Lucrecia que quase não havia dia que não aparecesse por lá a qualquer hora. Mas Fermina Daza não pôde substituir por ninguém as tardes calmantes de Florentine Ariza.
A memória do passado não redimia o futuro, como ele teimava em crer. Pelo contrário: fortalecia a convicção que Fermina Daza teve sempre de que aquela agitação febril dos vinte anos tinha sido algo de muito nobre e de muito belo, mas não amor. Apesar da sua franqueza crua não tinha intenções de lho revelar nem por carta nem pessoalmente, nem tinha coragem para lhe dizer como lhe soavam a falso os sentimentalismos das suas cartas depois de ter conhecido o prodígio de consolação das suas meditações escritas, como o desvalorizavam as suas mentiras líricas e quanto prejudicava a sua causa aquela insistência maníaca de resgatar o passado. Não: nenhuma linha das suas cartas de antigamente nem nenhum momento da sua própria juventude aborrecida lhe haviam feito sentir que as tardes de uma terça-feira pudesssem ser tão dilatadas como na realidade o eram sem ele, tão solitárias e indescritíveis sem ele.
Num dos seus arranques de simplificação, ela mandara para as cavalariças a radiola que o marido lhe oferecera num dos seus aniversários e que ambos tinham pensado doar ao museu por ter sido a primeira que chegou à cidade. Nas sombras do seu luto resolvera não voltar a usá-la, pois uma viúva com os seus apelidos, não podia ouvir música de nenhum género sem ofender a memória do falecido, mesmo que fosse na intimidade. Mas depois da terceira terça-feira de abandono, mandou que a levassem outra vez para a sala, não para fruir das canções sentimentais da emissora de Riobamba, como antes, mas para encher as suas horas mortas com as novelas lacrimosas de Santiago de Cuba. Foi uma decisão muito acertada, pois quando nasceu a filha tinha começado a perder o hábito da leitura que o marido com tanta aplicação lhe inculcara desde a viagem de núpcias e, com o cansaço progressivo da vista, perdeu-o por completo, até ao ponto de passar meses sem saber onde estavam os óculos.
Dedicou-se de tal maneira aos folhetins radiofónicos de Santiago de Cuba, que todos os dias esperava com ansiedade a continuação dos capítulos. De vez em quando ouvia as notícias para saber o que se passava pelo mundo e, nas poucas ocasiões em que ficava sozinha em casa, escutava com o volume muito baixo, remotos e nítidos, os merengues de São Domingos e as plenas1
Música popular porto-riquenha. (N. da T.)
de Porto Rico. Uma noite, numa estação desconhecida que irrompeu logo com tanta força e tanta clareza como se estivesse na casa ao lado, ouviu uma notícia atroz: um casal de velhos que repetia a sua lua-de-mel no mesmo lugar de há quarenta anos antes, tinha sido assassinado à paulada, com um remo pelo barqueiro que os levava a passear, para lhes roubar o dinheiro que tinham: catorze dólares. Ficou muito mais impressionada quando Lucecia del Real del Obispo lhe contou a história completa publicada no jornal local. A Polícia tinha descoberto que os anciãos mortos à paulada, ela de setenta e oito anos e ele de oitenta e quatro, eram dois amantes clandestinos que passavam as férias juntos há quarenta anos, mas os dois tinham os seus respectivos casamentos, estáveis e felizes, e com famílias numerosas. Fermina Daza, que nunca chorara com os folhetins radiofónicos, teve de reprimir o nó de lágrimas que se lhe atravessou na garganta. Na carta seguinte, Florentine Ariza mandou-lhe, sem qualquer comentário, o recorte do jornal com a notícia.
Não eram as últimas lágrimas que Fermina Daza reprimiria. Florentine Ariza não tinha cumprido os sessenta dias de reclusão quando La Justicia revelou a toda a largura da primeira página e com fotografias dos protagonistas, os supostos amores ocultos do doutor Juvenal Urbino e Lucrecia del Real del Obispo. Especulava-se sobre os pormenores da relação, a sua frequência e modo, e sobre a complacência do esposo, entregue a desaforos de sodomia com os negros do seu engenho de açúcar. A notícia, publicada com letras enormes e tinta de sangue, ribombou como o trovão de um cataclismo na desunida aristocracia local. No entanto, não havia nem uma linha verdadeira: Juvenal Urbino e Lucrecia del Real del Obispo eram amigos íntimos desde os seus anos de solteiros e continuaram a sê-lo depois de casados, mas nunca foram amantes. Em todo o caso, não parecia que a publicação tivesse o propósito de manchar o nome do doutor Juvenal Urbino, cuja memória gozava do respeito unânime, mas sim o de prejudicar o marido de Lucrecia del Real, eleito presidente do Clube Social na semana anterior. O escândalo foi abafado em poucas horas, mas Lucrecia dei Real não voltou a visitar Fermina Daza, e esta interpretou-o como um reconhecimento de culpa.
Contudo, depressa se viu que nem Fermina Daza estava a salvo dos riscos da sua classe. La Justicia assanhou-se contra ela pelo seu único flanco débil: os negócios do pai. Quando este teve de se desterrar à força, ela conheceu um só episódio dos seus negócios escuros, tal como lho contou Gala Placidia. Mais tarde, quando o doutor Urbino lho confirmou depois da entrevista com o governador, ficou convencida de que o pai tinha sido vítima de uma infâmia. O sucedido foi que dois agentes do Governo tinham-se apresentado com um mandato de busca na casa do Parque dos Evangelhos, revistaram-na de cima a baixo sem encontrar o que procuravam e, por fim, mandaram abrir o roupeiro com portas de espelho do antigo quarto de Fermina Daza. Gala Placidia, sozinha em casa e sem maneira de prevenir ninguém, negou-se a abri-lo com o pretexto de que não tinha as chaves. Então, um dos agentes partiu o espelho das portas com a coronha do revólver e descobriu que entre o vidro e a madeira havia um espaço completamente cheio de notas falsas de cem dólares. Este foi o culminar de uma série de pistas que conduziam a Lorenzo Daza como último elo de uma vasta operação internacional. Era uma fraude de mestre, pois as notas ostentavam as marcas de água do papel original: tinham apagado notas de um dólar por um processo químico que parecia um truque de magia e haviam impresso em seu lugar notas de cem. Lorenzo Daza alegou que o roupeiro fora comprado muito depois do casamento da filha e que devia ter chegado lá a casa com as notas escondidas, mas a Polícia confirmou que estava lá desde os tempos em que Fermina Daza andava no colégio. Ninguém excepto ele próprio poderia ter escondido a fortuna falsa atrás dos espelhos. Essa foi a única coisa que o doutor Juvenal Urbino contou à esposa, quando se comprometeu com o governador a mandar o sogro de regresso à sua terra para encobrir o escândalo. Mas o jornal contava muito mais.
Contava que durante uma das muitas guerras civis do século anterior Lorenzo Daza tinha sido intermediário entre o Governo do presidente liberal Aquileo Parra e um tal Joseph K. Korzeniowski, de origem polaca, que se demorou por aqui vários meses na tripulação do navio mercante Saint Antoine, de bandeira francesa, a tentar explicar um confuso negócio de armas. Korzeniowski, que mais tarde se tornaria célebre em todo o mundo sob o nome de Joseph Conrad, contactou, ninguém soube como, com Lorenzo Daza, que lhe comprou o carregamento de armas por conta do Governo, com as credenciais e recibos em ordem e pago com ouro de lei. Segundo a versão do jornal, Lorenzo Daza deu as armas como desaparecidas num assalto improvável e voltou a vendê-las pelo dobro do seu preço real aos conservadores em guerra contra o Governo.
Contava também La Justicia que Lorenzo Daza comprou a um preço muito baixo um carregamento de botas excedentárias do Exército inglês, nos tempos em que o general Rafael Reyes fundou a Marinha de Guerra, e com essa única operação duplicou a sua fortuna em seis meses. Segundo o jornal, quando o carregamento chegou a este porto, Lorenzo Daza negou-se a recebê-lo porque só vinham as botas do pé direito, mas foi o único interessado quando a alfândega o rematou em leilão, de acordo com as leis vigentes, e o comprou por uma quantia simbólica de cem pesos. Por essa mesma época, um cúmplice seu comprou em condições idênticas o carregamento de botas esquerdas, que chegara pela alfândega de Riohacha. Uma vez emparelhadas, Lorenzo Daza valeu-se do seu parentesco por afinidade com os Urbino de Ia Calle, e vendeu as botas à nova Marinha de Guerra com um lucro da ordem dos dois mil por cento.
A informação de La Justicia acabava dizendo que Lorenzo Daza não abandonou San Juan de Ia Ciénaga no fim do século anterior em busca de melhores ares para o futuro da filha, como gostava de dizer, mas por ter sido surpreendido na próspera indústria de misturar tabaco de importação com papel picado, e de maneira tão hábil que nem os fumadores mais refinados davam pelo engano. Também revelava os seus vínculos com uma empresa internacional clandestina, cuja actividade mais florescente em finais do século anterior tinha sido a introdução ilegal de chineses a partir do Panamá. Em compensação, o suspeito negócio de mulas, que tanto tinha prejudicado a sua reputação, parecia ser o único honesto que alguma vez tivera. Quando Florentino Ariza deixou a cama, com as costas em chaga e pela primeira vez com uma sólida bengala em vez do guarda-chuva, a sua primeira saída foi a casa de Fermina Daza. Achou-a irreconhecível, com os estragos da idade à flor da pele e com um ressentimento que lhe tinha tirado a vontade de viver. O doutor Urbino Daza, nas duas visitas que fez a Florentino Ariza durante o seu exílio, tinha-lhe falado da consternação que os dois artigos de La Justicia haviam causado à mãe. A primeira provocou-lhe uma fúria tão insensata pela infidelidade do marido e pela traição da amiga, que renunciou ao hábito de visitar o mausoléu familiar um domingo por mês, porque a transtornava o facto de ele não poder ouvir de dentro do caixão os impropérios que lhe queria gritar: zangou-se com o falecido. A Lucrecia del Real, mandou-lhe dizer por quem lho quisesse dizer, que se conformasse com a consolação de ter tido pelo menos um homem entre tanta gente que lhe tinha passado pela cama. Do artigo sobre Lorenzo Daza não era possível saber o que a afectava mais, se o artigo em si, se a descoberta tardia da verdadeira identidade do pai. Mas uma das duas, ou ambas, tinham-na aniquilado. O cabelo cor de aço limpo, que tanto enobrecia o seu rosto, parecia então de barbas de milho amarelecidas, e os belos olhos de pantera não recuperavam o brilho de outros tempos nem com o esplendor da fúria. A decisão de não continuar viva notava-se-lhe em cada gesto. Havia muito tempo que tinha renunciado ao hábito de fumar, fechada na casa de banho ou de qualquer outra maneira, mas reincidiu pela primeira vez em público e com uma voracidade desenfreada, ao princípio com cigarros que ela mesma enrolava, como sempre gostara de fazer, e depois com os mais ordinários que se encontravam à venda, porque já não tinha tempo nem paciência para os amortalhar. Outro homem que não Florentino Ariza ter-se-ia perguntado o que poderia trazer o futuro a um velho como ele, coxo e com as costas em brasa com esfoladuras de burro, e a uma mulher que já não ansiava por outra felicidade que não fosse a morte. Mas ele não. Ele resgatou uma luzinha de esperança entre os escombros do desastre, pois pareceu-lhe que a desgraça de Fermina Daza lhe dava magnitude, a raiva, a beleza e o rancor contra o mundo tinha-lhe devolvido o carácter agreste dos vinte anos.
Ela tinha mais um motivo de gratidão para com Florentino Ariza, porque com base nos artigos infames, ele havia enviado uma carta exemplar ao jornal La Justicia, sobre a responsabilidade ética da imprensa e o respeito pela honra alheia. Não foi publicada, mas o autor mandou uma cópia a El Diário dei Comercio, o mais antigo e sério do litoral caraíba e este destacou-a na primeira página. Estava assinada com o pseudónimo de «Júpiter» e era tão arrazoada, incisiva e bem escrita que foi atribuída a alguns dos escritores mais eminentes da província. Foi uma voz solitária no meio do oceano, mas ouviu-se muito fundo e muito longe. Fermina Daza soube quem era o autor sem que ninguém lho dissesse, porque reconheceu algumas ideias e até uma frase literal das reflexões morais de Florentine Ariza. De modo que o recebeu com um afecto revigorado na desordem do seu abandono. Foi por essa altura que América Vicuna, encontrando-se sozinha certa tarde de sábado num dos quartos da Rua das Janelas, sem ter procurado, descobriu, por mero acaso, dentro de um armário sem chave, as cópias dactilografadas das meditações de Florentine Ariza e as cartas manuscritas de Fermina Daza.
