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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O APARTAMENTO FATÍDICO / Erle Stanley Gardner
O APARTAMENTO FATÍDICO / Erle Stanley Gardner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O APARTAMENTO FATÍDICO

 

                   Noite Agitada

            Fui acordado às três da manhã pelo ruído de uma lata a rebolar no empedrado do passeio. Um momento mais tarde, uma voz de mulher, aguda e penetrante, gritou: “Não vou contigo! Estás a compreender?”

Voltei-me para o outro lado e tentei mergulhar, de novo, no esquecimento do sono. A voz da mulher perseguiu-me, ferindo-me os tímpanos. Não consegui ouvir a voz do homem com quem ela discutia.

A atmosfera estava carregada de umidade. A cama era grande, de quatro colunas no estilo antigo, e estava encostada à parede mais afastada de um quarto de tecto alto. Enormes janelas francesas abriam para uma varanda protegida por uma grade de ferro forjado. Esta varanda estendia-se por sobre o passeio, ultrapassando-o. Do outro lado da rua, mesmo em frente, ficava o Bar de Jack O’Leary. Quando havia experimentado fechar as janelas, o ar, pesado e úmido, tinha tornado a atmosfera do quarto sufocante. Quando abri as grandes janelas, os ruídos do velho Bairro Francês de Nova Orleães chegaram até mim.

O som da voz aguda cessou repentinamente e eu tentei adormecer uma vez mais. Depois um novo ruído se fez ouvir. Alguém tinha começado a dar pequenos toques no claxon de um automóvel. Passado um pouco foi a vez de outro claxon.

Levantei-me, enfiei os pés numas chinelas e, aproximando-me da janela aberta, olhei para o Bar de Jack O’Leary. A julgar pelas aparências, um estouvanado qualquer havia saído do bar para ir buscar o carro a fim de vir recolher os restantes elementos do seu grupo. Apoiou no claxon durante um bocado e depois deu uma série de toques curtos para que os seus companheiros - e toda a gente das redondezas - soubessem que ele estava ali. Enquanto ele bloqueava a rua, outro automobilista atrás dele desejava passar. Aproximaram-se mais carros. Em breve toda a rua ecoava ao som de um tumultuar de buzinas. Quando a impaciência na retaguarda do automobilista que bloqueava a rua se tornou mais insistente, este tentou apressar os seus companheiros, encostando a palma da mão ao botão do claxon e conservando-a ali.

Era uma rua de sentido único, com parque autorizado de ambos os lados, deixando apenas um corredor no centro para escoamento do tráfego. Neste momento a fila de carros aumentara já consideravelmente. O barulho era insistente, ensurdecedor. Três pessoas saíram despreocupadamente do Bar de Jack O’Leary: um homem alto e desempenado em trajo de noite, e que parecia não ter muita pressa, e duas raparigas de vestidos compridos que arrastavam pelo chão. As duas falavam ao mesmo tempo, olhando por cima do ombro para o interior do bar profusamente iluminado. O homem fez um gesto para o condutor do automóvel. O som das buzinas tornou-se infernal. O homem atravessou calmamente o passeio, entrou na zona de tráfego e, com gestos medidos, abriu a porta de trás do carro, conservando-a galantemente aberta. Passado um pouco uma das mulheres juntou-se a ele. A outra deu meia volta e olhou para a porta do bar. Um homem gordo, em fato de passeio, com um copo na mão, saiu para lhe falar. As duas pessoas que estavam a provocar a procissão de carros pareciam completamente alheias ao que se passava à sua volta. Falavam com todo o à-vontade. O homem tirou um lápis de uma algibeira, pescou uma agenda noutra e depois olhou em redor em busca de um lugar onde pudesse pousar o copo. Quando verificou que não havia nenhum, tentou segurar o copo e a agenda com uma só mão enquanto escrevia. Finalmente conseguiu o que desejava. A rapariga levantou um pouco a saia, atravessou despreocupadamente o passeio e entrou no carro. Seguiu-se um bater de portas. O condutor do carro parecia sentir que reduziria a demora que causara arrancando com o acelerador a fundo. À esquina meteu uma segunda. A corrente de tráfego começou a mover-se.

Olhei para o relógio. Três e quarenta e cinco. Fiquei junto da janela durante meia hora, pois não me apetecia fazer mais nada. Não podia voltar a dormir. Bertha Cool devia chegar no comboio das sete e vinte. Havia-lhe dito que a iria esperar à estação. Durante aquela meia hora, ao observar as pessoas que saíam do Bar de Jack O’Leary, fiquei com a certeza de que podia adivinhar a espécie de qualquer potencial barulho antes que ele se manifestasse. Havia o número dos quatro parceiros que ficavam no passeio a discutir em altas vozes qual seria a próxima escala. Geralmente estes grupos dividiam-se em dois partidos: o que desejava ir já para casa e o que afirmava que a noite ainda mal começara. Havia outras pessoas que tinham travado conhecimento no bar. Aparentemente, jamais ocorria a qualquer delas informar-se do nome, morada e número do telefone do novo conhecimento antes de chegar à rua. Nessa altura a falta era remediada entre grande risota, apertados abraços de despedida e repetidos “adeus” gritados a plenos pulmões. Havia ainda outros grupos cujos principais componentes eram as raparigas que não queriam ser seduzidas e as mulheres casadas que não estavam para regressar a casa tão cedo. É claro que havia barulho no interior do bar. As pessoas que saíam e ficavam no passeio a conversar tinham que gritar para se fazerem ouvir.

Seguindo o costume do Bairro Francês de Nova Orleães, havia recipientes de lata para o lixo nos passeios. Toda a gente, ao passar por eles, se achava na obrigação de dar um pontapé numa das tampas para a fazer rebolar com enorme ruído ao longo da rua.

Passada esta meia hora, afastei-me da janela, sentei-me numa cadeira e deixei errar a vista pelo apartamento meio iluminado. Roberta Fenn vivera nesta mesma casa uns três anos antes. Havia-a alugado sob um nome suposto; depois sumira-se no ar. Cool & Lam - Investigações Confidenciais, havia sido encarregada de a descobrir. Sentado na quente penumbra, tentei reconstituir a vida que Roberta Fenn teria levado. Devia ter ouvido os mesmos ruídos que eu estava a ouvir. Devia ter comido nos restaurantes da vizinhança, freqüentado os bares e talvez passado algum tempo no estabelecimento de Jack O’Leary. A atmosfera pesada, quase tropical, fazia aumentar o calor da noite. Deixei-me cair numa modorra intermitente.

As cinco e trinta despertei o bastante para me dirigir para a cama aos tropeções. Nunca na minha vida sentira tanto sono. Os últimos foliões tinham ido já para casa e a rua gozava agora um intervalo de quietude. Mergulhei imediatamente num sono profundo mas logo a seguir a campainha do despertador acordou-me de novo. Seis e meia! Tinha que ir encontrar-me com Bertha Cool às sete e vinte.

 

                   Secção «Pessoal»

Tive a certeza que o homem que acompanhava Bertha Cool era o advogado de Nova Iorque. Era um sujeito alto e bem vestido, de braços compridos e cinqüenta e muitos anos. O dentista tentara tornar-lhe o rosto mais largo quando lhe fabricara as placas dentárias.

Bertha Cool devia continuar nos seus conservadores setenta e cinco quilos. O seu rosto crestado pelo sol contrastava com o cabelo grisalho. Dirigiu-se ao meu encontro quase a correr, obrigando o advogado de Nova Iorque a dar largas passadas para se manter ao seu lado. Dei uns passos com a mão estendida. Bertha analisou-me rapidamente com os seus duros olhos cinzentos.

- Meu Deus, Donald - disse ela, você tem o aspecto de quem se embebedou durante uma semana seguida.

- Foi o despertador.

- Você não teve que se levantar mais cedo do que eu - rosnou Bertha. - Apresento-lhe o Sr. Emory Hale, Emory Garland Hale, o nosso cliente.

- Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Hale.

Ele olhou-me de cima para baixo e mostrou uma expressão escarninha ao apertar-me a mão. Bertha reconheceu a expressão, pois já a observara no rosto de outros clientes.

- Não faça um juízo errado do Donald – preveniu ela. - Pesa uns sessenta quilos vestido, com as chaves e limpa-unhas nos bolsos, mas tem um cérebro de bom tamanho e alma de leão.

Hale sorriu com a espécie de sorriso que eu já esperava dele. Com todo o cuidado fez assentar a dentadura de cima na de baixo e depois repuxou os lábios; era provavelmente um maneirismo estudado, mas que nos levava a pensar que ele tinha receio de que as placas caíssem se ele lhes desse uma oportunidade.

- Onde podemos conversar? - perguntou Bertha.

- No hotel. Aluguei os quartos com antecedência porque nesta época a cidade está cheia de turistas.

- Óptimo - comentou Bertha. - Já descobriu alguma coisa, Donald?

- Depreendi pela carta que me escreveu para a Florida que o Sr. Hale me daria todos os pormenores antes de eu começar as investigações.

- E vai dar. Na carta, eu indicava-lhe, de uma maneira geral, o que se pretendia. Você já cá deve estar há três dias.

- Um dia e duas noites.

Hale sorriu. Bertha ficou impassível.

- Tem aspecto disso - resmungou ela.

Um táxi levou-nos a um moderno hotel, situado na zona comercial da cidade e que não destoaria em qualquer grande capital. Nada indicava que o romântico Bairro Francês distava dali apenas uns seis quarteirões.

- Miss Fenn esteve aqui hospedada? – perguntou Hale.

- Não. Esteve no Monteleone.

- Quanto tempo?

- Cerca de uma semana.

- E depois?

- Saiu e nunca mais voltou. Sumiu-se no ar.

- Não levou a bagagem consigo?

- Não.

- Apenas uma semana - comentou Hale. – Não posso acreditar nisso.

- Tenho de ir tomar banho - disse Bertha. – Ainda não comeu o pequeno-almoço, amorzinho?

- Não - respondi.

- Você parece um homem desprezado por Deus.

- Lamento.

- Não está doente, pois não?

- Não.

- Vou até ao meu quarto - interveio Hale – para lavar-me e escovar o fato. Creio que também vou fazer novamente a barba, pois julgo que a não fiz convenientemente esta manhã no comboio. Até breve, não?

- Até de aqui a meia hora - respondeu Bertha.

Hale concordou com um gesto e dirigiu-se, ao longo do corredor, para o seu quarto. Bertha voltou-se para mim:

- Está a esconder alguma coisa?

-Estou.

- Por quê?

- Desejo que Hale me diga mais coisas antes de eu lhe revelar tudo.

- Por quê?

- Não sei, talvez um palpite.

- Que factos está a esconder?

- Roberta Fenn - comecei - esteve hospedada no Hotel Monteleone. Havia encomendado um vestido para lhe ser enviado ao domicílio. Pagou vinte dólares no acto da compra, ficando a dever dez. O vestido chegou depois de ela ter partido. Ficou no hotel cerca de uma semana e depois a gerência devolveu-o à procedência. Tinham o registro desse facto num dos livros.

- Bem - interrompeu Bertha com impaciência isso nada nos diz.

- Três ou quatro dias após o vestido ser devolvido, Miss Fenn telefonou para o armazém e pediu para enviarem o embrulho para Edna Cutler, na Rua de S. Pedro. Miss Fenn deixaria o dinheiro a Miss Cutler para pagamento no acto de entrega.

- Quem era Edna Cutler?

- Roberta Fenn.

- Tem a certeza?

- Tenho.

- Como descobriu isso?

- A mulher que alugou o apartamento identificou a fotografia.

- Por que motivo Roberta Fenn teria feito uma coisa dessas?

- Não faço idéia. Mas há mais.

Abri a carteira, tirei dela um anúncio que havia recortado de um jornal da manhã e entreguei-o a Bertha.

- O que é isto? - perguntou ela.

- Um anúncio que aparece diariamente no jornal desde há dois anos. O jornal não quis dar qualquer informação a este respeito.

- Leia alto - pediu Bertha. - Tenho os óculos na carteira.

O anúncio rezava: Rob F. Favor comunica comigo. Não deixei de amar-te nem um minuto depois que partiste. Volta, querida P. N.

- Publicado durante dois anos! - exclamou Bertha.

- Exactamente.

- Você pensa que Rob F. é Roberta Fenn?

- Podia ser.

- Vamos contar isto tudo a Hale?

- Por enquanto não. Deixemos que ele nos conte primeiramente o que sabe.

- E você nem ao menos lhe dirá qualquer coisa a respeito deste anúncio?

- Por enquanto não. Ele já lhe passou um cheque?

Os olhos de Bertha despediram chamas de indignação.

- Por quem diabo me toma você? Claro que me passou um cheque.

- Muito bem. Informemo-nos primeiramente do que ele sabe e, mais tarde, contar-lhe-emos nós o que sabemos.

- E quanto ao tal apartamento? Podemos ir até lá dar uma vista de olhos?

- Claro que sim.

- Tem a certeza?

- Tenho.

- Sem levantar suspeitas?

- Sim. Dormi lá a noite passada.

- Você dormiu... ?

- Exactamente.

- Como conseguiu isso?

- Aluguei-o por uma semana.

O rosto de Bertha escureceu.

- Meu Deus, você deve pensar que a agência nada em dinheiro! Logo que o deixo à vontade, você começa a gastar a torto e a direito. Poderíamos conseguir a mesma coisa, dizendo à senhoria que pretendíamos alugar e...

- Bem sei - interrompi - mas quero passar o lugar a pente fino para ver se ela deixou lá alguma coisa, qualquer pista que nos indique o que aconteceu.

- Descobriu alguma coisa?

- Não.

Bertha resmoneou.

- Você teria feito melhor se tivesse ficado aqui e dormisse descansadamente. Muito bem, ponha-se a andar para que Bertha possa lavar-se. Aonde vamos comer?

- A um certo sítio. Já alguma vez comeu pudim de nozes?

- O quê?

- Pudim recheado de nozes.

- Nunca, Bom Deus! Gosto de comer as coisas que têm nomes decentes. Vou despedir-me deste hotel e alojar-me nesse apartamento. Assim já não será uma perda de dinheiro. Quando se trata de dinheiro, você...

Saí para o corredor, O barulho da porta a fechar-se cortou o resto da frase.

 

                   Um Trabalho Difícil

Hale afastou o prato para arranjar um espaço livre na mesa à sua frente.

- Vou apanhar o avião das dez e meia para Nova Iorque - disse ele - e por tal motivo tenho de falar enquanto a Srª. Cool acaba o seu pudim, se é que a senhora não se importa?

Bertha Cool com a boca cheia, pois começara a atacar o segundo pudim, conseguiu articular:

- À vontade.

Hale pegou na pasta, colocou-a sobre os joelhos e abriu-a.

- Roberta Fenn tinha vinte e três anos em 1939. Isso faz com que actualmente tenha cerca de vinte e seis. Tenho aqui mais algumas fotografias; creio que a Srª. Cool lhe enviou algumas por avião, Lam.

- Sim, tenho-as comigo.

- Bem, aqui tem mais algumas que a mostram em diferentes poses.

Meteu a mão na pasta, tirou um sobrescrito e entregou-mo.

- Tem aí também uma descrição mais pormenorizada. Altura: um metro e sessenta e dois; peso: cinqüenta quilos; cabelo castanho; olhos castanhos; dentes regulares; pele fina e morena.

Bertha Cool captou a atenção da criada preta e fê-la aproximar-se.

- Quero mais um desses pudins de nozes – disse ela.

- Está a procurar que os vestidos que pôs de parte o ano passado lhe sirvam novamente? - perguntei.

Ela tornou-se imediatamente belicosa.

- Cale-se! Julgo que... - Lembrou-se que um cliente estava na sua presença e conseguiu disfarçar o seu mau humor. - Apenas como bem uma vez por dia explicou a Hale com uma expressão que não era bem um sorriso. - Geralmente é ao jantar, mas se comer bem ao almoço como um jantar mais leve e o resultado é o mesmo.

Hale observou-a demoradamente.

- A senhora tem um peso conveniente a uma boa saúde - disse ele. - É uma pessoa vigorosa e musculada. É realmente surpreendente a sua energia.

- Bem, continue a expor os factos - disse Bertha. - Desculpe por o termos interrompido. - Voltou-se para mim e acrescentou. - E a verdade é que não pus os vestidos de lado. Estão muito bem arrumados num guarda-vestidos.

- Bem, vejamos - começou Hale. - Ah, sim, Roberta Fenn tinha vinte e três anos quando desapareceu. Era modelo em Nova Iorque. Posava para anúncios. Nunca conseguiu grande coisa. Tinha umas pernas maravilhosas. Fazia anúncios de meias, fatos de banho e roupas interiores. Parece incrível que uma rapariga tantas vezes fotografada possa ter desaparecido.

-As pessoas não olham para as caras dos modelos que anunciam roupas interiores - sentenciou Bertha.

- Aparentemente foi um desaparecimento voluntário - continuou Hale - se bem que não saibamos o motivo. Nenhum dos seus amigos nos consegue dar qualquer esclarecimento. Não tinha inimigos nem dificuldades financeiras e, segundo o que se averiguou, não havia qualquer razão para ela desaparecer tão subitamente, pelo menos os motivos vulgares.

- Intriga amorosa? - perguntei.

- Aparentemente, não. A característica predominante desta jovem era a sua completa independência. Gostava de viver a sua própria vida. Era muito discreta sobre a sua vida particular, mas as suas amigas afirmam categoricamente que era demasiadamente independente para ter confidentes. Era uma rapariga que se bastava a si própria. Quando saía com um homem, ia sempre à vontade, sem sentir quaisquer espécies de obrigações.

- Isso é levar a noção de independência demasiadamente longe - afirmou Bertha.

- Qual o motivo por que a procuram agora? - perguntei. - Por outras palavras, por que motivo deixaram o caso no olvido durante três anos e depois começam afanosamente a procurá-la, contratam detectives para virem a Nova Orleães, fazem dispendiosas viagens de avião e...

As duas filas regulares de dentes brilharam na minha direcção. Hale acenava com a cabeça e sorria.

- Um rapazinho muito esperto - disse ele para Bertha. - Muito esperto realmente! Já reparou? Pôs o dedo mesmo em cima da ferida.

A criada trouxe o terceiro pudim de Bertha. Esta juntou-lhe duas formas de manteiga.

- Tem molho de manteiga naquele frasco, madame - disse a criada.

Bertha despejou o frasco de molho sobre o pudim, espalhou-o bem e disse:

- Traga-me outra chávena de café e torne a encher o frasco do molho. - Voltou-se para Hale. - bem lhe disse que Donald tinha muitos miolos.

Hale aquiesceu.

- Estou muito satisfeito com a escolha que fiz da agência. Tenho a certeza que vão conduzir o caso satisfatoriamente.

- Não quero parecer insistente, Sr. Hale, mas...

Ele deu uma gargalhada. Os dentes quase lhe caíram.

- Bem sei, bem sei - disse ele. - Você quer voltar à pergunta inicial. Bem, Sr. Lam, vou responder-lhe. Desejamos encontrá-la a fim de encerrarmos uma questão de partilhas. Lamento, mas não posso dizer-lhe mais nada. No final de contas, como deve saber, estou a trabalhar para um cliente. Sou obrigado a guiar-me pelos seus desejos. Seria bom que o senhor adoptasse uma atitude semelhante.

Bertha engoliu o pedaço de pudim que tinha na boca com a ajuda de uma golada de café quente.

- Quer o senhor dizer - perguntou ela - que ele não pode fazer investigações sobre o passado, a fim de descobrir o que se passa?

- O meu cliente tomará providências para que os senhores recebam as informações necessárias – respondeu Hale - e, em virtude de ele ser realmente quem paga... Bem, creio que os senhores compreenderão perfeitamente que seria muito embaraçoso se houvesse qualquer atrito no caso.

Bertha voltou-se na minha direcção com o sobrolho franzido.

- Fixe bem isto, Donald - preveniu ela. – Não comece a expor uma quantidade de teorias. Limite-se ao caso que tem entre mãos. Descubra o paradeiro dessa rapariga e não se preocupe com a identidade de quem a procura. Compreendeu? Esqueça esse ângulo romântico do caso.

Hale olhou-me rapidamente para ver como eu reagia. Depois fitou Bertha.

- Isso explicou claramente o que eu pretendia dizer, Srª. Cool.

- Bem sei - respondeu Bertha. - O senhor fez um grande discurso. Agora já está tudo explicado. Desta forma não haverá mal entendidos. Não gosto de desperdiçar palavras.

- A senhora é uma mulher muito positiva – afirmou Hale.

Houve um momento de silêncio.

- Que mais pode dizer-me a respeito de Roberta Fenn? - perguntei.

- Dei à Srª. Cool a maior parte dos pormenores quando vínhamos no comboio - respondeu Hale.

- Roberta Fenn tinha parentes próximos?

- Não.

- O senhor ainda procura encontrá-la a fim de encerrar uma questão de partilhas?

Hale pôs a sua enorme mão no meu braço num gesto paternal.

- Ouça, Lam, creio que fui bastante claro a esse respeito.

- Foi, sim senhor - assentiu Bertha. - Deseja um relatório diário?

- Desejo, sim.

- Onde se encontrará?

- No meu escritório em Nova Iorque.

- Supondo que a encontramos?

- Francamente - respondeu Hale - duvido que o consigam. É uma pista antiga e um trabalho difícil. Se a encontrarem, terei muito prazer. Participar-me-ão imediatamente, é claro. Tenho a certeza que o meu cliente reconhecerá o vosso trabalho com generosidade, pagando um bónus.

Hale olhou em volta cautelosamente.

- Creio ser meu dever dizer-lhes mais uma coisa. Não falem no caso com ninguém. Façam com que as vossas investigações pareçam casuais. Se tiverem que fazer perguntas directas, façam-nas de forma a não levantarem suspeitas. Comportem-se como um amigo que deseja saber o paradeiro de outro amigo. Aconteceu passarem por Nova Orleães e um amigo comum lembrou-vos para procurarem Roberta Fenn. Façam com que tudo pareça casual e absolutamente natural. Não sejam muito bruscos e não deixem qualquer rasto.

- Deixe isso ao nosso cuidado - disse Bertha.

Hale consultou o relógio de pulso e depois chamou a criada.

- A conta, se faz favor.

 

                     Simplicíssimo

Bertha Cool examinou o apartamento, metendo o nariz nos cantos mais recônditos, como seria de esperar da sua condição de mulher.

- Bem bom este mobiliário antigo - comentou.

Nada respondi e ela acrescentou passado um pouco:

- Para quem gosta.

Aproximou-se da janela, olhou para além da varanda, voltou a olhar para a mobília e disse:

- Eu não.

- Por quê? - perguntei.

- Meu Deus, Donald, faça uso da cabeça! Durante anos andei a pesar mais de cento e vinte quilos. Era convidada continuamente por alguém que me indicava como assento uma cadeira Luís XV, uma daquelas coisas de pernas finas, assentos estreitos e encostos de formas esquisitas.

- Sentava-se nelas?

- Sentava-me nelas uma figa! Teria apreciado que as donas de casa soubessem usar a cabeça, mas nenhuma o fazia. Levavam os convidados para a sala de jantar e eu tinha que ficar de pé a olhar para aquilo que me era indicado como assento. Em vez de tomarem qualquer providência, essas idiotas ficavam também de pé a olhar para mim e depois para a maldita cadeira. Poder-se-ia pensar que era a primeira vez que se davam conta que eu tinha de me sentar quando comia. Uma delas disse-me depois que ficara sem saber o que fazer, pois receava que eu ficasse melindrada se me mandasse buscar outra cadeira. Respondi-lhe que isso não me melindraria nem metade do que sentar-me num daqueles bolos com pernas meramente ornamentais onde eu ficaria como um acordeon. Odiava o género.

Examinámos o apartamento um pouco mais. Bertha Cool pegou numa poltrona, experimentou-lhe a resistência e finalmente sentou-se à vontade; abriu a carteira, pescou um cigarro e deu um suspiro.

- Não vejo em que estejamos agora mais adiantados do que quando começámos.

Não respondi. Bertha riscou um fósforo na sola do sapato, acendeu o cigarro e depois olhou para mim belicosamente.

- E então? - perguntou.

- Ela viveu aqui.

- E isso que tem?

- Viveu aqui sob o nome de Edna Cutler.

- E que diferença faz isso?

- Sabemos onde ela viveu. Sabemos o nome que usava. Durante o tempo que aqui permaneceu, choveu muito em Nova Orleães. Ela tinha que ir comer fora. Nos dias de chuva, principalmente, não podia ir muito longe. Há dois ou três restaurantes nas redondezas. Vou investigar por lá a ver se descubro alguma coisa.

Bertha olhou para o relógio de pulso. Levantei-me, aproximei-me da porta e saí. Havia um lanço de escadas que davam para um pátio e depois um corredor comprido. Voltei em ângulo recto para outro pátio e desemboquei na Rua Royal. Fui até à esquina e vi um letreiro: Casa Bourbon. Aproximei-me. Era um restaurante típico do verdadeiro Bairro Francês, não o género que atrai os turistas, mas sim um lugar onde os preços eram baixos e a comida boa. Não havia rendas nas janelas, nem cortinados para criar ambiente, pois era um restaurante para clientes habituais. Vi que tinha acertado. Quem quer que vivesse naquela parte do bairro iria ali com regularidade. Aproximei-me de uma porta que dava para o bar, depois voltei-me para a sala onde estava o balcão de serviço de restaurante, duas máquinas de jogos mecânicos e um juke box (1).

- Deseja alguma coisa? - perguntou o homem que estava por detrás do balcão.

- Um café e trocos para jogar - respondi, atirando quatro moedas para cima do balcão.

O homem deu-me os trocos e serviu o café. Havia dois ou três homens em volta de uma das máquinas. Depreendi pela conversa que mantinham que eram fregueses habituais. O aparelho gira-discos começou a trabalhar. Ouviu-se uma voz feminina.

- Peço o favor da vossa atenção. Esta canção é dedicada à gerência.

Em seguida o aparelho começou a tocar ”Descendo o Rio Swanee”. Tirei da algibeira as fotografias que Hale me tinha dado. Enquanto tomava o café soltei uma exclamação de aborrecimento.

- O café não está bom? - perguntou o homem que estava por detrás do balcão.

- Não é isso - respondi. - O que não está bom é este negócio das fotografias.

Ele pareceu intrigado, mas o seu rosto denotava simpatia.

- O fotógrafo enganou-se - continuei. - Entregou-me uns retratos que não são meus e deve ter dado os meus a outra pessoa.

Não havia mais ninguém junto do balcão naquele momento. O homem esticou o pescoço e, de uma forma natural, arranjei maneira de ele ver as fotografias.

- Naturalmente já não remedeio nada - lamentei-me. - Certamente misturaram as películas e deram as minhas a outra pessoa.

- Talvez tenham trocado as encomendas – disse ele. - O senhor ficou com as fotografias desta rapariga e ela com as suas.

- Isso não remedeia nada. Como posso descobrir quem ela é?

- Espere! - exclamou ele. - Já vi essa rapariga! Creio que ela vinha aqui comer uma vez por outra. Um momento, se faz favor. Vou perguntar a um dos rapazes.

Chamou com um gesto um dos criados pretos e passou-lhe uma das fotografias.

- Quem é esta rapariga?

O criado pegou na fotografia, voltou-a para a luz e disse instantaneamente:

- Não sei o nome dela, mas há dois anos ela vinha aqui comer muitas vezes. Creio que agora já cá não vem.

- Saiu da cidade? - perguntei.

- Não, senhor. Creio bem que não. Vi-a na rua há questão de um mês. O certo é que não tem vindo aqui.

- Bem - comentei - pode ser que o fotógrafo a conheça. Dá a impressão que ela esteve lá recentemente com um rolo de películas para revelar.

- Julgo que sim e vou dizer-lhe onde a vi – disse o criado preto. - Vi-a mais ou menos um mês a sair do Bar de Jack O’Leary. Estava acompanhada.

- Um homem? - perguntei.

- Sim, senhor.

- Não conheceu o homem?

- Não, senhor, não conheci. Era um homem alto, com uma pasta debaixo do braço e tinha mãos muito grandes.

- A idade?

- Talvez cinqüenta, talvez cinqüenta e cinco. Não me lembro muito bem, senhor. Era a primeira vez que o via. Lembrei-me apenas da cara da rapariga e do facto de ela não ter voltado aqui. Era eu quem a servia quando ela cá vinha comer.

- Pode dizer-me mais alguma coisa a respeito do homem?

O criado pensou um pouco.

- Sim, senhor - disse finalmente.

- O quê?

- Dava a impressão que tinha qualquer coisa na boca.

Não continuei o interrogatório. Paguei o café, aproximei-me da máquina e fiquei por uns momentos a observar os rapazes que jogavam. Passado um pouco saí. Dirigi-me ao Bar de Jack O’Leary. A essa hora não havia lá muita gente. Subi para um dos bancos e pedi um gin e Seven-Up (2). O empregado trouxe-me a bebida, atendeu outro cliente e depois veio na minha direcção.

- Que fotografia é esta? - perguntei, mostrando-lhe uma das provas que havia tirado da algibeira.

- Hum?

- Estava ali naquele banco, voltada para baixo. Julguei que fosse um papel qualquer e ia a deitá-lo abaixo. Depois vi que era uma fotografia.

Ele olhou demoradamente para o retrato e franziu o sobrolho.

- Deve tê-la deixado cair da carteira - continuei. - Deve ter sido alguém que esteve aqui há pouco tempo!

O homem abanou a cabeça enquanto continuava a pensar no caso.

- Não - respondeu finalmente. - Não esteve aqui há pouco tempo, mas conheço-a. Admira-me como essa fotografia apareceu aí. Ela já aqui esteve sim, mas há bastante tempo. Tenho a certeza que não foi hoje.

- Conhece-a?

- Conheço-a quando a vejo, mas não sei o nome dela.

Meti a fotografia na algibeira. Ele hesitou um momento como que a debater consigo próprio a moral da situação, depois afastou-se. Acabei a bebida, saí e parei à esquina da rua para reflectir em todo este caso. Havia um salão de beleza do outro lado da rua e um pouco mais abaixo. Uma mulher com ar de quem está sempre bem disposta e inclinada a conversar afavelmente aproximou-se da porta quando me viu girar a maçaneta.

- Deseja alguma coisa? - perguntou.

- Estou a procurar descobrir qualquer coisa a respeito de uma mulher - respondi. - Era uma cliente sua - acrescentei, apresentando-lhe a melhor fotografia de Roberta Fenn.

A mulher reconheceu imediatamente o retrato.

- Já aqui não vem há uns dois anos, segundo creio. Costumava cá vir com regularidade. Não me ocorre o nome, mas era uma boa cliente. Veio de Boston, Detroit ou de outra cidade qualquer do Norte. Creio que andava à procura de emprego quando cá veio a primeira vez, mas depois pareceu não interessar-se mais com isso.

- Talvez tenha arranjado trabalho.

- Não, não arranjou. Costumava vir cá num dia qualquer da semana e sempre a meio do dia. Via-a sair muitas vezes de casa por volta das onze horas e às vezes mais tarde ainda.

- Não sabe se ela ainda se encontra na cidade?

- Não penso que esteja, pois se assim fosse viria aqui. Éramos amigas... bem, ela gostava do meu trabalho e de conversar comigo. Creio que ela era... diga-me, qual é o seu interesse em saber estas coisas?

- Bem... eu... é uma linda rapariga. Significa muito para mim... Nunca devia tê-la perdido de vista.

- Oh! - A mulher sorriu. - Bem, desejaria ajudá-lo mas não posso. Tenho uma cliente à espera. Se ela aqui voltar, quer deixar algum recado para ela?

Abanei a cabeça.

- Se está na cidade, hei de descobri-la pelos meus próprios meios. - Sorri e acrescentei: - Creio que seria a melhor forma.

- Isso é verdade - retorquiu a mulher.

Desci a rua e dirigi-me a uma lavanderia. Era um estabelecimento com um balcão na sala de entrada. A outra parte da casa servia de residência. Estendi a fotografia e perguntei:

- Conhece esta rapariga?

A mulher que estava ao balcão olhou para a fotografia.

- Sim - disse ela. - Costumava vir aqui bastantes vezes. É Miss Cutler, não é?

- É. Sabe onde a posso encontrar?

- Não, não sei. Não sei dizer onde vive agora.

- Mas está na cidade, não está?

- Está, sim. Vi-a na rua aqui há... Deixe-me ver... Creio que foi há umas seis semanas. Não vou à rua muitas vezes, pois tenho sempre muito que fazer aqui.

- Em que rua a viu?

- Canal. Foi... Foi... Deixe-me ver... Por volta das cinco e meia da tarde e ela descia a rua. Não creio que me tenha reconhecido. Tenho uma boa memória para caras e vejo muitos clientes quando saio. - Sorriu. - Inúmeras vezes eles sabem que já me viram em qualquer parte, pois acostumaram-se a ver-me por detrás deste balcão. Nunca lhes falo a não ser que eles me falem primeiro.

Agradeci-lhe e voltei para o apartamento. Bertha Cool estava reclinada numa cadeira, fumando um cigarro e tinha um copo de whisky com soda numa mesinha colocada junto da cadeira.

- Que tal? - perguntou.

- Não adiantei grande coisa - respondi.

- É como procurar uma agulha em palheiro. Meu Deus, Donald, descobri um restaurante maravilhoso.

- Onde?

- Mesmo ao cimo desta rua.

- Julguei que já tinha tido a sua refeição do dia. Não sabia que estava com apetite. Voltei aqui só para lhe perguntar se queria comer qualquer coisa.

- Não, amorzinho, agora não. Descobri que passaria melhor se não me forçasse a mim mesma a passar tanta fome. Vou tomando umas coisinhas para não deixar que o apetite se torne insofrível.

Fiz um gesto de assentimento e esperei. Um brilho de satisfação apareceu nos olhos de Bertha. Toda ela sorria com excepção dos lábios.

- Frango com arroz - exclamou. - Pensei que era uma comida leve.

- E era?

- Era uma excelente comida, excelente.

- Comeu o suficiente? - perguntei. - Quer sair para comer mais qualquer coisa comigo?

- Não me fale mais em comida, Donald Lam! Já tenho a minha ração para hoje. Tomarei um pouco de chá e umas torradinhas ao deitar e será tudo por hoje.

- Bem - disse eu , nesse caso vou eu comer qualquer coisa e continuar com o trabalho.

- Posso ajudar em alguma coisa?

- Por agora, não.

- Não sei para que estou aqui - comentou Bertha.

- Nem eu.

- O advogado insistiu para que viesse. Disse que depois de você a descobrir eu poderia falar com ela melhor do que você. É ele quem paga e, portanto, resolvi aceder ao seu pedido.

- Muito bem.

- Seria magnífico se conseguíssemos aquela gratificação em que ele falou - disse Bertha.

- Era, não era?

- Como vão as coisas?

- Por enquanto não posso dizer nada. Bem, vou-me andando.

Voltei à Rua Royal e desci-a em direcção à Canal. Quando ia já a meio desta, uma idéia surgiu-me repentinamente. Entrei numa cabina telefônica e comecei a fazer chamadas para as escolas profissionais. A segunda deu-me todas as informações de que necessitava. Não, não tinham conhecido nenhuma Edna Cutler, mas uma Miss Fenn havia tirado um curso e fora uma aluna muito aplicada. Sim, haviam conseguido arranjar-lhe um emprego. Estava colocada num dos bancos da cidade. Era secretária do gerente. Se esperasse um momento dar-me-iam o endereço. Foi tão simples como isso.

O gerente do banco era um tipo simpático e humano. Disse-lhe que estava a tentar colher quaisquer informações que me habilitassem a fechar um processo de herança e pedia-lhe autorização para falar com a sua secretária. Respondeu-me que a mandaria ter comigo dentro de momentos. Roberta Fenn parecia exactamente como estava nos retratos. Teria provavelmente vinte e seis anos sob o ponto de vista estatístico, mas parecia ter uns vinte e dois ou vinte e três. Tinha um sorriso simples, um olhar inteligente e alerta e uma voz agradável e bem modulada.

- Precisa de qualquer informação minha? - perguntou. - O Sr. Black disse-me que o senhor deseja fechar um processo de herança.

- Exactamente - respondi. - Sou um investigador. Estou a tentar descobrir qualquer coisa sobre um homem que está relacionado com uma família de apelido Hale.

Os seus olhos mostraram-me que o meu tiro tinha falhado o alvo.

- Esse homem tem um parente de quem desconheço o nome, mas estou certo que a senhora o conhece - continuei. - Também não sei ao certo a maneira como ele está relacionado com a família Hale.

- Não sabe o nome desse homem?

- Não.

- Não tenho um número muito grande de conhecimentos nesta cidade - afirmou.

- Este homem é alto. Tem uma testa alta, sobrancelhas espessas e as suas mãos são muito finas e com dedos compridos e cônicos. Tem os braços muito compridos. Deve ter uns cinqüenta e cinco anos de idade.

Roberta Fenn tinha os sobrolhos franzidos numa atitude de concentração mental como se procurasse no arquivo da sua memória. Olhei-a bem de frente.

- Não sei se é apenas um hábito - acrescentei ou se os dentes não lhe servem nos maxilares. Sempre que sorri...

Notei uma mudança de expressão.

- Oh! - exclamou, dando uma gargalhada.

- Sabe de quem estou a falar?

- Sei. Por que motivo me procurou?

- Ouvi dizer que ele estava em Nova Orleães e que a procurara por causa de um negócio qualquer.

- E não sabe o nome dele?

- Não.

- Chama-se Archibald Smith - disse ela. - É de Chicago. Está lá empregado numa companhia de seguros.

- Tem a direcção dele em Chicago?

- Não a tenho comigo. Está em minha casa, escrita numa carta.

- Oh!

Dei ao meu rosto uma expressão de desapontamento.

- Posso procurá-la e trazer-lha amanhã.

- Isso seria óptimo. Conhece-o há muito tempo. Miss Fenn?

- Não. Veio a Nova Orleães há umas três ou quatro semanas e demorou-se dois dias. Uma amiga minha havia-lhe dado uma carta para mim em que me pedia para lhe mostrar a cidade. Percorri com ele os locais mais típicos, sabe, os restaurantes, bares e outros lugares que os turistas desejam ver.

- O Bairro Francês? - perguntei.

- Oh, evidentemente.

- Suponho que para si, assim como para as pessoas que vivem cá, o lugar não tem atractivos, mas é interessante para os turistas.

- Sim - disse ela, sem tomar partido.

- Gostaria muito de entrar em contacto com o Sr. Smith. Tenho quase a certeza que ele está relacionado com a pessoa que procuro. Não seria possível dar-me a informação sobre o Sr. Smith esta noite?

- Mas...   Bem, posso procurá-la quando for para casa.

- Tem telefone?

- Não. Há uma cabina no prédio, mas é difícil falar de lá. Posso, no entanto, fazer uma chamada de outro lugar.

Olhei para o relógio de pulso, um olhar que lhe lembrava ser ela uma empregada e que o seu tempo àquela hora pertencia ao banco. Vi-a tomar uma posição nervosa como se estivesse ansiosa por que a entrevista acabasse.

- Não desejo ser importuno - afirmei-lhe. - A sua casa fica perto daqui?

- Não. Fica quase no final da Avenida Charles.

- E se eu a esperasse num táxi à hora de encerramento do banco? - perguntei subitamente. - A senhora meter-se-ia nele e seguiríamos até sua casa. Poderia, assim, dar-me a informação de que necessito. Não levará tanto tempo num táxi como se fosse de carro eléctrico...

- Muito bem - cortou ela. - A minha saída é às cinco.

- O banco já está fechado a essa hora?

- Evidentemente.

- Onde devo estar à sua espera, visto o banco não estar perto?

- Mesmo em frente daquela porta.

- Muito obrigado, Miss Fenn. Agradeço imenso a sua boa vontade.

Levantei o chapéu, saí do banco, dirigi-me para o hotel, pus à porta o letreiro NÃO ME INCOMODEM, liguei para a telefonista, pedi-lhe para me chamar às quatro e meia e meti-me na cama para um sono de duas horas.

 

                   Um Procedimento Muito Invulgar

Roberta Fenn saiu mesmo à tabela. Vinha elegante, firme e airosa. Os seus olhos castanhos e francos pareciam divertir-se com qualquer coisa. Fiz um sinal ao condutor cujo táxi esperava junto do passeio e ele saiu e abriu a porta. Recostada na almofada do carro, Roberta lançou-me um rápido olhar.

- O senhor é realmente um detective? - perguntou.

- Hum, hum.

- Sempre tive umas certas idéias a respeito dos detectives.

- Que espécie de idéias?

- Bem, imaginava-os muito grandes e cheios de força, tentando amedrontar as pessoas, ou então indivíduos sinistros sob disfarces.

- É sempre arriscado generalizar.

- O senhor deve ter uma vida excitante.

- Julgo que tenho, se você deixar de pensar da forma que pensa.

- Acontece-lhe algumas vezes?

- O quê?

- Deixar de pensar daquela forma.

- Provavelmente não, segundo o seu ponto de vista.

- Por quê?

- Não creio que uma pessoa possa realmente deixar de analisar a vida que leva, a menos que esteja descontente com ela. Contudo, por mim, tomo as coisas como elas são e não comparo a minha espécie de vida com outras.

Ela pensou durante algum tempo.

- Creio que tem razão - disse finalmente.

- Como?

- Acerca de não se pensar na própria vida a menos que se esteja descontente com ela. Há quanto tempo é detective?

- Dá-me a impressão que há já muito.

- Começou a sua vida dessa forma?

- Não. Comecei como advogado.

- O que o fez desistir? Não conseguiu acabar o curso?

- Acabei e obtive licença para advogar.

- E depois?

- Depois, tiraram-me a licença.

- Por quê?

- Descobri um furo na lei pelo qual um homem podia cometer um assassínio e ficar impune perante as autoridades.

- O que aconteceu? - perguntou ela profundamente interessada.

- Tiraram-me a licença de advogar.

- Bem sei, mas o que aconteceu depois de ter descoberto a maneira de cometer um assassínio... Sabe bem o que quero dizer.

- Não tenho essa certeza.

- Alguém cometeu o crime por essa forma e saiu impune?

- É uma história muito longa.

- Gostaria de a conhecer um dia.

- Quando me tiraram a licença – retorqui – disseram que eu era maluco, que a minha teoria não passava de um sonho, mas que demonstrava ser eu um tipo de mentalidade perigosa, e anti-social.

- E depois?

- Depois fui-me embora e provei-lhes que tinha razão.

- Quem cometeu o crime?

- Eles pensaram que fui eu.

Roberta Fenn encarou-o com ar belicoso.

- Oiça, julga que eu acredito em bruxas?

Depois, estudou-me com os seus inteligentes olhos castanhos.

- Diabos me levem, mas a verdade é que acredito em si - replicou à sua própria pergunta.

- Pode fazê-lo à vontade. Não tenho necessidade de mentir-lhe.

- E depois? O que disseram eles, as pessoas que pensaram que você era maluco?

- Oh, organizaram reuniões das várias ordens de advogados e começaram a estudar as emendas a fazer à lei para que ela deixasse de ter o furo.

- Conseguiram-no?

- Até um certo ponto. O furo a que me refiro está na Constituição. Não se pode revogar esta com muita facilidade.

- O senhor teria sido capaz de tapar o furo?

- Não.

- Por quê?

- Porque nunca se pode dizer qual será a atitude do Tribunal Supremo.

- A sua atitude não é regulada por normas rígidas?

- Costumam basear-se em casos precedentes. No assunto a que me refiro, conhecíamos a lei. Agora estão a procurar alterar o velho documento com uma revisão em forma. Isso, porém, nada remediará, pois não se sabe quais os princípios que serão modificados e aqueles que continuarão inalteráveis.

- Isso não é perigoso?

- Pode ser bom e pode ser mau. Varia. Demos uma sacudidela nas leis. Eventualmente, os novos juízes alterarão as leis de acordo com as suas idéias. Nessa altura os advogados saberão, de uma maneira geral, como aconselhar os seus clientes. No entanto, haverá bastantes especulações... O que me pode dizer a respeito do Sr. Smith?

Roberta Fenn deu uma gargalhada.

- Você muda de assunto com uma rapidez desconcertante, não?

- O que é desconcertante?

- Não pretendia sê-lo?

- Não.

- O que deseja saber a respeito dele?

- Tudo quanto me possa dizer.

- Isso é muito pouco. Dir-lhe-ei quando chegarmos a minha casa.

Percorremos em silêncio vários quarteirões.

- Você parece demasiadamente novo - disse ela.

- Não sou.

- Uns vinte e cinco anos?

- Mais.

- Não muitos mais.

Não respondi.

- Trabalha por conta de alguém?

- Fi-lo durante algum tempo. Agora tenho metade dos interesses na casa. Não poderíamos falar de outra coisa qualquer para variar? De Nova Orleães, de política? Da sua vida amorosa, talvez?

Roberta Fenn olhou-me inquisitivamente e sem o mínimo vestígio de um sorriso.

- O que tem a ver a minha vida amorosa com o caso?

- Dei-lhe a escolher vários assuntos de conversa, respondi. - Você não pareceu impressionada por nenhum com excepção do que diz respeito à sua vida amorosa. Está a tentar encobrir qualquer coisa? É a isto que se costuma chamar contra-ofensiva.

Ela ruminou durante um minuto. Vi que um sorriso voltava a fazer-lhe baixar os cantos da boca.

- Creio que realmente você é muito esperto. A jogada foi absolutamente perfeita.

Tirei um maço de cigarros da algibeira.

- Fuma? - perguntei.

Ela olhou para a marca.

- Sim, obrigada. - Tirou um, bateu-o sobre a unha do polegar e esperou que lhe desse lume. Acendemos ambos os nossos cigarros à chama do mesmo fósforo. O carro abrandou a marcha. Ela deitou a cabeça fora da janela e disse: - É aquele edifício, do lado direito.

- Desejam que espere? - perguntou o motorista quando lhe paguei.

Olhei para Miss Fenn.

- Acha que é melhor?

Ela hesitou apenas uma fracção de segundo.

- Não - exclamou, acrescentando logo em seguida: - Pode apanhar outro quando sair.

- Posso esperar dez minutos sem pôr o taxímetro a trabalhar - explicou o motorista. - Se desejam...

- Não - cortou Roberta Fenn com firmeza.

O homem levou a mão ao boné. Fiz-lhe um sinal de adeus e segui Roberta que atravessou o passeio, subiu um lance de escadas, abriu a caixa do correio, tirou duas cartas, olhou rapidamente para o remetente, meteu-as na carteira e depois introduziu a chave na fechadura da porta. Era um prédio sem elevador. O apartamento dela ficava no segundo andar. Era constituído por dois quartos, ambos pequenos.

- Sente-se - disse ela indicando-me uma cadeira. - Vou ver se descubro a carta da minha amiga em que me pedia para mostrar a cidade ao Sr. Smith. Vai levar-me um pouco de tempo.

Passou para o quarto ao lado e encostou a porta. Sentei-me, peguei numa revista, abri-a de forma a poder fingir que estava a ver qualquer coisa ao menor alarme e fiz um minucioso exame mental do apartamento. Roberta Fenn não morava ali há muito tempo. O lugar ainda não tinha qualquer particularidade que o ligasse à personalidade dela. Havia algumas revistas em cima da mesa. O nome dela impresso numa indicou-me que se tratava de uma assinante. Não havia qualquer outro exemplar nessas condições. Apostaria todo o meu dinheiro que ela não vivia ali há mais de seis semanas. Cinco minutos mais tarde saiu triunfantemente do quarto de dormir.

