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O ANTIQUÁRIO - P.2 / Walter Scott
O ANTIQUÁRIO - P.2 / Walter Scott

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ANTIQUÁRIO

Segunda Parte

 

Raimundo, fechado no seu gabinete, ri-se dos que correm tais perigos e semelhantes aventuras, ele, que em busca do ouro já viu dissipar-se em fumo metade das suas terras, cujo túnel, objecto das suas esperanças, acaba de desmoronar-se pela segunda vez. Mas não importa - se o terceiro vier a resistir, tudo em sua casa, sim, até as suas marmitas e seus fogões se destinarão a fazer ouro.

Cerca de uma semana depois das aventuras de que o nosso último capítulo deu conta, Mr. Oldbuck, tendo descido ao locutório onde se almoçava, não encontrou, como de costume, as fêmeas entregues ao seu dever, as torradas não estavam feitas, e o jarro de prata que habitualmente continha aquela espécie de cerveja chamada mum, de que já falámos, não estava junto do lume, como se tinha por costume colocar antes de se servir o líquido.

"Maldito seja aquele maluco! - pensou ele - Agora, que começa a estar livre de perigo, já não posso suportar mais esta vida... Anda tudo aqui sem rei nem roque Uma desorientação universal parece ter sucedido à boa ordem e à pontualidade que reinam geralmente na minha casa pacata. Chamo minha irmã, nada de resposta... Chamo, grito, invoco os meus deuses penates por mais nomes do que os romanos nunca deram aos deles... Finalmente, Jenny, de quem oiço há meia hora a voz esganiçada atravessar as regiões subterrâneas da cozinha, quer condescender em escutar-me e responde-me, mas sem se dignar subir a escada, de maneira que a conversa tem de realizar-se à custa dos meus pulmões".

Nesta altura começou de novo a gritar:

- Jenny, onde está Miss Oldbuck?

- Miss Grizel está no quarto do capitão.

- É isso, tenho a certeza... E onde está minha sobrinha?

- Miss Maria está a fazer o chá ao capitão.

- Até o apostava... E onde está Caxon?

- Foi à cidade buscar a espingarda do capitão e o seu cão de caça.

- E quem diabo arranjará a minha peruca, imbecil que tu és? Como pudeste deixar partir Caxon por uma tal ninharia, quando sabes que Míss Wardour e sir Arthur devem aí chegar depois do almoço?

- E como podia eu impedi-lo, senhor? Vossa Honra não desejaria, com certeza, que se atrevessem a contrariar o capitão neste momento, quando ele está a morrer.

- A morrer! - exclamou o Antiquário, alarmado Como? Acaso está pior?

- Não, não está pior, que eu saiba.

- Então, está melhor... E que necessidade temos nós de um cão de caça e de uma espingarda? Um para estragar os móveis, roubar as provisões, esganar o gato, talvez; a outra para meter chumbo nos miolos de alguém. Parece-me que ele deve estar farto, por uns tempos, de pistolas e espingardas.

Neste momento, Miss Oldbuck entrou no locutório, à porta do qual se encontrava seu irmão embrenhado nesta conversa com Jenny, ele gritando do cimo da escada, ela esganiçando-se de baixo, ao responder-lhe.

- Meu querido irmão - disse-lhe a velha solteirona

- vai enrouquecer à força de gritar. Faz tanto barulho quando está alguém doente em casa?

- com a breca, não há mais ninguém senão o doente em toda a casa! Ainda estou em jejum e, provavelmente, também terei de passar sem a minha peruca; e, no entanto, não devo sequer queixar-me de fome ou de frio, no receio de perturbar o meu gentleman deitado, que está separado daqui por seis quartos, e que se encontra suficientemente bem para mandar buscar a sua espingarda e o seu cão, embora ele saiba até que ponto eu odeio tais objectos desde que o nosso irmão mais velho, o pobre Williewald, deixou este mundo por ter molhado os pés ao caçar nos paúis de Kittlef itting. Mas tudo isso não é nada... Suponho que se espera, sem dúvida, ver-me eu próprio a pegar num dos varais da liteira do senhor escudeiro Heitor, se lhe apetecer ir entregar-se às suas excentricidades de caça e experimentar as suas forças a atirar aos meus pombos e aos meus patos... porque creio que uma parte das ferae naturaz (1) nada terá a recear dele durante algum tempo.

Miss Mac Intyre entrou então e começou a desempenhar as funções quotidianas, preparando o pequeno almoço do tio, com a pressa de alguém que está em atraso e quer recuperar o tempo perdido; mas isso não lhe serviu de grande coisa.

- Cuidado, palerminha - disse-lhe o tio - esse mum está muito perto do lume; a garrafa vai estalar... e suponho também que tencionas reduzir a cinzas essa torrada, para fazer com elas uma oferenda a Jimo. Não é isso, ou é pelo menos um nome mitológico desse género que chamas à cadela que ali vejo, e que teu irmão, com a sua habitual sagacidade, julgou digna de tornar-se comensal da minha casa, o que lhe agradeço, e aumentar o número de todas as fêmeas de que já estou cercado?

- Meu querido tio, suplico-lhe que não queira mal a esse pobre bicho; tinham-na prendido no quarto de meu irmão em Fairport, mas ela quebrou por duas vezes a sua corrente para vir aqui juntar-se-lhe. Tenho a certeza de que não quer que batam neste fiel animal para o escorraçar. Ele uiva à porta do seu dono, como se tivesse o instinto da infelicidade sucedida ao pobre Heitor, e temos as maiores dificuldades do mundo para o fazer calar.

- Como? -replicou o tio - Disseram-me que Caxon tenha ido a Fairport buscar a sua espingarda e o cão!

- Ó meu Deus; não, senhor - respondeu Miss Mac Intyre - Foi buscar as coisas necessárias para o penso do seu ferimento; e como tinha de ir a Fairport, Heitor pediu-lhe que trouxesse ao mesmo tempo a sua espingarda.

- Vamos, a coisa não é absolutamente tão absurda como eu a julgava, ao pensarmos que tantas fêmeas se ocuparam dela... É justo que se preocupem com o seu penso; mas quem arranja a minha peruca? Vamos, Por hoje - ajuntou o solteirão, vendo-se ao espelho basta que Jenny tente torná-la apresentável... e agora a temos de comer como pudermos. Era caso para dizer a Heitor o que sir Isaac Newton disse ao seu

 

(1) Animais selvagens. - N. do T.

 

cão "Diamante" (detesto estes animais! quando ele derrubou uma vela acesa sobre os cálculos que ocupavam o filósofo havia vinte anos, reduzindo-lhos a cinzas: "Diamante, Diamante, tu nem supões o mal que fizeste! "

- Asseguro-lhe - respondeu a sobrinha - que meu irmão lamenta o arrebatamento do seu acto, e reconhece que Mr. Lovel se portou muito bem com ele.

- Isso recompõe bem as coisas, depois de o pobre rapaz se ver obrigado a fugir do país. Digo-te, Maria, que não está ao alcance da inteligência de Heitor, e com mais forte razão da de uma fêmea, compreender toda a extensão da perda que ocasionou ao nosso século e à posteridade Aureum quidem opus (1). Um poema sobre um tão belo assunto, com notas relativas tanto aos passos obscuros como aos passos que o não são, mesmo aqueles que, não sendo nem claros nem obscuros, flutuam ainda no crepúsculo duvidoso de antigüidades caledonianas! Eu daria uma lição aos panegiristas celtas com as minhas pesquisas. Fingal, como eles imaginaram chamar a Fin Mac Coul, envolvendo-se de novo na sua nuvem, teria desaparecido como o espírito de Loda... Um homem já velho e cujos cabelos embranquecem, talvez nunca possa esperar encontrar uma oportunidade como esta. E vê-la fugir devido à estúpida exaltação de uma cabeça esquentada! Mas temos de nos resignar; seja feita a vontade de Deus.

Durante o almoço, o Antiquário não cessou de repisar daquela maneira, segundo a expressão da irmã; e em despeito do mel, do açúcar e de todos os doces que na Escócia geralmente nos oferece a mesa do almoço, esta refeição, para aquelas que o partilhavam com ele, ressentia-se do amargor das suas reflexões e da sua disposição. Mas elas conheciam a natureza do homem, e, como o dizia baixinho Miss Grizel Oldbuck à sua amiga Miss Rebecca Blattergowl, Monkbarns ladrava mais do que mordia.

O facto é que Mr. Oldbuck, que experimentara as mais vivas inquietações quando seu sobrinho estivera verdadeiramente em perigo, julgava-se autorizado,

 

(1) A obra de ouro. - N. do T.

 

ao vê-lo entrar na convalescença, a dar largas às suas queixas sobre o embaraço que tivera e a interrupção causada às suas ocupações eruditas. Encorajado pelo respeitoso silêncio com que sua irmã e sua sobrinha o escutavam, exalou o seu descontentamento em murmúrios semelhantes aos que mencionámos, dirigindo ao mesmo tempo os seus sarcasmos à raça feminina, aos militares, aos cães e às espingardas, que todos considerava causas mais ou menos directas de ruído, de discórdia e de desordem, e que declarava ter em abominação.

Esta expansão de bílis ou esta erupção de splsen foi bruscamente interrompida pelo rumor de uma carruagem que se detinha à porta. Este incidente dissipou no mesmo instante o mau humor de Oldbuck, que se apressou a subir ao quarto e a descer à pressa, coisa de absoluta necessidade, para receber convenientemente Miss Wardour e o pai à porta de sua casa.

Depois de se terem cumprimentado com cordialidade de parte a parte, sir Arthur, que por várias vezes mandara informar-se do estado do capitão Mac Intyre, pediu mais particularmente notícias. A resposta foi:

- Vai melhor do que merece, depois de nos ter atormentado a todos com seus conflitos disparatados e violado a paz de Deus e do rei.

- O jovem gentleman foi um pouco imprudente

- disse sir Arthur -mas indicou que se tinha obrigação de ter notado um carácter suspeito na pessoa do jovem Lovel.

- Não mais suspeito do que o dele - respondeu o Antiquário, ardoroso a defender o seu favorito - Obstinouse loucamente em não responder às impertinentes perguntas de Heitor, eis tudo. Mas, sir Arthur, Lovel sabe escolher melhor os seus confidentes... Sim, Miss Wardour, está a olhar para mim? Mas a coisa é verídica. Foi a mim que ele confiou os secretos motivos da sua residência em Fairport, e não há esforços que eu não tenha feito para o ajudar a atingir o objectivo que se propôs.

Ao escutar esta magnânima declaração do Antiquário, Miss Wardour mudara vária vezes de cor, e mal podia acreditar nos seus ouvidos; porque em assuntos de amor (e era natural que os confidentes que se poderia escolher, depois de Edie Ochiltree, Oldbuck parecia-lhe o mais estranho e o mais bizarro, e ela não podia refazer-se do espanto e desagrado que lhe causava uma combinação de circunstâncias tão singulares como as que ofereciam um segredo de natureza tão delicada à posse de indivíduos menos indicados para serem seus depositários.

Ela também pensava, receosa, na maneira como Oldbuck se abriria sobre este assunto com seu pai, pois não duvidava de que fosse essa a sua intenção. Bem sabia que o velho gentleman, embora muito violento nos seus preconceitos, tinha muito pouco respeito pelos dos outros, e receava uma forte explosão quando se verificasse algum esclarecimento entre eles. Foi, pois, com grande inquietação que ela ouviu seu pai pedir uma entrevista particular, e que viu Oldbuck levantar-se prontamente e conduzi-lo à sua biblioteca. Ficou, porém, no seu lugar, tentando conversar com as damas de Monkbarns, mas com a turbação e o terror que agitam Macbeth forçado a dissimular as inquietações de uma consciência culpada para apurar o ouvido e responder às reflexões dos chefes que o rodeiam, sobre a tempestade da noite anterior, enquanto todas as faculdades da sua alma se concentram para escutar o primeiro alarme de assassínio que não pode deixar de difundir-se por aqueles que acabam de entrar no aposento onde dorme o rei Duncan (1). Entretanto, a conversa entre os dois sábios incidira sobre um assunto bem diferente daquele que Miss Wardour temia.

- Mr. Oldbuck - disse sir Arthur, após as delicadezas do estilo e se terem instalado no sanctum sanctorum do Antiquaria - o senhor, que está tão bem informado acerca dos meus negócios de família, vai sem dúvida admirar-se da pergunta que estou para lhe fazer.

- Palavra, sir Arthur, se é relativa a dinheiro, tenho muita pena, mas...

- Sim, Mr. Oldbuck, é relativa a dinheiro.

 

(1) Alusão a uma cena de Macbeth, de Shakspeare. - N. Do T.

 

- Então, realmente, sír Arthur - continuou o Antiquário-no estado actual dos negócios e em vista da baixa dos fundos...

- O senhor engana-se acerca da minha intenção, Mr. Oldbuck - disse o baronnet -Eu quero pedir a sua opinião sobre a colocação de uma grande importância em dinheiro.

- Diabo! -exclamou o Antiquário; e, sentindo que esta involuntária expressão de surpresa era um tanto indelicada, procurou justificá-la, exprimindo a sua alegria por ver à disposição de sir Arthur uma grande quantia em dinheiro, quando esta mercadoria era tão rara - E quanto à maneira de o empregar - disse ele, depois de uma pausa - os fundos estão baixos neste momento, como já disse, e há boas aquisições a fazer em parcelas de terras. Mas não andaria melhor, sir Arthur, em começar por liquidar as dívidas? Temos primeiro aquela quantia de o-brigação pessoal, depois três outras assinaturas - continuou ele, tirando da gaveta da direita do seu armário um certo "dossier", encadernado de vermelho, o qual sir Arthur, por experiência de frequentes apelos que lhe foram feitos anteriormente, aborrecia só de o ver com o juro da dita importância, sobe tudo a... vejamos...

- Cerca de mil libras esterlinas - acudiu sir Arthur vivamente - O senhor disse-me a soma o outro dia.

- Mas há ainda uma outra conta de juros vencidos depois, sir Arthur, e essa sobe agora, salvo erro, a mil cento e treze libras esterlinas, sete xelins, cinco pence e três quartos de -penny. Mas faça o senhor a soma.

- Não, não, não duvido de que esteja certo, meu caro senhor-disse o baronnet, repelindo o livro com a mão, mais ou menos da mesma maneira que alguém procura esquivar-se àquela delicadeza de antigos tempos que lhe apresenta com importunidade iguarias de que já comeu até mais não poder -Está perfeitamente certa, não o duvido; e no espaço de três dias, o máximo, o senhor receberá todo o valor... isto é, se o senhor quiser aceitá-lo em barras.

- Em barras! Imagino que o senhor quer falar de chumbo? Diabo, encontrámos finalmente o famoso filão?... Os antigos abades de Trotcosey poderiam ter coberto com ele a sua igreja e o seu mosteiro, mas eu...

- Quando digo barras - interrompeu o baronnet quero dizer metais preciosos... ouro, prata.

- Realmente? E de que Eldorado se deve importar esse tesouro?

- Não longe daqui - disse sir Arthur, num tom significativo - E já que falamos nisso, o senhor poderá ver todo o processo, com uma pequena condição.

- Qual? - indagou o Antiquário.

- É que preciso de que a sua amizade venha em meu auxílio, adiantando-me cerca de uma centena de libras.

Mr. Oldbuck, que já imaginava que tinha em capital e juros a importância de uma dívida que ele considerava quase perdida, ficou tão aturdido por lhe apresentarem tão inopinadamente o reverso da medalha que não pôde senão repetir num tom cheio de dor e de surpresa:

- Adiantar-lhe uma centena de libras esterlinas!

- Sim, meu caro senhor - prosseguiu sir Arthur

- mas com a maior certeza possível de ser reembolsado dentro de dois ou três dias.

Houve uma curta pausa: ou os músculos do maxilar inferior de Oldbuck não retomaram a sua elasticidade por forma a permitir-lhe pronunciar uma negativa, ou a sua curiosidade o obrigava a guardar silêncio.

- Eu não lhe pediria que me prestasse este serviço - continuou sir Arthur - se não possuísse provas certas da realidade das esperanças de que acabo de lhe falar. E asseguro-lhe, Mr. Oldbuck, que ao abrir-me consigo como o faço sobre este assunto, a minha intenção é provar-lhe a minha confiança e a grata recordação que conservo dos serviços que por várias vezes recebi da sua amizade.

Mr. Oldbuck agradeceu-lhe, mas evitando cuidadosamente avançar até o ponto de prometer novos auxílios.

- Como Mr. Dousterswivel - disse sir Arthur - descobriu

Aqui o Antiquário interrompeu-o, com os olhos cintilantes de indignação:

- Sir Arthur, já tantas vezes o adverti da aldrabice desse velhaco charlatão que muito me admira que o senhor venha falar-me dele!

- Mas escute, ao menos, escute - disse sir Arthur por seu turno - isso não poderá fazer-lhe mal nenhum. Em suma, Dousterswivel persuadiu-me a presenciar uma experiência que fez nas ruínas de Santa Ruth... e que julga o senhor que lá encontrámos?

- Outra nascente, sem dúvida, da existência da qual aquele patife não deixou de certificar-se de antemão.

- Não, realmente... Uma caixa cheia de moedas de ouro e de prata... Ei-las.

Logo sir Arthur tirou do bolso um chifre de carneiro, fechado com uma tampa de cobre, e contendo uma considerável quantidade de moedas, de prata em sua maior parte, onde se encontravam misturadas algumas de ouro. Os olhos do Antiquário animaram-se ao espalhá-las em cima da mesa.

- Eis, realmente, algumas moedas escocesas, inglesas e estrangeiras dos séculos XV e XVI, e algumas destas peças rari et rariores, etiam rarissimi (1). Eis o gorro de James V; o licorne de James II e o velho tosão de ouro da rainha Maria, com a sua efígie e a do delfim... E tudo isto encontrou ele realmente nas ruínas de Santa Ruth?

- Sem dúvida alguma... Fui testemunha ocular.

- Bem - prosseguiu Oldbuck - tem de explicar-me agora onde, quando e como isso se passou.

- Quando? - respondeu sir Arthur - Foi à meia-noite, quando a lua estava em seu pleno; o lugar, comlo já lhe disse, é as ruínas da abadia de Santa Ruth; e quanto à maneira, foi uma experiência nocturna feita por Dousterswivel, acompanhado só por mim.

- Sim? - disse Oldbuck - E que meio de descoberta empregou ele?

- Apenas uma simples fumigação - declarou o baronnet - mas, note que a fizemos à hora planetária favorável.

- Uma simples fumigação! Uma simples mistificação!

 

(1) Raras, mais raras e muito raras. - N. do T.

 

À hora planetária!... Um ludibrio!... Como o persuadiu ele dessas impertinentes ninharias?... Sapiens áominábitur astris (1) Meu caro sir Arthur, esse homem enrolou-o de todas as maneiras.

- Estou-lhe certamente muito grato, Mr. Oldbuck, pela opinião favorável que tem do meu descernimento; mas, no entanto, espero que acredite que vi o que vi.

- Seguramente, sir Arthur, porém, só até certo ponto; é que eu sei que sir Arthur não dirá ter visto senão o que julgou ver.

- Pois bem - replicou o baronnet - Tão verdade como haver um céu por cima das nossas cabeças, eu vi com os meus próprios olhos encontrar estas moedas, após uma pesquisa feita no coro da igreja de Santa Ruth, à meia-noite. E quanto a Dousterswivel, embora esta descoberta seja fruto da sua arte, no entanto, para falar francamente, eu não acredito que ele tivesse firmeza de espírito para continuar a prova, se eu não estivesse junto dele.

- Ah, sem dúvida! - disse Oldbuck no tom de quem deseja ouvir o fim da narrativa antes de se

entregar aos seus comentários.

- Sim, em verdade, garanto-lhe que eu estava em guarda - continuou sir Arthur - Ouvimos sons muito estranhos, é certo, e que pareciam vir das ruínas.

- Oh! Oh! - exclamou Oldbuck - Era um comparsa que estava escondido, aposto.

- Nada disso - opôs o baronnet - O ruído, embora de um carácter aterrador e sobrenatural, assemelhava-se mais ao de um homem que espirra violentamente do que a outra coisa. Além disso, ouvi com certeza um profundo gemido, e Dousterswivel assegurou-me que era o espírito de Peolphan, o grande caçador do Norte - (procure-o no seu Nicholaus Remigius ou no seu Petrus Thyracus, Mr. Oldbuck), que imita a acção de tomar rapé e os efeitos que ele provoca.

- Por muito singular que isso seja, como provindo de uma tal personagem, não se pode pelo menos negar que tenha a propósito; pois o senhor vê que a caixa

 

(1) O sábio submete-se aos astros. - N. do T.

 

que contém estas moedas se assemelha pela forma àqueles velhos moinhos de tabaco de que se serviam na Escócia. Mas o senhor teve a coragem de continuar, em despeito dos espirros do espírito?

- Confesso que é possível que um homem vulgar pudesse ceder ao terror; mas eu suspeitava de uma impostura, e aliás, sentindo que o meu nome me dita o dever de mostrar uma coragem superior a todas as circunstâncias, forcei Dousterswivel, por ameaças sérias e violentas, a continuar a sua operação; e o senhor está a ver a prova do seu saber e da sua probidade neste amálgama de moedas que tem na sua frente, e dentre as quais lhe peço que escolha as moedas e as medalhas que lhe convenha juntar à sua colecção.

- Nesse caso, sir Arthur, visto que tem essa bondade, e na condição de me permitir avaliá-las segundo a apreciação feita no catálogo de Pinkerton, e abatê-las na sua conta no meu livro vermelho, escolherei com muito prazer.

- Não, não - disse sir Arthur Wardour - não quero que a veja de outra maneira senão como uma dádiva de amizade, e ainda menos desejaria submeter-me à avaliação do seu amigo Pinkerton, que atacou as antigas e respeitáveis autoridades, pilares veneráveis sobre os quais assenta a honra das antigüidades escocesas.

- Sim, sim -replicou Oldbuck -o senhor que fala, julgo eu, de Mair e Boece, de Jachin e Boaz, os apóstolos da fraude e da mentira. Pois bem, apesar de tudo o que me disse, considero o seu amigo Dousterswivel tão apócrifo como qualquer deles.

- Então, Mr. Oldbuck - disse Sir Arthur - sem despertar antigas discussões, devo supor que o senhor julga que, só porque acredito na história antiga do meu país, não tenho olhos nem ouvidos para me certificar dos acontecimentos de que sou testemunha.

- Perdão, sir Arthur - redarguiu o Antiquário -. mas encaro a afectação de terror que o seu colaborador, esse digno gentleman, quis fingir, como fazendo parte da farsa e do mistério que representou então. E quanto às moedas de ouro e de prata, elas estão tão misturadas e são tão diferentes de países e de datas, que não posso acreditar que tenham sido realmente acumuladas e escondidas com um fim vulgar; penso que se assemelham mais às bolsas colocadas na mesa ao procurador de Hudribas.

É dinheiro colocado para amostra,

Como ninhos enganosos onde a galinha encontra

Ovos que a convidam a chocar;

Cliente ao qual se deseja roubar

O preço de vís conselhos dados pró ou contra.

É um ardil comum a todas as profissões, meu caro sir Arthur; mas posso perguntar-lhe quanto lhe custou esta descoberta?

- Cerca de dez guinéus.

- com os quais o senhor ganhou o equivalente a vinte guinéus talvez em peso real, aproximadamente o dobro deste valor aos olhos loucos como os nossos, que queremos pagar a raridade. Vamos, temos de convir que, para primeira oportunidade que lhe oferece, o lucro é bastante tentador. E que propõe ele arriscar para a segunda?

- Cento e cinquenta libras esterlinas, das quais lhe dei um terço, tendo pensado que o senhor desejaria fornecer-me o resto.

- Não penso que seja esse o último golpe; a coisa não me parece de muito grande importância. É provável que ele ainda nos deixe ganhar esta partida: é assim que os charlatães se conduzem para seduzir os que começam a jogar. Sir Arthur, não duvida, espero eu, do meu desejo de o ajudar?

- Certamente, Mr. Oldbuck, e creio ter-lhe dado bastantes provas da minha confiança.

- Pois bem, então, deixe-me falar com Dousterswivel. Se o dinheiro puder ser adiantado para um fim útil ao seu interesse, por consideração pela antiga vizinhança, não o recusarei; mas se, como suponho, eu puder descobrir esse tesouro sem fazer-lhe nenhum adiantamento, presumo que o senhor também não se oporá.

- Não posso opor-me de maneira alguma.

- Então, onde encontrarei eu Dousterswivel? perguntou o Antiquário.

- Para lhe dizer a verdade, está na minha carruagem, à porta; mas, conhecendo as suas prevenções contra ele...

- Graças a Deus, não tenho prevenções contra ninguém, sir Arthur; são os sistemas e não os indivíduos que incorrem na minha reprovação - tocou a campainha - Jenny - disse ele à criada que se apresentou-vai informar o senhor que espera lá em baixo na carruagem, que sir Arthur e eu lhe enviamos os nossos cumprimentos e lhe pedimos que suba.

Jenny foi levar o recado. Não entrara nos projectos de Dousterswivel admitir Mr. Oldbuck no pretenso mistério. Calculara que sir Arthur obteria o dinheiro que lhe era necessário, sem discussão alguma sobre a maneira como se propunha empregá-lo e esperava em baixo, com o fim de se apoderar o mais cedo possível desse depósito, pois previa que estava no termo da sua carreira. No entanto, quando lhe pediram que se apresentasse perante sir Arthur e Mr. Oldbuck, resolveu ousadamente confiar nos recursos daquela natural impudência de que o céu liberalmente o muniu, como o leitor já pôde notar.

 

O seu compadre, esse doutor de barba suja e enfumarada, é capaz de meter todo este ouro na cabeça de um prego, depois de substituir outro por mercúrio sublimado que se dissolveré ao calor e evaporar-se-á tudo em fumo.

O Alquimista

 

- Como tem passado, meu bom Mr. Oltenpuck? Esperro que o capitão Mac Intyrre, essa amável gentleman, esteja melhor. Ai, é um mau negócio quando os jovens metem assim chumbo no corrpo.

- Creio, realmente, Mr. Dousterswivel, que todas as aventuras em que entra chumbo são bastante precárias; mas eu soube com prazer, por sir Arthur - continuou o Antiquário - que o senhor escolheu melhor género de indústria, e que anda agora a descobrir ouro.

- Oh! Mr. Oltenpuck, o meu bom e respeitável patrrão não lhe devia ter dito nem uma palavrra deste Pequeno negócio; porque, emborra eu tenha plena e inteirra confiança na prudência e na discrição do bom Mr. Oltenpuck, na grande amizade que ele tem por sir Arthur Wartour, isto, meu Deus, é um segrredo de grande peso.

- Sim, de maior peso do que todos os metais de que lhe devemos a descoberta - respondeu Oldbuck.

- Isso depende da fé e da paciência que o senhor dedicar à grrande prrova. Se o senhor se juntar a sir Arthur que deve emprregar cento e cinquenta libras esterlinas (veja, já estão cinquenta dessas más notas no seu banco de Fairport); se o senhor juntar cento e cinquenta libras em más notas desse género, recolherrá em ourro e em prrata pura, nem sei quanto.

- E ninguém o sabe, creio eu - disse o Antiquário

- Mas, escute, Mr. Dousterswivel: suponhamos que, sem importunar com novas fumigações o espírito dos espirros, nós íamos em corpo, em pleno dia, com o amparo de uma boa consciência, e sem empregar outros instrumentos de magia senão enxadas e pás bem sólidas, revolver de uma ponta à outra o solo da igreja de Santa Ruth, e, sem arriscar despesa alguma, certificar-nos da existência desse suposto tesouro (as ruínas pertencem a sir Arthur, e não pode haver nisto obstáculo), julga que conseguiríamos alguma coisa, procedendo desta maneira?

- Ora, não encontraríamos nem um dedal de cobre... mas sir Arthur farra a sua vontade... Eu mostrei-lhe de que maneira é possível, muito possível mesmo, obter grrandes quantias em dinheirro para as suas necessidades... Mostrei-lhe a verdadeirra experriência... Se ele não quiser acreditar, meu bom Mr. Oltenpuck, não faz mal a Herman Dousterswivel; perde somente as despesas e toda a prrata, e todo o ourro que teria encontrado... eis tudo.

Sir Arthur Wardour lançou um tímido olhar a Oldbuck, que, apesar da sua frequente diferença de opiniões, tinha, sobretudo quando estava presente, verdadeira influência sobre ele. De facto, o baronnet tinha a sensação, que mal confessava a ele próprio, de que o gênio do Antiquário intimidava o seu. Apreciava-o intimamente como um carácter penetrante, observador e cáustico; receava o seu espírito ironico, e não dei xava de ter confiança na sagacidade das suas opiniões em geral. Dousterswivel sentiu então que corria o perigo de ver escapar a sua presa, se não conseguisse produzir qualquer impressão favorável no seu conselheiro.

- Eu sei, meu bom Mr. Oldenpuck, que é uma vaidade falar-lhe de espíritos e de demónios. Mas veja este currioso chifrre; não ignoro que o senhor conhece as curriosidades todas do país, e que sabe como o grrande chifrre de Oldenburgo, que ainda se mostra no museu de Copenhaga, foi dado ao duque de Oldenburgo por um espírrito fêmea dos bosques... O senhor vê, pois, que se eu quisesse, não podia enganá-lo, visto que o senhor conhece ao primeirro relance o que é currioso... Examine, pois, este chifrre, eu não lhe dirria nada.

- Em verdade, este chifre empresta alguma força ao seu argumento - disse Oldbuck - Era um utensílio modelado pelas mãos da Natureza e do qual, por conseguinte, as nações bárbaras se serviam muito, embora provavelmente os chifres, no sentido dado a esta metáfora, se tivessem tornado mais vulgares devido ao progresso da civilização. Quanto a este chifre que aqui está - ajuntou ele, esfregando-o na sua manga - é uma preciosa e respeitável relíquia, que sem dúvida foi destinada por alguém a cornucópia, mas é permitido duvidar se para o subalterno ou para o patrão.

- Vamos, Mr. Oldenpuck, vejo que o senhor continua incrrédulo, mas permita-me, no entanto, assegurar-lhe que os monges entendiam o magisterium.

- Deixemos o magisterium de lado, Mr. Dousterswivel, e ocupemo-nos um pouco do magistrado. Sabe Que essa ocupação à qual o senhor se entrega é contra

as leis da Escócia, e que sir Arthur, e eu somos da comissão dos juizes de paz?

- Meu Deus! Que relação pode isso ter comigo, que lhes faço todo o bem que posso?

- É preciso que o senhor saiba que, quando se aboliram as leis crueis contra a bruxaria, como não havia esperança de se destruir nos homens esse pendor Para a superstição que lhe serve de base, quis-se pelo menos prevenir tanto quanto possível o abuso que disso podiam fazer as pessoas mal intencionadas e artificiosas. Por conseguinte, foi decretado pelo 29ºo estatuto de George II, 5. capítulo, que quem pretendesse, por meio do seu suposto conhecimento das ciências ocultas, descobrir objectos que tivessem sido perdidos, roubados ou escondidos, sofreria a pena do pelourinho e da prisão, como charlatão e como impostor.

- É essa a lei? - perguntou Dousterswivel, com alguma inquietação.

- O senhor pode certificar-se - respondeu o Antiquário.

- Então, despeço-me dos senhores, eis tudo. Eu não gostarria nada de me ver no que os senhorres chamam pelourrinho; é uma maneirra muito má de tomar ar; tão-pouco gosto de prrisões onde não se pode respirar.

- Se é esse o seu gosto, Mr. Dousterswivel, aconselho-o a ficar onde está, porque não o posso deixar partir, a não ser acompanhado de um oficial de polícia; e, aliás, espero que nos acompanhe agora às ruínas de Santa Ruth e que nos indique o lugar onde se propõe encontrar esse tesouro.

- Meu Deus! Mr. Oldenpuck, é assim que se trata um velho amigo? Quando eu lhe disse claramente que se o senhor lá fosse agorra, não encontrarria o valor de uma pobre moeda de seis pence.

- Farei no entanto a experiência, e o senhor será tratado conforme o êxito que ela tiver... sempre com licença de sir Arthur.

Durante esta conversa, sir Arthur parecia muito embaraçado, e, para me servir de uma frase trivial mas enérgica, estava realmente de orelha murcha. A obstinação incrédula de Oldbuck levava-o a suspeitar fortemente da impostura de Dousterswivel, e a maneira como o químico defendia o seu terreno não era tão resoluta como ele desejara; contudo, não o abandonou inteiramente.

- Mr. Oldbuck - disse ele - o senhor não presta justiça a Mr. Dousterswivel. É pelo uso da sua arte que ele se propõe fazer esta descoberta, e pela aplicação dos caracteres que representam as inteligências que presidem à hora planetária em que a experiência deve ser feita. E o senhor intima-o a proceder, sob pena de punição e sem o deixar usar os meios preliminares que devem assegurar-lhe o êxito.

- Eu não disse isso absolutamente. Exijo estar presente à pesquisa, e não os deixar durante essa operação Receio que não haja inteligência com as inteligências de que fala, e que o que possa estar escondido em Santa Ruth não venha a desaparecer antes de que lá cheguemos.

- pois bem, senhorres - disse Dousterswivel, num ar resoluto mas sombrio - não ponho dificuldades em segui-los, mas declarro de antemão que não encontrarão nada que valha sequer a pena arredar vinte passos de sua casa.

- Vamos fazer a experiência - disse o Antiquário. Tomada esta decisão, subiram para a carruagem do baronnet, e Miss Wardour foi advertida de que seu pai desejava que ela ficasse em Monkbarns até o regresso de um passeio que ia dar. A jovem teve alguma dificuldade em conciliar esta circunstância com o assunto que ela supunha dever ter ocupado sir Arthur e o Antiquário, mas viu-se obrigada a permanecer ainda algum tempo naquele doloroso estado de incerteza.

O trajecto foi bastante triste para os nossos pesquisadores de tesouros. Dousterswivel guardou sombrio silêncio, meditando ao mesmo tempo na perda das suas esperanças e no receio de um castigo. Sir Arthur, cujos sonhos dourados se desvaneciam gradualmente, contemplava a triste perspectiva de todos os males que o ameaçavam, e Oldbuck, que sentia que, avançando tanto nos negócios do seu vizinho, lhe dava o direito de esperar dele algum socorro eficaz, reflectia tristemente até que ponto seria obrigado a alargar os cordões à bolsa. Assim, cada um, por seu lado, mergulhava em reflexões bastante desagradáveis, e ninguém Pensou em pronunciar palavra até que se atingiu a Pequena estalagem das Quatro Ferraduras do Cavalo, pela qual era conhecida. Aí obtiveram homens e utensílios necessários à pesquisa, e foram de súbito abordados pelo velho mendigo Edie Ochiltree.

- Deus abençoe Vossa Honra - começou o roupão azul, no verdadeiro tom arrastado e queixoso de mendigo - e que lhe conceda longa vida... Tenho o Prazer de saber que o jovem capitão Mac Intyre já se levanta... Não esqueça hoje o seu bem-estar...

- Oh, eis-te, meu velho valente!... Porque diabo não foste a Monkbarns, depois dos perigos que correste em terra e mar?... Olha, eis qualquer coisa para comprares tabaco...

E, remexendo na algibeira, para procurar a sua bolsa, tirou ao mesmo tempo o chifre que continha as moedas.

- Sim, eis uma coisa para o meter-disse o mendigo, lançando um olhar ao chifre -Isso que o senhor aí tem, é um dos meus velhos conhecimentos... Poderia jurar que reconheceria esse chifre de tabaco entre milhares de outros. Usei-o durante muitos anos, até o momento em que o troquei por esta caixa de folha, com o velho George Glen, o serralheiro mineiro, quando lhe deu na mania de ir trabalhar na mina de Glen Withershins, lá em baixo.

- Ah, sim? - disse Oldbuck - Então, deu-a em troca a um mineiro? Mas suponho que nunca a viu tão bem cheia.

E assim falando, abriu-a e mostrou as moedas.

- Palavra de honra, posso jurar-lhe, Monkbarns; quando esse chifre me pertencia, nunca tinha lá dentro mais de seis pence de rapé preto de uma vez. Mas não vai agora fazer disso uma antigüidade, como já fez de outras coisas? Diabo! Gostaria que alguém se dispusesse a fazer de mim uma antigüidade, também; mas as pessoas que descobrem valor em semelhantes bugigangas de cobre, de ferro e de chifre, não se preocupam com um velho labrego da sua espécie e do seu país.

- O senhor pode agora adivinhar - disse Oldbuck, voltando-se para sir Arthur - aos bons ofícios de quem o senhor deve a descoberta dessa memorável noite. Saber que este chifre pertenceu a um dos seus mineiros é descobrir uma relação assaz directa com alguém do nosso conhecimento. Espero que obtenhamos êxito esta manhã, sem que isso nos custe nada.

- E onde tencionam ir Vossas Honras, com todas estas enxadas e pás? - indagou o mendigo - Trata-se ainda de uma das suas partidas, Monkbarns. Vai consultar algum dos seus velhos monges, além nos seus túmulos, e fazê-los sair antes do dia de juízo. Mas, com sua licença, tenho vontade de os seguir e de ver o que vão fazer.

O rancho depressa chegou às ruínas da abadia, e quando atingiu o coro, deteve-se para reflectir no que se devia fazer. Ao mesmo tempo, o Antiquário dirigiu-se assim ao alemão:

- Mr. Dousterswivel, por favor, diga-me, qual é a sua opinião neste assunto? Há mais probabilidade de êxito em pesquisar de Leste para Oeste, ou de Oeste para Leste? Auxilia-nos com o seu frasco cheio de orvalho de Maio ou com a vara divinatória da aveleira consagrada à bruxaria? Ou talvez o senhor tenha a bondade de vir em nossa ajuda fornecendo-nos alguns termos bem roufenhos, bem sonoros, do ofício, no caso de falharem aqui o seu efeito, poderem ser úteis aos que não tiveram a felicidade de ser rapazes, para fazer calar os seus filhos quando forem maus.

- Mr. Oldenpuck - disse Dousterswivel, de má catadura - já disse que o senhor não farria nada aqui, e encontrarei talvez um meio de em brreve lhe agradecer as delicadezas que tem tido para comigo.

- Se Vossas Honras tencionam cavar o solo - disse o velho Edie - e quiserem seguir o conselho de um pobre homem, eu começaria além, debaixo daquela grade de pedra, no meio da qual vejo um homem estendido de costas.

- Tenho alguma razão para crer que faríamos bem - disse o baronnet.

- E eu não tenho nenhuma para me opor - ajuntou Oldbuck - Não é muito raro esconderem-se tesouros nos túmulos dos mortos... Podem citar-se vários exemplos, desde Bartholinus e outros.

Aquela sepultura, a mesma sob a qual sir Arthur e o alemão tinham encontrado os objectos de metal, foi mais uma vez aberta, e a terra cedeu facilmente à enxada.

- É terra recentemente removida - disse Edie não resiste... Eu conheço disto, porque já trabalhei todo um Verão com o velho Will Winnet, o coveiro, e cavei mais de uma sepultura na minha vida; mas deixei-o durante o Inverno, porque fazia demasiado frio nesse trabalho; depois, veio um Natal, e as pessoas Corriam como moscas, pois até se diz que a festa do Natal enche os cemitérios. Mas eu nunca gostei de trabalhar duro na minha vida, fui-me embora, e deixei Will cavar sozinho essas últimas moradas, por ele e por Edie.

Os trabalhadores chegaram então a um ponto que Permitiu distinguir que os lados da sepultura que eles escavavam tinham sido, na origem, cercados por quatro muros de cantaria, formando um paralelogramo, destinado provavelmente a receber o caixão.

- Nem que fosse só por curiosidade - disse o Antiquário - valia a pena continuar estes trabalhos Gostaria de saber quem é aquele cujo túmulo custou tantos cuidados e canseiras.

- As armas do escudo - disse sir Arthur, com um suspiro - são as mesmas que se vêem na torre de Misticot, que se supõe terem constituído as do usurpador. Ninguém soube onde ele foi sepultado, e há uma velha profecia na nossa família que não pressagia nada de bom para quando se descobrir o seu túmulo.

- Eu recordo-me - interveio o mendigo - de tê-la ouvido citar muitas vezes, quando ainda era criança; ei-la:

Quando se tiver a certeza do túmulo de Malcolm, Os bens de Knockwinnock serão todos perda ou ganho.

Oldbuck, com os óculos na ponta do nariz, já se pusera de joelhos sobre o monumento, e observava, meio com os olhos, meio com os dedos, os restos apagados da efígie do falecido guerreiro.

- São com certeza as armas de Knockwinnock esquarteladas com as dos Wardour! - exclamou ele.

- Ricardo, cognominado Wardour Mão Sangrenta, desposara Sibila de Knockwinnock, herdeira desta família saxónia, e por essa aliança - disse sir Arthur deu ao castelo e ao território o nome de Wardour, no ano de Jesus Cristo de 1150.

- É absolutamente verdade, sir Arthur, e aqui está a barra fatal, sinal de ilegitimidade, que se estende em diagonal sobre os dois lados representados pelo escudo. Onde tínhamos nós então os olhos para não termos notado mais cedo este curioso monumento.

- E onde está então a pedra que o cobria? - observou Edie Ochiltree - E como não atraiu os olhares até o presente? Porque, homem ou criança, eu conheço esta velha igreja há sessenta longos anos, e nunca a notara antes... No entanto, ela não é tão pequena que se tornasse notada na freguesia.

Cada um interrogava então a sua memória sobre o estado em que sempre vira as ruínas nesta parte da igreja e todos concordaram em recordar-se de que este recanto estivera obstruído por um monte considerável de escombros que fora necessário retirar para que o túmulo se tornasse visível. Sir Arthur só se poderia lembrar de que vira o monumento pela última ocasião que ali viera, mas seu espírito estivera demasiado ocupado então para notar o que havia de novo nessa circunstância.

Enquanto o grupo se ocupava destas recordações e discussões, os operários continuavam o trabalho. Já tinham escavado cinco ou seis pés de profundidade quando o solo, tornando-se cada vez mais duro, começara a fatigá-los nos seus esforços.

- Chegámos agora ao fundo - disse um deles - não há aqui nem caixão, nem outra coisa, outros mais espertos do que nós passaram por cá primeiro, sem dúvida.

E, dizendo isto, saiu do fosso.

- Sai daí, rapaz! - disse Edie, colocando-se no seu lugar - Deixa-me experimentar o velho ofício de coveiro. Vocês procuram bem, meus filhos, mas encontram mal.

Assim que entrou na cova, bateu vigorosamente com o seu pau ferrado na terra, e, sentindo uma forte resistência, exclamou como o colegial ao achar alguma coisa:

- "Não há ninguém para metade, nem para um quarto; é tudo inteiro para mim, e nada para os meus vizinhos".

Toda a gente, desde o baronnet abatido e desanimado até o sombrio e taciturno alemão, animada de um movimento de curiosidade, se aglomerou em volta do túmulo e teria saltado lá para dentro se o espaço o permitisse. Os trabalhadores, que tinham começado a fatigar-se da tarefa monótona e em aparência inútil, retomaram logo os utensílios e recomeçaram a cavar com todo o ardor da expectativa. Em breve, suas enxadas encontraram uma superfície dura como a de madeira, e que, à medida que a terra foi retirada, tomou a distinta forma de uma caixa, mas muito mais pequena do que a de uma urna vulgar. Todas as mãos se apressaram a levantá-la do solo, e todas as vozes proclamaram o seu peso e auguraram bem o seu valor. Não se enganavam.

Quando a caixa ou cofre foi colocado no chão e se levantou a tampa com uma pancada de pá, encontrou-se primeiro uma cobertura de talagarça ou serapilheira, depois uma grande quantidade de estopa e por debaixo várias barras de prata. Uma aclamação geral acolheu descoberta tão assombrosa e tão inesperada. O baronnet ergueu os olhos e as mãos ao céu, no êxtase silencioso de um homem que se vê livre de inexprimivel angústia moral. Oldbuck, que mal podia acreditar nos seus olhos, tocava as barras de prata, uma após outra. Não havia inscrição, nem gravura, excepto uma só que parecia espanhola. No entanto, não se cansando de examinar peça por peça, fileira por fileira, esperava encontrar nas de baixo um menor valor. Mas não pôde notar diferença alguma, e foi forçado a admitir que sir Arthur Wardour se tornara possuidor de um peso de metal que podia valer um milhar de libras esterlinas. Sir Arthur prometeu então a todos os assistentes que seriam largamente recompensados do seu trabalho, e começou a ocupar-se da maneira como se transportaria aquela brilhante captura para Knockwinnock. O químico, então, recompondo-se da surpresa, que igualava pelo menos a de todas as outras pessoas presentes, puxou-lhe pela manga e, apresentando-lhe as suas humildes felicitações, voltou-se em seguida para Oldbuck, num ar de triunfo:

- Eu bem lhe dizia, meu bom Mr. Oldenpuck, que encontraria uma ocasião para lhe agradecer as suas delicadezas. Ora, não acha que arranjei um meio muito bom de lhe aprresentar os meus agradecimentos?

- Como, Mr. Dousterswivel, acaso pretende o senhor alguma parte no nosso feliz êxito? O senhor esquece que recusou o auxílio da sua arte. E está aqui desprovido das armas com que deveria entregar-se ao combate em que pretende agora ter vencido em nosso favor. O senhor não se serviu nem dos encantamentos, nem dos talismãs, nem da vara, nem do espelho mágico, nem das figuras de geomancia (1). Onde está então

 

(1) Arte de adivinhar por pontos ou linhas traçadas ao acaso. - N. do T.

 

todo o seu aparato, meu feiticeiro, o seu Abracadabra,

O seu feto de Maio, a sua verbena,

Os seus sapos, os seus corvos, os seus dragões, as suas panteras, A sua lua ou sol e o seu firmamento,

A sua Latona, Azoch, os seus Zernichs ou megeras, Os seus filtros, os seus cozimentos, e outros materiais Que só de nomeá-los fariam rebentar um homem?

Ah, impagável Ben Jonson, paz eterna às tuas cinzas, tu que foste o flagelo dos charlatães do teu século, esperarias vê-los reviver no nosso?

A resposta que o químico deu a esta tirada encontra-se no capítulo a seguir.

 

Clause - Conheceis então a pérola dos mendigos do rei. Sim, antes de amanhã, sereis obrigado a alojá-lo aqui; e podeis não me acreditar, - porque, se eu existir, pregar-vos-ei uma partida que não esperais.

A Moita do Mendigo

 

O alemão, decidido a aproveitar a vantagem que acabava de recuperar com esta descoberta inesperada, tomou um ar imponente e majestoso para repelir os ataques do Antiquário.

- Meister Oldenpuck - disse ele - tudo isso pode ser muito cômico e muito espirrituoso, mas não tenho nada a responder, absolutamente nada, a pessoas que não querrem acreditar na evidência dos seus próprios olhos. Somente desejarria pedir, meu bom, generroso e respeitável patrrão, que meta a mão na algibeirra esquerda do seu casaco e me mostre o que lá encontrar.

Sir Arthur meteu efectivamente a mão no seu bolso e tirou a pequena placa de prata de que se servira na vez anterior sob os auspícios do químico.

- Isto é verdade - disse sir Arthur, olhando gravemente o Antiquário - eis os cálculos planetários graduados, com a ajuda dos quais Mr. Dousterswivel e eu dirigimos a nossa primeira empresa.

- Ora, ora, meu caro amigo - replicou Oldbuck - O senhor é demasiado sensato para acreditar na influência de um mísero escudo que foi batido para o achatar, e sobre o qual gravaram umas figuras. Só lhe digo, sir Arthur, que se Mr. Dousterswivel soubesse onde estava escondido este tesouro, o senhor não possuiria agora nem a mais pequena parte dele.

- Em verdade - disse Edie, que metia o bedelho em todas as oportunidades - se não desagradar a Vossa Honra, eu penso que, visto que Mr. Dousterswivel teve todo o mérito de descobrir aqui estas riquezas, que o menos que poderia fazer-lhe era dar-lhe pelo seu trabalho as que estiverem por descobrir; porque, sem dúvida, quem soube encontrar tantas, não terá dificuldade em encontrar ainda mais.

A fronte de Dousterswivel ensombrou-se extremamente perante esta proposta da o colocar à mercê de outra descoberta, segundo o conselho de Edie; mas o mendigo, puxando-o de parte, disse-lhe ao ouvido duas ou três palavras que pareceram exercer nele uma impressão séria.

Entretanto, sir Arthur, a quem esta boa fortuna reaquecera o coração, disse em voz alta:

- Não se inquiete com o nosso amigo Monkbarns, Mr. Dousterswivel, mas vá amanhã ao castelo, e eu provar-lhe-ei que sei reconhecer os conselhos que me deu neste assunto. E, entretanto, a má nota do banco de Fairport, como lhe chamou ainda agora, está cordialmente às suas ordens. Vamos, meus filhos, tratem de repor a tampa desse precioso cofre.

Mas, na confusão, a tampa caira provavelmente no meio dos escombros ou da terra que se tirara da cova; em suma, não se encontrou em parte alguma.

- Não faz mal, bravos rapazes, tapem a caixa com o bocado de serapilheira e amarrem-na em volta, e levem-na para a carruagem. Monkbarns, quer vir a pé? Preciso de passar por sua casa, para trazer Miss Wardour.

- E também espero conservá-lo lá para jantar, sir Arthur, e beberemos juntos um copo de vinho como regozijo desta feliz aventura. Aliás, terá de escrever imediatamente ao tesoureiro da Fazenda, para prevenir

Toda a reclamação da parte da Coroa. Como é senhor da abadia, poder-se-á facilmente supor um acto de doação, no caso de isso se tornar necessário. Temos, pois, de nos documentar.

- E recomendo a todos os presentes o mais absoluto silêncio - disse o baronnet, olhando em torno; todos se inclinaram e protestaram a sua discrição.

- Quanto a isso - observou Monkbarns - recomendar segredo a uma dúzia de pessoas sobre as circunstâncias que se quer ocultar, equivale a pôr a história em circulação sob vinte formas diferentes; mas não importa, nós faremos um relatório fiel aos barões, e é tudo o que é preciso.

- Gostaria de enviar um expresso ainda esta tarde

- disse o baronnet.

- Tenho um famoso a recomendar a Vossa Honra

- lembrou Ochiltree - o pequeno Davie Mailsetter com o jumento teimoso do cortador...

- Falaremos disso em Monkbarns - disse o baronnet - Meus filhos - continuou ele, dirigindo-se aos trabalhadores - venham comigo à Quatro Ferraduras do Cavalo, para tomar os nomes de todos. Dousterswivel, não o convido a vir connosco a Monkbarns, cujo anfitrião discorda muito evidentemente das suas opiniões; mas não deixe de ir visitar-me amanhã.

Dousterswivel murmurou uma resposta em que as palavras "tessourro, terrei a honra, muito respeitável patrrão" foram as únicas que se puderam distinguir. E depois de o baronnet -e o seu amigo terem deixado as ruínas, seguidos dos criados e dos operários que, na esperança de uma recompensa, os acompanharam alegremente, o alemão quedou-se absorto num sombrio devaneio, junto da cova aberta.

- Quem poderia adivinhar isto, meu bom Deus! - exclamou ele inconscientemente - Muitas vezes ouvi falar de coisas semelhantes, e eu próprio muitas vezes falei nelas; mas, céus, nunca julgarria vê-las! E se eu tivesse escavado a terra mais dois ou três pés, tudo isto teria sido para mim. E eu que tive tanto trrabalho para apanhar muito menos a este velho louco!

Aqui o alemão cessou o seu estranho solilóquio, porque, ao erguer os olhos, encontrou os de Edie Ochiltree, que não seguira o resto do rancho, mas que, encostado como de costume ao seu pau ferrado, se postava do outro lado do túmulo. A fisionomia do velho, que possuía naturalmente um notável carácter de inteligência e de argúcia, tomou então uma expressão tão penetrante e tão subtil que Dousterswivel, embora aventureiro de profissão, não pôde sustentar-lhe o olhar. Mas sentiu necessidade de um esclarecimento e, apelando para a sua presença de espírito, começou a sondar o mendigo sobre os acontecimentos do dia.

- bom senhor Edie Ochiltree...

- Edie Ochiltree não é um senhor; é um pobre mendigo, um Bedesman do rei - respondeu o roupão azul.

- Pois bem, então, bom Edie, que pensa de tudo isto?

- Eu estava a pensar que Vossa Honra é muito bondoso (não me atreveria a dizer muito ingênuo) em dar a estes dois ricos gentlemen que têm terras e senhorios, e tanto ouro quanto querem, um tão grande tesouro -em prata (três vezes provada ao fogo, como diz a Escritura) e que poderia ter feito a sua fortuna e a sua felicidade, a sua e a "de duas ou três honestas pessoas como o senhor.

- com efeito, Edie, meu brravo amigo, é bem verdade. Simplesmente, eu não sabia, isto é, não tinha bem a certeza onde eu próprio encontraria o tesouro.

- Quê? Não foi segundo o conselho de Vossa Honra que Monkbarns e o cavaleiro de Knockwinnock vieram logo aqui?

- Ah, sim! Mas foi por efeito de outrra circunstância. Eu não sabia que eles encontrariam o tesourro, embora o barrulho, os espirros, a tosse e os gemidos do espírrito que ouvi uma noite nestas ruínas, me tivessem feito pressentir que havia tesourros e barras ocultos. Ah, meu Deus, aquele espírrito geme e suspirra sobre as riquezas como um burgomestre holandês que conta os seus dólares, depois de um grrande jantar oferecido na casa do município.

- Acredita realmente nisso, Mr. Dousterswivel? Um homem tão sábio como o senhor, não tem vergonha?

- Meu bom amigo - respondeu o químico, constrangido pelas circunstâncias a falar um pouco mais do que estava habituado - eu não acreditava mais do que o senhor ou qualquer outro, até à noite de que lhe falo, e em que eu próprio ouvi os espírritos reunidos queixarrem-se e suspirrarem, e até a explicação que me deram hoje pela descoberta desta grrande caixa de prrata purra do México. Que querr, pois, o senhor que eu pense de tudo isto?

- E que daria o senhor a alguém - indagou Edie

- que o ajudasse a encontrar outro cofre como aquele?

- O que lhe darria, meu Deus?... Um grrande quarto do conteúdo.

- Para mim - disse o mendigo - se o segredo me pertencesse, desejaria metade; porque, embora eu não seja, como o senhor vê, mais do que um pobre homem andrajoso, e não possa ir vender barras de ouro e de prata, com receio de ser preso, no entanto, não faltariam pessoas que se encarregassem de me desembaraçar disso, com mais facilidade do que o senhor talvez pense.

- Meu Deus, meu bom amigo, que disse eu? Era três quartos para seu quinhão que eu queria dizer, e um só quarto para o meu.

- Não, não, Mr. Dusterdiabo, partilharemos igualmente o que encontrarmos, como dois irmãos... Ora, veja esta tábua que eu tive o cuidado de atirar para aquele canto escuro, fora de todos os olhares, enquanto Mjonkbarns se extasiava a contar o monte de prata; porque, sabe, ele é esperto, Monkbarns, e eu gostava que isto não lhe caísse nas mãos... O senhor lê sem dúvida a letra melhor do que eu, porque não sou muito culto, e depois não estou muito habituado.

Com esta modesta confissão da sua ignorância, Ochiltree tirou de trás de um pilar a tampa do cofre do tesouro, que, depois de arrancada dos gonzos, fora atirada para o lado com indiferença, enquanto cada um se impacientava por certificar-se do conteúdo da caixa, e, ao que parece, recolhida pelo mendigo. Havia uma palavra e um número na prancha, e o mendigo tornou-os mais visíveis cuspindo no seu velho lenço azul e limpando a terra que cobria a inscrição. Era em grossas letras pretas.

- Compreende alguma coisa? Pode decifrá-la? perguntou Edie ao químico.

- - disse o filósofo, como uma criança que soletra a sua lição no alfabeto ou abecedário - P, R, O, C, U, R, E, procure. Ah! É procure o número 1: é bem isso, meu bom amigo; por procure entende-se escave, e isto não é senão o número 1. Meu Deus, há certamente algum grande lote para nós na roda da fortuna, meu bom Mr. Ochiltree.

- Bem, é possível... mas não podemos pesquisar agora, porque levaram todos os utensílios com eles, e sem dúvida que mandarão alguém atulhar a cova e repor tudo no seu lugar... Mas se entretanto o senhor quiser vir comigo ao bosque, eu provarei a Vossa Honra que encontrou justamente o único homem do país que lhe pode contar a história de Malcolm Misticot e dos seus tesouros ocultos... Mas, primeiro, faremos bem, por prudência, em apagar os caracteres que se encontram nesta tábua e que nos poderiam trair.

E, com a ajuda da sua faca, o mendigo começou a raspar e a mutilar os caracteres de maneira a torná-los indecifráveis, depois cobriu a prancha com terra para fazer desaparecer as marcas.

Dousterswivel olhava-o em silêncio e na dúvida. Havia nos movimentos do velho uma inteligência e uma prontidão que indicavam que ele não se deixava facilmente apanhar, e no entanto (porque os próprios velhacos reconhecem de certo modo o direito de prioridade) o nosso químico sentia-se humilhado por desempenhar um papel secundário e por partilhar as descobertas com tão vil associado. No entanto, a avidez do lucro foi bastante poderosa para sobrepor-se às susceptibilidades do seu orgulho; e embora mais habituado a ser impostor do que ludibriado, não era sem uma certa credulidade pessoal que sentia fé nas grosseiras superstições que o ajudavam a enganar os outros. Mas, habituado a proceder como chefe neste género de ocasiões, sentia-se humilhado por se encontrar na situação de um abutre que um corvo encaminha para a sua presa. "Mas vejamos, escutemos essa história até o fim, pensou Dousterswivel, e muita infelicidade será se eu não fizer as minhas contas melhor do que Edie Ochiltree julga".

O filósofo, assim transformado em discípulo de um mestre de artes ocultas, seguiu passivamente Ochiltree ao roble do prior, que, como o leitor recordará, não estava longe das ruínas, e onde se sentou e esperou em silêncio as comunicações do mendigo.

- Mr. Dustandsnivel (1) - disse o narrador - há muito tempo que ouvi contar esta história; porque saiba que os senhores de Knockwinnock, tanto sir Arthur, como seu pai e mesmo seu avô, que de todos me recordo um pouco, nunca gostaram de ouvir falar dela. Hoje também não gostam, mas não importa; isso não impede que ela seja assunto na cozinha, assim como outras coisas que, numa grande casa, são temas proibidos na sala. Eu soube as circunstâncias pelos velhos servidores da família; e nos dias em que vivemos, quando se deixa de recordar essas velhas histórias de antigos tempos em volta da lareira, ao serão, depressa a memória se apaga, de tal maneira, que eu não creio agora que exista um indivíduo no país capaz de lhe contar essa, excepto o próprio laird, porque há na biblioteca do castelo de Knockwinnock um livro em pergaminho que contém a narrativa.

- Tudo isso está muito bem... mas continue a sua histórria, meu bom amigo - disse Dousterswivel.

- Ora, como sabe - prosseguiu o mendigo -é um assunto que se passou naqueles velhos tempos em que o país estava cheio de discórdias e conflitos, quando cada um vivia por si e Deus por todos, e que a um homem não faltavam bens, se tivesse força para se apoderar deles e conservá-los, contanto que tivesse poder para os manter. Era então quem mais podia sobrepor-se ao seu vizinho pela violência, por todos esse lado do Leste, e as coisas provavelmente passavam-se do mesmo modo no resto da Escócia.

"Ora, pois, nesse tempo, Sir Ricardo Wardour chegou ao país, e era o primeiro desse nome que se via Por cá. Houve muitos outros depois, e a maior parte, incluindo o cognominado Inferno Armado, dormem agora sob estas ruínas. Era uma raça de homens orgulhosa e cruel, mas valente, no entanto, e que sempre se mostrou pronta a defender os interesses do País. Que Deus os salve a todos!... é um voto em que não entra muito papismo'... Chamavam-lhes os Wardour normandos, embora tivessem vindo do sul Para esta região. Ora, pois, esse sir Ricardo, que se

 

(1) Nova alteração maliciosa do nome do químico e que desta vez corresponde a "Senhor que não ouve bem". - N. do T.

 

chamava Mão Vermelha ou Mão Sangrenta, entrou em acordo com o velho Knockwinnock, porque já havia Knockwinnocks no país, e quis à força desposar sua filha única, que devia herdar o castelo e as terras; a pobre menina, Sibila Knockwinnock (foi o nome que lhe deram os que me contaram esta história) tinha grande aversão por este casamento, porque se afeiçoara de todo o coração a um dos seus primos, a quem o pai detestava. Sucedeu que após quatro meses de casamento, pois parece que ela foi obrigada a casar, e embora não houvesse senão só quatro meses, isso não impediu que ela lhe fizesse presente de um belo rapazinho Houve então na família um escândalo de que nem se faz ideia... A dar-lhes ouvidos, ela não servia senão para queimar e ele para enforcar. Tudo, porém, se arranjou, não sei como, e o filho foi enviado para fora do país, a fim de ser educado nas Highlands e cresceu, para se tornar um soberbo rapaz como tantos outros que provêm de ramo bastardo. Em seguida, sir Ricardo teve descendência sua, e tudo decorreu pacificamente até que o depuseram no túmulo. Mas então chegou Malcolm Misticot. Sir Arthur pretende que se deve dizer Misbegot, mas sempre lhe chamaram Misticot nos tempos antigos. Veio, pois, esse Malcolm, de Glen Island, com um bando de montanheses no seu rastro, sempre prontos a arranjar conflitos com os outros; apoderou-se do castelo e das terras, como filho mais velho de sua mãe, e pôs todos os Wardour na rua... Houve nessa ocasião combates e carnificina, porque os gentlemen se dividiram por diferentes lados; Malcolm esteve muito tempo por de cima, fortificou o castelo e construiu aquela grande torre que ainda hoje se chama a torre de Misticot.

