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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ANJO DO LAR / Horácio Nunes
O ANJO DO LAR / Horácio Nunes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Horácio Nunes

 

 

 

 

DRAMA ORIGINAL EM DOIS ATOS
Este drama foi, em 1881, escrito a pedido da então pequenita atriz Julieta dos Santos. 
Segundo Altino Flores, em 1883 foi entregue, pelo próprio autor, no “Teatro Santa Isabel”, da antiga cidade do Desterro, à atrizinha Francisca Julieta dos Santos, em cena aberta, em a noite do espetáculo em benefício dela: 5ª feira, 18 de janeiro de 1883.    
DUAS PALAVRAS
  Este pequeno drama foi severamente recebido, alegando-se em prol dessa severidade:   1º — ser impossível que uma criança de 10 anos, por muito viva, por muito talentosa que seja, emita uma linguagem como a de que se serve a minha heroína.   2º — Ser o papel de Jorge uma monstruosidade inadmissível.   De acordo, quanto ao primeiro ponto. A linguagem é realmente, demasiado elevada para uma criança. Mas quando criei o papel de Júlia, não o fiz para que o considerassem como um modelo de naturalidade. Foi unicamente para pôr à prova o talento genial da atrizinha para quem o destinava, tornando-o de difícil execução, não só quanto à parte literária como também quanto à dramática.   No que diz respeito ao segundo ponto, foram injustos os críticos. Inúmeros exemplos de requintada perversidade, ora consequente do amor, ora do ódio, ora da ambição, são, quase diariamente, noticiados pela imprensa. Ora, se são admitidas essas monstruosidades na vida real, porque não havia eu de transplantar uma delas para a vida fictícia do teatro? Mães que abandonam a prole, pais que estrangulam os filhos, irmãos que violentam as irmãs, homens que assassinam, compelidos pelo ódio ou pela ambição do ouro — de tais monstros muitas e muitas vezes têm-se se ocupado os jornais. Jorge, pois, é uma monstruosidade, mas não inadmissível. Além disso, Jorge não ama Maria: o seu fim — único, exclusivo, — é apossar-se da sua fortuna. Maria, completamente iludida, aceita-o, mas com a condição — sine qua non — de passarem todos os seus haveres a pertencer à filha. Júlia, pois, torna-se um obstáculo à realização dos mais íntimos desejos de Jorge, cujo caráter mal está plenamente definido desde a cena VI do 1º ato. Jorge que dinheiro, precisa de dinheiro, de muito dinheiro, e, para obtê-lo, tanta afastar o obstáculo que se lhe antepõe, mostrando-se, porém, sempre extremamente carinhoso, carinhosamente delicado, para não atrair suspeitas.   O doutor Castro, — digo-o com orgulho, — é um tipo bem delineado sem falha, justo, cheio de razão, amigo verdadeiro.   Maria é um caráter natural. Viúva aos vinte e cinco anos, em plena mocidade, em pleno vigor dos sentidos e das aspirações, iludida pelas palavras de Jorge, entrega-se, tendo, porém, antes o maternal cuidado de garantir o futuro da filha, garantia essa que, — como muitas vezes sucede, — foi justamente a causa de todo o mal.   Lúcia, finalmente, é a criada dedicada à casa onde vive. Viu nascer Júlia, e dedica-lhe todos os tesouros de bondade do seu coração, todos os afetos de sua alma.   O único ponto, pois, vulnerável do meu trabalho, é a linguagem de Júlia. Esse, porém, fica claramente explicado.  
PERSONAGENS:  JÚLIA (10 anos)  MARIA (25 anos)  LÚCIA (20 anos)  DOUTOR CASTRO (50 anos)  JORGE DA SILVA (40 anos)  DOIS CRIADOS 