- Demorou um pouco - disse ela - mas consegui encontrá-la. O diabo é que o número da sala não está mencionado na carta. Pensei que estava, mas apenas fala no nome do edifício.

Tirei da algibeira um livro de notas e uma caneta. Roberta abriu a carta. Do lugar onde estava deu-me a impressão de ser letra de mulher.

- Archibald C. Smith está no... Ora bolas! Exclamou.

- Que se passa?

- Não está aqui mencionado o nome do edifício respondeu ela. - Pensei que estava. Tenho que ir ver no meu livrinho de endereços. Lembro-me agora que ele me deu a morada antes de se ir embora e eu apontei-a no meu livrinho. Um momento só!

Levando a carta consigo voltou ao quarto de dormir e regressou passados segundos, folheando as páginas de um pequeno livro de endereços. Pousou a carta em cima da mesa.

- Sim, cá está. Archibald Collington Smith, Edifício Lakeview, Boulevard Michigan, Chicago.

- Não tem o número da sala?

- Não. Neste ponto é que fiz confusão. Sabia que não tinha o número, apenas o nome do edifício.

- Disse-me que ele tinha um negócio qualquer lá?

- Sim. É um edifício de escritórios. Não tenho o endereço da sua residência.

- Qual foi o negócio que me disse a que ele se dedicava?

- Seguros.

- Ah, sim. Suponho que a sua amiga poderá dizer-me qualquer coisa sobre ele.

Fiz um gesto em direcção à carta. Ela deu uma gargalhada que me demonstrou ter caído na armadilha que me fora preparada.

- Presumo que poderia, mas se você anda à procura do Sr. Smith para encerrar um processo de herança, imagino que o próprio Sr. Smith poderá dizer-lhe tudo quanto você necessitar acerca do mesmo Sr. Smith.

- Sem dúvida que podia. - E depois acrescentei: - Essa é uma das dificuldades com que deparamos frequentemente, principalmente quando se trata de um nome tão vulgar como é o caso de Smith. Bem sabe, um indivíduo tentará sempre passar por a pessoa que procuramos na esperança de vir a receber o dinheiro. É por isso que gostamos sempre de investigar dos mais diferentes ângulos possíveis antes de o abordarmos directamente.

Os olhos de Roberta sorriam-me e depois, subitamente, ela riu francamente.

- Você soube recompor-se rapidamente, mas estou a ver que me toma por uma pateta.

- Essa agora!

- É a primeira vez na vida que ouço uma história de alguém que procura um herdeiro por essa forma. Geralmente, um advogado qualquer diz: “Agora, antes de podermos fechar este processo, temos que descobrir um certo Archibald C. Smith, filho de Frank Qualquer Coisa, que morreu em mil novecentos e tantos. As últimas referências que há de Smith dizem-nos que residia em Chicago e tinha lá um negócio de quinquilharias.” Nessa altura os detectives começavam a investigar e um deles vinha até mim e dizia: “Desculpe, Miss, mas por acaso conhece um certo Sr. Smith que tem em Chicago um negócio de quinquilharias?” E eu responderia: “Não, mas conheço um Sr. Smith que está em Chicago empregado numa companhia de seguros. Como é o homem que o senhor procura?” E o detective responderia. “Meu Deus, não sei. O que eu procuro é um nome.”

- E então? - perguntei.

- É isso mesmo que lhe pergunto.

- Quer dizer que o meu procedimento é invulgar?

- Exactamente, muito invulgar mesmo.

- É, não é? - disse eu com um sorriso.

O seu rosto tomou uma expressão de impaciência. Estava a preparar-se para me dar uma resposta à letra quando soaram pancadas na porta de entrada. A sua atenção desviou-se de mim para a porta, fitando esta com um olhar intrigado. Os batimentos repetiram-se. Ela levantou-se, foi até à porta e abriu-a. Uma voz de homem, aguda e impaciente, soou no patamar.

- Tinha-lhe dito que não me escaparia! Mas quis experimentar, não foi? Bem, minha querida, vou...

Eu não estava a olhar directamente para a porta nesse momento, mas quando o som da sua voz se sumiu, soube que ele fora entrando na sala enquanto falava e havia avançado o suficiente para me poder ver. Reconheci-o quase simultaneamente. Era o homem que saíra do Bar de Jack O’Leary naquela madrugada, por volta das três da manhã, e que fora o causador de todo o infernal buzinar de que eu havia sido uma testemunha. Roberta Fenn girou sobre si própria, olhou-me rapidamente e depois voltou-se para o recém-vindo.

- Venha cá fora por uns momentos para falarmos à vontade.

Quase o empurrou para o patamar, puxando a porta após sair, de forma a deixá-la quase completamente fechada. Dispunha apenas de alguns segundos. Sabia que cada movimento contaria. Levantei-me silenciosamente da cadeira, estendi o braço e peguei na carta que Roberta havia deixado em cima da mesa. O sobrescrito tinha o nome e direcção do remetente: Edna Cutler, Edifício Turpitz, 935, Little Rock, Arkansas. Fiz uma rápida leitura da primeira página da carta.

Querida Roberta: Alguns dias depois de receberes esta terás a visita de Archibald C. Smith, de Chicago. Dei-lhe o teu nome. Por questões de negócios, gostaria que fosses gentil para com ele e tornasses a sua estada em Nova Orleães o mais agradável possível. Mostra-lhe o Bairro e leva-o a alguns dos mais famosos restaurantes. Posso assegurar-te que será uma coisa agradável porque...

Ouvi a porta do corredor abrir-se e a voz do homem a dizer:

- Muito bem, então. Isso é uma promessa. Agora não se esqueça.

Tornei a pôr rapidamente a carta sobre a mesa e estava a acender um cigarro quando Roberta Fenn voltou.

- Bem, vejamos - disse ela com o melhor dos sorrisos. - Em que ponto estávamos?

- Em nenhum em particular. Trocávamos algumas impressões.

- Você é um detective. Diga-me como é que aquele homem pôde entrar no edifício sem tocar para o meu apartamento.

- É muito fácil.

- Como foi?

- Pode ter tocado para outro apartamento e, depois de lhe abrirem a porta, era só entrar. Podia também ter uma chave que servisse na fechadura. As casas deste gênero não oferecem grandes dificuldades, pois qualquer chave as pode abrir. Por que motivo quis ele entrar sem tocar?

Ela deu uma gargalhada aguda e nervosa.

- Não me pergunte a razão por que os homens fazem as coisas que fazem. Bem, creio que já lhe contei tudo quanto sabia a respeito de Archibald Smith.

Aproveitei a deixa, levantei-me e declarei:

- Muito obrigado.

- Você está... Fica na cidade?

- Fico.

- Ah!

Evitei qualquer outra pergunta, dizendo abruptamente:

- Lamento ter-lhe roubado tanto tempo. Espero não a ter feito atrasar...

- Não me incomodou absolutamente nada.

Ficou no vão da porta vendo-me descer o primeiro lance de escadas. Saí para a rua, olhei para cima e para baixo, observei os carros que estavam parados nas redondezas, mas não vi sinais do tipo alto que havia batido à porta de Roberta Fenn. A verdade é que tive muito tempo para observar tudo, pois só dez minutos mais tarde consegui apanhar um táxi que regressava à cidade. O condutor garantiu-me que eu tinha tido sorte, pois era raro que um táxi passasse por aquelas paragens.

 

                   Desapareceu Uma Ex-Mulher Casada

Os meus passos nas escadas de madeira soavam como o estrondo de um esquadrão de cavalaria a passar sobre uma ponte. Tirei a chave do bolso e abri a porta do apartamento. Bertha Cool estava toda estendida na poltrona. As suas pernas, gordas e musculosas, estavam estendidas para a frente e os pés assentavam numa otomana almofadada. Ressonava levemente. Acendi as luzes do centro da sala. Bertha acordou repousadamente, com o rosto aberto num sorriso de beatífica satisfação.

- Quando vamos comer? - perguntei.

Ela acordou definitivamente com um pequeno estremecimento. Durante uns momentos ficou a pestanejar, olhando em volta desconfiadamente, tentando lembrar-se do lugar onde estava e como tinha lá chegado. Subitamente a sua memória recordou-lhe a situação e os seus olhos duros fitaram-me.

- Por onde diabo tem andado?

- A trabalhar.

- Bem, podia ter-me dito onde estava e o que fazia.

- Vou dizer-lho agora.

Ela resmungou.

- O que tem feito? - perguntei delicadamente.

- Nunca me irritei tanto em toda a minha vida respondeu Bertha.

-O que aconteceu?

- Fui a um restaurante.

- Outra vez?

- Bem, pensei que seria conveniente conhecer isto. Não sei quanto tempo vou aqui ficar e tenho ouvido falar tanto de alguns lugares famosos de Nova Orleães...

- O que aconteceu?

- A comida era maravilhosa - respondeu Bertha - mas o serviço...

Deu um estalo com os dedos e emitiu um bufar de desprezo.

- O que é que o serviço tinha de mal? Não havia criados em número suficiente?

- Havia até de mais! Era um desses lugares onde os criados fazem com que os clientes fiquem logo na defensiva. Tratam-nos como se fôssemos vermes. “Agora, Madame deve comer isto.” - Bertha tentava imitar um criado que falasse com sotaque francês. – “Madame desejará certamente vinho branco com o peixe e vinho tinto com a carne. Talvez que, se Madame não está familiarizada com as qualidades, deixe a escolha ao meu cuidado.”

- O que lhe respondeu? - perguntei, sorrindo.

- Disse-lhe que fosse para o diabo.

- E ele foi?

- Não. Começou a espanejar-se em volta da mesa, dizendo-me o que devia comer. Eu queria molho de tomate no meu bife, e o que julga você que ele me disse? Disse-me que não estava autorizado a servir molho de tomate com bifes. Perguntei-lhe a razão e ele respondeu que isso iria ferir a sensibilidade do cozinheiro. O cozinheiro fazia um molho maravilhoso, famoso em todo o mundo. Deitar molho de tomate nos bifes era uma barbaridade própria das pessoas sem um paladar educado.

- E depois?

- Depois - continuou Bertha - empurrei a cadeira para trás e disse-lhe que se o cozinheiro era tão esquisito com os bifes que os comesse. Disse-lhe que apresentasse também a conta ao cozinheiro juntamente com o bife.

- E veio-se embora?

- Bem... Puseram-se à minha frente antes de eu chegar à porta. Foi quase uma briga. Finalmente comprometi-me a pagar o que tinha comido. Mas os diabos me levassem se havia de pagar o bife. Disse-lhes que este era propriedade do cozinheiro.

- E depois?

- É tudo. Iniciei o caminho de volta para aqui, mas parei num pequeno restaurante que fica à esquina e, realmente, não tive de que me arrepender.

- O Restaurante Bourbon?

- Esse mesmo. Malditos sejam esses lugares onde uma pessoa tem que estar sempre na defensiva.

- Desejam que uma pessoa se dê bem conta de que está a comer num lugar mundialmente famoso. Servem só gente de categoria - fiz notar a Bertha.

- Qual categoria, qual nada! A casa estava cheia de turistas. São essas pessoas que eles servem. Puff! Dizerem-me o que eu ia e que não ia comer e depois esperarem que eu pagasse a conta. Famoso lugar, não há dúvida. Bem, se você me perguntar...

Sentei-me na cadeira de encosto, peguei num cigarro e perguntei:

- Pode pôr-se em contacto com Hale por telefone?

- Posso.

- À noite?

- Sim. Tenho o número da residência dele assim como o do escritório. Porquê?

- Vamos para o hotel para fazermos de lá a chamada.

- Para que precisa de fazer a chamada?

- Para lhe dizer que encontrei Roberta Fenn.

Bertha retirou com toda a presteza os pés da otomana.

- Suponho que isso não é uma das suas habituais tentativas para se fazer engraçado?

- Não é.

- Onde está ela?

- Num edifício de apartamentos da Avenida Charles, o Gulfpride.

- Sob que nome?

- O próprio.

- Macacos me mordam! - exclamou Bertha. Como descobriu isso, amorzinho?

- Simples trabalho de rotina.

- Não há dúvida que se trata da mesma rapariga?

- É o original exacto das fotografias.

Bertha endireitou-se na cadeira.

- Donald - disse ela - você é maravilhoso! Você tem realmente miolos! É estupendo! Como descobriu?

- Seguindo um certo número de pistas.

- Não sei o que poderia fazer sem você – declarou ela com um genuíno tom de simpatia. - Você é maravilhoso, amorzinho! Estou a dizer a verdade! Você... Mas que inferno este!

- O que se passa?

Os seus olhos chisparam.

- Este maldito apartamento. Disse-me que o alugou por uma semana?

- Sim.

- Não poderemos ser reembolsados se nos despedirmos antes?

- Creio que não.

- Diabos levem todos os malucos! Eu já devia saber que você faria uma coisa no gênero. Francamente, Donald, às vezes penso que você perde completamente a cabeça quando se trata de questões de dinheiro. Provavelmente sairemos daqui amanhã e, no entanto, temos de pagar o apartamento por uma semana inteira.

- São só quinze dólares.

- Só quinze dólares - repetiu Bertha, erguendo a voz. - Você fala como se quinze dólares...

- Alto! - exclamei em voz baixa. - Vem alguém a subir as escadas.

- Creio que é o inquilino do segundo andar. Há um homem e uma mulher que...

Os passos pararam repentinamente. Alguém bateu à nossa porta.

- Vá ver quem é - disse eu apressadamente. O apartamento agora é seu.

Bertha atravessou a sala, com os tacões batendo pesadamente no soalho. Pôs as mãos no puxador, fez uma pausa e perguntou:

- Quem é?

Uma voz de homem, de pronúncia distinta e bem timbrada, respondeu:

- A senhora não nos conhece. Desejávamos fazer-lhe uma pergunta.

- A respeito de quê?

- Penso que seria melhor se a senhora abrisse a porta para não termos que falar muito alto.

Vi que Bertha raciocinava a todo o vapor. Eram dois os que estavam no patamar, fosse lá quem fosse. Um treino demorado tornara Bertha cautelosa. Olhou-me da cabeça aos pés como que a avaliar a minha utilidade numa luta e depois abriu a porta vagarosamente. O homem que fez uma reverência era, sem dúvida, o proprietário da voz bem timbrada. O seu companheiro, que se conservava dois ou três passos atrás dele, não correspondia àquele tipo de voz. O homem da frente conservava o chapéu na mão. O homem atrás dele continuava com o chapéu na cabeça e os seus olhos estudavam Bertha Cool, cravando-se minuciosamente em cada pormenor da sua anatomia. De repente viu-me e os seus olhos fitaram-se nos meus com um pequeno sobressalto que denotava apreensão. O homem que fizera as despesas da conversa declarou:

- Vai desculpar-me, assim o espero. Estou a tentar obter algumas informações e penso que talvez a senhora possa ajudar-me.

- Julgo que não - retorquiu Bertha.

O homem vestia um fato caro e de bom corte. O chapéu que conservava na mão devia ter-lhe custado bom dinheiro. Tudo neste homem indicava grande categoria. Parecia ter-se vestido com o cuidado escrupuloso de um oficial que tivesse de tomar parte numa parada. Era elegante, simpático, afável. O homem que se conservava por detrás dele vestia um fato que estava a necessitar de uma boa limpeza. Devia ter uns cinqüenta e cinco anos, era alto, espadaúdo e sempre alerta. O homem da voz bem timbrada continuava a falar em tom persuasivo:

- Se nos permitisse que entrássemos por uns momentos... Preferíamos que os outros inquilinos não ouvissem a nossa conversa.

Bertha bloqueava a porta com todo o seu corpo.

- O senhor é a única pessoa a falar - disse ela. - Não me importo nada que haja bastante gente a ouvir.

Ele respondeu com uma gargalhada que denotava verdadeiro divertimento. Os seus olhos pousaram-se na expressão belicosa de Bertha, mostrando um interesse novo.

- Continue - gritou Bertha irritada, com visível contentamento do seu interlocutor. - Meta mais uma moeda ou então desligue.

O homem tirou da algibeira um cartão de visita, ia a estendê-lo a Bertha, mas depois suspendeu o gesto.

- Sou de Los Angeles. Chamo-me Cutler, Marco Cutler.

Olhei para a expressão de Bertha para ver se ela tinha sentido o choque. Aparentemente, não.

- Estou a tentar obter quaisquer informações respeitantes a minha mulher - continuou Cutler.

- O que tenho eu a ver com ela?

- Viveu aqui.

- Quando?

- Segundo o que sei, há cerca de três anos. Bertha, apanhada desprevenida, exclamou:

- Oh, o senhor quer dizer que ela... Que...

- Exactamente. Neste mesmo apartamento – afirmou Cutler.

Avancei um pouco.

- Talvez eu possa ajudá-lo. Esta senhora sublocou-me este apartamento. Só hoje é que entrou. Segundo depreendo, o senhor viveu também aqui?

- Não. Estava em Los Angeles dirigindo os meus negócios. Minha mulher veio para aqui, para esta mesma casa, onde viveu, segundo as melhores informações que possuo.

Tirou da algibeira interior do casaco uns papéis dobrados, abriu-os, percorreu-os com o olhar, fez um sinal afirmativo e acrescentou:

- Exactamente.

O homem grande que estava atrás dele pareceu sentir que estava a ser solicitado para dizer qualquer coisa.

- Exactamente - concordou.

Cutler voltou-se para ele rapidamente.

- É esta a casa, Goldring?

- A casa é esta mesma. Eu estava aqui mesmo quando ela abriu a porta...

Cutler interrompeu-o com impaciência:

- Evidentemente que pensei falar com a senhoria, mas não fui capaz de a encontrar esta tarde e julguei que a senhora já aqui morava há muito tempo, podendo ter conhecido os anteriores locatários, ajudando-me assim nas minhas pesquisas.

- Ainda cá não estou há cinco horas – resmungou Bertha.

- A pessoa que vive aqui já algum tempo sou eu informei com um sorriso. - Não querem fazer o favor de entrarem e sentarem-se?

- Muito obrigado - respondeu Cutler. - Tinha esperanças que sugerisse isso mesmo.

Bertha Cool hesitou um momento, mas depois afastou-se para um lado. Os dois homens entraram, lançaram um rápido olhar para o quarto de dormir e atravessaram a sala cujas varandas se abriam para a rua.

- Além é o Bar do Jack O’Leary - informou Goldring.

Cutler deu uma gargalhada.

- Reconheci-o, mas estava a tentar reconstituir na mente a forma como conseguimos cá chegar. A rua deve ter um desnível de uns noventa graus.

- O senhor acostumar-se-á a esse tipo de ruas declarou Goldring, apoderando-se da confortável cadeira em que Bertha estivera sentada. Levantou os pés, apoiou-os na otomana e acrescentou: - Dá licença que fume, minha senhora?

Riscou um fósforo na sola do sapato antes que Bertha tivesse tempo de responder.

- Não se senta, menina... Ou devo dizer senhora?

- perguntou Cutler.

Intervim rapidamente antes de Bertha poder responder.

- É senhora. Querem fazer o favor de se sentarem, senhores?

Goldring mudou a direcção do olhar e fitou-me através de uma nuvem de fumo como se eu fosse uma mosca pousada num pedaço de carne que ele se preparava para levar à boca.

- Vou ser franco convosco, absolutamente franco declarou Cutler. - Minha mulher deixou-me há cerca de três anos. A nossa vida em comum não havia sido completamente feliz. Veio para Nova Orleães. Foi só depois de muitas dificuldades que a descobri.

- Isso é verdade - sentenciou Goldring. – Tive muito trabalho com essa dama.

Cutler continuou a falar numa voz macia como veludo:

- A razão por que eu estava tão ansioso em encontrá-la era devida ao facto de ter chegado à conclusão que a nossa vida em comum não voltaria a ser feliz. Por muito que me custasse, decidi divorciar-me. Quando o amor deixa de existir, o casamento torna-se...

Bertha, sentada desconfortavelmente na cadeira de braços interrompeu-o para dizer:

- Passe à frente disso. Não necessita de gastar latim comigo. Ela deixou-o e o senhor decidiu mudar a fechadura da porta para que ela não pudesse voltar. Não o condeno. O que tem tudo isso a ver comigo?

Ele sorriu.

- Peço-lhe muita desculpa por maçá-la com estes pormenores. Sim, acho que tem razão e que não vale a pena desperdiçar palavras, senhora...

- Muito bem - interrompi. - Queira expor o seu caso na parte que nos toca, pois íamos justamente sair para jantar. O senhor decidiu mover-lhe um processo de divórcio. Suponho que o Sr. Goldring, aqui presente, lhe descobriu o paradeiro e fê-la assinar os papéis.

- Exactamente - declarou Goldring, olhando-me com uma expressão mista de respeito e admiração como se tentasse adivinhar como eu sabia.

- E agora - exclamou Cutler, com uma ténue nota de indignação na voz - passados alguns anos após estes factos, sou informado que minha mulher pretende afirmar que os papéis não lhe foram apresentados.

- Sim? - perguntei.

- Exacto. É, evidentemente, uma atitude absurda. Felizmente, o Sr. Goldring lembra-se muitíssimo bem do caso.

- Isso é verdade - disse Goldring. - Foi por volta das três horas da tarde do dia 13 de Março de 1940. Ela veio à porta e eu perguntei-lhe se se chamava Cutler e se vivia aqui. Ela disse que sim. Antes eu tinha descoberto que o apartamento estava alugado a Edna Cutler. Depois perguntei-lhe se se chamava Edna Cutler e ela disse que sim. Então, peguei nos originais e nas cópias das citações e na cópia da queixa e pedi-lhe para ler e assinar os papéis no momento em que ela se encontrava junto daquela porta.

Goldring apontou para a porta que dava para o patamar.

- Minha mulher declara agora que, nessa altura, nem mesmo se encontrava em Nova Orleães. Contudo, o Sr. Goldring identificou-a por um retrato.

Bertha ia começar a dizer qualquer coisa, mas eu toquei-lhe com um joelho, pigarreei, franzi o sobrolho como se tentasse recordar-me de qualquer coisa e declarei:

- Segundo depreendo, Sr. Cutler, o que o senhor pretende provar é que era a sua mulher quem vivia nesta casa?

- Sim.

- E que assinou os papéis - informou Goldring.

- Estou aqui há muito pouco tempo, nesta viagem - informei - mas conheço muitíssimo bem Nova Orleães, pois passo por cá freqüentes vezes. Creio que há dois anos estive cá. Sim, foi há precisamente dois anos. Ocupei um apartamento do outro lado da rua. Talvez pudesse identificar um retrato da Srª. Cutler.

O rosto de Cutler iluminou-se.

- É isso exactamente o que procuramos. Pessoas que possam provar que ela vivia aqui naquele tempo. Meteu a mão fina e bem tratada na algibeira interior do casaco e tirou de lá um pequeno sobrescrito. Deste extraiu três fotografias. Estudei os retratos durante bastante tempo. Queria ter a certeza que reconheceria esta mulher quando a visse.

- E então? - perguntou Cutler.

- Estou a tentar localizá-la - respondi. - Já a vi em qualquer parte, mas tenho a impressão que nunca falei com ela. Já a vi, disso tenho a certeza. Não me lembro se ela aqui morava ou não. Pode ser que me lembre mais tarde.

Fiz um sinal a Bertha para que examinasse atentamente os retratos. Não precisava de ter-me incomodado.

Cutler estendeu a mão para que lhos devolvesse. Bertha tirou-mas da mão e disse:

- Deixe cá ver. Às vezes...

Estudamos as fotografias pormenorizadamente. Tenho o hábito de tentar conhecer o carácter de uma pessoa pela sua fotografia. Esta rapariga era mais ou menos da mesma estatura de Roberta. Os rostos tinham apenas uma vaga semelhança. Roberta tinha um nariz direito e uns olhos que podiam ser motejadores ou pensativos. Esta rapariga dava mais a impressão de ser o tipo da cabecinha oca e coração alegre. Choraria ou riria consoante a disposição em que estivesse, mas não se preocuparia com o que visse depois. Roberta poderia rir, mas pensaria enquanto ria. Roberta não era do tipo de deixar andar. Era daquelas que têm sempre um travão para parar a corrida. A rapariga do retrato era uma jogadora inata. Arriscaria todo o seu dinheiro numa carta, ficaria impassível se ganhasse, mas desconfiada se perdesse. Nunca consideraria a possibilidade de perder. Roberta, pelo contrário, nunca se atreveria a arriscar um tostão se não tivesse a certeza de ganhar. Quanto ao aspecto, figura e compleição eram tão semelhantes que se admitia perfeitamente que as roupas de uma pudessem servir à outra. Bertha devolveu as fotografias a Cutler.

- Parece muito nova - declarei.

Cutler aquiesceu.

- É dez anos mais nova do que eu. Suponho que isso tem algo que ver com o que aconteceu. No entanto, não desejo aborrecer-vos com as minhas contrariedades. Vim aqui para ver se conseguia arranjar qualquer prova de que ela vivia cá. Devo encontrar alguém que possa informar-me com segurança.

- Lamento não poder ajudá-lo - disse-lhe. – Talvez me recorde mais tarde. Onde posso encontrar-me consigo?

Deu-me um cartão. Marco Cutler, Acções e Obrigações, Hollywood. Meti-o na algibeira e prometi comunicar-me com ele se fosse capaz de recordar mais alguma coisa sobre a inquilina que ali vivera há três anos.

- O meu telefone vem na lista - disse Goldring. - Dê-me uma apitadela se tiver qualquer informação antes de o Sr. Cutler regressar. E, se tem quaisquer documentos para fazer assinar a alguém, dê-mos que eu trato-lhe do caso.

Disse-lhe que sim e depois voltei-me para Cutler:

- O senhor não pode obrigar sua mulher a admitir que vivia aqui? Parece-me que ela tem de provar onde estava, se reclama que não viu nem assinou os papéis.

- Não é assim tão fácil como parece à primeira vista - declarou Cutler. - Minha mulher é muito reservada e metida consigo. Bem, agradeço-lhes muito.

Fez um gesto para Goldring. Levantaram-se. Goldring deu um rápido olhar em volta e caminhou em direcção à porta. Cutler parou.

- Não sei como agradecer a vossa cooperação disse ele. - Fiquei ciente, é claro, que uma coisa que parece muito grave e importante para mim é um caso sem importância para uma pessoa que não conheça as partes interessadas. Agradeço muito a vossa amabilidade.

Quando a porta se fechou atrás deles, Bertha voltou-se para mim.

- Gosto dele - declarou.

- Sim - retorqui. - Tem uma voz agradável e...

- Não seja parvo. Não se trata de Cutler, mas sim de Goldring.

- Ah!

- Cutler é um hipócrita de voz melada. Ninguém que tenha aquela delicadeza pode ser sincero, e não ser sincero é uma bela maneira de ser hipócrita. Gostei do Goldring. Não é tipo que se perca com palavras.

- Exactamente - retorqui, tentando imitar a voz de Goldring.

Bertha fitou-me de frente.

- Por vezes você parece ser o tipo mais antipático que já vestiu calças. Vamos. Vamos telefonar a Hale. A estas horas já deve ter chegado a Nova Iorque. Seja como for, podemos deixar-lhe recado.

 

                   Unhas Cruzadas

Sentamo-nos no vestíbulo do hotel à espera que a chamada telefônica fosse efectuada. A Central havia informado que não estava ninguém no escritório de Hale e de sua casa ainda não tinham atendido. Bertha explicou à telefonista:

- Não sabemos a que horas ele chegará a casa. No entanto, deve lá chegar esta noite. Continue a chamar.

- Preciso de comer qualquer coisa enquanto esperamos - declarei. - Estou na minha hora de jantar.

Bertha nem quis ouvir-me falar em sair.

- Quero que você esteja aqui quando ele atender a chamada. Mande vir qualquer coisa.

Respondi-lhe que, provavelmente, antes da meia-noite não teríamos qualquer notícia dele, mas pedi a um criado que me trouxesse a lista. Bertha deu-lhe uma vista de olhos e decidiu tomar um cocktail enquanto eu comia o meu bife.

- Você sabe muito bem que não sou capaz de ficar sentada a vê-lo comer - declarou ela.

Fiz um gesto de concordância. O criado mostrava-se muito solícito.

- Apenas um cocktail? - perguntou ele.

- Como são essas ostras Rockefeller? - informou-se Bertha.

- São grelhadas - respondeu ele, com o rosto aberto num sorriso de entusiasmo. - E têm um molho que é um segredo da casa. São abertas e temperadas dentro da própria casca.

- Parece um belo petisco - exclamou Bertha. - Traga meia dúzia para experimentar. Não, traga uma dúzia. Traga também um pouco de pão torrado, manteiga, uma chávena de café bem forte e bastante açúcar.

- Perfeitamente, Madame.

Bertha fitou-me.

- Café simples! - disse ela com voz firme.

- Sim, Madame. E o que deseja de sobremesa?

- Bem, depois verei.

Depois de o criado se retirar, Bertha olhou para mim à espera de me ouvir dizer qualquer coisa. Como eu nada dissesse, decidiu ser ela a iniciar a conversa.

- No final de contas, não se pode aumentar muito de peso num só dia. Não vejo qualquer razão para me pôr a contar as calorias, agora que meti no organismo toda a comida que ele pode assimilar num dia.

- É lá consigo - retorqui. - Por que razão não há de uma pessoa viver segundo os seus desejos?

- Eu vivo.

Seguiu-se um silêncio. Depois ela disse em voz baixa:

- Ouça, amorzinho, gostava de dizer-lhe uma coisa.

- O que é?

- Você é um menino diabolicamente esperto, mas não percebe nada a respeito de dinheiro. O que vale é que é a Bertha quem dirige as finanças.

- Que temos agora?

- Depois que você saiu de Los Angeles entramos num novo negócio - declarou Bertha, com a voz receosa de quem inicia uma discussão.

- Que negócio?

No rosto de Bertha apareceu aquela expressão espertalhona que sempre a acompanha quando se trata de qualquer questão de negócios.

- A B. Cool Constitution Company. Eu sou a presidente e você é o director-geral.

- O que é que construímos?

- Por agora - respondeu Bertha - estamos a trabalhar num acampamento militar. É um trabalho pequeno com que não temos necessidade de nos incomodar. É um trabalho por conta de outrem.

- Não atinjo a finalidade disso - declarei.

- Pensei que não era bom termos muitos ovos num só cesto - redargüiu Bertha. - Não se pode prever o que irá suceder, da forma como as coisas estão.

- Mas, porque escolheu esse negócio de construção?

- Bem, vi uma oportunidade de aplicar capital em qualquer coisa.

- Essa resposta não é muito convincente.

Bertha inspirou profundamente.

- Caramba! - exclamou ela. - Creio que tenho o direito de ser tão patriota como as outras pessoas. Tenho uma grande capacidade de execução. Desde que você entrou para a sociedade, tenho tido oportunidade de me dedicar aos desportos náuticos. Sentada à beira-mar tenho pensado muito nos rapazes que morrem simplesmente porque nós não fomos capazes de enfrentar as responsabilidades que nos cabiam... Seja como for, entramos nesse negócio de reconstrução e havemos de ir para a frente. Não pense muito no caso. De vez em quando falarei consigo sobre o assunto, mas deixe a Bertha encarregar-se de tudo.

O telefone tocou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Bertha levantou o auscultador com uma presteza que mostrava bem o quanto ela apreciava a interrupção. Levou-o ao ouvido e disse:

-Está?... Está? Tenho estado a tentar ligar para si. Onde se encontra?... Não, não. Tenho estado a ligar para si... Ah, sim? Não é realmente extraordinário? Bem, diga primeiro o que tem a dizer... Muito bem, já que insiste. O melhor é segurar-se para não cair. Temos notícias para si... Exactamente. Encontramo-la. No Edifício Gulfpride da Avenida Charles... Não, o Gulfpride, G-u-l-f-p-r-i-d-e. Exactamente... Segredo profissional. Temos os nossos métodos. Era uma pista bastante antiga, mas trabalhamos como rafeiros depois que o senhor se foi embora. Ficaria surpreendido se lhe dissesse o número de pistas que tivemos de seguir... Não, ainda não falei com ela. Donald falou... Sim, o meu sócio, Donald Lam.

Houve um intervalo durante o qual pude ouvir a sua voz arrastada e metálica. Bertha estava sentada e ouvia. Finalmente disse:

- Bem... Sim... Acho que posso.

Olhou para mim, pôs apressadamente a mão no bocal do telefone e informou:

- Ele quer que eu vá até casa dela logo de manhã cedo.

- E porque não?

Bertha tirou a mão do bocal.

- Perfeitamente, Sr. Hale, estou a compreender. Voltou a pôr a palma da mão sobre o bocal e disse-me:

- Quer que eu me relacione com ela, que ganhe a sua confiança e a faça abrir-se comigo.

- Tome cuidado - preveni. - Ela não é parva nenhuma. Não garanta resultados positivos nesse sentido.

Bertha falou novamente para o aparelho:

- Bem, Sr. Hale, isso seria óptimo. Terei o maior prazer em fazer o melhor que puder... Sim, Donald irá comigo. Sairemos logo de manhã cedo para a apanharmos à hora de se levantar. Ela só entra no banco às nove, portanto sai de casa por volta das oito e meia. Estaremos à espera dela num táxi. O que deseja que eu lhe diga?

Seguiu-se um outro intervalo durante o qual eram perfeitamente audíveis as instruções da voz metálica. Depois Bertha disse:

- Muito bem, Sr. Hale, depois lhe darei notícias. Deseja que lhe mande um telegrama ou... Estou a compreender. Muito bem. Bem, muito obrigada. Nós também somos da mesma opinião, pois somos realmente bons... Sim, bem lhe disse que ele era pouco pesado mas tinha muitos miolos. Bem, boa noite, Sr. Hale... Está? Um momento, se faz favor. Quando ligarem para aí a minha chamada diga para a cancelarem. As nossas chamadas desencontraram-se. É claro que vou desistir da minha, mas não sei se a estas horas já não estarão à espera da ligação... Boa noite.

Bertha repousou o aparelho, tornou a levantá-lo e disse:

- Está? Está, menina? Daqui fala a Srª. Cool, do quarto do Sr. Lam... Sim, exactamente, do quarto do Sr. Lam... Não, já não estou hospedada no hotel mas tenho a bagagem no quarto do Sr. Lam. Exactamente. Tinha uma chamada para o Sr. Hale, de Nova Iorque. É favor anulá-la. Exactamente, anule-a. Não, acabo de falar com ele... Não, a chamada era dele... Inferno, anule a minha chamada e não queira... Anule a minha chamada!

Bertha colocou o aparelho no descanso e voltou-se para mim.

- Meu Deus - disse ela - a companhia deve castigar as raparigas cada vez que uma chamada é cancelada. Dá a impressão que lhes tiramos a comida da boca. E, por falar em comida, quando virá o nosso jantar? Creio que...

O criado bateu à porta discretamente.

- Entre - gritei.

Bertha não gosta de falar enquanto come. Deixei-a comer à vontade.

- A que horas pretende encontrar-se com Roberta Fenn? - perguntei quando ela afastou o prato.

- Quando me levantar venho ter aqui – respondeu Bertha. - Chegarei cá às sete horas. Esteja na sala de entrada quando eu chegar. Mas esteja mesmo. Não quero ficar à espera, com um taxímetro a contar o tempo. Logo que me veja chegar, aproxime-se e entre no carro. Às sete em ponto. Compreendeu?

- Perfeitamente.

Bertha recostou-se na cadeira com um sorriso de calma satisfação e atirou uma baforada de fumo para o tecto. O criado reapareceu com a lista. Bertha nem se deu ao incómodo de a consultar.

- Traga-me uma mousse de chocolate - disse ela.

 

                   Um Perfeito Quebra-Cabeças

Bertha pareceu surpreendida quando me viu sair para ir ao encontro do seu táxi às sete horas em ponto. Os seus olhos duros como diamantes brilhavam à claridade nascente.

- Dormiu bem?

- Dormir! - exclamou ela com os lábios estendidos.

Dei ao condutor do táxi a morada da Avenida Charles.

- O que foi? - perguntei. - Barulho?

- Quando eu era nova - respondeu Bertha – era costume as mulheres procederem com uma certa discrição quando pretendiam seduzir um homem.

- Mas, o que se passou? Assistiu a alguma cena de sedução a noite passada?

- Se assisti a uma cena de sedução! – exclamou Bertha. - Assisti a uma récita completa de seduções. Vejo agora o motivo por que se diz que os rapazes de hoje só pensam em sexo. Quando se diz que um rapaz não dá grande importância a essas coisas está ele em qualquer casa pública à cata de raparigas.

- Deduzo que não dormiu muito bem.

- Não dormi. Contudo posso garantir-lhe uma coisa.

- O quê?

- Dei da varanda uma boa mão-cheia de conselhos a um grupo de raparigas.

- Como reagiram elas?

- Uma delas irritou-se - retorquiu Bertha. – Outra pareceu sentir-se envergonhada e foi para casa e as restantes ficaram paradas a rir-se para mim e a dizerem-me piadas.

- E a senhora o que fez?

- Cantei-lhas - afirmou Bertha com uma ponta de maldade na voz.

- E elas calaram-se?

- Não.

- Não admira que não tenha dormido.

- Não foi por causa do barulho. Estava demasiadamente irritada para poder dormir. Não me saía da mente a imagem dessas gatas a andarem pela rua sem qualquer ponta de vergonha. Oh, cada vez vamos aprendendo mais coisas.

- Vai sair do apartamento? - perguntei.

- Sair do apartamento! - exclamou Bertha. – Não seja pateta! O aluguel está pago!

- Eu sei, mas no final de contas não há vantagem nenhuma em ficar num apartamento onde se não pode dormir.

Os lábios de Bertha apertaram-se numa linha firme e direita.

- Às vezes dá-me vontade de o esganar. Um dia, por causa das suas malditas extravagâncias, ainda desmancharemos a sociedade.

- Vamos desmanchar?

- Não discutamos isso agora - respondeu Bertha apressadamente. - Temos tido sorte. Qualquer dia você deixará de ter sorte; nessa altura virá ter comigo, pedindo-me para, com o meu capital, agüentar a sociedade. Será nessa altura que você ficará a conhecer devidamente Bertha Louise Cool, e peço-lhe que não se esqueça disto.

- É um pensamento intrigante. Faz com que a possibilidade de bancarrota pareça quase sedutora.

Ela voltou deliberadamente a cabeça, fingindo observar o cenário da Avenida Charles. Passado um momento voltou-se.

- Tem fósforos?

Risquei um e estendi-lho aceso. Rodamos em silêncio até chegarmos ao Edifício Gulfpride.

- É melhor que o táxi fique à nossa espera – disse eu a Bertha. - É difícil encontrar algum nestas paragens. Podemos não nos demorar.

- Demoraremos um pouco - redargüiu Bertha, bastante mais do que você pensa. Não vamos consentir que um taxímetro fique a trabalhar por nossa conta enquanto conversamos.

Bertha abriu a bolsa, pagou ao condutor e disse:

- Espere aqui até que tenhamos tocado à campainha. Se nos abrirem a porta, não espere mais.

O condutor olhou para a gorjeta de dez cêntimos que Bertha lhe dera e respondeu:

- Está bem, madame.

E ficou sentado à espera. Bertha encontrou o botão que estava a seguir ao nome de Roberta Fenn e aplicou-lhe o polegar com força suficiente para parecer que pretendia metê-lo dentro.

- Provavelmente ainda não está levantada – resmungou ela. - Principalmente se saiu a noite passada. Não me admiraria que fosse uma daquelas gatas que esteve debaixo da minha varanda. Aparentemente, nesta cidade a vida começa só depois das três da manhã.

Carregou novamente no botão com um esgar irritado. Repentinamente o automático da porta soou. Empurrei a porta e esta abriu-se. Bertha voltou-se e fez um gesto de despedida ao motorista do táxi. Começamos a subir as escadas, com Bertha a apoiar deliberadamente os seus setenta e cinco quilos nos degraus de madeira e eu atrás, marchando ao ritmo marcado por ela.

- Quando lá chegarmos, amorzinho - disse ela, deixe que seja eu a falar.

- Sabe o que lhe vai dizer?

- Sei. Sei o que ele quer que descubramos. Penso que Nova Orleães tem as mais horríveis escadas do mundo, diabos as levem!

- É no segundo esquerdo - informei.

Bertha subiu os últimos degraus, percorreu o corredor, levantou o punho para bater na porta, mas deixou o gesto em meio quando verificou que a porta estava um pouco entreaberta.

- É evidente que ela deseja que entremos sem cerimônias - disse Bertha, empurrando a porta.

- Um momento - disse eu, segurando-a por um braço.

A porta ficou completamente escancarada devido ao empurrão que Bertha lhe dera. Vi os pés de um homem numa posição muito esquisita. Avançando um pouco a cabeça vi o corpo a que esses pés pertenciam, um corpo que estava caído numa cadeira, com a cabeça tombada no soalho, um pé dobrado sob um braço da cadeira e o outro passado em volta do suporte do braço. Um sinistro fio vermelho havia corrido de um buraco que se via do lado esquerdo do peito, formando um pequeno lago no soalho. Uma almofada chamuscada mostrava a razão por que o tiro não tinha sido ouvido.

- Diabos me levem! - exclamou Bertha num sussurro, dando um rápido passo em frente.

Eu continuava a segurar-lhe no braço. Precisei de toda a força para a puxar para trás.

- Qual é a idéia? - perguntou Bertha.

Não respondi, limitei-me a continuar a puxá-la. Por um momento ela ficou zangada, depois viu a minha expressão e os seus olhos abriram-se.

- Bem - disse eu em voz baixa. - Creio que não está ninguém em casa, afinal de contas.

Continuava a segurar-lhe o braço, puxando-a para a escada. Quando ela compreendeu, começou a andar agilmente. Atravessamos silenciosamente o corredor atapetado e eu fui obrigado a empurrar Bertha para que ela descesse as escadas pois desejava parar para discutir. Saímos apressadamente do edifício e eu reboquei Bertha pela Avenida Charles. Bertha juntou os seus pensamentos o suficiente para começar a puxar para trás.

- Ouça, qual é a sua idéia? - perguntou ela. – Que diabo se lhe meteu na cabeça? Aquele homem foi assassinado. Devíamos prevenir a polícia.

- Previna a Polícia se é esse o seu desejo, mas não seja tão parva que pense que poderia ter entrado naquele quarto e saído de lá viva.

Ela parou repentinamente, com os pés imobilizados devido à surpresa e os olhos muito abertos fixos em mim.

- Que diabo quer você dizer com isso? - perguntou.

- Não compreende? Alguém carregou no botão para nos abrir a porta. Depois, esse mesmo alguém deixou a porta do apartamento aberta.

-Quem? - perguntou ela.

- Tem duas alternativas - respondi. - Ou era a Polícia que esperava que alguém aparecesse, o que, tendo em vista o que se seguiu, é pouco provável, ou o assassino que esperava pacientemente a sua segunda vítima.

Os seus pequenos olhos duros fitavam-me, chispando em resposta à intensidade dos pensamentos que lhe atravessavam o cérebro.

- Pode chamar-me idiota à sua vontade! Creio que você tem razão, seu filho da mãe.

- Sei que tenho razão.

- É, porém, pouco provável que fôssemos nós as pessoas de quem ele estava à espera.

- Mas seríamos, se tivéssemos entrado naquela sala.

- O que quer dizer?

- Teríamos visto quem ele era. Podíamos não ser as pessoas que ele esperava, mas se tivéssemos entrado, ele não poderia arriscar-se a deixar-nos sair depois de lhe termos visto a cara.

Vi o rosto de Bertha mudar de cor ao verificar que escapara por tão pouco.

- E foi por Isso que você disse que não estava ninguém lá dentro?

- Evidentemente. Há um restaurante no outro lado da rua. Vamos telefonar à Polícia de lá e ao mesmo tempo vamos conservar o apartamento sob vigilância para podermos ver quem sai de lá.

- Quem era? - perguntou Bertha. - Conhece-o... o morto?

- Já o tinha visto.

- Onde?

- Foi a casa de Roberta na noite passada. Creio que a sua visita foi inesperada e importuna... Mas também já o havia visto antes disso.

- Quando?

- Na outra noite. Não consegui dormir. Fui até à varanda. Ele vinha a sair de um bar existente do outro lado da rua. Estava acompanhado de duas mulheres e havia alguém à espera deles dentro de um automóvel. Uma súbita recordação da noite anterior passou pela mente de Bertha.

- Ele era um dos tocadores de buzina?

- Era o responsável por todo aquele maldito concerto de buzinas.

- Tenho satisfação que ele esteja morto – afirmou Bertha.

- Não diga isso! É perigoso brincar com coisas sérias.

- Quem diabo lhe disse que eu estava a brincar? Quero dizer exactamente o que disse. Não acha que temos de informar a Polícia?

- Sim, mas vamos fazê-lo à minha maneira.

- Como?

- Venha, vou mostrar-lhe.

Entramos no restaurante. Perguntei em voz alta ao proprietário se podia utilizar o telefone para chamar um táxi. O homem indicou-me a cabina e informou-me do número da praça mais próxima, Fui até à cabina, liguei para a praça de táxis de onde me garantiram que dentro de dois minutos um carro estaria junto do restaurante. Da cabina podia vigiar a porta do edifício de Roberta Fenn. Esperei até ouvir a buzina do táxi em frente do restaurante, meti uma nova moeda no aparelho, liguei para a central da Polícia e perguntei com naturalidade:

- Tem um lápis?

-Tenho.

- Escreva: Edifício Gulfpride na Avenida Charles.

- O que se passa lá?

- Apartamento dois-zero-quatro.

- Bem, o que se passa? Quem fala? O que deseja?

- Desejo comunicar que foi cometido um assassínio naquele apartamento. Se mandar já um carro-patrulha pode ser que apanhem o assassino que espera por outra vítima.

- Quem fala?

- Adolfo.

- Adolfo quê?

- Hitler - respondi , e não me pergunte mais nada porque tenho a boca cheia.

Desliguei e saí. Bertha já havia saído para a rua para apanhar o táxi. Fui ter com ela calmamente como se não tivesse pressa nenhuma.

- Para onde? - perguntou o condutor.

Bertha ia começar a dar-lhe o nome do hotel, mas eu intervim:

- Para a estação da Union. Vá devagar, pois não temos pressa.

Bertha desejava falar. Cada vez que ela o tentava fazer, eu aplicava-lhe uma cotovelada. Finalmente, desistiu e ficou quieta a olhar para mim com uma expressão de raiva impotente. Na estação pagamos a corrida. Guiei Bertha, entramos por uma porta, demos uma volta, saímos por outra porta e metemo-nos noutro táxi.

- Para o Hotel Monteleone! - ordenei ao condutor.

Uma vez mais consegui impor silêncio a Bertha. Dava-me a impressão de estar a travar a válvula de segurança de uma máquina a vapor. Não sabia em que momento poderia dar-se uma explosão. Chegamos ao Hotel Monteleone. Escoltei Bertha até uma fila de confortáveis cadeiras, fi-la sentar-se comodamente, sentei-me ao lado dela e disse com afabilidade:

- Ande, agora já me pode falar à vontade. Fale sobre todos os assuntos que deseje, com excepção daquilo que se passou nesta última hora.

