Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O ANJO BRANCO
Segunda Parte
Havia já algum tempo que José Branco sentia necessidade de ter uma enfermeira oriunda da zona onde operava. Além das freiras, as enfermeiras que serviam no hospital eram portuguesas ou cabo-verdianas e não entendiam nhungué, o dialecto de Tete. Precisava por isso de recrutar uma pessoa da terra.
Além do mais, as necessidades de serviço iriam em breve sofrer um incremento significativo. O BNU e o Montepio tinham aprovado o donativo solicitado pelo governador-geral e a Gulbenkian aceitara entrar com o dinheiro que faltava para comprar o avião. A fundação mostrara-se de tal modo entusiasmada com a ideia que até se comprometera a pagar os dois primeiros anos de manutenção do aparelho. O dinheiro não dava ainda para contratar um piloto, e por isso ele próprio já começara a ter lições no Aero-Clube de Tete e esperava tirar o brevet daí a pouco tempo.
Por outro lado, as responsabilidades de José haviam sido alargadas. Fora recentemente nomeado delegado de saúde e ainda presidente da Cruz Vermelha de Tete.
As coisas avançavam depressa, pelo que precisava de compor um quadro de pessoal sanitário adequado. Aquela rapariga falava fluentemente português e nhungué e queria ser enfermeira. Qual a dúvida?
Depois de ponderar a situação, pediu a Lúcia que mandasse Sheila ir ter com ele quando aparecesse no hospital para ver a avó. Isso aconteceu logo na tarde do dia seguinte. O médico acompanhava um paciente à porta quando viu a rapariga sentada diante do seu gabinete; mandou-a entrar e sentar-se na cadeira habitualmente reservada aos doentes.
"Queres vir trabalhar aqui para o hospital?", propôs-lhe. "Temos uma vaga para recepcionista."
O olhar da rapariga incendiou-se.
"Está a falar a sério, senhor doutor?"
"Tenho por acaso ar de brincalhão?", perguntou o médico, fingindo uma expressão severa. "Claro que estou. Queres ou não o lugar?"
"Quero, pois!", aceitou ela apressadamente, quase com medo de que a proposta fosse retirada, mas de imediato esboçou uma expressão inquisitiva. "O que faz uma recepcionista, senhor doutor?"
"Uma recepcionista recebe os pacientes", explicou ele. "Preciso de alguém que fale nhungué e que faça com que as pessoas se sintam bem acolhidas. Dentro em breve é possível que tenhamos um avião que traga doentes que se encontram no meio do mato e que nem português falam. Vais ter de falar com eles, traduzir o que dizem e o que lhes dizemos e fazer com que não estranhem em demasia o ambiente que vão aqui encontrar. Achas-te à altura dessa tarefa?"
Sheila sentia-se tão excitada que não conseguiu permanecer no seu lugar. Ergueu-se por isso de um salto, como se tivesse sido impelida por uma mola, o entusiasmo a fervilhar-lhe no corpo.
"Quando começo?"
O director do hospital sorriu ao vê-la tão excitada.
"Segunda-feira."
A tarefa serviu para testar as capacidades da rapariga. Sheila respondeu com empenho, abraçando as suas funções com a força de quem sabe que a vida é um jogo de oportunidades. Abandonou de imediato o curso de costura e a sua existência passou a ser dedicada quase exclusivamente ao hospital, onde passava o dia a acompanhar os doentes e a servir de intérprete das suas variadas maleitas.
Algum tempo depois, no final de um dia particularmente cansativo, José Branco deu com a nova recepcionista sentada num banco do varandim do hospital, os olhos a errarem algures pelo pátio interior.
"Então, Sheila? Cansada?"
"Puf, senhor doutor! Nem me diga nada! Apareceu aí uma família inteira com varíola e tive de ajudar o doutor Feitor a falar com eles. Foi a tarde toda nisso!"
O médico calcorreou o varandim e instalou-se no banco ao lado da rapariga.
"Isto é mais duro do que parece", suspirou, também ele fatigado. "Ainda queres ser enfermeira?"
Sheila, que languescia ao calor do final da tarde, ganhou súbita energia, como se nesse instante alguém a tivesse ligado à corrente.
"Então não quero, senhor doutor?! É o meu sonho!"
"Olha que esta vida é difícil!...", observou, a voz arrastada. "Exige força mental, física e espiritual. Uma enfermeira lida com a miséria humana mais degradante e é preciso ser forte para aguentar isso. Este trabalho não é pêra doce, menina! Isto não é vestir a bata e pôr o cup na cabeça e andar por aí a abanar o rabo. Isso é nos filmes, não é a realidade. A realidade é muito dura e requer um grande espírito de sacrifício. Não é qualquer pessoa que pode ser enfermeira."
"Isso já eu percebi, senhor doutor. Basta ver o que se passa neste hospital para entender."
"E então?"
"Continuo a querer ser enfermeira. Já lhe disse que é o meu sonho e nada me fará mudar de ideias."
José Branco contemplou o perfil escurecido de um embondeiro recortado pelo céu avermelhado do pôr do Sol e voltou a suspirar; desta feita, contudo, o suspiro era o de quem acabara de tomar uma decisão.
"Que idade tens tu?"
"Dezassete anos, senhor doutor."
O médico levantou-se do banco com esforço e endireitou-se, alongando o tronco como se o exercitasse.
"Muito bem!", disse. "Vou falar com Lourenço Marques e submeter o teu nome a candidatura."
O mais difícil foi convencer a avó. Aissa nem queria ouvir falar em deixar a neta sair de casa para ir a uma cidade longínqua lá no Sul, ainda por cima com reputação de urbe licenciosa, submeter-se ao exame de candidatura ao curso de Enfermagem.
"Xi, patrão! Aquilo não é sítio para a minha Sheila!"
Confrontado com a intransigência da idosa, que entretanto já tivera alta e regressara à sua palhota para criar os três netos, José moveu influências e conseguiu convencer as autoridades sanitárias da província a voarem até Tete para fazerem o exame à jovem candidata.
No dia do teste, Sheila entrou na sala a tremer de nervosismo. Começou a responder às perguntas com o coração na boca, a garganta apertada e as mãos a tremerem, mas ao fim de alguns minutos sentiu que dominava a situação e foi-se acalmando. A experiência que já acumulara a trabalhar no hospital revelou-se decisiva e, para sua própria surpresa, deu-lhe respostas para todas as questões que lhe apresentaram.
Quando semanas depois vieram os resultados dos exames a todas as candidatas de Moçambique, aguardava-a uma novidade. Ficara em primeiro lugar. Tratava-se de uma vitória, mas também de um problema. É que o curso de Enfermagem era ministrado em Lourenço Marques e não havia ginástica nem jogo de influências que resolvesse isso.
"Não, não!", disse Aissa peremptoriamente, ao ouvir expor a ideia. "Nem pensar!"
José Branco já aguardava aquela resposta, mas sabia que teria de ser persistente e inteligente.
"Oiça, eu pago os estudos."
"Não é isso, senhor doutor! Eu não quero a minha neta lá em Lourenço Marques! Aquilo é terra maningue depravada!"
"Que é isso, Aissa? Não há depravação nenhuma!"
"Então não há, senhor doutor?! Então eu não sei?!"
"Ela vai com a minha protecção e estará à guarda de amigos meus. Pode ficar tranquila quanto a isso."
"O lugar da Sheila é aqui comigo e com os irmãos."
"Eles também podem ir com ela. Eu pago os estudos de todos."
"Não, não, não!"
O médico inclinou a cabeça, o olhar reprovador.
"O Aissa, veja a sua idade. E se lhe acontece alguma coisa? O que vão fazer os seus netos? Ficam na miséria, entregues a si mesmos?"
A velha muçulmana permaneceu um longo momento a fitar o médico; o problema, na verdade, horrorizava-a. Sabia que a qualquer momento poderia morrer, por mais misericordioso que fosse Alá a idade era o que era e não havia modo de lhe escapar. Que aconteceria aos seus netos? Como se desembaraçariam eles? Tantas vezes pensava nisso antes de adormecer e agora aquela possibilidade era-lhe apresentada assim, sem mais, desígnio da Providência. Seria Alá a lançar-lhe um aviso pela boca daquele branco?
Sentindo-a hesitar, José percebeu que a porta se entreabrira; faltava desferir a estocada final.
"O curso é uma garantia. Deixe-os ir para Lourenço Marques. Eu pago-lhes os estudos e eles ficarão com uma enxada que os ajudará na machamba da vida. Essa é a maior prenda que a Aissa lhes pode oferecer."
Levou ainda mais meia hora de conversa mole, mas Aissa estava conquistada muito antes de dar a luz verde final.
"Trate então deles, senhor doutor", concedeu por fim. "Dê- lhes a enxada para a vida."
Os irmãos de Sheila, porém, nem queriam ouvir falar na ideia. Irem para Lourenço Marques estudar? Maomé rejeitou a proposta liminarmente e Malaquias foi ainda mais rápido. A surpresa, porém, veio de Sheila. Embora não recusasse a sugestão, a sua manifesta falta de entusiasmo surpreendeu o médico.
"Eu não sei, senhor doutor."
"Como, não sabes? Então tens esta oportunidade para realizares o sonho de ser enfermeira e estás agora a dizer-me que não sabes?"
Ela baixou a cabeça, acabrunhada e incapaz de o olhar.
"Pois, não sei..."
"Então para que te candidataste ao curso? Para que foste fazer o exame de candidatura? Para não ires?"
A rapariga fechou-se em si mesma e, após balbuciar umas respostas sincopadas e em monossílabos, o director do hospital sentiu-se exasperado. Incapaz de extrair o sim dela, desistiu e abandonou a palhota em direcção ao carro. Sheila acompanhou-o, cabisbaixa, mas quando sentiu que estava suficientemente longe dos ouvidos da avó murmurou:
"Tenho um namorado."
José arregalou os olhos.
"O quê?"
Ela olhava para todos os lados excepto para o médico, tão embaraçada se sentia com a confissão.
"Chama-se Ismael. Se eu for para Lourenço Marques, não o vejo mais."
O médico fitou-a um longo momento, primeiro atónito, depois com um sorriso a formar-se no rosto.
"Ah, já estou a perceber!", exclamou. "É por isso que não queres ir? Por causa do teu namorado?"
Ela fez que sim com a cabeça.
"O que faz ele?"
"Foi agora para a tropa."
José ponderou a situação e tentou achar maneira de contornar o problema. O facto é que o hospital tinha falta de enfermeiras moçambicanas que comunicassem com os pacientes que não falavam português e Sheila parecia-lhe perfeita para o lugar.
Nem que revolvesse o céu e a terra, ela iria tirar o curso de Enfermagem e ajudá-lo a melhorar a assistência no hospital. Para isso precisava apenas de desatar aquele nó.
"E se eu arranjar maneira de o transferir para Lourenço Marques? Achas que isso resolvia a coisa?"
Sheila ergueu a cabeça e encarou-o pela primeira vez, os olhos a brilharem de esperança. Estava encontrada a solução.
Primeiro foi um zumbido. A multidão pareceu despertar da letargia e as cabeças puseram-se a girar pelo firmamento azul, voltando-se de um lado para o outro em busca da fonte do barulho. Uma voz gritou "ali!" e logo um e outro braço se ergueram a indicar a direcção, comandando os olhares para um pequeno ponto que cortava o céu como uma varejeira distante.
O avião perdeu rapidamente altitude e aproximou-se da multidão que enchia a placa do Aero-Clube de Tete. O comandante Trovão mandou os seus homens afastarem algumas pessoas que deambulavam pela pista, de modo a viabilizar a aterragem, mas o aparelho, em vez de se enquadrar com a faixa de terra batida para pousar, virou-se directamente para a multidão. Um clamor de "ah!" e "oh!" encheu o aeródromo do Aero-Clube e algumas pessoas assustaram-se e desataram a correr para tentar escapar à máquina voadora que apontara na sua direcção e crescia sem cessar. Deixara de ser uma mosca inofensiva e transformara-se numa ameaçadora ave de rapina metálica.
Um fragor infernal encheu o ar quando o Piper Cherokee sobrevoou as cabeças em voo rasante e voltou a ganhar altitude. Um alarido excitado percorreu a multidão. Parecia que uma corrente eléctrica unia os espectadores, cruzando comentários e observações em clima de grande agitação.
"Viram? Viram?"
"É ele! É mesmo ele!"
"Iá!"
Não foi tanto a emoção da razia que emocionou os presentes, embora aquela passagem temerária tivesse desempenhado o seu papel, mas a mera visão do aparelho que os sobrevoara. O avião cintilava no céu, pintado de branco com uma faixa azul e ostentando enormes cruzes vermelhas nas asas e na cauda, a matrícula CR-AKS inscrita na carlinga, o que eliminou as dúvidas que pudessem restar quanto à sua identidade.
O Piper Cherokee enquadrou-se enfim com a pista e, balouçando no ar, acabou por tocar na terra, levantando súbitas nuvens de pó alaranjado, e abrandou em apenas alguns metros; rolou aos soluços para fora da pista e aproximou-se da placa com o motor a arfar de mansinho e a hélice a levantar torvelinhos de poeira como uma ventoinha zangada.
A multidão abriu alas e o aparelho imobilizou-se diante do casinhoto que funcionava como torre de controlo, onde o aguardavam as entidades oficiais, encabeçadas pelo governador do distrito, pelo bispo, pelo director da Missão de Fomento, pelo comandante da PSP, pelo chefe distrital da PIDE e pelo director do Aero-Clube.
O motor engasgou-se e morreu de repente, como se alguém o tivesse esganado. As hélices imobilizaram-se com um suspiro e um silêncio absoluto impôs-se no aeródromo. Acto contínuo, as portas do avião abriram-se e José, espreitando para o exterior, acenou às várias dezenas de pessoas que ali se haviam deslocado para o acolher.
Uma ovação prolongada eclodiu nesse momento, recebendo o agora médico-aviador, que descia já do aparelho em pose triunfal: parecia um descobridor a desembarcar no Novo Mundo. As palmas foram apenas quebradas pelos primeiros acordes do hino nacional tocados pela banda da PSP. A multidão pôs-se então em sentido e cantou com ímpeto, a garganta e os pulmões a darem o máximo, os versos que glorificavam os heróis do mar.
Logo que o coro de vozes berrou "marchar, marchar!" e a banda emudeceu, o governador tirou várias folhas de papel do bolso, ajeitou os óculos e, aproximando-se do microfone improvisado diante do casinhoto, afinou a voz com o bmm-bmm da praxe e lançou-se no discurso com o verbo inflamado que a ocasião impunha.
Começou por citar o poeta "nas suas imortais palavras" e disse "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce", momento em que apontou para o avião e esclareceu ser aquela a obra, logo acrescentando que "Deus quis que a terra fosse toda una, que o ar unisse, já não separasse". Os mais versados em poesia estranharam a referência ao "ar", sabiam que o verso mencionava antes o "mar", mas atribuíram a alteração à natureza da obra, o avião, e fizeram bem porque essa era realmente a intenção do ilustre orador, homem parco em palavras que terminou o discurso a apontar para a multidão e a citar novamente o poeta, "quem te sagrou criou-te português", e logo concluiu com um brusco e sentido "viva Portugal!", exclamação imperial que se perdeu na oscilação indiferente do capim ao longo da savana africana.
Depois das palmas, o bispo aproximou-se do avião devidamente paramentado e acompanhado por dois acólitos, ergueu a cruz e pronunciou umas frases em latim que um dos presentes bichanou para o lado a informar com erudição que o bispo fazia o Urbi et orbi, observação prontamente desmentida por um ouvido mais atento, "disparate, o Urbi et orbi é a bênção do papa na Páscoa e no Natal!", mas logo o bispo mudou para português, disse "em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo", e a cada referência a cada elemento da Santíssima Trindade lançou água benta sobre o aparelho e arrancou novas palmas da multidão.
Falara o estado e benzera a Igreja; faltava a consagração pagã. No seu tradicional fato branco, agora ornamentado no peito com insígnias douradas a exibirem um círculo alado com Moçambique no centro, que ele próprio concebera e desenhara e a mulher bordara, José Branco pegou na garrafa de champanhe que a irmã Lúcia lhe estendeu e entregou-a a Mímicas, nomeada "madrinha do avião". A mulher do médico aproximou-se do aparelho, alguém gritou "força com isso!", ela ganhou balanço e atirou a garrafa com toda a gana e esmigalhou-a contra a carlinga do Piper Cherokee branco de faixa azul, molhando as cruzes vermelhas com as lágrimas chiques e adocicadas de Dom Pérignon.
Foi assim inaugurado, naquele final de manhã de 1968, o Serviço Médico Aéreo, obra criada em Tete para "que o ar unisse, já não separasse".
Uma tabuleta de madeira assinalava "Fingué" ao lado da pista. José acabara de aterrar e guinou o avião para a direita, aproximando-o do jipe estacionado diante de uma multidão. Desligou o motor, percorreu os olhos pela check list para a verificação final, e encarou a irmã Lúcia, sentada no lugar ao lado.
"Vá por dentro", disse, indicando-lhe o interior do aparelho. "Preciso que me ajude a descarregar o correio e os medicamentos."
"Si, doutor."
Abriu então a porta do avião e saltou para fora. Todos os olhos estavam pousados nele.
"Prepare-se, doutor", gritou uma voz proveniente do jipe. "Clientes é mato."
Contemplou a multidão que se concentrara ali perto. As pessoas pareciam agitadas, como se a mera visão da aeronave tivesse desencadeado uma corrente nervosa que a todos percorria. Consultou o relógio; o horário era apertado, tinha reservado pouco tempo de atendimento para a população do Fingué e não havia nem um minuto a perder. Contornou a asa até à traseira do aparelho e fez sinal para o pessoal do jipe.
"Trouxe o correio", anunciou. "Venham buscá-lo."
Abriu a porta traseira do avião e deu com a irmã Lúcia a empurrar duas caixas de medicamentos na sua direcção. Pegou nelas e pousou-as sobre o capim rasteiro. Depois retirou uma sacola com a sigla C.T.T. impressa nas faces laterais e vasculhou no interior até extrair três envelopes e uma pequena encomenda endereçadas a destinatários no Fingué. Os homens já se tinham abeirado do avião e espreitavam-lhe sobre os ombros; viviam uma semana inteira à espera daquele momento.
"Essa é para mim, doutor?"
Várias mãos ansiosas estenderam-se na direcção do médico, que lhes entregou os sobrescritos e a encomenda.
"Deve ser, não sei. As cartas têm os nomes."
Um dos homens agarrou um envelope e, logo que passou os olhos por ele, pôs-se a dançar.
"Ena, é mesmo para mim!"
José ajudou a irmã Lúcia a apear-se e fez sinal aos homens a quem acabara de entregar o correio.
"Mandem avançar o pessoal."
O pedido gerou esgares de admiração.
"Mas, ó doutor, não vai antes um cafezinho?"
O médico ergueu o braço e bateu com o dedo no relógio.
"Só tenho duas horas", anunciou. "Preciso de estar às três no Zumbo para voltar a Tete às seis. Vamos lá, despachem-se!"
Sentou-se na abertura da porta e ficou a ver a multidão encaminhar-se num tropel na sua direcção. A irmã Lúcia cortou o caminho aos pacientes e, com a autoridade de um sargento, gritou "façam bicha!" e em alguns segundos as pessoas formaram uma longa fila que se estendia para lá da saída do aeródromo.
José olhou para o tamanho da fila e quase desfaleceu; era demasiada gente para apenas duas horas. Percebeu que precisava de arranjar um método mais expedito de lidar com tantos pacientes e, na pressão do momento, teve uma ideia. Sabia quais as doenças mais comuns nas populações que viviam no mato e era só uma questão de proceder a uma triagem eficiente. Pôs-se de pé e juntou as mãos como uma concha à frente da boca, à maneira de um megafone.
"Quem tem sangue no chichi forme bicha!", gritou, apontando a seguir para o sítio para onde queria que se encaminhassem. "Ali à esquerda!"
Alguns aldeãos que percebiam português formaram logo uma segunda fila no local indicado e puseram-se a chamar outros que sabiam padecer do mesmo mal. Seguiu-se um burburinho e um movimento tumultuoso, mas depressa tudo acalmou e culminou em duas filas de gente ao lado do avião.
"Esta é a malta da bilharziose", murmurou o médico para a freira. Indicou uma das caixas de medicamentos que havia pousado no capim. "Ó Lúcia, distribua-lhes Ambilhar e dê-lhes as instruções adequadas, está bem? Eu vou começar com o resto do pessoal. Quando acabarmos fazemos uma nova triagem para a doença do sono. A irmã distribui os medicamentos enquanto eu verifico os da tuberculose. Assim apressamos o serviço e partimos logo a seguir. Parece-lhe bem?"
A espanhola pegou na caixa de Ambilhar e dirigiu-se para a fila que acabara de se formar.
"Muy bien, doutor."
José voltou a sentar-se na abertura traseira do avião e ultimou os preparativos da tarefa que tinha pela frente. Depois levantou o olhar para a fila diante dele e fez sinal à mulher que se encontrava em primeiro lugar, com um bebé ao colo e duas meninas agarradas à capulana.
"Olá!", saudou-a. "Então o que se passa?"
Começara a maratona.
A vida de José Branco mudou radicalmente. O avião alargou-lhe a autonomia e os horizontes, mas também lhe trouxe novas responsabilidades e desafios. Embora acumulasse as funções de director do hospital de Tete, presidente da Cruz Vermelha da cidade e delegado de saúde, dando ainda assistência sanitária a várias instituições e organismos que operavam na capital distrital, as suas atenções passaram a centrar-se no Serviço Médico Aéreo, uma vez que era este serviço que lhe permitia estender a acção a todo o distrito e chegar a populações até aí ignoradas.
Todas as semanas o pequeno Piper Cherokee branco com a cruz vermelha nas asas e na cauda descolava do Aero-Clube de Tete pelas sete da manhã e voava para os mais diversos pontos do distrito, do Zobué ao Mazoi, passando por Fingué, Boroma, Chicoa, Chipera, Magoe, Furancungo, Vila Coutinho, Estima, Zumbo e outros destinos espalhados pela vasta savana da região. Até o Songo, onde se erguera entretanto uma vila para albergar o pessoal que estava a construir a grande barragem de Cabora Bassa, se tornou ponto de passagem obrigatório no itinerário semanal do minúsculo aparelho.
As paragens eram breves, um par de horas ou pouco mais antes de o avião descolar rumo ao destino seguinte onde nova multidão o aguardava. Com a rotina, todavia, José conseguiu desenvolver processos de triagem que lhe permitiram tratar com eficiência um grande número de pessoas.
"Bilharziose para a esquerda!", era uma frase que nele se tornou habitual. "Paludismo para a direita!"
Sabia por experiência que as doenças dominantes na região eram o paludismo, a bilharziose, a doença do sono, a tuberculose, a poliomielite e a varíola, e recorreu a técnicas específicas a cada problema para lidar com essas maleitas mais comuns. Nos primeiros tempos preocupou-se sobretudo com medicar os doentes, distribuindo por exemplo Resoquina a quem tinha paludismo e Ambilhar às vítimas de bilharziose.
No segundo ano, contudo, começou a interrogar-se sobre a eficácia da sua acção.
"Ó Lúcia", disse no final de uma paragem em Vila Coutinho particularmente cansativa. "Assim não vamos lá!..."
"Ay, doutor! Porque diz isso?"
"Eles são sempre muitos! Já viu?"
"Es verdad", assentiu ela. "Mas olhe para o lado positivo: já conseguimos curar muchos pacientes."
"Sim, mas o problema é que logo a seguir eles voltam com as mesmas doenças..." Revirou os olhos. "É exasperante!"
A pista era uma faixa cortada no capim, salpicada por estranhos pontos escuros. Olhando lá para baixo, José Branco apercebeu-se de que se tratava de gado a pastar e que teria de ser ele próprio a resolver o problema.
"Olhe para aquilo", disse à freira, apontando para os animais que lhe bloqueavam a aterragem. "Isto não é um aeródromo, Lúcia. É um vacódromo."
Empurrou a manche e o avião picou sobre a pista. A terra cresceu depressa diante do cockpit e no último instante o médico-aviador endireitou o aparelho e fez uma razia ao descampado antes de voltar a ganhar altitude. Flectiu para a esquerda, de modo a posicionar-se de novo no enfiamento da faixa de verdura, e estudou os efeitos da sua manobra.
"Já está", constatou com um sorriso de satisfação ao ver o gado fugir. "Limpámos a pista!"
A aterragem dessa manhã em Chipera, minutos depois, foi o primeiro acto de um processo que iria culminar no final do dia na ideia que tudo mudou.
Como sucedia habitualmente quando dos seus périplos semanais, logo que estacionou o Piper Cherokee no aeródromo da povoação José estabeleceu o posto médico no próprio avião, fazendo da porta lateral do aparelho o seu gabinete de consulta. Acomodou-se aí e começou a atender os doentes que faziam fila à entrada da pista.
O primeiro paciente era um homem já de idade, desdentado e com o corpo ligeiramente curvado, que se arrastou com uma certa dificuldade até junto do Piper Cherokee.
"Tem diarreia, doutor", disse o idoso, pousando a mão no estômago para reforçar a ideia. "Comi maningue maçanica."
Era um diagnóstico simples e de solução expedita.
"Então durante dois dias não vai tocar em fruta, ouviu?", recomendou o médico, estendendo o braço para uma caixa de medicamentos. "Come arroz e bebe maningue água fervida. A única fruta é banana." Entregou-lhe uma embalagem branca e azul a assinalar Ultralevur. "E toma este remédio."
O homem olhou para o médico e depois para a embalagem e de volta para o médico.
"Só isso?"
"Sim. Amanhã já está bom."
José lançou o olhar ao paciente seguinte, convidando-o a avançar, mas o homem que sofria de diarreia permaneceu plantado no mesmo sítio, no rosto uma expressão ao mesmo tempo decepcionada e desconfiada.
"Não tem mais?"
"Come arroz e banana, bebe maningue água fervida e toma esse medicamento", repetiu José cheio de paciência. "Amanhã já está bom."
"Não leva injecção?"
"Não é preciso", insistiu o médico, a tentar despachá-lo porque o tempo urgia; ainda mal começara e já o primeiro paciente o estava a atrasar. "O seguinte!"
O homem afastou-se com relutância, manifestamente pouco convencido com a receita que lhe fora passada. Acontece que o caso seguinte era o de uma mulher acompanhada de dois filhos com conjuntivite. O médico passou-lhe para as mãos os cremes adequados e mostrou-lhe como os deveria aplicar nas crianças, mas a mulher não lhe pareceu muito satisfeita e protestou num nhungué ruidoso enquanto apontava para uma seringa e indicava os braços das crianças.
"Não é preciso injecção!", garantiu José. "Os cremes chegam."
Desde que havia começado a trabalhar no hospital de Tete que estes episódios eram frequentes, mas nunca fizera caso deles. Dessa vez, contudo, achou de tal modo intrigante tanta insistência nas seringas que mencionou o assunto pouco depois, quando terminou as consultas e o chefe do posto administrativo de Chipera veio ter com ele à pista para se despedir.
"O doutor nunca havia reparado nisso?", riu-se o homem. "Eles adoram injecções! Na Metrópole ninguém sai contente de uma consulta se o médico não lhe passar uma receitazinha com uns medicamentos para aviar, não é verdade? Pois aqui são as injecções. Tratamento que não envolva picas não é tratamento para eles. Adoram injecções! Ui, isso é que é ser tratado!"
As palavras do chefe do posto de Chipera acompanharam José Branco durante o resto do dia. O que o homem dissera encaixava-se na perfeição na sua experiência de médico e director do hospital de Tete. A ideia começou assim a germinar-lhe na mente, seguindo um caminho lento mas seguro. Se eles gostavam tanto de injecções, porque não tirar partido disso?
Na verdade, apercebeu-se com crescente entusiasmo, as peças encaixavam-se de modo inesperado, uma vez que os meios existiam e era seu dever fazer pleno uso deles. Quanto mais considerava o assunto, mais a ideia lhe parecia fazer sentido, até concluir que a única coisa realmente espantosa é que não tivesse pensado em tudo isso havia mais tempo. Como pudera ser tão distraído?
O que José precisava era de um plano estratégico de saúde e foi isso o que desenvolveu logo que no final desse dia chegou a Tete. Sentia-se de tal modo excitado que, em vez de ir para casa, correu directamente para o hospital. Fechou-se no gabinete, contemplou o mapa que mantinha pregado na parede e, de bloco de notas na mão, estimou a população do distrito e calculou a diferença entre as doses que possuía em stock e as necessárias para pôr em prática o plano.
Com as contas feitas, sentou-se à secretária diante de uma máquina de escrever e dactilografou uma carta. Depois assinou-a e meteu-a num envelope, que selou com uma lambidela rápida. Meteu a cabeça pela porta do gabinete e espreitou o corredor.
"Lúcia?!", chamou. "Pode vir aqui, por favor?"
A freira apareceu em poucos segundos.
"Que pasa, doutor?"
"Entrega-me esta carta ao Luís?", pediu, estendendo-lhe o sobrescrito. "Ele que a leve aos Correios. É urgente."
A espanhola pegou no envelope e espreitou a entidade rabiscada no lugar do destinatário. Era a Secretaria Provincial de Saúde e Assistência de Moçambique, sedeada em Lourenço Marques.
"Si, doutor. Vou já hablar com ele."
"O Luís que tenha cuidado", aconselhou o médico. "Isso é maningue importante, ouviu?"
A recomendação foi feita como se o envelope contivesse ouro. Vendo o superior hierárquico rodear o sobrescrito de tantos cuidados, a irmã Lúcia estreitou os olhos e fez um ar entendido, quase cúmplice.
"Muy bien, doutor. Já vi que está a pedir mais dinero para o serviço. Bem que precisamos dele!..."
"Não é dinheiro nenhum, Lúcia", corrigiu o director do hospital, pegando na malinha e preparando-se para ir enfim para casa. "São vacinas. Muitas vacinas."
José Branco mostrava-se plenamente consciente de que sozinho não seria capaz de levar a cabo toda a campanha de vacinação que tinha em mente. O que faria quando chegassem milhares e milhares de vacinas? Passaria o dia num aeródromo perdido no meio do mato a inocular populações inteiras? Sozinho ou apenas com a ajuda da irmã Lúcia? Não era possível.
Passou por isso de imediato à segunda fase do programa que havia delineado. No planeamento da primeira viagem a fazer depois de ter escrito essa carta estabeleceu que iria a menos locais num único dia e gastaria mais tempo em cada um deles.
"Ai, doutor, no entiendo!", estranhou a irmã Lúcia quando estudou o plano de viagem. "Así não teremos modo de visitar todo o sítio..."
"Tenha calma, já vai perceber."
O primeiro poiso do périplo dessa semana foi o Mazoi. Depois de prestar a assistência habitual à população que enchia os acessos ao aeródromo à sua espera, José pegou numa caixa e dirigiu-se aos dois funcionários que operavam o posto administrativo local.
"Então, senhor doutor?", exclamou o chefe, um transmontano de meia-idade que se tinha amancebado com a filha do régulo local. "Já vai andando, não é verdade?"
"Calma, que ainda há uma coisa que quero tratar convosco", disse. "Podemos ir ao posto?"
O pedido suscitou um esgar de surpresa dos dois homens, habituados a ver o médico aterrar, entregar-lhes o correio, tratar de umas centenas de pacientes e partir duas horas depois rumo ao destino seguinte. Era a primeira vez que o viam mostrar interesse em sair do aeródromo e ir ao posto.
"Porquê, senhor doutor? Passa-se alguma coisa?"
"Passa, pois. Vocês por acaso sabem dar vacinas?"
Os dois homens entreolharam-se, como se se interrogassem mutuamente.
"Quer dizer... não."
José ergueu a caixa, sugerindo que o seu conteúdo tinha a solução para o problema.
"Então vou ensinar-vos."
Pôs-se assim a dar formação aos funcionários que operavam os postos administrativos em cada terriola, mostrando-lhes como preparar as vacinas e inoculá-las nas pessoas.
Quando chegaram enfim de Lourenço Marques milhares de doses, a formação estava já completa e encontrava-se tudo pronto para a campanha. O médico não perdeu mais tempo. Meteu as caixas de vacinas no avião e distribuiu-as por todos os postos para onde voou nas duas semanas seguintes.
A campanha começou em força pelo distrito inteiro. O ponto de arranque foi o Furancungo. O médico deixou as caixas no posto local e, após dar as últimas instruções, seguiu de imediato para Vila Coutinho, depois para o Zobué e assim sucessivamente até percorrer numa semana todos os pontos do itinerário do Serviço Médico Aéreo, por toda a parte a distribuir correio e a espalhar caixas com doses de vacinas.
Quando na segunda-feira seguinte voltaram pela primeira vez ao Furancungo, primeira etapa do périplo semanal, José e a irmã Lúcia estranharam ninguém ter comparecido no aeródromo para ser tratado. Isso contrariava tudo o que havia acontecido nas viagens mais recentes.
"Passar-se-á alguma coisa?", admirou-se o médico num tom fingidamente casual, esforçando-se por esconder a preocupação; aquilo não era normal. "Que estranho!..."
A freira encolheu os ombros.
"Pues, não sei!"
A situação deixou José estarrecido. Era verdade que já no passado lhe sucedera ser ignorado pela população, mas isso só tinha ocorrido no princípio, quando havia iniciado no ano anterior aquelas visitas no Piper Tripacer com Teixeira e as populações se mostravam desconfiadas. Desde que essa desconfiança fora ultrapassada, no entanto, cada visita era um dia de festa na terra. Assim sendo, como explicar que a sua chegada fosse tão ostensivamente ignorada?
Meteram a pé pela picada e caminharam até ao posto administrativo. Quando se aproximaram da lomba antes do posto ouviram um clamor que os intrigou. Apressaram o passo e, no momento em que atingiram o alto da lomba, depararam com uma multidão concentrada diante do posto administrativo; era uma enchente como nunca tinha sido vista naquela terra.
"Mas que raio!..."
Abriram caminho entre as pessoas e, no meio de um calor infernal e do fedor a suor, conseguiram penetrar no posto. Os populares faziam fila da porta até duas cadeiras onde vários funcionários administrativos as inoculavam com surpreendente presteza, os movimentos já automatizados. O paciente mostrava o braço, o funcionário limpava-lhe o ombro com algodão e álcool, espetava-lhe a seringa, injectava a vacina, tirava a seringa, colava-lhe o algodão à pele e, sem levantar os olhos e já a preparar outra seringa, chamava:
"O seguinte!"
Desconcertados, os dois recém-chegados saíram do edifício sem assinalar a sua presença e voltaram à lomba da estrada, de onde contemplaram o espectáculo da multidão que se comprimia para entrar no posto administrativo. José estava boquiaberto e pelo rosto da irmã Lúcia serpenteavam grossas lágrimas. Ambos viam e quase não acreditavam.
Apesar da comoção que a sufocava, foi a espanhola a única que conseguiu falar.
"Esta campana es um milagre!"
Os rapazes alinhavam-se no pavilhão em filas sucessivas e o espectáculo não era bonito de se ver. Havia algo de profundamente inestético na imagem de um macho nu e Diogo não conseguia sequer decidir-se sobre o que achava mais feio: se ver um homem despido de frente, com o emaranhado peludo de onde pendia um apêndice mirrado, se observá-lo de costas e ter de suportar as nádegas felpudas e borbulhentas, os quadris quadrados e as pernas desengonçadas. Que contraste com os corpos harmoniosamente ondulados e lácteos da Guidinha tetalhuda ou da Laura da boca marota!
"Diogo Meireles!", chamou a voz do militar.
Imitando o procedimento que observara nos casos anteriores, correu para a frente e plantou-se em sentido diante do homem que o chamara.
"Presente, meu sargento!"
O militar ficou um momento a verificar a lista que tinha nas mãos, mas acabou por levantar o olhar e pousá-lo entre as pernas do mancebo."Isso é pila que se apresente?", perguntou com um semblante sisudo.
Quando aguardava a sua vez, Diogo já o ouvira tecer comentários jocosos a propósito de outros mancebos, pelo que ignorou a pergunta e manteve-se calado.
"Vinte flexões!"
Atirou-se ao chão e em menos de quinze segundos completou as flexões com grande rigor, o corpo devidamente esticado, os braços a subir e descer como molas hidráulicas. Depois levantou-se e pôs-se de novo em sentido, arrancando uma expressão interrogativa ao sargento.
"Cinquenta abdominais!"
Dessa feita deitou-se de costas e, o corpo distendido, ergueu as pernas alto e baixou-as sem tocar no soalho, erguendo-as de novo e baixando-as sempre em ritmo acelerado e com os dois dedos grandes colados um ao outro numa simetria perfeita. Levou menos de dois minutos a completar o exercício e a erguer- se de novo, a respiração inalterada, o corpo hirto.
"Eh, pá!", observou o sargento, impressionado. "Acho que temos aqui o Super-Homem. Siga!"
Fez um gesto a indicar dois médicos de bata branca numa secretária e a atenção regressou à lista que tinha em mãos para identificar o nome seguinte.
"José Paulo Cardoso!"
Diogo foi ter com um dos médicos, que o examinou da cabeça aos pés e lhe auscultou o coração e registou a pressão arterial. Depois tirou-lhe sangue e entregou-lhe um pequeno frasco de plástico para as mãos, com a recomendação de que urinasse nele.
O procedimento foi relativamente simples e completou nessa manhã a inspecção sanitária na junta de recrutamento. Umas semanas depois apareceu-lhe em casa um novo envelope das Forças Armadas, que abriu diante dos pais.
"Então?", quis saber a mãe, dedilhando nervosamente o avental. "O que dizem eles?"
Diogo respirou fundo, consciente de que aquele ofício mudaria a sua vida.
"Deram-me como apto."
O curso de miliciano foi tirado no quartel das Caldas da Rainha. Tudo se alterara de repente na existência de Diogo. Teve de sair de casa e abandonar o liceu, embora o facto de o mesmo estar a acontecer a outros colegas o levasse a encarar essa mudança com uma certa naturalidade, se não mesmo fatalismo.
Mas se houve um choque provocado pelo desenraizamento, o mesmo não se pode dizer das exigências físicas da instrução militar. Para um atleta de alta competição como Diogo, a ginástica e todos os exercícios envolvendo o corpo, penosos para os restantes mancebos, eram embaraçosamente fáceis. De novo o curso apenas lhe deu a formação teórica e noções sobre o Regulamento de Disciplina Militar.
Apesar da incorporação no serviço militar e de todas as mudanças que isso acarretou, o novo recruta manteve-se como jogador do FC Porto e da selecção. Enquanto os jogos se limitaram às competições internas, como os campeonatos regional e nacional ou a Taça de Portugal, foi fácil obter dispensa das autoridades militares.
O problema surgiu no dia em que se apresentou perante o comandante com um pedido diferente.
"O Porto tem uma deslocação ao estrangeiro, meu coronel", anunciou com o corpo muito hirto no gabinete do comandante. "Solicito autorização."
O superior hierárquico arregalou os olhos.
"Ao estrangeiro?"
"Sim, meu coronel."
"Ó diacho!", exclamou o comandante, coçando a cabeça. "Contra quem?"
"O Olimpiakos do Pireu, meu coronel. É a primeira eliminatória da Taça dos Campeões Europeus e a primeira mão está marcada para apenas daqui a quinze dias."
O comandante recostou-se no assento, ponderando as implicações daquele pedido.
"Bem, se fosse na União Soviética ou num desses países comunistas, não tinhas a mínima hipótese", começou por dizer. "Mas sendo na Grécia... enfim, vou pensar nisso."
A hesitação do comandante surpreendeu Diogo. Como atleta de alta competição habituara-se a gozar de um estatuto especial no quartel e jamais uma solicitação de dispensa por razões desportivas lhe havia sido negada. O que tinha aquela de diferente? Uma avalancha de interrogações perpassou-lhe pela mente, mas manteve-se silencioso; sabia que não podia questionar o superior hierárquico, embora ao mesmo tempo não conseguisse entender as dúvidas que ele dava sinais de alimentar.
O comandante apercebeu-se da perplexidade do recruta e ponderou mandá-lo embora sem quaisquer explicações, mas acabou por condescender.
"Estas deslocações ao estrangeiro são sempre um problema", suspirou. "Aqui há uns tempos houve uma situação semelhante devido a um jogo em Paris. A autorização foi concedida e o filho da puta, quando se apanhou em França, desertou. Estás a ver o engulho, não estás?"
A observação quase indignou Diogo.
"Nunca me passaria pela cabeça fugir, meu coronel", exclamou com intensa convicção. "Na minha família a palavra tem força de lei. Se me conceder a autorização, eu vou a Atenas, jogo e volto com a equipa. Isso nem tem discussão!"
O comandante afagou o queixo enquanto avaliava o recruta.
"Voltas, dizes tu?"
"Pode estar seguro, meu coronel."
"Olha que não quero cá chatices, ouviste? Vinte por cento dos mancebos fogem à tropa. Esses cabrões saem do país ou entram no que chamam a «clandestinidade». Tens consciência de que é um risco deixar-te ir, não tens?"
"Deixe-me e não se arrependerá."
A autorização foi dada dois dias depois e Diogo seguiu para Atenas com a equipa. Regressou na semana seguinte e apresentou-se no gabinete do comandante com uma pequena ânfora que comprara numa loja perto do Parthenon, antiguidade decerto feita na hora.
"É para si."
O habitual almoço dominical na casa do director do hospital, na colina sobranceira ao Zambeze, teve nesse dia como convidados o comandante da PSP e a mulher. A vida em Tete era relativamente monótona. Não havia grande coisa para fazer a não ser trabalhar, dormir a sesta para fugir ao calor da tarde e organizar umas patuscadas com os amigos, modo de vida em que o casal Branco se integrou.
A ementa do almoço nesse dia era cabrito assado, mas António Trovão viera da Beira com novidades explosivas. Tinha ido participar num encontro provincial da PSP e os comandantes da polícia no Niassa e em Cabo Delgado haviam aparecido na reunião com notícias sensacionais.
"O Kaúlza tomou posse em Março e já se pôs a inventar", revelou Trovão perante a curiosidade dos seus anfitriões. "Lançou uma operação à americana lá em Cabo Delgado e deu-lhe um nome todo pomposo. Nó Gordio, vejam só. O tipo acredita que vai mesmo desatar o nó górdio da guerra."
O assunto acabou rapidamente por tomar conta da conversa à mesa."Isso é o que eles dizem sempre", observou José num tom céptico. "Ainda no ano passado ouvi o inspector Silva garantir que a guerra estava quase ganha e ela ainda aí anda."
"Iá, mas dá a impressão que agora é mesmo a sério", insistiu o amigo. "Os gajos fizeram uma limpeza geral ao longo de toda a fronteira com a Tanzânia. Disseram-me que o Kaúlza deitou mão aos grandes meios, com operações de search and destroy e outros palavrões que ele aprendeu lá com os camones. Parece que a coisa mete helicópteros, aviões, napalm, desfolhantes, carros blindados, milhares de magalas, vários grupos de comandos, pára-quedistas... eu sei lá!" Riu-se. "O tipo julga que está no Vietname!"
"E essa operação, como está a correr?", quis saber José, que de guerras não percebia grande coisa a não ser os feridos que via chegarem-lhe ao hospital. "Obteve alguns resultados?"
O comandante da PSP fez um trejeito condescendente com a boca.
"Parece que sim", admitiu. "Dizem-me que os turras estão mesmo em debandada para a Tanzânia. Mas não tenho a certeza de que isso signifique o fim da guerra. O Kaúlza mandou queimar aldeias onde estavam os turras e lançou napalm e desfolhantes nas machambas para lhes negar os meios de subsistência. O gajo deve achar que vence a guerra se matar toda a gente, mas não me cheira que um conflito desta natureza se possa ganhar assim."
O diálogo à mesa, como tantas vezes sucedia, derivou para opiniões sobre como estavam as coisas a decorrer. Aproveitando uma pausa na conversa, cujos pormenores sangrentos lhe desagradavam, Mímicas deu um salto à cozinha e reapareceu instantes depois com uma travessa coberta por um doce amarelo-torrado que todos reconheceram.
"Quem quer coisar um pudim Araújo?"
Foi um fecho de almoço em verdadeira apoteose. O pudim Araújo era a sua especialidade mais gabada. Tratava-se de um doce espumoso, feito de claras batidas com açúcar derretido; o sabor a nozes estava igualmente muito presente e compensava a doçura do caramelo. O assalto ao Araújo foi imediato e em dois minutos a travessa ficou vazia, apenas com um fio dourado de caramelo líquido a boiar nas bordas.
"Ai, comi de mais!", queixou-se Mímicas ao encarar o prato sujo que tinha diante dela. "Estou tão arrependida!..."
Depois de observar que já chegava de falar na "porcaria da guerra", José sentou-se ao piano e, com um copo de whisky com soda pousado junto ao teclado, pôs-se a dedilhar um dos seus temas favoritos, a música do filme Limelight, a velha fita que todos em Portugal conheciam como Luzes da Ribalta.
"Tararararaa... dez mil camisas!", entoou ao ritmo da melodia, o que divertiu os Trovão.
Um súbito zumbido entrou pela casa, primeiro distante, depois enervante e persistente. Todos reconheceram o som de um helicóptero, mas como se tratava de um ruído familiar para quem vivia junto ao hospital não fizeram caso e o anfitrião prosseguiu com a sua interpretação do tema musical do filme de Charles Chaplin.
O problema é que, logo que o primeiro zunir se afastou, indício seguro de que o helicóptero levantara voo, uma nova zoada se fez ouvir, indicando um segundo aparelho em aproximação, e a este seguiu-se um terceiro. Isso, sabiam todos, já não era normal. Como os zumbidos pareciam incessantes, os dedos de José imobilizaram-se no teclado, impondo assim um silêncio súbito na sala. O médico trocou um olhar intrigado com os convidados.
"Que raio!..."
A atenção de António Trovão, o comandante da PSP, estava havia algum tempo já fixada naquele som.
"Passa-se qualquer coisa."
Saíram para o jardim e voltaram os olhos para o espaço da colina diante do hospital, a uns duzentos metros de distância. Viram então os Alouettes alinhados no ar, como se estivessem envolvidos numa ponte aérea ou a fazer um exercício de grandes dimensões. Como gafanhotos gigantes, os aparelhos arredondados giravam sobre o Zambeze e, à vez, faziam-se à pequena pista circular que havia sido construída em pleno coração do hospital.
"Parece grave", observou Mimicas, a mão na boca. "Que terá acontecido?"
Dali era impossível obter respostas, mas o médico apenas precisou de alguns segundos para tomar uma decisão.
"Desculpem", disse, voltando-se para os convidados. "Tenho de ir ver o que se passa."
Regressaram para dentro de casa. O comandante Trovão agarrou-se ao telefone para ligar para o quartel e pedir informações e José foi ao quarto buscar a sua malinha de médico. Pôs o estetoscópio ao pescoço como se fosse um colar e, com um derradeiro aceno de despedida dos convidados, meteu-se no automóvel. O movimento de Alouettes não dava sinais de abrandar, era ainda um vaivém contínuo, e nesse instante teve a certeza de que o esperava uma tarde intensa.
A confusão no hospital era indescritível. Havia gritos, gemidos e manchas de sangue espalhadas pelo chão e pelas paredes, como nos talhos. Os feridos eram depositados nos corredores ou encaminhados para a sala de operações. O director inspeccionava os corpos, alguns terrivelmente mutilados. Percebeu pelo tipo de feridas que eram vítimas de explosões.
Os enfermeiros do hospital afadigavam-se em torno dos feridos e José foi ajudá-los a fazer pensos, preparar transfusões e meter tubos de soro. Alguns casos pareceram-lhe requerer amputação; hesitou, porém, antes de proceder ele mesmo à operação. O hospital tinha um cirurgião, mas não o via por ali.
"O Feitor?", perguntou à irmã Lúcia, que tinha a bata salpicada de sangue. "Onde está ele?"
"Não sei, doutor. É domingo, verdad? Entonces o doutor Feitor está de folga."Olhou à sua volta na enfermaria e tentou localizar o cirurgião, mas apenas vislumbrou os enfermeiros e os feridos. Espreitou pela janela e viu o motorista a ajudar o enfermeiro Mendonça a transportar uma maca.
"Luís!", chamou. "Vai procurar o doutor Feitor! Ele que venha o mais depressa possível!"
Observou o motorista a meter-se no carro e calculou que levaria uma boa meia hora até o cirurgião chegar. Olhou para o ferido mais grave e ponderou o que fazer. Apesar de lhe estar a ser aplicada uma transfusão, a condição do homem tornava urgente a operação. Tinha a perna empapada de sangue; teria de ser decepada o mais depressa possível. Avistou um enfermeiro militar que viera num Alouette e fez-lhe sinal com a cabeça.
"Meta-me este ferido na sala de operações", ordenou. "Vou ter de o amputar."
O rosto transpirado do enfermeiro carregava-se de sulcos de fadiga, mas o olhar pareceu acender-se quando deu com o médico.
"Sim, doutor."
O enfermeiro pegou na maca com o ferido e assentou-a num carrinho, que começou a empurrar em direcção à sala de operações. José apressou o passo e caminhou ao lado da maca.
"O que aconteceu?"
"Uma emboscada", disse o enfermeiro. "Veio uma carga crítica para a barragem e a tropa estava a fazer-lhe a escolta desde a Rodésia. Já perto do Songo a rapaziada achou que o perigo tinha passado e facilitou nas medidas de segurança. Puseram-se todos na brincadeira. Correu mal... Os turras estavam emboscados e mandaram uma bazucada que atingiu a carga crítica em cheio." O enfermeiro respirou fundo. "Parecia um terramoto, doutor, havia de ter visto. Quando chegámos ao local estava tudo em fanicos. Morreram pelo menos dez homens e temos uns quarenta feridos. O doutor Coutinho ficou no Songo a tratar os casos mais graves, aqueles que não tinham condições para viajar, e mandou trazer estes aqui para Tete."
Viraram numa porta a meio do corredor e entraram na sala de operações. O ambiente estava climatizado e o ronronar suave do ar condicionado quase tornava a sala agradável. O ferido foi depositado na mesa que ocupava o centro da sala e o médico foi lavar as mãos. A irmã Lúcia apareceu entretanto com os instrumentos e pôs-se a esterilizá-los, enquanto o enfermeiro militar dava uma anestesia ao ferido. José atou a máscara ao rosto, calçou as luvas, pôs a touca e começou a inspeccionar a ferida, tentando decidir por onde proceder ao corte. Pareceu-lhe que o mais seguro seria amputar por cima do joelho.
A irmã Lúcia aproximou-se da mesa e estendeu-lhe a serra. O médico contemplou uma última vez a perna do ferido, como se quisesse certificar-se de que não havia mesmo alternativa, e suspirou com resignação.
"Vamos a isto."
Pegou na serra e fez sinal ao enfermeiro militar de que segurasse a perna com força, de modo a facilitar a amputação, mas quando ele próprio agarrou a coxa do ferido e assentou o instrumento para começar a serrar a carne e o osso sentiu uma mão travar-lhe o braço.
"Você é cirurgião?"
Olhou para trás e, apesar da bata, da touca no cabelo e do pano que ela trazia no rosto, reconheceu a figura da médica.
"Nicole!", exclamou, surpreendido. "O que está aqui a fazer?"
"Estou indo para o Songo e vim dar uma mãozinha para tratar dos feridos", disse ela, desviando o olhar para o paciente sobre a mesa de cirurgia. "Estou vendo que vai operar. Você é cirurgião?"
"Bem... não, mas o nosso cirurgião ainda não chegou e este caso é urgente. Vamos ter de amputar depressa."
Nicole inclinou o tronco para a frente e espreitou a ferida de perto, avaliando o caso.
"Estou vendo", murmurou, como se aprovasse o diagnóstico. "Você costuma fazer amputações?"
"Já fiz algumas, claro. Aqui em África temos de ser polivalentes, não é? Mas confesso que a minha especialidade não é esta..."
Com um movimento suave, Nicole arrancou-lhe a serra das mãos e ocupou-lhe o lugar.
"Mas a minha é", disse no tom de quem nem admite discutir o assunto. "Deixa para lá que eu faço isso, tá? Você vá tratar dos outros feridos."
Como previra ao sair de casa, essa tarde no hospital revelou- se particularmente difícil. O doutor Feitor aparecera entretanto e ajudara Nicole na cirurgia, enquanto José e as enfermeiras se concentravam nos paliativos e nos casos que não requeriam amputação. Tiveram também a ajuda do doutor Arroz, que estava de passagem por Tete a caminho do Zobué.
Ao cair da noite, o director recolheu-se ao gabinete com a irmã Lúcia para prepararem o dia seguinte. As cirurgias tinham terminado e a situação parecia controlada, com os feridos a convalescerem nas enfermarias. José distribuiu as tarefas de modo a ter em conta as necessidades do hospital e também do Serviço Médico Aéreo, que, como era hábito, ia partir em missão na madrugada seguinte, mas a freira não aprovou a planificação.
"Yo não posso ir esta semana", disse a irmã Lúcia, abanando enfaticamente a cabeça. "No hablar! Há mucho trabajo para hacer! O doutor vá sozinho!..."
O director endireitou-se na cadeira
"Que é isso, Lúcia? O doutor Feitor está cá, ainda vão chegar os médicos militares para acompanhar os feridos e além disso temos o resto do pessoal. Dá perfeitamente para fazermos o serviço aéreo."
"Tenemos médicos suficientes", admitiu a freira, "pero não enfermeiros. Yo fico cá. O doutor vá sozinho."
"Sozinho? Sozinho como? Isso não é possível, mulher! Preciso de ajuda para fazer o serviço. Onde já se viu uma única pessoa tratar da saúde de toda a população do distrito?"
"Tiene os enfermeiros que o senor colocou nos postos administrativos."
"Ó Lúcia, sabe muito bem que a preparação deles é demasiado rudimentar."
A freira manteve o olhar fixo no seu superior hierárquico, percebendo o problema e ponderando o que fazer.
"Tiene razão, doutor", concedeu, sentindo-se dividida perante os seus deveres. "Pero aqui também há mucho trabajo... Como vamos hacer isto?"
"Cada um tem de dar o máximo, é a única maneira", disse José. "Lembre-se de que estes feridos ainda têm aqui o doutor Feitor e o resto dos enfermeiros para tratar deles, mas quem trata da população? Ninguém. Eu sozinho não dou conta do recado, como a irmã muito bem sabe. Preciso da ajuda de pelo menos mais uma pessoa qualificada. Se a Lúcia não vier comigo, quem vai?"
A espanhola baixou a cabeça, à beira da derrota.
"É verdad, doutor", reconheceu. "O problema é que o serviço é muy grande e tenemos pouco pessoal. Se ao menos fuese possível mandar vir de Louren..."
Um toque na porta interrompeu-lhe o raciocínio. Os olhares do médico e da freira voltaram-se para a entrada do gabinete e os dois viram uma cabeça loira espreitar.
"Dá licença?"
Era Nicole.
"Entre, entre", convidou o director, hesitando entre os deveres de hospitalidade e o receio de que a rodesiana fizesse ou dissesse algo de inconveniente. "Está tudo bem?"
"Tudo legal", devolveu a médica, as mãos escondidas atrás das costas. "Vim lhe dar uma prenda."
"Uma prenda?", admirou-se José. "Para mim?"
Nicole mostrou as mãos e exibiu-lhe um chapéu de aba larga e voltada para cima, como os usados pelos cowboys nos filmes.
"É um chapéu que usamos nas farmes da Rodésia. Você gosta?"
O director pegou no chapéu e observou-o com atenção. Tinha uma faixa de pele de leopardo em redor. Assentou-o na cabeça e voltou-se para as duas mulheres.
"Fico bem?"
"Muy guapo!", elogiou a irmã Lúcia.
"Parece o Clint Eastwood", disse Nicole. "Promete que você vai usar quando estiver no mato."
"Garantido."
A rodesiana esboçou uma súbita expressão inquieta.
"Estou com um problema", revelou. "Os helicópteros se foram e vou precisar de pegar uma carona para voltar para o Songo."
José tirou o chapéu e coçou a cabeça.
"Uma boleia para o Songo? Oh, diacho!" Considerou a questão e teve uma ideia. "Se calhar é melhor falar com a tropa", disse, pegando no telefone. "Acho que eles vão organizar uma coluna para depois de amanhã..."
A rodesiana inclinou a cabeça e respirou fundo, como se não aprovasse a sugestão.
"Você não vai fazer o seu serviço aéreo essa semana?"
"Iá. Saio amanhã pela manhãzinha."
"O seu avião não passa pelo Songo?"
Com o telefone ainda na mão, José hesitou, começando a perceber onde ela queria chegar.
"Quer dizer... iá. Mas só na quarta-feira. Vou começar amanhã pelo Furancungo, depois sigo para Vila Coutinho e por aí fora."
"Então me leva!"
O médico ainda abriu a boca para rejeitar a sugestão, nem pensar naquela ideia, mas viu um enorme sorriso desenhar-se no rosto da irmã Lúcia e não teve coragem de dizer que não.
"Está a ver, doutor?", perguntou a freira espanhola com uma expressão triunfante. "Dios nos ajuda quando necessitamos. Aqui a doutora vai consigo y yo fico a tratar dos feridos."
A armadilha fechara-se.
Quando o Piper Cherokee levantou voo da pista do Zobué, José temia o pior. O primeiro dia havia decorrido com absoluta normalidade, como de resto seria de esperar considerando que traziam mais um passageiro. O doutor Arroz também aproveitara a boleia do Serviço Médico Aéreo e acompanhara-os ao longo de toda a jornada de segunda-feira, com paragens no Furancungo e em Vila Coutinho, até aterrarem ao anoitecer no Zobué para pernoitar. Arroz estava colocado num posto especialmente criado nesta povoação para combater a tripanossomíaze, pelo que ficou por aí.
Na madrugada seguinte José e Nicole entraram no avião e acharam-se sozinhos pela primeira vez desde a inesquecível noite no Hotel Cardoso.
"Onde vamos hoje?", quis saber a rodesiana.
O médico-aviador tinha o mapa aberto no cockpit e apontou para uma localidade no Oeste do distrito.
"O destino final é o Fingué", indicou. "Mas no caminho vamos parar em Cazula e Bene."
"E quando chegamos ao Songo?"
"Sexta-feira. Normalmente seria amanhã, mas planifiquei a viagem de modo a deixar o Songo como última escala da semana, para que você me possa ajudar em todas as povoações onde aterrarmos. É muita gente para ver e sozinho não consigo dar conta do recado."
Um brilho de aprovação perpassou pelo olhar marinho de Nicole.
"Legal."
O aparelho ganhou altitude e rumou para oeste, em direcção a Cazula. Um imenso azul iluminava o céu, suave e translúcido, interrompido apenas aqui e ali por trapos isolados de nuvens. A terra seca estendia-se lá em baixo como uma ampla manta alaranjada salpicada de minúsculos pontos castanhos; eram os embondeiros que ali de cima se assemelhavam a pequenas bolotas espalhadas pelo chão.
Visto daquela perspectiva o mundo parecia sereno e imperturbável. Não fosse o ronronar monótono do motor e dir-se-ia que a paz abraçava o céu. Como tantas vezes lhe sucedia quando voava, o médico foi assaltado por uma doce e reconfortante sensação de bem-estar. Teve vontade de desligar o motor e deixar o avião planar em sossego, entregando-se àquela vasta placidez benigna como um bebé que se rende ao peito acolhedor da mãe, mas sabia que isso não passava de uma fantasia e fez um esforço para não se deixar embalar por aquela ilusão e concentrar-se nos comandos do aparelho.
Foi Nicole quem quebrou o silêncio.
"Você alguma vez experimentou?"
"O quê?"
Ela lançou-lhe um olhar cheio de segundas intenções.
"Fazer amor no céu."
José sentiu um rubor subir-lhe ao rosto e engoliu em seco.
"Vamos lá, não comece."
Um sorriso maroto formou-se na face da rodesiana. A mão dela deslizou para a perna do piloto, carregada de provocação.
"Estou vendo que a ideia já lhe ocorreu..."
José sacudiu-lhe a mão.
"Quieta!"
Ela esboçou uma expressão contrafeita, como uma menina mimada a quem acabaram de privar de uma boneca.
"Ai! Que ruim! Naquela noite no Cardoso você não me mandou ficar quieta, se lembra?"
"O Cardoso foi há dois anos", retorquiu o médico-aviador com secura. "Desde então nunca mais nos vimos."
"Mas, acredite, eu não esqueci!" Fez um esgar nostálgico e suspirou, como se a simples lembrança do que acontecera fosse uma emoção demasiado forte. "Meu Deus, nunca imaginei que existisse homem com um... uma... enfim, assim tão grande. Minha nossa, o que tenho pensado naquela noite!"
José abanou a cabeça em desaprovação.
"Estivemos dois anos sem nos vermos e agora você chega aqui e quer brincadeira outra vez? Pensa que isto é o quê?"
"Não nos voltámos a ver porque me mandaram regressar a Salisbúria", retorquiu ela em tom justificativo. "Que poderia eu fazer? Mas agora, com as obras de Cabora Bassa a avançar em força, vou ficar colocada no Songo, bem pertinho de você. E aí vamos nos ver mais vezes, né?"
"Vai ficar no Songo? Porquê? O Coutinho não serve?"
"É muita gente para um médico só. O doutor Coutinho é legal, mas os engenheiros que falam inglês precisam do apoio de um médico que domine a língua na perfeição, você entende?"
Vê-la assim ao seu lado, de camisa desabotoada o suficiente para deixar ver o peito sardento e o rego dos seios, e sobretudo a língua molhada na boca entreaberta e o olhar oferecido, foi de mais para José. Parecia que alguém lhe tinha ligado um botão entre as pernas, porque com um clique inesperado o monstro despertou.
"Oiça", tentou argumentar, num esforço desesperado para combater o desejo que lhe atiçava já o corpo, "eu sou um homem casado e tenho de respeitar a minha mulher."
Nicole revirou os olhos azuis, como se dispensasse a lição.
"A vida aqui em Tete é um saco!", exclamou. "Não tem televisão, não tem praia, não tem nada! O que vamos fazer para nos entreter? Crochet?" Voltou a deslizar com a mão para a perna dele. "Porque não tiramos partido do maior entretenimento que a natureza nos deu? Há algum mal nisso? Sua mulher não precisa de saber nada..."
"Mas isso não pode ser assim!"
Protestou, mas dessa vez não retirou a mão que lhe afagava a perna direita, pormenor que não escapou à rodesiana.
"O que pensa você que todo o mundo faz em Tete ou no Songo?", murmurou a loira com infinita doçura. "Eles andam metidos com elas e elas com eles. E só joguinhos, meu bem. Ué, e qual o problema? É uma maneira legal de a gente se entreter..."
"Eu não sei o que os outros fazem", ripostou José, as palavras mais firmes do que o tom em que as pronunciou. "Sei que nós temos de..."
Calou-se porque a mão de Nicole se desviara da perna para o monstro e, exercendo pressão com os dedos, sentia-lhe o volume em crescimento. Com um sorriso oblíquo, a rodesiana intuiu nesse instante que tinha a partida ganha.
"Essa droga não tem piloto automático?", quis saber, indicando o painel do cockpit.
"Tem, claro."
Já totalmente senhora da situação, ela correu-lhe o fecho das calças e, com um movimento esfaimado, puxou-lhe o monstro para fora.
"Liga ele."
Foi a última coisa que a rodesiana disse antes de mergulhar nele e José, pairando naquele firmamento infinitamente azul de sensações inebriantes, perceber que só havia uma coisa a fazer antes de o corpo tomar totalmente conta da sua vontade e deslizar para as profundezas escaldantes daquela mulher.
Ligou o piloto automático.
Vistas do ar, as palhotas pareciam fundir-se com a terra e o capim, e apenas os telhados cónicos de colmo e dois fios de fumo que serpenteavam para o céu, ateados evidentemente por fornos de cozinha, tornavam evidente a José que se escondia ali uma aldeia.
"Cazula."
Lançou um olhar para os mamilos rosados e erectos de Nicole, sugerindo-lhe que se vestisse, e manobrou os comandos de modo a preparar a aterragem. Verificou o sentido do vento e a posição da faixa de capim que funcionava como pista e posicionou o avião, enquadrando-o frontalmente com o rectângulo rasgado na terra. O Piper Cherokee balouçou ao vento como uma folha e perdeu altitude aos solavancos, como se descesse os degraus de uma escada invisível. O médico-aviador carregou num botão e ouviu-se o claque seco do trem de aterragem a abrir.
Uma figura apareceu lá em baixo a correr e posicionou-se no meio do rectângulo do capim, pondo-se a agitar os braços num frenesim, como se fizesse sinais desesperados para o avião.
"Que é isso?", admirou-se a rodesiana enquanto apertava o soutien com as mãos atrás das costas "Quem é esse cara?"
Depois de uma hesitação, José puxou a manche do avião.
"Não querem que aterremos."
O motor do Piper Cherokee rugiu e o aparelho ganhou de novo altitude, abortando a aterragem. Nicole estava intrigada com o que acabara de acontecer e questionou o amante, mas José não respondeu. Recolheu o trem de aterragem e manobrou o aparelho de modo a completar uma curva completa, posicionando-se de novo contra o vento e enquadrado com o rectângulo. Voltou a perder altitude, mas desta feita não desceu o trem de aterragem e passou em voo rasante sobre a pista de maneira a observar o que se passava lá em baixo.
Viu alguns homens a escavarem a pista e apercebeu-se de um deles a extrair um disco metálico da terra.
"Minas!", exclamou. "A pista está minada!"
A informação atingiu Nicole com a força de uma bofetada.
" What?", admirou-se, colando os olhos incrédulos ao vidro do avião para tentar analisar melhor o que se passava lá em baixo, mas a pista já ficara para trás e tudo o que via nesse momento eram embondeiros. "Minas? Tem minas na pista?"
"Às vezes acontece", assentiu o médico-aviador com um encolher indiferente de ombros. "Algumas pistas de aterragem aparecem minadas, sobretudo nas zonas por onde andam os turras. É a guerra."
Ela pôs a mão sobre a boca e virou a cara para o amante, os olhos azuis arregalados de terror.
"My God! E agora? Vamos embora, né?"
José abanou levemente a cabeça.
"Esperamos."
"Esperamos? Esperamos o quê?"
"Esperamos."
A rodesiana emudeceu, sem entender o procedimento mas presumindo que o médico-aviador sabia o que fazia. O Piper Cherokee voltou a ganhar altitude e pôs-se a completar círculos sobre Cazula, como uma ave de rapina gigantesca à espera do momento para cair sobre a presa. O piloto manteve a atenção colada às figuras minúsculas que formigavam na pista, atento ao seu comportamento.
Ao fim de uns dez minutos viu as figurinhas afastarem-se do rectângulo e uma delas fazer com os braços novos sinais para o céu. Nesse instante posicionou mais uma vez o aparelho contra o vento e, no enfiamento do rectângulo de terra, começou a perder altitude e voltou a baixar o trem de aterragem.
"Que está fazendo?", inquietou-se Nicole. "Vai aterrizar?"
"Claro."
"Você está biruta?", alarmou-se, elevando a voz. "Essa pista está minada. Ninguém pode aterrizar nessas condições! Não tem como! Vamos embora!"
Ignorando os protestos da rodesiana, José manteve a direcção e os procedimentos e o avião continuou a descer. Nicole começou a gritar, desesperada, e só se calou quando, instantes mais tarde, o aparelho estremeceu com violência perante o impacto duro das rodas na terra e ela foi confrontada com a realidade.
Tinham aterrado.
A consulta em Cazula decorreu bem, apesar do evidente nervosismo da população e dos homens que administravam o posto. Tinha sido assinalada a presença da guerrilha na zona e dois dias antes um grupo de comandos fora largado ali perto para dar caça ao inimigo. Nessa noite havia sido escutado tiroteio e algumas explosões à distância.
"Tivemos de minar a pista", explicou o chefe do posto, limpando com as costas da mão a transpiração que lhe escorria pela testa sob o sol ardente da manhã. "Foi para impedir que os turras entrassem por este lado durante a noite." Respirou fundo e desviou o olhar ansioso para os embondeiros que se alinhavam no horizonte para lá da pista, como sentinelas silenciosas. "Não ganho para isto, doutor. As coisas estão a ficar maningue más. Qualquer dia pego na minha preta e pisgamo-nos para a Beira."
Considerando que a pista estivera minada e os receios que vislumbrava no rosto das pessoas, José achou que poderia haver mais gente a necessitar de cuidados médicos e que não se tinha atrevido a aproximar do avião. Já em ocasiões anteriores havia constatado que a presença do perigo tornava as populações mais tímidas, pelo que fez sinal a Nicole de que o seguisse.