O doutor Urbino Daza alegrou-se com o reatar das visitas que tanto alentavam a mãe. Ao contrário de Ofélia, a irmã, que voltou no primeiro barco de fruta para Nova Orleães assim que soube que a mãe mantinha uma amizade estranha com um homem cuja qualificação moral não era das melhores. O seu alarme chegou ao rubro logo na primeira semana quando se deu conta do grau de familiaridade e domínio com que Florentino Ariza entrava em casa, e dos cochichos e arrufos breves de namorados com que decorriam as visitas até já a noite ir adiantada. O que para o doutor Urbino Daza era uma saudável afinidade de dois velhos solitários, para ela era uma forma viciosa de concubinato secreto. Assim fora sempre Ofélia Urbino, mais parecida com Dona Blanca, sua avó paterna, do que se tivesse sido sua filha. Como ela era distinta. Como ela era altiva. E como ela vivia à mercê dos preconceitos. Não era capaz de conceber a inocência de uma amizade entre um homem e uma mulher nem aos cinco anos de idade nem, muito menos, aos oitenta. Numa discussão aguerrida que teve com o irmão disse que a única coisa que faltava para que Florentino Ariza acabasse de consolar a mãe era que se metesse com ela na sua cama de viúva. O doutor Urbino Daza não tinha coragem para lhe fazer frente, nunca tinha tido, mas a sua mulher intercedeu com uma justificação serena do amor em qualquer idade. Ofélia perdeu as estribeiras.
- O amor é ridículo na nossa idade - gritou-lhe -, mas na idade deles é uma obscenidade.
Empenhou-se com tais ímpetos a afugentar Florentino Ariza lá de casa que chegou aos ouvidos de Fermina Daza. Chamou-a ao quarto, como sempre que queria falar sem as criadas ouvirem, e pediu-lhe que repetisse as suas recriminações. Ofélia não lhas adoçou: estava certa de que Florentino Ariza, cuja fama de pervertido era sabida por toda a gente, perseguia uma relação equívoca, mais prejudicial para o bom nome da família que as façanhices de Lorenzo Daza ou as aventuras ingénuas de Juvenal Urbino. Fermina Daza escutou-a sem dizer palavra, sem pestanejar sequer, mas quando acabou de a ouvir era outra: estava de volta à vida.
- Só tenho pena é de não ter forças para te dar a sova que mereces, por seres tão atrevida e cheia de malícia - disse-lhe. - Mas agora mesmo vais sair desta casa e juro-te pelos restos da minha mãe, que não voltarás a pisá-la enquanto eu for viva.
Não houve nada que a dissuadisse. Entretanto Ofélia foi viver para casa do irmão e de lá lhe mandou todo o tipo de súplicas com emissários à altura. Mas foi inútil. Nem a mediação do filho nem a intervenção das amigas conseguiu demovê-la. À nora, com quem manteve sempre uma certa cumplicidade popular, fez-lhe por fim uma confidência na linguagem florida dos seus melhores anos: «Há cem anos, cagaram-me a vida com esse pobre homem porque éramos demasiado jovens e agora querem-no repetir porque somos demasiado velhos.» Acendeu um cigarro com a beata do outro e deitou para fora o resto do veneno que que roía as entranhas.
- Que vão todos à merda - disse. - Se nós, as viúvas, temos alguma vantagem é a de não ter ninguém que mande em nós.
Não houve nada a fazer. Quando, por fim, se convenceu de que estavam esgotadas todas as instâncias, Ofélia voltou a Nova Orleães. A única coisa que conseguiu da mãe foi que se despedisse dela, e Fermina Daza aceitou, depois de muitos rogos, mas sem permitir-lhe que entrasse em casa: tinha-o jurado pelos ossos da mãe, que para ela, naqueles dias de trevas, eram os únicos que estavam limpos.
Numa das suas primeiras visitas, falando dos seus barcos, Florentine Ariza tinha feito a Fermina Daza um convite formal para que fizesse uma viagem de repouso pelo rio. Com mais um dia de comboio podia ir até à capital da República, que eles como a maioria dos caraíbas da sua geração, continuavam achamar pelo nome que tinha tido até ao século anterior: Santa Fé. Mas ela conservava os vícios do esposo e não queria conhecer uma cidade gelada e sombria onde as mulheres só saíam de casa para ir à missa das cinco, e não podiam entrar nas geladarias nem nas repartições públicas, segundo lhe tinham contado, e onde havia a toda a hora engarrafamentos de enterros pelas ruas e uma chuvinha miúda desde os tempos da Maria Cachucha: pior que em Paris. Por outro lado, sentia uma atracção muito forte pelo rio, queria ver os jacarés ao sol nos areais, queria ser acordada a meio da noite pelo choro de mulher dos manatins, mas a ideia de uma viagem tão difícil, na sua idade e ainda por cima viúva e sozinha, parecia-lhe irreal.
Florentino Ariza voltou a repetir-lhe o convite mais tarde, quando decidiu continuar viva sem o marido, e então pareceu-lhe mais provável. Mas depois da zanga com a filha, amargurada pelas injúrias feitas ao pai, pelo rancor contra o marido morto, pela raiva dos salamaleques hipócritas de Lucrecia dei Real, a quem teve durante tantos anos como a sua melhor amiga, até ela se sentia a mais na sua própria casa. Uma tarde, enquanto tomava uma infusão de folhas universais, olhou para o pântano do quintal onde nunca mais tornaria a brotar a árvore da sua desventura.
- O que eu queria era livrar-me desta casa, e andar, andar, andar e nunca mais voltar - disse.
- Mete-te num barco - disse Florentino Ariza. Fermina Daza olhou para ele, pensativa.
- Pois olha que podia ser - disse.
A ideia não lhe tinha ocorrido um momento antes de o dizer, mas bastou-lhe admitir a possibilidade para dá-la como feita O filho e a nora concordaram, encantados. Florentino Ariza apressou-se a precisar que Fermina Daza seria uma hóspede de honra nos seus navios, que teria para ela um camarote arranjado como se fosse a sua casa, um serviço perfeito e o comandante estaria pessoalmente devotado à sua segurança e ao seu bem-estar. Levou mapas da rota para a entusiasmar, postais de crepúsculos flamejantes, poemas ao paraíso primitivo de La Magdalena escritos por viajantes ilustres ou que tinham chegado a sê-lo pela excelência do poema. Ela dava-lhes uma vista de olhos quando lhe apetecia.
- Não precisas de levar-me ao engano como se fosse uma garota - dizia-lhe. - Se vou é porque me decidi a ir e não pelo interesse da paisagem.
Quando o filho sugeriu que a sua mulher a acompanhasse, cortou a proposta pela raiz: «Já sou muito grande para precisar de ama.» Ela mesmo acertou os pormenores da viagem. Sentiu um alívio enorme só de pensar em viver os oito dias da subida e os cinco da descida sem mais nada além do indispensável: meia dúzia de vestidos de algodão, as suas coisas de higiene e toucador, um par de sapatos para embarcar e desembarcar e as pantufas caseiras para a viagem, e mais nada: o sonho da sua vida.
Em Janeiro de 1824, o comodoro Juan Bernardo Elbers, fundador da navegação fluvial, tinha embandeirado o primeiro navio a vapor que sulcou o rio de La Magdalena, um traste primitivo com uma força de quarenta cavalos que se chamava Fidelidad. Mais de um século depois, num 7 de Julho, às seis da tarde, o doutor Urbino Daza e esposa acompanharam Fermina Daza a embarcar no navio que a levaria na sua primeira viagem pelo rio. Era o primeiro construído nos estaleiros locais, que Florentino Ariza tinha baptizado em memória do seu antecessor glorioso: Nueva Fidelidad. Fermina Daza não acreditou nunca que aquele nome tão significativo para eles fosse uma coincidência histórica e não uma graça mais do romantismo crónico de Florentino Ariza.
Em todo o caso, ao contrário dos outros navios fluviais, antigos e modernos, o Nueva Fidelidad tinha ao lado do camarote do comandante um camarote suplementar, amplo e confortável: uma sala de visitas com móveis de bambu de cores alegres, um quarto de casal completamente decorado com motivos chineses, uma casa de banho com banheira e chuveiro, um miradouro coberto, muito grande, com fetos pendurados e um panorama completo pela frente e pelos lados do navio, além de um sistema de refrigeração silencioso que mantinha todo o recinto a salvo do ruído exterior e num clima de Primavera perpétua. Estas instalações de luxo, conhecidas como «camarote presidencial», porque ali tinham viajado até então três presidentes da República, não tinha objectivos comerciais, pois estava reservado para autoridades de categoria e para convidados muito especiais. Florentino Ariza tinha-o mandado construir com essa finalidade de imagem pública assim que foi nomeado presidente da CFC, mas com a certeza íntima de que mais tarde ou mais cedo iria ser o refúgio feliz da sua viagem de núpcias com Fermina Daza.
Chegado o dia, com efeito, ela tomou posse do «camarote presidencial» como dona e senhora. O comandante do navio fez as honras de bordo ao doutor Urbino Daza e esposa, e a Florentino Ariza, com champanhe e salmão fumado. Chamava-se Diego Samaritano, tinha um uniforme de linho branco, de uma correcção absoluta, da ponta dos botins até ao boné com o escudo da CFC bordado a fio dourado, e tinha em comum com os outros comandantes do rio uma corpulência de ceiba, uma voz peremptória e uns modos de cardeal florentino.
Às sete da noite deram o primeiro sinal de partida e Fermina Daza ouviu-o ressoar com uma dor aguda no ouvido esquerdo. Na noite anterior tivera sonhos sulcados por maus presságios que não se tinha atrevido a decifrar. De manhã, muito cedo, fez-se conduzir ao panteão do seminário vizinho, que então se chamava Cemitério de La Manga, e reconciliou-se com o marido morto, de pé, diante da sua cripta, num monólogo em que soltou as justas recriminações que tinha atravessadas na garganta. Depois contou-lhe os pormenores da viagem e despediu-se até muito breve. Não quis dizer a mais ninguém que se ia embora, como fizera quase sempre quando viajava para a Europa, para evitar as despedidas esgotantes. Apesar das suas muitas viagens sentia-se como se esta fosse a primeira, e à medida que o dia rodava aumentava a inquietação. Uma vez a bordo, sentiu-se abandonada e triste, e queria ficar sozinha para chorar.
Quando soou o último aviso, o doutor Urbino Daza e a esposa despediram-se dela sem dramatismos, e Florentino Ariza acompanhou-os à passarela de desembarque. O doutor Urbino Daza convidou-o a passar à sua frente, a seguir à esposa, e só então se apercebeu de que também Florentino Ariza partia em viagem. O doutor Urbino Daza não conseguiu disfarçar o seu desconcerto.
- Mas não tínhamos falado disto - disse.
Florentino Ariza mostrou-lhe a chave do seu camarote com uma intenção demasiado evidente: um camarote vulgar na coberta comum. Mas ao doutor Urbino Daza não lhe pareceu prova suficiente da sua inocência. Deitou à esposa um olhar de naufragado à procura de apoio para o seu desconcerto, mas deu com uns olhos gelados. Ela disse-lhe muito baixo, com voz severa: «Tu também?» Sim: ele também, como a sua irmã Ofélia, pensava que o amor tinha uma idade em que começava a ser indecente. Mas soube reagir a tempo e despediu-se de Florentino Ariza com um aperto de mão mais resignado do que agradecido.
Florentino Ariza viu-os desembarcar da amurada do salão. Tal como o esperava e desejava, o doutor Urbino Daza e a sua esposa voltaram-se para olharem para ele antes de entrarem no automóvel, e ele disse-lhes adeus com a mão. Ambos lhe corresponderam. Continuou na amurada até o automóvel desaparecer entre a poeira do recinto reservado à carga e depois foi para o seu camarote, vestir uma roupa mais adequada ao primeiro jantar a bordo, na sala de jantar privativa do comandante.
Foi uma noite esplêndida que o comandante Diego Samaritano condimentou com suculentos relatos dos seus quarenta anos no rio, mas Fermina Daza teve de fazer um grande esforço para parecer divertida. Apesar do último aviso ter sido dado às oito e de a essa hora mandarem descer os visitantes e levantarem a passarela, o navio não zarpou até que o comandante acabasse de comer e subisse à torre de comando para dirigir a manobra. Fermina Daza e Florentino Ariza ficaram encostados à amurada do salão comum, misturados com os passageiros buliçosos que se entretinham a identificar as luzes da cidade, até que o navio saiu da baía, meteu-se por canais invisíveis e pântanos salpicados pelas luzes ondulantes dos pescadores, e resfolegou por fim a plenos pulmões no ar livre do rio Grande de La Magdalena. Então a banda irrompeu com uma peça popular em moda, houve um estampido prazenteiro dos passageiros e o baile abriu num tropel.
