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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O APELO DA LUA / Patricia Briggs
O APELO DA LUA / Patricia Briggs

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A princípio não me apercebi de que era um lobisomem. O meu olfato não é o mais apurado quando me vejo rodeada de massa lubrificante e óleo queimado — e não é propriamente comum ver-se lobisomens vadios a vaguear por aí. Pelo que quando alguém produziu um ruído discreto perto dos meus pés para atrair a minha atenção, pensei que era um cliente.
Estava encafuada debaixo do compartimento do motor de um Jetta, a instalar uma caixa de velocidades reconstruída no seu novo destino. Um dos inconvenientes de gerir uma oficina de uma só mulher era ter de parar e começar de cada vez que o telefone tocava ou um cliente aparecia. Isso punha-me mal-humorada — o que não é bom para lidar com os clientes.
O meu fiel moço de recados e dispensador de ferramentas tinha ido para a universidade e ainda não o substituíra — é difícil encontrar alguém que faça todos os trabalhos que eu não quero realizar.
— Dê-me só um segundo — disse, fazendo por não soar resmungona. Faço o melhor que posso para não afugentar os meus clientes se estiver ao meu alcance evitá-lo.
Para o diabo com os macacos de transmissão, a única forma de colocar uma caixa de velocidades num Jetta velho é através do músculo. Por vezes, ser uma mulher é útil no meu ramo — as minhas mãos são mais pequenas, portanto consigo fazê-las chegar a sítios que um homem não é capaz. No entanto, nem mesmo o levantamento de pesos e o karaté me podem tornar tão forte quanto um homem forte. Normalmente a força de alavanca pode servir de compensação, mas por vezes não existe substituto para o músculo, e eu não tinha mais do que o mínimo necessário para realizar o trabalho.

 


 


Grunhindo por causa do esforço, segurei a caixa no devido lugar com os joelhos e uma mão. Com a outra, enfiei o primeiro parafuso e apertei-o. Não estava terminado, mas a
caixa aguentar-se-ia ali enquanto falava com o meu cliente.
Respirei fundo e esbocei um sorriso bem-disposto como forma de exercício, após o que deslizei de debaixo do carro. Lancei a mão a um farrapo para limpar o óleo das mãos e
disse «Em que posso ajudá-lo?» antes de lançar um olhar suficientemente atento ao rapaz para perceber que não se tratava de um cliente — embora, a julgar pelo seu aspeto,
fosse evidente que alguém o devia ajudar.
As joelheiras das suas calças de ganga tinham sido estraçalhadas e estavam manchadas de sangue ressequido e terra. Por cima de uma t-shirt, trazia uma camisa de flanela demasiado
pequena — uma indumentária desadequada ao novembro de Washington oriental.
Tinha um aspeto descarnado, como se não comesse há muito tempo. Mesmo com os cheiros a gasolina, óleo e anticongelante que impregnavam a oficina, o meu olfato disse-me que
tinha passado um período de tempo igualmente longo desde a última vez que vira um chuveiro. E, por baixo da sujidade, do suor, e do velho medo, distinguia-se o odor característico
de um lobisomem.
— Gostava de saber se tem algum trabalho que eu possa fazer — perguntou hesitantemente. — Não um emprego a sério, minha senhora. Apenas algumas horas.
Senti-lhe o cheiro da ansiedade, que a seguir foi abafado por um assomo de adrenalina por não ter recusado de imediato. As palavras dele aceleraram até começarem a esbarrar
umas nas outras.
— Um emprego também seria bom, mas não tenho um cartão da segurança social, portanto os pagamentos teriam de ser feitos por baixo da mesa.
As pessoas que aparecem à procura de trabalho em troca de dinheiro vivo são, na sua maioria, ilegais que tentam desenrascar-se entre a época das colheitas e a época de cultivo.
Aquele rapaz era o típico americano de classe média — excluindo a parte de ser um lobisomem — com cabelo e olhos castanhos. Tinha altura suficiente para ter dezoito anos,
supus, porém os meus instintos, que são bastante apurados, diziam-me que estaria mais próximo dos quinze. Tinha os ombros largos mas ossudos, e as mãos eram um bocado grandes,
como se ainda tivesse de crescer um pedaço até se tornar o homem que viria a ser.
— Sou forte — disse. — Não sei grande coisa sobre reparações de carros, mas costumava ajudar o meu tio a manter o Carocha dele a funcionar.
Acreditei que fosse forte: os lobisomens são-no. Mal tinha detetado o odor a almíscar e menta, sentira o impulso nervoso de expulsá-lo do meu território. Porém, não sendo
um mulher-loba, controlo os meus instintos — não sou controlada por eles. Mas aquele rapaz, que tremia ligeiramente por força do clima húmido de novembro, despertou em mim
outros instintos mais intensos.
Tenho como política pessoal não infringir a lei. Respeito os limites de velocidade, tenho os meus carros no seguro, pago ao Estado um bocadinho mais de impostos do que aquilo
a que sou obrigada. Já tinha oferecido uma ou duas notas de vinte a pessoas que mas tinham pedido, mas nunca contratei ninguém que não pudesse figurar na minha folha de pagamentos.
Também havia o problema de ele ser um lobisomem, e um principiante nisso, no meu entender. Os novos têm menor controlo sobre o lobo que existe neles do que os outros.
Não tinha feito nenhum comentário sobre quão estranho era ver uma mulher a trabalhar como mecânica. Muito provavelmente vinha-me vigiando desde há algum tempo, o suficiente
para se habituar à ideia — mas, ainda assim, não dissera nada, e isso dava-lhe vantagem. Mas não a vantagem suficiente para aquilo que eu estava prestes a fazer.
Esfregou as mãos e soprou-as para aquecer os dedos, que estavam vermelhos do frio.
— Está bem — disse eu, vagarosamente. Não foi a mais sagaz das respostas, porém, ao observar os seus tremores lentos, era a única que podia dar. — Vamos ver como resulta.
Há uma lavandaria e um chuveiro atrás daquela porta. — Apontei para a porta nas traseiras da oficina. — O meu último ajudante deixou alguns dos seus fatos-macacos velhos.
Vais encontrá-los pendurados nos cabides na lavandaria. Se quiseres tomar um duche e vestir um deles, podes meter as roupas que trazes vestidas a lavar na máquina. Há um frigorífico
na lavandaria com uma sandes de fiambre e um bocado de gasosa. Come, depois volta quando estiveres pronto.
Coloquei alguma ênfase na palavra «come»: não estava disposta a trabalhar com um lobisomem faminto, nem mesmo a quase duas semanas da Lua cheia. Algumas pessoas dirão que
os lobisomens só são capazes de se transformar durante a Lua cheia, mas as pessoas também dizem que os fantasmas não existem. Ouviu a ordem e pôs-se hirto, levantando os olhos
na direção dos meus.
Passado um momento, pronunciou um obrigado entre dentes e atravessou o limiar da porta, fechando-a suavemente atrás de si. Libertei o ar que tinha estado a suster. Sabia que
não era prudente dar ordens a um lobisomem — por causa daquela coisa do reflexo da dominação.
Os instintos dos lobisomens são inconvenientes — é por isso que não tendem a viver muito tempo. Esses mesmos instintos são a razão pela qual os seus irmãos selvagens foram
vencidos pela civilização enquanto os coiotes prosperaram, inclusive nas áreas urbanas como Los Angeles.
Os coiotes são meus irmãos. Oh, não sou uma mulher-coiote — se é que tal coisa existe. Sou uma caminhante.
O termo deriva de «mutante caminhante», uma feiticeira das tribos índias do sudoeste americano que utiliza uma pele para se transformar num coiote ou qualquer outro animal
e anda por aí a provocar a doença e a morte. Os colonos brancos usavam incorretamente o termo para designar todos os metamorfos nativos e o nome pegou. Não estamos propriamente
em posição de objetar — mesmo que nos revelassemos em público como aconteceu com os seres feéricos menores, não existimos em número suficiente para que valha a pena o alvoroço.
Não me parece que o rapaz tivesse percebido o que eu era, de outro modo nunca viraria costas a mim, outro predador, e atravessaria a porta para tomar um duche e mudar de roupa.
Os lobos podem ter um faro muito apurado, mas a oficina estava cheia de odores estranhos, e duvidava que algum dia tivesse cheirado alguém como eu.
— Acabaste de contratar um substituto para o Tad?
Virei-me e deparei com Tony a entrar desde o exterior através das portas basculantes abertas, onde evidentemente estivera à espreita, atento à cena entre mim e o rapaz. Tony
era bom nisso — era o seu trabalho.
O seu cabelo negro estava puxado para trás e preso num pequeno rabo-de-cavalo e tinha a barba cuidadosamente feita. A sua orelha direita, reparei, tinha quatro furos e ostentava
três pequenas argolas e um piercing com um diamante. Acrescentara dois desde a última vez que o tinha visto. Enfiado numa sweatshirt com capuz, cujo fecho aberto exibia uma
t-shirt fina que mostrava os resultados de todas as horas que passara no ginásio, parecia um póster de recrutamento para um dos gangs hispânicos locais.
— Estamos a negociar — disse eu. — Por agora é só temporário. Estás a trabalhar?
— Não. Deram-me folga por bom comportamento. — Todavia ainda estava concentrado no meu novo empregado, porque disse: — Vi-o por estas bandas nos últimos dias. Parece-me porreiro…
Um fugitivo, talvez. — Porreiro significava nada de drogas ou violência, sendo este último facto tranquilizador.
Quando comecei a trabalhar na oficina cerca de nove anos antes, Tony geria uma pequena casa de penhores ao virar da esquina. Uma vez que tinha a máquina de refrigerantes mais
próxima, via-o com relativa frequência. Passado algum tempo, a casa de penhores passou para as mãos de outra pessoa. Não pensei muito no assunto até lhe ter sentido o cheiro
numa altura em que estava postado na esquina de uma rua com um anúncio que dizia TRABALHO EM TROCA DE COMIDA.
Digo «sentido o cheiro» porque o puto de olhos fundos que segurava o anúncio não se parecia lá muito com o homem de meia-idade discreto e bem-disposto que geria a casa de
penhores. Sobressaltada, cumprimentara-o usando o nome pelo qual o tinha conhecido. O puto limitou-se a olhar para mim como se eu fosse maluca, mas na manhã seguinte Tony
estava à minha espera na oficina. Foi aí que me disse o que fazia para ganhar a vida — Nem sequer sabia que um sítio com a dimensão de Tri-Cidades1 teria chuis disfarçados.
Depois disso, começou a aparecer de vez em quando na oficina. A princípio, vinha com uma aparência diferente em cada ocasião. Tri-Cidades não é assim tão grande, e a minha
oficina ficava no limite da zona de Kennewick com maior índice de criminalidade. Pelo que é possível que apenas aparecesse por aquelas bandas quando era destacado para a zona,
mas cedo compreendi que a verdadeira razão era que se sentia incomodado com o facto de eu o reconhecer. Não podia propriamente dizer-lhe que me tinha limitado a cheirá-lo,
pois não?
A sua mãe era italiana e o pai venezuelano, e a mistura genética dera-lhe traços e um tom de pele que lhe permitiam passar por tudo desde mexicano a afro-americano. Se fosse
necessário, ainda conseguia fazer-se passar por um rapaz de dezoito anos, embora com certeza fosse vários anos mais velho do que eu — trinta e três ou algo parecido. Falava
espanhol fluentemente e conseguia usar meia dúzia de sotaques diferentes para temperar o seu inglês.
Todos esses atributos tinham-no conduzido ao trabalho sob disfarce, mas o que realmente fazia dele bom era a sua linguagem corporal. Era capaz de caminhar com o gingar característico
dos rapazes hispânicos bem-parecidos ou arrastar-se com a energia nervosa de um toxicodependente.
Passado algum tempo, aceitou o facto de eu ser capaz de lhe adivinhar os disfarces que enganavam o seu patrão e, afirmava ele, a sua própria mãe, mas por essa altura éramos
amigos. Continuou a aparecer para um café ou um chocolate quente e uma cavaqueira amigável sempre que estava por perto.
— Estás com um aspeto muito jovem e macho — disse-lhe. — Os brincos são um novo visual para o Departamento de Polícia de Kennwick? A polícia de Pasco usa dois brincos, portanto
os chuis de Kennewick têm de ter quatro?
Exibiu-me um sorriso rasgado, e isso fê-lo parecer simultaneamente mais velho e mais inocente.
— Tenho estado a trabalhar em Seattle nos últimos meses — disse. — Também tenho uma tatuagem nova. Felizmente para mim, está num sítio onde a minha mãe nunca a verá.
Tony dizia viver aterrorizado com a mãe. Nunca a tinha conhecido pessoalmente, mas quando falava dela exalava um odor a felicidade e não a medo, portanto sabia que não podia
ser a bruxa que ele descrevia.
— O que é que te traz por cá? — perguntei.
— Vim para saber se podias dar uma olhadela ao carro de uma pessoa amiga — respondeu.
— VW?
— Buick.
As minhas sobrancelhas subiram de surpresa.
— Posso dar uma olhadela, mas não estou preparada para carros americanos: não tenho os computadores. Ele devia levá-lo a algum sítio onde conheçam Buicks.
— Ela levou-o a três mecânicos diferentes: substituíram o sensor de oxigénio, as velas de ignição, e sabe-se lá mais o quê. Ainda não está bem. O último tipo disse-lhe que
precisava de um motor novo, que ele podia arranjar pelo dobro do valor do carro. Ela não tem muito dinheiro, mas precisa do carro.
— Não lhe vou cobrar nada por dar uma olhadela, e se não puder repará-lo, digo-lhe. — Ocorreu-me um pensamento súbito, despoletado pelo laivo de raiva que distingui na sua
voz enquanto falava nos problemas dela. — Estamos a falar da tua miúda?
— Ela não é minha miúda — protestou de forma pouco convincente.
Nos últimos três anos vinha estando de olho numa das despachantes da polícia, uma viúva com uma chusma de filhos. Nunca tinha feito nada em relação a isso porque adorava o
seu emprego — e o seu emprego, dissera melancolicamente, não era propício a encontros românticos, casamento e filhos.
— Ela que o traga. Se puder deixá-lo aí um dia ou dois, vou ver se o Zee aparece por cá e dá uma vista de olhos. — Zee, o meu antigo patrão, reformara-se na altura em que
me tinha vendido o espaço, mas aparecia de vez em quando para «não enferrujar as mãos». Sabia mais de carros e do que os fazia andar do que uma equipa de engenheiros da Detroit2.
— Obrigado, Mercy. És impecável. — Espreitou o relógio. — Tenho de ir.
Despedi-me dele com um aceno, voltando a concentrar-me na caixa. O carro cooperou, coisa que raramente acontece, pelo que não demorei muito tempo. Na altura em que a minha
nova ajuda emergiu, limpa e envergando um velho fato-macaco de Tad, estava a começar a recolocar as restantes peças do carro. Nem mesmo o fato-macaco seria suficientemente
quente lá fora, mas na oficina, com o meu aquecedor para espaços amplos, ele não deveria ter qualquer problema.
Era rápido e eficiente — obviamente tinha passado algumas horas debaixo do capô de um carro. Não se pôs para ali especado a olhar; foi-me passando peças antes de eu as pedir,
desempenhando o papel de ajudante de mecânico como se a ele estivesse acostumado. Ou era naturalmente reticente ou aprendera a manter a boca fechada porque trabalhámos juntos
durante um par de horas maioritariamente em silêncio. Terminámos o primeiro carro e pusemo-nos a olhar um para o outro até eu me ter decidido a persuadi-lo a falar comigo.
— Sou a Mercedes — disse, desapertando o parafuso de um alternador. — Como é que é que queres que te trate?
Os seus olhos iluminaram-se por momentos.
— Mercedes, a mecânica de VW? — A sua cara fechou-se rapidamente e murmurou: — Desculpe. Aposto que está farta de ouvir isso.
Sorri-lhe rasgadamente e passei-lhe o parafuso que tinha retirado e comecei a desaparafusar o seguinte.
— Sim. Mas também trabalho com Mercedes. Qualquer carro feito pelos alemães. Porsche, Audi, BMW, e até um ou outro Opel. Sobretudo antigos, fora da garantia, embora tenha
os computadores para a maior parte dos mais recentes, quando aparecem.
Desviei os olhos dele para ver melhor o teimoso do segundo parafuso.
— Podes tratar-me por Mercedes ou Mercy, como preferires. Como queres que te trate?
Não gosto de encurralar as pessoas num sítio onde se vêem forçadas a mentir. Se era um fugitivo, provavelmente não me diria um nome verdadeiro, mas se ia trabalhar com ele
precisava de algo melhor do que «miúdo» ou «ei, tu» para chamá-lo.
— Trate-me por Mac — disse após uma pausa.
A pausa foi um indício de que aquele não era o nome que normalmente utilizava. Por ora serviria.
— Muito bem, Mac — disse. — Importas-te de dar uma ligadela ao dono do Jetta a dizer que o carro dele está pronto? — Acenei com a cabeça na direção do primeiro carro que tínhamos
reparado. — Vais encontrar uma fatura na impressora. O número dele está na fatura juntamente com o custo final da mudança da caixa. Depois de substituir esta correia levo-te
a almoçar, está incluído na paga.
— OK — replicou, soando um pouco perdido. Dirigiu-se para a porta de acesso ao chuveiro mas detive-o. A lavandaria e o chuveiro eram nas traseiras da oficina, mas o escritório
ficava na parte lateral, ao lado do parque de estacionamento que os clientes usavam.
— O escritório fica depois da porta cinzenta — indiquei-lhe. — Ao lado do telefone está um pano que podes usar para segurar no auscultador para que não fique coberto de lubrificante.
Nessa noite fui para casa de carro preocupada com Mac. Tinha-lhe pagado em dinheiro pelo trabalho que fizera e dissera-lhe que o seu regresso seria bem-vindo. Esboçara um
sorriso ténue, enfiara o dinheiro no bolso de trás e saíra. Apesar de saber que não tinha onde passar a noite, tinha-o deixado ir, porque não vislumbrara mais nenhuma boa
opção.
Tê-lo-ia convidado para ficar em minha casa, mas isso teria sido perigoso para ambos. Por muito reduzido que parecesse o uso que fazia do faro, acabaria por descobrir o que
eu era — e os lobisomens, mesmo na forma humana, têm a força que lhes é atribuída nos filmes antigos. Estou em boa forma e tenho o cinturão vermelho do dojo que fica mesmo
do outro lado da via-férrea em frente à minha oficina, mas não estou à altura de um lobisomem. O rapaz era demasiado novo para ter o tipo de controlo necessário para evitar
matar alguém que o animal dentro dele visse como um predador rival no seu território.
E depois havia o meu vizinho.
Vivo em Finley, uma zona rural a cerca de dez minutos da minha oficina, que fica na zona industrial mais antiga de Kennewick. A minha casa é uma caravana com seis metros por
vinte e sete que tem quase a minha idade e está situada no meio de uns campos vedados. Em Finley há muitas propriedades de pequena dimensão com caravanas ou casas feitas à
mão, mas ao longo da margem do rio há também mansões como aquela em que o meu vizinho vive.
Virei para o meu caminho de entrada através da mastigação ruidosa da gravilha e parei o velho Rabbit3 a diesel em frente à minha casa. Assim que saí do carro, reparei na transportadora
para gatos pousada no meu alpendre.
Medea dirigiu-me um miado queixoso, mas peguei no bilhete fixado no topo da transportadora com fita-cola e li-o antes de a libertar.
MENINA THOMPSON, dizia em letras maiúsculas e garrafais, POR FAVOR MANTENHA O SEU FELINO FORA DA MINHA PROPRIEDADE. SE VOLTAR A VÊ-LO, COMO-O.
O bilhete não estava assinado.
Abri o fecho, peguei na gata e rocei a cara no seu pelo semelhante ao de um coelho.
— O lobisomem velho e malvado enfiou a pobre gatinha na caixa e deixou-a lá? — perguntei.
Ela cheirava ao meu vizinho, o que indicava que Adam passara algum tempo com ela ao colo antes de a ter levado para ali. A maior parte dos gatos não gosta de lobisomens —
nem de caminhantes como eu. A Medea gosta de toda a gente, pobre gata, até do rabugento do meu vizinho. E essa é a razão pela qual ia frequentemente parar ao meu alpendre
dentro da transportadora.
Adam Hauptman, que partilhava a minha vedação traseira, era o Alfa do bando de lobisomens local. A existência de um bando de lobisomens em Tri-Cidades era um tanto anómala
porque os bandos normalmente fixam-se em locais maiores onde se possam esconder melhor, ou, raramente, em locais mais pequenos que possam controlar. Porém os lobisomens têm
a tendência para se saírem bem no exército e nas agências governamentais secretas cujos nomes sejam todos acrónimos, e o complexo nuclear nas proximidades de Hanford dispunha
do envolvimento de muitas agências de nomes alfabéticos.
Suspeito que a razão por o lobisomem Alfa ter optado por comprar terreno mesmo ao pé de mim, teve tanto que ver com o anseio dos lobisomens de dominar aqueles que vêem como
seres menores, como com a soberba vista para a frente do rio.
Ele não gostava do facto de a minha velha caravana fazer descer o valor da sua desordenada construção em adobe — embora, como por vezes o fiz ver, a minha caravana já estivesse
ali na altura em que comprou a sua propriedade e construiu nela. Também aproveitava todas as oportunidades para me lembrar de que eu estava ali apenas por tolerância sua:
uma vez que uma caminhante não estava verdadeiramente à altura de um lobisomem.
Em resposta a estas queixas, eu inclinava a cabeça, falava-lhe cara a cara de forma respeitosa — normalmente — e levava o velho e decrépito Rabbit, que mantinha para peças,
até ao meu terreno nas traseiras, onde ficava claramente visível da janela do quarto de Adam.
Era quase certo que ele não comeria a minha gata, mas iria deixá-la dentro de casa durante uma semana ou algo parecido para dar a impressão de que me sentia intimidada pela
sua ameaça. O truque com os lobisomens é nunca confrontá-los diretamente.
A Medea miou, ronronou e meneou a cauda amputada quando a pousei e lhe enchi o prato de comida. Tinha vindo ao meu encontro enquanto animal vadio, e durante algum tempo pensei
que uma pessoa abusiva lhe tinha cortado a cauda, mas o meu veterinário disse-me que era uma gata de Man e nascera assim. Dei-lhe uma última carícia e depois dirigi-me ao
frigorífico para rapinar qualquer coisa para jantar.
— Teria trazido o Mac para casa se achasse que o Adam o deixaria em paz — disse-lhe —, mas os lobisomens não simpatizam lá muito com estranhos. Insistem em toda a espécie
de protocolos quando um novo lobo entra no território de outrem, e algo me diz que o Mac não peticionou o bando. Um lobisomem não morre de frio por dormir ao relento, por
muito mau que esteja o tempo. Ele vai ficar bem por um bom tempo. Ainda assim — continuei, enquanto tirava uma porção de esparguete que tinha sobrado para aquecer no micro-ondas
—, se o Mac estiver em sarilhos, o Adam é capaz de ajudá-lo. — Seria melhor apresentar o sujeito docilmente quando soubesse qual era a história do rapaz.
Comi de pé e passei o prato por água, e em seguida enrosquei-me no sofá e liguei a televisão. A Medea miou e pulou para o meu colo antes do primeiro anúncio publicitário.
Mac não apareceu no dia seguinte. Era um sábado, e talvez ele não soubesse que trabalhava quase todos os sábados se houvesse carros para reparar. Talvez tivesse seguido o
seu caminho.
Tinha a esperança de que Adam ou um dos seus lobos não o tivessem encontrado antes de eu ter tido a possibilidade de comunicar a notícia da sua presença de forma mais branda.
