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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ANO DO COMETA / John Christopher
O ANO DO COMETA / John Christopher

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ANO DO COMETA

 

Depois de ter lançado os restos da refeição na trituradora e de ter voltado a enfiar a mesa na parede, Charles Grayner afundou-se auto¬maticamente na cadeira que ficava junto à lareira e os seus olhos dirigiram-se, também automaticamente, para o televisor cintilante. O apa¬relho estava silencioso, apenas as figuras se deslocavam de um lado pa¬ra o outro, sem qualquer espécie de acompanhamento sonoro. Em tem¬pos, tivera, como toda a gente, o hábito de ligar o som e a imagem por uma questão de companhia, mas há cerca de um ano começara a sentir que se desenvolvia nele o hábito do silêncio. Envelhecia, pensava. De qualquer forma, adquirira o hábito de cortar o som logo que entrava em casa, ao fim do dia.

Costumava deixar o aparelho desligado quando saía de manhã, mas a mulher-a-dias ligava-o. Acabara por lhe conhecer os hábitos em programas de televisão; normalmente via um de três canais — Liga Vermelha, Doçura e Conforto Brilhante. Constituía para ele uma dis-tração tentar adivinhar qual o que deixara ligado, sem levantar o som e sem olhar para os botões de controle. Naquela noite, era muito fácil. Reconheceu a cantora: Loulou del Keith, um exclusivo do Cosy Bright.

Carregou no botão do som, instalado no braço da cadeira, e a voz, elevando-se numa onda sonora ainda mais profunda que os próprios violinos elétricos, acariciou-o ternamente. Ela inclinou-se para a fren¬te e a câmara aproximou-se propositadamente durante um segundo, antes de focar um grande plano insípido. Tinha o olhar úmido e ao mesmo tempo lascivo. Quando a câmara se afastou, preparando-se para lhe fazer outra incursão no busto, ele baixou a mão para o painel de controlo. Deteve-se por momentos e depois premiu decididamente o nono botão.

A imagem e o som desapareceram e foram substituídos. A música agora era de Mozart, um quarteto de cordas que conhecia. E — qual era? Isso já não sabia. No écran via-se agora «A Purificação do Tem¬plo», de El Greco. Dinkuhl já usara anteriormente esta justaposição — duas vezes, pelo menos. Sentiu uma ligeira irritação; ele fora um dos que tinham protestado contra essa história de associar deliberadamente obras musicais a pinturas. O quarteto terminou com um bemol. Surgiu então o rosto de Dinkuhl, com o seu sorriso caracte¬rístico, meio trocista meio zangado.

—      Este — disse Dinkuhl — é o canal FK. — A sua voz era macia, mas flexível; podia apresentar entoações de raiva. — Proponho-me ajudar muita gente a poupar dinheiro. Bom, quando digo muita gente. — Encolheu os ombros. — Contratei um rapaz para ver por mim a minha correspondência e destruir toda aquela que me diga que tenho de deixar de relacionar Mozart e El Greco, ou Haydn e Rubens, ou Beethoven e Rembrandt. Poupem alguns cêntimos.

Dinkuhl sorriu.

—      Isto dirige-se a si. A si precisamente ou a duzentos descontentes, sabotadores, entre essa grande multidão de um ou dois mil entusiastas que escutam e vêem o canal FK. De qualquer forma, não merecem uma explicação, mas tê-la-ão na mesma.

Se tivéssemos dinheiro, meus amigos, contrataríamos para vosso deleite músicos de incomparável encanto. E se os não conseguíssemos encontrar, contrataríamos um grupo de beldades da Liga Vermelha ou Superluxo e ensinar-lhes-íamos pacientemente a arte de segurar os violi¬nos, a viola e o violoncelo nas posições corretas. Bom, tudo isto pode ser muito belo, mas não passa de um sonho. Por isso só lhes podemos dar pinturas, visto as coisas serem como são.

Fez uma pausa.

—      Serão capazes de me contrapor que preferem ver os músicos, em toda a sua fealdade, em toda a sua miséria? Nesse caso aconselho-os a que vão vê-los em carne e osso — em carne e osso, meus amigos, na sua carcaça decepcionante. Poucos de vós terão de se deslocar mais de quinhentas milhas para chegar a uma sala de concertos. Mas isto aqui é a Rádio-televisão e só há um canal FK e eu tenciono continuar a matar dois coelhos duma cajadada. Alguns telespectadores, pelo menos, de¬vem ter muita falta de ouvido para a música.

Dinkuhl afastou-se da câmara, voltou-lhe as costas e pôs-se a es¬quadrinhar um dos cantos do estúdio. A confusão parecia aumentar de dia para dia; devia haver momentos calmos, mas Charles nunca vira in¬dícios disso. Tinha a certeza de que os ratos que a câmara mostrava ocasionalmente, em segundo plano, provocando grande desordem, eram uma importação deliberada.

Dinkuhl voltou a enfrentar a câmara.

—      Agora me lembro — disse. — Já tenho tudo preparado. Senho¬ras e senhores, o noticiário FK!

A música era uma paródia ao indicativo musical do noticiário da Liga Vermelha, em tom menor, numa troça evidente. O écran mostrou o céu noturno, a Lua e alargou-se depois numa imagem familiar — a vista do observatório de Tycho, ao luar.

—      Aqui — disse Dinkuhl —, na superfície gelada e misteriosa da Lua, os homens servem a sua amante — a Ciência. Aqui, no grande observatório, os segredos do universo são desvendados, um após ou¬tro, ou centena após centena, ou milhar após milhar, seja qual for a média atualmente. O homem, esse ser insignificante, lança-se na vasti¬dão do espaço intergaláctico, buscando, buscando, sem admitir obstá¬culos nem derrotas. Somos realmente bons, não lhes parece? Polegada após polegada, ano-luz após ano-luz, o cosmo revela os seus mistérios, tal como uma mulher, como já foi provavelmente dito por algum indivíduo inspirado.

A cena mudou para o interior da cúpula e para a sala principal, on¬de se encontrava instalado um refletor gigante. Via-se uma figura encurvada sobre um óculo.

—      Além — disse Dinkuhl —, ao lado do mistério existe beleza. Observemos, com estes potentes perscrutadores dos céus, não um novo planeta, mas — o novo cometa.

O écran cobriu-se de estrelas brilhantes; a mancha brilhante do co¬meta aparecia ao centro, logo abaixo de Júpiter.

—      Ele aí está, por baixo do gigante Júpiter. Os astrônomos calcula¬ram que este grande planeta se passeou pela última vez na sua parábola, à volta do Sol, há dois mil anos. Pensem nisto, meus amigos. Há mais de dois mil anos. Enquanto oitenta gerações de homens vieram e se fo¬ram, enquanto reinos cresceram e se dissiparam, enquanto a raça hu¬mana ascendeu tão penosamente à sua eminência atual, aquela lumi¬nária majestosa, aquele balão celestial tem seguido o seu curso, a trilhões de milhas de distância, na escuridão do espaço exterior.

A sua voz adquiriu maior velocidade.

—      E agora, durante vários meses, vai aumentar em luminosidade, à medida que se aproxima do Sol, o circunda e se prepara para nos deixar durante mais dois milênios. Entretanto, os noticiários da TV dar-vos-ão todas as informações e mostrar-vos-ão o percurso do cometa por entre as estrelas cintilantes. Para vós, confortavelmente instalados ao lado da lareira, o cometa, vindo do espaço. Que fabuloso encontro!

A câmara voltou a focar o rosto de Dinkuhl. Quando baixou a ca¬beça, a luz brilhou na careca que lhe coroava o crânio e ele sorriu atra¬vés das suas sobrancelhas espessas.

—      Sabem qual é a minha sugestão? — perguntou Dinkuhl. Incli¬nou-se em direção à câmara, quase esboçando um beijo com os lábios. — Pois bem, sugiro que você se levante dessa cadeira, saia e vá ver por si próprio. Pode descobri-lo com o auxílio de um binóculo ou, se se verificar o caso raro de você possuir aquilo a que se costuma cha¬mar visão normal, a olho nu. Mesmo por baixo de Júpiter. Isto é, se conseguirem descobrir Júpiter. De qualquer forma, o canal FK propõe-se ajudar-vos no vosso caminho, da forma mais simples e eficaz, isto é, fechando durante meia hora. Aqui termina o noticiário. Vamos nós também até ao telhado para deitar uma olhadela ao cometa. Até já.

O écran ficou vazio. Charles levantou-se, hesitou por momentos e depois dirigiu-se para o armário onde tinha os acessórios de desporto. Os binóculos estavam pendurados do lado de dentro da porta. Quando atravessava o vestíbulo, lembrou-se de ligar o amplificador de chama¬da. Havia muito tempo que não recebia qualquer chamada enquanto estava no jardim, nem, aliás, quando estava em casa, fizera-o apenas por uma questão de rotina. A porta deslizou nas suas costas e ele sentiu o ar fresco da noite, úmido e um tanto gelado.

Acendeu as pequenas luzes que ladeavam o caminho do jardim, mas voltou a apagá-las, pois achou que roubavam qualquer coisa à escuridão majestosa da noite. A princípio avançou às cegas, descendo o caminho até ao ponto onde a sua visão do céu não sofreria qualquer interposição. Havia uma nuvem a leste, mas a luz das estrelas era bri¬lhante e não se via a Lua. Júpiter estava em Taurus, na extremidade da Via Láctea. Assestou o binóculo e descobriu o cometa. Ficou a olhá-lo até lhe doer o braço e lhe tremer a mão com que segurava o binóculo. Não tinha nada de especial — uma mancha branca, sobre a qual se via uma das luas do planeta, tal como uma pérola. Refletiu: outrora um prodígio, capaz de destronar reis e justificar profetas. E agora, no mundo inteiro, não passava de uma notícia para os líricos dos noti-ciários, que, por sua vez, Dinkuhl parodiava.

Preparava-se para voltar para dentro de casa quando ouviu o toque sonoro do amplificador de chamada; apressou automaticamente o pas¬so e depois, deliberadamente, voltou a abrandar a marcha. Os seus olhos já se tinham habituado suficientemente à luz das estrelas, para lhe permitir ver bem o caminho. Abriu a porta empurrando-a e desli¬gou o amplificador. Apenas se ouvia um zumbido persistente.

Já na sala, carregou no botão do painel de informações do écran de chamada. As letras tornaram-se vivas, do lado esquerdo, atravessaram o écran e voltaram a passar numa série sem fim:

 

GRAYNER DE LEDBETTER — 1QR D1V QG DETROIT — URGENTE URGENTE — PESSOAL - GRAYNER DE LEDBETTER – LADBETTER.

 

Não perdeu tempo a pôr o écran de chamada no circuito de resposta. Enquanto a sua confirmação era transmitida, puxou uma cadeira e sentou-se. Tentou sentir-se descontraído fazendo lembrar a si próprio que, aos trinta e oito anos, já não era altura de ficar preocupa¬do com chamadas inesperadas vindas do QG. Pelo menos era assim que devia ser.

Claro que não foi Ledbetter quem recebeu a chamada. Um jovem de olhar brilhante e tendo nas lapelas os pequenos emblemas semelhan¬tes a rubis, que formavam as palavras Indústrias Químicas Reunidas, emblemas esses que, segundo a moda do momento, substituíam as anti¬gas chapas de alumínio anodizado, sorria de forma que mostrava estar bem treinado na arte de fazer com que os homens mais velhos se sentis¬sem à vontade nas suas inferioridades.

—      Grayner? — disse. — Suponho que não nos conhecemos, não é verdade? Sou o Funcionário Paulton.

—      Muito prazer — disse Charles num tom inexpressivo.

—      O Gestor Ledbetter quer falar consigo; pediu-me que lhe mar¬casse uma entrevista. Pode cá vir amanhã de manhã?

Charles olhou-o. Paulton punha-o nervoso; não era apenas a im¬pressão de estar perante uma máscara afivelada para o deslumbrar, era também a sensação de que, esticando um pouco o pescoço, se poderia ver através dela. Respondeu pausadamente:

—      É um pouco em cima da hora. Gosto sempre de deixar tudo or¬ganizado no laboratório quando tenho que me ausentar!

Paulton olhou para o lado, consultando abertamente um dossier.

—      Deixe-me ver, o seu pessoal consta de...

Charles interrompeu-o.

Um assistente e dois rapazes. De qualquer forma, gosto de deixar as coisas planificadas.

Paulton sorriu.

—      Mesmo que eles passem um dia à boa vida, isso não vai afetar a economia. Pode ser às dez?

Pensou em dizer que tinha o giroplano avariado, mas pôs a idéia de lado. Pareciam tão ansiosos por falar com ele em Detroit que haviam de arranjar maneira de o mandar buscar.

—      Está bem.

—      Às dez. Procure-me primeiro a mim. O meu gabinete é o F 73. Conhece as instalações, segundo penso?

—      Já lá tenho estado.

—      Então até amanhã.

O sorriso de Paulton transformou-se num ar de concentração pro¬funda e depois desapareceu. O écran de chamada ficou vazio. Charles permaneceu imóvel durante alguns minutos. A primeira coisa que disse para consigo mesmo foi que não valia a pena tentar descobrir as razões possíveis para que tivesse sido convocado para aquela entrevista com Ledbetter. No entanto, foi exatamente o que fez a seguir.

O seu nicho nos laboratórios Saginaw era pequeno, mas aparente¬mente seguro. Ressentira-se, por vezes, da sua pequenez; ultimamente sentia-se mais inclinado para lhe apreciar a segurança. Desde que Led¬better assumira as suas funções, no ano anterior, houvera várias mu¬danças que tinham transformado a hierarquia Saginaw. Ele sentira-se satisfeito com a sua pouca importância e com o fato de representar in¬discutivelmente um beco sem saída, o que fazia com que não valesse a pena alvejá-lo. Agora via-se forçado a repensar a sua situação.

Contudo, no caso de haver uma despromoção — talvez um regres¬so ao laboratório geral — não compreendia lá muito bem por que o ha¬viam de chamar urgentemente a Detroit para lhe comunicar o fato. Era uma questão de rotina, que seria tratada pelas vias de rotina. Não seria necessária uma entrevista com Ledbetter para o confirmar.

Infelizmente, o argumento aplicava-se da mesma forma para a pos¬sibilidade, que ele não pôde deixar de considerar por momentos, de, ao fim de tanto tempo, surgir para ele uma oportunidade de promoção.

Os processos de promoção desenrolavam-se segundo regras extrema¬mente rígidas; segundo o protocolo, tudo tinha que passar através do gestor local e não havia qualquer razão para chamadas urgentes. As¬sim, ele tinha de admitir que não havia nada que apoiasse a hipótese da promoção. Dezesseis anos de pesquisas sobre as propriedades radioativas dos diamantes não lhe tinham dado qualquer preparação para o controle de um projeto mais vasto, sabia-o bem. Um assistente e dois rapazes. Após dezesseis anos era isso que podia fazer e nada mais.

Tudo aquilo o deixava nos ares. Nem despromoção nem promoção — porque seria então que o tinham chamado a Detroit? Riu para si próprio, com certa ironia. Seria que um dos seus relatórios tinha dado a alguém a idéia de que ele estava a caminho de uma síntese? Mas isso também não fazia sentido. Os relatórios mais recentes não se ocupavam de nada de novo e Ledbetter não era nenhum parvo que se pusesse a bordar sobre aquilo que lia.

Que vão para o diabo, pensou, de qualquer forma sabia que não se¬ria despedido com essa facilidade. Voltou a ligar a televisão. Ela bri¬lhou suavemente, mas sem imagem. O canal FK continuava fechado. Impacientemente premiu o botão da Liga Vermelha.

Estavam a dar Supercharada. Ramon Astell fazia as suas palhaça¬das habituais com os membros da charada. Charles, a princípio, tomou uma atitude desdenhosa, mas depois, incapaz de resistir àquela idiotice deliberada, largou a rir.

Paulton mostrou-se surpreendido, por momentos, ao ver-lhe o ros¬to. Charles estava de pé no corredor, em frente do gabinete 73 no piso F e o pequeno écran de chamada transmitia as suas feições ao painel que se encontrava na parede em frente da secretária de Paulton. O ros¬to de Paulton iluminou-se.

—      Grayner, claro! Entre, entre.

A porta do seu lado abriu-se, deslizando, e voltou a fechar-se de¬pois dele passar. Quando se encontraram frente a frente, Paulton tinha estampado no rosto um interesse genuíno. O seu controle era admirá¬vel, refletiu Charles; muitos teriam aparentado um esquecimento exa¬gerado. Apertou-lhe calorosamente a mão.

—      Gostaria de falar em excesso de trabalho — disse Paulton —, mas... — Sorriu e designou com um só gesto a secretária vazia e o écran vivo na parede: cortara-lhe ostensivamente o som quando Char¬les entrara. — Não creio que a ociosidade me faça qualquer bem.

Charles sorriu e não acrescentou nada. Se, por qualquer motivo pessoal e obscuro, Paulton pretendia apresentar a imagem vulgar da vi¬da administrativa como sendo a verdadeira, ele, pela sua parte, não via qual¬quer razão para o contradizer. Paulton observava-o cheio de astúcia, por detrás do seu sorriso auto-depreciativo.

—      De qualquer forma — prosseguiu Paulton —, isso não serve de desculpa para o fazer perder o seu tempo. Disse ao George dez e quinze — para o caso de você não chegar a tempo —, mas pode ir já. Ele não deve estar a fazer nada.

As instalações de Ledbetter eram em B, claro. Paulton conduziu-o ao gabinete que estava assinalado «Gestor G. D. Ledbetter» e assobiou à porta. Esta abriu-se e eles entraram. Ledbetter falava para um ditafone. Olhou-os severamente quando entraram, mas continuou com o que estava a fazer. Depois disse para Paulton:

—      Tenciono mandar mudar a chave sonora dessa porta. E farei questão de não lhe dar a conhecer a próxima. Quem é?

—      Grayner — disse Paulton. — Também não tem muita importân¬cia — a questão da porta. Grayner. Disse-me que o mandasse vir aqui para falar com ele.

Ledbetter disse:

—      Sim, claro. Está bem, Harry, pode sair. Para a próxima vez use o écran de chamada.

Paulton, disse, recuando:

—      Tentarei lembrar-me.

Entretanto Charles estivera a estudar Ledbetter. Já o vira em noti¬ciários e documentários, mas tratava-se de ocasiões formais. Neste mo¬mento, mostrava-se cordial e descontraído. Empurrou em direção a ele uma caixa de cigarros e Charles tirou um, Ledbetter pegou noutro. O pequeno jato de chama ergueu-se do isqueiro de mesa e ambos se in¬clinaram para acender os cigarros. Ledbetter encostou-se novamente para trás, segurando o cigarro numa das mãos e passando a outra pelo queixo alongado, com ar de quem reflete.

Tornara-se gestor muito novo e a sua posição atual fora obtida passando por cima de outros candidatos mais prováveis. Era talvez um ou dois anos mais novo que o próprio Charles; tinha os membros lon¬gos e, quando em repouso, dava sempre a impressão de estar a meio ca¬minho entre duas ações violentas.

Disse para Charles:

—      Deve perguntar a si mesmo porque é que o fiz vir até aqui.

Charles estava decidido a manter uma atitude prudente, mas não conseguiu deixar de corresponder, dentro de certa medida ao tom de in¬timidade amigável assumido por Ledbetter. Compreendia agora como é que ele subira tão depressa; alguns daqueles que tinham sido seus su¬periores deviam estar ainda a esfregar os olhos.

Charles disse:

—      Bom, é natural. Além disso, foi tudo um pouco em cima da hora.

Ledbetter abanou a cabeça afirmativamente.

—      A razão que me levou a querer falar consigo foi o fato de eu me encontrar a meio da tarefa habitual dos novos Gestores da Área. Estou a reorganizar os serviços. Acho que é o que esperam de mim. Depois, posso instalar-me e deixar as coisas andarem sozinhas até que seja transferido para outro lado ou morra. — Olhou diretamente para

Charles. — Deve ter notado as outras mudanças ocorridas anterior¬mente nas suas próprias instalações?

Charles abanou a cabeça.

—      Esperava talvez que o meu canto fosse demasiado pequeno para que dessem por ele.

Ledbetter voltou a examiná-lo; desta vez com ar perscrutador.

—      Você está há tempo demais nesse canto.

De uma das gavetas da secretária retirou uma cápsula de microfil¬me, que introduziu no projetor. O écran instalado na parede ilumi¬nou-se e apresentou o que se podia reconhecer imediatamente como sendo um dos relatórios do próprio Charles. «Efeitos da irradiação zeta sobre as propriedades fotoelétricas de um diamante tipo II (Cabo branco).»

—      O seu relatório é muito equilibrado. Mas você não tem ambi¬ções?

—      Tem o meu psicoplano.

—      Isso também — Ledbetter sorriu. — Temos estado a fazer a re¬visão dos métodos de avaliação. De fato, podemos dizer que a única coisa que o departamento Psico & Med não revê é o seu esplêndido ar de infalibilidade. Falando francamente, no seu caso, houve um erro de avaliação. Você não pertence ao tipo beco sem saída.

—      Sempre desconfiei disso, mas parece-me que já é um bocado tar¬de para fazer seja o que for.

—      S-sim. Em certos aspectos, de qualquer forma. Eu podia fazer com que lhe fossem apresentadas condolências oficiais...

—      Muito obrigado. É como se já as tivesse recebido. Não me fez vir aqui para me apresentar condolências — oficiais ou não?

Ledbetter estendeu a mão para os controles do seu aromofator.

—      Põe alguma objeção a um sopro marinho? — Charles sacudiu a cabeça e olhou-o enquanto premia um dos botões. Um aroma de al¬gas marinhas e água salgada espalhou-se no ar; o relatório desapareceu no écran e foi substituído por uma paisagem rochosa à beira-mar. Ti¬nha a impressão de que Ledbetter estava a dar-se ares, mas não lhe le¬vava a mal.

Ledbetter disse:

—      Este é um dos poucos aparelhos que me deram e de que eu gosto realmente. Sempre que posso vou andar de iate. Não, como é evidente, não o fiz vir até aqui simplesmente para lhe dizer que o P & M errou o seu psicoplano, há dezesseis anos. Se não houvesse nada a fazer, eu te¬ria tido o cuidado de evitar que você viesse à saber. A meada pode ficar ainda mais emaranhada ao tentar ser leal com as pessoas.

- Bom, vamos direto ao fim, ponhamos as cartas na mesa. Alfa — apetece-me fazer uma mudança. Beta — antes de mais, você nunca devia ter sido atirado para aquele laboratório. Gama é onde as coisas se complicam. Gama — você passou dezesseis anos às voltas com diamantes radioativos. Isso limita de forma assustadora as possi¬bilidades que temos a seu respeito.

Charles disse:

—      Muito interessante. Delta...?

—      Coincidência — disse Ledbetter —, a coincidência mostra a sua cabeça desajeitada, mas atraente. Há um lugar num sítio chamado San Miguel, a sul de San Diego. Um clima maravilhoso e o imenso Pacífico. Até eu gostaria de lá estar. Área QJ em Los Angeles — um tipo chama¬do Metrill. Você há de gostar dele.

Charles perguntou:

—      Instalações?

Ledbetter inclinou-se para trás. — Estava à espera dessa pergunta. Categoria L.

Não tirou os olhos do rosto de Charles. Este sentiu-se corar ligeira¬mente.

—      É uma oportunidade fantástica — observou. — De um assis¬tente e dois rapazes, para um assistente e dois rapazes. E que é que eu vou fazer durante os próximos dezesseis anos — eletrificar diamantes, em vez de os irradiar?

Ledbetter teve um sorriso irônico.

—      Pense no clima! Não é tão mau como pode parecer. Continuam a ser diamantes, é claro — que outra coisa lhe poderíamos dar? Mas você descobrirá coisas interessantes. Isto, por exemplo.

Retirou o microfilme do relatório de Charles e substituiu-o por ou¬tro. O rolar monótono das ondas deu lugar às linhas direitas de um tex¬to e algumas equações. Charles passou os olhos por elas. Depois olhou para Ledbetter. Este fez com que o filme subisse no écran, em movi¬mento retardado. O relatório desdobrou-se perante os seus olhos. No final, na lista de referências, aparecia uma meia dúzia de jornais. Char¬les olhou para Ledbetter.

—      Onde é que isto foi publicado?

Antes de responder, Ledbetter esperou que a paisagem marítima se tornasse novamente visível.

—      Não foi publicado.

—      Porquê?

—      Porque essa é uma das vantagens do seu novo lugar. Não pu¬blicar nada que não queira. Não fazer nada se não lhe apetecer. Sentar-se e mergulhar os pés no oceano todo o dia se lhe der na real gana. O laboratório fica independente — ao pé de um laranjal, segundo de¬preendo. Um vagabundo da ciência é o que poderá chamar a si próprio e com propriedade.

O espírito de Charles estava concentrado no papel que acabava de ser projetado. As coisas começavam a fazer sentido.

—      Tenho alguma coisa a ver com a Seção de Contato? — perguntou.

Ledbetter sorriu e deu mais força aos odores marítimos.

—      Não.

—      Tem a certeza?

—      As pessoas — disse Ledbetter — têm idéias muito estranhas acerca da Seção de Contato. Não sei o que se passa nas outras áreas, mas na IQR o seu orçamento não inclui os laboratórios especiais. Que é que a Secção de Contato poderia ter que ver com diamantes não isolantes? Os écrans de chamada não isolantes estão mais na sua linha.

Charles disse pacientemente:

—      Nesse caso, posso publicar tudo o que me apetecer?

—      Eu não disse isso. Bom — deixando-nos de meias-tintas —, não estava previsto que você fizesse tantas perguntas incômodas nesta fase inicial. Sim, é mais ou menos isso que você está a pensar. O seu novo trabalho é restrito. No que diz respeito à admin está adstrito a San Diego, mas todos os seus relatórios vão diretamente para Graz.

—      Para Tapron?

—      Para Nikko-Tsi, endereçados a Preston.

—      E que é que eles esperam de mim?

—      Não estou dentro do segredo. O relatório de Isaacsshon que você acaba de ver — não significa nada para mim, porque não está dentro da minha linha; no entanto, desconfio de que não deve haver nele nada de muito importante, senão não me teriam dado para lhe mostrar.

Charles disse:

—      De fato são tudo assuntos de rotina. Condutividade de bom¬bardeamento; trabalhamos um bocado nisso em Saginaw. Ledbetter acenou com a cabeça, apreciativamente. — Há um ou dois pontos, no entanto...

—      Ao que penso, a idéia era aguçar-lhe o apetite. Conseguiram?

—      Sim. — Hesitou antes de disparar a pergunta seguinte. — Que é que aconteceu ao meu predecessor. Envenenado pelas radiações ou afastado pelas variações administrativas?

—      Boa pergunta. Isaacsshon era, segundo me foi dado a entender, um marinheiro amador tal como eu — grande vantagem num local co¬mo o que lhe indiquei. Não conheço os detalhes, a não ser que o barco dele apareceu virado, mas ele nunca mais voltou. A costa é perigosa, segundo dizem.

Charles teve por momentos a impressão de que ele o olhava de uma maneira estranha, mas nada que lhe permitisse chegar a uma con¬clusão.

—      É uma costa muito perigosa. Eu, por mim, manter-me-ia afasta¬do, quando a maré começa a mudar.

—      Não me parece que me vá fazer ao mar.

Ledbetter abanou a cabeça. — É uma pena! Devo concluir que aceita?

—      Que mais posso fazer?

—      Num trabalho como este, têm-se na prática todos os direitos que normalmente se tem em teoria. Encare a questão do ponto de vista deles.

Charles acenou.. — Quando querem que comece?

Ledbetter olhou para os apontamentos que tinha em cima da secre¬tária, debaixo da mão direita.

—      Volte no seu giroplano para Saginaw. Vamos buscá-lo de ma¬nhã, com as suas coisas e apanha aqui o avião transatlântico das dez.

—      Amanhã de manhã? Já?

—      Acha que consegue?

—      Facilmente. Mas há assim tanta pressa?

—      Sabe Deus. Talvez seja uma questão de arrumação de serviços em Graz. Há outras rodas dentro das rodas administrativas. A pro¬pósito, no seu novo posto receberá mais quinhentos por mês. Tem di¬reito também a um giroplano Cat C e a uma limusine.

—      Magnífico.

Ledbetter olhou para ele com interesse.

—      Se tivesse vindo tão de baixo como eu, seria essa realmente a sua opinião. Mais um pequeno pormenor: tem alguma coisa contra os ex-israelitas?

Charles fitou-o, um tanto surpreendido.

—      Quantos?

—      Apenas um. Isaacsshon era-o e escolheu uma para assistente, o que é bastante natural, segundo me parece. Se puser alguma objeção, acho que podemos fazer com que ela seja afastada, mas parece-me que vai precisar dela, quanto mais não seja a princípio. Tenho a impressão de que uma boa parte do trabalho de Isaacsshon e uma parte cheia de interesse só poderá ser conhecida através dela.

—      Nunca trabalhei com nenhum. Não vejo qualquer razão para querer ver-me livre dela.

—      Ótimo. — Ledbetter olhou para o cronômetro pendurado na parede. — Tem de preparar as suas coisas, não lhe tomo mais tempo.

Charles levantou-se:

—      E que é que acontece ao meu laboratório? Nem sequer tenho tempo de arrumar nada.

—      Não me parece que seja necessário. No entanto, tencionava falar-lhe nisso. Quase me esquecia. Pensamos entregar tudo ao Casey, visto que já trabalha consigo há cinco anos. É ainda muito jovem, mas parece-nos capaz. Que é que lhe parece?

—      Sim, pode ser. Que é que pensa o P & M? Apresenta condições para o lugar, segundo a bitola atual?

Ledbetter teve um sorriso irônico.

—      Segundo a bitola atual.

Saiu do edifício do QJ IQR, em primeiro lugar porque queria ir, pela última vez, ao Stone's, a pequena loja de troca de discos de gramo¬fone à esquina das Ruas 27 e Principal. Não tinha muita bagagem a preparar — umas duas horas, à noite, chegavam — e decidira não vol¬tar para o laboratório. Se era assim que queriam, assim seria e a verda¬de era que Casey era bem capaz de se desenvencilhar. Ele e Casey en¬tendiam-se bem, mas também era verdade que a separação não causaria desgosto a nenhum dos dois; Casey sentiria mesmo uma satisfação bem compreensível ao ficar com as suas instalações próprias, um bom par de anos antes do que seria de esperar.

Quando chegou à loja, só o velho Stone em pessoa se encontrava ali. A loja não era mais do que um passatempo: na verdade, não era ela que sustentava Stone, mas Stone que a sustentava com a sua pensão. Fora gestor da Seção Atômica e agora, finalmente, gozava a vida. Era um homem idoso e forte, mas estava a ficar gordo.

Charles contou-lhe da sua transferência iminente. Abanou a cabe¬ça, mas no fundo o seu pesar era apenas superficial. Disse: «Já nem sei se os meus clientes chegam à dezena.» Mas essencialmente ficara indife¬rente.

Charles perguntou:

—      Há alguém que se dedique ao negócio em San Diego?

—      Há apenas uma loja — Michael Kominski, em Los Angeles. Eu dou-lhe o endereço.

Foi dar volta aos papéis que se amontoavam desordenadamente na sua velha secretária de nogueira, ao fundo da loja, e Charles entretanto rebuscou as prateleiras que ficavam junto da porta com os seus discos de vários tipos. Encontrou uma coleção de Munich John Passion, à qual faltava um disco, e perguntou a si mesmo se valia a pena levá-la, na esperança de poder vir a completá-la futuramente. Mas o preço era "baixo de mais, o que representava a convicção de Stone de que as pro¬babilidades eram poucas. Quando alguém entrou na loja, voltou a pôr os discos na prateleira.

Reconheceu Dinkuhl. E o mais estranho é que Dinkuhl também o reconheceu a ele, alguém os tinha apresentado alguns anos antes, em circunstâncias que pareciam agora muito vagas.

O proprietário do canal FK disse:

—      Charlie Grayner! Muito gosto em voltar a vê-lo. A dar uma últi¬ma olhadela antes de partir para o país do sol?

Deram um aperto de mão. Charles disse:

—      Você espanta-me.

Dinkuhl riu, trocista:

—      Não é isso que me parece.

—      Mas é verdade. Parece-me que seria um tanto indelicado perguntar-lhe onde obteve essa informação?

—      Devem ter passado seis ou sete anos desde que o vi pela última vez. — Dinkuhl abanou a cabeça, visivelmente encantado com a sua própria memória. — Em casa dos Sullivan, antes de serem transferidos para Melbourne. É você que vai para a Califórnia, não é? Foi o que eu pensei. Quanto a fontes de informação, Charlie, isso é uma pergunta que nunca se faz a um homem da televisão.

—      Está a dar demasiada importância ao assunto — disse Charles.

—      Tudo é importante — disse Dinkuhl com entusiasmo. — E ao mesmo tempo tudo é trivial. Aquilo que acontece ao indivíduo é trivial. Mas no seu lugar consideraria muito importante poder afastar-me deste pedaço putrefato do queijo mal cheiroso. Nunca perdoarei ao Gillray não ter consentido na nossa transferência para São Francisco.

Stone voltou, com o endereço escrito num pedaço de papel. Char¬les pegou nele, agradeceu e meteu-o na carteira. Dinkuhl deixou-o para ir dar uma vista de olhos pelas prateleiras que Charles acabara de dei¬xar. Ocorreu-lhe que, durante o encontro precedente, Dinkuhl se mos¬trara alternadamente íntimo e indiferente para com as pessoas que o ro¬deavam. A personalidade que ostentava no écran não parecia ser muito diferente da sua personalidade real.

Charles dirigiu-se a Stone:

—      E a coleção de John Passion? Que possibilidades é que haverá de a completar?

Stone começou:

—      Bom, Kominski tem muita coisa que nem ele conhece bem...

Dinkuhl voltou-se. Tinha os discos nas mãos e atirou-os em direção a Charles.

—      Ele é um mentiroso. Não acredite nele. Não conseguirá encon¬trar neste continente o disco que falta e, a propósito, conheço pessoal¬mente tudo o que Kominski lá tem. Por outro lado, é uma obra que va¬le a pena ter, mesmo incompleta. Leve-a.

Charles sorriu.

—      Se a recomenda...

Dinkuhl não voltou para os discos. Esperou, enquanto Stone fazia as suas complicadas contas e chegava a um dos seus estranhos resulta¬dos habituais. Depois pôs uma mão no braço de Charles.

—      Você tem muito tempo. Venha comigo, vamos beber qualquer coisa.

O convite era lisonjeiro e, de fato, ele tinha muito tempo. Charles acenou com a cabeça.

—      Obrigado.

Dinkuhl tinha um velho carro só com um assento, no qual conse¬guira instalar um motor a gasolina que arranjara não se sabia onde. Além de conspícua, a sua passagem era também mal cheirosa. Em vez de seguir em direção ao estúdio, Dinkuhl seguiu para sua própria casa, a cerca de uma milha dali, sobre o lago Erie. A arquitetura era escan¬dinava, do século XX, mas parecia ser de construção mais cuidada do que era usual. Estava ainda em bom estado e tão feia como no dia em que tinha sido dada por terminada. Dinkuhl chamou a atenção de Charles para este fato enquanto punha o carro na garagem que lhe estava acopulada.

—      Uma vez que tenho de viver em Detroit, não quero arriscar-me a um colapso estético habitando uma casa de aspecto e proporções de¬centes. O pior é que com o passar dos anos comecei a habituar-me a ela.

Conduziu Charles ao andar de cima, a uma vasta sala com vista pa¬ra o lago. A casa estava desarrumada e havia já algum tempo que o pó não era limpo. A sala tinha qualquer coisa de invulgar e Charles levou alguns minutos a descobrir o que era. Não havia nenhum écran na parede.

Dinkuhl trouxe uma bebida a Charles num copo largo de aspecto muito requintado. Tanto o bojo como o pé do copo estavam finamente gravados, refletiu Charles com um interesse profissional, gravados em diamante. A bebida contida no copo tinha um tom de âmbar pálido.

Dinkuhl levantou o copo:

—      À sua — disse.

Beberam. Tinha um gosto estranho. Charles ficou com o copo levantado, numa atitude inquiridora.

—      Que é isto, Chefe?

—      Trate-me por Hiram — disse Dinkuhl. — Gosta? É uma coisa que eu próprio fabriquei. Vinho de nabo-e-tomate. Mas não é mau, pois não? Nada mau.

Enquanto respondia à sua própria pergunta, foi enchendo os dois copos. Tirou de uma das algibeiras os óculos de modelo antiquado que usava às vezes no estúdio e pô-los para observar Charles mais de perto.

—      Bom — disse. — Que é que vai fazer quanto a cultura no Far West? Você é cliente — escreveu-me uma carta há cerca de um mês.

—      Posso passar sem televisão — disse Charles e sorriu. — Mesmo o FK. Talvez me dedique à leitura.

—      É uma verdade amarga que as únicas pessoas que podem passar sem televisão são justamente as que apóiam o FK — disse Dinkuhl. — Bem, talvez ele consiga durar enquanto eu for vivo.

—      Nunca percebi como é que a Telecom o deixa continuar.

—      Há apenas uma razão, mas de peso. De uma maneira um pouco estranha, o nosso alvará acabou por se incorporar no deles. Os méritos vão para o meu antecessor, um tipo chamado Bert White. A direção do FK é uma posição duradoura para a qual a qualificação principal é a simples esperteza, mas White era absolutamente excepcional. Para não terem de refazer os seus próprios estatutos, medida desesperada que podia vir a bulir com um exército de esqueletos em hibernação, viram-se forçados a continuar a dar-nos direitos de transmissão. Têm de se contentar com o espetáculo da nossa lenta decadência; mas ela é bas¬tante lenta.

Charles disse:

—      Não sabia que vocês tinham começado antes do sistema de gestão.

Dinkuhl fitou-o.

—      Com certeza que não estava convencido de que a Telecom nos tinha dado à luz de livre vontade? Julgava que o nosso pedigree fosse mais conhecido. Representamos um dos últimos fracassos do capita¬lismo no mundo moderno. Ora vejamos, sabe o que queria dizer FK?

Charles abanou a cabeça.

—      Koola Frutos — uma combinação de sumos de fruta. O manda¬chuva que o dirigia adquiriu cultura na velhice e isso subiu-lhe à ca¬beça. Investiu toda a sua fortuna numa rede de televisão independente e imperecível. O FK tem tido sorte nos seus diretores — pelo menos quanto aos que me precederam. Tentamos acomodar-nos ao sistema de gestão, fazendo disso uma brincadeira. As fundações podem estar a ce¬der, mas, entretanto, já se passou muito, muito tempo.

—      Mas se a Telecom não pode tocar-lhes?

—      Há outra coisa que pode. O dinheiro. Tanto no Império Roma¬no como no feudalismo, no capitalismo ou no sistema de gestão — há um problema constante: como equilibrar um orçamento. Não pode ter deixado de notar que vivemos no meio da inflação de há umas centenas de anos para cá? Somos os tipos do rendimento fixo. Cortamos, es-quartejamos, fizemos tudo, exceto viver de proventos imorais. E qual foi o resultado? Com uma só estação, cobrindo um pequeníssimo cír¬culo nestes arredores do Inferno, o fim está à vista. E Gillray e toda a Telecom vão estourar de riso quando ele chegar.

Charles disse:

—      Lamento ouvir isso. Lamento muito.

—      Qual julga que foi a finalidade dos nossos apelos e pedinchices — comprar-me um iate espacial? — Dinkuhl olhava-o cinicamente. — Com quanto é que você contribuiu?

—      Dez dólares, uma vez. Teria arranjado mais, se soubesse o que sei agora.

—      Esses dez dólares já o colocam muito acima da média. Se se tra¬tasse de um iate espacial, eu não teria de receber todos os vitupérios.

Porque é que as pessoas hão de contribuir para a TV? Trata-se de um serviço gratuito, não é verdade? De uma coisa estou eu certo: o FK não consegue sobreviver mais vinte anos no sistema de gestão.

—      E não lhe dão autorização para mudar para outro sítio?

—      Isso — disse Dinkuhl — é precisamente o que me aborrece. E aborrece-me de verdade. Eles têm controlo sobre diversas extensões que estão sob a sua jurisdição. Em tempos, tivemos uma estação em São Francisco, mas eles parecem preferir voltar a abrir como extensão, pelo menos, assim o dizem. Se me deixassem tomar conta dela, teria aceitado. Já me estava a preparar para a cerimônia de encerramento. Mas em Detroit... só se o não conseguir evitar.

—      E consegue? — perguntou Charles com interesse.

—      Beba mais vinho. — Charles observou Dinkuhl, enquanto en¬chia o copo; o gosto continuava a ser estranho, mas a sensação de calor que deixava era muito agradável. — Se eu tivesse o mesmo talento para manobras, politiquices, enredos, que os meus ilustres predecessores, sentir-me-ia mais confiante. Da maneira como as coisas estão, duvido, duvido.

—      Os métodos que vai adotar são secretos, suponho? — pergun¬tou Charles, hesitante.

Dinkuhl sorriu amargamente:

—      Tão secretos como a sua transferência para San Miguel. Só há um caminho que eu posso tentar. Dentro do sistema de gestão, afundamo-nos. Vou, portanto, tentar a nossa transferência para um minús¬culo oásis, para onde o sistema de gestão não envia os seus camelos — Israel.

—      Então boa sorte. — Charles ficou a pensar alguns instantes. — Não há muitas esperanças, pois não?

Dinkuhl disse:

—      Admiro-o, Charlie. Você põe bem as questões. Posso sempre voltar para a Liga Vermelha — sabia que foi lá que eu comecei?

—      Não, não sabia.

—      O dia em que atirei ao lago o meu cartão de membro da Telecom foi o mais feliz da minha vida. Já nem sei de que lago se tratava. Acho que me arranjariam um novo.

Dinkuhl olhou para o relógio; era extraordinariamente grande e ele usava-o no pulso e não no dedo.

—      Mas quer se trate de Israel ou da Liga Vermelha, o espetáculo tem de continuar. Tenho de ir ensaiar um pele-vermelha que descobri perto de Seattle, a trabalhar nas culturas em Água. Um pele-vermelha autêntico — espero conseguir treiná-lo numa denúncia devastadora da sociedade contemporânea, mas é um trabalho difícil. Aquele velho simplório sente-se totalmente feliz. Venha comigo — posso deixá-lo ao pé da IQR.

A seguir ao vinho, o cheiro da gasolina era um tanto enjoativo. Charles ficou satisfeito quando Dinkuhl abriu a porta para ele sair.

—      À caminho. E só uma coisa. — Charles olhou para ele. — Disseram-me que a navegação naquela costa é perigosa.

Charles:

—      Já me disseram o mesmo.

—      Esta informação — disse Dinkuhl — é oficial. Escutam a voz das notícias FK.

Teve um sorriso irônico, fechou a porta do carro e partiu no meio de uma nuvem barulhenta e mal cheirosa.

 

Charles conservava o hábito de, no primeiro encontro tentar ava¬liar as possibilidades românticas das jovens com quem travava conheci¬mento, ainda que há alguns anos esse hábito se tivesse tornado relativa¬mente acadêmico. Sarah Cohn não produziu uma boa primeira impres¬são, nem mesmo sob um ponto de vista acadêmico. Era bastante atraente — de pele escura, rosto quadrado, dando uma impressão de graciosidade nas mais pequenas coisas; no entanto, a sua personalidade não era agradável. Era uma pessoa nervosa e esse nervosismo manifestava-se numa certa brusquidão; a rapariga acabou por comunicar a Charles a sua falta de à-vontade. Não se podia dizer que fosse um bom ponto de partida para uma associação profissional que iria certamente ser estreita. Era consolador pensar que Ledbetter lhe dissera que não era obrigado a ficar com ela, caso não quisesse.

O laboratório estava situado num ponto alto, voltado para o mar, a umas cem jardas deste. Tinha uma bela vista sobre San Miguel, que fi¬cava a cerca de uma milha e, por detrás, havia um pomar de laranjeiras que parecia nunca mais acabar. De vez em quando, durante o dia, robots gigantescos passavam por entre as filas de árvores, espalhando um aerosol qualquer que abafava o agradável aroma das laranjas amadure¬cidas. Pouco a pouco, o efeito desaparecia, mas nessa altura já o robot se aproximava para recomeçar o trabalho. Tratava-se da colheita de In¬verno que requeria cuidados diários e mesmo mais que uma vez ao dia. Pelo meio das árvores, os aquecedores radiantes, apoiados nos seus longos pés, esperavam o cair da noite que viria ativá-los. Fora preciso entregá-lo à Secção de Agricultura, por uma questão de eficiência, pen¬sou Charles, mas era uma pena que fosse necessário tirar o aroma a um laranjal.

O equipamento do laboratório era muito bom. A primeira coisa que ele notou foi um eletrobombardeador de 5.000 Kv que ele tinha pedido e nunca tinha conseguido arranjar, quando fora posto no mer¬cado, no ano anterior. Havia três ciclotrões. Tinham gasto ali muito di¬nheiro e, na sua opinião, conhecia suficientemente bem as tendências da IQR, para ter a certeza de que esperavam qualquer coisa em troca. A dificuldade consistia em saber exatamente o quê.

As notas de Isaacsshon eram fragmentárias, a tal ponto que se tor¬navam praticamente inúteis e, mesmo assim, fascinantes, pois não eram tão fragmentárias que pudessem ser postas de lado. Os relatórios estavam arquivados, como é evidente, e ele passou os primeiros dois dias quase exclusivamente a tentar familiarizar-se com eles. O proble-ma era que os relatórios não permitiam chegar a nada de concludente. O trabalho feito dizia respeito a vários tópicos diferentes, embora hou¬vesse uma predominância de experiências com diamantes, selênio e germânio, mas mesmo em relação a estes três era difícil determinar qual a atitude assumida. Era evidente que se tratava de um tipo de traba¬lho que ganharia um outro significado se se pudesse aplicar a chave — chave essa que se resumia a uma pergunta banal sobre aquilo que Isaacsshon procurava. Não havia dúvida de que, perante a resposta a esta pergunta, muitas coisas passariam a fazer sentido.

Esta necessidade obrigou-o a recorrer a Sarah. Encontrou-a no ga¬binete norte, ocupada com a grafitização de um espécime de carbono. Ele ficou de pé por detrás da rapariga, um ou dois minutos, sem dizer nada. Podia dar-se o caso de ela estar tão absorvida pelo trabalho que não notasse a presença dele, mas ele sabia que não era assim. Finalmen¬te, Charles disse:

—      E a seguir?

Ela voltou-se devagar, segurando uma pinça de amianto. Olhou-o firmemente e, por detrás dessa firmeza, via-se que se sentia nervosa e hostil.

—      Bombardeamento lento, secagem durante vinte e quatro horas e verificação das alterações dos veios, por meio de difração de positrões.

—      Para determinar?

Ela hesitou; continuava a olhar para ele, mas o olhar tornara-se-lhe penetrante.

—      Trata-se de continuar uma série de experiências que o Dr. Isaacsshon começou.

Lá fora o dia estava quente; o ruído distante do tratador de árvores punha no ar uma nota sonolenta. Charles disse impulsivamente:

—      Gostava de ter uma conversa consigo, Sarah. Pode dispor de meia hora?

Ela acenou com a cabeça em direção à mesa de trabalho:

—      E deixar isto?

—      Nesta fase, Luke sabe ocupar-se do trabalho, não acha? Se não sabe, pelo menos, devia sabê-lo.

Uma vez no corredor, a rapariga deslocou-se em direção ao peque¬no gabinete particular dele, que ficava nas traseiras. Ele observava-a.

—      O tempo está tão bom, acho que podíamos dar um passeio até à praia. Não estou muito habituado ao mar, venho duma região de lagos.

Compreendeu que, aos sentimentos de desconfiança e suspeita que já existiam, se juntava agora a suspeita de que ele estava a armar em D. Juan. Sentiu-se lisonjeado por ainda poder ser tomado como tal.

Ela respondeu, com ar distante:

—      Se prefere.

Caminharam até à praia, em silêncio. Havia um caminho que des¬cia a encosta e, em tempos, alguém tinha tentado fazer ali um jardim. No entanto, o chão não podia ser pior — rochoso e estéril e sujeito a fi¬car empapado ou mesmo inundado quando havia mau tempo — tudo o que ali proliferava eram alguns cactos de aspecto pouco prometedor. O caminho terminava num local em que meia dúzia de rochedos achatados e muito juntos pareciam querer imitar um dólmen. Era evidente que este local era freqüentado pelos indivíduos ligados ao laboratório. O cabo elétrico, que descia a encosta em linha reta, terminava jus-tamente neste ponto. Ligação para televisor portátil, refletiu Charles, tristemente.

À sul havia uma espécie de ancoradouro — um pontão um tanto primitivo com dois pilares de cimento em cima. O pontão fora prova¬velmente usado, em tempos, por uma comunidade de pescadores. Mais recentemente, segundo pensava, o pilar de cimento servira para amar¬rar o barco do seu antecessor.

Acenou em direção aos pilares.

—      Que é que aconteceu ao barco?

Ela estava de pé, com ar de quem espera ordens. Ele disse:

—      Acho que o melhor é sentarmo-nos — e ela sentou-se numa pe¬dra a pouca distância da que ele escolhera para si.

Compôs a saia, fitando o mar, sem olhar para ele.

—      O barco? Levaram-no.

—      Quem?

—      Os seus amigos. — Fitou-o. — A Seção de Contato.

Sem sequer se aperceber disso, começara a sentir-se furioso; tentou controlar-se. Tinha sido um choque para ela; provavelmente entendia- -se bem com Isaacssohn — talvez até houvesse qualquer coisa mais. E a Seção de Contato... os indivíduos que conhecera não o tinham im¬pressionado favoravelmente quanto à sua capacidade de tacto e de en-frentar situações melindrosas. De qualquer forma, era essencial que ela não mantivesse em relação a ele uma atitude hostil. Se a atitude dela não mudasse, teria que a afastar, não havia outra alternativa.

Era pena que ele próprio, sabia-o bem, não tivesse grande talento para as relações pessoais tensas. Disse pausadamente:

—      Acho que devíamos esclarecer umas quantas coisas, já de princí¬pio. Eu não pertenço à Secção de Contacto, nem fui colocado por eles. Parecia-me que Isaacsshon é que estava ligado a eles. Eu tenho estado a fazer um trabalho muito simples, em pesquisas com diamantes, no Setor de Detroit e, segundo parece, arrastaram-me para aqui porque ti¬nham urgência em arranjar alguém. Tinha esperanças de que você me pudesse ajudar... Estou completamente às escuras.

Os olhos da rapariga voltaram-se para ele enquanto falava.

—      Hans não tinha nada a ver com a Secção de Contacto. Isso sei eu.

Esperou que ela dissesse qualquer coisa mais, mas isso não aconte¬ceu. Suspirou, intimamente. Ia ser difícil. Fosse qual fosse a situação em que entrara, ela apresentava-se complicada e, mesmo que a compli¬cação fosse apenas de ordem emocional e romântica, a meada prometia ser difícil de desenredar.

Quando falou, tentou fazê-lo com toda a delicadeza:

—      Apenas estou interessado nas coisas que você sabe. Tente pôr-se no meu lugar — sou atirado de repente para uma situação destas... geralmente, tem-se o programa do outro indivíduo como orientação. Isaacssohn não teve tempo de deixar qualquer esboço e, tanto quanto eu sei, IQR nunca chegou à saber exatamente o que é que ele estava a fazer. Se soubessem, não vejo qualquer razão para me terem atirado para aqui às cegas.

Os olhos dela estavam novamente voltados para o mar: para aquela planície de água verde-azulada, que se estendia até ao céu.

—      Estou a perceber — disse. — O Hans não devia ter-se afogado antes de lhe deixar instruções detalhadas.

—      Desculpe. — Olhou-a, tentando descobrir qual o tipo de emo¬ção que punha aquele tom de azedume nas suas respostas. — Acho que não estou a explicar-me bem. Como sabe, eu não conhecia o Dr. Isaacssohn. Um pessoa não pode...

Por momentos, pensou que ela ia sorrir. Quando voltou a falar, ha¬via na voz dela uma gentileza que não mostrara antes:

—      E continua a não se explicar lá muito bem, não acha? Tem razão quando diz que não se pode esperar que sinta muita pena de uma pes¬soa que não conhecia, mas, pelo menos, quando falar dele, pode dar-lhe esse título, como acabou por fazer agora.

Olhou para ela, admirado; depois compreendeu o que se passava.

—      Há quanto tempo está aqui? — perguntou. — Se essa pergunta também não é inoportuna?

Ela percebeu:

—      Há três anos.

—      Formou-se em Israel?

Ela acenou com a cabeça.

—      Jerusalém.

—      Penso que esteve sempre com — com o Dr. Isaacssohn? É uma questão de hábito. Aqui, não tratar um homem pelo título não repre¬senta falta de respeito. De qualquer forma, os títulos científicos são ra¬ramente usados. No que diz respeito a gestores e diretores é diferente, claro. Mas à parte esses, não ligamos. Palavra que não tinha qualquer intenção menos correta. — Sorriu pesaroso. — Não, nem sequer es¬tava a ser rude inconscientemente, embora esteja convencido de que isso me acontece muitas vezes.

Ela disse:

—      Desculpe. — Estudava agora o rosto dele. O olhar dela era direto e honesto e, de momento, não mostrava qualquer nervosismo. — Acho que tenho sido uma palerma com essa história.

Ele disse:

—      Talvez agora tenhamos entrado no bom caminho — os dois.

Ela sorriu finalmente, mas o seu olhar mostrava-se ainda cuidadoso. Tinha os olhos quase da cor do mar, formando um contraste sur¬preendente com o cabelo castanho-escuro.

Perguntou:

—      Que é que quer saber?

Ele olhou-a, atrapalhado.

—      Em primeiro lugar, que é que eu devo fazer. Você parece ter uma linha a seguir. É um tanto embaraçoso que eu não a tenha.

—      Você quer mesmo dizer que eles não lhe deram qualquer indica¬ção?

—      É isso. De verdade.

A desconfiança voltou à surgir, ainda mais forte.

—      É difícil de acreditar — que eles o tivessem nomeado para o lu¬gar de Hans e não lhe dissessem o que é que você tinha de fazer.

—      Pois ê — disse Charles —, mas peço-lhe que tente acreditar. — Fez uma pausa. — As coisas podem ser diferentes, uma vez que eu fui empurrado para aqui diretamente de Detroit. Penso que você quer di¬zer que em Graz sabem o que se passa, mas isso não quer dizer que em Detroit saibam. Penso que Graz pode acabar por se dar conta da neces¬sidade de me informar. Provavelmente podia fazer uma tele-chamada a Nikko-Tsi e despertar-lhes a memória, mas, segundo a minha própria experiência, é sempre melhor um indivíduo desenvencilhar-se sozinho, se conseguir fazê-lo. Importunar o QG pode trazer resultados desastro¬sos.

Ela franziu a testa.

—      Será que estou a ser estúpida outra vez? Isto é uma situação cor¬rente dentro do sistema de gerência?

—      Não é invulgar. Porque é que você acha que todo o trabalho ori¬ginal está agora a ser feito em Haifa e Jerusalém?

Ela ficou satisfeita e surpreendida.

—      Você também vê isso?

—      Não sou cego. E agora ... quanto a este trabalho?

Ela ainda hesitou um segundo. Ele perguntava a si próprio se con¬seguiria seguir-lhe a linha de pensamento: ainda lhe restavam algumas dúvidas, mas havia também o pensamento reconfortante de que aquilo que a rapariga ia dizer-lhe não era mais do que o que já se sabia em Graz.

Ela disse com firmeza:

—      Hans procurava uma nova fonte de energia, numa base fotoelétrica. Não creio que eu lhe possa ser muito útil. Ele estava já na fase em que começava a ver com maior clareza, mas ainda havia muito tra¬balho a fazer.

—      Energia ... — disse Charles. — Fotoelétrica...? Finalmente começo a ter uma idéia. Selênio, evidentemente — germânio e dia¬mante...?

—      A irradiação a longo prazo dos diamantes tipo ni provoca uma alteração estrutural fundamental — o índice de refração...

—      Eu li esse relatório. Pensei que servisse de capa a qualquer outra coisa. Diamantes tipo ni — essa é nova para mim. E quanto à alteração do índice de refração, parece-me difícil de admitir. Os resultados que ele apresenta são incríveis.

—      O tipo ni refere-se às pedras que correspondem dessa forma à ir¬radiação prolongada. Não há muitas, mas parecem provir indiscrimi¬nadamente dos grupos tipo 1 e tipo n. O germânio encontra-se envolvido nisto por causa da sua semelhança estrutural com o diamante. Tanto quanto sei, nunca produziu quaisquer resultados. Mas para Hans não era fácil explicar a orientação que estava a seguir. Estava ainda a traba¬lhar com o germânio.

—      E o titânio?

—      Fizemos várias tentativas. Nada de sais. Um índice de refração superior no estado bruto nada adianta. É uma questão estrutural.

—      Bom — disse Charles, pensativo. Levou a mão à algibeira. — Quer um cigarro? — Ela abanou a cabeça. Ele tirou um e acendeu-o. A brisa começava a soprar do oceano; a chama afastou-se da ponta do ci¬garro e uma madeixa do cabelo de Sarah enrolou-se-lhe na face.

—      Trata-se então de uma fonte de energia — disse Charles. — Is¬so, pelo menos, já explica alguma coisa. Explica porque tiveram tanta pressa em me mandar para aqui e também. — Olhou para Sarah, com atenção. — Sabia que tinha havido um fuga de informações — para fora da IQR?

Ela disse amargamente:

—      Isso serve para explicar porque é que um barco se voltou e veio dar à costa vazio?

Charles olhou melancolicamente para o cigarro.

—      Seja como for, estou metido nisto até ao pescoço. — O impacte das últimas palavras dela atingiu-o em cheio. — Ouça, pretende dar a entender que Isaacssohn foi assassinado?

Ela ficou alguns minutos em silêncio.

—      Eu falo de mais — disse ela por fim. — Penso que agora já não faz diferença. Já disse o que tinha a dizer à Secção de Contacto. Não tem importância — acho que deve saber o que penso. Hans aprendeu a navegar no Mediterrâneo. Não é um mar tão calmo como as pessoas aqui pensam. No dia em que ele se afogou... havia um bocado de on¬dulação, mas nada que o preocupasse.

—      Não percebo nada de navegação ou dos mares, mas a verdade é que os acidentes acontecem. E Ledbetter disse-me que a costa era peri¬gosa.

Ela disse: «Ledbetter», como se bastasse repetir-lhe o nome. Acres¬centou:

—      Hans nunca achou que ela fosse particularmente perigosa: havia anos que navegava nestas paragens.

Seria difícil imaginar uma paisagem marítima mais amena do que o Pacífico apresentava naquele momento. Mas Charles tinha uma certeza: a de que a sua nova assistente tinha sido perigosamente afetada pelos acontecimentos dos últimos tempos. Tentou achar uma ponta daquela meada confusa.

—      Se pensa assim, porquê a sua hostilidade à Seção de Contato? De certo que não pretende sugerir que eles tenham alguma coisa a ver com tudo isto? A IQR não ia matar o ganso quando ele estava no cho¬co. Porque não lhes disse o que pensava quanto à morte de Isaacssohn?

—      E disse.

Ele ficou surpreendido.

—      E então?

—      Não me tomaram a sério. — Ela franziu as sobrancelhas ao lembrar-se. — O seu relatório foi «morte acidental».

—      Isso não os põe na posição de inimigos. Podem estar engana¬dos... no caso de você estar certa.

O olhar dela tornou-se novamente frio e hostil.

—      Eu tinha a impressão de que o papel da Secção de Contacto con¬sistia em averiguar tudo aquilo que pudesse prejudicar a sua gestão.

Ele disse em tom ligeiro:

—      Até as Seções de Contato têm os seus momentos de desleixo. Hoje em dia é raro encontrar-se qualquer coisa bem feita.

Sentiu um alívio duplo. Pelo fato de haver uma explicação tão fá¬cil para a antipatia dela pela Secção de Contacto e por o seu antecessor se ter pura e simplesmente afogado. As neblinas fantasmagóricas come¬çavam a levantar-se, deixando atrás de si um mundo familiar e reconhe¬cível, no qual estava enquadrada uma vulgar rapariga histérica, em vez de uma situação de pesadelo girando em volta de um crime. A insistên¬cia dela sobre este ponto podia vir a tornar-se desagradável e ele não gostaria de ter de recorrer à Psico & Med, sobretudo porque não tinha grande fé na sua técnica, mas, pelo menos, já tinha uma idéia quanto à maneira de conduzir as coisas.

Ela disse:

—      Onde é que se deu a fuga?

—      A fuga?

A voz dela traía impaciência.

—      Você acabou de dizer que tinha havido uma fuga de informa¬ções. Suponho que se referia ao nosso trabalho aqui...

—      Ah, sim. Parece que sim. Pelo menos tive a impressão de que se sabia qualquer coisa — não sei até que ponto.

—      Dentro da IQR ou fora?

— Fora. Telecom.

E isso em Detroit. Não lhe pareceu estranho que Ledbetter não soubesse de nada e essa outra pessoa — fosse quem fosse — soubesse?

—      Na verdade, não me pareceu. Também não pretendo dizer que esse outro indivíduo soubesse mais do que Ledbetter. E Ledbetter tam¬bém não estava numa posição de desconhecimento total, claro; sabia que se tratava de um trabalho secreto e tinha um dos relatórios de Isaacsshon na sua mesa — não que ele lhe dissesse qualquer coisa.

Compreendeu que a entrevista mudara de rumo. Fora sua intenção interrogar Sarah; mas agora, tendo tomado o freio nos dentes, era Sa¬rah que o interrogava a ele. O problema estava em a desviar para outro assunto, sem a magoar. Gostaria de a conservar bem disposta para com ele, se possível; certamente que ainda tinha muito que descobrir acerca do complicado puzzle das pesquisas de Isaacssohn. Não havia mal ne¬nhum em que ela detestasse a Seção de Contato; de qualquer forma, isso acontecia à maior parte das pessoas.

—      Elaboram os seus planozinhos insidiosos e andam aos segredinhos pelos cantos, sem fazerem qualquer idéia daquilo em que se me¬tem. — Ela olhou-o bem de frente. — Haverá alguma coisa a dizer a seu favor?

Charles sorriu.

—      Apenas que são bem intencionados, palavra, na sua maior parte e quase sempre. Segundo o seu ponto de vista.

—      Não me parece — disse Sarah vagarosamente. — Já pensei as¬sim em tempos, mas mudei de idéias.

Pareceu-lhe ver uma possibilidade de mudar o rumo da conversa, se conseguisse afastar o assunto do mundo em geral, que para ela se re¬sumia num campo de operações da Seção de Contato, para ela pró¬pria.

Perguntou:

—      Em primeiro lugar, gostava de saber porque é que as pessoas — tal como você e Isaacssohn, por exemplo — vêm de Israel para cá? Será que acreditam no ideal do sistema de gestão? Se não, em quê? Penso que não procuram apenas o conforto e a abundância?

—      As pessoas vêm pelas duas razões. Há sempre uns quantos estu¬dantes para quem os sistemas que funcionam do outro lado da frontei¬ra têm maior atrativo. Além disso, em Israel os padrões de bem-estar pessoal são mais baixos. Mas há ainda uma terceira razão. O meu pai veio para aqui como refugiado político e eu vim com ele.

—      Refugiado político? — Era difícil abranger totalmente um ter¬mo que deixara de ser válido, na maior parte do mundo, um século an¬tes. Percebeu que Sarah sorria perante o seu espanto. — Como?

—      É difícil de explicar. Em Israel, as pessoas conspiram tanto co¬mo aqui, mas de maneiras bastante diferentes. O meu pai estava envol¬vido numa conspiração, que foi descoberta, para deitar abaixo o gover¬no. Se ficasse teria sido preso.

Charles desculpou-se:

—      Creio que nem sei qual a forma de governo que têm em Israel. Não é uma monarquia, pois não?

—      No verdadeiro sentido da palavra, podemos dizer que é. O país é governado por um só homem. O presidente recebe conselhos do Sanhedrim, mas não é obrigado a segui-los.

Charles pensou em perguntar o que era o Sanhedrim, mas achou melhor não o fazer. Houve outra coisa que lhe chamou a atenção.

—      O seu pai estava envolvido numa conjura contra o presidente? E Isaacssohn?

—      Estava igualmente envolvido.

—      Nesse caso, se houve qualquer coisa de suspeito na sua morte, não seria possível que...

Ela interrompeu-o em tom decidido.