"Ande", disse, pondo o chapéu rodesiano. "Vamos dar uma volta por aí."
"Para quê?", espantou-se ela, relutante em abandonar o avião. "Não temos de continuar a viagem?"
"Temos, pois. Mas primeiro vamos certificar-nos de que não há mais ninguém a precisar de ajuda."
Abandonaram de jipe o pequeno aeródromo improvisado na savana e foram até à povoação. José andou de palhota em palhota e localizou de facto alguns velhos e mulheres que requeriam assistência e não se tinham atrevido a ir até à pista onde se encontrava o avião.
Quando ia sair de uma das derradeiras cubatas, aprestando-se a regressar ao aeródromo para retomar viagem, o médico apercebeu- se de um vulto que apareceu de repente a cortar-lhe o caminho.
"Doutor Branco", interpelou-o o homem. "Pode vir connosco?"
O indivíduo era barbudo, tinha gotas de suor a deslizar-lhe com abundância pelo rosto negro e vestia uma farda caqui que a transpiração colava ao corpo no peito e por baixo dos braços. O que mais se destacava nele, porém, era o objecto que trazia na mão, uma mistura de um engenho metálico com um apoio rudimentar feito de madeira.
Uma Kalashnikov.
O grupo imobilizou-se no lugar onde se encontrava, paralisado de medo. José olhou para os funcionários do posto administrativo em busca de informação, mas estes pareciam tão surpreendidos como ele. Nicole, que já tinha percebido o que se passava, encolheu-se atrás dos funcionários, como se tentasse fundir-se com a terra e desaparecer.
O médico virou-se para o homem armado.
"O que deseja?"
"Precisamos da sua ajuda", disse o desconhecido, fazendo sinal com a cabeça para um trilho aberto na cortina de capim, a indicar assim a direcção que deviam tomar. "Faça o favor de me acompanhar."
José pegou na mala e, sem hesitar, começou a andar na direcção apontada pelo homem.
"Doutor", chamou o chefe do posto administrativo. "Não vá!"
Sem parar, o médico virou a cabeça para trás e depois pousou os olhos na Kalashnikov que balouçava na mão do guerrilheiro; a arma não estava numa posição ameaçadora, mas nem isso parecia necessário porque a sua simples presença era ameaça suficiente.
"Não me parece que tenha alternativas pois não?"
O trilho aberto no capim prolongou-se talvez uns dois quilómetros. Logo à saída de Cazula um punhado de homens armados e também vestidos de caqui, embora algo esfarrapados, juntou-se ao médico e ao guerrilheiro barbudo. O grupo percorreu o trilho em fila indiana e em silêncio, o barbudo à frente a indicar o caminho, José logo a seguir, os restantes atrás.
O médico sentia-se nervoso e o coração batia-lhe a um ritmo acelerado, mas tentava ocultar o medo que lhe transformava as pernas em gelatina. É verdade que não era a primeira vez que lidava com guerrilheiros; acontecia-lhe com frequência encontrar feridos em aldeias que, embora não o confessassem, eram evidentemente elementos do inimigo. Tratara-os a todos, mas aquela que era a primeira vez que o raptavam e interrogava-se sobre o destino que lhe iriam dar. Decerto não o levaram para o matar, tentou convencer-se, meio esperançado, meio ansioso. Se o quisessem fazer não lhe falariam naquele tom cortês; além do mais, já o teriam abatido. Mas se não planeavam matá-lo que lhe queriam eles? A caminhada terminou numa clareira rodeada de palhotas. O guerrilheiro barbudo conduziu o médico para uma delas e fez-lhe sinal de que entrasse. José tirou o chapéu rodesiano da cabeça, curvou-se e cruzou a entrada escura. A cubata estava fresca e um forte odor a suor e urina impregnava o ar. Apercebeu-se de um vulto deitado numa esteira, mas levou alguns instantes a habituar-se à escuridão e a destrinçar as formas com clareza.
Era um ferido. O olhar do médico foi atraído para a coxa do homem, envolvida em ligaduras ensanguentadas. Sabia que teria de ver isso com cuidado. Desviou a atenção para a face do ferido. Tinha os olhos fechados e a testa banhada de gotículas de transpiração; a respiração era irregular e o homem parecia mergulhado num sono agitado. José pousou-lhe a mão na testa e sentiu-lhe a temperatura; estava quente, mas não a ferver.
"Então, doutor?"
O médico olhou para trás e viu o guerrilheiro barbudo inclinado sobre o seu ombro a espreitar o ferido.
"Tem febre, mas não me parece maningue alta", respondeu. "Vou ter de lhe ver a perna. O que aconteceu?"
O barbudo fez uma careta.
"Foram os comandos. Atacaram de surpresa e mataram-nos dois camaradas. Quatro ficaram feridos. Três já voltaram à Zâmbia, mas aqui o Ernesto, coitado, como foi atingido na perna, não conseguia andar. Tentámos tratá-lo, mas desconseguimos." Lançou uma espreitadela à porta da palhota, como se receasse a entrada de alguém. "Temos de ir embora, é maningue perigoso ficar aqui, mas não sabíamos o que fazer ao Ernesto. Aí vimos de repentemente o seu avião e pensámos: o doutor Branco já tratou guerrilheiros da Frelimo. Ele vai ajudar o pobre do Ernesto. E fomos buscá-lo." Endireitou o corpo, como se a missão estivesse enfim cumprida. "Agora vamos embora."
O médico olhou para as ligaduras ensanguentadas na perna do ferido e voltou-se de novo para o guerrilheiro barbudo.
"Vão-se embora, como? Que quer dizer com isso?"
"Não podemos ficar aqui, doutor." Indicou a luz que jorrava pela entrada da cubata. "O guerrilheiro tem de estar sempre em movimento. Os comandos podem voltar, ainda por cima depois de termos ido lá buscar o doutor. Agora que o senhor aqui está, podemos partir."
"E quem fica com o ferido?"
"Fica o doutor."
José olhou de novo para o homem estendido na esteira e abanou a cabeça.
"Não, não pode ser assim", disse, enfático. "Ajudem-me a levá-lo até ao aeródromo. Temos de o meter no avião."
O guerrilheiro pareceu estupefacto com a sugestão.
"O avião, doutor?"
O médico indicou uma espuma amarelada na orla do sangue que sujava as ligaduras.
"Está a ver isto?", perguntou. "É pus. A ferida está infectada. Este homem tem de ser imediatamente transportado para o hospital. Não sei se vamos a tempo de lhe salvar a perna, mas quero pelo menos tentar." Fez um gesto a indicar a cubata. "Aqui é que ele não pode ficar."
"Mas nós não podemos ir até ao aeródromo, doutor. Isso vai dar maningue chatice."
José ponderou a observação.
"Então levem-no ao menos até à aldeia", sugeriu. "Depois eu trato do resto."
O guerrilheiro foi chamar os seus homens e o grupo improvisou uma maca, onde instalou o ferido. Minutos depois médico e guerrilheiros retomaram a picada de regresso a Cazula, com um batedor à frente. O sol ardia a pique e José ordenou que um dos homens fosse buscar folhas de palmeira e fizesse o caminho ao lado da maca, usando as folhas como guarda-sol para proteger o ferido.
Era uma estranha fila, com homens de caqui a transportar a maca e uma figura de branco a acompanhar o grupo, tão diferendado como uma pomba rodeada por um bando de corvos. Daquele bando emergiu o guerrilheiro barbudo, que apressou o passo para se pôr ao lado do médico.
"O doutor também trata os comandos?", quis saber o guerrilheiro.
"Às vezes", retorquiu José. "Trato de toda a gente que precisa de tratamento."
"Mas os comandos são animais", insistiu o guerrilheiro. "E os piores são os pretos. Três quartos dos comandos portugueses são homens negros. Essa gente é maningue má. Não presta." Inclinou a cabeça. "Estou a pedir não trata eles."
"Não trato de quem? Dos comandos negros?"
"Sim. Estou a pedir não trata eles."
O médico ajeitou o chapéu, inclinando a aba para melhor se proteger do sol. Sobre a linha do capim, onde o ar ondulava com o calor, já se avistavam os primeiros telhados de colmo das palhotas de Cazula, indício seguro de que a pequena aventura estava perto do fim.
"Você tem de perceber uma coisa", disse José com uma voz suave. "Eu sou um médico e tenho deveres. Traga-me aqui o assassino da minha mãe e eu cuidarei dele."
Aconteciam por vezes estes imprevistos que obrigavam a alterar a planificação das viagens semanais do Serviço Médico Aéreo. José Branco encontrava num local alguém a precisar de transferência imediata para um hospital e mudava o roteiro de voo. Em vez de seguir para o destino inicialmente previsto, voava até Tete para internar o paciente no hospital e só então retomava a viagem em direcção ao destino que ficara em suspenso.
Foi o que sucedeu dessa vez. Os guerrilheiros largaram o médico e a maca com o ferido na orla de Cazula. Já em liberdade, José foi chamar o pessoal do posto administrativo e pediu ajuda para transportar o guerrilheiro para o Piper Cherokee. Uma vez no avião, removeu duas cadeiras, de modo a abrir espaço na traseira do aparelho, e encaixou a maca com o ferido.
"Quem é esse cara?", quis saber Nicole quando se acomodaram no cockpit, manifestamente nervosa com a presença daquele passageiro atrás dela. "é turra?"
O médico-aviador verificava o painel de bordo, mas não conseguiu conter uma gargalhada.
"Não te metas com ele", recomendou. "Olha que vai já desatar aos tiros."
A rodesiana cravou os olhos receosos no homem deitado na maca, observando-o com um fascínio atemorizado.
"My God! É terrorista!"
Imerso no painel de bordo, José terminou o check e iniciou os procedimentos para ligar o motor.
"Não", disse. "é um paciente."
De Cazula deveriam seguir para Bene e terminar o dia no Fingué, mas a presença do ferido, e sobretudo o estado em que ele se encontrava, obrigou o médico-aviador a alterar o plano de voo. Logo que descolou, e em vez de prosseguir para noroeste, o avião completou uma larga curva no espaço vazio e rumou para sul, a caminho da capital distrital.
Apanharam pouco depois uma vasta faixa de água a cortar a savana; era o caudal majestoso do Zambeze que serpenteava na sua longa viagem do coração de África até às águas quentes e translúcidas do Índico. O Piper Cherokee baixou de altitude e José, preocupado em manter distraída a enervada rodesiana, mostrou-lhe as manadas de elefantes que brincavam nas margens do rio, ao pé de grupos de hipopótamos e de alguns antílopes; viam-se mesmo duas girafas e várias zebras.
"Estás a ver aquilo ali?", perguntou José, apontando para uns troncos que boiavam na água. "São jacarés."
O Zambeze guiou-os até Tete, onde aterraram meia hora depois. O médico-aviador ligou do Aero-Clube para o hospital e pediu à irmã Lúcia que mandasse um jipe buscar o ferido, dando instruções de que ele fosse imediatamente visto pelo doutor Feitor.
Aguardaram junto ao paciente até a viatura chegar. Depois de o entregarem, José e Nicole meteram-se de novo no aparelho e retomaram viagem, sobrevoando mais uma vez o Zambeze por algum tempo, só que dessa vez em sentido contrário, e dirigindo- se enfim para Bene.A semana havia sido dura, como aliás sempre sucedia quando o trabalho do Serviço Médico Aéreo apertava, e José Branco ansiava por regressar a casa. Acossado pelos remorsos desencadeados com o retomar da ligação com Nicole, logo que no final da tarde de sexta-feira aterrou no Aero-Clube sentiu uma vontade quase incontrolável de correr para os braços da mulher. Sabia, contudo, que não o podia fazer imediatamente; tinha primeiro de ir ao hospital tratar da papelada que se acumulara na sua ausência.
Enquanto guiava pelas ruas poeirentas de Tete em direcção ao centro, o sentimento de culpa em relação a Mimicas adensou-se. A relação que durante esses últimos dias desenvolvera com a rodesiana tinha um cariz fortemente sexual, mas deixara-o vazio e com saudades da mulher. Como pudera traí-la daquela maneira? Sempre encarara o que havia acontecido dois anos antes no Hotel Cardoso como um acidente de percurso, um tropeção que o tempo tornara uma vaga lembrança, algo tão distante que quase não passava já de um sonho.
Mas desta vez tinha sido diferente. Traíra e voltara a trair a mulher. Fizera-o conscientemente, durante vários dias seguidos e mesmo ali no distrito de Tete, não na longínqua Lourenço Marques. E o pior, o que realmente o perturbava, é que não se sentia com forças para cortar com Nicole. Era como se a mente lhe desse uma ordem e o corpo se recusasse a cumpri-la.
Porque o fazia? A novidade de experimentar uma estrangeira constituía sem dúvida parte da resposta. Mas havia mais, tinha de haver mais. Alguma coisa faltava na sua relação com a mulher e ele suspeitava que eram os filhos. Havia anos que mimicas tentava engravidar, mas nada sucedera ainda. Haveria algum problema com ela? Ou com ele? A verdade é que não tinha respostas para a situação.
Estacionou diante do hospital e, depois de lançar um olhar melancólico na direcção de casa, plantada orgulhosamente na berma da colina como um castelo sobranceiro à cidade, galgou as escadas e entrou no edifício.
Cumprimentou o porteiro e cruzou-se com a irmã Lúcia no corredor.
"Foi buena a viagem?", quis ela saber, mais por cortesia do que por curiosidade genuína.
"Normal", devolveu o médico com um gesto de indiferença. "Como vão as coisas por aqui?"
"O inspector Aniceto Silva telefonou a dicer que o doutor se deveria apresentar na PIDE logo que chegasse."
José estacou a meio caminho, intrigado com o recado.
"Está a falar a sério?"
"Sí, claro. Ele disse: imediatamente."
"Explicou porquê?"
A freira espanhola revirou os olhos, como se aquilo fosse um jogo e ela estivesse cansada de o jogar.
"No", suspirou. "Pero ele levou o guerrillero."
"Qual guerrilheiro? O que eu trouxe de Cazula?"
"Esse mismo. O doutor Feitor tratou-lhe da perna, não foi preciso amputar. Pero logo que melhorou, a PIDE veio buscá-lo."
A informação deixou o director do hospital chocado.
"Ah!", exclamou. "E como diabo soube a PIDE que o tipo estava aqui internado?"
Lúcia encolheu os ombros, num gesto de absoluta ignorância.
"No sé."
Não teve de esperar muito para ser recebido pelo inspector Aniceto Silva nas instalações da polícia de segurança do estado em Tete. Tratando-se do médico que dava assistência aos funcionários dessa polícia, José era bem conhecido por ali e foi acolhido com um copo fresco de capilé e encaminhado para o gabinete do chefe.
"Mandei que o chamassem porque temos aqui uma pequena chatice", disse o inspector em jeito de preâmbulo.
"O que foi?", quis saber o médico. "Não me diga que está preocupado com o novo treinador do Benfica..."
Era um truque simples, mas funcionava. Sempre que previa tensão com Aniceto Silva, puxava o clube à baila e a conversa amaciava um pouco.
"Isso é que não, doutor!", exclamou o inspector, sem conter um sorriso. "Tenho confiança neste Hagan que fomos buscar a Inglaterra. É um bife teso que nem um carapau. Com esse gajo ainda vamos voltar a conquistar a Europa, vai ver."
"Olhe que o Ajax anda forte. Ganhou a Taça dos Campeões e tem aquele Cruijf, dizem que é uma máquina a fintar!..."
"Ora essa! E nós temos o Eusébio! Esse é uma máquina a bujardar!"
"Pois, mas ele não dura para sempre..."
Aniceto Silva pareceu ficar pensativo, como se reflectisse no problema do envelhecimento do grande craque do Benfica. Indicou ao visitante que se sentasse no sofá e depois ele próprio acomodou-se no seu lugar habitual.
"Olhe, doutor, o que eu espero que não dure para sempre é o raio desta guerra", desabafou, mudando o ângulo da conversa. "E foi justamente por causa dela que o mandei chamar."
"Então? Que se passa?"
"Passa-se que me chegou aos ouvidos que o doutor teve um encontro com os turras e trouxe um deles para Tete. Não pense que não sei que o senhor já antes tratou alguma dessa rapaziada com quem se cruza por vezes lá no mato. Por mim, tudo maningue naice. Agora o que eu não estava à espera é que o doutor transportasse um turra na sua geringonça aqui para Tete e ainda por cima o internasse numa enfermaria do nosso hospital, numa cama onde a porra do turra tinha como vizinhos os nossos soldados! Um e outros lado a lado! Isso, doutor, é o cúmulo! Já só falta o senhor levar o turra para Lourenço Marques e...e pô-lo numa suite do Polana, caraças! Onde é que já se viu isto?"
O tom em que as palavras foram pronunciadas foi em crescendo, com o inspector a ruborescer à medida que ia falando e a terminar quase aos berros, empolgado pela indignação que dele se ia apossando, cada frase a empolar a seguinte. Concluiu quase sem fôlego, como um tribuno eloquente mas já exangue, e quase esperou aplausos quando se calou e ficou a arfar. Fez-se um silêncio súbito e ambos permaneceram dois longos segundos a fitar-se.
"Já terminou?"
A pergunta do médico foi formulada numa voz tranquila, sem ponta de ironia, o registo quase neutro.
"Iá", assentiu Aniceto Silva, um tudo-nada ofegante. "Estou à espera de uma explicação sua."
"A explicação é a mesma que lhe tenho dado desde que nos conhecemos", disse José. "Eu sou médico e tenho um dever de neutralidade. Não lido com turras nem com tropa, não lido com pretos nem com brancos. Lido com pacientes. Se uma pessoa precisa de ajuda, cá estou eu. Não quero saber se é branco ou preto, não quero saber se..."
"Mas, ó doutor", interrompeu-o o inspector, num tom bem mais sereno do que aquele que usara no final da sua empolgada intervenção. "O senhor usou meios do estado para transportar um turra para Tete e meteu-o numa enfermaria ao lado dos nossos homens, se calhar alguns deles feridos por esse mesmo turra. Acha isso normal?"
"Eu não transportei um turra", argumentou o médico. "Eu transportei um ferido que precisava de assistência imediata. Não podia deixá-lo a morrer no meio do mato."
"Ele não morreria se não tivesse pegado em armas contra nós!..."
"Desculpe, inspector, mas isso não me diz respeito. Tudo o que sei é que tinha um ferido nas mãos e dispunha dos meios necessários para o salvar. Foi o que fiz, conforme é meu dever. E quanto a tê-lo posto na enfermaria, fique a saber que não é a primeira vez que uma coisa dessas acontece."
"O quê?"
"É como lhe estou a dizer", insistiu José, quase satisfeito por dar ao chefe distrital da polícia de segurança do estado uma novidade e provar-lhe assim que ele afinal não sabia tudo sobre todos. "Quantas vezes não apanhamos no mato homens feridos ou doentes? Acha que lhes pergunto se são turras? Não sei quem são, eles não andam com nenhum cartão a dizer 'turra', nem isso me interessa. Se precisam de ajuda, eu dou-lha. Estamos fartos de internar no hospital gente assim, o que pensa o senhor? E todos eles vão para a enfermaria dos homens e são instalados nas camas vagas, independentemente de quem esteja ao lado, seja ou não soldado. E, para que conste, nunca ocorreu nenhum incidente entre eles. No hospital não há tropa nem turras nem inimigos. Há gente."
O inspector Aniceto Silva respirou fundo, avaliando o problema. Sentia-se tentado a resolver a questão à bruta, sempre seria mais simples e expedito, mas sabia que não podia fazê-lo. Havia falta de médicos no distrito, pelo que tocar num deles iria gerar dificuldades. E logo aquele médico. Além de director do hospital, presidente da Cruz Vermelha de Tete e delegado de saúde, José Branco era o director do Serviço Médico Aéreo, levando a cabo uma missão que Lourenço Marques considerava de importância estratégica. Não podia atacar frontalmente um homem daqueles por causa de uma questão que, embora sem dúvida relevante em matéria de princípio, era na verdade de menor importância. O melhor mesmo, decidiu, seria explicar-lhe as coisas e tentar injectar algum bom senso naquela cabeça de casmurro.
Recostou-se na poltrona e respirou fundo, avaliando o que poderia ou não revelar.
"Ó doutor, compreenda uma coisa", disse devagar, como se pesasse as palavras. "As coisas mudaram muito desde que a subversão começou. É natural, estamos em 1970 e já passaram seis anos desde o início desta chatice, não é verdade? Do nosso lado morreu Salazar e o presidente do Conselho é o professor Marcello Caetano. Do lado deles morreu o Mondlane e quem manda agora é um gajo chamado Machel."
"Ó inspector, tudo isso já eu sei", atalhou o médico. "Onde quer o senhor chegar?"
"Estou a tentar explicar-lhe que, como é inevitável, chefes novos trouxeram ideias novas. Até os nomes mudaram, caraças!" Bateu no peito. "Olhe para nós: antigamente éramos a PIDE, agora resolveram chamar-nos DGS. Está a ver?"
José não conteve um sorriso.
"Desculpe lá, inspector, mas DGS parece nome de um modelo de automóvel." Fez um gesto no ar, como se imaginasse uma placa invisível. "Renault DGS!" Abanou a cabeça. "Acho que toda a gente vai continuar a chamar-vos PIDE..."
"Que era o que me apetecia também fazer, mas não posso", desabafou Aniceto Silva. "Decidiram chamar-nos Direcção-Geral de Segurança e temos é que respeitar. Manda quem pode, obedece quem deve, já dizia Salazar. Mas nada disso interessa. O que importa é que, se as mudanças começam pelos nomes, imagine como não será com tácticas e estratégias e tudo o mais. Como calculará, estas coisas congeminadas em gabinetes confortáveis estão a ter efeitos práticos no terreno." Bateu com o indicador na mesinha diante da poltrona, como se ela fosse "o terreno". "O nosso novo presidente do Conselho mandou para cá o general Kaúlza de Arriaga, que tem umas ideias um bocado americanadas. Por causa delas, a guerra aqui em Moçambique está a entrar numa nova fase e..."
"Está a falar daquela grande operação que o Kaúlza lançou lá em Cabo Delgado?"
O inspector da DGS tentou dissimular a surpresa, mas um pestanejar de olhos irrefreável traiu-o.
"Ai o doutor já sabia? Quem lhe contou?"
Na face de José desenhou-se um sorriso reservado, como de um jogador de póquer a esconder as cartas.
"Digamos que tenho as minhas fontes..."
"E o que lhe disseram as suas fontes?"
"Que se tratou de uma operação à americana, envolvendo grandes meios, e que resultou num sucesso." O médico soergueu o sobrolho, como se buscasse cumplicidade. "Confirma, não é verdade?"
Aniceto Silva esboçou um esgar, parecia até que tinha acabado de descobrir uma coisa desagradável na sua poltrona, quem sabe se um alfinete apontado para cima.
"Depende do que se entende por sucesso", observou com secura. "A operação foi lançada para expulsar os turras de Cabo Delgado e do Niassa. Nesse particular, acho que sim, pode dizer-se que foi um sucesso." Afinou a voz. "O problema é que este sucesso teve um efeito imprevisto e que, receio bem, nos esteja a atingir em cheio." Fez um gesto a indicar o gabinete em redor. "Quando eu digo 'nos esteja a atingir' estou a referir-me a nós, aqui em Tete."
"A nós?", admirou-se José. "Que quer dizer com isso?"
"Quero dizer que os turras se estão a transferir de armas e bagagens para o nosso distrito, doutor." Arregalou os olhos, de modo a enfatizar a ideia. "De armas e bagagens."
"Está a falar a sério?"
O homem da DGS retirou um maço de LM do bolso da camisa e extraiu um cigarro, que acendeu com o isqueiro.
"Infelizmente, sim", confirmou após largar a primeira baforada. "Há dois anos que os turras elegeram Cabora Bassa como o seu alvo prioritário, como sabe, mas isso na altura não passou de mera conversa. Os tipos continuavam concentrados lá em Cabo Delgado e no Niassa, junto à Tanzânia, e não conseguiam descer porque, explorando as rivalidades étnicas com os macondes, pusemos os macuas do nosso lado. Depois veio esta Operação Nó Gordio, que os obrigou a recuar, e neste momento está já a ser aplicada a Operação Fronteira, que se destina a interditar a passagem de turras provenientes da Tanzânia. Isto deixou-os perante um problema, como deve calcular. Que fazer? Deveriam tentar entrar de novo em força num território que nós tornámos inabitável? Ou deveriam permanecer na Tanzânia, aceitando assim implicitamente a derrota militar? Encostados à parede, os tipos optaram por uma terceira solução. Mudaram o teatro de operações e vieram aqui para Tete. Quem é que se lixa?" Encostou o polegar ao peito, como se fosse ele a vítima. "Somos nós! Se até agora a coisa neste distrito estava relativamente calma e os turras se limitavam a acções de propaganda junto da população e a um ou outro ataque ocasional, agora passaram mesmo à ofensiva." Nova baforada. "O doutor não tem reparado no aumento de incidentes?"
José balançou afirmativamente a cabeça.
"De facto", confirmou. "Aliás, quando aterrei em Cazula a pista estava minada e o homem que trouxe para Tete era justamente um ferido de combate. Coisas destas estão agora a acontecer-me com frequência crescente."
Aniceto Silva aspirou o cigarro e ficou a contemplar a névoa acinzentada que revoluteava para cima, numa estranha dança em espiral lenta.
"O problema", murmurou pensativamente, "é que eles nos surpreenderam de calças na mão."
"Que quer dizer com isso?"
"Apanharam-nos desprevenidos. Há seis anos, quando os gajos atacaram em Cabo Delgado, nós já tínhamos tomado as nossas precauções. Mas desta vez não. Tete está desguarnecida."
"O Kaúlza não vai enviar tropas para cá?"
"Claro que sim", assentiu o inspector. "Mas quando eu falo em precauções não estou a falar em termos puramente militares. Era preciso termos aldeamentos já preparados para meter lá a população e assim dificultar a infiltração subversiva. Era preciso trabalhar os grupos étnicos para explorar as divergências entre eles e minar assim o apoio dos indígenas aos turras. Ficámos a dormir e nada disso foi feito. Agora receio que já seja tarde."
"Mas o engenheiro Pontes disse-me há uns tempos que a Missão de Fomento anda a fazer esses aldeamentos e que..."
"GPZ."
"Como?"
"Também a Missão de Fomento mudou de nome, doutor. Chama-se agora Gabinete de Planeamento do Zambeze, ou GPZ."
O médico revirou os olhos, sem perceber porque havia sido interrompido por causa de uma minudência daquelas. Sabia muito bem que o organismo se chamava GPZ, mas habituara-se ao nome antigo e esses hábitos tendem a perdurar.
"O que seja. O facto é que eles já estão a construir os aldeamentos e a meter gente lá dentro." Baixou a voz. "Parece até que, em muitos casos, contra a vontade das pessoas."
O inspector espreitou o relógio e esmagou o cigarro na mesinha diante dele.
"Oiça, doutor, estive a contar-lhe isto para que o senhor perceba que as coisas vão mudar aqui em Tete e que é preciso muito bom senso", disse em jeito de quem quer apressar a conversa. "Tudo o que lhe peço é bom senso. Não estou a pedir muito, pois não? Ajudar um turra, como o senhor fez, é ajudar o inimigo. Não sei se isso será a coisa mais inteligente a fazer nestas circunstâncias."
Aniceto Silva pôs-se de pé e José também se ergueu.
"O senhor tem os seus deveres e eu tenho os meus", argumentou o médico. "Se um ser humano precisa de auxílio, tenho obrigação de o dar. Se o senhor não compreender isso... paciência."
O inspector puxou-o suavemente pelo braço em direcção à porta.
"Eu compreendo-o se o doutor me compreender." Esboçou um sorriso enigmático. "Se é que me compreende."
O homem da DGS abriu a porta e deixou o director do hospital passar. Já no corredor, José hesitou, como se tivesse sido assaltado por uma ideia, e voltou-se para trás.
" Inspector, queria pedir-lhe um favor."
"Diga."
Nova hesitação. A ideia que tinha na cabeça era atrevida e precisava de ganhar balanço para a formular.
"Posso ver o turra que eu trouxe de Cazula?"
O homem estava deitado numa esteira estendida no chão e soergueu-se quando a porta se abriu. Os olhos de José começaram por absorver o espaço exíguo onde acabara de penetrar. A pequena cela parecia um forno escaldante e tinha um aspecto imundo, com um fedor a urina e fezes a pairar no ar estagnado. A luz irrompia por uma janelinha no topo da cela e fixava-se na parede contrária, como um projector de cinema ainda ligado após o filme.
A atenção do médico desceu então para o recluso, que, sentado da esteira, o observava com curiosidade. O homem já não trazia a roupa esfarrapada com que o encontrara no mato, mas peças relativamente asseadas que evidentemente lhe haviam sido entregues no hospital. Tinha ligaduras a atar-lhe a coxa, mas pelo aspecto tornava-se evidente que já precisavam de ser mudadas.
"Olá, Ernesto", cumprimentou o médico, acocorando-se diante do homem. "Sou o doutor Branco. Como vai essa perna?"
O recluso lançou-lhe um olhar inquisitivo.
"Doutor Branco? Foi o senhor que me trouxe do mato?"
"Sim."O rosto de Ernesto abriu-se num sorriso sincero.
"Quero-lhe agradecer a sua gentileza. A madre Lúcia endereçou-lhe os maiores encómios quando me encontrava internado no hospital e sinto-me extremamente grato pela assistência que teve a amabilidade de me prestar."
José ergueu o sobrolho, estranhando o vocabulário do guerrilheiro. Não era habitual encontrar no mato negros que falassem português daquele modo.
"Apenas cumpri o meu dever." Concentrou-se nas ligaduras. "Essa perna?"
"Está em franca recuperação. O doutor Feitor e a madre Lúcia fizeram um magnífico trabalho e salvaram-me a perna." Lançou um olhar resignado em redor. "O meu receio é que esta cela desfaça tudo. A ferida precisa de atenção, senão infecta outra vez."
"Vamos lá então ver isso."
O médico abriu a malinha e preparou um novo rolo de ligaduras e dois frascos, um de álcool e outro de mercurocromo. Depois concentrou-se na perna do paciente e começou a desenrolar-lhe a ligadura já suja.
"Ai", gemeu Ernesto.
Um pouco de dor era inevitável, considerando a gravidade da lesão, o pouco tempo de recuperação e as condições de menor higiene naquele espaço, pelo que José procurou que os seus movimentos fossem mais suaves. Examinou a perna e percebeu que ela tinha emagrecido e estava visivelmente mais mirrada do que a outra, o que era natural considerando que o paciente deixara de a usar e é a função que faz o músculo; se a perna não exerce a sua função, o músculo simplesmente desaparece.
"Então tu és turra?", perguntou o médico, mais para manter Ernesto distraído do que por curiosidade pessoal. "Andas aos tiros à tropa?"
O paciente hesitou, como se ponderasse o que deveria responder.
"Não sei nada da guerra, doutor."
"Ai não? Então como é que ficaste ferido?"
"Eu faço o que o chefe me manda. O chefe mandou-me ir para o mato, eu fui para o mato. Os chefes tomam as suas decisões e nós é que arcamos com as consequências, não é verdade?"
José sorriu.
"Sei bem como é." A ligadura já tinha sido toda retirada e a ferida encontrava-se exposta. Estava suturada, mas uma breve inspecção tornou evidente que precisava de mudar os pontos. O médico aprontou a agulha e pegou num pedaço de algodão e num frasco e deitou álcool sobre o algodão. "Prepara-te."
"Para quê, doutor?"
"Vai doer."
Encostou o algodão à ferida e o paciente urrou.
O curativo durou meia hora e, quando saiu da cela, o médico foi direito ao gabinete de Aniceto Silva. O inspector ditava um ofício à secretária enquanto girava em círculos pensativos diante do ar condicionado, mas interrompeu a tarefa para atender o visitante.
"Então o seu protegido?", gracejou. "Está finório?"
"Inspector, aquela cela não tem condições para uma pessoa em convalescença."
O homem da PIDE encolheu os ombros, como se declinasse responsabilidades.
"Isto não é um hospital, doutor. Nem um hotel."
"Mas nestas condições a ferida vai infectar outra vez. Aliás, a infecção já está a começar. Se eu não o tivesse visto agora, a coisa desenvolvia-se e era uma chatice."
Aniceto Silva apoiou-se noutra perna, num movimento subtil a exprimir alguma impaciência.
"Iá, mas está fora de questão o gajo voltar para o hospital", rosnou. Depois pareceu absorto, como se reconsiderasse.
"A não ser que o doutor viesse cá vê-lo de dois em dois dias..."
Deixou a ideia pairar, dando a entender que tinha acabado de apresentar uma solução e que cabia ao seu interlocutor agarrá-la. O médico percebeu a intenção.
"Isso era uma possibilidade", conformou-se José. "Ou venho eu ou mando alguém. Ele precisa de mudar de pontos e de ligaduras."
O inspector deu-lhe uma palmada no ombro, como se tivessem acabado de fechar um acordo.
"Então está combinado", exclamou. "Acha que consegue pô-lo a caminhar numa semana?"
"Numa semana?", admirou-se o médico. "Nem pensar! Ele vai precisar de pelo menos um mês de convalescença e mais um mês de fisioterapia para recuperar o músculo, que já está a perder com a inactividade. Só depois poderá andar normalmente."
A língua do homem da DGS fez um estalido contrariado.
"Que merda! Dois meses para recuperar? Tem a certeza?"
"Dois meses, se não forem mais", insistiu o médico. Carregou as sobrancelhas, a curiosidade a espicaçá-lo. "Mas, desculpe lá, para quê tanta urgência?"
"Tenho de entregar o tipo aos comandos." Indicou com a mão um mapa que tinha no gabinete. "Queremos que ele os leve para identificar bases, zonas de passagem e pontos de abastecimento. Mas isso tem de ser feito rapidamente, porque senão os turras mudam as rotas e a informação fica desactualizada."
"Se é para isso, desengane-se", atalhou José com ênfase. "Ele vai precisar de tempo para recuperar."
Aniceto Silva abriu os braços, numa postura de frustração, e respirou fundo, o olhar desagradado a perder-se no corredor.
"Então o que faço com o tipo?"
Era uma questão que ultrapassava o director do hospital.
"Bem, não sei. O que ia fazer com ele depois de o entregar aos comandos?"
O inspector premiu os lábios e olhou para o seu interlocutor como quem acha que está a falar com um idiota.
"Ó doutor, ele ia e já não voltava."
"Não voltava como?"
"O senhor não sabe que um turra que é entregue aos comandos nunca mais regressa?"
A declaração foi de tal modo perturbadora que o médico pensou ter ouvido mal.
"Perdão?"
O chefe distrital da DGS revirou os olhos e respirou fundo, quase enervado com tanta ignorância e ingenuidade'
"Estamos em guerra, doutor", disse num tom pedagógico, como um professor primário a explicar o abecedário a uma criança. "Quando um turra vai com os comandos, não volta. Depois da operação o gajo não passa de um peso-morto. Se o trouxerem para aqui, o que fazemos dele? Mandamo-lo de férias para a Beira? É uma chatice a mais que para aí temos. Por isso os comandos limpam-lhe o canastro, escrevem no relatório que ele tentou fugir e o caso fica logo resolvido."
José teve dificuldade em acreditar no que ouvia e permaneceu um instante sem saber o que pensar ou dizer. Seria brincadeira? Mas o tom convicto com que o inspector falara tirou-lhe as dúvidas.
"Eles podem fazer isso? Não é ilegal?"
Aniceto Silva encolheu os ombros, como se o argumento fosse absolutamente irrelevante.
"Oh, doutor!... Há tanta coisa ilegal nesta vida! Estamos em guerra, não estamos? Numa guerra estas coisas acontecem!..."
Inquieto e já algo alarmado, o médico apontou com o polegar para o corredor, ao fundo do qual se encontravam as celas, incluindo aquela onde haviam fechado o guerrilheiro de Cazula.
"O que lhe vão fazer?"
O inspector suspirou, resignado.
"Para já, nada. Teremos de aguardar os dois meses para o entregar aos comandos. Que remédio!"
"Mas isso significa que o vão matar!..."
O homem da DGS abriu as mãos, indicando que a questão o ultrapassava.
"Já lhe disse, é a guerra."
Não era a resposta que o médico queria ouvir. José endirei- tou-se quase empertigado, e encheu o peito de ar, como se buscasse energia para enfrentar aquele problema.
"Oiça, inspector, isso não pode ser", disse numa voz baixa e tensa, a cabeça a abanar com ênfase. "Entregue-me o homem e ele fica à minha responsabilidade."
As linhas do rosto de Aniceto Silva contraíram-se, desenhando uma expressão de incompreensão.
"À sua responsabilidade? Não estou a perceber..."
"Entregue-me o homem", repetiu o director do hospital. "Se o senhor não sabe o que lhe vai fazer, não o entregue aos comandos. Entregue-mo a mim."
O inspector da DGS ouvia mas não acreditava.
"O doutor enlouqueceu? Quer que eu lhe entregue um turra? Fica com um turra nas mãos? Um turra? A que propósito?"
"A propósito de que vocês não sabem o que lhe vão fazer. Mas eu sei. Entregue-mo a mim e eu encarrego-me dele."
Aniceto Silva abanou a cabeça.
"Nem pensar!", exclamou com grande convicção. "O doutor não sabe com quem está a lidar! Este tipo é um turra! A primeira oportunidade pisga-se e vai juntar-se aos outros." Apontou o dedo ao seu interlocutor. "E se não lhe cortar o pescoço antes de se ir embora já o senhor está com muita sorte!..."
"Isso não vai acontecer", retorquiu José com igual firmeza. "De qualquer modo é problema meu. Eu responsabilizo-me por ele e o senhor fica com o seu problema resolvido."
O inspector abalou pelo corredor e começou a caminhar em direcção à saída, indicando assim que a conversa terminara e que o seu convidado se devia ir embora. José percebeu que o caso estava quase perdido, mas intuiu que a única maneira de inverter as coisas era jogar a sua carta mais alta. Se ela não resultasse, nada resultaria. Por isso não acompanhou Aniceto Silva, preferindo permanecer plantado no lugar onde se encontrava.
"Se não me entregar este homem", atirou para a figura que se afastava, "o Serviço Médico Aéreo acaba."
A carta tinha sido lançada e era forte, pelo menos o suficiente para o responsável da DGS estacar ao fundo do corredor e girar sobre os calcanhares.
"O quê?"
"E como eu lhe disse. Se não me entregar o recluso, acaba-se o Serviço Médico Aéreo."
Aniceto Silva ficou momentaneamente sem palavras. Tentava perceber a relação causa-efeito entre as duas coisas, o guerrilheiro e o Serviço Médico Aéreo, mas não conseguia estabelecer a menor ligação e o seu semblante reflectia a maior das perplexidades.
"O doutor ensandeceu?", perguntou com genuína sinceridade. "Quer acabar o Serviço Médico Aéreo por causa de... de um turra? Não estou a perceber!..."
Foi só neste instante que José Branco saiu do seu lugar e, num gesto quase conciliador, começou a percorrer o corredor em direcção ao chefe distrital da DGS.
"É muito simples", disse num tom sereno e profissional, como se expusesse uma evidência. "Os turras entregaram-me um ferido no mato. Eu prometi tratá-lo e trouxe-o aqui para Tete. O que eles vão concluir é que eu o entreguei à PIDE, a PIDE entregou-o aos comandos e os comandos mataram-no. Está a ver a situação?"
"Sim. E então?"
O médico chegou diante do inspector e imobilizou-se; dir-se-ia que o queria enfrentar em duelo.
"O que irá acontecer da próxima vez que o meu avião aterrar no mato e os turras vierem ter comigo? O que irá suceder quando eles me disserem: confiámos em si, entregámos-lhe um ferido e vocês mataram-no? O que acha que os turras me vão fazer? Acha que nessas circunstâncias o Serviço Médico Aéreo tem condições de segurança para continuar a funcionar?"
As perguntas deixaram Aniceto Silva abalado; os seus olhos pareciam vidrados enquanto considerava aquele cenário inesperado. Como era possível que aquilo não lhe tivesse ocorrido?
"Porra!"
Sentindo nesse instante que a partida estava ganha, José evitou mesmo assim sorrir; sabia que era importante nunca humilhar um derrotado, especialmente tão poderoso como aquele. Em vez disso pousou-lhe a mão no ombro, quase como se o quisesse reconfortar, mas não conteve uma ponta de prazer, orgulho até, no momento em que formulou a pergunta seguinte.
"Quando é que venho buscar o preso?"
O lodo escuro e pegajoso tinha algo de repelente, mas Diogo Meireles não dispunha de alternativa. Rastejou no meio da erva, esfregando-se naquela lama nojenta, até se posicionar no ângulo que lhe pareceu mais favorável, mesmo no limiar da crista de uma pequena elevação. Apontou a G3 na direcção onde sabia esconder-se o alvo e aguardou. As moscas aproximaram-se, zumbindo a rasar o lodo, teimosas e enervantes, mas Diogo ignorou-as, determinado a não perder a oportunidade que se avizinhava.
A figura emergiu de repente, saltando por cima da erva, e Diogo voltou para ela a arma e disparou uma rajada. A placa de madeira recortada com o perfil de um homem armado tombou, sinal seguro de que fora atingida.
"Toma!", rosnou. "Um já está!"
Após três meses nas Caldas da Rainha a fazer o curso de miliciano, Diogo tinha sido transferido para Tavira, onde começara um novo curso, de atirador. Passou esses três meses a acordar de madrugada para se enterrar no lodo das salinas em exercícios diários de combate e emboscadas, agarrado à sua primeira G3 e a disparar balas reais, como nessa ocasião em que rastejou pelo lodo para atingir uma placa de madeira que os instrutores haviam ocultado na erva.
No início da recruta em Tavira teve alguma dificuldade em habituar-se à arma, devido ao coice dos disparos e ao trovejar que lhe parecia rasgar os tímpanos, mas três meses mais tarde, quando foi dado como apto para a guerra, já tratava a G3 com a familiaridade com que lidava com uma bola de voleibol.
Aprendeu tácticas de contra-guerrilha, desenvolvidas com base numa mescla das experiências francesa, britânica e americana, e quase decorou o manual em vigor, O Exército na Guerra Subversiva, e em particular a doutrina de que "a guerra subversiva era, essencialmente, um problema de conquista da população". O combate, sustentava o manual, podia ser a faceta mais dramática da guerra de contra-subversão, mas não era a mais importante; a chave estava no apoio das populações.
Passou então para o quartel da Guarda, onde ficou à espera de colocação, presumivelmente num qualquer posto no Ultramar. Inquiriu camaradas e leu tudo o que havia na imprensa. O cruzamento das informações permitiu-lhe esboçar uma ideia do que o esperava, mas foi o avô quem lhe fez um retrato mais claro quando, no fim-de-semana da Páscoa de 1971, Diogo foi a Penafiel e com ele conversou sobre os vários cenários possíveis para onde poderia ir.
"Os piores são a Guiné e o Norte de Moçambique", disse-lhe o capitão Mário Branco, o rosto riscado pelas rugas e a cabeça reluzente já quase sem cabelo. "Se fores para Angola, rapaz, podes ir a Fátima agradecer a Nossa Senhora."
"E Cabo Verde?"
"Ui, isso merecia uma peregrinação a Roma!", sorriu o velho capitão. "Nos tempos que correm, Cabo Verde, São Tomé, Macau e Timor são verdadeiros paraísos para quem anda na tropa."
A conversa decorria no escritório do rés-do-chão, onde se havia concentrado toda a família para aguardar a chegada do compasso. Amélia, que seguia o diálogo e se sentia igualmente preocupada com o destino do neto, não se conteve.
" Mário, sendo tu do exército e tendo amigos no Estado- Maior, lá em Lisboa, não podias ir dar uma palavrinha para ver se... se safavas aqui o nosso Dioguinho?"
Avô e neto entreolharam-se.
"Nem pensar!"
A dúvida durou ainda alguns meses, como se os deuses estivessem demasiado ocupados com outros assuntos ou talvez a magicar-lhe alguma partida, mas a longa espera terminou finalmente à entrada de 1972, numa manhã em que Diogo se encontrava deitado na sua camarata, enroscado numa manta para se proteger do agreste frio serrano.
"Ainda a dormir?"
A voz irrompeu-lhe no sono. Estremunhado, ergueu a cabeça e viu o alferes do serviço postal debruçado sobre a sua cama a estender-lhe um envelope.
"Hã? Que é isso?"
"O que havia de ser, pá?", perguntou o alferes, abanando o sobrescrito. "É a tua guia de marcha!"
"O quê?"
"Pega lá nessa merda!"
Num gesto mecânico, quase sem pensar, Diogo estendeu a mão e tentou segurar o envelope, mas ele caiu-lhe aos pés da cama. Mesmo assim o alferes deu a entrega como consumada e fez meia volta, volatilizando-se tão depressa como se materializara.
"Boa sorte, pá!"
Diogo levou meio segundo a despertar por completo. Sentou-se na cama e, de repente alheio ao frio, fitou longamente o envelope castanho, os dedos a coçarem o cabelo desgrenhado, o coração aos saltos de ansiedade. Como era possível que um sobrescrito tão ridiculamente minúsculo, pensou, encerrasse a chave do seu futuro? Quase teve receio de voltar a pegar nele, nem sequer lhe quis tocar, mas depressa considerou que, se tinha medo de uma coisa tão simples e inofensiva, o que faria quando um dia estivesse diante do inimigo?
A interrogação serviu para derrotar as hesitações. Pegou no envelope e rasgou-o pelo canto. Extraiu a folha que ele guardava e desdobrou-a; era de facto a guia de marcha. O documento anunciava-lhe que passava à condição de rendição individual, o que significava que ia substituir um soldado caído; talvez se tratasse de um ferido ou, quem sabe, um morto.
Os olhos deslizaram pela folha, deambulando entre as palavras frias e formais do burocratês militar, em busca do essencial, o destino que lhe haviam reservado e cujo nome se recortou por fim a quatro letras na penúltima linha do texto impessoal.
Tete.
A consulta da manhã decorria como habitualmente no hospital de Tete. Havia já algum tempo que José Branco fixara as deambulações aéreas pelo distrito em quatro dias, arrancando à terça e regressando na sexta-feira, de modo a assegurar as consultas no hospital às segundas-feiras. Acontecia até com frequência voltar a Tete a meio da semana, ou até todos os dias, uma vez que o número de pacientes diminuíra no mato. O facto é que as campanhas de vacinação tinham produzido resultados espectaculares e conseguira mesmo erradicar algumas doenças, feito festejado a whisky no bar do hospital.
A meio dessa manhã, e depois de ter lidado com alguns casos de diarreia e dois de paludismo, entrou-lhe no gabinete um militar que se identificou como o alferes Fonseca. No seu encalço vinha uma mulher com um bebé ao colo. O interessante neste caso é que a mulher era negra e ele branco.
"É a nossa menina, senhor doutor", disse o militar com a angústia no olhar, apontando para a criança que se encontrava no colo da mulher. "Está muito doente e já não sabemos o que lhe havemos de fazer."
"O que tem ela?"
"Começou com febre, mas esta noite pôs-se a vomitar com alguma violência e nós assustámo-nos."
O médico dirigiu-se à marquesa, onde a mãe deitou a criança. Bastou um olhar e a identificação de duas pústulas na boca para José diagnosticar a doença.
"Isto é varíola."
Disse-o de uma forma ligeira, como se estivesse a falar de uma mera constipação, mas o alferes era um homem observador e apercebeu-se da perturbação no olhar conhecedor do médico.
"Tem cura, não tem?"
José Branco não respondeu imediatamente. Ficou a fitar a criança, como se tentasse tomar uma decisão.
"A menina ainda é latente?"
"Iá, senhor doutor", confirmou o alferes, tentando ler-lhe na expressão o que pensava. "Tem apenas seis meses. Porquê?"
O médico fez um estalido com o canto da boca, como se a informação não fosse do seu inteiro agrado.
"A varíola é complicada no caso dos latentes", sentenciou. "Vamos ter de a internar."
O casal reagiu com alarme à decisão, com a mulher a puxar a filha para o colo, como se assim a protegesse, e o alferes a mostrar-se surpreendido.
"Mas... mas ela só tem seis meses, doutor!..."
"Precisamente por isso."
Mantendo sempre o semblante de quem achava tudo aquilo normal, José foi à porta do gabinete e espreitou para o corredor, mas não avistou nenhuma enfermeira. Fez então sinal ao casal de que o acompanhasse e levou-o até à enfermaria. Os pais da criança mostravam-se muito inquietos com a decisão de internamento, pelo que percebeu que teria de os acalmar. A melhor forma era distraí-los.
"A sua mulher que fique descansada. Vamos deixá-la permanecer cá no hospital com a menina."
"Agradeço-lhe, senhor doutor", retorquiu o alferes, subitamente embaraçado. "Sabe, a Mariana... enfim, ela não é minha mulher. Queremos casar, claro, mas o exército está a levantar uns obstáculos... é uma chatice!"
O director do hospital deitou um olhar perscrutador à negra, que apertava a filha entre os braços. Era uma rapariga bonita, de porte altivo e lábios espessos, decerto bons de beijar.
"Conhecem-se há muito?"
"Há dois anos, doutor. Eu sou comandante da OPV, não sei se conhece. E a organização de polícias voluntários..."
"Sei muito bem. São vocês que policiam os aldeamentos que o GPZ anda a construir por todo o distrito."
"Precisamente. O meu trabalho é recrutar e treinar indígenas para procederem ao policiamento dos aldeamentos, de modo a dificultar a infiltração pelos turras." Apontou numa direcção vaga, que José sabia ser o Zambeze. "Opero ali no quartel do Matundo, não sei se já lá foi."
"Conheço, pois."
"Acontece que uma vez cruzei-me com a Mariana, que é filha de uns machambeiros que vivem ali perto do quartel, e... sabe como é, apaixonámo-nos. Como o exército desencoraja as relações com os indígenas, não tivemos possibilidade de nos casar." Encolheu os ombros e voltou-se para trás de modo a lançar um olhar meigo à mulher. "Mas é como se estivéssemos casados."
Chegaram à enfermaria feminina e o director do hospital voltou a não localizar nenhuma enfermeira. Foi à sala de descanso e deparou-se com um vulto de bata branca sentado a ler um livro, mas percebeu que não era nenhuma enfermeira. Tratava- se de Nicole.
"A Lúcia?"
A rodesiana ergueu os olhos azuis e, ao reconhecê-lo, sorriu- lhe.
"Veio um padre espanhol e foram almoçar." Piscou o olho esquerdo. "Eu acho que é desculpa, né? Padre e freira juntos? Hmm..." Riu-se. "Devem estar rezando!..."
Ao longo dos últimos dois anos, a relação entre José e Nicole havia-se tornado intermitente. Ela passava a vida entre o Songo e Salisbúria, mas ia com alguma frequência a Tete a pretexto de haver uma certa complementaridade com o seu trabalho no Songo, o que não era de todo inexacto. Ajudava um ou dois dias no hospital e aproveitava para manter o contacto com o amante português antes de seguir de novo para o Songo ou regressar à Rodésia. Aquela era uma dessas circunstâncias.
O director do hospital chamou Mariana e a filha e apresentou-as à médica rodesiana.
"Oiça, preciso que veja esta menina", indicou. "Tem seis meses e está com varíola." Lançou uma espreitadela para a fileira de camas na enfermaria. "Ponha-as num quarto particular, está bem?"
Nicole olhou para a criança, depois para a mãe e por fim para José, uma expressão de estupefacção desenhada no rosto.
"Um quarto particular?", interrogou-se, voltando a pousar os olhos na negra como se a ordem fosse absurda. "Mas... e pode?"
"Claro que pode", retorquiu o director do hospital, espreitando de relance para o relógio e regressando já ao corredor. Ia almoçar a casa, mas precisava ainda de concluir as consultas. "Cuide bem da menina."
O empadão de Mímicas era o prato favorito de José e ementa obrigatória nos almoços de segunda-feira em casa, mas quando nesse dia o provou sentiu pousar nele o olhar inquisitivo da mulher.
"Então?", quis ela saber. "O coiso está bom?
"Uma maravilha, como sempre", elogiou José. "Já sabes que não há empadão como o teu."
Mimicas soltou uma gargalhada deliciada e lançou um olhar cúmplice ao empregado, que observava a cena com uma atenção que o médico percebeu ser pouco usual.
"Não fui eu que o fiz", revelou a mulher. "Foi o Ernesto!"
O marido olhou para o empregado como se buscasse confirmação, que obteve logo que o viu sorrir.
Ernesto trabalhava lá em casa desde que o retirara da DGS e com ele fizera o pacto de que o empregaria a troco de um salário e a promessa de que não voltaria para o mato, sob pena de criar problemas ao seu protector. Contrariando os augúrios de Aniceto Silva, as coisas correram bem e ao longo desses dois anos o acordo fora respeitado por ambas as partes. Desenvolveram até uma certa relação de confiança, ao ponto de Ernesto confidenciar ao seu empregador que era perito em minas e armadilhas da guerrilha quando fora ferido em Cazula. Agora um homem livre em Tete, casara e instalara-se com a mulher nuns quartos anexos à casa do director do hospital. Começara por se encarregar exclusivamente do jardim, mas pelos vistos Mimicas havia conseguido nesse dia convertê-lo às artes culinárias.
"Está visto", assentiu José com um gesto aprovador. "Já estou mesmo a ver que vamos perder o Ernesto. Sabem qual vai ser o próximo restaurante de Tete?" Esboçou com os dedos o desenho imaginário de uma placa identificativa. "Chez Turra! Aposto que até o inspector Silva ia lá comer!"
A fileira nívea dos dentes de Ernesto reluziu com o sorriso esfíngico que esboçou perante a sugestão.
"A esse indivíduo", murmurou no seu português rebuscado, "eu misturo veneno no prato."
A sugestão não foi do agrado do médico, que lhe lançou um olhar reprovador.
"Ernesto, então? Que é isso? Aqui a política fica à porta de casa! Nós não podemos..."
Ia acrescentar mais qualquer coisa quando ouviu, vinda do exterior, a voz de uma mulher a chamar "doutor Branco!", duas vezes. O médico levantou-se e foi à varanda das traseiras ver o que era. A meio do quintal, à sombra da maçaniqueira, reconheceu a mulher do enfermeiro Mabunda de mão dada com um dos filhos.
"Doutor Branco, a polícia levou meu marido", disse ela com uma expressão de angústia. "Estou a pedir traz ele para casa."
José Branco suspirou, já cansado daquela história recorrente. O enfermeiro Mabunda tinha quinze filhos e, para azar dele, os dois mais velhos haviam fugido para o mato e tinham-se tornado guerrilheiros. A DGS fora informada do facto e passara a detê-lo com regularidade. As detenções revelaram-se de tal modo rotineiras que o próprio Mabunda recomendou à mulher que, sempre que a polícia o fosse buscar, informasse imediatamente o director do hospital. Era o que ela mais uma vez estava a fazer.
"Está bem", assentiu. "Volte para casa descansada que eu daqui a pouco vou à PIDE."
A mulher manteve-se, todavia, plantada no mesmo lugar e cruzou os braços, como se tivesse mais alguma coisa a acrescentar. O médico lançou-lhe um olhar expectante, encorajando-a a falar.
"Levaram também o senhor Mendonça", acrescentou ela, nada embaraçada por trazer tantos pedidos. "E os amigos dele."
O director do hospital passou a mão pelo cabelo. Congela de Mendonça era outro dos seus enfermeiros que se viam frequentemente em apuros. Mendonça andava a estudar à noite com mais três amigos negros ligados a meios da oposição e a DGS, que suspeitava daqueles estudos, tinha por hábito convidá-los a fazer uso periódico dos seus calabouços. Quem os ia sempre lá buscar acabava por ser o médico.
"Eu também trato deles", prometeu José. "Vá lá à sua vida."
A mulher pareceu ficar satisfeita e abalou com o filho, deixando o director do hospital pensativo na varanda traseira da sua casa. José voltou devagar para a mesa e sentou-se pesadamente no lugar, o prato com o empadão ainda a fumegar. Olhou em redor e percebeu que estava sozinho; Ernesto já havia regressado à cozinha e Mimicas fora ao quarto mudar de roupa.
Pegou no garfo e mergulhou-o na comida. Quando o ia levar à boca, porém, o telefone tocou, levando-o a suspender o movimento.
"Que será agora?"
Pousou os talheres e, com um suspiro resignado, levantou-se para ir atender. Do outro lado da linha estava a sua enfermeira-chefe.
"Então, Lúcia? Como foi esse almoço com o padre, sua malandreca? Rezaram muito?"
"Doutor", disse ela num tom tenso; talvez não tivesse apreciado a graçola. "Preciso que o senor e dona Mimicas venham aqui ao hospital com urgência."
A forma anormalmente seca como a freira falou deixou-o de sobreaviso.
"Porquê? Passa-se alguma coisa?"
Fez-se um silêncio pesado na linha.
"Chegou ahora um helicóptero aqui ao hospital. Houve uma emboscada dos guerrilleros na Angónia. Fizeram um muerto." Fez uma pausa. "O helicóptero trouxe o cuerpo."
"Sim, e então?"
Um novo silêncio ao telefone tornou subitamente claro que ela sabia que a notícia que tinha para dar ia chocar o director do hospital.
"Fue o comandante Trovão, doutor."
O furriel estava de calções e tronco nu a escrever uma carta quando sentiu uma presença na tenda. Levantou a cabeça e deparou-se com um rapaz alto e magro, impecavelmente fardado de camuflado e com um rosto ossudo e juvenil, o cabelo castanho a espreitar por baixo do boné em madeixas levemente encaracoladas nas pontas; trazia as insígnias de furriel nos ombros e uma enorme mochila às costas.
"Olaré!", exclamou o homem em tronco nu. "Temos aqui o Paulo de Carvalho ou quê?"
O recém-chegado deteve-se, admirado com a referência ao cantor da moda, vedeta emergente do Festival RTP da Canção que se transformara já no ai-jesus das miúdas da Metrópole, e olhou em redor para ver se havia ali mais alguém. Não havia, pelo que concluiu que era a ele que o camarada se referia.
"Paulo de Carvalho?"
"Sim, Paulo de Carvalho", insistiu o homem em tronco nu. "És a cara chapada do gajo, pá." Soltou uma gargalhada. "Não me digas que também cantas. Ora canta lá!..." Sem esperar pela resposta, pôs-se ele mesmo a trautear a melodia que por essa altura animava as emissões de rádio de Lisboa: "Na mesma rua, na mesma cor, passava alegre, sorria amor..."
Ignorando a voz esganiçada, o intruso verificou um documento e pousou a mochila no catre correspondente ao número que vinha assinalado no papel. Depois sentou-se no catre e, descontraindo o corpo, soltou um gemido de satisfação.
"Ah! Até que enfim!"
O homem de tronco nu não apreciou aquele à-vontade e, parando de cantar a meio de uma estrofe, soergueu-se no catre.
"Olha lá, esse lugar não é teu!"
"A partir de agora é."
"Não é não. Esse lugar pertence a um camarada que... a um camarada nosso."
O recém-chegado franziu o sobrolho.
"Um camarada que se foi numa emboscada", completou. "Eu sei. Vim destacado para o substituir."
O homem de tronco nu imobilizou-se, como se analisasse o que sentia e ponderasse o que fazer. A ocupação do catre do amigo caído suscitava nele emoções contraditórias; por um lado, parecia-lhe desrespeitar a memória daquele que morrera, por outro, constituía um sinal inequívoco de que a vida continuava. Respirou fundo, resignando-se à inevitabilidade de que na tropa havia mesmo vida depois da morte.
"Como te chamas?"
"Diogo", respondeu o novo furriel. "Diogo Meireles."
"És checa?"
A pergunta extraiu de Diogo uma expressão interrogativa.
"O quê?"
"Perguntei-te se és checa! Maçarico, novato..."
O recém-chegado percebeu.
"Ah, sim. Acabei de chegar da Metrópole."
"Mais um aramista, portanto."
Diogo estranhou a palavra. "Hã?"
"O que vens cá fazer, pá? Tratar da contabilidade, ajudar na cozinha, despachar processos administrativos?..."
Aquela lista de operações suscitou uma gargalhada do novato.
"Quais processos administrativos?", admirou-se Diogo, a face contorcida num esgar irónico. "Que eu saiba venho aqui para combater."
"Portanto não vais ficar atrás do arame farpado?!"
"Só se me obrigarem."
O homem de tronco nu assentiu, como se assim tivesse completado o retrato do novo ocupante da palhota dos furriéis, e endireitou-se no catre.
"Eu sou o Alexandre", apresentou-se. "Mas todos aqui me chamam Chaparro. Tal como tu, também não sou um aramista."
Diogo reconheceu o nome.
"Ai tu é que és o Chaparro? O capitão disse-me que me ias entregar a arma..."
Estas palavras fizeram Chaparro revirar os olhos de enfado. Após um suspiro longo e paciente, o homem pousou a caneta e o papel e quase arrulhou de preguiça só por causa do esforço que teve de fazer para se pôr em pé. Coçou os abundantes pêlos do peito e lançou um olhar ressentido na direcção do recém-chegado, como se o recriminasse pelo trabalho que já lhe estava a dar. Depois meteu os dedos dentro dos calções e coçou também os pêlos da púbis enquanto resmungava umas palavras incompreensíveis que culminaram numa referência quase inaudível ao que parecia "estes malditos chatos". Diogo ficou sem saber a que chatos se referia o camarada, se ao recém-chegado que já lhe estava a dar trabalho, se aos que lhe faziam comichões. Depois Chaparro ajeitou as cuecas e os calções, puxando-os para cima, cheirou a ponta dos dedos com que se coçara, murmurou "hmmm... belo perfume!" e saiu da palhota com um breve "já venho!"
Chaparro não tinha ar de ser pessoa particularmente rigorosa, mas o facto é que a promessa foi cumprida e o homem em tronco nu voltou alguns minutos depois com uma G3 e um cunhete de madeira carregado de granadas e munições.
"Tens aqui o material de trabalho", anunciou, estendendo a espingarda-automática ao recém-chegado. "Pega lá na companheira." Atirou a caixa das munições para o lado do catre. "E aqui tens as ameixas e os pirolitos. Trata do material com o mesmo amor com que cuidas dos tomates, ouviste?"
Diogo sentou-se no catre e sentiu o peso da G3. Passou o indicador pelo interior do cano e logo a seguir verificou o dedo; vinha sujo, o que significava que teria de passar algum tempo a limpar a arma. Cheirou a espingarda automática e percebeu também que teria de ser oleada.
"Olha lá, Chaparro", disse, sem tirar os olhos da G3. "Isto é o BART, não é?"
O furriel que lhe entregara a arma e as munições mantinha-se displicentemente de pé diante do catre, talvez com preguiça de percorrer os cinco metros de volta ao seu lugar.
"Iá, porquê?"
"Que eu saiba, BART significa Batalhão de Artilharia." Fez um gesto a indicar a entrada da palhota. "Mas lá fora não vi nenhum canhão..."
Chaparro soltou uma gargalhada ruidosa que logo se transformou num ataque de tosse.
"És um cómico, pá", exclamou logo que recuperou o fôlego. "Esta merda chama-se artilharia, mas aqui só há infantaria."
"Então porque lhe chamam artilharia?"
O camarada encolheu os ombros.
"Sei lá!", disse com aparente indiferença. "Tá tudo doido, pá. Nada neste buraco faz sentido!..."
"Também não é bem assim", contrapôs Diogo, habituado pelas contingências da alta competição a rejeitar posturas pessimistas; um campeão pensa sempre positivo, era o seu lema. "Pode ser que haja coisas que não façam sentido, mas a verdade é que a nossa missão aqui é importante. Precisamos de conquistar a mente e o coração das populações. Para isso é necessária uma atitude civilizadora, não uma..."
Com um gesto inesperado, Chaparro arrancou-lhe a arma das mãos. Diogo calou-se, surpreendido. O furriel em tronco nu puxou a culatra, introduziu uma bala na câmara e apontou para a entrada da palhota, preparado para abrir fogo.
"Atitude civilizadora?", rosnou. "Aqui a regra é estar pronto para matar, ouviste?" Desviou o olho da mira para o recém-chegado. "Essas aldrabadas que acabaste de papaguear não passam de conversa para tolos. Isto é o mundo real, não são as fantasias que te ensinam na instrução." Fez um gesto com a cabeça, a indicar o catre de Diogo. "Sabes porque quinou o camarada que antes ocupava o teu lugar? Porque tinha maningue paleio, mas não estava preparado para matar. Essa é que é a verdade. Se quiseres saber o que acontece a quem não mata, a resposta é simples: é morto." Baixou a arma e devolveu-a. "Se não estás preparado para matar, é melhor que te prepares. Entendido?"
"Sim."
Chaparro deu meia volta e arrastou-se até ao seu catre. Antes de se deitar, voltou a meter a mão pelos calções e coçou novamente os pêlos da púbis, desta vez num frenesim vigoroso.
"Porra p'rós chatos!"
A vida no Chioco cedo se adivinhou de um tédio indescritível. A posição fortificada situava-se algures no meio do mato, no final de um longo trilho que partia da estrada entre Tete e o Songo e desembocava num leito de rios secos que só se enchiam na época das chuvas.
O BART, nome pelo qual era conhecido o Batalhão de Artilharia 7220, tinha o comando instalado em Changara, uma terriola na estrada entre Tete e Vila Pery que permitia controlar também o acesso vital à Rodésia, mas dispunha de companhias instaladas noutras posições ainda mais isoladas, como Chinanga, Chinhande e Chioco.
Na primeira manhã após a chegada, Diogo foi dar uma volta pelo posto do Chioco. Depressa descobriu que se tratava de um espaço exíguo rodeado de trincheiras e arame farpado e preenchido por palhotas, casotas e tendas com funções diferentes. Algumas serviam de dormitório, numa fora instalado o comando, outra era a secretaria, uma terceira o refeitório; havia ainda a enfermaria, a cozinha, o centro de transmissões, a oficina auto e a despensa. O paiol, que requeria cuidados especiais por causa dos bombardeamentos por morteiros e por canhões sem recuo, fora escondido em instalações subterrâneas devidamente protegidas e camufladas.
"Olha lá, ó Chaparro", chamou Diogo depois de percorrer pela primeira vez todo o perímetro. "Onde é que... enfim, onde é que a malta se... se alivia?"
"Queres cagar?"
A pergunta formulada assim de forma tão embaraçosamente directa embarrancou o recém-chegado. Diogo tentou fingir um ar natural, mas não conseguiu ocultar um leve rubor.
"Quer dizer... sim."
Chaparro, que acordara pouco antes e já andava outra vez de calções e tronco nu a coçar os abundantes pêlos que lhe espreitavam pelo corpo, fungou e escarrou para o lado.
"Se fosse a ti, aguentava o cagalhão."
Diogo fez um ar admirado.
"Ora essa! Porquê?"
O camarada respondeu com um gesto, indicando-lhe que o seguisse. Caminharam os dois entre as tendas e as duas palhotas dos furriéis até atingirem o limite do perímetro no sector junto ao leito dos rios secos. Numa elevação antes de a terra se inclinar para o leito viam-se três casinhas de madeira protegidas por sacos de areia.
"Anda cá, ó Paulo de Carvalho", disse Chaparro, dando-lhe com os dedos sinal de que se aproximasse ainda mais. "Estás a sentir este aroma revigorante?"
Diogo já se havia apercebido do fedor das fezes ainda antes de chegarem ao local.
"Então não?"
Chaparro indicou as três casinhas.
"São aqui as latrinas", anunciou. Apontou para o leito seco e para a vegetação na outra margem. "Como vês, é uma posição maningue exposta. Às vezes os turras escondem-se do outro lado e entretêm-se a disparar para as latrinas enquanto a malta se esforça por depositar a flor. É por isso que só se deve vir aqui quando a noite cai."
"Estou a ver."
Os olhos de Chaparro, sujos de ramela, desviaram-se das latrinas para o recém-chegado.
"Ainda queres arrear o calhau?"
Diogo coçou a cabeça e avaliou a pressão no ventre; havia alguma urgência na coisa. Por outro lado, não podia ignorar o problema do espaço aberto por trás das latrinas; era de facto extraordinariamente exposto. O que fazer? Embrenhado no dilema, lembrou-se que talvez na enfermaria houvesse algum comprimido que lhe permitisse adiar a aflição as horas suficientes até a noite cair.
"Se calhar é melhor esperar."