As regras que permitiam aos lobisomens viver despercebidos no seio dos humanos durante séculos tendiam a comportar consequências fatais para aqueles que as quebrassem.
Trabalhei até ao meio-dia, e depois telefonei ao jovem casal simpático para o informar de que o seu carro era uma causa perdida. Substituir-lhe o motor iria custar-lhes mais
do que o valor do carro. Telefonemas para dar más notícias eram a tarefa de que menos gostava. Quando Tad, o meu antigo ajudante, andava por lá, obrigava-o a fazê-los. Desliguei
quase tão deprimida quanto os desgraçados dos proprietários do reluzente, embelezado e bem-amado carro agora destinado a uma sucata.
Lavei as mãos e os braços e tirei o máximo de imundície que consegui de debaixo das minhas unhas, lançando-me à infindável papelada que também cabia a Tad tratar. Estava feliz
por ele ter conseguido a bolsa de estudos que lhe permitia ingressar na universidade da Ivy League4 que escolhesse, mas sentia mesmo a falta dele. Passados dez minutos, decidi
que não havia nada que não pudesse ser deixado para segunda-feira. Com alguma sorte, nessa altura teria uma reparação urgente em mãos, e poderia adiar a papelada para terça-feira.
Vesti umas calças de ganga lavadas e uma t-shirt, peguei no casaco e dirigi-me para o O’Leary’s para almoçar. Depois do almoço, comprei alguns artigos de mercearia sem critério
e comprei um peru pequeno para partilhar com a Medea.
A minha mãe ligou-me para o telemóvel no momento em que estava a entrar no carro e, instigando em mim sentimentos de culpa, tentou convencer-me a ir até Portland para o Dia
de Ação de Graças ou para o Natal. Safei-me habilmente dos dois convites — durante os dois anos que tinha vivido com ela tivera uma dose de reuniões de família suficiente
para uma vida inteira.
Não que sejam más, muito pelo contrário. Curt, o meu padrasto, é uma pessoa afável e pragmática — o homem ideal para servir de contrabalanço à minha mãe. Mais tarde descobri
que só soubera da minha existência na altura em que lhe aparecera na soleira, quando tinha dezasseis anos. Ainda assim, abriu-me as portas da sua casa sem nada questionar
e tratou-me como se fosse a sua própria filha.
A minha mãe, Margi, é uma pessoa cheia de vivacidade e alegremente amalucada. Não é de todo difícil imaginá-la a envolver-se com um cavaleiro de rodeios (como o meu pai),
do mesmo modo que não seria difícil imaginá-la a fugir para ingressar no circo. O facto de ser presidente da Associação de Pais e Professores local é bem mais surpreendente.
Gosto da minha mãe e do meu padrasto. Até gosto de todos os meus meios-irmãos, que tinham saudado com entusiasmo o meu aparecimento súbito nas suas vidas. Todos eles vivem
juntos numa daquelas famílias muito unidas que a televisão gosta de fazer de conta que são comuns. Fico muito contente por saber que existem pessoas assim — mas simplesmente
não pertenço lá.
Faço duas visitas por ano para que não invadam a minha casa, e certifico-me de que não calha num feriado. A maior parte das minhas visitas é muito curta. Amo-os, mas amo-os
melhor à distância.
Na altura em que desliguei, senti-me culpada e triste. Conduzi até casa, pus o peru no frigorífico para descongelar, e dei de comer à gata. Quando constatei que limpar o frigorífico
não me estava a ajudar a melhorar a disposição, embora não soubesse ao certo por que esperava que o fizesse, regressei ao carro e segui até Hanford Reach.
Não vou a Hanford Reach com muita frequência. Há sítios mais próximos onde correr, ou, se me apetecer conduzir, a cordilheira de Blue Mountains não fica muito distante. Mas
por vezes a minha alma anseia pelo espaço árido e desolado da reserva — especialmente depois de falar com a minha mãe.
Estacionei o carro e caminhei durante algum tempo até estar razoavelmente convencida de que não havia ninguém por perto. Depois tirei a roupa e coloquei-a numa mochila pequena
e metamorfoseei-me.
Os lobisomens podem demorar até quinze minutos a mudar de forma — e a transformação é dolorosa para eles, um facto que deve ser mantido presente. Os lobisomens não são os
mais amigáveis dos animais de qualquer maneira, mas se acabaram de se transformar, é boa política deixá-los sozinhos durante algum tempo.
A metamorfose dos caminhantes — pelo menos a minha metamorfose, porque não conheço mais nenhum caminhante — é rápida e indolor. Num momento sou uma pessoa e logo a seguir
um coiote: pura magia. Simplesmente passo de uma forma para a outra.
Esfreguei o focinho contra a minha pata dianteira para pôr fim ao último prurido da transformação. É sempre necessário um momento até nos adaptarmos a andar sobre quatro patas
em vez de duas pernas. Sei, porque fui ler sobre isso, que os coiotes têm uma visão diferente dos humanos, mas a minha é basicamente a mesma em qualquer uma das formas. A
minha audição melhora um bocado e o mesmo acontece com o meu olfato, embora mesmo na forma humana tenha os sentidos mais apurados do que a maioria das pessoas.
Peguei na mochila pequena, agora cheia com a minha roupa, e deixei-a debaixo de um aglomerado de arbustos raquíticos. Depois libertei-me da transitoriedade da minha existência
humana e corri para o deserto.
Depois de ter caçado três coelhos e importunado um casal num barco com um vislumbre em grande plano do meu eu belo e vestido de peles na margem do rio, senti-me muito melhor.
Não tenho de me transformar com a Lua, mas se passar muito tempo sobre duas pernas fico inquieta e mal-humorada.
Alegremente cansada, na forma humana, e acabada de me vestir, entrei no meu carro e rezei a minha habitual oração enquanto dava à chave. Desta vez o motor a diesel ficou preso
e produziu um ruído surdo. A cada novo dia nunca sei se o Rabbit irá funcionar. Ando nele porque é barato, não porque é um bom carro. Há muito de verdadeiro no adágio que
diz que todos os carros que recebem nomes de animais são defeituosos.
No domingo fui à igreja. A minha igreja é tão pequena que partilha o seu pastor com outras três igrejas. Trata-se de uma daquelas igrejas sem denominação, tão atarefada em
não condenar ninguém que pouco poder tem para atrair uma congregação consistente. As presenças habituais são relativamente escassas, e basicamente não nos metemos nas vidas
uns dos outros. Estando numa posição privilegiada para compreender como seria o mundo sem Deus e as suas igrejas para manter o pior dos males à distância, sou uma fiel frequentadora.
Não é por causa dos lobisomens. Os lobisomens podem ser perigosos se nos atravessarmos no seu caminho; mas deixam-nos em paz se formos cuidadosos. Não são mais malévolos do
que um urso-pardo ou o grande tubarão branco.
Há outras coisas, porém, coisas que se escondem no escuro, que são muito, muito piores — e os lobisomens são apenas a ponta do icebergue. São muito bons a esconder as suas
naturezas da população humana, mas eu não sou humana. Reconheço-os quando deparo com eles, e eles também me reconhecem; portanto vou à igreja todas as semanas.
Naquele domingo, o nosso pastor estava doente e o homem que o substituiu escolheu dar um sermão baseado na passagem bíblica em Êxodo 22: «A feiticeira não deixarás viver».
Expandiu o significado para abranger os seres feéricos, e nele sobreveio um miasma de medo e raiva que consegui sentir desde o meu assento. Eram as pessoas como ele que mantinham
o resto da comunidade preternatural escondida quase duas décadas após os seres feéricos menores terem sido forçadas à exposição pública.
Há cerca de trinta anos, os Senhores Cinzentos, os poderosos magos que governavam os seres feéricos, começaram a mostrar preocupação em relação aos avanços na ciência — particularmente
na ciência forense. Prognosticaram que a Era da Ocultação estava a chegar a um fim. Decidiram controlar os danos e garantir que a consciencialização da magia do mundo por
parte dos humanos fosse tão suave quanto possível. Esperaram pela circunstância apropriada.
Quando Harlan Kincaid, o bilionário magnata do ramo imobiliário já com certa idade, foi encontrado morto perto das suas rosas com uma tesoura de poda no pescoço, as suspeitas
recaíram sobre o seu jardineiro, Kieran McBride, um homem pouco falador e de rosto agradável que trabalhara para Kincaid, ele próprio um jardineiro premiado, durante uma série
de anos.
Vi partes do julgamento, tal como a maior parte dos americanos. O sensacional assassinato de um dos homens mais ricos do país, que por acaso era casado com uma adorada jovem
atriz, garantia os mais elevados índices de audiência às estações de televisão.
Durante várias semanas, o assassinato ocupou os canais noticiosos. O mundo pôde ver Carin Kincaid, com lágrimas a escorrer-lhe pelas bochechas bronzeadas pelo Sol da Califórnia,
a descrever a sua reação quando descobriu o marido morto deitado ao lado da sua roseira favorita — que fora desfeita em pedaços. O seu depoimento foi digno de um Óscar, porém
foi empurrada para segundo plano pelo que aconteceu a seguir.
Kieran McBride foi defendido por uma dispendiosa equipa de advogados que, por via da imensa cobertura mediática, tinha concordado em trabalhar pro bono. Chamaram Kieran McBride
a depor e induziram habilmente o advogado de acusação a pedir a McBride que segurasse a tesoura de poda na mão.
Tentou. Todavia, passado apenas um instante, as mãos começaram-lhe a deitar fumo e ele deixou-a cair. A pedido do seu advogado, mostrou as palmas empoladas ao júri. Não podia
ter sido ele o assassino, disse o advogado ao juiz, ao júri, e ao resto do mundo, porque Kieran McBride era um elfo, um sprite5 de jardim, e não podia segurar ferro frio,
nem mesmo através de grossas luvas de pele.
Num momento dramático, McBride abandonou o seu encantamento, o feitiço que lhe dava a aparência de um humano. Não era bonito, bem pelo contrário, mas qualquer pessoa que tenha
visto um cachorrinho Shar-Pei sabe que existe grande carisma num certo tipo de fealdade. Uma das razões pelas quais McBride fora escolhido pelos Senhores Cinzentos prendia-se
com o facto de os sprites de jardim serem gente amável e fácil de observar. Os seus pesarosos e excessivamente grandes olhos castanhos fizeram as capas das revistas durante
semanas ao lado de fotografias não muito abonatórias da mulher de Kincaid, que mais tarde foi condenada pela morte do seu marido.
E portanto os seres feéricos menores, os fracos e atrativos, revelaram-se sob o comando dos Senhores Cinzentos. Os grandes e terríveis, os poderosos ou poderosamente feios,
mantiveram-se escondidos, aguardando a reação do mundo aos mais agradáveis de entre eles. Aqui, disseram os spin doctors6 dos Senhores Cinzentos que tinham sido os advogados
de McBride, aqui está uma gente escondida: a afável browny7 que ensinou no jardim-de-infância porque adorava crianças; o rapaz, um selkie8, que arriscou a sua vida para salvar
as vítimas de um acidente num passeio de barco.
A princípio, parecia que a estratégia dos Senhores Cinzentos traria benefícios para todos nós, seres preternaturais, feéricos ou não. Havia restaurantes em Nova Iorque e Los
Angeles onde os ricos e famosos podiam ser servidos por sprites e muryans9. Os maiorais de Hollywood fizeram uma nova versão de Peter Pan utilizando um rapaz que conseguia
de facto voar e usaram um duende verdadeiro para fazer de Sininho — o filme que daí resultou bateu recordes de bilheteira.
Mas mesmo no princípio houve problemas. Um tele-evangelista famoso tirou proveito do medo existente em relação aos seres feéricos para consolidar o controlo sobre o seu rebanho
e as suas contas bancárias. Os legisladores conservadores começaram a fazer barulho a propósito de uma política de registo. As agências governamentais começaram silenciosamente
a fazer listas de seres feéricos que achavam que podiam usar — ou que poderiam ser usados contra elas, porque por toda a Europa e nalgumas partes da Ásia os seres feéricos
menores foram forçados a sair da obscuridade pelos Senhores Cinzentos.
Quando os Senhores Cinzentos, cinco ou seis anos antes, tinham dito a Zee, o meu antigo patrão, que ele tinha de ir a público, Zee vendeu-me a oficina e, antes disso, retirou-se
durante alguns meses. Ele encarara o que tinha acontecido a alguns dos seres feéricos que tentaram prosseguir com as suas vidas como se nada tivesse acontecido.
Não havia problema em uma criatura feérica ser artista ou atração turística, mas a brownie professora do jardim-de-infância foi silenciosamente mandada para a reforma. Ninguém
queria ter um ser feérico como professor, mecânico, ou vizinho.
Os seres feéricos que viviam nos subúrbios de luxo viram as suas janelas partidas e grafitis grosseiros pintados nas suas casas. Aqueles que viviam em lugares onde a lei era
menos respeitada foram assaltados e espancados. Não se podiam defender com medo dos Senhores Cinzentos. O que quer que os humanos lhes fizessem, os Senhores Cinzentos far-lhes-iam
pior.
A vaga de violência levou à criação de quatro grandes reservas para seres feéricos. Zee disse-me que havia criaturas feéricas no governo que viam as reservas como forma de
controlo dos danos e usaram de todos os meios para convencer o resto do Congresso.
Se um ser feérico aceitasse viver numa reserva, era-lhe dada uma pequena casa e um estipêndio mensal. Aos seus filhos (como Tad, filho de Zee) eram dadas bolsas de estudo
para boas universidades onde se podiam vir a tornar membros úteis para a sociedade… se conseguissem arranjar empregos.
As reservas suscitaram uma grande controvérsia de ambos os lados. Pessoalmente, penso que os Senhores Cinzentos e o governo poderiam ter prestado mais atenção aos inúmeros
problemas das reservas dos ameríndios — mas Zee estava convencido de que as reservas eram apenas um primeiro passo nos planos dos Senhores Cinzentos. Deles sabia apenas o
suficiente para admitir que talvez tivesse razão — mas a preocupação ainda assim manteve-se. Por muitos males que tivesse originado, o sistema de reservas tinha diminuído
os problemas crescentes entre os seres humanos e feéricos, pelo menos nos Estados Unidos.
No entanto, pessoas como o pastor substituto eram a prova de que o preconceito e o ódio estavam vivos e de boa saúde. Alguém atrás de mim murmurou a esperança de que o Pastor
Julio recuperasse até à semana seguinte, e uma série de resmoneios de concordância animou-me um pouco.
Ouvi falar de pessoas que viram anjos ou sentiram a sua presença. Não sei se o que sinto é Deus ou um dos seus anjos, mas existe uma presença acolhedora na maior parte das
igrejas. Enquanto o pastor prosseguia com o seu discurso alicerçado no medo, conseguia sentir a tristeza crescente desse espírito.
O pastor apertou-me a mão quando saí do edifício.
Não sou um ser feérico, por muito abrangente que seja essa designação. A minha magia vem da América do Norte e não da Europa, e não tenho nenhum encantamento (ou necessidade
dele) que me permita misturar-me com a população humana. Ainda assim, aquele homem ter-me-ia odiado se soubesse o que eu era.
Sorri-lhe, agradeci-lhe a cerimónia e desejei-lhe felicidades. Ama os teus inimigos, dizem as escrituras. A minha mãe adotiva acrescentava sempre: «No mínimo, sê amável com
eles».
1 Originalmente «Tri-Cities». Área no estado de Washington composta pelas três cidades vizinhas de Kennewick, Pasco e Richland. (N. do T.)
2 Detroit Diesel, empresa fabricante de motores a diesel. (N. do T.)
3 Modelo do Volkswagen Golf comercializado nos Estados Unidos. Literalmente: «Coelho». (N. do T.)
4 Grupo de oito universidades privadas nos Estados Unidos. Originalmente, a denominação designava uma liga desportiva disputada entre estas instituições, mas atualmente tem
uma conotação associada, sobretudo, à sua excelência académica. Do ponto de vista científico, figuram entre as mais prestigiadas universidades daquele país e do mundo. (N.
do T.)
5 Do Latim «spiritus». Termo abrangente que se refere a uma série de criaturas preternaturais, incluindo fadas e elfos. (N. do T.)
6 Especialistas em relações públicas e comunicação política. (N. do T.)
7 Duende do folclore inglês e escocês, que habita casas de família onde executa labores domésticos enquanto os seus habitantes dormem. (N. do T.)
8 Criatura mitológica do folclore escocês, irlandês, islandês e das Ilhas Faroe. Adopta a forma de foca, mas ao chegar à costa retira a sua capa de pele e torna-se humana.
(N. do T.)
9 «Formiga» no dialeto da Cornualha. Criatura que diminui gradualmente de tamanho até ficar com a dimensão de uma formiga, após o que desaparece sem que ninguém saiba ao certo
no que se transforma. (N. do T.)
2
Quando cheguei de carro à oficina na segunda-feira de manhã, Mac, o lobisomem, estava sentado no degrau em frente à porta do escritório.
Mantive uma expressão impassível e ocultei por completo a satisfação surpreendentemente intensa que senti. Limitei-me a passar-lhe para a mão um saco pesado com sandes de
fast food para o pequeno-almoço de modo a conseguir tirar a chave e abrir a porta. Fora criada com animais selvagens à minha volta; sabia como domá-los. A ajuizá-lo corretamente,
uma receção calorosa iria afugentá-lo mais depressa do que palavras duras, mas a comida era sempre um bom chamariz.
— Come — disse-lhe enquanto me encaminhava para a casa de banho para vestir a roupa de trabalho. — Deixa uma para mim, o resto é para ti.
Quando regressei, tinham desaparecido todas menos uma.
— Obrigado — disse-me, observando os meus pés.
— Hás de ganhar dinheiro para ter umas iguais. Anda, ajuda-me a levantar as portas da oficina. — Segui à sua frente através do escritório até à oficina. — Hoje não há nada
pendente, portanto podemos trabalhar no meu projeto Carocha.
Na altura, o Carocha não era particularmente apelativo, mas quando terminasse estaria pintado, polido e a funcionar às mil maravilhas. Depois iria vendê-lo pelo dobro do preço
que me tinha custado e arranjaria outro carro para ressuscitar. Quase metade do que ganhava provinha do restauro de clássicos velhos da VW.
Depois de termos trabalhado algumas horas em silêncio amigável, pediu-me para usar o telefone para fazer uma chamada de longa distância.
— Desde que não seja para a China — disse, debatendo-me com um parafuso preso por trinta e tal anos de ferrugem.
Não me aproximei sorrateiramente da porta do escritório para me pôr à escuta. Não tenho por hábito esconder-me para ouvir conversas privadas. Não preciso. Tenho uma audição
muito boa.
— Olá — disse ele. — Sou eu.
A minha audição não é, todavia, tão boa ao ponto de ter conseguido ouvir a pessoa com quem estava a falar.
— Estou ótimo. Estou ótimo — pronunciou rapidamente. — Olha, não posso falar muito. — Pausa. — É melhor que não saibas. — Pausa. — Eu sei. Vi uma reportagem. Não me lembro
de nada desde que saímos do baile. Não sei o que é que a matou ou por que é que não me matou a mim.
Oh, não, pensei.
— Não. Olha, por agora é melhor não saberes onde eu estou. — Pausa. — Já te disse que não sei o que se passou. Só sei que não a matei. — Pausa. — Não sei. Só quero que digas
à mãe e ao pai que eu estou bem. Gosto muito deles… e ando à procura dos que a mataram. Agora tenho de ir. — Pausa. — Eu também gosto muito de ti, Joe.
Uma dúzia de histórias podia explicar a metade da conversa que ouvi. Duas dúzias.
Mas as histórias exemplares que os lobisomens partilham com mais frequência dizem respeito ao que acontece da primeira vez que um lobisomem se transforma sem que tenha conhecimento
do que é.
Na minha cabeça, traduzi a metade da conversa respeitante a Mac numa imagem de um rapaz a sair de um baile de liceu para curtir com a namorada debaixo da Lua cheia, sem saber
o que era. Os lobisomens novatos, a menos que estejam sob a orientação de um lobisomem dominante, têm pouco controlo sobre a sua forma lupina nas primeiras vezes que se transformam.
Se Mac fosse um lobisomem novato, isso explicaria o facto de não ter reparado que eu era diferente dos humanos à nossa volta. É preciso ser-se ensinado a utilizar os sentidos.
Aqui nos Estados Unidos, a maior parte dos lobisomens é trazida por amigos ou familiares. Existe uma estrutura de apoio para instruir o lobo novato, para mantê-lo a ele e
a todos aqueles que estão à sua volta em segurança — mas ainda continuam a ocorrer ataques ocasionais por parte de lobisomens marginais. Um dos deveres do bando consiste em
matar esses marginais e encontrar as suas vítimas.
Apesar das histórias, não é verdade que qualquer pessoa que seja mordida por um lobisomem se transforme noutro lobisomem. É necessário um ataque tão violento que deixe a vítima
às portas da morte para que a magia do lobisomem penetre no sistema imunitário do corpo. Ataques como este fazem manchetes de jornal do género «Homem Atacado por Cães Raivosos».
Normalmente, a vítima morre em resultado dos ferimentos ou da Transformação. Se sobreviver, recupera depressa, miraculosamente — até à Lua cheia seguinte, altura em que fica
a saber que na verdade não sobreviveu. Não como a pessoa que em tempos fora. Por norma, um bando irá encontrá-la antes da sua primeira transformação e ajudá-la-á a adaptar-se
ao seu novo modo de vida. Os bandos vêem os noticiários e lêem os jornais para impedir que um lobo novato fique sozinho — e para proteger os seus segredos.
Talvez ninguém tivesse encontrado Mac. Talvez ele tivesse matado a sua acompanhante e quando recuperou a forma humana se tenha recusado a acreditar no que fizera. No que era.
Vinha agindo com base na impressão de que ele tinha abandonado o seu bando, mas se era um lobo novato, um lobo não instruído, isso fazia dele ainda mais perigoso.
Parti o parafuso desgastado pela ferrugem porque não estava a prestar atenção. Quando Mac regressou do seu telefonema, estava a trabalhar na remoção do que dele restava com
um extrator rápido de parafusos, a ferramenta com o nome mais equívoco do mundo — não há nada de rápido na tarefa de extrair um parafuso partido.
Não tinha planeado dizer-lhe nada, mas de qualquer forma as palavras saíram-me.
— Talvez conheça algumas pessoas que te possam ajudar.
— Ninguém me pode ajudar — replicou fatigadamente. Depois sorriu, o que teria sido mais convincente se os seus olhos não estivessem tão tristes. — Eu estou bem.
Pousei o extrator e olhei para ele.
— Sim, acho que vais ficar — disse, esperando não estar a cometer um erro ao não pressioná-lo. Teria de falar dele a Adam antes da Lua cheia seguinte. — Lembra-te apenas de
uma coisa, sou conhecida por acreditar em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço.
A sua boca torceu-se de forma peculiar.
— Lewis Carroll.
— E dizem que a juventude de hoje não é instruída — repliquei. — Se confiares em mim, talvez descubras que os meus amigos te podem ajudar mais do que julgavas possível. —
O telefone tocou, e voltei a concentrar-me no meu trabalho. — Mac, vai atender o telefone, por favor — disse-lhe.
Naquela altura tão adiantada do ano, às seis, quando terminámos o trabalho, já era noite. Estacou e pôs-se a olhar para mim enquanto eu trancava a porta, obviamente com alguma
coisa a ocupar-lhe o pensamento. Atrapalhei-me deliberadamente com a chave na fechadura para lhe dar mais tempo, mas não tirou proveito disso.
— Vemo-nos amanhã — disse ele em vez de falar.
— Está bem. — Depois, impulsivamente, perguntei: — Tens onde dormir esta noite?
— Claro — respondeu com um sorriso, e seguiu caminho como se tivesse de estar nalgum sítio.
