Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO
Se realmente estão interessados nisto, a primeira coisa que desejarão saber é o local onde nasci, o modo como passei a minha estúpida infância, a ocupação de meus pais, o que faziam antes de eu nascer, e tudo o mais, como se se tratasse de David Copperfield. Mas eu não estou com disposição para isso, se, de facto, querem que vos conte a verdade.
Em primeiro lugar, essas coisas aborrecem-me, e, em segundo lugar, os meus pais teriam duas hemorragias cerebrais se eu revelasse qualquer facto pessoal que lhes dissesse respeito. São muito sensíveis quanto a essas coisas; especialmente o meu pai. Não digo que não sejam boas pessoas, mas são sensíveis como os diabos. Além disso, não vos vou fazer a minha autobiografia ou coisa semelhante. Só vos falarei do que se passou comigo durante o passado Natal, antes de ficar um pouco confuso e de ter de vir para aqui. Aliás, será tudo o que já contei a D. B. E ele é meu irmão. Vive em Hollywood, que não fica muito longe desta bodega, e vem visitar-me pràticamente todas as semanas. É ele quem me levará quando eu for para casa, talvez para o mês que vem. Comprou um jaguar há pouco tempo, um desses carros ingleses que conseguem fazer cento e cinquenta quilómetros por hora. Custou-lhe perto de quatro mil dólares. Mas ele agora tem muita massa. Antigamente não tinha. Quando vivia connosco não passava de um escritor vulgar. Escreveu um livro de contos terrível O Peixe Secreto, em que talvez nunca tenham ouvido falar. O melhor conto era exactamente O Peixe Secreto. Tratava-se de um rapaz que não permitia que ninguém contemplasse o seu peixe, porque o comprara com as suas economias. Esse conto ia-me matando. Agora o meu irmão, o D. B., está em Hollywood e é uma espécie de prostituta. Se há coisas que eu odeie, o cinema é uma delas. Será preferível nunca me falarem nele.
Quero começar exactamente pelo dia em que saí da Escola Secundária Pencey. A Escola Pencey fica em Agerstown, na Pensilvânia. Provàvelmente já ouviram falar dela, ou, pelo menos, conhecem os seus anúncios. Em quase todos os jornais e revistas há anúncios da Escola, que mostram um rapaz cheio de músculos saltando uma barreira a cavalo. Como se tudo o que se faz em Pencey fosse apenas jogar o pólo! Eu nem sequer vi um único cavalo pelas redondezas da Escola. E abaixo da gravura há sempre a mesma inscrição: "Desde 1888 que transformamos rapazes em jovens fortes e inteligentes." Conversa fiada. Em Pencey transformam tanto os rapazes em jovens fortes e inteligentes como em qualquer outra escola. E não conheci lá nenhum jovem forte nem inteligente. Ou talvez dois tipos, se tanto. E esses já eram assim quando foram para Pencey.
Era sábado e havia jogo de futebol com a equipa de Saxon Hall. O jogo com Saxon Hall era sempre um grande acontecimento em Pencey. Era o último desafio do ano e esperava-se que os alunos se suicidassem se Pencey não ganhasse. Recordo-me de que, por volta das três da tarde, eu estava no cimo de Thomsen Hill, mesmo junto daquele estúpido canhão da Guerra Civil que se vê lá em cima. Podia observar-se todo o campo e as duas equipas que se defrontavam. Não era possível ver toda a assistência, mas, pelo menos, ouviam-se os berros estridentes e terríveis do lado de Pencey, pois pràticamente a escola caíra lá em peso - excepto eu -, e uns gritos isolados e fatigados no lado de Saxon Hall, pois o grupo visitante trazia sempre pouca claque.
Nos jogos de futebol nunca havia muitas raparigas, pois só os mais crescidos podiam vir acompanhados delas. Era uma escola terrível sob todos os aspectos. Eu gosto de estar em sítios onde de vez em quando se possa ver uma ou outra rapariga, mesmo que estejam apenas a espreguiçar-se, ou a assoar o nariz, ou mesmo a rir-se sem motivo. Selma Thurmer - a filha do director - aparecia frequentemente nos jogos, mas não pertencia ao tipo de mulher que nos faz enlouquecer de desejo. Não deixava de ser bonita. Certa vez sentei-me junto dela, na camioneta de Agerstown, e começámos a conversar. Gostei dela. Tinha um nariz muito comprido e as suas unhas estavam todas roídas e ensanguentadas. Quase inspirava piedade. Mas o que eu mais apreciava nela era não apregoar aos quatro ventos que o pai era uma pessoa importante. Provàvelmente sabia que ele não passava de um idiota.
O motivo que me levava a estar ali, em Thomsen Hill, em vez de estar lá em baixo, no jogo, era porque acabara de chegar de Nova Iorque com a equipa de esgrima. Eu era o chefe da equipa. Cargo importantíssimo. Naquela manhã havíamos ido a Nova Iorque efectuar um encontro com a equipa da Escola McBurney. Mas não houve encontro. Esqueci-me do equipamento no metropolitano. A culpa foi toda minha. Mas eu estava constantemente a levantar-me para ver no mapa o sítio onde nos devíamos apear. Por isso, voltámos para Pencey às duas e meia, em vez de só regressarmos à hora do jantar. No comboio, na viagem de regresso, os componentes da equipa votaram-me ao ostracismo. Teve a sua piada.
O outro motivo que me impedia de estar no jogo era eu ir despedir-me do velho Spencer, meu professor de História. Estivera com gripe e pensei que até às férias
do Natal já não o veria. Escreveu-me um bilhete pedindo-me que o fosse visitar antes de partir. Sabia que eu não voltaria para Pencey.
Esqueci-me de lhes contar este pormenor. Puseram-me na rua. Já não regressaria depois das férias do Natal, pois não tivera aproveitamento em quatro disciplinas e não me interessava pelo estudo. Preveniram-me frequentemente para que me aplicasse, especialmente pelo meio dos períodos, quando os meus pais vinham conferenciar com o velho Thurmer, mas eu nunca me apliquei. Por isso, excluíram-me. É coisa vulgar em Pencey. A escola possui um óptimo sistema de classificação.
Era, pois, Dezembro e estava um frio levado dos diabos, especialmente no cimo daquela estúpida colina. E eu só trazia uma gabardina e nem sequer tinha luvas. Na semana anterior haviam-me roubado o sobretudo de lã de camelo, com as luvas de lã metidas no bolso. Pencey estava cheia de larápios. É claro que os alunos eram todos de boas famílias, mas isso nada significava, pois a escola estava cheia de ladrões. Quanto mais cara é uma escola mais ladrões tem - e não estou a brincar. Mas lá estava eu, junto do estúpido canhão, a observar o jogo, com o traseiro gelado. É claro que o jogo não me interessava grande coisa. O que eu tentava era sentir qualquer espécie de saudade da partida. Quero eu dizer que tenho andado de um lado para o outro e tenho saído de muitas escolas sem sequer saber que vou abandoná-las. É uma coisa que odeio. Não quero saber se se trata de uma partida triste ou má, mas quando abandono um determinado lugar gosto de saber que vou abandoná-lo. É que, se não soubermos, ainda é um pouco pior.
Senti-me feliz. Súbitamente recordei-me de uma coisa que me ajudou a compreender que me ia embora. Recordei-me de que em meados de Outubro o Robert Tichener, eu e o Paul Campbell tínhamos estado a jogar à bola em frente do edifício académico. Eram tipos fixes, especialmente o Tichener. Faltava pouco para o jantar e já começara a escurecer, mas nós continuámos a chutar a bola. Era quase noite e não a distinguíamos, mas não queríamos interromper aquela distracção. Finalmente fomos obrigados a interrompê-la. O professor de Biologia, Mr. Zambesi, surgiu a uma janela do edifício académico e disse-nos que voltássemos ao dormitório e nos preparássemos para o jantar. Sempre que me recordar deste episódio conseguirei despedir-me com saudade seja do que for. Mal recordei tudo isto, voltei as costas ao jogo e lancei-me a correr pela encosta da colina em direcção à casa do velho Spencer. Ele não vivia na cerca da escola. Habitava na Anthony Wayne Avenue.
Corri sempre até alcançar o portão e depois esperei uns segundos, a recobrar o fôlego. Se lhes interessa saber, fiquei sem respiração. Sou um grande fumador - isto é, era um grande fumador: obrigaram-me a deixar de fumar. Outra coisa: no ano passado cresci oito centímetros. Foi por isso que ia ficando tuberculoso e vim para aqui. Mas, apesar de tudo, sou bastante saudável.
Ora, logo que recobrei o fôlego, continuei a correr pela Estrada zoo. O chão estava coberto de gelo e eu quase caí. Não consigo perceber porque corria, mas parece-me que era por gosto. Depois de ter atravessado a estrada, tive a sensação de que ia desaparecer. Era uma daquelas tardes idiotas, terrivelmente frias, sem sol, em que temos a sensação de que vamos desaparecer sempre que atravessamos uma estrada.
Caramba! Bati furiosamente à porta mal atingi a casa do velho Spencer. Estava completamente gelado. Doíam-me as orelhas e quase não conseguia mexer os dedos.
- Vamos, vamos - disse em voz alta - abram a porta.
Por fim, a velha Mrs. Spencer veio abri-la. Não têm criada e são eles que costumam abrir a porta. Não têm muita massa.
- Holden! - disse Mrs. Spencer. - Que prazer! Entra, querido! Estás gelado, hem?
Pareceu-me que ela ficara satisfeita. Gostava de mim. Pelo menos, acho que gostava.
Entrei imediatamente.
- Como tem passado, Mrs. Spencer? - perguntei. - E como vai Mr. Spencer?
- Dá cá a gabardina - disse ela. Não ouvira as minhas perguntas. Era um pouco surda.
Pendurou a gabardina no roupeiro e eu alisei o cabelo com as mãos. Usava o cabelo muito curto e nunca precisava de pente.
- Como tem passado, Mrs. Spencer? - repeti um pouco mais alto, para que ela ouvisse.
- Optimamente, Holden. - Fechou a porta do roupeiro. - E tu, como vais?-Pelo modo como ela falava, descobri imediatamente que o velho Spencer já lhe dissera que eu fora posto na rua.
- Eu cá vou bem - disse. - E Mr. Spencer? já não tem gripe ?
- já não tem! Holden, ele tem-se portado como um verdadeiro... nem sei o nome que lhe devo dar... Está no quarto. Entra.
TINHAM quartos separados. Andavam pelos setenta anos, ou mais. já haviam feito tudo o que tinham de fazer... e de um modo mais ou menos imbecil, é claro. É abjecto dizer uma coisa destas, mas eu não pretendo ser abjecto. Quero apenas dizer que costumava pensar no velho Spencer. E quando pensamos muitas vezes no velho Spencer acabamos por perguntar a nós próprios por que diabo ainda vive. Andava sempre curvado e tinha um aspecto terrível. Na aula, quando atirava um pedaço de giz para o quadro, havia sempre um rapaz das primeiras filas que tinha de se levantar para o apanhar. Acho que isto é uma coisa medonha. Mas se pensássemos nele sem exagerar, descobriríamos que, mesmo assim, as coisas não lhe corriam pelo pior. Por exemplo: certo domingo, quando eu e outros rapazes fomos a casa dele tomar uma chávena de chocolate, Spencer mostrou-nos um cobertor navájo, todo coçado, que ele e a mulher haviam comprado aos índios no Parque Yellowstone.
Deve ter levado um grande rombo com esta compra. É isto mesmo que eu quero dizer. Um velho como o Spencer leva sempre um grande rombo quando compra qualquer coisa.
A porta do quarto estava aberta, mas eu bati com os nós dos dedos na ombreira, para ser delicado. Podia vê-lo. Estava sentado numa grande cadeira de couro, todo embrulhado no cobertor de que já vos falei. Quando entrei, olhou para mim.
- Quem é? - berrou. - Caulfield? Entra, rapaz! Fora das aulas andava sempre a berrar. Por vezes até nos irritava.
Mal entrei, arrependi-me de ter vindo visitá-lo. Estava a ler o Atlantic Monthly. Havia remédios por todos os lados e tresandava a pastilhas Vick. Era um triste espectáculo. Mas não pensem que eu me impressiono com pessoas doentes. O que, porém, era mais impressionante, era o facto de o velho Spencer estar vestido com um roupão que devia ter vestido pela primeira vez no dia em que nasceu. Não gosto de ver pessoas velhas em pijama ou de roupão. Ficam sempre com o peito à mostra. E com as pernas também. As pernas dos velhos, nas praias ou noutros sítios, parecem sempre muito brancas e sem cabelos.
- Bom dia - disse eu. - Recebi o seu recado. Muito obrigado.
Ele enviara-me um bilhete pedindo-me que viesse visitá-lo antes das férias, pois eu já não regressaria à escola. -Mas não era necessário enviár-me um recado. Eu viria cá, de qualquer modo.
- Senta-te aqui, rapaz - disse o velho Spencer, apontando a cama.
Sentei-me.
- Como vai a gripe?
- Ouve rapaz! Se me sentisse melhor, já teria chateado o médico - disse o velho Spencer. Ficou delirante com
a piada. Desatou a rir como um doido. Depois acalmou-se e perguntou:- Então não foste ao jogo? Julgava que hoje era o dia do grande jogo!
- E é. Estive lá, mas acabo de chegar de Nova Iorque com a equipa de esgrima. "Caramba", pensei, "esta cama parece uma rocha!"
Ficou sério como os diabos. Eu já sabia que isto ia acontecer.
- Então vais deixar-nos, hem? - perguntou ele. - É verdade, senhor. Parece-me que sim.
Começou a cabecear, como de costume. Nunca vi ninguém que cabeceasse tanto como o velho Spencer. Nunca cheguei a saber se ele cabeceava porque estava
a pensar, ou apenas porque era um bom velhote que a partir dos cotovelos já não sentia o corpo.
- Que é que o Dr. Thurmer te disse? Vocês devem ter tido uma boa conversa, hem?
- É verdade. Tivemos mesmo. Estive quase duas horas no gabinete dele.
- Que é que ele te disse?
- Oh... coisas sobre a vida, que é um jogo, e tudo o resto. E como esse jogo tem de ser feito segundo as regras... Foi simpático. Quero dizer que não desatou aos berros. Falou apenas da vida, que é um jogo, e mais coisas. O senhor sabe como isso é.
- A vida é um jogo, rapaz. A vida é um jogo que só se pode praticar segundo as regras.
- Sim, senhor, eu sei. Eu sei muito bem.
"Um jogo, grande asno! Um jogo! Se estiveres no lado do barulho, então está bem, é um jogo. Tenho de concordar. Mas se estiveres no outro lado, onde não há barulho, então que espécie de jogo é? Nada. Não há jogo."
- O Dr. Thurmer já escreveu aos teus pais? - perguntou-me o velho Spencer.
- Disse-me que ia escrever-lhes na segunda-feira. - E tu? Já lhes disseste?
- Não, senhor, ainda não lhes disse, porque, provàvelmente, encontrá-los-ei na quarta-feira à noite quando voltar para casa.
- E como achas que vão receber a notícia?
- Bem... vão ficar irritados - disse eu. - Vão ficar mesmo muito irritados. Esta é a quarta escola que eu frequento. Abanei a cabeça. Costumo abanar a cabeça. - Caramba! - acrescentei.
Também costumo dizer "caramba", em parte porque tenho um vocabulário muito reles e em parte porque sou muito infantil para a minha idade. Nessa altura tinha dezasseis anos. Agora tenho dezassete, mas, por vezes, procedia como se apenas tivesse treze. É uma coisa muito irónica, pois tenho um metro e noventa de altura e cabelos grisalhos. É pura verdade. O lado direito da minha cabeça está coberto por milhões de cabelos grisalhos. Tenho-os desde garoto. Mas, por vezes, procedo como se tivesse ainda doze anos. Todos dizem isso, especialmente o meu pai. Em parte é verdade, mas não completamente. As pessoas acham sempre que têm razão. É coisa que não me incomoda, mas às vezes fico aborrecido quando me dizem para proceder de acordo com a minha idade. E há ocasiões em que procedo como se fosse um pouco mais velho, mas ninguém dá por isso. Nunca reparam.
O velho Spencer cabeceava novamente. E também começou a meter os dedos no nariz. Fingia que estava apenas a coçar-se, mas o que realmente fazia era meter os dedos no nariz. Parece-me que ele achava que não havia mal nisso, pois só eu podia observá-lo. Também não me incomodava, mas é um triste espectáculo ver um indivíduo a limpar o nariz com os dedos.
Depois disse-me
- Tive o privilégio de falar com os teus pais quando eles vieram conferenciar com o Dr. Thurmer há algumas semanas. São pessoas muito distintas.
- São mesmo. São muito decentes.
"Distinto!" Cá estava um palavrão que eu odiava. É uma balela. Ao ouvi-lo quase sentia vómitos.
Então, subitamente, o velho Spencer transformou-se, como se tivesse algo de muito importante a dizer-me. Endireitou-se, sentado como estava na cadeira, e fez menção de se mover. Mas não passou de um falso alarme. Tudo o que fez foi agarrar no Atlantic Monthly e tentou atirá-lo para a cama onde eu estava sentado. Mas falhou. A cama estava a cerca de dez centímetros, mas, mesmo assim, falhou. Ergui-me, apanhei a revista e coloquei-a sobre a cama. Nesse momento tive desejos de fugir dali imediatamente. Senti que chegara o momento de ouvir um terrível sermão. A ideia de ouvir um sermão, só por si, não me incomodava, mas achei que era demasiado ter de ouvir um sermão, aspirar o cheiro das pastilhas Vick e contemplar o velho Spencer vestido com o seu pijama e roupão, tudo' ao mesmo tempo. Era de mais.
E ele começou:
- Mas que se passa contigo, rapaz? - Foi, porém, razoàvelmente compreensivo. - Quantas disciplinas tens tu? - Cinco.
-Cinco. E quantas notas negativas? - Quatro.
Movi-me um pouco sobre a cama. Era a cama mais dura em que me sentara até então.
- Em Inglês tive boas notas - prossegui - porque na Escola Whooton já aprendera aquelas coisas todas sobre o Beowulf e o Lord Randal. Não foi necessário estudar muito; só tive de escrever umas composições de vez em quando.
Ele nem sequer ouvia. Nunca prestava atenção ao que lhe diziam.
- Reprovei-te em História porque tu nada sabias. -Eu sei. Era infalível.
-Nada sabias. Absolutamente nada- repetiu. Uma coisa que me enlouquece é as pessoas dizerem as coisas duas vezes, depois de já termos concordado logo à primeira. E ele disse aquilo três vezes. - Mas absolutamente nada. Até duvido de `que tenhas aberto o livro. Foi ou não foi? Diz lá a verdade, rapaz!
- Bem! Eu olhei para ele algumas vezes - respondi. Não queria ofendê-lo. Era louco por História.
- Olhaste, hem? - disse, muito sarcástico. - A tua prova está ali, sobre o armário. Em cima dos livros. Trá-la cá. Caíra na esparrela. Mas, como não havia outra alternativa, fui buscar a prova. Depois voltei a sentar-me na cama dura como cimento. Caramba! Não podem imaginar como estava arrependido de ter vindo despedir-me dele. Começou a mirar e a remirar a prova.
- Estudámos os Egípcios desde o dia 4 de Novembro até 2 de Dezembro - disse ele. - Escolheste os Egípcios para tema de desenvolvimento. Queres ouvir o que escreveste?
- Não, senhor. Não tenho grande interesse - respondi. Mas ele leu a composição. É impossível deter um professor quando está disposto a fazer qualquer coisa. Acabam sempre por fazer o que pensam.
Os Egípcios pertenciam a uma velha rafa caucasiana fixada na zona norte da Afica. A última, como sabemos, é o maior continente do hemisfério ocidental.
E eu ali sentado, a ter de ouvir aquela estupidez! Era uma armadilha indecente.
Os Egípcios são extraordinàriamente interessantes por vdrios motivos. A ciência moderna ainda não descobriu os ingredientes secretos que os Egípcios usavam para preservar os seus mortos durante séculos e séculos. Este mistério é um desafio à ciência moderna do século X.V.
Interrompeu a leitura e olhou para mim. Eu começava a odiá-lo.
- A tua composição, chamemos-lhe assim, termina aqui - disse, num tom muito sarcástico. Quem diria que um velho daqueles poderia ser tão sarcástico? - Contudo, escreveste ainda uma nota pessoal no fundo da páginaacrescentou.
- Bem sei - disse eu ràpidamente, para evitar que ele lesse aquilo em voz alta. Mas era impossível detê-lo. Estava rubro.
Meu caro Mr. Spencer- leu em voz alta.- Isto é tudo o que eu sei sobre os Egípcios. Não estou muito interessado no assunto, embora as suas lições fossem muito interessantes. Não me importo de que me reprove, pois ja estou reprovado em tudo, excepto em Inglês. Respeitosamente, Holden Caulfield.
Depois contemplou-me como se acabasse de me vencer ao pinguepongue ou coisa semelhante. Parece-me que nunca o esquecerei só por me ter lido aquilo em voz alta. Eu nunca o teria feito se fosse ele quem tivesse escrito aquela nota. Escrevi, aliás, aquelas malditas linhas só para que ele não sentisse remorsos em reprovar-me.
- E achas que eu fui injusto, rapaz?
- Não, senhor! Nem pensar nisso é bom! - respondi. Quem me dera que ele deixasse de me chamar "rapaz" de uma vez para sempre.
Tentou atirar a minha prova para a cama. Mas, como é natural, voltou a falhar. Tive de levantar-me novamente, apanhá-la e colocá-la sobre o Atlantic Monthly. Que chatice fazer aquilo de dois em dois minutos!
- E que farias no meu lugar? - disse ele. - Diz a verdade, rapaz!
Bem! Via=se que ele estava contristado. Por isso, consolei-o. Disse-lhe que eu não passava de um idiota, e tudo o mais. Disse-lhe que teria feito exactamente a mesma coisa e que as pessoas, geralmente, não compreendem como é difícil ser-se professor. Este género de coisas. A velha treta.
Mas o mais curioso é que, enquanto eu lhe impingia estas balelas, ia pensando em assuntos muito diferentes. Vivo em Nova Iorque e, por isso, pensava na lagoa do lado sul do Central Park. Tentava imaginar se ela já estaria gelada quando voltasse a casa e, se estivesse, para onde teriam ido os patos. Para onde irão os patos quando a lagoa gela? Levá-los-ão num carro para algum jardim zoológico? Ou, muito simplesmente, voarão para outras bandas?
Sou um felizardo. Isto é, posso impingir uma série de tretas ao velho Spencer e, ao mesmo tempo, ir pensando nos patos do Central Park. Não é preciso pensar muito quando se conversa com um professor. Mas, subitamente, o velho interrompeu-me. Estava sempre a interromper-me. -E que pensas tu de tudo isto, rapaz? Estou muito interessado em saber. Muito interessado.
- Refere-se à minha reprovação? - perguntei. Oh, quem me dera que ele cobrisse o peito. Era um espectáculo pavoroso.
- Se não me engano, parece-me que também te meteste em sarilhos na Whooton School e em Elkton Hills - disse ele. Não foi muito sarcástico, mas apenas um pouco sórdido.
- Não tive grandes problemas em Elkton Hills - respondi. - Nem sequer fui reprovado. Sai de lá, mais nada. - Mas porquê?
- Porquê? Oh, isso é uma longa história! Ou, melhor, é uma coisa muito complicada.
Não estava disposto a contar-lhe o episódio e, de qualquer modo, ele nunca compreenderia. Um dos principais motivos que me levaram a sair de Elkton Hills foi o estar rodeado de imbecis. E é tudo. Por exemplo, havia Mr. Haas, o maior patife que já conheci em toda a minha vida. Dez vezes pior que o velho Thurmer. Aos domingos, o velho Haas andava por toda a parte trocando apertos de mão com os pais dos alunos. Tornava-se encantador, a não ser que os pais dos alunos não tivessem bom aspecto. Haviam de ver como ele procedeu com os pais do meu colega de quarto. Isto acontecia sempre que a mãe de um aluno era uma senhora gorda ou se o pai era um desses tipos que usam casacos de ombros largos e sapatos castanhos e brancos. O velho Haas apenas os cumprimentava, sorria-se, e depois ia conversar, durante meia hora, com os pais de outro aluno. Não posso suportar uma coisa destas. Fico parvo. Fico tão impressionado que acabo por ficar parvo. Odiava aquela escola de Elkton Hills !
O velho Spencer perguntou-me qualquer outra coisa, mas eu nem o ouvi. Estava a pensar em Haas. - O quê, senhor? - perguntei.
- Tens motivos particulares para sair de Pencey ? - Oh, tenho alguns motivos, é claro. Mas não são muitos. Por enquanto, ainda não. Não senti bem o ambiente. Levo sempre algum tempo até sentir o ambiente. Tudo o que faço é pensar em voltar para casa na quarta-feira. Sou um patife.
- E não te importas com o teu futuro, rapaz?
- Oh, é claro que me importo! É claro! - respondi. Depois pensei durante um minuto e acrescentei:- Mas não me importo muito.
- Mas importar-te-ás - disse o velho Spencer. - Importar-te-ás, rapaz. Quando já for tarde.
Não gostei de o ouvir dizer aquilo. Era como se eu já estivesse morto, ou coisa parecida. Fiquei impressionado. - Provàvelmente - aquiesci.
- Gostava de te pôr algum bom senso dentro dessa cabeça, rapaz. Estou a tentar ajudar-te. Estou a tentar ajudar-te, mas não sei se posso.
E estava mesmo. Podia-se ver. Mas estávamos em pólos opostos.
- Eu sei, senhor - disse-lhe. - E agradeço-lhe muito. Não estou a brincar. Agradeço-lhe muito.
Ergui-me. Caramba! Se queria salvar o pêlo, não poderia ficar ali nem mais cinco minutos.
- Tenho de me ir embora. Vou buscar o equipamento que deixei no ginásio, para o levar para casa.
Ele olhou para mim e começou novamente a cabecear, sempre com aquele ar sério no rosto. Repentinamente senti-me triste e tive pena dele. Mas não podia ficar mais tempo ali, pois estávamos em pólos opostos e ele continuava a falhar sempre que pretendia pôr qualquer coisa sobre a cama. Além disso, havia o velho roupão aberto no peito e aquele cheiro insuportável a pastilhas Vick.
- Oiça, senhor. Não se preocupe comigo - disse eu.Acredite, senhor. É apenas uma fase. Todas as pessoas atravessam fases, não é verdade?
- Não sei, rapaz. Não sei.
Odeio pessoas que nos respondem deste modo. - Claro que atravessam, senhor - afirmei eu. - Não se preocupe comigo. - Pus a mão sobre o seu ombro. - Okay? - Não queres tomar uma chávena de chocolate antes de partir? Mrs. Spencer gostaria...
- Gostava muito, mas tenho de ir. Tenho de ir já ao ginásio. Mas agradeço muito. Muito obrigado, senhor. Depois apertámos as mãos. E mais cumprimentos. Fiquei triste como os diabos.
- Eu depois escrevo-lhe. Cuide da sua gripe. - Adeus, rapaz.
Depois de ter fechado a porta e quando já ia no vestíbulo, ele berrou-me qualquer coisa, mas não consegui percebê-lo. Tenho a certeza de que ele disse: "Boa sorte." Mas espero que não. Eu nunca lhe desejaria "boa sorte". Se pensarmos bem, é uma coisa terrível.
Sou o maior mentiroso que jamais surgiu na face da Terra. É uma coisa medonha. Se no caminho para a tabacaria encontro algum amigo que me pergunta onde vou, sou capaz de lhe dizer que vou à ópera. É terrível. Por isso, quando disse ao velho Spencer que tinha de ir ao ginásio buscar o equipamento, impingi-lhe uma mentira descarada. Nem sequer tenho equipamento de ginástica.
Em Pencey, vivia nos novos dormitórios, na ala dedicada a Ossenburger. Era um dormitório para juniores e seniores. Eu era júnior. O meu colega de quarto era sénior. O dormitório recebeu o nome de um tal Ossenburger que estudou em Pencey. Fez grande estardalhaço na sua profissão, depois de ter saído de Pencey. Realizou conferências por todo o país, demonstrando que era possível sepultar qualquer pessoa apenas por cinco dólares. Que espectáculo, o velho Ossenburger! Provàvelmente metia os defuntos num saco e espetava com eles no rio. É claro que trouxe um certo prestígio a Pencey e, por isso, deram o seu nome à ala dos novos dormitórios. No dia do primeiro jogo de futebol, lá vinha ele no seu grande Cadillac e nós formávamos alas e berrávamos uma estrondosa saudação. Depois, na manhã seguinte, na capela, fazia um discurso que durava dez horas. Começava com cinquenta anedotas seguidas, só para mostrar que era um tipo fixe. Depois ia-nos dizendo que jamais se sentia envergonhado quando estava metido em sarilhos e que se ajoelhava para orar a Deus. Dizia-nos que devíamos orar a Deus-falar com Ele e tudo o mais -onde quer que estivéssemos. Dizia-nos também que devíamos pensar em Jesus e afirmava que estava sempre a falar com Jesus. Até quando conduzia o carro. Era uma coisa que exasperava. Eu imaginava logo o grande estafermo a engrenar a primeira e a pedir a Jesus que o auxiliasse no negócio. A melhor parte do seu discurso, porém, foi quando ele ia a meio da prelecção. Contava-nos ele que era um tipo todo fixe quando, de súbito, o rapaz que estava sentado mesmo na minha frente, Edgar Marsalla, deu um tremendo arroto. Foi uma coisa horrível, ali na capela, mas, mesmo assim, foi divertido. Quase rebentou o tecto. Todos se riram e o velho Ossenburger fingiu que não tinha ouvido, mas Thurmer, que estava sentado junto dele, ouviu certamente. Caramba! Ficou fulo. Nada disse, mas na noite seguinte obrigou-nos a estudar no vestíbulo do edifício académico e proferiu um discurso. Disse que o aluno que originara o distúrbio na capela não era digno de Pencey. Pedimos a Marsalla que repetisse a proeza, ali mesmo, enquanto Thurmer proferia o discurso, mas ele não estava com disposição para isso.
Em Pencey, era ali que eu vivia. Nos novos dormitórios, na ala dedicada a Ossenburger.
Senti-me feliz por voltar para o meu quarto, depois de ter deixado o velho Spencer, porque os meus colegas estavam no jogo, e o nosso quarto, por acaso, estava quente. Pelo menos, senti um certo conforto. Despi o casaco, tirei a gravata e desabotoei o colarinho. Depois pus o boné que comprara em Nova Iorque naquela manhã. Era um boné vermelho, de caça, com uma copa muito alta. Vi-o na montra de uma loja de artigos desportivos, mal tínhamos saído do comboio, pouco depois de ter descoberto que havia perdido o equipamento. Gostava de o usar com a copa caída para trás - um pouco à provinciano, tenho de o admitir, mas era assim que eu gostava. Ficava com bom aspecto. Depois agarrei no livro que andava a ler e sentei-me na minha cadeira. Havia duas cadeiras em cada quarto. Eu tinha uma e o meu colega, ward Stradlater, tinha outra. Os braços das cadeiras já estavam deformados, pois as cadeiras estavam sempre ocupadas, mas, mesmo assim, eram muito confortáveis.
O livro que andava a ler era um que eu trouxera da biblioteca, por engano. Deram-me um livro que eu não pedira e só reparei quando já estava no quarto. Deram-me
o romance Out of Africa, de Isak Dinesen. Pensei que ia chatear-me, mas não.Era um bom livro. Sou praticamente iletrado, mas leio muito. O meu autor preferido é o meu irmão D. B., e depois é Ring Lardner. No dia do meu aniversário o meu irmão deu-me um livro de Ring Lardner. Foi pouco antes de entrar em Pencey. Estava cheio de pequenas peças cómicas e idiotas, mas tinha uma bela história acerca de um polícia de trânsito que se apaixonou por uma rapariga que andava sempre com excesso de velocidade. Mas ele, o polícia, era casado, e por isso não podia casar-se outra vez. Depois a rapariga morreu, porque andava sempre a grandes velocidades. Aquela história ia dando cabo de mim. Do que eu mais gosto é de um livro que só seja cómico de vez em quando. Li muitos livros clássicos e gostei, e li muitos livros de guerra e histórias policiais que não me impressionaram. O que realmente me agrada é um desses livros que, quando estamos a lê-lo, gostaríamos que tivesse sido escrito por um amigo nosso a quem pudéssemos telefonar sempre que desejássemos. Mas isso é uma coisa que raramente acontece. Não me importava de ser amigo deste Isak Dinesen. E também gostava de falar com Ring Lardner, mas o meu irmão D. B. disse-me que ele já morreu. Tomemos, por exemplo, a Servidão Humana, de Somerset Maugham. Li-o no Verão passado. É um belo livro, mas eu não gostava de ser amigo de Somerset Maugham. Não sei porquê. É apenas o género de tipo com quem não me agradava conversar. Preferia o velho Thomas Hardy. Gostei muito de Eustacia Vye.
Pus o meu boné, sentei-me e comecei a ler Out of Africa. Já o lera, mas queria reler certas passagens. Ia na terceira página quando ouvi alguém atrás das cortinas do chuveiro. Mesmo sem olhar, sabia de quem se tratava. Era Robert Ackley, o rapaz que ocupava o quarto ao lado do meu. Na nossa ala havia um chuveiro entre cada dois quartos e o Ackley entrava no meu quarto cerca de oitenta e cinco vezes por dia. Provàvelmente era o único rapaz em todo o dormitório, além de mim, que não estava no jogo. Era raro ir a qualquer parte. Pessoa muito estranha. Era sénior e estava em Pencey há quatro anos, mas toda a gente lhe chamava Ackley. Nem mesmo o Herb Gale, o seu colega de quarto, lhe chamava Bob ou Ack. Se algum dia se casar, a própria mulher há-de chamar-lhe Ackley. Era um desses rapazes com ombros largos, alto-cerca de um metro e oitenta de altura-e com os dentes sujos. Nunca o vi lavar os dentes. Tinham sempre um aspecto horrível e ficávamos agoniados só de o ver no refeitório com a boca cheia de puré de batata ou outra coisa qualquer. Além disso, tinha o rosto coberto de borbulhas. Não cresciam apenas na testa ou no queixo, como acontece em alguns casos, mas espalhavam-se por todo o rosto. Para cúmulo, tinha um temperamento terrível. Era imundo. Para ser franco, não gostava muito dele.
Ouvi-o, pois, mexer nas cortinas do chuveiro, mesmo atrás de mim, espreitando o quarto para ver se descobria algures o Stradlater. Odiava o Stradlater e nunca aparecia quando ele estava no quarto.
Saiu do chuveiro e entrou no quarto.
- Olá - disse. Dizia sempre "olá" como se estivesse muito aborrecido ou fatigado. Não queria que percebêssemos que estava a fazer-nos uma visita. Pretendia fingir que entrara no quarto por engano.
- Olá - disse eu. Mas não ergui os olhos do livro. Com um tipo como o Ackley, se erguêssemos os olhos do livro estávamos tramados. É claro que estávamos tramados de qualquer modo, mas o desastre não seria tão rápido se não erguêssemos os olhos imediatamente.
Começou a passear pelo quarto, lentamente, como sempre fazia, pegando em tudo o que encontrava sobre a secretária ou no armário. Caramba! Por vezes punha-me nervoso.
- Que tal foi a esgrima? - perguntou. O que ele queria era que eu interrompesse a leitura. Não tinha qualquer interesse pela esgrima. - Ganhámos, ou quê? - insistiu.
- Ninguém ganhou - respondi-lhe. Sem o olhar, é claro. -O quê?-disse ele. Obrigava-nos sempre a repetir as coisas duas vezes.
- Ninguém ganhou - repeti eu. Arrisquei uma olhadela rápida para ver o que tanto o interessava no meu armário. Estava a contemplar o retrato de uma rapariga com quem eu costumava passear em Nova Iorque, a Sally Hayes. Deve ter pegado na fotografia para a contemplar, pelo menos quinhentas vezes desde que o conheci. Colocava-a sempre fora do seu lugar. Fazia de propósito. Via-se logo.
- Ninguém ganhou? - perguntou ele. - Como foi isso? - Esqueci-me do equipamento no metropolitano - respondi. Mesmo assim, não ergui os olhos do livro.
- No metropolitano! Perdeste-o, queres dizer. - Enganámo-nos na carruagem e eu tinha de observar as estações no maldito mapa que estava pendurado na parede do compartimento.
Aproximou-se e colocou-se em frente de mim. - Ouve! - disse-lhe.-,já li a mesma frase vinte vezes desde que entraste no quarto.
Qualquer pessoa, a não ser o Ackley, compreenderia a insinuação. Mas o Ackley não se incomodava.
- Achas que vão obrigar-te a pagar o equipamento? -Não sei, nem me interessa. E se te sentasses, garoto? Estás a tirar-me a luz.
Ackley não gostava que o tratassem por "garoto". Estava sempre a dizer-me que eu era um garoto, porque tinha dezasseis anos, e ele tinha dezoito. Ficava furioso quando eu o tratava por "garoto".
Mas deixou-se ficar ali. Era exactamente o género de pessoa que não se afasta, nem mesmo quando lhe pedimos. Acaba por se afastar, mas demora mais tempo se por acaso lhe pedirmos.
- Que diabo estás tu a ler? - perguntou. - Um livro.
Afastou o livro com a mão para ver o título e perguntou: - É bom?
- Esta parte que estou a ler é terrível!
Consigo ser sarcástico quando estou com disposição. Mas ele não compreendeu. Começou a andar pelo quarto, mexendo nos meus objectos pessoais e nos do Stradlater. Finalmente pus o livro no chão. Era impossível ler com um tipo como o Ackley a passear de lá para cá. Era impossível.
Recostei-me na cadeira e observei-o. Sentia-me fatigado com a viagem a Nova Iorque e estava com sono. Depois resolvi brincar. Algumas vezes costumo brincar só para não me aborrecer. Puxei a pala do boné para a frente e coloquei-a sobre, os olhos. Assim, pelo menos, nada via. -Acho que estou a ficar cego - disse eu com voz cava. - Oh, minha mãe! Por aqui está tudo tão escuro! - És chalado! Palavra que és! - disse o Ackley. - Oh, minha mãe! Dá-me a tua mão! Ajuda-me.
- Por amor de Deus! Porta-te como gente crescida! Comecei a tactear, como fazem os cegos, com os braços estendidos, mas sem tocar em qualquer objecto e continuei a dizer:
- Oh, mãe! Porque não me ajudas?
Como é óbvio, isto era chalaça. Estas coisas, às vezes, divertem-me. Além disso, eu sabia que o Ackley ficava aborrecido. O velhaco fazia sempre despertar o sadismo dentro de mim. Em certas ocasiões eu era bastante sádico para com ele. Por fim, sosseguei. Puxei o boné para trás e fiquei calmo.
- A quem pertence isto? - perguntou o Ackley, mostrando-me um par de ligas. Aquele Ackley descobria tudo. Até era capaz de descobrir um par de cuecas. Disse-lhe que eram do Stradlater. Atirou-as logo para a cama do Stradlater. Tirara-as do armário, mas deixou-as sobre a cama.
Depois sentou-se num dos braços da cadeira do Stradlater.
Nunca se sentava numa cadeira. Só nos braços. - Onde diabo arranjaste
esse boné? - perguntou ele. - Nova Iorque. - Quanto? - Um dólar.
- Foste roubado - disse ele. Começou a limpar as unhas com um pau de fósforo. Estava sempre a limpar as unhas. Em certo sentido, era cómico. Os seus dentes estavam sempre sujíssimos e os ouvidos imundos, mas limpava as unhas. Suponho que ele julgava que assim parecia asseado. Mirou o meu boné enquanto limpava as unhas. - Lá em casa usamos bonés desses quando vamos à caça dos veados - continuou ele. - É um boné de caça.
- É mesmo - disse eu. Depois tirei o boné e, fechando um olho, comecei a contemplá-lo como quem visa um alvo. - É o boné que eu uso quando caço pessoas - disse-lhe. - Quando caço pessoas, uso este boné.
- Não.
- Onde estará o Stradlater?
- No jogo. Tem uma entrevista - bocejei. Bocejava por todos os poros. O quarto estava quente como o Inferno. O calor faz sono. Em Pencey, ou morremos gelados, ou ficamos assados com o calor.
- O grande Stradlater! - disse o Ackley. - Ouve! Empresta-me a tua tesoura, sim? Tem-na aí à mão?
- Não. já a meti na mala. Está em cima do armário. - Podes ir buscá-la? - pediu o Ackley. - Queria cortar uma unha.
Não se importava que eu já tivesse feito as malas ou que as tivesse em cima do armário. No entanto, fui buscá-la E quase ia morrendo. Quando abri a porta do armário, a raqueta de ténis do Stradlater, com prensa e tudo, caiu-me em cheio sobre a cabeça. Fez um grande estrondo e doeu-me a valer. E o próprio Ackley ia rebentando a rir. Começou a rir-se com a sua voz de falsete, e ficou a rir-se enquanto eu tirava a mala e a tesoura. Uma coisa destas - um indivíduo ferido na cabeça - despertava-lhe o riso.
- Tens um rico sentido do humor, garoto - disse-lhe. - Sabes uma coisa? - Estendi-lhe a tesoura. - Se quiseres, levo-te para a rádio! - Sentei-me novamente e ele começou a cortar as unhas. - Porque é que não utilizas a mesa? - perguntei-lhe. - Corta-as em cima da mesa! Não estou disposto a pisar as tuas unhas quando descalçar os sapatos. - Mas ele continuou a cortá-las e a deitá-las para o chão. Que porco! É isso mesmo! Que porco!
- Quem é a namorada do Stradlater? - perguntou ele. Estava sempre a tentar descobrir os namoros de Stradlater, embora o odiasse.
- Não sei. Porquê?
- Por nada. Raios! Não suporto esse malandro! Não consigo suportar esse malandro!
- Os teus pais já sabem que foste corrido?
- E ele é doidinho por ti. Disse-me que tu eras um príncipe encantado.
Costumo chamar "príncipe" às pessoas quando estou a chalacear. Só para não me aborrecer.
- Tem a mania das superioridades - disse o Ackley. - É só isto: não consigo suportar esse malandro. Achas que... - Queres ou não queres deitar as unhas para a mesa? - perguntei-lhe. - Já te disse isto cinquenta vezes.
- Anda sempre com a mania das superioridades - insistiu o Ackley. - Achas que esse estupor é inteligente? Pois ele julga que é. Pensa que é o mais...
- Ackley! Por amor de Deus! Faz o favor de deitar as unhas sobre a mesa. já te pedi cinquenta vezes. Começou a deitar as unhas para a mesa. Só fazia qualquer coisa à força de berros...
Observei-o durante algum tempo. Depois disse-lhe: - Ficaste zangado com o Stradlater só por ele te ter dito que devias lavar os dentes de vez em quando. Mas ele não queria insultar-te, embora tenha gritado. É verdade que não procedeu bem, mas não era para te insultar. Tudo o que ele queria dizer era que ficavas com melhor aspecto se lavasses os dentes.
- Eu lavo os dentes. Não me digas dessas!
- Não lavas, não. Conheço-te bem e sei que não os lavas - disse lhe. Mas não o fiz com maldade. É claro que não é decente dizer a um indivíduo que ele não lava os dentes. - O Stradlater tem razão. Ele não é má pessoa - continuei. - Tu não o conheces, e aí é que está o problema. - Já disse que ele é um malandro. É um malandro com manias.
- Sim, tem manias, mas não deixa de ser generoso. É mesmo - disse eu. - Olha! Supõe, por exemplo, que o Stradlater andava com uma gravata de que tu gostavas, isto é, tinha uma gravata de que tu muito gostavas... é só um exemplo, claro. Sabes que é que ele fazia? Tirava-a e dava-ta. Dava-ta mesmo! Ou, por outra... sabes que é que ele fazia? Deixava-ta sobre a tua cama ou coisa semelhante. Mas dava-te a gravata. Outros tipos, pelo contrário... - Demónios - disse o Ackley. - Se isso acontecesse comigo, eu fazia o mesmo.
- Não, não fazias! - Abanei a cabeça, negando. - Não fazias, Ackley. Não, garoto! Se isso te acontecesse, tu... - Acaba com essa coisa de garoto. Raios te partam. Já tenho idade para ser teu pai.
- Mas não és. - Caramba! Ele, por vezes, era provocador. Não perdia uma oportunidade para esclarecer que já tinha dezoito anos. - Em primeiro lugar, eu não permitia que pertencesses à minha família - disse eu.
- Bem, acaba com isso, ou...
Súbitamente a porta abriu-se e o Stradlater entrou, cheio de pressa. Andava sempre apressado. Coisas importantíssimas. Veio até mim e deu-me dois sopapos na cara - um género de cumprimento, que pode ser bastante enfadonho.
- Ouve - disse ele.=Vais sair hoje à noite?
- Não sei. Talvez'. Que diabo se passa lá por fora? Está a nevar?
Ele tinha neve por todo o corpo.
