Inglaterra, 1189
Uma magnífica e surpreendente história de obstinação e paixão!
A reputação de sir Payton Murray como amante só se compara às suas proezas com a espada, e é esse último dom que atrai o interesse de Kirstie. Fugindo do marido que pensa tê-la matado, ela quer vingança. Mas sabe que será necessário um bom planejamento, algumas trapaças e a ajuda de um bravo, arrogante e prestativo defensor. Kirstie só espera que sir Payton aceite o desafio.
Correndo o risco de atrair a ira do próprio clã, Payton não pode ignorar a súplica de Kirstie ou sua beleza cativante. Ele sabe que nada a impedirá de fazer justiça, mesmo que tenha de agir sozinha. Unindo-se a ela nessa cruzada, ele embarca em uma perigosa batalha contra um inimigo poderoso e ansioso por destruí-los. Mas a batalha maior é impedir que seu coração seja capturado por Kirstie.
— Sir Payton Murray? A voz feminina aplacou o medo de ter sido surpreendido pelo marido que planejava enganar. Por outro lado, qualquer pessoa que o surpreendesse sob a janela do quarto de lady Fraser poderia causar problemas. Bem, havia desenvolvido uma extrema habilidade para escapar de problemas. Era hora de usá-la.
Ao se virar com a intenção de explicar-se para um eventual inimigo, ele ficou sem ação diante do que viu. A mulher era muito pequena e estava ensopada. Os cabelos pendiam em longas tranças encharcadas sobre o vestido igualmente molhado. Desconfiava de que não era apenas o luar que fazia seu rosto parecer tão pálido. O vestido escuro envolvia um corpo magro demais, mas a insinuação de curvas femininas ainda estava ali. Nos pés havia mais barro do que sapatos, e podia identificar a grama do pântano grudada em uma de suas mangas.
— E então? É sir Payton Murray? O intrépido sir Payton?
— Sim.
— O galante e bravo sir Payton?
— Sim, eu...
— O terror de todos os maridos sir Payton? O veloz e letal espadachim sir Payton? O homem por quem as damas suspiram e sobre quem cantam os menestréis?
Havia um tom de ironia na voz dela.
— O que quer?
— É sir Payton?
— Sim, o intrépido sir Payton.
— Na verdade, não me importaria se fosse feio como um ogro. Procuro pelo honrado, galante e perigoso espadachim, sir Payton, aquele que está sempre disposto a defender os mais necessitados.
— Os menestréis exageram.
— Entendo. Senhor, notou que estou molhada, não?
— Sim, eu percebi.
— E não se pergunta por que, uma vez que não está chovendo?
— Confesso que estou um pouco curioso. Por que está molhada?
— Meu marido tentou afogar-me. O idiota esqueceu que sei nadar.
Payton disfarçou o choque. Conhecera muitas mulheres que haviam tentado inúmeros truques para envolvê-lo, mulheres dispostas a tudo para aproximarem-se dele e arrastá-lo ao altar. E, no entanto, nenhuma delas havia mergulhado em um rio lamacento. Se ela queria atraí-lo para uma armadilha, escolhera uma isca bastante peculiar.
— Por que seu marido tentou afogá-la?
— Payton, meu doce cavaleiro, é você? — lady Fraser indagou da janela.
Payton olhou para cima. Quando se virou novamente para a desconhecida que o abordara, ela havia desaparecido.
— Sim, sou eu, minha pomba — ele respondeu, tentando entender a própria decepção.
— Venha até mim, meu ousado cavaleiro. O calor do quarto o espera.
— Seu convite é uma doce tentação minha lady.
Payton virou-se para a parede, onde havia uma escada improvisada com tábuas e oculta entre a vegetação, e só então notou a presença da jovem magra e pálida em meio aos arbustos.
— Pretende deixar-me aqui, senhor?
— Tenho um... compromisso.
Era inquietante descobrir como ela era capaz de esconder-se rapidamente e com eficiência. Não queria nem pensar nos motivos que podiam levar a uma mulher a desenvolver tal habilidade.
— Vá, então — ela sussurrou. — Estarei aqui esperando. Desfrute de sua conquista. Prometo tossir bem alto, caso seus gemidos se tornem audíveis. E se o marido dela aparecer, devo atirar-me sobre ele enquanto você foge?
— Começo a entender por que seu marido quis afogá-la.
— Oh, não, você não poderia nem imaginar.
— Payton, meu belo cavaleiro, você não vem? — lady Fraser soava impaciente.
— Trabalhei duro por isso. — No entanto, sabia que não poderia subir aquela escada naquela noite.
— Duvido muito. Vá em frente. Ficarei aqui esperando, embora não creia que possa ser útil para mim quando descer daquele quarto. Dizem que ela é insaciável, que pode esgotar as energias de um homem.
Payton nunca ouvira tal comentário. Sabia que não era o primeiro a convencer lady Fraser a romper seus votos de fidelidade, mas nunca imaginara que ela já fosse conhecida por tal prática. Insaciável? Bem, esperava que ela não ficasse ofendida por ter de partir sem desfrutar de seus favores.
— Está falando com alguém, meu corajoso coração? — ela se debruçava na janela para olhar em volta.
— Só com meu pajem, doçura. Temo ter de partir.
— Partir? Diga ao garoto para levar uma mensagem anunciando que não poderá ir ao encontro.
— O pobre não sabe mentir. Logo todos saberiam a verdade, e não seria aconselhável que seu marido tomasse conhecimento sobre onde fui encontrado.
— Não. Vai voltar mais tarde?
— Lamento, minha adorável pomba, mas não retornarei hoje. A solução desse problema pode consumir horas, talvez dias.
— Bem, talvez eu aceite suas desculpas. Talvez...
Payton ouviu o estrondo da janela se fechando. Em seguida, olhou para a silhueta oculta entre os arbustos.
— Venha, vamos sair daqui. Precisa de roupas secas e quentes. Seria bom se pudesse manter-se escondida até nos afastarmos da casa.
Deixar o leito de lady Fraser para trás e acompanhar uma mulher que não podia ver ou ouvir o inquietava, mas Payton seguia em frente. Era evidente que a jovem tinha o hábito de esconder-se.
Uma vez na rua estreita que levava à casa de sua família, ele parou e fitou-a, aproveitando a luz que transbordava de uma residência próxima.
— Agora já pode sair.
A primeira coisa que notou foi que ela estava pálida e tremia de frio. Payton removeu o manto e sentiu-se aliviado ao cobrila com o pesado agasalho. A criatura era real. Podia tocá-la. Mantendo um braço em torno de seus ombros magros, empurrou-a para sua casa, deixando para examiná-la melhor depois de abrigá-la em um lugar quente. Lan, seu mordomo, não escondeu o espanto ao vê-lo entrar acompanhado. A condição da desconhecida era intrigante, mas, Payton sabia, o serviçal estava mais surpreso por ver seu senhor chegar em casa acompanhado. Nunca levava uma de suas mulheres além daquela porta ou de qualquer outra de uma de suas casas. Era uma regra antiga que ele seguia com fidelidade.
— Por favor, precisamos conversar — a desconhecida protestou ao ouvi-lo dar ordens a Lan e sua esposa, Alice. O casal devia providenciar um fogo, um banho quente e roupas secas.
— Quando estiver limpa e aquecida, poderá ir me encontrar no salão principal. Qual é seu nome?
— Kirstie, mas meus irmãos me chamam de Sombra.
Um apelido perfeito. Estava curioso para vê-la limpa e arrumada, e esperava que a visão o compensasse pela perda que acabara de sofrer. A noite com lady Fraser teria marcado o fim de um longo período de celibato.
Limpa e seca, Kirstie se deixava pentear por Alice e sentia-se bem melhor. Era mais fácil ignorar os hematomas e ferimentos deixados pela luta pela sobrevivência, mas não conseguia aplacar a ansiedade provocada pelo iminente confronto com sir Payton.
Fraca e consciente do corpo magro e debilitado, resultado de prolongados jejuns impostos por seu marido, um homem que valorizava a disciplina e empregava punições para assegurá-la, ela seguiu Alice até o salão. Teria de abrir mão da pouca vaidade que ainda possuía para revelar sua triste condição, mas agora lutava pela vida, e nada era mais importante que sobreviver. Além disso, tinha de pensar nos inocentes que pretendia proteger e amparar.
Sir Payton levantou-se ao vê-la entrar no salão. Depois, ao vê-la sentada, ordenou que a criada fosse buscar comida, e logo uma impressionante porção de alimentos era posta diante dela.
Kirstie bebeu um gole de cerveja caseira e encarou seu anfitrião. Era fácil entender por que tantas mulheres suspiravam por esse cavalheiro.
O sujeito era a imagem da graça e da elegância e vestia-se como um lorde francês, porém sem excessos. O corpo coberto pelos trajes discretos e elegantes era perfeito, forte e tentador, e tais pensamentos a incomodavam. Não podia esquecer a reputação que o precedia. O homem era um predador, um licencioso. Seus traços eram harmoniosos, másculos, apesar da boca de lábios carnudos. Os olhos eram de um curioso tom dourado realçado por reflexos verdes, eficientes ferramentas de sedução. E os cabelos escuros, presos para trás, pareciam tão macios que convidavam ao toque. Kirstie pensou que sua reputação poderia ser resultado de um mal-entendido, afinal. As mulheres o conheciam e faziam ofertas que ele aceitava sem hesitar, o que não queria dizer que o homem fosse um sedutor incorrigível e inconseqüente.
— E então, minha lady, agora pode me dizer o que a fez sentir-se compelida a buscar-me.
Kirstie terminou de mastigar o pão que havia posto na boca. Sua aparência o fez pensar que o apelido Sombra podia advir não apenas da habilidade de esconder-se, mas dos cabelos claros e longos, agora trançados, dos olhos cinzentos, profundos e expressivos, olhos misteriosos que realçavam a pele pálida como o luar. Seus traços eram quase etéreos, como os de uma ninfa inocente, mas a sensualidade da boca contrariava o conjunto quase infantil.
Forçando-se a desviar os olhos da boca que implorava por um beijo, ele estudou o restante do conjunto. O pescoço era longo e gracioso, o corpo era magro, mas os seios e a cintura formavam um conjunto de curvas tentadoras. Embora exibisse maneiras excelentes, era possível quase sentir a fome que ela aplacava com avidez.
Payton se deu conta de que a queria. Sempre havia preferido as mulheres mais voluptuosas, mas de repente era quase impossível conter a ânsia de tomá-la nos braços e possuí-la.
— Disse que seu marido tentou afogá-la? — perguntou, esperando poder esfriar seu sangue com a conversa séria.
— Sim. Casei-me com sir Roderick Maclye quando tinha quinze anos, há quase cinco. Tentei fazer meu pai mudar de idéia sobre tal escolha, porque, apesar de sua aparência agradável, sir Roderick sempre me causou uma certa inquietação. No entanto, quando não pude oferecer nenhuma razão concreta para não desejar o matrimônio com esse homem, meu pai insistiu na realização das bodas. Finalmente desisti de lutar, levando em consideração a premente necessidade que minha família tinha do dinheiro que sir Roderick deu a eles. Colheitas pobres e outras misérias trouxeram à nossa porta o perigo da fome no inverno, e assim, convencendo-me de que essa atitude era a melhor para mim e meu clã, vesti o manto do nobre martírio e desposei o idiota.
— Mas a união não foi bem-sucedida?
— Não. E nem poderia.
— Por quê? Por acaso é estéril?
— Como posso saber? Não houve nem mesmo a chance de termos um filho. E ter filhos era meu único consolo quando aceitei meu lamentável destino. Mas o homem não foi honesto comigo ou com meus parentes. Ele confessou que a possibilidade de dar-me filhos era muito pequena, quase inexistente, e essa era parte da razão pela qual desejava matar-me.
— Por ser impotente? Bem, reconheço que tal segredo é vergonhoso para um homem, mas matar alguém para assegurar que ninguém o conheça?
— Oh, Roderick não é impotente. Não com todas as mulheres, provavelmente. Acho que era só comigo. Sempre fui muito magra, e aos quinze anos era ainda mais do que hoje. Mesmo jovem, deduzi que o único interesse de meu marido eram as terras que herdei de minha mãe. Minha aparência não importava. No entanto, depois de algum tempo, comecei a olhar com mais atenção para tudo que me cercava. É vergonhoso confessar que me mantive cega e ignorante por quase três anos, aceitando meu pobre destino como uma criatura fraca.
— Era muito jovem. De qualquer maneira, por que não voltou para a casa de sua família e pediu uma anulação?
— E revelar ao mundo que meu marido não suportava a idéia de se deitar comigo? Talvez tenha sido tolice, mas o orgulho me fez calar. Depois de quase três anos, quando pensava na triste sina de viver ao lado de um homem jovem e saudável sem poder desfrutar de tal juventude, comecei a me dar conta de que envelheceria presa naquele casamento vazio, sem filhos, sem esperança, vivendo com um homem que parecia interessado apenas em punir-me por cada pequena falha, real ou imaginária. Quando decidi agir de acordo com tal pensamento... Bem, foi então que descobri a verdade.
— Que verdade? Ele gosta de homens?
— Não. De crianças.
Payton conteve um arrepio de repugnância. Não queria ouvir essa história. Ela despertava memórias tristes, feias. Havia sido um menino bonito e um jovem de rara beleza. Embora houvesse escapado de abusos reais, tomara consciência ainda muito cedo do lado sombrio das pessoas. Parte dele queria que Kirstie partisse e o deixasse fora de toda aquela sujeira, mas uma parte muito maior estava preparada para lutar até a morte contra esse mal em particular.
— Meninos? — perguntou.
— E meninas. Mas, basicamente, meninos. Acho que, como sempre fui muito magra e ainda era nova quando me casei, ele acreditou ser capaz de deitar-se comigo, talvez procriar uma ou duas vezes. Quando descobri a verdade, passei a orar diariamente agradecendo a Deus por Roderick nunca ter se deitado comigo. Francamente, se fossem homens adultos, dois homens de comum acordo, não teria interferido. Não aprovo, mas não considero ser da minha conta. Eu teria proposto um acordo, trocado seu segredo por minha liberdade.
— Tem certeza de que ele se relaciona com crianças? Certeza absoluta?
— Sim, absoluta. Ouvi rumores... Antes pensava que a tristeza das crianças mantidas na propriedade era devida à brutalidade com que ele as tratava. Passei a prestar mais atenção em todos aqueles garotos que ele mantinha por perto, nas carícias, no jeito como os tocava... Não havia nada de paternal naquilo. Decidi espioná-lo em seus aposentos e... Não creio ser capaz de relatar o que vi. Tenho pesadelos horríveis com aquelas cenas. Não sei onde encontrei forças para conter o impulso de entrar naquele quarto e matar o bastardo, mas consegui refrear-me. Ele me mataria, certamente, e então não haveria ninguém para ajudar aquelas crianças.
— Agiu corretamente. Tem provas de tudo que me contou?
— Apenas minha palavra e a de algumas crianças. Os empregados, os colonos... eles imaginam, mas não têm certeza. E todos estão esmagados sob o peso de suas botas, temerosos demais para reagirem. Dois criados da casa me ajudavam, mas só em raras ocasiões, quando a vida de uma das crianças estava ameaçada. Tentei conquistar o apoio e a ajuda dos vizinhos, cidadãos comuns, mas foi inútil. Então, passei a disseminar rumores sobre seus hábitos, sugerindo que os pais não deviam enviar seus filhos para serem treinados por aquele homem doente e sem moral, e isso surtiu algum efeito. Infelizmente, a estratégia também o fez subjugar ainda mais os pobres meninos que já habitavam sua propriedade e outros, aqueles mais pobres que habitavam as cidades onde havia algum representante da corte real. Os mais pobres são os que mais sofrem com a doença desse homem cruel e vil.
— De que doença estamos falando, exatamente?
— Ele obtém prazer e alegria causando dor e morte. De vez em quando ele é dominado por uma urgência de matar.
Payton bebeu sua cerveja e encheu o copo mais uma vez. Não era difícil acreditar que sir Roderick encontrava prazer na companhia de garotos, porque tomara conhecimento de tais coisas há muitos anos. Mas o que Kirstie estava dizendo ia além dos limites da credibilidade de qualquer homem normal.
Parecia impossível que um homem abusasse de crianças e as assassinasse freqüentemente sem nunca ser descoberto.
— Tem certeza do que está dizendo? Um lorde que abusa de crianças e as mata sem ser delatado...
— Por que eu inventaria tais coisas?
— Para livrar-se de um marido indesejado?
— Venha comigo, sir. Talvez deva ouvir outras vozes além da minha.
Payton concordou e, momentos depois, os dois percorriam as alamedas escuras da cidade. Finalmente, pararam diante de uma casa pequena e mal-conservada escondida na área feia e sem recursos onde os pobres eram obrigados a morar. Havia um buraco no piso da casa, e ela o convidou a descer pela estreita abertura. Cauteloso, ele a seguiu e esperou que Kirstie cobrisse a entrada com uma tábua. Depois, ela acendeu uma tocha e revelou uma antiga e úmida despensa, um espaço que não era utilizado há décadas. A luz também revelou os rostos pálidos de quatro ou cinco crianças.
— Tudo bem, meus queridinhos — ela os acalmou, removendo um saco de sob o manto que Payton lhe havia emprestado. — Trouxe comida.
Ela devia ter recolhido a comida enquanto ele havia se retirado para ir buscar agasalhos e uma arma. A cena de desolação e terror confirmava o relato daquela estranha mulher.
Payton estudou as crianças, quatro meninos e uma menina. Todos eram lindos como só as crianças podem ser. Apesar do interesse com que se atiravam sobre a comida, eles o observavam atentos. Estavam com medo, e esse pavor o atingia como uma chicotada.
— Sir Payton Murray não representa perigo para vocês, meus queridos. Ele não conseguia acreditar em tudo que contei, e então decidi trazê-lo aqui para que ele pudesse vê-los. Espero que assim nos ajude.
— Ele está disposto a matar o monstro? — perguntou a menina. — Vai matar o homem mau que me machucou? Só assim poderei sair daqui. E ele vai trazer meu irmão de volta?
— Ah, não, Moira. Seu irmão agora está com os anjos.
— Sim, o bastardo cortou...
— O pequeno Robbie foi morar com os anjos — Kirstie anunciou, interrompendo Callum, o garoto mais velho, com firmeza e ternura.
Callum olhou para Payton.
— Quer que eu conte tudo que aquele animal fez?
— Não é necessário. Posso imaginar, e não gosto nem de pensar nisso.
— Vai nos salvar, sir? — indagou Moira.
— Vai matar o bastardo? — insistiu Callum.
— Callum, sir Payton é um homem de poder e riqueza. Já disse que não podemos simplesmente matar o desgraçado, por mais que ele mereça a morte. Precisamos de provas de sua crueldade, e é preciso tempo para reunir tais provas.
Callum mantinha o olhar fixo em Payton.
— E então, senhor?
Payton sentiu que devia ser honesto com o rapaz. Afinal, ele já havia sofrido muito.
— Sim, eu vou matá-lo.
— Sir Payton, por favor — Kirstie protestou em voz baixa.
— Talvez leve alguns dias — Payton continuou, ignorando-a —, semanas ou meses, mas vou descobrir cada segredo imundo desse homem. Vou privá-lo de seus aliados, de esconderijos seguros...vou expô-lo ao mundo como o demônio que é. Vou arruiná-lo, encurralá-lo, atormentar cada um de seus passos.
— E depois? — quis saber Callum.
— Depois vou matá-lo. A partir desse momento, sir Roderick Maclye é um homem morto que ainda anda pela terra.
O pequeno Alan tremia em seus braços enquanto Kirstie levava todo o grupo pelas ruas escuras e estreitas até a casa de Payton. Ele e outras quatro crianças seguiam seus passos. Apesar da falta de confiança nos homens em geral, todos aceitaram de imediato a proposta de trocar o buraco escuro e úmido por uma casa segura e quente.
Quando entraram pela porta dos fundos, Lan e Alice estavam fazendo sua refeição. A chegada do grupo os assustou.
— Senhor? — Alice levantou-se e começou a encher chaleiras com água para ferver.
— Estas crianças precisam de um esconderijo seguro — ele explicou. — A menina é Moira, o carrancudo perto da porta é CalUim, o pequenino nos braços da lady é Alan, David é o que esta à direita dela, e William é o da esquerda. Precisamos de banhos, roupas limpas, comida e camas. Nessa ordem.
—vou providenciar as roupas e arrumar as camas — disse Lan. — Todos no mesmo quarto?
— Sim! — as crianças exclamaram apavoradas. Minutos depois, enquanto as mulheres ajudavam com os banhos, Payton conduziu Lan ao salão e, depois de servir cerveja em duas canecas, relatou tudo que havia escutado desde seu inusitado encontro com Kirstie.
— Entendo, senhor. Vai matar esse homem — Lan deduziu ao fim do relato.
— Esse é meu plano. Infelizmente, não posso ir até lá e matá-lo devagar e dolorosamente, como gostaria de pôr fim a tão miserável existência.
— Sim, isso causaria problemas.
— Precisamos de provas mais contundentes do que a palavra de uma esposa insatisfeita e cinco crianças pobres.
— Criados? Pessoas que o sirvam em sua casa?
— Eles têm medo. Estão envolvidos demais nos crimes para delatá-los. Além do mais, eles dependem desse homem para sobreviver. Só conseguiremos conquistá-los e obter a ajuda dessa gente quando eles tiverem certeza de que o vilão cairá, quando ele estiver arruinado demais para representar uma ameaça.
— Vai pedir ajuda de sua família?
— Ainda não. Preciso ter uma idéia de quantos obstáculos encontrarei no caminho até esse animal. Alguns Maclye são muito bem colocados e podem exercer impressionante poder. E eles também são ligados por sangue ou casamento a outras pessoas bastante influentes. Nós, os Murray, também temos poder e aliados, mas não vejo nenhuma vantagem em solicitá-los antes de obter provas contundentes. Ele já cometeu um erro.
— Não esperou para ter certeza de que a mulher estava morta.
— Sim — Payton concordou sorrindo —, mas eu estava pensando em como ele impôs sua doença a crianças de boas famílias. Como não houve nenhuma comoção, e ele ainda está vivo, presumo que a vergonha e o medo tenham mantido os pequenos em silêncio. Precisamos encontrar pessoas cujo sentimento de vingança, honra ou justiça seja maior do que o medo. Talvez tenhamos de contar algumas mentiras, usar truques pouco elogiáveis... Enfim, temos de fazer esses familiares agirem como se conhecessem a verdade, porque assim todo o mundo acreditará que eles realmente sabiam sobre o mal que afligiu seus filhos.
— Posso entrar? — Kirstie perguntou cautelosa da porta.
— Sim, minha lady, seja bem-vinda. Os pequenos já estão dormindo?
— Sim, estão limpos, alimentados e aquecidos. Alice insistiu em fazer uma cama para ela perto da porta, o que os confortou ainda mais, e Callum está dormindo ao lado da janela com uma enorme faca ao alcance da mão.
— Quantos anos ele tem?
— Onze. Ele devia ter sido morto, porque estava ficando velho demais para servir ao interesse de Roderick. Além do mais, com o tamanho que tem e a raiva que sente, logo ele se tornaria uma ameaça real. Tentei oferecer ajuda e propor cumplicidade, mas Moira precisava de minha ajuda imediata, e desisti do plano para tirá-la da casa e escondê-la em local seguro. Foi esse gesto que despertou a ira de meu marido contra mim.
— Há quanto tempo está ajudando as crianças?
— Há dois anos, mais ou menos.
— E só conseguiu salvar cinco? Quero dizer, não a condeno, porque salvar uma única criança já teria sido um gesto de heroísmo, mas fico me perguntando que dificuldades encontraremos para encerrar esse lamentável episódio de crueldade e imoralidade.
— Não vai ser fácil. Nesses dois anos, consegui salvar menos de dez crianças. Duas foram levadas por suas famílias, gente simples que acreditava ter encontrado na casa de Roderick uma chance de progresso para os filhos. Eu os ajudei a sair das terras de meu pai. Meu irmão Eudard os ajudou a entrar no vilarejo sem serem notados.
— Ah, então sua família a ajuda?
— Apenas Eudard. Ele achou melhor não contarmos nada aos outros, por enquanto. Todos são muito passionais, e tal assunto os faria brandir espadas e bradar cânticos de guerra. Minha família, meu clã... Bem, todos seriam rapidamente dizimados se atraíssem para si a ira dos aliados de Roderick. Eudard e minha tia Grizel ajudaram a esconder as outras três crianças. Eu os esperava para levarem os outros, mas Eudard fraturou a perna. Quando Percebi que Roderick havia sido informado sobre minha participação na fuga dos garotos, mandei um mensageiro procurar meu irmão e dizer a ele para ficar afastado, porque eu mandaria chamá-lo quando fosse conveniente. Michael Campbell, o mensageiro, ficou hospedado com meus parentes, ou escondido em algum lugar, de acordo com minhas instruções. Ele sempre foi muito leal nos serviços que me prestou, de forma que também correria perigo, se ficasse.
— E se ele for de alguma família influente? Roderick correria o risco de ser importunado por perguntas indesejadas?
— Há sempre rapazes morrendo — Kirstie respondeu com tristeza. — No entanto, saber que sua vida corre perigo pode ser o suficiente para convencer Michael a procurar sua família. Passei meses tentando convencê-lo a contar tudo, mas o medo da vingança de Roderick, a dúvida de que ele seria mesmo punido, e o medo de ser rejeitado pela família por ter sido desonrado, ou coisa parecida, o manteve em silêncio. Creio ter chegado bem perto de banir todo o sentimento de vergonha do coração do rapaz, mas, infelizmente, ele ainda acredita ter tido culpa em tudo que houve. Eudard vai dar continuidade ao meu trabalho. Ele tentará convencê-lo a falar. Sei que é errado, mas a palavra de Michael terá mais valor do que a de Callum ou dos outros.
Payton tinha dificuldade para conter a ira e controlar a repugnância.
— Acha que alguma dessas crianças irá buscar abrigo e apoio junto da família?
— Não, sir. Alan, David e William são órfãos. Roderick é considerado um benfeitor generoso e bom por todos que cuidam de abrigos e orfanatos. Ele trata tais lugares como estábulos particulares. Se uma dessas pessoas delatar suas maldades e a maneira doente como trata as crianças que abriga em sua casa, certamente o dinheiro as fará calar. Moira e o irmão, Robbie, foram vendidos pela mãe. O homem com quem ela vivia era aliado de Roderick, e ela julgava os estar salvando de um destino miserável. Tentei encontrá-la, mas descobri que ela havia sido morta pelo amante, que a espancou ao descobrir sobre a venda das crianças. Callum é uma criança das ruas, quase uma fera. Se um dia teve parentes, eles o abandonaram muito cedo, porque ele não se lembra de ninguém.
— Callum viu Robbie morrer?
— Não. Ele sabe tanto quanto eu. Algumas crianças são... bem, machucadas, e depois desaparecem. Imaginamos onde alguns corpos podem estar enterrados. Robbie tentou manter Roderick longe de Moira, e foi castigado duramente por isso. Eu o encontrei num pequeno quarto escuro, ainda vivo, mas tive de deixá-lo por algum tempo para preparar a fuga. Quando retornei, o menino havia desaparecido.
— Acha que ele pode ter escapado? — quis saber Lan.
— Talvez, mas não ouso ter esperanças nem alimentar as de Moira. Ele era um menino franzino e desnutrido de sete anos de idade, e estava gravemente ferido. A única maneira de escapar seria pelo túnel que eu usei para encontrá-lo, mas não creio que ele o tenha encontrado sozinho. E já se vão quase quinze dias desde que ele desapareceu.
— Entendo. Bem, minha lady, acho que deve ir descansar um pouco. Tente dormir.
— Dormir? Mas... não devemos fazer planos?
— Faremos. Amanhã cedo.
Kirstie assentiu e levantou-se.
— Sim, estou mesmo cansada. Onde devo dormir? com as crianças?
— Não. No quarto diante do deles. Alice deve ter se preparado para passar a noite em vigília. Aproveite para descansar.
— Onde consegue tantas roupas? Posso entender os trajes femininos, porque me lembro de lady Fraser, mas estou surpresa por ter peças pequenas o bastante para caberem em mim. E por que tantas roupas de crianças?
— Minha família também usa esta casa. Todas as roupas foram deixadas aqui por parentes, esquecidas ou abandonadas. Estava começando a pensar em dá-las aos pobres, mas fico feliz por ter hesitado.
— Entendo. Só mais uma palavra, senhor. Suponho que não seja necessário preveni-lo, mas é melhor ser cauteloso com as crianças. Eles vão precisar de tempo até se sentirem capazes de confiar em um homem. Especialmente Callum.
— Sim — concordou Lan. — O menino é como um animal acuado, e está armado com uma faca.
— Oh, Deus. Lamento, mas imaginei que assim ele repousaria melhor.
— Ele vai descansar. Fez bem em deixá-lo com a faca. Talvez ele aceite minhas instruções sobre como usá-la.
— Acha que seria sensato?
— Não consigo pensar em ninguém com maior necessidade de sentir-se protegido.
Kirstie ainda pensava nisso quando foi para a cama. Lan tinha razão. Um garoto da idade de Callum não poderia derrotar um homem adulto, e Callum devia saber disso. No entanto, dominar a arte da luta daria a ele uma esperança de escapar. Reduziria o sentimento de impotência. E isso seria bom. Gostaria de encontrar um meio de livrar-se também dessa horrível sensação de impotência.
— Acha que devemos observá-la. Lan? Receio que lady Kirstie decida agir por conta própria.
— Ela é corajosa, meu lorde, e tem agido com bom senso até agora. Mas qualquer coisa pode acontecer para fazer a emoção superar a razão.
— Nesse caso, quero que ela seja observada. Pelo menos ela está segura, porque o marido a julga morta. Não quero que ela sucumba à emoção e cometa uma insensatez qualquer, porque assim perderíamos terreno para aquele demônio.
— Sim, meu lorde. E precisamos da mulher inteira, porque ela será um instrumento útil para levarmos o bastardo à justiça.
— Exatamente. No entanto, devemos mantê-la escondida até o último instante. Ela é esposa de sir Roderick, e, no momento em que a descobrir viva, ele terá o direito de levá-la daqui e ninguém poderá detê-lo. Seria fácil fazer parecer que ela é apenas uma esposa infeliz e que seus protestos devem ser ignorados. E o fato de ter vindo procurar por mim só fará tudo parecer ainda pior. Seria muito fácil para sir Roderick agir como o homem ferido, ultrajado pela esposa infiel, ou coisa parecida.
— Ah, é claro. Bem, meu lorde, estou muito cansado. Gostaria de saber qual será seu primeiro movimento, e depois irei para a cama.
— O primeiro passo será começar a sujar o nome do miserável, como Kirstie tentou fazer. Um sussurro aqui, um aviso ali... Sim, começarei imediatamente a buscar as provas de que necessito para destruí-lo, mas pelos rumores e pela disseminação da suspeita, atrairei outros olhos na direção dele. Posso começar privando-o de vítimas e fazendo-o começar a sentir o peso dessa desconfiança. Depois virá a condenação.
— Sim, meu lorde. Até seus inimigos aceitam sua palavra como verdade incontestável. Se espalhar rumores, eles serão aceitos sem contestação. Será um bom começo.
Lan despediu-se e saiu. Payton suspirou e acomodou-se melhor na poltrona. Também teria de travar a árdua batalha da emoção contra a razão, uma luta que só teria fim com a morte de sir Roderick. Não acreditava ter enfrentado desafio semelhante. Seria difícil conter o ímpeto de denunciá-lo imediatamente, em voz alta e clara, e mais difícil ainda não sucumbir sob o desejo de simplesmente matá-lo. Esperava que a necessidade de observar Kirstie e impedi-la de entregar-se à emoção o ajudasse a controlar os próprios sentimentos.
Outra dificuldade seria não envolver a família. Essa era uma cruzada da qual pretendia mantê-los afastados. Sabia que pagaria caro por tê-los excluído da batalha, mas os manteria excluídos enquanto pudesse, ou enquanto existisse o risco de atrair a ira do poderoso clã Maclye contra o seu. Sua família podia ser maior e mais poderosa que a de Kirstie, mas temia igualmente a retribuição. Os homens de Maclye não seriam capazes de dizimar seu clã e todos os aliados que tinham, mas podiam fazer correr mais sangue do que gostaria de ver jorrar.
A porta do salão se abriu, e Moira entrou hesitante. Ao vê-lo sorrir, a menina correu e subiu na cadeira ao lado da dele. Payton sentiu o coração apertado. A pobre criança ainda desejava confiar. Roderick não roubara dela essa vontade.
— Devia estar na cama, mocinha — ele disse, empurrando um prato com pão e queijo na direção da criança.
— Senti um pouco de fome.
— A sra. Alice levou comida para o quarto.
— Ah... Ela estava dormindo. Onde está Kirstie?
— Dormindo, também. No quarto na frente do seu. Payton não se surpreendeu ao ver Callum entrar no salão repentinamente com ar furioso e uma faca na mão.
— Não devia estar aqui embaixo com esse homem, Moira — ele disse com tom de censura.
— Ele não é mau.
— Como pode saber?
— Pelos olhos. Não são como os do homem que vivia com minha mãe nem como os de sir Roderick. — Ela olhou para sir Payton. — Minha mãe está com os anjos, como meu irmão. Os anjos não vão me levar, vão?
— Não. Não vou deixar que isso aconteça. E Callum também está pronto para protegê-la.
— Sim, e agora ele tem uma faca enorme.
— É verdade. Talvez ele queira aprender como usá-la.
— Sei muito bem como usá-la.
— Bem, nesse caso não vai precisar das aulas de Lan.
— Ah, eu... Bem, deve haver um ou dois truques que eu ainda não conheça.
— Talvez.
—vou pensar nisso.
— Muito bem.
— Tenho de proteger os pequenos, sabe?
— Sim, eu sei, e precisa descansar bem, ou não estará alerta para o cumprimento desse importante dever. Você também, Moira. Pensando bem, também vou me deitar.
Moira segurou a mão dele, um sinal evidente de confiança, e Callum aceitou acompanhá-los até a porta do quarto. O fato de Kirstie tê-lo aceito era motivo suficiente para que tentassem confiar nele. Seria necessária muita paciência, mas Payton estava disposto a manter viva essa centelha e fazê-la brilhar e crescer. Aceitar o garoto como protetor dos pequenos era o caminho mais curto para conquistar sua amizade. E ter uma causa, um papel importante naquele grupo de pequeninos sobreviventes, ajudaria Callum a recuperar-se de todo o mal que já havia sofrido. Haveria sempre as cicatrizes, mas Payton tinha certeza de que a força e o orgulho de si mesmo ajudariam aquele garoto mais do que tudo. Callum era um sobrevivente, um lutador, e essa era uma característica com a qual Payton sabia trabalhar.
Ele parou diante do quarto de Kirstie e entreabriu a porta, mostrando para as duas crianças que ela ainda estava por perto, segura. Kirstie dormia de bruços, o corpo magro formando um pequeno volume sob as cobertas. O rosto estava voltado para a porta, com um punho cerrado bem próximo da boca. Ela parecia uma criança, e Payton tentou entender o que havia nela que impedira Roderick de vê-la como uma menina. Aos quinze anos, ela devia ter parecido ainda mais infantil, e mesmo assim o poderoso e cruel lorde não fora capaz de possuí-la. Refletindo sobre o enigma, Payton fechou a porta e conduziu as crianças de volta ao dormitório.
— Vai lutar contra sir Roderick ao amanhecer? — Callum perguntou em voz baixa enquanto Moira retornava à cama.
— Sim, vou começar minha batalha o quanto antes. E será uma luta muito longa. Terei de ser um atacante cauteloso e paciente.
— Por quê?
— Porque somos os únicos dispostos a falar contra ele. Não é o bastante. Esse homem pertence a uma família poderosa.
— Seríamos mortos.
Satisfeito por ter feito o garoto entender as dificuldades que os esperavam, Payton assentiu.
— Não devemos pôr em risco a segurança de meus familiares e aliados. Sim, sir Roderick deve morrer, mas antes temos de garantir a integridade de todos os inocentes. Queremos que ele morra sozinho, seu nome reduzido a uma maldição.
— E isso vai levar tempo.
— Exatamente. E vocês e sua senhora devem permanecer escondidos. O homem vai conhecer o sabor gelado da justiça, mas para isso teremos de ser pacientes.
— Eu serei. E vou crescer e ganhar forças.vou aprender a lutar, e mesmo depois desse bastardo perder a vida, continuarei crescendo e me fortalecendo, até tornar-me um homem de valor e habilidades.
— Não duvido disso.
— Então serei capaz de proteger todos os pequeninos de homens como ele. Irei ao inferno para destruir tais demônios. Eu juro.
Payton esperou que o menino se deitasse e foi para o quarto, onde também se preparou para dormir. A exemplo da criança, ele fez um juramento silencioso. Ele e seu clã dariam ao garoto tudo que fosse necessário para que ele cumprisse a promessa. Quando Callum atingisse a maturidade, teria toda a habilidade, os conhecimentos e as armas de que precisasse para ser o guardião da inocência que almejava ser. Payton sabia que esse seria um legado para o mundo, uma herança de que poderia se orgulhar.
— Onde estão as crianças? — Payton perguntou a Lan. Os dois se encontraram diante do quarto vazio onde os pequenos haviam dormido.
— Estão em pé há mais de uma hora.
— Ora, devia estar mesmo exausto para continuar dormindo com cinco crianças acordadas.
— Não. É triste notar como são silenciosos. Lembram fantasmas. Alice também teria dormido, se Moira não a houvesse acordado. A pobrezinha não conseguia vestir-se sozinha.
— Moira parece pronta para confiar em nós.
— Minha Alice acredita que os outros logo nos aceitarão, também. A menina foi muito amada pela mãe, e é isso que a faz pensar que um adulto também pode ter bondade no coração. Talvez essas crianças não tenham estado com o bastardo por tempo suficiente para terem a fé e a inocência destruídas. Callum foi o mais prejudicado, porque foi amaldiçoado pelas atenções de sir Roderick.
— Bem, ele sobreviveu. É um garoto forte. Ele deseja ser defensor da inocência.
— Talvez ele seja bom, se alguém conseguir convencê-lo de que não deve simplesmente cortar a garganta de tais homens.
— Sim, e isso pode ser um problema. O início desanimador pode ajudá-lo, agora. Ele é endurecido, esperto e capaz de reconhecer o mal e a brutalidade, porque passou os primeiros anos de sua vida nas ruas, sozinho. Por isso Maclye não conseguiu destruí-lo. Callum já não possuía ternura ou inocência para serem devastadas. Sabe, Lan, há algo de estranhamente familiar nesse menino. — Ele encolheu os ombros. — Não importa. Livrar o mundo de Maclye deve ser nossa única preocupação agora.
