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Series & Trilogias Literarias
A chuva caia de forma impiedosa. Sua força natural parecia um mero complemento a tormenta que dominava meu coração.
Sentado na lanchonete, volvi o olhar para a janela. O aguaceiro parecia um reflexo da minha alma.
Chamo-me Diego, tenho vinte e dois anos, e estudo física numa faculdade no interior de Minas Gerais.
Sou o tipo de cara tranquilo, cuja vida sempre correu num ritmo pacato e monótono. Não que isso fosse ruim, ao contrário, era exatamente o tipo de vida que queria para mim.
Conheci Amanda na infância. Éramos os melhores amigos na escola, passamos para a mesma faculdade, e resolvemos morar juntos, dividindo o “apê” porque assim racharíamos as contas e teríamos um ao outro para nos amparar.
Fora que nos dávamos muito bem. Viver com Amanda era como viver numa eterna fonte de divertimento.
Não nos apaixonamos a primeira vista, nem a segunda. Simplesmente, um dia aconteceu. Amanda, de repente, ficou visível aos meus olhos da alma. Ela sempre estivera ali, mas era como se eu a estivesse vendo realmente pela primeira vez. Aconteceu após uma bebedeira quando um ex-namorado dela foi flagrado transando com outra.
Ela terminou aquela noite nos meus braços, e as noites seguintes, durante dois anos, teve o mesmo destino.
Estava escrito, desde sempre. Nós apenas não havíamos percebido antes.
Voltei o olhar para os cadernos. Bebi um gole do café, enquanto organizava algumas anotações e cálculos.
Os números pareceram sumir enquanto a imagem de Amanda surgia na minha mente.
Ela havia voltado para nosso estado natal havia cerca de três meses. Nós não havíamos terminado, nem nada do tipo. Simplesmente Amanda não conseguia mais olhar para mim.
— Olá. Estava te procurando!
O aviso foi dado por uma colega, Patrícia. Sorri para ela, enquanto retirava um tanto dos livros na mesa da lanchonete, para dar-lhe espaço para colocar sua mochila.
— Estava?
— Hoje vai passar um super filme no cinema e...
— Ah — a interrompi, rapidamente. — Não tem como eu ir. Você sabe... época de provas.
Ela assentiu, gentil.
Eu gostava daquela faceta nas mulheres que me cercavam. Sempre eram doces.
— Hum, Diego... — Ela pareciabuscar as melhores palavras . — Você tem que viver —murmurou, e aquela frase mexeu comigo.
Não tem como um cara como eu viver normalmente depois do que aconteceu com Amanda.
Até porque, sequer Amanda vivia...
Três meses antes, ela estava no campus para estudar para uma prova, quando foi atacada na saída da biblioteca.
Já era tarde da noite, e ninguém ouviu seus gritos. O maníaco foi pego um tempo depois. Amanda não havia sido sua primeira vítima, e ele já era procurado por outros três estupros.
Nunca vou esquecer-me do seu olhar confuso no hospital, enquanto tomava o coquetel anti HIV, e as drogas que evitavam uma gravidez.
O rosto assustado, o tremor nas mãos, o completo horror em seu olhar. Eu tentei tocá-la, abraçá-la, implorar por perdão por não estar lá quando ela precisou, mas Amanda me empurrou e pediu para que eu me afastasse.
Ela ainda ficou três dias no apartamento, tomando banhos frequentes, e fugindo da nossa cama, até que, numa manhã, após voltar de uma aula, encontrei o apartamento vazio e uma nota na geladeira.
Ela queria um tempo, e havia voltado para casa.
— Se der para ir, eu te ligo, ok? — disse a Patrícia, num sorriso que deixava claro a mentira.
— Vai ligar, é? Para quem?
O som fez estremecer. Volvi o olhar, e encarei a minha namorada. Havia cortado o cabelo, pintando-o de vermelho. Parecia necessitar fugir da imagem da garota que havia ido embora.
— Amanda... — murmurei.
Ela sorriu. Parecia sem graça.
— Oi, a Amanda que ele falou sou eu — ela estendeu a mão para Patrícia que aceitou o cumprimento.
Elas nunca haviam se visto, mas percebi a simpatia instantânea. Todos no campus sabiam o que havia acontecido a minha namorada, e Patrícia, provavelmente, apiedava-se dela.