   
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ATO I Sala rica. Portas ao fundo e à esquerda. À direita, no primeiro plano, uma janela, no segundo plano, uma porta. A porta do primeiro plano da esquerda está fechada.   CENA I   MARIA (sentada no sofá, em atitude meditativa)  Amar-me-á tanto este homem? Não serão uma mentira estes extremos de amor que tantas vezes me tem mostrado?... Tenho escarnecido tanto dele; tenho-lhe revelado tanta indiferença, tanto desprezo mesmo, que se não fosse verdadeiro o seu amor, nunca mais tentaria comover-me... E quem me assegura que a sua paixão não é pelo meu ouro, pela minha opulência?... Às vezes está quase a partir-me dos lábios a palavra que resolverá esta luta que dura há tantos meses... mas lembro-me que posso ser enganada, e tenho medo... não por mim, mas por minha filha... A pobre criança é quem mais havia de sofrer... talvez maus tratos... talvez a miséria um dia... quem sabe?... Fui feliz no primeiro matrimônio; mas sê-lo-ei no segundo? (Pausa) Hoje vou submetê-lo à última prova, à prova mais dolorosa. Se triunfar dela, então não tenho mais nada a recear... Entregar-me hei... (Toca um tímpano)     
CENA II Maria e Lúcia.
  LÚCIA Determina alguma coisa, minha senhora?   MARIA Lúcia, manda servir o almoço.   LÚCIA Mas...    MARIA O que há?   LÚCIA O Sr. Jorge está há mais de uma hora na sala de espera...    MARIA (sorrindo levemente)  Já?... Pois manda-o embora.   LÚCIA Ele declarou que não sairá sem falar à senhora.   MARIA Não me deixa descansada um momento!... Que entre.   LÚCIA Sim, minha senhora. (Sai. Jorge entra)      CENA III Maria e Jorge.   MARIA O senhor é... inconveniente...    JORGE (indo a ela e querendo beijar-lhe a mão)  Maria... 
  MARIA (erguendo-se)  Saia! (À parte) Resistira?   JORGE Mas...    MARIA Se vem à minha casa para fazer loucuras, previno-o de que não estou resolvida a suportá-lo.   JORGE Mas para que essa frieza? Não vê que a amo tanto?   MARIA Mas eu não o amo.   JORGE A senhora é cruel... Que mais é preciso que eu faça para provar-lhe o meu amor?...    MARIA E o que tem feito o senhor?   JORGE Veja: era moço, e estou velho...    MARIA (dando uma risada)  Deveras?   JORGE Por que ri-se?   MARIA Por nada. O senhor é de uma ingenuidade única... Pois ignora que se envelhece à proporção que os anos passam?... Olhe: eu hoje tenho vinte e cinco anos; mas daqui a vinte e cinco anos terei cinquenta, e estarei velha, não é verdade?... (Olhando-o fixamente) E se quiser continuar a ser sempre moça, serei forçada a pintar os cabelos, a carminar-me a...    JORGE Mas...    MARIA Diga-me, meu caro senhor: não acha ridículo um velho apaixonado?   JORGE (contendo-se a custo)  Se eu fora velho diria: — acho sublime!   MARIA Mas como não é velho...    JORGE Digo que não sei...    MARIA Com que modo me fala! Dir-se-ia que o ofendi...    JORGE Em quê?   MARIA Ora, em que!... No seu amor próprio de... moço!   JORGE Maria, para que há de martirizar-me assim!... Creia que a amo... Olhe que o escravo revolta-se um dia contra o jugo que o oprime, e...    MARIA Ameaça-me?... Na sua idade, creia, não lhe fica bem essa linguagem...   
JORGE Oh! é de mais!... Adeus!... (Sai)    MARIA (dando uma risada)  Boa viagem!       CENA IV   MARIA Se me ama, como diz, voltará. Custa-me a feri-lo assim, tanto, porque o amo também... Mas em primeiro lugar está minha filha, a minha querida Júlia...      CENA V Maria e Júlia.   JÚLIA (com um ramo de flores, entrando a correr)  Mamã!... Mamã!...    MARIA Estou aqui, minha filha.   JÚLIA Dá-me um abraço bem apertado e um beijo bem grande, anda... (Reparando) Mas estás triste?   MARIA Não... Triste, por quê?...    JÚLIA Estavas te lembrando do papá, não é verdade?... Ele era tão bom! Todas as noites sonho com ele... Vejo-o sorrir-se para mim, acariciar-me com o olhar... Mas quando estendo os braços para apertá-lo ao coração, a sua imagem some-se, para aparecer mais longe, dizendo-me adeus com a mão e com os olhos rasos de lágrimas... Às vezes, acordo-me em sobressalto, chorando também... Mamã, onde está o papá?...    MARIA Está no céu, minha filha, para onde vão os justos e os bons.   JÚLIA Como deve ser bonito o céu, mamã!... A pátria dos anjos e das harmonias, da infinita pureza e dos cânticos divinas, das flores que nunca murcham e dos perfumes infindos, das luzes que nunca expiram e dos eternos sorrisos!... Como deve ser bonito o céu!... Às vezes tenho desejos de morrer para ir ver o papá no céu!...    MARIA Morrer!... Não digas isso, filha! E não tinhas pena de deixar-me aqui, não tinhas saudades de mim?...    JÚLIA Mas tu morrerias também e iríamos juntas... Com que alegria nos abraçaria o papá!... há tanto tempo que não nos vê, que já deve estar com muitas saudades. E o céu não é melhor do que a terra?... As flores da terra murcham ao mais fraco raio do sol; as luzes extinguem-se ao menor sopro da brisa; os perfumes evaporam-se como aparecem; as harmonias expiram no meio dos soluços; os cânticos de alegria orvalham-se de lágrimas... Venho do jardim. As flores estão todas abertas e os perfumes chegaram a entontecer-me... Mas daqui à pouco, o sol desfolhará as flores e a brisa levará todos os perfumes... O que fica sendo o nosso jardim?... Um cemitério juncado dos cadáveres das flores, respirando a tristeza da morta. O céu é melhor, mamãe...    MARIA É, filha; mas não há quem queira morrer...    JÚLIA Não entristeças outra vez... Trouxe do jardim este ramo de flores para oferecer-te... A Lúcia disse-me que fazias anos hoje. Quantos anos, mamã?   MARIA Vinte e cinco, minha filha.   JÚLIA Vinte e cinco! Mas então tu és muito mais velha do que eu!   MARIA (sorrindo)  Sou. Se não fosse muito mais velha do que tu, não podia ser a tua mamã...    JÚLIA Ora; aí está! E não queres ir para o céu, tu, que tantas vezes me tens dito que no céu não se envelhece!   MARIA Mas...    JÚLIA Olha: — lá, os nossos cabelos flutuariam, coroados de flores, às brisas odorosas; tu cantarias as melodias do amor que me tens. Os teus olhos teriam mais brilho e mais beleza. Lá ajoelhada a teus pés, como o crente fervoroso aos pés da imagem de Cristo, eu te adormeceria ao som dos meus hinos, e, velando o teu sono puro, sonharia contigo. Lá, as estrelas iriam depor-nos aos pés as puras oferendas do seu melancólico brilho; os vergóis se abateriam para formar macio tapete a nossa passagem; as brisas sonorosas beijariam, embalsamando-os, os nossos cabelos; as flores se debruçariam nas hastes débeis para depositarem em nossos lábios os puríssimos ósculos do amor puríssimo; os anjos nos acompanhariam em triunfo, entoando os seus mais suaves cantares...    MARIA (abraçando-a e beijando-a ternamente) 
Júlia!...    JÚLIA Mas tu choras?... Por quê? Não chores mais, que o mundo não merece essas lágrimas... Tu disseste que o céu é a nossa pátria... Enxuga as tuas lágrimas, e olha para o céu; enxuga os teus olhos, para que possam neles refletir-se os tesouros de bondade da tua alma; enxuga os teus olhos, mamã, e abracemo-nos, para ascendermos ao céu — a nossa pátria! Como seria bonito!... Com as nossas frontes circundadas pela luz ofuscadora da felicidade, com os olhos vibrantes das alegrias íntimas e puríssimas da alma, com os lábios descerrados pelo sorriso perfumado de um sonho de alegria, — seria tão bom nos erguermos nas asas da brisa no paraíso das ignotas felicidades, à pátria azul dos sonhos loiros — ao céu!... Lá encontraríamos o papá... Coitado!... Como ele deve estar com saudades de nós!... Tu não querias vê-lo?   MARIA Para quê?   JÚLIA Para quê? É bem verdade que de certo tempo a esta parte não choraste mais por ele, não me falaste mais no seu nome... Por que, mamã?...    MARIA Porque o mundo é assim, minha filha... Ai! de nós se a saudade fosse eterna!... Tudo tem um fim...    JÚLIA Mas como é que eu choro ainda?... Como é que ainda tenho tantas saudades? Lembro-me tão bem! Os passarinhos cantavam no jardim, espanejando-se aos primeiros raios do sol que despontava; as rosas abriam as suas pétalas purpúreas, cobertas das lágrimas cristalinas do orvalho; as brancas açucenas desabrochavam tímidas, como que receosas de entrarem em concorrência com as rosas; a brisa suspirava por entre as flores, como que murmurando uma cantiga de saudades... Eu brincava no caramanchão, conversando com as flores, que se abriam, com o sol, que despontava doirado e alegre, com a brisa, que passava suspirando... De repente, ouço um grito, um grito tão agudo, tão doloroso, que senti o meu coração comprimir-se e os meus joelhos vergaram-se... Fiquei um momento hirta... Aquele grito fez-me tanto mal!... Fiz um esforço e corri para casa... (Escondendo a fronte no seio de Maria) Ah! mamã!...    MARIA (chorando)  Cala-te, filha!... Para que recordar as nossas dores passadas?...    JÚLIA Tu estavas sentada nesta cadeira, com o rosto oculto nas mãos, e soluçavas tanto, que me despedaçaste o coração... — “Por que choras?” — perguntei-te. Não me respondeste. Abraçaste-me em silêncio, e apontaste para o quarto do papá. Cheguei à porta e vi... e vi... Ah! quando me lembro disto, tenho medo de enlouquecer!... Vi um padre ajoelhado aos pés do leito, rezando com voz trêmula e os olhos úmidos... vi o doutor, com o rosto pálido e contraído, segurando uma vela na mão lívida de meu pai, que parecia olharme com os seus olhos vítreos e sem movimento... sorrir-me com os seus lábios brancos e mudos... Dei um grito e corri para ele... O padre ergueu-se dos pés do leito e o doutor disse: — “Está morto!” — Morto!... O meu bom papá estava morto!... Senti como se alguma coisa se me despedaçasse no peito... os olhos fecharam-se... e caí... Ah! mamã... como custam estas recordações!...    MARIA Basta, filha!... basta!...    JÚLIA Oito dias depois, perguntei-te pelo papá. — “Está no céu...” — me respondeste, chorando. Vestiste-me de preto e ensinaste-me a rezar pela sua alma. Daí em diante fui todos os dias orar perto do leito em que meu pai expirou... Às vezes parece-me vê-lo erguer-se... dirigirse para mim, apertar-me nos braços e cobrir-me de beijos e de lágrimas... Mamã, como é triste não se ter pai!
  MARIA E se eu te desse outro papá, Júlia? Querias?   JÚLIA Outro papá!... Como!... Tu podes?   MARIA Posso, minha filha.   JÚLIA E esse papá que queres dar-me será tão bom como o outro?   MARIA Há de ser, porque não poderá deixar de amar-te, de querer-te muito.   JÚLIA E quem é ele?   MARIA Depois saberás.   JÚLIA E por que não me dizes já... (Abraçando-a) A mamã bem sabe que eu sei guardar segredos...    MARIA Não. Depois. Vamos almoçar.   JÚLIA E as flores? (Tomando o ramo, que está sobre uma cadeira) Quero colocá-las no vaso, bem defronte de ti, sim?...    MARIA (beijando-a)  Sim, minha filha.  
JÚLIA Vamos. 
 