— Vai mandar chamar seus aliados e familiares?
— Não, ainda não. Se tiver de convocá-los para uma luta contra um clã tão forte quanto o dos Maclye, quero ao menos ter provas suficientes para evitar uma contenda. Vamos esperar, a menos que o perigo para Kirstie e as crianças se torne grande demais. Então pediremos ajuda.
— De acordo. Por hora, somos capazes de lidar com o bastardo.
Quando os dois homens entraram no hall, Kirstie e as crianças estavam comendo. Callum o observava com atenção, mas os menores o cumprimentaram tímidos e voltaram à refeição. Era evidente que não haviam sido salvos antes de sofrerem grandes abusos. Todos se assustavam com facilidade e demonstravam desconfiança, mas nenhum exibia sinais do forte ressentimento ou do ódio de Callum.
— Teve uma boa noite, minha lady? — Payton perguntou enquanto se servia.
— Sim, obrigada. Há muito não desfruto do conforto de uma cama quente e macia. Depois de um banho quente e de uma refeição completa, minha noite foi perfeita.
— Mas... foi casada com um lorde! — Alice exclamou intrigada.
— E vivia a contrariá-lo — disse Callum.
— Não é verdade — Kirstie protestou.
— Ah, sim, é. Foi o que ele disse na última vez em que a trancou na gaiola por quase cinco dias. Ele disse que você o irritava como uma coceira.
— Uma gaiola? — Payton perguntou.
— Meu marido acredita que esposas precisam ser disciplinadas. Ele mantinha uma gaiola de metal pendurada em uma das paredes em Thanescarr, uma propriedade a meio dia de viagem ao sul daqui. Ocasionalmente, ele me deixava na gaiola para que eu pudesse ponderar os erros de minha forma de agir. Uma semana foi o maior período que tive de ficar lá. Não devia estar surpreso, sir. Já conhece a crueldade de meu marido.
— Sim, conheço, mas é impossível não ficar chocado com as formas que a crueldade pode tomar. Nunca contou nada à sua família?
— Não. Sou propriedade do homem com quem me casei, não? O que eles poderiam fazer? Ficariam furiosos, tentariam puni-lo com violência... Sobrecarregá-los com minha triste realidade seria um terrível erro. Não conseguiria nada com isso, e meus parentes sofreriam as duras conseqüências por tentarem enfrentar um homem tão poderoso. Seriam destruídos.
— Então, veio buscar minha ajuda. Não pensou que eu também poderia sofrer as conseqüências?
— Tem o apoio daqueles que comanda. Tem parentes e aliados muito mais fortes do que minha família jamais teve. E tem uma reputação de lutar sempre pelos desfavorecidos. Existem muitas razões para ter sido escolhido, mas todas levam à mesma conclusão. Vai abraçar nossa causa e lutar por ela, com o poder e os aliados necessários para garantir que essa cruzada não lhe custe a vida. Meus familiares não poderiam fazer o mesmo.
— Entendo. Está planejando tudo isso há muito tempo?
— Há meses. Podia ter esperado mais para vir procurá-lo, não fosse o risco que essas crianças corriam e a decisão repentina de meu marido de pôr fim à minha vida. Já tem um plano, senhor?
— Por enquanto, você e as crianças ficam aqui. Serão dados como mortos ou desaparecidos. Será melhor se seu marido julgar bem-sucedida a empreitada contra sua vida.vou à corte. Se já existirem rumores sobre sir Roderick, os que você plantou ou quaisquer outros, acrescentarei mais alguns à lista. Se não houver nenhum, serei o primeiro a difundi-los.
— Só isso?
— Por enquanto. Como disse ao jovem Callum, isso pode levar semanas, meses ou anos. Sir Roderick deve ser enfraquecido antes de ser atacado, e para isso precisamos de tempo. Devemos esperar que ele tenha poucos amigos e aliados próximos, e que esses poucos comecem a se afastar depois de ouvirem os rumores. Meu plano pode ser alterado a qualquer momento, dependendo de quantos ouvirão os rumores que em breve estarão percorrendo os salões da corte, mas em essência ele será sempre o mesmo. Farei com que ele seja privado de todo apoio... e depois o privarei da vida.
— É um bom plano, o único que pode surtir bons resultados. O problema é que não entendi onde entro nele...
— Não entra. É melhor que seu marido a julgue morta. No momento em que ele descobrir que continua viva, tudo será mais complicado, mais mortal. Teremos de dividir nosso tempo e nossas energias entre mantê-la protegida e destruí-lo. As crianças também devem permanecer escondidas. Ele sabe que você as ajudou a fugir, sabe que elas sempre foram próximas de você, e isso faz delas uma ameaça para o poderoso senhor. Se forem vistas comigo, perderei todas as chances de enfraquecê-lo, valendo-me de meu anonimato. Ele vai suspeitar de que agimos em conjunto, de que você me contou muitos de seus segredos, e terei de desviar minha energia para sua segurança e a das crianças. Callum não pode ser visto. Sir Roderick já o condenou à morte. Mesmo sendo jovem e despreparado, é evidente que Roderick o considera uma ameaça.
— Posso cuidar de mim — disse o garoto. — Não sou um bebê para ser protegido.
— Não duvido que seja capaz de cuidar de si mesmo — disse Payton, temendo ferir o frágil orgulho do menino. — No entanto, um homem sensato sempre considera com precisão as próprias forças e as do inimigo. Seu inimigo é um cavaleiro treinado com um batalhão de guerreiros sob suas ordens. Todos são maiores e mais fortes que você. Imagino que seja muito bom em correr e esconder-se, em passar despercebido e ouvir conversas sem ser surpreendido. Ainda assim, o confronto é desigual. Seu coração e sua mente equiparam-se aos de muitos cavaleiros, mas seu corpo ainda tem de desenvolver-se.
— Só preciso comer mais.
— Sim, isso ajuda, e Lan está aqui para ensiná-lo a manejar a faca com destreza. Também vai aprender algumas outras coisas importantes para manter um homem vivo e torná-lo vencedor em suas batalhas. Além do mais, meu bravo rapaz, se for encontrado, acabará pondo em risco lady Kirstie e os outros.
— Eu nunca os trairia.
— Eu sei que não. Mas encontrá-lo já seria o suficiente para despertar suspeitas no animal. Por que estaria tão próximo, sabendo que ele o deseja morto? Não teríamos de fornecer as respostas, porque ele mesmo as deduziria. Ajude os outros a se manterem seguros e escondidos, rapaz. Trabalhe para crescer e ganhar força. Logo será sua vez de lutar, e um homem sensato se prepara com antecedência.
Meia hora mais tarde, enquanto Lan levava Callum para a primeira aula de combate e Alice se retirava com as outras crianças, Kirstie e Payton ficaram sozinhos. Kirstie esperava superar rapidamente as reações causadas por aqueles olhos profundos. Precisava de um guerreiro, não de um amante.
— Obrigada por ter falado com Callum com tanta paciência e sabedoria. Ele precisa de todo apoio que puder ter. Mesmo assim, duvido que todas as cicatrizes se apaguem de seu jovem coração.
— Essas coisas são eternas. No entanto, ele pode ser um homem forte e bom, porque é isso que deseja ser. O fato de falar em proteger as crianças, não em matar seus agressores, é suficiente para nos dar esperança.
— Suspeito de que ele queira protegê-los matando.
— Sim, mas ele ainda é jovem. Pode aprender a arte da contenção e do julgamento imparcial. — Ele se levantou e, ignorando sua reação chocada, tomou a mão de Kirstie e beijou-a. — Agora, devo me retirar para ir à corte do rei e sussurrar contos intrigantes em alguns ouvidos bem escolhidos. Veremos o que consigo descobrir por lá.
— E eu devo permanecer escondida e quieta, certo?
— Exatamente. Mantenha-se bem escondida até eu dizer que pode sair.
Payton quase sorriu ao ver o homem despedir-se dele para ir procurar pelo filho. Apesar de não ser particularmente astuto, ele havia compreendido de imediato as insinuações sobre sir Roderick Maclye. Para justificar tal rapidez e a ausência de graça com que o cavalheiro corria pelo salão lotado, devia haver um crime ou algum conhecimento anterior, coisas que despertariam nele o temor pela segurança de seu filho. Sir Roderick podia ter demonstrado interesse pelo menino.
— Meus cumprimentos, bravo cavaleiro — sussurrou uma voz familiar em seu ouvido.
Payton virou-se e viu lady Fraser. Surpreendentemente, não sentia mais nenhum interesse por ela. Sabia que estava interessado em Kirstie, mas já havia se interessado sexualmente por mais de uma mulher ao mesmo tempo. Celibatário há mais tempo do que jamais estivera, ele estranhou a ausência de reação ao corpo feminino pressionado contra o dele. Seria essa a primeira vez em que sentia um interesse verdadeiro por alguém? Por isso só conseguia pensar em Kirstie?
— Meu marido foi chamado para perto do leito de seu pai -- ela dizia, os dedos acariciando seu braço. — E ficará fora por muitos dias e noites. Muitas noites longas e solitárias...
— Ah, minha doce pomba, como tenta este homem fraco e miserável. Lamento pensar no tesouro a que devo renunciar.
— Renunciar? — Ela recuou um passo para encará-lo. — Então me rejeita?
— Minha adorável e encantadora lady, é o que devo fazer, embora a decisão seja como uma adaga cravada em meu coração. Os homens do rei raramente me solicitam alguma coisa.
— Ah! O velho rei e os regentes do herdeiro o mantêm em eterna servidão! — Ela olhou na direção escolhida pelo homem que estivera conversando com Payton. — E que relação aquele idiota pode ter com os assuntos do regente?
— Minha lady, sabe que um homem de honra não deve falar sobre tais coisas. Mas... revelo apenas que aquele homem e eu conversávamos sobre o filho dele. Ele procura um abrigo onde possa submeter o menino a intenso treinamento, e veio pedir minha opinião sobre alguns senhores. — Payton sabia que lady Fraser era conhecida ouvinte e disseminadora de rumores. — Ele estava curioso sobre sir Lesley MacNicol e sir Roderick Maclye. Temo não ter sido muito útil. Não conheço bem Maclye, embora tenha ouvido alguns rumores sobre o homem.
— Ele é velho, mas está sempre na corte do rei. E duvido que alguém possa lhe dizer o nome de uma única mulher favorecida por suas atenções.
— Soube que ele é casado.
— E se mantém fiel aos votos? — Lady Fraser riu, mas havia uma certa amargura na demonstração de humor. — Que raridade. E se é tão apaixonado pela esposa que nunca a traiu, o que faz ele aqui hoje, um dia depois de ela ter se afogado?
— Ela se afogou?
— Sim, é o que ele está dizendo a todos, embora não pareça interessado em conquistar a compaixão ou o conforto de alguma outra mulher. — Talvez ele só queira ajuda para procurar o corpo.
— Ele não pediu nenhuma ajuda. Pelo que ouvi dizer, ele até já encontrou o corpo e o enterrou. Dizem que eles passeavam pela margem do rio, e ela insistiu em molhar os pés. A estúpida foi longe demais e foi levada pela correnteza. Não foi possível salvá-la. Aqui entre nós, tenho certeza de que ele não a procurou, e é evidente que não está de luto. — Ela olhou para um homem forte e de boa aparência acompanhado por outros dois homens igualmente fortes e morenos. — Lá está ele. O homem não se comporta como alguém que acabou de enterrar a esposa. Mesmo os que mantêm uma união apenas aparente se preocupam em demonstrar alguma forma de luto.
— Alguns homens não julgam necessário fingir — Payton murmurou. — Nem mesmo para agradar aos fofoqueiros.
Payton estudou sir Roderick, lutando contra o desejo de abordá-lo e pôr fim a sua vida ali mesmo, diante de todos, de forma tão lenta e dolorosa quanto fosse possível.
Não havia nada de impressionante em sir Roderick. Seus dois acompanhantes pareciam mais ameaçadores. Sabia que não devia esperar uma luta justa de Roderick e seus homens, mas o poderoso lorde preferia enfiar uma faca nas costas do inimigo a expor-se a riscos. E ele não se furtava a observar os pajens que andavam pelo salão. Embora sua perversão fosse forte demais para ser controlada ou escondida, era surpreendente que tal prática houvesse permanecido em segredo por tanto tempo. O jeito como ele olhava para os meninos era repugnante, e foi isso que fez Payton suspeitar de que Roderick estava caçando mais uma vez.
— Está interessado em sir Roderick por alguma razão? — perguntou lady Fraser. — Notei que o observava atentamente.
— Estava apenas buscando algum sinal de tristeza ou irritação. Afinal, agora ele terá de encontrar outra esposa, e soube que a primeira não foi exatamente uma bênção.
— Só a vi algumas poucas vezes. Era pequena, morena, pouco mais que uma criança, quase uma sombra apagada ao lado de Roderick. Ela falava com poucos e, quando o fazia, o próprio sir Roderick ou um de seus homens a removia do grupo, interrompendo a conversa. Agora que falamos sobre isso, fico imaginando se a morte daquela moça foi mesmo um acidente. Ela pode ter se deixado levar pelo rio para pôr fim ao próprio sofrimento.
— Ah, sim é uma triste possibilidade.
— Sim, de fato. Oh, maldição! A irmã de Fraser!
Um instante depois, Payton viu lady Fraser caminhar ao encontro de uma mulher idosa e grisalha. Bem, melhor assim. Agora podia se ver livre da persistente dama sem despertar sua ira, sem ter de explicar sua repentina falta de interesse. Não desejava insultá-la.
Sir Roderick pousou a mão sobre o ombro de um jovem pajem, e Payton teve de conter o ímpeto de atacá-lo com sua espada. Não podia matá-lo nem desafiá-lo, mas o menino era filho de um de seus conhecidos, alguém do clã MacMilLan, e agiria com rapidez e astúcia a fim de livrá-lo das garras daquele homem doente e cruel.
Depois de cumprimentar sir Roderick com um rápido movimento de cabeça, Payton segurou o menino pelos ombros e puxou-o para longe do perigo. O suspiro de alívio do jovem Uven o fez imaginar que a ameaça não era de todo desconhecida. Preferia nem considerar a possibilidade de ele já ter sido submetido aos caprichos pervertidos de sir Roderick.
— Seus pais estão aqui, Uven? — ele perguntou ao menino enquanto caminhava para longe do lorde. — Há muito não vejo prima Morna e o velho lain.
— Eles ainda estão em Dunncraig — respondeu o menino, deixando-se levar sem protestar. — Primo James logo tomará seu lugar como senhor daquela região, mas papai ainda será um de seus homens. Primo James nos deu um bom pedaço de terra e uma sólida casa de pedras.
— Uma honra mais do que merecida. A quem servirá, então?
— Sir Bryan MacMilLan, um dos primos de meu pai. — Ele olhou para sir Roderick com evidente nervosismo. — Fiquei feliz por ter ido me buscar. Não gosto daquele homem.
— Ele fez alguma coisa para despertar sua antipatia?
— Não realmente. É só um sentimento, entende? Ele está sempre me procurando, e quando me toca... Bem, sinto algo estranho, ruim. Mamãe me disse para nunca ignorar tais sentimentos, porque muitos dos nossos parentes foram abençoados por dons especiais, e por isso tento me manter sempre bem longe daquele senhor.
— Ótimo. Continue assim. E conte a sir Bryan o que acabou de me contar. Ele aprecia os Murray. Levará em conta suas palavras e o ajudará a permanecer bem longe de sir Roderick Maclye.
Quando o menino o encarou e sorriu, Payton sofreu um choque. Aquele era o rosto de Callum, embora nunca o houvesse visto sorrir. Era essa a familiaridade que experimentara naquele primeiro encontro. Callum era um MacMilLan; só podia ser. O único problema seria reunir fatos para provar essa certeza.
— Algum problema, Primo Payton?
— Não, Uven. Nenhum. Estava apenas pensando que você tem todos os traços dos MacMilLan.
— Sim, mamãe sempre diz isso. A única coisa que herdei dos Murray foram esses pressentimentos. São um pouco assustadores, sabe? Mamãe prometeu que vai me levar para conversar com tia Elspeth e com os primos Avery e Gilly mais vezes, porque eles podem me ajudar a entender sobre esse dom.
Payton concordou e contou algumas histórias sobre as mulheres, retendo o menino em sua companhia até encontrar sir Byron. Ao entregar o garoto aos cuidados do lorde, ele o estudou com atenção. Callum também podia ser visto nos traços e na coloração desse homem.
Ele deixou os MacMilLan sem mencionar o rapaz. Não só era mais seguro que ninguém mais tivesse conhecimento sobre o paradeiro de Callum, como também precisava de provas para fundamentar sua crença. Payton não discutiria o assunto com ninguém além de Lan, que poderia ajudá-lo a procurar a prova de que precisava. Alguém, em algum lugar, teria de saber quem era a mãe do menino e quando e como ele fora abandonado. Um olhar para Callum serviria de prova para muitos, e havia sempre um ou dois MacMilLan na corte, mas ele queria mais. Queria o suficiente para convencer Callum disso, o bastante para dar ao menino a certeza de que o clã continha suas raízes. Sabia que ter um clã, um nome, o ajudaria mais do que qualquer outra coisa que pudesse fazer. Assim que tivesse um nome e fizesse parte de um pequeno, porém honrado clã, Callum teria o orgulho e a força necessários para superar parte da dor que havia sofrido.
Depois de uma semana de bom comportamento, a vigilância relaxou a guarda e Kirstie conseguiu escapar da casa com facilidade espantosa. com o dinheiro que havia acumulado dolorosamente ao longo dos anos, julgava ter o suficiente para soltar algumas línguas. Assim, vestida com simplicidade, ela percorria as ruas estreitas da cidade, pensando em conversar com as pessoas e ouvi-las falar, coisa que nunca pudera fazer desde que se casara. Finalmente reuniria evidências contra Roderick, revelaria suas atrocidades e impediria de uma vez por todas que outros inocentes caíssem vítimas de sua crueldade. Cinco horas mais tarde, Kirstie começou a perceber que podia estar desperdiçando tempo e dinheiro. Até então só havia encontrado descrença e indiferença, e a apatia e o desinteresse daquelas pessoas a atingia como uma bofetada no rosto. Pior que tudo era o silêncio dos covardes. Para rompê-lo seria necessário apresentar ameaça maior e mais devastadora do que aquela representada por sir Roderick, e mesmo que pudesse pensar em alguma coisa com esse poder, ainda teria de enfrentar a indiferença e a incredulidade daquela gente.
Quando se aproximou da casa de Payton, ela tentou animar-se pensando que havia ainda centenas de moradores com quem poderia falar. Talvez ainda encontrasse alguém com coragem e disposição para ajudá-la.
— Onde esteve? — Alice perguntou ao vê-la entrar. Kirstie decidiu que talvez pudesse conquistar uma aliada
entre os habitantes da casa.
— Tentei encontrar alguém que se dispusesse a falar contra meu marido.
— E precisava se vestir dessa maneira, como um garoto?
— As pessoas aceitam melhor a abordagem de um menino, e para todos os efeitos eu estou morta.
— Escute, isso é perigoso...
— Eu sei. Viver com sir Roderick também era. Alguém nessa maldita cidade deve saber alguma coisa. Um homem não pode maltratar crianças sem que alguém veja ou escute alguma coisa.
— Mas eles não querem falar, não é?
— Não. — As duas se sentaram à mesa da cozinha. — Foi tolice pensar que seria fácil.
— Sim, concordo com você. As pessoas preferem cuidar dos próprios problemas a enfrentar um inimigo poderoso. Eles não têm tempo nem força para brigar, minha menina. Sendo assim, não pense em repetir esse gesto incauto.
— Alice, a cidade é grande. Deve haver alguém por aí com coragem para falar. Da mesma forma que sir Payton planta rumores e tenta descobrir alguma coisa entre os ricos e poderosos, eu estarei agindo entre os pobres e indefesos. Sim, talvez eles não acusem nem protejam abertamente sir Roderick, mas estou certa de que ouvem o que tenho para dizer. Meus avisos não são ignorados. Os rumores podem se espalhar pelas ruas mais modestas da cidade com a mesma velocidade que percorrem os salões da corte.
— Sim, eu sei, mas...
— Será aos poucos, passo a passo. vou impedir que Roderick se aposse de todas as crianças que deseja ter. Logo ele estará sem vítimas. Sim, alguns podem não acreditar nos rumores e nos sussurros, mas sempre que Roderick olhar para uma criança, haverá alguém para comentar, para fazer os adultos se manterem alertas. Vai ser o bastante
— Entendo o propósito do que está fazendo, mas o senhor não vai gostar disso.
— Não vai mesmo.
Kirstie encolheu-se. Depois de alguns segundos, ela se virou e olhou para o homem parado na porta da cozinha. Era um pouco inquietante descobrir que ainda perdia o fôlego por ele, mesmo quando se comportava com tanta arrogância.
— Tudo correu bem na corte, meu lorde? — ela perguntou com tom agradável, apesar do nervosismo.
Payton balançou a cabeça. Ela havia arriscado a vida, desacatado suas ordens, e agia como se nada houvesse ocorrido. Irritado, aproximou-se, segurou-a pela mão e a pôs em pé.
— Precisamos conversar — disse, levando-a para fora da cozinha.
Como era possível que o contato da mão dele a aquecesse, em vez de amedrontá-la? O homem estava zangado. Pretendia levá-la para algum lugar privado e emitir sua opinião a respeito do que fizera. Devia estar preparando argumentos, em vez de pensar no calor gerado pelo contato físico.
— O que está fazendo com Kirstie?
A voz de Callum o deteve.
— Ele só quer me fazer um sermão — a jovem respondeu.
—- Mas ele está muito zangado.
— E por isso acha que vou espancá-la?
— É o que os homens fazem quando estão zangados — Callum confirmou.
— Não este homem.
— Mesmo assim, prefiro acompanhá-los.
— Callum, é muita gentileza sua pensar em proteger-me, mas prefiro ser censurada sem testemunhas. Ele não vai me bater.
— Parece estar muito certa disso.
— E estou.
Callum recuou. Payton despediu-se do garoto com uma inclinação de cabeça e voltou a conduzir Kirstie para o aposento onde fazia suas contas. O confronto com Callum servira para aplacar sua ira. E ela não parecia assustada ou apreensiva.
Na verdade, sentia-se mais surpreso do que zangado, agora que havia superado o choque inicial. Quando parara na porta da cozinha para ouvi-la relatar sua experiência pelas ruas da cidade, sentira-se dominado por um pavor que aos poucos se transformara em ira. Mesmo que Roderick não a encontrasse, vagar sozinha pelas ruas era perigoso. Não teria sido capaz de protegê-la de eventuais ataques, e não saberia aonde ir procurá-la quando desse por sua falta. Tais pensamentos o levaram à beira de um colapso.
Enquanto servia vinho em duas taças, ele a estudou. O disfarce era bom. A calça revelava pernas longas demais para alguém de porte tão delicado, e a jaqueta deixava entrever curvas sutis nos lugares certos. Não gostava de pensar que muitos homens podiam ter apreciado aquele corpo sedutor, e a força do ciúme o deixou ainda mais espantado que antes. Evitar Kirstie não o estava curando de sua obsessão.
—Não quer explicar que tipo de jogo é esse?—ele começou.
— Imagino que já tenha escutado tudo.
Precisava agarrar-se ao orgulho para não se comportar como uma mulher perdida, porque os olhos buscavam partes daquele corpo másculo com uma ousadia que nenhuma mulher de moral tinha o direito de demonstrar. Além do mais, tinha de fazê-lo entender que precisava ajudá-lo, que era vital para ela colaborar para que o marido fosse levado à justiça. Essa luta também era sua. Sua sobrevivência dependia da derrota de Roderick.
— Tem idéia do perigo que correu vagando sozinha pelas ruas?
— Roderick pensa que estou morta. Além do mais, ele não me reconheceria nessas roupas.
— Talvez não, mas ele não é o único perigo que se esconde por aí. Podia ter sido assaltada vestida dessa maneira. A propósito, onde conseguiu essas roupas?
— Em um dos baús. Pensei em sair como um menino pobre e esfarrapado, mas não encontrei roupas velhas.
— Um garoto pobre e esfarrapado? Como os que sir Roderik retira das ruas?
Kirstie respirou fundo. Não havia pensado nesse tipo de risco.
— Escute, preciso fazer alguma coisa. Não posso ficar sentada rezando para que você e Lan resolvam tudo. Não vão fazer tudo sozinhos.
— Roderick a quer morta.
— Eu sei, mas serei cuidadosa. E não se esqueça que conheço todos que o ajudam e servem. Sei quem devo evitar.
— Não teria de evitar ninguém se ficasse aqui.
— Sei me cuidar. E como sei de onde vieram muitas das crianças, tenho idéia de que parte da cidade devo visitar primeiro em busca de testemunhas e aliados. Sei que nomes mencionar, que histórias contar para despertar suspeitas.
— E mesmo assim, não conseguiu nada.
— Não foi como eu esperava, é verdade, mas seu trabalho na corte também progride lentamente.
— Sim. Os rumores se espalham devagar, mas constantes. No entanto, são tantos os problemas na Corte que nem todos se preocupam com um homem com uma preferência doentia por meninos. Por exemplo, o Conselho de Regentes enfrenta um momento de crise gerado pela briga entre seus membros. Todos disputam o poder sobre nosso jovem rei. Existem rumores dando conta de que lorde Boyd e seu irmão, sir Alexander, podem tentar tomar o controle total sobre o jovem James.
Kirstie suspirou e balançou a cabeça.
— Em resumo, o único menino que interessa a todos é nosso jovem rei.
— Fala-se também que a Inglaterra pode tentar tirar proveito desse momento de tensão interna.
— Acha que haverá uma guerra?
— Espero que não, mas quando o domínio de um país está em jogo, a guerra é sempre uma possibilidade concreta. Mas temos nossa própria batalha a enfrentar. Não podemos perder tempo pensando naqueles que pensam roubar o poder de um rei jovem demais para ter forças para sustentar-se sobre o trono.
— O que está fazendo? — ela perguntou, sentindo os dedos de Payton em seus cabelos. Sabia que devia afastar-se, mas gostava da sensação delicada e suave.
— Estou arrumando seu cabelo. Não vai mais andar sozinha pela cidade.
— Ah, não vou? Acho que pedi sua ajuda. Convidei-o a ser meu defensor, meu aliado, não meu pai.
— Como seu defensor e aliado, tenho a responsabilidade de cuidar de sua segurança. Não é seguro andar sozinha pelas ruas.
— Então levarei alguém comigo.
— Maldição! Mal acabou de escapar de um atentado contra sua vida. Já se sente pronta para enfrentar novos riscos?
— Sir Roderick acredita ter me matado, e por isso não está procurando por mim. Nem ele, nem seus homens. Preciso agir. Não posso ir à corte para ajudá-lo, e não posso procurar as pessoas que conheço, porque todos me julgam morta. Estou lutando pela salvação das crianças há muito tempo. Nãovou parar agora. O perigo já existia antes, não? E o bastardo tentou me matar. Não posso esquecer tudo isso. Não posso ficar aqui sentada rezando para que ele não me encontre. Da mesma forma que está dificultando o acesso de Roderick aos filhos das melhores famílias, tenho de fazer alguma coisa pelos menos favorecidos. Agora eles estão mais expostos do que nunca, porque Roderick só tem essa possibilidade. Preciso detê-lo, impedir essa caçada cruel.
Payton concordava com ela. Precisavam espalhar os rumores também nas áreas mais pobres da cidade, e Lan era conhecido demais para assumir essa responsabilidade. Aceitava seus argumentos, mas, emocionalmente, queria trancá-la num quarto e cercá-la de guardas até Roderick estar morto e enterrado. Como não pretendia confessar esse desejo, ele tentou propor uma solução intermediária.
— Callum pode ir comigo — Kirstie sugeriu, tentando não se deixar abalar pelos dedos que agora deslizavam por seus braços.
— Roderick e seus homens o reconheceriam facilmente.
— Não depois de eu terminar de disfarçá-lo. Dois garotos correm menos riscos que um só, e sou perfeitamente capaz de me movimentar sem ser vista e sem fazer barulho. Callum é quase tão bom quanto eu. Ao primeiro sinal de perigo, caso eu perceba que despertei a desconfiança de meu marido ou seu interesse, voltarei imediatamente e não sairei mais enquanto Roderick for vivo.
Payton segurou seu rosto entre as mãos.
— Promete?
— Prometo — ela respondeu, fascinada com o olhar penetrante do homem que devia seduzir e conquistar dezenas de mulheres. Não queria ser uma delas, mas era difícil resistir.
— Não vai sair sozinha? Nem à noite?
— Não.
E vai me informar sobre que parte da cidade pretende visitar?
— Oh, sim...
Payton respirou fundo. Era tarde demais para isso. Queria conter-se, mas seus lábios clamavam pelos dela, e o desejo já o dominava como uma entidade poderosa. Ver o fogo que queimava seu corpo refletido nos olhos dela só alimentava esse desejo, e ele a beijou.
Kirstie correspondeu sem nenhuma hesitação, entreabrindo os lábios e enlaçando seu pescoço com os braços. Depois de alguns instantes de abandono, quando sentiu a ereção pressionada contra seu ventre, ela decidiu que era hora de recuperar o controle e livrar-se daquele estranho encantamento. Afinal, havia centenas de razões pelas quais não devia aceitar o que Payton oferecia, embora não se lembrasse de nenhuma de imediato. Mais uma prova de que estava em perigo.
Rápida, recuou um passo e livrou-se das mãos que a acariciavam, encarando-o com um misto de terror e fascínio. Payton estava tão ofegante quanto ela.
— Isso não deve voltar a acontecer, senhor. Nunca mais.
— Você me deseja.
— Desejo muitas coisas, mas nem por isso posso ou devo tê-las.
— Isso é algo que poderia ter.
Não. Recuso-me a ser mais uma.
— Você não seria.
— Considero mais sensato preservar minha virgindade. Afinal, se todo o resto falhar, ainda poderei tentar anular o casamento.
Kirstie saiu da sala antes que ele pudesse argumentar, ela não podia estar pensando que havia mesmo uma chance de anulação. Roderick a queria morta, e já tentara matá-la uma vez. Como ela não era nenhuma tola, suspeitava de que esse último argumento havia sido apenas um truque para forçá-lo a desistir.
Payton serviu mais vinho na taça e esvaziou-a de uma só vez. Era inútil. Nada podia apagar o fogo que queimava em seu sangue. Nenhuma mulher jamais o excitara como Kirstie. Havia tentando agir como um perfeito cavalheiro, conter seus impulsos, mas um beijo pusera fim a esse nobre plano. Pela primeira vez, esperava que os rumores sobre sua capacidade de sedução não fossem exagerados, porque pretendia usá-la plenamente em Kirstie. Não descansaria enquanto não a tivesse em sua cama.
Ele quer se enfiar sob suas saias.
Kirstie parou e olhou para Callum. O menino estava furioso, um sentimento que estava estampado em seu rosto sob o chapéu de abas largas que compunha o disfarce. Há oito dias saíam juntos para percorrer a cidade, colhendo informações que trocavam com Payton e Lan todas as noites, e nunca antes Callum se referira à tentativa de sedução de Payton.
— O que ele quer e o que terá não representam a mesma coisa — ela respondeu, retomando a caminhada em seguida.
— Dizem que o homem é capaz de seduzir uma pedra.
— Bobagem. Sou uma mulher casada e acredito nos votos que fiz.
— Roderick?
— Sim, sei que ele não é o que quero e que merece arder no fogo do inferno, mas o fato de estar casada com um assassino pervertido não altera os votos que proferi diante de Deus. Payton deve estar acostumado com mulheres que ignoram esses votos. Acho que passa muito tempo na corte.
— De qualquer maneira, Roderick nunca se deitou com você. Portanto, não há casamento.
— Eu não o desfiz.
— Ele mesmo o desfez quando a deixou virgem por cinco anos. Nada a obriga a permanecer casada, se não a necessidade de encontrar um representante da igreja para libertá-la desses votos. Ah, e vai ter de assinar alguns papéis. Nada impossível. Então, por que está resistindo a sir Payton?
— Porque ele não é meu marido.
— E daí? Sei que quer esse homem.
— Sir Payton já teve muitas mulheres. Não quero fazer parte dessa lista.
— Sim, ele é um conquistador, mas não creio que a veja dessa maneira. Não. Sei sobre homens e mulheres e sobre o que fazem quando estão juntos, mas nunca vi esse jogo que estão fazendo. Pelo que sei,-quando um homem quer uma mulher, ele a toma e depois paga por seus serviços, ou a espanca para calar seus lamentos, ou se casa com ela. Mas vocês dois se beijam, fazem insinuações e ficam vermelhos. É estranho.
— Existem regras, Callum. Uma mulher casada deve ser fiel ao marido. Uma donzela deve entregar sua inocência apenas àquele com quem se casar. Confesso que sir Payton me faz desejar dar as costas a todas essas regras, mas, nesse caso, eu não seria melhor que todas as adúlteras, cortesãs e viúvas licenciosas com quem ele já se deitou.
— Ah. A questão é orgulho.
— Suponho que sim.
— Quem sairá vencedor? O orgulho ou a luxúria?
— Não sei.
— Estar com ele a faria feliz?
— Sim — ela suspirou. — Acho que sim.
— Então, devia realizar esse desejo. Você merece ser feliz.
— Talvez. No entanto, com um homem como Payton, essa felicidade pode ser ilusória. Depois dela haveria apenas sofrimento.
— Mesmo assim, ainda acho que devia viver essa breve felicidade. E conte comigo para ajudá-la mais tarde, quando for hora de experimentar o sofrimento.
— Obrigada, Callum. — Estavam se aproximando de uma casa que abrigava menores abandonados, um lugar onde Roderick costumava saciar seus apetites pervertidos. — Não ouço nada. Acha que o bastardo virá hoje? Payton diz que cada vez mais pessoas mantêm seus filhos longe do alcance desse monstro. Roderick vai sair em busca de novas vítimas, e essa região é sempre muito fértil para ele.
Callum viu um menino magro e maltrapilho cambaleando pela calçada com dois pesados baldes nas mãos.
— Acho que sei quem ele é.
— Não deve correr o risco de ser visto, apesar do disfarce. Eles são aliados de Roderick.
— Ninguém vai me ver.
Sem esperar por uma resposta, Callum deixou as sombras da casa e caminhou para o poço onde o garoto enchia os baldes. Esgueirando-se pelos cantos e atravessando vielas, logo ele surgiu ao lado do menino. Quando retornou, minutos depois, Callum trazia informações valiosas.
— O nome dele é Simon, e seu pai era tecelão. Chegou há pouco tempo, porque o pai morreu e não havia ninguém para cuidar dele. Acho que ele está seguro, porque não é bonito e tem a pele cheia de erupções.
— E parece ser um pouco mais velho do que você, também.
— Sim, ele tem doze anos. Simon contou que sir Roderick não aparece por aqui há semanas. O homem que faz negócios com ele tem estado nervoso e assustado, e o menino ouviu uma conversa entre esse homem e sua esposa. Eles falavam sobre rumores e desconfianças e diziam ser necessário terem muito cuidado por algum tempo.
— Ótimo. Os rumores estão surtindo efeito. Callum assentiu.
— Simon disse que a mulher não está nada contente com isso. Ela se queixa constantemente sobre o dinheiro que vão deixar de ganhar, caso sir Roderick não fique satisfeito.
— Deus. Em momentos como esse eu gostaria de ser um homem forte e poderoso para entrar lá e acabar com essa gente. Acha que esse menino pode nos ajudar de alguma forma?
— Sim, ele prometeu fazer tudo que puder. Disse a ele que viremos sempre nesse mesmo horário, nos dias em que pudermos sair, e ele moverá a cabeça em sentido afirmativo quando tiver algo para contar. Não revelei onde podemos ser encontrados, porque não sei quanta pressão ele pode suportar, caso seja capturado.
— Muito bem. Vamos seguir seu plano.
— Confie em mim, Kirstie. Simon é bom. Ele vai fazer o que puder para ajudar-nos. Ele sabe o que Roderick faz com os meninos. O pai dele contou pouco antes de morrer.
— E como morreu esse homem?
— Foi esfaqueado em uma taverna. Ele ia ao mesmo local todas as noites de sábado para beber e se deitar com as prostitutas. Naquele dia ele havia vendido vários metros de um excelente tecido para sir Roderick, e estava com a bolsa cheia. Ele disse ao filho para nunca se aproximar do homem, saiu para ir à taverna... e morreu. Imagino que tenha visto alguma coisa.
— Certamente. Por isso foi silenciado. Lan precisa saber disso. Talvez ele consiga descobrir mais detalhes sobre a morte do tecelão, o suficiente para acusarmos Roderick e provocarmos sua condenação.
Caminharam de volta em silêncio, e já se aproximavam da casa de Payton quando, em uma alameda mais estreita, Kirstie ouviu um som intrigante.
— O que foi isso? — ela perguntou em voz baixa.
— Parece alguém chorando — Callum opinou.
Seguindo o som, eles encontraram um menino muito pequeno envolto em trapos e encolhido perto de uma parede úmida e coberta de trepadeiras. O rosto do garoto estava sujo, manchado pelas lágrimas e desfigurado por hematomas, mas, mesmo assim, Kirstie o reconheceu.
— Robbie?
Era difícil acreditar, mas o menino havia sobrevivido sozinho, ferido e fraco.
— Lady Kirstie?
— Meu Deus, você é mesmo Robbie!
— Sim, sou eu, minha lady. E Moira?
— Ela está bem. — Kirstie retirou o manto com que se cobria e usou-o para envolver o corpo magro e debilitado da criança. — Já vai encontrá-la.
— Ela está segura?
— Sim. Eu a tirei de perto daquele homem. Devia ter esperado por mim. Eu voltei...
— Precisava encontrar Moira.
O garoto gemeu ao ser erguido pelos braços de sua senhora, e em seguida desmaiou. Kirstie não queria imaginar quantas feridas ainda existiam escondidas. Rápido, Callum pegou o garoto e levou-o para a casa de Payton.
— Por Deus! — Alice gritou espantada ao vê-los. — O que... Quem...
— O irmão de Moira — Kirstie respondeu sem rodeios. — Não sei como ele sobreviveu ou como chegou ao local onde o encontramos, mas ele precisa de um banho e de cuidados imediatos. Está muito ferido.
Uma hora mais tarde, devidamente limpo e coberto por linimentos variados, Robbie contou que, alguns dias antes, quase havia sido levado de volta à casa do monstro.
— Os homens dele me agarraram e me bateram, depois me jogaram sobre um cavalo. Eu me atirei de lá de cima e voltei para a cidade, onde me escondi.
— Que menino corajoso.