Bertha fitou-me intensamente.

- Quem diabo é você para me dizer aquilo em que devo e não devo falar?

- Todos os movimentos que fizemos até esta altura serão verificados pela Polícia. Aquilo que fizermos daqui em diante é que contará realmente.

- Se descobrirem os nossos movimentos até aqui também descobrirão os que fizermos depois.

Esperei até que os olhos do empregado da recepção se voltassem na nossa direcção, depois levantei-me, aproximei-me do balcão, sorri afavelmente e disse:

- Suponho que o autocarro vem aqui buscar os passaportes dos aviões que seguem para o norte?

- Sim. Estará aqui dentro de trinta minutos.

- Não há inconveniente que esperemos aqui por ele?

- Absolutamente nenhum - assegurou-me ele com um sorriso.

Voltei para junto de Bertha. Após a atenção do empregado se desviar noutra direcção, levantei-me e aproximei-me do quadro dos avisos. Passados alguns momentos fiz sinal a Bertha para vir ter comigo; depois passamos pela porta que dava para o bar. Meti uma moeda num dos jogos mecânicos para mostrar que não tinha pressa. Finalmente saímos para a rua.

- Para onde vamos agora? - perguntou Bertha.

- Primeiramente para o hotel onde demoraremos apenas o tempo suficiente para fazermos as malas e sairmos.

- E depois?

- Provavelmente iremos para o apartamento.

- Os dois?

- Sim. O canapé pode muito bem servir de cama.

- Qual é a sua idéia? - perguntou Bertha. – Estamos a proceder como se fosse você quem fez aquilo.

- Não se surpreenda se a Polícia pensar isso mesmo.

- Por quê?

- Roberta Fenn trabalhava num banco. Hão de ir perguntar ao gerente o que sabe. Ele dirá que ontem à tarde um homem foi vê-la, dizendo-se um investigador que pretendia fechar um processo de herança. Roberta Fenn falou com esse homem. Esse mesmo homem estava à espera dela quando o banco fechou. Meteu Roberta num táxi e seguiram ambos com destino desconhecido. O homem estava no apartamento dela quando a vítima a fora visitar. O homem era ciumento.

- Onde está Roberta enquanto tudo isto se passa? - perguntou Bertha Cool.

- Roberta - disse eu - é: primeiro: a pessoa que puxou o gatilho da arma; segundo: deitou-se no chão de forma a não a podermos ver sem entrarmos na sala; ou então, terceiro: é a pessoa por quem o assassino estava à espera.

- Penso que o melhor a fazer é metermo-nos num táxi, irmos até à central da Polícia e contarmos tudo quanto sabemos.

Parei, fi-la tornear a esquina e apontei para um táxi que estava parado do outro lado da rua.

- Tem ali um táxi - disse-lhe. - Meta-se nele.

Berta hesitou.

- Ande, vá.

- Você não é da minha opinião, Donald.

- Não.

- Por quê?

- Tenho muitos motivos.

- Diga alguns.

- Cheira mal.

- O que é que cheira mal?

- Todo este caso.

- Por quê?

- Hale foi a Los Angeles - comecei. - Contratou-nos para virmos a Nova Orleães e descobrirmos Roberta Fenn. Por que motivo não contratou uma agência de Nova Orleães para tratar do caso?

- Porque tinha confiança em nós. Nós tínhamos-lhe sido recomendados.

- Em vez de arranjar uma agência de Nova Orleães para um vulgar trabalho de rotina, ele paga uma boa maquia, despesas de viagem e despesas diárias para virmos de Los Angeles para aqui.

- Você já se encontrava na Florida. Ele pareceu ficar muito satisfeito quando lhe comuniquei isso. Disse-lhe que você podia estar aqui dois dias antes de nós cá chegarmos.

- Muito bem, ele ficou satisfeito. Contratou-nos para virmos para cá porque tinha confiança em nós. Mas sabia muitíssimo bem onde se encontrava Roberta Fenn.

Bertha olhou-me como se eu tivesse dito qualquer coisa incompreensível.

- É a verdade - afirmei.

- Donald, você é completamente doido! Por que motivo iria um homem até tão longe como Los Angeles para nos contratar a cinqüenta dólares por dia e mais vinte para as despesas diárias, para descobrirmos uma mulher em Nova Orleães que tinha desaparecido, mas que afinal não desaparecera?

- Essa - disse eu - é a razão por que não me meto num táxi e vou até à central da Polícia. Vá a senhora se quiser. Está além um táxi e, conhecendo-a como a conheço, tenho a certeza que tem dinheiro suficiente para pagar a corrida.

Comecei a andar em direcção ao hotel. Bertha veio atrás de mim a resmungar.

- Não precisa ser tão independente a respeito disto.

- Não estou a ser independente. Procuro simplesmente livrar-me de enrascações.

- O que dirá à Polícia quando o descobrirem e se tornarem duros em virtude de você não ter comunicado o crime?

- Eu comuniquei o crime.

Ela ficou a magicar um pouco.

- A polícia, mesmo assim, não vai gostar.

- Ninguém lhe pede para o fazer.

- Quando lhe deitarem a mão - preveniu Bertha, você irá passar um mau bocado.

- A menos que lhe demos qualquer coisa mais que lhes desvie a atenção.

- Que coisa?

- O assassino que estava naquele quarto ou, talvez um outro assassínio novinho em folha. Qualquer coisa com que ocupem o cérebro.

Bertha automaticamente acertou o passo pelo meu, a pensar no caso.

- Donald - disse ela finalmente, você está maluco no que se refere à questão Hale.

- Que questão?

- A de ele saber onde se encontrava Roberta Fenn.

- Ele já a havia descoberto.

- O que o leva a pensar isso?

- O criado do Restaurante Bourbon viu-a sair do Bar de Jack O’Leary na companhia de Hale.

- Tem a certeza?

- Quase poderia jurar. O criado descreveu-o na perfeição e acrescentou que ele parecia ter qualquer coisa na boca.

- Quando foi isso?

- Há mais ou menos um mês.

- Nesse caso ela sabe quem é Hale?

- Não. Hale sabe quem ela é. Ela pensa que Hale é Archibald C. Smith, de Chicago.

Bertha suspirou.

- Isto é demasiado para mim. É uma dessas paciências chinesas de que você tanto gosta. Eu não gosto.

- Esta também não me agrada muito. Mas a questão não é gostar ou deixar de gostar. É um caso em que estamos metidos até ao pescoço.

- Bem - declarou Bertha , vou pôr-me em contacto com Hale para termos uma explicação. Vou...

- Não vai fazer nada disso - cortei. - Lembre-se que Hale nos disse que não desejava que levássemos a cabo qualquer investigação sobre os motivos por que fomos contratados e sobre a identidade de quem nos contratou. A nossa missão limitava-se a descobrirmos o paradeiro de Roberta Fenn.

Era visível que Bertha ia pensando profundamente no caso enquanto nos dirigíamos para o hotel. Antes de entrarmos no átrio, parou.

- Bem - disse, resolvi definitivamente uma coisa.

- O que foi?

- Descobrimos Roberta Fenn. Foi para isso que fomos contratados. Receberemos o bônus de que ele falou. Quanto a mim tenho de voltar para Los Angeles. O negócio de construções em que lhe falei é muito importante.

- Por mim não vejo qualquer empeno - afirmei.

Bertha entrou no átrio, dirigiu-se ao empregado da recepção e perguntou:

- A que horas sai daqui o próximo comboio para a Califórnia?

O empregado sorriu e respondeu:

- Se quiser dar-se ao incómodo de perguntar ao porteiro, ele... Um momento só. É a Srª. Bertha Cool?

- Sou.

- A senhora registrou-se aqui no hotel a noite passada, não é verdade?

- Exactamente.

- Veio um telegrama para a senhora esta manhã informou o empregado. - Devolvemo-lo para a companhia. Um momento só. Talvez ainda não tenha seguido. Não. Ei-lo.

Pegou nele e entregou-o a Bertha Cool. Ela abriu-o de forma a que eu pudesse lê-lo também por cima do seu ombro. Era provavelmente de Richmond e tinha a data da noite passada.

“Depois de ter falado consigo por telefone decidi voltar a Nova Orleães pelo primeiro avião. Emory G. Hale.”

 

                   Uma Circular

Afastamo-nos do balcão. Bertha continuava a olhar para o telegrama.

- Deve chegar de um momento para o outro – disse eu. - Há um avião que sai de Nova Iorque de manhã cedo. Ele não diz em que avião vem, pois não?

- Não, diz que vem no primeiro. Pode não ter encontrado lugar, pois nestes dias vêm sempre com a lotação esgotada.

- Quando ele chegar, quem fala sou eu - declarei.

Bertha tomou uma decisão súbita.

- Você tem muitíssima razão ao dizer isso. Bertha vai-se meter num avião e voar para Los Angeles. Se o Sr. Hale fizer perguntas, diga-lhe que Bertha tem um trabalho militar que requer a sua presença. Você não vai dizer-lhe nada acerca da nossa ida lá abaixo esta manhã e acerca do que aconteceu, pois não?

- Não.

- Era tudo quanto desejava saber.

- Quer que vá consigo até ao aeroporto?

- Não. Você é veneno puro. Você deseja puxar os cordelinhos a Hale só porque pensou que Hale o estava a querer enrolar. É lá consigo. Foi você quem enviou os cartões de convite e agora receba os convidados. Bertha vai pôr-se a andar, mas antes de partir vai comer uns pudins de nozes.

- Preciso da chave do apartamento - declarei - e...

- Encontrá-la-á na porta. Vou fazer as malas e deixarei a chave na porta. Adeus!

Dirigiu-se com passos decididos para a saída e eu vi-a meter-se num táxi. Nem mesmo olhou para trás. Quando o táxi desapareceu da vista fui até à sala de jantar, pedi um bom pequeno-almoço, subi até ao quarto, estendi-me numa cadeira, apoiando os pés noutra e li o jornal da manhã enquanto esperava por Hale. Este chegou pouco depois de baterem as dez horas. Apertei-lhe a mão que me estendia e disse:

- Bem, não há dúvida que a sua viagem foi rápida.

Ele repuxou os lábios para trás no seu sorriso característico.

- Tive de ser rápido por um motivo - redargüiu. - Não sabia que a vossa agência trabalhava tão depressa. O que aconteceu à Srª. Cool? Perguntei por ela, mas responderam-me que se tinha ido embora.

- Foi. Foi chamada a Los Angeles por um caso urgente... serviço das forças armadas.

- Oh! - exclamou. - Nesse caso estão a trabalhar para o F. B. I.?

- Não disse isso.

- Não, mas deu a entender.

- Não estou a par de todos os assuntos da agência, mas julgo que não trabalhamos para o F. B. I.

Ele sorriu.

- E se trabalhassem, não diria, pois não?

- Provavelmente não.

- Era tudo quanto desejava saber. Contudo, estou desapontado por não a ver.

- Ela disse que nada mais tinha a fazer aqui. Desde que Roberta foi localizada, o restante trabalho é simplesmente uma questão de pormenores.

- Bem, num sentido assim é. Na realidade vocês trabalham depressa. Disseram-me na recepção que a Srª. Cool se havia despedido às sete horas da noite de ontem. Não partiu a noite passada, pois não?

- Não. Partiu esta manhã.

- Mas despediu-se a noite passada?

- Exactamente. Alugou um apartamento no Bairro Francês. Pensou que assim ficaria num lugar mais central tendo em vista as nossas investigações.

- Compreendo. Onde é esse apartamento?

- Não lhe sei dizer com exactidão. É um daqueles edifícios que ficam numa rua onde se chega depois de voltar dezenas de vezes à esquerda e à direita. Conhece bem o Bairro Francês?

- Não.

- Ficaria surpreendido se visse um tal apartamento. É realmente típico.

-Com que então a Srª. Cool trabalha para os serviços do Exército? Não me falou nisso.

- O senhor não lhe perguntou, pois não?

- Não.

- Ela só muito raras vezes fala dos seus assuntos com os clientes.

Ele fitou-me com um rápido olhar. Conservei-me absolutamente impassível.

- Nesse caso, ela não chegou a falar com Miss Fenn?

Fiz com que o meu rosto mostrasse uma expressão de surpresa.

- Como? A verdade é que, pelo seu telegrama, depreendemos que o senhor desejava que adiássemos a entrevista até à sua chegada, a fim de que o senhor pudesse falar com ela.

- Bem... Não era exactamente isso. Disse-me que ela vivia no Edifício Gulfpride da Avenida Charles.

- Sim.

- Creio que o melhor é irmos até lá. Já tomou o pequeno-almoço?

- Já.

- Nesse caso vamos ter com ela.

- Quer que eu esteja presente quando falar com ela?

- Sim.

Chamamos um táxi e demos-lhe a direcção do Edifício Gulfpride. Quando íamos a meio do caminho, o condutor voltou-se para trás e disse:

- É o lugar onde houve um assassínio esta manhã, não é?

- Que lugar?

- O Edifício Gulfpride.

- Não me diga? Quem é o morto?

- Não sei. Um tipo qualquer chamado Nostrander.

- Nostrander - repeti, como que procurando lembrar-me do nome. - Não creio conhecer alguém com esse nome. O que fazia ele?

- Era advogado.

- Foi realmente assassinado? - perguntei.

- Assim o dizem. Alguém lhe acertou no coração com uma bala de calibre 38.

- Ele vivia lá?

- Não. Foi encontrado no apartamento de uma rapariga.

- Ah, sim?

- Era uma rapariga que trabalhava num banco.

- E o que foi feito dela?

- Desapareceu.

- Por acaso não se lembra do nome dela?

- Não, não me lembro... Um momento. Já o ouvi... Um dos rapazes falou-me no caso. Deixe-me ver. Era um nome pequeno... Pen... Não, não era Pen. Espere... Fenn... Exactamente, Fenn. Roberta Fenn.

- A polícia pensa que foi ela? - perguntei.

- Não sei qual é a teoria deles. Tudo quanto sei é o que ouvi a um colega que estava a contar o caso e que havia conduzido um fotógrafo da polícia ao local. Disse que o cadáver estava num molho. Bem, o edifício é este. Há uma enorme quantidade de carros em frente dele.

Hale começou a dizer qualquer coisa. Antecipei-me a ele.

- E que tal - perguntei em voz alta - se fôssemos ver primeiramente a outra pessoa? Voltaríamos depois aqui, quando tivesse passado todo o rebuliço. Não gosto nada de estar a tratar de um assunto e ouvir gente a entrar e a sair, a subir e descer escadas, fazendo um barulho dos diabos...

- Penso que é uma decisão acertada – respondeu Hale.

Voltei-me para o condutor.

- Muito bem, leve-nos até à esquina da Rua Napoleão. - Recostei-me na almofada e disse para Hale em voz alta: - De qualquer forma, estou certo que a pessoa do Gulfpride não deve estar muito interessada em falar de negócios esta manhã. Deve estar atarefadíssima a trocar impressões com os outros inquilinos a respeito do crime. Acho que o melhor é voltarmos cá na parte da tarde.

- Concordo consigo.

Ficamos depois silenciosos até chegarmos à esquina da Rua Napoleão.

- Desejam que espere? - perguntou o condutor.

- Não, Provavelmente teremos de nos demorar uma ou duas horas.

Pegou na gorjeta que lhe estendi e afastou-se.

- E agora? - perguntou Hale.

- Esperamos por um autocarro e regressamos nele à cidade.

A sua excitação era evidente.

- Temos que descobrir tudo quanto pudermos a respeito deste caso. Ouça, Lam, você é um detective. Não lhe seria possível entrar em contacto com a polícia e descobrir o que ela sabe sobre...

- Não há nem uma probabilidade num milhão interrompi com firmeza.

- A polícia não trabalha em conjunto com as agências de detectives?

- A resposta a isso é uma palavra de uma sílaba que não dá lugar a qualquer mal-entendido. É não!

- Mas isto vem interferir diabolicamente com os meus planos. Tem a certeza que essa mulher era a mesma Roberta Fenn das fotografias que lhe dei?

- Tenho.

- Onde parará ela agora?

- A polícia deve estar a fazer a si mesma essa pergunta.

- Acha que seria capaz de a encontrar novamente. Lam?

- É possível.

O seu rosto iluminou-se.

- Antes da polícia? - perguntou.

- Talvez.

- Como agiria com essa finalidade?

- Não lhe posso dizer por enquanto.

Esperamos pelo autocarro. Hale estava nervoso e olhava repetidamente para o relógio. Finalmente chegou um autocarro. Entramos e, quando nos sentamos, fiquei com a certeza que Hale tinha tomado uma decisão sobre qualquer assunto. Estava à espera de uma oportunidade de ma comunicar, mas eu não lhe dei qualquer saída nesse sentido. Limitei-me a ficar sentado e a olhar tranquilamente para a rua pela janela.

Quando passávamos pelo Edifício Gulfpride esticamos os pescoços. Havia ainda bastantes carros em frente da porta. Um grupo de homens encontrava-se no passeio, falando com as cabeças quase juntas. O facto forneceu a Hale a oportunidade que procurava. Deu um profundo suspiro e disse:

- Lam, vou voltar para Nova Iorque. Você fica cá para continuar o trabalho.

- O melhor que tem a fazer é meter-se num quarto, fechar-se lá dentro e dormir uma boa soneca. Não pode andar daqui para Nova Iorque e de Nova Iorque para aqui, constantemente.

- Receio não poder descansar muito.

- O apartamento que Bertha deixou vago está aberto. Vá até lá, meta-se na cama e durma um pouco. Não será como num hotel. Não haverá ninguém a incomodá-lo. Basta fechar a porta à chave e dormir à sua vontade.

Vi que a idéia lhe agradava.

- E mais ainda - acrescentei. - Vai achar o apartamento muito interessante por outro motivo. Roberta Fenn viveu lá durante alguns meses. Nessa altura usava o nome de Edna Cutler.

Isto fê-lo sobressaltar. Os seus olhos, raiados de vermelho devido a não ter dormido, abriram-se desmesuradamente.

- Foi assim que a descobriu?

- Encontrei lá algumas pistas, sim.

Hale parecia um pouco aborrecido.

- É inacreditável como você descobre essas coisas, Lam. É um autêntico mocho.

Dei uma gargalhada.

- Você sabe, talvez, muito mais coisas a respeito de Miss Fenn do que as que me contou?

- Desejava que eu a descobrisse, não desejava?

- Sim.

- Pois bem, descobri-a. O nosso fim é apresentar resultados e não aborrecer os clientes com a descrição dos métodos e a enumeração das pistas.

Ele voltou a recostar-se no assento.

- Você é um rapaz pouco vulgar. Não compreendo como conseguiu descobrir tanta coisa em tão pouco tempo.

- Vamos descer aqui e percorrer a pé o resto do caminho - disse-lhe. - São uns cinco minutos.

Hale mostrou-se muito interessado no mobiliário. Foi até à varanda, olhou para os vasos de flores, olhou para um e outro lado da rua, voltou para trás, experimentou as molas da cama com a palma da mão e, finalmente, declarou:

- Ótimo, ótimo. Com que então Roberta Fenn viveu aqui? Muito interessante, muito interessante...

Disse-lhe que o melhor que tinha a fazer era tentar dormir, saí e fui até uma cabina telefônica isolada. Demorei meia hora a falar com uma agência de detectives de Little Rock para ficar a saber que o 935 do Edifício Turpitz, o endereço dado na carta de Edna Cutler para Roberta Fenn, era apenas um endereço postal. Era um grande escritório onde uma rapariga, mediante um determinado pagamento, alugava espaço para pequenos negócios, servia de estenografa e fazia seguir para o seu verdadeiro destino a correspondência que era enviada para lá em nome de qualquer cliente. Faria chegar todo o correio às mãos de Edna Cutler, mas o atual endereço da sua cliente era confidencial, absolutamente confidencial. Disse ao homem de Little Rock que a agência ia enviar-lhe um cheque e depois procurei na lista um escritório de trabalhos datilográficos. Dirigi-me ao que me ficava mais próximo onde fui atendido por uma rapariga.

- Tem copiógrafo para me tirar mil exemplares de uma circular?

-Tenho, sim.

- Tem uma estenografa a quem eu possa ditar a carta?

A rapariga sorriu e pegou num lápis.

- A gerência transforma-se rapidamente em empregada - disse ela. - Pode começar quando quiser.

- Então começo já. Vamos!

Comecei a ditar:

Ex.ma Senhora:

Uma pessoa muito sua amiga diz-me que V. Ex.a tem umas pernas maravilhosas. V. Ex.a deseja que elas pareçam bonitas e o mesmo desejamos nós. Não pode V. Ex.a obter as bonitas meias que comprava antigamente, isto é, se tentar adquiri-las nos Estados Unidos. É, contudo, muito possível que possamos chegar a um acordo para que lhe sejam fornecidas excelentes meias de seda enquanto durar a guerra. Quando se deu o ataque a Pearl Harbour, um barco japonês entrou num porto mexicano e nós conseguimos adquirir toda a sua carga de meias de seda que se destinava aos Estados Unidos. Estas meias poderiam ser enviadas para V. Ex.a, sem prévio pagamento, da Cidade do México. Tudo quanto V. Ex.a tem depois a fazer é abrir a encomenda, calçar as meias e usá-las durante um mês. Se no fim desse prazo estiver completamente satisfeita enviar-nos-á um cheque da mesma importância a que estava habituada a pagar as suas meias há um ano. Se, pelo contrário, alguma delas apresentar malhas caídas ou qualquer outro defeito de fabrico, basta-lhe devolver-nos a meia ou meias para que lancemos a devida importância a seu crédito. Pedimos-lhe que preencha o impresso junto com o seu nome, morada, tamanho e cor das meias que deseja, que o meta no sobrescrito que juntamos, já devidamente endereçado e estampilhado e que no-lo remeta. Este impresso não implica qualquer obrigatoriedade.

- É tudo? - perguntou a rapariga.

- É tudo - respondi. - Resta acrescentar o nome da firma que é Silkwear Importation Company. Tenho de arranjar também os impressos em branco para as clientes preencherem.

- Quantas cópias deseja?

- Mil. Logo que tenha feito o stencil tire apenas uma ou duas cópias, pois gostava de ver como ficam, antes de tirar as mil.

Ela levantou a cabeça, olhando-me firme nos olhos.

- Muito bem - disse ela. - Que vigarice é esta?

Limitei-me a olhar para ela, sem responder.

- Ouça - prosseguiu, já antes de Pearl Harbour estava proibida a importação de sedas. Outra coisa: quando é que as meias já alguma vez vieram do Japão?

Sorri.

- Se as pessoas que receberem essas cartas forem tão espertas como você, não tenho sorte nenhuma. Pertenço a uma agência de detectives. Isto é uma armadilha. Estou a procurar descobrir alguém que se esconde por detrás de um endereço postal.

Ela analisou-me dos pés à cabeça. Vi que a surpresa que lhe perpassava no olhar intrigado se transformava em respeito.

- Muito bem - afirmou. - Quase que me ia levando também no embrulho. Com que então é um detective?

- Sim, e não diga que o não pareço. Já estou cansado de ouvir isso.

- É uma bela carta comercial - declarou ela. – Pode orgulhar-se disso. Quantos exemplares precisa realmente?

- Apenas dois. Não se aperfeiçoe muito. Faça com que pareçam ser as duas últimas cópias de uma grande tiragem. Pode endereçar os sobrescritos. O primeiro é para Edna Cutler, Edifício Turpitz 935, Little Rock, Arkansas, e o outro para Bertha Louise Cool, Edifício Drexel, Los Angeles.

Ela deu uma gargalhada, fez sair a máquina de um compartimento do lado direito da secretária e anunciou:

- É um riquíssimo truque. Pode voltar daqui a meia hora que estará tudo pronto.

Meteu a folha de papel stencil na máquina e começou a bater nas teclas. Disse-lhe que voltaria, saí, comprei um jornal da meia tarde e fui sentar-me ao balcão de um restaurante para ler o relato do assassínio. Os jornais ainda não traziam todos os pormenores, mas continham o suficiente para preencher as minhas lacunas. Paul G. Nostrander, um jovem advogado muito popular, tinha sido encontrado morto no apartamento de Roberta Fenn. Esta havia desaparecido. Empregada como secretária da gerência num dos bancos da cidade, não comparecera ao serviço. Um exame ao seu apartamento convencera a polícia de que, se ela fugira, não havia levado consigo nem vestuário nem quaisquer objectos de toilette: cremes faciais, escova de dentes, etc. Não levara nem a própria carteira. Esta estava em cima do toucador, por abrir. Além de dinheiro, continha as chaves de que Roberta necessitava. Por tais motivos a polícia era de opinião que ela estava absolutamente sem fundos e sem meios para voltar para casa. Esperavam encontrar o seu cadáver nas próximas vinte e quatro horas ou que ela se apresentaria voluntariamente à polícia. Esta perfilhava duas teorias. A primeira era que o assassino, depois de matar o jovem advogado, forçara Roberta a acompanhá-lo sob a ameaça de uma arma. A segunda era que o crime havia tido lugar durante a ausência de Miss Fenn e que ela, ao voltar, tinha encontrado o cadáver mais ou menos na mesma posição em que a polícia o vira mais tarde. Tomada de pânico, resolvera fugir. Havia, é claro, uma terceira possibilidade: que fora a própria Roberta Fenn quem puxara o gatilho da arma. Aparentemente a polícia inclinava-se mais a favor da primeira teoria. A polícia procurava também um homem novo e bem vestido que no dia anterior esperara por Roberta Fenn à hora do encerramento do banco. Havia testemunhas que o haviam visto entrar com ela num táxi. Seguia-se a descrição do indivíduo; altura: um metro e sessenta e cinco centímetros; peso: sessenta quilos; cabelo castanho, encaracolado; olhos cinzentos e brilhantes; idade: vinte e nove anos; fato cinzento; sapatos castanhos e brancos, tipo sport.

Nostrander trabalhava como advogado há cinco anos. Tinha trinta e três anos de idade e, entre os colegas, era notado pela argúcia e agilidade mental com que conduzia os seus casos. Era solteiro e órfão de pai e mãe, mas tinha um irmão mais velho, de trinta e sete anos, que fazia parte da gerência de uma companhia distribuidora de bebidas. Segundo o que se apurara, o assassinado não tinha inimigos e toda a gente das suas relações ficara chocada com o acontecimento. O crime fora cometido com uma arma de calibre 38. Apenas fora disparado um tiro, mas esse tinha sido suficiente. Os médicos afirmavam que a morte fora quase instantânea. A posição do cadáver e a distância da mão deste até à arma encontrada no soalho tornavam quase impossível considerar a morte devida a outro qualquer motivo além do assassínio. A polícia investigava ainda a teoria de que a morte poderia ter sido devida a qualquer estranho pacto suicida e que Roberta Fenn ficara demasiadamente nervosa ou aterrorizada para levar a cabo a sua parte no tratado e, por isso, resolvera desaparecer. A polícia fixava a hora do crime às duas e trinta e dois minutos exactas. Em virtude de a arma ter sido envolvida numa almofada, a detonação fora abafada. Só uma pessoa, pelo que se apurara até essa altura, ouvira o tiro. Essa pessoa, Marilyn Winton, empregada no Jack-O’-Lantern, regressava a casa. O seu apartamento ficava mesmo em frente do de Miss Fenn. Fora no momento exacto em que abria a porta da rua que ouvira aquilo que lhe parecera ser um tiro. Dois amigos, que a haviam acompanhado a casa, estavam à espera num carro para verem se não haveria qualquer novidade. Miss Winton voltara imediatamente até junto deles para lhes perguntar se tinham também ouvido um tiro. Nenhum deles ouvira. A polícia ligava bastante importância a este facto, pois indicava que a almofada havia abafado suficientemente a detonação para esta não ser ouvida acima do som do motor do carro trabalhando ao ralenti.Os amigos haviam convencido Miss Winton que o que ela ouvira fora uma porta a fechar-se. Ela subira então para o seu apartamento mas apenas meia convencida do que o que ouvira não fora um tiro e, por isso, olhara para o relógio para ver as horas exactas. Eram precisamente duas e trinta e sete. Calculara então que não se haviam ainda passado cinco minutos depois que ouvira o tiro. Não havia qualquer referência no jornal sobre a forma como o crime havia sido descoberto. As notícias sobre o meu misterioso telefonema haviam sido deliberadamente suprimidas, segundo parecia.

Li as notícias, fumei um cigarro e voltei à agência de serviços dactilográficos. Ethel Wells tinha tirado um exemplar da carta para me mostrar. Li-a.

- Acha que dará resultado? - perguntei-lhe.

- A mim soou-me como um toque de clarim, como deve ter notado.

- Notei.

Ela deu uma gargalhada.

- O senhor era todo olhos enquanto ia ditando.

- Preciso de um endereço para a Silkwear Importation Company.

- Por três dólares pode utilizar este escritório como endereço postal. Pode mandar escrever para aqui quantas cartas desejar.

- Posso confiar na discrição?

- Isso é, segundo suponho, uma maneira delicada de me perguntar se serei capaz de fechar a boca se aparecer por aí alguém a fazer perguntas?

- Se for um inspector dos correios, o que respondo?

- Conte-lhe a verdade.

- Qual verdade?

- Que não sabe o meu nome nem nada a meu respeito.

Ela pensou durante alguns segundos, depois retorquiu:

- É realmente uma idéia. Como se chama?

- Nos seus livros chamar-me-ei Dinheiro Entrado.

 

                   Uma confusão dos diabos

Voltei para o hotel, subi para o quarto, abri um novo maço de cigarros, sentei-me junto da janela e fiz um pequeno trabalho mental. Bertha Cool estava em qualquer parte entre Nova Orleães e Los Angeles. Elsie Brand devia estar a dirigir o escritório. Parecia ser uma boa ocasião para obter a informação de que necessitava. Peguei no telefone e pedi uma chamada para o nosso escritório. A ligação levou cinco minutos a fazer. Finalmente ouvi a voz de Elsie Brand, brusca e apressada a responder:

- Está?

- Olá, Elsie. Daqui fala Donald.

O som da sua voz tornou-se duro, cortante.

- Olá, Donald. A telefonista disse que era uma chamada de Nova Orleães e eu pensei que era Bertha. Há novidades?

- É isso mesmo que lhe quero perguntar.

- Como assim?

- Bertha disse-me que estava a compartilhar num trabalho de guerra.

- Você não sabia?

- Não. Não antes de ela me dizer.

- Está a trabalhar nisso há cerca de seis semanas. Pensei que você sabia.

- Não sabia. Qual é a idéia?

Ela deu uma gargalhada e declarou pouco à vontade:

- Julgo que deseja ganhar algum dinheiro.

- Ouça, Elsie, sou sócio de Bertha há tempo suficiente para me aborrecer ser obrigado a pagar uma chamada interurbana só para a ouvir dizer coisas vagas. Qual é a idéia?

- Pergunte a ela, Donald.

- Vou irritar-me se a conversa continua neste tom, preveni-a.

- Utilize os miolos - disse ela subitamente. - Segundo parece você é esperto. Por que motivo Bertha desejaria comparticipar num trabalho de guerra? O que faria você se estivesse na situação de Bertha? Tire você mesmo as conclusões e deixe de me fazer perguntas. Sou apenas uma empregada numa casa de que você é apenas um dos sócios.

- Fez isso para poder isentar-me do serviço militar?

Houve um silêncio do outro lado da linha.

- Fez?

- O tempo aqui está magnífico - declarou Elsie, se bem que não devesse informá-lo disto, pois trata-se de um segredo militar.

- Realmente?

- Sem dúvida. Suprimindo toda e qualquer informação a respeito do tempo, estamos a dar um grande passo para ganharmos a guerra. Uma das coisas de que realmente se nota a falta é de notícias impressas. A Câmara do Comércio de Los Angeles costumava...

- Três minutos - informou a telefonista.

- Você ganhou - disse eu a Elsie. - Adeus.

- Adeus, Donald. Felicidades.

Ouvi-a pousar o auscultador no descanso. Desliguei também. Recostei-me, apoiei os pés numa cadeira e pus-me a reflectir. O telefone tocou. Peguei no auscultador, disse:

- Está?

E depois ouvi a voz de um homem falando cautelosamente:

- É o Sr. Lam?

- Sou.

- O senhor pertence a uma agência de detectives de Los Angeles, é um membro da firma Cool & Lam?

- Exactamente.

- Preciso de falar consigo.

- Onde está?

- Cá em baixo.

- Onde é isso?

- O senhor já me conhece - retorquiu.

- A sua voz é-me vagamente familiar, mas não consigo ligá-la à pessoa...

- Ligará quando me vir.

Ri alto e respondi cordialmente:

- Bem, suba.

Pus o telefone no descanso, peguei no chapéu, sobretudo e pasta, verifiquei que tinha a chave do quarto no bolso, fechei a porta com um puxão e corri ao longo do corredor. Abrandei a corrida ao chegar junto da caixa dos elevadores, passei por estes, meti-me por outro corredor lateral e fiquei à espera. Ouvi a porta de um elevador abrir-se, esperei alguns segundos e avancei cuidadosamente a cabeça para além do canto do corredor. Havia apenas um homem. Caminhava apressadamente. Havia qualquer coisa de familiar na maneira como levantava os ombros e isso foi uma surpresa. Teria apostado dez contra um que a chamada fora feita pelos “chuis” para terem a certeza que me encontrariam no quarto. O facto de este homem vir só e de eu realmente o conhecer foi uma agradável surpresa, mas não avancei pelo corredor antes de o reconhecer definitivamente e isso só se verificou quando ele voltou para a esquerda. Era Marco Cutler. Cutler batia à minha porta pela segunda vez quando me aproximei dele.

- Boa tarde, Sr. Cutler.

Ele estremeceu.

- Pensei que estivesse no seu quarto.

- Eu! Acabo de chegar agora mesmo!

Ele olhou para a pasta, o chapéu, o sobretudo.

- Juraria ter reconhecido a sua voz - declarou. - fiz agora mesmo uma chamada para o seu quarto.

- Talvez se tenha enganado no número.

- Não. Disse à telefonista distintamente o número que pretendia.

Afastei-me um pouco da porta e falei em voz baixa.

- E alguém respondeu à chamada?

Ele aquiesceu com um gesto de cabeça e eu vi o seu rosto assumir uma expressão apreensiva.

- Isto não deve ser tão simples como à primeira vista parece - declarei. - Peguei-lhe num braço e afastámo-nos da porta. - Vamos falar com o detective da casa.

-Quer dizer... Pensa que está lá dentro um ladrão?

- Pode ser a polícia a passar uma busca ao quarto - respondi. - Não disse o seu nome, pois não?

Desta feita pude ver tremer-lhe o pequeno músculo do canto do olho esquerdo.

- Não... Afastemo-nos daqui.

- Acho que é o melhor a fazer - concordei. - Vamos andando. Começámos a andar.

- Realmente estranhei a sua voz - declarou.

- Como conseguiu localizar-me? - perguntei.

- É uma história bastante esquisita.

- Ouçamo-la.

- Fui ter com a dona do apartamento - começou. - Disse-lhe que quando vocês se despedissem, eu gostaria de ir morar para lá. Afirmei-lhe que não pretendia que vos pusesse fora, mas que pagaria o dobro da renda que ela está a receber presentemente. Segundo compreendi você só queria o apartamento durante uma semana e...

- Continue. Não precisa de desculpar-se.

- Expliquei à senhoria que minha mulher, Edna, tinha vivido no apartamento. Ela respondeu que Edna residira lá durante alguns meses há uns três anos, que iria ver o que se poderia arranjar e me comunicaria a data exacta. Tirei o retrato de Edna da algibeira, mostrei-lho e pedi-lhe que o identificasse. Ela declarou que este não era o da mulher que lá residira. Depois tornou-se desconfiada e quis saber tudo. No decurso da conversação soube que você havia aparecido em cena uns dias antes e mostrara-lhe o retrato de uma mulher que realmente vivera no apartamento e que ela não tivera qualquer dúvida em identificar. Muito naturalmente isso intrigou-me e aborreceu-me. Compreenderá os motivos. Subi imediatamente até ao apartamento, tentando avistar-me consigo. Você não estava. Eu sentia-me excitado. Continuei a bater à porta. Um homem disse-me para me ir embora e não voltar a aparecer e eu retorqui-lhe que desejava avistar-me com ele imediatamente por um caso de vida ou morte. Finalmente o homem resolveu-se a abrir a porta, a resmungar. Eu esperava lá encontrá-lo a si ou àquela robusta matrona. Este homem foi uma surpresa.

- O que lhe contou?

- Disse-lhe que minha mulher havia ocupado aquele apartamento há uns três anos e que andava a procurar certificar-me disso para provar que uns certos papéis lhe haviam sido apresentados naquele mesmo lugar. Contei-lhe que havia falado consigo e que desejava voltar a encontrá-lo.

-O que respondeu ele?

- Que pensava poder encontrá-lo no hotel, pois você não lhe dissera nada em contrário, mas que se eu desejava investigar qualquer coisa você era realmente um óptimo detective. Creio que ele pretendia arranjar-lhe trabalho. Rendeu-lhe os mais rasgados elogios. Quanto mais pensava no caso, mais esquisito ele me parecia. Comecei a desconfiar que você pretendia... Bem...

- Pretendia esconder qualquer coisa? - perguntei.

- Sim.

- E então?

- Vim ter consigo.

- É tudo?

- Não acha que é suficiente?

O ascensor parou.

- Provavelmente não - repliquei. - Falaremos na sala de espera.

- Isso não será um lugar demasiadamente concorrido?

- Então porque vamos conversar para lá?

- Porque é muito concorrido.

- E a respeito da pessoa que se encontra no seu quarto?

- Vamos falar com o detective da casa.

Cutler não concordava muito com a idéia de falarmos ao detective da casa, mas ficou à espera enquanto eu comunicava ao agente que um amigo meu havia telefonado para o meu quarto, de onde um estranho respondera e que eu pensava que alguém poderia ter-se lá introduzido com o fim de roubar. Entreguei-lhe a chave e pedi-lhe para ir lá acima dar uma vista de olhos. Depois voltei-me para Cutler:

- Muito bem, agora podemos conversar.

Cutler estava atemorizado.

- Ouça, Lam, suponha que era a polícia?

- A pessoa que está no meu quarto?

- Sim.

- Se é a polícia, está tudo muito bem. A polícia de vez em quando torna-se desconfiada a respeito dos detectives particulares e deseja certificar-se de qualquer coisa. São coisas a que já estou habituado. Temos que aprender a aceitar isto, e sem rancor.

- Mas, se são agentes da polícia, virão aqui abaixo buscá-lo para lhe fazerem um interrogatório, encontram-me a falar consigo e...

Interrompi-o com uma gargalhada.

- Isso mostra bem o quanto você desconhece este jogo.

- O que quer dizer?

- Se forem polícias - expliquei - dirão ao detective da casa para se vir embora e comunicar-me que não está ninguém no quarto. Ele descerá até aqui com um ar complacente e dirá que tudo está em ordem.

- E o que fará a polícia?

- Desaparecerá temporariamente da cena. Eles não gostam de ser apanhados a revistar o quarto de uma pessoa sem estarem munidos de um mandato de busca.

Cutler pareceu apreensivo.

- Desejaria acreditar em si.

- Pode acreditar. Já passei por esta mesma situação mais que uma vez. Acontece a quem anda nesta profissão.

Ele pensou um pouco.

- Não quero que a polícia meta o nariz neste assunto - declarou. - É um caso particular que quero esclarecer à minha maneira.

- Muito louvável a sua atitude.

- Mas se a polícia começar a fazer-me perguntas, certas coisas que eu não desejo tornar públicas podem vir ao seu conhecimento.

- Por exemplo?

- Por exemplo? Aquele divórcio.

- Ora - retorqui, essa acção de divórcio seguiu os trâmites legais. O processo deve estar devidamente arquivado e...

- Sei isso... Mas...

- Continue. Diga o resto.

- Minha mulher.

- O que há com ela?

- Não compreende?

- Não. Julguei ter-me dito que não sabia onde ela se encontrava.

- Não me refiro a essa mulher.

- Oh, oh! Casou-se novamente, hein?

- Sim.

- Isso coloca-o sob a alçada da lei, não é?

- Sob a alçada da lei não é bem a expressão.

- Parece interessante - declarei. - Conte o resto.

- Edna abandonou-me e veio para Nova Orleães. Movi-lhe um processo de divórcio. Estas coisas levam o seu tempo. O amor não espera. Encontrei a minha actual mulher. Fomos até ao México e casámos. Devíamos ter esperado pela decisão do tribunal. É uma situação dos diabos.

- A sua actual mulher sabe?

- Não, e deitaria a casa abaixo se suspeitasse de alguma coisa. Se Goldring entregou os papéis a uma mulher que não era ela... Bem, você sabe alguma coisa acerca do caso. O que é?

- Nada que o possa ajudar.

- Pagar-lhe-ia o que quisesse se descobrisse qualquer coisa que pudesse ajudar-me.

- Lamento.

Marco Cutler levantou-se.

- Recorde bem isto: se no decurso das investigações a que está a proceder encontrar qualquer coisa que possa ajudar-me, serei generoso.

- Se a agência Cool & Lam fizer qualquer coisa em seu favor, não precisa de ser generoso. Receberá uma factura de bom tamanho.

Ele deu uma risada, endireitou-se e disse:

- Muito bem, oxalá que isso aconteça.

Apertámos as mãos e ele saiu do hotel.

 

                   Fria, mas precisa

O Bar Jack-O’-Lantern era tão típico como uma dúzia de outros similares que existiam no Bairro Francês. Havia um espectáculo de variedades, uma dúzia de raparigas para entreterem a clientela e mesas acumuladas sobre toda a superfície de três salas que se haviam transformado numa só devido ao facto de as portas que davam de umas para as outras haverem sido retiradas. Era cedo ainda e havia pouca gente. Apenas alguns soldados, marinheiros e quatro ou cinco respeitáveis casais com todo o aspecto de turistas, se encontravam sentados aqui e além.

Escolhi uma mesa, sentei-me e pedi uma coca-cola com rum. Quando a bebida chegou olhei para a sua negra profundidade com uma lúgubre expressão de abandono. Passados uns momentos aproximou-se uma rapariga.

- Olá, rosto triste!

Fiz aparecer um sorriso.

- Olá, olhos brilhantes!

- Assim é melhor. Dá a impressão de que precisa de ser acarinhado.

- Preciso mesmo.

Aproximou-se mais e ficou de pé, com os cotovelos apoiados na cadeira oposta à minha, aguardando o meu convite. Não esperava que eu me levantasse e ficou surpreendida quando o fiz.

- Toma qualquer coisa? - perguntei.

- Com todo o prazer.

Olhou em volta enquanto eu lhe empurrava a cadeira, esperando que as outras raparigas notassem a sua sorte. Um criado apareceu, parecendo materializar-se da atmosfera.

- Uísque com água - pediu ela.

- E para o senhor? - perguntou ele.

- Já estou servido.

- Pode tomar duas bebidas por um só dólar quando tiver uma rapariga sentada à sua mesa - disse ele. – e uma bebida só custa-lhe a mesma coisa.

Dei-lhe um dólar e um quarto e disse:

- Dê a minha bebida à pequena. Fique com o quarto para si e não me torne a aparecer durante um bom bocado.

Ele sorriu, pegou no dinheiro e trouxe um copo cheio de um líquido cor de âmbar que colocou em frente da rapariga. Ela nem mesmo se deu ao incómodo de fingir, pois bebeu o líquido de um trago e por fim colocou o copo vazio bem à vista para que este fosse um testemunho eloqüente de que estavam a esquecê-la. Peguei no copo antes que ela pudesse fazer um gesto para o evitar e cheirei-o.

- Por que motivo é que vocês, os rapazinhos sabidos, julgam que mostram muita esperteza quando fazem isso? - perguntou ela numa voz irritada. - É claro que é chá frio. O que esperava que fosse?

- Chá frio - respondi.

- Bem, nesse caso não ficou desapontado. Se o meu estômago não pode agüentar bebidas você não deve insistir.

- Não estou a insistir.

- A maioria insiste.

- Eu não.

Meti a mão na algibeira, tirei uma nota de cinco dólares, mostrei-lha, depois dobrei-a de forma a conservá-la escondida na mão e estendi o braço por cima da mesa.

- Marilyn está cá esta noite? - perguntei.

- Está. Marilyn é aquela rapariga que está de pé encostada ao piano. É a nossa chefe. Dirige os nossos movimentos e vigia-nos.

- Foi ela que a mandou vir ter comigo?

- Foi.

- O que aconteceria se nos zangássemos?

- Não nos zangamos. Para haver uma zaragata é preciso que haja pelo menos duas pessoas. Enquanto você estiver a pagar bebidas, eu não me zangarei. Quando você deixar de pagar bebidas já cá não estarei para me zangar.

- Supondo que não nos entendemos?

- Nesse caso você não me pagaria bebidas, pois não?

- Não.

Ela sorriu.

- Bem, nesse caso eu não estaria aqui.

- Marilyn mandaria que você insistisse?

- Não. Se você continuasse cá, ela mandaria qualquer outra rapariga tentar. Depois, se você não lhe desse troco, deixá-lo-ia ficar sozinho com a sua neura, no caso de não haver muitos clientes. Se a casa se enchesse e precisassem da sua mesa, ver-se-iam livres de si de qualquer forma. Era isto o que queria saber?

A sua mão aproximou-se da minha.

- De uma maneira geral, era - respondi. – Como se chama?

A sua mão hesitou.

- Rosalind. Que mais deseja?

- Como conseguiria você que Marilyn viesse sentar-se a esta mesa?

Os seus olhos semicerraram-se. Olhou em volta da sala e declarou:

- Creio que poderei conseguir isso.

- Como?

- Digo-lhe que você gosta do estilo dela e que, em vez de me dar atenção, não desprega os olhos dela e que poderia arranjar uma boa comissão nas bebidas se viesse para o seu lado. Ela iria na conversa.

- Acha que poderia fazer isso?

- Tento.

Os seus dedos tocaram os meus. A nota de cinco dólares mudou de mão.

- Mais alguma coisa? - perguntou.

- Que tal é Marilyn?

- É boa rapariga, mas nestas últimas semanas tem abusado um pouco da paródia. Tem-se deixado arrastar pelo coração e está a sofrer-lhe as conseqüências, pois não anda lá muito bem de saúde. Uma rapariga da nossa condição não deve render-se a ninguém.

- Qual é a melhor maneira de actuar com ela? Qual é a forma de melhor a atrair?

- À Marilyn?

- Sim.

A rapariga sorriu.

- É muito fácil. Pague-lhe bebidas e passe-lhe uns dólares para a mão de forma que ninguém veja.

- E o rapaz dela? Esse camarada não precisa de pagar-lhe bebidas, ou precisa?

- Não. Um homem que lhe paga bebidas, para ela é mais um pato... Ouça, importa-se que eu lhe diga uma coisa?

- Diga lá.

- Vou dar-lhe um conselho. Você parece-me ser dos fixes. Não brinque com Marilyn.

- Preciso obter dela uma coisa.

- Não obterá.

- Refiro-me a informações.

- Oh.