Aguentou de facto até ao crepúsculo e aproveitou ainda a luz do lusco-fusco, quando rasgavam já o horizonte vigorosas pinceladas de ouro, carmim e roxo, para aliviar os intestinos sem ter de enfrentar a situação na treva absoluta. Fê-lo em luta tremenda com as moscas que enxameavam as latrinas e uma complicada ginástica para não tocar com as nádegas em qualquer parte da casinha imunda, enquanto das casinhas vizinhas vinham os gemidos e os suspiros dos camaradas que aproveitavam igualmente os derradeiros raios de Sol para esvaziarem o ventre.
Percorreu depois o posto aos tropeções e às apalpadelas, quase como um bêbado, uma vez que a noite se abatera sobre o mato com rapidez fulminante. Consolava-se com o reconfortante pensamento de que se encontrava praticamente invulnerável; sem luz para a guiar, nenhuma bala inimiga o podia atingir.
Localizou o casebre do refeitório e, embora constatando que era o primeiro a chegar, entrou e sentou-se num banco a aguardar a hora de jantar.
Os outros homens foram chegando em grupos e os primeiros admiraram-se por se deparar com alguém às escuras.
"Então? Não ligas a luz?"
A pergunta surpreendeu Diogo. Que ele soubesse não havia electricidade no posto.
"Qual luz?"
A pergunta gerou uma gargalhada.
"A das bazucas, pá. Não tens aí nenhuma?"
Bazucas? A referência ao lança-granadas de ombro deixou-o estupefacto. Como poderiam as bazucas iluminar a tenda? De que estariam os camaradas a falar?
"Uh... não", gaguejou, preferindo não desvendar a sua ignorância. "Não tenho aqui nenhuma."
"Ora essa!", espantou-se um soldado. "Não tens nenhuma? Vai à geleira, pá! Há lá maningue bazucas."
Geleira?
"Ah, está bem", disse Diogo, fingindo-se ainda entendido mas sem nada entender. "Pois é, tens razão!..."
Os soldados ficaram a observá-lo, surpreendidos também eles com o inopinado diálogo; era manifesto que o camarada que haviam encontrado na tenda não fazia a menor ideia de nada e isso despertou neles uma ponta de desconfiança. Seria um turra? Ali na escuridão era difícil descortinar-lhe as feições, pelo que o receio de uma infiltração do inimigo lhes aflorou a mente. Porém, notaram que o desconhecido falava um português metropolitano, até com um sotaque do Porto. Turra não podia ser. Não havia turras em Cedofeita...
"E o checa, pá!", exclamou por fim um deles. "O novo furriel que chegou ontem, caraças!"
A descoberta desencadeou uma galhofa de alívio, com os soldados a cobrirem as costas de Diogo de palmadinhas e a pedirem desculpa por não o terem reconhecido. Um deles dirigiu-se à ponta da tenda e abriu um frigorífico alimentado a petróleo; a luz do interior recortou-lhe a silhueta, mostrando-o de cócoras a voltar-se para trás.
"Meu furriel, está a ver isto?", disse, indicando o frigorífico. "Aqui em Moçambique chama-se geleira!" Apontou as garrafas de cerveja Manica arrumadas no interior, tão alinhadas que pareciam soldados na formatura. "E isto são bazucas!"
O soldado tirou uma garrafa e arrancou-lhe a carica, passando a Manica de mão em mão até todos a esvaziarem. Arrotaram quase em uníssono, riram-se com o feito e um deles começou a despejar um líquido na garrafa; pelo cheiro intenso e característico, Diogo apercebeu-se de que se tratava de petróleo. Depois enfiaram um trapo pelo gargalo e um outro acendeu um fósforo, pegando fogo à torcida de pano. A garrafa emitiu um clarão trémulo que iluminou toda a tenda, projectando sombras bamboleantes na lona.
"Já está!", exclamou o primeiro soldado ao pousar a garrafa no centro da mesa. "Ligámos o gerador."
Um outro soldado fez sinal ao furriel, indicando o fio de fumo que vinha do trapo a arder.
"Sente este cheirinho da bazuca?"
Diogo inspirou e registou de imediato o odor acre a petróleo queimado.
"Sim."
"É a outra vantagem de usar bazucas à noite", disse o homem, arqueando as sobrancelhas para sublinhar a astúcia da coisa. "Põem logo os mosquitos em sentido."
O jantar não foi refeição que entusiasmasse um gourmet. Galinha-do-mato com arroz branco e feijões, tudo regado a bazuca num ambiente surreal, com a tenda iluminada pelo halo espectral que cabriolava no gargalo das garrafas ateadas.
Enquanto mastigava uma coxa, Diogo pôs-se a observar os homens sentados à mesa, as feições dos rostos a bailarem com a penumbra ao ritmo do hálito trémulo das chamas que adejavam pela mesa sobre as garrafas. Apercebera-se já durante o dia da mistura racial que havia na companhia, pormenor que confirmou ao jantar. Metade dos camaradas de armas eram brancos e a outra metade negros ou mulatos de Moçambique. O facto pareceu-lhe natural; não era o regime que dizia que Portugal se estendia do Minho a Timor? No que lhe dizia respeito, o seu país era de facto imenso: começava no Rego da Água e terminava no Chioco.
"Atã mê furriel?", quis saber um dos soldados. "Nã está boa a galinha? Nã quer mais? Olhe que tambê tem aqui pã e queije..."
Um algarvio, percebeu.
"Estou bem, obrigado."
A interpelação despertou-o para a multiplicidade de sotaques entre os camaradas da Metrópole. Reparou que alguns soldados brancos comiam com as mãos, a face tão inclinada para a frente que o nariz quase tocava no prato, e mastigavam ruidosamente de boca aberta; sem surpresa, constatou que Chaparro era um deles.
"De onde és tu, Chaparro?"
"Do Redondo."
Dirigiu a mais três camaradas brancos a pergunta sobre as suas origens e percebeu que muitos desses homens da Metrópole, se não mesmo a maioria, eram gente do campo, agricultores que a guerra arrancara de Trás-os-Montes, da Beira Interior ou do Alentejo e atirara para o meio do mato em Africa.
Realmente!, raciocinou, os olhos a deambularem entre os soldados rudes que jantavam com grunhidos, arrotavam em abundância e limpavam a boca às costas das mãos. Como levar a cabo a missão civilizadora se os próprios civilizadores precisavam de ser civilizados?
As fardas que habitualmente se viam no hospital de Tete eram os camuflados militares, mas quando naquele início de tarde José Branco e a mulher chegaram apressadamente às urgências depararam-se com uniformes da PSP por toda a parte. A consternação era geral e Mimicas, que até então se recusara a acreditar na notícia, começou a chorar por ver nos rostos carregados dos polícias a confirmação do que o marido lhe anunciara minutos antes.
A irmã Lúcia passou nesse instante pelo pátio com um balde de água e o director interpelou-a.
"Onde está o Trovão?"
A freira indicou com a cabeça uma porta das urgências reservada ao pessoal do hospital.
"Lá dentro."
José meteu pela porta e entrou numa sala onde se encontrava um corpo deitado sobre uma marquesa. Reconheceu o amigo e sentiu um nó apertar-lhe a garganta. Nem se conseguiu aproximar, como se uma barreira invisível o impedisse de avançar um passo que fosse. Deu meia volta e, contendo as lágrimas, saiu precipitadamente do edifício e juntou-se a Mímicas.
"Doutor Branco", chamou uma voz.
Ainda abalado, o médico voltou-se e reconheceu o homem fardado que o interpelara; era o tenente Lopes, subcomandante da PSP. Vinha com a camisa desfraldada e parecia desorientado.
"Senhor tenente", cumprimentou-o. Aquela era provavelmente a pessoa com quem mais precisava de falar naquele instante. "O que aconteceu?"
O tenente Lopes tirou o boné e limpou com as costas da mão a transpiração que lhe escorria em abundância pela testa.
"Foi esta manhã na Angónia", disse. Já tinha repetido vezes sem conta a mesma história em poucas horas, mas era como se precisasse de a relatar de novo. "O senhor comandante Trovão tinha ido lá para fazer uma visita de inspecção. Quando iniciou o caminho de regresso, os turras apareceram de surpresa na berma da estrada e metralharam a coluna no momento em que os carros iam a passar." Baixou a voz. "Ele foi atingido de lado."
"Teve morte instantânea?"
O tenente abanou a cabeça.
"Não."
O director do hospital suspirou, deprimido. Tal como no instante em que a irmã Lúcia lhe havia dado a notícia, lembrou-se da última vez que vira o amigo. Fora dois dias antes, no sábado, depois de terem jantado em casa dele. Trovão e Carolina, que estava grávida de um segundo filho, tinham ido à porta despedir-se. A derradeira imagem que guardava dele, apercebeu-se, era um aceno.
"Há uma coisa que não entendo, tenente", disse José, quebrando o súbito mutismo imposto pelas reminiscências. "O jipe do comandante Trovão não é blindado?"
O tenente Lopes assentiu.
"Foi um azar dos diabos, doutor. O administrador da Angónia quis falar com o senhor comandante e convidou-o a ir para o carro dele, que não é blindado, durante a parte inicial do percurso. De modo que à frente seguia o carro do administrador e atrás vinham os jipes blindados. Quando os turras atacaram, dispararam sobretudo sobre o automóvel. O senhor comandante estava do lado errado dos assentos traseiros e foi atingido, mas o administrador safou-se."
Não havia muito mais a dizer. A conversa fora até ali acompanhada em silêncio por Mimicas.
"A Carolina deve estar devastada", observou ela enquanto abanava a cabeça. "Que horror!..."
O tenente Lopes pigarreou, quase embaraçado.
"Receio que a esposa do senhor comandante ainda não tenha sido informada", disse. "Foi uma grande confusão esta manhã e a nossa prioridade era trazê-lo aqui para o hospital. Agora temos de tratar das formalidades e... e informar a família."
José e Mimicas entreolharam-se, sentindo a responsabilidade. Eram amigos pessoais do casal Trovão e não gostariam que a notícia fosse dada a Carolina de uma forma oficial.
"Isso não pode ser assim", murmurou Mimicas, respirando fundo como se se preparasse psicologicamente para o que a esperava. "Temos de ser nós."
Fizeram em silêncio o caminho até casa dos Trovão, uma vivenda de traça colonial relativamente perto do rio. Estacionaram por baixo de uma árvore, mesmo ao lado da esquadra da PSP, e, controlando o nervosismo, assomaram ao portão.
Carolina estava sentada no quintal a gozar a sombra fresca de uma mangueira e a ler um policial que tinha pousado no regaço, era um livro de Agatha Christie, enquanto a mão esquerda afastava distraidamente as moscas que zuniam em redor. O filho brincava com carrinhos no chão, os joelhos sujos de lama e poeira, o cabelo loiro a refulgir ao sol.
Ao aperceber-se de que alguém acabara de abrir o portão, Carolina levantou os olhos para ver de quem se tratava. Estranhou que fosse o casal Branco, não era habitual José e Mimicas visitarem-na àquela hora, mas pensou que isso não era impeditivo de que se revissem; afinal todas as ocasiões são boas para que os amigos se juntem. Pousou o livro no chão e levantou-se de pronto, exibindo a enorme barriga de grávida, e acolheu-os com um sorriso luminoso.
O sorriso, porém, não veio retribuído. Foi justamente nesse instante, ao identificar um estranho olhar opaco que nublava o semblante fechado dos visitantes, que Carolina tomou consciência de que havia algo de profundamente errado e sentiu as pernas fraquejarem.
"Aconteceu alguma coisa?"
Enquanto manobrava o volante do automóvel no trajecto de regresso a casa, José ia ponderando se deveria ou não refazer os planos para o resto da semana. Seguia sozinho no carro, uma vez que Mimicas havia ficado com Carolina para a apoiar no que fosse necessário, e avaliava as vantagens e os inconvenientes de cada uma das duas opções que tinha em mente.
"Vou?", murmurou entre dentes, falando para si próprio como se desse modo conseguisse raciocinar melhor. "Ou não vou?"
O plano de voo do Serviço Médico Aéreo previa que partisse na madrugada seguinte, terça-feira, e saltitasse por todo o distrito até ao regresso, ao final da tarde de sexta. Deveria manter o plano ou seria melhor cancelar tudo? Sentia-se perturbado com a morte do amigo e tinha dificuldade em ver as coisas com clareza.
Considerando a sua relação com o comandante Trovão e a necessidade de apoio à família, o cancelamento das operações aéreas durante essa semana era sem dúvida o mais aconselhável. Quando se inclinava para esta opção, todavia, o outro lado da questão fazia-se ouvir na sua mente. Então e as centenas de pessoas que iam ficar nessa semana sem assistência médica devido à suspensão do Serviço Médico Aéreo? E se algumas morressem porque o médico decidira não aparecer? Como poderia ele viver com isso? Estas interrogações inclinavam-no inexoravelmente no sentido oposto. Contudo, quando se decidia a manter o plano, o rosto do comandante Trovão formava-se na sua mente e concluía que ninguém, a começar por ele próprio, compreenderia a sua ausência no funeral e no apoio à família.
"Vou ou não vou?"
Encontrava-se ele em pleno processo de indecisão sobre como proceder quando chegou ao alto da colina. Poderia ter prosseguido para casa, como de resto era a sua intenção inicial, mas que iria ali fazer se nem sequer Mímicas lá se encontrava? Optou assim no último instante por virar à esquerda e meteu-se pela estreita passagem entre o hospital e a farmácia.
Estacionou no pátio interior e abriu a porta para sair, mas logo que tirou uma perna do carro viu o rosto bolachudo da irmã Lúcia abeirar-se da janela do automóvel. Vinha ofegante.
"Doutor, tenemos um problema!"
"Então? Que se passa?"
"Vieram aí dois hombres da polícia para si."
O médico esboçou uma careta de estranheza.
"Polícia? Para mim?"
A freira espanhola confirmou com um curto aceno afirmativo.
"Quieren bablar consigo."
O médico lançou um olhar pensativo na direcção das urgências, onde permanecia o corpo de Trovão.
"A PSP deve querer a certidão de óbito."
Lúcia abanou a cabeça, enfática.
"Não era a PSP, doutor", afirmou. "Era a PIDE."
A rapariga negra alçou os olhos brilhantes para Diogo e sorriu; tinha um rosto fresco e agradável, com linhas simétricas e dentes reluzentes. O contacto dos olhos durou um segundo, instante breve mas suficientemente longo para o efeito desejado, e logo ela os baixou, fingindo concentrar-se no pilão. O furriel estacou junto à vedação e estudou-lhe o corpo curvilíneo.
A rapariga estava em tronco nu, pelo que o militar se pôs a apreciar-lhe os seios que saltitavam ao ritmo das batidas desferidas no pilão; eram seios voluptuosos, com os mamilos em pipeta, quase tão suculentos como os da Guidinha, a Lollobrigida de Espinho. Um novo olhar convidativo da negrinha deixou-o a rebentar de desejo; tinha de a possuir.
A rapariga mostrou-lhe de novo os dentes e Diogo devolveu- lhe o sorriso, deixando-a assim saber que ela lhe agradava. Gostaria de lhe falar, mas o arame farpado e o pilão eram uma barreira. Além do mais, tinha de se despachar porque precisava de se preparar para a missão dessa tarde. Voltou a levantar o saco e, lançando uma derradeira espreitadela aos seios apetitosos que balouçavam sobre o pilão, retomou o caminho ao longo da vedação que separava o posto do Chioco do vizinho aldeamento civil que o GPZ ali havia construído.
Quando chegou junto do portão, procurou o mainato no outro lado.
"Ó chefe!", chamou ao vê-lo sentado à entrada de uma palhota. "Já tens a farda pronta?"
O mainato olhou para ele e o rosto abriu-se.
"Sim, patrão."
O negro desapareceu na palhota e voltou logo a seguir com um tacho na mão esquerda e um camuflado embrulhado num plástico na outra. Estendeu a farda através da vedação e Diogo cheirou-a; vinha limpinha e bem passada. Sorriu aprovadoramente e ainda pensou em vestir pelo menos a camisa, mas reconsiderou e embrulhou a farda num pano. Estava ali havia algumas semanas e já se habituara ao "fardamento" tradicional do Chioco: calções, sapatilhas, boné e tronco nu. O camuflado, lavado e passado pelo mainato, só seria usado quando saísse na patrulha dessa tarde; não valia a pena sujá-lo enquanto estivesse no aquartelamento.
Diogo apercebeu-se de que o mainato espreitava com um toque de impaciência o saco que trouxera; devia estar com fome. O furriel pegou no saco e estendeu-o por entre os arames da vedação.
"Hoje é um peixe maningue bom que veio lá da Metrópole", anunciou-lhe. "Nunca ouviste falar de bacalhau?"
O negro abriu o saco e despejou no seu tacho o bacalhau à Gomes de Sá que o militar lhe entregara.
"Não, senhor."
"Então tu e a tua família vão provar agora. Pus também aí dentro pão e uns rebuçados para os miúdos."
"Obrigado, patrão" O mainato hesitou. "Tem problema com um dos filhos, patrão."
Diogo soergueu a sobrancelha.
"Problema? Que problema?"
"Tem dor na barriga."
O furriel olhou de relance para a tenda do posto médico. A porta estava fechada.
"Eh, pá! A consulta para a população é amanhã. O miúdo não aguenta até lá?"
"Chora muito, patrão."
O tom do mainato transmitia alguma urgência. Diogo voltou a lançar um olhar para o posto médico. Uma vez por semana o posto abria-se à população para uma consulta e isso seria já no dia seguinte, mas claro que estava sempre disponível para os casos mais urgentes. Seria aquele caso urgente? O olhar do mainato assim dava a entender, pelo que Diogo pegou na farda que lhe fora entregue e, antes de dar meia volta, assentiu com a cabeça.
"Vou chamar o enfermeiro Moscoso", prometeu. "Aparece no posto daqui a meia hora, está bem?"
A patrulha saiu ao princípio da tarde com um guia do aldeamento. Apesar de ter chegado poucas semanas antes ao Chioco e de ser Chaparro o furriel com mais experiência, Diogo assumiu o comando da patrulha. A frente ia o guia e logo atrás seguia ele, a G3 sem bandoleira e sempre apoiada nos antebraços com um dedo colado ao gatilho, e depois vinham os restantes soldados. Chaparro transportava uma pesada HK 21, uma metralhadora de tripé com tiro particularmente nutrido, embora de manuseamento menos fácil devido ao volume e ao peso.
Meteram por um trilho em fila indiana, os olhos sempre atentos a qualquer mina ou movimento suspeito no capim. Caminharam durante uma hora em silêncio, as raras palavras sopradas em sussurro. Diogo ia embrenhado nos seus pensamentos, e sobretudo na visão que tivera junto do arame farpado quando fora levar a comida ao mainato. A negra do pilão ficara- lhe na retina, mas não sabia ainda lidar com a situação.
"Olha lá, ó Chaparro", disse de repente, voltando-se para trás. "Como é no aquartelamento com... com as gajas?"
O furriel de Redondo fez um ar admirado.
"Quais gajas?"
"Ó pá, nós temos um aldeamento ao lado do aquartelamento, não temos? O aldeamento está cheio de gajas. Qual é o esquema com elas?"
"As pretas? Não há esquema nenhum. Se te meteres com uma delas, vais contra as normas."
Diogo fez uma careta descrente.
"Oh, isso são as normas... Mas como é a coisa na verdade? Consegue-se dar umas pinocadas?"
"Conseguir, consegues", disse Chaparro com um encolher de ombros. "As tipas não se armam em esquisitas e se puderem ferram-te mesmo o dente. Um branco é um passaporte para outra vida, não é? O problema é se a coisa se sabe. O capitão chama-te logo e vais ter chatices por violares as normas."
Diogo meditou um instante sobre o que acabara de ouvir.
"Mas que raio de normas são essas?", quis saber. "Quando fiz a recruta na Metrópole li os regulamentos de uma ponta à outra e não me lembro de ver lá nada sobre isso. Onde estão essas normas escritas?"
Chaparro riu-se baixinho.
"Ó palerma, estou a falar de normas de conduta. Um militar decente não se mete com as indígenas."
A observação deixou Diogo a pensar. Caminharam mais algum tempo num silêncio pensativo, o furriel com os olhos no caminho mas a mente na negra do pilão. O corpo exigia-lhe que se aproximasse dela, mas percebia que se o fizesse a coisa saber-se-ia, num meio tão pequeno. Isso pelos vistos não o ajudaria a conquistar a simpatia do capitão, o que lhe poderia valer chatices e talvez alguns trabalhos indesejáveis, a começar pela limpeza das latrinas.
"Portanto", disse cinco minutos depois, retomando a conversa como se ela nunca tivesse sido interrompida, o que até era verdade no que dizia respeito ao diálogo que não cessara na sua mente. "Quanto a gajas, não há nada para ninguém!..."
"Quer dizer... podes sempre arriscar, não é? O problema não é comer uma preta, é ser apanhado a comê-la."
"Já despachaste alguma?"
O furriel voltou a rir-se.
"Não posso dizer!..." "Vá lá."
"Olha, se queres comer uma gaja sem arranjar chatices com a hierarquia, vai ao Maxim."
"Que é isso?"
"É a boite de Tete." Sorriu. "O local preferido dos camaradas que a ditosa pátria desterrou neste buraco. Entras no Maxim e aquilo é um mar de fardas. E gajas boas, claro."
"Costumas ir lá?"
Foi a vez de Chaparro se manter momentaneamente calado, como se ponderasse o que podia ou devia revelar.
"Ó Paulo de Carvalho", acabou por dizer, "onde pensas tu que apanhei a porra destes chatos?"
O guia ergueu de repente a mão, fazendo sinal para parar. O grupo de combate imobilizou-se, a atenção aguçada e os olhos a dardejarem em todas as direcções. Diogo aproximou-se do homem.
"Que se passa?"
"Picada minada, patrão."
O furriel examinou o trilho, esforçando-se por destrinçar a presença de qualquer dispositivo suspeito, mas nada detectou.
"Onde?"
"À frente", indicou o guia, dizendo o óbvio. Fez sinal para o capim em redor. "Melhor dar volta pelo mato."
Diogo lançou um novo olhar perscrutador ao trilho, mais uma vez sem resultados. Na dúvida, porém, parecia-lhe melhor fazer o que o guia dizia; a mina podia estar escondida por baixo de folhas ou ser accionada por um fio esticado no caminho. A verdade é que não tinha maneira de saber e se o guia dizia que via ali uma mina talvez não fosse má ideia admitir essa possibilidade.
Ergueu o braço e fez sinal ao grupo de combate para que o seguisse fora da picada. Indicou ao guia que mostrasse a direcção e acompanhou-o pelo capim, contornando o trilho. Andaram assim pelo mato cerrado em fila indiana durante algumas centenas de metros até que o guia retomou a picada num ponto mais à frente e prosseguiram caminho.
Ainda intrigado, o furriel tomou nota do troço no mapa e inquiriu Chaparro.
"Viste ali alguma mina?"
"Não."
"Então como pode ele ter dito que aquele troço estava minado?"
Chaparro suspirou, como se achasse a pergunta ingénua, e fez uma curta pausa para considerar o melhor modo de explicar as coisas àquele furriel checa.
"Olha lá, onde é que o guia vive?"
"No aldeamento."
"Que está infiltrado pelos turras, pá."
Mais do que surpresa, a revelação gerou no rosto de Diogo uma expressão de absoluta incredulidade.
"Estás a gozar!..."
"Achas que sim? Nunca ouviste os cães do aldeamento ladrar à noite? Nunca te interrogaste sobre o motivo por que o fazem?"
"Confesso que não..."
"Os cães ladram porque sentem os turras a entrar no aldeamento para dormir, pá. Os gajos dormem ao lado do nosso aquartelamento!"
A afirmação deixou Diogo perplexo. Todas as noites ouvia de facto os cães a ladrar, ainda na véspera isso havia acontecido, mas nunca prestara grande atenção ao caso.
"Ai sim? E o capitão sabe?"
"Finge que não sabe", sorriu Chaparro. "Mas toda a malta no Chioco tem perfeita noção do que se passa."
"Então porque não vamos lá buscá-los?"
"A quem? Aos turras? Para quê?"
Embora Diogo estivesse atónito com a sucessão de revelações, o que o deixava verdadeiramente estarrecido era sobretudo o facto de aquele militar se comportar como se tudo aquilo que estava a dizer fosse normal.
"Para os prender, claro!", exclamou, quase a elevar a voz. O guia lançou-lhe um olhar de repreensão e o furriel, percebendo que violara perigosamente as regras de silêncio da patrulha, baixou o tom. "Se sabemos onde os turras estão", sussurrou, "temos de os ir lá buscar!..."
"Achas que sim? E depois sabes o que nos acontece? Os gajos retaliam e põem-se a lançar morteiradas para o aquartelamento todas as noites e a vida torna-se um inferno."
"E então? A malta manda uma patrulha localizar os morteiros e acaba com eles."
"E os tipos montam-nos uma emboscada no caminho e depois cavam. Quando a patrulha chegar ao local já não estão lá os morteiros e quando regressar ao aquartelamento as granadas começam outra vez a cair. Toda a noite. E na noite seguinte também."
Apanhado no fogo cruzado da argumentação, Diogo sentiu- se enredado num colete-de-forças que lhe tolhia os movimentos. Suspirou de frustração e impotência.
"Se assim é, os aldeamentos não servem para nada!", concluiu. "Andamos com este esforço todo para construir os aldeamentos e arrebanhar as populações para as meter lá e no fim verificamos que eles estão todos contaminados. Então é melhor acabar com a porra dos aldeamentos!..."
"Não é bem assim", corrigiu Chaparro. "Com os aldeamentos ao menos temos a possibilidade de os controlar e de exercer uma acção psico que nos ajude a conquistar as populações."
"Como dar-lhes acesso ao posto médico?"
"Por exemplo, mas não só. Não te esqueças de que a generalidade das populações do distrito de Tete nos são adversas, ao contrário do que se passa por exemplo em Nampula. Têm por isso de ser controladas e os aldeamentos servem essa função às mil maravilhas." Deu mais uns passos, pensativo. "E é preciso não esquecer que há outras vantagens." Apontou para o guia que ia mostrando o caminho pela picada. "Este gajo, por exemplo. Perguntaste como sabia ele que o troço estava minado. Será que viu a mina? A resposta é não. O que se passou foi que, antes de sair com a nossa patrulha, o gajo foi perguntar aos turras quais os troços que devia evitar."
O furriel cravou os olhos nas costas do guia, examinando-o como se esperasse vê-lo de repente voltar-se com uma Kalashnikov nas mãos.
"A sério?"
"Não duvides", assentiu o militar. "O gajo pode não ser turra, mas é pelo menos amigo dos turras ou tem medo deles." Olhou de relance para trás, verificando a posição do resto do pelotão. "E sabes que mais? Ainda bem! É aliás graças a isso que estamos a fazer a nossa patrulha em segurança!..."
Sem desviar os olhos do guia, Diogo mal conseguiia ocultar o pasmo.
"A minha alma está parva!"
Chaparro fez com as mãos um gesto de impotência e abriu o rosto num sorriso falsamente ingénuo.
"No mato, pá, o lema da tropa é muito simples, "Vive e deixa viver."
Prosseguiram o resto do caminho em silêncio. O que Chaparro acabara de contar deixara Diogo assombrado. Como era possível que tropa e guerrilheiros dormissem pacificamente a poucas dezenas de metros uns dos outros? Sempre imaginara a guerra de uma simplicidade transparente: os heróis de um lado e os bandidos do outro. Sempre que se encontravam deviam matar-se até os bons ganharem e os maus perderem. Simples e justo. Aliás, bastava ver os filmes de guerra do John Wayne para perceber como tudo era claro, os opostos distintamemte recortados, a branco e preto.
Branco e preto.
Como ali em África. Brancos de um lado, pretos do outro. Só que a realidade, como constatava agora que mergulhara nela, não era assim tão linear. Para começar, metade das tropas brancas eram na verdade negras! Como o seu grupo de combate, aliás. Olhou para trás e observou os soldados que o seguiam em fila indiana pela picada. Uns eram brancos, outros mulatos e outros negros; tudo em proporções iguais e equilibradas, até parecia de propósito.
Depois havia o pormenor insólito de, pelo menos no caso dos aquartelamentos nos confins do mato, tropa e guerrilheiro conviverem no mesmo espaço. Pensou subitamente no seu mainato. Seria ele um guerrilheiro? E porque não? O homem tinha uns trinta anos; ainda estava em idade de combater. Quem lhe garantia que o mainato, depois de lhe entregar a farda lavada e de comer o bacalhau à Gomes de Sá que lhe dera em pagamento pelo serviço e de ter levado o filho ao posto médico do aquartelamento para ser tratado pelo furriel enfermeiro Moscoso, não saía do aldeamento e ia buscar uma Kalashnikov escondida no mato e se punha também ele a brincar à guerra?
Os olhos fixaram-se de novo no negro esfarrapado que caminhava diante dele. Claro, havia também o problema do guia. Como poderia continuar a confiar nele? É verdade que haviam feito a patrulha em segurança, mas até que ponto é que...
Apercebeu-se de algo estranho do lado direito, entre os arbustos, e ergueu a mão para deter o pelotão. Os soldados ficaram alerta e Diogo saiu da picada, esforçando-se por não fazer barulho. Aproximou-se de um tufo de capim alto e abriu uma nesga na vegetação, estudando o que lhe despertara a atenção.
"Que se passa?", sussurrou-lhe Chaparro ao ouvido.
Diogo apontou para uma área situada entre os arbustos e o camarada conseguiu vislumbrar uma cobertura de colmo em forma cónica.
"Uma palhota", segredou.
O furriel ergueu de novo a mão e fez sinal ao grupo de combate, indicando-lhe que o seguisse. Com o coração a ribombar, acariciou com o dedo o gatilho da G3 e abriu caminho no capim, progredindo curvado e devagar, atento a qualquer movimento suspeito. Sentiu os homens atrás dele e isso deu-lhe confiança. Caminhou mais uns metros, tendo o cuidado de evitar pôr os pés em ramos secos e estaladiços, e acocorou-se junto ao último arbusto diante da palhota. Espreitou entre os galhos do arbusto e verificou que se tratava de duas cubatas de construção recente. Apercebeu-se então de movimento à porta de uma palhota e viu um desconhecido sair com um balde e acocorar-se diante de um buraco. Ia buscar água a um poço.
Diogo varreu o espaço em redor com o olhar, preocupado em assegurar-se de que os seus homens se encontravam em posição, e fez sinal para avançarem. O pelotão ergueu-se e cruzou a linha de arbustos com as G3 prontas a disparar, invadindo a clareira onde se encontravam as palhotas. O desconhecido que mergulhara o balde no poço olhou para trás e, com uma expressão de susto, apercebeu-se da presença dos soldados. Pôs de imediato as mãos no ar, deixando o balde tombar no poço.
Com aquele homem neutralizado, Diogo penetrou cautelosamente na primeira palhota e revistou-a; além de roupa e de alguma comida, nada mais encontrou. Ao voltar para fora observou Chaparro a sair da segunda palhota com a arma apontada a um rapaz também de mãos erguidas. Havia portanto duas pessoas por ali.
Presumindo que os suspeitos não falavam português, o furriel chamou o guia.
"Pergunta-lhes quem são e o que fazem aqui."
O guia voltou-se para o mais velho e, após uma troca de palavras em nhungué, traduziu as respostas.
"Chamam-se N'gume e Kashuda. Dizem que vivem aqui e estão a cuidar das machambas."
"Eles não sabem que não podem viver fora dos aldeamentos?"
"Dizem que têm fome, patrão", devolveu o guia sem sequer questionar o homem do balde. "Foi por isso que vieram tratar das machambas."
Diogo estudou-os da cabeça aos pés. Tinham um aspecto miserável, era um facto, mas não lhe pareciam esfaimados.
"Pede-lhes os documentos."
O guia traduziu a ordem em nhungué e o mais velho abanou a cabeça e respondeu.
"Não têm documentos, patrão. Dizem que perderam."
Diogo trocou um olhar com Chaparro, que acompanhara toda a conversa e abanava a cabeça com cepticismo. O furriel afastou-se dois passos e o camarada acompanhou-o.
"O que achas, Chaparro?"
"Vivem fora dos aldeamentos em palhotas de construção recente numa zona totalmente contaminada pelo in, estão em idade de combate e não têm documentos?", questionou o oficial miliciano com uma careta céptica. "Hmm... não sei!..."
"Serão turras?"
Chaparro lançou um novo olhar aos dois suspeitos, como se a expressão lhes assentasse à medida.
"Não tenho dúvidas."
"Mas não há prova disso."
O alferes riu-se sem vontade.
"De que provas precisas, pá?", perguntou. "Queres uma folha azul de vinte e cinco linhas em que os gajos declarem por sua honra que são turras, com a assinatura reconhecida presencialmente pelo notário? Claro que não temos prova de nada! E então? Isso não impede que os gajos sejam turras, pois não?"
O comandante da patrulha aproximou-se do guia.
"Eles que nos acompanhem", ordenou. "Vão ser compulsivamente acantonados no aldeamento do Chioco."
Depois foi dar ordens aos seus homens, que até ali se limitavam a garantir a segurança ao perímetro, e dez minutos mais tarde o pelotão voltava à picada com os dois suspeitos. Atrás dos soldados, e conforme o procedimento normal em território hostil, as duas palhotas eram já piras de fogo, tochas cambaleantes que as chamas apunhalavam em golpes ininterruptos, a palha ardente a contorcer-se devagar numa sinfonia sinistra de estalidos.
O mau humor do inspector Aniceto Silva era perceptível pelo semblante carregado e pela forma seca como acolheu o director do hospital. O próprio José sentia-se abatido com a morte do comandante Trovão e presumiu, talvez com razão, que a má disposição do anfitrião e a convocatória para aquela reunião estavam relacionadas com o mesmo assunto.
"Que merda, isto", observou o médico, cabisbaixo. "Acabei de falar com a mulher..."
O inspector deixou-se cair no seu lugar habitual sem sequer convidar o visitante a sentar-se. Mas José nem se apercebeu da descortesia e, movendo-se como um autómato, acomodou-se maquinalmente no sofá, uma expressão fatigada a obscurecer-lhe o olhar.
"É para que veja como isto está, doutor", observou Aniceto Silva. "Eu bem lhe digo que as coisas andam a piorar. Os turras já atacam em toda a parte. Cruzaram o Zambeze, passaram para o Sul do distrito e noutro dia, ao fim destes oito anos de guerra, lançaram o primeiro ataque em Manica e Sofala. Está a ver isto? Estamos em 1972 e os gajos já ameaçam Vila Pery e a Beira!" Abanou a cabeça e olhou para a palma da mão esquerda, fechando-a com um movimento rápido. "Tivemos a guerra quase ganha, caraças! Agora a coisa ameaça descontrolar-se."
O médico lançou-lhe um olhar provocador.
"E porquê, ó inspector?", perguntou em tom de desafio. "Porquê?"
"Porque não trabalhamos de forma adequada as populações", retorquiu o chefe distrital da DGS. Fez um gesto com a mão a indicar a sua secretária. "Ainda há pouco terminei um relatório que vou mandar para Lourenço Marques. Em Nampula conseguimos pôr os macuas do nosso lado, mas aqui não foi feito nenhum trabalho aprofundado com as etnias. Para agravar as coisas, muitos dos nossos administradores não passam de uns broncos retrógrados que não têm a menor preocupação com o bem-estar das populações. Parecem reis absolutos e chegam a dispor dos pretos como se fossem escravos. Quem é que tolera uma coisa dessas? Depois ainda se admiram que a propaganda subversiva do in esteja a funcionar!"
José fitou o interlocutor com a surpresa desenhada na face. Nunca imaginara que um dia ouviria um elemento da DGS a defender os negros, mas isso acabara de acontecer.
"A sua análise parece-me correcta", arriscou. "Mas o senhor está em posição privilegiada de mudar essas coisas..."
O inspector da DGS suspirou e voltou a sacudir a cabeça com uma expressão de desânimo.
"As pessoas acham que, pelo simples facto de sermos da DGS, podemos fazer tudo. Mas isso não é bem assim. Não se mudam mentalidades por decreto e se calhar já vamos tarde." Ergueu um dedo, à laia de alerta. "Isto do Trovão, doutor, foi apenas um aviso. Amanhã podemos ser nós."
"Isto foi é um grande azar, inspector", disse o médico. "Se o Trovão, em vez de ir no carro com o administrador, tivesse mas é ficado no jipe!..."
"Se, se, se!", cortou o chefe distrital da DGS. "Independentemente de todos os 'ses' que se possam imaginar, o facto é que os turras estão a crescer e não estou a ver como podemos ter mão nisto. Qualquer dia põem-se a bombardear Tete."
O médico lançou-lhe um olhar agastado, reprovando aquela observação; parecia-lhe alarmista.
"Que exagero, inspector!"
"Acha que sim?"
"Claro que acho", retorquiu José sem hesitar. "Que eu saiba eles não atacam civis."
"E o carro do administrador da Angónia onde o Trovão ia era o quê?", atirou Aniceto Silva num tom sibilino. "Um tanque de guerra? Uma Berliet?"
O sarcasmo era ajustado, pensou José sombriamente. Lembrou-se que Trovão tinha de facto sido abatido num automóvel civil e isso constituía uma evolução perturbadora; por outro lado, não esquecia que a viatura, sendo civil, era do estado, o que de certo modo a tornava um alvo.
"Bem... a tropa aguenta isto."
O inspector da DGS soltou uma gargalhada sem humor.
"A tropa?", questionou com insolência. "Não me faça rir, doutor!..."
O médico dissera-o por dizer, mas ficou surpreendido com o derrotismo que pressentia no homem mais informado do distrito. Se o inspector se sentia desanimado, boas razões teria para estar assim.
"Porquê? Acha que não?"
"Acho."
"Não diga isso, inspector", exclamou José. "Ainda noutro dia recebi um telegrama de uma irmã minha a dizer que o filho foi colocado num quartel aqui no distrito de Tete, não sei bem onde. Se o senhor me diz que a tropa não aguenta isto..."
"O seu sobrinho é miliciano ou está nas tropas especiais?"
"É miliciano, creio eu."
"Então não tem de se preocupar com os turras", observou o responsável da DGS com acidez. "O problema dele vão ser as gajas e as Laurentinas."
"Porque diz isso?"
Aniceto Silva comprimiu os lábios finos e olhou de soslaio para o interlocutor, como se ponderasse até onde deveria ir a liberdade das suas observações.
"Ó doutor, a nossa tropa é uma vergonha", desabafou por fim, a boca deformada numa expressão de desprezo. "Muitos soldados têm comportamentos arbitrários com os pretos e as pretas. Às vezes andam bêbados, outras vezes metem-se em tiroteios disparatados e até já os vi a desrespeitarem os superiores sem qualquer sanção disciplinar. Uma vergonha!" Inclinou-se no seu lugar, como se quisesse confidenciar algo. "Noutro dia o Kaúlza veio cá inspeccionar uns quartéis. Sabe o que aconteceu? Os chefes militares deram ordens apressadas aos soldados para vestirem o camuflado e irem dar umas voltas no mato ali perto. O Kaúlza veio, pareceu-lhe que estava tudo bem, foi-se embora e a tropa voltou do mato para a pândega. É esta a tropa que aguenta isto?" Voltou a rir sem humor. "Não brinque comigo!" Recostou-se no seu assento e cruzou a perna, balouçando-a nervosamente. "O estado de espírito da tropa miliciana vai de mal a pior, doutor. Os nossos homens fazem a guerra de braços caídos e só querem é andar nas putas que frequentam ali o... como é que se chama o raio da boîte?"
"O Maxim."
"Isso, o Maxim! E nas raras ocasiões em que vão para o mato, não só não procuram o inimigo como fazem todos os possíveis por não o encontrar!" Abanou insistentemente a cabeça. "Não, doutor. A sua irmã não tem de se preocupar com o filho."
"Não sei se será bem assim", corrigiu José. "Quando ando a viajar por aí chegam-me informações frequentes de combates. Parece-me sinal inequívoco de que a tropa está activa."
O inspector ergueu dois dedos, como se fizesse o V de vitória, mas sem a convicção dos vencedores.
"Isso só podem ser duas coisas", disse. "Ou são os turras a emboscar a tropa ou são os comandos ou os pára-quedistas ou os grupos especiais de tropas negras atrás dos turras. As forças especiais são as únicas que se mostram activas na perseguição ao inimigo. Os milicianos, esses, querem é tratar da sua vidinha e que ninguém os chateie!... Tome nota do que lhe digo: nesta guerra os comandos, os páras e os GE andam atrás dos turras, os turras andam atrás da tropa e a tropa anda atrás das gajas. É assim que se combate no Ultramar."
"O senhor fala como se a guerra estivesse perdida..."
"Perdida, não direi. Digamos que está ganha em Angola, perdida na Guiné e empatada em Moçambique."
Uma espreitadela discreta ao relógio despertou José para as horas. Já se fazia tarde, a guerra não era a sua especialidade e tinha ainda decisões a tomar sobre as operações dessa semana do Serviço Médico Aéreo.
"Bem, tenho de ir andando", disse, pondo-se de pé. "Gostaria apenas de..."
"Tenha calma, doutor", interrompeu-o Aniceto Silva. "Sente- se! Ainda temos coisas para conversar."
O chefe distrital da DGS manteve-se quieto no seu lugar, sinal claro de que não dera a reunião por concluída. José lembrou-se de que tinha também uns assuntos pendentes para resolver com o inspector, pelo que voltou ao seu lugar.
"Então o que se passa?", perguntou. "Julguei que me tinha chamado para falarmos sobre o Trovão..."
Aniceto Silva olhou para os dedos da mão, como se inspecionasse as unhas, e afinou a voz.
"Mandei que o chamassem por outro motivo, doutor", disse num tom monocórdico, quase formal. "Fui informado de que o senhor colocou uma criança negra num quarto particular do hospital, em vez de a meter na enfermaria geral." Levantou os olhos e cravou-os no médico. "Pode explicar-me porquê?"
José ficou um longo momento boquiaberto, tentando descortinar algum sinal escondido por detrás daquelas palavras ou no tom com que elas tinham sido formuladas.
"O senhor está a brincar?", perguntou por fim.
"Estou a falar muito a sério", insistiu o homem da DGS com um semblante grave. "Pode explicar-me os motivos que o levaram a internar uma criança negra num quarto particular? Parece que até a mãe dela também lá ficou!..."
A pergunta era mesmo a sério, percebeu o director do hospital. Respirou fundo, respingando no seu interior as sobras de paciência até amealhar algumas migalhas. Havia sido um dia para esquecer e a última coisa de que precisava era ter de justificar perante a DGS uma decisão tão insignificante como aquela.
"A criança é filha de um oficial do exército", começou por explicar. "Apanhou varíola e encontra-se num estado muito grave, dado tratar-se de uma patologia infecto-contagiosa que carece de cuidados específicos. É muito raro os latentes sobreviverem à varíola, mas estamos a fazer os possíveis para salvar a menina. Considerei que um quarto particular era o local ideal para lidar com este caso tão sério e com tão elevada taxa de mortalidade." Inclinou a cabeça, deixando a irritação espreitar por entre as suas palavras. "Não sabia que existia uma proibição de internar crianças negras em quartos particulares do nosso hospital, nem que um assunto desta dimensão pudesse preocupar a PIDE."
Aniceto Silva voltou a mirar as unhas da mão esquerda.
"A DGS, caro doutor Branco, preocupa-se com tudo", sentenciou. "Não existe nenhuma proibição de internar crianças negras nos quartos particulares." Mais uma vez levantou os olhos para o seu interlocutor, como se o que tinha dito enquanto contemplava as unhas não passasse de um preâmbulo. "O que existe é a proibição de exercer funções públicas sem bom senso."
"Desculpe, mas não percebo onde pretende chegar", devolveu José, já agastado. "Não vejo em que é que meter a filha de um oficial num quarto particular do hospital constitui falta de bom senso. Gostaria que me explicasse isso."
"Não tenho de explicar nada a ninguém", cortou o inspector num tom subitamente ríspido. "Tenho é de perceber o que se passa na zona sob a minha jurisdição e as intenções com que certas coisas são feitas, mais nada."
O director do hospital sentia-se suficientemente enervado para manter o registo de protesto, mas reconsiderou a sua postura. Fosse ou não do seu agrado, a realidade é que precisava de Aniceto Silva e não se podia dar ao luxo de o hostilizar abertamente. Se ia prosseguir aquela conversa, percebeu, tinha de o fazer noutro tom e de uma forma mais inteligente.
"Naturalmente que entendo que tudo isto faz parte do seu trabalho", disse de uma forma quase descontraída, como se tudo aquilo fosse muito razoável. "Mas há uma coisa que não estou a perceber. Ainda há pouco o ouvi criticar os administradores déspotas e defender os direitos dos indígenas. Como é que essa posição encaixa nas suas dúvidas sobre o internamento de uma criança negra num quarto particular do hospital?"
A sombra de um sorriso cruzou o rosto tenso do homem da DGS.
"É muito simples", retorquiu. "Devemos tratar bem os pretos, dar-lhes educação e saúde, pagar-lhes salários iguais por serviços iguais e contribuir para o seu bem-estar económico e social." Ergueu a mão, como um polícia sinaleiro a mandar parar o trânsito. "Mas, alto lá, não devemos exagerar. Tudo tem o seu limite, a partir do qual as coisas se tornam perniciosas. Um preto com excesso de educação, por exemplo, começa logo com ideias de expulsar os brancos e coisa e tal. Isso não podemos tolerar, como é evidente."
"Como o doutor Rouco, quer o senhor dizer?"
"Nem mais! Como o seu amigo Rouco."
"Não sei se sabe, mas o próprio Salazar convidou o doutor Rouco para ser deputado à Assembleia Nacional. Portanto não há-de ser tão mau quanto isso!..."
Aniceto Silva encolheu os ombros, como se a novidade lhe fosse indiferente.
"O nosso defunto presidente do Conselho lá teria as suas razões, que não me cabe a mim comentar", disse. "O facto é que o seu amigo Rouco se meteu com elementos subversivos, foi detido e depois enviado para a Machava e a seguir para Peniche. Que eu saiba, só agora o libertaram e deixaram regressar a Moçambique, mas com residência fixa na Beira, o que demonstra que continua a ser tido como perigoso. Ele é a prova viva de que um preto com excesso de educação se torna uma ameaça."
O médico teve de conter a irritação. Sabia muito bem qual a situação do amigo, com quem se correspondia para a Beira, e percebeu que aquela conversa não o iria levar a lado nenhum. Além disso tinha ainda uma outra questão a resolver e, embora o estado de espírito do seu interlocutor não fosse talvez o mais adequado, não a podia adiar.
"Ó inspector, já que estamos com a mão na massa, gostava de lhe falar sobre um outro problema", disse. "Como sabe, o senhor mandou deter dois enfermeiros meus."
Aniceto Silva sorriu.
"Estava a ver que não levantava esse assunto", observou, tirando do bolso das calças um papel com anotações que consultou. "Imagino que se esteja a referir ao Mendonça e ao... Mabunda."
"Esses mesmos", confirmou o director do hospital. "Estamos com falta de pessoal e precisava deles ainda hoje."
O inspector fez um gesto rápido com o papel na mão, sacudindo-o no ar.
"Lá está, é o que eu digo!", exclamou. "Dá-se demasiada educação a esta malta e começam logo a conspirar contra nós." Apontou para o primeiro nome anotado no papel. "Este enfermeiro Mendonça anda aí com um grupinho a bichanar por todos os cantos. Pensam que não os topo, mas a mim não me enganam."
"Ó inspector, estão apenas a estudar em horário pós-laboral. Deixe lá os moços!..."
"Estudar, dizem eles? Estão é a conspirar!..."
"Mas pegaram em armas? Mataram alguém?" Esboçou uma expressão de desinteresse. "Então deixe-os andar, enquanto falarem não fazem mal a ninguém. Aliás, o enfermeiro Mendonça tem até salvo maningue soldados que vêm todos partidos lá do mato. A mim não me interessa o que eles dizem, interessa-me o que fazem. E o que o Mendonça fez no hospital não tem preço."
O chefe distrital da DGS soltou um grunhido.
"Está bem, eu liberto os gajos", assentiu, quase contrafeito. "Mas diga ao Mendonça que tenha juízo, ouviu? Estou farto dos comentários que ele anda a fazer contra nós."
"E o enfermeiro Mabunda?"
"Esse foi detido só para que se mantenha em sentido, por causa dos filhos turras. Pode levá-lo também."
O médico espiou de novo o relógio, mais para sinalizar a pressa do que para saber as horas.
"Bem, então se calhar é melhor entregar-me já essa malta para eu ir andando, não é verdade?"
Levantaram-se ambos e Aniceto Silva deu ordem de soltura dos dois enfermeiros e dos três amigos de Mendonça que com ele estudavam à noite. O director do hospital e o chefe distrital da DGS dirigiram-se para a porta do edifício, onde ficaram a aguardar que os detidos tratassem das derradeiras formalidades e se reunissem a eles.
"Sabe o que mais me incomoda no meio disto tudo?", observou o inspector Silva enquanto esperava. "É que no fim a medalha vai ser de lata. De lata!"
"Que quer dizer com isso?"
O polícia fez um gesto na direcção do corredor ainda vazio.
"Olhe para estes gajos que estamos agora a libertar. Com as aberturas que o nosso novo presidente do Conselho tem ensaiado com a oposição, já vi que um dia tipos como estes vão tomar conta do poder. Quando isso acontecer, caro doutor Branco, vão fazer tudo o que estiver ao seu alcance para apagar da memória colectiva o que de bom este regime fez pelo país. Tudo." Esboçou um trejeito agastado com a boca. "Se o doutor ouvisse os comunistas que eu já interroguei, os mesmos comunistas que andam a contaminar a cabeça destes coitados, até lhe dava vómitos." Ergueu o dedo, empolgando-se. "Vómitos, digo-lhe eu!"
"Porquê? Que dizem eles?"
"Oh, nem queira saber: os maiores disparates!"
"Mas dizem o quê?"
"Olhe, que o regime quer o país pobre e subdesenvolvido, veja só! E dizem que o regime deseja manter as pessoas analfabetas e sem educação, que o regime fechou Portugal à Europa e ao mundo... essas aleivosias todas." Cravou os olhos no índico. "Repare bem, doutor. Desde os anos 50 que Portugal conheceu o maior crescimento económico da sua história. Com a monarquia e a República, o nosso país andou século e meio a atrasar-se em relação às nações mais desenvolvidas e tinha um défice orçamental crónico. Veio Salazar, as contas equilibraram-se e a economia disparou. Baixaram-se as taxas de juro, deu-se confiança aos empresários, aumentou-se a poupança e os resultados estão à vista. O crescimento económico tem andado perto dos sete por cento, a mesma taxa do Japão, e os salários reais cresceram seis por cento. São números fantásticos, doutor! Ainda ontem me chegaram aqui as estatísticas e elas parecem-me elucidativas." Meteu a mão ao bolso e retirou um papelinho, que desdobrou. "Olhe, até tomei nota. Veja aqui! Em 1950 o nosso PIB per capita correspondia a apenas trinta e cinco por cento do PIB per capita dos países mais ricos do mundo e este ano já representa quase cinquenta e oito por cento do PIB per capita desses países, o que significa que nos estamos a aproximar das nações mais desenvolvidas. Não é extraordinário? Acha que isto é política de quem quer manter o país subdesenvolvido?"
"Deixe lá ver isso."
O homem da DGS entregou o papel ao seu interlocutor, que passou os olhos pelas estatísticas rabiscadas a lápis.
"Além do mais, investiu-se na qualificação da mão-de-obra, que era desqualificada no tempo da República, como o senhor bem sabe. O regime expandiu as escolas primárias e secundárias, instalou postos escolares em todas as aldeias, recrutou regentes escolares para fazer frente à falta de professores, apostou nos liceus privados na província e agora também nos liceus públicos, investiu no ensino técnico... eu sei lá! A realidade é que em 1930 a taxa de analfabetismo em Portugal era de sessenta por cento e agora está reduzida a vinte e cinco por cento. Acha que isto é obra de quem tenciona manter o país ignorante e sem educação? Francamente! E como é possível dizer que estamos fechados à Europa e ao mundo quando aderimos à EFTA e à OECE e eliminámos a maior parte das restrições quantitativas ao comércio externo com a Europa ocidental e assinámos este ano um acordo comercial com a CEE? Como é possível dizer isso? E como..."
"Eles vêm aí", interrompeu-o José.
Os dois enfermeiros e os seus três amigos apareceram de facto no corredor, as formalidades já cumpridas. O inspector fez um gesto de desdém na direcção do grupo.
"O p'ra eles! Quando um dia esta malta tomar o poder vai dizer que queríamos manter toda a gente pobre e ignorante e Portugal isolado do mundo. Nós, que endireitámos o país e investimos nas colónias! E sabe qual é o problema? É que essas mentiras, caro doutor, vão tornar-se verdades indiscutíveis."
O director do hospital nada disse. Foi buscar o carro e acolheu os enfermeiros, deixando os outros três seguir a pé. Quando se preparava para arrancar, o inspector Silva assomou à janela do automóvel e acenou em direcção aos homens que acabara de libertar.
"Juizinho, hem?"
A brisa gerada pelo movimento da Berliet bafejava quente e seca, mas sempre compensava o calor ardente que incendiava a manhã. O céu abria-se num imenso azul sem nuvens, mas quando os veículos militares desembocaram na estrada principal que vinha de Vila Pery e viraram à esquerda. Diogo apercebeu-se de uma estranha nuvem amarelada a pairar sobre o horizonte.
"Tete", esclareceu Chaparro.
A informação deixou o furriel intrigado. Examinou a nuvem com atenção, interrogando-se sobre se o calor não teria provocado uma miragem e transformado o casario na ilusão de uma nuvem; já ouvira dizer que esse tipo de alucinação era comum em zonas muito quentes.
"Tens a certeza que aquilo é Tete?", perguntou. "Tem graça, a mim parece-me uma nuvem a flutuar sobre o mato!..."
A observação foi acolhida com uma gargalhada.
"Aquilo é uma nuvem", disse Chaparro. "Uma nuvem de poeira que paira em permanência sobre Tete."
"Poeira?""A maior parte das ruas da cidade são em terra batida, pá. Quase não há asfalto. Os carros passam e levantam pó e a poeira fica o dia inteiro a planar no céu."
A coluna entrou nas ruas de Tete no final da manhã e Diogo ficou com a impressão de circular numa povoação do faroeste, o que o deixou estranhamente confortado; era como se estivesse no Chioco, mas em ponto grande e em condições de segurança.
As viaturas militares misturavam-se com as civis, umas e outras cobertas de pó, e as balalaicas dos brancos amalgamavam-se com os trajos coloridos dos negros e o verde-azeitona das fardas militares usadas por homens de todas as cores. Viu aramistas, como esperava, mas também boinas castanhas das tropas regulares, como a sua, a cruzarem-se nas ruas com boinas vermelhas dos comandos, boinas azuis dos pára-quedistas e boinas amarelas dos grupos especiais africanos. Desprezava os aramistas, mas com as outras forças o sentimento dominante era de rivalidade. Os comandos em particular não o deixavam indiferente; achava que tinham a mania que eram os melhores e suspeitava que o seriam de facto.
A coluna proveniente do Chioco imobilizou-se num cruzamento dominado por um grande edifício, identificado no topo como o Hotel Zambeze, e Diogo, com a mão na cabeça para não deixar cair a boina castanha, saltou para o passeio e acenou aos camaradas que permaneceram na Berliet.
"Até logo!"
Perguntou pela direcção do hospital e subiu a rua até chegar ao alto da colina. Nunca havia ali estado, mas a imagem da fachada do hospital diante da pequena rotunda onde desembocava a rua confortou-lhe o coração. Era pois ali que trabalhava o irmão da mãe. Entrou no edifício e, depois de questionar uma enfermeira, foi enviado para uma porta no fundo do corredor.
"Olá, tio Zé!"
José Branco atendia um paciente e desviou o olhar para identificar quem o interpelara. Levou um longo segundo a associar a cabeça do militar que lhe espreitava pela porta do gabinete com a saudação que acabara de escutar e a perceber que aquele furriel era o seu sobrinho.
"Diogo!", exclamou por fim. "Estava a ver que não me vinhas cá visitar!"
O médico interrompeu a consulta para acolher o recém-chegado. A última vez que o tinha visto fora quinze anos antes, era Diogo ainda um miúdo. A irmã e a família haviam partido logo a seguir para Angola e, quando regressaram à Metrópole já ele estava a viver em Moçambique. Tinha recebido fotografias dos cinco sobrinhos, claro, mas eram apenas imagens de garotos sorridentes com os joelhos esfolados, sem nada que os singularizasse. Se se tivesse cruzado com Diogo na rua não teria olhado duas vezes; não passava de mais um militar que ali fora parar.
"Olha lá, já tens idade para um whiskyzinho, não tens?", perguntou-lhe enquanto o puxava para uma porta diante do gabinete.
"Acho que sim!...", riu-se Diogo.
José Branco abriu a porta e o furriel sentiu o ambiente fresco e retemperador de um ar condicionado acariciar-lhe o rosto.
"Então anda aqui ao bar", convidou-o. "Vou meter gelo. Queres com soda ou com água?"
"Água."
O bar era um cubículo pequeno, mas fresco. Tinha um balcão a rodear uma estante cheia de garrafas e umas cadeiras e mesas espalhadas em redor, todas vazias àquela hora do dia. O aparelho de ar condicionado roncava sem cessar e Diogo acomodou-se junto a ele para melhor lhe acolher a frescura; havia já muito tempo que não sentia tanto conforto. Existia algo de tonificante naquele lugar, constatou, enquanto observava o tio a agarrar uma garrafa red label de Johnny Walker e a encher um copo; depois viu-o misturar água, deitar dois cubos de gelo e estender-lhe o whisky.
"Ficas aqui refastelado enquanto eu acabo as consultas, está bem?" O médico espreitou o grosso relógio de aviador, cheio de ponteiros. "Levo meia hora, mais ou menos. Se precisares de alguma coisa, vai-me bater à porta." Deu meia volta para regressar à consulta, mas hesitou, lembrando-se de mais um pormenor. "Se te habituares demasiado ao ar condicionado e começares a sentir calor, fazes como toda a gente aqui em Tete: sais do bar e vens cá para fora um minutinho. Quando reentrares vais achar que esse fresquinho é uma maravilha!..."
Diogo riu-se com a sugestão.
"Fique descansado."
O tio fez de novo tenção de sair mas deteve-se ainda mais uma vez e ergueu o dedo, como se no meio daquilo tudo se tivesse esquecido de dizer o mais importante.
"Ah!", exclamou. "O almoço é lá em casa."
A vista revelou-se de uma imponência desconcertante. A casa do tio situava-se no alto da colina, ao lado do hospital, e parecia uma tribuna assente sobre o rio. O caudal largo e tranquilo do Zambeze deslizava majestoso pela planície, movendo-se quase com sobranceria pela larga curva que contornava a cidade, como se a abraçasse; o espelho de água era apenas cortado por uma longa e estreita ilha fluvial, parecia que uma adaga rasgava o centro do rio mesmo diante da colina. À direita, dando ares de uma construção em miniatura ou da Ponte Salazar em ponto pequeno, eram visíveis os pilares e o tabuleiro da Ponte Marcello Caetano, já erguida para substituir o histórico batelão. Ao fundo, para lá do Zambeze, estendia-se a margem amarelo-torrada seca do Matundo.
"É de cortar a respiração, não é?"
A voz feminina obrigou Diogo a virar-se. Caminhando pelo jardim com um copo na mão, o corpo a bambolear num vestido estreito mas de saia larga, vinha uma rapariga de tez morena. Tinha o cabelo negro a pousar-lhe nos ombros ou a descair-lhe pelas costas; os olhos eram de um castanho-claro achocolatado e ostentava um sorriso tão quente e luminoso que Diogo teve a sensação distinta de que a recém-chegada seria capaz de derreter o mais frio dos homens.
Observando-a como se estivesse hipnotizado, o furriel tentou destrinçar-lhe a raça, mas percebeu que a rapariga escapava a qualquer categorização; os lábios espessos eram de negra, o nariz estreito de branca e o longo cabelo liso e brilhante de indiana, os olhos uma mistura de chocolate claro. A única coisa certa na sua figura harmoniosa era a beleza, feita de um exotismo raro e estranhamente inebriante.
"Pois é", concordou Diogo, quase ofuscado por aquela presença. "Esta vista é... deslumbrante."
A rapariga esticou o pescoço e ofereceu-lhe a face para o beijo.
"Eu sou a Sheila", apresentou-se. "Vim agora de Lourenço Marques e parece que vamos almoçar juntos."
A novidade encheu Diogo de um enorme bem-estar. Encostou-lhe o rosto para a beijar e constatou que ela tinha uma bochecha quente e macia. O que nela mais o perturbava, porém, era o sorriso. Já vira muitas mulheres bonitas na vida, em particular depois dos jogos de voleibol que agora pareciam uma recordação difusa, mas não se lembrava de alguma vez ter conhecido alguém que tivesse um sorriso tão belo como aquele.
Trocaram palavras de circunstância. A conversa, todavia, arrancou aos solavancos e os silêncios embaraçosos intrometeram-se nas frases entrecortadas.
"O senhor é sobrinho do doutor Branco?"
"Sou. Ele é meu tio."
Amaldiçoou-se em silêncio pela tolice da réplica, um mero eco tonto do que ela acabara de dizer, mas a verdade é que a rapariga o intimidava tanto que lhe anulava o discernimento. Teve vontade de praguejar, como quando nos seus tempos de jogador falhava um remate fácil sobre a rede, mas dominou-se. Sentindo-se um adolescente e temendo soltar mais asneiras, calou-se.
Voltaram-se ambos para o rio como se da água pudesse vir uma resposta para aquele impasse sem jeito. Não veio. Não suportando mais o silêncio desconfortável, fez um esforço para inventar um tema de conversa.
"O que está a beber?", perguntou, fazendo sinal para o copo que ela tinha na mão.
"Capilé."
Diogo assentiu com a cabeça e quis opinar qualquer coisa a propósito do assunto, mas nada lhe ocorreu; era como se tivesse a mente em branco. Que observações argutas haveria a fazer em torno do capilé? Como se alimenta uma conversa sobre esse tema? Haveria alguém capaz de sustentar um diálogo inteligente com uma rapariga bonita a respeito daquela bebida? Sentiu-se embatucar de novo e, mais uma vez embaraçado e cheio de vontade de se autoflagelar pela sua estupidez, voltou a fixar os olhos no Zambeze.
Um ponto negro perfazia uma curva no céu, acima do rio, e voltava-se na direcção da casa onde se encontravam. Diogo distinguiu as formas arredondadas familiares do Alouette III, o helicóptero da Força Aérea que se aproximava com um zumbido surdo.
"Olha um heli", disse, apontando para o aparelho voador. Ela já o avistara também. "Deve vir de uma operação."
"Não", corrigiu Sheila. "Traz feridos."
Diogo lançou-lhe um olhar interrogador.
"Como sabe?"
"Ora, porque o hospital é aqui e o helicóptero vem nesta direcção!...", disse. "Todos os dias é isto."
O soldado teve de novo vontade de se esmurrar a ele mesmo. Estaria parvo ou quê? Espreitou os edifícios erguidos uns quinhentos metros à esquerda da casa do tio, também sobre a colina. O mais próximo era a farmácia e atrás dela estava o hospital. Parecia por demais evidente que o Alouette, se vinha naquela direcção, teria de trazer feridos. Como podia mostrar-se tão estúpido? Pior ainda, o que iria pensar a rapariga? Receou tecer mais comentários disparatados e preferiu calar-se de vez, ficando a observar o helicóptero na sua manobra de aproximação ao hospital. O fragor das hélices enchia aliás o ar com batidas surdas, o que lhe pareceu conveniente porque impossibilitava a conversa e o poupava a mais tolices.
"Vamos comer?"
A pergunta do tio, lançada da janela, salvou a situação. Diogo
e Sheila sorriram um para o outro, aliviados, e entraram na casa.
Acolheu-os a frescura dos aparelhos de ar condicionado e sem mais delongas sentaram-se à mesa para a refeição.
"Este almoço tinha sido marcado para assinalar o facto de termos ganho uma nova enfermeira", disse José Branco, inclinando a cabeça na direcção da rapariga. "Sheila, espero que não se importe por também ter convidado o meu sobrinho."
"Com certeza que não."
O médico virou-se para Diogo.
"A Sheila passou os últimos dois anos em Lourenço Marques", revelou. "Foi lá tirar o curso de Enfermagem. Regressou ontem a Tete e agora vai dar-me uma mãozinha no hospital." Olhou para ela. "Não é verdade, Sheila?"
"Iá. Estou cá para trabalhar, doutor!"
"Temos falta de pessoal moçambicano e isso dificulta por vezes o contacto com as populações", explicou ao sobrinho. "A Sheila fala nhungué e vai-nos ser maningue preciosa."
Mimicas entrou nessa altura na sala. Atrás dela vinha Ernesto, impecavelmente fardado de branco, a segurar uma travessa com uma grande terrina fumegante. Um aroma delicioso de especiarias encheu de imediato o ar.
"Espero que gostes de comida indiana, Diogo", disse a anfitriã, ocupando o seu lugar. "Como a Sheila vinha cá decidi coisar um caril de cabrito." Sentiu a fragrância condimentada do caril. "Hmm, está uma delícia!" Inclinou a cabeça, como se fizesse uma confidência. "Não é para me gabar, mas tenho dedo para a cozinha!..."
"Foi a tia que cozinhou?", admirou-se Diogo.
Mimicas pareceu surpreendida com a pergunta e pousou a mão no braço do empregado, que já servia o caril.
"Quer dizer, quem coisou foi aqui o Ernesto", admitiu ela. "Mas seguiu as minhas indicações e fui eu que deitei os condimentos. É que, não sei se já vos disse, tenho dedo para a cozinha." Voltou a inclinar a cabeça no seu gesto característico. "Não é para me gabar!"
O caril pareceu saboroso a todos, excepto a Diogo, que sentiu um ardor infernal incendiar-lhe a boca mal trincou o primeiro pedaço de carne. Com a vista turva, as lágrimas a inundarem-lhe os olhos e muco viscoso a jorrar-lhe pelas narinas, engoliu um copo inteiro de água num esforço desesperado para apagar as chamas que o caril ateara.
As dificuldades do rapaz desencadearam gargalhadas na sala de jantar.
"Então?", quis saber Sheila com um sorriso malicioso. "São lágrimas de saudade?"
Com o rosto mergulhado num guardanapo, Diogo limpou os olhos, assoou-se e respirou fundo, aliviado por ter enfim estancado a erupção.
"Caramba!", bufou. "O que é isto? Nunca tinha provado uma coisa assim!..."
A observação fez Mimicas empertigar-se.
"O quê? Não me digas que não gostas!..."
"Gosto, gosto!", apressou-se o convidado a esclarecer, limpando novas lágrimas que lhe germinavam do canto dos olhos. "Não estou é habituado a comida tão picante."
"Aqui em Moçambique é normal", esclareceu Sheila. "Mas vocês, na Metrópole, não costumam comer piripiri, pois não?"
A conversa divagou pela comida, com Sheila e Mimicas a enumerarem as delícias da gastronomia moçambicana, começando pela galinha à cafrial e terminando nos caranguejos da Beira, "tão bons que parecem doces". Por falar em doces, a conversa desviou-se para a bebinca, a sobremesa goesa que era, no dizer da anfitriã, "especialidade aqui da nossa Sheila", elogio retribuído pela enfermeira, que muito gabou o pudim Araújo da sua anfitriã, "obra-prima do paladar".
"Não é para me gabar", pavoneou-se Mimicas com orgulho, "mas o meu pudim Araújo é mesmo uma maravilha!"
"Lá isso é, doutora", concordou Sheila. "Nunca provei doce tão bom. Uma especialidade!"
Mímicas olhou para o prato vazio diante dela e abanou a cabeça com uma expressão desgostosa.
"Ai, comi de mais", constatou num queixume. "Estou tão arrependida..."
José Branco e o sobrinho deixaram as mulheres fazer as despesas da conversa, discorrendo ambas sobre receitas "de adoçar o dente", mas o médico foi rápido a aproveitar a primeira pausa para inquirir Diogo sobre as condições de vida no Chioco.
"Se calhar é melhor eu dar uma palavrinha ao coronel Varela", sugeriu. "Como novo governador de Tete e comandante da ZOT, ele tem plenos poderes para te transferir. Vou estar amanhã com ele e..."
Diogo ergueu a mão para travar o tio.