Fermina Daza preferiu refugiar-se no camarote. Não dissera uma palavra durante toda a noite e Florentino Ariza tinha-a deixado perder-se nas suas apreensões. Só a interrompeu para se despedir em frente do camarote, mas ela não tinha sono, só um pouco de frio e sugeriu que se sentassem uns minutos a ver o rio do miradouro privativo. Florentino Ariza rodou duas poltronas de vime até à amurada, apagou as luzes, colocou sobre os ombros dela uma manta de lã e sentou-se ao seu lado. Ela enrolou um cigarro da caixinha que ele lhe levava como prenda, enrolou-o com uma habilidade surpreendente, fumou-o devagar, com o lume dentro da boca, sem falar, e depois enrolou mais dois um atrás do outro, e fumou-os sem pausas. Florentino Ariza bebeu, trago a trago, dois termos de café forte.
O resplendor da cidade tinha desaparecido no horizonte. Vistos do miradouro escuro, o rio liso e calado, e as pastagens das duas margens sob a lua cheia transformaram-se numa planura fosforescente. De vez em quando via-se uma choça de palha ao pé das grandes fogueiras que anunciavam que ali se vendia lenha para as caldeiras dos navios. Florentino Ariza conservava recordações vagas da viagem da sua juventude, e ver o rio fazia-as reviver por revoadas deslumbrantes como se fossem de ontem. Contou algumas a Fermina Daza, julgando poder animá-la, mas ela fumava num outro mundo. Florentino Ariza renunciou às recordações e deixou-a a ela sozinha com as suas, e, enquanto isso, enrolava cigarros e ia-lhos dando acesos até acabar a caixa. A música cessou depois da meia-noite, o bulício dos passageiros dispersou-se e desfez-se em sussurros adormecidos, e os dois corações ficaram sozinhos no miradouro em sombras, vivendo ao compasso dos arquejos do navio.
Ao fim de um longo momento, Florentino Ariza olhou para Fermina Daza, com o fulgor do rio, e viu-a espectral, com o perfil de estátua dulcificado por um ténue brilho azul e deu-se conta de que chorava em silêncio. Mas, em vez de a consolar ou de esperar que esgotasse as suas lágrimas como ela queria, deixou-se invadir pelo pânico.
- Queres ficar sozinha? - perguntou.
- Se o quisesse, não te tinha dito para entrares - disse ela. Então ele estendeu os dedos gelados na escuridão, procurou tacteante a outra mão e encontrou-a à espera da dele. Foram os dois bastante lúcidos para se darem conta, num mesmo instante breve, de que nenhuma das duas era a mão que tinham imaginado antes de se tocarem, e sim duas mãos de ossos velhos. Mas, no momento seguinte, já o eram. Ela começou a falar do esposo falecido, no tempo presente, como se estivesse vivo, e Florentino Ariza soube que nesse instante também tinha chegado para ela a hora de se perguntar com dignidade, com grandeza, com um desejo incontido de viver, que fazer com o amor que lhe havia ficado sem dono.
Fermina Daza deixou de fumar para não soltar a mão que ele mantinha na sua. Estava perdida na ansiedade de compreender. Não podia conceber um marido melhor do que ele tinha sido para si e, no entanto, encontrava mais percalços do que satisfações na evocação da sua vida, demasiadas incompreensões recíprocas, zangas inúteis, rancores mal resolvidos. Então suspirou: «É incrível como se pode ser tão feliz durante tantos anos, no meio de tantas bulhas, no meio de tantas tretas, caramba, sem saber de facto se isso é amor ou não.» Quando acabou de desabafar, alguém tinha apagado a lua. O navio avançava com os seus passos contados, pondo primeiro um pé e só depois o outro: um imenso animal à espreita. Fermina Daza tinha regressado da ansiedade.
- Agora, vai-te embora - disse.
Florentino Ariza apertou-lhe a mão, inclinou-se para ela e tentou beijá-la na face. Mas ela esquivou-se na sua voz rouca e suave.
- Ainda não - disse. - Cheiro a velha.
Ouviu-o sair na escuridão, ouviu os seus passos nas escadas, ouviu-o deixar de ser até ao dia seguinte. Fermina Daza acendeu outro cigarro e, enquanto o fumava, viu o doutor Juvenal Urbino com o seu fato de linho impecável, o seu rigor profissional, a sua simpatia deslumbrante, o seu amor oficial, que lhe fez um sinal de adeus com o seu chapéu branco doutro navio do passado. «Nós, homens, somos uns pobres escravos dos preconceitos», tinha-lhe ele dito certa vez. «Por outro lado, quando uma mulher decide ir para a cama com um homem não há muralha que não trema nem fortaleza que não caia, nem nenhuma consideração moral que esteja disposta a ser o seu fundamento: não há Deus que lhe valha.» Fermina Daza continuou imóvel até de madrugada, a pensar em Florentino Ariza não como na sentinela desolada do Parque dos Evangelhos, cuja recordação já não lhe suscitava nem uma luzinha de nostalgia mas como era então, decrépito e manco, mas real: o homem que esteve sempre ao alcance da sua mão e não soube reconhecer. Enquanto o navio a arrastava resfolegando para o fulgor das primeiras rosas, só rogava a Deus que Florentino Ariza soubesse por onde começar outra vez no dia seguinte.
Soube. Fermina Daza deu instruções ao camaroteiro para que a deixasse dormir à vontade, e quando acordou tinha na mesinha-de-cabeceira uma jarra com uma rosa branca, fresca, ainda transpirada de orvalho, e com ela uma carta de Florentino Ariza com tantas folhas quantas conseguiu escrever desde que se despediu dela. Era uma carta tranquila, que apenas tentava expressar o estado de ânimo que o embargava desde a noite anterior, tão lírica como as outras, tão retórica como todas, mas apoiada na realidade. Fermina Daza leu-a com uma certa vergonha de si mesma pelos galopes descarados do seu coração. Acabava com o pedido de que avisasse o camaroteiro quando estivesse pronta, pois o comandante esperava-os no posto de comando para lhes mostrar o funcionamento do navio.
Ficou pronta às onze, lavada e a cheirar a sabonete de flores com um vestido de viúva, muito simples, de étamine cinzenta e completamente recuperada da tormenta da noite. Pediu um pequeno-almoço sóbrio ao camaroteiro de branco impecável, que estava ao serviço pessoal do comandante, mas não mandou recado para a virem buscar. Subiu sozinha, deslumbrada pelo céu sem nuvens, e encontrou Florentino Ariza a conversar com o comandante no posto de comando. Pareceu-lhe diferente, não só porque ela agora o via com outros olhos, como porque na verdade havia mudado. Em vez das vestimentas fúnebres de toda a vida tinha calçado uns sapatos brancos muito cómodos, calças e camisa de linho com o colarinho aberto e manga curta, e o seu monograma bordado no bolso do peito. Levava também uma boina escocesa, também branca, e um dispositivo de lentes escuras sobreposto nos seus eternos óculos de míope. Era evidente que tudo estava a ser estreado e tinha sido acabado de comprar propositadamente para a viagem, excepto o cinto de pele castanho, muito usado, que Fermina Daza notou ao primeiro golpe de vista como uma mosca na sopa. Ao vê-lo assim, vestido para ela de um modo tão ostensivo, não pôde impedir o rubor de fogo que lhe subiu ao rosto. Perturbou-se ao cumprimentá-lo e ele perturbou-se mais com a perturbação dela. A consciência de que se estavam a comportar como noivos perturbou-os ainda mais e a consciência de estarem ambos perturbados acabou por perturbá-los ao ponto do comandante Samaritano se aperceber com uma tremura de compaixão. Tirou-os daquela aflição explicando-lhes o funcionamento dos comandos e o mecanismo geral do navio durante duas horas. Navegavam muito devagar por um rio sem margens que se dispersava entre areais áridos até ao horizonte. Mas, ao contrário das águas turvas da foz, aquelas eram lentas e transparentes e tinham um resplendor de metal sob o sol inclemente. Fermina Daza teve a impressão de que era um delta povoado de ilhas de areia.
- É o pouco que ainda nos resta do rio - disse-lhe o comandante.
Florentino Ariza, com efeito, estava surpreendido com as mudanças e ainda o estaria mais no dia seguinte quando a navegação se tornou mais difícil e se deu conta de que o rio pai, o de La Magdalena, um dos maiores do mundo, era apenas uma ilusão da memória. O comandante Samaritano explicou-lhes como a desflorestação irracional havia acabado com o rio em cinquenta anos: as caldeiras dos navios tinham devorado a selva emaranhada de árvores colossais, que Florentino Ariza sentiu como uma opressão na sua primeira viagem. Fermina Daza não veria os animais dos seus sonhos: os caçadores de peles dos cortumes de Nova Orleães tinham exterminado os jacarés que se faziam passar por mortos de fauces abertas durante horas e horas nos barrancos das margens para apanharem as borboletas, os papagaios com a sua algaraviada e os micos com os seus guinchos alucinados que tinham ido morrendo à medida que as grandes copas desapareciam, os manatins com grandes tetas de mães que amamentavam as crias e choravam com vozes de mulher desolada nos areais eram uma espécie extinta pelas balas blindadas dos caçadores desportivos.
O comandante Samaritano tinha um afecto quase maternal pelos manatins, porque lhe pareciam senhoras condenadas por algum extravio amoroso, e tinha como certa a lenda de que eram as únicas fêmeas sem macho do reino animal. Opôs-se sempre a que disparassem sobre eles de bordo, como era costume, apesar de haver leis que o proibiam. Um caçador da Carolina do Norte, com a sua documentação em dia, tinha desobedecido às suas ordens e havia desfeito a cabeça a uma mãe de manatim com um disparo certeiro da sua Springfield, e a cria tinha ficado louca de dor chorando aos gritos sobre o corpo estendido. O comandante mandara ir buscar o órfão para tomar conta dele e deixou o caçador abandonado no areal junto ao cadáver da mãe assassinada. Esteve seis meses na prisão, por protestos diplomáticos, e a ponto de perder a sua licença de navegante, mas saiu disposto a repetir o feito quantas vezes fosse preciso. No entanto, aquele episódio tinha sido histórico: o manatim órfão, que cresceu e viveu muitos anos no parque dos animais exóticos de San Nicolas de Ias Barrancas, foi o último que se viu no rio.
- Cada vez que passo por esse areal - disse - rogo a Deus que esse gringo torne a embarcar no meu navio para o voltar a deixar abandonado.
Fermina Daza que não tinha qualquer simpatia por ele, comoveu-se de tal maneira com aquele gigante terno que a partir dessa manhã o pôs num lugar privilegiado dentro do seu coração. Fez bem: a viagem acabava de começar e teria razões de sobra para dar-se conta de que não se havia enganado.
Fermina Daza e Florentine Ariza permaneceram nos postos de comando até à hora do almoço, pouco depois de terem passado em frente da povoação de Calamar, que apenas há uns anos tinha uma festa perpétua e agora era um porto em ruínas de ruas desoladas. O único ser que se viu do navio foi uma mulher vestida de branco que fazia sinais com um lenço. Fermina Daza não percebeu porque é que não a recolhiam, já que parecia tão aflita, mas o comandante explicou-lhe que era a aparição de uma afogada que fazia sinais enganosos para desviar os navios para os remoinhos perigosos da outra margem. Passaram tão perto dela que Fermina Daza viu-a com todos os seus pormenores, nítida sob os raios do Sol, e não duvidou de que não existisse na realidade, mas a cara pareceu-lhe conhecida.
Foi um dia longo e muito quente. Fermina Daza voltou para o camarote depois do almoço, para a sua sesta inevitável, mas não dormiu por causa da dor de ouvido, que se tornou mais intensa quando o navio trocou as saudações da praxe com outro da CFC que se cruzou com ele uns quilómetros acima de Barranca Vieja. Florentino Ariza cochilou um sono instantâneo sentado no salão principal, onde a maioria dos passageiros sem camarote dormia como se fosse meia-noite, e sonhou com Rosalba muito perto do lugar onde a tinha visto embarcar. Viajava sozinha com o seu fato de rapariga de Mompox do século anterior, e era ela e não o bebé quem dormia na gaiola de vime pendurada na vigia. Foi um sonho ao mesmo tempo tão enigmático como divertido que conservou o seu sabor durante toda a tarde enquanto jogava dominó com o comandante e dois.passageiros amigos.