Seguiu-se um pequeno silêncio. Vi o criado a olhar para mim e fiz-lhe sinal para que se aproximasse. Dei-lhe um dólar e um quarto e disse:

- Outra bebida para a senhora.

- Não devia ter feito isso - disse a rapariga logo que o criado se retirou.

- Porque não?

- Porque Marilyn não irá na conversa se verificar que você me pagou várias bebidas. Acharia que eu estou a desempenhar perfeitamente o papel que me cabe e que não iria perder por gosto um homem que me estava a dar lucros.

- Mercenária, hein? - perguntei com um sorriso.

- Claro que sou mercenária. O que pensava você que isto era? Amor à primeira vista?

Dei uma gargalhada.

- Às vezes isso acontece - disse ela com ar pensativo. - Você é um bom rapazinho. Vê-se logo, trata-nos como senhoras... Marilyn está a voltar-se. Comece a olhar para ela. Vou fingir que estou aborrecida.

Olhei para Marilyn. Era alta, elegante, com um cabelo muito escuro, olhos profundos e negros e uma boca pintada de forma a parecer um clarão de vermelho no meio do seu rosto moreno. Vi-a começar a voltar à primitiva posição, depois parar subitamente ao ver um sinal quase imperceptível que lhe fez a minha companheira de mesa. Por um momento olhou-me de frente e os seus olhos negros e febris cravaram-se nos meus; depois voltou-se, ficando parada de forma a eu poder observar-lhe as longas curvas por debaixo de um vestido encarnado que se colava ao seu corpo como se fosse seda molhada.

- Hoje está pouco bem disposta - disse Rosalind. - Foi testemunha no caso daquele assassínio.

- No caso do advogado que foi morto?

- Sim.

- Diabo! O que sabia ela do caso?

- Ouviu o tiro... Exactamente na altura em que estava a abrir a porta de casa.

- E o facto de ter ouvido o tiro que causou a morte a uma pessoa deixou-a transtornada?

- A quem? À Marilyn? Vê-se bem que a não conhece. Ficou transtornada porque os polícias a acordaram para lhe fazerem perguntas, fazendo-a perder o bom aspecto com que fica depois de dormir bem.

- Ela bebe?

A rapariga fitou-me de frente.

- Você é um detective, não é?

Franzi os sobrolhos num gesto de surpresa.

- Eu, um detective?

- Sim, é. Quer falar com ela por causa daquele tiro, não é?

- Já tenho sido acusado de muita coisa na minha vida - retorqui, mas creio que é a primeira vez que alguém me examina bem e diz que eu pareço um detective.

- Seja como for, é. Muito bem, vou dar-lhe uma informação porque você é dos bons. Marilyn Winton é fria como um frigorífico, mas é precisa. Se ela diz que o tiro foi disparado às duas e trinta é porque foi disparado mesmo a essa hora e você não precisa andar a perder o seu tempo por causa disso.

- No entanto, você conseguirá fazer que ela venha até aqui para que possa falar-lhe?

- Hum, hum. E isso já faz com que me sinta melhor.

- O quê?

- O facto de você ser detective. Pensei que realmente estivesse atraído por ela.

- Fale-me no rapaz dela. O que fez ele para a conquistar?

- Quer acredite ou não, foi por se mostrar indiferente. Logo que a sentiu interessada, mostrou indiferença em saber se ela gostava dele ou não. Essa atitude pô-la em sobressalto. Os homens haviam-se sempre mostrado de uma maneira absolutamente oposta, ameaçando suicidar-se se ela não se casasse com eles e o restante palavrório do género.

- Você falou com ela?

- Falei.

- Acerca do que aconteceu?

- Sim.

- Pensa que ela diz a verdade?

- Penso. Ouviu o tiro e olhou para o relógio na altura exacta em que entrou no apartamento.

- E ela estava com a mente desanuviada de álcool?

- Está sempre fria e desanuviada.

- Creio que você me disse tudo quanto precisava saber - declarei sorridente. - Desta forma, Rosalind, não vou perder o meu tempo com Marilyn.

- Já lhe fiz sinal que você estava interessado nela e Marilyn está apenas a fazer tempo antes de se aproximar. Já reparou na maneira como ela se volta para que você possa examinar-lhe as formas? Dentro de minutos olhará para si por cima do ombro, sorrindo. Copiou essa pose de um calendário artístico.

- É uma pena que ela esteja a esbanjar os seus encantos. Diga-lhe que mudei de idéias e que me convenci que ela tem mau hálito ou outra coisa no género. Boa noite!

- Tornarei a vê-lo?

- É essa a pergunta habitual que vocês fazem aos clientes?

Ela encarou-me de frente.

- Claro que é - respondeu. - O que é que você pensava? Que eu pretendia casar-me consigo? Se é um detective, não seja criança.

- Obrigado. Tornaremos a ver-nos sem dúvida. Entretanto, vou-me pôr a andar.

- Para onde vai?

- Para aí. Andar. Trabalhar em coisas sem importância. Pormenores.

- A vida é assim mesmo. Tanto para si como para mim e para toda a gente.

- Para si também?

- Também.

- Como assim?

Ela fez um gesto vago.

- Fui uma parva - declarou. - É preciso ganhar a vida. Tenho um filho.

- Pensando bem - repliquei - creio que as informações que me deu valem bem dez dólares. Tome os cinco que faltam. A agência pode pagar o valor das coisas.

- Não está a brincar? Tem mesmo uma folha para despesas?

- Uma bela folha de despesas. Além disso, o meu patrão é um mãos rotas.

A mão dela apertou a minha.

- Que sorte ter um patrão assim! - A nota de cinco dólares deslizou-lhe para a mão. Ela acompanhou-me até à porta. - Gosto de você - declarou. - Gostaria realmente que você voltasse cá.

Fiz um gesto de aquiescência.

- Digo esta frase a todos os clientes – explicou ela, mas desta vez é sinceramente.

Dei-lhe uma pancadinha no ombro e saí. Ela ficou à porta a ver-me descer a rua. Apanhei um táxi que passava e mandei seguir para o aeroporto. Era apenas o velho trabalho rotineiro de verificar tudo, mas quem quiser ser um bom detective não pode desprezar o mínimo pormenor. As listas de passageiros mostravam que Emory G. Hale viajara no avião das dez e trinta com destino a Nova Iorque e que regressara no avião que chegara às oito e trinta. Tomei um táxi para regressar ao hotel. Estava mesmo a precisar de uma boa soneca.

 

                   Um revólver talvez perigoso

Já passava do meio-dia quando cheguei ao apartamento de Hale. Ele não estava. Fui almoçar ao Restaurante Bourbon e voltei novamente em busca de Hale. Sem resultado. Desci a Avenida Charles até à casa onde Roberta vivera e estudei o local o melhor que pude enquanto ia passando. Depois voltei para o hotel e escrevi um relatório destinado aos arquivos da agência, tendo o cuidado de discriminar todas as despesas.

Voltei ao apartamento por volta das quatro horas. Hale estava. Encontrava-se de excelente disposição.

- Entre, entre, Lam. Entre e sente-se. Bem, meu rapaz, parece-me que lhe prestei um bom serviço. Arranjei-lhe um novo cliente.

- Ah, sim?

- Sim. Um homem veio aqui perguntar por si. Dei-lhe as melhores referências suas, umas óptimas referências.

- Obrigado.

Ficámos sentados a olhar um para o outro durante uns momentos.

- Há outra coisa muito interessante - disse ele finalmente.

- Tenho andado a revistar o apartamento.

- À procura de quê?

- De qualquer coisa que pudesse dar-nos uma pista.

- Ela deixou esta casa há mais de três anos.

- Bem sei, mas confiei na sorte. Às vezes descobrem-se coisas que se não esperam... Cartas ou coisas no género.

- Isso é verdade.

- Já encontrei uma boa quantidade de coisas: cartas que estavam por baixo dos papéis que estão a forrar as gavetas e, naquela secretária havia uma quantidade enorme de correspondência que tinha caído para o espaço vazio que existe por detrás da gaveta. Ainda não tirei tudo quanto lá se encontra. Tornei a fechar a gaveta quando ouvi os seus passos na escada. Não sabia quem era. Aproximou-se da secretária e tirou-lhe a gaveta superior.

- Por acaso não traz consigo uma lanterna eléctrica? - perguntou.

- Não.

- Já estive a procurar com a ajuda de um fósforo, mas é um pouco arriscado. Pode provocar-se um fogo. Riscou um fósforo, protegeu a chama com a mão durante uns momentos e depois meteu o braço na abertura de onde havia retirado a gaveta.

- Dê uma vista de olhos - pediu ele.

No fundo da secretária, no espaço existente atrás das gavetas vi uma pilha de papéis; depois o fósforo apagou-se.

- Não podemos alcançá-los se tirarmos as gavetas de baixo? - perguntei.

- Não. Já experimentei. Há uma tábua por detrás das gavetas de baixo. Está a ver?

Tirou uma das gavetas de baixo. Havia ao fundo, a tapar a abertura, uma sólida tábua. Esse facto fazia com que houvesse um espaço de quinze a vinte centímetros entre a parte posterior das gavetas e a retaguarda da secretária.

- Observe como é - pediu Hale. - A gaveta de cima é mais comprida, de forma a tapar completamente a abertura. As gavetas de baixo são mais curtas uns quinze ou vinte centímetros. Por esse motivo há um espaço vazio desse tamanho por detrás delas.

- Não deve haver a mínima probabilidade de que qualquer desses papéis diga respeito à rapariga que procuramos - disse eu, já com a curiosidade desperta. – No entanto, já que começámos vamos acabar.

- De que maneira?

-Tiramos tudo quanto lá está dentro e depois viramo-la de baixo para cima.

Hale não respondeu, mas começou a tirar as gavetas e todas as coisas que se encontravam em cima da secretária.

- Está pronto? - perguntou.

Fiz um gesto afirmativo. Pegámos na secretária um de cada lado e afastámo-la da parede.

- Devo confessar-lhe, Lam, que eu também sou uma espécie de detective à minha maneira. Interessa-me a natureza humana e não há nada que me dê tanto prazer como esquadrinhar os cantos mais inesperados do espírito humano. Gosto de ler cartas antigas. Uma vez encontrei uma mala cheia de cartas que se relacionavam com um processo de herança que tinha entre mãos. Eram a coisa mais interessante que vi em toda a minha vida. Baixe esse lado. Agora! Aí está! Agora descanse um pouco. Bem, aquela mala cheia de cartas pertencia a uma mulher que morrera com setenta e oito anos. Tinha guardado todas as cartas que recebera. Havia lá cartas que lhe tinham escrito quando ainda era menina, outras quando era cortejada. A mais interessante colecção que os meus olhos já viram. E não eram aquela espécie de cartas de cumprimentos que se esperaria encontrar. Algumas delas eram piores que dinamite. Bem, agora, voltemo-la de pernas para o ar. Ouça, parece que há lá dentro qualquer coisa pesada.

Havia realmente qualquer coisa pesada dentro da secretária. Escorregou ao longo da parede posterior, embateu com estrondo contra a tampa que agora estava a servir de base e ficou entalada entre as duas tábuas. Tínhamos que arranjar outra forma.

- Levantemos a mesa e sacudamo-la - disse eu. - Pegue desse lado.

A secretária era pesada. Sacudimo-la um pouco e depois voltámos as aberturas das gavetas para o chão num ângulo favorável. Finalmente o pesado objecto caiu no soalho. Atrás dele veio uma enorme quantidade de papéis. Não podíamos ver o que era enquanto mantínhamos a secretária em peso.

- Mais uma sacudidela - sugeri.

Abanámos a mesa. Hale levantou a mão direita e bateu nas costas do móvel.

- Julgo que já não tem mais nada - declarou.

Voltámos a secretária para a sua verdadeira posição e depois observámos o monte de coisas velhas que estavam no chão: cartas antigas, recortes amarelecidos de jornais e o objecto pesado. Hale e eu ficámos com os olhos pregados neste último. Era um revólver de calibre 38. Peguei-lhe e examinei-o. Quatro câmaras do cilindro estavam cheias. As outras duas tinham cápsulas vazias. A arma tinha pontos enferrujados, mas, de uma maneira geral, estava em bom estado.

- Alguém deve ter posto essa arma na gaveta por cima de alguns papéis - deduziu Hale. - Depois, quando abriu a gaveta à pressa, a arma escorregou para trás e...

- Um momento - interrompi. - Vamos ver como é que a gaveta se aloja na abertura.

Meti a gaveta no seu alojamento e observei o espaço que ficava por detrás.

- Nada disso - declarei. - O revólver não poderia cair na abertura acidentalmente. O espaço é demasiadamente pequeno. Esta arma deve ter sido deliberadamente metida na abertura depois de a gaveta ter sido tirada. Por outras palavras, a secretária foi usada, não como arrecadação, mas sim como esconderijo.

Hale pôs-se de joelhos e acendeu dois fósforos para verificar as minhas conclusões.

- Tem razão, Lam! Você é realmente um detective! Vejamos o que as cartas têm para nos contar.

Pegámos em algumas das velhas cartas. Não significavam grande coisa: havia bilhetes acusando a recepção disto e daquilo; uma carta implorativa e desesperada de uma mulher que tentava fazer voltar para si um homem a fim de casarem; havia outra de um homem a pedir dinheiro emprestado e escrita no estilo habitual de “meu velho...” Hale teve um risinho de contentamento.

- Gosto destas coisas - disse ele, após ter acabado de ler a carta. - São uma espécie de palavras cruzadas da vida. Sendo nós absolutamente estranhos aos acontecimentos, podemos examinar o tom desta carta e observar o quanto é forçada a expressão “meu velho”. Eu não confiaria nesse homem por nada deste mundo.

- Nem eu. Vejamos a que se referem os recortes de jornais.

Hale, com um gesto, afastou-os para longe de si.

- Esses não têm significado. As cartas é que contam. Cá está outra com caligrafia de mulher. Talvez seja mais uma carta da rapariga que pretendia que o homem se casasse com ela. Gostaria de saber em que acabou a história.

Peguei nos velhos recortes, percorri-os vagarosamente com o olhar e exclamei subitamente:

- Um momento, Hale. Há aqui qualquer coisa.

- O que é?

- Roupa suja.

- O que quer dizer?

- É um assunto que pode ter relações com o revólver que encontrámos.

Hale pôs de parte a carta que estava a ler e disse excitado:

- Como assim?

- Estes recortes referem-se ao assassínio de um homem chamado Craig. Howard Chandler Craig. Solteiro, vinte e nove anos de idade, guarda-livros da Companhia Roxberry. Vejamos. Onde foi cometido o crime? Cá está um cabeçalho: Los Angeles Times, 11 de Junho, 1937.

- Isto não significará qualquer coisa? – perguntou Hale. - Suponha que o assassino fugiu e veio para aqui...

Apanhou um dos recortes e começou a lê-lo. Examinou a fotografia que ilustrava a notícia enquanto eu lia a reportagem que dava os pormenores do caso. Quando ouvi a exclamação abafada de Hale já sabia o motivo que a provocara.

- Lam! Veja isto!

- Estou a ler o que aconteceu.

- Mas aqui está a fotografia dela.

Olhei para a desbotada reprodução do retrato de Roberta Fenn. Por baixo dela havia a legenda: Roberta Fenn, estenógrafa de vinte e um anos, que seguia no automóvel ao lado de Howard Craig quando se deu o assalto.

- Lam, você sabe o que isto significa? – perguntou Hale excitado.

- Não.

- Mas sei eu!

- Não esteja assim tão certo. Eu não sei.

- Mas, é tão claro como água.

- Estudemos primeiramente estes recortes antes de chegarmos a conclusões precipitadas.

Lemos todos os recortes, passando-os de um para o outro. Hale foi o primeiro a terminar.

- E então? - perguntou ele quando acabei.

- Não implica que seja uma verdade absoluta.

- Ora! - exclamou Hale. - É um caso límpido como cristal. Ela saiu com o guarda-livros... Provavelmente é mais um caso de uma rapariga que pretendia que um homem se casasse com ela e ele recusou. Ela saiu do carro com uma desculpa qualquer, deu a volta até se colocar ao lado do condutor, atingiu Craig com dois tiros no lado esquerdo da cabeça, escondeu a arma e depois contou aquela história de um bandido mascarado que saiu detrás de uns arbustos e ordenou a Craig que levantasse os braços. Ele obedeceu. O homem limpou-lhe as algibeiras e depois ordenou a Roberta que o acompanhasse a pé pela estrada. Isso era demasiado para Craig. Pôs o carro em marcha e tentou atropelar o homem, mas o tipo desviou-se a tempo. Em seguida disparou dois tiros na cabeça de Craig quando o carro passava a seu lado. Ninguém pôs em dúvida a história da rapariga. Craig foi considerado um cavalheiro e um mártir. Uma razão por que a Polícia não pôs em dúvida a história de Roberta foi porque já houvera anteriormente duas dúzias de assaltos do mesmo género nas vizinhanças, no espaço de alguns meses. Em várias ocasiões em que a rapariga era excepcionalmente atraente, o bandido havia-lhe ordenado que saísse do carro e o acompanhasse. Tinha havido dois outros assassínios...

Hale fez uma pausa dramática, apontou para o revólver e continuou:

- Bem, aí está! Foi um crime. Ela conseguiu sair-se bem uma vez... Mas, com mil diabos, repetiu a coisa. Desta vez, porém, não se safará.

- Não seja tão categórico - retorqui. - Lá por ser uma arma de calibre 38, não significa, necessariamente que seja a mesma arma que matou Craig.

- Por que motivo a defende? - perguntou Hale desconfiado.

- Não sei. Naturalmente porque não quero que você se exponha a dissabores.

- O que quer dizer?

- Fazer declarações que acusam uma certa pessoa de um crime é, muitas vezes, uma coisa perigosa, a menos que se tenham provas suficientes para as apoiar.

Hale aquiesceu com um gesto.

- Isso é verdade - concordou. – Evidentemente que não há nada a provar que esta arma esteja relacionada com os recortes.

- Os recortes podiam ter sido colocados na gaveta, tendo depois caído para o espaço vazio. O revólver não; foi posto lá deliberadamente.

- Deixe-me pensar um pouco - pediu Hale.

- Em vez de pensar, preferia que me dissesse os motivos por que procura Roberta Fenn e quem é o seu cliente.

- Não. Isso não entra no quadro.

- Porque não?

- Porque lhe digo que não entra. Mais ainda: manterei a todo o custo a confiança que o cliente depositou em mim.

- Não acha que, agora, ele desejaria que eu estivesse mais a par dos acontecimentos?

- Não.

- É um homem, não é, o seu cliente?

- Você não me fará falar, Lam; nem o tente. Disse-lhe que pretendia que você descobrisse o paradeiro de Roberta Fenn. É tudo.

- Bem, descobri-a.

- Mas perdeu-a novamente.

- Isso é uma forma invulgar de encarar a questão.

- Descubra-a novamente - disse ele.

- Não conhece Bertha há muito tempo, pois não?

- Quer dizer a Srª. Cool?

- Sim.

- Não.

- É uma pessoa bastante difícil quando se trata de negócios.

- Por mim não há azar. Eu também sou uma pessoa difícil.

- Você contratou a agência para descobrir Roberta Fenn - repliquei. - Ofereceu um bónus se a encontrássemos dentro de um certo espaço de tempo.

- Muito bem - disse ele com impaciência. - E o que tem isso?

- Encontrámo-la - respondi.

- Mas deixaram-na desaparecer de novo.

- É esse o motivo por que lhe perguntei se conhecia Bertha Cool há muito tempo. Segundo as minhas melhores previsões, o que ela dirá é que nós fomos contratados para encontrar a rapariga.

- E que, tendo-a encontrado, o vosso contrato está terminado e a vossa firma está com direito a receber o bónus?

- Exactamente.

Esperava que ele ficasse irritado. Não ficou. Sentou-se no chão a examinar a arma e a reler os recortes dos jornais. Um sorriso repuxou-lhe os lábios, depois o sorriso transformou-se num rir cacarejado.

- Diabos me levem, Lam, ela tem razão! Eu, como advogado, não posso desmentir o que foi tratado entre nós.

Levantou o olhar para mim. Eu nada respondi.

- Foi um acordo absolutamente claro – declarou ele. - Lembro-me perfeitamente das palavras que trocámos então.

Deu uma gargalhada.

- Pensei que o melhor era lembrar-lhe - disse eu com um ar inocente.

- Bem - admitiu Hale - isso é um ponto contra mim. Não importa, vou contratar novamente a firma e conseguir-lhe mais um bónus. Gosto da vossa maneira de trabalhar. No entanto, acho que era melhor pormo-nos em contacto com a polícia a respeito desta arma.

- O que dirá à Polícia?

- Não se aflija, Lam. Contarei exactamente aquilo que se passou. Direi que estava interessado no móvel e que conto propor à senhora a sua compra. Sucedeu virar a secretária para a observar melhor e verifiquei que havia lá dentro uma coisa pesada. Sacudi o móvel e o revólver caiu juntamente com os papéis. É claro que não quero que digam que sou um coca-bichinhos que gosta de andar à procura de cartas antigas que não me dizem respeito.

- No entanto, deseja entrar em contacto com a Polícia, não é?

- Claro que desejo.

- Nesse caso a Polícia ficará a saber tanto como o senhor.

- E porque não?

- Não sei a razão por que deseja saber o paradeiro de Roberta Fenn, nem quem está interessado em descobri-la, mas suponho que há um motivo.

- Os homens de negócios não procuram saber o paradeiro de uma mulher para lhe pedir que assine uma revista qualquer - respondeu Hale.

- Talvez não esteja a compreender aonde quero chegar.

- Explique-se então.

- Suponhamos que um homem de negócios quer encontrar Roberta. Indubitavelmente pretende dela qualquer coisa, qualquer informação ou outra coisa. Temos aqui um revólver calibre trinta e oito e alguns recortes de jornais. Leve tudo à Polícia e nunca mais terá qualquer probabilidade de encontrar Roberta Fenn. A notícia da nossa descoberta será publicada em todos os jornais do país. Neste momento a Polícia pensa que Roberta pode ter sido uma segunda vítima ou que fugiu tomada de pânico. Há pouca inclinação para se pensar que foi ela quem matou Nostrander. Se você levar isto à Polícia, esta reabrirá o caso do antigo assassínio. Depois as autoridades da Califórnia procurarão encontrá-la a todo o transe. Toda a Polícia da Califórnia e da Louisiana será posta no seu encalço. A sua fotografia será publicada em todos os jornais. Far-se-ão pequenos cartazes que serão distribuídos a todos os funcionários dos correios e a todos os agentes da Polícia do país. Roberta tomará conhecimento de tudo isto. Procurará esconder-se. Que probabilidades julga que poderemos ter de a encontrarmos primeiro que a Polícia de dois Estados? Quando julgarmos tê-la encontrado já ela estará metida numa cela. Se você pretende obter dela qualquer coisa, creio que uma cela não é o melhor lugar para lha pedir.

Ele fitou-me intensamente durante alguns segundos, pestanejando de quando em quando. Repentinamente empurrou a arma na minha direcção.

- Muito bem, Lam, fique com isso.

- Eu não. Sou um simples detective, contratado para descobrir Roberta Fenn para um cliente cuja identidade desconheço. Você é o patrão e quem delibera sobre o procedimento a seguir.

- Nesse caso - declarou ele - e em virtude da minha profissão de advogado, o meu único dever era dirigir-me à Polícia.

Ergui-me do chão e sacudi a poeira das calças.

- Muito bem - retorqui, o meu desejo era simplesmente que compreendesse a situação.

Já ia quase ao pé da porta quando ele me chamou.

- Talvez seja melhor pensar mais maduramente no assunto, Lam.

Não respondi. Hale continuou:

- Você sabe que é um caso sério acusar uma pessoa de crime. Vou... Vou pensar mais um pouco no caso.

Continuei calado.

- No final de contas - concluiu Hale, estou a supor que esta é a arma com que foi cometido aquele crime na Califórnia. É pura especulação minha. Creio que seria mais avisado fazer uma investigação com todos os pormenores. Neste momento não temos realmente grande coisa que possamos comunicar à Polícia. Limitámo-nos a encontrar recortes antigos e um revólver escondido numa velha secretária. Há milhares de pessoas que guardam revólveres, e recortes de jornais não têm obrigatoriamente um significado especial.

- Já resolveu? - perguntei.

- Resolvi o quê?

- Convencer-se a si próprio de que é bom para si fazer aquilo que deseja?

- Ouça, Lam, não estou a fazer nada disso. Estou simplesmente a ponderar os prós e os contras.

- Quando os tiver ponderado devidamente, diga-me - repliquei, voltando-me e encaminhando-me novamente para a porta.

Desta vez ele chamou-me antes de eu ter dado três passos.

- Lam!

Voltei-me.

- O que temos agora?

- Esqueça tudo isto - disse ele com ar atrapalhado.

- Nada comunicaremos à Polícia sobre isto.

- Que destino vai dar à arma?

- Vou pô-la na secretária, no lugar onde a encontrámos.

- E depois?

- Mais tarde, se se tornar necessário, poderemos voltar a descobri-la.

- Manda quem pode.

Hale fez um gesto de concordância e curvou-se um pouco na minha direcção.

- Quanto melhor o conheço, Lam, mais o aprecio. Agora queria pedir-lhe mais uma coisa.

- O que é?

- Segundo li, a Polícia tem uma testemunha que pode fixar a hora exacta em que Nostrander foi morto. Uma pessoa que ouviu o tiro. Uma rapariga, segundo creio.

- Sim.

- Não seria possível você arranjar maneira de eu encontrar-me com ela? Não como se fosse alguém em cata de informações, mas um encontro meramente casual.

- Está já tudo arranjado. Esteja em frente do Clube Jack-O’-Lantern logo à noite às nove horas. Já apalpei o terreno.

- Muito bem, a isso chama-se eficiência. Você parece que adivinha os meus desejos, Lam.

- Às nove em frente do Jack-O’-Lantern - retorqui, saindo logo em seguida.

Vi as horas. Na Califórnia era duas horas mais cedo. Enviei um telegrama para a agência: Howard Chandler Craig assassinado 6 Junho 1937. Possibilidades de ligação com caso actual. Obtenha informações pormenorizadas. Investigue em especial hábitos e vida amorosa da vítima.

 

                     Os mochos andam de noite

- Que estranho lugar este - disse Hale.

- É como todos os clubes nocturnos de Nova Orleães, os do Bairro Francês, é claro.

Aproximou-se um criado.

- Desejam uma mesa?

Fiz um gesto afirmativo. Seguimo-lo até junto da mesa que nos indicou e sentámo-nos.

- Marilyn Winton trabalha aqui? - perguntou Hale.

- Trabalha. É aquela rapariga de vestido de seda creme.

- Bela mulher - comentou Hale com ar de entendedor.

- Hum, hum.

- Imagino se poderíamos arranjar... Bem, quais são os seus planos para me arranjar um encontro com ela?

- Ela virá ter conosco.

- O que o leva a pensar assim?

- É um palpite.

Marilyn estava naquela vida há muito tempo e virava-se instintivamente quando sentia o olhar de qualquer homem fito nas costas. Sorriu; depois aproximou-se de nós.

- Viva - disse ela, dirigindo-se a mim.

Levantei-me e respondi:

- Viva. Marilyn, deixe que lhe apresente um amigo meu, o Sr. Hale.

- Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Hale - disse ela, apertando-lhe a mão.

Hale conservava-se de pé e, com a sua enorme estatura, tinha que se inclinar para falar com ela. A expressão do seu rosto era a de um petiz que olha uma montra cheia de brinquedos na véspera do Natal.

- Não se quer sentar? - perguntei.

- Obrigada.

Mal acabámos de nos sentar e logo apareceu um criado.

- Whisky com água - pediu ela.

- Gin com coca-cola - encomendei.

Hale apertou os lábios pensativamente.

- Deixe-me ver. Tem conhaque bom?

Antecipei-me à resposta do criado.

- Não. Visto estar em Nova Orleães, por que motivo não há-de tomar uma bebida de Nova Orleães? Tem gin com Seven-Up; gin com coca-cola; rum com coca-cola; whisky com Seven-Up.

- Gin com coca-cola? - perguntou Hale, como se eu lhe tivesse sugerido uma limonada. - Quer dizer que eles misturam isso?

- Traga também um gin com coca-cola para este senhor - ordenei ao criado.

Marilyn voltou-se para mim.

- Por que motivo não quis nada de mim... Da outra vez?

- Quem disse isso?

- Tenho um dedo que adivinha... E também tenho olhos.

- E que olhos!

Ela deu uma gargalhada.

- Como se chama? - perguntou.

- Donald.

- Para a próxima vez não faça uma rapariga interessar-se por si para se ir embora logo a seguir.

- Já tinha falado antes com Miss Winton? - perguntou-me Hale.

- Não. Bem o desejei, mas... Houve qualquer coisa que me impediu de o fazer.

- Os tímidos não podem conquistar corações fortes - declarou Marilyn. - Não se deixe vencer pelos obstáculos, Donald.

O criado trouxe-nos as bebidas. Hale pagou-as. Levantou o copo com um ar de austera desaprovação e levou-o aos lábios com um gesto de sacrifício. O seu rosto tomou uma expressão de surpresa; bebeu mais um gole e exclamou:

- Meu Deus, Lam, isto é bom.

- Já lho tinha dito.

- Gosto disto. É uma bebida deliciosa. Muito melhor que o convencional whisky com soda.

Marilyn sorveu o seu chá frio e comentou:

- Gosto deste whisky com água pura. É uma boa bebida... Para quem tem de beber muito.

Hale pareceu chocado.

- Costuma beber muito? - perguntou-lhe.

- Bastante, bastante.

Hale examinou-lhe o rosto em busca de sinais que comprovassem a vida de dissipação que ela levava.

- Fuma? - perguntei a Marilyn.

- Fumo, sim, obrigada.

Estendi-lhe um cigarro. Hale pegou num charuto.

- De onde são vocês? - perguntou Marilyn.

- O meu amigo é de Nova Iorque - respondi.

- Deve ser uma grande cidade. Nunca lá estive. Creio que sentiria medo se fosse lá.

- Porquê? - perguntou Hale.

- Não sei. As grandes cidades metem-me medo. Sei que não seria capaz de me orientar lá.

Hale preparou-se para desempenhar o papel de um cosmopolita.

- Penso que Nova Iorque é uma cidade onde nos orientamos facilmente. Chicago e S. Luís são muito piores nesse aspecto.

- São todas demasiadamente grandes para mim.

- Se um dia se resolver ir a Nova Iorque, previna-me, que eu tomarei providências para que não se perca.

- Ou que seja roubada? - perguntou ela, com um olhar risonho.

- Também.

- E quanto a extraviar-me?

- Bem - disse Hale, deitando-me um olhar de lado. Uma expressão de ternura havia-lhe começado a repuxar os lábios. - Se andar comigo, não se extraviará muito.

- Não? - perguntou ela com uma inflexão interessada e utilizando os olhos para a tornar mais convincente.

Hale deu uma gargalhada como se tivesse recebido um choque de vitaminas.

- Gosto desta bebida, Lam. Gosto muito mesmo. Fico-lhe muito grato por me ter chamado a atenção para ela. Gosto deste tipo de clube nocturno de Nova Orleães, tão íntimo e aconchegado. Há em volta de nós uma atmosfera especial que não se encontra em mais nenhum lado, hein?

Sorri para Marilyn.

- Posso dizer com antecedência quem vai passar um bom bocado - profetizei.

- Julgo que não deve ser você?

- O que a leva a pensar isso?

- Você ainda não mostrou o seu contentamento.

- Pertenço ao tipo fortemente silencioso.

Rosalind passou perto de nós. Marilyn olhou para ela como um cão de guarda olha para um possível intruso. Rosalind não me fez qualquer sinal. Marilyn desviou o olhar e eu observei-lhe um pequeno sorriso íntimo; depois o seu rosto voltou a ficar impassível. Esmaguei a ponta do cigarro no cinzeiro, levei a mão à algibeira e, sub-repticiamente, tirei todos os cigarros do maço com excepção de um.

- Creio que esta é a bebida mais deliciosa que já tomei em toda a minha vida - declarou Hale.

Marilyn sorveu o resto do seu chá frio.

- Se tomar duas ou três seguidas - disse ela, então é que lhe apreciará devidamente o gosto. Mas não se deve exceder, deve parar quando se sentir alegre.

- É assim?

Ela fez um gesto afirmativo.

- Gosto de saborear uma bebida como esta – repetiu Hale.

- Seja desportivo e beba de uma vez - intervim. - Marilyn deseja outra bebida.

Os olhos dela acariciaram-me.

- Como adivinhou?

- Sou um vidente.

- Acredito.

Estendeu a mão por cima da mesa até apertar a minha. O vidente era o criado. Materializou-se junto da mesa sem qualquer sinal aparente.

- Repita a dose - ordenei.

Tirei o maço de cigarros da algibeira e estendi-o a Marilyn.

- Fuma outro?

- Obrigada.

Tirou o que restava e eu meti o indicador no maço fingindo procurar outro para mim. Sacudi o maço, sorri, amarfanhei-o e disse:

- Bom, este acabou. Vou comprar outro.

- O criado pode trazer-lho.

- Obrigado, vou eu mesmo. Estou a ver além uma máquina automática.

Risquei um fósforo, acendi-lhe o cigarro, levantei-me e aproximei-me da máquina de vender cigarros. Fingi que não tinha trocos e aproximei-me do bar para arranjá-los. Depois de ter tirado o maço de cigarros, parei junto da máquina de moedas e pu-la a funcionar. Enquanto fazia o jogo, meti a mão direita na algibeira do casaco, agarrei os cigarros dispersos, amachuquei-os até os fazer numa bola e deitei-os ao chão sem ser notado. Acabei o jogo e consegui arranjar uma combinação que me dava direito a mais dois jogos sem pagar. Olhei para a mesa. Marilyn observava-me, mas Hale estava inclinado para a frente a falar-lhe ao ouvido. As três novas bebidas já se encontravam em cima da mesa. Acenei com a mão e gritei:

- Isto é canja!

Voltei-me novamente para a máquina. Rosalind aproximou-se da máquina de vender cigarros, procurou uma moeda na carteira e disse pelo canto da boca:

- Não volte a cabeça.

Continuei a jogar.

- Não se atire a mim. Isso podia custar-me o emprego.

Ela está interessada em si. Quando você se foi embora ela ficou danada. Mas... Não vá na conversa dela.

- Porquê?

- Arrepender-se-ia.

- Obrigado.

Ela tirou os cigarros e afastou-se. Dei um passo de lado de forma a olhar para o espelho do bar. Marilyn estava a olhar para Rosalind com os olhos frios de uma cobra que fita um passarinho acabado de cair do ninho. Continuei a jogar e, após ter feito os dois jogos grátis, meti nova moeda. Hale estava realmente a divertir-se. Estava cheio de entusiasmo, fazia gestos largos, fitava Marilyn nos olhos, percorrendo depois com a vista os seus ombros nus. Voltei para a mesa. Emory Hale estava a dizer:

- Incrivelmente fascinante.

Marilyn fitava-o com um olhar fatal.

- Estou muito satisfeita por ouvi-lo dizer isso, pois acho as pessoas de uma certa idade muito mais interessantes que os jovens. Geralmente não me interesso por rapazes novos. Aborrecem-me. O que é, Emory?

Ele inclinou-se por cima da mesa na direcção dela. Nesse momento Hale nem sequer dava conta da minha existência e ela só me poderia ver se se voltasse.

- Continue - pediu ela.

Ia a interromper-me. Pigarreei. Nenhum deles levantou o olhar.

- A verdade, minha querida, é que você tem uma alma delicada - declarou Hale. - Não consegue interessar-se pelas banalidades medíocres de uma conversação de adolescente. Apesar de ter um corpo magnífico e uma mocidade radiante, é evidente que...

Recuei uns passos, tossi com força e voltei a aproximar-me da mesa.

- Pensámos que tinha desaparecido - disse Marilyn.

- Fui comprar cigarros.

- Fumaria um de muito boa vontade.

Hale continuou a fitá-la enquanto eu abria o maço.

- Que tal está a máquina de moedas? – perguntou Marilyn.

- Não está mal. Ganhei alguns jogos.

- Ficou com o dinheiro?

- Não. Voltei a jogar.

- Eu também faço sempre isso. Dizem que é idiotice. Que devemos guardar o que ganhamos.

- Não vejo que haja qualquer vantagem nisso.

- Se uma pessoa não se retira depois de ganhar, a máquina pode limpar-lhe todo o dinheiro.

- Não foi feita para outra coisa.

Ela ficou a pensar na minha resposta. Emory pigarreou.

- Como eu estava a dizer, é muito raro que uma pessoa encontre alguém com uma mentalidade capaz de compreender a natureza...

- Oh - cortou Marilyn. - Lá está outra vez o criado a olhar para a nossa mesa. Creio que está a ver o seu copo vazio. É um tipo muito engraçado. Se eu estiver aqui sentada com um copo vazio à minha frente, ele ficará a olhar eternamente na minha direcção, sem desviar a vista, como se quisesse hipnotizar-me. Quanto a si, Donald, a sua bebida ainda está intacta.

- Tem razão. Devia tê-la levado comigo. Bem, hoje parece-me um dia feliz.

- Pois sim, mas eu estou sem nada para beber em acção de graças.

- Isso remedeia-se imediatamente.

- Posso dizer-lhe que você tem um cabelo maravilhoso - afirmou Hale.

- Obrigada... Joe, traga-me outro whisky com água.

O criado voltou-se para Hale.

- Traga-lhe outro gin com coca-cola - disse eu.

- Faça com que sirvam bem para que o cliente não fique esmorecido. O criado olhou para Hale e depois para mim.

- Muito bem, e o senhor o que toma?

- Tenho o meu copo cheio.

- O senhor tem direito a mais uma bebida. Quando um cavalheiro tem uma rapariga à sua mesa...

- Já sei isso. Traga essas bebidas antes que estas pessoas morram de sede enquanto você está para aí a fazer um número cómico.

Marilyn deu uma gargalhada. Hale olhou em volta da sala. Marilyn deu uma profunda fumaça e declarou:

- É na outra sala do lado direito.

- Queira desculpar mas não compreendi – disse Hale.

- O lugar que procura é onde eu disse.

Hale pigarreou, empurrou a cadeira para trás e disse com toda a dignidade:

- Queiram desculpar, é só um momento.

- Oxalá que não se sinta mal - disse eu, vendo-o atravessar a sala.

- Uma grande maioria destes tipos velhotes não agüentam. Este é um tipo simpático, não acha, Donald?

Marilyn fitava-me de frente.

- Hum, hum.

- Você não parece muito entusiasmado.

- O que pretende que eu faça? Que salte para cima da mesa e desfralde uma bandeira?

- Não seja pateta. O que eu disse foi que ele era um bom tipo.

- Não seja pateta também você. Eu também disse o mesmo.

Ela baixou o olhar por uns momentos, depois encarou-me e sorriu com aquele sorriso que fazia acreditar em intimidade.

- Não seja mau, Donald. O que eu quero dizer é que ele é um tipo simpático, mas... Bem, você sabe o que quero dizer. A mocidade atrai a mocidade e...

- Continue. Acabe o que ia a dizer. A mocidade atrai a mocidade e...

- Nada.

Dei uma gargalhada.

- É a realidade. As mulheres de uma certa idade procuram rapazes novos e os velhos procuram raparigas. Se os velhos dessem atenção às mulheres idosas, o mundo seria muito melhor. - Marilyn fitava-me nos olhos. - Quanto a mim, prefiro os jovens.

Estendeu o braço por cima da mesa e pôs a sua mão na minha.

- O que disse você àquela rapariga?

- Qual rapariga?

- Aquela que se serviu da máquina de vender cigarros quando você estava a jogar na máquina... Rosalind. Você pagou-lhe uma bebida quando cá veio da outra vez, lembra-se?

- Julgo que não poderei recordar-me da cara dela. Creio que ficou aborrecida comigo. Não deixei de olhar para si enquanto ela estava comigo. Ela deu conta. Creio que não ficou muito satisfeita.

- Ah, sim?

- Você e Emory não se estão a entender?

- Estamos. Porquê?

- Fiquei a pensar naquela sua frase de não gostar de velhos e preferir rapazes novos.

Ela sorriu.

- Emory é diferente num certo sentido - disse ela. - É uma pessoa tão distinta e delicada. Para mim é como se fosse um pai. Em que se ocupa ele?

- É advogado em Nova Iorque.

- Advogado? E que tal é ele na sua profissão?

- Ganha bastante dinheiro para poder gastar à vontade - respondi. - E não é daqueles tipos espalhafatosos que conhece todos os truques. E está especializado em procurar provas. Nestes meios é realmente um bebé perdido na floresta.

- É engraçado - retorquiu Marilyn, mas pensei que havia qualquer coisa na vida dele... Sabe o que quero dizer. Dá a impressão de trazer consigo uma aura de infortúnio. Talvez tenha sido infeliz com o casamento. Pode ser por isso. Contrariedades domésticas.

- Não creio que haja qualquer coisa a apoiar essa teoria. Por mim, tenho a impressão que é um viúvo rico.

- Oh!

- Ele aí vem - observei. - Veja a forma como ele levanta os pés e os assenta no chão com todo o cuidado.

Marilyn deu uma gargalhada.

- Mais um gin com coca-cola e os seus pés nem tocarão o soalho. Ouça, Donald, conhece aquela rapariga de quem lhe falei há pouco? - perguntou ela apressadamente.

- Refere-se a Rosalind?

- Sim.

- O que há a respeito dela?

- Arranje uma oportunidade de falar com ela. Está doidinha por si, absolutamente perdida. Talvez você não se dê conta, mas quando uma rapariga deste meio se apaixona por um homem da forma como ela está apaixonada por você, é uma coisa terrível para ela ver o homem que ama na companhia de outra rapariga. Procure falar-lhe e seja amável com ela, sim?

- Mas certamente. Pensei que ela nem se lembrasse de mim.

- Se se lembra de si! Já lhe disse que está doidinha por si... Oh, já de volta, Emory? Vem mesmo a tempo de tomar a bebida que Joe acaba de lhe servir. Como se sente?

- Como um milionário - retorquiu Hale.

- Lá está Rosalind além - fez notar Marilyn. - Rosalind é uma grande cliente das máquinas de moedas. É capaz de passar toda a tarde a jogar, quando não tem serviço, é claro.

Olhou significativamente para mim e sorriu.

- Queiram desculpar.

Levantei-me e caminhei até junto da máquina de moedas. Pelo canto do olho vi que Marilyn fazia um sinal a Rosalind. Já havia iniciado o terceiro jogo quando dei conta de Rosalind a meu lado.

- O que fez à Marilyn? - perguntou.

- Porquê?

- Ela fez-me sinal para o vir pescar.

- Dei-lhe a entender que o meu companheiro é um milionário capaz de perder a cabeça por ela.

- E é?

- Talvez.

- É seu amigo?

-Num certo sentido. Porquê?

- Por nada.

Acabei o jogo, meti nova moeda e perguntei-lhe:

- Quer tentar a sua sorte?

Ela começou a jogar. Joe veio até perto de nós e olhou-me significativamente.

- Traga duas bebidas - disse-lhe.

- O que toma? - perguntou ele a Rosalind.

- A mesma coisa. Este rapaz é dos nossos, Joe. Não precisas de fingir. Traz-me o chá frio à vontade. Ele paga na mesma.

- E para si? - perguntou Joe com um sorriso.

- Gin com Seven-Up.

Rosalind e eu acabámos as bebidas e o jogo.

- Volta para a mesa? - perguntou ela.

- Talvez.

- Marilyn quer que eu não o largue.

- E por que não? Venha que eu apresento-lhe o Emory.

- Não fica aborrecido, pois não?

- Com quê?

- Oh... Marilyn. Você não... Não estava a gostar dela, ou estava?

Sorri-lhe.

- Venha. Junte-se ao nosso grupo.

- Você fez um excelente trabalho com Marilyn.

- Porquê?

- Há pouco, quando pensou que eu estava a fazer o meu jogo consigo, ficou danada. Agora fez-me sinal para andar para a frente.

- As circunstâncias alteram os factos.

- Donald, você sabe manobrar como gente grande. O que procura você exactamente?

- Nada que possa resultar em seu prejuízo.

- Apostaria que você nunca cometeria uma deslealdade com uma rapariga nas minhas condições – declarou ela fitando-me nos olhos.

Não respondi. Caminhámos até junto da mesa.

- Olá, Rosalind - disse Marilyn com toda a naturalidade. - Apresento-te Emory, um amigo meu, o Sr. Emory... Smith.

Voltou-se para Hale e deu-lhe um rápido piscar de olhos.

- Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Smith – disse Rosalind.

Hale levantou-se e fez uma reverência. Puxei uma cadeira para Rosalind. Sentámo-nos todos.

- Não gosto de falar nisso - disse Marilyn para Hale. - Falemos de outra coisa.

- De que é que não gosta de falar? - perguntei.

- Do que aconteceu esta madrugada – respondeu Hale.

- O que aconteceu?

- Marilyn ouviu o tiro que matou o advogado. Não se lembra de ter lido a notícia nos jornais?

- Oh! - foi a minha resposta.

- Ia a entrar em casa às três da manhã – continuou Hale.

- Às duas e trinta - corrigiu Marilyn.

Hale franziu o sobrolho.

- Pensei que me tinha dito que fora entre as duas e meia e as três.

- Não. Consultei o relógio. Deve ter sido um ou dois minutos depois das duas e trinta.

- Relógio de pulso? - perguntou Hale.

- Sim.

Hale estendeu o braço, pegou no pulso de Marilyn e examinou o pequeno relógio cravejado de diamantes.

- Mas é uma maravilha!

- Não é?

- Apostaria que quem lho ofereceu gostava muito de si. Deixa-mo ver?

Ela tirou-o do pulso e Hale ficou a passá-lo e a repassá-lo entre os dedos.

- Um lindo relógio - disse ele. - Muito belo, sem dúvida.

- Que mais se faz cá na casa? - perguntei a Rosalind. – Não se dança?

- Não, mas há um espectáculo de variedades.

- Quando?

- Dentro de um ou dois minutos.

- Lá está o Joe a olhar para o teu copo vazio, Rosalind - disse Marilyn com um sorriso aberto.

- Que espere um pouco e já poderá olhar também para o meu - declarou Hale. - Bebeu de um trago o resto que tinha no copo, deu um estalo com os dedos e chamou: -Joe!

O criado não perdeu tempo.

- Quer que sirva o mesmo? - perguntou ele.

- Sirva o mesmo - disse Hale, continuando a repassar entre os dedos o relógio de Marilyn.

Joe trouxe as bebidas. As luzes diminuíram de intensidade.

- Vão começar as variedades - anunciou Marilyn. - Tenho a certeza que hão de gostar.

Seguiu-se o habitual arrastar de cadeiras quando uma rapariga de perfil egípcio, de calções cobertos de hieróglifos e soutien decorado com os mesmos motivos, apareceu na pista, sentou-se com as pernas cruzadas e começou a pôr as mãos e cotovelos em ângulos esquisitos. Uma chuva de aplausos saudou a sua aparição. Um homem, procurando fazer rir o público, pôs-se em frente de um microfone a dizer gracinhas. Uma artista apareceu a fazer o seu número que terminou numa mancha azul de luz que era o único vestuário sob que ficou abrigada. Alcançou um êxito enorme. Depois a dançarina egípcia voltou a aparecer sob a luz azul, com uma camisa e um grande colar ao pescoço. O indivíduo que anteriormente dissera gracinhas ao microfone começou a cantar e a rapariga deu-nos uma versão inédita da hula-hula. Quando as luzes voltaram a acender-se, Hale devolveu a Marilyn o relógio de pulso com o qual estivera entretido durante todo o espectáculo.