- Sim. Ouve! Se não vais sair, poderás emprestar-me o teu blusão de pele?
- Quem ganhou o jogo?
- Só vai em meio - respondeu' o'Stradlater. - Não estou a brincar. Vais levar o teu blusão? Sujei o meu fato cinzento.
- Não, mas; não quero que o deformes - disse-lhe. Tínhamos a mesma estatura, mas ele pesava o dobro e tinha ombros largos.
- Eu não o deformo - retorquiu. Pelo menos, era um tipo sociável, este Stradlater. Em parte, era um fala-barato, mas, pelo menos, cumprimentara o Ackley.
O Ackley resmungou qualquer coisa quando ó Stradlater o cumprimentou. Nunca lhe responderia, mas não tinha coragem para ficar calado. Depois voltou-se para mim e disse
- Vou andando. Até logo.
- Okay - disse eu. Nunca ficava desolado quando o Ackley saía do quarto. O Stradlater começou a despir o casaco e a tirar a gravata.
- Acho que é melhor barbear-me - disse ele. Tinha uma barba muito cerrada.
- Onde está a tua miúda? - perguntei-lhe.
- Está à espera no anexo - respondeu. Saiu do quarto com o estojo da barba e com a toalha debaixo do braço. Nu da cintura para cima. Andava sempre de tronco nu,
porque julgava que era muito bem constituído. E era. Tenho de admitir que era.
Como nada tinha para fazer, desci até às instalações sanitárias e cavaqueei com ele enquanto se barbeava. Éramos os únicos que ali estavam, pois todos os outros assistiam ao jogo. A casa estava quente como o Inferno e as janelas tinham sido calafetadas. Havia perto de dez lavatórios alinhados contra a parede. O Stradlater preferira um dos do centro. Sentei-me no que ficava mais próximo e comecei a abrir e a fechar a água, um dos meus hábitos nervosos. Stradlater assobiava Song of India enquanto se barbeava. Tinha uma maneira de assobiar em tons agudos, sempre fora do compasso, mas era capaz de aprender todas as músicas que são difíceis de assobiar, como Song of India ou Slaughter on Tenth Avenue. Não havia canção que lhe escapasse.
Lembram-se de vos ter dito que o Ackley era um porcalhão? Bem, o Stradlater também o era, mas de maneira diferente. O Stradlater era um porcalhão secreto. Tinha bom aspecto, mas, por exemplo, deviam ver a navalha com que se barbeava. Estava sempre suja e cheia de sabão e pêlos. Nunca a limpava. Tinha um óptimo aspecto quando acabava de se preparar, mas, de qualquer modo, era um porcalhão secreto. Creio que compreenderam o que quero dizer. Arranjava-se com muito esmero, porque andava apaixonado por ele próprio. Julgava-se o tipo mais elegante do hemisfério ocidental. É certo que era elegante. Mas era o género de elegância que leva os nossos pais, quando vêem o seu retrato no Anuário, a perguntarem imediatamente "Quem é este rapaz?" Isto é, era o género de elegante que aparece nos anuários. Conheci uma série de rapazes em Pencey que eu acho que eram mais elegantes que o Stradlater, mas que não pareceriam elegantes se os seus retratos aparecessem no Anuário. Ficariam com os narizes muito compridos e com as orelhas enormes. Fiz essa experiência várias vezes.
Pois ali estava eu sentado no lavatório, junto do Stradlater, que se barbeava, e divertia-me a abrir e a fechar a torneira. Continuava com o boné de caça caído para trás. Gostava muito daquele boné.
- Ouve! - disse o Stradlater. - Queres fazer-me um grande favor?
- O quê ? - perguntei eu. Mas fiz a pergunta sem grande entusiasmo. Andava sempre a pedir-me grandes favores. Arranjamos um amigo elegante, ou um amigo que se julga elegante, e começa logo a pedir-nos grandes favores. Só porque estão doidinhos consigo próprios, pensam que nós estamos doidinhos por eles e que estamos desejosos de lhes fazer um favor. Num certo sentido, não deixa de ser cómico.
- Vais sair esta noite? - perguntou. - Talvez sim, talvez não. Não sei. Porquê?
- Tenho de ler cerca de cem páginas de História para segunda-feira - disse ele. - E se me escrevesses a composição de Inglês? Estou tramado se não a levar feita na segunda-feira. É isso que te peço. Que dizes?
Que ironia! Era mesmo uma ironia!
- Fui posto na rua porque não tenho aproveitamento, e ~ a mim que pedes que te escreva a composição de Inglês! - disse eu.
- Bem sei. Mas é que estou tramado se não apresentar a composição. Sê bom rapaz. Sim?
Não lhe respondi imediatamente. A expectativa faz bem a tipos como o Stradlater.
- E sobre que é a composição? - perguntei. - Qualquer coisa. Qualquer coisa descritiva. Uma sala. Ou uma casa. O um acontecimento... Tu sabes. Longa como o Diabo.
Escancarou a boca num bocejo, mesmo enquanto falava, coisa que costuma afligir-me. Isto é, fico furioso quando uma pessoa que nos pede um favor, ainda para cúmulo, começa a bocejar.
- Mas não a faças muito bem - disse ele. - Aquele malandro do Hatzell julga que tu és uma fera em Inglês e sabe que eu sou teu colega de quarto. Por isso, não ponhas todas as vírgulas nos seus lugares.
Eis outra coisa que me aflige. Isto é, quando sabemos fazer razoàvelmente as composições e vem um tipo e começa a falar-nos em vírgulas! O Stradlater estava sempre a repetir o mesmo. Queria convencer-nos de que não conseguia boas notas em Inglês apenas porque costumava omitir todas as vírgulas. Nesse aspecto assemelhava-se ao Ackley. Certa vez fiquei sentado junto do Ackley durante um jogo de basquetebol. Na nossa equipa havia um tipo terrível, um certo Howie Coyle, que era capaz de enfiar as bolas no cesto atirando-as do meio do campo, sem sequer bater com elas na tabela. Durante todo o jogo, o Ackley esteve sempre a dizer que o Coyle possuía uma constituição perfeita para o basquetebol. Oh, meu Deus, como eu odeio este género de pessoas!
Comecei a aborrecer-me por estar ali sentado no lavatório, e por isso iniciei um sapateado só para me divertir.
É claro que eu não sei sapatear, mas o chão das instalações sanitárias era de pedra e permitia um bom sapateado. Comecei a imitar os actores de cinema que costumamos ver nos filmes musicais. Não suporto actores de cinema, mas gosto de imitá-los. Stradlater observava-me pelo espelho enquanto se barbeava. Adoro espectadores. Sou exibicionista.
- Sou o filho do governador - berrei. Estava a ficar sem fôlego e a sapatear em torno da sala. - E ele não quer que eu seja dançarino. Quer que eu vá para Oxford. Mas eu tenho a dança na massa do sangue.
Stradlater começou a rir-se. O seu sentido de humor não era nada mau.
- Hoje é a estreia das Ziegfeld Follies. - Já estava sem fôlego. Não tenho grande resistência. - A estrela da companhia não pode representar. Está bêbada como um cacho. Quem há-de substituí-la? Eu, é claro. O filho do velho governador.
- Onde arranjaste isso? - perguntou o Stradlater. Referia-se ao meu boné de caça. Ainda não o tinha visto. Como já estava sem fôlego, interrompi a dança. Tirei o boné e contemplei-o pela centésima vez.
- Comprei-o em Nova Iorque. Por um dólar. Gostas? Stradlater acenou com a cabeça.
- Esplêndido. Vais fazer-me a composição? Tenho de saber.
- Se tiver tempo, faço-a. Se não tiver, não faço - respondi-lhe. Voltei a sentar-me no lavatório junto dele. - Quem é a tua namorada? - perguntei-lhe. - Fitzgerald? - Diabos! Não! Já te disse que a mandei passear.
- Ah, sim? Então dá-ma. Não estou a brincar. Ela é do meu tipo.
- Fica com ela... Mas é muito crescida para ti. Súbitamente - sem qualquer motivo, a não ser porque sentia desejos de me divertir-dei um salto e escarranchei-me nas costas do Stradlater. É um golpe terrível, caso não saibam, pois conseguimos prender um tipo pelo pescoço e esganá-lo, se quisermos. Foi o que eu fiz. Caí em cima dele como se fosse uma pantera.
- Acaba com isso; Holden, por amor de Deus! - berrou Stradlater. Não estava com disposição para brincadeiras. Além disso, estava a fazer a barba. - Queres que eu corte o pescoço?
Eu, porém, não cedi. Tinha-o bem seguro.
- Vê se consegues libertar-te deste golpe - disse-lhe. - Oh, Céus! - disse ele. Pôs a navalha no lavatório e, num repelão, rodeou-me com os braços e desenvencilhou-se. Era um tipo muito forte e eu sou um tipo fraco. - Agora acaba com a brincadeira - disse ele. Começou novamente a barbear-se. Barbeava-se sempre duas vezes para ficar com bom aspecto. E sempre com a velha navalha toda suja. - Quem é a tua namorada, se não é a Fitzgerald? - perguntei-lhe. Sentei-me novamente junto dele. - É a miúda do Phyllis Smith?
- Não. Era para ser, mas não deu resultado. Agora ando com a amiga do Bud Thaw. Oh, quase me esquecia. Ela conhece-te.
- Quem?
- A minha miúda.
- Sim? Como é que se chama? Deixa-me ver... Jean Gallagher. Caramba, quase caí do lavatório.
- Jane Gallagher! - repeti. Saltei do lavatório para o chão. - É claro que a conheço. Vivia pràticamente na casa a seguir à minha, no Verão passado. Tinha um cão enorme, um doberman. Foi assim que a conheci. O cão costumava entrar em nossa casa...
- Tira-te da frente, Holden - disse o Stradlater. - Vais ficar aí a roubar-me a luz?
Caramba! Eu estava excitadíssimo. Estava mesmo. - Onde está ela? - perguntei-lhe. - Tenho de ir lá a baixo cumprimentá-la. Onde está ela? No anexo?
- Sim.
- E como é que ela se referiu a mim? E agora, vai-se embora? Disse-me que talvez fosse para Shipley. Julguei que tinha ido para lá. Como é que ela se lembrou de mim Estava mesmo muito excitado.
- Sei lá! Sai daí! Estás a pisar a minha toalha - gritou Stradlater. Eu estava em cima da maldita toalha. - Jane Gallagher! - disse eu. Não conseguia esquecer-me. - Meu Deus!
O Stradater estava a pôr Vitalis no cabelo. O meu Vítalis! - Ela é uma boa dançarina - disse. - Dança ballet e tudo. Costumava praticar duas horas por dia, mesmo quando estava muito calor. Tinha medo de ficar com as pernas gordas. Joguei xadrez com ela algumas vezes.
- Jogaste o quê? - Xadrez! - Xadrez, meu Deus!
- É verdade. Mas ela não tocava nos reis. Apanhava um rei, não lhe tocava. Deixava-os na última fila. Gostava de vê-los alinhados na última fila. Nunca os utilizava. Gostava de os ver ali, certinhos.
O Stradater nada disse. Há pessoas que não se interessam por este género de conversa.
- A mãe dela pertencia ao nosso clube - continuei. - Eu costumava ir lá de, vez em quando jogar um pouco. Joguei algumas vezes com a mãe dela. Chegava a fazer cento e setenta pontos em nove buracos.
O Stradater quase não me ouvia. Estava mais interessado em pentear-se.
- Tenho de ir cumprimentá-la - disse eu. - E porque não vais?
- Já vou, já vou.
O Stradater fazia agora a risca no cabelo. Levava quase uma hora a pentear-se.
- O pai e a mãe eram divorciados. A mãe voltou a casar-se com um tipo qualquer. Um fulano magro com muitos pêlos nas pernas. Lembro-me muito bem dele. Andava sempre de calções. Jane disse-me que ele era dramaturgo, ou coisa parecida, mas tudo o que lhe vi fazer foi apanhar grandes bebedeiras e ouvir histórias policiais na rádio. E andava nu pela casa fora. Mesmo na presença da Jane.
- Sim? - perguntou Stradlater. Ficou muito interessado quando ouviu falar no bêbado que andava nu em presença da Jane. O Stradater era um tipo muito sexual.
- Ela teve uma infância muito má. Não estou a brincar. Mas isso já não interessava Stradlater. Só as coisas muito sexuais.
- Jane Gallagher ! Quem diria!
Não conseguia afastá-la do meu espírito. - Tenho de ir lá a baixo cumprimentá-la!
- E por que demónio não vais, em vez de estares para aí a repetir sempre a mesma coisa? - perguntou Stradlater. Dirigi-me para a janela, mas nada se distinguia, pois os vidros estavam muito embaciados.
- Mas agora não me apetece - disse. E não me apetecia. É preciso estar-se bem disposto para este género de coisas. - Julguei que ela tinha ido para Shipley. - Dei umas voltas pela sala. Nada tinha para fazer. - E ela gostou do jogo?perguntei.
- Sim. Parece-me que sim. Não sei. - Disse-te que costumávamos jogar xadrez?
- Não sei. Por amor de Deus, só a conheci hojerespondeu Stradlater. Já acabara de se pentear e arrumava os sebentos objectos de toilette.
- Ouve. Dá-lhe cumprimentos meus, sim? - Okay - disse Stradlater. Mas eu sabia que provàvelmente ele nada diria. Tipos como o Stradater nunca cumprimentam ninguém.
Voltou para o quarto e eu deixei-me ficar ali por algum tempo, a recordar a boa Jane. Depois fui para o quarto. O Stradater estava em frente do espelho a pôr a gravata.
Passava metade da vida em frente do espelho. Sentei-me na minha cadeira a observá-lo.
- Ouve! Não lhe digas que eu fui posto na rua, hem? - Okay.
Era uma das raras qualidades do Stradlater. Nunca era preciso explicar-lhe tudo tintim por tintim, como era necessário fazer com o Ackley. Em parte, porque o Stradlater não estava interessado. Era isso mesmo. O Ackley era diferente. Era um bisbilhoteiro.
Stradlater começou a vestir o meu blusão.
- Por favor, Stradlater! Agora vê lá se andas por aí a encostar-te pelas paredes - pedi-lhe.
Só vestira aquele blusão duas vezes.
- Fica descansado. Onde diabo estão os meus cigarros? - perguntou. Nunca sabia onde deixava as coisas. - Estão debaixo do cobertor - disse-lhe. Meteu o maço de cigarros na algibeira do blusão... do meu blusão. Puxei o boné para a frente, só para variar. Comecei a sentir-me nervoso. Sou um tipo nervoso.
- Ouve lá! Aonde vais com ela? - perguntei-lhe. - Ainda não sabes?
- Não sei. A Nova Iorque, se tivermos tempo. Mas ela tem de voltar para casa às nove e meia.
Não gostei do modo como ele falava e depois disse - Talvez ela ainda não saiba que tu és um tipo todo encantador. Se soubesse, talvez viesse para casa às nove e meia da manhã.
- Pois claro - respondeu o Stradlater. Era impossível gozá-lo, porque ele era muito vaidoso. - Fazes-me a composição? - perguntou ele. Já vestira o casaco, estava pronto e ia sair. - Não escrevas disparates. Só descrição, hem?
Não lhe respondi. Não estava bem disposto. Disse-lhe apenas:
- Pergunta-lhe se ela ainda põe sempre os reis na última fila.
- Okay - disse o Stradlater. Mas eu sabia que nada diria. - Vê lá isso, hem? - pediu ele, atirando com a porta. Deixei-me ficar ali sentado quase uma hora. Isto é, caído na cadeira, apático. Pensava em Jane, em Stradlater a namorá-la e em tudo o resto. Fiquei tão nervoso que parecia doido. Já vos disse que o Stradlater é muito sensual. Súbitamente, como de costume, Ackley irrompeu pelos cortinados do chuveiro. Pela primeira vez na vida, fiquei contente em vê-lo. Afastava do meu espírito aquelas cogitações estúpidas.
Andou por ali até à hora do jantar, a dizer mal dos rapazes que odiava e a espremer as borbulhas que lhe cobriam o rosto. Nem sequer utilizava o lenço. Mas, se querem saber a verdade, desconfio de que ele nem sequer tinha lenço. Pelo menos nunca lhe vi nenhum.
Aos sábados, em Pencey, tínhamos sempre o mesmo jantar. Era um grande acontecimento, só porque nos davam bife. Aposto mil dólares em como só nos davam bife porque os pais dos alunos visitavam a escola aos domingos e o velho Thurmer provàvelmente supunha que as mães perguntariam aos filhos que é que eles tinham comido no dia anterior. Assim, toda a gente responderia: "Bife." Que roubalheira! Deviam ver os bifes! Eram umas fatias de carne que mal podíamos cortar. Havia sempre puré de batata é Brown Betty à sobremesa, coisa que ninguém comia, a não ser, os garotos das primeiras classes, que não conheciam nada melhor, e tipos como o Ackley, que comia tudo. Contudo, quando saíamos do refeitório sentíamo-nos bem. O chão estava coberto por uma camada de gelo com seis centímetros e de neve que continuava a cair. Era um belo espectáculo e nós começávamos a atirar bolas de neve e a correr de um lado para o outro. Era uma brincadeira infantil, mas nós gostávamos de nos divertir.
Como não tinha namorada, eu e um amigo meu, o Mal Brossard, que pertencia à equipa de luta, decidimos tomar um autocarro para Agerstown, onde comeríamos um "cachorro" ou iríamos ao cinema. Nenhum de nós estava com disposição para ficar sentado toda a noite. Perguntei ao Mal se se importava que o Ackley fosse connosco. Perguntei apenas porque o Ackley nunca fazia nada aos sábados à noite além de ficar no quarto a espremer as borbulhas. Brossard respondeu que não se importava, embora não ficasse seduzido pela ideia. Não gostava do Ackley. Fomos para os nossos quartos preparar-nos e, enquanto calçava as galochas, perguntei ao Ackley se queria ir ao cinema. Podia ouvir-me perfeitamente, mas não respondeu logo. Pertencia àquele género de pessoas que não gostam de responder imediatamente ao que lhes perguntamos. Por fim, lá apareceu e perguntou-me quem ia além de mim. Gostava de saber quem ia. Quase que jurava que se esse rapaz estivesse a bordo de um navio a afundar-se e se alguém o viesse salvar num barco a remos, ele, mesmo assim, desejaria saber quem estava no barco antes de entrar para lá. Disse-lhe que o Mal Brossard iria connosco. O Ackley resmungou:
- Esse estupor... Mas está bem. Espera um segundo. - Quem o ouvisse pensaria que ele estava a fazer-me um grande favor.
Levava séculos a arranjar-se, mas enquanto ele se vestia abri a janela, recolhi a neve que se depositara no parapeito e fiz uma bola com as mãos nuas. A neve estava espessa.
Mas não atirei a bola. Primeiro fingi que a atirava a um carro estacionado na rua, mas depois mudei de ideias. O carro resplandecia, todo branco. Depois fiz menção de a atirar a uma boca de incêndio, que também resplandecia, coberta de neve. Acabei por não a atirar. Fechei a janela e comecei a vaguear pelo quarto, sempre com a bola de neve nas mãos. Pouco depois, quando eu, Brossard e Ackley entrámos no autocarro, ainda a tinha. O condutor abriu a porta e obrigou-me a deitá-la fora. Disse-lhe que não a atiraria aos passageiros, mas ele não acreditou. As pessoas nunca acreditam no que lhes dizemos.
O Brossard e o Ackley já tinham visto o filme que estava anunciado no cinema local, e por isso comemos alguns "cachorros", jogámos umas partidas nas máquinas de futebol e depois regressámos a Pencey. Não fiquei aborrecido por não ter ido ao cinema. Era uma comédia com Cary Grant. Além disso, eu já fora ao cinema com o Ackley e o Brossard, e sabia como era. Riam-se como duas hienas, mesmo quando os filmes não eram cómicos. Eu nem sequer gostava de estar sentado ao lado deles.
Faltava um quarto para as nove quando chegámos ao dormitório. O Brossard era um grande entusiasta do brídege e começou logo a ver se encontrava parceiro para um jogo. O Ackley foi para o meu quarto, para não variar. Em vez de se sentar no braço da cadeira do Stradlater, deitou-se sobre a minha cama, mesmo com o focinho nas minhas almofadas. Começou a falar monòtonamente e a espremer as borbulhas. Tentei mil estratagemas, mas não consegui ver-me livre dele. Continuou a falar monòtonamente, contando pormenores de uma suposta miúda com quem tivera relações no Verão passado. Eu já ouvira essa história perto de cem vezes, mas as versões eram diferentes de cada vez que a contava. Uma vez disse-me que estivera com ela no Buick do primo, mas, mais tarde, afirmou-me que fora numa rua deserta. Era uma série de mentiras, é claro. O Ackley era virgem e duvido que tenha conseguido despertar uma única paixão. Finalmente, tive de dizer-lhe que ia fazer uma composição para o Stradlater e que ele tinha de se raspar, ou então não conseguiria concentrar-me. Lá se foi, após muitas indecisões e demoras. Depois de ter saído, vesti o pijama e o roupão, pus o meu boné de caça e comecei a fazer a composição.
Mas acontecia que não era capaz de pensar numa casa ou numa sala para fazer a coisa como o Stradlater desejava.
Além disso, não gosto de descrever salas e casas. Por isso, o que eu fiz foi descrever a luva de basebol do meu irmão Allie. Tratava-se de um assunto muito descritivo. O meu irmão Allie tinha uma boa luva de basebol, para a mão esquerda, pois jogava na extrema esquerda da equipa. A luva era um tema muito bom para descrever, porque o Allie enchera-a de rabiscos e poesias, mesmo nos dedos e na parte interior. Tudo escrito com tinta verde. Escrevera essas coisas só para ter alguma coisa com que se entreter quando ficava isolado no campo, sem missão. Já morreu. Morreu de leucemia, quando estávamos no Maine, em 18 de Jmho de 1946. Se o conhecessem, teriam gostado dele. Era dois anos mais novo que eu, mas era cinquenta vezes mais inteligente. Terrivelmente esperto. Os professores estavam sempre a escrever cartas à minha mãe, dizendo-lhe que era um prazer ter alunos como o Allie. E não o faziam por lisonja. Era a verdade pura. Além disso, ele era o mais esperto da família. Em muitos aspectos, também era o melhor. Nunca se enfurecia, pois supõe-se que as pessoas com cabelo ruivo se enfurecem fàcilmente, o que nunca acontecia com o Allie, embora tivesse cabelo ruivo. Vou dizer-vos como era o cabelo dele. Comecei a jogar golf quando tinha dez anos de idade. Lembro-me de que, certo Verão, quando eu já tinha doze anos e andava pelos extremos do campo, tive o palpite de que, se me voltasse de repente, conseguiria ver o Allie. Assim fiz, e lá estava ele, sentado na bicicleta, atrás do gradeamento-havia um gradeamento em torno do campo de golf. Lá estava ele, a cerca de cento e vinte metros, a observar o meu jogo. Tinha um cabelo ruivo que parecia fogo. E era um bom rapaz, meu Deus! Costumava rir-se com imenso prazer quando estava sentado à mesa, durante o jantar, e, se se lembrava de qualquer anedota, quase caia da cadeira. Eu só tinha treze anos, mas quiseram fazer-me um exame psicológico, porque espatifei todos os vidros da garagem. E não posso censurá-los por isso. Dormi na garagem na noite em que ele morreu e quebrei os vidros da janela com o meu punho. Admito que foi uma acção muito estúpida, mas eu nem sequer sabia o que estava a fazer, e, além disso, vocês nunca conheceram o Allie. Por vezes, quando o tempo muda, ainda sinto dores nos pulsos, e nunca mais consegui cerrar bem o punho. Mas isso não me incomoda. Nunca serei um bom cirurgião, ou violinista, ou qualquer outra coisa.
Foi este o assunto da composição. A luva de basebol do Allie. Trago-a sempre comigo, na mala, por isso copiei todas as poesias que ele lá escrevera. Tudo o que fiz foi modificar o nome do Àllie, para que ninguém soubesse que ele era meu irmão. Não me sentia disposto a fazer uma coisa destas, mas não consegui recordar-me de um assunto bastante descritivo. Além disso, gosto de escrever sobre estas coisas. Levei uma hora a fazer a composição, porque tinha de utilizar a máquina de escrever do Stradlater e estava sempre a enganar-me. Não utilizei a minha porque a emprestara a um tipo qualquer.
Eram quase dez e meia quando acabei. Como não me sentia fatigado, fui espreitar pela janela. Já não nevava, mas de vez em quando ouvia-se um automóvel que não conseguia pegar. E também se ouvia o Ackley a ressonar. Nem as cortinas do chuveiro abafavam o som. Sofria de sinusite e quando dormia não conseguia respirar livremente. Aquele _tipo sofria de tudo. Sinusite, borbulhas, dentes sujos, mau hálito, unhas nojentas. Até despertava uma certa compaixão.
Há coisas difíceis de recordar. Estou a pensar no que aconteceu quando o Stradlater regressou. Não consigo recordar-me perfeitamente do que fazia quando ouvi as suas estúpidas passadas ecoando pelo corredor. Provàvelmente eu estava a espreitar pela janela, mas não posso jurar. Estava muito preocupado e, quando estou preocupado, não consigo mexer-me. Chego a fechar-me na casa de banho quando estou mesmo muito preocupado. Mas por vezes nem sequer chego a ir para a casa de banho, pois estou demasiadamente preocupado para isso. Não gosto de importunar as minhas preocupações. Se conhecessem o Stradlater, também ficariam preocupados. Fui com ele a vários encontros com raparigas e sei muito bem como ele é. É um tipo sem escrúpulos. É Mesmo.
O corredor era de madeira encerada, e por isso consegui ouvir as suas passadas. Nem sequer me recordo do sítio onde estava sentado quando ele entrou-à janela ou na cadeira. Juro que não me recordo.
Entrou dizendo que estava muito frio lá fora. Depois perguntou:
- Onde diabo se meteram os outros? Isto por aqui parece a morgue.
Nem me incomodei a responder-lhe. Se ele era tão estúpido que não percebia que era sábado à noite e que os rapazes, ou estavam a dormir, ou tinham ido para casa passar o fim-de-semana, não era eu quem lho ia dizer. Começou a despir-se. Nada disse sobre a Jane. Nem uma palavra. E eu também não. Fiquei a observá-lo. Agradeceu-me o blusão. Pô-lo num cabide e meteu-o no armário.
Depois, enquanto desapertava a gravata, perguntou-me se eu lhe fizera a composição. Disse-lhe que estava em cima da cama dele. Foi buscá-la e leu-a ao mesmo tempo que desabotoava a camisa. Ficou-se ali a ler a composição e a esfregar o peito e o estômago, sempre com aquela expressão estúpida no rosto. Estava sempre a esfregar o peito e o estômago. Julgava-se um grande atleta. Subitamente exclamou:
- Por amor de Deus, Holden! Mas isto é sobre uma luva de basebol!
- Ah, sim? - disse eu, frio como gelo.
- Que pretendes dizer com esse "ah, sim"? Disse-te que tinha de ser sobre uma sala, uma casa ou coisa semelhante. -Disseste-me que tinha de ser descritiva. Qual é a diferença se for sobre uma luva de basebol ?
- Diabos te levem! - gritou ele. Estava furioso.
- Só fazes parvoíces - continuou, olhando-me, - Não admira que tenham corrido contigo. Não fazes uma única coisa como deve ser. Nem uma!
- Está bem. Deixa ver - disse-lhe. Tirei-lhe a composição das mãos e depois rasguei-a em pedaços.
- E para que fizeste isso? - perguntou.
Nem lhe respondi. Deitei os papéis rasgados no cesto. Depois estendi-me sobre a cama e durante algum tempo nem ele nem eu pronunciámos uma única palavra. Stradlater despiu-se completamente e eu acendi um cigarro. Não podíamos fumar no dormitório, mas noite alta fumava sempre um cigarro, pois todos dormiam e ninguém dava pelo cheiro. Além disso, o Stradlater ficava ainda mais furioso. Ficava danado quando alguém quebrava as leis. Stradlater nunca fumava no dormitório.
Continuou a nada dizer sobre a Jane. Finalmente disse-lhe
- Chegaste bastante tarde para quem tinha de regressar às nove e meia. Obrigaste-a a chegar mais tarde?
Estava sentado na beira da cama, cortando as unhas dos pés, quando lhe fiz a pergunta.
- Só mais uns minutos - respondeu ele.
- E quem é que volta para casa às nove e meia num sábado à noite?-Oh, Deus, como eu odiava Stradlater! - Foste a Nova Iorque?
- Estás doido! Como é que podíamos ir a Nova Iorque, se tínhamos de regressar às nove e meia?
- Essa é das boas!
- Ouve! - disse ele. - Se queres fumar, porque não vais para o balneário? Tu não te importas que corram contigo, mas eu quero graduar-me.
Fingi que não ouvia. Continuei a fumar desalmadamente. Tudo o que fiz foi voltar-me de lado para melhor o observar. Que raio de escola! Estava sempre a ver um tipo a cortar as unhas dos pés ou a espremer borbulhas. - Disseste-lhe o que te pedi?
- Sim.
Mas o estupor nada dissera.
- E ela? Que disse? - perguntei novamente. - Perguntaste-lhe se ainda punha os reis na fila de trás?
- Não. Não perguntei. Que julgas tu que estivemos fazer? A jogar xadrez?
Não lhe respondi. Oh, Deus, como o odiava!
- Mas, se não foste a Nova Iorque, onde foste tu? perguntei-lhe. Quase não conseguia disfarçar um certo tremor na voz. Estava a ficar nervoso. Tinha a impressão de que haviam sucedido coisas curiosas.
Stradlater acabara de cortar as unhas. Ergueu-se e começou a brincar. Dirigiu-se para mim e, por brincadeira, começou a dar-me socos nos ombros.
- Acaba com isso - disse-lhe. - Então, afinal, onde foram vocês ?
- A parte nenhuma. Ficámos no carro - respondeu ele, continuando a dar-me socos nos ombros.
- Acaba com isso - repeti. - Em que carro? - No do Ed Banky.
Ed Banky era o treinador de basquetebol da escola e Stradlater era um dos seus favoritos porque jogava a centro e Banky emprestava-lhe o carro sempre que ele lho pedia.
Os estudantes não podiam conduzir os automóveis do pessoal da escola, mas os atletas eram muito amigos. Em todas as escolas por onde andei os atletas eram sempre muito amigos.
Stradlater continuou a dar-me socos nos ombros. Segurava a escova dos dentes, mas, para melhor me socar, pô-la na boca.
- E tu? Que fizeste? - perguntei-lhe. - Puseste-te nela? - A minha voz tremia.
- Que lindas coisas que tu dizes! Queres que te lave essa boca?
- Puseste ou não?
- Isso é segredo profissional!
O que se passou a seguir é difícil de recordar. Tudo o que sei é que me ergui da cama, como se quisesse ir à retrete, e tentei socá-lo com toda a força mesmo na boca, com escova de dentes e tudo, para ver se lhe rasgava a garganta. Mas falhei. Não fui muito rápido. Acertei-lhe de lado, na cabeça. Provàvelmente magoei-o, mas não tanto como eu desejava e, além disso, como já vos disse, não consigo cerrar o punho convenientemente.
Só me recordo de que logo a seguir estava caído no chão e ele estava sobre o meu peito. Tinha o rosto vermelho como fogo. Ajoelhara-se sobre o meu peito e parecia
pesar mais de uma tonelada. Segurara-me os pulsos, e por isso eu não podia atingi-lo. Se pudesse, matá-lo-ia. --Mas que demónio tens tu?-perguntava ele, com o rosto cada vez mais vermelho.
- Tira os joelhos de cima de mim - pedi-lhe. Quase não podia respirar. - Vamos! Tira os joelhos, maldito.
Mas ele não tirou. Continuou a segurar-me e eu continuei a chamar-lhe nomes, palavrões e tudo. Nem me recordo do que lhe disse. Gritei-lhe que ele se julgava capaz de ter todas as miúdas que queria. Disse-lhe que ele nem se importava que uma miúda ainda fosse virgem, porque não passava de um ranhoso. Stradlater ficava furibundo quando lhe chamavam ranhoso. Nenhum ranhoso gosta de ser ranhoso.
- Cala-te, Holden! - pediu ele, com o rosto todo vermelho. - Cala-te já.
- Nem sequer sabes se ela se chama Jean ou Jane. És um ranhoso!
- Cala-te, Holden! Cala-te, já te avisei! - gritou ele. - Se não te calas, dou-te um murro.
- Tira esses joelhos ranhosos de cima de mim - berrei. - Se eu te soltar, tu calas essa boca?
Não lhe respondi.
- Holden! Se eu te soltar, tu calas essa boca? - repetiu. - Sim.
Ele soltou-me e eu ergui-me.
- És um ranhoso filho de cadela - disse-lhe.
Ficou furioso. Agitou um dedo estúpido mesmo em frente dos meus olhos e gritou:
- Holden, raios te partam! Estou a avisar-te. Pela última vez! Se não fechas essa boca, eu...
- E porque havia de fechar a boca? - respondi-lhe quase a gritar. - Os ranhosos são sempre assim. Nunca querem discutir um problema. É por isso que são ranhosos. Nunca discutem assuntos inteligentes.
Stradlater esmurrou-me com força e só me recordo de ter tombado novamente. Não sei se ele me pôs K. O., mas suponho que não. É muito difícil pôr um tipo K. O., excepto nos filmes. Mas, de qualquer modo, jorrava sangue pelo nariz. Quando abri os olhos, Stradlater estava debruçado sobre mim com uma toalha debaixo do braço.
- Porque é que não te calaste quando te avisei? - perguntou. Parecia muito nervoso. Receava que eu tivesse fracturado o crânio quando bati com a cabeça no soalho. - Assim, o quiseste, cos demónios! - disse ele. Caramba, estava mesmo aflito. Nem sequer me levantei. Deixei-me ficar ali e continuei a chamar-lhe ranhoso. Quase soluçava. - Ouve! Vai lavar a cara - disse Stradlater. - Ouviste? Disse-lhe que fosse ele lavar o focinho ranhoso, resposta que, aliás, foi muito infantil. Mas eu estava meio louco. Perguntei-lhe porque é que ele não ia até ao balneário e não se punha na Mrs. Schmidt. Mrs. Schmidt era a mulher do porteiro e tinha perto de sessenta e cinco anos. Fiquei sentado no chão. Stradlater saiu e ouvi os seus passos pelo corredor. Depois ergui-me. Não conseguia encontrar o meu boné de caça. Por fim, lá o encontrei. Estava debaixo da cama. Enfiei-o na cabeça com a pala para trás e depois fui dar uma olhadela ao espelho. Nunca tinha visto tanto sangue. Tinha a boca e o queixo todos amassados e havia sangue no pijama e no roupão. Fascinava-me e ao mesmo tempo senti medo. Todo aquele sangue dava-me um aspecto terrível. Só entrara em duas lutas e perdera ambas. Não sou violento. Se querem saber a verdade, sou um simples pacifista.
Tive o presentimento de que o Ackley ouvira o barulho e estava acordado. Passei pelo chuveiro e fui até ao quarto dele só para ver o que estava a fazer. Era raro ir ao quarto do Ackley. Havia sempre muito mau cheiro, pois ele era um grande porcalhão.
Uma réstea de luz filtrava-se pelas cortinas do chuveiro, iluminando a cama do Ackley. Vi logo que ele estava acordado.
- Ackley - disse eu - estás acordado? - Sim.
A luz era muito fraca e eu tropecei nuns sapatos Quase me estatelei no chão. Ackley sentou-se na cama, apoiado num braço. Tinha o rosto coberto por uma pomada branca, por causa das borbulhas. Apesar da penumbra, reparei que ficou espantado.
- Que diabo estás tu a fazer? - perguntei.
- Queres saber o que eu estou a fazer? Estava a ver se dormia quando vocês começaram a fazer barulho. Porque é que foi a zaragata?
- Onde está o interruptor? - perguntei.
Não conseguia encontrá-lo e andava às apalpadelas, tentando achá-lo.
- Para que queres tu o interruptor?... Está aí mesmo, ao alcance da tua mão.
Encontrei-o finalmente e acendi a luz. Ackley tapou os olhos.
- Meu Deus! - disse - Que diabo te aconteceu? Referia-se ao sangue.
- Tive uma zanga com o Stradlater - respondi. Depois sentei-me no chão. Naquele quarto nunca havia cadeiras. Nunca cheguei a saber o que fizeram às cadeiras. - Ouve - disse-lhe - queres jogar à canasta? - Ackley adorava jogar à canasta.
- Ainda estás a sangrar. - Não faz mal. É melhor desinfectar isso. Ouve! Queres ou não queres jogar à canasta?
- Canasta! Por amor de Deus! Sabes que horas são? - Ainda não é tarde. Onze horas, talvez onze e meia.
- Talvez! - disse Ackley. - Olha! Amanhã tenho de me levantar cedo para ir à missa. E vocês começam a berrar a meio da noite! Mas por que diabo foi a zanga?
- É uma história complicada. Não quero aborrecer-te, Ackley !
Nunca discutia assuntos pessoais com ele. Em primeiro lugar, porque ele ainda era mais estúpido que o Stradlater, que, comparado com o Ackley, era um génio.
- Ouve - disse-lhe - não te importas que eu durma esta noite na cama do Ely? Ele só regressa amanhã à noite. - Eu sabia muito bem que o Ely só regressava no domingo à noite, pois passava todos os fins-de-semana em casa.
- Não sei quando é que ele regressa - respondeu o Ackley.
Caramba! Fiquei chateado.
- Que é que pretendes dizer com isso? Ele nunca chega antes de domingo.
- Não chega, não. Mas eu é que não posso consentir que durmam na cama dele.
Fiquei furioso. Ergui-me e dei-lhe umas pancadinhas no ombro.
- És um espertalhão, Ackley - disse-lhe. - Já sabias que eras um espertalhão?
- Não... mas é que... não vou consentir que durmam na cama dele.
- És um verdadeiro espertalhão, rapaz. És um cavalheiro, um académico - disse-lhe. E era mesmo. - Tens cigarros? Se dizes que não, caio morto aqui mesmo.
- Não. Por acaso, não tenho. Mas ouve lá! Porque foi a zanga?
Não lhe respondi. Ergui-me novamente e fui até à janela. De súbito senti-me só. Quem me dera ter morrido! - Mas porque é que foi a zanga? - perguntou Ackley pela quinquagésima vez. Era um chato.
- Foi por tua causa. - Por minha causa?
- Sim. Eu estava a defender-te. Stradlater disse que tu eras um porcalhão. Não consenti que ele continuasse. Ficou todo excitado.
- Ah, sim? Não estás a brincar? Ah, sim?
Disse-lhe que estava a brincar e depois fui deitar-me sobre a cama do Ely. Caramba! Sentia-me podre e só. - Este quarto cheira mal - disse eu - e as tuas peúgas deitam um fedor horrível. Nunca as mandaste para a lavandaria?
- Se não gostas, já sabes o que tens a fazer - respondeu Ackley. - Que tipo tão sentencioso! E se apagasses a luz? - acrescentou.
Mas eu não apaguei a luz. Continuei deitado sobre a cama do Ely, a pensar na Jane e em tudo o resto. Quase que ficava maluco só de pensar que ela estivera num automóvel com o Stradlater. De cada vez que pensava nisso sentia ganas de me lançar pela janela. É que vocês não conhecem o Stradlater, mas eu conheço-o. A maioria dos rapazes estava sempre a falar de casos sexuais com raparigas. Ackley, por exemplo. Mas o Stradlater era dos que não falavam, mas fazia tudo isso. Conheci pessoalmente duas raparigas, pelo menos, com quem ele tivera coisas. Pura verdade.
- Conta-me a história da tua vida fascinante, Ackley - disse eu.
- E se apagasses a luz? Tenho de me levantar cedo. Levantei-me e apaguei a luz, só para lhe fazer a vontade. Depois deitei-me novamente.
- Que estás a fazer? Vais dormir na cama do Ely? - perguntou Ackley.
Era um verdadeiro anfitrião.
- Talvez sim, talvez não. Não te preocupes. - Não estou preocupado. Só o que me chateia é que o Ely entre de repente e encontre algum tipo... - Calma, rapaz. Eu não durmo aqui. Não quero abusar da tua hospitalidade.
Alguns minutos depois já ele ressonava. Continuei deitado no escuro, tentando não pensar em Jane e em Stradlater no maldito carro do Ed Banky. Mas era impossível. Eu conhecia a técnica do Stradlater, e isso ainda era pior. Certa vez acompanhei-o num encontro com duas raparigas, no carro do Ed Banky. Eu fiquei no banco da frente com a minha miúda e ele ficou no banco de trás. Que técnica! Começou a palestrar com a rapariga num tom de voz muito manso, muito sincero, a fingir que era um tipo muito decente. Só de o ouvir quase vomitava. A rapariga estava sempre a dizer: "Não, por favor. Não, por favor, não." Mas o maldito Stradlater continuava a falar no seu tom de voz, à Abraão Lincoln, até que, por fim, houve um terrível silêncio. Foi uma coisa muito comprometedora. Não acredito que tenha feito tudo naquela noite, mas quase tudo. Quase tudo.
Enquanto ali estava a pensar, ouvi ò Stradlater entrar no quarto. Pude ouvi-lo a guardar os seus artigos de toilette e a abrir a janela. Era um entusïasta do ar livre. Pouco depois apagou a luz. Nem sequer tentou certificar-se se eu estava no quarto.
Até a rua estava silenciosa e triste. Não se ouvia um único automóvel. Senti-me tão amargurado e só que resolvi acordar o Ackley.
- Ackley ! Ackley! - disse num sussurro para que o Stradlater não pudesse ouvir-me.
Mas foi o Ackley quem não me ouviu. - Ackley !
Ainda não me ouviu. Dormia como uma pedra. - Ackley !
Desta vez ouviu-me. - Mas que diabo tens Já estava a dormir!
- ouve! Como é que se faz para entrar num convento? - perguntei-lhe. Estava a acariciar a ideia de seguir a vida religiosa. - É preciso ser-se católico?
- Com certeza que é preciso ser-se católico. Raios te partam! Então acordaste.~ só para...
- Bem, não te chateies. Vou para um convento. tu?-perguntou ele.-Caramba! Com a sorte que tenho, acabo no convento que não desejo. Só com frades estúpidos. Ou estupores.
Quando acabei de falar, o Ackley sentou-se na cama. - Ouve - disse ele. - Não me incomodo com o que dizes de mim, mas se começas a dizer mal da minha religião... - Calma - respondi eu. - Ninguém está a dizer mal da tua religião. - Ergui-me e comecei a dirigir-me para a porta. Era impossível permanecer naquela estúpida atmosfera. Parei e dei um grande aperto de mão ao velho Ackley. Ficou surpreendido.
- Qual é a tua ideia? - perguntou ele.
- Nenhuma. Só quero cumprimentar-te por seres tão esperto.
Falei com sinceridade.
- És um ás, Ackley. Já sabias?
- Tem cuidado, olha que ainda algum dia...
Nem sequer ouvi o resto. Fechei a porta e saí para o corredor.
Todos dormiam ou estavam fora, e por isso o corredor tinha um aspecto triste e solitário. Em frente da porta do Leahy e do Hoffman havia um tubo vazio de pasta
Kolynos e, enquanto descia as escadas, fui dando-lhe uns pontapés. Pensei em visitar o Mal Brossard, mas súbitamente mudei de ideias. Decidi sair imediatamente de Pencey, naquela mesma noite, sem esperar por quarta-feira. Não podia ficar ali mais tempo. Sentia-me triste e só.
Decidi-me, pois, a passar a noite num hotel em Nova Iorque - num hotel barato, é claro - e descansar até quarta-feira. Depois, na quarta-feira, iria para casa e poderia repousar todo o tempo que quisesse. Provàvelmente os meus pais só na quarta ou quinta-feira receberiam a carta do velho Thurmer a dizer que eu ficara reprovado. Só queria chegar a casa depois de terem recebido a carta e de a terem digerido. Não me agradava estar lá no dia em que a recebessem. A minha mãe é um pouco histérica. Depois de digerir as coisas não é má pessoa. Além disso, sentia que precisava de umas pequenas férias. Tinha os nervos em franja.
Foi, pois, o que eu decidi. Entrei no quarto, acendi a luz e comecei a fazer as malas. Já arrumara a maior parte das coisas. O Stradlater nem sequer acordou. Acendi um cigarro, vesti-me completamente e arrumei as duas Gladstones. Não levei mais de dois minutos. Sou sempre muito rápido. Só uma coisa me atormentou. Também tinha de arrumar os patins para gelo que a minha mãe me enviara há coisa de dois dias. Fiquei deprimido. Estava a vê-la, na loja do Spaulding, a fazer milhões de perguntas só para me comprar os patins-e cá estava eu novamente reprovado. Fiquei triste. E ela acabou por me comprar o género de patins que eu não aprecio. Comprou-me patins de hóquei, quando eu queria patins de corrida. Sempre que me oferecem um presente acabo por ficar triste.