—      Não. Se tivessem ficado, apenas estariam sujeitos a prisão. Não somos nenhum povo primitivo. E de qualquer forma, o meu pai é que era um dos cabeças; Hans teve apenas um papel muito secundário. — Os olhos dela estavam fitos num hidroavião que aflorava as águas à distância. — Só aqui é que os inocentes são mortos por estarem a es¬torvar alguém.

Charles achou que não valia a pena argumentar contra uma obses¬são. Era visível que o gelo se estava a quebrar e a única preocupação de¬le era que o processo de descongelamento continuasse.

—      E o seu pai? — perguntou. — Sente-se bem aqui?

Ela encolheu os ombros.

—      É melhor do que a prisão. É professor de História em Berkeley.

—      História?

—      Sim. — A rapariga sorriu. — Ainda há quem estude história. De momento tem dois alunos. Ganha um pouco menos do que... — fez um gesto em direção ao laboratório — ...do que Luke. Mas ele faz uma vida modesta. E parece muito satisfeito.

Charles levantou-se.

—      Talvez pudéssemos voltar a ver o que fazem o Luke e o Tony. — Ajudou Sarah a pôr-se de pé. — Não se pode esperar que vo¬cê se sinta muito encantada com muitas das coisas e pessoas que encon¬trou por cá. Eu próprio não o estou. Mas acho que seria bom se você conseguisse ver em mim um — um indivíduo neutro, pelo menos. Pela minha parte estou dependente da sua ajuda e muito.

Subiam agora o caminho pedregoso. Ela disse:

—      Suponho que lhe deram pulso livre a meu respeito?

—      Pulso livre?

—      Não é obrigado a manter-me aqui, se não quiser?

Ele hesitou.

—      Não. Mas não vejo porque é que eu havia de querer desembara¬çar-me de si.

Ela sorriu.

—      Tanto mais que Hans não deixou as notas que devia ter deixado. Então?

Viu-a olhar para ele. Malicioso como se mostrava agora, o rosto dela era bastante atraente. Sorriu-lhe também.

—      Isso é um fato. Eu estava preparado para agüentar uma série de coisas a fim de conseguir as informações de que precisava.

—      É muito generoso.

—      Estava preparado. Mas você já me demonstrou que sabe ser hu¬mana, afetuosa e simpática. É com isso que eu conto. A partir de ago¬ra, mesmo que me abra o caminho para a descoberta mais importante do século, não me contentarei com isso.

Largaram a rir. Momentos depois, o pé escorregou-lhe nas pedras soltas e ele teve que a agarrar para não a deixar cair. Foi o contacto cer¬to, no momento certo.

Uma das habilidades que Charles se dera ao trabalho de adquirir fora a de polir os seus próprios diamantes, em vez de estar dependente de quem lhe fizesse esse trabalho noutro sítio. Dedicara-se a esse traba¬lho com um cuidado que lhe era natural e descobrira que certos cortes que, por razões incompreensíveis, tinham caído em desuso, permitiam um brilho muito maior do que os praticados correntemente. Explicou este fato a Sarah, quando ela lhe mostrou uma das pedras que consti¬tuíra a base do relatório de Isaacssohn sobre as alterações do índice de refração dos diamantes do tipo m. Ela segurava a pedra sob um feixe de luz muito fino e ambos tiveram que afastar os olhos por causa do brilho que refletia. Charles pegou na pedra e examinou-a.

—      Corte em rosa. O corte em brilhante daria o dobro do brilho. Por meados do século XX houve um outro aperfeiçoamento, o brilhante Brown, que dá ainda melhores resultados.

Ela olhou-o surpreendida e com visível admiração.

—      Mandávamos sempre cortar as pedras em Los Angeles. Pedía¬mos que nos dessem o maior brilho possível.

—      Era o Fransski, não? — Sarah acenou afirmativamente. — Uma vez tentei explicar-lhe os princípios do corte em brilhante, mas é raro ele escutar seja o que for. As pedras são cortadas antes da irra¬diação, claro? Já alguma vez tentou irradiá-las primeiro e cortá-las de¬pois?

—      Sim. Morre. Seja qual for a modificação ocorrida na estrutura, não há estabilidade. É mesmo muito provável que se verifique um co¬lapso natural, embora isso ainda não se nos tenha deparado. A pedra que lhe mostrei foi a primeira que utilizamos, há quinze meses. Parece estar bem, mas a pressão necessária ao facetar quebra-a.

Charles acenou com a cabeça.

—      Não admira. E a bateria — calor simples — conversão de eletricidade? E que tal usar uma proteção?

—      Safira.

—      Claro. Mas que é que faltava aperfeiçoar, Sarah?

—      Muitas coisas. O esquema de proteção é tudo menos perfeito, o sistema de espelhos é ainda muito primitivo. De fato, até agora pouco mais havia que a idéia. Falta desenvolvê-la.

Charles fez rodar o pequeno diamante na mão, ao mesmo tempo que o examinava.

—      Desenvolvê-la ... sim, compreendo. — Olhou para Sarah — Imagine por momentos que dirige as Indústrias Químicas Reunidas. Tem uma coisa deste tipo em estudo. Perde o — investigador, mas de qualquer forma chegou-se a esta fase. Que é que vai fazer a seguir?

—      Entregar o caso aos engenheiros. É bastante óbvio, não?

Charles acenou afirmativamente.

—      Extremamente óbvio. Com certeza que não vai chamar outro in¬vestigador para quê fazer o que já está feito. Portanto, a questão conti¬nua de pé — porquê eu? Certamente que não foi uma questão de bene¬ficio para a minha saúde. Consegue perceber porque é que não entrega-ram a coisa à Secção de Desenho?

—      Não. Pus essa pergunta a mim mesma quando o Hans ainda es¬tava vivo. Perguntei-lhe mesmo o que é que ele pensava disso.

—      Que é que ele disse?

—      Ele tinha fraca opinião dos indivíduos de Graz. Tanto quanto me foi dado perceber, ele achava que eles não sabiam o que estavam a fazer. É difícil de acreditar.

—      Mas é bem possível, infelizmente. Hans — viu que o olhar dela se voltou para ele, com satisfação — conhecia certamente melhor as suas reações do que você ou mesmo eu. Penso que você não leu os re¬latórios confidenciais?

Ela apontou para os arquivos de microfilmes.

—      Só os que diziam respeito ao trabalho feito. Não os memoran¬dos endereçados a Nikko-Tsi.

—      E os memorandos? Estão também no arquivo?

—      Estavam. A Seção de Contato levou-os.

Ele abanou a cabeça.

—      Não é que tenha muita importância. Não me parece que possa fazer outra coisa a não ser reconstituir o puzzle e apresentá-lo depois, recomendando que o façam seguir para Detroit ou Milão.

Sarah disse, lentamente:

—      Espero que não se decida muito depressa.

—      Porquê?

—      Se as coisas chegarem ao ponto de eles serem incapazes de reco¬nhecer um trabalho fundamental como este, mesmo que lho ponham diante do nariz, não me parece que adiante alguma coisa mandá-lo para a Seção de Desenho. Acho que o Hans preferia a idéia de fazermos o trabalho aqui, sozinhos.

—      Mas não temos equipamento — nem pessoal!

—      Mesmo assim, conseguíamos.

Ao dizer isto, não olhou para ele, mas sim através da janela, para o imenso Pacífico. Ele pensou, com satisfação: «pelo menos, enquanto eu estiver aqui, as coisas não vão correr mal de todo.» A hostilidade pa¬recia ter desaparecido completamente. Mas embora fosse um alivio en¬contrar as possibilidades de uma colaboração amigável, continuava a não perceber como é que podia fazer outra coisa a não ser passar as coi¬sas às pessoas qualificadas para terminar o trabalho. Isaacssohn, tal co¬mo Sarah, devia estar imbuído do individualismo israelita e sentia-se provavelmente muito satisfeito por o deixarem fazer as coisas, sozinho. Charles, nascido dentro do sistema de gestão, tinha outra forma de consciência em relação a estas coisas. Pôs uma das mãos no ombro de Sarah e ela voltou-se para ele, meio sorridente, preparada para a cum¬plicidade da colaboração dos dois contra a estupidez imensa da organi¬zação das Indústrias Químicas Reunidas.

—      De qualquer forma, não preciso de muito tempo. Primeiro te¬nho de estudar devidamente a questão antes de me pronunciar.

Ela acrescentou:

—      Podia tentar a irradiação numa pedra talhada em brilhante. Acha que poderia arranjar algumas em Saginaw?

Ele riu intimamente do ingênuo espírito de determinação com que ela tentava envolvê-lo na continuação das pesquisas: embora fosse evi¬dente que ela devia ter dado com qualquer coisa que só ele estaria em posição de fazer. A idéia de que a Secção de Desenho pudesse vir a ta¬lhar as pedras que eles usavam era divertida.

—      Sim — disse. — Acho que Casey nos mandará algumas, se eu lhe pedir. Ele sempre esteve convencido de que a importação de uma máquina de polir era mais um sintoma da minha instabilidade mental. De fato eu podia mandar vir essa e outras peças de equipamento. Em Saginaw nunca mais se vão servir delas.

Ela disse:

—      Sim, não fazia mal nenhum. Gostava que você visse o plano pa¬ra o retificador de selênio. Incorporei no plano, tal como Hans o dei¬xou, algumas idéias minhas.

Sem esperar resposta, ela apagou as luzes e introduziu um microfil¬me no leitor. Na parede, o écran iluminou-se. Ela fazia as suas demons¬trações com um ponteiro sobre um pequeno écran que estava incrusta¬do na mesa, traçando círculos em volta dos pontos salientes, círculos esses que, reproduzidos no écran grande, brilhavam durante cerca de um minuto, antes de se apagarem.

—      Este ê o esquema original. Pensei que, se fizéssemos esta ligação — duas elipses uniram-se e formaram um círculo — e se cor¬tássemos esta terceira fase ...

Ela carregou num botão e uma nova imagem apareceu no écran.

—      ...seria mais ou menos assim. Isto deveria dar um novo impulso.

Charles disse:

—      Sim. É um belo trabalho. Muito bem. Vou planear o meu pró¬prio trabalho de maneira a acompanhá-la.

Quando olhou para ela, de pé, na sombra, fora do estreito raio de luz, Charles pensou que a vira corar.

Ela disse:

—      Obrigada. Hans deixava quase todas estas questões comigo.

—      Parece-me que vou fazer o mesmo — disse Charles.

Os poucos indivíduos do século xxi integrados no sistema de ges¬tão, que tinham o espírito de curiosidade necessário para isso, pergun¬tavam a si mesmos por que é que a TV continuava a ser bidimensional, enquanto o cinema se apresentava tão convincentemente tridimensio¬nal. Ambos pertenciam à Telecom, o que tornava essa discrepância ain¬da mais espantosa. De fato, a questão fora levantada em primeiro lugar no Conselho de Gestões. Os diretores da Telecom queriam uma TV a três dimensões, mas não tinham levado a sua avante. Psico & Me¬dicina tinha insistido em que a TV, caso lhe fossem dadas as mesmas oportunidades que ao cinema, destronaria este e havia muito boas ra¬zões para que o hábito de sair e procurar entretenimentos especializa¬dos devesse ser alimentado.

Assim, no domingo a seguir à sua chegada, Charles desceu com o seu giroplano no cineparque de San Miguel e ajudou Sarah a sair. O teto deslizou de forma a cobri-los, protegendo-os da chuva persis¬tente que, de qualquer forma, era evaporada pelo termo-equipamento muito antes de tocar no chão. Charles arranjou bilhetes para os melho¬res lugares e deitaram-se lado a lado em almofadas de ar, a meio da ponte que se encurvava de um lado ao outro, a meio do cinema.

Enquanto esperavam que o filme começasse, Sarah rolou de um la¬do para o outro, enterrando-se na almofada e estendendo os membros para lhe sentir a elasticidade. Charles observava-a, divertido. Ela no¬tou-o.

—      Nunca tinha estado numa almofada destas — disse ela. — Vi¬nha cá às vezes com o Hans, mas a nossa natural frugalidade israelita levava-nos a escolher os lugares C.

—      Isso quer dizer que não conhece todas as suas vantagens — suge¬riu Charles. Ele carregou num botão e as paredes isolando-os de todos os olhares, tal como já acontecia com os lugares inferiores.

Sarah inclinou-se, sem pressa, e, carregando no botão, as paredes voltaram a subir.

—      Já sabia disso — disse.

Charles propusera a ida ao cinema quando soube que Sarah era, tal como ele, uma apreciadora de reposições. Tratava-se de filmes de valor histórico que eram refeitos com toda a fidelidade permitida pela trans¬posição para o sistema realista, colorido, 3D. O presente programa constava de duas reposições — La Femme du Boulanger e Uma Noite na Ópera. O primeiro agradou-lhes, mas o segundo pareceu-lhes abor¬recido. Ambos tinham visto filmes originais dos irmãos Marx nos pe¬quenos écrans de bilhete-postal e os atores que tentavam agora escrupulosamente imitá-los davam uma pálida imagem do original. Uniram- -se nas suas críticas e saíram da ponte num ambiente quente de camara-dagem.

Quando o giroplano se ergueu através do telhado aberto, encon¬trou um céu limpo, que parecia mais azul depois da chuva. As nuvens eram ainda visíveis, formando uma barra branca sobre as colinas. A vi¬sibilidade era boa e todos os detalhes das próprias colinas se destaca¬vam com uma nitidez surpreendente. Enquanto o giroplano pairava so¬bre o cineparque, Charles chamou a atenção de Sarah para as colinas.

Ela disse:

—      Que maravilha. Não podemos ir até lá?

Ele olhou para o indicador da bateria elétrica.

—      Pouco menos de um quarto. Faz idéia da distância?

Ela disse vagamente:

—      Cinco milhas. Dez!

Charles riu:

—      Se forem dez, teremos provavelmente de fazer uma parte do ca¬minho de regresso a pé. Está bem?

Ela sorriu:

—      Não faz mal.

Ele fez descer o giroplano numa saliência coberta de erva, cerca de quatrocentos pés acima do nível do mar, donde se avistavam as planí¬cies que se estendiam até San Miguel, o laboratório e o friso distante do oceano. A erva rasteira fora provavelmente cortada para os carneiros, mas estava ainda molhada da chuva; Charles estendeu uma manta de plástico e sentaram-se. Ia oferecer-lhe um cigarro quando pareceu lem¬brar-se.

—      É verdade, você não fuma. Que é que toma? Mescal?

Ela abanou a cabeça.

—      Nada.

—      Nada? Que maravilha! Nem sequer rói as unhas?

—      Nem isso. Mas não tem mérito. Não se esqueça da minha educa¬ção israelita puritana. Isso explica tudo.

—      Já me tinha esquecido. Mescal e tabaco são proibidos. Mas há uma coisa que é permitida. Como é que...?

—      Você está a pensar em vinho. — Sarah contemplava o panora¬ma que se estendia em frente deles. — Há pelo menos uma coisa que é melhor aqui. Um sítio como este só para nós. Em Israel um lugar destes estaria apinhado; nem sequer haveria espaço para baixar um giroplano, penso eu.

—      Gente a mais — disse Charles —, aí está um dos poucos proble¬mas que nós não temos. Pelo menos nestas paragens. — Levantou-se e aproximou-se do giroplano. — Tive uma idéia...

Pôs-se à procura num armário e tirou dois copos e duas embalagens plásticas com vinho tinto.

—      Deve ser Califórnia, mas é melhor que nada. — Cortou o canto de uma das embalagens e o vinho brotou para o copo que ele pôs a jei¬to. Estendeu-o a Sarah e encheu o outro. Provou-o e disse, pensativo:

—      Não é mau.

—      À bateria solar — disse Sarah. Não tirou os olhos dele enquanto repetia a saúde. — E à nossa saúde.

Ele percebeu onde ela queria chegar.

—      Acho que não temos nada a recear.

—      O Hans também pensava assim.

Ele voltou-se para a olhar bem de frente. Havia apenas três dias que se conheciam, mas ele já não se podia contentar em ter poucos ou nenhuns problemas no trabalho que iriam fazer juntos. Era importante que ela não se deixasse atormentar por falsas preocupações.

—      Seja razoável, Sarah. Não há qualquer motivo para que alguém tivesse morto Hans. Isso não traria vantagens para ninguém. Porque é que a IQR havia de o matar se tinha a sua colaboração? Quanto às ou¬tras organizações, não vou ao ponto de dizer que não se dê, de vez em quando, um crimezinho bem planeado — mas, neste caso, para quê? Se se tratasse simplesmente de eliminar uma vantagem da IQR, porquê dar-lhe a oportunidade de pôr no mesmo lugar uma pessoa como eu, dando-me a facilidade de receber de si todos os fios da meada? Se fosse essa a idéia, você também não estaria aqui. Dois crimes pouco mais são do que um.

—      Não vale a pena, Charles — disse ela. — Sei que há qualquer coisa que não está certa. É uma convicção.

—      Como é que chegou a ela? — perguntou, numa provocação de¬liberada. — Por meio de intuição?

Ela ficou picada.

—      Não, que diabo! Mas conhecendo os fatos melhor do que você — e quando digo conhecer, quero dizer conhecer realmente, não apenas uma aceitação intelectual. Está tudo certo — você acredita quando eu lhe digo que Hans era um marinheiro experimentado e que o mar estava calmo, mas não pergunta a si mesmo até que ponto ele era experimentado ou até que ponto o mar estava calmo. A idéia de ele ter sido morto parece-lhe insensata; a mim parece-me igualmente insensato pensar que tivesse sido um acidente.

—      Os seus mistérios são mais obscuros que os meus — observou. — O mar tem um longo cadastro de violências e crimes insensatos. A psicologia dos gestores é bastante previsível, segundo me parece. Sabe¬mos porque é que Leverson não tentou manter a hegemonia do Depar¬tamento Atômico, alcançada por Van Mark, mas nunca saberemos porque é que a sua tripulação abandonou o Marie Celeste.

Ela sorriu.

—      Aprecio o seu argumento. Mas mesmo assim não conseguiu con¬vencer-me.

—      Também não esperava consegui-lo tão facilmente. O tempo a convencerá. Espero que compreenda que, a existir alguma viabilidade na sua teoria, isso aponta para que entreguemos tudo à Secção de Dese¬nho?

Ela ficou silenciosa por momentos.

—      Acho que tem razão. Seja. — Voltou a beber. — À bateria so¬lar e que as nossas saúdes se desenvencilhem sozinhas.

Riu. Enquanto a observava, Charles verificou que já não havia nela qualquer vestígio daquele nervosismo e mal-estar que tinham sido tão característicos da sua personalidade quando a tinha conhecido. Em sua substituição, a naturalidade e o encanto sobressaíam fortemente. Espe-cialmente o encanto — ele sentia uma convicção pessoal, que aumenta¬va a todo o momento e que lhe dizia que esse encanto, ao mesmo tempo que refletia o à-vontade que ela começara a sentir junto dele, refletia também alguma coisa mais; alguma coisa que incluía a provocação.

Ele estava longe de não querer ser provocado. Havia muito tempo que não sentia nada que se assemelhasse ao seu estado de espírito a¬tual; pensara que esse estado de espírito tinha sido devidamente canali¬zado no decorrer das suas visitas às casas P & M. Ao que parecia, isso não sucedera. Confiante de não ser indesejável, avançou lentamente para a abraçar.

Ela afastou o corpo evitando-o. Ele caiu para a frente e conseguiu agarrar-lhe um braço. Com grande espanto seu, ela deu-lhe uma bofe¬tada com a mão que tinha livre. Ele sentou-se e ficou a olhar para ela.

Ela largou a rir.

—      Se você pudesse ver como está cômico, Charles!

—      Imagino. Mas o que é que com os diabos...

—      Você já se esqueceu. Outra das nossas inibições israelitas. É co¬mo o tabaco e o mescal. É-nos muito difícil tomar atitudes promíscuas do pé para a mão.

—      Com quanto tempo de antecedência é preciso preveni-la?

—      Não é fácil dizer. O tempo suficiente, pelo menos, para que a idéia não provoque reações imediatas. Deixamos a questão assim, está bem?

Tinha a cara a arder; esfregou-a. Sentia-se ao mesmo tempo arreliado e satisfeito. No passado, escolhera deliberadamente as Casas, de preferência à promiscuidade que o rodeava e sentira-se, de uma manei¬ra geral, inclinado a aceitar a idéia corrente de que isto constituía uma perversidade da sua parte. Agora não tinha a certeza disso.

—      Acho que sim, se você o diz. — De qualquer forma, era aborre¬cido que a sua primeira avançada, depois de muito tempo, tivesse sido repudiada. Olhou para o rosto sorridente e reservado de Sarah. — Sempre pensei que em três anos tivesse entrado mais no — no ritmo do sistema de gestão.

—      Tenho feito uma vida pacata. Não se esqueça de que tenho an¬dado sempre com israelitas — primeiro o meu pai e depois Hans. As minhas oportunidades têm sido limitadas.

—      Tentarei fazer com que deixem de o ser.

—      Acredito. — Apoiou-se num cotovelo e apontou para a faixa brilhante do mar. — Hidroaviões. Deve ser o regresso da Corrida de Guadalupe. Tem algum binóculo no armário, Charles? Apostei cem no Conway.

Ele trouxe-lhe o binóculo.

—      Boa maneira de mudar de assunto. Pelo que vejo, entrou sufi¬cientemente no ritmo para resolver arriscar nas corridas de hidroaviões.

Ela sentou-se muito direita, com os ombros puxados para trás, en¬quanto focava o binóculo nas manchas distantes perdidas no oceano. A posição favorecia-lhe extraordinariamente a figura e Charles suspei¬tou de que ela bem o sabia. Voltou a sentir-se arreliado durante alguns momentos.

—      Em Israel também fazem apostas. E já para agora, fazem saltar melhor os hidroaviões. Aquele é Ethelgar, à frente. Conway é o tercei¬ro. Suponho que nenhum deles sabe tirar partido de um vento lateral.

—      Isto aqui não é o Mediterrâneo.

—      Já lhe disse que o Mediterrâneo é mais perigoso do que vocês pensam. — Baixou o binóculo e estendeu-o a Charles. Quer ver? Os meus cem foram-se. Conway está em boa posição, mas não consegue agüentar meia milha.

Charles pegou no binóculo.

—      Nunca me interessei o suficiente para apostar nisto. — Olhou ocasionalmente. — Nem consigo distinguir as cores.

—      Nem precisa; a superestrutura basta como identificação. Olhe. Aproximou-se e voltou a pegar no binóculo. Apoiou o corpo contra o dele, pondo-lhe um cotovelo no ombro. Ele ficou imóvel, sentindo-lhe o calor e a suavidade. — Ethelgar — as curvas acentuadas e a carapaça arqueada. Conway — rente à água, com as asas ligeiramente encurvadas para trás. Aquele é o Spruce; distingue-se pela forma quadrada.

Afastou-se um pouco dele, baixando o binóculo.

Ele disse:

—      Continue. É mais interessante do que eu pensava. Quem é que está em quarto lugar?

Ela ficou imóvel, sorrindo.

—      Chega, para a primeira lição. Podia vir a interessar-se dema¬siado. Vamos voltar?

No decorrer da semana seguinte, voltaram a sair juntos, uma ou duas vezes, e Charles esperava o fim-de-semana com impaciência. Fez-lhe uma sugestão vaga na quinta-feira à noite, quando voltavam de um passeio ao Golfo. Sarah abanou a cabeça; talvez com pena, mas muito firmemente.

—      É a minha semana de ir a Berkeley. Uma vez por mês vou passar dois dias com o meu pai. É pena.

Ele não teve a certeza de conseguir disfarçar a decepção que sentiu.

—      Compreendo, pois claro.

Dissera-lhe que regressaria bastante tarde no domingo à noite e ele pusera-lhe o giroplano à disposição. Ainda tinha o carro; uma vez que tinha licença de condução, não fazia sentido que não praticasse. Ausentou-se deliberadamente ao laboratório no domingo à tarde e à noite, esperando que Sarah estivesse de volta quando ele próprio regressasse.

Passava das vinte e três quando meteu o carro na garagem e viu que não havia luz nas janelas dela. Também podia ser que tivesse ido para a cama assim que chegasse, mas parecia-lhe pouco provável. Foi para os seus aposentos, mas não lhe apetecia dormir. Sintonizou a Liga Verme¬lha, Conforto Brilhante e o canal local, Circuito do Sol, mas achou que aquilo que a TV lhe podia oferecer correspondia ainda menos às suas necessidades do que o habitual. Pensou em telefonar a Sarah, mas seria um bocado disparatado se ela tivesse ido realmente para a cama. Aca¬bou por tocar os discos de John Passion, com o som baixo e as janelas abertas para ouvir o giroplano, caso ela chegasse, entretanto.

Foi no meio de tudo isto que ele se lembrou repentinamente de que tinha uma maneira muito simples de saber se ela já tinha voltado. Foi ao local onde guardava o giroplano. Estava vazio.

Tudo lhe parecia agora evidente. Podia haver uma centena de ra¬zões que a levassem a decidir passar a noite junto do pai e voltar de ma¬nhã; ele podia estar doente, qualquer coisa. Voltou aos seus aposentos, tomou uma ducha, foi para a cama e dormiu, até que as trombetas de Conforto Brilhante o acordaram para a contemplação de uma aurora alpina sobre a parede do quarto.

Logo que acabou de se vestir, telefonou a Sarah. Ela já algumas vezes o tinha procurado pessoalmente, de modo ocasional, sem preve¬nir, mas ele não estava habituado àquela ausência de formalismo. O écran continuou vazio. Continuou a chamar durante cinco minutos, caso ela estivesse a vestir-se ou a tomar banho e depois compreendeu que ela ainda não tinha voltado. Olhou para o relógio que tinha no de¬do; passava das oito. Mesmo que tivesse decidido passar a noite, já de¬via estar de volta ou, pelo menos, ter telefonado a explicar o que se passava.

Encontrou a indicação da freqüência do pai no seu microficheiro e chamou o número. A chamada foi atendida imediatamente. No écran surgiram as feições bronzeadas, tipicamente israelitas de um homem com cerca de sessenta anos — alto e um pouco encurvado. Tinha um sorriso cordial e um tanto malicioso. Falou com um sotaque acen-tuado. Provavelmente fora ele próprio um dissidente da tradição espa¬lhada entre as famílias aristocráticas de Israel quanto ao uso exclusivo da língua alemã, uma vez que mandara ensinar inglês à Sarah desde a infância desta.

Ele disse:

— Sim? O senhor é Grayner. Ainda não nos tínhamos visto. Es¬pero que esteja bem.

Charles sentia a garganta apertada. Disse abruptamente:

—      Sarah — a sua filha — está aí? Gostava de falar com ela.

O rosto do Professor Cohn contraiu-se. Disse tranqüilamente:

—      Saiu daqui ontem — ao princípio da tarde — para voltar para o laboratório. Ainda não chegou?

—      Não. — Estava assustado e a pergunta saiu-lhe com uma aspe- reza involuntária. — A que horas é que ela saiu daí? Falou de alguma paragem que tivesse de fazer pelo caminho? Reparou na bateria?

—      Ela saiu pouco depois das seis — queria estar de volta cedo, foi o que me disse. Não falou em parar, já lhe disse, ela queria estar de volta cedo. A bateria estava carregada e nós não nos servimos do giro¬plano. — Fez uma pausa. — Que é que se pode fazer?

—      Vou entrar em contacto com a Telecom imediatamente — disse Charles. — Não se preocupe. Deve ter sido obrigada a parar em qual¬quer sítio inóspito. Num giroplano dorme-se muito bem. Telefono-lhe logo que saiba qualquer coisa.

Desligou sem esperar que a resposta do Professor Cohn fosse a mais do que «Sim, espero». Entrou em contacto com a Seção de Re¬cuperação da Telecom. No écran apareceu uma mulher gorda, a bocejar, visivelmente desinteressada de tudo o que não fosse a sua hora de largar o trabalho.

Ele disse com brusquidão:

—      Laboratório 719 da IQR, San Miguel. Funcionário Grayner. Não sabemos do paradeiro de um membro do nosso pessoal. Assistente Sarah Cohn. Desapareceu ontem à noite quando seguia de giroplano de Berkeley para aqui. Tem alguma informação acerca dela?

A mulher olhou para ele com os seus olhos descaídos e entediados.

—      Quase podia jurar que não. Há um mês que não temos de socor¬rer nenhum giroplano. Mesmo assim, não desligue, vou confirmar com o Exterior.

Observou-a enquanto ela se voltava para o lado e sintonizava a equipa de serviço exterior noutro écran, do qual ele via apenas um can¬to: parte de um rosto masculino distorcido. Ouviu igualmente a respos¬ta que lhe deram. Ela desligou e dirigiu-se novamente a Charles.

—      Nada. Vou emitir um pedido de ajuda. Berkeley, disse? Para San Miguel?

—      Sim. Vai mandar-me um relatório logo que consiga apurar qual¬quer coisa?

Ela acenou.

—      Era melhor mandar-nos a microficha dela. Tem-na aí?

—      Não, não tenho. Mas vou buscá-la. Depois volto a entrar em contacto consigo.

—      Está bem.

Ela tinha-se voltado para ligar o écran recreativo, mesmo antes de interromper o contacto. Charles fitou durante alguns momentos o bri¬lho fraco do écran, antes de desligar, por sua vez. Depois dirigiu-se ao escritório para ir buscar a microficha de Sarah. Trouxe-a para os seus aposentos. Meteu-a no projetor. Os detalhes relativos à Assistente Sa¬rah Cohn, que eram considerados relevantes, encheram a parte supe¬rior do écran; na parte inferior, aparecia a própria Sarah — três Sarahs: cabeça e ombros, frente e perfil e corpo inteiro. O medo, a dor, voltaram a apoderar-se dele, com mais força, enquanto contemplava as imagens.

Voltou a chamar a Telecom e respondeu-lhe a mulher gorda.

—      Não demorou. Tem a ficha? Projete-a.

O écran ficou branco durante um minuto ou dois, para dar lugar ao automático que fotografou a microficha. Depois, a mulher voltou a aparecer.

—      O. K. — Ela sorriu com uma certa malícia. — Já percebi a pressa. Vamos tentar descobrir-lha. Isto é uma história para os rapazes do telecine — a bela cientista perdida num giroplano. Eles não tardam a aparecer.

Telecom dava-se sempre mais importância do que a que na realida¬de tinha; Charles sentiu-se irritado com a mulher, mas guardou para si essa irritação. De qualquer forma, estava dependente da Telecom para conseguir saber rapidamente o que se passava.

Limitou-se a dizer:

—      Nós somos um serviço autônomo. Quer dizer-lhes isso?

—      Não faz mal. Eles chegam a toda a parte. Estão sob as ordens de Metrill?

Ele respondeu:

—      Agradeço-lhe que me informe logo que souber qualquer coisa.

Quando ela disse: «Com certeza», ele desligou.

A sua próxima chamada foi para Metrill; era necessário notificá-lo. Só falara com Metrill uma vez; uma chamada formal quando tinha to¬mado conta do laboratório. Metrill pertencia ao tipo avuncular — lento, cordial, aparentando uma solicitude que escondia, segundo a convicção de Charles, um espírito preguiçoso dos que arquivam os as-suntos e não pensam mais neles. No entanto, a notícia fê-lo endireitar na cadeira, com um ar irritado. Tratava-se de uma situação que exigia que se tomassem medidas.

Metrill disse:

—      Falou com o pai dela?

—      Sim. Ela partiu com a bateria carregada, pouco depois das dezoito horas.

Metrill olhou para ele, pensativo.

—      Porque é que ela foi de giroplano?

—      Fui eu que lhe emprestei o meu.

—      Porquê?

—      Eu não ia usá-lo — foi para lhe facilitar a viagem. De outra for¬ma ela teria tido de usar um táxi até San Diego, chegar a horas de apa¬nhar o avião e tudo isso. Ela é um piloto qualificado.

—      Era, de qualquer forma. — Foi o ar despreocupado mais do que o tom definitivo da observação de Metrill que fez com que Charles sentisse ganas de lhe bater. — Aconselho-o a cingir-se aos regulamen¬tos, Funcionário Grayner. Ao fim e ao cabo, poupa incômodos a to¬dos, mesmo que a curto prazo seja um pouco menos cômodo.

—      Sim, senhor.

Metrill remexeu-se na cadeira.

—      Qual é o número da ficha dela?

Charles deu-lho, observando Metrill enquanto o anotava. Disse:

—      Estava a pensar ...

Metrill disse sem sequer levantar os olhos:

—      Sim?

—      ... se me podiam mandar outro giroplano. Penso que talvez eu pudesse ir procurá-la.

Metrill levantou os olhos. Fitou-os pensativamente em Charles.

—      Vamos tratar de substituir o giroplano. Mas fique onde está. O Contacto terá de vir fazer-lhe uma visita.

—      Eu posso conceder-lhes a entrevista e ainda assim ter tempo...

—      Fique onde está. Você tem trabalho para fazer. Vamos tratar da substituição do giroplano — e da outra substituição também.

«A outra substituição» só podia ser Sarah. Sentindo-se cada vez mais furioso, Charles disse:

—      Não é capaz de dizer ao menos: «Esperamos que não seja neces¬sário?»

Metrill continuava a fitá-lo.

—      Dois terços do caminho direto entre a sua casa e Berkeley são feitos por cima do oceano. Não vejo qualquer razão para modificar a minha frase com o acréscimo proposto por si. Não se afaste, Funcioná¬rio Grayner. O Contacto procurá-lo-á.

A mão de Metrill avançou e parou subitamente.

—      E não fale nisto a mais ninguém. Nem à Tetecom, por exemplo.

Charles cerrou mais os lábios.

—      A primeira chamada que fiz depois de ter falado com o Profes¬sor Cohn foi para a Telecom, para ver se a tinham ido buscar a algum sítio.

Metrill inclinou-se para trás e juntou as mãos por detrás da cabeça, que começava a ficar careca. Ficou silencioso por momentos e depois disse:

—      Quando ainda era rapaz, fiz uma coisa com todo o cuidado. Aprendi os regulamentos. Foi a coisa mais útil que eu fiz e parece-me que não é tarde de mais para o senhor fazer o mesmo. Sob o número 29, encontrará uma determinação que ninguém — supervisor, funcio¬nário, gestor ou diretor — comunicará seja o que for relativo ao pes¬soal, a qualquer fonte exterior, enquanto o assunto não tiver sido apre¬sentado à autoridade imediatamente superior. Tudo bem explícito. E há sempre uma razão para aquilo que foi estipulado.

—      Isto podia ter sido uma questão de vida ou de morte.

Metrill olhou para outro lado.

—      Aceito isso como uma desculpa. Com que Secção da Telecom falou — Recuperação?

—      Sim. — Nesse momento, nada lhe interessava a não ser agredir Metrill. — Apresentei-lhes a microficha da Assistente Cohn. Acho que iam passá-la à televisão. Informei-os de que este serviço era autônomo. Iam contatar consigo.

—      Funcionário Grayner — disse Metrill —, o senhor é um idiota e um incompetente. Vou desligar. Fique onde está.

Charles ligou o alarme do seu écran de chamada, antes de ele se desligar. Em primeiro lugar foi ao laboratório. Luke e Tony estavam ocupados com um trabalho de rotina que Sarah deixara entre mãos. Contou-lhes o que tinha acontecido. Depois, sentindo-se incapaz de se concentrar no trabalho que tinha para fazer, saiu. Um robot tratador de árvores embrenhou-se no laranjal, estava um dia cinzento e pesado, um vento penetrante e úmido soprava do lado do mar. Embora esti¬vesse a uma distância que lhe permitia ouvir o alarme do écran de chamada, estava fora do alcance do ruído dos geradores. À sua volta reinava o silêncio. Apenas se ouvia o barulho do mar que embatia sem pressa de encontro aos rochedos.

Ficou ali mais de uma hora. O alarme não deu qualquer sinal. O que acabou por o fazer voltar para trás foi o giroplano, primeiro o ruído que se sobrepôs ao marulhar forte das ondas e depois o vulto que deslizava lateralmente em direção às traseiras do laboratório. Cami¬nhou rapidamente, sentiu mesmo uma ligeira esperança de que se pudesse tratar de Sarah.

Eram dois homens. Envergavam os casacos habituais de couro plástico e a etiqueta, Secção de Contacto, por baixo dos emblemas da IQR. Um deles era muito baixo e curvado, o outro era de estatura mé¬dia e os cabelos ruivos formavam-lhe como que uma aura de fogo em volta da careca bem visível. Foi este que acenou amigavelmente para Charles.

—      Grayner? O meu nome é Caston. Este é o Stenner.

Stenner produziu uma versão minuciosa da saudação da IQR e Charles correspondeu-lhe de forma desajeitada. Era a primeira vez que se via perante este tipo de etiqueta. Caston esboçou um sorriso.

—      Onde podemos falar?

Charles conduziu-os aos seus aposentos. Caston olhou em volta, observando tudo abertamente, com ar natural. Stenner mostrava uma atenção disfarçada.

—      Que é que aconteceu às aquarelas do mar da Galiléia e do monte Hebron? — perguntou Caston.

Charles respondeu lentamente:

—      Estão nos aposentos da minha assistente. — E acrescentou:

Há notícias?

—      Segundo me informaram, você comunicou o fato à Secção de Recuperação da Telecom? — disse Caston. — Deixamos o caso com eles. De qualquer forma, eles têm equipamento mais adequado para esse tipo de coisas.

—      Metrill pareceu ficar muito aborrecido por eu ter entrado em contacto com eles.

—      Metrill — comentou Caston — tem uma tal preocupação em evitar complicações que acaba por as inventar. Além disso, tem pouca força de vontade. Teve de recorrer a nós para tapar os olhos aos rapa¬zes do telecine. Acho que não o vão incomodar, a menos que você esti¬vesse interessado na publicidade.

—      Não — disse Charles —, não estou. — Olhou para Caston. — Você conhece esta região melhor do que eu. Diga-me, quais são as pro¬babilidades?

Caston pareceu ficar espantado.

—      Probabilidades?

—      De a minha assistente estar sã e salva.

Caston encolheu os ombros.

—      Há uma possibilidade. Ela pode ter ido cair em qualquer sítio, onde se encontre viva, mas demasiado magoada para poder sair de lá. É, no entanto, uma possibilidade muito fraca. O mais provável é o mar. Era uma bela rapariga.

Charles disse, numa tensão bem perceptível:

—      Mas porquê? Porque é que ela havia de cair? O giroplano estava em ordem, tinha a bateria carregada, não houve nenhum temporal. Que é que pode ter corrido mal?

—      Segundo a minha experiência — disse Caston —, há sempre qualquer coisa que pode correr mal — geralmente três ou quatro coi¬sas. O altímetro, por exemplo. Indica dois mil metros e de repente — catrapás — estatelamo-nos no oceano. Ou um colapso — as pessoas estão sujeitas a colapsos. Além disso, ela pode ter tido as suas razões. — Olhou de lado para Charles. — Parece que ela ficou muito abalada com o acidente sofrido pelo seu predecessor. Não sei o que se passou, claro, mas...

—      Mas sei eu — interrompeu-o Charles. — Nada. Não se passou nada. E ela era tudo menos o tipo suicida.

Stenner falou. A sua voz dava a impressão de estar ressequida.

—      O tipo suicida é aquele que comete suicídio. Não há outra forma de o classificar. — Olhou através da janela com um ar que poderia pa¬recer de concentração profunda, numa pessoa de Físico diferente. — Você não conhecia essa mulher há muito tempo. Há geralmente pouca relação entre a vida exterior e a vida interior. Ela era do tipo nervoso.

—      Sim, com estranhos — disse Charles. — Fora isso, era capaz de se descontrair.

Caston atalhou:

—      Não é que tenha importância, mas podia ter sido o altímetro — ou qualquer outra coisa.

Houve um breve silêncio. Charles disse:

—      Creio que já deve ter reparado que a média dos acidentes ocorri¬dos com o pessoal deste departamento aumentou consideravelmente?

—      Bom — disse Caston —, se admitirmos a possibilidade do suicí¬dio, o caso torna-se apenas episódico. Se o pusermos de lado — o raio não cai duas vezes no mesmo sítio, mas costuma atingir a árvore do la¬do. Conhece aqueles momentos de sorte em que acerta cinco bolas umas atrás das outras? A Dama Fortuna pode bem trabalhar ao contrá¬rio, por vezes.

—      Ponhamos as cartas na mesa — disse Charles. — Eu não aceito de forma alguma a tese do suicídio. E continua a parecer-me uma estra¬nha coincidência que tanto o funcionário de pesquisas como a sua as¬sistente seja vítimas de acidentes um tanto especiais no prazo de uma semana — e de ambas às vezes se atribuem as culpas ao mar.

Caston parecia aborrecido.

—      Tem uma solução melhor?

—      Trabalhamos sob sigilo.

Caston atravessou a sala e examinou os livros que Charles tinha nu¬ma prateleira. Por cima do ombro, perguntou-lhe:

—      Você lê livros? O meu pai também costumava lê-los. Eu tentei um ou dois, uma vez, mas não achei que valessem a pena. Sigilo. Qual¬quer porcaria de qualquer laboratório que exista nesta metade do conti¬nente trabalha sob sigilo.

A voz de Stenner fez-se ouvir:

—      Está a sugerir que outra organização tenha agido contra Isaacs¬sohn e Cohn? O trabalho que estão a fazer aqui é assim tão impor¬tante?

Charles hesitou:

—      A importância ou lá o que quer que seja que haja no trabalho parece-me menos importante do que a coincidência.

—      No nosso trabalho não podemos dar-nos ao luxo de nos deixar¬mos impressionar pelas coincidências. Se outra organização tivesse de¬cidido que seria uma boa idéia desembaraçar-se desses dois — porque não os teria despachado ao mesmo tempo? Porque é que haviam de es-perar que você fosse nomeado para acabar o trabalho?

—      Isso não sei. — Charles fez uma pausa. — Talvez achassem este processo mais convincente.

Stenner sorriu com austeridade.

—      Podemos assegurar-lhe que não teria sido difícil fazer com que um duplo assassinato parecesse ser apenas um acidente. Nada difícil.

Caston abanou a cabeça.

__ Não. Nada difícil.

—      Dois acidentes em tão curto espaço de tempo poderia parecer estranho, mas quando não se consegue encontrar uma explicação na¬tural ...

—      Venha ver aqui, donde nós estamos — convidou Caston. — Não é nada engraçado um navegador afogar-se; devia ver as estatísticas de Key Largo o ano passado. Nem percebo como é que alguns barcos conseguem manter-se direitos. Quanto a este último caso, é fácil você dizer que não aceita a idéia de suicídio; é a única explicação possível. Não há que sair daí.

Charles disse:

—      Acho que o mar não tinha mais do que a ondulação habitual no dia em que Isaacssohn se afogou; além disso, ele era um navegador experiente.

—      Segundo a minha própria experiência — disse Caston —, são justamente os indivíduos experientes e os amadores trapalhões que es¬tão mais sujeitos a acidentes — seja em que campo for. O indivíduo ex¬periente torna-se menos cauteloso. Tem grande confiança em si próprio e um belo dia tropeça nessa mesma confiança. Na minha opinião, os is-raelitas estão mais sujeitos a isso que os demais. Recebemos o Boletim Meteorológico da Telecom referente a esse dia — rajadas atingindo a força 8. Suficientemente perigosas, mesmo para um perito.

—      Você disse «Acho...» — observou Stenner. — Poderá informar-nos de quem é que o fez achar?

—      A minha assistente não estava muito satisfeita com as circuns¬tâncias que rodearam a morte dele. Ela estava convencida de que se tra¬tava de homicídio.

Stenner sorriu; um vago sorriso de resignação.

Caston disse:

—      Ora vejamos, Grayner. Na sua opinião, é normal que uma pes¬soa equilibrada comece logo a pensar em homicídio quando um tipo se afoga no mar? É natural que se fique perturbado quando se trata de al¬guém conhecido, mas para quê pensar em homicídio? Nós somos a polícia e consideramo-nos satisfeitos. Para sua informação, foi exatamente essa atitude por parte da rapariga que nos fez aceitar com menor admiração as notícias relativas aos últimos acontecimentos. Não sabía¬mos que ela falara consigo desses assuntos, mas, nesse caso, esse fato torna tudo ainda mais evidente. Aposto que ela atacou a questão logo que lhe pôs a vista em cima.

Charles respondeu, com certa relutância:

—      Sim, isso é um fato. Eu próprio também pensei que ela não estava boa da cabeça.

—      Se ela tinha suspeitas — insistiu Caston —, porque é que havia de as vomitar dessa forma? Se não estava satisfeita com a forma como tratamos do caso — sabia o que tinha a fazer. Bastava-lhe apresentar uma reclamação a Metrill e ele teria mandado alguém verificar o que se estava a passar. Em vez disso — ela voltou-se para si com as suas quei¬xas. Porquê?

—      Era uma estranha — disse Charles —, num país estranho. Não se esqueça de que ela não nasceu num sistema de gestão. Compreendo muito bem o que você quer dizer. Eu próprio pensei o mesmo, a princípio, como lhe disse. Mas depois, trabalhando com ela, comecei a conhecê-la melhor. Ela não tinha qualquer perturbação mental. — o seu olhar foi de um para o outro. — E não era do tipo suicida.

Caston encolheu os ombros.

—      Impressões acerca das pessoas — convicções, mesmo — não significam grande coisa. Um paranóico suicida é um indivíduo muito convincente. No nosso trabalho encontramos muitos e por vezes ainda nos deixamos enganar. Talvez você nunca tenha encontrado um para¬nóico bem perto em toda a sua vida. Tem estado sempre a trabalhar num pequeno laboratório como este — não é verdade?

—      Sempre — disse Charles. O seu espírito estava quase a ceder: havia alguma coisa de mais forte ainda naquilo que Stenner não dizia do que naquilo que Caston afirmava. Era verdade que ele pouco sabia dos seres humanos; até há bem pouco tempo, nunca pensara que vales¬se a pena aprender. E podia ter-se enganado a respeito de Sarah... Mas quando as coisas lhe eram apresentadas com tanta simplicidade, recusava-se a aceitar.

Stenner quebrou o silêncio que se instalara por momentos.

—      A Assistente Cohn apresentou alguma razão para que a Secção de Contacto negligenciasse a sua obrigação — partindo do princípio que as estranhas suspeitas dela fossem justificadas? A nossa tendência é mais para criar a fama de nos intrometermos demasiado, não o con¬trário.

Esse, aliás, tora o ponto de vista dele. Charles hesitou e depois disse:

—      É possível que tenham razão, claro. Isto é o vosso trabalho e não o meu. Se não... não encontrarem a minha assistente, então o ca¬so é simplesmente posto de lado? Não vão investigá-lo?

—      A Secção de Contacto — disse Caston — segue uma rotina bem estabelecida. Pelo menos na IQR. Claro que vamos investigar. Talvez o pai dela possa dar-nos qualquer indicação — uma sugestão sobre o seu estado de espírito. Se não aparecer mais nada, teremos de nos concen¬trar nesse aspecto.

—      Também gostava de falar com o Professor Cohn — disse Char¬les. — Têm alguma objeção a que eu vá a Berkeley convosco?

Os dois homens cruzaram os olhares. A resposta de Stenner serviu para confirmar a idéia que ele já tinha quanto ao tipo de relação que havia entre ambos. Stenner disse:

—      Não é habitual, mas não vejo qualquer inconveniente. Do nosso ponto de vista, claro. No que diz respeito à sua ausência do laborató¬rio... suponho que Metrill não porá objeções?

«Quero que o Metrill vá para o diabo», pensou Charles. Disse laconicamente:

—      Não. Desse lado não vai haver objeções.

Stenner pegou nas luvas.

—      Nesse caso...

—      Pensei que talvez fosse melhor telefonar primeiro ao Professor Cohn. Além disso, gostaria de saber se já há alguma coisa por parte da Telecom.

—      Está bem — disse Stenner. Encaminhou-se para a janela, en¬quanto calçava as luvas. Caston, com ar fascinado, recomeçara a ob¬servar as prateleiras dos livros. Charles dirigiu-se ao painel de controlo e chamou a Telecom.

A rapariga da Recuperação era ligeiramente mais simpática, mas igualmente desinteressada.

—      Não soubemos nada. Se recebermos alguma informação, entra¬mos em contacto consigo.

—      Eu vou sair. — Deu-lhe o número do Professor Cohn. — Se ti¬ver alguma notícia, ligue para aqui, está bem? Mas cuidado, é o pai.

A rapariga bocejou.

—      Somos treinadas em relações públicas.

Desligou e ele fez uma chamada para Berkeley.

—      Como está? — disse o Professor Cohn. — Ainda não teve notí¬cias?

—      Ainda não. — Charles sacudiu a cabeça para trás, apontando para as duas figuras que se encontravam na sala. — Estes dois senhores que estão aqui comigo são da Secção de Contacto. Pretendem ir a Ber¬keley falar consigo e eu pedi que me dessem boleia. Penso que não faça diferença?

O Professor acenou.

—      Está muito bem. — Depois hesitou, como que à procuradas pa¬lavras; tinha o tipo de cara que provoca o cinismo, ainda que injustifi¬cado. Falou agora com um tom de desespero exagerado: — Para mim, como compreende, já nada importa. Quando se é novo e se sofre um golpe destes, talvez se possa aprender alguma coisa. Na minha idade, já não. A minha querida filha e amiga ...

A voz foi-se-lhe abaixo. Charles não sabia o que dizer:

—      Lamento muito. Mas pode ser que ainda venham notícias...

O Professor abanou a cabeça.

—      Há sempre esperança, mas uma pessoa também sabe quando a esperança deixou de ter significado.

—      Talvez pudéssemos adiar a nossa visita para amanhã.

Voltou a abanar a cabeça — com excessivo dramatismo. — Não.

Tanto faz. Tanto faz.

Caston e Stenner não fizeram comentários. Durante a viagem fo¬ram apenas dois funcionários da Secção de Contacto, em trabalho de rotina, com um passageiro a mais. Stenner não disse praticamente na¬da; Caston falou bastante sobre tudo o que lhe veio à cabeça. Pararam em Los Angeles para comer e só ao fim da tarde é que começaram a descer atravessando o céu cinzento em direção a Berkeley. À norte, o fumo saía dos fossos dos foguetões. O resíduo não assimilável da ex¬plosão. O céu tomou a cor de um vermelho-alaranjado no momento em que outro foguetão descolou; depois voltou a ficar cinzento. O giropla¬no desceu sobre o telhado do edifício onde estava instalado o Professor Cohn. Os três homens desembarcaram, sentindo-se um tanto rígidos e encaminharam-se para o elevador.

Cohn habitava no segundo andar. Caston premiu o botão do écran de chamada. Não houve resposta. Voltou a carregar e depois, sem espe¬rar mais, tirou da algibeira um assobio mestre. Apitou uma complicada série de notas, que interrompeu quando a porta se abriu.

Os dois homens da Secção de Contacto entraram nos aposentos com ar resoluto e Charles seguiu-os. Caston encontrou o bilhete num espaço de poucos minutos. Encontrara-o no bloco que estava ao lado do écran de chamada, na sala de estar. Fez um gesto e Charles e Stenner aproximaram-se.

Tratava-se de autênticas garatujas e dizia:

Desculpem. Talvez devesse ter esperado. Mas as pessoas tornam-se egoístas com a idade — sobretudo nas pequenas coisas.

Caston disse:

—      Bastante explícito. Mas como? Verificaram a sala de banho, não verificaram?

Stenner estava a servir-se do painel de controlo. Disse:

—      Como? O costume. Que é que se espera num sítio como Berke¬ley?

O rosto de Caston iluminou-se quando o écran mostrou o longo balcão das informações, com o motivo interplanetário percorrendo a parede do fundo.

—      Acho que é isso — disse.

Stenner disse com aspereza:

—      Seção de Contato. Indústrias Químicas Reunidas. Liguem- -me ao Chefe dos Fossos. É urgente.

A ordem foi executada com a habitual eficiência dos Serviços In¬terplanetários. O Chefe dos Fossos era um indivíduo pequeno e rubicundo com um ar ansioso.

—      Secção de Contacto, Indústrias Químicas Reunidas — voltou a apresentar-se Stenner. — Queira verificar imediatamente os fossos, há um suicida potencial. Professor Cohn, desta Universidade.

—      Herman? Meu Deus!

Estava já a fazer a chamada num outro écran, quando Stenner per¬guntou:

—      Conhece-o?

Muito bem. E ele esteve por aqui esta tarde.

- Vamos já para aí — disse Stenner. — Vou desligar. O Chefe dos Fossos tinha descido ao fosso 17. Foi aí que os leva¬ram ao seu encontro. Quando os viu apontou para o fosso, em silêncio; a base super-refratária e os lados estavam ainda incandescentes e o ca¬lor que chegava à parte de cima do fosso, a um metro de altura, era in¬suportável.

Caston perguntou:

—      E então? Tarde de mais?

—      O JA 9 disparou há vinte minutos. Ele apareceu aqui pouco an¬tes. O Supervisor viu-o.

Caston acenou. Charles perguntou:

—      Quaisquer vestígios...?

Caston largou a rir.

—      Essa pergunta, vinda de um tipo da IQR! Sabe quais são as tem¬peraturas atingidas lá em baixo no momento da explosão? Um espectroscópio talvez mostrasse algumas impurezas surpreendentes no refratário; ou talvez não. — Voltou-se para o outro. — Como é que ele desceu para ali?

Ele apontou para o lado do fosso; havia ali um guindaste de serviço que fora deslocado.

O Gestor disse:

—      O Supervisor encontrou-o voltado para o fosso. Pensou que a última equipa de pessoal de serviço o tivesse deixado assim. Não devem fazê-lo, mas acontece. Limitou-se, portanto, a voltá-lo novamente para fora e aceitou a explosão da forma habitual.

Stenner falou:

—      Julgava que vocês tinham instalado uai sistema de proteção adicional, a seguir ao relatório de Mura-Ti. Sabe que estes lugares fa¬zem as delícias dos suicidas.

Usou um tom mordaz e o homenzinho pareceu picar-se. Disse-lhe:

—      Temos sistemas de segurança. Qualquer pessoa que aqui venha tem de ser reconhecida ou vir à responsabilidade de alguém. Não pode¬mos usar sistemas mecânicos. Os foguetões têm de sair a horas.

—      Quem é que se responsabilizou por Cohn? — perguntou Cas¬ton.

—      Eu tê-lo-ia feito, se mo pedissem. Costumava jogar xadrez com ele. Ninguém mo pediu porque o Supervisor também o conhecia. Era conhecido por toda a parte em Berkeley. Se tivesse pedido a alguém uma navalha aberta, um frasco de veneno ou uma pistola Klaberg —- ter-lhos-iam dado. Não consigo perceber. Não era o tipo de pessoa para fazer uma coisa destas.

Caston disse:

—      Ele contou-lhe que a filha desapareceu quando voltava de giro¬plano para San Miguel?

O Gestor não olhou para eles; olhou sim para o fosso incandescen¬te. Falou devagar:

—      Então foi isso. Não, ele não me disse nada. Não pensa que se ele tivesse...

Stenner disse em tom peremptório:

—      Não queremos fazê-lo perder mais tempo. Ainda tem de fazer o relatório. — O seu sorriso pálido só muito vagamente mostrava uma certa troça. — Tem de ser preparado com certo cuidado, creio. Estare¬mos nos aposentos de Cohn — olhou para o relógio que tinha no dedo — até às dezessete e trinta. — Estendeu-lhe um pequeno cartão de plástico. — Isto pô-lo-á em contato conosco.

Depois de saírem, Caston pôs-se a tagarelar sobre aquilo que consi¬derava a barafunda real escondida por detrás da fachada eficiente dos Interplanetários.

—      Viu aquilo? Conhecido ou à responsabilidade de alguém. Com os diabos, nesta cidade quase toda a gente é conhecida, de uma maneira ou de outra. Também não é a primeira vez que isto acontece. Lem¬bram-se do caso de contrabando, há dois anos. Para quê verificar os foguetões, quem é que ia levar drogas, clandestinamente, para Luna City? Nunca lhes passou pela cabeça que as naves descem numa cidade diferente cada vez que fazem a viagem de regresso. E mesmo assim continuam todos emproados.

Stenner manteve-se silencioso, como de costume, Charles não lhe prestou qualquer atenção. Pensava no Professor Cohn, embora admi¬tindo mais uma vez as suas limitações como juiz de caracteres. Pensara que ele estava a exagerar o desgosto; ao ser brutalmente confrontado com a sinceridade do indivíduo, uma outra revelação lhe surgiu ainda mais violenta. Uma parte do seu espírito agarrara-se à esperança de que pudessem vir a encontrar Sarah — em estado grave, talvez, mas viva. Ao ver toda a extensão do desespero do pai, já não lhe parecia possível alimentar a mais ligeira centelha de esperança. Tinha de enfrentar tam¬bém esse fato.

Os dois homens do Contato deslocavam-se pelos aposentos do Professor com rapidez e eficiência. Charles olhou em volta, superficial¬mente; encontrou um microfilme com a etiqueta «Sarah — Dois para as vinte» e meteu-o na algibeira. Estava a dar uma vista de olhos pela pequena biblioteca do Professor — o que pouco lhe adiantava, pois os livros eram todos em alemão — quando veio uma chamada. Meia hora antes, podia ter-se aproximado do painel de controlo com o coração cheio de novas esperanças, mas agora já nada restava. O painel brilhou:

 

COHN DA ALIANÇA ELÉTRICA - SERVIÇOS & REPARAÇÕES BERKE¬LEY... COHN DA ALIANÇA ELÉCTRICA — SER...

 

Charles recebeu automaticamente a chamada. Era um homem novo.

—      É para Cohn. — disse.

Charles fitou-o.

—      Não pode atender.

—      Não é para o Professor, é para a filha, Assistente Cohn.

—      Também não pode atender. — Para disfarçar a dor, tanto de si próprio como da cara que o fitava do écran, disse: — Alguma coisa especial?

O homem encolheu os ombros.

—      Informação de rotina. Entramos sempre em contacto com as pessoas quarenta e oito horas depois de nos ser requisitado um serviço. Ela deixou-nos um relógio para recarregar no sábado. Disse que viria buscá-lo ao distribuidor automático no domingo de manhã, mas ele ainda aqui "está. Pode informá-la? A partir de hoje, começamos a cobrar armazenagem.

Charles disse pausadamente:

—      Posso ver o relógio?

—      Não percebo para quê, mas também não vejo porque não. — Segurou o pequeno relógio de pôr no dedo, que lhe era fami¬liar. — Então?

O alívio, a felicidade, aumentavam e tornavam-se incontroláveis. Charles largou a rir, com grande espanto do homem.

—      Vou tentar dar-lhe o seu recado — disse. — Agora vou desligar.

Chamou, e Caston veio do quarto ao lado, seguido de Stenner. Caston perguntou:

—      Encontrou alguma coisa que valha a pena? Um filme porno¬gráfico?

Charles contou-lhes da chamada que tinha recebido. Stenner ouviu com atenção. Caston mostrou-se decepcionado:

—      Ai é só isso? Pensei que tivesse, pelo menos, chegado à fala com a amante do velhote. Com que então a rapariga mandou recarregar o relógio. Eu conheço um suicida que encomendou tudo quanto é pos¬sível em Nova Iorque antes de tomar um comprimido. Chegamos a casa dele com um engarrafamento que ocupava dois quarteirões. Uma das coisas que ele tinha encomendado eram cem quilos de biscoitos para cães. Com um tal sentido de humor o tipo deve ter morrido feliz.

Ignorando Caston, Stenner disse:

—      Acha que isto seja de alguma forma significativo?

Charles disse:

—      Parto do princípio — por momentos —, parto do princípio de que ela não está morta.

—      Então se não está morta, onde está? — perguntou Caston.

—      Imagine que pertence à Seção de Contato de uma outra organização — Secção Atômica, por exemplo — e recebe ordens para raptar uma rapariga. Faz com que a coisa pareça ter sido um desastre de giroplano — um suicídio, talvez — e arranja uma boa encenação. Disfarça tudo aquilo que consegue — mas há uma coisa que não pode deixar de lhe escapar.

—      E essa coisa é?

—      Todas as pequenas coisas que você ignora. O fato de o relógio dela ter ido para recarregar e de ela o ter entregue aos serviços respec¬tivos, sem mencionar isso a ninguém. Nem mesmo ao pai. Segundo ele, ela saiu normalmente no domingo à tarde a caminho, segundo ele pen¬sava, do meu laboratório. Mas se ela saiu no domingo à tarde, porque é que não foi buscar o relógio no domingo de manhã, aos serviços de entregas automáticas, como tinha combinado?

—      Porque se esqueceu — disse Caston prontamente. — As pes¬soas esquecem-se de muitas coisas. Conheci um tipo que se esquecia de pôr as lentes de contacto quando ia ao cinema.

—      Ela tinha o meu giroplano — disse Charles —, que tinha o reló¬gio partido desde que eu comecei a andar com ele. Alguém faz uma via¬gem de umas centenas de milhas, sem saber as horas?

—      Este tipo de quem falei — disse Caston — descobria o que lhe faltava logo que o écran se iluminava.

Stenner disse:

—      Já estou a entendê-lo, Grayner. Mas você esquece-se de uma coisa. A nossa opinião é de que se trata de suicídio, tanto no caso dela como no do pai. Se comparar o bilhete que o pai deixou com outro escrito seu, não ficarei nada admirado se o achar grafologicamente in¬consistente. Um espírito onde se instalou a idéia do suicídio è natural¬mente um espírito confuso. A rapariga esqueceu-se de ir buscar o reló¬gio. Ou talvez se tenha lembrado, para chegar à conclusão de que o tempo deixara de sei importante para eia.

—      Se o tempo tinha deixado de ser importante, para quê pôr o reló¬gio a recarregar?

Stenner fez notar:

—      Não determinamos o momento em que o suicídio foi decidido. Isso pode muito bem ter ocorrido entre o momento em que pôs o reló¬gio a carregar e aquele em que devia ter tomado o caminho do regresso. Era esse tipo de informação que esperávamos obter do pai dela.

—      Ela não o informou de que se ia matar — disse Charles. — Ela não deixaria de o mencionar.

Stenner disse, pacientemente:

—      Não pensamos que o pai soubesse da sua decisão, ou mesmo do seu estado de espírito. Mas há sempre qualquer pequena coisa que começa a fazer sentido depois dos acontecimentos, quando se está trei¬nado neste tipo de situação. Essa história do relógio, por exemplo — presumo que esse tipo de esquecimento não faz sentido, segundo a sua experiência pessoal? E segundo o seu psicoplano tam¬bém não.

—      O mesmo acontece com o suicídio.

—      Os psicoplanos — disse Stenner — não servem de muito para as previsões de suicídio, exceto quando se trata de psicopatas. Por outro lado, dão muitas indicações sobre os padrões de comportamento nor¬mal. A Assistente Cohn mostrava um alto grau de atenção em relação a os pequenos detalhes; é por isso que o fato de ela se esquecer de ir buscar o relógio é significativo.

—      A Assistente Cohn — disse Charles num tom inexpressivo não cometeu suicídio. Não há razões para pensar que esteja morta. As¬sim como não há razões para pensar que o pai esteja morto. Ou o meu antecessor, Isaacssohn. Estão a registrar três mortes e não dispõem de um único cadáver — nem sequer vestígios disso.

Caston começou a dizer qualquer coisa, mas Stenner fê-lo calar com um gesto breve. Stenner disse:

—      Esta sua idéia do rapto — está realmente a tomá-la a sério?

Charles disse, pondo-se na defensiva:

—      Pelo menos, parece-me bastante plausível, de qualquer forma não menos plausível do que esta multiplicação de suicídios. Parece-me que valia a pena investigá-la.

Stenner sorriu:

—      Não se trata de multiplicação, mas de adição. E uma adição muito simples — um e um. Qualquer teoria merece ser investigada. Por outro lado, nenhuma teoria é digna de ser conservada se se deixar pas¬sar a oportunidade. Vejamos essa sua teoria. Três pessoas são raptadas — a primeira de forma a fazer crer numa morte acidental, as outras duas sob a capa do suicídio. Primeiro, os pontos a favor.

—      Como você próprio mencionou, não temos um único cadáver. Poderíamos fazer um teste eletroscópico ao pavimento do fosso, mas esse mesmo teste não seria conclusivo se não permitisse encontrar quaisquer indícios e mesmo que isso fosse possível, qualquer pessoa podia ter atirado para ali os produtos químicos necessários, antes da explosão. A falta de cadáveres é um ponto válido. O outro ponto, se¬gundo julgo, baseia-se na sua convicção pessoal de que a Assistente Cohn não se teria suicidado. Voltaremos a essa questão.