"Espere aí", disse. "Transferir-me para onde?"
"Ora, para um posto menos perigoso", esclareceu, quase admirado por ter de expor a evidência. "A tua mãe escreveu-me noutro dia e, como deves calcular, anda raladíssima contigo. Não é fácil ter um filho na guerra."
"Saio do Chioco e torno-me o quê? Um aramista?"
A expressão suscitou um olhar inquisitivo do médico.
"Aramista? Não estou a perceber..."
"Um aramista é um desses militares que dizem que estão na guerra mas não saem dos gabinetes", esclareceu, quase a sentir-se um veterano. "O tio nunca os viu por aí? Andam impecavelmente fardados e com a botas a brilhar de tão bem engraxadas, mas não se aventuram para lá de nenhum perímetro que não esteja protegido por arame farpado. São os aramistas, a vergonha da tropa. Se eu sair do Chioco será para quê? Para abandonar os meus camaradas e tornar-me um aramista?" Abanou a cabeça. "Não, obrigado."
José Branco fitou o sobrinho com sentimentos ambivalentes. Por um lado queria-o fora de perigo, para segurança dele e descanso da mãe, e sentia a responsabilidade e o dever de o proteger; por outro, vislumbrou em Diogo uma variedade diferente do mesmo idealismo que o movia a ele próprio e isso fê-lo sentir uma ponta de orgulho. Quis dar-lhe uma palavra de apreço. Não era todos os dias que via um militar recusar a possibilidade de uma transferência para uma posição mais confortável, mas não era homem para verbalizar sentimentos e, sem saber lidar com o assunto, preferiu mudar de tema de conversa.
"Olha lá", disse para aligeirar o ambiente, "não tens vergonha de ter vestido a camisola do Porto?"
Caminhavam os dois descontraidamente pela rua curva que descia do hospital em direcção à Baixa. Era o início da tarde e fazia um calor infernal, mas nem Diogo nem Sheila pareciam incomodados com isso; ele esforçava-se por se esticar e encher o peito, de modo a sublinhar o porte atlético, e ela ia passando as mãos pelo longo cabelo negro, como se o penteasse com os dedos.
"É uma pena não ter carro para lhe dar uma boleia", desculpou-se Diogo. "A única coisa ao meu dispor é uma Berliet, mas não me parece viatura adequada para transportar uma donzela."
Riram-se os dois, cada um a fantasiar a cena à sua maneira; o furriel imaginava a cara dos camaradas ao vê-lo passear com aquela beldade na viatura militar, Sheila desenhava na mente o espanto dos vizinhos se ela chegasse a casa de Berliet.
"Não faz mal", disse a rapariga. "Já foi maningue gentil oferecer-se para me acompanhar. Mas não queria que se incomodasse. Deixe-me no calhambeque e eu depois sigo sozinha."
"Nem pensar!", cortou Diogo com um gesto peremptório. "Faço questão de a acompanhar a casa. Isso nem tem discussão! Não a vou deixar abandonada por aí..."
"Mas eu estou habituada."
O furriel fingiu-se despeitado e cobriu o peito com a mão, em pose de cavaleiro.
"Por quem me toma? Acha-me capaz de a abandonar? E se aparece por aí algum turra e a rapta? Que ia eu dizer ao meu tio?" Fez uma careta e tornou a voz mais aguda, reproduzindo um diálogo imaginário: Olhe, tio Zé, larguei-a por aí e os turras levaram-na! Agora paciência! Ficou sem enfermeira!'"
Sheila riu-se com gosto, exibindo a sua perfeita fileira de dentes.
"Que tonto! Aqui em Tete não há turras!..."
Diogo estacou de repente no passeio e ficou a observá-la fixamente, como se tivesse acabado de descobrir um novo encanto no rosto dela.
"Ora ria-se lá outra vez!..."
A rapariga parou igualmente a meio do passeio e fitou-o com uma expressão interrogadora, sem perceber o pedido.
"O quê?"
"Gostava que se risse outra vez", repetiu ele. "Sabe que tem o sorriso mais bonito que alguma vez vi numa rapariga? Quando os seus lábios sorriem, os olhos também se alegram, a cara ri e todo o corpo a acompanha. Nunca vi coisa igual!"
Sheila enrubesceu e, quase aflita, tapou a face com as mãos, como se assim conseguisse esconder o sorriso que agora a embaraçava.
"Tonto!", protestou, virando o rosto para a frente e retomando a marcha. "Já me fez corar..."
"Também fica bonita a corar", acrescentou Diogo depois de dar dois saltos para se pôr ao lado dela. "Mas é o seu sorriso que mais me encanta!..."
A rapariga aligeirou ainda mais o passo, como se tentasse fugir; ia tão depressa que parecia um figurante absurdamente irrequieto numa fita de Charles Chaplin.
"Você é maningue atrevido!", disse num queixume manifestamente pouco sincero. "Devia ter vergonha!"
"Em geral sou até um pouco acanhado", devolveu ele. "Mas ao pé de si sinto-me capaz de dizer tudo o que me vai na alma. Você tem algo de especial, sabia?"
"E você tem maningue conversa!", atalhou ela sem o encarar. "Aposto que diz isso a todas..."
O furriel pousou a mão sobre o coração.
"Juro que não!", garantiu com ênfase. "Já lhe disse que sou muito acanhado."
"Pois não parece."
A troca de palavras decorria fluida nestes tons melífluos, como se ambos se tivessem entregue a um jogo; nem sinal dos silêncios súbitos que tanto os haviam embaraçado quando se tinham conhecido apenas três horas antes. Caminhavam distraidamente, embalados nesta conversa doce. Ora um lançava um piropo, ora o outro se fingia ofendido; brincavam num instante, logo a seguir era tudo a sério.
Absortos um no outro, como se nada mais importasse, foi com espanto que se aperceberam de que haviam desembocado na Baixa; não tinham dado pelo correr do tempo. Passaram pela Univendas e Diogo deu de caras com um edifício que reconheceu; era o Hotel Zambeze, erguido no cruzamento onde os camaradas o haviam largado nessa manhã.
A súbita pausa permitiu a Sheila orientar-se e dar indicação de que deviam cruzar a rua. Seguiram para o outro lado até chegarem a um posto de combustíveis da Megaza com uma decoração original; sobre o telhado plano da gasolineira encontrava-se um calhambeque vermelho e branco em tamanho natural, como uma peça de museu exibida ao ar livre.
A rapariga imobilizou-se na rampa de entrada do posto e voltou-se para ele subitamente silenciosa, uma expressão ambivalente no rosto; parecia indecisa entre o desânimo e a esperança.
"Fico aqui", acabou por dizer. "Muito obrigada pela companhia. Foi um prazer conhecê-lo."
A interrupção da conversa e a despedida abrupta deixaram Diogo surpreendido. Olhou para o posto de combustíveis e depois para Sheila, como se não percebesse o que se passava.
"Você mora aqui?"
Ela riu-se nervosamente.
"Claro que não. Mas tenho ali a minha ginga."
"A sua quê?"
"A ginga", repetiu ela, recomeçando a caminhar. "Vou com ela para casa."
"Vai com uma gringa para casa?", admirou-se ele. "Não estou a perceber..."
Sheila entrou no posto e pegou numa bicicleta cor-de-rosa com estrutura baixa, como era adequado para as senhoras. Puxou-a para fora e montou-a.
"Não sabe o que é uma ginga?", perguntou a rapariga enquanto acariciava o guiador. "Iá, vê-se mesmo que está há pouco tempo em Moçambique!..."
Diogo contemplou a bicicleta com ar aprovador.
"Então vai de bicicleta para casa? Sim senhor, não a imaginava tão... tão feminina."
"Deixo-a sempre aqui quando vou para o hospital", explicou. "É maningue difícil subir a rua de ginga até lá cima. Tentei uma vez e fiquei a meio, as pernas a pesarem-me uma tonelada. Ui, foi um horror! Mais vale guardar a ginga aqui no calhambeque e ir a pé."
O furriel assentiu com a cabeça, embora nem tivesse escutado as últimas palavras. Estava demasiado ocupado a tentar inventar um pretexto e uma maneira de a ver de novo e preocupado por não lhe ocorrer nenhuma ideia; era como se tivesse chegado a um beco sem saída.
"Então despedimo-nos aqui", observou Diogo com desânimo resignado. "Tem mesmo de se ir embora?"
Ela suspirou.
"Iá. Preciso de ir para casa, a minha avó está à espera."
Como se respondesse ao suspiro dela, foi a vez de Diogo respirar fundo.
"Gostava de voltar a vê-la."
"Ai sim? E como vai fazer isso? Manda uma Berliet para me levar ao Chioco?"
Riram-se os dois, embora sem muito entusiasmo.
"Vou oferecer-me para vir cá mais vezes buscar mantimentos", disse ele. "Sabe como é, volta e meia temos de dar um salto a Tete para nos reabastecermos." Levantou a boina castanha e passou a mão pelo cabelo, juntando coragem para lançar o isco. "Acha que nos poderemos encontrar quando eu cá vier?"
"Depende", murmurou a rapariga, fazendo-se cara. "Posso estar ocupada."
"A fazer o quê?"
"Ora, a trabalhar! Então não sabe que agora sou enfermeira? Fico maningue chunguila com a bata e o cup, sabia?"
"Calculo!" Teve vontade de lhe dizer que ficaria decerto ainda mais bonita sem bata, mas não se atreveu. "Olhe, quando eu vier cá aviso-a com antecedência, está bem?"
Sheila encaixou o pé no pedal da bicicleta e preparou-se para partir.
"E como vai fazer isso? Envia-me um telegrama?"
"Mando-lhe uma carta", prometeu Diogo, tirando do bolso um papel amarrotado e uma bic azul. "Será que me pode dar o endereço da sua casa?"
A rapariga apoiou-se sobre a perna esquerda e a bicicleta começou a rodar, afastando-se devagar.
"Isso queria você!", disse ela. "Escreva-me para o hospital."
A bicicleta ganhou velocidade e Diogo ainda deu uns passos em corrida, tentando acompanhá-la, mas logo percebeu a futilidade do gesto e parou, ficando a acenar com o braço.
"Prometo."
Já em plena aceleração, Sheila voltou a cabeça para trás e acenou de volta. "Tá-tá!"
O Sol deitava-se já no horizonte, rasgando o poente com vigorosas manchas de sangue luminoso, quando a coluna invadiu no meio de grande aparato o perímetro do Chioco. A Berliet onde Diogo seguia soltou um derradeiro ronco e imobilizou-se com um bafo de exaustão. Os motores calaram-se quase em simultâneo e a calma impôs-se por fim.
Uma nuvem de poeira cor de ferrugem ficou a deslizar no ar; parecia um espectro mudo a assombrar a picada. Os soldados demoraram-se um instante mais nos assentos, entorpecidos e letárgicos, a saborear o refolgo da chegada. O rumor sussurrado da brisa e o ondular enérgico do pano dos estandartes era tudo o que os separava do silêncio mais profundo. A bandeira portuguesa adejava no topo do mastro; por vezes murchava com o abrandar do vento, para a lufada seguinte a acirrar com força redobrada, sacudindo-a em movimentos de repentina violência.
Com um gesto deliberadamente lento, Diogo tirou a boina da cabeça e passou as costas da mão pela testa para limpar o suor sujo de pó alaranjado."Porra!", exclamou com alívio. "Estava a ver que não chegávamos!..."
Chaparro foi o primeiro a saltar para terra, no que foi seguido por outros camaradas.
"Que merda de viagem!"
Alertado para o regresso da coluna, o capitão assomou de imediato à parada e foi acolher os recém-chegados. Ainda a descansar na Berliet, Diogo viu-o caminhar fardado a rigor, as calças e a camisa impecavelmente passadas e as botas engraxadas com esmero, e não conseguiu reprimir um olhar carregado de desdém. O seu comandante era um perfeito aramista.
"Então?", quis saber o oficial. "Correu tudo bem?"
Chaparro encolheu os ombros.
"O costume, meu capitão. Fomos emboscados em dois pontos: uma vez na estrada do Songo, outra quando metemos pela picada e vínhamos para aqui."
"Oh diacho! Há feridos?"
"Não. A malta aguentou-se."
O capitão abanou a cabeça, agastado.
"Estas viagens são sempre uma chatice", observou. "E os mantimentos? Não falta nada?"
Diogo desceu devagar da Berliet, quase como se tivesse o corpo dorido, e tirou de uma pasta amarelo-torrada as requisições e toda a papelada relevante.
"Está tudo aqui, meu capitão", confirmou, folheando os documentos. "Batatas, arroz, latas de conserva, peixe seco, vinho, bazucas..."
"E combustível?", cortou o oficial enquanto procurava com os olhos o camião-cisterna. "Também veio?"
"Claro."
O comandante do aquartelamento bufou de satisfação.
"Ufa! Ainda bem! Desde que o petróleo acabou, ontem à noite, a geleira deixou de funcionar. Estava a ver que íamos ter de tomar outra vez bazucas quentes!..." Fez sinal a um ordenança. "Ó Augusto, vai já meter combustível na geleira. Isso é prioritário, pá. Senão, não há bazuca para ninguém!..."
Diogo sentia-se demasiado fatigado para ajudar a descarregar os mantimentos. Sabia que formigavam por ali aramistas que haviam passado o dia inteiro sem fazer nada a não ser tratar de papelada ou descascar batatas; eles que trabalhassem. Travou a G3 e arrastou-se entre as palhotas e as tendas da tropa.
Caminhou ao longo da vedação que separava a zona militar do aldeamento civil e avistou a negra do pilão sentada numa pedra a trincar uma maçaroca assada. A rapariga tinha o seio esquerdo, arrebitado e opulento, a espreitar fora dos trapos que lhe tapavam o resto do tronco. Ela apercebeu-se da presença do soldado e acompanhou-o com um olhar expectante, como se dele esperasse um sinal. Diogo ainda considerou se haveria de o dar; o Sol deitava-se já e seria fácil lobrigar na escuridão um qualquer recanto onde também se pudesse deitar com ela. Mas algo o travou e obrigou a virar a cara para a frente e prosseguir o caminho, como se nada sentisse.
A sua própria reacção apanhou-o de surpresa. O corpo pedia-lhe mulher e ali estava uma, disponível e apetitosa. Em circunstâncias normais ter-lhe-ia feito um gesto e resolveria a coisa sem mais delongas. Era assim depois dos jogos de voleibol e também poderia ser assim depois dos jogos de guerra. Porque não o fizera? O seu comportamento assumia contornos de mistério. Violava as normas de conduta? E depois? O facto é que outros camaradas também molhavam a sopa à socapa, como provavam as constantes comichões púbicas do Chaparro, e não era por isso que lhes sucedia o que quer que fosse.
A verdade, a surpreendente verdade, é que não tinham sido as normas de conduta militar a refreá-lo. O que verdadeiramente o travara fora outra rapariga. Sheila. Fizera toda a viagem de regresso a reconstituir a conversa que tiveram antes, durante e depois do almoço e a recordar as feições delicadas da rapariga, os seus gestos e trejeitos, o riso, a voz meiga, o olhar de chocolate ardente, os lábios sensuais, os meneios do corpo, o próprio corpo... Fora, aliás, justamente enquanto pensava nela que a coluna havia sido alvejada na viagem de regresso.
Ia Diogo com Sheila novamente a encher-lhe a cabeça quando, ao passar pela tenda que servia de cozinha, sentiu uma mão segurá-lo. Desviou o olhar para a mão e seguiu-a até à sombra. O crepúsculo desprendia já os derradeiros lampejos do Sol, lançando o manto opaco da noite africana sobre o mato, e o soldado adivinhou, mais do que viu, o perfil pançudo do despenseiro recortado na penumbra.
"Meu furriel", disse o homem, dando um passo para a luz ténue do anoitecer. "Ouvi dizer que a coluna foi emboscada no regresso. é verdade?"
"Afirmativo", confirmou Diogo, o rosto sulcado de fadiga. "Mas foram só uns tiritos, nada de especial. Porquê?"
O despenseiro coçou a cabeça, como se avaliasse a maneira de apresentar a questão.
"É a despensa, meu furriel", acabou por dizer. "Estamos ali com um problemazito."
Diogo lançou-lhe um olhar inquisitivo, sem perceber por que razão lhe era apresentada a ele, um operacional, uma questão que cabia aos aramistas resolver. Aquela gentinha não fazia uma única patrulha e ainda o vinha sobrecarregar com problemas relacionados com a despensa? Apeteceu-lhe mandá-los à merda, a ele e aos outros aramistas todos, a começar pelo próprio capitão, mas sentia-se de tal modo cansado que nem energia teve para se indignar.
"Diga lá o que o incomoda..."
O despenseiro fez uma careta, como se sentisse relutância em suscitar a questão mas não tivesse alternativa.
"Sabe, meu furriel, estamos a gastar demasiada comida", disse. "O arroz, as batatas, o bacalhau, a carne... na despensa está tudo abaixo dos níveis normais."
Diogo olhou-o sem perceber onde queria o homem chegar.
"Você está a insinuar que andamos a comer de mais?", perguntou. "Está a sugerir que a companhia faça dieta?"
Nova careta incomodada do despenseiro.
"Não, meu furriel. Cada homem está a consumir as quantidades normais. Mas os gastos de comida é que não são normais... se é que me entende."
Diogo sacudiu a cabeça; não entendia.
"Comemos o normal mas gastamos acima do normal?", admirou-se. "Explique lá isso melhor, homem, que eu tenho mais que fazer!"
O despenseiro inclinou-se para a frente, como se quisesse segredar-lhe ao ouvido, e baixou ainda mais a voz insinuante, já quase apenas um sussurro.
"São os mainatos, meu furriel", ciciou. "Os mainatos e as famílias. A comida que lhes estamos a dar não está orçamentada, se é que me faço entender!..."
Diogo arregalou os olhos. Os mainatos! A dificuldade do despenseiro tornou-se enfim clara. Os soldados pagavam os serviços de limpeza dos mainatos do aldeamento vizinho com rações tiradas da cozinha e que alimentavam famílias inteiras. O problema, percebeu nesse instante, é que as quantidades fornecidas ao aquartelamento eram as necessárias apenas para os soldados e não estavam previstas porções adicionais para os aldeãos.
"Estou a ver", disse o furriel. "Mas o que posso eu fazer? Não está à espera que proíba a entrega de comida aos mainatos, pois não? Além do mais, quem teria de dar essa ordem era o capitão, não eu, uma vez que..."
"A coluna não sofreu uma emboscada?", atalhou o despenseiro, os olhos incendiados de esperança.
Diogo hesitou, novamente perdido no raciocínio.
"Sim, já lhe disse! Mas não estou a ver qual a relevância disso para o seu problema!..."
O despenseiro olhou para os lados, quase conspirador, e voltou a inclinar-se para o furriel como um espião prestes a passar ao inimigo um segredo de estado.
"E se, a meio da emboscada, as balas do in tivessem furado um saco de arroz? Hã? E se também tivessem atingido um saco de batatas? E se no meio da confusão ainda se tivesse perdido o saco com as conservas?" Arqueou as sobrancelhas, buscando a cumplicidade do seu interlocutor. "Está a ver onde quero eu chegar, meu furriel?"
Diogo coçou a testa.
"Deixa-me cá ver se entendi bem", murmurou', tentando reordenar o raciocínio. "Queres justificar a comida gasta a mais nos mainatos com supostas perdas de mantimentos durante uma emboscada?"
O rosto do despenseiro abriu-se num sorriso de satisfação.
"Eu não poria a coisa melhor, meu furriel!" Voltou a olhar para todos os lados, novamente conspirador. "E há ainda o problema do soldado Raul, está a ver?"
"Não."
"É o caso daquele camarada que noutro dia deu sem querer uma coronhada num Unimog, não sei se ouviu falar. Sabe, a coisa foi um bocado à bruta e ele partiu o farol lateral traseiro da viatura. Não há modo de justificar essa despesa, como o meu furriel bem sabe, e o Raul vai ter de pagar os estragos do seu próprio bolso, coitado." Inclinou-se ainda mais, literalmente a segredar. "Mas se alguém escrever no relatório desta emboscada que o Unimog foi atingido por uma bala do in no farol lateral traseiro..."
O despenseiro deixou a sugestão flutuar no ar, na esperança de que o seu interlocutor pegasse nela. Diogo coçou o queixo, considerando o problema. Tudo aquilo lhe parecia altamente irregular, para não dizer ilegal. O que o despenseiro lhe sugeria é que o exército assumisse as despesas pessoais dos soldados e até os seus descuidos com o equipamento. Não tinha dúvidas de que era ilegal e imoral. Mas, sendo ilegal, havia o outro lado da moral. Que moralidade tinha o exército ao interromper a vida daqueles homens, afastá-los das famílias e atirá-los para um lugar perdido no meio do mato, pô-los a viver com grande desconforto e exigir-lhes até que sacrificassem a própria vida se nem sequer era capaz de assumir as despesas de umas quantas ninharias que lhes mitigavam as dificuldades?
Concluído o raciocínio, o rosto do furriel abriu-se num sorriso e ele estendeu a mão para fechar o negócio.
"Raul, você até pode não passar de um aramista", observou, "mas não há dúvida que é um grande aramista!"
O corpo de Chaparro quase se contorcia enquanto ele, com a língua a espreitar do canto da boca, desenhava as letras na folha habitualmente usada para correspondência.
"A quem escreves tu com tanto afinco?"
A pergunta de Diogo, feita do catre no outro lado da tenda, desconcentrou-o. A esferográfica deslizou-lhe sobre o papel fino, fazendo um traço inadvertido, e o furriel praguejou de frustração. Analisou a folha, tentando perceber se era possível corrigir a gralha, mas constatou que dificilmente conseguiria salvar aquele risco e lançou um olhar fulminante ao camarada.
"O que é?"
"Todas as noites te vejo aí deitado no catre a escrever", observou Diogo. "São para quem essas cartas?"
Chaparro manteve o olhar irritado cravado no homem responsável por ele ter feito um risco na carta.
"Que tens tu a ver com isso?"
"Ai, que sensível!", exclamou Diogo, erguendo as mãos como se se rendesse. "Pronto! Se não queres dizer, não digas!..."
Os olhos de Chaparro desceram para o risco no papel. Analisando-o com cuidado concluiu que podia fingir que se tratava de um travessão, longo é certo, mas o que lhe interessava é que havia meio de disfarçar o erro. Voltou a comprimir a língua no canto da boca e compôs o texto de uma forma que o deixou mais satisfeito. Afastou a carta e contemplou-a, como um pintor a apreciar a obra; o erro tinha sido satisfatoriamente escondido. O feito deixou-o orgulhoso; por momentos, sentiu-se mesmo um artista, talvez não um pintor, mas pelo menos o artista das emendas.
"Estou a escrever para a minha madrinha de guerra", acabou por revelar, mais bem-disposto.
"A sério? Quem é ela?"
"Chama-se Maria das Dores e vive numa aldeia perto do Redondo", disse com uma expressão sonhadora. "Escreve-me uma vez por semana e eu escrevo-lhe todos os dias. Andamos num namoro pegado."
"É gira?"
"Uma beleza!" Apalpou os bolsos da camisa à procura de alguma coisa. "Queres ver? Tenho aqui uma fotografia!..."
Chaparro saltou do catre e foi ter com o camarada com um rectangulozinho nas mãos. A fotografia a preto-e-branco, obviamente de estúdio, mostrava o rosto fresco de uma rapariga com uma fisionomia compenetrada, como se tivesse uma missão a cumprir.
"É gira, é", confirmou Diogo, devolvendo a imagem. "Onde foste desencantar esta gaja?"
"Eh pá, da maneira habitual. Mandei um pedido para a Comissão Central do Serviço Nacional de Madrinhas a candidatar-me a afilhado. Ao fim de algum tempo, o Movimento Nacional Feminino arranjou-me a Maria das Dores. Eles procuram sempre uma madrinha que seja da terra do afilhado, estás a ver?"
"E do que falam vocês nessas cartas?"
Chaparro encolheu os ombros.
"Sei lá, de tudo e de nada. Eu conto-lhe algumas das merdas que aqui se passam e, claro, dou-lhe um pouco de manteiga, não é? Digo-lhe que é muito gira, que nos devíamos encontrar quando eu voltar... essas tretas."
"E ela?"
"É muito compreensiva e diz-se orgulhosa de mim. Além disso dá-me notícias do Redondo e até já foi a minha casa falar com a minha mãe. Porreiro, não é?" A expressão de entusiasmo foi desfeita por uma pequena careta. "Mas às vezes tem uma conversa patrioteira que me enerva. Diz que estou em África a defender Deus e a família... estás a ver o género? Chego a perguntar a mim mesmo se será ela que me escreve ou o cardeal Cerejeira!" Riu-se. "Mas é simpática, isso não há dúvida." Piscou o olho. "Sabes, se tiver jeito a escrever as minhas cartas, ainda lhe dou umas pinocadas quando chegar ao Redondo." Beijou a fotografia. "Ah, filha! Ando-te cá com uma tusa!..."
A observação suscitou um esgar céptico de Diogo.
"Já lhe contaste que tens chatos?"
Chaparro reagiu à pergunta quase com um gesto reflexo, metendo automaticamente a mão dentro das cuecas para se coçar.
"Vai-te lixar!", resmungou. Lançou um olhar a um caderno pousado no catre do furriel e, vendo-o garatujado, percebeu que também eram folhas para cartas. "Olha lá, também andas a escrever?" Sorriu com malícia. "Não me digas que tens a tua madrinha de guerra..."
Diogo pegou no caderno de modo a esconder os seus rabiscos do olhar indiscreto do camarada.
"Pois é, arranjei agora uma."
"Ah-ha!", exclamou Chaparro como se o tivesse apanhado em flagrante. "Quem é a gaja? E lá da tua terra?"
O furriel riu-se.
"Esta é daqui."
"Daqui, de onde?", admirou-se o seu interlocutor. "Arranjaste uma madrinha de guerra em Moçambique? Como é que se faz isso, pá?"
Diogo passou os olhos pelo caderno, contemplando as linhas que já havia escrito.
"É de Tete."
Chaparro abriu a boca, estupefacto.
"De Tete?"
"Conheci-a hoje", disse. "Uma hora depois de vocês me terem largado no cruzamento."
"Foste ao Maxim? Estava aberto?"
"Qual Maxim, qual carapuça! Ela é enfermeira, pá."
O soldado ficou um longo instante a fitar o furriel, como se visse e não acreditasse. Uma súbita irrupção de latidos desviou-lhes a atenção para o que se passava no exterior; eram os cães que ladravam para os lados do aldeamento vizinho. Os dois homens trocaram um olhar conhecedor; sabiam que era o sinal do regresso a casa dos guerrilheiros que se faziam passear por aldeãos.
A interrupção pareceu quebrar o interesse de Chaparro em prosseguir a conversa. O soldado deu meia volta e caminhou devagar até ao seu catre, a cabeça a abanar com incredulidade, o corpo curvado quase em desânimo.
"Porra!", murmurou. "Nunca vi ninguém tão rápido com as gajas!..."
O Sol era já uma pérola de luz a beijar o horizonte, como uma flor que se exibe ao mundo num derradeiro fulgor de glória, quando José Branco abriu a porta do avião e sentiu o ar sufocante de Tete esbofetear-lhe a face. Atirou um olhar na direcção de Sheila e soltou um suspiro de fadiga e alívio.
"Foi duro, hem?"
"Não me diga nada, doutor", devolveu a rapariga, apontando para os pés enlameados. "Tenho matope quase até ao joelho!"
"Nada que um bom banho não resolva!..."
"No estado em que estou, nem sei se consigo tomar banho", riu-se ela. "Estou maningue cansada e quando chegar a casa vou cair redonda na cama. A vovó até se vai assustar!"
As hélices do Piper Cherokee imobilizaram-se. Do motor vinham pequenos estalidos, como se o avião estivesse à beira de se desarticular. Eram de resto sons normais depois de um voo; por mais fatigado que o material do aparelho se encontrasse, decerto não estaria mais exausto do que os seus ocupantes.
Os recém-chegados cruzaram o capim da pista do Aero-Clu- be, acompanhados do motorista Luís e do enfermeiro Mendonça, que os tinham recolhido no grande jipe Austin. Os dois homens ajudaram a transportar as caixas dos medicamentos que haviam sobrado e a maca com um doente que o médico optara por transferir para Tete.
Ao chegar ao jipe, José apercebeu-se de um vulto no interior. Estava escuro, mas bastou um lampejo dourado no cabelo do ocupante do veículo para compreender que se tratava de Nicole. Revirou os olhos, contrariado, mas procurou dissimular o que sentia, não fossem os enfermeiros notar o seu embaraço.
"Oi, Zé", saudou a rodesiana quando o grupo se acomodou no Austin. "Pedi ao Mendonça para me trazer também. Quis ver a chegada do avião. Você não se importa, pois não?"
"Claro que não", retorquiu o médico com secura indisfarçável. "Fizeste muito bem."
A viagem até ao hospital foi completada em silêncio, com os recém-chegados demasiado cansados para poderem sustentar uma conversa. O mutismo prolongou-se e tornou-se tão pesado que Nicole se sentiu obrigada a quebrá-lo.
"Então, Sheila?", disse. "Agora é você que faz as viagens com o doutor Branco?"
"Hmm-hmm."
"Que sucedeu com a irmã Lúcia? Pegou preguiça?"
"A irmã Lúcia tem trabalho no hospital."
A rodesiana ainda tentou preencher aquele sossego quase embaraçoso com sucessivas perguntas sobre os mais variados assuntos, mas os esforços esbateram numa barreira de respostas desconchavadas, concedidas por mera educação. Nicole percebeu e calou-se, deixando que o silêncio se reinstalasse no interior do jipe.
Todas as funções e procedimentos habituais no final de mais uma semana de périplo do Serviço Médico Aéreo foram desempenhados com eficiência silenciosa. Os voos de assistência sanitária duravam havia quatro anos, o que permitira estabelecer uma rotina que já dispensava ordens; à custa de tanta repetição todos sabiam bem o que fazer.
O doente foi internado, o material devolvido à farmácia com as requisições devidamente preenchidas e José, após uma vistoria às enfermarias, reuniu-se com o doutor Feitor e a irmã Lúcia para se inteirar das novidades. No final recolheu ao gabinete, onde ficou sozinho a tratar da correspondência oficial com Lourenço Marques e a dactilografar o relatório de tudo o que acontecera durante a digressão aérea dessa semana.
Um toque na porta do gabinete arrancou um grunhido ao director do hospital.
"Hmm?"
A porta abriu-se, mas José Branco manteve-se debruçado sobre a máquina de escrever.
"Tem um minutinho para mim?"
O médico não precisou de erguer a cabeça para saber de quem se tratava.
"Que é, Nicole?"
A médica rodesiana entrou no gabinete e aproximou-se devagar, como se estivesse a experimentar o caminho.
"Você não está contente por me ver?"
José sentiu-lhe o perfume suave e parou de escrever para por fim alçar o olhar na direcção dela.
"Se queres que seja franco, não", disse com alguma secura. "Apareces aqui a toda a hora sem avisar e agora até já me vais esperar na pista do Aero-Clube. Achas que as pessoas são parvas? Se isto continuar assim, não tarda nada começam a suspeitar que se passa alguma coisa. Depois vem o falatório."
Nicole encolheu os ombros.
"Deixa elas falar. Que mal tem?"
"O mal é que eu sou um homem casado."
A rodesiana esboçou uma expressão de indiferença.
"E depois? Você não se preocupou com isso lá no Hotel Cardoso, pois não? Nem quando paquerámos pela primeira vez dentro do avião. Nem quando fizemos amor lá no Songo, ou aqui no Hotel Zambeze." Passeou a vista pelo gabinete e um brilho provocador cintilou-lhe no olhar azul. "Ou daquela vez em que fizemos desta salinha o nosso ninho."
"E então?"
A voz dela amaciou ainda mais; tornou-se um torrão de açúcar, suave e sedutora.
"E então estava pensando que poderíamos transar." Pestanejou, insinuante. "Agora. Estava querendo levar você para o hotel, mas acho que não vou aguentar nem mais um minutinho." Indicou a porta do gabinete. "Não quer experimentar no bar? Nunca fizemos ali dentro e com o fresquinho do ar condicionado até que deve ser bem gostoso..."
A sugestão ficou a pairar, como se coubesse agora a José fazer a sua parte. O médico imobilizou o olhar fatigado no papel que dactilografara; após a pausa de uma respiração, e como se enfim articulasse o que havia muito congeminava em silêncio, abanou a cabeça numa recusa enfática.
"Não", exclamou. "Acabou."
A palavra escolhida tinha uma entoação final que alarmou Nicole.
"Acabou o quê?"
"Nós. Isto. Acabou, não quero mais."
"Você está louco?"
"Eu estava louco", rectificou José. "Mas deixei de estar. Já não quero mais isto, esta vida de duplicidade, de segredos, de esquemas às escondidas. Não quero continuar a ter vergonha de encarar a minha mulher quando chego a casa, nem andar com este sentimento de culpa que me persegue, nem estar sempre com medo de que as pessoas à minha volta se apercebam de alguma coisa." Voltou a abanar a cabeça. "Não quero mais isto. Chega!"
A médica rodesiana aproximou-se dele e pousou-lhe as mãos no cabelo.
"Que é isso, meu bem? Tenha calma, não esquente assim."
"Eu estou calmo."
Ela fitou-o nos olhos, como se medisse a determinação que via nele, e percebeu que teria de jogar forte. Molhou os lábios com a ponta da língua, ciente de que havia coisas a que nenhum homem resistiria, e inclinou a cabeça. Com um movimento rápido, caiu-lhe sobre a boca e afundou-se num beijo molhado. José tentou lutar, mas sentiu a língua invadir-lhe a boca e desistiu nesse instante, vencido por aqueles lábios ardentes, rendendo-se na convicção de que o fazia apenas por um breve momento. Deixou-se transportar naquele embalo doce, como se concedesse uma trégua aos sentidos; decidira que seria o derradeiro beijo e porque não haveria de o fruir?
Quando o beijo terminou e os lábios se apartaram apercebeu- se de um movimento inesperado na porta e olhou naquela direcção. Com um susto, o coração a saltar num baque de horror e um doloroso aperto no estômago, reconheceu o rosto que o fitava com incredulidade.
Era Mimicas.
Foi apenas duas semanas depois que Diogo Meireles conseguiu lugar na coluna de reabastecimento que partiu para Tete. Apesar de se ter voluntariado para aquela missão, fez toda a viagem em sobressalto e dividido por sentimentos ambivalentes. Sabia que a viagem era perigosa; os camaradas mostravam-se nervosos e contavam histórias de ataques à coluna. A verdade é que a emboscada que sofrera quinze dias antes naquele mesmo percurso fazia prova disso.
O outro lado da moeda era a possibilidade de abandonar, mesmo por apenas um dia, aquele buraco fedorento em que se transformara o Chioco e ir à cidade desanuviar e ver coisas diferentes. Mas o mais importante, o que de facto o levara a candidatar-se a integrar a coluna, foi a atracção pela mais bela das jóias que Tete tinha para oferecer ao mundo.
Sheila.
Pensara nela ao longo desses quinze dias e escrevera-lhe várias cartas que o correio da semana anterior havia levado para Tete e algumas outras que não tivera oportunidade de lhe mandar por não ter havido um novo correio. Ou melhor, o correio da semana era a coluna que ele agora integrava e as cartas levava-as consigo. Pôs a mão no bolso e sentiu-as. Sabia que eram uma arma para chegar ao coração da rapariga e tinha a certeza, ou pelo menos esperava, que as primeiras já tivessem surtido o seu efeito.
O que não sabia é se Sheila iria comparecer ao encontro. Nem aliás possuía a garantia de que ela tivesse sequer consciência de que havia encontro. O facto de o correio ser semanal, existindo apenas quando a coluna ia e vinha a Tete, constituía realmente um grande contratempo na planificação da Operação Sedução. Como fazer chegar mensagens urgentes à rapariga se só lhe podia remeter cartas de sete em sete dias?
Como muitas vezes sucede nas situações de emergência, a imaginação tem o condão de contornar os obstáculos da realidade e isso mais uma vez acontecera. Dado que não tinha modo de fazer chegar a Sheila uma carta a avisar que seguiria na coluna seguinte, uma vez que essa carta só seria transportada para Tete na própria coluna que o levaria, teve de aguçar o engenho. Tal como nas revistas de Walt Disney, em que uma lâmpada se acendia na cabeça do Professor Pardal sempre que lhe ocorria a solução para um problema, a ideia aparecera-lhe na véspera num desses momentos luminosos.
Sentado no banco corrido da Berliet, Diogo observava o mato com os olhos mas a cabeça revivia aquele momento de genialidade. Estava à noite com os camaradas na palhota dos furriéis a jogar à sueca e a escutar a rádio rodesiana quando o olhar se fixara no aparelho de onde jorrava a voz de Jim Morrison a cantar Riders on the Storni com solenidade absurda. O gajo morrera no ano anterior, mas, caraças!, tinha cá um vozeirão! A solução, percebera Diogo naquele momento de inspiração em que escutava os Doors, estava no rádio. Saltou da cadeira como se tivesse sido impulsionado por uma mola e, apesar dos protestos dos camaradas, saiu a correr e só parou na tenda onde se encontrava instalado o posto de transmissão.
O posto era manejado pelo furriel Bimba, o engenhocas da companhia, que estranhou o pedido mas não ergueu obstáculos. Tal como lhe havia sido solicitado, contactou o Aero-Clube de Tete e transmitiu uma mensagem destinada ao doutor José Branco, informando-o de que o furriel Diogo Meireles iria no dia seguinte à cidade e precisava de uma consulta urgente com a enfermeira Sheila. Diogo não explicou a Bimba, nem tão-pouco o fez na mensagem, por que motivo a consulta tinha obrigatoriamente de ser com aquela enfermeira. Bimba presumiu que ela teria qualificações especiais para o problema específico que afligia o camarada, o que de certo modo até era verdade. Quanto ao tio Zé, Diogo não tinha modo de adivinhar o que presumiria ele, mas presumiu que o tio presumisse a verdade e nem isso o deteve.
Uma cotovelada no braço despertou Diogo, esfumando a memória do sucedido na véspera e trazendo-o à realidade da Berliet. O camarada sentado ao lado, autor da cotovelada, apontou para o horizonte e sorriu com satisfação. O furriel voltou o olhar naquela direcção e vislumbrou, como uma mancha de crayon amarelo raspada sobre uma tela azul, uma distante nuvem de poeira a pairar sobre o mato.
"Tete."
A freira que o recebeu no hospital, uma espanhola baixinha que se apresentou como irmã Lúcia, abanou a cabeça quando a inquiriu sobre Sheila ou o tio.
"A chica e o doutor Branco no están", anunciou. "Foram terça-feira dar a vuelta do Serviço Médico Aéreo."
Diogo fez um esgar de desespero, receando ter efectuado a viagem em vão. Teria o tio recebido a mensagem que enviara pelo rádio? Provavelmente já havia partido quando Bimba contactou o Aero-Clube.
"Quando voltam?"
"Hoje é sexta, portanto regressam esta tarde", disse a freira. "Se não houver novidad."
A informação animou-o; afinal nem tudo estava perdido. Despediu-se da freira e foi passear por Tete. Almoçou no Restaurante Central, passou pelo Christus Luscos, onde adquiriu alguns produtos etiquetados Só para as Forças Armadas, e arranjou boleia até ao Aero-Clube.
Logo que chegou, deslocou-se ao posto de controlo para se informar da hora prevista para o regresso do Serviço Médico Aéreo. Pediu que o alertassem quando o avião aterrasse e foi-se instalar numa espreguiçadeira junto à piscina onde decorria uma aula de natação para crianças. Mandou vir uma cerveja, mas ocorreu-lhe que poderia ficar com um hálito menos agradável para Sheila e rectificou o pedido, corrigindo-o para uma bebida mais exótica.
"Uma Coca-Cola, por favor."
Ouvira falar muito destes refrigerantes americanos que não se vendiam na Metrópole, mas que pelos vistos eram abundantes em Moçambique. A Coca-Cola veio e, sempre com espírito de experimentação, passou a seguir para uma Pepsi Cola e depois para uma Seven Up e uma Fanta, refrigerantes com sonoridades anglo-saxónicas e um apelo estrangeirado que lhe agradavam.
Experimentou todas estas novidades com lentidão tranquila, saboreando cada trago e arrotando todas as borbulhas de gás. Deixou assim rolar a tarde, estendido na espreguiçadeira e a observar com olhar distraído a aula de natação.
Sentia-se estranhamente integrado numa humanidade mais vasta, um mundo cujas fronteiras não se limitavam ao incipiente Sumol à venda no Porto e em Lisboa e se abriam a outras novidades gaseificadas. Deu consigo a reflectir sobre a inesperada hipótese de as colónias serem afinal mais avançadas do que a própria Metrópole. Talvez a ideia parecesse absurda a um espírito menos atento, considerou, mas olhando em redor, para o ambiente ameno do Aero-Clube de Tete, o calor do ar temperado pela frescura da piscina e da garrafa gelada de Fanta, não podia ignorar que a vida ali, apesar de toldada pelas circunstâncias de guerra, se revelava bem mais encantadora do que a da fria Metrópole, onde o espaço era acanhado e as ideias curtas.
"O avião aterrou."
O anúncio, comunicado de chofre pelo empregado do bar, desfez-lhe o raciocínio com a mesma brusquidão com que o despertar dilui um sonho. Diogo ergueu-se de um salto da espreguiçadeira, atirou dez escudos para a mesa e abandonou o complexo da piscina, dirigindo-se apressadamente para a pista do Aero-Clube.
A tarde ia já avançada e sobre a pista de terra batida pairava ainda a nuvem de poeira levantada pela recente aterragem. Um Piper Cherokee branco com uma faixa azul e uma enorme cruz vermelha encontrava-se parqueado junto à casinha do controlo aéreo e várias pessoas afadigavam-se em redor do avião e de um jipe Austin verde estacionado ao lado, embrenhadas numa azáfama sussurrada.
Distinguiu no meio daquele formigar de gente, quase como se um foco de luz incidisse na figura central de uma peça de teatro, a balalaica e as calças brancas do tio.
"Por aqui?", admirou-se José Branco quando o viu.
"Não foi avisado?"
Diogo fez a pergunta com um sorriso, mas reparou que uma sombra obscurecia o olhar do tio, a névoa de uma preocupação que sem sucesso procurava esconder. Talvez incomodado com a expressão perscrutadora do sobrinho, o médico apressou-se a tirar do bolso das calças um pequeno sobrescrito dobrado em várias partes.
"Entregaram-me agora uma mensagem tua, mas confesso que ainda não a li", disse José. "Passa-se alguma coisa?"
"Não, não é nada de especial", tranquilizou-o Diogo. "Era só eu a avisar que vinha cá hoje." Olhou em redor. "A Sheila? Ela não veio consigo?"
O tio voltou-se para trás e apontou para uma morena de bata que ajudava um aldeão doente a sair do Piper Cherokee.
"Está ali", exclamou. "Porquê?"
Diogo atirou um sorriso na direcção do tio antes de mostrar o ramo de flores que trazia escondido atrás das costas.
"É que ela vai jantar comigo e ainda não sabe."
O empregado do Carlettis revoluteava entre as mesas como um bailarino, executando hábeis passos de dança numa complicada coreografia; eram redemoinhos para evitar colisões com os fregueses que enxameavam o restaurante. Vinha banhado de transpiração, afinal havia só dois empregados para tanta gente, e rodopiou a bandeja pelo ar numa manobra quase acrobática antes de, com um derradeiro floreado, a pousar sobre a mesa.
"Uns camarõezinhos fritos para os senhores, não é verdade?", disse, assentando no centro da mesa a travessa de camarões, o pão e as duas bebidas, um copo de cerveja e uma Fanta. "Mais alguma coisa?"
O cliente fez sinal de que estava tudo bem e o empregado mergulhou na multidão e volatilizou-se.
"Caramba!", exclamou Diogo com os olhos postos na travessa. "Nunca vi camarões deste tamanho. São gigantes ou quê?"
O rosto de Sheila abriu-se numa expressão de admiração.
"Estás a brincar?", surpreendeu-se, respeitando a combinação de doravante se tratarem sempre por tu. "Nunca comeste camarões aqui em Moçambique?"
"Só cá estou há um mês e meio", esclareceu ele. "É a primeira vez que provo camarões desde que cheguei. No Chioco não há nada disto, como deves calcular." Pegou num camarão tão grande que lhe cobria toda a palma da mão. "Porquê? Não me digas que este tamanho é normal!..."
A rapariga exibiu o seu sorriso maravilhoso.
"Claro que é normal! Isto são camarões de Moçambique, Diogo!" Pegou também num e retirou-lhe a casca alaranjada. "Prova! São uma maravilha, vais ver."
O soldado seguiu-lhe o exemplo e trincou o camarão que retirara da travessa.
"Hmm... é realmente bom. Parece um doce!"
Sheila fez um gesto com a cabeça, a indicar o restaurante.
"Os petiscos aqui do Carlettis têm muita fama em Tete", revelou. Pousou os olhos na cerveja. "E dizem os entendidos que a cerveja de cá é a melhor da cidade..."
Diogo já a havia bebericado, mas deu outro gole para a saborear de novo.
"É boa é", confirmou. Estendeu-lhe o copo. "Queres privar?"
"Ah, não!", disse ela. "Não bebo cerveja. Aliás, não bebo álcool nenhum."
O rapaz sorriu com malícia.
"Porquê? Tens medo de apanhar uma piela?"
"Não é isso. Não toco em álcool por motivos religiosos."
A explicação arrancou um olhar surpreendido do militar.
"Quais motivos religiosos? Que eu saiba Jesus bebia vinho..."
Sheila colou os dedos delgados à garrafa de Fanta, sentindo a frescura da garrafa de laranjada gaseificada.
"Sou maometana."
A rapariga fez a declaração como se ela explicasse tudo, mas para sua surpresa o seu interlocutor não pareceu esclarecido.
"E então?"
"Diogo... os maometanos não bebem álcool!..."
O rapaz arregalou os olhos.
"Ai não?! Porquê?"
A pergunta de Diogo desencadeou em Sheila uma gargalhada; era assombrosa a ignorância dos metropolitanos em relação à religião que ela professava.
"Porque o Profeta assim mandou", esclareceu. "Eu até nem sou muito zelosa no cumprimento dos nossos preceitos, mas pelo menos isso respeito."
O rapaz perscrutou-lhe o rosto devagar, como se a descobrisse a uma nova luz.
"Pois é, ouvi dizer que há maningue maometanos aqui em Moçambique..."
"Então não há?", riu-se ela, divertida por lhe captar um primeiro maningue, sinal de que Diogo se aculturava depressa.
"Uns vinte por cento da população de Moçambique são maometanos, Diogo. E olha: somos grandes patriotas portugueses, sabias? A guerrilha não consegue entrar em Nampula porque a população dominante da província são os Macuas, uma etnia islamizada. Os Macuas são os mais fiéis aliados dos brancos e não se deixam influenciar pelos turras."
"Ah, pois! Os Macuas!", exclamou Diogo, familiarizado com a etnia devido à sua importância no quadro militar. "O in invadiu Cabo Delgado e o Niassa, mas não consegue descer para o resto da província por causa dos Macuas. São maometanos?"
"Se fores a Nampula vês mesquitas em toda a parte..."
"Ai sim? E por que motivo vocês afiam os dentes? E também um costume maometano?"
"Que confusão!", exclamou ela, revirando os olhos de exasperação. "Em primeiro lugar, o que é isso de vocês? Quem é vocês?"
"Bem... vocês, os macuas maometanos."
"Eu não sou macua! Nasci aqui em Tete e tenho antepassados indianos, brancos e acheuas. A maior parte dos macuas são maometanos, mas nem todos os maometanos de Moçambique são macuas, entendes? Depois, quem afia os dentes não são macuas nem isso é prática maometana." Arreganhou os beiços e exibiu uma fileira perfeita de dentes brancos. "Vês? Não estão afiados, pois não? Para tua informação, quem afia os dentes são os Macondes, que são animistas e cristãos e aliaram-se aos turras em Cabo Delgado."
"Ah, tu não és macua!..."
Sheila riu-se com a ideia.
"Claro que não, já te disse. Mas sou maometana."
O soldado mostrou a Sheila o seu melhor sorriso.
"Então está tudo explicado!", exclamou. "Se és maometana, tens de ser boa rapariga!" Engoliu mais um camarão e fez uma careta, como se tivesse acabado de lhe ocorrer algo. "Olha lá, não são os maometanos que podem casar com várias mulheres ao mesmo tempo?"
A pergunta provocou um ligeiro franzir do sobrolho da rapariga, desconfiada do que aí vinha.
"Sim..."
"Quer dizer que, se eu casar contigo, poderei também casar com outras mulheres? Não te importavas?"
Sheila ergueu a mão para o travar.
"Calma!", exclamou. "Isso não é assim! Em primeiro lugar, já te expliquei que, sendo maometana, não sou zelosa no cumprimento dos nossos preceitos. Portanto, comigo não há haréns para ninguém! Em segundo lugar, aqui em Moçambique vigora a lei portuguesa. Que eu saiba, o casamento com duas ou mais mulheres ao mesmo tempo chama-se poligamia e é ilegal. Por isso não te ponhas com ideias, ouviste?"
Diogo recostou-se na cadeira e trincou um dos derradeiros camarões que restavam na travessa. Na face bailava-lhe um sorriso tão malicioso que deixou a rapariga inquieta. O que raio havia ela dito que lhe pudesse ter dado tanta satisfação? Aguardou uns momentos, esperando que ele se explicasse, mas como nada dizia e mantinha aquele esgar estupidamente irónico, a rapariga não se conteve.
"Olha lá, porque estás com essa cara?"
O furriel fez um ar de admiração inocente, o sorriso transformado já em riso.
"Eu? Qual cara? Não estou com cara nenhuma!..."
Sheila apontou-lhe para a face.
"Essa aí!... Esse risinho maningue parvo. Em que estás tu a pensar?"
O riso de Diogo tornou-se de novo sorriso.
"No que tu disseste."
A rapariga passou mentalmente em revista as palavras que havia proferido momentos antes, tentando perceber aquela observação; por mais que se esforçasse, contudo, nada de anormal descortinou no que tinha dito. Então porque sorria ele?
"Anda lá", implorou. "O que disse eu que te pudesse pôr com essa cara de... de...?"
"Não foi bem o que disseste", murmurou ele com uma expressão enigmática. "Mas o que não disseste."
A observação deixou Sheila intrigada. Esperou que Diogo concretizasse a ideia, mas o militar voltou a fechar-se no seu sorriso.
"Está bem", impacientou-se Sheila. "O que foi que eu não disse?"
O rapaz pressentiu-lhe o desassossego e percebeu que teria de abrir o jogo. Para ganhar tempo, e porque a tarefa requeria uma boa dose de atrevimento, pegou no copo e engoliu de uma assentada o que lhe restava da cerveja. Depois pousou o copo vazio, lambeu a espuma que se lhe colara aos lábios e fitou-a com uma expressão séria e inescrutável.
"Quando te falei no harém disseste que isso não aceitavas", lembrou ele. "O que não disseste é que não te casavas comigo."
Como Sheila havia saído do Aero-Clube na companhia de Diogo, José Branco fez o caminho para o hospital sozinho no banco traseiro do jipe. Luís seguia ao volante e tagarelava sem cessar com o enfermeiro Mendonça, ambos em voz baixa, deixando o médico lá atrás entregue aos seus pensamentos.
A cidade de Tete, poeirenta e adormecida na obscuridade azul-petróleo do início da noite, desfilava em silêncio diante dos olhos do médico-aviador. José observava as casas, as árvores, os postes de iluminação, as lojas, os transeuntes, as bicicletas e os automóveis, mas apenas registava o problema que havia uma semana lhe ocupava a mente, como se um espírito tivesse tomado conta dele e não houvesse forma de o exorcizar. O problema era Mímicas.
Desde que a mulher o apanhara no gabinete a beijar Nicole a vida mudara. E para pior. Nesse fim-de-semana Mímicas não lhe dirigira uma palavra que fosse. Permanecera num estado de mutismo absoluto. José tentou falar-lhe, procurou explicar-lhe a situação, esforçou-se por lhe mostrar que era a ela que amava, que apesar do que vira ele havia terminado o relacionamento com a rodesiana, mas a mulher ignorou-o por completo. Afastou-se dele e manteve-se longos períodos encerrada no quarto.
Era nesse pé que se encontrava a situação quando José teve de partir na madrugada de terça-feira para mais um périplo aéreo pelo distrito. Andara de terriola em terriola a tratar de doentes, mas o que lhe ocupava em permanência a mente era Mimicas. É certo que os dias mais difíceis tinham sido os primeiros, quando o cisma que se dera no casal estava mais fresco e parecia absolutamente irreversível, ensombrando o futuro da relação.
Com o passar dos dias, todavia, foi encarando as coisas de outra perspectiva e a visão do problema tornou-se menos pessimista. Pensou que provavelmente tinha sido melhor ter-se afastado durante aquela semana. A pausa conceder-lhes-ia espaço, daria perspectiva às coisas e permitiria suavizar a dor. Não se dizia que o tempo tudo cura?
"Estamos a chegar, doutor", avisou Luís. "Vamos primeiro ao hospital ou prefere que o deixe já em casa?"
Perdido nas suas deambulações, o médico foi apanhado de surpresa com a rapidez com que haviam atingido o topo da colina e hesitou, indeciso quanto ao que fazer.
Em circunstâncias normais iria primeiro ao hospital falar com o doutor Feitor e a irmã Lúcia para tomar conhecimento de tudo o que acontecera na sua ausência e depois iria visitar as enfermarias e despachar a burocracia acumulada. Mas aquelas circunstâncias não eram normais, como de resto, e pelos vistos, até o próprio motorista estava ciente.
"Leva-me a casa."
O médico-aviador havia passado quatro dias ausente e sabia que não aguentaria nem mais um minuto. Tinha uma necessidade premente, absoluta, inadiável, de se reconciliar com a mulher. O momento era enfim chegado.
As folhas dos arbustos na berma da colina ondulavam ao sabor do bafo quente da brisa e a poeira rodopiava na estrada como um peão incorpóreo. Lá em baixo cintilavam as luzes ténues da cidade, mas a casa estava mergulhada na sombra. Parecia um vulto adormecido na noite.
Logo que Luís e Mendonça o deixaram, José aproximou-se da entrada e apercebeu-se de que uma claridade frágil despontava como um fio de luz debaixo da porta. Meteu a chave na fechadura e entrou em casa.
"Mímicas", chamou, como habitualmente quando regressava do Serviço Médico Aéreo. "Cheguei!"
Havia um candeeiro aceso no canto da sala, mas de resto não registou sinais de vida. O recém-chegado percorreu a casa num estado de ansiedade crescente; espreitou os quartos, o escritório e a cozinha, mas não viu vivalma. Sentou-se à mesa da sala de jantar e tentou perceber onde estaria a mulher. Agarrou-se ao telefone e ligou para as amigas dela, mas Mímicas não se encontrava com nenhuma. Em desespero de causa telefonou para diversos estabelecimentos públicos onde ela poderia estar, incluindo o Café Zambe, o Bar Copacabana e até o centro comercial, sempre sem a conseguir localizar.
Foi a irmã Lúcia quem lhe deu a melhor sugestão.
"Não vi a sua senora toda a semana, doutor", disse ela do outro lado da linha. "Pero já hablou com o Ernesto?"
José bateu com a palma da mão na testa; como pudera esquecer-se de algo tão elementar?
"Tem razão. Ele deve saber."
O anexo onde Ernesto vivia com a família era uma fila de três compartimentos alinhados no quintal, entre a garagem e a casa. Quando saiu para a varanda traseira, José deparou-se de imediato com o bailar nervoso das luzes dos candeeiros de petróleo e escutou o murmúrio tranquilo das conversas em nhungué. Havia mantas estendidas numa rampa ao lado do anexo; era ali, ao ar livre, que a família do empregado dormia.
"Ernesto?!"
Fez-se um súbito silêncio no quintal.
"Sim, doutor?"
"Onde está a senhora?"
O empregado não respondeu de pronto. O médico vislumbrou um movimento na sombra e percebeu que era o vulto de Ernesto a aproximar-se da varanda interior, as feições e os contornos do corpo pouco nítidos à contraluz dos candeeiros.
"Ela saiu."
"Sabes para onde foi?"
O empregado abanou a cabeça.
"Saiu na quarta-feira."
A informação atingiu José ao retardador. Quarta-feira? Quarta-feira tinha sido dois dias antes.
"E não voltou?"
"Não senhor", murmurou Ernesto lugubremente. "Saiu com mala."
A informação deixou José embasbacado. Esta novidade tornava tudo bem mais grave.
"Não... não disse para onde ia?"
"Não senhor."
O médico teve de se apoiar ao ferro da varanda, a mente mergulhada numa corrida quase febril para identificar possíveis destinos. Teria ido para Lourenço Marques? Regressara à Metrópole? Voltara para Cabo Verde? A lei que impedia as mulheres de viajarem sozinhas sem a autorização dos maridos havia sido revogada três anos antes, pelo que as possibilidades eram infinitas. Não conseguiria determinar o destino dela com meras conjecturas.
Deu meia volta, cabisbaixo, e acenou em despedida.
"Obrigado, Ernesto. Boa noite."
O empregado levou um longo segundo a responder.
"Eu ouvi a senhora falar ao telefone."
José estacou.
"Com quem?"
"Ligou para a Cotur e pediu um bilhete de avião."
"Ai sim? Para onde?"
O vulto de Ernesto passou a mão pela cabeça, num gesto de embaraço.
"Ela falou maningue baixo e não consegui ouvir", disse.
"Mas depois fez outro telefonema. Esse eu entendi."
"Para quem?"
"Para o doutor Rouco."
O médico endireitou o corpo, subitamente reconfortado por perceber enfim para onde Mimicas fora. A mulher estava na…
O Land Rover enlameado passou pela avenida com fragor, levantando uma nuvem de poeira que invadiu o passeio. Diogo viu-se obrigado a voltar costas à nuvem e a encostar-se a Sheila, de modo a protegê-la do manto denso de sujidade. Ela percebeu a intenção e anichou-se-lhe ao peito, abrigando o rosto do pó.
O militar sentiu-lhe o cabelo negro afagar-lhe a face; cheirava a eucalipto. Envolveu-a nos braços com um gesto protector, defendendo-a do véu poeirento que adejava em redor, as partículas de pó alaranjado a reluzirem à luz amarelada do candeeiro. O corpo de Sheila estreitava-se em linhas delgadas, a sua pele era suave e aveludada ao toque das mãos, e senti-la assim vulnerável despertou o desejo em Diogo.
A luz do candeeiro brilhava intermitentemente, a lâmpada a pestanejar sob o efeito dos insectos que a rodeavam, e o casalinho deu três passos hesitantes, atravessando a poeira e mergulhando na penumbra que se derramava aos seus pés. O manto de pó desvanecia-se já quando Sheila se atreveu a arrebitar a cabeça para respirar ar fresco. Foi a vez de ser ela a cheirar o Old Spice com que o homem que a protegia da poeira se havia regado no pescoço.Quase por acidente, mas sabendo que tudo era inevitável, trancaram o olhar um no outro. Sentindo o corpo adquirir vontade própria, o furriel deixou a face descair devagar até a boca se colar à bochecha da rapariga; era quente e incrivelmente macia. Deu um beijo húmido naquela superfície de seda cálida e começou a deslizar lentamente pela face, quase milímetro a milímetro, até a boca se colar aos lábios escaldantes e entreabertos de Sheila.
O primeiro beijo.
A boca da rapariga era ardente e doce, acoitando-lhe a língua como o frasco de mel acolhe o dedo guloso. O corpo de fêmea, enroscado em Diogo, agitou-se num frémito lascivo e o rapaz deu pelo ventre dela a embater no seu, como um forcado a provocar a besta. Tirando partido da invisibilidade que a sombra lhes proporcionava, o militar desceu a mão direita ao longo das costas palpitantes de Sheila e apertou-lhe uma nádega com volúpia. A rapariga ronronou, agradada.
Encorajado por esta reacção, e sem descolar a boca daqueles lábios sequiosos, meteu-lhe a mão esquerda pelo decote até lhe sentir o veludo macio do seio e apertá-lo como se a quisesse ordenhar. Um novo gemido. Desceu ainda mais a mão que lhe apalpava a nádega e enfiou-a pela abertura das saias, subindo pelas pernas até lhe sentir o hálito abrasado entre as coxas. O dedo do meio adquiriu vida própria e contornou-lhe o rendilhado das calcinhas, mergulhando com atrevimento na humidade incandescente.
"Não!", disse ela, sacudindo o corpo para lhe afastar o braço. "Isso não!"
Diogo abriu os olhos, inebriado. A digressão pelo corpo de Sheila deixou-o atordoado de desejo; se havia conseguido ir até tão longe, como não levar a viagem até ao fim? Parar nesse momento era como travar um comboio que galgava a pleno vapor pela planície; parecia-lhe impossível, doloroso, impensável. Precisava de ir até ao termo da linha, custasse o que custasse.
"Oh!", protestou. "Porquê?"
"Porque não!", insistiu Sheila com convicção inabalável. "Estamos no meio da rua, Diogo!"
O rapaz espreitou em redor, como se só então tomasse consciência do local onde se achavam. É verdade que a rua se apresentava quase deserta; viam-se algumas pessoas lá ao fundo e era tudo. Além disso, encontravam-se encostados ao tronco de uma mangueira e protegidos pelo véu sombrio da noite. Mas ela tinha razão; estavam na rua e ali não se faziam certas coisas. Como aquelas.
"Onde podemos ir?", perguntou ele, ofegante de lascívia.
Sheila voltou a sacudir o corpo, libertando-se enfim do abraço.
"Vamos comer um aice crime."
"Ai se há crime?", admirou-se ele, sem perceber. "Vai haver um crime?"
"Não, tonto", riu-se a rapariga. "Um aice crime. É como chamamos aqui aos sorvetes. Ao lado do talho do Sousa existe uma loja que vende aice crimes italianos. São uma delícia!"
"Que raio de nome vocês arranjaram!", resmungou o furriel. "Mas, diz-me, para que quero eu os gelados? Tu és a melhor sobremesa que existe em Tete!..."
Sheila empurrou-o, fingindo-se ofendida.
"Ora! Por quem me tomas tu?"
"Por um aice crime."
Os gelados italianos eram do melhor que Diogo já havia provado; nunca tinha saboreado na Metrópole sorvetes assim. Escolheu um cone com uma bola de chocolate e ela optou por um de morango, e sentaram-se ambos no passeio diante do jardim público a lamber aquelas delícias frias.
Mantiveram-se silenciosos alguns instantes. Os sorvetes eram de facto saborosos, mas o soldado não tinha a cabeça ali. Apesar de ter readquirido perfeito controlo de si mesmo, sentia o corpo ainda sob o efeito embriagador dos químicos que havia libertado apenas meia hora antes e com a sensação de ter interrompido um processo que ainda lhe decorria nas veias.
"Tenho de ir para casa", observou ela com a expressão de quem cumpre um dever, obviamente sem vontade nenhuma de partir. "O chato é que já é noite e a minha ginga não tem farol."
"Moras longe?"
"Não muito, mas a pé ainda é uma horita."
"Eu acompanho-te."
"A pé?", riu-se ela. "Uma hora para lá e uma hora para cá? Nem penses!"
Diogo ergueu-se de pronto e estendeu-lhe a mão, convidando-a a levantar-se.
"Anda daí!"
Ela ergueu o olhar, hesitando em pôr-se em pé. "Já?"
"Tu viste que horas são?", perguntou o namorado, exibindo- lhe o relógio. "Se vou caminhar duas horas é melhor sairmos agora. Tenho de me deitar cedo porque a coluna sai pelas cinco da manhã para o Chioco e eu ainda quero dormir algumas horas."
Sheila estendeu-lhe a mão e ele puxou-a, ajudando-a a levantar-se. Ela ainda considerou a possibilidade de ir buscar a bicicleta, mas concluiu que mais valia deixá-la guardada no posto do calhambeque e ir levantá-la no dia seguinte, quando viesse do hospital.
Percorreram o centro de Tete lado a lado, a saborear o que restava dos gelados, e enfiaram por uma estrada de terra batida em direcção ao subúrbio onde Sheila vivia. Uma multidão animava a estrada naquela noite quente, com mulheres a passarem com bacias de água equilibradas na cabeça e crianças a brincarem com carrinhos engenhosamente construídos com paus e latas. O ar enchia-se de gargalhadas e de conversas e de música; os transistores animavam-se com ritmos de instrumentos africanos, como o caligo e a mbira, enchendo a noite de alegre musicalidade. Sheila ensaiou até uns passos de dança com uma graciosidade que deliciou o companheiro, bem mais desengonçado naqueles movimentos.
Depois meteram por um caminho que saía desta estrada movimentada e deixaram toda aquela agitação para trás. O trilho era estreito e, após passarem por umas palhotas, embocaram num troço onde não se vislumbrava vivalma. A sombra reacendeu-lhes o desejo. Diogo deu a mão à rapariga e depois um beijo e logo se seguiu um abraço e tudo recomeçou; as línguas devoraram as bocas, as mãos exploraram os corpos, os ventres colidiram esfaimados.
Percebendo que já não conseguia parar mas que estavam num local de passagem, Diogo arrastou-a para fora do trilho e deitaram-se por trás de um arbusto, enrolando-se sofregamente até ele ficar por cima dela. Com um movimento atabalhoado o rapaz baixou as calças, mas Sheila apercebeu-se e hesitou.
"Não!", disse. "Isso não!"
O soldado sentia-se perder o controlo, mas conseguiu deter-se.
"Porquê? Não queres?"
Ela exalou um som estranho, misturado com um suspiro e gemido.
"Oh, se quero! Mas não posso! Não posso!"
"Porquê?"
"Porque... porque é cedo. Mal nos conhecemos!..."
Diogo inclinou-se sobre o rosto dela e colou os lábios aos lábios dela.
"Mas eu amo-te."
Sheila hesitou.
"Eu também....", titubeou. "Eu também... mas não podemos!... Precisamos de tempo."
Diogo lambeu-lhe os lábios frementes com um movimento inesperadamente guloso.
"Qual tempo, Sheila? Qual tempo?"
"Tempo", repetiu ela, achando óbvio o que queria dizer. "Temos de nos conhecer. Não podemos fazer tudo à primeira, não sou esse tipo de moça. Entendes?"
A rapariga rodopiou sobre si mesma, tentando libertar-se do peso dele, mas Diogo não deixou. O soldado percebeu, porém, que ela se esforçava por controlar o ardor que já se lhe apossara do corpo e que a todo o momento poderia ser bem-sucedida e dominar o ímpeto de vez. Teria de jogar as últimas cartas, e precisava que fossem trunfos.
"Não temos tempo, meu amor."
"Que disparate! Claro que temos! Temos o tempo que quisermos."
Diogo tentou beijá-la, mas ela virou a cabeça, evitando-lhe os lábios. A janela de oportunidade fechava-se já.
"Eu sou um soldado, meu amor", murmurou, lançando o ás que tinha guardado na manga. "Estamos em guerra e eu fui colocado num posto no meio do mato e rodeado de turras. Isso quer dizer que nem sei se amanhã estarei vivo. Entendes isso?"
"Claro que estarás!"
O rapaz manteve a cabeça sobre ela. Sheila apenas lhe pressentia o vulto recortado na sombra, mas não tinha dúvidas de que ele a fitava.
"Quantos soldados mortos ou estropiados os Alouettes que passam frente à casa do meu tio não levam diariamente para o hospital? Quantos feridos não morreram na tua enfermaria? Quantos cadáveres não cobriste já com o lençol?"
Sheila estremeceu, subitamente apavorada, e pousou-lhe a mão quente no rosto.
"Não te vai acontecer nada!"
"Como podes ter a certeza? Eu sou um soldado em zona de guerra e estou num posto isolado e rodeado de turras. Como sabes que não te apareço amanhã no primeiro Alouette que aterrar no hospital? Como sabes tu isso?"
A rapariga começou a chorar.
"Não... não quero... não te pode acontecer nada!..."
"E se acontecer?", insistiu ele, plantando firme a terrível dúvida. "Como podes tu negar-nos o amor que merecemos? Como poderás tu viver com a consciência de que nem sequer me deixaste amar-te como um homem ama uma mulher?"
"Não, não", choramingou ela, abanando a cabeça. "Não te vai acontecer nada!..."