- Meu velho e bom amigo meister Edie Ochiltree,

- disse o alemão, interrompendo-o - eis uma histórria que vale a de um barrão de dezasseis quartos do meu país, e que é assim tão comprrida; mas gostarria mais de ouvir falar do ourro e da prrata.

- Espere - continuou o mendigo - Este Malcolm era bem apoiado por um tio, irmão de seu pai, que era abade de Santa Ruth, aqui, e reuniram muitos tesouros entre eles para assegurar à sua casa a sucessão das terras de Knockwinnock. Há pessoas que dizem que os monges nesses tempos, conheciam a arte de multiplicar os metais; de qualquer forma, eram muito ricos. Por fim, sucedeu que o jovem Wardour, que era o filho mais velho do Mão Sangrenta, desafiou Misticot para um combate em campo fechado, como se dizia então, pelo que eles entendiam um recinto que se cercava de paliçadas, como se faz para os combates de galos. Pois bem, Misticot ficou vencido e à mercê de seu irmão; mas este não quis que lhe tirassem a vida, por causa do sangue de Knockwinnock que corria nas veias de ambos. Malcolm foi então obrigado a fazer-se frade, e em breve morreu na abadia, de desgosto e de despeito. Ninguém soube nunca onde seu tio abade o sepultou, nem o que foi feito do seu ouro e da sua prata, porque ele defendia os direitos da Santa Igreja e não queria dar contas a ninguém. Mas difundiu-se uma profecia pelo país de que, quando se encontrasse o túmulo de Misticot, as terras de Knockwinnock estariam perdidas ou ganhas.

- Ah, meu bom amigo Edie, isso não é muito improvável, se sir Arthur quiser malquistar-se com os seus bons amigos para agradar a Mr. Oldenpuck! E assim, o senhor acredita que estes são os tesourros de ourro e prrata pertencentes a esse bom meister Misticot?

- Palavra que o creio, Mr. Dousterdiabo.

- E acredita que ainda há outros desta espécie escondidos?

- com certeza que acredito: como seria possível de outro modo? Procure, nº I é como se se dissesse: Procura, e encontrarás o nº II. Aliás, não há senão Prata neste cofre, e eu ouvi dizer que no tesouro de Misticot havia muito belo ouro.

- Então, meu bom amigo - disse o alemão, levantando-se bruscamente - porque não nos atirramos imediatamente a esse pequeno negócio?

- Por duas boas razões - respondeu o mendigo, que continuava a ficar tranquilamente sentado - primeiro, porque, como já disse, não temos nada para cavar, visto que levaram as enxadas e as pás, e, segundo, porque haveria uma "troupe" de basbaques de curiosos que viriam ver o que fazíamos, enquanto fosse dia, e que o laird também deve mandar alguém encher o fosso; assim, de todas as maneiras, seríamos apanhados. Mas se o senhor quiser encontrar-se comigo aqui, à meia-noite, com uma lanterna furta-fogo, eu terei todos os utensílios preparados e ambos nos poderemos consagrar tranquilamente ao nosso negócio sem que ninguém o saiba.

- Mas mas, meu bom amigo - objectou Dousterswivel, em quem a recordação da última aventura nocturna ainda não se desvanecera, nem mesmo com as brilhantes esperanças que Edie lhe apresentava - não é bom nem seguro ir junto do túmulo de meister Misdigot, a essa hora da noite: o senhor esqueceu-se do que lhe contei dos espírritos que eu ouvir suspirrar e gemer. Assegurro-lhe que aquele local não é tranquilo.

- Se tem medo dos fantasmas - disse friamente o mendigo - eu farei a coisa sozinho e levo-lhe a sua parte da prata ao local que o senhor indicar.

- Não, não, meu brravo meister Edie, isso dar-Lhe-ia muito trabalho. Eu venho, é melhor; porque, meu velho amigo, bem sabe que foi Herman Dousterswivel quem descobriu o túmulo de Mr. Misdigot, o bastardo, ao procurar um sítio onde pudesse ocultar umas moedas, para prregar uma partida ao meu amigo sir Arthur, somente para rir e por purra brincadeira: sim, fui eu quem retirou os escombros que estavam sobre o túmulo monumental, e que o encontrrei; sou eu, pois, que devo ser o seu herdeirro, e não serria honesto de minha parte não vir eu próprio buscar a minha herrança.

- Então, à meia-noite - disse o mendigo - encontrar-nos-emos debaixo desta árvore. Eu estarei à espreita uns momentos e verei se alguém vem para junto do túmulo. Não direi senão que o laird o proibiu. Depois, irei comer alguma coisa para cear com Ringan, o carpinteiro, que é muito perto daqui, e peço-lhe para dormir na sua granja, e saio de mansinho durante a noite, sem que ninguém me veja.

- Está bem, meu bom Mr. Edie, eu virrei esperrá-lo neste mesmo lugar, mesmo que todos os espírritos do outro mundo espirrem ou gemam.

Assim falando, apertou a mão ao velho Edie, e depois de terem prometido um ao outro serem pontuais ao encontro, separaram-se.

 

Mostra-me os sacos escondidos pela cupidez dos abedes, devolve a liberdade aos anjos (1) prisioneiros, e verás que os sinos, os livros e os círios me não repelem, quando o ouro e a prata me convidarem a aproximar-me.

Rei João

 

A noite anunciava-se tempestuosa, por vento e por aguaceiros que caíram por várias vezes.

"É preciso confessar, pensou o velho mendigo, vindo colocar-se sob o velho carvalho para aí esperar o seu companheiro, é preciso confessar que a natureza humana é maligna e obstinada. Não é uma grande avidez de lucro o que pode conduzir este Dousterswiv-el a um local tão selvagem como este, à meia-noite e com semelhantes rajadas de vento, para se entregar a pesquisas sob muros tão poeirentos como estes? E eu, por meu lado, não serei ainda mais doido em esperá-lo? "

Fazendo estas sensatas reflexões, envolveu-se bem na sua capa e começou a contemplar a Lua, que se mostrava e desaparecia a espaços sob as nuvens sombrias e chuvosas que o vento fazia perpassar pela sua face. Os raios pálidos e incertos, que lançava "e cada vez que lograva desembaraçar-se da sombra que vinha obscurecê-la, caíam em cheio sobre as abóbadas fendidas e as janelas góticas do velho edifício, que, com a ajuda desta claridade passageira, mostrava visível por um instante no seu estado de ruína, ao passo que um momento depois não oferecia mais do que uma massa negra e confusa. O pequeno lago também recebia a sua parte dos fugitivos raios lunares e as águas, ora esbranquiçadas pelo seu reflexo, ora encrespadas pelo vento tempestuoso,

 

(1) Nome que se dava antigamente às moedas de ouro. - N. do T.

 

deixavam de indicar a sua existência quando as nuvens voltavam a invadir a Lua, a não ser pelo ruído monótono que faziam ao vir molhar a praia. O pequeno vale revestido de bosques, a cada rajada de vento que vinha engolfar-se no seu estreito recinto, repetia os diferentes gemidos das árvores agitadas pela tempestade, e que, enfraquecendo com o turbilhão, degeneravam num murmúrio surdo e ininterrupto, semelhante aos suspiros de um criminoso cujas forças acabaram de esgotar-se nas angústias da tortura. Estes sons melancólicos eram de molde a servir de alimento à superstição, excitando os terrores que ela receia e nos quais no entanto se compraz. Mas o velho Ochiltree não estava sujeito a sensações deste género e o seu espírito evocava nesse momento diversas recordações da mocidade.

"Estive de guarda nos postos avançados, tanto na Alemanha como na América, pensava ele, em noites piores do que esta, e sabendo que talvez houvesse no bosque, diante de mim, uma dúzia dos seus atiradores. Mas permaneci sempre firme no meu posto; ninguém pôde dizer que apanhou Edie a dormir".

Assim falando com ele próprio, pôs quase maquinalmente o pau ferrado ao ombro, tomou a atitude de uma sentinela e, ouvindo os passos de um homem que avançava para a árvore, exclamou num tom mais de harmonia com as recordações militares do que com a sua situação actual:

- Alto! Quem vem lá?

- Como diabo, meu bom Edie, fala o senhor tão alto como um baarrenhauter, a que os senhores chamam uma sentinela?

- É que eu julgava sê-lo neste momento - respondeu o mendigo -Eis uma noite terrível: trouxe a lanterna e um saco para meter a prata?

- Sim, sim, meu bom amigo - disse o alemão Ei-la, e eis também um par de alforges, um para si, outro para mim; ponho-os no meu cavalo para lhe poupar o trabalho de levar o seu por causa da sua idade avançada.

- Tem então um cavalo? -perguntou Edie Ochiltree.

- Oh! sim, meu bom amigo! -respondeu o químico

- Está preso à sebe.

- Nesse caso, tenho uma palavra a dizer-lhe antes de concluirmos o nosso contrato: é que a minha parte da prata não irá no lombo do seu animal.

- De que é que o senhor tem medo? - indagou o estrangeiro.

- Apenas de perder de vista o cavalo, o homem e a prata - respondeu o pedinte.

- Fique sabendo que está a tomar um gentleman por um grrande marroto!

- Não seria o primeiro gentleman que se mostraria como tal - respondeu Ochiltree - Mas para quê questionar? Se tem vontade de continuar, marchemos; se não, volto para a granja de Ringan, para cima daquela boa palha de aveia que tive tanta pena de deixar e reponho a pá e a enxada onde as encontrei.

Dousterswivel reflectiu um momento se não faria melhor em deixar partir Edie. para assegurar a posse exclusiva da totalidade das riquezas que esperava encontrar: mas a falta de utensílios para escavar a terra e a incerteza de saber se poderia sem auxílio cavar a tumba à profundidade necessária, sobretudo a relutância que experimentava em defrontar sozinho o terror que lhe inspirava o túmulo de Misticot, após a noite horrível que ali passara, todas estas considerações convenceram-no de que seria temeridade arriscar-se, só, àquela empresa. Procurando então o tom de lisonja que lhe era peculiar, embora intimamente muito irritado contra o mendigo, pediu ao seu bom amigo Edie Ochiltree que marchasse à frente e assegurou a sua adesão a tudo o que um tão excelente amigo pudesse propor.

- Está bem - disse Edie - vamos, e tome cuidado com os seus pés no meio da erva, que é tão alta e dos escombros. Oxalá possamos conservar a nossa luz, com este vento terrível... Felizmente que ainda temos de vez em quando uns raios de lua.

Assim falando, o velho Edie, seguido de perto Pelo químico, encaminhava-se para o lado das ruínas. Mas parou de repente, quando chegou diante delas.

- O senhor que é um sábio, Mr. Dousterswivel, e Que sabe tantas coisas sobre as obras maravilhosas da natureza, poder-me-ia responder a uma pergunta? Acredita nos fantasmas e nas aparições dos espíritos que dam pela terra? Vejamos: acredita ou não?

- Meu bom Mr. Edie - respondeu Dousterswivel, em voz baixa e suplicante - por favor, é este o lu gar e a hora para fazer semelhantes perguntas?

- Sem dúvida que é uma coisa e outra, Mr. Dousterswivel, porque me julgo obrigado a dizer-lhe que corre o boato de que o velho Misticot aparece. Ora, seria um mau encontro para nós esta noite, e quem sabe até que ponto ele gostaria da nossa intenção de visitar os seus tesouros?

- Alle Quter Geister (1) - murmurou o alemão, tornando-se o resto do exorcismo indistinto devido ao tremor da sua voz - Tenho de pedir-lhe, Mr. Edie, que não fale assim, porque, pelo que ouvi a outra noite, tenho razão para crer...

- Quanto a mim - disse Edie, entrando na nave e agitando um braço em sinal de desafio, e fazendo estalar os dedos - preocupa-me tanto como nada vê-lo aparecer neste momento; porque, afinal, é um espírito sem corpo, ao passo que nós somos espíritos e temos um corpo.

- Pelo amor de Deus - suplicou Dousterswivel não fale assim nem de espírritos nem de corpos.

- Bem - disse o mendigo - aqui está ainda a pedra; e quer haja um espírito ou não, nem por isso deixarei de escavar um pouco mais esta sepultura - Saltou então para dentro da cova de onde se retirara de manhã o precioso cofre - Estou velho e fraco agora, e não posso trabalhar muito tempo seguido; aliás, é justo que cada um faça o seu turno; tem que se colocar no meu lugar e pegar na pá para retirar toda esta terra; em seguida, volto eu depois do senhor.

Dousterswivel tomou então o lugar do mendigo, e trabalhou com o zelo que podia excitar numa alma cúpida, suspicaz e cobarde como a sua, o poderoso interesse da avareza junto com o desejo ardente de terminar a sua empresa, para deixar o mais cedo possível um lugar que lhe inspirava tanto terror.

Edie, muito à vontade ao lado da cova, limitava-se a exortar o seu sócio a trabalhar firme.

- Palavra que poucas pessoas já trabalharam por

 

(1) Todos os bons espíritos. - N. do T.

 

tão bom salário; se a caixa que esperamos encontrar tivesse a décima parte do tamanho do cofre nº I ainda valia o dobro, se estivesse cheia de ouro em vez de prata. Diabo! O senhor trabalha como se tivesse sido educado para a enxada e a pá! Sabe que poderia ganhar meia coroa por dia? Tome cuidado com essa pedra, desvie os pés - disse ele, empurrando com o pé uma larga pedra que o alemão tivera o trabalho de levantar e que Edie empurrou para a cova sem piedade pelas pernas do seu sócio.

Assim exortado pelo mendigo, Dousterswivel suava e cavava no meio das pedras e da terra barrenta, trabalhando como um cavalo e blasfemando intimamente em alemão. Quando alguma destas exclamações sacrílegas se escapava dos seus lábios, Edie, mudando de bateria, exclamava:

- Não blasfeme, não blasfeme, não se pode saber quem nos escuta... Eh! Deus nos acuda! Que vejo eu além? Ah! Não é mais do que um ramo de era que se agita contra a parede. Quando a Lua o ilumina, dir-se-ia o braço de um morto a segurar um archote. Julguei que fosse o próprio Misticot. Mas não se apoquente com isso, continue a trabalhar, atire bem a terra para fora do caminho Diabos me levem se o senhor não percebe do ofício de coveiro tão bem como o próprio Will Winnet. Então, porque se detém? O senhor está precisamente no bom momento, agora.

- Porque me detenho? -disse o alemão, num tom colérico e desapontado - com a brreca, cheguei à rocha sobre a qual estas malditas ruínas (que Deus me perdoe) estão assentes.

- Pois bem - replicou o mendigo - é justamente o sítio mais provável... Decerto não é senão uma grossa pedra que foi aí colocada para cobrir o ouro. Redobre o esforço, meu camarada; vamos, firme, uma boa enxadada quebrá-la-á, garanto-lhe... bom, é isso. com a breca, o senhor tem o braço tão vigoroso como Wallace.

com efeito, o alemão, animado pelas exortações de Edie, descarregara duas ou três pancadas desesperadas que conseguiram, não fender o objecto sobre o qual incidiram, e que era realmente a rocha viva como ele conjecturara primeiro, mas quebrar o utensílio, fazendo-o repercutiu até o ombro.

- Bravo, meu rapaz! Eis a enxada de Ringan partida! É uma vergonha para aquela gente de Fairport, fabricar instrumentos tão fracos; experimente e não desanime, Mr, Dousterswivel.

O outro, sem dar resposta, subiu para fora do fosso, que podia ter seis pés de profundidade e dirigiu-se ao companheiro, numa voz trêmula de cólera.

- Mr. Edie Ochiltree sabe com quem está a brincar, e conhece aquele a quem dirrige esses maus gracejos?

- Sim, conheço-o bem, Mr. Dousterswivel, e não é de hoje; mas não há nenhuma brincadeira da minha parte. Estou impacientemente à espera dos nossos tesouros; já devíamos ter enchido os dois alforges; espero que sejam suficientemente grandes para conter as nossas riquezas?

- Tome cuidado, velho labrego - disse o filósofo, irritado - Se ainda se permitir uma brrincadeira, tome cuidado que eu racho-lhe o crrânio com esta enxada!

- E onde estariam então as minhas mãos e o meu pau ferrado? -replicou Edie, num tom que não traía o menor receio - Não, não, Mr. Dousterswivel, eu não vivi tanto tempo neste mundo para me deixar pôr fora da porta dessa maneira. Mas porque diabo, camarada, se zanga assim com os amigos? Aposto em como vou encontrar o tesouro num minuto, eu.

E, saltando para o fosso, pegou na enxada.

- Jurro - disse o alemão, cujas suspeitas tinham despertado completamente - que se o senhor tiver a audácia de me pregar semelhante partida, paga-ma de uma maneira terrível.

- Ora, oiçam-no agora! - exclamou Ochiltree - Pelo menos, ele lá sabe como fazer as pessoas encontrar tesouros! com a breca, isto leva-me a crer que já alguém usou deste meio com ele.

Ao ouvir esta alusão muito clara à cena que se passara entre sir Arthur e ele, o filósofo acabou por perder a paciência e, abandonando-se à violência natural das suas paixões, ergueu o cabo da enxada partida para o abater sobre a cabeça do velho. O golpe, segundo todas as aparências, teria sido fatal, se aquele a quem ameaçava não tivesse exclamado em voz máscula e firme:

- Tenha vergonha, homem ruim! Julga que o céu e a terra o deixariam assassinar um velho que poderia ser seu pai? Olhe para trás de si.

Dousterswivel voltou-se maquinalmente e viu, para sua extrema surpresa, um vulto alto e sombrio que se encontrava de pé, atrás dele. A aparição, sem lhe dar tempo de recorrer ao exorcismo ou à fuga, empregou imediatamente as vias de facto e por duas ou três vezes tomou as medidas dos ombros do químico com bordoadas tão substanciais que ele caiu e ficou uns minutos privado dos sentidos, em consequência da sua consternação e terror.

Quando voltou a ele, encontrou-se só, na igreja arruinada, deitado na terra mole e húmida que retirara do túmulo de Misticot. Soergueu-se com uma sensação confusa de cólera, de dor e de pavor; e não foi senão ao cabo de uns minutos que pôde conseguir bastante clareza de ideias para se lembrar de como ali viera e com que fim. Conforme a memória lhe voltou, não pôde conceber dúvidas de que o isco que Ochiltree lhe apresentara para o atrair a um lugar tão solitário, os sarcasmos com os quais provocara um conflito e o rápido socorro que ali se encontrara tão a propósito para o resolver, fosem combinações de um plano consertado para lançar a vergonha e o dano sobre a pessoa de Herman Dousterswivel. Pareceu-lhe POUCO provável que devesse a fadiga, o medo e as Pancadas que tivera de sofrer, só à malícia de Ochiltree, e concluiu que o mendigo não desempenhara senão o papel que lhe fora designado por uma personagem mais importante. Hesitava nas suas suspeitas entre Oldbuck e sir Arthur Wardour. O primeiro nunca procurara ocultar a aversão que sentia por ele; mas ele fizera tanto mal ao último, que, embora não pensasse que já lhe conhecesse toda a extensão, podia facilmente supor que soubera o bastante para se sentir animado do desejo de vingança.

Ochiltree também fizera alusão a uma circunstância, que o alemão tinha razões para julgar particular, a sir Arthur e a ele, e que o mendigo não pudera saber senão pelo primeiro. Também se lembrava de que a linguagem que Oldbuck usara com ele denunciava uma convicção da sua charlatanice, e que sir Arthur a escutara sem empregar nenhuma vivacidade em defendê-lo. Enfim, a maneira como Dousterswivel supunha que o baronnet exercera a sua vingança não era nada incompatível com os usos dos países estrangeiros, que o químico conhecia melhor do que os do norte e a Grã-Bretanha. Nele, como na maior parte dos maus, a suspeita de uma injúria era sempre acompanhada de projectos de vingança; e mal Dousterswivel recobrou o uso das suas pernas, jurou a ruína do seu benfeitor, acontecimento que infelizmente ele não tinha senão demasiados meios para acelerar.

Mas, embora o desígnio de se vingar se apresentasse ao seu espírito, não era aquele o momento de se entregar a semelhantes reflexões. A hora, o lugar, o estado em que se encontrava, e talvez a presença e a vizinhança dos seus assaltantes, exigiam que primeiro se ocupasse da sua própria segurança. A lanterna caira e apagara-se na zaragata. O vento, que gemia antes com tanta violência através das alas do edifício arruinado, abrandado pela chuva, extinguira-se quase inteiramente. A Lua também, pela mesma causa, desaparecera por completo; e apesar de Dousterswivel conhecer bastante as ruínas e de saber que devia tentar atingir a porta de Leste, as suas ideias ainda estavam tão confusas que hesitou algum tempo antes de certificar-se para que lado devia voltar-se, a fim de a encontrar. Nesta perplexidade, os terrores da superstição, aos quais as trevas e uma consciência culposa davam nova força, vieram apavorar ainda mais a sua imaginação perturbada. "Ora, pensou ele, não passam de necessidades; tudo isto provém desta maldita impostura. Como diabo esse baronnet escocês de cabeça dura, que eu conduzo pela arreata há cinco anos, pôde troçar assim de Herman Dousterswivel?... "

Acabava esta reflexão quando sobreveio um incidente feito para abalar de novo a sua coragem. No meio dos últimos gemidos do vento e do ruído melancólico produzido pela chuva que caía nas folhas e nas ruínas, pareceu-lhe ouvir de repente, e não muito longe, o coro de uma música vocal, tão triste e tão solene que parecia ser o dos queixumes dos espíritos que pertenceram aos antigos proprietários daquelas ruínas desertas, e que chorassem agora a solidão e o abandono do seu recinto sagrado. Dousterswivel, que se levantara e que tacteava ao longo da parede da igreja, sentiu seus pés agarrarem-se à terra devido ao terror que lhe causou este novo fenômeno. Todas as faculdades da sua alma pareceram, de momento, concentradas no sentido do ouvido, e todas se juntavam para o convencer de que o cântico lúgubre e pro"longado que ouvia era a música consagrada a um dos hinos fúnebres, os mais solenes da igreja de Roma. Mas porquê e para quê era ela cantada no seio de uma tal solidão? Era uma pergunta que a imaginação turbada do químico, presa de mil terrores e cheia de todas as superstições alemãs, nem mesmo ousava formular.

Outro dos seus sentidos veio em breve tomar parte neste exame. Num dos extremos da igreja, na base de uma escada de alguns degraus, estava uma pequena porta de ferro gradeada, que abria, tanto quanto podia recordar-se, para uma espécie de sala abobadada ou sacristia. Volvendo os olhos para o lado de onde partiam os cânticos, notou o reflexo de uma luz avermelhada através da grade e nos degraus que lá conduziam. Dousterswivel ficou um momento indeciso sobre o que devia fazer; depois, bruscamente, tomando uma resolução desesperada, começou a encaminhar-se para o local de onde vinha a luz.

Encorajado pelo sinal da cruz, e por tantos exorcismos quantos lhe pôde fornecer a memória, avançou para a grade, através da qual podia, sem ser notado, ver tudo o que se passava no interior da sala baixa. Quando se aproximava a passo incerto e trêmulo, o cântico, após duas ou três cadências estranhas e prolongadas, cessou e tudo foi substituído de repente por um profundo silêncio. Aproximando-se da grade, o interior da sacristia ofereceu-lhe um espectáculo singular: viu um túmulo aberto, aos quatro cantos do qual estavam quatro brandões de cerca de seis pés de altura, um ataúde no qual se encontrava um cadáver envolto no sudário, e os braços cruzados sobre o peito, colocado em cima de cavaletes, ao lado do túmulo, como se estivesse prestes a ser sepultado.

Um padre, revestido de sobrepeliz e estola, segurava aberto o livro do ofício; outro eclesiástico de vestes sacerdotais trazia a caldeirinha e duas crianças de sobrepeliz branca seguravam nos turíbulos com incenso. Um homem de luto carregado, de alta estatura e porte imponente outrora, mas agora curvado pela idade ou pela doença, estava sozinho junto do féretro. Tais eram as figuras mais notáveis deste grupo. A certa distância, achavam-se duas ou três pessoas dos dois sexos, cobertas por capas e grandes capuzes negros, e cinco ou seis outras no mesmo traje fúnebre, ainda mais afastadas do corpo, alinhavam-se imóveis ao longo da parede da sala abobadada, tendo cada uma na mão uma grande vela de cera preta. A luz e o fumo que se evolavam de tanto círio faziam brilhar a atmosfera num vapor avermelhado, misterioso e estranho desta singular aparição.

A voz do padre, alta, clara e sonora, começou então a ler, no breviário que tinha na mão, aquelas palavras solenes que o rito da Igreja católica quis consagrar ao momento em que o pó regressa ao pó. Entretanto, Dousterswivel permanecia ainda indeciso (e não é para admirar, atendendo à hora, lugar e inesperado do espectáculo) sobre se o que via era uma representação autêntica ou sobrenatural daquelas cerimonias outrora tão familiares àquelas paredes, mas que se tornaram agora muito raras nos países protestantes, e que quase não se viram mais na Escócia. Hesitava sobre se devia esperar o fim daquela cena ou se tentaria voltar à nave, quando uma mudança de posição o fez notar, através da grade, por uma das pessoas de luto. Esta denunciou por um sinal a sua descoberta ao indivíduo que se encontrava à parte, perto da urna, e que respondeu por outro sinal a duas pessoas que, destacando-se do grupo e saindo sem ruído, e como que receando interromper o serviço, vieram abrir a grade que os separava do estranho. Cada uma tomou-o por um braço e, exercendo um grau de força ao qual ele seria incapaz de resistir, mesmo que o medo lhe permitisse tentá-lo, colocaram-no no pavimento da igreja e sentaram-se cada uma de seu lado, como que para o reter. Convencido de que estava entre as mãos de mortais semelhantes a ele, o alemão desejaria fazer-lhes algumas perguntas; mas enquanto um erguia a mão para a abóbada, onde a voz do padre se fazia ouvir distintamente, o outro levava o dedo aos lábios em sinal de silêncio, recomendação à qual o filósofo julgou que o mais prudente seria obedecer. Retiveram-no assim até que um sonoro "aleluia", ecoando sob os arcos desertos de Santa Ruth, pôs termo à singular cerimónia, da qual quisera o acaso que ele fosse testemunha.

Quando o hino deixou de soar, um dos seus negros guardiões disse-lhe, numa voz e num dialecto que lhe eram familiares.

- Meu Deus, Mr. Dousterswivel, é o senhor? Não nos podia ter dito que desejava assistir à cerimonia? Milorde não pôde ficar contente de o senhor vir dessa maneira, às escondidas.

- Em nome do céu, diga-me quem é? - perguntou o alemão, por sua vez.

- Quem sou? E quem quer o senhor que eu seja senão Ringan Aikwood, o caseiro de Knockwinock. E que pode o senhor fazer aqui, a esta hora da noite? A não ser que não tenha vindo para assistir aos funerais da dama.

- Declaro-lhe, meu bom senhor caseiro Aikwood disse o alemão, levantando-se - que esta mesma noite fui assassinado, roubado e posto em perrigo de vida.

- Para homem assassinado, o senhor está razoavelmente no uso da palavra; e quem diabo poderia roubá-lo aqui e pôr a sua vida em perigo, Mr. Dousterswivel?

- Vou dizer-lho, senhor caseiro Aikwood Ringan; não foi outro senão o velho miserável e andrajoso do roupão azul, a quem chamam Edie Ochiltree.

- Não posso acreditar nisso - respondeu Ringan Edie é meu conhecido, e era-o de meu pai antes de mim, como um homem franco, leal e incapaz de uma acção covarde. Olhe, está precisamente deitado na nossa granja, onde dorme desde as dez horas da noite. Assim, ter-lhe-á tocado quem o senhor quiser, Mr. Dousterswivel, mas, se acaso alguém lhe tocou, garanto-lhe que Edie está inocente.

- Mr. Ringan Aikwood caseirro, não sei o que o senhor quer dizer por inocente, mas declarro-lhe eu que o seu frranco e leal amigo Edie Ochiltree me roubou cinquenta libres esterlinas e que está agorra tanto na sua granja como eu estou no reino do céu.

- Pois bem, senhor, se quiser vir comigo, como as pessoas do enterro se dispersaram, arranjamos-lhe uma cama lá em casa e veremos se Edie está na granja. Havia dois tipos de mau aspecto que deixavam a granja quando nós chegámos com o corpo, é certo; e o padre, que não gosta de que nenhum herético seja testemunha das nossas cerimonias religiosas, mandou atrás deles dois dos homens a cavalo, segundo ouvimos dizer.

Assim falando, o obsequioso caseiro, ajudado por um personagem silencioso, que era seu filho, desembaraçou-se da sua capa negra e preparou-se para acompanhar Dousterswivel a um lugar onde este pudesse encontrar do que tanto carecia.

- Amanhã, dirrijo-me ao magistrado - disse o alemão - e farrei pôr em execução a lei contra todos esses esfarrapados.

Assim jurando vingança contra os autores da sua desgraça, atravessava as ruínas em passo cambaleante, amparado por Ringan e seu filho, num estado de fraqueza que necessitava de socorro.

Quando chegaram fora da abadia e alcançaram a relva que a cercava, Dousterswivel pôde ver os archotes, que lhe tinham causado tantos alarmes, sairem das ruínas em procissão irregular e lançarem a sua claridade como a de fogos-fátuos sobre as margens do lago. Depois de terem iluminado a vereda durante algum tempo, de maneira vacilante, as luzes apagaram-se de repente.

- Apagamos sempre os nossos brandões no poço da Santa Cruz, nesta espécie de ocasiões - disse o caseiro ao alquimista.

Efectivamente, nenhum vestígio visível da procissão continuou a oferecer-se aos olhos de Dousterswivel, embora ele pudesse ouvir ainda, de vez em quando, o eco repetir o ruído distante e sempre a decrescer das patas dos cavalos para os lados onde o cortejo fúnebre se encaminhara.

 

Vamos Que a pequena canoa singre bem e obtenha uma pesca melhor! Que ela siga bem É o ganha-pão dos filhos. A canoa singra, a canoa singra E que seja bem alegre a vida dos que trazem o peixe e a canastra.

Velha Balada

 

Vamos agora introduzir o leitor na cabana do pescador de que tratámos no capítulo XI desta história edificante. Desejaria poder dizer que a ordem e o asseio reinavam lá dentro e que estava decentemente mobilada, mas sou, pelo contrário, forçado a confessar que tudo ali era confusão, desordem e sujidade, o que não impedia que os seus moradores, isto é, Luckie Mucklebackit e sua família, tivessem um ar de abastança e mesmo de opulência que parecia justificar um velho provérbio escocês: engorda-se na porcaria.

Apesar de se estar no Verão, um grande lume ardia na lareira e servia ao mesmo tempo para iluminar, aquecer e preparar as refeições. A pesca fora boa, e a família, com a sua peculiar imprevidência, não cessava, desde que fizera a descarga, de grelhar e de fritar uma assaz grande quantidade de peixe reservada ao consumo caseiro, enquanto as espinhas e as escamas se amontoavam nos pratos de madeira com bocados de biwmocks (1) entre jarros ornados de mossas, meio cheios de cerveja. A figura alta e atlética de Maggie, movendo-se entre um bando de filhas e filhas mais pequenos, repelindo ora um, ora outro, com esta exclamação carinhosa: "Não estorvem o caminho, ruins sujeitos! ", formava um flagrante contraste com o olhar fixo e o ar meio cretino da mãe de seu marido.

Era uma mulher chegada ao último período da vida humana. Estava sentada na sua cadeira habitual, muito perto do lume, do qual procurava o calor e ao

 

(1) Bolos de farinha de aveia grelhados nas brasas. -N. Do T.

 

que, no entanto, ficava quase insensível. Ora parecia murmurar alguma coisa entre dentes, ora sorria vagamente às crianças, que puxavam, a brincar, a sua touca ou as pontas do seu avental de quadrados azuis. com sua roca no seio e o fuso na mão, fiava negligentemente e como que num movimento maquinal, segundo a antiga moda escocesa. As crianças mais novas passavam entre as pernas dos mais velhos, observavam os movimentos do fuso da avó conforme ele girava e, uma vez por outra, aventuravam-se a interromper a sua marcha quando lhe sucedia rolarem no chão, acidente ao qual as fiandeiras já não estão expostas, desde que o uso da roda foi geralmente adoptado na Escócia, de forma que até a bela Princesa do bosque adormecido poderia percorrer todo o país sem risco de encontrar um fuso que lhe picasse as mãos. Apesar de ser mais de meia-noite, ainda toda a família estava de pé e não parecia disposta a deitar-se. A dona da casa achava-se muito ocupada em grelhar os bolos de aveia; e a filha mais velha, essa náiade seminua de quem já falámos algures, preparava uma pilha de peixe seco ao fumo de madeira verde, para ser comido com aqueles bolos saborosos.

A meio destas ocupações, ouviu-se uma pequena pancada na porta, acompanhada desta pergunta: "Ainda estão de pé?... ". A resposta foi: "Sem dúvida, sem dúvida; entre, minha querida", e, levantando-se a aldrava, viu-se aparecer Jenny Rintherout, criada do nosso Antiquário.

- Ah, santo Deus! - exclamou a dona da casa És tu, Jenny? Tornaste-te muito rara, minha filha.

- Realmente, temos andado tão ocupadas com o ferimento do capitão Heitor, lá em casa, que há quinze dias que nem posso deitar o nariz de fora; mas agora está melhor, e o velho Caxon dorme no seu quarta para o caso de ele precisar de alguma coisa. E assim que a nossa gente foi para a cama, não fiz mais do que pôr a touca e, deixando a porta fechada na aldrava, para o caso de alguém querer entrar ou sair enquanto estou fora, vim ver se havia alguma novidade por esta casa.

- Sim, sim - respondeu Luckie Mucklebackit - Já vejo que vens muito enfeitada; é Steenie que vens procurar, mas ele não está em casa esta noite; e, aliás tu não és o que convém a Steenie, minha filha; uma' rapariga como tu não está apta a manter um homem.

- Tão-pouco Steenie é o que mais me convém respondeu Jenny, com um meneio de cabeça que não ficaria mal a uma menina de mais alto nascimento

- Eu quero um marido que possa manter a sua mulher.

- Deixa-te disso, minha amiga, são ideias que arranjaram nas cidades e nas vilas. Mas as mulheres dos pescadores não são assim tão parvas; elas são as donas do homem, da casa e da bolsa.

- Isso não as impede de trabalhar como bestas de carga -disse a ninfa da terra à ninfa das águas Desde que o barco vara a praia, o mandrião do pescador não presta para nada, e é a mulher quem tem de ir chafurdar na água para procurar o peixe e trazê-lo para terra. Quanto ao homem, tira o seu fato molhado para vestir o seco, e senta-se ao pé do lume, de cachimbo na boca, sua pinta de aguardente ao lado, tão descansado como um velho burguês, e não se rala nada enquanto o barco não estiver a flutuar. Mas a pobre mulher tem de levar os remos às costas até casa, depois tem de levar o peixe à cidade próxima, e grita, e discute com cada freguesa que venha comprar, até conseguir vender-lho. E eis a vida das mulheres dos pescadores; não passam de pobres escravas.

- Escravas! Deixa-te disso, minha amiga; vê-se bem que não sabes nada do que dizes, quando chamas escravas às donas de casa. Cita-me, pois, uma só palavra que o meu Saunders ouse dizer, um só passo Que ouse dar na casa, a não ser para beber e comer e brincar um pouco com os nossos filhos. Ele é demasiado sensato para se julgar dono de alguma coisa aqui, desde o tecto ao pequeno prato partido que está ali naquele banco. Ele sabe muito bem quem o alimenta, Quem o veste, quem mantém tudo em bom estado e a boa ordem na casa, enquanto o seu barco balouça no treito. Pobre rapaz! Não, não, minha filha, aquela que vende a mercadoria detém a bolsa, e quem tem a bolsa governa a casa. Mostra-me um dos teus caseiros Que queira deixar sua mulher levar o gado ao mercado e receber o dinheiro. Não, não, nada disso.

- Pois bem, Maggie, cada terra com seu uso. Mas que é então feito de Steenie, esta noite, à hora a que toda a gente recolheu e se deitou? E onde está o seu homem?

- Meti o meu homem na cama, porque já não podia mais, e Steenie foi fazer uma expedição nocturna com o velho mendigo Edie. Não tardarão em voltar; senta-te.

- Bem, boa mulher, eu não tenho muito tempo para me demorar. Mas tenho de contar-lhe as novidades. Decerto ouviu dizer que sir Arthur encontrou um grande cofre cheio de ouro, em Santa Ruth. Ficará mais orgulhoso do que nunca; não se atreverá a espirrar com medo de ver os seus sapatos.

- Sim, sim, correu por aí esse boato; mas o velho Edie acha que aumentaram vinte vezes mais do que foi, e ele viu-o desenterrar. Ah! Não seriam pobres como nós que fariam semelhante achado.

- Isso é bem verdade. E já sabe, sem dúvida, da morte da condessa de Glenallan, e como foi exposta numa cama sumptuosa, e como se deve sepultar esta mesma noite em Santa Ruth, à luz de archotes; e os criados papistas, e Ringan Aikwood, que também é papista, devem todos lá estar. Deve ser a coisa mais bela que se possa ver.

- Olha, minha filha - respondeu a nereida - se lá não forem senão papistas, não terá muita gente; porque, como diz o honesto Mr. Blattergowl, ao falar da igreja católica, não há muita gente que beba a sua taça de encantamentos neste recanto de terra de eleitos. Mas que ideia foi essa de enterrar a velha dama (e era uma rude patroa) assim de noite? Ia apostar em como a avó sabia isso.

Nesta altura, elevando a voz, chamou por duas ou três vezes: "Avó! Avó! " Mas, mergulhada na apatia da velhice e atacada de surdez, a velha sibila a quem se dirigia continuava a mover o seu fuso, sem ouvir o apelo que lhe tinham feito.

- Fala à tua avó, Jenny. Quanto a mim, preferia chamar o barco a meia milha daqui, com o vento nordeste a soprar-me na cara.

- Boa mãezinha - disse a pequena náiade, numa voz mais familiar à anciã -minha mãe pergunta porque é que os Glenallan enterram sempre os seus à luz de archotes nas ruínas de Santa Ruth.

A velha deteve-se no momento em que virava o seu fuso; voltou-se para o resto da família, levantou a mão amarelada, trêmula e ressequida, e mostrou um rosto terroso e enrugado, que não diferia do de um cadáver senão pelo movimento assaz vivo de dois olhos azuis claros; e como se um ponto de contacto a tivesse de novo associado ao mundo dos vivos, respondeu:

- A pequena não pergunta porque é que os Glenallan enterram os seus mortos à luz de archotes? Morreu algum Glenallan há pouco tempo?

- Poderíamos todos morrer e ser enterrados. - disse Maggie - que julgo que a senhora não se aperceberia - Depois, elevando a voz de maneira a fazer-se ouvir por sua sogra, ajuntou -Foi a velha condessa.

- Deixou finalmente este mundo? - disse a anciã, numa voz que denunciava mais agitação do que a sua extrema velhice e apatia geral do seu carácter pareciam susceptíveis - Foi chamada, enfim, às suas derradeiras contas, depois de uma tão longa carreira de orgulho e de tirania? Oh, Deus se digne perdoar-Lhe!

- Mas a mãe perguntava - insistiu a jovem -porque é que a família dos Glenallan enterram sempre os seus mortos à luz de archotes.

- É o costume deles - disse a avó - desde a data

em que o poderoso conde caiu na terrível batalha de Harlaw, onde se diz que o cântico fúnebre foi entoado desde a embocadura do Tay até a do Cabrach, não se ouvia outro som senão o dos queixumes e lamentos sobre a morte de tão ilustres guerreiros que iram em combate contra Donald das Ilhas. Mas a filha do grande conde vivia ainda. As mulheres da casa dos Glenallan foram sempre uma raça dura e orgulhosa. Ela não quis que entoassem o cântico fúnebre Por seu filho; mas, no silêncio da noite, foi depô-lo no lugar de repouso sem nenhum cântico ou hino fúnebre, e sem a cerimónia do festim. Ela disse que no dia da sua morte ele tinha morto bastante gente para que as viúvas e as filhas dos que cairam sob os seus golpes, ao entoarem o cântico funério em honra dos que elas perderam, cantassem também por seu filho. É uma frase de que a família se ufana, e depois teve a honra de a respeitar, mas sobretudo nos últimos tempos, porque de noite celebram mais livremente as suas cerimonias papistas e mais secretamente que de dia. Pelo menos, era assim no meu tempo. Poderiam ser então perturbados pelas autoridades de Fairport. E pode ser agora, como já ouvi dizer, que os deixem tranquilos; o mundo está muito mudado; muitas vezes eu própria nem sei se estou sentada ou de pé, morta ou viva.

E olhando em volta do lume com aquele ar vago e confuso que parecia denunciar a incerteza de que se queixava, a velha Elspeth recomeçou, segundo o seu hábito, a mover maquinalmente o fuso.

- Meu Deus - disse a meia voz Jenny Rintherout à sua vizinha - é medonho ver a sua velha mãe quando ela começa a declamar desta maneira: é como um morto que falasse aos vivos.

- Não te enganas; ela nada sabe do que se passa em sua volta; mas metam-na nas suas velhas histórias e não se fará rogada para falar. Sabe bem outras sobre essa família Glenallan. O pai do meu homem foi seu pescador há muito tempo. Fica sabendo que os papistas comem muito peixe; pelo menos, há isso de bom na sua religião, seja lá ela o que seja no resto. Eu tinha sempre a certeza de vender o mais belo peixe, e ao mais alto preço, para a mesa da condessa, principalmente à sexta-feira. Mas olha como a velha mãe mexe as mãos e os lábios: a sua cabeça fermenta agora como levedura; vai talvez falar toda a noite, enquanto por vezes está toda uma semana sem dizer palavra, a não ser às crianças.

- Palavra, senhora Mucklebackit - replicou Jenny

- é uma mulher que tem alguma coisa de extraordinário; mete-me medo. Julga que ela seja o que devia ser? Há pessoas que dizem que ela não vai à igreja e nunca se aproxima do ministro, e que outrora era papista, mas que, depois do marido morrer, ninguém mais sabe o que ela é. Julga que ela não seja um pouco bruxa?

- Bruxa? Estás doida Por se ser velha, é-se bruxa? Se me falasses de Alison Breck, então, em consciência, não poderia responder por ela; vi as suas canastras repletas de peixe quando...

- Silêncio, Maggie - disse Jenny, baixinho - Julgo que a sua velha mãe ainda vai falar.

- Alguém me disse - perguntou a velha sibila a não ser que o tivesse sonhado, ou que me fosse revelado das alturas, que Joscelind, a dama de Glenallan, morrera e se enterrara esta noite?

- Sim, boa mãe! - exclamou a nora -É verdade.

- Faça-se a vontade de Deus - disse a velha Elspeth -Ela fez alguns infelizes no seu tempo! Sim, até o seu próprio filho... Ele vive ainda?

- Sim, vive ainda; mas quem poderá dizer se por muito tempo? Não se lembra de que ele veio perguntar por si, esta Primavera, e que lhe deixou dinheiro?

- Pode ser, Maggie, mas já o esqueci. Era um belo homem outrora, e seu pai tinha-o sido antes dele; e se vivesse muito tempo, poderiam ter sido todos muito felizes. Mas morreu, e a condessa apoderou-se do espírito do filho, e fê-lo acreditar no que ele nunca deveria ter acreditado, e praticar uma acção de que ele nunca cessou de se arrepender, e que nunca deixará de lamentar, ainda que a sua vida seja tão longa, tão fatigante como a minha.

- Oh, que foi, avó? - Que foi, boa mãe? - Que foi. Luckie Elspeth? - bradaram ao mesmo tempo, as crianças, a mãe e Jenny Rintherout.

- Não mo perguntem, e peçam a Deus para que nunca as abandonem ao orgulho e à obstinação de vossos corações. Há paixões tão poderosas na cabana como no castelo; posso dar-lhes disso um triste testemunho. Oh! Aquela triste e horrível noite nunca sairá da minha velha cabeça? Vê-la-ei sempre estendida no chão, com os seus longos cabelos todos encharcados de água salgada. O céu vingar-se-á um dia de todos os que tomaram parte nisso. Meu Deus, meu filho estará no mar nesta noite de temporal?

- Não, não, minha mãe, não há barco que possa aguentar-se com o vento que faz. Ele está ali na cama.

- E Steenie foi para o mar?

- Não, avó; Steenie foi com o velho Edie Ochiltree, o mendigo. Talvez fossem ver os funerais.

- Isso não pode ser - disse a dona da casa - porq1 nada sabíamos quando Jock Rand entrou e nos disse que os Aikwood tinham recebido ordem para lá ir; eles têm o cuidado de manter essas coisas secretas e devem ter trazido o corpo do castelo, que fica a dez milhas daqui, a coberto das trevas da noite. Ela esteve exposta durante mais de dez dias na grande câmara forrada de preto e iluminada por círios.

- Deus a queira absolver! - exclamou a velha Eispeth. cuja cabeça parecia toda ocupada na morte da condessa -Era um bem duro coração de mulher; mas foi dar contas das suas acções Àquele cuja misericórdia é infinita... Deus permita que ela a experimente também!

E recaiu num silêncio que não quebrou mais durante o resto da noite.

- Gostaria de saber o que aquele velho louco do mendigo e o nosso filho Steenie podem fazer a esta hora da noite - disse Maggie Mucklebackit, cuja exclamação de surpresa foi repetida por Jenny -Uma de vós, pequenas - ajuntou ela - que suba ao alto do rochedo e comece a gritar por eles, para o caso de estarem ao alcance de voz: "Os bolos vão reduzir-se a cinzas! "

A rapariga partiu; mas uns minutos depois voltava, a gritar:

- Ah, mãe! Ah, avó! Eis um fantasma branco que precipita dois fantasmas negros do alto dos rochedos!...

Mal esta singular notícia era anunciada, ouviu-se o ruído de uns passos, e o jovem Steenie Mucklebackit, seguido de perto por Edie Ochiltree, meteu-se precipitadamente na cabana. Ambos estavam sem fôlego. A primeira coisa que Steenie fez, foi procurar a tranca que fechava a porta, e que sua mãe lhe lembrou ter queimado num Inverno muito duro, três anos antes.

- E - disse ela - que necessidade tinham de uma tranca, pessoas como nós?

- Ninguém vem atrás de nós - disse o mendigo, depois de retomar o fôlego - Nós somos precisamente como os maus, que fogem quando não se pensa em persegui-los.

- Mas, palavra, que vinha alguém na nossa peugada - replicou Steenie - Era um espírito ou coisa que o valha.

- Era um homem de branco, a cavalo - disse Edie - e cujo cavalo se atascou na terra, muito mole para o nortar, e derrubou o cavaleiro para o lado; eu bem me apercebi disso. Francamente, nunca acreditei que as minhas velhas pernas me trouxessem tão depressa... Corri quase tanto como se estivesse em Preston-pans (1) - com a breca! - disse Maggie - Foram ambos bem prudentes; era, sem dúvida, um dos cavaleiros que escoltava o enterro da condessa.

- Quê! - exclamou Edie - A velha condessa foi sepultada esta noite em Santa Ruth? Ia jurar que foram o ruído e as luzes que nos fizeram partir. Se soubesse isso, tê-los-ia esperado, e não teria lá deixado o homem; mas eles hão-de tratá-lo; bateu com muita força, Steenie; receio que o tenha abatido.

- Nada disso - replicou Steenie, a rir - Ele tem boas costas, bastante largas, e não fiz mais do que tomar-lhes a medida com o meu cacete. com os diabos, se eu não tivesse chegado a tempo, ele ia fazer-lhe saltar os miolos, meu velho rapaz.

- Pois bem, visto que me tirei são e salvo desta questão, resolvi não mais tentar a Providência; mas não posso acreditar que haja mal em pregar uma partida desta espécie a um velhaco tão consumado que não vive senão de enganar as pessoas honestas.

- Mas que vamos fazer a isto? - disse Steenie, mostrando uma pequena carteira.

- Deus nos acuda! - exclamou Edie, muito alarmado- Para que tocou nisso? Sabe que basta uma só folha desse livro para nos fazer enforcar aos dois?

- Não sabia - respondeu Steenie - Sem dúvida, este livrinho caiu da algibeira dele, porque o encontrei debaixo dos meus pés, quando tentava repô-lo sobre as suas pernas, e meti-o no bolso para que não se Perdesse; depois, ouvimos os passos de cavalos, e o senhor gritou-me que fugisse, de forma que não Pensei mais na carteira.

- É preciso encontrar meio de lha entregar de

 

(1) Cidade perto de Edimburgo, onde se travou uma batalha entre Charles Edward, neto de James II, e as tropas reais, em 1745. - N. do T.

 

qualquer maneira; talvez seja melhor levá-la o senhor mesmo a casa de Ringan Aikood, ao romper do dia. Nem por cem libras esterlinas eu desejaria que a encontrassem nas nossas mãos.

Steenie prometeu seguir este conselho.

- Eis uma linda noite que acaba de passar. Mr. Steenie - disse Jenny Rintherout, que, aborrecida por não ter sido notada, veio apresentar-se diante do jovem pescador - Uma linda noite, realmente! A correr como vagabundos e a fazer-se perseguir por lobisomens, quando devia estar na cama a dormir, como o seu honesto pai.

Esta tirada valeu-lhe uma resposta do jovem pescador no mesmo tom de troça; após o que se atirou aos bolos de aveia e ao peixe fumado, que se encontravam reforçados com uma ou duas pintas de cerveja forte e uma garrafa de genebra. O mendigo retirou-se em seguida para um barracão vizinho, onde se estendeu sobre a palha fresca; as crianças, uma após outra, deslizaram para o seu ninho; a velha mãe foi deposta no seu leito de crina; Steenie, apesar das fadigas anteriores, teve a galantaria de acompanhar Miss Jenny Rintherout a casa dela, e a história não diz a que horas regressou. Por fim, a dona da casa, depois de cobrir o lume e de imprimir uma espécie de ordem ao aposento, foi a última a ir deitar-se.

 

Há muitos dos grandes que dariam metade dos seus bens para conhecer a maneira e ler a honra de mendigar em grande estilo.

A Moita do Mendigo

 

O velho Edie levantou-se com a cotovia, e o seu primeiro cuidado foi informar-se de Steenie e da carteira. O jovem pescador fora obrigado a acompanhar o pai antes da alvorada, a fim de aproveitar a maré; mas prometera que, a seguir ao seu regresso, a carteira, com o seu conteúdo, cuidadosamente enrolada num bocado de lona de vela, seria entregue por ele a Ringon Aikwood para a dar a Dousterswivel, seu proprietário.

A dona da casa preparara a refeição da manhã para a família e, carregando o seu cesto de peixe aos ombros, encaminhou-se a passo firme para Fairport. As crianças estavam a brincar junto da porta, porque fazia bom tempo e havia sol. A velha avó, de novo sentada na sua cadeira de verga, retomara o seu eterno fuso, perfeitamente impassível aos gritos e aos choros dos pequenos, assim como aos ralhos da mãe, que precedera a dispersão da família. Edie arranjara os seus vários sacos e preparava-se para recomeçar as suas digressões, segundo o costume da sua vida vagabunda; mas, antes de partir, avançou, como pensou que a civilidade requeria, para se despedir da velha matrona.

- Desejo-lhe muito bom dia, comadre, e mais de um ainda como este; voltarei no fim da ceifa, e espero encontrá-la então de boa saúde.

- Peça para me encontrar na paz do túmulo - disse a anciã em voz cava e sepulcral, mas sem que as suas faces denotassem a menor agitação.

- A senhora está velha, comadre, e eu estou velho, também, mas temos de esperar a vontade do Todo Poderoso; não nos esquecerá na nossa vez.

- Ele não esquecerá tão-pouco as nossas acções disse a anciã - O espírito responderá pelos erros da carne.

- Não é senão muito verdade; e mais do que a outro, eu posso aplicar essa frase a mim próprio, eu, que levo uma vida errante e desordenada. Mas a senhora foi sempre uma mulher honesta; somos todos pecadores, mas com certeza não o foi de forma a desesperar.

- O peso podia ter sido maior; mas, tal como é sim, tal como é ainda, nem tanto seria preciso para submergir o mais soberbo brigue que alguma vez saiu da baía de Fairport. Não me disse alguém, pelo menos ficou-me essa impressão no espírito, mas os velhos têm por vezes a cabeça fraca; não me disse alguém que Joscelind, condessa de Glenallan, deixara este mundo?

- Quem o disse falou verdade - respondeu o velho Edie - Foi sepultada ontem à noite em Santa Ruth; e eu, como um velho louco, fugi ao ver os archotes e os cavaleiros.

- Tal tem sido o seu costume desde a morte do grande conde que caiu em Harlaw: fazem-no para mostrar que desdenham morrer e ser enterrados como os outros homens. As mulheres da casa de Glenallan não choram os seus maridos nem as irmãs os irmãos. Mas é realmente verdade que foi enfim chamada à prestar as suas últimas contas?

- Tão verdade como a senhora e eu o seremos um dia - respondeu Edie.

- Então, aliviarei o meu espírito do peso que o esmaga, suceda o que suceder.

Pronunciou estas palavras com mais vivacidade do que quando falava vulgarmente, e acompanhou-as de um movimento de mão, como se afastasse alguma coisa para longe dela. Levantou-se então e, endireitando o seu vulto que outrora fora majestoso e que ainda o parecia, embora curvado pela idade e pelas doenças, permaneceu diante do velho, oferecendo a imagem de uma múmia que, animada por um espírito sobrenatural, acaba de experimentar uma ressurreição temporária. Seus olhos de um azul claro divagaram por aqui e por além, como se ela ora esquecesse, ora recordasse o que sua mão seca e engelhada tentava encontrar entre diversos objectos no fundo de um amplo bolso, à moda antiga. Por fim, tirou uma pequena caixa de palha e, abrindo-a, dela retirou uma jóia preciosa na qual se encastoava uma mecha de cabelos de duas cores, uns negros, outros castanhos-claros, entrelaçados e cercados de diamantes de valor considerável.

- bom homem - disse ela a Ochiltree - se quiser merecer a misericórdia divina, vá levar esta mensagem de minha parte ao castelo Glenallan, e peça para falar ao conde.

- Ao conde de Glenallan, comadre! Como quer que ele receba um pobre vagabundo como eu, ele, que não quer ver nenhum dos gentlemen do país?

- Vá sempre, e experimente; dir-lhe-á que Elspeth de Craigburnfoot (recordar-se-á melhor de mim por este nome) pede para o ver antes de partir para a sua longa peregrinação, e que ela lhe envia esta jóia em testemunho do assunto de que lhe quer falar.

Ochiltree observou o anel e admirou o seu valor aparente; depois, tornando a colocá-lo cuidadosamente na caixa, que embrulhou num velho lenço rasgado, meteu o volume no peito.

- Bem, boa senhora - disse ele - farei o recado, se me for possível; mas com certeza nunca presente tão precioso foi enviado a um conde da parte de uma velha mulher de pescador, e por intermédio de um velho mendigo como eu.

Após esta reflexão, Edie pegou no pau ferrado, pôs o chapéu de aba larga e partiu para o seu destino. A velha ficou algum tempo de pé, numa atitude imóvel, olhos voltados para a porta por onde o seu mensageiro acabava de sair. Pouco a pouco, a aparência de vivacidade que este diálogo excitara nela abandonou o seu rosto; recaiu na sua cadeira habitual, e retomou o fuso e a roca com o costumado ar de apatia.

Entretanto, Edie Ochiltree avançava na sua viagem. A distância até Glenallan era de dez milhas, e o velho soldado percorreu cerca de doze para realizar esta marcha com a curiosidade natural dos hábitos ociosos do seu estado e a actividade da sua imaginação. Todo o caminho se esforçou por adivinhar qual podia ser o fim da misteriosa mensagem de que se encarregara, e que relação o orgulhoso, o rico e poderoso conde de Glenallan podia ter com os crimes ou o arrependimento de uma velha quase na segunda infância, cuja categoria na sociedade era muito pouco superior à do seu mensageiro. Tentou recordar tudo o que soubera ou ouvira dizer da família Glenallan, e depois de o ter feito, não se sentiu mais capaz de estabelecer qualquer conjuntura sobre o assunto.

Ele sabia que os grandes bens e ricos domínios desta antiga e poderosa família eram devolutos à condessa que acabava de morrer, e que herdara da maneira mais notável o carácter severo, altivo e inflexível que distinguira a casa de Glenallan, desde Que ela começara a figurar nos anais da Escócia. Tal como o resto dos seus antepassados, ela zelosamente permaneceu fiel à fé católica romana, e desposara um gentleman inglês da mesma confissão e de grande fortuna, que não sobreviveu mais de dois anos ao casamento. A condessa viu-se então muito nova com a administração absoluta dos grandes bens dos seus dois filhos. O mais velho, lorde Geraldin, ficara totalmente dependente de sua mãe enquanto ela viveu O segundo, na sua maioridade, tomou o nome e as armas de seu pai, e entrou na posse dos seus domínios segundo as condições do contrato matrimonial da condessa. Desde essa época, ele vivera quase sempre em Inglaterra, e não fizera a sua mãe e a seu irmão senão visitas muito raras e muito curtas, das quais acabou mesmo por se dispensar por completo, em consequência da sua conversão à religião reformada

Mas mesmo antes de ter tão mortalmente ofendido sua mãe, a residência de Glenallan oferecia muito poucos encantos a um jovem tão vivo e tão alegre como Edward Geraldin Neville, embora a austeridade e a tristeza daquele retiro parecesse convir melhor aos hábitos melancólicos e ao carácter frio e reservado de seu irmão mais velho. Lorde Geraldin, ao entrar na vida, era um jovem cujos talentos davam as mais belas esperanças; aqueles que o conheceram por ocasião das suas viagens formaram a mais elevada opinião acerca da sua carreira futura. Mas tão brilhantes presságios vieram muitas vezes a obscurecer-se de uma maneira estranha. O jovem lorde regressou à Escócia, e depois de ter vivido cerca de um ano em companhia de sua mãe no castelo de Glenallan, pareceu ter adoptado toda a austeridade e lúgubre melancolia do seu carácter. Excluído das funções públicas pela religião que professava, e, por sua própria deliberação, de qualquer outra distracção menos séria, lorde Geraldin vivia no mais profundo recolhimento.

O seu convívio habitual compunha-se de um eclesiástico da sua comunhão que vinha de vez em quando ao castelo; e muito raramente, isto é, em dias designados de grandes festas, recebia-se com cerimónia uma ou duas famílias que professavam também a religião católica. A isso se limitava o círculo das suas relações, das quais os seus vizinhos heréticos estavam inteiramente excluídos. Mesmo os católicos que se recebiam em Glenallan nas grandes ocasiões de que acabamos de falar, não viam nada para além do fausto e da pompa estadeados nessas refeições de aparato e regressaram sempre igualmente impressionados com as maneiras imponentes e severas da condessa, e com o sombrio abatimento que nem por um instante deixava de obscurecer o semblante do filho.

A morte da mãe acabava de colocá-lo na posse da fortuna e do seu título, e já se perguntava entre os vizinhos se a alegria renasceria com a sua independência; mas aqueles que tiveram ocasião de penetrar algumas vezes na intimidade da família espalharam o boato de que a constituição do conde estava minada pelas austeridades religiosas e que provavelmente não tardaria em seguir sua mãe ao túmulo. Este acontecimento parecia tanto mais provável porque o irmão morrera de uma doença de languidez que, nos últimos anos da sua vida, afectara igualmente as faculdades físicas e morais, de maneira que os genealogistas já pesquisavam nos seus registos, com o fim de descobrir o herdeiro desta desditosa família, enquanto os homens de negócios falavam com prematura satisfação da probabilidade de um processo a propósito da sucessão Glenallan.

Ao aproximar-se da fachada do castelo de Glenallan, antigo edifício de uma grande extensão e cuja parte mais moderna se atribuía ao desenho do célebre Inigo Jones, Edie Ochiltree começou a reflectir de que maneira lhe seria mais fácil ser recebido para transmitir a sua mensagem; e, após algum tempo de indecisão, resolveu por fim enviar ao conde a jóia de que era portador, por um dos seus criados. com este intuito, deteve-se numa choupana, onde obteve os meios de encerrar o anel num pequeno embrulho lacrado, com este endereço: Para ser entregue a Sua Honra o conde de Glenallan. No entanto, sabendo que missivas deste género metidas no correio das grandes casas por pessoas da sua espécie nem sempre chegam ao destino, resolveu Edie, como velho soldado, reconhecer o terreno antes de começar o ataque. Ao aproximar-se do cubículo do porteiro, viu, pelo número de pobres que se alinhavam em frente, dos quais alguns eram indigentes das vizinhanças e outros mendigos vagabundos da sua classe, que ia haver uma distribuição geral de esmolas.

"Uma boa acção - pensou Edie - nunca deixa de ter recompensa. É possível que eu receba aqui uma esmola, que não obteria se não me tivesse encarregado da missão daquela velhinha".

Por conseguinte, foi juntar-se ao grupo andrajoso, procurando quando possível colocar-se entre os primeiros, distinção que ele julgava devida tanto ao seu roupão azul e à sua placa como à sua idade e à sua experiência; mas depressa se apercebeu de que havia naquela assembleia um outro princípio de precedência de que não suspeitara.