- Acabou? - perguntei a Rosalind.

- Não - respondeu Marilyn. - É apenas um intervalo. Dentro de um ou dois minutos haverá um novo acto. Isto dá-nos oportunidade de mandarmos encher novamente os copos.

Joe encheu-nos os copos. Hale sorriu na minha direcção com o verdadeiro sorriso de um homem de sociedade.

- Estou a sentir-me aqui maravilhosamente – disse ele. - As mais lindas raparigas do mundo. As melhores bebidas do mundo. Quando voltar a Nova Iorque vou mostrar a todos os meus amigos que as bebidas de Nova Orleães são as melhores que há. A gente sente-se bem. Não se fica embriagado. Fica-se apenas bem - disposto.

- Isso é verdade - retorqui-lhe.

Marilyn tornou a pôr o relógio no pulso. Passado um pouco olhou para mim e depois para Rosalind. Com um guardanapo limpou o pulso.

- Não estamos a divertir-nos bem? - perguntou.

Começou o segundo acto. O homem que cantara a hula-hula apareceu com trajo de noite e interpretou uma série de danças com a bailarina egípcia; depois a outra artista executou a dança do leque. As luzes voltaram a acender-se e Joe já estava a nosso lado.

- Quantos Joes há cá? - perguntei a Marilyn.

- Apenas um. Porquê?

- Parece-me que devem ser dois gémeos ou mais.

- Está a ver dois? - perguntou Hale solícito.

- Não, vejo apenas um, mas o outro está no bar a preparar as nossas bebidas. Virá para cá quando este for para lá preparar-nos mais. É impossível que um só homem possa fazer tantas viagens cá e lá.

Joe mostrou um meio sorriso, numa expressão de contentamento refreado. Hale começou a rir. A sua gargalhada cresceu de tal forma que esperei vê-lo cair da cadeira. Marilyn fez um gesto largo.

- A mesma coisa para todos - declarou ela.

Afastei a cadeira para trás abruptamente.

- Vou-me deitar - disse.

- Oh, Donald, ainda agora chegou! - queixou-se Rosalind.

Peguei-lhe na mão, conservei-a na minha durante um espaço de tempo suficiente para lhe passar duas notas bem dobradas.

- Lamento não me estar a sentir bem. A última bebida não concordou comigo.

Hale riu estrepitosamente.

- Devia ter bebido gin com coca-cola – declarou ele. - Pode-se estar a beber toda a noite. É uma bebida maravilhosa. Uma pessoa sente-se bem disposta, sem se embriagar. Vocês, os rapazes novos, agüentam pouco. Nós é que sabemos, não é, Marilyn?

Marilyn estendeu o braço de forma que a sua mão repousasse na dele por um momento. Passado um pouco, libertou a mão, molhou a ponta do guardanapo no copo de água e esfregou o pulso com ela.

- Boa noite a todos - saudei.

Hale levantou o olhar na minha direcção. Por um momento o seu rosto ficou sério. Começou a dizer qualquer coisa, depois mudou de idéia, voltou-se para Marilyn, pensou noutra coisa, apontou para mim e disse:

-Este é um pássaro esperto, Marilyn. É preciso tomar cuidado com ele.

- Que espécie de pássaro? - perguntou ela. - Pombo não é, decerto.

- Não - respondeu Hale sem compreender a observação de Marilyn. - É um mocho... Você sabe, um mocho sábio. Sempre disse para mim mesmo que ele era um mocho.

A idéia pareceu-lhe engraçada. Quando saí para a rua, as suas gargalhadas eram tão fortes que era impossível que não lhe rebentasse alguma veia. Voltei para o hotel. Bertha tinha chegado a Los Angeles. Encontrei o característico telegrama dela: “Que idéia é essa de desenterrar casos velhos? Temos muito pouco pessoal para perdermos tempo com crimes antigos. Neste Estado crimes prescrevem passados três anos. Que espécie de pássaro pensa você que é?” Dirigi-me à estação do telégrafo e senti-me satisfeito por achar a resposta conveniente a dar-lhe: Assassínio nunca prescreve. Hale diz que sou um mocho. Enviei um telegrama a pagar pelo destinatário.

 

                  Os negócios aumentam

Levantei-me às sete da manhã, tomei banho, barbeei-me, comi o pequeno-almoço e abri a mala para tirar de lá a arma que me fora distribuída juntamente com a licença. Era um revólver calibre 38, de aço azulado, em regulares condições de limpeza. Meti-o na algibeira e desci a Rua Royal até ao apartamento. Imaginava em que disposição se encontraria Hale após a noitada. Ao subir as escadas fiz quanto barulho pude e os meus batimentos na porta não foram nada meigos. Hale não respondeu. Pus os dois punhos a trabalhar e aumentei o concerto com alguns pontapés. Hale continuou sem dar sinal. Tinha comigo a chave sobressalente. Meti-a na fechadura e abri.

Hale não estava lá dentro. A cama estava desfeita, mas as rugas no lençol mostravam que ele não estivera deitado mais do que uma hora. Atravessei o quarto de dormir e passei à sala de estar para ter a certeza que ele se não encontrava lá dentro. Fui até à secretária, tirei-lhe as gavetas, consegui voltá-la, conservando-a apoiada contra um canto e extraí o conteúdo do espaço desaproveitado: cartas, recortes de jornais e o revólver. Meti na algibeira o revólver e, em lugar dele, pus lá o meu; depois voltei a colocar a secretária na sua primitiva posição.

Estava um belo dia e a rua em baixo estava cheia de gente que procurava aproveitar-se dos benefícios de um dia cheio de sol. Dei uma última vista de olhos ao apartamento, fechei a porta da escada sem fazer o mínimo ruído e desci as escadas. À porta da rua encontrei a criada preta. Ela sorriu-me e perguntou:

- O senhor já está levantado?

Respondi-lhe que o senhor ou tinha saído ou estava a dormir, pois havia-me cansado de bater à porta sem qualquer resultado. Ela agradeceu-me e começou a subir a escada. Voltei para o hotel. Havia lá um recado para falar para Lockley 9.746. Dirigi-me a uma cabina e fiz a chamada, perguntando a mim mesmo se o número se referia a um hospital ou à cadeia. Não era nem uma coisa nem a outra. Uma voz feminina, macia como veludo, respondeu à chamada.

- Desejava falar com o Sr. Lam?

Ela deu uma gargalhada.

- Oh, sim. Daqui fala o escritório da Silkwear com o seu director.

- Muito bem.

- Tem cá uma carta e um telegrama.

- Os negócios estão a aumentar - comentei.

- Não estão? Sabe o que aconteceu? Ouça só. Enviámos duas circulares, uma delas por avião, e obtivemos duas respostas, uma das quais por telegrama.

- Encontrei a verdadeira forma de escrever cartas de negócios.

- O resultado foi devido ao excelente trabalho dactilográfico - retorquiu ela.

- Acredito na sua palavra e dou-lhe os meus cumprimentos.

Meti-me num táxi e segui para o escritório. Ethel Wells parecia realmente muito satisfeita por me ver.

- Como se sente esta manhã? - perguntou ela.

- Não muito bem.

- Tem alguma coisa que o aflija?

- Saí a noite passada para mostrar a cidade a um visitante.

- A sua aparência é de quem está fresco como um malmequer.

- Sinto-me como se alguém me tivesse arrancado as pétalas para saber se ela gosta de mim ou não.

- Não se irrite por causa disso. Naturalmente a resposta é que ela gosta realmente.

Não arranjei resposta. Abri o telegrama. Silkwear Importation Company. Mande cinco dúzias de pares primeira escolha, medida dez e meio, cor quatro da sua referência. O nome do remetente era Bertha Cool e o endereço era o da agência.

O sobrescrito da carta era quadrado e cor de creme, a folha de papel condizia com ele. O carimbo dos correios era de Shreveport, Louisiana. A carta dizia muito simplesmente: Queiram enviar-me seis pares das vossas meias. Tamanho oito e meio, cor número cinco de acordo com a vossa referência. A carta estava assinada por Edna Cutler que dava o respectivo endereço. Meti a carta na algibeira.

- A que horas há comboio para Shreveport? – perguntei a Ethel Wells.

- Tem de ser de comboio?

- Também serve um autocarro.

Ela dirigiu-se a um armário, abriu uma gaveta, tirou um guia de camionagem e entregou-mo.

- Vejo agora qual foi o meu erro - disse ela.

- Qual foi?

- Devia ter encomendado as minhas meias por carta, dando o endereço de minha casa.

- Por que não experimenta? - perguntei.

Ethel, com o lápis na mão, fazia diagramas ao acaso na pequena agenda à sua frente.

- Creio que vou fazê-lo - declarou com ar pensativo.

Devolvi-lhe o guia de camionagem.

- Estarei fora da cidade todo o dia, Miss Wells anunciei com ar importante. - Se alguém me procurar diga que estou numa reunião.

- Muito bem, senhor. E se chegarem mais cartas, o que devo fazer?

- Não chegará mais nenhuma carta.

- Quer apostar?

- Aposto, sim.

- Um par de meias de seda?

- Contra quê?

- Tudo quanto queira. Aposto de olhos fechados.

- É uma aposta como qualquer outra. Gostaria de saber o que dirá a carta. Para satisfazer as encomendas, como sabe, preciso que me informem da residência.

Ela sorriu.

- Sei isso. Cuidado lá por Shreveport.

 

                    Um plano desfeito

Eram quase oito horas da noite quando toquei à campainha do apartamento que me fora dado como endereço na carta de Edna Cutler. Uma voz feminina soou no tubo telefónico:

- Quem é?

Pus os lábios junto do tubo.

- Um representante da Silkwear Importation Company.

- Pensei que o senhor estava em Nova Orleães.

- Temos filiais em todo o país, agentes directos.

- Não pode vir amanhã?

- Não. Estou a fazer uma viagem especial por este Estado.

- Bem, esta noite não o posso receber.

- Tenho muita pena - retorqui com um tom decisivo.

- Um momento. Quando poderei falar consigo?

- Na minha próxima viagem.

- Quando será isso?

- Daqui a três ou quatro meses.

Houve do outro lado uma exclamação de aborrecimento.

- Oh... Espere. Estou a vestir-me, sabe? Vou vestir qualquer coisa e já lhe abro a porta. Pode vir subindo.

A porta abriu-se, subi um lanço de escadas e percorri um enorme corredor a olhar para os números das portas. Edna Cutler, vestindo um roupão, estava à porta à minha espera.

- Julguei que atendiam os pedidos pelo correio disse ela.

- Assim é.

- Bem, queira entrar. Vamos lá a resolver o caso. Por que veio pessoalmente?

- Temos de nos cingir aos regulamentos da C.F.I.

- O que é isso de C. F. I.?

- Comissão Federal de Importações.

- Não sei porquê!

Sorri complacentemente.

- Minha querida senhora - expliquei, estamos sujeitos a uma multa de dez mil dólares e a prisão por um ano se vendermos os nossos artigos a alguém que seja revendedor ou que pretenda fazer negócio com as nossas entregas. Temos que vender directamente ao cliente.

- Estou a compreender - declarou ela, um pouco convencida.

Edna era morena, se bem que não tão morena como Roberta Fenn. Era uma rapariga de luxo. O cabelo, as sobrancelhas, as longas pestanas, as unhas envernizadas mostravam aquela espécie de cuidados que requerem tempo e dinheiro. Só pertencem a este tipo as mulheres que sabem ser um bom capital quando bem cuidadas. Examinei-a minuciosamente.

- Bem? - perguntou ela, sorrindo tolerantemente ao notar a excursão feita pelos meus olhos.

- A senhora ainda não me convenceu - respondi.

- Ainda não o convenci?

Parecia ser uma rapariga que sabia muito bem o que queria. Sentada em frente de mim, vestindo um roupão e mostrando uma perna nua e bem feita, ela demonstrava ter direito a qualquer prioridade no fornecimento de meias. Não se mostrava embaraçada. Sob o seu ponto de vista eu não era um ser humano. Era apenas a imagem de seis pares de meias a um preço barato.

- Quero ver amostras - disse ela subitamente.

- A nossa garantia defende-a.

- De que maneira?

- A senhora não só receberá as meias sem pagar, como ainda tem direito a usá-las durante trinta dias.

- Nunca julguei que os senhores se arriscassem a isso.

- Fazemo-lo porque os nossos clientes são absolutamente seleccionados. Creio, porém, que o melhor é voltarmos ao assunto que aqui me trouxe. Tenho ainda que visitar mais meia dúzia de clientes. A senhora chama-se Edna Cutler. As meias são apenas para seu próprio e exclusivo uso?

- Sim, evidentemente que são.

- Bem, pode então assegurar-me que não venderá qualquer desses pares de meias a outra pessoa?

- Mas certamente. Preciso delas para meu uso.

- E talvez para uma ou duas amigas?

- O que tem isso a ver com o caso?

- Precisamos de saber os nomes dessas amigas. É a única forma de conseguirmos que o Governo Federal nos não anule a licença de importação.

Ela examinou-me com expressão de curiosidade.

- Isso não me parece muito católico.

Dei uma gargalhada.

- A senhora devia montar um negócio para ver como as coisas estão difíceis actualmente. Mesmo com o mercado interno há dificuldades. Experimente tentar importar qualquer coisa do estrangeiro e verá o que acontece.

- Como conseguiram arranjar essas meias no México?

- É segredo - declarei com um sorriso.

- Mesmo assim gostaria de saber.

- Um barco japonês - expliquei - transportava um carregamento de meias de seda. Os japoneses atacaram Pearl Harbour. O barco servia para fins comerciais em tempo de paz, mas, como todos os navios mercantes japoneses, em tempo de guerra, tinha uma missão militar a cumprir. O comandante conseguiu fundear em frente da costa mexicana, junto de uma praia, mandou abrir uma vala profunda e enterrou lá todas as mercadorias que levava. O meu sócio conseguiu descobrir o local. Acontece igualmente que esse meu sócio tem excelentes relações na Cidade do México. Como resultado disso... Bem, a senhora pode tirar as conclusões.

- Quer dizer que essas meias foram roubadas?

- O Supremo Tribunal Mexicano concedeu-nos a sua posse. Podemos mostrar-lhe uma cópia da sentença se assim o desejar.

- Mas, se os senhores têm uma tão grande quantidade de artigos de seda que arranjaram sob tais circunstâncias, por que não pegam neles e os não trazem para os Estados Unidos a fim de os venderem aos grandes armazéns...

- Não podemos fazer isso - expliquei pacientemente. - Segundo a letra da licença do governo, só podemos vender directamente a clientes individuais.

- A sua carta não dizia isso.

- Não. É uma determinação da C. F. I. Não podemos trazer as mercadorias para o país sob quaisquer outras condições.

Peguei num lápis e num livrinho de notas que tirei do bolso.

- Agora, se quiser ter a bondade de me dizer os nomes de algumas das suas amigas a quem vai mandar qualquer par de meias...

- As meias são para mim. Contudo, poderei dar-lhe o nome de uma amiga que, eventualmente, quererá fazer-lhe uma encomenda para ela.

- Isso seria óptimo. Quer então...

A porta do quarto de dormir abriu-se e Roberta Fenn entrou apressadamente na sala. Era evidente que tinha acabado de se vestir.

- Olá! - exclamou ela. - O senhor é o homem das meias? Ainda há bocado tinha dito à minha amiga que...

Parou em meio da frase como se tivesse sofrido um súbito ataque de paralisia. Os seus olhos abriram-se e o queixo descaiu-lhe numa expressão de espanto. Edna Cutler voltou-se rapidamente, viu-lhe a expressão, pôs-se em pé de um salto e exclamou:

-Rob! O que se passa?

- Nada - respondeu Roberta, depois de ter respirado fundo. - Este homem é um detective, Edna. De resto não há mais nada.

Edna Cutler voltou-se para mim com uma expressão mista de indignação e de receio. O seu gesto instintivo de defesa era o de um animal assustado ao ver-se encurralado.

- Como se atreveu a vir aqui desta forma? Podia mandá-lo prender.

- E eu podia mandá-la prender a si por dar asilo a uma pessoa acusada de crime de morte.

As duas mulheres trocaram olhares.

- Creio que ele é realmente esperto, Edna – disse Roberta. - Julgo que não conseguiremos nada dessa maneira.

Sentou-se. Edna Cutler ficou hesitante durante um grande bocado; depois resolveu também sentar-se.

- Foi um truque muito inteligente, não há dúvida declarou Roberta. - Edna e eu ficámos intrigadas por alguém ter sabido o endereço postal; depois chegamos à conclusão que provavelmente os correios vendiam listas de endereços para fins publicitários.

- Não precisamos de falar no assunto - retorqui. - São águas passadas.

- Foi um truque muito inteligente – repetiu Roberta, olhando significativamente para Edna Cutler.

- Há mais meia dúzia de truques que teriam alcançado o mesmo sucesso - declarei. - Se eu a descobri, também a Polícia pode fazê-lo. De admirar é que ela não a tenha ainda descoberto.

- Não creio que a Polícia possa descobrir-me retorquiu Roberta. - Julgo que está a subestimar as suas qualidades.

- Não vamos discutir isso agora. Temos outras coisas mais importantes a tratar. Quem era Paul Nostrander?

Roberta e Edna trocaram um novo olhar. Consultei o relógio de pulso.

- Não podemos perder muito tempo - declarei.

- Não sei - disse Edna Cutler.

Olhei para Roberta mas os seus olhos evitaram os meus. Tornei a voltar-me para Edna Cutler.

- Suponhamos que lhe vou refrescar um pouco a memória. A senhora era casada com Marco Cutler. Ele queria mover-lhe uma acção de divórcio. A senhora não estava pelos ajustes se ele não lhe pagasse mais do que aquilo que está previsto na lei. Contudo, e infelizmente, a senhora foi imprudente.

- Isso é mentira.

- Bem, como queira. Ele tinha testemunhas prontas a jurar que a senhora o havia atraiçoado.

- Essas testemunhas mentiam.

- Não importa. Não me importo nada com a justiça ou injustiça desse divórcio. Não me interessa que Marco Cutler tenha arranjado testemunhas perjuras ou que as provas circunstanciais fossem contra si. Aquilo que procuro e quero estabelecer definitivamente é que ele desejava divorciar-se e que a senhora não aceitava esse divórcio nem procurou defender-se.

- Ponha a questão dessa forma se assim o quer e continue - retorquiu Edna. - Não estou a admitir nada. Não nego nada. Limito-me a ouvir.

- O plano que a senhora arquitectou era uma obra-prima.

- Já que é assim tão esperto, conte-me o resto.

- A senhora foi para Nova Orleães. Fez com que o seu marido soubesse isso. Fez com que ele acreditasse que a senhora havia saído da Califórnia porque não desejava expor-se à luz da publicidade que se faria à volta do caso. Marco Cutler pensou que tudo estava a correr o melhor possível. A senhora estava inteiramente à sua mercê. Ele tinha sido muito esperto e a senhora uma estúpida. Ele não lhe pagaria nem um cêntimo de pensão. Essa foi a primeira rasteira em que ele caiu. A senhora deu-lhe a saber que vivia num apartamento e deu-lhe até a morada. Depois procurou alguém que tivesse alguma semelhança consigo: altura, peso, idade, compleição, etc. Alguém que a visse a si ao lado de Roberta Fenn não encontraria grande parecença, mas a descrição de uma podia ser tomada como a descrição da outra.

- Se está preparado para dizer alguma coisa, continue, diga-a de uma vez.

- Estou a explicar os alicerces.

- Bem, pode continuar com a estrutura. Não dispomos de toda a noite para o ouvir. O senhor também afirmou que tinha pressa.

- Creio que as minhas palavras foram que não havia tempo a perder. Se imagina que estou a perdê-lo, engana-se redondamente.

Roberta Fenn sorriu.

- Continue - desafiou Edna Cutler.

- A senhora encontrou Roberta Fenn. Ela estava numa situação difícil. A senhora tinha algum dinheiro. Ofereceu-lhe o apartamento para ela viver sem ter que pagar. Talvez até se tenha oferecido para lhe pagar mais qualquer coisa. A única condição que pôs era que ela devia usar o seu nome, receber o seu correio, fazer-lho chegar às mãos e responder a alguém que lho perguntasse que o seu nome era Edna Cutler. Deve ter-lhe dito também que estava à espera que lhe levassem para assinar os documentos respeitantes a um caso de divórcio. Ou talvez não lhe tenha dito isso. Seja como for, o seu marido caiu na ratoeira. Dirigiu-se ao advogado. Contou o que se passava e ele aconselhou-o a apresentar uma queixa vulgar a fim de que pudesse ser posta uma acção. Nessa altura, se a senhora contestasse a acção, far-se-ia uma queixa mencionando todos os pormenores, o que não a deixaria muito bem colocada. O advogado perguntou a seu marido onde se encontrava a senhora e ele deu-lhe a sua morada de Nova Orleães. O advogado preencheu então uma queixa vulgar, mas na qual se dava a entender que se a senhora procurasse defender-se ele faria cair sobre si uma avalanche de lama. A simples referência ao facto fez chispar os olhos de Edna.

-E o senhor acha que era leal?

-Não. Era um procedimento torpe.

- A finalidade era privar-me de qualquer oportunidade de lutar pelos meus direitos.

- A senhora devia ter-se agüentado e lutado... se tivesse alguma razão para lutar.

- Estava encurralada.

- Bem sei, mas não estamos agora a apreciar os méritos e os deméritos do caso. Estou simplesmente a esboçar um quadro do que aconteceu. O advogado mandou os papéis para um solicitador de Nova Orleães. O solicitador subiu as escadas, bateu à porta, olhou para Roberta e disse: “A senhora é Edna Cutler”; e entregou-lhe os papéis. Devolveu depois os documentos dizendo que os tinha apresentado com as devidas formalidades a Edna Cutler. A senhora, evidentemente, encontrava-se muito longe.

- Quem o ouvir falar dirá que foi uma conspiração - disse Edna. - A verdade é que eu nada sabia acerca do divórcio até há muito pouco tempo.

Voltei-me para Roberta.

- Isso foi devido ao facto de não saber para onde lhe comunicar o sucedido.

Roberta fez um gesto de assentimento.

- Foi um acto muito inteligente - declarei. – Foi uma bela maneira de transformar uma derrota numa vitória. Marco Cutler pensou ter obtido um óptimo divórcio. Foi para o México antes da sentença e voltou a casar-se. A senhora esperou o tempo suficiente para mostrar que estava a agir de boa fé. Depois escreveu uma carta a Roberta Fenn, pedindo-lhe para ser amável com um homem que era seu amigo. Essa foi a primeira vez que Roberta soube a sua direcção. Ela respondeu à sua carta dizendo que lhe haviam sido apresentados uns papéis que ela assinara em virtude de ter prometido afirmar que se chamava Edna Cutler. A senhora tornou a escrever-lhe na volta do correio a pedir-lhe as cópias dos documentos. Ela enviou-lhas e esse facto deu-lhe a justificação para poder jurar que era a primeira vez que tinha conhecimento de que estava divorciada. Antes disso, ainda estava convencida que era a mulher legítima de Marco Cutler. Estava separada dele, realmente, mas era ainda sua mulher. Dessa forma, escreveu a seu marido perguntando-lhe o que significava aquilo tudo e fazendo-lhe notar que o divórcio não tinha validade porque os documentos não haviam sido assinados por si. Por outras palavras, a senhora ficou com ele à sua mercê e queria fazê-lo pagar devidamente. Ele não se atreveu a informar a sua actual mulher do que se passava. Em resumo, a senhora levou-o até onde queria levá-lo.

Acabei de falar e fitei-a à espera que ela dissesse qualquer coisa.

- O senhor parece querer demonstrar que eu fiz tudo isso de propósito - disse ela finalmente. - Na realidade, o que eu pretendia era afastar-me de tudo. O meu marido fizera-me chegar às últimas. Tinha-me sujeitado a todas as humilhações. Não sei se era porque estava determinado a rebaixar-me tanto que eu nem me atrevesse a levantar a cabeça mesmo entre pessoas amigas ou porque ele próprio se sentia no lugar de vítima. Havia contratado detectives a quem pagava principescamente. Estes detectives para receberem um belo prémio tinham que apresentar provas, de forma que resolveram contar a Marco uma infinidade de mentiras e Marco convenceu-se que tinha motivos suficientes para apresentar contra mim uma queixa.

Fez uma pequena pausa e umedeceu os lábios, parecendo lutar para não perder o sangue-frio.

- E depois? - perguntei.

- Depois, quando ele me disse o que tinha contra mim, quando me mostrou os relatórios dos detectives, quando me deixou ler todo aquele amontoado de falsidades, quase endoideci.

- Não admitiu tais falsidades, pois não?

- Se as admiti! Declarei-lhe que era o maior rol de mentiras que já vira em toda a minha vida. Tive um colapso nervoso. Estive sob os cuidados de um médico durante duas semanas e foi ele quem me aconselhou a viajar e a afastar-me de tudo. Disse-me que fosse para qualquer parte onde nada me recordasse o que se tinha passado.

- Um médico simpático? - perguntei com um sorriso.

- Era muito compreensivo.

-Deu-lhe esses conselhos por escrito? - perguntei.

- Como o sabe?

- Palpitou-me.

- Bem, seja como for, prescreveu-me esse tratamento. Fui para S. Francisco. Depois de lá estar escrevi-lhe uma carta em que dizia não me sentir com disposição de voltar. Pedia-lhe que me indicasse o que devia fazer e ele enviou-me esta carta dizendo-me que achava conveniente que eu fizesse uma mudança total de ambiente.

- E, evidentemente, a senhora, por acaso, conservou essa carta. Queira continuar.

- Fui para Nova Orleães. Durante três semanas tudo correu bem. Fui para um hotel enquanto não consegui arranjar um apartamento. Depois deu-se um acontecimento.

- O que foi?

- Encontrei uma pessoa na rua.

- Uma pessoa sua conhecida?

- Sim.

- De Los Angeles?

- Sim. Por tal motivo decidi desaparecer.

- Isso não enquadra na história - declarei. - Se a senhora encontrou numa rua de Nova Orleães alguém que conhecia de Los Angeles, também viria a encontrar uma pessoa sua conhecida em Litlle Rock, Arkansas ou em Tomboctu.

- Não, o senhor não compreende. Essa amiga que encontrei desejava saber onde eu morava. Tive que lhe dizer. Sabia que ela iria contar às amigas e que, dentro de muito pouco tempo, toda a gente saberia que eu estava em Nova Orleães. Eu não desejava encontrar-me com pessoas que conhecessem a minha vida antiga, mas queria continuar a ter uma casa em Nova Orleães para onde pudesse voltar quando me apetecesse. Depois encontrei Rob. Ela tinha também algumas dificuldades. Desejava esconder a sua identidade. Perguntei-lhe se não se importava de trocarmos as nossas identidades. Ela disse que gostaria muito. Pedi-lhe então que arranjasse um apartamento que fosse suficientemente bom para eu viver lá quando me resolvesse a voltar a Nova Orleães e que a renda seria por minha conta.

- Que nome tomou a senhora?

- O de Rob.

- Durante quanto tempo?

- Não mais que dois ou três dias.

- E depois?

- Depois, subitamente, dei-me conta que estava a produzir provas contra mim mesma. Se o advogado do meu marido descobrisse o que se passava poderia dizer que eu tinha fugido e estava a viver sob um nome suposto. Isso seria uma confissão de culpa. Por tal motivo, voltei a reassumir o meu nome. O facto é que ficavam a existir duas Ednas Cutler. Uma delas era Rob que estava a viver em Nova Orleães e a outra era a verdadeira Edna Cutler.

- Muito, muito interessante - comentei. – Isso faria com que o juiz mais empedernido consultasse o código com as lágrimas nos olhos.

- Não peço simpatia. O que peço é justiça.

- Muito bem - retorqui. - Vamos acabar com a comédia. Não foi a senhora quem traçou esse plano.

- O que quer dizer?

- Não foi a senhora que fez com que o seu marido metesse todas as notas no cofre e depois o encontrasse vazio.

- Não estou a compreendê-lo.

-Conheço uma quantidade enorme de advogados. Há apenas uns quatro ou cinco capazes de imaginarem um plano tão engenhoso como esse. A verdade, porém, é que houve um advogado esperto que conseguiu levar avante um tal plano.

- Mas, se eu já lhe disse que não foi um plano. Não foi um caso pensado.

- Isso faz-nos voltar ao nosso amigo Paul G. Nostrander - declarei.

- Como assim?

- Conhecia-o?

Ela hesitou durante alguns segundos. Sorri enquanto ela procurava uma resposta à minha pergunta e depois prossegui:

- Nunca supôs que esta pergunta lhe seria feita da maneira como eu a fiz, pois não, Edna? Ainda não tinha pensado na resposta que devia dar.

- Não, não o conhecia - declarou ela em ar de desafio.

Vi que o rosto de Roberta Fenn mostrava uma expressão de surpresa.

- É nesse ponto que você comete um erro fatal sentenciei.

- O que quer dizer?

- A secretária de Nostrander certamente se recordará de que a viu no escritório Os arquivos demonstrarão que pelo menos no princípio, ele recebeu honorários de si. Gente do Bar de Jack O’Leary recordar-se-á que você esteve lá com ele. Metê-la-ão num processo por perjúrio. O seu marido gastará uma fortuna com detectives para provar a falsidade das suas declarações. Isso tudo será levado perante um tribunal onde o juiz verificará que...

- Muito bem, conhecia-o -interrompeu ela.

- Conhecia-o bem?

- Eu... Eu consultei-o.

- E o que lhe disse ele?

- Disse que o que eu tinha a fazer era não perder a calma e - continuou ela triunfantemente, como se verificasse a força da sua nova linha de defesa - para não fazer absolutamente nada antes de me serem apresentados os papéis respeitantes ao processo de divórcio. Pediu-me que assim que tomasse conhecimento dos papéis lhe comunicasse.

- Essa é uma bela defesa - declarei. – Nostrander está morto. Não pode contradizê-la e você sabe isso muito bem.

Ela contentou-se em olhar para mim, mas não negou a acusação. Voltei-me para Roberta.

- Você conhecia-o?

- Conhecia.

- Como o conheceu?

- Ele está a tentar fazer-te dizer que fui eu quem te apresentou - disse Edna apressadamente. - Encontraste-o num bar, não foi, Rob?

Roberta não deu qualquer resposta. Sorri.

- Esse é outro ponto fraco da sua história, Edna. Penso que você confiou demasiadas coisas a Roberta.

- Não lhe contei absolutamente nada.

Voltei-me novamente para Roberta.

- Esqueça a minha pergunta - disse-lhe. - Não há necessidade de mentir e se tem receio de ofender Edna, não responda. Diga-me outra coisa. Por que motivo evitava Nostrander?

- O que quer dizer com isso?

- Você ficou a viver no apartamento. Durante cerca de um ano conservou-se no Bairro Francês. Comia no Restaurante Bourbon. Foi vista frequentemente no Bar de Jack O’Leary. De acordo com a história de Edna, você devia arranjar um apartamento e conservar-se lá até que ela voltasse para Nova Orleães. Depois, repentinamente, você saiu do Bairro. Foi viver para outro local bem longe do antigo. Estudou estenografia. Nunca mais voltou ao antigo domicílio. Cuidadosamente evitava encontrar-se com Nostrander. Foi somente quando Edna deu a Archibald Smith uma carta para si que você voltou aos lugares do Bairro Francês que freqüentava antigamente. Pensou que nessa altura já estava em segurança, mas a verdade é que não estava. Nostrander fez investigações por sua própria conta. Não sei como se arranjou ele para a descobrir, mas deve ter feito a mesma coisa que eu. Seja como for, descobriu-a. Tinha andado à sua procura durante dois anos. Por que motivo saiu tão repentinamente do Bairro Francês?

- Não és obrigada a responder a essa pergunta disse Edna.

- Você também não é obrigada a responder seja ao que for - retorqui-lhe - pelo menos por agora. Mas quando for a Polícia a fazer as perguntas você não tem outro remédio senão responder.

- E por que motivo a Polícia me fará perguntas?

- Não compreende?

- Não.

- Onde estava você às duas e meia da manhã de quinta-feira?

- Com quem está a falar? - perguntou Edna. – Está a olhar para mim, mas está a fazer a pergunta a Roberta, não é?

- Não, é a si.

- O que tem isso a ver com o caso?

- A Polícia ainda não juntou todas as peças do puzzle, mas quando o fizer, o quadro será como lhe vou dizer. Você tinha um belo plano para obstar ao triunfo do seu marido. Nostrander estava ligado a esse plano, assim como Roberta Fenn. Roberta não conhecia os pormenores, mas Nostrander conhecia. Foi ele quem imaginou tudo. Era um belo plano. Resultou em cheio. O seu marido estava tomado de um pânico tal que pagaria quanto lhe exigissem. No entanto ele é um homem duro de roer. Decide-se a ir até Nova Orleães para investigar. Entrou em contacto com o solicitador que apresentou os papéis. Provavelmente entraria em contacto também com qualquer agência de detectives, se é que já não tinha uma chusma deles por sua conta em Nova Orleães. Acabaria por descobrir o papel de Nostrander no caso, Nostrander seria a testemunha-chave. Se Nostrander fosse chamado à barra do tribunal, acusado de conspiração, poderia falar. Se ele não falasse, mesmo assim você ficaria para sempre à sua mercê. Havia uma forma de assegurar o silêncio de Nostrander: uma bala de calibre 38 no coração. Mulheres mais dignas do que você sucumbiram a essa tentação.

- Você está doido - disse ela.

- É desta forma que a Polícia raciocinará.

Ela olhou para Roberta Fenn com uma expressão de desesperança.

- Suponhamos agora - continuei - que você me conta a maneira como se relacionou com Archibald C. Smith e por que motivo lhe deu uma carta para Roberta. A expressão de surpresa no seu rosto pareceu verdadeira.

- Smith! Meu Deus, o que tem esse velho fóssil a ver com isto?

- É isso que pretendo saber.

- Agora é que você está doido. Ele não tem nada a ver com isto.

- Bem, como o conheceu? O que...

A campainha da porta tocou.

- Vá ver quem é - disse eu a Edna.

Ela dirigiu-se ao telefone, carregou no botão e perguntou:

- Quem é?

Observando-lhe o rosto, vi pela expressão que o alterou repentinamente qual era a resposta.

- Tem cá alguma coisa sua? - perguntei a Roberta. - Malinha, roupas, qualquer coisa?

Ela abanou a cabeça.

- Deixei o apartamento sem trazer nada. Telegrafei a Edna e ela mandou-me um vale telegráfico. Não tive oportunidade de comprar ainda fosse o que fosse. Queria...

- Vá buscar tudo quanto trouxe - ordenei-lhe. - Tudo quanto indique que esteve aqui. Vamos embora.

- Não compreendo.

- Carregue no botão que abre a porta da rua ordenei a Edna. - Pegue em todas as pontas de cigarros que estão no cinzeiro e atire-as pela janela. Conserve esse roupão.

Vi a mão de Edna dirigir-se para o botão que comandava a fechadura da porta da rua.

- Quem é? - perguntou Roberta.

Edna voltou-se para ela. Os seus lábios trémulos não conseguiram articular uma resposta.

- A Polícia, evidentemente - respondi eu, agarrando Roberta pelo pulso e arrastando-a em direcção da porta.

 

                     Pano de fundo de um crime

Havia um pequeno hall ao fundo do corredor do andar de Edna Cutler. Continuei a segurar o pulso de Roberta até passarmos a esquina do corredor que dava para esse hall.

- Mas o que... Disse ela. - Por que...

- Psiu. Espere - segredei-lhe.

Ouvimos passos a subirem as escadas.

- Se for um só homem - ciciei – esperaremos aqui. Se forem dois, cavaremos imediatamente.

Eram dois homens. Percorreram o corredor com passo de pessoas bem alimentadas. Em seguida ouvimos batimentos na porta de Edna Cutler. Espreitei por detrás da esquina e vi dois sólidos dorsos. Tive uma rápida visão do pálido rosto de Edna; depois os dois homens entraram no apartamento. Esperei que a porta se fechasse, voltei-me para Roberta e fiz-lhe sinal para que me seguisse. Ela seguiu-me ao longo do corredor. Quando chegámos ao cimo das escadas, ela perguntou:

- Por que motivo teríamos de esperar se fosse um homem sozinho?

- Eles andam aos pares. Se um tivesse subido, isso quereria dizer que o outro estava sentado no carro, à espera. Como os dois estão no apartamento de Edna isso quer dizer que temos o campo livre. Seja como for, tenhamos esperança.

Descemos as escadas. Abri a porta e deixei passar Roberta. Um carro da Polícia estava parado em frente do prédio. Não tinha ninguém lá dentro.

- Vamos - comandei.

Descemos a rua.

- Não ande muito depressa.

- Tenho a impressão que alguém vem atrás de mim e me obriga a correr.

- Não faça isso. Olhe para mim e dê uma gargalhada. Vamos mais devagar. Vamos agora parar um pouco para apreciarmos esta montra.

Parámos, olhámos a montra e depois continuamos a andar. Com passo vagaroso contornámos a esquina.

- Conhece aqui alguém? - perguntei.

- Não.

- Muito bem. Vamos até um restaurante. Já jantou?

- Não. Íamos precisamente sair para jantar quando você tocou a campainha. Edna tinha acabado de sair do banho.

Continuámos a percorrer a rua. Uma ou duas vezes ela tentou fazer-me perguntas. Disse-lhe que esperasse. Encontrámos um restaurante de bom aspecto, com cabinas privativas, entrámos e escolhemos um compartimento afastado da porta de entrada. O criado trouxe a lista e eu pedi dois cocktails. O criado retirou-se.

- Fale baixo - disse eu a Roberta. - Conte-me tudo quanto sabe a respeito do plano de Edna.

- Nada - respondeu. - Aconteceu exactamente como você contou, com a diferença única de que eu não sabia que ela estava à espera que lhe apresentassem quaisquer papéis.

- Por que razão Nostrander estava tão ansioso por vê-la?

- Apaixonou-se por mim. Foi uma coisa muito aborrecida, pelo menos na parte que me diz respeito.

- Não me vai dizer que saiu do apartamento, que mudou completamente de género de vida, só porque um homem de quem você não gostava lhe fazia a corte.

- Bem... Bem, não foi exactamente por esse motivo.

- Então porque foi?

- Preferia não falar no caso.

Abanei a cabeça.

- Tem de ser.

- Bem, para dizer-lhe a verdade - começou ela, em parte estava a sentir-me cansada da vida que levava. Tinha todas as minhas despesas pagas em troca de ficar no apartamento e tomar o nome de Edna Cutler. Nunca me levantava antes das onze ou do meio-dia. Ia tomar o pequeno-almoço, dava um passeio, comprava revistas, voltava para casa, lia e descansava durante toda a tarde. Por volta das sete tornava a sair, comia qualquer coisa, voltava ao apartamento, tomava banho, arranjava-me convenientemente. Depois, ou tinha um encontro marcado ou ia até um bar... Bem, sabe como é a vida em Nova Orleães. Lá as coisas passam-se de uma maneira absolutamente diferente do que em qualquer outra cidade. Uma rapariga senta-se num bar e os homens começam logo a cortejá-la. Eles não têm qualquer pensamento reservado, e ela também não. Em outra cidade qualquer pensar-se-ia que ela era... Bem, Nova Orleães é Nova Orleães.

O criado trouxe-nos os cocktails. Tocámos os copos e levámo-los aos lábios. O criado ficou junto da mesa à espera das nossas ordens.

- Faz favor traz-nos ostras com molho cocktail e limão - pedi. - Em seguida pode vir sopa de aipo, dois bifes mal passados com batatas fritas e pão torrado, muita manteiga, uma garrafa de Borgonha e, finalmente, gelados, café e a conta.

O criado nem sequer pestanejou.

- Muito bem, senhor.

- Tem alguma objecção a fazer? - perguntei a Roberta.

- Nenhuma. Concordo absolutamente.

Fiz sinal ao criado, esperei que as cortinas voltassem à sua posição normal e, subitamente, perguntei a Roberta:

- Onde estava você às duas e meia de quinta-feira?

- Se eu lhe contasse o que aconteceu nessa noite você não acreditaria.

- Foi tão má como isso?

- Foi péssima.

- Conte-me.

- Havia-me conservado afastada de Nostrander. Ele nem sequer sabia que eu estava em Nova Orleães; depois descobriu-me. Você estava lá quando ele me descobriu. Ouviu o que ele disse. Era a primeira vez que o via depois de dois anos. Não quis fazer cenas na sua presença. A última vez que o vira ele portara-se como um doido. Na verdade, ele tinha um complexo de ciúme. Essa era uma das razões porque me desagradava. Sempre que eu tentava sair com outra pessoa ele perdia completamente a cabeça. Era um homem muito inteligente, mas absolutamente insuportável. Desgraçada da mulher que casasse com ele. Nem sequer consentiria que ela falasse com o leiteiro.

- Foi por esse motivo que o levou para o vestíbulo naquela noite em que estive no seu apartamento?

- Foi. Eu sabia que ele trazia consigo uma arma e tinha receio que cometesse um acto de desespero. Quando o viu em minha casa quase puxou da arma. Levei-o para o vestíbulo. Estava com uns ciúmes doidos de si. Disse-lhe que era a primeira vez que falava consigo, que você me fora visitar em missão de negócios. Não queria acreditar no que eu lhe dizia. Pensou, ao vê-lo no meu apartamento, que você era um amigo que gozava de certos privilégios. Puxou pela arma, declarou que o mataria, suicidando-se em seguida, enfim, todo o drama que costumava representar. Ao vê-lo assim, expliquei-lhe a razão por que não tinha querido voltar a vê-lo e que não gostava de sair com ele exactamente por aquele seu feitio. Ordenei-lhe que voltasse a meter a arma no bolso e acabasse com os seus ciúmes idiotas, pois iria jantar com ele.

- Ele quis saber tudo a meu respeito?

- Oh, evidentemente.

- O que lhe disse?

- A verdade. Contei-lhe que você era um detective que estava a procurar informações sobre um homem chamado Smith para poder encerrar um processo de herança.

- Ele perguntou quem era esse Smith?

- Evidentemente. Logo que eu mencionava o nome de um homem ele queria logo saber de quem se tratava. Queria saber tudo. De onde era, que idade tinha, há quanto tempo o conhecia e tudo o resto. Disse-lhe que Smith era um amigo de Edna.

- E tudo isso se passou no patamar?

- Não, não foi no patamar. Expliquei-lhe que não tinha tempo para ficar ali eternamente a discutir com ele. Tinha que me ver livre de você para depois ir jantar com ele. Foi assim que ele concordou em esperar.

- Esse é o ponto em que estou interessado. Onde esperou ele?

- Disse que esperaria lá fora e reapareceu assim que você se foi embora.

- Fez isso?

- O quê?

- Apareceu logo depois de eu me ter ido embora?

Ela notou a minha expressão.

- O que é? Qual é a sua intenção?

- Estava a procurar recordar-me. Segundo me lembro, há apenas uma fila de apartamentos no edifício. Julgo que por baixo fica um armazém e o corredor estende-se a todo o comprimento do edifício, com apartamentos de ambos os lados, não é?

- Exactamente.

- Não há qualquer canto ou vestíbulo no corredor onde um homem possa esconder-se?

- Não.

- É que, quando saí, não o vi.

- Pode ter ido até à esquina mais próxima para vigiar a sua saída sem que você o visse. Tinha um feitio muito esquisito. Era muito reservado e gostava de espiar as pessoas. Meu Deus, quando eu vivia no Bairro, poder-se-ia pensar que era um agente inimigo e ele o FBI personificado. Andava sempre à espreita e vigiava a janela do meu apartamento com um binóculo. Quando saía com alguém ele ficava à espera para ver a que horas regressava. Nunca me atrevi a convidar qualquer rapaz para subir e tomar qualquer coisa...

O criado apareceu com uma bandeja e pôs os pratos na mesa. Começámos a comer.

- Quer saber o resto? - perguntou ela, passado um pouco.

- Depois do jantar - respondi. - Agora concentremos a nossa atenção na comida. Estou cheio de fome.

Jantámos sossegadamente. Notei que os nervos de Roberta estavam a voltar à normalidade. O vinho e a comida geraram entre nós uma amizade comunicativa.

- Sabe uma coisa, Donald?

- O que é?

- Tenho a certeza que posso ter confiança em si. Vou dizer-lhe toda a verdade.

- E porque não?

Ela afastou o prato da sua frente, aceitou um dos meus cigarros e inclinou-se para a frente para que lho acendesse. Com as duas mãos pegou na minha a fim de acertar devidamente com a chama do fósforo. As mãos dela eram macias e quentes.

- Paul e eu fomos jantar. Ele queria matá-lo - declarou ela. - Embriagou-se e voltou a encher-se de ciúmes. Começou a fazer-me uma quantidade de perguntas a seu respeito. Não queria acreditar que você era detective. Acabei por aborrecer-me e disse-lhe que ele não se tinha modificado nada em dois anos. Contei-lhe que tinha tentado ver-me livre dele, mudando de residência, mas que desta vez empregaria um método mais eficaz, pois não queria voltar a vê-lo nem ter qualquer contacto com ele e que, se tentasse impor-me a sua presença, ver-me-ia obrigada a chamar a polícia.

- E que fez ele?

- Fez uma coisa que me assustou, mas que ao mesmo tempo me fez rir.

- O que foi?

- Apoderou-se da minha carteira.

- Ah, sim? Para que você ficasse sem dinheiro?

- Isso foi o que eu pensei na altura, mas mais tarde vi o que era.

- Quer dizer que ele queria ficar com a chave do seu apartamento?

- Quero.

- Onde estavam quando ele se apoderou da sua malinha?

- No Bar de Jack O’Leary. Era lá que ele costumava ir.

- E que fez ele exactamente?

- Eu disse-lhe que estava cansada da sua maneira de proceder, que não podia suportar os seus acessos de ciúme e que nunca mais voltaria a encontrar-me com ele. O bar estava à cunha. Não sabia o que ele pretendia, mas tinha a certeza que, se ele tentasse puxar por uma arma ou fazer quaisquer ameaças, havia bastante gente à nossa volta para o impedir de fazer qualquer disparate. Mesmo que lá não estivesse ninguém, eu já estava cansada de viver num terror permanente daquele homem. Antes de se apaixonar por mim ele era realmente encantador.

- Conheceu-o por intermédio de Edna?

- Conheci.

- Quais eram os sentimentos dele em relação a Edna?

- Creio que queria... Bem, queria apenas divertir-se. Creio que a encontrou no Bar de Jack O’Leary e depois resolveram passar um pouco de tempo juntos. Edna contou-lhe as suas dificuldades e ele traçou aquele plano pelo qual ela podia vencer o marido. Deve ter sido assim. Agora, posso olhar para trás e deduzir como as coisas se passaram.

- Mas Edna nunca lhe contou nada?