- Vejamos agora as objeções. A ausência de cadáveres — um hidroplano perdeu-se nas Caraíbas há dez dias; seguiam vinte pessoas a bordo, não houve sobreviventes nem foi possível recuperar nenhum dos corpos. O mar nem sempre deixa vestígios e supõe-se que dois dos nossos casos caíram ao mar. O terceiro foi, segundo a nossa teoria, pa¬ra o fosso de descolagem, o que certamente não deixa quaisquer vestí-gios. Acho que temos de considerar a ausência de cadáveres como um fator neutro.

- Antes de analisar a sua posição em relação à mulher, há outra coisa que eu gostava que você considerasse. Se se tratasse de um rapto, as horas seriam um tanto estranhas. Independentemente do intervalo que mediou entre Isaacssohn e a rapariga, há o outro intervalo entre a rapariga e o pai. E isso leva-nos a um ponto muito curioso. Se a rapari¬ga foi raptada daqui, então a questão do relógio situa o rapto entre sá¬bado à tarde e domingo de manhã. Isso torna o pai conivente, na medi¬da em que lhe disse que ela tinha saído no domingo à tarde. E então? Terá ele organizado o rapto da filha?

Stenner tinha os olhos cravados nele; Charles não disse nada. Tinha consciência da forma consistente como o homem do Contacto conseguia mostrar que a sua teoria era a mais fantástica das duas, sem que ele fosse capaz de encontrar forma de o rebater.

Stenner continuou:

—      Há agora a questão da sua opinião pessoal sobre o caso. Não é a primeira vez que isto se nos depara, não esqueça. A Assistente Cohn disse-nos, muito diretamente, que Isaacssohn não podia ter morrido afogado da forma que tudo parecia indicar e reagiu muito mal quando nós nos recusamos a prestar-lhe atenção. Tínhamos o seu psicoplano e a forma como reagiu não nos surpreendeu. Independentemente dos la¬ços emocionais que a ligavam ao morto, ela teria tido a mesma reação. O seu espírito era do tipo não acomodatício — tipicamente israelita, podemos dizê-lo.

- Você, por exemplo. Você não é israelita, mas os seus padrões mentais são interessantes. Um erro empurrou-o para um beco sem saída profissional e não se poderia esperar que o seu comportamento posterior não mostrasse sinais disso. Era inevitável que houvesse uma certa dose de reação e, de fato, a sua reação foi anti-social. — Char¬les tomou uma atitude rígida e Stenner olhou para ele. — Ligeiramente anti-social. Foi eficiente no seu trabalho. Por outro lado, não criou amizades, nem, o que é significativo, desenvolveu qualquer relação es¬treita com mulheres. Freqüentou as Casas, embora não tivesse qualquer anormalidade sexual e pudesse ter tido relações com mulheres da maneira normal. Começou a ler e a colecionar livros — e o que é mais, livros que nada tinham que ver com a sua especialidade. Colecionou discos de gramofone anteriores ao Sistema de Gestão. Via o ca¬nal FK e, noutros aspectos, mostrava uma resistência psicológica inconfundível à TV.

Stenner fez uma pausa. Charles, considerando o peso das acusa¬ções levantadas contra ele, continuou silencioso.

—      É interessante — prosseguiu Stenner — que na maior parte des¬tas coisas você enfileirava num padrão de intelectualismo tipicamente israelita e, como tal, reacionário. O acidente ocorrido a Isaacsshon e a necessidade de o substituir por outro especialista em diamantes trouxe¬ram-no a um círculo tipicamente israelita, em que tanto o seu predecessor como a sua assistente eram ex-israelitas. Diga-se de passagem que me parece um tanto surpreendente autorizarem dois ex-israelitas a tra¬balharem juntos; não temos nada em especial contra eles, mas consti¬tuem um fator que é mais facilmente assimilável quando isolado. De qualquer forma, eu não tinha nada a ver com isso.

- Você, Grayner, estava predestinado a ter uma orientação sub¬consciente tanto em relação ao seu defunto predecessor como em rela¬ção à rapariga. Esta, uma vez que você é heterossexual, deveria atraí-lo mais fortemente. Julgo poder dizer, baseando-me no seu psicoplano e no dela própria que, dentro de um mês, no exterior, você se teria embeiçado por ela. Assim, a atração foi tão forte que você está poderosamente influenciado no sentido de se recusar a aceitar a morte dela. A Seção de Contato de Detroit nunca o teria posto no lugar de Isaacs¬sohn.

Charles disse:

—      Embeiçado? Eu estou apaixonado por ela, se é disso que estão a falar. Cheguei hoje mesmo a essa conclusão.

Caston, que não tivera um minuto de sossego, puxou um dos livros do Professor Cohn e uma dúzia deles caíram em cascata para o chão. Ficou a olhá-los enquanto remexia um com o pé.

—      Livros — disse Caston. — Que gente! Isto é o maior viveiro de gente esquisita que já encontramos este ano. — A observação dirigia-se nitidamente a Charles, embora não olhasse para ele. Stenner estava presumivelmente a olhá-los a ambos.

Stenner disse:

—      É provável que o choque tenha precipitado o seu estado de espí¬rito atual. Sabe o que é que devia fazer — ir à Psico & Med. Subme¬tem-no a um tratamento mescal, arranjam-lhe uma viagem de férias.

Charles disse:

—      Obrigado, vou pensar nisso. Segundo me parece, vocês acham que a minha convicção de que Sarah continua viva é um sinal de desequilíbrio mental? Na vossa opinião, ela está morta?

—      Dada como desaparecida — disse Stenner. — Presume-se que esteja morta.

—      É capaz de me fazer um favor?

—      Tudo o que quiser — disse Stenner —, desde que não vá contra os regulamentos.

—      Gostava de apresentar o meu ponto de vista a uma entidade su¬perior. Claro que podia procurar o Metrill, mas não creio que fosse muito bem recebido — já tive uma diferença com ele. Preferia falar com o meu antigo Gestor — Ledbetter, em Detroit.

Charles viu de relance o rosto de Caston, que exprimia surpresa e aborrecimento. Stenner continuava inexpressivo.

—      Acho que sim, acho que podemos arranjar-lhe isso — disse Stenner. — Tenho fortes dúvidas que Ledbetter faça qualquer inqué¬rito às nossas conclusões, mas o fato de falar com ele pode ajudá-lo a orientar-se.

—      Em breve?

—      Amanhã. Convém-lhe?

—      Perfeitamente. Nesse caso, só mais uma coisa. É praticamente inútil eu ir daqui ao laboratório só para passar a noite. Pode autorizar-me a ficar aqui?

Stenner olhou-o pensativo.

—      Aqui — no apartamento do Cohn? — Charles acenou afirmati¬vamente. — Acho que sim. Compreende que isso ficará registrado na sua ficha como sendo mais um sintoma de fixação irracional neste gru¬po de ex-israelitas?

—      Terei de me curar disso — disse Charles —, ou de aprender a viver com a tal fixação.

Quando os dois homens do Contacto saíram, sentiu que uma parte da sua confiança o tinha deixado também. Caminhou pelos aposentos, num desassossego igual ao de Caston, pegando em algumas coisas e voltando a largá-las da mesma forma. Havia vinho no velho aparador colonial — vinho de Israel. Como é que o Professor se podia oferecer um tal luxo com o salário que recebia na Universidade? Provavelmente era Sarah que lho comprava, ou então algum amigo. Parecia ter bastante.

Enquanto enchia um copo de vinho, o seu pensamento voltou a ocupar-se com o problema dos desaparecimentos. Parecia não haver maneira de fugir às objeções de Stenner: a questão do relógio, que a princípio lhe reavivara a esperança, apontava para um possível rapto — caso ela tivesse sido raptada — daqueles mesmos aposentos. E isso significava — a cumplicidade do pai. Era ridículo.

E contado não queria conformar-se com a idéia da morte de Sarah. Sorriu tristemente para si próprio: mais um ponto a acrescentar ao seu interesse obsessivo.

Acabou por se lançar numa busca, esperando encontrar qualquer indício que confirmasse a hipótese do rapto. Era uma esperança tênue — Stenner e Caston tinham dado mostras de conhecer bem a ro¬tina do seu trabalho — sem que tivessem alcançado quaisquer resulta¬dos. Acabou por desistir; começava a estar com fome e carregou num botão para arranjar pão, queijo e azeitonas. Comeu-os acompanhados com o vinho do Professor. Se Cohn voltasse, teria todo o prazer em o reembolsar.

Dormiu no pequeno quarto que deitava para os prados e que fora o de Sarah durante as suas visitas: viam-se alguns sinais comoventes dessa presença feminina. Sentada na mesa-de-cabeceira, havia uma boneca de louça, um tanto estragada pelos anos, que provavelmente contem¬plara uma Sarah muito mais pequena, noutros tempos e num país dis¬tante. Adormeceu com os olhos fitos nela. Interesse obsessivo, foi o seu último pensamento consciente.

Stenner entrou em contacto com ele logo de manhã e deu-lhe a au¬torização para falar com Ledbetter. No écran, o seu rosto mostrava-se distante e irônico, como sempre.

—      Foi necessário prevenir o Metrill, como é evidente         disse.

—      Não há dúvidas de que não foi ele que o escolheu. Se Ledbetter se mostrar na disposição de o fazer voltar para Detroit, aconselho-o a ponderar bem no caso.

Charles respondeu:

—      Obrigado. Não me esquecerei.

—      Bom, de qualquer forma, não o raptaram durante a noite. A di¬ferença que faria para o nosso relatório se isso tivesse acontecido.

—      Estou contente por si.

O sorriso de Stenner desapareceu.

—      A propósito, devo informá-lo de que a Telecom vai suspender as suas buscas relativamente à Assistente Cohn, hoje ao meio-dia. A área terrestre relativamente pequena onde ela poderia ser encontrada já foi revistada exaustivamente e do mar não há nada a esperar.

—      Obrigado.

—      Espero que a minha análise de ontem não o tenha aborrecido; você é que me levou a isso com a sua insistência nessa sua teoria.

—      Eu é que devo pedir desculpa por me ter intrometido no vosso trabalho — e por ter trazido mais um indivíduo esquisito para o viveiro.

Stenner voltou a sorrir.

—      Caston é um bom homem, à sua maneira, mas um bocado par¬vo. A título de confidência — eu próprio leio Shakespeare; gosto de sentir o papel. Vou desligar. Divirta-se em Detroit.

Tomou o transatlântico e pelas onze horas estava em Detroit. To¬mou um girotáxi, diretamente para as instalações da IQR e apresen¬tou-se nas informações. A rapariga olhou para o painel de registros.

—      Funcionário Grayner? Para o Gestor. Desça imediatamente. Vou chamar um rapaz.

Seguiu o rapazito, um tanto surpreendido, pois sempre esperara que o fizessem secar um bocado, como recompensa do seu desastra- mento em voltar a Detroit. Quando o rapaz fez o contacto no painel do écran de chamada, viu, por cima do ombro dele, o interior que lhe era familiar — a secretária de Ledbetter e Ledbetter por detrás dela. Ouviu a voz de Ledbetter, fraca e mal timbrada. «Sim. Façam-no entrar imediatamente.»

Ledbetter veio ao seu encontro mal entrou no gabinete e indicou-lhe uma cadeira.

—      Lembro-me que é fumador. — A caixa de cigarros deslizou mais uma vez sobre a mesa e os dois homens voltaram a inclinar-se para acender o cigarro na chama firme do isqueiro de mesa. Era difícil acre¬ditar que tudo isto acontecera pela primeira vez havia menos de quinze dias. Ledbetter sorria. Charles descontraiu-se na cadeira. Descontraiu- -se fisicamente; mentalmente manteve-se alerta para a mudança de hu¬mor que ele sabia estar iminente.

Ledbettej: disse:

—      Bom, numa estada tão curta, você conseguiu arranjar bastantes problemas.

—      Entre mortes e desaparecimentos.

Ledbetter pareceu sobressaltado.

—      O quê? Ah, está bem. Não, não estava a pensar nisso. — Tinha alguns relatórios na mão. — Referia-me a estes. «Não cumpriu os Re¬gulamentos 29 (iii) e 42 (vii). Infringiu o Regulamento 29 (ix). Invocou desnecessariamente o Regulamento 112 (i).» Quer que traduza? Comu¬nicou o desaparecimento da sua assistente a uma fonte exterior antes de contactar o Metrill, depois de já lhe ter permitido servir-se do seu giro¬plano, e isto também sem confirmação superior. Abandonou o labora¬tório sem contactar Metrill e insistiu em passar por cima de Metrill para me expor a mim os seus pontos de vista sobre a situação, o que, se¬gundo os Regulamentos, só se justifica quando se pode fundamentar uma suspeita concreta de vitimização.

Ledbetter pousou os relatórios e olhou para Charles por cima da se¬cretária. O seu rosto estava totalmente inexpressivo.

—      Há um outro relatório do Contacto que se refere à sua atitude mental; parece-me que este já lhe foi explicado, pelo menos em parte.

Ledbetter fez uma pausa; havia uma implicação evidente de que Charles se devia lançar em qualquer espécie de justificação ou de auto¬defesa. Ele recusou a oportunidade e manteve-se calado. Ledbetter deu-lhe mais algum tempo, enquanto atirou novamente os relatórios para o tabuleiro de arquivo. Depois, a sua expressão distante transfor¬mou-se num sorriso irônico.

—      Eu disse-lhe que você havia de gostar do Metrill. Se não fosse es¬ta pequena crise, não havia qualquer razão para vocês não se enten¬derem bem os dois. Metrill não reage bem em situações de crise; daí o insucesso dos vossos contados. Você fez bem em me procurar. Eu pos¬so perfeitamente pôr as coisas no seu lugar.

Ledbetter inclinou-se para trás e olhou para o cigarro. — Temos de pensar no futuro. Não estou a prometer-lhe nada, mas talvez eu con¬siga fazer qualquer coisa de útil lá para aqueles lados.

—      Útil?

—      É um tanto fora do comum, mas há uma possibilidade de eu ad¬quirir direitos extraterritoriais sobre a sua parte da Costa do Pacífico. Isto torná-lo-ia diretamente responsável perante mim em questões de admin — os relatórios continuariam a ir para Nikko-Tsi, como é evi¬dente. — Ledbetter voltou a sorrir. — Há uma vantagem acidental: poderei servir-me dessa ligação para ir visitá-lo e andar um bocado de barco. Então? Que é que lhe parece?

Charles disse:

—      Ótimo. Está a ajudar-me muito. Mas não foi exatamente por causa do meu futuro que eu vim falar consigo — pelo menos, do meu futuro nesse sentido.

—      Não? — disse Ledbetter. — Está bem. Recebi o relatório de Stenner. Pelo menos, parte dele. Talvez você possa completá-lo.

Charles detalhou todos os fatos, cuidadosamente e com vagar, pormenorizando o descontentamento de Sarah perante os resultados do inquérito feito à possível morte de Isaacssohn e da sua própria con¬vicção, cada vez mais arreigada, de que havia alguma coisa errada nas aparências superficiais do desaparecimento de Sarah e do suicídio do pai dela. Quando ele terminou, Ledbetter comentou:

—      Mais nada?

—      Mais nada!

Ledbetter sorriu.

—      E a sua fixação israelita?

Charles sorriu também.

—      Não me pareceu importante. Além disso, as pessoas têm de as¬sumir a sua própria objetividade — compete aos outros examiná-la.

Ledbetter acenou a cabeça divertido.

—      Com a ajuda valiosa do Funcionário Stenner, que parece ter também alguns desejos insatisfeitos — quanto a um emprego em Psico & Med, talvez. O meu papel não é defender a Secção de Contacto; nem Caston nem Stenner em especial. Caston desempenha bem a sua mis¬são, desde que não seja preciso pensar muito — mesmo melhor se não for preciso pensar de todo. Stenner é mais esperto, mas tem pouca fle¬xibilidade mental. É um homem que é capaz de prognosticar um resultado e depois cortar a sua órbita para que as coisas dêem certas.

Ledbetter inclinou-se ligeiramente para a frente e fez um movi¬mento como se estivesse a mostrar um baralho.

—      Ponhamos as cartas na mesa. Recebi o relatório deles e já lhe disse o que penso desses indivíduos. Entretanto, ouvi a sua interpre¬tação dos fatos. Está disposto a considerar-me imparcial?

Charles disse, cautelosamente:

—      Não tenho razões para não o considerar imparcial.

—      Também espero que não — Ledbetter apagou o cigarro que só fumara até meio e começou a brincar com o aromofato. Sobre a pa¬rede começou a deslizar uma muralha de pinheiros gigantescos, aproximando-se de um pôr do Sol brumoso; o seu aroma fazia-se sentir às lufadas, misturado com diversos outros perfumes bucólicos. Ledbetter contemplou a parede por momentos. Por fim, dirigiu novamente o olhar para Charles.

Disse abruptamente:

—      Tenho pensado bastante no assunto. Recebi o relatório de Sten¬ner ontem à noite; como você já calcula, ele só fala na sua teoria para a condenar. Isso é uma coisa que me põe sempre furioso. Logo à partida a minha posição era-lhe favorável. O que acabou de me contar teria confirmado essa minha posição. Independentemente de possíveis fixa¬ções, você põe as coisas com lógica.

Charles interrompeu-o:

—      Teria confirmado...?

Ledbetter acenou com a cabeça.

—      A sua teoria é pouco consistente em alguns pontos. Imagino que Stenner já lhe tenha chamado a atenção para isso. Os estranhos inter¬valos ocorridos entre os «raptos», especialmente no que diz respeito à rapariga e ao pai. O fato de não terem levado a rapariga e Isaacssohn ao mesmo tempo, partindo do princípio de que os «queriam» aos dois. Contudo, essas objeções são puramente mecânicas e eu não pretendo recorrer a elas.

»Não, é o quadro geral em si que eu me sinto inclinado a aceitar ou a rejeitar e tenho muita dificuldade em o aceitar. Você diz que o seu an¬tecessor, a sua assistente e o pai desta foram raptados pela Secção de Contacto de outra organização. A minha reação automática é pro¬curar um motivo. Se fosse verdade, seria uma medida de grande enver¬gadura para qualquer organização. E porquê? Que razão poderia haver que justificasse os riscos que isso envolvia?

Charles estudou Ledbetter de perto. A sua figura esbelta estava reclinada na cadeira e ele parecia total e genuinamente interessado na res¬posta à sua pergunta.

Charles disse:

—      Quando estive aqui da última vez, pareceu-me que o senhor não tinha a certeza quanto ao tipo de trabalho que eu teria de fazer no meu novo emprego. Essa incerteza mantém-se?

—      É curioso que você me faça essa pergunta. É natural que o rela¬tório de Stenner me tenha provocado uma certa curiosidade a esse res¬peito. Entrei em contacto com Nikko-Tsi. Expliquei-lhe resumidamen¬te a situação e fiz-lhe uma pergunta: seria possível dizerem-me qual o trabalho que Isaacssohn estava a fazer e que você devia continuar — ou, no caso de a informação ser estritamente confidencial, se eu podia mandá-lo para Graz para que tratassem consigo ali, pois eu não me sen¬tia com competência para o fazer. Mandei imprimir a resposta. Quer vê-la?

Charles acenou afirmativamente. Ledbetter apresentou uma folha de papel e passou-lha por cima da mesa. Charles pegou-lhe e leu:

 

REFERÊNCIA LABORATÓRIO 719, SAN MIGUEL TRABALHO EM CURSO INVESTIGAÇÃO DE ROTINA SOBRE A POSSIBILIDADE DE UMA NOVA FONTE DE ENERGIA RELACIONADA COM O DIAMANTE IRRADIADO: SIGILO SUBSEQUENTE AO PRIMEIRO RELATÓRIO DE ISAACSSOHN; RELATÓRIOS SEGUINTES NÃO CORRESPONDERAM ÀS PROMESSAS DO PRIMEIRO: NA PRÓXIMA REUNIÃO DE CONSELHO SERÁ LEVANTADA ESTA QUESTÃO. GRAYNER DEVE VOLTAR AO SEU POSTO E AGUARDAR QUE A SUA POSIÇÃO SEJA DEVIDAMENTE CONSIDERADA: PEÇO-LHE A MÁXI¬MA DISCRIÇÃO. NIKKO-TSI, PRESTON.

 

Charles leu a mensagem de ponta a ponta, duas ou três vezes, en¬quanto ordenava os seus próprios pensamentos. «Os relatórios seguintes não corresponderam às promessas do primeiro.» Havia qualquer coisa de errado, muito errado. Havia três possibilidades que por qualquer razão, Isaacssohn tivesse falseado os relatórios para Graz. Que Graz estivesse envolvida em qualquer projeto tortuoso que in¬cluía desembaraçarem-se de um dos seus gestores. Ou que a mensagem de Nikko-Tsi fosse uma falsificação do próprio Ledbetter. A segunda possibilidade parecia a mais provável. Em qualquer dos casos, dado que duas dessas três possibilidades envolviam manobras escuras no in¬terior das Indústrias Químicas Reunidas, ele tinha de agir com todas as precauções. Empurrou novamente a mensagem para junto de Ledbet¬ter.

Este disse:

—      Então?

Havia outra coisa que não estava certa. Ledbetter mostrava-se de¬masiado amável, demasiado preocupado em não o embaraçar. Tentou pôr-se na posição de Ledbetter, num exercício bastante imaginativo e que era para ele mais difícil do que seria para muitos outros, pois rara¬mente o praticava. Ledbetter pusera a hipótese de haver alguma coisa de verdadeiro nas suas suspeitas e entrara em contacto com Graz — com o propósito nítido de passar o problema, se ele apresen¬tasse alguma dificuldade maior. Perante uma resposta daquele tipo, era bastante natural que tivesse rejeitado a teoria de Charles, mas com cer¬teza que havia também outras conclusões possíveis a tirar. Quais? Mo¬mentos antes de Ledbetter lhe mostrar a mensagem de Graz, Charles referira-se ao trabalho do laboratório de uma forma velada, mas incisiva. Com base na informação recebida, Ledbetter sabia que essa teoria era insustentável. A reação mais natural seria ele ter colocado no seu lugar um subordinado pouco amigável e senhor da sua pessoa. Em vez disso, era ele próprio que estava sentado em frente de Charles, observando-o com uma simpatia cordial.

Charles disse, tentando manter-se neutro:

—      A mensagem é bastante explícita. A sua opinião é, portanto...?

Ledbetter encolheu os ombros.

—      Você teve a oportunidade de conhecer um dos três desapareci¬dos, já é uma vantagem. Mas, segundo a minha experiência os seres hu¬manos podem ser muito decepcionantes. Eu prefiro agarrar-me às ge¬neralidades. E isso faz-nos voltar à pergunta inicial — que justificação poderia haver para aquilo que você sugere? Eu não pretendo iludir o fato de que há muitas organizações que não se prenderiam com o quer que fosse, se pensassem que isso lhe traria qualquer vantagem. Não me esqueci do tiro que a Secção Atômica deu, digamos, na centralização, aqui há alguns anos. Ou a coligação entre a Hidropônica e a Agricultu¬ra durante a Crise da Fome de 36. Mas que é que qualquer de nós con¬segue tirar daí? Você chegou a alguma conclusão?

A solicitude estava errada, completamente errada. Havia uma pos¬sibilidade, refletiu maquiavelicamente, que podia explicar essa atitu¬de. Stenner mostrara ter algumas dúvidas quanto ao equilíbrio mental dele. Talvez Ledbetter fosse da mesma opinião, mas considerando-o um caso ainda mais agudo. Muitas pessoas tomavam uma atitude natu¬ralmente amável e delicada para com os anormais.

Disse em tom contemporizado:

—      Acho que deve ter razão. — Hesitou à procura de palavras que pudessem decepcionar o indivíduo alto e cordial que tinha na frente. — Não pretendo esconder que a minha assistente — Sarah Cohn — produziu em mim uma forte impressão. — Sorriu. — De qualquer forma, não conseguiria escondê-lo, não acha? Está bem claro no relatório de Stenner. Tive dificuldade em admitir que ela estivesse morta e ainda mais dificuldade em que a morte tivesse sido escolha sua. — Olhou para Ledbetter, cujo embaraço dava uma sensação de honestidade. — Aliás, continuo a pensar da mesma forma.

—      É natural — disse Ledbetter. — Não me parece que seja neces¬sário recorrer à psicanálise de amador do Stenner. Quer as afeições se¬jam condicionadas ou livres, uma pessoa sente-as — e às vezes são bem dolorosas, com os diabos. Este caso foi bastante mau, mesmo que te¬nha sido inocente. É evidente que você tinha de se sentir inclinado a ver as coisas dessa forma. Aconteceria isso com qualquer. E não deve ser agora uma grande consolação para si dizerem-lhe que tudo há-se passar — embora venha mesmo a passar. Sob esse aspecto, o trabalho é muito útil. Espero que a mensagem que lhe mostrei não o desencora¬je, só por fazer menção de possíveis alterações. O mais provável é que tudo continue, apesar da inércia; aliás você ficaria admirado se soubes¬se de algumas das linhas de pesquisa que têm sido automaticamente mantidas ano após ano.

Charles disse:

—      Quer que eu volte para o laboratório?

Ledbetter respondeu:

—      Tenho a certeza de que posso pô-lo sob a minha jurisdição. Me¬trill não é o gênero de se prender com uma questão de prestígio, se antevir uma possibilidade de ter menos trabalho ou menos dificuldades. Você vai ficar bem.

—      O que Stenner me aconselhou — disse Charles — foi uma visita à Psico & Med. Chegou mesmo a sugerir a prescrição — de mescal — e uma viagem de férias.

—      Não faça caso do Stenner. Você está tão saudável como ele e é notoriamente mais inteligente.

—      Devo dizer que a sugestão dele não me desagrada inteiramente. A primeira parte dispenso-a, mas há qualquer coisa na viagem que me soa bem.

Ledbetter disse com ênfase:

—      Siga o meu conselho — o trabalho é o melhor remédio. Uma viagem não serve de nada, a menos que o espírito já vá contente.

É preciso aprender a viver com as coisas. O trabalho é a melhor manei¬ra de o conseguir.

Charles pensou que estava rodeado de tipos bem intencionados — Stenner, Ledbetter... especialmente Ledbetter que se mostrava de uma benevolência espantosa —, havia uma veemência tal nas suas palavras que era difícil aceitar que proviesse inteiramente do seu interesse por Charles. Ledbetter queria que ele voltasse para o laboratório.

Charles disse:

—      Acho que as pessoas reagem de maneiras diferentes. Pela minha parte não tenho a certeza se reagirei dessa forma. Na minha idéia, uma viagem seria muito agradável. — Olhou para Ledbetter. — A mu¬dança de cenário é uma das coisas. O laboratório povoou-se de recor¬dações, embora o tempo fosse curto.

—      Enfrente-as — disse Ledbetter. — É a única forma de as ultra¬passar: o impacte seria muito maior quando você voltasse.

—      Mas nessa altura — disse Charles — já estaria mais preparado para o embate. Pelo menos, penso que sim. Presumo que não poria qualquer objeção ao fato de eu consultar a Psico & Med e pedir umas férias?

Ledbetter respondeu-lhe com evidente relutância:

—      Não. Claro que você pode fazer isso. Quanto tempo pensa pedir?

—      Não tinha pensado nisso. Mas dada a minha posição e a minha ficha e com o relatório de Stenner, julgo que poderia conseguir seis me¬ses, se os pedisse, não acha? E acontece que tenho mais um crédito de seis meses de licença. Assim podia acabar por ter um ano inteiro.

Ledbetter pareceu sobressaltar-se:

—      Um ano? E o trabalho?

Charles encolheu os ombros.

—      Não parece muito urgente, segundo as suas palavras e as de Nikko-Tsi. — Ledbetter pareceu prestes a dizer qualquer coisa, mas depois reconsiderou. Charles deixou que a pausa se prolongasse, para o enco¬rajar, mas não teve efeito. Depois cedeu. — De qualquer forma, não me parece que me interessaria ter esse tempo todo. Nunca me interes¬saram muito as férias. E não me parece que agora fosse uma exceção.

Ledbetter pareceu ter tido uma idéia. Disse com vivacidade:

—      Espero que não demore muito, por razões estritamente pessoais. Aguardo impacientemente a sua hospitalidade para poder fazer aqueles passeios de barco.

—      Tentarei não o fazer esperar muito tempo — disse Charles.

Anteriormente, o estúdio FK fora uma fábrica de cerveja; as salas compridas de tetos baixos eram interrompidas aqui e além por colunas especiais. Charles encontrou Dinkuhl observando o interior da sala 17 através da divisória de vidro. Foi colocar-se junto dele. No meio da sa¬la, recitando com ar melancólico, via-se um homem estranho de muito pequena estatura — quase um anão. Pelo altifalante colocado junto ao cotovelo de Dinkuhl, ouvia-se a sua voz:

—      Nove sete um três sete...

Charles tocou no braço de Dinkuhl; este voltou-se.

—      Charlie! Ouvi dizer que se juntou à procissão dos que caminham para a morgue.

Charles respondeu:

—      Vim procurar os seus excelentes conselhos. E pedir-lhe auto¬rização para escutar o seu vinho.

Dinkuhl executou o seu sorriso irônico característico.

—      Um conselho é uma coisa que temos sempre disponível. Quanto ao vinho, não tenho a certeza, mas venha lá acima que eu arranjo-lhe uma bebida. — Abanou a cabeça em direção à sala 17. — Que é que lhe parece a minha nova transmissão para o intervalo?

A voz, triste e monótona, continuava:

—      ... oito cinco três sete três um ...

—      Posso saber que é isto? — perguntou Charles.

—      Pi — disse Dinkuhl, satisfeito — para os primeiros mil e qui¬nhentos lugares. Tenho uma loura que lê os mil e quinhentos que se seguem. O bastante para pôr furiosos os clientes pagantes.

—      Onde é que arranjou os números?

—      Fiz uma vez um favor — disse Dinkuhl — a um cérebro eletrônico. Suba — suba, são três lanços. Dão cabo de mim — este raio des¬tas escadas. Já teria mudado o meu escritório para o rés-do-chão se não fosse elas darem cabo também daquelas almas penadas da Telecom — aquelas que ainda me visitam, entenda-se.

Quando acabaram de subir, Charles estava ofegante, mas Dinkuhl não mostrava quaisquer sinais de cansaço físico. Charies foi alvo de mais um sorriso irônico quando atravessaram a pesada porta de car¬valho que dava para o escritório de Dinkuhl. Embora fosse estranho, sentia-se agora mais tranqüilo. A malícia de Dinkuhl era totalmente di¬ferente da jovialidade de Ledbetter e, da mesma forma que fora levado a suspeitar de que Ledbetter tinha outros motivos escondidos, parecia-lhe que a malícia de Dinkuhl era apenas superficial.

Havia duas cadeiras confortáveis. Dinkuhl encaminhou-se para uma. Dirigiu-se depois para um pesado aparador galés que cobria quase inteiramente uma parede. Abriu uma portinha.

—      Está preparado para tomar do que houver?

—      Se for razoável. — Observou Dinkuhl enquanto enchia dois copos e os trazia num tabuleiro, juntamente com a garrafa. — Outra vez o nabo com tomate?

Dinkuhl abanou a cabeça.

—      Produto genuíno. Aguardente de ameixa. Ora bem. Tem sentido a falta do FK?

—      Para dizer a verdade, nunca mais pensei nisso. 

—      Você é um homem com sorte. — Dinkuhl encostou o nariz por momentos à borda do copo. — Sempre foi cair no meio de uma histó¬ria mais estranha.

—      Que é que sabe acerca disso?

—      Nada — disse Dinkuhl suavemente. — Conte-me tudo.

Charles narrou-lhe os acontecimentos. Quando terminou, Dinkuhl encheu novamente os copos. Charles olhou para ele.

_ Então?

—      E os seus amigos das Indústrias Químicas Reunidas não conse¬guiram convencê-lo de que você ê um candidato brilhante a psicopata? — perguntou Dinkuhl.

—      Cheguei a duvidar por vezes, mas agora já não.

—      Muito bem. Há um preceito que observo há muito e que me leva a partir do princípio que o mundo à minha volta está povoado de tolos e de exploradores; nunca faço confiança em ninguém, a menos que saiba que essa pessoa também tem interesses em jogo e lhe conheça os interesses. Nessa altura já posso fazer concessões.

—      E qual é o seu interesse?

—      Boa pergunta. Tenho dois interesses principais — fomentar tudo aquilo que possa sabotar, mesmo ligeiramente, este mundo de ges¬tão em que vivemos; e salvar a minha própria pele.

Charles riu com ironia

—      Está certo. Aceito a idéia.

—      Não, não. Ainda não. Primeiro terei de justificar a minha ati¬tude de revolta. — Despejou o copo. — Você não tem estado a beber.

—      Não tanto como você. Não me parece que precise de justificações. Estou mais interessado em receber conselhos.

Dinkuhl encheu o copo.

—      Os conselhos podem esperar. Não devem ser de molde a exigir uma atenção urgente. De qualquer forma, devem poder esperar meia hora. Porque é que eu pretendo destruir esta sociedade mundial pater¬nalista no seio da qual vivemos? Porquê afinal?

Charles teve de se conformar.

—      Porque o fim está à vista — o fim do FK?

—      Em parte, em parte. Mas há mais. Diga-me qual é o aniversário que se vai celebrar dentro de dois anos?

—      Não sei. Devia saber?

—      É o aniversário da Guerra. O que é que você sabe acerca da Guerra? Acerca da forma como esta sociedade de hoje passou a existir?! Vou fazer-lhe outra pergunta. O Professor Cohn ensinava História em| Berkeley, uma das raras instituições acadêmicas que ensinam aquela disciplina. Quantos alunos tinha ele?

—      Antes de desaparecer? Dois.

—      Surpreende-me. Sim, dois. Duvido de que haja, em todo o con¬tinente norte-americano, uma dezena de alunos que leiam História. Embora não possa esperar que você tenha consciência disso, esse fato representa — sob o ponto de vista histórico — um estado de coisas ex¬traordinário. Houve outros períodos de decadência em que as pessoas deturparam e interpretaram mal a história das suas próprias origens; este é o primeiro que consegue ignorá-la inteiramente.

—      Decadência?

Dinkuhl suspirou.

—      Espero que não tenhamos que discutir sobre esse ponto. Deve ter estado a ver os programas da Liga Vermelha. O homem transpõe a última barreira — o homem do século XXI procura uma nova herança entre as estrelas. A conquista das Superfícies Lunares Geladas. Mas di¬ga-me: há quanto tempo foi estabelecida a base lunar? Você nem se lembra. Ainda era uma criança. Talvez se lembre das últimas tentativas para chegar a Marte e a Vênus? Deve lembrar-se.

Charles ficou a pensar.

—      A expedição Del Marro...

—      Há mais de vinte anos. — Dinkuhl fitou-o com ar sardônico. — Nessa altura ainda você era um jovem, acabado de chegar ao seu cantinho de Saginaw. Isso foi Marte. Vênus foi posta de lado dez anos antes.

—      As dificuldades são grandes.

—      Não tão grandes como as que acompanharam a primeira viagem à Lua. Mas de qualquer forma, já desistimos de tentar. O trabalho foi abandonado. Não merecia o risco.

—      Mas a Lua — fez notar Charles — mereceu-o. Excluindo talvez as possibilidades de pesquisa astronômica.

—      E nesse aspecto — disse Dinkuhl — você mostra-se como um verdadeiro filho da sua época. Se vai avaliar esse tipo de empreendi¬mentos em termos de lucros e perdas, isso quer dizer que já falhou an¬tes de começar. Não, isso é a decadência. Mas claro que esse está longe de ser o único sintoma. Veja as artes. A verdade é que nos últimos dias do capitalismo não produziram nada que valesse a pena herdar, mas pelo menos produziram alguma coisa. E hoje em dia nem sequer temos a graça salvadora da discriminação que nos diga que aquilo que produ¬zem não vale a pena ser herdado. Que é que você ouve em Doçura e Conforto Brilhante? Rhapsody in Blue... Danúbio Azul... Chatta-nooga Chu-Chu ... ou, se o seu gosto está com as alturas rarefeitas da Liga Vermelha — Elgar, Stravisnky, Sibelius e Gilbert e Sullivan. Ten¬tam tudo por todos os meios e mesmo assim repetem-se. A sua adapta¬ção do Concerto para Violino de Sibelius para harmônica bocal — essa espécie de loucura esteve muito em voga quando eu era rapaz.

- As pessoas continuam a viver no meio do mobiliário neo-escandi¬navo dos meados do século xx e os poucos pintores que existem seguem como escravos as diversas escolas do século XX — neo-impressionistas, cubistas, fauvistas — temo-los a todos. O grupo Tempos Livres conti¬nua a apresentar blocos de pedra com buracos aos milhares.

—      Talvez seja essa a forma certa de arte.

—      Não existem formas certas de arte. E mesmo que as houvesse certamente não seriam essas manifestações prosaicas e falhas de imagi¬nação. A decadência implica, em primeiro lugar, uma perda de energia criadora e em última análise uma perda de gosto. Chegamos ao fundo dos fundos.

—      Está bem — disse Charles. — Já percebo porque é que você gostaria de pôr uma bomba debaixo disto tudo.

Dinkuhl não lhe prestou qualquer atenção.

—      Como é que as coisas chegaram a este ponto? — Estendeu a mão para a garrafa e, sem fazer qualquer interrupção encheu o seu pró¬prio copo e o de Charles — ignorando o gesto de protesto deste. — No século XX as pessoas sabiam — aqueles que conseguiam ver um palmo à frente do nariz —, que caminhavam para a derrocada. E tiveram-na, claro. Tiveram tudo — bombas atômicas, bombas de hidrogênio, exaustão, fome, doença — os Quatro Cavaleiros e toda a multidão atrás deles. Era o fim. Alvejaram-se uns aos outros de detrás dos blocos de pedra que tinham sido as suas grandes cidades e desenvolveram ver¬dadeiros talentos na escolha dos pedaços dos seus melhores que seriam os mais indicados para grelhar. Creio que aqueles que tinham tempo para pensar nas coisas devem ter tido a firme certeza de que tudo estava terminado — toda essa história de civilização tinha chegado ao fim, desde a televisão comercial às banheiras e aos chás-canasta. A Idade das Trevas começara de novo.

- E, no entanto, antes mesmo que eles tivessem tempo de se habi¬tuar à nova situação — enquanto ainda andavam a comer-se uns aos outros para se manterem vivos e não porque tivessem qualquer prazer no gosto da carne humana — o período de exaustão terminara. O in¬crível estava a acontecer, uma nova sociedade surgia, erguia-se, a perder de vista, trazendo consigo banheiras, chás-canasta e televisão, embora não comercial.

- Embora as pessoas, hoje em dia, tenham conseguido tão bem apa¬gar da memória as suas origens, é lembrado, de uma maneira geral, que a Seção Atômica foi a primeira organização a surgir sob o sistema de gestão, o centro em volta do qual se reuniram as forças de reconstru¬ção. O grito de chamada partiu de Filadélfia e, após uma breve hesita¬ção, a resposta chegou, através do mundo.

- Não era uma questão de fazer com que o mundo se erguesse sozi¬nho. O fato é que as comunicações se tinham aperfeiçoado tanto que, em vez de fazer desaparecer os mais ínfimos núcleos populacionais a civilização ia recompor-se. E nem sequer os grandes centros foram des¬truídos na sua totalidade, embora poucos escapassem em condições tão felizes como Filadélfia. A Secção Atômica forneceu o núcleo para o agrupar da sociedade e as outras organizações cresceram à sua volta. Primeiro, as mais evidentes — Indústrias Químicas Reunidas, Agricul¬tura, Hidropônica, Indústrias de Lignina, Telecom, Aço, Minas e todas as outras; depois de genética, Grupo de Tempos Livres, etc...

- A dada altura, a Seção Atômica tentou centralizar — não falo do apertão recente: logo ao princípio. Se eles tivessem sido suficiente¬mente magnânimos podiam ter ficado por uma ditadura mundial, mas a oportunidade passou e o Conselho das Gestões foi eleito e agora, como sabe, em teoria, todas as organizações são independentes e iguais e com plenos direitos soberanos. Um equilíbrio do poder.

—      Uma coisa que eu nunca percebi — disse Charles — é como é que Israel foi deixada de fora.

—      Isso — disse Dinkuhl — faz parte de uma questão mais lata — como é que os homens abandonaram as suas soberanias nacio¬nais estabelecidas há muito, substituindo-as pelas novas soberanias de gestão? Em primeiro lugar, porque sentiam que as suas novas sobera¬nias nacionais os tinham deixado ficar mal; as antigas lealdades esta¬vam mortas e podiam abrir caminho para uma nova. Mas Israel era outro caso. Os israelitas tinham passado perto de mil e novecentos anos agarrados a um nacionalismo no exílio. O mundo da gestão não lhes oferecia nada que pudessem preferir à sua concepção da Terra Santa. Aproveitaram bem o interregno para se expandirem ao longo do Nilo e do Eufrates e depois ficaram quietos.

—      Não será isso — perguntou Charles — uma espécie de lacuna nas suas idéias antigestão? Os israelitas não foram a Marte nem a Vênus — nem sequer chegaram à Lua, a não ser como passageiros, por amabilidade dos Serviços Interplanetários.

—      Antes da Guerra, quando voltaram pela primeira vez para Is¬rael, não passavam de uma tribo no deserto e ainda por cima uma tribo largamente superpopulada. As suas conquistas durante o interregno li¬mitaram-se, na sua maior parte, à aquisição de mais deserto e já com uma população indígena numerosa. As suas convicções religiosas exi¬giam que continuassem a multiplicar-se e a ser férteis. Conseqüentemente, passaram este último século ocupados com a mais primária de todas as necessidades humanas: a maneira de poderem continuar a en¬cher a barriga.

- Hoje em dia, o seu país está totalmente cultivado, e nos tempos mais próximos estão em posição de fazer face ao aumento popula¬cional. Agora, a menos que eu esteja muito enganado, vê-lo-emos avançar.

—      Com o auxílio do canal FK?

—      Esse é o meu problema — disse Dinkuhl. Fez uma pausa enquanto enchia novamente os copos. — E quase me esquecia de que você também tem um problema. Diga-me, qual é exatamente o objetivo que tem em vista?

—      Gostaria de chegar à conclusão, para minha satisfação própria, de que a minha posição em relação aos acontecimentos recentes está certa. Ou mais exatamente, gostaria de encontrar Sarah Cohn e pedir-lhe que casasse comigo.

—      Ah — observou Dinkuhl —, o lado humano! Faz bem em tra¬zer esses pequenos problemas ao tio Hiram. E se se provar que por uma vez, Stenner e Ledbetter tinham razão — e se Sarah Cohn tiver morrido, tal como Hermann Cohn e Hans Isaacssohn? Vai retirar-se para o seu pequeno canto na IQR e continuar a ser até ao fim dos seus dias um cidadão respeitado e útil dentro do sistema de gestão?

Depois de três copos de aguardente de ameixa, Charles estava num estado que ele descreveria como «estado de descontração».

—      Creio que sim. Eu não sou nenhum cruzado, Hiram.

—      Mas também não precisa de ser tão complacente. Eu também não o sou, mas tenho a sorte de sentir vergonha disso. Bom, parece-me que teremos de fazer o que pudermos por si. Ainda que, tal como eu, você não esteja disposto a arriscar o desconforto e o perigo por causa da humanidade, está disposto a fazê-lo pelas razões que apontou — não é assim?

Charles acenou com a cabeça.

—      Acho que sim.

—      Qual é a sua situação em relação à licença?

—      Fui ao P & M. Autorizam-me a gozar licença até seis meses e de¬ram-me várias embalagens de mescal, que despejei pelo cano abaixo.

—      Oficialmente como é que vai passar a licença?

—      Viagem às ilhas do Pacífico?

—      Comprou bilhete?

Charles bateu com a mão no bolso.

—      Mostre cá. — Dinkuhl pegou no sobrescrito de plástico transpa¬rente que continha os pequenos cartões de plástico colorido. — Conheço uma pessoa que vai gostar muito desta viagem. Eu próprio iria, se não tivesse outra coisa a fazer. — Olhou para Charles. — É im¬portante que os bilhetes sejam utilizados, no caso de haver inquérito.

—      E eu — perguntou Charles —, que é que eu faço?

Dinkuhl sacudiu a garrafa.

—      Ajude-me primeiro a acabar com isto. — Despejou nos copos o que restava e levantou o dele. — Ao sistema de gestão, nobre herdeiro das sociedades do Homem. Ou então a Sarah e ao seu regresso, sã e sal¬va, ao seio das Indústrias Químicas Reunidas. Agora já estamos pron¬tos para começar. Primeiro vamos a minha casa, para um pouco de maquilhagem plástica e depois vamos a outro sítio.

—      Outro sítio?

—      Vamos falar com um homem por causa do seu cartão — riu Dinkuhl.

Duas horas depois, Charles observava-se a si próprio num espelho alongado. Em vez das suas próprias feições — pálidas, magras, com o cabelo preto e liso e, segundo sempre pensara para consigo próprio, um certo ar intelectual — encontrou-se em frente de um indivíduo com o cabelo castanho-claro e encaracolado e com as faces mais cheias e colo¬ridas.

Dinkuhl disse, com ar complacente:

—      Gosto que o cliente fique satisfeito; você está muito melhor as¬sim. O aspecto das faces pode durar seis meses, mas não se lave com muita força. Pode lavar o cabelo. Conheço um alfaiate que lhe pode arranjar um enchumaço como deve ser e vai ficar ótimo. Que tal se sente?

—      Não sei. Confortável. Mesmo assim, acho que prefiro o meu outro eu.

—      A voz — disse Dinkuhl. — A voz e o mau gosto são duas coisas que não podemos mudar. Bom, vamos.

 

O mundo da gestão não tinha cidades capitais únicas, acontecera sim, por acaso ou desígnio, que cada uma das suas organizações criara uma base, um centro organizador, instalado numa dada localidade. As¬sim, havia a Seção Atômica, em Filadélfia; a: Indústrias Químicas Reunidas, em Graz, região que correspondia à antiga Áustria; as In¬dústrias de Lignina, em Estocolmo; o Aço, em Detroit. Mas nenhuma destas cidades estava vinculada por qualquer elo de exclusividade à organização que instalara aí o seu órgão central. Aqui, em Detroit, pre¬dominavam os emblemas do Aço, mas havia representantes de quase todas as outras organizações, embora em proporções diferentes; algu¬mas delas, tal como as Indústrias Químicas Reunidas, dispondo de um centro principal e outras, tal como a Interplanetária e a Genética, com uma simples filial.      

A filial da Genética era um edifício de quatro andares, à esquina das Ruas Cadillac e 17ª. Seguindo a tradição da organização, as insta¬lações da Genética eram muito mais elegantes do que os edifícios vizi¬nhos e os interiores tinham sido arranjados com mais luxo. Dinkuhl e Charles dirigiram-se ao veio central. Dinkuhl passou o porteiro com um aceno e um sorriso e tomou uma das três aeroesferas que ali se encontravam.

Mexendo nos controles, Dinkuhl disse:

— Mais um sinal de decadência — a preocupação com coisas ridí¬culas. Que é que têm os elevadores? Não, para eles não servem, têm de ir buscar estes aparelhômetros estúpidos. A realização máxima do sé¬culo XXI — a válvula de Sokije!

Sob o seu comando, a válvula de Sokije descomprimiu o hélio que se encontrava no interior do duplo invólucro de poliestireno e fez sair o ar que tinha entrado para lhe aumentar o peso. A bola de plástico transparente ergueu-se, levando no interior os dois homens Na plata¬forma de chegada, no terceiro andar, Dinkuhl deu várias sacudidelas frenéticas para equilibrar a esfera. Por fim ela parou, apenas ligeira¬mente inclinada contra a plataforma, e os dois homens saíram.

—      Tanta complicação — comentou Dinkuhl. — Creio que vão in¬sistir até que algum indivíduo verdadeiramente importante escorregue e parta a sua importante coluna.

Descobrira um gabinete particular; na porta lia-se: «Funcionário Awkright.» O Funcionário Awkright era um homem baixo de cabelos cor de areia que tinha certas parecenças com o aspecto temperamental do próprio Dinkuhl. Carregou num botão e a porta fechou-se atrás de-les. Só nessa altura é que ele dirigiu um sorriso a Dinkuhl.

—      Como é que vai isso, Hiram?

—      Pouco bem. Muito pouco. Burt, este é o Charlie. Era Charlie Grayner; agora é o Charlie Macintosh.

Awkright fez um gesto de assentimento com a cabeça. Estendeu a mão a Charlie.

—      Muito prazer em conhecê-lo, Funcionário Macintosh. Já tinha ouvido falar de si, Charlie.

Charlie disse:

—      Há alguém que não tenha? — Olhou para Dinkuhl. — Acha que devo continuar a usar o meu primeiro nome?

Dinkuhl respondeu em tom grave:

—      Você é ainda inexperiente na arte do disfarce. Sim, deve conti¬nuar a usar o seu primeiro nome. Não é assim tão pouco vulgar e é útil que você se volte com naturalidade quando alguém o chamar na rua. — Sentou-se numa cadeira com almofadas de ar e indicou outra a Charles. Apoiou os cotovelos na secretária da Awkright e falou para ele.

—      Como é que vai isso? Quem é que passou à frente agora — a Natureza ou a Genética?

—      Nas áreas do Ganges e de Oxus a percentagem de nascimentos baixou bastante em relação ao ano passado. Por outro lado, Banguecoque e a Sumatra subiram na mesma proporção. Pode dizer-se que até agora é um jogo de sobe e desce. Mas, como sabe, esta venerável orga¬nização não desiste sem luta.

—      Qual é o último movimento?

—      Ordens recebidas de Edimburgo esta manhã. Estamos a formar uma série de unidades móveis de redução de nascimentos.

—      Há anos que vocês vendem contraceptivos — disse Dinkuhl. — Que é que os leva a pensar que comecem agora a comprá-los?

—      Desta vez não podem escolher. Os nossos brilhantes cientistas criaram um fator antifertilidade que pode ser adicionado à água que é fornecida localmente. A julgar pelos números que me foi dado ver, ha¬verá algumas mortes, mas não mais de um ou dois por cento, na sua maioria entre as mulheres.

         Uma medida de maravilhosas proporções humanitárias. — Din¬kuhl deitou uma olhadela a Charles. — Não lhe parece, Charlie?

Charles ficara perturbado com o relato de Awkright, mas ainda mais com o fato de ele ser proferido do que propriamente com o seu conteúdo. Não podia deixar de se sentir ofendido por Awkright estar a transmitir informações confidenciais a dois indivíduos de organizações diferentes. Era impossível não sentir nisto uma afronta: fitou Awkright com um misto de espanto e desconfiança.

Dinkuhl, que pareceu sentir a direção dos seus pensamentos, disse para Awkright:

—      Charlie é um rebelde pela força das circunstâncias, não por na¬tureza. A sua deslealdade preocupa-o.

Awkright abanou a cabeça.

—      Julgava que você tinha trazido um convertido. Se é assim, para que é que o trouxe?

—      Em primeiro lugar, por causa do cartão. Você pode arranjar-lhe um!

—      Posso. — Awkright fixou Charles, examinando-o atentamente.

—      Pode vir a ser útil saber porque é que ele vai para a clandestinidade?

—      Depois, diretamente para Charles, disse: — Disseram-me que você teve um mau relatório por parte de Stenner — penso que quer evitar o castigo? Se não pertence ao tipo rebelde, creio que seria melhor aceitar o que vier. Criar e manter uma nova personalidade envolve dificul¬dades.

Dinkuhl falou por ele:

—      Não, não é para evitar o castigo. Charlie é muito bem visto por cá. De fato, estão mesmo ansiosos por que ele volte o mais depressa possível ao seu posto. Pelo menos, alguns. Oficialmente, ele está com seis meses de licença, por razões clínicas. E oficialmente ele vai para as ilhas do Pacífico. Aqui estão os bilhetes. — Dinkuhl passou-lhe o pe¬queno envelope. — Pode fazer com que alguém os use hoje mesmo?

Awkright estudou-os.

—      São para amanhã.

—      Eu sei. Faça com que sejam usados hoje. Não me admiraria que o Gestor Ledbetter arranjasse maneira de os cancelar amanhã.

Charles disse:

—      Cancelá-los? Porquê?

—      Não é a primeira vez que a Psico & Med resolve rever um caso, mesmo num prazo de vinte e quatro horas. Podiam mudar de opinião e resolver que você estava em condições de retomar o trabalho.

—      Tenho um crédito de seis meses de licença — disse Charles. — Posso sempre servir-me disso.

—      Não sei dizer-lhe exatamente onde é que isso vem nos regula¬mentos das Indústrias Químicas Reunidas, mas aposto o que quiser que também há uma maneira de contornar a situação — disse Dinkuhl. — De qualquer forma, parece-me mais sensato não arriscar.

—      Está bem, faço isso hoje — disse Awkright . — Continuo a não saber porque é que ele quer afastar-se...

—      É um assunto pessoal — disse Dinkuhl. — Ele quer encontrar Sarah Cohn.

Awkright sorriu. Disse para Charles:

—      Com que então, não o convenceram?

A teia da conspiração tornava-se cada vez mais irritante. Charles conseguiu dominar um impulso de rudeza. Afinal, apenas por uma de¬cisão sua, conseguira rejeitar não só os conselhos do seu Gestor, mas ainda de certa maneira a sua dependência da organização. Tomara a decisão, aparentemente improfícua, mas sem dúvida nenhuma obstina¬da, de procurar Sarah pessoalmente. Colocara-se fora do âmbito da so¬ciedade normal e, nestas condições, tinha de considerar como um golpe de sorte o fato de se encontrar tão rapidamente no meio de um grupo que poderia facilitar-lhe os planos. Até certo ponto, ia identificar-se com eles, mas ainda podia limitar essa identificação.

—      Não — disse. — Não me convenceram. Não sei lá muito bem como é que vocês me podem ajudar. À parte a nova identificação e tudo isso. E nem sequer estou convencido de que a nova identidade seja essencial.

Awkright disse:

—      Bom, isso pode esperar umas horas. — Depois dirigiu-se a Din¬kuhl: — Pode trazê-lo cá logo à tarde, Hiram? Nessa altura já tenho o cartão pronto.

O giroplano deslizou em direção a um posto agrícola típico, um aglomerado de edifícios baixos como os que se viam do ar por toda a parte. Detroit ficava a vinte milhas. A terra era plana e nua. Era uma área que se destinava mais a operações diurnas que noturnas. Tudo parecia deserto.

Quando o giroplano pousou, Dinkuhl não deixou que Charles saís¬se. Fez deslizar o giroplano sobre o solo, em direção ao edifício maior. Quando chegaram junto dele, as portas deslizaram para os lados e o giroplano entrou.

Charles olhou em volta. As luzes estavam todas acesas, parecia que estavam num hangar de girotáxis. Contou uns vinte aparelhos, antes de desistir. Dinkuhl saiu e ele seguiu-o.

Dinkuhl disse:

—      Uma bela reunião, esta noite.

—      Já posso saber o que é?

—      Venha comigo — disse Dinkuhl. — Tudo se esclarecerá.

Atravessaram mais um barracão, apinhado de giroplanos e daí, através de um corredor, chegaram a outro barracão, de forma mais quadrada. Os ocupantes dos giroplanos encontravam-se aqui, uns sen¬tados em filas de cadeiras, outros em pé, atrás dos primeiros. Numa das extremidades tinham armado um estrado grosseiro. Em cima dele havia uma mesa, atrás da qual se encontrava um homem, de pé. O único tra¬ço fora do comum no seu aspecto era a barba — embora isso só por si já fosse bastante fora do comum. Estava navegando em plena retórica. Charles não lhe prestou mais atenção e passou a observar a assistência.

À primeira vista, esta era também muito vulgar; era constituída por grupos etários muito variáveis que iam dos vinte aos sessenta. A primei¬ra coisa que o surpreendeu foi ver emblemas das diversas organizações espalhados indiscriminadamente por toda a parte. Depois observou mais cuidadosamente os seus rostos. Podiam ler-se as expressões que usavam no dia-a-dia, mas elas estavam agora veladas por outra coisa — uma concentração, uma paixão, que não se lembrava de ter visto nun¬ca, em parte alguma. Voltou a olhar para o orador: este apresentava a mesma característica, mas ainda mais forte e mais vivida.

Escutou o que ele dizia:

—      ... porque o tempo tem de parar! O tempo que era infinito tem de parar! Tudo tem de ser cumprido! Que conforto é que eu vos dou? Apenas o de saberem e estarem preparados. Pois o céu tornar-se-á mais claro e o dia parecerá ter nascido a meio da noite, mas eu digo-vos que esse dia será mais terrível do que qualquer noite. Serão as chamas que hão de aclarar o céu e essas chamas serão as chamas do Inferno!

Quando ele se calou, Charles sentiu, mais do que ouviu, o suspiro da respiração do auditório. Quando recomeçou a falar, fê-lo mais sua¬vemente, escolhendo as palavras com cuidado e tornando-as particular¬mente razoáveis.

—      Porque é que vindes aqui, meus amigos? Porque deixais as almofadas de ar dos cinemas, o écran da TV, os passeios no espaço e os piqueniques lascivos? Porque deixam todos esses prazeres e vêm aqui ouvir-me, a mim, pobre profeta da Última Palavra que será Dita. Será porque estais cansados das vossas loucuras e malefícios, cansados das vossas maldades e fornicações? Será porque os vossos espíritos se volta¬ram finalmente para o que está certo?

Os seus olhos detiveram-se sobre eles, acariciadores, cheios de des¬prezo.

—      Não! Não é isso que vos traz aqui. No fundo dos vossos cora¬ções não há menos vileza que dantes. Vindes aqui porque não podeis deixar de o fazer. Não podeis deixar de vir, da mesma forma que não podeis deixar de chafurdar na vossa maldade, de vos contorcerdes nas garras da vossa iniqüidade. Meus amigos! — As suas palavras eram chicotadas, notou Charles. — Meus amigos, vindes aqui porque estais no Inferno! Agora — neste mesmo instante — estais no Inferno! O Abismo rodeia-vos, as Chamas estão prontas à vossa volta, os De¬mônios dançam nas vossas costas! Basta que os vossos olhos se abram para que vejais onde estais e os sofrimentos que ides ter. E Jeová fará com que eles se abram! O tempo aproxima-se! Vai soar a hora!

Dinkuhl tocou ao de leve no ombro de Charles. Falou-lhe devagar ao ouvido:

—      Não está a deixar-se levar, espero?

Charles fitou-o, com a sensação de que o seu olhar se afastava com relutância do homem que estava em cima do estrado.

—      Que diabo é tudo isto? — perguntou.

Dinkuhl fez um movimento com a cabeça.

—      Por aqui.

Conduziu-o a uma porta lateral e assobiou para que se abrisse. Fe¬chou-a depois atrás de si, cortando a corrente de eloqüência vibrante que enchia o pavilhão donde acabavam de sair. Encontravam-se agora noutro corredor.

Dinkuhl disse:

—      Não sabia da existência da Seita do Cometa? Não aparecem na TV, claro — nem mesmo no FK — mas julgava que já toda a gente sa¬bia. Os grandes sabem que eles existem e consideram-nos importantes. Acham que eliminá-los não serviria de nada — e provavelmente têm razão. Entretanto, são um disfarce útil.

Passaram através de uma segunda porta para um compartimento muito pequeno. Estava ali uma meia dúzia de pessoas; Charles reco¬nheceu Awkright. Dinkuhl apresentou-o aos outros; ele ficou atrapa¬lhado e não conseguiu fixar-lhes os nomes, mas reparou que um era da Secção Atômica, outro do Aço, outro das Minas e ainda outros dois de duas organizações menos importantes — Psico & Med e Inter¬planetária.

Awkright disse:

—      Conseguiu trazê-lo até aqui sem problemas? O homem procurado?

Charles disse:

—      Procurado?

Dinkuhl disse:

—      Já?

—      O alarme foi lançado ao fim da tarde de hoje. Fizemos embarcar o nosso homem no transatlântico para Tonga, mas foi mesmo no últi¬mo minuto.

Dinkuhl disse serenamente:

—      Vai desembarcar em Tonga?

—      Fizemos com que a mensagem se atrasasse uma noite. Só vão re¬cebê-la de manhã. Ele já terá fugido num hidroavião antes que pos¬sam fazer o quer que seja. Depois... — Awkright encolheu os ombros — ...há muitas ilhas lá para aqueles lados e muitos cantos on¬de um homem que não quer ter companhia se pode encafuar. Com a ajuda de uma série de indicações falsas vai levar alguns meses até que eles comecem a suspeitar que não vão conseguir encontrá-lo. Além dis¬so, não têm forma de saber porquê — o mar, tal como vem indicado nos seus relatórios oficiais, não larga os corpos que apanha.

Dinkhul disse:

—      Isso é ótimo. Meu caro Charlie, agora nada o impede de pros¬seguir com os seus planos.

—      Nada — disse Charlie. — Exceto que você ainda não me disse o que são esses planos.

Dinkuhl riu.

—      Que descuido o meu.

Charles observou o pequeno grupo.

—      Sentir-me-ia bastante mais à vontade se fizesse alguma idéia da¬quilo que vocês andam a tramar.

O homem que tinha o emblema da Secção Atômica — Blain, ou Baines! — era um indivíduo magro e sardônico. Falou num inglês pau¬sado:

—      Hiram devia ter-nos apresentado coletivamente, assim como um por um. Esta, Charles, é a Sociedade dos Individualistas, Ramo do Quartel-General e Assembléia Geral combinada. Estendemos as nossas mãos para auxiliar qualquer cãozito coxo que tenha problemas com o seu aparelho de trepar. Não temos qualquer importância, mas gosta¬mos de pensar o contrário.

Charles disse:

—      Não pretendo guardar segredo sobre o fato de, pela minha par¬te, não ter qualquer desentendimento com a sociedade. Julgo que já en¬cararam a possibilidade de eu poder vir a nomear o vosso pequeno gru¬po em sítios que não sejam os mais indicados para isso. Não se impor¬tam de se submeter ao mescal — é a bondade dos vossos corações que vos faz correr esse risco?

Dinkuhl disse:

—      Bem observado. Mas, repare Charles, eu ainda não o deixei um momento, desde que você entrou no meu estúdio. Você só podia cons¬tituir um perigo da forma que sugere, até ao momento em que aceitou das nossas mãos a sua nova identidade e usou os nossos recursos para enganar o seu próprio Gestor quanto à viagem de férias. A partir daí, a sua posição torna-o candidato a um tratamento duas ou três vezes mais forte que o nosso, se as coisas se viessem à saber. É que nós — aqueles que estão ligados ao sistema de gestão e eu, evidentemente, não estou — só podemos ser punidos por transgressões menores, tais como a passagem de informações e associação ilegal. Você está lançado em pleno numa campanha de rebelião contra a sua própria gestão.

Awkwright disse:

—      E não pense que o ajudaríamos. Deitaríamos tudo cá para fora, com a ajuda de Hiram.

Charles abanou a cabeça.

—      Mesmo assim, não percebo. Qual é o vosso interesse? Bom, por agora fiquemo-nos numa base de confiança. Que é que querem que eu faça?

Dinkuhl disse:

—      Estamos a considerar as coisas debaixo do seu ponto de vista. Você quer a Sarah Cohn. Chegou à conclusão — e nós consideramos que é muito possível que esteja certo — que ela não cometeu suicídio nem morreu de acidente, mas que, tanto ela como provavelmente o pai e Isaacssohn foram apanhados por alguém, por razões que têm de ver com o tipo de trabalho que estava a ser feito no seu laboratório. Bom, quem a raptou e onde é que ela está agora?

Dinkuhl abrangeu a pequena sala com um gesto.

—      Como vê, temos aqui uma bela seleção. Estão aqui representa¬das meia dúzia de organizações diferentes. Infelizmente isso não é ra¬zão bastante para que essas organizações sejam postas de lado. Ouvi¬mos muita coisa, mas não ouvimos tudo e seja quem for que detém es¬ses indivíduos deve estar com todo o cuidado para que a notícia não se espalhe. Por isso qualquer um pode ser o raptor. Mesmo a Telecom. Debaixo dessa aparência suave que todos vemos à nossa volta, as coisas estão a chegar a um ponto de grande tensão. A roda vai soltar-se.

Awkright interrompeu-o.

—      Hiram — disse —, já ouvimos os seus lugares-comuns noutras ocasiões.

Dinkuhl disse:

—      De momento, não percebo porque é que perco o meu tempo convosco. Está bem. A questão é que não temos nada em que nos ba¬sear, quanto às nossas suspeitas em relação a qualquer organização em especial. Todos nós sabemos que a Seção Atômica fez uma proposta de centralização do controlo há alguns anos. Mas a Agricultura e a Hidropônica já o tinham tentado anteriormente e mesmo a pobre e ino-cente Genética já o fizera — no seu caso, a idéia seria produzir super-gênios que fizessem o resto do trabalho por eles. As próprias Indústrias Químicas Reunidas podiam ter raptado o seu próprio pessoal, embora eu não consiga perceber para quê — ou porque é que deixariam o Charlie andar por aí à solta, nem que fosse por umas horas.