O calor cessava com o pôr do Sol e o navio renascia. Os passageiros emergiam como se de um letargo, de banhos acabados de tomar e roupas lavadas, e ocupavam as poltronas de vime do salão à espera do jantar que era anunciado às cinco em ponto por um empregado de mesa que percorria a coberta de uma ponta à outra fazendo soar por entre aplausos de brincadeira um sino de sacristão. Enquanto comiam, começava a banda com a música de fandango, e o baile continuava animado até à meia-noite.
Fermina Daza não quis jantar por causa do mal-estar do ouvido e assistiu ao primeiro embarque de lenha para as caldeiras, num barranco pelado onde não havia mais nada além dos troncos amontoados e um homem muito velho que tomava conta da venda. Parecia não haver mais ninguém muitas léguas em redor. Para Fermina Daza foi uma escala lenta e aborrecida, impensável nos transatlânticos da Europa, e fazia tanto calor que até se sentia no miradouro refrigerado. Mas quando o navio zarpou novamente, soprava um vento fresco a cheirar às entranhas da selva e a música tornou-se mais alegre. Na povoação de Sitio Nuevo havia uma única luz numa única janela de uma única casa e no escritório do porto não fizeram o sinal combinado de que havia carga ou passageiros para o navio, de modo que este passou sem saudar.
Fermina Daza tinha passado toda a tarde a perguntar-se de que recursos se iria valer Florentino Ariza para vê-la sem lhe bater à porta do camarote, e, por volta das oito não conseguiu aguentar por mais tempo a ânsia de estar com ele. Saiu para o corredor com a esperança de o encontrar de um modo que parecesse natural e não precisou de andar muito: Florentino Ariza estava sentado num banco no corredor, calado e triste como no Parque dos Evangelhos e a interrogar-se há mais de duas horas como é que se iria arranjar para a ver. Ambos fizeram o mesmo gesto de surpresa que ambos sabiam ser fingido e percorreram juntos o convés da primeira classe, atulhada de gente jovem, na sua maioria estudantes buliçosos que se esfalfavam com uma certa ansiedade na última paródia das férias. Na cantina, Florentino Ariza e Fermina Daza tomaram um refresco engarrafado sentados como estudantes diante do balcão, e ela viu-se então numa situação temida. Disse: «Que horror!» Florentino Ariza perguntou-lhe em que estava a pensar que lhe fazia tanta impressão.
- Nos pobres velhinhos - disse ela. - Aqueles que mataram à paulada no bote.
Foram os dois deitar-se quando acabou a música, depois de uma longa conversa sem percalços no miradouro escuro. Não houve lua, o céu estava nublado e, no horizonte, rebentavam relâmpagos sem trovões que os iluminavam por um momento. Florentino Ariza enrolou os cigarros para ela, mas não fumou mais de quatro, atormentada com a dor que aliviava por uns momentos e voltava a agudizar-se quando o barco bramia ao cruzar-se com outro, ou ao passar por uma aldeia adormecida, ou quando navegava devagar para sondar o fundo do rio. Ele contou-lhe com quanta ansiedade a tinha visto sempre nos Jogos Florais, no voo de balão, no velocípede de acrobata, e com quanta ansiedade aguardava as festas públicas durante todo o ano só para vê-la. Também ela o tinha visto muitas vezes e nunca lhe teria passado pela cabeça que estivesse ali só para a ver. No entanto, há apenas um ano, quando leu as suas cartas, perguntou-se nessa altura como era possível que ele nunca tivesse concorrido nos Jogos Florais: sem dúvida que teria ganho. Florentino Ariza mentiu-lhe: só escrevia para ela, versos para ela, e só ele os lia. Então foi ela quem procurou a mão dele na escuridão e não a encontrou à espera como ela tinha esperado a sua na noite anterior, mas tomou-o de surpresa.
Gelou-se o coração de Florentino Ariza.
- Que estranhas são as mulheres - disse. Ela deu uma gargalhada com gosto, de pomba jovem, e voltou a pensar nos velhinhos do bote. Estava escrito: aquela imagem havia de persegui-la sempre. Mas, nessa noite, podia suportá-la porque se sentia tranquila e bem, como poucas vezes na sua vida: limpa de toda a culpa. Teria ficado assim até ao amanhecer, calada, com a mão dele a suar gelo sobre a sua mão, mas não conseguiu suportar o tormento do ouvido. De modo que quando se apagou a música e depois cessou a azáfama dos passageiros comuns a pendurarem as redes no salão, ela compreendeu que a sua dor era mais forte que o desejo de estar com ele. Sabia que só o facto de lhe contar a aliviaria, mas não o fez para não o preocupar. Pois, nessa altura, tinha a sensação de o conhecer como se tivesse vivido com ele toda a vida e achava-o capaz de dar ordens para o navio regressar ao porto se isso pudesse tirar-lhe a dor.
Florentino Ariza tinha previsto que nessa noite as coisas sucederiam assim e retirou-se. Já à porta do camarote tentou despedir-se com um beijo, mas ela ofereceu-lhe a face esquerda. Ele insistiu, já com a respiração entrecortada, e ela ofereceu-lhe a outra face com a garridice que ele não lhe conhecera em colegial. Então insistiu pela segunda vez e ela recebeu-o nos lábios, recebeu-o com um tremor profundo que tentou sufocar com um riso esquecido desde a sua noite de núpcias.
- Meu Deus - disse -, fico mesmo doida nos navios! Florentino Ariza estremeceu: com efeito, como ela mesmo o dissera, tinha o odor acre da idade. No entanto, enquanto caminhava para o seu camarote, abrindo caminho por entre o labirinto de redes adormecidas, consolava-se com a ideia de que ele devia ter o mesmo odor, só que quatro anos mais velho, e que ela o devia ter sentido com a mesma emoção. Era o odor dos fermentos humanos, que ele havia sentido nas suas amantes mais antigas e que elas tinham sentido nele. A viúva de Nazaret, que não se sabia calar, disse-lhe de uma maneira mais rude: «Já cheiramos a frango.» Ambos o suportavam, reciprocamente, porque estavam quites: o seu cheiro contra o dela. Por outro lado, muitas vezes se tinha preocupado por causa de América Vicuna, cujo cheiro a fraldas despertava nele os instintos maternais, mas, contudo, inquietava-o a ideia de que ela não pudesse suportar o seu: o seu cheiro a velho libertino. Mas tudo isso pertencia ao passado. O importante era que pela primeira vez desde aquela tarde em que a tia Escolástica deixou o missal no balcão do telégrafo, Florentine Ariza não tinha voltado a sentir uma felicidade como a dessa noite: tão intensa que lhe causava medo.
Começava a adormecer quando o contador do navio o acordou às cinco no porto de Zambrano para lhe entregar um telegrama urgente. Estava assinado por Leona Cassiani, com data da véspera, e todo o seu horror cabia numa linha: «América Vicuna falecida ontem motivos inexplicáveis.» Às onze da manhã conheceu os pormenores através de uma conferência telegráfica com Leona Cassiani, durante a qual foi ele próprio o operador do equipamento de transmissão como já não fazia desde os seus tempos de telegrafista. América Vicuna, vítima de uma depressão mortal por ter sido reprovada nos exames finais, tinha tomado um frasco de láudano roubado na enfermaria do colégio. Florentine Ariza sabia no fundo da sua alma que aquela notícia estava incompleta. Mas não: América Vicuna não tinha deixado nenhum bilhete explicativo que permitisse atribuir a alguém as culpas da sua decisão. A família estava nesse momento a chegar de Puerto Padre, avisada por Leona Cassiani, e o enterro seria nessa tarde às cinco horas. Florentine Ariza respirou. A única coisa que podia fazer para continuar vivo era não se autorizar o suplício daquela recordação. Apagou-a da memória, ainda que de vez em quando, durante o resto da sua vida, o sentiria reviver de repente sem que viesse a propósito, como a pontada momentânea de uma cicatriz antiga.
Os dias seguintes foram quentes e intermináveis. O rio foi-se tornando mais turvo e cada vez mais estreito e em vez do emaranhado de árvores colossais que tanto tinha impressionado Florentine Ariza na sua primeira viagem, havia planuras calcinadas, destroços de selvas inteiras devoradas pelas caldeiras dos navios, ruínas de povoações abandonadas por Deus cujas ruas continuavam inundadas mesmo nas épocas mais cruéis da seca. Durante a noite não eram acordados pelos cantos de sereia dos manatins nos areais mas sim pelas lufadas nauseabundas dos mortos que passavam a flutuar em direcção ao mar. Porque já não havia nem guerras nem pestes mas os corpos inchados continuavam a passar. O comandante, por uma vez, foi sóbrio: «Temos ordem para dizer aos passageiros que são afogados acidentais.» Em vez da algaraviada dos papagaios e do chinfrim dos macacos invisíveis que noutros tempos aumentavam o calor opressivo do meio-dia, ficava apenas o silêncio vasto da terra arrasada.
Havia tão poucos sítios onde arranjar lenha, e estavam tão afastados uns dos outros, que o N neva Fidelidad ficou sem combustível no quarto dia de viagem. Permaneceu atracado quase uma semana enquanto membros da tripulação se embrenhavam por pântanos de cinzas em busca das últimas árvores dispersas. Não havia outras: os lenhadores tinham abandonado as suas veredas fugindo da ferocidade dos senhores da terra, fugindo da cólera invisível, fugindo das guerras putrefactas que os governos se empenhavam em ocultar com decretos de distracção. Entretanto, os passageiros, aborrecidos, faziam campeonatos de natação, organizavam expedições de caça, regressavam com iguanas vivas que abriam ao meio e voltavam a coser com agulhas de enfardar depois de lhes tirar os cachos de ovos, translúcidos e tenros, que punham a secar em filas nos parapeitos do navio. As prostitutas pobres das aldeias vizinhas seguiram o trilho das expedições, improvisaram tendas de campanha nos barrancos da margem, levaram música e comida e assentaram arraiais em frente do navio encalhado.
Desde muito antes de ser presidente da CFC que Florentino Ariza recebia relatórios alarmantes quanto ao estado do rio, mas raramente lhes dava uma vista de olhos. Tranquilizava os seus sócios: «Não se preocupem; quando acabar a lenha já haverá navios a petróleo.» Nunca se deu ao trabalho de reflectir sobre isso, turvado pela paixão por Fermina Daza, e quando se deu conta da verdade já não havia nada a fazer, porque não podia arranjar outro rio novo. Durante a noite, mesmo nas épocas de melhores águas, era preciso ancorar para dormir e então tornava-se insuportável até o simples facto de se estar vivo. A maioria dos passageiros, principalmente os europeus, abandonava o podredouro dos camarotes e passavam a noite a andar pelas cobertas, enxotando todo o tipo de alimárias com a mesma toalha com que enxugavam o suor incessante, e de ma nhã estavam exaustos e inchados por causa das picadas Uni viajante inglês do princípio do século xix, referindo-se à via gem combinada entre canoa e mula, que podia demorar até .cinquenta dias, tinha escrito: «Esta é uma das peregrinações piores e mais incómodas que o ser humano pode efectuar.» Isto havia deixado de ser verdadeiro nos primeiros oitenta anos da navegação a vapor e depois tinha voltado a sê-lo para sempre, quando os jacarés comeram a última borboleta e acabaram os manatins maternais, acabaram os papagaios, os macacos, as aldeias: acabou-se tudo.
- Não há problema - ria-se o comandante -, dentro de alguns anos viremos pelo leito seco em automóveis de luxo.
Fermina Daza e Florentino Ariza estiveram protegidos nos primeiros três dias pela suave primavera do miradouro fechado, mas quando racionaram a lenha e começou a falhar o sistema de refrigeração, o «camarote presidencial» converteu-se numa cafeteira de pressão. Ela sobrevivia às noites com o vento fluvial que entrava pelas janelas abertas e espantava os mosquitos com uma toalha porque a bomba de insecticida era inútil com o navio encalhado. A dor do ouvido tinha-se tornado insuportável e uma manhã, ao acordar, cessou de repente e por completo, como o canto de uma cigarra rebentada. Mas só à noite se apercebeu que tinha perdido a audição do ouvido esquerdo, quando Florentino Ariza lhe falou desse lado e ela teve de virar a cabeça para ouvir o que ele dizia. Não disse nada a ninguém, resignada a que fosse mais um dos muito defeitos irremediáveis da idade.