Estava capaz de arrancar a minha própria língua à dentada por tê-lo forçado a dizer-me uma mentira. Depois de me ter começado a mentir, seria mais difícil fazer com que me
confiasse a verdade. Não sei por que é que é assim, mas a verdade é que é — pelo menos de acordo com a minha experiência.
Martirizei-me durante todo o trajeto de regresso a casa, mas depois de ter dado de comer à Medea e ter feito o jantar para mim, ocorreu-me uma forma de lidar com a situação.
No dia seguinte levaria um cobertor para ele e destrancaria a porta da traquitana VW de Stefan, que estava pacientemente à espera de peças para os travões provenientes do
Oregon. Não me parecia que Stefan se iria importar que Mac acampasse uma noite ou duas.
Telefonei a Stefan para me certificar, porque é pouco sensato surpreender vampiros.
— Claro — disse ele, sem sequer perguntar quem era a pessoa que eu queria que ele deixasse dormir na carrinha. — Por mim tudo bem, querida. Daqui a quanto tempo é que a minha
traquitana volta a estar em condições para andar na estrada?
Para um vampiro, Stefan era porreiro.
— Estou a contar que as peças cheguem depois de amanhã — respondi-lhe. — Dou-te uma ligadela quando estiverem cá. Se quiseres ajudar, conseguimos pô-la pronta em dois fins
de tarde esticados. De outra forma, vai-me levar um dia.
— ‘Tá bem — replicou, o que aparentemente era uma despedida porque o que ouvi a seguir foi um tom de chamada.
— Bem — disse à gata —, parece que vou sair para comprar um cobertor. — Tinha de ser um cobertor novo: os meus cheirariam todos a coiote, e um lobisomem que mal me conhecia
não se sentiria confortável rodeado pelo meu odor.
Passei vários minutos à procura da minha bolsa até me dar conta de que a tinha deixado no trabalho, fechada no cofre. Felizmente, a minha oficina ficava a caminho da loja.
Como era noite, estacionei o carro na rua atrás da oficina, onde havia um poste de iluminação para desencorajar possíveis vândalos. Atravessei o parque de estacionamento a
pé e passei pela carrinha de Stefan, estacionada ao pé da porta do escritório, e dei-lhe uma palmadinha afetuosa.
A traquitana de Stefan estava pintada da mesma maneira que a Máquina Mistério, o que dizia muito acerca do vampiro a quem pertencia. Stefan contou-me que uns anos antes, quando
começou a ver a Buffy, chegou a considerar pintá-la de preto mas, no final, decidira que a caçadora de vampiros não estava à altura do Scooby Doo.
Abri a porta do escritório, mas não me dei ao trabalho de acender as luzes porque vejo muito bem no escuro. A minha bolsa estava onde me lembrava de a ter deixado. Tirei-a
e voltei a fechar o cofre. Por uma questão de hábito, tornei a verificar se o aquecimento estava ajustado no mínimo. Fora tudo desligado e guardado. Tudo estava conforme deveria
estar, e senti a habitual satisfação de saber que era meu — bom, meu e do banco.
Estava a sorrir quando saí do escritório e voltei-me para trancar a porta atrás de mim. Não estava a mexer-me silenciosamente de propósito, mas ter sido criada por um bando
de lobisomens fez com que aprendesse a ser mais silenciosa do que a maior parte das pessoas.
— Vai-te embora. — A voz de Mac veio do outro lado da carrinha de Stefan. Falou num tom baixo e resmungador que nunca lhe tinha escutado.
Pensei que estava a falar comigo e caminhei em direção ao som, mas não vi mais nada para além da carrinha de Stefan.
Depois, uma outra pessoa respondeu a Mac.
— Não sem ti.
A carrinha tinha vidros fumados. Consegui ver suficientemente bem através deles para constatar que a porta lateral estava aberta, emoldurando as vagas formas sombrias de Mac
e um dos seus visitantes. O segundo não conseguia ver. O vento estava de feição, soprando suavemente através deles na minha direção, e farejei mais duas pessoas para além
de Mac: um outro lobisomem e um humano. Não reconheci nenhum deles.
Embora conhecesse a maior parte dos lobos de Adam pelo cheiro, não seria de estranhar se ele tivesse arranjado um lobo novato sem que eu tivesse ouvido falar no assunto. Mas
foi o humano quem me indicou que alguma coisa se estava a passar: ao que eu sabia, Adam nunca mandava um humano acompanhar um dos seus lobos em trabalho.
Mais estranho ainda foi o facto de ninguém ter dado qualquer indício de saber que eu estava por perto. Fui silenciosa, mas ainda assim era de esperar que os dois lobisomens
me tivessem ouvido. Mas nem Mac nem o outro lobo pareciam ter notado.
— Não — disse Mac enquanto eu hesitava. — Acabaram-se as jaulas. Acabaram-se as drogas. Não estavam a servir de nada.
Jaulas?, pensei. Alguém vinha mantendo Mac numa jaula? Não havia necessidade disso, não com Adam por perto. Embora alguns Alfas tivessem de depender de grades para controlar
lobos novatos, Adam não era um deles. Tão-pouco os comentários de Mac sobre drogas faziam sentido: nenhuma droga faz efeito nos lobisomens.
— Estavam, puto. Só precisas de ter alguma paciência. Prometo que conseguimos desfazer a tua maldição.
Desfazer a tua maldição? Não havia nenhuma droga no mundo que desfizesse a Transformação, e eram muito poucos os lobisomens que, passados os primeiros meses, consideravam
o seu estado uma maldição. A maior parte deles acabava por sentir que o facto de se ficar irritadiço e ocasionalmente peludo era um preço reduzido a pagar pela extraordinária
força, agilidade e precisão dos sentidos — já para não falar do benefício lateral de um corpo imune à doença e ao envelhecimento.
Mesmo que o lobisomem pertencesse a Adam, duvidei que ele tivesse conhecimento de que um dos do seu bando andava a contar histórias disparatadas. Pelo menos esperava que não
tivesse conhecimento.
Todavia, Mac parecia conhecer aqueles dois, e eu começava a achar que a sua história era mais complicada do que eu pensava.
— Falas como se tivesses opção — dizia o terceiro homem. — Mas a única opção que tens é como chegar até ali.
Aqueles não eram os homens de Adam, concluí. A menção a maldições, jaulas e drogas fazia deles o inimigo. Se Mac não queria ir com eles, não iria deixar que o levassem.
Lancei um olhar de soslaio em redor, mas as ruas estavam desertas. Depois das seis, a zona industrial fica basicamente morta. Despi as minhas roupas o mais silenciosamente
possível e transformei-me em coiote.
Como humana, não tinha a menor hipótese contra um lobisomem. Como coiote, continuava a não me equiparar — mas era rápida, muito mais rápida do que um coiote comum e um tudo-nada
mais rápida do que um lobisomem.
Saltei para a vedação e daí para o topo da carrinha de Stefan de modo a tirar proveito da posição mais elevada, embora estivesse a abdicar do efeito surpresa. Por muito sub-repticiamente
que me movesse, um lobisomem ouviria o estalido das minhas unhas no tejadilho metálico.
Preparei-me para o lançamento, mas detive-me. Desde o topo da carrinha conseguia ver Mac e os dois homens. Mac estava de costas para mim, mas aos outros bastava olharem para
cima. Não o fizeram. Algo não batia certo.
Atrás dos dois estranhos estava um enorme SUV preto, o tipo de carro que se espera que os tipos ruins conduzam.
— Não acredito que exista alguma maneira de desfazer o que me fizeram — dizia Mac. — Não me podem devolver a minha vida ou devolver à Meg a vida dela. Tudo o que podem fazer
é deixar-me em paz.
O humano tinha o cabelo cortado à escovinha, mas o que me fez pensar no exército em primeiro lugar foi a grande arma preta que via a espreitar do coldre que tinha ao ombro.
Ambos os estranhos estavam postados como militares — Adam também adotava essa postura. Os ombros deles estavam ligeiramente rígidos, as costas demasiado direitas. Talvez pertencessem,
de facto, a Adam. O pensamento fez-me hesitar. Se magoasse um dos lobos de Adam, teria de lidar com as terríveis consequências.
— A Lua está a chegar — disse o homem de cabelo comprido, o lobisomem. — Consegues sentir?
— Como é que tencionas sobreviver ao inverno, puto? — Era o tipo do cabelo curto novamente. A sua voz era amigável. Paternal. Protetora, até. — Faz frio em dezembro, mesmo
neste deserto.
Reprimi um grunhido enquanto tentava determinar a melhor forma de ajudar Mac.
— Eu estou a trabalhar aqui — disse Mac, gesticulando na direção da oficina. — Se ficar mais frio, acho que ela me deixa dormir na oficina até arranjar um sítio para viver,
se eu lhe pedir.
— Pedir? — O de cabelo curto exibiu um ar solidário. — Ela manteve-te aqui por nossa causa. É uma dos nossos, puto. Como é que achas que demos contigo?
Mac exalou um odor a choque, num primeiro momento, e depois a derrota. As emoções têm um cheiro, mas só quando estou transformada em coiote é que o meu olfato é apurado ao
ponto de distinguir para além das sensações mais intensas. Os dentes assomaram-me por entre os lábios — não gosto de mentirosos, sobretudo quando estão a mentir em relação
a mim.
A voz do lobisomem era etérea.
— Quando a Lua chegar, não podes impedir a transformação. — Balançava para a frente e para trás. — Nessa altura, poderás correr e beber o medo da tua presa antes que ela morra
entre os teus colmilhos.
Lunático, pensei, surpreendida com a intensidade da minha ira. Se aquele lobo era tão inexperiente ao ponto de ser lunático, certamente não era de Adam, e quem quer que o
tivesse enviado era um idiota.
— Não vou — disse Mac, dando um passo às arrecuas. Deu um novo passo, encostando as costas à carrinha. Retesou-se, inspirou fundo, e olhou em volta. — Mercy?
Mas nenhum dos homens prestou atenção quando Mac detetou o meu odor. O lobisomem ainda estava preso aos seus devaneios lunáticos, e o humano estava a sacar da arma.
— Tentámos fazer isto a bem — disse ele, e consegui cheirar-lhe o prazer. Podia ter optado por fazer as coisas a bem em primeiro lugar, mas a verdade é que gostava muito mais
de fazê-las a mal. A sua arma era do tipo que se encontra nos catálogos do exército para aspirantes a mercenários, onde aquilo que aparenta é pelo menos tão importante quanto
aquilo que é. — Entra no carro, puto. Tenho balas de prata. Se te der um tiro, morres. — Falava como um rufião de um filme de gangsters dos anos cinquenta; perguntei-me se
seria deliberado.
— Se entrar no carro, morro na mesma, não é verdade? — replicou Mac vagarosamente. — Vocês mataram os outros dois que estavam nas jaulas ao meu lado? É por isso que desapareceram?
Nenhum deles se apercebera de que o lobisomem se começava a transformar, nem mesmo o próprio lobisomem. Conseguia ver os seus olhos a brilhar intensamente na escuridão e cheirar
o almíscar do lobo e da magia. Rosnou.
— Silêncio — disparou o humano, olhando-o em seguida. Imobilizou-se, engoliu em seco e, com toda a calma, apontou a arma na direção do seu antigo parceiro.
Enquanto humano, o lobisomem provavelmente pesaria cerca de noventa quilos. Os lobisomens, quando completamente transformados, pesam para cima de cento e quinze. Não, não
sei de onde vem o peso extra. É magia, não ciência. Sou um pouco avantajada para o coiote comum — mas isso significava que o lobisomem ainda assim era cinco vezes mais pesado
do que eu.
Vinha tentando descortinar uma forma de utilizar a minha velocidade como uma vantagem, mas quando o lobisomem, com as suas mandíbulas a esticarem-se em redor de afiadas presas
brancas, se fixou em Mac e voltou a rosnar, soube que o meu tempo se tinha esgotado.
Lancei-me do topo do carro para cima do lobisomem, que ainda estava lento porque em plena transformação. Tentei abocanhá-lo para chamar a sua atenção e apanhei-lhe a garganta,
ainda sem o denso tufo de pelos destinado a proteger de ataques daquela natureza.
Senti os meus colmilhos a penetrar-lhe a carne, e do seu pescoço jorrou sangue, bombeado pelo coração e pelo aumento da pressão sanguínea que acompanha a transformação. Não
era um ferimento mortal — os lobisomens curam-se de forma demasiado rápida — mas seria o suficiente para abrandá-lo, dando-me um avanço enquanto curava o ferimento.
Só que ele não parou.
Seguiu no meu encalço quando contornei a carrinha de Stefan a toda a velocidade, meti pelo beco por onde entravam os carros para a minha oficina e pulei sobre a cerca de rede
que rodeava o complexo de armazéns da Save U More. Se estivesse totalmente transformado em lobo, teria ultrapassado a cerca com maior facilidade do que eu, mas era atrapalhado
pela sua forma estranha e teve de parar e rasgar a cerca em lugar de saltá-la.
Incitado por uma fúria de caça, era mais rápido do que eu, mesmo sobre duas pernas. Não deveria ser assim. Já deixei para trás uma série de lobisomens, e sabia que era mais
rápida do que eles; mas ninguém lhe tinha dito isso. Estava a acercar-se de mim. Voltei a pular a cerca porque da primeira vez vira-se forçado a abrandar.
Se houvesse habitações por perto, os uivos impacientes e frustrados do lobisomem, resultantes de se ver novamente forçado a parar e dilacerar a vedação de rede, fariam com
que a polícia se pusesse a caminho, mas as residências mais próximas estavam a quarteirões de distância. Esse pensamento lembrou-me de que precisava de me preocupar com os
espectadores inocentes para além de Mac e de mim.
Inverti a direção, correndo ao longo da rua de regresso à oficina, com o intuito de conduzir o lobisomem para longe da cidade e não para dentro dela. Mas antes de ter alcançado
a oficina, o meu perseguidor tropeçou e caiu na estrada.
A princípio pensei que a transformação se tinha dado por completo, mas nenhum lobisomem se levantou sobre as quatro patas para continuar a perseguição. Abrandei, e em seguida
parei onde estava e pus-me à escuta, mas não conseguia ouvir outra coisa para além do meu coração disparado de medo.
A transformação estava quase concluída, a sua cara assumira inteiramente as feições de lobo embora a pelagem ainda não tivesse começado a cobri-lo. As suas mãos, languidamente
pousadas no asfalto, estavam deformadas, demasiado finas, com uma distância inumana entre os dedos e o polegar. As unhas tinham engrossado e começado a ficar aguçadas. Porém
não se mexia.
A tremer com vontade de fugir, forcei-me a aproximar-me dele. Esperei que saltasse e me agarrasse como sempre fazem nos filmes que passam de madrugada, mas permaneceu imóvel,
cheirando a sangue e adrenalina.
Um rasto de líquido foi crescendo atrás de si, como se fosse um carro cuja mangueira do radiador tivesse estourado e espalhado anticongelante por toda a estrada — todavia
o líquido que reluzia debaixo do poste de iluminação pública era sangue.
Só então me ocorreu que não lhe ouvia o latejar do coração e o murmúrio da respiração.
Ouvi o arranque do motor de um carro e desviei os olhos do lobisomem a tempo de ver o SUV preto sair do parque de estacionamento com as rodas a chiar, guinando em direção
a mim. O enorme carro oscilava enquanto o condutor tentava adequar a velocidade à guinada. Os seus faróis cegaram-me momentaneamente — mas já tinha definido a minha rota de
fuga e segui-a às cegas.
Abrandou um pouco, como se a considerar parar ao pé do corpo na rua, mas depois o motor V-8 rugiu e o SUV voltou a acelerar.
Evitou por um triz o embate contra o poste de iluminação para trás do qual me tinha esquivado. Não sabia se Mac estava no carro ou não. Acompanhei as luzes traseiras do SUV
até este meter para a auto-estrada e se misturar com o trânsito.
Caminhei em direção ao lobisomem apenas para ter a certeza — e não havia dúvidas de que estava morto, e bem morto.
Nunca tinha matado ninguém antes. Ele não devia estar morto. Os lobisomens são difíceis de matar. Se se tivesse dado ao trabalho de estancar o sangue da ferida, ou se não
me tivesse perseguido, o ferimento teria sarado antes de ele ter morrido por perda de sangue.
O sabor do seu sangue na minha boca fez com que me sentisse mal, e vomitei ao lado do corpo até que o sabor a bílis se sobrepusesse a tudo o resto. Depois deixei-o jazido
no meio da estrada e corri até à oficina. Precisava de ver se Mac estava por ali antes de abraçar a tarefa de tratar do lobisomem morto.
Para meu alívio, quando cheguei ao parque de estacionamento aos ressaltos, Mac estava encostado à carrinha de Stefan. Segurava sem firmeza uma arma numa das mãos, com o cano
dobrado.
— Mercy? — perguntou-me quando me aproximei, como se estivesse à espera que eu falasse.
Inclinei a cabeça uma vez e depois precipitei-me para a entrada frontal da oficina, onde tinha deixado a minha roupa. Ele seguiu-me. Mas regressei à minha forma humana, e,
ao ver que estava nua, virou-se de costas para que eu me vestisse.
Enfiei-me rapidamente nas peças — estava frio no exterior.
— Estou apresentável — disse-lhe, e ele voltou a encarar-me.
— Tem sangue no queixo — indicou numa voz débil.
Limpei-o com a bainha da t-shirt. Não ia às compras naquela noite, portanto não fazia diferença se tinha sangue na minha roupa. Não vomites outra vez, disse a mim mesma de
forma severa. Faz de conta de foi um coelho. Não tinha sabido a coelho.
— Você é o quê? — perguntou. — Um deles? Onde é que está… está o lobo?
— Está morto. Precisamos de falar. — disse-lhe, calando-me em seguida para organizar os meus pensamentos dispersos. — Mas primeiro temos de tirar o lobisomem morto da rua.
E antes disso, acho que devíamos telefonar ao Adam.
Segui para o escritório com ele atrás de mim — daquela vez ligando a luz. Não que qualquer um de nós precisasse dela para outra coisa que não o conforto.
Colocou a sua mão por cima da minha quando esticava o braço na direção do telefone.
— Quem é o Adam, e por que é que lhe vai telefonar? — inquiriu.
Não contrariei a força da sua mão.
— O Alfa local. Precisamos de tirar o corpo da estrada, a menos que queiras que vamos os dois parar a um laboratório federal qualquer para que um bando de cientistas nos use
por uns anos até concluir que pode aprender mais sobre nós mortos do que vivos.
— Alfa? — perguntou. — O que é isso?
Ele era novato.
— Os lobisomens vivem em bandos — expliquei-lhe. — Cada bando tem um Alfa, um lobo suficientemente forte para manter os outros sob controlo. O Adam Hauptman é o Alfa local.
— Qual é o aspeto dele? — questionou Mac.
— Um metro e setenta e oito, oitenta e dois quilos. Cabelo escuro, olhos escuros. Não me parece que tenha qualquer relação com os teus lobos — disse. — Se o Adam te quisesse,
ele tinha-te; e ter-te-ia encontrado muito mais cedo. Pode ser um parvalhão, mas a competência é o seu forte.
Mac fixou-se em mim, os seus olhos castanhos pareciam amarelados sob a luz fluorescente do meu escritório. Para dizer a verdade, estava surpreendida por ele ainda estar na
forma humana, porque observar um lobo a transformar-se tende a encorajar os outros. O meu olhar encontrou-se com o dele calmamente, e depois baixei os olhos até ao seu ombro.
— Está bem — replicou, tirando a mão lentamente. — Esta noite salvou-me… e aquela coisa podia tê-la feito em picadinho. Já os vi a matar.
Não perguntei quando ou quem. Era importante agir na ordem certa para evitar sarilhos maiores. Telefonar a Adam. Remover o corpo do meio da rua onde qualquer pessoa o podia
ver. Depois falar. Marquei o número de Adam de memória.
— Hauptam — atendeu com um ligeiro tom de impaciência após o quarto toque.
— Matei um lobisomem na minha oficina — disse, desligando em seguida. Ao cenho franzido de Mac disse: — Isso provocará uma reação mais rápida do que se gastasse vinte minutos
a explicar. Anda, tu e eu precisamos de tirar o corpo da rua antes que alguém o veja. — Quando o telefone tocou, foi o atendedor de chamadas que atendeu.
Levei a carrinha de Stefan porque carregar uma coisa grande para uma carrinha é mais fácil do que carregá-la para o meu pequeno Rabbit. Estava impregnada com o cheiro de Mac
e percebi que não me tinha mentido ao dizer que tinha onde passar a noite. Vinha dormindo nela pelo menos há duas noites.
A carrinha não tinha travões — iríamos pô-los quando a arranjássemos —, mas consegui fazer com que deslizasse até parar junto do corpo. Mac ajudou-me a colocá-lo no interior
da carrinha, e depois apressou-se de volta à oficina enquanto eu conduzia. Quando cheguei, tinha a oficina aberta.
Pousámos o homem morto no chão de cimento ao pé do elevador, após o que estacionei a carrinha no local de origem e puxei para baixo a porta basculante, ficando os dois no
interior com o corpo.
Caminhei até à esquina mais distante do lobisomem morto e sentei-me no chão, junto de uma das minhas enormes caixas de ferramentas. Mac sentou-se ao meu lado, e ambos nos
pusemos a olhar através da oficina para o cadáver.
Meio transformado, o corpo parecia ainda mais grotesco debaixo da luz áspera da segunda janela do que parecera sob a luz da rua, como algo saído de um filme a preto e branco
de Lon Chaney. De onde estava sentada conseguia ver o rasgão no pescoço que o matara.
— Estava habituado a curar-se depressa — disse eu para quebrar o silêncio. — Portanto não fez caso do ferimento. Mas alguns ferimentos levam mais tempo a sarar do que outros.
Ele não sabia mais do que tu. És lobisomem há quanto tempo?
— Dois meses — disse Mac, encostando a cabeça atrás, na caixa de ferramentas, e fitando o teto. — Matou a minha namorada, mas eu sobrevivi. Mais ou menos.
Tinha tido sorte, pensei, recordando as suposições que tinha feito quando escutara casualmente o seu telefonema. Afinal não tinha matado a sua namorada. Provavelmente não
se estava a sentir com sorte, todavia, e eu não ia dizer-lhe que podia ser pior.
— Fala-me da tua vida depois disso. De onde vieram aqueles homens? És de Tri-Cidades? — Não tinha ouvido falar em nenhuma morte ou desaparecimento suspeito nos últimos seis
meses.
Abanou a cabeça.
— Sou de Naperville. — Perante o meu olhar inexpressivo, clarificou. — Illinois. Perto de Chicago. — Olhou o corpo de relance, fechou os olhos e engoliu em seco. — Quero comê-lo
— sussurrou.
— É perfeitamente natural — disse-lhe, embora deva admitir que me queria afastar dele. Deus me livre, estar enfiada com um lobisomem novato numa oficina de mecânica ao lado
de carne fresca não correspondia propriamente à noção que as pessoas têm de segurança. Mas tínhamos de esperar até que Adam chegasse. Podia ter sido pior: podia ter sido mais
perto da Lua cheia, ou podia ter estado tão esfomeado como naquele primeiro dia.
— A carne de veado não só sabe melhor como não corres o risco de ficar com remorsos depois — comentei, refletindo logo a seguir que talvez fosse melhor falar de outras coisas
que não comida. — O que é que te aconteceu depois daquele primeiro ataque? Alguém te levou ao hospital?
Olhou-me por momentos, mas não era capaz de lhe adivinhar os pensamentos. Ele disse:
— Depois… depois do ataque, acordei numa jaula na cave de uma pessoa. Estava alguém na divisão e, quando abri os olhos, esse alguém disse «Ótimo, vais viver. O Leo vai ficar
satisfeito.»