Depois de ter feito as malas, contei o dinheiro que me restava. Não me recordo perfeitamente da quantia, mas estava bastante abonado. A minha avó enviara-me um vale uma semana antes. Tenho uma avó que é bastante pródiga com o dinheiro. Já não tem a conta toda-é velha como o Diabo-e costuma enviar-me dinheiro para o aniversário cerca de quatro vezes por ano. Embora estivesse abonado, pensei que era melhor arranjar mais alguns dólares. Nunca se sabe o que se gasta. Por isso, fui a outro quarto e acordei o Frederick Woodruff, o tipo a quem eu emprestara a máquina de escrever. Perguntei-lhe quanto é que ele daria pela máquina. -Era um tipo bastante endinheirado. Disse que não sabia e que não queria comprá-la, mas acabou por fazer negócio. Tinha custado perto de noventa dólares, mas só me deu vinte. Ficou aborrecido por eu o ter acordado.
Quando já estava pronto para marchar, com as malas preparadas e tudo o mais, parei por momentos junto das escadas e contemplei o maldito corredor pela última vez. Não sei porquê, tive vontade de chorar. Enfiei o boné na cabeça e depois gritei a plenos pulmões: "Durmam bem, seus ranhosos." Aposto que acordei toda a gente que dormia naquele piso. Depois saí. Mas um idiota qualquer espalhara cascas de noz pelas escadas e eu estive prestes a quebrar o nariz.
Como era muito tarde para chamar um táxi, fui a pé até à estação. Não era longe, mas estava um frio de morte e a neve dificultava o andamento. Contudo, apreciei o ar gelado da noite. A única coisa desagradável era que o frio fazia-me doer o nariz e os lábios, que ainda estavam inchados. O Stradlater esborrachara-me o lábio contra os dentes. Mas, em compensação, tinha as orelhas quentes. O boné tinha protecções para as orelhas e eu baixei-as. Não me incomodava que parecesse mal. Não havia vivalma por ali. Estava tudo a dormir.
Senti-me feliz quando cheguei à estação, pois o comboio só demorava dez minutos. Enquanto esperava, apanhei um pouco de neve e lavei o rosto, onde ainda havia vestígios de sangue.
Gosto de viajar de comboio, especialmente de noite, com todas as luzes acesas e as grandes janelas tão negras, com os criados a venderem café quente e sanduíches. Compro sempre uma sanduíche de presunto e quatro magazines. Quando viajo de comboio à noite consigo ler sem vomitar essas histórias incríveis dos magazines. O género de histórias que vocês conhecem. Umas novelas onde há sempre uns tipos bem parecidos e, aldrabões chamados David e uma série de raparigas chamadas Linda ou Mareia que estão sempre a acender os cachimbos dos Davids. Até consigo ler essas histórias sujas quando viajo num comboio à noite. Mas desta vez foi diferente. Não estava com disposição. Deixei-me ficar sentado. Tirei o boné e meti-o no bolso. Foi tudo o que fiz.
Súbitamente, em Trenton, entrou uma senhora, que se sentou ao meu lado. A carruagem estava praticamente vazia, porque já era muito tarde, mas ela sentou-se junto de mim, em vez de se sentar noutro banco. Trazia uma grande mala e colocou-a na coxia, de modo que toda a gente poderia tropeçar. Vinha vestida como quem regressa de uma grande festa. Era uma mulher de quarenta ou quarenta e cinco anos, mas tinha bom aspecto. As mulheres dão cabo de mim. Não pensem que sou um libidinoso, mas sou bastante sensual. Gosto de mulheres, em suma. Deixam sempre as malas nas coxias das carruagens.
Íamos, pois, sentados no mesmo banco, quando súbitamente ela me perguntou:
- Desculpe-me, mas aquilo não é o galhardete da Escola pencey? - Estava a contemplar as minhas malas lá em cima, na rede.
- É, sim - respondi eu.
E era verdade. Havia um distintivo de pencey numa das minhas malas.
- Oh, estuda em pencey? - perguntou ela. Tinha uma bela voz. Uma voz de telefonista. - Estudo, sim.
- Oh, que engraçado! Então talvez conheça o meu filho. Ernest Morrow. Ele estuda em pencey. - Conheço, sim. É do meu ano.
O filho dela era, sem dúvida, o maior cretino que passou por pencey em toda a história da Escola. Andava sempre pelo corredor, depois de tomar banho, a bater com a toalha molhada no rabo dos parceiros. Era exactamente desse tipo. - Oh, que engraçado!-disse a senhora sem afectação. Era apenas amável. -Tenho de dizer ao Ernest que nos encontrámos - continuou ela. - Como se chama, meu filho? - Rudolf Schmidt - respondi eu. Não estava disposto a contar-lhe toda a história da família. Rudolf Schmidt era o nome do continuo do nosso dormitório.
- Gosta de pencey? - perguntou. - pencey? Não é má. É claro que não é o Paraíso, mas não é pior que as outras escolas. Alguns professores são mesmo conscienciosos.
- Ernest adora pencey. - Eu sei - disse-lhe.
Depois comecei a desfiar-lhe uma série de tretas. - Ele sabe adaptar-se às circunstâncias. Sabe mesmo. Isto é, sabe adaptar-se muito bem.
- Acha? - perguntou. Estava muito interessada. - Ernest? Oh, certamente - respondi eu.
Depois observei-a a tirar as luvas. Caramba! Tantos anéis!
- Quebrei uma unha ao sair de um táxi - disse ela. Olhou para mim e sorriu. Tinha um belo sorriso. Geralmente as pessoas ou não sorriem, ou têm um sorriso sujo.
- Eu e o meu marido preocupamo-nos muito com o Ernie - disse ela. - Pensamos que, por vezes, ele não consegue dar-se bem com os companheiros.
- Como?
- Bem. Ele é um rapaz com muita sensibilidade. Nunca conseguiu dar-se bem com os outros rapazes. Leva as coisas muito a sério para a idade que tem.
Sensibilidade! Fiquei varado. Esse Morrow tinha tanta sensibilidade como uma retrete.
Olhei-a com atenção. Não me pareceu parva. Possivelmente sabia que o filho era um idiota chapado. Mas nunca se sabe o que pensam as mães. São quase sempre palermas. Mas eu gostava da mãe do Morrow. Era boa pessoa.
- Importa-se que eu fume? - perguntei-lhe. Ela olhou em redor.
- Parece-me que nesta carruagem não se pode fumar Rudolf.
Rudolf! Que coisa!
- Não faz mal. Pode-se fumar até que alguém proteste - disse eu.
Ofereci-lhe um cigarro e dei-lhe lume.
Fumava com aprumo, aspirando o fumo, sem o expelir em baforadas como as mulheres geralmente fazem. Era encantadora, com muito sex-appeal, se querem que vos diga a verdade.
Olhava para mim com uma certa curiosidade. - Não tenho a certeza, mas parece-me que está a sangrar do nariz, meu filho - disse ela súbitamente.
Assenti com a cabeça e tirei o lenço do bolso. - Magoei-me com uma bola de neve - respondi eu. - Uma que já estava muito dura. -Provàvelmente, noutra ocasião, ter-lhe-ia contado o que me acontecera, mas levava muito tempo a explicar. Gostava dela. Começava a arrepender-me de lhe ter dito que me chamava Rudolf Schmidt. - O Ernie - disse-lhe - é um dos rapazes mais populares em Pencey. Já sabia?
- Não, não sabia.
- É preciso certo tempo para o conhecermos - prossegui. - É um rapaz com piada. Um tipo estranho, sob muitos aspectos. Quando o vi pela primeira vez pensei que ele não passava de um snob. Foi isso que eu pensei. Mas o Ernie não é snob. Tem uma personalidade muito original e é preciso conhecê-lo bem.
Mrs. Morrow nada disse, mas, caramba, deviam vê-la. Estava grudada ao assento. As mães ficam estarrecidas quando lhes dizem que os filhos são uns tipos estupendos.
Mas depois continuei a impingir-lhe novas tretas. - Ele já lhe falou das eleições? - perguntei-lhe. - As eleições da turma?
Ela fez sinal de que não. Estava em transe.
- Bem. Um grupo de rapazes queria que o Ernie fosse o chefe da turma. E claro que ele tinha a aprovação geral, pois achávainos que era o único capaz de desempenhar a tarefa - disse-lhe.
Caramba! Que grande mentira!
- Mas tivemos de eleger um outro, Harry Fencer. Foi eleito porque o Ernie não quis ser nomeado. Só porque é modesto e tímido. Recusou... É mesmo tímido. Quando estiver com ele fale-lhe disto. - Olhei para ela. - Ele ainda não lhe tinha contado? - perguntei.
- Não, não tinha.
- Pois o Ernie é assim mesmo. Não quis. É o seu único defeito. É muito tímido. Precisa de ser menos modesto. Naquele momento surgiu o condutor e tive oportunidade de interromper a história. Mas fiquei satisfeito por lhe ter impingido aquelas tretas. É preciso vermos que o Ernie era daqueles que andavam sempre a bater com a toalha no rabo dos parceiros, para magoar. Tipos destes são idiotas toda a vida, e não apenas enquanto são garotos. Mas quase apostava que Mrs. Morrow pensava em Ernie como se ele fosse um tipo muito tímido depois da peta que eu lhe contara. É possível que pensasse, mas nunca se sabe. As mães são sempre pouco perspicazes.
- Não quer tomar um cocktail? - perguntei-lhe. Estava a sentir desejos de beber um cocktail. - Podíamos ir até ao restaurante. Que acha?
- Mas já pode tomar bebidas alcoólicas, meu filho? - perguntou-me. Não o disse por velhacaria. Era, muito amável para ser velhaca.
- Bem, não posso. Mas, como sou alto, ninguém dá por isso - disse eu. - Para mais, já tenho bastantes cabelos grisalhos. - Voltei-me para que ela pudesse ver o meu cabelo. Ficou fascinada. - Porque não vem? - perguntei eu.
- Acho melhor não tomar nada. Mas agradeço-lhe na mesma, meu filho - respondeu ela. E, depois, o restaurante já deve estar fechado. É tarde. - Tinha razão. Esquecera-me das horas.
Depois olhou para mim e disse-me exactamente o que eu temia:
- Ernest escreveu-me e disse que as férias do Natal só começam na quarta-feira. Espero que não tenha sido chamado por causa de alguma pessoa de família que esteja doente.
Parecia preocupada. Garanto-vos que não era bisbilhotice.
- Não, não. Estão todos de perfeita saúde - disse-lhe. - Eu é que não estou. Tenho de fazer uma operação. - Oh, que pena! - disse ela. Parecia triste e eu arrependi-me, mas já era tarde.
- É uma coisa sem importância. Apenas um pequeno tumor no cérebro.
- Oh, não! - Chegou a pôr a mão na boca, muito aflita.
- Não há motivo para preocupações. É quase à superfície. Coisa sem importância. Podem tirá-lo em dois minutos.
Depois comecei a fingir que lia um horário. Só para acabar com as mentiras, visto que quando começo sou capaz de continuar durante horas e horas. Não estou a brincar. Horas!
Pouco mais falámos. Ela começou a ler a Vogue e eu espreitei pela janela: Saiu em Newark. Desejou-me muitas felicidades na operação e continuou a chamar-me Rudolf. Convidou-me a visitar Ernie no Verão, em Gloucester, Massachusetts.
Disse-me que tinham uma casa junto à praia, com campo de ténis e tudo, mas eu agradeci e disse-lhe que ia para a América do Sul com a minha avó. Foi outra grande peta, porque a minha avó só raramente sai de casa para ir ao cinema. Nunca visitaria aquele cretino do Morrow nem por todo o dinheiro do mundo, mesmo que estivesse desesperado.
Logo que cheguei à estação de Penn meti-me numa cabina telefónica. Apetecia-me telefonar a qualquer tipo. Deixei as malas junto à cabina, debaixo de olho, mas depois não consegui recordar-me de uma única pessoa a quem pudesse telefonar. O meu irmão D. B. estava em Holywood. A minha irmã Phoebe vai para a cama às nove horas. Não se importaria que eu a acordasse, mas não seria ela que atenderia o telefone. Seriam os meus pais. Depois pensei telefonar à mãe da Jane Gallagher a perguntar quando começariam as férias da Jane, mas não me senti com disposição para isso. Além de tudo o mais, já era muito tarde. Também pensei em telefonar à Sally Hayes, a rapariga com quem eu costumava passear, pois sabia que já estava em férias. Ela escrevera-me uma carta idiota a convidar-me para a ajudar a construir uma árvore de Natal, mas receei que a mãe dela atendesse o telefone. Conhecia a minha mãe e já estava a vê-la, quase a quebrar as pernas, numa correria, a avisá-la de que eu estava em Nova Iorque. Além disso, não sentia desejos de falar com Mrs. Hayes. Ela chegara a dizer à Sally que eu era um selvagem. Disse que eu era selvagem e não tinha orientação na vida. Depois pensei telefonar a um rapaz que andara comigo na Whooton School, um certo Carl Luce, mas não gostava dele. Acabei por não telefonar. Saí da cabina passados vinte minutos, agarrei na bagagem e dirigi-me ao túnel onde há uma praça de táxis.
Estava tão distraído que indiquei a minha morada habitual, isto é, esqueci-me de que resolvera hospedar-me num hotel durante dois dias até que as férias começassem.
Só pensei nisso quando o táxi já rodava pelo parque. Então disse ao motorista:
- Oiça! Não se importa de voltar para trás logo que for possível? Enganei-me na direcção. Quero ir para o centro da cidade.
O motorista era um tipo ajuizado.
- Aqui não se pode voltar. Só tem um sentido. Agora tenho de ir sempre em frente até à Rua go.
Preferi não discutir.
- Okay - disse eu. Depois, súbitamente, recordei-me de uma coisa importante:- Oiça! - exclamei. - Conhece aqueles patos da lagoa próximo do Central Park? Aquele
lago pequeno? Sabe, por acaso, para onde vão os patos quando a água gela?
Compreendi que só por muito acaso ele saberia.
O homem virou-se um pouco e contemplou-me como se eu fosse um louco.
- Mas que história é essa? - perguntou ele. - Quer -Oh, não. Só estava interessado em saber.
O homem não respondeu. Por fim chegámos à Rua go e ele disse:
- Cá estamos. E agora?
- Bem. Não quero ir para os hotéis da parte oriental, pois posso encontrar algum conhecimento. Viajo incógnito. Odeio estas cretinices como dizer que viajo incógnito, etc., mas quando tenho de falar com um cretino também me finjo cretino.
- Sabe, por acaso, qual é a orquestra que está no Taft ou no New Yorker?
- Não tenho qualquer ideia.
- Bem. Nesse caso, leve-me ao Edmont - disse eu. - Não quer parar e tomar um cocktail comigo?
- É proibido.
Aquele motorista era uma bela companhia. Uma personalidade terrível.
Chegámos ao Edmont Hotel e apeei-me. Pusera o boné de caça quando entrara no táxi, mas tirei-o antes de me apear.
Não queria parecer um pacóvio, o que era uma coisa muito irónica, pois eu não sabia que o hotel estava cheio de gente pervertida e havia pacóvios por todos os lados.
Deram-me um quarto estúpido, cujas janelas deitavam para um pátio interior do hotel. Eu estava muito deprimido e não me incomodei com a falta de panorama. O groorn que me levou até ao quarto era um tipo com cerca de sessenta e cinco anos. Era ainda mais deprimente que o próprio quarto. Um desses tipos carecas que puxam os restos do cabelo que ainda têm de modo a cobrirem toda a cabeça. Preferia ser completamente careca a fazer uma coisa destas. Mas que raio de ofício para um homem com sessenta e cinco anos! Acarretar com as bagagens e angariar uma gorjeta. Suponho que o homem não era muito inteligente, mas para o caso pouco adiantava.
Quando fiquei só, fui logo espreitar pela janela. Ficariam pasmados se vissem o que eu vi no outro lado do hotel. Nem sequer corriam as persianas. Vi um tipo de cabelo grisalho, com aspecto distinto, em cuecas, a fazer uma coisa inacreditável. Primeiro pôs uma mala sobre a cama.
Depois tirou uma porção de roupa feminina e começou a vestir-se. Roupa de mulher-meias de seda, sapatos de salto alto, soutien e uma cinta com fitas e tudo. Por fim, vestiu um fato negro, de cocktail, muito justo. Juro perante Deus. Começou a andar de cá para lá, com passadas muito curtas, como as mulheres, a fumar um cigarro e a contemplar-se no espelho. Estava completamente só. A não ser que houvesse alguém na casa de banho, mas isso era coisa que eu não podia ver. Depois, na janela seguinte, vi um homem e uma mulher a despejarem bochechos de água um sobre o outro. Provàvelmente era champanhe, mas eu não conseguia ver o que estava dentro dos copos. O homem bebia um gole e depois despejava-o sobre a mulher; a seguir ela fazia o mesmo, borrifando o homem. Cada um por sua vez, meu Deus! Só visto! Pareciam histéricos, como se aquilo fosse a coisa mais engraçada do mundo. Não estou a brincar. Aquele hotel estava cheio de pervertidos. Eu era, provàvelmente, a única pessoa normal em todo o edifício. Estive para enviar um telegrama ao Stradlater a dizer-lhe que tomasse o primeiro comboio para Nova Iorque. Seria o rei do hotel.
Mas dá-se o caso de estes espectáculos serem sempre fascinantes. A rapariga que apanhava com a água no rosto, por exemplo, era muito bonita. Ora aí é que está o problema. O meu problema. Possivelmente sou um grande maníaco sexual. Por vezes imagino coisas espantosas que não me importaria de fazer. Até consigo admitir que seria engraçado, estando bêbado, arranjar uma rapariga e deitar-lhe água sobre o rosto. Mas não gosto muito da ideia. Se virmos bem, é uma porcaria. Acho que, se gostamos de uma rapariga, não lhe fazemos essas coisas. Se gostamos mesmo dela, também gostamos do seu rosto, e, logo, não fazemos porcarias como essa de lhe atirar água. É pena que estas perversões possam ter piada. As raparigas também não ajudam quando pretendemos não ser perversos. Conheci uma rapariga há alguns anos que ainda era mais suja que eu. Caramba! Se é era! Divertimo-nos a valer, de certo modo. O sexo é uma, coisa que eu não corrlpreendo muito bem. Nunca se sabe onde acaba e onde começa. Começo a fazer regras sexuais para uso próprio, para as quebrar logo a seguir. No ano passado resolvi deixar de passear com galdérias. Mas fiz exactamente o contrário na mesma semana eem que tomara essa resolução -na mesma noite, para ser frranco. Passei a noite inteira com uma idiota chamada An-ne Louise Sherman. Não compreendo o sexo. juro por Deus que não compreendo.
Comecei a acalentar a ideia de fazer uma surpresa à Jane, isto é, telefonar-lhe para Pencey , em vez de telefonar à mãe dela, e perguntar-lhe quando voltava para casa. Era proibido chamar os alunos ao telefone depois das dez horas, mas eu já pensara no assunto. Diria que era o tio da Jane e que a tia acabara de morrer num acidente de automóvel. Havia de resultar. Só não o fiz porque não estava bem disposto. Quando não estamos bem dispostos é impossível fazer certas coisas.
Sentei-me numa cadeira e fumei um cigarro. Estava chateado. Depois, de repente, ocorreu-me uma ideia. Tirei a carteira do bolso e comecei a procurar uma morada que me dera um rapaz que eu conhecera no Verão passado. Finalmente, encontrei-a. Estava muito sebenta, mas ainda se conseguia ler. Era a morada "de uma rapariga que fazia jeitos de tempos a tempos, segundo me dissera o tal rapaz. Certa vez levara-a a dançar em Princeton e iam correndo com ele só por a ter levado lá. Era daquelas que costumam fazer strip-tease. Agarrei no telefone e marquei o número. Chamava-se Faith Cave ndish e vivia no Stanford Arms Hotel, na Broadway. Um estupor, é claro.
Pensei que não estivesse. Ninguém respondia. Por fim, alguém levantou o auscultador.
- Está? - disse eu. Fiz voz grossa para que ela não suspeitasse da minha idade. Tenho uma voz bastante forte.
- Está! - respondeu uma voz de mulher pouco cordial. - Miss Faith Cavendish, está?
- Quem fala? - perguntou ela. - Quem fala a uma hora destas ?
Fiquei um pouco confuso.
- Bem, eu sei que já é tarde - disse eu, sempre com a voz grossa, - mas espero que me desculpe, pois eu estava ansioso por telefonar-lhe. - Falei com muita suavidade. - Mas quem fala? - insistiu ela.
- A senhora não me conhece. Sou um amigo do Eddie Birdsell. Ele disse-me que quando eu viesse a Nova Iorque podia convidá-la para tomar um cocktail.
- Quem? É amigo de quem?
Caramba! Era um autêntico tigre. Falava aos berros. - Edmund Birdsell. Eddie Birdsell - disse eu.
Não conseguia recordar-me se o nome do rapaz era Edmund ou Edward. Só o encontrara uma vez durante uma festa muito estúpida.
- Não conheço ninguém com esse nome. E se acha que é uma coisa muito divertida acordar-me no meio da noite...
- Eddie Birdsell! De Princeton! - disse eu.
Podia-se ver que ela fazia esforços por se recordar. - Birdsell? Birdsell?... De Princeton?... Da Universidade de Princeton?
- Isso mesmo - confirmei eu.
- É da Universidade de Princeton? - Bem, quase.
- Oh... como vai o Eddie? - perguntou ela. - Mas que hora para telefonar, meu Deus!
- Está óptimo. Envia-lhe saudades.
- Obrigado. Dê-lhe saudades minhas, também-disse ela. - É um bom tipo. E que faz ele agora? - Estava a tornar-se muito cordial.
- Oh, o mesmo de sempre - respondi eu.
Como diabo havia de saber o que fazia o tal Eddie?
Quase não o conhecia. Nem sabia se o tipo ainda estava em Princeton.
- Oiça - disse eu. - Está interessada em tomar um cocktail ?
- Sabe, por acaso, que horas são? - perguntou ela. - Como é que se chama?
- Falava já com uma acentuação inglesa. - Parece-me que ainda é muito novo. Comecei a rir.
- Obrigado pelo cumprimento - disse eu, sempre com muita suavidade. - Chamo-me Holden Caulfield. - Estive tentado a dar-lhe um nome falso.
- Bem, Mr. Cawffle. Não estou habituada a travar conhecimentos a meio da noite. Sou uma rapariga de trabalho.
- Amanhã é domingo - disse eu.
- Bem, não interessa. Tenho de dormir umas tantas horas. Por causa da beleza.
- Pensei que ainda poderíamos beber um cocktail. Não é muito tarde.
- É muito amável - disse ela. - Onde está? - Eu? Numa cabina telefónica.
- Oh! - disse ela. Depois houve uma longa pausa. - Bem, gostaria muito de o conhecer pessoalmente, Mr. Cawffle. Parece-me uma pessoa muito atraente. Mas já é muito tarde.
- Eu podia ir aí...
- Bem, noutra ocasião seria óptimo. Teria muito prazer em oferecer-lhe um cocktail, mas a minha companheira de quarto está muito doente. Tem estado com insónias e começou a dormir há coisa de um minuto.
- Oh, que maçada!
- Para onde vai? Talvez possamos encontrar-nos amanhã!
- Não posso - disse eu. - Só tenho esta noite livre. - Oh, que estupidez. Nunca devia ter dito esta asneira. - Que pena!
- Darei o recado ao Eddie.
- Sim? Obrigada. Espero que se divirta em Nova Iorque. É uma grande cidade.
- É Mesmo. Obrigado. Boa noite.
Desliguei o telefone. Caramba! Fui um grande idiota. Pelo menos poderia ter combinado um encontro só para beber uns cocktails.
AINDA era muito cedo. Não tenho a certeza, mas ainda não era tarde. Uma das coisas que odeio é ir para a cama quando não tenho sono. Abri as malas e tirei uma camisa lavada. Depois fui lavar-me e mudei de roupa. Decidira descer até ao vestíbulo e ver o que havia no Lavender Room, o cabaré do hotel.
Enquanto mudava de camisa, estive tentado a telefonar à minha irmã Phoebe. Apetecia-me conversar com alguém. Alguém com miolos e um pouco de senso. Mas não tinha possibilidades de lhe telefonar,. pois ela era ainda muito nova e já estaria deitada. Pensei em desligar o telefone se os meus pais atendessem, mas também não daria resultado. Saberiam imediatamente que era eu. A minha mãe adivinha sempre essas coisas. Tem grandes qualidades psíquicas. Mas não me importaria de conversar com a Phoebe.
Deviam conhecê-la! Nunca vi uma criança tão linda e esperta como ela! É mesmo esperta. Só tem vintes desde que entrou para a escola. De facto, eu sou o único burro da família. O meu irmão D. B. é escritor e o Allie, o que morreu, como já vos disse, era um ás. Eu sou o único burro. Mas deviam conhecer a Phoebe ! Tem cabelo vermelho, como o Allie, e usa-o muito curto no Verão. Prende-o atrás das orelhas. Tem umas orelhas muito pequenas e bonitas. No Inverno usa o cabelo comprido. Por vezes, a minha mão penteia-lho. É um lindo cabelo. Ela só tem dez anos. É magra, como eu, mas é bonita. Parece uma patinadora. Observei-a, certa vez, da janela, quando atravessava a Fifth Avenue em direcção ao parque, e digo-vos que parecia mesmo uma patinadora. Haviam de gostar dela. Quando lhe dizemos qualquer coisa, ela compreende imediatamente. E podemos levá-la onde quisermos. Se a levarmos a um filme estúpido, ela descobre logo que o filme é estúpido. Mas se for bom, ela também descobre que é bom. O D. B. e eu levámo-la a ver um filme francês, A Mulher do Padeiro, com o actor Raimu. Ficou extasiada. Mas o seu filme preferido é The 39 Steps, com Robert Donat. Conhece-o de cor, pois já o viu algumas dez vezes. Quando o Donat chega a uma herdade escocesa, por exemplo, ou quando foge dos polícias, a Phoebe começa a gritar a plenos pulmões, mesmo quando o escocês diz: "Sabe comer arenque ?"
Conhece-o inteirinho, de cor. E quando o professor, que não passa de um espião alemão, aponta para Robert Donat com o dedo mutilado, a Phoebe também levanta o seu dedo, mesmo em frente do meu rosto, no escuro. É esplêndida. Haviam de gostar dela. Às vezes, porém, é um pouco exagerada. É muito emocional para a idade que tem. É mesmo. Está sempre a escrever livros, mas nunca os acaba. São todos sobre uma garota chamada Hazel Weatherfield. Phoebe escreve ao contrário, Hazee. Hazee Weatherfield é uma rapariga-detective. Ao princípio supunha-se que era órfã, mas o pai acabou por aparecer. É um cavalheiro alto e atraente, com vinte anos de idade, uma coisa espantosa. A Phoebe ! Aposto que vocês haviam de gostar dela. Já era muito esperta quando ainda era bebé. Nessa altura eu e o Àllie costumávamos levá-la para o parque, especialmente aos domingos. O Allie tinha um barco de velas com que ele brincava aos domingos, e nós levávamos a Phoebe connosco- Calçava as luvas e lá ia entre nós dois, como se fosse uma dama. E quando o Allie e eu começávamos a conversar sobre assuntos genéricos, a , nossa Phoebe escutava atentamente. Por vezes esqueciamo-nos de que ela vinha connosco, porque ainda era uma petiza. Mas ela encarregava-se de nos lembrar. Interrompia-nos de minuto a minuto. Puxava o casaco do Allie e dizia: "Quem? Quem disse isso? Bobby ou a senhora?" E nós dizíamos-lhe. Ela exclamava "Oh!", e continuava a escutar. Gostava muito do Allie. Agora tem dez anos e já não é bebé, mas ainda espanta toda a gente. Pelo menos, espanta as pessoas sensatas.
A Phoebe é daquelas pessoas com quem se gosta de falar pelo telefone. Mas eu temia que os meus pais atendessem e descobrissem que eu estava em Nova Iorque, corrido de Pencey, e tudo o mais- Acabei por vestir a camisa. Depois desci até ao vestíbulo para ver como paravam as modas.
Além de alguns janotas e algumas louras com aspecto suspeito, o vestíbulo estava vazio. Mas ouvia-se a orquestra no Lavender Room e eu fui até lá. Não estava muito cheio, mas deram-me uma mesa estúpida, no fundo da sala. Devia ter mostrado uma nota de vinte ao criado. Em Nova Iorque o dinheiro fala. Não estou a brincar.
A orquestra era nojenta. Buddy Singer. Havia pouca gente da minha idade. Ninguém com a minha idade, para ser mais preciso. Quase tudo velhos com as suas parceiras, excepto na mesa mesmo ao lado da minha. Essa era ocupada por três raparigas com perto de trinta anos. Eram bastante feias e usavam o género de chapéus que não se usam em Nova Iorque. Uma delas, a loura, não era má de todo. Comecei a mirá-la, mas nesse momento chegou o criado. Pedi whisky com soda e disse-lhe que não os misturasse. Falei com autoridade, porque, se me mostrasse tímido, ele descobria logo que eu tinha menos de vinte anos e não me serviria o whisky. De qualquer modo, houve sarilho.
- Desculpe, senhor - disse ele. - Pode mostrar-me o bilhete de identidade? Ou a carta de condução?
Olhei-o friamente como se tivesse sido gravemente insultado.
- Acha que tenho menos de vinte e um anos? - Desculpe-me, senhor, mas temos o nosso regulamento...
- Okay, okay! - disse eu. Estava furioso. - Traga-me uma Coca-Cola. - O homem começou a afastar-se, mas eu chamei-o: - Não poderá deitar-lhe um pouco de rum?
perguntei-lhe, com bons modos. - Não posso ficar aqui sem beber qualquer coisa. Poderá deitar-lhe um pingo de rum ?
- Desculpe-me, senhor... - disse ele. Mas o homem não tinha culpa. Perdem o emprego se são apanhados a vender bebidas alcoólicas a um menor. E eu sou menor.
Comecei novamente a mirar as três bruxas que estavam sentadas na mesa junto da minha. Isto ê, comecei a mirar a loura. As outras duas não tinham interesse, e nem sequer as olhei. Mas não o fiz intencionalmente. Olhei-as apenas de relance e com certo desinteresse. Elas começaram a rir-se, as idiotas! Provàvelmente pensavam que eu ainda era muito novo para lhes interessar. Fiquei chateado - eram capazes de pensar que eu queria namorá-las, ou coisa semelhante. Depois disso pu-las de parte, mas estava com vontade de dançar. Há ocasiões em que gosto muito de dançar. Súbitamente, dirigi-me a elas e perguntei: - Alguma de vocês quer dançar? - Não fiz a pergunta com rudeza. Com muita suavidade, é claro. Mas elas começaram novamente a rir. Que grandes estupores! - Vamos! - disse eu.
- Danço com uma de cada vez. Está bem? Que acham? Vamos! - De facto, estava com vontade de dançar. Finalmente, a loura levantou-se para dançar comigo, pois fora para ela que eu falara. Dirigimo-nos para o recinto de baile. As outras duas pareciam histéricas. Nem sequer me preocupei com isso.
Mas valeu a pena. A loura era uma boa dançarina. Uma das melhores com que já dancei. Não estou a brincar! Estas raparigas estúpidas sabem dançar de verdade. Pelo contrário, se convidamos uma rapariga esperta, logo ao primeiro passo verificamos que não sabe dançar e não há outro remédio senão voltarmos para a mesa e apanharmos uma grande bebedeira.
- Você sabe dançar - disse-lhe eu. - É uma autêntica profissional. Já dancei com uma, mas você é duas vezes melhor. Já ouviu falar de Marco e Miranda?
- O quê? - perguntou ela. Nem sequer me ouvia. Olhava para todos os lados.
- Já ouviu falar de Marco e Miranda?
- Não sei. Não. Não sei.
- São dançarinos. Ela é dançarina. Mas não é grande coisa. Faz o que deve fazer, mas não é grande coisa. Sabe quando é que uma rapariga é uma verdadeira dançarina?
- O quê? - perguntou ela. Continuava a não me ouvir. O seu espírito vagueava pela sala.
- Perguntei-lhe se sabia quando uma rapariga é uma boa dançarina.
- Hum, hum.
- Bem. Ponho a mão sobre as suas costas. Se acho que não há nada debaixo da minha mão - nem corpo, nem pernas, nem pés, nada, - então a rapariga é uma boa dançarina.
Mas ela não me ouvia. Acabei por fingir que não dava por ela. Dançámos apenas. Caramba! Aquela rapariga sabia mexer-se! Buddy Singer e a sua nojenta orquestra executavam a canção Just One of Those Things, mas, vamos lá, conseguiam não a estragar. É uma bela canção. Não tentei chegar-me a ela enquanto dançávamos - odeio esse género de processos - mas, mesmo assim, encostei-me a ela, e a rapariga não se afastou. Até me pareceu que estava a gostar, quando súbitamente disse uma coisa estúpida: - Eu e a minha amiga vimos Peter Lorre a noite passada. O actor. Em pessoa. Estava a comprar um jornal. É horrível!
- Teve sorte! - respondi. - Teve mesmo muita sorte. Já sabia que teve sorte?
Era um estupor, uma ranhosa. Mas que dançarina! Não consegui conter-me e dei-lhe um beijo na curva do pescoço. No sítio preciso. Ficou furiosa.
- Eh ! Que é isso?
-Nada. Não é nada. Você sabe dançar! - disse eu. - Tenho uma irmã que anda na escola primária. Você é quase tão boa como ela, e ela dança melhor que qualquer outra pessoa.
- Veja lá como fala, se não se importa!
Que mulher, caramba! Uma rainha, hem!? - Donde são vocês?
Não me respondeu. Olhava para todos os lados, só para ver se via o velho Peter Lorre.
- Donde são vocês? - O quê?
- Donde são vocês? Se não quiser, não responda. Não quero aborrecê-la.
- De Seattle, Washington - disse ela. Parecia que estava a fazer-me um grande favor.
- Você é muito conversadora - disse-lhe. Já sabia? - O quê?
Desisti. Era aérea.
- Quer dançar uma mais mexida? Nada de púlos e coisas dessas. Só uma mais mexida. Quando eles tocam mais depressa toda a gente se senta, além dos velhos e dos gordos. Ficamos com muito espaço. Okay ?
- Para mim não faz diferença - respondeu ela. - Eh! Que idade tem?
Fiquei chateado.
- Oh, meu Deus! Não estrague esta dança - pedi eu. - Já tenho doze anos, mas sou muito alto.
- Oiça ! Já lhe disse que não gosto dessa conversa - disse ela. - Se continua a falar assim, vou sentar-me.
Pedi-lhe desculpa (sem saber porquê), mas a orquestra executava agora uma música mais rápida. Começou a mexer-se, mas sem exagero. Era uma bela dançarina. Só precisava de tocá-la levemente. Fiquei meio tonto. Quando me sentei estava semiapaixonado por ela. É sempre assim. Quando uma rapariga faz uma coisa bonita, mesmo que não seja uma beleza, ou mesmo que seja estúpida, ficamos semiapaixonados e acabamos por não saber onde estamos. Raparigas! Meu Deus! Podem enlouquecer-nos. Podem mesmo.
Não me convidaram a sentar, talvez porque eram muito ignorantes, mas eu sentei-me. A loura com quem eu dançara chamava-se Bernice qualquer coisa, Grabs ou Krebs. As feias chamavam-se Marty e Laverne. Disse-lhes que me chamava Jim Steele. Depois tentei entabular uma conversa inteligente, mas era pràticamente impossível. Tive de cruzar os braços. Era incapaz de dizer qual delas era a mais estúpida. E todas elas passavam o tempo a olhar para todos os lados, como se esperassem ver chegar um rebanho inteiro de estrelas de cinema. Julgavam que as estrelas de cinema frequentam o Lavender Room sempre que vêm a Nova Iorque, em vez de irem ao Stork Club ou ao El Morocco. Levei um quarto de hora a saber que trabalhavam em Seattle, na mesma companhia de seguros. Perguntei-lhes se gostavam do emprego. Mas acham que era possível obter uma resposta inteligente? Pareceu-me que as duas mais feias eram irmãs, mas sentiram-se insultadas quando lhes perguntei. Nenhuma delas queria parecer-se com as outras, o que não era de espantar, mas não deixava de ser curioso.
Dancei com todas elas. Uma de cada vez. A mais feia, Laverne, não dançava mal, mas a outra, Marty, era uma autêntica assassina. Parecia que arrastava a Estátua da
Liberdade. Só conseguiria divertir-me se lhe pregasse uma peta. Disse-lhe que acabara de ver Gary Cooper, o actor, no outro canto do bar.
- Onde? - perguntou ela, muito excitada. - Onde? - Ah, já não consegue vê-lo. Saiu. Porque é que não olhou quando eu lhe disse?
Parou no meio do recinto e começou a olhar por cima das cabeças das pessoas, tentando descobrir o actor. - Oh, que chatice! - disse ela. Estava desapontada. Fiquei com pena de lhe ter mentido. Há pessoas com quem não se pode brincar, embora o mereçam.
Mas o que se passou depois ainda foi mais divertido. Quando regressámos à mesa, Marty disse às outras que Gary Cooper acabava de sair. Caramba! Laverne e Bernice quase se suicidaram. Ficaram muito excitadas e perguntaram se Marty o tinha visto. Marty disse que só o vira num relance. Que peta!
A noite estava quase no fim; por isso, antes que o bar fechasse, ofereci-lhes mais uma bebida e engoli duas Coca-Colas. A mesa estava coberta de copos. A mais feia, Laverne, começou a brincar comigo por só beber Coca-Cola. Que estúpido humor! Ela e Marty bebiam laranjada - no mês de Dezembro, meu Deus! Era o melhor que conheciam. A loura, Bernice, bebia whisky com água. Mas, mesmo assim, parecia não apreciar. Continuavam a olhar toda a gente, a ver se descobriam algum actor de cinema. Quase não falavam, nem mesmo umas com as outras. Marty falava mais que as outras duas juntas. Dizia coisas incríveis, chamava casa das meninas à retrete e pensava que o clarinete de Buddy Singer era um grande executante, especialmente quando o viu erguer-se e dar duas sopradelas valentes. Era idiota, caramba! A outra, Laverne, julgava-se muito inteligente. Disse-me para eu telefonar ao meu pai e perguntar-lhe se estava livre naquela noite. Queria saber se o meu pai tinha algum encontro! Perguntou-me quatro vezes a mesma coisa. Bernice, a loura, nada dizia. De cada vez que lhe perguntava qualquer coisa, ela só dizia: " O quê?" Acabei por ficar nervoso.
Súbitamente, depois de terem acabado as bebidas, levantaram-se e disseram que tinham de ir para a cama. Queriam levantar-se cedo para assistirem ao primeiro programa do Radio City Music Hall. Tentei detê-las ainda um pouco, mas em vão. Despedimo-nos. Disse-lhes que logo que fosse a Seattle iria visitá-las.
Com cigarros e tudo, a conta subiu a treze dólares. Acho que, pelo menos, podiam ter-se oferecido para pagar a parte que lhes cabia e que tinham tomado antes de eu
as convidar. É claro que não consentiria, mas, pelo menos, podiam ter tido essa delicadeza. Mas não dei grande importância ao caso. Eram muito ignorantes, com aqueles chapéus provincianos. Além disso, fiquei deprimido com o facto de quererem levantar-se muito cedo só para assistirem ao primeiro programa do Radio City. Se uma criatura qualquer, uma rapariga, por exemplo, vem de Seattle, Washington, até Nova Iorque só para se levantar cedo e ver o primeiro programa do Radio City, fico completamente desorientado. Ter-lhes-ia oferecido cem bebidas diferentes se não me tivessem dito semelhante cretinice.
Saí do Lavender Room logo a seguir. O bar já estava encerrado e a orquestra desaparecera do tablado. Além disso, aquilo é um sítio terrível para quem não tem companhia, a não ser que o criado sirva autêntico whisky em vez de Coca-Cola. Suponho que não há no mundo inteiro um único cabaré onde possamos estar sentados, sós, sem apanharmos uma valente bebedeira. A menos que estejamos com uma rapariga que nos transtorne o miolo.
De súbito, quando já ia no vestíbulo, recordei-me novamente da Jane Gallagher. Era impossível libertar-me dela. Sentei-me numa cadeira nojenta, no vestíbulo, e comecei a matutar no caso, a pensar em Jane e Stradlater aconchegados no carro do Ed Banky e, embora tivesse a certeza de que Stradlater nada conseguira (eu conheço a Jane), não podia afastá-la do meu espírito. Conhecia a Jane como um livro aberto. Além do xadrez, ela apreciava os desportos atléticos e chegámos a jogar ténis manhãs inteiras, e à tarde jogávamos golf. Conheci-a quase intimamente. Não me refiro a coisas físicas, mas andávamos sempre juntos. Não é apenas com o sexo que se conhecem raparigas.
Conheci-a porque ela costumava soltar o cão, um doberman, no nosso relvado, e a minha mãe ficava muito irritada. Chamou a mãe de Jane e levantou grande celeuma. A minha mãe irrita-se com estas coisas. Alguns dias mais tarde, vi Jane deitada no chão, perto da piscina, no clube, e cumprimentei-a. Sabia que ela habitava a casa ao lado da nossa, mas nunca tinha conversado com ela. Naquele dia ela não me respondeu. Tive um trabalhão a convencê-la de que não me importava que o doberman corresse pelo nosso relvado. Até podia espojar-se no living-room, se quisesse. Ficámos amigos. Nessa mesma tarde jogámos golf. Ela perdeu oito bolas, se não me engano. Oito! Repeti-lhe várias vezes que devia abrir os olhos antes de bater a bola. Em qualquer caso, consegui melhorá-la no golf. Sou um bom jogador. Se vos contasse as minhas proezas, provàvelmente não acreditariam. Estive quase a ser filmado para um documentário cinematográfico, mas não consenti. Acho que uma pessoa como eu, que odeia o cinema, não pode entrar num documentário cinematográfico.
A Jane era uma rapariga muito divertida. Não direi que fosse uma beleza, mas dava-me volta ao miolo. Era uma boca de favas. Isto é, quando estava a falar, muito excitada, abria a boca em mil direcções diferentes. E nunca a fechava, estava sempre com a boca aberta, especialmente quando jogava golf ou lia um livro. Lia muito, e bons livros. Poesia e tudo. Foi a única pessoa estranha a quem mostrei a luva do Allie, com todos os poemas que ele lá escrevera. Ela nunca vira o Allie, porque era aquele o primeiro Verão que passava no Maine. Antes disso, costumava ir para Cape Cod. Contei-lhe a vida do Allie. Ficou muito impressionada.
A minha mãe não gostava dela. Pensava que a mãe da Jane e a própria Jane eram gente snob, que nunca cumprimentava os vizinhos. Costumava encontrá-las na vila porque a Jane levava a mãe até ao mercado num grande La Salle descapotável. A minha mãe também não a achava bonita. Mas eu achava. Gostava dela, e mais nada.
Recordo-me especialmente de uma certa tarde. Foi a única vez que chegámos a dar um beijo. Era sábado, chovia a potes e estávamos debaixo do alpendre da casa dela a jogar xadrez. Costumava entrar com ela sempre que não movia os reis. Mas nunca fazia grande chalaça. As raparigas de que mais gosto são as que não merecem chalaças. Às vezes penso que elas gostariam de que eu brincasse sobre isto ou sobre aquilo, mas é difícil começar quando as conhecemos há muito tempo e nunca o fizemos anteriormente. Estava, pois, a falar-vos da tarde em que eu e Jane quase nos beijámos. Chovia a cântaros e eu e Jane estávamos abrigados no alpendre, quando de súbito apareceu o patife que estava casado com a mãe dela e perguntou à Jane se havia cigarros em casa. Não conhecia muito bem o tipo, mas fazia-me lembrar um daqueles fulanos que só nos falam quando querem qualquer coisa. Era um tipo sujo. Jane não lhe respondeu e ele repetiu a pergunta. Mas ela continuou a não responder. Nem sequer levantou os olhos do tabuleiro de xadrez. O tipo acabou por entrar novamente em casa. Perguntei à Jane o que se passava. Ela também não me queria responder. Fingiu que estava muito concentrada no jogo. Depois, imprevistamente, deixou cair uma pequena lágrima sobre o tabuleiro. Limpou-a com a ponta dos dedos. Não sei porquê, mas senti-me triste. Levantei-me e, afastando-a um pouco, sentei-me ao lado dela - pràticamente sentei-me no colo dela. Depois ela começou a chorar e eu só sei que a beijei - nos olhos, no nariz, na testa, nas orelhas - em toda a parte, excepto na boca. Não me deixou beijar-lhe a boca. Foi a única vez que isto aconteceu. Pouco depois ela entrou em casa, vestiu uma camisola vermelha e branca que me enlouquecia e fomos ambos ao cinema. No caminho perguntei-lhe se Mr. Cudahy - era o nome do patife - já tentara fazer-lhe alguma partida. Ela era muito nova, mas tinha uma bela figura. Não me custava a acreditar que ele tentasse alguma coisa. Mas ela disse que não. Nunca descobri o que se passara. Há coisas assim.