- Não. Edna nunca confiou em mim nem me confiou o verdadeiro motivo por que desejava que eu ficasse com o apartamento em seu nome. Deu-me umas vagas justificações, exactamente como fez consigo quando a interrogou. Não me comunicou onde se encontrava. Paul Nostrander era a única pessoa que sabia do seu paradeiro mas afirmava que não sabia. Paul dava-me todos os meses dinheiro suficiente para prover às minhas despesas.

- Você mostrou-lhe as cópias dos documentos após lhe terem sido apresentados?

- Não. Tentei fazê-lo, mas ele não quis tomar conta deles. Disse que não estava autorizado a fazer tal coisa. Comunicou-me que Edna tinha simplesmente combinado com ele a minha manutenção. Afirmava categoricamente não saber onde ela se encontrava e que não tinha qualquer meio de se comunicar com ela. Explicou-me que ela lhe havia entregue cerca de mil e quinhentos dólares para prover às minhas necessidades e que todo esse dinheiro estava já quase gasto.

- Muito bem. Você disse a Nostrander para desaparecer da sua vista e ele apoderou-se da sua malinha. E depois?

- Ele foi-se embora sem dizer nada.

- Pagou a conta?

- No Jack O’Leary não há conta. Paga-se na altura em que servem o que se pediu.

- Nesse caso, ele saiu e deixou-a sozinha à mesa.

- Sim.

- O que fez você?

- Fiquei sentada durante um bocado. Depois, uns soldados que estavam de licença começaram a fazer-me a corte e eu perguntei a mim mesma: “Porque não?” Os rapazes teriam que seguir para a frente dentro de pouco tempo. Tinham direito a passar um bom bocado. Foi isso que me levou a sorrir-lhes. Eles vieram ter comigo e passámos uma bela noite. Eram rapazes educados, mas nada conheciam de Nova Orleães. Era a primeira vez que lá iam. Eram naturais do Milwaukee. Levei-os comigo, mostrei-lhes os lugares típicos, contei-lhes algumas histórias a respeito do bairro, bebi com eles até os sentir completamente embriagados e depois fui-me embora.

- O que fez em seguida?

- Fui para casa, a pé, já não muito senhora de mim.

- Não quis tomar um táxi?

- Não. Estava sem um centime.

- E como pretendia entrar em casa se não tinha a chave?

- Tinha uma chave.

- Pensei ter-me dito que ele levara a chave consigo.

- Levou uma, mas havia outra na minha caixa do correio. Deixava-a sempre lá para um caso de emergência. Você compreende, a fechadura da porta era de mola e, às vezes, eu tinha que sair à pressa para ir comprar qualquer coisa e esquecia-me de levar a chave comigo. Foi por isso que resolvi deixar uma chave sobressalente na caixa do correio.

- A que horas deixou os soldados?

- Por volta das duas, suponho.

- E foi a pé para casa?

- Fui.

- A que horas chegou lá?

- Deviam de ser duas e vinte.

- Por que motivo se mostra tão certa do tempo? Ouviu um tiro?

- Não.

- O que ouviu então?

- Não ouvi nada. Vi.

- O quê?

- O meu amigo Archibald C. Smith.

Pensei um pouco na sua declaração.

- Um momento só - disse-lhe. - Você não podia tê-lo visto. Nessa noite ele estava em Nova Iorque.

Ela sorriu.

- Vi-o perfeitamente.

- O que lhe disse ele? Sobre que falaram?

- Não falei com ele. Vi-o a ele. Mas ele não me viu.

- Onde?

- Mesmo em frente do meu apartamento.

- Quando?

- Às duas e vinte, como lhe disse há pouco.

- Continue. O que aconteceu?

- Eu estava muito perto do edifício quando ele chegou num táxi. Saiu do carro, subiu os três degraus num salto e premiu a campainha do meu apartamento.

- Tem a certeza que era a do seu apartamento?

- Bem, tenho quase a certeza. Vi-lhe a posição do dedo. Não posso indicar exactamente qual o botão que ele premiu, mas... Não, devia ser a campainha do meu apartamento.

- O que aconteceu quando ele verificou que você não estava em casa?

- Não sei.

- Não sabe? Ele não voltou para trás?

- Não.

- Quer dizer que ele entrou no prédio?

- Quero.

- Como é que ele entrou?

- Alguém que estava no meu apartamento abriu-lhe a porta.

- E o que fez você?

- Nessa altura já tinha pensado que Paul Nostrander se apoderara da minha carteira para me deixar sem dinheiro e para poder entrar no apartamento e... Bem, para ver se eu tinha lá um diário ou uma carta sua, enfim qualquer coisa que revelasse a minha ligação com um homem.

Fiz um gesto de assentimento sem deixar de a fitar.

- E depois viu a porta abrir-se?

- Vi que ele realmente estava lá dentro. Subira ao apartamento e estava lá à minha espera.

- Uma maneira delicada de se encontrar consigo comentei.

- Não era bem isso. É claro que isso também estava nos seus planos. O motivo principal é que ele tinha-me estado toda a noite a acusar de ter relações íntimas com alguém. Compreende, a forma como eu desaparecera levava-o a pensar dessa maneira. Paul havia deitado anúncios no jornal para ver se me encontrava durante dois anos.

- Bem sei.

- É claro, muito naturalmente pensou que eu tinha fugido com um homem. Eu sabia que era apenas uma questão de tempo e que de um momento para o outro podia encontrar-me na rua frente a frente com ele, mas sentia que quanto mais tempo demorasse o nosso reencontro mais probabilidades haveria de ele se apaixonar por outra rapariga e esquecer-me. Mas Paul tinha aquele complexo que alguns homens têm: só desejam aquilo que não podem obter. Sabe como são esses homens?

Fiz um gesto afirmativo.

- E lá estava ele - continuou ela com amargura na voz - no meu apartamento, com um revólver e provavelmente bastante embriagado, sentado na cama à minha espera e absolutamente determinado a descobrir se eu tinha alguém suficientemente íntimo para entrar no meu apartamento. Ele tinha insistido em que, se você se fosse embora rapidamente, ele voltaria mais tarde e... Bem, você sabe o resto.

- E, dessa forma - comentei, Archibald C. Smith carregou no botão da campainha às duas e vinte e deparou com esse quadro.

- Sim... Ele deve ter subido até ao apartamento.

- E julga que Archibald Smith pensou que você estaria no apartamento àquela hora e que o receberia?

- Bem, certamente pensou que eu estava lá e que a campainha me acordaria. Era, pelo menos, razoável supor que eu perguntaria quem estava lá pelo telefone.

- Você ouviu algum tiro? - perguntei.

- Não.

- E ouvi-lo-ia se ele tivesse sido disparado naquele momento?

- Julgo que não, visto a detonação ter sido abafada pela almofada.

- O que fez depois?

- Atravessei a rua. Tentei ver o que se passava através da janela do apartamento. Não consegui ver nada. A persiana estava corrida.

- E depois?

- Voltei a encaminhar-me para o centro da cidade.

- A que horas?

- Deviam ser quase duas e meia. Quando cheguei à esquina, vi passar Marilyn Winton de automóvel. Ia com mais duas pessoas, um homem e uma mulher.

- Conhecia-a?

- Sabia quem ela era e, quando nos encontrávamos no corredor, falávamo-nos. O apartamento dela ficava em frente do meu.

- E o que fez depois?

- Fui para um pequeno hotel do Bairro que não exige muitas formalidades. Inscrevi-me com um nome suposto porque pensei que Paul faria chamadas para todos os hotéis à minha procura.

- E depois?

- Antes das nove voltei a pé até ao apartamento. Queria ir buscar a minha carteira, alguns artigos de toilette, apanhar um táxi e seguir para o emprego. Havia uma quantidade enorme de carros em frente do prédio e um homem que estava parado no passeio informou-me que tinha sido cometido um crime, que um advogado qualquer havia sido encontrado morto no apartamento de uma mulher e que essa mulher desaparecera. A polícia andava à procura dela.

- O que fez então?

- Como uma criança, em vez de pôr as coisas em pratos limpos enquanto era tempo, enchi-me de terror pânico e voltei para o hotel. Mandei um telegrama a Edna pedindo-lhe para me enviar dinheiro na volta do correio.

- Mandou um telegrama?

- Mandei.

- Não procurou telefonar-lhe?

- Sim.

- Conseguiu falar com ela?

- Não, ninguém atendeu o telefone.

- E ela respondeu ao telegrama?

- Nessa mesma tarde. Rebati o vale no próprio hotel e tomei o último comboio para Shreveport.

O criado apareceu, levou os pratos e trouxe o ice cream e o café.

- Tem confiança em Edna?

- Antigamente tinha. Agora não tenho a certeza. É uma pessoa muito estranha.

- O caso de Edna fica bastante favorecido com o desaparecimento de Nostrander.

- Sim. Vejo isso... Agora.

- Podia ser motivo para um homicídio.

- Quer dizer que ela podia tê-lo matado?

- A polícia pode pensar isso.

- Mas ela estava em Shreveport.

- Não quando você lhe telefonou.

- Bem... Não, talvez não.

- Era já bastante tarde quando ela lhe enviou o dinheiro?

- Era.

Acabámos de comer os ice creams e ficámos sentados a fumar e a tomar o café. Nenhum de nós falou. Ambos estávamos a pensar.

- O que farei agora? - perguntou ela finalmente.

- Tem dinheiro?

- Tenho ainda algum do que Edna me mandou. Diga-me, Donald, o que devo fazer? Devo ir ter com a polícia e contar a minha história?

- Por enquanto não.

- Porquê?

- É demasiado tarde. Você perdeu o comboio.

- Não podia explicar que...

- Agora não.

- Porquê?

- Você não o matou, pois não? - perguntei.

Ela fitou-me como se lhe tivesse atirado com qualquer coisa.

- Muito bem - acrescentei. - Alguém o fez. Esse alguém não apreciaria nada melhor do que vê-la nas mãos da polícia.

- Bem, e não seria melhor para mim estar nas mãos da polícia para poder esclarecer tudo?

- Não o creio.

- Porquê?

- Se você estiver fora da circulação durante algum tempo, o verdadeiro assassino tentará fazer de você o bode expiatório, prestando falsas declarações, procurando arranjar provas contra si e outras coisas no género. Nessa altura você terá oportunidade de saber quem é ele. Demos-lhe bastante corda e verá que acabaremos por enforcar nela o verdadeiro culpado.

- Espero que não seja eu.

Fitei-a nos olhos e levantei a chávena de café.

- Também o espero.

Paguei a conta, perguntei se o restaurante tinha cabina telefónica, indicaram-me onde era, fechei-me lá dentro e pedi uma ligação para o aeroporto de Nova Orleães.

- Daqui fala o detective Lam que se encontra em Shreveport - comecei. Depois para evitar que me fizessem perguntas para saberem se eu era agente oficial ou particular, comecei a falar a toda a velocidade. – Na quarta-feira ao meio-dia saiu daí um passageiro com destino a Nova Iorque, esse passageiro chegou a Nova Iorque, mas voltou para Nova Orleães. O seu nome é Emory G. Hale.

A voz do outro extremo da linha disse:

- Um momento só que vou consultar os registros. Esperei um pequeno espaço de tempo durante o qual pude ouvir papéis a serem mexidos; depois a voz informou: - Exactamente. Emory G. Hale, Nova Iorque e regresso.

- Não poderá dar-me uma descrição dele?

- Não, não me lembro dele. Um momento se faz favor.

Ouvi-o dizer alto:

- Alguém se lembra de ter vendido um bilhete para Nova Iorque, na quarta-feira, a um homem chamado Hale? É uma chamada da polícia de Shreveport... Não, lamento, mas ninguém se recorda dele.

- Não costumam pesar os passageiros?

- Costumamos sim.

- Qual foi o peso de Hale?

- Um momento só. Tenho aqui o registro mesmo à minha frente. Pesou... Vejamos... Sim, cá está. Pesou sessenta e seis quilos e duzentos gramas.

Agradeci e desliguei. Emory G. Hale devia pesar à vontade uns noventa quilos. Saí da cabina telefónica.

- O que foi? - perguntou Roberta. - Más notícias?

- Quer ir para a Califórnia? - perguntei-lhe.

- Quero.

- Julgo que poderemos alugar um carro que nos leve até Fort Worth e de lá tomaremos um avião que nos deixe em Los Angeles amanhã de manhã.

- Porquê a Califórnia?

- Porque este Estado é muito perigoso para si.

- Não chamaremos a atenção de alguém?

- Sim, e quanto mais melhor.

- Não compreendo.

- As pessoas costumam tecer suposições sobre um casal que não conhecem. O que há a fazer é dar-lhes a conhecer quem somos. Relacionar-nos-emos com toda a gente, desde o condutor do carro que alugarmos até aos passageiros do avião. Seremos marido e mulher. Saímos de Los Angeles para irmos passar a lua-de-mel ao leste. Acabamos de receber um telegrama onde nos é anunciado que sua mãe teve um colapso cardíaco e nós apressamo-nos a voltar. Foi uma lua-de-mel interrompida. As pessoas simpatizarão conosco e lembrar-se-ão de nós naquela qualidade. Se a polícia começar a enviar pelo telégrafo a sua descrição, acompanhada da nota de que é procurada por crime de homicídio, ninguém ligará essa descrição com aquela pobre noiva que estava em tão grandes cuidados pela saúde da mãe.

- Quando partimos? - perguntou ela.

- Logo que mande vir um automóvel.

Depois de dizer isto voltei à cabina telefónica.

 

                   Bertha ouve o que não quer

Ao alvorecer de domingo voávamos sobre o Arizona. Gradualmente o deserto ia deixando de ser um mar cinzento e esbatido por debaixo de nós e adquiria forma, substância e cor. As pontas aguçadas dos montes erguiam-se ao encontro do avião, dando uma vaga sugestão de luz. Mais abaixo, os profundos canyons e as terras fundas e secas estavam cheios de sombras. As estrelas iam perdendo o seu brilho até se apagarem completamente. O roncar dos dois motores do avião que nos transportava para oeste ia acordando ecos nas rochas que sobrevoávamos. De leste apareceu um brilho róseo. Os cumes das montanhas pareciam banhados em champanhe. Depois, subitamente, o Sol apareceu no horizonte e os seus raios iluminaram-nos. As ténues cores do alvorecer deram lugar a uma cascata de luz que deu vida à paisagem. O Sol continuou a subir. Logo a seguir passámos sobre o rio Colorado, entrando na Califórnia. O roncar dos motores deu lugar ao característico zumbido que precede a aterragem. Descemos num pequeno aeroporto do deserto onde nos foi servido café quente, ovos e presunto, enquanto o avião se reabastecia. Voltámos a partir. Grandes montanhas cobertas de um manto de neve apareceram à nossa frente, guardando a entrada do deserto, como se fossem sentinelas vestidas de cinzento e branco. Depois, quase sem transição, o deserto ficou para trás e agora sobrevoávamos um extenso pomar de laranjeiras e limoeiros, dispostos numa procissão que parecia não ter fim. Os telhados vermelhos das casas caiadas de branco formavam um vivo contraste com o verde violento dos citrinos. Dúzias de cidades, em constante crescimento e parecendo quererem juntar-se umas às outras à medida que nos aproximávamos de Los Angeles, eram a imagem da prosperidade da região por baixo de nós. Depois o avião pareceu começar a perder altura. Olhei para Roberta.

- Estamos quase a chegar - disse-lhe.

Ela sorriu, com um ar um pouco sonhador.

- Creio que foi a mais bela viagem de núpcias que já tive.

Quase sem darmos conta do facto, o avião deixou o céu e deslizava agora sobre uma extensa pista de cimento. As rodas tocaram mansamente no terreno e estávamos em Los Angeles.

- Muito bem. Cá estamos - declarei. - Vamos para um hotel e de lá entrarei em contacto com a minha sócia.

- A Bertha Cool de quem me falou?

- Sim.

- Pensa que ela vai gostar de mim?

- Não.

- Porquê?

- Ela não gosta de raparigas bonitas... principalmente se sabe que eu gosto.

- Porquê? Tem medo que a deixe?

- Apenas por princípio. Provavelmente não tem qualquer razão.

- Vamos... registrar-nos sob os nossos nomes verdadeiros?

- Não.

- Mas, Donald, você... Eu...

- Você registrar-se-á sob o nome de Roberta Lam informei-a.

- Eu registrar-me-ei com o meu verdadeiro nome. Daqui em diante somos irmãos. A nossa mãe está muito mal. Viemos para o seu lado a toda a pressa.

- E eu sou Roberta Lam?

- É.

- Donald, você não está a colocar-se numa situação arriscada?

- Porquê?

- Dando-me a protecção do seu nome, sabendo que sou procurada pela polícia.

- Não sabia que você era procurada pela polícia. Porque não me disse isso?

Ela sorriu.

- É um belo álibi, Donald, mas que não lhe valerá de nada. Perguntar-lhe-ão quais os motivos que o levaram a acompanhar-me, fazendo-me inscrever sob um nome suposto e um suposto parentesco, se não sabia que a policia me procurava sob o meu verdadeiro nome?

- A resposta é muito simples. Você é uma testemunha material. Creio que posso utilizar-me de si para desvendar um crime. Quero-a ter sob a minha protecção. Em vez de fazer um relatório escrito para Bertha Cool, preferi trazê-la comigo para que ela pudesse ouvir dos seus lábios toda a história.

Ela ficou silenciosa durante uns momentos.

- Tenho a certeza - declarou - que Bertha Cool ficará a odiar-me desde o primeiro instante em que me vir.

- Provavelmente não mostrará muita cordialidade consigo.

Fomos para um hotel e registrámo-nos. O empregado ouviu atenciosamente a minha história sobre a nossa mãe quase a morrer quando lhe disse que precisava de fazer uma chamada telefónica urgente. Indicou-me a cabina. Liguei para o número secreto de Bertha. Ela não atendeu. Subi para o meu quarto e voltei a ligar para Bertha. Desta vez fui atendido por uma criada.

- A Srª. Cool? - perguntei.

- Não está.

- Quando voltará?

- Não sei dizer.

- Para onde foi ela?

- Pescar.

- Quando voltar diga-lhe para ligar para... Não, diga-lhe que telefonou o Sr. Donald Lam, que continuará a chamar de hora a hora até conseguir falar com ela.

- Sim senhor. Penso que a pescaria era muito cedo. Espero que a senhora esteja de volta bastante cedo.

- Telefonarei de hora a hora. Diga-lhe isso mesmo.

Meti-me num banho quente onde permaneci quase um quarto de hora, depois pus-me de pé e tomei um duche frio. Massagei-me a mim próprio, vesti o pijama, fiz a barba e meti-me na cama. Fui acordado pelo leve abrir e fechar da porta de comunicação entre o meu quarto e o de Roberta.

- O que é? - perguntei.

- Está na hora de telefonar novamente a Bertha.

Desta vez Bertha estava em casa. Ouvi a criada chamá-la e em seguida os seus passos apressados batendo pesadamente no soalho. Depois o som áspero da sua voz chegou-me ao ouvido.

- Meu Deus, porque é que você não sossega um pouco? De que pensa que a agência é feita? De dinheiro? Quando precisa de conferenciar comigo porque não utiliza o telefone? Já o tentei fazer compreender isso mais de uma dúzia de vezes.

- Já disse tudo? - perguntei.

- Inferno, não! - disse ela belicosamente. – Ainda nem sequer comecei.

- Muito bem, voltarei a chamar quando estiver calma. Um homem não deve discutir com uma senhora.

Pus calmamente o telefone no apoio, cortando abruptamente o som gritante da voz de Bertha. Os olhos de Roberta estavam desmesuradamente abertos. Vi que ela estava aterrorizada.

- Donald, você vai lutar por minha causa?

- Provavelmente.

- Por favor, não faça isso.

- Temos que lutar por qualquer motivo.

- Não compreendo.

- Bertha. É preciso dar-lhe com um pau na cabeça para evitar que ela nos derreta os miolos. Nela, aquilo nada quer dizer. É mesmo assim. Não consegue modificar-se. Assim que ela levanta a grimpa é preciso dar-lhe logo para baixo. Não há outro remédio. Vou dormir mais um bocado. Não se incomode a acordar-me. Vá para o seu quarto e durma também um pouco.

- Não lhe telefona novamente?

- Daqui a bocado.

Roberta sorriu com ar pensativo.

- Você é um rapaz muito engraçado - declarou.

- Porquê? - perguntei, metendo-me na cama.

- Por nada - respondeu ela, retirando-se para o seu quarto.

Levei dez ou quinze minutos a conciliar o sono. Devo ter dormido umas duas horas. Quando acordei liguei novamente para Bertha.

- Olá, Bertha. Daqui fala Donald.

- Você, seu insecto imundo! Seu verme nojento! O que quis dizer com isso de desligar enquanto eu falava? Hei-de ensiná-lo a não voltar a fazer-me isso. Diabos me levem, seu...

- Voltarei a falar daqui a duas horas – interrompi e desliguei.

Roberta veio ter comigo passada uma hora.

- Não o ouvi levantar-se.

- Você estava a dormir. Devia sentir-se bastante cansada.

- Sentia.

Sentou-se no braço da minha cadeira, pousou-me a mão no ombro e olhou para o jornal que eu segurava.

- Voltou a chamar a Srª. Cool?

- Voltei.

- O que disse ela?

- A mesma coisa.

- E você o que fez, Donald?

- A mesma coisa.

- Julguei que estava ansioso por falar com ela.

- Estou.

Roberta deu uma gargalhada.

- E tomou você um avião a toda a pressa para poder conferenciar com ela, para agora estar aqui sentado sem fazer nada.

- Exactamente.

- Não compreendo isso.

- Estou à espera que Bertha arrefeça.

- Crê que ela acalmará? Não pensa que se zangará cada vez mais?

- Nesta altura está tão raivosa que era capaz de comer pregos. Ao mesmo tempo está cheia de curiosidade. A curiosidade persiste até que seja satisfeita. A raiva acaba por passar. Esse é o segredo de tratar com Bertha. Quer a página das anedotas?

O riso dela era nervoso.

- Por agora não - respondeu. - O que é isto?

Inclinou-se para ler um parágrafo do jornal que eu segurava. Senti o seu cabelo na minha cara. Conservei o jornal imóvel até ela ter acabado de ler; depois deixei-o cair no chão e inclinei o corpo para o lado. Ela escorregou para o meu colo. Beijei-a. Por um momento os seus lábios sugaram os meus, um oval quente ávido de carícias; depois, subitamente, os seus olhos de avelã fitaram-se duramente nos meus. Recuou a cabeça, sorrindo um pouco.

- Já imaginava que isto tinha de chegar.

- O quê?

- Este truque.

Levantei-a gentilmente do meu colo e sentei-a na carpete.

- Não foi um truque. Foi um beijo.

- Oh!

Ela ficou sentada no chão por um momento, a olhar para mim e depois deu uma nova gargalhada.

- Você é muito engraçado.

- Porquê?

- Oh, não sei. Por uma quantidade de coisas. Você gosta de mim, Donald?

- Gosto.

- Você pensa que eu... Cometi um crime?

- Não sei.

- Mas crê que possa tê-lo cometido?

- Creio.

- É por isso que você toma tantas precauções?

- Eu tomei alguma precaução?

- Donald, eu não queria que você fizesse isso por mim.

Estava agora sentada aos meus pés, com as mãos apertando-me os joelhos.

- Penso que você é uma pessoa maravilhosa, disse ela com voz meiga.

- Não sou.

- Para mim tem sido maravilhoso. Não sei se devo dizer-lhe o que significa para mim encontrar-me com alguém que proceda... Bem, que seja decente. Você fez-me voltar a ter fé na natureza humana. A razão por que desapareci a primeira vez foi... Oh, estava envolvida em qualquer coisa sórdida, brutal e aterrorizante. Nem mesmo a si sou capaz de contar. Não quero que você saiba o que foi, mas foi um acontecimento que me fez perder a fé na natureza humana. Cheguei à conclusão que as pessoas, principalmente os homens, eram... A maçaneta da porta rodou com um estalido. Alguém começou a bater na porta. Roberta olhou para mim com expressão de sobressalto.

- Polícia? - perguntou num murmúrio.

Com um gesto apontei-lhe a porta de comunicação. Ela deu dois passos em direcção da porta do seu quarto, depois voltou para trás. Senti a sua mão no meu queixo erguendo-me a cabeça. Antes que eu me desse conta do que estava acontecendo, os seus lábios pousaram-se nos meus. As batidas na porta dobraram de intensidade. Roberta murmurou:

- Se for o que receio, acabou-se. Obrigada e adeus.

Atravessou o quarto com a leveza de um passarito. A porta fechou-se sem ruído. As batidas na minha porta continuavam e, por cima delas, começou a soar a voz zangada de Bertha Cool.

- Donald, abra esta porta!

Atravessei o quarto e abri a porta.

- O que diabo pretende você fazer? – perguntou cheia de raiva.

- Sente-se, Bertha. Tem aqui esta cadeira. Leu os jornais, segundo suponho? Deve ter feito um belo trabalho para conseguir localizar a minha chamada deste hotel. Provavelmente custou-lhe bom dinheiro.

- Você é um sócio dos diabos - começou ela. Desaparece sem mais nem menos, e não comunica a ninguém onde se encontra! Hale telefonou-me de Nova Orleães. Está zangadíssimo. Diz que está convencido que você o atraiçoou e que não nos pagará nada. Vai-nos responsabilizar por quebra de contrato.

- Quer um cigarro Bertha?

Ela inspirou profundamente, ia começar a dizer qualquer coisa, mas depois mudou de idéias; os seus lábios uniram-se com força, formando uma linha direita e fina. Acendi um cigarro.

- É esse o pago de ter feito de si meu sócio, seu rato infecto - desabafou ela. - Fui buscá-lo à sarjeta onde você se encontrava tão esfomeado que as iniciais do seu cinto começavam a gravar-se-lhe na pele. Dei-lhe comida e trabalho e, passados dois anos, você conseguiu fazer-se meu sócio. Agora é você quem dirige os negócios com idéias largas. Suponho que, dentro em breve, serei eu quem estará ao seu serviço.

- Acho que é melhor sentar-se - disse eu. – Tenho a impressão que vai demorar-se um bocado.

Ela não fez qualquer menção de sentar-se. Dei uns passos e estendi-me na cama uma vez mais, pondo um cinzeiro a jeito. Aparentemente, Bertha não tinha a mais leve idéia de que Roberta Fenn estava no quarto vizinho.

- Você tem carradas de razão - disse ela. – Vou demorar-me um grande bocado. Vou ficar aqui consigo até que tudo esteja esclarecido. Se for necessário, ligá-lo-ei a mim com umas algemas. Agora, faça uma chamada para Nova Orleães, para o Sr. Hale, e diga-lhe onde se encontra e que veio aqui para conferenciar comigo e que não teve tempo de o prevenir por se tratar de um assunto muito urgente. Fale com ele e procure justificar-se e à agência o melhor que possa. Continuei a fumar tranquilamente sem fazer qualquer gesto para pegar no telefone.

- Ouviu o que eu disse?

- Perfeitamente.

- Vai fazer a chamada?

- Não.

Bertha foi até junto do telefone, levantou o auscultador e disse para a telefonista:

- O Sr. Lam deseja falar com Emory G. Hale que se encontra em Nova Orleães. Encontra-se no Monteleone Hotel. É uma chamada pessoal. Não quer ser atendido por outra pessoa qualquer... Como?... Sim, sou... Está bem. É do quarto do Sr. Lam. Ele deseja falar... Sim, evidentemente que ele está aqui.

Apertou o aparelho com tanta força que os ossos das articulações fizeram branquear a pele à sua volta.

- Muito bem - disse ela.

Voltou-se para mim.

- O que é? - perguntei.

- Querem que você aprove a chamada.

Não fiz o mais pequeno gesto. Ela estendeu-me o aparelho.

- Diga-lhes que façam a chamada!

Continuei a fumar.

- Quer dizer que não dá ordem para que façam a chamada?

- Exactamente.

Ela pousou o aparelho com tanta força sobre o descanso que, no primeiro instante, julguei vê-lo voar em pedaços.

- Diabos levem todos os malditos filhos das ervas! Diabos levem os desavergonhados...

A sua voz foi subindo de tom até se lhe estrangular na garganta.

- Pode muito bem sentar-se, Bertha.

Ela ficou parada a olhar-me fixamente e depois exclamou inesperadamente:

- Oiça, amorzinho, não seja assim. Bertha fica excitada, mas é tudo por se afligir a seu respeito. Bertha pensou que lhe tinha acontecido alguma coisa, que alguém o tinha atingido com uma bala.

- Lamento.

- Lamenta! Você nem sequer se incomodou a mandar-me um telegrama. Você, seu... Oiça, amorzinho, Bertha não gosta que a tratem assim. Você pôs-me terrivelmente nervosa.

Ela aproximou-se da cadeira e sentou-se.

- Fume um cigarro - aconselhei. - Acalmar-lhe-á os nervos.

- Porque saiu de Nova Orleães? - perguntou, passado um ou dois minutos.

- Pensei que devíamos ter uma conferência.

- A respeito de quê?

- Dir-lhe-ei quando estiver calma.

- Diga-me agora, Donald.

- Não, agora não.

- Porquê?

- Você está demasiadamente excitada.

- Não estou excitada tal.

- Espere até eu verificar que está a apreciar devidamente o cigarro e depois falaremos.

Ela recostou-se na cadeira e procurou acalmar. Os seus olhos, porém, continuavam duros e zangados. Esperei até que ela acabasse de fumar o cigarro.

- Vai dizer-me agora?

- Fume outro cigarro.

Ela endireitou-se na cadeira, com os olhos chamejando na minha direcção.

- Suponho que tudo é devido ao facto de o dinheiro não significar nada para você - começou ela. – Você nunca teve a responsabilidade de dirigir um negócio. Lá porque tivemos sorte nos primeiros casos em que a nossa sociedade teve que intervir, isso não quer dizer...

- Não falámos já anteriormente sobre esse assunto? - interrompi.

Ela começou a levantar-se da cadeira, mas, em meio do gesto, arrependeu-se e voltou a sentar-se. Ela não disse mais nada e eu fiz o mesmo. Ficamos sentados em silêncio durante cerca de um quarto de hora. Finalmente Bertha pegou noutro cigarro. Começou a fumá-lo com uma profunda inspiração.

- Muito bem, amorzinho - disse ela, vamos falar agora.

- O que descobriu sobre aquele antigo caso de homicídio?

- Donald, por que motivo quer descobrir isso?

- Penso que tem qualquer relação com o que aconteceu em Nova Orleães.

- Bem, por enquanto não conseguimos averiguar nada. Temos alguns agentes a trabalhar no caso.

- E quanto a recortes de jornais?

- Mandei a Elsie Brand à biblioteca para que copiasse tudo dos arquivos dos jornais. Donald, você devia limitar-se a encontrar o paradeiro dessa rapariga.

- Qual rapariga?

- Roberta Fenn.

- Encontrei-a uma vez.

- Bem, descubra-a segunda vez - disse Bertha com um leve tom de comando.

- Estou aborrecido com Hale.

- O que fez ele?

- É um tipo cheio de defeitos.

- Ouça-me agora, Donald Lam. Nós não mantemos uma sociedade que pretenda purificar os nossos clientes. Dirigimos uma agência de detectives. Pretendemos ganhar dinheiro com esse negócio. Se um cliente vem ter comigo e diz que deseja encontrar alguém, pondo dinheiro à minha disposição, o que importa realmente é o dinheiro.

- É dessa maneira que tenho procedido.

- E é a única maneira de fazermos negócio.

- Talvez.

- Oh, bem sei que não é a sua maneira de ver as coisas. Você tem que combater contra moinhos de vento. Você pensa que, lá por dirigirmos uma agência de detectives, devemos ser uma espécie de cavaleiros da Távola Redonda. Você encontra donzelas em perigo e apaixona-se por elas... E elas por si, e...

- No entanto, continuo aborrecido com Hale.

- Também eu. Tenho medo que ele não nos pague o bónus.

- Não fez um contrato escrito?

- Bem... Bem, pode haver uma probabilidade de ele o quebrar tecnicamente... Somente sob um ponto de vista técnico. Porque é que você está aborrecido com ele?

- Vejamos as coisas com olhos de ver - retorqui.

- Hale veio de Nova Iorque. Contratou-nos em Los Angeles para encontrarmos uma rapariga em Nova Orleães. Foi demasiadamente fácil encontrá-la.

- Mas Hale não sabia isso - retorquiu Bertha.

- O inferno é que não sabia. Hale sabia perfeitamente onde ela vivia. Podia dizer a qualquer momento onde ela se encontrava. Tinha acabado de andar a passear com ela quando veio ter conosco.

- Isso pode não querer dizer nada.

- Muito bem, passemos à frente disso e vejamos outra coisa.

- Ponha isso tudo de lado, Donald. Hale disse para não darmos atenção a esse ponto.

- Porque disse ele isso?

- Não sei. Provavelmente porque não queria ver-nos perder tempo com coisas sem interesse.

- Descobrimos Roberta - fiz notar. - íamos encontrar-nos com ela na manhã seguinte. Suponhamos que Hale não estava em Nova Iorque. Na verdade, ele estava em Nova Orleães.

- Como sabe isso?

- Porque fiz investigações no aeroporto. O homem que seguiu para Nova Iorque, voltando depois, usando o nome de Emory G. Hale, pesava sessenta e seis quilos.

- Talvez a balança não estivesse boa.

Sorri-lhe.

- Não ponha esse ar superior! Continue, se está nessa disposição de espírito. Conte-me o resto.

- Você fez uma chamada para Hale, para Nova Iorque. Não conseguiu falar com ele, mas Hale fez uma chamada para si e disse que estava a falar de Nova Iorque. Você não sabe se ele estava lá ou não. Ninguém sabe. Podia até estar a falar consigo do prédio ao lado. Tudo quanto ele precisava era de uma rapariga que dissesse ao telefone: “Uma chamada de Nova Iorque para a Srª. Bertha Cool. É a própria? Um momento que vou ligar.”

Os olhos de Bertha despediam chamas.

- Continue. Deite isso tudo cá para fora.

- Quando apareceu em Nova Orleães na manhã seguinte e lhe comuniquei que tinha descoberto Roberta Fenn e que nos dirigimos para o apartamento dela, ele sabia muitíssimo bem que ela não se encontrava lá.

- Como sabe isso?

- Porque ele me acompanhou.

- E o que tem isso a ver com o caso?

- Não compreende? Ela conhecia-o sob o nome de Archibald C. Smith. Logo que ela o visse, dir-lhe-ia imediatamente: “Oh, como está, Sr. Smith? O que o traz por cá?” Depois o seu jogo ficaria completamente descoberto. Ele sabia isso. Portanto, se ele pensasse que ela se encontrava lá, dir-me-ia para ir falar com ela sozinho. Bertha mostrava-se agora muito interessada.

- Mais alguma coisa?

- Uma quantidade de coisas.

- O quê?

- A única testemunha verdadeira da hora exacta do tiro é uma rapariga chamada Marilyn Winton. Trabalha num clube nocturno. Ia a entrar no prédio quando ouviu o som de um tiro. Consultou o relógio de pulso alguns minutos mais tarde. Ela afirma que o tiro foi disparado às duas e trinta e dois exactos.

- E o que sabe dela?

- Emory Hale foi visto a entrar no prédio por volta das duas e vinte.

- Quer dizer que era onde se encontrava quando o supúnhamos em Nova Iorque?

- Exactamente.

- Quem o viu?

- Não lhe posso dizer.

O sangue afluiu-lhe ao rosto.

- O que quer dizer com isso de não me poder dizer?

- Exactamente o que disse. Por enquanto é confidencial.

Ela fitou-me como se desejasse fulminar-me.

- Uma rapariga qualquer - disse ela finalmente. - Uma rapariguinha que pretende que você lhe arraste a asa diz-lhe que viu Hale entrar no prédio e você não pode dizer nada porque é confidencial. E desta forma não confia na sua própria sócia somente porque uma arvéola qualquer de sorriso bonito o fita com olhos langorosos e o torna macio como veludo. Porcas!

- Houve mais outra pessoa a dizer-me que era verdade.

- Quem?

- Hale.

- Donald... Você quer dizer que falou com ele a esse respeito? A condição principal que ele nos impôs no contrato foi que, em nenhumas circunstâncias, devíamos investigar a seu respeito. Ele queria...

- Não ferva em pouca água - interrompi-a. – Ele não me disse por palavras. As suas acções falaram por ele.

- O que quer dizer?

- Ele estava ansioso por conhecer essa Marilyn Winton. Levei-o ao clube nocturno. Tomámos umas quatro ou cinco bebidas cada um. Eu desejava descobrir o que era que ele pretendia.

- Foi ele quem pagou as bebidas?

- Evidentemente. Posso ser parvo em assuntos de dinheiro, mas não sou tão parvo como isso.

- O que descobriu?

- Ele começou a falar com Marilyn Winton acerca das horas em que ela ouviu o tiro e perguntou-lhe se tinha a certeza que eram duas e trinta e dois e não três.

- E então?

- Ela respondeu-lhe que eram duas e trinta e dois pelo seu relógio de pulso. Hale gabou-lhe o relógio e pediu-lhe que lho mostrasse.

- E que mal há nisso?

- Nessa altura ele estava a beber coca-cola com gin.

- E o que tem isso a ver com aquilo de que estamos a falar? - perguntou ela impacientemente.

- Ele pôs o copo em cima dos joelhos, debaixo da mesa, enquanto segurava no relógio. Estava a decorrer um espectáculo de variedades e as luzes estavam apagadas. A sua mão direita, segurando o relógio de pulso, mergulhou debaixo da mesa por uns momentos. Depois disso assoou-se e ficou com o lenço na mão durante um bocado. Em seguida voltou a pôr o copo em cima da mesa e, enquanto fazia isso, meteu o relógio de pulso no lenço. Depois devolveu o relógio a Marilyn e ela pegou num guardanapo e esfregou o pulso com ele.

- Não me aborreça com essa história – disse Bertha. - O que tem tudo isso a ver com o caso? Que me interessa que ele se tenha assoado ou não? Desde que nos pague, pode assoar-se à sua vontade. Pode até...

- Você não compreendeu - retorqui. - O que a rapariga fez em seguida, metendo a ponta do guardanapo num copo de água e esfregando o pulso com ela, é um pormenor muito significativo.

- Porquê?

-O relógio de pulso estava pegajoso.

- Não compreendo o que quer dizer com isso.

- Meta um relógio de pulso dentro de um copo de gin com coca-cola, deixe-o lá ficar durante um minuto, depois tire-o, limpe-o com um lenço e verá que o relógio fica pegajoso. Como sabe, a coca-cola é feita com muito açúcar.

- E porque raio é que uma pessoa meteria um relógio de pulso num copo de gin com coca-cola? – perguntou Bertha.

- Para que, quando a proprietária do relógio fosse mais tarde interrogada sobre a hora exacta em que ouviu o tiro, ela tivesse de confessar que, passados uns dias, verificara que o seu relógio não estava a trabalhar bem e até fora obrigada a levá-lo a um relojoeiro.

Bertha ficou sentada a pestanejar como se eu lhe tivesse acabado de pôr diante dos olhos uma luz muito forte.

- Diabos me levem!

Não falei mais. Deixei-me ficar sentado, permitindo que ela pensasse devidamente em tudo quanto lhe dissera. Passado um pouco Bertha mexeu-se.

- Tem a certeza do que me disse a respeito do relógio, Donald? Tem a certeza que ele o mergulhou na bebida?

- Não. Contei-lhe simplesmente o que deduzi. São meras provas circunstanciais.

- Por que diabo é que ele teria ido ao apartamento de Roberta Fenn?

- Por duas razões.

- Roberta Fenn é a primeira?

- Sim. E a segunda é o advogado morto, Nostrander.

- Por que razão entra Nostrander no quadro?

- Roberta Fenn sentia-se desanimada da vida. Foi para Nova Orleães. Edna Cutler estava em Nova Orleães. Edna é a mulher de Marco Cutler. Marco preparava-se para lhe mover uma violenta acção de divórcio. Edna não quis encarar a situação de frente e partiu para Nova Orleães. Fez com que Roberta passasse a viver sob o seu nome. Quando chegaram os papéis que deviam ser apresentados a Edna, o solicitador apresentou-os a Roberta. Marco Cutler conseguiu o divórcio. Não esperou pela sentença final. Casou-se com uma mulher rica, mas que tem muita personalidade e deve estar à espera de um bebé. Edna Cutler esperou essa altura para reentrar em cena e, com toda a calma, declarar que nunca tinha ouvido falar no tal divórcio. Foi uma bela jogada. Atou o marido de pés e mãos, a menos que ele prove que houve fraude e má fé.

- E pode fazer isso?

- Pode tentar fazê-lo.

- De que maneira?

- Contratando detectives.

- Que detectives?

- Nós.

Os olhos de Bertha deixaram de pestanejar repentinamente.

- Diabos me levem! - disse ela finalmente, quase sem fôlego.

- Compreendeu agora? - perguntei.

- É claro que compreendi. Marco Cutler pertence à categoria dos milionários. Se ele nos tivesse contratado directamente e nos tivesse dito o que queria que descobríssemos, depená-lo-íamos nas devidas condições. Mais ainda, ficaríamos em posição de exercer chantagem sobre ele. Contratou esse advogado de Nova Iorque para vir ter conosco e, como o homem era de Nova Iorque, ficámos a pensar que o cliente envolvido no caso era também de Nova Iorque.

- Continue, está a raciocinar devidamente.

- Depois esse advogado, sob o nome de Smith, descobriu Roberta Fenn e tentou fazê-la falar. Como não conseguiu nada, dirigiu-se a nós. Sabia exactamente o que desejava que descobríssemos, mas não queria mostrar o seu jogo. Mandou-nos para Nova Orleães e disse-nos para descobrirmos Roberta Fenn, sabendo perfeitamente que a encontraríamos com toda a facilidade. O que ele realmente desejava era que investigássemos o passado dela e que depois falássemos com ela. Pensou que ela poderia desabafar com alguém que estava a encerrar um processo de herança em que ela tinha a receber algum dinheiro.

- Podia ser realmente assim - concordei.

- E, pelo simples motivo de ele nos ter vendido todo esse jogo - continuou Bertha - fiz-lhe um preço barato. É claro, foi um preço muito razoável, duas ou três vezes mais elevado do que o que costumamos fazer para casos que se passam cá na cidade, mas... Meu Deus, se eu tivesse adivinhado!

- Agora já sabe.

Bertha pestanejou e disse:

- Isso é verdade, agora já sei.

- Aconteceu ainda mais qualquer coisa - declarei.

- O que foi?

- Levei Emory Hale para o seu apartamento. Ainda não estava lá há muito tempo quando começou a revistar uma velha secretária e descobriu dentro dela alguns recortes de jornais referentes ao assassínio de Howard Chandler Craig. Parece que Craig estava num automóvel com Roberta Fenn quando o famigerado “bandido amoroso” saiu de entre uns arbustos, tirou o dinheiro a Craig e tentou levar a rapariga. Craig não teria suportado essa afronta e foi morto. Pelo menos foi essa a história que a rapariga contou.

- Continue - disse Bertha. - Conte o resto.

- No fundo da secretária estava um revólver calibre 38. Craig foi morto com uma bala de calibre 38.

- Nesse caso Roberta Fenn foi a autora desse assassínio. A história que ela contou do assalto era invenção sua.

- Não necessariamente.

- Bem, se se averiguar que foi essa a arma do crime, o caso torna-se claro como água.

Abanei a cabeça.

- Porque não?

- Hale entrou em contacto com Roberta Fenn numa altura em que se fazia passar por Archibald C. Smith, agente de seguros em Chicago - expliquei. – Tentou fazer Roberta falar. Ou ela não falou ou não disse aquilo que Hale desejava.

- E o que era que ele desejava ouvir?

- Que havia qualquer pacto entre ela e Edna Cutler, que Edna havia tido conhecimento da acção de divórcio e que brevemente lhe seriam apresentados os papéis para ela assinar e que, deliberadamente, deu o seu apartamento a Roberta Fenn com o fim de evitar ser ela a tomar conhecimento do que se passava.

- E o que se passou depois? - perguntou Bertha.

- Marco Cutler obteve o seu divórcio. Obteve uma sentença provisória, mas não final. É o costume. Se Edna Cutler se apresentasse no tribunal e impugnasse essa sentença provisória com o fundamento de que não tivera conhecimento da acção e que nenhuma citação lhe fora apresentada... E há ainda outro ângulo do caso. Se a coisa corresse de outra forma, nós é que lhe sofreríamos as conseqüências.

- O que quer dizer?

- Suponha que Marco Cutler desejava obter o divórcio. Suponha que ele sabia que Edna Cutler o contestaria. Ele não queria ver-se metido numa acção de divórcio contestado porque, ele próprio, tinha telhados de vidro e, portanto, não podia atirar pedradas. Muito bem. Ele consegue convencer Roberta a ir para Nova Orleães. Esta entra em contacto com Edna Cutler. Edna estava desanimada. Roberta mete-lhe na cabeça que seria uma bela idéia ela desaparecer da circulação. Edna concorda. Depois que o desaparecimento teve lugar, Roberta passa palavra a Marco e Marco diz ao seu advogado para preencher a queixa e para mandar as citações para Nova Orleães. O solicitador apresenta os papéis a Roberta Fenn como se ela fosse Edna Cutler. Edna, afinal, não fica a saber absolutamente nada a respeito da acção de divórcio. Foi simplesmente riscada do mapa, sem lhe darem a mínima oportunidade de se defender.

- E depois? - perguntou Bertha.

- Tudo fica adormecido até que Edna descobre o que se passa. Depois, quando ela se preparava para tomar medidas drásticas, Hale vem ter conosco com a história de que desejava que descobríssemos o paradeiro de Roberta Fenn. Descobrimo-la. Roberta é muito esperta. Arranja maneira de ser descoberta na altura exacta. Na verdade, se eu não tivesse conseguido descobri-la pelos meus próprios meios, ela provavelmente arranjaria forma de se cruzar comigo na rua ou de se mostrar no Bar de Jack O’Leary quando eu lá me encontrasse.

- Continue - disse Bertha. - Tudo isso é tão elementar que não vale a pena estar a perder tempo. Diga-me o resultado final.

- O plano era que descobríssemos Roberta. Ela mostrar-se-ia muito minha amiga. Podia até mesmo encorajar-me a eu me atirar a ela. Depois contar-me-ia tudo, apenas com a diferença que esse tudo seria que Edna Cutler agira estranhamente quando lhe pedira que usasse o nome dela. Isso seria o suficiente para indicar que havia um plano bem premeditado de Edna para enlear o marido. Edna teria de se haver com o tribunal.

- Diabos me levem! - exclamou Bertha. - O que vamos fazer agora, amorzinho?

- Absolutamente nada... Até descobrirmos se fomos tomados por parvos ou se tudo se passou de forma inesperada.

- Temos que descobrir Roberta Fenn.

- Já a descobri.

- Já o quê?

- Já a descobri.

- Onde está ela?

Sorri para Bertha e disse-lhe:

- Tomei cuidados suficientes com ela. Pode revistar Nova Orleães de uma ponta à outra, durante um ano, que não conseguirá descobri-la.

- Porquê?

- Porque a escondi e, desta vez, creio que fiz um trabalho apurado.

- Qual foi a sua idéia ao escondê-la? Porque não havemos de dizer a Hale que a encontrámos e pôr tudo em pratos limpos?

