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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ANO DO PENSSAMENTO MÁGICO / Joan Didion
O ANO DO PENSSAMENTO MÁGICO / Joan Didion

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Uns dias antes do Natal de 2003, John Gregory Dunne e Joan Didion viram a sua única filha, Quintana, adoecer com o que a princípio aparentava ser uma gripe, depois uma pneumonia e a seguir um choque séptico total. Foi posta em coma induzido e com apoio de vida. Uns dias depois, na noite anterior à véspera do Ano Novo, os Dunne tinha acabado de ser sentar para jantar depois da visita ao hospital quando John sofre um acidente coronário fatal. Num segundo, esta parecia íntima e simbiótica de quarenta anos acabou. Quantro semanas depois, a filha recuperou. Dois meses depois, ao chegar ao aeroporto de Los Angeles, desmaiou e foi submetida a uma operação ao cérebro que durou seis horas, no Centro Médico da UCLA a fim de aliviar um hematoma.

Este livro tão poderoso é a tentativa de Joan Didion de dar sentido às «semanas e depois meses, que me fizeram abandonar quaisquer ideias fixas que pudesse ter sobre a morte, sobre a doença... sobre o casamento, o filho e as recordações... sobre a superficialidade da saúde, sobre a própria vida».

De um dos ícones da literatura americana, um livro espantoso de honestidade e paixão electrizantes.

 

 

 

 

A vida modifica-se rapidamente.

A vida modifica-se num instante.

Sentamo-nos para jantar e a vida, como a conhecemos, acaba.

A questão da autocompaixão.

 

Foram estas as primeiras palavras que escrevi depois que aquilo aconteceu.

A data da modificação do ficheiro Microsoft Word, indicada no computador, é a de 20 de Maio de 2004, onze horas e onze minutos, mas deve ter sido resultado de eu ter aberto o ficheiro e instintivamente clicado em «gravar» quando o fechei. Não fiz modificações nesse ficheiro, em Maio. Não fiz modificações nesse ficheiro desde que escrevi aquelas palavras em Janeiro de 2004, um ou dois dias após o acontecimento.

Não escrevi mais nada durante um longo espaço de tempo.

 

A vida muda num instante.

O banal instante.

 

A certa altura, com a intenção de recordar o que me parecia mais chocante no que acontecera, pensei acrescentar estas palavras: «O banal instante.» Vi ime­diatamente que não havia necessidade de acrescentar a palavra «banal», já que não se punha a questão de o esquecer: o instante nunca me sairia da mente. De facto, foi a natureza banal de tudo o que prece­deu o acontecimento que me impediu de acreditar verdadeiramente que aquilo acontecera, de o absor­ver, incorporar e superar. Reconheço agora que não foi nada invulgar: confrontados com uma catástrofe súbita, todos nós nos concentramos em quão prosai­cas foram as circunstâncias em que o impensável aconteceu, o céu azul e límpido donde caiu o avião, a incumbência rotineira que acabou com um carro em chamas, os balouços onde as crianças estavam a brin­car como de costume quando a cascavel escondida na hera atacou.

«Ia a caminho de casa depois do trabalho - feliz, realizado, saudável - e, a seguir, morreu», li no rela­tório de uma enfermeira psiquiátrica cujo marido mor­rera num acidente na auto-estrada.

Em 1966, aconteceu entrevistar várias pessoas que viviam em Honolulu na manhã de 7 de Dezembro de 1941; nos seus relatos sobre Pearl Harbor, todas aque­las pessoas, sem excepção, começavam por dizer-me como fora «uma banal manhã de domingo».

«Era simplesmente um belo e banal dia de Setem­bro», continuam as pessoas a dizer quando solicitadas a descrever a manhã em Nova Iorque em que o voo 11 da American Airlines e o 175 da United Airlines se esmagaram contra as torres do World Trade Center.

Até O relatório da Comissão do 11 de Setembro abre com esta observação narrativa, premonitória mas que nos emudece: «Terça-feira, 11 de Setembro de 2001. O dia nasceu ameno e praticamente sem nuvens na região leste dos Estados Unidos.»

«E, a seguir... desapareceu.» Em plena vida esta­mos com a morte, escrevem os episcopalianos nas suas pedras tumulares. Posteriormente, apercebi-me de que devo ter repetido os pormenores do que aconteceu a todos os que foram lá a casa naquelas primeiras sema­nas, todos os amigos e parentes que levaram comida, prepararam bebidas e colocaram travessas na mesa da sala de jantar para quem quer que ali estivesse à hora do almoço ou do jantar, todos os que levantaram os pratos e puseram os restos no congelador, ligaram a máquina de lavar louça e encheram a nossa casa (ainda não consigo dizer minha) de outro modo vazia e que permaneceu cheia mesmo depois de me ter reti­rado para o quarto (o nosso quarto, aquele onde ainda se encontra sobre um sofá o vestido desbotado de velu­do tamanho XL comprado na década de setenta na Richard Carro]] de Beverly Hills) e fechado a porta. Aqueles momentos em que fui abruptamente vencida pela exaustão são o que recordo com mais nitidez dos primeiros dias e semanas. Não tenho ideia de ter con­tado a alguém os pormenores, mas devo tê-lo feito porque toda a gente parecia estar a par do assunto. A determinada altura, considerei a possibilidade de terem sabido dos pormenores uns com os outros, mas imediatamente a rejeitei, uma vez que, em todos os casos, a história era demasiado exacta para ter passa­do de boca em boca. Viera de mim.

Outro motivo pelo qual fiquei a saber que a história viera de mim foi que nenhuma das versões que ouvi incluía os pormenores que eu ainda não conseguia enfrentar, por exemplo, o sangue no chão da sala, que lá ficou até José vir na manhã seguinte e o ter limpo.

José. Que fazia parte da nossa família. Que era suposto ir a Las Vegas umas horas depois nesse mesmo dia 31 de Dezembro, mas que nunca chegou a ir. José chorava naquela manhã enquanto limpava o sangue. A primeira vez que lhe contei o que suce­dera, José não compreendeu. Era evidente que eu não era a pessoa ideal para contar aquela história, algo na minha versão era demasiado improvisado e ao mesmo tempo demasiado elíptico, algo no meu tom de voz não conseguiu transmitir o principal facto da situação (deparei com a mesma incapacidade mais tarde quando tive de contar a Quintana), mas quando viu o sangue José compreendeu.

Apanhei as seringas abandonadas e os eléctrodos do ECG antes de José chegar naquela manhã, mas não fui capaz de enfrentar o sangue.

Em linhas gerais.

       Estamos na tarde de 4 de Outubro de 2004 quan­do começo a escrever isto.

Há nove meses e cinco dias, aproximadamente pelas nove horas da noite de 30 de Dezembro de 2003, o meu marido, John Gregory Dunne, pareceu ter ou teve, à mesa onde ele e eu nos tínhamos acabado de sentar para jantar na sala do nosso apartamento de Nova Iorque, um súbito acidente coronário que lhe causou a morte. A nossa filha única, Quintana, nas cinco noites anteriores, esteve inconsciente na Uni­dade de Cuidados Intensivos da Divisão Singer do Centro de Saúde Beth Israel, que, à época, era um hospital situado na East End Avenue (encerrou em Agosto de 2004), conhecido geralmente como «Beth Israel North» ou «o antigo Hospital dos Médicos», onde o que parecera um caso de gripe de Inverno suficiente­mente grave para a levar às Urgências na manhã de Natal explodiu em pneumonia e choque séptico. Isto é a minha tentativa de entender o período que se seguiu, semanas e depois meses, que me fizeram aban­donar quaisquer ideias fixas que pudesse ter sobre a morte, sobre a doença, sobre as probabilidades e o acaso, sobre a sorte e o azar, sobre o casamento, os filhos e as recordações, sobre o sofrimento, sobre os modos como as pessoas lidam ou não com o facto de que a vida acaba, sobre a superficialidade da saúde, sobre a própria vida. Fui escritora a vida inteira. Enquanto escritora, ainda mesmo em criança e muito antes de o que escrevia começar a ser publicado, de­senvolvi a percepção de que os significados residem no ritmo das palavras, das frases e dos parágrafos, técnica de resguardar atrás de um verniz cada vez mais impenetrável qualquer pensamento ou convic­ção pessoais. O modo como escrevo é quem eu sou ou em quem me tornei; porém, neste caso, quisera ter, em vez de palavras e seus ritmos, uma sala de montagem, equipada com um Avid, um sistema digital de edição, no qual pudesse carregar numa tecla e neutralizar a sequência temporal, mostrando-vos em simultâneo todas as imagens das recordações que agora me che­gam, deixando-vos escolher as cenas, as expressões marginalmente diferentes, as leituras variantes dos mesmos diálogos. Neste caso, é-me necessário que tudo aquilo que penso ou em que acredito possa ser pene­trável, quanto mais não seja, a mim mesma.

 

Dia 30 de Dezembro de 2003, uma terça-feira.

       Víramos Quintana no sexto piso da UCI do  Beth Israel North.

       Havíamos regressado a casa.

       Tínhamos posto a questão: sair para jantar ou comer em casa.

       Eu disse que ia acender a lareira, podíamos comer em casa.

       Acendi a lareira, comecei a fazer o jantar, pergun­tei a John se queria uma bebida.

Arranjei-lhe um uísque e dei-lho na sala, onde ele estava a ler no cadeirão ao pé da lareira e onde habi­tualmente se sentava.

Estava a ler as provas do livro de David Frornkin, Europe 's Last Summer: Who Started the Great War in 1914?

Acabei de fazer o jantar e pus a mesa na sala, onde, quando estávamos sozinhos em casa, podíamos comer a olhar para a lareira. Fui atiçar o fogo, porque dávamos muita importância à lareira. Nasci na Cali­fórnia e John e eu vivemos lá durante vinte e quatro anos e, na Califórnia, aquecemos as casas acendendo lareiras.

Acendíamos a lareira mesmo nas noites de Verão, porque havia nevoeiro. A lareira dizia-nos que estávamos em casa, que tínhamos completado o cír­culo, que passaríamos a noite em segurança. Acendi as velas. John pediu outra bebida antes de se sentar à mesa. Dei-lha. Sentámo-nos à mesa. Concentrada, pus-me a mexer a salada.

John estava a falar e, no momento seguinte, já não.

A certa altura, nos segundos ou no minuto antes de deixar de falar, perguntou-me se eu usara uísque de malte na segunda bebida. Disse-lhe que não, que tinha usado o mesmo uísque da primeira bebida.

«Óptimo», disse ele. «Não sei porquê, mas acho que não deves misturá-los.» A determinado momento desses mesmos segundos ou desse minuto, estivera a falar sobre o motivo por que a Primeira Guerra Mundial era o acontecimento crítico do qual fluía todo o resto do século XX.

Não faço ideia do assunto em que estávamos, se no uísque, se na Primeira Guerra Mundial, no ins­tante em que deixou de falar.

me lembro de levantar o olhar. Ele tinha a mão esquerda erguida, mas estava tombado, imóvel. A princípio, julguei que era uma brincadeira de mau gosto, uma tentativa de dizer que era possível geriras dificuldades do dia.

Lembro-me de dizer-lhe Não faças isso.

       Como não me respondeu, a primeira coisa em que pensei foi que ele começara a comer e se engas­gara. Lembro-me de o soerguer e afastar do espaldar da cadeira o suficiente para lhe fazer a manobra de Heirnlich. Lembro-me da sensação de peso quando ele tombou para a frente, primeiro contra a mesa e depois para o chão. Na cozinha, junto do telefone, tinha cola­do um cartão com os números das ambulâncias do New York-Presbyterian. Não colei os números junto do telefone por ter previsto um momento destes. Colei os números junto do telefone para o caso de alguém do prédio necessitar de uma ambulância.

Outra pessoa qualquer.

Liguei para um dos números. Um perguntou-me se ele estava a respirar. Respondi-lhe Venham!

Quando os paramédicos chegaram, tentei contar­-lhes o que sucedera, mas, ainda não conseguira acabar e já eles tinham transformado a parte da sala onde John estava estendido num serviço de urgências. Um deles (havia três, talvez quatro, mesmo uma hora depois ainda não o sabia dizer) falava com o hospital sobre o electrocardiograma que, pelo que parecia, já estava a ser transmitido. Outro abria a primeira ou a segunda das muitas seringas para injecções. (Epine­frina? Lidocaína? Procaína? Os nomes vieram-me à mente, mas não faço ideia como.) Lembro-me de dizer que ele devia ter sufocado, mas a hipótese foi afastada com um movimento de dedo: as vias respi­ratórias estavam desimpedidas. Pareceu-me que a seguir usaram o desfibrilhador numa tentativa de restabelecer o ritmo cardíaco. Conseguiram (ou eu assim julguei, estávamos todos em silêncio, houve um salto súbito) o que parecia uma pulsação normal, depois perderam-na e recomeçaram.

       «Continua em fibrilhação», lembro-me de ouvir dizer o que estava ao telefone.  «Fibrilhação V», disse o cardiologista de John na manhã seguinte quando telefonou de Nantucket. «Deviam ter dito '"fibrilhação V".» V de ventricular.

Talvez tenham dito «fibrilhação V», talvez não. A fibrilhação auricular não provoca imediata ou neces­sariamente uma paragem cardíaca. A ventricular sim. Talvez se tenha dito ventricular.

Lembro-me de tentar arrumar as ideias quanto ao que aconteceria a seguir. Uma vez que na sala estava a equipa de uma ambulância, o passo lógico seguinte seria ir para o hospital. Ocorreu-me que a equipa podia resolver muito repentinamente ir para o hospital e que eu não estaria pronta. Não tinha à mão o que precisava de levar. Perderia tempo, ficaria para trás. Encontrei a carteira, um molho de chaves e um resumo que o médico de John fizera da sua his­tória clínica. Quando voltei à sala, os paramédicos observavam o monitor do computador que tinham pousado no chão. Como não conseguia ver o monitor, olhei para os rostos deles. Lembro-me de que olharam uns para os outros. Quando se tomou a decisão de partir, tudo aconteceu muito depressa. Segui -os no elevador e perguntei-lhes se podia ir com eles. Disse­ram que primeiro iam levar para baixo a maca e que eu podia ir na segunda ambulância. Um deles espe­rou comigo que o elevador voltasse a subir. Quando ele e eu entrámos na segunda ambulância, a que transportava a maca ia a arrancar da frente do edifí­cio. A parte do New York-Presbyterian que era anti­gamente o New York Hospital ficava do outro lado da cidade, a seis quarteirões de distância. Não tenho ideia de sirenes. Não tenho ideia de haver trânsito. Quando chegámos à entrada das Urgências do hos­pital, já a maca ia a desaparecer dentro do edifício. Um homem esperava à porta. Toda a gente usava bata.

Ele não. «É a esposa?», perguntou ao condu­tor, e depois voltou-se para mim. «Sou o seu assis­tente social», disse ele, e calculo que foi esse momento em que devia ter adivinhado.

«Abri a porta, vi o homem fardado e soube. Soube imediatamente.» Foi o que a mãe de um jovem de dezanove anos, morto por uma bomba em Kirkurk, disse no documentário da HBO, citado por Bob Her­bert no The New York Times na manhã de 12 de Novembro de 2004. «Mas pensei que enquanto não o deixasse entrar ele não poderia dizer-me. E depois aquilo - nada daquilo teria acontecido. Ele continuava a dizer-me: "Minha senhora, preciso de entrar", e eu continuava a dizer-lhe: ""Desculpe, mas não pode entrar." »

Quando li isto ao pequeno-almoço quase onze meses depois da noite da ambulância e do assistente social, reconheci como meu aquele pensamento.

Dentro das Urgências vi a maca a ser empurrada para um cubículo, levada por outras pessoas de bata. Alguém me disse que esperasse na recepção. Esperei. Havia uma fila para inscrição. Esperar na fila pareceu­-me a coisa mais construtiva a fazer. Esperar na fila significava que ainda havia tempo para lidar com a situação, tinha cópias dos cartões de seguros na carteira, nunca tivera contactos com este hospital- o New York Hospital era a parte Cornell do New York-Pres­byterian, e a parte que eu conhecia era a parte Colum­bia, Columbia - Presbyterian, no cruzamento da Rua Cento e Sessenta e Oito com a Broadway, a vinte mi­nutos de distância no mínimo, demasiado longe numa emergência deste tipo, mas podia tirar partido deste hospital que não me era familiar, podia ser útil, podia tratar da transferência para o Columbia-Presbyterian assim que John estivesse estabilizado. Estava concen­trada nos pormenores dessa iminente transferência para o Columbia (ele precisaria de uma cama com monitorização à distância, talvez acabasse por con­seguir que Quintana fosse também transferida para o Columbia, na noite em que dera entrada no Beth Israel North anotara num cartão o número dos beepers de vários médicos do Columbia, algum havia de conseguir que isso acontecesse), quando o assistente social rea­pareceu e me guiou da fila de inscrição para uma sala vazia ao lado da recepção. «Pode esperar aqui», disse ele. Esperei. A sala estava fria, ou eu é que estava. Perguntei a mim mesma quanto tempo se teria pas­sado entre o momento em que chamei a ambulância e a altura da chegada dos paramédicos. Parecera-me que nenhum (Ver o argueiro no olho alheio..., era o ditado que me vinha à cabeça na sala ao lado da recep­ção), mas devem ter sido vários minutos, no mínimo.

Por razões que se prendem com o argumento de um filme, costumava ter no escritório, afixado numa placa, uma ficha de cartolina cor-de-rosa onde dacti­lografara uma frase de The Merck Manual sobre o tempo durante o qual o cérebro pode estar privado de oxigénio. A imagem da ficha de cartolina cor-de­-rosa surgiu-me na mente na sala ao lado da recep­ção: «A anóxia dos tecidos por mais de quatro a seis minutos pode resultar em danos cerebrais irreversíveis ou na morte.» Dizia para comigo que não devia estar a lembrar-me da frase como devia ser quando o assistente social reapareceu. Trazia consigo um homem a quem apresentou como «o médico do seu marido». Houve um silêncio. «Morreu, não é verdade?», ouvi­-me dizer ao médico. O médico olhou para o assis­tente social. «Tudo bem», disse o assistente social. «É uma pessoa calma.» Levaram-me para o cubículo rodeado por uma cortina, onde John, agora sozinho, jazia. Perguntaram-me se queria um padre. Disse que sim. Apareceu um padre, que pronunciou as palavras da praxe. Agradeci-lhe. Deram-me a mola de prata com que John prendia a carta de condução e os cartões de crédito. Deram-me o dinheiro que ele trouxera no bolso. Deram-me o relógio. Deram-me o telemóvel. Deram-me um saco de plástico onde me disseram que encontraria as roupas dele. Agradeci-lhes. O assis­tente social perguntou-me se podia ajudar-me em mais alguma coisa. Disse-lhe que podia chamar-me um táxi. Chamou. Agradeci-lhe. «Tem dinheiro para o táxi?», perguntou-me. Respondi que sim, eu, a pessoa calma. Quando entrei no apartamento e vi o casaco e o lenço de John ainda em cima da cadeira onde os pousara quando voltáramos de ver Quintana no Beth Israel North (o lenço vermelho de caxemira e o casaco de cabedal que fora o seu uniforme no filme Íntimo & Pessoal, perguntei a mim mesma o que é que uma pessoa nervosa teria permissão para fazer. Desmaiar? Tomar calmantes? Gritar?

Lembro-me de pensar que precisava de discutir aqui­lo com John.

Não havia nada que não discutisse com John.

Como ambos éramos escritores e ambos trabalhá­vamos em casa, os nossos dias enchiam-se com o som das vozes de um e do outro.

Eu nem sempre achava que ele tinha razão, e ele nem sempre achava que eu tinha razão, mas éramos a pessoa em quem o outro confiava. Não havia situa­ção alguma em que houvesse divergência entre os investimentos ou interesses respectivos. Como umas vezes um e outras vezes o outro conseguia o melhor trabalho ou a apresentação mais importante, muita gente partia do princípio de que devíamos de algum modo ser «competitivos», que a nossa vida privada devia ser um campo minado de invejas e ressentimentos profissionais. Isto estava tão longe da verdade que a insistência pública acabou por sugerir certas lacunas relativamente ao conceito popular de casa­mento.

Isso fora mais uma das coisas que discutíamos.

O que recordo do apartamento na noite em que voltei sozinha do New York Hospital foi o seu silêncio.

No saco de plástico que me tinham dado no hos­pital estavam umas calças de bombazina, uma camisa de fazenda, um cinto, e penso que mais nada. As per­nas das calças de bombazina tinham sido abertas de alto a baixo, acho que pelos paramédicos. Havia san­gue na camisa. O cinto estava enfiado nas presilhas. Lembro-me de pôr o telemóvel a carregar em cima da secretária dele. Lembro-me de pôr a mola de prata dentro da caixa que tínhamos no quarto, onde guar­dávamos os passaportes, as certidões de nascimento e outros documentos. Hoje, olho para a mola e vejo que tinha os cartões que ele costuma trazer consigo: a carta de condução do estado de Nova Iorque, que teria de ser renovada a 25 de Maio de 2004; um cartão multibanco do Chase; um cartão do Metropolitan Museum; um cartão da Writers Guild of America West (foi no período antes da votação da Academia, durante o qual se pode usar um cartão da WGAW para se ver filmes gratuitamente, ele deve ter ido ver um filme, não me lembro); o cartão da Medicare; o passe do metro; e um cartão emitido pela Medtronic com a inscrição «Tenho implantado um pacemaker Kappa 900 SR», o número de série do aparelho, o número do telefone do médico que o colocou e a nota «Data do implante: 03 Jun 2003». Lembro-me de juntar o dinheiro que ele tinha no bolso com o dinhei­ro que eu tinha na carteira, alisando as notas, tendo especial cuidado de juntar as notas de vinte com as notas de vinte, as de dez com as de dez, as de cinco e um com as de cinco e um. Lembro-me, ao fazer isto, de pensar que ele veria que eu tinha tudo sob controlo.

Quando o vi no cubículo cercado pela cortina nas Urgências do New York Hospital, um dos dentes da frente estava lascado e supus que fosse da queda, uma vez que também tinha equimoses no rosto. Quando no dia seguinte lhe identifiquei o corpo na Frank E. Campbell, as equimoses já não eram visíveis. Ocorreu­-me que era a disfarçar as equimoses que o agente funerário se referia quando eu lhe disse que não que­ria embalsamamento e ele respondeu que «nesse caso, arranjamo-lo apenas». Essa parte do agente funerário continua remota. Cheguei à Frank E. Campbell tão decidida a evitar qualquer reacção imprópria (lágri­mas, raiva, risos descontrola dos no silêncio encan­tado), que aferrolhei toda e qualquer reacção. Quando a minha mãe morreu, o agente funerário que foi bus­car o corpo deixou na cama dela uma rosa artificial. Quem me contou isto foi o meu irmão, profundamente ofendido. Ia armada contra rosas artificiais. Lembro­-me de tomar uma decisão rápida sobre o caixão. Lembro-me de que no escritório onde assinei os papéis havia um relógio grande de sala que não trabalhava. Tony Dunne, sobrinho de Iohn, que me acompanhava, observou ao agente funerário que o relógio não estava a funcionar. O agente funerário, como se se sentisse satisfeito por poder explicitar um elemento da decora­ção, informou que havia anos que o relógio não funcionava, mas que o conservavam como «uma espécie de memorial» a uma anterior encarnação da empresa. Parecia oferecer o relógio como lição. Concentrei-me em Quintana. Conseguia abstrair-me daquilo que o agente funerário estava a dizer, mas não conseguia abstrair-me dos versos que escutava ao concentrar­-me em Quintana: Sob sete palmos de terra jaz teu pai. / Estas pérolas, eram os seus olhos.

Oito meses depois, perguntei ao administrador do nosso condomínio se ele ainda tinha a relação da es­cala para a porta na noite de 30 de Dezembro. Sabia que havia uma escala, durante três anos fora presi­dente da administração do prédio e a escala para a porta era intrínseca ao processo de administração.

No dia seguinte, o administrador mandou-me a folha do dia 30 de Dezembro. Segundo a relação, os encar­regados da porta nessa noite eram Michael Flynn e Vasile Ionescu. Não me lembrara disso. Vasile Ionescu e Iohn tinham por hábito divertir-se no elevador, uma pequena brincadeira entre um exilado da Roménia de Ceausescu e um católico irlandês de West Hartfor, Connecticut, que se baseava na sua apreciação comum das atitudes políticas. «Então onde está Bin Laden?», perguntava Vasile quando John entrava no elevador. O objectivo era dar as sugestões mais improváveis. «Bin Laden poderá estar no sótão?», «Na casinha?», «No ginásio?» Quando vi o nome de Vasili na relação, ocorreu-me que não conseguia lembrar-me se ele dera ou não início à brincadeira quando regressávamos do Beth Israel North ao princípio da noite de 30 de Dezembro. A escala dessa noite mostrava só duas en­tradas, menos do que era costume, mesmo naquela época do ano, em que a maioria das pessoas do edifí­cio partia para paragens mais favoráveis:

 

NOTA: Os paramédicos chegaram às 21.20 para Mr. Dunne. Mr. Dunne foi transportado ao hospital às 22.05.

NOTA: Lâmpada fundida no elevador A-B para pessoas.

 

O elevador A - B era o nosso elevador, o elevador em que os paramédicos subiram às vinte e uma horas e vinte minutos, o elevador em que levaram John (e a mim) para baixo, para a ambulância, às vinte e duas horas e cinco minutos, o elevador em que regressei sozinha ao nosso apartamento a hora não anotada.

Não tinha reparado que houvesse uma lâmpada fun­dida no elevador. Também não reparei que os para­médicos estiveram no apartamento durante quarenta e cinco minutos. Sempre descrevi aquele espaço de tempo como de «quinze ou vinte minutos». «Se estive­ram cá esse tempo todo, isso significa que John estava vivo?» Fiz a pergunta a um médico meu conhecido. «Às vezes tentam durante muito tempo», respondeu­-me. Só passado um bom bocado percebi que isto de modo algum respondia à pergunta.

A certidão de óbito, quando a recebi, dava como hora da morte as vinte e duas horas e dezoito minutos do dia 30 de Dezembro de 2003.

Tinham-me perguntado, antes de deixar o hospi­tal, se autorizava a autópsia. Disse que sim. Poste­riormente, li que pedir aos sobreviventes que autorizem a autópsia é considerado nos hospitais um passo muito delicado e sensível e, frequentemente, o mais difícil dos passos rotineiros que se seguem a uma morte. Os próprios médicos, segundo muitos estudos (por exemplo Katz, lL. e Gardner, R., «The lntern's Dilemma: The Request for Autopsy Consent», Psychia­try in Medicine, 1972), sofrem de considerável ansie­dade quando têm de fazer o pedido. Sabem que a autópsia é essencial para a aprendizagem e o ensino da Medicina, mas também sabem que o procedimento vai bulir com um medo primitivo. Se quem me pediu no New York Hospital que autorizasse a autópsia sen­tiu essa ansiedade, podia tê-lo poupado: queria mesmo a autópsia. Queria mesmo a autópsia, embora tivesse visto algumas no decurso das minhas investigações. Sabia exactamente o que acontece, o peito aberto como um frango na bancada do talhante, o rosto despegado, a balança onde se pesam os órgãos. Vira detectives criminalistas desviarem os olhos de uma autópsia em curso. Queria-a, ainda assim. Precisava de saber como, porquê e quando aquilo acontecera. De facto, queria estar na sala quando a realizassem (vira as outras autópsias com John, devia-o à sua própria autópsia, meti na cabeça naquele momento que ele estaria na sala se fosse eu que estivesse sobre a mesa), mas con­fiava em mim para gerir racionalmente a questão e, por isso, não pedi.

Se a ambulância saiu de nossa casa às vinte e duas horas e cinco minutos e a morte foi declarada às vinte e duas horas e dezoito minutos, os treze mi­nutos de intervalo mais não eram do que papelada, burocracia, certificarem-se de que os procedimentos do hospital eram cumpridos e o trabalho de secretaria executado, e que a pessoa competente se encontrava disponível para atestar o fim e disso informar a tal pessoa calma.

Mais tarde, soube que chamavam à confirmação da morte «declaração», como, por exemplo, «Decla­rado morto às vinte e duas horas e dezoito minutos». Tinha de acreditar que ele entretanto já estava morto.

       Se não acreditasse que ele entretanto estava morto, ia pensar que devia ter sido capaz de salvá-lo.

       De qualquer modo, continuei a pensar assim até ver o relatório da autópsia, exemplo de pensamento capcioso, omnipotente discrepância.

Uma ou duas semanas antes de John morrer, quan­do estávamos a jantar num restaurante, pediu-me que lhe anotasse qualquer coisa na minha agenda. John andava sempre com fichas onde tomava notas, cartões de sete centímetros e meio por quinze com o seu nome impresso, que podia meter num bolso. Ao jantar, pensou em qualquer coisa de que queria lembrar-se, mas, ao procurar nos bolsos, não encontrou fichas. «Preciso que tomes nota de uma coisa», disse-me. Era para o novo livro, disse ele, não para o meu, ponto que salientou porque, na altura, eu andava a fazer pesquisas para um livro que envolvia os desportos. A nota que ele ditou foi a seguinte: «Quando os trei­nadores saíam, depois de um jogo, costumavam dizer "jogaram muito bem». Agora, saem com a polícia, como se o jogo fosse uma guerra e eles os soldados. A militarização do desporto.» Quando lhe dei a nota no       dia seguinte, disse-me: «Podes utilizá-la, se quiseres.»

Que queria ele dizer?

Sabia que não ia escrever o livro?

Teria alguma apreensão, alguma sombra? Porque é que se esquecera de levar fichas quando fomos jantar naquela noite? Não me avisara ele, uma vez em que me esqueci da agenda, que a possibilidade de tomar uma nota quando algo nos vem à mente faz a dife­rença entre conseguir-se e não se conseguir escrever? Alguma coisa lhe disse naquela noite que o tempo para conseguir escrever estava a esgotar-se?

       Num Verão, quando vivíamos em Brentwood Park, apanhámos o hábito de parar de trabalhar às quatro da tarde e ir para a piscina. John ficava dentro de água a ler (releu A Escolha de Sofia várias vezes nesse Verão, tentando perceber o trabalho ficcional), en­quanto eu tratava do jardim. Era um jardim peque­nino, quase uma miniatura, com caminhos de casca­lho, uma roseira e canteiros bordados com tomilho, santolina e camomila. Uns anos antes, convenci John a sacrificar um relvado para plantar este jardim. Para minha surpresa, uma vez que ele não mostrara ante­riormente interesse por jardins, considerou o produto acabado quase como uma dádiva mística. Um pouco antes das cinco horas, nas tardes de Verão, íamos nadar e depois seguíamos para a biblioteca embrulhados nas toalhas para vermos Tenko, uma série da BBC que fora vendida a diversas estações, sobre várias mulheres inglesas, bastante previsíveis (uma era ima­tura e egoísta, a outra parecia ter sido educada por alguém que tinha Mrs. Miniver em mente), que haviam sido presas pelos Japoneses na Malásia durante a Segunda Guerra Mundial. Depois de cada episódio vespertino de Tenko, subíamos as escadas e trabalhá­vamos mais uma ou duas horas, John no escritório ao cimo das escadas e eu na varanda ao fundo do corre­dor que fora envidraçada e que transformara no meu escritório. Às sete ou sete e meia, saíamos para jan­tar, muitas noites no Morton's. Naquele Verão, sen­tíamo-nos bem no Morton's. Havia sempre empadas de camarão e frango com feijão preto. Havia sempre alguém conhecido. A sala era fresca, cuidada e escura, mas via-se o crepúsculo no exterior.

Por essa altura, John não gostava de conduzir à noite. Soube mais tarde que era uma das razões por que queria passar mais tempo em Nova Iorque, de­sejo que, à época, me parecia misterioso. Uma noite, nesse Verão, no regresso a casa, pediu-me que condu­zisse eu depois de jantarmos em casa de Anthea Syl­bert, no Camino Palmero, em Hollywood. Lembro-me de pensar que era bastante estranho. Anthea vivia a menos de um quarteirão de distância de uma casa na Franklin Avenue onde vivemos de 1967 até 1971 e, portanto, não se punha a questão de andar por um bairro desconhecido. Veio-me à mente ao pôr o carro a trabalhar que podia contar pelos dedos as vezes em que eu conduzira estando John no carro; a outra única vez de que nessa noite consegui lembrar-me foi quando nos revezámos numa viagem de Las Vegas a Los Angeles. John estivera a dormitar no banco do pendura do Corvette que tínhamos então. Abriu os olhos e, após um momento, disse com muito cuidado: «Se fosse eu, ia um pouco mais devagar.» Não me apercebera da velocidade anormal e olhei rapidamente para o velocímetro: ia a cento e oitenta.

Embora.

       Uma viagem através do Mojave era outra coisa. Nunca anteriormente ele me pedira para conduzir no regresso a casa depois de jantarmos na cidade: aquela noite no Camino Palmero não tinha precedentes. Nem o facto de no final dos quarenta minutos de percurso até Brentwood Park ele ter pronunciado «Bem con­duzido».

No ano que precedeu a sua morte, falou por diver­sas vezes nas tardes passadas na piscina e no jardim e a ver Tenko.

Philippe Aries, em The Hour of Our Death, obser­va que a característica essencial da morte conforme surge na lenda arturiana é que a morte, ainda quando súbita ou acidental, «dá aviso prévio da sua chegada».

Perguntam a Galvão: «Ah, meu bom senhor, pensais pois morrer tão em breve?» Galvão responde: «Digo­-vos que não viverei dois dias mais.» Aries observa: «Nem o médico, nem os amigos, nem os sacerdotes ( estes últimos estão ausentes e esquecidos) sabem tanto quanto ele acerca disso. Só o moribundo sabe dizer quanto tempo lhe resta.»

Sentamo-nos para jantar.

       «Podes utilizá-la, se quiseres», disse John quando lhe dei a nota que ele ditara uma ou duas semanas antes.

E a seguir... morreu.

A dor da perda, quando chega, não é como espera­mos que seja. Foi diferente da que senti quando os meus pais morreram: o meu pai faleceu uns dias antes de fazer oitenta e cinco anos e a minha mãe um mês antes de fazer noventa e um, ambos após alguns anos de crescente debilidade. O que senti em cada ocasião foi tristeza, solidão (a solidão dos filhos que são abandonados, seja qual for a idade), pena pelo tempo passado, pelas coisas que não foram ditas, pela minha incapacidade de partilhar, e até reconhecer, de um modo real, no fim, as dores, a impotência e a humi­lhação física que ambos suportaram. Compreendia a inevitabilidade de ambas as mortes. Esperara (recean­do, temendo, prevendo) aquelas mortes durante a minha vida inteira. Quando aconteceram, ficaram de parte, à distância do curso quotidiano da vida. Depois de a minha mãe ter falecido, recebi uma carta de um amigo de Chicago, anteriormente sacerdote de Mary­ knoll, que acertou por completo no que eu sentia.

A morte dos nossos pais, escrevia ele, «apesar da nossa preparação e, aliás, apesar da nossa idade, remexe em coisas profundamente instaladas em nós, catalisa emoções que nos surpreendem e que podem libertar lembranças e sentimentos que julgávamos enterrados há muito. Nesse lapso de tempo indeterminado a que chamam '"luto", podemos estar dentro de um submarino, em silêncio no leito do oceano, conscientes dos assaltos das profundezas, agora próximos, logo distan­tes, esbofeteando-nos com recordações».

       O meu pai morrera, a minha mãe morrera, ia pre­cisar de algum tempo para desenterrar as minas, mas, ainda assim, ia levantar-me pela manhã e mandar a roupa para a lavandaria.

       Ia planear à mesma a ementa para o almoço de Páscoa.

       Ia lembrar-me igualmente de renovar o passaporte.

       A dor da perda é diferente. A dor da perda não tem distância. A dor da perda vem por vagas, paroxis­mos, apreensões súbitas que enfraquecem os joelhos, cegam os olhos e obliteram o curso quotidiano da vida. Praticamente toda a gente que já passou pela expe­riência da dor da perda menciona este fenómeno das «vagas». Eric Lindemann, que foi chefe de psiquiatria do Massachusetts General Hospital nos anos quarenta e entrevistou muitos membros das famílias dos que morreram no incêndio de Cocoanut Grove em 1942, definiu o fenómeno com uma absoluta especificidade num estudo famoso de 1944: «sensações de sofri­mento somático que ocorrem em vagas e que duram de vinte minutos a uma hora de cada vez, uma sen­sação de aperto na garganta, de sufocação por falta de ar, de necessidade de suspirar, e uma sensação de vazio no abdómen, falta de força muscular e um sofri­mento subjectivo intenso descrito como tensão ou dor mental» .

Aperto na garganta.

Sufocação, necessidade de suspirar.

       Comigo, essas vagas começaram na manhã de 31 de Dezembro de 2003, sete ou oito horas após o facto, quando acordei sozinha no apartamento. Não me recordo de chorar na noite anterior; no momento em que aquilo aconteceu, entrei numa espécie de es­tado de choque no qual o único pensamento que me permitia era que devia haver certas coisas que pre­cisava de fazer. Tivera necessidade de fazer certas coisas enquanto a equipa da ambulância estava na sala. Tivera necessidade, por exemplo, de arranjar uma cópia do historial médico de John, para poder levá-la comigo para o hospital. Tivera necessidade, por exem­plo, de abafar o lume da lareira, porque ficaria sem vigilância. Tivera necessidade de fazer certas coisas no hospital. Tivera necessidade, por exemplo, de me pôr na fila. Tivera necessidade, por exemplo, de me con­centrar na maca com monitorização de que ele iria precisar para a transferência para o Columbia-Pres­byterian.

Depois de ter regressado do hospital, precisara de fazer outras coisas. Não conseguia identificar todas essas coisas, mas sabia qual era uma delas: precisava, antes de mais, de contar a Nick, o irmão de John. Pare­cera tarde de mais para telefonar ao irmão mais velho, Dick, que estava em Cape Cod (deitava-se cedo, não tinha boa saúde, não queria acordá-lo com más notícias), mas havia que dizer a Nick. Não planeei o modo como o tinha de fazer. Simplesmente sentei-me na cama, peguei no telefone e marquei o número da casa dele no Connecticut. Atendeu. Disse-lhe. Depois de pousar o telefone, naquilo que só consigo descrever como um padrão nervoso de discar números e dizer as palavras, voltei a pegar no telefone. Não podia telefonar a Quintana (continuava onde a deixáramos umas horas antes, inconsciente, na UCI do Beth Israel North), mas podia dizer a Gerry, seu marido havia cinco meses, e podia telefonar ao meu irmão Jim, que devia estar na casa de Pebble Beach. Gerry disse que vinha. Eu respondi que não havia necessidade de vir, que me encontrava bem. Jim disse que ia apanhar um avião. Expliquei-lhe que não havia necessi­dade de pensar em aviões, conversávamos pela manhã. Estava a tentar pensar no que fazer a seguir quando o telefone tocou. Era Lynn Nesbit, minha agente e de John e nossa amiga creio que desde os anos sessenta. Não ficou muito claro na altura como é que ela soube, mas soube (teve a ver com um amigo comum, com quem tanto Nick como Lynn teriam acabado de falar) e estava a telefonar de um táxi a caminho do nosso apartamento. Por um lado, fiquei aliviada (Lynn sabia tratar das coisas, Lynn saberia o que era suposto eu fazer), mas, por outro, fiquei desnorteada: como podia eu neste momento gerir uma companhia? Que faría­mos? Sentar-nos-íamos na sala de estar com as serin­gas, os eléctrodos do electrocardiograma e o sangue ainda no chão, iria eu atiçar o que restava da lareira, tomaríamos uma bebida, ela já teria comido?