(Saem. A cena fica vazia um momento)      CENA VI    JORGE (aparecendo à porta)  Ninguém... (Entra) Hei de convencê-la, porque assim é preciso. Esta mulher é a minha salvação: preciso da sua fortuna, e hei de tê-la... Não a amo, porque nunca amei mulher alguma... O amor é uma tolice... Não é do amor que se vive, mas do prazer... e como não há prazer sem dinheiro, eu venho procurar o dinheiro aqui. Tenho representado soberbamente o meu papel. Ela está quase convencida de que ardo em um Vesúvio de amor, e há de entregar-se... Mais dia ou menos dia, tudo isto será meu... tudo... Serei o homem mais feliz do mundo!... (Outro tom) E mais feliz seria, se não fosse essa criança... Júlia é uma nuvem no meu céu... É bem verdade que basta um sopro para desfazer uma nuvem do tamanho dela... Mas tratemos primeiro de atrair a viúva, que tempo não faltará para nos ocuparmos da filha... Esta mulher é terrível. Se não fora a minha coragem, há muito teria sido batido vergonhosamente... Supõe que todos a iludem, e dúvida de todos... Mas os fortes também são vencidos... Um pouco mais de perseverança, e o inimigo entregará as armas... Se dentro de um mês não estiver casado, fico perdido... É preciso, pois, que isto tenha um fim e mais breve possível...      CENA VII Jorge e Júlia.   JÚLIA (com o ramo)  Ah! estava aqui?   JORGE Cheguei há pouco, minha menina. Para quem são essas flores?
  JÚLIA Estas flores são da mamã. Colhi-as esta manhã para oferecer-lhe.   JORGE Ah!   JÚLIA A mamãe faz anos hoje, e bem vê que...    JORGE Ah! a mamã faz anos hoje?   JÚLIA Faz. A Lúcia disse-me, e eu, não tendo outra coisa para oferecer-lhe como lembrança, dei-lhe este ramo. Acha bonito?   JORGE É lindíssimo... mas não tanto como a menina...    JÚLIA (sorrindo)  Deveras?   JORGE Sem dúvida. O seu rostinho mimoso tem mais frescura do que essas açucenas, e os seus lábios nacarados mais perfume do que essas rosas... A menina é um anjo... Ama muito a sua mamã?...    JÚLIA Por certo. Qual é a filha que não ama sua mãe?... Se o amor filial não fosse espontâneo, seria um dever. Além disso, a minha mamã é tão boa, faz-me tantos mimos, que, embora eu tentasse, não poderia deixar de amá-la.   JORGE E quem lhe ensinou essas coisas, minha menina?  
JÚLIA Ninguém. Digo o que o meu coração sente. Estas coisas não se aprendem: nascem conosco.   JORGE E se a sua mamã, em vez de enchê-la de mimos e de carícias, tratasse mal a menina?...    JÚLIA O que faria?... Amava-a da mesma maneira, porque, boa ou má, não deixaria nunca de ser minha mãe.   JORGE A menina fala como um anjo. E o seu papá?... Ainda se lembra dele?   JÚLIA (entristecendo)  Lembro-me... e rezo sempre a Deus pela sua alma.   JORGE Onde?   JÚLIA (mostrando a porta que está fechada)  Ali...    JORGE (indo à porta)  Aqui?   JÚLIA (tomando a porta)  Não se aproxime...    JORGE Por quê?...    JÚLIA Este quarto é sagrado. Foi aqui que meu pai exalou o derradeiro suspiro, foi aqui que eu derramei as primeiras lágrimas da orfandade, foi aqui que eu chorei pela primeira vez... (Abrindo a porta) Olhe: — foi naquele leito que ele expirou. O padre, um velho, que também já morreu, estava ali, e joelhos, rezando com voz trêmula, mais pela comoção do que pela idade... à cabeceira estava o doutor. Vi duas lágrimas lentas e grandes deslizarem pelo rosto cadavérico de meu pai... o seu olhar turvar-se... os seus lábios contraírem-se em um suspiro doloroso... O doutor, sem me ver, disse ao padre: — “Está morto!...” — (Fechando a porta, e limpando os olhos) Já vê que este quarto é sagrado para mim... Aqui ninguém entra além de mim e de minha mãe...    JORGE O seu papá amava-a muito também?...    JÚLIA Muito!   JORGE E se a sua mamã lhe desse outro pai?...    JÚLIA E então?...    JORGE Amá-lo-ia muito?...    JÚLIA Não sei... talvez... mas não tanto como ao outro...    JORGE E se esse papá fosse eu?   JÚLIA O senhor?...    JORGE Sim; não queria ser minha filha?  
JÚLIA Para quê?   JORGE Eu havia de ser muito seu amiguinho... Dar-lhe-ia os mesmos mimos, as mesmas carícias que seu pai lhe dava...    JÚLIA Deveras?   JORGE Sem dúvida... Queria?...    JÚLIA Talvez...    JORGE Mas a sua mamã não quer...    JÚLIA Por quê?   JORGE Não sei. Pergunte-lho... Não, não lhe pergunte nada... Diga-lhe antes: — “Mamã, o senhor Jorge é muito meu amiguinho e ama-te muito... Peço-te que consintas que ele seja meu pai...”   JÚLIA E se ela disser que não?   JORGE Diga-lhe ainda: — “Ele prometeu ser para mim tão bom como foi meu pai... prometeu amar-me tanto como se eu fosse sua filha. Eu quero que ele seja meu pai, sim mamã? Ele tem sofrido tanto por tua causa, tem sido tão infeliz pelo amor que te tem que é justo que lhe dês essa felicidade..."  
JÚLIA Só isso?   JORGE Só. E se a menina conseguir isso, eu não serei somente seu pai, pai carinhoso, cheio de afeto e de amor... Serei também seu escravo...    JÚLIA Escravo?... Não! Será meu pai... Olhe... parece-me que já o amo...    JORGE Já?... (Beijando-a) Minha filha!   JÚLIA Oh era com essa ternura que meu pai também me chamava... Era com esse afeto que ele também me beijava... (Abraçando-o) Amo-te, papá!... amo-te!...    JORGE (à parte)  Primeiro triunfo! Hei de vencer sempre!     CENA VIII Os mesmos e o Doutor.   DOUTOR Pode-se entrar?   JÚLIA (indo ao doutor)  Oh! é o senhor doutor!... Seja bem-vindo. Por que é que há tanto tempo não vem cá? Eu devia ficar mal com o senhor...    DOUTOR (depois de cumprimentar friamente a Jorge)  O que queres, minha gazelinha?... Tive tantos afazeres, que não me sobrou tempo para vir ver-te...    JÚLIA Sim?   DOUTOR Estavas com saudades?   JÚLIA Muitas. Mas o senhor é um ingrato: não faz caso das pessoas que o estimam. Estou tão zangada, que de repente...    DOUTOR O que fazes?   JÚLIA Dou-lhe um abraço.   DOUTOR Pois venha ele, e um beijo também, para ser completa a reconciliação. (Abraça-a e beija-a)    JÚLIA É assim que eu me vingo de quem me ofende.   DOUTOR E vingas-te... como se vingam os anjos!   JÚLIA É assim que os anjos se vingam?   DOUTOR É. A vingança deles é o perdão. Pensa sempre assim, minha filha, e hás de ser feliz.     CENA IX Os mesmos e Lúcia.   LÚCIA Ah! está cá, senhor doutor? Ia mandar chamá-lo. (Vendo Jorge, à parte) Sempre este homem!   DOUTOR Para quê?   LÚCIA A senhora precisa muito falar-lhe, e por isso...    DOUTOR Está ela doente, Júlia?   JÚLIA Não, senhor.   DOUTOR Melhor. Prefiro ser chamado pelos que gozam perfeita saúde.   JÚLIA Mas quer ser chamado somente pelos que gozam saúde?   DOUTOR Porque é prova de que a humanidade não sofre.   LÚCIA O senhor doutor quer ter a bondade de entrar?   DOUTOR Vamos. (Sai. — Lúcia segue-o)      CENA X Jorge e Júlia.   JÚLIA Sabe que estive quase dizendo ao doutor que ia ter outro papá?  
JORGE Faria mal se o dissesse.   JÚLIA Por quê?   JORGE Porque não convém que o doutor saiba por ora. Esse homem aborrece-me. Reparou? Durante o tempo que aqui esteve não me dirigiu uma única palavra... (Tomando o chapéu) Vou retirar-me.   JÚLIA Não espera então pela mamã?...    JORGE Não. Voltarei depois. A sua mamã está agora em conferência com o doutor, e não pode atender-me.   JÚLIA Então volte, sim?...    JORGE Sim; daqui à pouco. A minha filha não se esqueça do meu pedido. Lembra-se ainda?...    JÚLIA Lembro-me. Vá descansado, que a mamã há de querer. Ela faz sempre o que eu peço. Mas o senhor não há de entrar nunca naquele quarto...    JORGE Entrarei, Júlia.   JÚLIA Entrará? Então...    JORGE Mas para rezar contigo pelo teu papá.   JÚLIA O senhor rezará também?   JORGE Sem dúvida. Ajoelhar-me-ei a teu lado, unirei as mãos como tu, e juntos pediremos a Deus por ele, sim?...    JÚLIA Sim. Dê-me um abraço...    JORGE (abraçando-a)  Faça com que a sua mamã me ame...    JÚLIA Hei de fazer.   JORGE Até logo... (À parte) Representei otimamente o meu papel de bom pai!... (Sai)      CENA XI    JÚLIA (pensativa)  Mas se a mamã não quiser?... O que hei de eu fazer para convencêla? Como hei de provar-lhe que o Sr. Jorge gosta muito dela, e que me ama como se eu fosse sua filha?... (outro tom) Ora! Ela há de querer... porque eu quero. Há de prometer-lhe muitos abraços, muitos beijos e muitas flores... E por falar em flores: não me esqueci deste pobre ramo?... (Toma o ramo que deixara no sofá) Não entristeçam, minha flores... Vou pô-las em um vaso bem bonito e com bastante água, para que não murchem... Eu não quero que murchem... fiquem sabendo... Vamos lá. (Sai)     
 