— Eu precisava encontrar Moira. Prometi à minha mãe que cuidaria dela.
— Ela deve estar orgulhosa de você, onde quer que esteja — Alice comentou, ajudando-o a beber uma poção que aliviaria suas dores e o faria dormir.
— O que aconteceu?
Kirstie virou-se para a porta e viu Payton.
— Parece que os anjos não levaram o irmão de Moira, afinal. O menino era pequeno, magro, e estava muito machucado.
Era difícil acreditar que um garoto tão franzino e ainda novo, com sete anos de idade, pudesse ter sobrevivido sozinho por tantas semanas. Então ele lembrou que Callum sobrevivera por anos.
— Vou cuidar de Moira, senhor — ele disse com voz pastosa, resultado da poção de Alice.
— Sim, eu sei que vai — Payton respondeu emocionado. — Mas, antes, precisa deixar que as mulheres o ajudem. Tem de ficar bom e forte para poder cuidar de sua irmã.
— Estou mesmo cansado...
— Os anjos vão levá-lo, Kirstie?
— Não, querida. Ele vai apenas dormir, porque precisa descansar. Alice deu a ele um remédio para aliviar a dor.
— Obrigada, Alice — a menina agradeceu. — Acho que vou ficar aqui com ele.
— Sim, sim, faça isso. Robbie vai gostar de saber que também se preocupa com ele.
Payton segurou a mão de Kirstie e levou-a para fora do quarto. Depois de ser informado sobre o que ela e Callum haviam descoberto naquela tarde, Payton decidiu ordenar que Lan investigasse a morte do tecelão.
— Talvez assim tenhamos uma acusação concreta e comprovada contra o miserável.
— Mas não será o bastante, não é? Roderick não será enforcado por isso?
— Não. Se não manejou a faca para matar o infeliz, se agiu de forma a criar a impressão de que tudo não passou de uma briga de taverna, os homens que cometeram o crime serão os únicos a pagarem por ele. Isto é, se alguém lembrar quem são eles. De qualquer maneira, Roderick ficará assustado, temendo uma traição.
— Não, Payton. Se Roderick temia ser traído por esses homens, já os matou e enterrou.
Certa de que acabaria perdendo o controle e sofrendo um ataque histérico depois de um dia difícil como o que vivera, Kirstie pediu licença e retirou-se. Em seus aposentos, bebeu três taças de vinho na tentativa de acalmar-se, e estava servindo mais uma taça da bebida, quando um pensamento emergiu claro e forte de toda a confusão que reinava em sua mente. Isso tinha de acabar. O plano de Payton era bom, porém lento. Enquanto tentavam encontrar um atalho para contornar o escudo de poder com que Roderick se cercava, crianças continuavam sofrendo.
Ela se sentou na cama e esperou. Logo todos estariam dormindo, e então ela sairia e faria o que já devia ter feito muito antes: mataria Roderick.
Pensar nisso despertou um estranho sentimento de calma. Nem mesmo a certeza de que perderia a vida na empreitada a incomodava. Só precisava pensar no pobre e pequeno Robbie para sentir que qualquer sacrifício seria válido para pôr fim a tal horror.
— O que sua esposa diz sobre a condição do menino? — Payton perguntou a Lan ao vê-lo entrar em seu escritório.
— Ele vai ficar bem, se não tiver febre. Precisa de alimento, porque quase morreu de fome e está muito fraco, mas conseguiu sobreviver.
— Graças à necessidade de encontrar e proteger a irmã.
— Certamente. Temos alguma notícia?
— Kirstie trouxe novidades, mas não o bastante. — Payton relatou tudo que ela descobrira naquela tarde.
— Vou descobrir a verdade sobre a morte do tecelão — Lan decidiu. — Foi assassinato, sem dúvida. Mas é possível que não tenhamos como provar a culpa do bastardo.
— Sim, eu sei.
— E Kirstie deve ter ficado furiosa com isso.
— Ficou. Mas ela é controlada, sensata...
— Realmente?
— Por que diz isso, Lan? Acha que ela seria capaz...
— Senhor, todos têm um limite, um ponto no qual descobrem que não podem mais suportar.
— Entendo — Payton murmurou, levantando-se para sair do escritório. — e ela ama as crianças. Encontrar Robbie pode ter sido esse ponto a que está se referindo.
Lan o seguia.
— Certamente, meu lorde. Não duvido de que ela arrisque a própria vida para garantir a segurança dos pequenos.
— E talvez tenha decidido que é chegada a hora de sacrificar-se?
Payton entrou no quarto de Kirstie e parou. Não queria acreditar no que via, ou melhor, no que não via. Ela não estava na cama. A cama estava vazia, ainda arrumada, e a camisola fora deixada dobrada sobre as cobertas.
Seguido de perto por Lan, Payton verificou os outros dormitórios. Olhou até mesmo no dele, impelido pela esperança de que ela o houvesse ido procurar. Quando começou a examinar os outros cômodos da casa, ele soube que estava perdendo tempo.
— Ela saiu, senhor — Lan concluiu com voz tensa.
— Foi atrás dele — Payton concordou, expressando o medo que inundava sua alma.
Não havia rastro a ser seguido. Conhecendo Kirstie, sabia que ela era capaz de mover-se com extrema habilidade, cobrindo suas pistas. Poderia passar por ela sem sequer imaginar que a tivera ao alcance da mão. Ela caminhava para a morte e, mesmo odiando Roderick, Payton não considerava a morte do lorde digna da vida de Kirstie.
— São muitas alternativas, e só tenho uma chance de alcançá-la. Se fizer a escolha errada, se for procurá-la onde ela não está, perderei minha única chance de salvá-la. Por Deus, por onde ela começaria?
— Ela foi à corte do rei.
Payton virou-se e viu Callum na porta da cozinha. O menino estava vestido, com a faca presa no cinto, e seu rosto era uma máscara de determinação. Era evidente que pretendia ir resgatar Kirstie.
— Tem certeza?
— Sim — Callum insistiu. — Quando nos esgueirávamos pela cidade, ouvimos alguém comentar que sir Roderick estaria na corte do rei. Ele precisa devolver as terras que compunham o dote da esposa à família, uma vez que ela supostamente morreu sem deixar filhos, mas o miserável espera conquistar a ajuda de alguém importante, alguém que o livrará dessa obrigação. Ela não lhe contou nada?
— Não.
— Deve ter esquecido quando encontramos Robbie.
— É possível.
— Vai atrás dela?
— Você fica aqui — Payton ordenou com firmeza.
— Mas...
— Não pode ir ao castelo. Seria visto e reconhecido com facilidade. Eu me sentiria obrigado a cuidar de você e garantir sua segurança, e isso poderia me impedir de encontrar Kirstie a tempo de salvá-la.
Depois de uma breve hesitação, o menino assentiu relutante, aceitando a ordem. Quando passou por ele a caminho da saída, Payton bateu em seu ombro.
—vou trazê-la de volta.
— Sã e salva? Livre de Roderick?
— Sim, livre dele. Mas, depois dessa loucura, ela pode não estar muito segura comigo.
As velas e tochas iluminando o grande salão da corte real proporcionavam sombras suficientes para Kirstie mover-se. Havia sido fácil entrar, apesar da briga pelo poder e do elevado número de guardas. Ninguém se interessava por um menino.
Havia muitos deles ali, escudeiros e pajens, esperando as ordens de seus senhores ou correndo por entre os convidados. Eles também eram ignorados pela maioria dos presentes. Por isso Roderick considerava o local tão apropriado para suas caçadas odiosas.
Ele estava lá nessa noite, e vê-lo renovou a ira que queimava alma. Pressionando o corpo contra a parede para manter-se escondida e recuperar o controle, ela o observou. O homem mantinha a mão sobre o ombro de um menino e exibia aquela expressão repugnante no rosto. Fome.
Sem pensar, Kirstie empunhou a faca, cega pela necessidade de proteger aquela criança. Então, no instante seguinte, outro homem surgiu, e o menino foi levado para longe do predador. Olhando em volta, ela se deu conta de que nenhum dos garotos se aproximava de Roderick. Um pajem chegou a fazer um grande desvio só para não passar por onde ele estava.
As palavras de Payton surtiam efeito, afinal. Roderick ainda não fora banido como o animal vil que era, mas já não conseguia se aproximar das crianças como antes. Melhor ainda, os próprios pequeninos o evitavam.
O que faria agora? A prova do sucesso da campanha contra o lorde pervertido amenizava sua fúria, e ela guardou a faca. De repente enxergava todas as falhas e os perigos de seu plano para pôr fim à vida do marido. O lugar estava repleto de testemunhas. Um atentado contra sua vida poderia lhe render solidariedade e até enfraquecer o efeito do trabalho duro de Payton. Se fracassasse ou fosse capturada, logo sua identidade seria descoberta, e um interrogatório conduziria Roderick à família de Payton e às crianças.
Além do mais, já não sabia se seria capaz de matá-lo. Roderick era um verme, uma nódoa na raça humana, mas poderia realmente cravar uma faca em seu coração? Talvez não. Seria capturada, levada às mãos do marido, e perderia a vida por nada.
Tremendo um pouco ao se dar conta do que quase havia feito, ela começou a se esgueirar para a saída. Perto da porta, um pajem passou diante dela e a fez parar. Como Callum chegara à corte? Onde conseguira aquelas roupas elegantes? Tentou detê-lo, mas uma elegante mão surgiu de trás dela e a segurou pelo braço, impedindo o gesto.
— Aquele é Callum — Kirstie sussurrou depois de recuperar-se do choque.
Payton a mantinha protegida pelas sombras.
— Não. É meu primo Uven MacMilLan. — Ele se virou e fez um sinal para Lan, indicando que ele devia voltar aos cavalos deixados no pátio do castelo.
— Mas ele é muito parecido com Callum.
— Sim, eu sei. Prometo explicar tudo mais tarde, depois de dizer o que penso sobre esse seu ataque de idiotice.
Kirstie decidiu que a melhor defesa era o silêncio, pelo menos nessa situação.
Uma vez em casa, ele a conduziu ao salão e a fez sentar-se em uma poltrona Exausta, ela não protestou, nem mesmo quando Payton colocou uma taça de vinho em sua mão
— Ia matá-lo — ele disse sem rodeios.
— Sim. Pretendia cravar minha adaga naquele coração de pedra. Cheguei a pensar em rasgar o ventre do miserável para deixá-lo morrer devagar e dolorosamente, sofrendo uma horrível agonia, e também considerei a possibilidade de cortar-lhe o membro, porque assim ele nunca mais poderia fazer mal a alguém. Mas depois...
— Podia ter morrido.
— Possivelmente, mas não importa. Queria mandar aquele monstro para o inferno.
— E os brutos que o acompanham o tempo todo ficariam olhando sem reagir?
Não admitiria que havia esquecido os guardas do marido. — Planejava um ataque rápido.
— Você não planejava nada, porque não fez planos. Não pensou. Apenas agiu num impulso, certa de que todos se afastariam quando você atacasse Roderick.
Kirstie levantou-se tomada novamente pela fúria.
— Talvez se afastassem. Todos ali deviam desejar a morte daquele infeliz. E você tem razão, não pensei em um plano. Quando olhei para o pobre Robbie, só pensei que Roderick já havia vivido demais. Ele tinha de ser detido. Roderick é uma besta doente, um monstro vil, e queria aquele monstro morto. Morto e enterrado, com sua sepultura cercada por todas as crianças a quem ele causou algum mal. Queria ver os pequenos cuspindo em seu túmulo e amaldiçoando sua alma negra. Payton aproximou-se e abraçou-a.
— Os meninos jamais cuspiriam no túmulo daquele bastardo. Eles urinariam nele.
Era inacreditável, mas as palavras inesperadas despertaram nela o desejo de rir. Seus irmãos fariam o mesmo.
— Você prometeu explicar a semelhança entre aquele menino e Callum... — ela lembrou, tentando manter a calma enquanto se deixava envolver pelo calor dos braços fortes.
— Creio que Callum pode ser parente dele.
— Tem certeza? — Ela aproveitou o momento para libertar-se do perigoso abraço.
— Tanta quanto posso ter, mas até obter o nome da mãe do garoto e mais algumas informações, não direi nada a ele. Os MacMilLan só terão de olhar para Callum para saberem que o menino pertence ao clã, e certamente o aceitarão. Ele terá um nome, uma família, e se pudermos encontrar parentes próximos, será ainda melhor.
— Acha que eles o aceitarão mesmo?
— É evidente que sim. Esse é o clã de meu tio Eric. Sei como costumam agir. Eles receberão Callum em seu meio sem hesitação ou condenação. O laço de sangue é muito importante para eles.
— Oh, isso seria maravilhoso. Dar a Callum um nome, uma herança, até mesmo um clã, seria bom demais para ele.
Payton aproximou-se dela e tocou seu rosto. Kirstie franziu a testa.
— Afaste-se — pediu. — Estou farta desse seu jogo de sedução.
O protesto só o fez pressionar o corpo contra o dela, imobilizando-a contra a parede.
— Também estou cansado — respondeu. — Estou farto de tentar sufocar as chamas que ardem em meu peito. Cansado de esperar por seu sim.
— Está dizendo que não aceita um não como resposta? É isso?
— Confesso que ainda não vivi essa experiência. Além do mais, sei que quer dizer sim. — Ele a beijou nos lábios. — Diga sim — murmurou, beijando-a novamente.
— Não posso. Sou uma mulher casada.
— É uma viúva virgem.
Payton a distraía com seus beijos enquanto desamarrava sua túnica, e pouco depois encontrava o caminho para tocar um de seus seios. O gemido sufocado que ouviu o fez arder por mais.
— Por que me pressiona tanto?
— Porque anseio por você. É uma mulher quente, e quero libertar esse calor em você.
— Vá libertar o calor de uma de suas mulheres.
— Não quero nenhuma outra.
— Bem, esta você não pode ter.
Por um momento ela ainda tentou resistir ao beijo, mas, com um suspiro, cedeu e enlaçou o pescoço de Payton numa rendição silenciosa. Foi um beijo diferente de todos os outros. Era mais uma exigência, uma demonstração de urgência, do que uma sedução.
— Sim, eu posso — ele murmurou. — E terei. Odeio pensar que poderia ter morrido essa noite. Seria um pecado privar-me de algo que desejo tanto, algo que você também quer.
— Se sobreviveria ou não para aquecer sua cama é algo em que não cheguei a pensar.
— Você quer tanto quanto eu, minha doce Sombra. Está tremendo de desejo.
— Isso tudo é assustador.
— Mesmo assim, você me quer. Está pensando em como seria sentir sua pele contra a minha.
— Não! — Como ele podia saber que pensamentos habitavam sua cabeça?
— Anseio por ver sua beleza desnuda, por sentir o sabor de sua pele delicada. Quero mergulhar fundo em seu calor. Profundamente e bem devagar, depois mais depressa, até fazê-la explodir. Pode imaginar como será, não pode? Seu corpo já conhece o meu. Sinto o calor de seu corpo contra o meu. Deixe-me levá-la ao paraíso.
Ele a beijou novamente, agora com luxúria e ousadia, reproduzindo com os lábios e a língua tudo que pretendia fazer com seu corpo delgado. Uma das mãos já estava entre suas pernas, dentro da calça, e ele a acariciava de um jeito que ameaçava sua sanidade mental. Temia desfalecer.
Apavorada, ela o empurrou e correu para a porta, apesar das pernas trêmulas. Enquanto corria, ela ia ajeitando as roupas e cobrindo o corpo.
Sozinho, Payton consumiu três taças de vinho em poucos minutos, esperando que o álcool o ajudasse a superar a intensa frustração. Ainda estava ofegante quando Lan entrou no salão e sorriu.
— Um comentário sobre como posso estar perdendo meu charme com o passar dos anos, e juro que vai pagar por tudo que estou sofrendo.
— Talvez a moça não o queira — Lan sugeriu.
— Ela me quer. Tanto quanto eu a quero.
— Bem, ela é donzela e acredita em manter os votos que faz, mesmo que os tenha feito para quem não os mereça.
— Eu sei.
— Então, por que não a deixa em paz?
— Não posso. Ardo por ela desde que a vi pela primeira vez.
— Mas ela não é uma de suas mulheres.
— Também sei disso.
Lan sentou-se e ficou silencioso por um momento, depois o encarou.
— Se conseguir levá-la para a cama, o que fará depois?
— Repetirei a experiência muitas vezes.
— Não é isso...
— Sim, eu entendi a pergunta — Payton suspirou resignado. — Mas não tenho uma resposta. Talvez volte a pensar com clareza depois de passar duas ou três semanas na cama com ela. Pode ser apenas uma loucura passageira, um sentimento inconseqüente. De qualquer maneira... Bem, quando for tornada pública sua estadia em minha casa, todos pensarão que somos amantes. E como ela foi casada por cinco anos, ninguém acreditará que seduzi uma donzela. Portanto, correndo o risco de soar irresponsável e mesmo canalha, não tomarei nenhuma decisão quanto ao futuro antes de conhecer exatamente o que me atormenta.
— Sim, é melhor assim. Acha que ela teria realmente matado aquele bastardo hoje?
— Não. Ela já estava mudando de idéia quando a encontrei. Já se dirigia à porta, mas parou ao ver meu primo Uven. Ela pensou que fosse Callum.
— Disse a ela por que os meninos são tão parecidos?
— Contei a ela o pouco que sei. Kirstie não dirá nada a ninguém. Descobriu alguma coisa?
— O nome da mãe dele era Joan. Ela era a caçula de uma família numerosa, e o pai, um criador de porcos, a expulsou de casa quando soube que estava grávida.
— Que tipo de homem dá as costas para o próprio sangue?
— Um homem imprestável, certamente. E Callum não precisa conhecer esse lado da família.
— Tem razão. Avise-me quando tiver mais informações. — Payton levantou-se. — Amanhã, quando for ao castelo,vou verificar se sir Bryan conhece alguma Joan, filha de um criador de porcos. Agora vou tentar descansar. Boa noite, Lan.
Kirstie agarrou as cobertas ao ouvir os passos de Payton se deterem diante da porta do quarto. Poder reconhecer o som de seus passos era algo que a irritava. Não queria ter tanta consciência dele.
O homem era uma pestilência. Ele a deixava tão agitada e quente que passava a noite acordada, virando-se na cama. Ainda o queria. Cada palavra que ele havia pronunciado estava gravada em sua mente, ecoando em seus ouvidos.
Tinha de resistir à tentação e manter-se casta, mas a dificuldade crescia a cada beijo, cada carícia. Sua fraqueza a enfurecia.
Queria dormir e esquecer, mas... Ah, a noite seria longa. Muito longa...
Callum e Moira levantaram as cabeças quando Kirstie entrou no quarto onde as crianças estavam alojadas. Os dois estavam sentados na cama de Robbie, que melhorava rapidamente.
— Se continuar progredindo assim, logo estará fora dessa cama.
— Queria me levantar hoje, mas Alice não permitiu — contou Robbie.
— É melhor fazer o que ela diz, mocinho. E agora, coma tudo que ela mandou — ela sugeriu, depositando sobre a cama a bandeja com bolos de aveia, pão e cidra fria. — Você precisa se alimentar. David, Alan e William me garantiram que nunca comeram bolos melhores que esses.
— Eles estão na cozinha com Alice novamente, não é? — Callum perguntou entre uma mordida e outra.
— Sim. Eles gostam dela.
— Dela e de Lan.
— São boas pessoas.
— Sim, eles são. Mas Lan não os está ensinando a lutar. Eles ainda são jovens demais para isso.
— Tem razão. Ainda vai levar algum tempo para que eles possam aprender a arte masculina da luta.
Kirstie quase riu quando Callum respondeu com um movimento afirmativo de cabeça e uma expressão solene. Lan não estava apenas ensinando os truques da luta com espada e faca, mas também ajudava o menino a superar a culpa e a vergonha por tudo que havia acontecido, oferecendo conselhos e conversando com Callum como um amigo mais velho, alguém com quem poderia contar sempre. O orgulho que ela via desabrochar em Callum a enchia de alívio e alegria.
Quando desceu para levar a bandeja de volta à cozinha, Kirstie olhou pela janela e viu os três garotos ajudando Alice com o trabalho no jardim.
— Minha Alice gosta muito dos garotos.
Kirstie assustou-se ao ouvir a voz de Lan, porque não percebera sua aproximação.
— Notei que os meninos também gostam muito dela — respondeu.
— É verdade. Tem planos para as crianças? Quero dizer, quando estiverem novamente seguros...
— Ah, bem... não. Nada concreto. Pretendia mandá-los para meu irmão Eudard, como fiz com os outros.
— Sim, lembro-me de ter ouvido alguma coisa sobre esse homem.
— Mas o perigo aumentou, e eu desisti de enviar as crianças para longe. Nenhuma delas tem família, o que me faz pensar... Bem, acho que vou ficar com todas. Talvez, quando estivermos todos seguros com minha família, eu possa encontrar casais que os queiram como filhos ou lordes generosos que façam deles aprendizes. Não preciso decidir agora.
— Não, não. — Ele olhou pela janela para a esposa e as crianças. — Eu me casei com Alice há quinze anos. Ela tinha quatorze, eu, dezessete. Logo ela ficou grávida, mas perdeu o bebê. E perdeu mais dois nos dois anos seguintes. A parteira disse que algo havia se rompido quando ela perdeu o último. Foi melhor assim, acho, porque ela sofreu muito e esteve bem perto da morte em todos os abortos. Depois disso, nunca mais houve outra gravidez.
— Isso é muito triste
— Sim, muito. Mas... se não tem planos para os pequenos lá fora, talvez possa deixá-los comigo e com Alice. Ainda não disse nada à minha Alice ou aos garotos, já que eles estão aos seus cuidados e eu não sabia o que pretendia fazer. Não sou rico, mas...
— Lan, estamos falando de órfãos maltrapilhos e crianças abandonadas. O pouco que você tem é muito para eles. Uma casa, uma cama macia, carinho, comida... E um futuro melhor. Tem certeza de que quer ficar com os três?
— Oh, nós ficaríamos com todos, e estou disposto a dizer isso a eles. Não quero magoar ninguém. Falei sobre os três porque eles e minha Alice se dão muito bem, e...
— Sim, há uma ligação muito forte entre eles. Eu já notei. — É isso. Os outros não são iguais. Moira e Robbie já têm um ao outro, mas se quiserem ficar comigo e com Alice, certamente serão bem-vindos. Callum terá coisas melhores.
— Por que diz isso? Descobriu mais sobre a linhagem do garoto?
— Algumas coisas, e Payton vai falar com sir Bryan MacMilLan. Ele não é o pai, mas assim que sir Bryan souber da existência de um garoto tão parecido com Uven, certamente saberá tratar-se de um MacMilLan. Poucos têm aqueles traços tão fortes e singulares.
— E quanto à mãe do menino? Nenhuma informação?
— Nada importante. A família materna faria mais mal do que bem a esse garoto. Eles sabiam que o pequeno estava sozinho no mundo, e não tentaram encontrá-lo. É melhor que ele se mantenha afastado dessa gente.
— Tem razão. Acho que nunca vou entender essas coisas.
— Estive com o avô e o tio do garoto. Convenci os dois a me contarem tudo que sabiam, depois agradeci como eles mereciam e parti.
— Havia uma expressão no rosto de Lan que sugeria uma certa satisfação, como se ele houvesse vingado Callum pelos anos de abandono.
— Bem, são eles quem perdem. Não imaginam que menino maravilhoso baniram de seu convívio. Quer que eu fale com Robbie, Moira e Callum?
— Se puder... É melhor que eles entendam que esperamos que eles decidam com quem desejam ficar. E faça Callum compreender que continuarei treinando-o para a luta, qualquer que seja seu destino.
— Você tem sido bom para ele. Posso vê-lo nutrindo um certo orgulho, uma nova confiança.
— É só o que quero. Bem, agora vou conversar com minha Alice e dizer a ela que pode parar de resistir ao amor dos meninos. — Lan deu alguns passos para a porta que levava ao jardim, mas parou antes de sair. — Ele não a considera mais uma.
Kirstie corou, mas não fingiu que não entendia o comentário.
— Ele é um canalha.
— Bem, um rapaz bonito como ele poderia ser um devasso. As mulheres suspiram por ele desde que sua voz começou a engrossar. E um homem livre deve aceitar as ofertas que aparecem, não acha? Os homens são assim.
— Não estou oferecendo nada.
— Eu sei, e é isso que o intriga. O homem nunca esteve atrás de uma mulher antes. Não como a está perseguindo.
— Provavelmente, nunca teve de perseguir ninguém.
— Não. Então, se é tão fácil para ele encontrar uma amante, porque está enlouquecendo atrás de uma jovem que sempre diz não?
— Por que eu digo não! Ele riu.
— Pode ser. Na verdade, não consigo entender o que acontece entre você e Payton. O que quero dizer é que não precisa se preocupar com o que Alice e eu vamos pensar, se é essa sua inquietação. Não temos nada com isso. Não vamos censurá-la por ir atrás de algum prazer. Afinal, como diz minha Alice, após cinco anos de inferno, você bem merece alguma recompensa. Faça o que seu coração mandar, e não se preocupe com o resto.
— Acho melhor não me deixar levar pelo coração dessa vez.
— Bem, você é quem sabe. Só queria que soubesse que minha Alice e eu não a criticaremos, seja qual for sua decisão.
— Obrigada. Agora vá, Lan. Leve um pouco de felicidade a sua Alice.
Kirstie ainda olhava pela janela, apreciando o feliz encontro de Lan e Alice e a emoção estampada no rosto e nos gestos da mulher, quando Payton parou a seu lado.
— O que está acontecendo? — ele perguntou, passando um braço em torno de sua cintura e puxando-a contra o corpo.
— Lan está dizendo a Alice e aos meninos que agora eles são uma família.
— Ah, então ele reuniu coragem para falar com você?
— Sim, embora não saiba por que ele julgou necessário ter tanta coragem. Não sou nenhuma criatura ameaçadora.
— Ele não queria ouvir um não. Entendo o sentimento. — Ele a beijou antes que Kirstie pudesse escapar. — Obrigado.
— Por quê? — Era difícil raciocinar enquanto o corpo parecia derreter.
— Por ter dado tão belo presente a Lan e Alice.
— Foram as crianças. Elas escolheram. A decisão não foi minha.
— Ah, sim. Foi sua.
— E sou grata por ela — Alice acrescentou ao entrar na cozinha. — Senhor, será que pode ajudar meu Lan a distrair os meninos por uma ou duas horas? Eles estão aflitos para contar a novidade aos outros, mas prefiro que Kirstie fale com eles primeiro.
— E acha que isso vai levar uma ou duas horas? — Payton perguntou surpreso.
— Não, mas quero conversar com Kirstie primeiro.
— É claro. Bem, se precisarem de mim, estarei lá fora. Assim que ficaram sozinhas, Alice segurou as mãos de Kirstie.
— Queria agradecer pelo que fez.
— Eu não fiz nada. Os meninos precisavam de uma família, e vocês queriam crianças. Todos estão felizes.
— Vamos tratá-los como se fossem nossos e cobri-los de amor.
— Eu sei disso.
— Preciso saber se eles foram feridos. Se seu marido... Bem, quero saber se eles sofreram algum dano real.
— Não. Roderick os tocava de maneira nada inocente e os castigava duramente quando eles protestavam, mas não passou disso. Ele nunca ia além disso com meninos com menos de oito anos de idade. Era como se tivesse uma regra própria, uma norma que devia seguir. Ele os pegava bem novos, e depois era como se os treinasse para aceitá-lo. Ele os tocava, contatos que iam se tornando mais e mais íntimos, e qualquer rejeição era motivo de punição. Tudo era feito de forma a fazê-los aceitá-lo quando ele julgasse conveniente. com alguns funcionava, mas não com todos.
— É como treinar um cão — Alice resmungou chocada e triste.
— Roderick sempre foi muito bom em identificar os pontos fracos de uma pessoa, descobrir o que mais a aterroriza. com crianças era ainda mais fácil. Assim que encontrava essa fraqueza, ele passava a usá-la contra a vítima constantemente, até fazê-la se dobrar diante de suas vontades, única forma de escapar ao tormento do castigo. Ele nunca conseguiu identificar o ponto fraco de Callum. O menino se mostrava capaz de superar todos os medos, e enfraquecê-lo tornou-se uma obsessão para Roderick. Foi difícil libertá-lo, porque a vigilância era constante.
— Estou surpresa por seu marido não ter tentado usá-la para enfraquecer Callum.
— Oh, mas ele tentou, pouco antes de eu conseguir libertar Callum. Já havíamos imaginado que ele agiria assim, e eu havia obrigado Callum a jurar que se manteria firme, quaisquer que fossem as minhas circunstâncias. Foram três tentativas, e em todas Callum reagiu com coragem e firmeza. Infelizmente, isso tornou a necessidade de libertá-lo ainda mais urgente. Roderick estava furioso, e o menino crescia depressa. Logo poderia encará-lo de frente. Foi quando ele decidiu que era hora de se livrar de Callum.
— É terrível. Sei que está dizendo a verdade, mas parte de mim se recusa a acreditar em tantas atrocidades.
— Entendo o que sente, porque convivi com tudo isso durante muito tempo. Bem, seus meninos não sofreram grandes danos. Callum levará para sempre algumas cicatrizes mais profundas, mas ele vai superar o pior.
— Sim, ele é forte, e sua força está no coração, na alma e no corpo. E ele é seu.
— Eu poderia ficar com ele, mas parece que Callum tem familiares que o receberão de braços abertos.
— Sim, os MacMilLan. Assim que ouvi o nome, pude ver com clareza. Mas isso não importa, nem mesmo se ele for viver com os parentes. Ele voltará sempre e estará eternamente a seu lado, pronto para defendê-la e ampará-la. Foi a única que se preocupou com ele, que tentou ajudá-lo desde o início. Sofreu por ele e o libertou de todos os males, arriscando sua própria vida para isso. Não, Callum é seu. Moira e Robbie ainda terão de escolher, mas acho que também serão seus. Por outro lado...
— O que é?
— Se Moira puder escolher nesse momento, acho que ela ia preferir ficar com Payton.
— Como todas as mulheres! — Kirstie exclamou sorrindo. — Só mais uma coisa, Alice. Tente convencer os meninos a contar o que Roderick fez com eles. Seria bom se pudéssemos saber que tipo de punição ele impôs a esses pequenos. Se souberem quais são os maiores medos dos meninos, não correrão o risco de despertá-los por acidente.
— É o que vou fazer. Eles ainda são jovens, e vão apagar da mente as más recordações, mas Lan e eu teremos de tomar muito cuidado. Não podemos despertar seus pavores ou alimentar antigos medos. Agora vá. Fale com os outros e use esse dom admirável de dizer as coisas certas.
Callum, Robbie e Moira ficaram felizes pelos outros, mas não aceitaram a proposta de integrar a família de Lan e Alice. Kirstie não conseguia imaginar o que eles esperavam do futuro. Pareciam contentes com o que tinham agora, mas, uma vez solucionado o problema de Roderick, alguma decisão teria de ser tomada. Se as crianças esperavam continuar na casa de Payton, teria de decepcioná-los. Payton era apenas um homem a quem recorrera num momento de desespero, um defensor, e quando terminasse de exterminar seu dragão, ele sairia de sua vida.
Durante o resto do dia, ela se sentiu dominada por essa dura e triste conclusão. Payton sairia de sua vida.
Naquela noite, quando se recolheu, ela sentia todo o frio do mundo alojado em seus ossos. Pousando a mão sobre o coração, tentou protegê-lo da dor que já o dilacerava. Seu tempo com Payton logo estaria chegando ao fim. Conseguira mantê-lo longe de sua cama, mas o aceitara em seu coração, e esse havia sido seu grande erro. Um homem como Payton estava muito além do seu alcance. Ainda vivia prisioneira de um casamento infrutífero, e mesmo assim se apaixonara por outro homem. O melhor que podia fazer era esconder esse amor de todos.
Não. Havia outra coisa que podia fazer. Agitada, ela abriu o baú que fora deixado no quarto e retirou dele uma fina camisola de seda, renda e fitas. De uma coisa estava certa: Payton a desejava. E se isso era tudo que ele podia oferecer, aceitaria seu quinhão de felicidade sem hesitar. O futuro cuidaria do resto.
Fora casada por cinco anos. Ninguém jamais acreditaria que ainda era virgem, nem mesmo quando descobrissem toda a horrível verdade sobre Roderick. Não precisava preservar sua virgindade para obter uma anulação, porque ela jamais aconteceria. Ao final da batalha, um dos dois estaria morto. Queria morrer sem conhecer toda a plenitude da paixão que ela e Payton podiam viver juntos? Não. Seu amor era ganancioso. Queria tudo, mas era inútil tentar agarrar a lua. Assim, aceitaria o que pudesse ter, tudo que Payton quisesse dar. Pelo menos, quando tudo acabasse, teria lindas lembranças para ajudá-la a suportar o sofrimento.
Rápida, ela decidiu tomar um banho e vestir a camisola. Se não mergulhasse nos braços de Payton nos próximos minutos, perderia a coragem e desistiria do grave pecado que planejava cometer.
Payton reclinou-se na poltrona e saboreou o vinho. Nada parecia dar certo. Roderick ainda estava livre, apesar dos bons frutos produzidos por sua campanha de difamação. O medo impedia as pessoas de se envolverem no caso, de testemunharem e serem atuantes na tentativa de condenação do monstro. Sabia que a paciência era uma virtude, especialmente em uma campanha como a que deflagrava, mas estava começando a sentir que não suportaria esperar. Cada vez que uma das crianças se encolhia ou olhava para ele com aquela sombra de pavor nos olhos, desejava ver sir Roderick Maclye morto.
Como se não bastasse, seu conhecido charme não estava funcionando. Quinze dias se passaram desde que decidira ter Kirstie em sua cama, e ela ainda estava fria e vazia quando ia se deitar. As circunstâncias atingiam sua vaidade como jamais acontecera antes.
O som da porta do quarto atraiu sua atenção. Esperava não ter de ouvir mais um sermão de Lan. O homem parecia se divertir com seu fracasso no campo sexual, e não perdia uma oportunidade de censurá-lo pela insistência com que tentava seduzir Kirstie.
Ao vê-la entrar no quarto e fechar a porta, Payton quase derrubou a taça. Ele a deixou sobre a mesa ao lado da poltrona, intrigado com sua presença e com a camisola delicada que mais revelava do que escondia. A mulher não tinha piedade?
— Aconteceu alguma coisa com as crianças?
— Não. Estão todas dormindo.
— Então... o que a traz aqui?
— Vim para... para fazer amor com você. Silêncio.
Kirstie havia imaginado dezenas de reações a sua abordagem, mas em nenhuma delas Payton ficava sem ação.
Aos poucos ele foi se recuperando. Devagar, Payton levantou-se e caminhou até ela, surpreso por ainda poder caminhar. Suas longas noites de angústia e frustração chegavam ao fim de maneira tão inesperada, que mal podia acreditar no que estava vivendo. A primeira coisa que fez foi beijá-la.
Depois ele perguntou:
— E a anulação?
— Percebi que ela não é possível. — Kirstie tremia envolvida por um delicioso calor. As mãos dele estavam em suas costas, acariciando-a, e a sensação era maravilhosa. — Essa batalha só poderá terminar com a morte de Roderick ou a minha. Ele não vai me deixar viva. No nosso caso, o casamento só terminará pela morte, como estabelece a igreja. E para obter uma anulação, eu teria de anunciar que estou viva. E essa é a grande falha no nosso plano. Sabia disso, não?
— Imaginei que a anulação fosse apenas um estratagema, um truque para me manter distante. Não está mais preocupada com a questão do adultério? Percebe agora que não é realmente esposa desse monstro? Nunca foi?
— Payton, por que está me fazendo lembrar as razões pelas quais eu não deveria estar aqui?
— Porque sou um idiota.
— Bem, eu nunca cometeria a indelicadeza de dizer, mas...
— Mas é o que sou. Só mais uma pergunta. Tem certeza de que sir Roderick nunca consumou o matrimônio?
— Posso ser inocente, mas não sou ignorante. É claro que tenho certeza.
— Por quê?
— Não sei. Já disse que, aos quinze anos, eu era como uma criança. Demorei muito para tornar-me mulher, e quando aconteceu...
— Sim?
— Foi exatamente na noite de núpcias. Roderick entrou no quarto falando sobre seu dever de marido, tirando a roupa... Não tive tempo para preveni-lo Quando ergueu minha saia e se deparou com aquilo, ele quase vomitou e saiu do quarto correndo e gritando. Depois disso, tornei-me mais mulher e menos criança. Ele ainda fez uma ou duas tentativas depois aquela noite, mas nunca conseguiu ir até o fim. Cheguei a pensar que a culpa fosse minha, que fosse repugnante.
— Tolice.
— Sim, eu sei. Descobri que o problema não era comigo, porque estava sempre enfrentando a luxúria dos homens de Roderick. Dois deles eram muito insistentes, e tive de denunciá-los. Havia poucas mulheres no castelo, o que me fez pensar que meu marido preferia a companhia dos homens, e depois quando ele passou a me tratar com desprezo e, mais tarde, com ódio, compreendi que ele realmente detestava as mulheres.
— Talvez tenha pensado em encontrar a cura em uma esposa.
— Talvez. Ou ele queria apenas ter filhos, o que esconderia do mundo sua verdadeira natureza.
— Não importa. Tudo que importa agora é que estamos aqui, juntos... e eu a quero como jamais quis outra mulher.
O beijo foi ardente, ousado, e logo as carícias se seguiram acendendo um fogo incontrolável. Livre da necessidade de controlar seus impulsos, Kirstie correspondia com uma avidez que o inflamava ainda mais, e quando a união aconteceu, a dor inicial não diminuiu a intensidade do prazer ou a grandeza do clímax.
Kirstie sorriu e deslizou o pé pelas pernas de Payton. Ainda sentia o corpo cantar, mas a sensação de estar desfalecendo havia desaparecido. Se era isso que Payton fazia uma mulher sentir, estava surpresa por não haver uma fila delas na porta.
Podia ouvir sua respiração constante, profunda. Seria melhor não pensar mais em todas as mulheres com quem ele se deitara. Tais pensamentos eram dolorosos, e não queria arruinar os momentos que tinha para viver com Payton. Não conseguiria evitar a culpa por ter quebrado tantas regras, mas pretendia se esforçar para isso. Estava disposta a desfrutar ao máximo da paixão que acabara de descobrir em seu corpo, porque era hora de agarrar-se a toda e qualquer satisfação que pudesse obter. Viveria enquanto pudesse, pois logo estaria submetida a uma irrevogável sentença de morte.