- Tem direito à tripla parte, amigo, para se colocar assim tão decididamente à frente? Creio que não, porque não há católicos que usem essa placa.

- Não, não, eu não sou romano - declarou Edie.

- Então, vá alinhar com as da dupla, ou da simples ração, isto é, com os episcopais, ou os presbiterianos, que estão à retaguarda: é uma vergonha ver um herético com uma barba tão comprida que faria honra a um eremita.

Ainda repelido do meio dos mendigos católicos; ou que pelo menos se faziam passar como tais, Ochiltree foi ocupar lugar entre os pobres da comunhão da igreja de Inglaterra, aos quais a nobre donatária concedia um duplo quinhão nas suas caridades. Mas nunca sucedeu a um pobre não conformista ser mais rudemente repelido por uma assembleia da alta igreja, mesmo quando esta matéria era agitada com o maior furor nos tempos da boa rainha Ana.

- Vejam-no com a sua placa - disseram eles Ouve todos os anos, no dia do aniversário natalício do rei, um sermão pregado por um dos ministros presbiterianos da corte, e queria fazer-se passar por um filho da igreja episcopal! Não, não, nós metemo-lo na ordem.

Edie, repelido igualmente por Roma e pelo episcopado, foi pois obrigado a ir meter-se, sob as risadas dos seus confrades, entre o pequeno grupo de presbiterianos que se tinha recusado a ocultar suas opiniões religiosas pelo interesse de um aumento de esmola, ou que talvez soubessem que semelhante ludibrio não deixaria de ser descoberto.

As mesmas distinções se observaram na maneira como se distribuíram as esmolas, que consistiam numa ração de pão, de vaca, e de uma moeda por cada indivíduo das três classes. O esmoler, eclesiástico de aspecto grave e severo, vigiava pessoalmente a distribuição feita aos mendigos católicos, fazendo a cada um deles uma ou duas perguntas ao entregar-lhe o seu quinhão e recomendando as orações de todos a alma de Joscelirid, condessa de Glenallan, e mãe do seu benfeitor. O porteiro, que se distinguia pela sua longa bengala de castão de prata e pela sua comprida túnica preta debruada de um galão da mesma cor, que ele vestira, de harmonia com o luto geral da família, distribuía as esmolas pelos episcopais; e os filhos menos favorecidos da igreja presbiteriana recebiam as suas das mãos de um velho criado.

Como este estava em discussão com o porteiro, o seu nome, que foi pronunciado por acaso, surpreendeu Ochiltree e despertou-lhe antigas recordações. O resto do grupo retirara-se, quando o criado, aproximando-se do sítio onde Edie permanecia ainda, lhe disse, com pronúncia muito acentuada do condado de Aberdeen:

- Que faz aí, velhote, porque não se vai embora, já que recebeu a carne e o dinheiro?

- Francis Macraw - respondeu Ochiltree - já se esqueceu de Fontenoy? "Todos em linha, em frente, marche! "

- Oh! Oh! -exclamou Francis, num grito de surpresa peculiar nos países do Norte - Ninguém podia ter dito assim estas palavras senão o meu velho chefe de fila Edie Ochiltree; mas sinto-me consternado por encontrá-lo em tão mísero estado, meu bravo.

- Não tão miserável como julga, Francis; mas não queria deixar este lugar sem conversar um pouco consigo, porque não sei se o tornarei a ver tão depressa; a sua gente, diz-se, não faz bom acolhimento aos protestantes; é por isso que eu nunca vim por aqui.

- Ora, ora! -replicou Francis - Deixe lá falar essa gente e venha comigo; dar-lhe-ei alguma coisa melhor do que um osso de vaca.

Dizendo em seguida umas palavras ao ouvido do porteiro (sem dúvida para lhe pedir a sua concordância) e esperando que o esmoler regressasse a casa, o que este fez num passo lento e solene, Francis Macraw introduziu o seu velho camarada no pátio do castelo de Glenallan, por cima de cujo pórtico sombrio se via o largo escudo, onde se encontravam misturados, como de costume, com os ornamentos do brasão, sinais faustuosos do orgulho humano, os emblemas fúnebres do nada da vida. A cota de armas hereditária da condessa, com seus numerosos quartos dispostos em losangos e cercados dos escudos de seus antepassados paternos e maternos, estava semeada e entremeada de fachos, ampulhetas, crânios e todos os símbolos daquela morte que nivela todas as classes.

Fazendo o seu amigo atravessar o grande pátio calcetado, tão rapidamente quanto possível, Macraw conduziu-o por uma porta lateral a um pequeno aposento, perto da sala dos criados, do qual ele tinha o uso exclusivo devido ao seu serviço particular junto da pessoa do lorde Glenallan. Obter carnes frias de diversas espécies, cerveja forte e mesmo um copo de cordial, não era coisa difícil para um personagem tão importante como Francis, a quem o sentimento da dignidade não fizera esquecer a hábil previdência do seu país que manda estar em boas relações com o copeiro. O nosso mensageiro mendigo bebeu a cerveja e conversou longamente de histórias de velhos tempos, até que, começando a conversa a esmorecer, resolveu abordar o assunto da sua embaixada, que durante uns momentos quase se lhe apagara da memória.

Disse que tinha uma petição a fazer ao conde, porque julgou prudente não falar do anel, não sabendo como o confessou depois, até que ponto os costumes de um simples soldado puderam não se corromper no serviço de uma grande casa.

- Oh, o conde não quer receber petições! Mas eu posso entregá-la ao esmoler.

- Mas ela refere-se a um segredo que o lorde decerto gostaria de ser o único a conhecer.

- É justamente a razão pela qual o esmoler terá muito prazer em conhecê-la primeiro.

- Mas eu vim aqui com o fim de entregar-lha, Francis, é realmente preciso que me ajude um pouco a sair deste embaraço.

- E farei tudo o que puder - respondeu o escocês do Norte - Aliás, por muito maus que sejam, mais não podem do que expulsar-me, e eu pensava justamente em despedir-me e ir acabar os meus dias em Inverury.

Nesta generosa resolução de servir o seu amigo em despeito de todos os perigos, e tanto mais que não havia nenhum que o pudesse inquietar muito, Francis Macraw deixou o aposento. Não voltou senão muito tempo depois, e, ao regressar, as suas maneiras denunciavam surpresa e agitação.

- Não sei - disse ele - se o senhor é bem Edie Ochiltree, da Companhia de Carry, da 42.a, ou se é o diabo que tomou a sua semelhança.

- E por que motivo fala assim? - perguntou o mendigo, surpreendido.

- Porque lançou milorde numa perturbação e numa surpresa como nunca em minha vida vi um homem; mas ele recebe-o, já ganhei isso, pelo menos. Esteve durante uns minutos como que desnorteado, julguei mesmo que ele ia desmaiar e, quando voltou a ele, perguntou-me quem trouxe o embrulho... E que julga o senhor que eu lhe respondi?

- Que foi um velho soldado - respondeu Edie É o que soa melhor à porta de um gentleman; à de um rendeiro, é melhor dizer que se é caldeireiro, se se pretende obter uma guarida, porque se pode apostar que o trem de cozinha tem sempre qualquer coisa para se consertar.

- Mas não disse nem uma coisa nem outra - prosseguiu Francis - porque milorde não se preocuparia com isso... Ele faz mais caso dos que podem consertar as nossas consciências. Assim, disse-lhe que o Papel me fora trazido por um velho de longa barba branca que poderia ser um frade capuchinho, pelo que eu podia julgar, porque vestia como um velho Peregrino; de maneira que ele vai mandá-lo chamar, logo que esteja bastante refeito para lhe falar.

"Desejaria ficar quite deste assunto - pensou Edie Há muitas pessoas que pretendem que o conde não tá bom de cabeça; e quem poderá dizer se ele não terá ofendido por me atrever a meter-me nisto? "

Mas em breve a retirada se tornou impossível; uma campainhada soou num ponto afastado do castelo, e Macraw disse, em voz abafada, como se já estivesse em presença de seu amo:

- Eis a campainha de milorde; siga-me, e ande ao leve e sem ruído.

Edie seguiu o seu guia, que marchava como se tivesse medo de ser ouvido, e que o fez percorrer uma longa passagem e subir uma escada que os conduziu aos aposentos de família. Eram de uma vasta extensão e mobilados com um fausto que indicava a antiga importância e o esplendor daquela casa. Mas todos os ornamentos pertenciam a uma época muito afastada, e poder-nos-íamos imaginar no meio dos salões de um senhor escocês antes da reunião das duas coroas. A última condessa, tanto por altivo desprezo pelo tempo em que vivia como por um sentimento de orgulhoso respeito por sua família, não quisera permitir que se mudasse coisa alguma do mobiliário de Glenallan, enquanto ela ali residisse.

A parte mais magnífica dos seus ornamentos era uma colecção preciosa de quadros dos melhores mestres, cujas molduras maciças estavam um pouco embaciadas pelo tempo, e atestavam também os gostos sombrios dos seus proprietários. Além disso, havia alguns belos retratos de família, pintados por Van Dyck e outros mestres célebres. Mas o que dominava na colecção eram os santos e os mártires de Doménico, Velasquez e Murillo, e outros temas do mesmo género, que se tinham escolhido de preferência a paisagens ou a composições históricas. A maneira como estes assuntos aterradores, e mesmo hediondos, estava representada, achava-se em perfeita harmonia com a sombria tristeza dos aposentos; e esta circunstância não deixou de impressionar o velho enquanto os cruzava sob a escolta do seu antigo camarada. Ia exprimir uma sensação deste género, quando Francis, impondo-lhe silêncio por um sinal e abrindo uma porta situada ao fim da longa galeria de quadros, o introduziu numa pequena antecâmara forrada de negro. Aí encontraram o esmoler, de ouvido aplicado a uma porta oposta àquela por onde acabavam de entrar, na atitude de quem escuta com atenção e que, no entanto, receia ser surpreendido nessa situação.

O velho criado e o padre estremeceram quando se avistaram reciprocamente, mas o esmoler recompôs-se primeiro e, avançando para Macraw, disse em voz baixa, mas num tom autoritário:

- Como ousa aproximar-se do aposento de Sua Graça, sem bater? Quem é esse estranho que o acompanha? Que vem aqui fazer? Retire-se para a galeria e espere que eu lhe vá falar.

- É-me impossível obedecer neste momento a Vossa Reverência - disse Macraw, erguendo a voz de maneira a ser ouvido no aposento vizinho (porque ele pressentia que o padre não sustentaria aquela discussão tão perto dos ouvidos de seu amo) - A campainha do senhor conde acaba de me chamar.

Mal ele pronunciou estas palavras, a campainha reuniu de novo com mais violência que da primeira vez, e o eclesiástico, vendo que qualquer outra explicação era impossível, ergueu o dedo para Macraw com uma expressão ameaçadora e abandonou o aposento.

- Eu bem lhe tinha dito - murmurou baixinho ao ouvido de Edie o homem de Aberdeen.

Depois, apressou-se a abrir a porta junto da qual surpreendera o capelão de sentinela.

 

Este anel, este pequeno anel doado por uma potência mágica, acaba de evocar a meus olhos aterrados fantasmas de prazer, de horror e de amor, apresenta-mos sob tais formas que a minha razão se transtorna de terror.

O Casamento Fatal

 

As antigas formas de luto eram observadas no castelo de Glenallan, apesar da insensibilidade com Que o povo supunha que os membros daquela família recusavam aos mortos o costumado tributo de lágrimas. Notou-se que, quando a condessa recebeu a carta fatal que lhe anunciava a morte de seu filho mais novo (que sempre se supôs ser o seu favorito), sua mão não denunciou mais agitação, seus olhos ficaram tão secos como à recepção de uma vulgar carta de negócios. Só o céu pôde saber se o sacrifício da sua dor matternal, que ela julgou dever fazer ao seu orgulho, não contribuiu secretamente para apressar a sua morte. Pelo menos, a suposição geral foi de que o ataque e apoplexia que, tão pouco tempo depois, acabou com a sua existência, foi uma espécie de vingança da natureza ultrajada pelo constrangimento tirânico que exercera sobre ela. No entanto, embora lady Glenallan se proibisse dar qualquer sinal aparente de desgosto, mandou forrar uma parte dos seus aposentos, e particularmente o seu e o de seu filho, com esses panejamentos fúnebres de que geralmente a dor se rodeia.

O conde de Glenallan estava então sentado no seu aposento ornado de panos negros que flutuavam em sombrias pregas ao longo das altas paredes. Um guarda-vento coberto do mesmo tecido, colocado ao lado da alta janela, interceptava ainda uma parte da claridade descolorida que penetrava através das vidraças pintadas, que representavam, com toda a arte de que o século XIV era capaz, a vida e os desgostos do profeta Jeremias. A mesa, junto da qual o conde se encontrava, era iluminada por duas lâmpadas de prata cinzelada, que espalhava aquela claridade duvidosa e desagradável que produz a mistura da luz artificial com a do dia. Sobre a mesma mesa achavam-se pousados um crucifixo e dois ou três livros encadernados em pergaminho e fechados por fivelas. Um grande quadro de Spagnoletto, de uma pintura estranha, representando o martírio de Santo Estêvão, constituía a única decoração do aposento.

O habitante e senhor desta lúgubre câmara era um homem ainda na flor da idade, mas de tal maneira emurchecido pelas enfermidades e pelas dores de alma, tão magro e tão descarnado, que já não possuía mais do que um corpo decrépito e arruinado; e quando se levantou para ir ao encontro do que o vinha visitar, este esforço pareceu ter esgotado o que lhe restava de forças. Nada mais flagrante do que o contraste que ofereciam estes dois seres avançando um para o outro no meio do aposento. As faces coradas, O passo firme, o busto direito, o ar e a atitude segura do velho mendigo, denunciavam a paciência e o contentamento na idade mais avançada da vida e no estado mais baixo em que a humanidade pode cair, ao passo que os olhos encovados, as faces cavadas e o passo vacilante do senhor, demonstravam a insuficiência da riqueza, do poder, e mesmo das vantagens da mocidade, para assegurarem o repouso da alma e a saúde do corpo.

O conde avançou ao encontro do velho até o meio da câmara e, ordenando ao seu criado que se retirasse para a galeria e não deixasse entrar ninguém na antcâmara a não ser que ele tocasse, esperou, com um misto de impaciência e de inquietação, que ele fechasse, primeiro, a porta do seu quarto, em seguida, a da' antecâmara, na qual se correu um ferrolho. Quando se certificou de que já não corria o risco de ser ouvido, lorde Glenallan acercou-se do mendigo, que ele tomou provavelmente por um indivíduo disfarçado pertencente a uma ordem religiosa, e num tom rápido, embora entrecortado, disse-lhe:

- Em nome de tudo o que a nossa religião tem de mais sagrado, diga-me, reverendo padre, o que devo esperar de uma comunicação que me é anunciada por uma jóia que me evoca tão horríveis recordações.

O velho, interdito por palavras tão diferentes das que esperara de um poderoso e orgulhoso conde, experimentou embaraço em responder-lhe e desenganá-lo.

- Diga-me - continuou o conde com uma comoção e uma angústia sempre crescentes - diga-me, vem anunciar-me que tudo o que se fez para expiar um atentado tão horrível ficou muito abaixo de tal crime, e vem anunciar-me novos meios de cumprir a minha penitência de uma maneira mais eficaz e mais rigorosa? Nada me fará recuar, padre; antes o meu corpo sofra o castigo do meu crime neste mundo do que a minha alma na eternidade!

Edie recobrou então bastante presença de espírito para se aperceber de que, se não se apressasse a interromper as confissões a que lorde Glenallan se entregava, ia talvez tornar-se confidente de segredos dos quais não seria prudente, para sua segurança, obter assim conhecimento. Apressou-se, pois, a dizer, numa voz trêmula:

- Vossa Honra engana-se a meu respeito; eu não sou da sua religião, nem mesmo um eclesiástico, mas, com o respeito que é devido a Vossa Senhoria, não passo do pobre Edie, o bedesman do rei e de vossa Honra.

Acompanhou esta explicação de uma profunda reverência à sua maneira, depois, endireitando-se, apoiou o braço no pau ferrado, atirou para trás os longos cabelos brancos e fixou os olhas no conde à espera da sua resposta.

- Então - disse lorde Glenallan, após uma pausa produzida pela surpresa - o senhor não é um padre católico

- Deus me livre! -exclamou Edie, esquecendo, na sua confusão, a quem falava - Eu não sou, como já lhe disse, senão o bedesman do rei e de Vossa Honra.

O conde voltou-se bruscamente, cruzou o aposento por duas ou três vezes, a grandes passos, como que para se refazer da perturbação em que o seu equívoco o lançou; depois, aproximando-se do mendigo, perguntou-lhe em tom imperioso e severo qual era o seu objectivo ao penetrar assim nos seus segredos e de quem recebera o anel que julgara conveniente enviar-Lhe. Edie, naturalmente dotado de muita firmeza, ficou menos perturbado com esta maneira de interrogar do que o fora com o tom de confidencia em que o conde iniciara o diálogo; e quando a pergunta de quem recebera aquele anel lhe foi repetida, respondeu com calma:

- De alguém que é mais conhecido do senhor conde que de mim.

- Mais meu conhecido? -disse lorde Glenallan A quem se refere? Explique-se imediatamente, ou vai experimentar quanto custa vir perturbar os momentos consagrados à dor.

- Foi a velha Elspeth Mucklebackit quem me mandou aqui - disse o mendigo - com o fim de lhe dizer

- Está a disparatar, ancião - disse o conde - Nunca ouvi esse nome... Mas, à vista desta jóia, recordo-me.

- Eu recordo-me também, milorde - adiantou-se Ochiltree - de que ela me disse que Vossa Senhoria a conhece melhor pelo nome. de Elspeth de Craigburnfoot. Chamavam-lhe assim quando ela vivia nas terras de Vossa Honra, isto é, da falecida e digna mãe de Vossa Honra, que misericórdia lhe seja feita.

- Realmente - disse o lorde dèbilmente e cujo rosto se cobriu de uma cor ainda mais lívida - esse nome está escrito na página mais trágica de uma história deplorável! Mas que pode ela querer-me? É viva ou morta?

- Está viva, milorde, e suplica a Vossa Senhoria que a vá ver antes da sua morte, porque tem qualquer coisa que lhe pesa na alma, e diz que não poderá dormir em paz enquanto não lhe falar.

- Enquanto não me falar! Que quer ela dizer-me? Mas ela caiu na segunda infância devido à velhice e às enfermidades. Digo-te, amigo, que, sabendo eu que ela estava na miséria, fui eu próprio à sua choupana, há um ano apenas, e não me reconheceu nem pelo rosto nem pela voz.

- Se Vossa Honra quisesse permitir-mo - disse Edie, a quem a extensão da conferência devolvia uma parte da audácia da sua profissão e da liberdade de linguagem que lhe era peculiar - se Vossa Honra quiser permitir-mo, salvo o respeito que devo ao critério superior de Vossa Senhoria, a velha Elspeth assemelha-se àquelas antigas ruínas de castelos e fortalezas que nós vemos no meio das montanhas: há partes do seu espírito que parecem, se assim me posso exprimir, derrocadas e devastadas, ao passo que outras parecem tanto maiores, tanto mais fortes e tanto mais imponentes, quanto mais se erguem como fragmentos no meio dos despojos do resto. É uma mulher que tem qualquer coisa de terrível.

- Foi sempre assim - disse o conde, quase repetindo maquinalmente a reflexão do mendigo - Foi sempre diferente das outras mulheres, assemelhando-se mais do que qualquer outra, pelo carácter e pela têmPera do seu espírito, àquela que já não existe. Ela deseja ver-me, diz o senhor?

- Antes de morrer - respondeu Edie - solicita ardentemente esse prazer.

- Não será um prazer para nenhum dos dois - declarou o conde, num ar sombrio - no entanto, sua vontade será satisfeita. Ela mora, diz o senhor, no cimo da falésia do lado sul de Fairport?

- Entre Monkbarns e o castelo de Knockwinnock, mais perto de Monkbarns. Vossa Honra conhece sem dúvida o laird e sir Arthur?

Um movimento do conde, como se não tivesse compreendido a pergunta, foi a resposta que ele deu. Edie viu que o seu espírito estava algures, e não se aventurou mais a repetir uma interrogação que tão Pouco se relacionava com o assunto que ali o trouxera.

- Ancião, é católico? -indagou o conde.

- Não, milorde - respondeu Ochiltree, em tom firme, porque a desigualdade da divisão das esmolas se apresentava nesse momento ao seu espírito - Graças a Deus, sou um bom protestante.

- Aquele que pode do fundo da consciência chamar-se bom, tem efectivamente razão para dar graças ao céu, qualquer que seja a forma da sua crençamas quem é que pode ter essa presunção?

- Não sou eu -disse Edie -Espero estar isento do pecado da presunção.

- Qual foi a sua profissão na mocidade?

- Fui soldado, milorde, e muitos dias da minha vida se passaram nas canseiras dos campos e dos bivaques. Devia ter-me feito sargento; mas...

- Soldado! Nesse caso, matou, queimou, saqueou, - pilhou!

- Não pretendo ter sido melhor que os meus vizinhos - replicou Edie - É um rude ofício o da guerra; só os que o exerceram podem falar dele.

- E ei-lo agora velho e miserável, pedindo a uma caridade precária o pão que na sua mocidade arrancou das mãos do pobre camponês!

- Sou mendigo, é certo, milorde; mas, no entanto, ainda não sou tão completamente miserável. Quanto aos meus pecados, Deus fez-me a graça de me arrepender e de me descarregar do seu peso sobre aqueles que estão em melhor estado do que eu para os suportar; e, para o meu quinhão de alimento, ninguém recusa a um pobre homem um pouco de comida e de bebida. Vivo conforme posso e estou pronto a morrer quando for chamado por minha vez.

- Assim, pois, com uma vida cujo passado não lhe oferece quase nenhuma recordação satisfatória, e com uma perspectiva ainda mais triste para os dias que lhe restam viver, o senhor arrasta-se contente para o termo da sua carreira! Vá: que a velhice, a miséria e a fadiga nunca o façam invejar a sorte do dono deste castelo, nem no seu sono, nem nas suas vigíliasTome, eis qualquer coisa para si.

O conde meteu cinco ou seis guinéus na mão do velho. Edie talvez tivesse feito objecções sobre a importância da esmola, como em outras ocasiões; mas o tom de lorde Glenallan era demasiado absoluto para permitir um comentário ou mesmo uma resposta. O conde chamou então o seu criado.

- Conduza este velho até fora de casa, e não admita que ninguém lhe fale. E você, amigo, retire-se, e esqueça o caminho que conduz à minha casa.

- Ser-me-á difícil - disse Edie, vendo o ouro que ainda tinha na mão - Ser-me-á difícil depois de Vossa Honra me ter dado tão boa razão para dele me recordar.

Lorde Glenallan olhou-o num ar de espanto, como se mal pudesse compreender a ousadia do velho, que se atrevia a responder-lhe tão familiarmente; depois, com a mão, fez-lhe outro sinal de despedida, ao qual o mendigo obedeceu imediatamente.

 

Ele intervinha em todos os seus divertimentos; era o monarca que governava aquela pequena corte, era ele quem encurvava o arco, e quem preparava o pião, a bola ligeira e o papagaio de papel.

CRABBE - A Aldeia

 

Francis Macraw, de harmonia com as ordens de seu amo, acompanhou o mendigo, a fim de o ver fora do recinto do castelo sem lhe permitir trocar uma palavra com nenhum dos criados ou dependentes do conde. Mas, reflectindo sensatamente que essa ordem não o abrangia a ele, encarregado da escolta, empregou todos os meios possíveis para arrancar a Edie algumas informações sobre a natureza da entrevista secreta e confidencial que tivera com lorde Glenallan. Mas Edie, que em tempos passara por mais de um interrogatório, iludiu facilmente a pergunta do seu antigo camarada. Os segredos dos grandes, dizia ele, com os seus botões, são como animais ferozes, que se guardam em aulas; mantenham-nos bem fechados, e não haverá perigo: mas se os deixarem sair uma vez, eles voltar-se-ão contra nós para nos despedaçar. Não esqueci o que sucedeu a Dugald Gunn por ter dado largas à sua língua a respeito da mulher do major e ao capitão Bandilier.

Francis não teve, pois, êxito nos ataques à discrição do mendigo e, como um mau jogador de xadrez de cada vez que tropeçava na marcha, dava mais vantagem ao adversário.

- Acha então que não tinha nenhum assunto particular a comunicar a milorde?

- Era a respeito dessas ninharias que eu trouxera do continente - disse Edie - Sei que os vossos papistas são amadores dessas relíquias de santo e de igreja que vêm de longe.

- com a breca, era preciso que meu amo estivesse completamente doido, Edie, para sofrer semelhante comoção por causa do que o senhor lhe trouxe.

- Talvez não esteja muito longe da verdade, camarada; pode ser que o laird tivesse tido grandes desgostos na mocidade, e por vezes isso basta para turbar a razão das pessoas.

- Palavra, Edie, o que diz é verdade; e, visto ser provável que o senhor nunca mais cá volte, e, se voltar, eu já cá não esteja, sempre lhe digo que na sua juventude ele teve desgostos tão violentos que me admira que tenha resistido tanto tempo.

- Ah! sim? - disse Ochiltree - Foi com certeza por causa de uma mulher.

- Deu no alvo - respondeu Macraw - Foi uma das suas primas, Miss Eveline Neville se chamava ela. Isso fez então escândalo no país; mas, como este assunto pertencia aos grandes, depressa foi abafado. Foi há mais de vinte anos. Oh, sim, deve haver uns vinte e três anos!

- Eu estava então na América - disse o mendigo - e longe para saber as histórias do país.

- Não se falou nisso muito tempo. Ele amava a jovem e queria desposá-la; mas sua mãe descobriu-o, e então foi o diabo. Por fim, a pobre menina atirou-se do alto do rochedo de Craigburnfoot para o mar, e eis como isso acabou.

- Sim, para a pobre menina - disse o mendigo mas não para o conde, segundo creio.

- Não terá fim senão com o da sua vida - disse o homem do condado de Aberdeen.

- Mas porque motivo a velha condessa impediu esse casamento? -continuou o insistente perguntador.

- Porquê! Talvez ela própria não soubesse bem porquê, pois era preciso obedecer à sua vontade sem se informar de se ela tinha ou não razão. Mas constou que a jovem era notada por algumas das heresias do pai; e, depois, lembro-me agora, ela era parente mais próxima do que as regras da nossa Igreja permite para se casar. Foi o que levou a menina àquele acto de desespero; e, depois, o conde nunca mais levantou a cabeça.

- Pois bem - disse Edie - no entanto, é estranho que nunca tivesse ouvido falar dessa história.

- É mais estranho que o saiba agora, porque era o diabo se algum dos criados ousasse falar enquanto a velha condessa foi viva. Ah, meu rapaz, era uma patroa, essa mulher! Teria sido preciso um homem hábil acertar com ela; mas já está no túmulo, e agora pode-se dar um momento à língua, quando se encontra um amigo. Adeus, Edie, tenho que regressar para o ofício da tarde. Se for a Inverurie daqui a seis meses, talvez, não se esqueça de perguntar por Francis Macraw.

Edie prometeu de boa mente cumprir esta recomendação amistosa, e os dois camaradas, separando-se assim com demonstrações de benevolência mútua, o criado do lorde Glenallan retomou o caminho do castelo de seu amo, e deixou Ochiltree recomeçar a sua peregrinação habitual.

Era uma bela tarde de Verão, e o mundo, isto é, o círculo que só ele e o mundo para a pessoa habituada a percorrê-lo, oferecia-se todo inteiro diante de Edie para que ele aí procurasse guarida para a noite. Quando deixou as terras menos hospitaleiras de Glenallan, viu-se na situação de optar, para passar a noite, entre tantos lugares de refúgio diferentes, que se sentiu embaraçado e mostrou-se mesmo difícil na escolha. A estalagem de Ailie Sim ficava para um lado da estrada cerca de uma milha dali, mas por causa da noite de sábado, encontraria ali um bando de jovens que impediam qualquer conversa razoável. Outros bons homens e boas mulheres, segundo o nome que se dá na Escócia aos rendeiros e às rendeiras, também estavam à sua disposição. Mas um era surdo, o outro não tinha dentes, não podia entender o segundo, nem fazer-se entender pelo primeiro; este era de um humor resmungão, aquele tinha um cão de um humor pior ainda. Em Monkbarns e em Knockwinnock podia contar com uma recepção favorável e hospitaleira, mas um e outro estavam demasiado afastados para que ele comodamente pudesse lá chegar ainda essa tarde.

"Não sei como é isto, pensou o velho, mas sou mais sensível a uma guarida para a noite do que nunca o fui em minha vida. Creio que a vista de todas aquelas belas coisas, ao reconhecer que se pode ser mais feliz sem elas, me tornou orgulhoso da minha própria sorte. Deus queira que não me suceda mal nenhum, porque o orgulho anuncia sempre a ruína do homem. Em todo o caso, a pior granja ainda é uma guarida mais agradável do que o castelo de Glenallan com todos os seus reposteiros de veludo preto, seus quadros e todas as riquezas que lhe pertencem. Bem, é preciso acabar com isto, e, decididamente, vou pedir dormida a Ailie Sim".

No momento em que o velho descia a colina que dominava a pequena aldeia para a qual dirigia os seus passos, o sol acabava de pôr termo aos trabalhos dos habitantes, e a gente nova, aproveitando a bela tarde, ocupava-se em jogar à bola no terreno da comuna, enquanto as mulheres e os velhos a observavam. Os gritos, as risadas, as exclamações dos vencidos e dos vencedores, formavam um coro ruidoso que chegava até à senda pela qual Ochiltree descia a encosta, e vieram-lhe à memória aqueles dias em que ele próprio era competidor entusiasta e, por vezes vitorioso, em todos os exercícios que demandavam força e agilidade. É raro que recordações deste género não arranquem um suspiro, mesmo ao que, no ocaso da sua vida, contempla um horizonte mais brilhante que o do nosso velho pobre. "Nessa época, reflectia ele naturalmente, eu não teria prestado mais atenção ao velho peregrino que descia a colina de Kinblythemont do que estes rapazes tão vivos prestam ao velho Edie".

Regozijou-se, porém, ao ver que a sua chegada constituía uma circunstância mais importante do que a sua modéstia previra. Entre os dois grupos de jogadores levantara-se uma discussão acerca de um lanço; e como o arqueador favorecia um partido, e o mestre de escola acudia por outro, podia-se dizer que a questão estava a cargo de altas potências. O moleiro e o ferreiro também tinham alinhado por diferentes lados e reflectindo na vivacidade dos dois argumentadores, podia-se recear que a discussão não terminasse amigavelmente. Mas o primeiro que avistou o mendigo, exclamou:

- Ah! Aí vem o velho Edie que conhece as regras de todos os jogos da região, melhor do que qualquer homem que já lançasse a bola ou atirasse o eixo; não discutamos, rapazes, mas sujeitemo-nos ao julgamento de Edie.

Edie foi, pois, recebido e instalado na qualidade de árbitro, com aclamações gerais; com toda a modéstia de um bispo a quem impõem a mitra, ou de um novo presidente chamado à sua cátedra, o velho recusou o encargo e a responsabilidade de que se propunham investi-lo. Em contrapartida, por este acto de desinteresse e de humildade, teve ele o prazer de ver reiterar a certeza dos velhos e dos de meia idade, de que, por todas aquelas redondezas, era ele o mais capaz de desempenhar as funções de árbitro. Após tais encorajamentos, tratou gravemente do cumprimento do seu dever, e proibindo seriamente toda a expressão injuriosa de um lado ou doutro, ouviu de uma parte o ferreiro e o arqueador, e do outro o moleiro e o mestre de escola, como um conselho composto de jovens e anciãos; Edie, porém, já julgara o caso antes de que se começasse a pleitear, à semelhança de alguns juizes que não deixam de ver todas as passagens do processo, e que se vêem obrigados a suportar em toda a sua extensão a eloquência e os argumentos do foro.

Depois de tudo se ter dito de ambos os lados e mesmo repetido mais de uma vez, o nosso ancião, tendo madura e devidamente considerado, pronunciou a sentença moderada e conciliadora de que o lanço contestado era um lanço nulo, e por conseguinte não contaria para nenhum dos dois partidos. Esta judiciosa decisão restabeleceu a concórdia entre os jogadores; recomeçaram a arranjar os seus partidos e os seus apostadores com a ruidosa alegria peculiar em todos os jogos de aldeia, e os mais entusiastas já despiam os seus casacos e entregavam-nos com os lenços de cor ao cuidado de suas mulheres, de suas irmãs ou de suas namoradas, quando de súbito a sua alegria foi estranhamente perturbada.

Fora do grupo dos jogadores, um rumor muito diferente do que a alegria dos jogos provocava, começou a fazer-se ouvir. Depressa se pôde distinguir confusamente aquela espécie de suspiros e exclamações abafadas que proferem aqueles que acabam de saber a primeira notícia de um desertor ou de uma infelicidade. No meio do burburinho das mulheres puderam-se notar estas palavras: "Ah, meu Deus morrer assim tão jovem, e de repente! " Em breve este boato chegou até os homens, e fez calar num instante as expressões de alegria. Cada um percebeu que uma calamidade acabava de suceder na região, e cada um perguntava a causa, a seu vizinho, que não estava mais informado. Por fim, a novidade chegou mais claramente aos ouvidos de Edie Ochiltree, que se encontrava no centro da assembleia. O "barco de Mucklebackit, esse pescador de quem temos falado tantas vezes, naufragara e os quatro homens pereceram, afirmava-se, incluindo Mucklebackit e o filho. A voz pública, porém, neste caso como em tantos outros, ia além da verdade. O barco afundara-se, realmente, mas Stephen, ou, como lhe chamavam, Steenie, fora o único homem que se afogara. Embora o género de vida deste jovem e o local que ele habitava o afastassem do convívio dos camponeses, não deixaram porém de interromper os seus jogos campestres, e de pagar a essa desgraça inesperada o tributo de compaixão e de interesse que quase nunca se recusa a acontecimentos tão súbitos e tão raros. Foi sobretudo a Ochiltree que esta notícia vibrou um golpe verdadeiramente sensível. Sentiu-se tanto mais aflito quanto mais se censurava de ter muito recentemente utilizado a ajuda daquele jovem para pregar uma partida que não podia ser vista como seriamente culpável, visto que não tinham a intenção de fazer experimentar ao químico alemão nenhum prejuízo, ou mesmo nenhuma injúria grave, mas que, no entanto, não era a maneira mais edificante de empregar as últimas horas da sua vida.

Uma desgraça nunca vem só. Quando, num ar pensativo, apoiado no seu pau ferrado, Ochiltree juntava os seus lamentos aos dos camponeses da aldeia que deploravam a morte súbita do jovem, e secretamente se acusava de o ter metido numa questão pouco louvável, foi agarrado pela gola por um oficial de paz, que estendeu a sua bengala com a mão direita, e exclamou:

- Em nome do rei!

O arqueador e mestre de escola empregaram toda a sua retórica para demonstrar ao oficial de polícia e seu ajudante que não tinham o direito de prender um bedesman do rei como vagabundo; e a muda eloquência do moleiro e do ferreiro, a qual se encontrava nos seus punhos cerrados, preparava-se para dar um apoio escocês ao seu árbitro. O seu roupão azul, diziam eles, era garantia de poder viajar por todo o país.

- Mas o seu roupão azul - respondeu o oficial de polícia - não o autoriza, penso eu, a atacar, roubar e assassinar; o mandato que tenho contra ele é por causa desses crimes.

- Assassinar! - exclamou Edie - Assassinar! Quem foi que eu assassinei?

- O senhor alemão Dousterswivel! O agente das minas de Glenwithershins.

- Assassinar Dousterswivel? Deixe-se disso; ele está tão vivo e tão são como o senhor.

- Não faltou vontade de sua parte; ele teve de lutar duramente para defender a sua vida, e você tem de responder a essa acusação, conforme a lei.

Os defensores do mendigo recuaram ao ouvir a gravidade da acusação formulada contra ele, mas mais de uma mão benfazeja estendeu a Edie carne, pão -e moedas para o sustentar na prisão onde os oficiais de paz o iam conduzir.

- Obrigado, Deus os abençoe, meus filhos; já saí de mais de uma armadilha, quando merecia a libertação muito menos do que presentemente; ainda heide escapar a esta, como o pássaro escapa ao passarinheiro. Continuem a jogar, não se preocupem comigo... Sinto mais desgosto pelo pobre rapaz que acaba de perecer do que por tudo o que eles me possam fazer.

Em seguida, o preso deixou-se levar sem resistência, enquanto aceitava maquinalmente e enchia o seu alforje de esmolas que lhe choviam de todos os lados; e, antes de deixar a aldeia, estava tão carregado como um fornecedor do governo. No entanto, não tardou em ser aliviado da fadiga que lhe causava o aumento do fardo, pelo oficial, que arranjou uma carroça com um cavalo para levar o velho ao magistrado, a fim de ser interrogado e metido na prisão.

A infelicidade de Steenie e a detenção de Edie puseram fim aos jogos da aldeia, cujos habitantes mais graves começaram a meditar nas vicissitudes das coisas humanas, que tão subitamente arremessaram um dos seus camaradas para o túmulo, e que colocavam o juiz dos seus jogos numa situação em que corria o risco de ser enforcado. Como o carácter de Dousterswivel era geralmente conhecido, o que quer dizer bastante geralmente detestado, muitas pessoas conjecturavam que a acusação podia muito bem ser falsa e tendenciosa; mas todos convinham em que se Edie Ochiltree tivesse procedido de maneira a merecer o castigo nessa ocasião, era pena que não a merecesse por ter morto realmente Dousterswivel.

 

Quem é ele? É um homem que, se a terra lhe faltasse, combateria sobre as águas, - desafiou outrora a grande baleia, e por todos os seus títulos de leviatã, de hipopótamo e assim sucessivamente; quebrou uma lança contra um tubarão; e pela minha fé, senhor, foi o peixe quem levou a melhor. O nosso campeão ainda sofre com esta aventura.

Comédia Antiga

 

- Assim, esse pobre rapaz Steenie Mucklebackit deve ser sepultado esta manhã - disse o nosso velho amigo Antiquário, trocando o seu roupão pelo fato preto de moda antiquada, que ele envergou em lugar do fato cor de tabaco que trazia habitualmente - E espera-se, presumo eu, que me incorpore no funeral?

- Ai, sim! - respondeu o fiel Caxon, escovando oficiosamente os fios brancos e as manchas que se encontravam no fato do patrão - Diz-se que o corpo se mutilou de tal maneira contra os rochedos que se viram obrigados a apressar o enterro... O mar não deixa de ter perigos, como eu digo. A minha filha, quando quero fortalecer-lhe a coragem, pobre criança; o mar, digo-lhe eu, Jenny, é uma profissão tão incerta...

- Como a de um velho cabeleireiro a quem a moda dos cabelos curtos e o imposto sobre o pó subtraíram os seus clientes. Caxon, os teus temas de consolação são tão mal escolhidos como estranhos ao assunto que nos ocupa. Quid mihi cum faemina? (1) Que tenho eu com a raça das fêmeas, eu, que tenho bastantes, para dar e vender, por minha conta? Pergunto-te mais uma vez se aquela pobre gente conta comigo para acompanhar os funerais?

- Oh! Sem dúvida, Vossa Honra é esperado - disse Caxon - Creio bem que contam com Vossa Honra... O senhor sabe que neste país se considera uma honra os gentlemen acompanharem o corpo durante o percurso das suas terras... O senhor não necessita de ir mais longe do que ao alto da avenida. Não se espera que Vossa Honra ultrapasse os limites do seu domínio, é somente um comboio ãe Kelso, um passo ou dois para lá do limiar da porta.

- Um comboio de Kelso - repetiu o curioso Antiquário - E porquê um comboio de Kelso, em vez de um comboio vulgar?

- Meu Deus, senhor! - respondeu Caxon -Como o hei-de saber? É apenas um ditado do país.

- Caxon - prosseguiu Oldbuck - tu não serves senão para pentear perucas. Se tivesse feito a pergunta a Ochütree, ele teria uma lenda pronta para me servir.

- Nada tenho que ver - respondeu Caxon, com mais vivacidade do que a habitual - senão com o exterior da cabeça de Vossa Honra, como o senhor tem Por costume dizer.

- É verdade, Caxon, é verdade, e não se pode censurar um pedreiro de não ser estofador.

Pegou no seu livro de apontamentos e registou: "Comboio de Kelso: avançar um passo e meio para além do limiar da porta: citação - Caxon... Perguntar sua origem? Para memória: escrever ao doutor Graysteel a este respeito".

Acabando de anotar, a juntou:

 

(1) Que tenho eu de comum com uma mulher? - N. do T.

 

- Quanto a este costume observado pelos proprietários do país, de acompanharem ao túmulo o corpo de um camponês, aplaudo, Caxon. Ele vem de antigos tempos, e baseou-se nas noções de auxílio e de dependência mútuos que existem entre o proprietário e o cultivador do solo... Nisto, devo confessar que o sistema feudal (como também na cortesia para com as mulheres, que foi levada ao excesso); nisto, dizia eu, os usos feudais mitigaram e adoçaram a severidade dos tempos antigos. Qual foi o homem, Caxon, que alguma vez ouviu falar de um espartano a acompanhar os funerais de um ilota? E no entanto iria afirmar que John de Girnell... já ouviste falar dele?

- Sim, sim, senhor; ninguém pode estar muito tempo na sua companhia sem ouvir falar desse gentleman.

- Pois bem - continuou o Antiquário - apostaria alguma coisa em como não haveria um kolbkerl, ou servo ou camponês, adscriptus glebas, que morresse no território dos monges, que John de Girnell o não mandasse enterrar decente e honestamente.

- Sim, sim; mas, não se zangue Vossa Honra, diz-se que ele se preocupava mais com os nascimentos do que com os enterros. Ah! Ah!...

Esta reflexão foi acompanhada de uma gargalhada de satisfação.

- Bravo, Caxon! Muito bem; em verdade, estás a distinguir-te esta manhã.

- E além disso - acrescentou Caxon, num ar insinuante, encorajado pela aprovação de seu amo - também se diz que os padres católicos, nesses tempos, recebiam qualquer coisa para ir ao enterro.

- Justamente, Caxon, justo como a minha luva; e, diga-se de passagem, julgo que esta expressão provém do costume de lançar a luva como prova da inviolabilidade da sua fé. Justo como a minha luva, dizia eu, Caxon; mas nós, protestantes, temos tanto mais mérito em cumprir esse dever por nada, quanto é certo que se lhe atribuiu um salário sob o império da fé católica, esse reino da superstição que Spenser designa assim na sua frase alegórica:

A filha do cego, como se lhe chamou; Abessa, que por pai tivera Corecca.

Mas porque vou eu contar-te estas histórias, a ti?... O meu pobre Lovel transtornou-me e acostumou-me a falar alto quando não tenho mais ninguém para me ouvir... Onde está o meu sobrinho Mac Intyre?

- Está no locutório, senhor, com as damas.

- Bem - disse o Antiquário - vou até lá.

- Agora, Monkbarns - disse sua irmã, quando o viu entrar -não se vá zangar.

- Meu querido tio - começou Miss Mac Intyre.

- Que quer tudo isso dizer? - indagou Oldbuck, alarmado pelo prenuncio de alguma má notícia e augurando mal o tom suplicante das damas, tal como uma fortaleza pressente um ataque ao primeiro som de trombeta que se faz ouvir -Que vem a ser isso? Porque invocam a minha paciência?

- Nada especial, senhor, ouso dizer - declarou Heitor, que, com o seu braço ao peito, estava sentado à mesa do almoço -No entanto, qualquer que possa ser a importância, sou eu o responsável; como o sou também de todos os incômodos que tenho ocasionado em sua casa, os quais não tenho meios para indemnizar senão por agradecimentos.

- Não, não, tu és bem-vindo aqui - disse o Antiquário - não falemos disso... Somente que te sirva de lição e te ponha em guarda contra os teus acessos de cólera, que não são outra coisa senão uma breve alienação, ira furor brevis... Mas qual foi o novo desastre?

- O meu cão teve a infelicidade de derrubar...

- Praza a Deus que não fosse o lacrimatório encontrado no Clochnaben! - exclamou Oldbuck.

- Em verdade, meu tio - disse o jovem - tenho muito medo... Era aquele que estava em cima do bufete... O pobre animal não queria senão comer a manteiga fresca...

- O que conseguiu completamente, pelo que vejo, visto que não há senão manteiga salgada na mesa; isso ainda não seria nada, mas o meu lacrimatório, a poluna fundamental em que, a despeito da obstinada ignorância de Mac-Crib, me apoio para provar que os romanos atravessaram os desfiladeiros destas montanhas e deixaram atrás deles vestígios das suas armas e das suas artes; esse precioso monumento está quebrado, aniquilado, reduzido a estilhas que já não o distinguem de um mísero vaso de flores partido...

Heitor, eu estimo-te, Mas nunca mais és o meu oficial.

- com efeito, julgo que faria má figura num regimento que o senhor comandasse.

- Pelo menos, Heitor, meteria na ordem o teu comboio de campanha, e far-te-ia viajar expeãitus ou relictis impedimentís. Não podes imaginar quanto estou farto da tua cadela. Rouba com arrombamento, ao que parece, porque a ouvi acusar de ter forçado a cozinha, depois de todas as portas estarem fechadas, e de lá ter furtado uma perna de carneiro.

Se os nossos leitores se recordam da precaução de Jenny Rintherout, de deixar aberta a porta na noite em que foi à cabana do pescador, provavelmente absolveriam a pobre Juno desse agravamento de crime, que os homens de leis chamam claustrum fregií, e que constitui a distinção entre roubo com arrombamento e roubo simples.

- Estou verdadeiramente desolado, senhor -disse Heitor -por Juno ter causado tanta desordem; mas Jack Muirhead, que se encarregava de domesticar os cães, nunca a pôde dominar; ela já viajou mais do que qualquer outra cadela que eu conheço; mas...

- Então, Heitor, desejaria que ela fosse viajar, para longe de minha casa.

- Faremos ambos a nossa retirada amanhã ou hoje; mas ficaria desolado por me retirar amuado com o irmão de minha mãe, por causa de um ruim vaso partido.

- ó meu irmão, meu irmão! - exclamou Miss Mac Intyre, na angústia do efeito que ia produzir aquele epíteto injurioso.

- Então, como querias que eu lhe chamasse? -" continuou Heitor -É precisamente de uma coisa deste género de que se servem no Egipto para refrescar o vinho, o sorvete ou a água. Trouxe um par, poderia ter trazido vinte.

- Quê! -disse Oldbuck -Do feitio daquele que o teu cão partiu?

- Sim, senhor, uma espécie de vaso de barro no género daquele que estava em cima do bufete. Estão na minha habitação em Fairport; trouxemos alguns para refrescar o nosso vinho durante a travessia; desempenharam muito bem as suas funções. Se pudesse supor que eles poderiam reparar a sua perda ou serem-lhe agradáveis, sentir-me-ia muito honrado se o senhor os quisesse aceitar.

- Em verdade, meu querido filho, ficaria encantado se os possuísse; há muito tempo que é meu estudo favorito procurar a relação das nações entre elas pelos seus usos e pela semelhança dos utensílios de que se servem; e tudo o que me pode apresentar alguma relação desse género se me torna precioso.

- Pois bem, então, senhor, dar-me-á o maior prazer em aceitá-los com algumas ninharias da mesma espécie. E posso esperar agora que me tenha perdoado?

- ó meu querido filho, tu não és senão um pouco estouvado e um pouco maluco.

- Mas asseguro-lhe que Juno tão-pouco passa de uma estouvada. O domesticador destes cães disse-me que ela não tinha vício nenhum, nem obstinação.

- Bem! Incluo Jwno na amnistia, com a condição de a imitares, evitando como ela o vício e a obstinação, e que de futuro ela será banida do locutório de Monkbarns.

- Meu tio - disse o jovem militar - sentir-me-ia envergonhado, e mesmo não me atreveria a oferecer em expiação dos meus pecados e nos da minha cadela, um objecto que eu não julgasse digno de ser aceito Por si; mas, agora, que tudo está perdoado, quer permitir ao sobrinho órfão, ao qual o senhor deseja servir de pai, que lhe faça presente de uma ninharia que me asseguraram ser verdadeiramente curiosa e que Se o contratempo do meu ferimento impediu de lha entregar? É um presente de um sábio francês a quem Prestei um serviço no caso da Alexandria.

O capitão depôs nas mãos do Antiquário uma pequena caixa, que este abriu e na qual encontrou um amel antigo de ouro maciço, com um camafeu de muito bela execução a representar uma cabeça de Cleópatra.

O Antiquário caiu em êxtase, sacudiu cordialmente a mão de seu sobrinho, agradeceu-lhe uma centena de vezes e mostrou o anel a sua irmã e a sua sobrinha.

a última teve bastante tacto para lhe conceder um grau de conveniente admiração; mas Miss Griselda, apesar da sua afeição pelo sobrinho, não teve habilidade para a imitar.

- É bonito - disse ela - e suponho que é precioso também, mas não percebo nada disso, e não posso ser juiz nessas coisas.

- Foi bem Fairport que falou por uma só voz! exclamou Oldbuck - Foi bem o espírito desta cidadezinha que nos infectou a todos. Também me parece que me cheira a fumo desde há dois dias que o vento tem soprado constantemente do nordeste; e sabe Deus se os seus prejuízos se estendem ainda mais longe do que as suas exalações! Acredita, meu caro Heitor, se eu passeasse na Rua Direita, ostentando este precioso anel aos olhos de todos os que encontrasse, ninguém, desde o preboste ao pregoeiro da cidade, se deteria para me perguntar a sua história; mas se eu levasse uma trouxa de roupa debaixo do braço, não chegaria até o mercado de cavalos sem ser assediado de perguntas sobre a sua qualidade e o seu preço. Poder-se-ia parodiar esta ignorância grosseira com estes versos de Gray:

 

Vesti à harpa e à intriga

A mortalha de espírito e de senso;

Vesti de pesadas vestimentas

Que logo a censura reclama

Contra os que passam por indigentes.

 

A prova mais notável de que aquela oferenda de paz fora muito agradável está em que, enquanto Antiquário declamava estes versos, Juno, que tivera medo, segundo aquele instinto muito acentuado pelo qual os cães descobrem instantaneamente as pessoas que os estimam e as que não os estimam, metera Por várias vezes o focinho pela porta e, não farejando nada de hostil no ar, arriscara-se finalmente a introduzir-se toda inteira e, encorajada pela impunidade, atreveu-se a comer as torradas que Mr. Oldbuck tinha na mão enquanto, olhando ora um, ora outro dos seus ouvintes, declamava com complacência:

Vesti à harpa e intriga, etc.

- Tu lembras-te daquele passo das três Parcas, que, diga-se de passagem, não é tão belo como no original. Mas, como diabo desapareceu a minha torrada? Ah! Verdadeiro tipo'da raça fêmea, é de admirar que elas se ofendam por serem tratadas pelo teu nome!

- assim falando, com o punho ameaçava Juno, que fugiu para fora do aposento - Entretanto, como, segundo Homero, Júpiter não conseguia governar Juno. no céu, e como, segundo Heitor Mac Intyre, o domesticador de cães Jack Muirhead não foi mais feliz na terra, suponho que é preciso renunciar a isso.

Esta reflexão indulgente foi considerada pelo irmão e pela irmã como um pleno perdão dos crimes de Juno, e sentou-se cada um muito satisfeito à mesa do almoço.

Quando acabaram, o Antiquário propôs a seu sobrinho ir acompanhar o enterro. O jovem desculpou-se por não ter fato preto.

- Oh, não faz mal! A tua presença é tudo o que se pede. Asseguro-te que hás-de ver alguma coisa que te divertirá; não, a palavra é imprópria, mas que te interessará pela semelhança que vais encontrar entre os nossos costumes populares em tais ocasiões e os dos antigos.

"Deus tenha piedade de mim! -pensou Mac Intyre

- nunca me comportaria convenientemente, e vou arriscar-me a perder todo o crédito que acabo de obter tão recentemente e por um tão grande acaso".

Quando partiram, disciplinado como estava pelos sinais e pelos olhares suplicantes da sua irmã, o nosso jovem militar ia fortemente decidido a abster-se de Qualquer atitude de desatenção ou de impaciência que Pudesse ferir seu tio; mas as nossas melhores resoluções estão sujeitas a malograr-se quando se encontraram contrariadas pelas nossas inclinações. O nosso Antiquário, para não deixar a desejar nenhuma explicação, começara pelos ritos fúnebres dos antigos escandinavos, quando seu sobrinho o interrompeu ao notar que uma enorme ave marinha, que havia algum tempo voltejava em torno deles, se aproximava por duas vezes ao alcance de um tiro de espingarda. Mas, confessado e perdoado este desvio, Oldbuck continuou a sua dissertação.

- São circunstâncias de que devias ocupar-te e que deveriam ser-te familiares, meu caro Heitor; porque entre os estranhos acontecimentos da guerra que agita agora todos os cantos da Europa, quem sabe onde podes ser chamado a servir. Se fosse na Noruega, por exemplo, ou na Dinamarca, ou em qualquer parte da antiga Escânia ou Escandinávia, como nós lhe chamamos, que vantagem não encontrarias em saber na ponta da língua a história das antigüidades desse velho país, a ofjicina gentiumi, a mãe da Europa moderna, o berço daqueles heróis firmes na dor, firmes nos combates, Sorrindo mesmo quando soa a sua hora!

Que estimulante para ti, por exemplo, encontrares-te, ao cabo de uma marcha fatigante, na vizinhança de um monumento rúnico, e descobrires que armaras a tua tenda junto do túmulo de um herói!

- Julgo, senhor, que o nosso rancho ficaria melhor servido se nos sucedesse acampar na vizinhança de uma grande capoeira bem guarnecida.

- Meu Deus! Como podes tu falar assim? Quem se pode admirar de que os tempos de Crécy e de Azincourt se tenham dissipado, quando o respeito devido ao antigo valor deixou de animar o coração do soldado bretão!

- Nada disso, senhor, de maneira alguma, embora eu ouse afirmar que Eduardo, Henrique e o resto desses heróis pensassem no seu jantar, antes de se darem ao trabalho de examinar um velho túmulo! mas isso não faz com que sejamos insensíveis às recordações da glória de nossos pais, afianço-lhe. Tem-me sucedido muitas vezes, à noite, fazer cantar ao velho Rory Mac Alpin versos tirados de Ossian acerca das batalhas de Fingal e de Lamon Mor, e de Magnus e do espírito de Muirartach.

- E és tão ingênuo - perguntou o Antiquário, que principiava a animar-se - que acredites na antigüidade real de toda essa verborreia de Macpherson?

- Se acredito, senhor! Como não havia de acreditar, se oiço estas canções desde a minha infância?

- Mas não as mesmas do Ossian inglês de Macpherson. Espero que não sejas tão absurdo que sustentes isso? - disse o Antiquário, cuja fronte se ensombrara de cólera.

Mas Heitor estava resolvido a defrontar a tempestade. Como mais de um celta obstinado, imaginava que a honra do seu país e da sua língua natal estava ligada à autenticidade desses poemas populares, e teria combatido e renunciado aos seus bens e à sua vida para não ceder uma linha. Foi por isso que ele sustentou com intrepidez que Rory Mac Alpín podia recitar o livro inteiro do princípio ao fim, e não foi senão sobre outro assunto que ele mo'dificou uma asserção tão generalizada, ajuntando:

- Pelo menos, se lhe dessem um whisky recitaria tanto quanto o quisessem escutar.

- Sim, sim - disse o Antiquário - e não seria por muito tempo.

- É certo, senhor, que tínhamos de nos ocupar dos nossos deveres, que não nos permitiam ficar toda a noite a ouvir um tocador de gaita de foles.

- Bem. Lembras-te agora - disse Oldbuck, cerrando fortemente os dentes e falando sem os abrir, hábito que adquirira quando o contradiziam - lembras-te de alguns desses versos que nós achámos tão belos e tão interessantes? Porque tu és, não o duvido, um famoso juiz nessa espécie de coisas.

- Não pretendo ser muito sabedor, meu tio; mas será razoável zangar-se comigo porque admiro mais as antigüidades do meu país do que as dos Harold, dos Harfager, dos Haco, de que o senhor é tão entusiasta?

- Mas esses godos poderosos e indomáveis foram teus antepassados; esses celtas seminus que eles subjugaram, e aos quais concederam uma vida que esse povo medroso ocultava nos retiros dos seus rochedos, esses celtas não eram mais do que mancipia (1) e seus servos.

Foi a vez de a fronte de Heitor se cobrir de rubor.

- Senhor - disse ele - eu não entendo muito bem o que quer dizer mancipia e servos, mas o suficiente no entanto para sentir que esses nomes são aplicados muito pouco a propósito aos montanheses escoceses.

 

(1 ) Escravos. - N. do T.

 

Nenhum outro homem, a não ser o irmão de minha mãe, teria ousado servir-se de tal linguagem na minha presença, e não posso ocultar que essa maneira de se expressar fere ao mesmo tempo a hospitalidade, a delicadeza e a amizade que, como seu hóspede e parente, tenho o direito de esperar de si. Os meus antepassados, Mr. Oldbuck...

- Eram valentes e poderosos chefes, não o duvido, Heitor; e, realmente, eu não tinha o intuito de ofender-te tão seriamente ao tratar um tema de uma antigüidade tão recuada, e perante o qual eu próprio me encontro frio, desinteressado e imparcial. Mas tu és tão irritável e tão fogoso como Heitor, Aquiles e o próprio Agamémnon.

- Tenho pena de me ter exprimido com tanta vivacidade, meu tio, sobretudo consigo, que se tem mostrado sempre tão generoso e tão bom; mas os meus antepassados...

- Não falemos mais nisso, meu rapaz, não queria de modo algum insultar-te.

- Tenho prazer em ouvir isso, senhor, porque a casa de Mac Intyre...

- A paz seja com ela e com cada um dos seus membros. Mas, voltando ao assunto de que falávamos, lembras-te, dizia eu, de alguns desses poemas que te inspiraram tanto interesse?

"É pena - pensou Mac Intyre - que ele se ocupe com tanto deleite de tudo o que é antigo, e que não abra excepções senão para a minha família".

E após algum esforço de memória, ajuntou em voz alta:

- Sim, senhor, creio que me lembro de alguns versos, mas o senhor não compreende gaélico.

- E dispenso-me muito bem de o entender; mas podias dar-me uma ideia do sentido no idioma que falas.

- Serei um mísero tradutor - disse Mac Intyre, recordando o texto, em que se encontrava abundância de aghes, aughs, oughs e outros sons guturais, depois, tossiu e apurou a voz como se a tradução lhe tivesse ficado na garganta. Em seguida, prevenindo que o assunto do poema era um diálogo entre o poeta Oisin ou Ossian e Patrick, o santo tutelar da Irlanda, e que era extremamente difícil, para não dizer impôssível, dar o requintado encanto das duas ou três primeiras linhas, disse que este era mais ou menos o seu sentido:

 

Patrick, de salmos grande cantor,

Visto que não queres ouvir

Os contos que te quero ensinar,

E que no entanto eu sei de cor

Tenho pena de to dizer:

Pouco mais vales que um asno.

 

- óptimo! - exclamou o Antiquário - Mas continua. Eis um excelente gracejo. Não duvido de que o poeta tivesse razão. Que respondeu o santo?

- A resposta condiz bem com o seu carácter disse Mac Intyre - Mas é a Mac Alpin que é preciso ouvir cantar o original. As palavras de Ossian são num tom de baixo-cantante; as de Patrick requerem voz de tenor.

- Como a trompa de Mac Alpin e a sua gaita de foles, por certo - disse Oldbuck - Mas continua, por favor. - Pois bem, então Patrick respondeu a Ossian:

Palavra de honra, filho de Fingal, Quando eu estou entoando salmos, O clamor das histórias das tuas velhas Perturba a devoção dos meus exercícios.

- Excelente! Cada vez melhor. Creio, porém, que São Patrick cantava melhor que o clérigo do Blattergowl, ou a escolha devia ser difícil de fazer entre o salmista e o poeta; mas o que eu mais admiro é a cortesia desses dois eminentes personagens um para com o outro. É pena que não haja uma única palavra disso na tradução de Macpherson.

- Se tem a certeza disso - observou gravemente Mac Intyre -foi porque ele tomou estranhas liberdades com o original.

- É o que acabarão por descobrir; mas continua, peço-te.

- Em seguida - disse Mac Intyre - eis a resposta de Ossian:

Ousas comparar os teus salmos Tu, filho de

- Filho quê? - exclamou Oldbuck

- Significa, penso eu - disse o jovem militar, com certa relutância - filho da fêmea do cão.

Comparas os teus salmos

Às histórias das mulheres Fenianas de braços nus.

- Tens a certeza de que estás a traduzir correctamente esse epíteto, Heitor?

- Absoluta certeza - respondeu Heitor, de bom humor.

- É que eu iria pensar que a questão da nudez entre os Fenianos se referia a outra parte do corpo.

Desdenhando responder a esta alusão, Heitor continuou a recitar:

Não vejo grande mal

Em arrancar-te a cabeça de entre os ombros.

Mas, que temos nós lá em baixo? - disse Heitor, interrompendo-se bruscamente.

- Algum tresmalhado do rebanho de Proteu disse o Antiquário - É uma espécie de foca ou lobo-marinho que dorme na praia.

Mac Intyre, com toda a vivacidade de um jovem caçador, esquecendo ao mesmo tempo Ossian, Patrick e seu tio, e exclamando: "Vou apoderar-me dele!", arrancou precipitadamente a bengala das mãos do Antiquário atonito, com risco de o atirar ao chão, lançou-se rapidamente sobre o animal para o impedir de regressar ao mar, para o qual já se dirigia à pressa e assustado.