— Espera — disse. — Leo. Leo. Chicago. — Depois lembrei-me. — Leo James? Tem aspeto de campeão de esqui nórdico? Alto, cabelo comprido e loiro?
Leo era um dos Alfas de Chicago — havia dois. Leo dominava o território nos subúrbios a oeste. Tinha estado com ele uma ou duas vezes. Nenhum de nós ficara impressionado,
mas, como eu disse, a maior parte dos lobisomens não vê com bons olhos os outros predadores.
Mac fez que sim com a cabeça.
— Parece-me ser ele. Desceu as escadas com o primeiro gajo e outro homem. Nenhum deles falava comigo ou respondia às minhas perguntas. — Engoliu em seco e lançou-me um olhar
ansioso de soslaio. — Esta merda parece toda tão esquisita, sabe? Inacreditável.
— Estás a falar com alguém que é capaz de se transformar num coiote — repliquei num tom brando. — Diz-me apenas aquilo que achas que aconteceu.
— Está bem — disse, anuindo lentamente com a cabeça. — Muito bem. Ainda estava fraco e confuso, mas pareceu-me que o Leo estava a discutir com o terceiro gajo sobre dinheiro.
Fiquei com a impressão de que me vendeu por doze mil dólares.
— O Leo vendeu-te por doze mil dólares — disse, tanto para mim como para Mac. A minha voz poderá ter sido neutra, mas apenas porque Mac tinha razão: era inacreditável. Não
que pensasse que ele estava a mentir. — Ele mandou um dos lobos dele atacar-vos, a ti e à tua namorada, e quando sobreviveste vendeu-te a outra pessoa como um lobisomem acabado
de se transformar pela primeira vez.
— Penso que sim — retorquiu Mac.
— Ligaste à tua família hoje à tarde? — perguntei. Sorri perante o seu olhar desconfiado. — Tenho uma audição muito apurada.
— Ao meu irmão. Para o telemóvel dele. — Engoliu em seco. — Está avariado. Sem identificador de chamadas. Tinha de lhes dizer que estava vivo. Acho que a polícia pensa que
eu matei a Meg.
— Disseste-lhe que andavas atrás do assassino — disse.
Soltou uma risada triste.
— Como se fosse possível encontrá-lo.
Era possível. Era tudo uma questão de aprender a usar os seus novos sentidos, mas não ia dizer-lhe isso, não ainda. Se Mac encontrasse o seu agressor, o mais provável era
que viesse a morrer. Um lobisomem novato não tem a menor hipótese contra os mais velhos.
Dei-lhe uma palmadinha no joelho.
— Não te preocupes. Assim que informarmos as pessoas certas, e o Adam é a pessoa certa, o Leo é um homem morto. O Marrok não irá tolerar um Alfa que esteja a criar progénie
e a vendê-la a troco de dinheiro.
— O Marrok?
— Desculpa — repliquei. — Tal como te disse, à exceção de um ou outro marginal, os lobisomens estão organizados em bandos sob a liderança de um lobo Alfa.
Pela sua natureza, esta era a melhor forma que os lobisomens tinham de se organizar. Mas a única coisa necessária para se ser Alfa é a força, não a inteligência ou mesmo o
senso comum. Na Idade Média, após a Peste Negra, a população de lobisomens foi quase varrida, juntamente com os lobos autênticos, porque alguns dos Alfas eram pouco prudentes.
Nessa altura foi decidido que haveria um líder acima de todos os lobisomens.
— Nos Estados Unidos, todos os bandos são seguidores do Marrok, designação retirada do nome de um dos cavaleiros do Rei Artur que era lobisomem. O Marrok e o seu bando têm
a seu cargo a vigilância de todos os lobisomens da América do Norte.
— Há mais iguais a nós? — perguntou.
Acenei afirmativamente com a cabeça.
— Talvez uns dois mil nos Estados Unidos, quinhentos ou seiscentos no Canadá e cerca de quatrocentos no México.
— Como é que sabe tanta coisa sobre lobisomens?
— Fui criada por eles. — Esperei que me perguntasse porquê, mas a sua atenção desviara-se para o corpo. Inalou profundamente e estremeceu de ansiedade.
— Tens ideia do que é que eles queriam de ti? — inquiri apressadamente.
— Disseram-me que estavam à procura de uma cura. Estavam sempre a pôr-me coisas na comida. Conseguia cheirá-las, mas estava com fome e por isso acabava por comer. Às vezes
davam-me injeções, e uma vez, quando não cooperei, dispararam um dardo contra mim.
— Lá fora, quando estavas a falar com eles, disseste que tinham outros como tu?
Anuiu com a cabeça.
— Mantinham-me numa jaula dentro de um reboque. Havia quatro jaulas no interior. No princípio, éramos três, uma rapariga mais ou menos da minha idade e um homem. A rapariga
estava basicamente passada: limitava-se a fitar o vazio e balançar-se para frente e para trás. O homem não sabia falar nada de inglês. A mim soava-me a polaco, mas podia ser
russo ou coisa parecida. Numa das vezes em que estava pedrado por causa de uma coisa que me tinham injetado, acordei e estava sozinho.
— As drogas não fazem efeito nos lobisomens — disse-lhe. — O teu metabolismo é demasiado forte.
— Aqueles fizeram — replicou ele.
Fiz que sim com a cabeça.
— Acredito em ti. Mas não era de esperar que tivessem feito. Fugiste?
— Consegui transformar-me enquanto eles estavam a tentar dar-me outra coisa. Não me lembro de grande coisa, a não ser de correr.
— O reboque estava aqui em Tri-Cidades? — perguntei.
Anuiu com a cabeça.
— No entanto, não consegui voltar a encontrá-lo. Não me lembro de tudo o que acontece quando… — A sua voz desvaneceu-se.
— Quando és o lobo. — A memória surgia com a experiência e o controlo, ou pelo menos assim mo tinham dito.
Um carro estranho acercou-se da oficina com o ruído surdo comum aos motores caros.
— Que se passa? — perguntou quando me levantei.
— Não estás a ouvir o carro?
Começou a abanar a cabeça, mas depois parou.
— Eu… sim. Sim, estou.
— Há vantagens em ser-se lobisomem — afirmei. — Uma delas é ser-se capaz de ouvir e cheirar melhor do que o homem comum. — Pus-me de pé. — Está a virar para o parque de estacionamento.
Vou lá fora ver quem é.
— Talvez seja o tipo que chamou. O Alfa.
Abanei a cabeça.
— Não é o carro dele.
3
Deslizei através da oficina e abri cautelosamente a porta de acesso ao exterior, mas o cheiro a perfume e ervas que pairava no ar da noite disse-me que ainda estávamos em
segurança.
Um Cadillac de cor escura estendia-se ao longo do pavimento logo a seguir à carrinha de Stefan. Abri a porta de par em par ao mesmo tempo que o motorista de uniforme levava
os dedos à aba do chapéu para me cumprimentar, abrindo em seguida a porta traseira do carro para revelar uma mulher idosa.
Voltei a enfiar a cabeça na oficina e gritei:
— Está tudo bem, Mac. É só a equipa de limpeza.
Fazer com que os humanos continuem a desconhecer a magia que vive entre eles é um negócio especializado e lucrativo, e o bando de Adam tinha ao seu serviço a melhor bruxa
do Pacífico Noroeste. Os rumores acerca das origens de Elizaveta Arkadyevna Vyshnevetskaya e de como veio a aparecer em Tri-Cidades mudavam a cada semana. Julgo que a sua
prole de netos e bisnetos encorajou as versões mais ultrajantes. A única coisa de que tinha a certeza era que nascera em Moscovo, na Rússia, e vivia em Tri-Cidades havia pelo
menos vinte anos.
Elizaveta emergiu das profundezas do carro grande com a mesma intensidade dramática de uma prima ballerina que faz a sua vénia. O quadro que fazia era merecedor de toda a
carga dramática.
Tinha quase um metro e oitenta e cinco de altura e pouco mais que pele e osso, com um nariz longo e elegante e olhos cinzentos e penetrantes. O estilo de vestido que trazia
estava algures entre a boneca russa e Baba Yaga10. Camadas de texturas e tecidos ricos pendiam-lhe até à barriga das pernas, tudo coberto com uma longa capa de lã e um lenço
gasto enrolado à volta da cabeça e do pescoço. A sua indumentária não era autêntica, pelo menos não conseguia associá-la a nenhum período ou lugar de que tivesse ouvido falar,
mas nunca vi ninguém com coragem suficiente para lho dizer.
— Elizaveta Arkadyevna, seja bem-vinda — disse, contornando a carrinha e postando-me junto do carro.
Franziu-me o sobrolho.
— O meu Adamya telefonou-me e disse-me que você tem um dos lobisomens dele morto. — A sua voz tinha a secura de uma aristocrata britânica, portanto sabia que estava zangada.
O seu sotaque habitual era tão cerrado que tinha de fazer um esforço imenso para compreendê-la. Quando estava verdadeiramente zangada, não falava inglês de todo.
— Lobisomem, sim — concordei. — Mas não creio que seja um dos do Adam. — Adamya, tinha ficado a saber, era uma forma afetuosa de nomear Adam. Não me parece que alguma vez
lhe tivesse chamado isso cara a cara. Elizaveta raramente era carinhosa com alguém suscetível de escutá-la sem ser notado.
— O corpo está na minha oficina — indiquei-lhe. — Mas há sangue por todos os lados. O lobisomem perseguiu-me com uma artéria rasgada e sangrou desde aqui até ao complexo de
armazéns, onde destruiu a vedação em dois lugares, e em seguida sangrou até à morte na rua. O armazém tem câmaras, e eu usei a carrinha do Stefan — apontei na direção dela
— para retirar o corpo.
Disse qualquer coisa em russo ao motorista, que reconheci como um dos seus netos. Ele inclinou a cabeça e respondeu-lhe qualquer coisa antes de contornar o carro para abrir
a mala.
— Vá — disse-me, agitando os braços num gesto de quem empurra alguém. — Resolverei esta trapalhada sem a sua ajuda. Espere ao pé do corpo. O Adam chegará em breve. Depois
de o ver, irá dizer-me o que quer que eu faça com ele. Você matou este lobo? Com uma bala de prata? Devo procurar cartuchos?
— Com as minhas presas — respondi; ela sabia o que eu era. — Foi uma espécie de acidente… pelo menos a morte dele foi.
Agarrou-me pelo braço na altura em que me virei para seguir para o escritório.
— Onde é que tinha a cabeça, Mercedes Thompson? Um Lobo Pequeno que ataca os grandes morrerá em pouco tempo, penso. A sorte não dura para sempre.
— Ele teria matado um rapaz que estava sob a minha proteção — expliquei-lhe. — Não tinha alternativa.
Soltou-me o braço e bufou em sinal de reprovação, mas quando falou o seu sotaque russo era bem notório.
— Existe sempre uma alternativa, Mercy. Sempre uma alternativa. Se atacou um rapaz, suponho que não tenha sido um dos do Adamya.
Olhou para o seu motorista e ladrou mais qualquer coisa. Definitivamente dispensada, regressei para junto de Mac e do nosso lobisomem morto.
Dei com Mac aninhado perto do corpo, a lamber os dedos como se tivesse tocado no sangue que secava e estivesse a limpá-los. Não era um bom sinal. De algum modo, estava plenamente
convicta de que se Mac tivesse absoluto controlo sobre si próprio, não estaria a fazer aquilo.
— Mac — disse, contornando-o e encaminhando-me para o lado oposto da oficina, onde tínhamos estado sentados.
Rosnou-me.
— Para com isso — disse rispidamente, fazendo o melhor que conseguia para dissimular o medo na minha voz. — Controla-te e anda para aqui. Há algumas coisas que precisas de
saber antes que o Adam chegue.
Andava a evitar uma luta pelo domínio porque os meus instintos me diziam que Mac era um líder natural, um dominante que poderia muito bem vir a tornar-se um Alfa por direito
próprio — e eu era uma mulher.
A emancipação da mulher não tinha dado grandes passos no mundo dos lobisomens. Uma fêmea com parceiro ocupava a mesma posição que ele no bando, mas as fêmeas sem parceiro
estavam sempre abaixo dos machos, a menos que estes fossem invulgarmente submissos. Este pequeno facto causara-me um sofrimento sem fim ao crescer no seio de um bando de lobisomens.
Mas sem alguém mais dominante do que eu, Mac ainda não seria capaz de controlar o lobo dentro de si. Adam não estava lá, portanto cabia-me a mim a tarefa.
Olhei-o fixamente, imitando o meu padrasto o melhor que era capaz e ergui uma sobrancelha.
— Mac, pelo amor de Deus, deixa esse pobre cadáver e anda para aqui.
Ergueu-se lentamente, com a ameaça ainda agarrada a ele. Depois sacudiu a cabeça e esfregou a cara, vacilando um bocado.
— Isso ajudou — disse ele. — Pode fazer isso outra vez?
Dei o meu melhor.
— Mac. Anda para aqui imediatamente.
Caminhou aos cambaleios em direção a mim, como se embriagado, e sentou-se aos meus pés.
— Quando o Adam chegar — disse-lhe firmemente —, faças o que fizeres, não o olhes diretamente nos olhos mais do que um ou dois segundos. Espero que o faças por instinto. Não
é preciso encolheres-te de medo. Não te esqueças de que não fizeste absolutamente nada de errado. Deixa-me ser eu a falar. O que nós queremos é que o Adam te leve para casa
com ele.
— Estou bem sozinho — objetou Mac, com um tom que parecia quase o seu, mas ainda de cabeça voltada para o corpo.
— Não, não estás — devolvi com firmeza. — Se não existisse um bando, talvez sobrevivesses. Mas se deres de caras com um dos lobos de Adam sem teres sido dado a conhecer ao
bando, provavelmente mata-te. Além disso, a Lua cheia está para breve. O Adam pode ajudar-te a controlares a besta que tens dentro de ti antes disso.
— Posso controlar o monstro? — perguntou Mac, estático.
— Claro que sim — respondi. — E não é um monstro. Os lobisomens são impulsivos e agressivos, mas não são malvados. — Pensei naquele que o tinha vendido e corrigi-me. — Pelo
menos não são mais malvados do que qualquer outra pessoa.
— Nem sequer me lembro do que a besta faz — disse Mac. — Como é que eu posso controlá-la?
— Nos primeiros minutos é mais difícil — expliquei-lhe. — Um bom Alfa pode ajudar-te a ultrapassar isso. Assim que tiveres controlo, podes regressar à tua vida anterior se
quiseres. Tens de ser um bocado cuidadoso; mesmo na forma humana vais ter de lidar com o facto de teres um grau de tolerância menor e muito mais força do que aquela a que
estás habituado. O Adam pode ensinar-te.
— Nunca vou poder regressar — sussurrou.
— Primeiro, aprende a ter controlo — disse-lhe. — Há pessoas que te podem ajudar em relação ao resto. Não desistas.
— Você não é como eu.
— Não — concordei. — Sou uma caminhante: é diferente daquilo que tu és. Eu nasci assim.
— Nunca tinha ouvido falar num caminhante. Isso é alguma espécie de ser feérico?
— Algo parecido — respondi. — Não tenho montes de coisas porreiras que vocês, lobisomens, têm. Nada de super força. Nada de super cura. Nada de bando.
— Nada de probabilidade de vir a comer os seus amigos — sugeriu. Não sabia dizer se estava a tentar ser engraçado, ou se estava a falar a sério.
— Há algumas vantagens — concordei.
— Como é que descobriu tantas coisas sobre lobisomens?
Abri a boca para lhe dar a versão abreviada, mas decidi que a história toda talvez servisse melhor para o distrair do cadáver.
— A minha mãe era fanática por rodeios — comecei, sentando-me ao seu lado. — Ela gostava de vaqueiros, de qualquer vaqueiro. Gostava de um Blackfoot11 que montava touros,
chamado Joe Velho Coiote, de Browning, Montana, ao ponto de me terem concebido. Ela disse-me que ele afirmava descender de uma longa linhagem de feiticeiros, mas na altura
ela pensava que ele estava apenas a tentar impressioná-la. Morreu num acidente de carro três dias depois de o ter conhecido. A minha mãe tinha dezassete anos, e os pais dela
tentaram convencê-la a fazer um aborto, mas ela não aceitava a ideia. Depois tentaram fazer com que me desse para adoção, mas estava determinada a criar-me sozinha… até eu
chegar aos três meses de idade e ela ter dado com uma cria de coiote no meu berço.
— O que é que ela fez?
— Tentou encontrar a família do meu pai. Foi a Browning e encontrou várias famílias lá com esse apelido, mas que afirmavam nunca ter ouvido falar no Joe. Não há dúvida de
que era um ameríndio. — Fiz um gesto para que se concentrasse na minha aparência. Não pareço uma puro-sangue; os meus traços são demasiado anglo. Mas a minha pele parece bronzeada,
mesmo em novembro, e o meu cabelo liso é tão escuro quanto os meus olhos. — Mas, à parte disso, não sei grande coisa acerca dele.
— Velho Coiote — disse Mac especulativamente.
Sorri-lhe.
— Faz-te pensar que esta coisa da transformação deve ser de família, não?
— E como é que veio a ser criada por lobisomens?
— O tio do meu bisavô era lobisomem — contei-lhe. — Devia ser um segredo de família, mas é difícil manter segredos com a minha mãe. Ela limita-se a sorrir às pessoas e elas
contam-lhe as suas histórias de vida. Em todo o caso, ela descobriu o número de telefone dele e ligou-lhe.
— Uau — admirou-se Mac. — Eu nunca conheci nenhum dos meus bisavôs.
— Nem eu — repliquei, sorrindo em seguida. — Apenas um tio deles que era lobisomem. Um dos benefícios de se ser um lobisomem é ter uma vida longa. — Se se for capaz de controlar
o lobo, mas Adam poderia explicar essa parte melhor do que eu.
O seu olhar voltou a concentrar-se no nosso amigo morto.
— Sim, bem — disse, soltando um suspiro. — A estupidez ainda te vai custar a vida. O tio do meu bisavô foi suficientemente inteligente para viver mais do que a sua geração,
mas todos esses anos não evitaram que fosse estripado por um alce que andava a perseguir uma noite. Seja como for — continuei —, veio fazer-me uma visita e soube o que eu
era assim que me viu. Isso foi antes de os seres feéricos irem a público e numa altura em que as pessoas ainda estavam a tentar fingir que a ciência tinha excluído a possibilidade
da magia. Convenceu a minha mãe de que eu estaria mais segura nas regiões interiores de Montana, sendo criada pelo bando do Marrock. Eles têm a sua própria cidade nas montanhas,
onde raramente são incomodados por forasteiros. Fui adotada nesse sítio por uma família que não tinha nenhum filho.
— A sua mãe abriu mão de si, simplesmente?
— A minha mãe ia lá todos os verões, e também não lhe facilitavam a vida. Não morrem de amores pelos humanos, os Marrok, à exceção das suas próprias esposas e dos seus filhos.
— Pensava que Marrok era o lobo que governava a América do Norte — disse Mac.
— Por vezes os bandos adotam o nome dos seus líderes — expliquei-lhe. — Portanto o bando de Marrok auto-intitula-se Marrok. O mais comum é basearem-se nalguma característica
geográfica do seu território. Os lobos do Adam são o Bando da Bacia do Columbia. O único bando em Washington para além desse é o Bando Esmeralda, em Seattle.
Mac ia fazer mais uma pergunta, mas levantei a mão para que se mantivesse em silêncio. Tinha ouvido o carro de Adam a chegar.
— Lembra-te do que te disse sobre o Alfa — relembrei a Mac, pondo-me de pé logo a seguir. — Ele é um bom homem e tu precisas dele. Limita-te a ficar aí sentado, de olhos virados
para baixo, deixa que seja eu a falar, e tudo correrá bem.
A pesada porta da oficina rangeu e depois retiniu como um címbalo gigante à medida que era levantada até ao topo com uma rapidez superior à habitual.
Adam Hauptman postou-se na soleira, um manto de silêncio cobria-lhe o corpo, e, por um instante, vi-o apenas com os meus olhos, como um humano faria. Valia a pena olhá-lo.
Apesar do seu apelido alemão, o seu rosto e a sua tez eram eslavos: pele morena, cabelo escuro — embora não tão escuro quanto o meu —, maçãs do rosto largas e uma boca estreita
mas sensual. Não era alto nem corpulento, pelo que os humanos se poderiam perguntar por que razão todos os olhos se voltavam para ele quando entrava nalgum sítio. Depois veriam
o seu rosto e presumiriam, erradamente, que este seria o motivo da atração. Adam era um Alfa, e se fosse feio exerceria a mesma atração sobre qualquer pessoa que estivesse
perto dela, lobo ou humano — mas a beleza masculina que transportava de forma tão natural não fazia mal a ninguém.
Em circunstâncias mais normais, os seus olhos eram da cor do chocolate preto, mas, por força da fúria, haviam-se iluminado até ficarem quase amarelos. Ouvi Mac arfar quando
sofreu o impacto total da fúria de Adam, pelo que me preparei e deixei que a onda de poder me banhasse como água do mar em vidro.
Talvez devesse ter explicado melhor as coisas quando estava com ele ao telefone, mas que graça teria isso?
— O que é que se passou? — perguntou ele, a sua voz mais suave do que a primeiro nevão de inverno.
— É complicado — disse eu, de olhos fitos nos dele durante dois segundos completos, antes de virar a cabeça e gesticular na direção do corpo. — O morto está ali. Se te pertence,
é novo, e não tens andado a fazer o teu trabalho. Era tão surdo e cego quanto um humano. Consegui atingi-lo de surpresa, e depois mostrou ser demasiado ignorante para perceber
que o ferimento não sararia tão depressa como o habitual se fosse provocado por uma criatura preternatural. Deixou-se sangrar até morrer porque estava demasiado envolvido
na perseguição para…
— Basta, Mercedes — grunhiu, encaminhando-se em passo largo para o lobisomem morto e ajoelhando-se ao seu lado. Moveu o corpo e um dos braços do cadáver caiu pesadamente no
chão.
Mac gemeu ansiosamente, após o que inclinou a cabeça e a pressionou contra a minha coxa de modo a não ver.
O som desviou a atenção de Adam do corpo para o rapaz aos meus pés.
Rugiu.
— Este não é um dos meus. E aquele também não.
— Tão amável — disse-lhe. — A tua mãe merece os parabéns pelas tuas boas maneiras, Hauptman.
— Cuidado — sussurrou. Não era uma ameaça, era um aviso.
OK. Ele era assustador. Mesmo assustador. Talvez já fosse assustador quando era apenas um humano. Mas não serviria de nada fazê-lo saber que me intimidava.
— Adam Hauptman — disse educadamente para lhe mostrar como se fazia. — Permite-me que te apresente o Mac. É o único nome que sei dele. Foi atacado por um lobisomem em Chicago
há coisa de duas Luas. O lobisomem matou-lhe a namorada, mas ele sobreviveu. Foi levado pelo atacante e metido numa jaula. Um homem que se parece muito com o Alfa de Chicago,
o Leo, vendeu-o a alguém que o manteve dentro de uma jaula num reboque e o usou para aquilo que parecem ser umas experiências quaisquer com drogas, até que ele se conseguiu
libertar. Na passada sexta-feira, apareceu-me à porta à procura de trabalho.
— Não me informaste que tinhas um lobo estranho à tua porta?
Soltei um suspiro de impaciência.
— Não sou um dos membros do teu bando, Adam. Eu sei que é difícil para ti perceber isto, por isso vou falar devagar: Eu não te pertenço. Não tenho qualquer obrigação de te
dizer seja o que for.
Adam praguejou duramente.
— Os lobisomens novatos são perigosos, mulher. Especialmente quando têm frio e fome. — Olhou para Mac e a sua voz mudou completamente, a exaltação e a fúria esfumaram-se.