E eu, já teria comido?

       Aquele instante em que me interroguei se já tinha comido foi a primeira intimação do que estava para vir: se pensasse em comida, fiquei a saber naquela noite, vomitaria.

Lynn chegou.

Sentámo-nos na parte da sala de estar onde não estavam as seringas e o sangue.

Lembro-me de pensar, enquanto conversava com Lynn (era a parte que não podia dizer), que o sangue devia ter sido provocado pela queda: John caíra sobre o rosto, havia um dente lascado em que eu reparara nas Urgências e o dente deve ter-lhe cortado a boca por dentro.

Lynn pegou no telefone e disse que ia ligar a Chris­topher.

Foi mais um motivo para me sentir desnorteada: o Christopher que eu melhor conhecia era Christopher Dickey, mas este ou estava em Paris ou estava no Dubai e, de qualquer modo, Lynn teria dito Chris e não Chris­topher. Vi-me a desviar o pensamento para a autópsia. Até podia estar a ser realizada enquanto eu estava ali sentada. Depois, apercebi-me de que o Christopher de quem Lynn estava a falar era Christopher Lehmann­- Haupt, que era o chefe da secção de necrologia do The New York Times. Lembro-me de uma sensação de choque. Apetecia-me dizer ainda não, mas fiquei com a boca seca. Conseguia lidar com «autópsia», mas o conceito de «necrologia» não me ocorrera. «Necrolo­gia», ao contrário de «autópsia», que era entre mim, John e o hospital, significava o que acontecera. Vi-me a perguntar a mim mesma, sem qualquer senso da falta de lógica: e se aquilo tivesse acontecido em Los Angeles? Tentava chegar à conclusão sobre as horas a que ele morrera e se eram ainda as mesmas horas em Los Angeles. (Havia tempo para voltar atrás? Podería­mos ter um desfecho diferente pela hora do Pacífico?)

Recordo-me de ter sido presa de uma necessidade pre­mente de não deixar que ninguém do Los Angeles Times soubesse do que acontecera pelo The New York Times.

Telefonei ao nosso amigo íntimo do Los Angeles Times, Tim Rutten. Não faço ideia do que Lynn e eu fizemos depois. Recordo-me de ela me dizer que ia passar a noite comigo e eu ter dito que não, que ficava bem sozinha.

E fiquei.

Até de manhã. Quando, apenas semi-acordada, tentei pensar por que estava sozinha na cama. A sensa­ção era pesada como chumbo. Era a mesma sensação pesada como chumbo com que acordava nas manhãs após John e eu termos discutido. Teríamos tido uma discussão? Sobre quê, como começara, como podía­mos resolver as coisas se eu não conseguia lembrar-me de como começara?

Depois, lembrei-me.

Durante várias semanas seria assim que eu acor­dava para o dia.

Acordo e sinto o velo da escuridão, não do dia.

Um de vários versos de diferentes poemas de Gerard Manley Hopkins, que John reunira imediata­mente depois de o seu irmão mais novo se ter suici­dado, uma espécie de rosário improvisado.

Oh, a mente, a mente tem montanhas; penhascos a pique

Assustadores, alcantilados, que ninguém aprofunda.

Desvaloriza-os quem nunca lá esteve suspenso.

Acordo e sinto o velo da escuridão, não do dia.

E pedi eu para estar onde não chegassem tempestades!

Vejo agora que a minha insistência em passar sozi­nha aquela primeira noite era mais complexa do que parecia, um instinto primitivo. Evidentemente, sabia que John estava morto. Evidentemente, já dera a no­tícia definitiva ao irmão dele, ao meu irmão e ao marido de Quintana. The New York Times sabia. Los Angeles Times sabia. Porém, não estava de modo algum preparada para aceitar a notícia como defini­tiva: num certo patamar, acreditava que o que acon­tecera continuava a ser reversível. Por isso, precisava de ficar só.

Após aquela primeira noite, não estaria só durante semanas (Jim e a mulher, Gloria, vieram da Califór­nia no dia seguinte, Nick regressou à cidade, Tony e a mulher, Rosemary, vieram do Connecticut, José não foi para Las Vegas, Sharon, a nossa assistente, regres­sou da estância de esqui, e nunca deixou de haver pessoas em casa), mas precisava de estar só naquela    primeira noite.

Precisava de estar só para que ele pudesse voltar. Foi o início do meu ano do pensamento mágico.

 

O poder que a dor da perda tem de perturbar a mente foi de facto observado até à exaustão. O acto de chorar a perda de alguém, disse-nos Freud no seu Luto e Melancolia de 1917, «envolve desvios graves da atitude normal perante a vida». No entan­to, observa ele, a dor da perda continua a ser con­siderada à parte dos outros distúrbios: «Nunca nos ocorre considerá-la uma situação patológica e enviá­-la para tratamento médico.» Em vez disso, confia­mos que «será ultrapassada após um certo lapso de tempo». Consideramos «qualquer interferência inútil e até prejudicial». Melanie Klein, no seu Mourning and Its Relation to Maniac-Depressive States, de 1940, faz uma afirmação semelhante: «Quem chora uma perda está, de facto, doente, mas, porque este estado mental é vulgar e nos parece muito natural, não clas­sificamos de doença o acto de chorar essa perda... Para expressar a minha conclusão de forma mais exacta diria que, no acto de chorar a perda, o sujeito passa por um estado maníaco-depressivo modificado e transitório e supera-o.»

Repare-se na ênfase dada a «supera-o».

O Verão ia avançado, uns meses após a noite em que senti necessidade de ficar sozinha para que ele pudesse voltar, quando reconheci que, durante o Inver­no e a Primavera, ocasiões houvera em que fora inca­paz de pensar racionalmente. Pensava como pensam as crianças, como se os meus pensamentos ou desejos tivessem o poder de inverter a narrativa, modificar o desfecho. No meu caso, o pensamento desordenado fora disfarçado, ninguém mais dera por ele, fora es­condido até de mim mesma, mas fora também, em retrospectiva, simultaneamente urgente e constante. Em retrospectiva, houve sinais, bandeiras sinaliza­doras, em que devia ter reparado. Houve, por exem­plo, a questão dos artigos necrológicos. Não conseguia lê-los. Isto durou desde 31 de Dezembro, quando os primeiros artigos foram publicados, até 29 de Feve­reiro de 2004, noite da atribuição dos Óscares da Academia, quando vi uma foto de John na montagem de In Memoriam. Quando vi a foto, apercebi-me pela primeira vez por que motivo os artigos necrológicos me tinham perturbado tanto.

       Eu permitira que as outras pessoas pensassem que ele estava morto.

       Eu permitira que o enterrassem vivo.

       Outro alerta: houve uma certa altura (em finais de Fevereiro, princípios de Março, depois de Quintana ter saído do hospital mas antes do funeral, que aguar­dara a sua recuperação) em que me ocorreu que era suposto dar as roupas de John. Muita gente mencio­nara a necessidade de dar as roupas, geralmente sob a forma bem-intencionada mas (como acabou por ser) disparatada de se ofereceram para me ajudarem nisso.

Resisti. Não fazia ideia porquê. Lembro-me de que, quando o meu pai faleceu, eu mesma ajudei a minha mãe a separar as roupas em pilhas para beneficência e pilhas «melhores» para a loja de vendas de cari­dade onde a minha cunhada Gloria era voluntária. Quando a minha mãe morreu, Gloria, eu e Quintana e Gloria e as filhas de Jim fizemos o mesmo com as roupas dela. Era aquilo que as pessoas faziam após uma morte, parte de um ritual, uma espécie de obrigação.

Comecei. Esvaziei uma prateleira onde John em­pilhara camisolas de algodão de manga comprida e de manga curta, as roupas que usava quando caminhá­vamos pelo Central Park de manhã cedo. John cami­nhava todas as manhãs. Nem sempre caminhávamos juntos porque gostávamos de percursos diferentes, mas conhecíamos de cor o percurso um do outro e encon­trávamo-nos antes de sairmos do parque. As roupas desta prateleira eram-me tão familiares quanto as minhas próprias roupas. Cerrei a mente a isso. Pus de lado certas coisas (uma camisola de algodão de manga comprida, desbotada, com a qual me lembrava espe­cialmente dele, outra de manga curta, da Canyon Ranch, que Quintana lhe trouxera do Arizona), mas pus a maior parte das coisas que estavam naquela prateleira em sacos e levei-os para a Igreja Episcopal de São Tiago, do outro lado da rua. Animada, abri um armário e enchi mais sacos: ténis, sapatos para todas as estações, calções dos Brooks Brothers, sacos e mais sacos de peúgas. Levei os sacos para a Igreja Episcopal de São Tiago. Um dia, umas semanas de­pois, juntei uns quantos sacos e levei-os para o escri­tório de John, onde ele costumava guardar roupa.

Ainda não estava preparada para enfrentar os fatos, as camisas e os casacos, mas pensei que podia tratar dos sapatos que restavam, já era um começo.

Parei à porta do escritório.

Não podia dar os sapatos restantes.

Fiquei ali por um momento e depois percebi por­quê: ele ia precisar dos sapatos quando voltasse.

       O reconhecimento deste pensamento não erradicou de forma alguma o pensamento.

       Ainda não tentei verificar (digamos que dando os sapatos) se o pensamento perdeu a sua força.

Reflectindo, considero a própria autópsia como o pri­meiro exemplo deste tipo de pensamento. Independen­temente de tudo o mais que pudesse existir na minha mente quando, tão decidida, autorizei a autópsia_ havia também um nível de perturbação no qual eu raciocinava que uma autópsia podia demonstrar que o que correra mal era algo simples. Podia não ter passado de um bloqueio ou arritmia transitórios. Teria exigido apenas um ajuste mínimo - uma mudança na medicação, digamos, ou a colocação de um novo pacemaker. Neste caso, era o meu raciocínio seguinte, talvez ainda pudesse remediar a situação.

Lembro- me de ter ficado impressionada com uma entrevista durante a campanha presidencial de 2004 em que Teresa Heinz Kerry falou sobre a morte súbita do primeiro marido. Depois do acidente de avião que matou John Heinz, disse ela na entrevista, sentira muito fortemente que «precisava» de sair de Washington e voltar para Pittsburgh.

       Evidentemente que ela «precisava» de voltar para Pittsburgh.

       Pittsburgh, e não Washington, era o lugar para onde ele podia voltar.

       Na verdade, a autópsia não teve lugar na noite em que John foi declarado morto.

A autópsia só teve lugar às onze horas da manhã seguinte. Apercebo-me hoje de que a autópsia só pode­ria ter tido lugar depois que o homem - que não co­nheci no New York Hospital- me ter feito o telefone­ma na manhã de 31 de Dezembro. O homem que fez o telefonema não foi «o meu assistente social», não foi «o médico do meu marido», nem, como John e eu teríamos dito um ao outro, o nosso amigo da ponte. «Não era o nosso amigo da ponte» fazia parte da lin­guagem secreta da família e tinha a ver com o modo como a tia de John, Harriet Burns, descrevia os de­correntes avistamentos de estranhos recentemente encontrados. Por exemplo, o facto de ver em West Hartford o mesmo Cadillac Seville que anteriormente se cruzara com ela na Ponte de Bulkeley. «O nosso amigo da ponte», diria ela. Estava a pensar em John a dizer «Não é o nosso amigo da ponte», enquanto escutava o homem ao telefone. Recordo-me de me ter dado os pêsames. Recordo-me de me ter oferecido ajuda. Dava a impressão de que evitava o assunto.

Estava a telefonar, disse então, para perguntar se eu tencionava doar os órgãos do meu marido.

Passaram-me muitas coisas pela mente nesse ins­tante. A primeira palavra que me passou pela mente foi «não». Simultaneamente, lembrei-me de Quintana ter mencionado uma noite ao jantar que se registara Como doadora de órgãos quando renovara a carta de condução. Perguntara a John se ele também era doa­ dor. John respondeu que não. Discutiram o assunto. Eu mudara de assunto.

Fora incapaz de pensar que algum deles podia morrer.

O homem ao telefone continuava a falar. Eu pen­sava: «Se ela morresse hoje na UCI do Beth Israel North, isto também aconteceria? Que é que eu faria?

Que hei -de fazer agora?»

Ouvi-me dizer ao homem que estava ao telefone que a minha filha se encontrava inconsciente. Ouvi-me dizer que não me sentia em condições de tomar uma decisão dessas antes de a minha filha saber sequer que o pai morrera. Naquele momento, pareceu-me uma resposta aceitável.

depois de ter desligado é que me ocorreu que nada daquilo era aceitável. Este pensamento foi de imediato (e de forma útil - reparem na mobilização instantânea das células cognitivas) suplantado por outro: havia naquele telefonema algo que não batia certo. Subsistia ali uma contradição. Aquele indivíduo estivera a falar sobre doação de órgãos, mas, nesta altura, não havia maneira de se fazer uma colheita útil de órgãos: John não estivera ligado à máquina.

Não estava ligado à máquina quando o vi no cubí­culo cercado por uma cortina nas Urgências. Não es­tava ligado à máquina quando o sacerdote chegou.

Todos os órgãos teriam já deixado de funcionar.

Depois, lembrei-me do Serviço de Medicina Legal do Miami-Dade. John e eu estivemos lá juntos uma manhã em 1985 ou 1986. Havia alguém do banco de olhos que prendia etiquetas em cadáveres para remo­ ção de córneas. Aqueles corpos no Serviço de Medicina Legal do Miami-Dade não estavam ligados à máquina. por conseguinte, o indivíduo do New York Hospital estava a falar em retirar apenas as córneas, os olhos. Então, por que não disse isso? Porquê deturpar a questão? Porquê fazer aquela chamada e não dizer simplesmente «os olhos dele»? Tirei a mola de prata que o assistente social me dera na noite anterior e olhei para a carta de condução. Olhos: Azul-claros, dizia a carta. Restrições: Lentes correctivas.

Porquê fazerem aquele telefonema e não dizerem apenas o que queriam? Os seus olhos. Os seus olhos azuis. Os seus olhos azuis imperfeitos.

 

E o que quero saber é como

quer o seu menino de olhos azuis,

Senhora Morte.

 

Não fui capaz naquela manhã de recordar-me de quem escreveu estes versos. Julgava que fora E. E. Cummings, mas não tinha a certeza. Não possuía nenhuma obra de Cummings, mas encontrei uma antologia na estante de poesia que estava no quarto, um velho livro escolar que pertencera a John, publi­cado em 1949, quando frequentava o Portsmouth Priory, um internato beneditino perto de Newport para onde foi enviado quando lhe morreu a família.

(Morte do pai: súbita, do coração, com cinquenta e poucos anos, devia ter ligado a esse aviso.)

Se calhasse estarmos algures perto de Newport, John levava-me a Portsmouth para ouvir o canto gre­goriano das vésperas. Era uma coisa que o emocio­nava. Na folha em branco do princípio do livro estava escrito o nome Dunne, numa caligrafia cuidada e pe­quena, e depois, na mesma caligrafia, a tinta azul, a caneta de tinta permanente azul, estas directrizes de estudo: 1) Qual é o significado do poema e qual a experiência? 2) A que pensamento ou reflexão nos conduz essa experiência? 3) Que estado de espírito, sentimento, emoção, estimula ou origina o poema no seu todo? Voltei a pôr o livro na estante. Passaram-se alguns meses antes de me lembrar de confirmar que os versos eram de facto de E.E. Cummings. Passar-se­- iam também mais alguns meses até me ocorrer que a minha irritação perante o desconhecido que me telefonou do New York Hospital reflectia uma versão dife­rente do medo primitivo que a questão da autópsia não despertara em mim.

Qual é o significado e qual a experiência?

A que pensamento ou reflexão nos conduz essa experiência?

Como poderia ele voltar se lhe tirassem os órgãos, como poderia ele voltar se não tivesse sapatos?

Em planos mais superficiais, eu parecia racional. Para o observador comum, parecia compreender perfeitamente que a morte era irreversível. Autorizara a autópsia. Tratara da cremação. Tomara providên­cias para que fossem buscar as cinzas e que estas fos­sem levadas para a Catedral de São João-o-Divino, onde, depois de Quintana se encontrar consciente e suficientemente bem para estar presente, seriam colo­cadas na capela junto do altar-mor, onde o meu irmão e eu tínhamos colocado as cinzas da nossa mãe. Tratara de mandar retirar a placa de mármore onde estava inscrito o nome dela a fim de incluir o nome de John. Finalmente, a 23 de Março, quase três meses após a sua morte, vira as cinzas guardadas na parede, a placa de mármore posta novamente no lugar e reali­zada a cerimónia religiosa.

Tivemos canto gregoriano em intenção de John. Quintana pediu que o canto fosse em latim. John também o teria pedido.

Tocou um único clarim.

Tivemos um sacerdote católico e um sacerdote episcopal.

Calvin Trillin falou, David Halberstam falou, a me­lhor amiga de Quintana, Susan Traylor, falou. Susanna Moore leu um excerto de «East Cooker», a parte sobre como «só aprendemos as palavras mais acertadas / / quando já não temos nada para dizer, ou já não esta­mos dispostos a dizê-lo». Nick leu Catulo, «Sobre a Morte do Irmão». Quintana, ainda fraca, mas com voz firme, de vestido preto, na mesma catedral onde oito meses antes se casara, leu um poema que escrevera ao pai.

Eu fizera aquilo. Reconhecera que ele morrera. Fizera aquilo do modo mais público que conseguira conceber.

Contudo, os meus pensamentos acerca desta ques­tão continuavam fluidos de uma forma suspeita. Num jantar em finais da Primavera ou princípios do Verão, conheci por acaso um eminente teólogo e professor universitário. Alguém à mesa levantou a questão da fé. O teólogo disse que o próprio ritual era uma forma de fé. A minha reacção não foi expressa, mas foi nega­tiva, veemente, excessiva até para mim mesma. Poste­riormente, percebi que o meu pensamento imediato fora: «Mas eu fiz o ritual. Fi-lo todo. Fiz São João­-o-Divino, fiz os cânticos em latim, fiz o sacerdote católico e o sacerdote episcopal, fiz "Porque mil anos a Teus olhos são, quando passados, apenas o dia de ontem" e fiz "In paradisum deducant angelí".

E, no entanto, isso não o trouxe de volta.

«Trazê-lo de volta» fora ao longo daqueles meses o meu ponto de convergência oculto, um truque de magia. Em finais do Verão, começara a aperceber-me disto claramente. «Aperceber-me disto claramente» não me permitia ainda dar as roupas de que ele viria a necessitar.

Em tempos difíceis - fora ensinada desde a infância -, leia-se, aprenda-se, trabalhe-se, recorra-se à literatura. Informação é controlo. Dado que a dor da perda ainda é a mais generalizada das aflições, é im­pressionante como a literatura acerca dela é escassa. Houve o diário de C.S. Lewis, mantido após a morte da mulher, A Crie! Observed. Houve uma passagem ocasional num ou noutro romance, por exemplo, a descrição de Thomas Mann em A Montanha Mágica do efeito exercido sobre Hermann Castorp pela morte da mulher: «O seu espírito estava perturbado; reti­rara-se para dentro de si mesmo; o cérebro embotado fê-lo cometer erros no negócio, de modo que a em­presa de Castorp e Filho sofreu perdas financeiras sensíveis; e na Primavera seguinte, quando inspeccio­nava depósitos de mercadorias em armazéns cheios de correntes de ar, apanhou uma infecção pulmonar. A febre foi de mais para aquele coração abalado e em cinco dias, apesar de todos os cuidados do doutor Heidekind, morreu.» Houve nos bailados clássicos mo­mentos em que um ou outro amante abandonado tenta encontrar e ressuscitar um ou outro ser amado, a luz azul, os tutus brancos, o pas de deux com o amado que pressagia o regresso final aos mortos: la danse des ombres, a dança das sombras. Houve certos poe­mas, de facto muitos poemas. Houve um dia ou dois em que contei com Matthew Arnold, «The Forsaken Merman»:

 

As vozes dos filhos devem ser caras

(Chamem uma vez mais) aos ouvidos de uma mãe;

 

As vozes dos filhos, loucos de dor...

Decerto que ela voltará!

 

Houve dias em que contei com W.H. Auden, com os versos de «Funeral Blues» de The Ascent of F6:

 

Parem os relógios, cortem o telefone,

Com um osso suculento impeçam o cão de ladrar,

Calem os pianos e com um rufar abafado

Tragam o caixão e deixem entrar as carpideiras.

 

Os poemas e as danças das sombras pareciam-me os mais exactos.

Para além de, ou subjacentes a estas representa­ções abstractas de sofrimento e fúria inerentes à dor da perda, havia um corpo de subliteratura, de guias de como lidar com a situação, uns «práticos», outros «inspiradores», na maioria inúteis, tanto uns como outros. (Não beba de mais, não gaste o dinheiro do seguro a decorar novamente a sala de estar, junte-se a um grupo de apoio.) Restava a literatura profissional, os estudos feitos por psiquiatras, psicólogos e assis­tentes sociais que surgiram depois de Freud e Melanie Klein, e muito rapidamente foi para esta literatura que me voltei. Com ela aprendi muitas coisas que já sabia, que, até certo ponto, pareciam prometer conforto, vali­dação, a confirmação por alguém exterior a mim de que eu não estava a imaginar o que parecia estar a suceder. Em Bereavement: Reactions, Consequences, and Care, compilado em 1984 pelo Instituto de Medi­cina da Academia Nacional de Ciências, aprendi, por exemplo, que as respostas imediatas mais frequentes perante a morte eram o choque, o torpor e a sensação de incredulidade: «Subjectivamente, os sobreviventes podem sentir-se como se estivessem envolvidos num casulo ou cobertor; aos outros, pode parecer que estão a aguentar-se bastante bem. Como a realidade da morte ainda não lhes penetrou na consciência, pode parecer que os sobreviventes estão a aceitar perfeita­mente a perda.»

Estamos, pois, perante o efeito «pessoa bastante calma».

Li acerca disso. Fiquei a saber por J. William Worden, do Harvard Child Bereavement Study, do Massachusetts General Hospital, que se tem obser­vado golfinhos que se recusam a comer depois da morte do companheiro. Os gansos foram vistos a rea­girem à morte dos companheiros voando e chamando, procurando, até eles próprios ficarem desorientados e perdidos. Os seres humanos - li, mas não precisei de aprender - mostravam padrões de resposta seme­lhantes. Procuravam. Deixavam de comer. Esqueciam­-se de respirar. Desmaiavam por falta de oxigénio, obstruíam os seios nasais com lágrimas não derramadas e acabavam nos consultórios dos otorrinolaringologistas com obscuras infecções de ouvidos. Perdiam a concentração. «Um ano depois, consegui ler cabe­çalhos», disse-me uma amiga cujo marido morrera três anos antes. Perdiam a capacidade cognitiva a todos os níveis. Como Hermann Castorp, cometiam erros nos negócios e sofriam perdas financeiras de monta. Esqueciam-se dos seus próprios números de telefone e apresentavam-se nos aeroportos sem documentos de identificação. Adoeciam, fracassavam e, como Hermann Castorp, chegavam a morrer.

       Este aspecto, o de «morrer», fora documentado em estudo após estudo.

Para o caso de isso me acontecer, comecei a levar comigo identificação quando pela manhã caminhava pelo Central Park.

       Se o telefone tocava quando estava no duche, já não atendia para evitar cair e matar-me nos ladrilhos.

Certos estudos eram famosos, fiquei a saber. Eram Ícones da literatura, indicadores de nível, referidos em tudo o que li. Havia, por exemplo: «Young, Benjamin e Wallis, The Lancet, 1963.» Este estudo, que incidiu sobre quatro mil quatrocentos e oitenta e seis viúvos recentes do Reino Unido, seguidos durante cinco anos, mostrava «índices de mortalidade significativamente mais elevados entre viúvos nos primeiros seis meses após a perda do que entre casados». Havia «Rees e Lutkins, British Medical Journal, 1967». Este estudo de novecentas e três pessoas que perderam familiares, comparadas com oitocentas e setenta e oito que não perderam, mostrou «mortalidade significativamente mais alta no primeiro ano entre os cônjuges que per­deram o companheiro». A explicação funcional para essas taxas de mortalidade tão elevadas foi dada na compilação de 1984 do Instituto de Medicina: «As actuais investigações têm demonstrado que, como no caso de muitos outros indivíduos sujeitos a stresse, a dor leva a modificações nos sistemas endócrino, imunitário, neurovegetativo e cardiovascular, todos eles fundamentalmente influenciados por função cere­bral e neurotransmissores.»

Também através dessa literatura, fiquei a saber que há dois tipos de dor. O tipo preferido, o associado ao «crescimento» e ao «desenvolvimento», era «a dor sem complicações» ou «perda normal». Essa dor sem complicações, segundo The Merck Manual, décima sexta edição, podia ainda apresentar-se tipicamente com «sintomas de ansiedade, como insónia de ador­mecimento, inquietação e hiperactividade do sistema neurovegetativo», mas «geralmente não causava de­pressão clínica, excepto nas pessoas com tendência para perturbações do humor». O segundo tipo de dor era o da «dor complicada», também conhecida na literatura por «dor patológica ligada à perda» e que se dizia ocorrer em várias situações. Uma situação em que a dor patológica ligada à perda podia ocorrer, li por diversas vezes, era aquela em que o sobrevivente e o falecido tinham sido invulgarmente dependentes do outro. «O enlutado era na realidade muito depen­dente da pessoa falecida, por prazer, apoio ou estima?»Este era um dos critérios de diagnóstico sugerido por David Peretz, médico no Departamento de Psiquiatria da Universidade de Colúmbia. «O enlutado sentia-se indefeso sem a pessoa desaparecida, quando ocorriam separações forçadas?»

Pensei nestas perguntas.

       Uma vez, em 1968, quando precisei inesperada­ mente de passar a noite em São Francisco (estava a fazer uma peça, chovia e a chuva empurrou uma entre­vista tardia para a manhã seguinte), John apanhou o avião para Los Angeles a fim de podermos jantar juntos. Jantámos no Ernie's. Depois do jantar, John apanhou o Midnight Flyer da PSA - deleite, por treze dólares, de uma época em que, na Califórnia, era possível ir de avião de Los Angeles a São Francisco, Sacramento e São José por vinte e seis dólares, ida e volta a Los Angeles.

Também pensei na PSA. Todos os aviões da PSA tinham sorrisos pintados no nariz. As assistentes de bordo estavam vestidas ao estilo de Rudy Gernreich, com minissaias rosa-vivo e cor de laranja. A PSA representava uma época da nossa vida em que nos parecia que a maior parte das coisas que fazíamos não teria consequências nem encargos, um estado de espírito de acordo com o qual ninguém pensava duas vezes antes de apanhar o avião e fazer dez mil quilóme­tros para jantar. Este estado de espírito terminou em 1978, quando um Boeing 727 da PSA colidiu com um Cessna 172 sobre San Diego, matando cento e qua­renta e quatro pessoas.

       Quando isto aconteceu, ocorreu-me que subesti­mara os riscos quando se tratava da PSA.

       Hoje, vejo que a cegueira não se limitava à PSA.

Quando Quintana, aos dois ou três anos, foi pela PSA a Sacramento visitar os meus pais, referia-se à viagem como «ir de sorriso». 1000 costumava escrever as coisas que ela dizia em pedaços de papel e colo­cava-os numa caixa pintada de preto que a mãe lhe dera. Esta caixa, que continua com os seus pedaços de papel numa secretária que tenho na sala de estar, tinha pintada uma águia e as palavras Et pluribus unum. Mais tarde, utilizou num romance, Dutch Shea, Ir., algumas das coisas que Quintana disse, atribuindo-as a Cat, filha de Dutch Shea, que fora morta por uma bomba do IRA quando jantava com a mãe num restaurante na Charlotte Street, em Londres. Eis um fragmento do que ele escreveu:

"«Onde tu 'tava?», era como ela dizia, ou então: «Para onde foi a manhã?» Anotou tudo e jun­tou ao monte guardado na gavetinha secreta da secretária de carvalho que Barry Stukin lhes oferecera, a ele e a Lee, como prenda de casamento... Cat, com a farda axadrezada da escola. Cat, que chamava ao banho «banha­ção» e «brabeletas» às borboletas destinadas a uma experiência no jardim-de-infância. Cat, que compôs o seu primeiro poema aos sete anos: «Vou desposar / Um menino chamado Harry / Anda a cavalo / Trata de divórcios.»

 

O Papão estava naquela gaveta. Papão, era o que Cat chamava ao medo, à morte e ao des­conhecido. «Tive um pesadelo com o Papão», dizia. «Não deixem o Papão apanhar-me.»

«Se o Papão vier, agarro-me à sebe e não o deixo levar-me...» Perguntava a si mesmo se o Papão tivera tempo para assustar Cat antes de esta morrer.

 

Vejo hoje o que não conseguia ver em 1982, ano em que foi publicado Dutch Shea, Jr.: era um ro­mance sobre a dor da perda. A literatura diria que Dutch Shea estava a passar por uma dor patológica. Os sintomas que levariam ao diagnóstico eram os se­guintes: Está obcecado com o momento em que Cat morreu. Vê e revê mentalmente a cena, como se o facto de a passar várias vezes pudesse revelar um final diferente: o restaurante na Charlotte Street, a salada de endívias, as sapatilhas cor de alfazema de Cat, a bomba. A cabeça de Cat no carrinho das sobremesas.

Tortura a ex-mulher, mãe de Cat, com uma única pergunta, sempre repetida: «Porque é que estavas nos lavabos quando a bomba explodiu?» Por fim, ela diz­-lhe:

Nunca me deste grande crédito por ser a mãe de Cat, mas eu criei-a. Cuidei dela no dia em que teve o período pela primeira vez. Lembro-me de que quando ela era pe­quenina chamava ao meu quarto o seu que­rido segundo quarto, chamava ao esparguete «busguete» e chamava «olás» às pessoas que iam lá a casa. Cat perguntava onde tu 'tavas e para onde ia a manhã e tu, meu filho da mãe, contaste a Thayer, querias que alguém se recordasse dela. Pois bem, ela disse-me que estava grávida, que fora um acidente, e queria saber o que havia de fazer. Fui aos lavabos porque sabia que ia começar a cho­rar e não queria chorar diante dela, queria afastar as lágrimas a fim de poder agir com sensatez. Foi então que ouvi a bomba e quando finalmente saí parte dela estava no sorvete e outra parte estava na rua, e tu, meu filho da mãe, queres que alguém se recorde dela.

Creio que John teria dito que Dutch Shea, Jr. Era sobre a fé.

Quando começou o romance, já sabia quais seriam as últimas palavras, não só as últimas palavras do romance, mas as últimas palavras pensadas por Dutch

Shea antes de se suicidar: «Acredito em Cato Acredito em Deus.» Credo in Deum. As primeiras palavras do catecismo católico.

Era sobre a fé ou era sobre a dor da perda?

A fé e a dor eram a mesma coisa?

Éramos invulgarmente dependentes um do outro no Verão em que nadávamos, víamos Tenko e íamos jantar ao Morton's?

Éramos invulgarmente felizes?

Se eu estivesse sozinha, ele apanharia «o sorriso» e ia ter comigo?

Dir-me-ia que marcasse mesa no Ernie's?

A PSA e «os sorrisos» já não existem, foi vendida à US Airways, e os aviões foram pintados.

O Ernie's já não existe, mas foi recriado por Alfred Hitchcock por um breve período para o filme A Mu­lher que Viveu Duas Vezes. A primeira vez que James Stewart vê Kim Novak é no Ernie's. Posteriormente, ela cai do campanário (também recriado) da Missão Católica de São João Baptista.

Nós casámos em São João Baptista.

Numa tarde de Janeiro, quando os botões come­çavam a abrir nos pomares junto da 101.

Quando ainda havia pomares junto à 101.

Não. A melhor maneira de nos maltratar-nos é vol­tando atrás. Os botões a abrirem nos pomares junto à 101 era o caminho incorrecto.

Durante várias semanas depois de aquilo aconte­cer, tentei manter-me no caminho correcto (o caminho estreito, o caminho no qual não pode fazer-se inversão de marcha), repetindo a mim mesma os dois últimos versos de «Rose Aylmer», a elegia de 1806 de Walter Savage Landor, em memória de uma filha de Lorde Aylmer, falecida aos vinte anos em Calcutá. Não pen­sava em «Rose Aylmer» desde os meus tempos de estudante universitária em Berkeley, mas agora con­ seguia lembrar-me não só do poema como de muito do que se dissera sobre ele em todas as aulas em que o analisáramos. «Rose Aylmer» era convincente - dizia quem quer que estivesse a dar aquela aula - porque o panegírico da falecida, excessivo e, por isso mesmo, sem significado, nos primeiros quatro versos «Ah, como aproveita a estirpe coroada! / Ah, quão divina a forma! / Quanta virtude, quanta graça! / Rose Aylmer, a ti pertencem») é aliviado de forma súbita e até chocante por «a dura e doce sabedoria» dos dois últimos versos, que sugerem que o luto tem o seu espaço, mas também os seus limites: «Uma noite de recordações e suspiros / Eu te consagrei.»

«Uma noite de recordações e suspiros», lembro­-me de ouvir o professor assistente repetir. «Uma noite. Só uma noite. Podia ter sido a noite toda, mas ele nem sequer diz toda a noite, diz uma noite, não se trata de uma vida inteira, trata-se de algumas horas.»

Dura e doce sabedoria. Era evidente que, uma vez que «Rose Aylmer» me ficara cravada na memória, eu a considerava como uma lição de sobrevivência oferecida a uma estudante universitária.

 

Dia 30 de Dezembro de 2003.

       Fôramos ver Quintana ao sexto piso da UCI do Beth Israel North.

       Onde ela ficaria por mais vinte e quatro dias.

 

A dependência invulgar (é essa a maneira de dizer «casamento»?, «marido e mulher»?, «mãe e filho»?, «família nuclear» ?) não é a única situação em que pode ocorrer a dor complicada ou patológica. Outra, segundo o que li, é aquela em que o luto é interrom­pido por «factores circunstanciais», por exemplo, «um atraso no funeral», ou por «uma doença ou segunda morte na família». Li uma explicação por Vamik D. Volkan, médico e professor de Psiquiatria da Uni­versidade de Virgínia, em Charlottesville, daquilo a que ele chamava de «terapia de retoma do luto», uma técnica desenvolvida na Universidade de Virgínia para o tratamento dos «enlutados patológicos crónicos». Nessa terapia, segundo o doutor Volkan, a determi­nada altura: ajudamos o paciente a rever as circunstâncias da morte - como ocorreu, a reacção do pa­ciente perante a notícia e o reconhecimento do corpo, os acontecimentos do funeral, etc. Geralmente, se a terapia estiver a correr bem, a raiva aparece nesta altura; a princípio di­fusa, depois dirigi da para os outros e, final­mente, dirigi da para o falecido. Pode então haver lugar a reacções de libertação da tensão emocional- a que Bibring [E. Bibring, 1954, «Psychoanalysis and the Dynamic Psychothe­rapies», lournal of the Amerícan Psychoana­/ytíc Assocíatíon] chama de «alívio emocional», que demonstram ao paciente a realidade dos seus impulsos reprimidos. Utilizando a nossa compreensão da psicodinâmica envolvida na necessidade do paciente de manter vivo o ente perdido, podemos então explicar e interpre­tar a relaçã o que existia entre o paciente e aquele que faleceu.

Mas onde, exactamente, é que o doutor Volkan e a sua equipa de Charlottesville foram buscar a pere­grina compreensão da «psicodinâmica envolvida na necessidade do paciente de manter vivo o ente queri­do», a capacidade especial de «explicar e interpretar a relação que existia entre o paciente e aquele que faleceu»? Estavam em Brentwood Park a ver Tenko comigo e com «o ente perdido» e iam jantar connosco ao Morton's? Estavam comigo e «aquele que faleceu» em Punchbowl, Honolulu, quatro meses antes de acon­tecer aquilo? Andaram connosco a apanhar botões de pluméria para os pormos nas sepulturas dos desco­nhecidos mortos em Pearl Harbor? Apanharam ao mesmo tempo que nós uma constipação por causa da chuva no Jardim de Ranelagh, em Paris, um mês antes de acontecer aquilo? Trocaram os quadros de Monet pelo almoço no Conti? Estavam connosco quando saímos do Conti e comprámos o termómetro, estavam sentados na nossa cama, no Bristol, quando nem eu nem ele sabíamos como converter em graus Fahrenheit a graduação em centígrados do termómetro?

       Vocês estavam lá?

       Não.

       Podiam ter sido úteis no caso do termómetro, mas não estavam lá.

       Não preciso de «rever as circunstâncias da morte».

       Eu estava lá.

       Não ouvi «a notícia», não «reconheci» o corpo.

       Eu estava lá.

       Controlo-me, paro.

Apercebo-me de que estou a dirigir uma raiva irra­cional contra o totalmente desconhecido doutor Volkan de Charlottesville.

As pessoas sob o choque de uma aflição ge­nuína não só estão perturbadas mentalmente, como fisicamente estão desequilibradas. Não importa quão calmas e controladas possam estar aparentemente, ninguém, nessas cir­cunstâncias, pode estar normal. A circulação perturbada arrefece-as e o desgosto deixa -as enervadas e com insónias. É frequente afasta­rem-se de pessoas de que em geral gostam. Ninguém deve impor-se a quem está a sofrer e as pessoas hiperemotivas, por mais próximas ou queridas que sejam, devem ser absoluta­mente impedidas de se aproximarem. Embora o conhecimento de que os amigos a amam e sofrem por ela seja de grande consolação, a pessoa mais atingida deve ser protegida de todos e de tudo o que possa alterar nervos já no ponto de rotura, e ninguém tem o direito de sentir-se magoado se lhes disserem que não são de utilidade ou que não podem ser rece­bidos. Em tais alturas, para certas pessoas, a companhia é um conforto, mas outras afastam-se dos amigos mais queridos.