O próprio Sancho, quando seu amo interrompeu a narrativa que fazia dos combatentes de Pentapoün de braços nus, e avançou em pessoa contra um rebanho de carneiros, não ficou mais confundido que Oldbuck com esta súbita escapada do sobrinho.

- Tem o diabo no corpo! -foi a sua primeira exclamação

- Vai perturbar o animal, que não pensava nele? - depois, elevando a voz - Heitor, meu sobrinho, estás doido, deixa a foca, deixa a foca! Mordem como diabos, digo-to eu. É o mesmo que estar a falar para uma parede, não me dá ouvidos... Pronto... Lá se combatem agora... bom! A foca leva a melhor! Pois bem, estou contente - disse ele no azedume da sua cólera, embora no fundo realmente alarmado com o perigo que o sobrinho corria - Sim, palavra de honra, regozijo-me de todo o meu coração.

Com efeito, o animal, vendo a retirada cortada pelo jovem militar, fez-lhe frente com bravura e, recebendo uma pancada vigorosa, franziu as sobrancelhas, segundo o costume dos lobos marinhos quando estão irritados, e, servindo-se ao mesmo tempo das patas dianteiras e da sua força maciça, arrancou a arma das mãos do assaltante, atirou-a à areia e mergulhou no mar sem lhe fazer outro mal. O capitão, Mac Intyre, um pouco confuso do remate do seu nobre feito, levantou-se a tempo de receber as felicitações ironicas de seu tio sobre um combate singular digno de ser celebrado pelo próprio Ossian.

- Visto que o teu magnânimo adversário - ajuntou ele - fugiu, embora não com as asas da águia, para longe do seu inimigo derrotada. Diabo! O bicho retirou-se todo bamboleante com as honras do triunfo, e levou a minha bengala, também, creio eu, como "polia opima.

Mac Intyre não tinha grande coisa a responder, senão que um montanhês não podia deixar passar um gamo, um lobo-marinho ou um salmão, sem procurar medir a sua destreza com a dele, e que se esquecera de que tinha o braço ao peito. Também se desculpou com a queda para regressar a Monkbarns, e assim se escapou aos gracejos de seu tio e às lamentações que lhe arrancava a perda da sua bengala.

- Eu tinha-a cortado - dizia ele - nos bosques clássicos de Hawthornden, na época em que não acreditava dever ficar sempre solteiro. Não a daria nem por uma carga de lobos-marinhos. Ó Heitor, Heitor, o teu Patrono nasceu para sustentáculo de Tróia, e tu para seres a ruína de Monkbarns!

 

Não me digas isso As lágrimas da mocidade são semelhantes ao morno orvalho do meio-dia; mas de nossos olhos envelhecidos o desgosto faz ceir gotas que se assemelham é saraiva do norte, e que gelem os sulcos das faces emurchecidas. Tão frias como nossas esperanças, são obstinadas como a dor. As que os jovens vertem não deixam marcas, as nossas caem nos corações; aí se aglomeram e destroem todo o calor.

Comédia Antiga

 

Ficando só, o Antiquário apressou o passo, que fora retardado pelas diversas discussões e pelo encontro que as terminara, e depressa chegou à vista das choupanas de Musselcrag, que não iam além de uma meia dúzia. Ao seu habitual aspecto de sujidade e de miséria juntavam nesse momento os tristes atributos que distinguem uma casa enlutada. Os barcos estavam todos alinhados na praia, e, embora o tempo estivesse bom e a estação favorável, não se ouviam nem as cantigas costumadas dos pescadores que estão no mar, nem a algazarra das crianças, nem a voz aguda da mãe de família quando cantava à porta, enquanto remendava as redes. Alguns vizinhos, uns, vestindo antigos fatos pretos quase novos, outros, nos seus trajes habituais, mas apresentando todos no rosto a expressão do triste interesse que uma desgraça tão inesperada e súbita suscitava, achavam-se reunidos à porta da choupana de Mucklebackit, e esperavam que se levasse o corpo. Quando viram aproximar-se o laird de Monkbarns, cederam-lhe lugar para entrar, tirando-lhe os seus chapéus e bonés, quando ele passou, com um ar de civilidade melancólica, saudação a que ele correspondeu da mesma maneira.

O interior da cabana oferecia uma cena que só o nosso Wilkie poderia pintar com aquele requintado sentimento da natureza que caracteriza as suas deliciosas produções.

O corpo estava colocado no caixão que tinham posto em cima da madeira do leito que o jovem pescador ocupava em vida. A certa distância, encontrava-se o pai, cujas feições rudes e fatigadas pelos ultrajes das estações e do tempo estavam sombreadas pelos cabelos grisalhos e atestavam que defrontara mais de uma noite tempestuosa e mais de um dia semelhante a essas noites. Parecia ocupado em recordar a sua perda com aquele sentimento de dor amarga que pertence aos caracteres sombrios e violentos, e que se transforma quase em ódio ao mundo e àqueles que ficam depois de se ter retirado o objecto da sua afeição. O velho fizera os mais desesperados esforços para salvar o filho e fora precisa uma força superior para o impedir de os renovar no momento em que, sem qualquer possibilidade de o arrancar à morte, apenas teria perecido com ele.

Todas estas recordações lhe fervilhavam, sem dúvida, na mente; o olhar dirigia-se para o lado do caixão, mas de uma maneira indirecta e como que para um objecto que não tinha coragem de fixar e do qual, contudo, não podia desviar a vista. As respostas às perguntas indispensáveis que lhe faziam, uma vez por outra, eram breves, duras e quase ferozes. A família ainda não se atrevera a dirigir-lhe uma palavra de consolação ou de piedade. Sua mulher, apesar do carácter másculo e imperioso e embora governasse despòticamente a família nas ocasiões normais, como tinha o direito de se gabar, aterrada por aquela grande perda e reduzida ao silêncio e à submissão, era forçada a ocultar aos olhares do marido as explosões de dor maternal. Como ele recusara todo o alimento desde que a desgraça acontecera, não ousando aproximar-se dele, nesse mesmo dia, por um afectuoso artifício usara do auxílio do filho mais pequeno, o predilecto da família, para apresentar ao marido alguns alimentos. O seu primeiro movimento fora repeli-lo com violenta cólera que assustara o rapazinho, o segundo tomá-lo nos braços e devorá-lo com beijos.

- Serás um valente rapaz, se me fores conservado, Patie. Mas, nunca, nunca, podes ser o que ele era para mim. Manobrava o barco comigo desde a idade de dez anos, e não havia outro igual para puxar uma rede, aqui, em Buchan Ness. Diz-se que o homem, deve submeter-se; está bem, vou tentar.

E depois guardou silêncio até que foi constrangido a responder às perguntas necessárias de que falámos. Tal era o desesperado estado do pai.

A mãe estava sentada no outro canto da choupana, o rosto coberto com o avental, que assim lançara por suas mãos e que torcia com angústia, e a agitação convulsiva do seio, que ela não pudera ocultar, cobrindo-o, denunciava bem a natureza da sua dor. Duas das comadres debitavam-lhe em voz baixa aqueles sediços lugares-comuns sobre a resignação necessária numa desgraça sem remédio, e parecia procurarem aturdir a dor que não podiam consolar.

No desgosto dos filhos misturava-se o espanto que lhes causavam os preparativos que viam fazer em volta deles, e sobretudo a abundância extraordinária de pão de fermento e de vinho, que o mais pobre dos camponeses ou dos pescadores oferece aos seus hóspedes nestas tristes ocasiões; de maneira que os seus lamentos pela morte do irmão se confundiam com a admiração que o esplendor dos funerais suscitava.

Mas a figura da avó era a mais notável deste consternado grupo. Sentada no lugar habitual, com o costumado ar de apatia e de indiferença por tudo o que a cercava, parecia, uma vez por outra, e como que maquinalmente, retomar o movimento de fazer girar o fuso, depois procurar no seio a sua roca, embora um e outro estivessem postos de parte. Lançava em seguida olhares em volta, como que surpreendida de não encontrar esse instrumento da sua indústria, e parecia impressionada com a cor negra do vestido que lhe tinham envergado e atrapalhada com o número de pessoas que a rodeavam. Por fim, levantava a cabeça e, com uma expressão sinistra, dirigia os olhos para aquele leito que continha o caixão do neto, como se, de repente e pela primeira vez, recobrasse a razão para compreender a sua inexprimível infelicidade. Estes diferentes sentimentos de embaraço, de assombro e de dor, sucederam-se alternadamente mais de uma vez nas suas faces, em que havia muito tempo parecia reinar o torpor. Mas ela não pronunciou uma palavra, assim como não vertera uma lágrima, e ninguém da família podia depreender por algum olhar, por alguma expressão do seu rosto, até que ponto ela sentia o movimento extraordinário que se fazia em sua volta. Assim, permanecia nesta assembleia fúnebre como um elo da cadeia entre os parentes desolados e o corpo inanimado daquele cuja perda deploravam. Era um ser no qual as sombras da morte já obscureciam rapidamente a chama da vida. Quando Oldbuck entrou naquela casa de luto foi recebido por uma inclinação de cabeça silenciosa e geral e, segundo o costume escocês em semelhantes ocasiões, ofereceram a todos os hóspedes em redor o pão, o vinho e os licores. Elspeth, ao serem apresentados estes refrescos, surpreendeu e fez estremecer toda a gente, detendo a pessoa que lhos apresentava; depois, pegando num copo, levantou-se e, com o sorriso da demência nas faces enrugadas, pronunciou em voz cava e trêmula:

- Uma boa saúde para todos, meus senhores, e que muitas vezes possamos ter alegres reuniões como esta!

Toda a gente se arrepiou com o sinistro brinde e pousou o seu copo sem o ter levado aos lábios, com aquele grau de horror e de medo que não assombrará os que sabem a quanta superstição ainda está sujeita a classe baixa da Escócia neste género de ocasiões. Mas, quando a velha provou o licor, exclamou bruscamente, numa espécie de brado:

- Que é isto? Não é vinho? Quê! Haverá vinho em casa de meu filho? Ah, sim! - continuou ela, com um gemido abafado - Compreendo agora a triste causa. E, deixando cair o copo da mão, quedou-se uns momentos de pé, a olhar fixamente o leito, em cima do qual tinham colocado o caixão de seu neto. Depois, Decaindo gradualmente na cadeira, tapou os olhos e a fronte com a mão lívida e ressequida.

Nesse momento, entrou o ministro na choupana. " Blattergowl, apesar de terrível falador, principalmente a respeito de aumentos, alugueres, dízimos e Aberturas na sessão daquela assembleia geral, onde, desgraçadamente para os auditores, ele estivera a actuar durante um ano como moderador, era no entanto um bom cristão perante Deus e perante os homens, em toda a extensão da expressão escocesa. Nenhum eclesiástico era mais cuidadoso em visitar os doentes e os aflitos, em moralizar a juventude, em instruir a ignorância e em destruir o erro. Assim, não obstante a impaciência que causavam ao nosso amigo Antiquário a prolixidade e os preconceitos pessoais e o seu apego à profissão e, apesar de um certo desprezo habitual pela sua capacidade, especialmente em matéria de imaginação e de gosto, sobre os quais Blattergowl era geralmente muito difuso, se bem que tivesse a esperança de chegar um dia a uma cátedra de retórica ou de belas-letras; apesar, dizia eu, da espécie de prevenção que todas estas circunstâncias excitavam contra ele, Mr. Oldbuck tinha muita es- tima e respeito pelo dito Blattergowl, embora eu seja forçado a confessar que, em despeito do sentimento das conveniências e das solicitações das suas fêmeas, raramente ele se deixava arrastar a ouvi-lo pregar. Mas desculpava-se regularmente todos os domingos, dia em que Blattergowl era convidado a jantar em Monkbarns; querendo com isto testemunhar os seus respeitos ao eclesiástico de uma maneira que julgava dever ser-Lhe pelo menos agradável, também, e que contrariava muito menos os hábitos pessoais do velho sábio.

Regressando de uma divagação que não pôde servir senão para fazer compreender melhor o honesto clérigo, diremos que, logo que Mr. Blattergowl entrou na choupana e que recebeu as tristes e mudas saudações dos circunstantes ali reunidos, se aproximou do infeliz pai e pareceu tentar oferecer-lhe algumas palavras de condolências ou de consolação. Mas o velho ainda estava incapaz de as receber. No entanto, inclinou-se bruscamente e sacudiu a mão do pastor, como que a reconhecer as suas boas intenções, mas não quis ou não pôde dar outra resposta.

O ministro avançou em seguida para junto da mãe, marchando sobre o sobrado a passo lento, receoso e silencioso, como se temesse que o solo, como um gelo pouco sólido, viesse a quebrar-se-lhe sob os pés, e que o primeiro eco dos seus passos destruísse algum mágico encantamento e mergulhasse a cabana e os circunstantes num abismo subterrâneo. Não se pode julgar o que ele disse à pobre mulher senão pelas suas respostas, que, abafadas pelos soluços que ela não podia reter e pelo avental que lhe cobria a cabeça, se faziam confusamente ouvir a cada pausa do discurso do ministro:

- Sim, senhor, sim... O senhor é muito bom... é muito. - sem dúvida, sem dúvida... o nosso dever é conformarmo-nos... Mas, ó meu Deus, o meu pobre Steenie... o orgulho do meu coração, ele era tão belo, tão bom; a alegria e o sustentáculo da sua família, era a consolação de nós todos, e não havia ninguém que não tivesse prazer em vê-lo!... ó meu filho, meu filho! Porque é que estás aí estendido sem vida e porque é que fiquei para te chorar?

Não se podia discutir com esta explosão de dor e de afeição maternal. Oldbuck recorreu por várias vezes à sua tabaqueira para ocultar as lágrimas, porque, em despeito do carácter severo e cáustico, não era insensível a cenas deste género. As mulheres que estavam presentes choravam, e os homens mantinham as boinas diante da cara e falavam à parte e em voz baixa. O clérigo quis dirigir em seguida piedosas consolações à velha avó. Primeiro, ela escutou-o, ou pareceu escutá-lo, com toda a apatia habitual e como se não o entendesse; mas, em apoio do discurso, ele aproximou-se tanto do seu ouvido que as palavras acabaram por torná-lo inteligível, embora as pessoas mais afastadas não as pudessem ouvir; então o rosto da avó tomou aquela expressão sombria e carregada que a caracterizava durante os curtos interregnos da razão. Endireitou a cabeça e o corpo de uma maneira que denunciava a impaciência, se não o desprezo que lhe inspiravam aqueles conselhos, e agitou ligeiramente a mão, mas com um gesto bastante expressivo para indicar a todos os que eram testemunhas que repelia com profundo desdém as consolações espirituais que lhe eram oferecidas. O pastor recuou uns passos, como se se sentisse empurrado, e, erguendo a mão ao céu, deixou-a recair brandamente de uma maneira que expressava ao mesmo tempo assombro, desgosto e compaixão pelo estado deplorável do seu espírito. O resto dos assistentes partilhou destes sentimentos, e circulou entre eles um murmúrio que indicava a que ponto o endurecimento do seu desespero os penetrava de receio e mesmo de horror.

Nesse instante, a assembleia fúnebre completou-se com a chegada de duas ou três pessoas que se esperavam de Fairport. O vinho e os licores circularam de novo e trocaram-se mais uma vez mudos cumprimentos. A velha avó pegou num copo pela segunda vez, e exclamou com uma espécie de riso:

- Ah! Ah! Já hoje provei vinho duas vezes... Há quanto tempo isto não me acontece, meus senhores?... Nunca desde...

Aqui dissipou-se a efêmera vivacidade que reanimara o seu rosto e, pousando o copo, recaiu no lugar de onde se levantara para o agarrar.

Quando o assombro geral se desvaneceu, Mr. Oldbuck, cujo coração sangrava com este espectáculo, que considerava como que as divagações de um espírito debilitado a lutar contra o gélido entorpecimento da velhice e da dor, lembrou ao eclesiástico que era tempo de começar a cerimónia. O pai estava incapacitado de dar uma ordem; mas o mais próximo parente da família fez um sinal ao carpinteiro, que em casos semelhantes cumpre o dever de coveiro, para meter mãos à obra. O estalido dos parafusos anunciou que a tampa desta derradeira moradia do homem ia fechar-se para sempre sobre quem a ocupava. Este acto que nos separa para todo o sempre dos despojos da pessoa que choramos, produz geralmente os seus efeitos, mesmo sobre os corações mais indiferentes, mais egoístas e mais duros. Por espírito de contradição, que nos perdoarão considerar um acanhado preconceito, os padres da igreja escocesa rejeitavam, mesmo num momento tão solene, toda a espécie de oração à Divindade, com medo de que os acusassem de aprovar os rituais de Roma e do anglicanismo. Por efeito de um critério mais liberal e mais sensato, a maior parte dos eclesiásticos escoceses adoptaram agora o costume de aproveitarem esse momento para pronunciarem uma prece e uma exortação próprias para fazer impressão nos vivos, enquanto têm perante os olhos os restos daquele que tão pouco tempo antes era semelhante a nós, e que é então o que eles devem tornar-se um dia. Mas este costume judicioso e louvável ainda não se adoptara no tempo de que falamos, ou pelo menos Mr. Blattergowl não se conformara com ele, e a cerimónia começou sem nenhum exercício de devoção.

O caixão, coberto por um pano mortuário e seguro sobre varas pelos mais próximos parentes, apenas aguardava que o pai, segundo o costume, iniciasse o cortejo; mas ele não respondeu senão com um aceno da mão e fazendo sinal de recusa. Numa melhor intenção do que critério, os amigos, que encaravam aquilo como um acto de dever para o vivo e de decência para com o morto, dispunham-se a insistir, quando Oldbuck se interpôs entre o pai desolado e os seus perseguidores bem intencionados, e lhes declarou que seria ele quem, na qualidade de proprietário e amo do defunto, iria à frente do préstito até ao túmulo. Apesar de tudo o que a circunstância tinha de triste, o coração dos parentes encheu-se de alegria por uma distinção tão marcada por parte do laird, e a velha Alison Breck, que estava presente entre outras mulheres de pescadores, jurou quase em voz alta que nunca faltariam ostras em casa de Sua Honra Monkbarns (sabia-se no país quanto ele gostava delas) nem que tivesse de ir ela própria pescá-las no mar com o vento mais forte. Tal é o carácter do povo humilde da Escócia, que Mr. Oldbuck, só por aquela atitude de complacência com os seus costumes e respeito pelas suas pessoas, obteve mais popularidade do que por todas as quantias que tinha por hábito distribuir todos os anos à paróquia para se aplicarem em caridade pública e particular.

A triste procissão começou a marchar a passo lento, precedida dos bedeis, chorosos, com seus bastões, homens muito idosos, de aspecto miserável, que vacilavam como se eles próprios estivessem à beira daquela cova para a qual escoltavam outro, e envergando, segundo o uso escocês, fatos pretos cocados e levando uma espécie de boné de caça ornado de um velho crepe já arroxeado. Se tivesse sido consultado, Monkbarns teria desaprovado aquela despesa supérflua, mas com isso teria provavelmente melindrado ainda mais aquela pobre gente do que a lisonjeara a sua condescendência em conduzir o préstito; e, nesta convicção, absteve-se prudentemente de lhes fazer as suas críticas numa ocasião em que a censura não produziria mais efeito do que os seus conselhos. É um facto que os camponeses da Escócia ainda são tão atreitos àquela fúria de cerimonias que outrora foi tão notável entre os grandes do reino, que o parlamento escocês aprovou uma lei sumptuária com o fim de a reprimir. Conheci várias pessoas da classe mais humilde que se abstinham não só dos doces, mas quase das primeiras necessidades da vida, a fim de juntar uma importância em dinheiro que permitisse aos parentes que lhes sobrevivessem enterrá-los como cris tãos, segundo a sua expressão; e nunca os fieis executores de suas vontades, embora igualmente na miséria, puderam deixar-se persuadir a empregar nas necessidades dos vivos um dinheiro loucamente gasto no enterro dos mortos.

Até o cemitério, que ficava a cerca de meia milha de distância, a procissão seguiu com a triste solenidade vulgar nestas ocasiões. O corpo foi entregue à terra que o alimentou e quando os coveiros encheram o túmulo e o cobriram de verdura, Mr. Oldbuck, tirando o seu chapéu, cumprimentou os assistentes que se encontravam em volta num silêncio melancólico e, com este adeus, despediu o cortejo.

O pastor ofereceu-se ao nosso Antiquário para o acompanhar a casa; mas Mr. Oldbuck ficara tão impressionado com a dor do pescador e sua mulher que, movido pela compaixão e talvez também por aquela curiosidade que nos leva a procurar os objectos cuja vista deve suscitar em nós sensações penosas, preferiu regressar sozinho ao longo da costa, para, de passagem, visitar a choupana mais uma vez.

 

Que crime secreto é esse, que misteriosa história que nenhum artifício pode descobrir, nenhum arrependimento expiar?... Os músculos estão imóveis; nenhum rubor súbito lhe coloriu as faces; seus lábios não tremeram.

WALPOLE - A Mãe Misteriosa

 

Depois do caixão ser levado, os assistentes, segundo a categoria ou o parentesco que os ligava ao morto, foram abandonando gradualmente a choupana para o acompanhar. Os irmãos mais pequenos também foram conduzidos no rastro da urna do irmão, e observavam com espanto uma cerimónia que mal podiam compreender. As vizinhas levantaram-se em seguida para partir, e, por consideração pela situação dos pais, levaram as filhas com elas, a fim de proporcionarem ao infeliz casal a facilidade de expandirem os seus corações mutuamente e de suavizarem a sua dor comunicando-a um ao outro; mas a benévola intenção não teve efeito.

Mal a última delas obscurecera, com sua sombra, ao retirar-se, o limiar da porta, que puxara brandamente atrás de si, o pai, certificando-se primeiro por um rápido olhar que não havia mais estranhos, levantou-se em sobressalto, juntou as mãos, torcendo-as com violência acima da cabeça, soltou aquele grito de desespero que retinha havia tanto tempo e, com toda a impotente impaciência da dor, meio lançando-se, meio arrastando-se para o leito onde estivera o caixão, Precipitou-se sobre ele e, mergulhando a cabeça nos cobertores, deu livre curso a todo o excesso do seu desespero A infeliz mãe, aterrada pela violência da "lição do marido (aflição tanto mais assustadora por se tratar de um homem cujas maneiras eram rudes e a constituição robusta), abafando os soluços e as lágrimas e puxando-lhe pelas roupas, suplicou-lhe em vão que se levantasse e não se esquecesse de que embora um dos filhos se perdesse, ficavam-lhe ainda outros, e que também tinha uma mulher a confortar e a sustentar. Este apelo foi demasiado cedo, e num momento em que sua dor não era capaz de escutar coisa alguma, e nem sequer foi ouvido; continuou deitado, revelando por soluços tão amargos e tão violentos que abalavam; o leito e o tabique, pelos seus punhos cerrados que apertavam fortemente os cobertores e pelo movimento brusco e convulsivo das suas pernas, quão profundas e terríveis são as angústias da dor paternal.

- Oh, que dia este, que dia este! -exclamava a pobre mãe, cuja aflição feminina já quase se esgotara em lágrimas e soluços, e que quase se apagava perante o terror que lhe causava o estado em que via seu marido - Oh, que momento este! E ninguém que venha em socorro de uma pobre mulher abandonada! Boa mãe! Se pudesse dizer-lhe uma palavra? Somente a senhora lhe poderia dizer que tivesse coragem!

Para seu grande espanto, e até acréscimo do seu terror, a mãe de seu marido ouviu aquele apelo, e correspondeu-lhe. Levantou-se, atravessou o quarto sem apoio e sem muita aparência de fraqueza e, ficando de pé junto do leito sobre o qual seu filho se estendera, disse-lhe:

- Levanta-te, meu filho, e não chores aquele que está ao abrigo do pecado, da tentação e da dor. É preciso chorar os que ficam neste vale de misérias e trevas. Eu, que não chorei, que já não posso chorar por ninguém, preciso mais do que ele de que chorem todos por mim.

A voz de sua mãe, que há tantos anos não ouvira tomar parte nos deveres activos da vida, e da qual ele não recebera nem conselhos nem consolações, produziu o seu efeito no filho. Levantou-se, sentou-se na beira do leito, e o seu ar, a sua atitude, os seus gestos deixaram de oferecer a imagem de um furioso desespero, já não exprimiram senão o abatimento da mais profunda dor. A avó foi retomar o lugar habitual, e a mãe pegou maquinalmente numa Bíblia desmantelada na qual pareceu ler, embora os olhos estivessem cheios de lágrimas.

Estavam todos três nesta posição, quando uma pancada violenta se fez ouvir na porta.

- Meu Deus! - exclamou a pobre mãe - Quem pode vir assim, neste momento? com certeza que a pancada repetiu-se. Ela levantou-se e foi abrir a porta, dizendo em tom irritado:

- Quem vem assim perturbar uma casa de luto? Achava-se diante dela um homem de alta estatura e vestido de preto; ela reconheceu logo o lorde Glenallan.

- Não há aqui - indagou ele - nesta cabana, ou numa das cabanas vizinhas, uma mulher idosa, chamada Elspeth e que há muito tempo morou em Craigburnfoot de Glenallan?

- É minha sogra, milorde - respondeu Maggie mas ela não pode ver ninguém neste momento. Ai, acabamos de ser atingidos por um grande golpe: sofremos uma cruel provação!

- Deus me livre - disse lorde Glenallan - de vir perturbar inconsideradamente a vossa dor; a sua sogra está no último período da velhice, e, se não a vir hoje, podemos nunca mais nos encontrar neste mundo.

- E que pode o senhor ver - respondeu a mãe, aflita- numa pobre mulher quebrada pela idade e pelo desgosto? Gentleman ou outro qualquer, ninguém passará o limiar da minha porta no dia em que por ela saiu o corpo de meu filho.

Assim falando e abandonando-se à irritabilidade do seu carácter e do seu estado, que começava a misturar-se com a sua dor, cuja primeira explosão já passara, ela mantinha a porta entreaberta e colocara-se na abertura, como que para tornar a entrada impossível ao visitante. Mas a voz do marido fez-se ouvir lá dentro:

- Quem é, Maggie? Porque os mandas embora? Deixa entrar. Que importa agora quem entre ou quem saia? Preocupo-me tanto com isso como uma corda velha.

A mulher, obedecendo à ordem do marido, desviou-se para o lado e deixou entrar lorde Glenallan na choupana. O abatimento que o seu vulto curvado e o seu rosto magro denunciavam, ofereciam um flagrante contraste com os efeitos produzidos pela dor no rosto robusto e crestado do pescador, e as faces másculas de sua esposa. Aproximou-se da anciã sentada no seu lugar habitual e perguntou, tão alto quanto a fraqueza da sua voz lho permitiu:

- É a Elspeth de Craigburnfoot de Glenallan?

- Quem pergunta pela morada infecta desta má mulher? - foi a resposta àquela pergunta.

- O desditoso conde de Glenallan.

- O conde, o conde de Glenallan!

- O que se chamou William, conde lorde Geraldin, e que a morte de sua mãe fez conde de Glenallan.

- Abre a janela -disse a anciã, num tom firme e precipitado, a sua nora-abre depressa a janela, para que eu possa ver se é bem o verdadeiro lorde Glenallan, filho da minha patroa, o que eu recebi nos meus braços na hora do nascimento, o que tem razão para me amaldiçoar por não o ter estrangulado antes de que essa hora decorresse.

A janela, cerrada para que um sombrio crepúsculo viesse aumentar a solenidade da cerimónia fúnebre, foi aberta por sua ordem, e lançou uma claridade viva e súbita na atmosfera vaporosa e enfumarada da choupana. Incidindo em cheio sobre a chaminé, os raios iluminaram, à maneira de Rembrandt, as feições do desditoso conde e as da velha sibila, que, então de pé, e estendendo a mão, fixava ansiosamente, com seus olhos de um azul-claro, todos os seus traços, enquanto passeava lentamente o dedo descarnado, erguido a pouca distância do rosto do conde, e parecia seguir todos os seus contornos e procurar reconciliar o que via com as suas recordações. Ao terminar o exame, disse, com um profundo suspiro:

- A mudança foi terrível... terrível!... E de quem é a culpa?... Mas isso está escrito num livro que fará fé; está gravado nas tábuas de bronze com aquela pena de aço que nelas inscreve tudo o que pertence à carne... E que quer lorde Geraldin - disse ela, após uma pausa - a uma pobre velha criatura como eu, já morta em parte, e que já não pertence ao resto dos vivos senão por ainda não estar deitada debaixo da terra?

- Sou eu - respondeu lorde Glenallan - que venho perguntar em nome do céu porque desejou com tanto empenho ver-me, e porque apoiou esse pedido com um penhor ao qual bem sabe que eu nada ousaria recusar.

Assim falando, tirou da sua bolsa o anel que Edie Ochiltree lhe entregara no castelo de Glenallan. A vista da jóia produziu um efeito estranho e instantâneo na anciã; a tremura do receio veio juntar-se nela à da velhice, e começou a procurar nos bolsos com a agitação precipitada e trêmula de quem tem medo de ter perdido um objecto de grande importância; depois, como se se convencesse da realidade dos seus receios, voltou-se para o conde e perguntou-lhe:

- Como caiu nas suas mãos? Como sucedeu isso? Creio tê-lo posto em segurança... Que dirá a condessa?

- Sabe - disse o conde - pelo menos, deve ter sabido que minha mãe morreu?

- Morreu! Não se engana? Abandonou finalmente as suas terras, os seus senhorios, os seus títulos?

- Tudo, tudo - respondeu o conde - como os mortais devem deixar todas as vaidades humanas.

- Lembro-me agora de já ter ouvido dizer; mas, depois disso, houve tanta dor nesta casa, e a minha memória está tão enfraquecida... Mas tem a certeza de que a condessa sua mãe já não existe?

O conde assegurou-lhe de novo que a sua antiga ama já não existia.

- Então - disse Elspeth - posso aliviar o meu espírito desse fardo! Quando ela era viva, quem se atreveria a dizer uma palavra do que ela queria manter em segredo? Mas ela já não vive, posso confessar tudo.

Depois, voltando-se para o lado de seu filho e de sua nora, ordenou-lhes imperiosamente que saíssem e deixassem o lorde Geraldin, como lhe chamava ainda, sozinho com ela; mas Maggie Mucklebackit, passada a primeira efusão da dor, não estava nada disposta à obediência passiva na sua casa perante sua sogra, autoridade que as pessoas da sua classe suportavam em geral muito impacientemente e que ela viu renascer com mais assombro por parecer abandonada e esquecida, havia muito tempo.

- Teria graça -disse ela, murmurando em tom rezingão (porque a categoria de lorde Glenallan tinha alguma coisa de imponente) - teria graça ordenar a uma mãe que deixasse a sua casa, no momento em que o corpo de seu filho mais velho acaba de ser levado, e quando os seus olhos ainda estão cheios de lágrimas.

O pescador, num tom duro e sombrio, ajuntou alguma coisa no mesmo sentido.

- Não é dia para contar as suas velhas histórias, minha mãe. Milorde, visto que é um lorde, pode voltar outro dia, ou pode dizer o que tem a dizer diante de nós, se quiser; ninguém se preocupará em escutá-lo, nem tão-pouco à minha mãe. Aliás, lorde ou camponês, gentleman ou rendeiro, eu não abandonarei a minha casa para prazer pessoal no dia em que o meu pobre...

Nesta altura a voz faltou-lhe e não pôde acabar; mas como ele se levantara quando lorde Glenallan entrara e ficara de pé, atirou-se então bruscamente para uma cadeira, com o ar sombrio e resoluto de quem está decidido a manter a palavra.

Mas a velha, a quem esta crise parecia ter devolvido em toda a sua superioridade as faculdades intelectuais que outrora possuira em alto grau, levantou-se e, avançando para ele, disse-lhe em voz solene:

- Meu filho, se quiseres evitar ouvir a vergonha de tua mãe, e não queres ser testemunha voluntária da confissão de seu crime, se desejas escapar à sua maldição e ser abençoado, intimo-te por aquele corpo que levaste e que alimentaste, a deixar-me a liberdade de falar com lorde Geraldin. Obedece-me, para que, quando cobrirem a minha cabeça de terra... oh! que esse dia chegue em breve! porque não veio já esse dia?... te recordes deste momento sem teres de te censurar de haveres desobedecido à derradeira ordem que tua mãe te deu neste mundo.

Os termos desta ordem solene despertaram no coração do pescador aquele hábito de obediência cega na qual sua mãe o educara e à qual ele se submetera enquanto ela conservara a faculdade de a exigir. Uma lembrança que surgiu então no seu espírito veio ainda fortificar o novo sentimento que o dominava. Lançou um olhar ao leito onde o corpo repousara e murmurou:

- Ele nunca me desobedeceu com ou sem razão, porque hei-de eu contrariá-la?

Torniando então o braço de sua mulher, apesar da sua repugnância, levou-a para fora da cabana e fechou a aldrava atrás deles.

Quando os desditosos pais se retiraram, lorde Glenallan, para impedir a velha de recair na sua letargia, insistiu para que se explicasse sobre a comunicação que lhe queria fazer.

- Em breve a ouvirá -disse ela -o meu espírito esclareceu-se bastante; agora não julgo que possa haver receio de que me esqueça do que tenho a dizer. A minha moradia em Craigburnfoot está presente a meus olhos, como se a visse em realidade. Vejo o prado cuja orla se estendia até o rochedo que o mar tocava, os dois pequenos barcos com suas velas enroladas, ancorados na baía natural que ele formava, o rochedo escarpado que o separava do parque de Glenallan e que se debruçava sobre o regato... Ah, sim, posso esquecer que tive um marido e que o perdi... que não me resta senão um dos quatro belos rapazes que tivemos... que as desgraças acumuladas engoliram os nossos bens mal adquiridos... que o corpo do filho mais velho de meu filho foi levado esta manhã desta casa; mas nunca, oh! nunca, poderei esquecer os dias que passei em Craigburnfoot!

- A senhora era a predilecta de minha mãe? disse lorde Glenallan, desejando reconduzi-la ao ponto de onde ela se afastara.

- Sim, era... não tem necessidade de mo recordar Ela educou-me acima da minha condição e deu-me mais instrução do que a que possuem os meus iguais. Mas, como o tentador do mundo, com o conhecimento do bem, ela deu-me também o do mal.

- Por amor de Deus, Elspeth! - pronunciou o conde, admirado - Acabe, se puder, de explicar as palavras misteriosas e terríveis que se lhe escaparam. Sei muito bem que é confidente de um segredo tão horrível que só a sua narrativa faria desabar o tecto que nos cobre... mas, por favor, fale...

- Sim - disse ela - falarei... mas tenha paciência comigo um momento ainda.

E pareceu perder-se de novo nas suas recordações, mas esta absorpção já não era mesclada de idiotismo ou de apatia. Ia explicar-se sobre um assunto que havia muito tempo acabrunhava o seu espírito, e que sem dúvida absorvia toda a sua alma quando parecia morta para todos os que a cercavam. E ajuntarei, como um facto notável, que a energia do seu espírito actuou com tal poder sobre as suas faculdades físicas e sobre o seu sistema nervoso, que, apesar da surdez habitual, cada uma das palavras de lorde Glenallan, embora pronunciadas com o tom concentrado do horror e do desespero, chegava tão distintamente ao ouvido de Elspeth como noutra época da sua vida. Ela própria falou claramente e com lentidão, como se desejasse que a narrativa fosse perfeitamente compreendida. Ao mesmo tempo, imprimiu-lhe concisão e nenhum termo daquela loquacidade e daqueles circunlóquios peculiares às mulheres da sua condição. Em suma, a linguagem denunciava uma educação mais elevada, assim como um espírito de uma firmeza e de uma energia pouco vulgares, e um daqueles caracteres dos quais se deve naturalmente esperar grandes virtudes ou grandes crimes. Veremos no capítulo seguinte qual foi a natureza das suas comunicações.

 

O remorso nunca nos deixa. Semelhante ao cão de caça de sangue exaltado, persegue os nossos passos rápidos através do dédalo pavoroso por onde nos transviam as paixões da mocidade, sem se fazer ouvir, talvez, até a velhice as vencer. Então, quando o tempo gelou nossos membros e nos furtou toda e esperança de combater ou de fugir, ouvimos a sua voz ameaçadora anunciar-nos a vingança, o desespero e o castigo que nos esperam.

Comédia Antiga

 

- Não tenho necessidade de lhe dizer que eu era a predilecta e a confidente de Joscelind, condessa de Glenallan (que Deus tenha) - começou a anciã, dirigindo-se ao conde de Glenallan. Fez o sinal da cruz e prosseguiu - E o senhor tão-pouco deve ter esquecido que durante muitos anos fiz parte da sua estima; pagava-lhe com a afeição mais sincera, mas caí em desgraça por um ligeiro acto de desobediência que foi contado a sua mãe por uma pessoa que me olhava, e não se enganava, como espia dos seus actos e do senhor.

- Mulher - disse o conde em voz trêmula de comoção-ordeno-te que não a nomeies na minha presença.

- É preciso - prosseguiu a penitente, em voz calma e firme - Como poderia eu fazer-me compreender?

O conde encostou-se a uma das cadeiras de madeira da choupana, puxou o chapéu para os olhos, juntou as mãos, cerrou os dentes, como alguém que concentra toda a coragem para sofrer uma operação dolorosa, e fez-lhe sinal para continuar.

- Dizia eu, pois - prosseguiu ela - que fiquei devendo em parte a minha desgraça junto de minha ama a Miss Eveline Neville, educada então no castelo como filha de um primo co-irmão, de um íntimo amigo de seu falecido pai. Havia muito mistério na sua história; mas quem se atreveria a perguntar mais do que a condessa queria que se soubesse? Toda a gente em Glenallan gostava de Miss Neville; toda, excepto duas pessoas, sua mãe e eu... porque ambas a odiávamos.

- Santo Deus! E por que razão, visto que uma criatura tão meiga, tão boa, tão feita para inspirar afeição jamais pertenceu a este mundo miserável?

- Podia ser - respondeu Elspeth - mas sua mãe odiava tudo o que pertencia à família de seu pai, excepto ele. Os motivos para isso provinham de uma desinteligência que sobreviera pouco tempo depois do casamento e cujos pormenores são inúteis para aqui. Mas quanto mais ainda ela odiou Miss Neville quando se apercebeu da afeição nascente que se formava entre o senhor e essa infeliz jovem lady! O senhor pode recordar-se de que a aversão da condessa, de início, não se exprimia senão pela frieza... pelo menos, não se via mais do que isso; mas explodiu mais tarde com tal violência que Miss Neville acabou por ser obrigada a refugiar-se no castelo de Knockwinnock, junto da esposa de sir Arthur - Deus a abençoe! que ainda era viva.

- A senhora despedaça-me o coração, recordando-me esses pormenores; mas continue, e possam as minhas actuais torturas ser admitidas em expiação do meu crime involuntário!

- Havia meses que ela estava ausente - continuou Elspeth - quando, uma noite, em que esperava na minha choupana o regresso de meu marido, que fora à pesca, vertendo secretamente aquelas lágrimas amargas que arrancava ao meu orgulho a recordação da minha desgraça, a porta se abriu de repente e a condessa sua mãe entrou na minha casa. Julguei ver um espectro, porque, mesmo no cúmulo do meu favor, fora uma honra que ela nunca me fizera. E estava tão pálida, tão terrível como se tivesse saído do seio do túmulo. Sentou-se e sacudiu a água que escorria da sua capa e da sua cabeleira, porque a noite estava nevoenta e ela atravessara as plantações, todas molhadas do orvalho. Entro nestes pormenores para que o senhor julgue até que ponto tenho essa noite presente na minha memória, e não é sem razão. Fiquei surpreendida de a ver, mas não me atrevi a falar primeiro, como se visse um fantasma, eu, que vi, sem tremer, mais de um espectáculo de horror. Após um momento de silêncio, disse ela: "Elspeth Cheyne (porque me dava sempre o nome de solteira), não és filha daquele Reginald Cheyne que morreu para salvar o seu senhor, lorde Glenallan, no campo de batalha de Sheriff muir"? E eu respondi quase com tanto orgulho como ela: "Sou-o, tão realmente como a senhora é filha daquele conde de Glenallan, a quem meu pai salvou a vida nesse dia com a sua morte". Aqui Elspeth fez uma longa pausa.

- Que sucedeu em seguida? Continue, por amor de Deus, boa mulher; devo servir-me desta palavra? Mas não importa; mesmo que fosse culpada, ordeno-lhe que fale.

- Preocupar-me-ia pouco uma ordem terrestre respondeu Elspeth - se esta voz que me fala durante o sono e nas minhas vigílias me não forçasse a contar esta triste história. Pois bem, milorde, a condessa disse-me: "Meu filho ama Eveline Neville; eles estão de acordo, fizeram as suas juras; se tiverem um filho, perco os meus direitos sobre Glenallan e, então, desço do lugar de condessa ao de uma mísera doatária a quem se dá uma pensão. Eu, que trouxe a meu marido terras, vassalos, um sangue ilustre, uma fama antiga, devo deixar de ser a ama e senhora quando meu filho tiver um herdeiro varão? Mas não quero saber disso. Se ele desposasse outra que não fosse desses odiosos Neville, suportá-lo-ia com paciência. Mas, eles! Que sejam eles e os seus descendentes que desfrutem dos direitos e das honras de meus antepassados? Este pensamento entra no meu coração como um punhal de dois gumes. E essa rapariga, detesto-a! " Respondi-lhe então, porque as suas palavras inflamaram o meu coração, que o meu ódio era igual ao dela.

- Miserável! - exclamou o conde, apesar da sua resolução de guardar silêncio - Mulher miserável! Que motivos de ódio te poderia ter dado um ser tão inocente e tão doce?

- Eu odiava o que minha ama odiava, como o faziam os fieis vassalos da casa Glenallan; porque, milorde, embora eu tivesse contraído matrimónio abaixo da minha educação, nunca nenhum dos seus antepassados apareceu no campo de batalha sem que uma das avós da velha, inútil e mísera criatura que lhe fala neste momento, levasse o escudo diante dele. Mas isso não era tudo - continuou a anciã, cujas paixões terrestres e rancorosas se reacenderiam, consoante se acalorava na sua narrativa - Não era tudo; eu odiava Miss Neville por um motivo pessoal. Tinha-a trazido de Inglaterra e, durante toda a viagem, ela fez troça do meu trajo escocês e arremedou a minha pronúncia, como o faziam as suas amigas e as suas camaradas do Sul no pensionato onde se educaram. Por estranho que isto possa parecer, ela falava de uma ofensa que uma pensionista alegre lhe fizera sem intenção, com um grau de ressentimento que nem um insulto mortal, após tão longo intervalo de tempo, teria justificado nem mesmo excitado num espírito sensato. Sim - ajuntou ela - desprezou-me e achincalhou-me. Mas os que troçam do tartan temem o dirk (1).

Deteve-se para prosseguir:

- Contudo, não nego que o meu ódio foi exagerado. Mas, voltando ao assunto, a condessa minha

ama continuou a dizer-me: "Elspeth, aquele filho rebelde quer aliar-se ao pérfido sangue inglês. Se estivéssemos nos dias de outrora, poderia lançá-la na

 

(1) Ditado escocês formado com as palavras Tartan (tecido de que se fazem as capas escocesas) e dirk (punhal). - N. do T.

 

prisão de Glenallan e reter o meu filho cativo no torreão de Strathbonnel. Mas esse tempo passou, e a autoridade que deviam exercer os nobres do país foi delegada em míseros chicaneiros e seus vis subordinados. Escuta, Elspeth Cheyne: como tu és realmente tão filha de teu pai como eu sou do meu, hei"-de encontrar meio de os impedir de se casarem. Ela passeia muitas vezes por este rochedo suspenso sobre a vossa moradia, a fim de contemplar o barco do amante (lembra-se, milorde, de quanto gostava de navegar? ; que ele a encontre quarenta pés mais abaixo do que imagina". Sim, o senhor pode tremer, franzir o sobrolho e juntar as mãos; tão verdade como eu devo um dia comparecer perante o único ser que sempre temi... ai, porque não o temi mais ainda? tais foram as palavras de sua mãe. Para que serviria mentir-lhe? Eu não anuí em manchar as minhas mãos de sangue. Então, ela disse-me: "Segundo a religião da nossa santa Igreja, eles são demasiado próximos parentes para se poderem unir; mas calculo que ambos se tornarão hereges, como já são rebeldes e réprobos". Então, por instigação do espírito maligno, que se compraz principalmente em actuar sobre espíritos como o meu, cuja subtileza e orgulho estavam para além da minha condição, então, dizia eu, quis a fatalidade que eu ajuntasse: "Mas poder-se-ia achar meio de os persuadir de que existe entre eles um grau de parentesco que faz com que toda a lei cristã proíba o seu casamento".

Aqui, o conde de Glenallan repetiu estas últimas palavras com um grito tão agudo que o tecto da choupana estremeceu.

- Ah, meu Deus! Eveline Neville não era, pois. a... a...

- A filha de seu pai, quer o senhor dizer? - continuou Elspeth-Não. Quer seja para si um tormento ou uma consolação, fique sabendo a verdade: ela era tanto filha de seu pai como eu o sou.

- Mulher, não me enganes, não me faças amaldiçoar a memória daquela mãe que recentemente depus no túmulo, demonstrando-me que ela participou da mais cruel, da mais infernal conjura.

- Pense bem, lorde Geraldin: antes de amaldiçoar a memória de uma mãe que já não é deste mundo, não existe ainda alguém do sangue de Glenallan cujas faltas conduziram a essa catástrofe terrível?

- Refere-se a meu irmão? - perguntou o conde Mas ele morreu também.

- Não - replicou a velha - refiro-me a si próprio, lorde Geraldin; não faltou à submissão de um filho, desposando secretamente Eveline Neville durante a sua residência em Knockwinnock? A nossa conjura bem podia separá-los durante algum tempo; mas o remorso, pelo menos, não teria azedado a vossa dor: foi o vosso próprio procedimento que envenenou o dardo que nós lhe arremessámos, e que os trespassou com tanta mais força quanto se precipitaram ao seu encontro. Se o vosso casamento tivesse sido um acto público e reconhecido, não teríamos tido então nem poder nem vontade de inventar um tal estratagema para vos criar um obstáculo que, na vossa situação, teríamos encarado como intransponível.

- Meu Deus! -exclamou o desditoso lorde - Parecer-me que o véu que vendava os meus olhos acaba de se rasgar. Sim, compreendo agora essas consolações confusas proferidas por minha infeliz mãe e que tendiam a contradizer a evidência dos horrores com os quais, por seus artifícios, conseguira persuadir-me de que eu era culpado.

- Ela não podia falar mais claramente - respondeu Elspeth - sem confessar a sua própria falta, e ela gostaria mais de deixar-se despedaçar por cavalos furiosos do que revelar o que fizera; e se ainda fosse viva, eu faria outro tanto por amor dela. Eram corações intrépidos os da raça de Glenallan, homens e mulheres; e assim eram todos aqueles que, em tempos de outrora, repetiam o grito da sua contra-senha de clochnaben. Eram inabaláveis; nenhum homem teria abandonado o seu chefe, com ou sem razão, por amor do

ouro ou por uma sedução qualquer. Os tempos

estão bem mudados, segundo oiço dizer agora.

 

O infeliz conde estava demasiado absorto em reflexões capazes de lhe perturbarem a razão, para notar as expressões desta fidelidade feroz em que, mesmo no último período da sua vida, a desditosa autora da sua própria miséria parecia encontrar constantemente uma fonte de sombrias consolações.

- Deus poderoso! - exclamou ele - Estou, pois, isento do crime mais horrível que pode manchar um homem, e cujo sentimento, por muito involuntário que esse crime fosse, destruiu o meu repouso, arruinou a minha saúde, e curvou-me para o túmulo antes de tempo'. Santo Deus! - ajuntou ele com fervor, erguendo os olhos ao céu - aceita as minhas humildes acções de graças. Se vivi desventurado, pelo menos não inrcorri nesse ultraje contra a natureza. E tu continua, se tiveres ainda alguma coisa a dizer; continua, enquanto te restar força para falar, e a mim para te ouvir.

- Sim - replicou a velha - o tempo que nos resta, a si para ouvir e a mim para falar, decorre com efeito rapidamente: a morte imprimiu o seu selo na sua fronte e eu sinto, dia a dia, que o seu sopro gela cada vez mais o meu coração. Portanto, não me interrompa mais com gemidos e exclamações, mas escute a minha narrativa até o fim. Se é como um verdadeiro lorde Glenallan, semelhante àqueles de quem se falava no meu tempo, ordene à sua gente que ajunte espinheiros, mato e azevinho, faça um molho mais alto do que o tecto da casa, e queime, queime a velha bruxa Elspeth, e tudo o que lhe possa lembrar tal criatura que alguma vez rastejou na superfície da terra.

- Continue - disse o conde - continue, não a interrompo mais.

Falou numa voz meio sufocada e no entanto resoluta, decidido a que nenhuma irritabilidade da sua parte o privasse da ocasião de adquirir provas da estranha história que ouvia. Mas Elspeth estava exausta por uma narração contínua de tal extensão; os pormenores subsequentes da sua história foram interrompidos, e, embora muito inteligíveis na maior parte, já não tinham aquela clareza e aquela concisão que caracterizaram o início de uma maneira tão espantosa. Depois de ter tentado em vão, por várias vezes, retomar o seguimento, lorde Glenallan viu que era necessário ajudar-lhe a memória perguntando-lhe que provas podia ela dar da verdade de uma narrativa tão difrente da que ela fizera na origem.

- As provas - replicou ela -do real nascimento de Eveline Neville estavam nas mãos da condessa com os motivos por que se conservaram por algum tempo secretas, hão-de encontrá-las, se ela não as destruiu na gaveta da esquerda do armário de ébano que está no seu quarto de vestir. A sua intenção fora suprimi-las até que o senhor partisse em viagem; então, contava ela, antes do seu regresso, enviar Miss Neville para o seu país, ou dispor dela, casando-a.

- Mas não me mostrou as cartas de meu pai que me pareceram, a não ser que os meus sentidos estivessem alterados nesse horrível momento, confessarem o laço que o unia a essa desventurada?

- É verdade; e, com o meu testemunho, nem o senhor nem ela puderam duvidar do facto; mas nós suprimimos a verdadeira explicação dessas cartas, que era que seu pai julgava conveniente que a jovem passasse por sua filha durante algum tempo, por motins de família que então existiam.

- Mas por que razão, quando soube da nossa união, persistiram nesse horrível artifício?

- Não foi-replicou ela -senão depois da comunicação dessa suposta história que lady Glenallan suspeitou de que estavam realmente casados, e mesmo assim o senhor não o confessou ao ponto de a convencer de que a cerimónia realmente se celebrara. Mas o senhor recorda-se, ou não pode deixar de recordar-se, do que se passou nessa terrível entrevista!

- Mulher, juraste sobre os Evangelhos a verdade dos factos que desmentes agora.

- Assim o fiz, e seria perjura de um juramento ainda mais solene se porventura existisse. Não teria poupado nem o sangue do meu corpo nem a salvação da minha alma para servir a casa Glenallan.

- Miserável! Chamas a esse perjúrio horrível, seguido de um resultado mais horrível ainda, um serviço à família dos teus benfeitores?

- Eu servi aquela que era então o chefe da casa Glenallan, da maneira que ela me ordenou: é responsável perante Deus e $ sua consciência pelos motivos Que teve para proceder assim, e eu também o sou Pela maneira como lhe obedeci. Ela já foi prestar as suas contas e eu não tardarei em segui-la. Ter-lhe-ei dito tudo?

- Não - respondeu lorde Glenallan - não me disse tudo: falta-lhe falar-me da morte daquele anjo que o seu perjúrio impeliu para o desespero, considerando-se manchada por um crime tão horrível. Diga a verdade: aquele acidente terrível - mal pôde articular estas palavras - passou-se como se contou, ou foi nova obra de uma crueldade ainda mais atroz da parte dos outros

- Compreendo-o - disse Elspeth - mas o relato foi verdadeiro. É demasiado verdade que o nosso falso testemunho foi a causa, mas aquele acto foi fruto do seu desespero. No dia dessa comunicação terrível, quando o senhor se precipitou para fora de casa da condessa e, selando o seu cavalo, desapareceu como um relâmpago, a condessa ainda não descobrira o casamento secreto. Ignorava que essa união, que ela procurava quebrar forjando aquela história fatal, estivesse realmente consumada. O senhor fugiu do castelo como se o fogo do céu ali fosse cair, e Miss Neville, cuja razão estava quase alterada, foi posta sob boa guarda; mas a guardiã adormeceu e a prisioneira velava; a janela estava aberta, a ocasião propícia; de um lado o rochedo e do outro o mar... Oh, quando me abandonará essa recordação?

- E morreu assim, como me contaram?

- Não, milorde. Eu fora à baía; era a hora da maré, e, se bem me recordo, vinha molhar a base dessa rocha. Era uma grande vantagem para o negócio de meu marido... Mas para onde me desvio eu? Vi no alto do rochedo um objecto branco que parecia uma gaivota através da neblina; depressa, o repuxo das águas me mostrou que era uma criatura humana que caira nas ondas. Eu era forte, ousada e habituada ao mar; lancei-me, agarrei-a pelo vestido, e carreguei com ela aos ombros. Seria capaz de carregar duas como ela. Levei-a para a minha cabana e estendi-a sobre o meu leito. Vieram vizinhos trazer-me socorro; mas as palavras que pronunciava no seu delírio, eram tais que foi preciso mandá-los embora e enviar uma mensagem a Glenallan. A condessa mandou-me Teresa, a sua criada de quarto espanhola; se alguma vez houve sobre a terra um demónio com feições de mulher, foi ela. Ambas devíamos velar junto da desventurada não deixar aproximar ninguém. Só Deus sabe que parte Teresa teve nisto; mas o céu se encarregará da conclusão. A pobre dama sentiu as dores da maternidade antes do prazo, deu ao mundo um filho varão, e morreu nos braços da sua mortal inimiga.

Pode chorar; era uma bela e desditosa criatura. Mas julga que, se não a chorei então, a possa chorar hoje? Não, não. Deixei Teresa junto do corpo e da criança recém-nascida; e fui receber ordens da condessa sobre o que devia fazer: embora fosse muito tarde, acordei-a, e ela deu ordem para chamar seu irmão.

- Meu irmão!

- Sim, milorde, o seu irmão, a quem, segundo dizem certas pessoas, ela sempre desejava fazer seu herdeiro; de qualquer modo, ele era o mais interessado na sucessão de Glenallan.

- É então possível que meu irmão, impelido pela avidez de se apoderar da minha herança, se prestasse a um estratagema tão cruel e tão baixo?

- Sua mãe acreditou-o - disse a velha, com um sorriso infernal - Não fui eu quem imaginou isto; mas não contarei o que se passou entre eles, porque não fui testemunha. Tiveram uma longa conferência no aposento dos lambris negros, e sem dúvida muito agitada; porque, quando seu irmão atravessou a câmara onde eu esperava, pareceu-me, como muitas vezes o pensei depois, que o fogo do inferno ardia nas suas faces e nos seus olhos. Ela entrou no aposento como uma mulher em demência, e as primeiras palavras que disse, foram: "Elspeth Cheyne, tu nunca arrancaste um botão de flor recentemente desabrochada? " "Algumas vezes", respondi eu, sem a compreender. "Então, disse ela, saberás destruir melhor o rebento herético e bastardo, cujo nascimento acaba de desonrar, esta noite, a ilustre casa de meu pai. Olha, disse-me ela, apresentando-me uma agulha de ouro, só o ouro deve derramar o sangue de um Glenallan. Essa criança já está contada entre os mortos, visto que só Teresa e tu conhecem a sua existência; disponham dela de maneira que não tenham de responder senão a mim" Após estas palavras, afastou-se com fúria, e deixou-me da agulha na mão. Ei-la: com o anel de Miss Neville, e tudo o que me ficou de tantos bens tão mal adquindos; porque os bens não me faltaram depois disso; e Se guardei tão bem o segredo, não foi, porém, por causa do seu ouro e dos seus presentes.

A sua mão seca e descarnada estendeu a lorde Glenallan uma agulha de ouro, que ele imaginou ver a gotejar sangue do seu filho.

- Miserável, tiveste coragem?

- Não sei se a teria ou não... Voltei para a minha choupana sem sentir a terra que os meus pés pisavam; mas Teresa e a criança não estavam lá, tudo o que era vivo desaparecera, nada mais restava senão o corpo morto.

- E nunca soubeste da sorte de meu filho?

- Não posso senão adivinhá-lo. Já lhe disse quais eram as intenções de sua mãe. Teresa era um demónio. Não a tornaram mais a ver na Escócia, e soube que ela voltara para o seu país. Um véu espesso cobriu o passado, e o pequeno número de pessoas que souberam alguma coisa, não puderam conjecturar senão vagamente uma sedução e um suicídio. Mesmo o senhor

- Eu sei... sei tudo o que se seguiu - disse o conde.

- com efeito, o senhor sabe tudo o que eu tinha a dizer... E agora, herdeiro de Glenallan, pode perdoar-me?

- Peça o seu perdão a Deus e não aos homens respondeu o conde, afastando-se.

- E como pedirei eu a um ser perfeito e sem mancha o que me é negado por um pecador como eu? Tive eu um só dia de paz, uma hora mesmo de calma, desde que essas longas tranças de cabelos encharcados de água salgada repousaram no meu travesseiro em Craigburnfoot?... Não ardeu a minha casa com o meu filho no berço? Não naufragaram os meus barcos, enquanto todos os outros resistiam aos ventos?... Os que me pertenciam e me eram queridos não participaram do castigo do meu crime?... Oh!

- ajuntou ela, com um prolongado gemido e erguendo primeiro os olhos ao céu e baixando-os depois ao chão

- Porque não se junta a terra também para aquela que há tanto tempo tarda em reunir-se-lhe!

Lorde Glenallan chegara à porta da choupana; mas a generosidade do seu carácter não lhe permitiu abandonar aquela infeliz mulher àquele estado de reprovação e de desespero.

- Possa Deus, mísera mulher - disse ele - perdoar-te tão sinceramente como eu o faço! Volve-te para o lado do único que pode fazer-te graça, e possam as tuas preces ser ouvidas, como se fossem as minhas... Enviar-te-ei um eclesiástico.

- Não, um padre, não! Um padre, não! - exclamou ela; e a porta da choupana, abrindo-se quando ela falava, impediu-a de continuar.

 

Os nervos hirtos e gelados daquela mão sem vida ainda têm uma certa relação com o coração palpitante de seu pai, tal como o membro que se decepou e sepultou na terra dizem que conserva uma misteriosa comunicação com o tronco mutilado a que pertenceu, e cujos músculos ainda se agitam na sua incompleta existência.

Comédia Antiga

 

O Antiquário, conforme informámos o leitor no fim do trigésimo primeiro capítulo, desembaraçara-se da companhia do digno Mr. Blattergowl, apesar deste lhe ter prometido regalá-lo com o melhor discurso que ele teria ouvido alguma vez sobre o tribunal dos dízimos pelo advogado incumbido de defender os interesses da Igreja no processo memorável da paróquia de Gatherem. Mas o nosso velho gentleman, resistindo a essa tentação, preferiu tomar, sozinho, por uma senda afastada que o conduziu à choupana de Mucklebackit. Quando chegou diante desta, viu um homem ocupado a trabalhar, e que parecia consertar um barco muito estragado, varado na praia; aproximou-se dele e ficou surpreendido ao ver que era Mucklebackit.

- Estou muito satisfeito - disse ele, com interesse - muito satisfeito, Saunders, porque se sinta capaz de fazer esse esforço.

- E que quer o senhor que eu faça - respondeu bruscamente o pescador - a não ser que queira ver morrer de fome quatro filhos, porque tinha um que se afogou? Ficar em casa com o lenço nos olhos, quando se perde um parente, é bom para os gentlemen; mas as pessoas como nós precisam de se atirar logo ao trabalho, mesmo que as pulsações do coração sejam tão violentas como marteladas.

Sem se preocupar mais com Oldbuck, continuou o trabalho, e o Antiquário, que se comprazia em observar a natureza sob a influência mais própria para a agitar, manteve-se junto dele, atento e silencioso, como se seguisse os progressos da obra. Notou por mais de uma vez nas feições rudes deste homem um movimento provocado pela força do hábito, como se ele se preparasse para acompanhar o ruído da serra e do martelo com uma canção popular que costumava cantar ou assobiar; mas, antes de que o som se lhe escapasse, via-se, pelo movimento dos lábios e do peito, que a causa que o impedia de continuar acudia de súbito à sua mente. Por fim, depois de ter remendado uma abertura considerável, e prestes a tapar outra, as suas sensações pareceram não lhe permitir mais a faculdade de dar ao trabalho o grau de atenção que pedia. O bocado de madeira que devia pregar ficou primeiro muito comprido; depois serrou-o demasiado curto e, por fim, escolheu outro que não servia melhor. Por último, atirando-o fora com irritação e limpando com mão trêmula os olhos turvos de lágrimas, disse:

- Há uma maldição contra mim ou contra este velho barco, que arranjei e manobrei, em terra e no mar, e que consertei e preguei durante tantos anos para acabar por afogar o meu pobre Steenie! Que vá para o diabo!