— Bom, vou deixá-los — minha colega se levantou, e logo se foi.
Amanda sentou no lugar dela. Admito, eu estava um tanto surpreso, não sabia que ela havia voltado.
— Eu não ia ligar — avisei, querendo evitar pensamentos errôneos.
— Eu sei. — ela sorriu. — Eu vim buscar algumas coisas... — completou. — Então, se quiser ligar, Diego...
Aquela frase me chocou.
— Amanda, você precisa voltar a sua vida normal!
Foi minha defesa. A Amanda que eu namorava jamais me diria para ligar para outra.
— Isso não vai acontecer.
— Olha — estendi a mão, tentando tocar na dela. Logo ela evitou o toque. — Sou eu, o Diego. O seu Diego — tentei lembrá-la. — Sou seu amigo desde que você brincava de bonecas e me fazia brincar também, fazendo os garotos do bairro me chamarem de “bichinha” — ri. — Fui seu melhor amigo na adolescência e, modéstia à parte, seu melhor namorado na fase adulta. Então, será que pode raciocinar...
— Meu voo sai às 18 horas — ela explicou. — Só vim pegar o resto das coisas...
Era nítido que não haveria nada além daquilo.
— Eu vou te levar para o apartamento — disse, recolhendo minhas coisas.
Ela agradeceu, e não recusou a carona. Em nenhum momento fez menção de me tocar, ou de entender a minha posição.
E eu? Ah, eu me sentia o mais inútil de todos os homens. Não conseguia culpá-la por me renegar, porque, afinal de contas, era pouco. Eu merecia mais. Merecia seu completo desprezo.
A chuva piorou muito. No trajeto, várias ruas estavam alagadas. Liguei o rádio, tentando quebrar o silêncio que tomava conta do carro, quando a voz do interlocutor avisou que os voos estavam cancelados até segunda ordem.
— Vai precisar ver os próximos horários com a companhia aérea — comentei, tentando parecer indiferente.
Mas, não estava. Nunca fui muito crente em Deus, mas senti que era um sinal divino. Era Deus me dizendo para lutar pela mulher que eu amava, porque naquela noite ela nada poderia fazer além de ficar ao meu lado.
Amanda nada disse, absorvida em seus próprios pensamentos, demônios internos que não se mascaravam no semblante aterrorizado.
— Sou eu, o Diego, lembra? — murmurei, ao estacionar.
Ela nada tinha a temer de mim, naquela noite, e nem em nenhuma das que viriam a nossa vida.
A garagem do condomínio não era coberta e descemos correndo em direção ao prédio. Chegamos ensopados na área inferior.
— Odeio chuva — ela comentou, banalmente.
Mas, nada havia de banal no comentário.
— Você amava a chuva.
— Estava chovendo — contou. — Naquela noite, lembra?
E caminhou em direção ao elevador.
Subimos em silêncio.
— Você quer café? Chá? Água?
Tentei ser solícito assim que cruzamos a porta. Queria que ela se sentisse acolhida.
— Não, obrigada.
— Eu tenho pizza na geladeira. Vou colocar no forno, enquanto isso você pode tomar um banho, se quiser.
Ela ficou cerca de quinze minutos no chuveiro. Quando saiu, enrolada em uma toalha, eu senti a boca secar.
— Eu não tenho mais roupas aqui — se explicou. — Poderia me emprestar uma camiseta?
Assenti, correndo até o roupeiro.
Muito do que eu precisava fazer na luta frenética em manter Amanda para mim era controlar a vontade desesperada de tê-la novamente.
Eu queria afundar o passado terrível que ela revivia a cada segundo na mente que não descansava.
Fui tomar banho. Quando retornei, encontrei-a sentada ao lado da janela, encarando a chuva com o olhar perdido.
— Você ainda gosta de mim?
A questão dela era tão firme, determinada e incrivelmente corajosa que eu senti lágrimas nos meus olhos.
Porém, por alguns segundos, parecia um adeus.
— Vai me dizer para parar de gostar?
— Você é um cara legal e bonito — ela elogiou, o olhar permanecia fixo na cidade ao longe. — Você tem direito de...
— Pare de falar besteira, Amanda.
— Eu parti para reconstruir os cacos que aquele homem me tornou. Três meses depois, eu ainda não me vejo como uma mulher normal, uma vítima.
— O que quer dizer?