Esta passagem é do manual de etiqueta de Emily Post, de 1922, Capítulo XXIV, «Funerais», que conduz o leitor desde o momento da morte «Assim que a morte ocorre, alguém, geralmente uma enfermeira qualificada, corre as cortinas do quarto do doente e diz a um empregado que corra todas as cortinas da casa») até às instruções sobre distribuição de lugares aos que assistem ao funeral: «Entrem na igreja o mais silenciosamente possível, e como num funeral não há quem indique os lugares, sentem-se o mais discre­tamente possível. Só um amigo muito íntimo deve ocupar uma posição à frente na nave central. Se forem simples conhecidos, devem sentar-se algumas posições atrás, excepto se for um funeral pequeno e a igreja grande e, nesse caso, devem sentar-se na última fila ocupada da nave central.»

Este tom de especificidade infalível nunca esmo­rece. A ênfase é sempre posta no pragmatismo. Os en­lutados devem ser aconselhados a «sentarem-se numa sala soalheira», de preferência uma sala com lareira. Comida, mas «muito pouca comida», pode ser ofere­cida numa bandeja: chá, café, um caldo, uma torra­dinha fina, um ovo escalfado. Leite, mas só leite quente: «O leite frio é mau para alguém que já está enregelado.» Quanto a outros alimentos: «O cozinheiro deve sugerir algo que, em geral, seja do agrado dessas pessoas - mas oferece-se muito pouco de cada vez, porque, embora o estômago possa estar vazio, o pala­dar recusa pensar sequer em comida e a digestão não está nos seus melhores momentos.» O enlutado é acon­selhado a economizar ao preparar o vestuário de luto: a maior parte das peças já existentes, incluindo sapa­tos de cabedal e chapéus de palha, «tingem-se perfei­tamente». As despesas com a funerária devem ser verificadas antecipadamente. Uma pessoa amiga deve encarregar-se da casa durante o funeral. Essa pessoa providencia para que a casa seja arejada, a mobília deslocada seja posta no lugar onde pertence e a lareira esteja acesa no regresso da família. «Também fica bem preparar um chazinho ou um caldo quentes», acon­selha Mrs. Post, «que deve ser trazido após o regresso sem se lhes perguntar se são servidos. Quem está a passar por uma grande tristeza não quer comida, mas, se esta lhes for estendida, aceitam-na mecanicamente e algo quente que inicie a digestão e estimule a circu­lação comprometida é aquilo de que mais precisam». Havia algo que chamava a atenção na desprendida sabedoria do manual, a compreensão instintiva das rotinas fisiológicas («modificações nos sistemas endó­crino, imunitário, neurovegetativo e cardiovascular») posterioffilente enumeradas pelo Instituto de Medicina. Não tenho a certeza do que me levou a olhar para o manual de etiqueta de Emily Post de 1922 (calculo que alguma recordação da minha mãe, que me dera a ler um exemplar quando estivemos cercados de neve numa casa de quatro assoalhadas arrendada em Colo­rado Springs durante a Segunda Guerra Mundial), mas quando o descobri na Internet tocou-me fundo. Enquanto o lia, lembrava-me de como me sentira enre­gelada no New York Hospital na noite em que John falecera. Pensei que tinha frio porque estávamos a 30 de Dezembro e eu fora para o hospital de pernas nuas e sapatos abertos e só tinha vestido a saia de linho e a camisola com que me arranjara para irmos jantar. Em parte era por isso, mas também tinha frio porque nada no meu corpo estava a funcionar como devia.

Mrs. Post compreendera isso. Escreveu num mundo em que o luto ainda era reconhecido, permi­tido, e não escondido das vistas. Philippe Aries, numa série de palestras que deu no Johns Hopkins em 1973 e que mais tarde foram publica das com o título de Western Attitudes toward Death: From the Middle Ages to the Present, observava que, com início por volta de 1930, se verificara na maioria dos países ocidentais e especialmente nos Estados Unidos uma revolução nas atitudes aceites perante a morte. «A morte», escreveu ele, «tão omnipresente no passado que era familiar, será apagada, desaparecerá. Tornar-se-á vergonhosa e proibida.» O socioantropólogo inglês Geoffrey Gorer, na sua obra de 1965 Death, Crie/, and Mourning, descrevera esta rejeição do luto público como resul­tado da crescente pressão de uma nova «obrigação ética do prazer», um novel «imperativo de não fazer nada que possa diminuir o prazer dos outros». Tanto em Inglaterra como nos Estados Unidos, observou ele, a tendência contemporânea era «considerar o luto uma auto complacência mórbida e atribuir admiração social aos enlutados que escondem a sua dor tão per­feitamente que ninguém adivinharia que alguma coisa aconteceu» .

Uma das maneiras de se ocultar a dor resulta de a morte ocorrer hoje nos bastidores na maioria das vezes. De acordo com a antiga tradição de que fala Mrs. Post, o acto de morrer ainda não fora profissio­nalizado. Não envolvia sistematicamente hospitais. As mulheres morriam de parto. As crianças com febres. O cancro não tinha tratamento. Na época em que ela escreveu o manual de etiqueta, devia haver poucos lares americanos que não tivessem sido atingidos pela pandemia de gripe de 1918. A morte estava pró­xima e em casa e esperava-se que o adulto normal lidasse com as suas consequências com competência e também com sensibilidade. Em pequena, na Cali­fórnia, ensinaram-me que, quando alguém morre, cozinha-se um pernil. Leva-se a casa da família en­lutada. Vai-se ao funeral. Se a família for católica, também se vai ao terço, mas não se chora, não se pran­teia, nem se exige a atenção da família seja de que maneira for. O manual de etiqueta de 1922 de Emily Post acabou por mostrar-se tão perspicaz na sua apreensão deste modo diferente de encarar a morte e tão normativo no tratamento da dor quanto tudo o mais que li. Não me esquecerei da sabedoria instin­tiva da amiga que, diariamente, durante as primeiras semanas, me trazia da Chinatown uma embalagenzi­nha de caldo de arroz com chalotas e gengibre. Conse­guia tomar o caldo de arroz. O caldo de arroz era a única coisa que eu conseguia tomar.

 

Houve mais uma coisa que aprendi quando era pe­quena e vivia na Califórnia. Quando nos parece que alguém morreu, certificamo-nos, aproximando-lhe da boca e do nariz um espelhinho e, se não houver vapor, a pessoa está morta. Foi a minha mãe quem me ensinou isso. Esqueci-me, na noite em que John morreu. Está a respirar?, perguntara-me o assistente. Venham!, respondi-lhe.

Dia 30 de Dezembro de 2003.

Fôramos ver Quintana à UCI no sexto piso do Beth Israel North.

       Anotámos os números que se viam no aparelho de ventilação.

       Pegámos-lhe na mão inchada.

       Ainda não sabemos como é que isto vai evoluir, dissera-nos um dos médicos.

Voltámos para casa. A UCI só reabriu às sete horas depois das rondas da tarde, portanto já devia passar das oito.

       Discutimos se havíamos de ir jantar fora ou se comíamos em casa.     .

       Eu disse que ia acender a lareira, podíamos comer em casa.

Não tenho ideia do que pensávamos comer. Mas lembro-me de deitar fora o que quer que estivesse nos pratos e na cozinha quando voltei do New York Hos­pital.

Sentamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba.

No espaço de tempo de uma pulsação.

Ou na sua ausência.

Nos últimos meses passei grande parte do tempo a tentar, primeiro, seguir o rasto, e, quando isso falhou, reconstruir a sequência exacta de acontecimentos que precederam e se seguiram ao que aconteceu naquela

noite. «A determinada altura entre quinta-feira, 18 de Dezembro de 2003, e segunda-feira, 22 de Dezembro de 2003», assim começava uma dessas reconstruções, «Quintana queixou-se de "sentir-se péssima", sin­tomas de gripe, pensava que estava com anginas.» E continuava com a reconstrução, que era precedida pelos nomes e números de telefone dos médicos com quem eu falara não só no Beth Israel North, mas noutros hospitais de Nova Iorque e de outras cidades. O essencial era o seguinte: Na segunda-feira, 22 de Dezembro, Quintana foi com quarenta graus de febre às Urgências do Beth Israel North, que naquela época tinha fama de ser o serviço de urgências menos conges­tionado do Upper East Side de Manhattan, e diagnos­ticaram-lhe uma gripe. Disseram-lhe que se metesse na cama e bebesse muitos líquidos. Não fizeram radiogra­fias ao tórax. A 23 e 24 de Dezembro, a febre flutuava entre quarenta e um e quarenta e dois graus. Estava demasiado doente para o jantar da véspera de Natal.

Ela e Gerry cancelaram os planos para passarem a consoada e mais alguns dias com a família dele em Massachusetts.

No dia de Natal, uma quinta-feira, telefonou de manhã e disse que estava com problemas respirató­rios. A respiração parecia pouco profunda e difícil. Gerry levou-a de novo às Urgências do Beth Israel Iorth, onde as radiografias mostraram uma infiltra­ção densa de pus e bactérias no lobo inferior do pul­mão direito. Tinha o pulso elevado, cento e cinquenta pulsações ou mais. Estava extremamente desidratada. Os leucócitos estavam quase a zero. Deram-lhe Ativan, depois Demerol. Aquela pneumonia, disseram a Gerry nas Urgências, era de «cinco numa escala de um a dez, é o que costumamos chamar de "pneumonia galopante"». Não era «nada de grave» (talvez isto fosse o que eu queria ouvir), mas mesmo assim decidiram in­temá-la na UCI do sexto piso para acompanhamento.

Quando chegou à UCI, nessa noite, Quintana es­tava agitada. Deram-lhe mais sedativos e depois entu­baram-na. A temperatura dela era agora de quarenta e três graus e uns décimos. Cem por cento do oxigénio estava a ser-lhe fornecido pelo tubo de ventilação; nessa altura, já não conseguia respirar sozinha. No fim da manhã seguinte, sexta-feira, 26 de Dezembro, soube­-se que ambos os pulmões estavam com pneumonia e que esta pneumonia alastrava, apesar da adminis­tração maciça intravenosa de azitromicina, gentami­cina, clindamicina e vancomicina. Soube-se também - ou partiu-se do princípio, uma vez que a tensão arterial estava a baixar - que estava a entrar ou já entrara em choque séptico. Pediram a Gerry auto­rização para mais dois procedimentos invasivos, primeiro a inserção de um tubo na artéria e depois a inserção de um segundo tubo que iria perto do Coração para resolver o problema da tensão arterial.

Deram-lhe neo-sinefrina para ajudar a manter a ten­são arterial entre nove de máxima e seis de mínima.

No sábado, 27 de Dezembro, disseram-nos que estavam a dar-lhe o que era então ainda um novo medicamento da Eli Lilly, o Xigris, que ia continuar por noventa e seis horas, quatro dias. «Isto custa vinte mil dólares», disse a enfermeira enquanto mudava o saco da medicação intravenosa. Vi o fluido pingar para um dos muitos tubos que, então, conservavam Quin­tana viva. Fui procurar o Xigris na Internet. Um sítio dizia que a percentagem de sobrevivência dos pacien­tes com sepsia tratados com Xigris fora de sessenta e nove por cento, contra os cinquenta e seis por cento dos pacientes que não foram tratados com Xigris. Outro sítio, um folheto publicitário, dizia que «o gi­gante adormecido» da Eli Lil1y, o Xigris, estava «a lutar por ultrapassar os seus problemas no mercado da sepsia». Pareceu-me de certo modo um ponto de vista positivo sob o qual analisar a situação: Quintana não era a filha que fora uma noiva delirantemente feliz havia cinco meses e cuja possibilidade de sobreviver mais um ou dois dias podia agora ser calculada algu­res entre cinquenta e seis e sessenta e nove por cento. Quintana era «o mercado da sepsia», o que sugeria que ainda havia possibilidades de escolha por parte do con­sumidor. No domingo, 28 de Dezembro, já era possí­vel imaginar que «o gigante adormecido» do mercado da sepsia estava a dar o seu contributo: a pneumonia não diminuíra em extensão, mas a neo-sinefrina que aguentava a tensão arterial fora suprimida e a tensão arterial estava estabilizada nos nove e meio de máxima e quatro de mínima. Na segunda-feira, 29 de Dezembro, um médico assistente disse-me que, depois de ter estado ausente durante uma semana, voltara nessa manhã e achara «encorajadora» a situação de Quin­tana. Perguntei-lhe que fora exactamente o que o encorajara na situação de Quintana quando ele regres­sara nessa manhã. «Ainda está viva», respondeu-me o médico assistente.

Na terça-feira, 30 de Dezembro, às treze horas e dois minutos (segundo o computador), escrevi estas notas na previsão de uma conversa com mais um espe­cialista a quem eu telefonara:

 

Algum efeito sobre o cérebro - por falta de oxigénio? Por causa das febres altas? Devido a uma possível meningite?

 

Vários médicos mencionaram «não saber se há alguma estrutura ou bloqueio subjacentes». Estão a falar de um possível tumor maligno?

 

Parte-se do princípio de que esta infecção é bacteriana - embora não tenham surgido bac­térias nas culturas. Há alguma maneira de se saber se não é viral?

 

Como é que uma «gripe» evolui para uma in­fecção generalizada?

 

Esta última pergunta - Como é que uma «gripe» evolui para uma infecção generalizada?' - foi acres­ centada por John. No dia 30 de Dezembro, John parecia ter uma fixação por esta questão. Fizera a pergunta muitas vezes nos três ou quatro dias ante­riores a médicos, a médicos assistentes, a enfermeiras, e, finalmente, em desespero, a mim, e nunca recebeu uma resposta que considerasse satisfatória. Algo havia nisto que também desafiava a minha compreensão, mas eu fingia que conseguia conviver com o facto. Vejamos:

       Quintana fora internada na UCI na véspera de Natal.

Estava num hospital, fartáramo-nos de dizer um ao outro na véspera de Natal. Estavam a tratar dela.

Estava em segurança no lugar onde se encontrava. Tudo o mais parecia normal.

Tínhamos a lareira acesa. Quintana estava em segurança.

       Cinco dias depois, tudo no exterior da UCI do sexto piso do Beth Israel North continuava a parecer normal: era esta parte que nem John, nem eu (mas só John o admitia) conseguíamos ultrapassar, mais um caso de fixação dos olhos no céu azul e límpido donde se des­penhara o avião. Na sala de estar do apartamento lá continuavam as prendas que John e eu abríramos na noite de Natal. Lá continuavam debaixo e sobre uma mesa do antigo quarto de Quintana as prendas que ela não pudera abrir na noite de Natal porque estava na UCI. Lá continuavam empilhados em cima da mesa da sala de jantar os pratos e talheres que usáramos na consoada. Lá continuava o extracto desse dia do American Express, onde fora descontada a viagem que em Novembro fizéramos a Paris. Quando partimos para Paris, Quintana e Gerry estavam a planear o seu primeiro jantar de Acção de Graças. Tinham convi­dado a mãe, a irmã e o cunhado de Gerry. Iam usar o serviço de jantar do casamento.

Quintana viera bus­car o serviço de copos de cristal cor de rubi. Telefoná­mos-lhes de Paris no dia de Acção de Graças. Estavam a assar um peru e a fazer puré de nabos.

«E, a seguir, morreu.»

Como é que uma «gripe» evolui para uma infecção generalizada?

Hoje, vejo a pergunta como o equivalente a um grito de raiva impotente, como outra maneira de dizer: Como pôde isto acontecer quando tudo parecia nor­mal. No cubículo onde Quintana jaz na UCI, de dedos e rosto inchados de fluidos, lábios gretados pela febre em redor do tubo de ventilação, cabelos enredados e ensopados em suor, os números dessa noite no venti­lador indicavam que ela estava agora a receber apenas quarenta e cinco por cento de oxigénio através do tubo. John beijara-lhe o rosto inchado. «Mais do que um dia mais», murmurara ele, mais uma parte da linguagem secreta da nossa família. Era uma re­ferência a um diálogo do filme de Richard Lester, A Flecha e a Rosa. «Amo-vos mais do que um dia mais», dizia Audrey Hepburn, no papel da Lady Marian, a Sean Connery, no papel de Robin dos Bosques, depois de ter administrado a ambos a poção fatal. John sussurrava isto de todas as vezes em que deixava a UCI. À saída, conseguimos convencer um médico a falar connosco. Perguntámos se a diminui­ção no fornecimento de oxigénio significava que ela estava a melhorar.

Houve uma pausa.

Foi quando o médico da UCI disse: «Ainda não temos a certeza de como isto vai acabar.»

       Isto vai acabar bem, lembro-me de pensar.

 

       O médico da UCI continuava a falar. «Ela está realmente muito doente», dizia ele.

Reconheci isto como uma forma codificada de dizer que se esperava que ela morresse, mas eu tei­mei: Isto vai acabar bem. Vai acabar bem porque   tem de acabar bem.

       Acredito em Cato

       Acredito em Deus.

«Amo-te mais do que um dia mais», disse Quin­tana três meses depois, de vestido preto, na Catedral de São João-o-Divino. «Como costumavas dizer-me.»

 

Casámos na tarde de 30 de Janeiro de 1964, uma quinta-feira, na Missão Católica de São João Baptista, no condado de San Benito, Califórnia. John vestia fato azul-escuro, da Chipp. Eu usava um vestido branco de seda que comprara na Ransohoff's de São Fran­ cisco no dia em que John Kennedy foi assassinado. Doze e trinta da tarde em Dallas - era ainda manhã na Califórnia. A minha mãe e eu só soubemos do que aconteceu quando íamos a sair da Ransohoff's para almoçarmos e deparámos com alguém de Sacramento. Como só havia trinta ou quarenta pessoas em São João Baptista na tarde do casamento (a mãe de John, o irmão mais novo, Stephen, o outro irmão, Nick, e a mulher, Lenny, e a filha de quatro anos, os meus pais, o meu irmão e a minha cunhada, o meu avô, a minha tia, alguns primos e amigos da família, de Sacramento, o colega de quarto de John em Princeton ou talvez mais um ou dois colegas), a minha intenção para a cerimónia fora que a entrada fosse simples, sem «cor­tejo», que apenas nos reuníssemos e casássemos. «Os nubentes entram sozinhos», lembro-me de Nick ter dito com ar prestável. Planeeou tudo, mas o orga­nista que se oferecera não apareceu e vi-me a per­correr a nave pelo braço do meu pai e a chorar por detrás dos óculos escuros. Quando a cerimónia acabou, dirigimo-nos para a casa de Pebble Beach, onde havia umas coisinhas para comermos, champanhe, um ter­raço que dava para o Pacífico, tudo muito simples. A título de lua-de-mel, passámos algumas noites numa cabana no rancho de Santo Isidro, em Montecito, e depois, aborrecidos, fomos para o Beverly Hills Hotel.

Pensei no meu casamento no dia do casamento de Quintana.

O casamento dela também foi simples. Usava um vestido branco comprido, véu e uns sapatos muito caros, mas o cabelo caía-lhe pelas costas numa trança espessa, como quando era criança.

Sentámo-nos no coro da Catedral de São João-o­-Divino. O pai levou-a ao altar. Junto do altar, estava Susan, a sua melhor amiga da Califórnia desde os três anos de idade. Junto do altar, encontrava-se a melhor amiga de Nova Iorque. Estava ali a prima Kelley, da Califórnia, que leu uma parte do ritual. Ali estavam os filhos da enteada de Gerry, que leram outra parte. Havia as crianças mais pequenas, meninas de colares de flores, descalças. Houve sanduíches de agrião, champanhe, limonada, guardanapos cor de pêssego a combinar com o sorvete que foi servido com o bolo, pavões no relvado. Quintana atirou com os sapatos caros e soltou o véu. «Não foi praticamente perfeito? », disse ela quando nessa noite telefonou. O pai e eu concordámos. Ela e Gerry foram para St. Barth. John e eu fomos para Honolulu.

Dia 26 de Julho de 2003.

Quatro meses e vinte e nove dias antes de ser inter­ nada na UCI do Beth Israel North.

Quatro meses e quatro dias antes de o pai morrer. Durante uma ou duas semanas após ele morrer, à noite, quando a exaustão protectora me derrubava e eu deixava a família e os amigos a conversarem na sala de estar, na de jantar e na cozinha do aparta­mento, percorria o corredor até ao quarto e fechava a porta. Evitei olhar para as recordações do nosso casa­mento penduradas nas paredes do corredor. De facto, nem precisava de olhar, nem podia evitá-las por não olhar: conhecia-as de cor. Havia uma foto de John e eu tirada no local das filmagens de Pânico em Needle Park. Foi o nosso primeiro filme. Fomos com o filme para o Festival de Cannes. Era a primeira vez que ia à Europa. Viajámos em primeira classe à custa da Twentieth Century F ox e eu entrei no avião descalça, foi nessa época, em 1971. Havia uma foto de John comigo e com Quintana na Bethesda F ountain, no Central Park, em 1970, de John e Quintana com qua­tro anos de idade a comerem gelados. Estivemos em Nova Iorque durante todo esse Outono a trabalhar num filme de Otto Preminger. «Está no escritório do Mr. Preminger que não tem cabelo», Quintana infor­mou o pediatra que perguntou onde estava a mãe. Havia uma foto de John, eu e Quintana na varanda da casa que tivemos em Malibu na década de setenta. Essa fotografia foi publicada na People. Quando vi a fotografia, apercebi-me de que Quintana aproveitara um intervalo nas filmagens daquele dia para pôr rímel pela primeira vez. Havia uma fotografia que Barry Farrell tirara à mulher, Marcia, sentada numa cadeira de verga na casa de Malibu; tinha ao colo a filha ainda bebé, Joan Didion Farrell.

Barry F arrell já falecera.

Havia uma foto de Katharine Ross, tirada por Conrad Hall durante o período de Malibu, quando ela ensinava Quintana a nadar atirando uma concha para dentro da piscina do vizinho e dizendo a Quin­ tana que a concha seria dela se ela a fosse apanhar.

Foi uma época, o início da década de setenta, em que Katharine e Conrad, Jean e Brian Moore e John e eu trocávamos plantas e cães, favores e receitas, e jan­távamos em casa uns dos outros algumas vezes por semana.

Recordo-me de que todos nós fazíamos suflês.

Nancy, irmã de Conrad, que estava em Papeete, ensi­nara Katharine a fazê-los sem dificuldade e Katharine ensinou-me a mim e a Jean. O truque era uma abor­dagem menos severa do que a geralmente aconselhada.

Katharine também trouxe do Taiti vagens de baunilha, réstias espessas atadas com ráfia.

Fizemos creme de caramelo com a baunilha du­rante uns tempos, mas ninguém gostava de carame­lizar o açúcar.

Falámos em arrendar a casa de Lee Grant sobre Zuma Beach e abrir um restaurante, que se chamaria «Lee Grant's House». Katharine, Jean e eu cozinha­ ríamos por turnos e John, Brian e Conrad ficariam à frente do restaurante também por turnos. Este plano foi abandonado porque Katharine e Conrad se sepa­ raram, Brian estava a acabar um romance e John e eu fomos para Honolulu a fim de fazer alterações no argumento de um filme. Trabalhávamos muito em Honolulu. Ninguém de Nova Iorque acertou nunca na diferença horária e por isso conseguíamos traba­lhar o dia inteiro sem que o telefone tocasse. Houve uma altura na década de setenta em que quis com­prar lá uma casa e levei John a ver muitas, mas a John parecia que viver realmente em Honolulu era uma perspectiva menos encorajadora do que viver na Kahala.

Conrad Hall já faleceu.

Brian Moore já faleceu.

Vindo de uma casa anterior, uma grande casa em ruínas na Franklin Avenue, em Hollywood, que arren­dámos com os seus muitos quartos, varandas cobertas, abacateiros e um campo de ténis de terra batida por quatrocentos e cinquenta dólares por mês, havia um poema emoldurado que Earl McGrath escrevera por ocasião do nosso quinto aniversário:

 

Esta é a história de lohn Greg'ry Dunne

Que com a mulher, Mrs. Didion Do,

Estava legalmente casado e com família

E que vivia na Franklin Avenue.

Vivia com a bela filha Quintana

Também conhecida por Didion D Didion Dunne

E Didion Do.

E Quintana, ou Didion D.

Uma bela família de um Dunne Dunne Dunne

(Quer dizer, uma família de três pessoas)

Que vivia num estilo a bem dizer arcaico

Na Franklin Avenue.

 

As pessoas que perderam recentemente alguém têm uma certa expressão que talvez só reconheçam os que já a viram no seu próprio rosto. Reparei nessa expressão no meu rosto e agora reparo nessa expressão no rosto dos outros. É uma expressão de vulnerabili­dade extrema, de nudez, de acessibilidade. É a ex­pressão de alguém que sai do consultório do oftalmo­logista para a luz do dia com os olhos dilatados, ou de alguém que usa óculos e que de repente é obrigado a tirá-los. As pessoas que perderam alguém parecem nuas porque pensam em si mesmas como se fossem invisíveis. Eu própria me senti invisível durante um espaço de tempo, incorpórea. Parecia-me ter atraves­sado um daqueles rios lendários que separam os vivos dos mortos, que tinha entrado num lugar onde só podia ser vista pelos que também haviam recente­mente sofrido uma perda. Compreendi pela primeira vez a força da imagem dos rios, o Estige, o Lete, o barqueiro com o seu manto e a vara. Compreendi pela primeira vez o significado da imolação praticada na Índia. Não é a dor que atira as viúvas para a pira funerária. Pelo contrário, a pira funerária é uma repre­sentação exacta do lugar para onde as leva a sua dor (não as famílias, nem a comunidade, nem a tradição - a sua dor). Na noite em que John morreu, faltavam vinte e um dias para o nosso quadragésimo aniver­sário. Entretanto, já devem ter adivinhado que «a dura e doce sabedoria» dos dois últimos versos de «Rose Aylmer» estava perdida para mim.

       Queria mais do que uma noite de recordações e suspiros.

       Queria gritar.

       Queria que ele voltasse.

 

Há uns quantos anos, ia eu a andar de frente para o Sol na Rua Cinquenta e Sete, entre a Sexta e a Quinta avenidas, num dia luminoso de Outono, tive o que, na altura, considerei ser um vis­lumbre da morte. Foi um efeito da luz: um raio de sol súbito a pintalgar o céu, folhas amarelecidas a caírem (mas de onde? ao menos havia árvores na Rua Cin­quenta e Sete Oeste?), uma chuva de ouro, lantejoulas que caíam muito depressa vindas da luz. Posterior­mente, busquei este mesmo efeito em dias luminosos como aquele, mas nunca mais voltei a senti-lo. Então, perguntei-me se fora um acesso qualquer, uma qual­quer espécie de ataque. Uns anos antes, na Califór­nia, sonhei com uma imagem que, quando acordei, soube que era a da morte: a imagem de uma ilha de gelo, a aresta denticulada vista do ar de uma das ilhas Normandas, só que neste caso era tudo de gelo, translúcido, de um branco-azulado, a cintilar ao sol. Ao contrário dos sonhos em que quem sonha prevê a morte, está inexoravelmente condenado a morrer mas não já ali, neste sonho não havia temor. Tanto a ilha de gelo como a chuva de luz na Rua Cinquenta e Sete Oeste pareciam, pelo contrário, transcendentes, de uma beleza indizível, porém, na minha mente, não havia dúvidas de que o que vira fora a morte.

Porquê, se aquelas eram as minhas imagens da morte, continuava tão incapaz de aceitar o facto de que ele morrera? Seria porque não estava a conseguir entender que o que acontecera lhe acontecera a ele?

Seria porque ainda entendia que o que acontecera me acontecera a mim?

A vida modifica-se rapidamente.

A vida modifica-se num instante.

Sentamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba.

A questão da autocompaixão.

Estão a ver quão cedo a questão da autocompai­xão entrou no quadro.

Uma manhã, na Primavera depois que aquilo aconteceu, peguei no The New York Times e saltei da primeira página directamente para as palavras cruza­das, uma maneira de começar o dia que, naqueles meses, se tornara num padrão, a maneira como lia, ou, mais exactamente, como não lia, o jornal. Ante­riormente, não tinha paciência para palavras cruzadas, mas agora pensava que essa prática talvez me encora­jasse a voltar a um empenho cognitivo construtivo. A pista que primeiro me chamou a atenção naquela manhã foi a seis vertical: «Às vezes sente-se como...» Vi instantaneamente a resposta óbvia, uma bem comprida que encheria muitos espaços e provaria a minha competência para aquele dia: «... um filho sem mãe.»

Os filhos sem mãe têm uma vida realmente dura.

Os filhos sem mãe têm uma vida realmente tão dura...

Não.

Seis vertical só tinha quatro letras.

Larguei o quebra -cabeças (dura de roer, a impa­ciência), e no dia seguinte fui ver a resposta. A res­posta correcta para seis vertical era «tolo». «Tolo?»Às vezes sente-se um tolo? Até que ponto eu me dis­tanciara do mundo das respostas normais?

Nota: a resposta que me surgiu instantaneamente «um filho sem mãe») foi um gemido de autocom­paIxao.

Não ia ser fácil corrigir esta brecha intelectual.

 

Que ávido afã, que vertiginoso esplendor!

Onde está meu pai, onde está Eleanor?

Não onde estão agora, sete anos se vão,

Mas onde estavam então?

 

       «Nunca mais? Nunca mais?»

       DELMORE SCHWARTZ

Calmly We Walk Through This April's Day

 

Achava que estava a morrer. Assim me disse, e muitas vezes. Eu afastava a ideia. Estava deprimido. Acabara um romance, Nothing Lost, que fora apanhado no limbo previsível de um período prolongado entre a entrega e a publicação, e estava a passar por uma crise, igualmente previsível, de confiança no livro que estava a começar, uma reflexão sobre o significado do patriotismo, que ainda não encontrara a sua força cinética. Também tivera de lidar durante a maior parte do ano com uma série de problemas de saúde. O ritmO cardíaco começara a deslizar com frequência crescente para a fibrilhação auricular. Um ritmo sinusal normal podia ser restaurado por cardioversão, um processo não invasivo em que se dava ao paciente uma aneste­sia geral durante alguns minutos enquanto se aplica­vam choques eléctricos ao coração, mas uma altera­ ção no estado físico tão simples como apanhar uma constipação ou fazer uma viagem de avião bastante longa podia quebrar novamente o ritmo. O último tratamento destes, em Abril de 2003, exigira não um mas dois choques. A frequência tenazmente crescente com que a cardioversão se tornara necessária indicava que já não era uma opção útil. Em Junho, após uma série de consultas, sujeitara-se a uma intervenção car­díaca mais radical, a ablação por radiofrequência do nodo aurículo-ventricular e a subsequente implanta­ ção do pacemaker Medtronic-Kappa 900 SR.

       No decurso do Verão, incitado pelo prazer do casa­ mento de Quintana e pelo êxito aparente do pace­maker, pareceu ter levantado o ânimo. No Outono, fraquejou outra vez. Recordo-me de uma discussão sobre irmos ou não a Paris em Novembro. Eu não que­ ria ir. Disse que tínhamos muito que fazer e pouco dinheiro. Ele disse que tinha a sensação de que se não fosse a Paris em Novembro nunca mais iria a Paris. Interpretei isto como chantagem. «Nesse caso, está decidido», disse eu, «vamos.» Ele saiu da mesa. Não dissemos nada de significativo durante dois dias. Por fim, fomos a Paris em Novembro.

Digo-vos que não viverei dois dias mais, disse Galvão.

Há umas semanas atrás, no Conselho para as Rela­ções Internacionais, no cruzamento da Rua Sessenta e Oito com o Central Park, reparei que alguém à minha frente estava a ler o /nternational Herald Tribune. Mais um exemplo de como se desliza para o caminho errado: já não estou no Conselho para as Relações Internacionais no cruzamento da Rua Sessenta e Oito com o Central Park, mas sentada diante de John ao pequeno-almoço na sala de jantar do Bristol, em Paris, em Novembro de 2003. Estamos ambos a ler o /nter­national Herald Tribune, exemplares do hotel, com cartõezinhos agrafados com o estado do tempo para aquele dia. Os cartões para aquela manhã em Paris mostravam o desenho de um chapéu-de-chuva. Fomos debaixo de chuva até ao Jardim do Luxemburgo. Refugiámo-nos da chuva na Saint-Sulpice. Estava a ser celebrada uma missa. John tomou a comunhão. Constipámo-nos com a chuva que apanhámos no Jardim do Ranelagh. No voo de regresso a Nova Iorque, o cachecol de John e o meu vestido de malha cheiravam a lã molhada. Na descolagem, ele pegou­    -me na mão até o avião endireitar.

Fazia sempre isso.

Aonde é que isto leva?

Vejo numa revista um anúncio da Microsoft que mostra a plataforma da estação de metro da Porta des Lilas, em Paris.

Ontem encontrei no bolso de um casaco quase por estrear um bilhete de metro já utilizado, da viagem a Paris em Novembro. «Só os episcopalianos "'tomam" a comunhão», corrigira-me pela última vez quando saíamos da Saint-Sulpice. Havia quarenta anos que me corrigia nesta questão. Os episcopalianos «tomam», os católicos «recebem». De todas as vezes explicou-me que era uma diferença de atitude.

 

Não onde estão agora, sete anos se vão,

Mas onde estavam então?

 

Aquela última cardioversão: Abril de 2003. A que exigira dois choques. Lembro-me de um médico ex­plicar por que motivo se fazia sob anestesia. «Porque se não fosse assim, saltavam da mesa», disse ele. Dia 30 de Dezembro de 2003: o salto súbito quando a equipa da ambulância estava a usar o desfibrilhador no chão da sala de estar. Foi de facto uma pulsação ou simples electricidade?

Na noite em que ele morreu ou na noite anterior, no táxi entre o Beth Israel North e o nosso aparta­ mento, ele disse várias coisas que, pela primeira vez, me deixaram incapaz de pôr prontamente de lado o seu estado de espírito como depressão, como fase normal na vida de qualquer escritor.

Nada do que fizera tinha valor, disse ele.

Apesar de tudo, tentei afastar a ideia. Isto podia não ser normal, disse para comigo, mas a situação em que tínhamos acabado de deixar Quin­

tana também não o era.

Ele disse que o seu romance não valia nada.

Isto podia não ser normal, disse para comigo, mas também não era normal um pai ver uma filha fora de alcance do seu auxílio.

Ele disse que a sua recensão para The New York Review, a recensão da biografia de Natalie Wood por Gavin Lambert, não valia nada.

Isto podia não ser normal, mas o que é que o fora nos últimos dias?

Ele disse que não sabia o que estava a fazer em Nova Iorque. «Porque é que perco tempo com um ar­tigo sobre Natalie Wood?», interrogou-se.

Não foi uma pergunta.

«Tiveste razão quanto ao Havai», disse ele então. Acho que queria dizer que eu tinha razão quando um ou dois dias antes disse que quando Quintana melhorasse (era o nosso código para «se ela viver» ) podíamos arrendar uma casa na praia de Kailua onde ela podia recuperar. Ou talvez quisesse dizer que eu tinha razão quando, na década de setenta, quis com­prar uma casa em Honolulu. Na altura, preferi pensar na primeira hipótese, mas o pretérito da forma verbal sugeria a segunda. Disse estas coisas no táxi entre o Beth Israel North e o nosso apartamento, ou três horas antes de morrer, ou vinte e sete horas antes de morrer, tento recordar-me e não consigo.

 

Porque hei-de continuar a insistir no que era ou não normal quando nada estava a sê-lo? Deixem-me tentar estabelecer uma cronologia. Quintana foi internada na UCI do Beth Israel North no dia 25 de Dezembro de 2003.

John morreu no dia 30 de Dezembro de 2003. Foi ao fim da manhã do dia 15 de Janeiro de 2004, na UCI do Beth Israel North, que disse a Quintana que ele morrera, depois de os médicos terem conseguido retirar-lhe o tubo de ventilação e reduzir a sedação ao ponto em que ela começaria a acordar paulatinamente. Não fora planeado contar-lhe nesse dia. Os médicos tinham dito que ela teria um acordar intermitente, a princípio parcialmente, e que durante uns dias só con­seguiria absorver informação limitada. Se acordasse e me visse, perguntaria onde estava o pai. Gerry, Tony e eu discutimos longamente o problema. Decidíra­mos que só Gerry estaria com ela quando começasse a acordar. Quintana concentraria a atenção nele e na sua vida em conjunto. A questão do pai talvez não se levantasse. Quanto a mim, vê-la-ia mais tarde, talvez uns dias depois. Podia dizer-lhe então. Estaria mais forte.

Conforme planeado, Gerry estava com ela da pri­meira vez em que acordou. Mas, ao contrário do que fora planeado, uma enfermeira disse-lhe que a mãe estava lá fora no corredor.

Então quando é que ela entra, quis saber.

Entrei.

«Onde está o pai», murmurou quando me viu.

Como as três semanas de entubação lhe haviam inflamado as cordas vocais, mesmo os seus murmú­rios eram dificilmente audíveis. Contei-lhe o que acon­tecera. Salientei a história dos problemas cardíacos, o longo período de sorte que, por fim, nos ultrapassara, a aparente subitaneidade, mas verdadeira inevitabili­dade do acontecimento. Chorou. Gerry e eu abraçá­mo-la. Voltou a mergulhar no sono.

«Como está o pai?», sussurrou quando a fui ver nessa noite.

Recomecei. O ataque cardíaco. A história. A apa­rente subitaneidade do acontecimento.

       «Mas como é que ele está agora», murmurou, esforçando-se por ser ouvida.

       Retivera a parte da ocorrência súbita, mas não o resultado.

Voltei a contar-lhe. Por fim, tive de contar-lhe ainda uma terceira vez, noutra UCI, desta vez na UCLA*.

A cronologia.

A 19 de Janeiro de 2004, Quintana foi transferida da UCI do sexto piso no Beth Israel North para um quarto no décimo segundo piso. A 22 de Janeiro de 2004, ainda demasiado fraca para se pôr de pé OU sentar-se sem ajuda e com uma febre provocada por

 

* Universidade e hospital escolar. (N. da T.)

 

uma infecção hospitalar contraída na UCI, teve alta do Beth Israel North. Gerrye eu pusemo-la na cama no antigo quarto dela no meu apartamento. Gerry saiu para aviar as receitas que lhe tinham passado. Ela saiu da cama para ir buscar outra coberta ao rou­peiro e ficou caída no chão. Não consegui levantá-la e tive de arranjar alguém do prédio que me ajudasse a pô-la novamente na cama.

Na manhã de 25 de Janeiro de 2004, acordou, ainda no meu apartamento, com uma forte dor no peito e febre cada vez mais alta. Foi internada nesse dia no Milstein Hospital do Columbia - Presbyterian após, nas Urgências daquele hospital, lhe ser diagnos­ticada uma embolia pulmonar. Dada a sua prolongada imobilidade no Beth Israel North, sei-o agora mas não o sabia na altura, tratou-se de uma evolução total­mente previsível, que podia ter sido diagnosticada antes de ter tido alta do Beth Israel North pelo mesmo exame feito três dias depois nas Urgências do Presby­terian. Após ter sido internada no Milstein, fizeram -lhe exames às pernas para verem se se tinham formado outros coágulos. Foi posta a anticoagulantes para evi­tar que se formassem outros, enquanto se deixava que os já existentes se dissolvessem.