Arremessou o martelo contra o barco, como se fosse a causa voluntária da sua desventura. Depois, caindo em si, ajuntou:

- Porque hei-de detestar este barco que não tem alma nem razão? Ai, eu próprio não as tenho! Não passa de um conjunto de velhas pranchas apodrecidas, pregadas umas nas outras, e moídas pelo vento e pelo mar; e eu sou um pobre diabo batido pela tempestade no mar e em terra, ao ponto de me ter tornado quase tão insensível como ele. No entanto, precisa de ficar reparado para a maré de amanhã; é uma coisa de necessidade.

Assim falando, foi apanhar as suas ferramentas, e tentava recomeçar o trabalho, quando Oldbuck, pegando-lhe dum braço, com bondade, lhe disse:

- Vamos, vamos, Saunders, não deve trabalhar hoje; eu mando o carpinteiro Shavings consertar-lhe o barco e ele mete na minha conta esse dia de trabalho; o melhor também é não sair amanhã e ficar a consolar a sua família na aflição em que está. O meu jardineiro traz-lhe de Monkbarns legumes e farinha.

- Agradeço-lhe, Monkbarns - respondeu o pobre pescador - Eu sou um homem franco e grosseiro, que não sabe dizer belas frases. Talvez tivesse podido aprender com minha mãe, há muito tempo, maneiras mais polidas, mas nunca vi o que ela ganhou com o saber mais do que eu. No entanto, agradeço-lhe, repito. Sempre o achei bom e obsequioso com os vizinhos, embora se diga que o senhor é muito observador; e nesta época em que se quer revoltar os pobres contra os ricos, tenho dito muita vez que nenhum homem se atrevesse a tocar num só cabelo de Monkbarns, enquanto Steenie e eu tivéssemos força para mover um dedo; e Steenie dizia o mesmo. Vamos, Monkbarns, quando o senhor o conduziu ao túmulo, e mil graças lhe sejam prestadas pela honra que nos deu, o senhor viu cobrir de terra o corpo de um rapaz honesto que o estimava muito, apesar de tão-pouco saber dizer grandes frases.

Oldbuck, vencido na sua orgulhosa afectação de cinismo, não se importaria nada de ali se encontrar alguém para lhe citar as suas máximas favoritas de filósofo estóico. Grossas lágrimas caíam rapidamente dos seus olhos, enquanto exortava aquele pai, que de novo se enternecera ao recordar os sentimentos honestos e generosos de seu filho, a não se abandonar a um desgosto inútil, e o conduzia pelo braço à sua humilde habitação, onde uma nova cena esperava o nosso Antiquário. A primeira pessoa que avistou, ao entrar, foi lorde Glenallan.

Os seus rostos expressaram mútua surpresa quando se cumprimentaram um ao outro, Oldbuck com fria reserva, o conde com algum embaraço.

- É milorde Glenallan, creio eu - disse Oldbuck.

- O próprio, embora muito mudado desde o tempo em que o conheceu, Mr. Oldbuck.

- Não era minha intenção - disse o Antiquário incomodar Vossa Senhoria; vinha somente ver esta infeliz família.

- E encontrou alguém, senhor, que ainda tem mais direito à sua compaixão.

- À minha compaixão? Lorde Glenallan não pode ter necessidade da minha compaixão; e se isso fosse possível, nem sequer penso que ma pedisse.

- As nossas relações anteriores... - disse o conde.

- São de uma data tão antiga, tiveram uma duração tão curta, e foram acompanhadas de circunstâncias de uma natureza tão dolorosa, que podemos, creio eu, dispensar-nos de as renovar.

Assim falando, o Antiquário voltou as costas e saiu da cabana, mas lorde Glenallan seguiuo; e, sem se deixar repelir por um bomdia muito breve, pediu-Lhe que lhe concedesse uns momentos de conversação e o socorro dos seus conselhos num assunto muito importante.

- Vossa Senhoria encontrará pessoas mais capazes do que eu de o aconselharem, milorde, e que tomarão como uma honra que as consulte. Quanto a mim, sou um homem retirado de negócios e do mundo, e não me preocupo com o que pode trazer-me à memória os acontecimentos passados da minha vida inútil. E perdoe-me ajuntar que é com particular sentimento de mágoa que recordo essa época em que procedi como um insensato, e Vossa Senhoria como...

Deteve-se de chofre.

- Como um celerado, desejaria o senhor dizer? Porque assim lhe devo ter parecido.

- Milorde, milorde. não tenho prazer algum em ouvir a sua confissão - disse o Antiquário.

- Mas, senhor, se eu puder provar-lhe que sou tão vítima como culpado, que fui mais infeliz do que nenhum termo o pode definir e que, ainda neste momento, um túmulo é o único lugar de repouso que eu posso antever, o senhor já não recusará a confidencia que, considerando a sua presença neste instante crítico com um sinal do céu, insisto em suplicar-lhe que receba.

- com certeza que, milorde, depois dessas palavras, não me recusarei mais a evitar essa extraordinária entrevista.

- Devo, porém, recordar as circunstâncias em que nos encontrámos, há mais de vinte anos, no castelo de Knockwinnock. e não tenho necessidade de lembrar-lhe uma jovem lady que estava então junto dessa família.

- A desditosa Miss Neville, milorde? Não a esqueci. Ela inspirava-me sentimentos muito diferentes daqueles que sempre experimentei pelas do seu sexo. A sua brandura, a sua docilidade, o prazer que ela sentia pelos estudos que eu lhe indicava, ligaram-me a ela mais do que convinha à minha idade, que, no tanto, ainda não era então muito avançada, e à gravidade do meu carácter. Mas eu não tenho necessidade de recordar a Vossa Senhoria de que maneira se divertiu à custa do sábio desastrado que, habituado ao estudo e ao recolhimento, veio cobrir-se de ridículo pelo embaraço que sentia em exprimir sentimentos que eram tão novos para ele. Não duvido de que a jovem tomasse parte nestas troças: é assim que procedem todas as mulheres. Expliquei-me sobre o que se refere aos votos que formulei então, e à maneira como foram repelidos, a fim de convencer Vossa Senhoria de que todas essas circunstâncias estão bem presentes na minha memória, e para que possa empreender a sua narrativa sem que o detenha, no que se me refere qualquer vão escrúpulo de delicadeza.

- Assim farei - anuiu lorde Glenallan - Mas, primeiro, permita-me que lhe diga que comete uma injustiça para com a memória dessa que foi a mais meiga, a mais amável, como a mais desditosa das mulheres, ao supor que ela pudesse meter a ridículo a respeitável afeição de um homem como o senhor. Posso esperar agora que me perdoe a jovialidade trocista que tão justamente o ofendeu então? O estado do meu espírito nunca mais me colocou na necessidade de pedir desculpa dos dichotes inconsiderados de uma louca alegria.

- Milorde, perdoo-lhe de todo o coração - disse Oldbuck - e o senhor deve saber que eu ignorava então, assim como toda a gente, que estava em rivalidade com Vossa Senhoria. Eu supunha Miss Neville naquele estado de dependência em que devia parecer-Lhe preferível uma fortuna suficiente e a mão de um homem honesto. Desejaria que me fosse possível acreditar que todas as vistas que se dirigiram para ela tivessem sido tão respeitáveis como as minhas.

- Mr. Oldbuck julga com severidade.

- E não foi sem motivo, milorde, quando o único magistrado deste país que não tinha ligações com a sua poderosa família ou que não teve a cobardia de a temer; quando, dizia eu, fiz um inquérito sobre a maneira como Miss Neville morreu. Eu magoo, milorde, mas devo ser franco... Confesso que tive todas as razões possíveis para acreditar que se procedera com ela de uma maneira indigna, que ela fora ludibriada por um casamento fingido, ou que se tomaram as providências mais fortes para abafar e destruir as provas de uma união que tivesse sido real. De maneira alguma posso duvidar tão-pouco que essa crueldade de Vossa Senhoria, quer ela fosse efeito da sua própria vontade, quer influência da última condessa, impeliu a infeliz jovem lady ao acto de desespero com que terminou sua vida.

- As conclusões que o senhor foi induzido a formar não são justas, Mr. Oldbuck, embora pareçam resultar naturalmente das circunstâncias que lhes deram lugar. Acredite, nunca o estimei tanto como no momento em que mais receava as suas investigações sobre as infelicidades da nossa família. O senhor mostrou-se mais digno de Miss Neville do que eu, pela coragem com que persistiu em justificar a sua honra, mesmo depois da sua morte. Os seus esforços, por bem intencionados que eram, não podiam senão pôr a claro uma história demasiado horrível para ser conhecida, e só essa convicção me levou a secundar a minha infeliz mãe no seu projecto de fazer sumir todas as provas do casamento legítimo que se celebrara entre Eveline e eu. Mas, sentemo-nos neste banco, porque não me sinto em estado de permanecer de pé muito tempo, e tenha a bondade de escutar a descoberta extraordinária que fiz hoje.

Sentaram-se, pois, e lorde Glenallan contou resumidamente a sua fatal história, o seu casamento secreto, a horrível impostura com que sua mãe quisera tornar impossível uma união já consumada. Entrou no pormenor dos artifícios da condessa, que, tendo em suas mãos todos os documentos relativos ao nascimento de Miss Neville, não mostrara senão aqueles que se referiam a uma época em que, por razões de família, seu pai consentira em fazer passar a jovem por sua filha natural, e demonstrou a impossibilidade em quem se encontrava de descobrir a fraude que sua mãe imaginara e que fizera apoiar em juramentos solenes de suas duas criadas, a Elspeth e a Teresa.

- Abandonei o tecto paterno - disse ele, ao terminar-como um homem perseguido pelas fúrias do inferno. Viajei com uma rapidez frenética, sem um objectivo definido. Não me ficou a menor recordação do que fiz nem do lugar onde fui, até o momento em que fui descoberto por meu irmão. Não quero maçá-lo com a narrativa da minha doença e do meu restabelecimento; tão-pouco me deterei no momento em que, aventurando-me, muito tempo depois, a perguntar o que fora feito da desventurada que partilhara da infelicidade, soube que o seu desespero a levara a encontrar um remédio terrível para todos os males da vida. A primeira circunstância que me forçou a reflectir foi o boato que me chegou do inquérito que o senhor fazia sobre esse cruel assunto, e o senhor não se pode admirar de que, na convicção que me tinham dado, me tivesse juntado a minha mãe e a meu irmão nas providências que eles tomaram para deter as suas investigações. As informações que lhes dei sobre as circunstâncias e as testemunhas do nosso casamento secreto puseram-nos em situação de frustrar os esforços do seu zelo. O eclesiástico e as testemunhas, que não actuaram neste assunto senão para se tornarem agradáveis ao poderoso herdeiro de Glenallan, não podiam deixar de ser acessíveis às suas promessas e às suas ameaças, e manobraram-nos de tal maneira que eles não tiveram dificuldade em trocar este país por outro. Quanto a mim, Mr. Oldbuck - continuou o desditoso lorde - desde esse momento, não cessei de me considerar como irradiado do número dos vivos e como não tendo mais nada a fazer neste mundo.

"Minha mãe empregou todos os meios possíveis Para me reconciliar com a vida, mesmo por insinuações onde eu não posso ver agora senão a intenção de lançar dúvidas no meu espírito sobre a horrível história que ela forjara, meios que então me pareciam invenções engenhosas da ternura maternal. Mas coíbo-me de toda a censura; ela já não existe; e, como disse a sua mísera cúmplice, ela não sabia que o dardo estava envenenado e até que ponto devia mergulhar no meu coração, quando de início mo arremessou. Ah! Acredite, Mr. Oldbuck, se durante estes vinte anos algum ser digno da sua piedade se arrastou na face da terra sou eu esse desgraçado. Os meus alimentos não me alimentavam, o meu sono não me confortava, mesmo as minhas orações não me davam consolação! Tudo o que fortifica o homem e lhe é necessário se converteu para mim em veneno. As raras e curtas relações que era forçado a manter com os estranhos tornavam-se-me insuportáveis. Parecia-me que ostentava a mancha de um crime contra a natureza e de um género inexprimível, no meio de seres inocentes e felizes.

"Em outras ocasiões, abandonava-me a pensamentos muito diferentes: desejaria mergulhar nos perigos da guerra ou defrontar os perigos que oferecem as viagens nos climas bárbaros e remotos, embrenhar-me nas intrigas da política ou sepultar-me no austero recolhimento dos mosteiros da nossa religião. Todos estes projectos ocupavam alternadamente a minha imaginação, mas cada um exigia para o executar uma energia de que a minha alma já não era capaz, depois do golpe esmagador que a destroçara. Vegetei conforme pude no mesmo lugar, enquanto a imaginação, a sensibilidade, o raciocínio e a saúde declinavam gradualmente em mim, tal como degenera uma árvore cuja casca foi destruída; primeiro, caem os seus frutos, depois os ramos, até que por fim se torna semelhante a tronco mirrado e moribundo, que é o que o senhor tem neste momento diante de si. Concede-me agora piedade e perdão? "

- Milorde - respondeu o Antiquário, muito comovido - não tem que pedir a minha piedade, o meu perdão, porque a sua triste história explica não só tudo o que nesse tempo me pareceu misterioso e suspeito, mas também constitui uma narrativa capaz de arrancar aos seus mais crueis inimigos - e eu nunca pertenci a esse número - lágrimas de compaixão. Permita-me, porém, que lhe pergunte o que conta fazer e porque me honrou, a mim, cuja opinião tão pouca importância tem, com a sua confiança nesta ocasião.

- Mr. Oldbuck - respondeu o conde - como eu nunca poderia prever a natureza da confissão que me foi feita hoje, não tenho necessidade de lhe dizer que não concebera o projecto de o consultar, ao senhor ou a qualquer outro, sobre os acontecimentos de que eu nem sequer podia suspeitar; mas estou sem amigos, sem hábito de negócios e, devido ao meu longo recolhimento, igualmente ignorante das leis do país e dos usos da actual geração. Encontrando-me, pois, inopinadamente mergulhado nos assuntos que eu menos conhecia, escolhi, como um homem que se afoga, o primeiro apoio que encontrei. É o senhor esse apoio; Mr. Oldbuck; sempre ouvi citá-lo como homem cheio de sagacidade e de prudência, eu próprio o conheci como um espírito firme e independente, e há uma circunstância que de certo modo deve aproximar-nos: é o de ambos termos rendido a mesma homenagem às virtudes da desditosa Eveline. Foi o senhor que encontrei no momento necessário, o senhor que já conhecia as minhas desventuras; é ao senhor que eu peço consolação, conselho e socorro.

- Não os pedirá em vão, milorde - respondeu Oldbuck-pelo menos, até onde os meus fracos meios possam chegar, e sinto-me honrado pela preferência, que foi determinada pela escolha ou pelo acaso. Mas é um assunto que requer madura reflexão. Posso perguntar-lhe qual é neste momento o seu principal objectivo?

- Saber da sorte de meu filho - disse o conde Quaisquer que sejam as consequências, e prestar justiça a honra de Eveline, de quem não deixei suspeitar senão para evitar que ela fosse atingida pela mais horrível mancha, na qual me fizeram crer.

- E a memória de sua mãe?

- Suportará o peso - disse o conde, com um suspiro-Não valeria mais que ela confessasse uma imPostura, se isso fosse preciso, do que deixar uma acusação bem mais criminosa pesar sobre a cabeça de seres inocentes?

- Então, milorde, a nossa primeira diligência deve ser a de dar às declarações da velha Elspeth uma forma regular e autêntica.

- Receio - observou lorde Glenallan - que isso, neste momento seja impossível. Ela própria está exausta e, aliás, cercada por toda a família. Amanhã, talvez, quando estiver sozinha... E ainda duvido, segundo as noções imperfeitas que ela tem do bem e do mal, poder convencê-la a falar diante de outra testemunha que não seja eu. Eu próprio estou excessivamente fatigado.

- Então - disse o Antiquário, cujo interesse nesse momento o elevava acima daquelas considerações de despesa e de estorvo que tinham, em regra, bastante peso sobre ele - aconselho Vossa Senhoria, em lugar de regressar a Glenallan, tão fatigado como está, ou de o ver reduzido à pior alternativa de se ir meter numa ruim estalagem em Fairport, para despertar a atenção de todos os curiosos da cidade; eu proponho-lhe, dizia, tornar-se meu hóspede por esta noite, em Monkbarns. Amanhã, esta pobre gente terá retomado as ocupações habituais, porque o desgosto neles não dá para afrouxarem o trabalho, e poderemos ver a velha Elspeth sozinha, e reduzir a escrito as suas declarações.

Após algumas desculpas delicadas pelo estorvo que podia causar a sua visita, lorde Glenallan consentiu em acompanhar o Antiquário, e submeteu-se pacientemente, durante o caminho, a ouvir toda a história de John Girnel, que Mr. Oldbuck nunca perdoou a quem quer que cruzasse o limiar da sua porta.

A chegada de um estranho de tanta distinção com dois cavalos pela arreata e um criado, o qual trazia coldres de pistolas no arção da sua sela e uma coroa de conde por cima, provocou uma comoção geral em casa de Monkbarns. Jenny Rintherout, mal refeita dos ataques de nervos que sofrera ao saber da desgraça do pobre Steenie, caçava aqui e acolá os perus e as galinhas, gritando e guinchando mais forte do que eles, e acabou por matar metade a mais. Miss Griselda fez sérias reflexões sobre o erro de seu irmão que ocasionara tão grande razia, trazendo de repente um lorde papista. E arriscou-se a mandar transmitir a Mr. Blattergowl alguns informes sobre a extraordinária carnagem que se verificara na capoeira, o que trouxe o honesto eclesiástico para se informar de que forma decorrera o regresso de Monkbarns e como se encontrava depois dos funerais; e chegou no momento em que estava quase a soar a sineta para o jantar, de maneira que o Antiquário não pôde deixar de o convidar a ficar e abençoar a refeição. Miss Mac Intyre, por seu lado, não estava isenta de certa curiosidade de ver aquele poderoso conde, de quem toda a gente ouvira falar, tal como os súbditos de um califa do Oriente ouvem falar do seu senhor, e experimentou alguma timidez à ideia de se encontrar com uma personagem de modos insociáveis e de hábitos austeros, do qual se contavam tantas histórias que o seu receio igualava pelo menos a curiosidade. A velha despenseira não estava menos aturdida e perturbada com as ordens numerosas e contraditórias de sua ama relativamente às conservas, doces e frutas e à maneira de pôr a mesa e servir o jantar, à necessidade de evitar que o molho branco talhasse e ao perigo de deixar que Juno, apesar de banida do refeitório, assaltasse os postos avançados e pudesse entrar na cozinha.

O único habitante de Monkbarns que se quedara inteiramente indiferente nessa grande ocasião fora Heitor Mac Intyre, que tanto se preocupava com um conde como com um burguês, e que não se interessava por esta visita inesperada, a não ser que ela pudesse subtraí-lo ao descontentamento que o tio poderia experimentar por não o ter acompanhado aos funerais, e sobretudo às suas reflexões satíricas sobre o combate singular, heróico mas infeliz, com a foca ou lobo-marinho.

Oldbuck apresentou os diversos membros da família ao conde de Glenallan, que suportou com paciente delicadeza os pesados discursos do honesto clérigo e as longas desculpas de Miss Griselda Oldbuck, que seu irmão tentou em vão abreviar. Antes de jantar, o lorde pediu licença de se retirar um momento para o seu quarto. Oldbuck acompanhou o hóspede ao quarto verde que se preparara à pressa para o receber. Este percorreu-o com os olhos, num ar de tristeza, porque lhe despertava no espírito penosas recordações.

- Creio - observou, por fim - Creio, Mr. Oldbuck, que já me encontrei neste aposento.

- Sim, milorde - respondeu Oldbuck - por ocasião de uma excursão que se fez de Knockwinnock até aqui; e visto que tocámos num assunto tão triste, o senhor deve lembrar-se, talvez, qual foi a pessoa cujo gosto escolheu os versos de Chaucer que serve de divisa a esta tapeçaria.

- Adivinho-o, sem me lembrar - replicou o conde Ela levava-me vantagem no gosto e conhecimento que possuía de literatura, como em todas as vantagens que ela reunia, aliás; e é um dos decretos mais incompreensíveis da Providência que uma criatura tão perfeita pelas qualidades do espírito e do corpo fosse aniquilada de uma maneira tão miserável, em consequência da sua fatal afeição por um desgraçado como eu.

Mr. Oldbuck não tentou responder a esta efusão da dor que não cessava de torturar o coração do seu hóspede, mas apertou a mão de lorde Glenallan numa das suas e, passando a outra pelas espessas sobrancelhas, como que para afastar uma nuvem que lhe obscurecesse a vista, deixou ao conde liberdade de dispor de si próprio até ao jantar.

 

Em si, a vida aquece a imaginação e palpita em cada veia... é o licor crepitante servido a um alegre conviva e que lhe reanima o coração e lhe exalta o espírito. - mas a minha já não é mais do que um triste resíduo no copo, insípido e sem sabor, só manchando com a sua borra o vaso que o contém.

Comédia Antiga

 

- Ora veja, Mr. Blattergowl - disse Miss Griselda que espécie de homem é meu irmão, para prudente e sábio, trazer-nos este conde a casa, sem ter dito uma palavra a ninguém!... A desgraça sucedida aos Mucklebackit faz com que não possamos ter peixe... é demasiado tarde para mandar a Fairport buscar carne de vaca, e o carneiro foi abatido de fresco! Para cúmulo de infelicidade, essa maluquinha da Jenny Rintherout caiu em ataques de nervos, e não faz senão rir e chorar, há dois dias; de maneira que foi preciso pedirmos a esse criado estranho, que é tão grande e tão grave como o amo, para se manter ao bufete para servir. Eu tão-pouco posso ir à cozinha dar alguma ordem, porque o encontro sempre para cá e para lá, tratando de preparar algum acepipe para milorde, que, ao que parece, não come como toda a gente; e depois, de que maneira faremos jantar este criado estranho? Em verdade, Mr. Blattergowl, creio que a cabeça me anda à roda.

- É certo, Miss Griselda - replicou o ministro que Monkbarns procedeu sem reflectir... Ele devia ter escolhido um dia para este convite, como se faz com a aceitação de um titular nas transacções de avaliação e de venda. Mas essa grande personagem não podia cair subitamente em nenhuma casa da paróquia que estivesse melhor abastecida... Tenho de convir que o cheiro que se escapa da cozinha seduz agradàvelmente o meu olfacto... Se tem alguns afazeres, Miss Griselda, não me trate como um estranho; posso passar muito bem o meu tempo com a grande edição do Institutos de Erskine.

Apoderando-se então deste interessante in-fólio (comentários de Coke Escocês sobre Líttleton), abriu-o como por instinto no décimo título do livro segundo, e depressa mergulhou numa discussão obscura sobre os rendimentos temporais dos benefícios.

Serviu-se, enfim, a refeição acerca da qual Miss Oldbuck exprimira tantas inquietações, e o conde de Glenallan, desde a época da sua desdita, sentou-se pela primeira vez a uma mesa estranha, cercado de estranhos. Experimentava a sensação de um homem que sonha ou cuja cabeça ainda não se recompôs de uma poção excitante. Aliviado, como o fora essa manhã, da imagem daquele crime que aterrorizava havia tanto tempo a sua imaginação, o peso dos seus desgostos Parecia-lhe mais leve e mais suportável, mas ainda não estava em estado de se imiscuir na conversa que se sustentava em sua volta. Ela era, em verdade, de um género muito diferente daquela a que estava habituado. A brusquidão de Oldbuck, as fatigantes Apologias da irmã, o pesado pedantismo do eclesiástico e a vivacidade do jovem militar, que denunciava mais as maneiras do acampamento que as da corte, tudo era novo para um nobre lorde que vivera tantos anos no recolhimento mais triste e mais profundo, e ao qual os usos do mundo pareciam tão estranhos como importunos. Só Miss Mac Intyre, pela delicadeza e simplicidade naturais, parecia pertencer àquela classe da sociedade à qual fora acostumada em dias mais felizes e já tão distantes.

Não surpreendeu menos os convivas a maneira de ser de lorde Glenallan. Apesar de se ter servido um jantar simples, mas excelente (pois, como dizia Mr. Blattergowl, era impossível encontrar Miss Griselda desprevenida) e apesar do Antiquário gabar o seu melhor "Porto" e o comparasse ao falerno de Horácio, lorde Glenallan mostrou-se inacessível às seduções de um e de outro. O seu criado colocou diante dele um pequeno prato composto de diversos legumes, o mesmo cuja confecção tanto alarmara Miss Griselda, e que fora preparado com o cuidado e o asseio mais escrupulosos. Comeu mediocremente desse acepipe, e um copo de água pura recentemente tirada da fonte completou esse frugal repasto. Tal era o regime de Sua Senhoria, havia muitos anos, excepto em dias de grande festa da Igreja, em que se recebia no castelo de Glenallan pessoas de primeira sociedade. Nessas ocasiões, ele afrouxava um pouco a austeridade habitual e permitia-se um ou dois copos de vinho.

O nosso Antiquário era, como dissemos, um gentleman pelos sentimentos, mas brusco e pouco moderado nas expressões, devido ao hábito que tinha de viver com seres que não lhe inspiravam constrangimento algum. Censurou, pois, sem cerimónia o nobre lorde pela severidade do seu regime.

- Uns legumes meio frios e umas batatas com um copo de água gelada para os empurrar! A Antigüidade não nos oferece nenhum exemplo semelhante, milorde. Esta casa foi outrora um hospitium, um lugar de refúgio para os cristãos, mas o regime de Vossa Senhoria é o de um pitagórico do paganismo, ou de um brâmane indiano.

- O senhor sabe que eu sou católico - disse lorde Glenallan, esperando escapar a esta discussão - e não ignora que a nossa igreja...

- Tem por princípio recomendar várias regras severas de mortificação - acrescentou, imperturbável, o Antiquário - Mas nunca ouvi dizer que ela as pusesse tão rigorosamente em prática, como testemunha o meu predecessor, John de Girnel, o jovial abade que deu o seu nome a esta maçã, milorde.

E descascando o fruto apesar dos "então, Monk-barns!" de sua irmã e da prolongada tosse do ministro acompanhada do estremecimento da sua enorme peruca, o Antiquário começou a contar a intriga que dera origem à reputação das maçãs do abade, com mais minúcia e jovialidade do que a necessária. Mas o gracejo, como facilmente se depreende, falhou o objectivo, porque esta anedota de galantaria monástica não pôde provocar o menor sorriso no rosto do conde. Oldbuck retomou em seguida o tema de Ossian Mac-i pherson e Mac Cribb; mas lorde Glenallan achava-se tão pouco ao corrente da literatura moderna que nunca ouvira falar de nenhum dos três. A conversação estava, pois, em perigo de esmorecer ou de cair nas mãos de Mr. Blattergowl, que acabava de pronunciar as palavras temíveis do livro de impostos, quando se citou a revolução francesa, acontecimento que lorde Glenallan encarava com toda a reserva e horror de um católico ferrenho e de um aristocrata zeloso. Oldbuck estava longe de reprovar tão excessivamente os princípios.

- Houve muitos homens na primeira assembleia constituinte - disse ele - que tinham princípios de oposição bastante razoáveis, e cuja intenção era estabelecer uma constituição que concedesse ao povo uma liberdade prudente. Se agora um grupo de insensatos furiosos se apoderou do governo, não é senão um acontecimento comum a todas as revoluções, em que as providências extremas se tomaram na violência do momento, e em que o Estado se assemelha a um pêndulo perturbado, que se agita por algum tempo em todos os sentidos até retomar o balanço habitual. Poder-se-ia comparar ainda a um turbilhão tempestuoso que causa grandes estragos nas regiões que atravessa, e que no entanto leva os vapores insalubres e estagnados que lá se encontravam e repara, pela salubridade e pela abundância que se lhe seguem, os estragos e os desastres que assinalaram a sua passagem.

O conde meneou a cabeça; mas, não tendo desejo, nem força para manter a discussão, deixou passar o raciocínio sem o combater.

Esta discussão deu ensejo ao jovem militar de Mostrar que já tinha experiência de guerra; falou das acções em que se encontrara, com modéstia, mas ao mesmo tempo com um entusiasmo de coragem e de zelo que encantou o conde, educado, como todos os da sua casa, na opinião de que o ofício das armas era o primeiro dever do homem, e que pensava que voltá-las nesse momento contra os franceses era uma espécie de cruzada santa.

- Que pão daria eu-disse o conde, à parte, a Oldbuck, quando se levantaram para se reunirem às damas - que não daria eu para ter um filho cheio de ardor e de coragem como este jovem! As suas maneiras não estão ainda formadas; falta-lhe um pouco aquela prática do mundo que o contacto da boa sociedade depressa lhe daria. Mas, com que zelo e ardor ele se se exprime! Como ama a sua profissão! Que calor revela ao louvar os outros! E com que modéstia fala dele próprio!

- Heitor está muito grato à sua indulgência respondeu o tio, com uma satisfação que não ia, porém, até dissimular o sentimento que tinha da sua superioridade intelectual sobre o jovem militar - Creio, sob minha palavra de honra, que nunca alguém disse dele metade do bem que o senhor disse, excepto talvez o sargento da sua Companhia quando quer adular algum recruta escocês; é, no entanto, um valente rapaz, embora não seja inteiramente o herói que Vossa Senhoria vê nele, e a bondade do seu carácter parece-me mais digna de louvores do que a sua vivacidade. De facto, este ardor que o caracteriza é uma espécie de veemência que faz parte da sua constituição, que o acompanha em todas as acções e muitas vezes não deixa de estar a cargo dos seus amigos. Vi-o hoje medir-se corpo a corpo com uma foca ou lobo-marinho (a nossa gente, ao pronunciar este nome no seu dialecto, conserva a gutural gótica); pois bem, empenhou-se com tanto ardor nisso como se combatesse contra Dumourier. Palavra, milorde, a foca levou vantagem, como o próprio Du mourier pôde dizer que a tivera sobre certas pessoas. Ele falar-lhe-á quase com tanto entusiasmo das qualidades de uma cadela de caça como de um plano de campanha.

- Visto que ele gosta tanto da caça - disse o conde - dar-lhe-ei plena liberdade de se entregar a esse exercício nas minhas terras.

- Vai afeiçoá-lo a si, milorde, para a vida e para a morte; permitir-lhe descarregar a espingarda sobre um pobre bando de perdizes ou de galos bravos é o suficiente para o conquistar em corpo e alma. Vou encantá-lo com essa notícia. Ah, milorde, se o senhor tivesse conhecido o meu amigo Lovel, o meu fénix; é o modelo e o herói dos jovens do século, e cheio de coragem, também. Asseguro-lhe que deu uma boa lição ao meu petulante sobrinho ad quid pro quo, e mostrou-lhe um Rolando por um Olivério, segundo o ditado vulgar que faz alusão aos dois célebres paladinos de Carlos Magno.

Depois do café, lorde Glenallan pediu uma entrevista particular ao Antiquário, e foi introduzido na sua biblioteca.

- Desculpe - disse ele - arrancá-lo à sua amável família para o fazer partilhar das perplexidades de um desventurado. O senhor conhece o mundo do qual estou exilado há tanto tempo, visto que o castelo de Glenallan era para mim menos uma moradia do que uma prisão, da qual, porém, não tinha decisão nem força para me escapar.

- Permita que primeiro pergunte a Vossa Senhoria quais são os seus desejos e os seus projectos neste assunto.

- O meu voto mais ardente - respondeu lorde Glenallan - é tornar pública a minha desditosa união e reparar o ultraje feito à honra da infeliz Eveline, se acaso o senhor julgar que haja possibilidade de o fazer sem divulgar o procedimento de minha mãe.

- Siium cuique tribuito (1) - disse o Antiquário - Faça-se justiça a cada um. A memória dessa jovem e desditosa lady sofreu demasiado tempo, e creio que ela poderia ser justificada sem sobrecarregar a de sua mãe, dando-se a entender ao mundo que ela se opusera encarniçadamente ao matrimónio. Desculpe-me, milorde, mas todos os que ouviram falar da condessa de Glenallan aceitarão isso sem muita surpresa.

- Mas o senhor esquece uma circunstância terrível... -

disse o conde, em voz agitada.

- Qual? - indagou o Antiquário.

- A sorte da criança, a sua desaparição com a

 

(1) Dá a cada um o que lhe pertence. - N. do T.

 

mulher de confiança de minha mãe, e as horríveis conjecturas que se devem formar segundo a conversa que tive com Elspeth.

- Se quer que lhe dê francamente a minha opinião- disse Oldbuck - e se o senhor não a receber com demasiada avidez como motivo de esperança, dir-lhe-ei que acho muito possível que o seu filho exista; porque cheguei a certificar-me pelas investigações que fiz sobre o acontecimento dessa terrível noite, que uma mulher e uma criança foram essa mesma noite levadas da choupana de Craigburnfoot, numa carruagem atrelada a quatro cavalos, por seu irmão Eduardo Geraldin Neville, cujo rastro segui durante alguns postos pela estrada de Inglaterra, com seus companheiros de viagem. Julguei ao tempo que um dos projectos dessa conjura de família era levar uma criança que o senhor quisesse manter na ilegitimidade, para fora de um país onde o acaso poderia proporcionar-lhe protectores e provas dos seus direitos. Mas a minha opinião, agora, é que seu irmão, tendo motivos para acreditar, como o senhor, que a criança estava maculada pela mais indelével vergonha, subtraira-a, em parte, por causa do risco que poderia correr na vizinhança de lady Glenallan.

Enquanto ele falava, o conde tornara-se extremamente pálido; parecia quase cair da sua cadeira; o Antiquário, alarmado, correu aqui e acolá em busca de remédios, mas seu museu, apesar de repleto de um assaz grande número de artigos inúteis, não continha nada que fosse bom para qualquer coisa nessa ocasião, ou mesmo noutras. Correndo para ir pedir os sais de sua irmã, não pôde coibir-se de se deixar empolgar pelo seu carácter e soltar magoados murmúrios e expressões de espanto acerca dos diversos acidentes que converteram a sua casa, primeiro numa espécie de hospital para um duelista ferido e que a faziam agora servir de asilo a um moribundo par do reino.

"No entanto - dizia com seus botões - sempre me mantive afastado dos militares e dos pares. Já não falta ao meu coenobitium senão transformar-se num hospício de parturientes, e as suas metamorfoses ficarão completas"."

Quando regressou com o remédio, lorde Glenallan já estava muito melhor. A claridade súbita e inesperada que Oldbuck lançara sobre a triste história de sua família causara-lhe uma comoção acima das suas forças.

- Mr. Oldbuck pensa, então, porque está apto a pensar, e eu não o estou; o senhor pensa então que é possível, ou seja, que não é impossível que o meu filho esteja vivo?

- Creio - disse o Antiquário - que a sua vida não pôde correr nenhum risco nas mãos de seu irmão. Ele era conhecido por gostar da dissipação e dos prazeres, mas não como um homem cruel ou capaz de uma acção desonrosa; e se ele tivesse intenções criminosas, não se teria adiantado para se encarregar dessa criança como vou provar a Vossa Senhoria que o fez.

Ao falar assim, Oldbuck abriu uma gaveta do antigo armário de seu avô Aldobrand e tirou um pacote de papéis atado com uma fita negra e com esta etiqueta: Interrogatório feito por Jonathan Oldbuck, J. P. em 18 de Fevereiro de 37... Um pouco acima estava escrito em pequenos caracteres: Eheu Evelina! As lágrimas corriam abundantes dos olhos do conde quando tentava desatar o nó que segurava os papéis.

- Vossa Senhoria - disse Oldbuck - andará melhor em não ler esses papéis agora: fatigado como está, e com o que nos resta fazer, não deve esgotar as suas forças. A herança de seu irmão pertence-lhe agora, presumo eu, e ser-lhe-á fácil fazer investigações entre os seus criados e pessoas da casa, para descobrir seu filho, se por felicidade ainda for vivo.

- Mal me atrevo a ter esperança - respondeu o conde, com um profundo suspiro - Por que motivo meu irmão mo teria ocultado?

- Como, pelo contrário, milorde, queria o senhor que ele lhe revelasse a existência de um ser que o senhor supunha fruto de...

- É bem verdade; aí está um motivo palpável para explicar um silêncio que a própria humanidade prescrevia; porque se alguma coisa pudesse aumentar o horror desse pensamento atroz que envenenava a minha existência, seria certamente saber que esse filho de miséria existia.

- Então - prosseguiu o Antiquário - como não se pode concluir, por simples presunção, que fosse destruído na infância, deve admitir-se que existe ainda, após um lapso de mais de vinte anos, e confesso que o aconselho a começar imediatamente as suas pesquisas.

- Vou ocupar-me disso - respondeu lorde Glenallan, agarrando avidamente a esperança que se lhe oferecia, e a primeira que o reanimava após tantos anos - vou escrever a um fiel amigo, que foi intendente de meu sobrinho e desempenha esse cargo junto de meu irmão Neville. Mas, o senhor engana-se, Mr. Oldbuck, eu não sou herdeiro de meu irmão.

- Sim? Lamento, milorde. Ele tinha uma bela propriedade, e só as ruínas do velho castelo de Neville, que ostentam os mais magníficos despojos de arquitectura anglo-normanda que existem nesta parte do país, são uma propriedade digna de inveja. Creio que seu pai não tinha outro filho, nem mesmo parente próximo.

- Isso é verdade - replicou lorde Glenallan - mas meu irmão adoptara princípios políticos, assim como uma forma de religião, estranhos aos que sempre distinguiram a nossa casa. Os nossos caracteres sempre divergiram, e minha infeliz mãe não encontrou nele a submissão que exigia. Em suma, houve uma questão de família, e meu irmão, que podia dispor livremente de seus bens, aproveitou a liberdade que tinha de escolher um herdeiro fora da casa, É uma circunstância que nunca me pareceu do menor interesse; porque se os bens deste mundo pudessem consolar as penas da alma, estaria bastante e até demasiado fornecido. No entanto, eu podia lamentá-la hoje se devessem resultar obstáculos às nossas investigações, o que tenho motivo para recear; porque, no caso de que meu irmão morresse sem progenitura, tendo eu um filho, os bens de meu pai caberiam a essa criança. Não é, pois, provável que esse herdeiro, quem quer que seja, nos ajude a fazer uma descoberta que lhe pode ser tão prejudicial.

- É provável, também, que o intendente de que Vossa Senhoria falou tenha ficado ao seu serviço.

- É provável. Aliás, sendo esse homem um protestante, até que ponto será prudente fiar-se nele?

- Supunha, milorde - respondeu gravemente Oldbuck - que um protestante pudesse mostrar-se tão digno de confiança como um católico. Estou duplamente interessado em defender a fé protestante, milorde: um dos meus antepassados, Aldobrand Oldenbuck, imprimiu a célebre Confissão de Augsburgo; posso mesmo mostrar-lhe a edição original que possuo aqui.

- Não tenho a menor dúvida a esse respeito, Mr. Oldbuck - replicou o conde - Creia que tão-pouco foi um espírito de prevenção e de intolerância que me fez falar; mas é presumível que o intendente protestante favoreça o herdeiro protestante mais do que o herdeiro católico: se acaso meu filho foi educado na fé de seu pai, ou se, devo dizê-lo antes, ainda for vivo.

- É preciso reflectir nisto seriamente - disse Oldbuck-antes de arriscar alguma coisa. Há um literato meu amigo em York, com quem estou há muito tempo em correspondência a respeito de uma trompa saxónia que se conservou na catedral. Há seis anos que nos escrevemos, e até o presente ainda não conseguimos decifrar a primeira linha da inscrição. Vou escrever imediatamente a esse gentleman, o doutor Dryasdust, e pedir-lhe informações exactas sobre a reputação do herdeiro de seu irmão, sobre a pessoa que tem a cargo os seus negócios, enfim, acerca de tudo o que possa servir de esclarecimento a Vossa Senhoria. Entretanto, o senhor tratará de reunir as provas do seu casamento, que, espero eu, poderão ser encontradas.

- Sem a menor dúvida - respondeu o conde As testemunhas que nesse tempo tivemos o cuidado de subtrair às suas pesquisas existem ainda. O meu preceptor, que celebrou o matrimónio, é cura em França; regressou há pouco, tendo emigrado de um país onde foi vítima do seu zelo e da sua fidelidade à legitimidade e à religião.

- Eis, pelo menos, um feliz resultado da Revolução Francesa, no caso que lhe toca, há-de convir, milorde

- disse Oldbuck - Mas nada receie; hei-de proceder com tanto entusiasmo nos seus assuntos como se fosse da sua crença em política e em religião. E acredite, se quer que uma questão importante seja bem tratada, meta-se nas mãos de um antiquário; porque, devido a ele exercitar continuamente o seu talento na pesquisa das pequenas coisas, é impossível que não triunfe nas grandes. É o hábito que conduz à perfeição; assim, o contingente que mais vezes se exercita na parada e o que actuará com mais prontidão no dia de batalha. Eu lia de boa vontade a Vossa Senhoria alguma coisa sobre este tema para lhe fazer passar o tempo até à ceia.

- Suplico-lhe que não perturbe por minha causa os hábitos de sua família - disse lorde Glenallan mas não costumo tomar coisa alguma depois do pôr do sol.

- Nem eu, milorde, apesar de dizerem que isso foi costume dos antigos. Mas, ao contrário de Vossa Senhoria, também janto bem, e, por conseguinte, estou mais em estado de passar sem essa ostentação de iguarias com que as minhas fêmeas (refiro-me' a minha irmã e a minha sobrinha, milorde) enchem a mesa, mais para mostrar a sua competência e o talento em matéria de culinária do que para real satisfação das nossas necessidades. No entanto, um grelhado, um peixe fumado, umas ostras, ou uma fatia de presunto que nós próprios salgamos, com uma torrada e um jarro de cerveja, ou qualquer coisa parecida, para não nos deitarmos com o estômago vazio, não fazem parte do meu sistema de abstinência, nem, espero eu, do de Vossa Senhoria.

- É que literalmente nunca ceio, Mr. Oldbuck, mas assisto à sua refeição com prazer.

- Bem, milorde - disse o Antiquário - esf orçar-me-ei, pelo menos, por brindar os seus ouvidos com alguma coisa que lhes seja agradável, visto que não posso tentar o seu paladar: o que vou ler a Vossa Senhoria refere-se aos estreitos vales destas montanhas.

Embora lorde Glenallan preferisse voltar ao assunto das suas ansiedades, viu-se obrigado a fazer um cerimonioso sinal de triste anuência.

O Antiquário pegou então numa carteira cheia de papéis soltos e, depois de prevenir que os pormenores topográficos que dava se destinavam a um pequeno ensaio sobre a arte de formar acampamentos à maneira dos antigos, que fora acolhido com indul gência pelas várias sociedades de antiquários, começou como segue:

- O tema, milorde, é a montanha fortificada de Quickens-bog, da qual Vossa Senhoria, sem dúvida, conhece perfeitamente a posição. Encontra-se no meto de dependências da sua herdade de Mantanner, na baronia de Clochnaben.

- Realmente, julgo ter ouvido o nome desses sítios - disse o conde, em resposta ao apelo do Antiquário.

- Ouvido o nome? Que diabo, uma herdade que rende seiscentas libras esterlinas! o Senhor!

Não foi possível ao Antiquário reter esta exclamação; no entanto, os seus sentimentos de hospitalidade sobrepuseram-se à surpresa, e começou a ler o seu ensaio em voz alta e inteligível, encantado por ter encontrado um ouvinte paciente, entregando-se à doce ilusão de interessar.

Dispensamo-nos de reproduzir aqui a leitura de Mr. Oldbuck, que tinha por tema uma dissertação tão longa como sábia sobre a etimologia e as causas prováveis do nome de uma pequena montanha fortificada com a qual ninguém se preocupava. Nós mostrar-nos-emos também mais generosos com o leitor do que o foi o nosso Antiquário, que, não tendo muitas ocasiões de se fazer ouvir com paciente atenção por uma pessoa tão importante como lorde Glenallan, usou ou, para melhor dizer, abusou tanto quanto pôde da que se lhe oferecia.

 

A velhice desgostosa harmoniza-se mal com a mocidade estouvada: uma é cheia de cuidados, a outra toda dada aos prazeres -, a mocidade assemelha-se a uma manhã de Estio em que a Natureza desenvolve toda a sua riqueza e frescura, a velhice à noite de Inverno sombria e nua.

SHAKSPEARE - Miscelâneas

 

No dia seguinte, o Antiquário, que era um pouco preguiçoso em sair da cama de manhã, foi chamado por Caxon bem uma hora antes da habitual.

- Que há? -exclamou ele, bocejando e estendendo a mão para o grosso relógio de ouro, de repetição, que repousava molemente sobre um lenço de seda da índia junto do seu travesseiro - Que há então, Caxon? Ainda não podem ser oito horas?

- Não, senhor; mas o criado de milorde veio procurar-me, porque imagina que sou o criado de quarto de Vossa Honra, e com efeito sou-o de Vossa Honra e do pastor, pelo menos o senhor não tem outro, e também dou uma ajuda a sir Arthur, mas é mais no género da minha profissão.

- Está bem! Está bem! Já chega. Homem feliz aquele que é seu próprio criado de quarto! Mas que necessidade há de me incomodarem tão cedo?

- Ah, senhor, é que a grande personagem está a pé desde o romper do dia, e mandou à cidade pedir um expresso que fosse buscar a sua carruagem. O expresso estará de volta em breve, e ele deseja ver Vossa Honra antes de se retirar.

- com a breca! - disse Oldbuck - Estas grandes personagens dispõem da casa e do tempo de cada um como se fossem bens delas. Vamos, paciência, é uma vez por todas. Bem, Caxon, Jenny já recuperou os sentidos?

- Palavra, senhor, que só metade; ainda está muito aturdida a fazer o chocolate, via-a no momento em que ia deitá-lo na tijela, e talvez bebê-lo ela própria numa das suas crises! Conseguiu sair-se bem, no entanto, corri a ajuda de Miss Mac Intyre.

- Então, todas as minhas fêmeas estão a pé e lidam na casa, de maneira que, se quiser que tudo corra bem, tenho de renunciar a repousar mais tempo esta manhã. Dá-me o roupão, Caxon... Que há de novo em Fairport?

- Não há nada de novo - respondeu o velho cabeleireiro - a não ser o que se propala, como grande notícia, desta visita que veio fazer a Sua Honra este milorde que, como se "diz, não passa o limiar desta porta há vinte anos.

- . Ah! Ah! - riu Monkbarns - E que dizem, eles, Caxon?

- Verdadeiramente, senhor, há diversas opiniões. Aquelas pessoas que se chamam democratas e que são contra o rei, a lei e a moda do pó e das perucas, o que demonstra que não passam de uma canalha, dizem que milorde não veio incomodar Vossa Honra senão, para lhe propor os seus rendeiros e os seus montanheses, a fim de dissolver as assembleias dos amigos do povo; e quando eu disse que Vossa Honra nunca se metia em questões onde pudesse haver golpes a receber e sangue a derramar, responderam que, se não era o senhor, seria seu sobrinho; que ele era bem conhecido por realista que se bateria com arreganho; que o senhor era a cabeça e ele o braço, e que o conde devia fornecer os homens e o dinheiro.

- Vamos - disse o Antiquário, a rir - tenho muito prazer, pelo menos, em que a guerra não me custe senão conselhos.

- Oh! Quanto a isso - observou Caxon -ninguém acredita que Vossa Honra quisesse combates em pessoa ou que desse apenas um ceitil a um ou a outro partido.

- Diabo! É essa a opinião dos democratas? Mas que diz o resto de Fairport?

- Em verdade - respondeu o ingênuo Caxon -não posso dizer que valha muito mais. O capitão Coquet, que faz parte dos voluntários, aquele que deve ser o novo colector, e alguns gentlemen do clube dos azuis, dizem que é perigoso deixar assim os papistas percorrerem o país, como o conde de Glenallan que pode ter tantos amigos em França... Mas o senhor provavelmente vai zangar-se.

- Não, não, Caxon, descarrega toda a metralha do capitão Coquet; estou apto a resistir.

- Pois bem, diz-se que, como o senhor não apoiou a petição a respeito da paz, como se opôs à de um novo imposto, e como sempre o viram fazer intervir o grupo dos caseiros nos motins do povo, a fim de arranjar as coisas com os oficiais de polícia; em vista de tudo isto, diz-se que o senhor não é um verdadeiro amigo do governo, e que esta espécie de entrevistas entre um fidalgo tão poderoso como o conde e um homem tão sábio como o senhor são suspeitas, e merecem que se ocupem delas. Há quem diga que não se faria mal em mandar os dois para a fortaleza de Edimburgo.

- Palavra de honra - disse o Antiquário - que estou infinitamente grato aos meus vizinhos pela boa opinião que têm a meu respeito. De maneira que eu, que nunca me meto nas suas questões, eu, que sempre recomendei providências pacíficas e moderadas, sou dado pelos dois partidos como homem capaz do crime de alta traição contra o rei e contra o povo,

Dá cá o meu fato, Caxon, dá cá o meu fato: é uma felicidade que a minha reputação se faça em despeito das suas referências. Há alguma notícia de Taffril e do seu navio?

Caxon tomou um ar melancólico.

- Não, senhor, os ventos são fortes e a nossa costa é terrível, para a cruzar, quando eles sopram de Leste. Os escolhos erguem-se tão alto que um navio vem despedaçar-se contra eles em menos tempo do que eu levo a afiar a minha navalha; depois, não há nenhuma baía, nenhum lugar de refúgio na nossa costa; não há senão rochedos e cachopos. Um navio que vem embater nas nossas costas voa em poeira, como o pó quando eu sacudo a borla, e também é difícil apanhar os despojos. São coisas que eu sempre repito a minha filha, quando ela se apoquenta por não ter notícias do tenente Taffril: tenho sempre uma desculpa pronta para ele; não se pode condená-lo, minha filha, digo-lhe eu, quem sabe o que lhe terá acontecido?

- Ai, Caxon, tu és tão bom consolador como hábil criado de quarto... Dá-me um colarinho branco, meu rapaz: achas que eu possa descer com um lenço ao pescoço, com visitas em casa?

- Meu querido senhor, o capitão Heitor disse que um lenço de três pontas é o que há de mais à moda, e que esses colarinhos são bons para Vossa Honra e para mim, que somos pessoas do antigo regime; peço-lhe perdão de me citar ao lado do senhor, mas foi o que ele disse.

- O capitão é um vaidoso e tu és um parvo, Caxon.

- Isso é muito possível - respondeu o barbeiro, complacente - É o que Vossa Honra pode avaliar melhor do que eu.

Antes de almoço, lorde Glenallan, que parecia menos abatido que na véspera, percorreu com cuidado os vários documentos e informes que Oldbuck conseguira reunir em tempos, e explicando-lhe os meios que tinha de acabar de provar o seu casamento, exprimiu a sua decisão de se ocupar imediatamente da difícil tarefa de recolher e pôr em ordem as provas do nascimento de Eveline Neville, que Elspeth dissera encontrarem-se entre os papéis de sua mãe.

- E entretanto, Mr. Oldbuck - ajuntou ele - eu acho-me no estado de um homem que recebe notícias importantes antes de estar bem acordado e que ainda duvida de que elas tenham relação com a vida real ou se não serão ainda a continuação do seu sonho. Esta mulher, esta Elspeth, chegou ao último degrau da velhice, e parece muitas vezes recaída na infantilidade Não terei eu, e isto seria uma dúvida atroz, sido muito precipitado em admitir as provas que ela me deu ontem, e que desmentem todas as que ela apresentou outrora?

Oldbuck reflectiu um momento e respondeu com firmeza:

- Não, milorde, não creio que tenha razão para suspeitar da verdade da confissão que ela fez, e para a qual não parece ter sido impelida senão pela força dos seus remorsos. A sua confissão foi voluntária, desinteressada, precisa e de acordo com ela própria, e com as outras conhecidas deste assunto. Creio, porém, que é preciso ocupar-se sem perda de tempo de examinar e pôr em ordem os outros documentos de que ela falou, e penso também que a sua declaração devia ser tomada em forma. Falámos de tratar disso juntos, mas sem dúvida eu pouparia a Vossa Senhoria uma tarefa dolorosa e talvez mostrasse mais imparcialidade indo eu só, e procurando interrogá-la na minha qualidade de magistrado. Fá-lo-ei, isto é, tentarei fazê-lo, logo que a veja numa disposição de espírito bastante favorável para lhe permitir suportar um interrogatório.

Lorde Glenallan apertou a mão do Antiquário num sinal de reconhecimento.

- Não sei expressar-lhe, Mr. Oldbuck - disse ele Quanto o seu apoio e a sua cooperação" neste triste e tenebroso caso, me inspira confiança e me proporciona alívio. Não posso deixar de me aplaudir por ter cedido ao súbito impulso que por assim dizer me arrastou a forçá-lo a receber as minhas confidencias, e que era originado pela recordação da firmeza com que o vira cumprir os seus deveres de magistrado, e procurar justificar a memória da infeliz Eveline, de quem se mostrou então zeloso defensor. Qualquer que seja o desfecho desta questão, e ouso ufanar-me de que um raio de esperança começa a iluminar o futuro da nossa casa, embora eu não esteja destinado a vê-lo realizar-Se; mas, repito-o, qualquer que seja o desfecho, minha família e eu contraímos para consigo neste momento obrigações eternas.

- Milorde - respondeu o Antiquário - tenho, sem dúvida, o maior respeito pela família de Vossa Senhoria, que é, sei-o bem, uma das mais antigas da Escócia, visto que encontra certamente a sua origem em Alexandre II, e que uma tradição do país, menos autêntica, embora bastante provável, faz remontar a Marmor de Clochnaben. No entanto, apesar de toda a minha veneração pela antigüidade da sua ilustre casa, devo confessar que o meu alvoroço e o meu desejo de o servir, tanto quanto em mim caiba, me são inspirados principalmente pelo interesse sincero que tomo pelos seus desgostos e pelo meu horror à impostura de que o senhor foi vítima. Mas, milorde, a refeição da manhã deve estar pronta. Permita-me guiar Vossa Senhoria através de todos os atalhos do meu coenobitium, que mais se assemelha a uma combinação de celas acumuladas umas sobre outras do que a uma casa regular. Espero que se compense hoje da dieta que fez ontem.

Mas isso não entrava nas ideias de lorde Glenallan: cumprimentando os convivas com aquela delicadeza grave e melancólica que caracterizava as suas maneiras, viu o seu criado colocar diante dele o pão torrado e um copo de água pura, de que se compunha o seu dejejum habitual. Quando o velho Antiquário e o jovem oficial tomavam o seu de uma maneira um pouco mais sólida, fez-se ouvir o ruído das rodas de uma carruagem.

- Creio que é a carruagem de Vossa Senhoria disse Oldbuck -Aí está, palavra de honra, uma elegante rapariga, pois tal era, segundo o melhor scholium, a vox signata dos romanos para um carro atrelado a quatro cavalos, como o de Vossa Grandeza.

- . E ouso afirmar - disse Heitor, observando os cavalos pela janela, com ardente admiração - que nunca quatro cavalos baios mais belos e mais iguais foram atrelados a um veículo! Que belo porte! Que magníficos cavalos de esquadrão eles dariam! Posso perguntar a Vossa Senhoria se são raça das suas cavalariças?

- Assim o julgo - disse lorde Glenallan - Mas confesso que negligenciei de tal maneira os meus assuntos domésticos que sou obrigado a recorrer a Calvert para me certificar.

- São produtos da coudelaria de Vossa Senhoria

- disse Calvert - Descendem de tom e de Jemima e Yarico, os dois jumentos de raça, de Vossa Senhoria.

- E produziram outros? -perguntou o conde.

- Mais dois, milorde, um que tem quatro anos feitos, e o outro cinco; são ambos dois belos animais.

- Então, mande-os trazer amanhã a Monkbarns por por Dawkins - disse o conde - Espero que o capitão Mac Intyre me dê o prazer de os aceitar, se os achar capazes de lhe serem úteis.

Os olhos do capitão Mac Intyre cintilaram de alegria, e ele expressou o seu reconhecimento a lorde Glenallan com a vivacidade de que era susceptível, enquanto o Antiquário, agarrando o conde pela manga, tentava opor-se a um presente que lhe parecia de mau agoiro para as suas provisões de aveia e feno.

- Milorde, Milorde, o senhor é excessivamente bondoso, mas Heitor é de Infantaria, nunca montou a cavalo durante uma batalha. Pertence ao corpo dos montanheses, e mesmo o seu uniforme não conviria ao serviço de cavalaria. Macpherson nunca nos representou os seus antepassados a cavalo, embora tenha a impudência de dizer que eles nasceram para o carro. E, milorde, o que dá volta à cabeça de Heitor, e ele desejaria mais o exercício de carro que o de cavalo:

fiunt quos currículo pulverem Olympicum Collegisse juvat.

A sua fantasia seria ter um curriculum, mas não teria mais dinheiro para o comprar do que teria, creio eu, habilidade para o conduzir; e ouso assegurar a Vossa Senhoria que a posse de dois semelhantes quadrúpedes ser-lhe-ia mais perigosa do que nenhum dos seus duelos, sem mesmo exceptuar o da minha amiga foca.

- Neste momento, o senhor tem o direito de exigir tudo de mim - disse o conde com delicadeza mas atrevo-me a pensar que não desejará privar-me mais tarde de oferecer ao meu jovem amigo alguma coisa que possa ser-lhe agradável.

- Alguma coisa de útil, milorde, mas não um curriculum. Seria mais razoável para ele uma quadriga, primeiro. Mas, a propósito, que vem cá fazer aquela velha cadeira de posta de Fairport? Eu não a pedi!

- É para mim, senhor -disse Heitor, um tanto secamente, pois estava pouco satisfeito com a oposição que seu tio fizera ao presente que o conde lhe destinava, e que tão-pouco lhe estava agradecido pela maneira como rebaixara a sua habilidade em manejar cavalos, nem pelas alusões que fizera ao mau resultado da sua aventura com o lobo-marinho.

- Para ti? - replicou lacònicamente o Antiquário

- E que necessidade tens tu de uma cadeira de posta? Esta brilhante equipagem a que eu poderia chamar biga, vai servir de introdução à quadriga ou ao curriculum?

- A verdade, senhor - declarou o jovem militar visto que deseja uma explicação precisa, é que vou a Fairport para um pequeno assunto.

- Ser-me-á permitido perguntar de que natureza é esse assunto, Heitor? - redarguiu seu tio, que gostava de exercer passageiramente uma autoridade de que não desfrutava muitas vezes sobre o sobrinho

- Parece-me que todos os assuntos relativos ao regimento podem confiar-se ao teu digno delegado sargento, um homem honesto que tem a bondade de considerar Monkbarns como sua casa desde que chegou. Parece-me, digo eu, que podes encarregá-lo de todos os teus assuntos, sem que te seja preciso despender o pagamento de um dia por um mau cabaz de lenha podre, atrelado a duas pilecas, como o que está à porta, e que não passa de um esqueleto de cadeira de posta.

- Não é um assunto do regimento que me chama a Fairport, senhor; e visto que insiste em conhecer a causa, dir-lhe-ei que, informando-me Caxon de que o velho mendigo Ochiltree deve sofrer hoje um interrogatório antes de ser levado a julgamento, eu terei muito interesse em ver como se vai proceder com esse velho diabo. Eis tudo.

- Ah, sim! Já ouvi qualquer coisa a esse respeito, mas não julguei que fosse tão grave. Mas, capitão Heitor, dize-me tu, que te mostras sempre tão pronto a servir de padrinho a toda a gente, em todas as ocasiões de conflito civil ou militar, por terra ou por mar, sem exceptuar à beira-mar, dize-me que interesse especial tomaste pelo velho Ochiltree.

- Foi soldado na campanha de meu pai -respondeu Heitor - e, além disso, um dia em que eu ia cometer um acto bem insensato, apresentou-se para mo impedir e deu-me tão bons conselhos como o senhor mos daria nessa ocasião.

- E com o mesmo êxito, iria jurá-lo! Vamos, Heitor, confessa que os seus bons conselhos se perderam,

- Confesso-o, senhor; mas não vejo porque a minha má cabeça me impeça de reconhecer as suas boas intenções.

- . Bravo, Heitor! Eis a coisa mais razoável que já te ouvi dizer; mas confia-me os teus projectos sem reserva, meu rapaz. Bem vês, eu próprio vou contigo. Tenho a certeza de que o pobre diabo não é culpado e posso ser-lhe de socorro mais real do que tu nesse embaraço. Aliás, isto poupa-te meio guinéu, meu caro, consideração que deves sinceramente ter diante dos olhos muitas vezes.

Depreendendo em poucas palavras quem era o mendigo e a acusação formulada contra ele, acusação que Oldbuck não hesitou em atribuir à malícia de Dousterswivel, lorde Glenallan perguntou se o indivíduo em questão não fora soldado em tempos. Responderam-lhe afirmativamente.

- Não usa - continuou Sua Senhoria - um roupão azul, grosseiro, com uma placa? Não é um homem de alta estatura, de barba e cabelo grisalhos, que se mantém muito direito, e que fala com um ar de segurança e de liberdade que contrasta flagrantemente com a sua posição?

- É o exacto retrato do homem - respondeu Oldbuck.