CENA XII Maria e Doutor.
  MARIA Onde está ele?...    DOUTOR Provavelmente, já se retirou. Achou que a demora foi demasiada e...    MARIA O doutor conhece esse homem?...    DOUTOR De vida apenas.   MARIA E por informações?   DOUTOR Quase tanto como de vista.   MARIA E o que se diz dele?   DOUTOR Que eu saiba, pouco.   MARIA Posso saber?   DOUTOR A senhora interessa-se muito por ele?   MARIA Não. Desejo simplesmente saber com quem trato. Esse homem vem à minha casa e...   
DOUTOR E ama-a...    MARIA A mim?   DOUTOR Por certo que não há de ser à menina Júlia, que tem apenas dez anos!...    MARIA Doutor!   DOUTOR Quer que lhe diga como sei isto, não?   MARIA Peço-lhe.   DOUTOR Pois bem: foi ele mesmo quem revelou o segredo. Estávamos conversando quatro ou cinco amigos. Ele chegou. Depois de me apresentarem, a palestra tornou-se geral e falou-se de mulheres...    MARIA (sorrindo)  Pois o doutor!...    DOUTOR Eu também... Pois então! A velhice não exclui o sentimento do belo. Conheci um homem de setenta anos que passava os dias encostado à esquina de uma rua, contemplando uma moça. Um ano durou essa contemplação muda. Um dia, a moça casou-se...    MARIA Com o velho?   DOUTOR Não. Com um moço.   MARIA E o velho?   DOUTOR Quinze dias depois era conduzido por meia duzinha de amigos...    MARIA Para onde?   DOUTOR Para o cemitério. Morrera de paixão...    MARIA Era poeta?   DOUTOR Não. Era comendador de uma ordem qualquer...    MARIA Admira.   DOUTOR Não admira tal. Se fosse poeta, embora com setenta anos, não teria deixado que a moça casasse com outro... Mas voltemos ao nosso homem. Apenas principiamos a falar de mulheres, o Sr. Jorge tornou-se triste. Perguntaram-lhe a razão, e calou-se. Instaram, e...    MARIA E...    DOUTOR E disse tudo.   MARIA Mas o que disse ele?
  DOUTOR Ora!... Disse que a amava... que estava louco pela senhora... que...    MARIA E depois?   DOUTOR Mais nada. A senhora ama-o?   MARIA Talvez, doutor.   DOUTOR No amor não há talvez, minha senhora. Ama-se ou não se ama. Ama-o?   MARIA Sim... amo-o... mas...    DOUTOR O quê?   MARIA Queria consultá-lo. O doutor é um amigo velho da casa, um homem experimentado e sisudo. Fale-me com franqueza: faço bem em tornar a casar-me?   DOUTOR Não sei. Consulte o seu coração. Se ele disser — sim, — sim; se disser –não, — não, e está tudo acabado. A senhora tem bastante experiência do mundo para pedir conselhos a quem quer que seja.   MARIA Mas o coração engana tantas vezes...    DOUTOR Engana; mas quando não somos nós enganados?   MARIA E se o doutor estivesse no meu lugar, o que faria?   DOUTOR Eu?... Não me casava.   MARIA Por quê?   DOUTOR Porque sabia o que tinha e ignorava o que havia de ter. Sabe o adágio: — “mais vale um pássaro na mão do que dois voando...” — A senhora é rica, independente e respeitada. Para que há de abandonar esta tranquilidade, esta calma ininterrompida em que vive, pelo que não conhece, pelo ignoto?... A senhora foi feliz no seu primeiro casamento. Sê-lo-á no segundo?...    MARIA Essa pergunta já fiz a mim própria...    DOUTOR E o que lhe respondeu o coração?   MARIA Nada... Calou-se.   DOUTOR Calou-se, porque o problema é insolúvel. O casamento é como a loteria. Compramos o bilhete, muitas vezes com sacrifício. Nesse pedaço de papel concentramos todas as nossas esperanças, todos os nossos pensamentos. Formamos mil castelos, edificamos palácios, compramos carruagens, temos lacaios, damos bailes, adquirimos um título de nobreza, sustentamos, enfim, um aparato esplêndido. E à força de pensarmos nestas coisas, convencemo-nos de que já as possuímos e habituamo-nos a elas. Um dia, anda a roda. Nós lá estamos, com o coração palpitante, os olhos fixos, as narinas dilatadas, o corpo trêmulo... De repente, a um simples movimento daquelas rodas de que está pendente a nossa fortuna, desmoronamse os palácios; as carruagens, os bailes, os títulos, os lacaios, a opulência — tudo desaparece em um momento. Tudo aquilo não foi mais do que um sonho... Onde julgávamos achar a felicidade, fomos encontrar um desengano cruel, um desengano muitas vezes fatal. O casamento é assim...    MARIA Mas então ninguém se casaria!   DOUTOR Perdão... Pela mesma razão, ninguém compraria bilhetes da loteria, e todo o mundo os compra. Nem todos tiram bilhete branco. Eu falei unicamente dos que perdem. Há muitos que ganham. Mas tanto uns como outros, atiram-se ao desconhecido. Aqueles erram o alvo, estes acertam: — é a felicidade de cada um.   MARIA Mas o que me aconselha?   DOUTOR Já lhe disse: — consulte o seu coração. A senhora vai comprar um bilhete da loteria. Desejo de toda a minha alma que tire a sorte grande.   MARIA Então incomodei-o inutilmente, doutor.   DOUTOR Pelo contrário: deu-me um prazer lembrando só de mim. Sinto não poder dar-lhe um conselho, porque um conselho é coisa muito melindrosa... Se fosse uma receita...    MARIA Obrigada.
  DOUTOR Eu, no seu caso, não me casaria. É unicamente o que posso dizer. Mas a senhora tem muito juízo, e fará o que o seu são juízo lhe ditar. (Tomando o chapéu) Adeus, minha senhora. Peço-lhe que dê um abraço na menina Júlia... um abraço de verdadeiro amigo.   MARIA Adeus, doutor. Apareça. O senhor tem-se tornado ultimamente quase invisível... Quem sabe se pretende casar-se também?...    DOUTOR Nada. Minha mulher, que Deus tenha em sua santa floria, era um anjo, e os anjos não abundam. Neste vale de lágrimas em que vegetamos, tenho notado que há mais demônios do que anjos. Além de que, nunca gostei de jogar na loteria. E creio que se todos pensassem como eu, não veríamos tantas infelicidades. Até amanhã. (Sai)      CENA XIII    MARIA (pensativa, depois de pausa)  Quem sabe?... quem pode desvendar os arcanos do futuro? Amo-o... ele ama-me... Pois a felicidade do casamento não provém da reciprocidade de sentimentos, do mútuo amor?... Diz-me o coração que serei feliz... que nada devo recear... Tentemos...      CENA XIV Maria e Lúcia.   LÚCIA Minha senhora, está aí outra vez o Sr. Jorge, que insiste para falarlhe.   MARIA
Ah! Que entre. (Lúcia sai)   
 