Não julguem que ela era de gelo só porque não andávamos aos beijos. Não era. Estávamos sempre de mãos dadas, por exemplo. Não é muito, bem sei, mas era uma coisa terrível. Na maior parte dos casos, quando damos a mão a uma rapariga, elas acabam por julgar que devemos estar sempre a mexer, a afagar. Com Jane era diferente. Íamos a um cinema ou coisa parecida e dávamos as mãos. Não nos mexíamos até ao fim do filme, e nem sequer mudávamos de posição. Não me importava que ela tivesse as mãos suadas. Éramos felizes, muito felizes.
Há outro episódio que não consigo esquecer. Certa vez, no cinema, Jane fez uma coisa que me deixou parvo. O filme estava a começar e, de súbito, senti a sua mão afagar-me o pescoço. Foi uma coisa muito engraçada. Ela ainda era muito nova, e as raparigas que afagam o pescoço do parceiro têm, normalmente, vinte e cinco ou trinta anos e fazem-no quase sempre aos maridos ou aos filhos. Às vezes eu faço isso à minha irmã Phoebe. Mas quando uma rapariga é muito nova e já sabe afagar-nos, é uma coisa que nos deixa parvos.
Era nisso que eu pensava ali sentado no vestíbulo do hotel. A Jane. Mas quando penso que ela esteve no carro do Ed Banky com o Stradlater fico meio louco. Não acredito que ele tenha conseguido qualquer coisa, mas, mesmo assim, fico meio louco. Nem gosto de falar no assunto, se querem saber a verdade.
Já não havia vivalma no vestíbulo. Até as galdérias tinham ido dormir. E súbitamente senti necessidade de me escapulir. Era um sítio muito triste. Mas não estava fatigado.
Subi ao meu quarto e vesti o sobretudo. Dei uma espreitadela para ver se os pervertidos ainda estavam a dar espectáculo, mas todas as luzes estavam apagadas. Desci novamente o elevador, apanhei um táxi e mandei seguir para o Ernie. O Ernie é um cabaré em Greenwich Village que o meu irmão D. B. costumava frequentar antes de ir para Hollywood. Costumava levar-me lá uma vez por outra. Ernie, o patrão, é um negro corpulento, que toca piano. É um snob que só se digna conversar com as celebridades e com a gente graúda, mas sabe tocar piano. É tão bom que até chateia. Não sei muito bem o que isto quer dizer, mas é assim mesmo. Gosto de o ouvir tocar, mas às vezes sinto ganas de lhe espatifar o piano. Talvez porque quando ele toca sinto que é o género de tipo que só se digna falar com celebridades.
O táxi era um carro velho e cheirava mal. Apanho sempre táxis muito velhos quando vou a qualquer sítio à noite. As ruas estavam desertas e tristes, embora fosse a noite de sábado. Quase não se via ninguém nas ruas. Por vezes, lá aparecia um tipo com uma rapariga, muito agarrados, ou um grupo de beberrões com as suas companheiras, a rirem-se estrondosamente de qualquer coisa que certamente não tinha graça nenhuma. Nova Iorque é terrível quando alguém se ri em plena rua, à noite. Pode-se ouvir algumas milhas em redor. Ainda nos faz sentir mais sós e tristes. Oh, como eu desejava estar em casa a conversar com a Phoebe ! Mas, passados alguns minutos, comecei a cavaquear com o motorista. Chamava-se Horwitz. Era muito melhor que o outro, o que me trouxera da estação. Pensei que ele talvez soubesse alguma coisa acerca dos patos.
- Eh! Oiça - disse eu. - Costuma passar pela lagoa do Central Park? Lá em baixo, ao sul?
- Pela quê?
- Pela lagoa. Aquele lago pequeno onde há patos. Conhece, com certeza.
- Sim. E depois?
- Bem. Conhece os patos que andam por lá na Primavera? Sabe, por acaso, onde os metem no Inverno? - Onde os metem? A quem?
- Aos patos. Sabe onde os metem? Isto é, levam-nos num camião para o jardim zoológico, ou eles fogem para outro lado, para o sul, ou quê?
Horwitz voltou-se para trás e olhou-me espantado. Era um tipo impaciente, mas não era mau homem.
-E como havia de saber? - perguntou ele. - Como havia de saber uma coisa tão estúpida?
- Bem, não se chateie - disse eu. O tipo estava mal-humorado.
- Mas quem é que se chateou?
Pus termo à conversa, para evitar discussões. Mas ele parecia interessado. Voltou-se para trás e disse
- Os peixes não saem de lá. Ficam ali mesmo, no lago. - Os peixes são diferentes. Estou a referir-me aos patos.
- E qual é a diferença? Não há qualquer diferença disse Horwitz. Sempre que falava parecia chateado. - Caramba! O Inverno é muito mais duro para os peixes que para os patos. Caramba! É uma coisa que se vê logo. Nada disse durante uns momentos. Depois acrescentei: - Muito bem. E que é que fazem os peixes quando o lago está todo gelado e as pessoas andam a patinar? Horwitz voltou-se novamente para mim.
- Que é que fazem? - berrou. - Ora essa! Ficam no sítio onde estão.
- Mas é impossível. Não podem deixar de sentir o gelo. - Mas quem é que sente o gelo? Não sentem gelo nenhum - disse Horwitz. Estava tão excitado que eu cheguei a temer que atirasse com o carro contra uma parede.
- Vivem no gelo. São assim, caramba! Ficam gelados durante todo o Inverno.
- Ah, sim? Então, que é que comem? Se ficam gelados, não podem nadar e, por conseguinte, não comem.
- Os seus corpos, caramba! E então? Que é que isso tem de especial? Os seus corpos comem os limos que estão no gelo. Têm sempre os poros abertos. São assim, caramba! Está a perceber? - disse ele, voltando-se novamente para trás.
- Oh - respondi. Interrompi a conversa porque o homem certamente acabaria por espatifar o carro. Além disso, era muito susceptível e, não me dava prazer algum discutir com ele. - Quer beber um copo comigo? - perguntei-lhe. Não me respondeu. Pareceu-me que estava a pensar. Repeti a pergunta. Era um tipo divertido.
- Não tenho tempo para bebidas, rapaz! - disse ele. - Mas que idade tem? Não acha que era melhor ir para casa?
- Não estou cansado.
Quando parámos em frente do Ernie e paguei a corrida, Horwitz voltou novamente ao assunto dos peixes. - Oiça! - disse ele. - Se você fosse peixe, a Natureza cuidava de si, não é verdade? É, ou não é ? Certamente não julga que todos os peixes morrem quando chega o Inverno, hem?
- Não, mas...
- Pois está claro que não morrem - disse Horwitz, embraiando o carro. Caramba! Que tipo tão susceptível! Sempre que abria a boca parecia chateado.
Embora já fosse tarde, o Ernie estava a transbordar. Tudo estudantada. Quase todas as escolas começam as férias do Natal mais cedo que as escolas onde tenho estudado. A casa estava tão cheia que não consegui despir a gabardina. Mas havia uma certa tranquilidade porque o Ernie estava a tocar piano. Caramba! Era qualquer coisa "sagrada" quando ele se sentava ao piano. Não me digam que um tipo pode ser assim tão bom! Três casais aguardavam mesa e estavam muito excitados, em bicos dos pés, só para conseguirem ver o Ernie. Tinha um grande espelho em frente do piano, no qual incidia uma luz forte, de modo que todos pudessem ver-lhe o rosto enquanto tocava. E também podíamos ver os dedos, quase tão grandes como o rosto dele. Não me recordo da canção que ele executava, mas, fosse qual fosse, era uma coisa estupenda. Ernie insistia nos sons agudos e fazia uns truques que me deixavam perplexo. Mas deviam ter ouvido a multidão quando ele terminou. Ficariam tontos como eu. Estavam loucos! Eram exactamente os mesmos ranhosos que quando vão ao cinema se riem estupidamente com coisas que não têm graça. Juro-vos por Deus que, se eu fosse pianista ou actor, ou qualquer outra coisa, e estes tipos julgassem que eu era terrível, ficaria danado. Nem sequer desejaria que me aplaudissem. As pessoas aplaudem sempre o que nada vale. Se fosse pianista, só tocaria na retrete. Mas quando ele acabou e os papalvos quase estoiravam, Ernie fez uma reverência humilde, muito sabuja. Como, se além de ser pianista, fosse também um tipo muito humilde. O tipo era um cretino, pois não deixava de ser muito snob. É curioso tive pena dele. Acho que ele já não sabia se tocava bem ou mal. Mas não tinha culpa. A culpa era daqueles idiotas que aclamariam um cretino qualquer se lhes dessem oportunidade. Senti-me deprimido e triste e estive prestes a regressar ao hotel, mas ainda era muito cedo e não estava disposto a ficar novamente só. Finalmente, arranjaram-me uma mesa junto à parede, atrás de uma coluna, donde nada se via. Era uma dessas mesinhas insignificantes para as quais somos obrigados a trepar se os cavalheiros da mesa contígua não se levantam para nos dar passagem -e os idiotas, é claro, não se levantaram. Pedi whisky e soda, que é a minha bebida preferida a seguir aos cremes gelados. Mesmo que tivesse seis anos de idade, servir-me-iam bebidas alcoólicas naquele bar. A casa era muito escura e, além disso, ninguém se interessava com a idade do parceiro.
Estava rodeado de idiotas. Não estou a brincar. A mesa contígua à minha era ocupada por um tipo feio e por uma rapariga também feia. Deviam ter a minha idade, ou talvez fossem um pouco mais velhos. Tinham uma certa piada. Podia ver-se que faziam esforços para não beberem a bebida obrigatória demasiadamente depressa. Como não tinha nada que fazer, comecei a escutar o que diziam. Ele falava de um jogo de futebol profissional que vira naquela tarde. Relatou todas as jogadas pormenorizadamente-a sério, acreditem. Era o maior chato que já ouvi em toda a minha vida. Podia-se ver que a rapariga não estava interessada no jogo, mas, como era ainda mais estúpida que ele, pressupus que prestava muita atenção à conversa. As raparigas feias sofrem estas coisas. Por vezes tenho pena delas, e nem consigo olhar para elas quando estão com um idiota que lhes impinge um jogo de futebol inteirinho. Mas à minha direita a conversa ainda era pior. À minha direita estava um tipo com aspecto de quem estudava. em Yale, com umas calças cinzentas e camisola de lã. Estes tipos são todos iguais. O meu pai queria que eu fosse para Yale, ou para Princeton, mas eu jurei que não havia de pôr lá os pés. Ora este tipo de Yale estava com uma rapariga estupenda. Caramba! Que rica miúda. Mas deviam ouvir a conversa dos dois. Em primeiro lugar, estavam meio bêbados. O rapaz estava a mçxer-lhe nas pernas por baixo da mesa e, ao mesmo tempo, contava-lhe uma história de um companheiro de dormitório que engolira um tubo inteiro de aspirina para se suicidar. A rapariga repetia: "Oh, que horror!... Por favor, querido, não faças isso. Aqui não." Imaginem isto! Apalpar uma miúda e contar-lhe, ao mesmo tempo, uma história de suicidas! Que malta!
Comecei a sentir-me mal, ali sentado, sem companhia. Só me restava fumar e beber. Tratei de pedir ao criado que perguntasse ao Ernie se me queria fazer companhia. Disse-lhe que era irmão do D. B. Mas o criado não deu o recado. Nunca dão os recados.
Subitamente uma rapariga apareceu diante de mim e disse:
-Holden Caulfield!-Chamava-se Lilian Simmons. O meu irmão D. B. costumava andar com ela. - Olá - disse eu. Tentei levantar-me, mas era impossível. Estava com um oficial da Marinha de Guerra que parecia ter chumbo no rabo.
- Oh, que surpresa! - exclamou ela. É claro que não passava de uma cretina. - Como vai o teu irmão? - Era isso que ela queria saber.
- Está óptimo. Está em Hollywood.
- Em Hollywood ! Oh, que maravilha! E que faz ele? - Não sei. Escreve - respondi.
Não me apetecia discutir o assunto. Via-se que ela achava que o D. B. devia ter um belo emprego. É o que toda a gente julga. E são quase sempre pessoas que nunca leram as novelas do D. B. É uma coisa que me enfurece! - Que surpresa! - repetiu Lillian. Depois apresentou-me ao oficial. Era o comandante Blop, ou coisa parecida. Pelo menos, era um desses tipos que julgam que passam por maricas se não nos quebram os ossos quando lhes apertamos a mão. Oh, meu Deus, é uma coisa que eu odeio! - Estás só, querido? - perguntou Lillian. Estava a bloquear o tráfego na coxia. Mas ela devia gostar de bloquear o tráfego. O criado aguardava que ela se afastasse, mas Lillian nem sequer reparava. Tinha piada. Dir-se-ia que o criado não gostava dela, que o próprio oficial da Marinha não gostava dela, embora a acompanhasse. E eu também não gostava dela. Ninguém gostava dela. Em certos aspectos, era uma criatura que metia dó. - Não trouxeste a tua namorada, querido? - perguntou ela. Eu levantara-me, mas ela nem me pediu que me sentasse. Era capaz de me obrigar a ficar ali durante horas seguidas.
- Não achas que é um rapaz simpático? - disse ela ao oficial da Marinha. - Holden, estás a ficar cada vez mais simpático. - O oficial da Marinha pediu-lhe que saísse dali. Que estava a bloquear o caminho, etc. - Holden, anda para a nossa mesadisse Lillian - Traz o teu copo.
- Ia sair já - respondi. - Tenho um encontro marcado. - Suspeitei de que ela quisesse meter-se comigo. Hei-de contar tudo ao D. B.
- Bem, então adeus, amor. Diz ao teu irmão que o odeio - disse ela.
Depois afastou-se. O oficial da Marinha e eu dissemos um ao outro: "Muito prazer." Que coisa horrível! Estamos sempre a dizer "muito prazer" a pessoas que nem sequer conhecemos. Mas para viver é preciso proceder assim.
Depois de lhe ter dito que tinha um encontro marcado, não tive outro remédio senão raspar-me. É claro que, noutras circunstâncias, ainda ficaria uns minutos até ouvir o Ernie tocar coisas decentes. Mas certamente que não caía em ir para a mesa da Lillian chatear-me a valer. Saí, mas custou-me muito. Há pessoas que andam sempre a estragar a vida do parceiro.
REGRESSEI a pé ao hotel. Quarenta quarteirões. Só porque me apetecia caminhar, e talvez porque já não tinha disposição para entrar noutro táxi. Às vezes fatigo-me de andar de táxi, tal como me fatigo de andar de elevador. Subitamente sinto necessidade de caminhar. Quando era garoto subia sempre as escadas até minha casa. Doze andares.
Parecia que não nevara. já não havia neve nas ruas nem nos passeios. Mas estava um frio de morte, e eu enfiei o boné na cabeça. Quem me dera ter descoberto o ladrão das luvas, lá em Pencey, pois tinha as mãos enregeladas. É claro que nada conseguiria, mesmo que o tivesse descoberto. Sou um tipo cobardolas. Ando sempre a fingir, mas, no fim de contas, sou um cobardolas. Se eu tivesse descoberto quem me roubara as luvas, teria ido ao quarto do ladrão e dir-lhe-ia: "Bom. E se restituísses as luvas?" O tipo que as roubara diria, muito inocentemente: "Que luvas?" Eu começaria a procurá-las e encontrá-las-ia na mala do tipo, escondidas dentro das galochas, por exemplo. "Tenho de supor que estas luvas são tuas?" O tipo olhar-me-ia com espanto e inocência e exclamava: "Nunca vi essas luvas. Se são tuas, podes levá-las." Eu ficaria ali um minuto ou dois, com as luvas bem apertadas na mão, a pensar que devia quebrar-lhe os queixos. Mas não teria coragem. Ficaria ali a fingir de duro. Dir-lhe-ia qualquer coisa desagradável em vez de lhe quebrar os queixos. Mas, se lhe dissesse coisas desagradáveis, o tipo viria direito a mim e diria: "Ouve, Caulfield! Estás a chamar-me ladrão?" Então, em vez de dizer: "É verdade, és um ladrão", diria provàvelmente: "Tudo o que sei é que as minhas luvas estavam escondidas dentro das tuas galochas." O tipo ficava logo a ver que eu era incapaz de o esmurrar e acrescentaria: "Ouve. Vamos tirar isto a limpo. Estás a chamar-me ladrão?" E eu seria obrigado a afirmar: "Ninguém te chamou ladrão. Tudo o que sei é que as minhas luvas estavam escondidas nas tuas galochas." E assim estaríamos a discutir durante horas e horas. Finalmente sairia do quarto sem lhe ter dado um único murro. Provàvelmente iria para a retrete fumar um cigarro e fazer cara de mau ao espelho. Era nisso que eu pensava enquanto me dirigia para o hotel. Ser cobarde é uma coisa reles. Talvez eu não seja muito cobarde. Não sei. Talvez eu em parte seja cobarde e em parte não dê grande importância a um par de luvas. Nunca me preocupo quando perco qualquer coisa. A minha mãe ficava furiosa quando eu era garoto. Há tipos que passam dias inteiros em busca de qualquer coisa. Mas eu nunca me importei com as coisas que perdi. Talvez por isso eu seja meio cobarde. É uma coisa sem perdão. Não podemos ser cobardes. Se pretendemos esmurrar alguém, temos de o esmurrar. Mas eu também não tenho jeito para isso. Seria mais capaz de atirar um tipo pela janela fora ou de decepar-lhe a cabeça com um machado do que esmurrar-lhe os queixos. Odeio lutas de punhos. Não me importo que me magoem-embora não goste, é claro-, mas o que mais me amedronta num combate de punhos é o rosto do parceiro. Não posso olhar para o rosto do parceiro. já não seria mau se ficássemos meio cegos. É uma cobardia com piada, mas não deixa de ser cobardia. Não estou a brincar, garanto-lhes.
Quanto mais pensava nas luvas e na minha cobardia, mais triste me sentia, até que resolvi parar em qualquer lado e beber um whisky. Só tomara três copos no Ernie e nem sequer terminara o terceiro. Uma das minhas qualidades é a grande capacidade para a bebida. Consigo estar uma noite inteira a beber sem me embebedar. Certa vez, em Whooton, eu e um tipo chamado Raymond Goldfarb comprámos um litro de whisky e bebemo-lo na capela, onde ninguém nos surpreenderia. Ele ficou bêbado como um cacho, mas eu fiquei na mesma. Só me sentia bem disposto. Antes de ir para a cama vomitei, mas fui eu próprio que forcei os vómitos.
Antes de ir para o hotel resolvi entrar num cabaré malcheiroso, mas logo à entrada esbarrei com dois imbecis, a cair de bêbados, que queriam saber o caminho para o metropolitano. Um deles, com aspecto de cubano, deitava-me um hálito horrível no rosto enquanto eu lhe dava indicações. Acabei por não entrar no cabaré. Fui para o hotel.
O vestíbulo estava vazio. Cheirava a tabaco que tresandava. Não tinha sono, mas sentia-me emporcalhado e deprimido. "Quem me dera estar morto", pensei.
Depois, subitamente, meti-me num grande sarilho. Logo que entrei no elevador, o groom perguntou-me - Está interessado numa pândega, amigo? Ou já é muito tarde?
- O quê? - perguntei eu. Não percebera do que se tratava.
- Está interessado numa pândega?
- Eu? - disse. A resposta fora evasiva, mas fico sempre embaraçado quando me perguntam estas coisas.
- Que idade tem, amigo? - perguntou o groom. - Porquê? - disse eu. - Vinte e dois anos.
- Hum, hum. Bem! E então? Está interessado? Cinco dólares por uma hora. Quinze dólares pela noite inteira.Olhou para o relógio. - Até ao meio-dia. Cinco dólares por uma hora e quinze pela noite inteira.
- Okay - disse eu. Era contra os meus princípios, mas sentia-me muito triste e nem pensei duas vezes. Quando estou triste nunca penso.
- Okay o quê? Uma hora ou a noite inteira? Tenho de saber.
- Só uma hora.
- Okay. Em que quarto está?
Olhei a chapa vermelha donde pendia a chave. - Vinte e dois - disse eu. Já estava arrependido, mas era tarde para recuar.
- Okay. Vou mandar-lhe uma miúda. Abriu a porta e eu saí do elevador.
- Eh! E ela? Que tal é? - perguntei-lhe. - Não quero velhas.
- Não há velhas, amigo. Não se preocupe. - A quem é que pago?
- A ela - disse o groom. - Vamos, amigo. - E fechou-me a porta na cara.
Fui para o quarto e tentei pentear-me, mas é impossível domar um cabelo como o meu. Depois verifiquei se o meu hálito cheirava a tabaco ou a álcool. É fácil: coloca-se a mão em frente da boca e canaliza-se o hálito para o nariz. Não tinha mau hálito, mas, mesmo assim, lavei a boca e os dentes. Depois vesti outra camisa lavada. Sabia perfeitamente que não era necessário embonecar-me só para receber uma prostituta, mas, pelo menos, ocupava o tempo. Estava um pouco nervoso. Sentia um certo desejo, mas estava um pouco nervoso. Se querem que vos diga a verdade, aqui têm: ainda sou virgem. Sou mesmo. Tive muitas oportunidades, mas nunca as aproveitei. Acontece sempre
qualquer coisa. Por exemplo, se estou em casa de uma rapariga, os pais dela chegam precisamente no momento menos oportuno, ou então receio que cheguem na pior altura. Ou, se estou sentado nas traseiras de um carro, há sempre outra rapariga no banco da frente, desejosa de saber tudo quanto se passa cá atrás. Refiro-me àquele género de raparigas que estão sempre a voltar-se para ver o que se passa. Acontece qualquer coisa de cada vez que tento. Lembro-me particularmente de um certo episódio. Acontecera algo inesperado, já não me recordo bem. Quando estamos quase a conseguir qualquer coisa de uma rapariga que não é prostituta, lá começa ela a dizer que não, que paremos, etc. E eu paro. A maior parte dos rapazes continua. Mas eu paro. E, para cúmulo do azar, não sei se elas querem mesmo que eu pare, ou se, pelo contrário, estão apenas assustadas. Ou se querem dizer com isso que, se continuarmos, a culpa é toda nossa. Pois eu paro. Fico com pena delas. É que as raparigas são parvas. Depois de uns beijos, perdem á cabeça. Quando uma rapariga está apaixonada, perde todo o juízo. Não sei. Pedem-me que pare, e eu paro. Quando as levo a casa, mais tarde, vejo que fui estúpido.
Ora enquanto vestia a camisa compreendi que era chegada a grande ocasião. Como ela era uma prostituta, até podia arranjar alguma prática para o caso de um dia vir a casar-me. Era um dos problemas que me afligiam. Certa vez li um livro, quando andava em Whooton, acerca de um tipo muito suave, muito sensual. Monsieur Blanchard era o nome dele. O livro era asqueroso, mas o tal Blanchard era um tipo formidável. Tinha um grande château na Riviera, na Europa, e matava o tempo a fustigar mulheres com uma bengala. Era um bandido, mas as mulheres gostavam dele. Em certa altura dizia que um corpo de mulher é como um violino e que é preciso ser-se um grande músico para o saber tocar. Era um livro estúpido, mas nunca mais esqueci aquela coisa do violino. Era por isso, que queria obter alguma prática para o caso de vir a casar-me.
Caulfield e o seu violino mágico! Caramba! É uma cretinice, é claro. Mas não me importava de ser perito no assunto. Se querem saber a verdade, quando estou com uma rapariga perco muito tempo só a tentar descobrir o que pretendo. Tomemos, por exemplo, o caso desta rapariga com quem não consegui os meus intentos. Perdi perto de uma hora só para lhe tirar o soutien. Quando consegui tirá-lo, ela estava capaz de me cuspir em cima.
Comecei a andar de cá para lá no quarto, aguardando a chegada da prostituta. Só desejava que ela tivesse bom aspecto, embora, em si, o pormenor não me interessasse muito. Finalmente bateram à porta e fui abri-Ia. Como a mala estava no meio da casa, cai e ia quebrando os queixos. Ando sempre a tropeçar em malas.
Quando abri a porta, lá estava a prostituta. Vestia um casaco de pólo e não trazia chapéu. Era loura, mas via-se que pintava o cabelo. Não era velha.
- Como está? - perguntei eu, muito suave.
- É você o tipo que falou com o Maurice? - perguntou ela. Não parecia muito amistosa.
- Quem? O groom do elevador? - Sim - disse ela.
- Sim, sou eu. Entre, se faz favor. Sentia-me cada vez mais nervoso.
Ela entrou, despiu o casaco e atirou-o sobre a cama. Trazia um vestido verde. Depois sentou-se na cadeira que estava em frente da secretária e começou a abanar uma perna para cima e para baixo.
Para prostituta, também estava muito nervosa. Tinha talvez a minha idade. Sentei-me noutra cadeira, junto dela, e ofereci-lhe um cigarro.
- Não fumo - disse ela. Tinha uma voz fina e macia. Quase não a ouvi. Nunca agradeceu quando lhe ofereci qualquer coisa. Possivelmente não sabia agradecer.
- Permita-me que me apresente. Chamo-me Jim Steele - disse eu.
- Tem aí um relógio? - perguntou. Naturalmente o meu nome não a interessava. - Eh? Que idade tem? - Eu? Vinte e dois?
- Quem? Você?
As prostitutas não costumam falar assim. Uma prostituta a valer diria logo: "Tens mas é tanas !", ou: "Deixa-te de tretas!"
- E que idade tem você? - perguntei-lhe.
- Já tenho idade para ter juízo - respondeu ela. Depois levantou-se e começou a despir o vestido.
Senti umas coisas estranhas. Foi uma espécie de choque. Normalmente as pessoas ficam muito excitadas quando vêem uma mulher a despir-se, mas eu não fiquei. Sentia tudo menos excitação. Muito mais deprimido que excitado.
- Tem aí um relógio? - perguntou ela. - Eu? Não, não tenho.
Caramba, estava a sentir-me mal.
- Como é que se chama? - perguntei. Estava agora apenas com uma combinação vermelha. Que situação tão embaraçosa!
- Chamo-me Sunny. Vamos a isto, hem?
- Não quer conversar? - perguntei-lhe. Era um convite muito infantil, mas eu sentia-me muito estranho. - Está com muita pressa?
Olhou-me como se eu fosse louco.
- Mas de que diabo quer você falar? - disse ela. - Não sei. De nada em especial. Pensei que você quisesse conversar.
Sentou-se novamente na cadeira. Não estava a gostar da cena, via-se logo. Começou novamente a abanar a perna. Caramba! Era nervosa.
- Quer um cigarro? - perguntei-lhe. Esquecera-me de que não fumava.
- Não fumo. Oiça! Se quer falar, fale, porque eu tenho mais que fazer.
Não me recordei de qualquer assunto para conversar. Pensei em perguntar-lhe como é que ela chegara àquilo, mas tive receio de que ela não me respondesse.
- É de Nova Iorque, não é verdade? - perguntei eu por fim.
- De Hollywood - respondeu ela. Depois levantou-se, agarrou o vestido e perguntou-me: - Tem um cabide? Não quero ficar com o vestido amarrotado.
- Com certeza - disse eu. Senti-me muito contente por poder levantar-me. Meti o vestido no guarda-fato. É curioso! Senti-me triste quando o pendurei num cabide. Pensei que ela fora comprá-lo a uma loja onde ninguém sabia que ela era prostituta. Os empregados do balcão julgaram apenas que ela era uma rapariga como outra qualquer. Senti-me triste sem saber porquê.
Sentei-me novamente e tentei prosseguir a conversação. -Trabalha todas as noites ?-perguntei-lhe. A minha voz soava a falso.
- Sim - disse ela. Depois começou a andar pelo quarto. Agarrou na ementa que estava sobre a mesa e leu-a. - E que faz durante o dia?
Ela encolheu os ombros numa evasiva. Era muito magra. - Durmo. Vou ao cinema... - Pôs a ementa sobre a secretária e olhou para mim. - Vamos, hem! Não tenho... - Oiça - disse eu, - Hoje não me sinto muito bem. Tive uma noite horrível. Palavra de honra que não estou a mentir. Pago-lhe o que prometi, mas, se não se importa, não vamos para a cama. Importa-se?
O problema fundamental era não me apetecer. Sentia=me mais deprimido que sensual. 'Ela era deprimente. E depois havia o vestido verde pendurado no guarda-fato.
E, alem disso, não me parece que seja capaz de me deitar com uma rapariga que passa o dia inteiro estupidamente sentada num cinema.
Dirigiu-se para mim, com um sorriso a bailar-lhe nos lábios, como se não tivesse acreditado no que eu dissera. - Mas que raio se passa? - perguntou ela.
- Não se passa nada - disse eu. Caramba! Estava nervoso! - É que fiz uma operação há pouco tempo. - Ah, sim? Onde?
- Ao clavicórdio.
- O quê? Que é isso?
- O clavicórdio? - disse eu. - Bem. É na colunavertebral. Isto é, no fundo da coluna vertebral.
- Ah, sim? - disse ela. - Que coisa! - Depois sentou-se novamente, mas no meu colo.
Sentia-me cada vez mais nervoso. - Ainda estou convalescente - disse-lhe. - Parece-se com um tipo do cinema. Você sabe quem é. Como é que ele se chama?
- Não sei - respondi-lhe. Não havia meio de se levantar do meu colo!
- Sabe, pois. Entrou num filme com Melvin Douglas. O que fazia de irmão do Melvin? O que caia do barco? Sabe, pois.
- Não sei, não. Nunca vou ao cinema.
Depois ela começou a querer excitar-me, mas com uma certa violência.
- Acabe com isso, sim? - pedi-lhe. - Já lhe disse que não pode ser. Fiz uma operação há pouco tempo. Mas ela não se levantou. Olhou-me com frieza e disse
- Oiça. Eu estava a dormir quando o estúpido do Maurice me acordou. Se acha que eu...
- Mas eu pago-lhe na mesma. Tenho bastante dinheiro. O que estou é um pouco fraco...
- Então porque é que disse ao estúpido do Maurice que queria uma rapariga? Se tinha feito uma operação e tudo ? Para quê ?
- Sentia-me um pouco melhor. Mas fui prematuro nos meus cálculos. Não estou a brincar. Desculpe. Se se levantar um segundo que seja, vou ali buscar a carteira. Estava muito chateada, mas levantou-se, e eu fui buscar a minha carteira. Tirei uma nota de cinco dólares e estendi-lha.
- Muito obrigado - disse eu.
- Isso é cinco dólares. São dez dólares!
Ela estava a salientar-se. Sempre temera que me acontecesse uma coisa destas, e acontecia mesmo.
- O Maurice disse que eram cinco! Disse que eram cinco dólares por uma hora e quinze pela noite inteira!
- Dez por uma hora.
- Ele disse cinco. Desculpe-me, mas é tudo quanto lhe posso dar.
Ela encolheu os ombros como já fizera anteriormente e depois disse, com muita frieza:
- Importa-se de me dar o meu casaco? Ou é muita maçada? - Era uma rapariga esquisita. Mesmo com aquela voz fraca, conseguia assustar-me. Se fosse uma prostituta velha, com o rosto coberto de pó de arroz, meteria menos respeito.
Entreguei-lhe o casaco. Ela vestiu-o, agarrou na mala que pusera sobre a cama e disse:
- Até à vista, menino!
- Até à vista - disse eu. Nem sequer lhe agradeci. E fiz bem.
DEpois de a Sunny ter saído, sentei-me na cadeira e fumei um cigarro. Já nascera o Sol. Caranba! Sentia-me num estado miserável! Tão deprimido que nem podem imaginar. Sabem o que fiz? Comecei a falar em voz baixa com o Allie. Faço isso sempre que me sinto muito deprimido. Costumo dizer-lhe que vá para casa, agarre na bicicleta e venha ter comigo em frente da casa do Bobby Fallon.
Bobby Fallon vivia perto de nós, no Maine, há alguns anos, é claro. Aconteceu que certo dia eu e o Bobby íamos nas nossas bicicletas a caminho do lago Sedebego. Levá vamos uma merenda e as espingardas de pressão de ar. Éramos ainda muito miúdos e pensávamos que conseguiríamos caçar com espingardas de pressão de ar. O Allie ouviu-nos combinar os pormenores e disse que também ia, mas eu não deixei. Fiz-lhe ver que ele não passava de uma criança. Por isso, quando me sinto muito deprimido, costumo dizer-lhe: "Okay. Vai buscar a tua bicicleta e vem ter connosco em frente da casa do Bobby. Despacha-te." Não é que eu não costumasse levá-lo quando ia passear. Levava-o sempre. Mas nesse dia não me apeteceu. O Allie não ficou magoado-nunca ficava magoado-, mas quando me sinto muito deprimido penso sempre nesse episódio.
Finalmente despi-me e meti-me na cama. Tive vontade de rezar, mas não consegui. Nem sempre consigo rezar quando me apetece. Em primeiro lugar, porque sou uma
espécie de ateu. Gosto de Jesus, mas não me interesso pela Bíblia. Os discípulos, por exemplo! Se querem saber a verdade, só me chateiam. Foram estupendos quando Jesus morreu, mas enquanto Ele vivia não lhe serviram para nada. Deixaram-No perder-se. Gosto das outras coisas, mas dos discípulos não gosto. Para ser franco, depois de Jesus, a personagem da Bíblia de que eu mais gosto é daquele lunático que vivia nos túmulos e passava a vida a cortar-se com pedras. Gosto dez vezes mais desse pobre diabo que dos discípulos. Costumava discutir o assunto em Whooton com um tipo chamado Arthur Childs. Esse Childs era quacre e andava sempre a ler a Bíblia. Era um óptimo rapaz e eu gostava dele, mas não podíamos concordar com certas coisas, especialmente com o que ambos pensávamos dos discípulos. Dizia-me que se eu não gostava dos discípulos também não gostava de Jesus. Dizia isso porque Jesus tinha arranjado os discípulos, e, por conseguinte, devíamos gostar deles. Eu dizia-lhe que sabia muito bem que fora Jesus quem arranjara os discípulos, mas arranjara-os ao acaso. Com certeza que Ele não tinha tempo para pensar em toda a gente. E dizia-lhe que isto não era nenhuma blasfémia. Jesus não era culpado de não ter tempo. Certa vez perguntei ao Childs se pensava que Judas, o que traiu Jesus, tinha ido para o Inferno depois de se ter suicidado. Childs disse que sim, que fora para o Inferno. Ora é com isso que eu não posso concordar. Disse-lhe que era capaz de apostar mil dólares em como Jesus nunca o mandaria para o Inferno. E digo-vos que apostava mesmo, se tivesse os mil dólares. Acho que os outros discípulos eram capazes de mandar judas para o Inferno. Mas aposto que Jesus nunca o faria. O Childs dizia que o meu mal era, não ir à igreja. É claro que, em certo sentido, ele tinha razão. Nunca vou à ,igreja. Em primeiro lugar, os meus pais têm religiões diferentes e quase toda a gente na família é ateia. Para vos ser franco, não suporto padres. Os que eu conheci nas várias escolas por onde andei tinham umas vozes muito mansas, à S. José, quando começavam a pregar-nos grandes sermões. Oh, meu Deus, como odeio isso! Não consigo compreender porque é que não hão-de falar naturalmente! Por isso, quando falam, parecem-me ridículos.
Assim, quando me deitei, não consegui rezar. Logo que tentava, via a Sunny a falar comigo. Acabei por sentar-me na cama e comecei a fumar um cigarro. Mas o tabaco sabia-me mal. Devo ter fumado quase dois maços de cigarros desde que saí de Pencey.
Súbitamente bateram à porta. Esperei que se tivessem enganado, mas era mesmo na minha porta que batiam. Não sei porquê, mas descobri. Sou muito sensível a estas coisas.
- Quem é? - perguntei eu. Estava cheio de medo. Sou um grande cobarde, como já vos disse.
Bateram novamente. Com mais força.
Levantei-me, em pijama, e abri a porta. Nem sequer acendi a luz, porque já era dia. Vi imediatamente o groora, o Maurice, e a Sunny.
- Que se passa? Que desejam? - perguntei eu. Tremia como varas verdes.
- Pouca coisa - disse o Maurice. - Apenas cinco dólares. - Ele falava por ambos. A Sunny estava calada, mas com a boca aberta.
- Já lhe paguei. Dei-lhe cinco dólares. Pergunte-lhe - disse eu. Caramba! Continuava a tremer como varas verdes.
- São dez dólares, amigo. já lhe disse. Dez dólares por uma hora e quinze pela noite inteira. já lhe disse. - Não disse nada! Disse que eram cinco dólares por uma hora e quinze pela noite inteira. Ouvi perfeitamente. - Abra a porta, amigo.
- Para quê? - perguntei. Meu Deus! O coração quase que saltava dentro do meu peito! Quem me dera que, pelo menos, estivesse vestido! É terrível estar de pijama numa situação destas.
- Vamos, amigo - disse Maurice. Depois deu-me um encontrão. Ia caindo, porque o homem era forte. Ele e a Sunny entraram no quarto. Pareciam os donos do hotel.
A Sunny sentou-se no parapeito da janela. O Maurice sentou-se numa cadeira e desapertou o colarinho. Usava ainda o uniforme de groom. Caramba! Eu estava nervosíssimo.
- Vamos a isto, amigo. Tenho de voltar para o serviço! - já lhe disse dez vezes que não lhe devo um único centavo. Dei-lhe cinco...
- Cale a boca e deixe ver a massa.
- E porque havia de pagar outros cinco dólares?disse eu. Continuava a tremer. - Vocês estão a tentar levar-me à certa.
O Maurice desabotoou completamente o uniforme. Por baixo apenas tinha um colarinho sebento, mas não usava camisa. Tinha o estômago coberto de pêlos.
- Ninguém está a tentar levá-lo à certa - disse ele. - Passe para cá a massa.
- Não.
Quando ouviu isto, levantou-se e veio direito a mim. Parecia ou muito fatigado, ou muito aborrecido. Meu Deus, fiquei sem pinga de sangue. Senti os braços tolhidos. Mas o pior era estar em pijama.
- Vamos, amigo - disse ele.
Estava mesmo em frente de mim, mas só sabia dizer: "Vamos, amigo." Era um ranhoso.
- Não.
- Vamos a isto. Não me obrigue a chegar-lhe a roupa ao pêlo. Olhe que eu não quero, mas parece-me que só assim é que vai - insistiu ele. - Deve-me cinco dólares.
- Não lhe devo nada - disse eu. - Se me bater, desato a berrar. Hei-de acordar toda a gente no hotel. Polícia e tudo.
Continuava a tremer como varas verdes.
- Então berre! Vamos! Berre! - ameaçou o Maurice.Quer que os seus pais saibam que passou a noite com uma gaja? Um menino da sua classe, como você?
O malandro era muito esperto.
- Ponha-se a andar. Se tivesse dito dez dólares, então estava bem. Mas eu ouvi...
Empurrara-me contra a porta. Estava pràticamente em cima de mim.
- Saia daqui. Saia do meu quarto! - pedi eu.
Ainda sentia os braços paralisados. Meu Deus, que cobardia!
Então Sunny falou pela primeira vez
- Eh, Maurice ! Queres que eu lhe tire a carteira?perguntou ela.
- Vamos, tira-lha.
- Largue a carteira imediatamente.
- Já cá cantam - disse a Sunny. Mostrava-me cinco dólares. - Está a ver? Só lhe tirei cinco dólares. Não sou nenhuma ladra!
Súbitamente comecei a chorar. Teria dado tudo para não chorar, mas não resisti.
- Pois não. Não são ladrões - disse eu, - mas estão a roubar-me cinco dólares.
- Cale a boca - gritou o Maurice, dando-me um encontrão.
- Deixa-o em paz - disse a Sunny. - Eh, vamos embora! Já temos o que queríamos. Vamos embora.
- Já vou - disse o Maurice. Mas continuou a segurar-me.
- Vamos, Maurice. Deixa-o em paz.
- E quem é que o está a magoar? - perguntou ele, muito inocente. Depois bateu de rijo com os nós dos dedos no meu pijama. Não vos digo onde foi que ele bateu, mas doeu-me a valer. Disse-lhe que ele era um ranhoso, um sujo.
- Que é que eu sou? - perguntou ele. Pôs a mão atrás da orelha, como se fosse surdo.- Que é que eu sou? Ainda chorava, cheio de nervosismo.
- És um ranhoso - disse eu. - És um ranhoso estúpido e daqui a dois anos hás-de andar na rua a pedir esmola, cheio de trampa e...
Aplicou-me um murro. Nem sequer tentei esquivar-me. Tudo o que senti foi uma imensa explosão no estômago. Não desmaiei, porque me recordo de os ter visto sair e fechar a porta. Fiquei ali, estendido no chão, como acontecera quando lutara com o Stradlater. Mas desta vez julguei que ia morrer. Julguei que estava a afogar-me. Não conseguia respirar. Quando, finalmente, consegui levantar-me, tive de ir para a casa de banho, dobrado em dois, a segurar o estômago.
Mas sou doido, com certeza. Quando ia a meio caminho da casa de banho, comecei a fingir que tinha uma bala metida no corpo. O Maurice atingira-me com um tiro.
E agora ali estava eu, a tentar alcançar a casa de banho para beber um trago de whisky que me ajudasse a reagir. Já me antevia, vestido dos pés à cabeça, com uma automática no bolso das calças. Desceria as escadas, em vez de utilizar o elevador. Teria de me amparar no corrimão e, de tempos a tempos, o sangue aflorar-me-ia à boca. Desceria uns andares-sempre a segurar as tripas, a jorrar sangue por todos os lados-e depois tocaria à campainha do elevador. Logo que o Maurice abrisse a porta, lá estaria eu, com a automática apontada. O maldito começaria a choramingar com voz aterrorizada, pedindo-me que não o matasse. Mas eu seria inflexível. Seis tiros direitinhos no estômago. Depois atiraria a pistola para dentro do elevador, após ter inutilizado todos os sinais comprometedores, impressões digitais e tudo. Voltaria para o quarto e telefonaria à Jane, a pedir-lhe que viesse socorrer-me. Estava já a vê-la, à Jane, acendendo-me um cigarro enquanto o sangue escorria das minhas tripas.
Maldito cinema! Estraga tudo! Não estou a brincar. Fiquei perto de uma hora na casa de banho a tomar um duche. Depois voltei para a cama. Custou-me muito a adormecer-não estava fatigado--, mas por fim consegui fechar os olhos. Mas apetecia-me suicidar-me. Saltar da janela. Provàvelmente ter-me-ia lançado da janela se soubesse que me cobririam com um lençol mal caísse na rua. Não gostaria que um bando de idiotas ficasse ali a contemplar-me quando soltasse o último suspiro.
Não dormi muito, pois eram dez horas quando acordei. Logo que acendi um cigarro, senti fome. A última vez que comera fora em Agerstown, com o Brossard
e o Ackley. E apenas dois "cachorros" quentes. Parecia-me que haviam passado mais de cinquenta anos. O telefone estava mesmo ao alcance da minha mão e pensei em pedir que me enviassem o pequeno almoço. Recordei-me, porém, do maldito Maurice. Se julgam que estava ansioso por voltar a vê-lo, então ainda são mais idiotas que eu. Deixei-me ficar na cama e fumei outro cigarro. Pensei em telefonar à Jane, para saber se já chegara a casa, mas não me sentia com disposição.
Sabem o que fiz? Telefonei à Sally Hayes. Sabia que ela já estava em casa por causa daquela carta que me escrevera. Não me apetecia muito falar com ela, mas conheço-a há bastante tempo. Como sou muito estúpido, cheguei a pensar que ela era muito inteligente. Só porque ela sabia muitas coisas de teatro, de literatura e de outras tretas.
Quando as pessoas sabem muito de literatura, levamos muito tempo até descobrirmos se são de facto estúpidas ou não. No caso de Sally, levei anos até descobrir. Talvez tivesse descoberto mais cedo se não andássemos sempre a beijarmo-nos. É que eu julgo que todas as raparigas que beijo são sempre inteligentes. É uma parvoíce, mas não há meio de me emendar.
Telefonei-lhe. Primeiro respondeu a criada. Depois o pai. Finalmente foi ela que atendeu.
- Sally? - perguntei.
- Sim! Quem fala? - disse ela. A pergunta era idiota, porque eu já dissera o meu nome ao pai dela.
- Holden Caulfield. Como estás, Sally? - Holden! Eu estou óptima. E tu? - Estou bem, obrigado. Ouve! E a escola? - Vai bem... o costume.
- Óptimo. Agora ouve. Estava a pensar se tu hoje estarias livre. É domingo, mas há sempre uma matinée. Espectáculos de beneficência. Queres ir?
- Oh, que bom. Estupendo!
Estupendo! Se há palavras que eu odeio, "estupendo" é uma delas. Súbitamente estive tentado a dizer-lhe que não contasse comigo. Mas às vezes também devemos tragar estas coisas. Uma palavra nada significa. Ela contou-me logo muitas coisas acerca de um tipo de Harvardcertamente um caloiro, embora ela não o dissesse-que estava a dar-lhe volta ao miolo.
