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O ser que apresentamos aqui, vivendo na solidão, atormentado pelo sentimento da sua deformidade e pela convicção de ser alvo de insultantes zombarias dos seus semelhantes, não é completamente imaginário. O autor recorda-se de ter existido há muitos anos um homem cujo carácter lhe serviu de modelo. Este desgraçado chamava-se David Ritchie e era natural de Tweeddale. Era filho de um operário das pedreiras de Stobo. É provável que a deformidade fosse de nascença, embora ele muitas vezes a atribuísse aos maus tratos recebidos durante a infância. Foi criado por um fabricante de escovas, em Edimburgo, e errou de cidade em cidade, trabalhando neste ofício, constantemente despedido pelos patrões, devido à desagradável atenção que a sua singular deformidade de corpo e de rosto chamavam sobre ele. O autor supõe ter ouvido dizer que chegou a Dublin.
Farto de ser alvo de gritos, troças e insultos, David Ritchie resolveu, imitando o gamo que o caçador separou do bando, procurar refúgio na solidão, onde pudesse viver sem contactos com o mundo que o esmagava com a sua maldade. Com esse intuito estabeleceu-se num cantinho de terra bravia e pantanosa, num cômoro da herdade de Woodhouse, no vale solitário da pequena ribeira de Manor, em Peebles-shire. As raras pessoas que por ali passaram, ficaram surpreendidas e algumas mais supersticiosas, alarmadas ao verem um ser tão estranho como Bowed David - David o torto - empregando a sua actividade numa tarefa que elas seriam incapazes de realizar, isto é, a construção de uma casa. A cabana era muito pequena, mas as paredes, assim como o jardim que a rodeava, demonstravam o desejo ambicioso de solidez, porque eram feitas de grandes pedras e de molhos de erva. Mais ainda, algumas das pedras colocadas nos ângulos eram tão pesadas que as pessoas que as viam não podiam conceber como tinha sido possível, a um ente como aquele estranho arquitecto, erguê-las a semelhante altura. De facto, David tinha sido auxiliado pelos viajantes que passavam e pelas pessoas atraídas pela curiosidade e, como cada um deles ignorava até que ponto ele tinha sido auxiliado pelos outros, o espanto de cada um não fazia senão aumentar.
O proprietário do terreno, o falecido sir Naesmith, baronete, passou por acaso junto da singular construção, que tendo sido feita sem qualquer direito, licença pedida e obtida, era precisamente "uma bela casa construída em terreno alheio" como diz Falstaff, e desta forma o pobre David poderia muito bem ter ficado sem a casa por a ter construído num terreno que não era seu.
A descrição de Elshender de Mucklestane-Moor é geralmente considerada como o perfeito retrato, nada exagerado, de David de Manor-Water. A sua altura não chegava a ter três pés e meio, visto poder conservar-se de pé no limiar da sua porta, que tinha justamente essa medida. Os pormenores relativos à sua pessoa e carácter foram extraídos do Scots-Magazine de 1817 e hoje sabe-se que foram fornecidos pelo sábio sir Robert Chambers, de Edimburgo, que recolheu com muito carinho todas as tradições de Boa-Cidade e publicou outros trabalhos com os quais contribuiu larga e agradavelmente para os nossos conhecimentos das tradições populares. Nasceu no mesmo distrito que David Ritchie, e, por consequência, pôde, melhor do que ninguém, reunir diversas anedotas a seu respeito.
"O seu crânio - diz o autor - que tinha uma forma oblonga e desproporcionada, era tão forte que podia arrombar o batente de uma porta ou o fundo de um barril. O riso era horrível - afirma - e a voz aguda e discordante condizia com as outras singularidades.
O fato nada tinha de extraordinário. Quando saía usava um chapéu de abas e quando estava em casa uma espécie de capuz ou barrete de dormir. Não usava sapatos porque não poderia adaptá-los aos pés, que se pareciam mais com barbatanas de peixe. Envolvia-os, assim como às pernas, em trapos. Quando andava, apoiava-se num pau ou estaca muito mais alto do que ele. Os seus modos eram estranhos a muitos respeitos e indicavam um espírito que condizia com a sua desagradável pessoa. Tinha um carácter invejoso, misantròpico e extremamente irritável. A consciência da sua deformidade perseguia-o como um fantasma. Os insultos e zombarias a que essa deformidade o expunha envenenaram-lhe o coração com sentimentos de ferocidade e amargura que, sob outros aspectos, a natureza não lhe tinha dado mais do que aos outros homens.
Detestava as crianças, devido à sua tendência para insultar e atormentar. Com estranhos era reservado, casmurro e até brutal; e, embora não recusasse auxílio ou esmola, era raro demonstrar reconhecimento. Mesmo para os seus maiores benfeitores, para aqueles que gozavam da sua benevolência, tinha frequentes caprichos e ataques de ciúmes. Uma senhora que o conheceu desde pequeno e nos forneceu muitos pormenores da vida de David, afirmava-nos que, embora ele demonstrasse grande respeito e dedicação pela família de seu pai - o máximo que se podia esperar dele - impunha-se grande tacto e circunspecção na forma de proceder com David. Um dia, indo visitá-lo com outra senhora, levou-as ao jardim e mostrou-lhes com orgulho e boa disposição os canteiros e bordaduras arranjados e espalhados com gosto. De súbito, pararam diante de um canteiro plantado com couves um pouco roídas pelas lagartas. David, notando que uma das senhoras sorria, assumiu o seu aspecto mais duro e feroz, precipitou-se para as couves e destruiu-as com pancadas do pau a que se encostava, gritando ao mesmo tempo "Detesto as lagartas, porque elas troçam de mim."
Outra senhora, que era também um dos seus antigos conhecimentos, involuntariamente ofendeu David numa circunstância semelhante. Depois de a ter levado ao jardim, caminhando na sua frente, voltou-se para lhe relancear um olhar desconfiado e supôs tê-la visto escarrar. Então, gritou com extrema ferocidade: "Serei eu um sapo, mulher, para me escarrares em cima?" E, sem querer ouvir a resposta nem desculpas, expulsou-a do jardim, cobrindo-a de imprecações e injúrias. Quando se irritava com pessoas que não lhe mereciam grande respeito, a sua misantropia manifestava-se em palavras e algumas vezes com actos grosseiros e nessas ocasiões empregava uma linguagem de imprecações e ameaças as mais extraordinárias e selváticas.
A Natureza demonstra nas suas obras certo equilíbrio entre o bem e o mal e não existe posição por mais miserável que seja que não tenha uma fonte de prazer para suavizar a sua miséria. Aquele pobre homem, cuja misantropia tinha como fundamento a noção da sua extraordinária deformidade, também saboreava os seus prazeres. Obrigado a viver na solidão, tornou-se um admirador das belezas naturais. O seu jardim, cultivado com o maior carinho, e que de um bocado de charneca e de pântano se transformara num solo produtivo, era para ele motivo de orgulho e de delícias; mas encantavam-no igualmente outras belezas: o declive verdejante de uma colina, uma nascente cristalina, o labirinto complicado de um bosque agreste, eram, dizia ele, coisas que contemplava com prazer durante horas seguidas. Talvez por isso, comprazia-se em ler as poesias pastorais de Shelton e algumas passagens do Paraíso Perdido. O autor, se vivesse, poderia ouvi-lo repetir em voz discordante a famosa descrição do Paraíso terrestre, cuja beleza David parecia sentir. Os seus outros estudos eram de género diferente e incidiam, principalmente, sobre a polémica religiosa. Nunca ia à igreja da paróquia, o que o tornava suspeito de opiniões heterodoxas, embora fosse provável que a repugnância nascesse do receio de expor a deformidade aos olhares de numerosas pessoas. Falava da vida futura com um sentimento de profunda piedade e por vezes com lágrimas nos olhos. Não podia admitir a ideia de que os seus restos "e confundissem com o lixo do cemitério, nome que dava aos restos dos comuns dos mortais; desta forma, com o habitual bom gosto, escolheu, num ponto encantador e agreste do vale onde edificara o ermitério, o local em que repousaria depois de morto. Mais tarde, no entanto, mudou de opinião e acabou por ser enterrado no cemitério comum da paróquia.
O autor deu ao sábio Elshie algumas qualidades que o faziam passar aos olhos do vulgo por um homem dotado de um poder sobrenatural. David Ritchie tinha idêntica reputação, porque alguns dos camponeses pobres e ignorantes, assim como as crianças dos arredores, olhavam-no como uncunny, isto é, mau. Ele próprio não tentava destruir essa crença porque ela dilatava muito as limitadas fronteiras do seu poder e isso afagava-lhe o amor-próprio. Também lhe favorecia a misantropia e proporcionava-lhe meios mais numerosos de inspirar terror e de exercer a maldade. Além disso, o horror aos feiticeiros estava consideràvelmente diminuído naqueles últimos trinta anos, mesmo nos recantos mais selvagens da Escócia.
David Ritchie gostava de se retirar para os sítios mais solitários, principalmente para aqueles que supunham frequentados pelos espíritos e tirava grande mérito da coragem demonstrada nessas ocasiões. De facto, tinha poucas probabilidades de encontrar um ser mais repelente do que ele, mas, no fundo, era supersticioso; e por isso plantara muitos freixos em volta de casa, como protecção certa contra os feiticeiros. Foi talvez por essa razão que ordenou que os plantassem em volta do seu túmulo.
Dissemos que David Ritchie apreciava a beleza natural das coisas. Os seus favoritos eram um cão e um gato, aos quais dedicava grande afecto, e as abelhas, que tratava com cuidado. Nos últimos anos de vida tomou para a sua companhia uma das irmãs, que habitava numa cabana contígua, mas a quem nunca consentiu a entrada em sua casa. Era fraca de espírito, mas não disforme no físico; simples, ou antes, pateta, mas não um carácter rude e fantástico como o do irmão. David não tinha grande afeição por ela, pois isso não lhe estava no feitio, mas suportava-a. Era ela quem provia às necessidades de ambos, vendendo os produtos do jardim e das colmeias. Nos últimos tempos obtiveram pequena pensão, dada pela fábrica da paróquia. Naquele tempo, no estado de simplicidade em que se encontrava o país, todos os que viviam nas circunstâncias de David e da irmã podiam ter a certeza de obter recursos. Bastava dirigirem-se aos mais abastados proprietários e rendeiros e estes logo olhavam pelas suas necessidades, de resto muito moderadas. David recebia muitas vezes dos estrangeiro" pequenos auxílios que nunca pedia, nem recusava, mas pelos quais não se supunha na obrigação de demonstrar reconhecimento. Efectivamente, considerava-se, e com razão, um dos desfavorecidos da sorte, a quem a natureza concedera um título para ser protegido pelos semelhantes e esse título era a deformidade que o privava de se bastar a si próprio pelo trabalho. Além disso, existia no moinho um saco, suspenso em intenção de David Ritchie e aqueles que iam buscar a sua farinha, raramente deixavam de deitar um punhado no saco em intenção do pobre estropiado. Em resumo, David nunca precisava de dinheiro, excepto para comprar rapé, único prazer que procurava e gozava intensamente. Quando morreu, no começo do século, encontraram vinte libras esterlinas escondidas, mania que harmonizava perfeitamente com o seu carácter. Porque ser rico é ter poder e David Ritchie ambicionava o poder acima de tudo, como compensação de ter sido excluído do convívio dos homens.
A irmã sobreviveu até à publicação do conto ao qual esta breve nota serve de introdução. O autor soube com tristeza que uma espécie de simpatia local e a curiosidade manifestada pelo público nesse tempo pelo autor das "Aventuras de Waverley" (1) e outros assuntos dos seus contos, expuseram a pobre mulher a curiosidades e perguntas que lhe desagradaram. Quando a atormentavam com pedidos para dar mais alguns pormenores sobre as singularidades do irmão, perguntava porque não deixavam os mortos em paz; e quando outros lhe pediam informes sobre a sua família, respondia sempre com mau humor e impaciência.
(1)- Vide o volume Nº 32 desta Colecção.
O autor viu a pobre e infeliz criatura no Outono de 1297. Estando então, como ainda hoje tem a felicidade de estar, intimamente ligado com a família do venerando doutor Adam Fergusson, o filósofo e historiador que nessa época residia na casa senhorial de Halyards, no vale de Manor, cerca de uma milha afastada do refúgio de Ritchie, passou ali alguns dias, durante os quais conheceu o singular anacoreta, que o doutor Fergusson considerava uma personagem extraordinária, a quem auxiliava de vez em quando e a quem emprestava alguns livros. Embora os gostos do filósofo nem sempre condissessem com os do anacoreta, como pode calcular-se, o doutor Fergusson considerava-o como homem de grande capacidade, cheio de ideias originais, mas cujo espírito havia sido arrastado para fora das suas tendências naturais e justas, por um excesso de amor-próprio e tenacidade de opinião, mais violentos ainda pela noção do ridículo e do desprezo, o que o tornava vingativo contra a sociedade, pelo menos em pensamento, e de uma misantropia feroz.
David Ritchie, que viveu em total obscuridade, morreu muitos anos antes do autor ter tido a ideia de fazer dele o herói de um romance. Em consequência, tomou-o como modelo do carácter de Elshie de Mucklestane-Moor. O conto devia ter sido mais extenso e conduzido até ao fim com mais arte. Mas um crítico amigo, a quem mostrei a obra, quando ainda trabalhava nela, foi de opinião que a ideia dada por mim do solitário era revoltante e desgostaria o leitor em vez de o interessar. Como tinha razões para considerar aquele a quem consultara como excelente juiz da opinião pública, precipitei a conclusão da história, resumindo num só volume o assunto que poderia dar para dois. Talvez tivesse realizado um trabalho desproporcionado e mal engendrado, tomando o Anão Feiticeiro como assunto.
Há em ti um filósofo, pastor? Como te agradar
SHAKESPEARE
Por uma bela manhã de Abril - embora tivesse nevado abundantemente durante a noite e a terra estivesse coberta por um manto de alvura deslumbrante, com seis polegadas de espessura - dois homens a cavalo chegaram à hospedaria Wallace. O primeiro era alto, robusto, envergava casaco cinzento, usava chapéu de oleado, empunhava um chicote com punho de prata e, por cima das botas, calças grossas à prova do tempo. Montava uma égua possante, cinzenta, de pelagem áspera, mas bem tratada, com sela à burguesa e duplo freio à militar. O homem que o acompanhava devia ser criado. Também montava a cavalo, usava uma espécie de boné azul e uma gravata às riscas. Em vez de botas, meias azuis que lhe chegavam ao joelho. Não usava luvas, deixando ver as mãos enegrecidas, e demonstrava ao companheiro grande deferência e respeito, embora as maneiras deste não indicassem essa superioridade empertigada que em geral a burguesia usa para tratar os criados. Pelo contrário, os dois viajantes entraram ao mesmo tempo no pátio da hospedaria e a última frase da conversa que haviam mantido até ali foi esta exclamação que ambos soltaram: "Deus nos ajude! Se este tempo se prolonga, o que será de nós!" Estas palavras fizeram acorrer o dono da casa, que, auxiliando o primeiro a desmontar, enquanto o moço da cavalariça tomava conta do cavalo, disse ao recém-chegado que tinha muito prazer em vê-lo em Gandercleugh e quase sem respirar perguntou: "Que novidades nos traz dos highlands do Sul?".
- Que novidades? - respondeu o rendeiro - Muito más. Ainda nos daremos por felizes se pudermos salvar as ovelhas; quanto aos cordeiros, teremos de os abandonar aos cuidados do Anão Feiticeiro.
- Sim, sim - acrescentou o pastor - este ano teremos muito que fazer com os mortos.
- O Anão Feiticeiro! - comentou o meu sábio amigo e patrão (1), mr. Jedediah Cleishbotham - que espécie de personagem é essa?
(1) - Estas e outras palavras intercaladas no texto são impressas em itálico para acentuar certos epítetos dados a Jedediah Cleishbotham como desculpa para a sua redundância, que lisonjeia a orgulhosa fraqueza de um coração.
- Com certeza já ouviu falar de Cunny Elshie, o Anão Feiticeiro. Estarei enganado? Todos contam histórias a seu respeito, mas, em minha opinião, não passam de tolices. Não acredito uma palavra.
- O seu pai acreditava - comentou o pastor, em toda a evidência ofendido com o cepticismo do patrão.
- É verdade, Bauldie - replicou este - Mas isso era no tempo das caras negras e nesse tempo acreditava-se em coisas bem singulares. Mas desde que vieram os carneiros de pernas compridas (1) já ninguém dá crédito a essas coisas.
- Tanto pior, tanto pior - respondeu o velho. O seu pai, patrão, já lho disse muitas vezes, ficaria furioso e contrariado se visse a sua velha casa de turfa demolida para fazer barreiras em volta do parque; e o belo freixo rodeado de giestas sob o qual tantas vezes ele gostava de se sentar, embrulhado no seu plaid, para observar as vacas ao descerem do pasto, não ficaria contente ao ver o lindo freixo arrancado por causa da charrua.
- Vamos Bauldie, toma esse copito que o nosso hospedeiro te oferece - disse o rendeiro - e não te atormentes tanto enquanto as mudanças que afligem o mundo não te atingirem.
- À sua saúde, senhores - disse o pastor, despejando o copo e comentando que o whisky era de boa qualidade - Não é a pessoas como eu - continuou depois - que compete ajuizar das coisas, mas, no entanto, sem falar na beleza do freixo rodeado de giestas,
(1) - Os carneiros de perna alta são de raça inglesa e têm lã comprida e macia. Os de perna curta são escoceses e têm lã curta e áspera.
posso afirmar que era excelente abrigo para os cordeiros quando as manhãs estavam frias como hoje.
- Tens razão - disse o patrão - mas sabes que são precisos nabos para as ovelhas compridas e que para os conseguir precisamos de trabalhar a valer com a charrua e a grade. Ficar-nos-ia mal sentarmo-nos debaixo do freixo e contar histórias sobre o Anão Feiticeiro e outras tolices, como se fazia dantes quando criávamos carneiros de perna curta.
- Está bem, patrão - disse o pastor - e os carneiros de perna curta rendiam pouco, segundo penso.
Aqui, o meu digno e sábio patrão declarou que nunca notara diferença material na questão do comprimento das pernas, entre umas ovelhas e outras.
Isto deu ocasião para estrondosa gargalhada do rendeiro e um olhar de espanto do pastor.
- É a lã, senhor, a lã e não o comprimento do próprio animal que lhes dá o nome de pernas curtas ou compridas. Creio que se as medisse, as ovelhas curtas seriam as mais compridas. Mas, nos tempos que vão correndo, é a lã que paga a renda e é muito necessária.
- O que dizes é verdade, meu velho Bauldie. As ovelhas curtas rendem pouco. O meu pai pagava sessenta libras esterlinas pela herdade que hoje me custa trezentas, tudo incluído. (1) Mas não tenho tempo a perder com conversas. Hospedeiro, dà-nos almoço e vê, não esqueçam os nossos cavalos. Tenho de ir a casa
(1) - placks and bawbies, diz o texto, referindo-se a moedas escocesas.
de Christy Wilson para ver se nos pomos de acordo sobre o luck-penny (1) que tenho de lhe pagar pelos cordeiros de um ano. Bebemos seis pichéis quando fizemos o negócio na feira de St. Boswell e não sei como isso foi, mas não conseguimos chegar a acordo nos pormenores, apesar do tempo que levámos. Receio bem que tenhamos de entrar em demanda. Mas escute, vizinho - continuou, dirigindo-se ao meu sábio e digno patrão - se deseja saber mais alguma coisa sobre as ovelhas curtas e compridas voltarei aqui à uma hora para comer a minha sopa de couves. Se lhe interessarem as histórias antigas sobre o Anão Feiticeiro e outras da mesma espécie, pague meio pichel a Bauldie e ele não se fará rogado. Quanto a mim, pagar-lhe-ei um pichel se concluir o negócio com Christy Wilson.
Voltou à hora indicada, acompanhado por Christy Wilson. Tinha concluído o negócio por forma amigável, sem ser precisa a intervenção dos homens de toga. O meu sábio e digno patrão não faltou por causa do prometido tanto ao espírito como ao corpo, embora quanto ao segundo fosse bem conhecido pela sua moderação, e a reunião, da qual fazia parte o hospedeiro, prolongou-se pela noite adiante, sendo os contos e canções regados com grande número de bebidas. O último incidente de que me recordo foi ver o meu sábio e digno patrão escorregar para baixo da mesa justamente quando concluía longa dissertação sobre a temperança e repetia dois versos do Gentle
(1) - Luvas pela conclusão de um negócio.
Shepherd, que muito sensatamente aplicou à embriaguez em vez da avareza:
O homem ajuizado com pouco se deve contentar
O supérfluo só serve para a velhice apressar
No decurso do serão, o Anão Feiticeiro (1) não foi esquecido e o velho Bauldie contou muitas histórias a seu respeito, o que suscitou grande interesse. Segundo parece, quando já tínhamos despejado o terceiro jarro de ponche, chegámos à conclusão de que o cepticismo do rendeiro não era mais do que afectação, pois queria
(1) - O Anão Feiticeiro, hoje quase esquecido, era outrora considerado um personagem temível pelos habitantes dos vales (dalesmen) da fronteira (border), que o acusavam de todos os males que afligiam os seus cordeiros e os rebanhos. Era - diz o doutor Leyden, que o faz desempenhar importante papel na balada intitulada "Cowl of Keeldar - um demónio ou um espírito dos mais malfazejos, um verdadeiro Duergar do Norte. O que contam de mais verdadeiro a respeito desse ser perigoso e misterioso encontra-se numa narrativa feita ao autor pelo eminente arqueólogo Richard Surfees, que vivia em Mainsforth e foi autor da história do arcebispo de Durham.
Segundo essa lenda, muito bem documentada, dois rapazes do Northumberland, durante uma caçada, penetraram nas montanhas e pântanos que se estendem ao longo da fronteira do Cumberland. Pararam para comer alguma coisa num vale ermo, junto de pequeno ribeiro. Depois de terem acalmado o apetite, comendo o farnel, um deles adormeceu. O outro, não desejando perturbar-lhe o repouso, afastou-se sem fazer ruído, no desejo de observar os arredores. De repente, com grande espanto, encontrou-se diante de um ser que não parecia pertencer à espécie humana e era o anão mais horrível que o Sol cobre. A cabeça era tão grande como a de um homem, o que formava tremendo contraste com o corpo, que não devia ter quatro pés. Os cabelos estavam entrançados e assemelhavam-se, pela espessura, aos pêlos do texugo. Quanto à cor, de um castanho arruivado, era parecida com a das flores das giestas. Os membros pareciam robustos e não apresentavam qualquer deformidade, excepto a desproporção extraordinária da sua grossura com a pequenez do corpo. Apavorado, o caçador fixou a horrível aparição até que ela lhe perguntou com voz irada com que direito se encontrava naquelas montanhas para matar os seus pacíficos habitantes. Desorientado, o caçador tentou apaziguar a cólera do anão, oferecendo-lhe o conteúdo da sua bolsa de caça, como o faria ao senhor daquelas terras. A proposta mais aumentou a cólera do anão, que declarou ser dono daquelas montanhas e protector dos animais que se refugiavam na sua solidão, e que tinha horror a tudo quanto resultasse da sua morte ou do seu sofrimento. O caçador humilhou-se diante do espírito irritado, protestando a sua ignorância e jurando-lhe que de futuro se absteria de semelhante intrusão, o que pareceu acalmá-lo. O gnomo tornou-se então mais comunicativo e falou da sua pessoa, afirmando pertencer à raça intermédia entre os anjos e os homens. Acrescentou, o que era absolutamente inesperado, que tinha esperança de participar na redenção da raça de Adão. Convidou o caçador a visitar a sua casa, que ficava, afirmou, muito perto, dando-lhe a sua palavra de que voltaria são e salvo. Nesse momento, porém, ouviu-se a voz do outro caçador que chamava pelo amigo; e o anão, como se não desejasse ser visto por mais alguém, desapareceu na altura em que o rapaz saía do vale para ir ter com ele.
Os que tinham mais experiência nestes assuntos foram de opinião que, se o caçador tivesse acompanhado o espírito, teria, a despeito das lindas promessas do anão, sido morto ou encerrado durante muitos anos nalguma montanha encantada.
Eis a última e mais autêntica narrativa sobre a aparição do Anão feiticeiro.
passar por homem de ideias liberais, isento de preconceitos, como convinha a quem pagava trezentas libras de renda, mas que no íntimo acreditava nas tradições dos seus antepassados. Conforme meu hábito, colhi informações junto das pessoas que viviam na região agreste e pastoril onde se desenrolaram os acontecimentos que vou narrar e tive a felicidade de obter muitos pormenores desconhecidos e que explicam, pelo menos até certo ponto, algumas circunstâncias que o exagero tornara maravilhosas e que a superstição acrescentara à vulgar tradição.
Não haverá outro papel que mais fé convenha senão o de Henrique o Caçador?
Alegres Comadres de Windsor - SHAKESPEARE
Num dos mais remotos cantões do sul da Escócia, separado do país vizinho por uma linha imaginária, prolongada pelos cumes nevados das altas montanhas, um rapaz, chamado Hilbert ou Hobbie Elliot, descendente do velho Martin Elliot de Preakin-Tower, falado em muitos contos e baladas do Border, voltava da caça ao gamo. Estes animais, outrora numerosos naquelas vastas solidões, estavam então reduzidos a algumas manadas, que se escondiam nos seus refúgios, os mais ocultos e inacessíveis, o que tornava a tarefa de os perseguir trabalhosa e difícil. No entanto, muitos rapazes da região se entregavam a este divertimento com ardor, apesar de todos os perigos e canseiras. As espadas conservavam-se nas bainhas havia mais de cem anos, a luta cessara no Border com a pacífica união das duas coroas, no reinado de Jaime I da Grã-Bretanha. No entanto, o país conservava os vestígios do que fora, os habitantes, cujas ocupações pacíficas haviam sido constantemente interrompidas pelas guerras civis do século anterior, ainda não tinham conseguido adaptar-se aos hábitos de uma indústria regular. A criação dos animais lanígeros ainda não fora estabelecida numa escala considerável e a do gado vacum era a principal em todos os vales e colinas. Junto da casa, o lavrador cultivava a quantidade de aveia ou centeio suficiente para as necessidades da família e este género de cultura mal dirigida, e por consequência imperfeita, deixava-lhe, assim como aos criados, bastante tempo livre. Os mais novos empregavam-no, em geral, na caça e na pesca, e o espírito de aventura que noutros tempos dava lugar à pilhagem e à devastação, manifestava-se agora nessas distracções próprias do campo.
Na época em que começa a nossa história, muitos dos rapazes cuja alma era mais elevada do que os outros, aguardavam, com mais esperança do que receio, a ocasião de imitar as façanhas militares dos seus antepassados, cuja narrativa era o principal assunto das suas conversas. A publicação do Acto de segurança da Escócia provocou alarme na Inglaterra, porque dava a entender uma separação entre os dois reinos depois da morte da rainha Ana, a soberana reinante. Godolphin, então à testa do governo inglês, previu que a única forma de evitar a extremidade com que pareciam ameaçados, a de uma guerra civil, era proceder à incorporação dos dois reinos. Como esse tratado foi conduzido, como apareceu pouco durante algum tempo, foram coisas que produziram resultados vantajosos, como se pode deduzir lendo a história daqueles tempos. Para o que nos propomos contar, basta dizer que a Escócia ficou indignada ao conhecer as condições com que a legislatura sacrificara a independência nacional. O ressentimento geral ocasionou as ligas mais estranhas, os projectos mais extravagantes. Os próprios Cameronianos falavam em pegar em armas para restabelecer os Stuarts, que eles consideravam, e com razão, os seus opressores, e as intrigas dessa época apresentavam o estranho espectáculo de papistas, prelatistas e presbiterianos a conspirarem juntos contra o governo inglês, todos eles animados pelo mesmo sentimento, o da convicção de que o seu país tinha sido vítima de uma injustiça. A agitação era universal. E como, em geral, a população da Escócia fora educada no manejo das armas, em seguida ao Acto de segurança encontrou-se preparada para a guerra. Só esperava que alguns membros da nobreza se declarassem, para se mostrar abertamente hostil. É nessa época de confusão geral que começa a nossa história.
O cleugh ou ravina selvática, até à entrada da qual Hobbie Elliot perseguiu o gamo, ficara muito para trás e o rapaz já tinha percorrido grande parte do caminho que conduzia a sua casa quando a noite começou a envolvê-lo. Essa circunstância teria sido indiferente para o experimentado caçador, que poderia percorrer de olhos vendados cada palmo da charneca que tão bem conhecia, se não tivesse anoitecido perto de um sítio que, segundo as tradições da região, gozava de péssima reputação e o indicassem como teatro de aparições sobrenaturais. Em pequeno, o bondoso Hobbie ouvira atento muitas destas narrativas e como nenhum outro ponto de região fornecesse tanta variedade de lendas não havia ninguém mais conhecedor destas espantosas maravilhas do que o Hobbie de Heugh-Foot, pois era assim que designavam o rapaz para o diferençar dos numerosos Elliot que tinham o mesmo nome. Não precisava, por isso, de fazer grande esforço de memória para recordar os espantosos incidentes que se referiam ao vasto terreno inculto que teria de percorrer; e, de facto, recordou-os com tal precisão e rapidez que foi dominado por um sentimento muito próximo do terror.
A charneca solitária tinha o nome de Mucklestane-Moor (Pedra Negra) devido a enorme coluna de granito que se erguia sobre um montículo, quase no centro da charneca, talvez para indicar o local onde algum guerreiro ou guerreiros dormiam em paz o seu último sono, ou como recordação de algum combate. De resto, a verdadeira causa da sua existência estava esquecida e a tradição, tão pronta a inventar uma ficção como cuidadosa em conservar uma verdade, tinha substituído essa causa por uma lenda suplementar, fruto da sua própria imaginação, e que Hobbie logo recordou. O terreno em volta da coluna estava juncado de grandes blocos do mesmo granito, que, pela forma e modo como estavam dispersos pela charneca, eram vulgarmente chamados Os Patos Cinzentos de Mucklestane-Moor.
A lenda explicava essa forma e esse nome com a catástrofe ocorrida a uma feiticeira das mais temíveis que noutros tempos frequentara aquela região montanhosa, fazendo abortar as ovelhas e as vacas e cometendo toda a espécie de maldades em geral atribuídas a esses seres malfazejos. Era na charneca que costumava reunir as assembleias diabólicas com as suas irmãs em feiticeiria. Mostravam ainda os círculos traçados na charneca, dentro dos quais a urze e a erva não cresciam; o solo estava, por assim dizer, calcinado pelos pés ardentes dos espíritos infernais.
Uma vez, a feiticeira foi obrigada a atravessar a charneca, empurrando diante de si um bando de patos que tencionava vender vantajosamente numa feira vizinha, pois sabe-se muito bem que o diabo, por muito liberal que se mostre na concessão dos seus poderes de fazer mal, é pouco generoso e deixa os seus aliados na necessidade de fazerem os mais humildes trabalhos para proverem à sua subsistência. O dia ia já muito adiantado e o facto de obter preço vantajoso pelos patos dependia de chegar à feira antes dela acabar. Mas os patos, que até aquele momento a tinham precedido em boa ordem, mal atingiram o vasto campo intercalado por espaços pantanosos e poças de água, dispersaram para todos os lados para mergulhar no seu elemento favorito. Irritada com a obstinação que opunham a todos os esforços que fazia para os reunir e não se recordando dos termos precisos do contrato pelo qual o espírito maligno era obrigado a obedecer às suas ordens durante certo período, gritou: "Diabo, que nem eu nem os meus patos nunca mais possamos sair daqui!" Mal estas palavras foram pronunciadas, por uma metamorfose tão rápida como as mencionadas no Ovídio, a feiticeira e o rebanho foram transformados em pedra; o demónio que ela servia era rigoroso cumpridor das fórmulas do contrato e aproveitara com avidez a ocasião de arruinar completamente o corpo e alma da feiticeira, obedecendo à letra às suas ordens. Diz-se que quando ela teve a percepção da transformação que ia operar-se, dirigiu estas palavras ao pérfido demónio: "Duplo traidor! Há quanto tempo me prometeste um vestido cinzento e agora dás-me um que durará por toda a eternidade!". As dimensões da coluna e o tamanho das pedras eram muitas vezes citadas como prova do tamanho das mulheres e dos patos dos tempos antigos por todos aqueles que elogiam o passado e se comprazem na opinião de que o género humano vai degenerando gradualmente.
Todos estes pormenores ocorreram ao espírito de Hobbie à medida que ia atravessando a charneca. Recordou que depois da catástrofe todos os seres humanos evitavam passar por ali, pelo menos ao anoitecer, pois consideravam o local como refúgio dos kelpies ou spunkies, e outros demónios, que nos tempos antigos também compareciam nas assembleias diabólicas das feiticeiras e mesmo naquela época continuavam a rondar por ali a fim de servirem a sua ama metamorfoseada. Como era corajoso, porém, Hobbie lutou com firmeza contra o sentimento de medo que parecia querer apossar-se-lhe do coração. Chamou os dois galgos que haviam partilhado com ele os prazeres da caça e que, como dizia, não temiam nem demónios nem os outros cães; examinou o gatilho da espingarda e como o camponês alegre de Hallowen começou a assobiar a ária guerreira de Jock of de Sitie, tal como um general ordena o rufar do tambor para reanimar o moral das suas tropas.
Neste estado de espírito, ficou radiante quando ouviu atrás de si alguém que, em voz amiga, se propunha para seu companheiro de caminho. Abrandou o passo e em breve foi alcançado por um rapaz do seu conhecimento, que dispunha de alguns meios e que, como ele, empregara o seu dia na caça.
O jovem Earnscliff, do domínio deste nome, tinha atingido havia pouco tempo a maioridade e herdado alguns bens pouco consideráveis, porque os pais se haviam arruinado por causa de terem tomado parte nas questões políticas da época. A família era geralmente respeitada na região e não seria de recear que o herdeiro perdesse esse respeito, devido à educação recebida e às boas qualidades de que era dotado.
- Estou encantado por nos termos encontrado, Earnscliff. Fico sempre satisfeito por encontrar Vossa Honra seja onde for, principalmente num sítio tão deserto como este. Onde foi caçar hoje?
- Até ao Carla Cleugh, Hobbie - respondeu Earnscliff, retribuindo o cumprimento - Mas pensa que os nossos cães se manterão em paz?
- Não se preocupe com os meus - respondeu Hobbie - mal se podem ter de pé. Na verdade, suponho que os gamos abandonaram esta região. Fui até Inger-fell-foot e não vi nem um chifre, excepto o de três gamos monteses que nunca se colocavam ao alcance de tiro, embora fizesse um desvio para os apanhar contra o vento e tudo o mais que se impõe fazer. Por mim, pouco me importa. Mas gostaria de levar alguma caça para a minha boa mãe, que está sentada ao canto da lareira, contando histórias dos grandes caçadores e dos famosos atiradores do tempo passado. Mas penso que mataram já todos os gamos da região.
- Meu caro Hobbie, matei esta manhã soberbo cabrito montês que mandei para Earnscliff. Enviarei metade à sua avó.
- Mil agradecimentos, mr. Patrick - respondeu Hobbie - Todos conhecem o seu bom coração. A minha avó vai ficar muito contente, principalmente quando souber quem ofereceu a caça, e mais contente ficará se vier comer connosco. Deve sentir-se muito só na sua torre desde que a sua família partiu para o aborrecido Edimburgo. Pergunto a mim próprio que prazer podem sentir em viver no meio de tanta casa com telhados de ardósia, quando poderiam viver tão agradavelmente nestas verdejantes colinas.
- A minha educação, assim como a de minhas irmãs, obrigou minha mãe a viver em Edimburgo durante muitos anos - replicou Earnscliff - Mas afirmo-lhe ter a intenção de recuperar o tempo perdido.
- Restaurará a sua velha torre e viverá como bom vizinho com os velhos amigos da sua família, como compete a um lorde Earnscliff - acrescentou Hobbie - Posso dizer-lhe que minha mãe... ou antes, minha avó, pois desde que perdemos minha mãe a tratamos ora de uma forma ora doutra... afirma que ainda somos parentes afastados.
- Tem razão, Hobbie - confirmou Earnscliff - Amanhã irei jantar a Heugh-Foot com todo o prazer.
Ainda bem! - exclamou Hobbie - Se não formos
parentes, somos vizinhos há muitos anos e a minha avó tem grande desejo de o ver. Fala muitas vezes de seu pai, que mataram há muito tempo.
- Cale-se, Hobbie. Não me fale de um acontecimento tão triste e não me recorde aquilo que desejo esquecer.
- Nada sei senão que se isso tivesse acontecido na minha família não o esqueceríamos até que obtivéssemos uma satisfação. Mas mr. Earnscliff sabe melhor o que há-de fazer. Ouvi dizer que foi lorde Ellieslaw, um amigo, que o feriu.
- Não falemos mais no assunto, Hobbie. Foi uma questão provocada pelo vinho e pela política. Muitas espadas saíram das bainhas e era impossível saber quem o feriu.
- Fosse quem fosse - replicou Hobbie - o velho Ellieslaw foi cúmplice e estou certo de que se o meu lorde estivesse na disposição de se vingar nele, ninguém o censuraria, porque as suas mãos estão manchadas com o sangue de seu pai e só o filho pode vingar-se. De resto, Ellieslaw é um prelatista e um jacobita. Posso dizer-lhe que toda a gente desta terra espera que se passe alguma coisa entre os dois.
- Que vergonha, Hobbie! Afirma ser religioso e excita o seu amigo a tirar vingança por suas próprias mãos e para mais num lugar deserto como este onde não sabemos quem pode escutar-nos!
- Cale-se! - pediu Hobbie, aproximando-se mais dele - Não pensei nessas coisas... Mas adivinho o que detém o seu braço, mr. Patrick. Sabemos bem que não lhe falta coragem. São dois lindos olhos castanhos de uma rapariga, de miss Isabel Vere que o seguram.
- Afirmo-lhe que está enganado, Hobbie - responjeu Earnscliff um pouco irritado - e é mal feito manifestar esse pensamento. Não gosto de que unam o meu nome ao dessa menina.
- Muito bem, muito bem! - replicou Hobbie - Eu não dizia que não lhe faltava coragem? Não tinha intenção de o ofender, fiz apenas uma observação de amigo. O velho laird Ellieslaw tem o sangue mais esquentado do que o seu. Não quer saber das novas ideias de paz e tranquilidade. Prefere os antigos usos de erguer o braço e ferir e tem consigo alguns rapazes novos, cujo ardor incita, vigorosos e cheios de malícia como um potro pequeno. Onde vão buscar dinheiro, ninguém sabe, mas vive à larga e gasta mais do que os seus rendimentos, pois paga bem. Portanto, se houver um levantamento no país, é provável que seja dos primeiros a reunir-se aos descontentes e estou certo de que não esquecerá as antigas contendas com a sua família. Tenho a certeza de que fará qualquer ataque à velha torre de Earnscliff.
- Nesse caso, Hobbie, se ele for tão louco que o tente, eu também farei tudo para a defender, tal como os meus antepassados fizeram em outros tempos.
- Muito bem, muito bem! - aprovou o companheiro
- Assim é que é falar como homem e, se as coisas chegarem a esse ponto, basta ordenar ao seu criado que toque o sino da torre e tanto eu como meus irmãos, o jovem Davie de Stenhouse e todos aqueles que pudermos reunir, acorreremos em menos tempo do que é preciso para puxar o gatilho de uma espingarda.
- Obrigado, Hobbie. Mas tenho esperança de que não chegaremos a ver no nosso tempo uma guerra tão cruel e tão pouco cristã.