Contudo, a demora do navio tinha sido para eles um percalço providencial. Florentino Ariza lera certa vez: «O amor torna-se maior e mais nobre na adversidade.» A humidade do «camarote presidencial» submergiu-os num letargo irreal no qual era mais fácil amarem-se sem perguntas. Viviam horas inimagináveis de mãos dadas nas poltronas da amurada, beijavam-se devagar, gozavam a embriaguez das carícias sem o estorvo da exasperação. Na terceira noite de torpor ela esperou-o com uma garrafa de licor de anis, daquele que costumava beber às escondidas com o grupo da prima Hildebranda, e, mais tarde, já casada e com filhos, fechada com as amigas no seu mundo emprestado.
Precisava de um pouco de aturdimento para não pensar na sua sorte com demasiada lucidez, mas Florentine Ariza julgou que era para tomar coragem para o passo final. Animado por essa ilusão atreveu-se a explorar com a ponta dos dedos o seu pescoço murcho, o peito couraçado com varetas metálicas, as ancas de ossos carcomidos, os músculos de gazela velha. Ela aceitou-o satisfeita, de olhos fechados, mas sem estremecimentos, fumando e bebendo em goles espaçados. No fim, quando as carícias deslizaram para o seu ventre, já tinha bastante anis no coração.
- Se temos de fazer disparates - disse -, façamo-los mas como gente crescida.
Levou-a para o quarto e começou a despir-se sem falsos pudores, de luz acesa. Florentine Ariza deitou-se de costas tentando recuperar o autodomínio, novamente sem saber o que fazer com a pele do tigre que tinha vestido. Ela disse-lhe: «Não olhes.» Ele perguntou porquê sem tirar os olhos do tecto baixo.
- Porque não vais gostar - disse ela.
Então ele olhou para ela. Viu-a nua até à cintura, tal como ele a imaginara. Tinha os ombros enrugados, os seios caídos e as costelas forradas por uma pele pálida e fria como a de uma rã. Ela cobriu o peito com a blusa que acabava de despir e apagou a luz. Então ele endireitou-se e começou a despir-se na escuridão, atirando para cima dela cada peça que ia despindo e ela devolvia-lhas a rir à gargalhada.
Permaneceram deitados de costas um longo momento, ele cada vez mais aturdido à medida que a embriaguez o abandonava, e ela tranquila, quase abúlica, mas suplicando a Deus que não lhe desse para começar a rir sem razão como lhe acontecia sempre que se descuidava com o anis. Conversaram para enganar o tempo. Falaram de si, das suas vidas diferentes, do acaso inverosímil de se encontrarem nus no camarote às escura de um navio’encalhado, quando seria justo que pensassem que já não lhes restava mais nada senão esperar a morte. Ela nunca tinha ouvido dizer que ele tivesse uma mulher, nem uma sequer, numa cidade onde se sabia tudo mesmo antes de acontecer. Disso-lhe de uma maneira casual, e ele replicou-lhe imediatamente sem uma vacilação na voz:
- E que me conservei virgem para ti.
Ela não teria acreditado de todos os modos, mesmo que fosse verdade, porque as suas cartas de amor estavam cheias de frases como essa que não tinham valor pelo seu sentido mas pela sua capacidade de deslumbrarem. Mas agradou-lhe a coragem com que o disse. Florentine Ariza, pelo seu lado, perguntou-se então o que nunca se tinha atrevido a perguntar-se: que tipo de vida oculta tinha levado ela à margem do casamento. Nada o teria surpreendido porque ele sabia que as mulheres são iguais aos homens nas suas aventuras secretas: os mesmos estratagemas, as mesmas inspirações súbitas, as mesmas traições sem remorsos. Mas fez bem em não lho perguntar. Numa época em que as suas relações com a Igreja estavam já bastante deterioradas, o confessor perguntou-lhe, sem que viesse a propósito, se alguma vez tinha sido infiel ao seu esposo e ela levantou-se sem responder, sem terminar, sem se despedir, e nunca mais voltou a confessar-se com esse confessor nem com nenhum outro. Em troca, a prudência de Florentine Ariza teve uma recompensa inesperada: ela estendeu a mão na escuridão, acariciou-lhe o ventre, os flancos, o púbis quase imberbe. Disse: «Tens uma pele de bebé.» Depois deu o passo final: procurou-o onde não estava, voltou-o a procurar sem ilusões e encontrou-o inerme.
- Está morto - disse ele.
Acontecia-lhe sempre quando era a primeira vez, de modo que tinha aprendido a conviver com aquele fantasma: cada vez tinha que aprender de novo como se fosse a primeira. Pegou na mão dela e pô-la sobre o seu peito: Fermina Daza sentiu, quase à flor da pele, o velho coração incansável a latejar com a força, a pressa e a desordem dum adolescente. Ele disse: «Para isto é tão mau amar de mais como amar de menos.» Mas disse-o sem convicção: estava envergonhado, desejando uma razão para a culpar a ela do fracasso. Ela sabia-o e começou a provocar o corpo indefeso com carícias brincalhonas, como uma gata meiga que se rejubila na crueldade, até que ele não conseguiu resistir por mais tempo ao martírio e foi para o seu camarote. Ela ficou a pensar nele até ser manhã, convencida finalmente do seu amor e à medida que o anis a abandonava em ondas lentas ia-a invadindo a angústia de que ele se tivesse desgostado e não voltasse nunca mais.
Mas voltou no mesmo dia, à hora insólita das onze da manhã, fresco e restaurado, e despiu-se diante dela com uma certa ostentação. Ela gostou de o ver à luz do dia tal como o tinha imaginado às escuras: um homem sem idade, de pele escura, lúcida e tensa como um guarda-chuva aberto, sem mais pêlos do que os muito escassos e lassos das axilas e do púbis. Estava de arma em riste e ela apercebeu-se de que não se mostrava por acaso, mas exibia-a como um trofeu de guerra para se dar coragem. Nem sequer lhe deu tempo para tirar a camisa de noite que tinha vestido quando começou a brisa do amanhecer e a sua pressa de principiante provocou-lhe um estremecimento de compaixão. Mas não a incomodou porque em casos como aquele não era fácil distinguir entre a compaixão e o amor. No fim, porém, sentiu-se vazia.
Era a primeira vez que fazia amor em mais de vinte anos e tinha-o feito embargada pela curiosidade de sentir como podia ser na sua idade após um retiro tão prolongado. Mas ele não lhe dera tempo para saber se o seu corpo também o queria. Tinha sido rápido e triste e ela pensou: «Agora é que está tudo fodido.» Mas enganou-se: apesar do desencanto de ambos, apesar do arrependimento dele pela sua torpeza e dos remorsos dela pela loucura do anis, não se separaram por um momento nos dias seguintes. Se saíam do camarote era para irem comer. O comandante Samaritano, que descobria instintivamente qualquer mistério que quisessem guardar no seu navio, mandava-lhes a rosa branca todas as manhãs, pôs-lhes uma serenata de valsas do seu tempo, mandava-lhes preparar comidas de brincadeira com condimentos alentadores. Não voltaram a tentar fazer amor senão muito depois, quando lhes chegou a inspiração sem que a procurassem. Bastava-lhes a felicidade de estarem juntos.
Não teriam sequer pensado em sair do camarote se não tivesse sido o comandante a avisá-los por um bilhete que depois do almoço chegariam a Ia Dorada, o porto final, ao cabo de onze dias de viagem. Fermina Daza e Florentino Ariza viram do camarote o promontório de casas iluminadas por um sol pálido e julgaram perceber a razão do seu nome, mas pareceu-lhes menos evidente quando sentiram o calor que resfolegava como as caldeiras e viram o alcatrão a ferver nas ruas. Aliás, o navio não atracou ali mas na margem oposta onde ficava a estação terminal do caminho-de-ferro de Santa Fé.
Abandonaram o refúgio assim que os passageiros desembarcaram. Fermina Daza respirou o ar bom da impunidade no salão vazio e ambos contemplaram da amurada a multidão alvoroçada que identificava as bagagens nos vagões de um comboio que parecia de brinquedo. Podia-se pensar que vinham da Europa, sobretudo as mulheres, cujos casacos nórdicos e chapéus do século anterior eram um contra-senso na canícula poeirenta. Algumas tinham os cabelos enfeitados com lindíssimas flores que começavam a desfalecer com o calor. Acabavam de chegar da planície andina depois de uma viagem de comboio através de uma savana de sonho e ainda não tinham tido tempo para mudar de roupa para as Caraíbas.
No meio do bulício do mercado, um homem muito velho, de aspecto inconsolável, ia tirando pintainhos do bolso do seu casaco de pedinte. Tinha aparecido de repente, abrindo caminho por entre a multidão com um sobretudo em frangalhos que havia pertencido a alguém muito mais alto e corpulento. Tirou o chapéu, pô-lo virado no chão do cais para o caso de alguém querer atirar-lhe alguma moeda e começou a tirar dos bolsos mãos-cheias de pintainhos tenros e desbotados que pareciam proliferar entre os seus dedos. Num instante o cais parecia atapetado por pintainhos inquietos a piarem por todo o lado, entre os viajantes apressados que passavam por cima deles sem os sentir. Fascinada pelo espectáculo ihagnífico que parecia montado em sua honra, pois só ela o apreciava, Fermina Daza não se deu conta em que momento começaram a embarcar os passageiros da viagem de regresso. Acabou-se-lhe a festa: entre os que chegavam conseguiu ver muitas caras conhecidas, algumas de amigos que até ainda há pouco tempo a tinham acompanhado no seu luto, e apressou-se a refugiar-se no camarote. Florentine Ariza encontrou-a consternada: preferia morrer a ser descoberta pelos seus numa viagem de prazer, passado tão pouco tempo sobre a morte do marido. Florentine Ariza ficou tão afectado com o seu abatimento que lhe prometeu pensar em qualquer maneira para a proteger, diferente da prisão do camarote.
A ideia ocorreu-lhe subitamente quando jantavam na sala de jantar privativa. O comandante estava inquieto com um problema que há já algum tempo queria discutir com Florentino Ariza, mas ele esquivava-se sempre com o seu argumento habitual: «Essas tretas a Leona Cassiani trata-as melhor que eu.» No entanto, desta vez escutou-o. O caso era que os navios levavam carga na subida, mas desciam vazios, enquanto que era o contrário o que se passava com os passageiros. «Com vantagens para a carga porque paga mais e, além disso, não come», disse. Fermina Daza jantava de má vontade, aborrecida com a discussão nervosa dos dois homens sobre a conveniência de estabelecer tarifas diferenciais. Mas Florentino Ariza chegou até ao fim e só então largou uma pergunta que ao comandante pareceu prenúncio de uma ideia salvadora.
- E, falando por hipótese - disse -, seria possível fazer uma viagem directa sem carga nem passageiros, sem parar em nenhum porto, nem nada?
O comandante disse que só era possível por hipótese. A CFC tinha compromissos laborais que Florentino Ariza conhecia melhor que ninguém, tinha contratos de carga, de passageiros, de correio e muitos mais, impossíveis de alterar na sua maioria. A única coisa que permitia saltar por cima de tudo era um caso de peste a bordo. Declarava-se quarentena no navio, içava-se a bandeira amarela e navegava-se em emergência. O comandante Samaritano tivera de o fazer várias vezes pelos muitos casos de cólera que se apresentavam no rio, ainda que depois as autoridades sanitárias obrigassem os médicos a declarar disenteria comum. Aliás, muitas vezes na história do rio se tinha içado a bandeira amarela da peste para fugir aos impostos, para não recolher um passageiro indesejável, para impedir inspecções inoportunas. Florentino Ariza encontrou a mão de Fermina Daza por baixo da mesa.
- Pois bem - disse. - Vamos fazer isso.
O comandante ficou surpreendido, mas logo, com o seu instinto de raposa velha, viu tudo claramente.
- Eu mando neste navio, mas o senhor manda em nós disse. - De modo que se está a falar a sério, dê-me a ordem por escrito e começamos já.
Era a sério, evidentemente, e Florentino Ariza assinou a ordem. Ao fim e ao cabo toda a gente sabia que os tempos da cólera não tinham acabado, apesar dos informes alegres das autoridades sanitárias. Quanto ao navio, não havia problema.
Transferiu-se a pouca carga embarcada, aos passageiros disseram que havia um percalço com as máquinas e mandaram-nos nessa madrugada num navio de outra empresa. Se estas coisas se faziam por tantas razões imorais e até indignas, Florentine Ariza não via porque não seria lícito fazê-las por amor. A única coisa que o comandante suplicava era uma escala em Puerto Nare, para recolher uma pessoa que o acompanharia na viagem: também ele tinha o seu coração escondido.