CENA XV Maria e Jorge.
  JORGE Maria...    MARIA Ah! eu sabia que havia de voltar... Então, fica à porta?...    JORGE Maria, peço-lhe que me ouça... (Desce)    MARIA Em que tom me diz isso! Quem o ouvisse, julgá-lo-ia um Otelo no momento em que...    JORGE Não graceje! oh! não graceje!   MARIA Por quê?   JORGE Porque o que tenho a dizer-lhe é muito sério.   MARIA E o que tem a dizer-me?   JORGE Ouça   MARIA Não é preciso, porque eu sei tão bem como o senhor. Acedo aos seus desejos.
  JORGE (alegre)  Acede!   MARIA Mas com uma condição: a minha fortuna pertence à minha filha. O senhor não poderá tocar em um real. Na escritura há de ser mencionada esta clausula.   JORGE Aceito... porque não é a sua riqueza que eu amo... (À parte) Depois veremos!   MARIA Aceita!...    JORGE Eu não ambiciono o seu ouro nem a sua opulência... ambiciono o seu amor, unicamente o seu amor...    MARIA (estendendo-lhe a mão)  Ah! bem me dizia o coração!... Amo-o!   JORGE (beijando-lhe a mão)  Maria!... (À parte) Triunfei, finalmente!...      CENA XVI Os mesmos e Júlia.   JÚLIA (entrando a correr)  Mamã! mamã!...    MARIA Vem cá, minha filha... Abraça o teu papá.   JÚLIA (a Jorge) 
Então a mamã quis?   JORGE (abraçando-a)  Quis, minha filha, quis!   JÚLIA Dá-me um beijo, papá!... (Jorge beija-a, Maria, sorrindo, contempla o quadro)     
 
ATO II A mesma vista do primeiro ato.
CENA I Júlia e Lúcia.
  LÚCIA (conduzindo Júlia, vagarosamente, pela mão)  Devagar, minha menina, devagar...    JÚLIA (pálida, magra e com olheiras)  Canso tanto, Lúcia!... Às vezes, parece-me que vou morrer... Ah! senta-me nesta cadeira... (Lúcia senta-a) Não sei que mal fiz a Deus, para sofrer tanto assim... (olhando para das flores de um vaso) Minhas pobres flores... meu formoso jardim, onde eu ia conversar com os passarinhos, que cantavam alegres... com as rosas, que desabrochavam sorrindo e cobertas de orvalho... com o sol, que despontava doirado, banhado com a sua luz brilhante as árvores floridas.   LÚCIA Sossegue, meu amor; descanse...    JÚLIA Às vezes começo a pensar e sinto como que o coração me dizer: — “Despede-te do sol, das flores, dos passarinhos, dos teus brincos infantis, porque não os verás mais” -   LÚCIA Menina, para que pensar essas coisas? A menina há de ficar boa, há de ir muitas vezes ainda ao seu jardim, para conversar com o sol, com as flores e com os passarinhos... Verá.   JÚLIA Não... sinto que não. Se já nem forças tenho para caminhar!... Lúcia, leva-me à janela... Muito impertinente me tenho tornado... Mas tem paciência, sim. Não é por minha vontade...    LÚCIA (amparando-a)  Vamos, minha menina...    JÚLIA És tão boa, Lúcia!...    LÚCIA Cumpro o meu dever. Além de que a menina é quase minha filha. Vi-a nascer, vi-a crescer, e acalentei-a nos meus braços. Se eu tivesse uma filha, estou certa que não a amaria mais do que amo a menina...    JÚLIA Obrigada, Lúcia...    LÚCIA Depois, a menina tratou-me sempre com tanto carinho, com tanto amor, que eu não faço mais do que pagar uma dívida de gratidão.   JÚLIA (encostando-se à janela)  Ah! pensei que não chegasse...    LÚCIA Olhe para o seu jardim, e veja como está bonito.   JÚLIA Como está lindo!... como está cheio de sol e de perfumes!... Como as trepadeiras se alastram em festões floridos nas grades do caramanchão!... Olha, Lúcia: era ali, por traz daquelas roseiras... lembras-te? que eu me escondia para te assustar quando passavas... Naquele banco, a mamã sentava-se, à tardinha, para me ver correr por entre as flores, em perseguição das borboletas... Naquele canto... Oh! como eu tenho saudades desse tempo!... Então eu brincava... era feliz... Hoje... Ah! lá chegou a mamã... sentou-se no banco... Mas o que terá ela?... Passa o lenço pelos olhos... oculta o rosto nas mãos... Chora... Mas por quê?...    LÚCIA Engana-se, minha menina: a sua mamã não está chorando...    JÚLIA Está, Lúcia. Eu bem vejo.   LÚCIA Porque não se senta, minha filha? Já deve estar cansada. Quer que a leve ao colo?...    JÚLIA Não... Dá me a tua mão... Muito te aborreço... não é?...    LÚCIA (beijando-a)  Aborrecer-me!... Se eu tenho tanto prazer em servi-la!   JÚLIA (sentando-se)  Quando vem a mamã?...    LÚCIA Quer que vá chamá-la?...    JÚLIA Não. Deixa-a descansar. Tenho-lhe dado tanto trabalho, que é bem que descanse um momento... Senta-te, Lúcia... Tu também deves estar cansada.   LÚCIA Não estou, não, meu anjo.   JÚLIA Onde está o papá?... Hoje ainda não veio abraçar-me...    LÚCIA Saiu muito cedo e não quis acordar a menina, que estava passando por um sono. Daqui à pouco estará aí.   JÚLIA Ele é tão bom... Não é, Lúcia?...    LÚCIA É, minha filha, mas...    JÚLIA O quê?...    LÚCIA Quer que lhe fale com franqueza?... Não gosto dele.   JÚLIA Por quê?...    LÚCIA Porque... porque... nem eu sei porque... Mas desde a primeira vez que o vi, antipatizei com ele.   JÚLIA Não te trata ele bem?   LÚCIA Tratar-me melhor seria impossível. Mas há pessoas que agradam ou desagradam à primeira vista. E a primeira impressão que o seu papá me causou foi desagradável.   JÚLIA E eu amo-o tanto!...    LÚCIA Mais do que ao outro?   JÚLIA Mais, não... É verdade: ainda não rezei hoje por ele... Leva-me, Lúcia, sim?...    LÚCIA Rezará logo mais... amanhã, quando estiver melhor, não é?   JÚLIA Não; quero rezar. Vamos.   LÚCIA Já que assim quer... (leva Júlia à porta do quarto)    JÚLIA (querendo abrir a porta)  Estou tão fraca, que já nem forças tenho para abrir uma porta... Abre, sim, Lúcia?... (Lúcia abre) Agora, ajuda-me a ajoelhar... (Lúcia ajuda-a) Meu pobre pai! (Unindo as mãos) Meu Deus! Pai de todas as criaturas, vós que perdoastes aos vossos assassinos, vós que sofrestes todos os martírios para a nossa salvação, vós, que derramastes o vosso sangue para a remissão dos nossos pecados, vós que sois bom e misericordioso, perdoai a meu pai todas as culpas que neste mundo cometesse e tende-o no seio da vossa divina glória... (Ocultando o rosto nas mãos) Lembro-me tanto dele!... tanto!... Oh! se eu pudesse ir abraçá-lo no céu !... Era a maior alegria que Deus podia dar-me!...    LÚCIA Não diga isso, meu anjo...    JÚLIA Se eu morresse, não sofreria mais...    LÚCIA Mas a menina disse que não sente dor alguma...    JÚLIA E não sinto... mas diz-me o coração que morro... Quero levantar-me, Lúcia... Ajuda-me... (Lúcia levanta-a) Adeus, meu pai!... Até amanhã!... Lúcia, fecha esta porta, sim?... 
(Lúcia fecha a porta e leva Júlia para a cadeira)    LÚCIA E não se sente melhor hoje?   JÚLIA Não. A fraqueza é a mesma.   LÚCIA Quer um biscoitinho?...    JÚLIA Obrigada.   LÚCIA E o seu remédio?... Quer tomá-lo?...    JÚLIA Logo. Quero tomá-lo pela mão do papá... Ele fica tão aflito quando vê que o remédio não produz efeito! Já reparaste?...    LÚCIA Ainda não. Por que não vai deitar-se um instantinho?... Vai, sim?... Faça-me a vontade... 
  JÚLIA Para quê?   LÚCIA Para descansar... Vamos.   JÚLIA Pois vamos...    LÚCIA (conduzindo-a)  E há de dormir também...    JÚLIA Se puder...    LÚCIA Fique bem quietinha, que há de poder... 
(Saem)  
  