- Ora, Mr. Patrick, não seria mais de que uma pequena querela entre vizinhos - replicou Elliot - Tanto o céu como a terra sabem bem que, numa região como esta, isso é natural nos seus habitantes. Não podemos viver tranquilos como os de Londres, visto não termos tanto que fazer como eles. Seria impossível.
- Na verdade, Hobbie - disse o laird - para um homem que acredita tão seriamente nas aparições sobrenaturais, acho que fala do céu por forma temerária, principalmente num local como este em que nos encontramos.
- Porque faria o Mucklestane-Moor mais impressão sobre mim do que sobre mr. Earnscliff? - replicou Hobbie um tanto ofendido - Dizem, é certo, que existem espantalhos com grandes bicos, mas não me preocupo com essas coisas. Tenho a consciência tranquila e pouco a censurar-me, excepto talvez algumas loucuras com raparigas. Tudo isso, porém, são coisas em que não vale a pena falar. E, a despeito do que lhe disse, posso considerar-me um rapaz sossegado e pacífico...
- E Dick Turnbull, a quem partiu a cabeça, e Willie de Winton, sobre quem fez fogo? - notou o companheiro.
- Vá para o diabo, Earnscliff! Você recorda a faltas de toda a gente? - interrompeu Hobbie - A cabeça do Dick está curada e, a fim de terminar de vez a nossa questão, devemos bater-nos em Jeddart no dia de Santa Cruz. Portanto, esse assunto será arrumado por forma pacífica. Quanto ao Willie, somos de novo amigos. Pobre rapaz! Foram apenas dois ou três grãos de chumbo. Consentiria que me fizessem o mesmo em troca de um copo de aguardente. O pobre Willie, porém, foi criado na planície. É como os gamos, qualquer coisa o assusta. Mas, quanto aos papões, se encontrássemos algum por aqui...
- Não seria para espantar, pois estamos perto da feiticeira, Hobbie.
- Afirmo - assegurou Hobbie, como indignado com as suspeitas do companheiro - que se a velha feiticeira em pessoa saísse da terra aqui, diante de nós, eu não faria mais do que... Santo Deus, Earnscliff, que será aquilo além?
Anão feiticeiro que erras nos pântanos, diz o teu nome a Keeldar.
Anão feiticeiro da charneca que poisa em cima das urzes.
JOHN LEYDEN
O vulto que assustara o caçador no meio da sua corajosa declaração, também fez estremecer o companheiro, embora não fosse escravo das crendices da época. A Lua, que se erguera durante a conversa anterior, parecia nadar, segundo a expressão usada no país, no meio das nuvens, e espalhava em volta uma claridade vaga e por vezes interrompida. Favorecidos por um raio de luar que incidiu sobre a grande coluna de granito da qual se aproximavam, viram um ser que parecia humano, mas muito mais pequeno que o normal, e que andava devagar por meio das pedras escuras, não como uma pessoa que se propõe seguir adiante, mas com passo lento, irregular, vacilante, de uma pessoa que vagueia num sítio que lhe desperta tristes recordações. De tempos a tempos, fazia ouvir um murmúrio surdo e quase indistinto. Tudo isto se assemelhava tanto com a "ideia que formara das aparições, que Hobbie Elliot parou de repente; os cabelos puseram-se-lhe em pé e em voz baixa comentou para o companheiro: "É a própria velha Ailie! Será melhor dar-lhe um tiro, em nome de Deus?
- Não faça isso, pelo Céu! - ordenou o companheiro, baixando-lhe a espingarda, que já estava apontada - Não faça isso, pelo amor de Deus - repetiu - É uma pobre criatura que perdeu a razão.
- Não terá o meu amigo perdido a sua ao querer aproximar-se tanto? - replicou Elliot, agarrando por sua vez Earnscliff, que se dispunha a avançar - Teremos tempo de fazer breve oração antes que ela chegue aqui... se puder lembrar-me de alguma. Meu Deus! Ela não tem pressa - continuou, tornando-se mais afoito ao ver a calma do companheiro e o pouco caso que a aparição fazia deles - Anda como uma galinha em cima de uma grelha ardente. Suplico-lhe, Earnscliff - acrescentou em voz baixa - desviemo-nos, como fazemos com os gamos. Não nos enterraremos no pântano mais do que até ao joelho e mais vale isso do que uma má companhia.
Earnscliff, a despeito da resistência e das observações do companheiro, continuava a avançar pelo carreiro que seguiam e em breve se encontrou diante do ser que lhes chamara a atenção.
A estatura desse ser, que parecia tornar-se ainda mais pequena à medida que se aproximavam, devia ter menos de quatro pés, e o seu corpo, pelo que se podia ver com a escassa claridade do dia, era quase tão alto como largo, ou antes, de forma cilíndrica, o que devia resultar de qualquer deformidade pessoal. O jovem caçador chamou duas vezes aquele ser extraordinário, mas não obteve resposta; e, sem se preocupar com o companheiro, que o beliscava para lhe dar a entender que o melhor seria continuarem o seu caminho e não pensarem mais num ente com tão extraordinária aparência, insistiu nas perguntas pela terceira vez:
- Quem é você? Que faz aqui a esta hora da noite?
Então, uma voz aguda respondeu, num tom irritado e discordante, que obrigou Elliot a recuar dois passos e fez estremecer o companheiro:
- Sigam o vosso caminho e não façam perguntas a quem não lhes pergunta coisa alguma.
- Que faz aqui, num ponto afastado e sem abrigo? - insistiu Earnscliff - A noite surpreendeu-o no caminho? - acrescentou - Quer vir para nossa casa?
- Deus nos defenda! - exclamou Hobbie, involuntariamente.
- Venha, eu lhe darei alojamento.
- Preferia viver no fundo do Tarras-flow - murmurou de novo Hobbie.
- Sigam o vosso caminho - repetiu o estranho ser num tom que a cólera tornava ainda mais rude - Não preciso da vossa casa nem que me sirvam de guia. Cinco anos passaram sem a minha cabeça repousar debaixo do tecto de uma habitação humana e espero que assim seja até ao fim.
- Está doido - murmurou Earnscliff.
- Faz lembrar o velho Humphrey Ettercap, o funileiro ambulante, que morreu justamente neste sítio, há-de haver cinco anos - replicou o supersticioso companheiro - Mas o Humphrey não tinha este terrível aspecto.
- Sigam o vosso caminho - teimou o objecto da sua curiosidade - O hálito dos homens envenena a atmosfera que me rodeia. O som das vozes humanas entra-me nos ouvidos como picadas de agulhas.
- Deus nos salve! - disse Hobbie baixinho - Será possível que os mortos tenham tão grande ódio aos vivos? Desconfio que a sua alma é presa de atrozes sofrimentos.
- Venha, meu amigo, parece estar muito aflito. A mais simples humanidade não consente que o deixe aqui.
- Humanidade! - exclamou o desconhecido, soltando uma gargalhada de desprezo que soou como um grito agudo - Onde foi buscar essa palavra vã, essa armadilha para galinholas, essa cortina por trás da qual se ocultam ratoeiras para apanhar os homens? Insensato, aquele que se deixe tentar por essa isca em breve verá que ela oculta um anzol cujas pontas são dez vezes mais agudas do que aquelas com que apanham os animais destinados a alimentar o luxo das suas mesas.
- Já lhe disse, meu amigo - teimou Earnscliff - não se encontra em estado de avaliar a sua própria situação; morrerá neste sítio ermo e nós devemos, por compaixão, obrigá-lo a vir connosco.
- Não me meto nisso! - protestou Hobbie - Pelo amor de Deus, deixe o espírito proceder como entenda.
- Que o meu sangue recaia sobre a minha cabeça se eu morrer aqui! - gritou o anão.
E, verificando que Earnscliff tinha a intenção de o agarrar, acrescentou:
- Mas não me acusem da vossa morte. Se tiverem a infelicidade de tocar o meu fato serão infectados com o veneno da mortalidade!
A Lua recuperara todo o seu esplendor quando ele proferiu estas palavras, e por isso Earnscliff pôde ver que ele tinha na mão uma arma ofensiva, que lhe pareceu ser comprido punhal ou o cano de uma arma de fogo. Seria loucura persistir nas suas tentativas para socorrer uma pessoa assim armada, que falava com tanta firmeza e, para mais, reconhecendo que não podia contar com auxílio por parte do companheiro, que o abandonara, deixando-o enfrentar como pudesse o ser misterioso, e que já se afastava em direcção a casa. Em consequência, voltou as costas e seguiu Hobbie, olhando para trás de vez em quando, para ver aquele a quem considerava um maníaco e que, como se a curta conversa tivesse exasperado o seu frenesi, continuava o seu passeio em volta da coluna, soltando gritos agudos e imprecações prolongadas que ecoaram por forma estranha na vasta extensão daquele deserto.
Os dois caçadores caminharam em silêncio até deixarem de ouvir aqueles sons desagradáveis, isto é, até estarem muito afastados da coluna que dera o nome ao local onde se erguia. Cada um deles fazia de si para si comentários sobre a cena que acabavam de presenciar. Por fim, Hobbie quebrou o silêncio, exclamando:
- Penso que aquele espírito - se por acaso é um - deve ter feito muito mal e sofrido muito quando vivia, para ser obrigado a errar assim depois de morto.
- Parece uma verdadeira loucura de misantropia - respondeu Earnscliff, prosseguindo o curso dos seus próprios pensamentos.
- Não pensa então que seja um espírito? - perguntou Hobbie.
- Quem, eu? Por forma alguma.
- Também penso que possa ser uma criatura viva. Mas não me atrevo a afirmá-lo, porque nunca vi nada que se parecesse mais com uma alma do outro mundo.
- Seja o que for, voltarei aqui amanhã para ver o que aconteceu a este infeliz.
- Em pleno dia? - perguntou Hobbie - Nesse caso, se Deus quiser, acompanhá-lo-ei. Mas estamos duas milhas mais perto de Heugh-Foot do que de sua casa; não seria melhor se viesse comigo? Mandaremos o moço com o pónei a sua casa para avisar de que está na herdade, embora saiba que ninguém o espera, excepto o criado e o gato.
- Seja como diz, amigo Hobbie. Mas, como não gostaria que os criados ficassem inquietos e o bichano não tivesse jantar, peço-lhe para mandar o moço a casa, conforme me propôs.
- Isso é muita bondade da sua parte - replicou Hobbie - Vamos então para Heugh-Foot, onde ficarão muito contentes quando o virem, posso afirmá-lo.
Combinadas assim as coisas, os dois caçadores apressaram o passo até alcançarem o cimo de escarpada colina:
- "Sabe uma coisa, Earnscliff? Sinto-me sempre feliz quando chego aqui - declarou Hobbie Elliot - Vê aquela luz na janela da sala onde minha avó está sentada, fiando na sua roca? E vê a outra luz que vai de uma janela para a outra? E a de minha prima, Grace Armstrong. Faz na minha casa duas vezes o trabalho de minhas irmãs, facto que elas confessam de boa vontade, pois são as melhores raparigas do mundo; mas também são obrigadas a confessar, assim como minha avó, que já não pode mexer-se, que Graça é a mais activa e quem melhor faz as compras na cidade. Quanto a meus irmãos, um partiu com o camarista da corte e outro está em Moss-phadraig, a nossa melhor herdade. Pode vigiar os trabalhos tão bem como eu.
É feliz, meu bom amigo, em ter uma família tão estimável - observou o jovem laird.
- É verdade, louvado seja Deus, posso dizer que sou feliz. Mas, agora, Earnscliff, o senhor, que esteve no colégio de Edimburgo e na Universidade, que adquiriu toda a espécie de conhecimentos, poderia dizer-me uma coisa, embora ela não me diga respeito pessoalmente; mas ouvi o cura de St. John e o nosso ministro falarem a esse respeito na feira de Winter e afirmo-lhe que falavam muito bem. O padre dizia que a Igreja proibia o casamento entre primos, mas pareceu-me que não citava as passagens do Evangelho tão bem como o nosso ministro, que é considerado o melhor teólogo e o melhor pregador daqui até Edimburgo. Não acha que tinha razão?
- O casamento - respondeu Earnscliff - é considerado pelos cristãos protestantes tão livre como Deus o estabeleceu na lei levítica. Portanto, Hobbie, creio não existir impedimento, quer legal ou religioso, para o seu casamento com Grace Armstrong.
- Nada de brincadeiras, Earnscliff, o senhor que é tão pronto a zangar-se quando lhe falam em assuntos tão delicados. Na minha pergunta não havia qualquer intenção referente a Grace. Além disso, não é minha prima germana, visto ser filha do primeiro casamento da mulher de meu tio. Portanto, entre nós não existe parentesco, mas apenas aliança de família. Chegámos à colina de Sheeling. Vou disparar a espingarda. É sempre assim que anuncio a minha chegada, e quando apanhei um gamo disparo dois tiros, um por ele outro por mim.
Com efeito, disparou a espingarda e logo algumas luzes se agitaram dentro de casa e outras apareceram cá fora. Hobbie fez notar uma que saíra para o pátio e se dirigia para as dependências que o rodeavam.
- É Grace - disse para Earnscliff - Nunca vem esperar-me à porta, posso afirmar, mas não deixará de ir ver se preparam a sopa dos meus cães.
- Quem me ama, ama o meu cão - comentou Earnscliff - Hobbie, você é um rapaz feliz.
Este comentário foi acompanhado por um suspiro abafado que não escapou aos ouvidos do companheiro.
- Pode haver homens tão felizes como eu. Eu vi miss Isabel Vere voltar a cabeça a fim de olhar para alguém que passou junto dela, nas corridas de Carlisle! Quem pode saber as voltas que as coisas darão neste mundo?
Earnscliff pronunciou baixo algumas palavras que pareciam uma resposta, mas cujo sentido não era fácil de compreender. E é provável que o moço laird não desgostasse que elas ficassem envoltas na dúvida e na obscuridade. Entretanto, já tinham descido a colina por um atalho que, contornando o escarpado Heugh, os levou diante da casa coberta de colmo, e de agradável aparência, onde Hobbie Elliot vivia com a família.
No limiar da porta viam-se alguns rostos agradáveis, mas a presença de um estranho desviou a ponta de aguçadas zombarias já preparadas para comentar o pouco êxito de Hobbie na caça ao gamo. Houve ligeiro reboliço entre as três raparigas que tentavam deixar às outras o cuidado de introduzir o rapaz em casa, quando seria provável que todas elas estivessem ansiosas por fugir a fim de fazerem algumas mudanças na toilette antes de se apresentarem diante do visitante com o trajo simples que destinavam ao irmão.
Depois de ter proferido algumas ironias contra o sexo feminino - nas quais Grace não foi incluída Hobbie tirou a luz da mão de uma das raparigas, que tomara um ar ligeiramente afectado enquanto os alumiava, e levou o visitante para a sala comum ou, para melhor dizer, a sala grande da casa. Noutros tempos, aquela casa tinha sido uma espécie de fortaleza e o aposento onde em geral se reunia a família era uma sala abobadada, lajeada, húmida e, comparada com as salas dos modernos lavradores, um pouco triste. Mas, iluminada pelo lume brilhante de turfa e de pequenos troncos, pareceu a Earnscliff excelente abrigo depois da escuridão e do frio da montanha. Foi acolhido com expressões afectuosas e repetidas da velha senhora, a dona da casa, que, com a sua touca de fitas, o vestido escuro cingido ao corpo, grande colar de oiro e brincos do mesmo metal, aparentava ser o que realmente era, uma senhora e a dona da casa. Estava sentada numa cadeira de braços, junto da enorme lareira, dirigindo os eventuais trabalhos das raparigas e de duas ou três criadas que fiavam na roca, sentadas junto da patroa.
Logo que Earnscliff se instalou e deu as suas ordens para aumentar a refeição da noite, a avó e as irmãs de Hobbie inciaram o ataque, assestando as suas baterias sobre Hobbie Elliot, a propósito do pouco êxito da caçada.
- A Jenny não precisava de manter o lume aceso para assar o que o Hobbie nos trouxe.
- com efeito, não. O pequeno brasido de turfa que serviu para conservar a lareira bastaria para fazer o assado - acrescentou outra.
- Ou ainda um bocado de vela, se o vento não a apagasse - disse a terceira - Por mim, preferia trazer um corvo, a voltar três vezes a casa sem trazer um chifre de gamo para soprar nele.
Hobbie voltou-se ora para uma ora para outra, olhando-as sucessivamente com um franzir de testa
cuja severidade era desmentida pelo sorriso de bom humor que se esforçava por conter. Por fim, tentou acalmá-las, anunciando o presente que Earnscliff se propunha fazer-lhes.
- No tempo da minha mocidade - comentou a avó - um homem tinha vergonha de regressar da montanha sem trazer um cabrito montês pendurado de cada lado da sela como um vendedor ambulante de vitelos.
- Para isso seria preciso que nos tivessem deixado alguns, avó - replicou Hobbie - Mas, provavelmente, os seus velhos amigos despovoaram a montanha.
- Mas nós vemos outra pessoa que soube encontrà-los, Hobbie - comentou a irmã mais velha, relanceando um olhar a Earnscliff.
- Bem, bem, mulher. Cada cão tem o seu dia. Perdoe-me, Earnscliff, por empregar este velho provérbio. Mas posso ter a sua sorte e ele a minha infelicidade num destes dias mais próximos. É agradável para um homem que correu todo o dia e que apanhou um susto... Não, não quero dizer assim, digo que foi surpreendido pelos espíritos, quando voltava a casa, ter de enfrentar os ataques de um grupo de mulheres cujo trabalho, durante todo o dia, se limitou a fazer girar um bocado de madeira preso a um fio ou a fazer buracos num avental.
- Assustado pelos espíritos! - exclamaram ao mesmo tempo todas as mulheres, que se ocupavam com essas fantasias da imaginação.
- Eu não disse assustado - replicou Hobbie - disse apenas surpreendido. O espírito era só um. Earnscliff viu-o tão bem como eu.
Depois, contou à sua maneira, sem grandes exageros, o encontro com o ser misterioso de Mucklestane-Moor e acabou por afirmar não poder saber do que se tratava; salvo se fosse o próprio Inimigo ou alguns dos antigos Peghts que noutros tempos dominavam a região.
- Um antigo Peght! - exclamou a avó - Não, meu filho, não. Deus nos defenda do mal! Não é um Peght, deve ser o Homem dos Pântanos. Desgraçados tempos! para que vêm esses espíritos perturbar o nosso país, agora que a tranquilidade foi restabelecida e há bom entendimento e o respeito pelas leis? Maldito seja ele! Nunca anunciou nada de bom para a região nem para os seus habitantes. Meu falecido pai disse-me muitas vezes que o tinham visto no ano da sangrenta batalha de Marstone-Moor, depois durante as lutas de Montrose e por fim na derrota de Dunbar. No meu tempo viram-no na época do caso Bothwell-Brigg e dizia-se que o laird de Benarbuck, que tinha o dom da segunda vista, teve uma conversa com ele pouco antes do desembarque de Argyle. Quanto a isso, porém, não posso falar com segurança. Foi lá para oeste. Meus filhos, nunca lhe foi permitido aparecer senão nos tempos desastrosos. Portanto, aconselho-os a recorrer Àquele que pode proteger-nos na desgraça.
Então, Earnscliff tomou a palavra e afirmou estar persuadido ser o ente que tinham visto um pobre maníaco que não estava encarregado de qualquer missão da parte do outro mundo, não vinha anunciar guerras ou qualquer outra calamidade. Os auditores, porém, acolheram muito friamente esta declaração e todos se reuniram para o convencer a abandonar o propósito de voltar a Mucklestane-Moor no dia seguinte.
- Meu querido filho! - exclamou a velha senhora, cujo coração bondoso a levava a tratar maternalmente todos aqueles por quem se interessava - tem obrigação de ser mais prudente do que ninguém. A sua casa sofreu uma grande perda com a morte violenta de seu pai, além de outras perdas e processos. Sois flor do rebanho, meu filho, a quem compete reconstruir o edifício, se for essa a vontade do Céu, para ser a honra desta região e o defensor dos seus habitantes. Tem o dever - o meu filho mais do que os outros - de não se meter em aventuras temerárias, pois pertence a uma família que foi sempre aventurosa e que suportou muita desgraça.
- Com certeza, minha boa senhora, não gostaria de me ver com medo de ir a Mucklestane-Moor em pleno dia.
- Não posso afirmá-lo. Nunca aconselharia os meus filhos ou um daqueles a quem estimo a recuar perante a defesa de uma causa justa, fosse sua ou de qualquer dos seus amigos. Não, nunca o faria. Mas ninguém tira de uma cabeça velha, como a minha, a ideia de que procurar o perigo, indo onde nada nos chama, é proceder contra a lei de Deus e contra as Escrituras.
Earnscliff não combateu um argumento contra o qual não se sentia com forças de lutar com êxito e a chegada da ceia acabou com a conversa. Grace tinha entrado pouco antes e Hobbie, não sem primeiro ter trocado com Earnscliff um olhar significativo, sentou-se-lhe ao lado. Uma conversa viva e animada, na qual a avó tomou parte com essa franca alegria que tão bem fica à velhice, reavivou nas faces das raparigas as cores que a narrativa do irmão havia feito desaparecer. Dançaram e cantaram e o serão prolongou-se mais de uma hora depois da ceia como se no mundo não existissem espíritos ou fantasmas.
Sou Misantropo e odeio o género humano. Quanto a ti, gostaria que fosses um cão para poder querer-te um pouco.
Timon de Atenas - SHAKESPEARE
Na manhã seguinte, depois de almoço, Earnscliff despediu-se dos amáveis hospedeiros, prometendo voltar a horas de compartilhar da caça que viera de sua casa. Hobbie, que aparentemente se despediu dele à porta da herdade, escapou-se e foi reunir-se-lhe no alto da colina.
- Teima em ir lá acima, mr. Patrick? Não o deixo, apesar de tudo quanto disse minha avó. Pensei que seria melhor sair às escondidas, não fosse ela suspeitar do que vamos fazer. Não quero dar-lhe o mais pequeno desgosto. Foi uma das recomendações de meu pai antes de morrer.
- Fez muito bem, Hobbie - aprovou Earnscliff - Ela merece todas as suas atenções.
- Quanto a isso, penso que, se soubesse, ficaria tão atormentada por sua causa como por mim. Mas, de facto, não será temeridade nossa irmos lá acima? Ninguém nos encarregou disso.
- Se pensasse como o Hobbie, não me preocuparia mais com este caso. Mas como sou de opinião de que as visitas sobrenaturais findaram há muito tempo ou se tornaram muito raras nos tempos que vão correndo, quero esclarecer um assunto do qual dependerá talvez a vida de um pobre desgraçado que perdeu a razão.
- Se pensa dessa forma... - replicou Hobbie com ar duvidoso - com efeito, as próprias fadas, quero dizer, as boas vizinhas - dizem que não é bom chamar-lhes fadas - que costumavam aparecer todas as noites nos cômoros verdejantes, não se vêem tantas vezes como noutros tempos. Posso afirmar que nunca vi nenhuma. Somente, uma vez, ouvi assobiar atrás de mim, numa moita, um assobio parecido com o do maçarico. Meu pai, porém, viu-as muitas vezes quando voltava da feira com uma pinga de vinho a mais, o excelente homem!
Earnscliff verificou com prazer a diminuição gradual da superstição, de uma geração para a outra, conforme podia depreender-se da última frase de Hobbie. Continuaram a conversar até que avistaram a coluna que dera o nome ao Moor.
- Por Deus! - exclamou Hobbie - aquela criatura ainda lá está. Mas, como é dia, o senhor tem a sua espingarda e eu a minha faca, creio que podemos aproximar-nos.
- Assim o penso - confirmou Earnscliff - Mas, santo Deus, o que faz ele além?
Constrói uma parede com os gansos cinzentos, como lhes chamam. Nunca ouvi contar coisa igual.
Quando se aproximaram, Earnscliff não pôde deixar de concordar com o companheiro. O ente que tinham visto na véspera trabalhava devagar e tinha grande dificuldade em colocar as pedras umas sobre as outras, para formar pequeno recinto. Material não lhe faltava; mas o trabalho que se propunha fazer era imenso, devido ao tamanho das pedras; parecia até surpreendente como conseguira levantar algumas das que já colocara como alicerces da casa. Fazia grandes esforços para mover uma de enorme dimensões, quando os dois rapazes se aproximaram, e estava tão empenhado em executar o seu desígnio que só deu por eles quando chegaram perto. Empurrando e erguendo a pedra para a colocar como desejava, demonstrava uma força que estava totalmente em desacordo com a sua estatura e aparente deformidade. Com efeito, a julgar pelas dificuldades que já havia vencido, tinha uma força de Hércules, porque algumas das pedras que tinha conseguido levantar, aparentemente exigiam o concurso de dois homens para o fazer.
As suspeitas de Hobbie renovaram-se ao ver a força sobrenatural de que o Anão era dotado.
- Estou persuadido de que é o espírito de um pedreiro. Veja como conseguiu dispor pedras tão grandes. Se, de facto, é um homem, gostaria de saber quantas precisaria para construir um dique. Bom homem - acrescentou, elevando a voz - Está fazendo uma obra muito sólida.
O ser a quem se dirigia ergueu os olhos, relanceou-lhe um olhar terrível e, aprumando o corpo que até ali estivera curvado, exibiu diante deles toda a sua horrível deformidade.
A cabeça era de tamanho invulgar, coberta de cabelos compridos e crespos, já grisalhos. As sobrancelhas espessas e salientes sombreavam os olhos negros, pequenos e penetrantes, profundamente enterrados nas órbitas, e que ele rolava numa expressão feroz, o que indicava uma deficiência de juízo. As outras feições eram rudes, selváticas como as que um pintor daria a um gigante romano, tendo a mais a expressão feroz e a irregularidade própria da fisionomia dos corcundas. O tronco, forte e pesado, era o de um homem de estatura média e equilibrava-se sobre dois enormes pés, pois a Natureza parecia ter esquecido as pernas e as coxas ou dera-lhas tão curtas que estavam ocultas pelo casaco. Os braços eram compridos e grossos, terminados por mãos musculosas, e a parte que no ardor do trabalho descobrira estava coberta de pêlos negros e ásperos. Dir-se-ia que as diversas partes daquele corpo tinham sido feitas separadamente e destinadas a comporem um gigante, mas que, por um capricho da Natureza, haviam sido adaptadas a um anão, tão grande desproporção existia entre o tamanho dos braços e a sua força extraordinária, e a pequenez da sua estatura. O vestuário consistia numa espécie de túnica escura, feita de fazenda grosseira como o hábito de um monge, apertada em volta da cintura por um cinto de pele de foca. Na cabeça usava um gorro de pele de texugo ou de qualquer outra pele grosseira, o que aumentava consideràvelmente o aspecto rude do conjunto e lhe ocultava em parte as feições, cuja expressão era de sombria e sinistra misantropia.
O estranho Anão fixava em silêncio os dois rapazes, relanceando-lhe olhares irritados, quando Earnsclif, na esperança de abrandar um pouco a sua disposição de espírito, lhe disse:
- Essa tarefa é muito custosa, meu amigo. Consinta que o ajudemos.
Ao mesmo tempo, ele e Elliot reuniram os seus esforços e colocaram a pedra na parede começada. O Anão vigiava-os como um patrão e testemunhava com gestos a sua impaciência ou desagrado pelo tempo que levavam para mover a pedra. Depois indicou segunda que os rapazes colocaram também; depois terceira e quarta. Continuaram assim a ajudá-lo, com grande fadiga, porque ele, como de propósito, lhes indicava as pedras mais pesadas e mais afastadas.
- Agora, meu amigo - declarou Elliot quando o exigente Anão indicava uma maior do que todas as outras reunidas - Earnscliff que continui se quiser. Quanto a mim, sejas tu homem ou qualquer outra coisa de pior, o diabo me quebre os dedos se eu continuar a cansar-me a levantar pedras como um trabalhador, sem ao menos ouvir uma palavra de agradecimento pelo meu trabalho!
- Agradecimento! - bradou o Anão com um gesto que exprimia o mais profundo desprezo - Então ouve-o e consola-te com ele, ouve-o e possa ele ser tão proveitoso para ti como foi para mim ou para qualquer outro homem ou réptil que escutasse a palavra "obrigado" da boca do seu semelhante. Fora daqui! Trabalha ou desaparece.
- Bela recompensa nós recebemos, Earnscliff, por termos construído um tabernáculo para o diabo e talvez comprometido a salvação das nossas almas.
- A nossa presença - respondeu Earnscliff - parece irritar o seu frenesi. Seria melhor retirarmo-nos e mandar alguém trazer-lhe comida e outros objectos necessários.
Foi o que fizeram. O criado que mandaram, encontrou o Anão trabalhando na construção das paredes, mas não conseguiu arrancar-lhe uma palavra; e, como enfermava de todas as superstições da terra, não o importunou por mais tempo com perguntas e observações, mas, depois de ter colocado em cima de uma pedra mais afastada o cesto que trazia, deixou-o à disposição do misantropo.
O Anão prosseguiu dia após dia nos seus trabalhos, com uma actividade espantosa que parecia quase sobrenatural. Num dia fazia o trabalho de dois homens e a construção tomou em breve a aparência de um casebre, que, embora pequeno e feito só com pedras e turfa, sem argamassa, tinha, devido ao tamanho invulgar das pedras, um ar de solidez pouco cumum numa cabana de dimensões tão reduzidas e de construção tão grosseira. Earnscliff, sempre atento a todas as particularidades, logo que percebeu do que se tratava, enviou ao Anão vigas já preparadas para servirem de telhado, tencionando mandar, no dia seguinte, operários para as colocar. Mas essa colocação foi antecipada pelo Anão, que durante toda a noite e de manhã cedo trabalhara com tanto afinco e habilidade que os barrotes estavam quase nos seus lugares. O segundo trabalho consistiu no corte de juncos para cobrir a casa, o que ele executou com singular destreza.
Como qualquer auxílio, excepto o concedido por acaso por quem passava, parecia repugnar-lhe, forneceram-lhe materiais próprios para o fim que se propunha e ferramenta, que ele usava com grande habilidade. Construiu as portas e janelas da casa, arranjou um catre grosseiro, dispôs algumas tábuas como mesas e pareceu tornar-se menos intratável à medida que a habitação se tornava mais cómoda.
Em seguida, preparou uma espécie de cerrado e esforçou-se por cultivar o melhor que podia o terreno que rodeava a casa. À força de transportar terra arável e de cavar o solo, conseguiu arranjar pequeno jardim. Deve calcular-se, tal como já demos a entender, que era de tempos a tempos auxiliado pelos viajantes que por acaso passavam no Moor e pelas diversas pessoas que, atraídas pela curiosidade, iam ver o seu trabalho. De facto, tornava-se impossível ver um ente humano, cuja aparência à primeira vista se verificava ser imprópria para trabalhos tão pesados, empregar assiduidade tão constante, sem descansar sequer breves minutos, e não o auxiliar nas suas ocupações. E como cada um destes auxiliares eventuais não conhecia o grau de assistência dada por outras pessoas, a rapidez do progresso dos trabalhos assumia a seus olhos um significado sobrenatural. A aparência resistente e sólida da cabana, construída em tão pouco tempo e por semelhante criatura, a habilidade com que manejava as ferramentas, tudo despertava as suspeitas dos habitantes da aldeia. Afirmavam que, se não era um fantasma, opinião que puseram de lado, pois estava bem provado ser uma pessoa viva, devia ter laços muito íntimos com o mundo invisível, e que escolhera aquele local afastado para poder mantê-los sem ser incomodado. Afirmavam ainda, embora com sentido diferente do que o Anão dava à frase, que nunca estava mais acompanhado do que quando se encontrava só e que, dos montes que dominavam ao longe o Moor, os que passavam avistavam muitas vezes uma pessoa a ajudar o Anão, pessoa que desaparecia quando alguém se aproximava da cabana. Viam também essa pessoa sentada à porta, ao lado do habitante do deserto, passeando com ele pela planície, ou auxiliando-o quando ia buscar água à fonte. Earnscliff explicava o fenómeno, afirmando tratar-se da sombra do Anão.
- Não creio que tenha sombra! -protestava Hobbie, zeloso defensor da opinião geral - Tem demasiada intimidade com o diabo para ter sombra. De resto - argumentava com lógica - quem já viu uma sombra entre o corpo e o Sol? E essa tal coisa, seja o que for, é mais delgada e alta do que o Anão. Muitos a têm visto mais de uma vez interpor-se entre o Sol e ele.
Estas suspeitas, que em qualquer outro ponto do país poderiam ter suscitado coisas muito desagradáveis para o pretenso feiticeiro, ali apenas ocasionaram nos espíritos um misto de respeito e temor. E o solitário parecia sentir prazer ao notar os indícios de tímida veneração com que os viajantes, que por acaso passavam perto do seu casebre, se aproximavam dele, o olhar de espanto que relanceavam à sua pessoa e ao refúgio e a rapidez com que se afastavam daquele sinistro lugar. Os mais ousados paravam o tempo suficiente para deitar uma olhadela à cabana e ao jardim, pedindo desculpa com algumas palavras delicadas, às quais o Anão por vezes se dignava responder com uma palavra ou sinal de cabeça. Earnscliff passava por ali muitas vezes e raramente deixava de se informar da saúde do solitário, que parecia ter concluído os seus trabalhos para se estabelecer o resto da vida naquele local.
Tornava-se impossível estabelecer com ele qualquer conversa sobre os seus assuntos pessoais. De resto, não era comunicativo nem abordável, fosse qual fosse o assunto, embora parecesse ter-se despido em parte da sua misantropia ou antes, serem mais raros os ataques de alienação mental dos quais essa misantropia feroz era um dos sintomas. Não existiam argumentos que o convencessem a aceitar qualquer coisa que não fosse estritamente necessária, embora Earnscliff lhe fizesse várias ofertas por caridade e outros vizinhos supersticiosos por motivos diferentes. Recompensava os benefícios destes com os conselhos que lhes dava quando eles os pediam, o que faziam frequentes vezes para si próprios e para os animais. Muitas vezes, dava-lhes remédios, compostos com as plantas que cresciam na região e com outras próprias dos países estrangeiros. Dizia a todos que se chamava Elshender, o Recluso; mas em breve todos lhes chamavam o Prudente Elshie ou o Sábio de Mucklestane-Moor. Muitas pessoas não se limitavam a interrogá-lo sobre as doenças corporais e pediam-lhe conselhos sobre outros assuntos; ele dava-lhos com a dignidade de um oráculo, o que confirmava a opinião geral de que era dotado de poderes sobrenaturais. Os que o consultavam deixavam, em geral, qualquer oferta em cima de uma pedra que ficava a certa distância da cabana. Se era dinheiro ou outra coisa que não lhe convinha aceitar, atirava-a para longe ou deixava-a onde a tinham posto e não a utilizava. Os seus modos eram sempre rudes e pouco sociáveis e as palavras apenas as precisas para exprimir o seu pensamento, o mais concisas possível, e atalhava qualquer conversa ou sílaba a mais do que o exigido pelo assunto de que tratava. Quando passou o Inverno e o jardim lhe forneceu as plantas e vegetais necessários, limitou a sua alimentação quase exclusivamente a esse regime. No entanto, aceitou duas cabras que lhe ofereceu Earnsclíff. Pastavam no Moor e davam-lhe leite.
Quando Earnscliff viu que o presente tinha sido aceite, foi visitar o eremita. O velho estava sentado numa pedra, à porta do jardim; era o posto que ocupava quando estava disposto a receber os doentes e os seus clientes. O interior da sua casa e o jardim eram sagrados e tão inacessíveis a qualquer mortal como os naturais de Otahiti conservam os seus Morai; provavelmente, pensava que uma presença humana os mancharia. Quando se fechava em casa, coisa alguma conseguia convencê-lo a aparecer ou a dar audiência fosse a quem fosse.
Earnscliff passara parte do dia a pescar numa ribeira que ficava perto. Trazia a cana na mão e o cesto cheio de trutas ao ombro. Sentou-se numa pedra em frente do Anão, que, familiarizado com a sua presença, não lhe prestou atenção. Limitou-se a levantar a enorme cabeça e a fixà-lo, deixando-a depois cair sobre o peito, como se estivesse entregue a profundas meditações. Earnscliff olhou em volta de si e notou que o Anão havia aumentado os seus domínios, construindo um telheiro para abrigar as cabras.
- Trabalha demasiado, Elshie - comentou, tentando iniciar a conversa com aquele estranho ser.
- Trabalhar - respondeu o Anão - é o menor dos males que afligem a sorte miserável do género humano; mais vale trabalhar como eu do que divertir-me como o senhor.
- Concordo que esta espécie de divertimentos é desumana, Elshie - respondeu Earnscliff - No entanto...
- No entanto - interrompeu o Anão - é preferível às vossas ocupações habituais; é melhor exercer a vossa louca e vã crueldade contra os peixes mudos do que contra os vossos semelhantes. E depois, para que falam assim? Não será melhor deixar os homens lutar uns contra os outros, exterminarem-se, devorarem-se até que desapareçam todos, com excepção de gordo e enorme Behemoth, e que este, depois de ter estrangulado todos os da sua espécie e roído a carne até aos ossos, não tendo já que matar, ruja o dia inteiro, por não ter de comer e acaba por morrer de fome a pouco e pouco? Será um fim digno desta raça.
- Os seus actos, Elshie, valem mais do que as palavras; esforça-se por conservar uma raça que a sua misantropia calunia.
- Tem razão. Mas sabe porque o faço? Escute. O senhor é uma das pessoas que vejo com menos desprazer e quero, contra o meu costume, perder algumas palavras, por piedade pela sua cega fatuidade. Se não posso levar a doença às famílias e a mortalidade aos rebanhos, como atingirei melhor os meus fins senão prolongando a vida daqueles que podem operar a destruição por forma igualmente eficaz? Se Alice de Bower morresse no Inverno passado, o jovem Ruthwin teria sido morto na Primavera seguinte por causa dela? Quem pensaria em levar os rebanhos a pastar junto da torre se não se dissesse que Red Reiver de Westburnflat estava na agonia? Os meus remédios e a minha ciência curaram-no e agora quem se atreve a deixar os seus rebanhos na planície e a deitar-se sem soltar os cães de guarda?
- Confesso que não prestou grande serviço à humanidade com essa última cura - respondeu Earnscliff - Mas, em compensação, temos o Hobbie, o meu bravo Hobbie de Heugh-Foot, que os seus remédios curaram, no Inverno passado, de uma febre que podia ter-lhe custado a vida.
- Assim pensam, na sua ignorância e loucura, os seres saídos da lama - retorquiu o Anão com um sorriso de maldade - Já reparou num filho de gato bravo quando é apanhado? Como brinca, como é meigo e manso? Mas deixe-o com outros animais, com os cordeiros e galinhas e verá como a sua ferocidade natural retoma o seu império; agarra-os, mata-os, devora-os.
- É esse o seu instinto - responde Earnscliff - Mas que relação tem isso com Hobbie?
- É a sua Imagem, o seu retrato - replicou o solitário - Hoje é amável, calmo e manso, por falta de ensejo para ceder aos seus instintos naturais; mas quando as trombetas soarem, quando o cão de caça aspirar o cheiro do sangue, será mais feroz que os seus antepassados do Border quando incendiavam as cabanas dos pobres camponeses sem defesa. Pode negar que, mesmo no presente, ele o incita a tirar sangrenta vingança de uma injúria feita à sua família quando o senhor era pequeno?
Earnscliff estremeceu. O solitário não demonstrou notar esta surpresa e continuou:
- As trombetas soaram, o jovem sabujo lamberá o sangue, eu rirei e direi: "Foi para isto que te curei."
Calou-se um instante e depois continuou: - São estas as curas que opero; o seu objectivo, o meu fim, é o de perpetuar as massas miseráveis.