Foi assim que o Nueva Fidelidad zarpou ao amanhecer do dia seguinte, sem carga nem passageiros e com a bandeira amarela da cólera a flutuar de alegria no mastro maior. Ao fim da tarde recolheram em Puerto Nare uma mulher mais alta e robusta que o comandante, de uma beleza descomunal, a quem só faltava ter barba para ser contratada por um circo. Chamava-se Zenaida Neves, mas o comandante chamava-lhe Minha Energúmena: uma velha amiga sua a quem costumava recolher num porto para a deixar noutro e que subiu a bordo perseguida pela ventania da felicidade. Naquele morredouro triste, onde Florentine Ariza reviveu as nostalgias de Rosalba quando viu o comboio de Envigado a subir com grande dificuldade por onde dantes era o caminho das mulas, desabou uma chuva amazónica que havia de continuar com muito poucos intervalos até ao fim da viagem. Mas ninguém se importou com isso: a festa navegante tinha o seu tecto próprio. Naquela noite, como contribuição pessoal para a paródia, Fermina Daza desceu às cozinhas por entre as ovações da tripulação e preparou para todos um prato inventado que Florentine Ariza baptizou para ela: «Beringelas ao amor.»
Durante o dia jogavam às cartas, comiam até não poder mais, faziam umas sestas de granito que os deixavam exaustos e mal o Sol descia, davam largas à orquestra e bebiam licor de anis com salmão passando dos limites da saciedade. Foi uma viagem rápida, com o navio leve e águas favoráveis, melhoradas pelas torrentes que se precipitavam dos cumes onde choveu tanto naquela semana como durante todo o trajecto. Algumas aldeias disparavam tiros de canhão misericordiosos para afastar a cólera e eles agradeciam com um rugido triste. Os navios de qualquer companhia que se cruzavam com eles pelo caminho mandavam-lhes sinais de condolências. Na povoação de Magangué, onde nasceu Mercedes, carregaram lenha para o resto da viagem.
Fermina Daza assustou-se quando começou a sentir a sirene do navio dentro do ouvido são, mas, no segundo dia de anis, ouvia melhor dos dois. Descobriu que as rosas tinham mais perfume do que antes, que os pássaros ao amanhecer cantavam muito melhor que antes e que Deus tinha feito um manatim e o colocara no areal de Tamalameque só para a acordar. O comandante ouviu-o, deixou o navio à deriva e viram por fim a matrona enorme a amamentar a sua cria nos braços. Nem Florentine nem Fermina se deram conta de quanto se confundiam: ela ajudava-o com os clisteres, levantava-se antes dele para lhe escovar a dentadura postiça que ele deixava no copo enquanto dormia e resolveu o problema dos óculos perdidos, pois conseguia ler e passajar com os dele. Certa manhã, ao acordar, viu-o na sombra a pregar um botão na camisa e apressou-se a ser ela a fazê-lo antes que se repetisse a frase ritual de fazerem falta duas esposas. Em troca, a única coisa que ela precisou dele foi que lhe pusesse uma ventosa por causa de uma dor nas costas.
Florentino Ariza, pelo seu lado, pôs-se a remexer nas nostalgias com o violino da orquestra e em meio dia foi capaz de executar para ela a valsa d’A Deusa Coroada, e tocou-a durante horas até o obrigarem a parar. Uma noite, pela primeira vez na sua vida, Fermina Daza acordou sufocada por um pranto que não era de raiva mas de pena, pela recordação dos velhinhos do bote assassinados à paulada pelo barqueiro. Por outro lado, a chuva incessante não a comoveu e pensou demasiado tarde que Paris talvez não tivesse sido tão lúgubre como ela achava, nem Santa Fé tinha tantos enterros pelas ruas. O sonho de outras viagens futuras com Florentino Ariza ergueu-se no horizonte: viagens malucas, sem tantos baús, sem compromissos sociais: viagens de amor.
Na véspera da chegada fizeram uma grande festa com grinaldas de papel e lanternas coloridas. A chuva cessou ao entardecer. O comandante e Zenaida dançaram muito juntos os primeiros boleros que nesses anos começavam a estilhaçar corações. Florentino Ariza atreveu-se a sugerir a Fermina Daza que dançassem a sua valsa confidencial, mas ela recusou. No entanto, durante toda a noite, marcou o compasso com a cabeça e os saltos dos sapatos e houve até um momento em que dançou sentada sem dar-se conta, enquanto o comandante se confundia com a sua meiga energúmena na penumbra do bolero. Bebeu tanto licor de anis que tiveram de ajudá-la a subir as escadas e teve um ataque de riso com lágrimas que chegou a assustar toda a gente. Porém, quando conseguiu controlá-lo no remanso perfumado do camarote, fizeram um amor tranquilo e são, de avós maltratados, que iria fixar-se na sua memória como a melhor recordação daquela viagem lunática. Já não se sentiam como noivos recentes, ao contrário do que supunham o comandante e Zenaida e ainda menos como amantes tardios. Era como se tivessem saltado por cima do árduo calvário da vida conjugal e tivessem entrado directamente e sem mais delongas no amor. Seguiam em silêncio como dois velhos esposos escaldados pela vida, para lá das armadilhas da paixão, para lá das trapaças brutais das ilusões e dos reflexos dos desenganos: para lá do amor. Pois tinham vivido juntos o suficiente para se darem conta de que o amor era amor em qualquer tempo e em qualquer lugar, mas tanto mais denso quanto mais próximo da morte.
Acordaram às seis. Ela com a dor de cabeça perfumada de anis e com o coração aturdido pela sensação que o doutor Juvenal Urbino tinha voltado, mais gordo e mais jovem do que quando caíra da árvore, e estava sentado na cadeira de baloiço, à espera dela à porta de casa. No entanto, estava suficientemente lúcida para dar-se conta de que não era o efeito do anis mas sim da iminência do regresso.
- Vai ser como morrer - disse.
Florentine Ariza surpreendeu-se porque era o adivinhar de um pensamento que não o abandonava desde que começara a viagem de regresso. Nem ele nem ela podiam imaginar-se noutra casa que não fosse o camarote, comendo de maneira que não a do navio, integrados numa vida que lhes seria alheia para sempre. Era, com efeito, como morrer. Não conseguiu dormir mais. Ficou deitado na cama com as duas mãos cruzadas sob a nuca. A um dado momento, a pontada de América Vicuna fê-lo retorcer-se de dor e não conseguiu adiar a verdade por mais tempo: fechou-se na casa de banho e chorou à sua vontade, sem pressa, até à última lágrima. Só então teve a coragem de se confessar o quanto a tinha amado.
Quando se levantaram já vestidos para o desembarque, tinham deixado para trás os canais e os pântanos da antiga passagem espanhola e navegavam por entre os escombros dos barcos e dos tanques de óleos mortos da baía. Erguia-se uma quinta-feira radiosa sobre as cúpulas douradas da cidade dos vice-reis, mas, do tombadilho, Fermina Daza não conseguiu suportar a pestilência das suas glórias, a arrogância dos seus baluartes profanados pelas iguanas: o horror da vida real. Nem ele nem ela, sem o dizerem, se sentiram capazes de se renderem de um modo tão fácil.
Encontraram o comandante na sala de jantar, num estado de desordem que não estava de acordo com a pulcritude dos seus hábitos: a barba por fazer, os olhos raiados pela insónia, a roupa transpirada da noite anterior, a fala alterada pelos arrotos a anis. Zenaida dormia. Começava a tomar o pequeno-almoço em silêncio quando um barco a gasolina da Inspecção Sanitária mandou parar o barco.
O comandante, da ponte de comando, respondeu aos gritos às perguntas da patrulha armada. Queriam saber que tipo de peste traziam a bordo, quantos passageiros vinham, quantos estavam doentes, que possibilidades havia de novos contágios. O comandante respondeu que só traziam três passageiros, todos com cólera e que se mantinham em total reclusão. Nem os que deviam ter subido em La Dorada, nem os vinte e sete homens da tripulação tinham tido qualquer contacto com eles. Mas o comandante da patrulha não se deu por satisfeito e ordenou que saíssem da baía e que esperassem no pântano de Lãs Mercedes até às duas da tarde, enquanto se preparavam os trâmites para o navio ficar de quarentena. O comandante soltou um palavrão de carroceiro e com um gesto feito com a mão mandou o piloto dar meia volta e voltar aos pântanos.
Fermina Daza e Florentine Ariza tinham ouvido tudo da mesa, mas o comandante não parecia importar-se com isso. Continuou a comer em silêncio e via-se-lhe o mau humor até na maneira como violou as regras da etiqueta que sustentavam a reputação lendária dos comandantes do rio. Rebentou com a ponta da faca os quatro ovos estrelados e arrebanhou-os no seu prato com pedaços enormes de banana verde que metia inteiros na boca, mastigando-os com um deleite selvagem. Fermina Daza e Florentino Ariza observavam-no sem falar, à espera que fossem lidas as notas finais num banco da escola. Não tinham trocado uma palavra enquanto durou o diálogo com a patrulha sanitária nem faziam a menor ideia do que ia ser das suas vidas, mas ambos sabiam que o comandante estava a pensar por eles: via-se pelo latejar das fontes.
Enquanto ele despachava a ração dos ovos, a bandeja das rodelas de banana, o jarro de café com leite, o navio saiu da baía com as caldeiras sossegadas, abriu caminho pelos canais através dos lençóis de tarulla, o lótus fluvial de flores roxas e folhas enormes em forma de coração, e voltou aos pântanos. A água apresentava-se em furta-cores devido ao mundo de peixes que flutuavam de lado, mortos com a dinamite dos pescadores furtivos, e os pássaros da terra e da água voavam em círculos sobre eles com pios metálicos. O vento das Caraíbas meteu-se pelas janelas com o rebuliço dos pássaros, e Fermina Daza sentiu no sangue o latejar desordenado do seu livre-arbítrio. À direita, turvo e parcimonioso, o estuário do rio Grande de La Magdalena espraiava-se até ao outro lado do mundo.
Quando já não restava nada que se comesse nos pratos, o comandante limpou os lábios com a ponta da toalha e falou numa gíria impudente que acabou de uma vez por todas com o prestígio do bem falar dos comandantes do rio. Pois não falou por eles nem para ninguém, e tentava chegar a um acordo com a própria fúria. A sua conclusão, ao cabo de uma longa fieira de impropérios violentos, foi que não via como sair do imbróglio em que se tinha metido com a bandeira da cólera.
Florentino Ariza escutou-o sem pestanejar. Depois olhou pela janela o círculo completo do quadrante da rosa náutica, o horizonte nítido, o céu de Dezembro sem uma única nuvem, as águas para sempre navegáveis e disse:
- Sigamos em frente, sempre em frente, outra vez até La Dorada.
Fermina Daza sentiu-se estremecer porque reconheceu a antiga voz iluminada pela graça do Espírito Santo e olhou para o comandante: ele era o destino. Mas o comandante não a viu, porque estava inundado pelo tremendo poder de inspiração de Florentino Ariza.
- Está a falar a sério? - perguntou-lhe.
- Desde que nasci - disse Florentino Ariza - nunca disse uma única coisa que não fosse a sério.
O comandante olhou para Fermina Daza e viu nas suas pestanas os primeiros pingos de um orvalho de Inverno. Depois olhou para Florentino Ariza, o seu domínio invencível, o seu amor impávido, e ficou assustado pela suspeita tardia de que é a vida, mais que a morte, que não tem limites.
E até quando pensa o senhor que podemos continuar neste ir e vir dum caralho? - perguntou-lhe.
Florentino Ariza tinha a resposta preparada há já cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com todas as suas noites.
- Toda a vida - disse.
UM COLOMBIANO NO CENTRO DO «BOOM»
O chamado «boom latino-americano», ou seja, o sucesso ecentemente alcançado pela nova ficção da América Latina (nele se incluindo também as controvérsias e paixões que usualmente fazem o progresso da teoria da literatura), tornou-se já num dos mais curiosos fenómenos literários deste final de século. Não apenas por si (ainda que sobretudo por isso), mas também pela nova dinâmica e pelo movimento de curiosidade que gerou em torno das impropriamente chamadas «literaturas periféricas».
O centro literário tradicional (no âmbito da escrita, da produção teórica e ideológica e, ainda, do fomento das «modas» literárias) situava-se, até há poucos anos, no sentido dum eixo geográfico que, atravessando sempre o coração de Paris, envolvia em si o consenso de leitura dos mais gloriosos romancistas russos; coexistia com os melhores nomes do romance norte-americano (alguns dos quais, como os de Hemingway, sintomaticamente com acção na Europa), admitindo mal o génio de escritores mais «periféricos», como Mishimr., Kafka, Joyce ou Beckett.