CENA II 
  MARIA (entra pelo fundo, abatida e triste. Senta-se. Pausa)  Há um mês que sofre aquela pobre criança... Vai desaparecendo aos poucos, como uma luz quase a apagar-se... Era o sorriso, a alegria, o sol que iluminava esta casa... Hoje está tudo triste e silencioso como um túmulo, já não se ouve a sua voz suave, a sua risada argentina... Oh! só quem é mãe é que pode julgar o que eu sinto!... Todos os recursos têm sido inúteis... A moléstia progride, caminha a passos de gigante, e a minha filha há de morrer!... Morrer!... E eu hei de perder o meu maior, o meu único tesouro!... Daria tudo quanto possuo para salvá-la... tudo!... Perdê-la... vê-la morta... fria... com os lábios cerrados... os olhos vítreos... a face de mármore... chamá-la, abraçá-la, beijá-la... e ela ficar muda... fria... de mármore!... Ah! (Oculta o rosto nas mãos, sufocada em soluços) 
   
CENA III Maria e o Doutor.
  DOUTOR (da porta, à parte)  Pobre mãe!... (Descendo) Bom dia, minha senhora.   MARIA (indo a ele e tomando-lhe as mãos)  Ah! finalmente, doutor!... Não sabe com que ânsia o esperava... Vamos, vamos vê-la...    DOUTOR Piorou?   MARIA É a mesma coisa: aquela fraqueza, aquele abatimento... Diga-me, doutor: tem esperança?   DOUTOR Eu... tenho... e a senhora deve tê-la também... O que seria das almas que sofrem, dos corações que choram, se ela não viesse derramas nas úlceras da alma, nas chagas gotejantes do coração o bálsamo sacrossanto dos seus sorrisos divinos?   MARIA Ah! doutor, que bem me fazem as suas palavras!... Creio e espero...    DOUTOR Por que não faz uma viagem?   MARIA Seria útil?...    DOUTOR As viagens são sempre o remédio salutar ministrado pela natureza, quando a medicina confessa-se fraca... 
  MARIA Mas então... a sua ciência julga-se importante para vencer o mal?... Então... a moléstia de minha filha é incurável?...    DOUTOR Perdão! Eu não disse isso... Se as viagens fazem bem aos enfermos no último período, mais vantagem devem oferecer àqueles cujo estado não é ainda desesperador. Sua filha está neste último caso. As viagens são sempre uteis a todas as moléstias, que físicas, que morais. A mudança de ares, novas paisagens que se oferecem à vista, novos hábitos, diferentes usos, são sempre o melhor remédio. As dores mais fundas, os mais fundos sofrimentos, os mais dolorosos desgostos, insensivelmente desaparecem com a mudança de um país para outro. Peça a seu marido, e vão viajar. Se quiserem, acompanhá-los hei.   MARIA Doutor, parece que o senhor me ilude... Minha filha está condenada.   DOUTOR Ainda não.   MARIA Dá-me a sua palavra?...    DOUTOR (à parte)  Há ocasiões em que a mentira é uma virtude... (Alto) Dou, minha senhora, dou a minha palavra.   MARIA Obrigada, doutor, muito obrigada!   DOUTOR Vamos ver a nossa doentinha.   MARIA Vamos. (Acompanha o doutor até a porta. O doutor sai. Fica encostada ao umbral, olhando para dentro)      CENA IV   MARIA Contrai os supercílios... sacode a cabeça... desanima... (Desce, comprimindo a fronte com as mãos) Oh! meu Deus! meu Deus! a minha filha não se salva!... (Cai, soluçando em uma cadeira)      CENA V Maria e Doutor.   DOUTOR (entrando, à parte)  É inacreditável: não posso compreender aquela moléstia...    MARIA (indo a ele)  Então, doutor?   DOUTOR Está adormecida agora...    MARIA Viu-a?   DOUTOR Vi.   MARIA (cada vez mais ansiosa, com voz trêmula)  Examinou-a?   DOUTOR Examinei.   MARIA E ainda tem esperança?   DOUTOR Tenho.   MARIA O senhor ilude-me.   DOUTOR Como?   MARIA Eu olhava-o daquela porta e vi todos os seus movimentos. É inútil constranger-se por mais tempo. Diga a verdade, a verdade inteira.   DOUTOR Aquela moléstia é incompreensível, e confessa que todos os esforços por mim feitos até agora têm sido infrutíferos. Ela não sofre, não sente a menor dor, e, no entanto, vai se consumindo aos poucos. É extraordinária aquela enfermidade...    MARIA Como?   DOUTOR Há trinta anos que exerço a medicina e tenho tratado milhares de enfermos, mas é a primeira vez que isto veio. (Senta-se à mesa. Enquanto escreve a receita) Torno a aconselhar-lhe as viagens. Vá viajar. Tenho esperança que a menina Júlia se restabelecerá. (Dando a Maria a receita) Aqui está. Mande imediatamente à botica. (Depois de uma pausa, como que se lembrando) É verdade: quem é que dá o remédio à sua filha?   MARIA É meu marido.   DOUTOR Só ele?   MARIA Só. Não quer que outrem faça esse serviço.   DOUTOR (admirado)  Deveras!   MARIA Meu marido tem um coração de ouro, doutor. Ama essa criança como se ela fosse sua filha. O doutor não calcula quanto a moléstia de Júlia tem-no feito sofrer...    DOUTOR Uma solicitude tamanha!...    MARIA Admira-o?   DOUTOR Bastante... Olhe, minha senhora: conheço um veneno que produz os mesmos sintomas que apresenta a enfermidade de sua filha...    MARIA O que quer dizer, doutor?   DOUTOR Nada.   MARIA (como assaltada de uma ideia)  Pois meu marido?...    DOUTOR Seu marido, minha senhora, é padrasto de sua filha, e sua filha é talvez um estorvo aos seus planos... Não é a primeira vez que penso nisto...   
MARIA (altiva)  Senhor!   DOUTOR Não se ofenda. Eu não faço mais do que expender uma ideia que me incomoda há uns poucos de dias. Se estou em erro, Deus me perdoará o juízo temerário; se acerto...    MARIA (dando-lhe as costas)  Nunca pensei que o doutor fosse... um caluniador!   DOUTOR Obrigado, minha senhora. Tenho cinquenta anos, e é a primeira vez que me insultam. (Tomando o chapéu) Adeus, minha senhora. Amanhã, se não julgar conveniente fechar as suas portas a um caluniador, voltarei. Amo muito essa pobre criança, e quero lutar até vencer ou sucumbir. Até amanhã. (Sai)      CENA VI MARIA (acompanha o doutor, depois vai à porta do quarto de Júlia e para um momento a olhar para dentro. Descendo)  E se fosse verdade?... Se esse homem tenta assassinar minha filha, para apoderar-se da minha fortuna?... Mas se isto é assim... é uma monstruosidade... é uma coisa horrível! Então não me ama... simula aquele afeto todo para iludir-me... (Pausa) Mas parece-me impossível... O doutor terá razões, que eu ignoro, para detestar meu marido, e vinga-se assim. (Pausa) Espioná-lo... seguir-lhe os passos... acompanhá-lo como a sua sombra... Não, não farei isto... É uma infâmia!... (Pausa) Mas se tudo é real?... Se ele, como de fato, está assassinando minha filha?... Oh! esta dúvida é atroz!...      CENA VII Maria e Lúcia.  
LÚCIA (saindo do quarto de Júlia)  Minha senhora.   MARIA Ah! ia chamar-te. (Dando a receita) Manda imediatamente esta receita à botica e volta cá. Anda... vai... A menina...    LÚCIA Continua adormecida.   MARIA Está sossegada?   LÚCIA Não muito.   MARIA Vai.   LÚCIA Sim, minha senhora. (Sai)      CENA VIII    MARIA Vou dizer-lhe tudo. Quero ouvir a sua opinião. Jorge trata-a bem, e ela não tem motivos para aborrecê-lo. Deve ser sincera...      CENA IX Maria e Lúcia.   LÚCIA Aqui estou, minha senhora.   MARIA Gostas do teu amo?   LÚCIA Por que me faz essa pergunta?   MARIA Gostas?   LÚCIA Quer que lhe fale com franqueza?   MARIA Sim; fala.   LÚCIA Não gosto.   MARIA Mas ele trata-te bem...    LÚCIA É verdade, mas aquela delicadeza é uma mentira... Seu marido, minha senhora, não pode ser bom...    MARIA Mas deves ter uma razão para dizer isso...    LÚCIA Tenho a instintiva antipatia que lhe voto.   MARIA Mas o coração também se engana...    LÚCIA Os olhos, segundo dizem todos, são o espelho da alma... Pois bem: o olhar do Sr. Jorge não é bom. Tem olhar de louco ou de...   