- Desempenho, neste deserto, o meu papel na tragédia geral. Se o senhor, Earnscliff, se encontrasse doente, talvez, por piedade, lhe mandasse um veneno.
- Fico-lhe muito agradecido, Elshie - replicou o jovem laird - Não deixarei de o consultar, tendo assim a consoladora esperança de obter o seu auxílio.
- Não se fie muito - aconselhou o eremita - na esperança de que cederei, realmente, ao sentimento de compaixão, que eu considero como fraqueza. Para que tentarei salvar um crédulo, tão apto como o senhor para suportar os males da vida, do estado de miséria que as suas visões e a maldade do mundo lhe preparam? Para que imitarei a compaixão do índio que, com o seu tamahawk, por dó esmagava a cabeça do prisioneiro, roubando assim à raça feroz, como eu, o divertimento que se propunha gozar durante três dias, precisamente no momento em que as fogueiras estavam já acesas, as tenazes em brasa, as facas afiadas, as caldeiras a ferver, para queimar, despedaçar, escaldar e sacrificar a vítima?
- Apresenta-me um quadro bem aterrador da vida, Elshie, mas não consegue desanimar-me. Estamos na terra para sofrer e suportar todos os males, mas também para trabalharmos e gozarmos. O dia fatigante tem a noite de repouso; os sofrimentos suportados com paciência têm compensação na ideia consoladora de que cumprimos o nosso dever.
- Rejeito essa doutrina tão tola e servil - declarou o Anão, cujo olhar se inflamou com uma cólera vizinha de demência - rejeito-a e considero-a digna dos animais que morrem; não quero perder mais palavras consigo.
Levantou-se com precipitação, mas, antes de se fechar no casebre, acrescentou com veemência:
- No entanto, para que não penses que o que supões benefícios da minha parte para o género humano provém dessa ideia tola e servil que se chama amor ao próximo, fica sabendo que se existisse um homem que tivesse destruído as mais belas esperanças do meu coração, o tivesse despedaçado fibra a fibra e inflamado o meu cérebro até fazer dele um vulcão em erupção; se a fortuna e a vida desse homem estivessem na minha mão como este frágil vaso - continuou, levantando do chão o vaso que se encontrava a seu lado e atirando-o contra a parede - não o reduziria a pó desta maneira, não - disse com a maior calma e amargura - cumulá-lo-ia de riquezas e de poder a fim de alimentar as suas vis paixões e de lhe proporcionar o modo de executar os seus infames projectos; não lhe faltariam meios para satisfazer os seus vícios e dar largas à sua malvadez; seria o centro de um sorvedoiro que nunca teria descanso, que turbilhonaria com contínuo furor, engolindo todos os navios que dele se aproximassem. Seria como um tremor de terra que convulsionaria toda a terra e tornaria os seus habitantes párias e miseráveis... como eu!
Mal pronunciou estas palavras entrou em casa, fechou a porta com violência e correu os ferrolhos um após outro como se quisesse defender-se da presença de todos os seres da raça odiada, que o tinham desesperado até ao frenesi.
Earnscliff afastou-se do Moor com um sentimento misto de compaixão e horror, tentando adivinhar qual seria a causa tremenda e desastrosa que reduzira a semelhante estado de espírito um homem cuja maneira de falar indicava pertencer a alta classe e ter uma educação superior ao vulgar. Estava igualmente surpreendido por verificar que um homem que se encontrava havia tão pouco tempo na região e vivia por forma tão retirada, soubesse tanto sobre o carácter e vida dos seus habitantes.
"Não é para admirar - pensava - que com tão extensas informações, semelhante maneira de viver, com uma figura tão disforme e sentimentos de uma misantropia tão virulentos, este infeliz seja olhado como tendo ligações com o Inimigo do género humano.
O rochedo mais escalvado do deserto e o mais solitário na sua esterilidade, sente a influência da Primavera. Com o orvalho de Abril ou com os raios de sol de Maio, o musgo e as ervas que o revestem reverdecem. Também o coração completamente morto para todas as alegrias se enternece com lágrimas ou se alegra com o sorriso de uma mulher.
À medida que a estação avançava e o tempo se tornava mais agradável, via-se com mais frequência o Recluso sentado na larga pedra que estava diante da sua porta.
Um dia que ali se encontrava, um grupo de damas e cavaleiros, todos bem montados e com numerosa comitiva, atravessou a charneca a pouca distância da sua casa. Os cães, falcões e cavalos de mão aumentavam a confusão e no ar soavam os gritos dos caçadores e as notas das suas trompas. O solitário dispunha-se a entrar em casa quando avistou este grupo ruidoso, mas três damas, com os seus criados, deram uma volta, afastando-se dos outros e, para satisfazer a sua curiosidade, ao verem o sábio eremita de Mucklestane-Moor, apareceram tão subitamente diante dele que não lhe deram tempo a pôr em prática o seu desígnio.
A primeira soltou um grito e tapou os olhos, ao ver un homem tão disforme. A segunda soltou uma gargalhada histérica com a qual tentava ocultar o medo e perguntou ao Anão se lhe queria ler a sina. A terceira, que estava mais bem montada e era das três a mais agradável, avançou como se quisesse reparar a má educação das companheiras.
- Perdemo-nos dos outros e não sabemos encontrar o caminho através destes terrenos pantanosos para nos reunirmos ao grupo; vendo-o à porta, meu pai, voltámos para este lado...
- Cale-se - interrompeu o Anão - tão nova e já tão artificiosa! Veio aqui, bem o sabe, para gozar o contraste da sua mocidade, beleza e opulência com a minha velhice, pobreza e deformidade. Esse procedimento é digno da filha de seu pai, mas não convém à filha da sua mãe!
- Conheceu meus pais e conhece-me?
- Conheço. É a primeira vez que a vejo acordado, mas tenho-a visto muitas vezes em sonhos.
- Em sonhos?
- Sim, Isabel Vere - replicou o Anão - Que tens tu ou os teus a ver comigo quando estou acordado?
- Quanto está acordado - comentou uma das companheiras de miss Vere com irónica gravidade - os seus pensamentos fixam-se na sabedoria. A loucura só pode entrar na sua casa quando dorme.
- Contigo - respondeu o Anão num tom irritado que não convinha a um filósofo ou a um eremita - a loucura exerce continuamente ilimitado império, quer acordada ou a dormir.
- Deus nos abençoe! - exclamou a dama - É um profeta, com certeza!
- Tão certo como tu seres mulher - continuou o Anão - Disse mulher? Deveria ter dito uma dama... uma bela dama. Pediu-me para lhe ler a sina. É simples. Correr toda a vida atrás de loucuras que não merecem ser perseguidas e que serão postas de lado à medida que forem alcançadas; mas que continuarão a ser perseguidas desde a infância ainda vacilante até à velhice que se ampara com muletas. Na infância, brinquedos e divertimentos loucos, na mocidade, o amor e os seus absurdos, Spadilla e Basto na velhice, sucedem-se como objectos dignos da perseguição; flores e borboletas na Primavera; borboletas, sementes de cardo no Verão; folhas secas no Outono e no Inverno; tudo isto perseguido, tudo isto alcançado, tudo isto posto de lado. Agora vá-se embora. Já lhe li a sina.
- No entanto, tudo isso foi alcançado - replicou, rindo, a rapariga, que era prima de miss Vere - e isso já é alguma coisa. Nancy - continuou, voltando-se para a tímida rapariga que primeiro se aproximara do Anão
- Também queres que te leiam a sina?
- Não, por coisa alguma deste mundo. O que ouvi basta-me.
- Que tolice! - comentou miss Ilderton, oferecendo dinheiro ao Anão - Quero pagar como se um oráculo tivesse lido a sina a uma princesa.
- A verdade nem se vende nem se compra - respondeu o adivinho, repelindo o dinheiro com ar carrancudo e desdenhoso.
- Nesse caso, guardarei o dinheiro, mr. Elshender, para me auxiliar na corrida que tenho de fazer.
- Sim, precisará dele - replicou o cínico - Sem dinheiro, poucas pessoas seguem um plano com êxito e ainda menos serão seguidas... Pare, miss Vere - pediu no momento em que esta se dispunha a seguir as companheiras - Quero dizer-lhe uma coisa. Tem o que as suas companheiras desejariam possuir ou, pelo menos, aquilo que elas supõem possuírem; beleza, riqueza, estirpe e talento.
- Permita-me que acompanhe as minhas amigas, meu pai - respondeu miss Vere - Estou à prova de lisonjas e não quero que me leia a sina.
- Um instante - disse o Anão, agarrando-lhe a rédea do cavalo - não sou um adivinho vulgar, nem um lisonjeiro. Todas as vantagens que acabo de mencionar, todas e cada uma delas têm males correspondentes: um amor infeliz, afeições contrariadas, a triste perspectiva de um convento ou de um casamento odioso. Eu, que desejo o mal do género humano em geral, não posso desejar-lhe mais a si, tão grandes são as infelicidades que a atingirão no decurso da vida.
- Nesse caso, meu pai - respondeu miss Vere - deixe-me gozar o que está agora ao alcance da minha mão, como compensação à adversidade que me ameaça. É velho, pobre, a sua casa está longe de qualquer socorro humano, se estiver doente ou precisar de auxílio; a sua situação expõe-no, sob muitos aspectos, às suspeitas do vulgo, sempre pronto à prática da violência. Conceda-me o prazer de pensar que suavizei a sorte de uma criatura humana. Aceite o auxílio que posso oferecer-lhe, aceite-o por amor de mim, se não o quer aceitar por si mesmo, a fim de que, quando tiver de suportar os males que me profetizou, talvez com demasiada veracidade, eu não tenha o desgosto de pensar ter perdido as horas vividas num tempo mais feliz.
O velho respondeu com voz entrecortada e quase sem olhar para ela:
- Sim, é assim que devias pensar... É assim que devias falar, se alguma vez os discursos dos homens estão de acordo com os seus pensamentos. Mas não estão, não, não estão, infelizmente. No entanto... espera um instante, não saias daí enquanto eu não voltar.
Foi ao jardim e voltou com uma rosa apenas desabrochada.
- Arrancaste-me uma lágrima, a primeira que me assomou aos olhos há muitos anos. Aceita esta prova do meu reconhecimento por tão grande benefício. É apenas uma rosa, mas conserva-a e nunca te separes dela. Quando chegar a adversidade vem procurar-me, mostra-me essa rosa ou mesmo só uma pétala, embora ressequida como está meu coração... Estivesse eu num dos acessos mais terríveis da minha cólera contra o mundo que aborreço, ela acordaria no meu cérebro pensamentos mais suaves, e no teu coração, talvez, a esperança de um futuro melhor. Mas nada de mensagens nem de intermediários. Vem tu mesma e o meu coração e a minha porta, que estão fechados para todos os seres humanos, abrir-se-ão para ti e para os teus desgostos. Agora podes partir.
Largou a rédea e a rapariga afastou-se depois de ter agradecido àquele ser singular, tanto quanto lho permitiu a surpresa causada por tão extraordinário discurso, voltando-se muitas vezes para ver o Anão, que continuava à porta da cabana e seguia com a vista a sua retirada através do Moor para o castelo de Ellieslaw, até que a encosta da colina o ocultou a seus olhos, assim como a todo o grupo.
As outras raparigas começaram a brincar com miss Vere a propósito da conversa que acabava de ter com o famoso feiticeiro de Mucklestane-Moor.
- A felicidade acompanha a Isabel quer no castelo quer em qualquer parte onde esteja. O seu falcão abate todos os grous; os seus olhos ferem todos os corações e não deixa nada para as primas ou para as amigas. O próprio feiticeiro não pôde resistir aos seus encantos. Por piedade, minha querida Isabel, não deves ser tão açambarcadora ou, pelo menos, abre uma loja e vende às outras aquilo que não queres guardar para ti.
- Ceder-lhes-ia tudo de boa vontade e o feiticeiro
também - replicou miss Vere.
- O mágico será para a Nancy - declarou miss Ilderton - para compensar as suas dificiências. Ela nada tem de feiticeira.
- Que faria de um monstro tão horrendo, minha irmã? - replicou a mais nova das Ilderton - Fechei os olhos depois do primeiro olhar e afirmo-lhes que ainda o via, mesmo depois de ter cerrado as pálpebras.
- É pena - respondeu a irmã - Pensa sempre em escolher um admirador cujos defeitos desapareçam quando feches os olhos. Nesse caso, terei de ficar com ele e guardá-lo na sala onde minha mãe reúne as curiosidades do Japão, para demonstrar que a Escócia pode produzir um ente de carne e osso dez mil vezes mais feio do que a imaginação de Cantão e Pequim pode criar, por muitos pródigas que sejam em imortalizar monstros na porcelana.
- Existe qualquer coisa de triste na situação daquele homem - observou miss Vere - que não me deixa partilhar a tua alegria, Lucy, como sempre faço. Se não dispõe de recursos, como pode viver naquele deserto, afastado de todo o socorro humano? E se consegue obtê-los acidentalmente, a simples suspeita de que os possui não o exporá a ser roubado e assassinado pelos salteadores das vizinhanças?
- Esqueces que o consideram um feiticeiro? - replicou Nancy Ilderton.
- E se a sua magia diabólica vier a faltar-lhe, aconselhá-lo-ia a recorrer à magia natural - acrescentou a irmã - e a mostrar de repente aos salteadores a sua enorme cabeça e o seu rosto medonho. Estou certa de que nem o mais atrevido ousaria afrontá-lo duas vezes. Quanto a mim, desejaria ter à minha disposição aquela cabeça de Górgonas nem que fosse por meia hora.
- Para quê, Lucy? - perguntou miss Vere.
- Para fazer fugir do castelo o sombrio, hirto e pomposo sir Frederick Langley que está tanto nas boas graças do teu pai e tão pouco nas tuas. Afirmo que toda a vida ficarei reconhecida ao feiticeiro pela meia hora que perdemos a conversar com ele, livrando-nos da companhia daquele homem.
- Que dirias tu então - murmurou miss Vere em voz baixa para não ser ouvida pela irmã mais nova de Lucy, que caminhava à frente, pois o atalho era muito estreito para permitir que seguissem as três lado a lado - que dirias, minha querida Lucy, se te propusessem a companhia daquele homem para toda a vida?
- O que diria? - replicou ela - diria não, não, três vezes não, e cada vez mais alto até que me ouvissem em Carlisle.
- E sir Frederick diria então que dezanove recusas equivalem a meio consentimento.
- Isso depende da forma como essas recusas são expressas - declarou miss Lucy - Declaro que as minhas não teriam apelo.
- E se o teu pai te dissesse: "Consente ou...?
- Correria o risco das consequências de todos os seus "ou", fosse ele o pai mais cruel de todos os que os romances citam, para preencher a alternativa.
- Mas - disse miss Vere, insistindo - se ele te ameaçasse com uma tia católica, com uma abadia e o claustro de um convento?
- Então ameaçá-lo-ia com um genro protestante e ficaria encantada se tivesse ensejo para lhe desobedecer, sem que a minha consciência me acusasse. E agora, visto a Nancy não poder ouvir-nos, dir-te-ei sinceramente que terias desculpa perante Deus e perante os homens, se recusasses dar o teu consentimento para um casamento tão absurdo e lhe fugisses por todos os meios ao teu alcance. Um homem orgulhoso, falso, ambicioso, conspirando contra o Estado, infame pela sua avareza e crueldade, mau filho, mau irmão, duro e cruel para os pais... Minha querida Isabel, antes morrer do que casar com ele!
- Que meu pai nunca saiba que me deste esse conselho - disse miss Vere - ou então terás de dizer adeus ao castelo de Ellieslaw.
- Diria adeus ao castelo de Ellieslaw de boa vontade - respondeu a amiga - se tu também estivesses fora dele, sob a salvaguarda de um protector carinhoso, com tanta bondade como aquela de que a Natureza te dotou. Se meu pobre pai tivesse saúde, com que prazer ele te receberia e daria asilo, até que essa ridícula e cruel perseguição acabasse de todo.
- Deus o permitisse - replicou Isabel - Mas o teu pai, com a saúde tão débil, não se encontra em estado de me proteger contra os meios que meu pai empregaria para reclamar a pobre fugitiva.
- É esse o meu receio - replicou miss Ilderton Reflectiremos no assunto e havemos de encontrar algum meio. Agora que teu pai e os seus hóspedes parecem muito entretidos com misteriosa conspiração, a avaliar pelo número de mensageiros que vão e vêm e pelos rostos estranhos que aparecem e desaparecem, sem lhes sabermos os nomes, pela pressa em reunir e limpar as armas, pelo ar inquieto e nervoso de todos os homens que se encontram no castelo, não vejo inconveniente em que nós, se levassem as coisas até ao último extremo, organizássemos também uma conspiração como suplemento à deles. Espero que esses senhores não tenham reservado para si toda a ciência política. Há um conspirador que eu gostaria de trazer para o nosso conselho.
- Contanto que não seja Nancy - replicou miss Vere.
- Não é - afirmou miss Ilderton - Nancy, embora seja boa rapariga e muito dedicada aos teus interesses, seria péssima conspiradora, tão má como Renault e os seus subordinados na Veneza Protegida. Não; o meu conspirador é um Jaffier ou um Pedro, se preferes. No entanto, conquanto julgue que te daria prazer, não me atrevo a pronunciar o seu nome, com receio de que o rejeites. Não adivinhas? Qualquer nome que tem relação com a águia e com o rochedo, não águia em inglês mas por uma palavra escocesa que significa o mesmo (1).
- Com certeza não te referes ao jovem Earnscliff, Lucy? - disse miss Vere, cujas faces se cobriram de rubor.
- Que outro poderia ser, então? - replicou Lucy - Os Jaffier e os Pedro são raros nesta terra, embora se encontrem muitos Renault e Bedamar.
- Como podes falar com tanta leviandade, Lucy?
- As peças de teatro e os romances deram-te volta à cabeça. Além disso, independentemente do consentimento de meu pai, sem o qual nunca me casaria, não conheces as inclinações de mr. Earnscliff nem as minhas.
(1) - Earnscliff é um nome fictício composto de duas palavras escocesas : earn que significa Águia e cliff que significa rochedo.
Só as tuas ideias bizarras poderiam sugeri-las. Independentemente de tudo, existe a fatal querela.
- Quando mataram o pai de Earnscliff? - replicou Lucy - Há quanto tempo isso lá vai e nós já não vivemos nesses tempos de feroz animosidade, quando as questões entre famílias passavam de pais para filhos como uma partida de xadrez, em Espanha, quando se cometia um ou dois assassinatos, apenas para não deixar o assunto esquecer. Actualmente, procedemos com as nossas querelas como com os vestidos. Fazemo-los à moda e usamo-los nesta época. Pensamos tanto em vingar antigos agravos como em usar os gibões e calções golpeados dos nossos antepassados.
- Falas do assunto com muita leviandade, repito, Lucy - repreendeu miss Vere.
- Enganas-te, Isabel. Pensa que, embora teu pai estivesse presente nessa ocasião, nunca se acreditou ter sido ele quem vibrasse o golpe fatal. Além disso, nos tempos antigos, quando havia lutas entre os clãs, as alianças futuras estavam tão longe de ser impossíveis que a mão de uma filha ou de uma irmã era muitas vezes penhor de reconciliação. Ris da minha erudição, bebida nos romances? Mas afirmo-te que, se a tua história fosse escrita, como a de muitas heroínas menos infelizes e dignas de se tornarem célebres, o leitor sensato proclamar-te-ia a dama de Earnscliff, justamente por causa do obstáculo que consideras irremovível.
- Já não estamos na época dos romances - replicou miss Vere - mas na das tristes realidades, pois chegámos ao castelo de Ellieslaw.
- E sir Frederick Langley está à porta - acrescentou miss Ilderton - pronto a auxiliar as damas a descer dos seus cavalos. Preferia tocar num sapo. Vou desapontá-lo, escolhendo para meu escudeiro o velho Horsington, o criado da cavalariça.
Ao mesmo tempo, esporeou o cavalo, saudou ao passar sir Frederik, que se dispunha a pegar-lhe na rédea, prosseguiu num galope curto e foi cair nos braços do palefreneiro. Isabel gostaria de poder fazer o mesmo, se tivesse ousado, mas o pai estava presente, manifestando o seu desagrado no rosto sombrio, próprio para exprimir as paixões mais duras, e viu-se constrangida a receber as atenções do seu odioso adorador.
Nós que somos os guardas dos corpos durante a noite não consenfimos que nos acusem de saques e pilhagens durante o dia. Somos os guardas florestais de Diana, cavaleiros da sombra, favoritos da Lua.
SHAKESPEARE - Henrique IV - 1.ª parte
O solitário passara parte da tarde no jardim, onde tivera uma conversa com as jovens damas. À noite estava sentado no seu lugar favorito. O Sol, que descia no horizonte no meio de nuvens pesadas, acasteladas umas sobre as outras, vermelho como sangue, difundia estranha claridade pelo Moor e coloria com tons mais escuros o contorno das montanhas cobertas de urzes, que rodeavam aquele desolado local.
O Anão contemplava as nuvens cada vez mais escuras devido aos vapores que se amontoavam, e quando um raio do Sol, prestes a desaparecer, mais intenso, de um vermelho sombrio, iluminava o rosto do solitário, poder-se-ia tomá-lo pelo demónio da tempestade que se preparava, ou por qualquer gnomo saído das entranhas da terra devido aos indícios subterrâneos que anunciavam a sua aproximação.
Enquanto se encontrava naquela posição, com os olhos fixos no céu cada vez mais escuro e mais tempestuoso, um cavaleiro chegou a galope, parou diante dele como para dar tempo ao cavalo a tomar fôlego e saudou-o com ar atrevido e ao mesmo tempo de embaraço.
O cavaleiro era alto, seco e magro, mas de aparência atlética, ossudo e nervoso como alguém que passou toda a sua vida em exercícios violentos, que impedem o corpo de aumentar de volume, enquanto os membros enrijam e a força muscular aumenta. O rosto, de feições duras, crestado pelo sol, semeado de sardas, tinha uma expressão sinistra de violência, de audácia e de velhacaria, facilmente descoberta por quem o observasse com atenção. Os cabelos, de um ruivo carregado, sobrancelhas quase vermelhas, encimando dois olhos acinzentados e penetrantes, completavam o retrato do cavaleiro, cuja presença era sempre de mau agoiro. Trazia uma pistola no arção e outra no cinto, apesar do cuidado que tivera em as dissimular, abotoando o gibão. Cobria a cabeça com um capacete de aço enferrujado e vestia um gibão de pele de búfalo de corte antiquado, luvas, uma das quais, a da mão direita, estava guarnecida de pequenas escamas de ferro, como os antigos guantes. Comprido sabre completava o armamento.
- Muito bem! - comentou o Anão - A pilhagem e o assassínio estão de novo a cavalo?
- A cavalo ? - respondeu o bandido - De facto, Elshie, a tua ciência médica pôs-me em estado de montar outra vez o meu baio.
E todas as promessas de emenda que fizeste durante a doença foram esquecidas? - continuou Elshender.
- Foram postas de lado com as tisanas e com os remédios - respondeu o descarado convalescente - Estás farto de saber, Elshie, pois dizem conheceres bem a personagem, que
O diabo adoeceu
E ser frade apeteceu
Mas logo que se curou
O desejo passou
- Tens razão - replicou o solitário - Seria mais fácil tirar ao lobo o seu instinto de matar ou impedir o corvo de sentir o cheiro dos cadáveres, de que te curar das tuas malditas inclinações.
- Que hei-de fazer? São inatas em mim até à medula dos ossos. Todos os rapazes da família de Westburnflat foram, nestas dez últimas gerações, ladrões e amigos da pilhagem. Todos eles se embriagavam, levavam boa vida, tiravam cruel vingança da mais leve ofensa e nunca lhes faltava dinheiro, embora não soubessem ganhá-lo.
- É isso - concordou o Anão - E tu és lobo mais feroz do que aqueles que de noite assaltam os currais. Para que missão infernal te puseste a caminho?
- A tua ciência não to diz?
- Sei apenas que tens maus desígnios, que os actos serão piores e os resultados terríveis.
- E por isso gostas mais de mim, não é verdade, pai Elshie? - replicou Westburnflat - Não o tens dito tantas vezes?
- Tenho razões para gostar de todos aqueles que representam um flagelo para os seus semelhantes - declarou o solitário - E tu és um dos que sentem prazer em derramar sangue.
- Não, não! Não sou sanguinário, salvo se me opõem resistência, o que irrita um homem, bem sabes. Acho que não é mau cortar a crista a um galo novo que cantou demasiado alto e com demasiado orgulho.
- Não se trata do jovem Earnscliff, pois não? - perguntou o solitário com certa emoção.
- Ainda não se trata do jovem Earnscliff - respondeu o bandido - Mas a sua vez chegará, se não tomar isto como aviso e não voltar à cidade do seu cantão, onde estaria melhor do que nesta região, correndo as charnecas e destruindo os poucos gamos que nos restam; pretende proceder como magistrado e escreve cartas às altas personagens de Auld Reekie (1) sobre a perturbação que reina neste cantão. Que tome conta consigo!
- Nesse caso, trata-se de Hobbie de Heugh-Foot - disse Elshie - Que mal te fez o rapaz?
- Mal? Pouco. Soube que afirmava ter eu deixado o Ba'spiel na Fastern's E'en por ter medo dele, quando afinal foi por causa do guarda florestal, que tinha um mandato de prisão contra mim. Farei frente à inimizade de Hobbie e à de todos do seu clã. Mas não é
(1) - A velha enfumarada, referindo-se a Edimburgo.
tanto por isso como para lhe dar uma lição e ensinar-lhe a não falar levianamente daqueles que valem mais do que ele. Afirmo-te que perderá as melhores penas das suas asas antes do dia de amanhã. Adeus, Elshie. Tenho alguns rapazes à minha espera no bosque. Voltarei amanhã e contar-te-ei uma linda história como recompensa pelas tuas receitas.
Antes que o Anão tivesse tempo de reflectir sobre a resposta que deveria dar-lhe, o bandido de Westburnflat esporeou o cavalo. Fazendo um desvio por causa das pedras que estavam espalhadas por todos os lados, o animal partiu a galope. O cavaleiro esporeava-o sem dó nem piedade. Furioso, o cavalo empinou-se, escouceou, mergulhou e ergueu as quatro patas do chão, saltando como um gamo. Tudo em vão. Implacável, o cavaleiro manteve-se na sela, como se fizesse corpo com o cavalo que montava e após curta, mas violenta luta, obrigou o animal dominado a percorrer o atalho numa velocidade louca e em breve
desapareceu da vista do solitário.
"Este salteador - murmurou o Anão - este celerado frio, duro e implacável, que só pensa em cometer crimes, tem músculos, nervos e membros, força e actividade para constranger um animal mais nobre do que ele a conduzi-lo para o ponto que vai ser teatro doutro crime. Enquanto eu, se tivesse a fraqueza de desejar pôr a sua vítima de sobreaviso e de salvar uma família sem recursos, veria inutilizadas todas as minhas boas intenções pela decrepitude que me prende aqui. E por que razão desejaria eu precavê-lo? Que têm a ver a minha voz de coruja, o meu corpo aleijado, as minhas feições disformes com uma das mais belas obras da natureza? Os meus benefícios não são quase sempre recebidos com sentimentos de mal encoberto horror e repulsa? Porque me interessaria eu por uma raça que me considera um monstro, um ser proscrito e me trata como tal? Não. Por toda a ingratidão que tenho recebido, pelas injúrias sofridas, pela prisão que suportei, pelas pancadas que me deram e pelas cadeias com que me sobrecarregaram, sufocarei todo o sentimento de compaixão que se eleve no meu coração a despeito da minha vontade. Não serei tão insensato que me afaste dos princípios estabelecidos, como acontece sempre que apelam para os meus sentimentos. Como se eu, de quem ninguém tem compaixão, fosse obrigado a tê-la fosse por quem fosse! Deixar o carro do destino, armado de foices, correr à vontade através da massa desolada e trémula da humanidade! Não serei tão louco que tente travá-lo com este corpo decrépito, com este vulto informe de mortalidade, lançando-me diante das suas rodas para que o Anão, o feiticeiro, o corcunda, possa salvar do perigo alguém mais belo e mais activo do que eu e para que toda a gente louve esta mudança de atitude. Não, nunca... No entanto, aquele Elliot... aquele pobre Hobbie, tão novo, tão valente, tão franco, tão... não quero pensar mais nisto. Não poderia socorrê-lo, mesmo que o desejasse, e estou resolvido, firmemente resolvido, a não o socorrer, mesmo que um desejo manifestado por mim fosse o penhor da sua salvação.
Terminando este solilóquio, voltou para a cabana, a fim de se abrigar da trovoada que se aproximava com rapidez e da chuva que já começava a cair em grossas e pesadas gotas. Os últimos raios de sol desapareceram, dois ou três trovões ecoaram ao longe, sucedendo-se com curtos intervalos, repercutindo-se pelas montanhas próximas, como os rumores de uma batalha que se travasse ao longe.
Orgulhosa ave da montanha, as tuas penas serão arrancadas
Volta para a tua casa agora erma. Volta, pois, só o negrume das cinzas indicará onde ela se erguia, assim como os grifos de uma mãe desesperada, vendo os filhos morrer de fome.
THOMAS CAMPBELL
A noite foi tempestuosa e escura, mas a manhã rompeu como que lavada pela chuva. O Mucklestane-Moor, com os seus montículos disseminados pela charneca, separados por grandes poças de água lodosa, tomava um aspecto quase risonho, sob a influência do céu sereno, da mesma forma que um sorriso de bom humor pode conferir inexprimível encanto ao semblante mais carrancudo.
As urzes eram bastas e estavam floridas. As abelhas, que o solitário criava no recinto em volta da cabana, saíam dos cortiços, voavam por todos os lados e enchiam os ares com o zumbido da sua actividade. Quando o velho saiu de casa, as duas cabras aproximaram-se dele e lamberam-lhe a mão, como agradecimento pelo pasto que lhe dava do seu jardim.
- Com vocês, pelo menos, não existe deformidade que possa alterar os sentimentos de gratidão para com o seu benfeitor. O corpo mais bem proporcionado, mais perfeito do que o talhado pelo melhor estatuário, seria objecto de indiferença ou de alarme se ele se apresentasse em vez do corpo disforme, para lhes prestar os cuidados habituais. Quando vivia na sociedade, recebi alguma vez provas de gratidão como estas? Não. Os criados que criei de pequenos faziam caretas quando se encontravam atrás de minha cadeira. O amigo a quem amparei com a minha fortuna e por quem cheguei a manchar... - calou-se, agitado por convulsiva tremura - esse, pensou que eu estaria melhor entre os seres privados de razão, suportando todas as torturas que não têm vergonha de lhes impor e as privações que têm a crueldade de lhes fazer sofrer e privou-me de todo o contacto com os homens. Só Hubert... mas esse mesmo acabará por me abandonar. São todos os mesmos: um conjunto de maldade, de egoísmo e de ingratidão. Miseráveis, criminosos até nas suas afeições e de uma dureza de coração tal que até nos seus agradecimentos a Deus pelo sol que os aquece e pelo ar que respiram, são hipócritas".
Enquanto estava mergulhado nestas sombrias reflexões, ouviu o tropear de um cavalo do lado oposto da vedação e uma voz forte, de timbre baixo, cantar com a alegria própria de um espírito isento de preocupações:
Prudente Hobbie Elliot, prudente Hobbie Elliot, agora Prudente Hobbie Elliot eu quero ir contigo.
No mesmo instante, um galgo educado para a caça ao gamo saltou por cima da vedação. Os caçadores daquela região sabem bem que a forma e o odor das cabras se parece por tal forma com o dos gamos que estão habituados a caçar, que os galgos muitas vezes se atiram a elas. O cão de Hobbie atirou-se e estrangulou uma das cabras do eremita, enquanto Hobbie Elliot aparecia e saltou rapidamente do cavalo; mas não conseguiu tirar o pobre animal das fauces do cão senão quando estava prestes a expirar. O Anão contemplou por momentos a sua favorita, debatendo-se na agonia, e quando o animal estirou as patas e soltou o último suspiro, tirou da bainha grande faca de mato ou uma espécie de punhal que trazia debaixo do casaco e dispunha-se a lançar-se sobre o cão, quando Hobbie, adivinhando-lhe os desígnios, gritou, segurando-lhe o braço:
- Não toques no cão, bom homem, não ataques o cão; não, não. Killbuck não deve ser castigado dessa maneira."
O Anão voltou a sua raiva contra o moço caçador e num esforço vigoroso, muito maior do que Hobbie poderia esperar de um corpo tão pequeno, libertou o braço e apontou o punhal ao peito de Elliot. Tudo isto foi muito rápido e o solitário irritado poderia tê-lo mergulhado no coração do rapaz, se não fosse detido por um pensamento íntimo que o fez atirar o punhal fora.
- Não! - exclamou, privando-se assim do instrumento da sua vingança - segunda vez, não, segunda vez, não!
Hobbie recuou um ou dois passos, transtornado e ainda trémulo pelo perigo em que o havia colocado um ente na aparência tão fraco.
"Tem o diabo no corpo, pela força e pela maldade"
- murmurou.
Mas logo apresentou desculpas pelo incidente que havia provocado a ira do Anão:
- Não pretendo desculpar Killbuck - disse - e afirmo-te, Elshie, que estou tão desolado como tu pela desgraça que aconteceu; vou mandar-te duas cabras e duas ovelhas, como reparação por este desastre. Um homem sensato como tu não devia irritar-se com um pobre animal, privado da palavra e da razão. A cabra é como prima do gamo e ele limitou-se a obedecer ao instinto que lhe deu a Natureza. Se fosse um cordeirinho, o caso teria sido diferente. Devias ter ovelhas e não cabras, Elshie, numa terra onde existem tantos cães educados para caçar gamos. Vou mandar-te umas e outras.
- Miserável! - exclamou o Anão - A tua crueldade destruiu uma das únicas criaturas vivas que me olhavam com bondade.
- Meu caro Elshie, estou desolado por teres um motivo para me falar assim e afirmo-te não haver sido por minha vontade que este desastre aconteceu. Devia lembrar-me das tuas cabras e prendido os cães. Garanto-te que preferia tê-lo visto estrangular uma das melhores cabras do meu rebanho. Vamos, meu amigo, esquece isto e perdoa-me... estou tão aborrecido como tu. Mas vou casar e isso, creio eu, transtorna-me um pouco a cabeça. Vê os meus irmãos que trazem comida para a boda ou pelo menos uma parte. Vêm num trenó, pela estrada de Rider's Slack, três cabritos monteses como nunca se viram correr nas campinas de Dallomlea, como diz a canção. Não puderam vir directamente por causa do mau caminho. Mandar-te-ei um bocado de caça, salvo se não a aceitares por ter sido Killbuck que a apanhou.
Durante este discurso, com o qual o bom rapaz se esforçava por acalmar por todas as formas a cólera do irritado Anão, este conserva-se de olhos baixos como entregue a profunda meditação. Por fim, Hobbie ouviu-o exclamar:
- Sim, foi de facto o seu instinto, a lei da Natureza. O forte derruba e mata o fraco; o rico despoja o pobre; o que é feliz ou tão tolo que assim se considere, insulta a miséria do infortunado e rouba-lhe parte das suas consolações. Vai-te embora, tu que conseguiste encontrar forma de elevar ao auge o infortúnio do mais miserável dos mortais; tu que me privaste do que eu considerava como uma fonte de consolação. Retira-te e vai procurar a felicidade que julgas encontrar em tua casa!
- Não quero sair daqui enquanto não me acompanhares ou, pelo menos, não me prometas ir assistir ao meu casamento, na segunda-feira. Teremos uma centena de bons e valentes Elliot para correr a "brouze" (1). Nunca se viu coisa igual desde o tempo do velho Martin
(1) - Corrida a cavalo que se realiza em todos os casamentos na Escócia.
de Preakin-tower. Mando-te o trenó puxado por um lindo cavalo.
- Que dizes! É a mim a quem propões voltar para a sociedade comum dos homens! - exclamou o Anão com o maior desdém.
- Comum! - protestou Hobbie - Não tão comum como supões. Os Elliot foram sempre considerados de boa família.
- Vai-te embora, retira-te! - repetiu o Anão - E possas tu encontrar em tua casa tanto mal como causaste. Se não vou contigo, vê se podes fugir ao que os meus companheiros, o ódio e a miséria, levaram à tua porta antes de chegares.
- Não fales assim, Elshie. Bem sabes que ninguém forma boa opinião da tua bondade. Agora só quero dizer-te uma palavra. Acabas de me dar a entender que me desejas mal assim como aos meus; se acontecer alguma desgraça a Grace - o que Deus não permita - a mim ou aos meus cães, se não me considerar em segurança ou sofrer qualquer prejuízo na minha pessoa, propriedades ou dinheiro, não esquecerei a quem o devo.
- Vai-te embora, rústico! - gritou o Anão - Vai para a tua casa, para junto dos teus e pensa em mim quando vires o que aconteceu.
- Bem, bem - respondeu Hobbie, montando a cavalo - nada se ganha em discutir com aleijados; são sempre conforme a Natureza os fez. Mas quero dizer-lhe, vizinho, que se as coisas se passarem bem, em atenção a Grace Armstrong, lhe meterei um susto, se conseguir encontrar uma barrica alcatroada nas cinco paróquias.
Mal pronunciou estas palavras, afastou-se. Elshie, depois de o seguir com um olhar de desprezo e indignação, pegou na pá e num alvião e começou a abrir uma cova para enterrar a sua favorita.
Leve assobio e as palavras : "Hist, Elshie, hist!" obrigaram-no a interromper a triste operação e a erguer os olhos. Viu diante de si o bandido ruivo de Westburnflat. Como o assassino de Banco, tinha sangue no rosto, nas rosetas das esporas e nos flancos do cavalo.
- Então, bandido, já realizaste a tua obra? - perguntou o Anão.
- Está concluída, não tenhas medo. Quando monto a cavalo, os meus inimigos podem chorar com antecedência. Esta manhã, em Heugh-Foot já não há risos nem sol. Estábulos vazios, e choros e lamentações por causa da noiva.
- Por causa da noiva? - estranhou o Anão.
- O Charles Cheat-the-Woodie, como nós lhe chamamos, prometeu-me guardá-la no Cumberland até passar a trovoada. Durante a luta, viu-me e reconheceu-me, porque a mascarilha caiu-me por instantes. Penso que nenhum de nós estaria seguro se ela ficasse aqui, porque os Elliot são muitos e quer tenham razão ou não, sabem sustentar-se uns aos outros. Agora, o fim principal da minha visita é pedir-te que me indiques onde posso guardá-la em segurança.
- Queres assassiná-la? - perguntou o Anão.
- Não, não - afirmou Westburnflat - Não o farei, se puder proceder de outro modo. Mas diz-se que se pode mandar pessoas para as colónias, embarcando-asnos portos e que, se forem bonitas raparigas, as pagam bem. O gado feminino falta por lá, enquanto por aqui sobeja. Mas penso fazer outra coisa por ela. Há uma dama que, de boa ou má vontade, terá de ir para o estrangeiro, se continuar a ser teimosa. Dar-lhe-ei Graça como aia... é boa rapariga. Hobbie vai ter uma manhã alegre quando chegar a casa, quando não encontrar a noiva nem a propriedade.
- Não tens compaixão dele?
- Teria ele compaixão de mim se me visse subir a encosta do castelo de Jeddart? (1) - respondeu o bandido - No entanto, fiquei aborrecido com este caso da rapariga. Mas depressa arranjará noiva e tanto importa uma como outra. Agora, dize-me, já que gostas tanto de ouvir descrever expedições, já ouviste alguma melhor do que a desta manhã?