- E depois?

- Bem, depois... O nosso contrato estava acabado.

- E em que situação ficaria Roberta Fenn?

- Roberta Fenn que vá para o diabo. Estou a pensar em nós.

- Nesse caso pense um pouco mais em nós.

- O que quer dizer com isso?

- Distribuíram-nos uma quantidade de cartas marcadas. Supõem que nós as vamos jogar... Inocentemente. Muito bem, nós vamos jogá-las, recebemos os lucros e, pronto, está acabado. Suponha agora que metemos as cartas viciadas na algibeira, que nos esquecemos de as jogar e que há um grande monte em cima da mesa? O que acontece?

Bertha analisou-me com um olhar aquilino.

- E eu a pensar que você era parvo em questões de dinheiro!

Por um momento pensei que ela ia beijar-me. Levantei-me e encaminhei-me para a porta.

- O que pretende fazer? - perguntou ela.

- Pretendo que vá para o escritório muito sossegada e que ignore onde me encontro. Se Hale telefonar, diga-lhe que desapareci.

- Tenho que lhe mentir, não tenho? - perguntou, franzindo o sobrolho.

- Agora tem que ser - retorqui. - Se você não fosse tão esperta para localizar chamadas telefónicas, poderia dizer-lhe a verdade: que não sabia do meu paradeiro.

- E o que faremos então?

- Quando ele lhe telefonar esta noite, diga-lhe que não sabe onde me encontro.

- Deseja que eu lhe minta?

Sorri-lhe e disse:

- Não.

- Afinal, o que pretende você? - perguntou Bertha.

- Que lhe conte a verdade.

- Não o compreendo.

Conservei a porta aberta para ela passar.

- Esta noite - disse-lhe, você não deve saber onde eu me encontro.

 

                   Crimes a mais

Dormi durante quase toda a tarde. Por volta das seis horas bati à porta de comunicação com o quarto de Roberta.

- Sim - respondeu ela. - O que é?

Entreabri a porta.

- Não está com fome?

- Entre.

Roberta estava coberta com um lençol. Pelo vestuário que estava em cima da cadeira deduzi que a única roupa que a abrigava era o lençol. Ela sorriu-me e disse:

- O meu negligee é este, Donald. Tive de mandar vir algumas peças de vestuário. A minha mala era o saco das compras e a falta de tudo desanimava-me. Consegui arranjar, na tabacaria do hotel, cremes, pentes, escovas e mais alguns artigos de toilette, mas não negligee.

- Eu também gostaria de mudar de roupa, mas é domingo e as lojas estão fechadas.

- Você vive cá, não vive? Deve ter um quarto com muita coisa lá dentro.

- Tenho.

- Porque não vai buscar o que precisa?

Sorri e abanei a cabeça.

-Pensa... Que a Polícia...

- Penso.

- Lamento muito Donald. Fui eu quem o pôs nesta situação.

- Não, não foi você. Além disso, a situação não é má, nem eu estou metido nela. Gosto da roupa que tenho vestida.

Ela sorriu.

- Aonde vamos? - perguntou.

- Há uma dúzia de lugares onde podemos comer e dançar um pouco.

- Donald, adoraria isso.

- Muito bem, nesse caso vista-se.

- Óptimo - disse ela. - Lavei a minha roupa de baixo e deixei-a pendurada na casa de banho. Creio que já deve estar seca.

- Quanto tempo demora a vestir-se?

- Mais ou menos um quarto de hora.

- Então até já.

Voltei para o meu quarto, fechei a porta e fui sentar-me na cama a fumar um cigarro. Um quarto de hora mais tarde ela veio ter comigo e, passada meia hora, estávamos sentados num dos mais selectos clubes nocturnos da cidade, sorvendo cocktails após termos encomendado um jantar maravilhoso. Embriagar uma rapariga é sempre um negócio arriscado. Nunca se sabe o que ela fará nem o que dirá quando perde a consciência. E o que é ainda mais importante, nunca se sabe se somos nós que acordamos com uma horrível dor de cabeça, deitados debaixo da mesa, onde a possível vítima nos deixou. Sugeri um segundo cocktail. Roberta tomou-o. Recusou o terceiro mas admitiu que beberia um pouco de vinho com o jantar. Pedi Borgonha. Era um lugar onde as pessoas vão para comer e falar, para se divertirem, para conquistarem e serem conquistadas Os criados constituíam quase uma legião, mas um jantar demorava uma hora ou mais. O nosso jantar exigiu uma segunda garrafa de Borgonha e eu observei que Roberta estava a sentir-se um pouco alegre. Eu também me sentia satisfeito.

- Você não me chegou a contar o que lhe disse a sua sócia.

- Bertha?

-Sim.

- Isso foi porque os seus ouvidos delicados não suportariam uma tal linguagem.

- Você ficaria espantado com as coisas que os meus ouvidos delicados têm escutado. Qual a causa da má disposição dela?

- Oh, é uma indisposição sem importância.

Ela estendeu o braço por cima da mesa. Os seus dedos envolveram a mão.

- Você está a proteger-me, não está, Donald?

- Talvez.

- Senti que estava. A sua sócia queria que você me descobrisse e me apresentasse e você não o fez. Teve uma grande discussão com ela a esse respeito. Não é verdade?

- Andou a escutar às portas? - perguntei.

Os seus olhos reflectiram indignação.

- Certamente que não.

- Foi apenas dedução?

Ela abanou a cabeça afirmativamente, com aquela solenidade característica de uma mulher que está dizendo para si própria: ”Já estou embriagada, mas ninguém dará por isso. Vou acenar com a cabeça, mas tenho de ter cuidado para não acenar com demasiada força deixando o queixo tocar no peito.”

- Bertha agora já está bem disposta - declarei. - Esqueça-se dela. A princípio mostrou-se um pouco belicosa, mas isso não significa nada... Quando se trata de Bertha. Ela é parecida com o camelo. Está sempre mal disposta.

- Donald, suponha que tinha sido a polícia. O que poderíamos ter feito?

- Nada.

- Suponha que me descobrem e me prendem. O que devo fazer?

- Nada.

- O que quer dizer?

- Exactamente isso. Não fale. Não faça declarações. Não dê qualquer informação seja sobre que assunto for antes de falar com um advogado.

- Qual advogado?

- O que eu lhe arranjar.

- Você é tão bom para mim!

A sua fala estava a tornar-se um pouco arrastada. Notava-se um grande esforço na concentração do seu olhar, como se quisesse ter a certeza que assim me obrigaria a ficar quieto, de forma a não afastar-me do seu campo de visão no momento exacto em que ela me fitava.

- Sabe uma coisa - perguntou ela repentinamente.

- O quê?

- Estou doida por si.

- Esqueça-se disso. Você está embriagada.

- Isso é certo, mas a verdade é que também estou doida por si. Não se deu conta disso quando o beijei no hotel?

- Não, não pensei no assunto.

Os seus olhos abriram-se ainda mais.

- Mas devia pensar.

Inclinei-me para a frente e afastei os pratos que estavam entre mim e Roberta.

- Por que motivo saiu de Los Angeles?

- Não me obrigue a falar nisso.

- Queria saber.

A pergunta pareceu tornar-lhe a mente lúcida. Pôs os olhos em cima da mesa, pensou durante um momento e, finalmente, disse:

- Fumaria um cigarro de boa vontade.

Dei-lhe um e acendi-lho.

- Vou contar-lhe, Donald, se você insistir, mas preferia não o fazer. Você consegue tudo de mim.

- Queria saber, Rob.

- Foi há anos já, em 1937.

- O que aconteceu?

- Saí de automóvel com um homem. Passeámos um bocado, apenas para matarmos o tempo e depois entrámos num parque e parámos.

- Beijaram-se?

- Sim.

- E depois?

- Naquela altura falava-se muito num bandido amoroso, um tipo que se escondia nos lugares procurados pelos namorados para se beijarem. Creio que conhece o género.

- Assalto?

- Roubava o dinheiro aos homens e depois... Bem, depois levava a mulher consigo.

- Continue.

- Nós fomos assaltados.

- O que aconteceu?

- Esse homem obrigou-me a segui-lo e o meu companheiro não suportou isso. O bandido matou-o e fugiu em seguida.

- Suspeitaram de si?

- Suspeitaram de quê? - perguntou ela, com os olhos completamente abertos.

- De você ter a ver qualquer coisa no caso.

- Bom Deus, não. Toda a gente foi até muito simpática e gentil comigo. Mas... Bem, eu é que paguei tudo. É claro, as pessoas onde estava a trabalhar souberam do caso. Evitavam falar-me no assunto. Uma vez, quando saí com um rapaz, uma das minhas colegas do escritório não gostou e veio dizer-me que um homem havia sacrificado a vida para proteger a minha honra e que eu devia ter esse gesto na devida conta.

- O que fez você?

- Apeteceu-me esbofeteá-la, mas tudo quanto pude fazer foi sorrir e agradecer-lhe. Deixei o emprego e fui trabalhar para outra parte. Passados uns dois meses descobriram tudo a meu respeito. A coisa repetiu-se várias vezes. Suponho que sou uma mulher maldita. Não amava aquele homem, mas simpatizava com ele. Saía algumas vezes com ele, mas também saía com outros homens. Não tinha intenção de casar com ele. Se soubesse qual seria a sua atitude, tê-lo-ia dissuadido. Não queria que desse a vida por mim. Foi um gesto heróico, um gesto cavalheiresco, mas também foi horrivelmente quixotesco.

- Creio que era o que outro homem qualquer teria feito em idênticas circunstâncias.

Ela sorriu.

- As estatísticas provam o contrário - afirmou.

Sabia que ela tinha razão, por isso não retorqui.

- Bem - continuou ela, ao notar que todas as pessoas minhas amigas cochichavam nas minhas costas e tendo na consciência a recordação da tragédia, decidi viajar. Fui para Nova Iorque. Passado algum tempo arranjei emprego como modelo de propaganda de roupa interior. Durante algum tempo tudo correu bem, mas depois as pessoas reconheceram a minha fotografia. Os meus amigos começaram novamente a cochichar. Eu tinha uma ânsia de liberdade. A experiência durara quase um ano. Vi o que era a existência de uma pessoa comum, livre para viver a vida a seu próprio gosto...

- E então resolveu desaparecer mais uma vez?

- Sim. Verifiquei que a minha idéia fora boa, mas que cometera o erro de escolher uma profissão em que tinha de ser fotografada. Decidi partir para outro lugar, começar tudo de novo e destruir qualquer máquina fotográfica que me fosse apontada.

- Nova Orleães?

- Sim.

- E depois?

- Você sabe o resto.

- Como conheceu Edna Cutler?

- Já não me recordo bem como isso aconteceu. Creio que começou num café ou num restaurante... Deve ter sido no Restaurante Bourbon. Agora que penso no caso, creio que foi lá. É um lugar tipo boémio, como sabe. As pessoas que comem lá com regularidade conhecem-se umas às outras. Muitos escritores, dramaturgos e artistas vão lá comer quando se encontram em Nova Orleães. É um sítio despretensioso, mas tem um ambiente castiço, autêntico.

- Bem sei.

- Bem, seja como for, relacionei-me com Edna. Descobri que ela também procurava fugir de qualquer coisa. Não tinha tido tanto êxito como eu e, por isso, ofereci-me para tomar a sua identidade durante uns tempos a fim de que ela pudesse realmente desaparecer.

- Estou muito interessado em esclarecer isso devidamente, Rob. Foi você que fez a oferta a ela?

Roberta pensou um pouco.

- Bem, ela preparou o terreno para isso - respondeu. - Creio que a idéia foi dela.

- Tem a certeza?

-Absoluta. Posso beber mais qualquer coisa, Donald? Você fez-me passar a embriaguez ao falar nestas coisas. Quero embriagar-me esta noite. Queria sentir-me alegre e estonteada.

- Primeiro preciso que me diga mais umas coisas, simples pormenores. Por exemplo, quando ouviu falar pela primeira vez na morte de Nostrander, qual foi a sua atitude?

- Ponha-se no meu lugar - respondeu ela. - Já se havia cometido anteriormente um assassínio na minha presença. Eu tentava fugir à notoriedade. Quando isso aconteceu, eu... Agi apenas por instinto. Queria fugir para bem longe.

- Não é suficiente, Rob.

- O que não é suficiente?

- A razão por que fugiu.

- Mas é verdade.

Fitei-a directamente nos olhos.

- Bem sabe que há outras razões, Rob. Ninguém havia pensado que você poderia ter estado implicada no assassínio daquele rapaz com quem havia saído de automóvel em 1937, mas dois crimes na vida de uma rapariga são crimes a mais. Começariam a fazer-lhe perguntas sobre aquele antigo crime, mas não seriam a mesma espécie de perguntas que lhe haviam feito cinco anos antes.

- Sinceramente, Donald, nunca pensei nisso. No entanto... Bem, creio que é um ângulo para ter em consideração. É uma coisa em que preciso pensar realmente.

- Voltemos a esse bandido amoroso. Conseguiram apanhá-lo?

- Não por esse crime. Ele negou até ao fim ter qualquer relação com o caso. Confessou, no entanto, alguns outros.

- O que foi feito dele?

- Enforcaram-no.

- Viu-o alguma vez?

- Vi. Levaram-me junto dele para ver se o podia identificar.

- E pôde?

- Não.

- Viu-o sozinho ou no meio de outros homens?

- Pediram-me para que o indicasse num palco onde se encontravam sete ou oito homens completamente iluminados por projectores cuja intensidade os impedia de verem quem os observava, mas nós podíamos distingui-los com toda a perfeição.

- E não foi capaz de apontá-lo?

- Não.

- E o que fez a polícia depois?

- Meteram-no numa sala pouco iluminada, vestiram-lhe um sobretudo e puseram-lhe um chapéu, exactamente da forma como ele estava vestido na altura do crime, e perguntaram-me se o podia identificar.

- E pôde?

- Não.

- O homem que matou o seu amigo usava máscara?

- Usava.

- Notou qualquer particularidade nele, por mais pequena que fosse?

- Notei.

- O que foi?

- Quando saiu de entre os arbustos vinha a coxear. Depois de ter dado o tiro, quando fugiu, já não coxeava.

- Disse isso à Polícia?

- Disse.

- Essa informação esclareceu-a em alguma coisa?

- Não creio. Não acha que é melhor deixarmos de falar no caso e bebermos qualquer coisa?

Chamei o criado.

- A mesma coisa? - perguntei a Roberta.

- Já estou cansada de vinho. Não podemos tomar outra coisa?

- Dois whiskies com soda - ordenei. - Acha bem, Rob?

- Acho óptimo. E depois faça-me uma coisa, sim. Donald?

- O que é?

- Não me deixe beber mais.

- Porquê?

- Quero gozar a noite e se bebo de mais fico com a cabeça tonta, cheia de sono e amanhã acordarei com dores de cabeça.

O criado trouxe as bebidas. Sorvi metade da minha, depois levantei-me com uma rápida desculpa e caminhei na direcção dos lavabos. Meti-me na cabina telefônica e fiz uma chamada para o hotel de Nova Orleães onde se encontrava Emory G. Hale. Não esperei mais de três minutos, ao fim dos quais ouvi o som poderoso da voz de Hale. A Central pediu-me em tom delicado que começasse a meter no aparelho moedas de vinte e cinco centimes e estas executaram um concerto de gong na caixa do telefone. No final da manobra ouvi a voz de Hale dizer com impaciência:

- Está? Está? Está? Quem fala? Está?

- Olá Hale, daqui fala Donald Lam.

- Lam! Onde se encontra?

- Em Los Angeles.

- Bem, por que diabo não me comunicou? Tenho estado horrivelmente preocupado consigo, imaginando que lhe sucedera alguma coisa.

- Estou óptimo. Nem tenho tido tempo de entrar numa cabina telefónica. Consegui localizar Roberta Fenn.

- Conseguiu?

- Sim.

- Onde?

- Los Angeles.

- Você é formidável! É assim que eu gosto de ver trabalhar. Nada de desculpas, apenas resultados. Você tem direito...

- Ainda conserva a chave do apartamento? - interrompi.

-Claro que conservo.

- Muito bem - disse-lhe. - Roberta Fenn viveu lá.

A senhoria identificou-a pela fotografia. Havia qualquer conspiração a respeito de uma acção de divórcio. Ela fazia-se passar por Edna Cutler. Edna Cutler vive num apartamento em Shreveport, num edifício que se chama River Vista. Mandou dinheiro a Roberta para ela sair de Nova Orleães. Ponha-se em contacto com Marco Cutler. Encontrá-lo-á num dos hotéis de Nova Orleães. Diga-lhe que Edna Cutler pôs em execução um plano engenhoso destinado a fazê-lo cair numa ratoeira, pois os papéis referentes à acção de divórcio foram apresentados a uma outra mulher. Peça-lhe que o acompanhe até ao apartamento. Quando lá chegarem, faça com que ele descubra o revólver e os velhos recortes de jornais. Depois vá relatar tudo à Polícia. Faça com que as autoridades da Califórnia reabram o caso do assassínio de Craig. Logo que tenha feito isso, meta-se num avião e venha para Los Angeles. Terei cá Roberta Fenn à sua disposição.

Sinais de boa disposição brotavam dele como água de uma cascata.

- Lam, isso é formidável! Roberta Fenn está em Los Angeles neste momento?

- Está.

- Sabe aonde?

-Sei.

- Onde?

- Tenho-a sob vigilância.

- Não me pode dizer com exactidão onde se encontra ela?

- Neste momento encontra-se num clube nocturno. Está a preparar-se para sair.

- Está alguém com ela? - perguntou apressadamente.

- Neste momento não.

- E você não vai perdê-la de vista?

- Estou com os olhos sobre ela.

- Isso é magnífico. Maravilhoso! Você é um homem excepcional! Quando disse que você era um mocho, quis realmente...

Da Central interromperam:

- Três minutos! Quer continuar?

- Adeus - exclamei, pondo o aparelho no descanso.

 

                 O bandido amoroso

O ascensor transportava o habitual grupo de pessoas que voltam na segunda-feira de manhã aos seus trabalhos rotineiros: homens que tinham ido sem chapéu para os campos de golf ou para a praia e cujas frontes estavam brilhantes devido às queimaduras do sol, raparigas de olhos mortiços que denotavam uma noite mal dormida, tudo gente que achava duplamente fastidiosa a tarefa que a esperava nos escritórios, depois de terem passado um dia a seu gosto.

Elsie Brand estava já no escritório quando lá cheguei. Ouvi distintamente o matraquear da sua máquina quando me aproximei da porta onde se ostentava o letreiro Cool & Lam, Investigações Confidenciais. Ela levantou os olhos quando abri a porta.

- Viva! Tenho muito prazer em vê-lo de volta. Fez boa viagem?

Afastou-se um pouco da máquina e deu um rápido olhar ao relógio como para determinar quanto tempo da sociedade podia desperdiçar com um dos sócios.

- Assim, assim - respondi.

- Fez um belo trabalho naquele caso da Florida, não fez?

- Não saiu mal.

- Em que pé está o assunto de Nova Orleães?

- Prestes a explodir. Onde está Bertha?

- Ainda não chegou.

- Ela fez quaisquer investigações sobre aquele assunto da Companhia Roxberry?

- Hum, hum. Há uma pasta... Com muito pouca coisa.

Levantou-se, caminhou até junto dos armários-arquivos, percorreu o índice com o dedo, abriu uma gaveta, desfolhou as divisórias de cartão com a rapidez de quem sabe o que está a fazer, tirou uma pasta e entregou-ma.

- Encontrará aí tudo quanto conseguimos obter.

- Obrigado. Já vou ver o que é. Como vai esse negócio de construções?

Ela olhou rapidamente para a porta e baixou a voz.

- Tem havido alguma correspondência sobre o assunto. Está tudo no arquivo. Há ainda mais alguma, mas encontra-se no gabinete de Bertha, fechada à chave. Ela não quis mandá-la para a pasta respectiva. Não sei onde está.

- Sobre que é essa correspondência?

- É uma tentativa para adiar a sua convocação militar.

- E ela conseguiu isso?

Elsie olhou novamente para a porta.

- Se ela soubesse isto punha-me na rua.

- E a minha opinião não vale nada?

- Nisto não. Despedir-me-ia e eu não teria outro remédio senão ir-me embora.

- Bem, mas não respondeu à minha pergunta. Conseguiu o que pretendia?

- Conseguiu.

- Quando?

- A semana passada.

-Está tudo pronto?

- Está.

- Obrigado.

Ela analisou-me demoradamente. Uma ruga apareceu-lhe entre os olhos numa expressão de estranheza.

- Vai consentir que ela cante vitória? - perguntou.

- O que queria que eu fizesse?

- Nada - respondeu, sem olhar para mim.

Levei a pasta da Companhia Roxberry para o meu gabinete, sentei-me à secretária e estudei todas as informações nela contidas. Não adiantavam absolutamente nada. Silas T. Roxberry empregara muito dinheiro em vários ramos de negócios, alguns dos quais eram dirigidos por ele e outros que representavam apenas um investimento de capital. Tinha morrido em 1937, deixando dois filhos, um rapaz de quinze anos, chamado Rox, e uma rapariga de dezenove anos, de nome Edna. Em virtude de os negócios se terem ampliado bastante e de as partilhas serem muito complicadas e morosas havia-se resolvido deixar os direitos dos herdeiros entregues a uma organização denominada Companhia Roxberry. Fora publicado um despacho nesse sentido, podendo os herdeiros ficar com acções da organização até ao limite dos seus interesses. Howard C. Craig fora o guarda-livros confidencial da casa, onde trabalhara durante cerca de sete anos. O cargo de Craig na Companhia Roxberry era o de secretário da Administração. Depois da morte de Craig, um homem chamado Sells, havia ocupado o seu lugar. Um advogado, de nome Biswill, havia tratado do processo da herança e fora depois nomeado Director-Geral da organização. Conservava nos negócios a linha de conduta seguida por Silas Roxberry. Como se tratava de uma companhia de capital totalmente realizado era impossível saber-se quais os lucros obtidos, mas Bertha Cool havia conseguido um relatório comercial indicando que a firma era solvente, sempre pronta a pagar as suas contas, ainda que tivessem corrido rumores que ultimamente fizera maus investimentos de capital. Era, evidentemente, possível que Edna Roxberry fosse Edna Cutler. Peguei no telefone, fiz uma chamada para a Companhia Roxberry, declarei ser um amigo da família, ausente há alguns anos e perguntei se Edna Roxberry se tinha casado. Responderam-me que, por enquanto, continuava solteira e que poderia encontrar o número do telefone dela na lista. A pessoa que estava no outro lado da linha desejava saber com quem estava a falar, mas eu desliguei.

Às dez horas, Bertha ainda não tinha aparecido. Disse a Elsie que ia sair e dirigi-me aos escritórios da Companhia Roxberry. Era possível contar a história completa dos letreiros que se encontravam nas portas dos escritórios. Primitivamente, Harman C. Biswill tinha ocupado uma fila de escritórios. Silas Roxberry fora um dos seus principais clientes. Morto Roxberry, Biswill havia tratado da herança. Tendo conseguido fazer aceitar aos herdeiros o conselho de entregarem os seus interesses a uma organização especializada, ele próprio havia-se tornado director da organização. Agora os letreiros das portas rezavam: Harman C. Biswill, Advogado. Privativo. Entrada pelo 619. O 619 dizia: Companhia Roxberry, Entrada. Ao fundo do corredor, à esquerda havia outro: Harman C. Biswill, Advogado. Entrada. O letreiro na porta do escritório privativo parecia um pouco esfumado. Havia sido o seu antigo gabinete, mas ele não se incomodara a mandar apagar o letreiro. Não era preciso ser um grande detective para dizer que Harman C. Biswill reservara para si uma boa fatia do bolo que representava a organização. Abri a porta exterior e entrei. Biswill modernizara a maquinaria do escritório com fúria selvática. Havia máquinas de calcular, de escrever, de fotocopiar, de ditar, de endereçar, espalhadas por todo o escritório. Uma mulher já de idade batia numa máquina de somar, enquanto que uma rapariga, com os auscultadores nos ouvidos, matraqueava numa máquina de escrever as palavras que ia recebendo. Havia um balcão com um guichet onde se lia a palavra Informações, mas não havia ninguém do outro lado.

Quando entrei, acendeu-se uma luz no balcão e soou uma campainha. A mulher que estava em frente da máquina de somar veio até junto do balcão, pegou num aptofone e disse: “Companhia Roxberry... Não, não está aqui... Não posso dizer-lhe a que horas virá... Não, não tenho a certeza se virá hoje... Quer deixar recado?... Muito bem, comunicar-lhe-ei... Muito obrigada.” Já devia passar dos cinqüenta e parecia ser uma mulher que trabalhara toda a sua vida. Os seus olhos mostravam cansaço, mas tinham uma expressão amável e todo o seu ar mostrava ser uma pessoa que sabia o que fazia. Segui um palpite.

- A senhora trabalha na companhia desde a sua fundação?

- Sim.

- E era já empregada do Sr. Roxberry antes disso?

- Sim. O que deseja?

- Pretendo uma informação sobre um homem chamado Hale.

- O que deseja saber a seu respeito?

- Uma informação sobre o seu crédito.

- Pode dizer-me o seu nome?

- Lam. Donald Lam.

- E a que companhia pertence, Sr. Lam?

- Faço parte de uma sociedade - respondi. - Cool & Lam. Sou um dos sócios. Temos um negócio em mãos com o Sr. Hale.

- Um momento que vou ver o que posso fazer.

Foi até ao outro extremo da sala, abriu uma gaveta metálica, consultou alguns cartões, pôs um ao alto, examinou-o e voltou até junto do balcão.

- O nome todo, se faz favor?

- O do Sr. Hale?

- Sim.

- Emory G. Hale. Creio que a sua profissão seja a de advogado.

Voltou a examinar o cartão e disse:

- Não temos cá registrado nenhum Emory G. Hale. Nunca tivemos qualquer negócio com ele.

- Talvez a senhora se recorde dele. Podia vir em representação de outra pessoa. É um homem com cerca de um metro e oitenta. Deve ter uns cinqüenta e sete ou cinqüenta e oito anos de idade, ombros largos e braços muito compridos. Quando sorri, tem um hábito peculiar de cerrar as maxilas e repuxar os lábios. Ela pensou um bocado, abanou a cabeça e declarou:

- Receio não poder ser-lhe útil. Vem cá muita gente.

Comecei a dirigir-me para a porta, mas voltei súbitamente atrás.

- Têm relações comerciais com Marco Cutler?

Ela abanou a cabeça.

- Ou - acrescentei, como se me tivesse ocorrido subitamente - com Edna Cutler?

- Edna P. Cutler? - perguntou ela.

- Creio que sim.

- Oh, sim, tivemos muitos negócios com Edna Cutler.

- E continuam a tê-los?

- Não. Foram todos concluídos. O Sr. Roxberry fez bastantes contratos por conta da menina Cutler.

- Menina ou senhora?

Ela franziu o sobrolho.

- Não sei - respondeu. - Apenas me lembro que o nome que figurava nos documentos era o de Edna P. Cutler.

- Como a tratava quando falava com ela? Chamava-lhe menina ou senhora?

- Creio que nunca a vi na minha vida.

- A conta dela é actualmente activa?

- Oh, não. Havia uma espécie de contrato entre ela e o Sr. Roxberry. Um momento só. Frances! – chamou ela, voltando-se para a rapariga que estava a escrever à máquina. - Não encerrámos já todos os negócios que tínhamos com Edna Cutler?

A rapariga deixou de escrever apenas o tempo suficiente para acenar com a cabeça e depois voltou ao trabalho. A mulher à minha frente sorriu-me numa expressão de despedida. Saí e fiquei no corredor a pensar. Edna Cutler. Muitos negócios com Silas Roxberry... Contudo ela nunca fora ao escritório... Howard Chandler Craig, guarda-livros... Saíra a passear de automóvel com Roberta Fenn... Um misterioso bandido amoroso e o guarda-livros da Companhia Roxberry, a única pessoa que tinha um conhecimento integral de todos os negócios de Silas T. Roxberry, fora assassinado. Fiz uma chamada para o escritório, fui informado que Bertha Coll ainda não havia chegado, disse a Elsie Brand que iria até lá por volta do meio-dia e, se Bertha chegasse, lhe dissesse para esperar por mim. Dirigi-me ao quartel-general da Polícia. O sargento Pete Rondler da Secção de Homicídios sempre tivera um fraco por mim. Por qualquer razão que eu desconhecia havia tido algumas questões com Bertha e odiava até o chão que ela pisava. Quando eu começara a trabalhar para ela havia predito que eu estaria numa casa de malucos dentro de três meses. O facto de ter chegado a sócio e de me impor a Bertha Cool causava-lhe uma alegria enorme.

- Olá, Sherlock - exclamou, quando abri a porta.

- Deseja alguma coisa?

- Talvez.

- Como se vão dando você e Bertha?

- Optimamente.

- Não vejo qualquer marca de pé nos fundilhos das suas calças.

- Por enquanto não.

- Ela se encarregará de si na devida altura. Você pode fazer-lhe frente durante algum tempo, mas não perde pela demora. Há-de fazer de si o que quiser, marcá-lo a fogo e depois interná-lo-á numa casa de doidos. Quando ela tiver feito de você o que pretende procurará outra vítima.

- É nesse ponto que a bato. Não engordo o suficiente para ela fazer de mim o que quiser.

Ele sorriu.

- O que o trouxe cá?

- 1937. Crime de homicídio não solucionado. O homem chamava-se Howard Chandler Craig.

Rondler franziu os sobrolhos.

- Você é muito engraçado.

- Não sei em que seja engraçado.

- O que sabe a esse respeito?

- Nada.

- Quando esteve em Nova Orleães?

Hesitei.

- Comece a mentir-me - preveniu ele - e eu arranjarei forma de lhe fechar a agência. Não há maneira de você cooperar por mais tempo que viva.

- Acabo de vir de lá.

- Era o que eu pensava.

- Mas, que mal há nisso?

Rondler apoiou o antebraço na mesa, ergueu o pulso e começou a tamborilar na secretária com a ponta dos dedos.

- A Polícia de Nova Orleães está a proceder a um inquérito - declarou ele finalmente.

- Pode ser que haja em Nova Orleães um ângulo que venha auxiliar a esclarecer o caso.

- O quê?

Fitei-o nos olhos e disse com uma expressão de candura:

- Uma rapariga chamada Roberta Fenn ia no automóvel de Craig quando ele foi assassinado. Ela está envolvida num outro caso de homicídio passado em Nova Orleães. A Polícia não sabe ao certo o que aconteceu, se ela foi uma vítima ou se foi ela quem puxou o gatilho, ou se, tomada de pânico, decidiu fugir.

- Dois assassínios num intervalo de cinco anos, são crimes a mais para uma rapariga bonita.

- Assim parece à primeira vista.

- Qual é o seu interesse no caso?

- Faço investigações.

- Para quem?

- Para um advogado que pretende fechar um processo de herança.

- Uma figa!

- É a verdade. Pelo menos foi o que ele nos disse.

- Quem é esse advogado?

Sorri.

- O que é que você pretende?

- Procuramos uma pessoa que parece ter desaparecido.

- Oh!

Rondler tirou um charuto da algibeira, aguçou os lábios como se pretendesse assobiar, mas não o fez. Limitou-se a emitir uns sons roucos enquanto cortava com todo o cuidado a ponta do charuto. Depois, enquanto tirava um fósforo da algibeira disse:

- Muito bem, eis a história. Em fins de 1936 tivemos dificuldades com um homem que assaltava namorados. Roubava tudo quanto o rapaz levava consigo e, se a rapariga era atraente, aproveitava-se dela. Foi um escândalo. Pusemos uma quantidade de homens na cola do bandido, armámos-lhe ratoeiras, enfim fizemos tudo quanto era possível. Nada conseguimos. Quando o tempo começou a arrefecer e não havia muitos casais que parassem em qualquer parte para se beijarem dentro do automóvel, o nosso bandido deixou de dar sinal de si. Pensámos que nos tínhamos visto livres dele, mas na Primavera de 1937, quando o tempo começava a aquecer, o cavalheiro estava de volta. Vários rapazes não puderam conter-se quando viam ele levar-lhes as companheiras. Esse Craig foi um deles. Houve ainda mais três. Dois deles morreram. O terceiro foi gravemente ferido, mas conseguiu salvar-se. O caso estava a tornar-se mais sério. O chefe deu ordens categóricas para que caçássemos o bicho. Armámos-lhe novas ratoeiras. Não caiu em nenhuma. Depois, alguém teve uma idéia luminosa. Um tipo que faz aquela espécie de servicinho, não pára numa dada altura para voltar depois ao mesmo. É uma idéia fixa que o acompanha permanentemente. Perguntava-se então: para onde iria ele durante os meses de Inverno. É claro, nessa ocasião os pares de namorados eram mais raros, mas logicamente, era de esperar um maior número de tentativas, dado não ter muito por onde escolher. Por esse motivo chegámos à conclusão que talvez ele escolhesse outro sítio para passar os meses de Inverno. Em San Diego não havia qualquer notícia do homem. Investigámos então a Florida. Acertámos finalmente, pois em Miami tinha havido uma série de assaltos a pares amorosos durante os Invernos de 1936 e 1937. Mais ainda, a Polícia de lá tinha algumas pistas e até impressões digitais. Essas indicações serviram-nos às mil maravilhas. Calculámos que o cavalheiro devia ter um automóvel com registro de matrícula da Califórnia. Pensámos que devia ser um lobo solitário e que, principalmente, não tinha companheira. Foi um trabalho maçador, mas começámos a investigar os números de licença dos veículos da Califórnia que haviam sido registrados na Florida, dos veículos da Califórnia que haviam passado para este Estado pelo posto de Yuma nas duas semanas anteriores ao dia em que se efectuou o primeiro assalto em Los Angeles. Isso deu-nos a primeira pista. Descobrimos que um carro registrado no nome de um homem chamado Rixmann havia passado por Yuma apenas quatro dias antes do nosso primeiro assalto da Primavera de 1937. Estava sem trabalho. A dona da casa onde ele estava hospedado não sabia ao certo qual era a sua ocupação. Parecia ser lento e hipócrita, mas pagava-lhe a renda a tempo e horas, tinha muito dinheiro e dormia durante grande parte do dia. Tinha um Chevrolet que guardava numa garagem próxima do prédio onde estava alojado. Duas ou três vezes por semana ia ao cinema, mas duas noites durante a semana saía no carro. A dona de casa ouvia-o regressar tarde. Tudo isto se passava já no Verão de 1937. É claro, nestes assaltos a casalinhos em que ele se apoderava da rapariga, apenas um entre cinco apresentava queixa na polícia. Há casos em que o homem não pode arriscar-se a que o seu nome apareça nos jornais. Outras vezes é o homem que não quer que o seu nome figure nos arquivos da Polícia. Outras vezes é a mulher que não pode. Outras vezes, quando nada disto acontece, a rapariga vê que tem tudo a perder se apresentar a queixa e os jornais publicarem todos os factos.

- Era Rixmann? - perguntei.

- Era ele o pássaro que procurávamos, sim – respondeu Rondler. - Começámos a seguir-lhe os passos e na terceira ou quarta noite ele conduziu o carro até um dos parques preferidos pelos namorados, parou, saiu, andou cerca de trezentos metros e escondeu-se sob a sombra de uma árvore. Era tudo quanto precisávamos. Estava conosco um agente feminino que estava ansiosa por fazer a experiência. Apanhámos Rixmann em flagrante. Os rapazes começaram logo a trabalhá-lo, de forma que quando chegou a este gabinete vinha macio como veludo. Sentou-se nessa cadeira onde você está agora e confessou tudo. Sabia que era o fim. Nessa altura já não se importava de nada. Mais tarde, arranjou um advogado e tentou alegar demência. Não conseguiu nada. Contou-nos que tinha um excelente binóculo nocturno. Escolhia lugares onde pudesse esperar no escuro, mas onde houvesse também um pouco de claridade para que se notasse que era um bom sítio para os casais pararem os automóveis. Observava os ocupantes do carro com o binóculo e só agia depois de os ter examinado com todo o cuidado. Três ou quatro vezes vira os nossos agentes ao longe seguindo qualquer casal. Com os binóculos que possuía era impossível armar-lhe uma ratoeira. Contou tudo. Não se lembrava de todos os assaltos que levara a efeito, mas recordava-se com exactidão da maioria. Dos casos em que se vira obrigado a disparar lembrava-se de todos, é claro. Jurou até ao fim nada ter a ver com o caso de Craig. Alguns rapazes não o acreditaram, mas eu acreditei. Não compreendia por que motivo havia de mentir naquele caso, quando já estava absolutamente perdido.

- Enforcaram-no?

- Câmara de gás - respondeu Rondler. - Na altura em que o condenaram já ele estava absolutamente fechado consigo próprio, disposto a morrer quando fosse a sua altura. Depois daquela primeira noite não conseguimos fazê-lo dizer mais nada. Arranjou um advogado e o advogado mandou-lhe fechar a boca. Alegaram demência e mantiveram essa atitude até ao momento da execução, pensando que talvez lhe fosse concedido um indulto. Contudo, pessoalmente, nunca fiquei convencido que o caso de Craig tivesse ficado encerrado.

- Qual é a sua opinião? - perguntei.

- Não tenho opinião. Não tenho factos suficientes para poder agir, mas vou dizer-lhe o que pode ter acontecido.

- Diga, diga.

- Essa Roberta Fenn podia estar doidinha por ele. Queria que ele se casasse com ela, mas ele não queria. Roberta tentou todos os velhos truques, mas nenhum deu resultado. Ele estava apaixonado por outra com quem queria casar. Ela conseguiu que ele a levasse a passear pela última vez, inventou uma desculpa qualquer para sair do carro, deu a volta até ao lado do condutor, puxou o gatilho, enterrou a arma em qualquer parte e começou a correr pela estrada fora aos gritos. Foi tão simples como isso.

- Podia muito bem ter acontecido assim - retorqui.

- A maioria dos crimes impunes são cometidos assim - continuou o sargento Rondler. - São tão extraordinariamente simples que ninguém acredita. Quanto mais um tipo traça planos, quanto mais minuciosamente procura executar qualquer coisa contra a lei, pensando nos mais ínfimos pormenores, tanto mais depressa deixa indícios em que nem sequer pensou e que mais tarde já não pode destruir. O pássaro que comete o crime impune é aquele que pensa apenas num ponto essencial. Mas esse ponto essencial está tão bem defendido que ninguém pode entrar nele.

- E quanto ao assassínio de Craig? - perguntei. - Havia quaisquer impressões digitais ou outros vestígios?

- Absolutamente nada, se exceptuarmos uma descrição feita por Roberta Fenn.

- Que descrição fez ela?

Rondler abriu a gaveta da secretária e sorriu.

- Mandei buscar isto - disse ele - logo que recebemos o telegrama de Nova Orleães. Ela descreve o tipo como sendo de altura média, vestido de escuro, de sobretudo, chapéu de feltro e com máscara. Afirma que ele não usava luvas, que quando apareceu em cena pela primeira vez coxeava nitidamente, mas que quando fugiu já não coxeava.

- Você seria capaz de fazer uma descrição melhor se o caso se tivesse passado consigo?

Sorriu.

- Provavelmente não. Mas se não foi Rixmann quem fez aquele trabalho, só pode ter sido ela.

- O que o leva a pensar assim?

- É um palpite. É o único assalto a parzinhos que não está solucionado. Depois que Rixmann foi preso, casos desses acabaram como que por encanto. Se alguém tivesse principiado a imitar Rixmann, por força que repetiria a dose.

Afastei a cadeira para trás.

- O melhor é acender esse charuto, antes que o masque até ao fim - disse-lhe.

Vi os seus sobrolhos unirem-se de novo.

- Você ouviu uma quantidade enorme de informações, sem dar nenhuma em troca.

- Talvez porque não tenho nenhuma para dar.

- Ou talvez tenha. Ouça, Donald, vou dizer-lhe uma coisa.

- Diga.

- Se você está a querer divertir-se com aquela rapariga, até lhe arrancaremos a pele.

- Qual rapariga?

- Roberta Fenn.

- O que há a respeito dela?

- A polícia de Nova Orleães procura-a e, da maneira como as coisas agora se apresentam, nós também.

- Qual é o parágrafo seguinte?

- Se você sabe onde ela se encontra e procura escondê-la, levará uma bordoada de que nunca mais se esquecerá.

- Muito bem, obrigado pela informação - retorqui, saindo.

De uma cabina telefónica instalada no edifício fiz uma chamada para o escritório. Bertha Cool ainda não tinha chegado. Disse a Elsie que dentro de duas horas iria até lá. Ela desejava saber o que se passava e eu respondi-lhe que não era assunto que pudesse tratar por telefone. Fui para o hotel. Roberta Fenn ainda estava a dormir. Sentei-me na borda da cama e disse-lhe:

- Vamos conversar.

- Muito bem.

- Esse Craig. O que me diz a seu respeito?

- Saía às vezes com ele.

- Por acaso você não queria casar com ele, mas ele não o desejava fazer?

- Não.

- Você estava em dificuldades?

- Estava.

- Conhecia as pessoas para quem ele trabalhava?

- Sim. Roxberry, e depois da morte deste, a Companhia Roxberry.

- Ele falou-lhe alguma vez nos negócios da companhia?

- Não.

Olhei-a bem nos olhos.

- Craig mencionou alguma vez o nome de Edna Cutler?

- Não.

- Pode estar a mentir, bem o sabe - preveni-a.

- Porquê, Donald?

- Se você e Edna se ligaram e estabeleceram aquele plano para apanharem Marco Cutler, você podia encontrar-se como ré de dois crimes em vez de um.

- Donald, contei-lhe a verdade a esse respeito.

- Você não tinha qualquer idéia que lhe iam ser apresentados os papéis como se fosse a verdadeira Edna Cutler?

- Absolutamente. Eu não sabia onde Edna se encontrava, juro-lhe. Limitei-me a ir para o apartamento, a usar o nome dela como estava combinado e...

- Bem sei - interrompi. - Já me contou tudo isso.

Pus-me de pé.

- Aonde vai?

- Estou a trabalhar.

- Vou tomar o pequeno-almoço e, depois, sair um pouco para comprar alguma coisa de vestuário. Sinto-me como nua, sem camisa de noite.

- O melhor que tem a fazer é não andar na rua preveni-a.

- Mande servir aqui as refeições. Compre o que precisa no armazém que há do outro lado da rua. Não faça uso do telefone e, sobretudo, não procure comunicar com Edna Cutler.

- Por que motivo havia de comunicar com ela?

- Não sei. Apenas lhe digo que o não faça.

- Não o farei, Donald, prometo. Não farei nada que você não queira.

- Vamos voltar àquele caso de assassínio.

A sua expressão mostrou-me como ela se sentia a esse respeito.

- Lamento, mas tenho que voltar ao assunto. Aquela figura mascarada que se aproximou do carro, coxeava?

- Sim.

- E quando fugiu já não coxeava?

- Exactamente.

- A figura era de compleição média?

- Bem, era. Talvez... Pensei tanto no caso depois disso. Nessa altura, como deve compreender, estava excitada. Creio que era um homem magro.

- Muito bem - disse-lhe. - Pense mais uma vez. Não podia ter sido uma mulher?

- Uma mulher! Não vê que o homem tentou abusar de mim! Ele...

- Muito bem - interrompi. - Isso fazia parte da peça. Podia ter sido uma mulher?

Roberta franziu o sobrolho.

- É claro, o sobretudo escondia a figura. Levava calças e sapatos de homem, mas...

- Podia ter sido uma mulher?

- Mas, sim - disse ela, claro que podia. Mas depois ele tentou levar-me com ele. Não...

- Muito bem. Esqueça-se disto. Tem a certeza que Craig nunca lhe falou em Edna Cutler?

- Absoluta. Não sabia que ele a conhecia. Conhecia-a? Conhecia-a?

- Não sei. Estou a perguntar-lhe.

- Nunca me disse nada.

- Bom, seja uma menina bonita. Virei buscá-la para o jantar. Até logo.

 

                     Uma rapariga em fuga

O homem da Comissão de Recrutamento da Marinha não fez muitas perguntas. Falou apenas nos pontos principais e entregou-me um questionário para eu preencher. Quando escrevi todas as respostas, ele examinou o papel e disse:

- Quando quer fazer a inspecção médica?

- Quando pode ser?

- Já, se assim o deseja.

- Vamos a isso.

Fui conduzido até um gabinete que ficava nas traseiras e despi-me. Examinaram-me e... Fui apurado.

- Quanto tempo precisa para pôr a sua vida em ordem?

- Vinte e quatro horas? - perguntei.

- Muito bem. Volte aqui na terça-feira à uma da tarde, pronto para partir.

Respondi-lhe que lá estaria e fui de táxi até à agência. Bertha assoprava de impaciência.

- Onde diabo tem andado? - perguntou ela.

- Estive cá duas vezes durante a manhã, mas você não apareceu, por isso continuei com o meu trabalho.

Os seus olhos despediam chamas.

- O que andou a fazer? A salvar o escritório da bancarrota, suponho?

- Espero que não.

Bertha estendeu-me um telegrama. “Parabéns ao seu mocho. Chego avião oito e meia. Espere-me aeroporto.” O remetente era Emory G. Hale.

- Já sabia - disse. - Telefonei-lhe.

- A que propósito lhe telefonou?

- Disse-lhe que tinha descoberto Roberta Fenn.

- Julguei que você tinha dito para eu não lhe dizer.

- É verdade. É bom que lhe diga isso.

- Os jornais da tarde - disse ela - trazem grandes títulos: Procura-se aqui a solução do crime de Nova Orleães. Dizem que a polícia anda à procura de Roberta Fenn. Desenterraram aquele caso em que ela esteve metida, o assassínio de Howard Chandler Craig, o rapaz que foi morto por Rixmann, o bandido amoroso.

- Hum, hum.

- Você não parece surpreendido.

- Não.

- Tentar arrancar-lhe qualquer informação – disse Bertha zangada - é apenas perder tempo. É preciso dar-lhe mais do que você retribui. O que estou a tentar dizer-lhe é que ela está em maus lençóis. Se você sabe onde ela se encontra, ou se a escondeu, desta vez vai ficar com os dedos queimados.

- Como vai esse negócio de construções para o Exército?

Bertha pôs-se instantaneamente na defensiva. O seu ar agressivo desapareceu. Era agora a delicadeza personificada.

- Bertha há-de falar consigo a esse respeito, amorzinho.

- O que há sobre o assunto?

- Se alguém lhe fizer qualquer pergunta, lembre-se que, apesar de não conhecer todos os pormenores do assunto, você é o director-geral. Bertha não se tem sentido bem ultimamente. Creio que é do coração e ela tem de contar cada vez mais consigo. Foi Bertha quem assinou o contrato. Há algum dinheiro a ganhar, se vigiarmos tudo com cuidado e não deixarmos que os carpinteiros andem à vontade. Mas você é quem tem de passar a dirigir quase tudo.

- Por causa do seu coração? - perguntei.

- Sim.

- Não sabia que ele lhe dava preocupações.

- Nem eu até ser vencida pela fadiga e excitação. Julgo que não é nada de cuidado, mas aflige-me.

- O que sente?

- Palpitações depois de comer.

- Já foi ao médico?

- E às vezes falta-me o ar.

- Já foi ao médico?