A dinâmica criada por esse boom está pois na base da deslocação desse eixo tradicional e na descoberta progressiva da literatura de alguns países que normalmente não constavam dos grandes roteiros internacionais. Mas, mais do que um surto de latinidade, ele é, hoje, a irradiação problemática dos valores e gostos duma vanguarda literária que se situa já ao nível duma alternativa a todos os antigos desafios. Por outro lado, quando concreta e especificamente avaliado, ele apreende e representa o real e o imaginário, a verdade e a ficção, a notícia histórica e a vicissitude quotidiana dum continente cuja existência política e social se apresenta em geral tumultuosa, mal-amada ou mesmo desconhecida.
É bem possível que a prudência aconselhe a não proferir-se afirmações absolutas sobre um mundo tão específico e tão móvel como o é o da literatura. Mas, em boa verdade, sob o império teórico do Sartre existencialista e do espectro efémero do nouveau-roman francês, quase não houve lugar para a excepção dos outros. Mais ainda: o tal «boom latino-americano» teve de passar pela prova de fogo do sistema. Colhendo-o de surpresa, fê-lo roer o osso e perder o pé. E, afirmando-se na ordem inversa duma posição de perda, deslocou afinal a literatura para fora das suas formas pesadas. Desafiada por um imaginário que continha em si a estranheza e a novidade duma nova alquimia literária, a babilónia das letras não teve outro recurso senão render-se à evidência duma vitalidade que há muito já lhe não assistia. Mas, como os grandes males se curam com os melhores remédios, a inversão dessa ordem repôs, afinal, o equilíbrio perdido: foi então que a literatura americana de língua castelhana (e, em diferentes proporções, a brasileira) estabelecia as bases dum novo fascínio.
Não é possível colher unanimidade num domínio tão sensível como o das reciprocidades e o da influência literária. E também não é minha intenção incorrer aqui no problema metafísico da criação literária recente, que, muito à portuguesa, tem sido julgada mais pela aparência do que pela sua verdade. Vem ao caso, isso sim, referir que também em Portugal os latino-americanos deixaram visíveis, e quem sabe se insuperáveis, sinais duma influência temática e formal, que é, aliás, praticamente extensível a toda a Europa. Contudo, se for certo dizer-se que não houve entre nós sartrianos puros, ao mesmo nível se terá de admitir que o nosso tempo não é o dos borgianos ou dos marquezianos puros. Entre difuso e avassaladoramente sísmico, esse impulso exterior terá contribuído para instaurar aqui uma consciência literária que em muitos casos coincide com as convicções e práticas duma nova geração de escritores.
Quais, então, os suportes dessa novidade, e em que medida caracterizam eles a escrita original dos latino-americanos? O mais difícil é sobre isso estabelecer uma síntese segura e objectiva, como facilmente há-de admitir-se. A terminologia mais divulgada e que melhor parece adequar-se-lhe dá pelo nome de «realismo fantástico» - havendo, embora, quem prefira o adjectivo «mágico», ou mesmo quem funda essa expressão numa palavra composta: o «etnofantástico.» Mais do que os nomes, importam as noções que lhes subjazem ou a que dão cobertura. Se não for menos ortodoxo, direi que essa ficção descobriu afinal o seu ovo de Colombo numa prática simples e simultaneamente deslumbrada, recorrendo aos grandes temas sociais, sem dúvida, mas envolvendo as realidades descritas numa auréola de sonhos, crenças e rituais lendários que bem podem estar na origem duma nova mitologia literária. Para uma tal eficácia concorrem, no entanto, muitos e muitos factores. Por exemplo: nunca nos foi tão próxima a ideia, como na obra desses escritores, de que é a ficção que deve iluminar o real, e não o contrário. Melhor: realidade e ficção entram nos dados do jogo para reciprocamente se anularem, ou então para que ambas apareçam superiormente sublimadas num universo de fábulas e símbolos cuja resultante é a amplitude máxima do próprio conceito de «imaginário».
Bem no fundo, esse ovo de Colombo provoca no leitor uma espécie de regressão afectiva. A sua fórmula consiste na intenção de contar aos adultos as mesmas histórias de proveito e exemplo, em desafiar neles a memória das antigas fábulas, em fazer deles os cúmplices daquela magia oral que um dia tocou a sua infância e conferiu aos contadores de «casos» a iluminação, a sabedoria e o ritual dos épicos primitivos. A nova mitologia literária dos latino-americanos (cujo único elemento exótico recorre das lendas e tradições índias) tem sobretudo o mérito de ter estado desde há muito oculta e silenciosa dentro de todos nós. Usa tanto dos «prodígios» do texto bíblico, como usa das nossas metáforas quotidianas. Depois, faz convergir tudo isso sobre os mundos excepcionais, os símbolos e as projecções espirituais que o Mundo herdou das suas epopeias. Mundo sagrado e mundo profano deixam de ter, a separá-los, a linha concreta de racionalidade - isto no plano da escrita. A racionalização prática só se produz no leitor, competindo-lhe organizar o caos aparente dum mundo cuja realidade decorre das sublimações e dos enigmas dessa desordem...
Há formas específicas de humor nesse «realismo fantástico». Assiste-se à ressurreição dos mortos, adivinha-se o destino humano, contacta-se de perto com as premonições das fadas e dos anjos - e não há um limite óbvio entre os objectos e as suas legendas. Assim, é do lado desses jogos oníricos que a realidade social e política da América Latina clama por aproximação e solidariedade. O seu perfil projecta-se nesse cristal de fantasia, é certo, mas é um perfil tão nítido como o dos navios-miniaturas no fundo das garrafas de anis. Como escreveu Gabriel Garcia Márquez, a América Latina padece duma solidão quase primordial: em nenhum outro lugar da Terra seria mais fácil inverter o tempo e salvar a memória dos humanos. Lá, o passado está ainda tão presente como uma lenda. O biblicismo da condição humana mantém-se aí na sua mais contínua e continuada aplicação. E, como igualmente escreveu Júlio Cortázar, «o nome das coisas não designa a rigor as próprias coisas; ali, tudo é normal, tudo é excepcional». Pois bem: o duplo carácter desse enigma social e da sua sublimação mitológica encontra toda a sua expressão nesses escritores. Eles são a voz instrumental desse mundo de gente acossada, dos seus pobres crentes, das suas superstições e angústias. O leitor acaba por acreditar melhor na ficção sem limites desse mundo de gente, do que no seu contrário. Prefere o exercício do imaginário sobre o real, não o condicionamento da imaginação pela realidade.
Como quase sempre acontece anualmente, também a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Gabriel Garcia Márquez (relativo a 1982) foi objecto de posições muito diversas entre nós. Dos depoimentos vindos a público, retenho sobretudo o facto de alguns dos inquiridos se terem pronunciado sobre outras opções: o argentino Jorge Luis Borges recolheu então as mais expressivas e também mais numerosas menções. Aparentemente, percebe-se mal que Borges nunca tivesse sido favorecido pelos critérios da Academia sueca, tanto mais que o autor de O Aleph e de História Universal da Infância recolhia, por todo o Mundo, os favores e as prerrogativas do espírito académico. Mas, desses interessantíssimos debates, recordo, contudo, uma frase de luxo que não resisto a transcrever de memória: Ele (Márquez) não trouxe nada de novo à Literatura...
Eis-nos, assim, no limiar dum sofisma que até podia levar-nos a rever muitos dos equívocos por que tem sido pautada a avaliação dos nossos conceitos de literatura. No essencial, uma tal afirmação visa tanto reduzir o autor de Cem Anos de Solidão à figura dum mero epígono literário (que nunca o foi), como talvez pretenda censurar ou mesmo obliterar a enorme audiência de que disfruta e a inegável importância da sua obra de ficcionista. Importa, por agora, contrapor a um tal raciocínio algumas inocentes e inofensivas evidências. A primeira reside no facto de Gabriel Garcia Márquez ser possivelmente o oposto perfeito de Borges - com a superior vantagem de a sua obra, apesar de muito menos ecléctica do que a do argentino, assumir em pleno a ideologia do século. Segunda evidência: a originalidade deste colombiano nascido em Aracataca em 1928, patente no chamado «ciclo do Macondo» e na geografia imaginária da sua ficção sobre as Caraíbas, levou ao extremo limite, digamos mesmo ao limite suportável, a ideia de que à sua inventiva criadora dificilmente se ajustam as definições, os códigos e os conceitos da tradição literária. Terceira: mais lido e estimado do que todos os escritores latino-americanos do seu escol e da sua geração, Garcia Márquez é hoje tão universal como os maiores mestres do romance moderno, sendo seguramente, como Kafka, Camus, Hemingway ou o próprio Borges, uma das figuras literárias do século. E preciso sublinhar, ainda, que não se está em presença daquelas formas avulsas de popularidade, de quando se confundem escritores e livros com marcas de relógios ou roteiros turísticos. Ainda para além de Borges, o nome de Gabriel Garcia Márquez destaca-se sozinho duma plêiade de escritores latino-americanos de que não é lícito deixar de citar Júlio Cortázar e Ernesto Sábato (argentinos), Mário Vargas Llosa e Manuel Scorza (peruanos), Juan Rulfo e Carlos Fuentes (mexicanos), Alejo Carpentier e José Lezama Lima (cubanos), Miguel Angel Astúrias (guatemalteco, outro Nobel), Juan Carlos Onetti (uruguaio), Augusto Roa Bastos (paraguaio) e mesmo o brasileiro Jorge Amado - para só citar os ficcionistas mais conhecidos. Ora, estes nomes não são aqui chamados apenas para arregimentar à pressa o meu «bando de pardalitos» ou para tomar a nuvem por Juno: todos eles assinaram obra de vulto, guindando-se, nalguns casos, a um nível de projecção que nenhum escritor português vivo logrou ainda alcançar (objectiva e subjectivamente, entenda-se). Mesmo se os pudéssemos minimizar, seria pouco honesto não deixar escrito que entre eles se encontram autores de obras acerca das quais não parece que possa haver duas opiniões. Não escondo as minhas preferências: Os Passos Perdidos (Carpentier), Heróis e Túmulos (Sábato), Todos os Fogos o Fogo (Cortázar), Pedro Páramo (Rulfo), Conversa na Catedral (Llosa), Paradiso (Lezama Lima), Rufam Tambores por Ranças (Scorza) e o recentíssimo O Velho Gringo (de Fuentes). Não duvido de que Jorge Luis Borges seja a sobrenatural e patriarcal figura, senão mesmo o grande precursor do imaginário deste grupo. Mas a obra que nos deixou tem expressão única, está contida numa mitologia litúrgica muito própria. O relativo «despaisamento» físico das suas histórias, a sua poesia, o tecido dominante das suas abordagens e referências culturais, situam-no numa rota de complexidade que talvez permita considerá-lo como o último dos clássicos - e não é essa, bem entendido, a figura retórica mais apropriada a Garcia Márquez. A questão de fundo é que esta relação Borges-Márquez tem de ser desdramatizada, sobretudo quando posta em termos de oposição nominal. Se não é probo comparar livros entre si, menos ainda o será que o mesmo se faça com os seus autores. A literatura, aliás, não tem semelhança com as arenas dos circos nem com as corridas de bicicleta...
No mundo pessoal e na obra da maioria dos escritores latino-americanos, a experiência jornalística é um dado decisivo da própria avaliação estética, sobretudo se referente à narrativa. No caso de Márquez, essa experiência é geralmente interpretada como a marca mais notória (e mais notável) da sua forma de escrita. Há mesmo quem sustente que ele é, acima de tudo, um prosador estilizado à força ou a coberto dessa disciplina. Segundo esses, os seus livros dificilmente iriam além dum superior exercício de «reportagem» - com excepção dos factos e das histórias criadas ao redor ou mesmo à margem dos eventos reais. Mesmo que assim fosse, estaríamos ainda em presença duma muito afortunada fusão de duas linguagens distintas, as quais identificam, se bem que em margens opostas, «jornalismo» e «literatura». Para mim, é questão de somenos. Se é visível, na prosa de Márquez, o apelo da clarividência e da objectividade «jornalísticas», resulta muito claro também que o mundo compósito da sua criação incorre por inteiro nas exigências estéticas da Grande Literatura. A esse estilo dúctil e enérgico assistem um imaginário dificilmente catalogável, uma exuberância adjectiva que se socorre da função poética e da música, e uma retórica literária que não se esgota na forma melodiosa nem no que de melhor possa ter subsistido das sinfonias barrocas. Se tal não bastasse, impunha-se o exame mínimo ou uma chamada de fundo ao conteúdo social e político dos seus livros.