- O ar, o oceano e o fogo - murmurou o Anão como se falasse consigo mesmo - o terremoto, as tempestades e o vulcão, são brandos comparados com o ódio deste homem. Mas que é o bandido senão um homem mais esperto do que os outros para realizar os seus fins? Escuta, miserável, vai onde te mandei já.
- A casa do intendente?
- Sim, E dize-lhe que Elshender o Recluso lhe ordena que te dê dinheiro. Mas, ouve bem. Quero que a rapariga seja posta em liberdade e sem lhe suceder mal. Restitui-a à família depois de a obrigares a jurar que não revelará o teu nome.
- Jurar? - protestou Westburnflat - E se ela falta
(1) - Local para execução dos criminosos.
ao juramento? As mulheres têm fama de não cumprirem as suas promessas. Um homem sensato como tu deve sabê-lo. E sem ter sofrido nada? Quem sabe o que pode suceder se a deixar muito tempo em Tinning Beck? Charler Cheat-the Mood é um perfeito homem. No entanto, se o dinheiro que me dás subir a vinte peças, posso garantir-te que a rapariga será restituída à família dentro de vinte e quatro horas.
O Anão tirou as tabuinhas da algibeira, traçou algumas linhas e arrancou a folha, que entregou ao bandido.
- Aqui tens. Mas toma atenção e não tentes enganar-me com a tua astúcia; se te atreves a desobedecer às minhas ordens, pagarás com a tua miserável vida.
- Sei quanto vale o teu poder sobre a terra - respondeu ele, baixando os olhos - venha de onde vier, podes fazer o que qualquer outro homem não faria, seja pelos teus conhecimentos, seja pela faculdade de adivinhar. E o ouro cai na tua casa como as folhas dos freixos, numa manhã de Outono. Não tenciono desobedecer-te.
- Então desaparece e livra-me da tua odiosa presença - ordenou o Anão.
Sem protestar, o bandido esporeou o cavalo e desapareceu.
Entretanto, Hobbie Elliot prosseguira rapidamente o seu caminho, com espírito perturbado por esse receio vago, mas esmagador, que vulgarmente se chama um mau pressentimento. Antes de atingir o cimo da colina donde podia ver a casa, encontrou a sua ama, personagem importante em todas as casas escocesas, tanto nas grandes como nas da classe média. A união que se cria entre a ama e a criança que amamenta é considerada como um laço muito estreito e muito íntimo para ser quebrado. Acontece muitas vezes a ama estabelecer-se definitivamente em casa da família da criança, prestando o seu auxílio aos criados e sendo tratada com o maior respeito e atenções.
Quando viu a velha Annaple, com o seu casaco vermelho e chapéu preto, Hobbie pensou: "O que teria acontecido à minha velha ama para se encontrar tão longe, ela que nunca se afasta mais do que um tiro de espingarda da porta de casa? Talvez viesse apanhar airelas, abrunhos ou outros quaisquer frutos para fazer compotas e tortas para a festa de segunda-feira... Mas não consigo esquecer as palavras daquele maldito feiticeiro. Qualquer pequena coisa me faz recear uma desgraça. Killbuck, meu amigo! Não terias mais gamos e cabras para matar senão a favorita do Elshie, de preferência a qualquer outra?
Entretanto, Annaple, com o semblante mais triste do que um volume de tragédias, chegou junto dele e agarrou-lhe na rédea do cavalo. O seu olhar reflectia tão grande desespero que Hobbie nem teve coragem para lhe perguntar a causa.
- Meu filho! - exclamou a ama - não vás mais longe! É um espectáculo para matar qualquer pessoa, quanto mais a ti!
- Em nome do Céu, Annaple, que sucedeu! - perguntou o cavaleiro, estupefacto, tentando libertar a rédea das mãos da velha - Por amor de Deus deixa-me ir ver o que se passa.
- Meu Deus! - continuou a ama - Para que vivi eu para ver um dia como este! A herdade foi destruída; os currais não são mais do que um montão de cinzas e todo o gado foi roubado. Não vás mais longe. O teu coração ficaria despedaçado se visses o que os meus olhos viram esta manhã, meu pobre filho.
- Quem se atreveu a fazer uma coisa dessas? Larga a rédea, Annaple. Onde está a avó e minhas irmãs? Onde está Grace? Santo Deus! As palavras do feiticeiro ainda me soam aos ouvidos!
Saltou do cavalo para afastar o obstáculo constituído por Annaple e, montando de novo, subiu rapidamente a colina e em breve teve diante dos olhos o espectáculo descrito pela velha ama. Com efeito, era despedaçador. A casa, que à partida deixara erguida junto do ribeiro que descia a montanha, rodeada de uma aparência de abundância, resultante das culturas, não era agora mais do que um montão de ruínas enegrecidas pelo fogo. Via-se fumo a sair dos escombros, rodeados por alguns pedaços de parede ainda de pé. O celeiro do feno e o dos cereais, os estábulos onde recolhia as numerosas cabeças de gado, tudo quanto constituía a riqueza do lavrador, tinha sido destruído ou roubado numa só noite. Ficou uns momentos imóvel e depois exclamou: "Estou arruinado! Completamente arruinado! Malditas sejam as riquezas deste mundo! Ainda se não fosse na semana anterior ao meu casamento! Mas não quero ser como as crianças e ficar para aqui a chorar a minha desgraça.
Se tiver a felicidade de encontrar vivas minha avó, minhas irmãs e Grace, irei servir nas guerras da Flandres, como fez meu avô, sob a bandeira de Bellenden, com o velho Buccleuch. Mas é preciso que prove a minha coragem, senão elas perderão a sua". Apelando para toda a sua firmeza, desceu a colina, resolvido a ocultar o seu desespero e dar à família as consolações de que ele precisava mais do que ninguém. Os habitantes do vale, mais próximos, principalmente os que usavam o mesmo apelido, já se encontravam ali reunidos. Os mais novos estavam armados e pediam vingança em altos gritos, embora ignorassem sobre quem a teriam de exercer. Os mais velhos tomavam medidas para socorrer a infeliz família. O casebre de Annaple, situado um pouco mais abaixo, na margem do ribeiro, a pouca distância do lugar de desolação, fora arranjado à pressa para servir de refúgio à avó e às raparigas, com alguns móveis e outros objectos fornecidos pelos vizinhos, pois pouco haviam podido salvar das chamas.
- Vamos ficar aqui todo o dia a olhar para as ruínas da casa do nosso parente? - perguntou um rapaz - Cada uma destas pedras denegridas é uma vergonha para nós. Montemos a cavalo e vamos em perseguição do autor desta desgraça. Onde poderemos encontrar cães?
- Em casa de Earnscliff - indicou outro - Mas há muito que ele partiu com seis cavaleiros para ver se descobre os vestígios dos salteadores.
- Sigamo-lo e levantemos toda a região. À medida que avançarmos, o bando irá aumentando. Marcharemos contra os salteadores do Cumberland. Pilhemos, incendiemos, matemos. Os mais próximos serão os primeiros a sofrer.
- Cala-te, estouvado! - ralhou um velho – Não sabes o que dizes. Queres atear a guerra entre dois países que estão em paz?
- Serve de muito relembrar tantas vezes as proezas dos nossos avós - replicou o rapaz - se temos de ficar aqui e ver a sangue-frio incendiar a casa dos nossos amigos, sem erguer um dedo para nos vingarmos? Era assim que procediam os nossos pais?
- Não digo para não nos vingarmos da injúria feita ao Hobbie e à sua família, pobre rapaz, mas, antes de mais nada, precisamos de ter a lei por nós nestes tempos que vão correndo - replicou o prudente velho.
- Além disso - disse outro velho - não creio existir alguém que saiba o meio de resolver uma questão, para lá da fronteira. Só Tam de Whittram o poderia dizer se não tivesse morrido no Inverno.
- Sim - concordou um terceiro - Ele fazia parte da expedição que foi até Thirlwall, no ano seguinte ao combate de Philiphaugh.
- Ora ! - contrariou um dos partidários da discórdia - Não é preciso ser sábio para se saber isso. Trata-se apenas de prender um bocado de turfa a arder na ponta de uma lança, forcado ou foice, fazer soar a trompa e soltar o grito de guerra, e então é permitido seguir o que nos pertence até Inglaterra e recuperá-lo à força ou apoderarmo-nos da propriedade de um inglês, contanto que não seja mais valiosa do que a que perdemos. É esta a antiga lei do Border feita em Dundrennan, no tempo de Douglas o Negro. Não tem nada que saber, é claro como o dia.
- Vamos, rapazes, a cavalo - gritou Simão - Levamos connosco o velho Cuddie, o chefe dos criados. Conhece o valor do gado e dos móveis que perdemos. Os estábulos e os celeiros de Hobbie estarão cheios antes de anoitecer e se não pudermos reconstruir a casa tão depressa, deixaremos a de qualquer inglês mais rasa do que Heugh-Foot está agora. São represálias justas em qualquer país do mundo.
Esta arrebatada proposta foi recebida com aplausos pelos outros rapazes que faziam parte do bando, quando algumas vozes disseram: "Aí vem Hobbie, pobre rapaz! Deixemo-nos conduzir por ele".
Hobbie, a principal vítima do desastre, chegou à base da colina, avançou por entre a multidão, sem poder, por causa do tumulto dos seus sentimentos, fazer outra coisa além de receber e retribuir apertos de mão com os quais os vizinhos e parentes lhe manifestavam, com muda linguagem, a parte que tomavam na sua desgraça. Quando apertou a mão de Simon Hackburn, a sua angústia permitiu-lhe enfim dizer algumas palavras:
- Obrigado, Simon, obrigado vizinhos, sei o que todos gostariam de me dizer. Mas onde estão elas, onde estão?
Calou-se, como se tivesse medo de nomear os alvos da sua inquietação. Com o mesmo sentimento, sem lhe responderem, os parentes indicaram-lhe o casebre, para o qual ele se precipitou com o ar alucinado de um homem que deseja conhecer imediatamente toda a extensão da sua desgraça. Uma expressão geral de profunda compaixão acompanhou-o:
- Pobre Hobbie! Pobre rapaz!
- Vai agora saber o pior que lhe aconteceu - disse um.
- Tenho esperança de que Earnscliff encontre quem possa dar-lhe informações sobre a infeliz rapariga - comentou outro.
Foram estas as palavras daqueles homens, que, não tendo chefe que os guiasse, aguardaram pacientemente o regresso de Hobbie, resolvendo deixar-se guiar pelas suas instruções.
A entrevista de Hobbie com a família foi enternecedora. As irmãs precipitaram-se-lhe nos braços e sufocaram-no, por assim dizer, com carícias, como se quisessem impedi-lo de olhar em volta de si e notar a falta daquela a quem mais queria.
- Que Deus te abençoe, meu filho. Só Ele pode socorrer-nos quando o socorro dos homens é para nós como canavial devastado!
Foram estas as palavras com que a boa senhora acolheu o seu infeliz neto. Ele relanceou em volta de si um olhar ansioso, enquanto as duas irmãs lhe pegavam nas mãos e a terceira estava suspensa do seu pescoço.
- Vejo-as, conto-as. A avó, Lilias, Jean e Annot; mas onde está... - hesitou e, fazendo um esforço, concluiu - onde está a Grace? Não é este o momento de brincar e de se esconder.
- Meu irmão! A nossa pobre Grace!
Foi esta a resposta que pôde obter a todas as suas perguntas, até que a avó se levantou e, libertando-o dos braços das irmãs que choravam, o obrigou a sentar. com a serenidade de uma crente sincera, semelhante ao azeite que se espalha sobre as ondas para acalmar a tempestade, e que é como um bálsamo para as dores mais cruéis, disse-lhe:
- Meu filho, quando o teu avô foi morto na guerra e me deixou com seis órfãos em volta de mim, quase sem pão para comer e apenas com um tecto para nos cobrir, tive a força, não uma força haurida em mim mesma, mas a coragem de dizer: "Seja feita a vontade do Senhor!" Meu filho, a nossa casa foi ontem à noite atacada por bandidos armados e mascarados; roubaram tudo, destruíram tudo e raptaram a pobre Grace. Pede a Deus forças para dizeres: "Que a Sua vontade seja feita!"
- Minha mãe, minha mãe! Não me peça uma coisa dessas... não poderia fazê-lo. . . sou pecador, um pecador endurecido! Bandidos mascarados e armados! Grace raptada! Dê-me a espada e a mochila de meu pai. Quero vingar-me, tenha eu de ir procurá-la ao abismo das trevas.
- Meu filho, meu filho! - exortou a idosa senhora - Não te revoltes contra a chibata que te açoita. Ninguém sabe quando Deus determina retirar a sua mão de sobre as nossas cabeças. O jovem Earnscliff - Deus o abençoe - foi em perseguição dos bandidos com Davie de Stenhouse e com aqueles que primeiro se apresentaram. Ordenei-lhes que deixassem a casa e os móveis arderem e corressem atrás dos bandidos para salvar Grace, e três horas depois do incêndio, Earnscliff e os seus companheiros já tinham passado o Fell. Que Deus o abençoe! É um verdadeiro Earnscliff, o digno filho de seu pai, um leal amigo.
- Um verdadeiro amigo, sim, Deus o abençoe! concordou Hobbie - Vamos, partamos, auxiliemo-os na perseguição.
- Meu filho, antes de te lançares no perigo que eu te oiça dizer: "Seja feita a vontade de Deus!"
- Não mo exija, mãe, não mo exija, já, não.
Ia transpor a porta quando, olhando para trás, viu a avó numa atitude de muda aflição. Voltou sobre os seus passos e lançou-se-lhe nos braços, exclamando:
- Sim, avô, que a vontade de Deus seja feita, já que isso pode consolá-la na sua aflição.
- Seja ela guia dos teus passos e faça que no regresso possas dizer também : "Que o Seu nome seja glorificado!"
- Adeus, mãe! Adeus minhas queridas irmãs! - despediu-se Elliot.
E saiu a correr do casebre.
Agora, a cavalo e avante gritou o "laird", A cavalo e lança em punho, depressa Aqueles que não quiserem ir a Telfers kye Nunca mais me olhem de frente
Balada do Border
- A cavalo! A cavalo! A toda a brida! - gritou Hobbie, dirigindo-se aos seus parentes.
Muitos deles já haviam montado; e, enquantoElliot se armava e se equipava, o que não era fácil com toda aquela confusão, por todo o vale ecoavam os gritos de aprovação dos amigos.
- Isso, isso! - exclamava Símon de Hackburn - é assim que devemos proceder, Hobbie. Que as mulheres fiquem em casa, chorando e lamentando-se. Mas os homens devem fazer aos outros aquilo que eles lhe fizeram. É a Escritura que o ordena.
- Cala-te, rapaz I - ralhou um dos mais velhos com ar severo - Não sabes o que dizes.
- Já tiveste notícias, Hobbie? Alguma informação? -perguntou o velho Dick de Dingle-Não sejam precipitados, amigos.
Para que servem os sermões neste momento? -
replicou Simon - Se não pode dar-nos auxílio, pelo menos, não impeça de o dar aqueles que podem.
- Queres vingar-te antes de saber quem te ofendeu, rapaz?
- Supõe que não conhecemos o caminho da Inglaterra tão bem como nossos pais? Todos os nossos males vêm desse lado. É um dito bem verdadeiro. Portanto, sigamos por esse caminho, como se o diabo nos perseguisse.
- Seguiremos as pegadas dos cavalos de Earnscliff através da planície - declarou um dos Elliot.
- Segui-los-ei através do Moor mais escuro, ao longo do Border, embora tivessem realizado ali uma feira, na véspera - afirmou Hugh, o ferrador de Ringleburn - sou eu sempre quem lhe ferra o cavalo.
- Larguem os cães - gritou alguém - Onde estão eles?
- O sol há muito que nasceu - observou outro - e o orvalho já secou. Nunca mais encontraremos a pista.
Hobbie assobiou aos cães, que andavam em volta dos escombros da casa e enchiam os ares com lamentosos uivos.
- Agora, Killbuck - disse para o cão - emprega toda a tua ciência.
Depois, como se fulminante recordação lhe tivesse acudido, acrescentou:
- Aquele demónio avisou-me. Deve saber o que se passa, seja pelos bandidos ou pelos diabos. Tem de mo dizer, nem que corte aos bocadinhos com o meu sabre aquele seu horrível corpo.
Deu à pressa algumas instruções aos companheiros.
- Quatro de vocês vão com o Simon, direitos a Graemes's-gap. Se foram os ingleses, foi por ali que seguiram. O resto divida-se em grupos de dois ou três homens e dispersem pela charneca e vão ter comigo a Trysting-pool. Digam aos meus irmãos, quando regressarem, que os acompanhem. Pobres rapazes! O seu coração ficará tão desesperado como o meu, pois mal supõem para que teatro de desolação trazem a caça. Vou a Mucklestane-Moor.
- Se estivesse no teu lugar, falaria com o sábio Elshie - aconselhou Dick de Dingle - Se estiver bem disposto, pode dizer-te tudo quanto se passa na terra.
- Que remédio terá - replicou Hobbie, pondo as armas em ordem - Tem de me dizer tudo quanto sabe sobre o que se passou a noite passada ou então eu saberei porque o não diz.
- Fala-lhe com brandura, meu rapaz, fala-lhe com brandura, Hobbie. As pessoas como ele não gostam de ser maltratadas com palavras - aconselhou o velho. Estão tantas vezes em contacto com os demónios e com os génios malfazejos que andam sempre mal dispostos, que o seu carácter se ressente.
- Sei bem como proceder para alcançar o que pretendo - replicou Hobbie - Sinto em mim qualquer coisa que me leva a afrontar todos os feiticeiros da terra e todos os diabos do Inferno.
E, como já estava pronto, montou a cavalo e lançou-se a galope pela colina.
Em breve alcançou o cimo, lançou-se pela encosta oposta com a mesma velocidade, atravessou um bosque, depois comprido vale e por fim chegou a Mucklestane-Moor. Como tinha sido obrigado, durante o caminho, a abrandar o passo do cavalo, para o poupar, teve tempo de reflectir na forma como devia dirigir-se ao Anão, para conseguir obter as informações que desejava, pois estava certo de que ele conhecia o autor da desgraça que o esmagara. Embora franco, brusco e de génio arrebatado, como a maior parte dos seus compatriotas, também não deixava de possuir certa esperteza, uma característica também da sua raça. Reflectiu que, pelo que tinha observado sobre o Anão desde a tarde memorável em que o vira pela primeira vez, e pelo seu procedimento estranho naqueles últimos tempos, as ameaças e a violência, em vez de o convencerem, ainda o tornariam mais feroz.
- Falar-lhe-ei com brandura como o velho Dickson me aconselhou. Embora afirmem que tem pacto com Satã, não pode ser ele próprio tão diabólico que não tenha piedade da infeliz situação em que me encontro. Dizem que de tempos a tempos pratica boas acções e obras de caridade. Moderar-me-ei o mais possível e passar-lhe-ei a mão pelo pêlo; na pior das hipóteses, torcer-lhe-ei o pescoço e acabou-se.
Nesta disposição conciliadora, aproximou-se da casa do solitário.
O velho não estava sentado na pedra da audiência e Hobbie não o viu nem no jardim, nem no cerrado.
"Fechou-se na sua fortaleza talvez para eu não poder vê-lo. Mas fá-la-ei ruir em cima da sua cabeça, se não conseguir abordá-lo doutra forma.
Depois desta reflexão, ergueu a voz e chamou Elshie num tom mais suplicante que o tumulto dos seus sentimentos lho permitia.
- Elshie, meu amigo! - Nada de resposta.
- Elshie, meu bom pai Elshie!
O Anão continuou sem dar resposta.
"Que o diabo se apodere da tua carcaça torcida! murmurou o Border entre dentes.
Depois, em voz alta, continuou, com redobrada doçura:
- Meu bom pai Elshie, o mais desgraçado dos homens vem pedir conselho à tua sabedoria.
- Tanto melhor! - respondeu a voz trémula e aguda do Anão, através de pequena janela, mais parecida com uma fresta para atirar flechas, rasgada na porta da casa e pela qual podia ver quem se aproximava, sem que pudessem vê-lo.
- Tanto melhor! - repetiu Hobbie com impaciência - Que pretendes dizer com esse: "Tanto melhor"? Não me ouviste dizer que era o homem mais desgraçado do mundo?
- E não me ouviste responder "Tanto melhor"? - respondeu o Anão - Não te avisei esta manhã do que te esperava, quando te consideravas o homem mais feliz?
- Com efeito, disseste-mo - concordou Hobbie - e é por isso que venho pedir-te conselho. Quem adivinhou o mal deve conhecer o remédio.
- Não conheço remédio para os males deste mundo e, se o conhecesse, para que aliviaria os outros, se ninguém pensa em aliviar-me a mim? Não perdi eu uma fortuna que chegaria para comprar todas estas montanhas estéreis? Uma posição social comparada com a qual a tua é a de mísero camponês? Uma sociedade onde se encontrava reunido tudo quanto havia de mais amável e de mais intelectual? Não perdi tudo isso? Não vivo aqui como o maior pária da natureza, no mais terrível e mais solitário dos refúgios, sendo eu próprio mais repugnante do que tudo quanto me cerca? Para que vêm outros vermes rojar-se a meus pés, lamentando a desgraça, quando eu próprio fui esmagado pela roda do carro?
- Podes ter perdido tudo isso - replicou Hobbie com emoção e amargura - Terras, amigos, propriedades e riquezas, podes ter perdido tudo isso, sim; mas o teu coração nunca foi tão ferido como o meu, porque não perdeu Grace Armstrong. As minhas últimas esperanças desvaneceram-se e nunca mais a verei!
Estas palavras foram pronunciadas com a mais profunda dor. Calou-se, porque o nome da noiva apaziguara tudo quanto de rancor e ódio podia existir no coração do pobre Hobbie. Antes que de novo dirigisse a palavra ao solitário, uma mão escura e magra, de dedos compridos, passou pela janela, segurando grande saco de coiro. Largou o fardo, que caiu com ruído no solo e a voz rude do Anão fez-se então ouvir:
- Aí tens o bálsamo que sara todos os males da humanidade. Pelo, menos é assim que pensa a maioria dos mortais. Volta para a tua casa duas vezes mais rico do que eras ontem e não me maces mais com perguntas, lamentos ou agradecimentos porque tudo isso é odioso.
- Santo Deus, tudo isto é oiro! - exclamou Hobbie após ter relanceado um olhar para o saco.
Depois, dirigindo-se ao eremita, continuou:
- Agradeço a tua boa vontade e dar-te-ei um título de dívida em troca deste dinheiro ou uma hipoteca sobre as terras de Wide-open. Mas, para te falar com franqueza, dir-te-ei que não gostaria de fazer uso deste dinheiro sem saber como foi adquirido. Podia acontecer que algumas destas moedas se transformassem em carvão e eu, sem querer, prejudicasse algum pobre homem.
- Ignorante idiota! - replicou o Anão - esse vil metal que te dou é o maior veneno que até hoje se extraiu da terra. Leva-o, emprega-o como quiseres e possa ele medrar entre as tuas mãos como medrou nas minhas!
- Mas já te disse que não vim consultar-te por causa das riquezas. Tinha uma esplêndida herdade, é certo, e mais de trinta cabeças de gado, tão bom como não se vê outro semelhante para os lados de Cat-rail. No entanto, pouco me importo com tudo isso. Se podes dar-me alguns esclarecimentos sobre a sorte de Grace Armstrong, a pobre Grace, consentirei em ser teu escravo durante toda a vida, contanto que não comprometa a salvação da minha alma. Elshie, suplico-te, fala!
- Seja! - exclamou o Anão como se estivesse aborrecido com a importunidade de Elliot - Visto não te chegarem os teus próprios desgostos e quereres por força sobrecarregar-te com os de uma companheira, procura para oeste (1) aquela que perdeste.
- Para oeste? - repetiu Hobbie - É muito vago.
- É a última palavra que me proponho dizer-te - replicou o Anão.
Em seguida, fechou as portas interiores da janela, deixando Hobbie a meditar na indicação recebida.
- Para oeste, para oeste? - pensava o pobre rapaz - O país está tranquilo para esses lados, salvo se foi Jock o de Todholes, mas esse é muito velho para estas empresas. Oeste? Por vida minha! Deve ter sido Westburnflat. Se me engano, dize-mo, Elshie. Não quero tornar-me culpado de violência para com um vizinho inocente. Não me respondes? Sim, deve ter sido o bandido do Red Reiver. Nunca supus, porém, que se atrevesse a atacar-me quando tenho tantos parentes. Deve ter sido auxiliado por mais alguém além dos seus amigos do Cumberland. Adeus, Elshie, e obrigado. Não levo o dinheiro por agora, pois tenho de ir ter com os meus amigos a Trysting-place. Se não quiseres abrir a janela, podes vir buscá-lo quando eu me for embora.
O Anão não lhe deu resposta.
- É surdo ou doido ou as duas coisas ao mesmo tempo. Mas eu não posso ficar aqui a discutir.
E afastou-se, dirigindo-se ao ponto onde combinara encontrar-se com os amigos.
Em Trysting-place já estavam reunidos quatro ou
(1) - West em inglês e também as primeiras letras do nome de Westburnflat.
cinco cavaleiros. Conversavam seriamente sobre os acontecimentos, enquanto os cavalos pastavam nas margens da lagoa rodeada de plátanos. Pouco depois viram chegar numeroso bando, vindo do sul. Era Earnscliff com os companheiros. Tinham seguido o rasto do gado até à fronteira da Inglaterra, mas pararam e receberam a notícia da formação de considerável força sob as ordens de qualquer jacobita do distrito, acrescentando ainda o informador que se preparavam insurreições na Escócia.
Este facto tirava ao acto cometido a feição de animosidade particular ou de ânsia de pilhagem. Earnscliff considerava-o como um sintoma de guerra civil. Abraçou Elliot com o mais terno interesse e informou-o das notícias que tinha recebido.
- Que eu nunca mais possa sair daqui se o velho Ellieslaw não está metido no assunto - protestou Elliot - Está ligado com todos os católicos do Cumberland e isso concorda com o que o Elshie me deu a entender sobre Westburnflat; porque Ellieslaw sempre o protegeu e pretende desarmar-nos e apoderar-se de todas as armas antes de se declarar contra nós.
Alguns dos cavaleiros recordaram-se de ter ouvido dizer aos bandidos que agiam em nome de Jaime VIII e que estavam encarregados de desarmar os rebeldes. Westburnflat afirmara, quando se encontrava com o cérebro já toldado pela bebida, que Ellieslaw em breve se encontraria à cabeça das tropas do partido jacobita e gabara-se de que ele próprio obteria um comando desse chefe e que seria mau vizinho para Earnscliff e para todos os que fossem fiéis ao governo estabelecido.
Estavam todos certos de que Westburnflat comandara os bandidos, por ordem de Ellieslaw; resolveram seguir imediatamente para a morada do primeiro e, se fosse possível, apoderarem-se da sua pessoa.
Naquele momento, chegaram numerosos amigos, de forma que o bando se compunha de mais de vinte cavaleiros bem montados e razoavelmente armados.
Um ribeiro que saía do vale estreito, descendo das colinas, entrava em Westburnflat pela planície pantanosa que, estendendo-se por meia milha em todos os sentidos, dá o nome ao local. É ali que o ribeiro muda de aspecto. Em vez de uma torrente descendo rápida da montanha, transforma-se numa corrente de água quase parada, tal uma serpente azulada, estendendo os seus anéis sinuosos pelo campo pantanoso. Perto da margem, pouco mais ou menos ao centro da planície, elevava-se a torre de Westburnflat, pequena fortaleza como as que outrora se encontravam em grande número ao longo da fronteira, mas das quais poucas restam hoje. O terreno sobre o qual estava construída elevava-se num declive suave sobre o pântano, num círculo de uma centena de jardas, formando um espécie de esplanada de relva seca que se estendia em volta. Para lá dessa esplanada, o que se apresentava aos olhos dos estranhos era um pântano impraticável e perigoso. Só o dono da torre e a família conheciam os atalhos complicados e sinuosos que, percorrendo um terreno aparentemente firme, conduziam à torre aqueles que a iam visitar.
Mas entre as pessoas reunidas sob a direcção de Earnscliff havia mais de uma que podia servir de guia.
Embora o carácter e género de vida do proprietário fossem geralmente conhecidos, no entanto, a indiferença com que os consideravam atenuava a repulsa com que seriam considerados num país mais civilizado. Olhado pelos vizinhos mais pacatos como um jogador de profissão, um amador de combates de galo ou um jóquei, passava por ser um homem cujos hábitos eram censuráveis e cuja sociedade devia ser evitada, mas que, no entanto, não deviam olhar como marcado pela infâmia indelével que acompanha os da sua profissão, pois, em geral, se conformava com as leis do país.
Portanto, a indignação nascida contra ele naquela ocasião não resultava do facto em si mesmo, do crime que lhe atribuíam, visto não poder esperar-se outra coisa de um bandido. Mas esse acto de violência fora cometido contra um vizinho com quem não tinha questões, contra um dos seus amigos, acima de tudo, contra um Elliot, o clã ao qual todos pertenciam. Não era, portanto, para admirar que entre eles existissem muitos que conhecessem o local a palmos e pudessem dirigir e guiar o grupo, de forma que em breve todos se encontravam na esplanada, na área de terra firme, em frente da torre de Westburnflat.
Assim fala o cavaleiro. O gigante diz - Leva contigo essa tola rapariga e livra-me da tua presença e da sua. Por uns olhos brilhantes, uma sobrancelha arqueada e uma tez de leite e rosas não quero bater-me contigo.
Romance do Falcão
A torre diante da qual se encontrava o grupo era um edifício quadrado, de aspecto sombrio. De paredes muito grossas, as janelas ou frestas pareciam ter sido feitas mais para dar aos habitantes meios de se defenderem do que para proporcionar luz e ar aos aposentos. Pequena plataforma projectava-se para fora dessas paredes, em toda a volta da torre, dando mais uma vantagem aos seus defensores, devido ao parapeito, que formava nicho. A partir dessa plataforma, elevava-se o telhado, coberto de ardósia. Pequeno torreão, situado num dos ângulos, defendido por uma porta guarnecida com pregos, elevava-se até à plataforma e dava acesso ao telhado pela escada em espiral talhada no interior.
Os cavaleiros aperceberam-se de que todos os seus movimentos estavam a ser observados por alguém escondido no torreão. Estas suspeitas foram em breve confirmadas, quando através de pequena abertura viram passar um braço de mulher, agitando um lenço, como a pedir socorro. Hobbie ficou louco de impaciência e de alegria.
- São a mão e o braço de Grace! - afirmou - Reconhecê-los-ia entre mil. Não há outros iguais em todo o Lowden. Libertá-la-emos, amigos, embora tenhamos de demolir a torre de Westburnflat pedra a pedra.
Earnsciiff, embora duvidasse ser possível Hobbie reconhecer o braço da sua amada àquela distância, não quis dizer qualquer coisa que pudesse diminuir as esperanças do amigo. Resolveram intimar a guarnição.
Os gritos dos homens e o som das trompas fizeram por fim acudir a uma das seteiras que flanqueavam a entrada o rosto feroz de uma velha.
- É a mãe do bandido - informou um dos Elliot - é dez vezes pior do que ele e a instigadora da maior parte do mal que ele pratica.
- Quem são? Que pretendem? - foram estas as perguntas da velha.
- Queremos falar a William Graeme de Westburnflat - respondeu Earnscliff.
- Não está em casa - respondeu a velha.
- Quando partiu? - insistiu Earnscliff.
- Não sei dizer-lho - declarou.
- Quando volta? - perguntou Hobbie Elliot.
- Também não sei - replicou a inexorável guarda da torre.
- Está alguém consigo? - perguntou Earnscliff.
- Ninguém. Estou só eu e os gatos.
- Muito bem. Então abra a porta e deixe-nos entrar - intimou Earnscliff - Sou juiz de paz e ando a colher informações sobre um crime de felonia.
- Que o diabo prenda os dedos daqueles que puxarem os ferrolhos - replicou a velha - porque os meus nunca o farão. Não têm vergonha de vir aqui em bando numeroso, com espadas, lanças e elmos de aço, para meter medo a uma pobre viúva que está só?
- As nossas informações são bem claras. Procuramos objectos que nos foram roubados e são de grande valor.
- E uma rapariga que foi cruelmente raptada e vale mais do dobro da propriedade - acrescentou Hobbie.
- Aviso-a de que o único meio de provar a inocência do seu filho é deixar-nos entrar e visitar a casa.
- Que farão se eu não quiser dar-lhes as chaves, correr os ferrolhos ou abrir a porta a essa canalha? - perguntou a velha em tom irónico.
- Entraremos à força com as chaves do rei e torceremos o pescoço a todos os seres vivos que encontrarmos no nosso caminho, se não abre imediatamente - respondeu Hobbie, já irritado, ameaçando-a.
- Pessoas ameaçadas vivem muito tempo - retorquiu a velha feiticeira no mesmo tom irónico - Tentem arrombar o portão, vamos. Já resistiu a homens tão fortes como vocês.
Disse Isto a rir e retirou-se da seteira donde parlamentara.
Os assaltantes consultaram-se entre si. A enorme espessura das paredes e a pequenez das seteiras poderiam resistir mesmo a tiros de canhão. A entrada estava defendida por forte portão feito de barras de ferro, tão pesadas e tão sólidas que, aparentemente, nenhuma força humana conseguiria quebrá-las.
- Nem tenazes nem martelos conseguirão derrubà-las - afirmou Hugh, o ferrador de Ringleburn - Seria o mesmo que bater-lhes com um cachimbo.
Da parte de dentro, na alameda de entrada e à distância de nove pés, tal era a espessura da muralha, via-se outra porta de madeira de carvalho, guarnecida em toda a altura e largura com barras de ferro que cruzavam e estavam soldadas umas às outras; nos intervalos, pregos de grande cabeça. Independentemente de todas estas defesas, não acreditavam muito nas informações da velha quando esta afirmava estar sozinha no castelo. Os mais espertos do bando tinham notado pegadas de cavalo no atalho por onde haviam alcançado a torre, o que parecia indicar terem muitas pessoas chegado na mesma direcção.
A todas estas dificuldades juntava-se a falta de meios para atacar a praça. Não havia possibilidade de arranjarem escadas tão altas que alcançassem a plataforma; as janelas, além de serem muito estreitas, estavam defendidas por barras de ferro. Não podia pensar-se em escalar a torre nem em fazê-la ir pelos ares por falta de pólvora e de ferramenta para a minar. Por outro lado, os assaltantes não tinham víveres, abrigo, nem outros objectos indispensáveis para fazerem um cerco em forma, além de terem de admitir o perigo de serem atacados por camaradas do bandido que viessem socorrê-lo.
Hobbie rangia os dentes e caminhava em volta da fortaleza. Vendo que não havia possibilidade de ali entrar à força, acabou por exclamar:
- Porque não procedemos como nossos pais procediam dantes? À obra, meus amigos! Cortemos mato e silvas, empilhemo-los contra a porta, lancemos-lhes fogo e procedamos como se quiséssemos queimar a velha, como se cresta a pele do porco para fazer toucinho.
Todos aplaudiram a proposta e puseram-se ao trabalho. Com os sabres e espadas, cortaram moitas e espinheiros, que cresciam em abundância junto da ribeira, velhos e secos, próprios para o fim a que os destinavam. Entretanto, outros amontoavam-nos o mais perto possível do portão de ferro. Inflamaram um tronco e Hobbie caminhava já com essa espécie de archote na mão para lançar fogo ao mato, quando o rosto brutal do bandido e o cano de uma espingarda apareceram numa das seteiras que flanqueava a entrada.
- Obrigada por terem reunido tão grande provisão de lenha que pode servir-nos durante o Inverno - agradeceu em tom irónico - Mas, se dá mais um passo com esse pau inflamado, custar-lhe-á muito caro.
- É o que vamos ver - replicou Hobbie, avançando corajosamente, com o archote na mão.
O bandido apontou, mas, felizmente para o corajoso rapaz, o tiro não chegou a partir; entretanto, Earnscliff visou a estreita abertura e o pequeno alvo que lhe oferecia o rosto do bandido, e aflorou-lhe a cabeça com uma bala.
Talvez este contasse que o posto escolhido oferecesse maior segurança, porque, mal ficou ferido, embora ligeiramente, pediu para parlamentar e saber porque vinham assim atacar um homem honesto e derramar o seu sangue por forma tão ilegal.
- Queremos que nos restituas sã e salva a tua prisioneira.
- Que interesse podem ter nela? - perguntou o bandido.
- Não tens o direito de nos fazer essa pergunta, tu que a conservas à força - replicou Earnscliff.
- Posso adivinhar - comentou o patife - Pois bem, meus senhores, repugna-me levantar entre nós uma inimizade, derramando o sangue de um de vos, conquanto Earnscliff não tivesse tido escrúpulo em derramar o meu, errando o alvo apenas por uma linha. Portanto, para evitar maiores desgraças, consinto em restituir a prisioneira, visto não se contentarem com menos.
- E a propriedade de Hobbie? - atalhou Simon de Hackburn - Pensas que te é consentido pilhar os rebanhos e os estábulos deste bravo Hobbie como se fosse o galinheiro de uma mulher velha e sem defesa?
- Tão verdadeira como o pão que me alimenta - replicou Willie de Westburnflat - é a minha palavra quando afirmo que não tenho uma só das suas vacas! Tudo isso já está a caminho há muito tempo. Nesta torre não encontrarão sequer um chifre. Mas verei se me será possível recuperar alguma coisa e comprometo-me a encontrar-me com Hobbie no Castleton, com dois amigos de cada um de nós, a fim de encontrarmos meio de conciliação e a forma de o indemnizar do prejuízo, que ele afirma eu ter-lhe causado.
- Está bem, concordo! - disse Elliot.
Depois, voltando-se para o seu parente, acrescentou:
- Quero que o gado vá para o diabo. Pelo amor de Deus, meu amigo, não fales mais nisso. Pensemos somente em tirar Grace das garras deste infernal bandido.
- Dá-me a sua palavra, Earnscliff - prosseguiu o salteador, que continuava a falar da seteira - e promete-me pela sua fé e pela sua honra, pela sua mão e pela sua luva que terei liberdade durante cinco minutos para ir abrir o portão e mais cinco minutos para o fechar e correr os ferrolhos? Menos tempo não pode ser, porque tudo aquilo está ferrugento. Está de acordo?
- Terás o tempo necessário. Comprometo a minha palavra e a minha fé, a minha mão e a minha luva.
- Esperem então - respondeu Westburnflat - Ou antes, desejo que recuem até à distância de um tiro de pistola da porta. Não é porque não tenha confiança na sua palavra, mas gosto de tomar precauções.
"Meu amigo - pensou Hobbie - se eu te tivesse em Turners-holm e ninguém connosco, excepto dois rapazes para verem como as coisas se passavam dentro da lei, far-te-ia pensar que melhor seria teres partido uma perna antes de tocar num só dos meus animais ou em qualquer pessoa da minha família.
- Este Westburnflt ainda tem qualquer coisa de brando - comentou Simon de Hackburn, no fundo escandalizado por o bandido ter cedido tão depressa - Nunca chegará aos calcanhares do pai.
Entretanto, a porta interior da torre abria-se, a mãe do salteador apareceu entre essa porta e a grade exterior. O próprio Willie surgiu depois com uma mulher e a velha puxou os ferrolhos, ficando no seu posto como uma sentinela vigilante.
- Quando um ou dois do grupo vierem buscá-la, recebê-la-ão das minhas mãos, sã e salva.