A 3 de Fevereiro de 2004, teve alta do Presbyterian, ainda a tomar anticoagulantes. Iniciou tratamentos de fisioterapia para recuperar força e mobilidade. Junta­mente com Tony e Nick, ela e eu planeámos o serviço fúnebre de John.

A cerimónia realizou-se às quatro horas da tarde de uma terça-feira, 23 de Março de 2004, na Cate­dral de São João-o-Divino onde às três horas na presença da família, as cinzas de J hn foram coloca­ das conformne planeado na capela ao lado do altar-mor.

Nick organizara uma recepção para depois da ceri­mónia no Union Club. Trinta ou quarenta membros da família acabaram por regressar ao apartamento, o meu e de John. Acendi a lareira. Tomámos umas bebidas. Jantámos. Quintana, apesar de ainda muito frágil, mantivera-se de pé na catedral e rira-se com os primos ao jantar. Na manhã de 25 de Março, um dia e meio depois, ela e Gerry tencionavam recomeçar a sua vida indo até à Califórnia e dando uns passeios na praia de Malibu durante alguns dias. Encorajara-os a fazer isso. Queria ver novamente a cor de Malibu no seu rosto e nos seus cabelos.

No dia seguinte, 24 de Março, sozinha no apartamento e formalmente cumprida a obrigação de en­terrar o meu marido e ver a minha filha ultrapassar a crise, levantei os pratos e permiti-me pensar pela primeira vez sobre o que seria necessário para recome­çar a minha própria vida. Telefonei a Quintana para lhe desejar boa viagem. Partiam no dia seguinte de manhã cedo. Quintana parecia ansiosa. Ficava sempre ansiosa antes de uma viagem. Desde criança que pare­ cia que as decisões quanto ao que pôr na mala des­pertavam nela algum receio relacionado com a falta de organização. «Achas que me vou sentir bem na Cali­fórnia? », perguntou ela. Eu disse que sim. Sem dúvida que se sentiria bem na Califórnia. A ida à Califórnia seria, de facto, o primeiro dia do resto da sua vida. Veio-me à ideia, depois de desligar, que limpar o meu escritório podia ser um passo na direcção do primeiro dia do resto da minha vida. Comecei por fazer isso.

Durante quase todo o dia seguinte, quinta-feira, 25 de Março, continuei a fazer isso. A certa altura, ao longo daquele dia calmo, descobri-me a pensar que possivelmente entrara numa nova estação do ano. Em Janeiro, de uma janela do Beth Israel North, vira formarem-se blocos de gelo que flutuavam no East River. Em Feve­reiro, de uma janela do Columbia-Presbyterian, vira irromper blocos de gelo a flutuar pelo rio Hudson. Agora, em Março, o gelo desaparecera, eu fizera o que tinha a fazer por John, e Quintana voltaria recu­perada da Califórnia. À medida que a tarde avançava (o avião já devia ter aterrado, ela devia ter alugado um carro e estaria na auto-estrada em direcção à costa do Pacífico), imaginava-a já a passear na praia de Malibu com Gerry sob o débil sol de Março. Teclei o código de Malibu, 90265, no AccuWeather. Havia sol, muito ou pouco não me lembro, mas satisfatório, um dia bom em Malibu.

Nas colinas havia mostarda silvestre.

Ela podia levá -lo a ver as orquídeas no Zuma Canyon.

       Podia levá-lo a comer peixe frito na carreira marí­tima de Ventura County.

Um dia, levara-o a almoçar no Jean Moore's, de­certo que iria aos lugares onde passara a infância. Podia mostrar-lhe onde apanháramos mexilhões para o almoço de Páscoa. Podia mostrar-lhe onde havia borboletas, onde aprendera a jogar ténis, onde apren­dera com os nadadores-salvadores de Zuma Beach a nadar na rebentação. Na secretária do meu escritório havia uma fotografia tirada quando ela tinha sete ou oito anos, com o cabelo comprido e louro por causa do sol de Malibu. Preso nas costas da moldura havia um bilhetinho escrito a lápis, que ela deixara um dia em cima do armário em Malibu: Querida mãe, quan­do abriste a porta, quem fugiu fui eu XXXXXX... Q.

Às sete e dez dessa noite, estava a vestir-me para ir jantar com uns amigos que vivem no edifício. Sei que eram sete e dez porque foi quando o telefone tocou. Era Tony. Disse-me que vinha directamente para minha casa. Reparei nas horas porque devia des­cer às sete e trinta, mas a urgência na voz de Tony era tal que não lhe disse isso. A mulher dele, Rosemary Breslin, passara os últimos quinze anos a combater uma doença de sangue que não se conseguia diagnos­ticar. Pouco depois de John falecer, submetera-se a um tratamento experimental que a enfraquecera progressivamente e exigira a sua hospitalização de forma intermitente no Memorial Sloan-Kettering. Sabia que aquele longo dia na catedral e depois com a família fora extremamente cansativo para ela. Impedi Tony de desligar e perguntei -lhe se Rosemary voltara para o hospital. Ele disse-me que não fora Rosemary. Fora Quintana, que, enquanto falávamos, eram dezanove horas e dez minutos em Nova Iorque e dezasseis horas e dez minutos na Califórnia, estava a ser submetida a uma neurocirurgia de urgência no Centro Médico da UCLA em Los Angeles.

 

Tinham saído do avião.

Haviam recolhido a mala de ambos.

Gerry estava a transportar a mala para a viatura da agência de aluguer de carros e percorria a pista das chegadas à frente de Quintana. Olhou para trás. Ainda hoje não faço ideia do motivo por que ele olhou para trás. Nunca pensei em perguntar-lhe. Imagino-o como mais um caso em que estamos a ouvir alguém falar e olhamos quando deixamos de ouvir esse alguém. A vida modifica-se num instante. O banal instante. Jazia no asfalto, deitada de costas. Chamaram uma ambulân­cia. Foi levada para a UCLA. Segundo Gerry, estava desperta e lúcida na ambulância. Só nas Urgências é que começou a ter convulsões e a perder a coerência. Uma equipa cirúrgica foi posta de sobreaviso. Fize­ram-lhe uma TAC. Quando a levaram para a opera­ção, tinha uma das pupilas fixa. A outra também ficou fixa enquanto a transportavam na maca. Dir-me-iam por várias vezes e sempre como prova da gravidade da situação e da natureza crítica da intervenção: «Uma pupila estava fixa e a outra ficou fixa enquanto a trans­portavam. »

Da primeira vez em que ouvi isto não abrangi o significado do que me estavam a dizer. Da segunda vez percebi. Sherwin B. Nuland em How We Die descreveu ter visto quando estudante do terceiro ano de Medicina um doente cardíaco cujas «pupilas esta­vam fixas na posição de total dilatação de cor escura que significa morte cerebral e que obviamente nunca mais reagiriam à luz». Também em How We Die o doutor Nuland descreveu as tentativas falhadas de uma equipa de reanimação cardiorrespiratória de rea­nimar um doente que sofrera uma paragem cardíaca no hospital: «Aqueles jovens obstinados vêem as pupi­las do seu doente a tornarem-se cada vez menos reac­tivas à luz e depois abrirem-se até serem grandes círculos fixos de negrume impenetrável. Relutante­ mente a equipa pára os seus esforços... A sala está juncada dos destroços daquela campanha perdida.» Foi isto o que a equipa da ambulância do New York­ -Presbyterian viu nos olhos de John no chão da nossa sala no dia 30 de Dezembro de 2003? Foi o que os neurocirurgiões da UCLA viram nos olhos de Quintana a 25 de Março de 2004? «Negrume impenetrável»? «Morte cerebral»? Foi o que pensaram? Olho para uma cópia do relatório desse dia da UCLA e ainda me sinto desfalecer:

O exame mostra um hematoma subdural no hemisfério direito com evidências de forte hemorragia. Não se pode excluir uma hemorragia activa. O hematoma provoca um acentuado efeito de massa sobre o lado direito do cérebro hérnia subfalcial e uncalinicial com desloca­ ção de dezanove milímetros de diâmetro da direita para a esquerda ao nível do terceiro ventrículo. O ventrículo lateral direito está subtotalmente apagado e o ventrículo lateral esquerdo apresenta comprometimento inicial. Há compressão moderada a acentuada do me­sencéfalo e o receptáculo perimesencefálico está apagado. Notam-se um leve hematoma falei ai posterior e um hematoma intracrania­no subdural esquerdo. Nota-se no lobo fron­tal infralateral direito uma pequena hemorra­gia do parênquima provavelmente provoca da por contusão. As amígdalas cerebelares estão ao nível do forâmen magno. Não há fractura craniana. Há um grande hematoma no parie­tal direito do couro cabeludo.

       Dia 25 de Março de 2004. Dezanove horas e dez minutos em Nova Iorque.

Ela regressara do lugar onde os médicos disseram «Ainda não sabemos como é que isto vai evoluir» e já lá estava outra vez.

       Tanto quanto eu sabia já evoluíra mal.

       Podiam ter dito a Gerry e ele podia estar a tentar tomar consciência do facto antes de me telefonar. Ela já podia ir a caminho da morgue do hospital. Sozinha. Numa maca. Com alguém a empurrá-la. Já tinha imaginado esta cena aquando de John.

Tony chegou.

Repetiu o que me dissera ao telefone. Recebera uma chamada de Gerry já da UCLA. Quintana estava a ser operada. Gerry podia ser contactado por tele­móvel na recepção do hospital que passara a servir também de sala de espera do bloco operatório (a UCLA estava a construir um novo hospital, este encontrava­-se superlotado e decadente).

Telefonámos a Gerry.

Um dos cirurgiões acabara precisamente de chegar para lhe dar notícias actualizadas. A equipa cirúrgica estava agora «razoavelmente confiante» de que Quin­tana «sairia da mesa», embora não pudessem preverem que condições.

Lembro-me de pensar que se tratava de uma declaração mais optimista, uma vez que a informação anterior vinda do bloco operatório era que «de modo algum seguros de que saia da mesa».

Lembro-me de tentar entender, sem conseguir, a frase «sair da mesa». Queriam dizer viva? Teriam dito «viva» e Gerry não conseguia dizer isso? Aconteça o que acontecer, não há dúvida de que ela «sai da mesa», lembro-me de pensar. Eram então talvez dezasseis e trinta em Los Angeles, dezanove e trinta em Nova Iorque. Não sabia ao certo há quanto tempo estava a decorrer a opera­ção. Hoje sei, dado que, segundo o relatório da TAC, o exame se realizara às «quinze horas e seis minutos», seis minutos depois das três da tarde em Los Angeles, e que ela não estaria no bloco operatório havia mais de meia hora. Consultei um guia de companhias aéreas que poderiam ter voos, ainda nessa noite, para Los Angeles. A Delta tinha um às nove e quarenta da noite com partida do Aeroporto Kennedy. Preparava-me para telefonar para a Delta quando Tony disse que não era boa ideia estarmos dentro de um avião en­ quanto decorresse a operação.

Lembro-me de um silêncio. Lembro- me de pousar o guia.

Telefonei a Tim Rutten, em Los Angeles, e pedi­-lhe que fosse ao hospital fazer companhia a Gerry. Telefonei ao nosso contabilista em Los Angeles, Gil Frank, cuja filha também fora submetida a uma neurocirurgia de urgência na UCLA uns meses antes, e Gil disse que ia também para o hospital.

Era o mais perto que eu conseguia chegar. Pus a mesa na cozinha e Tony e eu debicámos no coq au vin que ficara do jantar para a família depois de São João-o-Divino. Rosemary chegou. Sentámo­- nos à mesa da cozinha e tentámos desenvolver aquilo a que nos referíamos como um «plano». Utilizámos palavras como «as contingências», delicadamente, como se algum dos três pudesse não saber o que eram «as contingências». Lembro-me de ter telefonado a Earl McGrath, para saber se podia usar a casa dele em Los Angeles. Lembro-me de usar as palavras «se eu precisar», outra construção delicada. Lembro-me de ele me interromper sem cerimónias: no dia seguinte ia para Los Angeles no avião de um amigo e eu iria com eles. Cerca da meia-noite, Gerry telefonou e disse que a operação terminara. Iam fazer agora outra TAC para ver se havia mais alguma hemorragia que lhes tivesse passado despercebida. Se houvesse hemorra­gia, voltariam a operar. Se não, avançariam com uma outra intervenção, a colocação de um filtro na veia cava para impedir que entrassem coágulos no cora­ção. Cerca das quatro da madrugada, hora de Nova Iorque, Gerry voltou a telefonar, para dizer que o exa­me não mostrara hemorragias e que haviam colocado o filtro. Contou-me o que os cirurgiões lhe tinham bdito sobre a operação em si. Tomei apontamentos:

«Hemorragia arterial, artéria pinga sangue como um géiser, sangue por toda a sala, sem factor de coa­ gulação. » «Cérebro empurrado para o lado esquerdo.» Quando regressei a Nova Iorque vinda de Los An­geles ao fim da noite de 30 de Abril, encontrei estes apontamentos numa lista de mercearia junto do tele­fone da cozinha. Sei agora que o termo técnico para «cérebro empurrado para o lado esquerdo» é «desloca­ ção do mesencéfalo», factor significativo de prognós­tico muito reservado, mas já naquela altura eu sabia que não era bom. O que naquele dia de Março, cinco semanas antes, eu considerara necessário era: água de Evian, mel, caldo de galinha e flocos de cereais.

Leia-se, aprenda-se, trabalhe-se, recorra-se à litera­tura.

Informação é controlo.

Na manhã a seguir à operação, antes de ir para Teterboro para apanhar o avião, procurei na Internet «pupilas fixas e dilatadas». Descobri que lhes chamavam «PFD». Li o resumo de um estudo feito por investigadores do Departamento de Neurocirurgia da Universidade Clínica de Bona. O estudo seguiu no­venta e nove doentes que se apresentavam com, ou estavam a desenvolver, uma ou duas PFD. O índice de mortalidade total era de setenta e cinco por cento. Dos vinte e cinco por cento que ainda continuavam vivos vinte e quatro meses depois, quinze por cento tinham o que a escala de prognósticos de Glasgow definia como «prognóstico desfavorável». Traduzi as percentagens: dos noventa e nove doentes, setenta e quatro morreram. Dos vinte e cinco que sobreviveram, ao fim de dois anos, cinco encontravam-se em estado vegetativo, dez estavam gravemente incapacitados, oito eram independentes e dois tinham conseguido uma recuperação total. Fiquei a saber ainda que «pupilas fixas e dilatadas» indicavam lesão ou compressão do terceiro nervo craniano e do tronco cerebral superior. «Terceiro nervo» e «tronco cerebral» foram palavras que ouviria mais frequentemente do que gostaria nas semanas que se seguiram.

 

Estás salva, lembro-me de segredar a Quintana quando a vi pela primeira vez na UCI da UCLA. Estou aqui. Vais ficar boa. Metade do crânio fora rapa­do para a operação. Via-se a incisão, longa e fechada com agrafos de metal. Mais uma vez só respirava pelo tubo de ventilação endotraqueal. Estou aqui. Está tudo bem.

«Quando é que tens de ir-te embora?», pergun­tou-me no dia em que finalmente conseguiu falar. Pronunciou as palavras com dificuldade e com o rosto contraído.

       Respondi -lhe que não me ia embora enquanto não pudéssemos ir as duas.

       O rosto dela descontraiu-se. Voltou a adormecer.

       Ocorreu-me durante aquelas semanas que esta fora a minha promessa básica desde que a leváramos para casa do St. John's Hospital, em Santa Mónica. Não me iria embora. Cuidaria dela. Ela ficaria boa.

Também me ocorreu que era uma promessa que não podia manter. Não podia tomar conta dela para sem­pre. Não podia não a deixar para sempre. Ela já não era criança. Era adulta. Acontecem coisas na vida que as mães não conseguem evitar ou consertar. A menos que uma dessas coisas a matasse prematuramente, como uma quase fizera no Beth Israel North e outra ainda podia fazer na UCLA, eu morreria antes dela. Lembro-me de discussões em escritórios de advogados durante as quais ficara impressionada com as pala­vras «aquele que antecedeu na morte». Não era possí­vel que a expressão se viesse a aplicar. Após cada uma dessas discussões, passei a considerar as palavras «catástrofe mútua» a uma luz nova e mais favorável. Mas, uma vez num voo difícil entre Honolulu e Los Angeles, imaginara essa catástrofe mútua e rejeitara-a. O avião despenhar-se-ia. Milagrosamente, ela e eu sobrevivíamos à queda e ficaríamos à deriva no Pací­fico, agarradas aos destroços. O dilema era o seguinte: como eu estava menstruada e o sangue atrairia os tubarões, teria de a abandonar, de nadar para longe, de a deixar sozinha.

Seria capaz disso?

Será que todos os pais sentem o mesmo?

Quando a minha mãe estava quase a morrer, aos noventa anos, disse-me que se sentia preparada para morrer, mas não podia. «Tu e o Jim precisam de mim», afirmou ela. O meu irmão e eu estávamos então na casa dos sessenta anos.

Estás salva.

Estou aqui.

Uma das coisas em que reparei durante aquelas sema­ nas na UCLA foi que muita gente minha conhecida, quer de Nova Iorque, quer da Califórnia e de outros sítios, partilhava de um hábito mental geralmente atri­buído aos que se deram muito bem na vida. Acredita­vam piamente na sua própria capacidade de resolução de problemas. Acreditavam piamente no poder dos números de telefone que sabiam na ponta da língua, o médico certo, o principal doador, a pessoa que podia facilitar um favor junto do Estado ou da Justiça. A capacidade de resolução de problemas daquela gente era de facto prodigiosa. O poder dos seus números de telefone era de facto ímpar. Eu própria, durante a maior parte da minha vida, partilhara da mesma fé enraizada na minha capacidade de controlar os acon­tecimentos. Se a minha mãe fosse hospitalizada ines­peradamente em Tunes, eu conseguiria que o cônsul americano lhe levasse jornais em língua inglesa e a metesse num voo da Air France para ela se encontrar com o meu irmão, que estava em Paris. Se Quintana ficasse subitamente apeada no aeroporto de Nice, eu conseguiria arranjar alguém da British Airways para a meter num voo da BA para ela ir ter com o primo a Londres. No entanto, a um determinado nível, porque sou medrosa de nascença, tivera sempre a percepção de que certos acontecimentos da vida estão para além da minha capacidade de os controlar ou resolver. Certos acontecimentos limitam-se a suceder. Este era um desses acontecimentos. Sentamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba.

Muitas das pessoas com quem conversei naqueles primeiros dias enquanto Quintana jazia inconsciente na UCLA pareciam-me alheias a esta percepção. O seu instinto inicial era que este problema podia ser resol­vido. A fim de o resolverem, precisavam apenas de informação. Precisavam apenas de saber como aquilo tinha acontecido. Precisavam de respostas. Precisavam do «prognóstico».

Eu não tinha respostas.

Não tinha prognóstico.

Não sabia como aquilo acontecera.

Havia duas possibilidades, qualquer delas irrele­vante, como acabei por saber. Uma possibilidade era ela ter caído e o traumatismo ter provocado uma he­morragia no cérebro, um dos perigos dos anticoagulantes que lhe tinham sido ministrados para evitar embolias. A segunda possibilidade era que a hemorra­gia no interior do cérebro houvesse ocorrido antes da queda e que, de facto, a tivesse causado. As pessoas sob o efeito dos anticoagulantes sangram. O mínimo toque provoca-lhes nódoas negras. O nível de anticoa­gulante no sangue, que é medido segundo os valores do INR (International Normalized Ratio), é difícil de controlar. O sangue tem de ser analisado de poucas em poucas semanas ou, nalguns casos, de poucos em poucos dias. Têm de fazer-se modificações mínimas e complicadas nas doses. O INR para Quintana era de dois ponto dois, mais décima menos décima. No dia em que foi para Los Angeles, aconteceu que o nível dela estava acima de quatro, um nível em que podem ocorrer hemorragias espontâneas. Quando cheguei a Los Angeles e falei com o cirurgião-chefe, este disse estar «cem por cento seguro» de que o traumatismo é que causara a hemorragia. Outros médicos com quem falei tinham menos certezas. Foi sugerido por um deles que o simples facto de ter andado de avião podia ter causado mudanças de pressurização sufi­cientes para precipitar uma hemorragia.

Recordo-me de ter pressionado o cirurgião rela­tivamente a esta hipótese, numa tentativa (uma vez mais) de controlar a situação e de conseguir respostas. Estava a falar com ele ao telemóvel, na esplanada do café do Centro Médico da UCLA. O café chamava-se «Café Med». Era a minha primeira visita ao Café Med e foi a minha apresentação ao seu frequentador mais digno de nota, um homem baixo e careca (calculei que fosse paciente do Instituto Neuropsiquiátrico, com o privilégio de deambular por ali), cuja compulsão era perseguir uma ou outra mulher pelo café, alternada­mente cuspindo e verberando imprecações furibundas sobre quão desprezível, quão vil, que resto de lixo inútil ela era. Naquela manhã, o homenzinho careca seguira­-me até à esplanada e tornava difícil eu ouvir o que me dizia o cirurgião. «Foi o traumatismo, houve um vaso sanguíneo que se rompeu, nós vimos», acho eu que ele disse. Não me pareceu que isto respondesse à questão - um vaso sanguíneo que se rompe não im­plica necessariamente a possibilidade de que esse mesmo vaso sanguíneo que se rompeu tenha prece­dido e causado a queda -, mas ali, na esplanada do Café Med, com o homenzinho careca a pisar-me os calcanhares, percebi que a resposta à questão não fazia diferença. Acontecera. Este é que era o facto novo que se nos deparava.

Enquanto decorria aquele telefonema do cirurgião, que Ocorreu no primeiro dia que passei inteiramente em Los Angeles, lembro-me de me terem dito várias coisas.

Lembro- me de me dizerem que o coma dela podia continuar por dias ou semanas.

Lembro-me de me dizerem que seriam necessários três dias no mínimo para que alguém pudesse come­çar a perceber em que estado se encontrava o cérebro dela. O cirurgião estava «optimista», mas não era possível avançar com uma previsão. Nos próximos três ou quatro dias, se não mais, muitos problemas mais prementes podiam surgir. Ela podia apanhar uma infecção. podia apanhar uma pneumonia, podia fazer uma embolia. podia voltar a inchar, o que exigiria nova opera­çao.

Após ter desligado, regressei ao café, onde Gerry estava a tomar café com Kelley e Lori, filhas de Susan Traylor e do meu irmão. Lembro-me de ter pensado se lhes contaria os problemas mais prementes que o cirurgião mencionara. Vi, quando olhei para os rostosdeles, que não tinha motivos para não contar: os quatro haviam estado no hospital antes de eu chegar a Los Angeles. Os quatro já tinham ouvido falar nos problemas mais prementes.

Durante as vinte e quatro noites de Dezembro e Janeiro em que Quintana esteve na UCI do sexto piso do BethIsrael North, conservara na minha mesinha-de-cabe­ ceira um exemplar de uma comunicação sobre cuidados intensivos, lntensive Care: A Doctor's Journal, de John F. Murray, médico, que de 1966 a 1989 fora chefe da Divisão de Cuidados Pulmonares e Críticos da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em São Francisco. lntensive Care descreve, dia após dia, um período de quatro semanas numa UCI do General Hospital de São Francisco onde o doutor Murray era, à época, o médico responsável por todos os pacientes, residentes, internos e estudantes de Medi­cina. Li o relato vezes sem conta. Aprendi muita coisa que se mostrou útil na interpretação dos contactos diários com os médicos da UCI do Beth Israel North. Aprendi, por exemplo, que muitas vezes era difícil de­terminar o momento certo para se fazer a extubação, a remoção de um tubo endotraqueal. Aprendi que um impedimento vulgar à extubação era o edema que previsivelmente se via na Unidade de Cuidados Intensivos. Aprendi que esse edema era menos frequentemente resultado de uma patologia subjacente e mais frequentemente resultado de uma excessiva administração de fluido intravenoso, de uma incapacidade de observar a distinção entre hidratação e excesso de hidratação, um erro de prudência. Aprendi que muitos jovens mé­dicos internos cometem o mesmo erro de prudência quanto à extubação em si: como o resultado é incerto, a sua tendência é protelar o procedimento durante mais tempo do que o necessário.

Fixei estas lições. Utilizei-as: uma pergunta hesi­tante aqui, um desejo expresso acolá. «Perguntei-me»se ela não poderia estar «saturada de água». «Eviden­temente, não sei. Só sei qual é o seu aspecto.» Utilizei propositadamente a expressão «saturada de água». Já tinha reparado que as pessoas ficavam constrangi­das quando eu utilizava a palavra «edema». Também «me perguntara» se ela não conseguiria com mais facilidade respirar se estivesse menos saturada de água.

«Evidentemente, não sou médica, apenas me parece lógico.») Mais uma vez, «perguntara-me» se a admi­nistração vigiada de um diurético não permitiria a extubação. «Evidentemente, é um remédio caseiro, mas se eu me sentisse da maneira como ela parece estar, tomava um Lasix.») Com lntensive Care por guia, isto parecera-me linear, intuitivo. Havia uma maneira de se saber se se tinha acertado. Sabia-se que se tinha acertado quando um médico a quem se tivesse feito uma ou outra sugestão um dia depois apresen­tasse o plano como se fosse seu.

Isto era diferente. Ocorrera-me uma certa frase irónica durante a luta de vontades acerca do edema no Beth Israel North: Não é uma operação ao cér­ebro. Isto era. Quando aqueles médicos da UCLA me diziam «parietal» e «temporal», eu não fazia ideia de que parte do cérebro eles estavam a falar e muito menos do que queriam dizer. «Frontal direito», achava que conseguia perceber. «Occipital», pensava que tinha a ver com «olho», mas só porque era induzi da em erro pelo começo da palavra, «oc», como em «ocular».

Fui à livraria do Centro Médico da UCLA. Comprei um livro cuja capa dizia que era «uma apresentação concisa de neuroanatomia e das suas implicações funcionais e clínicas», assim como uma «excelente análise para estudantes». O livro era de Stephen G. Waxman, médico e chefe de Neurologia no Yale-New Haven, e chamava-se Clinical Neuroanatomy. Folheei com êxito alguns apêndices, por exemplo, «Apêndice A: O Exame Neurológico», mas quando comecei a ler o próprio texto só conseguia pensar numa viagem a Indonésia, durante a qual me desorientara devido à minha incapacidade de entender a gramática do bahasa indonésio, a língua oficial usada nas placas com os nomes das ruas, nas frontarias das lojas e nos avisos. Pedi a alguém da Embaixada americana que me ensinasse a formar os verbos a partir dos substan­tivos. O bahasa malaysia é uma língua, disse ele, em que a mesma palavra pode ser um verbo ou um subs­tantivo. A Clinical Neuroanatomy parecia mais um caso em que eu seria incapaz de entender a gramática. Pu-lo na mesinha-de-cabeceira do Beverly Wilshire Hotel, onde ficou durante as cinco semanas seguintes.

Em posterior estudo da Clínical Neuroanatomy, diga­mos se eu acordasse de manhã antes do The New York Times ter chegado com as suas sedativas palavras cruzadas, até o «Apêndice A: O Exame Neurológico» parecia opaco. Comecei por reparar nas directivas óbvias e que me eram familiares (pergunte ao doente o nome do presidente, peça ao doente que conte de cem para trás de sete em sete), mas, à medida que os dias passavam, concentrava-me numa narrativa mis­teriosa, identificada no Apêndice A como a «história do menino dourado», que podia ser utilizada para avaliar a memória e a compreensão. Podia contar-se a história ao doente, sugeria o doutor Waxman, e pedir­-se a seguir que a voltasse a contar pelas suas próprias palavras e explicasse o seu significado. «Na coroação de um papa, há cerca de trezentos anos, um menino foi escolhido para fazer o papel de anjo.»

Assim começava a «história do menino dourado».

Até aqui, bastante simples, embora houvesse por­ menores potencialmente perturbadores (há trezentos anos? fazer o papel de anjo?) para alguém que tivesse saído de coma.

E prosseguia: «Para que a sua aparência pudesse ser o mais magnífica possível, o menino foi coberto da cabeça aos pés com um revestimento de folha de ouro. O menino adoeceu e, embora se fizesse tudo o que era possível para que recuperasse, excepto reti­rarem-lhe o fatal revestimento de ouro, morreu em poucas horas.»

Qual era o «significado» da «história do menino dourado»? Teria a ver com a falibilidade do Papa?

Com a falibilidade da autoridade em geral? Com a falibilidade específica (note-se que se fez «tudo o que era possível para que recuperasse») da Medicina? Que objectivo podia haver em contar-se esta história a um doente imobilizado numa UCI de neurologia num dos principais hospitais-escola? Que lição poderia tirar-se?

Pensariam que porque se tratava de uma «história» podia ser contada sem consequências? Houve uma manhã em que a «história do menino dourado» pare­ ceu representar, na sua imensa impenetrabilidade e aparente desconsideração pela sensibilidade do doente, toda a situação com que me deparava. Voltei à livraria do Centro Médico da UCLA com a ideia de verificar outras fontes para me elucidar, mas não havia menção ao menino dourado nos vários livros em que peguei.

Em vez de continuar a consultar mais livros, fiz com pras, uma vez que a temperatura, à noite, em Los Angeles, andava pelos vinte e sete graus e eu fora para a costa oeste apenas com as roupas de finais de Inverno que usava em Nova Iorque, vários conjuntos de fatos de duas peças de algodão azul. Tão profundo era o isolamento em que então me movia que não me ocorreu imediatamente que o facto de a mãe de uma doente aparecer no hospital vestida de calça e túnica de algodão azul só podia ser encarado como uma sus­peita violação de fronteiras.

 

A primeira vez em que reparei naquilo que viria a conhecer por «efeito de vórtice» foi em Janeiro, quando observava os blocos de gelo a formarem-se no East River, de uma janela do Beth Israel North. Na junção das paredes com o tecto do quarto, acon­tece que havia um remate de papel de parede com rosas estampadas, um toque de Dorothy Draper, que ficara do tempo em que o Beth Israel North era o Hos­pital dos Médicos. Eu mesma nunca estivera no Hospi­tal dos Médicos, mas, quando tinha os meus vinte e tal anos e trabalhava para a Vogue, o hospital surgira em muitas conversas. Fora o hospital preferido pelas editoras da Vogue para partos sem complicações e para «repouso», uma espécie de Maine Chance mé­dico.

Parecera uma boa linha de pensamento. Parecera melhor do que pensar por que razão me encontrava no Beth Israel North.

O Hospital dos Médicos fora onde X fizera o abor­to que fora pago pelo gabinete do procurador de dis­trito. «X» era uma mulher com quem eu trabalhara na Vogue. Nuvens sedutoras de fumo de cigarro, Chanel N. º 5 e um rasto de catástrofe iminente seguira -a pelos escritórios da Condé Nast, que, à época, ficavam no Edifício Graybar. Numa única manhã, enquanto eu tentava redigir um artigo especialmente exigente da Vogue chamado «Fala-se de...», X descobriu não só que precisava de fazer um aborto, como que o seu nome surgira no processo do caso de exploração de raparigas acompanhantes, que estava a ser investi­gado pelo gabinete do procurador de distrito. Ficara entusiasmada com ambas as notícias, que (em minha opinião) eram devastadoras. Conseguiu chegar a um acordo. Concordou em testemunhar que fora abordada pelos suspeitos e, em troca, o gabinete do procurador de distrito conseguiu arranjar-lhe uma interrupção de gravidez no Hospital dos Médicos, favor de monta numa época em que um aborto significava fazer uma visita clandestina e potencialmente letal a alguém cujo primeiro instinto em caso de crise seria abandonar as instalações.

O caso de exploração de raparigas, o aborto e os anos durante os quais passara muitas manhãs a escre­ver sobre «Fala-se de...» também me pareciam uma boa linha de pensamento.

Recordo-me de ter usado um incidente desses no meu segundo romance, Play It As It Lays. A prota­ gonista, uma antiga modelo chamada Maria, fizera recentemente um aborto, o que estava a perturbá-la.

Havia muito tempo, Maria trabalhara uma se­mana em Ocho Rios com uma rapariga que acabara de fazer um aborto. Lembrava-se da rapariga a falar-lhe do assunto enquanto se comprimiam junto a uma queda-d'água, à espera de que o fotógrafo decidisse que o Sol ia suficientemente alto para fazer as fotos.

Parece que eram tempos complicados para se fazerem abortos em Nova Iorque, tinha havido detenções, ninguém os queria efectuar. Final­mente, a rapariga, cujo nome era Ceci Delano, perguntou a um amigo que trabalhava no gabinete do procurador de distrito se ele co­nhecia alguém. «Quiproquó», dissera ele e, mais tarde, mas no mesmo dia em que Ceci Delano testemunhou perante um júri que fora abordada para participar na operação das acompanhantes, foi internada no Hospi­tal dos Médicos para uma interrupção legal de gravidez, marcada e paga pelo gabinete do procurador de distrito.

Parecera uma história engraçada quando ela a contara, primeiro de manhã ao pé da queda­-d'água e mais tarde ao jantar, quando a repe­tiu ao fotógrafo, ao agente e ao coordenador de moda do cliente. Maria tentava agora ver sob a mesma perspectiva bem-disposta o que sucedera em Encino, mas a situação de Ceci Delano parecia não se aplicar. Afinal, era ape­nas uma história de Nova Iorque.

Isto parecia estar a dar resultado.

E vitara pensar por dois minutos pelo menos no motivo por que me encontrava no Beth Israel North.

Avançara para o período durante o qual estivera a escrever Play It As It Lays. A desgraça de casa que alugara na Franklin Avenue em Hollywood. As velas votivas nos peitoris das grandes janelas da sala de estar. A erva de té de límón e o aloé que cresciam ao pé da porta da cozinha. As ratazanas que comiam os abacates. A varanda onde eu trabalhava. Ver pelas janelas da varanda Quintana que corria no meio dos borrifos do aparelho de rega da relva.

       Recordo-me de ter reconhecido que entrara em águas mais perigosas, mas parecia não haver retorno.

       Escrevera aquele livro quando Quintana tinha três anos.

Quando Quintana tinha três anos.

Ali estava, o vórtice.

Quintana aos três anos. A noite em que enfiara uma semente de uma vagem do jardim pelo nariz e eu a levara ao Hospital Pediátrico. O pediatra que se especializara em sementes de vagem chegara de fato de cerimónia. Na noite seguinte, enfiara outra semente pelo nariz porque queria repetir tão interessante aven­tura. John e eu a passearmos com ela à volta do lago em MacArthur Park. O velhote embriagado sen­tado num banco. «Essa garota é o retrato de Ginger Rogers!», exclamou o velhote. Terminei o romance, tinha um contrato para começar a escrever uma colu­na para a Life, levámos Quintana a Honolulu. A ideia da Life para a primeira coluna era que eu me apresen­ tasse, «deixa os leitores saberem quem és». Planeava escrevê-la em Honolulu, no Royal Hawaiian Hotel, costumávamos ficar numa suíte de lados abertos, a vinte e sete dólares por noite, preço para a imprensa. Enquanto lá estávamos, rebentaram as notícias acerca de My Lai. Pensei na primeira coluna. Pareceu-me que, dadas estas notícias, devia escrevê-la de Saigão. Entretanto, era domingo. A Life dera-me um cartão com os números de casa dos editores e também de advogados em cidades do mundo inteiro. Fui buscar o cartão e telefonei ao meu editor, Loudon Wainwright, para lhe dizer que ia para Saigão. Foi a mulher quem atendeu. Disse-me que ele me telefonava mais tarde.

«Está a ver o jogo da NFL*», disse John quando eu desliguei. «Telefona-te no intervalo.»

Assim foi. Disse-me que devia ficar onde estava e apresentar-me, e, quanto ao que se referia a Saigão, «alguns dos rapazes estão a dirigir-se para lá». Não me pareceu que o tópico estivesse aberto a mais dis­cussões. «Há lá fora um mundo em revolução e nós podemos pôr-te nele», dissera George Hunt quando era ainda editor da Life e me oferecera o lugar. Quando acabei Play [t As [t Lays, George Hunt aposentara-se e outros estavam de saída.

«Eu avisei-te», disse .Tolm. «Disse-te como era tra­balhar para a Life, não disse? Que era como ser debi­cada por patos até à morte?»

       Eu estava a escovar o cabelo de Quintana. O retra­ to de Ginger Rogers.

       Senti-me traída, humilhada. Devia ter dado ouvi­ dos a Tom.

Escrevi a coluna de forma a que os leitores sou­bessem quem eu era. Foi publicada. Na época, para o género que me fora destinado, pareciam umas bas­tante irrepreensíveis oitocentas palavras, mas havia no final do segundo parágrafo uma frase tão dessincro­nizada do modo de apresentação da Life como se suge­risse um rapto por seres extraterrestres: «Aqui estamos, nesta ilha no meio do Pacífico, em vez de preencher­mos os papéis para o divórcio.» Uma semana depois, estávamos em Nova Iorque. «Sabias que ela estava a escrever aquilo?», perguntou muita gente a John em voz baixa.

Se ele sabia que eu estava a escrever aquilo?

Ele é que o editou.

 

* National Football League. (N. da T.)

 

       Levou Quintana ao Jardim Zoológico de Honolulu para que eu pudesse corrigir o artigo.

       Levou-me à baixa de Honolulu, ao escritório da Western Union, para que eu pudesse enviá-lo.

No escritório da Western Union, escreveu no fim CUMPRIMENTOS, DIDION. Disse-me que era o que se punha sempre no final de um telegrama. Porquê, per­guntei. Porque sim, respondeu.

Vejam para onde me sugou este vórtice especial.

Do remate de papel de parede de Dorothy Draper no Beth Israel North a Quintana aos três anos e a John a dizer que eu devia ter-lhe dado ouvidos.

       Digo-vos que não viverei dois dias mais, disse Galvão.

       A maneira de me distanciar era voltando atrás.

Vi inlediatamente que o potencial de Los Angeles para detonar este efeito de vórtice só podia ser controlado se evitasse todo o pensamento a que pudesse associar John ou Quintana. O que exigia habilidade. John e eu vivemos no condado de Los Angeles de 1964 até 1988.

Quando John faleceu, já ali passara períodos de tempo significativos, geralmente no mesmo hotel em que eu estava agora, o Beverly Wilshire. Quintana nasceu no condado de Los Angeles, no St. John's Hospital, em Santa Mónica. Ali frequentou a escola, primeiro em Malibu e depois na que, à época, ainda era a Escola Feminina de Westlake (no ano seguinte à saída dela. tornou-se mista e passou a chamar-se Harvard­-Westlake ). em Holmby Hills.

Por motivos que continuo por esclarecer, o Beverly Wilshire raramente detonava o efeito de vórtice.