- Ora bem, voltando à questão. Na minha opinião, a única coisa a fazer é tentar retomar a pista no sítio onde se sentiu o cheiro pela última vez. Isso quer dizer que teremos de voltar a Berkeley.

Charles disse:

—      Passei a noite nos aposentos do Professor Cohn. Rebusquei-os cuidadosamente; tal como Caston e Stenner. Duvido que ali se consiga descobrir o quer que seja.

—      Berkeley não se limita aos aposentos do Professor Cohn. Há ainda o quarto dele na Universidade. Há a possibilidade de alguém o ter visto naquele momento crucial imediatamente a seguir a ele ter sido visto, pela última vez, nos fossos dos foguetões.

Um dos do grupo objetou:

—      Berkeley não é assim tão grande e toda a gente se conhece.

A que pretexto ê que o Macintosh vai aparecer lá — todos vão notar a presença de um estranho, tão certo como a bomba H.

Charlie teve um ligeiro estremecimento de surpresa ao ouvir o seu novo nome. Fora pronunciado com toda a naturalidade; só esperava ser capaz de o usar com a mesma naturalidade.

Dinkuhl disse:

—      Juntamente com o seu cartão, Charlie receberá duas autoriza¬ções. Uma será uma autorização de licença vulgar. A outra, especial¬mente destinada à viagem a Berkeley, prevê uma estada nesse local em visita de estudo, sendo ele um estudante que está a trabalhar na descalcificação idiopática de algumas tribos da Mongólia Exterior. Acontece que em Berkeley têm material sobre o assunto que não se consegue en¬contrar em mais parte nenhuma deste continente.

Charles começara:

—      Que é a descalcificação idiopática em...?

—      Ficam sem dentes muito cedo — disse Dinkuhl sucintamente. — Só espero que não se encontre com outro estudante que es¬teja a trabalhar no mesmo assunto — parece-me pouco provável. De qualquer forma, o esquema é esse. Uma vez em Berkeley, o resto é con¬sigo, Charlie. Tentaremos continuar em contacto consigo, mas essen-cialmente você estará independente.

Charles acenou com a cabeça. O homem da Secção Atômica disse:

—      Parece bem. Pela minha parte, consigo imaginar meia centena de coisas que são capazes de correr mal.

—      Esperemos que não disse Dinkuhl. — Pois bem, eu vou levar aqui o Charlie novamente para Detroit e metê-lo no transatlântico para Berkeley. Até à próxima reunião, rapazes.

Voltaram por onde tinham vindo, seguidos pelos outros. A sala on¬de se realizara a grande sessão estava vazia. Dinkuhl explicou:

—      Foram ladrar à Lua. Acabam sempre assim. O melhor é irmo-nos juntar a eles durante os últimos minutos.

Tinham levado o estrado do orador. Este estava de pé, em cima de¬le, dirigindo-se à multidão silenciosa que o rodeava. Via-se apenas uma lasquinha de Lua, mas o céu estava claro e a luz das estrelas espalhava sobre eles uma luz vaga; escurecera completamente depois da chegada de Charles e de Dinkuhl.

O orador dizia: — ...que o ar se encha com o ranger das correntes e das lamentações que não têm fim porque a dor é infindável! Que a grande serpente se contorça sobre a terra e... — Hesitou por momen¬tos e, quando retomou a palavra, a sua voz era mais fraca, mas carrega¬da de veneno — ...e a esmague! Olhem para cima! Olhem para cima!

Na escuridão, as suas faces que se voltaram, como movidas por uma só vontade, em direção ao céu noturno apareceram como um la¬go subitamente iluminado. Contemplavam um ponto cerca de quinze graus acima do horizonte. Acompanhando os seus olhares, Charles viu a mancha pálida do cometa. O orador falou com voz branda, mas arrebatadora:

—      Vejam. Vejam. — Sibilava como uma brisa cortante que atra¬vessasse a noite. — O Dedo de Jeová! O Dedo de Jeová! O Dedo que aponta para um mundo condenado! O Dedo que se detém para castigar um povo que se dedica à iniqüidade! O Dedo que marca o gado para o abate! Aproxima-se! Aproxima-se! E quando ele se abater, a voz de Jeová será o trovão da montanha, o terremoto vindo das entranhas da terra. Ninguém conseguirá escapar às palavras do julgamento — nin¬guém conseguirá escapar!

Charles teve consciência do mesmo suspiro que, quase como um es¬tremecimento, já se fizera sentir no interior do edifício. Depois houve um silêncio que durou quase meio minuto. Os seus olhos estavam ainda fixos no céu. Então o orador quebrou o sossego, numa voz que se tornou um grito.

—      Para baixo! De joelhos! Seus cães, suas cadelas! Para baixo, pa¬ra baixo, para baixo! — Eles caíam de joelhos como o milho em frente do segador, mas a sua voz continuava a soar, aguda. — Para baixo so¬bre a vossa condenação! Ponham-se de joelhos e gritem, gritem para Jeová, o Eterno: «Senhor Jeová, estamos condenados! Envia-nos os teus chicotes, os teus escorpiões, as tuas labaredas para queimar a nossa carne mais tenra!»

As palavras foram devolvidas num eco horrível:

—      Senhor Jeová, estamos condenados! Envia-nos os teus chicotes, os teus escorpiões, as tuas labaredas para queimar a nossa carne mais tenra!

—      Solta os teus demônios! — exortou o orador.

—      Solta os teus demônios! — soou o eco murmurado.

—      Uma bênção apenas, Senhor Jeová, uma bênção apenas te pedimos,

—      Uma bênção apenas, Senhor Jeová, uma bênção apenas te pedimos.

—      Após um milhão de anos de tormento, concede-nos o esqueci¬mento.

—      Após um milhão de anos de tormento, concede-nos o esqueci¬mento.

—      Nós, os teus condenados, ajoelhamos perante ti, Senhor Jeová!

—      Nós, os teus condenados, ajoelhamos perante ti, Senhor Jeová!

Seguiu-se o silêncio. O orador mantinha-se ereto, com os braços estendidos sobre a multidão que rastejava à sua frente. Charles, com Dinkuhl e os outros, manteve-se a uma pequena distância do aglome¬rado principal. Charles perguntava a si próprio se não estariam em pe¬rigo, mas compreendeu que todas as atenções estavam centradas nou-tra direção, na direção do estrado e da pequenina mancha do cometa.

O homem da barba desceu do estrado e a multidão começou a ten¬tar pôr-se de pé. Dinkuhl tocou no braço de Charles com o cotovelo.

—      O.K. Podemos ir agora.

Charles não disse nada enquanto não se encontraram no giroplano, longe dos edifícios. Dinkuhl pôs o motor em marcha e Charles falou, levantando a voz acima do seu ronronar suave e ritmado.

—      Nem consigo acreditar no que acabo de ver.

—      Cultive a sua imaginação — disse Dinkuhl distraidamente. — Uma coisa impossível todas as manhãs antes do pequeno-almoço.

—      Pareciam-me indivíduos perfeitamente vulgares. É incrível pen¬sar que seriam capazes de se transformar naquela turba.

O giroplano ergueu-se no céu noturno fracamente iluminado, em direção ao brilho difuso da Via Láctea. Dinkuhl disse:

—      As turbas são todas muito semelhantes. Esta noite mantiveram toda a respeitabilidade. Devia vê-los quando perdem realmente a cabeça.

—      Mas como é que uma pessoa normal...?

—      Uma pessoa normal é uma pessoa que está razoavelmente ajus¬tada ao seu meio ambiente. Pode, portanto, dizer-se que é exatamente o que se passa com aquela gente: aqueles são os seres humanos bem ajustados ao século XXI. Ajustados a uma vida que perdeu o signi¬ficado, a uma decadência, a uma estagnação. Ajustados à sociedade da era do sistema de gestão.

—      Tanto quanto sei — disse Charles —, nunca tive qualquer incli¬nação para este tipo de comportamento.

As estrelas pareciam sempre muito próximas quando se voava de noite num giroplano. Esta noite pareciam tão próximas que se podiam agarrar.

Dinkuhl disse:

—      Mas você não se consideraria uma pessoa normal — normal pa¬ra a sua época, de qualquer forma. É isso que eu tenho estado a tentar dizer-lhe. A normalidade não é um absoluto. Eles são normais. Aposto que são todos ex-clientes de Conforto Brilhante e da Liga Vermelha. Não do FK, com certeza.

Charles teve uma idéia.

—      Ainda há mais indivíduos destes?

—      Com os diabos, claro que há! Isto foi apenas um pequeno en¬contro. Há também muitos outros pregadores, mas aquele tipo de hoje foi um dos melhores que tenho ouvido.

—      Onde é que tudo isto começou?

—      Há diferentes versões que mencionam diferentes lugares. Alguns falam de Nova Inglaterra, outros mencionam a França. Há uma versão que indica a Índia. Tudo começou antes de o cometa se tornar visível, mas o cometa é agora um ponto principal — tal como viu.

—      Então quando o cometa desaparecer...

—      Tudo acabará? Talvez. Mas não me parece. Quando uma coisa toma as proporções que isto tomou, um pequeno contratempo tal co¬mo uma profecia falhada não lhe corta a evolução. Não, acho que a festa está apenas a começar.

—      E você aprova — disse Charles.

Dinkuhl riu.

—      Sou sempre a favor da normalidade.

Começaram finalmente a descer em direção às luzes de Detroit e à casa de Dinkhul, à beira do lago. Dinkuhl pôs as pás na vertical e acen¬deu a luz de aterragem. O giroplano desceu sem esforço sobre a faixa de aterragem.

Dinkuhl disse:

—      Vou pô-lo no canil. Você já sabe o caminho. — Entregou a Charles a chave de assobio. — Arranje uma bebida. Eu subo já.

Dinkuhl acendera as luzes do caminho; Charles seguiu uma estreita fita de luz até à casa escura. Alcançou a porta e assobiou para a abrir. No interior, as luzes acenderam automaticamente. Dirigiu-se ao primei¬ro andar e foi até à sala. No ar pairava um perfume que lhe pareceu estranhamente familiar.

Quando os joelhos se lhe começaram a vergar, soube o que era: astarate, o gás que atacava os nervos. Caiu no chão com á cabeça do lado da porta — foi assim que ele viu Dinkuhl aparecer e parar do lado de fora a olhar para a sala. Desejava poder ler a expressão de Dinkuhl, quando perdeu a consciência.

 

O quarto no qual Charles acordou — cela seria uma designação mais apropriada — não tinha janelas e assemelhava-se a um cubo, cujos lados tinham aproximadamente 3 m. Em duas paredes opostas havia duas grades em frente uma da outra — pequenas manchas de re-de numa extensão nua de plástico amarelo-claro. Condutas de ventila¬ção. Noutra parede havia uma porta. A sua colocação era demasiado simétrica: a parte inferior da moldura da porta estava a 33 cm de dis¬tância do chão e a distância entre a parte de cima e o teto era igual.

Charles tinha uma dor de cabeça terrível, o que sabia ser uma con¬seqüência inevitável do astarate. Lembrava-se de uma experiência que fizera em tempos na universidade. Mas nessa altura tomara deliberada- mente uma dose menor e os efeitos posteriores tinham sido menos vio¬lentos; neste momento, a cabeça doía-lhe e de trinta em trinta segundos a dor atingia um clímax. Sabia que isso ia diminuir gradualmente, mas sem ter conhecimento da dose que inalara era-lhe impossível tentar pre¬ver daí a quanto tempo a existência voltaria a deixar de ser uma perfeita agonia.

Levantou a cabeça com todo o cuidado, para observar melhor tudo o que o rodeava. Encontrava-se deitado no chão, em cima de um colchão de ar. Havia uma cadeira com almofadas de ar, de forma estra¬nha, a um canto, bem como uma coisa que parecia uma cama de rede enrolada pendurada num gancho. Na parede em frente da porta estava o indispensável écran de TV, mas procurou em vão o painel de contro¬lo. Tinha sede, mas não havia nada para beber. Pensou em se levantar e experimentar a porta, mas as dores que cresciam em autênticas ondas eram de mais para ele. Deixou cair a cabeça para trás e fechou os olhos.

O rosto de Dinkuhl. Estava de novo a vê-lo, tal como o vira na sombra do outro lado da porta, espreitando para a sala onde ele estava enroscado no chão. A expressão — seria surpresa, ansiedade — ou sa¬tisfação? Pensou furiosamente: era verdade que não sabia julgar as pessoas, mas se se tinha enganado a respeito de Dinkuhl, mais valia de¬sistir. E, contudo, havia a estranheza de todo o conjunto de coisas: a ligação de Dinkuhl com o grupo dos contestatários, dispostos a correr riscos para o ajudarem, simplesmente por ele se ter revoltado contra a sua gestão. Isso já o tinha preocupado antes. E voltava a preocupá-lo agora.

Há quinze dias, a sua vida era uma rotina conhecida e praticada há muito, um nicho seguro do qual ele podia contemplar um mundo sadio e vulgar, sentindo apenas um ligeiro ressentimento e uma forte dose de superioridade. Agora estava neste torvelinho e todas as demarcações ti-nham desaparecido. Era de presumir que este novo mundo não surgira de repente. Já existia antes. Enquanto ele fazia o seu trabalho habitual em Saginaw, este torvelinho não parava — uma dezena de secções de contacto, ou mais, atacando-se mutuamente — Dinkuhl e o seu cir¬culo de sabotadores — a Seita do Cometa fustigando-se deleitada com os chicotes do desespero. Tudo tinha de existir antes; fora simplesmen¬te o azar que o fizera cair no redemoinho.

E Sarah também. Esse pensamento apossou-se dele provocando-lhe um sofrimento que dominava a simples dor física resultante do astarate. Isto despertou novamente a sua determinação. Por muito confusa e insolúvel que a situação se apresentasse, ele continuava a ter um objetivo. Por essa mesma razão, tudo o que contribuía para a complexidade que o rodeava tornava mais firme a sua certeza de que as suas suspeitas quanto à explicação de Stenner eram fundadas e fazia-lhe parecer mais provável que Sarah estivesse viva, em algum sítio,

A dor era agora um pouco menos aguda e decidiu ignorá-la. Pôs-se de pé e caminhou vacilante até à porta. A chave de Dinkuhl desaparece¬ra, mas ele lembrava-se de algumas combinações de notas. Tentou-as, apesar de ter a garganta seca. Não houve qualquer resposta; a porta permaneceu fechada. Tentou empurrá-la com o corpo, mas a porta manteve-se firme. Foi sentar-se na cadeira de ar para pensar melhor na situação. A cadeira moldou-se-lhe ao corpo, persuasiva, e ele verificou que havia uma espécie de cintos com que poderia amarrar-se. Não con¬seguia perceber para que serviam.

Ouviu o zumbido crescente habitual e olhou para ver o écran na pa¬rede ganhar vida. Um homem de meia idade, sentado a uma secretária (uma secretária em cima da qual não se via qualquer objeto que permi¬tisse uma identificação. O homem também não tinha qualquer em¬blema).

Era gordo, com o rosto avermelhado e tinha um longo nariz estrei¬to e um olhar distante e astuto. Falou com uma pronúncia ligeiramente ciciada.

—      Como está, Funcionário Grayner? Precisa de alguma coisa?

Charles disse:

—      Sim. Água, um sedativo e uma explicação. Pela ordem indicada, se não lhe causar transtorno.

O homem acenou afirmativamente. Gritou para alguém que a câ¬mara não focou:

—      Água e neuraspirina para o Funcionário Grayner. — E acres¬centou, dirigindo-se a Charles: — Não prefere brande?

—      Pode ser água.

—      Permita-me que me apresente. O meu nome é Ellecott.

—      De...?

Ellecott sorriu; era um sorriso sonhador e desagradável.

—      Não pense que pretendo ser difícil. Mas preferia que não insis¬tisse nessa pergunta — pelo menos por agora.

A porta abriu-se. Charles atravessou o compartimento e pegou nu¬ma garrafa de água e em dois comprimidos de neuraspirina trazidos por um homem alto e silencioso, também não identificável com nenhuma organização do sistema de gestão. Acenou para a figura visível no écran.

—      Desculpe. — Enquanto tomava os comprimidos e bebia água pela garrafa, a porta voltou a fechar-se.

A dor desapareceu quase instantaneamente. Sentindo-se bastante mais confortável, Charles arrastou a cadeira até ela ficar mais diretamente voltada para o écran. Depois sentou-se.

—      Dizia...

Ellecott disse:

—      Estava simplesmente a exprimir o desejo de que você não se opusesse a que eu conservasse o anonimato. Num assunto tão delicado como este... Tenho a certeza de que você há de compreender.

Agora, que a dor de cabeça abrandara, conseguia pensar com maior clareza e rapidez. O principal era estabelecer uma espécie de van¬tagem, embora ligeira, para ajudar a contrabalançar a posição total¬mente desvantajosa em que se encontrava. Tinha de ser uma situação que não parecesse inteiramente disparatada; qualquer coisa que esta gente não fosse obrigada a recusar — um aspecto em que eles estives-sem inclinados a descontrair-se.

—      Onde está o Dinkuhl? — perguntou Charlie.

Ellecott estendeu os lábios.

—      Dinkuhl?

—      Não percebo porque é que há de fingir que não sabe quem ê o Dinkuhl. Fui raptado de casa dele.

—      Não estava a tentar enganá-lo. Sei quem é Dinkuhl, claro está. Mas isso não quer dizer que saiba onde ele se encontra de momento.

Toda a resposta, pensou Charles, estava deliberadamente sofismada. Pensou que também sabia porquê. Eles não estavam certos se ele classificara Dinkuhl como amigo ou inimigo. Ser-lhes-ia útil conhecer a sua posição a esse respeito, para saberem como agir para com ele. Pen¬sou cuidadosamente. Fossem quais fossem as suas razões, Dinkuhl re¬presentava um elo de ligação com o velho mundo familiar que existira havia tão pouco tempo; Dinkuhl era um cabo de salvação. Não era in¬dispensável confiar nele.

—      Quero falar com Dinkuhl — disse Charles.

Ellecott encolheu os ombros.

—      E se não soubermos dele?

—      Então vão procurá-lo. Ele estava do lado de fora da porta quan¬do eu perdi os sentidos. Não creio que o tivessem lá deixado para ir contar a história no FK.

—      Não sei. — Ellecott tentou parecer totalmente ingênuo. — Não tive nada a ver com o trabalho de o irem buscar. Não sei nada do Din¬kuhl. — Hesitou. — Por vezes ocorrem acidentes nestes trabalhos.

Charles disse:

—      Dadas as circunstâncias, têm-me tratado bastante bem. Mas acho que a minha boa vontade não é totalmente vã. Se houve um aci¬dente desse tipo pode deixar de contar com a boa vontade. Agora e para sempre.

Ellecott abanou a cabeça num gesto que parecia uma tentativa de velhacaria.

—      Temos de ver o que se pode fazer. Não sei o que aconteceu ao Dinkuhl, mas vou tentar saber. Gostaria de ver televisão enquanto es¬pera? Deve achar isso aí muito aborrecido.

Havia uma maneira de verificar se ainda estava no continente ame¬ricano, embora não tivesse razões para supor o contrário. Disse em tom natural:

—      Obrigado. Pode ser a Liga Vermelha. A menos que me possa ar¬ranjar o FK?

—      Parece-me — disse Ellecott — que o FK está temporariamente parado. Aí tem a Liga Vermelha.

Ellecott estava a falar verdade acerca do FK — era um empreendi¬mento de tal forma dependente de um só homem que a ausência de Dinkuhl durante mais de doze horas era capaz de o deitar abaixo. Mas de qualquer forma era pouco provável que lhe dessem o tipo de infor¬mações que lhe permitissem determinar explicitamente se se encontrava ou não na área de Detroit. Assistiu apático à fase final de um melodra¬ma da Liga Vermelha. Estava ainda na América do Norte. Algures por cima da sua cabeça, a estação espacial fixa, que acompanhava precisa¬mente as rotações da Terra, irradiava a sua mensagem de plácida segu¬rança de leste a oeste, desde a Passagem Nordeste aos desertos do México.      _

Terminada a peça, começou o noticiário, com Henry Millheim ca¬loroso e sólido, grave, com um leve toque de jocosidade — o arquétipo da Liga Vermelha. As notícias eram também as habituais — uma jane¬la aberta sobre um mundo tranqüilizador. O Gestor Vautrin fora no¬meado diretor dos Aços — um instantâneo do complacente Vautrin dando-se ares de modéstia. As Indústrias Químicas Reunidas anunciavam a abertura de uma nova filial na Lua — as poderosas montanhas lunares estenderam os seus dedos agrestes de encontro a um céu negro salpicado de estrelas diamantinas. A imagem fez agitar qualquer coisa na memória de Charles, mas ele não conseguiu estabelecer a ligação. Primeiros resultados da prova de corridas no espaço de Adirondacks — os balões de plástico dançaram alegremente no écran enquanto a voz firme de Millheim anunciava os nomes: «Kapell — Edwards — Burgoicz...»

A atenção de Charles desviou-se do écran quando a memória de Charles estabeleceu a ligação. A nova filial lunar da IQR... lembrava-se agora: a filial de Tycho, que fechara havia talvez dez anos. Não fora dada qualquer publicidade a esse fato, mas um dos membros do pes¬soal tinha sido enviado para Saginaw; fora assim que ele viera à saber. Agora a reabertura era saudada como um acontecimento, um alargar das fronteiras. Perguntava a si próprio quantas outras extensões de fronteiras, alardeadas pelas redes de televisão, tinham sido do mesmo tipo.

O seu olhar foi de novo atraído para a televisão por uma marcha familiar — o indicativo da IQR. No écran as fileiras serradas alinha¬vam-se num vasto terreiro de parada. Obedecendo a sinais, os blocos afastavam-se e marchavam em frente para saudar a bandeira da IQR. Isso indicou-lhe a data — 21 de Novembro. Dia das Formaturas. Ob¬servou com certa nostalgia e pena ao mesmo tempo, os esquadrões em marcha. Conhecia-os. Com o auxílio da Psico & Med, os seus espíritos tinham sido cuidadosamente analisados, os seus psicoplanos prepara¬dos. Avançavam assim esquadrões A e B, destinados à chefia, os admi¬nistradores e dirigentes do futuro — os esquadrões C, D, e E para a pesquisa e trabalhos de desenvolvimento — os esquadrões F, G, H e I para os capatazes e outros postos de supervisão — e no fim todos os outros esquadrões que embarcavam agora numa vida adulta de rotina e segurança e Conforto Brilhante em doses certas. Os trabalhadores. Charlie observou aquela faixa alegremente colorida sob a brisa forte do noroeste. Ele próprio pertencera ao esquadrão D. Pensou... A opinião de Dinkuhl de que o mundo da gestão se estava a desmoronar... seria que a explicação se encontrava de alguma forma nestas formações mili¬tares rigorosas e na bandeira que ondeava ao vento?

O écran ficou vazio, deixando ver em seguida, uma vez mais, o ros¬to de Ellecott. Ellecott continuava a sorrir.

—      Boas notícias para si, Funcionário Grayner. Apanhamos Dinkhul. Podemos arranjar com que fiquem juntos durante o período do vosso — durante o período em que estamos a arranjar as coisas. Va¬mos também instalá-los mais confortavelmente. Deve sentir-se um bo¬cado apertado aí.

Charles disse cautelosamente:

—      É muito amável.

—      Dois dos nossos homens vêm a caminho para o ir buscar. Sei que podemos contar com a sua colaboração.

Charles disse:

—      Claro. Não quero causar-lhe gastos necessários — sei o preço do astarate.

—      O sentido de humor — disse Ellecott — pode ajudar a tornar a situação presente menos desconfortável. Apreciamos a forma como en¬cara as coisas. Acredite que é verdade.

Foi no momento em que, a pedido dos dois homens, trepou por uma porta para uma passagem especial em forma de túnel, que com¬preendeu onde se encontrava. Claro que a cela original já lhe devia ter dado uma idéia — a simplicidade funcional, a porta eqüidistante entre o chão e o teto, a cadeira com cintos, a rede. Agora surgia-lhe o corre-dor serpenteante, a estrutura visível e, acima de tudo, os corrimãos des¬tinados a serem utilizados quando não houvesse gravidade, o que tornava tudo inequívoco. Encontrava-se numa nave espacial. Uma nave espacial em repouso, era verdade, visto que a gravidade era normal, não artificial e faltava também a inevitável vibração. Mas mesmo as¬sim, encontrava-se numa nave espacial. Olhou com uma certa satisfa¬ção para os seus dois guardiões privados, que também não usavam em¬blema. Estava, portanto, nas mãos da Interplanetária. E o que era ainda mais encorajador é que eles eram suficientemente tolos para tentar es¬conder a sua identidade, embora o tivessem preso numa nave espacial. Esta descoberta deu-lhe ânimo novo.

Reconheceu o compartimento onde foi introduzido como uma das salas da messe, transformada à pressa para o acomodar a ele e a Dinkhul. As finas costuras das paredes indicavam a presença de mesas escamoteáveis e num canto havia a escotilha pela qual chegava normal¬mente a comida. Os écrans das paredes laterais tinham também o estilo peculiar das messes.

Tinham trazido para lá várias peças de mobiliário, incluindo uma estante, o que o surpreendeu e encantou. Dinkuhl estava de pé por de¬trás dela, com um livro na mão. Quando Charles entrou, levantou a ca¬beça e acenou-lhe.

—      Prazer em vê-lo, Charlie. Já mo assinalaram como um recalcitrante que fala de mais, por isso vou começar com uma ou duas pala¬vras de prevenção. Esses écrans podem estar vazios, mas não pense que estão inativos. E sei o suficiente sobre os microfones modernos para poder garantir-lhe que, se algum de nós sussurrar qualquer coisa de for¬ma que o outro ouça, isso bastará para que os nossos amigos ouçam também. Nestas condições, acho que devemos preveni-los de que toma¬remos a precaução justificável de não discutir o quer que seja que, na nossa opinião, os possa ajudar.

Charles disse:

—      Está certo. A propósito, como é que o apanharam?

—      Astarate — mas em dose mais fraca que a sua, creio. Já estou acordado há algumas horas e, segundo percebi, você acordou há pou¬co. Disseram-me que você tinha insistido em que nos pusessem juntos antes de responder a quaisquer perguntas.

Charles observou Dinkuhl, tentando descobrir o que é que se es¬condia sob a habitual cordialidade sardônica.

—      Pareceu-me que seria boa idéia.

Dinkuhl acenou com a cabeça.

—      Muito sensata. Não imagino o que é que tencionam fazer comigo — o mais provável é que me tivessem apanhado por eu ter pre¬senciado os acontecimentos. Mas não me parece que seja indispensável. E há mais uma coisa que acho que devemos discutir, e que me parece tão clara como os olhos que vêem e os ouvidos que ouvem. Até que ponto ê que você pode confiar em mim? De qualquer forma, é uma questão interessante. Eu podia muito bem estar a trabalhar por conta dos nossos amigos e o fato de você ter querido a minha presença não significa nada, exceto que lhes facilitou as coisas — partindo do prin¬cípio de que eu esteja do lado deles.

Charles disse:

—      Já pensei nisso.

—      É natural. Para ser franco não me parece que possamos fazer o quer que seja. Eu preferiria que as nossas relações se desenvolvessem num plano de confiança mútua, mas nesse campo só vejo uma possibi¬lidade, e, na minha opinião, o fato de estarmos num aquário contraria essa linha. De qualquer forma, também não estou certo de que levasse a qualquer coisa de conclusivo. Não, Charlie, por muito que isso lhe desagrade, devo aconselhá-lo a manter o seu atual estado de descon¬fiança. E, como é evidente, o fato de eu lhe dar este conselho também não tem qualquer significado. Naturalmente, eu esperava que você sus¬peitasse de mim e a discussão aberta das suas suspeitas seria uma boa maneira de as acalmar. E depois, discutir o fato de eu as discutir... bom, não levemos as coisas demasiado longe.

Charles fez um sorriso.

—      De qualquer forma, a companhia agrada-me. Você levanta-me o moral, Hiram.

—      E isso também pode ser encarado dos dois lados. Mas agora pa¬rece-me ser uma boa altura de abordarmos uma questão que julgo que já deve ter começado a preocupá-lo — a questão da sua própria impor¬tância.

—      Sim, já pensei nisso. Primeiro Ledbetter e você... e agora estes — partindo do princípio de que não têm nada que ver consigo.

—      Sim, partindo desse princípio — disse Dinkuhl. Olhou casual¬mente para o écran de TV. — Julgo que estamos autorizados a falar disto; certamente pensaram que era provável que eu dissesse alguma coisa. Falemos então da sua importância. Já deve ter percebido que há várias pessoas interessadas e muito, no trabalho que estava a ser feito no laboratório da 1QR onde você fez uma estada tão curta e tão cheia de acontecimentos. Isso leva-nos a uma especulação interessante — e que eu ponho à sua disposição — sobre a possibilidade de Isaacssohn e os Cohn não terem sido capturados pela mesma organização. Nada in¬dica que o tenham sido, o que faz desaparecer a confusão natural provocada pelo fato de Sarah Cohn ter sido deixada durante duas sema¬nas depois da morte aparente de Isaacssohn.

Charles acenou em direção ao écran da TV.

—      Isto é o Número Três?

—      Possivelmente. Há mais alguma coisa que lhe pareça estranha?

Charles hesitou. Dinkuhl fez um gesto largo em direção ao écran vazio. Disse de forma encorajadora:

—      Continue. Não me parece que esteja a deixar escapar qualquer coisa de importante. A questão é perfeitamente evidente.

—      O laboratório não estava lá muito bem protegido. Todos os rela¬tórios de Isaacssohn estavam lá arquivados. Admito que, a princípio, fiquei um bocado confuso, mas logo que Sarah me explicou o trabalho de Isaacssohn, as coisas começaram a fazer sentido. Bom, então estes indivíduos que mostram tanto interesse no caso — acho que devem saber em que é que estão interessados! Nesse caso, porque é que não tira¬ram simplesmente os relatórios? O trabalho ê simples. Eles próprios o podiam fazer. No que me diz respeito, limitei-me a seguir durante uma semana aquilo que Isaacssohn começara. Porque é que me quiseram a mm?

—      Esse — disse Dinkuhl — é na realidade o ponto crucial. Que é que o torna importante — suficientemente importante para ser tratado de forma tão circunspecta pelo seu próprio gestor, para que o meu pe¬queno grupo subversivo lhe ofereça conforto e um auxílio substancial e para que seja agora tratado com benevolência, ainda que prisioneiro da Interplanetária?

Charles lançou-lhe um olhar. Dinkuhl disse calmamente:

—      Não vale a pena deixá-los convencer de que somos completa¬mente parvos. Não consigo perceber porque é que estão tão preocupa¬dos em não mostrar quaisquer insígnias, mas isso não deve passar de uma medida temporária para aumentar a confusão. Não podiam espe¬rar que nos mantivéssemos cegos por muito tempo à explicação óbvia daquilo que nos rodeia. Um cargueiro do tipo 7, segundo me parece, mas isso é irrelevante.

—      E que ainda está no fosso — disse Charles. — E francamente não percebo para quê. A Interplanetária tem escritórios e apartamentos próprios. Podíamos facilmente ter sido levados para um desses lugares, onde não teríamos conseguido chegar à conclusão que acaba de men¬cionar. Para quê enfiar-nos numa nave espacial, em terra, onde era ine¬vitável que viéssemos c criar suspeitas?

—      Sim, porquê? — disse Dinkuhl. — Só vejo uma razão. Só vejo uma única razão, mas ao mesmo tempo uma boa razão. A nave não deve ficar em terra. Se for como penso, neste mesmo momento, es¬tão a preparar a partida. O que é uma medida bastante óbvia. Você re¬presenta uma propriedade valiosa; o melhor sítio para o guardar é de longe aquele onde a Interplanetária é a organização mais forte — Luna City. Dado que o tráfego entre a Terra e a Lua é monopólio seu, podem estar razoavelmente certos de que você ficará lá enquanto eles quise¬rem.

Era uma idéia obviamente razoável, mas ao mesmo tempo bastante sombria. O homem que tinha estado na estação da IQR em Tycho tra¬çara um quadro pouco agradável da vida na Lua e não estivera prisio¬neiro. Enquanto a Interplanetária quisesse, não haveria licenças anuais para Charles.

Dinkuhl interrompeu-lhe os pensamentos.

—      Estamos a afastar-nos da questão da sua importância. É eviden¬te que você é importante e também, como você mesmo disse, que a sua importância não reside em nenhum fato que você conheça. Que é que nos resta então?

Charles disse:

—      O quê, afinal?

—      O geral, não o particular. O seu espírito e as suas capacidades. Na verdade, você é o O'Reilly de quem eles falam com tanta considera¬ção. — Dinkuhl teve um sorriso pálido. — Gorblimey, O'Reilly, são nomes que lhe ficam bem.

—      Acho isso tudo um disparate. Dezesseis anos de trabalho de roti¬na num laboratório não tornam um tipo indispensável. Além disso, o problema não é grande. Não me parece que ofereça dificuldades insu¬peráveis a quem quer que seja.

—      Primeiro ponto — disse Dinkuhl. — Esses dezesseis anos fo¬ram um erro. Voltaremos a isso dentro de momentos. Segundo ponto. Eu poderia mostrar-lhe um pequeno problema, ligado ao uso do micro¬fone e da câmara, que o deixaria espantado e em branco. Não é um problema excepcionalmente difícil, mas você não chegaria lá porque lhe falta a orientação básica. Os problemas parecem fáceis a quem tiver uma idéia de como os resolver; se não tiver o espírito e a formação ne¬cessários, eles tornam-se insuperáveis.

Charles disse com ar tolerante:

- E eu sou o rapaz dos olhos azuis — o único que consegue partir a noz? É uma estranha coincidência que nos tivéssemos juntado os três — Isaacssohn, Sarah e eu.

—      Isaacssohn e Sarah Cohn — disse Dinkuhl — eram israelitas. Foi de certa maneira uma coincidência que o tivessem mandado a si pa¬ra o lugar de Isaacssohn, mas uma coincidência limitada. Voltamos agora à questão dos dezesseis anos passados em Saginaw em pesquisas de rotina. A coincidência verificou-se quando, depois de o P & M ter cometido o seu erro empurrando-o para o esquadrão D — quantas coi¬sas nós todos sabemos a seu respeito, Charlie! — você tivesse sido pos¬to, inteiramente por acaso, a trabalhar com diamantes, a mesma subs¬tância com a qual Isaacssohn havia de realizar grandes coisas quinze anos mais tarde.

Dinkuhl olhou para ele especulativamente.

—      Pergunto a mim mesmo porque é que não fez você mesmo qual¬quer coisa de grande?

Charlie disse:

—      O meu trabalho estava programado. Tanto quanto me parece, Isaacssohn tinha pulso livre. Só dessa forma se consegue fazer alguma coisa de importante.

—      E, à parte Isaacssohn, conhece alguém a quem tenha sido dado pulso livre na investigação?

—      Apenas conheço Saginaw. Aí ninguém tinha pulso livre.

—      Não há pulsos livres, seja onde for, Charlie. Nem importa que sejam livres ou não, porque também não fariam nada. Sim, você podia tê-lo feito, mas você era uma exceção. Você era o grande erro do P & M. Se o seu psicoplano tivesse sido devidamente preparado, você come¬çaria por não estar na investigação. Estaria a cumprir o seu dever como administrador. Ao lado de Ledbetter e dos outros.

Charles disse:

—      Provavelmente. Você quer dizer...

—      Há muito tempo que ando a tentar dizer-lho — disse Dinkuhl. — O sistema de gestão está morto. Feio de se. E, até certo ponto, morto pelos seus próprios méritos. Desenvolveu um sistema há¬bil para escolher os melhores cérebros e dar-lhes os empregos chorudos, mas aqui esbarrou com uma pequena anomalia — é que os empregos chorudos, seja em que forma de sociedade for, vão sempre para os pos¬tos administrativos, os postos que envolvem o poder do homem sobre o homem. A ciência não entra nesse belo esquema; nunca entrou. Na me¬lhor das hipóteses, durante o capitalismo, criou uma hierarquia que en¬grenava com a sociedade que a rodeava. Os cientistas faziam bom tra¬balho enquanto eram novos, instalando-se em empregos chorudos lá para o fim da vida. O homem que fora um físico brilhante por volta dos trinta ou trinta e cinco anos de idade, aos cinqüenta já tinha abandona¬do a física e ocupava um cargo burocrático de primeira plana.

- Tudo isto era muito satisfatório — porque a geração mais nova podia sempre avançar e ocupar os lugares deixados livres pelas promoções — para realizar o verdadeiro trabalho que fazia progredir a ciência. Estes, por sua vez, executavam o seu trabalho e passavam para uma burocracia bem paga, acompanhada de um título ou de qualquer outra distinção sem significado, mas ardentemente desejada. Mas veja¬mos agora a organização do sistema de gestão: treino e condicionamen¬to básicos e fortemente disciplinares até ao momento da formatura. Se¬gue-se a especialização. Muito eficiente. Demasiado eficiente. Porque no mundo da gestão pareceria inútil treinar um homem na ciência a me¬nos que ele devesse passar o resto da vida nesse campo; e, depois de treinado numa disciplina científica, tomavam todas as precauções para que se dedicasse a isso e a nada mais. Compreende?

Charles disse:

—      Podia resultar, se as recompensas fossem calculadas com justeza.

—      E quem é que calcula as recompensas? — perguntou Dinkuhl. — Os administradores. As pessoas têm sempre tendência pa¬ra considerar o seu próprio trabalho como particularmente importante e valioso, mas quando esse trabalho implica mandar os outros fazer coisas, a sua auto-satisfação é incontrolável. Uma das razões por que o capitalismo foi tão frutífero é que, neste sistema, os administradores não formavam um corpo governativo coeso. O dinheiro e o poder do dinheiro saíam dos cantos mais inesperados. Hoje em dia temos a cor¬rente sob controlo e, embora as organizações sejam diferentes entre si, todas seguem o mesmo esquema geral. Os administradores estão firme¬mente plantados na sela e, como é natural, perpetuam a sua própria su¬premacia.

- Os seus próprios filhos constituem o esquadrão A, mesmo que os seus psicoplanos indiquem que estão à beira da imbecilidade. Mas de qualquer forma, a média de inteligência transmitida está acima dos va¬lores médios e, tratando-se de uma classe governante garantida, têm fa¬mílias mais pequenas que os outros. A restante parte do esquadrão A, juntamente com o esquadrão B, é formada pelos Q1 elevados recolhi¬dos entre a população em geral. Mostre uma inteligência acima da mé¬dia e será administrador. Exceto, claro, quando o P & M comete al¬gum erro.

Charles disse:

—      Sempre nos disseram que os psicoplanos testavam as aptidões.

—      Sim, também. Mas as aptidões são muito condicionais. O ho¬mem que daria um cientista de primeira daria também um administra¬dor de primeira, se recebesse o treino necessário. Não subestimes o gê¬nio administrativo. Não gostaria de lhe dar a impressão de que a situa¬ção atual poderia tornar-se boa, simplesmente se invertêssemos as camadas superiores — fazendo dos rapazes mais espertos cientistas e en¬genheiros e dos menos espertos funcionários do governo. O mais pro-vável seria que a situação daí resultante viesse a ser ainda mais horrível do que a que nos rodeia.

—      Hã uma coisa — disse Charles. — Você tem estado a analisar a situação. Imagino que os dirigentes das diferentes organizações tenham feito análises semelhantes no passado. Porque é que não tomaram qualquer iniciativa? Para quê esperar até cairmos nesta situação e co¬meçar depois a esgravatar o fundo do barril, à procura de alguém que esteja à altura de a resolver?

Dinkuhl puxou de um maço de cigarros, pegou num e atirou outro para Charles. Os seus olhos vaguearam rapidamente pela sala. Depois meteu a mão na algibeira e tirou um isqueiro automático. Acenderam os cigarros.

—      Porque é que eles não fizeram nada? — ecoou Dinkuhl — Por¬que é uma reação humana não fazer nada. Todas as crises que convulsionaram a humanidade no passado se tornaram evidentes de antemão, A escrita estava lá para ser lida, mas quando as pessoas queriam lê-la, tratavam-na como uma coisa sem importância. Neste caso, o estado das coisas era particularmente cômodo. O sistema de gestão detinha um mundo seguro e sem problemas. Individualmente, as diferentes organi¬zações devem ter tido momentos em que foram distraídas por pensa¬mentos tentadores de supremacia mundial e, numa ou noutra Confe¬rência de Gestores, pode mesmo ter sido expresso o pensamento de que uma política de seleção diferente poderia ser a maneira de dar a uma organização o impulso que lhe permitiria dominar e engolir as outras.

»Mas, à parte esse fato, a tentação nunca foi suficientemente forte para que valesse a pena ocuparem-se dela, nem das modificações que traria consigo. Há lealdades sociais, bem como empresariais, que se po¬dem digladiar. Lembro-me de ter reparado no seu desagrado, Charlie, quando viu indivíduos de organizações diferentes sentados ao lado uns dos outros no encontro da Seita do Cometa. Trata-se de um reflexo condicionado e julgo que você próprio compreenderá que é assim. Mas o condicionamento não se aplica aos grandes: entendem-se todos muito bem.

—      Encontra-se qualquer coisa de semelhante a esta lealdade dividi¬da, no período de crise dos fins do capitalismo. Aí, o nacionalismo era o primeiro dever oficial e grupos diferentes de governantes nacionais pensavam entrar em guerra uns com os outros, com serenidade e mes¬mo com entusiasmo. Mas quanto mais provável se tornava que as guer¬ras trariam como conseqüência grandes mudanças de ordem social, mais o seu entusiasmo diminuía. De fato, estavam a ser forçados à guerra pelas camadas inferiores, onde o condicionamento fora mais forte.

Charles disse:

—      E agora vão ter de fazer qualquer coisa — pelo menos, no que diz respeito à ciência.

—      Agora — disse Dinkhul — fazem apenas uma coisa — lutam pelo instrumento de domínio que foi lançado para a arena. Qual é a resposta? Alguém o agarrará. Se forem os primeiros, teremos um con¬trole mundial centralizado. Se forem os últimos, teremos uma hierar¬quia mais reduzida e mais apertada ou então uma luta sangrenta da qual um poderá sair vitorioso. Pode confiar no sistema de gestão no que diz respeito à astúcia política — acho que ao fim e ao cabo tudo se arranjará por meios pacíficos.

—      E então?

—      Então os gestores acalmarão e saborearão novamente as suas posições. Para que hão de eles fazer alterações num conjunto de coisas tão satisfatório?

—      Satisfatório!

Dinkuhl deitou-lhe um olhar perspicaz.

—      Você assim pensava.

Charles sorriu cauteloso:

—      Debaixo de condicionamento.

—      Estamos todos condicionados — eles também. Nove décimos de tudo o que fazem situa-se a nível inconsciente. Quando uma forma de sociedade se tornou moribunda, só um louco pode esperar fazê-la revi¬ver. O ato mais generoso que se pode fazer é espetar-lhe uma faca en¬tre as costelas. Pode ser necessário fazê-lo mais de uma vez para conse¬guir traspassar o excesso de gordura, mas cada golpe faz perder um pouco mais de sangue. No fim, morre — talvez de uma maneira dife¬rente, mas a sua contribuição terá dado uma ajuda.

—      E depois?

Dinkuhl encolheu os ombros.

—      Não sou Deus. Outra forma de sociedade. As pistas têm estado a tornar-se mais curtas. Economias de escravatura que duraram sabe Deus quanto tempo. Feudalismo durante cerca de oitocentos anos. E agora num espaço de tempo não muito superior a um século assisti¬mos ao fim do sistema de gestão. Não sei o que virá a seguir. Talvez o dilúvio.

—      Mas para quê destruir sem ter nada para oferecer?

—      Há coisas que precisam ser destruídas. Devemos pôr fim à sua miséria. — Dinkuhl sorriu. — É por isso que eu simpatizo consigo, Charlie. Você é o tipo de bomba do tempo que eles não podem impedir que aconteça. Você, Isaacssohn, Sarah Cohn. E eles vão ter de fazer qualquer coisa a respeito de Israel mais tarde ou mais cedo. Parece-me que eles começam a entrever que têm ali um pequeno foco de infecção, agora que os israelitas estão a começar a arranjar tempo para mais al¬guma coisa que não seja a produção de gêneros alimentícios. Mas não faz diferença. Haverá sempre um como você, diferente, um que fará ranger os rolamentos bem polidos.

—      Areia nos rolamentos. Não consigo imaginar papel mais confor¬tável.

Dinkuhl olhou em volta por momentos, depois curvou-se e esma¬gou a ponta dó cigarro de encontro ao painel de controlo do écran de televisão.

—      Sim, você deve considerar a sua situação pessoal. Bom, os nos¬sos amigos da Interplanetária que me deixaram mostrar a minha indig¬nação perante o mundo em geral durante tanto tempo, devem estar a aparecer com uma boa oferta para si. Deve compreender que — se pu¬dessem ter a certeza de conseguirem desembaraçar-se igualmente de Isaacssohn e de Sarah Cohn — seria mais prático para eles eliminá-lo a si, pura e simplesmente. Um pouco curto de vista, mas, como tenho es¬tado a tentar explicar-lhe, são todos incorrigivelmente míopes. O que é um fato é que não podem. Pelo menos, por agora.

Dinkuhl olhou pensativamente em direção ao écran de TV situado na parede mais próxima.

—      Seria mais alegre, claro, podermos eliminar a possibilidade de a hierarquia já estar formada antes de a arma se materializar. Segundo o seu ponto de vista — Interplanetária e quem quer que seja que detém as outras duas —, essa poderia ser uma solução mais simples. Deve ter- -lhes ocorrido. Nesse caso, tornar-vos-íeis todos dispens...

Dinkuhl interrompeu o que estava a dizer. O écran ganhava vida. Dinkuhl teve um riso abafado.

—      Eu pensei que isso era capaz de os fazer aparecer.

A expressão de Ellecott estava um tanto perturbada. Era evidente que fazia um esforço para se controlar; o mesmo sorriso leve nas fei¬ções largas.

Disse:

—      Devo dizer que as minhas observações, a menos que haja algu¬ma indicação em contrário, ser-lhe-ão dirigidas a si, Funcionário Gray¬ner. Quis voltar a ver Dinkuhl e os seus desejos têm um lugar especial na nossa lista de prioridades. Dinkuhl em si não tem qualquer impor¬tância para nós.

Dinkuhl fez uma ligeira vênia.

—      Deve faltar-lhe um cartão de membro de uma empresa. No en¬tanto...

Ellecott interrompeu-o.

—      Dinkuhl tem dito algumas coisas certas e uma data de dispara¬tes. Não vou pedir desculpa por termos estado à escuta; espero que compreenda que era necessário, dadas as circunstâncias. É absoluta¬mente verdade que estão agora nas mãos da Interplanetária. Ellecott sacudiu com um dedo o pequeno foguetão-emblema que trazia no pei¬to. — Pusemo-los de lado como precaução de rotina até as possibilida¬des de você vir a ser recuperado terem sido inteiramente postas de lado. Estão num cargueiro tipo 7, como disse Dinkuhl.

—      Em que fosso? — perguntou Charles.

Ellecott hesitou.

—      Imagino que também não faz mal dizer-lhe isso agora. Toledo.

—      Lar, doce lar — murmurou Dinkuhl. — Continuamos na cintu¬ra de veneno.

—      As observações de Dinkuhl acerca da sua importância — pros¬seguiu Ellecott — são absolutamente válidas. Há de ver, Funcionário Grayner, que estamos a ser absolutamente sinceros consigo. Permiti¬mos que Dinkuhl lhe dissesse tudo isso, embora, como compreende, não precisássemos de o fazer, e agora confirmamos tudo. Você é muito importante, não apenas para a Interplanetária, como para todo o mundo.

—      Onde estão Isaacssohn e Sarah Cohn? — perguntou Charles.

—      Não sabemos — ainda. Chegamos à conclusão — em grande parte devido ao estranho intervalo que medeou entre as suas desaparições — de que não estão nas mesmas mãos. Temos uma boa Seção de Contacto e eles estão a trabalhar no caso. Será uma grande ajuda quando o tivermos a salvo em Luna City. Podemos então deixar que se espalhe o rumor de que o temos a si. Isso pode trazer novidades.

—      Não estou lá muito encantado com a idéia de Luna City — disse Charles. — É essencial?

—      Infelizmente. Luna City é o nosso posto avançado. Somos a úni¬ca organização com uma base fora do planeta e menciono o fato ape¬nas para lhe provar que a nossa atitude é fundamentalmente pacífica e responsável e que a Interplanetária nunca tentou usar o poder que daí lhe advinha. Poderíamos retirar as nossas bases do planeta, que são re¬lativamente pequenas, e destruir as cidades mais importantes num espa¬ço de vinte e quatro horas, usando as nossas estações espaciais. Nunca encaramos essa possibilidade.

Dinkuhl murmurou:

—      Pergunto a mim mesmo se o fato de as outras organizações manterem os fornecimentos vitais da Interplanetária na base das quan¬tidades mínimas necessárias terá alguma coisa a ver com isso?

Ellecott ignorou-o.

—      A interplanetária foi fundada para levar o homem às estrelas. Há muito que nos sentimos perturbados com o caminho que as coisas levam e propomo-nos usar a nossa influência para mudar a situação. Mas o problema imediato e urgente é a questão da energia solar acumu¬lada no diamante. Este pode ser usado, como sabe, como uma pequena bateria portátil, mas muito poderosa. Pode também ser usado como ar¬ma, mediante umas ligeiras modificações.

—      Isso não me tinha escapado — disse Charles.

Ellecott inclinou-se para a frente em direção às câmaras, acen¬tuando a importância do que tinha para dizer.

—      Há algumas organizações que teriam feito mau uso de tal fonte de energia e de tal arma. Uma dessas mesmas organizações pode ser neste momento a detentora de Isaacssohn ou de Sarah Cohn ou ambos. Precisamos da sua ajuda, Funcionário Grayner, para não nos deixar¬mos ultrapassar por ela ou por elas. Com a sua ajuda, podemos manter a paz. Sem ela, surge a perspectiva de uma guerra civil, bárbara e con¬fusa e talvez mesmo, em última análise, de uma tirania.

—      A oferta — disse Dinkuhl, impaciente. — Vamos à oferta, ho¬mem. Venha o cheiro da massa.

—      A continuidade da segurança de Dinkuhl é um dos aspectos de menor importância — disse Ellecott. — Um homem que é acusado de atos subversivos para com o sistema de gestão pode pedir a imunidade apelando para a sua própria organização; imunidade essa que não é aplicável a Dinkuhl, pois ele não pertence a nenhuma organização. Normalmente, há boas razões para não se recorrer a essa cláusula, mas quando as coisas se podem arranjar particularmente é diferente.

Os pequenos olhos encovados de Ellecott fixaram-se em Dinkuhl enquanto este falava; o sorriso pálido revirou-lhe os lábios para cima.

—      Não confie neles — disse Dinkuhl. — Aviso do cigano. Pela minha parte não se trata de galantaria à moda da antiga Roma, mas de realismo.

As atenções de Ellecott dirigiram-se novamente para Charles.

—      Um aspecto de menor importância. No que diz respeito ao seu futuro, propomos confirmá-lo diretor desta organização e membro do Conselho de Gestão. Ser-lhe-á dado pulso livre no seu trabalho, primei¬ro em Luna City, mas dentro em breve, segundo esperamos, dentro de condições a fixar por si, aqui na Terra. Depois de controlada a crise a¬tual, você será encarregado do desenvolvimento científico e — como compreende, nessa altura, é inevitável que a Interplanetária tenha as¬cendido a uma posição de supremacia entre todas as organizações.

—      Meu caro Charlie — disse Dinkuhl —, é uma oferta entre um milhão. Terá tudo o que quiser e, quando tudo estiver acabado, junta- -se aos administradores. Vai meter os seus filhos na ciência? Aí tem um lindo problema para resolver!

Ellecott disse:

—      Estamos a ser muito pacientes com Dinkuhl, mas deve com¬preender que há limites para essa paciência da nossa parte. A nossa oferta parece-nos boa e bastante atraente. Esperamos que concorde em a aceitar.

—      E se eu não aceitar?

Ellecott sorriu.

—      De um ponto de vista meramente acadêmico, podemos conside¬rar essa hipótese. Irá à mesma para Luna City, claro, porque à nossa grande preocupação em conseguir que trabalhe para nós junta-se a preocupação menor de impedir que trabalhe para qualquer outra orga¬nização. Não está em causa que possamos vir a exercer qualquer vin¬gança contra si. Será tratado como os prisioneiros de guerra noutros tempos. Isso quer dizer que estará confinado e não terá privilégios. Esperaríamos, no entanto, que acabasse por se submeter ao bom senso e mudasse de idéias.

—      Duvido — disse Charles. — Não quero mostrar-me dogmático, mas não me parece que tivessem sorte nisso. Ainda conservo alguns sentimentos de lealdade, incômodos e estranhos. Não me seria fácil sentir-me à vontade noutra organização, e parece-me que o desconfor¬to da culpabilidade seria capaz de pesar mais do que o da prisão.

—      Bravo para as classes inferiores — disse Dinkuhl.

—      Ellecott inclinou para trás a cabeça avantajada, apoiando-a bem nos ombros possantes.

—      Tem idéia de alguma coisa que pudesse ajudar a anular os seus sentimentos de culpabilidade? Estamos preparados para nos darmos a esforços consideráveis no sentido de o ajudar, se isso nos for possível.

Não sabiam onde estava Sarah. Sem dúvida que prometiam ir bus¬cá-la se ele colaborasse; mas de qualquer forma empregariam todos os esforços para a procurar a ela e a Isaacssohn, para os seus próprios fins. Pensou na observação de Ellecott, analisando o tom e o sorriso manhoso que a acompanhara e que ele fazia repetidamente. Se tiver ví¬cios prepare-se para se dedicar agora a eles. Não podia negar que a su¬gestão era poderosamente atraente; o problema era que ele já estava de¬masiado velho ou demasiado dominado pela consciência para aceitar os seus vícios como companheiros agradáveis em vez de inimigos bajula¬dores. Além disso, estava apaixonado.

—      Não consigo lembrar-me de nada — disse Charles. Hesitou. Talvez não fosse um bom princípio meter-se num beco sem saída. — Há alguma razão que o impeça de me dar tempo para consi¬derar a questão?

—      Todo o tempo que quiser — disse Ellecott. Levantou o dedo e olhou para ele. — A título meramente informativo, esta nave parte dentro de três horas. Mas você terá todo o tempo da viagem até à Lua para pensar no caso.

Era a suavidade de Ellecott, mais do qualquer outra coisa, que irri¬tava Charles. Nada os iria demover do caminho que haviam traçado. E estavam seguros de que, no fim, ele acabaria por se juntar a eles.

Disse secamente:

—      Não faz mal. Não preciso de tempo. A resposta é não. Não gos¬to de ser forçado a fazer parte de uma organização.

Ellecott sacudiu a cabeça.

—      Foi melhor enquanto você não se mostrou dogmático. Conheço um tipo em Luna City, de nome Morrison. Estava integrado no Projeto de Desenvolvimento. Fizeram-lhe o exame médico de rotina antes de ele voltar para a Terra e descobriram que arranjara um problema de co¬ração pouco usual num indivíduo da sua idade. P & M não lhe passa¬ram a autorização de regresso — não podiam. Ele não tinha uma probabilidade em dez milhões de sobreviver à descolagem. De resto, estava bem; como sabe, um coração doente funciona melhor lá em cima.

Ellecott sorriu, com o seu desagradável sorriso pálido.

—      Isto foi há quarenta e seis anos — ele tinha apenas vinte e cinco anos nessa altura. Quarenta e seis anos numa cidade subterrânea, com uma área de cerca de um quarto de milha quadrada, rodeada de falta de ar e morte. Quarenta e seis anos de concentrados de comida e aquele conjunto de árvores doentes e esparsas que muitas pessoas acham pio¬res do que não ter vegetação.

A história era bastante horrível; Charles ouvira falar de Morrison ao homem da IQR que estivera em Tycho. Mas ainda mais horrível era o prazer que Ellecott sentia em exercer o seu sadismo, embora em grau limitado. Devia ter-se sentido muito retraído durante a conversação an¬terior.

Como Charles não desse qualquer resposta, Ellecott continuou:

—      E continua em forma — em boa forma física. O único proble¬ma é que enlouqueceu há mais de vinte anos. Descobriram isso quando ele foi direito às árvores com um machado.

Dinkuhl disse:

—      E assim termina a nossa história de hoje. Estava capaz de o apresentar no FK, Ellecott.

Ellecott concordou em reparar novamente nele.

—      Dinkuhl — disse, quase com gentileza —, o FK não existe. No seu lugar empregaria os próximos dias a exercer as suas bem conhecidas artes de persuasão sobre este nosso amigo. Para o bem de ambos.

—      Se estivesse no meu lugar — disse Dinkuhl em tom prazenteiro —, cuspiria na sua própria cara, quando tivesse oportuni¬dade.

«Ellecott permaneceu imperturbável», pensou Charles, «provavel¬mente porque tivera a oportunidade de se satisfazer a antecipava as ocasiões em que isso voltaria a ser possível.»

Ellecott disse:

—      Proponho deixá-los sozinhos agora. Serão vigiados por mim ou por um dos meus assistentes. A porta do canto não está fechada e dá para a casa de banho. Os microfones e as câmaras ali instalados não se¬rão ligados, a menos que cometam a insensatez de recolher ali para tro¬car impressões. Não tentem também levar convosco qualquer coisa com vistas a deixar uma mensagem para o outro. Parece-me que é tu¬do. Dentro de momentos enviar-lhes-emos de comer e de beber. Mais alguma coisa?

Charles bateu nas faces mais cheias que agora tinha.

—      Parece-me que não vale a pena continuar a parecer outra pes¬soa. Pode mandar as coisas necessárias para Hiram me retirar a maquilagem e lavar-me o cabelo para voltar a ficar com a cor normal?

Ellecott teve um riso breve e a sua voz ergueu-se de uma oitava nes¬sa altura.

—      Que pena! Acho que o seu novo aspecto lhe fica muito melhor. Charles Macintosh — o que a Genética arranjou sem se dar conta. Não se sente culpado?

—      Eu tinha um fim em vista — disse Charles. — E tratava-se de uma situação temporária. Pode mandar-nos as coisas?

—      Nós tratamos disso; temos pessoal muito bom para trabalhar com cosméticos. Vou mandar alguém buscá-lo. Sorriu. Desta vez é per¬manente.

Quando Charles voltou, depois de lhe retirarem a maquilagem, pinkuhl estava a ver televisão. Desligou o som, mas deixou as imagens continuarem a deslocar-se na parede.

—      Em Luna City — afirmou — têm apenas um canal de televisão. Um derivado enlatado da Liga Vermelha, Doçura, Conforto Brilhante e todas as banalidades das estações locais. Era dirigida por um tipo de nome Schmidt. Recorrera uma vez à FK — acho que alguém o pôs em contato conosco por piada. Ele queria dar uma vista de olhos pelos programas que tínhamos preparados. Mandei-lhos. Ele respondeu que havia um único título que lhe parecia interessante — «O Cocktail». Mas como não se lembrava de ter visto o nome do autor em quaisquer programas das principais estações de televisão, pedia-me se lhe podia dar uma idéia do gênero de coisa que o Funcionário Eliot tinha escrito. Tratava-se de uma exibição de pernas, por exemplo?

—      Que é que lhe disse?

—      Não lhe disse nada. Mandei-lhe a peça enlatada, sem comentá¬rios. Recebi-a de volta no foguetão seguinte. Não era bem o que ele queria. Se eu tinha algumas exibições de pernas...

—      Alegre-se. Ainda pode vir a dirigir a estação de televisão de Lu¬na City; se viver até lá.

Dinkuhl gemeu.

—      Pioneiros, oh, pioneiros! Mas não me parece que chegue a fazê-lo. Bom, deixe-me vê-lo bem, Charlie. Bom, continuo a pensar que estava melhor quando eu o arranjei. No entanto, acho que não há nada a fazer quanto aos gostos.

—      Talvez fosse decorativo, mas não servia nenhum fim prático, pois não? A propósito seria interessante saber como é que a Interplane¬tária me descobriu o rasto tão depressa.

—      É interessante, mas não é evidente, como os grandes detetives costumavam dizer. Terá de perguntar ao Ellecott em qualquer altura. Vai ter muito tempo para isso.

—      Tempo. — Charles olhou para o relógio que tinha no dedo. — Devemos descolar dentro de hora e meia. Penso que o Elle¬cott ainda deve vir dar-nos algumas instruções antes disso. Nem sequer sei fixar o diabo das redes.

—      Descolar — disse Dinkuhl, pensativo. — Pergunto a mim mes¬mo como é que vão fazer? Engenhoso.

Charles ecoou:

—      Engenhoso? Que é que é engenhoso? É um trabalho a que estão habituados.

Dinkuhl disse:

—      Esqueça. Por vezes, o meu espírito vagueia. Sim, estou conven¬cido de que Ellecott vai entrar em contacto conosco nos próximos no¬venta minutos. Entretanto, aproveitemos o tempo o melhor que po¬demos e vejamos o que é que a Liga Vermelha tem para aos oferecer como mensagem de despedida do planeta Terra.

Abriu o som. Era uma peça. As ramificações do que se passara anteriormente tornaram-se evidentes em pouco tempo: Ela, a filha de um gestor da Secção Atômica, e Ele, filho de um gestor dos Aços. Tinham-se encontrado num piquenique na atmosfera e, sendo ambos jovens, tinham-se julgado apaixonados. Os respectivos pais eram tole¬rantes, mas abanaram as cabeças. E quando chegou a altura de lhes se¬rem apresentados os fatos, a ele que teria de cortar com a família e os amigos, que desistir do lugar de assistente na nova fábrica de redução de tungstênio e solicitar um lugar na Secção Atômica.... a ela que teria de entregar o emblema da Secção Atômica que o bisavô recebera das mãos do próprio Van Mark... nessa altura parecia que nada mais res¬tava para eles senão miséria, por todos os lados.

Por sorte, a sua felicidade iria ser preservada. Ela, viajando desesperadamente pela atmosfera, para se distrair do seu desgosto, encon¬trou-se com a sua esfera avariada, perdida nas montanhas selvagens do Connecticut. O rádio deixara igualmente de funcionar... a noite caía. Nesse momento, numa esfera que saiu como um balão dourado da luz do sol poente, apareceu o seu salvador. Era mais alto que o homem dos aços e tinha um cabelo que se coadunava com o estilo de apanhado louro que era então a moda. E enquanto ele caminhava em direção à rapariga, as câmaras aproximaram-se para um grande plano do peito dele, focando, do lado direito, um emblema da Seção Atômica.

Quanto a Ele, os seus problemas levaram-no não a passear no es¬paço, mas a procurar um psiquiatra. E a enfermeira do psiquiatra era pequena, morena e simpática. (Sendo a Psico & Med, dentro de certa medida, igual perante todas as organizações, constituía uma das raras exceções a proibição dos casamentos mistos.) Não foi preciso muito tempo para que ele tivesse trocado a almofada de ar do divã do psiquia¬tra pelos seios da enfermeira, como lugar de repouso para a sua cabeça jovem e perturbada.

—      De uma almofada de ar para outra almofada de ar — comentou Dinkuhl cinicamente. — Por acaso conheço a rapariga.

—      Desligo? — sugeriu Charles.

—      Não. Deixe estar. Torturar-me com estes programas foi sempre um dos meus passatempos favoritos. Quando penso no dinheiro que gastam para apresentar este tipo de coisas, sinto o estomago dar uma volta, mas ao mesmo tempo fico fascinado. A propósito da rapariga, a enfermeira. Tive-a a trabalhar no FK quando ela era atriz apenas nas horas vagas. Tem piada que, nessa altura, ela estava na P & M, como escriturária. Tinha qualidades. Dei-lhe um papel no Romeu e Julieta há uns anos.

—      Eu vi a peça — disse Charles. — Era boa. Aquela não era a ra¬pariga que fazia a Julieta?

—      Essa mesma. E agora olhe para ela — a trabalhar com peito postiço e uma voz melada que eu passei horas a tentar corrigir. E a fazer papéis destes.

—      É isso que o público quer.