Hobbie avançou pressuroso para receber a sua linda noiva e Earnscliff seguiu-o mais devagar para se acautelar contra uma traição. De repente, Hobbie quase parou e deu sinais da mais viva mortificação, enquanto Earnscliff se precipitava, manifestando a maior surpresa. Não era Grace Armstrong, mas miss Isabel Vere que o grupo armado havia libertado.
- Onde está Grace? - gritou Hobbie - Onde está Grace Armstrong? - repetiu no auge da raiva e da indignação.
- Não a tenho - declarou Westburnflat - Se não me acreditam, podem visitar a torre.
- Patife! Terás de me dizer o que foi feito dela ou morrerás neste instante - gritou Elliot, apontando a espingarda.
Mas os companheiros correram e tiraram-lhe a arma, gritando:
- Mão e luva, fé e honra! Toma cautela, Hobbie! Temos de cumprir a palavra que demos a Westburnflat, seja ele o maior bandido deste mundo.
Forte com esta protecção, o salteador recuperou a sua audácia, que vacilara um pouco perante as ameaças de Elliot.
- Cumpri a minha palavra, senhores. Espero não sofrer qualquer injúria da vossa parte. Se não é essa a prisioneira que procuram, vão restituir-ma; sou responsável por ela perante aqueles que ma entregaram.
- Pelo amor de Deus, senhor Earnscliff, proteja-me! - suplicou miss Vere, chegando-se para o seu libertador - Não abandone uma desgraçada a quem todos abandonaram.
- Não tenha receio - sossegou Earnscliff em voz baixa - protegê-la-ei com perigo da minha própria vida.
Depois, voltando-se para Westburnflat, inquiriu, ameaçador:
- Patife, como te atreveste a insultar esta dama?
- Quanto a isso, mr. Earnscliff, responderei àqueles que têm mais direito a perguntar-mo do que o senhor. Mas, se vem com homens armados para a roubar àquele a quem os amigos dela a confiaram, que pode responder o senhor? Isso é consigo. Um homem, só, não pode defender uma torre contra vinte. "Os homens de Mearns não fazem mais do que podem (1).
- É uma mentira abominável! - protestou Isabel - Ele raptou-me dos braços de meu pai.
- Talvez ele desejasse fazer-lho acreditar, minha pequena - replicou o bandido - mas não tenho nada com isso, aconteça o que acontecer. Não quer restituir-ma?
(1) - Provérbio escocês.
- Restituir-ta, miserável? Não, com certeza - respondeu Earnscliff - Protegerei miss Vere e acompanhá-la-ei até ao local que me indicar.
- Seja. Talvez isso já estivesse combinado entre os dois - comentou o bandido.
- E Grace? - interrompeu Hobbie, libertando-se das mãos dos amigos, que o chamavam à razão, recordando-lhe a santidade do juramento feito sobre a fé e a honra, protegido pelo qual o bandido se atrevera a sair da torre - Onde está Grace?
E precipitou-se para Westburnflat com o sabre desembainhado.
Assim perseguido, o bandido suplicou:
- Pelo amor de Deus, Hobbie, escute-me um momento.
E, voltando-lhe as costas, começou a correr. A mãe conservava o portão aberto, mas Hobbie vibrou-lhe tão grande golpe quando ia a entrar que o sabre fez tremenda mossa no lintel da porta abobadada. Ainda hoje o apontam como prova da força extraordinária dos que viviam naquele tempo. Antes de Hobbie poder vibrar segundo golpe, fecharam a porta e o bandido ficou ao abrigo de outro ataque. Hobbie foi obrigado a regressar para junto dos companheiros, que se preparavam para levantar o cerco a Westburnflat. Insistiram para que ele os acompanhasse.
- Já violaste a trégua, Hobbie - disse o velho Dick de Dingle - e, se não tomamos cautela, fazes nova partida e não só todos nós seremos acusados de faltarmos à fé jurada, mas ainda passarias a ser a fábula de toda a região. Aguarda a entrevista de Castleton, como ficou combinado, e se ele não te der uma satisfação terás então motivo para tirar sangrenta vingança. Procedamos como pessoas razoáveis, sejamos fiéis à nossa palavra e garanto-te que encontraremos Grace, o teu gado e tudo quanto perdeste.
Este frio raciocínio não foi muito apreciado pelo infeliz rapaz; mas, como não podia obter auxílio dos amigos e parentes senão submetendo-se a estas condições, foi obrigado a concordar, a aceitar as suas máximas e proceder conforme lhe indicavam.
Earnscliff pediu então que parte do bando o acompanhasse até entregar miss Vere a seu pai, no castelo de Ellieslaw, onde ela queria ser conduzida.
Hobbie não foi com eles. com o coração dilacerado pelos acontecimentos do dia e pela desilusão acabada de sofrer, voltou tristemente para casa a fim de tomar as medidas necessárias para protecção e sustento da família e combinar com os vizinhos as novas diligências a fazer para encontrar Grace Armstrong. O restante do grupo dispersou pela charneca, depois de ter passado o pântano, enquanto o bandido e a mãe os seguiam com a vista do alto da torre, até desaparecerem.
Abandonei o pavilhão da minha dama onfem à noite; estava coberto de farrapos de neve. Voltarei quando o Sol brilhar e as rosas desabrochadas exalarem o seu perfume.
Balada Antiga
Irritado com o que classificava de indiferença dos amigos por um assunto que tão de perto lhe tocava, Hobbie afastou-se deles e seguiu sozinho pelo caminho que conduzia a sua casa.
- Vai para o diabo! - dizia para o cavalo, que esporeava com impaciência e que, muito cansado, trocava o passo - És como os outros. Criei-te, alimentei-te, tratei-te com as minhas próprias mãos e agora tropeças com risco de me fazeres cair e quebrar a cabeça, no momento em que mais preciso de ti? És como os meus parentes. O mais afastado é meu primo em décimo grau e, contudo, dia e noite, tê-lo-ia auxiliado com todo o meu sangue. Creio que têm mais atenções com aquele infame ladrão do Westburnflat do que comigo. Neste ponto já devia avistar as luzes de Heugh-foot... Pobre de mim! - continuou, entristecendo mais ainda - nunca mais haverá luz e fogo em Heugh-foot. Se não fosse por causa da minha avó, das minhas irmãs e da pobre Grace, julgo que teria a coragem de esporear o animal e de saltar por cima do parapeito da ribeira para acabar para sempre!
Foi nesta triste disposição de espírito que se dirigiu para o casebre onde a família encontrara abrigo.
Ao aproximar-se da porta, ouviu as irmãs cochicharem e rirem baixinho.
"As mulheres têm o diabo no corpo - lamentou o pobre rapaz - seriam capazes de tagarelar, rir e troçar, mesmo que o seu melhor amigo tivesse morrido... no entanto, sinto-me satisfeito por não perderem a coragem. Pobres pequenas! Todas as responsabilidades caem sobre mim e não sobre elas".
Enquanto monologava assim, prendia o cavalo debaixo de um telheiro.
"Tens de passar sem cobertura, meu velho. Demos ambos uma queda e teria sido melhor que tivéssemos caído no maior abismo do Tarras".
Foi abordado nesta ocasião por uma das irmãs, que se aproximou correndo e lhe disse numa voz abafada, como se quisesse ocultar profunda emoção:
- Que fazes aí, Hobbie, a falar com o cavalo, enquanto és esperado há mais de uma hora por alguém que chegou do Cumberland? Avia-te e entra. Eu trato do cavalo.
- Do Cumberland! - repetiu Hobbie.
E, entregando a rédea do animal à irmã, correu para casa.
- Onde está ele, onde está ele? - gritava, olhando para todos os lados e não vendo senão mulheres - Trouxe notícias da Grace?
- Não pôde esperar nem um instante! - comentou a irmã mais velha, a rir.
- Basta, minhas filhas - ralhou a avó, com brandura - Não devem atormentar assim o pobre Hobbie. Olha em volta de ti, meu filho, e vê se não encontras uma pessoa mais do que as que estavam aqui esta manhã.
Hobbie olhou com inquietação.
- Está aqui a avó e mais três raparigas.
- Enganas-te, somos quatro, Hobbie - disse a mais nova, que acabava de entrar.
Momentos depois, Hobbie apertava nos braços Grace Armstrong, a quem não tinha reconhecido por estar envolta no plaid de uma das irmãs.
- Como foi possível teres procedido desta forma? - censurou Hobbie.
- A culpa não foi minha! - responde Grace, tentando cobrir o rosto com as mãos, para ocultar o rubor e evitar a chuva de beijos com que o noivo a castigava por causa do seu estratagema - A culpa não foi minha, Hobbie. Devias beijar a Jeanie e as outras, pois a ideia foi delas.
- É o que vou fazer - declarou Hobbie.
Beijou repetidas vezes as irmãs e a avó, enquanto toda a família, no excesso de alegria, ria e chorava ao mesmo tempo.
- Sou o mais feliz dos homens - afirmou Hobbie, quase sem forças, deixando-se cair numa cadeira - sou o homem mais feliz que existe no mundo.
- Meu filho - disse a excelente senhora, que nunca deixava fugir a oportunidade de dar uma lição de fé nos momentos em que o coração está mais disposto a aceitá-la - meu filho, ergue os teus louvores Àquele que muda as lágrimas em risos, assim como tirou a luz das trevas e o Mundo do nada. Não te preveni que se dissesses: "Seja feita a Sua vontade" poderias ter motivo para dizer também: "Que o Seu nome seja glorificado!"
- Tem razão, avó. Glorifico-O pela sua misericórdia e por me ter concedido uma segunda mãe quando perdi a minha - respondeu Hobbie, pegando-lhe na mão - e que me obriga a pensar n'Ele tanto na felicidade como na desgraça.
Seguiu-se um silêncio solene de um ou dois minutos, empregados numa oração mental que exprimia, na pureza e sinceridade dos seus corações, o reconhecimento daquela família afectuosa para com a divina Providência que restituíra tão inesperadamente ao seu carinho aquela que haviam perdido.
O primeiro cuidado de Hobbie foi pedir a Grace para contar o que lhe acontecera. Ela fê-lo com pormenores que se resumem no seguinte: fora acordada pelo barulho dos salteadores ao entrarem na casa e pela resistência, logo inutilizada, oposta pelos dois criados. Vestindo-se à pressa, descera e como na confusão da luta a máscara de Westburnflat caíra, pronunciara, imprudentemente, o seu nome, implorando a sua compaixão. O bandido amordaçara-a e arrastara-a para fora de casa, colocando-a em cima de um cavalo, atrás de um dos seus homens.
- Torcer-lhe-ei o pescoço - afirmou Hobbie - embora não houvesse outro Graeme nesta terra.
Grace continuou, dizendo que tinha sido levada para os lados do sul com o bando que empurrava o gado diante de si, até passarem a fronteira; de súbito, um homem que Grace sabia ser parente de Westburnflat chegara a toda a brida e dissera ao chefe do bando que o primo soubera de fonte segura que as coisas tomariam mau aspecto se a rapariga não fosse restituída aos seus; depois de alguns momentos de discussão, o chefe do bando consentiu. Colocaram-na no cavalo de outro homem, que tomara, em silêncio, mas com rapidez, o caminho solitário que conduzia a Heugh-foot; quando caiu a noite fê-la descer, fatigada e aterrada, a meia milha de casa. Esta narrativa foi seguida por mil felicitações de um lado e do outro.
A estas profundas e ternas emoções sucederam-se, em breve, reflexões muito menos agradáveis.
- É abrigo muito triste para todas - comentou Hobbie, volvendo um olhar em volta - Vou dormir lá para fora, para junto de meu cavalo, como dormi tantas vezes quando passava a noite na montanha. Mas, convosco, como vai ser? Terão de ficar aqui algum tempo, pois por estes dias mais próximos não vejo maneira de modificar as coisas.
- Foi uma acção cobarde e cruel, expulsar assim uma família da sua casa para os campos, onde não encontra nada para se abrigar.
- E não nos deixar nem um boi nem uma cabra - acrescentou o mais novo dos irmãos, que acabava de entrar - nem ovelha nem cordeiro, qualquer animal que coma erva ou grão.
- Se tinham razão de queixa contra nós - observou Harry, o segundo irmão - não estávamos todos aqui para lhes dar satisfação? Era preciso expulsar-nos de casa e deixar-nos assim? Se estivéssemos aqui, o estômago de Graeme não precisava mais de almoço. Mas não perde pela demora, não é verdade, Hobbie?
- Os nossos vizinhos fixaram o dia para nos encontrarmos em Castleton a fim de tratar do assunto na presença de toda a gente - replicou Hobbie tristemente - Tive de fazer o que pretendiam. Caso contrário, não podia esperar auxílio de qualquer espécie.
- Entrar num acordo com ele depois de tamanha malvadez! - protestaram os dois irmãos - Nunca se viu uma coisa dessas desde os tempos antigos.
- Têm razão, meus rapazes - concordou Hobbie - O sangue ferveu-me nas veias, quando ouvi semelhante proposta, mas. .. ao ver Grace acalmei.
- E as alfaias agrícolas e o resto, Hobbie? - disse John Elliot - Ficámos completamente arruinados. O Harry e eu ainda fomos ver se conseguíamos descobrir alguma coisa nos escombros da casa, mas apenas deixaram os pregos. Não sei o que havemos de fazer. Por certo, teremos de ir todos para a guerra. Westburnflat, ainda que o quisesse, não tem meios para nos indemnizar destas perdas. Não conseguiremos nada dele, senão tirar-lhe a pele. Não tem um animal, excepto o péssimo cavalo que monta e mesmo esse anda derreado com as corridas nocturnas a que é obrigado. Estamos completamente arruinados, repito.
Desolado, Hobbie olhou para Grace Armstrong, que se limitou a baixar os olhos e a soltar ligeiro suspiro.
- Não desanimem, meus filhos - aconselhou a avó - Temos parentes que não nos desampararão na adversidade. Sir Thomas Kittleloof, que é meu primo em terceiro grau, por exemplo. Recebeu bastante dinheiro e foi armado cavaleiro como um dos comissários da União.
- Não dará a ponta de um alfinete para nos impedir de morrer de fome - afirmou Hobbie - E, mesmo que o fizesse, eu não conseguiria digerir o pão comprado com o seu dinheiro, ao lembrar-me de que tinha sido parte do preço por que vendeu a coroa e a independência da pobre Escócia.
- Temos o laird de Dunder, uma das mais antigas famílias de Tiviotdale - lembrou a avó.
- Está na Tolbooth, (1) avó - respondeu Hobbie - está no Heart of Mid-Louden, por causa de mil marcos que pediu emprestados a Saunders Wyliecoat, o procurador.
- Pobre homem! Não poderíamos mandar-lhe alguma coisa, Hobbie?
- Esquece, avó, que também nós precisamos de auxílio - replicou Hobbie com ligeiro mau humor.
- Tens razão, meu filho - concordou a boa senhora - Mas justamente nestes momentos é mais natural
(1) - Nome de uma prisão de Edimburgo.
pensarmos nos parentes que precisam do que em nós mesmos. E o jovem Earnscliff?
- Tem pouca coisa e um nome tão difícil de sustentar que seria vergonhoso recorrer a ele na nossa aflição - Dir-lhe-ei, avó, que é inútil pensar nos parentes, amigos e aliados, como se tivessem o condão de nos valer nesta aflição. Os que se tornaram ricos esqueceram-nos, e os da nossa classe possuem apenas o necessário para eles. Não temos um amigo que possa restabelecer a herdade tal como estava.
- Nesse caso, Hobbie, ponhamos a nossa confiança n'Aquele que pode fazer nascer amigos e dinheiro do Moor mais estéril, como se diz.
Hobbie pôs-se de pé num salto.
- Diz bem, avó, diz bem! - exclamou - Tenho um amigo no Moor que pode e quer auxiliar-nos. Os acontecimentos fizeram-mo esquecer. Deixei esta manhã, no Mucklestane-Moor, oiro que chegava para reconstruir duas herdades como Heugh-foot e comprar gado e outros instrumentos agrícolas. Estou certo de que Elshie não se oporá a que o empreguemos assim.
- Elshie? De que Elshie queres tu falar? - perguntou, admirada, a avó.
- De Cunny Elshy, o eremita de Mucklestane. De que outro poderia ser?
- Deus te defenda, meu filho, de ires buscar água a cisternas envenenadas ou de pedir socorro a quem tem pacto com o espírito maligno! Os seus dons nunca trouxeram felicidade, nem existe beleza nos seus caminhos. Todos sabem que Elshie é feiticeiro. Se ainda vigorassem as leis e a boa administração que fazem prosperar e seguir pelo bom caminho um reino, não deixariam viver pessoas da sua espécie. Feiticeiros e feiticeiras são o flagelo e a abominação da terra.
- Pode dizer o que quiser, avó - respondeu Hobbie - mas acho que os feiticeiros e feiticeiras não têm metade do poder de que disfrutavam noutros tempos. E creio também que um homem como o velho Ellieslaw, que está sempre a conspirar, e um bandido como Westburnflat são maiores flagelos e maior abominação para um país do que um bando das mais infernais feiticeiras, cavalgando nas suas vassouras ou dançando o sabat na noite de terça-feira gorda. Elshie nunca teria o pensamento de incendiar a minha casa e as minhas culturas. Portanto, estou resolvido a perguntar-lhe se quer fazer alguma coisa para me ajudar a reconstruí-las. É bem conhecido em toda a região, até Brough under Stanmore, como homem hábil e sensato.
- Tem cuidado, meu filho - recomendou mrs. Elliot
- Lembra-te de que os seus benefícios nunca foram proveitosos para ninguém. Jock Howden morreu na altura da queda das folhas, precisamente da doença que Elshie afirmava ter curado; e, embora tivesse impedido que a vaca de Lambside morresse de uma epizootia, a doença nos cordeiros foi maior do que em todos os anos anteriores. Além disso, tenho ouvido dizer que emprega palavras tão ofensivas para os homens, que representam um insulto à Providência. Recorda-te do que disseste a primeira vez que o viste. Disseste que parecia mais um fantasma do que um ser humano.
- Não faça caso, mãe - respondeu Hobbie – o Elshie não é tão mau como dizem. É verdade que o seu corpo disforme não se torna muito agradável à vista, que a sua linguagem é áspera, mas não é tão perigoso nos actos como nas palavras. Se pudesse comer alguma coisa, porque não comi nada em todo o dia, deitar-me-ia ao lado do meu cavalo e dormiria algumas horas. Amanhã, ao nascer do dia, irei a Mucklestane.
- Porque não vais esta noite? - observou Harry - Iria contigo.
- O meu cavalo está muito cansado - replicou Hobbie.
- Leva o meu - ofereceu John.
- Eu também estou fatigado - declarou Hobbie, já aborrecido
- Tu, fatigado! - protestou Harry - Tens andado vinte e quatro horas a cavalo e nunca te ouvi queixar.
- A noite está muito escura - declarou Hobbie, olhando para fora pela janela da cabana - Para falar francamente, embora Elshie seja um excelente homem, na verdade, preferia visitá-lo de dia.
Esta declaração franca atalhou ulteriores discussões. Conciliando assim a precipitação do irmão com os conselhos demasiado prudentes da avó, comeu aquilo que puderam arranjar-lhe e depois de ter beijado cordialmente todas as pessoas que o rodeavam, retirou-se para o telheiro e estendeu-se ao lado do seu fiel corcel. Os irmãos contentaram-se com algumas medas de palha limpa que encontraram no exíguo estábulo onde Annaple guardava a vaca. Quanto às mulheres, acomodaram-se para dormir o melhor que o estado do casebre lho permitia.
Ao nascer do dia, Hobbie levantou-se e depois de ter limpo e selado o cavalo, partiu para Mucklestane. Evitou a companhia dos irmãos, pensando que o Anão se tornava mais acessível para quem o visitava sozinho.
"O nosso vizinho - pensava consigo, enquanto prosseguia o seu caminho - não é muito amável e há momentos em que se torna impossível aturá-lo. Teria ele saído de casa para apanhar o saco com dinheiro? Se não o fez, seria um achado para alguém que o apanhasse e eu ficaria bem arranjado." Vamos, Tarras - disse para o cavalo, dando-lhe ligeira esporada - despacha-te, meu amigo. Temos de ser os primeiros a chegar.
Encontrava-se então num vasto planalto que começava a ser iluminado pelos primeiros raios de Sol.
Da encosta suave que descia, avistava, embora de longe, a casa do Anão.
A porta abriu-se e Hobbie viu com os seus próprios olhos o fenómeno de que tantas vezes ouvira falar. Dois vultos humanos - se podia dar-se este nome ao do Anão - saíram do solitário refúgio do recluso e continuaram a conversar ao ar livre. O mais alto baixou-se, como para apanhar qualquer coisa que se encontrava à porta da casa; depois continuaram a andar por mais algum tempo e pararam de novo, prosseguindo a animada conversa. Os terrores supersticiosos de Hobbie acordaram mais uma vez. Parecia-lhe impossível que o Anão deixasse alguém entrar em sua casa e que existisse homem tão ousado que se atrevesse a visitá-lo de noite. Na convicção de que tinha visto o Anão conversar com um espírito, ficou com a respiração suspensa, puxou a rédea ao cavalo e resolveu não incorrer na cólera de ambos, fazendo indiscreta interrupção na sua conferência. Por seu lado, eles pressentiram, sem dúvida, a sua aproximação, porque, mal parou, o Anão voltou para casa e o vulto alto que o acompanhava deslizou ao longo da vedação do jardim e como que se desvaneceu diante dos olhos do estupefacto Hobbie.
"Já algum mortal viu coisa como esta! - murmurou Elliot - Mas estou numa situação desesperada e, nem que tivesse visto Belzebu em pessoa, arriscar-me-ei a descer a colina."
No entanto, a despeito da sua pretensa coragem, abrandou o passo quando passou no sítio onde tinha visto desaparecer o vulto. Viu então, como enroscado junto de uma moita de urzes, um objecto pequeno, escuro e atarracado, semelhante ao de um cão baixote.
"Elshie nunca teve cães, que eu saiba - pensou Hobbie - mas sim muitos demónios ao seu serviço. Deus me perdoe por ter pronunciado esta palavra!... Se é animal não se mexe. Parece um texugo. Mas, para nos assustar, os fantasmas costumam tomar formas tão estranhas! Aquele vai transformar-se talvez num leão ou num crocodilo quando eu me aproximar dele. Vou atirar-lhe uma pedra, porque se toma outra forma quando chegar perto, o meu Tarras assustar-se-á e terei muito trabalho para o acalmar e, ao mesmo tempo, fazer frente ao demónio.
Em virtude deste raciocínio, atirou uma pedra ao objecto em questão, que permaneceu imóvel.
"Não é um ser vivo! - exclamou Hobbie - mas sim o saco com dinheiro que ontem me atirou da janela! Quem seria aquela criatura, delgada e alta, que o trouxe até aqui?
Então aproximou-se e levantou o pesado saco que estava cheio de oiro.
"Misericórdia! - murmurou Hobbie, cujo coração palpitava e cujas esperanças e projectos de futuro voltavam a renascer, ao mesmo tempo que temia o fim com que lhe ofereciam tanto dinheiro - Misericórdia! É terrível pensar que toco numa coisa que ainda há pouco estava nas mãos de alguém que não é muito cristão. Ninguém me tira da cabeça que em tudo isto anda qualquer manigância de Satanás, mas estou resolvido a comportar-me como homem honesto e bom cristão, aconteça o que acontecer!"
Em consequência, aproximou-se da porta da cabana e, depois de ter batido repetidas vezes sem obter resposta, chamou, elevando a voz:
- Elshie, bom pai Elshie. Sei que estás acordado, pois vi-te à porta quando descia a colina. Queres sair e falar com alguém que tem muitos agradecimentos a fazer-te? Tudo quanto me disseste a respeito do Westburnflat era verdadeiro. Ele devolveu-me Grace sã e salva e o resto que me aconteceu facilmente se remedeia. Se quisesses aparecer por uns momentos ou, pelo menos, dizer-me que me escutas... Mas se não queres, vou continuar a minha história. Pensei que seria horrível para duas pessoas novas como eu e Grace adiarmos o casamento por muitos anos, até que eu voltasse do estrangeiro com algum dinheiro. De resto, dizem que já não pode esperar-se obter muito dinheiro com os saques da guerra e, como a rainha paga pouco, já não se enriquece com o ofício das armas. Além disso, minha avó está velha e as minhas irmãs perderiam a coragem se eu não estivesse aqui para as amparar. Por fim, Earnscliff e os vizinhos, até mesmo tu, Elshie, poderão ter necessidade de algum serviço que o Hobbie Elliot não deixaria de prestar... É pena que a herdade de Heugh-foot esteja completamente destruída! Pensei, portanto... Mas o demónio me leve, e Deus me perdoe por ter proferido esta palavra - acrescentou, dominando-se - se me conformo em pedir um favor a alguém que não quer responder-me, nem sequer dá a entender que me ouve.
- Dize o que quiseres... faze o que entenderes - respondeu o Anão de dentro de casa - Mas vai-te embora e deixa-me descansado.
- Muito bem - replicou Elliot - visto saber que me escutas, vou abreviar a minha história. Já que és tão bom e me emprestas o dinheiro preciso para reconstruir e comprar o preciso para guarnecer a herdade de Heugh-foot, aceito com reconhecimento a tua oferta. Na verdade, penso que estará mais seguro na minha mão do que na tua, pois deixaste o dinheiro cá fora, sujeito a ser levado pelo primeiro que passasse, sem falar nos maus vizinhos que podem arrombar portas e descobrir os esconderijos mais ocultos. Infelizmente, posso dizê-lo por experiência própria. Visto teres tanta consideração por mim, aceito encantado esta prova de bondade. Eu e minha mãe - ela é usufrutuária e eu sou proprietário do domínio de Wideopen - dar-te-emos um documento de hipoteca ou um título de dívida da quantia que me emprestas, e pagar-te-emos os juros todos os seis meses. Saundars Wyliecoat fará a escritura e as despesas correrão por minha conta.
- Cala-te com isso e vai-te embora! - ordenou o Anão - A tua probidade tagarela é para mim mais insuportável do que a lábia de um intrujão que despoja um homem de tudo quanto possui, sem agradecimentos, explicações ou desculpas. Vai-te embora, repito. És um desses camponeses rudes, cuja palavra vale tanto como uma escritura. Guarda o dinheiro e os juros até que eu tos peça.
- Mas - continuou o obstinado Border - podemos estar vivos hoje e mortos amanhã. Numa transacção como esta devíamos pôr o preto no branco. Redige tu uma minuta, nos termos que te convenha. Passá-la-ei a limpo e assiná-la-ei diante de duas testemunhas. Apenas te peço que não incluas nela qualquer coisa que seja prejudicial à minha alma. Levá-la-ei ao nosso pároco e não queria expor-te a censuras. Vou-me embora. Estás cansado de me ouvir e eu de falar sem obter resposta... Trazer-te-ei um destes dias um pedaço do bolo da noiva e talvez traga a Grace comigo para te fazer uma visita. Ficarás encantado quando conheceres a minha Grace, por muito casmurro que sejas... Santo Deus! Que grande suspiro soltou! Estará ele mal disposto? Ou talvez pensasse que me referia à graça divina e não a Grace Armstrong? Pobre homem! Não sei o que pensar a seu respeito. Mas tenho a certeza de que foi tão bom para mim como se eu fosse seu filho. Que estranho pai eu teria se fosse verdade!
Dito isto, libertou o seu benfeitor da sua presença e voltou alegremente a casa para mostrar o seu tesouro e reparar os estragos sofridos com a agressão do Red Reiver de Westburnllat.
Três salteadores me agarraram ontem de manhã, pobre rapariga abandonada. Abafaram meus gritos com brutalidade e amarraram-me em cima de um cavalo branco. Tão certo é eu esperar que o Céu tenha piedade de mim, não posso dizer quem eram esses homens.
CHRISTABELLA
Temos de retroceder um pouco na nossa história, a fim de revelar as circunstâncias que colocaram miss Vere na desagradável situação da qual se viu livre inesperadamente e, de facto, sem que tivessem tenção de o fazer, pela aparição de Earnscliff, de Elliot e dos seus amigos, diante da torre de Westburnflat.
Na véspera da noite em que o bandido incendiou a casa de Hobbie, de manhã, miss Vere foi convidada pelo pai para o acompanhar num passeio que se propunha dar a um ponto afastado do local romântico em que se encontrava o castelo de Ellieslaw.
"Ouvir é obedecer" - diz um velho provérbio oriental. Mas Isabel tremia em silêncio, enquanto seguia o pai pelos atalhos, quer ao longo de um ribeiro, quer trepando as colinas que se erguiam nas suas margens.
Um único criado, escolhido talvez por causa da sua estupidez, acompanhava-os.
Devido ao silêncio do pai, Isabel não duvidou de que ele escolhesse aquele passeio a ponto tão afastado para recomeçar a discussão tantas vezes abordada sobre o pedido de casamento de sir Frederick, e que procurasse a maneira de lhe fazer sentir a necessidade de o aceitar como pretendente. Durante algum tempo, as suas suspeitas foram infundadas. As únicas palavras que o pai lhe dirigia de tempos a tempos referiam-se ao tempo, à beleza da paisagem que os rodeava e cujo aspecto variava a todo o momento. A estas observações, embora elas fossem feitas por quem parecia entregue a preocupações mais sombrias e importantes, Isabel esforçava-se por responder com ar descuidado e sem constrangimento, tanto quanto era possível no meio dos involuntários temores que a assaltavam.
Sustentando com dificuldade esta conversa mútua, sem sequência regular, chegaram a pequeno bosque de carvalhos, vidoeiros, freixos, aveleiras, azevinhos e outras variedades de árvores. Os ramos mais altos entrelaçavam-se e junto dos seus troncos cresciam arbustos. O ponto onde se encontravam Ellieslaw e a filha era menos sombrio, mas, mesmo assim, coroado por uma abóbada natural formada pelas espessas copas e sombreado aos lados por uma quantidade de moitas e arbustos.
- É aqui, Isabel - disse mr. Vere, continuando a conversa tantas vezes interrompida - É aqui que gostaria de elevar um altar à amizade.
- À amizade, senhor! - retorquiu miss Vere - e porquê neste local sombrio de preferência a outro?
- Este convém mais do que qualquer outro - replicou o pai com um riso trocista - Sabe miss Vere pois é, sei-o bem, uma mulher sábia - sabe que os romanos não se contentavam em personificar todas as qualidades úteis, as virtudes morais às quais podiam dar um nome, mas que, além disso, adoravam essas virtudes com diversos títulos e atributos que podiam conferir-lhe um aspecto distinto ou um carácter particular? Pois bem, por exemplo, a amizade à qual eu desejaria poder elevar aqui um templo não é a amizade dos homens que condena e desdenha a duplicidade, o artifício e a mentira; mas a amizade das mulheres que consiste na disposição mútua das amigas, como se classificam, em se ampararem umas às outras com as suas manhas ocultas e intrigas.
- É muito severo, senhor - disse miss Vere.
- Apenas justo, alguém que baseia as suas afirmações pelo que pôde estudar em dois magníficos exemplos, como miss Ilderton e tu.
- Se tive a infelicidade de o ofender, posso, com consciência, justificar miss Ilderton. Nunca foi minha conselheira nem confidente.
- Na verdade? Onde foste então buscar essa petulância de linguagem, a impertinência de raciocínio, que tanto desagrada a sir Frederick e me ofende a mim?
- Se os meus modos tiverem a infelicidade de lhe desagradar, senhor, não posso deixar de manifestar por isso um pesar sincero e profundo. Mas não acontece o mesmo por ter respondido com vivacidade a sir Frederick quando me falou por forma tão indelicada. Visto ter esquecido que eu era uma senhora, fui obrigada a recordar-lhe que falava, pelo menos, com uma mulher.
- Reserva então as tuas impertinências para aqueles que falarem nesse assunto. Quanto a mim - declarou friamente o pai - Estou farto e não voltarei a referir-me a ele.
- Deus o abençoe, meu querido pai - exclamou Isabel, pegando-lhe na mão que ele tentava retirar - Excepto o facto de ter de suportar a perseguição daquele homem, nada existe neste mundo que me ordene e a que eu não me submeta sem repugnância.
- É muito amável, miss Vere, quando não quer dar ouvidos ao seu dever - ripostou o inflexível pai, libertando a mão do terno amplexo da filha - Para o futuro, não voltarei a dar-lhe conselhos desagradáveis seja sobre que assunto for. Faça o que entender.
Nesse instante caíram sobre eles quatro salteadores.
Mr. Vere e o criado puxaram as facas de mato que era uso trazer nessa época e tentaram defender-se e proteger Isabel. Mas enquanto cada um deles lutava com um adversário, a rapariga foi levada para o bosque pelos outros dois, que a montaram num cavalo e saltaram depois para os dois que se encontravam perto. Puseram-na entre eles, agarraram nas rédeas do cavalo que ela montava e partiram a galope, por atalhos sombrios e tortuosos, atravessaram vales e colinas, charnecas e pântanos e conduziram-na à torre de Westburnflat, onde a conservaram bem vigiada sem a maltratarem, entregue aos cuidados de uma velha, mãe do proprietário da torre.
Nem súplicas, nem lágrimas foram capazes de conseguir que a velha lhe dissesse o motivo do rapto e por que a mantinham sequestrada num sítio tão afastado.
A chegada de Earnscliff com um grupo numeroso de cavaleiros assustou o bandido. Como já tinha dado ordens para que Grace Armstrong fosse restituída à família, não lhe acudiu ao pensamento a ideia de que fosse ela a causa da desagradável visita, e vendo, à testa do grupo, Earnscliff, cuja inclinação para miss Vere era assunto de conversa em toda a região, não duvidou de que a sua libertação fosse o único alvo daquele ataque à torre.
No momento em que o ruído das patas dos cavalos que levavam a filha de Ellisslaw se fez ouvir, o pai caiu e o criado, rapaz robusto, que estava prestes a vencer o adversário que perseguia, abandonou o combate para vir socorrer o amo, supondo que tivesse recebido um ferimento mortal. Os dois bandidos desistiram logo da defesa e de novo ataque e fugiram para o mais espesso dos bosques, montaram e correram atrás dos companheiros. Entretanto, Dixon teve a satisfação de encontrar mr. Vere não só com vida, mas sem qualquer ferimento. Fizera grande esforço para se defender - explicou ele - e tropeçara na raiz de uma árvore quando se dispunha a vibrar violento golpe ao seu adversário. O desespero por ele manisfestado com o rapto da filha foi tal, segundo a expressão de Dixon, que teria enternecido o coração de uma pedra; e ficou por tal forma extenuado com o desgosto e com as vãs tentativas para descobrir o rasto dos raptores, que decorreu bastante tempo antes que voltasse a casa e desse o alarme aos criados.
Os seus modos e procedimento eram os de um homem desesperado.
- Não me diga nada, sir Frederick - pediu com impaciência - O senhor não é pai. Trata-se de minha filha... uma filha ingrata, talvez, mas a minha única filha. Onde está miss Ilderton? Ela deve saber qualquer coisa sobre isto. Este acontecimento concorda com as informações que tenho das suas maquinações. Vá, Dixon, e peça a mr. Ratcliffe para chegar aqui sem demora.
A pessoa que acabava de nomear entrou nesse instante no quarto.
- Repito, Dixon - continuou mr. Vere, mudando de tom - vá comunicar a mr. Ratcliffe que lhe peço para vir falar comigo sobre um assunto particular. Ah! Meu amigo - acrescentou como se ainda não o tivesse visto - O senhor é justamente a pessoa cujos conselhos me são mais necessários na extremidade em que me encontro.
- Que lhe aconteceu, mr. Vere, para se afligir assim? - perguntou mr. Ratcliffe num tom grave.
E enquanto o laird de Ellieslaw lhe dava, com todos os sintomas de indignação e de dor, os pormenores da aventura da manhã, aproveitaremos a ocasião para revelar aos nossos leitores as relações que estas duas personagens mantinham entre si.
Na mocidade, Ellieslaw fizera-se notar por uma vida dissipada que, numa idade mais avançada, trocara por profunda e turbulenta ambição. Num e noutro caso, conseguira satisfazer a sua paixão dominante, sem se preocupar com a diminuição da sua fortuna particular, embora que, em circunstâncias a que não era impelido por esse motivo, tivesse fama de agarrado, avarento e pouco escrupuloso nos meios empregados para obter dinheiro. Tendo a vida bastante atrapalhada, devido às suas extravagâncias, passou a Inglaterra, onde, segundo opinião geral, fez um casamento vantajoso. Esteve muitos anos ausente dos domínios da família. De súbito, sem ninguém esperar, voltou viúvo, trazendo consigo a filha, nessa altura com dez anos. Desde então as suas despesas foram consideradas excessivas pelos simples habitantes das montanhas entre os quais nascera, e supunha-se que estivesse muito endividado.
No entanto, continuou a viver com a mesma prodigalidade até à época, alguns meses antes do começo da nossa história, época na qual a opinião geral sobre o estado da sua fortuna se confirmou com a residência no castelo de Ellieslaw de mr. Ratcliffe, que com tácito consentimento, embora com desprazer do senhor do castelo, pareceu, desde o instante da chegada, tomar e exercer influência predominante e inconcebível na condução dos seus assuntos particulares.
Mr. Ratcliffe era um homem grave, reflectido e reservado e já de idade avançada. As pessoas que falavam com ele sobre negócios diziam ser homem alto entendido. Era pouco comunicativo, mas quando Se oferecia ensejo ou em conversa, demonstrava um espírito brilhante e culto. Durante algum tempo, antes de fixar residência no castelo, fizera ali algumas visitas, e nessas ocasiões mr. Vere, contra seu costume com aqueles que considerava de categoria inferior à sua, manifestava por ele grandes atenções e até deferência. No entanto, a sua presença parecia causar-lhe sempre uma espécie de embaraço e a sua partida uma sensação de alívio; não foi difícil notar o aborrecimento manifestado por mr. Vere quando Ratcliffe se instalou definitivamente em sua casa. Nas suas relações existia estranha mistura de constrangimento e de confiança. Os assuntos mais importantes de mr. Vere eram tratados por mr. Ratcliffe; e conquanto ele não fosse destes ricos ociosos que, muito indolentes para se preocuparem com os seus próprios negócios, se sentem felizes quando podem entregá-los a outros, em muitas circunstâncias viam-no renunciar ao seu próprio critério para se submeter às opiniões contrárias de mr. Ratcliffe, que não hesitava em as manifestar francamente. Mr. Vere mostrava-se muito mortificado quando alguém aludia à espécie de tutela em que vivia. Quando sir Frederick ou qualquer dos seus amigos se referia ao assunto, ou repelia a observação com altivez e indignação, ou evitava uma explicação directa, dizendo com um sorriso forçado que mr. Ratcliffe conhecia a sua importância, mas que não havia outro mais honesto e mais competente e que lhe seria impossível tratar dos seus assuntos em Inglaterra sem a sua opinião e auxílio.
Era este o homem que entrou nos aposentos de Ellieslaw na altura em que este o mandava chamar e que ouviu com surpresa e incredulidade a narrativa feita por mr. Vere do que acontecera a Isabel.
- Agora, meus amigos - concluiu mr. Vere, dirigindo-se a sir Frederick e às outras pessoas que o rodeavam e que manifestavam todas a sua surpresa - considerem-me o pai mais infeliz de toda a Escócia. Auxiliem-me, senhores. Aconselhe-me, Ratcliffe. Depois deste infeliz acontecimento, sinto-me incapaz de pensar e de agir.
- Montemos a cavalo, chamemos os criados e percorramos as montanhas em perseguição dos bandidos - alvitrou sir Frederick.
- Não existe ninguém de quem suspeite, que tenha motivos para cometer semelhante atentado? - perguntou Ratcliffe com gravidade - Não vivemos no século dos romances, quando raptavam damas apenas pela sua beleza.