Teori­camente, até os corredores estavam impregnados com as associações que eu tentava evitar. Quando estáva­mos a viver em Malibu e tínhamos reuniões na cidade, trazíamos connosco Quintana e ficávamos no Beverly Wilshire. Depois de nos termos mudado para Nova Iorque, quando precisávamos de ir a Los Angeles para um filme, ficávamos lá, às vezes por uns dias, outras vezes por semanas seguidas. Ali ligávamos os compu­tadores e as impressoras. Ali tínhamos reuniões. E se?, havia sempre alguém que dizia nessas reuniões. Ali tra­balhávamos até às oito ou nove da noite e transmitía­mos as páginas para o realizador ou produtor com quem estávamos a trabalhar e depois íamos jantar a um restaurante chinês em Melrose onde não precisáva­mos de fazer reserva. Sempre apreciámos especialmente o velho edifício. Eu conhecia as empregadas. Conhecia as manicuras. Conhecia o porteiro, que dava a John uma garrafa de água quando ele voltava da cami­nhada matinal. Conhecia por reflexo como usar a chave e abrir o cofre e como ajustar o ralo do chu­veiro. Ao longo dos anos, ficara em algumas dúzias de quartos idênticos àquele em que estava agora insta­lada. A última vez em que ficara num daqueles quar­tos fora em Outubro de 2003, sozinha, a fazer uma promoção, dois meses antes de John falecer. Apesar de tudo, o Beverly Wilshire, quando Quintana estava na UCLA, parecia-me o único lugar seguro onde eu poderia estar, o lugar onde tudo estaria na mesma, o lugar onde ninguém sabia ou se referia aos aconteci­mentos da minha vida recente; o lugar onde eu ainda era a pessoa que fora antes de tudo isto acontecer. E se?

       Fora da zona imune que o Beverly Wilshire era, planeava os meus caminhos, continuava na defensiva.

       Nem uma única vez em cinco semanas me deslo­quei à parte de Brentwood onde vivera de 1968 até 1988. Quando fui a um dermatologista em Santa Mónica, ou quando o trabalho no exterior me obri­gou a passar a cerca de três quarteirões da nossa casa em Brentwood, não olhei nem para a esquerda, nem para a direita. Nem uma única vez em cinco semanas percorri a auto-estrada da costa do Pacífico para Malibu. Quando John Moore me ofereceu a sua casa junto da Pacific Coast Highway, quinhentos metros depois da casa onde vivêramos de 1971 até 1978, in­ventei razões pelas quais me era essencial ficar antes no Beverly Wilshire. Conseguia evitar dirigir-me à UCLA pela Sunset. Conseguia evitar passar pelo cruzamento da Sunset com a Beverly Clen, onde durante seis anos fizera a curva para a Escola Feminina de Westlake. Conseguia evitar passar por qualquer cruzamento que não pudesse ter previsto e controlado. Conseguia evitar que o rádio do carro estivesse sintonizado nas esta­ ções que costumava ouvir, evitava sintonizar a KRLA, uma estação de AM que se chamava a si própria de «o coração e a alma do rock and roU» e que no iní­cio da década de noventa ainda continuava a passar os êxitos de 1962. Conseguia evitar cair na estação de rádio de orientação cristã para onde mudava sempre que os êxitos de 1962 perdiam a sua ressonância.

Em vez disso, ouvia a NPR, um programa matinal sedativo chamado Morníng Becomes Eclectíc. Todas as manhãs, no Beverly Wilshire, mandava vir o mesmo pequeno-almoço, huevos rancheros com um ovo me­xido.

Todas as manhãs, ao sair do Beverly Wilshire, fazia o mesmo percurso até à UCLA: saía de Wil­shire, à direita para Clendon, virava à esquerda para Westwood, à direita para Le Conte e à esquerda para Tiverton. Todas as manhãs reparava nas mes­mas bandeiras que flutuavam nos postes de ilumi­nação ao longo de Wilshire: Centro Médico da UCLA - N.º 1 do Oeste, N.o 3 da Nação. Todas as manhãs me perguntava qual seria a classificação deste. Nunca perguntei. Todas as manhãs inseria o cartão no me­canismo do portão e todas as manhãs, se o inserisse correctamente, uma voz feminina dizia: «Bem-vindo à UCLA.» Todas as manhãs, se programasse bem o meu tempo, conseguia um lugar para estacionar no exterior, no nível da praça quatro, junto da cerca. Ao fim do dia, regressava ao Beverly Wilshire, recolhia as mensagens e respondia a algumas. Depois da pri­meira semana, Gerry andava de avião para trás e para diante entre Los Angeles e Nova Iorque, tentando trabalhar pelo menos uns dias por semana e, se ele esti­vesse em Nova Iorque, eu telefonava-lhe para lhe dar as notícias do dia ou a falta delas. Deitava-me. Via o noticiário local. Ficava debaixo do chuveiro durante vinte minutos e saía para jantar.

Saí para jantar todas as noites em que estive em Los Angeles. Jantava com o meu irmão e a mulher sempre que eles se encontravam na cidade. Ia ao res­taurante de Connie Wald em Beverly Hills. Havia rosas e capuchinhas, lume vivo em grandes lareiras, como sempre houvera durante todos aqueles anos em que John, Quintana e eu lá íamos. Agora, estava lá Susan Traylor. Fui a casa de Susan nas colinas de Hollywood.

Conhecia Susan desde os seus três anos de idade e conhecia o marido, Jesse, desde que ele, Susan e Quintana andavam na quarta classe da escola de Point Dume. Agora eram eles que cuidavam de mim. Comi em muitos restaurantes com muitos amigos. Jantava com bastante frequência com Earl McGrath, cuja deli­cadeza intuitiva naquela situação era perguntar-me todas as manhãs o que ia fazer naquela noite, e, se a resposta fosse algo vaga, arranjava um jantar irrecu­sável para duas, três ou quatro pessoas no Orso ou no Morton's, ou em sua casa no Robertson Boulevard.

Depois do jantar, apanhava um táxi, voltava para o hotel e entregava o meu pedido de huevos rancheros para o pequeno-almoço.

       «Com um ovo mexido», dizia de imediato a voz ao telefone. «Exactamente», respondia-lhe.

       Planeava as noites com tanto cuidado quanto pla­neava os percursos.

       Não perdia tempo com promessas que não tinha maneira de cumprir.

       Estás salva. Estou aqui.

       Congratulava-me na profunda quietude de Mor­ning Becomes Eclectic do dia seguinte.

Podia ter estado em Cleveland.

Adiante.

Não sou capaz de contar os dias em que me vi a conduzir abruptamente cega pelas lágrimas.

Voltava a recordar Santa Ana.

Voltava a recordar o jacarandá.

Uma tarde, tive de encontrar-me com Gil Frank no seu escritório em Wilshire, vários quarteirões a leste do Beverly Wilshire. Neste território não analisado pre­viamente (para o que me interessava, a terra cognita situava -se a oeste de Wilshire, não a leste), deparei, sem para isso estar preparada, com um cinema onde John e eu víramos A Primeira Noite em 1967. Vermos A Primeira Noite em 1967 não constituiu um momento especial. Eu tinha estado em Sacramento. John fora buscar-me ao aeroporto de Los Angeles. Parecera-nos tarde de mais para fazermos compras para o jantar e cedo de mais para irmos ao restaurante, e, portanto, fomos ver A Primeira Noite e depois fomos jantar ao Frascati. O Frascati desaparecera, mas o cinema ainda lá estava, quanto mais não fosse para servir de arma­dilha aos incautos.

Havia muitas armadilhas dessas. Um dia, reparei num troço da auto-estrada marginal que me era fami­liar e que apareceu num anúncio de televisão. Percebi que se tratava do exterior do condomínio fechado na península de Palos Verdes, na Portuguese Bend, para onde John e eu leváramos Quintana do St. John's Hospital.

Quintana tinha três dias.

Colocáramos o carrinho de Quintana ao pé do can­teiro da glicínia no jardim.

Estás salva. Estou aqui.

Nem a casa, nem o portão se conseguiam ver no anúncio, mas tive um acesso súbito de recordações: eu a sair do carro nessa estrada para abrir o portão para John poder entrar; ver uma onda vir e levantar um carro que estava na nossa praia para ser filmado num anúncio; eu a esterilizar os biberões para o leite de Quintana, enquanto o galo de luta que vivia na propriedade me seguia amistosamente de janela em janela. Este galo, a quem o dono da casa dera o nome de Buck, fora abandonado na auto-estrada, na opi­nião exagerada do seu dono, por «mexicanos em de­bandada». Buck tinha uma personalidade diferente e surpreendentemente cativante, não muito diferente da de um labrador. Para além de Buck, a casa estava também equipada com pavões, que eram decorativos mas destituídos de personalidade. Ao contrário de Buck, os pavões eram gordos e só em último caso se moviam. Ao crepúsculo, gritavam e tentavam voar para os ninhos nas oliveiras, momento de tensão por­que caíam com muita frequência. Antes de romper o dia, voltavam a gritar. Uma madrugada, acordei com os gritos e procurei por John. Encontrei-o lá fora, às escuras, a apanhar pêssegos verdes de uma árvore e a atirá-los aos pavões, abordagem caracteristicamente simplista ou mesmo contraproducente para resolver um aborrecimento. Quando Quintana tinha um mês, fomos despejados. Havia uma cláusula no contrato de arrendamento que especificava que não eram per­mitidas crianças, mas o senhorio e a mulher admiti­ram que o motivo não era a bebé. O motivo era que tínhamos contratado uma adolescente muito bonita, chamada Jennifer, para cuidar da bebé. O senhorio e a mulher não queriam estranhos na propriedade, ou, como eles diziam, «portão adentro», em especial ado­lescentes bonitas chamadas Jennifer, que decerto te­riam namorados. Fizemos um contrato de arrenda­mento por alguns meses de uma casa na cidade que pertencia à viúva de Herman Mankiewicz, Sara, que ia fazer uma viagem. Sara deixou tudo como estava na casa, excepto um objecto, o Óscar atribuído a Herrnan Mankiewicz pelo argumento do filme O Mundo a Seus Pés.

«Vocês fazem festas, as pessoas embriagam-se e brincam com isto», disse ela ao guardá-lo. No dia em que nos mudámos, John estava a viajar com os San Francisco Giants, para fazer um artigo sobre Willie Mays para The Saturday Evening Post. Pedi empres­tada a carrinha de caixa fechada da minha cunhada, carreguei-a, pus Quintana e Jennifer no banco de trás, despedi-me de Buck, arranquei com o carro e deixei que aquele portão totémico se fechasse atrás de mim pela última vez.

Tudo isto, e nem sequer passara por lá!

       A única coisa que fizera fora apanhar de relance um anúncio de televisão enquanto me vestia para ir para o hospital.

De outra vez, precisei de comprar umas garrafas de água no Rite Aid, em Canon_ e lembrei-me que o Canon era onde estivera The Bistro. Em 1964 e 1965, quando vivíamos no condomínio com praia e pavões mas não nos podíamos dar ao luxo de dar gorjeta aos arrumadores dos automóveis nos restaurantes e muito menos comer nesses mesmos restaurantes_ John e eu costumávamos estacionar na rua, em Canon, e en­comendar o jantar no Bistro. Levámos lá Quintana no dia em que foi adoptada_ quando ela não tinha ainda completado os sete meses de idade. Deram-nos o canto de Sidney Korshak e colocaram a cadeirinha de Quintana em cima da mesa de centro. No tribunal, nessa manhã, o único bebé, se não a única criança, era ela; todas as outras adopções daquele dia parecia envolverem adultos que adoptavam por razões que tinham a ver com impostos. «Qué bonita, qué her­mosa», trauteavam os criados de mesa quando a levá­mos ao almoço.

Quando ela tinha seis ou sete anos, levámo-la a um jantar de aniversário. Vestia um pon­cho verde-lima que lhe comprara em Bogotá. Quando nos preparávamos para sair, o empregado trouxe o poncho e ela colocara-o teatralmente sobre os peque­ nos ombros.

Qué bonita, qué hermosa, o retrato de GingerRogers.

John e eu estivemos juntos em Bogotá. Demos uma escapadela de um festival de cinema em Cartagena emetemo-nos num avião da Avianca para Bogotá. Um actor que estivera no festival, George Montgomery, também estava no voo para Bogotá. Fora para a car­linga. De onde me encontrava sentada, consegui vê-lo a tagarelar com a tripulação e, depois, a meter-se no assento do piloto.

       Dei um toquezinho com o cotovelo em John, que estava a dormir.

       «Eles estão a deixar George Montgomery pilotar o avião por cima dos Andes», segredei-lhe.

       «Bate em Cartagena», disse John, e voltou a ador­mecer.

       Nesse dia, em Canon, não passei do Rite Aid.

 

Algures em Junho, após ela ter saído da UCLA e estar na sexta semana de um período de quinze como paciente do Rusk Institute de Medicina de Reabi­litação' no Centro Médico da Universidade de Nova Iorque, nessa mesma cidade, Quintana disse-me que as suas recordações não só da UCLA como também da sua chegada ao Rusk estavam «todas baralhadas». Conseguia lembrar-se de algumas coisas passadas na UCLA, sim, mas não conseguia lembrar-se de nada a seguir ao Natal (por exemplo, não se recordava de falar sobre o pai em São João-o-Divino, nem, quando acor­dou pela primeira vez na UCLA, se recordava de que ele tinha falecido), mas mesmo assim eram recorda­ções «manchadas». Posteriormente, corrigiu isto para «turvas», mas não tinha necessidade: eu sabia exacta­mente o que ela queria dizer. Nos pisos de Neurolo­gia da UCLA tinham utilizado «defeituoso», como em «a orientação dela está a melhorar, mas ainda está defeituosa». Quando tento reconstituir aquelas sema­nas na UCLA, reconheço que a minha própria memó­ria está baralhada. Há partes de dias que parecem muito claras e outras que não.

Lembro-me nitida­mente de discutir com um médico no dia em que resolveram fazer-lhe a traqueotomia. Ela já estava entubada havia quase uma semana, dizia o médico, e a UCLA não deixa tubos por mais de uma semana. Disse-lhe que Quintana estivera entubada durante três semanas no Beth Israel Noth, em Nova Iorque. O mé­dico afastara o olhar. «A regra do Duke é também uma semana», replicou, como se julgasse que mencionar o Duke resolvia a questão. Pelo contrário, fiquei furiosa: O que é que eu tenho a ver com o Duke?, apetecia­ -me dizer, mas não disse. Que tem a UCLA a ver com o Duke? O Duke fica na Carolina do Norte. A UCLA na Califórnia. Se eu quisesse a opinião de alguém da Carolina do Norte, telefonava a alguém da Carolina do Norte.

Em vez disso, disse que o marido de Quintana estava precisamente a dirigir-se de avião para Nova Iorque. Decerto que podiam esperar até ele aterrar.

       De facto, não, respondeu o médico, uma vez que a traqueotomia já estava marcada.

O dia em que decidiram fazer a traqueotomia foi também o dia em que desligaram o aparelho de elec­trocardiograma.

«Parece tudo bem», iam dizendo. «Ela vai melho­rar mais depressa assim que lhe fizermos a traqueotomia. Já não está ligada ao aparelho, se calhar não deu por isso.»

Se calhar não dei por isso?

A minha única filha?

A minha filha inconsciente?

Se calhar não dei por isso quando entrei na UCI naquela manhã em que as suas ondas cerebrais tinham desaparecido! E que o monitor por cima da sua cabeça estava escuro, morto!

Agora, isso estava a ser apresentado como um pro­gresso, mas não me parecera assim quando o vi pela primeira vez. Lembro-me de ler no lntensive Care que os enfermeiros da UCI do San Francisco General des­ligavam os monitores quando um doente estava próxi­mo da morte, porque a experiência lhes dizia que os membros da família se concentravam nos ecrãs em vez de no moribundo. Perguntei a mim mesma se essa regra fora aplicada neste caso. Mesmo depois de me assegurar de que assim não fora, descobri-me a afas­tar os olhos do EEG e do seu ecrã às escuras. Fora-me gradualmente habituando a observar as suas ondas cerebrais. Era uma maneira de a ouvir falar.

Não percebo porquê, mas, uma vez que o equipa­mento estava ali parado e sem ser utilizado, por que não ligavam o EEG?

Por precaução?, perguntei.

Não me recordo de ter obtido resposta. Foi um período em que fiz muitas perguntas que não obtive­ram resposta. E as respostas que obtive tendiam a ser insatisfatórias, como «Já está marcada».

Toda a gente da Neurologia tinha feito uma tra­queotomia, disseram-me durante todo esse dia. Toda a gente da Neurologia tinha fraquezas musculares que tornavam problemática a remoção do tubo de ventila­ção. Uma traqueotomia envolvia menos riscos de lesão da traqueia. Uma traqueotomia envolvia menos riscos de pneumonia. Olhe para a sua direita, olhe para a sua esquerda, ambos fizeram traqueotomias. Uma tra­queotomia podia fazer-se com fentanil e um relaxante muscular, ela não estaria sob anestesia mais do que uma hora. Uma traqueotomia não deixava marcas inestéticas, «apenas uma pequena cicatriz», «com o tempo, talvez nem sequer uma pequena cicatriz».

Estavam sempre a mencionar este último aspecto, como se a minha resistência à traqueotomia tivesse por base a cicatriz. Eles eram médicos, ainda que acabados de sair da forja. Eu não. Logo, quaisquer preocupações tinham de ser estéticas, frívolas.

De facto, não fazia ideia por que resistia tanto à traqueotomia.

Hoje, acho que a minha resistência nascia do mes­ mo capital de superstição de que me sustentava desde a morte de John. Se ela não fizesse a traqueotomia, podia estar bem pela manhã, capaz de comer, de con­ versar, de ir para casa. Se ela não fizesse a traqueotomia, apanhávamos o avião para o fim-de-semana. Mesmo que eles não quisessem que ela fizesse viagens de avião, eu podia levá-la comigo para o Bever1y Wil­shire, podíamos arranjar as unhas, sentar-nos à beira da piscina. Se eles ainda não quisessem que ela fizesse viagens de avião, podíamos ir de carro até Malibu e passar uns dias reconstituintes com Jean Moore.

Se ela não fizesse a traqueotomia.

Era de loucos, mas eu estava louca. Através das cortinas de algodão azul que separa­vam as camas, conseguia ouvir as pessoas a conversa rem com os maridos, pais, tios ou colegas, funcional­ mente ausentes. Na cama à direita da de Quintana, estava um homem que ficara ferido num acidente de trabalho. Os homens que estiveram no local na altura do acidente foram visitá-lo. Puseram-se em volta da cama e tentaram explicar o que acontecera. O cabo, a cabina, o guindaste, ouvi um ruído, gritei por Vinny.

Cada homem fornecia a sua versão. Cada versão era levemente diferente das outras. Era compreensível, uma vez que cada testemunha partia de um ponto de vista diferente, mas recordo-me de que me apetecia interferir e ajudá-los a coordenar as histórias respec­tivas; parecera-me demasiados dados conflituosos para atirar para cima de alguém que sofrera um trauma­tismo craniano.

       «Estava tudo a decorrer normalmente e, de repente, aquela porcaria escangalhou-se toda», disse um.

       O doente não respondeu, nem podia, porque fi­zera uma traqueotomia.

À esquerda de Quintana estava um homem do Massachusetts, que se encontrava no hospital havia vários meses. Ele e a mulher tinham ido a Los Angeles visitar os filhos, ele caíra de uma escada, mas tudo parecia bem com ele. Mais um dia perfeitamente banal. Depois, começou com dificuldades na fala. Estava tudo a decorrer normalmente e, de repente, aquela porca­ria escangalhou-se toda. Agora estava com uma pneu­monia. Os filhos vieram e foram-se embora. A mulher estava sempre ali, rogando-lhe numa voz baixa e cho­rosa. O marido não respondia: também fizera uma traqueotomia.

       Fizeram a traqueotomia a Quintana no dia 1 de Abril, uma quinta-feira, à tarde.

Na manhã de sexta-feira, grande parte dos seda­tivos para a extubação fora metabolizada e ela con­seguiu abrir os olhos e apertar-me a mão.

No sábado, disseram-me que no dia seguinte ou na segunda-feira seria transferida da UCI para um serviço de observação da Neurologia no sétimo piso.

o sexto e sétimo pisos da UCLA eram totalmente de Neurologia.

Não tenho ideia de quando ela foi transferida, mas acho que foi passado uns dias.

Uma tarde depois de ter sido transferi da, deparei com a senhora do Massachusetts na esplanada do Café Med. O marido também tinha saído da UCI e estava a ser transferido para o que ela chamava de «hospitais de reabilitação de retaguarda». Ambas sabíamos que «hospitais de reabilitação de retaguar­da» era o que os transportadores das companhias de seguros de saúde e os coordenadores das altas hospi­talares chamavam às casas de saúde, mas não se men­cionou o facto. Ela queria que o transferissem para um serviço de reabilitação intensiva da Neuropsiquiatria da UCLA, com onze camas, mas ele não foi aceite. Foi a frase que usou, «não foi aceite». Estava preocupada porque não sabia como havia de chegar ao hos­pital de retaguarda - dos dois que tinham uma cama vaga, um era perto do aeroporto de Los Angeles, o outro em Chinatown -, uma vez que não conduzia. Os filhos tinham emprego, empregos importantes, nem sempre a podiam levar.

Sentámo-nos ao sol.

Escutei. Ela perguntou pela minha filha.

Não quis dizer-lhe que a minha filha ia ser trans­ferida para um serviço de reabilitação intensiva da Neuropsiquiatria.

A certa altura, reparei que estava a tentar con­duzir os médicos como os cães pastores conduzem os rebanhos, chamando a atenção de um interno para um edema, lembrando a outro que pedisse uma análise à urina para verificar se havia sangue no cateter de Foley, insistindo num eco-Doppler para saber se a razão para a dor na perna podia ser uma embolia, repetindo insistentemente - quando a ecografia mos­trou que de facto voltara a haver coágulos - que queria que chamassem para ser consultado um especialista em coagulação. Escrevi o nome do especialista que eu queria. Ofereci-me para lhe telefonar pessoalmente. Estes esforços não me ganharam a estima dos jovens que constituíam a equipa da casa «Se quer conduzir este caso, eu retiro-me», disse um por fim), mas fize­ram-me sentir menos impotente.

Lembro-me de aprender na UCLA os nomes de muitos exames e escalas. O Kimura Box Test. O Two-Point Diserimination Test. A Glasgow Coma Seala, a Glas­gow Outeome Seala. A minha compreensão do signi­ficado destes exames e escalas permanecia obscura. Também me lembro de aprender, tanto na UCLA como antes, no Beth Israel North e no Columbia-Presbyte­rian, os nomes de muitas bactérias hospitalares resis­tentes. No Beth Israel North, fora o Acinetobaeter baumannií, que era resistente à vancomicina. «É assim que se sabe que é uma infecção hospitalar», lembro-me de me ter dito um médico do Columbia - Presbyterian a quem perguntei. «Se for resistente à vancomicina, é hospitalar. Porque a vancomicina só se utiliza nos meios hospitalares.» Na UCLA, fora o Staphyloeoeeus aureus resistente à meticilina, e o seu contrário, o Staphyloeoeeus epidermidis resistente à meticilina, que foi o que eles a princípio pensaram, quando fizeram a cultura, e que pareceu alarmar mais visivelmente o pessoal. «Não sei dizer porquê, mas, como estás grá­vida, talvez queiras ser transferida...», aconselhou uma terapeuta a outra durante o susto do Staphy­lococcus epidermidis, olhando-me de soslaio, como se eu pudesse não entender. Havia muitos outros nomesde bactérias hospitalares, mas estes eram os grandes criminosos. Fosse qual fosse a bactéria que mostrasse ser fonte de uma nova febre ou infecção do tracto urinário, exigia bata comprida, luvas e máscara. Isto causava grande suspiros entre os auxiliares, que se viam obrigados a vestir-se antes de entrarem nos quar­tos para esvaziarem os cestos de lixo. O Staphylococcus aureus resistente à meticilina da UCLA era uma in­fecção na corrente sanguínea, uma bacteremia. Quando ouvi isto, manifestei ao médico que estava a examinar Quintana a minha preocupação de que a corrente san­guínea pudesse conduzir novamente a uma sepsia.

       «Bem, sabe, sepsia... é um termo clínico», disse o médico, e depois continuou a examiná-la.

       Sentira-se pressionado.

«Ela já está num certo grau de sepsia.» Parecia animado. «Mas continuamos a dar-lhe a vancomicina. E até agora a tensão arterial tem-se aguentado.»

       Pronto. Voltávamos a estar à espera de ver se a tensão arterial descia.

       Voltávamos a estar à espera do choque séptico.

       O passo seguinte era olhar para os blocos de gelo no East River.

A pura das verdades é que o que eu via das janelas da UCLA era uma piscina. Nem uma única vez vi alguém nadar naquela piscina, embora estivesse cheia, filtrada (via o pequeno redemoinho no sítio onde a água entrava no filtro e o borbulhar onde voltava a sair), a cintilar ao sol e rodeada por mesas com chapéus-de-sol Um dia, quando estava a olhar, veio­-me a recordação pungente de ter tido a ideia de pôr velas flutuantes e gardénias na piscina que ficava atrás da casa de Brentwood Park. Estávamos a preparar uma festa. Faltava ainda uma hora para a festa, mas eu já estava vestida quando me surgiu a ideia das gar­dénias. Ajoelhei-me na lona, acendi as velas e usei a vara do camaroeiro para guiar as gardénias e velas num padrão ao acaso. Levantei-me, satisfeita com o resultado. Guardei o camaroeiro. Quando voltei a olhar para a piscina, as gardénias tinham desaparecido e as velas estavam apagadas, não passavam de casquinhos ensopados a balançar-se furiosamente em volta da entrada do filtro. Não podiam ser sugadas porque o filtro já estava obstruído com gardénias. Passei os quarenta e cinco minutos que faltavam para a festa a limpar o filtro de gardénias encharcadas, a apanhar as velas e a enxugar o vestido com um secador de cabelo. Até aqui, tudo bem.

Uma lembrança da casa de Brentwood Park que não envolvia nem John, nem Quintana.

Infelizmente, tive outra. Estivera na cozinha dessa casa ao fim do dia, princípio da noite, a dar de comer ao cão de raça bouvier que tínhamos na altura. Quin­tana estava em Barnard. John a passar uns dias no apartamento que tínhamos em Nova Iorque. Isto deve ter sido em finais de 1987, período durante o qual começámos a falar em querermos passar mais tempo em Nova Iorque, ideia que eu desencorajara. De re­pente, um relâmpago vermelho encheu a cozinha.

Fui à janela. Havia uma ambulância diante de uma casa do outro lado da Marlboro Street, visível atrás da árvore-de-coral e duas pilhas de toros no nosso pátio. Era um bairro em que muitas casas, incluindo a que ficava do outro lado da Marlboro Street, tinham de lado pátios com duas pilhas de toros. Fiquei a olhar para a casa até desaparecer a última luz e a ambu­lância se ter ido embora. Na manhã seguinte, quando fui passear o cão, um vizinho contou-me o que acon­tecera. As duas pilhas de toros não haviam impedido que a senhora da casa do outro lado da Marlboro Street ficasse viúva ao jantar.

Telefonei a John em Nova Iorque.

A luz vermelha relampejante pareceu-me na altura um aviso urgente.

       Disse-lhe que talvez tivesse razão, que devíamos passar mais tempo em Nova Iorque.

Ao olhar da janela da UCLA para a piscina vazia, conseguia ver aproximar-se, mas não desviar, o vór­tice. O vórtice, neste exemplo, era o insistente aspecto da lembrança do emprego em Samarra. Se eu não tivesse feito aquele telefonema, Quintana teria regressa­do a Los Angeles depois de se ter formado em Barnard? Se ela vivesse em Los Angeles, teria acontecido o Beth Israel North, o Presbyterian teria acontecido, estaria hoje na UCLA? Se eu não tivesse interpretado mal o significado da luz vermelha relampejante em finais de 1987, seria possível hoje meter-me no meu carro, dirigir-me para oeste, para São Vicente, e encontrar John na nossa casa de Brentwood Park? Ao pé da pis­cina? A ler A Escolha de Sofia?

Teria de reviver cada erro? Se, por azar, me recordasse da manhã em que descemos de automóvel, de casa de Tony Richardson, nas colinas, para Saint- Tropez, tomá­mos café na rua e comprámos peixe para o jantar, também tinha de recordar-me da noite em que me recusei a nadar ao luar porque o Mediterrâneo estava poluído e eu tinha um corte na perna? Se me recor­dasse do galo de luta em Portuguese Bend, também precisaria de recordar-me do longo percurso até casa depois do jantar e de quantas noites, ao passarmos pelas refinarias do San Diego Freeway, um de nós disse as coisas erradas? Ou parou de falar? Ou imagi­nou que o outro parou de falar? «A líbido prende-se ao objecto através de recordações e expectativas, por criação e hipercatexias de toda e qualquer delas, e é em relação a isso que se realiza o desprendimento da líbido... É notável que este doloroso desprazimento seja considerado por nós com naturalidade.» Assim explicava Freud aquilo que ele considerava «o trabalho» do luto, que, conforme descrito, se parecia com o vórtice de forma muito suspeita.

Na realidade, já não existia a casa de Brentwood Park da qual eu vira a luz vermelha pulsante e de onde pensei fugir mudando-me para Nova Iorque. Foi arra­sada e substituída (por uma casa pouco maior) um ano após a termos vendido. Num dia em que calhou estarmos em Los Angeles, passámos pelo cruzamento da Chadbourne com a Marlboro e vimos que não havia nada de pé, excepto uma única chaminé, que lhes con­cedia benefícios fiscais.

Recordei-me de que o agente da imobiliária me dissera quão significativo seria para os compradores nós darmos-lhes exemplares autogra­fados dos livros que escrevêramos ali naquela casa. Assim fizemos. Quintana and Friends, Dutch Shea, ir. e The Red White and Blue, de John, Salvador, Demo­cracy e Miami, meus. Quando, do carro, vimos o lote terraplenado, Quintana, que ia no banco de trás, desa­tou a chorar. A minha primeira reacção foi de fúria. Queria que me devolvessem os livros.

       Esta linha de pensamento correctiva parava o vórtice?

       Facilmente.

       Uma manhã, quando Quintana ainda estava nos Cuidados Intermédios porque a persistência da febre exigia um ecocardiograma que excluísse uma endo­cardite, levantou a mão direita pela primeira vez. Era significativo, porque era no lado direito do corpo que podiam ver-se os efeitos do traumatismo. O mo­vimento significava que os nervos traumatizados conti­nuavam vivos. Mais tarde, nesse mesmo dia, Quintana estava sempre a querer sair da cama e fez uma birra infantil quando eu lhe disse que não a ia ajudar. A re­cordação que tenho desse dia não é de modo algum baralhada.

 

Ficou decidido em finais de Abril que se passara tempo suficiente após a operação, o que lhe permitia ir de avião para Nova Iorque. Até ali, o problema era a pressurização e a possibilidade de causar novo in­chaço. Ela ia precisar de pessoal qualificado para a acompanhar. Um voo comercial estava fora de ques­tão. Tratou-se do necessário para uma evacuação mé­dica: uma ambulância da UCLA para um aeroporto, uma ambulância aérea para Teterboro e uma ambu­lância de Teterboro para o Hospital Universitário de Nova Iorque, onde faria neurorreabilitação no Rusk Institute. Decorreram muitas conversações entre a UCLA e o Rusk. Enviaram-se muitos faxes. Preparou­-se um CD-ROM das TAC realizadas. Marcou-se uma data para aquilo a que até eu chamava «a transferên­cia»: quinta-feira, dia 29 de Abril. Ao princípio da manhã dessa quinta-feira, quando me preparava para sair do Beverly Wilshire, recebi uma chamada de algu­res no Colorado. O voo estava atrasado. O avião encon­trava-se em Tucson, onde aterrara com «problemas mecânicos». Os mecânicos de Tucson iam ver o que se passava quando entrassem ao serviço às dez da manhã, hora da montanha. Ao início da tarde, hora do Pací­fico, era evidente que o avião não ia descolar. Seria disponibilizado outro avião na manhã seguinte, mas a manhã seguinte era sexta-feira e a UCLA não gos­tava de fazer transferências às sextas-feiras. No hospi­tal, pressionei o coordenador das altas a concordar com a transferência na sexta-feira.

Adiar a transferência para a semana seguinte só iria desanimar e confundir Quintana, disse eu, com toda a segurança.

O Rusk Institute não tinha problemas com inter­namentos à sexta-feira à noite, continuei, já menos segura.

E eu não tinha onde ficar durante o fim-de-sema­na, menti.

Quando o coordenador das altas concordou com a transferência na sexta-feira, Quintana estava a dor­mir. Sentei-me por momentos ao sol na praça exterior ao hospital e fiquei a ver um helicóptero a voar em círculos até aterrar no telhado. Estavam sempre a aterrar helicópteros no telhado da UCLA, numa su­gestão de traumatismos por todo o Sul da Califórnia, cenas remotas de carnificina nas auto-estradas, gruas distantes a caírem, dias difíceis à espera de maridos, esposas, mães e pais, que ainda não tinham recebido o telefonema (nem mesmo quando o helicóptero já pousara e a equipa dos traumatismos corria com a maca para a triagem). Lembro-me de um dia de Verão em 1970 quando John e eu parámos num semáforo vermelho na St. Charles Avenue, em Nova Orleães, e reparámos que o condutor do carro que estava à nossa frente caíra de repente sobre o volante. A buzina desa­tara a tocar. Vários transeuntes acorreram. Surgiu um agente da polícia. A luz mudou e arrancámos. John fora incapaz de expulsar da mente esta imagem. Ali estava o indivíduo, repetia continuamente, estava vivo e no momento seguinte estava morto, e nós a ver. Estávamos a vê-lo no momento em que aquilo acon­teceu. Soubemos que morrera antes de a família ter conhecimento.

Um dia banal.

«E, a seguir, morreu.»

O dia do voo, quando chegou, parecera desdo­brar-se com a inexorabilidade não sequencial de um sonho. Quando liguei para o noticiário, de manhã cedo, havia uma acção de guerrilha nas auto-estradas, camionistas que protestavam contra o preço dos combustíveis. Atrelados enormes, cujos pneus haviam sido propositadamente esfaqueados, foram abando­nados na Interestadual 5. Testemunhas relataram que os primeiros camiões a parar tinham transportado as equipas de TV. Havia pessoal à espera para retirar os camiões da auto-estrada bloqueada. À medida que via as imagens, estas pareciam-me deslocadamente afrancesadas, tipo Maio de 68.

«Evitem a Cinco, se puderem», aconselhava o locutor, e depois avisou que, segundo «fontes» (prova­velmente as mesmas equipas de TV que viajavam com os camionistas), os camiões iam bloquear também outras estradas, especificamente a 720, a 60 e a 10. Na normal sequência deste tipo de ruptura, parecia improvável que conseguíssemos ir da UCLA ao avião, mas, quando a ambulância chegou ao hospital, todo aquele acontecimento francês parecia ter-se desma­terializado e estar esquecida aquela fase do sonho.

Outras fases estavam para vir. Tinham-me dito que o avião estaria no aeroporto de Santa Mónica. À tripulação da ambulância disseram que estaria em Burbank. Alguém fez um telefonema e comunicaram­-lhe que seria Van Nuys. Quando chegámos a Van Nuys, não havia aviões à vista, só helicópteros. Deve ser porque vão de helicóptero, disse um assistente da ambulância, nitidamente ansioso por nos despachar e ir à sua vida. Não me parece, respondi-lhe, são quase cinco mil quilómetros. O assistente da ambulância en­colheu os ombros e desapareceu. Alugou-se o avião, um Cessna a jacto com espaço para dois pilotos, dois paramédicos, a maca à qual Quintana ia presa e, se me sentasse num banquinho sobre as botijas de oxi­génio, eu. Descolámos. Voámos durante um determi­nado espaço de tempo. Um dos paramédicos tinha uma câmara digital e tirava fotografias ao que se refe­ria como o Grand Canyon. Disse-lhe que me parecia que era o lago Mead e a barragem de Hoover. Chamei a atenção para Las Vegas.

O paramédico continuou a tirar fotografias.

Também continuou a falar do Grand Canyon. Porque é que hás-de ter sempre razão, lembrei-me de que John costumava dizer.

       Era uma queixa, uma acusação, parte de um con­flito.

Nunca percebi por que motivo na minha própria mente eu nunca tinha razão. Uma vez, em 1971, quando estávamos a mudar-nos da Franklin Avenue para Malibu, encontrei uma mensagem colada atrás de um quadro que estava a tirar da parede. A mensa­gem era de alguém de quem eu fora Íntima antes de me casar com John e que passara algumas semanas connosco na nossa casa da Franklin Avenue. A mensa­gem era a seguinte: «Estavas errada.» Não sei em que é que estava errada, mas as possibilidades pareciam­-me infinitas. Queimei a mensagem. Nunca a men­cionei a John.

Pronto, é o Grand Canyon, pensei, mudando de posição no banco por cima das botijas de oxigénio a fim de não tornar a olhar pela janela.

Mais tarde, aterrámos num campo de milho, no Kansas, para reabastecer. Os pilotos conseguiram fazer um acordo com os dois adolescentes que manipula­vam a mangueira: enquanto reabasteciam, os adoles­centes metiam-se na carrinha, iam a um McDonald e traziam hambúrgueres. Enquanto esperávamos, os paramédicos sugeriram que fizéssemos exercício por turnos. Quando chegou a minha vez, por instantes fiquei paralisada no asfalto, envergonhada por estar livre e cá fora ao passo que Quintana não podia, e depois corri até onde terminava a pista e começava o campo de milho. Chuviscava e o ar era instável. Imaginei que vinha ali um tornado. Quintana e eu éramos Dorothy. Éramos ambas livres. De facto, está­vamos longe dali. John descrevera um tornado em Nothíng Lost. Lembrei-me de ter lido as últimas pro­vas de granel no quarto de Quintana, no Presbyterian, e de ter chorado quando deparei com a passagem do tornado. Os protagonistas, J. J. McClure e Teresa Kean, vêem o tornado «a grande distância, negro, e depois leitoso, quando é apanhado pela luz do Sol, moven­do-se como uma enorme cobra vertical reticulada». J. J. diz a Teresa que não se preocupe, aquela região já fora atingida antes, os redemoinhos nunca tocam duas vezes o mesmo lugar.

O tornado finalmente acalmou sem inciden­tes ao atravessar a linha do Wyoming. Nessa noite, na Step Right Inn, no cruzamento da Higginson com a Higgins, Teresa perguntou se era verdade que os tornados nunca atin­giam duas vezes o mesmo lugar. "Não sei», respondeu J. J. "Pareceu-me lógico. É como os raios. Estavas preocupada. Não te quero preocupada.» Era o mais próximo uma decla­ração de amor que J. J. era capaz de fazer.