Payton apreciava as carícias delicadas de Kirstie enquanto esperava que a respiração e a pulsação voltassem ao normal. Só assim poderia ter alguma chance de mover-se. Era como se houvesse despejado toda sua força no interior daquele corpo delgado. O clímax fora poderoso como jamais experimentara antes. Devia estar preocupado, e estaria, mais tarde, mas naquele momento pensava apenas em fazer amor com ela mais uma vez antes do fim da noite.
Finalmente, recuperada parte de suas forças, ele a abraçou e sentiu o corpo se aninhar junto ao dele. Kirstie Maclye era incomparável.
— Quero que durma comigo — ele murmurou.
— O quê? Para que todos saibam o que andamos fazendo?
— Todos já sabem.
— Mas...
— Kirstie, eles saberão que somos amantes mesmo que você volte para o seu quarto agora. E ninguém vai criticá-la por isso. Depois de tudo que fez pelas crianças, seria preciso mais do que aceitar um amante para perder o respeito dos que habitam esta casa. Ninguém vai pensar que é só mais uma de minhas mulheres, se é isso que a preocupa.
— As crianças...
— São pequenas demais para julgarem o que é bom ou mau, ou mesmo para entenderem o que fazemos aqui. Exceto por Pallum, é claro, e ele não a condenará. Talvez não fique muito satisfeito comigo, porque você é a primeira paixão da vida dele, mas isso vai passar.
Kirstie já havia suspeitado disso.
— Callum me disse para fazer o que for melhor para mim. O que me fizer feliz.
— Então, já discutiu esse assunto com ele?
— Ele começou a conversa. Às vezes é difícil lembrar que ele é só um menino de onze anos.
— Ele tem onze anos no corpo, mas não no coração e na mente. Callum não é mais um menino, como consideramos o significado da palavra, há mais de um ano. Teve a infância roubada pelo abuso e pelo abandono. O que ele sente por você nasceu de sua bondade. Logo esse sentimento vai se tornar mais parecido com o que se sente por uma irmã, talvez até pela mãe.
— Espero que sim. Francamente, espero que sim.
Como vai o jovem Simon? — Kirstie perguntou quando ela e Callum se afastavam do abrigo.
— Bem. Aquela mulher está fazendo todas as crianças trabalharem duro, mais do que antes. Como não ousam ser vistos entregando meninos a Roderick, ela quer ganhar dinheiro com o suor dos pequenos. Cadela.
Como concordava com o adjetivo, Kirstie decidiu que seria hipócrita censurar Callum por usá-lo. Quando ouvira falar pela primeira vez sobre o lar para crianças órfãs e abandonadas, acreditara tratar-se de um lugar maravilhoso. Muitas crianças rejeitadas pelas famílias eram deixadas entregues à própria sorte, amparadas pela igreja, ou usadas como mão-de-obra escrava por quem as encontrasse e delas se apoderasse. A casa em questão era administrada pelos Darrochs, que sobreviviam do trabalho de crianças que eram treinadas para isso e do dinheiro doado por pessoas generosas ou culpadas.
Era o que Kirstie pensava até começar a colher informações sobre o local. Naquela casa dilapidada e úmida, as crianças mal recebiam o necessário para a sobrevivência, e ainda trabalhavam duro para encher os cofres dos Darrochs. Elas eram vendidas e, a julgar pelo exemplo de Roderick, era melhor nem pensar no destino dado àqueles que não trabalhavam na casa.
— Sabe de uma coisa, Callum? Assim que terminarmos com Roderick, acho que vou concentrar minha atenção nos Darrochs.
— Sim, eles bem merecem ser castigados.
— Estava dizendo que Roderick já não é bem-vindo na casa deles?
— Sim e não. Eles estão com medo. Temem ser vistos negociando com o homem nesse momento, quando os rumores circulam pela cidade, e atraírem a atenção de alguém para a maneira como cuidam das crianças.
— Nesse caso, é possível que eles mesmos se entreguem. O medo é um perigoso inimigo, sabe?
— Sim, eu sei, e a mulher é a mais perturbada. Ela está ansiosa pelo dinheiro pago pelas crianças. Simon diz que Roderick tem aparecido na casa com certa freqüência, mas mestre Darroch quer que ele espere, pede paciência, compreensão...
O mundo era mesmo injusto, Kirstie ia pensando enquanto caminhava. Os ricos faziam pouco, e as pessoas que desejavam realmente ajudar, como ela, não dispunham de poder ou dinheiro para interferir realmente. Conseguira livrar apenas dez crianças do infortúnio, e para isso tivera de usar recursos próprios. Gostaria de poder fechar os olhos e ignorar as necessidades daqueles que a cercavam, satisfazer-se com o pouco que era capaz de fazer.
— Você faz o que pode, minha lady — Callum disparou, como se pudesse ler seus pensamentos. — Está disposta a arriscar a vida por nós. Poucas pessoas no mundo iriam tão longe.
— É isso que me entristece. São muitas as crianças que precisam de ajuda, e não deveria ser assim. Sempre acreditei que é responsabilidade dos adultos cuidar dos pequeninos, mesmo que não sejam seus filhos. As crianças são o futuro, a garantia de reposição para os velhos e enfermos. São muitas as possibilidades de morte para os infantes, e aqueles que são fortes o bastante para sobreviver devem ser protegidos e incentivados. Por que tantas pessoas se negam a enxergar algo tão simples?
— Os pobres têm muitos filhos, e os ricos só se ocupam daqueles de seu próprio sangue.
— Às vezes nem deles.
— Quando eu for adulto, cuidarei de tantos quantos puder. Se trabalhar duro, talvez tenha uma casa grande onde possa acolher os órfãos e abandonados.
— Você vai ser um bom homem, Callum.
Dois homens surgiram repentinamente na alameda por onde ela e Callum caminhavam, e a conversa foi interrompida. Deviam estar saindo da taverna, porque cambaleavam, e apesar de estarem atentos e serem muito ágeis, Kirstie e Callum não conseguiram evitá-los. O menino foi derrubado e, quando se movia para ajudá-lo, Kirstie sentiu que um dos homens tropeçava nela. A colisão a jogou contra a parede da taverna.
Tonta, ela se afastou da parede e sentiu que os cabelos eram puxados. Horrorizada, tentou segurar a touca, mas era tarde demais. O tecido se enroscara em uma farpa de madeira da parede, e os cabelos soltos em torno do rosto já revelavam seu verdadeiro sexo. Os dois homens a encararam como se a reconhecessem. Eram os guardas de Roderick.
— Corra! — Kirstie ordenou a Callum, os olhos fixos nos dois atacantes.
— Ora, ora, se não é a jovem esposa de nosso lorde — disse Gib, sorrindo de maneira a revelar seus dentes podres.
— Ora, o senhor vai ficar muito satisfeito com isso. Ou não? Bem, talvez ele não fique feliz por saber que a cadela ainda está viva.
— Ela não estará por muito tempo.
Gib estendeu a mão para agarrá-la, mas Kirstie levantou o pé e chutou-o com força entre as pernas. Ao mesmo tempo, uma estaca surgiu entre as pernas de Wattie vinda de trás. Os dois homens gritaram e caíram de joelhos. Kirstie e Callum correram.
— Eu não mandei correr? — ela gritou, percorrendo a alameda com velocidade espantosa e ouvindo os gritos de seus atacantes.
— E deixá-la sozinha com aquela escória? Oh, aí vem eles. Ou não batemos com força suficiente, ou eles têm pedras entre as pernas. Por aqui — ele indicou, puxando-a pela manga.
Kirstie se deixou conduzir. O menino havia crescido nas ruas e as conhecia como ninguém.
Quando pararam para recuperar o fôlego, ela sentia uma terrível dor na região lateral do ventre. Apoiada em um muro, Kirstie tentou ganhar forças. Haviam corrido mais do que se atrevia a calcular.
— Ainda posso ouvi-los — ela murmurou.
— Eu também, mas não estão muito próximos. Podemos descansar um pouco.
— Esses homens não vão desistir. — Trêmula, ela recolocou a touca e escondeu os cabelos longos.
— Não. Se puderem levá-la ao homem a quem servem, certamente ficarão com os bolsos cheios. Terão o bastante para comprar cerveja e prostitutas por muitos anos.
Era horrível descobrir que a preocupação de Payton tinha fundamento, afinal. E seria ainda pior contar a ele tudo que havia acontecido. E teria de contar, porque, assim que fosse informado de que ainda estava viva, Roderick começaria a procurá-la. Não era a única escondida na casa de Payton. Teriam de pensar em um plano de fuga, ou encontrar outro esconderijo seguro.
— Venha, temos de continuar—disse Callum. — eles ainda estão distantes. Não precisamos correr tanto.
— Graças a Deus. Acho que estou ficando velha.
— Deve ter usado toda sua energia rolando na cama com sir Payton ontem à noite.
— Callum!
— Qual é o problema, lady? Pensou que ninguém soubesse? Todos já sabem.
— Mas é... vergonhoso.
— Você se preocupa demais com essas coisas.
Kirstie não respondeu. Salvar a vida era mais importante do que defender sua honra, e a perseguição prosseguia, apesar de a noite já estar se aproximando. Estava tão cansada, que acabaria sendo alcançada por falta de forças. Ficaria caída no chão, esperando por Gib e Wattie, incapaz de defender-se. Cada vez que tomavam a direção da casa de Payton, um dos malfeitores estava no caminho. Podia quase jurar que eles sabiam onde e com quem se escondia, mas isso era impossível. De qualquer maneira, ela e Callum tinham de correr em outra direção, pois não podiam pôr em risco a segurança das crianças.
Finalmente, exaustos, eles acabaram entrando no local onde Kirstie mantivera escondidos os pequenos. Depois de fecharem a abertura do esconderijo, ficaram sentados lado a lado, ofegantes, torcendo para não serem encontrados. Havia mais duas saídas, mas Kirstie só tomou conhecimento delas momentos depois, quando Callum recuperou o fôlego e conseguiu falar novamente.
— Eu sempre encontro todas as saídas de um esconderijo. Não gosto de me sentir encurralado.
— Callum, se formos encontrados, quero que corra sem se preocupar comigo.
— Mas eu...
— Escute, é uma ordem. Se formos encontrados, você deverá voltar à casa de sir Payton e contar tudo que aconteceu. Dissemos a ele onde estaríamos hoje, mas não estamos lá. Quando se der conta de que não voltamos no horário habitual, ele mandará alguém procurar por nós.
— Eu disse a ele que cuidaria de você.
— Mesmo assim, Payton virá procurar por nós. Ele é um cavaleiro, nosso protetor, o homem que escolhemos para nos defender. Sua honra exigirá que tente encontrar-nos. Se Roderick me pegar, certamente me levará a Thannescarr, e você conhece bem todas as entradas e saídas daquele maldito lugar.
— Está bem, está bem. Se não puder salvá-la, salvarei minha pele e irei buscar sir Payton. Já entendi. Agora fique quieta.
Alguém se aproximava do esconderijo.
— Acho que os perdemos, Wattie — Gib estava dizendo bem perto da abertura, na calçada.
— Malditos! Estava certo de que ia pôr as mãos naquela cadela, afinal.
— Oh, sim, e você sempre quis pôr as mãos nela.
— Bem, Roderick não estava fazendo uso da moça.
— Não, mas duvido que permita que você a use. Ela é sua esposa, e o velho Roderick não gosta de dividir o que tem.
— Ele estava começando a pensar nisso. Se a esposa tivesse um filho, ele arrancaria alguma coisa da família. Terra ou dinheiro, não sei ao certo. Pouco antes de tentar afogá-la, ele estava falando em permitir que nós fizéssemos esse filho nela.
— Ele nunca deixaria um bastardo nosso ter qualquer coisa que fosse dele, ou que pudesse herdar. O homem é orgulhoso.
— Ele saberia o que fazer com o bastardo. De qualquer maneira, o que importa é que Roderick ia nos deixar desfrutar da mulher dele, e eu mal podia esperar por isso. Adoro virgens.
— E se eu quisesse ser o primeiro, Wattie?
— Jogaríamos o dado para decidir.
— Boa idéia. Mas agora ele só a quer morta.
— Melhor ainda. Talvez nos deixe tê-la antes de matá-la, nem que seja para humilhar a cadela. E eu a humilharia de verdade.
— Perdeu sua chance, Wattie. Nós a perdemos. Qual pirralho estava correndo com ela?
— Callum, o bastardo. Ele sempre foi um moleque astuto. Roderick devia ter quebrado aquele pescoço insolente há anos. Vamos continuar procurando por mais uma ou duas horas.
— E depois? Eles devem ter se metido em um buraco qualquer. Nunca os encontraremos. Está escurecendo.
— Traremos os cães.
— Roderick não vai gostar de saber que a perdemos, Gib — Wattie comentou enquanto se afastavam.
— Não, mas não importa. Ele vai ficar muito satisfeito quando souber que a descobrimos viva. Agora ele sabe quem está causando todos os problemas que vem enfrentando recentemente.
Assim que os dois se distanciaram, Callum levantou-se.
— Venha, temos de sair daqui. Nenhum lugar será seguro para nós depois desta noite. Temos de deixar a cidade.
— Não acha que devemos esperar mais um pouco?
— Não. Temos de voltar à casa de sir Payton. Quanto mais tempo passarmos longe das ruas, maior será o intervalo em que as pessoas pisarão sobre nossas pegadas. O rastro será mais confuso.
— Ah, sim. É claro. Vamos desaparecer sem deixar pistas.
— É o que estou dizendo. Lan me ensinou que parte da habilidade de um cavaleiro está em saber quando é o melhor momento para lutar. Se está sozinho contra muitos, se é mais fraco do que o oponente, enfim, se há um motivo que possa sugerir a possibilidade de uma derrota, é mais sensato afastarse e esperar um momento mais propício para o confronto. É isso que vamos fazer.
— Acha que Lan e Payton serão espertos o bastante para despistar os cães?
— Oh, sim. Eles saberão o que fazer. Não se preocupe.
— É fácil falar...
— Viva?
Roderick olhou para os dois homens que haviam invadido a privacidade de seus aposentos, obrigando-o a abreviar sua diversão. Fora reduzido a comprar um menino bem treinado de uma certa sra. Murchison, uma prostituta bem conhecida por prover a todos os gostos. Seria o bastante por enquanto, ele pensou, notando que o rapaz se retirava para o aposento vizinho, onde aguardaria seu chamado.
Se sua esposa estava viva, tudo começava a ficar claro. Se Kirstie havia sobrevivido, só podia ser ela a responsável pelos rumores que manchavam seu nome e prejudicavam sua diversão. Ela devia ter um cúmplice, e essa pessoa também teria de morrer.
— Sim, meu lorde — respondeu Gib. — Ela e aquele menino chamado Callum.
— Têm certeza de que era mesmo minha esposa?
— com aqueles olhos e aquele cabelo? Oh, sim, era lady Kirstie. Não há dúvida.
— Suspeito de que ela me tenha roubado muitas crianças. Devia ter me livrado da cadela há anos.
Odiava a esposa e a freqüência com que ela o traíra e ainda traía. Mesmo agora, quando julgava estar livre, descobria que ela ainda o atormentava, porque estava certo de que era ela quem espalhava os rumores que o ameaçavam. Devia tê-la estrangulado na noite de núpcias, quando vira todo aquele... A lembrança ainda o enojava.
— Estamos pensando em persegui-los com os cães — disse Wattie.
— Não pode soltar aquelas feras pelas ruas da cidade — Roderick protestou.
— Serão apenas alguns, e não estarão soltos, mas em coleiras. Levaremos só os melhores.
— Não esta noite.
— Mas... o rastro ainda está fresco e...
— Nenhum rastro é fresco depois de alguns minutos. Quantas pessoas já não passaram por cima das pegadas dos dois infelizes? Vamos deixar para amanhã. Quando começar a caçar minha esposa, terei de explicar a todos porque disse que ela estava morta. Preciso de tempo para planejar essa explicação. E agora que sabemos que ela está escondida na cidade, não precisamos de um rastro. Vamos encontrá-la de qualquer maneira.
Wattie balançou a cabeça.
— Não entendo como ela escapou do rio.
Roderick atirou a taça de vinho contra a parede, assustando os dois homens.
— Parece que a cadela sabe nadar, não é? Não tem sequer a delicadeza de morrer como uma lady, a desgraçada. Bem, dessa vez tomarei providências para que ela não escape. E quero aquele garoto, também. E quem mais for tolo o bastante para ajudá-la. Agora saiam. E comecem a caçada ao amanhecer.
— Onde esteve? Kirstie praticamente caiu dentro da casa quando Payton abriu a porta da cozinha. Acompanhada por Callum, ela se sentou no banco junto da mesa antes de responder.
— Fugindo dos homens de Roderick — disse ofegante, bebendo com avidez a cidra fria que Alice servia. — Correndo, me escondendo, correndo mais um pouco e me escondendo novamente... Não tenho forças para mais nada.
Payton sentiu o coração oprimido e espantou-se com a ferocidade com que temia pela segurança dessa mulher. Ela parecia gostar do perigo, e não sabia se suportaria viver esse mesmo sentimento cada vez que ela fosse desafiá-lo.
Lan entrou na cozinha e suspirou aliviado ao ver Kirstie e Callum sentados.
— Vi os homens de Roderick vasculhando a cidade. Eles a viram, não é?
— Sim. Foi um lamentável acidente. Eles surgiram de repente em uma alameda por onde passávamos. Estavam embriagados, e houve uma colisão entre nós. Perdi minha touca, e eles me reconheceram de imediato. Conseguimos fugir, mas demoramos um bom tempo até despistá-los e encontrarmos um caminho livre para cá. Agora... é evidente que não podemos ficar.
Payton resmungou alguma coisa e passou a mão na cabeça.
— Precisam de um banho quente e comida — Alice decidiu.
— Depois poderão voltar a falar com sir Payton sobre o que aconteceu.
Dessa vez Payton estava furioso, Kirstie constatou enquanto bebia um pouco de vinho. Ele falava com Callum como se ela não estivesse presente no salão, e Lan acompanhava a conversa com atenção solene. A maneira como era tratada pelos três começava a irritá-la, e não sabia por quanto tempo poderia suportar o isolamento.
— Aqueles dois porcos mal podem esperar para porem as mãos em nossa Kirstie — Callum estava dizendo. — Eles acreditam que Roderick vai permitir que se divirtam com ela antes de matá-la.
— Callum — ela o censurou mortificada. — Sir Payton não precisa ouvir tudo isso. — A súbita tensão do lorde a maneira como ele se aproximara para segurar sua mão a assustavam.
— Foi só uma conversa vazia, tolice de bêbados.
— O que mais eles disseram? — Payton perguntou ao rapaz com voz firme e fria.
— Parece que Roderick já havia pensado em permitir que eles se deitassem com ela para engravidá-la. Ele precisa de um herdeiro. Gib e Wattie não sabem por quê, mas sabem que Roderick pode obter vantagens com isso. Ele traçava planos nesse sentido quando Kirstie o obrigou a tentar silenciá-la. Agora eles acham que ainda poderão tê-la, porque Roderick gostaria de humilhá-la antes de matá-la.
— Se ela sobreviver ao ataque daqueles dois brutos — Payton murmurou furioso. — Bem, você se comportou de maneira honrada, Callum. Agora pode ir descansar.
— Acho que precisamos de um novo esconderijo.
— Só se o bastardo vier aqui, e ele não vai se atrever a chutar as portas de minha casa. Não no início. Lan já está preparando um novo esconderijo. Temos vários nas adegas.
— Os cães não poderão seguir nosso rastro?
— É possível, mas isso não me preocupa muito. Existem algumas coisas que se pode fazer para enganar o olfato dos cães, e teremos à mão tudo que for necessário. Agora vá dormir, rapaz.
Callum e Lan se retiraram, e Payton a levou para fora do salão, na direção de seus aposentos. Kirstie pensou em protestar, mas achou melhor ficar quieta. O homem estava furioso, e sabia bem o que podia acontecer quando alguém era tolo o bastante para desafiar esse tipo de ira contida.
Ele a despiu sem dizer nada. Depois a acomodou na cama sem nem sequer encará-la. Quando se despiu, também foi em silêncio. E quando se deitou a seu lado, ele cruzou os braços sob a cabeça e respirou fundo. Kirstie decidiu que já havia suportado demais. Agarrando as cobertas contra o peito, sentou-se e encarou-o muito séria.
— Por que me trouxe para cá, se não pretende falar comigo?
— Oh, mas estou disposto a fazer mais do que falar.
— Realmente? — Ela se deitou de lado, dando as costas para o lorde. —vou tentar ficar acordada até você superar seu mau-humor.
— Não é mau-humor.
— Não?
— Não. Estou tentando conter o ímpeto de sair e matar alguém. Três indivíduos, para ser mais exato.
— Roderick, Gib e Wattie — ela deduziu, virando-se para encará-lo.
— Exatamente. — Payton usou um braço para envolvê-la e puxá-la contra seu corpo. — Não pretendia me contar sobre os planos dos homens de Roderick, não é?
— Não. Roderick me quer morta. Isso é tudo que importa. O que Gib e Wattie disseram é só uma das muitas maneiras de almejar o que ele deseja. Não julguei tão importante, especialmente por saber que essa história o aborreceria muito.
— Aborrecer? Você não imagina quanto estou aborrecido. Saber que o bastardo de seu marido pensou em entregá-la àqueles dois porcos para engravidá-la... Ele nunca teria sido capaz de tratá-la como esposa ou como mulher, mas também nunca pensou em libertá-la. Então, Roderick acreditou mesmo que você se deixaria usar sem contar aos seus parentes sobre tal insulto?
— Talvez ele tenha tido algum direito de pensar dessa maneira. Eu nunca procurei a ajuda de minha família ou de qualquer outro conhecido. Como a atrocidade não aconteceu, não sei dizer se teria recorrido a eles. Meu medo pela segurança daqueles que amo é maior do que o pavor de Roderick, a repulsa ou a infelicidade que posso ter experimentado. Pelas leis da igreja e dos homens, sou propriedade de Roderick. Ele pode fazer o que quiser comigo.
— Nem tanto.
— Não? E como eu poderia saber que atitude dele seria suficiente para garantir a proteção da lei à sua esposa? Ou, mais importante, o que teria sido grave a ponto de fazer a família dele abandoná-lo, obrigando-o a enfrentar sozinho a ira de minha família? Conheci outros Maclye, e todos pareceram ser bons homens, pessoas justas que me trataram com respeito e dignidade. Mas demorei para perceber que Roderick era cruel e doente. Então, até que ponto posso confiar em meu julgamento? O custo de cometer um erro, de atrair para minha família uma ira justificada, poderia ser as vidas dessas pessoas que amo. Não é fácil tomar uma decisão quando se sabe que um erro pode provocar a destruição e a morte de todos a quem se ama.
— Vou fazê-lo pagar — Payton jurou antes de beijá-la. As palavras e o sentimento nelas contido a emocionaram.
Por um momento, Kirstie chegou a pensar que talvez não fosse só mais uma amante, afinal. Poderia ser alguém realmente especial na vida de Payton. Mas, no instante seguinte, ela disse a si mesma que o homem era um cavaleiro, e o juramento nascia de seus ideais, do ultraje por descobrir que integrantes de grupo eram capazes de agir contrariando todas as regras da cavalaria.
Bem, agora estava com ele, e pretendia aproveitar cada segundo de sua companhia. Em breve não poderia mais sentir a pele em contato com a dele, e essa seria a maior e a mais triste das perdas.
— Que coisa mais doce para dizer — ela suspirou.
— Doce? Chama um juramento de vingança de doce?
— Não, mas fazer esse juramento pelas crianças... Eles precisam de um defensor mais do que tudo.
— Não tenho mais tanta certeza disso Kirstie, sua família precisa saber disso. O garoto que você mandou para perto de seu irmão pode deixar escapar alguma coisa. Caso isso aconteça, caso eles compreendam as insinuações e exijam saber toda a verdade, se seu irmão Eudard ou sua tia forem forçados a falar, acha que eles virão?
Pensando em como os irmãos podiam ser intimidadores, e isso incluía Eudard, caso fosse necessário, Kirstie sentou-se. Um medo crescente pela segurança de sua família a inquietava. Pensando bem, estava surpresa por Eudard ter guardado seus segredos por tanto tempo, embora nunca houvesse contado tudo. Sendo seu irmão gêmeo, Eudard sempre pressentira a existência de problemas mais sérios, mas não a pressionara, colocando a necessidade de ajudar e proteger as crianças acima de tudo. Os outros irmãos também se preocupariam com os pequenos, mas a pressionariam em busca de toda a verdade, caso desconfiassem de alguma coisa.
— Kirstie?
— Eles virão. Eudard e eu somos gêmeos, e tenho certeza de que ele pressente que não contei tudo, mas, antes que pudesse me pressionar, fomos envolvidos pela necessidade de protegermos as crianças. Meus outros irmãos certamente notaram a presença de pessoas desconhecidas em nossas terras, mas aceitaram a justificativa de tudo ser apenas um gesto de caridade. Eudard e eu sempre recolhemos criaturas indefesas e abandonadas. Mas Michael? Tentei fazê-lo entender que existem razões para que eu guarde alguns segredos de nossa família, mas ele nunca aceitou essa explicação. E se Roderick mandou informá-los sobre meu suposto afogamento, ou se os rumores envolvendo o nome de meu marido chegarem aos ouvidos de meus familiares, meus irmãos irão atrás de Michael para enchê-lo de perguntas.
— Acho que devemos mandar avisar sua família que você está viva. Eles devem ignorar toda e qualquer notícia contrária.
— Isso vai deixá-los curiosos.
— Sim. Você já os manteve ignorantes e seguros por cinco longos anos. Não sei se eles vão ficar felizes por isso.
— Ah, não, certamente não. São todos uns teimosos e orgulhosos. E meu pai é o pior de todos.
— E virão como feras enlouquecidas como julgarem necessário defendê-la?
— Sem dúvida nenhuma. Meu pai virá como um louco, especialmente porque se sentirá traído por Roderick. Ele julgava estar fazendo um grande casamento para mim, apesar do meu modesto dote. O preço oferecido pela noiva era tentador, e isso o fará sentir-se culpado por não ter avaliado o homem com mais atenção.
Payton beijou-a. Fazer amor com Kirstie não reduzira em nada o desejo que sentira por ela. Ainda estava obcecado, embora de maneira um pouco diferente. Agora, em vez de passar horas pensando em como seria deitar-se com ela, passava horas pensando em como havia sido bom tê-la nos braços e em como estava ansioso pela próxima vez. Seria uma enorme tolice deixá-la ir embora.
— Levando em consideração tudo que falamos, acho que devo me preparar para receber a visita de seus familiares.
Pensar em ser surpreendida pelo pai e pelos irmãos em uma ligação adúltera e pecaminosa era suficiente para fazê-la sentir vontade de fugir. Mas não havia para onde ir, e tinha de proteger as crianças. Além do mais, não podia deixar Payton sozinho para enfrentar seus parentes, especialmente se eles descobrissem que haviam compartilhado a mesma cama.
— Talvez eu deva mandar notícias para meu pai e meus irmãos.
— Mandaremos uma mensagem ao amanhecer.
— Talvez eu tenha de fugir ao amanhecer.
— Não, não vai mais fugir.
— Mas... eles virão com os cães!
— Você me escolheu como seu defensor, certo?
— Sim.
— Então, deixe-me cumprir meu papel. Jurei proteger você e as crianças. Dê-me ao menos a chance de tentar mais uma vez antes de fugirem novamente.
A resposta foi um suspiro resignado. Payton beijou-a, e eles fizeram amor com a mesma paixão de sempre, chegando juntos a um clímax poderoso e inesquecível.
Quando recuperava o fôlego deitado ao lado dela, Payton pensou que essa mulher acabaria por matá-lo. E também seria sua ruína, porque com ela, diferente de todas as outras, nunca pensara em proteger-se, controlar-se ou prevenir-se. Derramava sua semente dentro do corpo de Kirstie cada vez que fazia amor com ela, contrariando todas as normas anteriores de conduta sexual. Além de não tentar remover seu membro antes do clímax, ele a havia penetrado mais fundo, como se quisesse Plantar ali a semente da vida.
E de repente compreendia que o gesto não fora de descuido.
Tudo havia sido calculado. Pensar que poderia estar tentando engravidá-la de propósito, impedindo assim que ela o deixasse, não o assustava. O que o espantava era não ter percebido tal mecanismo até esse momento.
Bem, teria tempo para pensar nisso depois. Agora precisava descobrir por que ela estava tão tensa.
— Não se preocupe com o futuro, meu anjo.
— Não é o futuro...
— Não? Então...
— Não tenho vergonha. Devia estar chocado com meu comportamento leviano e impróprio.
— Estou encantado.
— Ah, é claro, porque consegue o que quer enquanto eu abandono todas as regras da modéstia.
— Tem razão. Mas você é uma mulher linda e quente, Kirstie. E isso é um dom, algo de que devia se orgulhar. Não mate algo tão belo com pensamentos sobre modéstia e pecado. Você escolheu me aceitar. Por que não se conforma com essa escolha?
Kirstie queria aceitar. Não gostava de como suas preocupações e seus temores roubavam momentos de beleza compartilhados com Payton. Apesar de todos os truques que ele utilizara para seduzi-la, a decisão final coubera somente a ela. Teria de aceitar esse fato e, mais importante, conviver com isso. Seu tempo com Payton poderia ser breve, e seria uma grande tolice deixar seus temores e conceitos morais mancharem uma experiência tão bela. Ninguém naquela casa a condenara por ter se tornado amante de Payton e, por enquanto, deixaria que as atitudes dessas pessoas a guiassem, ignorando assim as vozes críticas que ecoavam em sua mente, tentando estragar o que de mais belo já havia vivido.
Naquela noite, fizeram amor mais duas vezes e dormiram exaustos, um nos braços do outro, e só despertaram quando as primeiras luzes da manhã penetraram no quarto. Lan estava batendo na porta.
— Os homens de Roderick chegaram a nossa rua — ele anunciava aflito.
Kirstie cobriu Robbie e beijou-o na testa. Desejava poder encontrar um pouco de paz, mas duvidava dessa possibilidade, pelo menos no futuro próximo. Depois de ouvir o aviso de Lan, Payton saltara da cama e se vestira, convencendo-a a fazer o mesmo, e juntos eles levaram as crianças ainda sonolentas para a adega. Agora estavam juntos, ela e seis pequenas criaturas, naquele cômodo escuro e silencioso. Kirstie rezava para que Roderick não conseguisse passar por Payton. Não era uma maneira muito agradável de começar o dia.
— Que cheiro é esse? — Callum perguntou num sussurro.
O aroma penetrou em suas narinas no instante seguinte e, seguindo o exemplo do garoto, ela usou a mão para tampar o nariz. O aroma era de uma substância usada para limpar o chão, um produto muito utilizado quando se desejava matar moscas e outros minúsculos seres. Alice devia estar espalhando a mistura pouco diluída na parte de trás da casa, em um barracão utilizado pelos homens da casa como banheiro. Assim, mesmo que os cães fossem levados a farejar o terreno e toda a propriedade, sentiriam apenas o cheiro do desinfetante e da urina de Payton e Lan.
— Tem cheiro de xi...
— Fale baixo, Moira — Kirstie murmurou. — O cheiro vai servir para despistar os cachorros, caso eles venham atrás de nós.
— Se farejarem essa coisa, não sentirão nenhum outro cheiro por duas semanas — Callum comentou.
— Mamãe vai deixar a casa inteira fedida?
Surpresa com a rapidez com que David aprendera a chamar Alice de mamãe, Kirstie precisou de um momento para responder.
— Espero que não. Mas não devemos reclamar, e vamos ajudá-la a limpar tudo mais tarde, porque ela só fez isso para ajudar-nos.
— O monstro não vai nos encontrar? — perguntou Moira, aproximando-se de Kirstie como se estivesse assustada.
— Não, ele não vai. Agora temos de ficar quietos. Os cães também escutam muito bem, além de utilizarem o faro. Vamos esperar que sir Payton venha nos buscar.
— Vai demorar muito?
— Acho que não.
Kirstie rezou para estar certa, depois orou para que Lan e Payton tivessem a força e a sabedoria necessárias para se livrarem de Roderick sem despertarem as suspeitas do cruel lorde.
Payton sentiu vontade de rir ao ver Roderick, seus homens e os quatro cães farejadores se encolherem ao entrarem na casa. com a mistura que Alice esfregava no chão de todos os cômodos, qualquer pulga que saltasse de um dos animais estaria morta antes de chegar ao solo. Lan sempre dizia que Alice só se apaixonara por ele porque tinha uma visão pobre e nenhum olfato. Payton estava começando a acreditar nele. A menos que ela conhecesse algum truque muito eficiente, viveriam muitos dias cercados pelo odor insuportável até que a casa fosse limpa novamente.
— Ainda é cedo — Payton apontou com tom frio —, e acredito que a caça seja mais abundante fora dos limites da cidade.
— Não estou caçando coelhos para as panelas de minha cozinha — Roderick respondeu, fazendo um grande esforço para disfarçar a repugnância. — Estou procurando por minha esposa.
— Pelo que sei, ela morreu afogada. E a pessoa que me contou tal fato só o fez por estar espantada com sua total ausência de pesar ou luto.
— Um homem tem o direito e o dever de guardar para si a própria infelicidade. Ele não a demonstra apenas para agradar tolos sentimentais.
— É claro que não. Dê-se por satisfeito, porque se comporta de maneira absolutamente máscula. — Payton decidiu que era hora de conter o sarcasmo, pois Roderick já o estudava desconfiado. — Então, ela não se afogou?
— Parece que não. Wattie e Gib, meus homens de confiança, a viram na noite passada. Temo ter temperado a verdade quando relatei o que aconteceu naquele dia — ele confessou com um suspiro forçado. — Não foi um dia agradável devastado por uma tragédia. Não, minha esposa e eu brigávamos. Ela sempre foi intempestiva.
Payton assentiu em silêncio, encorajando-o a prosseguir.
— Demonstrando grande pendor para o drama, ela se atirou ao rio. Certo de que a tresloucada atentava contra a própria vida, tentei puxá-la para fora da água, mas a correnteza a levou. Foi o temor de sua alma imortal que me fez esconder os verdadeiros fatos. Agora, vejo que me atormentei por nada. Se meus homens não estão enganados, minha esposa não só sobreviveu, mas se esconde de mim. É evidente que ainda está zangada comigo.
— Outra mulher, meu caro lorde?
— Um homem tem suas necessidades e é sempre fraco demais para resistir às inúmeras tentações da carne.
— As mulheres podem enganar um pobre homem. Mas... por que trouxe os cães à minha casa?
— O rastro por eles seguido nos conduziu até aqui. Payton sabia que sua expressão de choque e surpresa era convincente.
— Como pode ser? Se nunca sequer conheci sua esposa... Na verdade, nem sabia que era casado, até ouvir os rumores sobre a morte de sua mulher.
— Os cachorros farejaram uma trilha que nos conduziu até sua porta.
— Bem, eles parecem ter perdido o rastro. — Payton olhou para os cães ofegantes que, sentados, pareciam não se interessar por nada em especial. — Sua esposa pode ter estado diante de minha porta, mas não passou por ela. Poucas mulheres entram em minha casa, e nenhuma que pertença a outro homem.
Um dos homens de Roderick riu.
— Já se deitou com metade das mulheres da Escócia. Por acaso as possuiu na estrada?
— Silêncio, Gib. — Roderick censurou-o sério, depois olhou para Payton. — Tenho certeza de que sir Payton não mentiria.
— É claro que não. Suspeito de que realmente tenha possuído metade das mulheres da Escócia, mas não aqui. As mulheres de minha família sempre vêm para cá, e prefiro não macular os leitos ocupados por aqueles de meu clã. Mas sintam-se livres para procurar, se quiserem.
Roderick hesitou por um momento antes de chamar seus homens e mandá-los investigar tudo.
— Não tive a intenção de insultá-lo, sir Payton. Não o acuso de mentir para mim, mas minha esposa tem habilidades muito especiais, Ela poderia ter invadido sua casa e feito dela um refúgio, e você nem tomaria conhecimento de sua presença.
— Ela pode se tornar invisível?
— Quase. A mulher sabe tirar proveito das sombras, quase como se fizesse parte delas. Sei que o truque não é próprio de uma dama, mas costumo culpar os irmãos dela, que sempre a trataram como a um moleque. Levei para minha casa uma esposa que nunca havia sido preparada para tal papel. Foi necessário muito tempo até que eu sentisse que ela poderia ser apresentada a qualquer pessoa fora de Thanescarr.
Payton jamais sentira tão intensa vontade de agredir outro homem. Queria esmurrar Roderick Maclye, surrá-lo até a morte. Felizmente, Kirstie não ouvia o que estava sendo dito ali, ou ficaria furiosa com tantos insultos.
Os homens de Roderick voltaram seguidos por Alice, e Payton notou que havia uma intensa hostilidade entre eles. Lan também percebeu o sentimento, porque se colocou entre a esposa e os dois visitantes.
— Sugiro que seus homens deixem minha serviçal em paz — Payton determinou com firmeza.
— Gib, Wattie — Roderick chamou-os. — Deixem a mulher em paz. Vocês interromperam a faxina.
— Faxina? — Gib repetiu furioso. — Este lugar fede! Não ficaria surpreso se o faro dos cães ficasse arruinado por uma quinzena.
— Sofremos recentemente uma praga de pulgas e outros insetos. Minha serviçal afirma que assim pode acabar com elas. No entanto, já começo a me perguntar se a cura não será pior do que a doença. De qualquer maneira, não esperava visitantes, e por isso não imaginava que esse tormento seria imposto a outras pessoas além de mim mesmo.
— Agradeço por sua paciência, sir Payton — Roderick concluiu antes de retirar-se.
— Bastardo — Lan murmurou. Depois olhou sério para a esposa. — O que fez com aqueles dois? Queria testar a paciência dos miseráveis, ou imaginava ser capaz de derrubá-los com um soco antes de ser espancada por eles?
Alice cruzou os braços sobre os seios fartos e olhou para a porta por onde Roderick acabara de passar.
— Eles estavam sujando meu chão limpo.
— Ah, o chão — Payton sorriu. — Espero que saiba como se livrar desse cheiro.
— Sim, eu sei. Muita água limpa e uma substância menos ácida. De qualquer maneira, o cheiro deve permanecer por mais tempo na adega, porque caprichei na dose quando passei por lá. Estava ansiosa, e achei melhor tomar providências para que o bastardo e seus cães não encontrassem lady Kirstie e as crianças. Podemos tirá-los de lá?
— Ainda não, Alice. Quero ter certeza de que Roderick desistiu da busca por hoje. Também penso que devêssemos esperar que ele conclua que foi perda de tempo utilizar os cachorros.
—vou atrás deles — Lan anunciou a caminho da porta.
Alice suspirou.
— Espero que meus meninos não estejam apavorados naquele aposento escuro e frio.
— Eles estão bem — Payton garantiu. — Kirstie está com eles.