- Receio - respondeu mr. Vere - ver demasiado claro em todo este estranho caso. Leia esta carta que miss Lucy Ilderton escreveu do meu castelo de Ellieslaw ao jovem mr. Earnscliff, a quem tenho o direito hereditário de considerar meu inimigo. Escreve-lhe como confidente de uma paixão que ele teve o atrevimento de conceber por minha filha. Afirma-lhe que advoga a sua causa junto da prima com o maior ardor, mas que existe na praça um amigo que o serve por forma ainda mais eficaz. Note, sobretudo, as passagens marcadas com lápis, mr. Ratcliffe, nas quais essa intrigante o aconselha a recorrer a medidas ousadas, assegurando-lhe que o seu amor será coroado de êxito, em toda a parte, excepto nos limites da baronia de Ellieslaw.
E conclui, mr. Vere - observou Ratcliffe - desta carta romanesca de uma rapariga ainda mais romanesca, que o jovem Earnscliff raptou a sua filha e cometeu esse acto de criminosa violência sem outra opinião, sem outro conselho mais positivo do que a opinião de miss Lucy Ilderton?
- Como posso pensar doutra maneira? - retorquiu Ellieslaw - Que outra pessoa teria interesse em cometer o crime? Quem acusa o senhor?
- Se for este o melhor modo de descobrir quem é o culpado - respondeu mr. Ratcliffe com calma - seria fácil indicar pessoas cujo carácter tem mais afinidade com este género de acções e que têm motivos bastantes para as praticarem. Suponhamos que teria sido considerado conveniente mandar miss Vere para qualquer ponto isolado onde fosse possível exercer sobre as suas inclinações uma pressão que não poderia ser tentada no castelo de seu pai? Que diz sir Frederick Langley desta suposição?
- Digo - respondeu sir Frederick - que se mr. Vere acha natural suportar a mr. Ratcliffe liberdades que são em absoluto incompatíveis com a sua posição social, eu não suportarei que uma surda insinuação, seja por palavras, seja por um olhar, me atinja.
- E eu digo - acrescentou o jovem Marechal de Mareschal-Wells, interrompendo-os - que são ambos loucos em ficar no castelo a questionar em vez de perseguirem os bandidos.
- Já dei ordem aos criados para seguirem pela estrada onde será mais provável podermos atingi-los - declarou mr. Vere - Se estão dispostos a acompanhar-me, vamos segui-los e auxiliá-los nas pesquisas.
Os seus esforços não tiveram êxito, naturalmente porque Ellieslaw dirigiu as buscas para o lado de Earnscliff-Tower, supondo ser o seu proprietário o autor da violência, tendo, de facto, seguido pela estrada diametralmente oposta à que os bandidos haviam tomado. O grupo voltou ao castelo extenuado e desanimado. Mas, neste intervalo, tinham chegado novos hóspedes e depois de lhes terem contado a infelicidade acontecida ao seu proprietário, embora os recém-chegados a deplorassem e testemunhassem o seu espanto, acabaram por esquecê-la, por completo, passando a discutir unicamente as importantes intrigas políticas, cuja crise e explosão aguardavam de um momento para o outro.
Muitos dos que tomavam parte nesta reunião eram católicos e todos eles jacobitas declarados; as suas esperanças eram mais vivas do que nunca, pois aguardavam todos os dias uma invasão da França a favor do Pretendente e pensavam que a Escócia, no estado em que se encontravam as suas praças-fortes e guarnições, assim como o descontentamento dos seus habitantes, estaria mais disposta a acolhê-lo do que a opor-lhe resistência.
Ratcliffe, que nunca assistia às reuniões nem para elas era convidado, recolheu aos seus aposentos. Miss Ilderton foi afastada da sociedade, numa espécie de benévolo cativeiro "até que - como disse mr. Vere - fosse conduzida com segurança para casa do pai"; e essa ocasião favorável apresentou-se logo no dia seguinte.
Os criados não podiam deixar de estranhar que os habitantes do castelo esquecessem em tão pouco tempo a desgraça acontecida a miss Vere e a maneira singular como as coisas se haviam passado. Não sabiam que aqueles a quem a sua sorte mais interessava, conheciam muito bem o motivo do rapto e para onde fora levada e que os outros, no estado de dúvida e ansiedade pelo momento em que a conspiração poderia eclodir, não experimentavam outros sentimentos mais do que os nascidos das suas próprias maquinações.
Uns de um lado, outros do outro... Sabeis onde poderemos encontrá-la?
As tentativas feitas para encontrar miss Vere talvez mais para salvar as aparências - foram renovadas no dia seguinte, mas com igual inêxito. À noite regressaram todos a Ellieslaw.
- É estranho - dizia Mareschal para Ratcliffe - como quatro cavaleiros e uma mulher prisioneira puderam passar sem deixar o mais pequeno vestígio. Dir-se-ia que foram pelos ares e se sumiram pelo chão abaixo.
- Pode-se, muita vez, chegar ao conhecimento do que é pela descoberta do que não é - respondeu Ratcliffe - Percorremos todos os caminhos, todas as estradas, todos os atalhos que, partindo do castelo, se dirigem para todos os pontos do horizonte, com excepção do caminho difícil e perigoso que conduz, através dos pântanos, à torre de Westburnflat.
- Qual a razão por que não fomos para esse lado? - perguntou Mareschal.
- Mr. Vere pode responder a essa pergunta melhor do que eu - replicou o companheiro em tom breve.
- Então vou perguntar-lho - declarou Mareschal. E, dirigindo-se a mr. Vere, observou:
- Ainda não examinámos a estrada de Westburnflat.
- Que ideia! - comentou sir Frederick, a rir - conhecemos muito bem o proprietário de Westburnflat. É um estouvado, que não sabe diferençar a sua propriedade da dos outros, mas que, apesar de tudo, tem princípios. Seria incapaz de tocar em qualquer coisa que pertencesse a Ellieslaw.
- Além disso - acrescentou mr. Vere, sorrindo com ar misterioso - ontem à noite a sua roca estava carregada com outra espécie de estopa. Não souberam que a casa do jovem Elliot de Heugh-foot foi incendiada e os seus rebanhos roubados, porque se recusou a fornecer armas a alguns bravos que se propunham fazer um movimento a favor do rei?
Toda a companhia sorriu ao ter conhecimento de uma proeza que favorecia os seus planos.
- No entanto - observou Mareschal - julgo que devíamos ir para esse lado. Caso contrário, poderiam acusar-nos de negligência.
Como não podiam opor objecção razoável a esta proposta, voltaram os cavalos na direcção de Westburnflat.
Mal deram os primeiros passos nessa direcção guando ouviram um tropel de cavalos e viram um grupo de cavaleiros que se aproximava.
- É o Earnscliff - afirmou Mareschal - reconheço o seu cavalo baio como uma estrela na fronte.
- E minha filha vem com ele! - exclamou Vere em tom furioso - Quem pode afirmar agora que as minhas suspeitas eram falsas e injuriosas? Meus amigos, prestem-me o auxílio das vossas espadas para me auxiliar a libertar a minha filha.
Desembainhou a espada, sir Frederick e alguns outros imitaram-no, e prepararam-se para carregar sobre os que se aproximavam; mas a maior parte deles hesitou.
- Vêm para nós em paz e seguros - observou Mareschal-Wells - Ouçamos primeiro o que têm a dizer-nos sobre este misterioso caso. Se miss Vere sofreu o mais pequeno insulto de Earnscliff, serei o primeiro a vingá-la. Mas saibamos primeiro o que aconteceu.
- As suas palavras magoam-me, Mareschal - censurou Vere - Seria o último de quem contava ouvi-las.
- Está a prejudicar-se a si próprio, Vere, com a sua violência, embora o motivo que a provoca sirva de desculpa - replicou Mareschal.
Então avançou à frente do grupo e disse em voz alta:
- Detenha-se, mr. Earnscliff, ou então avancem só o senhor e miss Vere. Acusam-no de ter raptado esta menina de casa de seu pai e todos nós estamos dispostos a verter o nosso sangue para a libertar e castigar aquele que a insultou.
- Quem o faria de melhor vontade do que eu, mr. Mareschal - respondeu Earnscliff com altivez - eu que esta manhã tive o prazer de a libertar da torre onde estava presa e que a escoltava até ao castelo de Ellieslaw, para onde desejou ser conduzida?
- As coisas passaram-se assim, miss Vere?
- Passaram - respondeu esta - Pelo amor de Deus, metam as espadas na bainha. Juro, por tudo quanto há de mais sagrado, que fui raptada por salteadores, cujos nomes e intuitos desconheço e que fui restituída à liberdade pela intervenção deste cavaleiro.
- Por quem e com que desígnios foi cometido esse atentado? Não faz uma ideia do local para onde foi conduzida? Earnscliff, onde encontrou miss Vere?
Mas antes que pudessem responder a qualquer das perguntas, Ellieslaw aproximou-se e, embainhando a espada, pôs termo à conversa.
- Quando eu souber exactamente até onde vai a minha dívida para com mr. Earnscliff - declarou pode contar com o meu reconhecimento proporcionado. Entretanto - acrescentou, agarrando na rédea do cavalo de miss Vere - agradeço-lhe ter entregue minha filha nas mãos do seu protector natural.
Earnscliff limitou-se a responder com altiva inclinação de cabeça; e Ellieslaw, tomando com a filha o caminho do castelo, encetou com ela uma conversa que parecia tão grave que o resto do grupo considerou inconveniente incomodá-los, aproximando-se. Entretanto, Earnscliff despedia-se dos cavaleiros que compunham o grupo de Ellieslaw, dizendo em voz alta:
- Embora esteja certo de que o meu procedimento não autoriza a formular semelhantes suspeitas, não posso deixar de notar que mr. Vere parece acreditar que tenho qualquer responsabilidade na violência feita a sua filha. Peço-lhes, senhores, que sejam testemunha das minhas formais negativas e do repúdio de uma acusação tão desonrosa. Conquanto desculpe a excitação de um pai, muito admissível numa ocasião destas, se algum dos senhores - e fixou com insistência sir Frederick Langley - pensa que a minha palavra e a de miss Vere, com o testemunho dos amigos que me acompanham, não bastam para minha justificação, ficarei encantado, muito encantado mesmo, de repelir a acusação como convém a um homem para quem a honra é mais cara do que a vida.
- E eu serei o seu segundo - declarou Simon de Hackburn - e bater-me-ei com dois dos senhores, nobres ou plebeus, lairds ou camponeses. Para Simon é a mesma coisa.
- Quem é este insolente? - perguntou sir Frederick Langley - E que tem ele a ver com as questões dos fidalgos?
- Sou filho do alto Theviot - respondeu Simon - e posso questionar com quem me apetecer, excepto com o rei e com o laird em cujo domínio vivo.
- Basta de disputas, senhores - acalmou Mareschal - Mr. Earnscliff, embora não pensemos da mesma maneira em alguns pontos, lisonjeio-me ao supor que podemos ser antagonistas e mesmo inimigos, se a sorte o quiser, sem perder as atenções devidas ao nosso nascimento, à igualdade de situação e a nós mesmos. Acredito que está tão inocente neste caso como eu próprio e garanto-lhe que meu primo Ellieslaw, quando a ansiedade natural em acontecimento tão inesperado lhe deixe a liberdade de espírito e a reflexão, saberá reconhecer dignamente o enorme favor que hoje lhe prestou.
- O prazer de ter sido útil a seu primo basta-me como recompensa. Boa tarde, senhores - continuou Earnscliff - vejo que a maior parte do grupo já se encontra a caminho para Ellieslaw.
Então, saudando Mareschal com delicadeza e os outros com indiferença, Earnscliff voltou o cavalo e tomou o caminho de Heugh-foot para combinar com Hobbie as medidas a tomar para continuar a procurar a noiva, cujo regresso ainda ignorava.
- Partiu! - disse Mareschal - Considero-o um leal e valente rapaz. No entanto, gostava de trocar com ele um ou dois botes em campo aberto. No colégio era considerado da sua força no florete e gostaria de experimentar com a espada.
- Em minha opinião - respondeu sir Frederick Langley - fizemos mal em o deixar retirar, a ele e aos homens que o acompanhavam, sem lhes tirarmos as armas. Os Wighs podem muito bem formar um partido chefiado por este rapaz cheio de ardor.
- Que vergonha, sir Frederick! - protestou Mareschal - Pensa que o Ellieslaw poderia, com honra, suportar que fizessem qualquer violência a Earnscliff, quando este entrou nas suas terras para lhe trazer a filha? E, admitindo ser ele da sua opinião, imagina que estes senhores e eu nos desonraríamos, auxiliando-os em semelhante acto? Não. Igualdade de vantagens, mas a Escócia acima de tudo. Quando desembainhar a espada, saberei servir-me dela como qualquer outro, mas enquanto estiver na bainha, portemo-nos como fidalgos e bons vizinhos.
Pouco depois chegaram ao castelo, onde Ellieslaw já se encontrava, aguardando-os na sala.
- Como está miss Vere? - perguntou Mareschal com interesse - Já descobriu a causa do rapto?
- Retirou para os seus aposentos muito fatigada respondeu Ellieslaw - e não espero que me dê mais informações sobre a aventura, enquanto não estiver mais calma. Estou-lhe muito reconhecido e aos nossos amigos pelo interesse que me testemunharam. Mas, por agora, devo calar os meus sentimentos paternais para deixar falar os de patriota. Como sabem, é hoje que devemos tomar uma resolução definitiva... O tempo urge... Os nossos amigos vão chegar e eu abri a minha casa não só para a nobreza e para a burguesia, como para os homens de classe inferior que, necessariamente, teremos de empregar. Temos pouco tempo para nos preparar para os receber. Veja estas listas, Marchie - diminutivo pelo qual os Mareschal-Wells eram conhecidos entre os amigos - e o senhor, sir Frederick, leia as cartas que recebi de Lothian e dos cantões de oeste. O trigo está maduro e só espera que o cortem. Temos de reunir os ceifeiros.
- De todo o coração - respondeu Mareschal - quanto maior for a luta, mais nos divertiremos.
Sir Frederick tomou um ar grave e desconcertado.
- Venha comigo - pediu-lhe Ellieslaw - quero comunicar-lhe uma notícia que por certo lhe dará prazer.
E dirigiram-se juntos para casa, deixando Mareschal e Ratcliffe no pátio.
- Com que então - comentou Ratcliffe - aqueles que partilham as suas opiniões políticas consideram a queda do governo tão certa que desdenham ocultar as maquinações do seu partido?
- Mr. Ratcliffe - replicou Mareschal - pode ser que as acções e sentimentos dos seus amigos precisem de ser encobertos. Quanto às nossas, prefiram que sejam bem claras.
- Como pode ser que - continuou Ratcliffe - apesar da irreflexão e ardor do seu carácter - peço-lhe perdão, mr. Mareschal, mas sou uma pessoa franca - que o senhor, repito, apesar desses defeitos, tendo bom senso natural e sendo uma pessoa culta, se deixasse obcecar a ponto de se envolver em maquinações tão desesperadas? Como fica a sua cabeça quando assiste a estas assembleias perigosas?
- Não a sinto mais segura sobre os ombros do que se falasse de caça - respondeu Maresehal - Não sou tão indiferente como o meu primo Ellieslaw, que fala de traição como uma criança falaria de contos de fadas e que perde e recupera a sua encantadora filha com tão pouca emoção, num e noutro caso, como eu acolheria a perda de um dos meus galgos. O meu carácter não é tão inflexível e o meu ódio pelo governo tão inveterado que não me deixe ver o perigo da aventura.
- Então para que se expõe? - perguntou Ratcliffe.
- Que hei-de responder-lhe? Amo de todo o meu coração o rei exilado - declarou Mareschal - Meu pai era um dos velhos guerreiros de Killiecrankie e anseio por assistir à vingança exercida contra os cortesãos da União que compraram e venderam a velha Escócia, cuja coroa foi sempre independente.
- E é para correr atrás de tais quimeras que se dispõe a arrastar o país para a guerra e a colocar-se em embaraços?
- Eu! - protestou Mareschal - Engana-se. Mas, embaraços por embaraços, prefiro que seja dentro de uma semana e não dentro de um mês que eles cheguem, pois têm de chegar. Como dizem os nossos camponeses, "vale mais cedo do que tarde. Conhece a última estrofe da velha balada:
O nosso homem caminhava alegremente
Repetindo uma canção
Cantava ainda e dançava
Quando chegou ao pé da forca
- Mr. Mareschal, lamento-o - declarou Ratcliffe com ar grave.
- Fico-lhe muito reconhecido, mr. Ratcliffe. Mas não gostaria que considerasse a nossa empresa pela forma como tento justificá-la. Muitas pessoas mais sensatas do que eu estão envolvidas nela.
- Como podem cabeças mais sensatas do que a sua cair tão baixo - prosseguiu Ratcliffe num tom que parecia significar: "Acautele-se."
- Talvez tenha razão! - concordou Mareschal - Não o faço com o coração muito leve. E para evitar entristecer ao ouvir as suas advertências, vou despedir-me, mr. Ratcliffe, até à hora do jantar e nessa altura poderá verificar que os meus temores não me roubaram o apetite.
Enfeitar as vestimentas da rebelião com cores brilhantes que possam agradar aos tolos inconstantes e aos pobres descontentes que abrem a boca e esfregam as mãos quando lhes anunciam qualquer mudança imaginária.
SHAKESPEARE - Henrique IV - 2.ª parte
Fizeram-se grandes preparativos no castelo de Ellieslaw para a assembleia que devia ter lugar naquele dia memorável e à qual deviam comparecer não só os fidalgos mais importantes da região, ligados ao partido jacobita, como subordinados descontentes que, devido a transtornos nos seus negócios, pelo desejo de mudanças, ressentimento contra a Inglaterra ou por qualquer das outras numerosas causas que inflamavam as paixões dos homens daquela época, decidiam tomar parte na perigosa aventura. As pessoas mais distintas pela categoria social ou fortuna encontravam-se ali em pequeno número, porque os grandes proprietários conservavam-se afastados e a maior parte dos burgueses e lavradores professava a religião presbiteriana e, por consequência, embora não fossem partidários da União, não estavam dispostos a comprometer-se numa conspiração jacobita. Mas viam-se alguns fidalgos que, fosse pelos princípios inspirados desde criança ou por motivos de religião, partilhavam as ideias ambiciosas de Ellieslaw ou davam uma espécie de apoio aos seus planos; viam-se também alguns rapazes de carácter impetuoso como Mareschal, ansioso por se distinguir, tomando parte numa empresa ousada, na esperança de restabelecer a independência da sua pátria. Os outros membros do partido eram homens de classe inferior, que haviam dissipado a sua fortuna e que estavam dispostos a rebelar-se naquele lado do reino como o fizeram depois, em 1715, com Forster e Derwentwater, com um bando comandado por um fidalgo do Border, chamado Douglas, e quase composto totalmente de filibusteiros, entre os quais o célebre Luck-in-a-bag, como lhe chamavam, assumira posto de distinção. Julgamos ser necessário dar estes pormenores, que se aplicam apenas à província onde decorre a nossa história, porque nos outros pontos do reino o partido jacobita era composto por membros muito mais temíveis, mais numerosos e mesmo mais respeitáveis.
Comprida mesa estava disposta na vasta sala do castelo de Ellieslaw, que se encontrava pouco mais ou menos no mesmo estado de cem anos atrás, estendendo-se por todo um dos lados da sombria habitação, abobadada, sustentada por arcos de pedra esculpida, das quais sobressaíam figuras das formas mais bizarras que a imaginação de um escultor da época gótica tinha podido fantasiar, mostrando os dentes como se ameaçassem os convivas.
A sala do banquete era iluminada por janelas compridas e estreitas, guarnecidas com vidros de cor, através dos quais os raios do sol mal conseguiam filtrar, fracos e sem brilho. Uma bandeira, que a tradição afirmava ter sido tomada aos ingleses na batalha de Sark, adejava por cima da cadeira de braços onde Ellieslaw tomara lugar como presidente, como para inflamar a imaginação dos conspiradores, recordando-lhes as antigas vitórias obtidas sobre os seus vizinhos.
O dono da casa, numa atitude cheia de dignidade, trajando com extremo requinte, com as feições que, apesar de terem uma expressão feroz e sinistra, se podiam classificar de belas, representava perfeitamente os antigos senhores feudais. Sir Frederick Langley estava sentado à sua direita e mr. Mareschal, de Mareschal-Wells, à esquerda. Algumas personagens de alta consideração, com os filhos, irmãos e sobrinhos ocupavam o resto do topo da mesa e entre eles estava mr. Ratcliffe. Para baixo do saleiro - pesada peça de prata que ocupava o centro da mesa, estavam sentados os que poderiam chamar-se sine nomine turba, pessoas cuja vaidade se sentia lisonjeada por se encontrarem ali, ao mesmo tempo que, embora sentados intencionalmente na parte inferior da mesa, a sua presença diminuía o orgulho dos seus superiores. Pode avaliar-se que espécie de indivíduos eram esses, visto que Willie de Westburnflat se encontrava presente. O audacioso descaramento desse homem, entrando em casa de uma pessoa à qual acabava de inflingir tão grande insulto, não pode explicar-se senão pelo facto dele se considerar seguro de que a sua intervenção no rapto de miss Vere constituía um segredo bem guardado no coração do pai e também no da filha.
Foi a esta numerosa companhia que serviram um jantar composto, não das iguarias próprias da estação, segundo a expressão empregada pelos jornais, mas de enormes peças de carne, cujo peso fazia gemer a mesa. A alegria não era proporcionada à abundância do festim. Os convidados do extremo da mesa durante algum tempo conservaram-se constrangidos e tolhidos pelo respeito que os dominava, ao verem-se membros de tão augusta assembleia. Estavam esmagados pelo mesmo sentimento de temor que P. P. confessava ter sentido a primeira vez que entoara um salmo diante das ilustres personagens: o juiz Freeman, boa lady Jones e o grande sir Thomas Truby. Este gelo, porém, em breve se fundiu ao calor dos excitantes que foram liberalmente distribuídos e largamente absorvidos pelos convivas da classe inferior. A sua alegria tornou-se faladora, barulhenta e até tumultuosa.
Mas nem vinho nem aguardente tiveram o poder de animar e aquecer o cérebro daqueles que se encontravam no topo da mesa e ocupavam os lugares mais em destaque no banquete. Experimentavam a sensação de frio glacial que quase sempre nos toma quando somos obrigados a tomar uma resolução desesperada, depois de nos termos colocado numa posição da qual se torna tão difícil recuar como avançar. O precipício parecia-lhes cada vez mais profundo e perigoso à medida que se aproximavam da borda e cada um deles aguardava com um sentimento de temor e hesitação que um dos outros fosse o primeiro a lançar-se nele. Este sentimento íntimo assumiu aspecto diverso conforme os hábitos e carácter dos diversos membros da assembleia; um mostrava-se grave e sombrio, outro tolo e desapontado; um terceiro relanceava olhares inquietos aos lugares que se conservavam desocupados no topo da mesa, lugares que haviam sido reservados para os membros da conspiração, cuja prudência sobrelevara o zelo político e que se tinham levantado momentos antes. Alguns dir-se-ia que em pensamento estabeleciam comparação entre os interesses e categoria dos membros ausentes e os dos presentes. Sir Frederick Langley tinha um ar frio, obstinado e descontente. Por seu lado, Ellieslaw fazia esforços tão evidentes para animar os seus convivas que se via claramente quanto estava desanimado. Ratcliffe examinava o conjunto desta cena com o sangue-frio de um espectador atento, mas desinteressado. Só Mareschal, fiel ao seu carácter impulsivo e um pouco estouvado, comia, bebia, ria, gracejava e mostrava-se muito divertido com o embaraço dos outros.
- Como foi possível abater a nossa nobre coragem? - dizia - Dir-se-ia que estamos num enterro e aqueles que o conduzem não podem falar senão em voz baixa, enquanto o resto do acompanhamento - e indicava o outro extremo da mesa - bebe e se diverte. Ellieslaw, quando começa o enterro a andar? Têm o espírito adormecido? E quem pôde arrefecer as altas esperanças do cavaleiro de Langley-Dale?
- Fala como um louco - replicou Ellieslaw - Não vê quantos se ausentaram?
- E depois? Não sabia já que metade do género humano tem mais palavras do que obras? Quanto a mim, sinto-me encorajado ao ver que dois terços, pelo menos, dos nossos amigos foram exactos à convocação, conquanto desconfie que metade veio para ter seguro um jantar, no pior dos casos.
- Não temos notícias da costa que nos assegurem o desembarque do rei - disse um dos presentes no tom equívoco e hesitante que indica falta de resolução.
- Nem uma palavra da parte do conde de D... nem de qualquer cavaleiro do sul do Border - acrescentou outro.
- Quem deseja ter maior número de homens da Inglaterra? - perguntou Mareschal no tom teatral de um heroísmo afectado.
Meu primo Ellieslaw? Não, meu nobre primo. Se o destino nos condenar a morrer...
- Pelo amor de Deus, Mareschal - pediu Ellieslaw - suspenda as suas loucuras, por agora.
- Muito bem - respondeu o primo - Vou dar-lhes uma prova da minha sabedoria. Visto termos avançado como loucos, não podemos recuar como cobardes. Já fizemos o bastante para atrair sobre nós as desconfianças e a vingança do governo, não discutamos até termos feito alguma coisa que as Justifique... Pois quê? Ninguém fala? Então serei eu o primeiro...
Levantou-se, pegou numa caneca de cerveja que encheu completamente de vinho de Bordéus e com a mão fez sinal para que todos o imitassem e seguissem o seu exemplo. Todos obedeceram, os nobres numa atitude passiva, os outros com entusiasmo.
- Meus amigos! Vou fazer o brinde do dia: À independência da Escócia, à saúde do nosso legítimo soberano, o rei Jaime VIII, já desembarcado no Lothian e com certeza na posse da sua antiga capital!
Despejou o copo e atirou-o para trás das costas.
- Nunca será profanado por uma saúde indigna.
Todos o imitaram e no meio do estilhaçar dos copos e dos aplausos, os assistentes juraram manter-se fiéis aos princípios e aos interesses expressos no brinde.
- Saltou o fosso! - murmurou Ellieslaw a Mareschal - Foi melhor assim. Haja o que houver, já não podemos renunciar à nossa empresa. Um único entre nós - continuou, olhando para Ratcliffe - recusou beber connosco. Mais tarde falaremos no assunto.
Logo a seguir levantou-se e dirigiu aos presentes palavras virulentas contra o Governo e contra as suas medidas, especialmente contra a União, tratado pelo qual, afirmou, a Escócia fora indignamente despojada da sua independência, do seu comércio e da sua honra, abatida como um escravo acorrentado aos pés da sua rival, contra a qual, durante tantos séculos, através de tantos perigos e da perda do seu sangue, tinha defendido honrosamente os seus direitos. Estas palavras tocaram na corda sensível de todos os membros presentes.
- O nosso comércio foi destruído! - gritou o velho John Rewcastle, contrabandista de Jedburgh, que estava sentado no fim da mesa.
- A nossa agricultura foi arruinada - acrescentou o laird de Broken-girth-flow, terras que desde a época de Adão nunca tinham produzido mais do que urzes e airelas.
- A religião foi transtornada - declarou um Pastor da capela episcopal de Kirkwhistle, com o nariz cheio de borbulhas.
- Daqui a pouco nem nos atreveremos a matar um gamo, nem a beijar uma rapariga - protestou Mareschal-Wells - sem uma certidão do presbítero ou do fiscal dos impostos.
- Ou fazer um ponche com aguardente numa manhã de Inverno, sem licença do jovem Earnscliff - disse Westburnflat - ou de qualquer juiz de paz que se tornasse inglês. Bom tempo, no Border, quando não se falava em paz e em justiça!
- Recordemos as injúrias sofridas em Darien e em Glencoe - continuou Ellieslaw - e armemo-nos para defender os nossos direitos, as nossas propriedades, as nossas vidas e as nossas famílias.
- Recordem-se da verdadeira ordenação episcopal, sem a qual não pode haver clero legítimo - disse o homem da Igreja.
- Lembrem-se das piratarias cometidas contra o nosso comércio nas Índias Orientais por Green e outros corsários ingleses - lembrou William Willieson, sócio e único armador de um brigue que anualmente fazia quatro viagens entre Cockpool e Whitehaven.
- Lembrem-se das vossas liberdades - continuou Mareschal, que parecia encontrar maligno prazer em precipitar os movimentos de entusiasmo que ele próprio havia desencadeado, como criança brincalhona que, tendo levantado a eclusa de um moinho, sente prazer com o ruído das rodas que pôs em movimento, sem pensar no mal que pode ter causado - Lembrem-se das vossas liberdades - repetiu - e que o diabo confunda impostos, imprensa e presbiterianismo e também a memória de Willie, o primeiro que o trouxe!
- Para o diabo o aferidor! - gritou por sua vez o velho John Rewcastle - Matá-lo-ei por minhas mãos.
- Malditos sejam os guardas florestais e o oficial da polícia! - protestou Westburnflat - Meter-lhes-ei um par de balas no corpo antes que chegue o dia de amanhã.
- Estamos de acordo - disse Ellieslaw, quando a paz se restabeleceu - Não queremos suportar por mais tempo este estado de coisas.
- Combinado. Somos todos da mesma opinião, desde o primeiro ao último.
- Não é bem assim - atalhou mr. Ratcliffe - Pois embora eu não conte acalmar a violenta exaltação que parece ter-se apoderado de todos os membros desta assembleia, na medida que a opinião de um só pode ter peso, peço-lhes para tomarem nota de que não partilho da vossa opinião sobre os abusos que acabam de enumerar e lamentar, e que protesto da forma mais formal contra as medidas insensatas que estão dispostos a adoptar para obter uma mudança. Posso supor que a maior parte do que foi dito aqui é resultado de uma exaltação de momento, ou então de uma brincadeira. Mas certas brincadeiras podem ter graves consequências lá fora e devem lembrar-se, senhores, de que as paredes têm ouvidos.
- As paredes podem ter ouvidos, mr. Ratcliffe - repetiu Ellieslaw com um olhar de maligno triunfo - Mas os espiões domésticos em breve deixarão de as ter se se atreverem a prolongar a sua permanência no seio de uma família onde a sua presença é considerada como intrusão não autorizada, o seu procedimento como de um homem presunçoso que mete o nariz onde não é chamado e cuja retirada será a de um patife desapontado, se não souber aproveitar o aviso que lhe dão.
- Mr. Vere - respondeu Ratcliffe com desdenhoso sangue-frio - Sei perfeitamente que logo que a minha presença lhe seja inútil, o que acontecerá como consequência da imprudente atitude agora assumida, ela tornar-se-á tão perigosa para mim como sempre foi odiosa para si. Mas tenho uma protecção bem poderosa e com certeza não deseja que eu exponha diante destes senhores, diante de homens de honra, as circunstâncias especiais que provocaram a nossa ligação. De resto, sinto-me encantado por lhe pôr fim. E como penso que mr. Mareschal e outros senhores estarão dispostos, por esta noite, a ser garantia das minhas orelhas e do meu pescoço, por cuja segurança eu suponho ter de recear, abandonarei o castelo amanhã de manhã.
- Seja - concordou mr. Vere - pode considerar-se em segurança, pois estou acima do ressentimento, e não pelo receio de que revele qualquer segredo de família, embora para seu interesse o intime a conservar-se calado. Os seus cuidados e a sua intervenção não têm grande importância para um homem que pode perder ou ganhar tudo conforme o direito legítimo ou a usurpação vençam na luta que vai travar-se. Adeus.
Mr. Ratcliffe levantou-se, relanceou-lhe um olhar que Vere sustentou com dificuldade e, saudando os presentes, abandonou a sala.
Esta conversa produziu em muitos membros da assembleia uma impressão que Ellieslaw se apressou a desvanecer, começando a falar sobre os assuntos do dia. Como resultado das suas deliberações precipitadas, decidiram organizar imediatamente uma insurreição. Ellieslaw, Mareschal e sir Frederick Langley foram nomeados chefes com o poder de tomar todas as medidas ulteriores. Fixaram um ponto de encontro, onde todos prometeram comparecer no dia seguinte de manhã com todos os amigos e partidários da causa que pudessem reunir.
Muitos dos convivas se retiraram para fazer os preparativos necessários e Ellieslaw desculpou-se para com os outros que, com Westburnflat e o contrabandista, continuavam a fazer circular as garrafas, e abandonou a mesa, alegando que se impunha uma conferência particular e séria com os colegas que lhe tinham dado no comando das operações. Estas desculpas foram bem aceites, tanto mais que Ellieslaw os convidou a continuarem a usar todas as bebidas que a adega do castelo pudesse fornecer-lhes. A sua retirada foi acompanhada por ruidosas aclamações e os nomes de Vere, Langley e principalmente Mareschal foram gritados em coro e regados com copiosas libações durante todo o resto da noite.
Quando os principais conspiradores se encontraram sozinhos numa sala separada, entreolharam-se com uma espécie de embaraço, que dava às feições duras de sir Frederick a expressão de violento descontentamento. Mareschal foi o primeiro a quebrar o silêncio, soltando uma gargalhada e dizendo:
- Meus senhores, fizemo-nos definitivamente ao mar! Avante a galera!
- Temos de lho agradecer a si - declarou Ellieslaw.
- Não sei bem se terão de me agradecer, quando lerem a carta que recebi justamente no momento de nos sentarmos à mesa - respondeu Mareschal - Meu criado disse-me tê-la recebido da mão de um homem desconhecido que partiu a galope, depois de lhe ter recomendado que ma entregasse em mão própria.
Ellieslaw abriu a carta com um gesto de impaciência e começou a ler em voz alta:
Edimburgo
Prezado Senhor
"Devendo muitas obrigações à sua família, das quais não vou falar agora, e sabendo que faz parte de um grupo de aventureiros que representam a casa Jaime e Companhia, negociantes em Londres e agora em Dunquerque, julgo-me no dever de o informar imediata e particularmente que os navios por que espera foram afastados da costa sem poderem desembarcar qualquer mercadoria e que os sócios das regiões de oeste resolveram retirar-se da sociedade, considerando que ela só lhes traria prejuízo. Na esperança de que aproveite este aviso e que tome as medidas necessárias para salvaguardar os seus interesses,
considere-me seu humilde servidor
Nihil Nameless (1)
A Ralph Mareschal, de Mareschal-Wells.
Para lhe ser entregue com cuidado e urgência
O semblante de sir Frederick ensombrava-se e tornava-se mais desagradável à medida que ouvia a leitura da carta e Ellieslaw exclamava:
- Então, se a esquadra francesa com o rei a bordo foi repelida pelos ingleses como este maldito papel dá a entender, está inutilizado o alvo principal da nossa empresa. Onde estamos nós agora?
- Exactamente onde estávamos esta manhã - replicou Mareschal, a rir.
- Perdão, mr. Mareschal, peço-lhe que suspenda a sua alegria infundada. Não é altura de brincar. Esta manhã não estávamos publicamente comprometidos
(1) - Ninharia sem nome.
como estamos agora, graças à sua inconsequência, visto ter já na algibeira esta carta que o avisava da loucura do nosso empreendimento.
- Estava certo de que me diria isso - replicou Mareschal - Mas, em primeiro lugar, Nihil Nameless e a sua carta podem não ser mais do que uma farsa, e, em segundo, quero dizer-lhes que estou farto de pertencer a partido que à noite toma resoluções ousadas, esquecendo-as de manhã, depois de terem passado os efeitos do vinho que bebeu. Neste momento, o Governo não tem homens nem munições, mas daqui a algumas semanas terá tudo quanto precisa. Agora tem todo o país contra ele, daqui a algumas semanas, seja por interesse pessoal, seja por medo ou tímida indiferença, este entusiasmo estará frio como uma noite de Natal. E como estava resolvido a dar o salto perigoso, arrastei-os comigo. Estão enterrados no pântano até ao pescoço. Esforcem-se por sair dele.
- Está enganado, pelo menos quanto a um de nós, mr. Mareschal - respondeu sir Frederick.
Depois, tocou a campainha e quando o criado apareceu, ordenou-lhe para dizer aos seus homens que se preparassem para partir.
- Não pode deixar-nos, sir Frederick - observou Ellieslaw - temos medidas a tomar.
- Partirei esta noite, mr. Vere - afirmou sir Frederick - Quando estiver em minha casa escrever-lhe-ei, dizendo-lhe as minhas intenções.
- Mandá-las-á de Carlisle por um esquadrão de cavalaria para nos aprisionar? - replicou Mareschal - Escute, sir Frederick. Afirmo-lhe que não quero ser abandonado e traído. Se sair do castelo de Ellieslaw esta noite terá de passar por cima do meu cadáver.
- Então, Mareschal - acalmou Ellieslaw - Como pode dar tão falsa interpretação aos sentimentos do nosso amigo? Estou certo de que sir Frederick está a brincar porque, admitindo ser ele homem que concebesse a desonrosa ideia de abandonar a nossa causa, não pode esquecer que temos provas evidentes da sua adesão e da actividade com que favoreceu os nossos projectos. Não pode dissimular também que a primeira informação será acolhida com avidez pelo Governo e que, se se trata de saber quem será o primeiro a dá-la, poderemos facilmente ter algumas horas de avanço sobre ele.
- Poderia ter dito eu em vez de nós quando se refere a semelhante traição. Quanto a mim, não inscreverei o meu cavalo para ganhar o prémio - declarou Mareschal, que acrescentou entre dentes: "Bonito par de amigos para nos arriscarmos por eles!"
- Não conseguirão intimidar-me a ponto de me impedir de proceder como entendo - declarou sir Frederick Langley - e a primeira coisa que farei, será sair de Ellieslaw. Não tenho razões para manter a minha palavra - acrescentou, fixando mr. Vere - com quem não soube cumprir a sua.
- Em que faltei à minha palavra, sir Frederick? - perguntou Ellieslaw, impondo silêncio com o gesto ao seu impetuoso primo.
- Naquilo que eu mais ambicionava - respondeu sir Frederick - Engodou-me com o casamento projectado, que, como sabe, era o penhor da nossa aliança
política. O rapto e o regresso de miss Vere, o glacial acolhimento que me dispensou e as desculpas que me apresentou não foram mais do que uma evasiva, um pretexto para conservar em seu poder os bens que lhe pertencem de direito e, entretanto, fez de mim um instrumento para a sua empresa sem recursos, dando-me esperanças que não tinha tenção de realizar.
- Sir Frederick, juro-lhe por tudo quanto há de mais sagrado...
- Não quero saber de juramentos. Tenho andado iludido por muito tempo.
- Se nos abandona - disse Ellieslaw - sabe bem que a sua ruína é tão certa como a nossa. A união faz a força.
- Não se preocupe com a minha segurança - respondeu sir Frederick - Mas, embora fosse verdade o que diz, preferia morrer a ser um joguete nas suas mãos.
- Não há uma prova que possa dar-lhe da minha sinceridade? - perguntou Ellieslaw com ar inquieto - Esta manhã teria repelido as suas insinuações como um insulto, mas, na posição em que nos encontramos agora...
- Sente a necessidade de ser sincero - replicou sir Frederick - Se quer que eu o acredite, existe apenas um meio para me convencer. Que sua filha case comigo esta noite.
- Tão depressa! É impossível! - replicou Vere - Pense no susto que sofreu e no nosso actual empreendimento.
- Não quero mais nada. Apenas o seu consentimento dado perante o altar - teimou sir Frederick - Tem uma capela no castelo; o doutor Hobbler é um dos seus hóspedes. Dê-me essa prova da sua boa fé, esta noite mesmo, e estaremos de novo unidos de braço e coração. Se recusa hoje aquilo que é seu interesse consentir, como poderei confiar em si amanha, quando estiver comprometido no seu empreendimento e, por consequência, na impossibilidade de recuar?