Telefonava-lhe de noite e de dia. De noite e de dia! Fiquei varado. Depois fez-me confidências sobre um cadete de West Point que queria matar-se por causa dela. Que
tipa! Disse-lhe que se encontrasse comigo às duas horas, junto do relógio do Biltmore, e que não chegasse tarde porque o espectáculo começava às duas e meia. Chegava sempre tarde. Depois desliguei o telefone. Era uma chata, mas tinha um grande físico.
Depois de ter telefonado à Sally, levantei-me, vesti-me e fiz a mala. Antes de sair do quarto, espreitei pela janela, para ver se os pervertidos já tinham acordado, mas as cortinas ainda estavam cerradas. Possivelmente de manhã eram mais modestos. Depois fui investigar o elevador, mas não vi o Maurice em parte alguma. É claro que não o procurei.
Apanhei um táxi à porta do hotel, mas não tinha qualquer ideia do sítio para onde desejava seguir.
Era domingo e eu só poderia chegar a casa na quarta-feira ou, vá lá, na terça. Não tinha vontade de ir para outro hotel, onde possivelmente acabariam por me estoirar os miolos. Por isso disse ao motorista que me levasse à Grand Central Station. Era próximo do Biltmore, onde combinara encontrar-me com a Sally, e resolvi deixar as malas num daqueles cofres da estação. Depois iria tomar o pequeno almoço. Estava cheio de fome. No táxi, tirei a carteira e contei o dinheiro. Não me recordo exactamente de quanto me sobrava, mas não era nenhuma fortuna. Em dois dias gastara como um rei. Sou um autêntico perdulário. E quando não gasto o dinheiro, perco-o. Chego a esquecer-me de receber os trocos nos restaurantes, nos cabarés, etc. Os meus pais ficam furiosos, e têm razão. O meu pai é muito rico. Não sei quanto ganha-é assunto que nunca discutimos-, mas imagino que deve ser muito. É advogado. Esses tipos ganham muita massa. Além disso, está sempre a investir dinheiro em espectáculos na. Broadway. Perde tudo, quase sempre, e a minha mãe fica furiosa. Nunca mais foi saudável desde que o Allie morreu* É muito nervosa. É por isso que eu não gosto que ela saiba que reprovei.
Depois de ter depositado as malas na estação, entrei num pequeno bar e tomei o pequeno almoço. Foi uma refeição enorme - sumo de laranja, presunto com ovos, torradas e café. Normalmente só bebo sumo de laranja. Como pouco. É por isso que sou muito magro. Devia fazer uma dieta de gorduras, para ganhar peso, mas nunca me interessei pelo assunto. Quando ando por fora, apenas como uma sanduíche de queijo e bebo um copo de leite batido. Não é muito, mas o leite tem vitaminas. H. V. Caulfield. Holden Vitaminas Caulfield!
Enquanto comia os ovos, entraram duas freiras com umas grandes malas e sentaram-se junto de mim, ao balcão. Não sabiam que fazer das malas, e por isso eu ajudei-as.
Deviam estar à espera de comboio. As malas eram enormes, baratas. Não eram de cabedal autêntico. É uma coisa sem importância, mas não suporto as pessoas que usam malas baratas. É terrível dizê-lo, mas consigo odiar uma pessoa só porque usa malas baratas. Já se passou qualquer coisa relacionada com isso. Quando estudava em Elkton Hills, era meu companheiro de quarto um tal Dick Slagle, que tinha malas baratas. Costumava metê-las debaixo da cama, em vez de as colocar nas prateleiras, para que ninguém as visse junto das minhas. Fiquei muito impressionado e admiti a, hipótese de esconder as minhas malas, ou mesmo negociar com ele. As minhas malas eram de couro genuíno, ark Cross, e devem ter custado uma fortuna. Mas passóu-se uma coisa muito curiosa. Acabei por meter as minhas -malas debaixo da cama para que o Slagle não ficasse com um complexo de inferioridade. Mas no dia seguinte ele tirou-as e voltou a colocá-las na prateleira, à vista de toda a gente. Levei tempo até descobrir o motivo, mas acabei por saber que o Slagle queria fingir que as minhas malas eram dele. Era um tipo com piada. Estava sempre a chatear-me com as malas, a dizer que eram novas e burguesas. Utilizava muito esta palavra "burguês". Lera-a algures ou ouvira-a em qualquer parte. Tudo quanto eu tinha era burguês. Até a minha caneta. Estava sempre a pedir-ma, mas era burguesa. Só fomos colegas de quarto durante dois meses. Depois pedimos ambos que nos separassem. E é curioso! Senti-lhe a falta, porque ele era muito divertido. Não ficaria surpreendido se me dissessem que também ele sentira a minha falta. Ao princípio, quando me chamava burguês, via-se que estava a brincar, e eu não me incomodava. Mas depois já não era brincadeira. Cheguei à conclusão de que é difícil ter companheiros de quarto quando as nossas malas são muito boas. É claro que vocês acham que o outro tipo, se é inteligente, não se interessa pelas nossas malas e não quer saber se as dele são inferiores. Mas, embora inteligente, acaba por se interessar. Foi uma das razões que me levaram a ficar no quarto do Stradlater. Pelo menos, tinha malas tão boas como as minhas.
Mas cá estavam estas duas fulanas sentadas junto de mim. Tentei entabular conversa. A que estava à minha direita trazia um desses cestos que as freiras e os escuteiros costumam usar para os peditórios do Natal. Habitualmente param às esquinas, na Fifth Avenue, em frente dos grandes armazéns. Deixou cair o cesto e eu apanhei-o do chão. Perguntei-lhe se andava a pedir esmola para obras de caridade. Disse-me que não. Disse-me que não conseguira meter o cesto na mala. Tinha um belo sorriso e um nariz muito comprido, onde se encavalitavam uns óculos com aro de aço, mas, mesmo assim, o rosto era atraente.
-Pensei que, se andasse a fazer peditório - disse-lhe-, talvez eu pudesse contribuir. Mas, mesmo assim, pode guardar o dinheiro para quando fizer um peditório.
- Oh, muito agradecida - disse ela. A outra freira também olhou para mim. A outra lia um pequeno livro negro enquanto bebia o café. Parecia uma Bíblia mais
pequena. Apenas comiam torradas e bebiam uma chávena de café. Fiquei impressionado. Fico sempre impressionado quando estou a comer presunto com ovos e o parceiro do lado só come torradas.
Aceitaram dez dólares de esmola, mas perguntaram-me várias vezes se eu podia dar tanto dinheiro. Disse-lhes que tinha muito dinheiro, mas elas não acreditaram. Finalmente acabaram por aceitar a massa. Agradeceram-me tanto que eu fiquei embaraçado. Orientei a conversa para outros assuntos e perguntei-lhes para onde iam. Disseram-me que eram professoras e que tinham acabado de chegar de Chicago para leccionarem numa escola na Rua 186 ou 187, uma dessas ruas lá para cima. A que estava junto de mim, a dos óculos, disse-me que ensinava Inglês e que a outra ensinava História e Política Americana. Depois, como sou um malandro, comecei a magicar no que pensaria ela quando estivesse a ler certos livros ingleses. É claro que não me recordei apenas de livros com coisas sexuais, mas de livros com amantes e tudo. Por exemplo, Eustacia Vye em The Return of the Xátive, de Thomas Hardy. Não é um livro com coisas sexuais, mas, mesmo assim, que pensaria uma freira ao lê-lo? É claro que nada disse. Só disse que gostava muito de Inglês.
- Ah, sim? Oh, que bom! - disse a dos óculos, a que ensinava Inglês. - Que é que leu este ano? Gostaria de saber! - Era uma óptima criatura.
- Bem. Andámos às voltas com os Anglo-Saxões. Beowulf, Grendel, Lord Randal e essas coisas. Mas era necessário fazer umas leituras extraordinárias. Li The Return of the Native, de Thomas Hardy, Romeu e Julieta, Júlio... - Oh, Romeu e Julieta! Admirável! Não acha extraordinário?
A mulher nem parecia uma freira.
- Acho, sim. Gostei muito. Certas passagens não me agradaram, mas, no conjunto, é muito comovente.
- Que passagens é que não lhe agradaram? Recorda-se? Para vos dizer a verdade, era um.pouco embaraçoso falar com uma freira acerca de Romeu e Julieta. Quero eu dizer que aquela peça tem algumas partes cheias de referências sexuais. A mulher era freira, mas como foi ela quem levantou o problema, prossegui a conversa.
- Bem. Não gosto muito do Romeu e Julieta - disse-lhe. - É claro que o aprecio mas... às vezes é muito aborrecido. Senti mais a morte de Mercutio que a morte de Romeu e de Julieta. Nunca fiquei a gostar do Romeu desde que Mercutio foi assassinado pelo outro homem, o primo de Julieta. Como é que se chama?
- Tybalt.
- Tybalt. É isso mesmo - disse-lhe. Esqueço-me sempre do nome desse tipo.
- A culpa foi do Romeu - continuei. - De Mercutio é que eu gosto. Não sei bem... Os Montagues e os Capuletos, vá lá, especialmente Julieta. Mas Mercutio... é difícil de explicar. Era muito esperto em tudo. Além disso, não gosto de assassinos que matam gente simpática. Há sempre alguém que tem a culpa. Neste caso, a culpa foi de Romeu e de Julieta.
- Qual é a sua escola? - perguntou-me. Provàvelmente queria pôr termo ao assunto.
Disse-lhe que era Pencey. Ela disse que era uma boa escola, mas eu não fiz questão. Depois, a outra, a que ensinava História e Política, disse que tinham de sair. Pedi a conta, mas não permitiram que eu pagasse. A dos óculos exigiu que eu lhe desse a conta.
- Já foi mais que generoso - disse ela. - É um bom rapaz. - Era uma óptima pessoa. Fazia-me recordar a mãe do Ernest Morrow, que eu encontrara no comboio. Especialmente quando sorria. - Gostámos muito de falar consigo - disse ela. Retribuí o cumprimento. Com sinceridade. E ainda teria gostado mais se não receasse que, súbitamente, tentassem saber se eu era católico. Os católicos estão sempre a tentar saber se as outras pessoas têm a mesma religião. Isto aconteceu-me frequentemente, em parte, porque o meu nome é de origem irlandesa, e os Irlandeses são quase todos católicos. O meu pai foi católico, mas deixou de o ser quando se casou com a minha mãe. Mesmo que não conheçam o nosso apelido, os católicos estão sempre a tentar descobrir a nossa religião. Conheci um católico, o Louis Shaney, quando estive em Whooton.
Foi o primeiro rapaz com quem travei conhecimento nessa escola. Ele e eu estávamos sentados nas escadas da enfermaria, no primeiro dia de aulas, aguardando o médico que nos inspeccionaria. Começámos a falar de ténis. Disse-me que todos os Verões ia aos grandes prémios nacionais em Forest Hills. Eu também ia e, por isso, começámos a discutir os melhores tenistas. Sabia muitas coisas sobre o ténis. Porém, mesmo no meio da conversa, ele perguntou-me: "Sabe, por acaso, onde fica a igreja católica?" Via-se bem que tentava descobrir se eu era católico. Ele era. Não quero dizer que ele tivesse preconceitos, mas queria saber se eu era católico. É claro que gostava de conversar comigo, mas ainda gostaria mais se eu fosse católico. É uma coisa que me aflige. O facto não estragou a nossa amizade, mas também não nos trouxe grandes benefícios. Por isso, fiquei muito satisfeito por as freiras não me terem perguntado se eu era católico. Também não teriam interrompido a nossa conversa, mas seria diferente. É claro que os católicos não me chateiam. Se eu fosse católico, provàvelmente procederia do mesmo modo. É um caso idêntico ao das malas de que já vos falei. Não resulta quando desejamos conversar com sinceridade.
Quando as duas freiras se levantaram, fiz uma coisa muito estúpida. Estava a fumar um cigarro e, quando me levantei para me despedir, por distração, soprei-lhes o fumo nos rostos. Não foi por mal. Pedi desculpa, muito confun-dido, e elas foram muito delicadas.
Depois de terem saído, arrependi-me de só lhes ter dado dez dólares. Mas como tinha combinado ir ao teatro com a Sally Hayes, precisava de guardar algum dinheiro para
os bilhetes. Maldito dinheiro! Acaba sempre por nos chatear.
Depois do pequeno almoço, como ainda não passava do meio-dia e combinara encontrar-me com a Sally às duas horas, resolvi dar um grande passeio a pé. Não conseguia esquecer-me das duas freiras. Continuava a recordar os cestos de Natal com que elas costumam pedir esmola quando acabam as aulas. Tentei visionar a minha mãe, a minha tia ou a estúpida da mãe da Sally com um cesto daqueles, à porta de um armazém, a pedirem para os pobres. Era difícil conceber uma coisa destas. A minha mãe, ainda assim, não era muito difícil, mas as outras duas, caramba! A minha tia é muito caridosa. Trabalha na Cruz Vermelha. Mas anda sempre muito bem vestida e quando faz obras de caridade veste-se sempre da mesma maneira e não tira o bâton dos lábios. Não conseguia concebê-la a fazer obras de caridade, toda vestida de negro, sem bâton nos lábios. E a mãe da Sally Hayes! Meu Deus! Só consentiria em fazer um peditório com um cesto de Natal se em paga lhe beijassem o rabo!
Se alguém deitasse apenas a esmola no cesto sem lhe dizer nada, faria uma zaragata tremenda! Além disso, quando chegasse a hora do almoço, arrumaria o cesto e mais ninguém a veria. Por isso é que eu gosto destas freiras. Nunca abandonariam o seu posto só para almoçarem. Só de pensar nisso senti-me muito triste.
Dirigi-me para a Broadway, onde eu já não ia há alguns anos. Pretendia encontrar uma loja de discos que estava aberta aos domingo. Queria comprar um disco, o Little Shirley Beans, para oferecer à Phoebe. Era difícil descobri-lo. Tratava-se de uma rapariga que não queria sair de casa porque os dois dentes da frente lhe haviam caído e ela julgava-se feia. Ouvira-o em Pencey. Um rapaz que dormia num quarto próximo do meu comprara-o algures. Tentei comprar-lho a peso de ouro, pois sabia que a Phoebe ficaria encantada, mas ele não o vendeu. Era um disco antigo, cantado por Estelle Fletcher, uma negra que fez furor há vinte anos. A negra canta essa canção com requebros de prostituta e nem parece uma cantiga de miúdos. Se fosse uma branca a cantá-la, seria uma coisa muito afinada, mas a velha Fletcher sabia do seu ofício e o disco era um dos melhores que eu já ouvi. Pensei comprá-lo numa dessas lojas que abrem aos domingos. Depois levá-lo-ia para o parque. A Phoebe costuma patinar no lago, todos os domin-gos de manhã. Sabia bem onde encontrá-la.
Não estava tanto frio como no dia anterior, mas não havia sol. Um dia pouco convidativo para passeios. Pre-cisamente na minha frente caminhava uma família que acabara de sair da igreja-pai, mãe e um garoto com seis anos. Era gente pobre. O pai ostentava um desses chapéus cinzento-claros que as pessoas pobres costumam usar quando pretendem ser elegantes. Ele e a mulher conversavam sem prestar atenção ao garoto. Mas o garoto era engraçado. Caminhava pela rua e contornava rigorosa-mente a curva do passeio. Fingia caminhar sobre um risco muito direito, como os garotos gostam de fazer, e cantava em voz baixa. Aproximei-me e ouvi distintamente que ele cantava aquela velha canção Quando Duas Pessoas Se Procuram no Centeio. Tinha uma bela voz e cantava por gosto. Passavam automóveis, chiavam travões, os pais não lhe prestavam atenção, mas ele continuava a contornar o passeio e a cantar Quando Duas Pessoas Se Procuram no Centeio. Senti-me melhor. Senti-me menos deprimido.
A Broadway estava cheia de gente. Era domingo e pouco passava do meio-dia, mas a Broadway já estava cheia de gente. Todos se dirigiam para os cinemas-para o Astor, o Paramount, o Strand, o Capitol-e outros recintos tão estúpidos como estes. Como era domingo, vestiam os melhores fatos, o que ainda piorava o espectá-culo. Mas o facto mais horrível é que conseguíamos aperceber-nos de que todos eles desejavam ir mesmo ao cinema! Nem conseguia olhá-los. Compreendo que uma pessoa vá ao cinema só porque não tem outra coisa para fazer, mas se um tipo quer mesmo ir ao cinema e quase corre para chegar mais depressa fico completamente desorientado. Especialmente quando vejo milhões de pessoas numa dessas bichas terríveis, a todo o comprimento de um quarteirão, esperando pacientemente horas intermináveis só para com-prarem um bilhete. Caramba! Nunca consegui andar muito tempo pela Broadvay! Mas tive sorte. A primeira loja que encontrei tinha uma cópia do disco. Pediram-me cinco dólares, porque o disco já era raro, mas não me importei. Súbitamente senti-me feliz. Dirigi-me apressada-mente para o parque, ao encontro da Phoebe.
Mas junto da loja de discos havia outra loja aberta, onde eu entrei, pois pensara em telefonar à Jane a perguntar-lhe se já estava em férias. Meti-me numa cabina telefónica e
marquei o número. Mas foi a mãe que respondeu. Desliguei o telefone. Não me apetecia manter uma longa conversa com a mãe da Jane. Além disso, não gosto de falar com as mães das minhas amigas. Contudo, poderia ter-lhe perguntado se a Jane estava em casa. Não me prejudicaria muito, mas, mesmo assim, é preciso boa disposição para estas coisas.
Como ainda tinha de comprar os bilhetes para o teatro, arranjei um jornal para ver os anúncios dos espectáculos. Como era domingo, só havia três espectáculos em cena. Comprei dois bilhetes para um espectáculo anunciado com o título de I Know My Love. Era uma sessão de beneficência. Não me apetecia ver esta treta, mas sabia que a Sally, a rainha das idiotas, ficaria meio parva quando lhe dissesse que comprara dois bilhetes para um espectáculo que tinha os Lunts em cena. Ela gosta de espectáculos que incluam os Lunts e outros números da moda. Mas eu não gosto. Para vos dizer a verdade, não gosto de espectáculos musi-cais. Não são tão rascas como o cinema, mas também não há motivo para exagerarmos. Em primeiro lugar, odeio os actores. Nunca representam naturalmente. Apenas pen-sam que são naturais. Os melhores ainda conseguem, mas só por acaso, e não conseguem divertir-nos. E se um actor é mesmo bom, acaba por saber que o é, e estraga tudo. Tomemos, por exemplo, Sir Laurence Olivier. Vi-o no Hamlet. D. B. levou-nos a vê-lo no Verão passado. Primeiro fomos almoçar e depois vimos o Hamlet. Já o vira e, a ajuizar pelo modo como falava, estava ansioso por voltar a vê-lo. Mas nunca consegui descobrir onde estava a maravilha de Sir Laurence Olivier. Tem uma voz terrível, é um tipo muito elegante e oferece-nos um espectáculo curioso quando anda de um lado para o outro, ou quando luta com a espada na mão, mas não é nada do que o D. B. nos disse. Pareceu-me um general, em vez de um tipo amargurado e triste. A melhor parte do filme foi quando o irmão de Ofélia-o'que luta com Hamlet quase no fim da peça-ia partir e o pai lhe dava conselhos. Enquanto o pai lhe dava conselhos, Ofélia começou a implicar com ele, tirando-lhe a adaga, distraindo-o, e ele a_ fingir-se muito interessado no que o pai lhe dizia! Isso, sim! Fiquei entusiasmado. Mas é raro ver-se coisas destas. A única coisa de que a Phoebe gostou foi quando Hamlet acari-ciava o cão. Achou que era uma acção muito bonita. Mas a primeira coisa que devo fazer é ler a peça. Só o que me apoquenta é ter de lê-la. Quando um actor está a representar, eu quase nem o oiço. Estou sempre a pensar que, súbitamente, vai fazer alguma cretinice.
Depois de ter comprado os bilhetes para o espectáculo, meti-me num táxi e mandei seguir para o parque. Devia ter ido de metropolitano, pois já me restava pouca massa, mas queria safar-me da Broadway o mais ràpidamente possível.
O parque estava pouco convidativo. O Sol ainda não se descobrira e nada se via no parque além de trampa de cão, escarros e pontas de cigarros que os velhos espalhavam por ali e os bancos pareciam demasiadamente húmidos. Fiquei muito deprimido e, de vez em quando, sem motivo, todo o meu corpo se arrepiava. Nada nos dizia que o Natal estava próximo. Era como se nada no mundo estivesse prestes a acontecer. Dirigi-me ao Mall, pois era esse o sítio preferido da Phoebe quando vinha ao parque. Gosta de patinar no lago que fica junto do coreto. É curioso! É o mesmo local onde eu gostava de patinar quando era miúdo.
Mas quando lá cheguei não a vi em parte alguma. Vi algumas crianças a patinar e dois miúdos a jogar com uma bola de borracha, mas da Phoebe nem a sombra.
Vi uma rapariga com a mesma idade da Phoebe, sentada num banco a apertar as fivelas dos patins. Pensei que talvez conhecesse a Phoebe e pudesse dizer-me onde conseguiria encontrá-la. Sentei-me junto dela e perguntei-lhe:
- Conhece, por acaso, a Phoebe Caulfield? - Quem? - perguntou ela. Vestia um par de calças azuis, de ganga, e perto de vinte camisolas. Via-se bem que tinham sido feitas pela mãe, porque estavam bastante largas.
- Phoebe Caulfield. Vive na Rua 71. Anda na quarta classe, em...
- Conhece a Phoebe ?
- Sim, sou irmão dela. Sabe onde ela está? - É aluna de Miss Callon, não é? -Não sei... Sim. Parece-me que sim - Então deve estar no museu. Nós fomos lá ontem - disse ela.
- Em que museu? - perguntei-lhe. Ela encolheu os ombros, - Não sei - disse. - No museu... - Está bem, mas é um museu com quadros ou um museu com índios? - Com índios. - Obrigado - disse eu. Levantei-me e comecei a afastar-me, mas súbitamente recordei-me de que era Domingo.
- Mas hoje é domingo - disse-lhe. Ela olhou para mim. - Então não está no museu.
Tinha grande dificuldade em apertar os patins. Não trazia luvas e por isso as suas mãos estavam vermelhas e geladas. Auxiliei-a. Caramba!
Há anos que não apertava uns patins! Mas não era uma sensação agradável. Cinco anos antes poderiam pôr-me uma fivela de patins na mão, às escuras, e eu não demoraria um segundo a apertá-la. A miúda agradeceu-me muito. Era uma criança muito delicada. Oh, meu Deus, adoro crianças delicadas. Ainda há algumas. Perguntei-lhe se queria tomar uma chávena de chocolate comigo, mas ela disse que não e agradeceu. Disse-me que tinha um encontro marcado com algumas amigas. As crianças andam sempre a marcar encontros com as amigas. É uma coisa que me espanta.
Embora fosse domingo e a Phoebe não estivesse lá, fui a pé desde o parque até ao Museu de História Natural. Sabia que era aquele o museu a que a rapariga de patins se havia referido e conheço-o de uma ponta a outra. A Phoebe frequenta a escola onde eu estudei quando era miúdo e costumava ir ao museu quase todas as semanas. Tínhamos uma professora, a Miss Aigletinger, que nos levava ao museu nos sábados à tarde. Por vezes apenas admirávamos os animais, mas outras vezes dedicávamo-nos também aos índios e aos objectos que eles fabricavam. Porcelanas, cestos de palha e coisas semelhantes. Sinto-me sempre feliz quando penso nessas visitas. Quase sempre depois de termos admirado os índios assistíamos a um filme num grande auditório. Filmes acerca de Colombo. Estavam sempre a mostrar-nos Colombo a 'descobrir a América, cheio de dificuldades, porque Fernando e Isabel não queriam dar-lhe massa para os navios, e depois as revoltas a bordo, e tudo o mais. Ninguém se interessava pelo velho Colombo, mas ofereciam-nos chocolates e caramelos e, além disso, o auditório cheirava bem. Cheirava como se lá fora estivesse a chover, mesmo que não estivesse, e sentíamo-nos como se tivéssemos entrado na casa mais cómoda do mundo. Amava aquele museu! Lembro-me de que para chegarmos ao auditório tínhamos de passar péla sala dos índios. Era uma sala muito comprida e nós apenas sussurrávamos. O primeiro a entrar era o professor e só depois entrava a classe. íamos em duas filas e cada um de nós tinha um parceiro. A minha parceira era, quase sempre, uma rapariga chamada Gertrude Levine. Queria ir de mão dada comigo, mas estava sempre a transpirar. O chão era de pedra e se deixássemos cair um berlinde ele daria grandes saltos com uma barulheira infernal. A professora parava imediatamente e vinha ver o que se passava cá atrás. Mas a Miss Aigletinger nunca se aborrecia. Passáva-mos por uma canoa de guerra índia, mais comprida que três Cadillacs em fila, com vinte índios lá dentro, todos a remar, alguns em pé, com aspecto decidido, com os rostos pintados a muitas cores. À ré havia um tipo com uma máscara medonha. Era o feiticeiro. Causava-me arrepios, mas, mesmo assim, gostava dele. Se tocássemos nos remos ou em qualquer outro objecto, um dos guardas diria logo: "Não mexam aí, rapazes", mas sempre com delicadeza, como os polícias. Mas nunca fazem. Depois passá-vamos por uma grande vitriina com alguns índios lá dentro, a esfregarem dois pauzinhos um no outro, para fazerem lume, e uma índia a tecer um cobertor. A índia estava muito curvada e podia ver-se-lhe o seio. Costumávamos dar uma boa olhadela, até mesmo as raparigas, pois elas ainda eram muito pequenas e tinham tanto peito como nós, os rapazes. Depois, quase à porta do auditório, passávamos ainda pelo esquimó. Estava sentado junto de um buraco, num lago gelado, a pescar. Tinha já no chão dois peixes que acabara de pescar. Caramba! Aquele museu estava cheio de vitr-inas. Havia mais no primeiro andar, com veados a beber água em pequenas poças e pássaros a voarem para o sul, no Inverno. Os pássaros mais próximos estavam pousados: em fios de telégrafo, mas os mais afastados estavam picotados na parede, de maneira que pareciam mesmo voar para o sul. Se baixássemos a cabeça e os olhássemos de través, pareciam voar ainda com maior velocidade. M.as o melhor daquele museu era as coisas estarem sempre quietas. Nada se movia. Podíamos ir lá cem mil vezes que o esquimó estaria ainda a pescar os dois peixes, os pássaros a voarem para o sul, os veados a beberem nas pequenas poças, com os lindos chifres inclinados e as belas e esguias pernas. A índia, com o peito descoberto, lá estariam. a tecer o cobertor. Nada se modificava. Só nós nos modificávamos. Não digo que fôssemos mais velhos, isso não. Seríamos apenas diferentes, mais nada. Vestiríamos agora um sobretudo ou então a companheira da última visita_ estaria agora com escarlatina e teríamos uma outra parceira. Ou então iria outro professor em vez de Miss Aigletinger. Ou então ouviria uma grande discussão entre o meu pai e a minha mãe, na casa de banho, mesmo antes de sair de casa.. Ou passaríamos, por acaso, por uma nova bomba de gasolina, na rua, a caminho do parque. É isto mesmo. Seriamos diferentes, não consigo explicar-me convenientemente. E, mesmo que conseguisse, não gostaria de o fazer.
Tirei o boné de caça que metera no bolso e enfiei-o na cabeça. Sabia que não encontraria nenhum amigo e o tempo esfriava a pouco e pouco. Continuei a andar e a pensar na Phoebe que ia agora ao museu, nos sábados à tarde, como eu fizera quando garoto. Pensava que ela havia de ver as mesmas coisas que eu vira e eu, como ela, também seria diferente todas as vezes que as visse. Estes pensa-mentos não me entristeciam, mas também não me davam qualquer alegria. Há coisas de que nunca nos devemos recordar. É necessário metê-las numa vitrina de museu e deixá-las esquecidas. Sei que é impossível fazer isto. E é pena. Era nisso que eu pensava enquanto percorria o caminho para o museu.
Passei por um jardim infantil e parei. Dois miúdos brincavam num baloiço. Um deles era gordo e eu pus-lhe a mão no rabo, como quem toma o peso, a dar-lhe impulso, mas eles não gostaram da intromissão, e por isso fui-me embora.
Depois aconteceu uma coisa muito engraçada. Quando cheguei ao museu, compreendi que nem por um milhão de dólares voltaria a lá entrar. Já nada me dizia. Circundei o parque e examinei tudo. Se a Phoebe estivesse lá dentro, provàvelmente teria entrado, mas ela não estava. Por isso meti-me noutro táxi e mandei seguir para o Biltmore. Não me agradava a ideia, mas combinara aquele estúpido encontro com a Sally.
Como ainda era cedo quando lá cheguei, sentei-me num daqueles bancos de couro, mesmo por baixo do relógio, e comecei a admirar as raparigas que passavam. Em muitas escolas já havia férias e por isso estavam ali dezenas de miúdas aguardando os namorados. Raparigas com as pernas cruzadas, raparigas com as pernas estendidas, raparigas com pernas formidáveis, raparigas com pernas medonhas, raparigas com aspecto terno, raparigas que certamente não passavam de verdadeiros estupores. Era um belo espectáculo. Em certo sentido, porém, não deixava de ser desagradável, pois comecei a matutar no que viria a acontecer a todas elas quando' saíssem da escola ou da Faculdade. Casar-se-iam com tipos ordinários, daqueles que estão sempre a dizer que fazem mil quiló-metros com um único galão de gasolina. Tipos que ficam chateados quando perdem um jogo de golf ou mesmo uma estúpida partida de pinguepongue. Tipos idiotas. Tipos que nunca lêem livros. Tipos maçadores... mas devo tomar cuidado com estas coisas. Sobretudo este vício de chamar maçador a um tipo qualquer. Não compreendo os maçadores. Quando estava em Mkton Hills vivi dois meses no mesmo quarto com um tal Harris Macklin. Era muito inteligente, mas era o maior maçador que eu conheci. Tinha uma voz fanhosa e estava constantemente a falar. Nunca parava de falar e, o que é mais curioso, nunca dizia qualquer coisa que nos interessasse. Mas era capaz de assobiar melhor que todas as outras pessoas que eu ouvira. A fazer a cama ou a pendurar casacos no armário, lá estava ele a assobiar ou a falar, a falar, a falar com aquela voz fanhosa. Até sabia assobiar música clássica, mas pre-feria quase sempre o jazz. Começava a assobiar os Tin Roof blues, e fazia-o tão bem que eu ficava parvo. É claro que nunca lhe disse que ele era um bom assobiador. Dormi no quarto dele durante dois meses e ia dando em louco, tanto me chateou só por assobiar tão bem. É por isso que eu não compreendo os maçadores. Mas é pena sabermos que uma rapariga se casou com um tipo destes. Não fazem mal a uma mosca, e talvez, secretamente, sejam terríveis assobiadores. Quem sabe? Eu não sei, confesso-vos.
Por fim lá apareceu a Sally, a descer as escadas, e eu levantei-me para ir ao encontro dela. Vinha esplêndida. Trazia um casaco negro e uma boina também negra.
Nunca usava chapéu, mas aquela boina ficava-lhe a matar. Senti vontade de me casar com ela no preciso minuto em que a vi descer as escadas. Sou um idiota chapado. Não podia tolerá-la, mas de repente senti-me tão apaixonado que não me importaria de me casar com ela. Garanto-vos que sou completamente parvo. E não me custa admitir que o sou.
- Holden! - disse ela. - Que prazer! Há séculos que não te vejo! - Falava sempre em voz alta quando encontrava alguém. Perdoava-se-lhe o mau hábito porque era
muito bonita, mas eu ficava sempre muito embaraçado.
- Que prazer em ver-te - disse-lhe, com sinceridade. - Como estás?
- Maravilhosamente. Cheguei tarde?
Disse-lhe que não, mas, para ser franco, já passavam dez minutos da hora marcada. Mas não me chateei. Aquela trampa que vem nos bonecos do Saturday Evening Post mostrando tipos ridículos, às esquinas, muito furiosos porque as namoradas chegam tarde, é uma grande treta. Se uma rapariga vem adorável, que raio nos interessa que chegue tarde? Ninguém se interessa, é claro.
- É melhor apressarmo-nos - disse eu. - O espectáculo começa às dez para as três.
Dirigimo-nos para a praça dos táxis. - Onde vamos? - perguntou ela.
- Não sei. Aos Lunts. Só consegui bilhetes para os Lunts.
- Os Lunts! Oh, que maravilha!
Já vos tinha dito que ela ficaria varada quando lhe dissesse que íamos ver os Lunts.
A caminho do teatro, no táxi, consegui beijá-la. Ao princípio ela não queria, porque tinha bâton nos lábios, mas eu estava muito sedutor e ela não teve outra alternativa. Por duas vezes, quando o táxi parou junto aos sinais de trânsito, eu ia caindo do assento. Os malditos motoristas nem sequer prestam atenção ao trânsito! Depois, só para verem como sou um grande cretino, quando estáva-mos prestes a sair do táxi disse-lhe que a amava. Era mentira, é claro, mas quando o disse fui. quase sincero. Juro-vos que fui.
- Oh, querido! Eu também te amo! - respondeu ela. Depois, com ó mesmo tom de voz, disse-me: - Promete-me que vais deixar crescer o cabelo. Já não se usa o cabelo curto e tens uma cabeleira adorável!
Adorável o raio que a parta!
O espectáculo não era tão mau como outros que eu já vira. Mas, mesmo assim, era idiota. Tratava-se da história de um casal de velhos. Começava quando eles ainda eram muito novos, e os pais da rapariga não queriam que ela casasse com o rapaz, mas, mesmo assim, ela casava-se. Depois começavam a envelhecer. O marido ia para a guerra, e a mulher tinha um irmão que andava sempre bêbado. Não estava muito interessado. Não me interessam esses casos de morte na família e outras coisas do género. O marido e a mulher constituíam um casal de velhos simpáticos, mas não conseguiam interessar-me. Passavam a peça inteira a beber chá. Sempre que estavam em cena lá vinha um bule com chá. E havia sempre muita gente a entrar e a sair. Acabei por ficar meio parvo só de ver tanta gente a entrar e a sair. Alfred Lunt e Lynn Fontanne faziam os papéis. Eram bons actores, mas eu não gostei. Não representavam com naturalidade, como se fossem gente a sério, mas também não representavam como se fossem apenas actores. É difícil explicar. Representavam como se soubessem que eram duas celebridades. Quero eu dizer que eram bons de mais. Quando um deles acabava de dizer uma longa tirada, o outro tratava logo de falar a seguir. É claro que pretendiam imitar um diálogo muito natural. Representavam com a mesma ênfase com que Ernie toca piano. Contudo, os Lunts eram os únicos que em toda a peça demonstravam ter miolo.
Quando chegou o intervalo, no fim do primeiro acto, saímos para fumar um cigarro. Quantos imbecis andavam por ali! Nunca vira tantos idiotas reunidos, todos a fumar como se fossem chaminés e a falarem da peça em voz alta para que toda a gente oubisse. Um actor de cinema estava mesmo junto de nós, a fumar um cigarro. Não sei como se chama, mas é um que entra sempre em filmes de guerra e faz o papel de cobardolas. Estava com uma fulana com o cabelo platinado e fingiam-se ambos muito blasé, como se não soubessem que todas as outras pessoas estavam a olhar para eles. Muito modestos! Fiquei varado. A Sally não falou muito, excepto para mostrar a sua admiração pelos Lunts. Depois, súbitamente, descobriu um idiota que ela conhecia, lá ao fundo, encostado à parede do vestíbulo. Era um desses tipos que usam fatos cinzentos de flanela e camisolas de lã. Estava encostado à parede e fumegava por todos os poros, a fingir-se muito chateado. Sally começou a dizer:- Conheço aquele rapaz de qualquer lado. - Conhecia sempre alguém em todos os espectáculos onde a levava. Tantas vezes repetiu a mesma coisa que acabei por me aborrecer. - Porque é que não vais ter com ele e não lhe dás um beijo, já que o conheces? - Ficou amuada. Finalmente o idiota também a descobriu e veio cumprimentá-la. Deviam ver o modo como se cumprimentaram. Parecia que não se viam há mais de vinte anos! Teriam pensado que ambos tinham tomado banho na mesma banheira quando eram garotos, ou coisa semelhante. Fiquei com náuseas. E o mais curioso é que, provàvelmente, só se haviam encontrado uma única vez em qualquer festa estúpida. A Sally apresentou-nos. Chamava-se George qual-quer coisa-já não me recordo-e estudava em Andover. Um tipo importante. Mas deviam vê-lo quando a Sally lhe perguntou se gostava da peça. Era um daqueles tipos que, para responder a uma pergunta, tem de fazer figura. Deu um passo para trás e pisou o pé de uma senhora. Possivel-mente esborrachou-lhe os dedos. Disse que a peça não era nenhuma obra-prima, mas que os Lunts eram uns autên-ticos anjos. Anjos, meu Deus! Anjos! Fiquei com vómitos. Depois ele e a Sally começaram a falar de algumas pessoas que ambos conheciam. Era a conversa mais estúpida que me foi dado ouvir. Pensavam ràpidamente em alguns locais e referiam-se a uma pessoa que lá vivia. Estava quase a vomitar quando regressámos aos nossos lugares. No segundo intervalo começaram novamente a maldita con-versa. Mas o pior era que o patife tinha uma voz de falsete, muito snob. Parecia uma rapariga. E o malandro não hesitava em usurpar-me a companhia! Cheguei a pensar que se ia meter no táxi connosco quando a peça terminasse, mas felizmente tinha de encontrar-se com um grupo de amigos, idiotas como ele, é claro. Vislumbrei-os, sentados num bar, com os seusfatos ridículos, a criticarem peças, livros e mulheres com aquelas vozes snobs e efeminadas. Que patifes!
Sentia um ódio terí-vel quando entrámos num táxi, depois de ter ouvido tanta asneira. Estava a preparar-me para levar a Sally a casa quando ela disse
- Tive uma ideia maravilhosa. Tinha sempre ideias maravilhosas.
- Ouve - disse ela. - A que horas tens de estar em casa? Estás com presa?
- Eu? Não, não estou - respondi. Caramba! Nunca disse tamanha verdade. - Porquê?
- Vamos patinar ao Radio City. Era esta a ideia maravilhosa! - Patinar no Radio City? Agora? -Só uma hora. Não queres? Se não queres... - Não disse que não queria. Então vamos.
- Queres mesmo? Não digas que queres só para me fazeres a vontade. Poso alugar um saiote de patinagem como fez a Jeannette Cultz na semana passada.
Era por esse motivo que ela queria ir patinar. Só para vestir um saiote que mal chegava ao umbigo.
Lá fomos. Depois de nos darem os patins, a Sally vestiu um saiote azul-escuro, É claro que lhe ficava a matar e parece-me que ela o sabia. Caminhava à minha frente para que eu lhe pudesse ver o traseiro. E tinha um lindo traseiro.
Mas o mais curioso é que nós éramos os piores patina-dores do dia. Os piores E demos uns trambolhões. A Sally, pràticamente, arrastav os calcanhares pelo gelo. Certa mente que devia ter dores insuportáveis, e o mesmo acon-tecia comigo. E, para cúmulo, havia por ali uma centena de mirones que se, divertiam a ver os trambolhões dos outros.
- Queres ir lá para dentro beber qualquer coisa? - acabei por perguntar-lhe.
- Oh, que ideia maravilhosa - disse ela. Devia ter dores brutais. Tive pena dela.
Tirámos os patins e entrámos no bar, onde podíamos tomar qualquer bebida e observar os patinadores. Logo que nos sentámos, Sally tirou as luvas e eu dei-lhe um cigarro. Não parecia muito contente. O criado aproximou-se da nossa mesa e eu encomendei-lhe uma Coca-Cola e um whisky com soda, mas o maldito não me quis servir álcool e eu tive de beber uma Coca-Cola. Depois comecei a acender fósforos. Faço sempre o mesmo quando estou nervoso. Deixo-os arder até sentir a chama nos dedos e só então os deito no cinzeiro. É um hábito nervoso.
Depois, sem aviso prévio, a Sally disse:
- Ouve. Tenho de saber. Queres ou não ajudar-me a ornamentar a árvore de Natal? Tenho de saber. - Estava deprimida, possivelmente por causa das quedas no gelo.
- Já te disse que sim. Perguntaste-me a mesma coisa vinte vezes. Já te disse que sim.
- Tenho de saber - disse ela. Começou a examinar as pessoas que se encontravam no bar.
Deixei de queimar fósforos e debrucei-me sobre a mesa. Queria debater uns assuntos com ela.
- Eh, Sally - disse eu.
- Que é? - perguntou ela. Estava a admirar uma rapariga que acabara de entrar.
- Já pensaste bem que a vida vai ser uma grande estopada, a menos que faças qualquer coisa para a evitar? Gostas de andar na escola?
- É muito maçadora.
- Mas odeias a escola? Já sei que é uma chatice. Mas odeia-la?
- Bem. Odiar, odiar, não direi... Tens sempre... - Pois eu odeio-a. Caramba! Se a odeio - disse eu. - Mas não é só isso. É tudo. Odeio viver em Nova Iorque. Odeio táxis, odeio os autocarros da Madison Avenue, com os condutores sempre a berrarem, odeio os tipos que dizem que os Lunts são uns anjos, odeio subir e descer nos elevadores só para sair de casa, odeio as pessoas que...
- Por favor, não grites - pediu a Sally. Mas eu não estava a gritar.
- Vejamos, por exemplo, os automóveis - disse eu com um tom de voz muito tranquilo. - Geralmente, as pessoas são loucas por automóveis. Ficam aflitas quando o automóvel trepida ou andam sempre a dizer que conse-guem fazer mil quilómetros com um único galão de gasolina e, se têm o carro novinho em folha, começam logo a pensar em trocá-lo por outro ainda mais novo. Eu nem sequer gosto de carros velhos. Não me inte-ressam. Preferia ter um cavalo. O cavalo, pelo menos, é mais humano. Com um cavalo...
- Não percebo nada do que tu dizes - disse a Sally. - Saltas de uma coisa para outra diferente.
- E sabes que mais? - perguntei eu. - Só por tua causa estou agora em Nova Iorque. Se não fosses tu, já eu estaria muito longe daqui. Na selva, talvez. És a única razão da minha vida.
- És um amor - disse ela. Mas não há dúvida de que o assunto não lhe interessava.
- Devias estudar numa escola de rapazes. Tenta, só para veres como é - disse eu. - Estão cheias de cretinos e a única coisa que se faz é estudar para aprendermos o suficiente para depois comprarmos um Cadillac. Temos de fazer crer que não nos importamos que o grupo de futebol perca ou ganhe e passamos a vida a falar de raparigas, de álcool e de sexo e acabamos por fazer parte de um grupinho estúpido. Os tipos que jogam basquetebol pertencem ao grupo do basquetebol; os católicos formam um grupo, os intelectuais outro e os que jogam brídege também formam outro. Até os que pertencem ao Clube do Livro do Mês formam um grupo. E quando tentamos conversar...
- Ouve, Holden - disse ela. - Há rapazes que aprendem coisas diferentes na escola.
- Concordo! Mas isto foi tudo o que aprendi. Vês? Foi tudo o que aprendi - respondi eu. - Nunca aprendi outra coisa. Estou numa situação horrível.
- E estás mesmo.
Depois, subitamente, ocorreu-me uma ideia. - Ouve - disse eu. - Tenho uma ideia! Não gostarias de te safar daqui para fora? Cá está a minha ideia. Conheço um tipo em Greenwich Village que me empres-taria um carro por duas semanas. Andámos na mesma escola e ele ainda me deve dez dólares. Amanhã de manhã partiríamos para Massachusetts ou Vermont. São sítios maravilhosos.
Sentia-me muito excitado e agarrara a mão da Sally. Que grande louco que eu sou!
- Não estou a brincar - afirmei eu. - Tenho cento e oitenta dólares no banco. Posso levantá-los logo de manhã e depois vamos buscar o automóvel. Palavra de honra que não estou a brincar! Ficaremos numa dessas casas de campo até não termos massa. Depois eu arranjo um emprego em qualquer parte e viveremos razoàvelmente. Mais tarde até nos casaremos. Vais ver que no Inverno sou eu quem corta a lenha para o fogão. Palavra de honra que poderíamos ser felizes. Que dizes? Vamos! Que dizes? Queres ou não?
- Essas coisas não se fazem - disse ela. Parecia muito chateada.
- E porquê? Porquê?
- Não grites, caramba! - pediu ela.
Era mentira, pois eu não estava a gritar. - Mas porque é que não se fazem?
- Porque não se fazem, pronto. Em primeiro lugar, porque somos pràticamente duas crianças. E já pensaste no que faríamos quando não tivéssemos dinheiro se tu não arranjasses um emprego? Ficaríamos aterrorizados. É tudo tão fantástico que...