— Ele estava na biblioteca, sabe? Perguntou-me de alguns livros, e me elogiou quando eu comecei a falar de José de Alencar.
Aquilo era natural. Amanda estudava literatura e era uma fã convicta do romance Senhora.
— Fico revivendo essa conversa uma infinidade de vezes, tentando descobrir se eu sorri demais, se eu disse qualquer coisa que indicou a ele que eu pudesse estar interessada...
— Amanda... — tentei objetar, mas ela prosseguiu.
— Não consigo me perdoar pelo que fiz a mim mesma.
Sabia que ela temia contato físico, mas corri até ela e a abracei com força.
Imaginei que ela fosse gritar, tentando me expulsar dos seus braços, mas logo fui envolvido pelo contato pueril.
— Você se lembra da primeira vez que rolou algo além entre nós? — perguntei a ela. — Quando percebemos que estávamos gostando um do outro?
Amanda assentiu.
— Você me disse claramente que me queria. Foi uma escolha sua, e como homem, eu só a tomei após isso. O monstro que fez aquilo com você não é como eu, nem como os homens que conhecemos. Você consegue ver seu pai, seu irmão, um dos seus primos, forçando uma mulher enquanto ela grita?
Amanda negou.
— Amanda, você é a vítima. Por favor, precisa entender isso. Precisa superar isso. Não pode abandonar a faculdade, nem seus projetos e sonhos. Não pode me deixar, porque precisa de mim para sair desse mundo sinistro que entrou.
— Te condenar a uma mulher que mal consegue se tocar?
— Eu serei paciente — afirmei. — Se você me amar, se estiver ao meu lado, eu saberei esperar.
Ela negou.
— Fugir não é a solução — dei o ultimato.
— É a coisa mais fácil a se fazer...
— E é isso que você quer? E nossos planos? Formarmo-nos, casarmos, e depois termos dois filhos e uns três cachorros num quintal grande?
Ela riu. Aqueles projetos murmurados entre os lençóis sempre lhe traziam sorriso aos lábios.
— Amanhã você vai pegar aquele avião, mas será para voltar para casa apenas para fazer as malas e trazer tudo de volta para cá. Entendeu?
Ela assentiu. Enfim, eu havia conseguido tomar as rédeas da situação. Poucas vezes na vida me senti tão vitorioso.
— Vamos comer pizza? — ela indagou, as lágrimas ainda nos olhos, mas uma tranquilidade gentil na voz.
Deitamos na mesma cama. A chuva torrencial parecia não dar trégua, mas Amanda aceitou meu abraço confortador.
Fazia muito tempo que eu não dormia com o nariz enfiado nos cabelos perfumados. Sentia tanto a falta dela...
Alguns minutos se passaram, até notar sua mão tocando a minha. Ela segurou meus dedos, enquanto o olhar, vislumbrado nas sombras, parecia brilhar.
— Devagar, okay? — ela pediu, e eu não entendia direito o que ela desejava. — Quero voltar a viver, mas precisa ser devagar...
Senti lágrimas nos olhos ao entender o tanto de confiança que ela depositava em mim.
Ela queria que eu a tocasse. Não queria sexo, queria apenas o toque. E ela sabia que eu jamais me descontrolaria e a assustaria.
Levei meus dedos até seu centro feminino. Enfiei a mão por baixo da calcinha e acariciei os grandes lábios envoltos por pelos úmidos.
Enquanto o dedo médio adentrava, devagarinho, acariciando o corpo delicado, ela fechou os olhos, respirando baixo, sentindo a sensação com desprendimento.
Aproximei-me e beijei seus lábios de leve. A boca abriu-se para mim, aceitando a carícia sem pudores.
Haveria um longo tempo para nos curar da dor, mas havia disposição entre nós para fazermos isso aos poucos.
Amanda passou a movimentar o quadril contra meus dedos, e eu colei minha testa na dela, deixando-a livre para sentir prazer novamente.
Aquele momento era dela. Unicamente dela. E ela o teria, custasse o que custasse.
— Diego! — gritou. — E chegou ao clímax.
Havia sido rápido, mas a urgência era compreensiva.
Beijei sua testa, e a puxei para meus braços. Logo, ela adormeceu.
Aquecidos pelo amor, nós dois superaríamos aquela dificuldade. Eu tinha certeza disso.
Josiane Biancon da Veiga
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