- E se fizer de si meu genro esta noite poderei considerar a nossa amizade reatada?
- Sem dúvida, da forma mais inviolável - respondeu sir Frederick.
- Muito bem. Embora aquilo que exige seja um pouco prematuro e delicado, injurioso para o meu carácter, sir Frederick, dê-me a sua mão. Minha filha será sua mulher.
- Esta noite?
- Esta noite antes de dar a meia-noite.
- Com o seu consentimento, segundo espero - atalhou Mareschal - Posso assegurar-lhes, senhores, que não serei espectador inactivo de uma violência exercida sobre a vontade da minha gentil prima.
"O diabo leve esta cabeça esquentada!" - murmurou baixinho Ellieslaw, que acrescentou mais alto:
- Com o seu consentimento? Por quem me toma, Mareschal, para pensar ser necessária a sua intervenção para proteger uma filha contra seu pai? Pode ter a certeza de que Isabel não tem qualquer repugnância em casar com sir Frederick Langley.
- Quer dizer, em ser Lady Langley - replicou Mareschal - Não duvido. Muitas mulheres pensam como ela. Peço-lhe perdão. Mas esse pedido e essa concessão precipitadas alarmaram-me.
- Apenas me preocupa o facto de lhe fazer uma proposta que exige tão pronto consentimento - disse Ellieslaw - Mas talvez que, se ela se mostrar alarmada, sir Frederick seja condescendente...
- Não o serei, mr. Vere. Ou a mão de sua filha esta noite ou parto quando bater a meia-noite. Eis a minha última palavra.
- Aceito - replicou Ellieslaw - Deixo-os a conversar e a combinar as disposições militares a tomar, para ir preparar minha filha para tão súbita mudança.
Dizendo estas palavras, abandonou a sala.
Ele trouxe o conde Osmond para receber os meus votos. Mudança terrível! Em vez de Tancredo o orgulhoso Osmond!
Tancredo e Sigismunda
Mr. Vere, que tinha um grande poder de dissimulação e muita prática, conseguiu dar ao rosto, aos modos e até ao andar uma aparência de desolação. Assim, percorreu o corredor empedrado e subiu a escada que levava aos aposentos de Isabel com o passo firme e decidido de um homem encarregado de resolver um assunto importante, mas que não duvida de o conduzir até ao fim. Mas quando se encontrou afastado e em ponto onde não podia ser ouvido pelas pessoas que acabava de deixar, o seu andar tornou-se mais vagaroso e irresoluto, mais em harmonia com as suas incertezas e receios. Por fim, parou na antecâmara para concentrar ideias e traçar os seus planos antes de se apresentar à filha.
"Já se viu pai mais infeliz e colocado perante alternativa mais embaraçosa e terrível! - pensou - Se os nossos projectos falham por falta de união, não duvido de que o Governo me aponte como principal instigador da revolta. Ou supondo que posso salvar a vida com uma pronta submissão, de qualquer maneira não ficarei completamente arruinado? Afastei Ratcliffe por forma irremediável e daquele lado só posso esperar insultos e perseguições. Terei de errar, pobre e desonrado, sem meios para viver e sem fortuna suficiente para contrabalançar a infâmia que os meus compatriotas, os do partido que adoptei e depois detestei, lançarão sobre o renegado político. Não, não quero admiti-lo. No entanto, que caminho devo escolher, entre o destino e a vergonha do cadafalso? Coisa alguma pode salvar-me, excepto a reconciliação com dois homens; para a conseguir prometi a Langley que a Isabel casaria com ele antes da meia-noite e a Mareschal que o faria sem constrangimento. Só tenho uma saída: convencê-la a aceitar por marido o homem a quem detesta e num lapso de tempo que por certo considerará muito curto, fosse ele o seu preferido. Tenho de apelar para a generosidade romanesca do seu carácter. De resto, por muito vivas que sejam as cores com que eu pinte a necessidade da sua obediência, ficarei aquém da realidade."
Terminadas estas desagradáveis reflexões sobre a sua perigosa posição, entrou no quarto da filha, disposto a empregar todos os argumentos para a convencer. Por muito hipócrita e ambicioso que fosse, não era completamente desprovido de afecto paternal para que o remorso pelo papel que ia desempenhar, abusando dos sentimentos de uma filha carinhosa e submissa, não o atormentasse. Mas, pensando que, se triunfasse, teria pelo menos conseguido para a filha um casamento vantajoso, enquanto que, no caso contrário, seria um homem perdido, todos os seus escrúpulos se desvaneceram.
Encontrou miss Vere no gabinete de toilette, sentada numa poltrona perto da janela. Com a cabeça apoiada na mão, ou dormitava ou estava por tal forma absorvida na sua meditação que não deu pela sua entrada. Ao aproximar-se dela, Vere deu às feições uma expressão desolada e de simpatia e, aproximando-se da filha, sentou-se e pegou-lhe carinhosamente na mão, gesto que acompanhou de profundo suspiro.
- Meu pai! - exclamou Isabel num sobressalto, misto de medo, de alegria e de ternura.
- Sim, Isabel, o teu infeliz pai que, arrependido, vem pedir-te perdão por uma ofensa que, no seu excesso de ternura, te infligiu, e despedir-se de ti para sempre.
- Uma ofensa contra mim! Despedir-se para sempre! Que significa isto?
- Sim, Isabel, falo verdade. Mas, antes de mais nada, quero perguntar-te se não desconfiaste estar eu envolvido na aventura que ontem de manhã te aconteceu?
- O senhor! - exclamou, balbuciando, Isabel, partilhada entre a convicção de que o pai lhe tinha adivinhado o pensamento e o respeito que a inibia de confessar uma suspeita tão humilhante e tão pouco natural.
- A tua hesitação equivale a uma confirmação. Tiveste essa desconfiança e eu tenho o doloroso dever de confessar que ela não foi infundada. Num momento infeliz, animei as pretensões de sir Frederick Langley à tua mão, não concebendo que pudesses opor-me argumentos admissíveis para recusar um casamento no qual todas as vantagens estavam do teu lado. Num momento mais infeliz ainda, comprometi-me com ele e tomámos medidas para restabelecer no trono o nosso rei exilado e restituir à pátria a sua independência. Ele aproveitou a minha imprudente confiança e agora a minha vida está entre as suas mãos.
- A sua vida! - repetiu Isabel com voz fraca.
- Sim, Isabel, a vida de teu pai. Quando previ a que excesso a sua impetuosa paixão podia arrastá-lo - pois lhe faço a justiça de acreditar que o seu pouco razoável procedimento é consequência do seu grande amor por ti - procurei, com pretexto da tua ausência durante algumas semanas, libertar-me da alternativa em que me encontro; tratava-se, no caso de continuares a manifestar repugnância por este casamento, de te enviar para Paris, onde passarias alguns meses no convento de tua tia. Um concurso de circunstâncias erradas arrancou-te do lugar seguro e oculto que eu havia escolhido como teu asilo temporário. O destino roubou-me a última probabilidade de salvação e agora só me resta o recurso de te abençoar e de te mandar sair do castelo com mr. Ratcliffe, que deve abandoná-lo amanhã. A minha sorte está decidida.
- Justos Céus! Como é isso possível? - exclamou Isabel - Para que fui eu libertada do refúgio que me tinha arranjado? E porque não me revelou as suas intenções?
- Reflecte uns momentos, Isabel - respondeu mr. Vere - Querias que eu prejudicasse o amigo a quem eu mais desejava servir, dando-te a conhecer o ardor impaciente com que desejava a realização dos seus projectos? Poderia fazê-lo com honra, depois de lhe ter prometido que o apoiaria? Mas agora tudo acabou. Mareschal e eu decidimos morrer com coragem; só me resta afastar-te daqui com uma boa escolta.
- Deus do Céu! Não haverá outro meio? - perguntou Isabel, apavorada.
- Nenhum outro, filha - respondeu mr. Vere com meiguice - com excepção de um só, que por certo não aconselharias a teu pai: o de atraiçoar os amigos.
- Não, não! - replicou ela com horror e ao mesmo tempo com precipitação, como se quisesse repelir a tentação que a alternativa lhe oferecia - Mas não haverá ainda outro? A fuga, a meditação, as súplicas? Irei lançar-me aos pés de sir Frederick.
- Seria humilhação inútil - replicou mr. Vere - Ele está decidido a seguir o caminho traçado e eu estou também decidido a suportar os reveses do destino. Só com uma condição ele renunciaria aos seus projectos, mas essa condição nunca a ouvirás da minha boca.
- Revele-ma, suplico-lhe, meu pai! - exclamou Isabel - Que pode ele pedir e nós conceder-lhe para evitar a catástrofe que o ameaça?
- Nunca to direi, Isabel - declarou mr. Vere em tom solene - Quando a cabeça de teu pai rolar no cadafalso, então saberás qual o sacrifício que poderia tê-lo evitado.
- Porque não o diz agora? Teme que eu hesite em sacrificar a minha fortuna para o salvar? Ou pretende legar-me como herança terrível o remorso eterno, que não deixarei de sentir quando pensar que morreu quando havia um meio de afastar a catástrofe prestes a desabar sobre a sua cabeça?
- Pois bem, minha filha, visto quereres absolutamente conhecer uma coisa que eu preferia mil vezes tu ignorasses, informo-te de que ele não quer aceitar outro resgate senão a tua mão, que terás de conceder-lhe hoje mesmo, antes da meia-noite.
- Esta noite, senhor! - exclamou, dominada pelo horror, ao ouvir semelhante proposta - Casar com um homem como aquele! Com um monstro que pretende obter a filha, ameaçando a vida do pai! É impossível!
- Tens razão, minha filha - respondeu mr. Vere - É impossível. Não tenho o direito nem o desejo de exigir semelhante sacrifício. Está na ordem da Natureza que os velhos morram e sejam esquecidos e que os filhos vivam e sejam felizes.
- Meu pai morrerá e a filha teria podido salvá-lo! - murmurou Isabel - Não, meu querido pai, não, é impossível. Tenta obrigar-me a fazer o que deseja. Sei que ambiciona este casamento, supondo que faz a minha felicidade e contou-me essa terrível história para me influenciar e vencer a minha repugnância.
- Minha filha - replicou Ellieslaw, numa voz em que a autoridade ferida lutava com o amor paterno - minha filha supõe que invento uma história para influir nos seus sentimentos! Ainda tenho de sofrer mais isto! E devo descer a ilibar-me desta indigna suspeita! Conheces teu primo Mareschal, a sua honra sem mancha.
Ouve o que vou escrever-lhe e pela resposta avaliarás se o perigo que corro é ou não mortal e se não empreguei todos os meios possíveis para o afastar.
Sentou-se diante da secretária e escreveu, à pressa, algumas linhas num papel que entregou a Isabel. Esta, depois de esforços violentos, conseguiu acalmar e enxugar as lágrimas o bastante para poder ler o que se segue:
"Meu caro primo - dizia o bilhete - Encontrei minha filha, como já calculava, no maior desespero perante a extraordinária precipitação de sir Frederick Langley. Não quer acreditar no perigo em que nos encontramos nem a que ponto nós estamos acorrentados a ele. Pelo amor de Deus, use toda a sua influência e veja se consegue que modifique a sua proposta, que eu não quero nem posso obrigar minha filha a aceitar contra os seus próprios sentimentos, desprezando as leis da delicadeza e das conveniências. Seu primo obrigado.
No estado de agitação em que se encontrava naquele momento, com os olhos cegos pelas lágrimas e a cabeça estonteada, mal podendo compreender o sentido do que lia, não é para admirar que miss Vere não notasse que este bilhete dava a entender ser a sua repugnância pelo casamento proposto mais pela maneira e pelo prazo exigido do que pela sua aversão ao esposo apresentado. Mr. Vere tocou e, quando o criado apareceu, deu-lhe o bilhete com ordem de o entregar a mr. Mareschal. Depois, erguendo-se da cadeira, começou a passear no aposento, em silêncio, com o espírito agitado, enquanto não chegou a resposta. Quando a recebeu, relanceou-lhe um olhar e depois aproximou-se da filha, apertando-lhe a mão e entregando-lha. Era assim concebida:
"Meu caro primo. Falei ao cavaleiro no assunto em questão, empregando os termos mais convincentes, mas ele está tão firme como Cheviot. Sinto-me desolado por apressarem minha prima a abandonar os seus privilégios de solteira. Sir Frederick, no entanto, consente em abandonar o castelo na minha companhia, logo que o casamento se realize. Reuniremos os nossos partidários e começaremos a dança. Desta forma, é de esperar que sir Frederick apanhe uma bala na cabeça antes de voltar para junto da noiva e a Isabel será lady Langley por baixo preço. Além disso, diga-lhe que se ela pode resolver-se a contrair este casamento, não é este o momento para se prender com escrúpulos de delicadeza. É preciso que a minha gentil prima consinta em casar-se com precipitação, ou então teremos de nos arrepender, ou antes, nem sequer teremos tempo para isso. É tudo quanto neste momento lhe pode dizer o seu primo muito afeiçoado, R. M.
Quando acabou de ler esta carta, Isabel deixou cair o braço ao longo do corpo e teria caído também se o pai não a amparasse.
"Meu Deus! A minha filha morre! - gritou mr. Vere, cujos sentimentos naturais num pai sobrelevavam os de egoísmo - Olha para mim, Isabel, olha para mim, minha filha. Aconteça o que acontecer, não serás sacrificada. Morrerei com a certeza de Que serás feliz. Poderás chorar sobre o meu túmulo, mas, pelo menos... pelo menos, não amaldiçoarás a minha memória".
Chamou um criado.
- Vai dizer a mr. Ratcliffe para vir aqui imediatamente.
Entretanto, o rosto de miss Vere cobria-se de uma palidez mortal; apertou as mãos uma contra a outra, cerrou os olhos, comprimiu os lábios, como se a opressão que infligia aos seus sentimentos se estendesse ao organismo. Depois, levantando a cabeça, respirou fundo antes de falar e declarou com firmeza:
- Consinto no casamento, meu pai.
- Não, não quero. Não será assim, minha filha. Não te esmagará a infelicidade certa para evitar um perigo que talvez se possa evitar.
Assim falava Ellieslaw e - estranhas e inconsequentes criaturas nós somos - exprimia sentimentos verdadeiros, embora momentâneos.
- Meu pai - repetiu Isabel - consinto no casamento.
- Não, minha filha, não. Pelo menos por agora, humilhar-nos-emos perante ele para obtermos um adiamento. Entretanto, Isabel, se não conseguires vencer a aversão, que não tem fundamento real, terás de reconhecer que, sob outros aspectos, este casamento te oferece vantagens, riqueza, posição social e importância.
- Meu pai - respondeu Isabel - eu consinto no casamento.
Dir-se-ia que perdera a faculdade de proferir outras palavras ou de variar a frase que só conseguira pronunciar depois de tremendo esforço.
- Deus te abençoe, minha filha, Deus te abençoe! Abençoar-te-á, cumulando-te de riquezas e de honras.
Com voz fraca, miss Vere pediu que a deixassem sozinha o resto da tarde.
- Não queres ver sir Frederick? - perguntou Vere com inquietação.
- Vê-lo-ei quando não puder evitá-lo onde for inevitável. Por agora, poupe-me.
- Como queiras, minha filha. Não suportarás qualquer contrariedade que eu puder impedir. Não julgues severamente o procedimento de sir Frederick porque ele resulta do excesso da paixão que tem por ti.
Isabel fez um gesto de impaciência.
- Perdão, Isabel. Deixo-te só. Que Deus te abençoe. Se não me mandares chamar mais cedo, às onze horas virei buscar-te.
Quando o pai saiu, Isabel lançou-se de joelhos.
"Deus me dê forças para levar até ao fim a resolução que acabo de tomar. Só Ele pode dar-mas. Pobre Earnscliff! Quem o consolará? E com que desprezo pensará naquela que de manhã o escutava e à noite casou com outro? Que me despreze. Será melhor do que saber a verdade. Que me despreze. O desprezo pode atenuar-lhe o desgosto e eu consolar-me-ei por ter perdido a sua estima!"
Chorou amargamente, tentando de vez em quando, mas em vão, começar a oração que tencionava fazer quando ajoelhara. Não conseguiu, porém, acalmar o espírito para pensar em actos de devoção. Enquanto se encontrava a braços com este desespero, a porta do quarto abriu-se lentamente.
Entraram na sombria caverna onde encontram o homem esmagado pela tristeza, sentado no chão, reflectindo amargamente, com o espírito opresso.
Fairy Queen
A pessoa que assim interrompia miss Vere no momento em que esta se debatia nas garras do desespero era mr. Ratcliffe. Na sua agitação, Ellieslaw esquecera-se de dar contra-ordem, de maneira que, ao abrir a porta, ele perguntou:
- Mandou-me chamar, mr. Vere? Depois, olhando em volta de si, exclamou:
- Miss Vere está sozinha! De joelhos e a chorar!
- Deixe-me, deixe-me, mr. Ratcliffe - suplicou a infortunada Isabel.
- Não posso deixá-la. Tentei muitas vezes falar-lhe para lhe apresentar as minhas despedidas, mas recusaram, até que seu pai me mandou chamar. Não me queira mal por ter a ousadia de a importunar. Tenho um dever a cumprir que me servirá de desculpa.
- Não posso escutá-lo... não posso falar-lhe, mr. Ratcliffe - respondeu Isabel - Receba os meus mais sinceros votos de felicidade e, pelo amor de Deus, deixe-me só.
- Diga-me só se esse casamento monstruoso deve realizar-se e esta noite mesmo? Ouvi os criados falarem no assunto enquanto subia a escada e ouvi também as ordens para prepararem a capela.
- Poupe-me, mr. Ratcliffe - suplicou a infeliz noiva - Pelo estado em que me encontra avalie a crueldade das suas perguntas.
- Casar com sir Frederick Langley! Esta noite?
- exclamou Ratcliffe - Isso não pode ser assim... não deve e não será.
- Tenho de casar ou meu pai está perdido.
- Entendo. Sacrifica-se para salvar aquele... Mas que a virtude da filha sirva de reparação aos erros do pai. Não é este o momento de os descobrir. Que poderemos fazer? O tempo urge... Só conheço um meio... Em vinte e quatro horas encontraria muitos. Miss Vere vá implorar a protecção do único ser no mundo que pode deter o curso dos acontecimentos que ameaçam causar a sua desgraça.
- Quem pode ter semelhante poder? - perguntou miss Vere.
- Não se assuste quando eu o nomear - respondeu Ratcliffe, aproximando-se. Depois acrescentou em voz baixa, mas distinta:
- É aquele a quem chamam Elshender, o recluso de Mucklestane-moor.
- Está louco, mr. Ratcliffe - replicou Isabel – ou pretende insultar a minha infelicidade com um gracejo de mau gosto?
- Tenho tanto juízo como Isabel - respondeu o conselheiro - e não costumo brincar com coisas indiferentes, muito menos com a infelicidade e menos ainda com a sua. Juro-lhe que esse homem, cuja personalidade é muito diferente do que parece, tem o meio de impedir este odioso casamento.
- E de salvar a vida de meu pai? - perguntou Isabel.
- Mesmo isso, se interceder por ele... Mas como conseguiremos que o Recluso a receba?
- Quanto a isso, não se preocupe - declarou miss Vere, recordando a aventura da rosa - Disse-me que, se um dia me encontrasse perante a adversidade, fosse ter com ele, e deu-me esta flor como penhor da sua palavra. "Antes que murche - afirmou - precisará do meu socorro". Será possível que estas palavras fossem mais alguma coisa do que o delírio de um espírito demente?
- Não duvide... e nada receie. Mas não podemos perder tempo... Está livre? Não a vigiam?
- Suponho que estou. Mas que pretende eu faça?
- Que saia imediatamente do castelo e vá lançar-se aos pés daquele homem extraordinário que, embora aparente a mais abjecta miséria, tem uma influência quase absoluta no seu destino. Os convidados de seu pai e os criados entregam-se à orgia; os chefes estão traçando os seus planos de traição; o meu cavalo está selado na cavalariça. Vou selar outro para si. Espere-me à porta do jardim. Que a mais pequena dúvida sobre a minha prudência e fidelidade não a impeçam da fazer a única coisa que pode salvá-la da sorte horrível que não poderá deixar de ser a da esposa de sir Frederick Langley!
- Mr. Ratcliffe, sempre foi considerado como homem de honra e probidade - responde miss Vere - e o infeliz que se afoga não despreza a mais pequena tábua... Ponho em si toda a minha confiança e vou seguir o seu conselho... Irei à porta do jardim.
Quando Ratcliffe saiu, correu os ferrolhos da porta que deitava para o corredor e desceu ao jardim pela escada que comunicava com o gabinete de toilette. Enquanto descia, sentiu-se tentada a retirar a adesão concedida precipitadamente para uma tentativa tão ousada como estranha. Mas, no momento em que passava diante da porta da capela, ouviu as vozes dos criados que a preparavam para a cerimónia, dizendo:
- Casar com semelhante homem! Santo Deus! Seria preferível sofrer tudo a ter de aceitá-lo por marido!"
"Têm razão... dizem a verdade! - pensou miss Vere - Sofrer tudo, antes...
Atravessou rapidamente o jardim. Ratcliffe foi pontual e os dois cavalos já se encontravam junto da porta. Minutos depois, os dois viajantes estavam a caminho do casebre do Anão.
Enquanto caminharam pela planície, a rapidez da corrida não lhes permitiu falar e trocar ideias; mas quando o terreno a subir os obrigou a abrandar o passo dos animais, novo receio surgiu no espírito de Isabel.
- Mr. Ratcliffe - disse, puxando a rédea do cavalo - não continuemos esta corrida. Náo ignoro que o povo considera esse homem dotado de poder sobrenatural e com ligações com o outro mundo. Quero afirmar-lhe que não acredito nessas tolices, mas, se assim fosse, com os sentimentos religiosos que professo, não me atreveria a recorrer ao seu auxílio, embora na horrível situação em que me encontro.
- Supus - replicou Ratcliffe - que conhecia bem o meu carácter e a minha maneira de pensar para saber que não acredito nesses absurdos.
- Nesse caso, de que forma pode socorrer-me um homem tão miserável em aparência?
- Miss Vere - respondeu Ratcliffe, após uns momentos de silêncio - inibe-me de falar um juramento solene. Impõe-se que, sem mais explicações, se contente com a afirmação que lhe faço. Esse homem tem o poder de a salvar, se conseguir inspirar-lhe o desejo de o fazer, do que não tenho a mais pequena dúvida.
- Pode estar enganado, mr. Ratcliffe - Exige de mim uma confiança sem limites.
- Recorde-se, miss Vere, de que, quando por um sentimento de humanidade me pediu para interceder junto de seu pai por Haswell e pela sua infeliz família, quando me suplicou para conseguir dele aquilo que mais repugna ao seu carácter, isto é, o perdão de uma ofensa e a abolição do castigo, concordámos que não me perguntaria qual a causa da minha influência. Nessa altura, não teve motivos para me recusar a sua confiança. Quer recusar-ma agora ?
- A vida estranha que esse homem leva – respondeu miss Vere - o seu isolamento, a sua figura, aquela sombria misantropia, revelada pelo seu modo de falar... Que hei-de pensar dele, mr. Ratcliffe, se, de facto, possui o poder que lhe atribui?
- Aquele homem, miss, foi educado na religião católica, seita que oferece mil exemplos de pessoas que renunciaram a uma vida de luxo e de sociedade para se condenarem a privações mais cruéis do que as sofridas por ele.
- Mas ele não lhes dá carácter religioso.
- Não, aborreceu a sociedade. É essa a única causa da sua misantropia. Não a cobre com o véu da superstição. Posso apenas dizer-lhe que nasceu muito rico, fortuna que o pai e a mãe se propunham aumentar, casando-o com uma parente que, com essa intenção, educavam em sua casa. Conhece a sua figura e pense como a rapariga devia encarar o marido que lhe destinavam. No entanto, como estava habituada a vê-lo, não manifestava qualquer repugnância e os amigos dela supunham que a dedicação do noivo, a cultura do seu espírito, as numerosas e excelentes qualidades do seu coração, tinham conseguido vencer o horror natural que um exterior tão repulsivo devia provocar.
- E enganaram-se? - perguntou Isabel.
- Vou dizer-lho - continuou Ratcliffe - Ele, por seu lado, reconhecia os seus defeitos corporais e essa ideia perseguia-o como um fantasma... "Sou - afirmava muitas vezes à pessoa que possuía toda a sua confiança - sou, apesar de tudo quanto possas dizer-me, um miserável aleijado, que melhor seria ter morrido à nascença do que viver para aterrar o mundo que o rodeia." A pessoa com quem falava, tentava, mas em vão, inspirar-lhe a indiferença pela forma exterior, que resulta da filosofia, ou levá-lo a considerar as qualidades do espírito superiores àquela, mais atraente sem dúvida, mas puramente pessoal. "Compreendo - respondia ele - falas como um frio estóico ou como um amigo parcial. Mas recorda todos os livros que lemos, excepto os que tratam dessa filosofia abstracta que não pode ser aceite pelos nossos sentimentos. O exterior da pessoa, pelo menos se podem olhá-lo sem horror, não é sempre considerado como a parte essencial da ideia que fazemos de um amigo e, ainda com maior razão, de um marido? Um monstro disforme tal como eu não estará excluído, pela própria vontade da Natureza, das mais belas alegrias que ela nos oferece? Que tenho eu, excepto a fortuna, que impeça os outros, talvez até a Letitia ou até mesmo tu, de fugir de mim, como de um ser fora do normal, que inspira horror pela sua semelhança com o mundo dos monstros insuportáveis aos homens, de quem são a caricatura?"
- Palavras de um insensato! - observou miss Vere.
- Não, miss Vere. Salvo se considerarmos demência tão profunda sensibilidade - replicou Ratcliffe - Não negarei, porém, que essa sensibilidade e o receio que o dominavam, não o arrastassem a manifestações que indicavam uma mente perturbada. Parecia acreditar que se impunha ligar-se ao género humano, do qual se considerava afastado, por actos extraordinários, e por vezes irreflectidos, de generosidade e até de prodigalidade. Os benefícios que espalhava, em virtude do seu carácter extraordinariamente filantrópico, eram exagerados pelo pensamento obsidiante que teria de fazer mais do que os outros, de forma que espalhava a sua fortuna como meio de corrupção para os homens o admitirem entre eles. Será inútil dizer-lhe que a sua generosidade, de tão caprichosa nascente, foi muitas vezes iludida e que a sua confiança foi, mais de uma vez, atraiçoada. Estas desilusões, que mais ou menos todos nós sofremos, e principalmente aqueles que espalham a sua caridade sem discernimento, a sua imaginação doente atribuía-as ao ódio e ao desprezo inspirados pela sua deformidade corporal... Estou a fatigá-la, miss Vere.
- Não, pelo contrário, escuto-o com religiosa atenção - respondeu Isabel - Continue, peço-lhe.
- Acabou por ser o carrasco mais engenhoso de que eu tenho ouvido falar para se atormentar a si mesmo. Os sarcasmos da sua ironia e o riso ainda mais brutal eram suplícios para ele mais terríveis do que os tormentos sofridos na roda pelo criminoso agonizante. Considerava as zombarias do povo grosseiro, quando saía, os risos sufocados e ainda mais o terror manifestado pelas pessoas com quem se encontrava, como prova formal de que o classificavam como um monstro, nascido para viver fora da sociedade humana e como motivos que justificavam o seu projecto de fugir dela. Existiam, porém, duas pessoas de cuja boa fé e sinceridade parecia não duvidar; eram elas a menina com quem devia casar e um amigo, dotado de notáveis dons pessoais, cuja dedicação por ele se lhe afigurava sincera e que tinha obrigação de o ser, porque o cumulara de benefícios. Os pais do infortunado herói desta história morreram com pequeno intervalo um do outro e a sua morte impôs o adiamento do casamento, cuja data já estava marcada. A noiva não se mostrou muito preocupada com a demora... facto que, na verdade, não seria para admirar. Mas, ao mesmo tempo, não demonstrou ter mudado de ideias quando, após o prazo imposto pelas conveniências, marcaram outro dia para a cerimónia. O amigo a que me referi, vivia quase sempre em sua casa. Um dia, teve a infeliz ideie de ceder às suas instâncias para o acompanhar a uma reunião onde se encontravam pessoas com diferentes opiniões políticas. Beberam muito e travou-se uma discussão. O amigo do Recluso desembainhou a espada como muitos outros e foi derrubado e desarmado por um adversário mais vigoroso. Durante a luta caíram ambos aos pés do Recluso, que, embora aleijado e por muito fraco que pareça, é dotado de grande força e de paixões violentas. Agarrou numa espada e trespassou o coração do antagonista do amigo. Instauraram o processo e a muito custo conseguiram que não fosse condenado senão a um ano de prisão, como culpado de homicídio sem premeditação. Este acontecimento abalou-o muito, tanto mais que o assassinado gozava de excelente reputação e fora grosseiramente provocado e insultado, antes de puxar pela espada. Pareceu-me que desde então... perdão... queria dizer que desde então, a cruel sensibilidade que fazia o tormento do infeliz tornou-se mais intolerável devido ao remorso, sentimento ao qual, de todos os homens do mundo, ele dispunha de menos forças para suportar, quando o seu desgraçado destino o condenou a sofrê-lo. Não puderam impedir que a futura esposa fosse informada destes paroxismos de dor e temos de concordar que eram de carácter bastante alarmante. Consolava-se, pensando que terminado o ano de expiação poderia formar com a esposa e com o amigo uma sociedade na qual se encerraria como num círculo, dispensando-se de estender a sua convivência ao resto do mundo. Enganava-se. Antes que terminasse o prazo, a que devia ser sua mulher e o amigo casavam. Não posso descrever-lhe o resultado de golpe tão terrível num carácter já abalado pela amargura do remorso, num temperamento tão ardente, afastado dos homens pelas loucas extravagâncias da sua sombria imaginação. Foi como se o cabo da última âncora que prendia o navio se tivesse quebrado, deixando-o abandonado aos furores da tempestade. Fecharam-no numa casa, rigorosamente vigiado pelo médico. Como medida temporária, esta espécie de detenção poderia justificar-se; mas o cruel amigo, que pelo casamento se tornara seu próximo parente, prolongou a prisão para gozar à vontade a sua imensa fortuna. Existia um homem que devia tudo ao desgraçado, pessoa pouco importante, mas reconhecido e fiel. A força de tentativas, de invocar a justiça, conseguiu obter a liberdade do seu benfeitor e que ele retomasse posse das suas propriedades, às quais em breve se juntaram as da senhora com quem devia ter casado, porque, tendo morrido sem descendentes masculinos, era ele o herdeiro. Mas nem a liberdade nem a fortuna conseguiram restabelecer o equilíbrio do seu espírito; o desgosto tornou-o indiferente à primeira e só apreciava a segunda como meio de satisfazer os estranhos caprichos da sua imaginação. Renunciou à religião católica, mas talvez algumas das suas doutrinas continuassem a exercer certa influência sobre o seu espírito, que parecia dominado despoticamente pela misantropia e pelo remorso. Desde então, a sua vida foi a de um peregrino ou de um eremita; impunha-se as mais dolorosas privações, não por ascetismo, mas pelo horror ao género humano. No entanto, nunca homem algum apresentou tão grande diferença entre a sua maneira de falar e proceder e nunca o mais miserável hipócrita foi mais engenhoso em dar os melhores motivos às suas piores acções do que aquele desgraçado a dar ao seu procedimento, inspirado nas mais íntimas nascentes de um coração generoso e nos sentimentos de benevolência, razões abstractas de misantropia.
- Continua a descrever-me os absurdos de um ser desprovido de razão, repito - observou Isabel.
- De modo nenhum - replicou Ratcliffe - Não pretendo negar que a razão daquele homem esteja um pouco desordenada. Já lhe disse que, por vezes, tinha crises que faziam temer uma espécie de alienação mental; mas refiro-me ao estado habitual do seu espírito. É irregular, mas não desarranjado; é uma coisa tão diferente como a luz do meio-dia das trevas da noite. O cortesão que sacrifica toda a sua fortuna para obter um título que não lhe rende coisa alguma, ou um poder que não sabe utilizar, para obter honrarias e crédito, o avarento que amontoa tesoiros inúteis, o pródigo que os esbanja, sofrem todos eles de uma espécie de demência. A mesma observação se ajusta aos criminosos que se tornam culpados de tremendos crimes, enquanto que aos olhos de um homem que goza de toda a sua razão, a tentação não é proporcionada ao horror da falta ou à probabilidade da descoberta e castigo. Toda a paixão violenta e a cólera podem ser classificadas de curta demência.
- Tudo isso pode ser filosofia, mr. Ratcliffe - mas, peço-lhe perdão, não me infunde a coragem de visitar, a uma hora como esta, uma pessoa cuja imaginação e extravagância nem mesmo o senhor pode ocultar.
- Nesse caso - respondeu Ratcliffe - posso jurar-lhe solenemente que não corre o menor perigo. Mas o que até agora não me atrevi a dizer-lhe, no receio de a assustar mais ainda, é que, neste momento, quando nos aproximamos da casa que já se avista à luz crepuscular, não posso acompanhá-la mais longe. Terá de ir sozinha.
- Sozinha! Nunca me atreverei a fazê-lo.
- Tem de ser. Ficarei aqui à sua espera.
- Ficará aqui - replicou miss Vere - Mas a distância é tão grande que não poderá valer-me se eu gritar por socorro.
- Nada receie - afirmou o guia - e, pelo amor de Deus, oculte com o maior cuidado o medo. Lembre-se de que o temor cruel que o domina provém do conhecimento da deformidada do seu corpo. Siga o atalho que conduz junto daquele salgueiro meio derrubado; depois volte à esquerda, o pântano fica à direita. Adeus por pouco tempo. Recorde a infelicidade de que está ameaçada e essa ideia será mais forte do que o medo e os escrúpulos.
- Adeus, mr. Ratcliffe - respondeu Isabel - Se está a enganar uma pessoa tão desgraçada como eu, perderá para sempre o direito à fama de ter carácter de probidade e honra, no qual confiei.
- Pela minha vida e pela minha alma - replicou Ratcliffe, elevando a voz à medida que Isabel se afastava - não tem nada, absolutamente nada, a temer.
Foi o tempo, foram os desgostos que o fizeram assim. O tempo, com a sua mão magnânima, restituiu-lhe a fortuna e talvez possa vir a ser o homem que era outrora. Levem-me até junto dele. Acontecerá o que tiver de acontecer.
Velha Comédia
O som da voz de Ratcliffe deixou de se ouvir.
Mas como Isabel olhava muitas vezes para trás, sentia uma espécie de conforto ao distinguir o seu vulto na obscuridade. No entanto, pouco tempo depois de se afastar, deixou de o ver. Aos últimos clarões do crepúsculo encontrou-se junto do casebre do Recluso. Duas vezes estendeu a mão para a porta e duas vezes a retirou. Quando por fim conseguiu bater, a pancada não foi tão violenta como as palpitações do seu coração. A pancada seguinte foi mais forte e depois bateu terceira, pois o receio de não obter a protecção sobre a qual Ratcliffe fundava tão grandes esperanças, começava a sobrelevar o terror inspirado pelo pensamento de ter de afrontar a presença daquele a quem ia implorá-la.
- Por fim, continuando sem resposta, chamou repetidas rezes o Anão pelo nome que ele adoptara, suplicando que lhe respondesse e lhe abrisse a porta.
- Quem é o ser miserável - perguntou a voz estridente do solitário - que se atreve a vir procurar refúgio aqui? Vai-te embora. Quando as aves da charneca precisam de abrigo não vão procurar os ninhos dos corvos.
- Venho procurá-lo, meu pai, quando a adversidade me fere - respondeu Isabel - Não foi o que me disse? Prometeu-me que a sua porta e o seu coração se abririam se eu fosse desgraçada; mas receio...
- Então és Isabel Vere - replicou o solitário - Dá-me a prova.
- Trouxe a rosa que me deu - respondeu Isabel - Não teve tempo para murchar antes da sorte cruel me ferir, como predisse.
- Visto teres conservado esse penhor - declarou o Recluso - Não quero que o guardasses em vão. O coração e a porta que se conservam fechados para todos abrir-se-ão para ti e para os teus desgostos.
Ouviu-o mexer dentro de casa e bater a isca para acender a luz. Depois, os ferrolhos foram corridos e a tranca tirada. O coração de Isabel palpitava cada vez com mais força à medida que o momento da sua entrevista com o Anão se aproximava. A porta abriu-se e o solitário apareceu diante dela, com uma candeia de ferro na mão a cuja luz a sua deformidade horrível se tornava mais evidente.
- Entra, filha da aflição - disse - entra na morada do desgraçado.
Isabel entrou e notou com redobrado terror o cuidado com que ele, depois de ter poisado a candeia em cima da mesa, corria de novo os ferrolhos da porta. Estremeceu quando ouviu o ruído mas, recordando os conselhos de Ratcliff, esforçou-se por ocultar qualquer indício de medo. A luz da candeia era fraca e vacilante, mas o solitário, sem se preocupar com Isabel, depois de lhe ter feito sinal para se sentar numa cadeira ao lado da lareira, apressou-se a lançar-lhe alguns ramos secos, que em breve espalharam luz e calor pelo aposento. Prateleiras com livros, maços de plantas secas, uma ou duas chávenas e tigelas de madeira, encontravam-se de um lado da chaminé; do outro, viam-se instrumentos de jardinagem e alguns utensílios empregados nas artes mecânicas. No lugar onde devia encontrar-se a cama via-se um catre de
madeira coberto com musgo seco e juncos. Era este o lugar de repouso do Anão. A superfície interior da cabana não excedia dez pés por seis, e não possuía outros móveis excepto os que mencionámos e mais uma mesa e dois bancos feitos com troncos em bruto.
Era neste exíguo recinto que Isabel se encontrava fechada com um ser cuja história nada tinha de tranquilizadora para ela e cujo corpo horrível e rosto medonho inspiravam um terror quase supersticioso.
Sentou-se numa cadeira em frente da visitante e, com as sobrancelhas espessas unidas por cima dos olhos negros e penetrantes, observava-a em silêncio, como se o agitassem os mais contraditórios pensamentos. Na sua frente estava Isabel, pálida como um cadáver, com os anéis dos compridos cabelos desfeitos pela humidade da noite, soltos pelas costas e pelos ombros, como bandeirolas molhadas caídas ao longo do mastro, depois da tempestade ter passado, deixando o navio encalhado na praia.
O Anão foi o primeiro a quebrar o silêncio com esta pergunta brusca e alarmante:
- Que mau destino te conduziu aqui, mulher?
- O perigo que corre meu pai e a recomendação que um dia me fez - respondeu Isabel em voz fraca, mas firme.
- Esperas que possa valer-te? - perguntou ainda o solitário.
- Se for essa a sua vontade - respondeu Isabel no mesmo tom de doçura e submissão.
- Como poderei fazê-lo? - perguntou o Anão com um riso amargo - Terei eu o ar e a figura de um defensor com força para reparar os erros dos outros? Não seria natural que um homem com poder bastante para socorrer uma linda rapariga que vem visitá-lo, escolhesse um castelo para moradia? Estive a troçar de ti, minha filha, quando afirmei poder valer-te.
- Então terei de retirar-me e afrontar o meu destino com toda a coragem que puder - respondeu Isabel, fazendo um movimento para se levantar.
- Não - replicou o Anão, colocando-se entre ela e a porta e fazendo-lhe um gesto imperioso para tornar a sentar-se - Não, não me deixes assim. Temos de ter uma conversa os dois. Por que razão um ser pede socorro a outro e não se basta a si próprio? Olha à tua volta. Eu, o ser mais desprezível e desgraçado do mundo, não pedi socorro ou compaixão a ninguém.