Trata-se duma obra não muito extensa, repartida por livros de contos, novelas, romances e textos periodísticos, na qual se apresentam, nítidas, as separações e fracturas entre os enredos e temas mais significativos - mas onde é perfeitamente observável uma grande unidade formal. Cem Anos de Solidão, geralmente considerado a sua obra-prima, fica na História da Literatura como um dos mais expressivos murais, entre o fulgor e a glória das grandes obras que registam e interpretam a fundo a condição humana. Enquanto pólo de irradiação do chamado «ciclo do Macondo», da sua gravitação participam, pelo menos, obras como Ninguém Escreve ao Coronel e Os Funerais da Mamã Grande, pois que nos introduzem na alegoria e no mundo mágico dum lugar e do seu povo. Não é seguro que a produção deste ficcionista possa ou deva ser distribuída por «fases» distintas. Os contos de O Enterro do Diabo, O Veneno da Madrugada e mesmo de A Incrível e Triste História da Cândida Erendira e da Sua Avó Desalmada podem considerar-se produções intervalares ou até escritas «cinematográficas», um pouco como as que nos acontecem sob impulsos precisos, entre romances ou obras de maior fôlego narrativo. Mas se a esta arrumação um tanto arbitrária não cabe a noção tradicional de «fases» (porque nela não está implícita qualquer avaliação sobre o «crescimento» do autor), já talvez se possa arriscar que alguns dos citados livros lhe tenham acontecido como esboços ou ensaios para os romances que posteriormente escreveu. Que Cem Anos de Solidão é o delta natural das ficções anteriores (de onde o que mais importa reter é a construção progressiva da geografia imaginária de Macondo), disso já ninguém duvida. Mas há qualquer coisa que se prolonga, sempre de livro para livro, sem que nada se repita: as obsessões mitológicas, as situações absurdas, a construção dum mundo sempre original e sempre primordial. No fundo, é na constelação desses mundos que residem a soma e o produto desse universo ficcionado, onde cada livro ou cada uma das suas histórias funciona como uma porta aberta sobre o infinito. Perseguindo um pouco esta lógica, parece óbvio que a obra deste escritor progride no sentido dos espaços que progressivamente se alargam. No fim do «ciclo do Macondo», a aldeia deixa de ser o huis-clos social dum universo ficcionado pelos símbolos; passa a haver uma situação geográfica que coincide com todas as Caraíbas. Desse movimento ascensional vem a nascer o seu romance mais «literário» - O Outono do Patriarca (1975). Digo mais «literário» porque há nele um evidente ajuste de contas com os poderes mundanos (personificados num ditador velhíssimo e aparentemente imortal) e um profundo investimento no trabalho da escrita. Essa autêntia «ópera» literária, em torno da figura do ditador sul-americano, dos seus caprichos e presságios, da sua agonia despótica e promíscua, retira todos os argumentos quanto à eventualidade do seu estilo experimental. Depois, dá-se uma nova rotação nas suas pesquisas sobre a fatalidade do destino humano, e eis que a novela de 1981, Crónica de Uma Morte Anunciada, materializa uma experiência tão modelar e duma tal intensidade narrativa como só talvez a de Cem Anos de Solidão. Por último (e como adiante se verá), O Amor nos Tempos de Cólera (de 1985) é um romance de síntese, onde se fundem o fulgor imagístico, o difícil triunfo do amor, as aventuras e desventuras da própria felicidade humana - além da sublimação da Mulher e dum olhar filosófico sobre a velhice.
A ideia que de momento me ocorre para caracterizar o estilo de Gabriel Garcia Márquez, sendo pouco ortodoxa, pouco deve às percepções e ao convénio das terminologias literárias: a energia. Entendo por isso a constante mobilização de todos os recursos da euforia verbal, que neste caso se traduz numa prosa velocíssima, caudalosa, pejada de imagens e magias, e dotada até dum ritmo frásico próximo da vertigem. A coexistência total das mais concretas realidades das Caraíbas com o tom efabulatório dos seus «prodígios» sobrenaturais põe-nos em presença dum mundo exótico, algo bíblico, ao qual assistem ora a primitividade dum novo Génesis, ora a finitude trágica do Apocalipse. De resto, é no próprio movimento desses dois pêndulos que oscila toda a filosofia da fatalidade que condiciona e explica o destino do homem sul-americano, na perspectiva de Márquez. Para além do notório eco bíblico, só o surdo clamor das epopeias clássicas - muito embora sem a sua moral, ou mesmo na sua subversão. Garcia Márquez apoia-se no texto bíblico e no texto clássico não para os parafrasear, mas para sobre eles produzir um discurso eminentemente libertário. Porque existe uma tensão interior, até certo ponto recíproca, entre esses marcos culturais e a espiritualidade remota da cultura índia, na qual se apoia o imaginário do autor.
Cem Anos de Solidão, por um lado, e O Outono do Patriarca, pelo outro, trocam fronteiras entre si: do lado de lá, clamam os pobres, o povo e os principais da aldeia de Macondo; do outro lado, agoniza a solidão dos poderosos, dos seus cúmplices e dos seus serventuários. A dupla abordagem da realidade política e social do Continente processa-se tanto pela história como pelo mito (no concerto das suas guerras civis permanentes, nos surtos epidémicos, na miséria miserável dos povos, no fluir sem fim dum tempo imutável, que se transmite de geração em geração, sem a assistência do progresso e da justiça). Há uma voz erguida sobre o silêncio histórico com que o Mundo emudeceu esses proscritos da Terra. Essa voz inventa os deuses, cria a ilusão do éden, está onde a morte é escura e infinita - mas é também o canto de cisne e o hino fúnebre dos exploradores e dos ricos, e de quantos têm pena de morrer. Essa voz é a do autor, que definiu um dia a solidão como o contrário absoluto da solidariedade, e vice-versa.
Nenhum expediente se me afigura bastante para deixar ao leitor uma noção, ainda que elementar, sobre o perfil das figuras errantes que atravessam os desertos e os livros de Gabriel Garcia Márquez. O que me parece mais seguro, isso sim, é manifestar a convicção de que poucos serão os autores que, com ele, nos forçam a viver, mais do que a ler, os livros. O leitor experimentará sozinho essa «estranheza». Pode ser que lhe aconteça pensar que já por mais duma vez protagonizou, viveu ou sonhou uma outra das suas histórias mágicas. Se não for assim, decerto alguma coisa se perdeu da memória colectiva ou da esperança que normalmente assiste, aproxima ou salva a existência dos povos...
O Amor nos Tempos de Cólera é, possivelmente, o livro menos «político» de Gabriel Garcia Márquez, e também aquele em que as emergências do fantástico nos são transmitidas duma forma mais diluída (e menos obsessiva). Nele, a crónica social da região das Caraíbas não vai muito além das menções ou motivos das guerras civis; descreve um surto de cólera do qual resulta o cenário da morte quotidiana, a qual marca e assinala o tempo sem o auxílio do calendário e dos relógios. O quotidiano das personagens, movendo-se à frente desse cenário, acaba por ser a medida e o sentido de todas as coisas: a pobreza e o luxo, a solidão e a festa, a glória e a miséria dos dias. O que melhor o romance comporta é uma atitude filosófica elementar: humaniza, através do amor, a morte inevitável dos homens, usando das premonições fantásticas que já lhe conhecemos de outras escritas; tenta suprir o outono da vida com a promessa duma segunda paixão amorosa - e sobretudo, como se disse, exalta na Mulher a virtude suprema da vida: a contingência do corpo e dos dias, a eternidade do Homem, o esplendor da sua alegria terrena.
O tempo real do romance ronda um total estimado de sessenta anos, repartidos pelos finais do século passado e pelas primeiras décadas do presente século - tantos quantos os anos da paixão de Florentino Ariza por Fermina Daza, até à realização tardia da sua definitiva união «para a vida e para a morte». Mas esse tempo real aparece organizado pelo romancista duma forma extremamente hábil, bem ao jeito aliás das estruturas romanescas por ele preferidas. A acção é narrada à revelia da cronologia, numa copiosa performance do saber e da mestria de que usa este narrador de O Amor nos Tempos de Cólera. No decurso dessa analepse de grande amplitude temporal, sucedem-se as vicissitudes, as fatalidades, as mudanças etárias das personagens (um pouco, por exemplo, como n’Os Maias, de Eça de Queirós). Acontecem também os sucessos e eventos dum casamento feliz (de Fermina com o médico Juvenal Urbino), de permeio com a atitude mais constante de toda a obra: a reconstituição do mito do feminino, consubstanciado nessa deusa coroada que Florentino Ariza não pode jamais esquecer. A entrega desesperada às mulheres que não têm futuro no seu coração reforça o sentido duma gravitação espiritual em torno dessa única, luminosa, mulher dos seus sonhos.
Uma breve paráfrase da acção da obra, para que dela se captem os mecanismos utilizados na construção da história: no dia em que o octogenário Dr. Juvenal Urbino acaba de ser enterrado, Florentino Ariza apresenta-se em casa da viúva Fermina Daza e reafirma-lhe uma «fidelidade eterna e um amor para sempre». Sobre esse momento tão ansiosamente esperado, haviam decorrido cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias (sic), ou seja, desde aquela hora fatal da juventude em que Fermina decidira repudiá-lo. Nesse tempo, tendo concluído que Florentino não passara nunca duma «sombra» na sua vida, casa com Urbino e apaga da sua memória o antigo apaixonado, de quem vinha recebendo súplicas, hinos plangentes arrancados às cordas do violino, flores e missivas diárias, carregadas de poemas líricos e frases de grande apuro estilístico. No tempo infausto da sua viuvez, vai também a enterrar o refugiado antilhano Jeremiah de Saint-Amour, companheiro de xadrez de Urbino, um sexagenário que decidira suicidar-se com cianureto de ouro, pois jurara que «nunca havia de ser velho».
A acção do romance vem a culminar num fim feliz: Fermina recebe Florentine na sua intimidade, e nasce entre ambos uma espécie de núpcias sublimes a que as viagens intermináveis dos barcos fluviais emprestam a sugestão do retorno ao paraíso perdido. Posta nestes termos, pensar-se-ia que a intriga central da obra estaria circunscrita à paixão obsessiva dum homem que a si mesmo impõe toda a punição interior duma penitência amorosa. É facto que a coita de amor condiciona todos os percursos desse homem, rodeando-lhe o tempo e o espírito duma autêntica saga romântica. A questão, contudo, é mais profunda: Florentino Ariza toma em mãos o seu próprio destino, acreditando que só depende de si merecer de novo a mulher que lhe fora prometida na juventude. Na travessia paciente desse deserto de cinquenta e um anos, Ariza oferece a si mesmo a contrapartida dum verdadeiro holocausto platónico, com toda a envolvência duma atitude de contemplação e esperança que chega a ser superior à própria arte de viver.
Além disso, Florentino assume, à margem do casamento feliz de Fermina com Urbino, uma função essencialmente picara. Sem revolta nem ciúme, assiste de lado ao triunfo dessa vida conjugal; incorre nas obsessões da ascensão social (só para merecer a amada) e jura-lhe de longe uma fidelidade de monge profano - não obstante envolver-se com mulheres vindas das outras solidões, com o arroubo juvenil das colegiais e com os equívocos do femeaço mais disponível. Ao fim e ao cabo, isso significa que Florentino aceita o desafio da peregrinação pelo labirinto dessa paixão certo de que só Fermina poderá salvá-lo.
A estrutura circular deste romance, com o retorno da acção principal à cronologia do tempo, é talvez o elemento, mais poderoso da recuperação desta memória, dada ao longo dum flash-back de quatrocentas páginas vertiginosas, compostas numa espécie de pauta estilística e musical, da qual não estão sequer ausentes o humor, a poesia e a vertigem das imagens. Aí recupera o leitor o ritmo encantatório duma escrita que não tem conhecido imitadores à altura. A carga simbólica coexiste em pleno com o realismo mais imediato, por vezes tão atroz que nos atinge de frente, e passa também a pertencer-nos. O Amor nos Tempos de Cólera cifra, ainda, um apelo desesperado à vida contra a morte; ao amor total contra a solidão; à docilidade do destino contra as suas fatalidades frias e inexoráveis. É um livro para viver. Por cima da sua fábula quase maravilhosa, flui e desliza uma escrita de mestre. Entre a epopeia e o seu contrário absoluto, fica a odisseia dum homem, o repositório dos seus males e enigmas de estar vivo e não ser amado; fica este baixo-relevo dum tempo e duma cidade portuária, fendida ao meio por um rio e aonde chegam os bramidos dos temporais no mar das Caraíbas; e fica sobretudo a sensação (para quem lê) de que o Mundo acaba de ser salvo pelos seus náufragos: eles fogem das ruas escuras, entram alegremente nos navios que sobem e descem os rios.
Gabriel Garcia Marquez
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