Regressando ao avião, sozinha com Quintana, peguei num dos hambúrgueres que os adolescentes tinham trazido e parti-o em pedacinhos para que o pudéssemos partilhar, ela e eu. Uns pedacinhos depois, Quintana abanou a cabeça. Havia só uma semana que lhe permitiam alimentos sólidos e não conseguia comer mais. O tubo de alimentação continuava ainda no lugar, para o caso de não conseguir comer de todo. «Achas que vou conseguir», perguntou ela então. Optei por acreditar que me estava a perguntar se conseguia chegar a Nova Iorque.

       «Sem dúvida», respondi-lhe.

       Estou aqui. Estás salva.

       Sem dúvida que ficaria bem na Califórnia, lem­brei-me de ter-lhe dito cinco semanas antes.

Nessa noite, quando chegámos ao Rusk Institute, Gerry e Tony estavam cá fora à espera da ambulân­cia. Gerry perguntou como correra o voo. Contei-lheque tínhamos comido a meias um Big Mac num campo« de milho no Kansas. «Não era um Big Mac», disse Quintana. «Era um Quarter Pounder.»

Pareceu-me, naquele dia, no quarto de Quintana no Presbyterian, quando li as últimas provas do Nothing Lost, que talvez houvesse um erro gramatical na últi­ma frase da passagem sobre J. J. McClure, Teresa Kean e o tornado. Na verdade, nunca soube as regras da gramática, e em vez disso sempre confiei no que me soava bem, mas havia ali qualquer coisa que me pare­cia que não soava bem. A frase nessas últimas provas rezava assim: «Era o mais próximo uma declaração de amor que J. J. era capaz de fazer.» Por mim, teria acrescentado uma preposição: «Era o mais próximo de uma declaração de amor que J. J. era capaz de fazer.»

Sentei-me à janela e fiquei a ver os blocos de gelo no Hudson, pensando na frase. Era o mais próximo uma declaração de amor que J. J. era capaz de fazer. Não era o género de frase que, caso a tivéssemos es­crito, gostássemos que estivesse errada, mas também não era o género de frase, se fosse assim que a tivésse­mos escrito, que gostássemos de modificar. Como éque ele a teria escrito? Que tinha em mente? Como a queria? A decisão ficou para mim. Qualquer escolha minha acarretaria um potencial abandono, se não traição. Foi uma das razões por que estava a chorar no quarto de Quintana, no hospital. Nessa noite, quando voltei para o meu quarto, comparei com as provas anteriores e com os originais. O erro, se é que havia um erro, estava ali desde o princípio. Deixei ficar como estava.

Porque é que hás-de ter sempre razão.

Porque é que hás-de ter sempre a última palavra.

Ao menos uma vez na vida, deixa andar.

 

O dia em que Quintana e eu fomos para leste no Cessna que se reabasteceu no campo de milho no Kansas foi o dia 30 de Abril de 2004. Durante os meses de Maio, Junho e metade de Julho, que ela passou no Rusk Institute, havia muito pouco que eu pudesse fazer por ela. Podia ir até à Rua Trinta e Quatro Este visitá-la ao fim da tarde, e fazia-o na maioria das tardes, mas Quintana estava na terapia das oito da manhã até às quatro da tarde e exausta às seis e meia ou sete. Em termos médicos, encontrava­-se estável. Podia comer, o tubo de alimentação ainda estava no lugar mas já não era necessário. Começara a recuperar os movimentos da perna e braço direitos. Estava a recuperar a mobilidade do olho direito, de que necessitava para ler. Aos fins-de-semana, quando não tinha terapia, Gerry levava-a a almoçar e a um cinema próximo. Jantava com ela. Havia amigos que se juntavam a eles para piqueniques à hora do almo­ço. Enquanto ela estivesse no Rusk, eu podia regar as plantas do peitoril da janela, podia procurar os ténis ligeiramente diferentes que o terapeuta recomendara, podia sentar-me com ela ao pé da recepção do Rusk, apreciando as carpas do aquário, mas, depois de ela sair do Rusk, nem sequer isso poderia fazer. Quintana estava a chegar ao ponto em que necessitaria nova­mente de estar, se conseguisse recuperar, por sua conta.

Decidi dedicar o Verão a chegar ao mesmo ponto.    

Ainda não tinha a concentração necessária para

trabalhar, mas podia arrumar a casa, podia começar a ocupar-me das coisas, podia tratar do correio por abrir.

Que só então estivesse a iniciar o luto, foi coisa que nao me ocorreu.

Até ali, só fora capaz de sofrer, não de andar de luto. Sofrer era um acto passivo. Sofrer acontecia. O luto, o acto de lidar com o sofrimento, exigia aten­ção. Até ali, razões qual delas a mais urgente haviam obliterado qualquer atenção que, se não fosse isso, eu poderia ter prestado, tinham expulsado o pensamento, fornecido adrenalina fresca para suportar a crise do dia. Passara uma estação inteira durante a qual as úni­cas palavras que me permitira ouvir verdadeiramente eram palavras gravadas: «Bem-vindo à UCLA.»

Comecei.

       No meio das cartas, livros e revistas que tinham chegado enquanto estive em Los Angeles, estava um grosso volume chamado Lives of '54, preparado para a quinquagésima reunião da classe de John em Prince­ton, então iminente. Dei uma olhadela para a entrada relativa a John e li: «William Faulkner disse uma vez que o necrológio de um escritor devia dizer "Escre­veu livros, depois morreu». Isto não é um óbito (pelo menos no que respeita a 19 de Setembro de 2002) e continuo a escrever livros. Portanto, mantenho-me fiel a Faulkner.»

Disse para comigo: não era um óbito.

Pelo menos à data de 19 de Setembro de 2002.

Fechei Lives of '54. Umas semanas depois, voltei a abri-lo e folheei todas as outras entradas. Uma era de Donald H. «<Rummy») Rumsfeld e rezava: «Depois de Princeton, os anos parecem esborratados, mas os dias parecem-se mais com fogo contínuo.» Meditei sobre isto. Outro, uma reflexão de três páginas por Lancelot L. («Lon») Farrar, Jr., começava assim: «A recordação mais partilhada por todos nós é indis­cutivelmente o discurso de Adlai Stevenson no ban­quete de finalistas.»

Também meditei sobre isto.

Estivera quarenta anos casada com um membro da classe de 1954 e ele nunca mencionara o discurso de Adlai Stevenson no banquete de finalistas. Tentei pensar em alguma coisa que ele tivesse mencionado sobre Princeton. Referira-se várias vezes ao dispara­tado subentendido da frase «Princeton ao Serviço da Nação», lema que Princeton adoptara de um discurso de Woodrow Wilson. Para além disso, não conseguia pensar em mais nada, excepto ele ter dito uns dias após o nosso casamento (por que o disse? como veio à conversa?) que considerara absurdos os Nassoons*. De facto, como sabia que isso me divertia, às vezes representava o papel dos Nassoons: o mergulhar estu­dado da mão num bolso, o girar dos cubos de gelo num copo imaginário, o queixo atirado para a frente, o fútil sorriso de satisfação.

 

* O mais antigo grupo coral masculino à capela da Universidade de        Princeton. (N. da T.)

 

Como te recordo...

Estávamos lado a lado numa encosta elevada e ventosa...

Os nossos rostos ao vento, corações cheios de esperança. . .

 

Durante quarenta anos, esta canção figurara numa brincadeira privada nossa, mas não conseguia lem­brar-me de como se chamava e muito menos do resto da letra. Descobrir a letra transformou-se numa ques­tão de alguma urgência. Só consegui descobrir uma única referência na Internet, num necrológio do Prin­ceton Alumni Weekly:

 

John MacFayden faleceu a 18 de Fevereiro de 2000, em Damariscotta, Maine, perto da aldeia de Head Tide, onde ele e a mulher, Mary-Esther, construíram a sua casa. A causa da morte foi uma pneumonia, mas a sua saúde há anos que começara a fraquejar, principal­mente após a morte da mulher em 1977. John veio de Duluth para Princeton no Verão «ante­cipado» de 1942. Dotado para a música e para as artes, contribuiu com canções para o Triangle, incluindo «As Remember You», durante muito tempo uma das preferidas pelos Nassoons. Com um piano, John era a alma de qualquer festa. Será sempre recordada a sua interpretação de «Shine, Little Glow Worm», tocada debaixo do piano e de costas para ele. Após ter estado no Japão ao serviço da Marinha dos Estados Unidos, voltou a Princeton para, em Belas-Artes, fazer o mestrado de Arqui­tectura. Na firma nova-iorquina Harrison & Abramowitz, concebeu um dos mais im­portantes edifícios das Nações Unidas. John recebeu o Prémio Roma de arquitectura e, recém-casado com Mary-Esther Edge, esteve de 1952 a 1953 na Academia Americana de Roma. A sua actividade privada como arqui­tecto, especialmente notada pela concepção do Wolf Trap Center for the Arts, nos arrabaldes de Washington, foi interrompida durante a década de sessenta por serviço público junto do governador Nelson Rockefeller, como direc­tor executivo de um primeiro conselho artís­tico do Estado. A classe acompanha os filhos, Camilla, Luke, William e John, e três netos no seu desgosto pela perda de um dos seus mais inesquecíveis membros.

       «As I Remember You», durante muito tempo uma das preferidas pelos N assoons.

       Mas, e quanto à morte de Mary-Esther?

       E quanto tempo se passou desde que a alma dafesta tocou «Shine, Little Glow Worm» debaixo do piano e de costas para ele?

       O que eu não daria para poder discutir isto com John?

O que eu não daria para poder discutir fosse o que fosse com John? O que eu não daria para poder dizer uma coisinha que o tornasse feliz? Qual seria essa coisinha? Se a tivesse dito a tempo, teria dado resultado?

Uma ou duas noites antes de falecer, John perguntou­-me se estava a par da quantidade de personagens que morriam no romance que acabara de mandar para a tipografia, Nothing Lost. Estivera no escritório a fazer a lista. Acrescentei um personagem que ele omitira. Uns meses depois de ele morrer, peguei num bloco de notas que estava em cima da sua secretária para ano­tar qualquer coisa. No bloco, a lápis muito esbatido, com a letra dele, estava a lista. Era assim:

 

Teresa Kean

Parlance

Emmett McClure

Jack Broderick

Maurice Dodd

Quatro pessoas num carro

Charlie Buckles

Percy - cadeira eléctrica (Percy Darrow)

Walden McClure

 

       Porque estava o lápis tão esbatido?, perguntei a mim mesma.

       Por que motivo ele havia de usar um lápis que mal deixava marca?

       Quando é que ele começou a considerar-se morto?

       «Isso não é assim a preto e branco», dissera-me um jovem médico do Centro Médico de Cedars-Sinai, em Los Angeles, em 1982, sobre a linhá divisória entre a vida e a morte. Estivéramos na UCI do Cedars, onde fôramos ver Dominique, filha de Nick e Lenny, que, na noite anterior, fora estrangulada quase até à morte. Dominique estava estendida na UCI como se estivesse a dormir, mas não recuperou. Só respirava graças a ajuda.

Dominique fora uma menina de quatro anos no meu casamento com John.

Dominique fora a prima que acompanhara Quin­tana às festas, que a levara a comprar os vestidos para as festas de finalistas e que ficava com ela quando nós tínhamos de sair da cidade. Rosas são vermelhas, violetas são azuis, rezava o cartão deixado juntamente com um copo com flores em cima da mesa da cozinha para o nosso regresso de uma dessas saídas. Desejava que não estivesses em casa e Dominique também. Beijinhos. Feliz Dia da Mãe, D. & Q.

Lembro-me de pensar que o médico estava enga­nado. Enquanto Dominique permanecesse naquela UCI, estava viva. Podia não conseguir manter-se viva sem ajuda, mas estava viva. Isso era branco. Quando desligassem a ajuda, haveria uma questão de alguns minutos antes de os seus sistemas pararem e estar, então, morta. Isso era preto.

Não houve traços esbatidos no que se referia à morte, nem marcas de lápis.

Quaisquer traços esbatidos, quaisquer marcas de lápis foram deixados «uma ou duas noites antes de ele falecer», ou «uma ou duas semanas antes», em todo o caso indubitavelmente antes de ele falecer.

Havia uma linha divisória.

       O abrupto carácter definitivo desta linha divisória foi algo em que pensei muito durante o final da Prima­vera e todo o Verão após ter voltado da UCLA para casa. Uma amiga íntima, Carolyn Lelyveld, morreu em Maio, no Memorial Sloan-Kettering. A mulher de Tony Dunne, Rosemary Breslin, morreu em Junho, no Columbia - Presbyterian.

Em ambos os casos, pare­cia aplicar-se a frase «após doença prolongada», que arrastava consigo a sugestão enganadora de liberta­ção' alívio, resolução. Em cada uma destas doenças prolongadas, a possibilidade da morte fizera parte do quadro, no caso de Carolyn durante uns meses, no de Rosemary desde 1989, quando ela tinha trinta e dois anos de idade. Porém, ter visto o quadro não afastou de forma alguma, quando a morte chegou, a repentina e esvaziada sensação de perda perante o aconteci­mento real. Continuava a ser preto e branco. Ambas, no instante derradeiro, haviam estado vivas, e, a seguir, estavam mortas. Apercebi-me de que nunca acredi­tara nas palavras que aprendera em criança para o crisma como episcopaliana: Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna, ámen.

Não acreditava na ressurreição da carne.

       Como não acreditaram Teresa Kean, Parlance, Emmett McClure, Jack Broderick, Maurice Dodd, as quatro pessoas que iam no carro, Charlie Buckles, Percy Darrow ou Walden McClure.

Nem o católico do meu marido.

       Imaginava que esta maneira de pensar seria escla­recedora, mas, de facto, era tão confusa que se con­tradizia a si mesma.

Não acreditava na ressurreição da carne, mas con­tinuava a acreditar que, nas circunstâncias certas, ele havia de voltar.

Ele, o que deixou os traços esbatidos antes de mor­rer, os do lápis número três.

Um dia, pareceu-me importante reler Alceste. Lera-o pela última vez quando tinha uns dezasseis ou dezas­sete anos para um trabalho sobre Eurípides, e recor­dava-me que era, de certa forma, relevante para esta questão da «linha divisória». A ideia que fazia dos Gregos em geral e do Alceste em particular é que eram bons na passagem da vida para a morte. Visualiza­vam-na, dramatizavam-na, punham na própria cena as águas escuras e a barca. Reli realmente Alceste. O que sucede na peça é o seguinte: Admeto, o jovem rei da Tessália, foi pela Morte condenado a morrer. Apolo intercedeu e arrancou às Parcas a promessa de que, se Admeto conseguisse encontrar outro mortal que morresse em seu lugar, não teria de morrer imedia­tamente. Admeto aborda os amigos e os parentes, mas em vão. «Digo a mim mesmo que estamos muito tempo debaixo da terra e que a vida é curta, mas doce», diz­-lhe o pai, após ter declinado tomar o seu lugar.

a esposa de Admeto, a jovem rainha Alceste, se oferece. Pranteia-se muito o facto de ela ir ter com a Morte, mas ninguém avança para a salvar. E ela morre finalmente: «Vejo a barca de dois remos / Vejo a barca no lago! / E Caronte, /Barqueiro dos Mortos, / Chama por mim com a mão na vara...» Admeto sente-se esmagado pela culpa, pela vergonha e pela autocompaixão: «Ai de mim! Quão amarga me é essa passagem de que falas! Ó minha infeliz, como sofre­mos!» Admeto porta-se mal de todas as maneiras. Culpa os pais. Insiste em que Alceste está a sofrer menos do que ele. Após algumas páginas (bastantes) disto, Alceste, graças a um espantosamente forçado (mesmo para 430 a.C.) deus ex machina, é autori­zada a regressar. Não fala, mas a situação é explicada, de novo de forma forçada, como temporária e rever­sível: «Podeis não ouvir a voz dela até ela ser purifi­cada da sua consagração aos deuses dos Infernos e até que a terceira aurora nasça.» Se nos fiarmos ape­nas no texto, a peça acaba bem.

Não era essa a recordação que tinha do Alceste, o que sugere que, aos dezasseis ou dezassete anos, já eu era dada a corrigir o texto à medida que o lia. As prin­cipais divergências entre o texto e a minha lembrança surgem mais para o fim, quando Alceste volta de entre os mortos. Na minha memória, a razão por que Alceste não fala é porque se recusa a falar. Admeto, pelo que me lembro, pressiona-a ao ponto de ela falar - para infelicidade do próprio Admeto, uma vez que o que ela acaba por ter na mente são os defeitos dele, que são revelados. Alarmado, Admeto afasta a perspectiva de ouvir mais ordenando celebrações. Alceste aquiesce, mas permanece distante, diferente. Aparentemente, Alceste voltou para o marido e os filhos e é de novo a jovem rainha da Tessália, mas o fim (o «meu» fim) não podia ser analisado como feliz.

É, de certo modo, uma história melhor (mais «elaborada»), uma história que, pelo menos, reco­nhece que a morte «modifica» a pessoa que morreu, mas que abre caminho a perguntas acrescidas sobre a linha divisória. Se os mortos pudessem verdadeira­mente voltar, voltariam a saberem o quê? Teríamos coragem para os enfrentar? Nós, que permitimos que eles morressem? A clara luz do dia diz-me que não consenti que John morresse, que esse poder não me pertence, mas será que acredito nisso? E ele?

Os sobreviventes olham para trás e descobrem pressá­gios, mensagens que lhes passaram despercebidas.

Recordam -se da árvore que morreu, da gaivota que se esmagou contra o capô do carro.

Vivem por símbolos. Lêem significados na barra­gem de lixo electrónico de um computador que não éutilizado, na tecla do apagar que deixa de funcionar, na imaginária facilidade com que se toma a decisão de a substituir. A voz do meu gravador de mensagens ainda é a de John. O facto de ser a voz dele começou por ser arbitrário e teve a ver com quem estava em casa no dia em que o gravador teve de ser programado pela última vez, mas, se tivesse de o rebobinar agora, fá-lo-ia com uma sensação de traição. Um dia, estava a falar do telefone do escritório dele e, impensa­damente, folheei as páginas do dicionário que ele costu­mava deixar aberto na mesa ao lado da secretária. Quando me apercebi do que fizera, fiquei paralisada: qual fora a última palavra que ele procurara, em que estaria a pensar? Pelo facto de ter virado as páginas, teria perdido a mensagem? Ou a mensagem já se per­dera antes de eu ter mexido no dicionário? Ter-me-ei recusado a ouvir a mensagem?

Digo-vos que não viverei dois dias mais, disse Galvão.

Em pleno Verão, recebi outro livro de Princeton. Era um exemplar da primeira edição de True Confes­sions, em «boas condições, sobrecapa original, leve­mente gasta», no dizer do livreiro. De facto, o exemplar pertencia ao próprio John: aparentemente, enviara-o a um colega que estava a organizar para a quinqua­gésima reunião da classe de 1954 uma exposição de livros escritos pelos membros dessa classe. «Ocupou a posição de honra», escreveu-me o colega, «uma vez que John era inquestionavelmente o escritor mais ilus­tre da nossa classe».

       Estudei a sobrecapa original, levemente gasta, do exemplar de True Confessions.

       Lembrei-me da primeira vez em que vira aquela sobrecapa, ou o projecto daquela sobrecapa. Andou lá por casa durante dias, como sempre andaram os projectos propostos, as amostras de tipos de letras e as sobrecapas para novos livros, sendo a ideia avaliar se ficariam bem ou não, se continuariam a agradar à vista.

Abri o livro. Olhei para a dedicatória. «Para Doro­thy Burns Dunne, Joan Didion e Quintana Roo Dunne», dizia a dedicatória. «Gerações.»

Tinha-me esquecido desta dedicatória. Não a apre­ciara suficientemente - tema persistente na fase nem eu sei de quê por que estava a passar.

Reli True Confessions. Achei-o mais soturno do que me lembrava. Reli Harp. Descobri uma versão dife­rente, menos luminosa, do Verão em que víamos Tenko e íamos jantar ao Morton's.

Algo mais acontecera lá para o fim daquele Verão.   

Em Agosto, realizara -se uma cerimónia em me­ mória de uma pessoa nossa conhecida (que, em si mesma, não foi o «algo mais» que acontecera), um tenista francês à volta dos sessenta anos que morrera num acidente. A cerimónia realizara-se num campo de ténis particular em Beverly Hills. «Encontrei-me na cerimónia com a minha mulher», escrevera John em Harp, «vindo directamente de uma consulta num mé­dico de Santa Mónica, e, ali sentado sob o sol quente de Agosto, tinha a morte muito presente no pensa­mento. Pensei que Anton morrera na verdade nas me­lhores circunstâncias possíveis para ele, um momento de terror ao aperceber-se do inevitável resultado do acidente e depois, um instante depois, as trevas eter­nas.»

A cerimónia acabou e o arrumador trouxe-me o carro. Ao afastarmo-nos, a minha mulher perguntou-me: «Que disse o médico?»

Não surgira nenhum momento apropriado para falar da minha ida ao médico em Santa Mónica. «Assustou-me pra caraças, querida.»

«Que disse ele?»

«Disse que eu era candidato a um acidente cardíaco catastrófico.»

Umas quantas páginas mais adiante em Harp, John, o escritor, examina a veracidade deste (seu pró­prio) relato. Anota um nome modificado, uma certa reestruturação dramática, um lapso de tempo menor. Ele mesmo pergunta: «Mais alguma coisa?» Foi esta a resposta que deu: «Quando disse à minha mulher que ele me assustara pra caraças, comecei a chorar.»   Ou não me lembrara disso, ou optara resoluta­mente por não me lembrar.

       Não a apreciara suficientemente.

Terá sido isto o que ele sentiu quando ele mesme morreu? «Um momento de terror ao aperceber-se do inevitável resultado do acidente e depois, um instante depois, as trevas eternas»? No sentido de que tal acon­tece numa noite e não noutra, o mecanismo de uma paragem cardíaca típica podia ser construído como essencialmente acidental: um espasmo súbito rompe um depósito de placa numa artéria coronária, segue-se a isquemia, e o coração, privado de oxigénio, entra em fibrilhação ventricular.

Mas como sentiu ele isso?

       O «momento de terror», as «trevas eternas»? Intuiu-os rigorosamente quando estava a escrever o Harp? Como dizíamos um ao outro quando preten­díamos saber se uma coisa estava a ser rigorosamente relatada ou compreendida, terá ele «percebido bem» ? E quanto à parte das «trevas eternas»? Não é verdade que os sobreviventes de experiências de «quase morte» mencionam sempre a «luz branca»? Ocorre-me en­quanto escrevo que esta «luz branca», geralmente apresentada de forma delirante (prova de vida após a morte, de um poder superior), é, de facto, coerente com a carência de oxigénio que acontece quando o afluxo de sangue ao cérebro diminui. «Ficou tudo branco», dizem do instante antes de desmaiarem aque­les cuja tensão arterial cai a pique. «As cores desapa­receram todas», contam do momento em que a perda de sangue se torna crítica aqueles que estão com uma hemorragia interna.

O «algo mais» que aconteceu para o fim daquele Verão, que deve ter sido em 1987, foi a série de acon­tecimentos que se seguiram à consulta com o médico de Santa Mónica e a cerimónia no campo de ténis em Beverly Hills. Mais ou menos uma semana depois, fizeram um angiograma. O angiograma mostrou uma oclusão de noventa por cento na artéria descendente anterior esquerda. Mostrou também um longo estrei­tamento de noventa por cento na artéria marginal cincunflexa, o que foi considerado significativo prin­cipalmente porque a artéria marginal circunflexa alimentava a mesma área do coração que a artéria descendente anterior esquerda oclusa. «Chamamos­-lhe a fazedora de viúvas, amigo», disse mais tarde acerca da artéria descendente anterior esquerda o cardiologista de John em Nova Iorque. Uma ou duas semanas depois do angiograma (entretanto, estáva­mos em Setembro desse ano e em Los Angeles ainda era Verão), fizeram uma angioplastia. Os resultados após duas semanas foram considerados «espectacula­res», como ficou demonstrado por um ecocardiograma de esforço. Outro ecocardiograma de esforço após seis meses confirmou o êxito. Nos anos seguintes, vários exames de tálio e, em 1991, mais um angiograma deram a mesma confirmação. Recordo-me de que John e eu tínhamos perspectivas diferentes quanto ao que acontecera em 1987. Na opinião dele, recebera uma sentença de morte temporariamente suspensa. Disse várias vezes após a angioplastia de 1987 que agora já sabia como ia morrer. Em minha opinião, a opor­tunidade fora providencial, a intervenção um êxito, o problema resolvido e o mecanismo corrigido. Sabes tanto como vais morrer como eu ou outra pessoa qual­quer, lembro-me de dizer-lhe. Percebo agora que a opinião dele era a mais realista.

 

Costumava contar os meus sonhos a John, não para os compreender, mas para me livrar deles e limpar a mente para o dia. «Não me contes o teu sonho», dizia-me quando eu acordava pela manhã, mas, no fim, ouvia.

Quando ele morreu, deixei de ter sonhos.

No princípio do Verão, comecei novamente a so­ nhar, pela primeira vez depois que aquilo aconteceu. Uma vez que já não posso atirar os sonhos para cima de John, descobri-me a pensar neles. Recordo-me de uma passagem de um romance que escrevi em meados da década de noventa, The Last Thing He Wanted:

 

Evidentemente, não precisávamos daquelas seis últimas notas para sabermos sobre o que eram os sonhos de Elena.

Os sonhos de Elena eram sobre a morte.

Os sonhos de Elena eram sobre o envelheci­mento.

Ninguém, aqui, tem (nem terá) os sonhos de Elena.

Todos nós sabemos disso.

O problema é que Elena não sabe.

 

O problema é que Elena continua distante, e principalmente de si própria, qual agente clandestino que conseguiu compartimentali­zar perfeitamente a sua operação, ao ponto de deixar de ter acesso às suas omissões.

Compreendo que a situação de Elena é igualzinha à minha.

Num sonho, estou a pendurar um cinto entrançado num armário e o cinto parte-se. Cerca de um terço do cinto cai-me nas mãos. Mostro os dois pedaços a John. Digo (ou é John quem diz, sabe-se lá, nos sonhos) que era o cinto preferido dele. Resolvo (mais uma vez, penso que resolvo, devia ter resolvido, a minha mente semidesperta diz-me que faça o que deve ser feito) arranjar-lhe um cinto entrançado idêntico.

Por outras palavras, arranjar o que parti, trazê-lo de volta.

A semelhança entre este cinto entrançado partido e o que encontrei no saco de plástico que me deram no New York Hospital não me escapa à atenção. Nem o facto de que continuo a pensar que eu o parti, eu o fiz, eu sou responsável.

Noutro sonho, John e eu vamos de avião a Hono­lulu. Vão muitas mais pessoas e reunimo-nos no aero­porto de Santa MÓnÍca. Quem tratou dos aviões foi a Paramount. Os cartões de embarque estão a ser dis­tribuídos por assistentes de produção. Há confusão. Há pessoas a embarcar, mas, de John, nem sinal. Fico preocupada que haja algum problema com o seu cartão de embarque. Resolvo sair do avião e esperar por ele no carro. Enquanto espero no carro, apercebo­-me de que os aviões estão a descolar um a um. Por fim, já só resto eu na pista de asfalto. O meu primeiro pensamento no sonho é de raiva: John embarcou num avião sem mim. O meu segundo pensamento trans­fere a raiva: a Paramount não teve connosco cuidado suficiente para nos colocar no mesmo avião.

O que estava a Paramount a fazer neste sonho exigia outra discussão, que não é relevante.

Enquanto penso no sonho, lembro-me de Tenko. Tenko, à medida que a série progride, conduz as pri­sioneiras inglesas à libertação do campo japonês e junta-as aos maridos em Singapura. Mas isto não corre uniformemente bem. Num determinado nível, algu­mas responsabilizavam o marido pela provação da prisão. Parecia existir a sensação, ainda que irracio­nal, de terem sido abandonadas. Ter-me-ei sentido abandonada, largada na pista, ter-me-ei sentido zan­gada com John por me ter deixado? Será possível sentir raiva e simultaneamente sentir-me responsável?

       Sei qual é a resposta que um psiquiatra daria a essa pergunta.

       A resposta teria a ver com o bem conhecido modo como a raiva gera culpa e vice-versa.

Não é que não acredite na resposta, mas, para mim, é menos sugestiva do que a imagem não exami­nada, o mistério de ser deixada, sozinha, na pista do aeroporto de Santa Mónica, vendo os aviões descola­rem um a um.

Todos nós sabemos disso.

O problema é que Elena não sabe.

       Acordo, parece-me que às três e meia da madru­gada, e encontro um televisor ligado para a MSNBC. Ou Joe Scarborough, ou Keith Olbermann, está a falar com um casal, marido e mulher, passageiros num voo de Detroit para Los Angeles, o Northwest 327 (na verdade, escrevo isto para contar a John), onde se diz ter ocorrido uma «tentativa terrorista». Parece que o incidente envolveu catorze homens aparentemente «árabes», que, a certa altura, após terem descolado de Detroit, começaram a juntar-se ao pé da porta do lavabo, entrando um a um.

O casal que estava a ser entrevistado na televisão conta que trocou sinais com a tripulação.

O avião aterrou em Los Angeles. Os «árabes», que tinham todos eles «vistos caducados» (isto pareceu à MSNBC mais estranho do que me pareceu a mim), foram detidos e depois libertos. Toda a gente, inclu­sive o casal da televisão, foi à sua vida. Portanto, não foi «um ataque terrorista», o que pareceu transformar aquilo numa «tentativa terrorista».

No sonho, preciso de discutir isto com John.

Ou até isso era um sonho?

O director dos sonhos, quem quer que seja, im­portar-se-á?

       Só sonhando ou escrevendo consigo descobrir o que penso?

Quando os crepúsculos se tornaram mais longos em Junho obriguei-me a jantar na sala, onde havia luz. Depois de John morrer, comecei a comer sozinha na cozinha (a sala de jantar era grande de mais e fora na mesa da sala de estar que ele morrera), mas, quando os longos fins de tarde chegaram, tive a forte sensa­ção de que ele gostaria de que eu visse a luz. À medida que os crepúsculos encurtavam, retirava-me novamente para a cozinha. Comecei a passar mais tardes sozinha em casa. Estava a trabalhar, dizia eu. Quando chegou o mês de Agosto, estava de facto a trabalhar, ou a tentar trabalhar, mas também não queria andar por fora, exposta. Uma noite, descobri que tirara do armá­rio não um dos pratos que normalmente uso mas um prato rachado e desbotado de um serviço do Spode, praticamente todo quebrado ou lascado e de um pa­drão que já não se faz, o Wickerdale. Tratava-se de um serviço de cor creme, com uma cercadura de florinhas cor-de-rosa e azuis e folhas em branco-cru, que a mãe de John lhe dera para o apartamento que ele arren­dara na Rua Setenta e Três Este antes de nos casarmos. A mãe de John já morrera. John já morrera. E eu ainda tinha, do Spode Wickerdale, quatro pratos rasos, cinco pratos para salada, três pratos de sobremesa, uma única chávena para café e nove pires. Acabei por preferir estes pratos a todos os outros. No fim do Verão, andava a pôr a funcionar a máquina de lavar louça apenas com um quarto da carga só para ter a certeza de que pelo menos um dos quatro pratos rasos estaria limpo quando precisasse dele.

A certa altura do Verão, ocorreu-me que não pos­suía cartas de Iohn, uma sequer. Só muito raramente tínhamos estado longe um do outro ou separados du­rante muito tempo. Houvera uma, duas ou três sema­nas, aqui e ali, quando um de nós estava a fazer uma peça. Houvera um mês em 1975, quando dava aulas em Berkeley nos dias de semana e apanhava o avião para Los Angeles aos fins-de-semana. Houvera algu­mas semanas em 1988, quando John esteve na Irlanda a fazer pesquisas para Harp e eu na Califórnia a fazer a cobertura das primárias para as presidenciais.

Em todas essas ocasiões, faláramos ao telefone várias vezes por dia. Tínhamos facturas de telefone muito altas como parte do nosso acordo mútuo, do mesmo modo que pagávamos facturas altas aos hotéis que nos proporcionavam tirar Quintana da escola, apanhar o avião para algures e trabalharmos ambos ao mesmo tempo na mesma suíte. O que tinha em vez de cartas era uma recordação de uma dessas suítes de hotel: um pequeno relógio-despertador de laca preta, que ele me ofereceu num Natal em Honolulu em que estive­mos a reescrever gratuitamente o argumento de um filme que nunca foi realizado. Foi um dos muitos Natais em que trocámos não presentes, mas peque­nas coisas práticas com que fazíamos uma árvore. O relógio-despertador deixara de funcionar no ano anterior à sua morte, não podia ser reparado e, de­pois que ele morreu, não podia ser deitado fora. Nem sequer podia ser retirado da minha mesa -de-cabe­ceira. Tinha também um conjunto de canetas de feltro de cor, que me foi dado também nesse Natal, dentro do mesmo espírito. Fiz muitos desenhos de palmeiras nesse Natal, palmeiras que se agitavam ao vento, pal­meiras de copas caídas, palmeiras inclinadas pelas tempestades de Dezembro. As canetas de feltro há muito que secaram, mas, também estas, não podiam ser deitadas fora.

Recordo-me de ter tido nessa particular véspera de Ano Novo em Honolulu uma sensação de bem­-estar tão profunda que não me apetecia dormir. Através do serviço de quartos, tínhamos encomen­dado golfinho e salada de alface com vinagreta para os três. Tínhamos tentado dar um ar festivo fazendo colares de flores nos computadores que estávamos a autilizar para modificar o argumento e imprimindo-as. Encontrámos velas, acendemo-las e tocámos os discos que Quintana embrulhara e pusera sob a árvore. John estivera a ler na cama e adormecera por volta das onze e meia. Quintana descera para ver o que estava a acontecer. Fiquei a ver John dormir, sabia que Quintana se encontrava em segurança, já costumava descer, neste hotel, para ver o que estava a acontecer (umas vezes sozinha, outras com Susan Traylor, que vinha frequentemente com Quintana quando estáva­mos a trabalhar em Honolulu) desde os seus seis ou sete anos. Sentei-me na varanda que dava para o campo de golfe do Waialae Country Club, acabei a garrafa de vinho que tínhamos aberto ao jantar e fiquei a ver os fogos-de-artifício por toda Honolulu.

Recordo-me de um derradeiro presente de John. Foi no meu aniversário, 5 de Dezembro de 2003. Começara a nevar em Nova Iorque cerca das dez da manhã, à tarde já havia vinte centímetros de neve acumulada e esperava-se quase outro tanto. Lembro­-me de que a neve tombara em avalanche do telhado de ardósia da Igreja Episcopal de São Tiago para a rua. O plano para nos encontrarmos com Quintana e Gerry no restaurante foi cancelado. Antes do jantar, John sentou-se junto da lareira na sala de estar e pôs-se a ler em voz alta para eu ouvir. O livro que estava a ler era um romance meu, A Book of Common Prayer, que por acaso ele tinha na sala porque o estava a reler a fim de ver como é que algo resultava tecnicamente. A sequência que ele estava a ler em voz alta era uma em que Leonard, marido de Charlotte Douglas, visita a narradora, Grace Strasser-Mendana, e lhe dá a saber que o que está a acontecer no país que a família dela governa não vai acabar bem. A sequência é compli­cada (era de facto a sequência que John tencionara reler para ver como é que funcionava tecnicamente), é interrompida por outra acção e exige que o leitor apanhe o subtexto do que Leonard Douglas e Grace Strasser-Mendana dizem um ao outro. «Caramba», disse-me John ao fechar o livro. «Não me voltes a dizer que não sabes escrever. O meu presente de aniversário é isto.»

       Recordo-me de que as lágrimas me vieram aos olhos.

       Estou a senti-las agora.

       Em retrospectiva, fora este o meu pressentimento, a minha mensagem, o nevão precoce, o presente de aniversário que ninguém mais poderia dar-me.

       Restavam a John vinte e cinco noites de vida.

 

Chegou uma altura, no Verão, em que comecei a sentir-me frágil e instável.

Se embatia com a sandália no passeio, tinha de correr alguns passos para evitar a queda. E se não conseguisse evitar? Se caísse? Que ia eu quebrar, quem ia ver o sangue a escorrer-me pela perna, quem cha­maria o táxi, quem me faria companhia nas Urgên­cias? Quem estaria comigo quando eu voltasse para casa?

Deixei de usar sandálias. Comprei dois pares de ténis Puma e passei a usá-los exclusivamente.

Comecei a deixar luzes acesas a noite inteira. Se a casa estivesse às escuras, não podia levantar-me para tomar uma nota, procurar um livro ou certificar-me de que desligara o forno. Se a casa estivesse às escuras, ficava deitada, imóvel, alimentando visões de perigos domésticos, os livros que podiam cair da estante e atingir-me, o tapete que podia escorregar no corredor, o tubo da máquina de lavar louça que podia ter inun­dado a cozinha sem que isso se visse no escuro e que podia electrocutar quem acendesse uma luz para veri­ficar o forno. Que era mais do que simples e prudente precaução, chamou-me a atenção uma tarde, quando um conhecido, um jovem escritor, apareceu para me perguntar se podia escrever sobre o meu perfil. Ouvi­-me dizer em tom apressado que muito possivelmente não se podia escrever sobre mim. Não estava em con­dições de que escrevessem sobre mim. Ouvi-me a salientar isto e a lutar para recuperar o equilíbrio e evitar a queda.

Pensei nisto mais tarde.

       Apercebi-me de que, por enquanto, não podia confiar em mim mesma para apresentar ao mundo um rosto coerente.

Uns dias depois, estava a empilhar alguns exem­plares da Daedalus que andavam espalhados pela casa. Empilhar revistas parecia-me nessa altura o limite do que conseguia fazer em termos de organizar a minha vida. Tendo o cuidado de não levar demasiado longe este limite, abri um número da Daedalus. Havia uma história de Roxana Robinson intitulada «Blind Man». Nessa história, um homem conduz debaixo de chuva à noite para ir fazer uma palestra. O leitor apercebe-se dos sinais de perigo: o homem não consegue lembrar­-se de imediato do tema da palestra, mete o pequeno carro alugado pela faixa de maior velocidade, sem reparar na aproximação da polícia de trânsito, há referências a uma Juliet, a quem aconteceu qualquer coisa desagradável. Gradualmente, ficamos a saber que Juliet era filha desse homem, que, na primeira noite em que ficou sozinha, após ter sido suspensa da Universidade e readmitida e ter passado algumas se­manas a restabelecer-se no campo com os pais e a irmã, tomara cocaína suficiente para rebentar uma artéria do cérebro e morrera.

Um dos vários patamares em que a história me incomodou (sendo o mais óbvio a artéria que reben­tara no cérebro da jovem) foi este: o pai tornara-se frágil, instável. O pai sou eu.