- Nesse caso - disse lorde Glenallan - eu conheço-o; e embora receie não lhe poder ser útil na posição em que me encontro agora, no entanto contraí com ele uma dívida de reconhecimento, por me ter trazido a primeira das muito importantes notícias. Ofereço-lhe de boa vontade um retiro tranquilo para a sua vida, quando ele sair dos embaraços em que se encontra,

- Creio, milorde, que será muito difícil fazê-lo abandonar os seus hábitos de vagabundo e convencê-lo a aproveitar-se da sua generosidade; sei, pelo menos, que já foi tentada uma coisa parecida e sem resultado. Acha-se muito mais independente em mendigar ao público em geral os socorros necessários ao sustento da sua vida do que julgaria sê-lo se os devesse todos à liberalidade de uma só pessoa. Tem uma espécie de despreocupação filosófica que o faz desprezar toda a regularidade no emprego das horas e do tempo. Quando tem fome come, quando tem sede bebe, quando está fatigado dorme, e com uma tal indiferença pela maneira como satisfaz estas diversas necessidades que não creio que ele alguma vez tivesse chegado a jantar mal ou a achar-se mal alojado. Depois, é preciso dizer que, até certo ponto, ele é o oráculo da região que percorre. É o genealogista, o novelista, o organizador dos jogos, o doutor e o teólogo, quando necessário. Asseguro-lhe que tem muitos deveres, e os cumpre com demasiado zelo para que se possa persuadi-lo a abandonar a sua profissão. Mas eu ficaria sinceramente aborrecido se retivessem na prisão o pobre velho por algumas semanas; por muito despreocupado que ele seja, estou persuadido de que a clausura seria a única coisa que ele não poderia suportar; morreria de desgosto.

A conversa ficou por ali; lorde Glenallan, depois de se despedir das damas, reiterou ao capitão Mac Intyre a oferta de caçar nas suas terras sempre que lhe fosse agradável, e o jovem aceitou-a com alegria.

- Ajuntarei - disse ele - que se o triste convívio do castelo de Glenallan nada tiver de assustador para a alegria do seu carácter, as portas de minha casa estarão sempre abertas. Sexta-feira e sábado são dois dias em que não saio dos meus aposentos; mas terá em substituição um convívio menos aborrecido que o meu, o de Mr. Gladsmoor, o meu esmoler, e que é, asseguro-lhe, um sábio e um homem de sociedade.

Heitor, com o coração a pulsar de alegria pela ideia de percorrer os bosques particulares de Glenallan, " os pauis bem protegidos de Clochnaben, e sobretudo pela alegria inexprimível de caçar o gamo na floresta de Strathbonnel, mostrou-se extremamente sensível àquela honra, e agradeceu vivamente ao conde. Oldbuck pareceu reconhecido pelas bondades que o conde tinha para com seu sobrinho. Miss Mac Intyre sentia-se feliz pela felicidade do irmão. Miss Griselda Oldbuck sonhava satisfeita com todas as bolsas de caça e todas as presas que estavam reservadas à sua cozinha, lembrando-se de quanto o reverendo Mr. Blattergowl era apreciador. com cada um nesta disposição, o conde não tardou em despedir-se, e os seus quatro cavalos baios, objectos de admiração de Heitor, mal tinham desaparecido, já todas as bocas se abriam para pronunciarem os seus elogios, coisa que aliás sucede sempre que um homem de alta posição deixa uma família à qual procurou parecer obsequioso. Mas Oldbuck cortou cerce o panegírico, subindo com seu sobrinho para a cadeira de posta, que, com um cavalo que trotava e outro que era forçado a marchar, aos solavancos, começou a seguir conforme pôde o caminho do nosso célebre porto de mar, de uma maneira que contrastava singularmente com o movimento rápido e suave que levava a equipagem de lorde Glenallan.

 

Oh, amo a justiça tanto quanto possa imaginar Mas a boa dama, como é cega, desculpar-me-á se eu julgar conveniente e de propósito ficar calado. Não quero dar lugar, com minhas palavras, a que a palavra me seja cortada um dia.

Comédia Antiga

 

Devido à caridade das pessoas da cidade e com a ajuda da carga de provisões que levara com ele para a prisão, Edie Ochiltree passou um ou dois dias no cativeiro sem demasiada impaciência, tendo aliás um pouco menos razão para lamentar a sua falta de liberdade, por causa do tempo, que estava mau e chuvoso.

- A prisão - dizia ele - não é um lugar absolutamente tão triste como se julga: dispõe-se sempre do abrigo de um bom tecto para se defender das injúrias do tempo e, se as janelas não tivessem vidros, não seria senão mais arejada e mais agradável no Verão. Não faltariam pessoas para conversar, e para comer havia mais pão do que o necessário. Que precisão haveria, pois, para nos inquietarmos com o resto?. Contudo, a coragem do nosso mendigo filósofo começou a baixar quando os raios de um sol sem nuvens vieram brilhar nos varões ferrugentos da grade da sua prisão, e quando ouviu um pobre pintarroxo, que um preso conseguira pendurar na sua gaiola à janela, principiar a saudá-los com os seus gorjeios.

- Estás mais alegre do que eu - disse Edie, dirigindo-se ao pássaro - porque não posso assobiar, nem cantar, quando penso nos aprazíveis outeiros, nos bosques frescos e verdes onde eu poderia ir deambular, por um tempo como este! Mas, olha, aqui tens migalhas de pão que te dou eu, por seres tão jovial; e, palavra, podes cantar, tu, porque não tens culpa de estares engaiolado, ao passo que eu só posso agradecer a mim próprio o encontrar-me encerrado neste triste lugar.

O solilóquio de Ochiltree foi interrompido por um oficial de paz que veio intimá-lo a apresentar-se perante o magistrado. Saiu sob a triste escolta de dois guardas de decrépito aspecto e muito menos robustos do que ele, para ser conduzido ante o juiz de instrução. O povo exclamava, ao ver aquele velho preso entre dois guardas velhíssimos:

- Vejam este velho de cabeça grisalha que cometeu um assalto na estrada, embora já esteja com os pés para a cova!

E as crianças cumprimentavam os oficiais, que para elas eram objectos ora de riso ora de temor, por levarem um preso tão velho como eles.

Assim acompanhado, Edie foi introduzido, e não certamente pela primeira vez, perante o bailio Little-John, ou Joãozinho, que, desmentindo a ideia que seu nome exprimia, pelo contrário, era um alto e corpulento magistrado, ao qual os banquetes da corporação não foram dados em vão. Além disso, era um realista daqueles tempos de zelo, pouco rigoroso e absoluto no cumprimento do seu dever e razoavelmente cheio do sentimento da sua importância e do seu poder; quanto ao resto, cidadão probo, útil e bem intencionado.

- Tragam-no, tragam-no à minha presença! - exclamou ele - Palavra de honra, vivemos em estranhos e terríveis tempos; os Bedesmen do rei e os seus servidores são os primeiros a infringir as leis. Eis um velho roupão azul que acaba de cometer um roubo; imagino que outro que me trouxerem mostrará o seu reconhecimento pela caridade real que lhe forneceu o seu fato, a sua pensão e a licença de mendigar, metendo-se numa conjura de alta traição, ou de sedição, pelo menos. Mas tragam-no!

Edie cumprimentou, ao entrar, depois manteve-se, como de costume, firme e direito, rosto um pouco erguido, como que para não perder uma palavra de todas as que o magistrado lhe pudesse dirigir. Às' primeiras perguntas gerais, que não se referiam senão ao seu nome e à sua profissão, o mendigo respondeu prontamente e com exactidão; mas quando o magistrado, depois de mandar registar as suas respostas ao escrivão, começou a perguntar-lhe onde dormira a noite em que sucedera o percalço a Dousterswivel, Edie recusou-se a responder a esta pergunta.

- Pode dizer-me, senhor bailio - disse ele ao magistrado - o senhor que conhece as leis, que bem me advirá em responder a todas as suas perguntas?

- Que bem? Nenhum bem, certamente, meu amigo, a não ser que, dando conta exacta e sincera do seu procedimento, me forneça meios de lhe restituir a liberdade, se estiver inocente.

- Mas parece-me mais razoável que o senhor bailio, ou outro qualquer que tenha a dizer alguma coisa contra mim, prove primeiro o meu crime, em vez de me pedir provas da minha inocência.

- Eu não me sento aqui - disse o magistrado para discutir consigo sobre os pontos da lei. Pergunto-lhe se quer responder a esta pergunta: esteve em casa de Aikwood no dia que eu especifico?

- Realmente, senhor, não me sinto capaz de me lembrar - respondeu o prudente Bedesman.

- Durante esse dia ou essa noite - continuou o magistrado - viu Steenie ou Steven? Conhecia-o, suponho eu.

- Oh! Conhecia evidentemente esse pobre rapaz!

- replicou o preso - Mas não posso dizer-lhe precisamente em que dia o vi pela última vez.

- Foram às ruínas de Santa Ruth, durante essa noite?

- Bailio Little-John - disse o mendigo - se é do gosto de Vossa Honra, ficamos por aqui, e dir-lhe-ei muito belamente que não tenho nenhuma vontade de responder a todas essas perguntas. Sou demasiado velho peregrino para suportar que a minha língua me meta em sarilhos.

- Escreva - ordenou o magistrado - que ele se recusa a responder a todas as perguntas, porque, dizendo a verdade, julga prejudicar-se.

- Não, não - opôs Ochiltree - eu não quero que se escreva isso como fazendo parte da minha resposta; quero apenas dizer que a minha experiência e a minha memória não me oferecem exemplo de que se possa ficar bem respondendo a perguntas inúteis.

- Escreva - disse o bailio - que um longo hábito, dando-lhe conhecimento dos interrogatórios judiciais, e que, tendo-se prejudicado ao responder a perguntas que lhe foram feitas nessas ocasiões, o declarante recusa

- Não, não, bailio - tornou Edie - não deve torcer as minhas palavras dessa maneira.

- Então, dite a sua resposta, amigo - disse o magistrado - e o escrivão registará segundo a sua própria boca.

- É isso, é isso - disse Edie - eis o que se chama fazer bom jogo; vou responder sem perda de tempo. Assim, pois, meu rapaz, escreva que Ochiltree, o declarante, reclama a liberdade. Não, tão-pouco se deve falar dessa maneira; não pertenço à facção da liberdade, combati contra ela por ocasião dos motins de Dublin. Além disso, como o pão do rei há mais de um dia. Espere um pouco; vejamos. É isto. Escreva que Edie Ochiltree, roupão azul, reclama a prerrogativa: trate de soletrar bem esta palavra, é comprida... a prerrogativa dos súbditos deste país, e não responderá a uma única das perguntas que lhe são dirigidas, a não ser que tenha razão para isso. Escreva, jovem.

- Então, Edie - advertiu o magistrado - visto que não me quer dar nenhum esclarecimento sobre este assunto, tenho de o reenviar à prisão para lá aguardar o curso normal da lei.

- Bem, senhor, é a vontade de Deus e dos homens, tenho de me submeter. Não tenho grande coisa a dizer contra a prisão, excepto não haver liberdade de sair; se não se importasse, bailio Little-John, eu dava-lhe a minha palavra em como compareceria perante os lordes no tribunal ou onde quisesse, no dia que achasse conveniente indicar-me.

- Receio, meu bom amigo - respondeu o bailio Little-John - que a sua palavra seja garantia demasiado fraca; se vir o seu pescoço em perigo, sou levado a acreditar que abandonará a precaução. Se o senhor estivesse em situação de me oferecer uma garantia suficiente...

Nesse momento, entraram o Antiquário e o capitão Mac Intyre.

- bom dia, meus senhores - disse o magistrado Encontram-me ocupado nos meus trabalhos habituais, perseguindo as iniquidades do povo, trabalhando pelo bem da comunidade, Mr. Oldbuck, servindo o rei nosso amo, capitão Mac Intyre, porque, como o senhor sabe, também empunhei a espada.

- É um dos emblemas da justiça; mas parece-me que as balanças lhe conviriam melhor, bailio, tanto mais que as tem prontas no seu armazém.

- Muito bem, Monkbarns, excelente. Mas não é como magistrado que eu empunho a espada, é como militar e, em verdade, eu devia antes dizer a espingarda e a baioneta... Ei-las atrás do espaldar do meu cadeirão. Devo confessar, porém, que a gota ainda me incomoda um pouco para fazer exercícios, pois tive uma pequena visita da nossa antiga conhecida podagra; no entanto, começo a ter-me nas pernas, enquanto o nosso sargento me ensina a manobra. Gostaria bem de saber, capitão Mac Intyre, se ele se pauta exactamente pelas regras. Parece-me que nos manda segurar a espingarda de maneira muito desajeitada.

E assim falando, avançou a coxear para a sua arma, como que para dar exemplos do que aprendera, bem como das suas dúvidas sobre a habilidade do sargento.

- Regozijo-me de ver que temos tão zelosos defensores, e tenho a certeza antecipada de que Heitor lhe dará cumprimentos pelos progressos na sua nova profissão. Então, o meu caro senhor rivaliza com Hécate dos antigos: negociante no mercado, magistrado no município e soldado em armas; quid non pro patria (1)? Mas, hoje, é com a justiça que tenho de ver; ponhamos de parte o comércio e a guerra.

- Bem, meu caro senhor, que deseja de mim?

- O senhor tem aqui um dos meus velhos conhecimentos que alguns dos seus homenzinhos encerraram na prisão, em consequência de um pretenso assassínio cometido na pessoa de um tal Dousterswivel, da acusação do qual eu não acredito nem uma palavra.

O semblante do magistrado tornou-se muito grave.

- O senhor deve estar informado de -que o acusam de roubo, bem como de assassínio. É um caso realrmente muito sério: não são muitas as vezes que eu tenho conhecimento de casos tão criminosos.

- E por isso, quando a ocasião se apresenta, trata de não a deixar escapar. Mas admite-se que este pobre homem se encontre numa situação tão grave?

- Embora seja contra as regras - disse o bailio como o senhor é da comissão, não hesito em mostrarlhe a queixa de Dousterswivel e o resto dos depoimentos.

com efeito, meteu os papéis nas mãos do Antiquário, que pegou nos óculos e se sentou num canto para os examinar.

Os oficiais receberam então ordem de transportarem o preso a outro aposento; mas, antes de que isto se fizesse, o capitão Mac Intyre achou meio de dizer algumas palavras de encorajamento ao velho Edie e de lhe meter um guinéu na mão.

- Deus abençoe Vossa Honra! -disse o ancião É uma dádiva de um jovem militar, deve dar sorte ao velho soldado: não a recuso, embora isto seja uma excepção à regra que me impus; porque, se tiver de ficar aqui muito tempo, os meus amigos depressa me esquecerão. Nada mais verdadeiro do que o provérbio que diz que os "ausentes estão sempre mal", e não seria muito respeitável para mim, bedesman do rei, e autorizado a pedir esmola de viva voz, descer um fio pela janela da prisão para assim pescar uns cobres.

Ao acabar esta observação, foi levado para fora da sala.

 

(1) Que não fazer pela pátria? - N. do T.

 

O depoimento de Mr. Dousterswivel continha uma narrativa exagerada da violência que sofrera e da perda que tivera.

 

- Mas eu gostaria de lhe perguntar - disse Monkbarns - qual era o seu objectivo ao passear nas ruínas de Santa Ruth a semelhante hora, e com um companheiro como Edie Ochiltree. Não há estrada que passe por lá, e não me convenço facilmente de que a paixão do pitoresco pudesse levar o nosso alemão a esse lugar, numa noite tão tempestuosa... Ele meditava, não tenhamos dúvidas, alguma patifaria, e foi provavelmente apanhado na sua armadilha. Nec lex justior ulla O magistrado admitiu que havia alguma coisa de misterioso nessa circunstância, e desculpou-se de não ter forçado Dousterswivel a explicar-se melhor sobre o que a sua declaração tinha de voluntário. Mas, em apoio da acusação fundamental, mostrou o depoimento de Aikwood sobre o estado em que Dousterswivel fora encontrado, e estabeleceu o facto importante de o mendigo ter deixado a granja onde se alojara e não ter voltado. Duas pessoas dependentes do cangalheiro e que essa noite, tinham feito parte do cortejo que acompanhava o funeral de lady Glenallan, declararam que, mandados em perseguição de dois indivíi duos suspeitos que se escaparam das ruínas de Santa Ruth, quando o cortejo fúnebre se aproximou, e que se supunha poderem roubar alguns ornamentos preparados para a cerimónia, foram vistos e perdidos de vista e reencontrados algumas vezes, por causa da natureza do terreno, que não era favorável aos cavaleiros, mas que vira entrar os dois na choupana de Mucklebackit; um desses homens ajuntou que, apeando-se do cavalo e aproximando-se da janela da cabana, vira o velho roupão azul e o jovem Steenie Mucklebackit com outros, a comerem; e a beberem lá dentro, e que também notara que o dito Steenie mostrava uma pequena carteira aos outros... O declarante não tinha a menor dúvida de que Ochiltree e Steenie Mucklebackit fossem os indivíduos que o seu

 

1) Não há lei mais justa. - N. do T.

 

camarada e ele perseguiram. Sobre a pergunta que lhe fizeram, porque não entrara na dita cabana, declarara que, não estando autorizado a fazê-lo, e que tendo ouvido dizer que Mucklebackit e sua família eram pessoas bruscas e duras, ele, declarante, não tinha nenhum desejo de meter-se nos seus assuntos. Causa scientix paiet, todas as coisas que declarava eram verdadeiras, etc. etc.

- Que me diz a essa massa de provas contra o seu amigo? -perguntou o magistrado, quando notou que o Antiquário voltara a última folha.

- Confesso que, se se tratasse de outra pessoa, conviria em que o caso, à primeira vista, prima acie, não parece bonito. Mas é-me difícil verberar alguém por ter batido em Dousterswivel; porque se eu fosse um pouco mais novo, ou que tivesse apenas uma centelha do seu espírito guerreiro, bailio, há muito tempo que teria feito o mesmo, É nebulo nebulonwm, um impudente, astucioso e pérfido charlatão, cuja charlatanice me custa cem libras esterlinas, e ao meu pobre vizinho sir Arthur, Deus sabe quanto! Além disso, bailio, creio que é um homem perigoso para o governo.

- Em verdade - disse o bailio - se eu o acreditasse, o caso mudaria de figura.

- Sem dúvida - prosseguiu Oldbuck - porque ao dar-lhe uma tareia, o mendigo não teria feito senão testemunhar o seu reconhecimento ao rei e, roubando-o, não teria senão pilhado um egípcio, cujos despojos são um prêmio legítimo. Suponhamos agora que esta entrevista nas ruínas de Santa Ruth tinha relação com a política, e que essa história de tesouros ocultos fosse um isco oferecido pelo partido do outro lado do Estreito a alguma grande personagem, ou ainda que os fundos se destinassem à manutenção de um grupo sedicioso.

- Meu caro senhor -disse o magistrado, agarrando avidamente aquela ideia -vem precisamente ao encontro do que eu penso. Que feliz não me sentiria se pudesse tornar-me o humilde instrumento que pusesse esse caso a claro! Não acha que faríamos bem em avisar os voluntários para estarem de prevenção?

- Ainda não, sobretudo quando a gota, podagra, os priva de um membro tão essencial ao seu batalhão. Mas quer deixar-me interrogar Ochiltree"?

- Certamente; mas o senhor não tira nada dele. Deu-me claramente a entender que conhecia o perigo de uma declaração judicial da parte do acusado, o que, para dizer a verdade, já fez enforcar mais do que um melhor do que ele.

- É possível; no entanto, bailio, não se opõe a que eu experimente?

- Absolutamente nada, Monkbarns... Estou a ouvir o sargento a berrar, lá em baixo; vou fazer um exercício de manobra durante esse tempo... Baby, traz-me a espingarda e a baioneta... Fazem menos barulho quando levamos armas.

O belicoso magistrado saiu, seguido da criada, que levava a espingarda.

- Esta rapariga é o digno escudeiro deste campeão gotoso - disse Oldbuck - Heitor, meu rapaz, é preciso seduzi-lo. Vai com ele, entretém-no lá em baixo durante meia hora, pelo menos; distrai-o com alguns termos de guerra, e sobretudo gaba-lhe o uniforme e a habilidade.

O capitão Mac Intyre, que, como a maior parte dos da sua profissão, olhava com infinito desprezo os burgueses soldados, que tinham pegado em armas sem que nenhum título os autorizasse a usá-las, levantou-se com muita repugnância, fazendo notar a seu tio que não saberia que dizer a Mr. Little John, e que era verdadeiramente ridículo ver um velho lojista gotoso esforçar-se por cumprir os deveres e fazer os exercícios de um soldado.

- Pode ser, Heitor - disse o Antiquário, a quem raramente sucedia estar logo de acordo com a opinião da pessoa com quem falava - pode ser neste caso e talvez em outros; mas neste momento o país assemelha-se àquelas pessoas em demanda por uma pequena dívida, e que, não tendo dinheiro para pagar aos heróis do foro, defendem elas próprias a sua causa. Respondo que neste caso nunca teremos de lamentar a falta de subtileza e esperteza dos advogados, e pela mesma razão espero que no outro nos salvaremos com a nossa coragem e as nossas espingardas, embora possamos falhar por vezes nas formas da tua disciplina.

- É-me perfeitamente indiferente, senhor - diss Heitor, bem disposto - que o mundo inteiro se bata, se isso lhe aprouver, contanto que me deixe tranquilo.

- Sim, sim, efectivamente, és uma pessoa tranquila, tu, que pelo teu gênio belicoso nem sequer deixas dormir em paz, na costa, uma pobre foca...

Mas Heitor, vendo o caminho que a conversa tomava, e detestando toda a espécie de alusão ao desaire que lhe infligira o anfíbio, apressou-se a sair antes de que o Antiquário acabasse a frase.

 

Pois bem, no pior caso, não é um crime de roubo nem de moeda falsa, supondo mesmo que eu soubesse tudo isso de que me acusa de conhecer. E quando o túmulo se abriu para entregar os seus tesouros a alguém que não os suspeitava, uma leal troca não foi roubo, mas antes pura liberalidade.

Comédia Antiga

 

Querendo aproveitar a autorização que se lhe dera de interrogar o acusado, o Antiquário preferiu dirigir-se à cela de Edie a fazer o seu exame em forma de segundo interrogatório, mandando-o vir de novo à sala do magistrado. Encontrou o ancião sentado perto da janela que dava para o mar, e, enquanto o contemplava, grossas lágrimas se escapavam dos seus olhos como se não desse por isso, e corriam-lhe pelas faces e pela barba branca. No entanto, as feições estavam calmas e sérias; a atitude indicava paciência e resignação. Oldbuck aproximara-se dele sem ser ouvido e tirou-o do seu devaneio, dizendo-lhe com bondade:

- Tenho pena, Edie, de ver que se deixa abater nesta conjuntura.

O mendigo estremeceu, apressou-se a limpar os olhos com a manga do roupão e, procurando retomar o tom habitual de indiferença e de jovialidade, respondeu, mas numa voz mais trêmula que de costume:

- Eu devia ter calculado, Monkbarns, que era alguém do seu género que vinha interrogar-me; porque uma das grandes vantagens das prisões e dos tribunais é que podem lá entrar e sair quando lhes apetece sem que nenhuma pessoa das que lá estão empregadas lhes pergunte o motivo.

- Bem, Edie, espero que a causa que o apoquenta agora não seja tão desesperada que não se possa remediar.

- E eu deveria esperar, Monkbarns - respondeu o mendigo em tom de censura - que o senhor me conhecesse o bastante para não acreditar que semelhante ninharia pudesse fazer correr lágrimas dos meus velhos olhos; não, não, é preciso outra coisa para isso. Mas foi a filha de Caxon, essa pobre criança, que veio aqui procurar consolações e não as encontrou. Não teve notícias do brigue de Taffril desde os últimos ventos, e corre o boato no cais de que um navio do rei se despedaçou nos escolhos de Rattray, e que a tripulação se perdeu. Deus nos livre, porque tenho tanta certeza como a de estar a vê-lo aí, Monkbarns, de que o pobre Lovel, que o senhor estimava tanto, terá perecido!

- Deus nos livre, realmente! - exclamou o Antiquário, empalidecendo - Preferia que se pegasse fogo a Monkbarns! Meu pobre amigo, meu querido colaborador! vou já ao cais.

- Não saberá mais do que lhe disse, senhor - observou Ochiltree - porque os oficiais aqui são muito honestos, isto é, para pessoas da sua espécie, e tomaram todas as informações que a sua autoridade lhes permitia, sem por qualquer forma obterem nenhum esclarecimento.

- Isso não pode ser, não será - disse o Antiquário -e não o acreditaria mesmo que o fosse. Taffril é um excelente marinheiro, e Lovel, o meu pobre Lovel, tem todas as qualidades úteis e agradáveis de um companheiro de viagem, quer por terra, quer por mar; é o único, Edie, que, pela candura do seu carácter, eu escolheria, se empreendesse uma viagem por mar, o Que nunca faço senão para atravessar o estreito, jragilem mecum solvere phaselum (1), para companheiro dos meus perigos; como um ser contra o qual os elementos

 

(1) Embarcar comigo numa frágil canoa. - N. do T.

 

não podem alimentar nenhuma vingança. Não, Edie, repito-o, não é nem pode ser verdade; é uma ficção daquele descarado boato que eu desejaria ver enforcado com sua trombeta ao pescoço, que não serve senão para fazer perder a cabeça às pessoas honestas com os seus rumores sinistros. Mas vejamos: dize-me como te meteste neste sarilho.

- Pergunta-me isso como magistrado, Monkbarns, ou apenas para sua própria satisfação?

- É para minha satisfação pessoal - declarou o Antiquário.

- Meta então a sua agenda e a sua pena de aço no bolso, porque não lhe direi nada enquanto lhe vir nas mãos com que escrever; isso faz medo às pessoas ignorantes como eu. com a breca, está na sala contígua um escrivão que porá o preto no branco o bastante para enforcar um homem, antes de que ele saiba o que disse.

Para acalmar o espírito do velho, Monkbarns pôs de lado a sua agenda.

Edie começou então a contar com a maior franqueza toda aquela parte da sua história já conhecida do leitor; descrevendo ao Antiquário a cena de que fora testemunha entre Dousterswivel e o seu patrão nas ruínas de Santa Ruth, confessou francamente que não pudera resistir à tentação de arrastar o químico mais uma vez até junto do túmulo de Misticot, para tirar uma vingança burlesca do seu charlatanismo; que não tivera dificuldade em persuadir Steenie, que era um rapaz atrevido e resoluto, a colaborar com ele nessa partida, mas que a brincadeira fora levada muito mais longe do que estava nas suas intenções. A respeito da carteira, disse que exprimira a sua surpresa e desgosto ao saber que fora apanhada por inadvertência; que Steenie se comprometera publicamente, em presença de todos os moradores da choupana, a entregá-la no dia seguinte, e que disso fora impedido pela sua morte prematura.

O Antiquário reflectiu um momento e disse em seguida:

- O teu relato parece muito plausível, Edie, e acredito nele, segundo o que conheço dos participantes; mas também creio que sabes muito mais do que achas conveniente dizer acerca do tesouro encontrado. Suspeito de que tenhas desempenhado o papel do deus familiar de Plauto - espécie de demónio, Edie, para melhor me compreenderes - que tem à sua guarda os tesouros ocultos. Lembro-me de que foste a primeira pessoa que encontrámos quando sir Arthur fez o feliz ataque ao túmulo de Misticot; e que quando os trabalhadores começaram a afrouxar, também foste tu, Edie, quem primeiro saltou para o fosso e fez a descoberta do tesouro. Agora, tens de me explicar tudo isso, a não ser que queiras que te trate tão mal como Euclio trata Estáfilo na Aulularia (1)

- Meu Deus, senhor! Que entendo eu da sua Howlowlaria; isso parece mais linguagem de cão que de homem!

- No entanto, sabias que o cofre do tesouro estava ali? - insistiu Oldbuck.

- Meu caro senhor - respondeu Edie, com o ar da maior simplicidade - julga que uma pobre e velha criatura como eu teria conhecido existência de semelhante coisa sem disso sacar alguma vantagem? E o senhor vê bem que não a procurei nem a tive; que interesse teria eu em meter-me nisso?

- É precisamente o que eu quero que me expliques, porque tenho positivamente a certeza de que sabias o que estava lá.

- Vossa Honra é um homem teimoso, Monkbarns, e para teimoso devo confessar que tem muitas vezes razão.

- Então, Edie, concordas que a minha opinião é bem fundada.

Edie fez um sinal afirmativo.

- Então, queres explicar-me todo o caso desde o começo até o fim?

- Se fosse um segredo que me pertencesse, Monkbarns - replicou o mendigo - não teria de mo pedir duas vezes; porque lhe digo agora o que tenho dito muitas vezes nas suas costas: é que, apesar de todas as extravagâncias que lhe passam pela cabeça, o senhor ainda é o mais sensato e o mais discreto de todos os gentlemen da região. Mas serei franco consigo

 

(1) Comédia de Plauto. - N do T.

 

e confesso-lhe que é o segredo de um amigo, e que antes me deixaria esquartejar por cavalos selvagens, como os filhos de Ámon, do que dizer uma palavra mais sobre este assunto, excepto que não se lhe quis fazer mal, mas, pelo contrário, muito bem, e que tive por objectivo servir pessoas que valem dez mil como eu. Creio que não há lei que possa considerar um crime saber onde está escondida a prata dos outros, desde que não se lhe ponha as mãos em cima por sua conta.

Oldbuck cruzou por duas ou três vezes o compartimento em profunda abstracção, procurando encontrar alguma razão plausível para transacções de um género tão misterioso; mas a sua imaginação falhou por completo. Colocou-se então diante do preso e olhou-o de frente.

- Amigo Edie - disse ele - a tua história é um verdadeiro enigma, e seria preciso um segundo Édipo para a adivinhar. Outro dia qualquer dir-te-ei o que é isso de Édipo, se mo lembrares. De qualquer modo, ou por efeito da sensatez ou por efeito das extravagâncias que me dás a honra de me atribuires, estou fortemente disposto a acreditar que me disseste a verdade, tanto mais que não te serviste desses atestados de poderes supremos, como já notei que os teus semelhantes nunca deixam de fazer quando querem enganar as pessoas - (Aqui, Edie não pôde deixar de sorrir) - Por isso, se quiseres responder-me a uma pergunta, tratarei de te fazer restituir à liberdade.

- Se quiser dizer-me que pergunta é essa - replicou Edie com a prudência de um verdadeiro escocês verei se posso responder ou não.

- É dizer-me somente - disse o Antiquário - se Dousterswivel sabia alguma coisa desse cofre de barras escondidas.

- Ele! O velhaco! -respondeu Edie, com brusca franqueza - Nada teria ficado, se Dousterswivel tivesse sabido que aquele tesouro estava ali.

- Era o que eu pensava - disse Oldbuck - Bem, Edie, se eu conseguir restituir-te à liberdade, terás de ser pontual no dia em que te intimarem, a fim de libertares a minha garantia; porque não é em tempos como os nossos que homens prudentes podem expor-se a perder a sua caução, a não ser que me pudesses indicar outro aulam auri plenam quadrilibrem (1), um outro Search Nº I.

O mendigo meneou a cabeça e disse:

- Ah! Suspeito de que a galinha que punha esses ovos de ouro voou. Mas nada receie, Monkbarns, serei pontual nesse dia, não perderá nem um penny por minha causa; e, palavra, não me desagradaria sair, agora que o tempo está bonito; e depois estarei mais perto das primeiras notícias que tenhamos dos nossos amigos.

- E eu, Edie, como sinto que o barulho cessou um pouco lá em baixo, presumo que o bailio Little-John já despediu o seu preceptor militar e que trocou os trabalhos de Marte pelos de Témis. vou, pois, falar-lhe. Quanto às deploráveis notícias que me deste, não quero acreditar nelas.

- Deus queira que Vossa Honra tenha razão disse o mendigo.

E Oldbuck saiu do compartimento.

O Antiquário foi encontrar o magistrado, exausto pelo exercício, a repousar no seu cadeirão de doente e a trautear a canção Vivamos alegremente, alegres soldados e, entre cada verso, reconfortando o estômago com uma colh-erada de sopa de tartaruga. Ordenou que trouxessem um acepipe igual para Oldbuck, que o recusou, fazendo-lhe notar que, não sendo militar, não pensava em renunciar ao seu hábito de nunca comer entre as horas regulamentares das suas refeições.

- É bom para soldados como o senhor, que aproveitam a ocasião de comer quando ela se apresenta. Mas, a propósito, soube com desgosto que há más notícias do brigue de Taffril.

- Ah, pobre diabo! - disse o bailio - Dava tanta honra à cidade. Distinguira-se muito no 1.o de Junho.

- Assusta-me ouvi-lo falar assim no passado disse Oldbuck.

- Creio que não há senão muitas razões para isso, Monkbarns; no entanto, ainda não se deve desesperar por completo. Diz-se que esse desastre ocorreu na baía de Rattray, a cerca de vinte milhas ao norte, e perto da baía de Dirtenalan. Mandei colher informações, e

 

(1) Outro pote de quatro libras cheio de ouro. - N. do T.

 

o seu sobrinho saiu a correr como se fosse buscar o boletim de uma vitória.

Nesse momento, Heitor entrou a gritar:

- Julgo que tudo isso não passa de uma maldita mentira. Não encontro nenhuma autoridade que confirme esse boato.

- E dize-me, por favor, Mr. Heitor -disse seu tio - se isso for verdade, quem é o culpado de Lovel ter embarcado?

- Eu, evidentemente - respondeu Heitor - mas em consequência da minha infelicidade.

- Realmente - disse o tio - nunca teria pensado nisso.

- Mas, no -entanto, senhor, apesar da sua tendência para me encontrar defeitos - respondeu o jovem militar-tem de convir pelo menos que nesta ocasião não se pode duvidar das minhas intenções. Visei Lovel o melhor possível e, se tivesse acertado, é evidente que ele teria o meu mal e eu o dele.

- E a quem te preparas tu para visar, agora que trazes contigo esse armazém de pólvora para canhão?

- Preparo-me para a caça nos pauis de lorde Glenallan, que é para o dia doze.

- Ah! Heitor, essa grande caçada seria melhor

Omne cum Proteus perus egit altos Visere montei (1)

se, em vez dos nossos tímidos pássaros das moitas, tivesses de combater contra alguma foca belicosa.

- Diabos levem o lobo marinheiro ou a foca, se assim lhe quiser chamar!... É bem duro ouvir constantemente censurar uma asneira que se fez.

- Vamos, vamos - disse Oldbuck - tenho a certeza de que somos bastante sensatos para nos envergonharmos disso; mas, como detesto toda a raça de Nimrods, desejo a todos a mesma sorte... Vamos, não te irrites com uma brincadeira, meu rapaz, acabei com o assunto da foca, embora apostasse que o bailio nos poderia

(1) Quando Proteu levou seus rebanhos marinhos ao alto dos montes. - N. do T.

 

dizer qual é ao certo o valor da pele dos lobos-marinhos.

- É cara, muito cara; a pesca não tem sido feliz ultimamente - disse o magistrado.

- Nós podemos testemunhá-lo - acudiu o exuberante Antiquário, encantado com a vantagem que esta circunstância lhe dava sobre o jovem caçador-Só mais uma palavra, Heitor, e depois

com a pele que para si tem tanto valor, Cobriremos um corpo jovem e cheio de calor.

Ah! Ah! meu pobre rapaz!... Vamos, acabou-se, não pensemos mais nisso; tenho de ocupar-me dos negócios. Bailio, uma palavra, por favor. É preciso que o senhor receba a minha caução, uma importância moderada, evidentemente, que responderá pela presença do velho Ochiltree.

- O senhor não pensou no que pediu - respondeu o bailio - Pondere que é um crime de assassínio, de roubo.

- Silêncio! Não insista nisso. Bem sabe o que lhe dei a entender; informá-lo-ei melhor mais tarde; asseguro-lhe que há um segredo neste caso.

- Mas, meu caro Oldbuck, se o Estado está nisso interessado, eu, que durante o ano me aborreço com tantos casos insignificantes, tenho o direito de ser consultado, e até que eu saiba...

- Chiu! Chiu!-interrompeu o Antiquário, piscando-lhe o olho, e pousando o dedo na boca - O senhor; terá toda a honra e toda a direcção quando as coisas estiverem maduras. Mas estamos a contas com um velho obstinado que não quer ouvir falar em meter neste momento duas pessoas no seu segredo, e ele não me deu bem o fio dessas intrigas de Dousterswivel.

- Ah! Ah! Nesse caso, julgo que se terá de aplicar a lei de emigração a esse maroto.

- Para dizer a verdade, não me desagradaria.

- Não diga mais - prosseguiu o magistrado - a coisa faz-se imediatamente... Será afastado tanquam suspect... Creio que esta é uma das suas frases, Monkbarns.

- É clássica, bailio, o senhor faz progressos.

- No entanto, tenho estado tão assoberbado de afazeres públicos que me vi obrigado a dar sociedade ao

meu aprendiz. Tive duas correspondências diferentes com o subsecretário de Estado; uma a respeito da taxa projectada sobre o cânhamo de Riga, e outra sobre o projecto de aniquilar as associações políticas. Como vê, o senhor faria bem em comunicar-me o que sabe da descoberta desse velho mendigo, visto que se trata de uma conjura contra o Estado.

- Assim farei quando estiver senhor do assunto - replicou Oldbuck - Detesto o embaraço que causa a direcção desta espécie de assuntos. Lembre-se, porém, de que eu não disse positivamente uma conjura contra o Estado; disse apenas que esperava descobrir, por intermédio deste homem, uma conjura criminosa.

- Se há conjura, deve haver traição ou sedição, pelo menos. Quer caucioná-lo por quatrocentos marcos?

- Quatrocentos marcos por um velho roupão azul! Lembre-se do decreto de 1701, sobre o regulamento de cauções... Tire uma cifra a essa importância, e eu consinto em dar-lhe uma garantia por quarenta.

- Bem, Mr. Oldbuck, o senhor sabe que toda a gente em Fairport está disposta a ser-lhe agradável; e, além disso, conheço-o por homem prudente e que não se exporia voluntariamente a perder mais quarenta marcos do que quatrocentos. Assim, aceito a sua caução meo perícúlo.

- E eu garanto Edie Ochiltree, meo periculo (1)" também -disse Oldbuck - Mande, pois, passar o documento de caução pelo seu escrevente, e eu assino.

Quando este assunto terminou, o Antiquário comunicou a Edie a feliz notícia de que estava mais uma vez em liberdade, e aconselhou-o a dirigir seus passos para Monkbarns. Tomou ele próprio esse caminho com o sobrinho, depois de praticar esta boa acção.

 

(1) A meu risco ou perigo. - N. do T.

 

Este cheio de citações eruditas, antigas e modernes.

SHAKSPEARE - Como lhe aprouver

 

- Por amor de Deus, Heitor - disse o Antiquário, na manhã seguinte, ao almoço - gostaria que tivesses respeito pelos meus nervos, e que não andasses sempre com aquele maldito arcabuz.

- Tenho muita pena de o aborrecer, senhor -respondeu o sobrinho, continuando a manusear a espingarda de caça-mas é uma arma excelente; é de Joe Manton, e custa quarenta guinéus.

- Um louco tem sempre pressa de se desfazer do seu dinheiro, meu sobrinho - replicou o Antiquário Estou muito satisfeito por teres tantos guinéus para esbanjar.

- Cada um a seu gosto, tio; o senhor gosta de livros.

- Sim, Heitor, e se a minha colecção vier a pertencer-te, depressa se verá dispersar e passar ao armeiro, ao alquilador, ao domesticador de cães: Coemptos undique nobiles libros mutare loricis Iberis (1).

- Não me servirei dos seus livros, é verdade, meu querido tio - disse o jovem militar - e o senhor fará bem em deixá-los em melhores mãos; mas não acuse o meu coração dos erros da minha cabeça. Eu não me desfaço de um cordão que tenha pertencido a um velho amigo, por umas parelhas de cavalos como as de lorde Glenallan.

- Não, não o acredito, meu rapaz, não o acredito

- disse o tio, abrandando-se - Gosto de te arreliar às vezes, isso dá ao espírito disciplina e hábito de subordinação mas tu passas o tempo aqui mais suavemente, sob as minhas ordens, do que sob as do teu capitão,

 

(1) Trocar por armaduras ibéricas nobres obras compradas por toda a parte. - N. do T.

 

coronel, ou cavaleiro de armas, como diz Milton, e em vez dos franceses - prosseguiu ele, recaindo em seu humor satírico - não tens outros inimigos a combater senão gens humida ponti(1); porque, como Virgílio,Slernunt se somno divertes in littore phocee

O que se poderia traduzir assim:

As focas dormitando esperam na praia Do montanhês Heitor a agressão selvagem.

Vamos, não te zangues, acabou. Aliás, vejo que o velho Edie "está no pátio, e tenho necessidade de lhe falar. Até à vista, Heitor; lembra-te da maneira como mergulhou no mar, tal como seu dono Pro teu: Et se jacta deãit exquor in lItiim.

Depois de esperar que a porta se fechasse, Mac Intyre abandonou-se a toda a impaciência natural do seu carácter.

- Meu tio é o melhor homem do mundo, e no seu género o mais benfeitor; mas para não continuar a ouvir falar dessa maldita foca, como ele gosta de lhe chamar, passo a um dos regimentos que estão na América, e não torno a vê-lo na minha vida.

Miss Mac Intyre, cujo reconhecimento e amizade a ligavam a seu tio, e que amava apaixonadamente o irmão, servia geralmente de medianeira nessas ocasiões. Apressou-se a procurar o tio antes de que ele entrasse no locutório.

- Então, vejamos, menina minha sobrinha, que quer dizer esse rosto suplicante? Juno fez mais alguma desgraça?

- Não, meu tio, mas é o dono de Juno que receia novos gracejos a respeito do lobo-marinho. Asseguro-Lhe que eles o mortificam muito mais do que está na sua intenção; é uma fraqueza dele, concordo, mas também o senhor tem uma maneira engraçada de meter as pessoas a ridículo...

- Bem, minha querida - respondeu Oldbuck, a quem este cumprimento dispunha favoravelmente

 

(1) O povo humilde das ondas. - N. do T.

 

eu vou conter a minha sátira, e se for possível não falo mais em foca. Eu não sou monitoribus asper (1), mas, Deus o sabe, pelo contrário, o mais doce, o mais pacífico, o mais fácil dos humanos, e que irmã, a sobrinha e o sobrinho levam para onde querem.

Depois deste pequeno elogio à sua docilidade, Oldbuck entrou no locutório e propôs a seu sobrinho um passeio a Mussel Craig.

- Tenho umas perguntas a fazer a uma mulher na choupana de Mucklebackit - ajuntou ele -e gostaria de ter comigo uma testemunha de bom-senso. Assim, à falta de melhor, Heitor, tenho de me contentar contigo.

- O velho Edie, ou Caxon, não poderiam ocupar melhor o meu lugar? -respondeu Mac Intyre, a quem a perspectiva de uma longa conversa com seu tio alarmava um pouco.

- Palavra, jovem, que me indicas bons companheiros, e estou-te muito grato pela delicadeza - replicou Oldbuck -Não, senhor, levarei comigo o velho roupão azul, não como testemunha competente, visto que ele agora, como o disse o nosso amigo bailio Little John (Deus abençoe a sua ciência! tanquam suspectus (2), mas tu serás suspicione major (3), como o exige a lei.

- Bem desejaria ser major - disse Heitor, não se detendo senão na última palavra da frase, como sendo a que naturalmente devia despertar mais a atenção do jovem militar-mas sem dinheiro e sem crédito não há esperança de subir de posto.

- Não importa, valente filho de Priam - disse o Antiquário - deixa-te dirigir pelos teus amigos e não desesperes. Vem comigo, entretanto; assistirás a um interrogatório que poderá ser-te útil, se algum dia te suceder ocupares lugar num tribunal marcial.

- Já participei de mais de um conselho de guerra no nosso regimento - respondeu o capitão Mac Intyre Mas, tio, aqui tem uma bengala nova que eu lhe peço para aceitar.

 

(1) Rebelde aos conselhos. - N. do T.

(2) Como suspeito. - N. do T.

(3) Acima de suspeita. - N. do T.

 

- Muito obrigado, muito obrigado.

- Comprei-a ao nosso tambor-mor, que entrou no nosso regimento depois de ter pertencido ao exército de Bengala, quando regressou ao longo do mar Roxo; asseguro-lhe que foi cortada nas margens do Ganges.

- Palavra que é um belo bambu e que substitui bem a bengala que a fo... diabo, que ia eu dizer?

Acompanhado de seu sobrinho e do mendigo, o Antiquário tomou o caminho de Mussel Craig, pelo areal. Ia na melhor disposição do mundo a comunicar as suas luzes aos companheiros, e o militar, sob a impressão das bondades passadas de seu tio, e não sem esperança de alguns novos favores, escutava-o com uma atenção muito decente. Tio e sobrinho marchavam juntos, o mendigo a um ou dois passos à retaguarda, e bastante perto para que o seu patrão pudesse falar-Lhe inclinando ligeiramente a cabeça sem ter a maçada de se voltar por completo. Petrie, no seu Ensaio sobre a boa educação, dedicado aos magistrados de Edimburgo, segundo a sua própria experiência como preceptor de uma família distinta, recomenda esta atitude a todos os homens de alta categoria e aos preceptores dependentes e inferiores de todos os géneros. Assim escoltado, o Antiquário prosseguiu o caminho, todo cheio da importância do seu saber, e voltando-se ora para bombordo ora para estibordo, para atirar uma descarga aos companheiros.

- Julgas então - disse ele ao mendigo - que aquele achado, aquela arca auri, segundo Plauto, não ajudará muito sir Arthur nas suas necessidades.

- Seria preciso que ele pudesse encontrar dez vezes mais - disse o mendigo - e é do que eu duvido muito. Ouvi falar disso a Puggie e àquele outro pobre oficial do xerife, e as coisas vão mal quando pessoas da sua espécie podem falar tão cruamente dos negócios de um gentleman. Receio muito que sir Arthur seja em breve metido entre quatro paredes por dívidas, a não ser que obtenha um socorro rápido e sólido.

- Falas como um ignorante - replicou o Antiquário - Meu sobrinho, é coisa notável neste venturoso país que um homem nunca possa ser legalmente preso por dívidas.

- Isso é verdade, senhor? - disse Mac Intyre - Eu

duvido. Essa parte das nossas leis conviria muito a alguns dos nossos oficiais.

- Se não os prendem por dívidas - observou Ochiltree - o que é que pode obrigar tantas pobres pessoas a ficar na prisão de Fairport? Todos dizem que foram lá metidas pelos seus credores. com a breca, se lá ficam voluntariamente, é porque ali se divertem muito mais do que eu.

- Essa tua observação é muito natural, Edie, e vários dos teus superiores já a fizeram, mas funda-se unicamente na ignorância do sistema feudal. Heitor, tem a bondade de me escutar, a não ser que estejas à procura de uma outra... Hem -. Entendes-me? - compreendendo a alusão, Heitor esforçou-se por lhe dar toda a atenção - E tu, Edie, isto pode ser útil, rerum cognoscere causas. A natureza e a origem de um mandado de captura é uma coisa haud alienum a Scaevolae studiis (1) Fica sabendo mais uma vez que ninguém pode ser detido por dívidas na Escócia.

- Não estou muito interessado nisso, Monkbarns, porque ninguém desejaria dar crédito de um óbolo a um mendigo.

- Silêncio, homenzinho! No entanto, como seria precisa uma compulsão ao pagamento, à qual o devedor tivesse natural repugnância, segundo tive ocasião de me convencer por minha própria experiência, temos cartas de quatro formas: primeiro, num convite delicado pelo qual, em nome do nosso soberano e senhor rei, que se interessa, como o deve fazer um monarca, pela regularidade dos negócios dos seus súbditos, empregam-se de início exortações indulgentes; em seguida, vêm cartas contendo convites expressos, intimações mais rigorosas... Que estás a ver de extraordinário nesse pássaro, Heitor? Não passa de uma gaivota.

- É um pica-peixe, senhor - disse Edie.

- Bem, que seja; que tem isso que ver agora? Mas, como vejo que estás impaciente, ponho de parte as cartas em quatro formas, e chego ao processo moderno da diligência. Supões agora que um homem é metido na prisão por não poder pagar a sua dívida? Nada disso:

 

(1) Coisa não estranha aos estudos de Cévola. - N. do T.

 

a verdade é que é o rei, que tem a bondade de intervir a pedido de um credor, e de enviar ao devedor a sua ordem real de a liquidar num certo espaço de tempo, quinze dias, por exemplo, ou seis meses, mais ou menos, conforme os casos. Bem, se o homem resistir e desobedecer, que sucede? É legal e formalmente declarado rebelde para com o nosso gracioso soberano, às ordens do qual desobedeceu, e isto por três vezes, ao som da trompa, e na praça do mercado de Edimburgo, capital da Escócia. Em seguida, é legalmente encarcerado, não por causa da sua dívida civil, mas pelo seu menosprezo pelo mandato real. Que dizes a isto, Heitor? está alguma coisa de novo para ti.

- Não, meu tio; mas se eu não tiver dinheiro para pagar as minhas dívidas, ficarei mais grato ao rei por me demitir do que me declarar rebelde por causa da minha impossibilidade de obedecer.

- A tua educação não te tornou apto a reflectir sobre estas matérias - disse seu tio - És incapaz de apreciar a delicadeza desta lei engenhosa e a maneira como ela sabe conciliar o rigor, que para protecção do comércio se é obrigado a exercer sobre os devedores refractários, com o mais escrupuloso respeito pela liberdade individual.

- Eu não sei -replicou o sobrinho, cujas luzes não se estendiam tão longe - mas se um homem tem de pagar a sua dívida ou ir para a prisão, pouco importa, parece-me, que lá seja conduzido como rebelde ou como devedor. Mas o senhor diz que a ordem do rei concede um prazo de alguns dias; palavra, se eu estivesse num aperto, batia em retirada, e deixaria o rei e o credor arranjarem-se entre eles, antes de chegar a essa extremidade.

- E eu também -disse Edie - dar-lhes-ia a caução das minhas pernas.

- Isso era bom - disse Monkbarns - mas com aqueles que a lei supõe quererem subtrair-se assim às suas decisões, procede por meios mais expeditos e menos cerimoniosos, e trata-os como pessoas indignas da sua indulgência e da sua paciência.

- Compreendo isso - declarou Edie - É sem dúvida o que se chama mandatos de fuga; sei alguma coisa disso. No sul também são mandatos; são providências bastante violentas. Fui detido uma vez na feira de Saint James e encerrado na igreja de Kelso, um dia e uma noite; asseguro-lhes que era um local muito sombrio e muito frio. Mas quem é aquela mulher com um cesto às costas? É a pobre Maggie, creio eu.

Era ela, com efeito. Se o sentimento da perda que tivera não se atenuara nesta mulher, era pelo menos combatido pela necessidade de ocupar-se dos meios de alimentar a família; e cumprimentou Oldbuck num tom em que estranhamente se mesclavam as solicitações prementes que tinha por hábito dirigir aos clientes e as lamentações que lhe arrancava a infelicidade recente.

- Como passa hoje, Monkbarns? Ainda não tive coragem de ir agradecer a Vossa Honra o favor que fez ao pobre Steenie de ir à frente até a sua sepultura; pobre filho! - aqui, as lágrimas vieram-lhe aos olhos, e limpou-as com uma ponta do seu avental azul -No entanto, a pesca não foi muito má, embora o meu homem ainda não tivesse coragem de voltar ao mar... Tive vontade de lhe dizer que lhe faria bem meter mãos à obra, mas quase receio falar-lhe; e é bem singular ouvir uma de nós dizer isto a propósito de um homem. Não faz mal, tenho hoje pescadinhas excelentes, e dava-as por três xelíns a dúzia, porque não sinto disposição para vender bem: tenho de aceitar o que alguma boa alma me oferecer, sem negociar nem discutir.

- Que havemos de fazer, Heitor? - perguntou Oldbuck, detendo-se - Caí em desgraça, um dia, perante as minhas fêmeas devido a um mau negócio de peixe que me atrevi a fazer; estes animais marítimos, Heitor, trazem desgraça à nossa família.

- Ora! Que queria o senhor fazer? Dê à pobre Maggie o que ela lhe pede, ou permita-me enviar hoje um prato de peixe a Monkbarns.

E apresentou-lhe o dinheiro; Maggie retirou a mão.

- Não, não, senhor capitão, vê-se que o senhor é muito novo e desperdiça o seu dinheiro... Nunca se deve concluir um negócio de peixe à primeira palavra; penso que o melhor que tenho a fazer é ir procurar a velha despenseira a Monkbarns, e talvez Miss Grizel também me dê alguma coisa... Não desgostarei de ver também o que é feito de Jenny Rintherout.

É uma criatura muito sensível; disseram-me que estava doente. Pobre louca! Deve estar acabrunhada por causa de Steenie, como se o meu pobre rapaz tivesse voltado a cabeça para ver uma rapariga como ela... Vamos, Monkbarns, o senhor pode ter a certeza de comer boas pescadinhas, embora não me dêem grande coisa em sua casa, e vou ver se precisam de croppit-heads (1) hoje.

Retomou a marcha com a sua carga, os pensamentos partilhados entre a dor e o reconhecimento pela compaixão que os superiores lhe testemunhavam, e aquele amor ao negócio e ao lucro, inerente à profissão que exercia.

- Agora, que estamos diante da porta da choupana

- disse o mendigo - desejaria saber, Monkbarns, porque vem a aturar-me todo este tempo. Digo-lhe francamente que não tenho prazer algum em lá ir. Não gosto do que me lembre que vi a mocidade cair a meu lado, e que fiquei só como um velho tronco inútil que apenas conservou uma folha verde.

- A velha avó - disse Oldbuck - mandou-te levar uma mensagem ao conde de Glenallan, não é verdade?

- Ah, sim! - replicou o mendigo, surpreendido Como chegou o senhor a saber isso?

- O próprio lorde Glenallan mo disse - respondeu o Antiquário - Assim, não há delação, violação de confiança da tua parte; e como ele deseja que eu tome por escrito a sua declaração sobre um importante assunto de família que lhe diz respeito, trouxe-te comigo porque, no estado em que ela está, e com aquele misto de infantilidade e clarões de razão, é possível que a tua voz e o teu aspecto despertem nela uma série de recordações que eu próprio não teria meio de suscitar O espírito humano... Que estás a fazer, Heitor?

- Assobio à minha cadela - respondeu o capitão

- Afasta-se sempre para muito longe; eu bem sabia que ia ser para si um companheiro importuno.

 

(1) Prato conposto de pescadinhas e farinha de aveia - N. do T.

 

- Nada, absolutamente nada - replicou Oldbuck, continuando a dissertação - É preciso tratar o espírito humano como uma meada de seda embaraçada, na qual se tem de apanhar cuidadosamente uma ponta antes de se poder esperar desembaraçá-la.

- Nada sei a esse respeito - disse o mendigo Mas se ela continuar a ser a minha velha conhecida de outrora, ou que ainda se lhe assemelhe, o que poderá suceder é ela embrulhar-nos a nós. É uma coisa terrível vê-la e ouvi-la, quando começa a agitar os braços e a falar o seu inglês, exactamente como se fosse um livro impresso... Ela pode ser a viúva de um pescador, mas isso não impede que tenha recebido uma grande educação e visse muito mundo antes de se casar, como o fez, um pouco abaixo da sua condição. É mais velha do que eu uns vinte anos, mas recordo-me bem de que se fez tanto barulho na altura do seu casamento desproporcionado com Simão Mucklebackit como se ela pertencesse à classe dos gentlemen. No entanto, reconquistou o prestígio após ter caído em desgraça; depois, voltou a cair ainda, como ouvi dizer a seu filho quando ele ainda era criança. Parece que receberam muito dinheiro quando deixaram as terras da condessa para se instalarem aqui, mas desde então nada lhes saiu bem. De qualquer modo, é uma mulher que sabe muito e, se ela se agarrar ao seu inglês, como já a ouvi fazer; algumas vezes, é possível que nos embarace.

 

O curso da vida numa tão extrema velhice é imperceptível e silencioso; foge tão lento como a maré que abandona gradualmente aquele navio encalhado na praia. Ültimamente, ainda balouçava com alegria ao menor impulso que recebia do vento ou das ondas; mas agora a quilha está enferrada na areia, o mastro forma com o céu um ângulo imóvel; cada vaga ao retirar-se agita-o num movimento mais fraco, afé que por fim, sepultado na areia, quedar-se-á inútil e impassível.

Comédia Antiga

 

No momento em que o Antiquário levantou a aldrava da porta, teve a surpresa de ouvir a voz aguda e trêmula de Elspeth cantar uma balada num tom queixoso e estranho:

O arenque ama o luar; A sarda precisa do vento; De dia gosta a ostra do archote: Sua origem é menos conhecida.

Diligente em recolher todos os fragmentos de antigas poesias populares, seus pés detiveram-se no limiar, com o ouvido assim ocupado, e, como que por instinto, levou a mão ao livro de apontamentos e ao lápis. De vez em quando, a velha parecia falar aos seus netos.

- Chiu, chiu, meninos; canto-lhes uma que será mais bonita do que a outra...

Ora, calem-se, homens e mulheres; Escutem bem, pequenos e grandes: vou celebrar nos meus cantos O ilustre chefe dos Glenallans, Cujo coração valia mil almas Quando combatia nos campos De Harlow, em sangrentas façanhas.

O coronach (1) fez-se ouvir nas margens tristes do Don, E da alta montanha ao vale Foi descendo o ruído sinistro.

Não me recordo bem dos versos que se seguem: falta-me a memória e a minha mente é perturbada por estranhos pensamentos. Deus nos livre da tentação!

Aqui a voz sumiu-se e não se ouviu mais do que um murmúrio confuso.

- É uma balada histórica - disse Oldbuck, com vivacidade - Sem dúvida, um fragmento intacto e verdadeiro dos antigos menestreis... Percy admirava-lhes a simplicidade... Ritson não lhes podia negar a au tenticidade...

- Sim, mas é uma coisa triste -disse Ochiltree ver a natureza humana reduzida a este grau de enfraquecimento, que a leva a cantar velhas canções semelhantes, depois de uma perda como a que sofreu.

- Chiu, chiu! - ordenou o Antiquário - Volta a encontrar o fio da sua história.

E enquanto ele falava, a velha recomeçou a cantar:

Selaram cem corceis brancos,

A cem negros puseram a brida,

com um caparão de aço

Em cada um dos seus cavalos

E um bom cavaleiro em cima do lombo

- Caparão! -exclamou o Antiquário - Talvez signifique cheveron; o termo vale um dólar.

E continuou a escrever no seu livro vermelho.

Galopam uma ou duas milhas Depois Donald vem cair-lhes em cima, Escoltado por vinte mil bravos, Livres, e não vis escravos; Seus mantos flutuam ao vento; Aos raios do sol nascente Brilhava o gládio cintilante, Enquanto a aguda gaita de foles

 

(1) Cântico fúnebre da Escócia. - N. do T.

 

Fazia ouvir de fila em fila Sua harmonia áspera e confusa. O conde sobre os seus estribos Ergueu-se para ver esses guerreiros Chegados do alto das montanhas. - Ah! disse ele para os nossos cavaleiros, Receio um pouco nestas campanhas. Nobre escudeiro, que farias tu

Perto do palafrém de teu amo, Se por ele pudesses passar: Se, pelo perigo abatido, Voltasses a brida como traidor? Fugir seria de um covarde, talvez; Combater é correr para a morte: Que farias tu, pois, Roland Cheyne, Se avançasses para o campo, Ocupando o meu lugar e a minha sorte?

É preciso que saibam, meus filhos, tão velha e pobre como me vêem, aqui sentada a um canto da chaminé, ele era meu avô; e era um homem terrível em dia de combate, sobretudo depois de que o conde pereceu, porque ele lamentava-se do conselho que lhe dera de combater antes de que o Mar chegasse com Mearns, Aberdeen e Angus.

Sua voz tornou-se mais forte e animou-se, ao recitar o conselho bélico de seu avô:

Se eu hoje fosse o conde de Glenallan,

E o senhor fosse Roland Cheyne,

O esporão cravava no flanco do corcel, E sobre as suas crinas, num impulso,

Deixaria flutuar a dupla rédea.

Que me importam seu número e seus gládios erguidos? Contra nós dês vezes dez avancem à pressa

Mas um manto é sua única defesa

E nós temos uma armadura de aço.

Já meu soberbo corcel Percorreu suas fileiras com aquela segurança

Que revela ao trilhar os pauis.

sangue que corre nas nossas veias, Longe de se desmentir, clama altos feitos

E a esses montanheses escoceses,

Esperamo-los nas nossas planícies.

- Ouves isto, meu sobrinho? - indagou Oldbuck Como vês, os guerreiros da planície não tinham outrora muito respeito pelos teus antepassados gaélicos.

- Eu oiço - disse Heitor - uma velha imbecil cantar uma velha canção que já não tem sentido para ela. Estou verdadeiramente surpreendido por o senhor, que não queria escutar os cantos de Ossian sobre Selma, poder prestar atenção a uma coisa tão lamentável. Declaro-lhe que nunca ouvi essas baladas que se gritam a um penny e que não valem mais do que esta; o senhor não encontrará uma tão má em nenhum bufarinheiro do país. Eu teria vergonha de pensar que tão míseros versos pudessem sequer atingir a honra dos montanheses.

Pronunciou estas palavras, meneando a cabeça num ar de indignação e desdém.

A anciã pareceu ter ouvido o som das suas vozes, porque, cessando de cantar, disse em voz alta:

- Entrem, entrem, senhores; a boa amizade nunca se detém no limiar da porta.

Entraram e, com grande surpresa, encontraram Elspeth só, sentada perto da lareira; o rosto cadavérico era a personificação da velhice, tal como é representada na canção do caçador do mocho, coberto de rugas, descarnado, hediondo, olhos apagados, pele descolorida e em estado de embrutecimento e de torpor,

- Sairam - disse ela, quando eles entraram - Mas se quiserem descansar um momento, algum deles vai regressar. Se têm alguma coisa a tratar com minha nora, ou com o meu filho, eles não tardam aí. Eu nunca trato de negócios... Meninos, tragam cadeiras os pequenos saíram, creio eu? -olhando em volta Tentava fazê-los estar quietos um momento, mas escaparam-se sem que me apercebesse. Sentem-se, senhores, eles já voltam.