- Não é nada fantástico. Havia de arranjar emprego. Com isso não te preocupes. Então que se passa? Não queres vir comigo. Se é isso, podes dizê-lo.
- Não é isso - disse a Sally. Começava a odiá-la.
- Teremos muito tempo para fazer isso. Depois de tu saíres da Universidade, quando nos casarmos. Haverá milhões de sítios bonitos para onde irmos. Mas agora...
- Não, não haverá milhões de sítios para onde irmos. Será completamente diferente - disse eu.
Sentia-me novamente muito triste.
- O quê? - perguntou ela. - Não consigo ouvir-te. Há um minuto estavas a gritar e agora...
- Eu disse que não, que não haverá sítios bonitos para onde irmos quando eu sair da Universidade. Abre bem os ouvidos. Será muito diferente. Teremos de subir e descer elevadores sempre com muitas malas. Terás de telefonar a muita gente e enviar-lhe postais de cada hotel onde chegares. E eu trabalharei num escritório, ganhando muita massa, e irei de táxi ou de autocarro para o emprego, e hei-de ler jornais, ir ao cinema e ver filmes estúpidos e documentários. Documentários, meu Deus! Há sempre uma corrida de cavalos, ou um gajo a quebrar uma garrafa no costado de um navio, ou um chimpazé com calças compridas a andar de bicicleta. Não será o mesmo. Tu não compreendes.
- Talvez eu não compreenda. Ou talvez tu não compreendas - disse a Sally.
Naquele momento odiávamo-nos um ao outro. Era impossível conversar. Já estava arrependido de ter começado aquela conversa.
- Vamos embora - disse eu. - Se queres saber a verdade, chateaste-me tanto que até fiquei com dores no rabo. Caramba! Ela deu um pulo que ia chegando ao tecto.
Sei que não devia ter-lhe falado com estes modos, e normal-mente nunca o teria feito. Mas ela irritara-me. Normalmente nunca digo coisas destas a uma rapariga. Caramba! Ficou furiosa. Pedi-lhe desculpa, mas ela não aceitou as minhas desculpas. Chorava. Fiquei um pouco aterrorizado, pois pensei que ao chegar a casa ela diria ao pai que eu a insul-tara. O pai era um tipo enorme e silencioso e não simpati-zava comigo. Certa vez disse à Sally que eu era muito barulhento.
- Desculpa-me - pedi-lhe repetidas vezes. - Desculpa, desculpa! Tens muita piada - disse ela. Chorava ainda, e eu senti remorsos.
- Vamos. Eu levo-te a casa.
- Sei ir para casa, muito obrigada. Se julgas que eu consinto que me acompanhes, estás enganado. Nunca nenhum rapaz me disse uma coisa dessas.
É claro que o episódio tinha uma certa graça, e súbitamente fiz uma coisa vergonhosa. Soltei uma gargalhada. Para cúmulo, as minhas gargalhadas são muito sonoras e estúpidas. Se eu estivesse sentado no cinema ao lado de mim próprio e soltasse uma gargalhada, provàvelmente teria segredado a mim próprio que me calasse imediatamente. A Sally ficou ainda mais furiosa.
Continuei a pedir-lhe desculpa, mas ela não cedia. Dizia-me constantemente que me fosse embora e a deixasse em paz. Foi o que acabei por fazer. Levantei-me, saí, calcei os sapatos e fui-me embora. Nunca o deveria ter feito, mas já estava chateado.
E, se querem saber a verdade, não consigo compreender porque é que comecei aquela questão. Refiro-me à fuga para Massachusetts ou Vermont. Provàvelmente não a teria levado, mesmo que ela me pedisse. Mas o mais terrível é que fui sincero quando lhe falei no assunto. Juro-vos por Deus que devo ser meio louco.
Quando saí do recinto de patinagem, senti um certo apetite e entrei num bar, onde comi uma sanduíche de queijo e bebi um copo de leite com malte. Depois entrei numa cabina telefónica. Pensei em telefonar à Jane e ver se ela estava em casa. Como tinha a noite livre, se ela estivesse em casa poderia convidá-la para dançar. Nunca dancei com ela, mas já a vi dançar. Pareceu-me uma boa dançarina. Foi no baile do ¢ de julho, no clube. Ainda não a conhecia muito bem e não me atrevi a abordá-la. Estava nessa ocasião com um tipo terrível, o Al Pike, que estuda em Choate. Também não o conhecia muito bem, mas via-o algumas vezes perto da piscina. Usava calções muito justos, de lastex, e não temia lançar-se da prancha mais alta. Passava o dia inteiro a saltar da prancha, pois era a única coisa que sabia fazer e julgava-se um grande mergulhador. Só tinha músculos. Era com ele que a Jane estava naquela noite. Não consegui compreender. Palavra de honra que não consegui. Quando nos conhecemos melhor perguntei-lhe. Jane disse-me que o Al Pike não era um exibicionista. Disse-me que o Pike tinha um complexo de inferioridade, e até me pareceu que tinha pena dele. As raparigas são muito estranhas. Sempre que nos referimos a um cretino, logo elas nos dizem que o tipo tem um complexo de inferioridade. Talvez seja verdade, mas nem por isso deixa de ser um cretino. Raparigas! Nunca se sabe o que pensam. Certa vez combinei um encon-tro entre um amigo meu e uma amiga da Roberta Walsh. O rapaz chamava-se Rob Robinson e tinha mesmo um complexo de inferioridade. Via-se logo que se sentia envergonhado com as asneiras que os pais dele costumavam dizer e, além disso, nem sequer era rico. Mas não era um cretino. A amiga da Roberta Walsh, porém, não gostou dele. Disse à Roberta que o Rob era um presunçoso, só porque ele lhe dissera, por acaso, que era o leader da associação académica. Presunçoso, só por causa disto! Quando uma rapariga gosta realmente de um tipo qual-quer que não passa de um cretino desculpa-lhe tudo e diz que tem um complexo de inferioridade, mas se não gosta dele, embora seja um tipo às direitas, diz que é vaidoso. Até as raparigas espertas procedem assim.
Ora eu telefonei à Jane, mas ninguém atendeu. Consul-tei a agenda para ver se descobria alguém com a noite livre. Mas na agenda apenas havia três nomes: a Jane, Mr. Antolini, que fora meu professor em Elkton Hills, e o meu pai. Esqueço-me de registar os telefones dos amigos. Acabei por telefonar ao Carl Luce, que se graduara na Whooton School tempos depois de eu ter saído de lá. É três anos mais velho que eu e não gosto muito dele porque tem a mania da intelectualidade, mas pensei que talvez quisesse jantar comigo e conversar um pouco sobre assuntos intelectuais, é claro. Ele, às vezes, tinha uma certa piada. Telefonei-lhe. Frequentava agora a Universidade da Colúmbia, mas vivia na Rua 65 e já devia estar em férias. Disse-me que não podia jantar comigo, mas que teria muito
prazer em encontrar-se comigo às dez horas no Wicker Bar. Pareceu-me muito surpreendido com o meu convite, pois certa vez eu chamei-lhe aldrabão.
Como tinha muito tempo livre até às dez horas, fui ao cinema, ao Radio City. Era o pior que eu poderia ter feito, mas o cinema ficava perto e não me lembrei de outro sítio onde pudesse passar o tempo.
Quando me sentei já se exibia um número de variedades no palco. Os Rochettes estavam prestes a estoirar os mio-los com aquele" truque que costumam fazer. O público aplaudia com fúria e um tipo na fila atrás da minha dizia constantemente à mulher: "Sabes o que é isto? É precisão." Fiquei varado. Depois dos Rochettes exibiu-se um tipo de patins, que começou a patinar em cima de uma mesa, enquanto, ao mesmo tempo, ia contando anedotas. Era um óptimo patinador, mas não consegui apreciá-lo porque passei todo o tempo a idealizá-lo a praticar patinagem em casa para depois embevecer o público. Que coisa tão estúpida! É claro que eu não estava com disposição para apreciar espectáculos daquela natureza! Depois do patinador, veio o número de Natal do Radio City. Uma série de anjos começaram a sair de toda a parte e depois um grande número de tipos com cruzes às costas e outras trapalhadas. Desataram a cantar em coro aquela música que se chama Vinde, Meu Deus! Pareciam loucos! Devia ser uma coisa muito religiosa, muito bonita, e tudo o mais, mas nunca consigo descobrir religiosidade e beleza num grupo de acto-res com cruzes às costas. Quando acabaram e regressaram aos sítios donde tinham surgido, via-se que estavam com pressa, ávidos de fumar um bom cigarro. Vi esta mesma coisa no ano passado, com a Sally Hayes, e ela esteve sempre a dizer que era um belo espectáculo. E eu respondi-lhe que o Bom Deus, se regressasse à Terra, vomitaria as entra-nhas só de ver aquelas parvoíces. A Sally disse que eu era ateu, e provàvelmente não se enganou. A coisa de que o Bom Deus mais gostaria seria do tipo que tocava tambor na orquestra. Conheço aquele tipo desde os meus oito anos. O Allie e eu, mesmo que estivéssemos com o nosso pai, cos-tumávamos trocar de lugares só para o vermos melhor. É o melhor tambor que conheço, mas só tem oportunidade de se exibir uma única vez em cada espectáculo. Porém, nunca se mostra aborrecido. Quando toca, com o rosto todo contraído, é um espectáculo. Certa vez, quando fomos para Washington com o nosso pai, o Allie escre-veu-lhe um postal, que nunca chegou ao seu destino. Não sabíamos bem como endereçá-lo.
O filme só começou depois do número de Natal. Foi uma coisa horrorosa. Tratava-se de um inglês, um Alec qualquer coisa, que perdeu a memória na guerra. Saiu do hospital e começou a vaguear por Londres, sem saber quem era. É claro que era um duque, mas ele não sabia. Depois encontrou uma rapariga honesta e sincera numa bicha para o autocarro. O vento levou-lhe o chapéu e ele apanhou-o. Depois subiram ambos para o autocarro e começaram a falar de Charles Dickens. Era o autor preferido de ambos. Ele andava a ler o Oliver Twist e ela tam-bém. Caramba! Tive vómitos! Apaixonaram-se ali mesmo, só por gostarem de Charles Dickens, e ele começou a ajudá-la no emprego. A rapariga era editora, mas não tinha muita massa porque o irmão era bêbado e gastava tudo. O irmão era um tipo desesperado, porque tinha sido médico durante a guerra mas agora já não podia operar, pois ficara com os nervos destrambelhados. Andava sempre bêbado. O Àlec escreve um livro e a rapariga publica-o e, é claro, arranjam logo uma fortuna porque o livro é um êxito. Estavam para casar, quando aparece a Marcia. Marcia era a noiva do Alec antes de ele ter perdido a memória e reconhece-o quando o Alec está numa livraria a autografar livros. Ela diz-lhe que o Alec é duque, mas ele não acredita e nem quer visitar a própria mãe. A mãe é cega como um morcego. Mas a outra rapariga, que é toda mel, obriga-o a visitar a velha. É claro que a mãe é nobre. Mas, mesmo assim, o Alec não recupera a memória, nem quando o seu cão lhe salta para cima, nem quando a mãe lhe tacteia o rosto e lhe mostra um urso de lã com que ele costumava brincar na infância. Mas certo dia uns miúdos que jogavam críquete acertam-lhe uma bolada na tola e ele recupera a memória. Vai logo direitinho beijar a mãe na testa. Depois começa novamente a ser um duque normal e esquece-se da rapariga que lhe publicara o livro. Contava-vos o resto da história, mas ainda acabo por vomitar. Não julguem que eu estraguei a história propositadamente. Nada tinha que eu estragasse, meu Deus! É claro que acaba com o casamento do duque e da editora, e até o irmão que andava sempre bêbado . consegue controlar os nervos e opera a mãe do Alec de modo que ela recupera a vista, e a Marcia e o médico que era bêbado apaixonam-se e casam. Acaba com toda esta gente sentada a uma grande mesa, às gargalhadas, só porque o cão do duque entra na sala com uma série de cãezinhos. Toda a gente pensava que era um cão, mas afinal era uma cadela. Tudo o que vos digo é que não compreendo que vocês também não estejam com vontade de vomitar.
Mas o que mais me chateou foi uma fulana sentada ao meu lado, que chorou durante todo o filme. Quanto mais estúpido era o filme, mais ela chorava. Talvez vocês pensem que ela chorava porque tinha bom coração, mas eu, que estava sentado ao lado dela, digo-vos que não era esse o motivo. Estava com um miúdo que ficou muito chateado com o filme e teve necessidade de ir à retrete, mas ela não o levou. Disse-lhe que se deixasse estar sentado. O que ela tinha era um coração de loba. As 'pessoas que choram com filmes estúpidos são quase sempre uns estupores.
Depois do filme dirigi-me a pé para o Wicker Bar, onde o Carl Luce me esperava. Comecei a pensar na guerra. Nunca conseguiria estar muito tempo na guerra. Ainda não seria muito mau se mal chegasse à guerra estoirassem logo comigo, mas o pior era ficar no Exército durante quatro longos anos. Aí é que estava o busílis. O meu irmão D. B. esteve quatro anos inteiros no Exército. Além disso, esteve na guerra-tomou parte nos desembarques do Dia D-, mas parece-me que ele ainda odiava mais o Exér-cito que a guerra. Nesse tempo eu não passava de uma criança, mas recordo-me de que quando vinha para casa passava todo o tempo deitado sobre a cama. Nem sequer passava dez minutos no living-room. Mais tarde foi para a guerra, mas nunca foi ferido nem teve de matar uma única pessoa. Passava todo o santo dia a conduzir o automóvel de um general qualquer. Disse-me certa vez que, se fosse obrigado a dar um tiro, seria incapaz de o fazer. Disse-me que o Exército tinha muitos malandros, idênticos ou piores que os nazis. Recordo-me de que o Allie chegou a dizer-lhe que ele tinha muita sorte por ter ido para a guerra, pois, como era escritor, ficaria com muitos assuntos para escre-ver. O D. B. perguntou-lhe quem era o melhor poeta da guerra: Rupert Brook ou Emily Dickinson. O Allie disse que era Emily Dickinson. Não percebo destas coisas, porque não gosto de ler poesia, mas acabaria louco se estivesse no Exército com tipos do género do Ackley, do Stradlater ou do Maurice, esse malandro. Estive uma semana com um grupo de escuteiros e já não podia ver a nuca do tipo que marchava à minha frente. Acho que, se houver uma guerra, o melhor que podem fazer-me é colocar-me em frente de um pelotão de execução. Não faria discussão. Mas' o que eu não compreendo no meu irmão D. B. é que ele tanto odeie a guerra e me tenha obrigado a ler O Adeus às Armas no Verão passado. Disse-me que era um livro terrível. É isso que eu não compreendo. No livro há um tipo, o tenente Henry, que era um bom rapaz, etc., etc., etc. Ora não consigo perceber como é que o D. B. odeia a guerra e pode apreciar um idiota como esse Henry. Não com-preendo como é que ele pode gostar de um livro idiota e apreciar ao mesmo tempo as obras de Ring Lardner ou O Grande Gatsby, que ele adora. O D. B. ficou um pouco chateado quando lhe disse tudo isto e respondeu-me dizendo que eu era ainda muito novo.
Disse-lhes que gosto de Ring Lardner e de O Grande Gatsby. E gosto mesmo. Adoro O Grande Gatsby. O velho Gatsby ! Fico varado! Mas, mesmo assim, também fico contente por terem inventado a bomba atómica. Se houver outra guerra, prefiro que me espetem na ponta de uma bomba atómica. Até me oferecerei como voluntário. Palavra de honra!
SE por acaso não conhecem Nova Iorque, desde já vos digo que o Wicker Bar está instalado no Seton Hotel. Costumava ir lá muitas vezes, mas gradualmente fui-me deixando disso. É um sítio muito elegante e tresanda a idiotice por todos os lados. Costumavam ter lá duas francesas, Tina e Janine, que tocavam piano e cantavam três vezes por noite. Uma tocava piano-um horror, é claro-e a outra cantava. As canções ou eram pornográ-ficas ou eram francesas. A cantora, Janine, soprava sempre o microfone antes de cantar. Dizia, mais ou menos "E agorra gostarríamos de vos trransmitirr as nossas imprressões de Vooly Voo Frransay. Eis a histórria de uma frrancezinha que veio para uma grrande cidade como Nova Iorrque e se apaixonou porr um rapaz de Brrooklyn. Esperro que gostem." Depois soprava no microfone e cantava uma treta qualquer, meio em inglês, meio em francês, e os idiotas que a ouviam ficavam completamente tarados. Se estivéssemos ali uma hora a ouvir todos aqueles aplausos, acabaríamos por odiar o mundo inteiro, garanto--vos. O barman era outro estafermo, um grande snob. Só falava com os fregueses que fossem pessoas famosas. Se um tipo qualquer fosse uma celebridade do momento, era tão bajulador que até dava náuseas. Fazia uma grande reverência e dizia: "Viva! Como vão as coisas lá por Connecticut ?", ou: "Então, que me diz da Florida?" Era um bar terrível, já vos disse. Nunca mais lá pusera os pés.
Ainda era muito cedo quando entrei no bar. Sentei-me algures e bebi dois whiskies com soda antes que o Luce aparecesse. Levantei-me quando encomendei os whiskies só para que o criado visse como eu era alto e não pensasse que ainda era menor. Depois comecei a observar os idiotas que me cercavam por todos os lados. Um tipo mesmo ao meu lado tentava engatar uma miúda. Dizia-lhe que ela tinha mãos aristocráticas. Fiquei estupefacto. O outro extremo do bar estava cheio de maricas. É claro que não tinham aspecto de maricas-isto é, não eram daqueles com o cabelo muito comprido-, mas não deixavam de ser maricas. Finalmente apareceu o Carl Luce.
O Luce ! Que tipo! Foi o meu conselheiro quando estive em Whooton, mas a única coisa que fez foi falar em assuntos sexuais à noite, num grupo que se reunia no quarto dele. Sabia muitas coisas sobre assuntos sexuais, especialmente tudo o que se referia a pervertidos. Contou-me coisas tremendas de tipos nojentos que têm relações com ovelhas e de tipos que cosem cuecas de raparigas nos forros dos chapéus. E o Luce conhecia todos os maricas e todas as lésbicas dos Estados Unidos. Era dizer-lhe o nome de uma pessoa, e pronto! O Luce logo dizia se se tratava de maricas ou de lésbica. Por vezes até era difícil acreditar: actores de cinema, celebridades e tudo. Alguns dos maricas a que ele se referia eram casados, meu Deus! Andava sempre a dizer-lhe: " O quê? O Joe Blow, maricas? Aquele tipo cheio de músculos, que faz sempre de cow-boy ou de gangster?" E o Luce dizia: "Pois claro!" Estava sempre a dizer "Pois claro!" e garantiu-me que ser casado ou sol-teiro pouca diferença fazia. Disse-me que metade dos tipos casados eram maricas sem o saber. Até me disse que um fulano qualquer pode ficar maricas de um dia para o outro. Caramba! Fiquei assustado. Cheguei a pensar que ia tornar-me maricas. Mas o mais curioso é que o próprio Luce era meio maricas. Andava sempre a dizer "Deixa lá ver isso", e depois, especialmente nos corredores, tentava mexer-nos na braguilha. E quando ia à retrete ou ao lavatório deixava a porta aberta enquanto lavava os dentes ou outra parte do corpo. Isto é uma espécie de mariquice. Já conheci uns tantos maricas nas escolas por onde andei, e costumavam fazer estas coisas. Por isso tive sempre as minhas dúvidas sobre o Luce. Mas é certo que era um tipo muito inteligente.
Nunca cumprimentava ninguém. A primeira coisa que fazia, mal se sentava, era dizer que só se demoraria uns cinco minutos. Tinha um compromisso. Depois pedia um Martini, seco. Seco, mas sem azeitonas.
-Eh! Já topei um maricas - disse-lhe. - No fundo do bar. Não olhes. Tenho estado a guardá-lo para ti. - Sempre o mesmo Caulfield - disse ele. - Então quando te resolves a crescer ?
É claro que eu chateava-o. Mas o Luce divertia-se. Era um dos tipos que se divertia com a minha companhia.
- Então como vai a tua vida sexual? - perguntei-lhe. Era uma das perguntas que ele mais odiava. - Calma - disse ele. - Deixa-te estar sossegado, por amor de Deus!
- Mas eu estou sossegado - disse-lhe. - Então, e Colúmbia? Gostas da Universidade?
- Pois está visto que gosto - respondeu ele. - Se não gostasse, não teria ido para lá.
Quando queria, também sabia chatear o parceiro.
- E então, que estudas tu? - perguntei-lhe. - Perversões? - Por enquanto apenas brincava com ele.
- Achas que tens muita piada, ou quê?
- Não. É brincadeira - disse-lhe. - Ouve, Luce. Tu és um intelectual. Preciso do teu conselho. Estou numa terrível...
- Ouve, Caulfield! Se queres sentar-te aqui, a conversar tranquilamente...
- Está bem, está bem - disse eu. - Calma.
Luce não estava com disposição para discutir assuntos importantes. É o mal desses intelectuais. Nunca querem discutir coisas importantes, a menos que estejam com disposição para isso. Comecei a falar de assuntos gerais.
- Agora sem brincadeiras. E que tal de gajas? - perguntei-lhe. - Ainda andas com aquela miúda de Whooton ? Aquela que tinha um...
- Não, caramba! Não - disse ele. - E então? Que lhe aconteceu?
- Não tenho a mínima ideia. Já que queres saber, provàvelmente ela agora é a maior galdéria de New Hamp-shire.
- Que raio de coisa! Se era tão decente que andava sempre metida em sarilhos por tua causa, não devias falar desse modo.
- Oh, meu Deus! - disse Luce. - Queres continuar a falar dessas coisas, Caulfield? Diz lá.
- Não - respondi eu - mas não acho decente. Se ela permitia que tu...
- Ora bolas! É preciso continuar?
Calei-me. Receei que, se continuasse, ele me deixasse só. Pedi outra bebida. Apetecia-me uma grande bebedeira. - Com quem andas agora? - perguntei-lhe. - Pode-se saber?
- Não conheces.
- Sim, mas quem é ? Pode ser que eu conheça.
- É uma rapariga da village. Escultora. - Ah, sim? Caramba! E que idade tem? - Foi coisa que nunca quis saber. - Mas que aspecto tem?
- Talvez trinta e tal anos - disse o Luce.
- Trinta e tal anos? E gostas disso? - perguntei-lhe. - Gostas de velhas?
Só lhe perguntava isto porque o Luce era um dos tipos que sabia mais coisas sobre assuntos sexuais.
Perdera a virgindade aos catorze anos, em Nantucket. - Gosto de mulheres maduras, se é isso que queres saber.
- Ah, sim? Porquê? São melhores?
- Ouve! Há uma coisa em que devemos assentar. Recuso-me a responder a essas perguntas. Por que diabo não cresces tu?
Não lhe respondi imediatamente. Luce pediu outro Martini ainda mais seco.
- Ouve. Há quanto tempo andas com a escultora? - perguntei-lhe. Estava muito interessado. - Já a conhecias em Whooton?
- Não. Ela só veio para os Estados Unidos há coisa de uns três meses.
- Ah, sim? E donde é? - É de Xangai. - Caramba! É chinesa? - Pois claro.
- Caramba! E gostas? Uma chinesa? - Pois claro.
- Mas porquê? Caramba! Estou interessado. Diz lá! Já que perguntas, sempre te digo que acho a filosofia oriental mais satisfatória que a ocidental.
- Ah, achas? E que entendes por "filosofia"? Referes-te ao sexo e tudo? Achas que na China é melhor?
- Não é necessàriamente na China. Eu disse oriental. Mas porque falamos destas coisas?
- Ouve! Não estou a brincar! Mas porque é que é melhor na China ?
- É uma coisa muito complicada, meu Deus - disse o Luce. - Os Orientais consideram o sexo sob dois pontos de vista: um físico e outro espiritual. Se achas que eu...
- Ora aí está! Pois eu penso o mesmo. Acho que o sexo é uma experiência física e espiritual. Mas tudo depende da pessoa com quem eu estou. Se estou com uma tipa que nem sequer...
- Não fales tão alto, caramba! Se não consegues falar mais baixo, é melhor...
- Está bem, mas ouve - disse-lhe. Sentia-me muito excitado e por isso falava em voz alta. Às vezes falo em voz alta, especialmente quando estou muito excitado. - Eu sei que é uma coisa espiritual e física ao mesmo tempo, e até artística. Mas o que eu acho é que não podemos fazê-la com uma tipa qualquer. Ou supões que podemos?
- Se não te importas, deixemos esta conversa - pediu o Luce.
- Está bem, mas ouve! Por exemplo. Tu e a chinesa. Que é que há de bom entre vocês?
- Deixemo-nos disto, já disse.
É claro que a conversa derivara para um tópico pessoal. Mas era exactamente isso que me chateava no Luce. Quando estávamos em Whooton, era capaz de descrever tudo quanto lhe acontecera, mas se lhe fizéssemos perguntas, pronto! Chateava-se. Os intelectuais só gostam de conversar quando são eles que conduzem a conversa. Querem que nos calemos quando eles se calam. Quando eu estava em Whooton, o Luce ficava furioso se, depois de o termos ouvido, ficássemos ainda um pouco a debater o tema. Queria que, mal acabasse a conversa, saíssemos todos do quarto dele e nos fechássemos nos nossos. Receava que algum de nós fosse mais esperto que ele. Era uma coisa que me divertia.
- Talvez deva ir para a China. Tenho uma vida sexual muito suja - disse eu.
- Pois claro! Ainda não atingiste a maturidade.
- É isso. É isso mesmo - disse-lhe. - Sabes o que se passa comigo? Nunca consigo ser bastante sexual, isto é, com uma rapariga e tudo. Só se gostar muito dela. Se não gostar, perco logo o desejo. Caramba! É uma coisa tremenda!
- Pois claro! Já te disse várias vezes o que tu necessitas.
- Ir a um psicanalista? É isso? - perguntei.
Ele já mo dissera várias vezes. O pai dele era médico psicanalista.
- Isso é contigo. Não tenho nada com a tua vida. Não respondi logo. Comecei a pensar. - Suponhamos que eu consultava o teu pai e ele fazia-me um exame - disse-lhe. - Que me faria ele?
- Nada. Falaria contigo. Ajudar-te-ia a reconhecer o teu próprio espírito.
- O quê?
- O teu próprio espírito! O teu espírito!... Ouve. Não estou disposto a fazer um curso particular de psica-nálise. Se estás interessado, telefona-lhe e marca consulta.
Pus-lhe a mão no ombro. Caramba! O Luce divertia-me.
- És um estupor de um amigo - disse-lhe. - Já sabias? Olhou o relógio de pulso.
- Tenho de ir-me embora - disse ele. E levantou-se. - Prazer em ver-te. - Chamou o criado e pediu a conta. - Eh! - disse-lhe. - O teu pai já te examinou?
- A mim? Porque perguntas? - Por nada. Já te examinou?
- Não. Ajudou-me, mas nunca me examinou. Porque perguntas?
- Por nada. Estava a pensar.
- Bem. Toma cuidado contigo - disse-me, pondo a gorjeta na mesa.
- Toma outra bebida - disse-lhe. - Sinto-me terrivelmente só. Palavra de honra!
Disse que era impossível, que já era tarde. Saiu.
O Luce! Era um estupor, mas tinha um óptimo vocabulário. Tinha o maior vocabulário de Whooton. Tinham-nos feito um teste de vocabulário.
Continuei sentado, a embebedar-me, aguardando o aparecimento de Tina e Janine, que, afinal, já não cantavam naquele bar. Um tipo amaricado, com uma cabeleira enorme, sentou-se ao piano e começou a tocar, e depois uma fulana chamada Valencia trauteou umas canções. Não era nada de especial, mas, mesmo assim, cantava melhor que a Janine. O piano ficava mesmo junto do bar e a tal Valencia estava pràticamente em cima de mim. É claro que comecei a cocá-la, mas a fulana fingiu que não me via. Em circunstâncias normais, eu não lhe daria a mínima importância, mas já estava semibêbado. Quando acabou de cantar, safou-se com tal rapidez que nem tive tempo de a convidar para a minha mesa. Chamei o chefe dos criados e disse-lhe que perguntasse à Valencia se não se importaria que eu lhe oferecesse uma bebida. Veio dizer-me que ela não aceitara o convite, mas possivel-mente nem chegou a transmitir-lhe o recado.
Caramba! Fiquei no bar até à uma hora da madrugada, bêbado como um cacho. Nem via os objectos à minha frente. Fiz todos os possíveis para não cambalear. Não queria que reparassem que eu estava bêbado. Perguntar-me-iam a idade. Mas, cos diabos, não via mesmo nada em frente do nariz! Quando estou bêbado, lembro-me sempre daquela farsa da bala no estômago. Era o único tipo no bar com uma bala no estômago! E prosseguia a farsa! Meti a mão sob a camisa, a comprimir o estômago, para que o sangue não jorrasse. Não queria que descobrissem que estava ferido. Finalmente resolvi telefonar à Jane para ver se ela já estava em casa. Paguei a conta. Saí para o hall e dirigi-me à cabina telefónica. Continuei com a mão sobre o estômago, por causa do sangue.
Mas quando entrei na cabina telefónica não senti desejos de falar com a Jane. Estava muito bêbado. Preferi telefonar à Sally.
Marquei cerca de vinte números até acertar coma liga-ção. Caramba! Estava cego.
- Está? - perguntei eu quando responderam do outro lado do fio. Dei um grande berro, porque, como vos disse, estava muito bêbado.
- Quem fala? - respondeu-me uma voz estranha. - Sou eu. Holden Caulfield. Queria falar com Sally.
- A Sally está deitada. Daqui é a avó que fala. Mas que horas para telefonar! Sabe que horas são, Holden? - Sim. Quero falar com a Sally. É muito importante. Chame-a lá!
- A Sally está deitada. Telefone amanhã. Boa noite. - Acorde-a! Acorde-a, caramba! Depois falou outra voz:
- Holden! Sou eu, Sally. Que desejas? - Sally? És tu, Sally?
- Sim, mas não grites. Estás bêbado?
- Sim. Ouve. Ouve! Vou visitar-te na véspera de Natal. Okay? Faço-te uma árvore linda, sim? Okay, Sally?
- Está bem. Mas tu estás bêbado! Vai para a cama. Onde estás? Estás com alguém?
- Sally ? Faço-te uma árvore, sim? Okay ?
- Sim. Mas vai para a cama. Onde estás? Está alguém contigo ?
- Ninguém. Só eu.
Caramba! Estava a cair de bêbado e continuava a apertar o estômago.
- Chegaram-me. O grupo do Pockey acabou comigo. Sally, estás a ouvir?
- Não percebo nada. Vai para a cama. Telefona amanhã.
- Eh, Sally! Não queres que eu faça a árvore? Ou queres?
- Sim. Boa noite. Vai para a cama. Desligou o telefone.
- Boa noite, boa noite, Sally. Sally, querida, amor! - disse eu.
Vejam como eu estava bêbado! Depois desliguei. Provàvelmente a Sally acabara de chegar a casa. Deve ter estado algures, com os Lunts, pensei, e com aquele cretino de Andover. Andaram a nadar num bule de chá, a dizer coisas muito snobs, encantadoras e idiotas. Oh, quem me dera nunca lhe ter telefonado! Mas quando estou bêbado fico meio louco.
Deixei-me ficar na cabina durante algum tempo, agarrado ao telefone. Para vos ser franco, não me sentia muito bem. Finalmente dirigi-me para as retretes do bar, enchi um lavatório com água e meti a cabeça lá dentro. Nem sequer enxuguei o rosto. Depois sentei-me num radiador, perto da janela. Que bela sensação! Que calor! É claro que quando estou bêbado começo a tiritar com frio.
Como nada tinha para me entreter, deixei-me ficar ali sentado, a contar os ladrilhos brancos do chão. Estava todo encharcado. A água escorrera-me pelo colarinho e pela gravata, mas foi coisa que não me incomodou. Estava muito bêbado para me incomodar com essas insignifi-câncias. Súbitamente entrou o tipo do piano, o que acom-panhava a tal Valencia. Vinha pentear-se. Começámos a falar, mas o tipo não era muito loquaz.
- Eh! Encontrará a Valencia quando voltar ao bar? - perguntei-lhe.
- É possível - respondeu ele.
Mais um estupor. Passo a vida a topar com estupores. - Oiça! Então dê-lhe os meus cumprimentos e pergunte--lhe se o criado lhe deu um recado.
- Porque é que não vai para casa? Que idade tem? - Oitenta e seis. Oiça! Dê-lhe os meus cumprimentos. - Vá para casa, homem!
- Eu? Safa! Caramba, você sabe tocar piano - disse-lhe, só para o lisonjear. Mas para vos dizer a verdade, o tipo tocava horrorosamente. - Devia ir para a rádio -acrescentei. - Um tipo elegante como você, com essa cabeleira!
Não precisa de um...
- Vá para casa, homem. E despeje as tripas.
- Nessa é que eu não caio. Sem brincadeira! Não precisa de um...
Não me respondeu. Saiu. Já se penteara, e por isso saiu. Lembrava-me o Stradlater. Os elegantes são todos a mesma coisa. Mal se penteiam tratam de se raspar.
Quando por fim me levantei e me dirigi ao bengaleiro chorava como uma criança. Não sei porquê, mas chorava. Talvez porque me sentia deprimido e triste. Depois não consegui encontrar o talão do bengaleiro. A empregada do balcão era muito amável e acabou por me dar a gabar-dina e o disco que eu comprara para oferecer à minha irmã. Dei-lhe um dólar, mas ela não queria aceitar a gorjeta. Disse-me que fosse para casa, que fosse dormir. Tentei combinar um encontro com ela,, mas foi inútil insistir. Disse-me que já tinha idade para ser minha mãe. Mostrei--lhe a mancha de cabelo grisalho e disse-lhe que já tinha quarenta e dois anos - por brincadeira, é claro. Era uma óptima rapariga. Mostrei-lhe o boné de caça e ela gostou. Obrigou-me a pô-lo na cabeça, pois ainda tinha o cabelo molhado.
Já não me sentia muito bêbado quando cheguei à rua, mas batia os dentes com frio. Não conseguia dominar-me. Dirigi-me para a Madison Avenue e resolvi aguardar um autocarro, pois já não tinha muito dinheiro e era obrigado a fazer economias. Mas não me apetecia andar em auto-carros. Além disso, estava sem destino. Comecei a andar em direcção ao parque. Pensei ir até ao lago para ver se descobria os patos. Nem sequer sabia se estavam lá ou não. O bar não ficava longe do parque e não me recordei de outro sítio para onde pudesse ir. Nem sabia onde poderia passar a noite. Também não sentia fadiga. Estava apenas chateado, muito chateado.
Depois aconteceu uma coisa terrível, mesmo à entrada do parque. Deixei cair o disco, que se espatifou em mil pedaços. Estava metido num grande envelope, mas, mesmo assim, espatifou-se. Tive vontade de chorar, mas apanhei todos os pedaços e meti-os no bolso da gabardina. Já não prestavam para nada, mas achei indecente deixá-los ali no chão. Depois entrei no parque. Caramba! Estava escuro!
Vivi sempre em Nova Iorque e conheço o Central Park como a palma da minha mão, pois costumava patinar por ali ou andar de bicicleta quando era garoto, mas naquela noite só dificilmente dei com a lagoa. Sabia perfeitamente que estava mesmo ali, junto ao lado sul, mas não conseguia encontrá-la. Devia estar ainda mais bêbado do que supunha. Continuei a andar, e o parque cada vez se tornava mais negro e silencioso. Não avistei uma única pessoa. Pelo menos isso tranquilizava-me, pois, se visse um vulto, teria fugido a sete pés. Por fim, lá cheguei. Estava parcialmente gelado e não havia patos pelas redondezas. Contornei a lagoa-estive prestes a estatelar-me no gelo-, mas, mesmo assim, não descobri um único pato. Talvez estivessem a dormir, pensei, escondidos na erva, na margem da lagoa. Foi por isso que ia caindo. Mas não vi qualquer pato. Sentei-me num banco onde havia uma réstea de luz. Caramba! Todo eu tiritava e na nuca sentia pequenos pedacinhos de gelo colados aos cabelos. Fiquei um pouco amedrontado. Provàvelmente apanharia uma pneumonia e iria desta para melhor. Visionei imeditamente milhões de malandros a acompanharem o meu enterro. O meu avô de Detroit, que, quando anda de autocarro, repete incessantemente os números das ruas, as minhas tias-tenho perto de cinquenta tias-e os meus primos. Que malta! Vieram todos a Nova Iorque quando o Allie morreu, estúpi-dos como uma porta. Especialmente uma tia minha, que tem mau hálito e que, segundo me confidenciou o D. B., levou horas a dizer que o Allie estava muito bonito. Não presenciei a cena porque ainda estava no hospital. Tive de ir para o hospital quando cortei o pulso.
Estava, pois, muito preocupado com a pneumonia e com todo aquele frio. Poderia morrer. Só me sentia mais triste por causa da aflição dos meus pais. Especialmente por causa da minha mãe, que desde a morte do Allie nunca mais se recompôs. Vislumbrei-a logo, muito aflita, sem saber onde guardar os meus fatos e o meu equipamento de ginástica. Mas de uma coisa estava eu certo: não permi-tiria que a Phoebe fosse ao funeral, porque ainda era muito nova. E já não era nada mau. Depois vislumbrei também a malta toda no cemitério a meter-me numa cova com pedra e inscrição. Rodeado de mortos. Caramba! Quando um tipo morre, fecham-no a sete chaves. Oh, queira Deus que quando eu morrer haja alguém suficientemente esperto para me atirar a um rio! Tudo, menos espetarem comigo num cemitério. Há sempre pessoas que aos domingos vêm pôr flores sobre a cova, mesmo sobre o estômago do morto. E quando já estamos mortos, alguém se interessa por flores ? Ninguém.
Quando o tempo está bom, os meus pais vão frequentemente ao cemitério pôr flores na sepultura do Allie. Fui algumas vezes com eles, mas deixei-me disso. Em primeiro lugar, não gosto de ver o Allie num sítio daqueles, rodeado de mortos e de túmulos. Ainda escapava quando havia sol, mas por duas vezes-duas vezes, hem!-, quando estávamos lá, começou a chover. Foi terrível. A chuva caía sobre a sepultura, toda enlameada, sobre a relva e sobre o corpo do meu irmão. Caía em toda a parte. As pessoas que estavam no cemitério a visitar os mortos começaram a fugir para os automóveis. Fiquei varado. Todos podiam abri-gar-se nos carros, abrir os rádios e ir para um sítio decente-todos, excepto o Allie. É uma coisa difícil de suportar. Bem sei que no cemitério só está o corpo, mas, mesmo assim, é difícil de suportar. Quem me dera que ele não estivesse ali. É que vocês não o conheceram. Se o tivessem conhecido, compreenderiam o que eu digo. Como vos disse, ainda escapa quando o sol brilha, mas o sol só brilha quando quer brilhar.
Para afastar o espírito destas preocupações, da pneumo-nia e de tudo o mais, tirei a massa da carteira e tentei con-tá-la à luz escassa de um candeeiro do parque. Tudo o que me restava eram três dólares e meio e dez cêntimos. Caramba! Desde que saíra de Pencey gastara uma verdadeira fortuna. Depois sabem o que fiz? Fui até à lagoa e atirei as moedas que perfaziam o meio dólar (e os dez cêntimos) para a água, num sítio onde não havia gelo. Não sei porque o fiz. Talvez para afastar os pensamentos da pneumonia e da morte. Mas nada consegui, é claro.
Comecei a pensar na Phoebe quando ela soubesse que eu estava doente e ia morrer. Era um pensamento muito infantil, mas nada conseguia impedir-ine de pensar assim. Seria terrível para ela se me acontecesse uma desgraça. Gosta muito de mim. Gosta mesmo, garanto-vos. Não con-seguia afastar estes pensamentos, e por isso resolvi ir até casa só para ver a Phoebe, pois podia dar-se o caso de eu vir a morrer. Tinha uma chave e pensei em entrar sem ruído e conversar um pouco com ela. Só o que me preocupava era a porta da rua. Chia nos gonzos. A casa já é velha e o senhorio é um estupor que não lhe liga nenhuma. Os meus pais poderiam ouvir-me. Mas, mesmo assim, decidi tentar.
Saí do parque e dirigi-me a casa. Fui a pé. Não era longe e eu já não me sentia bêbado nem fatigado. Estava muito frio e não se via vivalma.
Mas a pior coisa que me aconteceu foi que Pete, o moço do ascensor, não estava de serviço.
Em vez dele, estava um outro tipo que eu nunca vira antes. Compreendi imediatamente que não conse-guiria entrar em casa à socapa e sair sem que ninguém desse pelo facto. Foi um percalço terrível. Mas, por felicidade, o tipo do ascensor tinha cara de estúpido. Disse-lhe, num tom de voz muito vulgar, que me levasse ao apartamento da família Dickstein. Viviam no apartamento contíguo ao nosso. É claro que eu tirara o boné de caça, para não levantar suspeitas. Entrei no elevador como se estivesse cheio de pressa.
O palerma entrou no elevador, fechou as portas e estava pronto para me levar lá acima quando subitamente se voltou para mim e disse
- Não estão em casa. Foram a uma festa no décimo quarto andar.
- Não faz mal - disse eu. - Espero por eles. Sou sobrinho de Mr. Dickstein.
Olhou-me com ar de dúvida.
- É melhor esperar no vestíbulo, amigo - aconselhou ele. - Gostaria muito de esperar no vestíbulo - disse eu - mas tenho uma perna magoada e só posso permanecer numa certa posição. Acho que é melhor sentar-me numa cadeira, à porta do apartamento.
Não entendeu patavina do que eu disse e apenas murmurou: "Oh!" Depois levou-me por ali acima. Que maravilha! Dizemos uma coisa que ninguém percebe, e pronto, fazem tudo o que desejamos.
Desci no patamar da minha casa-a coxear que nem um monstro-e dirigi-me para a porta dos Dicksteins. Depois, quando ouvi as portas do elevador fecharem-se, voltei-me e encaminhei-me para o lado oposto. Tirei a chave do bolso e abri a porta de mansinho. Com pés de lã, entrei e fechei a porta cuidadosamente. Caramba! Tinha jeito para larápio!
Estava escuro como breu no vestíbulo, mas é claro que não acendi a luz. Tinha de andar com cuidado para não tropeçar numa cadeira. Senti imediatamente que estava em casa. O vestíbulo tem um cheiro especial, como não há em parte alguma. Não sei bem do que se trata. Nem é couve-flor nem é perfume. Só sei que é o cheiro da minha casa. Comecei a despir a gabardina para a pen-durar no armário. Mas o armário está cheio de cabides e certamente faria um barulho tremendo. Desisti. Comecei a andar para o quarto da Phoebe. Sabia que a criada não conseguiria ouvir-me porque ela é semi-surda. Tinha um irmão que lhe espetou uma palha no ouvido quando era criança. Para dizer a verdade, era surda como uma porta. Mas os meus pais, especialmente a minha mãe, ouviam perfeitamente. Por isso, ao passar em frente do quarto deles nem buli. Até retive a respiração. Posso dar uma cacetada na cabeça do meu pai quando estiver a dormir que ele não acorda. Mas se tossir a cem quilómetros de distância, a minha mãe acorda imediatamente. É muito nervosa.
Passa metade das noites acordada, a fumar cigarros sobre cigarros.
Finalmente consegui chegar ao quarto da Phoebe. Mas ela não estava lá. Ora bolas! Esquecera-me de que dorme no quarto do D. B. quando ele está em Hollywood. Phoebe adora dormir lá porque é o maior quarto da casa/ e também por causa de uma grande secretária que o D. B. comprou a uma velha alcoólica, em Filadélfia, e da cama enorme, que parece ter um quilómetro de largura. Não sei onde ele arranjou aquela cama. Seja como for, a Phoebe gosta de dormir no quarto do D. B. quando ele anda por fora, e o D. B. não se importa. Haviam de vê-la a fazer os trabalhos escolares naquela enorme secretária. É tão grande como a cama. A Phoebe quase se some atrás dela. Mas é disso que ela gosta. Diz que não se sente bem no quarto dela, porque é muito pequeno. Diz que gosta de se estender à vontade. Fico varado. É que ela ainda não tem nada para estender.
Dirigi-me para o quarto do D. B. e acendi o candeeiro da secretária. A Phoebe nem sequer acordou. Contemplei-a durante momentos. Estava a dormir tranquilamente, com o rosto afundado na almofada. Tinha a boca semiaberta. É curioso! Os adultos, quando dormem, têm sempre um aspecto terrível, mas as crianças não. Podem babar-se e cuspir no travesseiro que, mesmo assim, não ficam com mau aspecto.