— Mercy, chega aqui.
Não olhei para baixo para perceber o que tinha notado na cara de Mac. Dei um passo, mas Mac estava embrulhado em redor da minha perna esquerda. Parei antes de cair.
— Hum… De momento estou um bocadinho presa.
— Para uma rapariga inteligente, às vezes és estúpida quanto baste — afirmou ele num tom divertido e dócil de modo a não assustar o lobisomem ao meu lado. — Fechares-te numa
oficina com um lobo novato e um cadáver não terá sido a coisa mais inteligente a fazer. Ainda não tenho uma ligação com ele. Se me dissesses o nome verdadeiro dele já era
uma ajuda.
— Mac — murmurei. — Como é que te chamas?
— Alan — respondeu como se devaneasse, pondo-se de joelhos e enfiando a cara na minha barriga. — Alan MacKenzie Frazier, em homenagem ao meu avô, que morreu no ano em que
eu nasci. — A fricção causada pelo seu movimento fez com que a minha t-shirt subisse e a seguir lambeu-me a pele. Aos olhos de um observador poderia parecer uma cena sensual,
mas o abdómen é um ponto vulnerável do corpo, um ponto de eleição para os predadores. — Cheira bem — sussurrou.
Senti-lhe o odor a lobisomem e comecei a entrar em pânico — o que não era lá muito útil.
— Alan — disse Adam, envolvendo o nome com a língua. — Alan MacKenzie Frazier, chega aqui ao pé de mim.
Mac afastou a cabeça de mim mas apertou dolorosamente os braços em redor das minhas ancas. Olhou para Adam e emitiu uma rosnadela, um ruído surdo que fez com que o seu peito
vibrasse contra a minha perna.
— Minha — disse.
Os olhos de Adam semicerraram-se.
— Não me parece. Ela é minha.
Teria sido lisonjeador, pensei, não fosse o facto de pelo menos um deles estar a falar do jantar e o outro estar a falar de algo de que não estava certa. Enquanto Adam distraía
Mac, estiquei o braço para trás e peguei no meu pé-de-cabra da prateleira diretamente atrás de nós. Usei-o para dar uma pancada na clavícula de Mac.
Foi um golpe estranho, porque não tinha espaço para imprimir muita força, porém a clavícula, mesmo num lobisomem, não é difícil de lesionar. Ouvi o osso estalar e, com um
sacão, libertei-me do abraço de Mac e atravessei a oficina antes que ele recuperasse da dor inesperada.
A ideia de magoá-lo não me agradou, mas ele iria curar-se dali a poucas horas e tinha evitado que ele me comesse. Não me parecia o tipo de pessoa que recuperasse de um assassínio
com a mesma facilidade que recuperaria de um osso partido.
Adam tinha-se movido quase tão lestamente quanto eu. Agarrou Mac pelo cachaço e puxou-o bruscamente até que ficasse de pé.
— Adam — disse a partir da segurança relativa do lado oposto da oficina. — Ele é novato e não foi instruído. Uma vítima. — Mantive o meu tom de voz baixo para não contribuir
para a excitação.
O facto de Mac não parecer particularmente perigoso naquele momento ajudou. Estava pendurado frouxamente na mão de Adam.
— Desculpem — murmurou de forma quase inaudível. — Desculpem.
Adam soltou um sopro exasperado e pousou Mac no chão — sobre os pés, a princípio, mas quando os joelhos de Mac se mostraram demasiado débeis para suportar o peso do seu corpo,
Adam amparou-o até que se prostrasse no chão.
— Dói — desabafou Mac.
— Eu sei. — Adam já não soava furioso; claro que não: estava a falar com Mac e não comigo. — Se te transformares, irá sarar mais depressa.
Mac pestanejou de olhos fitos nele.
— Não me parece que ele saiba como fazê-lo de forma intencional — mencionei.
Adam olhou o corpo de viés, com ar pensativo, e depois cravou os olhos em mim.
— Disseste qualquer coisa sobre uma jaula e experiências?
Mac não disse nada, pelo que anuí com a cabeça.
— Foi isso que ele me contou. Ao que parece, alguém tem uma droga e está a tentar fazer com que faça efeito nos lobisomens. — Relatei-lhe o que Mac me tinha contado, e depois
narrei-lhe os pormenores do meu encontro com o lobisomem morto e o seu camarada humano. Já tinha contado a Adam a maior parte dos factos relevantes, mas não estava certa da
quantidade de informação que tinha ultrapassado a barreira da sua ira, portanto contei-lhe tudo de novo.
— Merda — disse Adam sucintamente após eu ter terminado. — Pobre miúdo. — Voltou-se para Mac. — Muito bem. Vais ficar fino. A primeira coisa que vamos fazer é convocar o lobo
em ti para que te possas curar.
— Não — retorquiu Mac, olhando para mim de forma esgazeada, e depois para o lobisomem morto. — Não me consigo controlar quando estou nesse estado. Vou fazer mal a alguém.
— Olha para mim — disse Adam, e pese embora a sua voz sombria e áspera não se dirigisse a mim, senti-me incapaz de tirar os olhos dele. Mac estava fascinado.
— Está tudo bem, Alan. Eu não vou deixar que faças mal à Mercy, por muito que ela mereça. Nem — prosseguiu Adam, provando que era perspicaz — vou permitir que comas o morto.
Quando Mac hesitou, regressei para perto dele e ajoelhei-me ao lado de Adam de modo a poder olhar Mac diretamente nos olhos.
— Eu disse-te, ele consegue controlar o lobo que tens em ti até tu seres capaz de fazê-lo sozinho. É por isso que é um Alfa. Podes confiar nele.
Mac fixou-se em mim e depois fechou os olhos e acenou afirmativamente.
— Está bem. Mas não sei como.
— Aprenderás a fazê-lo — interveio Adam. — Mas por agora vou ajudar-te. — Afastou-me com o joelho ao mesmo tempo que sacava do canivete. — Isto será mais fácil sem a tua roupa.
Levantei-me o mais comedidamente possível e tentei não fugir quando Mac gritou.
Na maior parte das vezes, a transformação não é fácil nem indolor, e tornava-se pior sem o apelo da Lua. Não sei por que motivo não se podem transformar como eu, mas tive
de fechar os olhos perante os sons de sofrimento que vinham do canto da minha oficina. Por certo a clavícula partida não facilitava a transformação a Mac. Alguns lobisomens
conseguem transformar-se de forma relativamente rápida através da prática, mas um lobisomem novato pode demorar muito tempo.
Saí da oficina através do escritório e caminhei porta fora, para lhes dar alguma privacidade, por um lado, e porque não conseguia aguentar mais o sofrimento de Mac, por outro.
Sentei-me no único degrau de cimento do lado de fora do escritório e pus-me à espera.
Elizaveta regressou, apoiada no braço do seu neto, sensivelmente na mesma altura em que o grito de Mac se transformou num bramido de lobo.
— Há outro lobisomem? — perguntou-me Elizaveta.
Fiz que sim com a cabeça e pus-me de pé.
— Aquele rapaz de que lhe falei. Mas o Adam está aqui, portanto ele está em segurança. Limpou a carrinha do Stefan? — inquiri, acenando com a cabeça na direção da carrinha.
— Sim, sim. Achava que estava a lidar com uma amadora? — Deu uma fungadela ofendida. — O seu amigo vampiro jamais suspeitará que dentro da sua carrinha esteve outro cadáver
para além do dele.
— Obrigada. — Virei a cabeça, mas não ouvia nada vindo do interior da oficina, portanto abri a porta do escritório e gritei: — Adam?
— Está tudo bem — respondeu, soando cansado. — É seguro.
— Elizaveta está aqui com o motorista — avisei-o no caso de não se ter dado conta quando se tinha precipitado na direção da oficina.
— Ela que entre, também.
Teria segurado a porta aberta, porém o neto de Elizaveta tirou-ma da mão e segurou-a para que ambas entrássemos. Elizaveta transitou o seu braço ossudo dele para mim, embora
a avaliar pela força com que me agarrava o braço eu tivesse a certeza absoluta de que não precisava de ajuda para andar.
Mac estava encolhido no canto oposto da oficina, onde o deixara. Na sua forma lupina era de um cinza-escuro, confundindo-se com as sombras no chão de cimento. Tinha uma pata
branca e uma tira branca que se alongava pelo focinho. Os lobisomens normalmente têm marcas que são mais caninas do que lupinas. Não sei porquê. Bran, o Marrok, tem uma mancha
branca na cauda, como se a tivesse mergulhado num balde de tinta. Eu acho que é giro — mas nunca tive coragem para lho dizer.
Adam estava ajoelhado ao lado do homem morto, sem prestar a menor atenção a Mac. Olhou para cima quando entrámos, vindos do escritório.
— Elizaveta Arkadyevna — disse numa saudação formal, acrescentando qualquer coisa em russo. Regressando ao inglês, continuou: — Robert, obrigado por teres vindo também.
Elizaveta disse algo em russo, dirigindo-se a Adam.
— Ainda não — replicou Adam. — Consegue reverter a transformação dele? — Gesticulou na direção do homem morto. — Não lhe reconheço o cheiro, mas gostava de olhar bem para
a cara dele.
Elizaveta franziu o cenho e falou rapidamente em russo para o seu neto. A resposta dele foi correspondida com um aceno afirmativo da parte dela, e conversaram um bocado até
se voltarem novamente para Adam.
— Talvez isso seja possível. Posso pelo menos tentar.
— Por acaso não tens uma máquina fotográfica aqui, Mercy? — perguntou Adam.
— Tenho — respondi. Trabalho com carros antigos. Às vezes trabalho com carros que outras pessoas «restauraram» de uma forma nova e interessante. Entendi que tirar uma fotografia
aos carros antes de trabalhar neles é útil para voltar a montá-los. — Vou buscá-la.
— E traz uma folha de papel e uma almofada de carimbo, se tiveres. Vou enviar as impressões digitais dele a um amigo para identificação.
Quando regressei, o cadáver estava novamente na sua forma humana, e o buraco que lhe tinha feito no pescoço estava aberto como um balão rebentado. Tinha a pele azul da perda
de sangue. Já tinha visto homens mortos, mas nenhum cuja morte tinha sido responsabilidade minha.
A transformação rasgara-lhe as roupas — e não da forma interessante que os livros de banda desenhada e artistas do fantástico sempre retratavam. O fundilho das suas calças
estava completamente rasgado assim como o colarinho da camisa e as costuras dos ombros, encharcados de sangue. Tinha um aspecto muito pouco digno.
Adam tirou-me a máquina digital e tirou algumas fotografias de diferentes ângulos, enfiando-a depois no estojo e pendurando-a ao ombro.
— Devolvo-ta assim que transferir estas fotografias — prometeu distraidamente, após o que pegou no papel e na almofada de carimbo e, muito habilmente, rolou os dedos frouxos
de Mac na tinta e depois na folha de papel.
Depois disso, as coisas aconteceram depressa. Adam ajudou o neto de Elizaveta a depositar o corpo nas luxuosas profundezas da mala do carro dela para dele se desfazerem posteriormente.
Elizaveta soltou uns resmoneios e agitou-se umas quantas vezes para inundar a minha oficina com a sua magia e, esperançosamente, eliminar qualquer indício de que tivera um
cadáver lá dentro. Também levou a roupa de Mac.
— Chiu — disse Adam ao ouvir Mac protestar com um grunhido. — De qualquer forma, não passavam de trapos. Tenho peças de roupa em minha casa que te devem servir, e amanhã arranjamos
mais.
Mac olhou-o.
— Vens comigo para a minha casa — disse Adam num tom que não dava espaço a discussões. — Não vou permitir que um lobisomem novato ande por aí à solta na minha cidade. Vens
e aprendes umas coisas, e depois deixo-te ficar ou ir embora, como escolheres. Mas só depois de eu achar que já és capaz de te controlar.
— Vou-me embora; não é bom para uma mulher idosa como eu estar acordada a esta hora — anunciou Elizaveta. Fitou-me carrancudamente. — Não faça nada de estúpido durante uns
tempos, Mercedes. Não desejaria ter de voltar a este lugar.
Falava como se fosse seu hábito resolver as minhas trapalhadas, embora aquela fosse a primeira vez. Eu estava cansada, e a sensação de náusea que matar um homem deixara no
meu estômago ainda ameaçava trazer-me à boca o pouco que tinha sobrado do meu jantar. A sua rudeza excitou-me os nervos que estava a tentar refrear, pelo que a minha resposta
não foi tão diplomática quanto deveria ter sido.
— Eu também não desejaria — pronunciei suavemente.
Ela percebeu o insulto implícito, mas mantive os olhos bem abertos e calmos para que não descobrisse se eu estava a falar a sério ou não. Insultar bruxas está no topo da lista
de coisas estúpidas, juntamente com enfurecer lobisomens Alfa e abraçar um lobisomem novato ao pé de um corpo morto: tudo coisas que fizera naquela noite. Não tive como evitá-las,
todavia. O desafio era um hábito que desenvolvera para me preservar enquanto crescia no seio de um bando de lobisomens dominantes e, na sua maioria, machos. Os lobisomens,
à semelhança dos outros predadores, respeitam a bravura. Se se é demasiado cuidadoso para não enfurecê-los, verão isso como uma fraqueza — e as coisas fracas convertem-se
em presas.
No dia seguinte ia reparar carros antigos e manter-me de cabeça inclinada durante algum tempo. Tinha esgotado toda a minha sorte naquela noite.
Adam pareceu concordar porque pegou na mão de Elizaveta e enfiou-a no seu braço em forma de gancho, voltando a atrair a atenção dela para si enquanto a acompanhava de regresso
ao carro. O seu neto, Robert, dirigiu-me um sorriso preguiçoso.
— Não abuses muito da matrioska, Mercy — disse num tom brando. — Ela gosta de ti, mas isso não a irá deter se entender que não lhe estás a demonstrar o devido respeito.
— Eu sei — repliquei. — Vou para casa para ver se umas horitas de sono me põem freio na língua antes que ela nos meta em sarilhos. — A minha intenção era soar divertida, mas
apenas soei cansada.
Robert dirigiu-me um sorriso solidário antes de sair.
Um grande peso caía sobre a minha anca e olhei para baixo e vi Mac. Lançou-me aquilo que entendi como um olhar compassivo. Adam ainda estava com Elizaveta, mas não parecia
haver nenhum problema com Mac. Cocei-o ao de leve atrás da orelha levantada.
— Anda. Vamos fechar tudo.
Daquela vez lembrei-me de pegar na minha bolsa.
10 Figura do folclore do leste europeu. Mulher velha e ossuda que viaja pelos céus montada num almofariz. (N. do T.)
11 Membro da tribo de ameríndios de Montana que recebe o mesmo nome. (N. do T.)
4
Finalmente chegada a casa, decidi que existia apenas um remédio para uma noite assim. A minha porção de chocolate preto escondida tinha desaparecido e tinha comido a última
bolacha de gengibre, por isso liguei o forno e peguei numa tigela. Quando alguém me bateu à porta, estava a despejar pepitas de chocolate na massa de biscoitos.
Na minha soleira estava uma rapariga com um cabelo laranja fluorescente que lhe brotava da cabeça em caracóis tumultuosos, e que nos olhos usava maquilhagem suficiente para
abastecer uma equipa profissional de chefes de claque durante um mês. Numa das mãos segurava a minha máquina.
— Olá, Mercy. O meu pai mandou-me cá vir para te dar isto e para se ver livre de mim enquanto tratava de um problema com o bando. — Revirou os olhos quando me entregou a máquina.
— Ele age como se eu não soubesse que me devo manter afastada de lobisomens desconhecidos.
— Olá, Jesse — disse, acenando para que ela entrasse.
— Além de que — continuou enquanto entrava e limpava os sapatos no tapete — este lobo era giro. Com uma tirinha aqui… — Percorreu o nariz com o dedo. — Ele não me ia fazer
mal. Eu estava só a esfregar-lhe a barriga e o meu pai entrou e passou-se… Ah, que delícia, massa de biscoitos! Posso comer um bocado?
Jesse era a filha de Adam, tinha treze anos e estava à beira de fazer catorze. Passava a maior parte do ano com a sua mãe em Eugene — talvez estivesse em Tri-Cidades para
passar o Dia de Ação de Graças com Adam. Parecia-me um pouco cedo para isso, dado que o Dia de Ação de Graças só seria na quinta-feira, mas ela andava numa escola privada
para miúdos brilhantes e excêntricos, portanto talvez as suas férias fossem mais longas do que as dos alunos do ensino público.
— Pintaste o cabelo especialmente para o teu pai? — perguntei-lhe, pegando numa colher e dando-lha com uma porção substancial de massa.
— Claro — respondeu, dando uma dentada. Depois continuou a falar como se não tivesse a boca cheia. — Ele fica a sentir-se mais pai quando há alguma coisa de que se pode queixar.
Para além disso — continuou com um ar de retidão —, toda a gente em Eugene está a fazer o mesmo. Sai com as lavagens numa semana ou duas. Quando me cansei do sermão, simplesmente
disse-lhe que ele tinha sorte por eu não usar super-cola para colar espigões como o meu amigo Jared. Talvez faça isso nas próximas férias. Isto é bom. — Enfiou a colher na
massa para comer mais um bocado e dei-lhe uma palmada na mão.
— Não depois de ter estado na tua boca — repreendi-a. Dei-lhe outra colher, acabei de misturar as pepitas e comecei a deitar a massa de biscoitos nas travessas.
— Oh, quase me esquecia — disse ela, depois de mais uma colherada —, o meu pai enviou uma mensagem juntamente com a máquina. É desnecessariamente críptica, porque sei que
me vais explicar o que significa. Estás preparada?
Coloquei a primeira travessa no forno e comecei a preencher a segunda.
— Chuta.
— Ele disse «Consegui uma informação. Não te preocupes. Era um atirador contratado». — Agitou a colher na minha direção. — Agora explica-me.
Suponho que devesse ter respeitado a necessidade de Adam de proteger a sua filha, mas tinha sido ele a mandá-la ir ter comigo.
— Esta noite matei um homem. O teu pai descobriu quem era.
— A sério? E era um assassino contratado? Fixe. — Deixou cair a colher na pia, ao lado da primeira, e depois deu um salto para se sentar no meu balcão e deu início a uma veloz
sessão de perguntas e respostas feitas e dadas por ela própria. — Foi por isso que lhe telefonaste esta noite? Ficou completamente furioso. Por que é que telefonaste ao meu
pai? Não, espera. O homem que mataste era um lobisomem, não era? Foi por isso que o meu pai saiu disparado. Quem é o lobo que veio com ele? — Fez uma pausa. — Tu mataste um
lobisomem? Tinhas uma arma?
Várias. Mas não tinha levado nenhuma comigo para a oficina.
Ela fizera uma pausa, por isso respondi-lhe às suas duas últimas perguntas.
— Sim e não.
— Fantástico — disse, exibindo um sorriso rasgado. — Então, como é que aconteceu?
— Não foi de propósito — expliquei-lhe, como a reprimir alguma coisa. Mais me valia ter tentado suster um maremoto com as minhas próprias mãos, teria surtido o mesmo efeito.
— Claro que não — replicou. — A não ser que estivesses mesmo fo… — Ergui uma sobrancelha e ela mudou a palavra sem abrandar. — Furibunda. Tinhas uma faca? Ou foi com um pé-de-cabra?
— Com os meus dentes.
— Ui… — Fez uma careta por breves instantes. — Sórdido. Ah, estou a ver. O que estás a dizer é que o apanhaste enquanto estavas na forma de coiote?
A maioria dos humanos apenas sabe que os seres feéricos existem — e ainda há muitas pessoas que pensam que os seres feéricos não passam de um embuste praticado pelo governo
ou contra o governo, como preferirem. Jesse, todavia, na condição de filha de um lobisomem, apesar de ser humana, tinha consciência plena das «Coisas Selvagens», como costumava
designá-las. Parte disso era culpa minha. Na primeira ocasião em que a conheci, pouco tempo depois de o Alfa ter instalado a sua família perto de minha casa, ela tinha-me
perguntado se eu era um lobisomem como o pai dela. Eu disse-lhe o que era, e ela moeu-me o juízo até que lhe mostrasse o meu aspeto quando assumia a minha outra forma. Acho
que tinha nove anos e já era uma perita na arte da persistência.
— Sim. Estava só a tentar chamar a atenção dele para que me perseguisse e deixasse o Mac. O Mac é o lobisomem com a tira… — Imitei-lhe o gesto de percorrer o nariz dedo abaixo
com o dedo. — Ele é impecável — disse-lhe. — Depois, sentindo que teria de assumir o papel de adulta por uma questão de equidade para com o seu pai, acrescentei: — Mas é um
novato, e o controlo dele ainda não é o melhor. Portanto dá ouvidos ao teu pai em relação a ele, OK? Se o Mac te mordesse ou magoasse, ele ia sentir-se pessimamente, e aquilo
por que passou já é mais que suficiente. — Hesitei. Na verdade, não tinha nada a ver com isso, mas gostava de Jesse. — O teu pai tem alguns lobos dos quais tens mesmo de te
manter afastada.
Ela assentiu com a cabeça mas, num tom seguro, retorquiu:
— Eles não me vão fazer mal, não com o meu pai. Mas estás a falar do Ben, não estás? O meu pai disse-me para me manter longe dele. Conheci-o ontem quando apareceu lá em casa.
— Enrugou o nariz. — É um rato, mesmo tendo aquele sotaque britânico fixe.
Não tinha a certeza do que queria dizer com «rato», mas tinha a certeza de que Ben encaixava no nome.
Comemos os biscoitos quando saíram do forno, e dei-lhe um prato cheio, envolvido em papel de alumínio, para que o levasse consigo. Acompanhei-a até ao alpendre e vi um monte
de carros estacionados em frente à casa de Adam. Devia ter chamado o bando.
— Eu acompanho-te até casa — disse-lhe, enfiando os pés nos sapatos que mantinha no alpendre para quando o chão estava lamacento.
Ela revirou os olhos, mas esperou por mim.
— A sério, Mercy, o que é que vais fazer se um dos do bando decidir meter-se connosco?
— Consigo gritar muito alto — respondi. — Isso se não optar por usar a minha técnica recém-patenteada e matá-lo também.
— Muito bem — comentou. — Mas eu cá ficava-me pela gritaria. Não me parece que o meu pai ia gostar que matasses os lobos dele.
Provavelmente nenhum deles lhe tocaria num fio de cabelo, tal como ela achava. Eu tinha quase a certeza de que tinha razão. Mas um dos carros que consegui distinguir era a
camioneta vermelha de Ben. Nunca deixaria uma rapariga de treze anos sozinha estando Ben por perto, fosse filha de quem fosse.
Ninguém se meteu connosco enquanto caminhámos através do meu terreno nas traseiras.
— Belo carro — murmurou ao passar pelo cadáver doador do Rabbit. — O meu pai gostou mesmo muito que o tivesses posto aqui para ele. Fizeste bem. Disse-lhe que da próxima vez
que te chateasse era provável que o pintasses com grafitis.
— O teu pai é um homem astuto — disse-lhe. — Vou guardar os grafitis para mais tarde. Decidi que da próxima vez que ele for desagradável, vou sacar três pneus. — Estiquei
a mão e coloquei-a em posição oblíqua, como um carro com uma só roda.
Ela soltou uma risadinha.
— Ficava passado. Devias vê-lo quando os quadros na parede não estão direitos. — Alcançámos a vedação traseira e ela passou cautelosamente por cima do arame farpado já velho.
— Se decidires pintá-lo, deixas-me ajudar-te?
— Claro — prometi. — Fico aqui à espera até entrares em segurança.
Voltou a revirar os olhos, mas exibiu um sorriso rasgado e correu em direção ao alpendre nas traseiras. Esperei até que me acenasse uma vez a partir da porta traseira de Adam
e entrasse.