A sua mão abandonou então o fuso, fê-lo rolar pelo chão, e em breve dir-se-ia exclusivamente ocupada em regular o movimento, tão indiferente à categoria dos estranhos como ao assunto que os podia trazer, e parecendo mesmo não se aperceber da sua presença.

- Desejaria - disse Oldbuck - que ela retomasse o canto e acabasse aquele antigo romance histórico.

Sempre suspeitei de que houvera uma escaramuça de cavalaria antes da verdadeira batalha de Harlaw.

- Se não agrada mais a Vossa Honra - disse Edie i-ocupar-se do assunto que nos traz aqui, comprometo-me a obter esse romance outro dia qualquer.

- Creio que tens razão, Edie: do manus. Submeto-me. Mas como havemos de proceder? Ei-la diante de nós, patenteando a imagem completa da imbecilidade. Fala-lhe, Edie. Vê se podes recordar-lhe que te mandou ao castelo de Glenallan.

Edie levantou-se e, atravessando o compartimento, colocou-se na mesma posição que ocupara durante a sua primeira conversa com ela.

- Tenho muito prazer em vê-la de tão boa saúde, comadre, tanto mais que a infelicidade a visitou depois de eu ter estado sob o seu tecto.

- Sim - disse Elspeth, mas mais segundo uma ideia geral de desventura do que pela recordação exacta do que lhe acontecera - Houve aflições entre nós, há pouco tempo. Não sei como os que são mais jovens as suportam. Não posso ouvir assobiar o vento ou mugir o mar que não julgue ver o barco ir ao fundo e algum dos nossos debater-se contra as vagas! Ah, senhores! que sonhos fatigantes se têm nesta dormência que não é vigília nem sono, e antes de se adormecer por completo nesse longo sono que nunca mais é interrompido. Às vezes, quase chego a julgar que o meu filho ou o meu neto Steenie morreu, e que vi o seu funeral. Não é um estranho sonho para uma velha criatura como eu? Que esquisito que algum deles morresse antes de mim... Não está no curso da natureza, como sabem.

- Eu creio que o senhor não tirará grande coisa desta velha imbecil - disse Heitor, que talvez nutrisse contra ela alguma aversão por causa do desprezo com que o seu romance tratava os seus compatriotas - Creio que tirarão muito pouca coisa, senhores, e que é perder o nosso tempo ficar aqui a escutar os seus desatinos.

- Heitor - disse o Antiquário, com indignação - se não respeitas os seus infortúnios, respeita ao menos a sua idade e os cabelos brancos. É o último período da existência, tão bem descrito pelo poeta latino:

Membrorum áamno major àementia, quep. nec Nomina servorum, nec vulíus agnoscit amici Cum quo prseterita cnenavit nocte, nec illos Quos genuit, quos eduxit (1).

- É latim -disse Elspeth, animando-se e parecendo escutar os versos que o Antiquário declamava com muita ênfase -É latim! -e relanceando um olhar assustado - Então, existe aqui um padre?

- Vê, meu sobrinho, que a sua compreensão relativamente a este belo passo é quase igual à tua.

- Espero, senhor, que me concederá o ter compreendido tão bem como ela que era latim?

- Palavra, quanto a isso... Mas vejamos, ela vai falar.

- Não quero padre, não quero - repetiu a velha, com uma violência impotente - Quero morrer como vivi. Nenhum poderá dizer que traí a minha ama, nem que fosse para salvar a minha alma.

- Eis que mostra uma má consciência - disse o mendigo - Gostaria que ela aliviasse o coração, nem que fosse para seu próprio repouso.

E voltou a assediá-la.

- Pois bem, boa comadre, levei a sua mensagem ao conde.

- A qual conde? Eu não conheço condes. Conheci outrora uma condessa, e Deus quisesse que eu nunca a tivesse visto, porque esse conhecimento trouxe-me

- parecia contar pelos dedos, enquanto falava - primeiro o orgulho, depois a maldade, depois a vingança, depois o falso testemunho; e o assassínio, embora não tivesse entrado, seguiu-os, no entanto, até à porta. Não eram hóspedes agradáveis para virem alojar-se no coração de uma mulher? Palavra, não lhes faltava companhia.

- Mas, comadre - continuou o mendigo - não era

 

(1) Demência mais fatal ainda que a fraqueza, quando leva a esquecer os nomes dos seus servidores, o rosto de um amigo com quem ela ceou, e não reconhecer aqueles que gerou, nem os que educou. - N. do T.

 

da condessa de Glenallan que lhe queria falar, mas do filho que se chama lorde Geraldin.

- Recordo-me agora - disse ela - Não o vi durante muito tempo, e tivemos pela última vez uma grande conversa. Ah, meu Deus! O jovem e belo senhor tornou-se tão velho e tão alquebrado como eu. O desgosto, as penas de coração, e a oposição que se atravessa num amor sincero, tudo isso exerce um terrível efeito sobre a gente nova; mas isso nada valia para sua mãe? Nós não estávamos lá senão para lhe obedecer, como sabem. Ninguém, tenho a certeza, me pode censurar. Um não era meu filho, a outra era minha patroa. Sabem o que diz a trova; quase esqueci como se canta agora, ou então esta ária saiu da minha velha cabeça:

Não desprezemos nossa mãe:

Posso reencontrar amores;

Mas uma mãe no caixão,

Ai! Está perdida para sempre.

Depois, ele não pertencia senão por metade à família, e ela era, afinal, ela era o sangue puro dos Glenallans. Não, não, não devo lamentar o que fiz e o que sofri pela condessa Jocelin; não, não o lamento.

- Ouvi dizer - prosseguiu o mendigo, regulando-se pelo que Oldbuck lhe dissera da família de Glenallan

- ouvi dizer, comadre, que uma má língua se metera nos assuntos de lorde Geraldin e sua noiva.

- Uma má língua? - repetiu ela vivamente, num ar alarmado - Que tinha ela a recear de uma má língua? Ela era bastante bondosa e bastante bela para nada recear; pelo menos, era o que toda a gente dizia: ah, se ela própria se abstivesse de exercer a sua língua sobre outras pessoas, ainda hoje poderia viver, feliz e grande dama, apesar de tudo!

- Mas ouvi dizer, boa comadre - continuou Ochiltree - que se espalhara o boato pelo país de que eles eram demasiado próximos parentes para se casarem.

- Quem ousa falar disso? - pronunciou a velha, bruscamente - Quem ousa dizer que eles eram casados? Quem sabe alguma coisa disso? Não foi a condessa, nem eu. Se se casaram secretamente, separaram-se. Beberam a taça de impostura que prepararam.

- Não, velha miserável! -exclamou Oldbuck, que não pôde guardar silêncio por mais tempo - Beberam o veneno que tu e a tua criminosa patroa prepararam!

- Ah! Ah! - replicou a velha - Sempre pensei que chegaríamos a isso; mas eu não tenho senão de guardar silêncio quando nos interrogarem. Já não há tortura nos nossos tempos; e se houvesse, que me despedaçassem se quisessem, não seria a boca do vassalo que trairia aquele de quem comeu o pão.

- Fala-lhe, Edie -disse o Antiquário - ela conhece a tua voz e responde-te melhor.

- Não tiraremos mais nada - replicou Ochiltree porque quando ela se põe, assim, de braços cruzados, dizem que está muitas vezes semanas inteiras sem falar. Aliás, parece-me notar-lhe uma grande mudança nas feições, desde que entrámos. No entanto, ainda vou tentar, para satisfazer Vossa Honra.

- Assim, pois, comadre, não pode convencer-se de que sua antiga ama, a condessa de Glenallan, tenha abalado deste mundo?

- Abalado! - exclamou ela, porque o nome da condessa nunca deixava de produzir efeito sobre ela Então devemos todos segui-la, é preciso que toda a gente esteja a cavalo quando ela estiver sobre a sela. Diga-lhes que advirtam lorde Geraldin que nós vamos à frente. Tragam-me a touca e o véu: não julguem que vou subir para a carruagem com milady, com os cabelos nesta desordem.

Ergueu os braços descarnados e fez o movimento de uma mulher que ajeita o seu manto no momento de sair, depois deixou-os recair lentamente e com rigidez; e com esta mesma ideia de viagem a flutuar sempre na sua mente, continuou num tom breve e entrecortado:

- Chamem Miss Neville. Que querem dizer com a vossa lady Geraldin? Eveline Neville, digo eu, e não lady Geraldin; não há lady Geraldin; digam-lhe bem isso e recomendem-lhe que mude as suas roupas molhadas e não mostre o rosto tão pálido. Quem fala de um filho? Que faria ela de um filho? As meninas não os têm, espero eu. Teresa, Teresa, milady chama-nos; traga uma luz, a escadaria nobre está tão escura como uma noite de Inverno... Já vou, já vou, milady!

Ao terminar estas palavras, revolveu-se na cadeira e caiu no chão.

Edie correu para a segurar, mas, mal a sentiu nos braços, disse:

- Acabou tudo! Foi-se, ao pronunciar a última palavra.

- É impossível! -exclamou Oldbuck, que avançara à pressa, bem como seu sobrinho.

Mas nada era mais verdadeiro. Ela expirara com a última palavra que a sua boca proferira, e diante deles nada mais restava senão os despejos mortais de uma criatura que por muito tempo lutara contra o remorso secreto de um crime oculto, junto a todos os males da velhice e da pobreza.

- Deus queira que ela tenha ido para um lugar, mais tranquilo - disse Edie, olhando o corpo inanimado - Oh! Alguma coisa devia pesar-lhe muito terrivelmente no coração; já vi morrer muita gente, tanto no campo de batalha como no seu leito, mas nunca testemunhei uma morte tão aterradora como

a sua.

- É preciso chamar os vizinhos - disse Oldbuck, quando se refez um pouco do seu espanto e horror

- e anunciar-lhes este acréscimo de desventura. Lamento que não se pudesse levá-la a uma confissão; e, embora isto seja uma coisa menos importante, gostaria de ter transcrito aquele fragmento de poesia: mas seja feita a vontade de Deus!

Abandonaram, pois, a choupana e difundiram aquela notícia pela aldeia, cujas matronas se apressaram a acorrer para compor os membros e velar o corpo daquela que poderia considerar-se a veterana da comunidade. Oldbuck prometeu assistir ao funeral.

- Vossa Honra - disse Alison Breck, que era a mais idosa depois da falecida - devia enviar-nos alguma coisa para nos sustentar durante a velada fúnebre, porque toda a genebra do pobre Saunders se bebeu nos funerais de Steenie, e não se encontrará muita gente que queira ficar junto do corpo, de garganta seca. Elspeth era uma sábia no tempo da sua juventude, mas houve sempre estranhas suspeitas a seu respeito. Não se deve falar mal do próximo, e ainda menos de uma comadre e de uma vizinha. Mas correram boatos singulares acerca de uma jovem dama e de uma criança antes de ela deixar Craigburnfoot, e, palavra, vai ser uma pobre velada a sua, se Vossa Honra não nos enviar alguma coisa para nos agüentar.

- Terá whisky - disse Oldbuck - tanto mais que a senhora conservou esse antigo costume de velar os mortos. Repara, Heitor, que a origem desta palavra é puramente teutónica, embora a mudassem e corrompessem nos tempos modernos.

"Creio - disse Heitor a si próprio - que meu tio daria o seu domínio de Monkbarns a alguém que lho viesse pedir em autêntico teutónico. É bem certo que estas velhas não obteriam nem uma gota de whisky, se a sua velha presidente não a pedisse para manter este antigo costume. "

Enquanto Oldbuck dava outras ordens e prometia a assistência, um criado de sir Arthur chegou a todo o galope pelo areal e deteve o cavalo, ao ver o Antiquário. Coisas muito sérias - disse ele - acabavam de passar-se no castelo; não podia ou não queria dizer de que género, e Miss Wardour mandara-o a Monkbarns pedir a Mr. Oldbuck que fosse procurá-lo sem demora.

- Tenho medo - disse o Antiquário - de que as coisas tenham chegado à última extremidade! Que hei-de fazer?

- Não há senão um partido a tomar, senhor! exclamou Heitor, com a impaciência que o caracterizava - Monte a cavalo, volte a brida para o lado de Knockwinnock, e estará no castelo em dez minutos.

- É um cavalo muito bom, senhor - disse o criado, apeando-se e ajustando a silha e os estribosi - só escouceia um pouco quando sente o peso do cavaleiro.

- E não tardaria em desembaraçar-se, deitando-me a terra - acrescentou o Antiquário - Que diabo, meu sobrinho, estás farto de mim, ou supões que eu o esteja da vida, para quereres fazer-me trepar ao lombo de semelhante Bucéfalo? Não, não, meu amigo; se tiver de ir hoje a Knockwinnock, será simplesmente nas minhas pernas, o que vou tentar fazer o mais rapidamente possível; o capitão Mac Intyre pode montar esse cavalo, se quiser.

- Não tenho esperança de lhes ser útil, meu tio, mas não posso pensar na sua infelicidade sem desejar mostrar-lhe a parte que tomo nela; assim, vou partir à frente e anunciar-lhes a sua chegada... Posso pedir-Lhe as suas esporas, meu amigo?

- Não precisa delas, meu senhor - respondeu o criado, tirando-as e ajustando-as às botas do capitão Mac Intyre - Ele tem uma andadura bastante franca.

Oldbuck ficou confundido com este último rasgo de temeridade.

- Estás louco, Heitor! - exclamou ele - Ou esqueceste o que é dito por Quintus Curtius, que, na qualidade de soldado, devias ao menos conhecer, Nobilis eguus umbra quidim virgee regilur; ignavus ne calcari quiáem excitari potesi?

 

(1) O que demonstra claramente que as esporas são sempre inúteis, e ajuntarei, a maior parte das vezes perigosas.

 

Mas Heitor, que, em tal assunto, não se preocupava nada com a opinião de Quintus Curtius, nem mesmo com a do Antiquário, respondeu estouvadamente:

Àquelas palavras, larga a brida ao seu corcel, E a espora sangrenta logo o aguilhoa; Como um intrépido guerreiro, Devora o caminho e não escuta ninguém.

- Ei-los que partem e, palavra, formam um bom par - disse Oldbuck, vendo-os correr - Um cavalo fogoso e um jovem louco, as duas criaturas mais indomáveis da cristandade! E tudo isto para chegar meia hora mais cedo ao sítio onde ninguém precisa dele, porque duvido da que o nosso estouvado cavaleiro possa fazer alguma coisa às dificuldades de sir Arthur. Aquilo deve ser resultado da patifaria de Dousterswivel, por quem sir Arthur tanto fez, e não posso deixar de notar aqui que a máxima de Tácito pode aplicar-se a algumas índoles: Beneficia co usque lesta sunt, dum viãentur exsolvi poste; ubi multum anlevenere, pró graíia adiam reãditur (1); de onde um homem sensato

 

(1) Basta a sombra de uma vara para guiar um nobre corcel; o cavalo preguiçoso, nem mesmo com espora se pode pôr a galope. - N. do T.

(2) Recebem-se com prazer os benefícios enquanto se julga poder pagá-los; mas quando ultrapassem a medida, o ódio sucede à gratidão. - N. do T.

 

 

fica advertido para não favorecer outro para além dos meios de que ele dispõe para se desobrigar, evitando que o seu devedor faça também bancarrota do reconhecimento.

Recitando para ele próprio sentenças semelhantes de filosofia cínica, o nosso Antiquário continuava a marchar ao longo da praia para o castelo de Knockwinnock. Mas temos que ultrapassá-lo para explicar os motivos que faziam com que se desejasse tão impacientemente a sua presença.

 

Assim, quando a galinha de que nos fala a fábula estava a chocar os seus ovos de ouro, o cruel rapaz, impaciente por destruí-la, deslizou para junto do ninho solitário, agarrou-a com mão ávida e bárbara, e em breve das suas visões douradas não restava mais do que uma ave moribunda cujas asas palpitantes cessam de debater-se e cujo derradeiro grilo se faz ouvir.

Os Amores das Plantas Marinhas

 

Depois de sir Arthur Wardour se tornar possuidor do tesouro descoberto no túmulo de Misticot, o estado do seu espírito pareceu ter mais de êxtase que de senso comum. Por mais de uma vez, sua filha receou seriamente que ele perdesse a cabeça; porque, plenamente convencido de que detinha o meio de assegurar a posse de riquezas sem limites, a sua linguagem e procedimento eram os de um homem que encontrou a pedra filosofal. Falou em adquirir as propriedades vizinhas das suas, que o conduziriam de uma ponta à outra da ilha, como se ele resolvesse não poder suportar outra vizinhança senão o mar. Escrevera a um arquitecto célebre, sobre o projecto que havia de fazer reconstruir o castelo dos seus antepassados sobre um plano cuja magnificência rivalizaria com o de Windsor, e propunha-se mandar desenhar o parque de maneira que lhe correspondesse. Já via em imaginação os vestíbulos repletos de uma turba de lacaios de libré, etc. pois a que não pode aspirar o possuidor de riquezas ilimitadas? A coroa de um marquês ou mesmo de um duque já cintilava diante dos seus olhos. A que partidos sua filha não poderia aspirar? Uma aliança com o sangue real não estava fora das suas esperanças; seu filho já era general e, quanto a ele, tornava-se tudo o que os sonhos extravagantes da ambição lhe podiam sugerir.

Nesta disposição, se alguém tentava trazer sir Arthur às realidades da vida, ele respondia pouco mais ou menos como o velho Pistol:

Pouco me importa o mundo e seus vis habitantes: Falo da África e de todos os seus presentes.

O leitor pode conceber qual fora o espanto de Miss Wardour, quando, em lugar de ser interrogada sobre as suas relações com Lovel, como ela esperara depois da longa conferência que o pai tivera com Mr. Oldbuck, na manhã do dia memorável em que o tesouro fora descoberto, a conversa de sir Arthur lhe revelou uma imaginação exaltada pela esperança de possuir riquezas inesgotáveis. Mas ela alarmou-se seriamente quando, no dia seguinte de manhã, seu pai mandou procurar Dousterswivel, se fechou com ele, consolou-o do seu desastre, tomou o seu partido e indemnizou-o da sua perda. Todas as suspeitas que aquele homem lhe inspirava, havia muito tempo, se fortificaram ao vê-lo alimentar as brilhantes quimeras do pai e, sob diversos pretextos, atrair às suas mãos tudo o que pôde do tesouro que tão estranhamente a sorte proporcionara a sir Arthur.

Outros sintomas assustadores se sucederam rapidamente uns aos outros. Cada correio trazia cartas que sir Arthur, depois de ver o endereço, se apressava a atirar ao lume, sem se dar ao trabalho de as abrir. Miss Wardour não podia deixar de suspeitar de que aquelas epístolas, das quais seu pai, como por instinto, parecia adivinhar o conteúdo, vinham de credores impacientes. Durante esse tempo, o tesouro temporário que o achado lhe proporcionara escoara-se rapidamente. A maior parte fora absorvida pela necessidade de pagar aquela letra de câmbio de seiscentas libras esterlinas que ameaçava sir Arthur de ruína imediata.

Uma parte do resto fora dada ao alemão, outra esbanjada em despesas loucas que o pobre baronnet julgava plenamente autorizadas pelas esperanças de realização das que imaginava vir a receber. Uma pequena parte também servira para fechar a boca àqueles impertinentes que, cansados de belas promessas, se tornaram da opinião de Harpagão, que era preciso que elas fossem acompanhadas de alguma coisa de substancial. Enfim, as circunstâncias provaram demasiado claramente que dois ou três dias depois da descoberta já não tinha qualquer perspectiva de socorro pecuniário.

Sir Arthur, naturalmente impaciente, começou a censurar de novo Dousterswivel por faltar àquelas promessas que lhe fizera de que todo o seu chumbo se converteria em ouro. Mas aquele digno gentleman já estava servido e, tendo bastante pudor para não ser testemunha da queda de quem ele arruinara, fez algumas despesas em obras para tranquilizar sir Arthur e para que este não se atormentasse antes de tempo. Em seguida, despediu-se dele, prometendo-lhe voltar no dia imediato a Knockwinnock com novidades que tirariam para sempre sir Arthur da sua aflição.

- Porque, desde que estudo este génerro de negócios - disse Mr. Herman Dousterswivel - nunca estive tão perto do arcano que se chama o grrande mistérrio de Panchresta, ou Polychresta... Sei tanto como Pelaso de Taranta ou Basilius, dentrro de dois ou trrês dias hei-de trrazer-lhe o númerro trrês de Mr. Misbigot ou Mishdigoat, de contrárrio, dou-lhe licença que me chame ladrão e que nunca mais olhe para a minha carra em sua vida.

O alemão abalou depois de ter dado esta garantia, na intenção de manter pelo menos a última parte, nunca mais se apresentando diante do seu patrão tão ofendido. Sir Arthur ficou entregue à inquietação e à dúvida. Os protestos positivos do charlatão, com as temíveis palavras de Panchresta, Basilius e outras, produziam algum efeito no seu espírito, mas ele fora enganado vezes em demasia com aquele calão para depositar uma confiança absoluta. Retirou-se essa noite para a sua biblioteca num estado de agitação de alguém que, suspenso à beira de um precipício e sem meio de lhe escapar, sente a pedra em que se apoia desprender-se gradualmente do resto do rochedo e prestes a despenhar-se sob os seus pés.

Os sonhos da esperança dissiparam-se, e ele sentiu crescer em proporção aquela angústia dilacerante com a qual um homem criado na opulência e no sentimento da sua categoria, sustentáculo de um nome ilustre e pai de dois filhos que anunciavam um tão belo futuro, pode ver aproximar o momento que vai privá-lo de todo o seu esplendor, que o hábito lhe tornou necessário, e condená-lo a lutar sozinho no mundo contra a pobreza e o desprezo. Presa desta perspectiva sinistra, o seu carácter, alterado pelo desgosto de ver as suas esperanças constantemente iludidas, tornou-se irritável e melancólico, e as suas palavras como as suas acções exprimiam muitas vezes a inconsciência do desespero. Já vimos em circunstâncias precedentes que sir Arthur tinha paixões vivas e violentas, tanto quanto sob outros aspectos era fraco de carácter. Estava pouco habituado à contradição e, se até então parecera alegre e fácil, era porque provavelmente o decurso da vida não lhe oferecera contrariedades capazes de tornar habitual a sua irritabilidade.

Na manhã do terceiro dia depois da abalada de Dousterswivel, o criado colocou como de costume em cima da mesa do almoço os jornais e as cartas que o correio trouxera. Miss Wardour apoderou-se dos primeiros, evitando parecer notar o mau humor constante de seu pai, que se encolerizara violentamente porque as torradas estavam muito queimadas.

- Estou a ver o que é -disse ele, em conclusão do seu discurso sobre este importante assunto - Os meus criados, depois de terem partilhado da minha fortuna, começam a pensar que nunca mais de futuro poderão enriquecer tanto à minha custa; mas enquanto eu for o amo destes patifes não lhes perdoarei a menor negligência; não suportarei que eles se des leixem no respeito que tenho o direito de exigir deles.

- Estou pronto a deixar agora mesmo o serviço de Vossa Honra - disse o criado a quem aquela falta era censurada - logo que ordene o pagamento dos meus salários.

Sir Arthur estremeceu como se fosse picado por um dardo de serpente; meteu a mão no bolso, tirou todo o dinheiro que ele continha, mas que era insuficiente para satisfazer aquele homem.

- Tens dinheiro contigo? - perguntou ele a Miss Wardour com uma calma afectada, e que mal disfarçava uma violenta excitação.

Miss Wardour deu-lhe a sua bolsa. Ele tentou contar as notas que continha, mas não pôde chegar ao fim. Depois de se ter enganado duas vezes na contagem, atirou tudo a sua filha e disse-lhe em voz severa:

- Paga a esse patife, e que saia imediatamente da minha casa.

Depois de assim falar, retirou-se da sala.

A jovem patroa e o criado ficaram igualmente confusos com a violência e a excitação a que ele acabava de se entregar.

- Asseguro-lhe, minha senhora - disse o homem que se eu julgasse estar em erro quando sir Arthur me censurou, não me permitiria responder-lhe. Estive muito tempo ao seu serviço, e ele foi sempre bom patrão, e a senhora uma excelente ama, e não gostaria que me julgassem capaz de os deixar por uma vivacidade... Lamento ter falado nos meus salários, e concordo que foi muito mal da minha parte fazê-lo num momento em que sir Arthur talvez tivesse alguma coisa que o atormentasse... Ser-me-ia cruel deixar desta maneira o serviço da família.

- Vá lá para baixo, Roberto - disse-lhe sua ama deve ter sucedido alguma coisa a meu pai para se irritar: fique lá em baixo, e Alick que responda à campainha.

Quando o criado deixou o aposento, sir Arthur entrou, como se não tivesse esperado senão a sua saída.

- Que significa isto? -perguntou ele bruscamente, ao ver o dinheiro que ficara em cima da mesa - Ele ainda não partiu? Não posso, então, fazer-me obedecer nem como amo, nem como pai?

- Foi fazer as suas contas com a despenseira, senhor... Não julguei que houvesse assim tanta pressa...

- Muita pressa, Miss Wardour - respondeu seu pai, interrompendo-a - O que me resta fazer na casa de meus pais deve realizar-se agora, ou nunca...

Sentou-se em seguida e tomou a chávena de chá que estava preparada para ele, demorando a engoli-lo, como que para retardar, ao mesmo tempo a necessidade de abrir as cartas colocadas em cima da mesa, e às quais lançava um olhar, de vez em quando. Dir-se-ia que via um ninho de víboras prontas a animar-se e a lançar-se sobre ele.

- O senhor deve gostar de saber - anunciou Miss Wardour, tentando arrancar seu pai às sombrias reflexões em que mergulhara - deve gostar de saber que o brigue do tenente Taffril entrou sem acidente na enseada de Leith. Acabo de saber que houve receios acerca da sua sorte. Estou muito satisfeita por não ter sabido nada, antes de que essas notícias fossem desmentidas.

- E que me interessa a mim Taffril e o seu brigue?

- Senhor! - exclamou Miss Wardour, assombrada; porque sir Arthur, no seu normal, tomava uma espécie de interesse e curiosidade pelos mexericos do dia e por todas as pequenas notícias do país.

- Eu disse - repetiu ele, num tom ainda mais impaciente e mais irritado - que pouco me importa que se salvasse ou se perdesse. Que me pode isso interessar?

- Não sabia que se preocupava com outra coisa, sir Arthur, e como Mr. Taffril é um bravo oficial e um compatriota, pensei que o senhor gostaria de saber...

- Oh! Tenho muito gosto, encantado; e para te encantar por minha vez, vou dar-te as minhas boas notícias - E pegando numa carta, disse - Pouco importa a que vou abrir... São todas no mesmo tom.

Quebrou o lacre à pressa, percorreu-a com a vista e atirou-a a sua filha.

- Justamente! - exclamou ele - Não podia cair melhor. Isto prepara o resto.

Num silencioso terror, Miss Wardour pegou na carta.

- Lê-a, lê-a de alto - disse seu pai - Por vezes, não se entende muito bem; aliás, servirá para te preparar para outras boas notícias do mesmo género,

Ela começou a ler, em voz entrecortada: "Caro senhor".

- Trata-me assim por caro senhor, esse desavergonhado criado de procurador, que, há um ano, ainda não tinha categoria para sentar-se à mesa dos meus criados; em breve, presumo eu, chamar-me-á "caro cavaleiro".

- "Caro senhor" - repetiu Miss Wardour; depois, interrompendo-se - Mas, senhor - disse ela - vejo que o conteúdo desta carta é pouco agradável e, se eu a ler de alto, não fará senão irritá-lo.

- Se quiseres permitir-me que proceda como me aprouver, por favor, Miss Wardour, tem a bondade de continuares; se a coisa fosse inútil, não te daria esse trabalho.

Miss Wardour retomou a leitura da carta: "Caro senhor, tendo entrado há pouco em sociedade com Mr. Gilbert Greenhorn, filho do seu falecido correspondente e homem de negócios, de quem dirigi durante vários anos os assuntos como escriturário do parlamento, e cujos negócios se farão de futuro sob a firma de Greenhorn e Grinderson (do que peço favor de lembrar-se ao endereçar de futuro as suas cartas), e tendo, na ausência do meu dito sócio Gilbert Greenhorn que foi às corridas de Lamberton, tomado conhecimento da carta com que ultimamente nos honrou, tenho a honra de responder à dita carta...

- Como vês, eis um amigo que tem método, e que começa por me assinalar as causas que me arranjaram um correspondente tão distinto e tão modesto. Continua, eu tenho paciência.

Ao falar assim, riu-se com aquele riso amargo que é talvez a mais temível expressão dos tormentos de que o espírito é presa. Tanto receando prosseguir; como desobedecer, Miss Wardour continuou a leitura:

"Por minha conta pessoal e na minha qualidade de sócio, tenho muita pena de que não possamos ser-Lhe úteis obtendo-lhe as quantias de que nos fala ou concedendo uma prorrogação no negócio de crédito Goldiebird, o que é incompatível com os nossos deveres, estando encarregados de proceder como procuradores autorizados e homens de negócios do dito Goldiebird, em virtude da cujo título o processamos, como o senhor deve estar avisado pela citação que recebeu, pela quantia de 4756 libras, 5 xelins, 6 pence e 4 dinheiros esterlinos, que, com os juros e custas, serão pagos, como deve presumir, no prazo fixado, para prevenir inconvenientes mais graves. Tenho ao mesmo tempo necessidade de o avisar de que teremos muita satisfação de receber o pagamento da nossa conta pessoal, no montante de 769 Libras, 10 xelins e 6 pence esterlinos; mas como temos entre mãos todos os seus papéis, títulos e documentos de hipoteca, não teremos dificuldade em conceder-lhe um prazo razoável até o próximo vencimento. Por minha conta e como sócio, tenho o desgosto de ajuntar que as instruções de Mr. Goldiebird são de proceder peremptorie e sine mora (1); do que tenho o prazer de o prevenir para evitar qualquer erro a este respeito, reservando-nos actuar em conformidade. Por minha conta e como sócio, caro senhor, sou seu humilde e obrigado servidor Gabriel Grinerson, por Greenhorn e Grinderson. "

- Miserável ingrato! - exclamou Miss Wardour.

- Nada disso, é a regra geral, suponho eu; faltaria alguma coisa a este golpe, se fosse vibrado por outra mão. As coisas são o que devem ser - A calma que o pobre baronnet afectava, ao falar assim, era estranhamente desmentida pelo tremor dos seus lábios e pelo desvario dos seus olhos - Mas há um pósescrito em que não fiz reparo; vejamos, pois, o final dessa epístola.

"Tenho a acrescentar (não por mim, mas pelo céu sócio Mr. Greenhorn) que se pode chegar a um acordo, aceitando o seu serviço de prataria, e os seus cavalos baios se estiverem em bom estado sob uma avaliação, razoável e por conta do pagamento do seu memorial".

- Que o céu o confunda! - exclamou sir Arthur, não sendo mais senhor dele perante esta prova de condescendência-O seu avô ferrava os cavalos de meu pai, e esse descarado descendente de um mísero íerrador queria surripiar-me os meus. Mas eu vou responder-lhe à letra.

Sentou-se e começou a escrever com muita rapidez, depois de teve-se e leu de alto:

"Senhor Gilbert Greenhorn, em resposta a duas cartas de uma data recente, recebi uma carta de um indivíduo que se diz chamar-se Grinderson, e que se anuncia como seu sócio. Quando me dirijo a alguém

 

(1) Peremptòriamente e sem demora. - N: do T.

 

não estou habituado a que se sirvam de outro para me responder. Creio ter sido útil a seu pai, e que o senhor sempre me encontrou obsequioso e delicado; tenho, pois, motivo para me admirar... " E no entanto

- disse ele, detendo-se de repente - porque hei-de admirar-me disto ou de outra coisa qualquer, e para que perder o meu tempo a escrever a semelhante patife? Talvez não fique toda a vida na prisão; e quando sair, a primeira coisa que farei é quebrar os ossos a esse vaidoso!

- Na prisão, senhor! -exclamou Miss Wardour, em voz sufocada.

- Sem dúvida, na prisão, podes duvidar? Ou não compreendes a bela carta do senhor procurador, ou talvez tenhas 4.000 e não sei quantas 100 libras, xelins e pence esterlinos para me dar a fim de satisfazer a dita reclamação, para falar a sua linguagem?

- Eu, senhor! Deus quisesse que eu possuísse esses meios! Mas onde está o meu irmão? Porque não vem ele, desde que está na Escócia? Teria podido fazer alguma coisa para nos ajudar.

- Quem? Reginald? Foi, suponho eu, com Mr. Greenhorn, ou qualquer ilustre personagem desse género, às corridas de Lamberton. Há mais de uma semana que o espero. Mas devo admirar-me de que meus filhos me desprezem como o resto do mundo? Perdão, meu amor, não era contigo que eu devia falar assim, contigo, que nunca me desprezaste nem ofendeste na tua vida!

Ao falar assim, beijou enternecidamente a face de sua filha, que lhe passara os braços em torno do pescoço e o apertava carinhosamente. Abandonou-se a esta consolação que traz sempre ao coração de um pai, a quem os desgostos possam oprimir, a doce convicção de que possui toda a ternura de um filho.

Miss Wardour aproveitou aquele regresso de sensibilidade para tentar abrandar e acalmar o espírito de seu pai. Lembrou-lhe que ele tinha muitos amigos.

- Houve tempo em que tinha muitos - disse sir Arthur - mas há aqueles a quem os meus projectos extravagantes maçaram. Uns não estão em situação de me socorrer; outros não têm vontade disso... Está tudo perdido para mim... Possa a minha imprudência servir de lição a Reginald!

- Senhor, se eu mandasse a Monkbarns? - lembrou sua filha.

- Para quê? Oldbuck não me pode emprestar semelhante quantia; e, se pudesse, não o desejaria, porque sabe que, além do mais, estou afogado em dívidas; e não faria senão maçar-me com as suas máximas de misantropo e as suas citações latinas.

- Mas Mr. Oldbuck possui bom-senso e sagacidade; além disso, foi criado nos negócios, e tenho a certeza de que sempre gostou da nossa família.

- Sim, acredito... A que situação estamos reduzidos, para que um Wardour se encontre na [necessidade de precisar da amizade de um Oldbuck! Mas visto que as coisas chegaram ao extremo de que estamos ameaçados, podes, se quiseres, mandá-lo buscar. E agora, minha filha, vai dar o teu passeio habitual... Tenho o espírito mais sossegado do que antes de te ter feito esta dolorosa comunicação. Conheces o pior, e sabes o que devemos esperar a toda a hora, e a todo o momento Mas vai, peço-te, vai passear... Aliás, sentir-me-ei satisfeito por ficar só uns instantes.

Ao deixar o aposento, o primeiro cuidado de Miss Wardour foi aproveitar aquela espécie de autorização que arrancara a seu pai, enviando a Monkbarns o mensageiro que, como já relatámos, encontrara o Antiquário e seu sobrinho no caminho da praia.

Indiferente à direcção que tomava, e mal a notando apenas, ela dirigiu seus passos para o passeio solitário que se chamava monte dos Espinheiros. Um regato, que outrora fornecera água aos fossos do castelo, descia ao longo de um estreito vale, onde o gosto de Miss Wardour mandara arranjar uma vereda já indicada pela Natureza, e cujo pendor suave e fácil nada se ressentia da triste regularidade da arte. Estava em harmonia com o carácter daquele pequeno vale, cercado de bosques, principalmente compostos de cedros e aveleiras, e entremeados de diversas espécies de espinheiros e silvas. Fora naquele local que se dera, entre Miss Wardour e Lovel, a explicação de que o velho Edie Ochiltree fora testemunha.

Coração predisposto ao enternecimento pelas desditas que ameaçavam seu pai, Miss Wardour lembrou-se nesse momento de cada palavra, cada argumento de que Lovel se servira para defender a causa do seu amor, e não pôde deixar de confessar que o pensamento de ter inspirado a um jovem daquele mérito uma paixão tão violenta e desinteressada, era bem de molde a lisonjear o seu orgulho. Havia pessoas que podiam qualificar de romanesco o sentimento que o levara a abandonar uma profissão na qual se dizia achar-se em posição de fazer um rápido progresso, para vir enterrar-se num lugar tão pouco atraente como Fairport, sem outra consolação a não ser a kãe meditar sobre um amor que não era partilhado; mas, decerto, aquele excesso de apego devia parecer bem desculpável àquela que era o objecto. Se ele tivesse uma posição independente, por modesta que fosse, ou se pudesse provar que tinha direitos incontestáveis à classe para ornamento da qual parecia ter sido feito, poderia ela partilhar o seu destino; encontrar-se-ia ela agora em situação de oferecer em sua casa, a seu pai, um asilo para a sua desgraça. Estes pensamentos, tão favoráveis ao amante ausente, sucediam-se-lhe, alternadamente no espírito, e a memória reproduzia-lhe cada uma das suas expressões, cada um dos gestos, dos olhares, com uma exactidão que provava que, ao rejeitar-lhe os votos, ela escutava mais o dever do que a sua inclinação. Meditava, pois, Isabel neste tema e nas desventuras do pai, quando, num local onde a vereda seguia o desvio de um outeiro coberto de sarças, se encontrou de repente diante do velho roupão azul.

Num ar que parecia indicar ter alguma coisa de importante e misterioso a comunicar-lhe, Edie tirou o chapéu e, avançando com precaução, disse-lhe, num tom que revelava receio de ser ouvido:

- Desejava muito encontrar Vossa Senhoria; pois sabe que não me atrevo a vir ao castelo, por causa de Dousterswivel.

- com efeito -disse Miss Wardour, lançando qualquer coisa no chapéu do mendigo - constou-me que o senhor cometeu uma acção muito louca, muito censurável, e isso causou-me verdadeiro desgosto.

- Ah, meu Deus! Minha boa lady, o mundo está cheio de loucos: como havia de ser o velho Edie único sensato?... E quanto ao mal que lhe fiz, aqueles que conhecem Dousterswivel que se pronunciem sobre se ele teve o que merece.

- Isso pode ser verdade, Edie - respondeu Miss Wardour - mas o senhor não deixou de sofrer grandes contrariedades.

- Não o nego. Mas hoje não tenho tempo para discutir esse assunto, é de si que eu quero falar: sabe o que ameaça a casa Knockwinnock?

- Receio grandes infortúnios, Edie - disse Miss Wardour - admira-me, porém, que já sejam tão públicos.

- Públicos! Como poderia ser de outra maneira?... Sweepclean virá hoje aqui com todo o seu bando; soube-o por um dos seus confrades que foi avisado para se lhes juntar, e não tardarão em meter mãos à obra. Quando passam por qualquer parte, não é preciso perguntar o que resta após eles; tosquiam as pessoas ao vivo.

- Eu sei que esse momento fatal há-de chegar; mas tem a certeza, Edie, de que está tão próximo?

- O que lhe digo, milady, não é senão demasiado verdadeiro; mas não se deixe abater... Há agora um Deus a velar por si, como velava naquela noite terrível, entre o cabo de Bally Burgh e o topo de Halket. Julga que aquele que repeliu as águas não possa protegê-la contra a cólera dos homens, mesmo que venham armados de toda a autoridade humana?

- Ai! é a nossa única esperança!

- Não sabe o que pode acontecer. É o momento em que a noite é mais sombria do que a alvorada do dia que vai surgir. Se eu tivesse um bom cavalo, e força para o montar, julgo que encontraria meio de lhe ir buscar socorro. Contava subir para a imperial da diligência da Royal Charlotte; mas parece que se voltou em Kittlebrig. Vinha um gentleman na almofada, a quem apeteceu conduzir, apeteceu a Tom Sang, que devia ter mais juízo, fazer-lhe a vontade, se bem que ele nunca pudesse tornear a esquina da ponte; cortou muito curto, e partiu a carruagem como quem parte um vidro. Foi uma felicidade eu não ir nela. Vim, pois, com alguma esperança de conseguir o que desejava: ver se a menina me quer lá enviar,

- Mas, Edie, onde quer ir? - perguntou a jovem lady.

- A Tannonburgh, minha boa lady (é o primeiro posto depois de Fairport, mas muito mais perto de Knockwínnock), e isso sem demora; é para os seus próprios negócios.

- Os nossos negócios, Edie; ai, faço justiça às suas boas intenções, mas...

- Não há mas, nem meio mas, lady; é preciso que eu vá -insistiu o mendigo.

- Mas que quer o senhor fazer em Tannonburgh, e como pode ser útil aos negócios de meu pai?

- Palavra de honra, minha boa lady - disse o velho pedinte - é um pequeno segredo confiado à cabeça grisalha do velho Edie, e sobre o qual não é preciso fazer perguntas. Certamente, se arrisquei de boa vontade a minha vida para a salvar na noite da tempestade, não pode julgar-me capaz de querer aumentar os seus desgostos em semelhante dia de tristeza.

- Bem, Edie, siga-me, e vou tratar de enviá-lo a Tannonburgh.

- Então, apresse-se, apresse-se, minha boa lady, por amor de Deus!

E continuou a incitá-la a apressar-se, até atingirem o castelo.

 

Os que gostam desse espectáculo que o vão ver. Quanto a mim, não me agradaria; porque, admitindo que ele foi escravo dos preconceitos da classe e do luxo, e de todas as frivolidades que a rigorosa necessidade lhe rouba hoje, é, no entanto, triste ver a sua fronte vergada, onde o orgulho tenta em vão cobrir com seu véu transparente as marcas profundas que nela traçam o arrependimento e a dor.

Comédia Antiga

 

Ao chegar ao pátio do castelo, ao primeiro olhar Miss Wardour notou que já estava cheio de oficiais de justiça. Verificava-se um misto de confusão, de inquietação, de mágoa e de curiosidade no rosto dos criados, enquanto os oficiais de justiça andavam de um lado para o outro, fazendo o inventário dos utensílios e móveis que lhes pareciam penhoráveis. O capitão Mac Intyre voou para ela, enquanto a jovem, consternada pela convicção da ruína de seu pai, permanecia imóvel no limiar da porta.

- Minha querida Miss Wardour - disse ele - acalme a sua inquietação; meu tio vai chegar dentro de instantes, e tenho a certeza de que encontrará qualquer forma de os desembaraçar destes patifes.

- Ai, capitão Mac Intyre, receio que seja demasiado tarde.

- Não - respondeu Edie com impaciência - se eu puder chegar a Tannonburgh... Em nome do céu, capitão, arranje qualquer meio para me poder transportar, e será para esta infeliz família arruinada a melhor obra que se fará desde o tempo de Mão Vermelha; porque, dando crédito a um velho ditado, o castelo e a terra de Knockwinnock serão hoje perdidos ou salvos.

- E que quer o senhor, fazer nisto, ancião? -replicou Heitor.

Mas Roberto, o criado de quem sir Arthur estivera descontente essa manhã e que parecia espreitar ocasião para demonstrar o seu zelo, avançou rapidamente e disse a sua ama:

- com sua licença, minha senhora, permito-me observar que este velho, Edie Ochiltree, tem muito saber e experiência em muitas coisas, tais como doenças de animais e assuntos semelhantes, e tenho a certeza de que não é sem motivo que ele quer hoje ir a Tannonburgh, sobretudo pela maneira como insiste; e se agradar à senhora, vou lá levá-lo na caleça em menos da uma hora. Ficarei bem contente por ser útil em alguma coisa; porque sinto vontade de arrancar a minha língua quando penso nesta manhã.

- Agradeço-lhe muito, Roberto - respondeu Miss Wardour - e se julga que há realmente ocasião para um mínimo de utilidade...

- Em nome do céu! -exclamou o velho - Roberto, atrele a caleça, e se eu não conseguir ser útil de qualquer maneira, dou-lhe licença de que me atire por cima da ponte de Kittlebrig, no nosso regresso. Mas, o meu amigo, despache-se, porque os momentos são hoje preciosos.

Roberto olhou para sua ama, que entrava em casa, e, vendo que ela nada lhe proibia, correu à cocheira que havia no pátio, a fim de atrelar o veículo; porque, muito embora um velho mendigo fosse a última pessoa de quem se pudesse esperar socorro efectivo numa casa de aflição pecuniária, toda a gente da classe inferior que conhecia Edie tinha geralmente sobre a sua sagacidade e a sua prudência ideias que autorizavam Roberto a concluir que ele não insistiria tanto na necessidade dessa viagem se não estivesse convencido da sua utilidade. Mas, ainda bem o criado não se apoderara de um cavalo para o atrelar à caleça, já um dos oficiais de justiça lhe batia no ombro e lhe dizia:

- Meu amigo, não deve tocar nesse cavalo; está abrangido pelo inventário.

- Quê! - exclamou o criado - Não posso levar o cavalo do meu patrão para fazer um recado a minha ama?

- Não se pode tocar em coisa alguma daqui - disse o homem da lei - de contrário será responsável pelas consequências.

- Que diabo é isso, senhor! - disse Heitor, que, tendo seguido Edie no intuito de o interrogar sobre a natureza dos seus projectos e das suas esperanças, já começava a eriçar-se como um cão "terrier" habitante das suas montanhas nativas - Como diabo tem o senhor o descaramento de impedir o criado de obedecer às ordens de sua ama?

Alguma coisa no ar e no tom do jovem militar parecia anunciar que a sua intervenção não se limitaria a simples raciocínios, e que, se ele acabasse por dar ao seu adversário a vantagem de lhe instaurar um processo de violência e de maus tratos, não seria sem que estes últimos tivessem previamente os mais fundamentados motivos. O oficial da lei, em presença de um oficial do exército, agarrou com mão pouco firme o bastão sujo destinado a apoiar a sua autoridade, e com a outra apresentou a sua pequena vara oficial, cuja ponta, como de costume, era de prata, com um anel passado por dentro.

- Capitão Mac Intyre, não tenho questão consigo, mas se me interromper no exercício das minhas funções, quebro a vara da paz e declaro que o senhor me fez violência...

- E que diabo me preocupa isso? - replicou Heitor, absolutamente ignorante dos termos de uma acção judicial -E quanto a quebrar a sua vara de paz, como o senhor gosta de lhe chamar, tudo o que sei é que lhe quebro os ossos se impedir este rapaz de atrelar os cavalos para obedecer às ordens de sua ama.

- Tomo por testemunhas todos os que aqui estão - exclamou o oficial - em como lhe mostrei o símbolo do meu ministério! E quem quiser a guerra, terá a guerra.

E, ao falar assim, fez deslizar o seu anel enigmático de uma ponta à outra do bastão, que é o sinal que dá um oficial da lei quando é interrompido pela violência no exercício do seu dever.

O honesto Heitor, mais habituado à artilharia do campo de batalha do que à das leis, assistiu a esta cerimónia misteriosa com grande indiferença e não se inquietou nada ao ver o oficial sentar-se para redigir o auto de violência; mas nesse momento e muito a propósito, para evitar a severa multa em que o inconsiderado mas benévolo escocês ia incorrer, chegou o Antiquário, a suar e a soprar, com o lenço debaixo do chapéu e a peruca na ponta da bengala.

- Então, que diabo se passa aqui? -exclamou ele, ao ajustar à pressa a sua peruca na cabeça - Segui-te na esperança de ver-te quebrar essa maldita cabeça contra algum rochedo, e encontro-te aqui separado do teu Bucéfalo, mas a questionar com Sweepclean. Tu bem sabes, Heitor, que um beleguim é um inimigo mais temível do que uma foca, quer seja a phoca barbata quer a phoca vitulina (1) que tu combateste, ultimamente.

- Maldita seja a foca! - bradou Heitor -Ou uma ou outra, o diabo que leve as duas! Gostaria de ver-me ficar quieto, enquanto um patife como este, a pretexto de executar as ordens do rei (e espero que os últimos lacaios do rei valham mais do que este) vem insultar uma jovem dama da categoria de Miss Wardour?

- Falas bem, Heitor - disse o Antiquário - mas os reis, como outras pessoas, têm de tempos a tempos vis missões a mandar cumprir, para as quais são obrigados a empregar gente vil. No entanto, supondo mesmo que ignoras os decretos de Guilherme, o Leão,

 

(1) A foca barbuda ou o lobo-marinho. - N. do T.

 

nos quais o delito de violência se chama despectus áomini regis, isto é, desprezo pelo próprio rei, em nome de quem se faz toda a perseguição legal, devias compreender, pelo que tive o trabalho de explicar-te esta manhã, que aqueles que interrompem os oficiais que vêm executar uma penhora são tanquam participes criminzs rebellionis, participam da própria rebelião- Mas vou desembaraçar-te disso.

Aproximou-se então do oficial, que, à sua chegada, abandonara a esperança de arranjar ali, como por acaso, um bom processozinho de violência, e que se contentou com a garantia de Mr. Oldbuck de que o cavalo e a caleça estariam de regresso dentro de duas ou três horas.

- Muito bem, senhor - disse o Antiquário - e para reconhecer a sua delicadeza vou arranjar-lhe um pequeno negócio da sua competência e de melhor género. É uma questão de política; é um delito punível por legem Juliam (1). Mr Sweepclean, escute-me um momento.

Depois de lhe ter falado em voz baixa durante cinco minutos, deu-lhe um bocado de papel, recebido o qual o oficial montou a cavalo e, seguido de um dos seus assistentes, partiu em andamento bastante bom. O homem que ficou pareceu demorar propositadamente as suas operações; continuou a tarefa lentamente e com a precisão e o cuidado de alguém que se sente vigiado por um inspector instruído e severo.

Entrementes, Oldbuck agarrara seu sobrinho por um braço e fizera-o entrar em casa. Foram conduzidos junto de sir Arthur, que, presa das angústias do orgulho ferido, dos receios mais pungentes do futuro e dos vãos esforços que fazia por ocultá-los sob um ar de indiferença, oferecia um espectáculo digno de piedade.

- Tenho muito prazer em o ver, Mr. Oldbuck, sempre muito prazer em ver os meus amigos, tanto no mau como no bom tempo - disse o pobre baromnet, afectando mostrar, não calma, mas uma alegria que evidentemente desmentiam o aperto de mão convulsivo

 

(1) Lei de Júlia. - N. do T.

 

e demorado com que acompanhava estas palavras, e toda a excitação visível na sua pessoa - Tenho muito gosto em vê-los; vieram a cavalo, pelo que vejo; espero que no meio de toda esta desordem cuidem dos vossos cavalos; sempre gostei de que tratassem dos cavalos dos meus amigos como se fossem os meus. com a breca, agora serão os únicos que terão os meus cuidados, porque, como vêem, provavelmente não me deixam nenhum. Ah! Ah! Ah! Mr. Oldbuck.

Este esforço por gracejar foi acompanhado de um riso convulsivo, ao qual o pobre sir Arthur queria dar um ar de negligência.

- O senhor sabe que eu nunca monto a cavalo, sir Arthur - disse o Antiquário.

- Peço-lhe perdão, mas tenho a certeza de ter visto chegar seu sobrinho a cavalo, há uns momentos. É preciso que o cavalo de um oficial seja bem tratado; o seu era o mais belo cavalo cinzento que eu já vi.

Sir Arthur preparava-se para tocar a campainha, quando Oldbuck lhe disse:

- Meu sobrinho veio no seu cavalo cinzento, sir Arthur.

- No meu? - disse o pobre baronnet - No meu, diz o senhor? Deve-me ter batido o sol nos olhos. Vamos, não sou digno de ter um cavalo, visto que não reconheço o meu quando o vejo.

"Santo Deus! -pensou Oldbuck - quanto este pobre homem desceu da rigidez cerimoniosa das suas maneiras. Isto tem alguma coisa de loucura. Delira no infortúnio, sed pereunti mille figurse" (1) - E acrescentou em voz alta:

- Sir Arthur, temos necessariamente de nos ocupar de negócios. Espero que tenhamos melhores ocasiões para gracejar; desipere in loco é a máxima de Horácio. Tenho fortes suspeitas de que tudo isto foi engendrado pela charlatanice de Dousterswivel.

- Nunca pronuncie esse nome, senhor - disse sir Arthur, cuja vã afectação de alegria se transformou, com estas palavras, na agitação do furor; os seus olhos cintilaram, a sua boca escumou, as suas

 

(1) Mil fantasmas se apresentam à imaginação moribunda. - N. do T.

 

mãos fecharam-se com violência - Nunca pronuncie esse nome, senhor, a não ser que queira ver-me enlouquecer. Como pude ser tão néscio, tão fútil, tão asno, para me deixar conduzir e cavalgar por esse mísero malandro e cair em ciladas tão ridículas: Mr. Oldbuck, este pensamento martiriza-me.

- Queria apenas informá-lo de que esse homem vai provavelmente encontrar a recompensa e espero que no seu pavor possamos arrancar alguma coisa que lhe seja útil. Ele tem, com certeza, alguma correspondência secreta com o outro lado do mar.

- Acredita nisso? Acredita, realmente? Então, que a casa, os cavalos e o resto vão para o diabo! Não me preocupo mais; irei satisfeito para a prisão, Mr, Oldbuck. Espero que o céu permita que haja o bastante para o mandar enforcar.

- É provável - disse Mr. Oldbuck, querendo sustentar esta ideia, na esperança de que imprimisse um desvio às sensações que ameaçavam perturbar, a razão do pobre baronnet - Já homens mais honestos passaram pela corda, ou então a justiça foi furiosamente frustrada nos seus direitos. Mas falemos deste desgraçado negócio. Não se pode fazer nada? Vejamos a ultimação.

Pegou nos papéis e, ao lê-los, o rosto alterou-se e tomou um ar sombrio que dizia bastante que não havia esperança alguma. Miss Wardour, que entretanto entrara no aposento e fixara os olhos em Mr. Oldbuck, como se quisesse ler a sorte nas suas faces, apercebeu-se facilmente, pela alteração dos seus olhares e o alongamento do maxilar inferior que as coisas estavam quase desesperadas.

- Estamos então arruinados sem remédio, Mr. Oldbuck? - indagou a jovem.

- Sem remédio? Espero que não. Mas a reclamação é considerável, e, sem dúvida alguma, outras se seguirão muito numerosas.

- Sim, sim, pode ter a certeza, Monkbarns. Onde há carnagem, vêem-se as águias acumular-se; eu sou como um carneiro que acaba de cair num precipício, ou que sucumbe de doença. Ainda não há dez minutos; que está estendido por terra, já meia dúzia de corvos mesmo que não se tenha visto um único há quinze dias, vêm comer-lhe os olhos - e ele passou a mão pelos seus - e devorar-lhe o coração antes de que -o pobre animal tenha soltado o último suspiro... E onde está o infernal abutre cujo faro subtil me persegue há muito tempo, o senhor tem pelo menos a certeza, espero eu...

- Oh, nada receie - atalhou o Antiquário - O nosso gentleman quis levantar vôo esta manhã e escapar-se-nos pela diligência de não sei que sítio cujo nome esqueci. Em todo o caso, havia de encontrar um bico de obra em Edimburgo; mas não deve chegar tão longe, porque o veículo voltou-se. E como podia chegar sem desastre, levando um tal Jonas! Quanto a ele, deu uma queda abominável, e levaram-no para uma choupana perto de Kittlebrig, onde, para impedir toda a possibilidade de evasão, enviei o nosso amigo Sweepclean para o trazer a Fairport in nomine regis (1), ou para lhe servir de enfermeiro, se julgar mais conveniente.

"E agora, sir Arthur, permita-me que converse consigo sobre o triste estado actual dos seus negócios, e dos meios que teremos de usar para os remediar.

Ao falar assim, o Antiquário dirigiu-se para a biblioteca, onde o desditoso gentleman o seguiu.

Havia cerca de duas horas que estavam encerrados, quando Miss Wardour entrou com a sua capa pelos ombros, como se se preparasse para partir. O rosto, muito pálido, no entanto apresentava a marca da calma inerente ao seu carácter.

- O oficial está de volta, Mr. Oldbuck.

- De volta? Diabo! Espero que não tenha deixado escapar-se o seu homem?

- Não. Ouvi dizer que o conduziu à prisão, e agora regressa para lá levar o meu pai, e, diz ele, não pode esperar muito tempo.

Ouviu-se então na escada uma discussão muito ruidosa, na qual dominava a voz de Heitor.

- Você diz que é oficial, com esta tropa de maltrapilhos, de miseráveis, de mendigos! Juntem-se, multipliquem-se

 

(1) Em nome do rei. - N. do T.

 

por nove, e veremos depois a vossa força efectiva.

Soou a voz rabujenta do homem da lei, a murmurar uma réplica à qual Heitor respondeu:

- Vamos, vamos, senhor, isso não há-de passar-se assim; mande sair a sua tropa, visto que lhe chama assim, para fora de casa imediatamente, senão não tardo em mostrar-lhe o caminho.

- Diabos levem o Heitor! - disse o Antiquário, dirigindo-se à pressa para o local da discussão - Eis de novo o sangue escocês a aquecer, e agora vamos

vê-lo bater-se em duelo com o oficial Vamos,

Mr. Sweepclean, tem de nos dar um pouco de tempo, o senhor não quer apressar sir Arthur até esse ponto.

- Sem dúvida alguma, senhor - disse o homem, tirando o chapéu, que enterrara na cabeça para defrontar as ameaças do capitão Mac Intyre - Mas o seu sobrinho serve-se de uma linguagem desbragada, e já lha suportei muito tempo. Para mais, as minhas instruções não me permitem deixar o prisioneiro aqui, a não ser que receba o pagamento das quantias exaradas no meu mandato.

Falando assim, apresentou um papel, apontando com a temível vara que tinha na mão direita as cifras não menos temíveis que formavam a soma.

Do outro lado, Heitor, embora guardando silêncio por respeito por seu tio, respondeu a este gesto mostrando ao beleguim o punho cerrado, com o faiscante olhar de todos os irritáveis escoceses.

- Está quieto, jovem louco - disse Mr. Oldbuck e vem comigo àquele aposento. Este homem não faz senão cumprir o seu miserável dever, e só pioravas as coisas, opondo-te Receio, sir Arthur, que o senhor seja obrigado a acompanhar este homem. É difícil neste momento proceder de outra forma. Eu segui-lo-ei para ver consigo que decisão poderemos tomar depois. O meu sobrinho escoltará Miss Wardour até Monkbarns, onde espero que ela fixe residência até que estes desagradáveis negócios estejam arrumados.

- Eu vou com meu pai, Mr. Oldbuck - declarou Miss Wardour com firmeza - Preparei os seus pertences e os meus. Suponho que nos permitirão servir-nos da carruagem?

- Eu não me oporei a nada que seja razoável - disse o oficial - Já a encomendei e está à porta. Subo para a almofada com o cocheiro. Não desejo importuná-los com a minha presença, mas dois dos meus homens seguirão a cavalo.

- Eu seguirei também - disse Heitor, que saiu para se apoderar de uma montada.

- Temos então de partir? - indagou o Antiquário.

- Para a prisão - disse o baronnet, com um involuntário suspiro - Bem, afinal - continuou ele num tom que tentava tornar alegre - trata-se apenas de uma casa de onde não se pode sair! Suponhamos um ataque de gota, e Knockwinnock seria para mim a mesma coisa. É isto, Monkbarns; diremos que é um ataque de gota, ainda que não seja acompanhada da maldita dor.

Mas, enquanto assim falava, seus olhos enchiam-se de lágrimas e o som entrecortado da voz revelava até que ponto lhe custava aquela afectação de alegria. O Antiquário apertou-lhe a mão e, como os banianos índios que detêm as condições de importante negócio por meio de um sinal, e enquanto aparentemente falam de coisas indiferentes, sir Arthur, pelo aperto convulsivo da mão, exprimiu ao amigo a resposta, o seu reconhecimento e as secretas angústias que o dilaceravam. Desceram a passo lento a magnífica escadaria, parecendo-lhes que cada objecto que lhes era familiar se lhes apresentava de uma maneira mais chocante e animar-se de um novo interesse aos olhos do infeliz pai e de sua filha, como se devessem atrair a sua atenção pela última vez.

No primeiro patamar, sir Arthur pareceu demasiado comovido para continuar; mas, vendo que o Antiquário o olhava com inquietação, disse com afectada dignidade:

- Sim, Mr. Oldbuck, pode-se perdoar ao descendente de uma velha família, ao representante desse Ricardo Mão Vermelha e de Gamelyn de Guardover, soltar um suspiro ao abandonar o castelo de seus pais, cercado de semelhante escolta. Quando fui mandado para a Torre em 1745, com o meu falecido pai, era pelo menos um encargo digno do nosso nascimento, numa acusação de alta traição, Mr. Oldbuck. Mas fomos escoltados desde Highgale por uma tropa de guardas de corpo por mandado do secretário de Estado; e eis-me agora, na velhice, arrancado de minha casa por um mísero beleguim, e por uma lamentável questão de dinheiro!

- Pelo menos - disse Oldbuck - o senhor tem junto de si uma filha dedicada e, permita-me ajuntar, um amigo sincero: há nisto alguma consolação, sem contar que não se trata, nesta circunstância, nem de ser enforcado nem de ser esquartejado. Mas ainda oiço a voz do meu exaltado sobrinho que grita mais alto do que nunca. Queira Deus, não tenha feito outra asneira! Que maldito acaso o trouxe aqui para estragar tudo?

De facto, um rumor súbito, em que ainda dominava a pronúncia muito alta e um pouco escocesa de Heitor, interrompeu esta conversa; mas veremos a causa no capítulo seguinte.

 

A fortuna foge-nos, dizeis vós? Não, sa esvoaça apenas em nossa volta, como ágil pássaro do mar em torno do esquie de onde o passarinheiro atento espia os seus movimentos; ora desaparece na bruma, ora raza a vela branca do barco com uma asa temerária e que parece oferecer-se ao tiro: assim a experiência espreita o momento favorável de agarrar a fortuna e de a colocar no alto da sua roda.