Comecei a andar pelo quarto, sempre com muito cuidado, examinando tudo. Por acaso, sentia-me bem. já nem pensava na pneumonia. Sentia-me bem. As roupas da Phoebe estavam sobre uma cadeira junto da cama. Era muito arrumada e não deixava as roupas caídas no chão. Pusera o casaco que a minha mãe lhe trouxe do Canadá nas costas da cadeira. O resto-a blusa e as outras roupas-estava no chão, debaixo da cadeira, cuidadosa-mente arrumado. Não conhecia aqueles sapatos. Eram novos, de pelica negra, como uns que eu já tivera, e condiziam com o casaco. A minha mãe gosta de ver a Phoebe bem vestida e tem um gosto esplêndido. É claro que não sabe comprar patins de gelo, mas em vestuário é perfeita. A Phoebe anda sempre com uns fatos como é difícil encontrar-se muitas vezes. É que as raparigas, embora sejam ricas, por vezes andam com uns vestidos pavorosos! Só queria que vocês vissem a Phoebe com o casaco que a minha mãe lhe trouxe do Canadá. Não estou a brincar, acreditem.
Sentei-me à secretária do D. B. e examinei os objectos que se amontoavam sobre o tampo. Era quase tudo da Phoebe : livros escolares e coisas semelhantes. Livros. Um deles chamava-se A Aritmética Tem Piada! Abri a primeira página e li: Phoebe Weatherfield Caulfield-4B-i. Fiquei varado! Ela chama-se Josephine, e não Weather-field. Mas não gosta do nome e anda sempre a inventar outros.
Sobre a aritmética estava um compêndio de geografia e sobre a geografia uma gramática. Sabe muito de gramática. É muito boa aluna, mas a gramática é o assunto de que
mais gosta. Depois havia um grande número de cadernos. Tem perto de quinhentos cadernos. Nunca vi uma criança com tantos cadernos. Abri um, ao acaso, e li
Bernice, vem ter comigo, tenho coisas muito importantes a contar-te.
Era tudo o que escrevera na primeira página. Na página seguinte li
Porque haverá tantas fábricas no Sudeste do Alasca ? Porque haverá tanto salmão,
E porquê tão valiosas florestas? Porque tem um clima propício.
E que faz o nosso Governo para melhorar as condições De vida dos Esquimós?
Tudo isto é para amanhã!!! Phoebe Weatherfield Caulfield. Phoebe Weatherfield Caulfield. Phoebe Weatherfield Caulfield. Phoebe Weatherfield Caulfield. Phoebe Weatherfield Caulfield, esquimó. Passa este caderno à Shirley!
Shirley, tu disseste-me que eras sagitária;
Mas foi o Touro que te deu os patins quando vieste a minha casa.
Fiquei ali sentado à secretária do D. B. e li o caderno inteiro. Não levei muito tempo a lê-lo e, além disso, sei ler estas coisas infantis. É das coisas que mais gosto. Acendi outro cigarro-o último. Devo ter fumado três maços naquele dia. Depois, finalmente, acordei-a. Não podia ficar ali sentado durante o resto da noite e, além disso, os meus pais poderiam acordar e eu queria dizer adeus à Phoebe. Acordei-a, pois.
Acorda com muita facilidade. Nem é preciso despertá-la com um berro. Sentei-me na cama e disse: "Acorda, Phoebe." E pronto, ela acordou.
- Holden! - disse imediatamente, abraçando-me logo. É muito carinhosa. Por vezes, é demasiadamente carinhosa. Dei-lhe um beijo e ela perguntou: - Quando é que chegaste a casa?
Via-se que estava muito contente.
- Não fales tão alto. Cheguei agora mesmo. Como estás tu?
- Estou óptima. Recebeste a minha carta? Escrevi-te cinco páginas...
- Sim, não fales tão alto. Obrigado pela carta.
É verdade! Escrevera-me uma carta, mas eu não tive oportunidade de lhe responder. Falava-me numa peça que ia representar na escola. Pedia-me que a viesse ver na sexta-feira e não marcasse encontros para aquele dia.
- Como vai a peça? - perguntei-lhe. - Como é que se chama?
- Auto do Natal para os Americanos. É horrível. Mas eu, na peça, faço de Benedict Arnold. É o papel mais importante - disse ela.
Caramba! Estava completamente acordada. Fica sempre muito excitada quando fala de coisas desta natureza. - Começa mesmo quando estou a morrer. Vem um fantasma, na véspera do Natal, e pergunta-me se eu não estou envergonhada e arrependida. Sabes como é. Traições e coisas assim. Vais ver? - Já estava sentada na cama. - Já te contei na carta, lembras-te? Vais ver?
- É claro que vou.
- O pai não pode ir. Vai à Califórnia - disse ela. Caramba! Estava esperta como um diabo. Leva dois segundos a ficar completamente acordada. Estava sentada, ou, melhor, ajoelhada na cama, e segurava-me as mãos. - Ouve ! A mãe disse que tu só chegarias na quarta-feira - continuou. - A mãe disse quarta-feira.
- Vim mais cedo. Não fales tão alto. Acabas por acordar meio mundo.
- Que horas são? A mãe disse que hoje chegariam muito tarde. Foram a uma festa em Norwalk - disse a Phoebe. - Vê lá se descobres o filme que eu fui ver hoje!
- Não sei. Ouve! Não disseram a que horas chegariam? - The Doctor - disse Phoebe. - É um filme especial da Fundação Lister. Só o levavam hoje. Só uma única sessão, hoje. É acerca de um médico do Kentucky que punha um cobertor sobre a cabeça de uma rapariga que não podia andar. É claro que o meteram na cadeia. Só te digo que é excelente.
- Espera um minuto. Não te disseram a que horas chegariam?
- O médico tinha pena da rapariga, e por isso pôs-lhe um cobertor em cima da cabeça e sufocou-a, tentou matá-la. Meteram-no na cadeia a vida inteira, mas um dia a rapariga veio visitá-lo e agradecer-lhe o que ele fizera. O médico era um tipo misericordioso. Mas sabia que merecia a cadeia, pois os médicos não podem fazer coisas contra a vontade de Deus. A mãe de uma colega minha levou-me ao cinema. A Alice Holmborg. É a minha melhor amiga. É a única rapariga em toda a...
- Mas espera um segundo - disse eu. - Fiz-te uma pergunta. Disseram ou não a que horas regressariam? - Não, mas regressarão muito tarde. O pai levou o carro para não se preocuparem com os comboios. Agora o carro tem um rádio magnifico, mas a mãe disse que não podemos ouvir música quando vamos pela cidade.
Comecei a tranquilizar-me. Preocupava-me pensar que poderiam apanhar-me em casa. Acabei por não me preocupar com o assunto. Queria lá saber!
Quem me dera que pudessem ver a Phoebe ! Estava com um pijama azul com elefantes vermelhos na gola. É louca por elefantes.
- Com que então era um bom filme? - perguntei-lhe. - Óptimo, mas a Alice estava constipada e a mãe dela passou todo o filme a perguntar-lhe se sentia febre. Até no meio do filme! No meio de uma coisa importante, a mãe curvava-se para a frente e desatava a perguntar se a Alice estava com febre. Acabei por ficar nervosa. Depois contei-lhe o que acontecera ao disco.
- Ouve, comprei-te um disco - disse-lhe - mas quebrei-o quando vinha para casa. - Mostrei-lhe os pedaços do disco.
- Dá-me esses pedaços - disse ela. - Sei arranjá-los. - Tirou-mos da mão e meteu-os na gaveta da mesa-de-cabeceira.
- O D. B. vem a casa pelo Natal? - perguntei-lhe. - Talvez sim, talvez não, disse-me a mãe. Depende. Talvez seja obrigado a ficar em Hollywood a escrever um filme sobre Annapolis.
- Annapolis ?
- É uma história de amor. Adivinha quem é o actor do filme! Adivinha!
- Não me interessa. Annapolis! Mas que é que o D. B. sabe de Annapolis? E que tem isso a ver com as histórias que ele costuma escrever?
Caramba! Essa coisa de Annapolis dava comigo em maluco!, Só em Hollywood!
- Que tens tu no braço? - perguntei-lhe, pois reparei que tinha uma tira de adesivo no cotovelo. É claro que o pijama não tinha mangas.
- Um rapaz da minha aula, o Curtis Weintraub, empurrou-me quando eu ia a descer as escadas - disse ela. - Queres ver? - acrescentou, começando a tirar o adesivo.
- Está sossegada. E porque é que ele te empurrou? - Não sei. Parece que me odeia - disse a Phoebe. - Eu e a Selma Atterbury deitámos-lhe tinta na gabardina. - Não devias ter feito isso. Que julgas tu que és? Uma miúda pequena?
- Não, mas sempre que vou ao parque ele começa a andar atrás de mim. Anda sempre atrás de mim. Até faz nervos.
- Provàvelmente gosta de ti. Não é motivo para lhe deitares...
- Mas eu não quero que ele goste de mim - disse ela. Depois começou a olhar-me com modos estranhos. - Holden - disse ela - porque vieste para casa antes de quarta-feira.
- O quê?
Caramba! Era preciso vigiá-la constantemente. Se julgam que ela é parva, enganam-se.
- Porque vieste antes de quarta-feira? - repetiu. - Foste posto na rua?
- Já te disse. Deixaram-nos sair mais cedo. Deixaram... - Foste posto na rua! Foste! - disse Phoebe.
Depois deu-me um soco na perna. Sempre que quer, torna-se muito ríspida.
- Oh, Holden! - disse ela, com a mão sobre a boca. É muito emocional.
- Mas quem disse que fui posto na rua? Ninguém disse...
- Mas foste. Foste! - insistiu ela. E voltou a bater-me na perna. Se vocês julgam que não magoa, então são parvos. - O pai mata-te - disse ela. Depois deitou-se de barriga
para baixo e tapou a cabeça com as almofadas. Costuma fazer isto muitas vezes.
- Deixa-te de tretas - disse eu. - Ninguém me mata. Ninguém... Vamos, Phoebe, tira isso da cabeça.
Mas ela nem me ouvia. Quando não quer fazer uma coisa qualquer, ninguém consegue obrigá-la. Apenas repetia incessantemente: "O pai mata-te, o pai mata-te." Mas era difícil compreender o que dizia por causa das almofadas.
- Ninguém me mata; não sejas parva. Em primeiro lugar, vou-me embora. Talvez arranje emprego numa herdade. Conheço um tipo cujo avô tem uma herdade no Colorado. Vou para lá - disse-lhe. - Mas manterei contacto contigo. Vamos. Tira isso da cabeça. Vamos, Phoebe. Então, Phoebe ?
Mas ninguém a demovia. Tentei arrancar-lhe as almo-fadas, mas ela é forte como o Diabo. Fiquei cansado. Caramba! Se resolve tapar a cabeça com uma almofada, tapa mesmo!
- Phoebe, por favor! Vamos, Phoebe! Vamos! Eh, Weatherfield! Então?
Nada consegui. Há ocasiões em que é impossível compreendê-la. Finalmente ergui-me, saí para o vestíbulo, tirei uma mão-cheia de cigarros de uma caixa que estava sobre a mesa e meti-os no bolso.
Quando voltei ao quarto, ela não tinha as almofadas sobre a cabeça-eu já sabia-, mas não olhou para mim, embora estivesse deitada de costas. Quando me sentei na beira da cama, voltou a cara para o outro lado. Tentava votar-me ao ostracismo, tal como a equipa de esgrima de Pencey quando eu deixei o equipamento no comboio.
- Então como vai a Hazel Weatherfield? - perguntei-lhe. - Tens escrito novas histórias? A que me enviaste está dentro da minha mala. Deixei-a na estação. É muito boa.
- O pai mata-te!
Caramba! Não havia meio de esquecer aquela treta. - Não mata, não. Vai fazer-me passar um mau bocado e depois espeta comigo numa escola militar. É isso que ele vai fazer. Mas, é claro, não me apanha, porque eu vou para o Colorado, para a tal herdade.
- Não me faças rir. Nem sequer sabes montar um cavalo.
- Quem te disse isso? Sei, pois. É uma coisa que se aprende em dois minutos - disse eu. - Não puxes isso. - Ela estava a puxar o adesivo. - Quem te cortou o cabelo assim? - perguntei-lhe. Acabara de reparar que ela estava com o cabelo muito curto.
- Não tens nada com isso - disse ela. Há ocasiões em que sabe ser ríspida.- Possivelmente foste chumbado em todas as disciplinas - disse ela, muito severa. É claro que também, tinha uma certa graça. É ainda uma criança, mas parece um mestre-escola.
- Não, não chumbei - disse eu. - Passei em Inglês. - Depois, só para brincar, dei-lhe um beliscão no rabo. Ela tinha o rabo a ver-se, por causa da posição em que estava deitada. Mas o rabo ainda era muito pequeno. Não a magoei, mas, mesmo assim, ela tentou dar-me um sopapo na mão.
Depois, súbitamente, Phoebe perguntou: - Oh, mas porque é que reprovaste? Senti-me triste.
- Oh, por amor de Deus, Phoebe, não me perguntes. Já estou doente só de ouvir isso tantas vezes - disse eu. - Reprovei por milhões de motivos. Em primeiro lugar, porque a escola era das piores que tenho frequentado. Estava cheia de cretinos e tipos falhados. Nunca vi tantos falhados em toda a minha vida. Por exemplo, se havia paródia no quarto de um fulano qualquer e algum de nós queria entrar na paródia, os outros não abriam a porta. Andavam sempre a fechar as portas a sete chaves. E tinham uma fraternidade secreta, que não me agradava. Havia um tipo muito chato, coberto de borbulhas, um tal Robert Ackley, que fazia todos os esforços para entrar nos grupos, mas não queriam saber dele. Só porque tinha borbulhas e era um chato. Nem gosto de falar no assunto. A escola era simplesmente fedorenta. Palavra de honra.
A Phoebe nada disse. Escutava, porém. Garanto-vos que escutava, pois eu conheço-a perfeitamente. Escuta sempre tudo o que lhe dizemos. E o mais curioso é que compreende perfeitamente tudo quanto dizemos. Continuei a discorrer sobre Pencey. Até me fazia bem. - Os únicos professores que se safavam também eram cretinos - continuei eu. - Havia um deles que era velho, um tal Spencer. A mulher dele oferecia-nos chocolate quente e era boa pessoa. Mas havias de vê-lo quando o director da escola, o velho Thurmer, veio assistir a uma aula de História e se sentou .no fundo da sala. O director andava sempre a assistir às aulas. Fingia que entrava incógnito, ou coisa semelhante. Depois de estar sentado, a escutar, durante alguns minutos, interrompeu o Spencer e começou a contar anedotas imbecis. O Spencer ia dando cabo do canastro a rir às gargalhadas, todo mesuras, como se o Thurmer fosse um príncipe importante.
- Deixa-te de tretas!
- Digo-te que até vomitarias as tripas se te contasse tudo - respondi-lhe. - Depois, no Dia dos Veteranos, que é o dia em que todos os malandros que se formaram em Pencey desde 1776 voltam à escola com as mulheres e os filhos, havias de ver o que fez um patife que devia ter perto de cinquenta anos. Entrou no nosso quarto e perguntou-nos se podia ir à casa de banho. A casa de banho fica no fundo do corredor. Não conseguia perceber porque é que nos perguntou se podia ir à casa de banho! Sabes o que é que ele disse? Disse que queria ver se as iniciais dele ainda estavam gravadas na porta de uma das sentinas. O idiota tinha gravado as iniciais há uma data de anos e queria saber se ainda lá estavam! Eu e o meu colega de quarto levámo-lo até à retrete e ficámos à espera enquanto o cretino procurava as iniciais. E, entretanto, ia-nos dizendo que os dias que passara em Pencey haviam sido os mais felizes de toda a sua vida, dando-nos conselhos e coisas idênticas Caramba! Fiquei varado! Não quero dizer que o tipo fosse mau homem-não era. Mas não é preciso ser-se um tipo com mau fundo para deprimir o parceiro.
Se queres entristecer-me, é dares-me uma série de conselhos estúpidos enquanto procuras as tuas iniciais gravadas na porta de uma retrete, e está o caso arrumado. Mas, mesmo assim, não sei! Talvez não fosse tão mau se o diabo do homem não estivesse sempre a resfolgar. Perdera o fôlego só de subir as escadas e enquanto tentava encontrar as ini-ciais esteve sempre a resfolgar e a dizer-nos, a mim e ao Stradlater, que aproveitássemos Pencey ao máximo. Meu Deus, Phoebe ! Não consigo explicar. Não gostei das coisas que aconteciam em Pencey. Não consigo explicar.
Phoebe disse qualquer coisa, mas eu não pude com-preender porque ela tinha a boca semioculta pela almofada. - O quê? - disse eu. - Abre a boca. Não posso ouvir-te. - Tu nunca gostas das coisas que acontecem seja onde for.
Ainda fiquei mais triste.
- Gosto, sim. Gosto, sim! Não digas isso. Por que diabo dizes isso?
- Porque tu não gostas. Não gostas de escolas. Não gostas de um milhão de coisas diferentes. Não gostas! - Gosto! É nisso que te enganas! É exactamente nisso que te enganas! Por que diabo dizes tu uma coisa dessas? Caramba! Sentia-me cada vez mais deprimido.
- Porque tu não gostas! - insistiu ela. - Diz-me lá uma coisa de que tu gostes.
- Uma coisa? Uma coisa de que eu goste? Okay! Mas não conseguia concentrar-me. Às vezes é difícil concentrarmo-nos.
- Referes-te a uma coisa de que eu goste muito? - perguntei.
Phoebe não respondeu. Estava numa posição incrível, no outro extremo da cama.
- Vamos, responde - disse eu. - Uma coisa de que eu goste muito, ou uma coisa de que eu apenas goste? - Uma de que gostes muito.
- Óptimo - disse eu. Mas, cos diabos, não conseguia concentrar-me. Só me recordava das duas freiras que andavam a pedir esmola com dois cestos de palha, espe-cialmente da que tinha óculos com aros de ferro. E de um tipo que eu conheci em Elkton Hills. Em Elkton Hills havia um tipo chamado James Castle, que nunca retirou o que dissera acerca de um outro gajo chamado Phil Stabile. James Castle disse que o Stabile era um presumido, e um dos amigos do Stabile procurou-o e exigiu que ele retirasse o que dissera. Mas ele negou-se. Stabile e outros seis malan-dros foram ao quarto- do Castle, fecharam a porta à chave e tentaram obrigá-lo a retirar a ofensa. Mas ele não cedeu. Fizeram-lhe mil e uma perversidades. Nem vos digo o que lhe fizeram-foi uma coisa repugnante-, mas, mesmo assim, o Castle não cedeu. E haviam de vê-lo! Era um tipo magro e fraco, com uns pulsos que pareciam lapiseiras. Finalmente, só para não retirar o que dissera, deitou-se da janela abaixo. Eu estava na banheira e ouvi-o cair. Pensei que qualquer coisa caíra da janela, um aparelho de rádio, uma mesa, qualquer coisa, menos um rapaz. Depois ouvi muitos passos no corredor, muita gente a correr pelas escadas; vesti o roupão e desci as escadas, e lá estava o bom do James Castle caído nos degraus de pedra, à entrada da escola. Estava morto, e havia dentes espalhados pelo chão coberto de sangue. Ninguém queria aproximar-se dele. Ainda trazia a camisola que eu lhe emprestara. Os tipos que o haviam perseguido apenas foram expulsos. Nem sequer os meteram na cadeia.
Era nisso que eu pensava. Nas duas freiras que encon-trara ao pequeno almoço e neste rapaz que se chamava James Castle e que eu conheci em Elkton Hills. Mas, se querem que vos diga a verdade, a parte mais cómica é que mal conheci o James Castle. Era um tipo muito sossegado. Pertencia à minha turma, mas estava sentado numa carteira no outro extremo da sala e raramente ia ao quadro. Há tipos nas escolas que raramente vão ao quadro. Suponho que a única vez que falámos foi quando ele me perguntou se eu lhe podia emprestar a camisola. Fiquei tão surpreendido com o pedido que ia desmaiando. Recordo-me de que estava a lavar os dentes quando ele veio pedir-me a camisola. Disse-me que um primo dele vinha buscá-lo para dar um passeio pelos arre-dores. Eu nem sequer me lembrava da camisola que ele me pedia. O nome dele estava mesmo antes do meu na lista dos alunos. Cabe], Castle, Caulfield. Ainda me lembro perfeitamente. E, para vos ser franco, estive para não lhe emprestar a camisola, só porque não o conhecia muito bem.
- O quê? - perguntei eu à Phoebe. Ela dissera qualquer coisa, mas eu não percebera.
- Não podes recordar-te de uma única coisa? - Posso, sim. Já te disse que posso.
- Então lembra-te.
- Gosto do Allie - disse eu. - E gosto de fazer exactamente o que estou a fazer agora, aqui sentado contigo, a conversar, a pensar...
- O Allie já morreu! Andas sempre a dizer a mesma coisa. Se uma pessoa já morreu, e está no Céu, e tudo o mais...
- Eu sei que ele já morreu! Ou julgas que não sei? Mas parece-me que posso continuar a gostar dele, ou não? Lá porque uma pessoa morre, nunca mais pensamos nela, hem? E, ainda para cúmulo, quando a pessoa que morreu é cem mil vezes melhor que as pessoas que estão vivas. A Phoebe nada respondeu. Quando não consegue pensar em qualquer coisa, não abre a boca.
- Além disso, gosto do que estou a fazer agora, aqui. Aqui mesmo. Sentado aqui, a conversar...
- Mas isso não é uma coisa!
- Ai isso é que é ! É pois! Por que diabo não é ? As pessoas não pensam só em coisas. Já estou enjoado de ouvir sempre as mesmas tretas.
- Deixa-te disso! Então diz outra coisa de que tu gostes. Ou, melhor, uma coisa que gostarias de ser. Cientista, advogado, qualquer coisa.
- Não poderia ser cientista, porque não gosto de ciências.
- Então, advogado, como o pai.
- Os advogados são úteis, mas não me interessam - disse eu. - É claro que são úteis quando salvam inocentes, mas não é isso que os advogados fazem. Ganham muita massa, jogam golf e brídege, compram automóveis, bebem Martinis e passam por grandes pessoas. E, além disso, se eu fosse advogado e andasse sempre a salvar inocentes, como saberia eu que salvava os inocentes só porque os queria salvar, ou apenas porque gostava de ser um advogado famoso, a quem toda a gente cumprimentava no tribunal, depois do julgamento? Os jornalistas e toda a gente, como nos filmes? Quem saberia se eu era ou não era um cretino? Ninguém.
Não sei se ela compreendeu o que eu disse, porque é ainda muito nova, mas, pelo menos, escutava. Já não é nada mau!
- O pai mata-te. O pai mata-te - repetiu ela.
Mas eu nem a ouvia. Estava a pensar noutra coisa, uma coisa estúpida.
- Queres saber o que eu gostaria de ser? Isto é, se pudesse escolher?
- O quê?
- Conheces aquele poema: Quando Duas Pessoas se procuram no Centeio? Eu...
- É assim: Quando Duas Pessoas Se Encontram no Centeio. É um poema de Robert Burns.
- Eu sei que é um poema de Robert Burns - respondi. Mas, é claro, não sabia. - Pensei que era Quando Duas Pessoas se Procuram no Centeio - disse eu. - Ando sempre a pensar em dois miúdos que brincam num grande campo de centeio, ou, melhor, milhares de miúdos, e não há por ali uma única pessoa crescida a não ser eu. E eu estou mesmo à beira de um grande precipício. O que tenho a fazer é agarrar os miúdos que estão já na beira do precipício, isto é, quando estão distraídos e andam a correr por ali. É nessa altura que eu apareço para os salvar. Gostava de fazer isso o dia inteiro. Seria apenas o vigia do campo de centeio. Sei que é uma parvoíce, mas seria a única coisa que me agradaria. Mas sei que é uma parvoíce.
Phoebe nada disse durante algum tempo. Depois apenas repetiu:
- O pai mata-te.
- Se me matar, pouco me interessa - disse eu. Súbitamente ergui-me. Apetecia-me telefonar a Mr. Antolini, o meu antigo professor de Inglês em Elkton Hills. Vivia em Nova Iorque. Ensinava Inglês na Universidade de Nova Iorque.
- Tenho de fazer um telefonema - disse eu. - Já volto. Não adormeças.
Não queria que ela adormecesse enquanto eu estivesse no vestíbulo. Ela não adormeceria, mas, mesmo assim, avisei-a.
Quando me dirigia para a porta, Phoebe gritou: - Holden! - Voltei-me para ela.
Estava sentada na cama e nunca a vira tão bonita. - Agora tenho lições de canto com Miss Phyllis Margilies - disse ela. - Ouve!
Ouvi qualquer coisa, de facto.
- Bem - disse eu. Depois saí para o vestíbulo e telefonei a Mr. Antolini.
Fiz uma chamada telefónica muito rápida, pois temia que os meus pais aparecessem exactamente enquanto eu estava a telefonar. Felizmente, não apareceram. Mr. Antolini foi muito gentil. Disse-me que, se qui-sesse, podia ir lá a casa imediatamente. Provàvelmente acordei-o, a ele e à mulher, pois demorou muito tempo a atender a chamada. A primeira coisa que me perguntou foi se eu estava em apuros, e eu disse-lhe que não. Disse-lhe que fora corrido de Pencey. Achei melhor dizer-lho. Ele exclamou: "Meu Deus!" Era um homem com um belo senso de humor. Disse-me que, se eu quisesse, podia ir imediatamente para casa dele.
Mr. Antolini foi o meu melhor professor. Era ainda muito novo, pouco mais velho que o D. B., e nós podíamos brincar com ele sem lhe faltarmos ao respeito. Foi ele a única pessoa que levantou do chão o James Castle, o rapaz que se atirou da janela, como já contei. Mr. Anto-lini apalpou-lhe o pulso e depois despiu o casaco e cobriu o corpo do James Castle. A seguir levou-o para a enfermaria. Nem sequer se importou que o casaco tivesse ficado sujo de sangue.
Quando regressei ao quarto do D. B., a Phoebe ligara a telefonia. Transmitiam música de dança. O aparelho tocava em surdina para que a criada não acordasse. Haviam de vê-la! Estava sentada no meio da cama, destapada, com as pernas cruzadas como fazem os tipos que praticam yoga. A ouvir, música!
- Vamos - disse eu. - Queres dançar?
Ensinara-a a dançar quando ela era ainda uma garota muito pequena. Dança muito bem. Eu só lhe ensinei uns passos, mas ela aprendeu o resto. É impossível ensinar uma pessoa a dançar perfeitamente.
- Estás calçado - disse ela.
- Mas eu descalço-me - respondi.
Saltou da cama e esperou que eu me descalçasse. Depois começámos a dançar. É uma óptima dançarina. Não gosto de pessoas crescidas que dançam com crianças, porque o espectáculo é horrível. Refiro-me, particular-mente, aos avós que, num restaurante, começam a dançar com as netas. Normalmente arrepanham os vestidos das crianças, dificultando-lhes os movimentos, mas em público nunca danço com a Phoebe. Só em casa. Além disso, ela sabe dançar como pouca gente. Mesmo quando a aperto, ela não se incomoda, embora as minhas pernas sejam muito mais altas que as dela. Aguenta todos os géneros de dança. Até sabe dançar o tango.
Dançámos quatro músicas. Enquanto não começava outra música, ela ficava em posição. Nem falava. Ficá-vamos ambos em posição, aguardando que a orquestra começasse a tocar. Mas nem ousei rir.
Dançámos quatro músicas e depois desliguei o rádio. A Phoebe saltou para a cama e meteu-se debaixo dos lençóis.
- Já danço melhor, não achas? - perguntou ela.
- Caramba! - respondi. Sentei-me novamente junto dela. Sentia-me sem fôlego. Fumava de mais, é claro. Ela nem sequer arfava.
- Põe a mão na minha testa - disse ela súbitamente. - Para quê?
- Põe a mão.
Pus-lhe a mão na testa, mas nada notei. - Achas que estou com febre?
- Não. Parece-me que não.
- Mas estou. Estou a fazer febre. Põe lá a mão outra vez. Pus-lhe novamente a mão na testa, mas nada senti. Contudo, disse-lhe
- Sim, parece-me que já está mais quente. - Não queria arranjar-lhe um complexo de inferioridade.
Ela anuiu com um sinal.
- Até consigo fazer subir o termómetro. - O termómetro? E quem te ensinou isso?
- Foi a Alice Holmborg. Cruzamos as pernas e começamos a pensar numa coisa muito quente. Um irradiador, por exemplo. A testa aquece tanto que até pode queimar a mão de uma pessoa.
Fiquei varado! Tirei a mão da testa da Phoebe. - Obrigado por me teres avisado - disse.
- Oh, nunca queimaria a tua mão. Parei antes de... Shhhh! - Depois, rápida como um raio, sentou-se direita na cama.
Fiquei assustado. - Que é? - perguntei.
- A porta da rua! - disse ela, num sussurro. - São eles!
Ergui-me num pulo e apaguei a luz. Esmaguei a ponta do cigarro e meti-a no bolso. Agitei os braços para esvanecer o fumo. Que cretinice ! Nunca devia ter fumado! Enfiei
os sapatos nos pés, meti-me na retrete e fechei a porta. Caramba! Tremia dos pés à cabeça.
Ouvi a minha mãe entrar no quarto.
- Phoebe! - disse ela. - Deixa-te de brincadeiras. Vi a luz acesa, menina!
- Olá - ouvi a Phoebe dizer. - Não conseguia adormecer. Então? Divertiu-se?
- Maravilhosamente - disse a minha mãe. Mas percebia-se que não era sincera. Não gosta muito de sair. - E porque é que estás acordada? Estás com frio?
- Não. Não estou. Não tinha sono. - Phoebe! Estiveste a fumar? Diz-me a verdade, menina!
- O quê? - perguntou a Phoebe. - Tu já ouviste.
- Só acendi um. E só puxei uma fumaça. Depois atirei-o pela janela.
- Porquê, se me permites perguntar? - Não conseguia dormir.
- Não gosto disso, Phoebe. Não gosto, não - disse a minha mãe. - Queres outro cobertor? - perguntou. - Não, obrigada. Boa noite - disse Phoebe. Tentava livrar-se dela.
- E o filme? Foi bom?
- Excelente, mas a mãe da Alice esteve sempre a perguntar se a filha tinha febre. Viemos de táxi.
- Deixa ver a testa.
- Não apanhei nada! A Alice não estava doente. Era só a mãe que julgava que ela tinha febre.
- Bem. Agora dorme. E o jantar? Gostaste? - Uma porcaria - disse Phoebe.
- O pai já te disse que não empregues essa palavra. Porcaria, porquê? Costeletas de carneiro. Corri toda a Lexington Avenue só para...
- As costeletas estavam boas, mas a Charlene anda sempre a respirar em cima de mim quando põe a comida na mesa. Até respira em cima da comida. Respira em cima de tudo.
- Bem. Agora dorme. Dá cá um beijo. Rezaste?
- Rezei na casa de banho. Boa noite!
- Boa noite. Adormece já. Estou com dores de cabeça! - disse a minha mãe. - É frequente.
- Toma aspirina - disse a Phoebe. -O Holden só chega na quarta-feira, não é ?
- Pelo menos é o que ele diz. Vamos! Tapa-te!
Ouvi a minha mãe sair e fechar a porta. Esperei ainda uns minutos. Depois saí da retrete. Ia caindo sobre a Phoebe, pois estava escuro como breu e ela saltara da cama para vir falar comigo.
- Magoei-te? - perguntei, num sussurro. - Tenho de me raspar - disse-lhe. Tacteei a cama e sentei-me. Comecei a calçar os sapatos. Para vos ser franco, estava muito nervoso.
- Não vás já - pediu a Phoebe. - Espera que eles adormeçam.
- Não. Vou já. Agora é que é boa ocasião - disse eu. - A mãe está na casa de banho e o pai está a ouvir o noticiário.
Quase não conseguia abotoar os atacadores. Caramba! Que nervosismo! É claro que não me matariam se me apanhassem em casa, mas seria uma cena desagradável.
- Onde diabo te meteste? - perguntei à Phoebe. Estava tão escuro que não conseguia vê-la.
- Estou aqui - disse ela. Estava mesmo junto de mim.
- As malas estão na estação - disse eu - Ouve! Tens dinheiro, Phoebe? Estou sem cheta!
- Só tenho o dinheiro do Natal. Para os presentes. Ainda não fiz compras.
- Oh! - disse eu. Não queria levar-lhe o dinheiro do Natal.
- Mas queres algum? - perguntou. - O dinheiro do Natal, não.
- Mas eu empresto-te - disse ela. Depois ouvi-a junto da secretária do D. B., a abrir gavetas e a procurar o dinheiro. Eu estava semicego, tanta era a escuridão. - Se te fores embora, não me vês na peça - disse ela.
- Vejo, pois. Só irei mais tarde. Achas que eu era capaz de perder o espectáculo? Provàvelmente fico em casa de Mr. Antolini até terça-feira. Depois volto para casa. Se tiver oportunidade, telefono-te.
- Toma - disse a Phoebe. Tentava entregar-me o dinheiro, mas não dava comigo.
- Onde estás?
A Phoebe meteu-me o dinheiro nas mãos. - Eh! Não preciso de tanto-protestei eu.-Dá-me apenas dois dólares. Palavra de honra! Toma!
Tentei restituir-lhe o dinheiro, mas ela escapou-se. - Leva tudo. Pagas-me depois, quando fores ao espectáculo.
- Mas quanto é?
- Oito dólares e oitenta e cinco. E mais sessenta e cinco cêntimos. Gastei algum.
Súbitamente comecei a chorar. Não me contive. Chorei porque ninguém conseguia ouvir-me. A pobre Phoebe ficou muito assustada e tentou acalmar-me, mas quando começamos a chorar é difícil contermo-nos. Estava ainda sentado na beira da cama e ela rodeou-me o pescoço com os braços e eu abracei-a, mas não consegui deixar de chorar. Pensei que ia morrer! A pobre Phoebe estava assustadíssima. A janela estava aberta e eu senti-a tiritar, pois só estava com o pijama sobre a pele. Tentei obrigá-la a voltar para a cama, mas ela não quis. Por fim deixei de chorar, mas custou muito. Abotoei a gabardina e disse-lhe que me manteria em contacto com ela. Ela disse-me que eu podia dormir na cama do D. B., se quisesse, mas eu preferia raspar-me, pois Mr. Àntolini estava à minha espera. Tirei o boné de caça do bolso e dei-lho. Ela gosta muito de cha-péus esquisitos. Não queria aceitá-lo, mas eu insisti. Pedi--lhe que dormisse com ele. É que ela gosta muito de chapéus esquisitos. Depois disse-lhe que, logo que pudesse, falaria com ela. E saí.
Foi mais fácil sair de casa do que entrar. Em primeiro lugar, porque já não me importava que me apanhassem. Se me apanhassem, apanhavam-me, e pronto! Até desejei que isso acontecesse.
Desci as escadas, em vez de tomar o elevador. Fui pelas traseiras. Ia quebrando o pescoço no meio da escuridão, mas o moço do elevador nem sequer me viu. Provàvelmente ainda hoje julga que eu estou lá em cima, no patamar, à porta dos Dicksteins.
Mr. e Mrs. Antolini têm um apartamento muito cómodo em Sutton Place, com dois degraus que se descem quando entramos na sala, um bar e tudo o mais. Já lá fora algumas vezes, porque, depois de sair de Elkton Hills, Mr. Antolini veio visitar-nos várias noites, para saber notícias minhas. Nessa altura ainda não era casado. Costumava jogar ténis com ele e com Mrs. Antolini no Tenis Club of West Side, em Forest Hills. Mrs. Antolini vivia em Long Island. Era louca por dinheiro e mais velha que Mr. Antolini, mas davam-se muito bem. Eram ambos do género intelectual, especial-mente Mr. Antolini, mas quando falávamos com ele parecia mais esperto que intelectual. Mrs. Antolini era mais séria e tinha asma. Apreciavam muito as histórias do D. B. e quando ele foi para Hollywood Mr. Antolini telefonou-lhe a pedir-lhe que não fosse. Mas, é claro, o D. B. foi para Hollywood. Mr. Antolini dizia que qualquer pessoa que escrevesse como o D. B. não devia ir para Hollywood. É pràticamente o mesmo que eu penso.
Poderia ter ido a pé, pois não queria gastar a massa da Phoebe, mas mal cheguei à rua senti-me esquisito. Tonturas. Procurei um táxi, mas perdi muito tempo até o encontrar.
Foi Mr. Antolini que me abriu a porta, depois de muita bulha com o moço do elevador, que não queria deixar-me subir. Vestia um roupão, calçava pantufas e tinha um copo na mão. Era um homem muito sofisticado e gostava da pinga.
- Holden, meu rapaz! - disse ele. - Caramba! Cresceste mais vinte centímetros. Prazer em ver-te.
- Como tem passado, Mr. Antolini? Como está sua esposa ?
- Estamos ambos maravilhosamente. Despe a gabardina.
Tirou-me a gabardina e pendurou-a no bengaleiro. - Já esperava ver-te com um recém-nascido nos braços. Vamos lá para dentro. Tens flocos de neve no cabelo. - Era um tipo esplêndido. Voltou-se e gritou para a cozinha: - Lillian! Então esse café? - Lillian era o nome de Mrs. Antolini.
- Já está pronto! - respondeu ela. - É o Holden? Viva, Holden !
- Viva, Mrs. Antolini!
Andavam sempre aos gritos, porque qualquer deles estava sempre em salas diferentes. Era uma coisa com piada.
- Senta-te, Holden - disse Mr. Antolini. Via-se que já estava ligeiramente toldado. Pelo aspecto da sala, parecia que tinha havido festa. Copos por todos os cantos e pratinhos com frutas secas. - Não olhes para a casa - disse ele. - Tivemos uns amigos de Buffalo... uns búfalos, está-se a ver.
Ri com a pilhéria e Mrs. Antolini disse qualquer coisa, mas não consegui compreender.
- Que disse? - perguntei a Mr. Antolini.
- Disse-te que não reparasses no aspecto dela. Saiu agora da cama. Toma um cigarro. Tu agora fumas? - Obrigado - disse eu. Tirei um cigarro da caixa que ele me oferecia. - Só um. Não sou grande fumador.
- Ia jurar que fumavas muito - disse ele. Acendeu-me o cigarro com um grande isqueiro de sala. - Com que então, tu e Pencey separaram-se! - Mr. Antolini fala sempre neste tom. Por vezes diverte-me, por vezes não me diverte. Exagera um pouco. Não digo que ele não seja esperto, mas acaba por me enervar com os seus ditinhos. O D. B. também gosta de falar assim.
- Então? Que se passou? - perguntou-me. - E o Inglês? Que tal? Ponho-te na rua se reprovaste em Inglês, tu, um verdadeiro escritor de redacções!
- Oh, passei em Inglês. Mas era quase tudo literatura. Só escrevi duas composições em todo o período. Mas reprovei em Expressão Oral.
- Porquê ? - Oh, não sei.
Não estava com disposição para lhe explicar. Ainda me sentia ligeiramente tonto e súbitamente fora acometido por uma terrível dor de cabeça. Mas Mr. Antolini parecia interessado no assunto, e por isso pormenorizei
- É um curso em que cada aluno tem de fazer um discurso. O senhor sabe! Uma coisa espontànea. E se o aluno começa a divagar, os outros berram: Divagafão. Era uma coisa que me deixava parvo de todo. Apanhei um zero. - Porquê?
- Oh, não sei! Esse negócio da divagação dava-me cabo dos nervos. Mas não sei. É que eu gosto de ouvir um tipo a divagar. É mais interessante.
- Então não achas que nós devemos ser coerentes? - Oh, com certeza! Gosto que as pessoas sejam coerentes. Mas não gosto que o sejam demasiadamente. Não sei. Parece-me que as pessoas não podem ser sempre coerentes. Os que tiveram melhores notas foram exactamente os que menos divagaram. Mas havia um certo rapaz, um tal Richard Kinsella, que não era assim muito divagador, e os outros estavam sempre a berrar divagação. Era uma coisa terrível, em primeiro lugar porque ele era muito nervoso e quando tinha de proferir um discurso ficava com os lábios brancos, a tremer, e ninguém conseguia ouvi-lo distintamente. Mas quando deixava de tremer fazia os discursos de que eu mais gostava. Também reprovou. Acabou por reprovar por causa dos outros. Fez, por exemplo, um discurso sobre uma herdade que o pai dele comprara em Vermont. Os outros começaram a berrar divagação e o professor, Mr. Vinson, deu-lhe um zero só porque ele não se referiu aos animais da quinta e aos vegetais que lá culti-vavam. Mas o Richard Kinsella começou a falar de uma carta que o tio escrevera à mãe, a contar-lhe uma doença que contraíra aos quarenta e dois anos de idade e disse-nos que o tio não permitia que o visitassem no hospital apenas porque ficara deformado. Era um assunto que nada tinha a ver com a herdade, mas era bonito. Falar dos tios é sempre uma coisa agradável. Especialmente quando se começa a falar de uma herdade e, de súbito, nos sentimos mais inte-ressados pelos tios. Acho que foi uma coisa horrível gritar divagação exactamente quando ele estava mais interessado. Não sei. É difícil explicar.
Não me sentia com disposição para novas explicações. Além disso, a cabeça doía-me. Implorei a Deus que Mrs. Antolini trouxesse o café. É uma coisa que me cha teia quando dizem que o café está pronto, e afinal não está.
- Holden... Só um pormenor pedagógico. Não achas que há tempo para tudo? Se ele começara a falar da herdade, devia continuar no assunto ou falar sobre o tio? Ou achas que a doença do tio é um assunto tão importante para ser tomado em consideração, como tema, antes da herdade?
Não sentia vontade de pensar nem de responder.
Tinha dores de cabeça e estava fatigado. E, para ser franco, o estômago também me doía.
- Sim, não sei. Acho que sim. Acho que devia ter falado antes do tio, em vez de falar sobre a herdade. Mas o que me preocupa é não sabermos o que nos interessa mais até começarmos a falar de uma coisa que de facto não nos interessa. Acho que não devemos incomodar uma pessoa que está toda excitada a falar de um assunto que lhe interessa. Gosto de ver pessoas excitadas a falarem de coisas que apreciam. É um belo espectáculo. É claro que o senhor não conhece o professor, o tal Vinson. Estava sempre a falar de unificação e de simplificação, até ficarmos completamente idiotas. Há coisas que não se podem simplificar. É impossível simplifuar uma coisa só porque alguém nos pede que a simplifiquemos. O senhor não conhece este tal Vinson. É um tipo muito inteligente, mas não tem a conta toda.
- Cá está o café, meus senhores - disse Mrs. Antolini. Entrou com uma bandeja com café e bolos. - Holden, não olhes para mim.
- Boa noite, Mrs. Antolini - disse eu, fazendo menção de me erguer, mas Mr. Antolini não me permitiu. O cabelo de Mrs. Antolini estava cheio de papelotes e não trazia pinturas sobre o rosto. Pareceu-me muito envelhecida. - A bandeja fica aqui. Tratem de comer - disse ela. Pôs a bandeja sobre a mesinha, afastando os copos para o lado. - Como vai a tua mãe, Holden?
- Vai bem, muito obrigado. Não a vejo há tempos, mas...
- Querido! Se o Holden precisar de qualquer coisa, está tudo no armário. Na última prateleira. Eu vou já para a cama. Estou exausta - disse Mrs. Antoliniï E tinha aspecto de exausta. - Sabem armar o divã?
- Eu trato de tudo. Vai já para a cama - disse Mr. Antolini. Deu-lhe um beijo e ela despediu-se de mim e saiu da sala. Andavam sempre aos beijos em público.
Bebi meia chávena de café e dei uma dentada num bolo duro como pedra. Mr. Antolini bebeu outro copo de conha-que. Bebe que nem uma esponja e, se não tomar cuidado, acaba em alcoólico inveterado.
- Almocei com o teu pai há algumas semanas - disse ele subitamente. - Já sabias?
- Não, não sabia.
- Mas é claro que tu sabes que ele anda muito preocupado contigo.
- É verdade. Já sabia.
- Antes de me telefonar recebera uma carta do director da escola a dizer que tu nada aproveitas do ensino. Faltas às aulas. Não preparas as lições. Andas sempre distraído...
- Nunca faltei às aulas. É proibido. De vez em quando não prestava muita atenção a alguns assuntos, como à Expressão Oral, mas nunca faltei...
Não me apetecia debater o problema com ele. O café tirou-me as dores do estômago, mas a cabeça continuava no mesmo estado.
Mr. Antolini acendeu outro cigarro. Fumava como um louco. Depois disse:
- Com franqueza, Holden, não sei que hei-de dizer-te. - Eu sei. É difícil. Eu sei.
- Tenho a impressão de que tu andas a caminhar para um fim terrível. Mas, honestamente, não sei... Estás a ouvir?
- Sim.
Via-se que tentava concentrar-se.
- Pode ser que venhas a transformar-te no género de tipo que aos trinta anos se senta num bar e odeia o primeiro fulano que entra só porque tem o aspecto de quem jogou futebol na equipa da escola. Ou talvez consigas cultura suficiente para odiar os que se julgam senhores da verdade. Ou talvez acabes em funcionário de um escritório qualquer, entretendo os teus sócios com clips que atirarás ao teu vizinho do lado. Mas não sei. Compreendes o que eu digo ?