De facto, conheço Roxana Robinson superficial­mente. Penso em telefonar-lhe. Ela sabe algo que eu apenas começo a aprender. Mas seria insólito, intro­metido, telefonar-lhe: só me encontrei com ela uma vez num beberete. Em vez de lhe telefonar, penso em pessoas que sei que perderam um marido, mulher ou filho. Penso principalmente no aspecto que essas pes­soas tinham quando as encontrara inesperadamente- na rua, por exemplo, ou ao entrar num aposento ­durante pouco mais ou menos um ano após a morte. O que me chocou, em todos os casos, foi o seu ar vul­nerável, em carne viva.

Quão frágeis, percebo agora!

Quão instáveis!

Abro outro número da Daedalus, este dedicado ao conceito de «felicidade». Um trabalho sobre a feli­cidade, trabalho com colaboração de Robert Biswas­-Diener, da Universidade de Oregon, Ed Diener e Maya Tamir, da Universidade de Illinois, em que Cham­paign-Urbana, observava que embora «as investiga­ções tenham demonstrado que as pessoas conseguem adaptar-se a um amplo leque de bons e maus acon­tecimentos da vida em menos de dois meses», restam «alguns acontecimentos aos quais as pessoas só muito devagar se adaptam, ou são incapazes de se adaptarem completamente». O desemprego era um desses acon­tecimentos. «Também verificámos», acrescentavam os autores, «que a viúva média leva muitos anos após a morte do cônjuge para recuperar o seu anterior nível de satisfação com a vida.»

       Seria eu «a viúva média»? Qual teria sido de facto o meu «anterior nível de satisfação com a vida»?

Consulto um médico, consulta de rotina. Ele per­gunta-me como estou. Não devia ser uma pergunta imprevisível no consultório de um médico. No entanto, rebento subitamente em lágrimas. Este médico é um amigo. John e eu fomos ao casamento dele. Casou com a filha de uns amigos nossos que viviam do outro lado da rua mesmo à nossa frente em Brentwood Park. A cerimónia realizou-se sob o jacarandá que eles tinham. Nos primeiros dias após a morte de John, este médico fora lá a casa. Quando Quintana esteve no Beth Israel North, ele subira comigo num domingo à tarde e conversara com os médicos do serviço. Quando Quintana estivera no Columbia - Presbyterian, que era o seu próprio hospital embora ela não fosse sua pa­ciente, ele fora vê-la todas as noites. Quando Quin­tana estava na UCLA e ele por acaso se encontrava na Califórnia, tirou uma tarde para ir ao Serviço de Ciên­cias Neurológicas e conversar com os médicos. Conver­sou com eles e depois conversou com o pessoal da Neurologia do Columbia e, a seguir, explicou-me tudo. Fora simpático, prestável, encorajador, um verdadeiro amigo. Em troca, eu estava a chorar no seu consul­tório porque ele me perguntara como é que eu estava.

«Simplesmente não consigo ver o lado de cima disto», ouvi-me dizer à guisa de explicação.

Mais tarde, o meu amigo disse-me que se John esti­vesse ali no consultório teria achado graça, tal como ele também achara. «Evidentemente que sabia o que queria dizer e John também teria sabido, você queria dizer que não conseguia ver a luz ao fundo do túnel.»

Concordei, mas, de facto, não era exactamente isso. O que eu queria dizer era mesmo o que dissera: não conseguia ver o lado de cima disto.

Ao pensar na diferença entre as duas frases, aper­cebi-me de que a impressão que tinha de mim mesma era de alguém capaz de procurar e de encontrar o lado de cima em qualquer situação. Acreditara na lógica das canções populares. Procurara o lado bom das coisas. Caminhara através de tempestades. Ocorreu­-me que essas canções nem sequer faziam parte da minha geração. Eram as canções e a lógica da gera­ção ou das duas gerações anteriores à minha. A mú­sica da minha geração era Les Paul e Mary Ford, «How High the Moon», uma lógica totalmente dife­rente. Ocorreu-me também - embora não fosse um pensamento original, para mim era novo -, que a ló­gica dessas canções mais antigas se baseava na auto­compaixão. A intérprete da canção que falava de se procurar o lado bom das coisas acreditava que as nu­vens tinham vindo na sua direcção. A intérprete da canção que falava de se caminhar através das tem­pestades partia do princípio de que, se assim não fosse, a tempestade a derrubaria.

Dizia continuamente a mim mesma que tivera sorte a vida inteira. A questão, do meu ponto de vista, era que isto não me dava o direito de considerar que já não tinha sorte.

       Era o que se costuma denominar de ser superior à questão da autocompaixão.

       Eu mesma acreditava nisso.

bastante mais tarde comecei a interrogar-me:

Que tem a «sorte» a ver exactamente com isto? Pen­sando bem, não conseguia encontrar nenhum verdadeiro exemplo de «sorte» na minha história. «Foi uma sorte», disse eu uma vez a uma médica depois de um exame ter revelado um problema solucionável, mas que, não tratado, seria menos solucionável. «Não lhe chamaria sorte», respondeu a médica, «chamar-lhe-ia um bom planeamento do jogo.» ) Eu mesma não acre­ ditava também que a «má sorte» matara John e ata­ cara Quintana. Uma vez, ainda Quintana estava na Escola Feminina de Westlake, e falava do que julgava ser uma distribuição desigual de más notícias. No nono ano, voltara para casa após um retiro em Yosemite e soube que o tio Stephen se suicidara. No décimo pri­ meiro ano, fora acordada em casa de Susan às seis e meia da manhã para lhe dizerem que Dominique tinha sido assassinada. «A maior parte das pessoas de Westlake com quem me dou nem sequer conhe­cem ninguém que tenha morrido», disse ela, «e eu, desde que lá estou, já tive um assassínio e um suicídio na família.»

       «No fim, ficamos todos empatados», disse John. Resposta que me deixou atónita (que queria ele signi­ ficar, não era capaz de dizer algo mais agradável?), mas a resposta satisfê-la aparentemente.

       Vários anos mais tarde, depois de a mãe e o pai de Susan terem morrido com um ou dois anos de intervalo, Susan perguntou-me se eu me lembrava de John ter dito a Quintana que no fim ficávamos todos empatados. Respondi-lhe que me lembrava. «Tinha razão», disse Susan. «Ficamos empatados.»

Recordo-me de me sentir chocada. Nunca me ocorrera que John queria dizer que todos nós havemos de receber más notícias. Tanto Susan como Quintana decerto que tinham interpretado mal. Expliquei a Susan que John quisera dizer algo totalmente dife­rente: quisera dizer que as pessoas que recebem más notícias acabam por ter a sua parte de boas notícias.      «Não foi nada disso que eu quis dizer», assegurou John.

       «Sabia o que ele queria dizer», disse Susan.

       Então eu não compreendera nada?

Vejamos esta questão da «sorte».

Não só não acreditava que a «má sorte» matara John e atacara Quintana, como, de facto, acreditava exactamente no oposto: acreditava que teria sido capaz de evitar o que quer que aconteceu. Só após o sonho sobre ter sido deixada sozinha na pista do aeroporto de Santa Mónica é que me ocorreu que havia um nível em que não me considerava realmente responsável. Responsabilizava John e Quintana, diferença signifi­cativa, mas que não me levava aonde eu precisava de estar. Ao menos uma vez na vida, deixa andar.

 

Uns meses depois de John ter morrido, em finais do Inverno de 2004, após o Beth Israel North e o Presbyterian, mas antes da UCLA, Robert Silvers, do The New York Review of Books, perguntou-me se eu queria que ele apresentasse o meu nome para obten­ção de credenciais para a cobertura das convenções de Verão dos democratas e dos republicanos. Olhei para as datas: final de Julho em Boston para a Convenção Democrática, a semana antes do Dia do Trabalho em Nova Iorque para a Convenção Republicana. Disse­-lhe que sim. Na altura, parecera-me uma maneira de me envolver com a vida do dia-a-dia sem precisar verdadeiramente de a viver por mais uma ou duas esta­ções' até que a Primavera tivesse chegado, o Verão também e o Outono se aproximasse.

       A Primavera chegara e desaparecera praticamente toda na UCLA.

       Em meados de Julho, Quintana teve alta do Rusk Institute.

Dez dias depois, fui a Boston para a Convenção Democrática. Não previra que a minha recente fragili­dade também iria para Boston, cidade destituída, em minha opinião, de associações potencialmente espinho­sas.

Estivera em Boston com Quintana apenas uma vez para a divulgação de um livro. Ficámos no Ritz. Nesta digressão, a paragem de que Quintana mais gostou foiem Dallas. Descobrira que DalIas era «toda branca».

«Queres dizer que não viste muita gente de Cor em Bostou», disse a mãe de Susan Traylor quando Quin­tana voltou para Malibu e contou a viagem. «Não», respondeu Quintana. «Quero dizer que não é a cores.» Nas últimas vezes em que tive de ir a Boston, fui sozi­nha e, de todas as vezes, planeara o dia de forma a poder voltar na última ponte aérea; a única vez de que me recordo de lá ter estado com John foi para a antes­ treia de A Absolvição e tudo o que lembro foi de ter almoçado com John no Ritz e de ter ido com ele a péaté ao Brooks Brothers para arranjar uma camisa e de ter ouvido, após o filme ter sido apresentado e as reacções avaliadas, esta desencorajadora afirmação das Suas perspectivas comerciais: A Absolvição poderá resultar muito bem com adultos com dezasseis ou mais anos. Foi esta a opinião dos indivíduos do marketing.

Não ficaria no Ritz.

Não havia necessidade de ir ao Brooks Brothers. As más notícias dadas pelos indivíduos do mar­ keting não me diriam respeito.

       Não me apercebi de que ainda havia possibilidade de erro senão quando me dirigia para o Fleet Center para a abertura da Convenção e desatei a chorar. O primeiro dia da Convenção Democrática foi a 26 de Julho de 2004. O dia do casamento de Quintana fora a 26 de Julho de 2003. Mesmo enquanto aguardava na fila de segurança, mesmo enquanto recolhia documentação no centro de imprensa, mesmo enquanto comprava um hambúrguer no Fleet Center e me sen­tava no degrau mais baixo da escada barricada para o comer, os pormenores voltaram de supetão. «Num outro mundo», era a frase que não me saía da cabeça. Quintana sentada ao sol na sala para fazer as tranças. John a perguntar-me qual das duas gravatas prefe­ria. Abrir as caixas de flores na relva no exterior da catedral e sacudir a água dos colares de flores. John a fazer um brinde antes de Quintana partir o bolo. O prazer que ele sentiu com o dia e com a festa e a felicidade transparente dela. «Mais do que um dia mais», segredara-lhe ele antes de a conduzir ao altar.

«Mais do que um dia mais», segredara -lhe nos cinco dias e cinco noites em que a fora ver à UCI do Beth Israel N orth.

       «Mais do que um dia mais», segredara -lhe na ausência dele nos dias e noites que se seguiram.

Como costumavas dizer-me, disse ela, de vestido preto, na Catedral de São João-o-Divino, no dia em que entregámos as cinzas de John.

Recordo- me de ter sido presa da esmagadora con­vicção de que tinha de sair do Fleet Center e já. Sómuito poucas vezes passei por momentos de pânico, mas o que a seguir se instalou foi reconhecidamente pânico. Recordo-me de que tentei acalmar-me pen­sando naquilo como num filme de Hitchcock, em que cada cena é planeada para aterrorizar, mas é, em última análise, um artifício, um jogo. Havia a pro­ximidade do sector que me fora destinado: rede que continha os balões que seriam largados. Havia as si­lhuetas que se moviam nos passadiços elevados. Havia o vapor ou fumo que se desprendia de um respira­douro sobre os camarotes.

Havia, quando fugi do meu lugar, os corredores que parecia que não davam para lado nenhum, misteriosamente desertos, as paredes inclinadas e distorcidas à minha frente (estava a ver um filme de Hitchcock e só podia ser A Casa Encan­ tada). Havia as escadas rolantes imobilizadas. Havia os elevadores que não respondiam quando se carregava no botão. Havia, assim que consegui descer as escadas, os comboios vazios e paralisados no seu lugar atrás da parede de vidro inteiriça (também inclinada e distorcida à medida que me aproximava) que dava para as linhas da Estação Norte. Saí do Fleet Center. Vi o final da sessão dessa noite na televisão do meu quarto na Parker House. Havia qualquer coisa na­ quele quarto da Parker House, quando entrei lá pela primeira vez no dia anterior, algo de déjà vu e que afastara da mente. Só agora, enquanto via televisão e ouvia o aparelho do ar condicionado ligar e desligar automaticamente é que me lembrei: tinha ficado num quarto igual àquele na Parker House durante umas noites nos anos em que andara em Berkeley. Estivera em Nova Iorque para uma promoção universitária que a Mademoiselle então dirigia (o programa Guest Editor, imortalizado por Sylvia Plath em A Campâ­nula de Vidro) e voltava para a Califórnia via Bóston e Quebeque, um itinerário «educativo» arranjado – em retrospectiva, vejo que sonhadoramente - pela minha mãe. O ar condicionado desligava-se e ligava-se auto­ maticamente já em 1955. Lembro-me de que dormia pela tarde dentro, infeliz, depois apanhava o metro para Cambridge, onde vagueava sem destino e voltava a regressar de metro.

Estes fragmentos de 1955 chegavam-me de forma tão esfrangalhada, ou «manchada», ou mesmo «turva» (que fazia eu em Cambridge, que podia eu ter feito em Cambridge?), que tinha dificuldade em agarrá-los, mas tentava, porque enquanto andasse a pensar no Verão de 1955 não pensaria em John nem em Quin­tana.

No Verão de 1955 apanhei um comboio de Nova Iorque para Boston.

No Verão de 1955 apanhei outro comboio de Boston para o Quebeque. Fiquei num quarto do Châ­teau Frontenac que não tinha quarto de banho pri­vativo.

As mães tentam sempre pressionar as filhas a faze­ rem os itinerários com que elas mesmas sonharam? Eu fiz o mesmo?

Isto não estava a dar resultado.

Tentei ir ainda mais atrás, antes de 1955, a Sacra­mento e aos bailes liceais da quadra natalícia. Parecia seguro. Pensava na maneira como dançávamos, jun­tinhos. Pensava nos locais junto ao rio para onde íamos depois dos bailes. Pensava no nevoeiro junto ao pare­dão no regresso a casa.

Adormecia concentrando-me no nevoeiro junto ao paredão.

Acordei às quatro da manhã. O problema quanto ao nevoeiro no paredão era que não se conseguia ver a linha branca, alguém tinha de ir a pé à frente a mostrar o caminho ao condutor. Infelizmente, hou­vera outro lugar na minha vida onde o nevoeiro era tão espesso que eu tinha de ir a pé adiante do carro. A casa na península de Palos Verdes.

Aquela para onde levámos Quintana quando ela tinha três dias de idade.

Quando saíamos da Harbor Freeway, atravessá­ vamos San Pedro e nos dirigíamos para o caminho sobre o mar, deparávamos com nevoeiro.

       Tínhamos (eu tinha) de sair do carro e caminhar ao longo da linha branca.

       O condutor do carro era John.

       Não me arriscava a ficar à espera do pânico que se seguia. Apanhava um táxi para Logan. Enquanto tomava um café no Starbucks ao pé da carrinha da Delta, evitava olhar para a sua grinalda decorativa de tiras de metal vermelhas, brancas e azuis, provavel­mente concebidas como um toque festivo da «conven­ção» mas, pelo contrário, cintilando com ar de aban­dono - Natal nos trópicos. Mele Kalikimaka. Feliz Natal em havaiano. O relógio-despertador de lacapreta que não sou capaz de deitar fora. As canetas de feltro secas que não sou capaz de deitar fora. Na via­ gem de avião para La Guardia, lembro-me de pensar que as coisas mais belas que já vira tinham sido todas elas vistas de um avião. O modo como o Oeste ameri­cano se expande. O modo como, num voo polar sobre o Árctico, as ilhas do mar dão imperceptivelmente lugar a lagos em terra. O mar entre a Grécia e Chipre pela manhã. Os Alpes a caminho de Milão. Vi tudo isso com John.

       Como podia eu regressar a Paris sem ele, como podia eu regressar a Milão, a Honolulu, a Bogotá?

       Nem sequer podia ir a Boston.

Mais ou menos uma semana antes da Convenção Democrática, Dennis Overbye do The New York Times relatara uma história que envolvia Stephen W. Haw­king. Numa conferência em Dublin, segundo o Times, o doutor Hawking disse que estava enganado trinta anos antes quando afirmara que a informação engo­lida por um buraco negro nunca podia ser recuperada. Esta mudança de opinião era «de grandes consequên­cias para a ciência», segundo o Times, «porque se o doutor Hawking tivesse razão, teria violado um dogma básico da física moderna: que é sempre possível in­verter o tempo, passar o filme proverbial de trás para a frente e reconstruir o que aconteceu, por exemplo, na colisão de dois automóveis ou no colapso de uma estrela que morre e se transforma num buraco negro». Recortei esta história e levei-a comigo para Boston.    Havia na história algo que me parecia urgente, mas só soube o que era um mês depois, na primeira tarde da Convenção Republicana no Madison Square Garden. Estava na escada rolante da Torre C. A última vez em que estivera numa dessas escadas, no Garden, fora com John, em Novembro, na noite antes de irmos para Paris. Tínhamos ido com David e Jean Halbers­tam ver jogar os Lakers contra os Knicks. David arran­jara bilhetes através de David Stern, ligado à NBA. Ganharam os Lakers. A chuva escorria em grande quantidade pelo vidro junto da escada rolante. «Dá sorte, é um presságio, uma maneira óptima de come­çar esta viagem», lembro-me de John ter dito. Não se referia aos lugares, que eram bons, não se referia ao facto de os Lakers terem ganho, nem se referia à chuva, referia -se ao facto de estarmos a fazer uma coisa que geralmente não fazíamos, o que se tornara para ele num problema. Não nos andávamos a diver­tir, começara a observar recentemente. Podia objectar (não fizemos isto?, não fizemos aquilo?), mas tam­bém sabia a que é que ele se referia. Referia -se a fazer­ mos coisas, não porque se esperava que as fizéssemos, nem porque sempre as fizéramos ou devíamos fazer, mas porque queríamos fazê-las. Referia-se a querer­mos, referia-se a vivermos.

       Fora por causa da viagem a Paris que tínhamos discutido.

       Esta viagem a Paris era a que ele dissera que tinha de fazer, ou nunca mais voltaria a ver Paris.

       Quanto a mim, continuava na escada rolante da Torre C.

       Outro vórtice que se revelava.

       A última vez que cobri uma convenção no Madison Square Garden foi em 1992, a Convenção Democrática.

John esperava que eu chegasse da cidade às onze da noite ou perto disso para jantarmos juntos. Íamos a pé até ao Coco Pazzo naquelas noites quentes de Julho e dividíamos uma dose de massa e uma salada numa das mesinhas livres ao pé do bar. Acho que nunca discutimos a Convenção Democrática durante esses jantares tardios. No domingo à tarde, antes de a Convenção Democrática começar, falei-lhe em ir comigo à cidade assistir a uma conferência de Louis F arrakhan que acabou por não se realizar e, entre a natureza improvisada do programa e o regresso à baixa a partir da Rua Cento e Vinte e Cinco, a sua tolerância para com a Convenção Democrática de 1992 esgotara-se consideravelmente.

       Continuando.

John esperava todas as noites para jantar comigo. Pensava em tudo isto na escada rolante da Torre C e subitamente ocorreu-me que passara um ou dois minutos naquela escada rolante a pensar na noite de Novembro de 2003 antes de partirmos para Paris e naquelas noites de Julho de 1992 quando jantávamos tardiamente no Coco Pazzo e na tarde em que ficára­mos na Rua Cento e Vinte e Cinco à espera da con­ferência de Louis Farrakhan que nunca aconteceu. Estivera naquela escada rolante a meditar naqueles dias e noites sem pensar uma única vez que podia ter modificado os resultados. Apercebi-me de que desta a última manhã de 2003, a manhã a seguir à morte dele, eu andara a tentar inverter o tempo, passar o filme de trás para a frente.

Tinham-se passado oito meses, estava-se a 30 de Agosto de 2004, e eu continuava a tentar.

A diferença é que durante esses oito meses andara a tentar substituir uma bobina alternativa e agora estava a tentar apenas reconstituir a colisão, o colapso da estrela que morrera.

 

Disse que sabia a que se referia John quando dizia que não nos andávamos a divertir.

O que ele queria dizer era uma coisa que tinha a ver com Joe e Gertrude Black, um casal que conhe­cemos na Indonésia, em Dezembro de 1980. Estávamos lá numa viagem de intercâmbio cultural, dando pales­tras e conhecendo escritores e universitários indoné­sios. Os Blacks tinham aparecido numa aula, uma manhã, na Universidade de Gadjah Mada, em Jacarta. Eram um casal americano, aparentemente à vontade no remoto e em muitos aspectos estranho trópico de Java Central, de rostos francos e espantosamente lumi­nosos. «As teorias críticas de Mr. I. A. Richards. Que pensar?», lembro-me de que um estudante me pergun­tou nessa manhã. Joe Black andava então na casa dos cinquenta anos, Gertrude era um ou dois anos mais nova, mas também pelos cinquenta, suponho. Ele apo­sentara-se da Fundação Rockefeller e fora para Jacarta ensinar Ciências Políticas em Gadjah Mada. Crescera no Utah. Quando jovem, entrara como figurante no filme de John Ford Forte Apache. Ele e Gertrude tinham quatro filhos, um dos quais, disse ele, fora fortemente influenciado pela década de sessenta.

conversámos duas vezes com os Blacks, uma vez em Gadjah Mada e outra no dia seguinte no aeroporto quando eles foram despedir-se de nós, mas qualquer dessas conversas foi curiosamente franca, como se nos tivéssemos encontrado isolados numa ilha. Durante anos, John falou muitas vezes de Joe e Gertrude Black, dando-os sempre como exemplos do que ele consi­ derava o melhor tipo de americanos. Para ele, repre­ sentavam algo de pessoal. Eram modelos da vida que ele queria que acabássemos por viver. Como voltara a falar deles uns dias antes de morrer, procurei no computador de John os seus nomes. Encontrei os nomes nUm ficheiro intitulado «AAA, Pensamentos ao acaso», um dos ficheiros onde guardava notas para um livro que não havia meio de levantar voo.

A nota após os nomes era crÍptica: «Joe e Gertrude Black: O conceito de serviço.»

       Também sabia o que ele queria dizer com isso.

       Ele gostaria de ser Joe e Gertrude Black. Também eu. Não o conseguíramos. «Malbaratar dinheiro ou tempo», era uma definição das palavras cruzadas dessa manhã. A palavra definida tinha onze letras, «desperdiçar». Era o que tínhamos feito? Era o que folIn pensava que tínhamos feito?

       Por que é que não lhe dei ouvidos quando ele disse que não andávamos a divertir-nos?

       Por que é que não me mexi de forma a mudar a nossa vida?

Segundo a datação do computador, o ficheiro intitulado «AAA, Pensamentos ao acaso» fora mo­dificado pela última vez às treze horas e oito minu­tos do dia 30 de Dezembro de 2003, dia da sua morte, seis minutos após eu ter gravado o ficheiro que ter­minava com Como é que uma «gripe» evolui para uma infecção generalizada? Ele estaria no seu escri­tório e eu estaria no meu. Não consigo parar e vou para onde isto me leva. Devíamos ter estado juntos. Não necessariamente numa sala de aula na ilha de Java, não tenho ilusões suficientes sobre ambos para achar que o cenário estaria intacto e ele também não se refe­ria a uma sala de aula na ilha de Java), mas juntos. O ficheiro intitulado «AAA, Pensamentos ao acaso» tinha oitenta páginas. O que foi que ele acrescentou ou modificou e gravou às treze horas e oito minutos daquela tarde, não tenho maneira de saber.

 

Ador acaba por ser um lugar que nenhum de nós conhece senão quando chegamos lá. Prevemos (sabemos) que alguém que nos é querido pode morrer, mas não olhamos para lá dos poucos dias ou semanas que se seguem imediatamente a essa morte imaginada. Desconstruímos a natureza desses mesmos escassos dias ou semanas. Podemos esperar, se a morte for repentina, sentir choque. Não esperamos que esse cho­que seja obliterante e desorganizador tanto do corpo como da mente. Podemos esperar sentimo-nos pros­trados, inconsoláveis, enlouquecidos com a perda. Não esperamos ficar literalmente doidos, pessoas calmas que acreditam que o marido está prestes a voltar e vai precisar dos sapatos. Na versão da dor por nós imagi­nada, o modelo será a «cura». Prevalecerá um certo movimento em frente. Os piores dias serão os primei­ros. Imaginamos que o momento que mais severa­mente nos porá à prova será o funeral, após o qual ocorrerá aquela hipotética cura. Quando prevemos o funeral, perguntamo-nos se seremos capazes de «passar por isso», de nos levantarmos para a ocasião, de exibir a «força» que invariavelmente é apontada como a reacção correcta à morte. Prevemos que temos de cou­raçar-nos para o momento: serei capaz de cumpri­mentar as pessoas, serei capaz de sair de cena, serei capaz, ao menos, de me vestir nesse dia? Não temos maneira de saber que o problema não é esse. Não temos maneira de saber que o funeral em si será anódino, uma espécie de regressão sob narcose, durante a qual nos envolvemos no carinho dos outros e na gravidade e significado da ocasião. Também não podemos conhe­cer antecipadamente ao facto (e aqui reside o âmago da diferença entre a dor conforme a imaginamos e a dor como ela é) a interminável ausência que se segue, o vazio, o verdadeiro oposto de significado, a impla­cável sucessão de momentos durante os quais nos confrontaremos com a experiência da ausência de significado.

Enquanto criança, pensava muito sobre a ausência de significado, que me parecia, naquela altura, a carac­terística negativa mais proeminente no horizonte. Após alguns anos de incapacidade de encontrar significado nos locais mais comummente recomendados, aprendi que conseguia encontrá -lo na geologia e assim fiz. Por sua vez, isto deu-me os instrumentos necessários para encontrar significado na litania episcopal, e mais intensamente nas palavras Assim como era no princí­pio, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos, que interpretava como descrição literal da constante mutação da terra, da infindável erosão de praias e montanhas, do inexorável deslocamento das estrutu­ras geológicas que era capaz de parir montanhas e ilhas e que de forma igualmente garantida as podia arrasar. Achei os terramotos, mesmo quando estava no meio deles, bastante satisfatórios, prova abrupta­mente revelada do esquema em acção. Que o esquema pudesse destruir as obras do ser humano talvez cons­tituísse uma mágoa pessoal, mas, no quadro mais lato que eu acabara por reconhecer, permanecia uma ques­tão de constante indiferença. Ninguém olhava para o pássaro*. Ninguém olhava para mim. Assim como era no princípio, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos. No dia em que foi anunciado que a bomba atómica fora largada sobre Hiroxima, foram estas a palavras que vieram imediatamente à minha mente de dez anos. Quando ouvi uns anos mais tarde falar de nuvens em forma de cogumelo sobre o local de ensaios do Nevada, estas foram novamente as palavras que me vieram à mente. Comecei a acordar antes de o dia nascer, imaginando que as bolas de fogo das explo­sões dos ensaios no Nevada iluminavam os céus de Sacramento.

Mais tarde, depois de me casar e ter uma filha, aprendi a descobrir igual significado nos rituais repe­tidos da vida doméstica. Pôr a mesa. Acender as velas. Alimentar a lareira. Cozinhar. Todos aqueles suflês, todo aquele creme de caramelo, todos aqueles estu­fados, almôndegas e canjas.

 

* Referência a um hino religioso de 1905, «No Eye Is On The Sparrow», música de Charles H. Gabriel e letra de Civilla D. Martin, que, por sua vez, se refere neste hino a Mateus 10, 29-31: «Não se vendem dois pássaros por uma pequena moeda? E nem um deles cairá por terra sem o consentimento do vosso Pai. Quanto a vós, até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados! Não temais, pois valeis mais do que muitos pássaros.» (N. da T.)

 

Lençóis lavados, pilhas de toalhas lavadas, lanternas em caso de temporal, água e comida suficientes para nos aguentarmos du­rante todo e qualquer evento geológico que nos surgisse pelo caminho. Estes fragmentos com que escorei as minhas ruínas, eram as palavras que então me vinham à mente. Esses fragmentos eram importantes. Acredi­tava neles. Que eu conseguisse encontrar significado na natureza intensamente pessoal da minha vida de esposa e mãe não me parecia incoerente com a des­coberta de significado na vasta indiferença da geologia e dos lançamentos de ensaio; os dois sistemas existiam para mim em pistas paralelas que por vezes convergiam, nomeadamente durante os tremores de terra. Na minha mente acrítica havia sempre uma secante. John e a minha morte, quando as pistas con­vergiriam para um tempo final. Encontrei recente­mente na Internet fotografias aéreas da casa na pe­nínsula de Palos Verdes onde vivemos no princípio de casados, a casa para onde levámos Quintana do St.. John's Hospital, em Santa Mónica, e onde a pusemos no berço ao pé do canteiro da glicínia do jardim. As fotos, parte de um projecto de levanta­mento da costa da Califórnia e cuja finalidade era documentar todo o litoral californiano, eram de leitura pouco conclusiva, mas a casa, tal como era quando lá vivíamos, dava a impressão de ter desaparecido. O pilar onde estava o portão parecia intacto, mas a restante estrutura não se me apresentava familiar. Parecia que havia uma piscina onde estavam antiga­mente a glicínia e o canteiro. A própria zona era iden­tificada como «desmoronamento de Portuguese Bend». Podia ver-se a falha na colina onde ocorrera o desmo­ronamento.

Também podia ver-se no sopé do cabo a furna onde costumávamos tomar banho quando a maré estava no ponto exacto.

O lago de águas límpidas.

Era uma das maneiras como podiam ter conver­gido os meus dois sistemas.

Podíamos estar a nadar na furna quando a maré a enchesse de água límpida, o cabo inteiro podia des­moronar-se e deslizar para o mar à nossa volta. O cabo inteiro a deslizar para o mar à nossa volta era o tipo de conclusão que eu conseguia prever. Não consegui prever a paragem cardíaca à mesa de jantar.

Sentamo-nos para jantar e a vida, como a conhece­mos, acaba.

A questão da autocompaixão.

       As pessoas que sofrem pensam imenso na auto­ compaixão. Preocupa-nos, assusta-nos, escrutinamos os pensamentos em busca de sinais. Tememos que os nossos actos revelem que «nos demoramos nela» - im­pressionante descrição da situação. Compreendemos a aversão que a maioria de nós tem por «nos demorar­mos nela». O luto visível lembra-nos a morte, que é interpretada como antinatural, como uma incapaci­dade de gerir a situação. «Falta-nos uma única pessoa e o mundo inteiro fica vazio», escreveu Philippe Aries acerca do problema desta aversão em Western Attitu­des toward Death. «Mas já não se tem o direito de se dizer isso em voz alta.» Lembramos reiteradamente a nós próprios que a nossa perda nada é quando com­parada com a perda experimentada (ou, pensamento pior ainda, não experimentada) por aquele ou aquela que morreu; este esforço de pensamento correctivo apenas serve para nos mergulhar mais profundamente no abismo da preocupação connosco mesmos. (Porque é que não vejo isso, porque é que sou tão egoísta.) A própria linguagem que usamos quando pensamos em autocompaixão trai a profunda repulsa com que a afrontamos: a autocompaixão é ter pena de nós mes­mos, a autocompaixão é chuchar no dedo, a auto­compaixão é coitadinha de mim, a autocompaixão éa doença a que os que sentem pena de si próprios se entregam ou onde até chafurdam. A autocompaixão continua a ser não só o mais comum, como o mais universalmente insultado dos defeitos de carácter, sendo considerada dado adquirido a sua destrutivi­dade pestilencial. «A nossa pior inimiga», assim lhe chamava Helen Keller. Nunca vi um animal selva­gem / que sentisse pena de si próprio, escreveu D. H. Lawrence numa homilia de quatro versos muitas vezes citada e que, quando analisada, se conclui estar isenta de qualquer significado que não seja tendencioso. Um passarinho cai morto de um galho / sem nunca ter sentido pena de si próprio.

Pode ser o que Lawrence (ou nós) gostaríamos de acreditar acerca dos animais selvagens, mas pense­mos nos golfinhos, que se recusam a comer após a morte de um companheiro. Pensemos nos gansos, que procuram o companheiro perdido até eles mesmos se desorientarem e morrerem. De facto, a dor da perda tem razões urgentes e até mesmo uma premente neces­sidade de que sintamos pena de nós mesmos. Maridos afastam-se, mulheres afastam-se, acontecem divórcios, mas esses maridos e essas mulheres deixam atrás de si teias de associações intactas, ainda quando acrimo­niosas. Só os sobreviventes a uma morte são deixados verdadeiramente sós. As conexões que constituíam a sua vida - tanto as conexões profundas, como as cone­xões aparentemente (até serem quebradas) insignifi­cantes - desapareceram, todas elas. John e eu estive­mos casados durante quarenta anos. Com excepção dos primeiros cinco meses de casados, em que John ainda estava a trabalhar para a Time, trabalhámos sempre ambos em casa. Estávamos juntos vinte e qua­tro horas por dia, facto que constituiu sempre uma fonte de alegria e ao mesmo tempo mau agouro para a minha mãe e tias. «Na riqueza e na pobreza, mas nunca ao almoço», uma ou outra dizia frequentemente nos primeiros anos do nosso casamento. Não consigo contar as vezes, num dia médio, em que algo surgia que eu sentia necessidade de dizer-lhe. Este impulso não acabou com a morte dele. O que acabou foi a possi­bilidade de resposta. Lia qualquer coisa num jornal que, normalmente, leria para ele ouvir. Reparava nal­guma mudança na vizinhança que podia interessar­-lhe: Ralph Lauren expandira-se com novos espaços entre as ruas Setenta e Um e a Setenta e Dois, por exemplo, ou o espaço vago onde costumava estar a livraria da Madison Avenue fora finalmente arrendado. Recordo-me de voltar uma manhã de meados de Agosto do Central Park com novidades urgentes para contar: o verde profundo de Verão das árvores desbo­tara da noite para o dia, a estação já estava a mudar. Precisamos de fazer planos para o Outono, lembro­-me de pensar. Precisamos de decidir onde tenciona­mos estar no dia de Acção de Graças, no Natal e no fim do ano.

Pouso as chaves na mesa atrás da porta antes de me lembrar plenamente. Não há ninguém para ouvir estas novidades, nenhum lugar para onde ir segundo um plano que não fizemos, o pensamento que não completámos. Não há ninguém para concordar, dis­cordar, refutar. «Acho que começo a perceber por que razão a dor se sente como uma ansiedade», escreveu C. S. Lewis após a morte da mulher. «Resulta da frus­tração de inúmeros impulsos que se tornaram habi­tuais. Pensamento após pensamento, sentimento após sentimento, acto após acto, tinham H. como seu objec­to. Actualmente, o alvo desapareceu. Por hábito, continuo a retesar uma flecha na corda, mas depois lembro-me e tenho de pousar o arco. Tantos cami­nhos levam a H. que meto por um qualquer. Mas nele surge agora uma fronteira inultrapassável. Tantos caminhos outrora; agora, tantos becos sem saída.»

Somos reiteradamente deixados, por outras pala­vras, sem outro foco senão nós mesmos, fonte de onde jorra com naturalidade a autocompaixão. De cada vez que isso acontece (e ainda acontece), sou de novo feri­da pela permanente impassibilidade da linha divisória. Pessoas que perderam o marido ou a mulher contam que sentem a presença dessa pessoa, que recebem con­selhos dessa pessoa. Uns relatam verdadeiras visões, que Freud descreveu em Luto e Melancolia como «apegar-se ao objecto através de uma psicose aluci­natória em que se vê o que se quer ver». Outros des­crevem não uma aparição visível, mas só «uma pre­sença muito fortemente sentida». Não senti nem uma coisa, nem outra. Houve algumas ocasiões (no dia em que pretendiam fazer a traqueotomia na UCLA, por exemplo) em que perguntei directamente a John o que havia de fazer. Disse que precisava da sua ajuda. Disse que não conseguia fazer aquilo sozinha. Disse tudo isto em voz alta, vocalizei as palavras, realmente.

Sou escritora. Imaginar o que alguém diz ou faz é-me tão natural quanto respirar.

Porém, em todas as ocasiões, essas súplicas pela sua presença só serviram para reforçar a minha cons­ciência do silêncio final que nos separava. Qualquer resposta que ele tenha dado só podia existir na minha imaginação, resultar da minha criatividade. Para mim, imaginar o que ele podia dizer apenas graças à minha criatividade parecer-me-ia obsceno, uma violação. Eu já não podia saber o que ele diria sobre a UCLA e a traqueotomia, não mais do que podia saber se ele pretendia deixar o «de» fora da frase sobre J. J. McClure, Teresa Kean e o tornado. Imaginávamos que sabíamos tudo o que o outro pensava, mas, de facto, acabei por chegar à conclusão de que não sabía­mos uma ínfima fracção do que havia para saber.

Quando alguma coisa me acontecer, dizia ele fre­quentemente.

       Não te vai acontecer coisa nenhuma, respondia­-lhe.

       Mas se acontecer.

Se acontecer, insistia ele. Se acontecesse, eu não devia, por exemplo, mudar-me para um apartamento mais pequeno. Se acontecesse, estaria rodeada de pes­soas. Se acontecesse, ia precisar de fazer planos para dar de comer a toda essa gente. Se acontecesse, casar­-me-ia novamente passado um ano.

Não compreendes, respondia-lhe.

E, de facto, não. Nem eu: éramos igualmente inca­pazes de imaginar a realidade da vida sem o outro. Esta história não é daquelas em que a morte do ma­rido ou da mulher vem a dar numa nova vida, se trans­forma no catalisador da descoberta de que «se pode amar mais do que uma pessoa» (pormenor tipicamente introduzido nesses relatos pelo filho precoce do enlu­tado). É evidente que se pode, mas um casamento é algo diferente. O casamento é memória, o casamento é tempo. «Ela não sabe as canções», lembro-me que um amigo de um amigo me disse após uma tentativa de repetição da experiência. O casamento não é só tempo: também é, paradoxalmente, a negação do tempo. Durante quarenta anos, vi-me através dos olhos de John. Não envelheci. Este ano, pela pri­meira vez desde os meus vinte e nove anos, apercebi­- me de que a imagem que tinha de mim mesma era de alguém significativamente mais jovem. Este ano, apercebi-me de que uma das razões por que era tan­tas vezes assaltada por recordações de Quintana aos três anos era a seguinte: Quando Quintana tinha três anos, eu tinha trinta e quatro. Lembro-me de Gerard Manley Hopkins: Margaret, choras por Goldengrove não crescer? e Foi para isso que o homem frustrado nasceu, / É por Margaret que choras.

Foi para isso que o homem frustrado nasceu.