—      Não! — suplicou Dinkuhl. — Não me faça trocar a minha habitual tristeza, cheia de apreensões, por um verdadeiro desespero, lembrando-me esse fato.

O écran desligou e passados poucos segundos surgiu o rosto de Ellecott. Parecia muito perturbado.

—      É necessário fazer algumas alterações. A partida terá lugar mais cedo do que esperávamos; praticamente de seguida. Instalem-se nas redes.

Charles abanou a cabeça.

—      Não sabemos montá-las.

—      Vou mandar aí alguém para...

Charles e Dinkuhl viram o rosto de Ellecott transfigurado, a boca aberta, os olhos fixos, momentos antes de a cabeça lhe cair sobre a se¬cretária. O écran mostrou-lhe o alto da cabeça, com uma careca incongruente ao centro.

—      Cá estamos outra vez — disse Dinkuhl.

—      Que é...

—      Não fale. Respire fundo. Continue. Com o astarate, quanto mais depressa se perdem os sentidos, mais leves são os efeitos pos¬teriores. Em que mãos teremos caído agora?

 

Depois de ter tido consciência da macieza dos lençóis e de um fundo de vozes abafadas, Charles acordou mais completamente para o som de uma voz familiar.

Ledbetter dizia:

—      Sim. Parece-me que está a voltar a si. Tem a neuraspirina à mão, enfermeira? Ajude-me a levantá-lo.

Quando ficou sentado, piscou os olhos perante o brilho forte da luz do sol através das paredes de plaspex. A enfermeira deu-lhe os compri¬midos de neuraspirina e ele engoliu-os com água. A dor começou a abrandar. Disse para Ledbetter:

—      Dinkuhl?

Ledbetter sorriu.

—      Está mesmo ao seu lado. Ainda não voltou a si. Mas parece-me que começa a mexer-se. Mais neuraspirina, enfermeira.

Dinkuhl olhou em volta.

—      Ainda não sei ... Ledbetter! Raios me partam!

Ledbetter disse:

—      Tenho de pedir desculpa aos dois por os ter narcotizado com astarate, sobretudo que foi a segunda vez em vinte e quatro horas. Mas não tinha outra alternativa. Era necessário agir depressa.

—      Estavam a preparar-se para sair antes da hora — disse Charles. — Isso deve querer dizer que sabiam que a brigada de salva¬mento ia a caminho.

—      Mas o que não sabiam era que já estava tão perto — disse Led¬better. — Até a notória eficiência da Interplanetária nem sempre con¬segue os seus fins. Nós conseguimos aproximar-nos e partir algumas cápsulas de astarate nas condutas de entrada de ar. E foi mesmo a tempo. Se estavam a preparar-se para descolar, deviam estar prestes a mudar para o controlo interno do ar.

Dinkuhl estava a olhar para Ledbetter com uma expressão de espanto. Ledbetter notou-o.

—      Que é que o preocupa?

Dinkuhl hesitou. Depois abanou a cabeça com um sorriso.

—      Acho que as suas doses de astarate me afetaram o cérebro. Que é que fizeram com o Ellecott e os outros todos?

—      Deixamo-los. Temos boas razões para não querer dar publi¬cidade ao caso. E também não nos parece que eles o queiram.

—      Pois não — disse Dinkuhl. — Não creio.

—      Onde é que estamos neste momento, afinal? — perguntou Charles.

—      Em Vermont. Numa terra chamada Pasquin.

—      A uma boa distância de Detroit — comentou Dinkuhl.

—      Você dormiu durante toda a viagem.

Charles estivera a olhar através das paredes de plaspex do quarto em que se encontravam. A vista deitava para um jardim ornamental, com um lago e, do lado esquerdo, em cima, o que parecia ser uma que¬da de água. Passada a sebe do jardim, o terreno formava um espaçoso vale, que evidenciava o controlo da Agricultura. Ao fundo havia colinas suaves.

—      Que espécie de estabelecimento é este? — perguntou Charles. — Não tem o toque da IQR.

—      Foi a mansão de um diretor. Imagino que gostará do sítio. Caçarolas de mármore na cozinha e escarradores de ouro na sala. Todas as chinesices. Pelo menos, espero que goste, porque vai ter de passar aqui algum tempo.

O alívio de Charles ao ver Ledbetter e ao encontrar-se novamente nas mãos da sua própria organização fizera-o esquecer as circunstân¬cias que tinham levado à sua captura pela Interplanetária. De repente, lembrou-se.

Disse suavemente:

—      Havia uma licença' de doença de seis meses que me era devida. Sinto que preciso agora mais dela do que nunca.

—      Cancelada — Ledbetter sorriu. — Vai ver que isto é uma verda¬deira Casa de Repouso. A propósito, chama-se «Casa de Campo».

Charles disse:

—      Tinha a impressão de que as licenças de doença não podiam ser canceladas. Regulamento... esqueci-me do número.

—      Eu sei. Mas há sempre um regulamento que anula outro. É uma questão acadêmica. Se o P & M lhe fizesse um novo teste, estou con¬vencido de que o achariam capaz de retomar o trabalho. Mas não me parece que tenhamos de nos preocupar com isso. Com esta história dos bilhetes para o Sul do Pacífico, você mesmo infringiu um ou dois regu-lamentos, além de ter mudado de cara e de cartão.

—      Isso é uma ameaça?

Ledbetter abanou a cabeça, num desespero fingido.

—      Pelo amor de Deus, nós não somos a Interplanetária. Você está novamente em casa, na IQR. Não são necessárias ameaças ou coisas semelhantes. Está com a sua própria gente.

Dinkuhl disse:

—      Desculpe-me que volte as costas a esta comovente cena familiar.

Dinkuhl levantou-se da cama e foi direito à parede de plaspex para ver melhor o local. Estava em camisa de noite e Charles viu que tam¬bém lhe tinham vestido uma enquanto estivera inconsciente.

Charles disse:

—      Não encontrei toda essa confiança e honestidade por parte da minha própria gente nos últimos tempos. Conseguiram bem convencer- -me de que o trabalho que Isaacssohn e Sarah estavam a fazer — o tra¬balho que eu devia continuar — não tinha qualquer importância. E de repente — catrapuz! Descubro que sou suficientemente importante para que me dêem astarate duas vezes no mesmo dia.

—      Pois bem, tentamos enganá-lo — disse Ledbetter. — Mas foi para seu próprio bem. Na nossa opinião, seria preferível para a sua paz de espírito acreditar que Sarah Cohn estava morta e que você devia apenas continuar um trabalho de rotina que os seus superiores eram de¬masiado estúpidos para apreciarem. Parecia-nos que você já mostrara ter o espírito de iniciativa mais do que suficiente ao ir à procura dela e não víamos como é que podíamos amarrá-lo ao seu trabalho — um tra¬balho fundamental — se pensasse que ainda poderia conseguir alguma coisa continuando a sua busca. Entretanto, claro, pusemos a Seção de Contacto à procura dela, do pai e de Isaacssohn.

—      Já têm alguma pista?

Ledbetter abanou a cabeça.

—      Não se esqueça de que foi apenas há dois ou três dias. Em pri¬meiro lugar, não tencionávamos dar-lhe licença de doença. Tinha de o deixar ir ao P & M para o agarrar, mas já tínhamos tudo preparado pa¬ra a licença ser cancelada. Essa dos bilhetes é que foi um trabalho bem feito!

O rosto de Ledbetter abriu-se num sorriso tênue.

Charles disse:

—      Estava a pensar há bocado como é que a Interplanetária tinha descoberto o meu rasto assim tão facilmente. O mesmo se aplica à IQR. Como é que conseguiu descobrir-me?

—      As secções de contacto — disse Ledbetter — nem sempre são tão incapazes como geralmente parecem. Quanto aos seus métodos, pa¬rece-me que há um regulamento que eu próprio tenho de tomar a sério — o Regulamento n.° 73: as informações pormenorizadas sobre as atividades das seções de contacto são estritamente secretas e não podem ser divulgadas, mesmo dentro da organização — nem a um superior ou a pedido deste. Não esqueça que tudo o que a Interplanetária faz, nós fazemos ainda melhor.

—      Está a surpreender-me — afirmou Dinkuhl do outro extremo do quarto.

Ledbetter olhou em direção a Dinkuhl. Este estava de costas vol¬tadas para eles. Ledbetter piscou o olho para Charles. Era um gesto destinado a transmitir-lhe várias coisas: bom humor, tolerância e cum¬plicidade contra um indivíduo que, apesar de tudo, não pertencia à IQR. Um tipo simpático, mas não da IQR. Era difícil não lhe corres¬ponder. Fazia parte de toda a modificação do ambiente, do alívio, não apenas de ter sido salvo e poupado à ida para Luna City, mas também, de forma mais subtil, de estar de volta: uma confirmação de que o mundo não era assim tão mau.

Charles sorriu-lhe.

Dinkuhl aproximou-se e sentou-se na borda da cama, com os joe¬lhos afastados por debaixo da camisa de noite.

—      Bom — comentou. — Já temos tudo cá fora? Charlie continua a ser o convidado que não se pode ir embora? Não pensa mandar-lhe instalar um pequeno laboratório nas traseiras?

Ledbetter e Charles riram-se. Ledbetter disse:

—      O que acontece ... é que o material ainda aqui não está, mas há aqui boas instalações para isso. O diretor costumava ter aí um modelo do antigo sistema de comboios. A luz é muito boa. Nós tratamos bem de si, Charles.

Era a primeira vez que Ledbetter o tratava pelo primeiro nome. Charles não estava disposto a pensar muito nisso, pois estava ainda de¬masiado espantado pelo fato de Ledbetter estar a tomar a sério aquilo que ele considerara como uma brincadeira de Dinkuhl.

Charles disse:

—      Está a falar a sério? Não vou voltar para San Miguel?

Ledbetter fez um gesto negativo.

—      Mas a idéia era eu voltar para lá.

—      Ora vejamos — disse Ledbetter. — Os acontecimentos recentes foram para nós uma espécie de choque. Naturalmente que nos tínha¬mos dado conta de que uma ou mais organizações tinham querido apo¬derar-se dos outros dois ao ponto de se darem a grandes trabalhos para o conseguirem. Em conseqüência disso, estávamos preparados para to¬mar conta de si com o maior cuidado. Mas agora compreendemos que temos de ser ainda mais cautelosos do que tínhamos pensado. San Mi¬guel está fora de questão. Seria o mesmo que voltar a pôr o mel na árvore, onde os ursos o tinham encontrado.

—      Assim, em vez de San Miguel, temos Pasquin. Desta vez, pare¬ce-nos que apagamos as nossas próprias pegadas. Mas caso contrário, estaremos bem guardados. E agora receio ter de ser um pouco desajei¬tado. O jardim e os terrenos à volta — tudo estará à sua disposição lo¬go que os nossos planos de segurança tenham sido totalmente fixados, mas isso só dentro de dois ou três dias. Até lá, gostaríamos que ficasse em casa.

Dinkuhl olhou para cima, enrugando a careca; tratava-se de um maneirismo que ele tinha explorado no FK, geralmente quando tomava uma atitude satírica em relação a qualquer coisa.

—      Parto do princípio que não estou muito longe da verdade quan¬do penso que tudo o que o senhor diz para Charlie — pelo menos, o que é negativo — se aplica também à minha pessoa.

Ledbetter acenou com a cabeça.

—      Assim é.

Dinkuhl disse:

—      Portanto, Charlie pode estar de regresso ao lar, mas eu continuo prisioneiro. O sítio é diferente, mas estou prisioneiro.

—      Podia ser pior — sugeriu Ledbetter. Dinkuhl olhou para ele. Podia ser Luna City. Má sorte sua, Dinkuhl. Você viu-se embrulhado numa coisa grande e não pode voltar-lhe as costas. — Deitou um olhar especulativo a Dinkuhl. — Você meteu-se nisto pelo seu pé.

Dinkuhl sorriu.

—      Touché! Está bem, nada de queixumes. Faz-me um pequeno favor?

—      Dentro dos limites do razoável e do possível.

—      Tenho um assistente. Não é nem um bocadinho o que eu esco¬lheria para meu sucessor, mas acho que ele é capaz de manter as coisas a andar enquanto... enquanto, como foi que disse? Se eu lhe der uma mensagem com algumas indicações elementares — indicações sobre as emissões e coisas assim — faz com que ela lhe chegue às mãos?

—      Não vejo porque não. Se for em inglês.

—      Está a sossegar o meu espírito ansioso — disse Dinkuhl. — Agora, que cumpri o meu dever, acho que posso descansar. Não tenho tarefas a cumprir, pois não? Direitos de prisioneiro?

—      Nada de tarefas. Não me importava de ter essa vida.

—      Só um pormenor. É tão insignificante que me embaraça fazer-lhe referência. É que eu sofro ligeiramente de satiríase.

Ledbetter sorriu.

—      Veremos o que podemos fazer.

Dinkuhl levantou a mão.

—      Não estou a pedir-lhe que prostitua as virgens da IQR. Este é o tipo de animal que trabalha para comer e vive contente assim. Basta que o pessoal não seja exclusivamente masculino e eu cá me arranjo.

—      Tranqüilize-se — disse Ledbetter. — Fique bem tranqüilo. Fa¬remos tudo o que pudermos para que a estada seja alegre e proveitosa, tanto para si como para Charles. A única diferença é que esperamos que Charles trabalhe um pouco de vez em quando.

—      Laços familiares — disse Dinkuhl. — Um vagabundo sem lar como eu não pode deixar de pensar neles, de vez em quando, com uma certa angústia. O Charlie, por exemplo, contempla agora com alegria a oportunidade de mostrar as suas habilidades, para glória da IQR e para ter direito a uma escarradeira de ouro. E ainda há pouco ele recusava um lugar de diretor.

—      Nós gostamos de começar pelo princípio — disse Ledbetter. — O mais importante é o trabalho que há a fazer. — Fitou Charles. — Depois haverá um cargo de diretor. Pode contar com isso. De mo¬mento temos de o manter aqui, sob vigilância, por razões que com¬preenderá tão bem como nós. Já foi promovido a gestor, mas não faria qualquer sentido nomeá-lo diretor enquanto não puder sê-lo de fato assim como de nome. Compreende?

Charles acenou afirmativamente. Era estranho ser informado com um ar tão natural de que o lugar de gestão do qual desistira por o julgar inacessível, havia mais de dez anos, lhe estava agora reservado. Estranho e sem importância.

Dinkuhl disse:

—      Seja qual for o aquário em que o metam, Charlie, faça o pos¬sível para vir à superfície. Mas tenha cuidado para não saltar fora.

As palavras soavam tão triviais como as de Dinkuhl em geral, mas Charles perguntava a si mesmo se a sua voz não era um pouco mais ás¬pera. De qualquer forma, não ia preocupar-se com isso.

Ledbetter disse:

—      Foi tudo muito precipitado e eu ainda tenho umas coisas a ar¬ranjar. Dispõem de quatro divisões e de um terraço que dá para o quar¬to ao lado deste. Mas isso é apenas para estarem á vontade, pois podem andar por toda a parte. A propósito, há um bar muito agradável do outro lado da casa. Talvez nos encontremos por lá daqui a bocado.

—      Se não for antes — sugeriu Dinkuhl.

—      Se precisarem de alguma coisa, toquem. As campainhas estão assinaladas, mas a que diz «2.a Criada de Quarto» trar-lhe-á a enfer¬meira, no caso de virem a sentir alguns efeitos da vossa dose dupla de astarate. — Deitou um olhar a Dinkuhl. — Ela também vai ficar aqui durante todo o tempo, mas como pertence ao P & M somos mais responsáveis por ela do que pelas outras.

Dinkuhl fez um aceno grave.

—      Tratá-la-ei com a deferência devida a um pires Ming, desde que consiga arranjar uma chávena de plástico para arrefecer o meu café.

—      E é tudo. — Voltando-se para Charles, Ledbetter disse: — Està- rnos a instalar o laboratório o mais rapidamente possível, mas vai levar alguns dias. Descanse, entretanto. — Ele fez uma ligeira pausa. — Espero que consiga descansar. Sabemos como está preo¬cupado com Sarah Cohn. Mas certamente compreende que, sozinho, não podia ter qualquer esperança de conseguir levá-la, não é verdade? Tudo o que podia fazer era pôr-se em risco de ser capturado — aliás, como aconteceu.

- Pelo menos sabe que a Secção de Contacto da 1QR está a tratar do assunto e, na minha opinião, é uma Secção de Contacto que se pode considerar tão boa como as melhores. Se alguém conseguir encontrá-la, são eles com certeza. E, entretanto, tem a satisfação de saber que, seja quem for que a capturou, estão a tratá-la o melhor possível. Ela é tão importante para eles como você para a Interplanetária.

Charles disse:

—      Acho que sim.

—      Mais um incentivo para quando o laboratório ficar pronto! Quanto mais cedo acabarmos com este assunto, mais depressa as coisas voltam à normalidade.

—      Bom — disse Dinkuhl —, tudo isto se uma Secção de Contacto que é tão boa como as melhores não apresentar a mercadoria antes disso.

—      Claro — disse Ledbetter, desviando os olhos do relógio que tinha no dedo para o rosto de Charles, incluindo-o assim naquele calor empresarial do qual Dinkuhl, apesar das suas muitas qualidades, se ti¬nha excluído. — Tenho de ir. Passem bem.

Quando ficaram sós, Charles e Dinkuhl puseram-se a explorar o resto da suite que lhes tinham distribuído. O compartimento onde tinham acordado era um dos quartos; havia um quarto semelhante na outra extremidade. Entre os dois quartos havia duas vastas divisões que podiam servir de sala de jantar e de sala de estar, mas que também po¬diam funcionar em conjunto. A sala de estar deitava para o terraço que Ledbetter tinha mencionado; a vista que se tinha dali era muito seme¬lhante à que tinham visto através das paredes plásticas do quarto, ape¬nas mais vasta, maior extensão. Estavam na ala leste da casa, que se en¬contrava agora banhada por uma vaga luz solar. De qualquer forma, os pequenos sóis artificiais estavam suspensos sobre as suas cabeças — ha¬via três desses sóis aguardando que fosse premido o botão que os ativaria.

Os móveis eram escandinavos do século XX, nos quartos; Luís XIV nos restantes aposentos; os primeiros tinham pelo menos a vantagem de acentuarem a graça e a elegância dos segundos. Na sala, até o écran de televisão colocado na parede estava coberto por um Aubusson quando não era utilizado; a tapeçaria deslizava para o lado enquanto as vál-vulas entravam em atividade. Dinkuhl experimentou o sistema, mas fez voltar rapidamente o Aubusson para o seu lugar assim que viu a boca de Loulou del Keith, distendida numa canção sensual. Aproxi¬mou-se do aparador dourado embutido na parede e arranjou bebidas para os dois.

—      Brande — disse Dinkuhl. Cheirou-o. — E não é nada mau. Sa¬be, Charlie, isto aqui é muito agradável. Se eu soubesse que você estava tão bem na IQR, era capaz de ter deitado para trás das costas os meus sentimentos antigestão e pedido que me aceitassem como membro. Agora já deve ser tarde de mais.

Charles disse:

—      Esquece-se da minha ilustre posição. Acho que em cima se está sempre bem.

—      Não neste caso. Dentro do sistema de gestão, isso significa ape¬nas maior acesso e facilidades para desenvolver o mau gosto. O tipo que arranjou esta casa deve ter sido uma exceção. Acho que me vou sentir aqui muito bem enquanto o bom do Ledbetter se sentir obrigado a reter-me.

Charles disse:

—      Há uma coisa no Ledbetter. Não notou nada? Ele parece que se especializou em pôr as pessoas à vontade. Mas eu nunca me sinto intei¬ramente à vontade com ele. Tenho a sensação de que há qualquer coisa mais por detrás de tudo o que ele diz com tanta simplicidade e fran¬queza. Não lhe dá a impressão de qualquer coisa assim?

Dinkuhl olhou-o, por momentos, com ar inquiridor, e depois abanou a cabeça.

—      Não posso dizer que tenha notado o quer que seja. Talvez seja por você não ter treino nas artes diplomáticas que o xarope lhe parece ter um sabor estranho. Além disso — você tem tendência para assumir uma atitude crítica em relação a tudo o que Ledbetter diz, porque já uma vez ele o levou à certa. Mas também explicou porque é que teve de fazer isso. Desta vez, tudo parece estar certo. Nem sequer lhe prometeu encontrar Sarah Cohn; podia ter inventado qualquer coisa para o amarrar. Limitou-se a dizer que a Secção de Contacto da IQR anda à procura dela e que essa secção é tão boa como as melhores. E isso não parece muito fantasista, se considerarmos a forma como nos ar¬rancaram do sítio onde estávamos.

Charles sorveu o brande. Habituara-se a contar com os iconoclamos de Dinkuhl e por isso ficou vagamente admirado por encontrar agora nele um adepto de Ledbetter e da IQR. Mas viu que não havia fundamento para tal surpresa. Aparte o tempo que se seguira imediata¬mente à sua captura pela Interplanetária, em que o seu espírito mergu-lhara num estado de confusão em que todos, incluindo Dinkuhl, lhe pareciam fazer parte das forças monstruosas e hostis que se empenhavam contra eles, Dinkuhl sempre lhe parecera um aliado honesto. E fa¬zia parte das funções de um aliado honesto discernir e aprovar a sua boa sorte, ao mesmo tempo que ajudava a lutar contra o que era mau.

Mesmo assim, havia qualquer coisa que não batia certo.

Charles disse:

—      Julgava-me a bomba que havia de atirar tudo pelos ares. Você não parece preocupado por ver a bomba novamente a postos.

—      E devia estar? — perguntou Dinkuhl. — Há mais do que uma bomba. Continue em frente e faça o que lhe dizem, Charlie. Eu sou o elemento destrutivo, mas desde que as coisas se destruam agradavelmente, não me importo de me instalar e saborear os prazeres humanos. E tenho o bom senso suficiente, à antiga, para ver que se está melhor neste pequeno caminho do que num que vá até Luna City. Lá em cima, fazem a sua própria bebida, com um concentrado. Dizem que não se parece com nenhuma das bebidas que há na Terra, o que acho razoável.

—      Então está tudo bem — disse Charles. — Desde que você tenha os seus prazeres humanos.

—      Descontraia-se — aconselhou Dinkuhl. — Você continua pri¬sioneiro. Isso faz-me pensar numa coisa. — Aproximou-se do painel de serviço que se encontrava instalado ao lado do painel de controlo da TV. — A 2.a criada de quarto saiu. Podíamos experimentar a l.a.

Carregou no botão e olhou ansiosamente para a porta. Charles observou-o divertido.

A rapariga que se apresentou era jovem, de um louro magnífico e de uma altura acima da média, com uma figura a condizer com a al¬tura; vestia um uniforme de bom corte, nas cores verde e dourada da IQR e usava o emblema da IQR.

Dirigiu-se a Charles:

—      Às suas ordens, Gestor.

Charles abanou a cabeça em direção de Dinkuhl.

—      Ele está mais necessitado do que eu. De qualquer forma, foi ele que tocou.

Dinkuhl olhava para ela com franca admiração.

—      Estou a tentar lembrar-me do que é que eu queria. Minha que¬rida, você esvaziou-me a cabeça por completo.

Ela sorriu com ar pensativo.

—      Parece-me que a amnésia pertence à secção de Lydia — a Lydia é a enfermeira. É o botão da 2.a criada de quarto. Se quiser, eu posso chamá-la.

—      Não se vá embora — disse Dinkuhl. — Estou a começar a recompor-me. Como é que disse que se chamava?

—      Não disse. Myra.

— Myra, sou um seu admirador. Trate-me por Hiram, Myra.

Pouco a pouco, durante os dias que se seguiram, Charles começou a sentir-se à vontade, tal como acontecera a Dinkuhl logo de início. A mansão era espaçosa e estava bem instalada e o ambiente não deno¬tava aquela consciência da posição, que Charles aceitara até ali como fazendo parte da ordem natural da vida dentro do sistema de gestão. Embora, à exceção de Ledbetter e dele próprio, ninguém parecesse ter um lugar superior ao de assistente e a maioria nem sequer pertencesse a esse nível, não mostravam nas suas atitudes qualquer deferência espe¬cial. Ledbetter, tal como Charles e Dinkuhl, era tratado de uma forma que tornava a diferença de posição relativamente secundária e que con-tribuía para criar uma espécie de ambiente de férias.

Charles sabia que Ledbetter funcionava melhor num ambiente des¬te tipo — lembrava-se de Paulton e da sua primeira visita a Ledbetter, que parecia agora tão remota. Mas Paulton era funcionário e assistente pessoal de Ledbetter. O mais espantoso não era que Ledbetter tolerasse ou mesmo encorajasse este tipo de atitude, mas que as próprias pessoas fossem capazes de a adotar. Talvez Saginaw não fosse típico e, afinal de contas, a sua experiência confinara-se quase exclusivamente a Saginaw.

Fossem quais fossem as razões, era tudo muito agradável. O projeto em si — todos pareciam saber que ia ser instalado ali um labora¬tório do qual se esperava que, com a ajuda de Charles, saíssem grandes coisas — era tratado com humor, mas de forma alguma de uma manei¬ra descuidada. Charles passava uma hora todas as manhãs a verificar a instalação do laboratório, mas tratava-se sobretudo de fazer sugestões quanto à disposição das coisas e de aprovar o trabalho do dia anterior. As coisas encaixavam nos lugares com uma suavidade e uma eficiência notáveis. Uma boa parte do resto do dia era passada no bar, na ala oeste, que era de fato muito bom, ou na biblioteca, que lhe ficava ao lado. Para uma pessoa que se habituara a associar o termo biblioteca a uma coleção de duas ou três dúzias de volumes esfarrapados, havia qualquer coisa de assustador numa sala forrada de prateleiras apinhadas de livros, na sua maior parte em ótimo estado. Duas das suas primeiras descobertas foram uma primeira edição de Shakespeare, em pele, e Deixe o Seu Espírito em Paz, de Thurber, que Marantovich assi¬nalava como «Provavelmente perdido» na sua bibliografia e apreciação crítica.

Dinkuhl aceitava e compartilhava do seu entusiasmo, mas Dinkuhl era igualmente consumido por um outro entusiasmo. Myra era apenas uma das várias e atraentes raparigas que havia na casa, embora apare¬cesse mais vezes que as outras. Era curioso que todas pertenciam ao mesmo tipo físico. Com uma única exceção, todas eram louras e altas e com uma maneira de ser extrovertida e afável. Foi Dinkuhl que cha¬mou a atenção de Charles para esse fato, numa noite em que estavam no bar a beber cerveja, antes do jantar.

—      Louras e altas, altas e louras, o meu tipo mais que preferido — comentou. — Tennyson, suponho.

Charles olhou em volta. Susie estava a limpar um copo por detrás do bar. Anthea, igualmente ligada aos serviços de restaurante, estava naquele momento a beber um dry Martini e a puxar brilho às unhas, pensou nas outras.

—      Tem piada — disse. — Parece haver uma certa coincidência. Exceto...

Dinkuhl olhou para ele. — Exceto Lydia. Que tipo diria você que é o dela?

Charles já pensara nisso antes. Fisicamente Lydia parecia-se muito com Sarah — morena, não muito alta, um pouco forte. Também pa¬recia um pouco tímida; mostrava-se cordial, mas tinha relutância em encetar uma conversa. Não era o tipo de timidez nervosa que Sarah mostrara a princípio, mas era o bastante para a fazer parecer diferente de todas as outras.

Charles disse:

—      Faz-me lembrar... mas você não pode saber. Não conheceu Sarah.

—      Junte mais essa à minha notável intuição. Quando vi uma parada de louras tão pomposas, pensei duas coisas. A segunda foi: es¬colhidas a dedo, porquê? Uma das razões poderia ser para fazer sobres¬sair uma pessoa totalmente diferente e Ledbetter tinha-se dado ao tra¬balho de me afastar de uma determinada pista. A resposta é portanto Lydia. — Dinkuhl encolheu os ombros. — Visto que tantas outras coisas foram postas aqui para seu deleite e você pertence ao tipo monógamo, a dedução era fácil.

—      Diabos me levem. Eles com certeza que não acreditaram nisso?

—      Estou convencido de que foi proposta do P & M. Tudo o indica. Não se esqueça da pequena explicação behaviorista de Stenner a respeito do seu comportamento. Estão convencidos de que as pessoas funcionam assim. E não se enganam completamente. Lydia é uma ra¬pariga simpática. Se esta situação se prolongar, você acabará por ter cada vez mais consciência disso. Especialmente ao ver-me cabriolar com todas essas louras, que também são boas raparigas, mas de um tipo acentuadamente diferente.

—      Acha que ela sabe disso — a Lydia?

Dinkuhl sacudiu a cabeça.

—      Já lhe disse que ela é boa rapariga.

—      E isso — isso quer dizer que eles não estão à procura de Sarah?

—      Não se preocupe. Eles querem encontrar Sarah e Isaacssohn. Entretanto querem que você se sinta feliz. Ainda não pensou que — supondo que os três estejam divididos por três organizações diferentes — tudo depende provavelmente de quem souber aproveitar melhor o seu gênio. Nesse aspecto, a IQR tem uma vantagem sobre as outras — a sua devoção natural para com a organização. É provável que você lance ombros à tarefa. Por outro lado, é discutível se os deten¬tores de Isaacssohn ou de Sarah conseguirão os mesmos resultados. A Interplanetária levaria bastante tempo a instalá-lo naquele laborató¬rio de Luna City.

—      Bastante tempo — Charles ficou pensativo por momentos. — Ledbetter deve ter trabalhado depressa para arranjar tudo isto.

—      Ledbetter — comentou Dinkuhl — merece a nossa admiração.

Depois da conversa com Dinkuhl, era-lhe impossível deixar de pres¬tar mais atenção a Lydia. Era um fato que, comparada com a atitude um tanto fácil das outras mulheres que havia por lá, a enfermeira pare¬cia-lhe bastante refrescante. Mas o estreitar das relações não acentuou a semelhança com Sarah; antes pelo contrário. Havia nela uma certa suavidade que não era desagradável, mas que em nada se assemelhava à vivacidade de Sarah. Divertia-o verificar como Ledbetter, ocasional, mas cuidadosamente, incentivava a amizade entre ambos.

Uma tarde, Charles estivera sentado com Ledbetter no terraço ajar¬dinado; era um autêntico tour de force, um jardim tropical na Nova In¬glaterra, em Novembro. Por cima das suas cabeças, mais de uma dúzia de pequenos sóis deixavam cair a sua luz e calor sobre as plantas luxu¬riantes que rodeavam o lago central, no qual peixes raros do Recife de Barrier nadavam sobre corais condizentes. Era um local muito apre¬ciado pelas pessoas que estavam na Casa de Campo, mas naquele dia apenas se encontravam ali Charles e Ledbetter. E Ledbetter, depois de tagarelar um bocado, levantou-se e saiu; era esperado em Detroit para controlar o despacho do novo eletrobombardeador.

Uma vez sozinho, Charles deitou-se para trás no seu assento de Ve¬rão, com almofadas de ar, e observou as carregadas nuvens de Outono que deslizavam bem alto, acima dos pequenos sóis que forneciam este calor exótico sob o qual ele descansava. Estava em calção, mas não sen¬tia a coragem suficiente para saltar para dentro do lago. Perguntava a si próprio se iria chover. Também não fazia diferença; havia um servo-mecanismo preparado para reagir às primeiras gotas e ativar as duas metades da concha de plaspex que saíam de cada um dos lados da parte superior da casa, juntando-se sobre as suas cabeças. Charles nunca as¬sistira a essa operação. Nessa tarde parecia-lhe possível que tal viesse a acontecer. Encarava com entusiasmo essa eventualidade, com o sentimento de antecipação de um rapazinho de escola perante uma novidade mecânica, quando ouviu o bater de sapatos femininos que seguiam pelo caminho em direcção a ele. Ergueu-se sobre um cotovelo. Era Lydia.

Deu-lhe lugar no seu assento de Verão, ao mesmo tempo que o empurrava para a frente, para uma posição mais direita e respeitável. Ela, no entanto, continuou de pé. Trazia ao ombro a sua malinha do P & M.

—      George disse-me que você precisava de mim — disse ela.

Já tinha aprendido a chamar «George» a Ledbetter, embora isso não lhe fosse fácil. Os outros pareciam fazê-lo naturalmente.

Charles disse, incrédulo:

—      George disse isso?

Lydia respondeu com ar afetado:

—      Disse que você estava muito cansado; falou num reconstituinte vitamínico. Tenho aqui alguns no meu saco.

Charles começava a perceber. Disse gravemente:

—      Ele percebeu-me mal. Era preguiça e não fadiga. Mas pode ajudar-me na mesma, creio. Preciso de alguém que me encoraje a entregar-me a qualquer espécie de atividade física. Se não tem nada de melhor a fazer, podia levar-me até ao lago.

Ela hesitou e depois sorriu.

—      Vou buscar o fato de banho.

Charles apontou para o cubo de plástico, cuidadosamente Camuflado pelas palmeiras.

—      Não vale a pena. Tem ali a máquina de vestir.

—      Nunca experimentei.

—      Então é uma boa ocasião para isso.

Ela deixou-se convencer e ele viu-a desaparecer por detrás das pal¬meiras. Tentara o engenho alguns dias antes, mas chegara à conclusão de que preferia os fatos de banho vulgares. Tratava-se de um aparelho dispendioso, pelo que não era de admirar que não o tivesse encontrado ainda, embora fosse apresentado freqüentemente nos programas de natação da televisão.

A pessoa que desejava ser vestida punha-se, despida, em cima de um pequeno tapete, a meio do cubículo. Braços mecânicos calibrados aproximavam-se do corpo para verificar as medidas. Depois os braços aplicadores seguiam o trajeto indicado, fazendo a aplicação de um plástico opaco que se ajustava ao corpo e secava em contacto com o mesmo. Era possível fazer um ajustamento para diferentes compri¬mentos, assim como para diferentes cores e texturas, dentro de uma gama limitada. Depois de usado, o fato de banho plástico era rasgado ao longo de uma costura mais frágil na parte dianteira e deitado fora.

A sua popularidade não era grande. A maior parte dos homens, tal como Charles, achava o processo desagradável. Algumas mulheres fingiam ser da mesma opinião ou, mais sutilmente, queixavam-se da fraca escolha oferecida. Outra razão possível era a de que uma tal indumentária apenas favorecia uma figura naturalmente atraente; o re¬sultado era impiedoso para as menos atraentes.

Charles ficou satisfeito ao constatar que Lydia pertencia indubita¬velmente à primeira categoria. Escolhera uma textura sedosa e uma cor vermelho-viva que lhe fazia sobressair o cabelo escuro e a pele um tanto morena. Era também evidente que seguira as instruções dirigidas às mulheres no sentido de cruzarem as mãos atrás da cabeça e esticarem esta para trás. No caso dela, a precaução era desnecessária, mas esse mesmo desconhecimento da sua perfeição física era agradável e pouco vulgar. Caminhou junto ao lago e veio colocar-se à frente de Charles, esperando os seus comentários.

—      Muito bonito — Fica-lhe bem.

—      Acha? — Ela estremeceu. — É uma sensação horrível — aque¬les braços de borracha! Não me parece que volte a fazê-lo.

Charles acenou com a cabeça.

—      Uma vez basta, como experiência. Acho que se tem sempre um certo receio que a coisa enlouqueça e nos envolva num imenso casulo de plástico, como uma aranha a uma mosca.

Ela riu.

—      Então? Pronto para ser levado?

Mergulharam no lago, assustando um pequeno cardume de peixes com as cores do arco-íris, mais ou menos do tamanho de uma truta e obrigando-os a fugir para o outro lado. Perseguiram-nos durante al¬gum tempo, mas logo os perderam. A água era quente e leve. Era muito agradável andar por ali a nadar preguiçosamente com Lydia; tão agradável que ele não pôde deixar de imaginar Sarah, numa postura seme¬lhante à de uma deusa, olhando-os cinicamente divertida. Também lhe ocorreu que, se a IQR estava a tentar adulá-lo dessa forma, era igual¬mente provável que a organização que detinha Sarah estivesse a rodeá-la de jovens Adônis — e provavelmente, uma vez que não tinham qualquer razão para suspeitar de uma afeição que, no caso dele se tor¬nara tão notória, Adônis de tipo israelita.

Além disso, ele não tinha qualquer razão para pensar que Sarah compartilhasse de alguma forma os seus sentimentos. Sendo ela uma pessoa fundamentalmente honesta, ele pudera ver que não lhe era desagradável — que ela chegara mesmo ao ponto de gostar dele. Mas daí a estar apaixonada ia uma grande distância. Havia boas hipóteses de Sarah, cujo antagonismo ao sistema de gestão era menos pronun¬ciado que o de Dinkuhl, pela simples razão de estar menos envolvida, ter aceitado com tolerância e serenidade o seu novo ambiente, fosse ele qual fosse. Neste caso, um dos Adônis podia bem ter tomado o lugar dele. Sorriu com a idéia. Pelo menos, ficara a saber que, na sua quali¬dade de israelita, ela não aprovava a promiscuidade!

Lydia içou-se para as pedras achatadas que formavam uma ilha no meio do lago e ele seguiu-a. Chegava-se junto das pedras através de um repuxo em forma de cúpula, vindo de uma fonte que lançava as suas gotas a uma boa distância. Já em cima das pedras, olhando para cima, via-se o pequeno arco-íris que se formava entre o repuxo e os pequenos sóis. Os raios destes, filtrados através desta cortina em movimento, eram temperados, mas ainda assim quentes.

Charles deitou-se de costas. Lydia estava sentada numa pedra, per¬to dele. A água rolava em grandes gotas da superfície de plástico que a cobria.

Charles disse com voz sonolenta:

—      Muito melhor que Luna City. Julgo que a água lá é racionada.

A fonte sussurrava sonolenta por cima das suas cabeças. Um gran¬de peixe azul pareceu cheirar as pedras e depois, num salto, fugiu para os recônditos do lago.

Lydia disse:

—      Uma pessoa sente-se isolada, aqui. Não sente isso, Charles?

A voz dela era agradavelmente modulada; sem o vigor da de Sarah, mas também sem deixar a impressão, como acontecia com Sarah, de ter uma aresta cortante por baixo da superfície.

—      Então estamos isolados — disse Charles. — Isolados do mundo da gestão, aqui no telhado da Casa de Campo. É tudo muito paradoxal.

—      É a fonte — disse ela. — E suponho que é o som, mais do que qualquer outra coisa. Charles, quando é que você começa o seu traba¬lho no laboratório?

—      Em breve. O resto das coisas vai chegar dentro de dias.

—      O trabalho que você vai fazer é importante?

—      Ao que parece, todos pensam que sim. Bom, suponho que é.

Houve alguns momentos de silêncio. Charles bateu com a mão nas pedras lisas sobre as quais estava deitado.

—      Venha para aqui — disse. — É mais confortável do que estar sentada aí em cima.

Lídia deixou-se escorregar sobre as pedras. Deitou-se ao lado dele de barriga para baixo, com a cabeça pousada nos cotovelos. Os seus corpos quase se tocavam. Ela inclinou a cabeça na direção dele; numa atitude que ele teria classificado de provocadora se o rosto dela não es¬tivesse tão sério.

Ela disse:

—      Queria dizer-lhe...

Interrompeu o que estava a dizer e ambos olharam para cima. A fonte parara abruptamente. O silêncio que veio substituir o seu mur¬múrio ligou-os imediatamente ao resto do lago, ao jardim, à casa. Charles levantou-se.

—      Tem piada — disse.

Subiu à parte de cima da fonte, para ver se a saída da água tinha si¬do bloqueada por alguma coisa, mas não encontrou nada. Quando co¬meçou a descer, ouviu chamar do outro lado do lago. Ledbetter vinha a sair do elevador que levava ao terraço. Tinha o calção de banho pendu¬rado num dos braços; acenou-lhes alegremente e desapareceu num cubo plástico.

Charles disse para Lydia:

—      Que é que me queria dizer — antes que o George venha?

O sorriso dela era enigmático, desgostoso.

—      Nada de importante, palavra. Que eu posso ter de me ir embora dentro de pouco tempo.

Ele disse, surpreendido:

—      Embora? Porquê?

—      Diz-se que vão mandar recolher os membros do P & M — não se esqueça que eu não pertenço à IQR.

Charles olhou para ela; estava sentada, muito decorativa, na orla da ilha, com os pés mergulhados na água de um verde-azulado-claro.

—      Espero que não. — Viu Ledbetter sair do cubo e atirar-se de barriga para a água. Pensando no pequeno esquema de psicologia aplicada concebido por Ledbetter, sorriu para si próprio. — Não me parece que isso venha a acontecer.

Ledbetter veio em direção á ilha e saltou para lá, num movimento rápido.

Disse:

—      Não se importam que lhes faça companhia? Ao que parece, De¬troit está posto de lado, por hoje. Entraram em contacto comigo para me dizerem que o embarque foi suspenso. — Sorriu. — As tra¬palhadas habituais da Telecom, julgo eu.

Lydia continuava sentada, olhando para a água. Charles disse:

—      Este aparelhômetro tem lugar para mais de uma dúzia. Gosta do plastifato de Lydia?

Ledbetter olhou-a especulativamente.

—      Não ficaria admirado se me dissessem que ela tinha rebentado meia dúzia de fusíveis. Lydia, meu amor, você estava a ser requisitada pelos écrans antes de eu vir para aqui. Não creio que fosse importante.

Lydia pôs-se de pé rapidamente.

—      Vou lá saber.

Charles disse:

—      Se fosse alguma coisa de importante, teria a indicação de «Urgente».

Ela sorriu-lhe.

—      Também acho. Mas eu sou uma pateta com as telechamadas; lo¬go que sei que está uma à espera, fico preocupada. Até logo aos dois.

Mergulhou e nadou fortemente para a margem. Os dois homens observaram-na.

Charles disse:

—      Tem piada. A fonte parou. Sempre pensei que as suas enge¬nhocas estivessem mais à prova de acidentes.

—      É difícil fazer com que os aparelhos sejam à prova de acidentes — disse Ledbetter. — Pode ser que eles o tenham feito parar para mudar o óleo das bombas principais. Nesse caso, deve recomeçar dentro de pouco.

O fino repuxo voltou a saltar no momento em que Lydia saiu do la¬go e começou a andar em direção ao cubo, onde deixara a roupa.

—      Aí o tem — disse Ledbetter em tom ligeiro.

Foi a última vez que Charles viu Lydia. Ledbetter referiu-se à rapa¬riga quando iam tomar o pequeno-almoço, no dia seguinte. Barrou o pão com o Novo Pequeno-Almoço Especial da Hidropônica e disse:

—      Perdemos a Lydia, é uma pena.

Dinkuhl, que estava a coçar uma perna, olhou para cima:

—      Perdemos como?

—      Foi chamada. Não me perguntem porquê — o P & M faz isso de vez em quando. Não tínhamos maneira de a deter e além disso ela esta¬va aqui apenas no caso de algum de vós ter complicações provocadas pelo astarate.

—      É muito amável em ter pensado também em mim — comentou Dinkuhl.

Charles disse:

—      Ontem ela falou-me na possibilidade de vir a ser chamada.

—      Sim, corria por aí.

—      Eu disse-lhe que isso não iria avante. — Ledbetter olhou-o com ar inquiridor. — Pensei que o meu... o meu conforto seria posto em primeiro lugar. Parece que me enganei.

Ledbetter riu-se.

—      Detectou o nosso pequeno truque? Também me pareceu que sim, mas que não tinha resultado. Isso também ajudou a que Lydia se tornasse dispensável, embora todos lamentássemos ter de vê-la partir. Foi só uma idéia — o P & M perguntou se estávamos interessados nalgum tipo especial de enfermeira — parece que há agora uma nova tendência para escolher enfermeiras que se coadunem com as necessidades psicológicas do doente. Pensei em si e lembrei-me que seria diver¬tido acrescentar todas as outras raparigas para dar o tom. Acredite-me, foi uma brincadeira inocente. E nunca esperei que resultasse.

Dinkuhl disse:

—      Há uma coisa que me parece muito estranha. Com certeza não permitiu que a rapariga regressasse à sua organização levando todos os detalhes das instalações? Não que ela me pareça do tipo linguareiro, mas, depois de todas as precauções tomadas, parece um tanto disparatado.

—      Desmemorização hipnótica. Suprimimos uma semana da sua vida. Claro que recebeu bom dinheiro por isso.

—      E ela concordou.

—      Só se pode fazer isso voluntariamente. Ela assinou o acordo e recebeu a hipnose preliminar antes de vir para aqui. De outra maneira não a teríamos trazido.

—      Retiro a minha suspeita infundada — disse Dinkuhl — de que a IQR pudesse ter escorregado num ponto tão elementar como este. A ciência é uma coisa maravilhosa! Como é fácil e simples apagar-nos a todos desse universo que é o consciente de Lydia. Snip, snip, e já nem sequer somos fantasmas. Somos apenas estranhos.

A noticia deixou Charles moderadamente desgostoso; gostava da rapariga e parecia-lhe que, com a continuação, esse sentimento se poderia tornar mais profundo e mais forte. Assim, sentia que fora afas¬tada... uma possível fonte de tentação. No entanto, era um tanto desconcertante, como disse Dinkuhl, uma pessoa pensar que tinha sido apagada da memória de alguém que tinha conhecido.

Disse num tom casual:

—      Penso que ela nem sequer saberá que usou a máquina plástica de vestir — disse que nunca tinha usado nenhuma antes.

—      Nem tão-pouco como lhe ficava bem — disse Ledbetter. — A propósito, tenho boas notícias para os dois esta manhã.

—      Espero que não sejam mais louras? — comentou Dinkuhl. — As coisas boas também fartam — mais tarde ou mais cedo.

—      Já podem utilizar o jardim e os terrenos. A barreira está com¬pleta. Dispõem agora de vinte ou trinta hectares para vaguearem. Não ê uma verdadeira liberdade, mas é o melhor que se pode arranjar.

Dinkuhl disse:

—      Não somos obrigados a utilizá-los?

—      Claro que não.

Aliviado, Dinkuhl disse:

—      Tenho muito com que me ocupar aqui mesmo e, além disso, não sou exatamente um freqüentador de jardins.

—      A mim agrada-me a mudança, de qualquer forma — disse Charles. — Sou capaz de dar um passeio a seguir ao pequeno-almoço.

—      Acho bem — disse Ledbetter, cordial. — Era capaz de lhe fazer companhia, mas chegou finalmente a altura de ir a Detroit.

—      O que faz ser passageiro numa excursão destas — comentou Dinkuhl.

Nessa manhã Charles foi passear sozinho; e na manhã seguinte — Ledbetter não falou em lhe fazer companhia. Agradava-lhe a solidão e também poder afastar-se um bocado da Casa de Campo, com o seu aquecimento central e o jardim subtropical no telhado. Lá fora, o tempo ficara de um frio intenso e era estimulante passear pelo jardim exterior e ir até à floresta esparsa que ficava mais além. As ár¬vores de folha caduca estavam despidas, claro, mas havia uma cintura de verdura a norte e a leste, donde a casa não era visível.

O caminho principal que partia da casa atravessava a verdura, levando a um pesado portão instalado na vedação que, fortemente re¬forçada e afastada de qualquer vegetação numa área de cinco jardas de cada lado, circundava o perímetro do terreno. Charles deteve-se alguns momentos olhando curiosamente para o portão. Era um posto de controlo; um guarda, usando o uniforme da IQR segurava a sua espin¬garda Klaberg no interior de uma pequena guarita com teto de plástico, em forma de balão. O pequeno bocal de plástico, logo acima do sítio onde a guarita era mais estreita, devia ser o espalhador de astarate: bastava um leve toque do dedo do guarda para que a área ficasse coberta em poucos segundos.

Era uma proteção muito adequada. Teoricamente, qualquer pessoa podia disparar contra o guarda através do plástico, mas isso acionava um sistema de alarme, fazendo eclodir o astarate, ao mesmo tempo que um giroplano vinha de casa, quase com a mesma veloci¬dade. A situação seria desesperante para alguém que estivesse ansioso por fugir e Charles sentia-se contente por não se encontrar nesse estado de espírito.

Viu o guarda ser rendido. O giroplano deslizou lateralmente pelos ares, partindo do telhado da casa e desceu junto do portão, do lado de dentro. O novo guarda saiu e, depois de trocarem uma ou duas pala¬vras, o que o precedera tomou o seu lugar. O giroplano voltou a subir no ar invernoso e úmido. Simples, mas eficaz. Charles continuou a andar sobre as agulhas de pinheiro que lhe abafavam os passos.

Na terceira manhã, quando chegou ao extremo de uma clareira no meio dos pinheiros, ouviu um assobio camuflado. Voltou-se rapida¬mente. Dinkuhl estava de pé ao lado de uma árvore, observando-o. Acenou para Charles.

Charles disse:

—      A brincar aos índios?

Dinkuhl, em vez de responder diretamente, olhou para o pesado relógio que usava no pulso.

Disse:

—      Meu caro Charles, temos pouco tempo. Venha cá e sente-se.

Havia uma árvore caída. Instalaram-se e Dinkuhl puxou dos cigar¬ros. Acenderam-nos. O fumo subiu, formando plumas direitas; fazia frio, mas não havia vento.

Dinkuhl disse:

—      Sente-se feliz aqui?

—      Razoavelmente. — Charles fitou-o. — Você parece que sim.

—      Qual é a diferença entre estar detido aqui e estar detido pela Interplanetária — deixando de lado Luna City, por agora?

—      Isso é deixar muita coisa de lado. É muito diferente.

A diferença mais importante — a de estar com a sua própria organização — era um bocado difícil de explicar abertamente a Dinkuhl.

Dinkuhl olhou para ele, sorrindo.

—      Tal como o fato de estar no seio das Indústrias Químicas Reunidas?

—      Também não posso pôr isso de parte. É aquilo a que estou habituado.

—      E que é que o faz sentir tão confiante de que estas instalações pertencem à IQR? O fato de usarem os emblemas?

Charles olhou para ele com enorme espanto. Compreendia o que Dinkuhl queria dizer, mas era uma idéia tão fantástica que mal cabia nos limites da especulação razoável.

Disse sensatamente:

—      Está a esquecer-se de uma coisa, Hiram. Ledbetter foi o meu gestor em Detroit.

Dinkuhl acenou afirmativamente.

—      Para o seu trabalho no laboratório aqui — você disse que ia pe¬dir a Ledbetter que mandasse vir o seu antigo assistente de Saginaw. Chegou a pedir-lhe? — Charles fez um gesto de assentimento. — E...?

—      Ele não estava disponível, o que é bastante aceitável. Ledbetter disse-me que têm dois jovens muito bons que vão mandar vir da Europa.

—      Portanto, excluindo Ledbetter, não há aqui mais ninguém que você reconheça?

—      Também seria pouco provável que houvesse. A maior parte de¬les pertence à Secção de Contacto.

Dinkuhl franziu o alto da cabeça.

—      Deixemos isso. Onde é que lhe parecia que estávamos antes de Ledbetter e os seus homens fazerem a sua operação de salvamento?

Fosse qual fosse a idéia louca que se apossara de Dinkuhl, a manei¬ra mais sensata de a enfrentar, admitiu Charles, era ir ao seu encontro com lógica e sensatez. Disse:

—      Numa das naves da Interplanetária — cargueiro tipo 7, na sua opinião —, nos fossos de Toledo.

Dinkuhl sorriu.

—      Uma Seção de Contacto famosa, como disse Ledbetter. Capa/ de forçar a entrada nos fossos de Toledo, no momento em que a Inter¬planetária tinha a sua possessão mais valiosa arrumada naquele local, num cargueiro. Mas ainda não foi isso que originou as minhas suspei¬tas. Eu disse-lhe, quando me juntei a si naquela pretensa messe, que não devíamos falar de coisas importantes. Um dos pontos mais impor¬tantes era que o cargueiro não estava certo nalguns detalhes. Coisas pequenas. Tinha mesas embutidas, mas faltavam os cinzeiros embutidos; tive de apagar o cigarro no painel de controle. Os corredores não apre¬sentavam as marcas do desgaste que lhes deixa o uso em queda livre — as marcas apareciam apenas no pavimento. Ainda há outra coisa, mas já lá vamos.

De qualquer maneira não havia mais nada a fazer senão aguardar os acontecimentos. E eles produziram-se. As Indústrias Químicas Reu¬nidas lançam-se na operação de salvamento. A Virtude triunfante.

Charles disse:

—      Isso parece-me uma perfeita loucura. Espero que não leve a mal que lho diga. Porque é que a IQR — ou seja lá quem for que você pen¬sa que se está a fazer passar pela IQR — se havia de meter numa coisa tão complicada? Então e a oferta que me fez a Interplanetária? Eu po¬dia ter aceitado. E depois?

—      Isso espantou-me um bocado — admitiu Dinkuhl. — Perguntei a mim mesmo como é que eles iam imitar uma descolagem, o vôo espa¬cial e as condições lunares. Não é impossível, mas um bocado compli¬cado. Mas eles também não precisavam de o fazer. Se você tivesse acei¬tado a oferta, não havia nada que os impedisse de mudar de opinião e deixá-lo ficar aqui na Terra; não é muito difícil arranjar boas razões para isso. Claro que nunca se pensou que você aceitasse; a oferta foi feita simplesmente por uma questão de efeito psicológico, para ter a certeza de que você iria sentir a gratidão devida por ter sido salvo. Mes¬mo que tivesse aceitado, o salvamento podia muito bem ter sido feito da mesma forma e pelas mesmas razões.

Quanto às dificuldades, as pessoas que organizaram isto não eram totalmente destituídas de espírito artístico. Têm-no classificado como leal à sua organização e incapaz de se sentir verdadeiramente à vontade sob coação por parte de outra entidade. Ao mesmo tempo, você dera sinais de iniciativa e de um certo espírito de rebelião, portanto se lhe vestissem logo as roupas da IQR e o pusessem sob vigilância, para seu próprio bem, você podia ter reagido mal. A sua solução foi muito boa: fazê-lo capturar — tal como pensou — pela Interplanetária e depois libertar — como parecia — pelas Químicas Reunidas. A lealdade e a gratidão aumentam e a rebeldia afrouxa.

Julgando encontrar uma falha, Charles disse:

—      O fato de a nave não ser autêntica pode mostrar que não foi a Interplanetária que nos capturou em primeiro lugar, mas, por outro la¬do, não implica que não tenha sido a IQR...

Parou. Dinkuhl disse:

—      Quando acordei e vi Ledbetter fiquei perplexo. Quando ele falou em nos ter salvo das mãos da Interplanetária compreendi que o jogo continuava. Se o negócio fosse genuíno, ele teria mencionado o nome dos verdadeiros captores.

—      E se todo o esquema que você delineou tivesse sido planeado pe¬la IQR, pelas razões que você apontou e que seriam igualmente válidas nesse caso?

—      A sua organização — disse Dinkuhl — era bastante simplória para um sistema de gestão. De qualquer forma, acontece que eu sei que não estamos nas mãos da IQR. Já voltamos à questão. Quando começou a acordar, na Casa de Campo, não se sentia muito tranqüilo, pois não?

Charles disse:

—      Nada de grave. Se bem me lembro, foi você quem me fez sentir novamente tranqüilo.

—      Estou bastante satisfeito com a forma como tenho tratado deste caso. — Dinkuhl sorriu. — Eu também tenho a minha vaidade, embo¬ra seja difícil percebê-lo. Mas também tive sorte. O fato de eu ter tido tanto cuidado em o prevenir de que as paredes tinham olhos e ouvidos, atuou a meu favor quando eu tive o cuidado de não lhe fazer qualquer aviso depois de Ledbetter e os seus homens nos apanharem. Tudo quanto eu lhe disse era destinado a produzir um determinado efeito no público. Mesmo quando eu lhe confiei a pequena estratégia de Lydia. O homem que não põe problemas é aquele que se julga capaz de anali¬sar as pequenas coisas. Tal como a nave espacial que era um cargueiro 7 e Lydia a jóia especialmente colocada no meio das outras. Eles grava¬ram tudo o que eu disse. Dei-lhe uns dias para vaguear sozinho por aqui. Hoje vim até cá fora.

Dinkuhl sorriu.

—      Tinha organizado um programa com Myra. De manhã, por esta hora, estamos juntos. Calculei que ela havia de mandar forrar o quar¬to, por uma questão de modéstia. Há dois ou três dias, pedi à Lydia al¬guns comprimidos para as insônias. Myra está a sonhar neste momento e todos pensam que eu estou ao pé dela, fazendo o mesmo.

Charles disse:

—      Lydia...

Dinkuhl fez um aceno.

—      Partiu à pressa, não foi? Segundo a minha idéia, ela não ofe¬recia condições de segurança — talvez pensasse que você era um tipo demasiado decente para ser enganado desta maneira. Ledbetter adivi¬nhou-lhe os pensamentos.

Charles disse:

—      Esses aparelhos de escuta, que tal é que eles funcionam?

—      Bastante bem.

Charles começava a compreender. Contou a Dinkuhl os pormenores da sua última conversa com Lydia.

Dinkuhl disse:

—      É isso mesmo. Ela pensou que o barulho da fonte não os dei¬xaria ouvir, segundo penso. E logo que ela começou a falar eles para¬ram a fonte, só para lhe dar uma lição. Depois apareceu Ledbetter para compor as coisas. Ele já devia estar à espera — já deviam ter percebido que ela não era segura.

—      E... dizer-me que se ia embora?

—      Ela sabia que ia. Assim, pelo menos, tinha a certeza de que não ia provavelmente acontecer-lhe nada.

—      Isso também podia não ter acontecido.

—      Isto é um negócio importante — comentou Dinkuhl. — Nada de brincadeiras.

Charles falou devagar:

—      Custa a acreditar.

—      Se fosse fácil de acreditar, eles já teriam escorregado. Mas eles não escorregam — estão altamente treinados.

Houve um momento de silêncio. Depois Charles disse:

—      Está bem. Se eles não são da IQR, quem são afinal?

Dinkuhl atirou a ponta do cigarro para os ramos sombrios das árvores.

—      Quem é que se poderia esperar que tivesse uma imitação de uma nave espacial? — perguntou. — Isso é que importa descobrir. Se não era a Interplanetária — então quem?

—      Continue. Pela minha parte, não tenho qualquer idéia.

—      Eu tive. Havia uma coisa que o confirmava — um certo tipo de marcas tanto nos corredores como na messe. Eu sabia donde vinham essas marcas. Eram feitas pelos cabos das câmaras de televisão. Era um modelo construído pela Telecom usado nas filmagens de interiores das óperas espaciais. Tirei a prova final depois de virmos parar aqui. Lem¬bra-se que eu disse ao Ledbetter que queria enviar uma mensagem ao meu assistente do FK — conselhos técnicos? Ledbetter consentiu, sem hesitar. Se pertencesse à IQR, certamente teria hesitado, porque na IQR não há ninguém que conheça suficientemente a nossa gíria opera¬cional para ter a certeza de que eu não estava a passar uma mensagem para o exterior. Com a Telecom é diferente.

—      Telecom — disse Charles. — Raios me partam.

Dinkuhl sorriu.

—      E a mim também. Já vai ver. Só a Telecom poderia ter o tipo de aparelhagem de escuta que se encontra nesta casa.

No espírito de Charles a raiva começava a substituir a confusão. Disse para Dinkuhl, com voz carregada:

—      Que é que vamos fazer?

Dinkuhl olhou para ele.

—      Você é a bomba H. E ao que me parece, você pode fazer uma de três coisas. Pode voltar e continuar o trabalho para os seus novos em¬presários. Parece-me que essa hipótese está posta de lado? — Charles fez um gesto de assentimento. — Pode também voltar e recusar-se a prosseguir com o trabalho. No entanto, não lhe aconselho que o faça. Ledbetter, não se esqueça, joga forte e representa grandes interesses.

Voltou a estabelecer-se a confusão. Charles disse:

—      Ledbetter pertencia à IQR. Como é que ele aparece agora a tra¬balhar para a Telecom? Francamente, não percebo.

—      Sancta Simplicitas! — comentou Dinkuhl. — Você não seria capaz de perceber. Eu sei umas coisas acerca do Ledbetter. Os seus princípios foram duros — uma origem que teria sido uma condenação, mesmo em séculos passados. Ambos os pais alcoólicos e brigões. Ele era um rapazinho esperto. Lutou por um lugar na cimeira. Mas, para essa espécie de alpinista, a cimeira vai até ao céu. E nesse caso a leal¬dade para com uma organização fica apenas à superfície da pele. Não, George não é o tipo de companheiro que eu lhe recomende.

—      E a terceira coisa. Qual era?

Dinkuhl olhou-o bem de frente.

—      A fuga.

Charles olhou em volta. Através das árvores, via-se a vedação, erguendo-se a uma altura de cerca de 3,5 m.

Ele disse:

—      Cuidado. Como é que fazemos? Eu atiro-o primeiro para o outro lado e depois atira-me você a mim?

Dinkuhl sorriu. Olhou outra vez para o relógio de pulso.

—      O momento aproxima-se. Confia no Tio Hiram?

—      Preferia ter uma idéia daquilo que você propõe.

Dinkuhl pegou-lhe no braço.

—      Vamos arranjar um giroplano. Não tenho tempo para explicar tudo agora. Vamos até à guarita da sentinela. Temos um amigo aqui, embora ele ainda não o saiba. — Dinkuhl começara a descer a encosta arborizada, em direção ao portão e Charles, correspondendo auto¬maticamente à pressão que o outro lhe exercia no braço, acompanhava- -o. — Já uma vez lhe disse: nunca me esqueço de uma cara.

Charles já avistava o portão e a figura ereta do guarda, no interior do seu balão de plaspex. Dinkuhl continuou a falar, num tagarelar len¬to que podia ser um disfarce para um certo nervosismo.

—      Estive bastante tempo a pensar em tudo isto. Acho que tudo vai correr bem. Pensei que talvez fosse um tanto precipitado tentarmos es¬ta manhã, mas o meu princípio é que é sempre mais seguro atuar ime¬diatamente, a menos que se possa atuar ainda mais cedo. Se não fosse agora, teríamos de esperar por amanhã à tarde. É nessa altura que o nosso amigo está outra vez de guarda.

Estavam a aproximar-se da guarita. Charles via a figura alta e imó¬vel através do plaspex; parecia um tipo inteiramente vulgar, usando o uniforme da IQR e os emblemas da IQR. O seu olhar estava fixo neles, friamente, enquanto se aproximavam.

—      Ainda há outra coisa — disse Dinkhul. — A primeira vez que o vi, tinha um emblema da Telecom. No entanto, isso não é conclusivo, pois as atividades a que se entregava nessa altura podiam facilmente ser classificadas de subversivas.

Dinkuhl bateu no plaspex. O guarda descoseu a guarita e veio em direção a eles; tinha a sua Klaberg preparada e a máscara antiastarate — possivelmente a Klaberg tinha uma saída de astarate.

Disse, numa voz que era uma mistura de deferência e desafio:

—      Desejam alguma coisa?

Dinkuhl fitou-o por momentos. Quando voltou a falar, fê-lo com aquela voz bem cheia que usava quando queria. Disse:

—      Irmão, estais condenado?

O guarda apenas se mostrou surpreendido por momentos. Quando falou, fê-lo numa voz litúrgica, que condizia com a de Dinkuhl:

—      Condenado ao Inferno. Irmãos, estais vós condenados?

—      Condenados ao Inferno. — Dinkuhl abanou a cabeça em dire¬ção a Charles. — O Senhor Jeová colocou poder e uma espada no espí¬rito deste irmão. Ele deve ser liberto para servir o Senhor Jeová, cujo Dedo ilumina o céu para a destruição.

O guarda inclinou a cabeça.

—      Para os Condenados todos os portões estão abertos.

Dinkuhl olhou para o portão; com certas cautelas, pensou Charles.

Era uma tentação sair pura e simplesmente e confiar na sorte. Dinkuhl falou devagar:

—      Precisamos de um giroplano, Irmão. Você vai ser rendido den¬tro de cinco minutos. O seu uniforme não me serve, mas serve a este ir¬mão. Quero que o deixe levá-lo. Vamos amarrá-lo. É esta a Vontade do Senhor Jeová, irmão.

O guarda acenou com a cabeça. Sem hesitar, despiu-se do seu equi¬pamento e das roupas. Na guarita havia o exsudador plástico habitual. Dinkuhl ajustou o bocal a um orifício de um quarto de polegada e a corda plástica começou a sair. Com cuidado e destreza amarrou-a em volta do guarda, que não ofereceu qualquer resistência. Enquanto envergava o uniforme e os demais acessórios, Charles ia-o observando.