"E se acontecer?", repetiu Diogo, a insistir na mesma ideia, como um ferreiro que malha o ferro até o metal se dobrar à sua vontade. "Estamos em guerra e não sabemos o dia de amanhã. Vamos por isso viver um momento de cada vez. Precisamos de aproveitar o que temos enquanto o temos. Eu estou aqui agora." Acariciou-lhe o rosto molhado de lágrimas. "Ama-me como se me perdesses amanhã."
Incapaz de resistir mais um segundo que fosse, Sheila puxou-o para si, estreitando-o num abraço esfaimado, e beijou-o longamente na boca. O rapaz sentiu o corpo dela abandonar as defesas e as pernas entreabrirem-se, numa rendição que era também um convite, sinal inequívoco de que o ferro se dobrara enfim. Desfez-se das roupas que o atrapalhavam e, a tremer de desejo incontrolável, procurou-lhe a entrada, mergulhou-lhe entre as pernas e perdeu-se no delicioso caldo de doçura incandescente.
O marulhar ameno do mar foi a primeira coisa que José Branco escutou quando abandonou o Motel Estoril e percorreu a fileira de lojas ao longo do edifício ondulante. O Sol erguia- se a meia altura sobre o Índico, aquecendo o ar húmido impregnado de maresia e tornando mais alegres e vivas as múltiplas cores dos toldos que se estendiam pelo areal do outro lado da estrada. A praia parecia acenar, convidativa, atraindo os veraneantes que calcorreavam a areia em ritmo de passeio e de toalhas às costas; eram sobretudo colonos portugueses e turistas rodesianos.
Deu com o automóvel parqueado à sombra de uma acácia, com uma visão perfeita do farol do Macuti. Meteu-se no Opel e seguiu pela marginal em direcção ao Clube Náutico, a janela aberta com o braço de fora para sentir o vento tépido. Enquanto conduzia, o visitante não pôde deixar de pensar que nunca vira cidade tão descontraída e agradável como a Beira e interrogou-se momentaneamente sobre a razão de ser assim. Talvez devido à longa praia de água quente, pensou; era um bálsamo perfeito para o culminar de um dia de trabalho. Mas também tinha de considerar a elegância tropical dos edifícios da cidade, aqui em estilo Belle Epoque, ali em traça colonial.
Sempre achara a Beira uma urbe atraente, embora talvez menos naquelas circunstâncias penosas. José tinha um problema para resolver e não ia descansar enquanto não encontrasse solução. Virou para o bairro da Sofir, ainda na estrada que bordejava o Índico, e, após verificar os números nos portões, estacionou diante de uma casa colonial. Conhecia bem aquele tipo de construção, muito característico dos edifícios residenciais públicos em Moçambique. A casa estava dividida em dois apartamentos, um no rés-do-chão e o outro no primeiro andar, desenho que proliferava pela província. O seu destino era o primeiro andar.
Cruzou o portão e invadiu o quintal até se imobilizar numa porta rasgada na esquina da casa. Tocou à campainha e ouviu a sineta tilintar lá em cima. Instantes volvidos, escutou passos pesados no som característico de quem desce um longo lanço de escadas. A porta abriu-se e deparou com o olhar surpreendido do seu velho amigo.
"Olá, Domingos!", saudou. "Estás bom?"
"Zé!", soltou o advogado negro, abraçando-o. "Tudo maningue naice?"
Embora se tivessem mantido em contacto por carta, era a primeira vez que se viam desde os tempos de João Belo. O médico avaliou por isso o amigo, tentado descortinar nele efeitos da passagem pela prisão; Domingos estava talvez um pouco mais velho, com alguns cabelos brancos a nascerem-lhe nas têmporas, mas a principal diferença residia no volume do corpo.
"Estás mais gordo, pá!"
"Iá, são os caranguejos da Beira", retorquiu o advogado com uma gargalhada. "Desde que me desterraram neste paraíso que não quero outra coisa!"
"Que sorte!"
Foi a vez de Rouco apreciar o aspecto do amigo.
"E tu estás todo chunguila com essas grandes gadelhas", constatou. "Andas armado em Beatle ou quê?"
"Sabes que eu sou mais James Last..."
Apercebendo-se de que aquele local não era o mais indicado para conversarem, Domingos fez sinal para dentro do edifício.
"Entra, entra."
O anfitrião puxou o recém-chegado para a sombra do átrio e levou-o pelas estreitas escadas interiores até ao apartamento do primeiro andar. Fazia uma frescura agradável, com o ar em movimento graças às ventoinhas que rodavam nos tectos. O advogado pôs a tocar no gira-discos o último Paul Mauriat e foi preparar dois whiskies.
"A Mímicas não está?"
A pergunta foi feita por José no tom mais casual possível, quase como se o assunto tivesse acabado de lhe ocorrer. De costas para o visitante, Domingos misturou soda com o whisky e deitou gelo nos copos, enquanto se meneava ao ritmo da orquestra que jorrava pelo altifalante do gira-discos. Depois aproximou-se, estendeu um copo ao amigo e caiu pesadamente no seu lugar.
"A Albertina meteu uns dias de férias e foram as duas à praia", disse com ar desentendido. "Devem aparecer daqui a pouco."
Pela expressão fugidia do amigo, José percebeu que ele conhecia a situação do casal mas optara por fingir ignorância, o que se afigurava o comportamento mais sensato. Não voltaram por isso a tocar no assunto, deixando a conversa derivar para a vida na Beira e em Tete.
"Olha que Portugal está a perder mão na situação", avisou Domingos, entretendo-se a balouçar o gelo que tinha dentro do copo. "Aqui o nosso amigo Jardim prepara-se para decretar a independência de Moçambique."
"Qual Jardim?", admirou-se o médico, que nunca ouvira falar em nenhum dirigente da guerrilha com esse nome. "Quem manda no vosso lado não é agora o Machel?"
O advogado negro soltou uma gargalhada.
"Estou a falar do Jorge Jardim, pá! O manda-chuva aqui da Beira."
José arregalou os olhos, identificando o personagem. Jorge Jardim era o maior empresário de Moçambique, uma espécie de governador não oficial da província.
"Ah, o Jardim!" Associou a figura à informação que Domingos lhe dera e esboçou uma expressão de estranheza.
"Ele quer decretar a independência? Que disparate é esse?"
"É como te digo. Tenho informações seguríssimas de que o gajo fez em Lusaca um acordo com o Kaunda que prevê um governo multipartidário para Moçambique, integrando a própria Frelimo, com independência e continuação da ligação à Metrópole. O plano até era porreiro, mas o Marcello e o Machel recusaram." Inclinou-se no seu lugar, falando já quase num sussurro. "Parece que o Jardim pretende agora seguir o exemplo dos bifes da Rodésia e decretar unilateralmente a independência, instituindo um regime branco aqui em Moçambique. O gajo é amigo do Banda e põe o Malawi do lado dele. É possível que conte ainda com a ajuda da Rodésia e da África do Sul, que andam há anos a tentar meter aqui tropas porque acham que os Portugueses não estão a fazer a guerra como deve ser e têm medo de, caindo Portugal, serem eles os próximos alvos a abater." Sorriu. "No que têm razão, diga-se de passagem..."
"A Metrópole não vai nessa conversa!..."
Domingos girou a palma da mão de um lado para o outro, indicando que não tinha a certeza de nada.
"Vamos ver", limitou-se a dizer. "De qualquer modo, o controlo da situação começa a escapar a Portugal. O Kaúlza acha que a guerra se resolve militarmente e está a dar cabo de tudo, mas, tanto quanto sei, o Marcello e o governador-geral estão descontentes com ele. O Marcello acusa-o de ter uma concepção cruel da guerra e o governador diz que o gajo quer ganhar a matar toda a gente e que as guerras subversivas não se vencem assim. Parece que a PIDE tem a mesma opinião."
O médico pareceu intrigado.
"Mas como raio sabes isso tudo?"
O amigo recostou-se no seu assento.
"Posso estar com residência fixa", disse com um sorriso, "mas não ando a dormir." Apontou-lhe o indicador. "E digo-te mais: a coisa vai aquecer em Tete."
"Mais ainda?"
O fragor distante das ondas rompeu pela janela. Domingos lançou um olhar para lá da marginal e contemplou a linha que demarcava as duas manchas azuis, como um traço riscado a crayon cerúleo numa tela colossal; era o horizonte derramado entre o azul-escuro do mar e o anil claro e profundo do céu.
"Nunca ouviste falar de Mucumbura?"
"É uma terriola perto da Rodésia", identificou José. "Parece que houve para lá uns problemas no ano passado."
Os olhos de Domingos desviaram-se do fio longínquo para o amigo.
"A Frelimo matou um régulo que ajudava os Portugueses e plantou uma mina que matou três soldados rodesianos", disse num tom distanciado. "Dias depois apareceram lá as tropas especiais e mataram mais de vinte machambeiros por terem dado comida aos guerrilheiros. A mesma coisa aconteceu meses depois em várias aldeias ao longo do rio Dack e ainda na zona do Buxo." Abanou a cabeça. "Não sei onde isto irá parar, mas se é assim que o Kaúlza quer ganhar a guerra..."
O advogado deixou de propósito a frase em suspenso e foi justamente no silêncio que se seguiu que escutaram o som de uma chave a rodar na fechadura e se voltaram para a entrada.
A porta abriu-se e Albertina entrou em casa na companhia da amiga. Logo que viu o marido na sala a fitá-la com uma expressão expectante, porém, Mimicas deu meia volta e abalou.
A Berliet imobilizou-se à entrada do tabuleiro da ponte sobre o rio Mazoi e o furriel Bimba foi o primeiro a saltar. Estudou a estrutura metálica à distância, avaliando os seus pontos nevrálgicos, e voltou-se para trás, fazendo um gesto para a viatura.
"Diogo", chamou. "Vens comigo?"
O camarada mantinha-se recostado no banco corrido da Berliet, os olhos sonhadores a relembrarem a experiência que vivera duas noites antes, e pareceu despertar no momento em que ouviu a voz interpelá-lo pelo nome.
"Hã?", perguntou, atarantado. "O quê? O quê?"
Deu com Bimba de olhos cravados nele, as mãos à ilharga numa pose de reprovação.
"Olha lá, estás a dormir ou quê?" Fez sinal para a ponte. "Anda daí, vamos inspeccionar os pilares!..."
Dessa vez a instrução foi compreendida. Como se fosse catapultado por uma mola, Diogo saltou do veículo, certificou-se de que a G3 se encontrava destravada e internou-se no capim, acompanhando o camarada na descida pela encosta.O rio fluía à distância, fresco e convidativo, e o gorgolejar límpido das águas ecoava pelo vale como uma torrente melódica. Diogo caminhava com os olhos a saltitarem entre o chão que pisava e o rio que o tentava, até firmar o pé num pequeno promontório e poder enfim contemplar o braço prateado de água. Passeou os olhos pelo caudal, com esperança de poder descer lá a baixo para dar uns mergulhos depois de terminar a missão; considerando o calor infernal que fazia, parecia-lhe até mais sensato fazê-lo nesse momento.
"Então? Vens?"
A voz do furriel Bimba voltou a retirá-lo da fantasia. Sacudiu a cabeça, preocupado já com a facilidade com que se distraía à mais pequena oportunidade, e aligeirou o passo no encalço do camarada. Bimba guiou-o entre os arbustos e o capim alto até se posicionarem por baixo do tabuleiro da ponte. Logo que atingiram um ponto favorável de observação, começaram a inspeccionar a estrutura.
O olhar de Diogo percorreu a parte inferior do tabuleiro e depois passou para os pilares. O primeiro apresentava-se limpo, mas a sua atenção deteve-se num volume estranho que parecia amarrado ao segundo pilar.
"Está ali uma coisa."
Bimba seguiu-lhe a direcção do dedo.
"Onde?", quis saber. Perscrutou o pilar até localizar o objecto suspeito. "Ah, aquilo!..." Estreitou os olhos, como se assim conseguisse ver melhor. "Parece-me um ninho..."
Diogo considerou a possibilidade e estudou o volume com grande atenção. Ao cabo de alguns instantes, abanou a cabeça.
"Não é ninho nenhum", sentenciou com absoluta segurança. "São explosivos."
Os dois militares pareciam lagartixas coladas ao pilar. Diogo verificou a segurança da corda que o sustentava e fez força com a perna, colocando-se por fim ao nível do volume suspeito. Era uma caixa metálica e parecia fundida no pilar; impossível arrancá-la com os meios de que dispunha ali. Estudou o receptáculo e apercebeu-se de que estava vedado. Uma tampa selava a caixa através de quatro pequenos parafusos atarraxados um em cada canto.
Espreitou para baixo e viu a cabeça de Bimba a balouçar ao ritmo do seu arfar. O camarada esforçava-se por alcançar o ponto onde se encontravam os explosivos; era um soldado experiente, mas faltava-lhe a preparação física de Diogo para ser capaz de escalar o pilar com a mesma destreza.
"Ó Bimba", chamou Diogo. "Esta merda está selada por uns parafusos. O que faço? Desaparafuso a tampa?"
"Não toques nisso, porra!", exclamou o camarada, fazendo uma pausa para recobrar energia. "Aguenta um instante!..."
Bimba levou ainda um minuto a ascender à posição onde se situava a caixa suspeita. Chegou ofegante e teve de aguardar ainda alguns momentos de modo a recuperar o fôlego e as forças. Limpou a transpiração que lhe escorria abundante pela fronte e, já mais recomposto, secou na farda as mãos suadas e começou por fim a examinar a caixa.
"Ufa!", bufou. "O que temos aqui?" Passou a mão pela tampa e inspeccionou os parafusos. "Hmm... pois é, precisamos mesmo de desaparafusar esta gaita." Sentindo que necessitava de mais tempo para se restabelecer, desviou os olhos para o camarada. "Fazes-me isso?"
Diogo extraiu do bolso das calças um instrumento aguçado e colou-lhe a extremidade a um parafuso, desenroscando-o de imediato. Depois passou para os seguintes até conseguir soltar a tampa e expor o interior da caixa. Fez tudo com movimentos automáticos, os olhos a acompanharem os seus próprios gestos mas a atenção a deambular pelo rosto de Sheila, o jantar no Carlettis, o passeio de mãos dadas ao longo da avenida, o primeiro beijo por baixo da mangueira, nunca uma mangueira havia produzido manga mais doce do que os lábios de Sheila, o sorvete italiano saboreado no...
"Hmm... mau, mau!", murmurou Bimba como se falasse apenas consigo mesmo. "Esta é nova!..."
A observação despertou Diogo. Surpreendera-se mais uma vez a sonhar acordado, e isso, percebia, sucedera justamente num momento em que não podia de modo algum acontecer. Estava pendurado num pilar de uma ponte a desactivar um explosivo e precisava de se concentrar totalmente na tarefa.
Olhou para Bimba como se o enxergasse pela primeira vez e viu-o estudar o dispositivo no interior da caixa. O que lhe chamou a atenção, porém, foram as dúvidas que lhe leu no olhar. Fez um esforço mental e reconstituiu de memória as palavras que ele havia pronunciado momentos antes, transformando os sons numa frase com sentido.
"O que queres dizer com isso?", alarmou-se Diogo logo que percebeu o que o outro dissera instantes antes. "Nunca viste armadilhas destas?"
Absorvido no problema, o camarada não respondeu; provavelmente nem sequer tinha escutado a pergunta. Bimba deitou a mão ao interior de um saco que trouxera a tiracolo e tirou um caderno que se pôs de imediato a folhear. Diogo baixou a cabeça de modo a ficar em posição de espreitar o título. O cabeçalho do caderno dizia Manual do Exército e assinalava, como subtítulo, Manuseamento de Explosivos.
O furriel estremeceu e endireitou-se, abalado. Bimba era o perito em minas e armadilhas do Chioco e supostamente dominava o tema de trás para a frente. Observá-lo a consultar um manual para aprender a desactivar explosivos não era, por isso, das coisas mais reconfortantes que se poderia vê-lo fazer, sobretudo quando se estava ao pé dele e junto dos explosivos nos quais ele iria mexer.
"Olha lá", retomou Diogo com crescente inquietação. "Tu sabes o que estás a fazer?"
Bimba lançou-lhe um olhar estranho e voltou de novo a atenção para o manual. Depois começou a estudar as ligações estabelecidas na caixa, comparando-as com o que via no texto.
"Ora bem, se eu tirar este fio vermelho, a coisa em princípio fica resolvida...", murmurou num diálogo consigo mesmo. Hesitou, consultando o manual e depois outra vez a caixa. "Não, não é o vermelho. É o azul." Mais uma hesitação. "Hmm... espera aí! Tiro o fio azul? E se... hmm!... Não será melhor o vermelho?"
Novas gotas de suor brotaram do topo da testa de Diogo. Ao contrário dos outros, estes pingos que lhe escorriam já pela face não eram a habitual transpiração produzida pelo calor, mas puro efeito dos nervos a serem testados. Sabia-o porque aquele suor era frio; além disso, pela mesma altura sentiu uma pontada dilacerar-lhe o estômago e percebeu que o corpo lhe exigia que saísse dali enquanto havia tempo.
"Bimba", disse, quase numa súplica. "Tens a certeza que sabes o que estás a fazer? Olha que se não tens é melhor a malta descer e mandar vir um engenheiro que perceba disto, pá!... Não vamos correr riscos estúpidos, pois não?"
Inquiriu o rosto do camarada, à espera de uma resposta, mas achou a expressão de Bimba estranha; tinha as pálpebras molhadas e o branco dos olhos parecia injectado de sangue.
"E se for o amarelo?", interrogou-se Bimba nesse instante. Espreitou o manual. "Se eu tirar o fio amarelo, será que esta merda explode? Hmm... talvez seja melhor ir mesmo para o vermelho..."
Os dedos do perito em explosivos dançavam entre os três fios, na agonia da indecisão. Num instante dava a impressão que ia puxar um, mas uma consulta ao manual convencia-o a arrancar outro até uma nova espreitadela àquelas páginas o fazer regressar à primeira hipótese ou avançar para a terceira.
"Bimba!? Estás a ouvir?", insistiu Diogo, sacudindo-lhe o ombro esquerdo. "É melhor não mexeres nessa merda, pá!... Vamos chamar alguém, está bem?"
Em vez de responder, o perito em minas e armadilhas pôs-se a trautear uma cançoneta que Diogo reconheceu como a canção que Tonicha levara no ano anterior ao Festival Eurovisão da Canção.
"Menina de olhar sereno raiando pela manhã", começou Bimba a cantarolar, "de seio duro e pequeno num coletinho de lã..."
Diogo cravou o olhar no rosto alterado do camarada e depois nos dedos que brincavam com os três fios ligados aos explosivos e lembrou-se de ouvir Chaparro dizer que o Bimba estava em fim de comissão e já andava transtornado e sentiu enfim a verdade impor-se diante dele, terrível e definitiva.
"Tá piruças!"
Com o pânico a apossar-se do corpo, Diogo desatou a descer apressadamente o pilar, sem saber se ia a tempo de se salvar, se Bimba esperaria pelo final da canção para puxar os fios, se a canção era longa, se...
"Já está!"
A voz de Bimba, lá em cima, paralisou-o de terror. Encolheu-se abraçado ao pilar, à espera do pior. Mas nada aconteceu. A medo, sempre a aguardar que o mundo desabasse a todo o momento, ergueu devagar os olhos e espreitou para cima.
"Já está, como? O que fizeste?"
"Era o fio vermelho", devolveu Bimba com despreocupação, as mãos ocupadas a desmontar o engenho sem qualquer cerimónia. "Os cabrões às vezes fintam-nos e mudam as cores para nos baralhar, mas a mim não me enganam eles!" Soltou uma risada histérica. "Filhos da puta, pensavam que trapaceavam o Bimba?! Ora tomem lá, que já ficaram sem a bomba!..."
Desceram os pilares com os explosivos separados em peças diferentes. Depois de guardarem o material na Berliet foram inspeccionar o resto da ponte e, não encontrando mais nada que considerassem suspeito, juntaram-se ao resto da unidade de combate. Os homens da companhia estavam posicionados na estrada e no mato em redor da ponte, a vigiar o local de modo a garantir a segurança em torno da estrutura.
O rádio estralejou à distância e Diogo consultou o relógio. Tinham passado duas horas desde que haviam desmontado a armadilha. Espreitou a Berliet onde Bimba, por ser o engenhocas, se encarregava das comunicações e ouviu a voz do camarada responder para o rádio. Instantes depois vislumbrou-lhe o vulto a erguer-se e acenar.
"Vêm aí!"
Os soldados redobraram de atenção, esquadrinhando o mato à procura de qualquer movimento suspeito. Se os turras tinham plantado explosivos na ponte era porque andavam por perto. Uma nuvem de poeira tornou-se visível da estrada, confirmando que chegara o momento mais delicado da operação. Volvidos cinco minutos sentiram o ar vibrar e viram uns pontitos zumbir no céu, como varejeiras gigantes.
Os pontos cresceram e transformaram-se em helicópteros. A nuvem de poeira estava já bem próxima e a sua origem ficou de repente visível; era uma coluna de viaturas que se aproximava da ponte com grande espalhafato. Diogo deu um passo para trás porque a barulheira em crescendo se tornara infernal e a confusão generalizara-se.
As primeiras viaturas entraram na ponte; tratava-se de Berliets com operacionais de boinas vermelhas, evidentemente comandos. Depois, enquadrados pela pesada escolta militar, apareceram vários camiões com atrelados pesados e incrivellmente longos; alguns tinham fileiras com pares de doze rodas. Iam devagar e funcionavam como magnetos para os olhos; toda a gente fixava a atenção neles, encarando-os com um quase inexplicável respeito. Os camiões apresentavam um formato estranho. Todos sabiam que eles tinham enorme importância, uma vez que transportavam as famosas cargas críticas destinadas às obras da barragem de Cabora Bassa. A sua circulação exigia por isso operações militares de grande envergadura, envolvendo meios aéreos e batalhões inteiros.
Hipnotizado por aquela visão esmagadora, Diogo abeirou-se da estrada e espreitou-lhes as matrículas. Eram inglesas, obviamente oriundas da Rodésia. Os veículos pesados percorreram lentamente todo o tabuleiro, como se receassem que o seu peso fizesse desabar a ponte, até chegarem por fim ao outro lado. A retaguarda era protegida por mais Berliets carregadas de homens com boinas vermelhas, que fechavam a coluna como a cauda de uma longa e estranha serpente.
A coluna passou e a tranquilidade regressou à ponte. Sem pronunciarem uma palavra, os soldados do Batalhão de Artilharia encaminharam-se para as Berliets e assumiram os seus lugares. Diogo sentiu-se por momentos um autómato; estava ali mas tinha a mente noutro lado. Pela enésima vez desde que acordara nessa madrugada, contou os dias que faltavam para a coluna de abastecimento ir a Tete e para ele a integrar na viagem até Sheila. Ah, como seria bom o reencontro! Na próxima visita à cidade fariam as coisas de maneira diferente. Aliás, já tinha tudo planeado: em vez de passar a noite no quartel, ia ficar no Hotel Zambeze. Tinha a certeza de que...
Os motores foram ligados, interrompendo o devaneio, e os homens prepararam-se para iniciar o caminho de regresso ao Chioco. Diogo inclinou-se no assento e lançou ainda um derradeiro olhar à outra margem. A nuvem de poeira, enquadrada pela aparatosa escolta de helicópteros e comandos, esfumava-se já em direcção ao Songo, deixando-lhe a impressão de que tudo não havia passado de uma estranha miragem.
A fuga inopinada de Mimicas ao ver o marido na sala criou um ambiente de profundo desconforto na casa dos Rouco. Até ali, José e Domingos haviam mantido uma conversa na ficção de que nada de anormal se passava entre o casal Branco e de que aquela visita era meramente de cortesia, mas agora deixara de ser possível fingir que estava tudo bem.
O primeiro impulso de José foi sair a correr atrás da mulher, mas conteve-se. Já não pretendia disfarçar o estado de coisas entre ele e Mimicas, mas sentia-se determinado a pelo menos manter a dignidade e não dar espectáculo. Forçou-se por isso a encolher os ombros e a sorrir para os anfitriões.
"Mulheres!"
Disse-o num desabafo, como se a palavra tudo explicasse, e só então acenou em despedida. Sempre a esforçar-se por manter uma pose calma e controlada, partiu enfim em busca de Mimicas.
Não a viu quando chegou à rua, o que o intrigou. Embora não tivesse saído imediatamente no encalço da mulher, fizera-o uns trinta segundos depois dela. Como podia ter desaparecido tão depressa? Vasculhou a longa estrada marginal de um lado para o outro, primeiro varrendo o espaço em redor com um olhar rápido, depois demorando-se nos pormenores, tentando identificar rostos, detectar movimentos, localizar azuis como o do vestido que Mimicas trazia quando a vira, mas o facto é que não vislumbrava sinais dela.
"Onde raio se meteu?", murmurou entre dentes.
Fez a pergunta quase com esperança de que a sua mera verbalização lhe pudesse trazer uma resposta, mas não surgiu réplica de parte alguma. A mulher volatilizara-se. Pensou em dar meia volta e aguardar em casa dos Rouco que ela reaparecesse, parecia-lhe evidente que em algum momento teria inevitavelmente de regressar, mas percebeu que se instalaria um ambiente estranho e que o melhor seria resolver as coisas em privado. Teria de descobrir Mimicas.
Meteu-se no carro e deambulou pela zona espreitando em todas as direcções. As ruas da cidade eram guardadas pelas sombras das acácias, que se alinhavam nos passeios como uma guarda de honra, mas não a enxergou entre as pessoas que por ali circulavam e decidiu dar uma volta pelo centro. Foi até à vasta Praça do Município e contornou-a devagar, sem resultado; depois seguiu até ao Grande Hotel, onde também não a conseguiu avistar.
Deixou o olhar esvaziar-se pelo mar, a mente concentrada no problema imediato. Se eu fosse a Mimicas, para onde iria?, interrogou-se. Viu um torvelinho de fumo ascender pelo horizonte azul, como se um cigarro aceso deslizasse no mar; era um cargueiro a passar ao largo, se calhar em direcção a Nacala, ou talvez o destino fosse Porto Amélia. Foi nesse instante, enquanto mirava aquele ponto fumegante, que teve a ideia.
O calor no areal era insuportável e José sentiu ganas de dar um mergulho nas águas irrequietas da praia da Beira. Havia pessoas estendidas em toalhas a apanhar banhos de sol, enquanto outras chapinhavam à beira-mar e algumas crianças brincavam com baldes na areia molhada. As ondas morriam na praia com um clamor incessante, ora vinham, ora iam, e o odor salgado da maresia enchia o ar, misturando-se momentaneamente com os aromas frutados exalados pela geleira de um vendedor ambulante de gelados que por ali passou aos gritos. "Sorvete! É morango, é chocolate! Esquimó! sorvete! Tem chuinga também! Maningue naice!"
O médico tirou os sapatos e caminhou pela água ao longo da praia, refrescando-se; o mar estava tépido, como sempre na Beira, e era agradável passear à sua borda. José levantou os olhos e viu a estrutura erguer-se da areia com o seu emaranhado de ferros enferrujados, como um esqueleto metálico que o Indico vomitara das suas entranhas, e dirigiu-se a ela. A sombra do velho barco encalhado na praia distinguiu um vulto sentado na areia e percebeu que era Mimicas. O seu palpite estava certo.
"Sempre gostaste de vir para aqui", atirou-lhe ao aproximar- se. "O teu local favorito na praia da Beira."
A mulher lançou-lhe um olhar ressentido.
"Vai-te embora!"
A ordem foi ignorada por José, que continuou a caminhar até mergulhar na sombra do navio encalhado e estacar junto a Mimicas. Estava-se bem ali, com os destroços a protegê-los do calor húmido e inclemente. Era difícil perceber por que razão aquele barco ainda não havia sido removido, mas a verdade é que se tornara já parte integrante da paisagem daquela praia, como um velho coqueiro a que todos se tivessem habituado.
"Anda para casa", disse ele num tom suave. "Não sei o que te diga mais para expressar o meu arrependimento. Já te pedi desculpa mil vezes e peço-te outras mil se tiver de ser."
"Nem que peças um milhão de vezes", retorquiu ela, sem tirar os olhos do mar. "Vai-te embora! Nem te quero ver à frente!"
José suspirou e sentou-se na areia ao lado dela.
"Eu sei que não serve de desculpa, mas quero-te dizer que nada foi planeado nem desejado por mim. Ela simplesmente...atirou-se a mim. Eu resisti, mas, sabes como é, um homem é um homem e... e..."
"Cala-te!", cortou Mimicas num grito, o corpo agitado numa convulsão. "Não quero ouvir nada!"
O marido reavaliou o que havia dito e concluiu que deveria evitar referências a Nicole. O melhor era concentrar-se nos seus sentimentos pela sua mulher.
"O que te quero dizer é que nunca gostei de outra pessoa que não fosse de ti", disse. "Os homens às vezes são estúpidos e fazem coisas estúpidas. No momento em que as estão a fazer sabem que são estúpidas, mas é como se algo tomasse conta da nossa vontade... não sei como explicar." Respirou fundo. "O que quero dizer é que fiz um grande disparate, mas espero que me perdoes. Amo-te a ti e só a ti e o que se passou não se repetirá nem mais uma vez."
Mimicas levantou-se bruscamente.
"Não quero voltar a pôr-te os olhos em cima!", rosnou. Deu meia volta e começou a afastar-se com passos rápidos, mas o marido ainda lhe escutou um derradeiro desabafo. "Metes-me nojo."
O herói do bigode e a rapariga de sari púrpura e dourado trocaram um longo olhar langoroso e, embalados por uma melodia sentimental pungente, aproximaram os rostos com infinito vagar até as pontas dos narizes se tocarem com pudor; a imagem fez então um lento fade a negro, as luzes acenderam-se como se o Sol tivesse irrompido no salão e os aplausos eclodiram em cascata na plateia, misturando-se com uma chuva de assobios e alguns protestos por, em matéria de carne, "só mostrarem isto!"
"Então?", perguntou Diogo ao levantar-se, espremendo-se contra o assento da frente para deixar a namorada passar. "Gostaste?
"Foi bonito."
A multidão enchia já o corredor, fazendo fila para sair da sala, e os dois juntaram-se àquela massa de gente.
"Só não percebo por que motivo estes filmes indianos nem um beijo mostram."
"És um tonto!", riu-se Sheila. "Quando eles olham um para o outro ou quando tocam o nariz, isso é a coisa."
"Que coisa?"Ela premiu-lhe o nariz com um dedo.
"Tu sabes muito bem!..."
"Não sei, não."
"Pois, pois. Faz-te sonso..."
Desaguaram no átrio, que se enchia de gente; eram brancos e negros, crianças e adultos, indianos e mulatos, balalaicas e fardas, toda uma multidão atraída pela famosa matinê indiana dos domingos no Cinema São Tiago.
Esticando o pescoço para a esquerda, Diogo olhou por cima das cabeças para verificar se o bar do Café Dominó ainda estava aberto. O enxame de clientes para lá das portas deu-lhe a resposta.
"Queres tomar alguma coisa?"
Sheila tirou a língua para fora e exibiu uma forma elástica branca e amarfanhada.
"Já tenho uma chuinga."
"Eu reparei lá dentro", retorquiu ele, passando a língua pelos lábios. "Hoje sabes a morango."
"Parvo!"
Diogo riu-se. Aquele "parvo!" pareceu-lhe uma carícia.
"Anda, ao menos faz-me companhia."
Furaram pela multidão ainda compacta e quase lutaram para chegar ao muito concorrido balcão do café ao lado do Cinema São Tiago. Fazia calor e Diogo conseguiu uma nesga entre dois bancos. Ergueu a mão e fez sinal ao empregado logo que ele se virou na sua direcção.
"Cerveja", pediu. "Bem fresca!"
"Manica, Dois ou Laurentina?"
"Laurentina."
O pedido estava feito e Diogo voltou-se para a namorada, apoiando o cotovelo no balcão. Incomodada com a acumulação de tanta gente num espaço tão quente, Sheila parecia ansiosa por fugir dali. Mas não havia pressas; se ele tinha feito o sacrifício de ir ao cinema ver aquela pepineira só para lhe agradar, ela bem que podia aguentar uns minutinhos enquanto o namorado refrescava a garganta no Café Dominó.
O pensamento regressou-lhe ao filme e ao curioso pormenor de os olhares entre personagens substituírem os beijos. Ia fazer uma pergunta à namorada a propósito dessa peculiaridade do cinema indiano quando sentiu alguém tocar-lhe no ombro.
"Então? Já não se fala aos amigos?"
Virou a cabeça e viu um soldado em uniforme de passeio voltado para ele. Antes de lhe fixar a face, a sua atenção foi atraída para a boina que o soldado trazia na cabeça. Ou, em bom rigor, o que lhe despertou a curiosidade não foi tanto a boina como a cor dela.
Era vermelha.
"Perdão?"
"Então agora finges que não me conheces, pá?"
A boina vermelha significava que o homem que se dirigia a ele era um comando. Que Diogo soubesse não conhecia comando algum. Nunca falara com nenhum, apenas os vira a passar na rua, acantonados em quartéis ou a escoltar comboios que transportavam cargas críticas para o Songo. Mas se é certo que jamais travara conhecimento com qualquer boina vermelha, o facto é que ali estava um a interpelá-lo.
Sacudiu a cabeça, num esforço para se livrar dos pensamentos e concentrar-se no que importava, e observou por fim o rosto do seu interlocutor. Era um rapaz seco, com uma face longa e estreita, mas o que ele tinha de mais característico e singular era o olhar baço.
"Angelino!?"
O comando sorriu.
"Estava a ver que não me reconhecias!"
Abraçaram-se como velhos amigos; havia anos que Diogo não via Angelino Melro. Trocaram as palavras que se dizem nestas circunstâncias, com perguntas sobre a família e observações cúmplices a propósito dos tempos que tinham passado juntos no Orfeão da Madalena e no FC Porto.
Diogo apresentou-lhe a namorada com uma ponta de orgulho, consciente do efeito que Sheila produzia em qualquer homem, e a conversa desviou-se para a estranha circunstância de se reencontrarem justamente ali em Tete, uma terriola poeirenta nos confins de África, ambos soldados no meio de uma guerra.
"Agora és comando?"
Angelino bateu no ombro esquerdo, chamando a atenção para as insígnias de alferes.
"E comandante de companhia, ainda por cima!"
A revelação extraiu um esgar estupefacto do amigo. "
"Comandante? Mas tu és oficial de carreira? Desde quando?"
"Desde que o meu comandante adoeceu."
"E então? Se o teu comandante adoeceu, avança o segundo comandante..."
Angelino abanou a cabeça.
"Nos comandos não é assim", explicou. "O comandante da minha companhia é o capitão Janeiro, do quadro de oficiais. Mas ele apanhou uma hepatite e está de cama. Como nos comandos o comandante é o único oficial de carreira da companhia, quem o substitui é sempre o miliciano que ficou mais bem classificado no curso."
Diogo avaliou da cabeça aos pés a figura franzina e seca do amigo, como se duvidasse.
"Tu foste o primeiro classificado do curso de comandos?"
"O voleibol sempre serviu para alguma coisa, hein?", confirmou o amigo. "Enquanto o capitão Janeiro não voltar, o comandante da 6ª Companhia de Comandos de Moçambique é aqui o teu ilustre amigo e antigo colega de equipa."
Diogo não parecia convencido.
"Mas que idade tens tu afinal?"
"Vinte anos. Porquê?"
"Ainda és muito novo, pá!", exclamou. "Como é possível que estejas a comandar uma companhia de comandos com essa idade?"
Foi a vez de Angelino contemplar o camuflado de Diogo.
"Olha lá, e tu? Que eu saiba somos da mesma idade! Quer- me cá parecer que estás é com inveja!..."
"Não digas disparates! O que acho é que ninguém devia comandar uma companhia com apenas vinte anos. Incluindo eu, claro."
O comandante dos comandos ajeitou-lhe os galões de furriel.
"E o que eu acho é que a chefia de uma unidade deve ser entregue segundo o mérito, não a idade", argumentou. "Ou muito me engano ou tu já estás contaminado pela mentalidade aramista da tropa macaca."
"Qual aramista? Qual tropa macaca?", questionou Diogo, fingindo-se ofendido com a expressão usada pelo amigo. "Eu sou um atirador miliciano destacado."
"Destacado onde? Nas tropas especiais?"
"No BART. Enfiaram-me no Chioco."
A referência ao Chioco foi propositadamente introduzida para impressionar Angelino, mas não surtiu efeito.
"Tropa macaca", insistiu o comando num tom paternalista. "Tsss! Não tens vergonha?"
Vergonha era coisa que jamais ocorrera a Diogo, mas o facto é que, perante a descoberta de que o amigo se tornara comando, de algum modo sentia-se um tudo-nada diminuído, como se estivesse ao lado de um galo de guerra e não passasse de um pinto. O sentimento deixou-o algo acabrunhado, complexado até, e, procurando ganhar tempo para congeminar uma resposta condigna, agarrou na caneca de Laurentina e bebeu metade de um trago.
Quando pousou a cerveja no balcão e limpou com a língua a espuma branca que lhe ficara a borbulhar nos lábios não lhe havia ocorrido ainda qualquer resposta de génio. Percebeu, resignado, que teria de se contentar com algo banal.
"Não tenho vergonha nenhuma", acabou por dizer. "Porquê? Devia ter?"
"Claro que devias! A tropa macaca é formada por um bando de maricas que não fazem porra nenhuma a não ser coçar os tomates o dia inteiro. Nunca te imaginei uma menina..."
"Ora! Vou para onde me mandam!..."
"Se te mandarem vestir saias também vestes? É que à tropa macaca só lhe falta mesmo andar a provar vestidos!"
"Desculpa lá, mas não é bem assim", corrigiu Diogo, a levar o assunto mais a peito. "Que eu saiba, o Chioco não é propriamente uma estação balnear e a malta não anda aqui a reinar. Aquilo é duro, pá. Maningue duro."
Angelino emitiu uma gargalhada seca.
"Duro? Não me faças rir!"
"Podes gozar o que quiseres, mas só eu sei o que tenho de aturar. Vivemos num buraco cercado pelo in, sofremos emboscadas, apanhamos morteiradas, andamos em campos minados, patrulhamos território hostil, fazemos operações de protecção a pontes, a estradas, às linhas de muito alta tensão... olha, que eu saiba os comandos não passam pior. Alguma vez estiveste no Chioco? Fazes alguma ideia do que aquilo é?"
Confrontado com a pergunta, Angelino fitou-o com intensidade e o olhar, habitualmente opaco, agitou-se com uma súbita tonalidade sinistra.
"Achas que a merda do teu buraco no Chioco é guerra? Mas tu sabes o que é guerra a sério? Tu alguma vez viste a guerra como ela verdadeiramente é? Tens por acaso alguma ideia do que é a guerra?"
Aquele inesperado olhar de ferro atrapalhou Diogo, desconcertado por observar tanta certeza no rosto do velho amigo.
"Bem... suponho que sim", titubeou. "Porquê? O que vês tu que eu não veja?"
O comandante dos comandos abanou a cabeça, como se nenhuma explicação que pudesse dar fosse capaz de responder àquela pergunta. Ainda abriu a boca para tentar apresentar um esboço do que lhe ia na mente, mas acabou por fechá-la sem pronunciar mais do que um som ininteligível. Era impossível descrever a guerra; para perceber a sua essência tornava-se imprescindível vivê-la como os comandos a viviam, uma experiência que não se podia articular por palavras. No mato, em território absolutamente hostil e apenas protegido pela G3 e pelos camaradas, é que se poderia ver a verdade. Se ao menos o amigo pudesse vir com ele!... Logo que formulou o desejo sentiu-se paralisado, os olhos vidrados, como se só então tivessem visto algo que sempre estivera diante dele. Acabara de lhe ocorrer uma ideia.
"Olha lá", disse, voltando-se devagar para Diogo enquanto a ia trabalhando na mente. "Tu queres saber o que é verdadeiramente a guerra?"
"Bem... iá."
"Então vem passar um mês connosco."
Diogo carregou as sobrancelhas numa interrogação, sem entender bem o que acabara de escutar.
"Connosco quem?"
"Com os comandos, pá. Vens ver como é a guerra a doer."
"Tás a reinar?"
"Não, estou a falar muito a sério!"
Diogo apontou para as insígnias do Batalhão de Artilharia 7220, que trazia cosidas ao camuflado.
"Eu já estou destacado, pá."
"Estás destacado para artilharia e é uma questão de te destacares para os comandos, não tem problema nenhum."
"Não é bem assim", corrigiu. "Que eu saiba um gajo não pode ir para os comandos assim do pé para a mão."
"Claro que não", reconheceu Angelino. "Mas não te esqueças que eu sou o comandante da companhia. Conheço muito bem o comandante do teu batalhão porque ainda no outro dia o safei numa situação bem chata em Cademera. Os turras emboscaram-no numa picada e, se não fôssemos nós a ir lá dar-lhe uma mãozinha, ele ficava-se. De maneira que, se eu te pedir emprestado por um mês, o gajo não se vai opor.
Diogo considerou a ideia. Estava já havia três meses no Chioco e a vida naquele buraco era de uma monotonia insuportável. Uma mudança de ares até seria agradável. Além disso, uma experiência nas tropas especiais poderia muito bem revelar-se interessante. O que tinha a perder?
"Mas o que iria eu fazer nos comandos?"
"Ora, acompanhavas-nos nas missões."
"Com que estatuto?"
Angelino passou uma mão pensativa pelo queixo.
"Ficavas como uma espécie de elemento de ligação. Isso arranja-se, não te preocupes. O que não faltam são bons pretextos. Consigo falar com o teu comandante e tratar da papelada de modo a ter-te nos comandos no dia 1." Consultou o calendário no relógio. "Ou seja, daqui a... digamos, quinze dias. Assim passas o próximo mês todo connosco. O que achas?"
Hesitante, Diogo agarrou na caneca e balançou-a, os olhos a observarem a cerveja a dançar, a mente a considerar a possibilidade inesperada.
"Eh pá, não sei..."
O amigo agarrou-lhe o braço e puxou-o levemente, como se o quisesse levar com ele.
"Anda daí! é só um mês! Sais daquela ratoeira no Chioco, ganhas uma experiência nos comandos, vês como é a guerra a sério e a malta põe a conversa em dia. Além disso, quando a coisa terminar até podes fazer uma tatuagem no ombro a dizer Comandos, Dezembro 1972. Maningue naice, não?"
"Prefiro escrever Amor de mãe, Moçambique", gracejou Diogo. "E ainda desenho uma kalash."
"Pões o que quiseres, pá. Alinhas?"
Diogo manteve a atenção presa na cerveja, mirando o líquido dourado que bailava na caneca.
"Um mês, dizes tu?"
"E durante esse tempo não vês o Chioco nem pintado no mapa! Poderá haver melhor?"
O soldado hesitou um instante mais. Tudo aquilo era verdade, mas sabia que a vida nos comandos era dura. Valeria a pena arriscar? Olhou para Sheila como se buscasse conselho, mas a namorada encolheu os ombros; aqueles eram assuntos de militares, que não compreendia.
"Vai dar para vir aqui a Tete?"
Angelino desviou os olhos para Sheila e, com um sorriso, percebeu a importância da pergunta.
"Nos intervalos das missões", assentiu. "O que significa que terás mais oportunidades de vir cá do que se ficares no Chioco. Além do mais não te esqueças que a malta está aquartelada no Mazoi, não é? Fica relativamente perto de Tete. Muito mais do que o Chioco, que está lá para trás do Sol posto!..."
O argumento revelou-se decisivo. Diogo espreitou a cerveja, como se procurasse aí alguma razão para rejeitar o convite, mas percebeu que não encontraria nenhuma resposta no fundo da caneca. Por fim ergueu os olhos para o amigo e, com o sorriso de quem já se vê longe do Chioco, estendeu-lhe a mão.
"Está combinado."
Foi um aperto de mão forte, firmado com a convicção de quem sela um acordo solene. Angelino tirou a boina castanha que o amigo tinha na cabeça e substituiu-a pela sua boina vermelha, como se quisesse apreciar o efeito da mudança. Diogo espreitou-se ao espelho do bar, imaginando-se já um comando, e voltou-se para Sheila.
"Fico bem?"
A rapariga abanou a cabeça e revirou os olhos, resignada às coisas dos homens.
"Maningue chunguila."
O namorado esboçou uma careta.
"O que é isso?"
"Lindo", traduziu ela. "Maningue lindo!"
Diogo riu-se e deu-lhe um beijo. Depois voltou-se para Angelino e ficou surpreendido ao constatar que o amigo observava a cena com uma expressão grave.
"Diverte-te enquanto podes", observou o comando. "Porque quando estiveres connosco vou-te levar para um sítio que nem imaginas que existe."
"Ai sim? Onde é isso?"
Foi a vez de Angelino agarrar na sua caneca e engolir toda a cerveja de um trago só. Depois pousou a caneca no balcão com estrondo, arrotou baixinho e o seu olhar nublado passeou pelo Café Dominó.
"O inferno."
Parte Três
Inferno
Deixai tocar a esperança,
Ó vós que entrais!
Dante
A primeira palhota apareceu entre dois embondeiros. Angelino alçou a mão, ordenando ao grupo que se imobilizasse, e fez sinal a um dos seus homens de que avançasse. O soldado ultrapassou a fila com a G3 apontada para a frente e meteu-se pelo capim até desaparecer para além da palhota.
A mochila que Diogo trazia às costas era demasiado pesada, pelo que a pousou no chão com um suspiro de alívio, e ajeitou a arma, preparando-se para qualquer eventualidade. Ao lado Angelino perscrutava o capim, atento aos mais pequenos ruídos.
"Que se passa?", perguntou-lhe Diogo num sussurro. "Onde estamos?"
"Zangaia."
Era o nome do aldeamento para onde se deveriam dirigir, o que significava que haviam chegado ao destino. Olhou em redor e viu o grupo de comandos agachado no trilho com as armas automáticas em prontidão; não era assim que imaginava a primeira parte da missão, considerando o seu perfil.
"Porque parámos?"
"O Samuel foi bater o terreno."
Isso já Diogo havia percebido. O que não entendia era a prontidão para o combate diante de um aldeamento considerado amistoso. Decidiu, contudo, manter-se calado. Aquele era o modo operacional dos comandos e achou que, em tais circunstâncias, não devia submeter o amigo a uma barragem de perguntas; o tempo lhe traria as respostas.
A primeira surgiu, de resto, menos de cinco minutos depois, quando Samuel reapareceu na companhia de dois aldeãos sorridentes e fez um sinal com o braço aos seus camaradas. Ao identificar o sinal, Angelino ergueu-se e deu a ordem.
"Vamos!"
O grupo de comandos levantou-se com descontracção e começou a caminhar despreocupadamente em direcção à palhota. Diogo agarrou na G3 e, encorajado por ver a sua maratona à beira do fim, levantou a mochila e pô-la às costas, preparando- se para o derradeiro esforço. Eram só mais uns metros até se ver livre do peso infernal que arrastara pela picada desde que as Berliets os haviam largado na estrada.
Os soldados entraram na aldeia e foram acolhidos com hospitalidade. Homens e mulheres aproximaram-se, algumas mamanas traziam até bebés embrulhados às costas, e transportaram pequenos troncos para os visitantes se sentarem. Havia crianças a saltitar entre as cubatas, espreitando os recém-chegados com um misto de receio e fascínio.
Angelino cumprimentou o régulo e, depois de trocar as gentilezas habituais com o chefe da aldeia, veio ter com o amigo a rir-se.
"Olha para eles!", disse, apontando para as crianças. "Mostra-lhes uma das tuas prendas e já vais ver!..."
Diogo pousou a mochila com estrondo e, bufando para recuperar o fôlego, arrancou a tira que a selava e meteu a mão no interior, extraindo uma enorme caterpillar vermelha de plástico que mostrou às crianças.
"Unfuna brinquedo?", gritou-lhes Angelino. "Venham buscá-lo!"
Os rapazes hesitaram um momento ainda, os olhos arregalados na direcção do grande carro que Diogo tinha na mão. Um deles, mais atrevido, perdeu a vergonha e veio dali a correr, no que foi imitado pelos restantes. Estabeleceu-se de imediato uma algazarra infantil em redor do atrapalhado Diogo e da sua mochila, o que ateou gargalhadas dos soldados e dos aldeãos.
"Eh pá!", gritou Diogo, tentando controlar a excitação dos rapazes e mantê-los afastados do saco. "Calma! Calma!"
Sentia-se o Pai Natal do mato. Extraiu uma pistola de plástico que uma criança logo lhe surripiou e a seguir aconteceu o mesmo com um pequeno Fórmula 1 azul, um Tyrrell-Ford do campeão do mundo, Jackie Stewart. Qualquer brinquedo que tirava do saco volatilizava-se entre aqueles braços magros.
"E as miúdas?", perguntou-lhe Angelino, a voz a sobrepor-se ao clamor agitado da rapaziada. "E as miúdas?"
Diogo viu as raparigas paradas à distância a observá-los e percebeu a observação do amigo. Vasculhou no saco e retirou uma boneca com um vestido rosa-bebé que exibiu no ar. Os rapazes olharam desconcertados para o brinquedo, não era o que estavam à espera de ver, mas as meninas reagiram de imediato e aproximaram-se. A primeira a chegar ficou com a boneca.
A algazarra prolongou-se enquanto havia brinquedos no saco; nas mãos do soldado apareciam sucessivamente carros, bonecas e armas de plástico. Logo que a distribuição terminou, porém, as crianças largaram Diogo e afastaram-se para brincar na clareira. O saco havia-lhe dado um trabalhão durante a marcha, mas o visitante sentia-se plenamente compensado.
Sentou-se à sombra de uma maçaniqueira e ficou a contemplar a fila de pessoas diante das caixas e dos sacos que os comandos haviam transportado até à aldeia; as caixas traziam medicamentos e os sacos estavam cheios de rações de combate. A distribuição era comandada por Angelino, mas a certa altura o comandante da companhia delegou a tarefa no furriel Sousa e foi inspeccionar as sentinelas que haviam sido distribuídas em torno da aldeia para garantir a segurança de todo o grupo.
Quando a distribuição ficou concluída e Angelino voltou da sua inspecção, os soldados foram convidados para a clareira principal. Os aldeãos acendiam uma fogueira e Diogo viu-os esfolar um cabrito que tinham acabado de matar em honra dos visitantes e atravessá-lo com um pau para o rodar sobre o fogo. Algumas mulheres pilavam o pilão, o som surdo a ecoar como um batuque que marcava o ritmo da vida na aldeia, e uma enorme panela cheia de xima, a tradicional farinha de milho, foi igualmente posta ao lume.
Os anfitriões distribuíram os primeiros pedaços de carne pelos visitantes e Diogo não pôde deixar de se rir.
"É esta a guerra dos comandos?", perguntou ao sentar-se ao lado de Angelino enquanto trincava o cabrito quente. "É a primeira vez que vos acompanho numa missão e não imaginava que fosse tão violento!..."
O amigo ignorou o tom irónico.
"O psico faz parte do nosso trabalho."
"É duro, sim senhor! Transportar brinquedos, medicamentos e comida? Caramba!" Voltou a rir-se. "Pensava que tinhas dito que com os comandos a guerra era a doer!..."
"E é!", retorquiu Angelino, entretido a limpar com os dentes os últimos vestígios de carne que permaneciam teimosamente agarrados a um osso. "O que nós estamos a fazer chama-se operação de acção psicológica. Nunca ouviste falar? Visitamos aldeamentos amigos, trazemos ajuda e convivemos com o pessoal."
"Ora! Isso também faz o resto da tropa", argumentou Diogo. "Conviver com as populações é o pão nosso de cada dia. O que os comandos fazem qualquer magala faz. O que têm vocês de especial?"
O chefe da missão contemplou demoradamente o osso que segurava na ponta dos dedos. Estava limpo, já não havia nem um farrapo de carne para arrancar. Atirou o osso para trás das costas e foi com o prato buscar um pedaço de xima, que acompanhou com feijão. Voltou ao lugar e sentou-se pesadamente.
"Queres saber o que nós temos de especial?"
"Não estou cá para outra coisa."
Angelino molhou a xima no feijão e meteu-a na boca com as pontas dos dedos.
"Amanhã já vais ver."
A escova tocou na lama e recuou, como se a testasse. A luz da alvorada era ainda fraca e Diogo teve de aproximar os olhos, à maneira de um míope, para analisar o resultado. Estava seca. Com um movimento brusco e rápido, escovou a parte interior da sola da bota e voltou-a para o outro lado, estudando as ilhoses metálicas de latão preto unidas pelo atacador; tinham poeira. Passou a escova pelas duas filas paralelas de ilhoses e ergueu-se delas uma fina nuvem de pó. A seguir inspeccionou a parte externa da bota; havia mais lama junto ao calcanhar. Aproximou a escova e esfregou de novo com intensidade.
"Diogo, já estás pronto?"
Ergueu os olhos e viu Angelino aproximar-se com o furriel Sousa.
"Quase, quase."
"Estás a fazer o quê? A cheirar o chulé da bota?"
"A tirar o matope."
"Tem juízo, pá! Calça-te e vem daí! Está na hora!"
Sabendo que não se podia tornar um fardo para os comandos, Diogo encaixou os pés nas botas, pegou na G3 e na mochila e ergueu-se, apressando o passo para se pôr ao lado dos dois homens que haviam passado por ele sem parar.
"Partimos já?"
"Iá, mas agora é a doer. Quero-te a meio da coluna." Deu uma palmada no ombro do furriel que caminhava ao seu lado. "Aqui o Sousa vai atrás de ti para se assegurar de que não te acontece nada. Não é, Sousa?"
O furriel riu-se.
"Até lhe dou o biberão!"
"Vês? Se quiseres o biberão é só falares com o Sousa. A propósito, já matabichaste?"
"Pára com isso, pá!", protestou Diogo. "Pareces a minha mãe!"
"Sou mais do que a tua mãe", devolveu Angelino, deitando um olhar indagador à espingarda automática do amigo. "E a G3? Está em condições?"
"Vá lá, não me chateies..."
"Eu fiz-te uma pergunta!"
Diogo quase revirou os olhos, mas o tom de comando tornara claro que dessa vez Angelino não falara como seu amigo, mas como comandante da 6ª Companhia de Comandos.
"Passei a noite a limpá-la."
O alferes inclinou a cabeça e, estreitando os olhos, esboçou uma expressão desconfiada.
"Não brinques comigo, pá! Eu vi-te andar por aí depois do jantar. Não foste às pretas?"
"Claro que não."
O amigo riu-se.
"Olha-me esta andorinha, armada em menina! Ontem foi toda a gente às gajas e tu andaste a fazer o quê?
"Não preciso das gajas aqui do aldeamento."
O olhar de Angelino iluminou-se.
"Ah, pois! Tu tens a tua Sheila, não é?" Voltou a rir-se, muito satisfeito consigo próprio. "Estás habituado a bife da cidade e já não te contentas com galinhas do mato! Iá, és um finório!"
Apesar de os primeiros raios de Sol despontarem já sobre o mato, ainda fazia escuro e ali apenas se viam luzes de lanternas a bailar na sombra e escutavam-se ordens dadas em voz baixa. Diogo integrou-se na coluna e posicionou-se entre Isaías, um maconde ainda estremunhado, e o furriel Sousa, um mulato de Vila Pery. Espreitou o relógio. Seis da manhã; era de facto a hora prevista para se porem a caminho.
"Vamos", murmurou Angelino ao passar pelo furriel. "Tá a andar!"
A ordem de marcha foi dada em voz baixa, como era hábito entre os comandos, e o furriel Sousa passou-a a Diogo, que a passou a outro homem, até todo o grupo se pôr em movimento e fundir-se em silêncio com o mato, como fantasmas a mergulhar na bruma.Havia já três horas que Diogo estava deitado no capim, ao lado de um arbusto, a vigiar o Mazonha. O longo lençol prateado serpenteava pela planície, deslizando gorgolhante uns cinquenta metros mais à frente. O Sol brilhava alto, incendiando-lhe o cocuruto, pelo que se encostou à direita, a tentar refugiar-se na sombra de uma micaia.
"Tá quieto!", murmurou Angelino. "Uma emboscada requer imobilidade total."
"Isto é uma seca", queixou-se Diogo, indicando com a cabeça o rio vazio. "Já aqui estamos há maningue tempo e ainda não apareceu ninguém."
"Tem paciência."
Um zunido enervante cortou a erva e Diogo fez um gesto rápido com a mão, tentando afastar a mosca incómoda. O insecto voltou à carga, serpenteando em torno da cabeça, e o furriel viu-se forçado a enxotá-lo com gestos largos que Angelino teve de travar para evitar que a posição fosse denunciada. Mas a técnica pareceu ter funcionado porque a mosca acabou por desaparecer e a modorra reinstalou-se na margem do rio.
"Quando é que saímos daqui?"O comandante consultou o relógio.
"Mais três horas e pomo-nos na alheta!"
O amigo bufou, esforçando-se por ganhar paciência, e deixou-se ficar quieto. Fazia calor, embora a brisa do rio temperasse o ar. Ouviu uma rã e distraiu-se a tentar localizá-la; pelo som pareceu-lhe que estaria junto a uns ramos que haviam encalhado na margem, mas um novo coaxar deu-lhe a impressão de vir de outra direcção e esforçou-se por lobrigar a rã nuns tufos de capim alto e amarelado. Permaneceu longamente naquele jogo estúpido, procurando a todo o custo situar as rãs em função da direcção dos sucessivos coaxares, mas não logrou identificar a posição de uma única.
O jogo foi interrompido uma hora depois por um súbito marulhar da água. Olhou naquela direcção e viu círculos concêntricos a afastarem-se da superfície, num ponto próximo da margem. Destravou a G3 e apontou-a para ali, o coração de repente aos pulos. Acontecera alguma coisa.
"Viste aquilo?"
Angelino olhava na mesma direcção.
"Iá."
"Achas que são eles?"
A voz de Diogo era ansiosa, mas o amigo parecia manter a calma mais absoluta.
"Eles, quem?"
"Os turras, pá!"
O comandante dos comandos riu baixinho.
"São turras, são."
"Viste-os?"
"Vi pois!"
Diogo olhou para os círculos que se afastavam da superfície da água e voltou a cabeça para o amigo, sem perceber as risadinhas.
"E então? Não abrimos fogo?"
Angelino voltou a rir baixo.
"Ó parvalhão, são jacarés!"
O amigo fixou os olhos na superfície do rio, tentando confirmar a informação.
"Jacarés? Tens a certeza?"
"O Mazonha está cheio deles", retorquiu Angelino, apontando para a água. "Estás a ver aquele tronco ali?"
Diogo olhou na direcção indicada e viu um tronco de árvore a boiar na corrente líquida, o perfil recortado sobre o espelho reluzente. "Iá."
"É um jacaré."
Observou com mais cuidado, tentando destrinçar movimento, mas o tronco permanecia perfeitamente imóvel.
"A sério?"
"Estou-te a dizer. Ora olha com atenção."
Diogo ficou longos minutos a espreitar o tronco, que continuava estático. Em circunstâncias normais teria desistido de olhar para aquele ponto durante mais de um ou dois minutos, mas ali não havia nada para fazer e aquela parvoíce, por incrível que pudesse parecer, mantinha-o distraído.
Ao fim de quinze minutos, o tronco moveu-se, soltando novos círculos concêntricos na superfície, e, com um movimento rápido e um breve borborejar, desapareceu no fundo da água.
"Tinhas razão!"
A novidade alegrou Diogo: afinal sempre sucedera qualquer coisa. Sorriu para Angelino com a satisfação de quem presenciara um grande acontecimento, mas depressa o efeito da novidade se desvaneceu e percebeu que, eliminada aquela pequena atracção, teria de se voltar para o jogo das rãs. Apurou o ouvido, tentando captar mais um coaxar, e suspirou com enfado.
"Que seca!"
Faltavam já menos de três horas para o pôr do Sol quando Angelino se levantou e olhou em redor, procurando os seus homens. Consciente de que todos o estavam a ver, ergueu o braço e encolheu-o; depois ergueu-o de novo e voltou a encolhê-lo. Estava dado o sinal para se porem em movimento.
Por toda a margem do rio, onde antes se avistavam apenas capim e arbustos, os homens emergiram quase do nada. Eram vinte e cinco comandos, que, apesar de fatigados por tantas horas em silêncio, se mantiveram calados e acompanharam a direcção de marcha do seu comandante.
Os soldados caminhavam espaçados, conforme a técnica de progressão no mato, mas a curiosidade levou a melhor sobre Diogo, que acelerou o passo e foi ter com o amigo.
"Para onde vamos?"
Angelino tirou um mapa do bolso e desdobrou-o.
"Temos de fazer uma operação de progressão até este ponto", disse, indicando o destino com o dedo. "Pernoitamos aqui e logo pela manhã vem um helicóptro trazer-nos um turra que os pides arranjaram. Parece que o gajo nos vai mostrar a localização de uma base do in."
"Vai, vai", ironizou o furriel Sousa, que também se aproximara. "Se for como o último, acho que vamos andar à caça dos gambozinos!..."
O comandante suspirou.
"O que tu achas não interessa nada", cortou com secura. "Estas são as ordens que temos e vamos cumpri-las. Daqui até ao objectivo são duas horas de marcha pelo mato." Verificou o relógio. "Arrancando agora, chegamos lá antes ainda de a noite cair." Fitou reprovadoramente os dois homens plantados junto dele. "O que estão vocês a fazer ao pé de mim? Tá a andar."
O furriel Sousa assentiu e afastou-se de imediato, mas Diogo manteve-se colado ao amigo. Angelino franziu o sobrolho, pouco habituado a que as suas ordens não fossem imediatamente acatadas.
"Que foi? Não ouviste o que eu disse?"
"Ouvi, pois", admitiu Diogo. "Mas o que é uma operação de progressão?"
Angelino esboçou uma expressão contrariada e fez tenção de se afastar, mas reconsiderou e indicou ao amigo que o acompanhasse. Todo o grupo se encontrava já em marcha, deambulando pelo mato denso. Samuel seguia à frente, na posição de batedor, aos ziguezagues por entre arbustos e árvores, evitando pontos de exposição. Os comandos avançavam um a um, em fila, mas deixando muito espaço entre eles. Os únicos que caminhavam juntos eram o comandante e Diogo.
"Uma operação de progressão é o que estamos a fazer agora", explicou Angelino em voz baixa. "Como sabes encontramo-nos numa zona do in. A nossa missão é identificar toda esta área para localizar turras ou população que os proteja. Quem for apanhado por aqui é, por definição, um in ou um apoiante do m."
Diogo ouviu a explicação mas não pareceu convencido.
"E como damos com esse pessoal? Metemos pelo mato e fazemos figas para ter sorte?"
O amigo riu-se de mansinho.
"Achas que estamos a avançar ao acaso?"
"Parece."
Angelino deteve-se e apontou para a esquerda.
"Olha para ali", disse. "Estás a topar aquilo?"
Diogo fixou a atenção na direcção indicada e, após algum esforço, destrinçou efectivamente algo de irregular; pareceu-lhe uma linha estreita em que o capim estava tombado e que corria quase paralelamente ao percurso que os comandos seguiam.
"Iá."
"É um trilho."
O significado da linha pisada tornou-se claro.
"Pois é!", constatou. "E porque não vamos por ali? Sempre era mais fácil do que irmos pelo meio do mato!..."
O comandante retomou a marcha.
"Estás parvo ou quê?", repreendeu-o. "Os tipos davam com as nossas pegadas, pá. Além do mais, aquela merda pode estar minada. Mas o mais importante é que os turras usam o trilho. Vamos vigiá-lo um bocado e pode ser que tenhamos sorte."
"Eles andam ali? Porquê, se está minado?"
"Não te preocupes com os gajos. Os cabrões sabem muito bem onde esconderam as minas."
Caminharam mais umas centenas de metros. Diogo ia observando o trilho distante, quase fascinado. Será que veria turras aparecerem por ali? A ideia produziu nele sentimentos ambivalentes; por um lado, ansiava pela excitação de um recontro, mas por outro receava as consequências de tal situação.
"Já alguma vez deste com um turra nos trilhos?", quis saber Diogo.
"Eu? Claro."
"Ai sim? Como foi?"
Angelino riu-se baixinho.
"Eh, pá! Foi uma cilada bem montada!... Pusemo-nos todos a andar no trilho durante um ou dois quilómetros e a determinada altura eu fiz um sinal e demos todos um passo para o lado, pisando o capim. Depois escondemo-nos e ficámos à espera, emboscados no trilho. Passada meia hora vimos aparecer um gajo com uma kalash a andar devagar e curvado, de olhos nas nossas pegadas. Até que chegou ao ponto onde elas acabaram. O turra ficou atarantado e pôs-se à procura da continuação. Foi aí que o Sousa lhe mandou uma bojarda e acabámos com ele."
A memória da história provocou um largo sorriso no comandante dos comandos, evidentemente orgulhoso com o engenho da emboscada. Todavia, Diogo não se riu; não porque não achasse graça à história, mas porque estava a imaginar-se no lugar do turra.
Lançou um olhar desconfiado ao trilho.
"Olha lá, e se eles nos toparem agora?"
Angelino encolheu os ombros, quase indiferente.
"Isso é pouco provável", retorquiu. "Nós estamos fora do trilho."
"Sim, mas e se toparem?"
"Se toparem, toparam." Indicou o grupo de comandos que progredia em fila pelo mato, um homem aqui e outro lá atrás.
"Estás a ver o espaço entre nós? É um procedimento elementar de segurança, uma vez que assim, se derem connosco, dificilmente conseguirão disparar sobre mais de dois."
Diogo observou os comandos a progredirem isoladamente pelo mato e ponderou o que o amigo lhe explicara.
"Então se calhar era melhor fazermos o mesmo, não?"
Angelino riu-se.
"Estás com medo?"
"Não, mas...", atrapalhou-se Diogo. "Enfim..."
"Tens razão, é melhor respeitarmos o procedimento de segurança."
Acto contínuo o comandante apressou o passo, distanciando-se do amigo. O par desfez-se e a fila de comandos alongou-se pelo mato, contornando elevações e arbustos; pareciam formigas num carreiro espaçado.
Um burburinho alguns metros adiante despertou a atenção de Angelino. O comandante aproximou-se da dianteira da fila e viu Samuel a falar com duas pessoas. Era uma mulher envolta numa capulana já muito gasta, embora limpa, e uma menina que não deveria ter mais de sete anos. Tinham um saco de serapilheira pousado no chão com o interior repleto do que pareciam ser frutos silvestres.
"Que se passa?", quis saber. "Quem é esta gente?"
Samuel indicou uma maçaniqueira encostada a um pequeno monte ali ao lado.
"Estavam ali a apanhar maçanicas."
Contrariado, o comandante respirou fundo e lançou um olhar reprovador ao subordinado.
"Porra! Não podias ter-te mantido invisível?"
O comando, um negro do Moatize bem constituído, abriu os braços num gesto impotente.
"Ia a vigiar o trilho e não as vi", explicou. "Quando dei por ela, estavam as duas a olhar para mim. Que havia eu de fazer? Já não me podia esconder..."
Diogo chegou nesse instante junto dos camaradas e observou a mulher e a criança com curiosidade. Ambas fitavam os soldados com uma evidente expressão de receio; mal se atreviam sequer a mexer-se para não darem mais nas vistas.
"Quem são estas?"
A pergunta não recebeu réplica; na verdade nem precisava, tão evidente era a resposta.
"Pergunta-lhe quem são e de onde vieram", ordenou Angelino, indicando a mulher.
Samuel pôs-se a dialogar com ela em nhungué e recebeu respostas rápidas e nervosas, acompanhadas por uma profusão confusa de gestos.
"Dizem que vivem num aldeamento a duas horas daqui e que vieram cá buscar comida."
"Viram turras?"
O soldado do Moatize voltou a trocar palavras em nhungué com a mulher, que abanou a cabeça com veemência.
"Diz que não. Diz que não há turras por aqui."
Angelino esfregou o queixo, meditativo.. Por esta altura já outros comandos haviam chegado ao local, embora se tivessem colocado em posições de vigilância para garantir a segurança. O comandante fitou Samuel com uma expressão inquisitiva.
"O que achas?"
"Ela está a mentir", opinou Samuel. "Fez duas horas a pé para vir aqui buscar umas maçanicas? Não existem maçaniqueiras ao pé do aldeamento?" Fez uma careta céptica. "Hmm... esta tipa está-nos a partir a vista!..."
O comandante assentiu.
"Também acho", disse. Olhou para a posição do Sol. "Já só temos mais uma hora de luz. Despacha-te."
Samuel ergueu a G3 e apontou-a na direcção da mulher e da rapariga, que deram um passo horrorizado para trás.