Não somos animais selvagens idealizados.

       Somos seres mortais imperfeitos, conscientes dessa mortalidade, mesmo quando a repelimos, incapaci­tados pela nossa complicação própria, tão armadilha­dos que, quando choramos as nossas perdas, também nos choramos, para o melhor e para o pior, a nós.

Como éramos. Como já não somos. Como um dia não seremos de todo.

Os sonhos de Elena eram sobre a morte.

Os sonhos de Elena eram sobre o envelhecimento.

Ninguém, aqui, teve (nem terá) os sonhos de Elena. O tempo é a escola onde aprendemos, / O tempo é o fogo onde ardemos: Delmore Schwartz de novo.

Lembro-me de desprezar o livro que a viúva de Dylan Thomas, Caitlin, escreveu após a morte do ma­rido, Lejtover L_fe to Kill. Lembro-me da minha ati­tude de rejeição - censória, mesmo - relativamente à sua «auto compaixão» , à sua «choraminguice», ao seu «abandono». Leftover Lif'e to Kill foi publicado em 1957. Tinha eu vinte e dois anos. O tempo é a escola onde aprendemos.

 

Na época em que comecei a escrever este livro, Outubro de 2004, ainda não percebia como, por­quê ou quando John morrera. Estivera lá. Assistira quando a equipa da emergência médica tentara trazê­-lo de volta. Continuava sem saber como, porquê ou quando. No princípio de Dezembro de 2004, quase um ano após ele ter morrido, recebi finalmente o rela­tório da autópsia e os relatórios das Urgências que pedira primeiro ao New York Hospital, a 14 de Janeiro, duas semanas após aquilo acontecer e um dia antes de contar a Quintana que acontecera. Uma das razões por que foram precisos onze meses para receber os relatórios, percebi ao olhar para eles, foi que eu mesma me enganei ao escrever o endereço no impresso do requerimento. Nessa época, vivia no mesmo endereço, da mesma rua, no Upper East Side de Manhattan, havia dezasseis anos. Porém, o endereço que dei ao hospital foi o de uma outra rua onde John e eu vive­mos durante cinco meses imediatamente após o nosso casamento em 1964.

Um médico a quem falei disto encolheu os ombros, como se estivesse a contar-lhe uma história familiar.

Ou disse que estes «défices cognitivos» podiam estar associados ao stresse, ou disse que estes défices cognitivos podiam estar associados à dor da perda.

Uma das características desses défices cognitivos é que segundos depois de ele dizer, eu não fazia ideia do que ele dissera.

Segundo a folha do serviço de enfermagem das Urgên­cias do hospital, o telefonema para os serviços de emer­gência médica foi recebido às vinte e uma horas e quinze minutos de 30 de Dezembro de 2003. Segundo o diário mantido pelos porteiros, a ambulância chegou cinco minutos depois, às vinte e uma horas e vinte minutos. Nos quarenta e cinco minutos seguintes, se­gundo a folha de documentação de enfermagem, foram dados os seguintes medicamentos, ou por injecção muscular, ou por via intravenosa: atropina (três vezes), epinefrina (três vezes), vasopressina (quarenta uni­dades), amiodarona (trezentos miligramas), epine­frina em alta concentração (três miligramas) e nova­mente epinefrina em alta concentração (cinco miligra­mas). Segundo a mesma documentação, o doente foi entubado no local. Não tenho lembrança de uma entu­bação. Pode ter sido um engano da parte de quem elaborou a documentação, ou pode ser outro défice cognitivo.

Segundo o diário mantido pelos porteiros, a ambu­lância arrancou para o hospital às vinte e duas horas e cinco minutos.

Segundo a folha do serviço de enfermagem das Urgências do hospital, o doente foi recebido para triagem às vinte e duas horas e dez minutos.­

Foi descrito como assistólico e apneico. Não havia pulso palpável. Não havia pulso através de sonógrafo. O estado men­tal era não reactivo. A cor da pele era pálida. O índice da escala de coma de Glasgow era três, o índice mais baixo possível, indicando que as reacções dos olhos, verbais e motor as estavam todas ausentes. Viram-se lacerações no lado direito da testa e na cana do nariz. Ambas as pupilas estavam fixas e dilatadas. Notava­-se «lividez».

Segundo o registo do médico das Urgências, o doente foi examinado às vinte e duas horas e quinze minutos. A anotação do médico terminava assim: «Paragem cardíaca. MAC*. Provavelmente enfarte do miocárdio. Declaração da morte às vinte e duas horas e dezoito minutos.»

Segundo o mapa de fluxo de enfermagem, o tubo intravenoso foi retirado e o doente extubado às vinte e duas horas e vinte minutos. Às vinte e duas horas e trinta minutos, a anotação era «esposa junto da cama. George, assistente social, junto da cama com a esposa».

Segundo o relatório da autópsia, o exame mostrou uma estenose em mais de noventa e cinco por cento das artérias principal esquerda e descendente anterior esquerda. O exame mostrou também «leve palidez do miocárdio em ensaio de coloração, indicativo de en­farte agudo na distribuição da artéria descendente anterior esquerda».

 

1* Morto à chegada. (N. da T.)

 

Li o documento diversas vezes. Aquele compasso de espera indicava que o tempo gasto no New York Hos­pital fora, tal como eu pensara, apenas papelocracia, burocracia hospitalar, regularização de uma morte. Porém, de cada vez que lia as folhas oficiais, reparava num novo pormenor. Na minha primeira leitura do registo do médico das Urgências, não reparara, por exemplo, nas letras «MAC». Na minha primeira lei­tura do registo do médico das Urgências, provavel­mente ainda estava a assimilar a folha do serviço de enfermagem.

Pupilas «.fixas e dilatadas». PFD.

       Sherwin Nuland: «Aqueles jovens obstinados vêem as pupilas do seu doente a tornarem-se cada vez menos reactivas à luz e depois abrirem-se até serem grandes círculos fixos de negrume impenetrável. Relutantemente, a equipa pára os seus esforços... A sala está juncada dos destroços daquela campanha perdida… »

       Círculos fixos de negrume impenetrável.

       Sim. Foi o que a equipa da ambulância viu nos olhos de John no chão da nossa sala de estar.

       «Lividez.» Lividez após a morte.

Sabia o que significava «lividez» porque é uma palavra comum nas morgues. Os detectives costumam chamar a atenção para isso. Pode ser uma maneira de se determinar a hora da morte. Após a paragem da circulação, o sangue obedece à lei da gravidade e acumula-se no ponto onde o corpo repousa. Passa-se algum tempo até que este sangue acumulado se torne visível a olho nu. Só não conseguia lembrar-me de quanto tempo era necessário. Procurei «lividez» no manual de patologia legal que John tinha na estante por cima da secretária. «Embora a lividez seja variá­vel, por norma começa a formar-se logo a seguir àmorte e, em geral, é claramente perceptível dentro de uma ou duas horas.» Se a lividez era claramente per­ceptível aos enfermeiros da triagem por volta das vinte e duas horas e dez minutos, devia ter começado a formar-se uma hora antes.

Uma hora antes, estava eu a chamar a ambulância. O que significa que já estava morto.

Após aquele instante à mesa do jantar, nunca deixou de estar morto.

Agora já sei como vou morrer, dissera em 1987, após a artéria descendente anterior esquerda ter sido aberta por angioplastia.

       Sabes tanto como vais morrer como eu ou outra pessoa qualquer, respondi-lhe em 1987.

Chamamos-lhe a fazedora de viúvas, amigo, dis­sera-lhe o cardiologista em Nova Iorque a propósito da artéria descendente anterior esquerda.

Ao longo do Verão e do Outono, fora-me concen­trando cada vez mais na anomalia que podia ter per­mitido que aquilo acontecesse.

Na minha mente racional, sabia como acontecera. Na minha mente racional, falara com muitos médicos que me disseram como acontecera. Na minha mente racional, lera David J. Callans no The New England lournal of Medicine: «Embora a maioria dos casos de morte súbita devida a causas cardíacas envolva pacien­tes com doença da artéria coronária preexistente, a paragem cardíaca é a primeira manifestação deste problema subjacente em cinquenta por cento dos pacientes... A paragem cardíaca súbita é essencial­mente um problema de pacientes exteriores ao hos­pital; de facto, aproximadamente oitenta por cento dos casos de morte súbita por causas cardíacas ocorrem em casa. A taxa de êxito na reanimação de pacientes com paragem cardíaca exterior ao hospital é baixa, uma média de dois a cinco por cento nos principais centros urbanos... Os esforços de reanimação inicia­dos mais de oito minutos após o facto estão quase sem­pre condenados ao fracasso.» Na minha mente racio­nal, lera 8herwin Nuland em How We Die: «Quando uma paragem ocorre sem ser no hospital, só vinte a trinta por cento sobrevivem e esses são quase sempre os que reagem rapidamente a uma reanimação cardio­pulmonar. 8e não houver reacção aquando da entrada nas Urgências, as probabilidades de sobrevivência são virtualmente zero.»

Na minha mente racional, sabia disso.

No entanto, não estava a funcionar com a minha mente racional.

Estivesse eu a funcionar com a minha mente ra­cional e não estaria a alimentar fantasias que não esta­riam deslocadas numa vigília irlandesa. Por exemplo, não teria sentido, quando Julia Child faleceu, um alívio tão intenso, uma sensação tão acentuada de que isto está finalmente a organizar-se: John e Julia Child podiam jantar juntos (fora o meu pensamento imediato), ela podia cozinhar, ele podia fazer-lhe per­guntas sobre o OSS*, distrair-se-iam mutuamente, gos­tariam um do outro. Uma vez fizeram um pequeno-almoço juntos,­

 

* Office of Strategic Services. (N. da T.)

 

numa época em que ambos andavam a promover um livro. Ela autografara um exemplar de The Way to Cook e dera-lho.

       Encontrei o exemplar de The Way to Cook na cozinha e li a dedicatória.

       «Bon appétít para John Gregory Dunne», dizia.

       Bon appétit para John Gregory Dunne, Julia Child e o OSSo

       Nem, estivesse eu a funcionar com a minha mente racional, teria dado tanta atenção a histórias sobre «saúde» na Internet e anúncios de produtos farma­cêuticos na televisão. Por exemplo, atormentei-me com um anúncio da Bayer sobre aspirina de baixa concentração, da qual se dizia «reduzir significativa­mente» o risco de ataque cardíaco. Sabia muito bem como é que a aspirina reduz o risco de ataque cardíaco: impede que se formem coágulos no sangue. Também sabia que John andava a tomar Coumadin, um anti­coagulante muito mais forte. Mas, apesar disso, assal­tou-me a ideia disparatada de não ter dado a devida atenção à aspirina de baixa concentração. Atormentei­-me igualmente por causa de um estudo feito pelas universidades de San Diego e de Tufts, que demons­trava haver um crescimento de quatro vírgula sessenta e cinco por cento no número de mortes por ataques cardíacos na quinzena do Natal e Ano Novo. Atormen­tei-me por causa de um estudo da Vanderbilt, que demonstrava que a eritromicina quintuplicava o risco de paragem cardíaca quando tomada juntamente com os vulgares medicamentos para o coração. Atormen­tei-me por causa de um estudo sobre estatinas e o salto de trinta a quarenta por cento no risco de ataque car­díaco em pacientes que pararam de as tomar.

Ao lembrar-me disto, percebo quão receptivo somos à persistente mensagem de que podemos afas tar a morte.

E à mensagem punitiva correlativa, a de que, se a morte nos apanhar, só a nós próprios devemos cen­surar.

após ter lido o relatório da autópsia comecei a acreditar no que me diziam repetidamente: nada que ele ou eu tivéssemos feito ou deixado de fazer causou ou podia ter evitado a sua morte. John herdara um coração problemático. Que acabaria por matá-lo. A data em que o mataria já fora, por muitas inter­venções médicas, adiada. Quando essa data chegou mesmo, nenhuma acção que eu pudesse ter executado na nossa sala de estar - nenhum desfibrilhador do­méstico, nenhuma manobra de reanimação cardio­pulmonar, nenhuma ambulância de urgências total­mente equipada, nenhuma capacidade técnica para executar uma cardioversão em segundos com medi­cação intravenosa - poderia ter-lhe dado sequer um      dia mais.

O tal dia mais de Amo-te mais do que. Como costumavas dizer-me.

após ter lido o relatório da autópsia parei real­mente de tentar reconstruir a colisão, o colapso da estrela morta. O colapso estivera presente o tempo todo, invisível, insuspeito.

Estenose em mais de noventa e cinco por cento das artérias principal esquerda e descendente anterior esquerda.

       Enfarte agudo na distribuição da artéria descen­dente anterior esquerda.

       O cenário era esse. A artéria descendente anterior esquerda foi reparada em 1987 e esteve bem até que toda a gente se esqueceu dela e, depois, voltou a dete­riorar-se. Chamamos-lhe a fazedora de viúvas, amigo, dissera o cardiologista em 1987.

       Digo-vos que não viverei dois dias mais, disse Galvão.

       Quando alguma coisa me acontecer, dissera Jolm.

 

Tenho problemas em pensar em mim como viúva. Lembro-me de hesitar da primeira vez em que tive de fazer a cruzinha no quadradinho do «estado civil» de um impresso. Também tinha problemas em pensar em mim como esposa. Dado o valor que dava aos rituais da vida doméstica, o conceito de «esposa» não devia parecer-me difícil, mas parecia. Durante muito tempo depois de nos termos casado, tive pro­blemas com a aliança. Era suficientemente larga para me escorregar do dedo anelar esquerdo e, por isso, durante um ano ou dois, usei-a na mão direita. Depois de ter queimado o dedo direito ao tirar uma assadeira do frno, pus a aliança ao pescoço num fio de ouro. Quando Quintana nasceu e alguém lhe deu um anel de bebé, também o pus no fio de ouro.

Parece-me que deu resultado. Ainda hoje uso assim os anéis.

       «Tu queres um tipo diferente de mulher», dizia eu muitas vezes a John nos primeiros anos de casa­mento. Geralmente dizia isto quando regressávamos a Portuguese Bend depois de jantarmos na cidade. Era tipicamente a primeira descarga das guerras que começavam ao passarmos pelas refinarias ao lado do San Diego Freeway. «Devias ter casado com uma pes­soa mais parecida com Lenny.» Lenny era minha cunhada, mulher de Nick. Lenny recebia e almoçava com amigos, administrava a casa sem esforço, usava lindos vestidos e fatos franceses e estava sempre dis­ponível para cuidar de uma casa, dar um banho a um bebé ou levar visitas de fora da cidade à Disney­lândia. «Se eu quisesse casar com uma pessoa mais parecida com Lenny, teria casado com uma pessoa mais parecida com Lenny», dizia John, a princípio pacientemente e depois já nem tanto.

De facto, eu não fazia ideia de como ser esposa. Nos primeiros anos, prendia margaridas no cabelo, tentando conseguir um efeito de «noiva».

       Depois, fazia saias de algodão axadrezado iguais para mim e para Quintana, tentando parecer uma «Jovem mãe».

A recordação que tenho desses anos é que tanto John como eu improvisávamos e voávamos às cegas. Quando recentemente fui limpar uma gaveta com pro­cessos, deparei com uma pasta grossa etiquetada de «Planeamento». O próprio facto de fazermos pastas etiquetadas de «Planeamento» sugere quão pouco pla­neávamos. Também tínhamos «reuniões de planea­mento», que consistiam em sentar-nos com blocos de notas, enunciarmos em voz alta o problema do dia e depois, sem quaisquer tentativas posteriores de o resol­vermos, sairmos para almoçar. Esses almoços eram festivos como se estivéssemos a celebrar um trabalho bem feito. O Michael's, em Santa Mónica, era um para­deiro típico. Nessa pasta de «Planeamento», encontrei várias listas de Natal da década de setenta, algumas notas sobre chamadas telefónicas e, na parte mais volumosa da pasta, muitas notas, também datadas da década de setenta, e que tinham a ver com despesas e receitas projecta das. Um estado de espírito deses­perado perpassa por essas notas. Havia uma nota feita para o encontro com Gil Frank a 19 de Abril de 1978, quando estávamos a tentar vender a casa de Malibu para pagar a de Brentwood Park, sobre a qual já fizéramos um depósito de cinquenta mil dólares. Não conseguíamos vender a casa de Malibu porque choveu durante toda essa Primavera. Desmoronaram-se en­costas. A Pacific Coast Highway foi encerrada. Nin­guém conseguia sequer ir ver a casa, excepto se já vivesse na zona das inundações de Malibu. Ao longo de um período de algumas semanas, tivemos apenas um interessado, um psiquiatra que vivia na colónia de Malibu. Deixou os sapatos na rua à chuva para «apanhar o espírito da casa», andou descalço pelo chão de ladrilho e comunicou ao filho, que comuni­cou a Quintana, que a casa era «fria». A nota de 19 de Abril desse ano era a seguinte: Temos de assumir que não venderemos Malibu até ao fim do ano. Temos de assumir o pior, para que qualquer melhoria pareça ainda melhor.

Numa nota feita uma semana mais tarde, só con­sigo pensar numa «reunião de planeamento»: Discutir: Abandonar Brentwood Park? Comer os cinquenta mil dólares?

Duas semanas depois fomos para Honolulu, pen­sando fugir da chuva e pôr em ordem as nossas opções cada vez mais diminutas. Na manhã seguinte, ao vol­tarmos de nadar, havia uma mensagem: o sol voltara a brilhar em Malibu e tínhamos uma oferta dentro do que pedíamos.

Que nos encorajara a pensar que um hotel numa estância de Honolulu era o local apropriado para resolvermos a falta de dinheiro?

Que lição retirámos do facto de ter resultado? Vinte e cinco anos depois, confrontados com uma igual falta de dinheiro e igualmente decididos a re­solvê-la em Paris, como pudemos considerar uma economia o facto de termos um bilhete grátis no Concorde?

Na mesma gaveta encontrei alguns parágrafos que John escreveu em 1990 quando fizemos vinte e seis anos de casados. «Ela usou óculos de sol durante toda a cerimónia no dia em que nos casámos na igrejinha da Missão Católica de São João Baptista, Califórnia; também chorou durante toda a cerimónia. Ao per­corrermos a nave para sairmos, prometemos um ao outro que podíamos saltar fora na semana seguinte enão esperar que a morte nos separasse.»

       Também isso deu resultado. De certa forma, tudo dera resultado.

       Porque é que pensava que esta improvisação nunca podia terminar?

       Se tivesse visto que podia, que teria feito de forma diferente?

       Que teria ele feito?

 

Estou a escrever quando se aproxima o fim do pri­meiro ano. O céu em Nova Iorque está escuro quando acordo às sete, e novamente a escurecer cerca das quatro da tarde. Há luzes de Natal coloridas nos ramos de marmeleiro da sala de estar. Também havia luzes de Natal coloridas em ramos de marmeleiro na sala de estar há um ano atrás na noite em que aquilo aconteceu, mas na Primavera, pouco depois de trazer Quintana da UCLA para casa, as fiadas de luzes queimaram-se e apagaram-se. Serviam de símbolo. Comprei outras fiadas de luzes coloridas. Serviam de profissão de fé no futuro. Aproveitava a oportunidade para essas profissões de fé onde e sempre que podia inventá-las, uma vez que ainda não sentia verdadeira­mente essa fé no futuro.

Noto que perdi a capacidade para a vulgar inte­racção social que tinha há um ano atrás, por muito pouco desenvolvida que tivesse sido essa capacidade. Durante a Convenção Republicana, fui convidada para uma pequena festa no apartamento de uma amiga. Senti-me feliz por ver a minha amiga, senti-me feliz por ver o pai dela, que era o motivo da festa, mas achei difícil a conversa com os outros. Reparei à saída que estavam lá os Serviços Secretos, mas nem sequer tive paciência para ficar o tempo suficiente para saber qual era a pessoa importante que ia chegar. Outra noite, durante a Convenção Republicana, fui a uma festa dada pelo The New York Times no edifício da Time Warner. Havia velas e gardénias a flutuar em cubos de gelo. Não consegui concentrar-me em ninguém com quem conversei. Estava concentrada apenas nas gar­dénias a serem sugadas pelo filtro na casa de Brent­wood Park.

       Em ocasiões destas, ouvia-me a mim mesma a tentar esforçar-me e a fracassar.

       Noto que me levanto da mesa de jantar de forma demasiado abrupta.

Noto também que não tenho a mesma resistência de há um ano atrás. Acontece um certo número de crises e avaria-se o mecanismo que inunda de adrena­lina a situação. A mobilização torna-se instável, lenta ou ausente. Em Agosto e Setembro, após a Convenção Democrática e a Convenção Republicana mas antes da eleição, escrevi um artigo pela primeira vez depois da morte de John. Foi sobre a campanha. Era o pri­meiro artigo que escrevia desde 1963 cujo rascunho ele não lia e me dizia o que estava mal, o que era pre­ciso corrigir, como desenvolver aqui, sintetizar ali. Os artigos nunca me saíram fluentemente, mas este parecia estar a levar mais tempo ainda do que era costume: a certa altura percebi que não tinha vontade de o terminar porque não havia ninguém que o lesse. Bem dizia a mim mesma que tinha um prazo de en­trega e que nem John nem eu alguma vez falháramos os prazos. O que, por fim, fiz para acabar o artigo foi o mais perto possível que alguma vez cheguei de rece­ber uma mensagem dele. A mensagem era simples:

És uma profissional. Acaba o artigo.

       Ocorre-me que só nos permitimos imaginar tais mensagens porque precisamos de sobreviver.

       A traqueotomia na UCLA, reconheço-o agora, aconteceria comigo ou sem mim.

       Quintana retomar a sua vida, reconheço-o agora, aconteceria comigo ou sem mim.

       Acabar aquele artigo, que, por assim dizer, resu­mia a minha própria vida, não.

Ao rever o artigo para ser publicado, fiquei espan­tada e preocupada com a quantidade de erros que cometera: desde simples erros de transcrição a nomes e datas errados. Disse para comigo que era temporário, parte do problema da mobilização, prova adi­cional daqueles défices cognitivos que surgiam tanto com o sofrimento como com o stresse, mas continuei preocupada. Alguma vez estaria bem de novo? Alguma vez podia confiar novamente em como não me enga­naria?

       Porque é que hás-de ter sempre razão? John dis­ sera isto.

       É-te impossível considerares a possibilidade de poderes estar errada?

Descubro-me a concentrar-me cada vez mais nas semelhanças entre estes dias de Dezembro e os mes­mos dias de Dezembro de um ano antes. Em vários aspectos, os mesmos dias de há um ano têm para mim maior clareza e são um pólo de atracção mais intenso. Faço muitas das mesmas coisas. Faço as mesmas lis­tas das coisas que ficaram por fazer.

Embrulho pre­sentes de Natal no mesmo papel colorido, com as mes­mas mensagens nos mesmos cartões da loj a de brin­des Whitney, prendo os cartões ao papel colorido com os mesmos autocolantes dourados. Preencho os mes­mos cheques para o pessoal do prédio, só que agora os cheques são assinados só com o meu nome. Por mim, não alterava os cheques (como não mudava a gravação do atendedor de chamadas), mas disseram que era essencial que o nome de John passasse a cons­tar apenas das contas a prazo. Encomendo o mesmo tipo de fiambre da Citarella. Angustio-me igualmente por causa do número de pratos de que vou precisar na noite de Natal, conto e reconto. Mantenho a con­sulta anual de Dezembro ao dentista e, ao meter na carteira as escovas de dentes que utilizo, apercebo-me de que ninguém me aguardará na sala de espera, lendo os jornais até podermos ir tomar o pequeno-almoço a Madison Avenue, nos 3 Cuys. A manhã decorre vazia. Quando passo pelo 3 Cuys, olho para o outro lado. Uma amiga pede-me que vá com ela ouvir música de Natal em Santo Inácio de Loiola e regressamos a casa já noite e debaixo de chuva. Nessa noite neva, embora apenas uma poalha, não cai nenhuma avalanche do telhado da Igreja Episcopal de São Tiago, nada como no dia do meu aniversário no ano passado.

       O meu aniversário no ano passado, quando ele me ofereceu a sua última prenda.

       O meu aniversário no ano passado, quando lhe restavam vinte e cinco noites de vida.

Na mesa diante da lareira, reparo que algo está fora do lugar na pilha de livros perto do cadeirão onde John se sentava para ler quando acordava a meio da noite. Deixei esta pilha deliberadamente intacta, não devido a qualquer impulso de construção de um san­tuário, mas porque não acredito que me possa per­mitir pensar no que ele leu a meio da noite. Agora, alguém colocou em cima da pilha, precariamente equilibrada, um grande livro ilustrado próprio para salas de espera: The Agnelli Gardens at Villar Perosa. Retirei The Agnelli Gardens at Villar Perosa. Por baixo, está um exemplar profusamente marcado de Five Days in London: May 1940, de John Lucaks, no qual está um marcador onde se lê numa caligrafia de criança, John - boa leitura - de John, 7 anos. A princípio, fiquei perplexa com o marcador, que estava salpicado de festivas partículas brilhantes cor-de-rosa, e depois lembrei-me: a Creative Artists Agency, num projecto natalício anual, «adopta» um grupo de crianças de Los Angeles, em idade escolar, e cada criança, por sua vez, oferece uma lembrança a um determinado cliente da CAA.

       John devia ter aberto a caixa da CAA na noite de Natal.

       Deve ter metido o marcador no livro que por acaso se encontrava no topo da pilha.

Restavam -lhe cento e vinte horas de vida. Como escolheria ele viver essas cento e vinte horas?

Debaixo do exemplar de Five Days in London está um exemplar do The New Yorker datado de 5 de Janeiro de 2004. Um exemplar de The New Yorker com essa data de publicação devia ter sido entregue no nosso apartamento no domingo, 28 de Dezembro de 2003. No domingo, 28 de Dezembro de 2003, de acordo com o calendário de John, jantámos em casa com Sharon DeLano, que fora editor de John na Random House e era, nessa altura, seu editor no The New Yorker. Teríamos jantado à mesa da sala de estar. Segundo o meu livro de apontamentos da cozinha, comemos esparguete à bolonhesa, salada, queijo e pão. Nessa altura, restavam-lhe quarenta e oito horas de vida.

Uma certa premonição desta dimensão temporal foi o motivo original por que não toquei na pilha de livros.

Acho que não consigo aguentar isto, dissera ele no táxi ao voltarmos do Beth Isarel North nessa noite ou na noite seguinte. Referia-se à situação em que mais uma vez deixáramos Quintana.

Não tens outra opção, respondi-lhe no táxi. Tenho-me perguntado se ele teve.

 

Continua bonita», dissera Gerry, quando ele, John « e eu deixámos Quintana no Beth Israel North.

«Ele disse que ela continua bonita», comentou John no táxi. «Ouviste-lo dizer isso? Que ela continua bonita? Está para ali inchada com tubos a sair dela e ele disse...»

Não conseguiu prosseguir.

Aconteceu isso numa daquelas noites de finais de

Dezembro, uns dias antes de morrer. O que quer que tenha acontecido a 26, a 27, a 28 ou a 29, não faço ideia. Não aconteceu a 30 porque Gerry já saíra do hospital no momento em que lá entrámos nesse mesmo dia. Apercebo-me de que grande parte da minha ener­gia durante os últimos meses tem sido dedicada a contar de frente para trás os dias, as horas. No mo­mento em que ele dizia, no táxi, no regresso do Beth Israel North, que nada do que fizera tinha valor, res­tavam-lhe três horas de vida ou vinte e sete? Sabia quão poucas eram as horas que lhe restavam, sentiu-se ir, estava a dizer que não queria partir? Não deixem o Papão apanhar-me, dizia Quintana quando acor­dava de um pesadelo, um dos «ditos» ­ que John salientou e atribuiu a Cat em Dutch Shea, Jr. Eu prome­tera-lhe que não deixaria que o Papão a apanhasse.

Estás salva.

Estou aqui.

Acreditei que tínhamos esse poder.

       Agora, o Papão estava na UCI do Beth Israel Northà espera dela, o Papão estava agora no táxi à espera do seu pai. Aos três ou quatro anos, já ela reconhe­cera que, quando se tratava do Papão, só podia fiar-se nos seus próprios esforços: Se o Papão vier, agarro-me à sebe e não o deixo levar-me.

Ela agarrou-se à sebe. O pai não.

Digo-vos que não viverei dois dias mais.

O que torna aqueles dias de Dezembro de há um ano atrás um pólo de atracção tão intenso é o seu des­fecho.

 

Como neta de um geólogo, cedo aprendi a prever a absoluta mutabilidade de montes, quedas-d'água e até ilhas. Quando um monte escorrega para o mar, vejo ordem no facto. Quando um cinco ponto dois na escala de Richter me sacode violentamente a secretária no meu próprio quarto, na minha própria casa, na minha própria e privada Welbeck Street, continuo a dactilografar. Um monte é uma acomodação transitória ao stresse e o ego pode ser uma acomodação semelhante. Uma queda-d'água é uma autocorrecção a um desa­justamento da corrente à estrutura, e o mesmo é a técnica, tanto quanto sei. A própria ilha à quallnez Victor regressou na Primavera de 1975 - Oahu, uma massa de terra pós-erosão que emergiu no espinhaço havaiano - é uma característica temporária e cada chuvada ou tremor de terra ao longo das placas do Pacífico altera a sua forma e encurta a sua função de encruzilhada do Pacífico. A esta luz, é difícil manter convicções definitivas sobre o que aconteceu ali na Primavera de 1975 ou antes.

Esta passagem é do princípio de um romance que escrevi durante os primeiros anos da década de oiten­ta, Democracy. John é que lhe deu o título. Come­çara -o como comédia de costumes familiares com o título de Angel Visits, frase definida na Brewer's Díctío­ nary 01 Phrase and Fable como «deliciosa relação de curta duração e rara ocorrência», mas, quando se tor­ nou evidente que o livro caminhava numa direcção diferente continuei a escrever sem título. Quando o terminei, Johnleu-o e disse que eu devia chamar-lhe Democracy. Melhorei o excerto depois que o terra­moto de nove ponto zero na escala de Richter, ao longo de uma secção de novecentos quilómetros, na zona de subsucção de Samatra, desencadeou o tsunami que varreu partes enormes da costa junto ao oceano Índico.

       Sou incapaz de parar de tentar imaginar este acon­tecimento.

Não há vídeo do que tento imaginar. Não há praias, não há piscinas inundadas, não há recepções de hotéis a escaqueirarem-se como estacas apodrecidas durante um temporal. O que quero ver aconteceu debaixo da superfície. A placa da Índia a deformar-se ao deslizar sob a placa da Birmânia. A corrente a varrer tudo à sua frente, invisível em águas profundas. Não tenho nenhum mapa de profundidade do oceano Índico, mas consigo ver o seu amplo contorno mesmo no meu globo de papelão da Rand McNaUy. Setecentos e oitenta rnetros ao largo de Banda Aceh. Dois mil e trezentos entre Samatra e o Sri Lanka. Dois mil e cem entre as ilhas Andamã e a Tailândia e depois um longo baixio na direcção de Phuket. O momento em que a veloci­dade da principal vaga da corrente invisível foi detida pela plataforma continental. A subida das águas à me­dida que a profundidade da plataforma começou a diminuir.

Assim como era no princípio, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos.

Estamos agora a 31 de Dezembro de 2004, um ano e um dia.

A 24 de Dezembro, véspera de Natal, tive pessoas para jantar, tal como John e eu fizéramos na véspera de Natal de um ano antes. Disse para comigo que o fazia por Quintana, mas também o fazia por mim mesma, como garante de que não levaria o resto da vida a sentir-me um caso especial, uma convidada, alguém incapaz de funcionar por si. Acendi a lareira. Acendi velas, pus pratos e talheres numa mesa de apoio na sala de jantar. Seleccionei alguns CD, Mabel Mercer a cantar Cole Porter e Israel Kamakawiwo'ole a cantar «Over the Rainbow», e uma pianista dejazz israelita, chamada Liz Magnes, a tocar «Someone to Watch Over Me». John estivera sentado ao lado de Liz Magnes uma vez, num jantar na missão israelita, e Liz enviara -lhe um CD, um concerto de Gershwin que dera em Marráquexe. Com a sua capacidade de sugerir umas bebidas no King David Hotel, em Jeru­salém, durante o período britânico, este CD parecera a John espectralmente interessante, prova recupe­rada de um mundo desaparecido, mais um reflexo da Primeira Guerra Mundial. Pusera-o a tocar enquanto lia, antes de jantar, na noite em que morreu.

Cerca das cinco da tarde do dia 24, pensei que não era capaz de «fazer» a noite, mas, quando chegou a hora, a noite «fez-se» por si mesma.

Susanna Moore enviou colares de flores de Hono­lulu para Lulu, sua filha, para Quintana e para mim. Usámos os colares. Outra amiga trouxe uma casa feita de pão de gengibre. Havia muitas crianças. Pus a tocar a música de Gershwin, embora o nível de ruído fosse tal que ninguém a ouvia.

Na manhã de Natal guardei os pratos e os talhe­res e à tarde fui à Catedral de São João-o-Divino, onde havia muitos turistas, principalmente japoneses. Havia sempre turistas japoneses na catedral. Na tarde em que Quintana se casou na Catedral de São João-o­-Divino, havia turistas japoneses a tirarem fotogra­fias quando Gerry e ela saíram do altar. Na tarde em que colocámos as cinzas de John na capela junto do altar-mor da catedral, um autocarro japonês de turis­mo incendiou -se e ardeu como uma coluna de fogo na Amsterdam Avenue. No dia de Natal, a capela junto do altar-mor estava encerrada por motivo de obras na catedral. Um segurança levou-me lá. A capela fora esvaziada e estava cheia apenas de andaimes. Meti-me sob os andaimes e encontrei a placa de mármore com o nome de John e o nome da minha mãe. Pendurei o colar de flores num dos varões de latão que prendiam a placa de mármore à abóbada e depois saí da capela para a nave central e a seguir desci a nave lateral e dirigi-me à grande janela de rosácea.

Enquanto caminhava, mantive os olhos pregados na janela, meio cega com a sua luminosidade, mas decidida a conservar fixo o olhar até apanhar o mo­mento em que a janela parece explodir de luz e encher de azul todo o campo de visão. O Natal das canetas de feltro de cor, do relógio-despertador de laca preta e do fogo-de-artifício das cercanias de Honolulu, o Natal de 1990, o Natal durante o qual John e eu estivemos a reescrever gratuitamente o argumento do filme que nunca foi realizado, envolvera essa janela. Encenámos o desfecho do filme na Catedral de São João-o-Divino, colocámos uma bomba de plutónio no campanário (só o protagonista percebe que a bomba está na cate­dral e não nas torres do W orld Trade), e fizemos explodir o involuntário portador da bomba através da grande janela de rosácea. Nesse Natal, enchemos de azul o ecrã.

       Enquanto escrevo isto, apercebo-me de que não quero acabar esta narração.

       Também não quero acabar o ano.

       A loucura retrocede, mas nenhuma claridade ocupa o seu lugar.

       Procuro solução, mas não encontro.

       Não quero acabar o ano porque sei que, à medida que os dias passam, à medida que Janeiro se torna Fevereiro e Fevereiro se torna Verão, certas coisas acontecerão. A minha imagem de John no instante da sua morte tornar-se-á menos imediata, menos tan­gível. Tornar-se-á numa coisa que aconteceu noutro ano. O senso que tenho de John, John vivo, tornar­-se-á mais remoto ou mesmo «turvo», adoçado, trans­mutado no que quer que melhor sirva a minha vida sem ele. De facto, isto já começou a acontecer. O ano inteiro medi o tempo pelo calendário do ano passado: o que estávamos a fazer neste dia no ano passado, onde jantámos, foi neste dia no ano passado que fomos para Honolulu depois do casamento de Quintana, foi neste dia no ano passado que regressámos de Paris, foi neste dia. Percebi hoje pela primeira vez que a minha recor­dação desse dia no ano passado é uma recordação que não envolve John. Este dia do ano passado foi 31 de Dezembro de 2003. John não viu esse dia do ano passado. John estava morto.

       Atravessava a Lexington Avenue quando isto me veio à ideia.

       Sei por que razão tentamos manter vivos os mor­ tos: tentamos mantê-los vivos a fim de os conservar mos connosco.

Também sei que, se estamos dispostos a viver, chega uma altura em que temos de libertar os mortos, deixá-los partir, permitir que estejam mortos.

Deixemo-los transformarem-se numa foto em cima da mesa.

Deixemo-los transformarem-se num nome de uma conta a prazo.

Larguemo-los na água.

Saber disto não torna mais fácil largá -lo na água.     

De facto, a consciência de que a nossa vida juntos será cada vez menos o centro do meu quotidiano pare­ceu-me hoje, na Lexington Avenue, uma traição tão nítida que perdi toda a noção dos automóveis que se aproxImavam.

       Penso sobre o facto de ter deixado o colar de flores na Catedral de São João-a-Divino.

       Uma recordação do Natal em Honolulu, quando enchemos de azul o ecrã.

Durante os anos em que as pessoas ainda partiam de Honolulu na Matson Lines, a tradição, no mo­mento da partida, era atirar à água colares de flores, promessa de que o viajante voltaria. Os colares de flores eram apanhados na esteira do navio e ficavam esmagados e escuros, do mesmo modo que as gardé­nias tinham ficado esmagadas e escuras no filtro da piscina da casa de Brentwood Park.

No outro dia de manhã, quando acordei, tentei lembrar-me da disposição dos quartos da casa de Brentwood Park. Imaginei-me a passear pelos quartos, primeiro no rés-do-chão, depois no andar de cima. Mais tarde, mas nesse mesmo dia, apercebi-me de que me tinha esquecido de um.

       O colar de flores que deixei na Catedral de São João-o-Divino entretanto deve ter escurecido.

Os colares de flores escurecem, as placas tectóni­cas deslizam, as correntes profundas movem-se, desa­parecem ilhas, esquecem-se quartos.

       Fui à Indonésia, à Malásia e a Singapura com John em 1979 e em 1980.

       Algumas das ilhas que então lá estavam devem ter desaparecido e agora não passam de baixios.

Penso no facto de ter nadado com ele na furna de Portuguese Bend, sobre o afluxo de águas límpidas, a maneira como se modificava, a velocidade e força que a água ganhava à medida que a furna se estrei­tava entre rochas na base do cabo. A maré tinha de ser a exacta. Tínhamos de estar dentro de água no pre­ciso momento em que a maré era a exacta. Só deve­mos ter feito isto meia dúzia de vezes, no máximo, durante os dois anos em que ali vivemos, mas é disso que me recordo. De cada vez que lá Íamos, tinha receio de perder a maré, de me atrasar, de fazer mal os cálculos. John nunca tinha receio. Tens de sentir a maré mudar. Tens de te deixar levar pela mudança. Iohn disse-me isso. Ninguém olha para o pássaro, mas ele disse-me realmente isso.  

 

                                                                                Joan Didion

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

 

 

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