— Sim, eu sei. Bem,vou começar a remover o cheiro.
— Não acha que devemos esperar um pouco? O bastardo pode voltar?
— Ah, não. O que usei deve ter servido para apagar qualquer trilha que os animais possam ter seguido. Até lady Kirstie e os meninos começarem a andar por aí novamente, deixando um novo rastro, tudo estará bem. Felizmente eles não entraram nos quartos, porque não tive tempo para apagar todos os sinais dos nossos hóspedes. Quando chegaram aos dormitórios, os idiotas já haviam desistido de usar os cães farejadores, e só espiaram os quartos das portas.
— Foi sorte. Espero que ela continue conosco.
— Acha que ele acreditou no que disse? Seria melhor que ele fosse procurar em outro lugar e nunca mais voltasse aqui.
— Sim, seria, mas devemos estar preparados. Vamos rezar para que ele não pense muito em como os cães chegaram à minha porta, ou em como foi conveniente termos escolhido corretamente o dia de hoje para transformarmos minha casa num banheiro. Caso contrário, ele pode tirar algumas conclusões que o colocariam em minha direção.
— Maldição, os cachorros nos levaram exatamente à porta daquele bastardo! — Gib explodiu quando se sentou à mesa com uma caneca de cerveja. — Eles não fizeram o mesmo em nenhuma outra casa.
— Não — Roderick concordou.
Sentado em sua poltrona, ele bebi a vinho e olhava distraído para uma tapeçaria na parede do salão principal. Gib não era exatamente um modelo de inteligência, mas dessa vez estava certo. Haviam percorrido toda a cidade, e embora tivessem reconhecido o cheiro de Kirstie e Callum diversas vezes, os animais não haviam chegado em nenhuma outra porta. Na porta da casa de sir Payton, os cães se comportaram como quando encontraram o buraco que Kirstie utilizara como esconderijo. Infelizmente, ela só estivera ali por pouco tempo, o suficiente para escapar de Wattie e Gib, levando em consideração a reação dos dois idiotas. Apesar de todo o esforço para não demonstrar que haviam reconhecido o local, ficara óbvio que ali eles haviam encontrado Kirstie na noite anterior.
Várias coisas o incomodavam com relação ao confronto com sir Payton Murray. Por que o homem estava acordado e vestido àquela hora da manhã? Talvez tivesse trabalho a fazer ou houvesse chegado em casa pouco antes depois de entreter uma mulher, mas Roderick duvidava disso. Sir Payton agira de maneira surpresa e até ultrajada, mas Roderick não conseguia deixar de pensar que tudo podia ter sido uma encenação. Havia uma enorme frieza em seus olhos, uma fúria muito maior do que se podia esperar para alguém que recebia visitantes inesperados. E quanto ao líquido que a mulher esfregava no chão da casa? Sabia que algumas poções utilizadas para livrar uma casa de pulgas e outros insetos podiam ser malcheirosas, mas tanto assim? E justamente no dia em que seus cães farejavam o rastro de Kirstie? Era uma coincidência difícil de aceitar.
Quanto mais pensava em tudo que acontecera na casa de sir Payton, mais desconfiado ficava. O homem era um desses idiotas que desperdiçava sua beleza máscula com as mulheres. As idiotas se atropelavam na desesperada tentativa de tê-lo entre as pernas. Roderick não sabia quando sua esposa podia ter conhecido sir Payton, mas podia imaginá-la indo ao encontro do belo e valente cavaleiro para pedir sua ajuda.
E se ela fizera tal coisa, sir Payton sabia demais. Também teria de morrer. Por um momento, Roderick sentiu um certo pesar. Mas sir Payton só desejava as mulheres, o que tornava inútil alimentar esperanças vãs.
Portanto, sir Payton teria de morrer, Roderick decidiu, levando em conta apenas a necessidade de autopreservação. E aqueles dois criados desagradáveis iriam com ele. Faria planos cuidadosos, e a culpa do crime seria depositada aos pés de Kirstie. Se a idiota houvesse realmente se afogado como qualquer dama normal, não estaria lidando com tantas complicações.
— Acho que o bastardo está se deitando com ela — Wattie opinou enquanto mastigava um pedaço de queijo.
Roderick olhou para o sujeito e arrependeu-se. O sujeito tinha as maneiras de um porco!
Ignorando o alimento exposto pela boca engordurada e quase sem dentes, ele começou a planejar a derrota de sir Payton
Devagar, moveu a cabeça em sentido afirmativo.
— Creio que ele sabe onde está minha esposa. Ficou evidente que ele tentava esconder alguma coisa, e estou cada vez mais certo de que essa coisa é minha esposa.
— Então, voltamos lá e cortamos algumas gargantas?
— Uma sugestão agradável, mas inútil. O homem é muito conhecido e admirado, apesar de seduzir tantas esposas. Sua morte certamente seria investigada. E, se minha esposa for encontrada morta perto dele, eu seria o principal suspeito. Não, devemos proceder com cautela e sutileza.
— Como?
— Acredito que ele seja a fonte dos rumores que tantas dificuldades têm me causado, e por isso vou começar dando a ele um pouco do próprio remédio.
— Para quê? — quis saber Gib.
— Para deixá-lo sem aliados. Quando eu terminar, sir Payton Murray terá sorte se um de seus irmãos comparecer ao funeral.
— Ele já foi? — Kirstie perguntou ao ver Payton surgindo no esconderijo.
— Sim, e estou certo de que não usará os cães novamente. — Alice levou as crianças para a cozinha, e ele continuou falando. — Não foi nada fácil encará-lo, ouvir suas mentiras sem desmascará-lo.
— Não parece estar muito certo de sua vitória — Kirstie respondeu enquanto caminhavam pelo corredor que levava à cozinha. — Não tanto quanto eu gostaria que estivesse.
Payton suspirou. Queria tranqüilizá-la, fazê-la sentir segurança, mas isso seria um erro. Kirstie precisava tomar conhecimento de suas desconfianças e dos perigos que ainda a cercavam. Assim talvez acatasse suas ordens e sugestões.
Roderick não dera indícios de estar desconfiado, mas Payton não conseguia se livrar do sentimento de que era alvo de fortes suspeitas. Afinal, o bastardo não teria escondido seus crimes por tantos anos, se não soubesse representar. Roderick errara ao não reconhecer a ameaça em Kirstie ou em não se certificar de sua morte, mas não cometeria o mesmo engano novamente. E também não deixaria vivos os aliados de sua esposa.
— Não vamos comer com os outros? — ela perguntou, notando que passavam pela cozinha a caminho do quarto de Payton. Havia uma bandeja com comida diante da lareira.
Payton fechou a porta e a colocou sentada à mesa.
— Hoje não — disse. — Precisamos falar sobre alguns fatos e regras relacionados ao seu problema. Se tivermos de escolher as palavras para não assustar as crianças, não conseguiremos progredir muito.
— Ah... É tão grave assim?
Ele também se sentou e serviu vinho em duas taças.
— Pode ser. Não creio que Roderick tenha acreditado em mim.
—Ele o acusou de estar mentindo?
— Na verdade, não. Ele se comportou com respeito e chegou a se desculpar, embora não com essas palavras. O problema é que os cães o trouxeram diretamente à minha porta.
Kirstie serviu-se de algumas fatias de carneiro assado e de uma porção de vegetais cozidos, surpresa por não ter perdido o apetite apesar da preocupação. Passara tanta fome nos últimos cinco anos, que nada poderia prejudicar seu apetite. Devia ser isso.
— Quer dizer que passei o dia todo trancada naquela adega escura e fedida, e ele sabe que estou aqui?
— Sim e não. Enquanto estava aqui, ele acreditou em mim, aceitou a história de que você podia ter estado diante de minha porta, mas que não havia passado por ela. E acreditou que eu não a vi por aqui. Só não sei por quanto tempo ele vai acreditar nisso. Se tiver um mínimo de inteligência e parar para pensar um pouco no assunto, logo ele saberá que menti.
— Ele é astuto quando deseja ser. E os cães são excelentes farejadores.
— E não teriam seguido uma trilha errada. E se não o levaram à porta de nenhuma outra casa, logo ele estará se perguntando porque o trouxeram até aqui.
— Imagino que sim. Em resumo. As crianças e eu devemos partir, caso ele volte trazendo mais homens.
— Não, você e as crianças não vão sair daqui. Ele vai ter de agir cautelosamente comigo pelas mesmas razões que me obrigam a ter cuidado com ele. E mais algumas. Afinal, se acredita que eu a estou ajudando de alguma maneira, então ele vai deduzir que você me contou tudo.
—Meu Deus! Então... ele vai tentar matá-lo! Não, não posso permitir que isso aconteça. Imaginei que estaria salvo por ter uma posição à altura da de Roderick, mas me esqueci de como ele é feroz quando luta para proteger seus segredos. E agora que acredita na existência de uma associação entre nós, ele vai tentar silenciá-lo, também.
— Kirstie, você me escolheu para ajudá-la nessa batalha. Eu escolhi aceitar o desafio. E não impus condições. Não disse que desistiria de tudo, caso o perigo se tornasse maior. Pare de pensar em ir embora cada vez que Roderick se aproxima de mim.
— Não quero que seja ferido, caçado ou... morto.
— Prefere morrer com as crianças? Ele pode ter desistido dos pequenos, mas não vai desistir de Callum.
— Callum pode ficar aqui, se quiser.
— Você sabe que ele jamais a deixaria ir sozinha. E mesmo que isso fosse possível, seria inútil. Não vai levar o perigo para longe de mim indo embora, porque Roderick imagina que conheço seus segredos, e fará de tudo para calar-me. Talvez não sirva de conforto, mas ele desconfiaria de mim de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde, porque logo começaria a traçar o caminho dos rumores que tantos problemas têm causado para ele. Ele me identificaria como fonte principal desses comentários.
Kirstie parou para pensar e beber um pouco de vinho. Payton estava certo em tudo que dissera, mas era difícil tomar a decisão de aceitar todo o perigo a que o expunha. Não conseguia decidir se ele era um aliado ou mais alguém a quem devia proteger. Quando alguém escolhia um defensor era para combater em uma batalha, não para afugentá-lo no momento em que a luta se tornasse perigosa. Isso era tolice.
— Você não teria espalhado tais rumores se eu não houvesse contado quem é Roderick — ela ainda argumentou. — É simples, Payton. No momento em que o procurei, eu o coloquei em perigo. Devo aceitar a realidade e desistir de tentar deter aquilo que desencadeei. Não posso. Tudo que conseguiria seria separar os alvos de Roderick e, no final, isso só seria favorável a ele, não a nós.
— Agora está demonstrando bom senso.
— Sim, às vezes acontece, e não me espanta que tenha reconhecido tal fato agora, quando concordo com você. Enfim, Payton, estamos nisso juntos e iremos juntos até o fim. Na verdade, nunca fui o único alvo de Roderick. Callum sempre esteve a meu lado, e talvez até as crianças menores tenham feito parte de seus planos sangrentos. Temos de pensar neles, nos pequenos.
— Sim, eles são o centro de tudo isso. Kirstie suspirou.
— Então, se Roderick deduzir que você está mentindo, que está mesmo me ajudando, o que acha que ele fará?
— Não tenho idéia.
— Nenhuma?
— Bem, sei que não será um ataque direto. Não, ele vai agir com sutileza.
— Entendo. E enquanto esperamos por esse ataque sutil, o que devo fazer?
— Mantenha-se escondida.
Havia algo errado. Payton caminhava por entre as elegantes mulheres da corte e sentia uma mudança no ar. Sua presença parecia provocar desconforto entre algumas, frieza entre outras. Só uma ou duas o olharam com interesse. Nenhum homem o abordava em busca dos favores com que, acreditavam, era favorecido pelos regentes. Era claro que ninguém queria se aproximar dele.
Quando já estava pensando em falar com uma ou outra pessoa a quem prestara favores recentes, Payton viu sir Bryan MacMilLan se preparando para deixar o salão e decidiu segui-lo. O homem não era nenhum fofoqueiro, mas ouvia muito do que era dito na corte. Payton o alcançou do lado de fora do salão e notou que sir Bryan não se mostrava surpreso com a abordagem imprópria.
— Ah, bom, estou procurando por você há dois dias — ele disse, segurando-o pelo braço e levando-o para uma alameda menos movimentada. — Devemos ir conversar em meus aposentos.
Saber que sir Bryan o estivera procurando o encheu de preocupação, e Payton o seguiu em silêncio. Nos aposentos de sir Bryan, eles se sentaram bem perto do fogo segurando taças de vinho.
— Não foi um bom momento para afastar-se da corte, sir Payton.
— Tinha negócios para resolver. — Fora forçado a afastar-se para providenciar algumas medidas de segurança e planejar rotas de fuga e esconderijos, caso fosse necessário escapar, mas preferia não revelar tais coisas. Nem mesmo a sir Bryan. — Ser os olhos e ouvidos dos Murray na corte não põe o pão em minha mesa. Só me afastei por três dias. Os regentes levam quase esse mesmo tempo para decidirem de que cor será a túnica do rei na próxima ocasião social.
Bryan riu e assentiu, mas logo ficou sério outra vez.
— Infelizmente, não é necessário mais do que um dia para um boato espalhar-se e enlamear um bom nome. Não notou nada quando chegou? Uma mudança no ar, talvez?
— Sim, notei uma certa frieza. Então, alguém está tentando manchar meu nome? — Sabia quem era o culpado, mas não entendia como alguém ainda podia acreditar na palavra desse homem.
— Sim. Parece que a jovem esposa de sir Roderick não morreu, afinal. Ele está muito aborrecido com isso, pois julga ter posto em risco a própria alma tentando esconder o que acredita ter sido uma tentativa de suicídio, e agora descobre que foi enganado. Seus homens a viram na cidade. Ela foi seguida até sua casa. Mas você negou tê-la recebido e até mesmo conhecido. Como ele mesmo diz, o que mais um homem pode pensar, se não que você roubou-lhe a esposa e que planejaram tudo de forma a ficarem juntos?
— E ninguém questionou essa história? Ninguém perguntou se, talvez, um homem contra o qual tenho prevenido várias pessoas, não estaria mentindo contra mim?
— Sir Roderick tem sugerido que sua campanha de difamação contra ele nasceu do fato de sempre ter cobiçado sua esposa. E, sejamos honestos, meu caro sir Payton, você não é inocente do pecado de desonrar maridos.
— Sim, mas nunca tive de roubar e esconder a esposa de outro homem.
— Não, elas vão até você sem que se esforce para isso. Eu sei. E esse fato irrita muitos homens, especialmente os que acreditam que suas esposas já o receberam em suas camas ou pretendem recebê-lo um dia. O relato se alimenta do ciúme e da inveja de muitos, e por isso percorre os salões sem ser contestado.
— Apesar de ter brotado dos lábios de um homem que molesta meninos?
E os espanca? E já matou muitos deles? É esse homem que anda por aí espalhando rumores sem ser contestado, como se fosse digno de alguma confiança?
— Você já disse isso antes, e o sentimento de Uven com relação ao lorde me fez levar em consideração o aviso. Mas... tem certeza do que afirma, Payton? Certeza absoluta? Se for uma acusação feita apenas pela esposa dele...
— Não é só sua esposa. — Payton sabia que teria de contar tudo ao amigo. O ataque de Roderick havia sido de grande astúcia, e teria de agir de forma a reverter seus efeitos. — Acha que isso põe em dúvida todos os avisos que dei sobre esse homem?
— Não. Algumas mulheres já desconfiavam de alguma coisa, e ouvi-lo só serviu para reforçar tais suspeitas. Não, seus avisos não serão ignorados. Os que aceitaram a justificativa de sir Roderick sobre tudo ser apenas uma campanha de difamação para destruí-lo aos olhos da corte, perdoando-o assim por ter roubado sua esposa, já não acreditavam nos boatos desde o início, ou preferiam não acreditar neles. De qualquer maneira, Payton, isso não o exime da culpa de ter roubado a esposa do homem.
— Eu não a roubei. Ela foi me procurar acompanhada por cinco crianças que resgatara do marido, e mais um garoto que encontrou depois. Um pobre menino de sete anos que Roderick espantou até quase matá-lo. — Respirando fundo, Payton começou a contar tudo que sabia sobre sir Roderick.
— Jesus — sir Bryan gemeu ao final do relato. — O homem devia ser castrado — decretou. — E no entanto, você oculta dele a esposa. Quaisquer que sejam as razões, pode acabar metido em grandes problemas por isso, caso seja comprovado ou as pessoas acreditem no monstro. A menos que possa provar que sir Roderick fez tudo que está dizendo, vai acabar sendo apontado como o culpado nessa história toda. Por conta de sua reputação com as mulheres, sir Roderick não tem a mesma necessidade de provar as acusações que faz. Alguns de seus parentes estão aqui, e já começam a fazer ameaças diretas.
— Não entendo como os parentes ainda não enxergaram o que ele realmente é.
— Estamos falando de uma coisa que as pessoas não aceitam com facilidade. Mas roubar a mulher de um homem...
— Ela nem é mulher dele!
— Eles foram casados por um sacerdote, Payton.
— Nem que o próprio papa os tenha casado... ela não é mulher dele. Nunca se deitaram juntos, nem uma única vez em cinco anos. O casamento não foi consumado.
— Ei, essa pode ser a resposta para o problema! Se a apresentar a todos e ela se deixar examinar, se ficar comprovado que é virgem, sir Roderick não terá como sustentar as acusações que faz contra você, e isso fortalecerá tudo que você diz contra ele.
— Gostaria de ter pensado nisso antes.
— Antes... Oh, meu Deus.
— Exatamente, Bryan. Ela não é mais virgem.
— Seduziu uma virgem que o procurou em busca de proteção?
— Sim. Suponho que não seja muito melhor do que roubar uma esposa, não é? Mas você não a conhece. E ela está em minha casa há três semanas, atormentando-me.
— Atormentando-o? — Bryan repetiu rindo.
— Está bem, reconheço que não há justificativa. De qualquer maneira, a história é simples. Ela estava em minha casa havia uma semana quando eu finalmente reconheci que precisava tê-la. Então, ela me rejeitou por uma quinzena. E então, de repente, ela entrou em meu quarto em uma certa noite e disse sim. Sou apenas um homem, sabe?
— Bem, agora não pode usar meu excelente plano. Teremos de pensar em outro. Talvez deva falar com sua família sobre isso. Estou surpreso por ainda não ter conversado com eles.
— Temia não poder encontrar provas concretas dos crimes de Roderick e, nesse caso, tudo que faria seria atrair a ira dessa poderosa família contra os meus. Talvez já tenha posto você em perigo, meu amigo, simplesmente por termos tratado do assunto.
— Nesse momento, a ira daquela gente está voltada contra você. Roderick não pede a ajuda dos parentes abertamente, mas eles tratam sua vergonha como se fosse deles. Creio que só não vieram matá-lo ainda por não desejarem começar uma longa e sangrenta batalha contra sua família. Senti a hesitação nas perguntas cautelosas que me fizeram sobre você ontem à noite.
— Espero que tenha reagido ultrajado diante de tais acusações contra mim.
— Certamente. Mostrei-me ofendido com o insulto e lembrei que a última coisa de que você necessita é roubar a mulher de outro homem. Eles hesitam em agir considerando apenas a palavra de Roderick. Tenho a sensação de que ele não é muito respeitado por seus familiares.
— Mas isso não os impedirá de vingar um insulto.
— Não. Imagino que você tenha no máximo quinze anos antes de eles entrarem em ação. Vá para casa, mantenha-se fora de circulação por algum tempo e pense em um plano. Gostaria de poder ajudar, mas não sou um homem de muitas idéias. De qualquer maneira,vou me manter atento e alertá-lo sobre qualquer ameaça de aproximação. E, caso encontre um de seus parentes, farei com que o procurem.
— Se um deles ouvir tais rumores, você não terá de alerta-los. Tome cuidado — Payton aconselhou ao levantar-se. — Se Roderick suspeitar de que já conhece toda a história, vai tentar matá-lo.
— Serei cuidadoso. Depois dos horrores que relatou, tenho certeza de que o perigo é real. E, na minha opinião, você precisa de aliados, pessoas a quem possa revelar toda a verdade. Vá, e trate de pensar num bom plano. Estarei fazendo o mesmo, mas não o aconselho a ter muita esperança.
— Não se subestime, primo. Você é astuto. Só não é diabólico, o que não é exatamente ruim.
E diabólico era o que ele precisava ser, Payton decidiu enquanto ia para casa. Saíra do castelo escondido como um ladrão no meio da noite, o que o incomodava, mas sabia que era melhor assim. Se os de Roderick o encontrassem, talvez não esperassem por mais provas das alegações do monstro. Seria uma imensa alegria e um grande orgulho enfrentar e vencer gente de caráter tão questionável, mas poderia sair ferido e até morto do confronto. Kirstie e as crianças precisavam dele. Assim, continuaria pensando em uma maneira de atingir Roderick antes de ser atingido por ele.
Quando entrou em casa, Payton estava furioso. Onde estavam aqueles que julgara ser amigos? De repente todos lhe davam as costas, distanciavam-se. Era como se apenas Bryan, parente apenas pelos laços do casamento, estivesse pronto para defendê-lo. Na saleta que compunha seus aposentos íntimos, ele se serviu de uma generosa taça de vinho e imaginou se não havia caído por completo na futilidade da vida da corte, nos elogios vazios e na falsa intimidade.
Batidas na porta da frente o arrancaram dos pensamentos mórbidos. Quando Kirstie entrou, ele se espantou com sua aparência assustada.
— Quem está batendo? — Payton indagou.
— Não sei. Estava no corredor quando a porta foi aberta con incrível violência, e seu quarto era o esconderijo mais próximo. Espero que tenha um local onde eu possa me ocultar, porque, quem quer que seja, certamente virá até aqui procurar por mim.
Payton agarrou-a pelo braço e levou-a para trás de uma pesada tapeçaria que pendia de uma das paredes. Atrás dela havia uma alcova, um espaço perfeito para abrigar um homem armado.
— Você tem recantos bem estranhos nesta casa, Payton.
— Mais estranhos do que pode imaginar. — Ele apontou para uma pedra saliente na parede. — Empurre-a, e uma porta se abrirá atrás de você. Esconda-se lá, caso acredite estar em perigo ou sinta que alguém se aproxima daqui. Agora vá.
Lan discutia com uma mulher, e as vozes se aproximavam rapidamente. Kirstie reconheceu a voz feminina de imediato e, irritada, lembrou-se de como Payton estivera prestes a invadir o quarto dessa mulher na noite em que o abordara pela primeira vez.
— Devo ficar aqui enquanto você sacia lády Fraser? — ela indagou zangada.
— Não seja ridícula. — Payton baixou a tapeçaria. — Fique quieta e silenciosa. Não saia daí.
Kirstie engoliu uma praga. Sabia que Payton não planejara o encontro, especialmente em um momento de tão grande risco, mas também sabia que não podia contar com a sensatez de um homem diante dos seios fartos e das mãos ávidas de lady Fraser.
— Então é aqui que se esconde — a mulher dizia com voz estridente no interior do aposento espaçoso. Atrás dela, Lan não escondia sua insatisfação.
— Minha lady? — Payton notou o olhar nervoso de Lan e tranqüilizou-o, indicando a tapeçaria antes de convidá-lo a sair. — Não a esperava. Teria eu esquecido um encontro?
— Não, nós não marcamos um encontro, e agora sei por quê. Onde ela está?
— Ela...?
— Lady Kirstie Maclye, aquela sombra de esposa que sir Roderick reclama de volta. Por ela me tem ignorado. Não acredito que tenha escolhido aquela criança magra e desprovida de encantos, preterindo tudo que tenho a oferecer.
— É lamentável descobrir que se apressa em julgar-me à pior luz, minha lady, e que prefere acreditar nas mentiras sussurradas por um homem como sir Roderick Maclye.
— Sir Roderick não está sussurrando. Ele praticamente grita suas acusações. E por que se cobriria de vergonha afirmando ter sido enganado por um homem como você, se essa história não fosse verdadeira? Não faz sentido.
— Não? A esposa desse homem o abandonou. Logo todos conheceriam tal fato, mesmo que ele não o admitisse. Talvez ele me tenha escolhido para acusar. Tenho uma reputação bastante oportuna. Talvez ele pretenda amenizar sua vergonha atraindo a compaixão das pessoas E talvez ele queira apenas desviar de si todas as atenções, evitando assim que notem seus pecados.
— Refere-se aos rumores sobre ele gostar de meninos? Ouvi dizer que você tem espalhado tais boatos. Só não entendo por que se ocuparia disso, especialmente quando ele recolhe os maltrapilhos e famintos que ocupam os becos. E o que isso tem a ver com você ter roubado sua esposa?
Payton estava espantado pela ausência de preocupação da mulher com as pobres crianças atacadas por Roderick. De repente sabia que, mesmo que se visse sozinho novamente, nunca mais voltaria a buscar seu leito. Seria como chafurdar na lama. Era horrível pensar que chegara a desejar essa mulher, mais uma prova de que estivera na corte por tempo demais, deixando-se contaminar por sua futilidade.
— Eu não roubei a esposa desse cavalheiro — respondeu, tentando esconder a súbita repugnância que sentia por ela.
— Ah, não? — ela o abraçou. — Nesse caso, já que estamos sozinhos...
— Confesso que me sinto tentado, lady Fraser, mas devo resistir. Sir Roderick pode estar espalhando mentiras por aí, mas seus aliados acreditam no que ouvem. Devo procurar meus amigos e familiares para alertá-los sobre o perigo que em breve estará batendo em minha porta, um risco que certamente os afetará, também. Preciso trabalhar depressa e contornar a delicada situação, antes que ela se transforme em um confronto sangrento.
Foram necessárias mais algumas explicações e falsidades, promessas vagas e alguns beijos rápidos, antes que conseguisse se livrar dela. A última coisa positiva na visita de lady Fraser era que, agora, ela diria a todos que lady Maclye não estava com sir Payton.
— Bem, imagino que lady Fraser passará a noite acordada pensando em todas as delícias que prometeu a ela — Kirstie disparou ao deixar o esconderijo.
Seu ciúme o deleitava, mas não devia alimentá-lo.
— Se pensar no que ouviu compreenderá que não prometi nada. Nunca disse que faria coisas com ela. Disse apenas que gostaria de fazê-las, o que não é verdade.
— E acha que isso vai me fazer sentir melhor? E ainda se diverte? — ela acrescentou, contendo o riso com alguma dificuldade ao vê-lo sorrir.
— Deve admitir que a situação é divertida. Lady Fraser julga ser irresistível, embora não represente nada para mim, e ainda invade minha casa como se tivesse direitos que jamais dei a ela. Não pude deixar de pensar que foi uma grande sorte tê-la conhecido exatamente naquela noite, pouco antes de envolver-me com essa criatura.
— Ela ainda está disponível, caso mude de idéia.
— Ela pode ficar disponível até o fim dos tempos. Nada mudará. Quando a ouvi se referir às crianças como se fossem animais sem nenhuma importância, soube que jamais poderia me envolver com ela.
— É bom saber disso. E é melhor ainda saber que agora conhece os planos de Roderick.
— Sim, agora sabemos que ele usa contra mim as mesmas armas que usei contra ele. — Payton sentou-se em uma cadeira, acomodando-a sobre os joelhos. — Foi um choque descobrir que as pessoas mudaram de idéia a meu respeito em tão pouco tempo. Ele está dizendo a todos que você e eu planejamos seu suposto afogamento de forma a podermos estar juntos. Sou o vilão que rouba esposas, e ele é o pobre marido traído.
— E as pessoas acreditam nisso?
— Receio que sim. Como disse sir Bryan, a culpa também é minha. Mereço a reputação de que gozo, porque realmente enganei alguns maridos. No entanto, pensava ter amigos aqui, pessoas que não dariam ouvidos a tais absurdos e até me defenderiam ao ouvi-los.
— Sir Bryan é um amigo verdadeiro.
— E também é meu primo por casamento.
— Nós dois sabemos que uma relação tão tênue não justifica tamanha fidelidade. Ele é seu amigo acima de tudo.
— Sim, imagino que sim, e ainda mais leal do que todos os outros. E evidente que as pessoas não hesitam diante da possibilidade de se favorecerem aos olhos de alguém que parece gozar dos favores dos regentes. Agora que corro o risco de perder essas regalias, ninguém mais quer ser visto comigo. Decidi que já passei tempo demais na corte. É hora de dar lugar a outro Murray nesse círculo de intrigas e mentiras. Acostumei-me ao jogo dos elogios vazios e dos sorrisos falsos, e agora já não consigo reconhecê-los.
— Meu pai diz que é bom sermos um clã pequeno demais para ser notado, caso contrário teríamos de participar da corte. Em sua opinião, a corte é apenas um amontoado de mentiras, traições e disputa de poder. Lady Fraser, por exemplo, se mostrou pronta a acreditar em você.
— Sim, ela vai acreditar no que ouviu aqui, mas só por algum tempo, e só porque convém a sua vaidade.
— Bem, imagino que ela tenha o direito de ser um pouco vaidosa. Ela é muito bonita. E exuberante, também.
— Prefiro sua delicadeza, minha adorável lady.
— Ah... — Kirstie não conseguiu evitar o rubor de prazer e contentamento.
A entrada de Lan interrompeu o beijo.
— Só vim anunciar que jantaremos em uma hora.
— Ah, muito bem. Então, ainda temos tempo suficiente, Lan saiu rindo, e Kirstie gemeu desanimada. Como poderia lidar com o constrangimento?
— Temos tempo suficiente para quê? — ela indagou, embora já conhecesse a resposta.
— Para você compreender que o maior nem sempre é o melhor — ele respondeu sorrindo, beijando-a enquanto a carregava para a cama.
Não foi fácil, mas Kirstie escondeu o sentimento de horror diante do pequenino corpo machucado e ensangüentado que Callum levou para a casa de Payton. Estava no abrigo isolado tentando redigir uma carta para a família assegurando estar segura, sem, no entanto, alarmá-los ou enfurecê-los, quando surgiu a emergência.
Alice não estava em casa, e ela teve de cuidar dos ferimentos do menino usando os poucos instrumentos de que dispunha ali. O pobre Simon tremia, mesmo depois de tê-lo alimentado com bolos de mel e vinho com água e açúcar. A fome com que ele devorava os bolos a entristecia e enfurecia. A julgar pelo que trabalhava para o casal que devia cuidar de crianças como ele, os Darrochs deviam saciar seus apetites regularmente. Ela fingiu não notar como Simon escondia dois bolos nos bolsos de seu casaco rasgado.
— Melhor agora, Simon? — Kirstie perguntou, embora o menino ainda agisse como se estivesse apavorado.
— Sim — ele respondeu. — Eu tive de vir.
— É claro que sim.
Eram apenas ela e Callum. Era estranho estar sozinha. Desde que Roderick estivera ali há uma semana, uma vigilância constante e próxima fora montada em torno dela e das crianças. Mas hoje, com o dia quente e ensolarado, Alice convencera Lan a sair com os garotos. Vestidos com capas e toucas, os cinco foram ao bosque colher frutos e ervas. Callum fora convidado a participar da expedição, mas preferira ficar e proteger Kirstie. Lan levara três guardas da casa para ajudá-lo a garantir a segurança da família, e Payton estava novamente na corte tentando reduzir os efeitos nocivos da campanha de Roderick contra ele. Havia apenas dois guardas do lado de fora, e embora ela se censurasse por ser uma covarde nervosa, Kirstie de repente se sentia desprotegida.
E por que os dois guardas não haviam levado Simon até ela? Talvez ele houvesse entrado pelos fundos sem ser visto, mas era pouco provável. Não gostava de suspeitar de uma criança, mas que melhor maneira de mantê-la ocupada e distraída do que enviando um menino necessitando de cuidados urgentes?
— Callum, viu Donald quando abriu a porta para Simon?
— Não. E ele devia estar nos fundos, não?
— Sim, devia. — Simon empalidecia, mas podia ser um efeito da dor. — E Malkie?
Callum olhou para o menino.
— Não. Também não o vi.
Kirstie olhou para Simon, que começou a chorar.
— Oh, Simon, meu pobre menino, o que foi que fez?
— Ele me ajudou a recuperar o que é meu.
Um arrepio percorreu o corpo de Kirstie quando, apavorada, ela olhou para a porta e viu o homem ali parado. Roderick ainda tinha a mesma aparência de antes, apesar de ter se habituado à beleza de Payton. Ainda era o mesmo homem atraente de antes, exceto pela frieza em seus olhos azuis. Nesse momento, tais olhos cintilavam com crueldade triunfante.
Wattie e Gib o acompanhavam silenciosos. Gib deu um passo para frente e sorriu, o que fez Kirstie empunhar a pequenina adaga oculta entre as dobras de sua saia. O homem segurava uma menina pequena que, assustada, chorava muito, e Kirstie deduziu que arma os bandidos haviam utilizado para convencer Simon a ajudá-los. Surrá-lo não havia sido o suficiente. Gib pôs a menina no chão, e ela correu para Simon. Kirstie colocou-se entre os dois pequenos e os invasores.
— Corra, Callum — ela ordenou, mantendo a voz baixa na esperança de não ser ouvida por Roderick.
— Não. Meu dever é protegê-la — ele respondeu no mesmo tom, colocando-se ao lado dela e empunhando uma faca.
Ambos mantinham suas armas escondidas, prontas para serem usadas. Kirstie notou a enorme faca na mão de Callum e pensou em quantas outras ele poderia estar carregando. Mantendo os olhos em Roderick, que parecia saborear a vitória sem pressa, ela decidiu dar ao valente protetor um bom motivo para partir.
— Simon, pegue sua irmã e comece a caminhar para aquela enorme tapeçaria na parede — ela ordenou, ainda em voz baixa e quase sem mover os lábios.
— Por que está ajudando esse traidor? — quis saber Callum.
— Sei que torturou esse pobre menino para obrigá-lo a ajudá-lo — ela disse para Roderick, esperando que Callum compreendesse a explicação. — Surrar a criança não foi o suficiente? — Baixando a voz novamente, ela continuou: — Agora vá. Alguém precisa dizer a Payton o que aconteceu aqui. Depressa.
— Mas... Ele vai matá-la — Callum murmurou de volta.
— Não tão depressa. Ele gosta de exibir-se. Agora vá. Callum obedeceu com a agilidade que lhe era peculiar.
— O menino relutou em ajudar-me — Roderick dizia sorridente. — Disse a ele que meus cachorros haviam seguido seu rastro, mas o garoto ousou mentir e afirmou nunca ter visto ou ouvido falar de vocês. Nossas tentativas de persuadi-lo a ser mais verdadeiro falharam, e então decidimos que ele poderia dar mais valor à vida da irmã do que a dele mesmo. Ou à sua. Noto que reuniu um triste grupo de aliados, minha querida.
— Que homem bravo e intrépido é você, meu lorde, ameaçando e surrando crianças — ela o insultou sorrindo.
— Devia ser mais temperada com as palavras, minha querida. Agora está novamente sob a proteção de seu amoroso marido.
— Não sairei daqui.
— Ah, sim, você sairá. — Ele começou a caminhar em sua direção. Gib e Wattie o seguiam.
Kirstie empunhou a adaga, sorrindo com frieza ao ver os três pararem.
— Ah, vejo que hesitam. Por quê? Por que não sou uma criança e estou armada? Nunca foram capazes de enfrentar um inimigo. Ou uma inimiga. E não há nenhum rio por perto para atirar-me nele.
— Eu não tentaria o mesmo truque novamente. Em algum momento durante os cinco anos em que fomos casados, poderia ter me contado que sabe nadar.
Até que ponto iria a insanidade de seu marido? Ele soava ”ritado, ofendido, até, por não ter compartilhado com ele um Segredo que servira para salvar sua vida. Roderick se comportava como se o tivesse decepcionado como esposa, ou até mesmo cometido um grave pecado com sua relutância em confiar plenamente nele, o homem que atentara contra sua vida.
— Nunca conversamos muito, Roderick.
— Ei, os bastardos estão fugindo! — Gib gritou. Roderick praguejou, enquanto os outros dois corriam atrás dos meninos. Kirstie conseguiu pôr um pé na frente de Wattie, mas Gib alcançou a tapeçaria atrás da qual as crianças haviam desaparecido. De repente ele gritou e saltou para trás. Havia uma adaga cravada em seu braço. Kirstie suspirou aliviada ao ouvir o ruído do atrito entre pedras. As crianças estavam salvas atrás da porta oculta. Enquanto Gib e Wattie tentavam abrir a pesada porta sem nenhum sucesso, Kirstie enfrentou o marido novamente.
— Você é mesmo uma mulher infernal — Roderick a acusou com voz fria, sinal de que mal conseguia conter seu temperamento violento. — Para onde eles foram?
— Por que devo conhecer os esconderijos encontrados por Callum?
— Mesmo que não tenha percorrido toda a casa em busca de esconderijos e rotas de fuga, Callum deve ter conversado com você sobre tais caminhos. Apesar de todo meu esforço para educá-lo, ele ainda preserva um certo gosto pelas damas.
— Educá-lo? É esse o nome que dá às imundas perversões que impõe às crianças?
— É evidente que o odioso sir Payton não a instruiu muito sobre os prazeres e necessidades da carne. Não faço mal nenhum às crianças. Na verdade, dou a muitas delas uma vida muito melhor do que tinham, porque ofereço roupas, comida e cama quente. Só peço em troca um pequeno serviço. Que mal há nisso?
Ele falava como se acreditasse nisso.
— E os que você matou?
— Eles teriam morrido de qualquer maneira, se não houvessem sido recolhidos de onde estavam.
— Devia estar morto há muito tempo, Roderick.
— Eu? Não, meu bem. Você devia. E já estendeu essa brincadeira por tempo demais. Não pretendo estar aqui quando um dos guardas acordarem ou um de seus defensores retornarem.
Kirstie segurou a adaga com força, preparando-se para o ataque. Sabia que seria capturada, porque jamais poderia superar três homens, mas causaria dores inesquecíveis antes de sucumbir.
— Peguem-na, rapazes — Roderick ordenou. — E tomem cuidado com aquela adaga. É possível que ela saiba usá-la.
Por alguns momentos, Kirstie conseguiu manter os dois malfeitores afastados, e até causou um doloroso, embora pequeno ferimento em cada um deles. Mas a dor só aumentou a determinação de capturá-la.
Quando Wattie conseguiu colocar-se atrás dela, Kirstie soube que havia terminado. Ainda feriu Gib mais uma vez, mas logo Wattie a agarrou e o outro bandido a desarmou, aproveitando o momento para torcer seu braço de maneira a causar sofrimento. Mesmo sabendo que tinha pouca ou nenhuma chance de escapar, Kirstie se debatia com violência.
Ao ver o marido sorrir com um misto de prazer e antecipação, certamente esperando o momento de matá-la, ela não se conteve e acertou-o com um violento pontapé entre as pernas.