Dinkuhl disse:

—      Você é que vai ter o trabalho mais difícil, irmão Charles. O Se¬nhor Jeová não achou conveniente dar-me a figura necessária para isso. Bata-lhe com a Klaberg, se ele tiver a máscara. Aliás, é mais seguro fa¬zer isso em qualquer dos casos. Não me parece que haja aqui nenhuma máscara a mais e para si seria ainda mais complicado ter de me carregar se eu perdesse os sentidos. Mas bata-lhe com força, por amor de Deus. Eu fico acocorado na guarita e, se houver problema, vou a correr, mas é sempre melhor tomar todas as precauções de princípio, quando se pode.

Charles sentia-se tenso; não era uma sensação totalmente desagra¬dável. A perspectiva de fazer qualquer coisa de violento apaziguava aquela parte do seu espírito que se sentira particularmente ultrajada com a explicação de Dinkhul sobre o duplo ludibrio de que tinha sido alvo.

Dinkuhl acabou de amarrar o guarda e encostou-o a um canto da guarita. Apontou para a casa distante. Um giroplano erguia-se do telhado.

—      Aí o tem. Eu vou para dentro. Não se esqueça, bata com força.

—      Não se preocupe — disse Charles.

Colocou-se á entrada da guarita, agarrando a Klaberg, à espera do giroplano. Este desceu do ar invernoso, como uma seta, com os rotores a baterem ociosamente e foi pousar na estrada, a umas dez jardas. A porta do lado esquerdo abriu-se, deslizando para o lado, e um in¬divíduo usando um fato igual ao dele saltou para o chão. Foi um alívio constatar que era de estatura média.

Aproximou-se de Charles e disse com um ar curioso:

—      Você não é o Herriot.

Charles fez uma tentativa para disfarçar a voz. Tinha o capuz muito chegado à cara e não o preocupou muito que lhe reconhecessem as feições.

Disse:

—      O Herriot adoeceu. Não lhe disseram?

—      Donde é que você é?

Charles ignorou a pergunta. Inclinou-se para a base da guarita e empurrou-a um pouco com a Klaberg.

—      Você sabia o estado em que isto estava? Alguém já devia ter in¬formado a este respeito.

Endireitou-se enquanto o homem se curvava para ver o que era. «Atrás da orelha» pensou consigo próprio. Não visou bem e a coronha da Klaberg assentou na base do pescoço do homem. Ele rolou e ficou imóvel.

Dinkuhl saiu da guarita.

—      Charlie — afirmou — você é um homem de ação. Eu não teria feito melhor.

O homem continuava imóvel. Sentindo a náusea crescer nele, Charles encarou a possibilidade de ter sido demasiado eficiente.

E disse:

—      Espero não ter acabado com ele.

Dinkuhl ajoelhou. Disse:

—      Traga-me um bocado de corda. Não, ele ainda há de contar ao George como foi anjinho. Isso torna as coisas mais fáceis para o nosso Irmão que está lá dentro. Para os anjinhos a única salvação é o número.

Depois de o ter amarrado devidamente, empurraram-no para den¬tro da guarita, para o pé do colega. Dinkuhl encaminhou-se para o gi¬roplano. Galgou a porta que ficara aberta e Charles seguiu-o. Dinkuhl tomou os controles.

—      Alguém deve ter o tempo a seu favor, mas não nós — comentou. — Temos de nos pôr a andar.

O giroplano subiu e encaminhou-se para o norte.

 

A paisagem ondulante de Vermont estendia-se 660 m abaixo deles. As nuvens eram baixas e, de tempos a tempos, obscureciam a vista. Tudo tinha um ar de tranqüilidade. Continuavam rumo ao norte. Charles perguntou:

—      Mompilher?

—      Mais ou menos.

Mas Mompilher tornou-se visível lá em baixo e mantiveram a rota. Dinkuhl parecia estar num dos seus momentos de concentração; era bem evidente que ele tinha os seus planos e não queria discuti-los. Charles admitiu que ele tivesse mudado o seu objetivo imediato para Quebeque, possivelmente, dado que a fuga tinha ocorrido tão bem até ali. Em Quebeque seria mais fácil fazê-los perder pistas.

Já tinham deixado Mompilher para trás, havia umas três ou quatro milhas, quando o giroplano começou a descer. Era uma região seca e desértica e a primeira idéia que ocorreu a Charles foi a de que o giro¬plano tivesse tido uma falha. Mas Dinkuhl controlava a descida. Ater¬raram num dos imensos campos de batatas da Seção Agrícola. A um gesto de Dinkuhl, Charles saltou para o chão e os pés enterraram-se-lhe na terra úmida e solta.

Dinkuhl não saltou logo. Parecia estar a ajustar os controles. O gi¬roplano começou novamente a subir e Dinkuhl caiu com os pés e as mãos no chão. A porta do giroplano ainda estava aberta quando ele de¬sapareceu, para continuar a sua rota em direção ao norte.

Dinkuhl limpou as mãos à parte de trás das calças. Olhou para o gi¬roplano que se afastava e disse alegremente:

—      Deram-nos tempo de mais. Não me importo de confessar que me sinto bastante aliviado.

—      De qualquer forma, já estávamos livres, não estávamos?

—      Nós fugimos da Telecom. Eles têm recursos que as outras orga¬nizações não têm. Todos os seus giroplanos podem ser controlados a partir da base. — Riu-se. — Agora já podem fazê-lo. Talvez o façam descer antes de chegar ao Hudson. Mas acabarão por fazê-lo. Vão in¬terceptá-lo de Montreal e Quebeque. — Olhou em volta entusiasticamente. — Estamos livres, meu caro Charles. De fato, nunca pensei que o conseguíssemos.

Charles olhou em volta. Era um campo com uns 100 ha ou mais. Para além das vedações de arame, distantes, parecia haver mais campos semelhantes. O céu estava baixo e viam-se filas de nuvens escuras. Era a primeira vez na vida que se encontrava isolado no meio de campo, sem um giroplano ou qualquer meio de transporte semelhante e a expe¬riência era bastante deprimente.

—      Livres — repetiu. — Livres de fazer o quê?

—      De voltar para Mompilher a pé. — Dinkuhl teve um sorriso irô¬nico. — Um exercício saudável e revigorante.

—      E a seguir?

—      Um táxi para Albany, transatlântico para Detroit e depois vere¬mos. Entretanto, o tal passeio revigorante.

Tomando a direção sul, caminharam penosamente através do campo lavrado. Estavam a aproximar-se da primeira vedação, quando Dinkuhl apontou para o céu. Dois giroplanos voavam em direção ao norte. Pararam e ficaram a olhá-los até eles terem desaparecido nova¬mente. Depois saltaram a vedação; outra vedação, talvez a um quarto de milha da primeira, deitava para uma estrada. Dirigiram-se a ela com renovada energia; era uma estrada leste-oeste, mas pelo menos a mar¬cha seria menos árdua.

Seguiram para leste, esperando encontrar uma intersecção para sul, mas a estrada não só continuava sem interrupção, como ainda compli¬cava tudo distorcendo a linha original. Nem Charles nem Dinkuhl ti¬nham qualquer experiência em relação aos pontos cardiais e em breve se tornou evidente que tinham perdido o rumo. A estrada era de classe D, grosseiramente traçada pela Secção Agrícola e usada quase exclusi¬vamente para os trabalhos agrícolas. Dado que os campos não estavam a ser trabalhados de momento, parecia haver poucas hipóteses de en¬contrarem outros viajantes.

Tiveram de percorrer mais de duas milhas, antes de encontrarem fi¬nalmente uma interseção, que se transformou em desapontamento. O cruzamento ficava no meio de campos absolutamente planos, sem qualquer indicação que os pudesse orientar quanto à posição em que se encontravam.

Dinkuhl disse amargamente:

—      Um dolitá era de mendá... Diabos me levem se eu sei para que lado é o sul. À parte o sol, só sei que o musgo cresce no lado sul do tron¬co das árvores. Descubra uma bolota. Podemos plantá-la e sentar-nos à espera.

Charles apontou para a bifurcação do lado esquerdo.

—      Um dos nativos.

Esperaram enquanto o homem avançava para eles ao longo da es¬trada. Tinha um passo saltitante, mas quando se aproximou viram que tinha, pelo menos, sessenta anos; tinha o cabelo branco cortado em es¬cova encimando um rosto de faces rosadas e cheias de rugas. Usava o fato-macaco vulgar dos trabalhadores, mas sem qualquer emblema.

Dinkuhl chamou-o:

—      Vamos para Mompilher. É capaz de nos indicar o caminho?

O homem parou à frente deles; as suas feições não eram exatamente sorridentes, mas tinha um olhar ao mesmo tempo divertido e cordial.

—      Acho que deve haver lugares piores para se ir — disse. — Mas vocês não vão para lá. Vão para outro sítio.

—      Qual?

—      O Céu. — O seu rosto abriu-se agora num sorriso. — Ou o In¬ferno.

Dinkuhl olhou-o de perto. Perguntou:

—      Irmão, estais condenado?

O desconhecido riu.

—      Espero que não, mas é uma coisa na qual eu não apostaria. O meu nome é Kirby — Stuart Kirby. Vocês procuram Mompilher — Eu venho de lá agora mesmo. Umas duas milhas para trás. Querem co¬mer qualquer coisa? Tenho pão e queijo na minha mala.

Tinha uma pequena mochila aos ombros. Desapertou as correias e deixou-a deslizar. Charles e Dinkuhl aceitaram o pão e o queijo que ele lhes ofereceu. Beberam também de um frasco com cerveja que levava. Dinkuhl disse:

—      O meu nome é Hiram. Você não traz nenhum emblema, Stuart.

—      Deixe-me ver — disse Kirby. — Você também não.

—      Eu sou o Grande Auk — disse Dinkuhl. — Estava convencido de que era o último na minha linha. Quando se recebe uma pensão não se é obrigado a usar os acessórios?

—      Eu desisti da minha pensão. Estava nos Aços.

—      De que é que vive?

—      O Espírito de Deus viajou por todas as estradas por onde tenho passado. As pessoas são mais generosas do que julga uma pessoa como você, Hiram. Dão-me de comer e de beber e às vezes dão-me cama. — Levantou um pé, mostrando o tipo de botas pesadas que os trabalhadores das Minas costumavam usar. — Arranjei estas a noite passada. Deu-mas um homem que trabalha nas minas. Quase novas e estão mesmo à medida.

—      Você vive de esmolas?

—      Todas as criaturas de Deus vivem de esmolas, Hiram. Gostam que eu lhes fale e eu gosto do som da minha própria voz.

Dinkuhl sentiu novamente a suspeita primitiva.

—      Você não pertence à Seita do Cometa?

Kirby riu.

—      O homem que me deu as botas... ele e a mulher é que eram da Seita do Cometa. Pela graça de Deus, já não são. O cometa pode ser um sinal, mas então todas as estrelas são sinais.

Dinkuhl disse:

—      Os sinais são para algumas pessoas.

—      Isso é verdade, Hiram. Já encontrou o seu sinal?

—      Ainda não.

—      Há de encontrar. Pode até ser o cometa. — Apertou a mochila. — Por agora procura Mompilher. Viajem em paz, amigos. Eu tenho de ir.

—      Para onde vai? — perguntou Charles, curioso.

Kirby sorriu.

—      Para o Céu, espero. Mas não quero correr riscos.

Pôs-se a caminhar, decidido, ao longo da estrada deserta e não olhou para trás.

Antes de chegarem a Mompilher, Dinkuhl mudara de idéias quanto ao transatlântico para Albany. Segundo ele, já tinham gasto mais tempo do que contavam e a possibilidade de a Telecom ter apanhado o giroplano vazio não podia ser posta de lado. Nesse caso, eles podiam ter alertado todas as suas estações norte-americanas no sentido de pro¬curarem os fugitivos; seria um empreendimento de grande vulto e difí¬cil de explicar sem, ao mesmo tempo, informarem as Seções de Con¬tacto vizinhas, mas eles podiam achar que valia a pena correr o risco.

Resolveram, portanto, tomar um girotáxi para Detroit. Pagaram na estação central e depois, de uma cabina, Dinkuhl entrou em contacto com Awkright da Secção de Genética. Por cima do ombro de Dinkuhl, Charles viu o interior do escritório onde Dinkuhl o tinha levado em pri-meiro lugar quando decidira pôr em prática o seu empreendimento pes¬soal. O rosto largo e sardento de Awkright foi focado e Dinkuhl ajus¬tou os controles.

Awkright disse:

—      Hiram! Afinal deixaram-te em liberdade?

—      Trate-me por Houdini — disse Dinkuhl. — Pode vir buscar¬mos? 4.a e Eisenhower? Preferimos não nos expor aos olhares do público mais do que o tempo indispensável.

—      Vou já para aí. — Awkright sorriu. — Alguém perguntou por vocês. Ou antes, pelo Charlie.

—      Não há dúvida que ele é um tipo muito conhecido. Vem já antes que apareçam mais amigos à procura dele.

Awkright apresentou-se no calhambeque de Dinkuhl; o cheiro da gasolina precedia-o e permanecia um bom bocado depois de ele passar. Dinkuhl e Charles entraram.

Charles disse:

—      Não há dúvida que é uma boa maneira de viajar incógnito.

Awkright riu:

—      Pedi-o emprestado enquanto você esteve fora, Hiram. Espero que não leve a mal. Quer dizer que ainda andam atrás de vocês? Julguei que estavam com a IQR.

—      O problema de ter bons contactos — notou Dinkuhl — é que se acaba por confiar neles. E então alguém começa a soprar-nos tudo o que quer por essa via. É à Telecom que nós acabamos de fugir. Para onde é que você vai — para a minha casa? Não tarda que eles voltem a aparecer por aí com barbas postiças e frascos de astarate.

—      Para minha casa — disse Awkright. — Eu já lhes disse — há uma visita para Charlie.

Charles disse:

—      Ouça, quer dizer que está lá alguém à espera para falar comigo? Tudo menos isso.

Dinkuhl disse:

—      Eu próprio também não acho que seja uma boa idéia. A situa¬ção promete ser difícil. Eles desejam doidamente o que Charles tem pa¬ra dar e mostram mais tendência para lhe deitar a unha do que para pe¬dir com delicadeza. Talvez seja melhor irmos para casa do Louie.

Awkright deitou a cabeça perigosamente para trás e largou a rir; o carro desviou-se em direção ao passeio. Dinkuhl disse com azedume:

—      Reparei que o guarda-lamas da frente estava torto. Realmente não admira. Guarde o seu sentido de humor para quando não estiver a guiar.

—      Sou um tipo naturalmente feliz — disse Awkright. Voltou a rir. — Não o consigo evitar.

O carro parou em frente de um grande prédio de apartamentos que deitava para o lago. Parecia ridículo ao lado dos inúmeros salões de ba¬terias que havia no parque de estacionamento. Os três entraram e to¬maram o elevador para o último andar. Awkright assobiou com força em frente da porta. Sorriu para Charles.

—      Preveni a visita de que vínhamos para aqui.

A porta abriu-se e eles atravessaram o vestíbulo. O chão era de plaspex, formado por pequenos tijolos colocados sobre um tanque com peixes tropicais; tratava-se provavelmente de um passatempo de Awkright, pois era uma instalação demasiado cara para fazer parte da decoração de rotina neste tipo de apartamento.

Awkright disse:

—      Vá em frente, Charlie. A sala é mesmo em frente. Ainda quero mostrar uma coisa ao Hiram.

Não restavam dúvidas de que havia qualquer coisa à espera dele. Empurrou a porta e entrou na sala — um quarto espaçoso e arejado com vista para o lago. Havia uma pessoa de pé junto da janela prin¬cipal, olhando para as águas. Voltou-se quando o ouviu entrar. Era Sarah.

Charles avançou direito a ela. A rapariga sorriu, hesitante e depois afetuosamente. Ele segurou-a pelos cotovelos, desejoso de sentir que o corpo dela era real e sólido. Podia tratar-se de um truque de câmaras de projeção.

Mas não era. Ela era bem real, de carne e osso, e susteve a respira¬ção quando ele lhe tocou. Ele queria aproximá-la mais, apertá-la nos braços, transformar o seu regresso na convicção de um abraço. Sentia- -se bastante confiante que ela não o recusaria desta vez. Mas qualquer coisa o impediu de o fazer. Em vez disso, pegou-lhe numa das mãos e acariciou-lha entre as suas.

—      Sarah — disse. — Como é que conseguiu fugir? Quem é que a apanhou?

Aguardou o prazer de lhe voltar a ouvir a voz, o que não lhe foi negado.

Ela disse:

—      Fugir? Não houve qualquer dificuldade. Porque é que havia de haver?

—      Mas você foi capturada — por alguém? Fingiram que tinha sido suicídio.

—      Sim, capturada, mas com toda a delicadeza. — Ela estremeceu. — Foi isso precisamente o mais desagradável. Os controles do giroplano tinham sido pré-programados. Ao fim de cinco minutos percebi que não obedeciam. Tive de ficar quieta e deixar-me levar pelo giroplano.

—      Levar? Para onde?

—      Sacramento. Primeiro.

—      Sacramento. Seção Atômica!

—      Claro. Não lhe tinha dito? Só soube quando o giroplano come¬çou a descer, junto de uma das suas torres. Não sabia de todo o que es¬tava a acontecer. Mas as coisas também não se tornaram muito mais claras depois da aterragem. Fui levada para o QG da Secção Atômica. Foram muito gentis e pediram imensa desculpa. Tinham tido que me apanhar, esclareceram, para me interrogarem sobre um assunto que consideravam importante para a organização. Teria alojamento ali por uma noite e partiria para Filadélfia na manhã seguinte. Pela minha par¬te, não podia fazer nada. Estava bastante aliviada por os meus piores receios não terem sido justificados.

—      Não podia enviar mensagens para o exterior, claro?

—      Não. Isso aborrecia-me bastante, mas é compreensível que assim fosse. Deram-me a certeza de que estaria de novo em liberdade ao fim de três dias e tive de me contentar com isso. — Uma sombra obscureceu-lhe o rosto. — Entretanto, o meu pai — já sabe. Mas mesmo isso não foi culpa deles. Eles perguntaram-me se o meu desaparecimento durante três dias poderia ter qualquer efeito grave sobre ele; estavam prontos a capturá-lo como tinham feito comigo, caso eu o preferisse. O erro foi meu. Não queria que ele sofresse o choque de ser capturado; mas acho que não dei a devida importância ao choque que lhe produziu o fato de eu o ter sido.

Charles disse:

—      Pensava que ele também não estivesse morto. Julguei que tudo tivesse sido preparado para dar essa idéia, tal como aconteceu com Hans e consigo.

Ela abanou a cabeça.

—      Infelizmente, é verdade. Mas acho que não foi só por causa do meu desaparecimento. Primeiro já tinha sido o Hans e depois a sensa¬ção de que a sua vida agora não tinha sentido. Ensinar história a dois alunos; não era uma vida muito interessante para um homem que espe¬rara governar Israel.

—      Lamento muito.

Ela sorriu timidamente.

—      Já não há nada a fazer. Primeiro fiquei muito abatida e, ao mes¬mo tempo, zangada — mas ninguém teve culpa. Foi azar. Eles tiveram de agir naquela altura; era uma questão de se anteciparem a outros — em especial à Telecom. Você depois saberá tudo.

Ele fez um gesto de assentimento.

—      Sim. Eu sei. E depois, o que é que aconteceu — quando você chegou a Filadélfia?

—      Falei com o Raven.

Charles soltou um assobio. Raven era o diretor principal da Se¬ção Atômica. Membro do Conselho de Gestões.

—      E então...?

—      Simpatizei com ele. Acho mesmo que é a primeira pessoa das que encontrei por cá por quem sinto verdadeiro respeito. — Sorriu com ar matreiro. — Uma espécie de respeito filial, claro.

Charles disse:

—      Parece que é um tipo catita. Incapaz de tentar levá-la a comple¬tar o trabalhar de Hans para beneficio da sua própria organização, não é verdade?

Sarah desprendeu a mão.

—      Vamos sentar-nos. — Encaminhou-se para um assento de pare¬de que deslizou para baixo quando ela carregou num botão. Sentou-se e Charles sentou-se ao lado dela.

—      A sua reação é natural — prosseguiu. — Foi também a minha primeira reação. Não se esqueça que eu nunca acreditei no sistema de gestão. De qualquer forma, não vou discutir consigo sobre este assun¬to. Gostava que fosse você mesmo falar com o Raven.

—      De qualquer forma, ele sempre queria alguma coisa. Pode dizer-me o que era?

Sarah olhou-o fixamente.

—      Queria que eu passasse da IQR para a Secção Atômica. Oficial¬mente. E posso dizer-lhe que ele desejaria que você fizesse o mesmo.

Charles olhou para ela — espantado. Disse-lhe:

— Não pretende dizer-me... que consentiu? Que pediu a sua transferência?

Ela tirou de uma algibeira o emblema da Seção Atômica e pre¬gou-o na túnica.

—      Sim. Não o usei desde o início porque queria explicar-lhe tudo primeiro. — O seu rosto tomou uma expressão mais suave. — Charles, gostaria de ter falado consigo primeiro, mas eles disseram-me que você tinha sido capturado pela Telecom. Estavam a tentar libertá-lo, mas, entretanto, que é que eu podia fazer?

—      Voltar para a IQR. Porque não?

—      A IQR — disse Sarah — é tão ineficiente que se torna impossí¬vel. Os únicos gerentes capazes que eles têm são os oportunistas como Ledbetter. Quando o Hans desapareceu, o Contacto da Secção Atômi¬ca interessou-se pelo caso. Tentaram obter a colaboração da IQR — ao mais alto nível, em Graz —, mas eles nem sequer sabiam o que se estava a passar nos seus próprios laboratórios e tão-pouco estavam in¬teressados em saber.

—      Não sabiam — disse Charles —, porque Ledbetter encaminha¬va tudo o que era importante para a Telecom.

—      É isso mesmo que eu digo — acrescentou a rapariga. — Inefi¬cientes. Não tomaram qualquer atitude quando eu desapareci, nem mesmo quando Ledbetter o mandou raptar. E, entretanto, permitiram que o laboratório sofresse uma incursão durante a qual foram retiradas todas as peças de valor.

Charles lembrou-se dos relatórios de Isaacssohn que tinham sido recebidos na Casa de Campo; era natural que a Telecom os tivesse.

—      Sim — disse. — Sei isso.

—      Então já vê — disse ela. Mostrou-lhe o pulso e o pequeno rádio que tinha ligado a ele. — Com isto, posso ser útil em qualquer altura. Se tivesse voltado para a IQR iria agachar-me como um pato à espera de ser alvejada pela primeira organização que se lembrasse de disparar.

Embora com relutância, ele começava a compreender a posição de¬la. Ele próprio sofrerá um grande choque ao ver o mundo que lhe era familiar estalar e abrir-se debaixo dos seus pés e ele não era um exilado, num país estranho, quase num mundo estranho.

—      No fundo eu não tinha qualquer ligação especial com a IQR, não acha? Receberam-nos quando viemos de Israel, mas qualquer organização o teria feito. Éramos técnicos especializados — Hans e eu. Pelo meu pai não fizeram nada.

—      Também acho. E agora está a trabalhar para eles?

Ela disse francamente:

—      Não muito bem. Acho que sou do tipo colaborativo — não faço grande coisa sozinha.

—      Mas como é que você está aqui — no apartamento de Awkright? Ele não trabalha para a Seção Atômica, pois não?

Trouxeram-me para aqui de avião. Há duas ou três horas, a Tele¬com deu o alerta a toda a organização para uma verificação de seguran¬ça tripla. A Secção Atômica adivinhou o que isso queria dizer — isto é, que você e Dinkuhl tinham conseguido fugir. A linha da Telecom pare¬cia dirigir-se para o Canadá, mas a Seção Atômica pensou que viriam para aqui. Sabiam alguma coisa acerca do circule de Dinkuhl — mais do que Dinkuhl gostaria que soubessem, imagino — e concluíram que ele devia entrar em contacto com Awkright logo que pudesse, E fê-lo, não há dúvida. — A mão dela deslocou-se até tocar na dele. — Não se importou que eu viesse ao seu encontro?

Ele sorriu, agarrando-lhe os dedos.

—      Não.

—      Nem mesmo por eu ter vindo como emissária de uma organiza¬ção estranha, tentando seduzi-lo?

—      É sempre agradável quando alguém tenta seduzir-nos, mesmo quando não temos qualquer intenção de ceder. — Ele sorriu. — Não acha?

Ela ficou a olhá-lo por momentos e depois corou.

—      Acho que sim.

Depois de ter estado a pensar, ele disse:

—      Reconhece que o meu dever é em relação à IQR — a minha pró¬pria organização?

Ela abanou a cabeça com firmeza.

—      Não. Estive a tentar encarar a questão sob o ponto de vista que eu teceava que você tomasse. Mas não vou discutir isso. Sempre vai fa¬lar com o Raven? Posso garantir-lhe que será livre de fazer o que quiser depois de falar com ele. Não há perigo de quererem retê-lo contra von¬tade.

Ele disse:

—      Com certeza que vou. Sempre será uma experiência falar com o Raven.

Aliviada, ela disse:

—      Ainda bem.

Ele preveniu-a:

—      Isso não quer dizer que vá pedir a transferência.

Ela encolheu os ombros, cheia de graciosidade:

—      Desde que vá.

Um pormenor que não lhe saía da cabeça voltou a preocupá-lo agora.

—      O seu relógio... — disse.

Ela levantou o dedo, olhando para ele cheia de curiosidade. O reló¬gio era o mesmo ou então um duplicado.

—      Já o tem outra vez — disse ele.

—      Já o tenho outra vez? Ah, estou a perceber. Não calculava que soubesse disso. Entreguei-o na Aliança Elétrica, para ser recarregado durante o fim-de-semana. O meu pai disse que o ia buscar no domingo à tarde, porque tinha de ir perto dali — mas esqueceu-se. Nos últimos anos já não tinha grande memória. Ia pedir que mo mandassem, mas... eu acabei por o mandar ir para Filadélfia.

Charles disse:

—      Com os diabos! Uma explicação tão simples. E foi esse relógio que acabou por me convencer de que você estava viva.

Ela riu:

—      E estou.

—      Sim, mas o testemunho era fraco.

—      Que importância tem o testemunho?

O ar grave e formal que, dentro de certa medida, era característico de todos os postos dos Serviços Atômicos, atingia o máximo no QG de Filadélfia. Desviavam-se igualmente da norma ao instalarem o gabinete do diretor principal no telhado; nas outras organizações, o pessoal su-perior ocupava o primeiro andar. Havia um elevador particular que li¬gava diretamente com os aposentos do diretor principal, mas o cami¬nho mais usual e também aquele que Sarah escolheu para o conduzir era através do jardim plantado no telhado. Um caminho coberto de fo-lhagem, donde pendiam madressilvas, conduzia a um pequeno pátio no qual três fontes tinham sido rodeadas em três lados com paredes plasti¬ficadas, para produzir o efeito de frescura e simplicidade das paredes caiadas. O gabinete particular do diretor principal ficava no fundo do caminho. Era uma sala alongada, com uma janela que dava para o pátio e outra abrindo sobre Filadélfia, que se estendia trinta pisos mais abaixo. A secretária do diretor principal ficava junto da janela que da¬va para o pátio. Dois criados fardados fizeram-nos entrar e Raven pôs-se de pé. Curvou-se ligeiramente e sorriu.

—      Tive o prazer de o ver pela janela enquanto se aproximava. Miss Cohn, estou muito satisfeito por ter tido êxito na sua missão. Quanto a si, Sr. Grayner, foi muito amável da sua parte em ter acedido a pôr al¬gum do seu tempo à minha disposição.

Na Seção Atômica conservavam-se as formas arcaicas de trata¬mento nas conversas formais. Charles não estava certo se a sua utili¬zação se devia estender, segundo a etiqueta, ao próprio Raven. De qualquer forma, não via razão para adotar os hábitos da Seção Atô¬mica.

Disse:

—      Naturalmente, Diretor Raven, é uma honra ser convidado para vir conhecê-lo.

Raven dirigiu-se a Sarah.

—      Sente-se, Miss Cohn. E o senhor também, Sr. Grayner.

Sarah continuou de pé. Disse:

—      Acho que seria melhor eu sair da sala por agora, Sr. Raven. — Deitou um olhar de soslaio para Charles. — O Sr. Grayner sabe da mi¬nha transferência e conhece mais ou menos a minha posição a esse res¬peito. Não acho que o fato de eu ficar possa ter qualquer utilidade.

—      Faça como preferir — disse Raven. Acenou para os dois mor¬domos que estavam junto da porta e eles voltaram a abri-la para dar passagem a Sarah. — Fica perto daqui?

Ela fez um gesto de assentimento.

—      No jardim. — Sorriu para Charles e saiu.

Raven disse:

—      Acho que uma conversa totalmente particular seria preferível. Não acha, Sr. Grayner? Rogers, Barczywski — esperem lá fora, por favor.

As portas fecharam-se e eles ficaram sós no gabinete comprido e cuidadosamente arrumado. Fora construído e mobiliado havia muito tempo; este era um dos primeiros grandes edifícios do mundo da ges¬tão. Charles notou a presença de um televisor de projeção à antiga; havia a pequena fenda no teto que permitiria a saída do écran suspenso.

—      Queira sentar-se, Sr. Grayner — disse Raven. — Charuto? Ci¬garro?

Charles sentou-se na cadeira que lhe fora indicada e tirou um cigarro da caixa.

—      Obrigado, Diretor Raven.

Raven dedicou-se a todos os preliminares que antecedem o acender de um charuto. Teve um riso abafado; a sua expressão era comedida, mas bastante afável.

—      Se decidisse vir trabalhar conosco — eu disse se, Sr. Grayner —, competir-lhe-ia tratar-me por «Sr. Diretor». Temos os nossos hábitos que devem ser preservados. Tenho razão ao pensar que esse pequeno ponto não constituiria para si um obstáculo insuperável.

A chama aproximou-se dele e ele acendeu o charuto. Sorriu.

—      Não, Sr. Diretor. Não teria qualquer objeção.

—      Bom — disse Raven com à vontade. — Isso já é qualquer coisa. Prefiro sempre partir de uma base de entendimento, por muito pequena que seja.

Fez uma pausa, enquanto chupava no charuto e Charles aguardou. Entretanto estudava o homem.

A sua estatura era um pouco abaixo da média e era magro. A roupa que usava era feita em Londres — um fato escuro cor de ferrugem, com camisa e gravata cor de tília — na botoeira, como decoração, usa¬va um cravo branco. Tinha as feições um tanto duras, mas a expressão era totalmente descontraída; era impossível imaginá-lo excitado com o quer que fosse. Devia rondar pelos sessenta; o cabelo embranquecera-lhe, mas o efeito era agradável.

O seu aspecto, de uma maneira geral, causava uma funda impres¬são, mas esse sentimento, na opinião de Charles, não era apenas um so¬matório de todos os traços individuais. Aquele homem irradiava con¬fiança e integridade. Charles pensou em Ledbetter — um Ledbetter afável, franco e senhor de si, mas guardando muitas outras coisas por detrás de tudo isso, outras coisas que lutavam para se libertar. Sentia pena da ambição desmedida de Ledbetter, que tinha de enfrentar esta realidade, a um nível mais alto.

Raven disse:

—      Bom, isso parece caminhar bem. Agora podemos falar de coisas sérias. Espero que me conceda o privilégio da idade, Mr. Grayner, ao passar em revista uma série de coisas com as quais deve estar familiarizado — e em alguns casos mesmo demasiado familiarizado. Mas eu quero colocar as coisas na sua perspectiva exata. Tenho a cer¬teza de que o senhor é um jovem sagaz e eminentemente sensato, mas com as experiências que teve recentemente seria para admirar que os seus juízos não estivessem um tanto desviados da verdade. Além disso, há algum tempo que tem gozado da vantagem da companhia do Sr. Dinkuhl, um homem de uma inteligência aguda e perspicaz, mas um pouco dado a idéias fixas. — Deitou um olhar a Charles. — Será que me pode dar uma idéia das suas opiniões atuais?

—      Sobre que assunto?

—      Questões fundamentais. Sobre a sociedade. — Olhou para o vi¬sor que tinha na secretária. — A sua folha é muito boa. Denota uma verdadeira estabilidade, indispensável para que os sentimentos de leal¬dade persistam tão fortemente numa pessoa que, diga-se em abono da verdade, não tem recebido igual tratamento por parte da sociedade. De fato, uma parte integrante da nossa sociedade é o direito que assiste ao indivíduo hábil de usar a sua habilidade.

Fez uma pausa. Charles disse com cuidado:

—      Aí está uma coisa que eu acho um bocado confusa — as impli¬cações daquilo que acaba de dizer, Sr. Diretor.

Raven olhou para o charuto.

—      Estou convencido de que nenhuma outra sociedade antes da nossa apresenta resultados tão positivos no que diz respeito ao encora¬jamento da inteligência, sejam quais forem as circunstâncias em que ela se revele. O erro ocasional, como, por exemplo, no seu caso, apenas ser¬ve para realçar esses mesmos resultados.

—      Não. Não era bem a isso que eu me referia. Eu só queria dizer... é um bocado difícil de explicar. — Raven olhou para ele com benevo¬lência e, ao mesmo tempo, com ar encorajador. — Antes dos aconteci¬mentos recentes que o senhor mencionou eu aceitava as coisas tal como se me apresentavam. Acho que o que me deve ter surpreendido e choca¬do, mais do que qualquer outra coisa, foi a descoberta da hostilidade e desconfiança que existem entre as diversas organizações. O mundo pa¬rece ter-se desintegrado e não é fácil juntar de novo as peças. O grupo de descontentes do Dinkuhl — julgo que sabe da sua existência —, a Seita do Cometa — provavelmente também sabe disso —; depois, descobrir que a Telecom tinha acesso a todas as minhas fichas — através de Ledbetter, segundo creio. Agora o senhor também tem as minhas fi¬chas. Tudo parece estar entretecido de duplicidade.

Raven fez um gesto de assentimento.

—      Não é um quadro lá muito belo, pois não? A sociedade do mun¬do da gestão expõe todas as suas maleitas. E mesmo que nenhuma des¬sas maleitas existisse, ainda resta uma fraqueza constitucional da qual um espírito saudável se pode afastar facilmente, por lhe causar horror. O espetáculo de uma sociedade que corre atrás da própria cauda, com a mão direita combatendo a esquerda, lutando pela posse das capacida¬des de três indivíduos — dois dos quais nem sequer são seus filhos — é o bastante para causar medo. Creio que o Sr. Dinkuhl descreveria uma tal situação como os espasmos finais da decadência.

Charles teve um ligeiro sorriso.

—      É o que ele diz.

—      E é sobre mim, creio — disse Raven —, que recai uma grande parte das culpas. Há quinze anos que sou o diretor-geral desta orga¬nização e membro do Conselho dos Doze. — Inclinou-se ligeiramente para a frente. — Há dez anos, neste mesmo mês, fiz lembrar ao Conse¬lho a urgência de reorganizar os serviços de investigação e o desenvolvi¬mento técnico no mundo da gestão. A proposta não era nova — vários dos meus antecessores já tinham chamado a atenção para esta mesma necessidade. A questão foi ventilada — e abandonada. Nada foi feito.

Raven sacudiu suavemente as cinzas do charuto.

—      Como sabe, o Conselho não toma muitas decisões; a soberania de cada organização, é demasiado apreciada para que isso aconteça. Talvez esse fato me possa servir de desculpa. Mas será que também me posso desculpar por não ter conseguido aplicar aqui, nos Serviços Atô¬micos, reformas do tipo das que eu preconizava? Não tenho a certeza. Quer que lhe diga o que fiz?

Lancei nesta organização uma campanha de propaganda a favor da ciência e da tecnologia. Isso custou-nos bastante dinheiro. Essa pro¬paganda dirigia-se especialmente á classe que estava na sua fase de for¬matura. Fiz tudo o que pude para persuadir esses jovens a optarem pela investigação. Sabe quais foram os resultados? Apareceram-nos como voluntários uma simples dezena de candidatos com QI de 120 e todos eles evidenciaram uma personalidade que os incapacitava para esse fim!

—      Na IQR — disse Charles — não haveria possibilidade de opção.

Raven sorriu.

—      Assim como não houve nesta organização em qualquer outro ano. Pensei impor a revogação da nossa política, fiz mesmo várias tentativas, mas não foi possível levar a idéia por diante. Tive contra mim a oposição local. Meu caro Sr. Grayner, há limites, mesmo para os poderes de um diretor-geral.

Charles disse:

—      Então Dinkuhl tinha razão. Esta sociedade já foi longe de mais para conseguir salvar-se.

—      Por vezes — disse Raven —, já tenho pensado o mesmo. Mas, como sabe, nunca houve uma situação histórica definitiva. Roma caiu, mas Bizâncio, que lhe ficava tão próximo, reuniu as suas defesas e so¬breviveu oitocentos anos. É a lei das médias que destrói os impérios e essa lei não nos ajuda a determinar o particular.

—      Não, em qualquer situação histórica, o melhor que se pode fazer é determinar as probabilidades — e, uma vez determinadas as probabi¬lidades, ainda resta decidir qual o partido a tomar. Como deve compreender, há sempre ocasiões em que mais vale lutar por uma opor¬tunidade em cem do que pelas restantes noventa e nove, como, por exemplo, quando essa oportunidade em cem nos oferece a vida en¬quanto as outras noventa e nove nos prometem a morte.

É neste ponto que o Sr. Dinkuhl e eu divergimos. Trata-se de uma questão relativamente simples. O Sr. Dinkuhl — e ninguém melhor que o senhor pode julgar se eu estou a ser injusto para com ele —, o Sr. Dinkuhl anseia pela destruição. Ele deseja que o mundo seja esma¬gado. Não há dúvida de que tem as suas razões e que essas razões são bastante fortes, mas não as aprecio, assim como não compartilho dos seus pontos de vista. Se a sociedade está doente e parece moribunda, o meu instinto leva-me a fazer tudo o que puder para a salvar. A morte de qualquer sociedade é uma coisa terrível, como o Sr. Din¬kuhl — estudante de História — deve saber. Pode ser que as pes¬soas hoje em dia não sejam tão felizes como os écrans da televisão as apresentam. Nem podem ser, se acorrem em tão grande número a esses ritos especiais de condenação, associados com o cometa, que se prati¬cam hoje em dia entre nós. Mas eu considero essa espécie de infelicida¬de que podem estar a sentir agora completamente diferente do tipo de miséria total e de desgraça que acompanharia o colapso da vida civiliza¬da. Também temos o direito de contar as nossas pequenas bem-aventuranças, julgo eu. E rejeitar a solução destrutiva para os nossos proble¬mas não é o mesmo que rejeitar todas as soluções. Pode ser um grande esforço — pode mesmo ser um esforço inteiramente vão — o de pôr a sociedade novamente de pé, mas não me parece que faça mal tentar.

Parando de falar, Raven dirigiu um olhar inquiridor para o rosto de Charles. Era impossível deixar de ficar impressionado com o seu realismo e confiança; ou deixar de o comparar favoravelmente com o realismo e o desespero de Dinkuhl. Charles argumentou, mas fê-lo au¬tomaticamente e sem convicção:

—      Seja de que ângulo for que observe a situação, ela apresenta-se bastante negra. E não me parece que tenha sido feita qualquer tentativa de o dar a entender às pessoas.

Raven curvou-se ligeiramente.

—      Mea culpa, mais uma vez. Ou, pelo menos, em parte. Mas é praticamente impossível pregar a mensagem de clarividência a que você se refere. O público é capaz de suportar muitas formas de opressão — taxas, invasão da sua vida privada, perda de liber¬dades —, mas nunca suportará ou perdoará a Cassandra. De qual¬quer forma, um dos inconvenientes menores do estado atual é o papel desmedido que cabe à Telecom na formação de opiniões e a direção da Telecom tem estado há já algum tempo nas mãos de indivíduos ligeira¬mente paranóicos.

Quanto à situação ser bastante negra — não há dúvida de que o é. A crise avizinha-se. Mas não esqueçamos que uma crise é justamente um momento de decisão. Para uma sociedade decadente são os perío¬dos de calma que se tornam perigosos; a crise representa um desafio ao qual é necessário responder. Em tempo de crise as pessoas têm de dar ouvidos a Cassandra e, por vezes, com bons resultados.

Charles disse:

—      Como é que o fato de eu trabalhar para a Seção Atômica na energia solar transmitida pelo diamante pode ajudar Cassandra?

Raven teve uma ligeira hesitação.

—      Está a obrigar-me a entrar na situação embaraçosa de lhe pedir que faça uma estimativa da minha pessoa. A julgar por aquilo que en¬controu recentemente e por aquilo que apanhou ao Sr. Dinkuhl, consi¬dera-me um diretor típico no mundo da gestão?

Charles respondeu prontamente:

—      Não. Claro que não. Pelo contrário.

Raven colocou as mãos pequenas, com as unhas cuidadosamente arranjadas, em cima da secretária. Charles pensou que iria olhar para elas, mas não o fez. Os seus olhos estavam cravados em Charles

—      Esta é a imagem que eu lhe deixo, Sr. Grayner. Ou o senhor aju¬da a destruir o sistema de gestão ou ajuda a salvá-lo. Como já lhe expli¬quei, estará a salvar qualquer coisa de muito imperfeito, mas a destrui¬ção é uma coisa terrível. Se escolher o que me parece ser o curso mais humanitário, então tem de decidir em que direção é que a sua ajuda te¬rá maior valor. Em pé de igualdade, aconselhá-lo-ia a trabalhar para a sua própria organização, por diversas razões que não vou abordar ago¬ra. Mas não penso que as coisas estejam em pé de igualdade e também não creio que o senhor o pense. Peço-lhe que junte forças conosco, pois estou convencido de que somos capazes de o ajudar e de usar sensatamente o seu trabalho. — Fez uma pausa. — Talvez gostasse de ter algum tempo para pensar?

Charles disse:

—      Já têm Sarah. Se eu também pedisse a minha transferência, não lhe parece que a IQR levantaria objeções a este suborno em massa dos seus investigadores?

Raven acenou afirmativamente.

—      É muito provável. Mas um dos poucos regulamentos inter-organizações que foi acordado pelo Conselho, foi precisamente o pleno e li¬vre direito à transferência, com o consentimento da pessoa que a pede e da nova organização. Está especificado que o consentimento da organi¬zação de origem não é necessário. — Sorriu. — Embora isso fosse muito antes do meu tempo, estou praticamente certo de que as Indus¬trias Químicas Reunidas, juntamente com os Aços, a União Elétrica e mais umas quantas, formaram o grupo que insistiu na adoção deste regulamento e que esta organização começou por se opor a ele — de fato, foi usado numa campanha contra nós. As coisas dão a volta. De qualquer forma, pode deixar as objeções da IQR comigo. Compe¬te-me encarregar-me deles.

—      Só uma pergunta, Sr. Diretor: — Têm Isaacssohn?

—      Não.

—      E não sabe onde ele está?

—      Temos algumas pistas. Francamente ainda não sabemos grande coisa. Pode mesmo ser que esteja realmente morto.

—      Sabe que é ele o cérebro que está por detrás da questão da ener¬gia dos diamantes — que o trabalho original ê seu?

—      Sim, sabemos. Deixe-me fazer-lhe uma pergunta, Sr. Grayner. Na sua opinião, em que fase está o trabalho?

—      Fase de desenvolvimento. Quando o examinei pela primeira vez, pensei enviá-lo para um desenvolvimento de rotina — o trabalho cria¬tivo essencial estava terminado. Sarah persuadiu-me a continuar por mais algum tempo. Claro que nessa altura eu não sabia que não havia ninguém que fosse realmente capaz de fazer o trabalho de desenvolvi-mento.

—      E quanto tempo pensa que levará o trabalho de desenvolvimento?

Charles encolheu os ombros.

—      É praticamente impossível responder-lhe. Aparecem sempre obstáculos, mas não se pode prever o seu tamanho ou número. De qualquer forma, nunca será menos de três meses, nem mais de um ano. — Olhou para Raven. — E mais uma vez, não se pode esquecer que, mesmo contando com dois dos três, o terceiro é que é o verdadeiro peso.

—      Não estou bem certo. Einstein fez as pesquisas iniciais sobre a conversão da energia das massas, mas o seu trabalho sobre a desinte¬gração nuclear aplicada limitou-se a uma recomendação sobre a sua viabilidade. Isaacssohn pode não ser capaz de trabalhar mais depressa do que você e Sarah, seja para quem for que trabalhe. Duvido que ele seja capaz de trabalhar muito mais depressa.

—      Talvez não. A fase das dificuldades tende a nivelar o trabalho.

—      E a nossa principal preocupação é impedir que quem está a usar Isaacssohn tenha o monopólio da invenção. Para esse fim, basta que o trabalho esteja em fase bastante adiantada.

Charles disse:

—      Sim. Compreendo. — Olhou em volta, para a solidez e digni¬dade do ambiente. De repente sentiu que não queria deixá-lo. Raven deixá-lo-ia partir quando quisesse — mas para onde iria? E como é que podia libertar-se de Ledbetter e dos outros? E como é que ia deixar no¬vamente Sarah, que voltara a encontrar havia tão pouco tempo?

Disse:

—      Aceito a transferência. Estou pronto a trabalhar para a sua organização, Sr. Diretor.

—      Fico satisfeito — disse Raven. — Fico muito satisfeito, Sr. Grayner. Mas mesmo assim, se tiver algumas reservas, tem tempo para pensar no caso.

—      Não. Não tenho qualquer reserva. Não se importa que continue a dar-me com Dinkuhl?

—      Dê-se com quem quiser. — Raven sorriu. — Estará muito em contacto com Miss Cohn, uma vez que vão trabalhar juntos. Não quis influenciá-lo pondo em evidência esse aspecto, mas creio que ele lhe interessa.

—      Sim, reparei que não pôs isso em evidência.

—      Bom, agora talvez queira ir contar a novidade a Miss Cohn; ela disse que estaria no jardim, não foi? Depois — não há pressa —, gostaria que falasse com o Sr. Tehchen para regularizar a questão do pedido de transferência. O Sr. Tehchen é a pessoa que nos trata desses assuntos. Décimo andar — gabinete B97. Um dos rapazes mostra-lhe o caminho.

Charles levantou-se.

—      Obrigado, Sr. Diretor.

—      Obrigado, Sr. Grayner. Hei de procurá-lo no seu laboratório, portanto voltamos a ver-nos em breve.

O Sr. Tehchen — o Gerente Tehchen — era um homem expedito e a transferência foi arquivada pelo Secretariado do Conselho nessa mesma tarde. Na manhã seguinte Charles foi informado de que podia começar a trabalhar quando quisesse e foi com satisfação que decidiu começar logo. Tinha um sentimento de culpa residual em relação à IQR; mas já esperava que isso viesse a acontecer, e não se sentia tão mal como pensara, de qualquer forma, sentia alguma coisa e o traba¬lho parecia-lhe ser a melhor forma de eliminar esse desconforto — o trabalho junto de Sarah.

Teve dificuldade em tomar uma decisão com respeito a Sarah. Era natural que a evolução do seu conhecimento com ela — depois de a ter conhecido havia tão pouco tempo, a separação tão repentina e as cir¬cunstâncias anormais em que pensara nela nos últimos tempos — provocasse um estado de incerteza quando se voltaram a en¬contrar; mas a incerteza parecia maior do que seria natural. A sua pri¬meira reação foi achá-la diferente. Encontrava nela uma suavidade que lhe parecia desconcertante por não estar habituado a ela.

A explicação desse fato abateu-se sobre ele de forma inesperada. Ele só considerara metade da equação; ao pensar no efeito que o cho¬que produzira na sua própria atitude, não se lembrara de que o choque de Sarah fora ainda pior. Era natural que isso produzisse alterações nela, até mesmo alterações profundas. Solta de todas as suas amarras, ambos os elos que a ligavam ao mundo da sua infância, quebrados, era bastante razoável que procurasse alguém que lhe desse segurança. Podia considerar-se como um homem de sorte por ser ele essa pessoa.

Tendo chegado a esta conclusão, estava preparado para aceitar muita coisa. Durante a primeira manhã que tinham passado juntos no laboratório, ela parecera-lhe insegura e, de certa maneira, apática. Ao que parecia, já passara dois ou três dias no laboratório, mas sem que ti¬vesse o que fosse para mostrar. Ele sugeriu-lhe que desenhasse no¬vamente o seu esquema para o retificador e ela retirou-se para o seu pequeno gabinete — cada um tinha o seu — para fazer esse trabalho. Ele próprio andava a verificar certos pormenores da instalação, quando o écran de parede brilhou com uma chamada do último piso.

O mordomo irradiava delicadeza, mas isso era uma característica geral aqui. Começou a falar:

—      Uma visita para si, Sr. Grayner... — Parou surpreendido e denotando um aborrecimento cheio de delicadeza quando alguém apareceu por detrás dele no écran; era evidente que o visitante decidira apresentar-se antes de ser convocado. Charles sorriu. Era Dinkuhl.

Dinkuhl disse:

—      Meu caro Charlie, com que então já te amarraram. Qualquer hipótese de te libertares para tomar um café?

Charles perguntou-lhe:

—      Não me digas que o FK já está a seguir o ritmo habitual em tão pouco tempo?

O mordomo recomeçou:

—      Desculpe...

Dinkuhl deu-lhe uma palmadinha no ombro, com solenidade.

—      Está bem, meu caro. Pode ir-se embora. — Falando para Char¬les disse: — O assistente — apesar de não pertencer ao escalão A — desvencilhou-se melhor do que eu esperava durante a minha ausência forçada. Pegou na chave das abóbadas e descobriu as tele-emissões dos últimos setenta anos. Se alguns dos nossos espectadores tiverem um pouco mais de setenta anos podem vir a tornar-se adeptos de uma filosofia cíclica do pensamento. E o tal café?

—      Vêm sempre servi-lo aqui. Deve estar a chegar. Porque é que não vem cá abaixo tomá-lo comigo?

Dinkuhl disse:

—      Um laboratório autêntico, onde os cientistas trabalham. Re¬parou no tom de ansiedade? Acha que posso? — Voltou a pôr a mão no ombro do mordomo. — Que tal lhe parece, meu rapaz?

Ele disse:

—      Não sei se...

Charles disse secamente:

—      Está certo. Eu respondo pelo Gestor Dinkuhl. Tragam-no cá abaixo, está bem?

Ao entrar, Dinkuhl olhou em volta, interessado. Depois abanou a cabeça, com admiração.

—      Não é que eu perceba alguma coisa disso, mas que é que isto lhe parece em comparação com as instalações que o Ledbetter lhe arranjou? Igual?

—      Bastante melhor. Na Secção Atômica trabalha-se com suavidade — com suavidade e rapidez.

Dinkuhl sorriu.

—      Ah, o novo patriota emplumado! Você andou depressa, não há dúvida! Sempre tive as minhas dúvidas quanto à possibilidade de fazer de si um pessimista. Havia um argumento que você guardou no fundo da alma. Onde é que está esse argumento, a propósito?

—      O argumento?

—      Sarah. Tenho estado a pintar um dístico para si. — Aqui está um bom cavalo para alugar. Aqui podem ver Charlie, o homem casado.

—      Ainda não é tão mau como isso. Ou tão bom. Ela aí vem.

Sarah saiu do seu gabinete. Trazia o desenho na mão. Quando viu Dinkuhl, parou. Charles disse:

—      Este é o Hiram; Sarah.

Dinkuhl:

—      Já vi o seu retrato, mas você é melhor que o retrato.

Ela sorriu:

—      Obrigada. Charles falou-me de si.

—      A propósito da nossa fuga, autêntico desafio à morte, de uma fortaleza inexpugnável, a escorrer leite, mel e Circassianos? Às vezes penso que estou a ficar maluco. Passei perto de cinqüenta anos à procura de uma casa como aquela e, quando a encontro, que é que eu faço? — fujo e arrasto o Charlie, esperneando e gritando atrás de mim.

Sarah riu.

—      Não, acho que não está. Muito prazer em conhecê-lo, Hiram.

Dinkuhl olhou para ela com ar perscrutador.

—      Você é?

Charles disse:

—      Tem o desenho? Importa-se de o passar no projetor?

Dinkuhl olhou para o écran com interesse.

—      Não me diz nada. Isso é a bomba de super diamante ou um corte longitudinal do metropolitano de Nova Iorque?

—      Nem uma coisa nem outra. — Charles fez brilhar um círculo em volta de um ponto saliente no écran-piloto e a contrapartida surgiu em ampliação no écran de parede. — Trata-se apenas de um retificador. Mas bastante fora do comum. E muito elegante. É trabalho da Sarah.

Dinkuhl disse:

—      Diga lá ao Tio Hiram como c que isso trabalha, minha querida.

Sarah fez um gesto na direção de Charles.

—      As explicações são com o Charles. Eu sou uma simples ajudante.

—      Não vale a pena, Hiram — disse Charles. — Não há qualquer possibilidade de vencer a sua ignorância.

—      Também me parece. — Dinkuhl voltou-se novamente para Sarah. —- Vocês os dois parecem-me felizes. Que tal é trabalhar aqui na Secção Atômica? Tem o segredo da felicidade suprema? Talvez eu de¬vesse vir também para cá?

—      Porque não?

—      Sim, porque não? — ecoou Dinkuhl. — É um rico buraco. E quando a coisa estourar os buracos vão fazer jeito. Dão-nos pelo me¬nos mais cinco minutos antes de chegar alguém e começar a despejar gás lá para dentro.

Com um sorriso, Charles desligou o écran.

—      Você é um anarquista, Hiram, e os anarquistas desprezam sem¬pre a capacidade reorganizadora da sociedade.

—      Cinco minutos — insistiu Dinkuhl. — Cinco minutos e logo um ligeiro assobio. — Deitou uma olhadela a Sarah. — Que é que lhe pa¬rece, minha querida?

Ela disse:

—      Você deve ter razão. Mas porque é que não havemos de tentar fazer o que pudermos, enquanto temos essa possibilidade?

—      Poliana na sua granja, por detrás do fosso — comentou Dinkuhl —, acreditando porque não consegue provar.

Sarah sorriu.

—      Acho que é isso.

Charles disse:

—      A Filosofia — mesmo uma filosofia tão sensata e amarga como a sua, Hiram — tem de se ocupar das coisas práticas. Sarah, gostaria de saber que é que pensa da idéia de instalar o banco de polir na sala pequena. Vem, Hiram? Sabe alguma coisa acerca de bancos de polir diamantes?

—      Tanto como acerca de retificadores. Eu fico aqui para roubar o segredo e atirá-lo ao Ledbetter. Talvez seja uma hipótese de eu conse¬guir fazer reviver o FK.

Quando voltaram ao gabinete principal, passados talvez uns cinco minutos, Dinkuhl estava sentado num banco olhando para o écran da televisão. Quando eles entraram, desligou-o.

—      Apanhado em flagrante — disse Charles. — Conforto Brilhante?

O asceta praticante sabe onde deve parar. A Liga Vermelha basta-me. Sempre que as torrentes de otimismo começam a avolumar-se no meu peito imprevisível, basta-me olhar para a Liga Vermelha durante dois ou três minutos. O realismo volta infalivelmente.

—      Não perca a perspectiva — disse Charles. — A Liga Vermelha não é pior do que teria sido nos fins do Império Romano, se houvesse TV nessa altura.

Dinkuhl abanou a cabeça.

—      Inferior, por omissão. Nós já não temos cristãos e os leões fo¬ram castrados. Não quero afastá-los por mais tempo do vosso grande trabalho. Gostei de ter visto tudo isto. Qualquer dia volto cá.

—      Então não ia tomar café conosco! Deve estar a chegar.

—      Façam uma saúde aos amigos ausentes — disse Din¬kuhl. — Lembrei-me agora que há uma pessoa que eu gostaria de visitar enquanto aqui estou e tenho de voltar a Detroit esta tarde. — Fez uma profunda vênia a Sarah. — Tive também muito pra¬zer em conhecê-la, minha senhora. Espero, de futuro, vê-la mais vezes.

—      Teremos sempre muito prazer em o ver por cá, Hiram. Tanto eu como Charles.

Dinkuhl fez um aceno.

—      Sinto-me comovido.

Pouco depois disto, Raven surgiu no écran. Estava meio sorriden¬te, meio sério.

—      Tivemos uma queixa a seu respeito, Sr. Grayner. Já.

—      Sim, Sr. Diretor.

—      O rapaz da porta diz-me que teve um visitante?

—      Sim, o Sr. Dinkuhl.

Raven teve um sorriso aberto, de aprovação, pensou Charles, pe¬rante o seu emprego da linguagem típica da Secção Atômica.

—      Foi o que eu pensei. A questão é que o empregado recebeu ins¬truções em como o seu laboratório é absolutamente secreto. Imagino que tenha ficado perturbado com a atitude um tanto desenvolta do Sr. Dinkuhl e com a sua aprovação perante a mesma. Mandou-o trazer cá abaixo?

— Sim. Não há qualquer hipótese de o Sr. Dinkuhl representar um perigo para a nossa segurança. E isto por três razões: trata-se de um amigo digno de toda a confiança, é incapaz de reconhecer um segredo técnico mesmo que lho ponham diante dos olhos e, de qualquer forma, não há por aqui nada à vista. Pedi a Miss Cohn que demonstrasse na sua presença a instalação de um retificador melhorado. Mesmo que is¬so significasse alguma coisa para ele, não serviria de nada a qualquer outra pessoa.

Raven disse:

—      Meu caro Sr. Grayner! A questão não era a de ter havido qual¬quer perigo ou prejuízo para a segurança. Aquilo que foi prejudicado foi qualquer coisa de menos palpável ainda, embora não necessaria¬mente menos importante — o amor-próprio do rapaz da porta. O que eu gostaria que o senhor fizesse era arranjar passes para quem quiser entrar no seu laboratório. Peça ao Sr. McGuire da Seção de Contato que lhos arranje. Pode presentear o Sr. Dinkuhl com o primeiro; eu ficaria contente se me desse o segundo. Espero ir visitá-lo em breve.

Charles disse:

—      Está bem, Sr. Diretor. Vou fazer isso mesmo.

Desfez o contacto, tendo no espírito uma confusão que não era de modo algum desagradável. Mais uma vez ficara impressionado com o calor e a simpatia de Raven. Dinkuhl era um tipo como deve ser. Ele devia muito a Dinkuhl. Mas não se podia negar que tinha um aspecto um bocado apalhaçado.

Trabalharam até tarde naquela noite e começaram cedo na manhã seguinte. O primeiro problema surgiu pouco depois do almoço; o plasmianto que estavam a usar como isolador térmico apresentou-se com uma série de defeitos. Charles entrou em contacto com Conway, que de momento tratava dos fornecimentos para eles. Era um homem de as¬pecto melancólico, mas com um encanto surpreendente, e muito enér¬gico quando necessário. Escutou cuidadosamente a explicação de Charles.

Depois disse:

—      Material da IQR. Para dizer a verdade, não nos surpreende. Mas nós pedimos o grau A plus e pagamos o preço respectivo. Deixe o caso comigo. Vou mandar imediatamente um homem buscar uma amostra do material estragado.

—      E a substituição? — perguntou Charles. — Quanto tempo leva¬rá?

Conway sorriu.

—      Os programas de substituição da IQR são de vinte e quatro ho¬ras. Normalmente levam dois a três dias; nós, por exemplo, teremos o material dentro de seis horas.

Enquanto o écran perdia o brilho, Sarah disse:

—      Seis horas. Podemos fazer uma pausa.

Charles fez um gesto de assentimento. Havia umas quantas tarefas de menor importância que eles podiam executar, entretanto, mas não sentia grande estímulo para isso.

—      Que é que sugere?

—      Há muito tempo que não dou uma volta de esfera. O vento está bom. Era capaz de ser divertido.

O hangar tinha acesso pelo terraço. Para além do ambiente de Verão que atravessavam, o céu mostrava-se cinzento e ameaçador, se¬meado de nuvens tocadas pelo vento. Os amantes deste desporto afir¬mavam, com um fanatismo dogmático, que ele só era genuíno quando praticado com ventos de força 5, pelo menos, mas, tal como acontece com a maioria dos desportos, os amadores e praticantes esporádicos eram em maior número. O hangar estava cheio. Ao que parecia, o QG da Secção Atômica não contava com muitos entusiastas.

—      Simples? — perguntou Charles.

Os simples eram pequenas esferas para uma pessoa só; havia também os duplos e os múltiplos que podiam levar grupos de seis.

—      Preferia um duplo.

O olhar dela estava cheio de incerteza e de confiança; muito femini¬no e muito lisonjeiro.

Ele disse:

—      Também é o que eu prefiro. Escolhemos um azul?

Os azuis eram as esferas cujo plaspex estava suavemente tinto de azul e cujas válvulas de Sokije eram de grande sensibilidade. Isso torna¬va-os de reação rápida, mas igualmente perigosos em mãos inexperien¬tes. Charles não se dedicara muitas vezes a isso, mas sabia que, mesmo assim, era competente. Só nesse momento reconheceu, com ironia, que estava a representar o papel resultante da escolha de Sarah: o macho habilidoso.

Retiraram a esfera do hangar e entraram. Havia dois assentos, cada um com os seus controles, providos de dispositivos que os desligavam automaticamente, impedindo que fossem usados ao mesmo tempo. Os assentos eram ajustáveis, desde noventa graus a cento e oitenta. Char¬les escolheu o assento e os controles do lado direito. Descomprimiu e ouviu-se o ligeiro assobio do ar a sair e a ser substituído pelo hélio. A esfera ergueu-se suavemente no ar tranqüilo aprisionado no terraço. Depois emergiu, para além da zona condicionada e dos pequenos sóis e o vento atingiu-a como um bastão gigantesco, erguendo-a e fazendo-a balançar, afastando-se cada vez mais. De repente viram-se rodeados pelo céu tempestuoso; o choque da transição, só por si deleitava-os.

—      Isolados t- disse Sarah. — Absolutamente isolados de tudo.

Tinham ascendido a uns milhares de pés em poucos segundos e con¬tinuavam a subir. O edifício da secção Atômica ficara bem para trás; através do plaspex, que lhes permitia verem para todos os lados — por cima, por baixo e em todos os pontos do horizonte — podiam ver cla¬ramente como se encontravam isolados.

Filadélfia também se afastava. Havia alguns giroplanos lutando com o vento e um transatlântico aproximava-se do campo que ficava junto aos limites norte da cidade. Estavam num mundo particular, mais isolado a cada momento que passava.

—      Vê o Sol? — perguntou Charles. — O verdadeiro Sol?

—      Gosto imenso.

Estavam agora numa nuvem, rodeados por um mar de neblina, nuns pontos, mais escura, noutros mais clara. Tal como uma bolha de ar que rebentasse dentro de água, a esfera parecia estar livre. O sol bri¬lhava por todos os lados e tinha reflexos da superfície branca e ofuscante do mundo do qual acabavam de emergir. Era um mundo em movi¬mento contínuo — uma planície onde se formavam brechas que eram rapidamente engolidas, onde tentáculos finos saídos do chão se trans¬formavam em torres quadradas que acabavam por cair nesse mesmo chão donde se tinham erguido. E tudo branco, imponderável e ima¬culado como a neve.

Sarah disse, quase num sopro:

—      É maravilhoso.

—      Talvez devêssemos ficar aqui.

Ela sorriu.

—      E viver de quê? — procurou numa gaveta lateral e encontrou três tablettes. — Disto?

—      Da comida dos anjos — disse Charles. — Da luz.

O ar aqui estava menos turbulento; a esfera continuava a subir, mas devagar. A paisagem encantada fundia-se cada vez mais numa grande planície brilhante que se estendia em todas as direções. Charles aumentou ligeiramente a compressão e a esfera começou a descer. A paisagem abriu-se novamente, em espirais móveis e em contornos. Saborearam a superfície lanosa e ele manobrou delicadamente os con¬troles até que avançaram em frente, como se estivesse a deslizar sobre a neve viva. Por vezes eram ofuscados por um rochedo protuberante e a esfera atravessava o seu interior de um cinzento pérola, voltando a emergir para o sol brilhante. Depois, a nuvem sobre a qual flutuavam abria-se numa vasta ravina, através da qual recebiam, uma ou duas ve¬zes, breves imagens do mundo que jazia a 660 m mais abaixo — o mundo ao qual estavam ligados por uma corda elástica, o mundo da gestão.

Sarah disse:

—      Mais para cima, Charles, mais para cima agora.

—      Até ao Sol?

—      Ou mais ainda.

Ele descomprimiu totalmente, a esfera disparou para cima e os ro¬chedos e as ravinas tornaram-se mais pequenos e perderam-se na brancura da planície que tudo cobria. Em breve perdeu todos os traços indi¬viduais. Era um tapete de neve ofuscante que se estendia em todas as direções, até à curva descendente do horizonte. Era difícil acreditar na existência real do mundo que ficara por baixo da massa de nuvens.