MARIA Ou de assassino, não?   LÚCIA De assassino?...    MARIA De assassino, sim.   LÚCIA Mas assassino... de quem?   MARIA Da menina Júlia.   LÚCIA O que diz, minha senhora?...    MARIA É uma ideia do doutor...    LÚCIA Oh! mas isso é demais!... Aborreço-o, é verdade, mas não o julgo capaz de tanto...    MARIA Nem eu. Mas é forçoso sairmos desta dúvida. É preciso que o espiemos e que nunca lhe demos a conhecer nossa desconfiança.   LÚCIA A pobre menina!...    MARIA Espiemo-lo. Pode ser uma loucura do doutor... mas também pode ser verdade...    LÚCIA Serei incansável, minha senhora. 
(Ouvem-se passos fora)    MARIA Silêncio!    
CENA X As mesmas e Jorge.
  JORGE (beijando Maria na fronte)  Bom dia, minha querida.   MARIA (sorrindo)  Bom dia.   JORGE Sabes que partimos amanhã?   MARIA Para onde? 
(Lúcia vai dispor as flores dos vasos, no fundo)    JORGE Para a fazenda de um amigo. Lembrei-me que a mudança de ares deve fazer bem à nossa querida filhinha, e para restabelecê-la empregarei todos os esforços.   MARIA Tens muito amor a essa menina, Jorge?   JORGE Por certo, minha querida. Não estou eu fazendo as vezes de seu pai?... Depois, ela é tão galante, tão mimosa, que não se pode vê-la, sem amá-la. O doutor já esteve cá?
  MARIA Já.   JORGE E o que disse?   MARIA Aconselhou-me que viajasse.   JORGE Aí está: tive a mesma ideia. E para onde queres ir?   MARIA Para onde for da tua vontade.   JORGE Partiremos amanhã. Tenho fé em Deus que com esta mudança a nossa querida menina há de restabelecer-se.   MARIA E eu também...    JORGE Vamos vê-la, sim?... 
(Entram no quarto de Júlia)     
CENA XI 
  LÚCIA (descendo)  Ah! o doutor disse isso!... Deve ser verdade, e eu acredito que o seja... A primeira vez que vi este homem, tive um sentimento de repulsão, de aborrecimento... Mas hei de espiá-lo, e ai! dele! Então, mata-se, assim, aos poucos, lentamente, uma pobre criança inofensiva, e não se há de pagar esse crime!... minha ama não quis nunca atender ao doutor... Quantas vezes lhe disse ele: — “Eu, no seu lugar não me casava!” — Ela, porém, cerrava os ouvidos à voz da razão, para escutar somente a voz do seu amor. O resultado foi este: a tristeza e as lágrimas... Mas veremos!... (Vai receber o medicamento que um criado traz, coloca o vidro em um dos aparadores, para um instante à porta do quarto de Júlia, sacode a cabeça com desânimo e sai, enxugando as lágrimas)      CENA XII Jorge, Maria e Júlia.   JORGE (conduzindo Júlia pela mão, carinhosamente)  Sofres muito, minha querida filhinha?   JÚLIA Não, papá. Não sinto dores... É esta fraqueza que me mata...    JORGE Tem paciência, filha. Hás de ficar boa. (Senta-a)    JÚLIA Ah! se eu ficasse boa!... Tu querias ver-me boa outra vez... não é verdade, papá?   JORGE Se queria!... Não és tu a alegria desta casa, a minha felicidade, a ventura de tua mãe, o anjo adorado do nosso lar?...    JÚLIA Chega-te para aqui, mamã... Por que ficas tão longe de mim?... Dáme um beijo... (Olhando para o quarto, cuja porta está fechada, e dando um grito sufocado) Ah!   MARIA O que é, filha?...   
JÚLIA Ali... não vês?... encostado àquela porta... olhando para mim com os olhos vítreos e pasmos?... Ah! é ele, mamã... é ele...    MARIA Ele quem, filha?...    JÚLIA Vens buscar-me, papá?... Estavas com muitas saudades da tua filhinha?... Pois vamos... vamos... Ergamo-nos nas asas da brisa... em um raio do sol... no perfume das flores... Vamos... E lá, no céu, rodeados de anjos, e as doces melodias de peregrinos cantares... eu adorarei contigo a grandeza de Deus... tu serás feliz com o meu amor... e nós cantaremos sempre... sempre... sempre...    MARIA (aflita)  Júlia! Júlia!   JORGE (à parte)  Começa o delírio...    JÚLIA Vamos, papá... Eu quero ir contigo... Mas... e a mamã... há de ficar aqui, sozinha, sem a sua filhinha?... Eu era tão feliz!... Aos doces afagos de meus pais, eu via correr a minha vida serena e bela, e nunca uma lágrima veio velar o brilho dos meus olhos... Tu morreste, papá... Por ti senti a primeira dor... sufocou-me o primeiro soluço... derramei a primeira lágrima... Oh! meu Deus!... quanto custa vermos morrer aqueles que amamos, que nos amam, que nos enchem de beijos e de carícias!... Mamã... mamã...    MARIA O que é, minha filha?...    JÚLIA Tu me deixas ir com o papá?... Não choras por mim, não?... Eu, lá do céu, acompanharei os teus passos, velarei por ti e pedirei a Deus que te dê todas as felicidades...    MARIA Não digas isso, filha, que me rasgas o coração!...    JÚLIA Então como há de ser?... Se eu for, tu choras... se eu ficar, o papá chora também... Como há de ser, mamã?...    MARIA O papá não chora... Ele está em um lugar onde nunca se chora, minha filha...    JÚLIA Eu sei... Como deve ser bonito o céu, mamã!...    MARIA (à parte)  Oh! isto corta o coração... Não é possível que este homem...    JORGE (à Maria)  Minha querida, deixa-me só com ela. Tu não podes assistir a isto... Vai. Eu velarei por ti e por mim.   JÚLIA Então a mamã vai-se embora?...    JORGE Ela já volta, minha filha. Vai mandar chamar o doutor. Tem paciência um momento, sim?...    JÚLIA Ah! vai mandar chamar o doutor... há tanto tempo que ele não vem cá...    MARIA Enganas-te. Ainda há pouco esteve aqui...    JÚLIA E como é que eu não o vi?...    MARIA Estavas dormindo.   JÚLIA Ah! lembro-me agora... Estava adormecida... Sonhava com meu pai...    MARIA (à parte)  Sempre esta ideia!   JÚLIA Ele estava encostado à cabeceira da minha cama. Olhava para mim e sorria-se... mas com um sorriso tão triste... tão triste que me cortava o coração... De repente, uma harmonia suavíssima, uma harmonia como só podem ter os cânticos dos anjos, fez ouvir por cima da minha cabeça... Olhei... O teto do quarto tinha desaparecido... as cortinas do meu leito estavam rotas... Vi o céu abrir-se... Em um raio de sol desceram todos os anjos do paraíso... Quem pudesse ter asas como os anjos, mamã! Aproximaram-se de mim... beijaram-me e começaram a cantar... Meu pai perguntou-me: — “Queres ir com eles?” — E eu respondi: — “Quero, papá, quero!” — Então aquela infinidade de anjos estendeu as asas douradas... meu pai suspendeu-me ao colo e depôs-me sobre elas... Os anjos subiram, cantando... Eu olhava para baixo e dizia-te adeus, mamã... Depois, foste desaparecendo, desaparecendo... até que não pude mais ver-te. Entramos no céu... Quanta luz!... quantas flores! quantos perfumes!... Deus abraçou-me, a Virgem deu-me um beijo e Jesus disse-me: — “O lar dos anjos é o céu; o teu lar é aqui, meu anjo!”   MARIA (que tem ouvido com grande aflição) 
Basta, filha! basta!... Isso foi um sonhos. Esquece-o... Quem estava debruçado à cabeceira do teu leito não era teu pai...    JÚLIA Quem era então?...    MARIA Era o doutor, que vinha ver-te, porque é muito teu amigo...    JÚLIA Ah! era ele! E como me achou?   MARIA Melhor, muito melhor. Disse que dentro em poucos dias estarias boa.   JÚLIA Boa?   MARIA Sim; boa.   JÚLIA Para cantar... para brincar no jardim... para correr por entre as flores... para conversar com os passarinhos... para apanhar borboletas...    MARIA Sim, para tudo isso...    JÚLIA Estou tão fraca, mamã!...    MARIA Pois descansa. Tens falado tanto, que deves estar cansada. Queres que vá buscar-te flores?...   
JÚLIA Sim... vai... Traze-me rosas... só rosas... Não me tragas goivos nem saudades, mamã... Ah! pergunta aos passarinhos se têm tido saudades de mim... Perguntas?...    MARIA Pergunto, sim.   JÚLIA Eles eram tão meus amiguinhos!...    MARIA (beijando-a)  Até já, minha filha.   JÚLIA Até já, mamã... Não te demores muito, não?...    MARIA Não. Volto já.   JÚLIA Não te esqueças que eu quero somente rosas... rosas...    MARIA Sim; trago-te somente rosas. (Sai)      CENA XIII Jorge e Júlia.   JORGE Não queres deitar-te?...    JÚLIA Não. Prefiro estar aqui... Leva-me à janela, sim?... Quero ver a mamã no jardim...   
JORGE (conduzindo-a)  Vamos... 
 