Roderick empalideceu, dobrou o corpo para frente e caiu de joelhos. Gib e Wattie praguejaram ao ver o chefe soluçar de dor e vomitar.
Quando finalmente conseguiu se recuperar e levantar-se, Roderick a encarou com uma promessa no olhar. Retribuição. Sim, era isso. Seria surrada até perder a consciência, o que facilitaria a missão dos dois brutos que a continham.
Mesmo esperando pela violência do primeiro golpe, ela não imaginava ser atingida com tanta força. Sua cabeça foi jogada para trás pelo soco no queixo e, ao mesmo tempo, ela sentiu uma forte dor na coluna. Depois veio a escuridão. Antes de desfalecer, no entanto, ela ouviu Wattie praguejar e soube que, sem querer, acertara seu queixo com a cabeça ao ser golpeada. Kirstie desmaiou sorrindo de satisfação.
— Roderick, podia ter me prevenido - Wattie queixou-se enquanto massageava o queixo com uma das mãos. A outra sustentava o corpo inerte de Kirstie.
— Sabia que teríamos de silenciar a cadela. Acha que ela está com a mandíbula quebrada?
— Não. — Wattie jogou o corpo magro sobre um ombro. - O que acho é que temos de sair daqui depressa—ele opinou a caminho da porta. - E quanto aos três pestes? - Gib lembrou ao saltar por cima de um guarda inconsciente.
— Viremos buscá-los depois — decidiu Roderick.
— Não acha que devíamos matar os vigias?
— Por enquanto, tudo que estou fazendo é legal. Só vim recuperar o que me pertence. Obstruir meu caminho com cadáveres não vai me ajudar em nada, e pode até me causar problemas. É melhor que Callum tenha escapado. Eu teria me sentido seriamente tentado a usar o corpo morto e ensangüentado do infeliz para enviar uma mensagem bem clara a sir Payton. Teria sido um enorme prazer, mas também um grave engano.
— Então, não vai poder matar a cadela muito depressa — Wattie presumiu do lado de fora, quando já alcançavam os cavalos.
Roderick montou cauteloso, praguejando ao sentir a dor entre as pernas.
— Sim, é possível que tenha de mantê-la viva por algum tempo. No entanto, pretendo fazê-la lamentar cada minuto de vida que terá de agora em diante.
Callum saiu de trás da árvore e viu quando os três homens se afastaram levando Kirstie. Havia desconfiado de que eles a levariam para Thanescarr, mas julgara melhor certificar-se. Segurando a faca, ele voltou para perto de Simon e Brenda. Os dois pequenos cuidavam dos guardas inconscientes. Usando um balde, ele carregou água do poço e usou-a para despertar os vigias, que acordaram assustados.
— O que aconteceu? — Malkie perguntou enquanto Callum o desamarrava.
— Sir Roderick levou lady Kirstie. Ela me obrigou a sair para garantir a segurança desse traidor.
— Foi você quem o espancou?
— Não, embora confesse sentir vontade de surrá-lo. Por outro lado... — Callum suspirou. — Lady Kirstie me fez compreender que ele não teve alternativa se não agir como um traidor covarde e fraco. Vê a menina escondida atrás dele? É Brenda. Sua irmã. Roderick e seus porcos a agarraram, forçando Simon a obedecê-los.
— Eu sinto muito — o menino murmurou chorando. — Eles juraram que a matariam como mataram meu pai.
— Eles disseram ter matado seu pai?
— Sim, Callum.
— Nesse caso, é melhor ficar conosco. Você e a pequena Brenda.
— Não. Sei que lady Kirstie foi levada daqui por minha culpa. Brenda e eu voltaremos para a casa dos Darrochs.
— E serão mortos mais depressa do que eu posso cuspir. Eles confessaram ter matado seu pai. Acha que vão esperar que contem ao mundo o que ouviram deles? Não. Fiquem aqui. Eu... acho que posso perdoá-lo. — Callum olhou para os dois guardas. — Eles partiram a galope na direção de Thanescarr. Lady Kirstie estava desacordada, mas não creio que tenha morrido.
— Payton vai nos esfolar vivos. — Malkie levantou-se e ajudou Donald a fazer o mesmo.
— Devo ir buscá-lo? — Callum perguntou.
— Não, rapaz. Ele chegaria em casa antes de você encontrá-lo no castelo. Isto é, se Payton estiver no castelo. Não. Fique aqui, coma e descanse, e comece a pensar em algum meio de entrarmos em Thanescarr para resgatar lady Kirstie.
— Não preciso descansar ou comer, e sei como entrar em Tanescarr.
— De qualquer maneira, não pode ir salvá-la sozinha.
— Sei que não.vou buscar Lan. Sei onde ele está, e sir Payton vai querer contar com ele quando chegar.
— Certamente.
— Maldição. Não fui um bom protetor para lady Kirstie.
— Nós também não fomos, rapaz, e não temos a desculpa de sermos apenas meninos de onze anos.
— Não importa. Não devia ter obedecido quando ele me mandou cuidar de Simon e Brenda. Devia ter ficado e lutado por ela.
— Não. Você fez o que devia ser feito. Ajudou as crianças, obedeceu as ordens de sua senhora, e agora está aqui para ajudar a resgatá-la. Ela devia saber que você possui informações úteis, e por isso quis mantê-lo vivo.
— Sim, talvez. Bem,vou buscar Lan.
Vendo o rapaz afastar-se, Donald olhou para Malkie.
— Tem certeza de que ele só tem onze anos?
— Sim, somente onze. Venham, Simon e Brenda. Vamos entrar. Callum afirma não precisar de repouso e alimento, mas vocês dois têm de comer e dormir um pouco. E eu também, porquevou precisar de todas as minhas forças para receber sir Payton com a notícia de que perdemos sua lady.
Callum corria pelo caminho que Lan dissera planejar seguir até o bosque. Sentia medo, chorava muito, e odiava o sentimento. Embora muito tempo houvesse se passado desde a última vez em que vira Roderick, um olhar para aquele rosto trouxera de volta todas as horríveis e velhas emoções, e ainda sentia nojo. Odiava esse sentimento, também.
Lan tentava ensiná-lo a ser forte, mas agora Callum sabia que ainda não era forte o bastante. Por dentro ainda era um menino assustado. Queria sentar-se e chorar, gritar como um bebê. Mas havia jurado a si mesmo que nunca deixaria sir Roderick enfraquecê-lo novamente, e esse homem não o veria chorar.
Kirstie o amava. Precisava salvá-la. Ela era a única que jamais se preocupara com sua segurança, com seu bem-estar, e não podia permitir que aquela besta a tivesse. Perder Kirstie também faria infelizes sir Payton, Lan e Alice, e não podia permitir que isso ocorresse. Todos eram bons e o tratavam como a um menino normal, até mesmo como um rapaz a caminho da maturidade, embora todos soubessem sobre o que sir Roderick fizera com ele. com essa gente tinha um lugar, um nicho onde não se sentia amedrontado ou envergonhado, e não deixaria a besta privá-lo disso.
Callum engoliu um soluço. Apesar de todas as suas preces, a besta voltara. E estava tornando tudo escuro, feio e assustador outra vez. Não o deixaria vencer. Não deixaria a besta ferir sua lady e seus amigos. Então ele sentiu algo agarrar seu braço, e quase sucumbiu sob o peso do pânico.
— Ei, rapazinho, o que o atormenta?
Ao virar-se com a adaga pronta para atacar e deparar-se com Lan, Callum quase desmaiou de alívio.
— Lan!
— Sim, sou eu. Quem mais poderia ser?
Preocupada, Alice ofereceu a ele uma bebida densa e fresca e, ao bebê-la, o menino reconheceu o sabor da cidra e sentiu seu efeito calmante.
— A besta levou lady Kirstie — ele disse.
— Besta? — Alice repetiu. — Por acaso está se referindo a sir Roderick?
— Sim — Callum resumiu os últimos acontecimentos. — Não fui capaz de proteger minha lady — concluiu, olhando para Lan como quem pede ajuda. — Eu quis protegê-la, mas ela me mandou sair com Simon e Brenda.
— E era exatamente isso que devia ter feito, rapaz. Alguém precisava tirar as crianças de lá. Alice, leve os pequenos para a carroça. Temos de voltar para casa imediatamente.
— A culpa é toda minha — Alice choramingou. — Se eu não o houvesse convencido a sair, você teria estado lá para impedir que levassem lady Kirstie.
— Você não me obrigou a nada, e a culpa também não é sua. Entre na carroça, garoto — ele disse a Callum. — Precisa descansar e recuperar suas forças, porque creio que vamos precisar de sua ajuda para resgatarmos lady Kirstie.
Callum obedeceu e seguiu com as crianças na carroça por algum tempo, mas depois, agitado demais para ficar sentado, saltou do veículo e foi caminhar ao lado de Lan, enquanto Alice dirigia e o guarda Angus seguia atrás do carro.
— Eu disse que devia descansar — Lan censurou-o com voz calma.
— Eu sei, mas não consigo ficar parado. Sei que não posso fazer nada por enquanto, mas estou agitado.
— Agitado, é?
— Lady Kirstie ensinou-me a palavra. Gosto do som, sabe?
— Sim, é um belo som. E faz você parecer muito inteligente.
— Que bom. Mas vou tentar ficar calmo. Precisamos pensar em um plano para trazermos minha lady de volta.
— Sim, precisamos. Às vezes é difícil ter calma, mas é melhor assim, e suspeito de que teremos de fazer Payton lembrar essa lição. Se sair por aí atirando a esmo sem pensar no que faz, tudo que terá a seu lado será a sorte. Bem, a sorte não é uma companheira muito fiel. Não. Precisa usar também a astúcia e a sabedoria, especialmente quando é esperado pelo inimigo.
— Sir Payton vai querer resgatar lady Kirstie, não vai?
— É claro que sim, rapaz. E não vai ser fácil impedi-lo de sair como um louco assim que souber o que aconteceu com sua lady.
— Ela é?
— Ela é o que, rapaz?
— Sua lady. Pensei que talvez fosse, mas às vezes me pergunto se ela não é só alguém com quem ele gosta de se deitar.
— Ah... Não devia falar assim de sua senhora, mas entendo o que quero dizer. Assim, vamos falar claro. Sim, Payton é um homem experiente e já se deitou com muitas mulheres. Ele não considera sua lady uma delas. Estou servindo esse senhor há muitos anos, por quase toda minha vida, e tenho certeza de que lady Kirstie não é só um corpo para aquecer sua cama de vez em quando. Afinal, quando uma mulher diz não, ele simplesmente segue em frente e vai encontrar outra que diga sim, e ele teve quinze dias para isso. E teria esperado muito mais tempo por sua senhora.
— Então, acha que ele vai desposá-la, fazer dela sua lady de verdade?
— Bem, confesso que não tenho muita certeza disso. Creio que ele seria um idiota se não a desposasse. Eles formam um casal perfeito, mas são eles quem devem ver esse fato, e os dois parecem dispostos a tornar tudo mais difícil.
Callum segurou a mão de Lan e sentiu uma doce e estranha força invadir seu corpo.
— Lamento tê-lo ameaçado com uma faca — disse. — Estava com medo da besta, e por um momento pensei... Bem, ele levou lady Kirstie, e julguei que tudo voltaria a ser triste e sombrio novamente. Mas não vamos deixar que ele torne tudo triste e sombrio, vamos?
— Não, meu rapaz, não vamos. — Lan apertou a mão do menino. — Traremos a adorável lady Kirstie de volta e poremos tudo em seus devidos lugares outra vez. E talvez algum bem nasça de tudo isso.
— Oh, sim? Qual?
— Bem, sentir que pode perder lady Kirstie pode servir para fazer Payton ouvir a voz da razão.
Ele ainda não parece muito controlado — Callum sussurrou para Lan ao ver Payton andando de um lado para o outro no salão.
— Não, mas ele precisa pôr para fora toda essa raiva.
— Espero que termine logo, porque temos de pensar em um plano para salvar minha lady.
— Se ele não se controlar em breve, eu mesmo irei até lá e baterei em sua cabeça até trazê-lo de volta à razão.
Lan sorriu ao ver Callum assentir com ar solene, como se a solução fosse perfeita.
Payton parou diante da lareira e respirou fundo. Tinha de acalmar-se. Atrás dele, Lan, Malkie, Donald e Angus esperavam por suas ordens. Callum esperava para contar a eles tudo que sabia sobre os segredos de Thanescarr e ouvir como pretendiam resgatar lady Kirstie. Não sabia o que o machucado e deprimido Simon fazia ali, mas suspeitava de que a culpa despertava nele o desejo de ser útil de alguma forma.
Chegara em casa com disposição mais do que sombria, e ser recebido pela notícia de que Roderick havia levado Kirstie representara um duro golpe. Seus rumores sobre adultério e roubo de esposa o haviam banido da corte. Agora o homem tinha Kirstie. Roderick estava vencendo. Era intolerável.
Temia por Kirstie, mas encontrava um certo conforto na certeza de que Roderick não poderia matá-la de imediato. O gesto atrairia muita atenção. Na verdade, toda aquela conversa sobre ter sido traído pela esposa agora funcionaria a favor de Kirstie. Se ela surgisse morta logo depois de ter sido encontrada pelo marido, todos presumiriam que Roderick a havia matado por sua infidelidade.
O que o torturava era pensar em tudo que podia acontecer com Kirstie enquanto estivesse em poder do marido. Lembrava-se do que Callum havia contado sobre a conversa dos dois homens de Roderick. O abuso dos dois brutos poderia matar toda a paixão que ardia dentro dela.
— Payton? — Lan chamou com um misto de firmeza e solidariedade. — Precisamos agir.
— Sim, eu sei. — Ele se aproximou da mesa, serviu vinho para todos, convidou-os a se sentarem e juntou-se ao grupo. — Já pensou em todas as entradas possíveis para Thanescarr, Callum?
— Sim, e afirmo conhecer todas elas. Gosto de saber onde ficam os esconderijos e as rotas de fuga. Nada funcionava muito bem em Thanescarr, porque Roderick me mantinha sob vigilância constante, mas Kirstie e eu encontramos algumas outras saídas, e foi assim que escapei. Foi por essas saídas que tiramos as crianças de lá.
— Acha que Kirstie tentará escapar por uma dessas saíidas?
— Ela não poderá chegar a nenhuma delas. Ficará trancada em seus aposentos. Não sei por quê, mas há uma entrada para esse quarto e nenhuma saída, a menos que alguém no corredor abra a porta por fora. Ninguém em Thanescarr faria isso por ela.
— Mas existem entradas para Thanescarr que Roderick desconhece?
— Sim, e posso guiá-los por uma delas até o corredor onde fica a porta de saída do quarto de Kirstie.
— Ótimo. É o suficiente. É estranho que o homem não saiba dessas coisas — Payton murmurou intrigado.
— O lugar não era sua casa até ele completar vinte anos. Thanescarr abrigava primos de Roderick. Poucos homens desses parentes ainda trabalham e vivem por lá, e nenhum deles contaria nada a Roderick, nem que soubessem sobre os esconderijos.
— Bem, nesse caso o plano é simples. Simon, ouviu os homens dizerem alguma coisa sobre o que pretendiam fazer com lady Kirstie?
— Gib perguntou se o senhor ia colocá-la na gaiola, mas o senhor respondeu que não, porque não podia. São muitos os olhos voltados em sua direção agora.
— Mas ele não disse onde a colocaria?
— Não. Quero dizer, ele disse que a poria em seu lugar. Wattie argumentou que não via nenhuma vantagem alguma nisso, porque ela já havia fugido de lá antes. O senhor respondeu que dessa vez ela não fugiria, porque as portas teriam trancas externas.
— Então, ele a colocou em seus aposentos — Callum deduziu. — Roderick costumava trancá-la lá, mas a surpreendeu retornando uma noite qualquer e compreendeu que ela sabia destrancar a porta usando apenas um grampo. Por isso ele decidiu matá-la. Sabia que ela havia visto demais, pois estivera perambuLando pelo castelo por muito tempo para não ter visto nada.
Payton assentiu, e um plano se formou em sua mente.
— Callum vai me guiar para dentro de Thanescarr. Lan irá comigo. Malkie, você, Donald e Angus deverão impedir que sejamos descobertos. — Ele sorriu ao ver Simon lutando para manter os olhos abertos. — E você, Simon, vá para a cama.
— Espero que me perdoe, senhor. A culpa foi minha.
— Não. Você suportou enquanto era ameaçado e torturado, mas foi sensato o bastante para saber que as ameaças contra sua irmã eram reais. Agiu corretamente quando decidiu protegê-la. Agora, descanse. — Assim que Simon saiu, Payton olhou para Callum. — Espero que tenha ouvido o que eu disse.
— Sim, eu ouvi. Agora temos um plano.
— Refiro-me ao que disse a Simon, e você sabe disso. Não quero mais que o chame de covarde e traidor. Sua irmã foi ameaçada, e ele tinha de protegê-la. Saber que aqueles homens já haviam matado seu pai foi suficiente para ele compreender que as ameaças não eram vazias.
Callum assentiu.
— Eu vou parar. Afinal, é minha culpa que eles tenham seguido meu rastro até Simon. E então? Vamos atrás de Kirstie agora?
— Em breve. Quero o abrigo da noite. Roderick nos espera, mas não saberá que chegamos até que seja tarde demais para deter-nos.
— Entrar e sair como uma brisa...
— Sim, rapaz, é isso. No momento Roderick considera-se vencedor, mas logo vai perceber que sua derrota está apenas começando.
Kirstie abriu os olhos. Estava deitada na cama que fora sua em Thanescarr. Sabia que tinha todo o direito de sentir medo, mas não se deixaria dominar por esse sentimento. Não daria esse prazer a Roderick.
Sentia dores no rosto e na cabeça, conseqüência do golpe que levara, mas sabia que não sofrera nenhuma fratura. Um de seus dentes estava um pouco mole, mas, por experiências anteriores, sabia que tudo voltaria ao normal em breve, se tomasse cuidado e não sofresse mais nenhum traumatismo nos próximos dias. Devagar, ela se levantou até estar sentada na beirada da cama, agarrando-se à cabeceira para combater as sucessivas ondas de tontura e náusea.
Alguns minutos se passaram antes que ela se sentisse capaz de ficar em pé. Kirstie caminhou lentamente até a janela. Pelo ângulo do sol e pelas atividades desenvolvidas lá embaixo, deduziu que a noite não demoraria a cair. Estivera inconsciente por quatro ou cinco horas. Por outro lado, se conseguisse sair, teria as sombras para protegê-la em sua escapada.
Um ruído chamou sua atenção. Era o som de uma tranca sendo removida... do lado de fora. Roderick transformara seu quarto em uma eficiente prisão. Fugir exigiria mais trabalho do que podia realizar agora, e talvez nem fosse possível. Não. Não pensaria nisso agora, porque seria o mesmo que matar sua esperança, e precisava dela para sobreviver.
Roderick entrou no quarto, e ela sentiu um arrepio gelado. Fingindo calma, sentou-se na cadeira ao lado da lareira e esperou.
— Suponho que já tenha tentado abrir a porta — ele começou.
— Ainda não tive tempo para isso. Acordei recentemente de sua amorosa carícia.
— Bem, então não perca seu tempo.
— Sim, eu já percebi que seria inútil tentar. Ouvi o som da tranca sendo removida por fora. Noto que planejou minha visita com detalhes. Não precisa se incomodar. Não pretendo estender minha estadia por muito tempo.
— Acho que ainda não entendeu, minha cara. Nunca mais deixará Thanescarr. Não viva. Suas traições foram muitas, desde a noite do nosso casamento até as horrendas tentativas de manchar meu nome com rumores insólitos. Sem mencionar seu romance com sir Payton Murray.
Esse era um assunto que ela preferia evitar. Roderick nunca a desejara como esposa, porque nunca desejara mulher alguma, mas já não poderia provar que o casamento com ele nunca fora consumado. Se Roderick insistisse em acusá-la de adultério, teria de enfrentar graves problemas com a justiça, se por acaso sobrevivesse ao problema que enfrentava agora.
— Rumores insólitos? — ela repetiu. — A verdade finalmente é dita, e você diz que são apenas rumores insólitos? Francamente! Você fere crianças, Roderick! Abusa delas! Negue quanto quiser. Finge trazer os pequenos para cá a fim de alimentá-los e vesti-los, mas a verdade é que abusa deles. Ainda vou provar que há sangue inocente em suas mãos, que matou algumas dessas crianças.
— Está tentando manchar meu nome para esconder seus próprios pecados.
— Oh, não. Sejam quais forem meus pecados, eles perdem a importância comparados à nódoa que escurece sua alma.
— Seus pecados aumentam diariamente, esposa. Continua sujando suas mãos com sangue, apesar de todo meu esforço para detê-la.
— De que tolice está falando agora? Não sou eu quem suja as mãos com sangue.
— Não? Insiste em envolver outras pessoas nisso, contando aos outros essas mentiras sobre mim até que eu seja forçado a agir para silenciá-los. Conhece bem minha necessidade de privacidade, a violência com que a protejo, mas insiste em pôr em risco vidas alheias contando suas histórias fantásticas sobre crimes e abusos imaginários.
— Tentou me matar! — Era incrível como Roderick mentia para si mesmo, falando de assassinatos e crimes bárbaros como se fossem atos desprovidos de importância.
— Você se recusava a ficar quieta! — Ele respirou fundo e baixou o tom de voz. — Bem, agora me deu mais três problemas para resolver. Mais três vidas para encerrar.
— De quem está falando?
— De quem mais, prostituta tola? Envolveu sir Payton e aqueles dois horríveis serviçais nos nossos problemas. Não tente negar. Só precisei pensar um pouco para entender que era sir Payton quem tentava manchar meu nome. As mentiras que espalhava só podiam ter saído de você. Agora devo silenciá-lo, e não vai ser fácil. Passarei longas horas planejando como me livrar dele e de seus serviçais sem despertar suspeitas. Felizmente, não preciso ser cauteloso com aquele pequeno traidor chamado Callum.
— Fala em assassinar quatro pessoas como se isso fosse apenas uma grande inconveniência.
— E é uma inconveniência, um problema que você criou para mim. E para quê? Por quê? Por pequenos delinqüentes problemáticos que são abandonados pelas ruas?
— Pois não vai ser fácil matar Payton, Lan e sua esposa. E se acha que pode tirar as vidas dessas pessoas e escapar impune, deve ser um idiota. A família de Payton sairá caçando por seu assassino antes mesmo do sangue ter secado em suas mãos.
— Oh, não, não acredito nisso. Tenho obtido grande sucesso em manchar o nome desse cavalheiro, mais do que ele tem tido em suas tentativas de difamar-me. O homem cometeu muitos adultérios e conquistou a inveja e o ressentimento de muitos de sua classe. Foi fácil destruí-lo. Duvido que seus familiares queiram saber em que poça de lama seu corpo apodrece.
— Tenta julgar os outros pela inconstância das tolices e dos elogios vazios da corte. Os Murray não se deixarão convencer facilmente do que você diz sobre um deles. Não, eles exigirão respostas e tentarão compensar sangue com sangue. Talvez consiga silenciar Payton, Alice, Lan e até Callum, mas os Murray e seus aliados logo descobrirão seus horrendos segredos. Então será o seu corpo a apodrecer na lama, esquecido por aliados e parentes, pisoteado e cuspido por todas as crianças de que abusou.
Roderick queria agredi-la, mas estava se controlando. Por quê?
— O que veio fazer aqui, afinal? Buscar satisfação em minha suposta ruína? Jogar sobre mim a culpa de seus pecados? Perde seu tempo. Não temos nada a dizer uma o outro.
— Não? Talvez eu tenha decidido perdoá-la e aceitá-la de volta como minha esposa.
— Eu nunca fui sua esposa. Roderick ignorou o comentário.
— Sim, é hora de formarmos uma verdadeira família. Precisamos ter um filho.
Kirstie cruzou os braços sobre o peito para esconder o súbito tremor que a sacudia. Roderick não sabia que ela havia escutado a conversa entre Wattie e Gib sobre seus planos de possuí-la e engravidá-la.
— Ah, então decidiu ser homem, afinal — ela disparou. Roderick cerrou um punho e quase a agrediu, mas deteve-se antes de acertá-la.
— Por que está tão preocupada com essa questão, afinal?
— Não estou. Não realmente. Na verdade, não me sinto preparada para ter um filho.
— Ter filhos é a única coisa útil que uma mulher pode fazer. E também é seu dever de esposa.
— Como também é seu dever engravidar-me. Mas, como não é capaz disso, o que faremos agora?
— Bem, posso esperar para descobrir se seu amante a engravidou, mas não, acho que não. A criança poderia nascer parecida com ele, o que causaria certas dificuldades. Não,vou encarregar meus homens de resolverem essa questão. Por que o espanto? Se estava disposta a se deitar com sir Payton, também pode ir para a cama com os homens que eu escolher. — Batidas na porta o interromperam, e Roderick foi ver quem ousava interrompê-lo num momento tão importante. — Wattie, eu disse que devia esperar até ser chamado. O que quer aqui?
— Seus parentes estão no salão e desejam vê-lo. Agora.
— Aqui? Jesus, sobre o que desejam conversar?
— Bem, esteve dizendo ao mundo que sir Payton Murray roubou sua esposa, que é um homem traído e desonrado... Suspeito de que eles pretendem vingá-lo de alguma forma. Vai dizer a eles que trouxe a cadela de volta?
— Ainda não. Acho que devo ir falar com eles antes de tomar qualquer decisão. — Ele olhou para Kirstie. — Sugiro que repouse, minha cara. Vai precisar de forças mais tarde.
Sozinha, Kirstie dobrou o corpo ao meio até a cabeça encontrar os joelhos. Sentia frio, uma sensação proveniente do medo pela segurança de todos que amava. A insanidade de Roderick também a assustava. Sabia que suas ameaças não eram vazias, e não julgava ser capaz de antecipar seus atos, o que o tornava ainda mais perigoso.
E não podia prevenir Payton. Desesperada, ela chorou. Payton precisava saber que Roderick o queria morto. Callum, Lan, Alice... Todos corriam perigo. E as sete crianças abrigadas em sua casa? Roderick logo os descobriria. E também mataria os três guardas de Payton.
Seis adultos e oito crianças. Ninguém poderia imaginar que ele executaria tantas vidas e escaparia impune. Mas Roderick não era normal. Não pensava neles como seres humanos, mas como simples obstáculos para sua perversão.
A porta se abriu novamente e Gib surgiu na soleira, sorrindo para ela como se nem houvesse sido ferido pela lâmina da adaga. Daisy, a criada da cozinha, entrou com uma bandeja de comida e bebida. Gib não era exatamente inteligente, mas deixava-se guiar pelo sentimento de autopreservação. E se tentasse provocar um conflito, uma dissensão?
— Já sabe quais são os planos de Roderick, não? — ela perguntou.
— Sim, ele decidiu deixar meu amigo Wattie e eu plantarmos nossa semente em você.
— Não, seu idiota, estou falando de todas as pessoas que ele planeja matar. Na verdade, deve estar contando com você e Wattie para executar tais mortes, porque serão os seus pescoços na forca, não o dele.
Gib encolheu os ombros.
— Deixei de me preocupar com a forca há muito tempo. É só uma questão de quando e por quê. E eles só podem me enforcar uma vez. Para falar a verdade,vou gostar de matar aquele bastardo com quem você esteve se deitando. Sir Payton teve mais da metade das mulheres da Escócia, e as outras lamentam não terem sido possuídas por ele. O homem precisa ser morto.
— Sim, e seus três guardas e os dois criados vão ficar quietos, olhando você agir?
— Suspeito de que o velho Roderick também tenha planos para eles, ou cairão mortos durante a luta. Não me importo. O velho Roderick nos manteve longe da forca até agora, e imagino que vai continuar protegendo nossas vidas. Ele é esperto.
— Ele é insano. E estou começando a acreditar que essa doença é contagiosa.
— Sim, o velho Roderick é maluco, ou não preferiria meninos a mulheres.
Kirstie olhou para Daisy, a criada. Ela parecia enojada, mas mantinha-se calada. Quando seus olhos encontraram os dela, a criada olhou para a bandeja e piscou. Kirstie conteve o impulso de seguir a direção de seus olhos.
— com licença, mas devo me retirar — disse a jovem. — O senhor espera que eu sirva comida e bebida para seus hóspedes, e não posso ficar aqui ouvindo essa conversa sem sentido.
— Sim, é melhor sairmos daqui — Gib concordou. — Virei vê-la mais tarde, minha lady — ele disse com ironia a caminho da porta. — Wattie virá comigo. Descanse, porque vai precisar de forças para receber homens grandes e fortes como nós.
Kirstie esperou que a porta fosse fechada por fora, e só então olhou para a bandeja que Daisy havia deixado sobre a mesa a seu lado. Dentro do guardanapo de linho havia uma adaga afiada. A criadagem do castelo sempre a ajudara de uma forma ou de outra, e era bom saber que ainda podia contar com algum apoio ali.
com sorte, talvez pudesse matar Roderick em sua próxima visita. Talvez pudesse até matar um dos homens que pretendia possuí-la mais tarde, mas sabia que não poderia dar cabo dos dois. Assim que atingisse um deles, o outro a mataria sem nenhuma hesitação. E apesar de todo o sofrimento que a esperava nas próximas horas, não queria morrer.
Kirstie pressentia que os criados esperavam uma fuga miraculosa e, de alguma forma, não desejava desapontá-los. Mas a única maneira de sair do quarto era pela janela, e isso seria suicídio. A maior dificuldade que causaria a Roderick seria a de explicar por que sua esposa recém-recuperada fora encontrada sangrando e quebrada na alameda ao lado do curral.
Quando se deu conta de que a idéia não a desagradava completamente, afinal, Kirstie decidiu que era hora de começar a rezar por um milagre.
— Tem certeza de que Lan vai caber aí? — Payton perguntou sem desviar os olhos do buraco descoberto por Callum.
De onde estavam, Payton podia ver os homens nas muralhas de Thanescarr. Havia tantas árvores e arbustos, que não era fácil se esconder deles. Era estranho que um homem tão obcecado por privacidade e pela necessidade de guardar segredos não pensasse em como o descuido com sua propriedade poderia prejudicá-lo.
— Sim, ele vai caber. Esse túnel foi construído para permitir a passagem de um homem armado — Callum respondeu.
—vou entrar com vocês — anunciou Malkie. — Podem precisar de ajuda, caso sejam descobertos. Alguém pode notar a movimentação e fazer soar um alarme.
— Não havia pensado nisso — Callum confessou.
— Não mesmo? — Malkie brincou. — Bem, vamos em frente com isso.
Payton seguiu Callum pela passagem escura e úmida. Lan e Malkie também se moviam depressa, deixando Donald e Angus responsáveis pela segurança da rota de escape.
O túnel era longo e escuro, e havia sinais identificando cada porta. Um sol marcava a passagem para o terreno atrás da casa, e uma taça indicava que a porta em questão levava à adega. Um grande R identificava a porta do salão onde Roderick fazia suas refeições. Em todas elas havia pequeninos buracos nas laterais, visores por onde se podia controlar tudo que ocorria dentro da casa.
Foi assim que, atendendo a um sinal de Callum, Payton viu que Roderick estava no salão principal, profundamente compenetrado na conversa que mantinha com alguns outros homens. Havia uma semelhança de traços que sugeria um parentesco entre todos os presentes. Payton ficou satisfeito ao constatar que Wattie e Gib também estavam lá
Ele ficou ouvindo a conversa por algum tempo antes de fazer um gesto indicando que Callum devia seguir em frente. Os parentes de Roderick exigiam que ele fizesse alguma coisa para vingar o que consideravam ser uma mancha sobre a honra da família. Por razões que nem mesmo Payton compreendia, Roderick tentava ser paciente, o que só aumentava a fúria e a desconfiança de seus hóspedes.
Algo teria de ser feito com os Maclye, Payton decidiu. A julgar pelo que acabara de ouvir, Os parentes de Roderick pensavam em agir por contra própria. Roderick começava a ser visto como um homem sem nenhuma consideração pela honra, pelo clã ou, pior, um covarde. O confronto com os Maclye era cada vez mais próximo, e Payton preferia que ele acontecesse de acordo com seus temores.
— Quem está aí?
A pergunta deteve o grupo. Rápidos, todos se armaram com facas e esperaram silenciosos, temendo o pior.
Depois de um segundo, uma luz se acendeu.
— Sou eu, Daisy, a criada da cozinha. Sei que há alguém aí. Callum relaxou.
— O que faz aqui, Daisy?
Uma mulher roliça e baixinha surgiu de uma das passagens que levavam ao corredor de serviço.
— Callum! Julgamos que estivesse morto! Quem são esses homens com você? Vieram ajudar a senhora?
— Sim. Ela está em seus aposentos?
— Trancada — ela confirmou. — Estava tentando chegar lá pelo túnel para libertá-la, mas não sabia que direção tomar depois do último entroncamento de canais, e fiquei com medo de continuar sozinha. Sei que posso soar idiota, mas tenho medo de me perder e morrer aqui dentro.
— Você fez o que foi possível, Daisy. Agora nós cuidaremos de nossa lady.
— É melhor agir depressa. O bastardo já decidiu entregá-la a Gib e Wattie. Já o teria feito, não fosse pela chegada inesperada de seus parentes. Mas eles não vão demorar. Estive no salão há pouco, servindo comida e bebida, e notei que eles parecem prontos a cuspir no senhor e abandoná-lo à própria sorte. Assim que saírem, Gib e Wattie irão para os aposentos de lady Kirstie. Dei a ela uma adaga, mas sei que não será grande ajuda contra aqueles dois brutos. A menos que ela a enterre no próprio coração...
— Minha senhora jamais faria tal coisa. Ela mataria um dos suínos antes. E o que devia fazer — Callum opinou inflamado.
— Não precisa ficar tão nervoso. Levei a adaga pensando que ela poderia usá-la contra um dos dois idiotas. É claro que, se matar um deles, ela será morta pelo outro, mas pelo menos morrerá lutando.
Payton adiantou-se e beijou a mão da criada.
— Muito obrigado, Daisy. Sei que correu grande risco levando uma adaga ao quarto de Kirstie.
— Não me agradeça. Siga em frente, enquanto eu fico aqui guardando a passagem. Se alguém se aproximar, tentarei impedir que o alcancem. Agora vão.
O progresso do grupo foi lento e silencioso, porque estavam passando por cômodos constantemente ocupados. Payton sentia-se aflito, porque queria tirar Kirstie dali e levá-la de volta a sua casa antes mesmo que alguém percebesse sua ausência. Essa era a atitude mais segura, embora ardesse por um confronto armado com Roderick e seus fiéis servidores. Quanto mais tempo demorassem para encontrarem o quarto, mais seria a chance de não a encontrarem sozinha.
Callum parou, aproximou os lábios de um buraco na parede e imitou o arrulhar de um pombo.
O som provocou uma resposta idêntica do outro lado.
— Ela está sozinha — o menino explicou, começando a abrir a porta.
Payton o ajudou com a pesada porta, e Callum foi o primeiro a mergulhar nos braços abertos de Kirstie. Um segundo mais tarde, e Kirstie mergulhava nos braços de Payton.
De repente ele se dava conta da importância daquela mulher em sua vida. Era um momento terrível para se deparar com tal constatação, mas não podia ignorá-la. Havia mais ali do que simples paixão, muito mais do que respeito e admiração, simpatia e desejo. Talvez estivesse se aproximando daquela fugaz emoção chamada amor, mas isso não tinha importância no momento que viviam. Só tinha certeza de uma coisa: queria ficar com Kirstie, e agora teria de fazê-la entender seu propósito e aceitá-lo.
Kirstie tremia e chorava. O milagre acabara de acontecer. Suas preces haviam sido atendidas, afinal. Não queria perder mais tempo conversando. Apesar das dores no corpo e do medo insuperável, queria deixar aquele lugar o quanto antes.
— Precisamos sair daqui — disse, segurando a mão dele e puxando-o de volta para a passagem além da porta. — Não temos tempo para conversar. Mais tarde eu direi tudo que foi falado e feito aqui. Agora vamos.
Payton decidiu não discutir. O grupo se moveu em silêncio até alcançar o local onde Daisy permanecia de guarda.
— Graças a Deus — a jovem murmurou emocionada. — Vão, saiam daqui. Encontrem um lugar seguro.
— É o que vamos fazer. Aqui, pegue a adaga.
— Não, senhora. Fique com ela.
— Devolva-a ao local de onde a tirou, ou alguém pode dar por falta da adaga e acusá-la de roubo ou, pior, de cumplicidade em minha fuga. Estou mais do que protegida, agora.
— Sim, está — concordou a criada, aceitando a adaga.
— Tome cuidado, Daisy.
— Sempre — ela respondeu antes de desaparecer na escada.
Roderick olhava boquiaberto para o quarto vazio. Furiosos, Wattie e Gib vasculhavam cada recanto. De alguma forma, ela havia fugido mais uma vez. Já olhara pela janela e não vira seu corpo estendido lá embaixo, o que o desapontara. Um suicídio teria sido a solução ideal para muitos problemas.
— Ela não pulou a janela, pulou? — Wattie indagou espantado.
— Não, não...
— Oh, não! Por favor, digam que ela não fez isso!
Uma mulher roliça e baixinha aproximou-se da janela e, ao ver que não havia um corpo lá embaixo, secou as lágrimas com a ponta do avental.
Roderick levou alguns instantes para reconhecer Daisy, a criada da cozinha.
— O que faz aqui? — quis saber ele.
— Vim buscar a bandeja que deixei antes.
— Bandeja? Mas eu dei ordens para que minha esposa não recebesse nenhum alimento. Um banquete maldito, certamente! Eu não ordenei essa refeição!
— Bem, alguém a ordenou, porque recebi a bandeja e as ordens para trazê-la aqui. Não cabe a mim fazer perguntas, senhor.
— Sou amaldiçoado! Estou cercado por tolos e traidores! — Roderick limpou a mesa com um movimento de braço.
Daisy ajoelhou-se e começou a limpar a sujeira que ele acabara de fazer. A moça trabalhava devagar, atenta às promessas e ameaças de seu senhor, que jurava matar lady Kirstie e todos que dela um dia se houvessem aproximado. Sempre acreditara estar a serviço de um homem insano e desequilibrado, mas de repente compreendia que a contrariedade oferecida por lady Kirstie e seus aliados empurravam sir Roderick para muito além do limite da razão. Por sorte ele deixou o quarto, sempre praguejando e gritando ameaças, e Daisy respirou aliviada.
Conseguira ser útil e ajudar uma senhora de bom coração a escapar das garras de um monstro. Só esperava que um dia ele pagasse caro por todo o mal que causara a tanta gente.