- Quando estou deitada, sinto o coração bater com tanta força que até a cama treme.

- O que lhe perguntei foi se já tinha ido ao médico.

- Inferno, não! - exclamou Bertha, zangada. – Por que motivo havia de consentir que um remenda-ossos me virasse toda do avesso para depois me cortar aos pedaços?

- Pensei que um médico poderia dar um jeito.

- Bem, não poderia.

- Pode vir a precisar de um certificado médico.

- Quando precisar, arranjarei um. Não se aflija com isso.

- Qual é o meu papel nesse negócio de construções?

- Bertha pô-lo-á a par de tudo, amorzinho. Mas primeiro vamos ver se encerramos este caso. No entanto, se alguém começar a fazer-lhe perguntas, lembre-se que eu estou muito cansada, que posso ter um colapso cardíaco e que será você quem passará a orientar todos os trabalhos.

- E porque hei-de dizer uma coisa dessas?

- Diabos o levem - disse Bertha, já raivosa, não seja assim tão do contra. Diga isso porque... - dominou-se e, passado um pouco, continuou num tom mais brando: - Porque não quer que Bertha se vá abaixo, principalmente num momento em que Bertha estava a fazer mais do que as suas forças lhe permitiam, para servir a pátria.

- Patriotismo? - perguntei.

- Todos nós temos que contribuir com a nossa quota-parte - respondeu Bertha com ar untuoso.

- Muito bem, quer ir comigo ao aeroporto esperar Hale? - perguntei.

- Acha que devo ir?

- Acho.

- Muito bem, amorzinho, será como quiser.

Espreguicei-me e bocejei.

- Bem - disse-lhe. - Tenho ainda umas voltas a dar. Virei cá buscá-la às oito menos um quarto em ponto.

- Cá estarei - prometeu Bertha. - Quero esperar pelo correio da tarde, estou à espera de uma encomenda. Hei de mostrar-lhe uma coisa. Quando a encomenda chegar, você vai ver. Verificará que Bertha é muito esperta a comprar. Um artigo que não se consegue arranjar e que eu obtive por um preço baixíssimo... Meias de seda verdadeiras. Você vai ficar espantado.

Fui até a biblioteca pública e gastei o resto da tarde a ler velhas colecções de jornais - aqueles que se relacionavam com as actividades do bandido amoroso dando particular atenção ao caso Craig. Saí às cinco e meia e dirigi-me para o hotel, mas antes parei no engraxador da Rua 5. Peguei num jornal da tarde e sentei-me a lê-lo enquanto me engraxavam os sapatos. Voltei as folhas até chegar à página de anúncios pessoais. “Rob. Estou Los Angeles. Preciso falar-te imediatamente. Apesar do que alguém te possa ter dito, defendo os teus interesses. Telefona para Helmart 6-95-44 e pergunta por mim. Edna C.”

O engraxador tinha acabado nesse momento. Surpreendi-o ao saltar abaixo do banco. Dei-lhe um quarto de dólar e disse:

- Está óptimo.

Um táxi levou-me ao hotel. Peguei na minha chave e subi até ao quarto. A criada estivera lá. Os quartos estavam arrumados. Roberta não se encontrava lá. Era evidente que andara a fazer compras, pois havia uma camisa de noite em cima da cama, bem como dois pares de meias. Havia um papel de embrulho aos pés da cama, assim como uma pequena mala de viagem que estava vazia. Ainda tinha o rótulo com o preço. Um jornal estava caído no soalho. Voltei ao meu quarto, peguei no telefone e disse para a menina do P. B. X.:

- Minha irmã telefonou a uma amiga e saiu para se encontrar com ela. Deu-me o número do telefone, mas eu perdi-o. Pode examinar os registros e dizer-me qual foi o número pedido deste quarto?

- Um momento. Esperei meia-dúzia de segundos; depois ela informou-me: - Helman 6-95-44.

- É esse mesmo - exclamei. - Quer fazer o favor de fazer a ligação?

Esperei até que a ligação fosse feita e depois uma voz disse:

- Palm View Hotel.

- Edna Cutler, de Nova Orleães, está?

- Um momento.

Passados cinco segundos obtive a informação. Miss Cutler havia-se despedido há uns vinte minutos. Não deixara qualquer endereço. Desliguei, meti-me no elevador, fui ao armazém do outro lado da rua, comprei uma mala, voltei ao quarto e meti na mala todos os meus haveres. Passei ao quarto de Roberta, peguei no papel de embrulho, na camisa de noite e nas meias e meti tudo na minha mala. Os artigos de toilette que estavam na casa de banho e no toucador consegui arrecadá-los na pequena mala de viagem que ela comprara. Molhei a ponta de uma toalha e percorri o quarto em busca de impressões digitais. Limpei os puxadores das portas, os espelhos, as tampas dos toucadores, os braços das cadeiras, tudo quanto imaginei que ela pudesse ter tocado. Acabei a tarefa, telefonei para o escritório do hotel a pedir que mandassem alguém buscar-me a bagagem. Desci e despedi-me, dizendo ao empregado que minha mãe tinha morrido subitamente e que eu e minha irmã íamos para casa de uma outra irmã que vivia em Venice e que estava completamente desmoralizada. Não queríamos deixá-la só.

Tomei um táxi para a estação da Union, despedi-o, depositei a bagagem, meti as senhas num sobrescrito estampilhado, escrevi o endereço do escritório, fechei-o e meti-o numa caixa de correio. Consultei o relógio e vi que tinha apenas o tempo suficiente para ir ao escritório buscar Bertha Cool para seguirmos para o aeroporto.

 

                   Os mochos não pestanejam

O avião saiu de entre as nuvens, descendo sobre a pista de cimento; as rodas tocaram o chão e o enorme aparelho deslizou suavemente até quase ao fim da pista. Aí, voltou a ganhar velocidade, deu a volta e veio parar graciosamente e com segurança quase em frente da porta por onde os passageiros haviam de sair.

Emory G. Hale foi a segunda pessoa a pôr pé em terra. Vinha a falar com um indivíduo de aparência distinta que usava óculos em meia lua, tinha bigode grisalho e demasiada aparência de banqueiro para o ser realmente. Hale parecia estar com uma boa disposição excepcional, como se tivesse feito uma magnífica viagem. Quando nos viu, veio logo na nossa direcção com a mão estendida, o seu rosto repuxado no característico sorriso. Cumprimentou Bertha apressadamente. As suas atenções eram quase todas para mim.

- Lam, estou satisfeitíssimo por vê-lo! Tinha esperanças que você viesse esperar-me ao avião. Foi um gesto muito simpático da sua parte. Lam, desejo apresentar-lhe... Mas, perdão, estou a ser pouco correcto. Srª. Cool, dá-me licença que lhe apresente o tenente Pellingham, da Polícia de Nova Orleães? E este cavalheiro é Donald Lam, tenente.

Trocámos apertos de mão. Hale parecia apreciar o seu papel de mestre-de-cerimónias.

- O tenente Pellingham é um perito em balística. Trouxe consigo aquele revólver, Lam. Já lhe contei que você estava comigo quando encontrámos pela primeira vez a arma, que discutimos até se devíamos comunicar o caso imediatamente à polícia ou se devíamos esperar até que fizéssemos uma investigação em Los Angeles para sabermos ao certo em que ponto estava o caso do assassínio de Craig.

Hale olhava-me significativamente, como se tentasse fazer-me ver que o seu intróito marcava a nossa linha de conduta e para eu não fazer qualquer declaração em contrário. Fiz um gesto de assentimento para o tenente Pellingham.

- Já falei com o sargento Rondler - declarei.

- Não lhe falou a respeito do revólver? – perguntou Hale.

Fiz um gesto de surpresa.

- O revólver! Não, meu Deus! Supus que devia limitar-me a investigar o crime e, depois se visse que o assassínio havia sido cometido com uma arma calibre 38, que nunca fora encontrada, devia entrar em contacto consigo a fim de que você notificasse a polícia.

- Exactamente - disse Hale em tom positivo, fazendo-me uma reverência. - Foi exactamente assim que eu compreendi. Mas - continuou - você estava comigo quando descobri pela primeira vez a arma na secretária. É esse o ponto em que o tenente Pellingham está interessado. Ele deseja uma confirmação do facto. Voltei-me para o tenente.

- O Sr. Hale estava a revistar a secretária. Havia lá alguns papéis que tinham caído para trás da gaveta. Quando começámos a tirá-los, encontrámos um revólver.

- Pode identificar esse revólver, evidentemente? Perguntou o tenente Pellingham.

- Era um revólver calibre 38 de aço azulado - declarei. - Não estou certo da marca. Era...

- O ponto não é esse - disse o tenente Pellingham. - O que eu desejo saber é se pode identificar a arma que viu lá.

Olhei para ele com ar inocente.

- Bem, posso dizer-lhe, de uma maneira geral, de que arma se tratava.

- Mas não pode dizer-me se a arma que tenho comigo é a mesma?

- É claro que é a mesma - declarou Hale.

Hesitei; passado um momento, disse:

- É claro, nenhum de nós pensou em ver o número da arma ou qualquer coisa no género. Apenas vimos o revólver na secretária, onde o tornámos a pôr e, se Hale diz que é o mesmo, eu não tenho nada que duvidar.

- É claro que é o mesmo - afirmou Hale. – Sou absolutamente categórico nesse ponto.

- O que precisamos - disse Pellingham - é de alguém que possa ser categórico perante o júri.

- Oh, podemos estar descansados nesse ponto disse Hale em tom confiante.

- Se tem essa arma consigo - disse eu a Pellingham - pode ser que a identifique. Se for, talvez seja uma boa idéia gravar nela as minhas iniciais.

- É uma idéia excelente - concordou Pellingham.

- Quando você estiver sentado no banco das testemunhas não precisa dizer a ninguém em que data gravou na arma as suas iniciais. Não sei se me compreende?

- Não estou bem certo.

- O delegado do governo dirá simplesmente: “Sr. Lam, vou mostrar-lhe um revólver que tem gravadas as iniciais D. L. Pergunto-lhe se foi o senhor quem as gravou?” O senhor responderá: “Fui.” Depois o delegado perguntar-lhe-á: “Porquê?” E o senhor responderá: “Para que pudesse identificá-lo.” Depois o delegado perguntará: “É este o revólver que o senhor viu na secretária de um apartamento de Nova Orleães?” Etc., etc.

- Estou a compreender - declarei.

- Isso é esplêndido - sentenciou Hale. – Vamos ambos gravar na arma as nossas iniciais.

Pellingham levou-nos para um canto da sala de espera.

- Vamos fazer a coisa aqui mesmo - disse ele porque eu vou agora mesmo para o quartel-general da polícia local, a fim de disparar algumas balas e compará-las com aquela que matou o jovem Craig.

Observámo-lo enquanto ele tirava de uma pequena mala uma caixa de madeira. Levantou a tampa. Ligado ao fundo por arames que passavam através de alguns furos feitos na caixa, estava o revólver que a agência me tinha dado alguns meses antes. Hale debruçou-se sobre a arma.

- É esse mesmo - declarou ele com ênfase. – Era esse o revólver que estava lá. E apostaria dez contra um que foi esta arma que matou Craig.

- Grave-lhe as suas iniciais - disse Pellingham, dando-lhe um canivete.

Hale gravou as suas iniciais na coronha do revólver. Pellingham passou-me a arma. Examinei-a com todo o cuidado.

- Julgo que é o mesmo revólver. É claro, não anotei o número. Mas, segundo me parece...

- Oh, Lam! - exclamou Hale. - É claro que é a mesma arma. Você sabe isso perfeitamente.

- Julgo que.... Bem, parece...

- Vamos - disse Pellingham - grave-lhe as suas iniciais.

Entregou-me o canivete. Bertha olhava alternadamente do revólver para mim. O seu rosto era um estudo para um pintor. Hale fazia reverências.

- Agora, os senhores já identificaram esta arma declarou Pellingham. - Não desmintam essa identificação nem consintam que qualquer advogado espertalhão vos atrapalhe. O alto-falante chamou:

- Há um telegrama para o tenente Pellingham, da polícia de Nova Orleães. É favor, tenente Pellingham, dirigir-se ao balcão de venda de bilhetes.

- Desculpem - disse Pellingham fechando a molinha.

Dirigiu-se ao guichet de venda de bilhetes.

- Sinto-me muito satisfeito por você ter identificado aquela arma, Lam - declarou Hale. - Devíamos ter anotado o número quando a descobrimos.

- Estou surpreendida por não ter feito isso, Donald - disse Bertha.

Hale deu uma gargalhada.

- Ele é realmente um mocho sábio, Srª. Cool, mas até mesmo os mochos pestanejam às vezes. Este foi o único deslize que...

Bertha interrompeu-o com o olhar duro fixo em mim.

- Os mochos não pestanejam.

Pellingham voltou apressadamente para junto de nós, com um telegrama na mão e os lábios cerrados.

- Lam, você tomou um avião em Fort Worth no sábado à noite?

- Porquê? - perguntei.

- Tomou?

- Tomei.

- Muito bem, Lam. Vou pedir-lhe para me acompanhar ao quartel-general... Imediatamente.

- Desculpe, mas tenho mais que fazer - respondi. - Tenho coisas importantes a tratar.

- Não me interessa nada o que você tem a fazer. Você vai acompanhar-me.

- Tem alguma autorização para me obrigar a isso?

Pellingham meteu a mão no bolso das calças. Pensei que me ia mostrar uma estrela. Em vez disso apresentou-me uma moeda de níquel.

- Vê isto? - perguntou ele. - Esta é a minha autoridade.

- Com um valor de cinco centimes?

- Não. Quando eu meter esta moeda na caixa de um telefone e fizer uma chamada para o quartel-general da polícia, ficarei com toda a autoridade de que necessito.

Sentia os olhos de Hale procurando captar os meus, via o olhar intenso de Bertha brilhar num profundo esforço de concentração e os olhos firmes e determinados de Pellingham.

- Quer acompanhar-me ou não? - perguntou Pellingham.

- Vá e sirva-se do seu níquel - disse-lhe, encaminhando-me para a porta de saída.

Bertha Cool e Emory Hale ficaram como que petrificados, fitando-me como se eu tivesse deixado cair uma máscara, tornando-me completamente um estranho. Pellingham tomou a minha resposta como decisiva. Já devia esperá-la logo que deu início à entrevista. Dirigiu-se calmamente e sem pressas para a cabina telefónica. O carro da agência estava à saída. Meti-me nele e deixei passar um pouco de tempo. Para escapar teria de dar uma grande volta, pois Pellingham teria mandado bloquear todas as ruas principais e dado a descrição do carro da agência.

 

                   A morte aproxima-se

Não tinha tempo para esconder o carro da agência. Limitei-me a conduzi-lo até um parque próximo do Hotel Palm View e deixei-o lá. Entrei no hotel, encontrei o chefe dos grooms e tirei dois dólares da algibeira.

- Posso ser-lhe útil em alguma coisa? – perguntou ele.

- Necessito de informações no valor de dois dólares.

- Diga.

- Ao princípio da tarde uma mulher que estava cá registrada com o nome de Edna Cutler despediu-se.

- Todos os dias há uma quantidade de mulheres que se despedem.

- Deve lembrar-se desta porque era uma morena muito bonita.

- Parece que me lembro de ela se ter registrado, mas não me lembro de se ter despedido.

- Não devia ter muita bagagem. Estava acompanhada de outra rapariga, uma morena de olhos castanhos que estava vestida de preto, com um cinto encarnado, chapéu encarnado e...

- Já sei agora. Meteram-se no táxi de Jeb Miller.

- Sabe onde o posso encontrar?

- Deve estar em frente da porta. É aqui o seu paradeiro habitual.

Dei ao rapaz os dois dólares.

- Venha, vou apresentá-lo ao Miller - disse ele.

Jeb Miller ouviu-me atentamente. Semicerrou os olhos para melhor concentração.

- Sim, lembro-me das duas damas - declarou ele. - Estou a tentar lembrar-me do sítio para onde as levei. Era um pequeno prédio de apartamentos na Rua 35. Não consigo recordar-me do número. Se quiser, levo-o lá e...

- Não se importe com os limites de velocidade, disse-lhe, abrindo a porta do carro e sentando-me.

- E quem manda isso? É da Polícia?

Tirei a carteira do bolso.

- Quem manda é a “massa”.

- Muito bem.

Arrancámos com um solavanco. O sinal da esquina próxima mudou para vermelho quando já íamos em movimento, mas Miller conseguiu atravessar o cruzamento antes da avalanche do trânsito transversal. Os cruzamentos seguintes deram-nos o sinal de livre e Miller aproveitou para carregar a fundo no acelerador. Só uma vez foi obrigado a parar, quando um sinal vermelho fechara o trânsito antes de Miller poder evitar o tráfego lateral. O resto da corrida foi feito sem paragens. O táxi parou em frente de um pequeno prédio de apartamentos de dois andares, caiado de branco e de telhado vermelho. Um género comum de construção em Los Angeles.

- É esta a casa - declarou Miller.

Estendi-lhe uma nota de cinco dólares.

- Quer que espere? - perguntou ele.

- Não, não deve ser necessário.

Examinei as caixas do correio. Todas elas tinham cartões com o nome do proprietário do respectivo apartamento. Não encontrei qualquer nome que se assemelhasse sequer ao de Edna Cutler, nem notei sinais de qualquer cartão ter sido colado nesse dia. Carreguei no botão da campainha da porteira. Passado um pouco ela veio atender. Enderecei-lhe o meu melhor sorriso.

- Duas raparigas que se mudaram hoje para cá telefonaram-me por causa de um seguro automóvel. Sou empregado do Automóvel Clube do Sul da Califórnia. Elas desejam saber informações a respeito de licenças de condução e seguros.

- Refere-se às mulheres de Nova Orleães?

- Essas mesmo.

- Porque não toca para o apartamento delas? Estão no 271.

- Queira desculpar. Devo ter tocado para outro apartamento, de onde ninguém respondeu.

Sorri-lhe com simpatia e comecei a subir as escadas. O corredor estava mergulhado na escuridão. Um feixe de luz saía por debaixo da porta do apartamento 271. Deitei a mão à maçaneta da porta e rodei-a silenciosamente. Quando vi que a lingüeta tinha cedido, dei um pequeno empurrão. A porta estava fechada por dentro. Segurei o batente, levantei-o e deixei-o cair. Não aconteceu nada. Bati novamente e com mais força. Houve um ruído de movimento do outro lado, depois uns passos leves. Finalmente a voz de Edna Cutler soou baixa e disfarçada.

- Quem é?

- Inspector da electricidade para examinar a instalação do apartamento.

- Agora não pode entrar.

- É uma ordem da Câmara. Tenho que examinar a instalação antes de a senhora utilizar as luzes.

- Já estou a utilizá-las.

- Não demorará mais de um minuto. Se não me deixar examinar a instalação, desligarei a corrente.

- Volte daqui a uma hora - disse ela, afastando-se da porta.

Bati à porta mais três vezes mas não obtive qualquer resposta. Examinei o hall e descobri um quadro de fusíveis a meio do corredor; fiz uma pequena experiência, tirando um fusível e metendo-o na algibeira. Voltei atrás. Não havia qualquer feixe de luz por debaixo da porta do apartamento 271. Silenciosamente segurei com mão firme o puxador da porta, rodei-o e assim o conservei. Durante cerca de um minuto houve silêncio do outro lado; depois ouvi o som de vozes. As vozes aproximaram-se da porta. Edna Cutler disse:

- Aquele idiota! Pensei que fosse apenas um truque. Aposto que foi ele quem desligou as nossas luzes.

Ouvi o som de uma corrente a ser desligada. Não esperei mais. Dei um encontrão à porta e senti-a bater contra alguém que começou a gritar. O quarto estava escuro, mas recebia ainda bastante luz pelas janelas abertas, de um reclame luminoso montado no prédio em frente. Edna Cutler tinha-se desequilibrado devido ao choque da porta a abrir-se. Vestia calções e blusa. No canto mais afastado do apartamento estava outro vulto indistinto. Quando lhe ouvi a exclamação abafada reconheci Roberta Fenn.

- Preveni-a que não entrasse em contacto com Edna - disse-lhe.

- Eu... Você não compreende, Donald. Eu tinha que entrar em contacto com ela.

- Meu Deus! - exclamou Edna Cutler. - É novamente esse detective?

- O mesmo.

-O que fez às nossas luzes?

- Tirei um fusível do quadro.

- Muito bem, nesse caso vá pô-lo novamente lá.

- Para encontrar outra vez a porta fechada quando voltar? Nada feito.

- O que pretende?

- Sabe bem o que pretendo. O que...

- O que é? - perguntou Edna Cutler num sussurro ao ver-me parar subitamente a meio da frase.

- Calma - disse eu baixo. - Já receava que ele a tivesse seguido.

Ouviam-se passos no corredor, lentos e firmes, como os de um carrasco ao aproximar-se da cela do condenado à morte.

- Não tenho... - começou a dizer Edna Cutler.

- Cale-se!

Dirigi-me para a porta a fim de a fechar. Tropecei num banco. Os passos estavam agora muito próximos. Distingui uma pequena desigualdade neles. Era o caminhar de um homem que coxeasse um pouco. Alcançou a porta antes de mim, um homem de sobretudo cuja gola estava levantada e de chapéu com as abas baixas. Não parecia ser nem muito alto nem muito forte. O sobretudo escondia-lhe os contornos do corpo. Roberta Fenn deu um grito. O homem disparou antes que eu me tivesse aproximado suficientemente dele para que pudesse intervir. O primeiro tiro foi para Roberta; depois a arma foi apontada na direcção de Edna. Nessa altura eu já estava perto. Ele sabia que não podia errar aquele tiro. Voltou a boca da arma na minha direcção e eu ouvi o disparo e senti as chamas queimarem-me a cara. Falhou-me e, no momento seguinte, eu estava agarrado à mão que empunhava a arma. Segurei-a com força. As minhas velhas lições de jiu-jitsu vieram-me à memória. Voltei-me um pouco, de maneira a ficar de costas para o adversário, segurando-lhe o pulso, puxando-lhe o braço e fazendo-o estender-se sobre o meu ombro. Baixei-me rapidamente. O impulso que dei foi suficiente para o fazer dar uma cambalhota por cima de mim até se ir estatelar no meio do quarto.

Havia um grande movimento no corredor. Mulheres gritavam. Dentro do apartamento Roberta Fenn soluçava baixinho e Edna Cutler praguejava. Quando o homem deu a cambalhota por sobre o meu ombro, a arma caiu-lhe dos dedos inertes e deslizou para a minha mão.

- O que é? O que se passa? - perguntou uma voz de homem vinda do corredor.

Dei uma corrida, passei pelo vulto inanimado no soalho, debrucei-me na janela e olhei para a escuridão da rua apenas um pouco desfeita pelo clarão vermelho do reclame luminoso. Atrás de mim o movimento era cada vez maior. Ouvi o som de uma sirene que se aproximava. Um homem mais corajoso decidira-se finalmente a entrar no quarto.

- O que se passa? - perguntou ele. - O que aconteceu?

- Alguém tentou matar estas mulheres – respondi por cima do ombro. - As luzes estão todas apagadas. Creio que ele tirou um dos fusíveis do quadro de distribuição do corredor. Veja se consegue arranjar uma luz qualquer, sim?

Pus-me nos bicos dos pés, com o corpo para Fora da janela, e olhei para cima. Havia uma pequena saliência de tijolo, de uns oito centímetros de largura, correndo a toda a volta da casa, mesmo por cima das janelas. Subi para o parapeito da janela, estendi o braço por cima da cabeça e, calmamente, coloquei a arma no pequeno beiral de tijolo. Depois desci e voltei para o meio do quarto. Um momento mais tarde as luzes acendiam-se. A voz do homem soou alta vinda do meio do corredor:

- Já está bem agora?

- Está, está óptimo - gritei.

O homem que jazia no soalho estava com os membros abertos, numa posição de absoluta inconsciência. O chapéu de feltro estava a mais de dois metros do corpo. A gola do sobretudo, devido ao deslizar pelo meu ombro, estava agora descida. O homem era Marco Cutler.

 

                   Muito perigoso

Sentei-me no gabinete de Rondler, com uma luz brilhante dirigida sobre o meu rosto. Um estenógrafo tomava nota de tudo quanto eu dizia. Dois detectives estavam sentados a observar-me com a intensa concentração que se vê geralmente nos rostos dos jogadores de poker. Edna Cutler e Roberta Fenn ocupavam duas cadeiras colocadas a um dos lados da sala. Bertha Cool estava no lado oposto com Emory Hale sentado ao seu lado.

- Aparentemente, Lam - disse Rondler, você localizou Roberta Fenn em Shreveport e trouxe-a consigo para Los Angeles.

- Tem alguma coisa que objectar a isso? - perguntei.

- A Polícia de Nova Orleães procurava-a.

- Não me comunicou isso.

- Você sabia pelos jornais que a Polícia procurava saber o que havia acontecido a Roberta Fenn.

- Não sabia que os jornais eram órgãos oficiais da Polícia. O que eu sabia era que a vida dela estava em perigo. O que eu pretendia era protegê-la.

- Como sabia que ela estava em perigo?

- Porque ela estava ligada com Edna Cutler e, as duas juntas, se contassem uma à outra as respectivas informações, ficariam a saber de mais.

- Refere-se ao assassínio de Craig?

- A isso e a outras coisas mais.

- Fale-nos acerca de Craig.

- Cutler tinha feito alguns negócios por intermédio de Roxberry. Cutler efectuava todas as transacções em nome de sua mulher, de forma que nos registros figurasse o nome de Edna P. Cutler, se bem que Edna desconhecesse completamente o que se passava e que Roxberry nunca tivesse visto Edna. Uma grande quantidade de propriedades que estavam em nome de Edna eram administradas por Roxberry. Eram principalmente terrenos petrolíferos. Roxberry morreu. Os terrenos começaram a produzir petróleo. Em virtude de as negociações terem sido efectuadas com todo o segredo, não havia documentos que as protegessem. Marco resolveu tomar grandes decisões. Era absolutamente claro que se ele pudesse conservar em segredo que os campos petrolíferos faziam parte de um trust e se pudesse obter uma sentença de divórcio estatuindo que todas as propriedades em nome de Edna P. Cutler haviam sido postas em tal situação apenas por conveniência, pois haviam sido adquiridas com fundos que ele já possuía antes do matrimónio, poderia ganhar mais de meio milhão de dólares.

O sargento Rondler começou a tamborilar com os dedos no tampo da secretária.

- Essa parte é mais ou menos óbvia - disse ele.

- O resto é igualmente simples - declarei. – Craig começou a desconfiar de qualquer coisa. Cutler tinha já ido longe de mais para voltar atrás. Esperou uma ocasião em que Craig saísse com Roberta, mascarou-se de bandido amoroso, colocou Craig numa posição tal em que ele não poderia eximir-se à luta e matou-o. Edna Cutler teve uma leve suspeita de que Roberta tinha qualquer informação que poderia vir a ser útil. Seguiu Roberta até Nova Iorque, perdeu-a de vista, voltou a encontrá-la em Nova Orleães, relacionou-se com ela e com Nostrander. Nostrander deu a Edna um engenhoso conselho que viraria do avesso os planos do marido. Edna resolveu segui-lo. Não comunicou a Roberta absolutamente nada do que se passava. Cutler caiu na ratoeira. Mais tarde, quando Edna saiu à liça, ele viu que tinha de destruir o testemunho de Roberta Fenn e obrigá-la a admitir que todos os acontecimentos haviam sido previamente combinados. Se pudesse fazer isso, poderia apresentar ao tribunal provas de que Edna não quisera, deliberadamente, tomar conhecimento dos papéis que lhe eram destinados. Era a sua única salvação.

- Cutler admite isso - informou Rondler - mas não admite mais nada.

- Cutler contratou Hale - continuei. - Pensou que um advogado de Nova Iorque seria capaz de tratar melhor do caso do que um de Los Angeles, mas recomendou a Hale que se servisse de uma agência de detectives desta cidade. No entanto, Hale havia localizado Edna Cutler. Depois, através de Edna, descobriu Roberta. Hale já havia tentado fazer falar Roberta mas sem resultado. Em vista disso, resolveu contratar-nos. Ele não conseguiu nada de Edna Cutler. Ela ladeou sempre todas as dificuldades.

- E o que tem a dizer a respeito dos recortes dos jornais e do revólver?

- Provavelmente foi Roberta quem deixou lá os recortes dos jornais. Uma outra pessoa encontrou os recortes e pôs lá o revólver.

- Porquê?

- Para fazer com que tudo parecesse lógico e claro.

- O revólver não condiz - declarou Rondler. A bala que matou Craig não foi disparada por ele.

Fiz um gesto de assentimento.

- Espero que não esteja a insinuar que fui eu quem o lá pôs - interveio Hale.

Olhei para ele e disse:

- Você era um menino perdido na floresta. Quis fazer-me crer que seguira de avião para Nova Iorque na noite em que pretendia passar-me uma rasteira.

- O que quer dizer com isso? - gaguejou ele.

- Não sei quais eram as suas intenções em relação a Nostrander. Pode ter querido amedrontá-lo, suborná-lo ou fazê-lo acreditar que você pertencia à polícia federal. Provavelmente o seu fim era suborná-lo. De qualquer modo, você tinha necessidade de um álibi. Nostrander demorou-se muito tempo no apartamento de Roberta Fenn. Você havia-o seguido até lá e não imaginava a razão por que ele se demorava tanto, pois sabia que Roberta não estava lá. Por volta das duas e vinte da manhã, decidiu que não devia esperar mais tempo para lhe falar. Subiu até ao apartamento para verificar o motivo por que ele se estava a demorar.

- Não fiz nada disso - protestou Hale.

Voltei-me para Rondler.

- É claro - expliquei - que ele pretende negar isto, tendo em vista que o assassínio foi praticado às duas e meia.

- Pode provar o que está a dizer? – perguntou Rondler.

Com um gesto apontei para Roberta Fenn.

- Esse homem subiu até ao meu apartamento – declarou Roberta.

Sorri para Hale.

- Isso é absolutamente falso - afirmou ele. - É um caso de confusão de identidades. Devo ser alguém que se pareça muito comigo.

Rondler bateu mais fortemente no tampo da mesa.

- O que aconteceu no apartamento? - perguntou-me.

- Não sei. Hale é a única pessoa que sabe. Peça-lhe que lhe diga.

- Já disse que não estive lá - protestou Hale.

- Como conseguiu entrar em contacto com Roberta Fenn? - perguntou Rondler a Edna.

- Pus um anúncio no jornal.

- Num jornal de Los Angeles?

- Sim.

- Porquê?

- Pensei que a vida dela corria perigo e desejava protegê-la.

- Onde estava ela? Onde permaneceu ela enquanto esteve em Los Angeles?

- Não sei.

Rondler voltou-se para Roberta.

- Onde esteve alojada? - perguntou.

- Num hotel - respondeu ela, mas não sei dizer-lhe o nome.

- Sabe onde era?

- Não. Ficava... Quando cheguei estava bastante fatigada.

- Esteve sempre sozinha?

- Não. Estive acompanhada de outra pessoa.

- Quem era?

- Não sei. Fui raptada.

Rondler fitou-me e sorriu.

- Por que motivo fugiu à polícia de Nova Orleães? - perguntou-me Rondler passado um pouco.

- Porque tinha de levar a cabo um trabalho.

- Que trabalho?

- Queria descobrir o paradeiro de Roberta Fenn.

- Porquê?

- Porque pensei que a sua vida corria perigo.

- Porquê?

- Porque Marco Cutler havia convencido o solicitador de Nova Orleães de que ele tinha apresentado os documentos à verdadeira Edna Cutler. Sob essas circunstâncias, tudo quanto ele tinha a fazer era afastar Roberta Fenn do seu caminho e, depois, seria a palavra do solicitador contra a de Edna. Creio que o júri acreditaria piamente na palavra do solicitador.

- Bem, não há dúvida que é uma bela teoria – declarou Rondler. - O mal é que não temos qualquer prova seja contra quem for. Marco Cutler afirma que foi você quem disparou contra ele. Que ele tinha ido ao apartamento para falar com a esposa e que não mexeu no quadro dos fusíveis. Viu a porta aberta. Você disparou contra ele assim que o viu entrar no quarto e depois agarrou-lhe num braço e, aproveitando-se da escuridão, aplicou-lhe um golpe que o fez dar um salto mortal antes de se estatelar no chão.

- Foi ele quem disparou - afirmei.

- Muito bem - disse Rondler com voz irritada. - Onde está a arma?

- A janela estava aberta. Pode ser que, na confusão, tenha sido atirada pela janela.

- Um dos inquilinos - retorquiu Rondler - diz que você abriu a janela.

- Fui até à janela e olhei para fora. Foi isso que naturalmente produziu a confusão. Você sabe como se comportam as pessoas excitadas.

Rondler voltou-se para Hale.

- Suponho que o senhor não admite ter falado com Nostrander na noite em que ele foi assassinado?

- Quem, eu? - perguntou Hale.

- Com quem raio pensa que estou a falar? - exclamou Rondler.

- Eu estava em Nova Iorque - declarou Hale com ar digno. - Verifique os registros do aeroporto.

Sorri para Rondler.

- Consulte os registros da companhia de aviação e descobrirá que o homem que fez a viagem para Nova Iorque pesava sessenta e seis quilos e duzentos gramas. Hale deve pesar mais de noventa. Marco Cutler é o cavalheiro que corresponde à descrição.

- Absurdo! - exclamou Hale. - Os registros da companhia devem estar errados.

Acendi um cigarro.

- Bem - disse Rondler, creio que é tudo por hoje. Podem ir-se embora todos, mas não se atrevam a sair da cidade sem meu consentimento. Sob um certo ponto de vista, todos estão sob custódia como testemunhas materiais e ficarão sob vigilância. Saímos todos para o corredor. Hale disse para Roberta Fenn:

- Peço-lhe desculpa de a ter enganado. Relacionei-me com Edna Cutler. Não consegui arrancar-lhe nada, mas consegui uma carta de apresentação para si. Espero que compreenda como são as coisas.

- Oh, absolutamente - retorquiu Roberta. –Tudo acontece na vida.

Espreguicei-me e bocejei.

- Bem, creio que já trabalhei bastante - declarei.

- Vou-me deitar.

Bertha fitou-me com os seus olhos duros e brilhantes.

- Preciso de falar um pouco consigo, Donald - disse ela.

Passou o seu braço pelo meu e levou-me para um canto. A sua voz era absolutamente maternal.

- Vamos, Donald. Você precisa repousar. Está muito cansado.

- Evidentemente - respondi. - Foi por isso que me quis despedir.

Ela baixou a voz e disse pelo canto da boca:

- Se você for buscar a arma para a pôr em qualquer parte, é muito perigoso. Diga-me onde ela está para eu a ir buscar.

- Que arma? - perguntei.

- Não seja pateta - disse Bertha. - Pensa que eu não conheço um revólver da agência assim que o vejo? Onde está o outro?

- No meu quarto, na gaveta de cima da cómoda respondi.

- Muito bem. Onde quer que o ponha?

- Debaixo da janela do apartamento de Edna. Não deixe vestígios.

- Tenha confiança em mim - murmurou Bertha.

- Sei que o vigiam. A arma que Cutler utilizou contra si está bem escondida?

- Por enquanto, acho que sim. Depois, tenho mais com que me afligir.

Roberta Fenn encaminhou-se para nós.

- Posso interrompê-los apenas por um momento? - Perguntou.

- À vontade - respondeu Bertha. - Por mim, já terminei.

O olhar de Roberta era uma carícia. Estendeu-me as duas mãos e exclamou:

- Meu querido!

 

                   Diabos me levem!

O tenente Pellingham entrou no escritório por volta da uma menos um quarto de terça-feira. Elsie Brand comunicou-me que ele estava na sala de espera e eu fui falar-lhe.

- Espero que você não me guarde rancor, Lam.

- Absolutamente nenhum, se você se portar da mesma forma.

- Você devia ter-me dito que procurava proteger Roberta Fenn em virtude de pensar que ela corria perigo.

- Nessa altura você pô-la-ia sob custódia e fá-la-ia remover para Nova Orleães.

- Bem - admitiu ele, após uma pausa, poderia ter acontecido uma coisa no género.

- Para não falarmos já em Edna Cutler - prossegui.

- Lam, você é um tipo muito reservado. Gostaria que me dissesse o que aconteceu realmente em Nova Orleães.

- Refere-se a Nostrander?

- Sim.

Consultei o relógio.

- Tenho um encontro marcado para daqui a doze minutos ao fundo da rua - disse-lhe. - São dez minutos de caminho. Não quero chegar atrasado. O que diz se formos andando? Conversaremos enquanto caminhamos.

- Muito bem. Agradecerei qualquer indicação que possa dar-me. A minha missão aqui redundou num fracasso. A Louisiana pode extraditar Roberta Fenn, mas eu não o creio, dada a falta de provas. Se eu pudesse voltar a Nova Orleães com a solução do caso, seria um grande passo na minha carreira.

- Óptimo, vamos andando.

Peguei no chapéu, aproximei-me da mesa de Elsie Brand e apertei-lhe a mão. O seu rosto mostrou uma expressão de surpresa.

- Vai-se embora? - perguntou ela.

- Sim. Pode ser que esteja ausente durante algum tempo. Tome cuidado consigo.

Os seus olhos brilhavam com um fulgor estranho.

- Você faz com que a coisa pareça definitiva.

- Estarei de volta - prometi.

Saí com Pellingham. Ela seguiu-me com os olhos até a porta se fechar. Quando saímos do elevador demos de cara com Bertha Cool. Bertha compôs o seu melhor sorriso para Pellingham.

- Já sabe as últimas notícias Donald? - perguntou-me ela.

- Quais notícias?

- O sargento Rondler encontrou a arma usada por Cutler caída na rua, por baixo da janela do apartamento de Edna. Uma bala experimental disparada por ele mostrou que se tratava da mesma arma que matou o jovem Craig. Cutler reclama dizendo que foi tudo montado de propósito, mas a Polícia não faz caso das suas queixas e vai submetê-lo a um interrogatório de terceiro grau.

- Óptimo.

- Onde vão vocês os dois? - perguntou Bertha.

- Vamos descer a rua. Venha dar um passeio conosco... Pellingham disse que desejava falar-me.

Ela olhou para o elevador como que a pensar se devia ir conosco ou subir para o escritório.

- Bem - disse ela finalmente. - Gostava de ir para o escritório. Encomendei alguns pares de meias de seda legítima e gostava de saber se já chegaram. Oh, bom, vou convosco, sim.

Começámos a caminhar os três lado a lado, com Bertha do lado de dentro do passeio. Pellingham no meio e eu do outro lado. Pellingham voltou-se para mim.

- Você pensa realmente que Hale subiu ao apartamento de Roberta às duas e vinte? - perguntou.

- Tenho a certeza que subiu. O que descobriu a seu respeito?

Ele sorriu.

- Hale não é advogado.

- Nunca pensei que o fosse. É detective particular?

- É. É o chefe de uma agência de detectives de Nova Iorque. Cutler contratou-o para que fizesse Roberta Fenn admitir certas coisas ou para arranjar quaisquer provas contra ela. Para lhe confessar a verdade, penso que foi ele quem escondeu todos aqueles papéis no apartamento de Roberta Fenn em Nova Orleães, esperando, dessa forma, ameaçá-la de fazer reabrir o antigo caso de homicídio de Craig, em que ela apareceria como culpada. O preço por que ele consentiria em calar-se era que ela testemunhasse ter havido um conluio entre ela e Edna Cutler.

- Parece razoável - respondi.

- Onde eles tropeçaram - continuou Pellingham foi em não terem pensado que o revólver, que haviam descoberto em qualquer parte e que meteram na secretária, seria experimentado para se saber se fora ele que disparara o tiro que matou Craig.

- É claro – interpus - que se Roberta tivesse aceitado a proposta, a arma e os recortes dos jornais ser-lhe-iam entregues.

- Exactamente. Ainda me não tinha lembrado disso.

- Naturalmente tudo quanto eles desejavam era exercer pressão sobre Roberta - alvitrei.

- Tudo leva a crer que sim - disse Pellingham. - Há ainda uma quantidade de coisas por esclarecer... Pequenos pormenores. Há, no entanto, alguns factos que julgo você pode esclarecer.

- Por exemplo?

- Dizendo-me em que sentido devo dirigir as investigações no caso do assassínio de Nostrander. Foi Hale quem o matou?

Consultei o relógio. Faltavam cinco minutos para a uma hora.

- Vou dizer-lhe uma coisa - declarei enquanto esperávamos que o sinal de trânsito nos desse passagem.

- Bertha Cool e eu fomos as primeiras pessoas que descobriram o cadáver.

- O quê? - exclamou ele, apanhado de surpresa.

- Donald! - gritou Bertha Cool.

- Não tem importância - declarei. - Não podem fazer-nos qualquer mal. Fui eu quem telefonou à Polícia.

- Ouçamos o resto - pediu Pellingham, enquanto atravessámos o cruzamento.

- Tocámos à campainha do apartamento de Roberta Fenn. Alguém carregou no botão que nos abriu a porta. Subimos as escadas até chegarmos junto do apartamento e olhámos lá para dentro. Vimos o cadáver de Nostrander. Retirei-me logo com Bertha, pois pensei que o assassino estivesse lá dentro.

Pellingham fez um gesto de assentimento.

- No entanto, não estava lá - acrescentei.

- Como sabe que não estava lá?

- Porque ficámos a vigiar o edifício. Ele não saiu. Ninguém saiu do prédio com excepção de uma senhora de idade. Depois chegou a Polícia.

- Isso é o mais estranho do caso - disse Pellingham. - Depois de a Polícia ter recebido a comunicação anónima, dois detectives foram para o local. Tocaram para o apartamento de Roberta Fenn e alguém carregou no botão que abria a porta do prédio. Subiram, mas não encontraram ninguém no apartamento.

- Na noite em que estive lá a falar com Roberta, Nostrander bateu à porta - informei. - Não havia tocado a campainha da porta do edifício. Roberta conseguiu livrar-se dele e depois disse-me que o melhor era ir-me embora. Saí logo a seguir a Nostrander. Quando cheguei à porta da rua, olhei para cima e para baixo, mas não vi sinais da presença de Nostrander.

- Qual é a explicação? - perguntou Pellingham com impaciência.

- Nostrander devia ter outra pessoa amiga no mesmo prédio, uma pessoa com quem se encontrava regularmente. É bastante razoável supor que era uma rapariga e quando esta verificou que Nostrander continuava apaixonado por Roberta Fenn, encheu-se de ciúmes. Marilyn Winton tem o seu apartamento mesmo em frente do de Roberta. Depois do assassínio, várias pessoas foram até ao edifício, tocaram a campainha do apartamento de Roberta Fenn, e a porta de entrada foi sempre prontamente aberta. Se Roberta Fenn tivesse voltado para casa, seria assassinada, mas sempre que qualquer outra pessoa entrava no apartamento não encontrava ninguém. O que toda a gente se esqueceu de pensar foi que a porta pode abrir-se de qualquer apartamento. Pode tirar as conclusões.

Pellingham rangeu os dentes com fúria.

- Marilyn Winton - continuei - diz que ouviu o tiro às duas e trinta. Foi ela a única pessoa a ouvi-lo. Creio que se você interrogar devidamente Hale, descobrirá que ele esteve a falar com Nostrander até às duas e meia. Suponha que depois de ele ter saído, Marilyn foi até ao apartamento de Roberta Fenn para uma troca de explicações.

- Mas ela ouviu o som abafado de um tiro às duas e trinta.

- Ela diz que ouviu. Se eu pretendesse ir até ao apartamento de uma dada pessoa e a matasse às três horas, poderia inventar um belíssimo álibi, dizendo aos meus amigos que, assim que abrira a porta do prédio, ouvira um tiro, não é verdade?

Pellingham ficou a olhar-me fixamente como se eu tivesse acabado de tirar-lhe uma venda.

- Diabos me levem! - exclamou Bertha Cool.

Pellingham assobiou entre dentes. Tomou uma decisão súbita.

- Muito bem, Lam - declarou ele, você vai voltar a Nova Orleães comigo.

- Isso é o que você pensa - respondi-lhe.

Subi rapidamente as escadas e atravessei a porta de entrada da Junta de Recrutamento da Marinha, antes que qualquer dos dois se desse conta do meu gesto.

- Donald Lam apresenta-se ao serviço - disse eu para o homem que estava sentado à secretária.

- Muito bem, marinheiro. Passe por aquela porta. Está um autocarro parado nas traseiras. Entre nele.

Bertha e Pellingham esbarraram um contra o outro, cada um tentando ser o primeiro a alcançar a porta. Pellingham havia esquecido as suas maneiras delicadas. Um homem fardado vedou-lhes a passagem com a espingarda armada de sabre-baioneta. Estacaram ambos como figuras de um filme que tivesse parado repentinamente. Pellingham apontou-me com o dedo.

- Preciso daquele homem - disse ele.

- Também o Tio Sam precisa - respondeu o homem que estava sentado à secretária.

Voltei-me e atirei um beijo a Bertha.

- Mandar-lhe-ei um postal ilustrado de Tóquio prometi e passei a porta.

 

                     Um telegrama para Bertha

Tomei conhecimento do desenlace pelos jornais quando estava próximo de S. Francisco, no comboio carregado de jovens americanos que queriam tomar parte na festa da guerra. Hale havia contado toda a história logo que verificara não ter de se defender da acusação de homicídio. Havia seguido Nostrander. Tudo o mais havia falhado. Ele queria que Nostrander admitisse que a comédia da apresentação dos papéis a uma mulher estranha havia sido o fruto de um plano bem elaborado. Encontrou Nostrander no apartamento de Roberta Fenn e Nostrander estava embriagado. Hale estava preparado para o subornar por dez mil dólares e, como não queria ser acusado de tentativa de suborno no caso de Nostrander recusar, preparou um álibi que provaria ter partido de avião para Nova Iorque nessa mesma tarde.

Marilyn Winton tinha sido presa. A Polícia havia já reunido bastantes provas contra ela. Era aquele o tal amor infeliz que a havia tornado uma rapariga triste e desanimada.

Marco Cutler tinha confessado o assassínio de Craig, mas continuava a insistir que fora a Polícia quem pusera propositadamente o revólver no sítio onde ele fora encontrado. Afirmava que havia posto a arma com que praticara o assassínio de Craig num apartamento de Nova Orleães que havia sido habitado anteriormente por Roberta Fenn, a fim de que o seu detective, Hale, pudesse exercer pressão sobre a rapariga.

Quando o comboio chegou a S. José para efectuar uma paragem de vinte minutos, enviei o seguinte telegrama a Bertha Cool.

Edna Cutler deve ser debitada na importância de dez mil dólares em virtude de termos contribuído com grande aumento de receitas para o seu património. As meias de seda não são feitas no Japão. Em vez delas mandar-lhe-ei um ramo de flores de cerejeira. Amor.

O homem do telégrafo contou as palavras, pegou no dinheiro que lhe estendi e disse:

- Não quer pôr um endereço qualquer, Sr. Lam, para onde o destinatário possa responder-lhe?

Reprimi uma gargalhada.

- Ao cuidado da Marinha dos Estados Unidos, Tóquio - respondi.

O homem escreveu o que eu disse.

 

                                                                                Erle Stanley Gardner  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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