Estas pedras fui eu quem as colocou umas sobre as outras; os móveis fui eu quem os fez com estas mãos e com isto - acrescentou, indicando a adaga que trazia à cinta e que desembainhou para que a lâmina cintilasse com as chamas - com isto - continuou, embainhando-a e exaltando-se - posso, em caso de necessidade, defender a centelha de vida encerrada neste miserável corpo, contra o ser mais feroz e mais forte que se atrevesse a atacar-me.
Isabel teve grande dificuldade em reter um grito, mas conseguiu-o.
- É esta - continuou o Recluso - a vida do homem primitivo, solitário, que se basta a si próprio e é independente. O lobo não chama outro lobo para o ajudar a abrir o covil e o abutre não pede a outro abutre que o auxilie a agarrar a presa.
- E quando são incapazes de procurar sozinhos os meios de subsistência - retorquiu Isabel, pensando com razão que ele a escutaria melhor se empregasse o mesmo estilo metafórico - que hão-de fazer?
- Morrer de fome e ser esquecidos. É esse o destino da humanidade.
- É o destino das tribos selvagens da natureza - replicou Isabel - principalmente daquelas que só vivem da rapina e não admitem partilhas; não é essa a regra geral. Mesmo os seres inferiores se unem para a defesa comum. O género humano, os homens, morreriam se deixassem de se auxiliar uns aos outros. Desde o momento em que a mãe envolve a cabeça da criança até àquele em que mão compadecida enxuga o suor que escorre pela fronte do moribundo, não podemos existir sem socorro mútuo. Portanto, todos aqueles que precisam de auxílio têm o direito de o exigir dos seus semelhantes, e quem tem o poder de o conceder não deve recusá-lo, pois comete um crime.
- E foi baseada nessa frívola esperança, rapariga, que vieste a este deserto buscar o homem cujo desejo seria ver o elo de que falaste quebrado para sempre e a raça humana completamente aniquilada? Não tiveste medo?
- A adversidade anula todos os receios - replicou Isabel com firmeza.
- Não ouviste dizer, entre os da sociedade a que pertences, que estou ligado com seres tão disformes como eu e que odeiam o género humano? Não ouviste dizer? E mesmo assim vens procurar-me no meu refúgio a meio da noite?
- O Ente que adoro ampara-me contra esses vãos temores - declarou Isabel, cuja agitação crescente desmentia a coragem expressa nestas palavras.
- Pretendes falar a linguagem da filosofia? Não pensaste no perigo de afrontares, nova e linda como és, o poder de um homem que concebeu contra o género humano um ódio tão grande que o seu maior prazer será o de destruir, desfigurar e degradar as mais belas obras da natureza?
Conquanto extremamente assustada, Isabel continuou a responder-lhe com firmeza.
- Fossem quais fossem as injúrias que recebeu dos homens, não o julgo capaz de se vingar em alguém que nunca o ofendeu, mesmo involuntariamente, fosse no que fosse.
- Não sabes, rapariga - prosseguiu o Anão, cujos olhos negros cintilavam numa expressão de maldade que se transmitia ao rosto selvagem e disforme - que a vingança é como lobo esfomeado, que só pede carne para devorar e sangue para sorver? Pensas que daria ouvidos ao cordeiro quando ele alegasse a sua inocência?
- Senhor - replicou Isabel, erguendo-se com dignidade - não consegue assustar-me com as ideias terríveis que pretende despertar-me no espírito. Afasto-as com desprezo. Seja o que for, mortal ou demónio, não ofenderá uma pessoa que veio procurá-lo como suplicante, numa hora de maior aflição. Com certeza, não se atreveria a fazê-lo.
- Tens razão, não me atreveria, não quereria fazê-lo. Volta para tua casa. Nada receies do perigo que te ameaça. Pediste a minha protecção. Tê-la-ás.
- Mas... é esta noite mesmo que terei de casar com o homem a quem odeio. Caso contrário, a ruína de meu pai será certa.
- Esta noite? A que horas?
- Antes da meia-noite.
- E o crepúsculo já terminou. Mesmo assim, não tenhas medo; terei tempo para te proteger.
- E meu pai? - perguntou Isabel em tom suplicante.
- Teu pai foi e ainda é o meu mais cruel inimigo. Mas nada receies. A tua virtude salvá-lo-á. Agora vai-te embora. Se te demorasses mais, talvez eu recaísse num desses sonhos absurdos sobre a virtude do homem, dos quais despertei por forma tão horrível.
Nada temas. Livrar-te-ei aos pés do altar. Adeus. O tempo urge. Tenho de agir.
Conduziu-a à porta, que abriu para a deixar sair. Isabel montou o cavalo, que encontrou pastando junto da cabana e, favorecida pelo luar que brilhava nesse momento, partiu para ir ter com Ratcliffe ao sítio onde o havia deixado.
- Conseguiu alguma coisa? - perguntou este com solicitude.
- Obtive promessas daquele a quem fui procurar - respondeu Isabel - Mas como pode ele cumpri-las?
- Deus seja louvado - exclamou - Não duvide de que tenha o poder de as cumprir.
Neste momento, pela charneca ecoou um assobio agudo.
- Escute - disse Ratcliffe - ele está a chamar-me. Volte para o castelo, mas não corra o ferrolho da porta do jardim. Quanto a que comunica com a escada secreta, tenho a chave.
Segundo assobio se fez ouvir, mais prolongado e mais agudo do que o primeiro.
- Já vou, já vou - murmurou Ratcliffe.
E, esporeando o cavalo, partiu, dirigindo-se para a cabana do Recluso. Miss Vere voltou para o castelo, onde chegou depressa, impelida pela inquietação e levada pela velocidade do cavalo que montava.
Seguiu as instruções de Ratcliffe, sem compreender muito bem qual o fim, e, deixando o cavalo a pastar em liberdade, num cerrado perto do jardim, apressou-se a subir para os seus aposentos, o que conseguiu sem ser vista. Correu os ferrolhos da porta e tocou para lhe trazerem luz. O pai apareceu com o criado que respondeu à chamada.
Tinha ido - afirmou - escutar à porta, duas vezes, durante as duas horas decorridas depois de a ter deixado e, não ouvindo coisa alguma, estava com receio de que se sentisse incomodada.
- Meu querido pai, vou pedir-lhe o cumprimento da promessa que teve a bondade de me fazer. Desejo que ninguém me importune durante os poucos momentos que me restam de liberdade. Peço-lhe para prolongar ao máximo os minutos que lhe supliquei.
- Está prometido, minha filha. Não serás incomodada. Mas esse trajo em desordem e esses cabelos despenteados... Não quero encontrar-te assim quando voltar. O sacrifício para ser meritório deve ser voluntário.
- Assim o exige? Pode ir sossegado, pai. A vítima saberá enfeitar-se.
Isto não parece um casamento
Muito barulho para nada
A capela de Ellieslaw era muito mais antiga do que o castelo, embora este tivesse sido construído havia séculos.
Antes de que as guerras entre a Inglaterra e a Escócia se tornassem tão frequentes e prolongadas e que os castelos situados perto da fronteira se transformassem em fortalezas, instalara-se em Ellieslaw pequena comunidade de monges, dependente, pelo que dizem os antigos, da riquíssima Abadia de Jedburgh. O convento suportara depois todas as mudanças ocasionadas pelas guerras e as depradações de um e outro partido; sobre as suas ruínas elevou-se um castelo feudal e a capela foi construída dentro dos seus muros.
O edifício, com os seus arcos arredondados e pilares maciços, cuja simplicidade indicava pertencerem à época do que chamavam arquitectura gótica, tinha, desde sempre, um aspecto lúgubre e triste. Servira muitas vezes de sepulcro para os membros da família do senhor do castelo, como noutros tempos para os religiosos do convento. Este aspecto, porém, naquela ocasião tornava-se duplamente sombrio devido a pequeno número de tochas acesas, dispostas para a circunstância e que espalhavam em volta um clarão amarelado, rodeado por um halo avermelhado, produzido pelo fumo, e por uma zona de sombra que alastrava por toda a capela, de forma a tornar impossível conhecer os seus limites. Os ornamentos, escolhidos sem gosto, mais aumentavam a tristeza do conjunto. Dois bocados de tapeçaria, arrancados das paredes de uma das salas do castelo, haviam sido dispostos nas da capela, em volta dos que já ali se encontravam, misturando-se, por forma ridícula, com os brasões e símbolos fúnebres.
De cada lado do altar, todo de pedra, viam-se monumentos que formavam estranho contraste com a cerimónia prestes a realizar-se. Um era encimado pela estátua de uma eremita ou monge, que tinha morrido em cheiro de santidade. Estava de joelhos, com o corpo levemente inclinado, envergando o hábito, a cabeça coberta com o capuz, o rosto voltado para o céu numa atitude de devoção, e as mãos unidas, segurando um rosário. Do outro lado, encontrava-se um túmulo em estilo italiano, talhado no mais precioso mármore e considerado como uma obra-prima da arte moderna. Fora erigido à memória da mãe de Isabel, a falecida mrs. Vere Ellieslaw. Sobre o corpo jacente debruçava-se um anjo chorando, desviando a vista e
extinguindo uma lâmpada funerária, como sinal de pronta dissolução:
Na verdade, podia considerar-se uma obra de arte, mas estava deslocada sob a abóbada grosseira para onde a haviam relegado. Muitas pessoas ficaram surpreendidas e até escandalizadas quando Ellieslaw, que nunca demonstrara grandes atenções a sua mulher enquanto viva, lhe erigiu depois de morta um mausoléu dispendioso, como prova de uma dor que não sentia: outros ilibavam-no desta acusação de hipocrisia, afirmando que o mausoléu tinha sido construído por ordem e à custa de mr. Ratcliffe.
Os convidados para o casamento estavam reunidos na capela. Não eram muitos, porque a maior parte dos hóspedes do castelo já o haviam abandonado a fim de fazerem os preparativos para a próxima explosão política, e Ellieslaw, naquelas circunstâncias, estava longe de querer estender os convites além dos parentes mais próximos, cuja presença os usos do país tornava indispensável.
Junto do altar estava sir Frederick Langley com aspecto sombrio, pensativo e de mau humor, pior talvez do que era costume. A seu lado encontrava-se Mareschal, que desempenhava o papel de padrinho ou de paraninfo, como lhe chamavam. O carácter estouvado e alegre do jovem fidalgo, que ele não sabia nem queria reprimir, tornava, por contraste, mais evidente a sombria nuvem que cobria a fronte do noivo.
- A noiva ainda não saiu dos seus aposentos - disse baixinho para sir Frederick - Espero que não tenhamos de recorrer às medidas violentas usadas pelos romanos, de que ouvi falar na Universidade. Seria bem triste para a minha linda prima ser raptada duas vezes em dez dias, embora não conheça ninguém mais merecedor dessa violência.
Sir Frederick fingiu não ouvir este discurso, cantarolou por entre os dentes e olhou para o lado oposto. Mas Mareschal prosseguiu no mesmo tom:
- Esta demora deve contrariar o doutor Hobbler, que se incomodou e abandonou a sua terceira garrafa para apressar os preparativos desta alegre cerimónia. Espero que o defenda das censuras dos superiores, pois suponho que uma hora destas não é muito canónica. Aí vem Ellieslaw com a minha linda prima... mais bonita do que nunca, parece-me, embora esteja muito pálida e pareça fraca. Escute, cavaleiro, se ela não disser o sim de boa vontade e em voz bem clara, não se realizará o casamento, a despeito de tudo quanto se combinou e fez.
- Não se realizará o casamento, senhor? - retorquiu sir Frederick em voz não muito alta, mas que traduzia uma cólera mal reprimida.
- Não, não se realizará - replicou Mareschal - Juro-o pela minha mão e pela minha luva.
Sir Frederick Langley pegou-lhe na mão, apertou-a com força e murmurou em voz baixa:
- Terá de me dar contas dessas palavras. Depois largou a mão com um gesto brusco.
- Com todo o gosto, pois nunca os meus lábios proferiram palavras que a mão não pudesse sustentar. Fale, minha gentil prima, e diga-me com franqueza se é de sua livre vontade que aceita este valente cavaleiro como esposo; se tem a mais pequena hesitação a esse respeito, fale, porque o casamento não se realizará, aconteça o que acontecer.
- Está louco, mr. Mareschal? - protestou Ellieslaw, que tendo sido tutor do rapaz durante a sua menoridade, ainda tomava, por vezes, um tom autoritário ao falar-lhe - Como pode supor que eu conduzisse minha filha ao altar contra sua vontade?
- Cale-se, Ellieslaw, não proteste. Vejo-lhe os olhos cheios de lágrimas e as faces mais brancas do que o vestido. Em nome da humanidade, devo insistir para que a cerimónia seja adiada para amanhã.
- Ela vai dizer-te, incorrigível estouvado que te metes no que não te diz respeito, ela vai dizer-te ser seu desejo que a cerimónia se realize agora - respondeu Ellieslaw - Não é verdade, Isabel, minha querida filha?
- É verdade - respondeu miss Vere com pálido sorriso - pois já nada espero de Deus nem dos homens.
Mas só as primeiras palavras foram pronunciadas em voz alta e clara. Mareschal encolheu os ombros e recuou. Ellieslaw conduziu, ou antes, amparou a filha até junto do altar. Sir Frederick avançou alguns passos e colocou-se-lhe ao lado. O sacerdote abriu o livro de orações e olhou para Ellieslaw, aguardando o sinal para começar a cerimónia.
- Comece - ordenou mr. Vere.
Neste momento, uma voz, que parecia sair do túmulo da defunta mrs. Vere, pronunciou, em tom forte e agudo que despertou todos os ecos da capela:
- Suspendam!
Todos ficaram mudos e imóveis, enquanto ao longe, nas salas do castelo, se ouvia um tinir de armas ou coisa parecida. Mas até esse ruído se extinguiu.
- Que significa este novo estratagema? - perguntou sir Frederick em tom feroz, relanceando a Ellieslaw e a Mareschal um olhar de intensa suspeita.
- Deve ser brincadeira de qualquer convidado, esquentado pelo vinho - replicou Ellieslaw, embora se sentisse desorientado - Devemos ser indulgentes para aqueles que se entregaram demasiado à bebida num dia como este. Pode começar a cerimónia.
Mas antes que o padre obedecesse, a mesma palavra se fez ouvir, saindo do mesmo ponto. As damas de honor da noiva soltaram um grito e fugiram, os homens levaram a mão aos copos da espada. O primeiro movimento de surpresa ainda não se desvanecera, quando o Anão saiu detrás do sepulcro e foi colocar-se diante de mr. Vere. Uma aparição tão estranha e terrível, em semelhante lugar e em tais circunstâncias, aterrou todos os que a presenciaram e pareceu aniquilar o laird de Ellieslaw. Abandonou a mão da filha e recuou, cambaleando, até ao pilar mais próximo, e, rodeando-o com os braços como para se amparar, encostou a cabeça à coluna.
- Quem é este homem? - bradou sir Frederick Que vem ele fazer aqui, introduzindo-se na capela desta maneira?
- É um homem que vem dizer-te - replicou o Anão, no tom duro que lhe era habitual - que, casando com esta menina, não casas com a herdeira de Ellieslaw, nem de Mauley-Hall, ou de Polverton, salvo se ela casar com o meu consentimento e eu nunca o darei em teu favor. Ajoelha e agradece aos Céus por não ter consentido que desposes as virtudes que tu próprio desconheces, isto é, a verdade e a inocência sem fortuna. E tu, vil ingrato - continuou, dirigindo-se a Ellieslaw - que subterfúgio tencionas empregar agora? Querias vender a tua filha para te salvar do perigo, como, se tivesses fome, a matarias e devorarias para conservar a tua miserável vida! Fazes bem. Oculta a face nas mãos. Deves corar ao ver diante de ti aquele a quem carregaste de ferros, cuja mão impeliste para o crime, condenando-lhe a alma ao remorso e à dor. Salvo mais uma vez pelas virtudes daquela que te chama pai, retira-te, desaparece daqui e que o perdão e os benefícios que vou conceder-te sejam como carvões ardentes sobre a tua cabeça até que o teu cérebro arda e se consuma como o meu!
Ellieslaw saiu da capela, numa atitude de mudo desespero.
- Vai atrás dele, Hubert Ratcliffe - continuou o Anão - e dá-lhe a conhecer a sorte que lhe reservo para o futuro. Ficará contente, porque, para ele, manejar ouro e tocar-lhe representa a suprema felicidade.
- Não percebo nada disto - declarou sir Frederick Langley - Estamos aqui em grande número, somos súbditos do rei Jaime. Portanto, senhor, se é de facto sir Edward Mauley, que supunham ter morrido na prisão, ou um impostor que tomou o seu nome, tomamos a liberdade de o prender até que possa provar-nos a sua identidade e explicar-nos a sua aparição nesta capela num momento como este. Não queremos espiões entre nós. Prendam-no, meus amigos.
Como os criados recuassem assustados e hesitantes sir Frederick avançou em pessoa para o recluso no intento de o agarrar, quando foi detido pelo brilho de uma alabarda que Hobbie Elliot lhe apontou ao peito.
- Verei o dia através do seu corpo se tiver a infelicidade de lhe tocar - declarou o valente Border. Para trás ou trespasso-o de lado a lado. Que ninguém toque em Elshie. É um excelente vizinho, sempre disposto a socorrer um amigo; e, embora possam tomá-lo por manso cordeiro, se lhe toca, apostaria em como ele lhe faria sangue nos dedos. O nosso Elshie é um homem destemido, forte, e aperta como num torno.
- Que fazes aqui, Elliot? - perguntou Mareschal - Para que te metes nos nossos assuntos?
- Bem, Mareschal-Well, vim aqui com vinte ou trinta dos meus camaradas, em meu nome e no do rei ou da rainha, como queiram chamar-lhe, e de Ctanny Elshie também, para manter a paz no país e pagar a Ellieslaw os maus tratamentos que nos tem infligido.
Os salteadores deram-me há dias um esplêndido almoço e ele teve a sua parte no assunto. Não será justo que lhes ofereça agora a ceia? É inútil desembainharem a espada, meus senhores. O castelo é nosso e não precisámos de trabalhar muito para o conservar.
As portas estavam abertas e os convivas já tinham bebido grande quantidade de ponche. Tirámo-lhes a espada e as pistolas como quem descasca uma ervilha.
Mareschal saiu precipitadamente e voltou pouco depois à capela.
- Por Deus! Este homem diz a verdade, sir Frederick. O castelo está cheio de homens de armas e os bêbados foram desarmados. Vamos, meus senhores, desembainhem as espadas. É o único meio de sairmos desta situação.
- Devagar, devagar! - atalhou Hobbie - Nada de tolices. Escutem-me por um momento. Não queremos fazer-lhes mal. Mas como pegaram em armas pelo rei Jaime, como lhe chamam, e pelos prelados, nós achámos que devíamos fazer guerra ao nosso vizinho e sustentar o nosso soberano e a Igreja. Mas não tocaremos num cabelo das vossas cabeças se estiverem dispostos a retirar tranquilamente para as vossas casas. É o melhor partido que têm a tomar, pois recebemos de Londres a notícia de que Bang ou Bing, como lhe queiram chamar, repeliu da costa a armada francesa e o novo rei. Farão melhor em contentar-se com a nossa velha Nancy, à falta de melhor.
Ratcliffe, que entrou na capela nesse momento, confirmou as notícias tão desfavoráveis ao partido jacobita. Sir Frederick, no mesmo instante e sem se despedir de ninguém, abandonou o castelo com os seus homens que se encontravam em estado de o seguir.
- Mr. Mareschal - perguntou Ratcliffe - que tenciona fazer?
- Não sei bem! - respondeu, o rapaz sorrindo - Não sou orgulhoso e tão pouco afortunado para seguir o exemplo do valente noivo. Não está no meu carácter e não merece a pena que me preocupe com ele.
- Nesse caso, mande dispersar os meus homens e deixe-se ficar sossegado. Não houve rebelião pública, não se fala mais no assunto.
- Com certeza - acrescentou Hobbie - O que lá vai, lá vai. Voltemos a ser todos amigos. Não quero mal a ninguém, excepto a Westburnflat, e a esse já lhe dei uma boa lição. Troquei com ele dois ou três golpes, e obriguei-o a saltar de uma das janelas da torre para o fosso, que atravessou a nado como um pato bravo. Que grande patife! Rouba uma rapariga de manhã e outra à noite. Não se contentou com menos. Mas, se ele não sai daqui, tirá-lo-ia eu com uma boa corda ao pescoço, porque o encontro que tínhamos marcado para Castleton já não se realiza. Os meus amigos não querem admiti-lo.
No meio da confusão geral, Isabel lançou-se aos pés do seu parente, sir Edward Mauley - pois era este o verdadeiro nome do solitário - para lhe manifestar o seu reconhecimento e ao mesmo tempo implorar o perdão do pai. Os olhares de todos os presentes começaram a fixar-se neles, tão depressa o tumulto e a própria agitação se foram desvanecendo. Miss Vere estava de joelhos ao lado do túmulo da mãe, cuja estátua oferecia grandes semelhanças com as suas próprias feições. Agarrava a mão do Anão e não cessava de a beijar e de a banhar com as suas lágrimas. Quanto a ele, conservava-se imóvel, olhando alternadamente para a estátua e para o rosto afogueado da suplicante. Por fim, foi obrigado a retirar a mão para enxugar as lágrimas que lhe assomavam aos olhos.
- Sempre supus - disse - que as lágrimas e eu estávamos separados definitivamente. Mas nós choramos à nascença e as nascentes do pranto só secam quando descemos ao túmulo. No entanto, não há enternecimento que me obrigue a mudar de resolução. Separo-me aqui e para sempre de tudo cuja recordação - e relanceou um olhar ao túmulo - e cuja presença - acrescentou, apertando a mão de Isabel me são queridas... Não fales... Não tentes modificar-me as ideias, pois seria inútil. Nunca mais ouvirão falar de mim, nunca mais verão este corpo disforme. Morrerei para todos antes que a morte me leve e, quando pensarem em mim, recordem-me como um amigo liberto de todas as penas e males do mundo.
Beijou Isabel na testa, imprimiu outro beijo na fronte da estátua, junto da qual ajoelhou, e saiu da capela seguido por Ratcliffe.
Isabel, vencida por todas as emoções que suportara durante o dia, foi transportada aos seus aposentos pelas suas damas. A maior parte dos convidados já haviam dispersado, depois de ter cada um deles tentado persuadir aqueles que lhes prestaram ouvidos, quanto desaprovavam a conspiração contra o Governo e o pesar sentido por terem tomado parte nela.
Hobbie Elliot tomou o comando do castelo durante a noite e mandou estabelecer sentinelas regulares. Não se sentia pouco orgulhoso pela forma pronta como os amigos tinham acorrido ao apelo feito por Elshie, por intermédio do fiel Ratcliffe; felizmente, acrescentava, tinham sabido que Westburnflat não tencionava comparecer à entrevista de Castleton, zombando assim de todos eles. Em consequência, reuniram numeroso grupo em Heugh-Foot, na intenção de fazer no dia seguinte uma visita à torre do bandido. Desta forma, tornara-se-lhes fácil marchar para o castelo de Ellieslaw.
Última cena que encerra esta estranha história tão fértil em acontecimentos.
Como lhe agradar
No dia seguinte de manhã, Ratcliffe entregou a miss Vere uma carta do pai, concebida nestes termos:
"Minha querida filha
"A maldade de um Governo que me persegue obriga-me, para minha segurança, a abandonar o meu país e a passar algum tempo no estrangeiro. Não quero pedir-te para me acompanhares, nem para vires ter comigo. Olharás melhor pelos meus interesses e pelos teus, ficando onde estás.
"Será inútil entrar em pormenores para te explicar os estranhos acontecimentos desenrolados ontem à noite. Creio ter direito a queixar-me da forma como me tratou sir Edward, teu próximo parente pelo lado de tua mãe. Mas, como te instituiu sua herdeira e vai em breve doar-te grande parte da sua fortuna, considero isso como ampla reparação. Sei que nunca me perdoou a preferência que tua mãe me deu sobre ele, em vez de se submeter às cláusulas de um acordo de família, absurdo e tirânico, que a obrigavam a casar com o seu disforme parente. O desgosto causado por esse facto bastou para provocar o total desarranjo do seu espírito, que nunca foi muito são, e eu fui obrigado, como marido da sua parente mais próxima e herdeira, a desempenhar a tarefa delicada de tomar conta dele e de gerir os seus bens até que se encontrasse em estado de o fazer e lhe fossem entregues por aqueles que supunham praticar um acto de justiça, embora, se atendessem certas circunstâncias do seu procedimento ulterior, tivessem de reconhecer que, para seu próprio interesse, teria sido melhor se o conservassem numa coacção moderada e salutar.
"Sob alguns aspectos, no entanto, nota-se que conservou o respeito por certos laços de família e reconhece a sua própria fraqueza; porque, afastando-se por completo da sociedade, adoptando diversos nomes e disfarces e exigindo que espalhassem a notícia da sua morte, o que consenti para lhe agradar, deixou à minha disposição grande parte dos rendimentos das suas propriedades, especialmente aqueles que, tendo pertencido a tua mãe, voltaram para ele como chefe e único representante masculino da família. Procedendo assim, supunha talvez dar prova de extrema generosidade, enquanto que aos olhos de todo o homem imparcial apenas cumprira uma obrigação natural, visto que, segundo as regras da mais elementar justiça e do estrito direito, tu devias ser a herdeira de tua mãe e eu o administrador dos teus bens. Assim, em vez de admitir que sir Edward me cumulou de benefícios, penso que, pelo contrário, tenho motivos de queixa, pois Ratcliffe me entregava o dinheiro a seu bel-prazer e exigia hipotecas sobre o meu próprio património de Ellieslaw pelas somas que eu pedia adiantadas. Desta maneira, conseguiu, insensivelmente, a direcção e administração absolutas das minhas propriedades. Quando penso que sir Edward me testemunhou amizade apenas no desígnio de exercer uma autoridade despótica na minha vida e poder arruinar-me quando lhe apetecesse, ainda menos me sinto disposto, repito, a reconhecer-me obrigado para com ele.
"Pelo Outono do ano passado, como depois soube, seja por fantasia da sua mente desarranjada, seja com o fim de executar o plano de que acima falei, chegou aqui, dando como pretexto, ao que parece, o desejo de ver o monumento erguido sobre o túmulo de tua mãe, cuja construção ele ordenara. Nessa época, mr. Ratcliffe fez-me a honra de se instalar em minha casa e teve a complacência de o introduzir secretamente na capela. Daí resultou, conforme ele me contou depois, um ataque de nervos que durou algumas horas, durante as quais errou pelos sítios mais agrestes, cobertos de urzes e pantanosos, no meio dos quais, depois de ter recuperado a razão, achou por bem construir a sua cabana e transformar-se num curandeiro de aldeia, papel que nos seus dias de prosperidade gostava de representar. É de notar que mr. Ratcliffe, em vez de me informar desta circunstância e de me proporcionar os meios de ter com o parente de minha falecida esposa os cuidados que o seu infeliz estado exigia, teve a culpável fraqueza de concordar com as suas extravagâncias e de lhe prometer sob juramento não as revelar. Fazia frequentes visitas a sir Edward e auxiliou-o no estranho projecto de construir o seu refúgio. Segundo parece, temiam acima de tudo que descobrissem as relações que mantinham.
"O terreno em volta da cabana está descoberto e pequeno subterrâneo, que encontraram junto da coluna de granito - possivelmente uma antiga sepultura - servia para ocultar Ratcliffe quando se aproximava algum estranho. Igualmente é para notar que, enquanto eu supunha o meu infeliz parente no convento dos monges da Trappa, ele vivia há muitos meses a cinco milhas de minha casa, com este estranho disfarce, sendo regularmente instruído de todos os meus passos, mesmo os mais ocultos, por Ratcliffe, Westburnflat e outros, pois dispunha de meios para os subornar. Considera um crime o facto de eu querer casar-te com sir Frederick. Suponho que não podia fazer melhor; mas se sir Edward Mauley pensava doutra forma, porque não se apresentou e não declarou a sua intenção de contribuir para o teu dote e não reclamou os direitos que lhe davam a tua qualidade de herdeira da sua imensa fortuna?
"Mesmo agora, apesar da demora do teu estranho e insensato parente em fazer conhecer essa intenção estou longe de opor a minha autoridade aos seus desígnios, ainda que a pessoa que ele deseja consideres como teu futuro marido seja o jovem Earnscliff, de todos os homens deste mundo o último em quem eu teria pensado, depois de certo acontecimento ocorrido no passado. De boa vontade dou o meu consentimento, contanto que as clásulas do contrato sejam concebidas em termos tais que minha filha fique ao abrigo de poder encontrar-se no estado de dependência e da supressão de rendimentos de que tanta vez me queixei. Quanto a sir Langley, penso que nunca mais ouvirás falar dele. Não é homem para exigir a mão de uma pessoa que não tenha dote. Confio-te, portanto, minha querida Isabel, à Divina Providência e à tua própria prudência, contentando-me em aconselhar-te que não percas tempo e te assegures quanto antes das vantagens de que o teu inconstante parente me privou para tas dar.
"Mr. Ratcliffe comunicou-me que sir Edward Mauley tenciona dar-me considerável soma para minha subsistência, enquanto me conservar no estrangeiro, mas eu sou muito orgulhoso para aceitar qualquer coisa dele. Disse-lhe que tinha uma filha dedicada e que, enquanto ela viver na opulência, não suportará que seu pai viva na miséria; e julguei ser de meu dever acrescentar que, fosse qual fosse o dote que te atribuísse, devia incluir nele uma soma para essa despesa tão necessária e natural. Entrego-te o castelo e o domínio de Ellieslaw para te provar a minha afeição paternal e o meu desejo desinteressado de que possas manter a tua posição na sociedade. O juro anual das hipotecas de que está sobrecarregado o domínio excede um pouco o rendimento, embora este seja considerável. Mas como todas essas hipotecas estão no nome de mr. Ratcliffe, como administrador do teu parente, o credor não será muito exigente. Aproveito a ocasião para te dizer que, conquanto eu tenha de me queixar do procedimento de mr. Ratcliffe a meu respeito, o considero como homem justo e honesto a quem podes consultar com toda a confiança para os teus negócios; seguindo os seus conselhos, podes ter a certeza de conservar a benevolência de sir Edward Mauley.
"Apresenta os meus cumprimentos ao Marchie... Espero que os últimos acontecimentos em que nos envolvemos não lhe tenham causado qualquer prejuízo.
"Escrever-te-ei nova carta quando chegar ao Continente. Entretanto, crê-me sempre teu pai muito dedicado
"Richard Vere
A carta que acabamos de reproduzir contém os únicos esclarecimentos que alcançámos sobre os incidentes da primeira parte desta história.
A opinião de Hobbie, como a da maior parte dos nossos leitores, era que o espírito do recluso de Mucklestane-Moor era dotado de fraca luz, como a do crepúsculo, não tendo a noção exacta do que pretendia, nem a aptidão necessária para alcançar os seus fins por meios mais curtos e directos; numa palavra, tentar encontrar a ponta da meada que o conduzia era o mesmo que, segundo Hobbie, procurar uma estrada direita numa planície coberta de urzes onde grande número de atalhos se cruzam e confundem em todos os sentidos, mas nem um só se prolonga de maneira distinta.
Quando acabou de ler esta carta, o primeiro cuidado de Isabel foi o de mandar saber do pai. Disseram-lhe que tinha abandonado o castelo de manhã cedo, depois de prolongada conversa com mr. Ratcliffe e que já devia estar longe, perto do porto onde devia embarcar a fim de seguir para o Continente.
- E sir Edward Mauley? - perguntou, pois ninguém vira o Anão depois da extraordinária cena da noite anterior.
- Meu Deus! - exclamou Hobbie - Contanto que não lhe tenha acontecido qualquer coisa. Preferia ficar arruinado segunda vez.
No mesmo instante, montou a cavalo e partiu para a cabana do Solitário. A cabra correu para ele balindo, porque a hora da mungidura já havia passado. Não encontrou o Anão em parte alguma. A porta da casa estava aberta, contra o costume, o lume apagado e encontrava-se tudo no mesmo estado em que Isabel o deixara depois da visita. Era evidente que o mesmo meio de transporte que o havia levado ao castelo de Ellieslaw lhe servira para o conduzir a qualquer outro ponto. Hobbie voltou para casa consternado.
- Receio, mr. Ratcliffe - comentou - que tenhamos perdido o nosso Cunny Elshie para sempre.
- Com efeito - concordou este, entregando-lhe um papel - Lê e verás que ganhaste muito em conhecê-lo.
Tratava-se de um documento de poucas linhas pelo qual sir Edward Mauley dava a Hilbert ou Hobbie Elliot e a Grace Armstrong a importante quantia que o dito Hobbie lhe pedira emprestada.
A alegria de Hobbie foi turvada pela tristeza que o obrigou a verter abundantes lágrimas.
- É estranho - declarou - mas não posso alegrar-me com a posse desta fortuna, pelo menos sem ter a certeza de que aquele que ma deu também é feliz.
- Depois do sentimento de alegria que nasce da nossa própria felicidade - observou Ratcliffe - o mais nobre e o maior é aquele que experimentamos sabendo ter contribuído para a felicidade alheia. Se todos os benefícios do meu amo tivessem sido como este, a sua recompensa também teria sido diferente! Mas a prodigalidade inconsiderada que favorece a avareza ou incita ao esbanjamento não dá bons resultados nem encontra reconhecimento. É como semear vento para colher tempestades.
- Fraca colheita, na verdade - retorquiu Hobbie - Mas, com o acordo de minha mulher, quero tomar conta dos cortiços do Elshie e trazê-los para o jardim de Grace em Heugh-foot. Ninguém os incomodará. Quanto à pobre cabra, também não ficará abandonada. Pastará à vontade no nosso prado florido, ao longo do rio. Bastará um dia para os cães se habituarem a ela e não lhe fazerem mal. A Grace todas as manhãs a mungirá, por amor de Elshie. Porque, embora mordaz e áspero na sua maneira de falar, ele gostava muito dos pobres animais.
A decisão de Hobbie foi acolhida com agrado e todos louvaram a delicadeza do sentimento que lhe indicara o meio de provar o seu reconhecimento. Ficou encantado quando Ratcliffe lhe prometeu que o seu benfeitor teria conhecimento da forma como se encarregara dos seus animais favoritos.
- Diga-lhe também - pediu Hobbie - que a minha avó, minhas irmãs, e principalmente eu e Grace, nos sentimos muito felizes e contentes e que a nossa felicidade foi obra sua. Calculo que isso deva agradar-lhe.
Com efeito, tanto Elliot como a família continuaram a viver em Heugh-foot muito felizes e contentes, como merecia a sua probidade, delicadeza e coragem.
Todos os obstáculos que podiam opor-se ao casamento de Isabel com Earnscliff foram removidos e os documentos entregues por Ratcliffe da parte de sir Edward Mauley, assegurando a fortuna da sua parente, bastariam para contentar a cupidez do próprio Ellieslaw. Miss Vere e Ratcliffe consideraram inútil dizer a Earnscliff que um dos maiores motivos que impelira sir Edward a proteger assim o jovem casal era o desejo de expiar o crime cometido muitos anos antes, quando lhe matara o pai num arrebatamento de cólera.
Se é verdade que a extrema misantropia do Anão abrandou um pouco com a certeza de ter feito a felicidade de tantas pessoas, a infeliz circunstância que acima mencionámos foi, provavelmente, a causa principal da recusa obstinada de partilhar essa felicidade.
Mareschal passeou, matou muita caça e bebeu muito bordéus; depois, aborrecendo-se do seu país, passou ao Continente, fez três campanhas e voltou para casar com Lucy Ilderton.
Os anos foram passando sucessivamente sobre a cabeça de Earnscliff e de sua esposa, encontrando-os e deixando-os sempre felizes.
A impaciência e ambição de sir Frederick Langley arrastaram-no a tomar parte na infeliz insurreição de 1315. Foi feito prisioneiro em Preston, no Lancashire, com o conde de Derwentwater e outros. Pode ler-se no registo dos processos dos criminosos do Estado a sua defesa e o discurso que fez no momento da execução.
Mr. Vere, a quem a filha dava considerável pensão, continuou a residir no Continente, tomou parte activa no negócio do Banco Law, na altura da regência do duque de Orleães, e houve tempo em que o consideraram como imensamente rico. Mas essa enorme bolha de ar acabou por rebentar e ele sofreu tão grande desgosto por se ver de novo sujeito a medíocre pensão, embora muitos dos seus companheiros de infortúnio ficassem reduzidos à miséria, que teve um ataque de apoplexia, do qual morreu após algumas semanas.
Willie Westburnflat tentou fugir à má vontade de Hobbie Elliot, como os seus chefes procuraram fugir à vingança da lei. O seu patriotismo impelia-o a servir o seu país na guerra continental, enquanto a repugnância em abandonar o solo natal o incitava a ficar na sua querida ilha e a fazer pelas estradas grossa colheita de bolsas, anéis e relógios. Felizmente para ele, prevaleceu o primeiro impulso. Reuniu-se ao exército comandado por Marlborough, obteve um posto como recompensa dos serviços prestados, arranjando gado para sustento dos soldados. Voltou à terra muitos anos depois, com algum dinheiro adquirido Deus sabe como, demoliu a torre de Westburnflat e no mesmo local construiu uma casa de três andares com uma chaminé em cada extremo. Bebeu aguardente com os vizinhos a quem noutros tempos havia roubado e morreu na sua cama. Sobre o seu túmulo gravaram o epitáfio que ainda pode ler-se em Kirkwhistle, afirmando ter sido ele um bravo soldado, bom vizinho e sincero cristão.
Mr. Ratcliffe residia habitualmente com a família em Ellieslaw. Mas na Primavera e no Outono ausentava-se regularmente e demorava-se um mês. Quanto ao local onde se dirigia e o motivo da periódica viagem, nunca o revelou. Mas ninguém duvidava de que fosse ver sir Mauley. Por fim, no regresso de uma dessas viagens, o seu ar triste e o luto carregado deram a conhecer à família de Ellieslaw que o seu benfeitor tinha deixado de existir.
A morte de sir Edward não aumentou a fortuna de Earnscliff e da esposa, porque em vida ele se tinha despojado de tudo quanto possuía, principalmente em seu favor.
Ratcliffe, o seu único confidente, chegou a avançada idade, mas nunca revelou o local para onde o Anão se retirara, o género de morte e onde estava enterrado. Calculava-se que o seu benfeitor tivesse exigido dele a esse respeito o mais absoluto segredo.
A súbita desaparição de Elshie do seu pobre ermitério confirmou os boatos que o povo tinha feito correr a seu respeito. Muitos diziam que, tendo ousado entrar num recinto sagrado, a despeito do seu pacto com o espírito maligno, tinha sido corporalmente arrebatado quando regressava ao seu casebre. Muitos, porém, eram de opinião que desaparecera apenas por algum tempo e que muitas vezes o viam surgir no alto das colinas.
E como, segundo o costume, conservavam uma recordação mais viva dos seus discursos estranhos e violentos do que do sentimento de benevolência que inspirava a maior parte dos seus actos, acreditavam ser ele o mau espírito chamado Homem dos Pântanos, cujos malefícios mrs. Elliot contava aos bisnetos. Diziam que deitava mau olhado aos carneiros, fazia abortar as ovelhas ou desprendia grandes massas de neve para esmagar aqueles que, para fugir à tormenta, se abrigavam nas margens de uma torrente ou em profunda ravina.
Numa palavra, as desgraças mais temíveis, das quais todos os habitantes naquela região pediam ao Céu para os livrar, eram atribuídas à maldade do Anão Feiticeiro.
Walter Scott
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