Na casa de Payton, Kirstie relatou todos os eventos ocorridos em Thanescarr e falou sobre seus temores pela vida e pela segurança das pessoas de que agora se cercava. Ela também contou sobre as atrocidades que Roderick havia dito, sobre como ele acreditava ter ajudado as crianças que maltratara e matara.
— Agora ele acredita que deve matar você, Lan, Alice, seus guardas, Callum e as outras crianças. E eu, certamente, mas só depois de Gib e Wattie plantarem sua semente em mim.
— Jesus...
— Exatamente. Em resumo, foi isso que ele disse. Sempre achei que Roderick não fosse muito equilibrado por conta desse desejo por crianças e da crueldade com que as trata, mas agora tenho certeza de que ele é completamente insano. Como se pode lutar contra isso?
— Da mesma forma que se combate um homem são — respondeu Payton, revoltado e enojado com tudo que ouvira. — Talvez seja um pouco mais difícil imaginar quais serão suas atitudes, mas não é impossível. Sabemos o que ele quer, o que vai tentar conseguir. É só uma questão de sabermos onde e quando. E, por mais assustadora que seja sua insanidade, por mais que ele pareça diferente de outros homens, uma coisa nele será sempre normal.
— O quê?
— Se for ferido, ele sangrará. Se tiver uma espada cravada em seu coração, ele morrerá.
— Sim, é verdade, mas... Oh, eu tenho medo. Se o houvesse escutado, Payton!
— Certamente teria ficado tão assustado quanto você, mas também saberia que sou capaz de derrotá-lo e matá-lo. Agora, deixe-me cumprir meu dever de defensor e aplacar seus temores.vou fazê-la esquecer que é casada com um louco.
Payton abraçou-a, e Kirstie se deixou beijar antes de dizer:
— Na verdade, descobri mais uma coisa enquanto fui mantida cativa na casa de Roderick.
— O quê?
— Você tinha razão. Roderick não tem nenhum direito ao título de meu marido. Sendo assim, decidi que não tenho um marido. Não sou mais uma esposa infiel, mas uma criada atrevida.
— Interessante. Gostaria de saber se o sabor de uma criada atrevida é diferente do de uma esposa infiel.
Quando ele começou a usar os lábios e a língua para encontrar a resposta que buscava, Kirstie já nem se lembrava mais do medo e dos horrores que ouvira horas antes. Agora era hora de viver o prazer...
-- Ah! Vejo que ele está bem! Sonolento, Payton compreendeu que havia alguém no quarto. Kirstie se afastara dele com velocidade espantosa, e a comoção o fez abrir os olhos para ver o que acontecia. A primeira imagem por ele registrada foi a de um homem grande, louro e sorridente. Amava sua prima Gillyanne, mas não sabia se estava feliz por vê-la ali. Não agora, quando sonhava com os prazeres de que desfrutaria ao despertar nos braços de Kirstie.
— Gilly, Connor, o que fazem aqui? — ele perguntou, começando a sentar-se na cama. Kirstie procurava esconder-se atrás dele.
— Eu precisava vê-lo, Payton — Gillyanne respondeu. — Alguma coisa me dizia que você estava em perigo, precisando de ajuda.
— Trouxe os gêmeos?
— É claro que não. Como poderia trazer meus filhos a um local onde, segundo meu pressentimento, encontraria o perigo? Por isso espero poder resolver seu problema rapidamente. Já estou com saudade dos meus pequenos. Connor, o que faz parado aí perto da porta?
— Bem, além de não querer ver seu primo nu, julguei que seria sensato permanecer imóvel, pelo menos enquanto houver uma faca apontada para minhas costas.
— Uma faca? — Ela olhou para trás do marido. — Oh, é só um menino. Pode baixar a faca, garoto. Connor não vai machucá-lo.
— Não tenha tanta certeza disso — protestou seu marido.
— É melhor explicar o que fazem aqui — Callun exigiu sério. — Ou vai acabar com uma faca enterrada no traseiro.
Connor levantou uma sobrancelha ao ver que Payton sorria, mas suas palavras eram dirigidas a Callum.
— Tome cuidado com quem ameaça, mocinho. Se me aborrecer, pode acabar machucado.
— Ah! E eu posso furá-lo com esta faca. Agora, onde está minha senhora? Ela devia estar aqui.
— Payton, deixe de brincadeiras e diga ao menino quem somos nós — Gillyanne sugeriu impaciente.
Um beliscão nas costas o fez aceitar a sugestão da prima.
— Kirstie está bem, Callum. Ela só está... escondida. Essas pessoas não são uma ameaça para nós. Gillyanne é minha prima, e o homem com a faca nas costas é sir Connor MacEnroy, marido dela. Creio que temos alguns aliados, meu rapaz.
— Muito bem, já chega, menino — Lan decidiu ao surgir na porta do quarto. — Por que está apontando essa faca para sir Connor?
Callum guardou a arma enquanto explicava:
— Eu os vi entrar aqui e, como não sabia quem era, tive medo por minha senhora. E por sir Payton, também. Ele não parece ser muito esperto ou ágil quando está nu. Então, apontei minha faca para sir Connor MacEnroy.
— Bem, você pensou rápido, mas escolheu um péssimo alvo. Se ferir um homem no traseiro, nunca vai conseguir derrubá-lo. Só o deixará zangado. É melhor apontar a faca para esta região — Lan aconselhou, apontando uma área particularmente sensível na parte inferior das costas do visitante.
Gillyanne arregalou os olhos ao ver Alice entrando no quarto acompanhada por sete crianças.
— Por favor, não faça perguntas — Payton pediu desanimado. — Esperem-me no salão. Jávou descer para dar todas as explicações necessárias.
— Onde está lady Kirstie? — quis saber Moira.
— Escondida — respondeu Payton —, porque há gente demais no quarto.
— Não a vejo. — O queixo de Moira tremia. — O monstro a levou novamente?
Antes que pudesse responder, Payton sentiu um movimento atrás dele. Um braço pálido e esguio surgiu de trás dele, e dedos pequeninos e elegantes afagaram o rosto assustado da menina.
— Vê, minha pequena? — ela perguntou com voz rouca e constrangida. — Eu estou bem. — Só preciso de um pouco de privacidade antes de ir encontrá-los no salão.
Callum colocou-se no meio do quarto.
— Saiam todos! Minha senhora está nua!
— Oh, era tudo que eu queria — Kirstie gemeu aflita. Payton conteve o riso com muito esforço, especialmente quando a pequena Moira marchou até a porta e apontou para o lado de fora, revelando uma autoridade impressionante para sua idade. Alice conduziu as crianças, enquanto os adultos se retiraram ostentando enormes e divertidos sorrisos.
— Pode rir — Kirstie explodiu assim que a porta do quarto se fechou. Ela se levantou de um salto e começou a vestir as roupas que ia encontrando espalhadas pelo chão. — É bom saber que meu constrangimento o diverte. Oh, como poderei encarar todas aquelas pessoas?
Recuperado, Payton sentou-se e ajudou-a a escovar os cabelos.
— Você se preocupa demais, Kirstie. Ninguém vai condená-la. Na verdade, assim que souber toda a verdade, Gillyanne me fará um longo e duro sermão. Trata-se de um segredo de família, minha querida. Gilly é uma Murray das mais especiais, porque foi uma das poucas de nosso clã a se casar sem antes ter se deitado com o homem escolhido. Ela me contou que o escolheu entre os três pretendentes interessados em seu dote por acreditar que Connor poderia conduzi-la pelos caminhos da paixão.
— Quer dizer que eles não são apaixonados?
— Oh, agora são. Gilly sabe que Connor a ama como ela o ama, embora admita que raramente o ouça pronunciar as palavras. Ele é um homem duro, reservado... Mesmo assim, sabendo como isso era importante para a esposa, ele disse palavras doces e ternas no batizado dos gêmeos, e não foi nada fácil, a julgar por sua expressão naquele momento.
— Entendo o que diz. Meu irmão Steven também é assim. Sua esposa Anne diz saber que ele a ama, mas só o ouviu dizer tais palavras duas ou três vezes. Uma antes do casamento, porque ela se recusou a desposá-lo a menos que ele dissesse amá-la, uma quando eles tiveram o primeiro filho, e outra quando ele pensou estar morrendo. O idiota julgou ter um tumor na barriga.
— Mas não tinha?
— Não. Ele só precisava de um purgante. — Payton riu, e ela esperou que ele se acalmasse antes de prosseguir. — Não tenho escolha, não é?vou ter de ir ao salão e encarar toda aquela gente?
— Sim, é necessário. Confie em mim, Kirstie. Eles não a condenarão por estar compartilhando minha cama. Não vão nem pensar muito nesse assunto. E quando souberem sobre a batalha que estamos travando, certamente a julgarão quase uma santa.
Kirstie duvidava disso, mas permitiu que Payton a conduzisse ao salão. Todos fizeram a primeira refeição juntos, e depois se reuniram no escritório para uma longa e séria conversa. Gillyanne era aberta e simpática, e seus sorrisos freqüentes fizeram Kirstie pensar em como tantas pessoas podiam aceitar com facilidade o que ela sempre aprendera ser um terrível pecado.
Payton começou a relatar aos parentes tudo que havia acontecido desde o dia em que conhecera Kirstie, tudo que sabia sobre sir Roderick. Callum e Kirstie ouviam em silêncio. Gillyanne se mostrava cada vez mais inquieta, enquanto Connor ia adotando uma expressão sombria, um ar que sugeria fúria contida.
—vou matá-lo por você — ele decidiu ao final do relato. — Posso me aproximar com maior facilidade, porque o homem não sabe quem sou. Sei que gostaria de matá-lo lentamente e causar grande sofrimento. Também posso fazer isso por você.
Kirstie tentou não demonstrar o terror que sentia ao ver um homem aparentemente pacato falar com tanta tranqüilidade sobre matar alguém e causar sofrimento. Sabia que Roderick merecia o pior castigo, mas era assustador descobrir que alguém aparentando tanta serenidade podia ser dominado por arroubos de fúria assassina.
— Faria isso por mim, não é? — Payton perguntou sorrindo.
— Não tenha dúvidas — respondeu Connor. — É dever de um homem proteger seus parentes e todas as crianças. Predadores como sir Roderick devem ser exterminados. E bem devagar. Homens como ele têm medo da morte. No fundo de seus corações negros, eles sabem que não haverá salvação para suas almas. Assim, você os deixa morrer lentamente, deixando-os com muito tempo para desejar a morte e o fim da dor, mas corroídos pelo pavor de morrer. Um tempo em que pensarão em seus pecados e em como terão de pagar por eles. Infelizmente, nem sempre acontece assim. — Ele encolheu os ombros. — Os bastardos costumam morrer depressa.
: Todos pareciam concordar com a colocação. Kirstie também via sentido nas palavras de Connor, embora pensasse não ter o direito de aceitá-las.
Payton beijou-a no rosto, ignorando o rubor constrangido que o cobriu. Depois olhou para Connor.
— No momento, minha maior preocupação é com a família dele. Eles consideram as alegações de Roderick sobre adultério e roubo de sua esposa como uma grave ofensa à honra do clã, e estão ficando irados e ansiosos com sua relutância em agir. Seria melhor se Kirstie e eu nos escondêssemos em algum lugar até que eu possa falar com um deles. Se eu conseguir convencê-los da verdade sobre Roderick, não creio que continuem representando uma ameaça. Na verdade, duvido que continuem firmes na intenção de ajudar Roderick de alguma maneira.
Eles têm sentimentos justos. Precisam saber que esses sentimentos são baseados em mentiras — opinou Connor.
— Não creio que deva esconder-se, primo — Gillyanne interferiu. Seria o mesmo que admitir sua culpa. Sua atitude daria o peso da verdade às palavras de sir Roderick. Os Maclye julgariam ter o direito de caçá-lo. Se insistir em fugir e esconder-se será muito difícil para alguém protegê-lo. Tudo isso só vai colaborar com o plano de sir Roderick para livrar-se de vocês dois.
— Tem razão, mas... o que mais posso fazer? Convidar os Maclye para uma taça de vinho e algumas horas de conversação?
— Exatamente. Uma abordagem ousada, um gesto que os intrigue e os faça pensar que talvez seja inocente.
— Ou que dê a eles a chance de me cortar em pedacinhos sangrentos.
— Payton, Pelo que nos contou até agora, os Maclye parecem ser pessoas sensatas, mas acreditam que a honra de seu nome foi manchada — disse Connor. — A situação é perigosa. E quando começarmos a falar sobre as atrocidades cometidas por sir Roderick, sobre a besta sanguinária que ele é, não há como prever que reação eles terão. Se tentasse me convencer disso a respeito de um de meus parentes, minha primeira resposta seria a de tentar cortar sua língua. Eles podem ser como eu.
— Exatamente — disse Gillyanne. — Por isso os traremos aqui e serviremos um vinho especial misturado a uma poção relaxante. Quando eles adormecerem, nós os amarraremos às cadeiras. Eles terão de ouvi-los sem tentar cortar sua língua. Depois virá o mais difícil. Convencê-los de que está dizendo a verdade.
— Eu posso ajudar nessa parte — disse Callum.
— Não — Kirstie protestou. — Não temos o direito de pedir que...
— Vocês não pediram. Eu me ofereci.
— Nós também queremos ajudar.
Kirstie olhou para as duas pessoas paradas na porta do escritório.
— Michael? Eudard? O que fazem aqui? — Ela viu o irmão se aproximar mancando. — Eudard, sua perna...
— Já está quase curada, apesar da dificuldade para caminhar. Eu teria vindo antes, mas tia Grizel ameaçou amarrar-me à cama.
— Mas eu mandei Michael para informá-lo sobre o que acontecia aqui e escrevi para você...
— Sim, eu sei. Querido Eudard, não se preocupe, eu não me afoguei. Kirstie. Muito convincente.
— Eu estava escrevendo uma carta melhor. Comecei ontem, mas algo me impediu de concluí-la.
— Posso imaginar. Por que não nos apresenta aos seus amigos, e depois discutiremos essa... interferência?
Enquanto Kirstie fazia as apresentações, Payton estudava seu irmão gêmeo. Eles eram muito parecidos, mas Eudard era muito maior que ela. Michael Campbell parecia ter quatorze ou quinze anos, e era alto e magro como a maioria dos rapazes nessa idade. Com cabelos negros, olhos azuis e traços harmoniosos, era do tipo que atrai a atenção perversa de homens como Roderick. Embora fosse velho demais para interessar ao monstro, o homem certamente julgara perigoso matá-lo... ou Michael, ao contrário de Callum, se deixara intimidar, e por isso escapara com vida.
— Ouvi o que planejavam — Eudard contou enquanto se sentava com o grupo —, e Michael me contou algumas coisas que você deixou de revelar, minha irmã. Mesmo assim, gostaria de saber exatamente em que encrenca se meteu desde o dia em que escapou do rio com vida.
Kirstie resumiu todos os incidentes, lutando para ignorar os olhares que o irmão Lançava para Payton.
— enfim, tudo foi muito difícil, mas agora estou bem — ela concluiu.
— Ah, sim, muito bem — ele concordou com sarcasmo. Depois olhou para Payton. — Então, esse o homem irresistível com quem anda traindo o bastardo do seu marido?
— Eudard! Onde ouviu isso? Por Deus, não me diga que as notícias já chegaram à casa de nossa família!
— Não, eu as ouvi em uma taverna. Alguns Maclye falavam sobre você e sobre o que pretendiam fazer com ele. Foi como eu soube onde encontrá-la, algo que também esqueceu de me dizer. É ele?
— Não creio que esse seja o melhor lugar ou o momento oportuno para falarmos sobre esse assunto.
— Como quiser. Não vou embora tão cedo. Podemos conversar mais tarde. — Eudard olhou para Connor. — Vários Maclye estão hospedados na Hawk and Dove. Há outros em uma hospedaria no final da High Street, um lugar marcado com o nome do clã deles.
— Eles não estão na casa de sir Roderick? — Gillyanne estranhou.
— Não. Estranho, não acham? Talvez não tenham de se esforçar tanto para convencê-los de que o bastardo é só uma imundície que deve ser removida de suas botas. É evidente que não existe muita afeição entre esse homem e seus parentes. Os que conversavam na taverna não gostavam dele. Se ele não fosse filho do senhor do clã, duvido que tivesse a ajuda dos outros.
— Agora está nos enchendo de esperança — disse Connor. — Talvez alguns já suspeitem de quem ele realmente é.
— Antes que Payton percebesse, Connor e Gillyanne se retiraram para levar os convites aos Maclye e providenciarem todos os ingredientes para a poção de Gillyanne. Lan levou Callum para mais uma aula de defesa e ataque, e Michael os acompanhou. Kirstie retirou-se com a desculpa de providenciar comida para todos, e Payton ficou sozinho com Eudard.
— Então — Eudard começou —, você é o homem que roubou a esposa de Roderick e a tentou a cometer adultério.
— Ela não é esposa daquele animal. Nunca se deitou com ela, caso não saiba disso. A união nem foi consumada.
— Ah, era o que eu pensava. Por outro lado, você deve ter retificado tão lamentável situação.
— Não quero brigar com o irmão de Kirstie.
— Também não tenho intenção de combatê-lo. Não mais. Quando ouvi toda essa história pela primeira vez, confesso que ansiei por seu sangue. Mas Michael me contou que ela estava viva, e eu, sendo o homem calmo e razoável que sou, limitei-me a bater com minha bengala na cabeça do garoto e exigir toda a história.
Eudard tinha um estranho senso de humor, Payton decidiu.
— Espero que não o tenha acertado com muita força.
— Na verdade, eu nem o acertei. Ele é muito rápido. Depois, Michael contou que não tinha irmãs, e por isso não podia saber como um homem se sentiria ao saber que sua irmã havia sido seduzida por um canalha irresistível. Mas ele também disse que, no caso de Kirstie, era mais importante saber que ela estava viva e protegida, e que a alguém a ajudava na difícil luta contra o bastardo que era seu marido. Como gosto muito de ouvir a verdade, mesmo as mais duras, tentei agredi-lo novamente. Michael fugiu mais uma vez, e então decidi que ele podia estar certo, afinal. Felizmente, minha perna impediu que eu o perseguisse, ou poderia ter machucado o rapaz.
— Certamente.
— E ele já sofreu demais, como Callum.
— Ah, mas Callum agora pode defender-se. Ele tem facas, sabe? Sete. Ele precisa delas para sentir-se seguro.
— Entendo. E minha irmã precisa de você. Fico um pouco ressentido por ela não ter procurado a família, mas entendo sua decisão. Você vive no mundo de Roderick e pode enfrentá-lo de igual para igual. Você a manteve viva, segura, e creio que a fez mais feliz do que ela foi nesses últimos cinco anos. Assim, não, não vai haver lutas ou interferência. Não agora. Mais tarde, se ela sobreviver a tudo isso, mas você a fizer sofrer de alguma forma... Bem, veremos.
— Não posso garantir que ela não vai sofrer, embora não a essa minha intenção. Minha intenção é a mais honrada.
Só quero esperar até que ela não seja mais casada com Roderick para conversar com sua irmã. Quando Kirstie for viúva, então farei dela minha esposa.
— É mais do que justo. Bem, agora posso relaxar e ignorar o que está acontecendo bem diante do meu nariz.
— Espero que consiga convencê-la disso. E na próxima vez em que ela tentar fugir, talvez possa detê-la fazendo-a tropeçar na bengala.
Eudard riu e estendeu a mão. Os dois se levantaram e caminharam juntos para a porta.
— Disse que Lan está ensinando o menino a lutar?
— Sim. Eles estão na adega, se quiser assistir à aula.
— Sim, acho que será interessante. Pode indicar o caminho?
— Certamente, mas antes quero passar pela cozinha e dar um beijo em sua irmã.
— Se não se incomoda, gostaria de ir junto. Não perderia essa cena por nada. Kirstie corando por conta de um beijo? Será uma cena memorável!
Os dois percorreram o corredor rindo como velhos amigos.
— Não acredito que tenha funcionado!
Payton também não acreditava, mas sorriu para Kirstie enquanto os dois, Gillyanne e Callum entravam no salão. O fato de terem aceitado conversar, em vez de simplesmente matá-lo pelo insulto à honra de sua família, provava que talvez pudesse convencê-los da verdade. A menos que ficassem muito furiosos com o truque de que haviam sido vítimas, ele pensou, olhando para os seis homens inconscientes.
— Seis? — Gillyanne perguntou surpresa.
— Oito — corrigiu Connor, que entrava carregando um Maclye inconsciente. Lan o seguia com outro deles.
— Você os feriu gravemente?
— Não muito, esposa.
— Eles pensavam ter me encurralado depois de passarem por Malkie, Donald e Angus — explicou Lan —, mas Connor aproximou-se por trás e bateu a cabeça de um na do outro.
— A simplicidade é sempre a melhor solução — Payton murmurou. — Onde estão Eudard e Michael?
— Aqui — disse Eudard, que entrava no salão acompanhado por Malkie e Michael. — Oito deles?
— Oito, por enquanto. — Payton notou que Callum se sentava diante dos homens inconscientes e amarrados. — Tem certeza do que vai fazer?
— Certeza absoluta. Você e Kirstie estão lutando por mim e pelas outras crianças. Arriscaram suas vidas e seus bons nomes. Agora seus parentes também estão se envolvendo na luta. Se contar o que aconteceu comigo e tudo que sei puder ser útil de alguma forma, não hesitarei em falar.
— E ninguém aqui vai sair contando o que ouvir — acrescentou Michael. — Isso precisa acabar.
— E vai acabar — Payton garantiu.
Quando Alice apareceu para servir a comida e mais vinho, o primeiro Maclye estava despertando. Minutos depois, todos estavam acordados e perplexos.
— Viemos dispostos a conversar — rosnou o mais velho deles, sir Keith.
— Oh, sim, e depois pretendiam cortá-lo em pedaços — Kirstie acusou séria.
— E você, esposa de nosso parente, ousa fornicar com outro diante dos nossos olhos!
— Não estamos fornicando! Queremos apenas ficar vivos, tio!
— Tio? — repetiu Payton.
— Sim, sir Keith é tio de Roderick, e ao lado dele está Tomas, seu filho. Ali, à esquerda, sir Thomas, outro tio, e seu primogênito, William. Do outro lado da mesa estão quatro irmãos de Roderick, sir Andrew, sir Brian, sir Adam e sir Ross. É evidente que o clã de meu marido dá mais importância à honra do nome do que Roderick jamais deu.
— E muito mais do que a prostituta com quem ele se casou.
— Ai! — Sir Keith olhou para trás e se deparou com connor, que o atingira na cabeça com os nós dos dedos.. — A mulher está aqui com o belo idiota. Todos na corte não falam de outra coisa. Espera que nos limitemos a sorrir e desejar felicidades ao casal?
— Lady Kirstie não me procurou por minha beleza ou pelos rumores que me enaltecem como amante — Payton explicou.
— Ela buscava alguém que pudesse ajudá-la depois de o marido ter tentado afogá-la.
Houve um silêncio pesado na sala, e foi a voz de Kirstie que o rompeu.
— Gostaria de saber se estão quietos por julgarem Roderick capaz de uma tentativa de assassinato, ou por acreditarem que posso levar um homem a esse extremo de loucura.
Gillyanne riu. Payton silenciou-as com o olhar.
— Agora, se os cavalheiros prometerem que vão se comportar e ouvir o que temos a dizer, nós os desamarraremos — ele disse. — Já é hora de conhecerem a verdade.
— Certo. — Sir Keith falou pelo grupo. — Não lutaremos hoje. Que verdade é essa de que quer falar?
Os Maclye foram desamarrados e se serviram da comida e do vinho deixados sobre a mesa.
— Roderick tentou matar sua esposa — Payton respondeu.
— Ele a jogou no rio. O homem ignorava que ela sabia nadar.
— É típico do idiota — concordou sir Keith. — De qualquer maneira, qualquer mulher correria para a família ou para um convento depois de escapar de uma tentativa de assassinato, mas ela o procurou. Por quê?
— Eu estava mais perto. Lady Kirstie já procurava um defensor quando o marido a jogou no rio. Eu fui o escolhido por ter a reputação de defender os mais fracos, os oprimidos e as causas justas.
— Mas... por que ela precisava de um defensor antes mesmo da tentativa de homicídio?
— Porque ela havia descoberto coisas... Fatos que justificavam os cinco anos de casamento sem a consumação da união.
— Ah! — Sir Andrew exclamou exaltado. — Eu já imaginava. Ele gosta de homens, não é?
— Lady Kirstie não teria se importado com isso.
— Não. Eu teria encontrado uma forma de encerrar o casamento sem causar alarde — ela concordou.
— Mas o segredo de seu marido é muito mais grave — Payton continuou. — Ele não sente atração por homens, mas por crianças. — Ele esperou paciente que a onda de protestos perdesse a intensidade inicial. Depois argumentou: — Cavalheiros, todos nós sabemos que tais demônios existem. Não vamos banilos do mundo ignorando-os ou negando sua existência.
— Essa é uma acusação grave — protestou sir Keith. — Por que ouviríamos o que está nos dizendo?
— Porque digo a verdade.
— Não acredito nisso — decidiu sir Andrew.
A veemência da negativa sugeria que o homem tentava convencer-se das próprias palavras. Havia imaginado que talvez pudesse poupar Callum e Michael de expor em público o que consideravam uma vergonha, mas a situação atingia um ponto crítico. Era hora de apresentar provas contundentes.
Payton olhou para Callum, que respirou fundo.
— Eu tenho algo a dizer, cavalheiros. — Ele se levantou.
— Quem é você? — quis saber sir Keith.
— Ninguém importante. Apenas um dos miseráveis que perambulam pelas ruas e pelos becos de uma cidade tentando encontrar o suficiente para sobreviver mais um dia. Um daqueles meninos que vocês, elegantes cavalheiros, chutam para o lado quando encontram em seus caminhos. E foi assim que sir Roderick me encontrou. Da mesma forma que encontra a maioria de suas vítimas. Duvidei de suas promessas de uma vida melhor, mas ele me arrastou para sua casa. Logo descobri que estava certo em duvidar de sua palavra. — Callum relatou esse sombrio período de sua vida com tom desprovido de emoção, usando uma linguagem clara e até um pouco vulgar, como é comum entre as crianças criadas na rua.
Kirstie segurava a mão dele. Sentia o coração sangrar ao ouvir tudo que havia acontecido com Callum e com as outras crianças, meninos e meninas que ele vira chegar e desaparecer, mesmo já tendo imaginado boa parte do que escutava. Gillyanne chorava, e ela tinha dificuldades para conter o pranto. Os Maclye ouviam em silêncio, atônitos. Alguns estavam pálidos, outros pareciam a um passo das lágrimas.
— Admiro sua coragem, rapaz — Payton disse em voz alta quando Callum sentou-se, encerrando a narrativa de horrores.
— ainda tento me convencer de que não devo sentir vergonha. É o que todos me dizem, e procuro acreditar nisso.
— Deve acreditar nisso, porque é verdade — Payton afirmou.
— Você não era um menino das ruas — sir Keith opinou ao ver Michael levantar-se.
— Não, senhor. Sou o quarto filho de sir Ronald Campbell, senhor de Dunspeen, uma propriedade pequena e pobre.
— Por Deus! Também os filhos dos senhores?
— Não foram muitos — Michael revelou. — E foram ainda menos os de famílias de grande projeção social. O grande escudo protetor do bastardo é nossa vergonha é nosso medo. Sinto-me prestes a vomitar quando penso em contar tudo que sofri, vi e ouvi, mesmo sendo um pouco velho para ele. No entanto, quando encontro as crianças que lady Kirstie salvou, tenho certeza de que isso nunca vai acabar, a menos que alguém fale. O silêncio pode salvar meu orgulho e preservar minha honra, mas permite que o desgraçado continue soltando seus demônios sobre seres inocentes.
— Sente-se, rapaz. Não precisa dizer mais nada. O menino Callum já revelou mais do que precisávamos saber. Mais do que qualquer homem deseja saber.
— Então acredita em nós? Já imaginava o tipo de homem que abrigam em seu clã?
— Confesso que esperávamos alguns segredos sombrios, mas isso é algo que ninguém quer aceitar. No entanto, nunca um de nós deixou um filho aos cuidados daquele infeliz. E se ele conseguia apoderar-se de um ou outro menino em nossas terras, ninguém jamais falava sobre o assunto. Ou as crianças morriam... — confessou constrangido o visitante, lembrando todas as mortes supostamente naturais, embora tristes, de meninos abrigados nas inúmeras propriedades da família. — E agora?
— Ele está morto para nós — decretou sir Keith. Os outros Maclye concordaram, inclusive os irmãos de Roderick.
— Vão anunciar tal decisão?
— Sim, mas não o que a motivou, se pudermos evitar. Os rumores já começaram, e suspeito de que você os tenha plantado na corte. Quando for conhecido que expulsamos Roderick do clã, muitos deduzirão que os boatos correspondem à verdade. E você o matará.
— Exatamente. Pretendo pôr fim à vida e às atrocidades desse verme.
— Bem, foi um encontro desagradável — Eudard opinou depois da partida dos Maclye.
— Concordo — disse Payton. — Muitas famílias podem contar um ou dois galhos podres em suas árvores, mas não é comum haver um animal como Roderick, graças a Deus. Agora eles temerão a existência de sangue ruim em sua linhagem. Espero que não se atenham a essa tolice por muito tempo. E, Callum, quero que saiba que me orgulho de sua coragem. E da sua também, Michael.
Callum encolheu os ombros.
— Sei que ninguém vai repetir o que ouviu aqui.
— Esperava que eles reclamassem o direito de exterminar Roderick — disse Kirstie.
— É claro que não querem sujar as mãos com sangue de um parente tão próximo. E fico feliz com isso, porque esse direito é nosso.
Kirstie estava aliviada, embora se sentisse triste pelos Maclye, homens bons e justos cujo nome havia sido manchado pela conduta doente de Roderick. Agora ele era o único com quem tinham de preocupar-se. Roderick e os homens que ainda insistiam em apoiá-lo. Sabia que, quando os Maclys anunciassem a exclusão de Roderick de seu clã, todos deduziriam que Payton Murray era inocente das acusações contra ele feitas. A culpa os faria abandonar o verdadeiro culpado, o que deixaria o caminho livre para um confronto direto entre os dois homens. Payton e Roderick. Sabia que não seria fácil, mas confiava na superioridade de Payton. Seu nome seria limpo de toda culpa, como o dela, e o mundo ficaria livre de um monstro.
— Gilly e eu iremos à corte — disse Connor. — Seremos seus olhos e ouvidos por lá. Precisa saber quando o caminho vai estar livre para poder agir e confrontar o bastardo. Até lá, continue aqui, quieto e bem protegido. Em breve brindaremos à vitória.
— Que seja logo — Payton suspirou cansado.
Mais tarde, quando estava no quarto com Payton, Kirstie voltou a pensar em pecado e vergonha. Como se pudesse ler seus pensamentos, ele a abraçou e disse:
— Quando vai parar de se preocupar com essas bobagens? Pecado, adultério...
— sou uma mulher casada. Se me deito com outro homem, estou cometendo adultério.
— Você se casou, é verdade, mas a união nunca foi consumada. Você não é e nunca foi esposa de Roderick. É minha amante, minha camarada de armas, minha mulher. Minha...
— Sim, por enquanto sou sua. — Era horrível pensar que seu tempo com Payton terminaria, ou porque Roderick os venceria, ou porque o fim da batalha e a vitória despertariam em Payton a necessidade de buscar novos horizontes... e novas mulheres.
Payton decidiu que esse não era o melhor momento para anunciar sua intenção de tê-la para sempre a seu lado. Afinal, Kirstie ainda era esposa de Roderick, mesmo a união não tendo sido consumada, e a lei dos homens assegurava os direitos do bastardo. Sabia que, por mais belas que fossem suas juras de fidelidade e amor eterno, por mais promessas doces que fizesse nesse momento, Kirstie não acreditaria em nada. Precisava esperar até poder fazer dela sua esposa.
Kirstie olhou pela janela do quarto das crianças e tentou imaginar o tamanho da família de Payton. Há uma semana os Maclye haviam estado ali conversando, e três dias depois o primeiro Murray aparecera, seguido de perto por uma horda de parentes. Payton fazia questão de apresentá-la a todos, mas Kirstie não sabia por quê. Muitos reagiam surpresos com sua presença, o que, de certa forma, confirmava os rumores sobre nenhuma mulher jamais ter sido convidada a estar na casa dele. Muitos ficavam apenas o suficiente para saber como era a aparência de Roderick, quantos homens estavam com ele, e onde deviam procurá-lo.
.Roderick estava escondido. Os Maclye não só o haviam abandonado, como o deserdaram e tiraram dele as terras, sua fonte de riqueza, e boa parte de seu pequeno exército de serviçais. Agora ele era um homem falido. O clã o abandonara publicamente e, como era esperado, no momento em que a decisão da família se tornara conhecida, todos os terríveis rumores sobre Roderick foram vistos como verdadeiros, e ele se vira banido também da sociedade local. Homens que suspeitavam ou tinham certeza de alguma violência por ele praticada contra seus filhos também o caçavam, ansiosos por fazê-lo pagar por um insulto que nem desejavam discutir, mas que era conhecido de todos.
Era estranho, quase hilário, mas Payton agora era considerado um herói, quase um santo que arriscara a vida e seu bom nome para proteger as crianças. Havia uma grande dose de verdade nisso, mas, colocada em termos tão exagerados e floridos, a versão popular convidava o ridículo.
— Payton tem uma família muito grande — Callum comentou com tom invejoso.
— Nem todos são parentes de sangue — disse Michael. — No entanto, parece que isso não faz diferença. — O rapaz olhou para Kirstie. — Por isso o escolheu, não é? Sabia que a família dele correria em seu socorro.
Kirstie assentiu.
— Sim, essa foi uma das razões. Sabia que a família Murray era numerosa e que um forte laço de afeto unia até os mais distantes. Confesso, no entanto, que não sabia que seria assim. Agora entendo porque os Maclye hesitaram antes do confronto direto. Eles tinham a dimensão do problema que enfrentariam.
— Problema que agora Roderick está enfrentando sozinho. O bastardo não vai encontrar um esconderijo bom o bastante para ocultá-lo para sempre.
— Não. Em pouco tempo tudo terá terminado. Rezo para que nada de mal ocorra conosco ou com aqueles que nos ajudam.
— Ah, aí estão — disse Gillyanne ao entrar no quarto. — Kirstie, Payton solicita sua presença no escritório.
— Bem, pelo menos posso ter certeza de que não vou ouvir outro sermão.
Gilly riu.
— Ele também quer ver você, Callum.
— Por quê? Ele quer me apresentar aos parentes?
— Sim, aos MacMilLans. — Gillyanne sorriu para Kirstie antes de abraçar o menino. — Ah, isso é muito bom, rapaz. Lute contra esses sentimentos sombrios e feios. Não deixe o bastardo roubar de você a alegria de um toque amigo ou de um abraço amoroso. Se der as costas para essas coisas, nunca sentirá nada além do frio. Bem, não demorem — ela sugeriu a caminho da porta. — Michael, por que não vem comigo?
Assim que os dois saíram, Callum olhou para Kirstie.
— Ela sempre faz isso.
— Isso o quê?
— Vive me abraçando e dizendo coisas estranhas. É quase como se pudesse ver dentro do coração de uma pessoa. Sei que guardo maus sentimentos, mas eu os mantenho escondidos, porque não gosto deles.
— Mas lady Gillyanne pode enxergá-los?
— Sim, e sabe que quero me livrar deles. Acha que ela é uma bruxa?
— Oh, não... — Kirstie o conduziu escada a baixo a caminho do escritório. — Ela apenas... sabe algumas coisas, conhece os sentimentos humanos. Nem todos eles, não o tempo todo. Isso o incomoda? Quer que eu fale com ela?
— Não. Reconheço que fico um pouco incomodado, mas acho que tudo isso pode ser bom para mim. Não gosto desses sentimentos, mas não estou conseguindo me livrar deles. Apenas os escondo. Quando ela diz essas coisas, penso neles por algum tempo, e descubro que alguns desses sentimentos estão mais fracos. Talvez seja porque ela os vê e fala sobre eles.
— Sim, conversar e encarar um problema de frente pode ser útil. E é bom ter alguém com quem contar. Depois de todas as conversas com lady Gillyanne, talvez consiga se livrar desses sentimentos tão sombrios sozinho. Não faz muito tempo que você está seguro e livre, Callum. As feridas levam algum tempo para cicatrizar, e as do coração são ainda mais demoradas. Você vai ter de curá-las. As pessoas que o amam podem ajudá-lo, e acho que agora sabe que está cercado de muitas delas.
— Sim, eu sei.
— Que bom. Quando esses sentimentos tentarem dominá-lo, lembre-se do que falamos aqui. Lembre-se sempre dessa nossa conversa.
— Eu vou lembrar.
— Confie em mim. Conhecer a verdade e lidar com ela sem medo é sempre o melhor remédio. Agora, vamos ver o que deseja o grande senhor — ela disse com ironia debochada.
Assim que entraram no escritório, uma exclamação sufocada chamou a atenção de Kirstie. Um homem alto, de cabelos castanhos e porte muito altivo agarrava-se ao espaldar de uma cadeira, seu rosto pálido reveLando choque. Ela olhou para os outros dois convidados com Payton e Lan, reconhecendo imediatamente o menino que confundira com Callum, e ouviu Payton apresentá-lo como seu primo Uven. Havia realmente uma enorme semelhança entre todos da família. O outro homem na sala também era belo, embora um pouco mais velho que os outros, e seus cabelos tinham um tom avermelhado mais intenso. Ele oscilava entre a preocupação com o homem que se mostrava tão pálido e uma alegria que parecia estar relacionada a Callum.
Callum também estava pálido, e ele olhava para o menino Uven como se visse um fantasma, um olhar que Uven retribuía com exatidão.
Callum agarrou a mão de Kirstie e apertou-a com força, mesmo quando Payton levantou-se para acomodá-los em duas cadeiras próximas.
— Cavalheiros, quero que conheçam lady Kirstie Maclye e Callum, esse belo garoto. — Enquanto fazia as apresentações, Payton servia uma taça de vinho ao homem que ainda reagia com espanto. — Kirstie, Callum, permitam-me apresentá-los a sir Bryan MacMilLan, Uven MacMilLan e sir Euan MacMilLan. Pelo que vejo no rosto de Callum, ele já compreendeu o que está acontecendo aqui.
— Eu... Uven é parecido comigo. Ele não é... meu irmão, é?
— Não, mas suspeito de que seja seu primo. — Payton olhou para sir Euan. — O que me diz disso?
Sir Euan assentiu, bebeu um gole do vinho e sentou-se na cadeira cujo espaldar usara como apoio.