(Júlia encosta-se à janela. — Maria aparece à porta do quarto de Júlia, onde fica de observação)    JÚLIA Mas onde está ela?... Não a vejo...    JORGE Está talvez do outro lado... Disseste-lhe que querias somente rosas, e provavelmente foi colhê-las no canteiro da esquerda, onde elas estão mais bonitas...    MARIA (à parte, à porta)  Este homem não pode ser criminoso...    JÚLIA Ah! lá está Lúcia... Vês, papá?...    JORGE Vejo.   JÚLIA Está também colhendo flores... Então todos colhem flores para mim?   JORGE Não. Aquelas são para os vasos. As tuas é a mamã quem as traz.   JÚLIA Olha, papá... naquela árvore...    JORGE O quê?   JÚLIA Dois passarinhos... não vês?   JORGE Vejo, minha filha, vejo.   JÚLIA E como cantam! como estão alegres!   JORGE É porque são felizes.   JÚLIA Quem sabe se me viram aqui, papá?...    JORGE Talvez, minha filha.   JÚLIA (agitando a mão)  Adeus, meus amiguinhos!... adeus!...    JORGE (beijando-a)  Meu anjo!   MARIA (à parte)  É impossível! É um crime suspeitar dele!   JÚLIA (chamando)  Lúcia... não apanhes tanto sol, que te faz mal... Dize à mamã que venha para casa...    JORGE (à parte)  Às vezes tenho pena, mas é necessário...    JÚLIA Ainda me queres muito, papá?...    JORGE Quero, minha filha... quero-te mais do que nunca.   JÚLIA Eu também te quero tanto!   JORGE Vamos tomar o nosso remédio?...    JÚLIA Amarga tanto, papá!   JORGE Mas é para teu bem. (Leva-a para o sofá)    MARIA (à parte)  Chega o momento... Mas é impossível!   JORGE (indo à mesa onde Lúcia deixou o frasco)  Ah! temos remédio novo! Talvez este tenha melhor gosto, minha filha.   JÚLIA Ah! é outro?... Se esse me fizesse bem...    JORGE (enquanto tira do bolso um vidrinho e despeja alguma gotas do líquido nele contido em uma colher que está sobre a mesa)  Há de fazer... Tenho esperança... (Acaba de encher a colher com o remédio do frasco e desce, deixando o vidrinho no aparador) Toma, minha filha. Estou certo que este remédio te restituirá a saúde...      CENA XIV Os mesmos e Maria.   MARIA (no momento em que Jorge aproxima a colher dos lábios de Júlia, Maria, que lhe tem acompanhado todos os movimentos com extrema ansiedade, precipita-se e segura-lhe bruscamente no braço) 
Assassino!...    JORGE (recuando de chofre)  Ah! 
 
(Encaram-se um momento)    JÚLIA Mamã...    MARIA (com cólera concentrada)  Envenenava-a! envenenava-a!... Mas então o que é o senhor?... Nesse peito não palpita um coração? essa alma está tão corrompida, que não se confrangia ante tamanho crime?... E o senhor matava-a, covardemente, miseravelmente, sem que sequer tivesse um momento de compaixão! Ah! e eu amei-o! amei-o!   JÚLIA Mamã, mamã...    JORGE A senhora não dirá uma palavra! Deixe-me sair!...    MARIA (inteiramente fora de si)  Não sairá! (Toma-lhe a passagem)    JÚLIA Mamã... mamã...    JORGE (segurando Maria pelos pulsos, raivoso)  Deixe-me sair!... deixe-me sair!   MARIA (lutando)  Há de sair, mas passando por cima do meu cadáver!... Vamos!... Mais um crime!... mate-me!... O senhor sabe matar!...    JORGE Maria!   JÚLIA Mamã... onde estás... Já não te vejo...    MARIA Oh! eu enlouqueço!... Socorro! socorro! (Consegue fugir às mãos de Jorge, e vai cair de joelhos perto da Júlia, a quem recebe nos braços. — Jorge vai sair, mas encontra-se com o doutor e recua)      CENA XV Os mesmos e o Doutor.   DOUTOR (à porta)  O que é isto?   MARIA Acuda, doutor!... Minha filha morre... morre envenenada!   DOUTOR Ah! (A Jorge) Eu bem suspeitava!... O senhor é um miserável!   JORGE Senhor!   DOUTOR (chamando)  José! Pedro!   JORGE (atirando-se)  Oh! quero passar! hei de passar!...    DOUTOR (repelindo-o)  Mas não passará assim!... É um miserável, repito!... Para que se introduziu no seio desta família?... Para, — impelido pela ambição, pela loucura do ouro, — vir lançar aqui as lágrimas, as agonias e a morte!... E depois de consumar o mais hediondo dos crimes, queria sair, franca e livremente, para talvez ir mais adiante cometer crimes novos!... Oh! não! Os martírios que aquele pobre anjo tem sofrido pedem vingança, e o senhor há de expiá-los, para exemplo à sociedade e às mães de família, que, inconscientes como aquela, sacrificam a sua felicidade e o futuro de seus filhos a uma paixão cega, a uma louca vaidade talvez!...    JORGE (aniquilado)  Senhor!   DOUTOR (aos criados que entram)  Levem este homem daqui, e tenham-no em guarda. Se tentar fugir, matem-no! (Os criados olham-se, admirados)    JORGE (à parte)  Estou perdido!   DOUTOR (aos criados)  Então! segurem-no!   JORGE Não se aproximem! não se aproximem!   DOUTOR Segurem-no! Este homem é o assassino da menina Júlia!... 
(Os criados avançam e seguram Jorge, que vai debatendo-se até desaparecer)      CENA XVI Júlia, Maria e Doutor.   DOUTOR (que tem ido até à porta, desce a dirige-se ao grupo formado por Maria e Júlia)  Minha senhora!... minha senhora!  
JÚLIA (com voz fraquíssima)  Mamã... mamã... já não te vejo... Onde está o papá?... Cheguem-se todos... para perto de mim... Chamem Lúcia... Sinto que vou morrer... morrer, mamã... morrer...    MARIA (com um grito de supremo desespero)  Ah!   DOUTOR Coragem, minha senhora! coragem!   MARIA Salve-a, doutor! salve-a!   JÚLIA Mamã... mamã... abraça-me... Quero morrer... morrer nos teus braços... Meu Deus! Ah! (Deixa pender a cabeça sobre o ombro de Maria)      CENA XVII Os mesmos e Lúcia.   LÚCIA Senhora! senhora!   DOUTOR Silêncio!... (Mostrando Júlia) Está morta!... 
(Lúcia recua trêmula, olhando para o grupo)

 

 

                                                                  Horácio Nunes

 

 

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