Comédia Antiga

 

Os gritos de triunfo de Heitor tinham um tom bélico que dificilmente os distinguiam dos seus gritos de guerra; mas em breve não se duvidou mais de que a causa desta nova algazarra fosse de natureza agradável, quando o viram precipitar-se para a escadaria, com um pacote na mão e a bradar:

- Viva o velho soldado! Eis o velho Edie com uma colheita de boas notícias!

Entregou a volumosa carta a Oldbuck, apertou cordialmente a mão a sir Arthur e felicitou Miss Wardour, com toda a franqueza do seu carácter e do seu país. O oficial, que, como por instinto, tinha um certo terror do capitão Mac Intyre, aproximou-se do preso e manteve prudentemente o olhar fixo nos movimentos do jovem militar.

- Julga que me preocupo consigo, amigo? - disse-Lhe o jovem - Olhe, aqui tem um guinéu pelo medo que lhe meti: eis um velho bravo do 42.º, que era para si melhor antagonista do que eu.

O meirinho, que era um daqueles miseráveis que embolsam de boa vontade um mau cumprimento que lhes renda alguma coisa, reteve na mão o guinéu que Heitor lhe atirou à cara e começou a observar prudentemente a volta que o caso ia dar. Entretanto, todas as vozes se erguiam para fazer perguntas, e ninguém pensava em responder.

- Então, que há, capitão Mac Intyre? - indagou sir Arthur.

- Pergunte ao velho Edie - respondeu Heitor - só sei que tudo vai bem e que tudo está salvo.

- Que vem a ser tudo isto, Edie? - perguntou Miss Wardour ao mendigo.

- Vossa Senhoria deve perguntá-lo a Monkbarns, é ele quem tem a correspondência epistolar.

- Viva o rei! -exclamou o Antiquário, após o seu primeiro olhar ao conteúdo do pacote; e, esquecendo, ao mesmo tempo o decoro, a filosofia e a fleuma habitual, atirou ao ar o seu chapéu de abas arrebitadas que ficou preso, ao cair, num braço do candelabro; depois, passando alegre olhar em volta, levou a mão à peruca e ia talvez fazê-la seguir o caminho do chapéu, se Edie não lhe agarrasse a mão e dissesse:

- Senhor meu Deus, está quase louco! Lembre-se, Monkbarns, de que não está aí Caxon para lhe reparar o mal.

Toda a gente assaltou o Antiquário e o cumulou de perguntas sobre a causa de semelhante entusiasmo; e ele, um pouco envergonhado daquele delírio, voltou-lhes resolutamente as costas, como uma raposa aos latidos de uma matilha de cães, e, subindo os degraus a dois e dois, até chegar ao cimo, deteve-se no patamar e, voltando-se, dirigiu-se assim aos seus ouvintes surpreendidos:

- Meus bons amigos, favete linguis (1). Para os informar do que se passa, é preciso primeiro, segundo todos os lógicos, que eu próprio o saiba: assim, pois, com vossa licença, vou retirar-me para a biblioteca, sir Arthur e Miss Wardour terão a bondade de passar ao locutório; Mr. Sweepclean, secede paulisper (2), ou para falar a sua linguagem, queira conceder-nos um suplemento de cinco minutos; Heitor, retire as suas forças e escolha outro campo de batalha, enfim, tenham todos um pouco de coragem e de paciência até o meu regresso, que será breve.

O conteúdo do volume era tão inesperado que é preciso perdoar ao Antiquário, primeiro o seu êxtase, depois o desejo de demorar a comunicação das novidades, até ele próprio se compenetrar delas e pôr ordem nas suas ideias.

Dentro do envólucro estava uma carta dirigida a Jonathan Oldbuck, squire, proprietário de Monkbarns, cujo texto era o seguinte:

"Meu caro senhor, é a si que me dirijo como ao amigo mais fiel e mais precioso de meu pai, estando eu retido aqui por deveres militares de uma natureza muito importante. Deve conhecer neste momento o estado complicado dos nossos negócios, e sei que terá prazer em saber que me sinto bastante feliz por me encontrar subitamente colocado em situação que me permite ajudar poderosamente a arrumá-los. Soube que sir Arthur está ameaçado de perseguições rigorosas por parte de indivíduos que outrora actuaram como procuradores autorizados; e, segundo a opinião de um respeitável homem de negócios, obtive o documento incluso, que deterá as suas perseguições até que os seus direitos tenham sido legalmente discutidos e justamente reduzidos. Envio também mil libras esterlinas em notas, a fim de pagar as reclamações mais prementes, exigindo à sua amizade que faça delas o uso que a sua prudência entender. Ficará talvez surpreendido por lhe dar este trabalho, quando seria mais natural deixar a meu pai cuidado de dirigir

 

(1) Contenham as línguas. - N. do T.

(2) Afaste-se um pouco. - N. do T.

 

os seus próprios negócios; mas ainda não tenho a certeza de que seus olhos estejam abertos acerca do carácter de um homem de quem o senhor muitas vezes o avisou que desconfiasse, e cuja influência fatal foi a causa de todas as suas desgraças. Aliás, devendo à generosidade de um amigo incomparável os meios de socorrer sir Arthur, é dever da minha parte velar pelo emprego dos fundos destinados a esse uso, e sei que para isso posso confiar-me inteiramente à sua sensatez e à sua prudência. O amigo que reclama uma porção do seu interesse, explicar-lhe-á a sua opinião numa carta inclusa. Sendo a fidelidade do posto de correio de Fairport um pouco suspeita, envio esta carta por Tannonburgh; mas o velho Ochiltree, que circunstâncias particulares me fizeram conhecer como digno de toda a confiança, está informado do momento provável da chegada do pacote, e terá o cuidado de lho entregar. Espero ter em breve ocasião de me desculpar pessoalmente de todo o trabalho que lhe dou, e tenho a honra de me subscrever seu devotado servidor

Reginald Gamelyn Wardour

Edimburgo, 6 de Agosto de 179... "

O Antiquário quebrou à pressa o lacre da outra carta, cujo conteúdo pareceu causar-lhe tanta surpresa como prazer. Quando se sentiu um pouco refeito da turbação em que tantas notícias inesperadas o lançaram, examinou cuidadosamente os outros papéis, que todos se relacionavam com os negócios, meteu as notas no bolso, escreveu um curto bilhete a acusar a recepção, para se meter no correio nesse mesmo dia, porque era extremamente metódico em todos os assuntos que tratassem de dinheiro, e, por fim, cheio da importância da sua descoberta, desceu ao locutório. Ao entrar, disse ao oficial, que permanecia respeitosamente à porta:

- Sweepclean, tem de afastar-se do castelo de Knockwinnock, e o seu séquito que saia imediatamente da casa. Vê este papel?

- Um mandato de suspensão - disse o meirinho em tom desgostoso - Eu sempre pensei que seria estranho que as coisas fossem à última extremidade com um gentleman como sir Arthur... Bem, senhor, vou retirar-me com a minha gente; e quem me pagará as despesas?

- Os que te empregaram - respondeu Oldbuck sabe-lo tão bem como eu... Mas aí vem um expresso. com a breca, hoje é o dia das novidades.

Era Mr. Mailsetter, a chegar de Fairport no seu jumento, com uma carta para sir Arthur e outra para o meirinho, ambas para serem entregues imediatamente. O meirinho abriu a sua, e, ao observar que Greenhorn e Grinderson estavam bem em estado de responder pelas despesas, e que lhe escreviam a ordenar que cessasse a acção, abandonou imediatamente o aposento e, gastando apenas o tempo de reunir o bando, evacuou o território, para nos servirmos da expressão de Heitor, que vigiava a sua retirada com os olhos com que um cão irritado segue os passos de um mendigo que se afasta.

A carta dirigida a sir Arthur era de Mr. Greenhorn, e assaz curiosa no seu género. Reproduzimo-la com os comentários do digno baronnet.

"Senhor... [Ah! Já não sou "caro senhor"; as pessoas não são "caras" aos senhores Greenhorn e Grinderson senão quando estão na adversidade]. Senhor, fiquei muito apoquentado por saber, no meu regresso do campo onde me chamara um negócio importante [Sim, alguma aposta, suponho. que o meu sócio tivera o despropósito de seguir os interesses de Mr. Goldiebird de preferência aos seus, e de lhe escrever de uma maneira inconveniente. Peço-lhe que aceite as minhas mais humildes desculpas e as de Mr. Grinderson... [Vamos, vejo que este escreve em seu nome tão bem como em nome do seu sócio. e espero que o senhor não me tivesse julgado capaz de esquecer, ou de pagar com ingratidão a protecção constante que a minha família [A sua família! Maldito seja o presumido! encontrou na de Knockwinock. Numa entrevista que tive hoje com Mr. Wardour vi com desgosto que ele parecia muito irritado, e devo confessar que não era sem razão. Mas a fim de reparar, tanto quanto em mim caiba, o menosprezo de que ele se queixa [Bonito menosprezo, realmente, mandar meter o seu protector na prisão!] enviei este expresso para suspender todas as acções contra a sua pessoa e os seus bens, e para lhe transmitir ao mesmo tempo as minhas humildes desculpas. Resta-me acrescentar que a opinião de Mr. Grinderson é de que, se nos honrar com a renovação da sua confiança, ele poderá indicar-lhe circunstâncias relativas às actuais reclamações de Mr. Goldiebird, cujo total reduzirão grandemente. [Assim, ele não pede senão para fazer patifaria para os dois lados]. Quanto à nossa conta, o pagamento não é nada premente. Sou, tanto por Mr. Grinderson como por mim; meu caro senhor [Ah! Ah! Ei-lo que se torna familiar. seu muito obrigado e muito humilde servidor,

Gilbert Greenhorn. "

- Bem dito, Mr. Gilbert Greenhorn - disse o Antiquário - agora vejo para que pode servir a sociedade de dois procuradores. Os seus movimentos assemelham-se aos do homem e da mulher do barómetro holandês: quando faz bom tempo para o cliente, um dos gentlemen associados sai e vem lamber-lhe os pés como um cão fraldiqueiro; quando está mau tempo, fecha-se e o outro gentleman vem mostrar os dentes como um buldogue. Quanto a mim, agradeço a Deus que o meu procurador ainda use um chapéu revirado de três bicos, resida na cidade velha, tenha tanto medo de um cavalo como eu, jogue a pela ao sábado, vá à igreja ao domingo e que, não tenddo sócio, não seja responsável senão pelas suas próprias asneiras.

- Há procuradores muito honestos - disse Heitor

- Bem gostaria de ouvir dizer a alguém que o sétimo filho do meu primo Donald Mac Intyre Strathtudlem, cujos seis irmãos estão no exército, não é um homem honesto.

- Sem dúvida, sem dúvida, Heitor, todos os Mac Intyre o são, têm um diploma disso, meu rapaz... Mas eu ia dizer que numa profissão em que é necessário inspirar uma confiança sem limites, não é nada de admirar que se encontrem néscios que se mostrem indignos pela sua negligência e charlatães de má fé. Tudo isto mais honra aqueles que (e digo que ainda há vários) unindo a integridade ao saber e à aplicação, seguem uma linha direita e respeitável nessa carreira que oferece tantos escolhos e tropeços aos seus confrades. A tais homens podem os seus compatriotas confiar sem receio o cuidado de proteger os interesses do seu patrimonio, e o país pode entregar com uma segurança igual o depósito ainda mais sagrado das suas leis e dos seus privilégios.

- Afinal, quanto menos negócios com eles, melhor - disse Ochiltree, metendo a cabeça pela porta do locutório; porque, não tendo ainda passado a confusão geral que reinava na família, os criados, semelhantes a vagas no fim de uma tempestade, ainda não tinham reentrado nas suas funções habituais, mas percorriam a casa por aqui e por acolá, com agitação.

- Ah! Ah! Eis-te, meu velho! -exclamou o Antiquário - Sir Arthur, permita-me que lhe apresente um mensageiro da boas novas, apesar de estar um pouco coxo. O senhor falava dos corvos que pressentiam de longe a carnagem; mas está a ver aqui um pombo azul, um tanto velhote, um pouco corioso, confesso, que farejou as boas notícias a seis ou sete milhas daqui, e voou a buscá-las na caleça, e voltou com o ramo de oliveira.

- Deve-o ao pobre Roberto que lá me conduziu -. disse o mendigo - O pobre rapaz está bem apoquentado, receia ter caído em desgraça perante sir Arthur e milady.

Roberto mostrou o seu rosto confuso e arrependido por cima do ombro do mendigo.

- Em desgraça! - exclamou sir Arthur - Como pode ser isso? - A irritação que experimentara a propósito da torrada já estava esquecida havia muito tempo

- Ah, lembro-me agora, Roberto! Eu estava exaltado, e tu procedeste mal... Não pensemos mais nisso; vai ao teu serviço, e nunca te lembres de responder a um amo quando ele estiver irritado.

- Nem a ninguém - disse o Antiquário - A cólera deixa-se sempre desarmar pela doçura e pela submissão.

- E dize à tua mãe, que sofre tanto do reumatismo, que venha amanhã procurar a despenseira

- aconselhou Miss Wardour - Veremos se poderemos fazer alguma coisa para a aliviar.

- Que o céu abençoe Vossa Senhoria - disse o pobre Roberto - e Vossa Honra, sir Arthur, o jovem laird e toda a família de Knockwinnock nos seus ramos mais afastados. É uma casa que sempre foi boa e caridosa para com os pobres, há várias centenas de anos.

- Bem! - disse o Antiquário a sir Arthur - Não quero discutir consigo, mas veja que o reconhecimento do pobre se liga às virtudes cívicas da sua famíliaNunca os ouve falar do Mão Vermelha ou do Inferno Ajaezado. Quanto a mim, devo dizer: oãi accipitrem qui semper vivit in armis (1). Assim, pois, bebamos e comamos tranquila e alegremente, sir cavaleiro.

Pusera-se uma mesa à pressa no locutório, e os circunstantes sentaram-se jovialmente para tomar uma alegre refeição. A pedido de Oldbuck, Edie teve licença de sentar-se ao lado do bufete, numa grande cadeira de couro que se colocou de certa maneira atrás de um guarda-vento.

- Consinto com tão boa vontade - declarou sir Arthur-quanto me lembro de que no tempo de meu pai era esta cadeira ocupada por Ailshie Gourley, que" pelo que sei, foi o último louco ou bobo privilegiado que se sustentou em alguma família de distinção na Escócia.

- Quanto a isso, sir Arthur - disse o mendigo, que era dos que nunca hesitavam, entre um amigo e um bom dito - vê-se mais de um sensato na cadeira de um louco, e mais de um louco ocupar o lugar de um sensato, sobretudo nas famílias de distinção.

Miss Wardour, receando o efeito desta saída nos nervos irritáveis de seu pai (por muito ufana que ela estivesse de Ailshie Gourley ou de qualquer outro bobo privilegiado), apressou-se a perguntar se não ordenaria uma distribuição de cerveja forte e carne de vaca aos criados e a todos os que esta novidade reunira em volta do castelo.

- Certamente, meu amor - respondeu seu pai foi sempre esse o uso na nossa família depois de se levantar um cerco.

 

(1) Detesto a ave de presa que vive sempre no meio dos combates. - N. do T.

 

- É isso, um cerco posto pelo meirinho Saunders Sweepclean e levantado pelo mendigo Edie Ochiltree, par nobile ratum (1) - disse Oldbuck - duas personagens de uma categoria igualmente distinta. Mas é a mesma coisa, sir Arthur, os particulares já não são sitiados em nossos dias senão desta maneira, e nem por isso devemos deixar de beber à nossa feliz libertação um copo deste excelente vinho... palavra de honra, julgo que é Borgonha!

- Se houvesse alguma coisa de melhor na adega

- declarou Miss Wardour - apressar-me-ia a mandá-lo servir; nada me parece bastante digno de lhe ser oferecido depois dos trabalhos que a sua amizade acaba de suportar por nossa causa.

- Se fala assim, minha bela inimiga - respondeu o Antiquário - vai obrigar-me a encher o meu copo mais uma vez e a oferecer-lhe um golo em acção de graças... Possa eu vê-la de novo assediada, mas daquela maneira que as mulheres nunca receiam de ser; e tenha de assinar em breve os termos da capitulação na capela de São Winnox!

Miss Wardour corou; Heitor mudou várias vezes de cor.

- Minha filha está-lhe muito grata, Monkbarns

- respondeu sir Arthur - Mas, a não ser que o senhor a queira aceitar, não vejo que esperança de união possa ter, nestes tempos mercenários, uma filha de um pobre baronnet.

- Eu, diz sir Arthur? Não, não; mas reclamo o privilégio do antigo costume do combate singular, e não podendo comparecer em pessoa, faço-me representar por um campeão: falaremos disso mais tarde. Que estás tu a ver de tão interessante nesses papéis, Heitor, que baixas a cabeça como se estivesses -a sangrar do nariz?

- Nada de especial, senhor. Estava a pensar que, estando o meu braço quase sarado, não faria mal em desembaraçá-lo da minha companhia, dentro de um ou dois dias, e em partir para Edimburgo. Vejo pelos jornais que o major Neville já chegou e terei muita satisfação em vê-lo.

 

(1) Nobre par de irmãos. - N. do T.

 

- O major quem? -perguntou o tio.

- O major Neville - respondeu o jovem militar.

- E quem diabo é o major Neville? - indagou o Antiquário.

- Mr. Oldbuck - interveio sir Arthur - é um jovem oficial verdadeiramente distinto; o senhor recorda-se, sem dúvida, de ter visto frequentemente o seu nome nos jornais. Mas tenho a satisfação de informar Mr. Mac Intyre de que não lhe é necessário deixar Monkbarns para o ir ver, porque meu filho escreveu-me a dizer que o major deve vir com ele a Knockwinnock; e não preciso de declarar que ficarei encantado em apresentá-lo a esse senhor, a não ser que já se conheçam.

- Não - disse Heitor - não o conheço pessoalmente, mas tive ocasião de ouvir falar dele muitas vezes, e estou relacionado com vários amigos seus, do número dos quais é o capitão Wardour. No entanto, preciso de ir a Edimburgo, porque vejo que meu tio começa a estar farto de mim, e eu próprio receio

- Estar farto dele - disse Oldbuck - Tenho medo de que o estejas hoje... Mas esqueces-te de que se aproxima esse famoso dia 12 de Agosto, e que estás comprometido a juntares-te à caçada que deve realizar-se nas terras de lorde Glenallan para tormento da pacífica raça alada.

- É verdade, é verdade, meu tio, já me esquecia!

- exclamou o versátil Heitor - Desculpe-me, o senhor disse alguma coisa ainda agora que me varreu da cabeça qualquer outro pensamento.

- com licença de Vossas Honras - disse o velho Edie, assomando a cabeça branca ao guarda-vento, atrás do qual se regalara abundantemente de carne fria e cerveja - com licença de Vossas Honras, direi alguma coisa que reterá o capitão entre nós, tão bem como a caçada. Nunca ouviu dizer que os franceses iam fazer um desembarque?

- Os franceses? Velho louco! -exclamou Oldbuck.

- A semana passada - disse sir Arthur Wardour não tive tempo de ler a minha correspondência de governador da costa. Em regra, tenho por hábito ocupar-me disso apenas à quarta-feira, excepto em casos prementes, porque faço tudo por ordem; mas depois de relancear um olhar pelas cartas, vi efectivamente que não deixava de haver alarme.

- Alarme! -exclamou Edie - Palavra, deve haver alarme, porque o preboste apressou-se a mandar colocar um farol no alto de Halket, o que se devia ter feito há seis meses; e quem o conselho nomeou para guarda do farol não foi outro senão o velho Caxon. Há pessoas que dizem que foi em atenção ao tenente Taffril, pois parece decidido este casar-se com Jenny, Caxon; outros dizem que foi para agradar a Vossas Honras que usam peruca; e há também quem fale de uma velha história de uma peruca que ele fez para um dos bailios e que nunca foi paga. De qualquer modo, ei-lo empoleirado como uma gaivota no alto do rochedo, para guinchar como ela quando faz mau tempo.

- Aí está um bonito guarda, palavra de honra -. disse Monkbarns - E quem há-de tratar da minha peruca?

- Foi a pergunta que eu lhe fiz - respondeu Edie

- e ele disse-me que podia passar todas as manhãs por sua casa e dar-lhe uns retoques antes de se ir deitar, porque há outro homem para ficar durante o dia; e, aliás, Caxon diz que frisa a peruca de Vossa Honra, tão bem a dormir como acordado.

Estas notícias imprimiram outro rumo à conversa, que versou então os meios de defesa do país e dever imposto a cada cidadão de se armar para repelir a invasão. Chegou o momento de se separarem, e o Antiquário retomou com seu sobrinho o caminho de Monkbarns, depois de deixar os moradores de Knockwinnock com as mais sinceras expressões de interesse mútuo e de terem prometido voltar a ver-se o mais cedo possível.

 

Afinal, se ela não me ama, tenho de tomar a minha decisão. Devo empalidecer porque uma bea corou ou suspirar porque ela sorriu, e sorriu a um rival? Não, por Deus, o meu repouso é-me demasiado caro para que, à semelhança das plumas que se balouçam na sua cabeça, cada movimento ditado pelo seu capricho tenha o poder de me agitar.

Comédia Antiga

 

- Heitor - disse Oldbuck a seu sobrinho, ao regressarem a casa -há um ponto sobre o qual estou por vezes tentado a acreditar que tu és louco.

- Se me julga louco sobre um único ponto, faz-me realmente um favor que eu não esperava e que não mereço.

- Quero dizer um ponto por excelência - continuou o Antiquário - Pensei por vezes que lançasses os olhos sobre Miss Wardour.

- Bem, senhor! - respondeu Heitor, num ar muito calmo.

- Diabos o levem com o seu "bem, senhor"! - exclamou o tio - Responde-me com tranquilidade, como se fosse a coisa mais simples do mundo-, ele, simples capitão do exército e nada mais, pensar em desposar a filha de um baronmet.

- Ouso julgar, senhor - disse o jovem escocês que, sob o aspecto de família, não seria uma união desigual para Miss Wardour.

- Oh, Deus nos livre de abordar esse assunto! Não, não: perfeita igualdade dos dois lados; ambos no quadro da nobreza do país e com igual direito de olhar com desprezo toda a classe plebeia da Escócia.

- E pelo lado de riqueza estamos mais ou menos num pé de igualdade, visto que nem um nem outro a tem - continuou Heitor - Pode, pois, haver erro na minha escolha, mas não presunção.

- Sim; mas aí está onde se encontra o erro, visto ser assim que lhe chamas: ela não te ama, Heitor.

- Está convencido disso?

- Tenho a certeza; e, para mais te convencer, digo-te que ela ama outro. Equivocou-se no sentido de umas palavras que uma vez lhe disse, e depois eu próprio adivinhei a interpretação que lhes deu. Eu não era então capaz de explicar o seu rubor e o seu embaraço; mas, recordando-os agora, vejo-os, meu pobre Heitor, como um sinal de morte para as tuas esperanças e pretensões. Aconselho-te, pois, a bater em retirada, a retirar as tuas forças o mais cedo possível, porque há uma guarnição muito boa no forte para que possas tomá-lo de assalto.

- Não tenho necessidade de bater em retirada, meu tio - disse Heitor, mantendo-se muito direito e marchando com uma espécie de gravidade enfadada e ofendida - Não há motivo para retirar quando não se avançou. Existem na Escócia outras mulheres, além de Míss Wardour, e de família igualmente boa.

- E de um melhor gosto. Existem, sem dúvida, Heitor; e embora eu deva confessar que é uma das mulheres mais sensatas e mais bem educadas que conheço, duvido muito, porém, de que fosses capaz de apreciar o seu mérito. Uma mulher de ar desenvolto e taful, em cuja cabeça se erguesse um penacho vistoso, que usasse um vestido de amazona da cor do teu uniforme, que hoje guiasse o cabriolet e amanhã passasse em revista o regimento no cavalo cinzento que na véspera puxava a carruagem, hoc erat in votis (1) eis a que te subjugaria, sobretudo se a estas qualidades reunisse o gosto da história natural e tivesse curiosidade de ver uma amostra de phoca.

- É duro ouvir lançar-me constantemente em rosto o maldito lobo-marinho - disse Heitor - Mas não me importa, e não tenho vontade alguma de morrer de desgosto pelos bonitos olhos de Miss Wardour. Ela tem a liberdade de escolher quem lhe agradar; desejo de todo o meu coração que seja feliz.

- Ó generosidade magnânima, digno sustentáculo; de Tróia! Tranquilizas-me, Heitor; tinha medo de uma cena; tua irmã dissera-me que estavas apaixonadamente fascinado por Miss Wardour.

 

(1) Tais eram os teus desejos. - N. do T.

 

- O senhor queria - replicou o jovem - que eu estivesse apaixonadamente fascinado por uma mulher que não se preocupa comigo?

- Não, meu sobrinho - disse o Antiquário mais seriamente - Há com certeza muito bom-senso no que dizes, e muito teria eu dado há vinte e cinco anos para poder pensar como tu.

- Julgo que toda a gente pode pensar como lhe aprouver sobre semelhantes casos.

- Não, segundo os usos do antigo regime - disse Oldbuck - mas, como já o disse, o costume do século parece-me muito sensato, embora feito para inspirar menos interesse. Mas, vejamos, dize-me quais são as tuas ideias a respeito dessa invasão de que se fala tanto; o clamor geral é de que eles vêm.

Heitor, digerindo a sua mágoa, que desejava sobretudo ocultar dos olhares satíricos de seu tio, apressou-se a mergulhar numa conversa que devia desviar seus pensamentos de Miss Wardour e do lobo-marinho. Ao chegarem a Monkbarns, depois de tratarem de contar às damas os acontecimentos ocorridos no castelo e de escutarem por seu turno o relato das suas incertezas, e quanto hesitaram em ir para a mesa antes do regresso do Antiquário, os dois assuntos tão temidos voltaram a apresentar-se.

No dia seguinte, de manhã, o Antiquário levantou-se cedo e, como Caxon ainda não aparecera, começou a lamentar interiormente a falta de notícias e dos mexericos da cidade, que o ex-cabeleireiro não deixava de relatar-lhe fielmente todos os dias. O hábito tornara a sua tagarelice quase tão necessária ao nosso Antiquário como a pitada de rapé, que ele tomava de vez em quando, embora afectasse olhar ambas as coisas com o mesmo desprezo. Foi, porém, distraído da espécie de vácuo que resultava daquela privação, pela presença do velho Ochiltree, que passeava ao longo das sebes bem talhadas de teixos e azevinhos, no ar de quem está em sua casa. com efeito, ele tornara-se ultimamente de tal modo comensal da casa que uno já não ladrava ao vê-lo, limitando-se a segui-lo de olho atento e vigilante. O nosso Antiquário em roupão e dirigiu-se ao velho.

- Bem, ei-los que chegaram sãos e salvos, Monkbarns - disse Ochiltree - Vim expressamente de Fairport para lhe dar esta notícia. O Search acaba de entrar na nossa baía, e diz-se que foi perseguido por uma fragata francesa.

- O Search! - exclamou Oldbuck, parecendo reflectir -Oh! Oh!

- Sim, o brigue canhoneiro do tenente Taffril.

- Isso terá alguma relação com Search - disse Oldbuck, colhendo como um traço de luz a aproximação que este nome podia ter com o cofre misterioso em em que se encerrava o tesouro.

O mendigo, como um homem apanhado em flagrante num estratagema, pôs o gorro diante da cara e não pôde deixar de rir com vontade.

- O senhor tem o diabo no corpo, Monkbarns, para se lembrar das coisas e aproximá-las. Quem imaginaria que o senhor pensava nisso? Fui apanhado, é claro.

- Agora compreendo tudo - disse Oldbuck - como a legenda de uma medalha bem conservada. A caixa onde as barras foram encontradas pertencia ao brigue, e o tesouro ao meu fénix (Edie fez um sinal afirmativo) e foi ali enterrado para socorrer sir Arthur na sua aflição.

- Fui eu que me encarreguei disso, com dois homens da tripulação do brigue, mas que não conheciam o conteúdo, e que supunham que era um pequeno negócio de contrabando do capitão. Velei noite e dia até tudo cair nas mãos daquele a quem se destinava; e quando o demónio do alemão procurava a tampa do cofre, porque ele estava enfeitiçado, julgo que foi um demónio escocês que me meteu na cabeça pregar-lhe aquela partida. O senhor bem vê que, se eu tivesse dito um pouco mais ou um pouco menos ao bailio Little-John, toda a história se descobriria, e sabe Deus como Mr. Lovel lamentaria aparecer metido nisso; assim, decidi-me a suportar tudo para o evitar.

- Sou obrigado a confessar - disse Oldbuck - que ele não se enganou na escolha do seu confidente, embora pareça um pouco estranho.

- Posso dizê-lo em meu favor, Monkbarns - respondeu o mendigo - E que sou talvez em todo o país a pessoa a quem se pode confiar dinheiro com mais segurança, pela razão de que não preciso dele, de que não o desejo e não saberia em que empregá-lo, se o tivesse. Mas o pobre rapaz não tinha ninguém por onde escolher neste caso, porque julgava abandonar o país para sempre (espero agora que se tenha enganado); e quando soubemos, por um singular acaso, da aflição de sir Arthur, a noite já ia avançada e Lovel devia estar a bordo ao romper do dia. No entanto, cinco ou seis dias depois, o brigue veio passar a noite na enseada; fui avisado para o alcançar em chalupa, e foi então que enterrámos o tesouro onde depois se encontrou.

- Devo confessar que foi uma façanha muito extravagante, bem romanesca - disse Oldbuck - Porque não se fiar em mim ou noutro amigo?

- Ele tinha as mãos tintas do sangue do filho de sua irmã - disse Edie - e iria talvez responder pela sua vida; seria esse o momento de ir pedir-lhe conselho? E que tempo tinha para se consultar a ele próprio ou outro qualquer?

- Tens razão; mas se Dousterswivel se adiantasse?

- Não havia grande receio de que ele lá fosse sem ser acompanhado de sir Arthur. Apanhara um susto enorme numa das noites anteriores, e não pensava em aproximar-se daquele local, a não ser que o levassem à força. Sabia bem que o primeiro achado fora escondido por ele próprio; como podia esperar o segundo? Não fizera aquilo senão para tirar melhor partido de sir Arthur.

- Então - disse Oldbuck - como esperavas que sir Arthur fosse lá sozinho?

- Oh! - respondeu Edie, gracejando - Eu tinha cá uma certa história sobre Misticot que o levaria, bem como ao senhor, a mais de quarenta milhas de distância. Aliás, devíamos supor que ele seria atraído de novo ao local onde encontrara a primeira prata, visto que não conhecia nem uma palavra do enigma. Em suma, tendo a prata aquela forma, encontrando-se sir Arthur na mais premente necessidade dela e não estando Lovel resolvido a deixar suspeitar de onde lhe vinha o socorro (pois era a coisa em que mais insistia), não encontrámos melhor expediente do que aquele, depois de termos dado muitas voltas ao miolo sobre o assunto. E se, por um estranho acaso, Dousterswivel lhe pusesse as garras em cima, eu iria imediatamente a sua casa ou da do xerife, para o desmascarar.

- Bem, apesar de todas as vossas prudentes precauções, penso que o expediente resultou melhor do que se devia esperar. Mas como diabo possuía Lovel uma tal porção de barras de prata?

- É o que não posso dizer; aquilo foi posto a bordo com outros pertences que ele tinha em Fairport, sem dúvida. De qualquer forma, metemo-las numa das caixas de munições do brigue, para sua segurança e comodidade de transporte.

- Santo Deus! - exclamou Oldbuck, cuja memória recuava ao começo do seu conhecimento com Lovel Esse jovem a quem eu paguei o jantar em Queens Ferry, para quem queria fazer uma subscrição em Fairport, arrisca tanta prata num caso desta natureza! E sempre mantiveste correspondência com Lovel?

- Recebi dele um bilhetinho a dizer-me que teria ontem um pacote em Tannonburgh com cartas muito importantes para a família de Knockwinnock, pois ele suspeitava de que lhe abriam as cartas no posto de Fairport. Deve ser verdade, pois ouvi dizer que Mr. Mailsetter ia perder o lugar, por se ter ocupado em demasia com os negócios dos outros e não com os seus.

- E que recompensa esperas tu, Edie, por teres sido conselheiro, mensageiro, guarda e confidente de todos esses assuntos?

- Que diabo quer o senhor que eu espere, com excepção de que alguns gentlemen do país venham ao enterro do velho pobre e que o senhor vá à cabeça do cortejo, como o fez com o pobre Steenie Muckíebackit? Que pena ele me causou! É-me indiferente ir para um lado ou para outro, eu, que ando sempre pelos caminhos. Mas, por exemplo, confesso que me senti muito feliz ao sair da prisão, porque receava que aquela maldita carta chegasse enquanto eu ali estivesse fechado como uma ostra, e que tudo corresse mal por eu não poder ir buscá-la. Havia ocasiões em que pensava em descarregar tudo aquilo sobre o senhor, mas seria desobedecer às ordens peremptórias de Mr. Lovel; e eu sabia que ele tinha necessidade de avistar-se com alguém em "Edimburgo antes de fazer o que queria por sir Arthur e sua família.

- E agora vejamos um pouco os negócios públicos, Edie. Diz-se que eles desembarcam, não é verdade?

- É verdade, senhor, chegaram ordens severas para que os voluntários e as forças que estão aqui estivessem de prevenção. Também se diz que vai chegar um jovem oficial de mérito para examinar os meios de defesa. Eu vi a criada do bailio, que levava o seu cinturão e as calças brancas, e ajudei-a um pouco, porque ela não se entendia com aquilo; tão bem que soube todas as notícias sem dificuldade.

- E que pensas de tudo isso, tu, como velho soldado.

- Bem, não sei... Se eles vierem em tão grande número como se diz, estarão em força contra nós... Entre os nossos voluntários também não faltam velhos solteirões, embora me não convenha falar da incapacidade dos outros, eu, que já não presto agora para grande coisa... mas, apesar disso, havemos de fazer o melhor que pudermos.

- Quê! Acaso o espírito guerreiro desperta em ti, Edie?

Aqui arde o fogo até às cinzas.

Acreditarias; Edie, que servisses de grande coisa para defender?

- Eu, senhor! Não sirvo de grande coisa!... E então o país, e as encostas, e os vales, que eu tanto gosto de percorrer! E os lares onde encontro o meu bocado de pão! E as crianças que acorrem para brincar comigo quando eu chego à entrada de uma cidade! Diabo!

- continuou ele, agarrando o bastão com muita energia - se eu tivesse tanto vigor como boa vontade, por uma tão boa causa ainda estenderia alguns por terra.

- Bravo, bravo, Edie! Um país nunca estará bem em perigo, enquanto houver um mendigo tão disposto a combater pela sua escudela como um senhor pelos seus bens.

A conversa recaiu em seguida sobre os pormenores da noite que Edie e Lovel passaram nas ruínas de Santa Ruth, os quais divertiram muito o Antiquário.

- Eu teria dado um guinéu - disse ele - para ver esse patife do alemão presa das angústias do terror que o seu charlatanismo inspirava aos outros, e receando alternadamente o furor do patrão e a aparição de algum diabrete.

- 'Palavra - disse o mendigo - era tempo que aquilo acabasse para ele, porque dir-se-ia que o espírito do Inferno Ajaezado se apoderara de sir Arthur. Mas que vai ser feito desse vagabundo?

- Soube esta manhã, por uma carta que recebi, que ele te iliba da acusação formulada contra ti e que se oferece para fazer revelações que tornarão a solução dos negócios de sir Arthur mais fácil do que se esperava. Foi o que me escreveu o xerife, e ajunta que comunicou algumas informações secretas ao governo, em consequência das quais deve, diz-se, enviá-lo ao seu país para lá realizar as suas proezas de charlatão.

- E todas as galerias, rodas, guindastes, máquinas que se fizeram para Glenwithershins, que se fará de tudo isso? -indagou Edie.

- Espero que os operários, antes de se retirarem, farão uma alegre fogueira de todos esses maquinismos, como um exército que inutiliza a artilharia quando é obrigado a levantar um cerco; e quanto às galerias, talvez ainda possam servir de armadilha àqueles que, com tanta esperteza como nós, também queiram largar a presa para agarrar a sombra.

- Senhor meu Deus! Queimar todas essas máquinas! É no entanto uma grande perda; o senhor não faria melhor em tentar apanhar o que pudesse das suas cem libras esterlinas, vendendo esses objectos? alvitrou o mendigo, num tom que parecia denotar interesse.

- Nem um ceitil - disse o Antiquário com mau humor, afastando-se dele dois ou três passos; depois, voltando, "e meio a sorrir da sua irritabilidade, disse-lhe Entra em casa e lembra-te do conselho que te dou, de nunca falares de minas diante de mim, nem diante de meu sobrinho de uma foca ou lobo-marinho, como vocês lhe chamam.

- Preciso de voltar a Fairport - disse o velho errante - para ver o que se diz da invasão; mas lembrar-me-ei do que Vossa Honra acaba de me dizer, de nunca lhe falar de um lobo-marinho, nem ao capitão Heitor das cem libras esterlinas que o senhor deu a Dousterswivel.

- Diabos te levem... Não te disse já que não me falasses nisso?

- Meu Deus! - exclamou Edie, simulando um ar de surpresa - Julgava que não era proibido gracejar ao conversar com Vossa Honra, a não ser sobre o assunto do Petrorium e do óbolo que o bufarinheiro lhe vendeu por uma medalha antiga.

- Ora, ora - disse o Antiquário, afastando-se rapidamente e entrando em casa.

O mendigo ficou um momento a segui-lo com os olhos, depois soltou uma gargalhada, tal como uma pega ou um papagaio que se aplaude do êxito de alguma das suas maliciosas partidas; em seguida, retomou mais uma vez o caminho de Fairport. O hábito de deambular sem descanso tinha-lhe dado uma espécie de inquietação e necessidade de mudar de lugar, que ainda aumentavam pelo prazer de colher novidades. Depressa voltou à cidade, que de manhã não abandonara por outro motivo senão para ter uma pequena conversa com Monkbarns.

 

O fogo cintila num clarão avermelhado no sito de Pownelí. Três sinais estavam colocados sobre o Skiddaw... O som da trompa não cessava de ecoar nos bosques e nos vales.

JAMES HOQQ

 

A sentinela que velava na montanha julgou sem dúvida estar a sonhar quando viu a fatal floresta de Birnam pôr-se em marcha para Dunsinane; assim o velho Caxon, que, empoleirado na barraca no alto do seu rochedo, se desenfadava sonhando com o próximo casamento de sua filha e com a dignidade de sogro do tenente Taffril, foi colhido de igual surpresa, quando os olhares que lançava uma vez por outra, para descargo de consciência, ao sinal que correspondia ao seu, notou uma luz nessa direcção. Esfregou os olhos, olhou de novo, socorrendo-se de uma balestra que ali fora colocada para visar precisamente a ponta e, para seu grande terror, viu a luz aumentar como um cometa aos olhos de um astrónomo, e cujo aspecto vem ameaçar as nações de desordem.

- O Senhor nos ajude! - proferiu Caxon - Que se deve fazer agora?... Por felicidade, isso compete a melhores cabeças do que a minha; no entanto, vou acender o farol.

Acendeu efectivamente o seu farol, que derramou pelos céus um longo rastro de luz, cuja claridade, atemorizando as aves marinhas, expulsandoas dos seus ninhos, projectou ao longe, sobre as ondas do mar, um reflexo avermelhado. Os outros guardas, confrades de Caxon, tão diligentes como ele, avistaram o seu sinal e acenderam os seus. Em breve, todos os fogos brilhavam no alto dos promontórios, no topo das montanhas interiores, e esses sinais espalharam por todo o país o alarme da invasão.

O nosso Antiquário, cabeça bem aquecida por dois duplos barretes de dormir, saboreava um pacífico repouso, quando foi acordado em sobressalto pelos gritos de sua irmã, de sua sobrinha e das duas criadas.

- Que diabo vem a ser isto -indagou ele, sentando-se na cama - Todas as fêmeas no meu quarto, a esta hora da noite!... Estão todas doidas?

- O sinal, meu tio! - bradou Miss Mac Intyre.

- Os franceses que nos vêm massacrar! - exclamou Miss Grizel.

- O sinal! O sinal!... Os franceses! Os franceses! A morte, a morte! Ou talvez pior que a morte!

- exclamaram as duas criadas, em coro como na ópera.

- Os franceses! - disse Oldbuck, levantando-se bruscamente - Fora do meu quarto, fêmeas que vocês são, quero vestir-me. E escutem: tragam-me a minha espada.

- Qual, Monkbarns? -gritou-lhe sua irmã, apresentando-lhe, com uma mão, uma espécie de cutelo recurvo de cobre, do tempo dos romanos, e com a outra uma lâmina de punhal sem cabo.

- A mais comprida, a mais comprida! - bradou Jenny Rintherout, arrastando atrás dela um montante para duas mãos, do século XII.

- Fêmeas, fêmeas - exclamou Oldbuck, muito excitado - acalmem-se e não se entreguem a vãos terrores!... Têm a certeza de que eles chegaram?

- A certeza, mais do que a certeza! - exclamou Jenny - Todos os que estão em estado de pegar em armas sobre a terra e sobre o mar, todos os voluntários e batalhões de rendeiros estão a pé e marcham para Fairport, tão depressa quanto homens e' cavalos se podem mover... e o velho Mucklebackit lá foi também, como se ele pudesse servir para alguma coisa. Ai, é agora que se vai sentir a perda daquele que bem poderia servir o seu rei e o seu país!

- Dá-me - disse Oldbuck - a espada que meu pai levou em 45; não tem cinturão nem bainha, mas passaremos sem eles.

Ao falar assim, enfiou o ferro na algibeira das calças. Nesse momento entrou Heitor, que estivera numa eminência vizinha a certificar-se da realidade desse alarme.

- Onde estão as tuas armas, meu sobrinho? - perguntou Oldbuck - Onde está a tua espingarda de dois canos, que nunca abandonavas quando não era precisa?

- Ora, ora - disse Heitor - a quem já se viu pegar numa espingarda de caça para um combate?... Como vê, enverguei o meu uniforme... Creio ser de mais utilidade, se me derem um comando, do que dez espingardas de dois canos; e quanto ao senhor, faria bem em dirigir-se a Fairport, a fim de dar ordens para que tratem de prover ao alojamento e à alimentação dos homens e dos cavalos, e impedir a desordem.

- Tens razão, Heitor; creio que a minha cabeça será mais útil do que o meu braço. Mas aí está sir Arthur que, entre nós, não é capaz de grande coisa, tanto de uma maneira como de outra.

Sir Arthur era provavelmente de opinião diferente; porque, envergando o seu uniforme de governador da costa, se dirigia a Fairport, e entrara de passagem para levar Mr. Oldbuck, cuja sagacidade, depois dos últimos acontecimentos, lhe inspirava mais confiança do que nunca. Em despeito de todas as súplicas das fêmeas, que o Antiquário quis deixar em Monkbarns, à guisa de guarnição, aceitou imediatamente, com seu sobrinho, a oferta de sir Arthur.

Só os que foram testemunhas de semelhante cena podem fazer uma ideia do barulho e do movimento que perturbavam a cidade de Fairport. Viam-se através das vidraças inúmeras luzes que, aparecendo e desaparecendo sucessivamente, denunciavam a confusão que reinava no interior das casas. As mulheres da classe baixa estavam reunidas e peroravam na praça do mercado. Os voluntários dos campos chegavam de todos os concelhos, galopavam pelas ruas, separadamente ou em grupos de cinco e seis, segundo se encontravam na estrada. Os tambores e os pífaros dos voluntários, tocando às armas, misturavam-se com a voz dos oficiais, e com o som das trompas e o repique dos sinos. Os navios no porto estavam iluminados, e escaleres enviados pelas fragatas aumentavam a confusão geral ao desembarcarem homens e armas destinados à defesa da praça. Era Taffril quem vigiava, com muita actividade, esta parte dos preparativos. Dois ou três navios ligeiros tinham-se desprendido dos seus cabos e alcançado o largo para irem à descoberta do inimigo.

Tal era a cena de confusão geral através da qual sir Arthur Wardour, Oldbuck e Heitor atingiram a praça principal, onde estava situado o município. Este achava-se iluminado, e os magistrados tinham-se reunido com os principais burgueses; e nessa ocasião, como em todas do mesmo género na Escócia, notava-se a que ponto o bom-senso e a firmeza natural deste povo supriram tudo o que pudesse faltar-lhe em experiência.

Os magistrados eram assediados pelos quarteis-mestres dos diversos corpos a fim de entregarem bilhetes de alojamento para homens e cavalos.

- Bem - disse o bailio Little John - metamos os cavalos nos nossos armazéns e os homens nos nossos locutórios; partilhemos as nossas ceias com uns e as nossas ferragens com os outros. Enriquecemos sob um governo livre e paternal, chegou o momento de lhe mostrarmos que conhecemos o preço.

Todos os que estavam presentes lhe responderam com um grito geral de aprovação; e os bens dos ricos, assim como as pessoas dos indivíduos de todas as classes, foram unanimemente consagrados à defesa da pátria.

O capitão Mac Intyre actuou nesta ocasião como conselheiro militar e ajudante-de-campo do principal magistrado; nessa qualidade, revelou um grau de presença de espírito e um conhecimento da sua profissão que seu tio estava longe de esperar. Este último, lembrando-se do seu estouvamento e impetuosidade habituais, olhava-o de vez em quando com assombro, ao notar a maneira calma e pausada com que ele explicava as diversas providências de precaução que a experiência lhe sugeria, e dava ordens para as fazer executar. Achou os diferentes corpos em boa ordem, e viu os elementos irregulares de que se compunham, grande força pelo número e cheios de confiança e de coragem. A experiência militar tinha nesse momento um preço importante que se sobrepunha de tal maneira a todos os outros direitos de distinção, que até o velho Edie, em lugar de ser desdenhado como Diógenes em Sinope, que o deixavam rolar o seu tonei quando em sua volta se preparavam para combater, foi encarregado de vigiar a distribuição de munições, dever de que se desincumbiu muito bem.

No entanto, ainda se esperava com impaciência duas coisas: a primeira, a presença dos voluntários de Glenallan, de que se formara um batalhão particular por deferência pela importância daquela família, e a segunda, a chegada do oficial que se anunciara, e que, encarregado do comando em chefe de todas as providências de defesa da costa, estava autorizado pela sua missão a dispor inteiramente da força militar.

Por fim, o ruído das trompas anunciou a chegada de todos os rendeiros de Glenallan, e o próprio conde, para grande surpresa de todos que conheciam os seus hábitos e estado de saúde, apareceu à sua frente, fardado. Formavam um belo esquadrão, bem encavalgado, inteiramente constituído por rendeiros das terras baixas do conde, e eram seguidos por um regimento de quinhentos homens que o conde mandara descer das suas montanhas, completamente equipados em traje nacional e com as suas gaitas-de-foles a tocar na vanguarda. O asseio e ar marcial deste corpo de vassalos excitaram a admiração do capitão Mac Intyre; mas seu tio ficou ainda mais impressionado, ao ver a que ponto a constituição débil do seu chefe parecia reanimada nesse momento de crise, pelo espírito cavalheiresco e guerreiro que sempre caracterizara a sua casa. Reclamou e obteve para ele e para os seus o posto mais exposto ao perigo, revelou a maior prontidão nas disposições que foi preciso tomar, e não mostrou menos sagacidade ao discutir a sua utilidade. Os primeiros raios do dia vieram brilhar sobre o conselho militar de Fairport ainda reunido, e encontraram toda a gente ocupada, com o mesmo ardor, nos preparativos de defesa.

Finalmente, ouviu-se um brado no meio do povo;

- Eis o bravo major Neville que chega com outro oficial!

E a sua cadeira de posta, atrelada a quatro cavalos, atravessou a praça, sob as aclamações dos voluntários e dos habitantes. Os magistrados, acompanhados dos adjuntos da tenência, apressaram-se a ir recebê-lo às portas do município; mas qual não foi a sua surpresa, e sobretudo a do Antiquário, ao reconhecerem sob o elegante uniforme e chapéu militar as feições do pacífico Lovel. Afectuosos abraços, um cordial aperto de mão, foram necessários a Oldbuck para se convencer de que seus olhos não se enganavam. Sir Arthur não ficou menos surpreendido ao reconhecer o filho, capitão Wardour, no companheiro de Lovel, ou antes, do major Neville. As primeiras palavras dos jovens oficiais foram para dar positiva certeza a todos que estavam presentes de que o ardor e o zelo que acabavam de patentear não podia ter outra utilidade senão demonstrar quanto se podia contar, em caso de necessidade, com a sua actividade e a sua coragem.

- O guarda instalado no topo de Halket - disse o major Neville - segundo o que soubemos por informações colhidas no caminho, foi muito naturalmente induzido em erro pela fogueira de festa que alguns ociosos acenderam na montanha que domina Glenwithershins, e precisamente na linha do sinal a que o seu corresponde.

Oldbuck lançou então um olhar significativo a sir Arthur, que respondeu com outro não menos embaraçado e um encolher de ombros.

- Provavelmente, são as máquinas que em nossa cólera condenámos à fogueira - disse o Antiquário, recobrando coragem, embora interiormente estivesse envergonhado de ter sido a causa de tanta desordem Desejaria do fundo do coração que esse Dousterswivel fosse para o diabo! Dir-se-ia ter-nos deixado em herança uma série de erros e de asneiras, como se, ao partir, acendesse um rastilho de pólvora. Qual será o primeiro petardo que irá agora partir-nos as pernas! Mas eis que chega o prudente Caxon. Vamos, levante a cabeça, imbecil. Têm os seus superiores de suportar a censura das suas asneiras; e olhe, tome lá este instrumento - (deu-lhe a espada) - em verdade, não sei que teria respondido ontem a um homem que me dissesse que eu hoje havia de trazer esta arma ao meu lado.

Nesse momento, sentiu que lorde Glenallan lhe apertava brandamente o braço, o levava a um aposento isolado e lhe dizia:

- Por Deus, quem é aquele jovem que se parece de uma maneira tão flagrante...

- com a desditosa Eveline - disse Oldbuck, interrompendo-o - O meu coração sentiu-se atraído por ele, desde o primeiro dia, e Vossa Senhoria explica-me neste momento a causa.

- Mas quem, quem é ele? - continuou lorde Glennallan, apertando o Antiquário num movimento convulsivo.

- Dantes chamar-lhe-ia Lovel; mas parece agora que se transformou em major Neville.

- Aquele que meu irmão criou como seu filho natural, que nomeou seu herdeiro. Deus da bondade, é o filho da minha Eveline!

- Alto, milorde, um momento! - disse Oldbuck Não se entregue com excessiva pressa a tal suposição; que probabilidades há?

- Não é uma probabilidade, é uma certeza absoluta. Recebi ontem uma carta do agente de que lhe falei, a informar-me de toda a história. Não foi senão apenas ontem que soube tudo; mas, por amor de Deus, Mr. Oldbuck, traga-mo, para que seu pai possa nele fixar os olhos e abençoá-lo antes de expirar.

- Certamente; mas, no interesse de ambos vós, dê-me uns momentos para o preparar.

Saiu, resolvido a colher informações mais exactas, antes de se deixar arrastar à convicção de um facto tão estranho, e encontrou o major Neville a expedir as ordens necessárias para dispersar as forças que se tinham reunido.

- Dê-me o prazer, major Neville, de abandonar por um momento essa tarefa aos cuidados do capitão Wardour e de Heitor, com o qual espero já se tenha reconciliado por completo - (Neville começou a rir e estendeu a mão a Heitor do outro lado da mesa) e, por favor, queira conceder-me uns instantes de audiência.

- O senhor tem o direito de dispor de mim, Mr. Oldbuck, mesmo que o assunto de que me ocupe seja ainda mais urgente - respondeu Neville - Não me esqueci de que o enganei com um nome suposto e que recompensei a sua hospitalidade ferindo seu sobrinho.

- O senhor tratou-o como ele merecia - disse Oldbuck-embora eu deva convir de passagem que ele hoje mostrou tanto bom-senso como coragem. Palavra, se ele quisesse estudar um pouco e ler César e Políbio e os Stratagemata Polyxni, creio que avançaria no exército, e eu ajudá-lo-ia, com certeza.

- Ele é absolutamente digno - respondeu NeviiLe

- Agradeço-lhe, por meu turno, a indulgência que me concede, e que mereço tanto mais que talvez não tenha a felicidade de ter mais direito ao apelido de Neville, pelo qual sou geralmente tratado, do que ao de Lovel, sob o qual me conheceu.

- Sim? Pois bem, é preciso então que procuremos outro ao qual o senhor possa ter um direito sólido e legal.

- Senhor, lisonjeia-me que a desdita do meu nascimento não lhe pareça assunto que possa prestar-se a gracejos.

- De modo algum, jovem - respondeu o Antiquário, interrompendo-o - Creio saber mais do que o senhor sobre o seu próprio nascimento, e, para o convencer, dir-lhe-ei que o senhor foi criado e conhecido como filho natural de Geraldin Neville, de Nevillesburgh, em Yorkshire, e destinado, suponho eu, a ser seu herdeiro.

- Perdoe-me. Não fui autorizado a conceber tais esperanças: não se poupou nada para a minha educação e empregou dinheiro e crédito para me fazer avançar no exército; mas creio que meu suposto pai teve por várias vezes ideias de casamento, embora nunca as realizasse.

- Porque diz meu suposto pai? Que é que o pode levar a acreditar que Mr. Geraldin Neville não era realmente seu pai?

- Estou convencido, Mr. Oldbuck, de que o senhor não me faz perguntas sobre um ponto tão delicado para apenas satisfazer uma vã curiosidade; confesso-lhe, pois, que o ano passado, enquanto ocupámos uma pequena cidade da Flandres francesa, encontrei num convento, perto do qual me alojava, uma mulher que falava inglês de maneira notável... Era espanhola e chamava-se Teresa d'Acunha... Durante o nosso conhecimento, descobriu quem eu era e deu-se-me a conhecer como pessoa que cuidara da minha infância. Deu-me a entender por várias vezes que eu pertencia a uma classe elevada, que se tinham cometido injustiças a meu respeito, e prometeu-me uma revelação mais completa no caso da morte de uma dama que estava na Escócia, e durante a vida da qual ela resolvera guardar segredo. Também declarou que Mr. Geraldin Neville não era meu pai. Fomos atacados pelo inimigo e expulsos da cidade, que foi entregue à pilhagem e ao furor dos republicanos. As ordens religiosas eram principalmente objecto do seu ódio e da sua crueldade... O convento foi totalmente queimado, nele pereceram várias religiosas, entre outras Teresa, e eu perdi com ela toda a esperança de alguma vez conhecer o segredo do meu nascimento... Tudo, porém, me leva a crer que foi acompanhado de circunstâncias trágicas.

- Raro antecedentem scelestum, ou, como posso dizer aqui, scelestam - disse Oldbuck - dveruit pozna (1), os próprios epicureus o dizem... Mas que fez o senhor então?

- Escrevi a Mr. Neville a este respeito, mas sem resultado... Obtive em seguida uma licença e vim lançar-me a seus pés, suplicando-lhe que completasse a informação que Teresa começara a dar-me. Recusou-se e, ante as minhas instâncias, lamentou com indignação os favores de que me cumulara... Achei que ele abusava dos direitos de benfeitor, visto que fora forçado a concordar que tinha poucos aos de um pai. Renunciei então ao apelido de Nevilla e

 

(1) Raramente o culpado escapa ao castigo. - N. do T.

 

tomei aquele sob o qual me conheceu. Foi por essa época que, morando perto de um amigo que auxiliava o meu disfarce, travei conhecimento com Miss Wardour e fui assaz romanesco para a seguir até à Escócia. O meu espírito flutuava entre vários projectos de futuro, mas resolvi, por fim, fazer uma derradeira tentativa junto de Mr. Neville para saber o segredo do meu nascimento... Estive muito tempo sem receber a sua resposta; o senhor estava presente quando ela me foi entregue. Informava-me do mau estado da sua saúde e suplicava-me, no meu próprio interesse, que não procurasse descobrir o grau de parentesco que nos unia, nem a natureza das minhas relações com ele, mas que me contentasse com a certeza de que eram bastante próximas e bastante íntimas para o autorizar a constituir-me seu herdeiro. No momento em que me preparava para ir visitá-lo, um segundo expresso trouxe-me a notícia de que ele deixara de existir. A posse de uma tão grande fortuna não pôde distrair-me do remorso que experimentava, ao pensar na minha atitude para com o meu benfeitor; e algumas expressões da sua carta, que pareciam insinuar que uma mancha mais vergonhosa que a da ilegitimidade assinalara o meu nascimento, excitaram a minha inquietação ao lembrar-me dos preconceitos de sir Arthur.

- E o senhor adoeceu à força de alimentar ideias tão melancólicas, em vez de vir consultar-me e contar-me toda a sua história?

- É verdade. E em seguida vieram o meu duelo com o capitão e a necessidade de abandonar Fairport e suas vizinhanças.

- E de dizer adeus a Miss Wardour, à Caleáónia...

- O senhor o diz.

- E depois disso ocupou-se, suponho eu, em projectos para socorrer sir Arthur?

- Sim, senhor, com a ajuda do capitão Wardour, em Edimburgo.

- E tendo aqui Edie Ochiltree por ajudante... Como vê, estou ao corrente de toda a história... Mas como obteve aquelas barras?

- É uma quantidade de prata que pertenceu a Mr. Neville, e que fora deixada em depósito em casa de alguém de Fairport; algum tempo antes de morrer, dera ordem para a fundir.

- Agora, major Neville, ou permita-me antes que diga Lovel, porque me agrada sobretudo chamar-lhe assim, creio que em breve terá de trocar esses dois nomes pelo do estimável William Geraldin, ou melhor, lorde Geraldin.

O Antiquário contou-lhe então em pormenor as circunstâncias estranhas e melancólicas da morte de sua mãe.

- Não tenho a menor dúvida - ajuntou ele - de que seu tio quis fazer acreditar que o filho desse desditoso casamento não existia... talvez tivesse mesmo em vista a herança de seu irmão. Ele era então um jovem estouvado e perdulário... Mas o seu relato e a história de Teresa absolvem-no igualmente de ter a menor intenção malévola contra a sua pessoa, apesar das suspeitas que a excitação em que aparecera perante Elspeth fizera admitir. Agora, meu caro amigo, que seja eu quem tenha o prazer de o conduzir aos braços de seu pai.

Não tentaremos descrever tal entrevista. As provas dos dois lados foram completas e não deixaram nada a desejar, porque Mr. Neville escrevera uma narrativa exacta de todo esse acontecimento e fechara-a num sobrescrito que deixara nas mãos do seu intendente de confiança, com ordem de não permitir que abrissem senão depois da morte da velha condessa. O motivo que o fizera guardar o segredo por tanto tempo estava no receio que poderia produzir uma tal descoberta sobre um carácter tão violento e tão imperioso como o dela.

Na noite desse dia memorável, os rendeiros e voluntários de Glenallan beberam pelas prosperidades do seu jovem amo. Um mês depois, lorde Geraldin desposou Miss Wardour, e foi o Antiquário quem apresentou à noiva o anel nupcial, um anel de ouro maciço de um trabalho antigo, no qual estava gravada a divisa de Aldobrand, Kunst macht gunst (1).

O velho Edie, o homem mais importante que alguma vez usou roupão azul, deambula livremente, e ora vai a casa de um amigo, ora a casa de outro, e gaba-se de nunca viajar senão em dias de sol. ültimamente,

 

(1) A habilidade e a tenacidade conduzem ao êxito. - N. Do T.

 

porém, notou-se nele alguma disposição para se fixar, vendo-se frequentemente numa linda choupana entre Monkbarns e Knockwinnock, para onde Caxon se retirou depois do casamento de sua filha, a fim de se encontrar no centro das três perucas da paróquia, que ele continua a tratar, mas apenas por gosto. Ouviu-se Edie repetir que era um local muito alegre, e que era consolador pensar que se tinha um cantinho semelhante para se abrigar num dia de chuva. Como seus músculos começavam a inteiriçar-se um pouco, julgou-se que ele acabaria por fixar-se ali.

Protectores tão generosos como opulentos, lorde e lady Geraldin não esqueceram nas suas liberalidades nem a senhora Hadoway nem os Mucklebackit. A primeira fez digno uso dos seus benefícios, os últimos não souberam aproveitá-los. Contudo, continuam a recebê-los, mas sob a administração do velho Edie, que se encarregou de lhos levar, e eles aceitam-nos sem protestarem por recebê-los da sua mão.

Heitor progride rapidamente no exército. O seu nome apareceu mais de uma vez na gazeta, e ganhou em proporção as boas graças de seu tio. Uma circunstância não menos agradável para o jovem militar, foi que matou dois lobos-marinhos, o que pôs termo aos constantes gracejos do Antiquário acerca da phoca. Há pessoas que falam de um casamento de Miss Mac Intyre com o capitão Wardour; mas não damos esta notícia senão como boato ainda não confirmado.

O Antiquário faz frequentes visitas aos castelos de Glenallan e de Knockwinnock... Parece ter intenção de dar a última demão em dois ensaios, um sobre a cota de malha do grande conde, outro sobre a manopla esquerda do Inferno Ajaezado... Nunca deixa de perguntar a cada passo se lorde Geraldin começou a Caledónia. Entretanto, já completou as suas notas, que, segundo julgamos, ficarão para benefício de quem as publicar, sem qualquer risco ou encargo para o Antiquário.

 

                                                                                 Walter Scott  

 

                      

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