Charles ajustou os controles para estabilizar a esfera. A agulha do altímetro oscilava suavemente um pouco acima do número 3000. Não sabia qual a orientação que podiam ter; as esferas dispu¬nham de um equipamento de fixação da posição, baseado na posição triangular dos faróis transmissores da Telecom, mas não tinham pressa de saber a que distância estavam de Filadélfia. Por muito longe que fos-se, era sempre possível encontrar uma corrente de regresso a uma altitu¬de qualquer. Por agora bastava que saboreassem aquele mar quente de luz dourada, sob o azul do céu.

Sarah despiu a túnica. Por baixo, trazia um vestido curto de um tom azulado que focava bem com a sua pele um pouco escura. Ela pôs a cadeia na posição horizontal e deitou-se. Olhou para Charles, pondo a mão sobre os olhos por causa da luz.

—      Não tem calor?

Ele despiu igualmente o casaco e deitou-o para a parte de trás. Fi¬cou ao lado da túnica de Sarah. Havia um certo significado nesse fato, no qual ele não tinha a certeza de querer pensar. Ele tinha agora a ca¬misa sem manga e os shorts que usava normalmente quando estava em ambientes aquecidos, quando não estava a trabalhar. Sentia com pra¬zer o calor do sol nos braços e nas pernas.

Olhou para Sarah. Esta, com os olhos meios fechados, olhava para ele com ar trocista. Tudo a favorecia naquele momento. O bronzeado da pele de encontro ao carmesim da almofada e o branco azulado da própria atmosfera distante.

Charles disse:

—      Acho que também vou descansar.

Ela sorriu, mas não respondeu. Ele empurrou igualmente a sua ca¬deira para trás e voltou-se, para ficar de frente para ela. O sorriso con¬tinuava.

—      Não sei se...

Os lábios dela mal se mexeram:

—      Sim?

—      É uma questão, científica.

— Se o puder ajudar...

—      As famosas inibições israelitas — não sei se funcionarão com a mesma precisão a grandes altitudes.

O sorriso acentuou-se.

—      A questão é bastante interessante. Qual o caminho a seguir, den¬tro da linha científica?

—      Um caminho experimental.

Aproximou-se dela. O seu consentimento era evidente, mesmo an¬tes de lhe abrir os braços.

Dinkuhl explicara que fizera aquela paragem em Filadélfia e que se¬gui para Nova Iorque. Tivera a idéia de fazer aquele desvio simples¬mente para comer uma refeição com Charles. Era ele que pagava, expli¬cou. Estava em Oak Ridge, o Clube só-para-homens da seção Atômi¬ca, por isso Charles teve de se desculpar e deixar Sarah.

Quando Charles chegou, Dinkuhl estava à espera dele com dois co¬pos altos cheios de rum quente e gengibre.

Disse:

—      Bebe lá isso, meu caro Charlie. Como é que vão as coisas? Você tem o ar de um gato que tem estado a viver de tudo o que há de melhor.

Charles instalou-se numa cadeira e pegou num copo.

—      Muito bem. Não posso queixar-me. E você? Não tem problemas com o Ledbetter?

Charles era de opinião que Dinkuhl deveria ter um guarda-costas da Seção Atômica, visto ter estado ligado ao seu desaparecimento e fuga. A Secção Atômica estivera de acordo, mas Dinkuhl rira-se da idéia. Na sua opinião a Telecom não estava interessada em alardear a sua derrota. Se tomasse qualquer atitude contra ele seria por puro espí¬rito de vingança, pois não tiraria qualquer vantagem material, podendo resultar daí graves inconvenientes para a sua organização, se Charles pusesse a Secção Atômica em ação.

—      Problemas? — Dinkuhl riu. — Sabe que na manhã em que vol¬tamos o Gillray me telefonou? Perguntou-me se tinha estado de férias. Se fosse um tipo menos duro, a cara ter-lhe-ia escorregado do écran.

Almoçaram juntos. Enquanto conversavam, Charles compreendeu que alguma coisa preocupava Dinkuhl; conversava e gracejava, mas a conversa e os gracejos eram mecânicos. Não fez qualquer tentativa pa¬ra descobrir o que é que se passava; Dinkuhl não era o tipo de indiví¬duo que encorajasse uma investigação solícita dos seus problemas. Mas foi o próprio Dinkuhl que pôs tudo à claro ao café.

—      Tenho um problema, meu caro Charlie.

Charles acenou afirmativamente.

—      Raro. Tão raro que proponho a minha ajuda, se puder dá-la.

—      Gostaria que me desse um conselho. Não é uma questão pessoal, isto é, o que me preocupa não me diz respeito a mim, mas ao Burt!

—      Awkright?

—      Sim. Sabe que a sua nova organização se serviu dele para entrar em contacto conosco — através de Sarah. Contaram-lhe uma história acerca das maravilhas da Secção de Contacto deles e conseguiram ficar à saber que ele fazia parte do meu pequeno grupo de rebeldes — meu Deus, esses tipos deviam ter o salário mais alto de todas as Seções de Contacto, as coisas que eles inventam! Ele contentou-se em pensar que os tipos da Seção Atômica eram excepcionalmente inteligentes — e continua a pensar assim.

Na mesa ao lado, alguém fez subir no ar uma nuvem de aromac que fez dançar no ar as suas bolhas delicadamente coloridas, enchendo o ar com a sua fragrância. Charles não apreciava o perfume à hora das re¬feições, mas tratava-se de um hábito longamente aceite, pelo que não havia lugar para protestos. Pensou suster a respiração até que o primei¬ro impacte se tivesse evaporado, mas acabou por decidir, como já fize¬ra antes, que era preferível inalar profundamente e dessensibilizar as suas percepções olfativas.

Respirando fundo, perguntou:

—      E então?

Dinkuhl deitou uma olhadela à mesa do lado. Comentou numa voz bem audível:

—      O mundo está a tornar-se impossível. — Retomou o tom de voz normal. — Eu não fiquei tão satisfeito como ele. Comecei a investigar e descobri que a Seção Atômica não era a única a saber — bem longe disso. Estava ao corrente de que a Telecom sabia, claro — tinham de saber para o poderem apanhar através de mim. Mas havia mais — Minas, Aços... Genética.

—      A Genética?

—      Sim. A própria organização do Burt. Tomaram algumas precau¬ções, mas não muitas. Pensamos que não tivéssemos grande interesse e não tínhamos, mas provavelmente serviu de exercício para as brigadas dc contacto. Estamos todos bem localizados e etiquetados.

—      Para tomarem medidas.

—      À título informativo. Todos eles são trabalhadores válidos e eles acham que, hoje em dia, os trabalhadores válidos têm, quase todos, as suas aberrações; por isso toleram-nos desde que não haja perigo.

Charles disse com ar abstrato:

—      Então não vejo que é que o preocupa?

—      O Burt é uma pessoa mais complexa do que você pensa — disse Dinkuhl. — Já o conheço há bastante tempo e sei o que ele faria, se soubesse que a sua ligação revoltosa comigo e com os outros era conhe¬cida do pessoal superior da Genética. Pedia a transferência — para qualquer lado, desde que fosse fora da Genética e longe de Detroit. Não suporta que tenham pena ou se riam dele.

—      A maior parte das pessoas não gostam.

—      Mas lá se arranjam; Burt não o suportaria. Está a perceber'' De¬vo dizer-lhe a verdade ou não? Não é provável que ele venha à saber, a menos que eu lhe diga. Se eu lhe disser, ele vai-se embora e sentir-se-á infeliz. Se eu não lhe disser... aqui é que eu preciso do seu conselho: um tipo está a viver uma felicidade ilusória — que é melhor, deixá-lo conti¬nuar ou dar-lhe uma sacudidela?

O pensamento de Charles estava em parte ocupado com Sarah, em parte com o problema da miniaturização de um sistema de conversão termoelétrico. Deu uma atenção morna à pergunta de Dinkuhl, até perceber que este lhe estava a pedir conselho sobre uma questão de princípio. Tentou concentrar-se.

—      Eu dir-lhe-ia tudo. As pessoas têm o direito de saber a verdade. Ninguém pode decidir por si se é bom ou mau que outra pessoa saiba aquilo que lhe diz respeito. Trate-se do que se tratar e sejam quais forem os resultados.

Dinkuhl cerrou os lábios.

—      Acho que você tem razão, talvez estivesse a pensar em mim próprio; vou ter uma pena danada se o Burt se puser a mexer para outro sítio.

—      Sabe que é que devia fazer? — disse Charles. — Incorpore o FK na Secção Atômica e venha instalar-se em Filadélfia. O Raven ia nisso, quanto mais não fosse para aborrecer a Telecom.

Dinkuhl sorriu.

—      Vou pensar nisso. Depois falamos — voltarei a vê-lo em breve.

Entretanto as coisas corriam suavemente. O próprio Raven apa¬recia pelo laboratório de tempos a tempos; mostrava-se muito amável e denotava um interesse inteligente. Um dia, Charles descobriu que ele estava à seu lado enquanto acabava de polir uma pedra. Ouviu a voz de Raven acima do ranger nervoso da máquina.

—      É interessante vê-lo polir as suas próprias pedras, Sr. Grayner. Embora deva dizer que isso não me surpreende. — Charles endirei¬tou-se. — Essa está quase pronta?

Charles pegou na pedra, montada numa base de plasmetal. Car¬regou no interruptor e a máquina foi perdendo velocidade, gradual¬mente.

—      Esta está acabada, Sr. Diretor.

—      Posso ver?

Charles passou-lhe a pedra. Raven pegou numa lupa e submeteu o diamante a um exame bastante profissional. Pondo-o finalmente de lado disse:

—      Corte em brilhante. Corte Brown?

Charles acenou afirmativamente. Estava surpreendido, mas mostrou-se cauteloso.

—      Não sabia que tinha trabalhado nesta linha, Sr. Diretor.

—      Trabalhado não. — Raven sorriu. — Tenho aquilo que se cha¬mava noutros tempos um espírito de borboleta — ou talvez espírito de gralha fosse um termo mais apropriado. Os pequenos conhecimentos fascinam-me, as artes menores. Explique-me uma coisa, Sr. Gray¬ner — porque é que cortes excelentes, como o brilhante, que surgiram- posteriormente, vieram a desaparecer, enquanto os cortes primitivos, como o de rosa, conseguiram sobreviver?

—      Também eu gostava de saber. Já tenho feito essa pergunta a mim mesmo.

—      É muito simples. Os diamantes sintéticos de Luckert. Foram um dos últimos desenvolvimentos tecnológicos antes do interregno. Du¬rante a guerra e no período do após-guerra, o valor dos diamantes su¬biu loucamente, como sempre, por uma questão de guarda de valores. O diamante sintético de Luckert conseguiu enganar muita gente, a tal ponto que se passou a dar a primazia a diamantes cortados segundo os estilos mais antigos, por se presumir que esses, pelo menos, eram genuínos.

Charles disse:

—      Mas não é difícil distinguir uns dos outros — há a descoloração, o teste piezelétrico.

—      Sim, mas a descoloração verifica-se no espaço de um ou dois anos — portanto isso não serve para orientação do comprador no momento da compra, não acha? Quanto ao teste, não se esqueça que os diamantes eram vendidos em pequenos estabelecimentos e, durante o período mais agudo as pessoas não dispunham do equipamento espe¬cial. Era mais fácil concentrarem-se nas pedras de corte mais primitivo.

—      Seria de esperar que os especialistas se ocupassem do caso.

—      E fizeram-no. Mas o corte em brilhante nunca mais foi reto¬mado. E é assim, Sr. Grayner, que certos detalhes de um trabalho e mesmo todo um trabalho se tornam desconhecidos do mundo. — Raven deu a volta à pequena sala onde estava instalado o banco de polir diamantes, pegando em diversas coisas, observando-as e voltando a pô-las no lugar. — Sr. Grayner, agrada-lhe trabalhar aqui?

—      Agrada-me muito, Sr. Director.

Raven olhou em volta com ar depreciativo.

—      Não se pode dizer que as instalações sejam magníficas. Estaria melhor com a Telecom, pelo menos, do ponto de vista material. Bom, temos de ver o que é que podemos fazer por si. Tem alguma razão de queixa, por exemplo?

Charles hesitou por breves instantes, mas a hesitação fora involun¬tária e ele tomou rapidamente a palavra para a disfarçar.

—      Absolutamente nada, Sr. Diretor. Tenho tudo o que preciso.

—      O senhor e Miss Cohn entendem-se bem?

Desta vez, respondeu sem hesitar:

—      Muito bem.

—      Ótimo. Espero que não hesite em me procurar se houver al¬guma coisa. Não hesite em ocupar o meu tempo. O seu é mais valioso.

Raven saiu, no seu passo vivo de homem idoso e Charles teve de dominar um impulso para ir atrás dele ou para o chamar. Dominou-o, da mesma forma que dominara a hesitação anterior e pela mesma razão. Não era que duvidasse da boa vontade de Raven, nem mesmo da sua capacidade para o ajudar. O fato é que era impossível concretizar qualquer das suas dúvidas ou preocupações sem criticar, ainda que por implicação, a própria Sarah.

Fora do laboratório a sua vida em comum prosseguia harmoniosa¬mente. Fazia a maior parte das coisas e iam à maior parte dos sítios jun¬tos. Charles não permitia que as suas dúvidas estragassem esta parte da sua associação. Tudo o que se relacionava com o amor era uma expe¬riência nova para ele e estava decidido a não a deixar estragar, fosse de que forma fosse.

Passavam muito tempo andando de esfera, pelo ar — geralmente juntos, mas ocasionalmente cada um na sua esfera. Então tinham o pra¬zer de se perseguir por colinas e vales invisíveis. Procuravam-se ao lon¬go dos rios de vento, rios que eram capazes de se tornar, inesperada¬mente em cascatas acidentadas que faziam mergulhar as esferas cente-nas e centenas de pés, para baixo ou para cima e com a maior rapidez. Seguindo muito perto dela, Charles podia encontrar-se de repente olhando-a lá em baixo, na distância, ou procurando-a lá no alto, cego pela luz do sol, nas altitudes onde a esfera vogava, distante.

Os Alegânios eram para eles uma fonte de prazer. Ali podiam ca¬valgar as correntes que subiam junto às vertentes rochosas das monta¬nhas c escorregar perigosamente ao longo dos cumes cortantes que po¬deriam tão facilmente rasgar a superfície do plaspex, lançando os ocupantes da esfera sobre os imensos rochedos, indo cair por fim nos pequenos vales distantes.

Havia também o prazer de levar as esferas até uma plataforma ro¬chosa banhada de sol, no teto do mundo, de as fixar à vertente da montanha com as ventosas de impacte; de comer e beber naquele isola¬mento quente e silencioso; de estarem sentados a conversar ou simples¬mente a tomar banhos de sol. De fazer amor.

Quando Dinkuhl fez a sua visita seguinte, Charles mandara Sarah verificar pessoalmente alguns fornecimentos que tinham sido requisita¬dos por Conway.

—      Dinkuhl disse:

—      Olá, Charlie.

Charles respondeu-lhe com uma seriedade jocosa:

—      Onde é que você tem o seu passe?

Dinkuhl fez um sorriso contrafeito. Era evidente que não estava di¬vertido. Charles disse:

—      Burt pediu a transferência?

Dinkuhl acenou afirmativamente.

—      Foi-se embora ontem à noite. Esse seu conselho. Dizer a verdade e deixar que os fragmentos saltem para onde lhes apetecer. Continua a achar que deve ser assim?

—      Sem dúvida. Mas lamento que tenha perdido o Burt. Para onde é que ele foi?

—      Para a Lignina. No Norte da Finlândia. Esses têm com que se regozijar. Têm mais falta de tipos capazes do que a maior parte das or¬ganizações. Aliás, todas têm falta, à exceção da notável e gloriosa Sec¬ção Atômica. E a Sarah?

—      Foi verificar uns fornecimentos. Não tarda aí.

Dinhuhl recostou-se num dos bancos; tinha um ar de desassossego e a sua voz tomara o tom ligeiramente afetado que apontava para uma certa excitação interior.

—      É assim que estão organizados agora? — perguntou. — Você faz o trabalho e ela verifica os fornecimentos? Julguei que o seu segun¬do nome era Einstein.

Charles disse, em tom zangado:

—      Que é que você quer dizer com isso, Hiram?

—      Oh, oh — disse Dinkuhl suavemente —, você está preocupado. Tem grandes preocupações. Conte aqui ao Tio Hiram.

Charles fitou-o.

—      Por amor de Deus! Você está louco! Quem é que está preocupado?

—      Que é que se passa, Charlie? — perguntou Dinkuhl. — Ela já não é tão brilhante? Não consegue perceber coisas que parecem eviden¬tes? Chega a perguntar a si mesmo se não lhe terão dado uma pancada na cabeça durante as semanas que estiveram separados?

Charles conseguiu impedir-se de gritar.

—      Não sei o que é que lhe passou pela cabeça. Se calhar foi a trans¬ferência de Burt. De qualquer forma, prefiro que guarde isso para ou¬tro sítio. — Voltou-lhe as costas. — Terei muito gosto em o voltar a ver noutra disposição.

—      Levo esse convite no meu coração. Aqui a temos. Olá, Sarah. Tem copiado alguns bons sketches ultimamente?

Charles não fazia qualquer idéia do que Dinkuhl queria dizer, mas o seu tom era indiscutivelmente ofensivo. Esperava que Sarah apa¬nhasse uma fúria ou então que o tratasse com um desprezo glacial. Mas não aconteceu nada disso. Ela disse em tom conciliador:

—      Ainda bem que conseguiu vir por cá, Hiram.

Dinkuhl observou-a por momentos. Depois sorriu.

—      Do que todos precisamos — comentou — é de uma bebida. Aceitam uma bebida?

Charles hesitou. Sarah disse:

—      Com muito gosto.

Dinkuhl tirou uma garrafa da algibeira. Tinha dois pequenos copos de plástico amarrados. Encheu-os e olhou em volta com ar interrogador.

—      E um copo para o Tio Hiram? Consegue arranjar-me um Sarah?

Enquanto Sarah o foi buscar, Dinkuhl pegou nos que já tinha en¬chido. Deu um a Charles; o outro segurou-o na mão, com a palma em concha por cima dele. Quando Sarah voltou, deu-lho e pegou no copo que ela tinha trazido e deitou um pouco para si próprio.

—      A todos os homens honestos — disse. Fez uma vénia a Sarah. — E mulheres honestas.

Ela tossiu um pouco enquanto bebia.

—      Que é?

—      É bom? Licor de uva. Tenho uma fonte.

Ela sorriu.

—      E bem boa.

—      Todas as minhas fontes o são. — Dinkuhl fitou-a com ar pensativo. — Sabe uma coisa? Charles esteve a dizer-me que está decepcio¬nado consigo. Acha que não está a dar o devido andamento às coisas. Ele...

Charles avançou e colocou-se em frente de Dinkuhl. Disse seca¬mente:

—      Não sei o que è que lhe passou pela cabeça, Hiram. Mas, pela úl¬tima vez, ponha-se a mexer. Ponha-se a mexer!

Dinkuhl disse:

—      Sabe, eu não conheci Sarah. Mas sei o suficiente sobre ela para ter a certeza de que ela não precisaria da sua ajuda numa discussão, Charlie. — Voltando-se para ela: — Então, minha querida?

Ela disse, sem convicção:

—      Sinto-me tonta.

Dinkuhl passou-lhe gentilmente o braço em volta dos ombros.

—      Venha estender-se, minha querida. Precisa descansar. Pronto. Deite-se aqui.

Levou-a até junto do sofá e instalou-a confortavelmente. Ela aba¬nou a cabeça, como se estivesse a sacudir teias de aranha.

Dinkuhl disse:

—      Agora vai dormir, minha querida.

A voz dele era intencional e ela endireitou-se com um estremeci¬mento, como que reagindo-lhe:

—      Quer dizer...? A bebida!

Charles perguntou:

—      Mas que é que anda a fazer?

Dinkuhl disse suavemente:

—      Como é que se chama, minha querida? Antes de adormecer, co¬mo é que se chama?

A fala tornava-se-lhe arrastada; incapaz de manter o esforço, ela voltou a deitar-se:

—      Sarah Cohn. Sabe...

Dinkuhl abanou a cabeça.

—      Não. Esse não. O seu nome verdadeiro.

Ela tentou falar novamente, mas não conseguiu. Olhou para eles por momentos, cheia de pânico e aflição, e depois fechou os olhos fi¬cando inconsciente. Charles precipitou-se para junto dela e estava ago¬ra sentado junto da rapariga, segurando-lhe a mão inerte. Voltou-se para Dinkuhl.

—      Espero que seja coisa boa, Hiram. Espero bem.

Dinkuhl disse:

—      Não pense que me sinto feliz. Também não me sentia feliz quan¬do falei com o Burt. Foi por isso que lhe apresentei a questão da última vez que cá estive. Percebi que você se sentia feliz com a rapariga e isso tornava as coisas mais difíceis. Foi um alívio você ter mostrado tão cla¬ramente, agora desta vez, que estava preocupado. E estava, não estava?

Charles sentia-se incapaz de se zangar ou de experimentar qualquer outra emoção positiva. Olhou para o corpo de Sarah que respirava sua¬vemente. Sarah? Uma Sarah particularmente incapaz no seu trabalho, uma Sarah que quase lhe dava a idéia de estar a disfarçar a sua própria ignorância. As dúvidas que ele reprimira vinham agora à superfície, co¬mo pedacinhos de madeira perdidos na corrente.

Dinkuhl disse:

—      Sabe, eu tinha tido acesso aos relatórios da Secção de Contacto da IQR — que incluíam o psicoplano de Sarah. Um espírito de donze¬la. Mas mesmo que esse aspecto não estivesse tão fortemente marcado, seria razoável que uma rapariga que mostrava tão claramente estar in¬teressada em si, reagisse de maneira diferente à minha pessoa. A pri¬meira vez que aqui estive, representei o meu papel e fiz-lhe certas obser¬vações que ela aceitou como um cordeirinho. Não estava certo, Char¬lie. Não estava certo para uma rapariga normal e ainda menos certo pa¬ra uma rapariga com um psicoplano como o de Sarah.

Charles olhou para ele e depois novamente para a rapariga.

—      Quer dizer que lhe fizeram qualquer coisa? O quê? E para quê, Santo Deus?

—      Essa rapariga não é a Sarah, Charlie. Nunca o foi.

Charlie abanou a cabeça.

—      Eu conheço-a. É a Sarah. Basta a voz dela...

Dinkuhl inclinou-se sobre a rapariga. Puxou um pouco para baixo o decote da túnica e apontou para uma linha que se via na pele, muito tênue, talvez com uma polegada de comprimento.

—      Operação de Gannery. Reformação das cordas vocais. Podem realizar-se trabalhos de grande precisão e julgo que este foi um deles.

—      Como é que sabia que ia encontrar essa linha?

—      Tinha de a encontrar. Sabia que ela era uma falsificação. Lem¬bra-se de quando ela nos mostrou aquele desenho no écran de parede? Você saiu com ela para lhe mostrar o banco de polir diamantes. Dei uma espreitadela ao gabinete dela enquanto não voltavam. Ela tinha copiado aquele desenho de uma fotocópia do original feito por Sarah. Para que precisaria ela de o copiar, a menos que ela própria não fosse Sarah? Eles tinham-na preparado bem, mas não se pode preparar uma pessoa com anos de experiência científica.

Charles não tirava os olhos da rapariga imóvel.

—      Não posso acreditar. Aquela pequena cicatriz... podia ter sido outra coisa.

Dinkuhl estava de pé junto dele.

—      Lembra-se de ter sido Charlie Macintosh, Charlie? Macintosh era um tipo autêntico. Trabalha numa obscura estação de abastecimen¬to na África do Sul. Ter-nos-íamos fartado de rir se você tem chegado a encontrar-se com ele. Burt ainda teve de vencer certas dificuldades para o descobrir: tinha de ser alguém que se parecesse muito consigo, mas mais gordo. Você pode fazer com que uma pessoa pareça mais gorda, não pode fazê-la encolher. Ele tinha as faces cheias, enquanto as suas são secas.

Fez uma pausa, contemplando o rosto da rapariga que tinha sido Sarah.

—      Um rosto interessante. Bonito, sem ser precisamente belo. As têmporas um pouco salientes a seguir à linha das sobrancelhas. Pouco usual.

Dinkuhl retirou um canivete da algibeira, soltou a mola e fez saltar a lâmina de safira, que brilhou um pouco. Charles olhou-o fascinado enquanto ele se inclinava sobre o rosto inconsciente. Ouviu-se a si pró¬prio gritar: «Pare!» Com um movimento hábil, Dinkuhl abriu a carne da rapariga, na base do frontal.

Ergueu nos dedos uma tira de carne que tinha cortado. A incisão não sangrava. O corte tinha exposto não a carne, mas o plástico. Ago¬ra, para além de qualquer dúvida, Charles sabia que tinha amado uma máscara. Dinkuhl atirou o pedaço de plástico para um recipiente do li¬xo; afastou-se da rapariga e encostou-se a um banco, do outro lado da sala. Olhou para Charles.

—      Então, meu caro? Como é que vai ser?

Charles disse, numa voz inexpressiva:

—      Diga-me você. Como é que quer que eu saiba?

—      As pessoas têm sempre o direito de saber a verdade.» Não, não estou a fazer troça de si, Charlie. Não pertenço ao tipo estritamente monógamo, mas imagino como deve ser. Desta forma é, pelo menos, mais rápido. Acabaria por descobrir mais cedo ou mais tarde. Eles ain¬da atuam na convicção de que os cientistas são estúpidos. Você já des¬confiava, com os diabos. Assim foi melhor.

Charles sacudiu-se. Compreendia toda a verdade das afirmações de Dinkuhl, mas não lhe tornava mais fácil o ter de agir segundo elas. Des¬cobrir que tinha sido enganado desta forma era um tanto pior do que quando pensara que ela tinha morrido. Olhou para Dinkuhl, quase interrogativamente.

—      Raven...?

—      Um verdadeiro cavalheiro do Sul. Ledbetter não valia nada. O Raven é bom. Todas estas combinações complicadas, feitas com a convicção de conseguirem arrancá-lo à Telecom. Nós limitamo-nos a facilitar-lhes as coisas, encarregando-nos da fuga. Raven é o ponto má¬ximo. Você chegou ao cimo do mundo da gestão, Charlie. Não pode su¬bir mais. É aqui que as pessoas calçam luvas antes de pegar nas suas fa¬cas.

Charles olhou para Dinkuhl, desesperado.

—      Que é que se pode fazer de melhor? Gostava de falar com o Ra¬ven. Acha disparatado?

—      Não. Disparatado, não. Diria antes inevitável. — Olhou em volta. — Era capaz de afirmar que existem aqui as precauções habi¬tuais. Mesmo que assim não seja, é-me fácil imaginar coisas mais sim¬ples do que pretender sair de um lugar destes. Todo este ar descuidado tem, na minha opinião, um aspecto um tanto estudado.

—      Também acho. Os patifes daquela espécie não correm riscos.

—      Não seja azedo, Charlie — com os indivíduos, não. Daí não se tiram dividendos. — Dinkuhl levantou ligeiramente a cabeça. Ouviu-se uma porta deslizar no vestíbulo. — Um visitante. Apanhados em fla¬grante. Mas a rapariga não está morta.

Era o próprio Raven. Parou assim que atravessou a porta. Os seus olhos brilhantes e divertidos abrangeram todo o quadro — Dinkuhl encostado contra o banco, Charles ainda sentado no sofá junto do cor¬po deitado da rapariga.

Raven disse:

—      Bom dia, Sr. Grayner. E Sr. Dinkuhl. — Olhou na direção da rapariga. — Essa senhora parece estar indisposta.

Automaticamente, Charles disse:

—      Bom dia, Sr. Diretor.

Dinkuhl reclinou-se um pouco mais. Pôs-se a falar:

—      Parece-me que esta senhora bebeu qualquer coisa que não lhe assentou bem. Haveria algum inconveniente em que no-la apresentasse, Diretor Raven, para sabermos a quem devemos pedir desculpa?

Dinkuhl observou a cena com um desinteresse tranqüilo, enquanto Raven se dirigiu ao sofá e se inclinou para examinar a rapariga. Raven endireitou-se de novo, momentos depois, e olhou para ambos.

—      Os cavalheiros têm algum inconveniente em que eu faça transfe¬rir Miss Levine para que ela possa recolher à cama? Não creio que vá recuperar as faculdades antes de decorridas algumas horas.

Charles não disse nada. Dinkuhl acenou afirmativamente.

—      Tenha a bondade. Está em sua casa. Pela nossa parte, gostaría¬mos que se ocupassem de Miss Levine.

Raven foi direito ao écran de chamada. Ouviram-no pedir dois maqueiros. Depois desligou e voltou a dirigir as atenções para eles. Disse:

—      Isto é muito aborrecido. Sempre esperei que pudesse durar mais algum tempo — mais algumas semanas, pelo menos. Mas temos de aceitar os acontecimentos tal como eles se apresentam.

—      A vida é assim — disse Dinkuhl gravemente. — Espero que fa¬ça transmitir a Miss Levine, logo que ela acorde, que lamentamos mui¬to. Ela há-de compreender que não se tratou de uma questão pessoal.

Raven disse:

—      E o senhor? Também quer que diga a Miss Levine que lamenta muito, Sr. Grayner?

A implicação era óbvia e Charles sentiu-se picado. Mas a chegada dos maqueiros impediu-o de falar imediatamente. Colocaram a rapari¬ga cuidadosamente sobre a maca. Raven disse:

—      Levem-na aos seus aposentos, por favor, e chamem uma enfer¬meira.

Charles sentiu que Raven o observava enquanto a pequena procis¬são saía do quarto. Quando a porta se fechou sobre eles, disse:

—      Sim, que lamento muita coisa, Diretor Raven. Estão todos preocupados em não fazerem papel de parvos. Só não lamento ter des¬coberto a verdade. A Assistente Levine estava a cumprir o seu dever. Não é culpa de ninguém se as coisas acabaram assim.

—      Se temos de usar esses títulos — disse Raven suavemente —, de¬vemos usá-los bem, Gestor Levine — uma jovem excepcionalmente brilhante e dotada, em quem temos o maior orgulho.

—      Com a opinião que agora tenho da Seção Atômica, isso não me surpreende.

—      As suas opiniões são absolutamente compreensíveis. Seriam compreensíveis, mesmo que não tivesse o benefício da tutela do Sr. Dinkuhl. Mas espero que não sejam definitivas. O senhor é um ho¬mem inteligente, Sr. Grayner — isto não é lisonja, é uma afirmação que se impõe. A inteligência do Sr. Dinkuhl é igualmente notável, mas o seu intelecto é prejudicado pelas suas emoções; especialmente por aquele desejo premente de destruição, que é um traço tão marcado da sua atitude perante a sociedade. Já antes discuti este ponto consigo.

Dinkuhl disse, preguiçosamente:

—      O meu retrato: Sansão com cada um dos braços em volta de um pilar.

Charles disse:

—      O senhor convenceu-me de que Hiram assumira uma posição in- justificadamente pessimista. Mas parte dessa convicção nascia da cren¬ça de que o senhor e a Secção Atômica representavam algo de mais ele¬vado que os outros.

—      Com grande desgosto meu — disse Raven —, senti-me obriga¬do a dar-lhe essa impressão um tanto exagerada da minha integridade pessoal. Ela tornava-se necessária, em vista das experiências que já ti¬nha tido anteriormente. Gostaria que acreditasse que eu teria preferido ser franco consigo ou, uma vez que não podia ser franco, desonesto à maneira humana normal.

—      Sabe dizer a verdade?

—      A partir deste momento, Sr. Grayner, não ouvirá outra coisa de mim. Não valeria a pena.

Charles disse:

—      Onde está Sarah Cohn? Nas mãos de quem?

—      Não sei. Procuramos cuidadosamente e não a encon-tramos — nem a ela nem ao Isaacssohn. Como pode imaginar, não nos poupamos a esforços para encontrar os dois. Pode ser que estejam mortos. É a conclusão á qual nos força a ausência de qualquer informa¬ção. Bem vê que estou a ser franco agora, Sr. Grayner.

—      Está? — perguntou Dinkuhl. — Ou estará a tentar persuadir o Charlie de que será melhor contentar-se com uma aproximação? Mais um retoque de plástico e Miss Levine estará como nova.

—      Não, Sr. Dinkuhl — disse Raven. — Julgou-me mal. Estava a ser sincero. Está a pôr as coisas pelo pior, embora eu admita que tenho esperança que o Sr. Grayner consiga ultrapassar o seu atual ressenti¬mento contra Miss Levine. Mas de momento não estava a pensar nisso. — Deitou um olhar a Charles. — Miss Levine aceitou esta tarefa com grande relutância e aceitou finalmente apenas porque lho pedi pessoalmente e porque era a única pessoa que se poderia vir a asse¬melhar fisicamente a Miss Cohn, sendo, além disso, capaz de o enganar durante algum tempo em questões de personalidade e capacidade téc¬nica. O seu insucesso — pois receio que o tenha sido — mostra a difi-culdade do empreendimento. Ninguém teria sido capaz de o fazer tão bem, mesmo assim.

—      Ela cometeu um grande erro — comentou Charles. — E teria sido fácil evitá-lo. Sarah é essencialmente casta. O psicoplano dela não mostrava isso?

Raven fez um aceno.

—      Tal como Miss Levine — disse.

—      Então foram as ordens que ela recebeu que estavam erradas.

—      Ela não recebeu ordens nenhumas. Acho que o estou a com¬preender, Sr. Grayner. Seja o que for que tenha acontecido entre os dois, não fazia parte do nosso plano. Julgo que me fará a justiça de acreditar que eu não cometeria um erro tão crasso.

—      E então?

—      Miss Levine ficou surpreendida — e não satisfeita, Sr. Gray¬ner — ao descobrir que, nalguns aspectos, o seu trabalho era mais atraente do que esperava. Em breve começou a gostar de si.

—      Foi ela que lhe disse isso?

Raven passou a mão bem cuidada pelo cabelo branco e bem tratado.

—      Tinha de o fazer, Sr. Grayner. Era necessário explicar o pedido para poder ser retirada do trabalho.

—      E ela pediu isso?

—      Três vezes. A última foi ontem à tarde. Tive de recusar os seus pedidos. Disse-lhe que esperava que dentro de uma ou duas semanas o senhor já estivesse suficientemente integrado nesta organização para lhe poder explicar a verdade. Não contei com o Sr. Dinkuhl que parece ter a especialidade de revelar os segredos indiscretos.

Incrédulo, Charles perguntou:

—      E pensa que, nessas circunstâncias, eu teria ficado?

Raven disse:

—      Sr. Dinkuhl, é um frasco que vejo na sua algibeira? Não seria possível tomarmos todos, uma bebida, desta vez, não adulterada?

Dinkuhl fez um sorriso cínico. Encheu os dois copos de plástico e o de vidro. Ficou com o copo que servira à rapariga e passou os outros dois.

—      Eu fico com os resíduos. À sua, Diretor Raven.

Raven pegou na bebida, cheirou-a, bebeu e fez estalar ligeiramente os lábios.

—      Boa bebida, Sr. Dinkuhl.

—      Sempre me contento com o melhor.

—      Uma boa divisa. Agora, Sr. Grayner — teria ficado? Espero que sim. E espero que ainda esteja disposto a isso.

Era claramente o princípio de uma longa conversa. Charles interrompeu-o.

—      Antes de prosseguir, Diretor Raven, gostaria de expor as mi¬nhas opiniões sobre uma questão — sobre os laços que podem existir, que deveriam existir entre o indivíduo e a organização. Eu vejo dois e apenas dois: lealdade natural e confiança. Eu continuei a sentir uma certa lealdade para com a IQR, mesmo depois de ver que era ineficiente e corrupta, porque essa lealdade vinha muito de trás. Não me é possível sentir essa espécie de lealdade para com a Seção Atômica. E aí que surge a necessidade da confiança. E esse é um sentimento vulnerável. Não agüenta o tratamento que lhe deu — sejam quais forem as inten¬ções. Garanto-lhe que está morto. Morto e enterrado.

Houve um breve silêncio, como se Raven estivesse à espera de ter a certeza de que Charlie terminara o que tinha a dizer. Depois falou:

—      Lealdade para com uma organização — confiança numa organização — isso são sentimentos para as camadas mais baixas da sociedade. O senhor já não pertence a essa categoria, Sr. Grayner, tal como acontece com o Sr. Dinkuhl. E não pode voltar a ela. Acha que podia voltar para a IQR agora? Poderia sequer pensar nisso? O senhor já se juntou aos emancipados e talvez seja essa a sua desgraça. Mas uma coisa é certa: isso não torna a vida mais fácil, nem torna óbvio ou garantido o curso das suas ações futuras.

»A sua desilusão não é nova para mim, Sr. Grayner. Conhecia-a há muitos anos. O diretor-geral de uma organização é a última pessoa a poder ser um adepto romântico e idealista do sistema. Ele vê muitas coisas desagradáveis e é obrigado a tomar parte em muitas delas. Mas é forçado a continuar a trabalhar para a outra lealdade mais elevada que lhe incumbe.

—      Qual é ela? — perguntou Dinkuhl.

—      Lealdade para com a raça humana. É uma lealdade muito vasta e nem sempre fácil de entender — é mesmo impossível entendê-la en¬quanto se não ultrapassam as outras lealdades. Mas trata-se, como é evidente, da lealdade fundamental do homem.

—      E a lealdade fundamental — sugeriu Dinkuhl — exige que Charlie continue a trabalhar para a Secção Atômica — embora não precisemos de lhe dar esse nome. Como é que havemos de lhe chamar? Preservadores Reunidos da Humanidade — que tal?

Raven não se mostrou perturbado. Sorriu para Dinkuhl, sem res¬ponder.

—      Nenhuma das coisas que lhe disse no nosso primeiro encontro é invalidada pelo fato de ter descoberto que eu o enganara quanto a Sa¬rah Cohn. Como eu já disse, era garantido que a situação não se podia manter por muito mais tempo. Arrisquei-me a enfrentar a decepção e o ressentimento que iria certamente sentir dada a minha fundamental confiança na sua evolução de nível. Assim como na sua capacidade de se colocar acima das suas próprias necessidades e desejos.

—      É isso que lhe peço que faça agora, Sr. Grayner. Esqueça os seus problemas pessoais por alguns momentos e estude a situação sob uma luz mais geral e mais fria. A raça humana enfrenta agora um dos seus momentos de decisão e o senhor pessoalmente pode ter grande impor¬tância quanto ao caminho a tomar por essa decisão. Mesmo sem a des¬coberta de Isaacssohn, a situação ter-se-ia tornado crítica, mas agora é urgente. Digo-lhe com toda a seriedade que o mundo pode estar a cami¬nho da devastação.

Dinkuhl disse:

—      Não é a primeira vez. Cnossos foi pilhada há cinco mil anos. E acha que a Seção Atômica sobreviverá?

Raven aproximou-se de Dinkuhl. Parou em frente dele, com as mãos cruzadas.

—      Já pensou como terá sido o saque de Cnossos, Sr. Dinkuhl? Não é possível que a letargia, a fraqueza de espírito, que o senhor, com tan¬ta justiça, reprova ao mundo, o possa ter cegado às fúrias adormeci¬das? É que elas estão apenas adormecidas — a Seita do Cometa mostra-nos isso. E esta trama social que o senhor despreza que as impede de acordarem. Destrua-a e vê-las-á esfregar os olhos.

Dinkuhl olhou para ele e sorriu.

—      Já estão a esfregar os olhos, Diretor Raven. E ainda mais, já se lhes ouve o barulho das tripas.

—      Pensa então que o homem foi feito para matar — para a tortu¬ra, a violação e a brutalidade?

Dinkuhl ficou silencioso por momentos. Depois disse:

—      Não sei para que é que ele foi feito. Talvez para estar sentado em frente de um écran de televisão. Nesse caso, aceito a tortura, a vio¬lação e a brutalidade; há qualquer coisa de saudável à volta disso.

Raven rodou sobre si mesmo, num movimento fácil e sem pressa, para olhar para Charles.

—      A questão é esta, Sr. Grayner; compartilha as opiniões do seu amigo sobre os cataclismos? Está de acordo com ele que a Liga Verme¬lha e o Conforto Brilhante pedem um canibalismo que as contrabalan¬ce? Não lhe peço que deposite qualquer confiança em mim, ou nesta organização, mas peço-lhe, esquecendo as suas próprias necessidades, esquecendo Sarah Cohn, que responda com verdade a uma só pergun¬ta. A pergunta é esta: Tem idéia de alguma situação em que possa servir o seu semelhante melhor — ou antes, tão bem como — aqui? Não se preocupe se eles merecem a destruição ou a condenação. Esse é o tipo de problema que podemos deixar para a Seita do Cometa. Mas debaixo de um simples ponto de vista tendente a evitar a dor e o sofrimento, on¬de é que pode fazer tanto como aqui?

—      Só uma pequena coisa — interrompeu Dinkuhl. — Uma condi¬ção necessária nessa premissa. Charlie produz a fonte de energia e a ar¬ma: depois tem de confiar em si quanto à sua utilização.

Raven disse, com absoluta confiança:

—      Deixo isso com o Sr. Grayner. Ele sabe que eu já o enganei, mas também sabe que o fiz tendo em vista um interesse maior. Peço descul¬pa por o ter enganado, mas não lamento ter posto em primeiro lugar as necessidades mundiais. E é justamente por já ter feito isso, que eu pos¬so, de fato, apelar para ele para que de futuro acredite na minha inte¬gridade.

Dinkuhl disse:

—      Charlie, a minha opinião é que já escutamos o Diretor-Geral Raven o tempo suficiente. Já sabemos como ele ama nobre e altruisticamente a humanidade. Nesta altura, acho que nos podemos preparar pa¬ra partir.

Raven dirigiu-se a Charles:

—      Então, Sr. Grayner? Destruição ou salvação? Um mundo deca¬dente e corrupto — destrói-se ou tenta-se recompô-lo?

Charles permaneceu silencioso; sentia que devia ter a sua própria ir- resolução estampada por todo o corpo. Raven e Dinkuhl olhavam-no — Raven com uma confiança calma, Dinkuhl com um certo ar trocista.

Ele disse:

—      Não sei...

Dinkuhl acrescentou:

—      Parece-me que um ponto fundamental é se, mesmo neste momento, você já conhece todos os fatos. Todos os fatos relevantes. Diretor Raven, acha que já lhe foram apresentados todos os fatos re¬levantes?

Raven fez um gesto de assentimento.

—      No que me diz respeito — acho que sim.

Charles deitou um olhar rápido a Dinkuhl; já o conhecia o sufi¬ciente para saber que ia acontecer qualquer coisa.

—      Não considera relevante o fato de o senhor, pessoalmente, ter estado a perder terreno tanto no Conselho de Gestão da Seção Atômi¬ca como no Conselho Mundial de Gestões, de há alguns anos a esta parte — que o seu comovente desejo de salvar o mundo de si próprio esteja ligado à ansiedade de restabelecer o seu próprio prestígio?

—      Seria relevante, se fosse verdade. Mas não é.

—      A vantagem que eu tenho sobre si, Diretor Raven, é que Char¬lie ainda não me apanhou a dizer-lhe nenhuma mentira. Há uma mo¬ção dirigida à próxima reunião desta organização, em que está explícita a falta de confiança na sua pessoa como diretor-geral e em que se pede a sua demissão. Está assinada por Ramaseshan, de Nova Delhi, e Burlitz, de Munique. — Fez uma pausa. — Pode agora anular a minha vantagem chamando a sua secretária e pedindo-lhe que ponha no écran o rascunho da agenda para a citada reunião. Caso a sua memória neces¬site ser reavivada, a reunião terá lugar a 23 de Fevereiro, em Nova Delhi.

Fez-se um breve silêncio. No rosto de Raven permanecia ainda um ligeiro sorriso que ele esboçara quando Dinkuhl fizera o primeiro ata¬que ao seu interesse pessoal em que Charles permanecesse na Secção Atômica. Fez o gesto que Charles esperara que ele fizesse quando se ti¬nham encontrado pela primeira vez: levantou as mãos e examinou as unhas. O seu controlo era admirável.

—      Podia defender-me, Sr. Dinkuhl — disse Raven por fim —, mas pela segunda vez fui apanhado — e desta vez foi sem dúvida por um juízo errado. Duas vezes é de mais.

Encolheu delicadamente os ombros. Dinkuhl observava-o atenta¬mente.

—      Então agora — comentou Dinkuhl —, para nosso próprio bem, para o bem da humanidade sofredora e, em último e menor lugar, para o bem do Diretor-Geral Raven, você é obrigado — lamentavelmente e lamentando-o — a adotar os métodos inferiores como o Ledbetter. Você terá de usar a força.

O encolher de ombros repetiu-se, ainda com maior delicadeza.

—      Lamentando-o profundamente, garanto-lhe, Sr. Dinkuhl. Não tenho quaisquer ilusões de que o trabalho possa progredir com a mes¬ma rapidez com tais métodos. Mas não há qualquer alternativa.

—      Se os seus colegas, Ramaseshan e Burlitz, soubessem que tinha tido nas mãos uma tal presa e a tinha arriscado através daquilo poderiam chamar desejo, de grandeza pessoal, creio que a sua posição em vez de se consolidar, se tornaria ainda menos segura, Diretor Raven.

Raven sorriu.

—      Sinto-me inclinado a concordar, Sr. Dinkuhl. Felizmente, não é natural que venham a sabê-lo. Tenho um melhor controlo de segurança aqui em Filadélfia do que se calhar imagina.

—      Eu tenho bastante imaginação. Espero que o mesmo se passe consigo, Diretor Raven. Neste preciso momento, Ramaseshan está a receber um relatório pela rádio. Esse relatório explica-lhe como, para bem da Secção Atômica — omitamos a humanidade, de mo¬mento — o senhor fez o necessário para obter os serviços do Funcioná¬rio Grayner, pertencente anteriormente à IQR e que é — segundo julga — a única pessoa capaz de levar a cabo um projeto que trará um poder definitivo à organização que obtiver o seu exclusivo. Infeliz¬mente já foi apanhado por um grupo estranho e feito desaparecer ou convencido a fugir. Tem razões para pensar que o seu destino é a Ásia e provavelmente a índia. O auxílio de Ramaseshan no sentido de voltar a encontrar o fugitivo será muito apreciada. O relatório está assinado Raven.

Raven olhou para Dinkuhl. Disse devagar:

—      O seu potencial destruidor é muito grande, Sr. Dinkuhl.

—      Não se incomode com despedidas formais. Na minha idéia, Ra¬maseshan vai aparecer no écran para falar consigo já a seguir. Oh. — Dinkuhl procurou qualquer coisa na algibeira. — Um cópia do seu relatório. Vai precisar dela.

Raven disse:

—      Às vezes entendo o seu ponto de vista, Sr. Dinkuhl, e sinto-me mesmo inclinado a compartilhá-lo. Qualquer dos dois já deixou de ser uma possessão valiosa para se tornar uma maçada. Pode indicar-me uma boa razão que me impeça de eliminar essa maçada?

—      A melhor. O nosso espírito persuasivo. Duvido que disponha de algum executor em quem tenha confiança absoluta, pois nós não deixa¬ríamos de pedir que nos fosse facultado o acesso a Ramaseshan. Além disso, o senhor está realmente muito ocupado, Diretor Raven. No seu lugar, eu voltaria para a minha mesa de trabalho.

Raven sorriu.

—      Os seus pontos não são extraordinários, mas conseguiu levar-me a melhor. Falta-me o espírito de vingança essencial a um diretor-geral, o que explica a minha posição atual. Ramaseshan, por exemplo... Pois bem, parto do princípio de que não vai reconsiderar, simplesmente pa¬ra me ajudar a salvar a pele, não é verdade Sr. Grayner? Bem me pare¬cia. Que é que pensa fazer agora, a propósito?

—      Deixe-nos com os nossos problemas — disse Dinkuhl. — E fique-se com os seus.

—      É verdade. Adeus, Sr. Grayner. Gostaria de poder dizer que es¬tava certo de o deixar bem entregue. Adeus, Sr. Dinkuhl.

Raven saiu com passo vivo, mas não apressado.

Desta vez não havia pressa. Foram até Oak Ridge para comer e to¬mar algumas bebidas.

—      É uma posição invejável, Charlie — disse Dinkuhl. — Até pode usar o seu transmissor de pulso para chamar os valentes da Secção Atô¬mica se alguém se tornar incômodo. Durante alguns dias pode dizer que está na Secção Atômica, mas não é da Secção Atômica. Mas apenas por alguns dias. Embora não seja vingativo, o diretor-geral é versátil. Ainda pode chegar a um acordo com Ramaseshan. Ou mesmo eliminá-lo. Eu disse-lhe que o jogo era forte.

Charles contemplava o seu gin tônico.

—      Hiram — disse. — Nas últimas semanas tenho andado a correr em círculo. Não lhe atribuo as culpas, embora tenha a impressão de que você deu uma ajuda, uma ou duas vezes, quando eu dei mostras de abrandar o passo, mas gostaria que soubesse que estou numa fase de cansaço rápido.

—      A Telecom deitou-lhe a mão. Depois você próprio se instalou na Secção Atômica. Eu limitei-me a tirá-lo destes dois refúgios.

—      Certo. E para quê?

—      Para quê? — Dinkuhl riu. — Eu não sou o Raven. Que é que você pretende?

—      Encontrar Sarah. Se estiver viva.

—      Ótimo. Alguma pista?

—      Nenhuma. Como sabe.

—      Como sei. Bom, tentamos tudo o que se podia tentar sobre a Terra. Embora eu sempre pensasse que isso não levaria a nada. Vamos agora tentar debaixo de terra.

—      Debaixo de terra?

O rosto de Dinkuhl modificou-se, tornou-se mais duro. A sua voz baixou uma oitava.

—      Irmão — perguntou —, estais condenado? — Retomou a sua expressão normal. — Depois de andar toda a vida a pregar a cultura, acho que posso pregar agora a condenação.

—      Que é que espera conseguir da Seita do Cometa?

—      Não sei. Nada. Qualquer coisa. Pelo menos, é aí que é menos provável as Seções de Contacto irem procurar-nos. Com umas barbas naturais, seremos impenetráveis. Não confiar nos plásticos quando a natureza pode dar uma ajuda. Eu serei o pregador, Charlie. Você pode ir de roda com o chapéu.

Charles disse em tom duvidoso:

—      Acha que consegue safar-se?

—      Já estudei a situação. Farei com que os restantes pregadores arranquem as barbas.

—      Parece-me uma idéia louca.

—      Quando o juízo fica calcificado, a loucura é a única solução. Tem alguma idéia melhor?

Charles sacudiu a cabeça.

 

A noite estava muito fria e cheia de nuvens. Dentro, no pequeno compartimento semelhante a uma caixa, até o calor produzido pelas fi¬las maciças de adeptos da Seita do Cometa não era o suficiente para fa¬zer subir a temperatura de modo perceptível. Charles enrolava-se cada vez mais no casaco. Dinkuhl, instalado por cima dele; na tribuna, abri¬ra a capa, aquecido provavelmente pela sua própria eloqüência. Enquanto esperavam que as barbas lhes crescessem o suficiente tinham posto umas artificiais — pontiaguda, no caso de Charles, quadrada pa¬ra Dinkuhl. Não eram confortáveis de usar, mas, combinadas com a longa capa do orador, produziam um efeito impressionante. Especial¬mente no caso de Dinkuhl.

Dinkuhl arrulhava naquele momento como uma rola no ninho.

—      Há alguém que seja capaz de dizer que o Amor anda pelo mundo? Há alguém que seja capaz de dizer que do Mal sai o Bem? Há Amor na Carne? Há Bem no Mal? Meus amigos, há Vida na Morte! Será que a Pureza nasce da Corrupção? Quem tem olhos para ver que veja. Quem tem ouvidos para ouvir que ouça.

Ele fez uma pausa.

—      Meus amigos. — A sua voz era baixa, mas ouvia-se à distância, até à última fila. — Estais salvo? — A sua voz aumentou de volume, com o diapasão do órgão. — Ou estais condenados?

—      Condenados — respondeu o coro, um pouco desencontrado a princípio, mas soando pouco a pouco em uníssono. — Condenados ao Inferno e no Inferno. Condenados! Condenados! Condenados!

—      E, se estais condenados, salvar-se-á alguém? — perguntou Din¬kuhl.

—      Ninguém se salvará! Ninguém se salvará!

Charles tinha um bastão de carvalho. Encostou-se a ele, imóvel e si¬lencioso no meio do clamor crescente. Aquilo fora idéia de Dinkuhl, que ele ficasse de pé a observar. Ele próprio não fazia qualquer idéia das reações que poderiam ter; nenhum sentimento por eles, a não ser de repugnância e espanto. Mas Dinkuhl conduzia-os como uma orques¬tra. Deixou os ecos da sua afirmação de desespero morrerem na distân¬cia, antes de continuar, quase em tom de conversa.

—      Meus amigos — disse —, falemos de campos verdes. Para os es¬píritos atormentados pelo pecado e pelo remorso — pois os condena¬dos não conhecem o arrependimento — chamemos uma visão dos pra¬dos da infância inocente. Sonhemos um pouco com a Primavera e com as primeiras rosas, com o sol tão brilhante que não se suporta e, no entanto, é mais doce que a própria vida, com o orvalho que brilhava co¬mo pedras preciosas nas sebes. Pensemos, se conseguirmos, nesse tem¬po perdido há muito em que o prazer podia existir sem pecado, em que o riso era suave e os corações tementes a Deus eram alegres. Quanto mais não seja em espírito, retracemos os nossos passos vacilantes en-quanto eles ainda percorriam o caminho estreito, atapetado de flores, que levava à alta montanha azul. Pensemos naquilo que fomos, meus amigos.

Deixou baixar o tom. Disfarçadamente, Charles observou o efeito. Alguns choravam abertamente.

A voz de Dinkuhl voltou a mudar; não muito, mas tornando-se um pouco mais aguda.

—      Os vossos corações estão tristes, meus amigos? Conhecem a amargura do desgosto? A faca penetra mais fundo quando o espírito evoca o mundo que perdeu? Sim, esse mundo está perdido, meus ami¬gos. Nunca mais conhecereis essa Primavera. Nunca mais vereis esses prados, essas rosas, essas gotas de orvalho. Os vossos rostos condena¬dos nunca mais serão aquecidos por esse sol. E o caminho que agora se¬guis não leva à alta montanha azul. Leva ao fosso. Ao fosso!

O lamento sacudido, agora familiar, como se as fileiras de figuras curvadas não fossem várias, mas uma só. Uma só carne. O lamento leviatã. Charles deixou os olhos vaguear sobre eles. Conseguia ver os em¬blemas dos que se encontravam nas primeiras duas ou três filas. Aços... Indústrias Químicas Reunidas... Interplanetária... Genética... Agricul¬tura... Minas... Era uma autêntica lista de chamada, representativa, ainda que não completa. «Algures», pensou, «Ledbetter, Raven conti¬nuam no seu ritmo habitual — conspirando, manobrando, lutando só Deus sabe com que motivos intricados pelo controlo do mundo conhe¬cido, seguro e imperturbável. Porque é que não estendiam um pouco dessa energia ao mundo lá de baixo? Certamente compreendiam que os seus edifícios gigantescos poderiam abater-se mesmo antes de serem eri¬gidos?»

—      Nunca vereis aqueles lugares encantados. Nunca mais voltareis a conhecer aquele tempo de paz. Mas não os esquecereis, meus amigos. Porque os condenados conservam três coisas. A sua carne. Os seus pe¬cados. As suas memórias. A carne para seu tormento. O pecado para sua condenação. E as memórias para essa última agonia de espírito que é a consciência daquilo que se perdeu. Lembrar-vos-eis de tudo isso por entre as chamas, na poeira escaldante, sobre o gelo, nos desertos cheios de desolação. Lembrar-vos-eis de tudo isso e amaldiçoareis a amarga memória.  

Não sabia donde, ao fundo, uma voz de homem gritou, monótona e profunda:

—      Condenados! Condenados! Condenados! Condenados! Conde¬nados!

Respondeu-lhe o mesmo gemido inarticulado. Horrorizado, Char¬les perguntou a si próprio se Ledbetter, se Raven não teriam outras ra¬zões para não fazerem nada que não a inconsciência ou a indiferença. Talvez fosse o medo que os amarrasse, medo de desencadearem a tem¬pestade.

—      Condenados — disse Dinkuhl, pesadamente, mas sem ênfase. Deixou cair as palavras como pedras no óleo. — Condenados.

De diferentes pontos da sala os ecos foram-lhe devolvidos. «Con¬denados.» «Condenados.» «Condenados.» Uma mulher começou a soluçar — soluços secos e monótonos que pareciam nunca mais parar. Continuavam a fazer-se ouvir, quando Dinkuhl levantou a mão direita.

—      Esta noite, o Senhor Jeová até o seu Dedo da Ira esconde de vós. No entanto, vamos lá fora e façamos a nossa súplica. O que quise¬rem dar para o pão do Pregador e do Amigo do Pregador podem atirá-lo para o chão, ao pé da porta, quando saírem. O máximo de um dólar por pessoa. Vamo-nos.

Alguns dos homens pegaram no púlpito e instalaram-no ao ar livre. Fazia um frio intenso e a noite estava escura. Charles ajudou Dinkuhl a subir para o púlpito. Ele próprio se foi pôr por baixo, a tremer de frio. Não servia de nada tentar a impassividade, apenas via uma mancha branca difusa, presumivelmente as faces dos condenados. Estes não conseguiriam vê-lo, mesmo que houvesse alguma probabilidade de vi¬rem a olhar naquela direção.

—      O Senhor Jeová esconde dos nossos olhos o seu Dedo da Ira, mas ele continua lá, aproximando-se no espaço e no tempo. O Dedo que aponta para um mundo de condenação! O Dedo que se abaterá so¬bre as pessoas que se dão à iniqüidade! O Dedo que marca o gado para o abate! A voz do Senhor Jeová será o trovão das montanhas, o terremoto das entranhas da terra! Ninguém escapará às palavras do julgamento — ninguém escapará!

O vento andava perto, empurrando e mordendo. Dinkuhl, no en¬tanto, fez a pausa que o ritual exigia. A sua voz saltou então repentina¬mente, gritante, selvática:

—      Para baixo! De joelhos! Seus cães e cadelas! Para baixo, para baixo, para baixo! Para baixo na vossa condenação! Ponham-se de joe¬lhos e gritem, gritem para Jeová o eterno: «Senhor Jeová, estamos con¬denados! Envia-nos os teus chicotes, os teus escorpiões, as tuas labare¬das para queimar a nossa carne mais tenra!»

—      Senhor Jeová, estamos condenados! Envia-nos os teus chicotes, os teus escorpiões, as tuas labaredas, para queimar a nossa carne mais tenra!

—      Solta os teus demônios!

—      Solta os teus demônios!

—      Uma só graça, Senhor Jeová. Uma só graça!

—      Uma só graça, Senhor Jeová! Uma só graça!

—      Depois de um milhão de anos de tormento, concede-nos o es¬quecimento!

—      Depois de um milhão de anos de tormento, concede-nos o es¬quecimento!

As suas respostas tinham crescido, tanto em volume como em unís¬sono. Agora Dinkuhl lançou mão de outra habilidade. Dava resultado; até o próprio Charles se arrepiou. Vinda do silêncio, a voz de Dinkuhl, como um murmúrio, mas um murmúrio que abafava o próprio vento, parecia a própria entoação do desespero.

—      Nós, os teus condenados, ajoelhamos perante ti, Senhor Jeová.

E a resposta final, desencontrada e tremente:

—      Nós, os teus condenados, ajoelhamos perante ti, Senhor Jeová.

Terminara. Dinkuhl desceu do estrado. Charles e ele ficaram de pé junto da porta, enquanto algumas pessoas faziam as suas despedidas pessoais. O ambiente agora era totalmente diferente: afetuoso e des¬contraído. Era agora que colhiam informações. Com quem deviam contactar no local para onde iam a seguir — notícias dos outros prega¬dores do distrito. As outras perguntas deles não pareciam invulgares no meio de todas as perguntas e respostas que se faziam.

—      Irmão — disse Dinkuhl —, procuramos dois instrumentos de Jeová.

Têm poder nas suas mãos. Uma jovem mulher cujo nome é Sarah Cohn e um homem cujo nome é Hans Isaacssohn. Onde quer que este¬jam estão guardados em segredo. Podem estar prisioneiros. Ouviram falar de qualquer deles? A Vontade de Jeová, Irmão.

Um homem baixo com figura de barril, com um emblema da Se¬ção Atômica:

—      Não conheço ninguém com esses nomes, Pregador.

—      São cientistas.

—      Não. Não conheço nenhuns cientistas.

A mesma pergunta, mas substituindo apenas Irmã por Irmão, foi dirigida a uma mulher escura da Hidropônica.

—      Não sei nada disso, Pregador. Diga-me, Pregador — o meu Gestor... de vez em quando tem o ar de um condenado. Acha que lhe devia explicar — convidá-lo para uma das sessões?

—      Irmã, todos têm o direito de saber que estão condenados. Convide-o.

Um homem de meia-idade, com ar cínico e emblema dos Aços disse:  

—      Conheço porcaria que chegue na minha organização para os perseguir até junto do Trono, Pregador, mas não tenho conhecimento de que conservem alguém cativo. Pelo menos, agora.

O último bando de fiéis partiu para os seus giroplanos, deixando Charles e Dinkuhl juntos.

Dinkuhl disse:

—      Vamos até lá dentro juntar as ofertas, Irmão. E sair deste vento danado.

Apanharam o dinheiro do chão e Dinkuhl, que levava a bolsa de Pregador, guardou-o.

—      Acho lamentável este costume de pôr o limite de um dólar. Já te¬nho pensado em omitir isso, mas estou convencido de que as pessoas se lembrariam. Isso deve ter uma utilidade qualquer, mas eu não vejo qual.

—      Bela atuação esta noite — disse Charles com ar apreciativo.

—      Sim. Senti-me orgulhoso de mim próprio. A paz, as rosas, a alta montanha azul. Melhor que o FK. Posso dar largas à vulgaridade do meu coração.

—      O baixo cá ao fundo ajudou.

—      Devia contratá-lo. — Olhou especulativamente para Charles. — Ou pô-lo a si lá atrás para fazer esse papel.

—      A minha voz não é suficientemente boa.

—      Podia adaptar-lhe um amplificador.

Riram. Charles disse:

—      Ainda bem que você se diverte, Hiram. Não me parece que este¬jamos a conseguir quaisquer resultados.

—      Irmão, estamos apenas a começar. — Dinkuhl rebuscou um dos bolsos interiores do casaco e tirou de lá uma garrafa quadrada. — Para nos ajudar no caminho. O espião com maior sucesso é o que consegue gozar a vida ao mesmo tempo. Qual é a próxima visita? Kentucky?

—      Kentucky não é mau.

Charles bebeu um pouco e voltou a passar a garrafa a Dinkuhl. Ele tomou um golo e deu um estalo com os lábios.

—      Devíamos contar as nossas bênçãos, meu caro Charlie. Não é proibido aos pregadores andar de giroplano — mesmo com colchões de ar. Mas, pensando melhor, não vejo como é que os pregadores con¬seguem arranjar giroplanos recebendo um dólar por cabeça. Sabia que tinha de haver qualquer coisa. E o fato de saber já é meio caminho an¬dado para a descoberta da verdade.

Charles abanou a cabeça.

—      A comunidade local paga o resto. Um dos irmãos contou-me que arranjaram um giroplano para uma das suas esperanças mais jo¬vens que só há dois meses sentiu a vocação de pregador. Eles acham que vale a pena, pois a palavra circula mais rapidamente.

—      E a palavra está a circular rapidamente. Julgo que há objeções a que um pregador se ocupe dos fundos da comunidade? Deve haver.

—      Julgo que sim.

—      Bom, contemos as nossas bênçãos, assim como assim. Apetecia- -me ir já dormir.

Deslocavam-se, ao acaso, cobrindo distâncias de cem a cento e cin¬qüenta milhas. Não havia qualquer controlo sobre os movimentos dos pregadores. Era seu dever deslocarem-se conforme o espírito lhes ditas¬se e eram bem recebidos em toda a parte. Charles e Dinkuhl cobriam um vasto círculo: até Ohio, a leste; a sul, Kentucky e a Carolina do Norte; e novamente para o norte ao longo da costa do Atlântico. Chegaram a Norfolk no dia a seguir a outro pregador, mas mesmo assim a congregação mostrou-se numerosa e entusiástica.

Dinkuhl comentou:

—      Que é que acontece se chegamos ao mesmo tempo que um desses tipos?