- Sim, com certeza - disse eu. - Mas o senhor está enganado com essa coisa do ódio. Não odeio muita gente. Posso odiar alguém como o Stradlater ou o Robert Ackley, que eu conheci em Pencey, mas é só por momentos. Odeio-os de vez em quando, é verdade, mas o meu ódio não dura muito tempo. Se, passado algum tempo, não os vejo no refeitório, no quarto ou não lhes falo, começo a sentir-lhes a falta.
Mr. Antolini não respondeu imediatamente. Levantou-se e pôs uma pedra de gelo no copo. Sentou-se novamente. Via-se que estava a pensar. Pedi a Deus que ele continuasse a conversa logo de manhã, porque eu estava arrasado, mas Mr. Antolini estava com disposição para conversar. Há pessoas que gostam de conversar quando nós já não nos aguentamos em pé.
- Bem. Então ouve! Talvez não consiga exprimir-me como desejaria, mas escrever-te-ei uma carta depois, com tudo bem explicado. Mas agóra ouve.
Começou a concentrar-se novamente. Depois disse: - A queda que eu julgo que te espera é de uma espécie particular, horrível. Um homem quando cai só sabe que caiu quando atinge o fim da queda. Afunda-se lentamente. As coisas complicam-se com as pessoas que passam a vida inteira à procura de um ambiente que o seu meio social não lhes pode oferecer ou que elas julgam que não se lhes pode oferecer. Desistem. Desistem mesmo antes de iniciarem a busca. Estás a compreender?
- Sim, senhor. - Estás mesmo? - Sim.
Levantou-se e voltou a encher o copo. Depois sentou-se novamente. Durante alguns segundos nada disse.
- Não quero assustar-te - continuou ele, - mas compreendo perfeitamente que tu estás a afundar-te por uma causa que não vale um chavo. - Depois olhou-me com curiosidade. - Se eu te escrevesse uma carta, tu serias capaz de lê-la cuidadosamente? E guardá-la-ias?
- Sim, claro - disse eu. E era verdade, porque ainda hoje conservo os papéis que ele me deu.
Levantou-se, dirigiu-se a uma escrivaninha no outro extremo da sala e, mesmo sem se sentar, rabiscou qualquer coisa numa folha de papel. Depois veio novamente sentar-se e fez menção de ma entregar.
- Embora pareça estranho, isto não foi escrito por um poeta, mas sim por um psicanalista chamado Wilhelm Stekel. Aqui está... Ouves, ou não ?
- Oiço, sim, senhor.
- Aqui está o que ele disse: O que distingue o homem imaturo é que ele pretende bater-se e morrer por uma causa nobre, enquanto o que distingue o homem adulto é que apenas deseja viver humildemente em função de uma causa nobre.
Inclinou-se para mim e entregou-me finalmente o papel. Li-o imediatamente, agradeci-lhe e meti-o no bolso. Mr. Antolini era um homem muito gentil e preocupava-se comigo. Mas o pior é que eu não estava com vontade de me concentrar. Caramba! Sentia-me muito cansado. Mas dir-se-ia que Mr. Antolini nem sequer estava fati-gado. É claro que já estava meio bêbado.
- Parece-me que muito em breve - disse ele - terás de decidir-te. Tens de escolher a tua vida. E não podes perder um único minuto. Não te podes dar a esse luxo.
Anuí com um gesto, pois ele estava a olhar para mim, mas não compreendia de que coisas falava. Suspeitava vagamente do que se tratava, mas não tinha a certeza. Sentia-me cada vez mais fatigado.
- Custa-me muito dizer-te - continuou, - mas parece-me que não tens outro remédio senão ir para a escola. Quer queiras, quer não, és um estudante. E compreenderás depois, quando já tiveres ultrapassado todos os Mr. Vineses e a Expressão Oral...
- Os Mr. Vinsons - disse eu. Ele referia-se aos Mr. Vin-sons, mas não devia tê-lo interrompido.
- Está bem, os Mr. Vinsons. Logo que ultrapassares todos os Mr. Vinsons, aproximar-te-ás ràpidamente, isto é, se quiseres, do tipo de conhecimentos que tu mais amas. Entre outras coisas, compreenderás que não és a única pessoa no mundo a quem o comportamento humano humilhou e amedrontou. Não estás só, e isso será o suficiente para te excitar e estimular. já muita gente se sentiu tão confundida como tu. Felizmente, ainda há quem guarde algumas recordações dessas fases. Aprenderás com essas pessoas, se quiseres, assim como mais tarde, se tiveres algo a contar, outros aprenderão contigo. É uma bela engrena-gem. Recíproca. E nem sequer é educação. É história. É poesia.
Interrompeu-se e bebeu uma grande golada. Depois começou novamente a falar. Caramba! Estava entusias-mado. Senti-me contente por não ter de interrompê-lo.
- Não estou a tentar dizer-te - prosseguiu - que só as pessoas educadas podem contribuir para o bem comum. Não é bem assim. Mas afianço-te que as pessoas educadas, se forem criadoras e brilhantes-o que, infelizmente, é muito raro-, poderão prestar serviços muito mais esti-máveis que as pessoas meramente criadoras e brilhantes. Têm tendência para se exprimir com clareza e seguem os seus pensamentos apaixonadamente. E, o que é muito importante, em noventa por cento dos casos são muito mais humildes que o homem inculto. Estás a compreender? - Sim, senhor.
Calou-se por momentos. Não sei se já vos aconteceu, mas é terrível estar sentado aguardando que um tipo qualquer diga de sua justiça. É mesmo. Eu fazia esforços para não bocejar. Não é que eu estivesse aborrecido - não estava, garanto-vos-, mas quase não conseguia vencer o sono. - A educação académica há-de trazer-te alguns benefícios. Se prosseguires, começarás a perceber as verdadeiras dimensões do teu espírito, o que te interessa e o que não te interessa. Passado algum tempo, compreenderás também quais os pensamentos que te convêm. Em suma, poupar-te-á muito tempo, que, de outro modo, perderias em experiências que não te interessariam. E acabarás por te conheceres a ti próprio e a raciocinar como te convém.
Então súbitamente abri a boca num grande bocejo. Que grande velhaco que eu sou! Mas não consegui evitar o bocejo.
Mr. Antolini não se ofendeu. Riu-se e disse - Vamos. - E levantou-se. - Vou arranjar-te o divã. Segui-o e ele dirigiu-se para o armário. Tentou tirar os lençóis e os cobertores que estavam na última prateleira, mas não conseguiu porque só tinha livre uma das mãos. Bebeu o resto do conhaque, pôs o copo no chão e tirou as roupas. Auxiliei-o a puxar o divã. Fizemos ambos a cama. Era coisa que ele não sabia fazer, mas eu não me incomodei com isso. Estava tão fatigado que até dormiria em pé. - E então as tuas namoradas? Como vão?
- Okay - disse eu. Já não tinha vontade de conversar, caramba!
- E a Sally? Como vai a Sally?
Ele conhecia-a. Eu apresentara-o à Sally.
- Vai bem. Estive com ela hoje à tarde! - Caramba! Parecia que já haviam decorrido vinte anos! - Não temos o mesmo feitio - acrescentei.
- É uma rapariga muito apetitosa. E a outra? Aquela de quem tu me falaste? A que vive no Maine
- Oh, a Jane Gallagher! Também está óptima. Provàvelmente telefono-lhe amanhã.
Já tínhamos feito a cama.
- Aqui está - disse Mr. Antolini, - mas não sei onde poderás meter as pernas.
- Não faz diferença. Já estou habituado - disse eu. - Muito obrigado. O senhor e Mrs. Antolini salvaram-me a vida.
- Sabes onde é a casa de banho. Se precisares de qualquer coisa, é só chamar. Ainda vou para a cozinha. A luz incomoda-te?
- Não, por amor de Deus. Muito obrigado. - Bem. Então, boa noite.
-Boa noite, senhor, e, mais uma vez, obrigado. Dirigiu-se para a cozinha e eu fui para a casa de banho despir-me. Não podia lavar os dentes porque não tinha escova nem copo. Também não tinha pijama e Mr. Anto-lini esquecera-se de me emprestar um dos dele. Saí da casa de banho, dirigi-me para a sala, apaguei a luz e meti-me na cama em cuecas. O divã era muito curto, mas eu estava tão fatigado que teria dormido em pé. Fiquei acordado ainda uns segundos a pensar em tudo o que Mr. Antolini me dissera. Era, de facto, um tipo muito esperto! Mas mal podia conservar os olhos abertos e por isso adormeci depressa. Depois aconteceu uma coisa estranha. Nem gosto de falar sobre este assunto.
Subitamente acordei. Não sei que horas eram, mas acordei. Senti qualquer coisa na minha cabeça, uma carícia, a mão de alguém. Caramba! Fiquei assustado! Era a mão de Mr. Antolini. Estava sentado no chão, junto do divã, no escuro, e acariciava-me a cabeça. Caramba! Juro-vos que dei um pulo tremendo.
- Que diabo está a fazer? - perguntei. - Nada! Estou apenas a admirar...
- Mas que está a fazer? - repeti. Não sabia que dizer, porque estava muito embaraçado.
- E se falasses mais baixo? Estava aqui a admirar... - Tenho de ir-me embora - disse eu. Estava nervosíssimo! Comecei a vestir as calças no escuro. Estava tão nervoso que nem acertava com as pernas das calças. Conheci muitos pervertidos, nas escolas e em outros sítios, e andam sempre a chatear-me.
- Tens de ir aonde? - perguntou Mr. Antolini. Tentava proceder como se nada se tivesse passado, mas via-se que também não estava à vontade. Garanto-vos!
- Deixei as malas na estação. Acho que é melhor ir buscá-las. Tenho lá as minhas roupas.
- Podes ir lá de manhã. Volta para a cama, vá. Eu também me vou deitar. Mas que raio tens tu?
- Nada, nada, mas é que deixei todo o meu dinheiro numa das malas. Volto já. Meto-me num táxi e volto já - disse eu.
Caramba! Ali, no escuro, que figura a minha.
- É que o dinheiro não é meu, é da minha mãe e... - Não sejas ridículo, Holden. Volta para a cama. Eu também vou para a cama. O dinheiro está em segurança... - Não, não. Tenho de ir. Tenho mesmo - insisti eu. já estava quase vestido, mas não conseguia encontrar a gravata. Não me recordava de onde pusera a gravata. Vesti o casaco mesmo sem gravata. Mr. Antolini estava agora sentado numa grande cadeira, a observar-me. Ainda bebia. Consegui distinguir o copo que ele continuava a segurar na mão.
- És um rapaz muito estranho.
- Eu sei - respondi. Deixei de me incomodar com a gravata. - Adeus, Mr. Antolini - disse eu. - Muito obrigado - acrescentei.
Foi atrás de mim até à porta e ficou à espera enquanto eu aguardava o elevador. Tudo o que disse foi repetir novamente que eu era um rapaz muito estranho. Estranho o raio que o parta! Depois ficou ali, enquanto o elevador subia. Nunca me custou tanto esperar um elevador. Não sabia que dizer-lhe enquanto aguardava o elevador, e por isso murmurei
- Vou começar a ler uns livros. - Tinha de dizer qual-quer coisa. Que situação tão embaraçosa!
- Levanta as malas e volta já para aqui. Eu deixo a porta fechada apenas no trinco.
- Obrigado - disse eu. - Adeus. - Finalmente o elevador já chegara. Desci. Caramba! Tremia como varas verdes e estava todo suado. Quando me acontecem coisas destas fico a transpirar. já me aconteceu isto perto de vinte vezes e nunca consigo reprimir-me.
Quando cheguei à rua, clareava o dia. Estava muito frio, mas senti-me bem, pois tinha o corpo coberto de suor.
Não sabia para onde ir. Não queria ir para outro hotel gastar a massa da Phoebe. Finalmente decidi ir para Lexington e meter-me no metropolitano para a Grand Central Station. Era lá que guardara as minhas malas e pensei que poderia dormir na sala de espera. Foi o que fiz. Não foi difícil adormecer, porque havia pouca gente por ali e pude estender-me num banco. Mas é melhor não falarmos neste assunto. Nunca experimentem dormir assim. É terrível.
Dormi até às nove horas, porque milhões de pessoas começaram a entrar na sala e fui obrigado a sentar-me. Não consigo dormir bem quando estou com os pés sobre o chão. A cabeça ainda me doía. Senti-me deprimido como nunca me sentira antes.
Embora não o desejasse, comecei a pensar em Mr. Anto-lini e no que diria Mrs. Antolini quando descobrisse que eu não dormira lá em casa. Foi coisa que não me incomodou muito, pois Mr. Antolini era muito esperto e inven-taria qualquer desculpa. Dir-lhe-ia que eu tinha ido para casa. O que me afligia era ter despertado quando Mr. Anto-lini me afagava a cabeça. Talvez eu estivesse equivocado e nada me garantia que ele fosse um pervertido. Talvez ele gostasse de afagar a cabeça do parceiro! Quem sabe
Cheguei a pensar que talvez fosse preferível levantar as malas e voltar para casa dele. Mesmo que ele fosse mari-cas, tinha-se portado bem. Nem sequer se incomodou quando lhe telefonei e disse-me logo para ir para casa dele. Além disso, ainda me deu conselhos e foi o único tipo que se aproximou do James Castle, aquele rapaz de quem já vos falei. Pensei em tudo isso, e quanto mais pensava mais triste me sentia. Talvez fosse melhor ter voltado para casa dele! Possivelmente ele acariciara-me apenas por simpatia. Sentia-me cada vez mais deprimido e, para cúmulo, os olhos ardiam-me como fogo. Ardiam-me porque há dois dias que dormia muito pouco. Além disso, constipara-me e nem se-quer tinha um lenço. Tinha vários na minha mala, mas era impossível tirá-la da estação e abri-la ali, em público.
Num banco junto a mim alguém se esquecera de um ma-gazine. Comecei a lê-lo só para ver se conseguia interromper os meus pensamentos. Mas o maldito artigo que eu comecei
a ler ainda me fez pior. Era acerca de hormonas. Descrevia o aspecto de uma pessoa, o rosto, os olhos e tudo o mais quando as hormonas funcionam bem. Ora não era esse o meu aspecto. O meu aspecto era exactamente o do tipo cujas hormonas funcionam mal. Comecei a preocupar-me com as minhas hormonas. Depois li outro artigo onde se mostravam os indícios do cancro. Dizia que quando um indivíduo tem feridas na boca que não cicatrizam imediata-mente é certo e seguro que é canceroso. Ora eu há duas semanas que tinha uma ferida num lábio. Provàvelmente era um cancro. Aquele magazine era pouco animador. Dei-tei-o fora e resolvi sair da estação, para dar um passeio. Como tinha um cancro, provàvelmente só viveria dois ou três meses. Acreditava piamente que tinha um cancro. É claro que estes pensamentos não eram muito animadores.
No céu havia indícios de chuva, mas, mesmo assim, decidi-me pelo passeio. Além disso, tinha de tomar o pequeno almoço. Não sentia fome, mas sempre era melhor comer qualquer coisa. Qualquer coisa com vitaminas. Dirigi-me para leste, onde havia restaurantes baratos, pois não queria gastar muito dinheiro.
Pelo caminho passei por dois tipos que descarregavam árvores de Natal de uma grande camioneta. Um deles dizia: "Agarra-me essa cabra! Agarra-me essa cabra! Agarra-a, por amor de Deus!" Que belos modos de falar de árvores de Natal! Num certo sentido, tinha piada, e comecei a rir-me. Foi o pior que poderia ter feito, pois mal comecei a rir tive vontade de vomitar. Ia vomitando, mas lá me aguentei. Não compreendi bem o motivo dos vómitos, pois não comera alimentos estragados e tenho um estômago muito forte. Talvez comendo melhorasse um pouco. Entrei num restaurante e pedi café e filhós. Mas não comi as filhós. Não conseguia engoli-las. Quando estamos tristes é difícil engolir a comida. O criado era boa pessoa. Aproveitou as filhós e descontou-as. Só bebi o café. Saí e comecei a passear pela Fifth Avenue.
Era segunda-feira, o Natal estava próximo e todas as lojas estavam abertas. Não era nada mau passear na Fifth Avenue. Havia sinos por todos os cantos e as meni nas do Exército de Salvação, aquelas que nunca usam bâton, andavam pelas ruas, no peditório. Tentei descobrir as duas freiras que eu encontrara na véspera, mas não as vi. É claro que nunca conseguiria vê-las, pois elas tinham-me dito que vinham ensinar para Nova Iorque. Mas, mesmo assim, continuei a ver se as descobria. Era Natal. Milhões de crianças passeavam, com as mães, saindo de autocarros, entrando em armazéns. Quem me dera que a Phoebe andasse por ali! Já não é tão pequena que fique louca com brinquedos, mas, mesmo assim, gosta de andar pelas ruas a ver a multidão. No Natal passado levei-a comigo às compras. Divertimo-nos à grande! Entrámos nos armazéns Bloomingdale e fomos à secção de sapataria. Fingimos que a Phoebe queria botas de montanha, essas botas que têm milhares de atacadores. O caixeiro ia ficando doido. A Phoebe experimentou mais de vinte botas e de cada vez que ela calçava uma bota o desgraçado do caixeiro tinha de atar todos aqueles atacadores. A partida era indecente, mas a Phoebe pelava-se pela brincadeira. Acabámos por comprar um par de moccasins. O caixeiro, mesmo assim, era bom tipo, pois certamente descobriu que a Phoebe estava a brincar, visto que ela não conseguia reprimir o riso.
Lá ia eu pela Fifth Avenue, sem gravata, todo desabotoado. Depois, súbitamente, comecei a sentir uma coisa estranha. De cada vez que chegava ao fim de um quarteirão e me preparava para atravessar a rua, parecia-me que nunca mais conseguiria chegar ao outro passeio. Pensei que ia afundar-me pela rua e que ninguém mais me veria. Caramba! Fiquei assustado! Nem podem ima-ginar! Comecei a transpirar por todos os poros. A camisa ficou encharcada. Depois comecei a fazer um truque. Logo que chegava ao fim de um quarteirão, fingia que estava a falar com o meu irmão Allie e dizia: "Allie, não me deixes desaparecer! Allie, não me deixes desaparecer! Allie, por favor, Allie!" E quando conseguia chegar ag outro lado da rua sem desaparecer, agradecia-lhe. Começava imediatamente com a mesma conversa mal chegava ao fim de outro quarteirão. Não parava. Para dizer a verdade, tinha medo de parar. Só parei depois de ter passado o jardim zoológico. Sentei-me num banco. Estava sem fôlego e transpirava por todos os poros. Fiquei sentado naquele banco durante uma hora. Finalmente, sabem o que decidi? Decidi ir-me embora, nunca mais voltar a casa e nunca mais ir para a escola. Só queria ver a Phoebe, dizer-lhe adeus e entregar-lhe o dinheiro que ela me emprestara. Depois seguiria para o Oeste. Resolvi dirigir-me para o Holland Tunnel e pedir uma boleia, e depois outra, e outra, e outra, e dentro de alguns dias estaria algures no Oeste, onde há sempre sol e ninguém me conhece e onde fàcilmente arranjaria emprego. Talvez conseguisse emprego numa bomba de gasolina. Mas o género de emprego era coisa que não me incomodava. O que me interessava era não conhecer ninguém e ninguém me conhecer. Fingiria, que era surdo-mudo, e desse modo não seria obrigado a aturar conversas estúpidas. Se me quisessem dizer qualquer coisa teriam de escrever num papel. Em breve se chateariam e eu ficaria livre de con-versas até ao fim da vida. Todos pensariam que eu era um pobre diabo de um surdo-mudo e deixar-me-iam tranquilo. Deixar-me-iam meter-lhes gasolina nos auto-móveis e ainda me pagariam um salário. Eu construiria uma barraca com o dinheiro que ganhasse e aí passaria o resto dos meus dias. Construí-la-ia próximo dos bosques, mas de modo a apanhar bastante sol durante o ano inteiro. Cozinharia as minhas refeições e mais tarde, se quisesse casar, encontraria uma rapariga muito bonita, mas tam-bém surda-muda. Viria viver comigo na barraca, e se quisesse dizer-me qualquer coisa teria de escrever num papel, como todas as outras pessoas. E se tivéssemos filhos escondê-los-íamos em qualquer parte. Comprar-lhes-íamos muitos livros e seríamos nós próprios quem os ensinaria a ler e a escrever.
Só de pensar nisto, fiquei muito excitado. Sabia perfeita-mente que essa coisa de me fingir surdo-mudo era cretinice, mas, fosse como fosse, a ideia era agradável. Decidi ir para o Oeste, mas primeiro despedir-me-ia da Phoebe. Súbita-mente desatei a correr como um louco-para vos ser franco, ia sendo atropelado-e dirigi-me a uma papelaria, onde comprei uma carta e um lápis. Resolvera escrever à Phoebe a marcar um ponto de encontro para me despedir e dar-lhe o dinheiro que ela me emprestara. Levaria a carta à escola da Phoebe e pediria a alguém que lha entregasse. Meti a carta e o lápis no bolso e dirigi-me ràpidamente para a escola-estava demasiadamente excitado para lhe escrever ali mesmo na papelaria. Caminhei ràpidamente, pois pretendia entregar-lhe a carta antes de ela sair para o almoço, e já tinha pouco tempo.
Naturalmente, conhecia o caminho da escola, pois estudara lá em pequeno. Quando cheguei senti uma coisa curiosa. Não tinha a certeza de me recordar perfeitamente de como era a escola por dentro. Porém, tudo na escola estava tal como quando eu ainda era um petiz. Tinha ainda um grande pátio interior, um tanto escuro, com umas grades em torno das lâmpadas para que nenhuma bola as quebrasse. Existiam também os mesmos círculos pintados a branco no chão do pátio, para os jogos, e tudo o mais. E os mesmos cestos de básquete, sem rede-só os postes e a armação dos cestos.
Não se via vivalma no pátio, porque não era a hora de intervalo nem tocara para a saída. Apenas vi um miúdo, um negro, que se dirigia para as retretes. Trazia um passe de madeira, a"pender do bolso, tal como eu usava antiga-mente, para mostrar que tinha permissão para ir à retrete. Eu ainda transpirava, mas menos que uma hora antes. Subi as escadas, sentei-me num degrau e tirei a carta e o lápis do bolso. As escadas tinham ainda o mesmo cheiro de quando eu era uma criança, aquele cheiro a madeira recentemente cortada. As escadas das escolas têm todas o mesmo cheiro. Sentei-me, pois, e escrevi:
Querida Phoebe
Não posso esperar até quarta-feira, e provàvelmente parto esta tarde para o Oeste. Se puderes, encontra-te comigo à porta do museu ao meio-dia e um quarto, pois quero dar-te o dinheiro do Natal. Gastei muito pouco.
Saudades do Holden.
A escola ficava práticamente junto do museu e a Phoebe tinha de passar por lá quando fosse almoçar. Por isso eu sabia que ela não faltaria ao encontro.
Subi as escadas até à secretaria para entregar a carta. Dobrei-a dez vezes seguidas para que ninguém a abrisse e a lesse. Não se pode confiar em ninguém nas escolas. Mas eu sabia que, dizendo que era irmão da Phoebe, haviam de lha entregar.
Enquanto subia as escadas, pensei novamente que ia vomitar. Mas não vomitei. Sentei-me durante alguns segundos e senti-me melhor. Mas quando estava sentado vi uma coisa que me deixou varado. Alguém escrevera na parede: "Vai à merda." Pensei que a Phoebe e as outras crianças também veriam aquilo e ficariam a pensar no assunto até que algum malandro lhes explicasse o signi-ficado da frase. Apeteceu-me matar o tipo que escrevera aquilo. Devia ser obra de um pervertido que, à noite, a altas horas, andara pela escola a escrever palavrões nas paredes. Vislumbrei a cena: eu a apanhá-lo com a boca na botija e a espatifar-lhe a cabeça nos degraus da escada até vê-lo bem morto. Mas, é claro, eu sabia perfeitamente que não tinha coragem para isso, e fiquei ainda mais triste. Para vos ser franco, nem sequer tive coragem para apagar aquilo com a mão. Temi que alguém me apanhasse quando eu estivesse a apagar a frase e pensasse que fora eu quem a escrevera. Mas, finalmente, decidi-me e apaguei o palavrão. Depois subi as escadas até à secretaria.
O director já saíra, mas uma velha, que parecia ter mais de cem anos, estava a escrever à máquina. Disse-lhe que era irmão da Phoebe da quarta classe e pedi-lhe o favor de lhe entregar a carta. Disse-lhe que era muito importante, pois a minha mãe estava doente e não teria o almoço pronto quando a Phoebe chegasse a casa. Por isso eu viria buscá-la para almoçarmos juntos num restaurante. A velhota foi muito delicada. Recebeu a carta, entregou-a a outra velha que andava por ali e que foi levá-la à aula da Phoebe.
Depois eu e a velha que parecia ter cem anos começámos a conversar. Era muito simpática e disse-lhe que tanto eu como os meus irmãos também tínhamos frequentado aquela escola. Perguntou-me qual a escola que eu agora frequentava. Eu disse-lhe que era Pencey e ela respondeu que era uma óptima escola. Se eu quisesse, poderia tê-la dissuadido. Mas se ela julgava que Pencey era uma boa escola, deixá-lo. É odioso impingir coisas novas a pessoas muito idosas. Não gostam de novidades. Depois saí. É curioso! A velha desejou-me "boa sorte", tal como o Spen-cer me dissera em Pencey. Meu Deus! Como é terrível ouvir alguém desejar-nos "boa sorte"! É terrível!
Desci por outra escada e voltei a encontrar novos palavrões pelas paredes. Tentei apagá-los, mas estavam gravados a canivete. Não saíam da parede. É uma coisa que desespera! Mesmo que vivêssemos meio milhão de anos, nunca conseguiríamos apagar todos os palavrões que estão escritos por todas as paredes do mundo. É impossível.
Olhei para o relógio do recreio. Eram precisamente vinte para o meio-dia, por isso ainda faltava muito tempo até encontrar a Phoebe. Mas, mesmo assim, encaminhei-me para o museu. É que não havia outro sítio para onde ir. Pensei parar no caminho e telefonar à Jane Gallagher, mas não me sentia com disposição para conversar. Além disso, não tinha a certeza de a encontrar em casa. Dirigi-me para o museu, e mais nada.
Enquanto esperava pela Phoebe no átrio do museu apareceram dois miúdos que me perguntaram se eu sabia onde estavam as múmias. O mais pequeno, o que falou em primeiro lugar, trazia as calças desabotoadas. Chamei-lhe a atenção para o caso. Ele abotoou-as ali mesmo, enquanto falava comigo, sem se preocupar a esconder-se atrás de uma coluna. Fiquei varado. Rir-me-ia se não receasse vomitar.
- Onde estão as múmias?-perguntou o garoto. - Sabe onde estão as múmias?
Resolvi entreter-me com eles.
- As múmias? Que é isso? - perguntei ao mais pequeno.
- O senhor sabe. As múmias, os tipos mortos, não sabe? Os que ficaram nos túmulos.
Túmalos ! O miúdo queria dizer túmulos. - Então vocês não têm aulas?
- Hoje não há aulas - disse o garoto. Mentia, é claro. Como nada tinha que fazer até encontrar-me com a Phoebe, decidi auxiliá-los a encontrar as múmias. Antigamente sabia encontrá-las com os olhos fechados, mas há anos que eu não visitava aquele museu.
- Então vocês estão muito interessados pelas múmias? - Sim.
- E o teu amigo? É mudo? - perguntei eu - Não é meu amigo. É meu irmão. - És mudo? - disse eu, dirigindo-me ao que estivera sempre calado. - Não sabes falar? - Sim - respondeu ele - mas não me apetece. Finalmente encontrámos as múmias.
- Sabes como é que os Egípcios sepultavam os mortos ? -perguntei ao mais pequeno.
- Não.
- Bem, mas devias saber. É uma coisa muito interessante. Embrulhavam os mortos em pano de linho embebido em líquidos secretos, de modo que poderiam ficar milhares de anos nos túmulos sem apodrecer. Ninguém sabia fazer isto, além dos Egípcios. Nem a ciência moderna.
Para chegarmos à sala das múmias tínhamos de passar por um estreito corredor de pedra que viera do túmulo de um faraó. Tinha um aspecto muito sinistro e via-se perfeitamente que os dois miúdos estavam amedrontados. Chegaram-se a mim e o que nunca falara pendurava-se prà-ticamente na manga do meu casaco.
- Vamos embora - disse ele. - Já vi tudo. Voltou-se e fugiu a correr.
Vamos!
- O tipo tem medo que se farta - disse o outro. - Então adeus! - E fugiu também.
Fiquei só no túmulo. Mas sentia-me bem. Era um sítio tranquilo e pacífico. Depois, súbitamente, naquela velha parede de pedra, que vi eu? Outro palavrão. Escrito com lápis preto, sob a vitrina que protegia as pedras.
Aí é que está o problema. É impossível descobrir um sítio verdadeiramente pacífico, porque não há sítios pací-ficos. Pensamos que há sítios pacíficos, mas também há sempre tipos malandros que escrevem "Vai à merda." em toda a parte. Até pensei que, quando morrer, se me meterem num cemitério, num túmulo onde haverá uma inscrição com o meu nome, " Holclen Caulfield", com as datas do meu nascimento e da minha morte, haverá algum malandro que, mesmo por baixo, há-de escrever: "Vai à merda." Não tenham dúvida.
Depois de sair da sala das múmias fui obrigado a diri-gir-me apressadamente para a casa de banho. Para vos dizer a verdade, estava com diarreia. A diarreia, em si,
é coisa que não me incomoda muito, mas o pior foi outra coisa. Quando saía da casa de banho, desmaiei. Tive sorte, porém. Podia ter batido com a cabeça no chão, mas caí de lado. O mais curioso é que quando acordei senti-me melhor. Doía-me um braço por causa da queda, mas sen-tia-me melhor, embora um pouco estonteado.
Passavam dez minutos do meio-dia e por isso retrocedi e fui ao encontro da Phoebe. Pensei que seria a última vez que a via. É claro que provávelmente voltaria a encon-
trar-me com os meus parentes, mas só muitos anos mais tarde. Quando tivesse vinte e cinco anos talvez voltasse a casa, a não ser que alguém adoecesse e quisesse ver-me antes de morrer. Mas só por esse motivo abandonaria a minha barraca no Oeste. Até comecei a pensar no que aconteceria no dia do meu regresso. A minha mãe ficaria muito nervosa, começaria a chorar e a pedir-me que não voltasse para a barraca, mas eu partiria, fosse como fosse.
Portar-me-ia, contudo, com grande à-vontade. Acalmá--la-ia e depois acenderia um cigarro como se nada tivesse acontecido. Pedir-lhes-ia que me visitassem sempre que quisessem, mas não insistiria muito. A Phoebe sim, insistiria para que ela me visitasse no Verão, no Natal e na Páscoa. E o D. B. também, se quisesse, pois a minha barraca seria um sítio esplêndido para escrever, mas não lhe permitiria que escrevesse argumentos para filmes enquanto lá esti-vesse. Só romances e., contos. Fixaria uma lei pela qual nin-guém poderia fazer aldrabices quando me visitasse. Se ten-tassem, pô-los-ia na rua.
Súbitamente olhei para o relógio do museu e vi que já passava do meio-dia e meia hora. Comecei a temer que a velha não tivesse entregado o recado à Phoebe. Talvez
tivessem rasgado a carta. Fiquei muito preocupado. É que eu desejava despedir-me da Phoebe antes de partir para o Oeste. Além disso, ainda não lhe restituíra o dinheiro do Natal.
Finalmente a Phoebe apareceu. Vi-a pela vidraça da porta. Trazia o meu boné de caça, que era bem visível a dez quilómetros de distância.
Desci as escadas a correr para ir ao seu encontro. Só não compreendia a razão por que ela trazia uma grande mala. Atravessava naquele momento a Fifth Avenue,
toda ajoujada ao peso de uma grande mala. Nem podia com ela. Quando me aproximei, descobri imediatamente que se tratava da minha mala de viagem, uma das muitas que levara para Whooton. Não consegui perceber o motivo por que a trazia.
- Olá - disse ela quando me acerquei. Estava sem fôlego.
- Pensei que já não vinhas - disse eu. - Mas para que diabo é essa mala? Não preciso de malas. Vou mesmo assim. Nem sequer levo as malas que deixei na estação. Para que a trouxeste?
Ela pôs a mala no chão.
- São as minhas roupas - disse ela. - Vou contigo. Deixas? Okay ?
- O quê? - perguntei eu. Ia desmaiando quando a ouvi dizer aquilo. Fiquei tonto e julguei que ia desmaiar novamente.
- Trouxe-a no elevador para que a Charlene não descobrisse. Não é pesada. Só levo dois vestidos, roupa interior, os meus moccasins, meias e outras coisas. Ora pega-lhe! Não é pesada. Pega-lhe! Não posso ir contigo, Holden? Posso ou não? Diz lá!
- Não. Cala-te.
Sentia-me frio como gelo, prestes a desmaiar. Não queria ser rude, mas julguei que ia desmaiar.
- E porque não? Por favor, Holden ! Não te incomodo... Vou só contigo, e mais nada. Nem sequer levo as roupas, se tu não quiseres... Só levo...
- Não levas coisa nenhuma, porque não vais. Vou só. Cala-te.
- Ouve, Holden! Ouve! Deixa-me ir... Tu nem... - Não vais. Cala-te! Dá cá essa mala! - disse eu. Arranquei-lhe a mala das mãos. Estava resolvido a magoá-la, se fosse preciso. Durante alguns segundos pen-sei em dar-lhe um soco.
Ela começou a chorar.
- Pensava que tu ias desempenhar um papel na peça do Natal. Pensava que tu ias fazer de Benedict Arnold - disse-lhe eu. - Então queres deixar a peça? - acrescentei. Mas só consegui fazer que ela chorasse ainda mais. Senti-me contente. Súbitamente até desejei que ela cho-rasse tanto que lhe saltassem os olhos. Quase a odiava. Odiava-a porque, se ela fosse comigo, perderia a peça do Natal.
- Vamos - disse eu. Comecei novamente a subir os degraus do museu. Já resolvera deixar a mala no ben-galeiro do museu, e ela às três horas poderia ir buscá-la. Sabia perfeitamente que ela era incapaz de voltar para a escola com a mala. - Vamos - repeti.
Mas ela não subiu os degraus comigo. Não queria acompanhar-me. Subi a escada, levei a mala para o benga-leiro e dei-a a guardar ao empregado. Depois desci nova mente a escada. A Phoebe ainda lá estava no passeio, mas virou-me as costas mal me viu. Quando quer, sabe voltar as costas ao parceiro!
- Pois eu já não vou para o Oeste. Resolvi outra coisa. Vamos! Acaba com essa choradeira e cala-te - disse eu. Mas o mais curioso é que ela já não chorava. Em todo o caso, disse-lhe: - Vamos! Eu levo-te à escola. Olha que chegas tarde!
Mas ela não me respondeu. Tentei levá-la pela mão mas ela esquivou-se. Continuava de costas voltadas para mim.
- Já almoçaste? - perguntei-lhe.
Não respondeu. Tirou o boné de caça que eu lhe dera e pràticamente atirou-mo à cara. Depois voltou-me as costas. Fiquei varado, mas calei-me. Apanhei o boné e meti-o no bolso.
- Vamos! Eu levo-te à escola - disse-lhe. - Não vou para a escola.
Não sabia que dizer-lhe. Fiquei ali, calado, durante alguns segundos.
- Tens de ir para a escola. Queres ou não queres entrar na peça? Benedict Arnold, não era esse o teu papel?
- Não.
- Era, pois. Vamos embora! - disse eu. - Em primeiro lugar, não vou para o Oeste, já te disse. Vou para casa. Vou para casa logo que tu fores para a escola. Vou à estação levantar as malas e depois vou direitinho a casa.
- Não me interessa. Não volto à escola. Podes fazer o que quiseres - disse ela. - Cala-te! - Era a primeira vez que me mandava calar. Pareceu-me terrível! Meu Deus! Foi uma coisa terrível! Foi pior que uma praga. Conti-nuava de costas voltadas para mim e, quando tentei pôr-lhe a mão sobre os ombros, esquivou-se.
- Ouve! Queres dar um passeio? - perguntei-lhe. - Queres ir até ao jardim zoológico? Está bem? Faltas à escola e vamos dar um passeio, mas acaba com isso. Não me respondeu e por isso eu repeti:
- Se eu deixar que tu faltes à escola, acabas com isso? E amanhã? Voltas à escola como fazem todas as meninas ajuizadas?
- Talvez sim, talvez não! - disse ela. Depois atravessou a rua a correr, sem se interessar com o trânsito. A Phoebe, por vezes, parece louca.
Mas não a segui. Eu sabia que ela viria atrás de mim, e por isso encaminhei-me para o jardim zoológico. Ela começou a seguir-me, mas no outro passeio, em frente. Fingia que não me via, mas garanto-vos que me espiava pelo canto do olho. Caminhámos assim até ao jardim zooló-gico. Só me afligi quando um autocarro de dois andares se interpôs, ocultando-a da minha vista. Quando chegámos ao jardim zoológico, gritei-lhe:
- Phoebe! Vamos ao jardim! Anda daí!
Nem sequer virou a cabeça, mas quando comecei a subir os degraus do jardim reparei que ela atravessava a rua.
Não havia muita gente no jardim, porque o dia estava frio e húmido, mas, mesmo assim, via-se um grande ajun-tamento perto do lago das focas. Comecei a afastar-me, mas ela resolveu fingir que observava as focas - um homem alimentava-as, lançando-lhes pedaços de peixe-, e eu retrocedi. Vi que a ocasião era óptima para fazer tréguas. Fiquei atrás dela e pus-lhe a mão nos ombros, mas ela dobrou os joelhos e esquivou-se. Ali ficou a ver focas e eu mantive-me no mesmo sítio. Não tentei fazer tréguas, pois o momento não era ainda propício. As crianças são muito curiosas! Temos de proceder sempre com muito tacto!
Quando acabou de admirar as focas, não caminhou junto a mim, mas também não se afastou para longe.
Caminhou pela beira do passeio, enquanto eu seguia mais pelo centro. Não era uma coisa muito divertida, mas sempre era melhor que vê-la a um quilómetro de dis-tância. Fomos admirar os ursos no cimo de uma pequena colina, mas o espectáculo não era muito famoso. Só havia um urso fora da toca, um grande urso polar. O outro, o castanho, estava metido na toca. Só se lhe via o rabo. Uma criança perto de mim, com um grande chapéu de cow-boy, que lhe cobria as orelhas, berrava constantemente para o pai: "Faz que ele saia! Faz que ele saia!"
Olhei para a Phoebe, mas ela não queria rir-se. As crianças nunca se riem quando estão magoadas.
Depois de ver os ursos, saímos do jardim e atravessámos a rua do parque. Enfiámos por um daqueles túneis que cheiram sempre muito mal. Era o caminho do carrocel. A Phoebe continuava calada, mas já caminhava junto a mim. Tentei segurá-la pela cintura, mas ela afastou-se. - Tira as mãos, se não te importas- disse ela. Conti-nuava zangada, mas não tanto como anteriormente.
Seguimos juntos e já se ouvia a música do carrocel. Era uma canção que se chama Oh, Marie! Há cinquenta anos que aquele carrocel toca a mesma música. Os carrocéis tocam sempre as mesmas músicas.
- Julgava que o carrocel não funcionava no Inverno - disse a Phoebe.
Era a primeira vez que falava. Provavelmente esqueceu-se de que estava zangada.
- Talvez seja por causa do Natal - respondi eu. Não respondeu. Provàvelmente lembrou-se de que estava zangada.
- Queres ir no carrocel? - perguntei. Sabia que ela gostava de andar no carrocel. Quando ela ainda era muito pequena, eu, o D. B. e o Allie costumávamos levá-la
ao parque e ela ficava louca com o carrocel.
- Já sou muito crescida - disse ela. Julguei que não me responderia, mas respondeu.
- Não, não és. Vai. Esperarei por ti. Vai! Anda! - disse eu.
Havíamos chegado ao carrocel. Algumas crianças andavam no carrocel e alguns pais esperavam cá fora, sentados nos bancos do jardim. Dirigi-me à bilheteira e comprei um bilhete para a Phoebe. Depois dei-lho. Ela estava junto de mim.
- Ouve - disse eu, - toma lá o resto do dinheiro. - Fiz menção de lhe dar o dinheiro que ela me emprestara. - Fica com ele. Fica com ele, por favor - disse ela ime-diatamente.
Quando alguém me pede uma coisa por favor fico sempre muito triste. Especialmente quando se trata da Phoebe. Fiquei muito deprimido. Mas meti o dinheiro no bolso.
- E tu? Não vais no carrocel? - perguntou-me. Olhava-me, sorridente. Via-se que já não estava zangada comigo.
- Talvez eu vá a seguir. Fico a ver-te - disse eu. - Já tens o bilhete?
- Sim.
- Então vai... Eu fico aqui, neste banco.
Dirigi-me para o banco, sentei-me e ela subiu para o carrocel. Correu todos os lugares até que escolheu um velho cavalo castanho. O carrocel moveu-se e eu fiquei a observá-la. Só havia cinco ou seis garotos no carrocel e ouvia-se uma velha canção de jazz. Os garotos tentavam bater na grande bola dourada e a Phoebe também. Receei que ela caísse do cavalo, mas deixei-me ficar quieto. Quando uma criança quer acertar na bola dourada, é melhor não interferir. Se caírem, caíram, mas ainda é pior avisá-las.
Quando o carrocel parou, ela correu para mim. - Vem também! Só esta vez! - disse-me.
- Não. Eu fico a ver-te - respondi-lhe. Dei-lhe umas moedas. - Vá! Compra outro bilhete!
Ela agarrou as moedas.
- Já não estou zangada contigo - disse.
- Eu sei. Vamos! Despacha-te! O carrocel vai andar! Súbitamente agarrou-se a mim e deu-me um beijo - Depois estendeu a mão e disse
- Vai chover! Está a começar a chover. - Eu sei.
Depois meteu a mão no meu bolso, tirou o boné de caça e enfiou-mo na cabeça.
- Não o queres? - perguntei. - Podes usá-lo de vez em quando.
- Okay. Mas despacha-te. Vais perder a corrida. Olha que ficas sem o cavalo.
Mas ela continuou ali, ao meu lado.
- É verdade o que disseste? Já não vais para longe? Vais mesmo para casa? - perguntou-me.
- É verdade, sim - disse eu. E era verdade. Não lhe mentia. Queria ir para casa. - Vamos! Despacha-te.
Ela correu para a bilheteira e comprou um bilhete mesmo a tempo de saltar para o carrocel. Depois andou às voltas até encontrar o cavalo. Acenou-me e eu respondi--lhe com um gesto.
Caramba! Começou a chover a potes. Os pais e as mães correram a abrigar-se no telheiro do carrocel, para não ficarem molhados até aos ossos, mas eu fiquei ainda alguns segundos sentado no banco. Em breve senti a chuva no pescoço e nas calças. O boné de caça conseguia proteger-me, mas, mesmo assim, fiquei encharcado. Mas para quê preocupar-me? Sentia-me tão feliz só de ver a Phoebe ali, às voltas, às voltas, no carrocel. Para vos ser franco, sen-tia-me tão feliz que, inexplicàvelmente, tive vontade de gritar. Não sei porquê. Talvez porque a Phoebe estava linda, ali, às voltas, no carrocel. Oh, meu Deus, como eu desejava estar junto dela!
E é tudo. Ainda vos poderia contar o que aconteceu quando regressei a casa, e como adoeci, e qual a escola para onde irei no Outono, depois de sair daqui, mas nada disso interessa. Pelo menos, a mim não interessa.
Há muita gente, sobretudo o psicanalista, que me pergunta se eu vou ser um aluno aplicado quando voltar para a escola, em Setembro. Acho que é uma pergunta muito estúpida. Como é que se sabe se vamos fazer uma coisa quando ainda não a fizemos? Parece-me que vou estudar a valer, mas quem sabe? Juro-vos que é uma pergunta muito estúpida.
O D. B. não é tão mau como os outros, mas, mesmo assim, também me faz muitas perguntas. No sábado passado levou-me a um passeio com uma inglesa que entra no filme que ele está a escrever. É muito afectada, mas tem bom aspecto. Quando ela nos deixou sós e foi à retrete das senhoras, o D. B. fez-me muitas perguntas acerca de tudo o que acabei de vos contar. Não consegui responder-lhe. Se querem saber a verdade, nem sei que hei-de pensar de tudo isto. É pena ter falado deste assunto a tanta gente. Sobretudo parece-me que sinto a falta das pessoas a que me referi. O Stradlater e o Ackley, por exemplo. Suponho que até tenho saudades do Maurice. É curioso! Nunca contem nada a ninguém. Se contarem, acabam por ter saudades de toda a gente.
J. D. Salinger
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