"Não!", travou-o Angelino. "A G3 faz muito barulho."
Sem largar a espingarda automática, o comando negro tirou a faca do cinto. Diogo observou o movimento com estupefacção e voltou-se para Angelino, esperando dele uma contra-ordem que travasse Samuel. Para seu maior pasmo, porém, o amigo tinha também ele extraído a faca do cinto e dera já um passo em frente.
"O que vão vocês fazer?", perguntou Diogo, mal acreditando no que observava diante dele. "Então? Que é isso?"
Vendo os dois soldados a aproximarem-se com lâminas na mão, a mulher agarrou-se à rapariga, tapando-lhe o rosto, e ambas caíram de joelhos a chorar.
"Lekani kutipaah!", balbuciou a mulher aos soluços, o rosto molhado com lágrimas de desespero. "Não nos matem!"
Os dois comandos deram um salto e agarraram-nas por trás; Samuel ficou com a mulher e Angelino com a rapariga.
"Pára!", gritou Diogo com horror, sem saber o que fazer para travar aquela loucura, impotente para impedir o que se tornara já inevitável. "Pára com isso, pá! Pára com isso!"
O que se passou a seguir foi estonteantemente rápido e bizarramente lento. Com os braços esquerdos em V a imobilizarem as cabeças das vítimas, os dois comandos fizeram um movimento rápido com as facas e rasgaram os pescoços à sua mercê. Diogo ouviu uma erupção líquida e um gorgorejar sinistro e viu as vítimas espernearem em silêncio até que os comandos as largaram e elas tombaram, a mancha de sangue a alastrar pela terra enquanto se remexiam nas derradeiras pulsões de vida, até ao estertor final, a convulsão que as deixou enfim imobilizadas e estancou o rio vermelho que lhes jorrava das gargantas rotas.
Boquiaberto, Diogo levou um longo instante a despertar do torpor da surpresa.
"Já viste o que vocês fizeram?", perguntou numa fúria súbita, dando um salto em frente e encostando o rosto à cara de Angelino. "Assassino! és um assassino! és um..."
O amigo deu-lhe um empurrão, tentando mantê-lo à distância.
"Cala-te!"
"... criminoso! Filho da puta!" Diogo voltou a colar-se a Angelino e aplicou-lhe um murro no estômago que apanhou o comandante de surpresa. "Cabrão de merda! Viste o que fizeste? Viste o que..."
Uma mão ensanguentada colou-se à boca de Diogo e calou-o, ao mesmo tempo que algo de repente o imobilizou. Era Samuel que o agarrava por trás e o amordaçava com a mesma mão com que degolara a menina de sete anos. Diogo emitiu ainda sons abafados e pontapeou o ar, tentando libertar-se a todo o custo, mas acalmou no mesmo instante em que, com a outra mão, Samuel exibiu ameaçadoramente a faca suja de sangue e lhe encostou a ponta ao pescoço.
"Quietinho."
Angelino, que caíra no chão, ergueu-se devagar e apanhou a sua G3. Depois aproximou-se de Diogo e apontou-lhe um dedo à cara.
"Não voltes a questionar-me numa operação, ouviste?", rugiu entre dentes. "Querias ver o que é a verdadeira guerra?" Indicou os dois cadáveres. "Pois ei-la!"
Samuel largou a sua presa e, sem tirar os olhos dela, ajoelhou-se e pôs-se a limpar a faca às folhas de um arbusto.
Livre do abraço que lhe tolhia os movimentos, Diogo cambaleou e contemplou com angústia os dois corpos estendidos no chão, como se tentasse certificar-se de que eram verdadeiros e tudo não ocorrera durante um pesadelo, mas no mundo real. Rodou a cabeça como num sonho e viu vários comandos em redor a observá-lo; os homens haviam-se aproximado logo que se aperceberam da altercação e pareciam estudá-lo com curiosidade divertida, como se o anormal não fosse matar aquelas pobres criaturas, mas tentar salvá-las.
Angelino mirava-o também, como um professor a submeter o aluno ao crivo de um exame, mas não prolongou o olhar por muito tempo. Ao fim de uns instantes deu meia volta e fez sinal aos seus homens.
"O circo acabou", disse. "Tá a andar!"
A água que encontraram no meio do capim era esverdeada de tão nojenta, havia até larvas de mosquito a boiar à superfície, mas isso não impediu Angelino de mergulhar o cantil no charco e extraí-lo repleto de líquido; parecia uma sopa de verduras.
O chefe dos comandos não se intimidou com o aspecto repugnante da água. Retirou do bolso uma pequena caixa de medicamentos, isolou um comprimido e atirou-o para o fluido infecto que lhe enchia o cantil. Aguardou uns minutos e depois desfez o lenço do pescoço, pô-lo por cima de um cantil vazio e vazou a água do primeiro cantil sobre o lenço até encher o segundo. Terminada a operação, examinou a água assim filtrada; mantinha-se ainda algo baça, mas já não se podia dizer que estivesse imunda.
"Já está!", exclamou com satisfação. Estendeu o cantil na direcção de Diogo. "Queres?"
O furriel abanou negativamente a cabeça, mas nada disse e nem sequer olhou para o comandante.
Angelino virou-se e, respirando fundo, sentou-se ao lado do amigo com o cantil na mão. Encostou-se à rocha e exalou o ar como se assim se libertasse de todo o cansaço acumulado ao longo do dia. A jornada havia sido longa e tinha de se preparar para uma outra que podia ser pior.
"Ainda estás amuado?"
A pergunta quase fez Diogo revirar os olhos de irritação. Sentindo o corpo do comandante ao seu lado, remexeu-se e afastou-se um palmo para marcar as distâncias. Claramente não queria conversas.
"O que foi?", insistiu Angelino. "Cheiro mal?"
O amigo hesitou, como se ponderasse se devia responder ou permanecer em silêncio. Poderia manter-se calado, mas receou parecer demasiado infantil. É certo que tinha bons motivos para pôr o comandante de quarentena, mas isso seria fazer figura de criança mimada. A fúria que o consumia, por outro lado, era demasiado forte. Por que razão se deveria conter?
"Cheiras a crianças mortas!", vociferou baixinho. "Metes-me nojo!"
Angelino ficou momentaneamente calado, como se não tivesse resposta a dar; ou talvez estivesse apenas a pensar no que poderia dizer. Bebericou a água do charco que havia coado e cuspiu para o lado, possivelmente para se livrar do sabor amargo do comprimido que usara para eliminar as larvas de mosquito.
"Queres saber porque matámos aquelas duas?", perguntou por fim.
Diogo nem o encarou.
"Isso já sei", limitou-se a dizer. "Porque és um criminoso."
"Não vês nenhuma outra razão?"
Dessa vez Diogo voltou-se e derramou um olhar de desprezo sobre Angelino.
"Que outra razão poderia haver para degolares uma mulher e uma criança?"
"Por segurança."
A resposta desencadeou em Diogo uma gargalhada forçada.
"Segurança? Deves estar a reinar comigo!", exclamou com desdém. "Que ameaça representavam aquelas duas desgraçadas?"
Tinhas medo que a mais pequena te matasse à dentada? Ou que a mais velha te trincasse a pila? Não me venhas com histórias, pá! Aquelas mortes foram gratuitas! Eram civis, estavam desarmadas e não constituíam a mínima ameaça. Matá-las foi um crime."
Angelino cuspiu novamente para o lado.
"Não fales alto, ouviste? E controla-me essas risadas parvas!" Depois esticou a cabeça e varreu o espaço em redor, como se procurasse alguém. "Samuel?! Samuel?!"
A noite havia despontado e apenas restava no horizonte o clarão moribundo do Sol já desaparecido, como o rasto escarlate de um fantasma que se desvanecia lentamente no céu. Um vulto curvado assomou então da sombra.
"Que é?"
Era Samuel.
"Podes contar aqui ao nosso amigo a operação no monte Xipire?"
"Qual? A dos dois putos?"
"Essa mesmo."
Preocupado com a possibilidade de o seu perfil ser detectável recortado pela luz do crepúsculo, Samuel sentou-se aos pés dos dois interlocutores e pousou a G3 no regaço.
"Foi uma operação comandada pelo alferes Anselmo", disse. "Fomos com um turra que os pides nos entregaram e que supostamente sabia da localização de um aquartelamento do in. O gajo levou-nos até uma palhota e disse que era um receptor de alimentação. Não havia nada lá dentro e ficámos a emboscar a palhota. Como não apareceu ninguém, queimámo-la e apertámos com o turra para nos dar um objectivo verdadeiro."
"Isso é palha", cortou Angelino, impaciente. "Vai ao que interessa nessa história."
Samuel respirou fundo.
"Quando íamos pelo mato em busca de um novo objectivo demos com dois miúdos de mão dada. Um tinha talvez sete anos e o outro uns três. Tentámos sacar-lhes alguma informação, mas eles não disseram nada de útil. Depois pôs-se o problema do que fazer com eles. Era uma das nossas primeiras operações em território do in e, na instrução em Montepuez, tinham-nos dito que as testemunhas são sempre para eliminar. Mas o alferes Anselmo teve maningue pena dos putos, de modo que..."
"Conta o que o Anselmo disse."
O comando hesitou, tentando reconstituir de memória os acontecimentos.
"Disse que eram miúdos desarmados e inofensivos, não constituíam a menor ameaça e seria um crime se os matássemos."
"E então? O que aconteceu?"
"Deixámo-los ir e seguimos o nosso caminho. Duas horas depois caímos numa emboscada. Íamos pelo capim, longe de qualquer trilho, quando apanhámos fogo de toda a parte. Xi! Aquilo foi maningue mau! Os turras até tiros de morteiro despejaram sobre a malta! O Orario foi atingido e nós tivemos de bater em retirada. O problema é que os gajos vieram atrás do pessoal e metralharam-nos constantemente. Ficámos à rasca. Tínhamos de carregar o Orario e estávamos em território do in a ser caçados pelos turras. Andámos dois dias naquilo: eles a disparar e nós a cavar. Até que o alferes Anselmo lançou uma acção de mão e conseguimos capturar um turra. Os gajos recuaram para se reorganizarem e, aproveitando a trégua, chamámos os helis e saltámos dali para fora."
"Depois interrogaram o turra capturado, não foi?"
"Iá."
"O que disse ele?"
Samuel fez uma pausa antes de responder.
"Que uns miúdos foram dizer aos pais que tinham visto a tropa", murmurou num tom seco. "Os pais falaram com os guerrilheiros. Os turras interrogaram os putos sobre o número de soldados do nosso grupo e a direcção em que seguíamos e comunicaram com uma unidade que tinham no sector para onde nós nos dirigíamos." Fez um estalido com a língua. "Foi essa unidade que montou a emboscada."
"Olha lá, desde que és comando quantas vezes estiveste numa operação em que sofreste uma emboscada?"
"Foi só essa vez."
"E em quantas operações houve baixas do nosso lado?"
"Foi só essa vez também." O soldado negro respirou fundo e arreganhou os lábios, exibindo os dentes amarelados. "Filhos da puta dos miúdos!"
Fez-se um silêncio momentâneo entre os três, que Angelino deixou prolongar para que a informação fosse devidamente digerida pelo amigo.
"Obrigado, Samuel", disse por fim o comandante da companhia. "Podes ir."
O vulto do soldado fundiu-se de imediato com a sombra. A noite caíra por completo e apenas as luzes das estrelas e do quarto crescente lunar iluminavam o mato com um clarão de prata. A treva enchia-se de ruídos estranhos; eram os insectos e os pássaros envolvidos em duetos mais ou menos melódicos, um criiiii-criiii ali, um tu-tu acolá. Os soldados falavam em sussurros, esforçando-se por se manter invisíveis.
Angelino bebeu a água que lhe restava e pousou o cantil.
"Como vês, em território do in nenhum civil é inofensivo", disse à laia de conclusão. "Nem dois putos com menos de dez anos. Por ter poupado esses miúdos, não só o nosso grupo acabou por não cumprir a missão como se viu emboscado, foi perseguido e sofreu uma baixa. E sabes porquê? Porque o Anselmo não teve tomates para cumprir o seu dever! A segurança do grupo e a execução da missão são as duas prioridades que devem orientar a acção de um comando. Toda a ameaça a essas prioridades tem de ser eliminada, custe o que custar e por mais repugnante que isso pareça. Isto é uma coisa que nos foi ensinada na instrução em Montepuez e constatada na vida real." Fez um gesto largo, como se quisesse abarcar todo o mato. "Porque isto, meu caro amigo, não é uma fita de Hollywood nem uma história do Mundo de Aventuras, mas a realidade da guerra. Nos filmes e nos livros os bons nunca eliminam mulheres nem crianças e só matam os maus em última instância. O mundo real não é assim. Em território hostil até as mulheres e as crianças constituem, mesmo que não o queiram, ameaças maningue sérias à tua segurança. Se não as eliminares, já sabes: serás morto."
Diogo remexeu-se no lugar.
"Está bem, é verdade que aquelas duas não podiam ser deixadas à solta", admitiu, voltando ao caso do dia. "Mas ao menos podíamos tê-las trazido connosco. Não havia necessidade de as matar..."
"Trazíamo-las connosco, dizes tu?"
"Sim, porque não? Poupavas-lhes a vida e salvaguardavas a nossa segurança."
Angelino soltou uma gargalhada baixa e sem humor.
"Então vou-te contar outra história", disse. "E essa passou-se comigo. Aqui há uns tempos estivemos três semanas numa operação no mato e, já no final, quando nos encaminhávamos em território do in para o ponto onde seríamos recolhidos pelos helis, demos de caras com uma miúda. A gaja devia ter uns quinze anos, não menos. A nossa reacção foi limpá-la imediatamente, para ela não denunciar a nossa presença e não termos os turras todos em cima de nós. Mas eu pensei: a missão está terminada e já vamos de regresso. Para quê eliminá-la? O perigo que a tipa representa é mínimo. Porque não poupá-la? De modo que foi o que fizemos."
"Deixaste-a ir embora?"
"Claro que não!", exclamou Angelino de pronto. "Achas que sou parvo ou quê? Não a podíamos largar em liberdade, isso nem pensar. A gaja poderia pôr em risco a segurança da nossa retirada do teatro de operações. O que eu fiz foi pegar nela e trazê-la connosco, estás a perceber?" Mudou o tom de voz. "Oh pá, nem imaginas o pesadelo que foi!"
"O quê? Ela arranjou maneira de contactar os turras?"
"Não é isso, pá!" Angelino aproximou-se do amigo e a voz assumiu um tom de confidência. "Repara, há três semanas que o pessoal estava no mato. Isso significa que há três semanas que não víamos uma gaja, não é? Éramos vinte e cinco homens, tínhamos ainda de passar a noite no mato antes de sermos recolhidos no dia seguinte, a malta andava toda com tusa e, de repente, ficamos ali com uma miúda de quinze anos toda boa e à mão de semear. O que pensas tu que aconteceu?"
A pergunta fez estremecer Diogo, que se pôs a imaginar a cena e a reconstituir o que lhe era sugerido.
"Vocês... porra! Vocês fizeram-lhe alguma coisa? Vocês..."
O comandante da companhia riu-se.
"Tentativas não faltaram, posso-te garantir", disse. "Toda a gente queria molhar a sopa, como deves calcular. De modo que nessa noite nem preguei olho só para me assegurar de que ninguém tocava na miúda. Ó pá, só te digo que cheguei a arrepender-me de não a ter matado! Iá, caraças! Foi um inferno a noite inteira! Mas no dia seguinte lá a consegui meter no heli e a miúda veio connosco para o quartel. Chegou ao Mazoi pura e casta como a virgem que se calhar não era."
"Fizeste bem."
"A questão não é essa, Diogo. Eu pude garantir que ninguém tocava nela porque foi só uma noite. Agora imagina que eu trazia aquelas duas gajas que hoje nos viram? Achas que as conseguia proteger estas noites todas que vamos estar no mato? Ia ser um regabofe, pá!"
"Mas ao menos sobreviviam..."
"Não sei se sobreviviam." Fez um gesto com a cabeça a indicar os camaradas. "Qualquer gajo aqui que esteja a rebentar de tusa podia sacá-las à socapa pela noitinha, violava-as atrás de um arbusto e matava-as para elas não o denunciarem. Isto são comandos, pá, não são meninas do ballet!"
"Eu protegia-as."
"Não gozes comigo!", riu-se Angelino, como se a ideia de um furriel da tropa regular a enfrentar um punhado de comandos fosse a coisa mais absurda que jamais ouvira. "Mas, imaginando que esse problema se resolvia, o facto é que as gajas iam ser um fardo enquanto estivéssemos no mato. Eu e tu não pregávamos olho só para as proteger, a malta só pensava nelas em vez de se concentrar na missão, andávamos sempre preocupados com elas e as tipas arrastavam-se pelo mato a queixar-se que estavam cansadas e tinham fome e mais não sei quê. No fim retiravam-nos agilidade, concentração e capacidade de movimento. Com as gajas aqui connosco, a nossa missão dificilmente seria levada a cabo com sucesso."
"Mas estavam vivas", insistiu Diogo. "E isso é importante."
"É importante nos filmes americanos! Se nós fôssemos trazer connosco cada civil que encontramos no mato, nenhuma missão dos comandos seria bem sucedida, pá. Nem uma! O nosso trabalho não é andar a carregar civis de um lado para o outro em zona hostil; é localizar e eliminar os turras. E é bom que não te esqueças que, em território do in, a população não é neutral. Os civis, mesmo aqueles que têm o aspecto mais inocente do mundo, fazem parte do in."
Diogo reajustou o corpo, acomodando-se contra a rocha junto à qual se haviam sentado.
"Olha, não tenho a certeza de que..." Interrompeu a frase e deu um salto, alarmado. "Eh pá! O que é isto?"
Reagindo quase instantaneamente, Angelino pôs-se em pé com a G3 em riste.
"O quê? Que se passa?"
"Está aqui alguma coisa, pá!"
"O quê? Onde?"
"Aqui! Na pedra!"
O comandante dos comandos extraiu a lanterna do bolso e acendeu-a, voltando-a para a rocha que haviam escolhido para protecção durante a noite. O foco de luz deambulou nervosamente pela superfície rugosa, fazendo as sombras dançarem com movimentos bruscos, até se imobilizar no que parecia um cilindro brilhante. Fixaram os olhos no cilindro e, pasmados, perceberam que ele se mexia.
"Porra!", exclamou Angelino. "É uma cobra!"
Atraídos pelo súbito sururu, vários comandos convergiram para o foco de luz e admiraram o enorme volume viscoso que se contorcia em torno de um buraco rasgado na base da rocha.
"É jibóia, pá!", constatou Samuel. "Temos de dar cabo dela!"
Ainda contemplaram a possibilidade de usarem a G3, mas era uma solução ruidosa e, por isso, demasiado arriscada e desaconselhável em território hostil. Os soldados acabaram por optar pelas facas e por paus. Retiraram-nas do cinto e atiraram-se à enorme cobra, retalhando-a ainda viva. Depois enterraram os pedaços e limparam os vestígios com uma pá.
"É a pedra", observou Angelino, enquanto lavava as mãos com um pano molhado. "Como ela se mantém quente durante a noite, as gajas vêm para aqui." Pegou na lanterna e passeou o foco pela base da grande rocha, incidindo no buraco para onde a jibóia se havia dirigido. "Olha ali! Estão a ver? Pode haver mais cobras, caraças!"
"Nesta zona jibóias é mato", confirmou Samuel. "Acho que vamos ter de usar pólvora. Vai fazer um bocadinho de barulho, mas paciência!"
Os comandos retiraram algumas balas das caixas de munições e abriram-nas, despejando a pólvora numa folha de papel. Quando a pólvora se acumulou num pequeno montículo, inseriram a folha à entrada do buraco e deitaram-lhe um fósforo. A pólvora incendiou-se com um fzzzzz transformado em clarão e os militares viram duas cobras pequenas sair apressadamente do buraco e desaparecer na treva.
A visão das jibóias em fuga desencadeou uma galhofa breve.
"Esta noite já não nos chateiam mais!", exclamou Angelino, encostando-se à rocha. "Seria mais seguro se estivéssemos debaixo de uma árvore, mas como por aqui não há nenhuma teremos de nos contentar com isto."
Nessa noite jantaram a ração de combate. Quando acabaram de comer, enterraram os resíduos para não deixar vestígios da sua passagem por ali e foram-se deitar. Angelino pôs dois homens de vigia em posições opostas; ficaram ambos deitados de barriga para baixo, de modo que a sua silhueta não se recortasse no horizonte.
Os restantes foram dormir junto à grande rocha. Estenderam- se num círculo com a cabeça virada para fora e a G3 encostada ao corpo, sempre preparada para uma eventualidade. Os murmúrios acabaram e a noite foi entregue aos sons do mato, uns estranhos e outros familiares; os grilos estridulavam, os lagartos gecavam, um mocho crocitava. O concerto foi interrompido por uma gargalhada distante.
Diogo ergueu a cabeça, alarmado.
"Angelino!", sussurrou. "Angelino!"
A voz impaciente do comandante dos comandos sussurrou- lhe de volta.
"Que é?"
"Ouviste esta gargalhada?"
Foi a vez de Angelino soltar a dele, mas baixa e curta.
"É uma hiena, pá", disse. "Cala-te e dorme!"
O céu constelado estava limpo de nuvens e o mato era iluminado pelo clarão flamejante do mar de estrelas; o braço da galáxia estendia-se pelo eixo central do firmamento, tão brilhante que a sua luz projectava sombras ténues no mato. Diogo fixou a atenção no Cruzeiro do Sul; parecia-lhe a estrutura de um papagaio de papel. De tanto deambular com os olhos pelas profundezas do céu, começou a sentir vertigens e virou-se de lado, evitando assim contemplar as estrelas.
Fechou os olhos e tentou adormecer, mas as imagens dos acontecimentos do dia não paravam de aflorar. Com a mente a fervilhar de interrogações, Diogo deu voltas e reviravoltas no lugar até chegar à conclusão de que não conseguiria adormecer enquanto não assentasse todas as ideias que se cruzavam na sua cabeça.
"Angelino!", sussurrou ele ao fim de alguns minutos. "Angelino! Estás acordado?"
O amigo respondeu num fio de voz estremunhado.
"Que é?"
"Estou ainda a pensar naquelas duas gajas que matámos hoje."
"Vai dormir, pá!"
Diogo calou-se por momentos, avaliando se valia a pena dizer o que lhe ia na mente. Admitiu deixar a coisa por ali, mas as ideias não lhe saíam da cabeça e, após novas reviravoltas, ergueu-se um pouco e apoiou-se nos cotovelos.
"Sempre ouvi o Marcello dizer que a guerra só se ganha conquistando as mentes e os corações da população."
"Qual Marcello?"
"O Caetano, pá. O presidente do Conselho."
Angelino suspirou pesadamente.
"Esse gajo não tem a mínima noção do que se passa aqui", murmurou o comandante da companhia com um traço de irritação na voz. "Também é daqueles que acham que a guerra no mato é igual à guerra dos filmes e coisa e tal."
"Mas ele tem razão, pá. Como é que ganhas a guerra sem o apoio das populações? E se nós matamos as populações, como podemos nós esperar que elas nos ajudem?"
Novo suspiro.
"Já vi que também não tens noção nenhuma."
"Desculpa, mas não respondeste à minha pergunta", insistiu Diogo, convencido de que a sua ideia era pertinente. "Como podes esperar conquistar o apoio das populações se matas todos os civis que te aparecem pela frente? Como achas que as famílias vão reagir?"
"Eu não mato todos os civis", corrigiu Angelino. "Só mato os civis que se encontram em zona hostil e faço-o porque sei que eles já estão contaminados pelo in."
"E contaminados continuarão se procedermos todos como vocês procedem..."
Foi a vez de Angelino, já bem desperto, se soerguer e se apoiar nos cotovelos.
"Mas tu achas que alguma população em zona hostil virará para o nosso lado só porque poupámos alguns dos seus elementos?", perguntou erguendo a voz, quase exaltado. "Se os pouparmos eles ficam todos contentes porque passam a dispor de informações precisas sobre a nossa força e os nossos movimentos e podem montar-nos emboscadas a seu bel-prazer. Se os pouparmos, eles..."
"Chiu!", sussurrou um soldado que tentava dormir.
Apercebendo-se de que se exaltara, Angelino interrompeu-se e controlou de imediato o nível da voz.
"Tu tens de perceber uma coisa elementar", disse, regressando ao tom murmurante. "Por que razão as populações ficam contaminadas? A resposta é: devido à presença do in. A nossa tropa está nos quartéis, mas os turras misturam-se com as populações, entendes? Se eu vivo numa aldeia e tenho turras a morarem na palhota ao meu lado, é natural que me deixe contaminar por eles. Se não o fizer de livre vontade, faço-o por medo. A tropa entra na minha aldeia e vai-se embora, mas os turras continuam a viver ali. Se eu os denunciar à tropa, outros turras vão aparecer e à primeira oportunidade tratam-me da saúde. Nessas condições, como poderei eu pôr-me ao lado da tropa?"
"Estou a perceber..."
"É por isso que, quando o Marcello diz que é preciso conquistar as mentes e os corações das populações, ele não tem a mínima noção da realidade do terreno. Quando os turras se infiltram numa aldeia, a aldeia fica contaminada e não há nada que possamos fazer. Se os quisermos eliminar, temos de eliminar a aldeia."
"Mas há aldeias que nos são favoráveis", argumentou Diogo. "Ainda ontem fomos dar brinquedos, comida e medicamentos a uma aldeia dessas. Isso prova que, adoptando a política certa, podemos conquistar mentes e corações."
"Isso só é verdade nas aldeias que não foram contaminadas."
"Não foram contaminadas por causa da nossa ajuda."
"Não!", corrigiu Angelino. "Não foram contaminadas apenas porque o in ainda não decidiu contaminá-las. No momento em que os turras entrarem nelas e se puserem a viver ali, vais ver o que acontece!..."
"Os régulos podem expulsá-los..."
O comandante riu-se baixinho.
"Isso queriam eles! Ainda há uns tempos o régulo Buxo, em Mucumbura, fez frente aos turras. Sabes o que lhe aconteceu? Mataram-no! O resto do pessoal acagaçou-se e submeteu-se. Conclusão: a aldeia dele ficou contaminada. E isto está sempre a acontecer, pá. Os turras assassinam qualquer régulo ou fumo que se ponha do nosso lado. Portanto, mete isto na cabeça: por convicção ou medo, as populações estão sempre do lado de quem vive com elas. A partir do momento em que os turras vivem nas aldeias e a tropa fica nos quartéis, está tudo dito! Numa situação destas, a única maneira de..."
"Chiu!"
A reprimenda calou Angelino. O comandante da companhia consultou o relógio e, sabendo que teriam de se levantar às quatro da manhã, calculou as horas que lhe restavam de sono. Não eram muitas.
"É tarde, pá", disse, voltando a deitar-se e acomodando-se numa posição confortável. "Toca a dormir."
Estendido na sua esteira, Diogo voltou a mirar o firmamento estrelado enquanto digeria o que acabara de ouvir. Mas não levou muito tempo. A treva profunda do céu, que antes lhe desencadeara vertigens, começou a pesar-lhe nos olhos e um minuto mais tarde já o furriel deslizara para o sono profundo.
As portinholas foram fechadas e os camiões arrancaram com fragor, os motores a urrarem como uma súbita erupção. A nuvem de pó erguida pelos pneus das Berliets em movimento envolveu as palhotas e engoliu a aldeia do fumo Mandie, o chefe aliado que os acolhera para a missão que acabavam de levar a cabo. Diogo sentia-se cansado e pousou o olhar nas palhotas que iam ficando para trás, transformando-se em silhuetas que se esfumaram na poeira escura.
O Sol estava a pique e fazia um calor infernal. Diogo esticou a cabeça para aproveitar o movimento do camião onde seguia e refrescar-se com o vento. O ar que lhe bateu na cara era quente e seco, mas sempre lhe parecia melhor do que a fornalha da imobilidade.
Sentiu os olhos pesarem e, espreitando em redor, percebeu que já havia camaradas seus a dormitarem, indiferentes aos solavancos da Berliet pela picada. Tinham acordado cedo e o dia já ia longo. A viagem de regresso ao Mazoi durava uma hora, pelo que o melhor seria fazer como eles. O soldado ajeitou a G3, acomodou-se no seu lugar e encostou-se ao companheiro da direita, mergulhando num torpor sonolento. Gostaria de dormir, mas o veículo, como todas as Berliets, tinha a meio da caixa duas filas de bancos virados para fora e os soldados ficavam todos voltados para o mato; se adormecesse poderia cair da viatura, pelo que se limitou a dormitar.
Bonk.
Veio a si com um salto e olhou em volta, observando alguns companheiros de ar estremunhado a tentarem igualmente perceber o que acontecera. Fora um solavanco mais forte do que o habitual. Trocaram olhares cúmplices e sorriram, voltando a acomodar-se para retomar o sono. Mas depressa veio outro solavanco violento e mais outro, este último tão grande que todos ficaram por momentos suspensos no ar.
"Porra para esta merda!", protestou Diogo. "Parece uma montanha russa!"
Um negro franzino, macua dos arredores de Nampula, arreganhou os lábios e exibiu uma fileira reluzente de dentes brancos.
"Um comando até de pé dorme", proclamou, mudando de posição para se pôr mais confortável. "Só a tropa da Metrópole é que precisa de colchão, como as meninas. És menina?"
Diogo mudou de posição, desesperado com o assento duro da Berliet.
"Vai-te lixar!"
O macua riu-se e fechou os olhos, regressando instantaneamente ao torpor sonolento. Mas Diogo não conseguiu descontrair-se; os sucessivos abanões do camião eram demasiado desconfortáveis para isso, pelo que ficou a contemplar o mato. O Sol flamejava alto e inclemente, e nada mexia em redor; apenas se via capim, terra vermelha, embondeiros gigantescos e os morros de muchém erguidos pelas colónias de térmitas.
A picada desembocou numa estrada de terra batida e a viagem tornou-se mais cómoda, mas Diogo manteve-se desperto porque sabia que Tete era já a seguir. Viu as primeiras casas e estudou as pessoas que circulavam pelas ruas; tentava avistar Sheila, mas, embora a cidade fosse pequena, sabia que dificilmente daria com ela a andar ao ar livre àquela hora. Teve ganas de saltar lá para fora e ir ao hospital procurá-la, mas foi apenas um impulso inconsequente e deixou-se estar até o casario ficar para trás e a coluna meter pela estrada de Vila Pery e da Beira, a mesma que passava pelo Mazoi.
O furriel Sousa, que viera sempre no lugar ao lado do condutor, saltou pouco depois para a carga e juntou-se aos homens sob o seu comando. Três ainda dormitavam, embalados pelo balouçar monótono da Berliet, mas os restantes haviam despertado quando a coluna circulou por Tete e passavam agora um maço de LM entre todos.
"Está tudo bem?"
"Sem problemas, meu furriel."
"Vai uma bazuca?"
A pergunta agitou o grupo, subitamente interessado.
"Ainda há, meu furriel?"
Sousa dobrou-se sobre o assento da frente e ergueu uma caixa de madeira que tilintou com o movimento. Pousou a caixa diante dos soldados e, com um sorriso triunfal, extraiu uma garrafinha de Manica.
"Está quente, mas não faz mal", disse. "É cerveja!"
O ambiente na Berliet animou e todos agarraram a sua garrafa, arrancando a tampa na fechadura da portinhola do camião e despejando a cerveja quente pela garganta.
"Agora só falta uma gaja, caraças!"
"O quê? Não te chegou a mamalhuda de ontem?"
"As gajas nunca chegam, pá! Quantas mais melhor!" "Iá."
O tema, regado a cerveja, alegrou os comandos. Seguiram-se alguns comentários sobre as mulheres com quem haviam estado na véspera, no aldeamento Mandie, a troco de vinte escudos, mas sem dar pormenores. Eram como irmãos, mas havia coisas que cada um reservava para si.
A Diogo também coubera uma pretinha, mas recusara. A rejeição valera-lhe a troça dos camaradas, embora isso não o tivesse incomodado; não era comando nem tinha nascido em Moçambique, não se sentia obrigado a partilhar aqueles rituais de iniciação. Por isso, e apesar de integrar o grupo havia já quinze dias, achava-se um estranho e mantinha-se relutante em participar na galhofa como se fosse um deles. Estava a meio da comissão e faltavam-lhe outros quinze dias para terminar aquela missão entre os comandos; a verdade é que não via a hora de regressar ao BART. Desde que integrara as tropas especiais que a sua perspectiva sobre a guerra de facto se alterara, mas não para melhor. Seria um alívio voltar ao Chioco. Ficou por isso a observar as brincadeiras entre os comandos como se não fosse participante, mas mero espectador.
As cervejas esvaziaram-se e os soldados recostaram-se nos assentos, iniciando um concerto de arrotos que voltou a diverti-los; tudo servia para se entreterem. Mas depressa a algazarra acalmou e o furriel Sousa, preocupado com o protegido de Angelino, sentou-se ao lado de Diogo.
"Então?", interpelou-o. "Divertiste-te?"
Não era a pergunta que Diogo esperava, pelo que ficou momentaneamente sem saber o que dizer.
"Acho que sim", acabou por murmurar.
"Deste uns tiraços?"
"Dois ou três para o ar."
O alferes aplicou-lhe uma palmada na perna.
"Um destes dias vais ter de dar um balázio em alguém", disse. "Ninguém é verdadeiramente um comando se não matar um turra, caraças! Ainda tens dez dias para mostrares o que vales!"
"Mas eu não sou um comando."
O furriel abriu-se num sorriso.
"Lá isso é verdade!"
Diogo voltou-se e mirou a Berliet que os seguia. Era ali que viajava o régulo e os respectivos filhos, que haviam capturado durante a operação que tinham levado a cabo nessa madrugada.
"O que vai acontecer aos presos?"
"Vamos entregá-los à PIDE."
"Mas o que lhes irá suceder?"
"Serão interrogados."
"E depois?"
Sousa encolheu os ombros com indiferença.
"Sei lá", exclamou. "Depende do que disserem e das informações que a PIDE tiver sobre eles. Se os tipos..."
Zzzzzziiim mmmm
Rata-ta-ta-ta-ta-ta!
O caos irrompeu sem aviso na Berliet. Os zumbidos de bala rasgaram o ar e vários projécteis ricochetearam na blindagem do camião numa sinfonia de morte.
"Emboscada!"
Quando o furriel Sousa gritou já todos os soldados se haviam espalhado pela carga para se abrigarem das balas invisíveis. Diogo sentiu uma chicotada de adrenalina incendiar-lhe o sangue e começou a ver o caos que se desencadeara em seu redor ao retardador, como em câmara lenta, os sentidos aguçados, as cores mais vivas, os sons mais presentes, os movimentos incrivelmente demorados. Mesmo ao lado escutou um gemido romper no meio da confusão e apercebeu-se de que alguém ficara ferido. A sua prioridade naquele instante era, todavia, outra, e concentrou-se antes nos sons realmente importantes, as detonações e os zumbidos de projécteis metálicos que rasgavam o ar; eram eles a verdadeira ameaça, os ruídos que requeriam toda a sua atenção.
A Berliet emitiu um ronco de esforço, mas uma nova saraivada cortou-lhe a progressão e o camião deu um solavanco e imobilizou-se na berma. Ouvia-se um matraquear ininterrupto de armas automáticas e os soldados, passada a surpresa, esperaram uma aberta com as G3 em riste.
"Agora!"
À primeira pausa, os comandos expuseram os canos das armas em busca de alvos, mas foram acolhidos por uma nova saraivada de balas e a situação tornou-se outra vez confusa.
Alguns soldados caíram sobre outros, Diogo via pernas e braços e tudo aos saltos, sempre aos solavancos e sempre em câmara lenta, e só depois de algum pandemônio os homens conseguiram pôr-se em posição e abrir fogo sobre o mato.
A intensidade da emboscada inimiga diminuiu, mas um súbito movimento no capim denunciou posições. "Ali! Ali!"
Os comandos fizeram convergir o fogo sobre o local onde detectaram o movimento e Diogo, mais para aplacar a angústia do que para atingir alguém, seguiu-lhes o exemplo e lançou granadas de mão e descarregou a G3 e todos os medos naquela direcção.
Os homens que vinham nas restantes Berliets da coluna apareceram entretanto, indicando outras posições suspeitas para onde as armas dos comandos se voltaram.
"Cessar fogo!"
A voz rouca do furriel Sousa foi reconhecida no meio de fuzilaria e de imediato obedecida pelos seus homens. Os comandos suspenderam o tiro e um estranho silêncio abateu-se sobre a estrada. O inimigo também havia deixado de disparar e o mato tornara-se imóvel. O capim apenas ondulava ao sabor da brisa escaldante, o cheiro a pólvora queimada a fundir-se com o cacimbo.
"Segunda equipa", chamou o furriel. "Reconhecimento!"
Cinco homens desataram a correr curvados, as armas em riste, e mergulharam no capim. Os comandos observaram o movimento com grande atenção, os olhos a dardejarem em todas as direcções; esperavam o recomeço do tiroteio a todo o instante e sabiam que o fogo contrário denunciaria as posições hostis. Se identificassem esse fogo, identificariam o inimigo.
A espera prolongou-se por alguns minutos.
"Está limpo!", anunciou enfim a voz de um elemento da segunda equipa que partira em reconhecimento. "Os turras cavaram."
Os comandos ergueram-se com cautela, as G3 sempre a postos.
"Médico!"
Um soldado correu na direcção do furriel Sousa, que pedira assistência. Diogo olhou com atenção e percebeu que o chefe do grupo de combate, apesar de ainda dar ordens, se encontrava imobilizado.
Outras vozes levantaram-se a pedir auxílio e ele próprio foi lá ajudar. Um homem havia sido baleado e dois tinham sofrido ferimentos ao cair da Berliet; o motorista ficara mesmo sem a mão direita e tiveram de lhe fazer um torniquete e dar-lhe morfina. O caso estava difícil, mas Diogo recebeu entretanto ajuda do homem que fora prestar assistência a Sousa, o cabo Rosa, e que apareceu com uma maca que pousou ao lado do ferido.
"Seguras pelos pés que eu seguro pelos ombros", ordenou o cabo, assumindo posição. "Um... dois... upa!"
Diogo e o cabo Rosa puseram o ferido na maca. O homem urrou de dor, pelo que fizeram um pequeno compasso de espera até erguerem a maca e arrumarem-no na Berliet mais próxima. O camião militar estava transformado em ambulância improvisada.
"O que tem o nosso furriel?", perguntou Diogo, incapaz de conter a curiosidade. "Não se conseguia mexer..."
"Acho que partiu a bacia."
"O quê?"
"Caiu mal no chão e está cheio de dores", explicou o cabo Rosa. "Já o imobilizei numa maca, mas o gajo ainda acha que está operacional."
Diogo olhou para trás e viu o furriel dos comandos deitado na maca a inspeccionar o capim. Era incrível como, apesar de ter a bacia partida, Sousa estudava as posições que haviam sido ocupadas pelo inimigo. Viam-se palhotas lá ao fundo e, para as identificar, o furriel ordenou que lhe mostrassem um mapa. Um homem foi buscá-lo à mochila e estendeu-o no chão, ao lado da maca.
"Esta merda chama-se Corneta", constatou o furriel Sousa, os olhos colados ao mapa. Ergueu a cabeça e encarou os seus homens. "A primeira equipa que se junte à segunda e limpe a aldeia. Os outros estabelecem um perímetro de segurança aqui na estrada."
Diogo pertencia à primeira equipa, pelo que pegou na G3 e acompanhou os camaradas na batida até Corneta. Meteram pelo capim, evitando os trilhos por causa das minas, e cercaram a aldeia. Não se via vivalma. Os comandos avançaram com cautela, evitando expor-se, até penetrarem nas primeiras palhotas. Estavam desertas.
"Os cabrões cavaram", concluiu Samuel, que comandava a segunda equipa. "Vamos deitar fogo a esta merda toda." Fez sinal a Diogo e aos restantes membros do grupo. "Ponham-se a andar. Eu e o Isaías tratamos disto."
Diogo hesitou. Já que viera para os comandos queria ver tudo o que eles faziam; podia não ser bonito, mas ao menos era instrutivo.
"Posso ficar a ver?"
O pedido surpreendeu Samuel.
"Estás parvo ou quê?", exclamou o comando negro. "Os turras fugiram mas devem ter os morteiros apontados para aqui. Logo que virem o fumo a subir das palhotas, os gajos põem-se a despejar granadas sobre a aldeia. O grupo tem de sair daqui antes que eu e o Isaías peguemos fogo às cubatas."
"Eu também posso ajudar-vos a lançar o fogo", propôs Diogo. "Com três homens até é mais rápido!..."
Samuel encolheu os ombros, consentindo. Os homens abandonaram Corneta e os três soldados que ficaram para trás caminharam para a ponta mais longínqua da aldeia, acenderam os fósforos e colaram as chamas a várias tochas. Depois arrancaram em corrida e lançaram as tochas para dentro das palhotas, correndo sempre na direcção da saída da aldeia. Em poucos instantes o fogo alastrou, transformando as habitações cilíndricas em piras dançantes, e os três tinham já deixado Corneta quando as granadas de morteiro começaram a cair na aldeia em chamas.
"Olha para eles!", observou Isaías com um sorriso fatigado, já junto à estrada, enquanto as explosões se sucediam na aldeia, transformada num lençol de fogo e fumo. "Devem achar que somos parvos."
A Berliet com os seis feridos partiu em direcção a Tete e os comandos montaram nos restantes camiões e arrancaram com destino ao quartel do Mazoi. Os homens iam de semblante carregado, furiosos com o que acontecera e com vontade de ir atrás dos turras lá onde eles estavam a lançar os morteiros, mas permaneceram calados. A excepção era Samuel, o grande negro de Moatize, o único que verbalizava a revolta que a todos ruminava no peito.
"Filhos da puta!", rugiu em voz baixa. "Isto não vai ficar assim!"A Berliet chiou ao travar, elevando uma nova nuvem de poeira, e Angelino apeou-se de um salto logo que a viatura se imobilizou por completo e o motor se calou. Diogo, que ia ao lado, apressou-se a seguir no encalço do amigo.
"Eh pá, espera por mim!"
Sem olhar para trás, Angelino ergueu o braço e exibiu o relógio.
"É uma e um quarto da tarde!", exclamou. "Está quase na hora da reunião e um comando nunca chega atrasado."
O edifício para onde caminhavam, uma estrutura de um único piso com um telhado de zinco e um alpendre a todo o comprimento, situava-se no complexo militar da estrada à entrada de Tete. O calor apertava, jorrando do Sol impiedoso. O ar escaldante ondulava sobre o fundo amarelo e castanho do capim que se estendia até ao horizonte, o mar de erva seca apenas cortado pela ocasional maçaniqueira ou por embondeiros colossais.
Dos dois lados da estrada erguia-se o complexo militar da Zona Operacional de Tete, o local de onde se coordenava a guerra em todo o distrito. Era a primeira vez que Angelino tinha sido convocado para uma reunião na ZOT. Quase por hábito espiou de relance as sentinelas e os portões e não pôde deixar de se admirar com o dispositivo de segurança existente no comando militar.
"Olha para isto", exclamou quase com desdém, indicando a Diogo o portão por onde haviam entrado com a Berliet. "Bastava um grupo de comandos para tomar esta merda em dez minutos."
O amigo olhou e nada disse. Depois do que vira nas últimas semanas, não tinha a mínima dúvida de que isso era verdade. Mas também sabia que qualquer outra força suficientemente treinada e determinada que contasse com o factor surpresa poderia tomar conta do complexo, embora talvez não por muito tempo.
Entraram no edifício que lhes havia sido indicado na ZOT e sentiram o alívio da sombra. Fazia calor ali dentro, mas não era nada comparado com a fornalha que fervia no exterior. Os visitantes foram acolhidos por uma sentinela em continência e dirigiram-se à recepção. A ordenança sentada ao balcão pediu-lhes os documentos e levantou-se, fazendo-lhes sinal de que a acompanhassem no percurso até à sala de planeamento operacional.
Percorreram o corredor até chegarem à sala. A ordenança tentou abrir a porta, mas estava fechada à chave; a reunião havia sido marcada para as treze e trinta e, como era previsível, eles eram os primeiros a chegar.
"O nosso coronel ainda deve estar a almoçar", disse a ordenança para o chefe dos comandos, afastando-se pelo corredor em passo lesto. "Vou avisá-lo de que o meu alferes já chegou."
Angelino encostou-se à parede e tirou do bolso um LM, que acendeu com o seu Zippo de estimação. Uma nuvem de fumo branco ergueu-se diante do rosto, esvoaçando pelos olhos meditativos.
"Em que estás a pensar?"
"Na vingança."
"Eh pá, o que aconteceu foi guerra", argumentou Diogo. "Umas vezes somos nós quem faz emboscadas, outras vezes são eles. Já se sabe, quem vai à guerra dá e leva."
Angelino desviou o olhar furioso na direcção do amigo.
"Deves estar a fazer confusão", rosnou. "Os comandos não levam, só dão."
"Hoje levaram."
O alferes colou o cigarro à boca e aspirou com força,"deixando o fumo sair com lentidão.
"Já vais ver o troco que lhes vamos dar."
"Estás a falar a quente, pá. Tem calma."
Angelino fitou o amigo e a expressão baça pareceu cintilar de fúria muda.
"Ouve, Diogo, tens de perceber uma coisa de uma vez por todas", rosnou num tom controlado. "Os comandos não são tropa macaca como vocês. Eu sei isso, vocês sabem isso e os turras também. Que os turras se metam com a tropa macaca é uma coisa. Mas que se metam connosco é diferente. Nós íamos com as nossas boinas vermelhas, não íamos? Os tipos sabiam muito bem que nós éramos comandos e mesmo assim abriram fogo. Tudo bem. Vão já levar com o troco e aprender de uma vez por todas que connosco ninguém se mete! Ouviste? Ninguém!"
"Até parece que foste pessoalmente alvejado", observou Diogo, intimidado com aquela fúria fria. "Eu é que estive lá e, ó p'ra mim, não estou tão enxofrado como tu. Por isso acalma-te! Que eu saiba não levaste com as balas. Além do mais, isto é guerra, pá."
"Não estás a entender o problema", insistiu Angelino. "Os gajos meteram-se com os comandos e não podem. É isso que eles vão ter de aprender. Se uma coisa destas passar impune, amanhã voltam a fazer-nos uma emboscada igual ou ainda pior. A malta não pode deixar que estes cabrões percam o respeito aos comandos. Nós não estamos aqui a brincar e eles já vão perceber isso de uma forma muito clara."
"O que vais fazer? Queres queimar outra vez as palhotas que já queimámos? Os gajos fugiram, pá!"
Angelino deitou o cigarro para o chão e esmagou-o com a ponta da bota.
"Isso é o que vamos ver", sentenciou. "Esta reunião vai servir para planear a resposta."
Calaram-se por momentos. Diogo voltou a experimentar a porta e confirmou que estava trancada.
"Achas que me deixam assistir?"
Angelino abanou a cabeça.
"O quê? Tu? A uma reunião com o governador? Deves estar a reinar, pá."
"Então não estou aqui a fazer nada", constatou o amigo. "Quanto tempo vai demorar esta merda?"
"Sei lá! Tanto pode durar meia hora como a tarde toda. Porquê?"
Um brilho de esperança cintilou no olhar de Diogo.
"Então vou dar ali um passeio a Tete, tá?", disse. "Volto daqui a pouco."
"Não me digas que queres ir ter com a tua Sheila..."
A pergunta emudeceu Diogo, subitamente ruborizado. Ao ver a reacção do amigo, Angelino percebeu que havia acertado em cheio e foi a vez de ele próprio corar, mas de irritação.
"Não tens vergonha?", repreendeu-o. "Um grupo nosso foi emboscado há uma hora, tu próprio ias lá dentro, e só pensas numa gaja? Mas que raio de soldado és tu?"
Diogo suspirou.
" Angelino, eu não sou um comando e não penso como vocês", justificou-se. "Há uma hora estava eu a levar tiros e não sei se amanhã me volta a suceder o mesmo e se escapo. Posso ficar com a bacia partida, como o Sousa, ou até bater a bota. A verdade é que não sei o que me vai acontecer. Se tenho uma oportunidade de ir ver a minha namorada, porque não aproveitar?"
O amigo fitou-o com intensidade. Apesar da sua habitual expressão fria e calculista era evidente que estava à beira de explodir. O autodomínio, porém, sobrepôs-se às emoções e o comando acabou por meter a mão nas calças, retirar um pequeno objecto metálico do bolso e lançá-lo na direcção de Diogo. O furriel interceptou o objecto no ar com um gesto reflexo e, abrindo o punho, viu-o pousado na palma da mão. Era a chave da Berliet.
"Tens uma hora."
A maca transportava um rapaz com a perna esquerda engessada e amputada acima do joelho; tratava-se evidentemente de um soldado que havia pisado uma mina e que estava ainda sob o efeito de um anestésico. A enfermeira empurrava a maca pelo corredor do hospital e, vendo o frasco de soro prestes a saltar do gancho, estendeu o braço para ajeitar a sua posição. Apercebeu-se nesse momento de um vulto atrás dela e deu um salto de alarme.
"Diogo!", exclamou Sheila ao voltar-se, pousando a mão sobre o peito como se quisesse conter o coração. "Que susto!"
"Desculpa. Foi sem querer!..."
"Que estás aqui a fazer?"
"Sofremos uma emboscada esta manhã e..."
A rapariga arregalou os olhos, horrorizada, e estudou-o da cabeça aos pés com um movimento rápido e ansioso.
"Oh!", interrompeu-o. "Estás ferido?"
"Não, está tudo bem", disse ele, abrindo os braços para provar que se encontrava intacto. "Mas tivemos de vir à ZOT e aproveitei para dar cá um salto e matar saudades."
Fundiram-se num abraço sentido, feito de saudade e alívio. O corpo de Sheila tremia, evidentemente assustada por o namorado ter estado envolvido numa emboscada. Enquanto a enlaçava, e ao sentir-lhe a agitação, Diogo considerou se não teria feito melhor em inventar uma desculpa em vez de lhe ter contado a verdade. A realidade, porém, é que acreditava que a verdade os aproximaria e renovaria a ideia de que deviam viver um momento de cada vez, saborear todos os instantes como se fossem os últimos. Não que ele acreditasse nisso. Pelo contrário, achava-se imortal e não lhe passava pela cabeça a possibilidade de ser atingido por uma bala ou de pisar uma mina; isso era para os outros, não para ele. Mas os riscos que corria impressionavam a namorada e isso era algo que Diogo estava disposto a usar em seu favor.
O abraço foi longo, mas Sheila acabou por se libertar quando se sentiu mais calma.
"Quanto tempo ficas em Tete?"
"Não muito", disse ele. "Deram-me uma hora e já passaram quinze minutos."
"Só!?" A rapariga suspirou, angustiada com os perigos que o namorado correra e irritada com o pouco tempo de que dispunha com ele. "Não podes passar cá a noite?"
Diogo consultou o relógio e abanou a cabeça.
"Tenho trinta e cinco minutos, se descontarmos o tempo que levo a voltar à ZOT. Não mais."
"Mas eu preciso de falar contigo", argumentou ela. "Tenho uma coisa muito importante para te dizer."
O soldado inclinou a cabeça, num esgar trocista.
"Então diz."
Sheila desviou o olhar para a maca. O ferido continuava inconsciente, mas o facto é que não podia permanecer ali.
"Agora não pode ser", disse. "Tenho de levar este paciente para a enfermaria."
"Então contas-me noutro dia."
Sheila abanou a cabeça, rejeitando liminarmente essa possibilidade. Lançou um olhar perscrutador pela janela do corredor, em busca de um lugar onde pudessem falar à vontade, e a imagem do edifício vizinho deu-lhe a resposta.
"Espera-me à porta da farmácia, pode ser?"
A farmácia abria-se para o exterior graças a uma comprida fileira de janelas ao longo das paredes que a rodeavam. Enquanto aguardava, Diogo espreitou o interior do edifício e viu um farmacêutico indiano sentado numa mesa em redor de um microscópio. Devia estar a fazer análises clínicas, presumiu. Sentiu nesse momento uma batida surda e voltou-se para o Zambeze. Um Alouette sobrevoava o rio e perfazia um arco já para virar na direcção do hospital. Devia trazer mais feridos; um desgraçado que pisara uma mina ou alguém atingido durante mais uma emboscada.
"Diogo?"
O soldado virou-se e viu Sheila caminhar na direcção dele; a rapariga vinha com uma expressão séria no rosto e os dedos a remoinhar o cabelo, evidentemente nervosa. Aproximou-se e caíram de novo nos braços um do outro.
"Está tudo bem?", quis ele saber, sentindo-a perturbada. "Se ainda andas preocupada com a emboscada, não andes. Estou óptimo, não me aconteceu nada."
Sheila suspirou.
"Graças a Deus!", murmurou. "Não sei o que faria se te sucedesse alguma coisa!..."
Diogo afagou-lhe o cabelo, carinhoso.
"Não me aconteceu nada", repetiu. "Está tudo bem. Acalma-te."
A rapariga anichou-se mais uma vez no corpo do namorado e deixou-se ali ficar um momento, a face a repousar-lhe no peito, as pálpebras cerradas num instante de sossego. Depois respirou fundo e levantou o olhar.
"Tenho uma coisa maningue importante para te contar." Ergueu a mão e exibiu dois dedos. "Uma não. Duas."
O soldado franziu o sobrolho.
"O quê?", perguntou ele num tom brincalhão. "Não me vais dizer que o Porto perdeu com a CUF, pois não? Isso já eu sei!..."
Apesar do peso que lhe oprimia o peito, Sheila não conseguiu reprimir uma risada.
"Tonto! Não é nada disso!"
"Então?"
Ela desviou o olhar e respirou fundo mais uma vez, como se procurasse ganhar coragem. Encheu os pulmões de ar e fitou-o de novo.
"Tenho um namorado."
Diogo riu-se, divertido com a expressão solene com que ela proclamara uma coisa tão óbvia.
"Claro que tens, palerma. E espero que estejas satisfeita com ele."
Sheila revirou os olhos.
"Não estás a perceber", disse ela. "Tenho outro namorado."
O anúncio atingiu Diogo como uma bala. Cravou na rapariga um olhar interrogador e segurou-a pelos ombros, de modo a evitar que ela lhe fugisse com a cara.
"Outro namorado como? Que queres dizer com isso?"
"Chama-se Ismael."
A confirmação deixou Diogo boquiaberto. Esperava que ela negasse ou que lhe explicasse que ele havia entendido mal ou lhe dissesse qualquer outra coisa que mostrasse que falavam de assuntos diferentes, mas o nome que Sheila lhe atirou provava que não havia equívocos, que ele entendera tudo à primeira, que ela queria mesmo dizer o que dissera e que ele compreendera bem.
"Mas... o que...", gaguejou Diogo, tentando reordenar os pensamentos. "Quem é esse? Como é que... que..."
"Foi antes de te conhecer", esclareceu a rapariga, adivinhando a torrente de perguntas que o assaltavam. "Comecei a namorar com ele há dois anos, antes até de ir para Lourenço Marques tirar Enfermagem. Ele fez a tropa na Matola, nos arredores da cidade, e encontrávamo-nos todos os fins-de-semana. Mas desde que terminei o curso e vim para Tete que não o vejo, uma vez que ainda não lhe concederam licença." Passou a mão pela face de Diogo, num gesto de ternura. "Ou seja, não estou com o Ismael desde que te conheci."
Diogo assentiu, percebendo a situação mas com dificuldade em aceitá-la.
"Só agora é que me dizes?"
Ela encolheu os ombros e baixou a cabeça, embaraçada.
"Tentei muitas vezes", murmurou. "Mas nunca tive coragem."
O rapaz teve vontade de gritar e recriminá-la, mas pôs-se na posição dela e conteve-se. Será que, se ele tivesse uma namorada em Portugal, lhe contaria logo? Gostaria de responder que sim, mas sabia que provavelmente se manteria calado. O que tinha a fazer, considerou, era lidar com a situação com a mesma coragem que ela mostrava nesse momento.
"E agora?", quis saber, receando a resposta. "O que vais fazer?"
"Tenho de resolver a situação, não é?"
"Pois tens. Não nos podes ter aos dois." Forçou um sorriso. "Os maometanos aceitam que um homem tenha duas mulheres, mas não me parece que aceitem uma mulher com dois homens."
Ela baixou a cabeça.
"Eu sei", sussurrou. "Mas não é fácil."
"O que não é fácil?", exclamou Diogo, desprendendo-se da rapariga e sentindo que começava a perder o controlo das emoções. "Parece-me até muito simples. Há dois namorados e tens de escolher um. Escolhe."
Sheila manteve a cabeça baixa e reprimiu um soluço.
"Tenho andado toda a semana angustiada, meu Deus! Não sei o que faça!"
"É assim tão difícil escolher entre nós os dois?"
"Não é isso", sussurrou ela, desfazendo-se em novos soluços. "Não é isso."
"Então porque choras?"
Ela levantou a cabeça e deixou Diogo ver-lhe a face molhada de lágrimas.
"Porque te escolhi a ti."
Disse-o com um gemido, embora a ele aquela confissão soasse a música. Sheila escolhera-o. Diogo abriu os braços e acolheu-a, soltando uma gargalhada feliz.
"E é caso para chorares, minha parva?", perguntou com ternura. "Acho que escolheste maningue bem! Porque choras?" Ergueu uma sobrancelha desconfiada. "Não me digas que ainda gostas dele!..."
A rapariga refugiou-se-lhe no peito. Abanou a cabeça e fungou, tentando recuperar a compostura. "Não."
"Então? Porque choras?"
Fungou mais uma vez e levantou os olhos, fitando-o com intensidade.
"Porque estou grávida."
Segundo tiro. Como se tivesse sido atingido por mais uma bala traiçoeira, Diogo deu um passo para trás, atónito, e procurou-lhe os olhos para se certificar de que ouvira bem.
"O quê?"
Afogada em vergonha, Sheila baixou as pálpebras e caiu para a frente, desamparada, deixando a cabeça voltar a colar-se-lhe ao peito, como se estivesse desesperada e clamasse por protecção.
"Estou grávida e não sei quem é o pai."
O líquido negro fumegante ondulava na chávena num remoinho lento. Parecia petróleo a escaldar.
"Vai um café?"
Angelino, muito hirto e de olhar carregado, abanou ligeiramente a cabeça.
"Não, meu coronel. Vou comer quando voltar ao Mazoi."
O coronel Varela apreciou a recusa. Se fosse tropa regular, o seu interlocutor já se teria agarrado à chávena e se calhar até tinha pedido umas bolachas para acompanhar. Mas não aquele homem. O alferes era um comando e estava ali para actuar, não para confraternizar.
Na verdade, Armando Varela estava habituado a ver os comandos como rivais; no fim de contas ele próprio era coronel pára-quedista. Mas desde que assumira simultaneamente as funções de chefe militar e de governador de Tete, já não podia olhar para os comandos com os olhos antagonistas de um pára-quedista. Pairava agora acima das rivalidades e tinha o dever de coordenar todas aquelas forças.O coronel girou a cabeça pela sala de planeamento operacional, uma divisão simples com paredes de madeira, e pareceu- lhe tudo a postos. Pousado sobre a mesa estendia-se um grande mapa a mostrar o regulado de Gandali, situado poucos quilómetros a sul da ZOT; aliás, as instalações da Zona Operacional de Tete encontravam-se tão perto do regulado que até apareciam assinaladas no mapa.
Em redor da mesa, quatro homens aguardavam que o chefe militar desse início à reunião. O coronel Varela olhou-os um a um. O homem da Força Aérea, capitão Vasco Telles, e o comandante do Batalhão de Caçadores 17, major Josué Ponces, mantinham-se numa expectativa tranquila; era natural, tratava-se de dois executores que simplesmente aguardavam as ordens do seu superior hierárquico.
A mesma postura seria aliás de esperar do comandante dos comandos, Angelino Melro, mas o coronel sabia ler os homens e descortinava no alferes, sob a máscara de uma impavidez obviamente simulada, a ebulição de um operacional impaciente por entrar em acção. Não era preciso ser um génio para perceber aquela impaciência; o governador sabia muito bem que o sangue do alferes fervia por causa da emboscada que os comandos haviam acabado de sofrer na estrada. Se bem os conhecia, não descansariam enquanto não ajustassem contas com os turras.
Os olhos do chefe militar de Tete desviaram-se para o quarto homem, que se remexia com impaciência e mudava amiúde a perna em que se apoiava. O coronel estreitou as pálpebras, tentando interpretar aquela postura corporal. Conhecia o pequeno inspector da DGS havia algum tempo e já tinha notado que, quando Aniceto Silva se apresentava assim agitado, era porque rebentava de novidades. Estava na hora de as conhecer.
O coronel Varela pousou a chávena na borda da mesa e pôs as mãos à ilharga, como fazia nos seus tempos de operacional pára-quedista quando se preparava à porta de um avião para se lançar no abismo.
"Meus senhores", começou por dizer no tom de quem abre formalmente a reunião. "Como sabem, os turras andam a ganhar cada vez mais atrevimento e já chegaram à entrada de Tete." Fez um gesto na direcção da janela, exibindo a planície seca que se estendia pelo horizonte amarelado. "Os gajos estão, aliás, a meia dúzia de quilómetros aqui da ZOT e ameaçam Tete e a estrada do Songo para Cabora Bassa. O general Kaúlza anda muito preocupado com a situação e já me ligou várias vezes nas últimas semanas. É imperativo garantir a segurança de Tete e de Cabora Bassa e barrar-lhes o caminho para Vila Pery e para a Beira. Mas, além da grande importância estratégica do que está em causa, é bom lembrar que a própria honra das Forças Armadas se encontra em jogo. Se nós nem os arredores de Tete controlamos, controlamos o quê? Precisamos, pois, de pôr ordem nisto! Para lidar com este problema andamos há uma semana a planear a Operação Marosca. A ideia era lançá-la depois do Natal, mas parece que surgiram umas novidades que nos poderão forçar a antecipar a acção planeada." Indicou Angelino. "O nosso alferes sofreu agora uma emboscada a poucos quilómetros daqui, não é verdade?"
O comandante da 6ª Companhia de Comandos inclinou-se sobre o mapa e apontou para uma aldeia junto à estrada.
"Foi aqui em Corneta, meu coronel", indicou. "Eu não estive lá, as coisas aconteceram com os meus camaradas do segundo grupo. Eles tinham ido pernoitar ao aldeamento Mandie para fazer esta manhã um golpe de mão no aldeamento Cebola e capturar o régulo e os filhos, conforme as ordens que tínhamos recebido, e foram emboscados na estrada no caminho de regresso. Sofremos seis feridos, incluindo o furriel Amaro Sousa, que ficou com a bacia fracturada. Os nossos homens bateram a aldeia situada ao lado do ponto da emboscada, mas ela estava deserta e limitaram-se a queimar as palhotas."
O coronel Varela comparou no mapa a distância de Corneta à ZOT e à cidade de Tete.
"Porra, os cabrões estão mesmo próximo!", constatou. Desviou o olhar para o impaciente inspector Aniceto Silva. "Quais são as informações de que a PIDE dispõe sobre esta zona?"
"Está totalmente infiltrada pelos turras, senhor coronel", retorquiu o homem da DGS. "O que o alferes Melro acaba de contar confere com o que tem acontecido nas últimas vinte e quatro horas nesse sector. Ainda agora o Guerra apareceu a queixar-se de que, quando vinha de avião e descia para aterrar em Tete, foi alvejado de umas palhotas." Fez um gesto em direcção ao ponto no mapa a assinalar Corneta. "A avioneta fez a aproximação à cidade por sudoeste e, pelos meus cálculos, os tiros vieram justamente desta zona."
O coronel franziu o sobrolho.
"Andaram a disparar desse sector contra a geringonça do Guerra?"
"Sim, senhor coronel. Foi ontem."
"E o que fez o senhor?"
"Mandei o Chico ver o que se passava. Ele foi lá esta manhã perguntar à população se os turras andavam por ali."
O chefe militar soltou uma gargalhada.
"Quando viram o Chico devem ter apanhado um cagaço, não? Eu, se desse com um brutamontes daqueles, confessava logo tudo!"
Aniceto Silva não acompanhou o riso.
"Pois eles não confessaram coisa nenhuma", retorquiu com secura. "Aquilo está tudo infiltrado pelos turras, senhor coronel. Tudo." O inspector inclinou a cabeça na direcção de Angelino. "Aliás, os comandos foram há pouco emboscados naquele sector pouco depois de a população ter garantido ao Chico que ali não havia turras. Mas a emboscada prova que os turras estão lá e que a população nos anda a mentir."
O coronel Varela endireitou-se e pegou na chávena de café. Sorveu um gole quente e respirou fundo, avaliando as suas opções. O quadro que lhe havia sido traçado era claro e cabia- lhe a ele tomar as decisões que se impunham. Pousou a chávena e afinou a voz, como sempre quando se preparava para dar ordens importantes.
"Muito bem, vamos então antecipar a Operação Marosca", decidiu. Virou-se para o comandante da Força Aérea. "Como sabe, capitão Telles, o plano prevê que a operação seja desencadeada pelos Fiats."
"Pode contar connosco, meu coronel."
O chefe militar de Tete voltou-se para o comandante da 3ª Companhia de Comandos.
"Depois avançam os comandos", indicou, consultando as folhas onde a Operação Marosca se encontrava planificada. "São necessários três grupos. Dois serão inseridos a norte e terão de estar em posição pelo final da manhã." Apontou para o major Ponces. "O Batalhão de Caçadores 17 terá uma força a apoiar os comandos emboscados a norte." Indicou um ponto no mapa a assinalar a estrada. "O terceiro grupo de comandos encontrar-se-á aqui no entroncamento da estrada do Songo com os Alouettes que os levarão para a borda sul do sector."
"Eu conheço o plano, meu coronel", retorquiu Angelino. "Precisava é que o bombardeamento dos Fiats incidisse em pleno centro da aldeia, para obtermos maior efeito."
"No centro da aldeia?", estranhou o capitão Telles. "Isso está cheio de civis!..."
"É verdade", confirmou Angelino. "Mas a confusão que o bombardeamento irá gerar entre a população é a mais propícia para a entrada em segurança das nossas forças."
O comandante da Força Aérea abanou a cabeça enfaticamente.
"Não, nem pensar!", declarou. "A Força Aérea não bombardeia populações civis. Dêem-nos um alvo militar e tudo bem, mas não posições civis!"
"A aldeia é um alvo militar", atalhou o inspector Aniceto Silva, intrometendo-se na conversa. "Os turras estão infiltrados no sector e contaminaram as populações civis."
O capitão Telles ergueu o dedo, como quem diz que dali não arredava pé.
"Repito que a Força Aérea não bombardeia alvos civis!", sentenciou. "Dêem-nos um alvo militar e podem contar connosco, mas não alvos civis!"
"Os alvos civis são alvos militares", insistiu o homem da DGS. "Não percebe o que se passou ali esta manhã? Os comandos foram atacados naquele local pouco depois de a população ter garantido ao Chico que por ali não havia turras! Isto mostra que toda a zona está infiltrada!"
O capitão Telles voltou a abanar a cabeça, irredutível.
"Os bombardeamentos aéreos são indiscriminados", explicou. "Não podemos largar bombas no meio de uma aldeia cheia de civis."
"Mesmo estando ela infiltrada de turras?"
"Mesmo assim."
Aniceto Silva abanou a cabeça, agastado. O bombardeamento aéreo, porém, era sobretudo um requisito táctico, o que levou Angelino a tentar encontrar uma solução que contornasse a recusa obstinada do homem da Força Aérea.
"Então lance pelo menos uma bomba pequena", argumentou o comandante dos comandos. "Precisamos dela para estabelecer a confusão."
"Nem pequena nem grande! Não há bombas da Força Aérea contra aldeia nenhuma."
Angelino, que se esforçava por manter a postura tranquila, aclarou a garganta.
"Desculpe, meu capitão, mas só se for nova política da Força Aérea", disse. "Há uns tempos vi uma aldeia com o chão coberto de crateras de bombas lançadas pela Força Aérea. Algumas eram tão grandes que cabia lá uma Berliet."
O capitão Telles olhou-o com desconfiança.
"Onde foi isso?"
"Na serra Mapé, em Cabo Delgado. Como sabe é uma zona totalmente contaminada, mas na aldeia viviam populações. E as crateras estavam bem no meio da povoação."
"Eu não tenho nada a ver com as operações da Força Aérea em Cabo Delgado", rugiu o oficial aviador. "Aqui em Tete nós não..."