—      Sem pretender lisonjeá-lo, Hiram — disse Charles —, mas a fa¬ma é sua. O Irmão Lucas disse-me ontem que já ouviu mais de cinqüen¬ta pregadores e que nenhum lhe chega aos calcanhares.

—      O que me preocupa é saber quem recebe os dólares. Bom, pode¬mos preocupar-nos com isso quando chegar a altura. Tenho outra idéia, Charlie. Acho que valia a pena você andar com uma caveira — segure-a na mão enquanto eu falo. Hei de procurar uma.

—      Bastão numa mão, caveira na outra, mesmo assim fico com os pés livres; talvez ainda pudesse tocar órgão.

Dinkuhl teve um riso abafado.

—      Mais seis meses comigo e você vai ficar com sentido de humor. Tome as coisas à ligeira: é a única coisa a fazer, se não quiser que elas o enterrem.

—      Isto inclui não se arrepender de nada. Está arrependido de algu¬ma coisa, Hiram?

—      De nada. Absolutamente nada. Ocasionalmente ocorre-me que o meu lugar talvez fosse antes em Detroit, presidindo aos ritos funerá¬rios do último posto avançado da cultura. E qual a resposta que isso evoca? A mais simples de todas: Que vá tudo para o diabo!

—      Sempre é melhor do que fazer de parvo?

—      Irmão, o mundo está à beira de um Niágara interplanetário que corre para o caldeirão interestelar. Ninguém tem futuro, a menos que saiba viver ao contrário. Em tempos como estes, não há nada melhor do que fazer de parvo.

Foi em Boston que eles finalmente coincidiram com outro prega¬dor. Tinha-lhes sido dito que entrassem em contacto com um homem chamado Brogden, do P & M. Era gestor do crematório.

Verificou -se que era um indivíduo de aspecto maciço  cabeça

grande, ombros e peito largos, todo ele estreitando para baixo com um ar sombrio, entrecortado por lampejos de uma alegria nervosa O fato branco, muito comprido, que usava, parecia uma mortalha, mas uma mortalha com uma incongruência esquisita; estava enfeitada com uma grande botoeira escarlate.

Disse:

—      Soube que o senhor vinha aí, Pregador. As coisas são assim. Há três semanas que não tínhamos um pregador e agora temos dois na mesma noite.

—      Talvez fosse melhor nós continuarmos viagem para o lugar se¬guinte, Irmão — disse Dinkuhl.

Brogden abanou a cabeça:

—      Não vale a pena. Já ouvimos falar de si, Pregador — que o se¬nhor é um grande pregador da Ira. O Pregador Robinson e o senhor vão pregar juntos. Temos um salão bastante grande e em Boston a pa¬lavra é forte. Não há sítio em Nova Inglaterra onde a palavra seja mais forte que em Boston.

—      E pode dizer-se que na Nova Inglaterra a palavra é forte — concordou Dinkuhl.

Brogden olhou para ele.

—      Fora da Nova Inglaterra, Pregador, parece-me que as pessoas não sabem o que é estar condenado.

Largou num riso sonoro, ao qual Charles se associou, sem saber porquê. Dinkuhl teve um sorriso pálido. Tendo acabado de rir, Brog¬den disse solenemente:

—      Quer vir comer qualquer coisa comigo, antes de irmos para bai¬xo, Pregador? E o senhor também, Irmão?

Acenaram com a cabeça em sinal de assentimento e Brogden levou-os pelos longos corredores do crematório até aos aposentos que ocupa¬va na parte de trás. Parou uma vez e inverteu a polarização num dos painéis laterais acionando um interruptor. Olharam através da trans¬parência para uma sala povoada de plataformas elevadas, sobre cada uma das quais repousava um cadáver à espera de ser cremado.

—      Uma visão impressionante, Pregador, é o que eu sempre penso — disse Brogden. — Os corpos para as chamas e as almas já nas chamas.

Charles esperava que ele desatasse novamente a rir, mas não o fez. Abanou a cabeça, muito sério, voltou a desligar o interruptor e conti¬nuaram o seu caminho.

À parte uma noite, numa propriedade das Minas, Dinkuhl sempre pregara, anteriormente fora das cidades, em barracões que pertenciam à Agricultura. Brogden conduziu-os de giroplano até ao cais, a uma área que parecia abandonada, embora estivesse sob o controlo da Tele¬com. Naquele sector tudo se apresentava muito decadente, apinhado de armazéns a cair aos bocados e que pareciam em vias de escorregar para dentro das águas de aspecto insalubre. Os giroplanos que já estavam es¬tacionados por ali mostravam que Brogden tivera razão ao prometer uma boa participação.

No interior encontraram-se com o Pregador Robinson e fizeram as suas saudações. O Pregador Robinson era um homem magro e tinha qualquer coisa de estranho na maneira de falar.

—      Ouvi dizer que é um belo narrador da Ira, Pregador — disse ele. — Quer conduzir a sessão?

Dinkuhl respondeu:

—      É melhor ser o senhor a conduzir, Pregador. Tem mais prática do que eu.

O Pregador Robinson inclinou a cabeça.

—      Como queira.

Pregou bem, com um fervor frio e amargo. Mas Dinkuhl, seguindo-o, mostrou-se em tremenda forma. O público, que escutara em si¬lêncio, traindo apenas por um ligeiro arrastar dos pés que alguma acusação de iniqüidade lhes assentara em cheio, foi levado a um acesso de soluços e gritos pela forma como Dinkuhl jogou com as suas emo¬ções. Dinkuhl passou-os novamente a Robinson para a liturgia que teve lugar ao ar livre, mas, ainda sob a influência, foi a multidão mais do que o Pregador quem dominou as respostas.

Quando tudo terminou, Charles e Dinkuhl colocaram-se ao lado do Pregador Robinson e apresentaram as suas despedidas informais aos fiéis. Tinham decidido que, em frente de Robinson, não fariam as per¬guntas habituais acerca de Sarah e Isaacssohn. Charles permaneceu em silêncio enquanto os dois pregadores escutavam a tagarelice e os peque¬nos problemas da congregação que partia. O cometa era perfeitamente visível no cimo do abismo negro que ficava entre os dois armazéns. Al¬gumas jardas mais adiante a água vinha embater lentamente nos pilares que apodreciam.

Brogden disse:

—      Querem vir passar a noite comigo? Tenho bastante espaço para os três.

O Pregador Robinson foi o primeiro a responder. Disse:

—      O Pregador e eu temos assuntos a discutir em particular. Pode ser que vamos até sua casa depois, Irmão, mas agora pedimos-lhe que vá andando.

Brogden disse:

—      Eu não tenho pressa, Pregador. — Riu, mas o seu riso ressoou vazio no ar da noite. — Nada me espera, a não ser o Inferno.

—      Vá andando — disse o Pregador Robinson. — É a vontade de Jeová.

—      A vontade de Jeová.

Havia luz suficiente para que Charles pudesse ver como Dinkuhl se retesou um pouco. Ele próprio ficara surpreendido e alertado.

Podia muito bem ser usual os pregadores compararem as suas im¬pressões quando se encontravam durante as suas viagens, embora nun¬ca tivessem ouvido falar nisso. Mas, ainda que fosse esse o caso, a si¬tuação que se delineava queria grande cuidado. E se houvesse alguma coisa mais... Charles confortou-se com o pensamento de que eram dois contra um.

Ainda havia alguns indivíduos da congregação quando Robinson começou a falar. Disse para Dinkuhl:

—      Há quanto tempo começou a pregar a Ira, Pregador?

—      Não muito, Pregador. Só há algumas semanas me senti chama¬do a isso.

—      Fá-lo muito bem.

—      Um instrumento de Jeová, Pregador.

A voz de Dinkuhl, notou Charles, retomara o tom arrastado que denotava cuidado. O grupo dos condenados aproximara-se e rodea¬vam-nos. Não restavam dúvidas de que eram seguidores do Pregador Robinson. Afinal não eram dois contra um; eram dois contra meia dú¬zia'.

—      Diga-me, Pregador — disse Robinson — esses dois acerca de quem você tem andado a fazer perguntas — uma mulher chamada Cohn e um homem chamado Isaacssohn — esses dois também são ins¬trumentos de Deus?

Podia ser apenas uma questão de rotina; o fato de saberem as per¬guntas que eles tinham andado a fazer não significava necessariamente outra coisa a não ser que a Seita do Cometa era uma organização mais forte do que poderia parecer à superfície.

Dinkuhl disse:

—      Todos os homens e todas as mulheres são instrumentos de Jeová.

O Pregador Robinson riu-se e o seu riso foi o despir de um casaco. Era um riso de cinismo. Tinham chegado a um círculo interior; era bas¬tante evidente. E tratava-se de um círculo interior dedicado a outra coi¬sa que não o fanatismo da Seita do Cometa. Mas o quê? A conclusão geral era bastante clara. Uma organização qualquer. Mas qual? Qual a organização que era capaz de controlar um movimento como este — um movimento que tanto Ledbetter como o próprio Raven temiam indubitavelmente?

—      O senhor explica bem as coisas, Gestor Dinkuhl — disse o Pre¬gador Robinson. — Mas estamos curiosos na mesma. Que é que quer à Cohn e ao Isaacssohn?

—      O senhor acreditar-me-ia — disse Dinkuhl lentamente — se eu lhe dissesse que não é por outra razão que não sejam as angústias de um amor sofredor?

—      Por ambos?

—      Bom, cada um o seu. Charlie pela Cohn, eu pelo Isaacssohn. Eu sou assim.

Robinson voltou a rir.

—      Sabe — disse ele —, eu acho que, se não houvesse qualquer ou¬tra razão, levá-lo-íamos n>esmo assim, por causa do seu sentido de hu¬mor.

—      Levar-nos ... para onde? — perguntou Dinkuhl. — E esperam que vamos de livre vontade?

—      Depois saberão onde. De livre vontade, se quiserem. Senão será de outra forma. Estamos preparados.

Dinkuhl gemeu.

—      Astarate outra vez, não!

—      Não — disse Robinson —, não é astarate. — Tirou qualquer coisa debaixo da sua capa de pregador. — Nós somos do tipo mais pri¬mitivo.

Os seus acompanhantes estavam a tomar precauções semelhantes. Charles reconheceu os objetos que levavam por ter visto algo seme¬lhante numa ópera histórica da Liga Vermelha. Tratava-se de mocas antigas de cabo flexível.

Dinkuhl disse:

—      Importa-se que dê uma palavrinha ao Charlie, a sós?

—      Uma palavra. Não mais de meio minuto.

Dinkuhl tomou Charles de lado.

—      Sabe nadar? — Charles acenou afirmativamente. — Aqueles instrumentos rombos são as únicas armas de que dispõem; teriam apa¬recido com outra coisa se a tivessem. Provavelmente não andam com nada de metal, no caso de alguém lhes aplicar os detectores. De qual¬quer forma, vale a pena tentar a corrida. Há apenas dois, entre nós e a água. Passamos por cima deles e mergulhamos. Nade para a esquerda. Há uma artéria principal a umas cem jardas. E eles não conseguem che¬gar até nós antes disso, por causa dos armazéns. Não tentarão nada a não ser às escuras.

Charles disse:

—      O. K. Quando é que vamos?

—      Vamos voltar para junto deles. Eu pego no maço de cigarros e no isqueiro. Quando eu atirar o isqueiro à cara do Pregador, avança¬mos.

Os observadores pareceram menos tensos quando Charles e Din¬kuhl voltaram juntos para o sítio onde estava Robinson. Dinkuhl pu¬xou do maço de cigarros, com lentidão. Depois procurou o isqueiro nas algibeiras.

Robinson disse:

—      Estão preparados para serem razoáveis? Assim, isto não passará de um jogo.

Dinkuhl tirou o isqueiro da algibeira e carregou no botão para fazer aparecer a chama. A pequena labareda azul brilhou a uma altura de três polegadas.

—      Tudo depende — disse Dinkuhl — do jogo que for. Por exem¬plo...

Ele berrou:

—      Agora!

E atirou o isqueiro à cara de Robinson, enquanto Charles dava um salto em direção ao homem que estava entre ele e o cais. O homem caiu, mas arrastou Charles consigo. Charles rolou pelo chão, mas quando conseguiu pôr-se de pé já outro o tinha agarrado por um braço e outro ainda estava entre ele e a água. Dinkuhl conseguir fugir. Estava de pé á beira de água e olhava para trás. Nenhum deles fazia qualquer tentativa para o apanhar. «Sou eu outra vez», pensou Charles.

Gritou:

—      Fuja, Hiram!

Quando conseguiu libertar o braço e atirar-se sobre o homem que lhe barrava o caminho, Charles viu Dinkuhl correr como louco para vir ajudá-lo. Não viu mais nada. Qualquer coisa o atingiu na parte de trás da cabeça.

Retomou consciência uma vez ao ouvir o zumbido agudo dos mo¬tores do transatlântico. Sentou-se e teve tempo de ver que estava no po¬rão de um avião de carga, amarrado. Dinkuhl, também amarrado, es¬tava deitado a uma pequena distância.

Ouviu uma voz:

—      Não há problema. Nós não queremos problemas.

Outro golpe de moca fê-lo perder novamente os sentidos.

 

Quando voltou novamente a si, Charles já não estava amarrado. Sentou-se, com todo o cuidado, e depois pôs-se de pé. Doía-lhe a cabe¬ça, mas mesmo assim menos do que a seguir ao astarate; provavelmente os efeitos de uma pancada com uma moca não eram piores que os de uma droga.

Estava num pequeno quarto que parecia uma cela, mas não havia qualquer hipótese de se tratar de uma cabina, numa nave espacial, real ou fingida. Havia uma janela de plástico especial numa das paredes, por onde entrava a luz do exterior. No entanto, as suas primeiras aten¬ções foram para Dinkuhl. Dinkuhl estava deitado no chão e tinha uma grande equimose, azul e negra, na testa, do lado esquerdo. Charles ten¬tou acordá-lo, mas sem qualquer êxito. Não havia água no quarto e as bofetadas que lhe deu no rosto não deram resultado. Pelo menos, es¬tava vivo.

Deixando-o de momento, Charles foi à janela e olhou para fora. O edifício onde estavam ficava num ponto alto e podia ver-se uma cida¬de que lhe fez lembrar qualquer coisa, embora não conseguisse saber o quê. Uma mistura de estilos, com predominância dos muito antigos e com um forte sabor oriental. Uma cidade museu. Isso estreitava bas¬tante as possibilidades — havia poucas cidades que tivessem escapado, tanto à destruição da guerra como à estandardização subseqüente que caracterizara a reconstrução cívica que marcara o início do sistema de gestão. Tentou pensar o que poderia ser, mas sem conseguir convencer- -se a si próprio de uma semelhança após outra. O céu estava cheio de giroplanos, o que também não o ajudava.

Só no momento em que a porta se abriu e ele viu o homem que apa¬receu no limiar é que adivinhou onde estava. Uma série de coisas se ar¬rumou nesse momento, a menor das quais era o sotaque estranho do Pregador Robinson. Ele nunca o vira em pessoa, mas já tivera uma boa visão dele, vestido da mesma forma.

Tratava-se de Hans Isaacssohn e o fato era o uniforme militar israe¬lita.

—      O senhor já acordou — disse Isaacssohn. — Dinkuhl ainda não?

—      Ele foi bastante mal tratado. — Charles levou a mão à cabeça. — Os seus homens têm prazer em usar as suas armas.

Isaacssohn sorriu. Ele tinha um sorriso lento que aquecia as suas feições normalmente severas.

—      A necessidade de manter o anonimato impediu-nos de usar mé¬todos de repressão mais modernos. Não direi que alguns não tenham ti¬do a mão um tanto pesada. O entusiasmo é um bom defeito num mili¬tar. Mas eles sabem onde bater sem provocar estragos definitivos.

—      Muito interessante. Têm alguma idéia do que se poderia fazer a Dinkuhl para ele se sentir melhor, agora que nos têm aqui?

Isaacssohn acenou afirmativamente. Carregou num pequeno botão que havia na parede.

—      Mas não há muito tempo. Trouxeram-nos para aqui e a seguir informaram-me. Vim quase imediatamente. Devia estar a voltar a si quando o deixaram.

—      De qualquer forma, cá estamos. — Charles fez um gesto em direção à janela. — Em...

—      A capital do mundo. — Isaacssohn voltou a sorrir. — Jerusalém. No Instituto Einstein. Sétimo andar. Sala 93. Julgo que me reconhece. Deve ter visto registros meus. Como é que vão as coisas na Califórnia?

—      Sim, reconheci-o. A Califórnia — já saí de lá há algumas sema¬nas.

Duas ordenanças, igualmente em uniforme, trouxeram uma maca.

Isaacssohn disse:

—      Ele devia ter sido transportado para a enfermaria. Levem-no pa¬ra ser tratado.

Quando saíram do quarto, Charles disse apressado:

—      E Sarah — como é que ela está? Está bem? — Isaacssohn ace¬nou afirmativamente. — E o pai dela?

A pergunta divertiu Isaacssohn.

—      Sim, o Professor Cohn está de boa saúde e bem disposto. Muito bem disposto! Quer falar consigo.

—      E Sarah?

—      Isso é com o Professor Cohn. Vamos. Está pronto?

Charles ergueu as mãos. A corda com que lhas tinham atado estava cheia de óleo.

—      Se me pudesse lavar, seria útil.

—      Pois claro. As nossas instalações sanitárias não são inteiramente como as do mundo da gestão, mas eu tenho uma sala de banho ao lado do meu gabinete. Venha comigo.

O gabinete de Isaacssohn ficava dois pisos mais abaixo. Desceram e Isaacssohn levou-o à sala de banho.

—      Estarei no meu gabinete. Venha ter comigo quando estiver pronto — disse-lhe. — Sabão, toalhas — tem tudo?

Charles arranjou-se o melhor que pôde e foi ter com Isaacssohn. Este levantou-se da secretária e voltou a sentar-se.

—      Antes de irmos ao edifício governamental, há uma coisa que tal¬vez lhe interesse. Quer um cigarro? Sente-se.

O cigarro pareceu-lhe uma boa idéia e Charles não se fez rogado para se sentar. Olhou em volta. Nada de invulgar, a não ser que estava um tanto desarrumado. Havia um écran de televisão na parede. Isaacs¬sohn falou para um espécie de tubo: isso era novo para ele.

Disse:

—      Chamem Gathenya — Neues-Werke. — Olhou para Char¬les. — Usamos mais os fios na comunicação do que vocês. É o resulta¬do de estarmos mais próximos e centralizados. Assim poupamos ener¬gia e uma coisa a que tivemos de nos dedicar foi a maneira de fazer eco¬nomias.

O écran iluminou-se e viu-se um homem sentado a uma secretária. Pareceu reconhecer Isaacssohn e saudou-o.

Isaacssohn falou-lhe em alemão e ele fez um aceno.

—      Já, General.

O écran voltou a ficar vazio, mas em seguida mostrou o interior de uma fábrica. Era uma instalação para produção em série, mas não au¬tomatizada: parecia haver demasiados empregados para isso. Isaacs¬sohn disse qualquer coisa mais em alemão e as câmaras mostraram um grande plano do fim da linha. Os produtos eram cuidadosamente apa¬nhados e empilhados para serem transportados para outro sítio. Trata-va-se de pequenos objetos de metal, em forma de ovo.

—      Reconhece-os?

Charles sacudiu a cabeça.

—      Devia reconhecer?

Isaacssohn deu novamente instruções em alemão. Desta vez a cena era um pátio fechado, mas aberto para o céu. Estava povoado por um enxame de abelhas monstruosas. Homens a voar.

Estes usavam igualmente o uniforme militar israelita. Cada um de¬les estava metido numa estrutura de metal semelhante a um esqueleto. A estrutura tinha um descanso para os pés, um assento e um cinto com diversos controles. A partir do cinto, o metal formava um arco por ci¬ma da cabeça do voador. Na parte superior do arco ficavam as pás da hélice: horizontais para a descolagem e inclináveis em várias direções para o vôo de rotina e manobras. À medida que Charles conseguiu vi¬sualizar melhor a cena no seu espírito, compreendeu que se estava a realizar uma parada aérea bastante complicada. Um dos voadores, pai¬rando imóvel numa das extremidades do pátio, era o instrutor; o resto obedecia às suas ordens.

—      Uma concepção muito interessante. E a energia?

—      Como deve ter adivinhado, trata-se da bateria solar de diaman¬te. O que você viu há pouco, saindo da linha de montagem, eram as ba¬terias.

—      Parabéns, mas não sei como o conseguiu em tão pouco tempo. Previ, pelo menos, seis meses de trabalho na fase de desenvolvimento, independentemente do tempo necessário para a produção — questão de ferramentas, etc.

Isaacssohn sorriu.

—      Claro. Por isso é que eu não posso aceitar as suas felicitações. Desde o princípio que temos tido aqui pessoas a trabalhar nisso. O meu trabalho em San Diego foi uma perda de tempo. Não foi tão fácil como poderá pensar.

Charles olhou para ele, incrédulo.

—      Duas perguntas. Como é que podia ter pessoas a trabalhar nisto, se tanto o senhor como os Cohn eram refugiados? E, se os tinha, por¬quê dar informações às Indústrias Químicas Reunidas? Disse o sufi¬ciente para interessar mais de uma organização.

—      Parece que sim. A resposta à primeira pergunta é que estamos num país capitalista, não no sistema de gestão. Desorganizado, confu¬so, ineficiente. Tão ineficiente que não houve qualquer dificuldade em continuar com as investigações, sem que o governo tivesse conhecimen¬to. Antes do nosso revés, o Professor Cohn era diretor deste Instituto. O Presidente foi mal informado e o homem que ele nomeou para o substituir pertencia ao nosso grupo. Foi muito fácil camuflar o traba¬lho.

«Quanto à segunda pergunta, quando saímos de Israel, a idéia esta¬va na fase embrionária. Precisava urgentemente de um laboratório e de fundos. Tive de pôr uma espécie de cenoura debaixo do nariz desses burros de Graz. E tive de continuar a dar-lhes o suficiente para os con¬vencer a manter o projeto — embora, segundo me parece, uma boa parte daquilo que eu fazia fosse interceptado por Ledbetter para outra organização?

Charles acenou afirmativamente. Isaacssohn prosseguiu:

—      E eu que estava fiado que nenhum deles tinha a preparação ou a inteligência suficientes para se aproveitar das informações. A julgar pe¬lo que Sarah me disse a seu respeito, descobri que tinha cometido um erro. Os nossos homens tentaram localizá-lo, mas vários outros grupos conseguiram deitar-lhe a mão primeiro. Gostava de saber porque é que eles não conseguiram retê-lo? De qualquer forma veio parar às nossas mãos.

—      Às vossas mãos?

—      A Seita do Cometa.

—      A Seita do Cometa é uma organização israelita?

—      Digamos que sim. Nós fornecemos a primeira faúlha para a ex¬plosão. O sucesso obtido espantou-nos bastante. Os nossos conselhei¬ros psicológicos arquitetaram a coisa, mas parece-me que até eles fica¬ram admirados com os resultados. O número de membros existentes atualmente é espantoso e a tendência é para continuar a subir.

—      Os instrumentos usados por Israel não são de molde a servir-me de recomendação para o seu país — disse Charles.

Isaacssohn encolheu os ombros.

—      É uma pena. Infelizmente a Seita do Cometa é necessária para os nossos planos. Também não nos agradam a nós próprios, mas, ao mesmo tempo, eles nunca teriam existido se a sociedade onde se desen¬volveram não fosse corrupta. E há mais uma coisa. Esperamos que ve¬nham a ser a maneira de salvar algumas centenas de milhares de vidas. A maioria não são israelitas.

—      E como?

—      Hão de explicar-lhe, segundo creio. Temos de ir. Há uma outra coisa que talvez lhe interesse primeiro.

Isaacssohn voltou a falar para o tubo. A imagem na televisão vol¬tou a mudar. Um pátio maior. Mais voadores. Observaram-nos en¬quanto desciam sobre uma série de caixas negras colocadas no chão a uma distância de cerca de três jardas umas das outras. As estruturas usadas por estes voadores tinham um pequeno objeto em forma de ca¬no de espingarda, de cada lado, terminando numa espécie de bocal. De repente, presumivelmente em obediência a uma palavra de comando, porque os efeitos foram quase simultâneos, surgiu um fogacho treme- luzente em volta de cada um dos bocais e as latas que estavam no chão — à exceção de duas delas — começaram a arder.

—      O raio de calor — disse Isaacssohn. — Tão querido dos autores de folhetins para a TV no mundo da gestão. Outra aplicação dos dia¬mantes. Infelizmente limitada a ser usada com sol, mas, nesse caso, ga¬rantindo toda a eficiência. Foco variável, mas apenas dentro de certos limites, claro, e os limites são estreitos. Mas o calor é grande no ponto de impacte. Não lhe dou números porque acho que não me acreditaria. Acha que é uma surpresa?

—      Apenas quanto ao aspecto — disse Charles, sombrio. — Algu¬mas pessoas já perceberam a idéia.

—      Então vão ficar surpreendidos por verem a sua idéia marchando nas asas do vento.

Isaacssohn desligou o écran e levantou-se para partir.

Charles disse:

—      Só uma coisa. Que é que Sarah sabia disto tudo... quando este¬ve consigo em San Miguel?

—      As nossas convenções são talvez um tanto peculiares. Há coisas que não consideramos adequadas para as mulheres — como sejam contra-revoluções e estratégia militar. Sarah não sabia nada disto.

Isaacssohn disse:

—      Permite-me que o apresente? Charles Grayner — Professor Cohn, Presidente de Israel.

O giroplano trouxera-os até uma pequena casa modesta nos arredo¬res de Jerusalém. A sala onde se encontravam agora era de igual simpli¬cidade. O Professor Cohn ergueu-se de uma secretária riscada e suja, para os saudar; não havia na sala nenhum écran de grandes dimensões, apenas um écran de chamada, portátil, ao lado da secretária. O Profes¬sor Cohn sorriu, ao mesmo tempo que Charles se lembrava e reconhe-cia o ar de astúcia bem humorada que vira na manhã do desapareci¬mento de Sarah.

O Professor Cohn disse:

—      As nossas desculpas, Charles. Também foi tratado com certa ru¬deza, não? Não foi intencional. Temos estado a incutir a agressividade nos nossos soldados e é um bocado difícil impedi-los de exagerarem por vezes.

—      Presidente? — perguntou Charles. — Desde quando? Há mui¬to tempo que eu não ouço noticiários.

—      E o seu noticiário talvez não achasse que a notícia valesse a pena ser divulgada. Parece-me bastante provável. Mas tratou-se de uma re¬volução muito secreta no interior do palácio. Pareceu-nos preferível não deixar que a notícia transpirasse, pelo menos por agora. O golpe de Estado coincidiu com o regresso de Hans. Estava tudo bem planeado e passou-se sem sobressaltos. Chamaram-me depois de tudo terminado.

—      Sarah...

—      Achei que seria necessário trazer a Sarah comigo. Tinha boas ra¬zões para isso, a menor das quais não era certamente o seu valor como refém, caso a deixasse ficar para trás. Ela não mostrou boa vontade quando lhe falei nisso. — O Professor Cohn olhou para Charles com interesse. — Ela queria preveni-lo, mas claro que isso era impossível.

Receava que ela pudesse ter deixado alguma pista, embora eu tivesse to¬mado todas as precauções.

Charles lembrou-se do incidente do relógio; posta de lado a explica¬ção da falsa Sarah, ele voltava a assumir toda a sua importância primi¬tiva. Ele sorriu ligeiramente.

—      E parece-me que assim foi — disse o Professor Cohn. — Bom, deixemos isso, por agora. A finalidade era conseguir despistar as Indús¬trias Químicas Reunidas, bem como qualquer outra organização que pudesse estar interessada. Parece que a rivalidade local trabalhou a nosso favor; embora se suspeitasse da autenticidade das mortes, eles es-tavam demasiado ansiosos por lançar as culpas uns aos outros.

Charles acenou afirmativamente. Só agora começava a compreen¬der toda a extensão do plano que existia por detrás do trabalho de Isaacssohn, os desaparecimentos, o seu próprio rapto. Mantendo a voz calma e inexpressiva, disse:

—      A idéia, suponho, consiste numa espécie de agressão por parte de Israel contra o resto do mundo — uma incursão para arranjar novos territórios. — O Professor Cohn sorria-lhe, cheio de bonomia. — Há quanto tempo andam a preparar isso?

—      Há muito tempo. À semelhança dos antigos japoneses, Hans e eu éramos membros do partido da guerra. Havia um partido da paz; o nosso desaparecimento temporário foi o resultado de uma derrota tem¬porária numa escaramuça. A posição já foi retificada.

—      Vocês querem a guerra. Porquê?

O Professor Cohn ergueu as mãos.

—      Não é uma questão de querer. O mundo está a desintegrar-se, no exterior. Vai ser o caos, dentro de vinte ou trinta anos e, sendo o único estado com alguma vitalidade, devemos estar preparados para sair e reclamar o caos. Vai ser um trabalho demorado e árduo — desneces-sariamente árduo. É mais simples e bastante mais eficiente precipitar as coisas. Hans já lhe falou na Seita do Cometa? Encontramos aí a confir¬mação dos nossos pontos de vista e facilita-nos bastante as coisas.

Charles disse:

—      Vejamos se eu consigo perceber o que é que está a dizer. Na sua idéia — Israel governará todo o planeta?

—      Exatamente.

—      Com um punhado de soldados aéreos e um raio de calor que só atua a uma certa proximidade e quando o Sol brilha?

—      Eu poria as coisas de forma um pouco mais elevada — disse o Professor Cohn judiciosamente. — Deixe-me explicar-lhe uma coisa sobre a arte da guerra, Charles. Através dos séculos, essa arte tem sofri¬do uma alternância contínua quanto à posição individual do guerreiro, através da alternância do tipo de armas à disposição do homem. Sim¬plificando, podemos dizer que a artilharia diminui a estatura do solda¬do, enquanto as armas pequenas o fazem parecer maior. Claro que po¬de apresentar as suas próprias variações sobre o tema, desde o conflito entre a funda gigantesca e o dardo no tempo dos Romanos, até ao con¬flito entre as armas grandes e o mosquete no século XVIII.

- No decorrer do século XX, o equilíbrio afastou-se do sol-dado — de uma forma que parecia irreparável. Barragens de artilharia maciça, bombardeamentos programados e por fim as bombas atômicas e de hidrogênio pareciam fazer pender a balança, definitivamente, para as armas maciças. E, como é evidente, as armas afetam a sociedade. O mosquete era típico do capitalismo, tal como a bomba H é típica do sis-tema de gestão, embora tenha sido produzida na fase final do capitalis¬mo mundial.

—      O mundo da gestão — comentou Charles — ainda tem um stock de bombas H.

—      Que são perfeitamente inúteis. Esse tipo de arma tornou-se de¬masiado grande para ser usado. Sim, eu sei que foram usadas na última guerra, mas os resultados confirmam o que eu digo, não acha? Pensa que os seus amigos vão usar bombas H? Com que alvos? Teremos a África dentro de uma semana, a Europa em dez dias. Sabe ao que se as¬semelha esta situação? A um pequeno quarto com paredes de ferro, cheio de homens fortes com espingardas Klaberg. Entra uma criança com uma pistola de água e encharca-os. Eles não podem responder-lhe porque não têm pistolas de água, nem saberiam usá-las se as tivessem. E se dispararem as suas, as munições farão ricochete nas paredes; têm boas possibilidades de se matarem a si próprios e eles sabem-no.

—      Tanto quanto me é dado ver, um arco conseguiria levar a me¬lhor à sua nova arma, Professor Cohn.

O Professor Cohn sorriu.

—      E qual é a organização que tem um stock de arcos? Mas estou a entender o que quer dizer. O raio de calor não é o tipo de arma que restitua a iniciativa ao soldado. O aparelho voador, sim. Já há bastante tempo que tínhamos o desenho básico, mas necessita de bastante ener¬gia, como deve calcular. Felizmente o Sol é uma central inesgotável. Is¬so faz com que valha a pena ter essa arma. Asas para todos os solda¬dos. Um exército voador. Mesmo sem as vantagens adicionais da sur¬presa e de um inimigo que perdeu, de uma maneira geral, o interesse por tudo o que não seja a sua hipotética condenação, este novo fator seria suficiente para se obter o resultado desejado. Com todas as proba¬bilidades. Tomamos a precaução elementar de fazer um mapa de todos os pontos-chave. Não há um que não possa ser tomado por meia dúzia dos nossos soldados voadores. E nós dispomos de mais do que isso.

E podiam fazê-lo. Charles via claramente a situação. Os membros da Seita do Cometa correndo como porcos selvagens... já aprendera que esses indivíduos não perdiam um momento a pensar na lealdade para com a sua organização quando recebiam uma chamada em nome de Jeová... e depois as tropas israelitas, treinadas, disciplinadas, efi¬cientes, caindo das alturas... Era um modelo de ferro fundido. Ao compreender isto, ocorreu-lhe pensar porque é que lhe teriam explica¬do tudo aquilo. Agora não precisavam das suas capacidades. A única vantagem que ele representava para Israel era de ordem negativa — a certeza de que ele não faria nada para as organizações do mundo da gestão.

Charles disse:

—      Há uma coisa que me interessa. — O Professor Cohn ergueu li¬geiramente a cabeça. — Porque é que me contou tudo isto?

—      Trata-se de uma pergunta razoável. Porque lhe vou pedir que me dê a sua palavra. — Charles mostrou-se perplexo. — É uma ex¬pressão antiga — o seu compromisso de honra em como não tentará fugir ou comunicar com alguém fora de Israel. Depois disso, terá bas¬tante liberdade. E para estar em situação de poder dar-me a sua pala¬vra, acho que deve saber o suficiente acerca da sua situação, para que as implicações sejam claras para si. Este é o novo capital do mundo. Queremos que compreenda isso.

—      Dentro de quanto tempo vão atacar?

—      Não muito.

Esta resposta assustou-o.

—      Agora? No Inverno? Isso tirará parte do gume à vossa arma, não acha?

—      Infelizmente. Embora não tanto como pensa. Nesta altura do ano, as nuvens são geralmente baixas e não será difícil subir acima das nuvens para recarregar.

Charles, com um sentimento misto de culpa e saudade, pensou nos seus passeios pelo espaço, de esfera, com a falsa Sarah e naquele mun¬do de ouro, azul e tranqüilidade.

—      Mas, de qualquer forma — prosseguiu o Professor Cohn —, a questão do tempo torna-se agora urgente. Não é que tenhamos receio que qualquer das organizações possa fazer uma bateria ou umas armas iguais nos próximos seis meses ou mesmo nas próximas seis décadas — mas o que podem é vir a suspeitar do verdadeiro estado das coisas, se lhes dermos seis meses que sejam. Não podemos esperar que a sua desconfiança mútua dure sempre. Além disso, o fator surpresa vai ser muito importante. Vamos, portanto, avançar num futuro muito pró¬ximo.

—      E, nesse caso — disse Charles —, seria certamente muito mais simples fecharem-me a sete chaves?

O Professor Cohn sorriu benevolamente.

—      Há questões pessoais a considerar.

Sarah. Era um sentimento reconfortante. Como se ele tivesse esta¬do a escavar um túnel em direção a ela durante meses, através de mi¬lhas e milhas de rocha e ouvisse finalmente um batimento que lhe res¬pondia, mesmo à sua frente. Ao mesmo tempo...

Ele disse:

—      Gostaria de ter a oportunidade de falar com Dinkuhl.

O Professor Cohn acenou.

—      Naturalmente. Hans vai levá-lo de volta.

Dinkuhl estava sentado na cama, num quarto pequeno, mas atraente. Havia uma mesa ao lado da cama, com uma grande taça com fruta. Dinkuhl teve um sorriso um pouco torcido.

—      Vem comer as uvas?

Isaacssohn disse:

—      Deixo-o aqui, Charles. Vamos ter de pôr um guarda à porta, por agora. Quando quiser, ele leva-o junto de mim.

—      Adios — disse Dinkuhl. — Volta para o detector? Porque é que não se mete simplesmente debaixo da cama?

Por momentos, Isaacssohn pareceu espantado.

—      Oh, já percebo. Não, aqui estão à vontade: os nossos regula¬mentos proíbem a instalação de equipamento detector.

Ele sorriu e saiu. Dinkuhl ficou a olhar para ele.

—      Olhe — disse —, acho que ele está a dizer a verdade.

—      Possivelmente. Como é que se sente?

Dinkuhl esfregou a cabeça devagar.

—      Desgostoso. Preferia ter morrido. Mas há de passar. O número de pessoas que me tomam o pulso é que me vai ajudar a melhorar.

Charles disse:

—      Vai ter de passar. Vai precisar de todas as suas faculdades para arquitetar um esquema que nos faça sair daqui.

O olhar de Dinkuhl tornou-se inquiridor.

—      Talvez fosse melhor você contar-me o que sabe.

Escutou em silêncio enquanto Charles lhe contava o que lhe tinha sido dito por Isaacssohn e pelo Professor Cohn. Por fim, disse:

—      Há uma coisa que provavelmente se atravessará no seu caminho.

Charles disse ansiosamente:

—      Sim?

—      Uma explosão do Sol. — Dinkuhl olhou para ele. — Descon¬traia-se. Descontraia-se, meu caro Charles. Quer um conselho? Dê a sua palavra. E depois divirta-se.

A loquacidade era a mesma, mas não parecia o mesmo Dinkuhl. Dantes, essa mesma loquacidade servia apenas para disfarçar um espíri¬to extremamente ativo e em constante atividade. Examinou mais de perto as feições de Dinkuhl; pareceu-lhe descobrir qualquer coisa que nunca tinha notado antes: uma indiferença que, de certa maneira, era mais amarga que o desespero.

Dinkuhl pegou numa laranja e começou a descascá-la.

—      Sirva-se, Charlie.

Charles disse:

—      Quanto a sair de Israel, não sei como será. As probabilidades são contra nós. De fato, elas são de tal maneira contra nós que um objetivo mais limitado poderia ser bastante mais fácil do que parece à primeira vista.

Dinkuhl deixou cair um pedaço de casca no chão.

—      Um objectivo limitado?

—      Não creio que haja um detector neste quarto. Com essa história do guarda do lado de fora da porta, de ser acompanhado pelo próprio Isaacssohn, em pessoa e sozinho. Estão de tal forma confiantes que não conseguiríamos sair do país, que não tomam praticamente quais¬quer precauções. Escute, Hiram. No que diz respeito à TV, este edifício é servido por uma única sala de transmissão-recepção. Sei onde fica porque o Isaacssohn me fez passar por lá e a porta estava aberta. Há só um operador de serviço. Julgo que lhes chega um porque fazem tanto uso dos fios.

Dinkuhl partiu a laranja.

—      Já vou mais adiantado. Estamos na sala de TV. Arrumamos o operador solitário. Continue a partir daí.

— Na minha idéia há apenas um homem que talvez conseguisse fazer qualquer coisa que valesse a pena com as informações que nós po¬deríamos dar-lhe.

—      Raven?

—      Pois. Concorda?

Charles disse:

—      Está certo. Sugiro que chamemos o guarda cá dentro. Eu ponho-me atrás da porta e, quando ele entrar, bato-lhe na cabeça. Pode ser elementar, mas acho que pode dar resultado.

Dinkuhl abanou a cabeça.

—      Meu caro Charlie, você é que devia estar na cama. Espere até eu melhorar um pouco e então já pode ser. Vou lhe buscar a enfermeira. Não me agradeça. É com muito prazer.

—      Mas que é que você não acha bem?

—      Ouça — disse Dinkuhl. — Você queria a rapariga. Está a dez minutos dela. Basta-lhe ir dizer a Isaacssohn que deixa esse negócio da capa e do punhal. Você também não foi feito para isso, de qualquer forma.

—      Não me acompanha nisto?

—      O prego entra na madeira. Eu não.

—      Fica contente quando vir os israelitas governarem o mundo?

—      A enfermeira é que me pode governar quando quiser. E o mun¬do que vá para o Inferno.

—      Estou a falar a sério.

—      Esse é que é o seu azar. Já perdi o meu riso de criança há tempo de mais, para poder ser sério nesta idade. Olhe cá, Charlie, você tem aquilo que queria.

Charles fez uma pausa. Depois disse devagar:

—      E você, Hiram? Que é que você queria?

Seguiu-se novo silêncio. Dinkuhl disse:

—      Pois bem: que é que eu queria? Encontrar a sua rapariga para si? Gostaria de me poder gabar de todo esse altruísmo. Já lho disse uma vez, Charlie — você era a bomba H. Você ia fazer explodir tudo. Você era a Destruição e eu servia a Destruição. Mas você já não é nada disso. Portanto, vá em paz, irmão, se é que tem de ir.

—      Descobriu uma bomba maior?

—      Só isso. Agora estou à espera. Não sei de quê, mas estou à espe¬ra. Não vou mentir a mim próprio convencendo-me que os israelitas têm muito mais do que as organizações do sistema de gestão, exceto no campo militar, mas o ano promete ser interessante. Vá, tente comu¬nicar com o Raven, se a sua lealdade continua a ser mais forte que o bom senso. Não digo que isso não mude o curso das coisas, mas mesmo assim vai ser um ano interessante, independentemente do que você pos¬sa fazer.

Charles olhou para a porta.

—      Eu sou neutro — disse Dinkuhl. — Não vou chamar a enfer¬meira. O que é um grande sacrifício, da maneira como eu me sinto neste momento.

Charles chamou o guarda. Até a própria voz lhe pareceu pouco na¬tural. Colocou-se atrás da porta, agarrando pela pega saliente a pesada taça de madeira que continha a fruta; esta estava agora em cima da ca¬ma de Dinkuhl. Dinkuhl observava-o cheio de interesse.

A porta abriu-se e o guarda entrou. Não era muito alto; foi fácil deixar abater a taça na parte posterior da cabeça do homem. Ele incli¬nou-se para a frente, em arco e embateu no chão com uma pancada surda. Dinkuhl chegou-se para diante para o ver melhor.

—      Belo. Tem pelo menos um quarto de hora, meu caro Charlie. Se fosse a si, levava a taça.

O corredor estava deserto e não eram mais de dez jardas até ao elevador de serviço. Ele chamou-o e entrou nele com certo alívio — deixando a cena do crime. A sala de TV ficava no rés-do-chão. Os movimentos que fez para fechar a porta do elevador foram estudados e deliberados. Havia duas ou três pessoas neste corredor, entre ele e o seu alvo. Caminhou pelo corredor balançando a taça de madeira com ar natural. Uma rapariga olhou para ele com uma certa curiosidade, quando ele passou, mas foi tudo.

A porta da sala de TV estava fechada. Pouca sorte. Felizmente em Israel parecia que não se usavam fechaduras de assobio. A porta tinha um puxador; ia dar-lhe a volta quando percebeu que ele cedia à pressão da mão. Empurrou-a suavemente.

O operador estava sentado junto do painel de controlo principal, de costas para a porta. Ainda não se dera conta da porta aberta, mas is¬so podia acontecer a todo o momento. Charles correu para ele, levan¬tando a taça da fruta acima da cabeça. O operador voltou-se, a tempo de apanhar a pancada na fronte, em vez de ser na base do crânio. O efeito foi o mesmo. Teve um gemido cavo e caiu para a frente, em ci¬ma da secretária.

Charles voltou atrás e fechou a porta. Tinha uma fechadura do lado de dentro — uma fechadura antiga, com chave, e ele fechou-a. Depois voltou para trás e observou o operador; não havia dúvidas de que estava sem sentidos. Num painel em frente da secretária, um foco iluminou o número vinte e um. Alguém pedia atenção. Quanto tempo teria, antes que alguém viesse ver porque é que não havia resposta? Tal¬vez o tempo necessário para o guarda que estava no quarto de Dinkuhl voltar a si. A dificuldade agora era, com os seus escassos conheci¬mentos de comunicações pela TV, conseguir apanhar os circuitos exter¬nos e apanhar Raven.

Teria sido fácil com Dinkuhl, claro.

Levou cinco minutos a adquirir o domínio suficiente sobre os con¬trolos para conseguir entrar em comunicação com Atenas, a estação mais próxima do mundo da gestão. Empurrara o operador para o chão, para não ser visto do écran.

As secretárias de cromo e plástico da Telecom provocaram-lhe um sentimento estranho; depois dos acontecimentos recentes e do tempo que passara anteriormente com a Seita do Cometa, quase se esquecera do aspecto das coisas. O operador era uma rapariga; por cima do uni¬forme cuidado, o rosto dela tinha o ar distante e sonhador típico dos consumidores de mescal. Ela não mostrou qualquer surpresa perante o ar desarranjado e barbudo de Charles; era natural que o tomasse por um israelita e, além disso, não havia nada que a surpreendesse.

Ele disse:

—      Jerusalém para o QG da Secção Atômica, Filadélfia.

Isso também não a surpreendeu, embora se pudesse certamente apostar que uma ligação dessas não acontecia uma vez numa década. Ela disse com ar sonolento:

—      Jerusalém para Filadélfia. Aguardar, Jerusalém.

Ele disse:

—      É urgente.

Ela sorriu e acenou ligeiramente.

—      Sim.

Ele observou-a enquanto fazia a chamada para a estação espacial que forneceria a ligação com os continentes do mundo, pensando ao mesmo tempo naquilo que Raven faria depois de receber as notícias. Anotaria tudo, com certeza, para ter maior peso na reunião do Conse¬lho que teria de convocar. As organizações, sob uma tal ameaça, se¬riam forçadas a unir-se. Teriam de se unir, para conseguir defender-se.

E depois? Os israelitas levariam o seu plano por diante — já ti¬nham ido longe de mais para poderem recuar agora. Uma guerra amar¬ga e dura. Não era provável que salvassem a África; a Europa também podia ir-se. Mas as Américas eram susceptíveis de ser defendidas, espe¬cialmente se Raven tomasse a precaução óbvia de cercar os chefes da Seita do Cometa.

Para Raven seria uma boa guerra: o chefe natural e automático. Os seus pensamentos eram pervertidamente humorísticos. Raven ia saber tudo. Pela sua parte, queria apenas paz de espírito: a sensação de que, arrastado da obscuridade para uma grandeza transitória, conservara a sua fé numa sociedade que o criara — embora perpassados pelo mal, condenados a morrer apesar de tudo, conservara a sua fé. Para isso, es¬tava disposto a abandonar o resto — a sua liberdade pessoal, a sua vi¬da, se a quisessem... e Sarah.

A rapariga falou novamente, embora não fosse com ele.

— Estação Q 5? Atenas tem uma chamada para Filadélfia.

Haveria uma discrepância entre a sua atuação neste momento e a sua recusa em ficar com Raven e trabalhar para a Seção Atômica, no passado? Talvez sim, talvez não. Raven vira que se aproximava uma catástrofe, mas a palavra de Raven tinha-se tornado suspeita. E mesmo assim fora uma catástrofe diferente. A guerra civil é uma coisa na qual nunca se acredita até ela estalar. O mesmo se dá quando um estado en¬tra em colapso interior. Era o choque exterior que estimulava o patrio¬tismo meio esquecido.

Era doloroso pensar em perder Sarah, depois de ter estado tão per¬to de voltar a encontrá-la. Tão doloroso, que duvidou que fosse capaz de manter a sua resolução, se começasse a pensar nisso. A imagem per¬seguia-o agora; repudiou-a, repetindo uma espécie de lenga lenga para a afastar. «Raven raivoso, o roubo de Raven...»

«O roubo de Raven...»

Tornou-se um pensamento real, com a agudeza nítida do gelo. Que faria Raven? Reunir o Conselho — cercar os chefes da Seita do Come¬ta? De repente, viu que ele não faria uma coisa tão pouco interessante como aquela; subestimara Raven. O Professor Cohn assumira urna ati¬tude desdenhosa para com a bomba H porque, quando as organizações chegassem a acordar para a realidade da invasão, os exércitos israelitas, trazidos pelo ar, estariam em toda a parte, em África, na Europa. Nes¬sas condições seria impossível usar a bomba H. Mas Charles estava a criar condições diferentes — os israelitas, fechados no seu território, relativamente pequeno, constituíam um alvo impossível de falhar. Ra¬ven não falharia.

«Bom», pensou — «minha vida, se for preciso». De qualquer for¬ma, já perdera Sarah.

À rapariga disse:

Filadélfia a responder, Jerusalém. Serão transferidos logo que fo¬rem focados.

A impressão foi tão forte que, por momentos, só viu escuridão diante dos olhos.

... Sarah apareceu no écran.

A rapariga disse:

—      Focado. Aceita, Jerusalém?

Ele fitou o écran, perguntando a si mesmo o que é que estivera prestes a fazer. Ouviu novamente a voz da rapariga, com a tolerância do mescal, e cansada.

—      Filadélfia em foco, Jerusalém. Está preparado para aceitar a chamada?

À direita da secretária havia a lista dos números de código do edifí¬cio. Isaacssohn era 71.

—      Filadélfia... começou novamente a voz.

Sem levantar os olhos, disse:

—      Cancele.

Ela respondeu:

—      O. K. Cancelado.

A imagem desapareceu. Ligou com o 71. Quando Isaacssohn res¬pondeu, disse:

—      Aqui Grayner. Estou na sala de TV. Pode vir buscar-me.

Ao olhar para ela, perguntava a si mesmo como é que alguma vez pudera deixar-se enganar pela falsa Sarah. Não eram as linhas do rosto ou o corpo, mas aquela centelha, o brilho inimitável da sua personali¬dade. E, embora sorrindo, observava-o prudentemente. Como é que ele podia ter esquecido aquele toque de prudência que era mais característico de Sarah do que as pequenas protuberâncias logo acima das so¬brancelhas? Lembrou-se da carne, cortada pela face de Dinkuhl... isso não teria sido necessário.

Ele disse humildemente:

—      Só tenho tido problemas, Sarah, desde que a perdi.

Ela riu-se:

—      Se estar à beira de mandar lançar bombas H sobre as nossas ca¬beças se pode chamar de ter problemas... enfim, não chegou a fazê-lo.

—      Não foi bem isso... com respeito à América do Norte. Não pen¬sei em bombas H. Aquela chamada que tentei fazer. — Olhou-a bem de frente. — Estava preparado para nunca mais a ver, Sarah. Não que¬ria que aquilo acontecesse — a ocupação — com o consentimento da minha parte. Compreende?

—      Não totalmente. — Ela bateu com a mão no sofá de plastifoam. — Venha sentar-se aqui. — Usava a saia muito rodada que era o trajo típico das mulheres de Israel. Puxou-a para o lado para ele se poder sentar junto dela. — E o outro problema? Detalhes.

Ele contou-lhe acerca da falsa Sarah; era um alívio confessar-lhe tudo. Sarah disse, pensativa:

—      Foi passear de esfera com ela?

Ele acenou com a cabeça:

—      Sim. — Perguntava a si mesmo se parecia tão embaraçado co¬mo se sentia na realidade. Achava que sim.

—      É uma ocupação muito romântica. Um primo meu fez uma tese sobre os efeitos afrodisíacos dos passeios na atmosfera. Teve de sair de Israel para conseguir fazer a parte prática... as nossas jovens só vão passear de esfera com os namorados. Ele foi para a Grécia.

Charles olhou-a, infeliz.

—      Sim?

—      A correlação era positiva. — Sarah fez uma pausa. — Diga-me cá. Como é que eu era?

—      O disfarce era muito bom. Fisicamente era como você. Claro que eles tinham tido acesso às suas fichas. Mas eu não me devia ter dei¬xado enganar. Não era você, Sarah.

—      Nem mesmo na esfera, lá no alto por cima das nuvens?

Ele riu envergonhado.

—      Era quando se parecia menos. Fiquei surpreendido.

—      E contente, segundo imagino. — A rapariga levantou-se do so¬fá e ficou de pé em frente dele, um sorriso vago tornava-lhe o rosto inexpressivo. Inclinou-se ligeiramente para a frente e esbofeteou-o, com toda a força, dos dois lados. Ele ergueu a mão e esfregou a cara, primeiro de um lado, depois do outro. Ela olhava-o.

—      Que é que foi isso?

O sorriso acentuou-se, mas ele continuava a não conseguir ler-lhe a expressão. Ela disse:

—      A primeira foi da parte da outra Sarah. Ela devia tê-lo feito, por isso, faço-o eu por ela. A segunda foi por minha conta — por ter conti¬nuado a pensar que era eu, mesmo depois.

Ele abanou a cabeça, tristemente.

—      Desculpe.

—      Desculpas! E que tal fazer alguma coisa que prove que merece ser desculpado?

Ele olhou para cima.

—      Faço tudo o que quiser, Sarah.

Pensou que ela ia perder a pose por momentos; houve um ligeiro si¬nal de embaraço, mas depressa se controlou, dizendo com brusquidão:

—      Pois então, esta tarde... pode levar-me a passear de esfera.

Ele pegou-lhe na mão e ela deixou que a puxasse novamente para junto dele. Fugiu com o rosto aos beijos dele, mas agora tinha um sor¬riso feliz. Ele teve uma hesitação, quando lhe ocorreu em pensamento:

—      Mas disse... que os passeios de esfera só com...

—      Com namorados! Idiota! Não percebe que lhe estou a querer di¬zer qualquer coisa?

Ele puxou-a para ele e desta vez ela aceitou-lhe os beijos e correspondeu-lhe. Quando, passados alguns minutos, ele a soltou, ofereceu- -lhe a cara.

Ela olhou-o, pensativa.

—      Então?

—      Já que vai casar comigo, gostaria de receber todos os meus casti¬gos agora. Fui passear de esfera mais do que uma vez.

Sarah ergueu as sobrancelhas:

—      Quantas?

—      Uma meia dúzia.

Ela olhou para a face que ele lhe oferecia e para as próprias mãos.

—      Não. Ainda não. Uma boa esposa tem sempre qualquer coisa de reserva.

O jardim do Diretor, no telhado do Instituto Einstein era consti¬tuído, quase exclusivamente, por verdura e rosas; as rosas floresciam todo o ano, de forma que as estações não o afetavam. Esta manhã, havia um pequeno grupo que olhava para fora do jardim, para além do centro de Jerusalém, em direção a um acampamento militar dos arre¬dores. O grupo era formado pelo Professor Cohn e Isaacssohn, Sarah e Charles e Dinkuhl. O céu estava de um azul brilhante e o próprio sol ofuscava, por comparação, os pequenos sóis suspensos sobre as suas cabeças.

O Professor Cohn disse:

—      Hans tem-me falado da sua idéia, Charles. Nós já tínhamos con¬siderado a possibilidade de usar as estações espaciais como acumuladores de energia solar, claro, mas a distribuição torna-se impossível. Elas podem acumular a energia, mas a única energia que utilizam é para re¬forçar a TV. Não podemos ligar-lhes quaisquer cabos.

- Essa sua idéia — de manter um acumulador em esferas, poderia resultar. Aí já poderíamos usar cabos, de qualquer forma para os níveis mais baixos. Mas há outra coisa — não lhe parece que as esferas fica¬riam à deriva?

—      Não, se estivessem ligadas a cabos. Pelo menos, não se afasta¬riam grandemente. As esferas tomariam conta da flutuação, os cabos do afastamento. Além disso, podiam ter um operador.

O Professor Cohn fez um gesto de assentimento.

—      Energia barata todo o ano. Seria muito significativo para os ter¬ritórios de céu encoberto — as Ilhas Britânicas, por exemplo. Que é que lhe parece, Hans?

—      Muito interessante. Prevejo alguns problemas, por isso sugiro que seria um bom primeiro trabalho para o laboratório Hebron.

Sarah protestou:

—      Deixem-nos passar a lua-de-mel primeiro. Ainda não aceitámos Hebron oficialmente.

Isaacssohn disse:

—      Falo com toda a autoridade militar que me assiste. — Riu. — Se recalcitram, separo-os — Charles vai para o Cairo e você para Constantinopla e, depois da conquista, posso mesmo escolher hemisférios opostos.

—      Gestor! — disse Sarah. — E nós não íamos.

O Professor Cohn disse:

—      É uma pena não podermos fazer nada quanto à utilização da energia no espaço. É um desperdício. Mas, enquanto não desenvolver¬mos um transmissor de energia, não há nada a fazer.

Charles disse:

—      Há uma maneira de a utilizar.

—      E essa maneira é...?

—      As naves espaciais a energia atômica são pouco práticas e terri¬velmente caras. A energia solar acumulada em diamantes transformaria totalmente as coisas.

O Professor Cohn acenou lentamente. Isaacssohn disse:

—      Ide para Hebron. Malesh a lua-de-mel.

—      Malesh as naves espaciais — disse Sarah. — Primeiro as coisas mais importantes.

Charles disse:

—      E você, Hiram? Já resolveu alguma coisa?

A indiferença que Charles notara a princípio por detrás da verbosidade habitual de Dinkuhl, quando o tentara persuadir a juntar-se a ele para prevenir Raven, instalara-se agora na generalidade. Falava pouco e quando o fazia era lacônico.

Disse:

—      Não tenho a certeza.

Isaacssohn disse:

—      Ofereci-lhe a direção das unidades de Telecom quando tomar¬mos conta delas. A oferta continua de pé.

Charles perguntou-lhe:

—      Que tal, Hiram?

Dinkuhl pareceu despertar.

—      É muito amável da parte de todos. Mas o que acontece é que eu não me considero um organizador.

Charles disse:

—      Quando nos encontramos pela primeira vez nestas andanças — em Detroit — disse-me que tinha tentado transferir o FK para Israel. Pois bem. Aqui tem a oportunidade. Porque não?

—      Isso é uma concepção errada — disse Dinkuhl. — O FK era um legado do capitalismo — Israel era capitalista. Perdi as nuances. O FK provinha de um capitalismo filantrópico, um capitalismo decadente. Talvez um capitalismo militar. Mais perto das raízes, de qualquer for¬ma. E as raízes do capitalismo estão a dar ao povo aquilo que ele quer — aquilo que quer — não o que deveria querer. Nunca quiseram o FK, por exemplo, a não ser os excêntricos e uma sociedade equilibra¬da e saudável não trabalha para os excêntricos.

Charles disse:

—      Não há nada de que você gostasse?

—      Há uma coisa...

Isaacssohn olhou para o relógio que tinha no dedo.

—      Parece-me... agora!

Olharam. Um enxame em casacos de couro erguia-se do acampa¬mento, mais parecendo gafanhotos, em direção ao céu muito azul. Neste momento, por todo o território israelita erguiam-se enxames se¬melhantes. Como gafanhotos atacavam as terras vizinhas privando-as do que tinham de mais importante e prosseguindo implacavelmente. Gafanhotos com inteligência, gafanhotos com uma finalidade. O calei¬doscópio da civilização estava a ser abalado; só se podia tentar adivinhar quais os novos padrões que viriam a regê-lo ou se haveria mesmo alguns padrões.

—      A humanidade está de novo em movimento — disse o Professor Cohn.

—      Eles lá se arranjam — disse Dinkuhl. — A humanidade é como o Charlie, è adaptável. Você vai ser feliz em Hebron, Charlie. Mulher e uma linha de pesquisa — duas linhas de pesquisa. Que mais pode dese¬jar? Espero que esteja contente por eu não me ter juntado a si nessa úl¬tima tentativa. Não havia ninguém que eu quisesse salvar da bomba H.

—      Tinha pensado nisso? Então porque o não fez? Você queria a destruição.

O enxame já se tornara uma nuvem no horizonte, uma nuvem que começava a desaparecer. Dinkuhl fez um gesto nessa direção.

—      Prefiro-a mais espalhada.

Isaacssohn disse:

—      Há pouco interrompi-o. Ia a dizer que queria qualquer coisa. Se puder dar-lhe, será sua.

Dinkuhl acenou com a cabeça.

—      É muito amável. Não é grande coisa. Gostava de poder usar um camelo.

Era uma zona do país do qual mesmo a agricultura israelita, com to¬da a sua agressividade, se tinha afastado, desesperada — um solo árido e pedregoso, impróprio para tudo, exceto para a pastagem de carnei¬ros. Já passaram vários rebanhos, guardados por rapazitos que, quan¬do crescessem, envergariam provavelmente os casacos de cabedal que os esperavam, assim como as asas empoadas pelo sol. Mas esta região estava deserta. Dinkuhl seguia sozinho, com o seu camelo e os seus pensamentos. Já se habituara ao deslizar das pedras à sua passagem, aos grunhidos do camelo, ao bater dos seus pés largos e àquilo que ele julgava ser o ranger das articulações do animal.

Era noite. Havia estrelas, mas não se via a Lua. As estrelas eram grandes e brilhantes num céu sem nuvens. O tempo, refletiu, estava a favor de Israel. Perguntava a si mesmo, até onde teriam chegado os ga¬fanhotos. — Cidade do Cabo, Gibraltar, Londres, Moscovo, Delhi?

O cometa também parecia muito grande, quase por cima da sua ca¬beça. Os da Seita deviam estar satisfeitos. Tentou sentir desprezo ou mesmo ironia, mas a indiferença apossou-se dele e não conseguia pô-la de lado. A indiferença era uma bela arma, mas má companheira. Era, no entanto, fiel e persistente.

A indiferença viera com a morte da esperança e a esperança morre¬ra com as notícias trazidas por Charles no pequeno quarto do Instituto Einstein. Nessa altura ainda não sabia, porque nem sequer sabia que ti¬nha esperança, só o compreendera mais tarde. «Destruir!» dissera o seu espírito. «Destruir!» Não ouvira o seu sussurro mais suave: «Para que o bem possa surgir da destruição do mal.»

E, de repente, vira a Destruição com as suas asas, pronta a entrar em cena e viu-a tal como era — um simples ator, representando um primeiro papel, mas não fazendo qualquer diferença dos outros atores. E a esperança morrera, sem ser reconhecida.

Os israelitas, os adeptos do sistema de gestão, os da Seita do Come¬ta ... Não havia nada cuja perda causasse desespero e, portanto, também não havia com que alimentar a esperança. Que é que ele andava a fazer, cavalgando um camelo que se balançava na noite clara de Inverno? Na¬da. Avançava no tempo e no espaço do nada para o nada, com a única consolação de saber o que estava a fazer — que não estava a fazer nada.

Atormentava-o um pensamento... mais alguém sem uma finalida¬de em vista... outra estrada...

Kirby. O vagabundo de cabelos brancos das estradas de Vermont. Mas Kirby era feliz, protestava para consigo próprio — via-se que era um tipo feliz.

Isso tornava as coisas cômicas. Felicidade. Felicidade num mundo de israelitas, de gestão, de adeptos da Seita do Cometa, um mundo de Ellecotts e Ledbetters e Ravens, de Cohns e Isaacssohns, já para agora, de Charles e Sarahs — de Dinkuhls. Era preciso ser doido para se sentir feliz num tal mundo.

O caso é que Kirby não lhe dera a impressão de ser doido.

Pela primeira vez desde que se instalara com ele, a indiferença afas¬tou-se, retirando-se ligeiramente perante o ressurgir daquilo que estivera morto. Esperança sem desespero? Esperança pela esperança? O seu espírito gritou irracionalmente: «Fica comigo! Fica comigo, seja como for!»

A esperança vem com a inocência e vai-se com a sabedoria. Poderá um homem desaprender o que aprendeu?

«Fica comigo!», gritou novamente o seu espírito. «Deixa-me ser criança, mas fica comigo. Estava disposto a dar tudo ao desespero, exceto os meus conhecimentos. Mas podes levar isso também, se eu puder ter esperança.»

Continuou a cavalgar o seu camelo que se balançava sob as estrelas brilhantes de gelo. Em frente, viam-se as luzes de uma aldeia, uma pe¬quena aldeia, mas iluminada como para uma festa de carnaval. Ouvia vozes que cantavam; era espantoso porque a aldeia ficava ainda dema¬siado longe para que as canções pudessem vir de lá. As vozes estavam cada vez mais perto e finalmente viu os cantores, avançando em direção a ele pelo caminho pedregoso. Eram jovens israelitas, pastores.

Estavam alegres e ele alegrou-se com a sua felicidade. Tentou apa¬nhar a letra da canção, mas não percebia lá muito bem o dialeto. Quando se aproximaram, gritou-lhes em alemão:

—      Como se chama esta aldeia?

Foram vários a responder-lhe, mas ele já sabia o nome, mesmo an¬tes de eles o pronunciarem. Picou o camelo com o aguilhão fazendo-o andar mais depressa.

Falou alto, gritando para a escuridão do céu, para as estrelas, para o cometa que mergulhava:

—      Estava pronto a dar o conhecimento pela esperança. E agora o conhecimento e a esperança são a mesma coisa.

No fundo da memória encontrou palavras — palavras das quais o surpreendeu lembrar-se.

—      Nunc dimittis...

 

                                                                                John Christopher  

 

                      

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