— Eles são primos — disse. — Quando soube sobre o menino, fiz algumas investigações e descobri dados que comprovam o parentesco. A mãe dele, a cidade, o tempo, o nome...
Bryan me ajudou descobrindo que eu havia sido enganado, que a mulher e a criança não morreram no parto, conforme me informaram. Sim, foi difícil acreditar, mas agora... — Ele olhou para Callum. — Jesus, é como estar diante de Innes.
— Quem é Innes?
— Seu pai — respondeu sir Euan. — Sua mãe era...
— Joan, a filha mais nova do criador de porcos. — Callum encolheu os ombros diante dos olhares surpresos de Kirstie e Payton. — Eu sempre soube quem era minha mãe, mas ela morreu quando eu tinha três anos.
— Fui informado de que ela havia morrido grávida, levando para o túmulo o bebê que esperava.
— Não. Ela teve uma febre e foi para a casa do pai. Certa de que estava morrendo, ela queria que meu avô cuidasse de mim, mas ele nos expulsou. Disse que não desperdiçaria a ração dos porcos com uma prostituta e seu filho bastardo. Ele nos jogou para fora de sua minúscula propriedade, e minha mãe estava quase morta quando encontramos a casa da irmã dela. Minha tia também não nos quis. Lembro-me de minha mãe dizendo que poderia plantar a semente da vergonha no coração da irmã, caso morresse em sua soleira. Então ela teria de cuidar de mim. Minha mãe morreu ali mesmo. Minha tia não cuidou de mim. Quando a carroça levou o corpo de minha mãe, eu a segui e marquei o local onde ela estava enterrada para poder encontrá-la novamente.
— E depois disso, o que fez?
— Vivi perambuLando pela cidade por algum tempo. Depois, quando completei sete anos, fui levado para Thanescarr.
— Sabe quando faz aniversário?
— Sim. Nasci em quinze de maio de 1455. Minha mãe me contou que foi exatamente uma semana antes do velho Padre James falecer. Fui o último bebê que ele batizou. Isso me ajuda a lembrar, porque só preciso perguntar para alguém há quanto tempo morreu o Padre James.
— Isso também se encaixa. O criador de porcos me disse que você e sua mãe estavam mortos. Não gostei do jeito daquele homem, mas não consegui pensar em nada que pudesse justificar aquela mentira. Foi Bryan quem localizou a irmã de Joan e finalmente descobriu a verdade. Eles o deixaram nas ruas?
— Sim. Não queriam um bastardo. Então, sabe quem é meu pai?
— Sim, eu sei. Sir Innes MacMilLan. Ele voltou para casa no final de um verão há doze anos, disposto a dizer ao pai sobre a jovem com quem pretendia se casar. Infelizmente, foi atacado por ladrões e abandonado na estrada. Innes conseguiu se arrastar até sua casa, mas logo todos compreenderam que ele estava morrendo. Febril como estava, ele ainda conseguiu contar algumas coisas sobre sua mãe. Jurei que a encontraria e cuidaria dela. Isso deu paz ao moribundo, mas não fui capaz de cumprir minha promessa. O inverno chegou rigoroso, e só pude partir para encontrar Joan um ano depois. Foi um duro golpe saber que ela havia morrido, e pior ainda saber que o filho de Innes havia perecido com ela. Innes era o único filho vivo de sir Gavin MacMilLan de Whytemont, e o pobre homem ficou devastado quando recebeu a dura notícia. Mas agora posso ir informá-lo da existência de um neto, filho de Innes.
— Um bastardo.
— Não. Foi um casamento apressado, certamente, mas você nasceu um ano mais tarde. Tenho os documentos que comprovam o que digo. Um acordo nupcial assinado pelos dois e por duas testemunhas, o que vale como um casamento, embora não seja exatamente legal, e as datas de seu nascimento e do batizado. Sei que alguns dirão que não foi um casamento abençoado por um padre, mas você não é um bastardo. E não teria importância se fosse. Sair Gavin não se incomodaria com isso.
— Está dizendo que deseja levá-lo a Whytemont, para sir Gavin? — perguntou Payton.
— Exatamente. Ele é herdeiro de sir Gavin. O único.
Payton olhou para o menino e viu o medo e a incerteza em seus olhos.
— O que acha disso, Callum?
— Eu... Ah... Existem coisas ruins em minha história, fatos que...
— Não — sir Euan o interrompeu. — As coisas ruins pertencem a sir Roderick, não a você. Você era uma criança sem ninguém para protegê-lo. Ainda é, embora agora tenha alguns protetores. Não deixe que o passado o impeça de tomar posse do que é seu por direito. Conheço toda a história, como sir Bryan, e sir Gavin também saberá da verdade, mas não diremos nada a mais ninguém, se assim preferir. No entanto, as notícias sobre sir Roderick já se espalharam por muitos quilômetros e em todas as direções, e não posso prometer que seu segredo será guardado para sempre e por todos. Poucas coisas se mantêm ocultas eternamente.
Callum assentiu.
— eu sei disso. E não tem importância, se com tudo isso alguém puder pôr um fim na vida daquele homem.
— Exatamente. E não precisamos partir agora. Também quero testemunhar o fim dessa bárbara história. Assim, você vai ter tempo para pensar. Se ainda se sentir inseguro, sir Gavin certamente estará disposto a vir até aqui. Pode refletir quanto julgar necessário.
Kirstie estava emocionada. Sabia que Callum se sentia inseguro agora, pois temia ser removido da estranha família que se formara na casa de Payton, mas logo aceitaria o presente que recebia da sorte.
Callum e Uven foram convidados por Lan a saírem e tentarem alguns tiros com as facas, e os adultos puderam conversar melhor sem a presença dos pequenos curiosos. Aproveitando o ultraje de sir Bryan, Payton começou a falar sobre a casa dos Darrochs e como crianças ali abrigadas, supostamente cuidadas, alimentadas e protegidas, sofriam abusos de todos os tipos e eram exploradas. Enquanto Bryan prometia agir contra o nefasto abrigo, Kirstie pediu licença para sair e foi seguida por sir Euan. O homem parecia tão sério, que ela começou a se sentir nervosa.
— Gostaria de falar com você sobre Callum — ele anunciou sem rodeios.
— ele é um bom menino, senhor.
— Um excelente menino. Melhor do que eu esperava. Innes ficaria orgulhoso.
— Tem algum laço de parentesco com Callum?
— Sou apenas um primo, mas Innes e eu éramos como irmãos. Ele foi meu melhor amigo, e ainda sinto sua falta. Posso ver meu amigo revivido no rosto daquele garoto, entende? Será uma honra ajudar sir Gavin a terminar de criá-lo. Esteja certa de que o menino será amado, minha lady. Não se preocupe. Ele será a continuação desse pequeno ramo do clã MacMilLan.
Kirstie sorriu.
— Uma herança que o ajudará a recuperar o orgulho que não devia ter sido arrancado dele.
— Exatamente. Pode me contar algumas coisas sobre ele, detalhes que possam me ajudar numa aproximação, talvez, ou que me impeçam de cometer um erro qualquer que possa afastá-lo de nós? Odiaria ser causa de algum sofrimento para Callum, mesmo não tendo essa intenção.
— Admiro sua boa intenção, senhor, e estou pronta para ajudá-lo no que for possível. Venha comigo. Podemos conversar no jardim, onde não seremos interrompidos.
Payton aproximou-se do casal sentado em um banco do jardim e franziu a testa. Eles formavam uma imagem tão perfeita, que era difícil conter o ímpeto de esmurrar sir Euan MacmilLan até arruinar sua maldita beleza.
— Ciúme?
O pensamento o intrigou.
Sim, estava tomado por um ciúme cego. Não gostava de ver Kirstie tão perto de outro homem. Ela era dele. Não suportava a idéia de outro homem tocando a mulher por quem ardia. A emoção era nova, desconhecida e, por isso mesmo, assustadora.
Ele respirou fundo para acalmar-se, dizendo a si mesmo que não tinha o direito de insultá-los com suspeitas infundadas, e decidiu abordá-los com delicadeza e cavalheirismo, deixando bem claro, no entanto, que aquela mulher já pertencia a um homem. Ele.
Kirstie sorriu ao vê-lo. Ela corou ao sentir os dedos em seus cabelos, mas já começava a se habituar com os toques carinhosos em situações pouco privadas.
— Bem, sou grato por ter me contado tantas coisas sobre Callum — sir Euan disse ao levantar-se. Ele levou a mão delicada aos lábios e beijou-a como forma de despedida. — Transmitirei a sir Gavin tudo que acabei de ouvir.
— Acabamos de decidir que talvez seja melhor sir Gavin vir até aqui para conhecer Callum — ela contou a Payton. — Espero que concorde.
— Sim, é claro que isso ajudaria o garoto a aceitar sua nova situação. Ele se sentirá mais seguro aqui. É melhor do que levá-lo a um lugar desconhecido para apresentá-lo a um homem estranho.
Euan o encarou sorridente, um sinal claro de que recebera e compreendera sua mensagem silenciosa, uma firme declaração de posse bastante conhecida entre os homens.
— Suponho que queira partir com os outros?
— Ah, sim. Sir Bryan deve estar pronto para partir.
— Ele está, mas Uven reluta. Euan sorriu.
— Ótimo. Isso significa que Callum já aceitou um MacMilLan como parente e foi aceito por ele. É um começo. — Ele se curvou para Kirstie. — Minha lady — disse. Depois piscou para Payton. — Devo dizer que, para um homem que não parecia muito inclinado a certas coisas, você se deu bem. Não tinha nenhum problema para compreendê-lo. Pena ter escolhido esse momento em particular, mas isso também é algo que posso entender. Tenha um bom dia.
— O que ele estava dizendo? — Kirstie perguntou assim que ficou sozinha com Payton.
— Ele me cumprimentava pelo senso de responsabilidade. Vinho?
— Sim, Alice trouxe uma garrafa para nós, imaginando que a conversa seria longa. E está quente aqui.
— Tem razão. Por que não buscamos o frescor de meu quarto e deixamos o calor brotar apenas de nossos corpos nus?
— Payton! Você está se tornando escandaloso.
— Prepare-se, minha querida, porque você ainda não viu nem o começo de todo o escândalo.
Payton caminhava pelo jardim e pensava em como seria doce o momento de propor casamento a Kirstie, quando sentiu algo roçar seu pescoço. Um galho que pendia de uma árvore, talvez. Ele levou a mão às costas, tentando identificar o objeto, e foi nesse momento que o sentiu envolvendo seu pescoço. Uma corda.
Antes que pudesse livrar-se dela, a corda o puxou contra o muro, e ele se deu conta de que havia sido capturado dentro de sua própria casa. Seus atacantes o içavam como se fosse um boneco, e a falta de ar o fez perder a consciência.
Quando despertou, mais tarde, Payton sentiu todo o corpo doer e compreendeu que estava sobre a sela de um cavalo, deitado de barriga para baixo atrás de um homem. Devagar, respirou fundo para certificar-se de que podia se mover, apesar da dor, e atacou o cavaleiro, derrubando-o com um violento soco na cabeça.
Foi difícil dominar o animal, e quando conseguiu sentar-se sobre a sela e segurar as rédeas, ele foi novamente atingido por um golpe feroz, dessa vez nas costas, e foi atirado ao chão.
Segundos depois alguém o punha em pé e removia a faca de suas costas, provocando uma dor que acabaria por matá-lo.
— Wattie, podia tê-lo matado! — Gib censurou o comparsa. — Pensando bem, acho que o matou — ele se corrigiu, notando que Wattie sustentava um corpo inerte.
— Não matei, mas que importância teria? Ele vai morrer de qualquer maneira.
— sim, mas antes pode ser usado como refém — sir Roderick anunciou ao aproximar-se dos dois. — Especialmente agora, que não está em condições de lutar.
— Ele matou Ranald. Quebrou o pescoço do homem quando o jogou do cavalo — Gib lamentou. — Agora só temos cinco homens.
— O suficiente.
— Cem mil não seriam suficientes para mantê-lo em segurança, seu porco pervertido — Payton sussurrou. — Meus parentes virão buscá-lo.
— Sim, eu vi todos os belíssimos Murray passeando pela propriedade. Eles ainda não me encontraram, não é? E nem me encontrarão. Assim que me der por satisfeito com a doce vingança que planejo realizar, acabarei com sua vida, com a de minha esposa, e irei para a França.
— Tenho parentes lá também.
— E inimigos ferozes, pelo que sei. Talvez eu deva unir forças com eles.
Pior era saber que seria usado para atrair Kirstie para uma armadilha. Sabia que mal se agüentaria vivo até a chegada do socorro, mas esperava ter forças para se afastar do campo de batalha e, assim, não atrapalhar aqueles que viriam em sua defesa. Não era muito, certamente não era glorioso ou heróico, mas faria o melhor que pudesse.
— Se fosse realmente esperto, Roderick, já teria escapado para a França — ele disse. — Talvez pudesse gozar de mais alguns meses de vida.
— E deixá-lo se fartando com aquela prostituta que desposei? Não. Mesmo não tendo nenhum interesse nela...
— Sim — concordou Gib. — Não se interessa por ela, mas nós nos interessamos. Seria bom poder sentir aquela carne macia me apertando, recebendo meu membro...
— E eu estaria esperando para me divertir com ela — acrescentou Wattie.
Payton estranhou a súbita mudança no tom da conversa e levantou a cabeça. Surpreso, ele viu que Roderick estava pálido, como se sofresse algum mal súbito, e que Gib e Wattie sorriam enquanto o provocavam descrevendo cenas da mais pura pornografia.
— Acho que seria bom saber se ela tem o mesmo sabor de sua mãe. Se quiser, posso lhe contar depois e...
A rapidez com que Roderick puxou a espada e apertou-a contra o pescoço de Wattie confirmou as suspeitas de Payton. Havia ali um segredo terrível, algo que justificava o profundo desgosto de Roderick pelo sexo com as mulheres, um segredo que Gib e Wattie conheciam e de que se valiam para obter regalias.
— Pare com isso, Roderick — Gib exigiu sério. — Não pode matar Wattie.
— E por que não? Eu posso, se quiser.
— Não. Ele é um idiota que não sabe manter a boca fechada, mas você precisa dele. Precisamos de toda a ajuda para chegarmos inteiros na França, não? Agora, vamos esquecer tudo isso e sair daqui. Temos um resgate a pedir. — Gib respirou aliviado ao ver que Roderick embainhava a espada. — Devemos amarrá-lo? — ele indagou, referindo-se a Payton.
— Sim, providencie as cordas. E enquanto você o amarra, tomarei providências para que ele não possa criar mais problemas.
Payton viu a bota vindo em sua direção, mas não pôde esquivar-se. A força do chute o deixou estendido no chão. Quando abriu os olhos pela última vez antes de perder a consciência, Payton teve a impressão de ver Callum escondido entre os galhos de uma árvore.
— Roderick o pegou! — Callum exclamou aflito ao entrar no salão.
Kirstie sentiu o chão desaparecer sob seus pés. Vários integrantes da família Murray começaram a falar ao mesmo tempo, e dois deles socorreram o pobre menino, que parecia prestes a desmaiar. Era evidente que ele falava de Payton, único ausente na reunião.
— Por favor, explique-se, rapaz — pediu sir Euan.
— Fui ao jardim para conversar com sir Payton, e subi em uma árvore para encontrá-lo mais facilmente. Ainda estava sobre um galho, quando vi a corda cair da muralha e enlaçar o pescoço de sir Payton. Eles o içaram, bateram nele e o jogaram sobre um cavalo. Depois partiram a galope. Consegui segui-los, porque usei um dos cavalos do estábulo, e depois, quando eles reduziram a velocidade, desmontei e continuei atrás deles, porém usando o esconderijo da vegetação e das árvores. Na última vez em que o vi, ele ainda estava vivo.
— A trilha é clara? — Lan perguntou com tom feroz.
— Sim. Eles não estão tentando escondê-la.
— Ótimo. Não podemos perder tempo.
— Tempo? Não temos tempo, Lan! — Kirstie exclamou desesperada.
— Ah, sim, nós temos. O homem é doente. Não consegue dar as costas para uma vida de crimes e crueldade, e agora quer que você e Payton sofram. Ele vai voltar, pode ter certeza disso. Temos de fazê-lo acreditar que vai conseguir o que quer, depois surpreendê-lo e resgatar todos os nossos. Cavalheiros, temos de traçar um plano. Depressa!
Kirstie procurou lembrar as últimas palavras de Gillyanne enquanto cavalgava para o local determinado por Roderick. A mulher tinha presságios, e ela havia dito que não devia ter medo, porque tudo acabaria bem. E se Gillyanne dissera...
Não sabia ao certo qual era o plano do clã Murray, mas sabia que ela e Payton seriam observados e, posteriormente, resgatados. Roderick não a mataria de imediato, porque antes se jubilaria de tê-la feito cativa novamente. E esse seria seu fim.
No momento em que entrou no pequeno nicho onde Roderick a esperava, ela teve as rédeas do cavalo arrancadas de sua mão pelo odioso Wattie. Gib a puxou da sela e a arrastou até Roderick. Os três examinaram a bolsa que ela levara presa ao cavalo. Havia muito dinheiro para brilhar ao sol, mas, sob as moedas, havia apenas pedras do jardim de Payton.
— Bem, parece que sua ligação com o idiota me rendeu mais do que simples humilhação. Ele não é mais tão belo, sabe? — Roderick riu, apontando para Payton.
Era difícil não correr para perto dele. Havia sangue em sua camisa e marcas profundas em seu pescoço. Os hematomas podiam ser vistos em todas as partes expostas de seu corpo.
Havia esperança e medo nos olhos dele, uma mistura que a tocou profundamente.
— Já tem seu dinheiro — Kirstie disse com tom frio, cravando os olhos em Roderick como quem olha para um verme. — Agora pode libertá-lo.
— Ah, eu posso? Quanta generosidade sua. Não pode estar pensando que vai sair daqui viva.
— Não. Foi tolice acreditar que honraria sua palavra como um verdadeiro cavalheiro.
Roderick acertou um soco em seu rosto, jogando-a de joelhos no chão. Ela se levantou depressa, odiando a idéia de sucumbir diante do monstro. Payton se debatia contra as cordas, ansioso para pôr as mãos em Roderick e fazê-lo pagar pela brutalidade.
— Galante como sempre — Kirstie murmurou com desdém.
— Galante? Eu? com uma prostituta vulgar? — Roderick gargalhou. — De virgem a vadia em menos de um mês. Você sempre foi rápida, não? Pensando bem, acho que posso lhe dar uma lição bem interessante, também. Não me interesso por mulheres, mas algumas coisas me dão prazer independente do parceiro com quem as pratico.
Kirstie viu o ar de luxúria nos rostos de Gib e Wattie e sentiu nojo. Não permitiria que Roderick arruinasse sua paixão recém-descoberta com aquela conversa ridícula, baixa e repugnante.
— Lamento desapontá-lo, meu caro... marido, mas só me interesso por homens de verdade. E só bebo dos mais finos vinhos. Se tenho de ter algo entre as pernas, que seja ao menos algo grande o bastante para que eu possa percebê-lo. Não é o seu caso, pelo que ouvi dizer por aí.
Payton gemeu. Por que ela tentava enfurecer a besta? Acaso queria morrer?
Talvez não houvesse um grupo de resgate, afinal. Por isso Kirstie buscava a morte. Para não ter de submeter-se ao abuso daqueles animais.
Não. Seriam resgatados. Toda sua família estava reunida em sua casa. Lan, Callum... Se Kirstie conseguira sair para ir levar o resgate exigido por Roderick, alguém devia tê-la seguido. Caso contrário, não a teriam deixado seguir. Precisava manter a calma.
De repente, Kirstie desferiu um soco contra o queixo de Roderick que, infelizmente, cambaleou, mas não caiu. Ou melhor, caiu, mas sobre ela. Payton não conseguia ver quem fazia o que com quem. Roderick conseguiu imobilizá-la contra o solo, e Payton gemeu angustiado ao ver a faca brilhando em sua mão, A lâmina a acertou na lateral do corpo, apesar da rapidez com que ela se moveu, mas, antes que Roderick pudesse desferir o segundo e fatal golpe, ele foi erguido por trás.
Horrorizada, Kirstie o viu ser cercado pelas crianças.
— Jesus, são os pequenos — Lan murmurou. — Alice não vai gostar disso.
— Como eles chegaram aqui? — perguntou Brett, um primo de Bryan
— Vieram atrás de nós e depois encontraram Callum onde o deixamos. O que aconteceu com os homens de Roderick? Encontraram todos que estavam escondidos entre as árvores?
— Sim. Dois estão mortos. Três preferiram enfrentar a justiça. Os idiotas acreditam poder escapar da forca. O que vamos fazer agora?
— Vamos nos aproximar o máximo que pudermos. — Lan acenou para outro aliado. — Diga aos homens para cercarem o nicho além da clareira. Não quero nenhuma criança ferida. Julguem se têm uma boa oportunidade para agir, ou se preferem esperar pelo meu sinal. Que Deus nos ajude.
Payton não queria acreditar no que via. As crianças cercavam Kirstie como soldados valentes, enquanto Callum ameaçava Roderick com uma de suas facas. Onde estavam os adultos? Deviam estar por perto, ou as crianças não estariam ali. Por que não agiam? Kirstie estava perdendo sangue.
Enquanto todos se mantinham firmes contra Roderick, Robbie, o mais ágil, correu até Payton e cortou as cordas que mantinham seus braços presos. Ele também deixou uma faca ao alcance de suas mãos. Gib e Wattie estavam tão interessados no que acontecia com Roderick e Kirstie, que nem notavam a ação do menino. Era como se o inusitado embate os fascinasse. Ou, deduzindo que os aliados de Payton já haviam cercado a clareira onde estavam, estavam paralisados de pavor.
Covardes como eram, os dois trocaram algumas palavras em voz baixa e decidiram fugir sem fazer alarde. Roderick poderia cuidar de si mesmo... ou ir para o inferno.
E ele parecia disposto a defender-se, porque sacou a espada e investiu contra Callum. Kirstie jogou o menino no chão e atirou-se sobre ele, usando o próprio corpo como escudo. Um som muito singular soou bem perto de seu ouvido, algo como um zunido, e depois um tropel. Passos... Muitos passos. Roderick tentara atingi-la com sua espada, mas os aliados de Payton chegavam para contê-lo... ou matá-lo.
O momento do confronto chegara.
Kirstie ergueu a cabeça e compreendeu a origem do som que ouvira pouco antes. Não havia sido a espada de Roderick, mas uma flecha. Uma flecha que agora se encontrava em um dos olhos do monstro. Roderick tinha uma expressão horrorizada, mas não emitiu um único som antes de cair inerte.
Callum a empurrou para o lado e levantou-se.
— Simon, você o matou! — ele gritou. — Matou a besta!
— Sim, fui eu — o menino confirmou orgulhoso, ainda segurando o arco.
— Mas eu queria matá-lo. Esse direito era meu.
— Ele matou meu pai, o bastardo, e tudo porque meu pai me preveniu sobre o que ele fazia com os meninos.
Callum respirou fundo, como se estivesse resignado.
— Está bem, reconheço que tem razão. Mas quando aprendeu a usar um arco? Quase acertou Kirstie!
Os irmãos de Payton o punham sentado ao lado de Kirstie, e ele pôde ouvir a resposta do menino.
— Eu nunca erro um tiro. Jamais erro quando atiro alguma coisa, seja o que for. Meu pai costumava dizer que nunca antes encontrara alguém com a mesma pontaria.
— Pena não ter mais flechas, ou poderia ter matado também aqueles homens que o surraram — Brenda comentou com inocência. — eu os vi fugir.
— Você os viu? — Payton murmurou com voz fraca.
— sim, e também ouvi o que diziam. Eles deduziram que os homens estavam aqui e acharam melhor ir embora para outro lugar.
— Que lugar?
— Foram para a fronteira. Eles querem roubar, e para isso foram se juntar aos Armstrong.
— Tem certeza de que eles disseram esse nome? Armstrong? — Payton insistiu, lutando contra o riso por saber que a dor seria insuportável, caso deixasse escapar uma gargalhada como faziam os outros homens.
— Sim, foi o que eles disseram. Os Armstrong, ladrões implacáveis e bandidos violentos. Acha que eles vão voltar?
— Não, mocinha. Nunca mais.
Imaginando qual seria o motivo de tantas gargalhadas num momento de tão grande tensão, Kirstie logo deduziu qual seria a explicação.
— Mais um primo, não é? — Ela balançou a cabeça e riu com os outros.
Payton decidiu que seu tio Eric estava certo. Não havia nada de agradável em acordar com uma espada na garganta.
Quieto, ele olhava para os oito homens cercando seu leito e tentava adivinhar que motivos teriam para estar ali. Depois de quinze dias de paz e tranqüilidade após o confronto com Roderick, que problemas enfrentaria agora?
Depois de olhar atentamente para os rostos dos desconhecidos, ele imaginou ter encontrado a resposta para sua presença. Aqueles eram os parentes de Kirstie. Todos tinham os mesmos traços que tantas vezes beijara no rosto da mulher adormecida a seu lado.
Ao sentir que ela se movia, Payton julgou ser melhor preveni-la.
— Temos companhia, amor.
— Oh, céus! — Kirstie apertou os lençóis contra o corpo e olhou para seus familiares. — bom dia, pai. Vejo que trouxe os rapazes...
— Sim — confirmou Ekick Kinloch,, o mais velho do grupo. — Soubemos que foi ferida.
Depois, recebemos sua mensagem informando que seu marido foi morto, que você foi ferida, mas está bem, e que Eudard já estava aqui, e por isso não devíamos nos preocupar.
— E não deviam mesmo. Recebi todos os cuidados necessários. A propósito, quero que conheçam...
— Sir Payton Murray — adiantou-se o pai dela. — Sim, já ouvi falar nele. Um idiota.
— Não devia insultar um homem em sua própria casa.
— Nem que ele esteja na cama com minha única filha?
— Ele também foi ferido, pai. Vivemos momentos difíceis aqui.
— E por isso tiveram de confortar um ao outro — sir Elrick disparou agressivo.
— Por favor, me escutem. Não sabem quem é sir Payton Murray. E ele tem o direito de saber ao menos os nomes dos homens que invadem sua casa armados de espadas. Sir Payton, estes são meu pai, sir Elrick Kinloch, e meus irmãos, Pedair, Steven, Colm, Malcolm, Blair, Aiden e Aiken.
— Espero que me desculpem por não me levantar para cumprimentá-los.
— Payton, estou tentando acalmar minha família.
— Mesmo? Não notei.
— Pai, agora que já foram apresentados, pode nos deixar sozinhos por um momento para...
— Não. Já ficou sozinha com ele por tempo demais. E eu não poderia sair, mesmo que quisesse.
— Por que não?
— Porque alguém mantém uma faca apontada para o meu traseiro.
Kirstie suspirou.
— Callum, esses são meu pai e meus irmãos. Eles não vão me machucar.
— Não estou preocupado com você, lady Kirstie. Vim para proteger sir Payton
— Oh, não...
A voz de Eudard atraiu a atenção de todos para a porta.
— Ah, aí está o valente guardião da virtude da irmã — disparou sir Elrick.
— Vou ter de providenciar uma tranca para essa porta — Payton comentou em voz baixa.
— Pai, por que não vem comigo ao salão? — eudard convidou-o. — Alice está preparando o desjejum.
— E deixar esses dois sozinhos?
— Eles precisam de um pouco de privacidade, caso ainda não tenha notado. Não podem conversar aqui. Não nessas circunstâncias.
— Talvez eu não queira conversar. Só quero dar algumas ordens e fazer algumas ameaças para assegurar que serei obedecido.
— Certo, pai. Mas eu quero conversar com você. Venha, vamos para o salão.
— Eudard...
— Pai, por favor, seja razoável. Elrick suspirou.
— Muito bem, mas antes mande esse menino afastar a faca do meu traseiro.
— Callum! — Kirstie e Eudard gritaram ao mesmo tempo. O menino obedeceu resignado.
— Está com fome, rapaz? — perguntou sir Elrick.
— Sim. Eu sempre estou com fome.
— Muito bem, vamos comer. Sabe que não pode derrubar um homem apontando uma faca para o seu traseiro, não é?
— Sim, Lan já me disse isso. Ele está me preparando para ser um cavaleiro e defender a honra dos mais fracos.
— Que bom. Precisamos de gente assim.
Aos poucos, o quarto foi se esvaziando, e Kirstie e Payton puderam sair da cama e vestir as roupas que haviam deixado sobre as cadeiras.
Payton desceu a escada dominado por um humor sombrio. Havia planejado pedi-la em casamento quando ambos estivessem recuperados de seus ferimentos, e agora... Agora ela nunca saberia se o marido estava a seu lado por vontade própria, ou porque sua família o obrigara a desposá-la.
Assim que entrou no salão, Payton ouviu a voz ressonante de sir Elrick.
— Eudard me contou que você pretende se casar com minha filha. Disse isso a ele logo que o recebeu em sua casa, e por isso ele não o matou ou castrou.
— Sim, eu realmente disse isso. Planejava fazer minha proposta nos próximos dias.
— Não teve tempo para pedi-la em casamento enquanto estavam nus naquela cama? Pelo que sei, já estão juntos há mais de um mês.
— Ela ainda era casada. Agora que é uma viúva, nada mais impede que sejamos unidos pelos laços do matrimônio.
— Sim, ela é viúva. E quero que saiba que sou grato por ter matado o bastardo.
— Não fui eu. Estava amarrado, sangrando e quase desacordado quando a vida do monstro chegou ao fim. Simon fez o serviço pelo bem da humanidade.
— Você o preparou para isso e manteve minha filha protegida. Teria sido melhor se houvesse mantido também sua calça no lugar, mas isso não muda o fato de que Kirstie ainda está viva graças a você. Por isso não o matei naquela cama.
— Agradeço pela demonstração de controle emocional.
— Callum, será que pode sair com Aiken, meu filho, e encontrar um padre?
— Não, pai! — Kirstie protestou da porta. — Não pode fazer isso.
— Ah, sim, eu posso. Vamos, cumpram a minha ordem, meninos. Nãovou mudar de idéia.
— Pai... — Kirstie persistiu, embora os dois garotos já houvessem saído. — Não sou mais nenhuma donzela. Fui uma mulher casada, e agora sou uma viúva.
— E daí?
— Bem, não é incomum que mulheres nessas circunstâncias... bem... forniquem de vez em quando sem que ninguém preste atenção a elas.
— Eu presto atenção. E todos nós sabemos que nunca foi mulher daquele bastardo com quem se casou.
— Payton, diga alguma coisa!
— Não. Eles nos encontraram na cama, nus. O que posso dizer?
Payton não ia protestar. Kirstie olhou para Lan, que acabara de entrar no salão, e notou que ele sorria. Todos de sua família estavam sérios, inflexíveis... Até Eudard parecia solene. Não tinha aliados. Estava sozinha.
— Pai, por favor, não precisa apontar a espada para Payton — Kirstie se queixou ao ajoelhar-se diante do padre que realizava a cerimônia de casamento.
— Não, mas ainda pode protestar. Prefiro estar prevenido.
— Ah, por que não estou surpreso com essa cena?
A voz melodiosa atraiu a atenção de todos para a porta.
— Pai! — Payton exclamou. — Mãe! Gillyanne deve ter mandado uma carta...
—Exatamente — confirmou sir Nigel Murray. — Pode continuar, padre.
Inferno! Por que ela era a única a ver que um casamento forçado não poderia produzir bons frutos? Kirstie não entendia a resignação de todos os presentes. Podia entender a felicidade das crianças, mas os adultos... Payton não parecia sequer aborrecido com a indignidade que sofria!
A cerimônia chegou ao fim, e ela respirou fundo. Estava casada com Payton Murray depois de quinze dias de viuvez. Seu primeiro marido a escolhera por ser quase uma criança, e o segundo... O segundo a desposara para evitar um golpe fatal da esposa de seu pai. O que podia ser mais triste?
Payton concluía uma conversa muito séria com o pai e o sogro, e finalmente conseguira fazê-los entender que não se casara para escapar da morte. Kirstie era a mulher de sua vida, a mulher que amava, e ateria desposado de qualquer maneira. Só gostaria de tê-la pedido em casamento com alguma privacidade, de ter a chance de fazê-la acreditar em seu amor.
— Diga a ela, Payton — seu pai sugeriu. — E comprove o que vai dizer com atos sinceros. Se realmente a ama, saberá como demonstrar esse amor.
—vou tentar... a partir de agora — ele respondeu, olhando em volta em busca de sua esposa. Quando olhou para a porta, Payton viu sir Gavin, Bryan e Euan. Os MacMilLan chegavam para começar a aproximação com Callum, e isso tomaria parte de seu tempo. Não poderia se dedicar inteiramente a Kirstie, como gostaria de fazer, mas esperava contar com sua compreensão. Afinal, nada era mais importante para ela do que o bem estar de Callum. Depois, teriam a vida inteira para falar de amor e viver esse amor.
Kirstie havia terminado de se preparar para a noite de núpcias. A camisola era longa, porém transparente, reveLando mais do que escondia, e Alice e lady Gisele, mãe de Payton, não continham a admiração diante do quadro de beleza e delicada sedução.
— Isso mesmo — disse Alice. — Tente-o agora, porque depois não se sentirá muito confortável com seu corpo.
— Depois... quando? Do que está falando?
— Do bebê, é claro.
— Bebê? Que bebê?
— Lady Gillyanne não conversou com você? Não contou sobre a gravidez? Você está esperando um filho, minha querida. Quando sangrou pela última vez?
— Bem, foi antes... Kirstie se deu conta de que há muito não menstruava e sentou-se na cama, sentindo as pernas trêmulas. — Há algum tempo. Oh, céus...
— Payton vai ficar muito feliz — Gisele garantiu eufórica.
— Afinal, por que a surpresa? — Alice tentou animá-la. — Você e ele são frutos de solo fértil.
— Sim, mas... Payton vai se sentir ainda mais obrigado a viver comigo agora.
— Obrigado? Não seja tola! — Gisele censurou-a com firmeza. — Compreendo que seja insegura, depois de tudo que viveu e testemunhou, mas meu Payton não é como seu antigo marido. Ele é um homem bom, correto e generoso. Talvez não saiba, mas ele nunca gerou um bastardo. Seu controle é quase uma lenda entre os membros da sociedade, embora ele não o tenha exercitado com você. Devia parar para pensar nisso. Por que com você foi diferente?
— Bem, a paixão sempre foi muito... forte entre nós.
— Payton conhece o desejo e a luxúria há muito tempo, e nunca plantou sua semente em nenhuma outra mulher. Ele lutou por você, arriscou a própria vida... Precisa de mais provas? Por que não acredita que ele a ama?
Uma pequenina luz de esperança começou a ganhar força no peito de Kirstie. Amor? Seria possível?
— Fale com ele, minha criança — Gisele continuou. — Confesse seu amor. Diga o que quer, o que espera dele, e ouça o que ele tem a dizer. Garanto que os resultados dessa conversa serão surpreendentes. E espere para falar sobre o bebê somente depois de terem conversado, ou jamais saberá se ele a aceitou por você ou pela criança.
Kirstie ainda considerava os conselhos de Gisele, quando se viu sozinha no quarto. Era hora de parar de sentir pena de si mesma e conquistar a felicidade que merecia ter. Já havia sofrido demais, mas tinha a satisfação de saber que salvara muitas almas do sofrimento.
Sim, agora era sua vez de ser feliz... e só encontraria a felicidade ao lado de Payton, seu marido. Seu único e verdadeiro amor.
Horas depois, quando subiu ao quarto e a encontrou vestida
com a sedutora camisola, Payton quase não conseguiu conterse. Mas Kirstie insistia em conversar e, interessado em conquistá-la realmente, ele decidiu fazer sua vontade.
— Como foi o encontro de Callum com sir Gavin?
— Bastante produtivo. Os dois se entenderam bem, e logo nosso garoto estará pronto para ir conhecer o lar de sua família. Seu novo lar.
Estava feliz por ele, mas odiava pensar que em breve se separariam.
— Sir Gavin o aceitou, apesar de tudo que aconteceu?
— Sim, sem nenhuma hesitação. Ele até perguntou se Callum já havia ido urinar no túmulo do miserável.
— Não!
— sim. Felizmente, tudo acabou bem para todos, meu amor. Agora nós temos de buscar a nossa felicidade.
Meu amor? Payton a chamara de amor? E falava em buscar a felicidade... com ela? Estaria sonhando?
— Payton, eu...
— Sim? Quer me dizer alguma coisa? Fale, minha querida. Estou ouvindo.
— Quero dizer que... Quero perguntar...
— Escute, Kirstie, se quer saber se me casei com você por obrigação, minha resposta é não. Eu a teria desposado de qualquer maneira, com ou sem a presença de seu pai.
— Mas...
— Por favor, ouça o que tenho para lhe dizer. Eu sempre quis me casar com você. Eudard sabe disso. Conversamos sobre o assunto logo que ele chegou aqui.
— Bem, isso explica a atitude de meu irmão diante do nosso relacionamento. Quanto ao que sinto...
— Sim?
— Preciso de você, Payton. Quero vê-lo a meu lado todas as manhãs, quando acordar, e à noite, antes de dormir. Quero envelhecer a seu lado e criar nossos filhos... quero que me ame como eu o amo.
— Você me ama?
— com todas as forças do meu coração. Como nunca pensei ser capaz de amar alguém.
— Oh, Kirstie... — Ele a abraçou com lágrimas nos olhos. — Também amo você, minha doce esposa. Desde que a vi, não penso em outra coisa se não em tê-la comigo para sempre, até o último de meus dias. Quero dormir e acordar a seu lado, ter filhos com você e...
— Payton, já que falou em filhos... Você se importaria de ter muitos?
— Não. Por quê?
— Sua mãe e Alice estiveram conversando comigo sobre fertilidade. Parece que nós dois carregamos essa tendência.
— Que bom. Mais uma indicação de que nossa união é abençoada.
— sim, de fato...
— Kirstie, está tentando me dizer alguma coisa?
— Sim, eu...
— Kirstie, por favor! Está me deixando aflito. Por acaso...
— Bem, Vai ter de aprender a controlar sua ansiedade. Precisa esperar e...
— Não sei esperar. Não sou paciente.
— Lamento, meu adorado marido, mas a natureza não se curva ao seu desejo. Terá de esperar pelo menos sete meses até poder ter nos braços seu primeiro herdeiro.
— Sete... Então... Você está grávida?
— Sim, meu amor. Estou esperando um filho seu. Naquele momento Kirstie teve certeza de que era realmente amada pelo marido. Quando um homem chora de alegria nos braços da esposa, só pode ter por ela o mais puro e pleno dos sentimentos. Amor.
Finalmente, Payton encontrara seu anjo. Um anjo das terras altas que chegara para iluminar sua vida.
Hannah Howell
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