"Meus senhores!", sobrepôs-se a voz do coronel Varela, impondo o silêncio. "A Operação Marosca decorrerá conforme planeado." Lançou um olhar ao capitão Telles. "A Força Aérea irá bombardear o alvo, como consta dos requisitos operacionais." Virou a cara para Angelino e para o major Ponces. "Dois grupos de comandos e um de caçadores estarão em posição a norte e logo a seguir ao bombardeamento avança de sul um terceiro grupo de comandos nos Alouettes." O movimento da cabeça terminou no inspector Aniceto Silva. "A PIDE acompanhará este terceiro grupo de comandos e conduzirá os interrogatórios." O coronel calou-se e voltou a encarar os quatro interlocutores um a um, como se indicasse que a hora da discussão já terminara e aquelas instruções eram finais. "Entendido?"
Os quatro anuíram com movimentos afirmativos de cabeça. O chefe militar de Tete voltou a consultar os documentos onde a operação estava planificada.
"O bombardeamento dos Fiats será efectuado às sete da manhã do dia 18 e logo a seguir..."
"Tem de ser amanhã", cortou Aniceto Silva.
O coronel Varela arregalou os olhos, espantado com a interrupção.
"Como?"
O inspector da DGS tinha uma expressão convicta no rosto.
"Se queremos ter a certeza que apanhamos os turras, temos de avançar amanhã o mais tardar."
"Amanhã?"
"Iá, amanhã."
O coronel suspirou; parecia um pai a lidar com o capricho de uma criança.
"Inspector, todos queremos antecipar a operação", disse. "Mas ninguém quer antecipá-la assim tanto. Porquê essa urgência?"
"Já lhe expliquei, senhor coronel", argumentou o inspector da DGS. "Se queremos ter a certeza de que apanhamos os turras, temos de avançar amanhã o mais tardar."
"Mas porquê amanhã? Porque não dia 18?"
"Porque são essas as informações de que disponho, senhor coronel. Estou a falar de informações seguras."
Angelino apoiou-se noutra perna, impaciente e irritado com tanta certeza.
"Eu conheço muito bem as informações seguras da PIDE!", exclamou o chefe dos comandos num tom de desprezo. "Estou farto de andar à caça dos gambozinos à custa das vossas informações seguras! Ainda noutro dia a PIDE nos garantiu que havia no Zoboe um acampamento de turras e, quando lá chegámos, só vimos impalas!"
"Estas informações são seguras", insistiu Aniceto Silva, quase rangendo os dentes. "Seguríssimas!"
O coronel Varela inclinou-se sobre a mesa, apoiando-se nas mãos.
"Iá, mas seguras a que ponto, senhor inspector? O nosso alferes tem razão. Não tem conta o número de missões que enviamos à custa das informações seguras da PIDE e que se vêm a revelar um completo fiasco..."
O inspector suspirou.
"As nossas informações indicam a presença do Raimundo na zona." A referência ao nome teve o condão de calar os quatro militares na sala, garantindo ao inspector a melhor atenção. "Não preciso de vos recordar o prestígio desse chefe maconde que veio aqui para Tete desestabilizar o distrito, pois não?"
O coronel Varela cruzou os braços e mordeu o lábio inferior, considerando a informação.
"Tem a certeza de que o Raimundo está neste sector?"
O rosto do homem da DGS abriu-se num sorriso sibilino.
"Quem mais se atreveria a atacar os comandos à luz do dia?" Fez uma pausa, deixando a ideia germinar na mente dos militares. "Ele comanda trezentos guerrilheiros que se infiltraram nas aldeias desta área. E eu sei que o tipo vai estar amanhã numa delas."
Angelino soltou uma gargalhada céptica.
"Como pode o senhor saber uma coisa dessas? Falou com ele?"
Aniceto Silva estreitou ligeiramente os olhos, com ar de quem estava na posse de matéria confidencial.
"É uma informação que tenho."
"Desculpe, senhor inspector", interveio o coronel Varela. "Considerando o que está aqui em causa gostaria de saber qual a fonte dessa informação."
O responsável da DGS respirou fundo, sabendo-se derrotado.
"É o Mendes", disse. "O gajo foi esta manhã comprar cabritos às aldeias e os turras apanharam-no."
"Qual Mendes? O da Toyota vermelha?"
"Esse mesmo."
"Os turras apanharam-no?"
"Sim, mas não lhe fizeram mal", apressou-se o inspector a esclarecer. "Os tipos disseram-lhe que não o matavam mas que precisavam de ser abastecidos de farinha e sal e mandaram-no ir a Tete buscar esses produtos e entregá-los amanhã na aldeia." Consultou uma anotação. "Marcaram encontro junto a uma pedra chamada... tombonhapangara... ou lá como se diz essa merda! Só sei que o coitado do Mendes apanhou um cagaço dos antigos! Foi a correr para Tete e veio logo falar comigo."
Os quatro militares estavam boquiabertos, os olhos presos no inspector; era demasiado bom para ser verdade! Passada a surpresa inicial, o coronel Varela acercou-se de Aniceto Silva e desferiu-lhe uma sonora palmada nas costas.
"Ó homem, porque não disse isso mais cedo?", exclamou com indisfarçável entusiasmo. "Você tinha uma informação dessas e estava calado?"
Apanhado de surpresa pela palmada, o inspector cambaleou e esboçou um esgar de dor.
"Mas, senhor coronel, é o que eu estava a tentar fazer", defendeu-se. "Eu disse que tinha informações seguríssimas de que o Raimundo estava localizado, não disse?"
O chefe militar soergueu o sobrolho.
"Muito bem, você sabe onde os turras vão estar amanhã. Mas como tem a certeza de que o Raimundo estará lá?"
"Certeza ninguém tem de nada, mas foi o que o Mendes me disse", explicou Aniceto Silva. "Parece que os tipos da aldeia estavam todos em respeito por terem o Raimundo com eles. Diziam que estava ali o dalepa e que com o gajo ninguém se metia."
Todos reconheceram a referência. "Dalepa", ou "bicho que cheira mal", era o inconfundível nome de guerra do lendário Raimundo, o guerrilheiro maconde que andava a desestabilizar o distrito de Tete. Enfim convencido, o coronel Varela desferiu um murro inflamado na palma da mão.
"Muito bem, pessoal!", exclamou. Encarou o comandante dos comandos e apontou-lhe o dedo para enfatizar as suas ordens. "Esta zona é para limpar, percebeu alferes? Para limpar! Quero tudo limpo de uma vez por todas!"
Era a primeira vez que Angelino recebia uma ordem daquelas, mas nem sequer pestanejou. No seu dicionário, "limpar" significava limpar. Sabia que essa ordem já havia sido dada em operações envolvendo outras companhias e sempre imaginara que alguma vez teria de lhe caber a ele. A hora chegara e não havia que duvidar, até porque um comando obedecia a ordens e ele era o melhor da sua companhia.
"Sim, meu coronel."
O chefe militar de Tete voltou a inclinar-se sobre a mesa, analisando as posições identificadas no mapa.
"Qual é o ponto de encontro marcado pelo Raimundo com o Mendes? Vai ser em Corneta?"
O inspector da DGS abanou a cabeça.
"Corneta encontra-se demasiado exposta por causa da estrada que passa ao lado", disse Aniceto Silva. "Além disso foi destruída há pouco pelos comandos, como aqui o senhor alferes teve a amabilidade de nos explicar." Indicou um espaço no mapa mais a norte. "Os turras estão numas aldeias ali mais para o interior." Dobrou-se também sobre a mesa e ajeitou os óculos, procurando uma referência mais exacta. Consultou umas anotações que extraiu do bolso da camisa e comparou-as com as legendas registadas no mapa. "As coordenadas da zona onde os turras se encontram são... deixe cá ver... 3334.1618... 3337.1618 e... e 3334.1621." Indicou um triângulo imaginário com os vértices assentes nas três coordenadas. "É aqui dentro."
"Que aldeias estão aí?"
O inspector identificou-as com o dedo.
"São estas."
Aniceto Silva ergueu os olhos e viu os quatro militares voltados igualmente sobre o mapa, esforçando-se por reconhecer as legendas aí assinaladas.
"Chawola e... e Juwau?"
"Sim, senhor coronel", confirmou o inspector, deslizando de seguida o dedo para um terceiro ponto. "Mas o Mendes ficou de entregar a farinha e o sal nesta outra aldeia."
O olhar do chefe militar deslizou para o nome da terceira referência.
"Willamo?"
O chefe distrital da DGS abanou a cabeça e corrigiu-o.
"Wiriyamu."
As pás das hélices cortavam o céu a um ritmo cadenciado e trepidante, invisíveis mas perceptíveis, tão rápidas que sobre o aparelho apenas se destrinçava uma vaga ondulação, como se ali estivesse uma lente a desfocar o firmamento. Angelino Melro acariciou a espingarda automática e, dominando a tensão, verificou as munições pela terceira vez no último minuto; tudo lhe parecia em ordem. "Ali!"
Ergueu os olhos e viu o piloto gritar-lhe qualquer coisa e apontar para a frente. O ar reverberava, abafando a voz do piloto, pelo que não entendeu o que lhe era dito. Teve de alongar o pescoço num esforço para perceber o que se passava. Lobrigou duas colunas de fumo negro a erguerem-se do arvoredo e a serpentearem pelo ar até se esbaterem nas alturas; pareciam vulcões a vomitar da planície fios de carvão em pó. Analisou o solo de onde o fumo se alteava e apenas vislumbrou árvores. Procurou as palhotas e enxergou-as um pouco mais aquém do local de onde jorrava a fumaça."Filhos da puta!", praguejou entre dentes. "Estes gajos da Força Aérea não têm emenda!"
"Que foi? O que aconteceu?"
Olhou para Diogo, que lhe fizera a pergunta, e depois desviou a atenção para o piloto, certificando-se de que ele nada ouvira. O homem aos comandos do Alouette mantinha-se concentrado na sua tarefa, o que o tranquilizou. Mas teria de se controlar; o helicóptero era da Força Aérea e aquele momento não era o adequado para iniciar uma altercação com os tipos.
"Que foi?", insistiu Diogo. "Passa-se alguma coisa?"
Angelino fez com a cabeça sinal para as colunas de fumo lá adiante.
"Os sacanas não bombardearam o centro da aldeia", disse. "Deitaram as bombas no mato. Cabrões de merda, eu sabia que não se podia contar com estes gajos!"
A observação deixou Diogo desconcertado e o seu alcance só foi plenamente apreendido por Samuel, que se encontrava sentado ao lado e que assentiu sem pronunciar palavra. O Alouette aproximava-se em velocidade do teatro de operações e Angelino espreitou para os lados, certificando-se de que tudo corria bem; os outros quatro helicópteros seguiam em formação, não havia problemas.
Depois passou os olhos pelos quatro operacionais que iam no seu Alouette. Dois eram homens seus; tratava-se de Diogo e de Samuel, um soldado negro que encarava como irmão porque nos comandos a maioria dos homens era negra e entre todos a cor não contava; os outros dois eram os tipos da DGS que o inspector Aniceto Silva lhe impingira.
Estudou-os com curiosidade. O chefe era Francisco, um matulão de quem se dizia ter combatido noutras guerras ao serviço dos Espanhóis. Já o outro, Maurício, era um lomué da confiança de Francisco. Havia muitos negros a trabalhar para a DGS, sabia Angelino; não constava que fossem mais meigos do que os brancos.
O facto, porém, é que ele não gostava de operar com a DGS; as informações que os pides davam à tropa revelavam-se pouco fidedignas e resultavam amiúde em trabalho infrutífero. Mas ordens eram ordens e, como por vezes sucedia, tinha de os aturar nesta missão; o comando impusera-os porque os considerava fundamentais para recolher informação e a verdade é que aquela zona de operações estava totalmente contaminada pelos turras e informação era decerto coisa que por ali não faltava.
"Prontos?"
A voz do piloto trouxe Angelino de volta à realidade do momento. O comandante dos comandos fez um sinal a Samuel e Diogo e os três posicionaram-se junto às portas do Alouette. Angelino destravou a G3 e encarou o piloto, indicando-lhe que estava a postos.
O aparelho perdeu imediatamente altitude e começou a rasar as copas das árvores, aproximando-se a grande velocidade de uma clareira que se abria antes das primeiras palhotas. O catacatacata das hélices em rotação dominava tudo; o capim girava em círculo por baixo do helicóptero, bailando ao ritmo frenético das pás em espiral, soprado pelo vento que ao mesmo tempo erguia revoadas de poeira alaranjada em remoinho.
O Alouette abrandou sobre o centro da clareira e desceu até pairar pouco menos de dois metros acima do solo.
"Vai!"
Diogo viu Angelino saltar e foi a seguir. Sentiu o chão travar-lhe a queda, verificou que os restantes homens pulavam igualmente dos outros helicópteros como sementes lançadas nas machambas e desatou de imediato a correr em direcção às palhotas. As pessoas fugiam em debandada, cada uma para o seu lado; eram coelhos a tentar ludibriar a rede que sobre eles se fechava.
Os comandos enchiam a clareira e os helicópteros já se afastavam, levando consigo a vibração do ar e tornando-se um zumbido cada vez mais distante.
"Por ali e por ali!", gritou Angelino, apontando direcções aos seus homens. "Quero o perímetro imediatamente estabelecido!"
Os comandos espalharam-se com rapidez, um grupo pela direita e outro pela esquerda conforme as ordens, contornando a orla da aldeia de modo a selar a zona de operações. Todos sabiam que este movimento era crucial para os proteger de ataques de flanco e para impedir a fuga da população. Mas os aldeãos tentavam desesperadamente furar o cerco. Com Diogo colado a ele, Angelino viu um homem escapulir-se à sua direita e apontou-lhe a arma.
"Alto!"
O homem continuou a correr e o comando certificou-se de que o aldeão se encontrava na sua mira.
Crack.
O fugitivo tombou desarticulado ao lado de uma palhota. No mesmo lugar viu uma mulher a correr com uma criança nos braços.
"Alto!"
Cega de medo, a mulher não parou e o comandante dos comandos voltou a disparar, derrubando-a sobre o capim. Por esta altura o tiroteio era generalizado e toda a gente abria fogo; os comandos davam ordens para parar e quem não obedecia era de imediato abatido. No meio daquela confusão, Diogo viu e ouviu pessoas a correr, vozes a gritar, o trovejar raivoso das G3 e corpos franzinos a rolarem pelo chão; alguns eram homens, outros mulheres, também crianças.
O caos foi intenso, mas breve. Em poucos minutos os aldeãos perceberam que o cerco se havia fechado em definitivo sobre eles e que qualquer tentativa de fuga era de imediato travada pelas balas punitivas. As pessoas ergueram as mãos com os corpos encolhidos por instinto, os olhares assustados a tentarem interpretar as intenções dos soldados.
"Tudo para o centro!", ordenou Angelino, sentindo que a situação estava enfim controlada. "Vamos!"
Samuel repetiu a ordem em nhungué e os comandos começaram a empurrar os aldeãos na direcção indicada. A multidão, resignada, convergiu obedientemente para a grande clareira; um mar de mãos estendidas para o céu juntava-se no centro da aldeia, como se ali se ensaiasse uma estranha coreografia de adoração ao Sol.
"Homens para ali!", ordenou o comandante da 6ª Companhia, apontando para a direita. "Mulheres para o outro lado!"
Samuel traduziu e a multidão obedeceu. Naquela mistura desordenada de gente estabeleceu-se um esboço de organização; os homens afluíram para o lado que lhes havia sido indicado e as mulheres e as crianças seguiram para o outro, deixando um corredor livre a separar os dois grupos.
"Sentem-se!"
Homens, mulheres e crianças acomodaram-se no chão da clareira; os poucos que falavam faziam-no em voz baixa. Percebendo que a população estava domada e completamente submetida, Angelino olhou à volta e cobriu todo o espaço ao alcance do seu campo de visão, preocupado com assegurar-se de que os seus homens cumpriam o plano previamente estabelecido. Alguns comandos cercavam a multidão, as armas ameaçadoramente em riste, enquanto outros se mantinham de guarda atrás das cubatas no limiar da aldeia, de modo a evitarem qualquer ataque pelos flancos.
Percebeu que tinha homens a mais a controlar uma multidão já passiva e que havia outras tarefas prioritárias que era necessário completar o mais depressa possível.
"O que estão vocês aí parados a fazer?", perguntou a um punhado de subordinados. "Revistem as palhotas!
Os comandos afastaram-se em passo de corrida, espraiando- se pela aldeia. O comandante da 6ª Companhia passou os olhos atentos em redor e constatou que estava tudo finalmente em ordem. Satisfeito, fez sinal aos dois homens da DGS e depois olhou interrogadoramente para Diogo.
"Vens?"
"Onde?"
"Vou inspeccionar as posições do meu pessoal", explicou Angelino. "Não quero cá surpresas."
O amigo hesitou. Estava tentado a seguir o comandante, conforme aliás ficara combinado previamente, mas nunca tinha visto a DGS em acção num interrogatório e queria saber como era.
"Deixa estar", decidiu. "Eu fico."
Os dois operacionais da DGS, Francisco e Maurício, aguardaram que Angelino se afastasse para cruzarem o cordão de comandos. Passaram mesmo ao lado de Diogo e só se detiveram quando chegaram à beira dos habitantes da aldeia. O silêncio na clareira de Wiriyamu tornara-se absoluto.
"Viram bandido aqui?", perguntou Francisco.
As cabeças dos populares abanaram num movimento de negação que parecia sincronizado.
"Não, patrão."
"Isso é mentira!", rugiu o homem da DGS, erguendo a voz e falando com o sotaque local para facilitar a compreensão. "Há bandido aqui! Os turra andam aqui na aldeia! Atacam a tropa! Disparam sobre avião! Eles andam aqui! Onde estão os turra?"
A multidão permaneceu silenciosa, receando provocar a ira daquele homenzarrão branco com fama de ter um temperamento violento. Francisco esperou ainda um instante, os olhos pequenos a saltitar entre um aldeão e outro, como se tivesse o poder de assim lhes arrancar a verdade. Nem um único olhar dos aldeãos se cruzou porém com o seu; todos evitavam o contacto com os olhos do interrogador.
"Há turra na aldeia!", insistiu Francisco. "Onde está ele? Aponta para mim quem aqui é bandido!"
Os populares mantiveram-se calados, os olhos pousados no chão ou a passear apreensivamente pelos soldados que os cercavam. O homem da DGS impacientou-se e carregou as sobrancelhas, assumindo uma expressão ainda mais ameaçadora.
"Se vocês não apontam é porque vocês também são bandido! Ouviram? Se não dizem onde estão os turra é porque vocês são os turra!" Fez uma pausa, deixando a ameaça assentar. "Onde estão os turra?"
Sentindo a tensão crescer, a multidão agitou-se, nervosa, mas ninguém disse nada. Cruzavam-se olhares e apenas isso. Francisco respirou fundo, preparando-se para avançar para os grandes meios, e estudou o rosto dos homens mais velhos. Um deles parecia ocupar uma posição dominante e, pela forma como os restantes o rodeavam, o interrogador percebeu que só podia ser o chefe da aldeia.
"Tu aí", indicou. "Como te chamas?"
"Wiriyamu."
"És o fumo Wiriyamu?"
"Iá, patrão."
Fez-lhe com o dedo sinal de que se levantasse e aproximasse. O homem obedeceu e foi ter com o interrogador da DGS.
"Onde estão os turra?"
"Aqui não há turra, patrão."
"Claro que há turra!", cortou Francisco com rispidez. "Maningue turra, até!" Mudou de repente o tom de voz, como se algo tivesse acabado de lhe ocorrer. "Disseram-me que o Raimundo anda por aqui. Onde está ele?"
O homem abanou a cabeça com ênfase.
"Eu não vi, patrão."
"O Mendes dos cabritos diz que marcou encontro com o Raimundo ali junto à pedra tombonhapangara."
O fumo hesitou um tudo-nada, evidentemente surpreendido por essa informação estar na posse do seu interrogador.
"Eu... eu não sei nada, patrão."
Francisco fixou o chefe da aldeia com intensidade, tornando claro que não se sentia minimamente satisfeito com as respostas que até ali lhe haviam sido dadas e muito menos convencido de tanta ignorância em relação à presença de guerrilheiros no sector. E a hesitação do fumo quando lhe falou no encontro de Mendes com os guerrilheiros provava que os aldeãos lhe estavam a ocultar coisas.
"Não sabes nada de nada?...", murmurou com uma tranquilidade sinistra, o tom de voz carregado de sarcasmo ameaçador. "Não viste o Raimundo por aqui? Não viste nenhum turra?"
"Nada, patrão."
"Estás-me a partir a vista!"
"Não estou, patrão. Aqui não tem turra."
O agente da DGS voltou a cabeça para a clareira, como se procurasse alguma coisa, e indicou um espaço vazio molhado por água tirada de um poço.
"Vai para ali e rebola no matope."
O homem arregalou os olhos, sem entender.
"Como, patrão?"
Francisco indicou o local com veemência, o braço estendido a apontar para o espaço.
"Rebola no matope!"
Espantado com a ordem, o fumo caminhou para a abertura na clareira e deitou-se no solo molhado. Olhou para Francisco para ver se era aquilo que queria e o interrogador fez-lhe sinal com o dedo de que girasse. O homem começou a virar-se para um lado e para outro, rolando pela terra enlameada. Os soldados desataram a rir, divertidos com o caricato de ver um chefe a rebolar e a dar cambalhotas, a pele negra coberta já de lama cor de laranja. Não havia muitas diversões no mato e aquele espectáculo inesperado era do mais engraçado que haviam presenciado nos últimos tempos.
Francisco deixou correr a cena durante alguns momentos, também ele divertido com a figura do fumo da aldeia a cabriolar pela lama, até que, percebendo que não podia desperdiçar muito tempo, fez ao homem sinal para parar.
"Levanta-te!", ordenou. "Se queres viver, foge!"
O fumo não percebeu o sentido da última frase, mas parou as cambalhotas e ergueu-se, expectante.
Francisco virou-se para os comandos e apontou para o alvo.
"Mata a gazela!"
Os soldados viraram as G3 de imediato para o chefe da aldeia e abriram fogo. O corpo do fumo Wiriyamu foi sacudido pela súbita erupção de rajadas e tombou desarticulado como um trapo abandonado.
Um murmúrio de horror percorreu a multidão; se os soldados nem o fumo respeitavam, ninguém estava em segurança. Também Diogo se sentia estupefacto com o que acabara de testemunhar e a ideia de intervir cruzou-lhe a mente. No entanto, olhou em redor e percebeu pela expressão dos comandos que qualquer palavra sua teria efeitos contraproducentes; poderiam até matar mais gente só para o irritar. Optou pelo silêncio.
"Então? Tem aqui turra ou não tem?"
O homem da DGS esperava que a súbita execução do fumo soltasse algumas línguas, mas ninguém disse nada. A constatação fê-lo arfar de fúria. Virou o dedo na direcção de um homem novo, teria vinte e poucos anos e era decerto um guerrilheiro à paisana.
"Tu aí!", chamou. "Como te chamas?"
O homem tremia por se ver interpelado.
"Tinta, patrão."
"Onde estão os turra aqui?"
"Eu... eu não sei, patrão. Aqui não há turra."
Francisco pegou numa maça de madeira que habitualmente trazia consigo nos interrogatórios e aproximou-se do homem.
"Se dizes isso é porque és tu o turra!"
"Eu não sou turra, patrão. Eu sou..."
A frase não foi terminada porque, com um movimento rápido e inesperado, Francisco girou a maça e bateu com grande violência na cabeça de Tinta, que ficou logo ali estendido; ninguém conseguiria sobreviver a uma pancada daquelas. O interrogador pôs um pé sobre o corpo inerte e depois o outro, e, para espanto geral, começou a saltitar em cima do cadáver. Os comandos riram com o inusitado da situação; só mesmo da mente daquele homem poderiam vir ideias assim.
A estupefacção de Diogo não tinha limites. Se queria saber como era um interrogatório da DGS, o que se passava diante dele revelava-se eloquente. Sentiu vontade de vomitar e afastou-se, refugiando-se na orla da clareira, de onde observou à distância os acontecimentos que se seguiram.
Francisco retomou o interrogatório. Tinha a certeza absoluta de que os guerrilheiros estavam infiltrados naquela aldeia e precisava de os identificar para obter informações. Chamou um terceiro homem, que se apresentou como Kupensar, e fez-lhe as mesmas perguntas que havia feito aos anteriores. Como Kupensar nada disse, esmurrou-o e pontapeou-o até o deixar exangue. Nessa altura deu-lhe um tiro na cabeça e chamou o seguinte. O mesmo processo se repetiu com Chaphuka, com Djoni e com mais alguns homens em idade de combater, terminando sempre com as mesmas agressões e o inevitável tiro final.
"Parem lá com isso!"
O interrogatório foi interrompido por Angelino, que regressou da sua inspecção e entrou apressadamente na clareira.
"O quê?", perguntou Francisco, apoiando-se na maça enquanto arfava para recuperar o fôlego. "O que foi?"
"Não temos muito tempo", avisou o comandante dos comandos, batendo com o indicador no mostrador do relógio. "Ainda é preciso limpar isto tudo e voltar para a estrada a pé antes que a noite caia."
Francisco passou as costas da mão pela testa e limpou o suor, deixando inadvertidamente um sulco de sangue a manchar-lhe a fronte.
"Eu sei."
"E não é só isso", acrescentou Angelino. "Uma posição estática é uma posição vulnerável. Temos de nos pôr em movimento se queremos evitar surpresas."
"E só mais um bocadinho."
A intervenção do amigo deu a Diogo a esperança de que tudo acabasse de imediato, mas não foi o que aconteceu. O comandante dos comandos fez tenção de se afastar e deteve-se quando pousou o olhar nos cadáveres estendidos no chão.
"Os gajos disseram alguma coisa?"
"Não", retorquiu Francisco. "A maior parte desta malta é turra. E os que não são têm medo de pôr a boca no trombone. Deve haver turras aqui no meio a vigiá-los."
"Eles têm medo dos turras?"
"Pelos vistos." O rosto do ex-legionário abriu-se num sorriso sem humor. "Mas a partir de agora vão ter mais medo de nós..."
O chefe dos comandos assentiu e deu meia volta. Diogo correu no seu encalço e agarrou-lhe no ombro, travando-o.
"Não paras isto?", perguntou, fazendo um gesto para a multidão. "Os gajos estão a matar civis a sangue frio!..."
Angelino lançou um novo olhar em direcção aos corpos estendidos no chão e abanou a cabeça com uma expressão severa.
"O interrogatório está a ser conduzido pela PIDE", disse, exprimindo o óbvio. "Nem te atrevas a intrometer-te. Se não queres participar, deixa-te estar quieto. Se te meteres, arriscas-te a sofrer as consequências."
"Mas..."
O comandante calou-o com um gesto peremptório.
"Não há 'mas' nem meio 'mas'!", vociferou. "Já te disse que a guerra não é um filme americano em que os bons poupam os maus." Indicou os cadáveres com a cabeça. "A guerra é isto." Colou o indicador ao peito do amigo, como se o dedo fosse o cano de uma arma. "Podes não ser um comando, mas vieste com os comandos e espero que te comportes como tal. Não quero ouvir da tua parte nem mais um 'mas' enquanto durar a porra desta operação, ouviste?"
Sem esperar pela resposta, Angelino virou costas e afastou- se, iniciando mais uma ronda; estava preocupado com a segurança do perímetro e não tinha disposição para aturar conversa de tropa macaca. O importante era assegurar-se da disciplina entre os seus homens. Já havia apanhado dois soldados a violarem uma mulher dentro de uma cubata e precisava de se certificar de que isso não voltava a acontecer; era perigoso abandonar posições de vigilância durante uma operação.
Diogo ficou a vê-lo desaparecer entre as palhotas e sentiu-se impotente para travar o que sucedia em seu redor; parecia-lhe que uma corrente brutal o arrastava para o fundo do rio, indiferente aos seus esforços de se salvar. Abanou a cabeça e deu meia volta, cabisbaixo e derrotado.
"Miúdos estúpidos", murmurou. "Metem armas nas mãos de miúdos estúpidos!..."
Pressentindo a urgência de terminar o interrogatório e sem ter ainda arrancado daquela gente quaisquer informações palpáveis, o inquisidor da DGS decidiu mudar de táctica. Afastou-se do grupo de homens e dirigiu-se para as mulheres, que se remexeram, inquietas, quando o viram aproximar-se. Francisco apontou para uma delas.
"Tu aí, levanta-te!"
Uma mulher com uma criança de nove meses ao colo ficou com a impressão de que o dedo a identificava e ainda olhou em redor, na esperança de que fosse outra a interpelada, mas como ninguém se acusou teve de se render à evidência.
"Eu, patrão?"
"Iá, tu. Põe-te em pé!"
A mulher ajeitou o filho ao colo, acomodando-o na capulana azul e dourada, e levantou-se. Quando olhou na direcção do homem da DGS viu que ele lhe apontava uma espingarda automática.
Crack.
A mulher tombou com um buraco a meio da testa. A criança desenvencilhou-se da capulana e sentou-se ao lado do cadáver da mãe a chorar convulsivamente. O ranho escorria-lhe das narinas para o lábio superior e para dentro da boca. A multidão mostrava-se atordoada e ninguém se atreveu a levantar-se para ir buscar a criança. O choro desconsolado encheu a clareira.
"Quem é turra?", berrou Francisco para a multidão. "Aponta o turra para mim, porque senão és tu o turra!"
Os aldeãos pareciam paralisados pelo horror. Algumas pessoas choravam amargamente e as restantes não tinham reacção, pareciam estonteadas, talvez nem sequer acreditassem que estavam despertas e que o pesadelo decorria no mundo real.
"Quem é turra?", insistiu o homem da DGS. "Quem..."
"Chega!"
Regressado da inspecção, Angelino entrou apressadamente na clareira e de novo deteve o interrogatório, reavivando as esperanças de Diogo de que toda aquela loucura fosse travada.
Desagradado com a interrupção, Francisco acolheu o comandante dos comandos com mal disfarçada hostilidade.
"Que é agora?"
"Temos de limpar isto e ir embora", ordenou Angelino. "Já aqui estamos há demasiado tempo."
O operacional da DGS suspirou, frustrado; não tinha conseguido extrair nada de útil daquela gente. Porém, como antigo legionário, entendia a urgência do alferes.
"Está bem", rendeu-se. Fez um sinal para Samuel. "Comecem a liquidá-los."
O comando negro apontou para uma mulher.
"Tu! Levanta-te!"
A mulher obedeceu, apesar do medo que lhe tolhia os movimentos, e foi de imediato abatida.
"Agora tu!"
O homem apontado ergueu-se, algo atarantado, e foi logo morto. Outros soldados seguiram o exemplo, ordenando a uma e outra pessoa que se levantassem e abatendo-as de imediato.
Angelino decidiu intervir mais uma vez.
"Parem com isso!", ordenou. "O que estão vocês a fazer?"
As execuções foram suspensas e Francisco voltou-se para o comandante da 6ª Companhia, cada vez mais frustrado com aquelas interrupções contínuas.
"Temos de os liquidar."
"Mas isto não é maneira de proceder", insistiu Angelino. "Não será melhor levarmos esta gente toda para outro sítio?"
"Qual sítio?"
"Sei lá! Um aldeamento, por exemplo. Há por aí tantos..."
"Estás a sugerir que andemos no mato com esta malta toda, como cães a escoltar um rebanho?"
"Nós não, claro. Acho é que a ZOT não sabe da existência de tanta população por aqui. Se calhar era melhor informarmos a ZOT e eles depois tratavam de vir cá e aldear este pessoal todo."
"Estás a gozar?", admirou-se o homem da DGS, revirando os olhos. "Claro que a ZOT sabe da existência destas populações. Não te esqueças que o chefe mandou limpar toda esta zona. Ou não tens as mesmas ordens?"
Angelino hesitou. De facto havia recebido instruções na ZOT para limpar o teatro de operações. Em toda aquela região só existiam guerrilheiros disfarçados de civis e civis afectos ao inimigo; até as crianças poderiam ser fontes de informação preciosas ou apoio para os turras. Além do mais, toda aquela gente era testemunha dos interrogatórios e dos métodos a que haviam recorrido. Estas testemunhas tinham de ser caladas.
O chefe dos comandos assentiu com a cabeça, dando luz verde a Francisco. Apesar de não ser ele a comandar aquele grupo de forças especiais, o operacional da DGS olhou para os homens da 6ª Companhia como se eles estivessem sob as suas ordens.
"P'ani wense!", ordenou-lhes em nhungué, a língua da maior parte dos comandos. "Matem-nos a todos! P'ani wense! Quem sobreviver vai denunciar-nos!"
Retomaram o mesmo processo de execuções. Os soldados diziam a um homem ou a uma mulher que se levantassem e, logo que os aldeãos se erguiam, abatiam-nos a tiro. Parecia um exercício de fogo real, tão real que usava alvos humanos vivos.
Samuel, todavia, acabou por se cansar daquele método um pouco repetitivo e decidiu inovar. Aproximou-se de uma rapariga de quatro anos, acariciou-lhe a cabeça e ajoelhou-se diante dela, pondo-se ao mesmo nível.
"Tens fome?", perguntou com simulada compaixão. Sem esperar pela resposta, forçou o cano da G3 pela boca dá criança. "Toma o biberão." Empurrou a arma até ao fundo. "Chupa!"
Crack.
A rapariga tombou com a nuca desfeita. A ideia foi de imediato aproveitada pelos camaradas, que passaram a executar aldeãos com tiros na boca. Havia disparos por toda a parte e os habitantes da aldeia rolavam como alvos de caça. Tudo isto era de mais para Diogo, que vomitou pela terceira vez consecutiva e voltou o rosto para o mato, escutando apenas os gritos e os tiros.
No meio da confusão, Angelino ergueu as mãos e mais uma vez mandou suspender fogo.
"Eh pá, isto não pode ser assim!", interrompeu de novo o comandante da 6ª Companhia. "É maningue gente e se os vamos matar todos a tiro nunca mais saímos daqui. Além disso, nem há balas que cheguem. Se os turras atacarem apanham-nos sem munições."
Francisco arremessou-lhe um olhar carregado de repreensão; já estava a ficar farto daquelas objecções constantes.
"O que sugeres?"
O chefe dos comandos procurou em redor e fixou a atenção nas cubatas que cercavam a clareira. Concebeu a ideia quase instantaneamente e apontou com um gesto peremptório para as construções de palha com telhados cónicos.
"Toda a gente para as palhotas!", ordenou, pondo-se a empurrar as pessoas que estavam à sua frente. "Vamos! Toda a gente!"
Os soldados e os dois homens da DGS ficaram por momentos imóveis, sem perceber o que o comandante tinha em mente.
"O que estás a fazer?", perguntou Francisco.
Em resposta, Angelino bateu com a mão no cinto.
"Usamos as granadas."
Os olhos do interrogador da DGS brilharam pela primeira vez de aprovação.
"Boa ideia!"
Os militares começaram a imitar o alferes e a empurrar os aldeãos para as palhotas; pareciam pastores a conduzir o gado para o matadouro. As mulheres escondiam-se umas atrás das outras, muito juntas e a proteger os filhos com o corpo e os braços, mas obedeciam e, em passos pequenos, empurrando-se e encolhendo-se, foram-se enfiando nas cubatas como formigas em carreira.
Angelino, talvez satisfeito com a ideia que iria apressar o processo de limpeza da aldeia, pôs-se a cantarolar enquanto a massa humana fazia fila para entrar nas casas de palha.
"Quem quer casar comigo?", entoou, recorrendo à rima infantil da Carochinha. "Quem quer casar comigo, que sou formosa e bonitinha?"
Da fila saiu projectada uma menina de cinco anos que se abraçou à perna do comandante da 6ª Companhia.
"N'danhonho cufa!"
A menina chorava e balbuciava palavras em nhungué. Angelino olhou-a, estupefacto. Esperava tudo naquele sítio e naquele momento; tudo menos que uma criança o viesse abraçar a meio da rima da Carochinha
"N'danhonho cufa!", gemeu a pequena. "Faxa vore, lekani kundip'a! Lekani kundip'a! N'danhonho cufa!"
Sentiu-a tremer de pavor e, embora não falasse nhungué, estava familiarizado com algumas palavras. "Faxa vore", uma corruptela do português faz favor; e sobretudo "lekani kundip'a", que já ouvira inúmeras vezes da boca de pessoas que imploravam misericórdia quando os soldados se preparavam para lhes dar o tiro. "Lekani kundip'a!" "Não me mates!" Mas eram adultos que o diziam, não crianças como aquela menina de cara molhada e olhos a implorar-lhe misericórdia, a gritar "faxa vore" enquanto o abraçava pela perna.
"Lekani kundip'a!"
Angelino suspirou, de súbito angustiado. Como poderia ele matar uma criança que, apesar de tão tenra idade, sabia que ia morrer e lhe implorava misericórdia? Já matara crianças, mas não meninas que o abraçavam no desespero dos condenados a rogarem faxa vore por clemência; não crianças assim.
O chefe dos comandos encarou os seus homens.
"Esta não entra nas palhotas."
Os soldados entreolharam-se, desconcertados.
"Então o que lhe acontece? Deixamo-la sozinha no mato?"
A atenção de Angelino voltou-se para a mulher em lágrimas que, na fila da morte, observava à beira do pânico absoluto a filha agarrada ao militar, no horror de a ver ao pé de um homem tão perigoso.
"Não", decidiu o alferes. "Ela também fica de fora!"
Samuel foi buscar a mulher e arrastou-a para junto do comandante. Ainda sem perceber o que lhe ia acontecer, mas presumindo o pior, a aldeã abraçou a filha e ficaram ambas agarradas uma à outra; choravam de medo, convencidas de que iam ser mortas.
"Diz-lhes que fujam!", ordenou Angelino enquanto apontava para o mato. "Fujam!"
"Tauani!", traduziu Samuel, indicando a mesma direcção. "Tauani"
A mulher arregalou os olhos e voltou-se para Angelino, como em busca de confirmação. O alferes fez um gesto tranquilizador com a cabeça e indicou-lhe o horizonte. A aldeã não hesitou mais; desconfiava de um truque, mas nada tinha a perder. Pegou na filha e correu pela clareira, correu com ela ao colo até cruzar a orla da aldeia, passar ao lado de Diogo e das poças ácidas dos seus vómitos, meter-se pelo capim e desaparecer no mato.
As atenções voltaram-se para as filas de pessoas arrebanhadas à porta das cubatas.
"Fechem-nas nas palhotas!", ordenou o comandante, recuperando o sangue frio. "Despachem-se com isso!"
Os soldados e os homens da DGS empurraram os últimos aldeãos para as cabanas e ficaram à espera que o processo se completasse por toda a aldeia. Ainda havia ordens berradas aqui e ali e ocasionais gritos de angústia ou súplicas de misericórdia, mas o som gradualmente dominante passou a ser o dos gemidos de pavor das pessoas encerradas dentro das cubatas.
Quando já não restava qualquer civil na clareira, os soldados agarraram nas granadas e fixaram a atenção no comandante, à espera da ordem.
"Agora!"
Num movimento sincronizado, tiraram as cavilhas das granadas, abriram uma frecha nas portas e lançaram os explosivos lá para dentro. Depois trancaram as portas e afastaram-se.
As explosões sucederam-se quase em simultâneo, irrompendo pelas cubatas como uma reacção em cadeia.
Quando o saracoteado de detonações terminou, fez-se silêncio na aldeia. As palhotas fumegavam e o ar cheirava a pólvora. Os soldados abriram as portas destroçadas e viram os corpos mutilados e espalhados pelo solo, o sangue escarrapachado contra a palha.
Cada comando inspeccionou uma palhota. Ao penetrar na sua, Angelino ouviu um gemido, identificou o sobrevivente e viu que era uma mulher gravemente ferida. Sem hesitar, apontou-lhe a G3 à cabeça e premiu o gatilho.
Ouviam-se tiros ocasionais por toda a aldeia; um disparo numa palhota e outro noutra.
"Mata-o!"
O berro numa cubata ali perto chamou a atenção do chefe dos comandos, que saiu de imediato para a clareira de modo a verificar o que se passava.
"Mata-o!"
Voltou-se na direcção do grito e viu um soldado de arma apontada para a orla da aldeia. No meio do fumo vislumbrou um garoto a correr; parecia uma impala aos saltos.
"Mata-o, caraças!"
Um camarada instava o furriel Bauke, o comando de G3 apontada, a abater o garoto, mas o tiro não partiu e o rapaz mergulhou por fim no capim e desapareceu no mato, escapando à mira da arma.
"Porra, pá! Deixaste-o fugir!"
O furriel baixou a espingarda automática e abanou a cabeça, quase desalentado.
"Não fui capaz..."
Era mais uma testemunha que se escapulia, reflectiu Angelino, preocupado com o tempo excessivo que estavam a passar naquela aldeia. Havia guerrilheiros por todo o sector e o garoto ia possivelmente cair-lhes nas mãos e dar-lhes a localização dos comandos, pondo em risco a segurança da unidade. Se não fosse o miúdo seriam as duas que ele próprio, num estúpido momento de fraqueza, deixara escapar. Uma emboscada ao grupo de comandos tornava-se provável se não actuassem com rapidez.
"Vamos embora!", gritou o comandante, fazendo com o braço sinal aos seus homens. "Toda a gente em movimento! Vamos sair daqui!"
Os soldados reagruparam-se e, enquanto uns homens rabiscavam uma mensagem final numa chapa de zinco que por ali encontraram, Angelino foi buscar Diogo. Arrastou-o pela clareira e lançou-o para o grupo, como se fosse um fardo. O amigo parecia um sonâmbulo; deixava-se puxar e empurrar, aparentemente atordoado. As palhotas ardiam em redor, num inferno de chamas e fumo, e havia corpos espalhados por toda a parte; alguns apresentavam-se em posições impossíveis, como manequins partidos, e um pendia de uma árvore.
Com a apatia de um ébrio, a atenção de Diogo descaiu para a frase garatujada na chapa que os soldados largaram ao lado de uma pilha de cadáveres. Leu-a num estado de letargia, entorpecido, como num sonho. Transporta mina tropa mata. Era um aviso e uma assinatura.
"Tá a andar."
Ao sinal do comandante, os homens enfiaram pelo capim com os olhos a dardejarem em todas as direcções e as G3 em riste, procurando sinais de presença inimiga, avaliando ameaças, inspeccionando o terreno.
Angelino conseguia abarcar com o olhar todo o grupo sob as suas ordens e contabilizou os soldados para se certificar de que não faltava ninguém. Um, dois, três, quatro... vinte e cinco. Vinte e cinco rapazes, nem uma baixa; não havia comandos mais duros do que aqueles. É certo que não tinha ocorrido combate e que os guerrilheiros que acreditava terem abatido eram os homens e rapazes da aldeia que se fingiam da população e que haviam sido apanhados desarmados; certamente tinham as Kalashnikov escondidas ali por perto. Mas quase sentiu orgulho nos seus comandos. Vinte e cinco bravos, para quem olhasse de fora eram cinco brancos e vinte negros e mulatos, mas entre eles a cor tornara-se invisível. Apenas via o Samuel e o Bauke e o Sebola; não havia ali raças, juntava-os uma amizade forjada pela guerra, irmãos para sempre unidos pelo sangue e pela morte.
Caminhando em silêncio no meio do grupo de combate, Diogo não via em seu redor irmãos de armas, mas miúdos a quem a tropa tinha desumanizado e transformado em ceifeiros de vida, algozes que haviam encharcado de sangue aquele dia fatídico. A noite despontava já no horizonte quando os soldados se abeiraram da estrada para serem recolhidos, os rostos transpirados iluminados pelo disco avermelhado do astro poente, como se até o Sol quisesse gravar no firmamento os feitos da jornada de carnificina.
As silhuetas quase cambaleavam na embriaguez da matança. A aldeia tornara-se uma memória difusa; não passava já de uma mão-cheia de palhotas varridas pelo fogo e cobertas por um manto de cinzas espectrais. Os soldados estavam reduzidos a figuras exangues recortadas contra o manto sanguíneo do céu crepuscular, como se as suas entranhas estivessem irremediavelmente impregnadas do hálito fétido da morte.
O primeiro sinal foi o estranho odor que impregnava o ar. José Branco preenchia uma requisição a solicitar uma nova remessa de algodão e mercurocromo para o hospital quando o cheiro familiar lhe invadiu o gabinete e o fez imobilizar a caneta. Seguiu a fonte do odor até à janela atrás dele e percebeu que vinha de fora.
"Que estranho", murmurou.
Identificou o cheiro como o que era produzido quando se queimavam vasos sanguíneos para os laquear. Apesar de intrigante, não era um odor anormal em instalações hospitalares e de imediato a sua atenção regressou aos papéis que rabiscava. Limitou-se a fazer uma nota mental. O doutor Feitor devia estar a proceder a alguma cirurgia de emergência; logo que pudesse teria de mandar verificar as fugas de ar da sala de operações. Só lhe faltava mais este problema!
Ainda hesitou, lembrando-se que o sector das cirurgias se situava no outro lado do perímetro hospitalar e que os cheiros vindos daí dificilmente chegariam ao seu gabinete, mas depressa concluiu que devia haver uma explicação lógica qualquer, talvez até uma corrente de vento, e decidiu remeter o assunto para mais tarde. A caneta continuou a deslizar pela folha da requisição, imparável e imperturbável no seu labor burocrático.
Alguns minutos depois, porém, o médico sentiu um burburinho no exterior. Os ares andavam decididamente agitados. Voltou a hesitar. Deveria ir ver o que se passava ou seria melhor terminar o que estava a fazer? Odiava a burocracia inerente às suas funções e aquele era um pretexto excelente para fugir ao estupidificante trabalho de amanuense. Mas o facto é que precisava urgentemente de mais algodão e mercurocromo. Já que estava com a mão naquela tarefa administrativa, raciocinou, mais valia levá-la até ao fim e aviar toda a papelada de vez. Optou por isso por se concentrar nas requisições.
A porta abriu-se de repente e a irmã Lúcia entrou-lhe de rompante pelo gabinete.
"Doutor! Doutor!"
O director do hospital ergueu a cabeça, espantado com o alarme que via no rosto habitualmente sereno da sua enfermeira-chefe.
"Que é, Lúcia? O que se passa?"
A espanhola vinha afogueada e rubra como uma malagueta; parecia transtornada.
"Já viu que pasai"
O médico fez uma expressão de absoluta ignorância.
"Não. O que está a acontecer?"
A enfermeira-chefe pegou-o pela mão e puxou-o.
"Venga, por Dios! Venga ver."
Sempre em estado de grande agitação, a irmã Lúcia arrastou José pelo corredor do hospital até à porta principal. Uma vez no exterior indicou-lhe fios de fumo negro que galgavam o horizonte à direita, serpenteando pelo céu como fuligem vomitada por vulcões invisíveis. O director do hospital orientou-se e percebeu que algo estava a arder na zona da estrada para Vila Pery, mas não viu razão para tanto alarme.
"É um incêndio?"
Lúcia abanou a cabeça com impaciência.
" Ay, madre mia, exclamou num estado de grande agitação. "No siente el odor?"
José Branco inspirou o ar e voltou a identificar o cheiro característico da laqueação de vasos sanguíneos, típico das salas de operações, só que ainda mais forte ao ar livre.
"É uma cirurgia", constatou. "O Feitor está a operar alguém?"
A enfermeira-chefe reagiu à observação com um estalido nervoso da língua. Abanou a cabeça com vigor e apontou na direcção dos fios de fumo negro que se elevavam como minierupções sobre o mato longínquo.
"El odor vem dali, doutor!"
"Dali?", admirou-se ele. "Desculpe, mas o que..."
Lúcia ergueu a mão com vigor, fazendo-lhe sinal de que se calasse de imediato.
"Escuche! Escuche!"
O médico inclinou a cabeça naquela direcção e prestou atenção. Uns sons surdos pareciam reverberar no ar. Estranhou e concentrou-se; os barulhos longínquos lembravam-lhe os estampidos dos foguetes da sua infância em Penafiel em dias de S. Martinho. Mas foguetes ali? Após um instante de perplexidade, percebeu enfim que aqueles sons surdos eram detonações.
Detonações.
Olhou interrogadoramente para a espanhola, compreendendo enfim o alarme que ela manifestava mas sem perceber com exactidão o significado de tudo aquilo.
"Os turras estão a atacar?"
Um clima de efervescência febril tomou conta de Tete. Os boatos cruzavam-se como moscas. Corriam informações contraditórias sobre a presença dos terroristas às portas da cidade; dizia-se muita coisa, mas ao certo ninguém sabia o que se passava. Os próprios militares que afluíam ao hospital, trazendo feridos ou de visita a um paciente internado, ignoravam o que sucedia e apenas forneciam conjecturas mais ou menos informadas.
Quando terminou o serviço, José Branco foi para casa. A vivenda no topo da colina estava vazia, uma vez que Mimicas permanecia na Beira e não dera ainda notícias. O médico foi para o jardim descontrair-se com um whisky com soda na mão. Ficou a contemplar o Zambeze, a atenção a dançar entre o rio e o ocasional Alouette que aterrava com o seu zumbido característico na pequena pista circular do hospital, a uns quinhentos metros de distância.
O funcionário da farmácia que substituía interinamente Mimicas, um indiano que por acaso vivia na vizinhança, apareceu pouco depois para saber "se a senhora doutora está melhor". É que José tinha justificado a ausência da mulher com uma doença que a forçara a receber tratamento na clínica do Macuti, na Beira. A meio da conversa, o funcionário deu-lhe conta dos boatos que circulavam na farmácia, mas também aí havia mais incertezas do que factos concretos.
"O senhor doutor não acha que estão a vir muitos helicópteros?", perguntou-lhe o homem com uma ponta de ansiedade. "é mais do que o habitual, não é? "
Era uma boa pergunta. Um Alouette acabara de aterrar no hospital e o ar vibrava ainda ao ritmo da rotação das hélices. O médico avaliou o que observara até aí e comparou o movimento do dia com o que usualmente ocorria.
"Normal", acabou por concluir. "O tráfego de helicópteros parece-me o normal."
A constatação tranquilizou-os um pouco. O funcionário despediu-se e deixou o director do hospital entregue a ele mesmo no jardim da casa. O céu tingia-se de um azul cada vez mais escuro e José ficou a ver a noite descer sobre Tete. Depois recolheu a casa para jantar. Ernesto serviu-lhe a sua especialidade, o empadão de esparguete e carne, e foi quando estava a terminar a refeição que o telefone tocou.
"Senhor doutor, é para si", anunciou Ernesto do outro lado da sala. "é a irmã Lúcia."
O médico sentia-se cansado e o empadão estava-lhe a saber mesmo bem. A última coisa que lhe apetecia era levantar-se para ir resolver ainda mais um problema.
"Pergunta-lhe se lhe posso ligar daqui a pouco."
O criado abanou a cabeça.
"A irmã precisa de si no hospital", comunicou-lhe. "Diz que é urgente."
Uma pequena multidão enxameava o pátio interior do hospital e a atmosfera que José Branco encontrou era de grande excitação; havia gritos e choros, como por vezes acontece nos hospitais, só que dessa vez envolvendo um número anormalmente grande de pessoas.
Lobrigou o hábito azul-claro da enfermeira-chefe no meio de um grupo de mulheres esfarrapadas e foi ter com ela; o olhar exprimia surpresa com toda a agitação que encontrara.
"Llegaram agora no machibombo de Changara", explicou- lhe a irmã Lúcia, puxando-o pelo braço para o afastar do meio da multidão. "Dizem que a zona onde vivem fue destruída e que não sabem de los parentes."
"Changara foi destruída?", admirou-se o médico. "E depois da destruição apanharam o machibombo? Não estou a perceber..."
A freira emitiu um estalido impaciente com a língua.
"Ay, doutor, não é isso", corrigiu. "O machibombo que vénia de Changara encontrou esta multidão no meio da estrada, a unos quinze quilómetros aqui de Tete. La mayor parte eran mujeres y ninos e algunas estavam semi desnudadas. Dizem que houve ataques e mostravam-se em pânico."
"Foram atacadas?"
"Elas, não. Pero dizem que a região fue destruída."
"Pelos turras?"
Em resposta, a irmã Lúcia pegou-lhe na mão e, de passo muito decidido, levou-o pelos corredores do hospital.
"Venga."
Percorreram a enfermaria e foram para o banco de urgências, onde uma enfermeira cabo-verdiana fazia um curativo a um adolescente franzino e sujo. O rapaz fitou, assustado, os recém-chegados e José notou que tremia de medo.
"O que se passa?"
A enfermeira limpava uma ferida no joelho direito do rapaz.
"Ele só fala nhungué, doutor", esclareceu a cabo-verdiana. "Mas pelos gestos que fez consegui perceber que veio do sítio onde está o fumo."
"Ele veio de lá?"
"Parece que sim."
O médico fez uma expressão interrogativa na direcção da irmã Lúcia; sabia que a freira arranhava umas palavras de nhungué.
"O pobrecito está muy nervoso y no entendi quase nada", explicou a espanhola, sentindo-se interpelada pelo olhar do director do hospital. "Solo una palabra, que repete a todo o momento."
"O quê?"
"Tropa. Dice que é tropa."
"Tropa?"
"Si. Apontou para o sítio das explosiones e do fumo e dice tropa."
O médico fez um gesto na direcção do corredor. Duas senhoras da limpeza estavam imobilizadas ao fundo, os olhos colados no ferido; pareciam observá-lo com um receio supersticioso.
"E elas? Não podem traduzir o que diz o moço?"
"Tienen medo", devolveu Lúcia, sem sequer olhar para as mulheres do corredor. "Pero despues de escucharem el rapaz puseram-se a gemer e a dicer que a tropa está a matar gente."
José Branco estreitou os olhos enquanto digeria o que ouvia. Deu uns passos na direcção da janela e contemplou a multidão que se apinhava no pátio do hospital.
"Tropa a matar gente?"
A irmã Lúcia foi ter com ele.
"Doutor, tenemos que ir lá."
O médico permaneceu calado, a avaliar a situação. Tropa a matar gente? Se a tropa atacava, raciocinou, era porque havia turras. Mas também sabia que aquela zona estava cheia de aldeias e que inevitavelmente haveria civis apanhados no fogo cruzado. O rapazinho atrás dele, sentado na marquesa enquanto recebia um curativo, era a prova disso.
"Aquilo parece muy mal, doutor", insistiu a freira, quase numa súplica. "Tenemos que ir lá."
José deteve-se um instante mais a observar a multidão. Não era possível perceber com exactidão o que se passava, mas não havia dúvidas quanto aos contornos gerais do que sucedera na zona onde nessa tarde vira fumo e escutara detonações. Aquilo era um campo de batalha e só Deus sabia o que para lá ia. Mas, e os civis?
Respirou fundo e rodou os olhos pelo banco de urgências até fixar a atenção no rapaz ferido, a decisão já tomada.
"Eu sei, Lúcia."
O cheiro a queimado que enchia o ar de Tete invadira a palhota de Sheila, mas era ainda manhã cedo e a rapariga não lhe prestou grande atenção. Havia combinado com a avó preparar um caril para o almoço e acordara cedo para matar e depenar uma galinha quando ouviu um motor em aproximação, o ronco cortado por uma buzinadela característica.
"Sheila!"
Era a voz do director do hospital a chamá-la. Apanhada de surpresa, a rapariga levantou-se com cuidado, sempre preocupada com a gravidez, e caminhou devagar até à porta. Deparou-se na rua com o Austin do hospital, o jipe verde com enormes cruzes vermelhas na carlinga, e uma nuvem de poeira no seu encalço. José Branco e a irmã Lúcia espreitavam-na dos lugares dianteiros.
"Por aqui, doutor? O que se passa?"
"Anda connosco."
Sheila limpou as mãos sujas ao avental.
"Onde?"
"Vamos ali visitar uns doentes e precisamos de ti."
A enfermeira consultou o relógio, atónita.
"A esta hora, doutor? São sete da manhã!"
"Nós trabalhamos quando há trabalho", retorquiu o médico. "Vá, anda daí!"
A rapariga lançou um olhar hesitante à avó, que do quintal ouvira a conversa. Aissa fez-lhe sinal com a cabeça a indicar que não fazia mal e que fosse ao seu trabalho. Sheila tirou o avental, vestiu a bata e, despreocupada, enfiou-se no jipe.
Meteram pela estrada de Vila Pery em direcção às colunas de fumo que serpenteavam pelo céu; já não eram negras como na véspera, mas esbranquiçadas. O odor, porém, permanecia; mais forte até, agora que se aproximavam.
A estrada estava estranhamente deserta e o silêncio era absoluto; apenas se escutava o ronco esforçado do jipe.
"O que aconteceu aqui, doutor?", perguntou Sheila com curiosidade. "Que fumo é este?"
O médico não lhe respondeu; era como se nem sequer tivesse escutado a pergunta. A rapariga sentia-se alegre e bem-disposta, tinha enfim tomado decisões sobre o futuro que transportava no ventre e mal podia esperar para contar tudo a Diogo, mas estranhou o silêncio dos dois companheiros de viagem. O doutor Branco, em particular, habitualmente falador e bem-humorado, agarrava-se ao volante com o rosto fechado; ia calado e limitava-se a perscrutar a estrada e o fumo com atenção.
Abeiraram-se do sector da fumarada e viram as colunas de fumo ascenderem para além do arvoredo no lado esquerdo. Chegou a dar a impressão de que iam contornar e deixar esse sector para trás, mas, ao avistar uma picada que se abria à esquerda, José abrandou e meteu o Austin pelo caminho de terra, mergulhando assim no mato. O trilho corria entre os arbustos, os embondeiros e as micaias, varridos pela nuvem de pó vermelho que o jipe levantava no seu rasto.
Em algumas centenas de metros a paisagem alterou-se radicalmente. A primeira coisa anormal que viram foi um embondeiro queimado; depois apareceram duas maçaniqueiras estorricadas.
O jipe rugiu de esforço para ultrapassar uma lomba, acelerou e aterrou com fragor numa pequena clareira. Os três olharam em volta e, entre a poeirada levantada pela viatura, avistaram duas palhotas queimadas.
Aos pés da palha cauterizada e fumegante recortavam-se vultos contorcidos que a Sheila pareceram troncos de árvore derrubados. José e a irmã Lúcia observaram longamente os troncos, como se os estudassem. O médico rodou o volante e retomou a marcha, fazendo o jipe aproximar-se devagar das palhotas, ronronando de mansinho até se imobilizar ao lado dos escombros.
Com horror, Sheila apercebeu-se de que os vultos contorcidos afinal nada tinham a ver com troncos de árvores.
Eram cadáveres carbonizados.
José puxou o travão de mão e apeou-se. Deu dois passos vacilantes, prostrou-se e começou a auscultar os corpos com o estetoscópio, manifestamente em busca de sinais de vida. A irmã Lúcia juntou-se-lhe e, como não tinha estetoscópio, pegou-lhes nos pulsos inertes e sentiu-lhes a pulsação com os dedos. Depois de verificados todos os corpos, o médico e a enfermeira-chefe abanaram a cabeça em silêncio e voltaram para a viatura. Estava explicado o cheiro a vasos laqueados que se sentia desde a véspera; era o odor de carne queimada.
O jipe recomeçou a rolar e seguiu novamente pela picada. Sheila estava estupefacta com o que acabara de observar. Tinha enfim tomado plena consciência de que não circulavam por um local qualquer.
"Doutor!", gemeu, angustiada. "Isto é um campo de batalha! Meu Deus, o senhor trouxe-me para um campo de batalha!"
O médico ignorou-a, continuando a sondar o terreno em redor; a irmã Lúcia fazia o mesmo. Ele olhava para um lado, ela para o outro; era a forma mais eficiente de cobrirem todo o campo de visão.
"Doutor!", insistiu a rapariga. "Porque me trouxe aqui? Não vê que estou grávida? Eu não posso andar por aqui, doutor!"
José Branco voltou a cabeça para trás. Transpirava com abundância e o seu olhar, habitualmente vivo, tornara-se baço.
"Ouve, Sheila", disse. "Precisamos de ti aqui."
"Mas porquê eu, doutor?"
"Um dia hás-de compreender."
A observação deixou Sheila sem saber o que dizer. Um dia haveria de compreender? Compreender o quê? Tudo o que sabia é que tinha dezanove anos, estava grávida e o director e a enfermeira-chefe a haviam arrastado para um campo de batalha. Mas também percebia que naquele instante não havia nada a fazer, encontrava-se ali e não tinha volta a dar. Deixou-se por isso levar sem oferecer mais resistência.
A paisagem revelava-se de uma desolação desconcertante. O silêncio da bicharada era total; apenas o ronco teimoso do jipe preenchia o vazio perturbador. Mas o mais inquietante era a atmosfera que ali reinava. O ar parecia denso, quase misterioso, tão pesado que dava até impressão de oferecer resistência à lenta progressão da viatura. Custava respirar e uma certa coloração amarelo-torrado toldava o dia, pintando-o de tonalidades sinistras.
A atmosfera pesada parecia conferir àquele local um ambiente místico. O jipe progredia em esforço e aos solavancos, quase contrariado, e no meio daquela desolação, à medida que desfilavam mais e mais palhotas queimadas e corpos carbonizados, os três ocupantes da viatura pressentiam que nada voltaria a ser o mesmo nas suas vidas. Haviam cruzado uma fronteira invisível e penetrado numa nova dimensão, surreal e temível; um ponto para além do qual tudo mudava. O médico e a freira percebiam o que estavam a ver, percebiam-no bem de mais, mas nenhum transformava esse entendimento em palavras, como se a simples articulação verbal do que observavam lhes estivesse vedada.
"Doutor."
A voz com sotaque espanholado da freira rompeu o silêncio pesado, devolvendo um traço de humanidade àquele momento irreal.
"O que é, Lúcia?"
A enfermeira-chefe apontou para uns destroços à direita.
"Está a ver aquele ali? Dios, parece que se mexeu..."
"Você viu?"
"Sim. Pienso que hay sobreviventes."
José Branco deteve o jipe, puxou o travão de mão e desligou-o. O silêncio mais absoluto instalou-se naquele troço; nem os pássaros nem os insectos se faziam ouvir, como se também eles tivessem sido exterminados. Parecia que o ar se enchera de vazio. O médico e a freira apearam-se e caminharam em direcção aos destroços, os passos a reverberarem com sons surdos na terra castanho-escura. Fazia calor, mais ainda do que em Tete, e a paisagem árida e quente do solo, recortada pelo perfil hercúleo dos embondeiros, contrastava com o céu azul-claro que as tiras brancas das nuvens rasgavam nas alturas.
Perturbada por se ver arrastada para aquele local infernal, Sheila deixou-se ficar no seu lugar, a observar os acompanhantes afastarem-se. Enquanto caminhava, José Branco examinava o vulto que a enfermeira-chefe lhe indicara. O corpo parecia imóvel, mas, quando se chegou a uns cinco metros de distância, apercebeu-se de que tremia como se estivesse enregelado.
"Tem razão!", constatou. "Está vivo!"
Precipitaram-se para o corpo. Tinha queimaduras graves e a pele esfolada, sobretudo nas costas em carne viva, mas não havia dúvidas de que não estava morto.
"É una mujer, doutor", constatou a irmã Lúcia.
Assim era, confirmou o médico, que estranhou a posição da sobrevivente. Encontrava-se de cócoras e enroscada sobre si mesma. Apercebendo-se de que ela estava consciente, José Branco pôs-lhe com cuidado as mãos no tronco e tentou erguê-la, mas aquela posição tornava a tarefa muito difícil.
"Assim não é possível!", exclamou em frustração. "Ela tem de se desenrolar para a podermos levar para o jipe."
Percebendo o problema, a irmã Lúcia tentou que ela se desenroscasse, começando por lhe puxar um braço, mas a mulher gemeu de medo e lutou por permanecer enrolada sobre si mesma.
"No entiendo."
O médico endireitou-se e olhou para o jipe.
"Sheila!", chamou, fazendo um gesto peremptório com a mão. "Anda cá!"
A enfermeira apeou-se com relutância e aproximou-se da palhota onde se acumulavam os corpos. A devastação era absoluta e Sheila teve de fazer um esforço para dominar o medo e continuar a caminhar.
"O que é, doutor?"
José Branco fez sinal em direcção à mulher de cócoras.
"Temos de pô-la no jipe mas ela está a resistir", explicou. "Explica-lhe que a queremos ajudar. Ela que se desenrosque para a podermos levar."
Sheila pousou os olhos na mulher e constatou, pasmada, que aquele corpo em carne viva ainda respirava; tremia descontrolada, como se tivesse frio. A posição era estranha e a enfermeira percebeu que a paciente teria de facto de a desfazer para poder ser transportada para a viatura. Ajoelhou-se diante da mulher e inclinou-se para a cabeça, junto ao ouvido direito.
"Tabuera d'zacutandizani", murmurou. "Viemos aqui para ajudar. Deixa-nos levar-te para o carro."
A mulher permaneceu imóvel, embora os tremores tivessem abrandado; era evidente que estava consciente e entendera o que lhe fora dito. Encorajada, Sheila voltou a inclinar-se na direcção do ouvido da paciente.
"O doutor Branco é um homem de paz e a irmã Lúcia também", murmurou de novo em nhungué. "Queremos levar-te para o hospital para tratar de ti. Anda, vem comigo."
O gemido voltou um pouco mais prolongado. A mulher começara a chorar baixinho e Sheila trocou um olhar aliviado com o médico. Ambos perceberam que era um choro de rendição; a sobrevivente acreditara nas palavras que lhe haviam sido ditas na sua língua.
A enfermeira pegou numa mão da paciente e puxou-a com cuidado. Dessa feita ela não resistiu e deixou o braço abrir-se. Depois foi a vez de deixar ir o outro braço. A mulher soluçava de mansinho e as três figuras que a rodeavam viram emergir do seu corpo dobrado um vulto sombrio.
"Que é isto?", assustou-se Sheila, dando um salto para trás.
José Branco inclinou-se ainda mais e tentou identificar aquele vulto.
"O filho!", exclamou. "Ela estava a proteger o filho!"
Um menino escuro e delgado rolou para fora, os olhos remelosos e assustados. José pegou nele e estudou-o. Aparentava um ano de idade e tinha o cabelo chamuscado e as mãos e os pés com queimaduras ligeiras, mas à parte isso parecia intacto.
"Pobrecita!", disse Lúcia. "Protegia o nino!"
A criança deu uns passos titubeantes e voltou para trás, agarrando-se à mãe. O médico fez um sinal a Sheila e a enfermeira pegou na mulher e ajudou-a a caminhar para o jipe enquanto segurava a criança com a outra mão.
"Vai falando com ela para lhe dar estímulo", recomendou José. "Mantém-na desperta, ouviste?"
Era difícil transportar os dois sobreviventes naquelas condições e, após uns passos, a jovem enfermeira voltou-se para trás, num gesto de protesto, mas viu o médico já de costas a auscultar um segundo corpo. Sheila virou-se para a irmã Lúcia, que entretanto se afastara, e ia pedir-lhe ajuda quando se apercebeu, com horror, de que a freira estava com um bisturi a abrir o ventre de uma grávida morta. Com um movimento rápido, a espanhola tirou das entranhas do cadáver um corpo minúsculo e sentiu-lhe a pulsação. Um longo instante depois pousou o corpo do bebé, sinal de que constatara que estava morto, desenhou uma cruz no ar, ergueu o hábito e limpou as mãos ensanguentadas às vestes brancas.
Sheila tomou consciência nesse momento de que cada um tinha ali a sua função; a sua era levar os dois sobreviventes para o jipe e ajudá-los o melhor que podia, o que enfim fez com calma.
Minutos mais tarde, José e a irmã Lúcia juntaram-se-lhe. Vinham ambos com as roupas brancas manchadas de sangue e o rosto pesado. O médico inspeccionou os dois sobreviventes que haviam sido transportados para o jipe e assegurou-se de que a mulher queimada se encontrava nas melhores condições possíveis.
"E se houver mais sobreviventes, doutor?", perguntou Lúcia. "Que vamos a bacer?"
José Branco passou as mãos pela testa para limpar o suor, mas no lugar da transpiração deixou um rasto de sangue. Depois instalou-se ao volante e pôs a viatura em marcha.
"Temos de ir buscar ajuda."
O jipe rugiu e arrancou com um coice. O Austin deu meia volta na clareira no meio de uma nuvem de pó fino e meteu com grande estrépito pelo caminho de onde viera. A mulher queimada gemia mais alto a cada solavanco, pelo que o médico, apercebendo-se do sofrimento que lhe estava a causar com a sua condução apressada, abrandou e procurou as partes do trilho menos acidentadas. Sabia, porém, que o tempo era crucial. Precisava de chegar o mais depressa possível a Tete para activar os meios de socorro aos sobreviventes da matança.