Quando levei o lixo à rua antes de ir para a cama, reparei que ainda havia imensos carros à porta da casa de Adam. Tratava-se de uma reunião longa, então. Fez-me sentir grata
por não ser lobisomem.
Virei-me para entrar em casa e parei. Tinha sido estúpida. De nada serve ter os sentidos apurados se não se está a prestar atenção.
— Olá, Ben — disse ao homem estacado entre mim e a casa.
— Tens andado a contar histórias, Mercedes Thompson — pronunciou num tom agradável. Tal como Jesse dissera, ele tinha um sotaque britânico porreiro. Também não era feio, embora
um tudo-nada efeminado para o meu gosto.
— Hem? — interroguei.
Atirou o seu molho de chaves ao ar e apanhou-o com uma mão, uma, duas, três vezes sem tirar os seus olhos dos meus. Se eu gritasse, Adam ouviria, mas, tal como lhe tinha dito
anteriormente, eu não lhe pertencia. Era possessivo quanto bastasse, obrigadinha. Na verdade, não acreditava que Ben fosse estúpido ao ponto de me fazer alguma coisa, não
com Adam por perto.
— «Fica aqui um bocado, Ben» — disse Ben, exagerando a lentidão e o arrastamento que a voz de Adam ainda preservava da infância passada no Sul profundo. — «Espera até que
a minha filha chegue ao quarto. Não quero expô-la às tuas inclinações». — A última frase já não tinha a entoação de Adam mas o seu distinto sotaque britânico. Não fazia propriamente
lembrar o Príncipe Carlos, mas antes algo próximo de Fagin, em Oliver12.
— Não sei por que é achas que tenho alguma coisa a ver com isso — disse, encolhendo os ombros. — Tu é que foste corrido do bando de Londres. Se o Adam não te tivesse aceitado,
estarias metido num belo sarilho.
— O responsável não foi eu — grunhiu agramaticalmente. Fiz um esforço para me abster de corrigi-lo. — E quanto à questão de teres alguma coisa a ver com isso, o Adam contou-me
que o avisaste para manter a Jesse afastada de mim.
Não me lembrava de o ter feito, embora fosse possível que assim tivesse acontecido. Encolhi os ombros. Ben tinha chegado à cidade poucos meses antes, envolto numa série de
mexericos. Tinham ocorrido três violações particularmente brutais no seu bairro em Londres, e a polícia andava atrás dele. Culpado ou não, o seu Alfa entendeu por bem mantê-lo
na sombra e enviou-o para Adam.
A polícia não tinha provas que o incriminassem, mas após ter emigrado as violações acabaram. Verifiquei — a Internet é uma coisa espantosa. Lembrei-me de ter falado com Adam
acerca disso, e de o ter avisado para o manter debaixo de olho quando estivesse perto de mulheres vulneráveis. Estava a pensar em Jesse, mas não me parece que lho tenha dito
explicitamente.
— Tu não gostas de mulheres — disse-lhe. — És rude e cáustico. O que é que estás à espera que ele faça?
— Vai para casa, Ben — pronunciou uma voz profunda e melada mesmo atrás do meu ombro direito. Que diabo, se toda a gente me apanhava de surpresa era sinal de que andava a
precisar de dormir mais.
— Darryl — disse, olhando para trás na direção do número dois de Adam.
Darryl era um homem alto, bem acima do metro e oitenta e cinco. A sua mãe era chinesa, contara-me Jesse, e o seu pai um membro de uma tribo africana que estava a tirar uma
licenciatura em Engenharia numa universidade americana quando se conheceram. Os traços de Darryl eram uma mescla apelativa das duas culturas. Tinha a aparência de alguém que
devia ser modelo ou figurar em filmes, mas era um engenheiro doutorado a trabalhar nos Laboratórios do Pacífico Noroeste numa espécie de projeto governamental altamente confidencial.
Não o conhecia bem, mas possuía aquele ar eminentemente respeitável que caracteriza certos professores universitários. Preferia tê-lo a ele atrás de mim em vez de Ben, mas
não me sentia propriamente satisfeita por estar entre dois lobisomens, independentemente de quem fossem. Movi-me de lado até conseguir ter ambos no meu campo de visão.
— Mercy. — Acenou-me com a cabeça mas manteve-se de olhos cravados em Ben. — O Adam reparou que não estavas presente e mandou-me vir à tua procura. — Ao ver que Ben não respondia,
acrescentou: — Não faças merda. Esta não é a melhor altura.
Ben enrugou os lábios pensativamente e depois sorriu, uma expressão que operou uma transformação notável no seu rosto. Apenas por instantes pareceu puerilmente encantador.
— Não se passa nada. Estou apenas a desejar boa noite a uma mulher bonita. Boa noite, querida Mercedes. Sonha comigo.
Abri a boca para fazer um comentário mordaz, mas Darryl olhou para mim e fez um gesto para que ficasse calada. Se tivesse uma boa resposta para dar, tê-la-ia dado de qualquer
forma, mas não tinha, por isso mantive-me de boca fechada.
Darryl esperou que Ben se afastasse, e depois disse bruscamente:
— Boa noite, Mercy. Fecha as portas à chave.
A seguir, arrepiou caminho em direção à casa de Adam.
Suponho que entre o lobo morto e o desejo de Ben, era de esperar que tivesse pesadelos, mas em vez disso dormi um sono profundo e sem sonhos — pelo menos de que me lembrasse.
Dormi com o rádio ligado, porque de outro modo, com a minha audição, não faria outra coisa senão dormir sonecas a noite toda. Tinha experimentado tampões para os ouvidos,
mas isso bloqueava os sons em demasia para a minha paz de espírito. De modo que optei por pôr música a tocar num volume baixo para bloquear os sons normais da noite, confiando
que algo mais ruidoso me acordasse.
Houve algo que me acordou nessa manhã cerca de uma hora antes de o despertador tocar, mas embora tivesse baixado o volume da música e me tivesse posto à escuta, a única coisa
que ouvi foi um carro com um motor Chevy 350 bem abafado a afastar-se.
Rebolei para voltar a dormir, mas Medea apercebeu-se de que eu estava acordada e começou a miar para que a deixasse ir à rua. Não foi particularmente barulhenta, mas muito
persistente. Decidi que já passara tempo suficiente desde o bilhete de Adam e que portanto deixá-la correr em liberdade não o faria sentir que estava deliberadamente a desafiá-lo.
Também me daria algum sossego para que pudesse dormir aquela última hora.
Saí relutantemente da minha cama quente e vesti umas calças de ganga e uma t-shirt. Feliz por me ver de pé a mexer-me, Medea deu-me turras nas canelas e interpôs-se no meu
caminho enquanto eu cambaleava para fora do quarto e através da sala de estar até à porta da frente. Bocejei e rodei o puxador, mas quando tentei abrir a porta, senti resistência.
Algo a mantinha fechada.
Com um suspiro exasperado, encostei o ombro à porta e esta moveu-se uns relutantes dois ou três centímetros, o suficiente para sentir o cheiro do que estava do outro lado:
a morte.
Completamente desperta, fechei a porta e tranquei-a. Também sentira o cheiro de uma outra coisa, mas não queria admiti-lo. Corri de volta ao meu quarto, enfiei os pés nos
sapatos e abri o cofre de armas. Agarrei na minha SIG de 9mm e introduzi-lhe um carregador com balas de prata, após o que meti a arma na parte de cima das minhas calças. Era
fria, desconfortável e tranquilizadora. Mas não suficientemente tranquilizadora.
Na verdade nunca disparara contra nada a não ser alvos. Quando caçava, fazia-o sobre quatro patas. O meu pai adotivo, ele próprio um lobisomem, tinha insistido para que eu
aprendesse a disparar e a fazer as balas.
Se se tratava de um assunto de lobisomens — e, depois da noite anterior, tinha de supor que assim era —, precisava de uma arma maior. Peguei na Marlin .444 e carreguei-a para
lobisomens. Era uma espingarda curta, e pequena, a menos que se olhasse atentamente para o tamanho do cano. As balas de prata do tamanho de um batom davam a garantia de fazer
com que até um lobisomem se sentasse e ficasse alerta, como costumava dizer o meu pai adotivo. Depois encostava um dedo ao nariz, sorria, e dizia: «Ou se deitasse e ficasse
alerta, se é que me entendes». A Marlin tinha sido a sua arma.
Senti a espingarda como uma presença confortável e fortificante quando abri silenciosamente a minha porta das traseiras e saí para a noite prévia à alvorada. O ar estava sereno
e frio: inalei profundamente e cheirei a morte, inegável e final. Assim que contornei a esquina da caravana, vi o corpo no meu alpendre da frente, a bloquear a minha porta.
Estava de cara voltada para baixo, mas o meu faro indicou-me quem era — tal como acontecera quando tinha aberto a porta. Quem quer que o tivesse despejado, fizera-o de forma
muito silenciosa, acordando-me apenas quando o carro partiu. Agora já não havia mais ninguém ali, apenas Mac e eu.
Subi os quatro degraus do meu alpendre e agachei-me em frente ao rapaz. As minhas exalações enevoavam o ar, porém nenhuma névoa lhe subia do rosto e o seu coração não batia.
Rodei-o até ficar sobre as costas e o seu corpo ainda estava quente. Derretera a geada no local do alpendre onde tinha estado deitado. Cheirava à casa de Adam: uma fragrante
mistura de lenha queimada com o pungente ambientador da preferência da governanta de Adam. Não consegui cheirar nada que me indicasse quem tinha matado Mac e o deixara como
aviso.
Sentei-me na madeira do alpendre, coberta de geada, pousei a espingarda ao meu lado e toquei-lhe suavemente no cabelo. Não o conhecera o tempo suficiente para que ocupasse
um lugar no meu coração, mas gostara do que tinha visto.
Um chiar de pneus que soou com estrépito pôs-me novamente de pé com a espingarda preparada. Um SUV de cor escura saiu disparado da casa de Adam como se o fogo do inferno o
perseguisse. Na luz débil que precedia a alvorada, não fui capaz de distinguir de que cor era: preto ou azul-escuro ou mesmo verde. Podia inclusive ser o mesmo veículo que
os vilões tinham conduzido na noite anterior na oficina — os carros mais recentes com desenhos semelhantes para mim são todos iguais.
Não sei por que razão demorei tanto tempo a perceber que ter Mac morto no meu alpendre significava que algo mau acontecera em casa de Adam. Abandonei o morto na esperança
de ser útil aos vivos e atravessei o terreno nas traseiras da minha casa ao ritmo de um velocista com a arma enfiada debaixo do braço.
A casa de Adam estava iluminada como uma árvore de Natal. A menos que estivesse acompanhado, normalmente estava escura. Os lobisomens, à semelhança dos caminhantes, dão-se
muito bem no escuro.
Quando cheguei à vedação que separava as nossas propriedades, afastei a espingarda do meu corpo e saltei sobre o arame farpado com uma mão no topo do poste. Até aí transportava
a Marlin sem o cão puxado, mas assim que aterrei no outro lado da vedação, puxei o cão para trás.
Teria entrado pela porta das traseiras se não tivesse ocorrido um estrondo tremendo na principal. Mudei de objetivo e percorri a parte lateral da casa a tempo de ver o sofá
aterrar metade dentro metade fora do canteiro de flores que alinhava o alpendre, evidentemente lançado através da janela da sala de estar.
Excluindo o lobisomem que tinha matado na noite anterior, os lobisomens são ensinados a ser silenciosos quando lutam — é uma questão de sobrevivência. Só com a janela partida
e a porta principal aberta de par em par é que consegui ouvir as rosnadelas.
Para ganhar coragem enquanto corria, sussurrei os palavrões que só costumo dirigir a parafusos enferrujados e peças que compro e não correspondem ao seu anúncio. Santo Deus,
pensei, numa oração sincera, enquanto corria pelas escadas do alpendre acima, por favor não permitas que nada de permanente tenha acontecido ao Adam ou à Jesse.
Hesitei logo após ter atravessado o limiar da porta, com o coração na boca e a Marlin pronta a ser usada. Estava a arquejar, tanto dos nervos como do esforço, e o barulho
interferiu na minha audição.
A maior parte da destruição parecia estar concentrada na sala de estar que tinha o pé-direito alto, logo a seguir ao vestíbulo. O tapete berbere branco nunca mais seria o
mesmo. Uma das cadeiras da sala de jantar tinha sido reduzida a lascas depois de arremessada contra a parede, mas a parede também estava danificada: estuque despedaçado espalhava-se
pelo chão.
A maior parte dos estilhaços da janela partida encontrava-se lá fora, no alpendre; o vidro no tapete era de um espelho que tinha sido retirado da parede e lançado sobre a
cabeça de alguém.
A mulher-loba ainda ali estava, com um enorme pedaço do espelho cravado na espinha dorsal. Não era uma mulher-loba que eu conhecesse: não era uma das de Adam porque só havia
três fêmeas no bando de Adam e eu conhecia-as a todas. Estava tão perto da morte que não iria constituir problema por um bom tempo, pelo que a ignorei.
Encontrei um segundo lobisomem debaixo do divã. (Gostava de pegar com Adam por causa do seu divã — Quantas divas esperas que caiam no teu divã, Adam?) Teria de comprar um
novo. O assento estava partido, com lascas de madeira a perpassar o faustoso tecido. O segundo lobisomem jazia de peito para baixo no chão. A cabeça estava virada ao contrário
e os seus olhos embaciados pela morte fitavam-me acusadoramente.
Pisei umas algemas cujas pulseiras estavam torcidas e partidas. Não eram de aço ou alumínio, mas de uma liga de prata qualquer. Ou eram especificamente concebidas para prender
um lobisomem ou eram um item especial de uma loja cara de artigos de sadomasoquismo. Deviam ter sido usadas em Adam; estando Jesse presente, ele nunca levaria para sua casa
um lobo que tivesse de prender.
Os ruídos da luta provinham do local a seguir à esquina da sala de estar, na direção das traseiras da casa. Avancei paralelamente à parede, com vidro a esmigalhar-se debaixo
das minhas solas, e detive-me no seu limite assim que escutei o barulho de madeira a rachar e senti o chão vibrar.
Espreitei cautelosamente pela esquina, mas não precisava de me preocupar. Os lobisomens envolvidos na luta estavam demasiado concentrados uns nos outros para me prestar atenção.
A sala de jantar de Adam era ampla e aberta, com portas de acesso ao pátio sobranceiras a um roseiral. O chão era em parqué de carvalho — o genuíno. A sua ex-mulher tinha
comprado uma mesa para quinze pessoas a condizer com o chão. Essa mesa estava virada de pernas para o ar e enfiada na parede do lado oposto a cerca de um metro do chão. A
frente do guarda-louça a condizer tinha sido partida, como se alguém tivesse arremessado um objeto volumoso e pesado contra ela. O resultado da destruição traduzia-se numa
área razoavelmente ampla e desimpedida onde os lobisomens podiam lutar.
Assim que os vi, não pude fazer outra coisa senão suster a respiração perante a rapidez e graciosidade dos seus movimentos. Apesar do seu tamanho, ainda assim os lobisomens
assemelham-se mais ao seu primo grácil, o lobo cinzento norte-americano, do que a um Castim ou um São Bernardo, que têm um peso equivalente ao seu. Quando os lobisomens correm,
movem-se com uma graciosidade silenciosa e letal. Mas na verdade a sua constituição não é propensa a que corram, mas a que lutem, e há neles uma beleza mortal que sobressai
apenas na luta.
Só tinha visto Adam na forma de lobo umas quatro ou cinco vezes, mas era algo que não se esquecia. O seu corpo era de um prateado-escuro, quase azul, tendo por baixo uma pelagem
com cores mais claras. Como num gato siamês, o focinho, as orelhas, a cauda e as patas escureciam até à cor preta.
O lobo com que lutava era maior, com uma cor bege amarelada mais comum nos coiotes do que nos lobos. Não o conhecia.
A princípio, a diferença de tamanho não me preocupou. Não se chega ao estatuto de Alfa sem se ter capacidade de lutar — e Adam fora um guerreiro antes da Transformação. Depois
apercebi-me de que todo o sangue que estava no chão vertia da barriga de Adam, e que o clarão branco que vi no seu flanco era uma costela.
Mudei de sítio para conseguir uma posição de tiro mais favorável e levantei a espingarda, apontando o cano ao lobo que desconhecia, esperando até poder disparar sem correr
o risco de atingir Adam.
O lobo de cor bege agarrou Adam pela nuca e abanou-o como um cão que matasse uma cobra. O gesto destinava-se a partir o pescoço a Adam, mas o outro lobo não o agarrava com
firmeza, e em vez disso atirou Adam de encontro à mesa da sala de jantar, provocando um grande estrépito no chão e dando-me a oportunidade que esperava.
Alvejei o lobo na nuca a menos de dois metros de distância. Tal como me tinha ensinado o meu pai adotivo, disparei num ângulo ligeiramente descendente para impedir que a bala
da Marlin o atravessasse e prosseguisse o seu trajeto até atingir alguém que estivesse no lugar errado a uma distância de cerca de quatrocentos metros.
As Marlin .444 não eram concebidas para a autodefesa doméstica; foram concebidas para matar ursos-pardos e, numa ou noutra circunstância, para alvejar elefantes. Exatamente
o que o médico prescrevia para lobisomens. Um disparo à queima-roupa e estava morto. Caminhei até junto dele e disparei uma vez mais, só para tirar as dúvidas.
Normalmente não sou uma pessoa violenta, mas soube-me bem premir o gatilho. Amainou a raiva crescente que sentia desde que me tinha ajoelhado no meu alpendre ao pé do corpo
de Mac.
Lancei um olhar a Adam, que jazia no meio da sua mesa de refeições, mas não se mexeu, nem para abrir os olhos. O seu elegante focinho estava coberto de sangue e o seu pelo
prateado estava cheio de manchas escuras, pelo que era difícil distinguir a real dimensão dos seus ferimentos. O que eu conseguia ver era suficientemente mau.
Alguém tinha sido bastante competente na tarefa de esventrá-lo: distingui intestinos pálidos e o branco do osso onde a carne se tinha descolado das costelas.
É possível que esteja vivo, disse a mim mesma. Os meus ouvidos ainda zumbiam. Respirava com muita dificuldade, o meu coração batia acelerada e ruidosamente: poderia ser o
suficiente para abafar o som do seu coração, da sua respiração. Nunca vira um lobisomem curar-se de tantos ferimentos, bem piores do que os dos outros dois lobisomens mortos
ou os do que eu tinha matado na noite anterior.
Voltei a desprender o cão da espingarda e contornei os restos da mesa para tocar no focinho de Adam. Ainda assim não era capaz de perceber se estava a respirar.
Precisava de ajuda.
Corri em direção à cozinha onde, ao verdadeiro estilo de Adam, havia uma lista de nomes e números metodicamente organizada sobre a bancada, mesmo abaixo do telefone de parede.
O meu dedo encontrou o nome de Darryl com os números do seu emprego, da sua casa e do seu pager, impressos em letras maiúsculas e pretas. Pousei a minha arma num sítio onde
pudesse pegá-la rapidamente e marquei o número de casa em primeiro lugar.
«Ligou para a casa do Dr. Darryl Zao. Poderá deixar uma mensagem após o sinal ou contactá-lo para o seu pager através do número 543…» A voz grave e cavernosa de Darryl soava
íntima apesar do caráter impessoal da mensagem.
Desliguei e tentei o número do seu emprego, mas também não estava lá. Tinha começado a marcar o número do seu pager, mas enquanto tentava entrar em contacto com ele, pus-me
a pensar no nosso encontro na noite anterior.
«Esta não é a melhor altura.», dissera a Ben. Não tinha prestado especial atenção a isso na noite anterior, mas teria havido na sua voz uma ênfase especial? Referia-se ele,
como eu tinha suposto, a todo o esforço que Ben tinha investido para se comportar da melhor maneira desde que fora banido de Londres? Ou tratar-se-ia de algo mais específico,
do género: agora não, que temos questões mais importantes para resolver? Questões mais importantes como matar o Alfa.
Na Europa, era sobretudo através do assassinato que a chefia do bando mudava de mãos. O Alfa mais velho chefiava até que um dos machos dominantes mais novos e ávidos decidisse
que aquele se tinha tornado muito fraco, atacando-o. Tinha conhecimento de pelo menos um Alfa europeu que matava qualquer macho que desse sinais de ser dominante.
No Novo Mundo, graças ao punho de ferro do Marrok, as coisas eram mais civilizadas. A liderança era sobretudo imposta de cima — e ninguém desafiava as decisões do Marrok,
pelo menos não desde que eu o conhecia. Mas seria possível alguém ter entrado na casa de Adam e provocado tantos estragos sem o auxílio do bando de Adam?
Desliguei o telefone e fixei-me na lista de nomes, não me atrevendo a ligar a nenhum deles a pedir ajuda sem antes ficar a saber mais sobre o que se estava a passar. O meu
olhar recaiu e deteve-se numa fotografia numa moldura de madeira, colocada ao lado da lista.
Uma Jesse mais nova sorria-me rasgadamente com um taco de beisebol por cima do ombro e um boné virado um bocadinho para o lado.
Jesse.
Peguei na minha espingarda e desatei a correr escada acima em direção ao quarto dela. Não estava lá. Não era capaz de perceber se ali tinha tido lugar alguma luta ou não —
Jesse tendia a viver num tumulto que se refletia no modo como mantinha o quarto.
Na forma de coiote, os meus sentidos são mais apurados. Portanto, escondi ambas as armas debaixo da cama, despi-me e transformei-me.
O cheiro de Jesse estava espalhado por todo o quarto, mas também detetei vestígios do humano que na noite anterior tinha enfrentado Mac na minha oficina. Segui o rasto do
seu odor escada abaixo porque o cheiro de Jesse era demasiado dominante para que conseguisse distinguir um único rasto.
Estava quase a transpor o limiar da porta para o exterior quando um som me fez estacar. Abandonei temporariamente o rasto para investigar. A princípio, pensei que o que tinha
escutado talvez fosse uma das peças de mobiliário derrubadas a pousar no chão, mas depois reparei que a pata dianteira esquerda de Adam se tinha mexido.
Logo após ter avistado esse movimento, apercebi-me de que conseguia ouvir o som quase impercetível da sua respiração. Talvez fossem apenas os sentidos mais apurados do coiote,
mas era capaz de jurar que ele não estava a respirar anteriormente. Se estava vivo, havia muito boas possibilidades de assim se manter. Os lobisomens são duros.
Ululei de felicidade, avancei por cima dos destroços da sua mesa e lambi-lhe a cara ensanguentada uma vez antes de retomar a procura da sua filha.
A casa de Adam está situada no fim de uma rua sem saída. Diretamente em frente à sua casa existe uma rotunda. O SUV que eu tinha visto partir — presumivelmente com Jesse —
deixara um curto rasto de borracha queimada — mas a maior parte dos carros não tem um cheiro individual até envelhecer. Este não deixara atrás de si o suficiente para que
lhe pudesse seguir a pista, uma vez que o cheiro forte a borracha queimada se dissipara dos seus pneus.
Não havia mais rastos a seguir, nada que pudesse fazer por Jesse, nada que pudesse fazer por Mac. Concentrei a minha atenção em Adam.
O facto de estar vivo significava que não podia contactar o seu bando, não estando ele indefeso. Se algum dos dominantes tivesse a aspiração de se vir a tornar o Alfa, matá-lo-ia.
Tão-pouco podia simplesmente levá-lo para a minha casa. Em primeiro lugar, assim que alguém se apercebesse de que ele tinha desaparecido, verificaria a minha casa. Em segundo
lugar, um lobisomem gravemente ferido era perigoso para si próprio e para toda a gente à sua volta. Mesmo que pudesse confiar nos seus lobos, não havia no Bando da Bacia do
Columbia nenhum dominante suficientemente forte para manter o lobo de Adam sob controlo até que ele recuperasse ao ponto de se controlar.