Logo que o jipe saiu da picada e meteu pela estrada de Tete, acelerou o mais que pôde.
"Que vamos a dicer quando llegarmos a Tete?", perguntou a irmã Lúcia quase aos gritos, sobrepondo a sua voz ao rugido do jipe agora em aceleração.
"Que estávamos a fazer o nosso trabalho", devolveu José. "Mais nada."
A freira fez um sinal para trás, indicando Sheila.
"No estoy preocupada comigo, pero com ela."
O director do hospital franziu o sobrolho, percebendo o alcance da observação e contrariado por não ter ainda pensado no assunto. Apesar de já ser enfermeira, sabia que Sheila não passava de uma rapariga e de certo modo era a mais vulnerável dos três. Depois de reflectir sobre o caso, José esperou que entrassem numa recta; quando ela apareceu, e apesar de o jipe estar em andamento, voltou-se para trás.
"Sheila, ouve-me com atenção", pediu. "Não fales do que viste com ninguém. Ouviste?"
"Sim, doutor."
O médico endireitou-se, controlando o percurso da viatura, mas voltou-se de novo para trás, gesto que foi repetindo sempre que lhe ocorria uma nova recomendação.
"Se alguém vier ter contigo e perguntar o que vieste aqui fazer, só dizes uma coisa: fui em serviço socorrer feridos numa aldeia que estava a arder. Percebeste?"
A rapariga assentiu com um movimento enfático da cabeça.
"Então repete lá."
Sheila mordeu o lábio e fez um esforço para reconstituir a frase.
"Fui em serviço a uma aldeia a arder para ajudar os feridos."
"Isso!"
Voltou-se e lançou um olhar inquieto para trás, contemplando o fumo que ainda se erguia sobre o arvoredo, branco e ténue.
"E se eles me perguntarem mais coisas, doutor? E se me perguntarem porque fui para uma zona de guerra sem autorização?"
"Repetes sempre a mesma coisa", sentenciou José, erguendo o dedo. "Vieste comigo porque eu te ordenei e porque tu és enfermeira e o nosso trabalho não conhece fronteiras. Entendeste?"
"E se quiserem saber porque estava a aldeia a arder?"
"Dizes que não sabes. A aldeia estava a arder, havia feridos e tu foste fazer o teu trabalho. Mais nada. O nosso trabalho não conhece fronteiras."
Momentos mais tarde o jipe entrou em Tete. O médico abrandou um pouco, adoptando uma velocidade vagamente tolerável em cidade, e subiu até ao hospital. Logo que a viatura invadiu a pequena rotunda diante do edifício pôs-se a buzinar com estrépito para chamar a atenção dos funcionários. Surgiram de imediato dois enfermeiros que foram auxiliar os sobreviventes a sair da viatura. Sheila ajudou-os a transportar a mulher e a criança e, num relance, apenas registou a imagem dos vultos níveos de José e da irmã Lúcia a desaparecerem, apressados, num corredor do hospital.
Não o podia saber nesse instante, mas guardaria para sempre aquela imagem na sua memória. Ela tornar-se-ia importante, não porque José Branco e a irmã Lúcia estivessem a fazer algo de extraordinário, mas por uma razão muito mais importante.
É que foi a última vez que os viu.
O ambiente no hospital de Tete fervilhava numa agitação mais caótica do que acontecia quando os Alouettes aterravam para descarregar feridos. As urgências pareciam entupidas de gente e, ao entrar no edifício, Diogo teve o pressentimento distinto de que, além da natural aflição dos pacientes em sofrimento, um sentimento diferente intoxicava o ar. Não sabia como defini-lo; era uma qualidade incorpórea, uma sensação imaterial que tudo perpassava e cuja natureza lhe escapava. Na busca dessa impressão indefinida, cravou os olhos na face de uma enfermeira e surpreendeu-lhe um esgar amedrontado enquanto tratava de uma mulher queimada. Foi nesse preciso instante que entendeu o que pressentia.
Medo. Havia medo naquele hospital. O pessoal tratava os feridos num silêncio sepulcral, os trejeitos a denunciarem temor, os olhares a recearem o primeiro intruso que cruzasse as urgências. O ar cheirava a medo, envenenado pela estranha e sinistra calma de uma ameaça palpável, mas difusa e traiçoeira. O visitante levou algum tempo a captar a origem desse medo. As enfermeiras e os médicos, começou por concluir, tinham receio dos feridos. A constatação surpreendeu-o. Como era possível que temessem os feridos? Que ameaça poderiam eles representar?
A perplexidade desencadeada por essa constatação levou-o a corrigir o raciocínio e a dar o passo seguinte. Não, não era dos feridos que tinham verdadeiramente medo. O terror que envenenava aquele hospital devia-se a uma convicção generalizada de que todos estavam a cometer uma perigosa infracção. O pessoal não tinha medo dos feridos; tinha era medo de os tratar.
Abandonou as urgências e esquadrinhou as enfermarias aos tropeções. Olhou para o próprio corpo, surpreendido, e apercebeu-se de que caminhava como um ébrio; sentia-se na verdade atordoado com a vertigem dos acontecimentos. Havia passado uma noite inteira sem dormir, acossado pelas imagens do que presenciara na aldeia, e só nessa tarde obtivera licença para abandonar o quartel do Mazoi e ir à cidade. Sentia os nervos embotados e experimentava uma sensação trôpega de irrealidade, como se tudo o que sucedia à sua volta fosse um sonho; até o caos que encontrou no hospital lhe parecia fantasia, uma encenação, e teve de fazer um esforço para não se dissociar da realidade que vivia.
"Diogo?!"
A voz de Sheila surgiu, também ela, envolta naquela estranha neblina de devaneio e realidade. Voltou-se e, fixando-a no meio da névoa que lhe obscurecia a visão, lobrigou-a na sua bata de enfermeira. A bata tinha algo de estranho; era branca mas estava manchada de vermelho-vivo no peito e nas mangas. Sangue. A imagem era bizarra e o soldado voltou a perguntar a si mesmo se não estaria a sonhar com tudo aquilo.
A rapariga mudava um penso a uma figura envolta em tanto gesso que não se percebia se era homem ou mulher, mas passou a tarefa a uma outra enfermeira e veio a correr, anichando-se nos braços protectores do namorado.
"Diogo!", soprou, apertando-o com força. "Tenho tanto medo, tanto medo!..."
O furriel estreitou-a contra o peito, aliviado com a sensação de realidade que o contacto humano lhe suscitava, como se fosse a prova final de que nada daquilo era imaginação. Afagou-lhe o cabelo e colou-lhe os lábios aos ouvidos.
"Pronto", sussurrou. "Está tudo bem. Eu estou aqui. Não há razão para teres medo, eu estou aqui!..."
Sheila soluçava-lhe no ombro, o corpo a estremecer de pavor. O namorado deixou-a chorar e acariciou-lhe o rosto molhado enquanto aguardava que ela acalmasse. Com um movimento suave para não desfazer o abraço, puxou-a e levou-a pelo corredor até saírem do edifício pela porta traseira.
O ar no exterior, embora sempre quente, pareceu-lhes estranhamente retemperador. O vento tépido e seco ergueu-se rasteiro, agitando o tapete vegetal que decorava o pátio; as folhas saracotearam como borboletas nervosas, esvoaçando em movimentos oscilantes até voltarem ao chão.
Diogo ajudou-a a sentar-se nas escadas do pátio e acomodou- se ao lado dela, sempre a enlaçá-la num abraço protector.
"Não imaginas o que aconteceu", disse Sheila mal recobrou o controlo das emoções. "Tu não imaginas!..."
"Estás a referir-te a estes feridos no hospital?"
A rapariga ergueu a cabeça com um movimento brusco e fitou-o nos olhos, como se assim lhe pudesse transmitir todo o horror que a estrangulava.
"Estão a chegar desde anteontem à noite", revelou. "Contam coisas horríveis, não imaginas."
Consumido pela culpa, Diogo teve dificuldade em suster-lhe o olhar. Engoliu em seco antes de fazer um gesto com a cabeça para a encorajar a prosseguir.
"O que dizem eles?"
"Os primeiros a chegar vieram de uma aldeia chamada Chawola. Contaram que a tropa obrigou toda a gente a bater palmas para se despedir da vida e depois começou a disparar." Fez uma pausa para limpar o rosto e fungar. "Depois juntaram os corpos, puseram capim sobre eles e deitaram-lhes fogo. Algumas pessoas atiradas para essa fogueira ainda estavam vivas. Viram a tropa voltar costas para incendiar as palhotas e violar algumas raparigas. Aproveitaram a ocasião e saíram da fogueira. Fugiram da aldeia e vieram aqui para o hospital, nem sei como."
Diogo respirou fundo. Não havia presenciado o que sucedera em Chawola, mas sabia agora que já não seria possível conter as informações. Isso deixava-o preocupado, mas, estranhamente, também aliviado. Acreditava que uma coisa daquela magnitude não poderia permanecer silenciada; tal já não era possível, nem isso seria justo.
"Pronto", murmurou, tentando reconfortá-la. "Acalma-te. Estas pessoas precisam de ti e tu ao menos podes ajudá-las."
"Iá. Mas tenho medo."
"Medo de quê? Não há razão para teres medo. Não fizeste nada de mal, não precisas de te preocupar."
Ela abanou a cabeça, infinitamente triste.
"Estás enganado, Diogo. Há maningue razões para me sentir preocupada."
A declaração surpreendeu o namorado.
"Tu? Porquê?"
Sheila ergueu os olhos marejados de lágrimas; soluçava e o queixo tremia-lhe.
"Eu estive lá."
Diogo fez uma expressão interrogativa.
"Lá onde?"
"Nas aldeias onde tudo aconteceu. Eu estive lá."
O rosto do namorado permaneceu rígido durante dois longos segundos, enquanto a mente processava a inacreditável informação que acabara de escutar.
"O quê?"
"Fui com o teu tio e a irmã Lúcia." Recomeçou a chorar. "Foi horrível, meu Deus! Horrível!"
A revelação deixou-o atónito. A imagem da aldeia como a deixara ficara-lhe cravada na mente, com as palhotas a arder e os corpos carbonizados no interior, uns inteiros e outros despedaçados. Sheila vira aquilo?
"Estiveste lá?"
Incapaz já de falar, a namorada fez que sim com a cabeça.
"O meu tio também?"
O choro de Sheila tornara-se descontrolado; era como se até ali se tivesse contido e agora o dique se quebrasse, libertando a torrente. Chorava com abandono, descarregando em soluços profundos e sucessivos os fantasmas que a assombravam desde que voltara da aldeia e começara a digerir o que havia visto.
"O meu tio também?", insistiu Diogo.
A rapariga, dobrando-se sobre o ventre como se tivesse todo o corpo dorido, assentiu de novo.
"Ele desapareceu."
"O quê?"
Sheila fez um esforço e dominou o choro apenas o tempo suficiente para conseguir completar a informação.
"A PIDE levou-o."
Saiu do hospital e percorreu apressadamente os quinhentos metros até chegar à casa do tio, na colina sobranceira ao Zambeze. Entrou pelas traseiras e encontrou Mimicas agarrada ao telefone e em estado de absoluta desorientação; tinha um cigarro aceso entre os dedos e deixara dezenas de beatas esmagadas em vários cinzeiros de pau-preto e dois maços de LM amarfanhados sobre a mesa da sala de jantar.
"Ai, Diogo!", exclamou Mimicas quando o viu, agarrando-se a ele em lágrimas. "Ainda bem que vieste! Cheguei agora da Beira. Vim logo que me deram a notícia sobre o... o Zé."
"Que notícia?"
"Não sabes? Ele desapareceu."
O furriel ajudou-a a sentar-se no sofá e tentou tranquilizá-la.
"Tenha calma, tia", disse-lhe na voz mais reconfortante de que era capaz. "Que aconteceu?"
Mímicas tinha os olhos pousados no telefone negro e abanava a cabeça sem cessar.
"Ninguém fala comigo", disse ela. "Ninguém, ninguém. Eu tinha tantas amigas, tantas, tantas!... E ele também. Mas agora... agora ninguém fala comigo. É como se não me coisassem."
"O que aconteceu?"
"Dizem que não estão, dizem que não podem...", murmurou, sempre no mesmo registo. "A Marília até me desligou o telefone na cara. Acreditas nisso? Quando aqui cheguei, a primeira coisa que fiz foi ligar-lhe para saber do Zé e ela desligou-me o telefone na cara! Como é possível? Nós dávamo-nos tão bem, tão bem. E agora... agora ninguém me conhece!" A cabeça não parava de abanar, como se se negasse a aceitar a realidade. "Não compreendo isto, não compreendo!..."
Diogo segurou-a pelos ombros e abanou-a com força, tentando quebrar aquele transe.
"Tia!", chamou, a voz a sobrepor-se à ladainha dela. "Tia! Está-me a ouvir?"
Mímicas interrompeu a litania e olhou-o, surpreendida; parecia ter voltado a si.
"O que é?"
Diogo observou-a com atenção, certificando-se de que ela havia recuperado o controlo de si própria, mesmo que por apenas uns instantes.
"Conte-me o que aconteceu."
A tia baixou os olhos para o cigarro que lhe dançava entre os dedos amarelados de inquietação.
"Eu não estava cá, estava na Beira", disse num tom nervoso, quase culpado. "Mas o Ernesto contou-me que há duas noites o Zé foi chamado ao hospital. Tinham chegado uns coisos... uns feridos. Parece que ele voltou para casa com ar muito preocupado, mas não contou nada ao Ernesto, claro. Acordou no dia seguinte aí pelas seis da manhã e saiu logo a seguir. A Sheila disse-me que ele e a irmã Lúcia foram buscá-la para visitar as aldeias de onde tinham vindo esses feridos.
Quando voltaram a Tete, o inspector Silva, da PIDE, foi ao hospital e levou-o. Desde então que não dá notícias. O Ernesto ficou muito nervoso e telefonou-me lá para a Beira. Eu apanhei o primeiro avião. Já liguei ao inspector, já liguei à mulher dele... ninguém me diz nada de nada. Não sei se o Zé está vivo, se está morto, o que fizeram dele. Não sei nada de nada, a não ser que o levaram." Lançou um novo olhar angustiado para o telefone. "Estou farta de ligar a toda a gente e ninguém quer falar comigo. Pessoas que eram minhas amigas, Diogo!... Ninguém quer falar comigo."
O furriel respirou fundo.
"Estou a perceber", disse. Coçou a cabeça, pensativo. "Vou ver o que posso fazer."
Mimicas desviou a atenção do telefone e fitou-o com uma expressão incrédula.
"Tu, Diogo? O que podes tu fazer?" Pousou a mão no peito. "Olha para mim. Eu sou a mulher do director do hospital e do Serviço Médico Aéreo. Eu e o teu tio somos visitas de casa do inspector Silva, somos amigos do bispo, somos amigos do governador... e a mim ninguém diz o que quer que seja! O que podes tu fazer?"
Diogo devolveu-lhe o olhar. Sim, pensou; o que poderia ele fazer? Não passava de um furriel miliciano destacado para um quartel no meio do mato e transferido à má fila para uma companhia de comandos, a qual aliás estava por detrás de toda aquela confusão. Que iria ele fazer? Que cordelinhos poderia mexer? Apresentaria queixa a quem? A Angelino?
"Tem razão", murmurou por fim, rendendo-se à sua própria impotência. "Só nos resta aguardar."
A atenção de Mimicas regressou ao telefone pousado na mesinha ao lado do sofá.
"Eu não vou esperar quieta", disse com resolução, resvalando no sofá para se aproximar do telefone. "Podem fugir de mim, podem dizer que não estão, podem até fingir que não me conhecem, mas uma coisa te garanto: não os vou largar."
Vendo a tia agarrar-se ao aparelho, Diogo levantou-se e foi à cozinha. Podia ser que um chá a ajudasse. Quando atravessava a sala de jantar, porém, apercebeu-se de uma sombra recortada na luz da porta para o pátio traseiro e olhou naquela direcção. Um vulto perfilou-se diante da claridade, os cabelos envoltos num halo refulgente, e abriu a porta; as feições do rosto, escurecidas pelo contraste com a luz exterior, tornaram- se perceptíveis.
"Sheila!", exclamou, apanhado de surpresa. "O que estás aqui a fazer?"
A namorada deu dois passos hesitantes pela sala, lançando olhares amedrontados em todas as direcções.
"O doutor Branco? Já apareceu?"
Diogo fez um gesto negativo com a cabeça e aproximou-se dela, mas deteve-se quando a viu recuar um passo, quase como se a rapariga tivesse receio dele.
"O que foi?"
Sheila observava-o de um modo estranho; parecia uma impala a vigiar um predador que rondava a manada.
"Vim aqui porque... porque apareceu lá no hospital um pára-quedista para visitar um amigo que está lá internado." Falou muito devagar e fez uma pausa para sublinhar a importância do que dizia. "Eu estava a mudar um penso do amigo e ouvi esse pára-quedista dizer que a matança nas aldeias foi coisa dos comandos."
A rapariga fez mais uma pausa, desta feita para estudar a reacção do namorado. Diogo sentiu as gotas de transpiração brotarem-lhe do couro cabeludo e percebeu que chegara o momento da verdade. Não se sentia preparado para ele, queria mesmo adiá-lo, mas não havia fuga: o momento impusera-se à sua frente.
"Sim..."
O olhar de Sheila tornara-se de tal modo intenso que parecia soltar fagulhas.
"Ele falou na 6ª Companhia de Comandos."
Diogo baixou a cabeça em sinal de rendição, não se atrevendo sequer a encará-la.
"É verdade."
A confirmação foi dada num fio de voz quase imperceptível, tão baixo que parecia soletrada pela brisa, e, porém, insuportavelmente ruidosa. Fez-se o silêncio mais absoluto naquela sala.
"Tu estiveste lá?"
As lágrimas escorriam pela face do namorado, em ziguezague, como gotas de chuva quente. Abriu a boca e tentou falar, mas a voz ficou estrangulada na garganta e apenas emitiu o que soou como um grunhido. Pigarreou e levantou os olhos molhados, reunindo toda a coragem que lhe restava para, por fim, a enfrentar.
"Estive."
Sheila susteve o olhar durante um longo segundo. Depois voltou-se e, ganhando vigor, carregou pela porta. Ao vê-la percorrer a varanda e começar a descer as escadas para o pátio traseiro, Diogo saiu da letargia em que parecia mergulhado e largou no encalço dela.
"Sheila!", chamou. "Espera! Espera!"
A rapariga percorria já o pátio e metia pelo carreiro para o hospital.
"Deixa-me!", disse ela sem se virar, percorrendo o carreiro com passo decidido. "Deixa-me em paz!"
Mas Diogo corria atrás dela.
"Espera!", implorou. "Deixa-me explicar!"
Sheila estacou e voltou-se com brusquidão, a fúria a incendiar-lhe o rosto com tanta intensidade que o furriel se deteve também. Ficou pregado à sombra da maçaniqueira do pátio traseiro e não se atreveu a dar mais qualquer passo, intimidado com a raiva que parecia cegá-la.
"Explicar?", gritou ela, fora de si. "Explicar?"
"Iá", insistiu ele, submisso mas convicto. "Há uma explicação."
A rapariga apontou para a casa. Diogo voltou a cabeça para trás e avistou Mimicas plantada na varanda, o espanto desenhado no rosto enquanto observava a cena.
"Explica-lhe a ela!"
Com um novo movimento brusco, Sheila virou-lhe as costas e retomou o caminho, levada pela fúria e pelo vento quente que descia pelo Zambeze e sufocava Tete.
O ambiente na repartição de Tete da DGS era de embaraço absoluto perante a inesperada e desconfortável situação que se criara. Os funcionários não sabiam se deviam bater os relatórios à máquina ou conversar com o detido que todos fingiam não estar detido.
Ninguém, a começar pelo próprio inspector Aniceto Silva, tivera coragem de encerrar José Branco numa cela ou algemá-lo sequer. Em vez disso sentaram-no numa cadeira em plena secretaria, como se ele não passasse de um visitante ocasional que ali fora apanhar o fresco das ventoinhas para se refugiar do calor sufocante da rua. A verdade é que José era o médico de toda a gente que trabalhava naqueles escritórios, e como podiam eles prender a pessoa que ainda há uns meses salvara a filha do paludismo ou resgatara a mulher da doença do sono?
Ofereceram-lhe capilé e umas bolachas, além de muitos sorrisos e uma ou outra palmadinha nas costas por entre murmúrios de "está tudo bem, não se preocupe" ou "isto é só um mal-entendido que o chefe já vai desfazer", como se o regresso à normalidade dependesse da mera vontade de quem ali trabalhava. Mas José Branco sabia que não havia mal-entendido nenhum e que aquela questão não se resolveria só com palmadinhas e boa vontade.
Como a confirmar essa impressão, o gigantesco Francisco aproximou-se com ar de poucos amigos, era talvez a única pessoa ali que não parecia incomodada com a situação, e fez-lhe sinal de que se levantasse.
"Venha daí ao chefe."
O inspector Silva estava sentado à secretária e nem cumprimentou o médico quando o viu entrar no gabinete. Limitou-se a fazer um sinal a Francisco de que os deixassem a sós. Quando a porta se fechou, indicou a José que se acomodasse na cadeira em frente.
"Doutor Branco, quantas vezes lhe pedi que não se metesse na política?", foi a primeira pergunta que atirou. "Quantas, doutor?"
"Desculpe, mas eu não me meti em política."
O chefe distrital da DGS inclinou a cabeça num gesto céptico, como um adulto a mostrar a uma criança que não acreditava nas patranhas que ela lhe contava.
"Ó doutor... francamente!"
"Não sei porque está a falar assim. Viu-me por acaso envolvido em alguma actividade política?"
Aniceto Silva assentou os cotovelos na secretária e enlaçou as duas mãos, apoiando o queixo sobre os dedos enleados.
"Há anos que o doutor não faz outra coisa."
"Como pode dizer uma coisa dessas? Alguma vez me ouviu uma palavra que fosse sobre política?"
"Os seus actos falaram por si", disse, apontando-lhe o indicador. "Pensa que não o tínhamos debaixo de olho? Até sabemos como o doutor se comporta na cama!"
O médico esboçou uma expressão de perplexidade, estranhando o despropósito da referência.
"Na cama?"
O inspector soltou um sorriso forçado.
"A nossa bifa é uma boa queca, não é?"
A perturbação do director do hospital acentuou-se ao escutar estas palavras. Bifa? José abriu a boca e tentou falar, mas o choque fora demasiado grande e por momentos não conseguiu proferir uma palavra que fosse. Teria ouvido bem?
"O... o que quer dizer com isso?"
"Ah! A palavra bifa parece-lhe familiar, estou a ver. Dáne tusa?"
"O senhor está a falar de Nicole?"
"Doutora Thorn", corrigiu-o. "Doutora Nicole Thorn. Uma prenda dos serviços secretos rodesianos. Boa médica, boas tetas, boa informadora. Como acha o senhor que eu soube imediatamente da assistência que prestou ao turra que encontrou no mato, do pretinho que pôs num quarto particular do hospital... eu sei lá, de tudo?" Suspirou, simulando melancolia. "é pena que o doutor a tenha largado. Perdeu umas grandes quecas e nós ficámos sem uma magnífica informadora."
José abanou a cabeça.
"O senhor devia ter vergonha..."
Aniceto Silva afinou a voz.
"Quem devia ter vergonha era o doutor." Endireitou-se na cadeira. "Mas chega desta conversa, que não nos leva a lado nenhum. O que foi o senhor fazer à aldeia?"
O médico sentia-se atordoado com a descoberta do papel de Nicole e a magnitude da dissimulação de que fora vítima. Como pudera ser tão parvo? Mas, ao ouvir a pergunta do inspector, a imagem do que vira em Wiriyamu varreu-lhe a rodesiana da mente.
"Qual aldeia?", perguntou sibilino, recuperando o sangue frio. "Aquela onde a tropa matou uma data de civis inocentes?"
Com um gesto brusco e quase instantâneo, o homem da DGS apontou-lhe o dedo, como se o tivesse apanhado a dar um passo em falso.
"Vê como está a fazer política?"
O tom acusador suscitou um esgar de espanto no médico.
"A fazer política? Qual política? Fui ontem a uma aldeia prestar assistência médica a uma população que foi massacrada pela tropa. O que eu fui lá fazer foi simplesmente o meu trabalho. Nem mais, nem menos. Agora não escondo que fiquei chocado com o que lá vi. Mataram civis inocentes a tiro e à granada, e isso..."
"Como sabe que eram inocentes?"
"Bem... eu vi crianças mortas. Eram culpadas de quê?"
O inspector abanou a cabeça, recusando-se a deixar que a discussão seguisse por aquele caminho.
"A aldeia estava contaminada pelo in, doutor. Neste momento os turras encontram-se por todo o distrito e os únicos sectores não infectados são, ao que sabemos, a cidade de Tete e o perímetro de Cabora Bassa. A tropa faz o que pode para tentar readquirir o controlo da situação."
"Mas... matar crianças?"
Aniceto Silva encolheu os ombros.
"Bem sei, é terrível. Aqueles homens andavam já há muito tempo no mato e vieram tresloucados. Ainda por cima, apanharam na véspera uma emboscada naquele sector e, sendo comandos, estavam furiosos. Como é evidente, ninguém os mandou matar civis, não é verdade? Nem é assim que o exército português combate. Mas o que está feito está feito. Agora queremos pôr uma pedra sobre este assunto."
Fez-se silêncio no gabinete, apenas quebrado pelo rumor letárgico do aparelho de ar condicionado na sua interminável batalha contra o calor.
"Não percebo o que deseja de mim", disse por fim José. "Agora vai repreender-me por ter tratado dos sobreviventes?"
O inspector da DGS prendeu um cigarro entre os lábios e acendeu-o com um isqueiro prateado.
"Quero pedir-lhe que não conte a ninguém o que viu", disse enquanto exalava uma baforada cinzenta. "O senhor fez o seu trabalho, aceito isso perfeitamente. Agora mantenha o bico calado."
A ordem fez José sorrir sem vontade.
"O senhor sabe muito bem que sou obrigado a escrever um relatório sobre tudo o que faço enquanto médico. Considerando a gravidade do que observei, diria que a minha obrigação é acrescida pelas circunstâncias."
"A sua obrigação é com a pátria."
"Talvez, mas não só. É, porém, também por causa da pátria que tenho de escrever o relatório."
Aniceto Silva aspirou de novo o cigarro, os olhos perdidos no infinito enquanto contemplava as suas opções. Depois desprendeu o fumo devagar e deixou-o adejar paulatinamente no ar, como se se deslocasse em câmara lenta.
"O senhor não percebe que um relatório desses vai embaraçar as Forças Armadas?", disse então. "Pior ainda, vai embaraçar Portugal."
O médico abanou a cabeça.
"O que embaraça Portugal não é o meu relatório, mas o comportamento dos nossos soldados."
"Alguns soldados, doutor", corrigiu-o o homem da DGS, sempre num registo tranquilo, a ameaça contida no tom falsamente sereno que imprimia às palavras. "Desvairados."
"Admito que sim. Mas não há modo de negar que fizeram o que fizeram."
"Não lhe peço que negue. Peço-lhe apenas que se cale. A bem da nação."
José Branco baixou os olhos e contemplou as unhas, como se de repente a sujidade que trazia entranhada nos dedos fosse o grande problema do momento.
"Sabe, inspector, desde miúdo que ando a tentar perceber o que é isso do bem", disse de forma pausada, meditando em cada palavra que pronunciava. "De certo modo foi essa busca que me levou a esta profissão. Apercebi-me de que um médico é uma pessoa que faz o bem. O bem das pessoas ou, como o senhor diz, o bem da nação. O bem, porém." Inclinou-se na cadeira, os olhos presos no inspector. "Mas afinal o que é isso do bem? Se antes da guerra Hitler estivesse a morrer e eu o tivesse salvo, será que tinha praticado o bem? Se eu ajudar um amigo a obter um emprego, estarei a fazer o bem? Então e a outra pessoa que deixa de ir para esse emprego só porque pus lá o meu amigo? Ao fazer o bem a uma pessoa não estou a fazer o mal à sua concorrente ou às suas futuras vítimas?"
O inspector remexeu-se no seu lugar, impaciente.
"Onde quer o senhor chegar com essa conversa?"
"O que quero dizer é que a questão do bem e do mal sempre gerou mais perplexidades do que certezas." José recostou-se na cadeira. "O que é o bem e o que é o mal? Todos nós intuímos estes conceitos, mas a sua definição precisa escapa-nos. Até hoje." Apontou para a janela. "Tive a resposta a este enigma no momento em que vi o mal naquela aldeia. Vi-o impregnado nos corpos carbonizados que se espalhavam pelos escombros, vi-o quando me questionei sobre o que levaria os homens a fazerem uma coisa tão cruel. E depois deparei-me com uma criança que saiu viva e intacta de baixo do corpo queimado de uma desgraçada que os soldados quase haviam morto e percebi que há coisas que o mal, por mais que tente, não poderá conquistar. O amor daquela mãe foi mais poderoso do que o mal daqueles homens. Mas só agora, enquanto estava aqui a ouvi-lo falar, é que consegui transformar em palavras a ideia que desde então me andava a ruminar na mente." Cravou de novo os olhos penetrantes no seu interlocutor. "Sabe o que na verdade é o mal?"
Sentindo-se incomodado com a intensidade daquele olhar, Aniceto Silva abanou a cabeça.
"Ó doutor, agora não", disse. "Poupe-me a essa conversa."
"É a incapacidade de nos pormos no lugar do outro. Quando os soldados matam mulheres e crianças como quem mata formigas, estão possuídos pelo mal porque não conseguem pôr-se no lugar das vítimas, não conseguem perceber a posição delas nem sentir o que elas sentem. O mal é a incapacidade de imaginar os sentimentos do outro e de os sentir como se pudéssemos ser nós." Deixou o olhar vaguear pelo gabinete, detendo-se aqui e ali. "O bem é por-mo-nos no lugar do outro. E actuar em conformidade, claro." José voltou a mirar o seu poderoso interlocutor. "E é por isso, caro inspector Silva, que não posso deixar de escrever o meu relatório. Esse texto será um acto de amor e quero escrevê-lo para que as pessoas se possam pôr no lugar das vítimas. Para que os responsáveis por aquele horror se envergonhem. Para que o amor derrote o mal."
O chefe distrital da DGS em Tete revirou os olhos com enfado e respirou fundo, como um saco que se esvazia. Abriu as mãos em sinal de impotência e deixou-as tombar sobre a mesa; parecia um juiz a martelar a madeira no momento soberano da sentença.
"Eu tentei", exclamou com uma expressão resignada. "Mas se é essa a sua posição irá discuti-la no sítio para onde terei de o mandar de imediato."
Se a potência do motor correspondesse a metade do barulho que fazia, a Famel Foguete de fabrico nacional seria um bólide imparável. Mas Diogo tinha consciência de que a motorizada que lhe trepidava nas mãos, apesar de estupidamente ruidosa, não era máquina de corrida; nem aliás precisava que o fosse, uma vez que ia em descida e só a usava para se deslocar.
Logo que nessa manhã havia chegado a Tete, o furriel fora alugar a motorizada ao Zambézia Comercial e dera um salto ao hospital para saber de Sheila, de quem não tinha notícias havia quase três semanas, tantas quantas passara no mato à espera da primeira oportunidade para vir a Tete. Havia cumprido no Mazoi o final da sua comissão na 6ª Companhia de Comandos e, logo no primeiro dia de 1973, regressara ao Chioco para reintegrar as fileiras do BART. Envolvido numa série de procedimentos relacionados com a transferência e depois com a falta de pessoal no Chioco por causa das licenças de Natal e Ano Novo, durante todo esse tempo não havia sido autorizado a deslocar-se à cidade. As múltiplas tentativas que fizera à distância para localizar a namorada embateram num silêncio angustiante; nenhuma das inúmeras cartas que lhe enviou teve qualquer resposta.
O problema é que Sheila não era a única pessoa que desaparecera. Havia três semanas que ninguém sabia do tio e no hospital as enfermeiras tinham mesmo medo de falar do assunto. Fora visitar a tia Mimicas e dera com ela desesperada a preparar as malas para ir a Lourenço Marques tentar falar com o governador-geral, projecto que todos sabiam estar destinado ao fracasso.
O ar que lhe fustigava a face enquanto se anichava na moto semeou nele a dúvida. Seria o vento tão forte que fizesse voar o que levava nos bolsos? Deitou a mão ao bolso direito das calças e constatou que estava vazio. Alarmado, pôs a mão no outro bolso. Sentiu a textura do papel e exalou um suspiro aliviado; não o perdera. Era reconfortante saber que pelo menos trazia ali a informação que poria fim a quase três semanas de ansiedade em relação a Sheila. Fora difícil, mas após grande insistência o pessoal do hospital lá se compadecera e acabara mesmo por lhe dar a morada de casa da namorada.
A Famel Foguete chegou ao cruzamento do Hotel Zambeze. Virou à direita para o posto do calhambeque e Diogo apercebeu- se de uma coluna de Berliets estacionada no sentido oposto com uma companhia de boinas vermelhas na carga a beber cerveja. Deteve-se nos rostos e reconheceu os homens da 6ª Companhia de Comandos; tinham um ar fatigado.
Hesitou, indeciso em relação ao que fazer. Deveria falar-lhes ou seria melhor fazer de conta que não os vira? A lembrança da grande matança na aldeia era demasiado dolorosa e inclinou-o para esta última decisão. Carregou na embraiagem e, com um movimento do pé, engatou a primeira.
"Então, grande campeão? Por aqui?"
Ainda pensou em fingir que não escutara a voz de Angelino e arrancar, mas uma ligeira hesitação deitou tudo a perder. O comandante dos comandos apareceu-lhe ao lado com uma garrafa de Laurentina preta na mão e a oportunidade esfumou-se.
"Olá, Angelino", cumprimentou Diogo sem sorrir. "Não é um pouco cedo para começar a beber?"
O boina vermelha contemplou a garrafa.
"Bebo para esquecer."
"Esquecer o quê? As mulheres e as crianças que mataste?"
"Também."
Uma forte essência de after-sbave atingiu Diogo com a força de uma lufada de vento. O furriel fez uma careta e desviou o rosto, tentando fintar o odor forte.
"Porra!", exclamou Diogo. "Tresandas a Old Spice, pá! Despejaste um frasco na cabeça ou quê?"
Angelino esboçou uma expressão agoniada e colou o nariz ao lenço verde.
"Ainda cheiro muito?" Estalou a língua, contrariado. "Que merda!..."
"O que aconteceu?"
O comando revirou os olhos, engoliu mais um trago de Laurentina e depois arrotou.
"Ah, pá! Nem me fales, caraças!" Novo arroto. "Sabes de onde venho agora?"
"Do Mazoi?"
Angelino abanou a cabeça.
"De Wiriyamu, porra!"
"O quê?", admirou-se Diogo. "Da aldeia onde?..."
"Essa mesmo."
"O que foste lá fazer?"
O comandante dos comandos voltou a colar o gargalo da garrafa aos lábios e, içando-a bem alta, engoliu o que restava da cerveja. Depois limpou a boca à manga da camisa e fez uma expressão de enjoo que culminou em mais um arroto.
"Fui outra vez chamado à ZOT, pá", disse. "Parece que houve um médico que foi à aldeia e viu aquela merda toda que para lá fizemos com os pides. A informação transpirou para os padres espanhóis e já há uns zunzuns a circular sobre o assunto. Por causa do filho da puta desse médico, o GPZ vai amanhã enviar um heli para sobrevoar a aldeia com uma equipa da delegação de saúde."
Até aí a sustentar a conversa apenas por delicadeza, estas referências despertaram a atenção de Diogo.
"Disseram-te onde está esse médico?"
"Com a PIDE, acho eu. Então, por causa do heli que o GPZ vai..."
"A PIDE aqui em Tete?"
Angelino franziu as sobrancelhas, admirado e irritado com a insistência.
"Sei lá!", exclamou com um encolher de ombros. "Ouvi dizer na ZOT que o gajo foi despachado para Nampula, ou o raio que o parta. Mas que interessa isso?"
A informação fez Diogo estreitar inadvertidamente os olhos. Nampula? Isso queria dizer que o tio fora enviado para o quartel-general do general Kaúlza de Arriaga. Mas o que lhe quereriam em Nampula? Era de qualquer modo uma informação preciosa, que teria de comunicar à tia Mimicas antes de ela partir para Lourenço Marques; talvez pudessem fazer alguma coisa para chegar até ao tio. Preocupado de momento em manter o seu interlocutor na ignorância quanto à sua ligação familiar com o médico indiscreto, o furriel esboçou um gesto de indiferença.
"Continua."
"Como te estava a dizer, por causa do voo amanhã do heli do GPZ recebi ordens para voltar à aldeia e limpar aquela merda toda."
"Mas isso já foi feito", admirou-se Diogo. "Maior limpeza do que aquela parece-me impossível..."
"Desta vez limpar significa enterrar os mortos e pôr tudo num brinco", esclareceu Angelino. "De modo que eu e os meus homens tivemos de lá voltar esta manhã, vinte dias depois da operação." Fez um gesto vago para cima. "Estás-me a topar este calor? Agora imagina o cheiro de centenas de corpos a apodrecerem durante vinte dias com esta temperatura." Revirou os olhos. "Puf, era um fedor que não se podia!" Tocou no lenço verde. "Tive de encharcar o lenço de after-shave e tapar a cara com ele para aguentar o cheirete. E os corpos eram um nojo... Estavam inchados e com nuvens de moscas à volta, vê lá tu! Abrimos uma vala e atirámos para lá toda aquela porcaria, mas não foi fácil, pá. Nem imaginas a sorte que tiveste em já não estares connosco. Olha, sabes o que me aconteceu? Pus-me a puxar um cadáver e o braço do tipo desprendeu-se-lhe do tronco e fiquei com ele na mão." Soltou um risinho nervoso. "Estás-me a ver esta merda? Fiquei com a porra do braço na mão! Agh, que nojo!" Mirou a garrafa vazia que ainda agarrava. "Venho de lá agora e já emborquei duas Laurentinas para ver se descontraio."
O relato deixou Diogo agoniado. Sentiu uma necessidade imperiosa de sair dali quanto antes, mas percebeu que, para o poder fazer, teria primeiro de mudar de assunto. Desviou por isso os olhos para a coluna de Berliets estacionada ao longo da rua.
"Onde vão vocês agora?"
"De férias para a Ilha de Moçambique. Sol, praia, camarões... O Kaúlza quer-nos fora de Tete o mais depressa possível. Por mim, maravilha!"
Reequilibrando-se na motorizada, Diogo engatou a primeira, fez força com o pedal para testar o motor, forçou um sorriso, ergueu a mão, acenou.
"Então boas férias!"
E arrancou, afastando-se no meio de grande estrépito e da nuvem de fumo azulado que a Famel Foguete ia deixando no seu rasto.
As ruas esburacadas dos subúrbios obrigaram Diogo a abrandar. Tete nunca fora famosa pela qualidade das suas artérias, mas aquela faixa poeirenta tinha tantos buracos que lhe deu a impressão de estar a fazer um motocross entre as crateras da Lua. Teve assim de ziguezaguear em torno das covas, como se a Famel Foguete estivesse embriagada, e progrediu a um ritmo tão lento que era acompanhado pelas pessoas a pé.
Com uma pontada de nostalgia em pleno peito, reconheceu de repente a picada que saía da rua. Vacilou um instante, tempo apenas para se refazer das emoções que aquele lugar lhe suscitava, e enfiou pelo trilho. Fora ali, escondidos atrás de um arbusto e iluminados pelo hálito suave das estrelas, que ele e Sheila tinham feito amor pela primeira vez. Buscou com o olhar o recanto onde isso acontecera, mas à luz do dia era tão diferente que desistiu. Fora por ali, e era tudo.
A picada desaguou numa clareira cercada de palhotas e ao lado de uma estrada grande e muito movimentada. Diogo percebeu que o trilho constituía apenas uma maneira de cortar caminho e que a estrada esburacada onde desembocara era a mesma na qual havia circulado minutos antes.
Imobilizou a motorizada e, apoiando-se na perna apesar de permanecer sentado na Famel Foguete, tirou do bolso o papel com as indicações que lhe haviam dado no hospital. Consultou a folha e ergueu a cabeça, comparando a informação com o que via. As cubatas alinhavam-se em filas mais ou menos ordenadas e a casa de Sheila, a acreditar naquelas indicações, deveria estar na primeira fila, à beira da estrada.
Percorreu as palhotas com o olhar e avistou uma mulher a sair de uma delas com um bebé atado às costas e um balde de plástico equilibrado na cabeça.
"Desculpe, minha senhora", interpelou-a. "Onde é a casa da Sheila?"
A mulher hesitou perante a farda, mas depois apontou para a terceira casa da primeira fila.
"É na Aissa, patrão."
Diogo agradeceu e estacionou diante da palhota. Tratava-se de uma cubata grande, cercada por uma vedação baixa e com algumas partes mal pregadas, embora fosse suficiente para circunscrever a circulação de várias galinhas do mato que deambulavam pelo perímetro; os contornos da vedação davam a impressão de que existia um quintal traseiro.
Depois de deixar a motorizada, o soldado deu uns passos vacilantes, ajeitou a farda, sacudiu uma mancha de pó que lhe sujava o peito e plantou-se diante da palhota.
"Sheila!", chamou. Depois mais alto: "Sheila! Estás aí?"
A cabeça de uma idosa emergiu da sombra da palhota. A mulher observou-o com ar indagador.
"Boa tarde. Posso ajudá-lo?"
"Desculpe, minha senhora", disse Diogo numa voz subitamente suave e adocicada. "Estou à procura da Sheila. Ela está?"
A idosa estreitou os olhos, desconfiada.
"O que lhe deseja o senhor?"
"Precisava de falar com ela. É um assunto da maior importância."
"A Sheila não está."
"Não me sabe dizer quando volta?"
A mulher pareceu interessar-se pelo estranho que lhe aparecera à porta. Deu dois passos trémulos e inclinou-se na direcção de Diogo, estudando-lhe o rosto mais de perto.
"Quem é o senhor?"
"Eu?" A pergunta atrapalhou o furriel, que não sabia o que devia revelar. Teria Sheila contado tudo àquela velha? Ou não teria revelado nada nem queria que ela soubesse o que quer que fosse? O melhor, concluiu, seria improvisar uma desculpa. "Eu sou... uh... um amigo. Um amigo que... que a enfermeira Sheila tratou no hospital. Vinha-lhe agradecer."
"Um paciente?"
"Isso." Foi a vez de ele se inclinar na direcção da idosa. "E a senhora? Quem é?"
"Eu sou a Aissa. A avó da Sheila."
A face de Diogo abriu-se num sorriso caloroso e sincero.
"Ah, muito prazer!", exclamou com jovialidade. "A Sheila falou-me muito de si."
"Ai sim? E disse bem?"
"Com certeza", assentiu o soldado. Espreitou a entrada da porta da palhota. "A senhora disse que a Sheila não está. Sabe -me dizer quando é que ela volta?"
Aissa abanou a cabeça.
"Não volta."
A notícia fez Diogo sentir um baque.
"Não volta? Porquê?"
"A Sheila foi para Lourenço Marques."
O furriel abriu a boca de surpresa. A informação deixou-o pasmado, mas ao mesmo tempo explicava muita coisa, em particular o silêncio dela em resposta às muitas cartas que lhe remetera nas últimas semanas. Isso era importante, considerou, porque lhe indicava que o mutismo de Sheila resultava simplesmente de a namorada não ter recebido as missivas em que ele explicava em detalhe o que sucedera na aldeia e o seu papel nos acontecimentos. Diogo acreditava firmemente que, quando ela lesse ou escutasse essas explicações, saberia perdoar-lhe. Essa convicção foi reforçada quando se apercebeu de que a rapariga partira para Lourenço Marques e portanto não havia lido as cartas. A sua primeira reacção foi por isso de alívio.
Porém, a atenção deteve-se de novo na informação que a avó da namorada lhe dera e descobriu-lhe um ângulo intrigante que não valorizara à primeira. Sheila partira para Lourenço Marques?
"Ó dona Aissa, o que foi ela lá fazer?"
Um sorriso luminoso, embora desdentado, rasgou o rosto enrugado da velha Aissa, os olhos pequenos e negros a brilharem com a emoção de quem sentia que havia cumprido enfim o seu desígnio nesta vida.
"A minha Sheila casou-se anteontem."
"O quê?"
A face da velha irradiava uma alegria incontida, como o Sol do meio-dia a brilhar sobre o Zambeze.
"Ela e o Ismael vão-me dar um bisneto, graças a Deus."
O rosto do homem eternizado na estatueta de pau-preto apresentava-se recortado por traços rasgados na face e na testa, os dentes afiados em triângulo como os de um tubarão. Era possivelmente a quinta vez que José Branco visitava o Museu Etnográfico, mas já estava em Nampula havia mês e meio e aquela parecia-lhe a melhor maneira de passar o tempo.
Deu uns passos para o lado e observou a figura seguinte. Tratava-se de outra estatueta maconde em pau-preto, desta feita de uma mulher a pilar o pilão com uma criança às costas. Quantas vezes não vira ele uma imagem assim, mas em carne e osso, nas suas deambulações pelo distrito de Tete? Apreciou o olhar do artista maconde e a forma como captara a postura da mulher.
"Olá, tio."
A voz apanhou-o de surpresa. Voltou-se para trás e viu um militar de camuflado e uma boina castanha nas mãos.
"Diogo! O que estás aqui a fazer?"
O sobrinho olhou em redor, certificando-se de que não havia ninguém suspeito nas redondezas. O museu estava vazio àquela hora da manhã e apenas se lobrigava em redor um empregado que languescia numa cadeira, a cabeça tombada de sonolência, o queixo a colar-se ao peito e um pingo de saliva a espreitar do canto da boca entreaberta.
"Temos andado maningue preocupados consigo", murmurou Diogo. "O tio está bem?"
"Iá, têm-me tratado bem."
"O que lhe querem eles?"
"Eh pá, ainda não percebi. A PIDE trouxe-me para aqui e alojaram-me num quarto do quartel sem poder comunicar com ninguém. Nem telefonemas, nem cartas... nada. Estou em isolamento total. Depois uns oficiais chamaram-me e pediram-me que descrevesse o que vi na aldeia. Não se passou mais nada."
"Ah, ainda bem."
Acossado pela saudade, o médico vacilou, quase como se receasse formular a pergunta.
"Tens notícias da Mímicas?"
"Tem andado raladíssima consigo. Ia apanhar o avião para Lourenço Marques para tentar saber de si, mas logo que descobri que o tio tinha sido enviado aqui para Nampula fui falar com ela e andámos uma semana a congeminar um plano."
"Foste à Beira falar com ela?"
"Qual Beira? A tia Mimicas está em Tete..."
A novidade extraiu de José um suspiro de alívio.
"Graças a Deus que voltou", murmurou. Hesitou, como se reordenasse os pensamentos. "Tenho andado preocupado com a irmã Lúcia e a Sheila, que foram comigo a uma aldeia que... enfim, que está na origem de toda esta chatice. Tens notícias delas?"
"A freira foi expulsa e recambiada para Espanha", anunciou o sobrinho. O olhar turvou-se e a voz fraquejou-lhe quando a seguir teve de se referir à ex-namorada. "A Sheila foi para Lourenço Marques e... e casou."
O médico limitou-se a assentir com a cabeça enquanto digeria as novidades, os olhos pejados de emoção mas a boca comprimida num silêncio meditativo. Em condições normais aquelas novidades seriam espantosas, mas nesse momento já nada o assombrava. Sentiu-se até aliviado por elas. Se a irmã Lúcia tinha sido expulsa, estava já fora do alcance da PIDE, e o casamento de Sheila punha-a também em segurança em Lourenço Marques.
"E tu?", perguntou por fim. "Que estás aqui a fazer?"
"Consegui uma licença de uma semana e vim cá a mando da tia Mimicas."
"Ai sim?", admirou-se José. "Isso tem alguma coisa a ver com o plano de que falaste há pouco?"
Diogo aquiesceu e lançou novas miradas inquietas em redor, sempre preocupado em assegurar-se de que ninguém os estava a escutar.
"Se não fizermos nada, temos medo que lhe possa suceder alguma coisa", disse num tom tenso. "Os gajos já foram limpar a aldeia e fazer desaparecer os cadáveres. Não sabemos que destino querem dar às testemunhas. A freira e a Sheila não parecem problemáticas, mas o tio é diferente. Se o director do hospital de Tete, que ainda por cima também é delegado de saúde, presidente da Cruz Vermelha e director do Serviço Médico Aéreo, vier a público falar numa coisa destas... está a ver a chatice, não está? Foi por isso que o trouxeram aqui para Nampula e o mantêm incomunicável. Achamos que estão a decidir o que lhe irão fazer." Fez um gesto vago com as mãos. "Por isso fui com a tia Mimicas à Beira falar com um advogado que ela conhece e que activou..."
"O Rouco."
"Isso. Ele activou uns contactos que tem no estrangeiro e obteve uma informação muito interessante. Parece que uns padres espanhóis de uma missão perto de Tete, a missão de... de São Paulo, acho eu..."
"São Pedro."
"Ou isso... disseram-lhe que já escreveram um relatório sobre o que se passou na aldeia. Ao que consta, o texto encontra- se nas mãos de jornalistas importantes."
A novidade surpreendeu José.
"A sério? Então isso vai rebentar a qualquer momento!..."
O sobrinho fez uma careta e abanou a cabeça.
"Não necessariamente", disse. "Parece que os jornalistas acham o relatório demasiado fantasioso e perguntaram aos padres se eles foram à aldeia ver se efectivamente lá estavam os cadáveres. Os espanhóis admitiram que nunca estiveram lá e explicaram que os relatos que constam dos seus relatórios foram feitos apenas com base em testemunhos de sobreviventes. Acontece que os jornalistas desconfiam que esses sobreviventes sejam turras e que tudo isto não passe de uma acção de propaganda." Diogo falou muito depressa e teve de fazer uma pausa para recuperar o fôlego. "O doutor Rouco foi informado de que nada será publicado."
O desfecho inesperado da narrativa desapontou o médico, a esperança a fugir-lhe como pó lançado ao vento, a decepção a gotejar-lhe na voz fatigada.
"Nada de nada?"
O furriel fez um gesto veemente com a mão.
"Nada." Respeitou um curto silêncio. "A não ser..."
Aquele início de frase ficou em suspenso, destrancando uma porta sem contudo a abrir.
"A não ser o quê?", atalhou José, como se a esperança emitisse um derradeiro sopro. "Publicam ou não publicam?"
O sobrinho olhou mais uma vez em redor, certificando-se de novo de que ninguém os escutava, e inclinou-se na direcção da orelha direita do médico.
"Eles dizem que publicam só numa condição", sussurrou, tão baixo que o tio, apesar de ter o ouvido quase encostado aos lábios de Diogo, teve dificuldade em escutá-lo. "Precisam de uma testemunha independente e credível que lá tenha estado, alguém que não possa de modo algum ser associado aos turras."
O furriel afastou a cabeça e ficaram os dois a fitar-se. José digeria em toda a sua extensão as implicações e as ramificações daquela condição.
"Ou seja", concluiu o médico, "precisam do meu testemunho."Diogo remexeu nervosamente a boina castanha que tinha nas mãos.
"Eu também podia testemunhar."
"Tu?"
"Estive na aldeia e vi tudo", admitiu, baixando a cabeça. "é uma história muito complicada que lhe contarei depois. Só que estive lá como soldado e o doutor Rouco disse-me que eu poderia acabar morto se abrisse a boca. Como sou tropa, levavam-me para uma missão no mato, davam-me um tiro nas costas e diziam que tinha sido um turra. Tem por isso de ser um civil respeitado." Voltou a encarar o seu interlocutor. "O tio Zé."
"Querem então publicar o meu testemunho."
"Querem publicar o relatório dos padres", corrigiu o sobrinho. "O seu testemunho destina-se apenas a garantir que esse relatório não é fantasioso. Claro que também pode ser publicado, mas o doutor Rouco opõe-se. Acha que seria demasiado perigoso para si e, além disso, desnecessário. Basta que valide o relatório da missão de São Pedro e os jornalistas publicam tudo."
José considerou os problemas logísticos que a questão suscitava.
"E como farão vocês para fazer chegar o meu testemunho a esses jornalistas? Olhem que o Rouco está sob vigilância da PIDE..."
Diogo afinou a voz.
"Será o Ernesto", revelou. "Ele tem uns contactos no mato e levará em mãos a sua confirmação até à Zâmbia. Um padre inglês que se encontra em Lusaca encarregar-se-á do resto."
Ficaram os dois a fitar-se, tio e sobrinho, ambos plantados naquela esquina do Museu Etnográfico de Nampula, as palavras enfim trocadas, o que havia a dizer já dito, a decisão final tinha agora de ser tomada. Sentindo que chegara o instante da verdade, talvez aquele para o qual nascera e se preparara a vida inteira, José desviou a atenção para a janela e respirou fundo, os olhos presos às folhas de uma palmeira que ondulavam ao vento, a retina a captar uma sucessão de rostos que lhe desfilaram pela mente. Dizem que se revê a vida no momento anterior ao da morte, o tempo vertido como areia que uma ampulheta despeja na eternidade, mas ao médico isso aconteceu nos segundos que precederam a decisão.
A maneira de um filme acelerado, as imagens a sucederem-se como silhuetas projectadas pela luz ténue da sua memória, lembrou-se do pai, que lhe ensinara a diferença entre o bem e o mal, do professor Pina, que lhe explicara os seus deveres enquanto médico, de Domingos a ser expulso do hospital de João Belo pela afronta de ser preto, de Mimicas a responder com um acto de amor à sua traição, de Ernesto, que salvara e que agora o queria salvar, do sobrinho que atravessara o Norte de Moçambique para lhe levar a redenção, talvez sem consciência de que a buscava também, e sobretudo da criança, do menino que naquela manhã fatídica vira emergir do abraço protector da mãe carbonizada como se tivesse nascido uma segunda vez, devolvido à vida por um branco trajado de branco, resgatado da morte por um acto de amor.
Nesse instante José poderia ter chorado. As lágrimas chegaram ainda a brotar-lhe no olhar embaciado, trémulas e teimosas, e uma tristeza lassa derramou-se num suspiro profundo. Mas resistiu. Suportou a comoção que ameaçava afogá-lo e o medo que lhe tolhia os movimentos, e, com a força de quem enfrenta a sombra mais aterradora, mergulhou na treva sabendo que ela era afinal a luz. O seu rosto abriu-se devagar e os lábios, mesmo vacilantes, acabaram por formar um sorriso, primeiro tímido, depois luminoso, um sorriso tão vivo que se tornou certeza e a seguir determinação, como se tivesse afundado o dedo no anel e assim ficado invisível, confrontado enfim com ele mesmo, a sua consciência, o sentido de decência, o dever de proceder bem fossem quais fossem as consequências, porque forte é aquele que enfrenta os fortes quando a causa é justa.
Chegara a hora de José Branco cumprir o seu destino.
Epílogo
A pequena mesa estava preparada com uma elegância simples, como era hábito naquele palacete, com um copo de sumo de laranja fresco, umas fatias de pão de Mafra ainda quente, um frasco dourado de mel transmontano, manteiga açoriana, um queijo da serra da Estrela derretido no prato e uma cafeteira de café acabado de fazer. O homem impecavelmente vestido de fato e gravata entrou na salinha, ocupou o seu lugar habitual e ajeitou o guardanapo no regaço.
"Ó dona Conceição!", chamou. "Dona Conceição?!"
Uma mulher rechonchuda, de bochechas coloridas como uma camponesa, entrou na salinha a esfregar as mãos anafadas no avental.
"Sim, senhor presidente do Conselho?"
"Não me arranja umas torradinhas?", disse o homem. "Estavam-me mesmo a apetecer..."
"Com certeza, senhor presidente do Conselho. Vou já preparar."
Dona Conceição saiu em passo lesto em direcção à cozinha, deixando o presidente do Conselho sozinho na sala. O governante desviou a atenção para a verdura que se estendia para lá das janelas; a manhã nascera tépida, embalada pelo trinfar melodioso das andorinhas que saudavam o novo dia e iluminada pelo Sol que espreitava ainda baixo sobre as árvores do jardim do palacete. Que dia bonito, pensou com melancolia. Apeteceu-lhe ir lá para fora gozar a manhã de Verão, mas sabia que o desejo não passava de fantasia; sentia-se demasiado tolhido por obrigações para se poder distrair com prazeres frívolos.
Suspirou com resignação e pegou numa pasta que o seu chefe de gabinete lhe havia deixado, como de costume, na mesinha ao lado da cadeira. Abriu-a e pôs-se a reler o decreto que tinha preparado para assinar. O documento, identificado no topo da folha como "Decreto-Lei n.° 353/73", autorizava os oficiais milicianos do quadro de oficiais a ultrapassarem os do quadro permanente das Forças Armadas nas suas promoções, desde que frequentassem um curso intensivo na Academia Militar equiparado aos cursos normais. Era uma medida necessária, uma vez que o Exército não conseguia produzir capitães em número suficiente para as necessidades operacionais, pelo que urgia ir buscá-los aos milicianos. O problema é que a solução colidia com o princípio da antiguidade. Os oficiais de carreira não iriam gostar, pensou, mas que poderiam fazer? Uma revolução?
Fez deslizar os olhos pelo documento e pousou-os no espaço em branco por baixo de "O Presidente do Conselho de Ministros". Tirou a caneta do bolso do casaco e garatujou a sua assinatura.
Marcello Caetano.
O telefone tocou e ouviu uma voz masculina atender. Era o chefe de gabinete, que entrara ali no palácio de São Bento logo pelas seis da manhã para lhe preparar a agenda do dia. Escutou-lhe os sapatos a calcorrearem o soalho em crescendo, sinal evidente de que se aproximava, e viu-o invadir a salinha do pequeno-almoço com uma bandeja a sustentar o telefone negro, o fio enrodilhado a desdobrar-se pelo chão.
"Bom dia, Augusto", cumprimentou Marcello Caetano. "Nem o pequeno-almoço me deixam tomar em sossego, hem?"
"É verdade, senhor professor."
O presidente do Conselho assentou o olhar desanimado no telefone pousado na bandeja; sabia que quando lhe ligavam era só para resolver problemas ou para comunicar aborrecimentos. Ou eram chatices relacionadas com a guerra no Ultramar, ou eram os protestos nas Nações Unidas, ou era um novo encarecimento do petróleo, cujo preço por barril quadruplicara desde o início do ano e fizera disparar a inflação. Enfim, raramente dali vinham boas notícias.
"O que é agora?"
O chefe de gabinete depositou a bandeja na mesa, mesmo ao lado do copo de sumo de laranja.
"É o senhor embaixador em Londres, senhor professor", anunciou. "Diz que tem muita urgência em falar com o senhor."
"Ah!", exclamou Marcello Caetano, subitamente entusiasmado. "é por causa da minha ida a Londres na próxima semana. São os seiscentos anos do Tratado de Aliança. Ah, vai ser uma rica comemoração!" Indicou uma cadeira vazia. "Sente-se aí, Augusto. Ponha-se à vontade, homem. Coma alguma coisa!"
"Obrigado, senhor professor."
O chefe de gabinete ocupou o lugar à mesa e o presidente do Conselho agarrou o telefone. Com tantos problemas aborrecidos na governação, quase todos derivados da guerra no Ultramar, era um verdadeiro bálsamo poder falar de coisas agradáveis. A visita a Londres para celebrar a velha aliança, pressentiu, seria uma delas.
"Senhor embaixador, bom dia!", saudou com jovialidade. "Já tem tudo engalanado para a visita?"
"Bom dia, senhor presidente do Conselho", retorquiu a voz do outro lado da linha. "Sim, está tudo a andar."
"E o encontro com a rainha? Tudo afinado?"
"A recepção vai ser no Palácio de Buckingham. O protocolo está todo tratado."
"E a imprensa? Vamos ter uma cobertura em grande?"
A voz do outro lado hesitou."Pois, senhor presidente do Conselho, a imprensa... enfim, é justamente por isso que lhe estou a ligar."
O tom sombrio que só então detectou na voz do embaixador constituiu um sinal de alerta. Marcello Caetano franziu o sobrolho, subitamente preocupado.
"O quê!? Não me diga que os jornalistas não vão dar atenção à visita!... Só nos faltava mais essa!"
Nova hesitação do embaixador.
"O problema não é bem esse, senhor presidente do Conselho", devolveu. "Receio até que eles nos venham a dar demasiada atenção..."
"Demasiada atenção? Ó homem, desde quando é que a atenção da imprensa é demasiada?"
O embaixador fez um estalido contrariado com a língua.
"É por causa do Times, senhor presidente do Conselho. O jornal encheu toda a primeira página desta manhã com uma notícia... enfim, desagradável. E também o editorial. Isto é um problema. As rádios não falam de outra coisa e já recebi aqui uma data de telefonemas da imprensa. Os telefones não param de tocar, parece um concerto. Um horror! Até a BBC quer uma declaração para o Nine 0'Clock News! Já tratei de remeter para Lisboa vários exemplares do Times, claro. Devem seguir no primeiro voo da TAP e espero que estejam aí ao princípio da tarde, se Deus quiser. Convinha talvez dar instruções para alguém ir ao aeroporto buscar a encomenda. Ainda há pouco eu dizia aqui ao meu attaché que a TAP, por vezes, não revela o devido cuidado com as malas diplomáticas e que..."
A forma como o embaixador falava sobre o assunto, dizendo que havia um problema mas evitando explicá-lo e perdendo-se até em minudências irrelevantes, constituiu um novo sinal de alerta. E dos grandes. Por esta altura já Marcello Caetano não tinha dúvidas de que, fosse o que fosse o que aí vinha, não seria agradável. Mais um aborrecimento! Respirou fundo, como habitualmente quando se preparava para as más notícias, e enfrentou o bocal do telefone.
"Ó senhor embaixador, deixe-se lá de rodeios", murmurou numa voz subitamente despida de emoção, mero registo monocórdico tão gelado quanto o olhar que ostentava nesse momento. "Que notícia é essa que o Times publicou?"
O embaixador manteve-se um tudo-nada silencioso, provavelmente também ele a ganhar coragem para lidar com a informação, e pigarreou antes de voltar a falar.
"Senhor presidente do Conselho", começou por dizer. "Por acaso já ouviu falar de um lugar chamado Wiriyamu?"
Nota final
Apesar de ter desempenhado um papel na confirmação do massacre de Wiriyamu, nunca à minha frente o meu pai falou sobre o que viu no dia em que visitou a aldeia destruída. Em bom rigor, não tinha por hábito trazer para casa as questões e os problemas que enfrentava no trabalho. Aconteceu uma ou outra vez fazer diante de mim uma referência bem-humorada a um qualquer aspecto da sua vida profissional no mato, como a amizade que estabelecia com os feiticeiros das aldeias ou aquela vez em que lhe ofereceram um elefante bebé para lhe agradecer a ajuda que prestava, mas jamais uma exposição estruturada de tudo o que fez ou lhe aconteceu.
Assim, tudo o que sei sobre a sua vida até ao dia do massacre resulta do que me disseram as pessoas que o conheceram e com ele viveram essas situações. Lembro-me, porém, de viajar com o meu pai de e para o Songo no Piper Cherokee do Serviço Médico Aéreo, de sobrevoar o Zambeze do Songo até Tete e observar lá em baixo o espantoso espectáculo do banho dos elefantes e dos hipopótamos e dos antílopes e dos crocodilos, e de uma vez ter feito o périplo semanal do serviço na companhia do meu amigo Nuno Canhão, filho mais velho do comandante da PSP de Tete.
Como facilmente se depreende das minhas palavras, esta obra é pois inspirada em factos reais, embora livremente ficcionados. As narrativas amorosas são puras invenções, uma vez que coisas dessas raramente alguém relata a um romancista, mas decerto que em África, e naquele tempo, decorreram muitas histórias semelhantes. Afinal não havia televisão para entreter... As outras histórias são quase decalcadas da realidade ou ficções inspiradas em coisas que realmente aconteceram e que comprimi aqui e ali para o romance.
A ficção é particularmente livre no final do livro. Embora tenha sido levado para Nampula e permanecido incomunicável durante meses, nunca o meu pai contou o que lá se passou, para além de que havia sido "bem tratado". Sei que fez um protesto na qualidade de presidente da Cruz Vermelha de Tete e há múltiplas informações de que ele terá de facto preparado um relatório sobre o que testemunhou em Wiriyamu, mas nunca vi esse documento.
O inspector Joaquim Sabino, da DGS em Tete, afirmou ter- lhe ordenado que não mostrasse o relatório a ninguém. Não sei se o fez ou não. O facto é que o padre Hastings, que denunciou o massacre no The Times, o cita como fonte de informação. E, na preparação deste romance, cruzei-me no Hotel Polana, em Maputo, com um velho conhecido do meu pai que me disse que, pouco tempo depois do massacre, ele lhe contou pormenorizadamente tudo o que vira na aldeia, sinal de que não cumpriu a ordem de silêncio.
Para todos os efeitos, e embora Wiriyamu tenha constituído o maior embaraço público de Portugal na guerra em África, esta obra não é exclusivamente sobre os trágicos acontecimentos nessa aldeia. É antes um romance sobre os Portugueses na África onde nasci, um registo ficcional de um pedaço da nossa história que procurei abordar nas suas múltiplas contradições e evitando as colorações ideológicas que tendem a simplificar os factos e as suas causas. A história é feita de histórias e são elas que a tornam viva.
Devo agradecimentos a um conjunto de pessoas que se disponibilizaram para me ajudar na reconstituição dos factos e sobretudo do espírito daquele tempo. Obrigado à minha mãe, Maria Manuela Matos; à minha tia Rosalina Rodrigues dos Santos; ao meu tio coronel Mário Rodrigues dos Santos — todos pelas narrativas de família que serviram de inspirarão a este romance. Ao meu primo Carlos Marques, que comigo partilhou a sua experiência de guerra em Tete; a Djamila, a enfermeira que com o meu pai e a irmã Lúcia foi a Wiriyamu logo a seguir ao massacre; ao Augusto Macedo Pinto, pela ajuda e pelo entusiasmo e também pelo caloroso acolhimento no meu regresso a Moçambique. A Antonino Melo, o homem que comandou a 6ª Companhia de Comandos de Moçambique na operação que culminou no massacre de Wiriyamu e que me relatou ao pormenor tudo o que fez, mandou fazer e testemunhou; a Vinte Pacanate, um dos sobreviventes, que me descreveu o que se passou no dia do massacre; a Lúcio Jeremias, funcionário da PIDE em Tete. A Margarida Canhão, viúva do comandante da PSP de Tete; a Castro Fontes, chefe da Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze e do seu sucessor, o GPZ; a Augusto Coutinho, antigo médico em Cabora Bassa; a Joaquim Prazeres, fundador do Aero-Clube de Tete e piloto ocasional do Serviço Médico Aéreo; a Óscar Ribeiro, outro piloto ocasional do Serviço Médico Aéreo. A António Ferreira dos Santos, Leonardo Júnior, Armando Soares e Carlos Salvador, que me guiaram por Tete. A Serafim Guimarães, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; a Olga Magalhães, também da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; a Amélia Ferraz, directora do Museu de História da Medicina; a Assunção Lima, do Gabinete do Antigo Estudante da Universidade do Porto. Aos funcionários do Arquivo Histórico-Militar, que me facilitaram o acesso à pasta da 6ª Companhia de Comandos de Moçambique; aos funcionários da Biblioteca Nacional; e a Leonor Vaz, da Fundação Calouste Gulbenkian, que me cedeu cópias das deliberações da fundação no apoio ao Serviço Médico Aéreo.
Entre as obras consultadas, destaque para Wiriyamu, de Adrian Hastings; Guerra Colonial, de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes; Guerra de África — Moçambique, de Francisco Garcia; Caetano e o Ocaso do «Império» — Administração e Guerra Colonial em Moçambique durante o Marcelismo, de Amélia Neves de Souto; Memória das Guerras Coloniais, de João Paulo Guerra; Massacres em Africa, de Felícia Cabrita; Memórias do Colonialismo e da Guerra e A PIDE/DGS na Guerra Colonial, de Dalila Cabrita Mateus; A História da P1DE, de Irene Flunser Pimentel; e A Guerra de África, de José Freire Antunes.
O último agradecimento, e o mais importante, vai para a Florbela, como sempre a primeira leitora.
José Rodrigues dos Santos
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