No entanto, sabia onde encontrar um.
12 Filme musical britânico baseado no romance Oliver Twist, de Charles Dickens. (N. do T.)
5
Uma Vanagon13 parece basicamente um pão de forma sobre rodas; um pão de forma com quatro metros e meio de comprimento e um e oitenta de largura com o mesmo design aerodinâmico
de uma porta de um celeiro. Durante os doze anos em que a VW as importou para os Estados Unidos, nunca puseram dentro delas nada maior do que o motor de quatro cilindros wasser-boxer.
A minha, de 1989, tinha tração às quatro rodas e um motor de quatro toneladas que debitava uns colossais noventa cavalos.
Em termos leigos, isso significa que estava a percorrer a auto-estrada interestadual com um cadáver e um lobisomem ferido a noventa quilómetros por hora. A descer, com o vento
favorável, a carrinha conseguia atingir os cento e vinte. A subir, tinha sorte se alcançasse os oitenta. Podia ter puxado um bocadinho mais por ela, mas apenas se me quisesse
arriscar a estourar completamente o motor. Por alguma razão, a ideia de ficar parada na beira da estrada com a carga que transportava era suficiente para manter o meu pé longe
do acelerador.
A auto-estrada estendia-se diante de mim em suaves curvas, parcas em trânsito e beleza cénica, a menos que se goste da vegetação enfezada do deserto, o que não é o meu caso.
Não queria pensar em Mac ou em Jesse, assustada e sozinha — ou em Adam, que podia estar a morrer porque optei por levá-lo em vez de chamar o seu bando. Portanto saquei do
telemóvel.
Primeiro liguei aos meus vizinhos. Dennis Cather era um canalizador reformado e a sua mulher, Anna, uma enfermeira reformada. Tinham-se mudado havia dois anos e adotaram-me
quando lhes arranjei o trator.
— Sim? — Depois da manhã que tinha passado, a voz de Anna soou-me tão normal que demorei algum tempo a responder.
— Desculpe estar a ligar-lhe tão cedo — disse-lhe. — Mas tive de me ausentar da cidade por causa de uma emergência familiar. Não devo ficar muito tempo fora, só um dia ou
dois, mas não confirmei se a Medea tinha comida e água.
— Não te preocupes, querida — replicou. — Nós tomamos conta dela. Espero que não seja nada de grave.
Não pude deixar de lançar um olhar de soslaio a Adam através do espelho retrovisor. Ainda respirava.
— É grave. Um dos meus familiares adotivos está ferido.
— Trata lá do que tens a tratar — disse ela prontamente. — Nós cuidamos de tudo por cá.
Só depois de ter terminado o telefonema é que me perguntei se os estaria a envolver nalguma coisa perigosa. Mac tinha sido deixado na soleira da minha porta por um motivo
— um aviso para não meter o nariz onde não era chamada. E agora era mais do que certo que estava a meter a cabeça toda.
Estava a fazer tudo o que podia por Adam e ocorreu-me algo que poderia fazer por Jesse. Telefonei a Zee.
Siebold Adelbertsmiter, Zee para abreviar, tinha-me ensinado tudo o que eu sabia sobre carros. A maior parte dos seres feéricos é muito sensível ao ferro, mas Zee era um Metallzauber
— que designa uma categoria bastante ampla aplicada aos poucos seres feéricos capazes de manejar todos os tipos de metais. Zee preferia o termo americano moderno «gremlin»,
que entendia ser mais adequado aos seus talentos. Não estava a telefonar-lhe pelos seus talentos, mas pelos seus conhecimentos.
— Ja — pronunciou uma áspera voz masculina.
— Olá, Zee, é a Mercy. Queria pedir-te um favor.
— Ja, claro, Liebling — respondeu. — Então?
Hesitei. Mesmo depois de todo aquele tempo, a regra de manter os problemas do bando no seio do bando era difícil de quebrar, mas Zee conhecia toda a gente na comunidade feérica.
Descrevi-lhe em linhas gerais o dia anterior da melhor maneira que fui capaz.
— Então achas que esse teu rapaz-lobo trouxe esse problema para aqui? Então por que é que levaram a nossa kleine Jesse?
— Não sei — respondi. — Tenho esperança de que o Adam me diga mais alguma coisa quando recuperar.
— Portanto, estás a pedir-me que descubra se alguém que eu conheça viu esses lobos desconhecidos na esperança de encontrares a Jesse?
— Havia pelo menos quatro lobisomens a circular em Tri-Cidades. É de esperar que alguém entre os seres feéricos tenha reparado. — Uma vez que Tri-Cidades ficava muito perto
da Reserva Feérica Walla Walla, ali viviam mais criaturas feéricas do que era habitual.
— Ja — concordou Zee com veemência. — É de esperar. Vou perguntar por aí. A Jesse é boa rapariga; devemos fazer tudo o que está ao nosso alcance para que não permaneça nas
mãos desses homens malvados.
— Se passares na oficina, importas-te de pôr um bilhete na janela? — perguntei. — Há um letreiro que diz «Fechado Para Férias» debaixo do balcão, no escritório.
— Achas que eles viriam atrás de mim se te substituísse na garagem? — inquiriu. Era frequente Zee gerir a oficina se eu tivesse de me ausentar da cidade. — Talvez tenhas razão.
Ja, gut. Vou abrir a oficina hoje e amanhã.
Havia muito tempo que não se cantava sobre Siebold Adelbertsmiter da Floresta Negra, tanto tempo que essas canções se tinham esfumado da memória, mas ainda havia nele algo
do espírito das Heldenlieder, as velhas canções dos heróis germânicos.
— Um lobisomem não precisa de uma espada ou de uma arma para te trucidar — disse-lhe, incapaz de ignorar o assunto, embora soubesse que era inútil discutir com o velho gremlin
quando este tomava uma decisão. — A tua magia dos metais não te vai servir de muito.
Rosnou.
— Não te preocupes comigo, Liebling. Andava a matar lobisomens quando este país ainda era uma colónia viking. — Muitos dos seres feéricos menores falavam sobre quão velhos
eram, mas Zee contara-me que a maioria deles tinha uma esperança de vida idêntica à dos humanos. Zee era muito mais velho do que isso.
Suspirei e cedi.
— Está bem. Mas tem cuidado. Se vais lá estar, és capaz de receber uma encomenda de peças de que estou à espera. Podes tratar disso por mim? Nunca fiz encomendas nesse sítio,
mas o meu fornecedor habitual não tinhas as peças em stock.
— Ja wohl. Eu trato disso.
A chamada que fiz a seguir foi para o atendedor de chamadas de Stefan.
— Olá, Stefan — disse. — Daqui é a Mercy. Vou para Montana hoje. Não sei quando volto. Provavelmente lá para o fim da semana. Dou-te uma ligadela a avisar. — Hesitei, mas
de facto não havia outra forma de dizer a parte seguinte. — Tive de transportar um cadáver na tua carrinha. Está impecável, a Elizaveta Arkadyevna limpou-a. Explico-te quando
regressar.
Mencionar Elizaveta fez-me lembrar-me de uma outra coisa que tinha de fazer. A casa de Adam era no fim da rua, mas era claramente visível do rio. Alguém iria notar que o sofá
estava no canteiro de flores e chamaria a polícia se a bagunça não fosse arrumada em breve.
Tinha o número no meu telefone, embora nunca tivesse tido ocasião de utilizá-lo. Respondeu-me o atendedor de chamadas e deixei uma mensagem dizendo-lhe que a casa de Adam
estava de pernas para o ar, que estivera um cadáver no meu alpendre, que a Jesse tinha desaparecido, e que estava a levar Adam, que estava ferido, para um lugar onde estivesse
a salvo. Depois fechei o telemóvel e afastei-o de mim. Não sabia o que tinha acontecido na casa de Adam, mas isso não impediu que me sentisse culpada ou responsável. Se na
noite anterior não tivesse interferido quando os dois arruaceiros foram à procura de Mac, estaria ainda toda a gente viva? Se tivesse enviado Mac para Montana, ao encontro
do Marrok, em vez de deixar que Adam o levasse, poderia ter evitado tudo aquilo?
Nunca me tinha ocorrido levar Mac ao encontro do Marrok. Não tinha entrado em contacto com Bran desde que me mandara embora do bando, e ele retribuíra-me o favor. Olhei por
breves instantes para trás do meu banco, para a lona azul que escondia o corpo de Mac. Bem, agora levava-o ao seu encontro.
Dei por mim a recordar o sorriso tímido que Mac exibira quando lhe disse o meu nome. Limpei as faces e contrariei as lágrimas piscando os olhos, mas foi inútil. Chorei por
ele, pelos seus pais e pelo irmão, que nem sequer sabiam que estava morto. Sem dúvida que estariam ao lado dos respetivos telefones, à espera que ele voltasse a ligar.
Estava a descer a estrada que dava para Spokane quando preocupações mais urgentes me distraíram da dor e da culpa: Adam começou a mexer-se. O meu medo de que Adam morresse
foi instantaneamente dominado pela preocupação de que se tivesse curado demasiado depressa.
Ainda me restavam mais de trezentos quilómetros de viagem, grande parte dos quais através de uma estrada de duas faixas ao longo de montanhas, ziguezagueando entre dezenas
de pequenas cidades a quarenta quilómetros por hora. Os últimos cem quilómetros seriam feitos numa estrada assinalada como «outra» no mapa da auto-estrada interestadual —
em contraste com auto-estrada ou estrada. Se a minha memória não me atraiçoava, a maior parte do caminho era em gravilha. Calculei que me levaria pelo menos mais quatro horas.
Os lobos dominantes curam-se mais depressa do que os lobos submissos. Segundo a minha estimativa aproximada, não demoraria mais de dois dias até que Adam estivesse recuperado
ao ponto de controlar o lobo dentro dele — que seria capaz de provocar o absoluto caos antes disso. Precisava de Bran antes que Adam recuperasse a mobilidade e, considerando
que já se estava a mexer, seria uma sorte se o conseguisse.
Quando alcancei Coeur d’Alene, onde teria de abandonar a estrada interestadual e entrar na auto-estrada, pus o pé na tábua e fui ao primeiro restaurante de fast-food que encontrei,
onde comprei trinta cheeseburgers. A desconcertada adolescente que me começou a dar os sacos através da janela fitou-me com curiosidade. Não lhe expliquei nada e ela não tinha
como ver os meus passageiros por causa das cortinas da carrinha.
Parei no parque de estacionamento do restaurante, peguei em dois sacos, passei por cima de Mac, e comecei a tirar a carne do meio do pão. Adam estava demasiado fraco para
fazer mais do que me rosnar e apanhar a carne coberta de queijo e ketchup com a mesma rapidez com que eu lha lançava. Comeu quase vinte hambúrgueres antes de ceder ao seu
anterior estado de quase coma.
Os primeiros flocos de neve começaram a cair sobre nós quando apanhei a auto-estrada para norte.
Entrei em Troy, Montana, rogando pragas ao intenso nevão que distraíra a minha atenção e me fizera perder a saída, que ficava vários quilómetros atrás. Atestei o depósito
de gasolina, pedi direções, pus as correntes nos pneus e percorri de volta o caminho que tinha feito.
A neve caía com uma intensidade tal que os limpa-neves não conseguiam dar resposta. Os sulcos deixados pelos carros que seguiam à minha frente eram rapidamente preenchidos.
Com as direções dadas pelo funcionário da bomba de gasolina ainda frescas na minha cabeça, abrandei ao atravessar novamente o Rio Yaak. Era uma amostra de rio, comparado com
o Kootenai, paralelamente ao qual vinha conduzindo durante as últimas horas.
Mantive-me de olhos atentos à berma da estrada, e foi uma atitude acertada. O sinalzinho verde que assinalava a saída estava meio coberto de neve.
Havia apenas um par de sulcos pela estrada fora. Desembocavam num caminho estreito e, depois disso, encontrei o meu caminho estrada acima conduzindo onde não havia árvores.
Felizmente, as árvores eram densas e delimitavam o caminho de forma bastante clara.
A estrada serpenteava para cima e para baixo através do vale do rio, e dei graças pela tração às quatro rodas. A dada altura, um casal de veados de cauda preta precipitou-se
à minha frente. Lançaram-me um olhar irritado e zarparam.
Havia passado muito tempo desde a última vez que passara por aquelas bandas — na altura nem sequer tinha a carta de condução. A estrada era-me desconhecida e comecei a temer
a possibilidade de não me ter apercebido do desvio que devia fazer. Mais à frente, a estrada dividia-se, uma metade claramente definida, e a outra, aquela por onde tinha de
seguir, mal tinha largura para a minha carrinha.
— Bem — disse a Adam, que gemia inquietamente —, se formos parar ao Canadá e ainda não me tiveres comido, sempre podemos dar meia-volta, regressar e tentar outra vez.
Estava à beira de decidir que teria de fazer isso mesmo quando, depois de subir um longo declive, deparei com um sinal de madeira feito à mão. Parei a carrinha.
Aspen Creek, dizia o sinal numa caligrafia graciosa, entalhada e pintada de branco sobre um fundo castanho-escuro, 37 km. Enquanto rodava o volante para seguir a indicação
da seta, perguntei-me quando teria Bran decidido permitir que alguém colocasse ali um sinal. Talvez se tivesse cansado de enviar guias — contudo, na altura em que me tinha
ido embora dali, mantinha uma posição intransigente em relação a manter a discrição.
Não sei por que é que esperava que tudo estivesse na mesma. Afinal de contas, eu própria tinha mudado muito desde a última vez que ali estivera. Deveria estar à espera que
também Aspen Creek tivesse mudado. Não tinha de gostar do lugar.
Os não iniciados seriam perdoados por pensar que existiam apenas quatro edifícios em Aspen Creek: a bomba de gasolina/estação dos correios, a escola, a igreja e o motel. Não
veriam as casas discretamente enfiadas nas ravinas e debaixo das árvores. Havia um ou outro carro em frente à bomba de gasolina, mas à parte isso toda a cidade parecia deserta.
Mas eu sabia que não era bem assim. Havia sempre pessoas a observar, mas não se iam meter comigo a menos que fizesse algo invulgar — como arrastar um lobisomem ferido para
fora da minha carrinha.
Parei em frente à receção do motel, precisamente por baixo do letreiro que dizia Aspen Creek Motel, que tinha uma semelhança mais do que acidental com o sinal que indicava
a direção da cidade. O velho motel tinha a mesma configuração que os hotéis de beira de estrada construídos em meados do século passado — um edifício longo, estreito e simples,
concebido para que os hóspedes pudessem estacionar os seus veículos em frente aos respetivos quartos.
Não estava ninguém na receção, mas a porta estava destrancada. Tinha sido modernizada desde a última vez em que ali estivera e o resultado final traduzia-se numa espécie de
encanto rústico — o que era bem melhor do que o apanhado das pirosices dos anos cinquenta que em tempos fora.
Saltei por cima do balcão e peguei numa chave com o número 1 inscrito. O número um correspondia ao quarto de segurança dos Marrok, especialmente concebida para isolar lobisomens
não cooperantes.
Encontrei uma folha de papel e uma esferográfica e escrevi: Ferido no número 1. Por Favor, Não Incomodar. Deixei o bilhete no balcão, num sítio onde era impossível não dar
por ele, após o que regressei para a carrinha e fiz marcha atrás até ao quarto.
Tirar Adam da carrinha ia ser uma tarefa difícil, desse para onde desse. Quando o tinha arrastado para o seu interior pelo menos estava inconsciente. Abri a porta do quarto
do motel, de metal reforçado, e dei uma olhadela em volta. O recheio era novo, mas escasso, apenas uma cama e uma mesinha de cabeceira fixada na parede — nada que me pudesse
ajudar a tirar um lobisomem com o dobro do meu peso da carrinha e a metê-lo no quarto sem que nenhum de nós se magoasse. Não existia nenhum alpendre como na casa de Adam,
o que significava uma queda de cerca de um metro desde a parte traseira da carrinha até ao chão.
Acabei por concluir que era preferível pedir ajuda a deixar Adam ainda mais magoado. Regressei à receção e peguei no telefone. Não telefonava a Sam desde que me tinha ido
embora, mas há coisas que ficam sempre. Embora ele fosse a razão pela qual tinha partido, foi a primeira pessoa a quem me ocorreu ligar a pedir ajuda.
— Estou — atendeu a voz de uma mulher que me soou completamente desconhecida.
Não consegui falar. Só quando ouvi a voz de uma outra pessoa é que me apercebi do quanto esperava ouvir Samuel.
— Marlie? Passa-se alguma coisa no motel? Precisas que mande aí o Carl? — Deve ter identificação do chamador, pensei estupidamente.
A sua voz soava ansiosa, mas acabei por reconhecê-la, o que fez com que uma onda de alívio me percorresse. Não sei por que razão estava Lisa Stoval a atender aquele número,
mas a menção a Carl e a tensão súbita na sua voz deram-me a pista de que necessitava. Suponho que o meu desconcerto se devia ao facto de ela nunca me ter falado num tom animado.
Algumas coisas podiam ter mudado, mas algumas coisas eu simplesmente tinha esquecido. Aspen Creek tinha uma população de aproximadamente quinhentas pessoas, e apenas cerca
de setenta eram lobisomens, mas raramente pensava na maioria humana. Lisa e o seu marido Carl eram ambos humanos. Marlie também o era, pelo menos até à altura em que parti.
Na altura teria à volta de seis anos.
— Não sei onde está a Marli — disse-lhe. — Daqui fala a Mercedes, Mercedes Thompson. Não está ninguém na receção do motel. Ficava muito agradecida se dissesses ao Carl para
vir até aqui, ou me dissesses a quem mais devo ligar. O Alfa do Bando da Bacia do Columbia está na minha carrinha. Está gravemente ferido e preciso de ajuda para o transportar
até ao quarto do motel. Melhor ainda seria dizeres-me como posso entrar em contacto com Bran.
Bran não tinha telefone em casa — ou pelo menos não tinha na altura em que me tinha ido embora. Ao que sabia, agora tinha um telemóvel.
Lisa, tal como a maior parte das mulheres de Aspen Creek, nunca tinha gostado de mim. Mas não era uma daquelas pessoas que permitem que uma questão menor como essa as impeça
de fazer a coisa certa e apropriada.
— O Bran e alguns dos outros levaram os lobos novatos à sua primeira caçada. A Marlie provavelmente está enfiada num sítio qualquer a chorar. O Lee, o irmão dela, foi um dos
que tentou a Transformação. Não resistiu.
Tinha-me esquecido. Como podia ter-me esquecido? A última Lua cheia de outubro, altura em que todos aqueles que se quisessem tornar lobisomens tinham permissão para tentá-lo.
No contexto de uma cerimónia formal, eram atacados violentamente por Bran, ou por qualquer outro lobo que os amasse, na esperança de provocar a sua Transformação. A maior
parte não conseguia. Recordei a tensão que tomava conta da cidade ao longo do mês de outubro e da tristeza de novembro. Para os habitantes de Aspen Creek, o Dia de Ação de
Graças tinha um significado diferente do que tinha para o resto da América.
— Lamento — disse inadequadamente, sentindo-me absolutamente incapaz de lidar com mais jovens mortos. Também recordei Lee. — O Lee era um bom miúdo.
— Eu digo ao Carl para ir até aí. — O tom de Lisa era duro e seco, negando-me o direito a sentir pesar ou compartilhar sentimentos. Desligou sem se despedir.
Evitei pensar — ou olhar para a lona que cobria Mac — enquanto esperava pela ajuda na carrinha. Em lugar disso, dei a Adam os hambúrgueres que tinham sobrado. Estavam frios
e congelados, mas isso não pareceu incomodar o lobo. Quando acabaram, fechou os olhos e ignorou-me.
Finalmente, Carl estacionou ao meu lado um Jeep maltratado e pulou para fora. Era um homem alto, e sempre fora mais de agir do que de falar. Deu-me um abraço e bateu-me nas
costas.
— Não faças essa cara, Mercy — disse, após o que se riu da minha expressão de choque e me despenteou com as pontas dos dedos. Tinha-me esquecido de que gostava de fazer aquilo,
tinha-me esquecido da facilidade com que demonstrava afeto a toda a gente, inclusive a Bran. — A Lisa disse-me que o Adam está aqui contigo e que está em baixa de forma?
Claro que sabia quem era o Alfa do Bando da Bacia do Columbia. O bando de Adam era o que estava mais próximo de Aspen Creek.
Anuí com a cabeça e abri a porta traseira da minha carrinha para que pudesse ver aquilo com que estávamos a lidar. Adam estava com melhor aspeto do que quando o tinha colocado
na carrinha, mas isso não era indicador de grande coisa. Já não lhe via os ossos das costelas, mas a pelagem estava cheia de sangue e ferimentos.
Carl assobiou por entre os dentes e a única coisa que disse foi:
— Vamos ter de lhe prender as mandíbulas antes de tirá-lo. Tenho no Jeep uma coisa que nos pode ser útil.
Trouxe uma ligadura elástica e envolvemos-lhe o focinho dado voltas atrás de voltas. O lobo abriu os olhos uma vez, mas não ofereceu resistência.
Foram necessários muitos grunhidos, alguns palavrões e algum suor, mas conseguimos tirar Adam da carrinha e levá-lo para o quarto. Assim que o tínhamos sobre a cama, obriguei
Carl a recuar antes de retirar a ligadura e libertar o lobo. Fui rápida, mas mesmo assim Adam feriu-me no antebraço com um canino e comecei a sangrar. Saltei para trás no
momento em que rodou e tentou levantar-se — impelido a defender-se da dor que lhe tínhamos causado.
— Lá para fora — disse Carl, segurando a porta aberta.
Acedi e fechámos a porta atrás de nós. Carl manteve-a fechada enquanto eu rodava a chave na fechadura. Ao contrário da maior parte dos quartos de motel, aquela fechadura funcionava
com chave de ambos os lados — precisamente para situações como aquela. As janelas tinham grades, as saídas de ar estavam seladas. O número um servia de prisão e, ocasionalmente,
de hospital: por vezes de ambos.
Adam estava a salvo — por agora. Quando recuperasse um pouco mais de força as coisas ainda podiam vir a tornar-se problemáticas, a menos que localizasse Bran.
— Sabes para onde é que o Bran levou os lobos novatos? — perguntei, fechando a porta traseira da carrinha. Carl não me fizera qualquer pergunta a respeito de Mac, não tinha
um faro de lobo que lhe indicasse o que estava na lona, e entendi que Mac podia seguir comigo durante mais algum tempo. Bran podia decidir o que fazer com o seu corpo.
— É melhor não ires atrás dele, Mercy — dizia Carl. — É demasiado perigoso. Por que é que não vens comigo até minha casa? Damos-te de comer enquanto esperas.
— Quantos lobisomens restam na cidade? — inquiri. — Há alguém capaz de fazer frente ao lobo do Adam?
Aquele era o inconveniente de ser um lobo dominante. Se perdesse a cabeça, levava à sua frente todos aqueles que fossem menos dominantes.
Carl hesitou.
— O Adam ainda está muito debilitado. O Bran estará de regresso ao anoitecer.
Algo embateu na porta e ambos demos um salto.
— Levou-os para a Ravina das Amantes — indicou Carl, aceitando o óbvio. — Tem cuidado.
— O Bran terá controlo sobre os novatos — repliquei. — Vai correr tudo bem.
— Não estou preocupado com eles. Deixaste inimigos pelo caminho, rapariga.
Sorri com firmeza.
— Não posso contrariar o que sou. Se são meus inimigos, não foi por escolha minha.
— Eu sei. Mas ainda assim vão-te matar se tiverem possibilidade.
As amantes eram um par de árvores que tinham crescido entrelaçadas uma na outra, perto da entrada para uma pequena ravina cerca de quinze quilómetros a norte da cidade. Estacionei
ao pé de dois Land Rovers antigos, um Chevy Tahoe quase novo e um Hummer — a versão cara. Charles, o filho de Bran, era um génio das finanças, e o bando de Marrok nunca iria
mendigar pelas esquinas. Quando saí daquele lugar, tinha dez mil dólares numa conta bancária, resultado dos investimentos que Charles fizera com parte do salário mínimo que
eu recebia.
Tirei a roupa no interior da carrinha, saltei para a neve que me dava pelos joelhos e fechei a porta. Estava mais frio nas montanhas do que em Troy, e a neve tinha uma crosta
de duros cristais de gelo que se cravavam na pele nua dos meus pés.
Transformei-me o mais depressa que consegui. Talvez tivesse sido mais seguro ir como humana, mas a roupa que tinha não era a mais apropriada para um inverno como o de Montana.
Correndo na forma de coiote, não me importo muito com o frio.
Tinha-me habituado aos cheiros e sons da cidade. Os cheiros da floresta não eram menos intensos, apenas diferentes: abetos, faias pretas e pinheiros em vez de tubos de escape,
massa lubrificante e humanos. Escutei o baquetear distinto de um pica-pau e, de forma um tanto vaga, o uivo de um lobo — demasiado forte para ser o de um lobo cinzento.
A neve, que ainda caía, tinha tapado completamente o seu rasto, mas ainda conseguia cheirá-los. Bran e a sua companheira, Leah, tinham-se roçado nos ramos de um pinheiro branco.
Charles deixara pegadas onde o chão estava meio abrigado por um pedregulho. Quando o meu faro me conduziu aos sítios certos, consegui ver onde a neve velha tinha sido amassada
por patas antes de o nevão mais recente ter começado, e os rastos não foram difíceis de seguir.
Hesitei quando as pegadas dos lobos começaram a separar-se. Bran tinha levado os lobos novatos — pareciam ser três — ao passo que Leah e os seus filhos, Charles e Samuel,
tinham seguido noutra direção, provavelmente para perseguirem presas que pudessem encaminhar para o resto do bando.
Precisava de encontrar Bran para lhe contar o que tinha acontecido, para que me ajudasse em relação a Adam — mas, mesmo assim, segui a pista de Sam. Não consegui resistir.
Apaixonara-me por ele aos catorze anos.
Não que esteja apaixonada por ele agora, afirmei de mim para mim enquanto lhe seguia o rasto no sentido descendente de um declive abrupto e novamente no sentido ascendente
até uma cumeeira onde a neve não era tão alta porque o vento a varria de vez em quando.
Não passava de uma adolescente da última vez que o vi, pensei. Não tinha voltado a falar com ele desde então e ele não tinha tentado entrar em contacto comigo, tão-pouco.
Ainda assim, fora o seu número que eu marcara a pedir ajuda. Nem sequer me tinha passado pela cabeça telefonar a outra pessoa.
Enquanto pensava naquilo, apercebi-me de que a floresta atrás de mim se tinha calado.
Os bosques invernais estavam silenciosos. Os pássaros, à exceção de um pequeno número de picanços-azuis, ampélis e alguns pica-paus como o que escutara, tinham ido para sul.
Mas no silêncio atrás de mim havia uma natureza agourenta demasiado pesada para se tratar apenas de quietude invernosa. Estava a ser seguida.
Não olhei em volta, nem acelerei a marcha. Os lobisomens perseguem as coisas que fogem deles.
Não estava verdadeiramente assustada. Bran andava algures por ali, e Samuel estava ainda mais perto. Conseguia sentir o cheiro almiscarado de terra e especiarias que lhe era
tão característico; o vento transportava-o até mim. As pegadas que seguia tinham sido feitas há várias horas. Devia estar a regressar pelo caminho que tinha seguido; de outro
modo, estaria demasiado longe para que conseguisse cheirá-lo.
Os lobos novatos estavam todos com Bran, e o que me seguia estava sozinho: se houvesse mais do que um, teria ouvido alguma coisa. Portanto, não tinha de me preocupar com a
possibilidade de os lobos novatos me matarem por engano ao tomarem-me por um simples coiote.
Tão-pouco achava que era Charles quem me perseguia. Tinha dignidade suficiente para não me assustar de propósito. Samuel gostava de pregar partidas, mas o vento não mente,
e este dizia-me que ele estava algures à minha frente.
Tinha quase a certeza de que era Leah. Independentemente do que Carl pudesse ter insinuado, ela não seria capaz de me matar — não sabendo que Bran viria a descobrir —, mas
seria capaz de me magoar se tivesse possibilidade, pela simples razão de que não gostava de mim. Nenhuma das mulheres do bando de Bran gostava de mim.
O vento que transportava o odor de Samuel vinha sobretudo de oeste. As árvores desse lado eram jovens abetos, que provavelmente voltavam a crescer após um incêndio que devia
ter tido lugar cerca de uma década atrás. Os abetos estavam unidos num manto compacto que não me fazia abrandar o ritmo, mas um lobisomem era bem maior do que eu.
Cocei a orelha com a pata traseira e aproveitei o movimento para olhar atentamente para trás de mim. Não havia nada para ver, portanto o meu perseguidor estava a uma distância
que me permitia alcançar as árvores mais densas. Pousei a pata e segui disparada em direção às árvores.
A loba atrás de mim uivou a sua melodia de caça. O instinto apodera-se de um lobo quando este está a caçar. Se tivesse usado a cabeça, Leah jamais teria emitido um único som
— porque de imediato um coro de uivos respondeu-lhe. A maior parte dos lobos parecia estar cerca de quilómetro e meio mais para o interior das montanhas, mas Samuel respondeu
ao seu chamamento a não mais de noventa metros de mim. Por conseguinte, alterei o meu curso e percorri o bosque cerrado saindo do lado oposto, onde Samuel se encontrava.
Estacou ao ver-me — suponho que estivesse à espera de um veado ou de um alce, não de um coiote. Não de mim.
Samuel era grande, mesmo para um lobisomem. A sua pelagem era branca como a neve e os olhos pareciam ter quase a mesma tonalidade, um branco azulado glacial, mais frio do
que a neve através da qual corria, o que tornava o anel preto que lhe contornava a íris ainda mais inquietante. Havia espaço de sobra para que eu passasse por baixo da sua
barriga para o outro lado, deixando-o entre mim e a minha perseguidora.
Antes de ele ter oportunidade de fazer mais do que me lançar aquele primeiro olhar estupefacto, Leah apareceu, uma caçadora dourada e prateada, tão bonita quanto Samuel, mas
à sua maneira: luz e fogo contra gelo. Avistou Samuel e deslizou deselegantemente até parar. Suponho que tivesse estado tão envolvida na perseguição que não prestara atenção
ao chamamento de Samuel.
Consegui dar-me conta do momento em que ele percebeu quem eu era. Inclinou a cabeça e o seu corpo imobilizou-se. Não havia dúvidas de que me tinha reconhecido, todavia não
tinha a certeza do que ele teria sentido. Após o tempo de uma inalação profunda, virou-se para olhar para Leah.
Leah retraiu-se e rebolou sobre o dorso — embora como mulher de Bran devesse estar numa categoria superior à de Samuel. Pouco impressionado com o espetáculo, exibiu os colmilhos
e rosnou, um som intenso e ressoante que ecoou no meu peito. Senti-me exatamente como nos velhos tempos: Samuel a proteger-me do resto do bando.
Um lobo uivou, mais perto do que anteriormente, e Samuel parou de rosnar para responder. Olhou, expectante, para norte, e passados poucos minutos dois lobos apareceram no
campo de visão. O primeiro era cor de canela com quatro patas pretas. Era grande, inclusive maior do que Samuel.
O segundo lobisomem era consideravelmente mais pequeno. À distância passava facilmente por um dos lobisomens que só nesta década começaram a regressar a Montana. A sua pelagem
tinha todas as tonalidades entre o branco e o preto, que combinadas lhe davam a aparência de um lobisomem de cor cinza. Os seus olhos eram de um dourado pálido, e a ponta
da sua cauda era branca.
Charles, o lobo cor de canela, parou na orla do bosque e começou a transformar-se. Era uma raridade entre os lobisomens: um lobisomem de nascença. O único da sua espécie de
que tinha ouvido falar.
A mãe de Charles tinha sido uma mulher da tribo Salish, filha de um feiticeiro. Estava a morrer quando Bran deu com ela, pouco depois de ter chegado a Montana. Segundo a minha
mãe adotiva, que me contou a história, Bran tinha ficado tão encantado com a sua beleza que não podia pura e simplesmente deixá-la morrer, pelo que a Transformou e fê-la sua
companheira. Nunca consegui conceber a ideia de Bran ser dominado pelo amor à primeira vista, mas talvez há duzentos anos ele fosse diferente.
Em todo o caso, quando engravidou usou os conhecimentos de magia que o seu pai lhe tinha passado para não se transformar na Lua cheia. As mulheres-lobas não podem ter filhos:
a transformação é demasiado violenta para permitir que o feto sobreviva. Mas a mãe de Charles, sendo filha de quem era, dispunha da sua própria magia. Conseguiu levar a gravidez
até ao fim, mas estava tão debilitada em resultado dos esforços que fizera que morreu pouco tempo depois do seu nascimento. Deixou dois dons ao filho. O primeiro era a capacidade
de se transformar mais depressa e com maior facilidade. O segundo era um dom para a magia, que era invulgar nos lobisomens. O bando de Bran não tinha de contratar uma bruxa
para se desfazer dos vestígios; tinham Charles.
Bran, o mais pequeno dos dois lobos, continuou a mover-se em direção a mim. Samuel desviou-se relutantemente, embora tivesse o cuidado de se manter entre mim e Leah.
Bran não tinha qualquer sentimento de poder, não como o que os seus filhos e Adam ostentavam — não sei bem como conseguia contê-lo. Disseram-me que inclusive outros lobisomens,
cujos sentidos são mais apurados do que os meus, por vezes o confundem com um lobo verdadeiro ou com um híbrido entre lobo e cão por causa do seu tamanho.
Não sei que idade tem. Tudo o que sei é que era velho quando veio para este continente trabalhar como caçador de peles em finais do século dezoito. Tinha viajado para aquela
zona de Montana com o cartógrafo galês David Thompson e ali se instalou para viver com a sua companheira Salish.
Caminhou calmamente até mim e tocou-me atrás da orelha com o focinho. Embora não tivesse de me agachar submissamente para ficar abaixo dele, fi-lo de qualquer das formas.
Pôs as presas em volta do meu focinho e depois soltou-o, uma saudação de boas-vindas e uma repreensão suave num só gesto — embora não soubesse ao certo por que me estava a
repreender.
Assim que me soltou, passou por Samuel e olhou para baixo na direção da sua mulher, ainda deitada na neve. Ela gemeu ansiosamente e ele mostrou os dentes, insatisfeito. Parecia
que apesar de em tempos me ter pedido para ir embora, não aceitava que eu fosse vista como presa fácil.
Bran virou-lhe costas para se fixar em Charles, que tinha terminado a sua transformação e permanecia de pé, alto, na sua forma humana. Os traços de Charles eram tipicamente
salish, como se a única coisa que tivesse herdado do pai fosse a capacidade de se transformar.
Fora-me dito que os ameríndios eram tímidos em relação aos seus corpos. Isso certamente se aplicava a Charles. Tinha usado a sua magia para ficar vestido e trajava vestes
de pele de anta que pareciam vindas de outro século.
Eu, à semelhança da maior parte dos metamorfos, sentia-me quase tão confortável nua quanto vestida — exceto em meados de novembro, bem no alto das Montanhas Rochosas, com
um gélido vento canadiano a soprar de noroeste e a temperatura a começar a descer quando a neve por fim parava de cair. E assim que Charles começou a falar, percebi que teria
de regressar à forma humana para poder falar com ele.
— O meu pai dá-te as boas-vindas ao território do Marrok — disse Charles, com as inflexões mais ou menos uniformes, características do povo da sua mãe, e apenas um toque da
melodia cadenciada galesa que Bran já não usava, a menos que estivesse muito zangado. — Pergunta-se, no entanto, por que escolheste vir agora.
Assumi a forma humana, afastei neve de mim ao pontapé e depois ajoelhei-me para me manter mais baixa do que Bran. Sustive a respiração ao sentir o frio do vento e a neve debaixo
das minhas canelas. Samuel interpôs-se entre mim e o lado de onde vinha o vento mais forte. Ajudou, mas não o suficiente.
— Vim para tratar de assuntos do bando — informei-os.
Charles ergueu as sobrancelhas.
— Vens a cheirar a sangue e a morte. — Charles sempre tivera um bom faro.
Anuí com a cabeça.
— Trouxe o Alfa do Bando da Bacia do Columbia para aqui. Ele foi gravemente ferido. Também trouxe o corpo de outro lobo, na esperança de que alguém daqui me pudesse dizer
como é que morreu e quem o matou.
Bran produziu um som suave e Charles fez que sim com a cabeça.
— Diz-nos o que é preciso agora. Podes dar-nos os detalhes depois.
Portanto contei-lhes aquilo que sabia da forma mais sucinta possível, começando pela história de Mac, conforme ele ma tinha contado, e acabando com a morte de Mac, os ferimentos
de Adam e o rapto de Jesse. Quando terminei, tiritava e mal conseguia compreender o que dizia. Mesmo quando regressei à forma de coiote, não fui capaz de aquecer.
Bran lançou um olhar de viés a Samuel, que soltou um latido e desatou numa corrida veloz.
— O Bran vai acabar a caçada com os novatos — explicou-me Charles. — É a primeira caçada deles, e não deve ser interrompida. O Samuel vai regressar para olhar pelo Adam. Vai
por um caminho mais curto do que o usado para os carros, portanto chega antes de nós. Eu regresso contigo e encarrego-me do cadáver.
Assim que Charles pronunciou a última palavra, Bran seguiu disparado floresta adentro sem voltar a olhar para mim. Leah ergueu-se da sua pose submissa, rosnou-me — como se
tivesse sido culpa minha o facto de se ter metido em sarilhos — e foi atrás de Bran.
Charles, ainda na forma humana, dirigiu-se para os carros em passada larga. Em circunstâncias normais já não era uma pessoa particularmente loquaz, e comigo ainda sobre quatro
patas e muda, não se deu ao trabalho de pronunciar uma única palavra. Esperou educadamente, encostado à porta da carrinha, a do passageiro, enquanto eu me voltava a transformar
e vestia as minhas roupas.
Não fez qualquer objeção ao facto de eu conduzir, contrariamente ao que teria acontecido se fosse Samuel. Nunca tinha visto Charles conduzir um carro; preferia montar a cavalo
ou correr como lobo. Subiu para o lugar do passageiro e lançou um olhar de soslaio ao corpo coberto atrás de si. Sem fazer qualquer comentário, colocou o cinto de segurança.
Quando chegámos ao motel, estacionei em frente à porta da receção. Carl estava no interior, acompanhado de uma rapariga com os olhos raiados de sangue que devia ser a desaparecida
Marlie, embora nela não tenha reconhecido a criança de seis anos que conhecera.
— A Mercedes precisa de um quarto — disse-lhes Carl.
Carl não lhe fez qualquer pergunta, limitou-se a entregar-me uma chave.
— Fica do outro lado da rua, o mais distante do quarto número 1.
Olhei para baixo, na direção do número 18 estampado na chave.
— Vocês não sabem que não se deve pôr o número do quarto na chave? — perguntei.
— Não há muitos roubos por estas bandas — respondeu Carl, sorridente. — Além disso, eu sei que trabalhaste aqui durante uns anos. Excetuando o número 1, só há três fechaduras
diferentes para todos os quartos.
Sorri-lhe e atirei a chave ao ar para em seguida a apanhar.
— É verdade.
Charles abriu-me a porta quando saímos.
— Se quiseres levar a tua bagagem e dar-me as chaves do carro, eu trato do cadáver.
Devo ter-me mostrado surpreendida.
— Não te preocupes — disse-me secamente. — Eu peço ao Carl para guiar.
— Não tenho bagagem — informei-o. Saquei das chaves e dei-lhas, mas agarrei-o pela mão antes de ele seguir caminho. — O Mac era um bom homem — disse-lhe. Não sei porque disse
aquelas palavras.
Charles não tinha por hábito tocar em ninguém. Sempre pensei que sentia desprezo por mim, embora me tratasse com a mesma cortesia remota que dirigia a toda a gente. No entanto,
colocou a mão livre na minha nuca e encostou por instantes a minha testa ao seu ombro.
— Eu vou tratar dele — prometeu enquanto recuava.
— O nome completo dele era Alan MacKenzie Frazier.
Assentiu com a cabeça.
— Farei por que seja bem tratado.
— Obrigada — disse-lhe, dando meia-volta e encaminhando-me para o meu quarto antes que começasse a chorar outra vez.
13 Na Europa, este modelo é conhecido por Tipo 1, Tipo 2 ou Tipo 3, consoante o ano de fabrico. (N. do T.)
6
Sobre a mesinha de cabeceira estavam escrupulosamente empilhadas umas quantas revistas National Geographic e uma edição de bolso de um policial. Segundo me lembrava, o material
de leitura fora ali colocado originalmente para compensar a ausência de uma televisão. Na altura em que limpava quartos naquele lugar, não se conseguia apanhar sinal. Agora
havia uma antena parabólica por cima do motel e uma televisão pequena no interior, posicionada de modo a que pudesse ser vista tanto da cama como da mesinha na kitchenette.
Não estava interessada em ver reposições de coisas antigas ou telenovelas, portanto pus-me a folhear as revistas sem critério. Pareceram-me familiares. Talvez fosse a mesma
pilha que ali estava da última vez que tinha limpado aquele quarto: a mais recente datava de 1976, portanto era possível. Ou talvez se desse o caso de as pilhas aleatórias
de revistas National Geographic terem uma certa similitude, adquirida através de anos de presença em salas de espera.
Perguntei-me se Jesse estaria deitada numa cama de hospital algures. Na minha mente apareceu subitamente uma morgue, mas recuperei o controlo sobre ela. O pânico não serviria
de ajuda para ninguém. Estava a fazer tudo que estava ao meu alcance.
Peguei no único livro e sentei-me na cama. A capa não era particularmente atrativa, um desenho à pena de um celeiro ao estilo do Wisconsin, mas ainda assim abri-o e comecei
a ler. Fechei-o logo depois de ter lido a primeira frase. Não suportava estar para ali sentada, sozinha, sem fazer nada.
Saí do quarto. Fazia mais frio do que anteriormente, e a única coisa que tinha vestida era a minha t-shirt, pelo que segui para o número 1 a correr. Tinha a chave no bolso
das minhas calças de ganga, mas quando levei a mão à porta esta abriu-se.
Adam estava deitado na cama, sobre o flanco, com o focinho envolvido por uma correia eficaz. Samuel estava dobrado sobre ele, apenas em calças de ganga e luvas de plástico.
O facto de os meus olhos não se deterem nele por muito tempo era indicador da minha preocupação por Adam. Charles, encostado à parede, olhou-me de viés mas não disse nada.
— Fecha a porta — disparou Samuel sem olhar para cima. — Que diabo, Mercy, devias ter-lhe endireitado o osso antes de o enfiares no carro e conduzires o dia todo. Sabes melhor
do que ninguém como nos curamos depressa. Vou ter de voltar a partir-lhe a perna.
Samuel nunca me tinha gritado. Era o lobisomem menos volátil que jamais conhecera.
— Não sei endireitar ossos — repliquei, envolvendo o meu corpo com os braços. Mas ele tinha razão. Eu sabia que os lobisomens se curam com uma rapidez incrível. Simplesmente
não sabia o que isso significava no respeitante a ossos partidos. Nunca suspeitara que a sua perna estivesse partida. Tinha sido estúpida. Devia ter ligado a Darryl.
— Não é assim tão difícil endireitar uma perna — continuou Samuel quase sem pausar. — Basta puxar até que fique direita. — As suas mãos mostraram-se cuidadosas enquanto esticavam
a perna de Adam. — De certeza que tinha alguém no bando dele com formação médica. Se não tinhas estômago para fazer o trabalho, podias ter pedido ajuda. — Depois, dirigindo-se
a Adam, disse: — Prepara-te. — A partir da minha posição junto da porta não consegui ver o que fez, mas ouvi um osso estalar, e Adam moveu-se aos sacos e emitiu um ruído que
espero nunca mais ouvir.
— Tinha receio de que alguém do bando dele estivesse envolvido no ataque — sussurrei. — O Adam estava inconsciente. Não tinha como lhe fazer perguntas. E eles não têm ninguém
suficientemente forte para controlar o lobo de Adam.
Samuel olhou para trás, na minha direção, e depois praguejou.
— Se a única coisa que sabes fazer é choramingar, então põe-te a andar daqui.
Apesar do seu estado, Adam rosnou, girando a cabeça para olhar para Samuel.
— Peço desculpa — disse, e depois saí, fechando firmemente a porta atrás de mim.
Estava há vinte minutos de olhos fixos na primeira página do policial quando alguém bateu à porta. O meu faro disse-me que era Samuel, por isso não respondi imediatamente.
— Mercy? — A sua voz era branda, tal como eu a recordava, com uma ligeira pronúncia celta.
Se saísse de manhã cedo, podia conseguir um avanço na procura de Jesse, pensei, de olhos fitos na porta. Outra pessoa qualquer podia levar Adam de volta quando estivesse em
condições de viajar. Se saísse bastante cedo, podia inclusive evitar voltar a falar com Samuel.
— Mercy, eu sei que me estás a ouvir.
Mantive-me de olhos postos na porta, mas não disse nada. Não queria falar com ele. Ele tinha razão. Eu tinha sido incompetente — sujeitara Adam a uma viagem de seis horas
por causa de um simples comentário de Darryl, um comentário que começava a achar que não significava nada. É claro, como tinha dito anteriormente a Samuel, que o bando teria
de ter levado Adam a Montana ou pelo menos enviar um dominante até que Adam recuperasse o autocontrolo — e teriam tratado logo da sua perna partida. Se não tivesse sido tão
estúpida, Darryl e o bando podiam estar à procura de Jesse e Adam estaria a caminho da recuperação.
No meu mundo de motores e caixas de velocidades, habituara-me a ser competente. Se Adam fosse um carro, teria sabido o que fazer. Mas em Aspen Creek nunca fora suficientemente
boa — ao que parecia, algumas coisas não tinham mudado.
— Mercy, ouve, peço-te desculpa. Se não sabias pronto-socorros e não podias confiar no bando, fizeste tudo o que estava ao teu alcance.
O seu tom era suave e doce como melaço; porém a minha mãe em tempos dissera-me que era preciso confiar que a primeira coisa a sair da boca de uma pessoa correspondia à verdade.
Depois de ter oportunidade de pensar, a pessoa altera o que disse para ser mais socialmente aceitável, para se sentir melhor consigo mesma, para alcançar os resultados que
pretende. Eu sabia o que ele pretendia, o que sempre pretendera de mim, mesmo que Samuel, ele próprio — depois de ter estado a tratar dos ferimentos de Adam —, se tivesse
esquecido.
— O Adam deu-me uma desancada por ter sido tão duro contigo — disse num tom que adquiria qualidades de persuasão. — Teve razão em fazê-lo. Estava zangado porque não gosto
de magoar ninguém desnecessariamente, e descarreguei em ti. Posso entrar e falar contigo em vez de falar com a porta?
Esfreguei a cara cansadamente. Já não tinha dezasseis anos para fugir das situações difíceis, por muito atrativa que fosse essa opção. Também precisava de lhe dizer algumas
coisas, pensei relutantemente.
— Está bem — proferiu ele. — Está bem, Mercy. Vemo-nos amanhã.
Tinha dado meia-volta e já se estava a afastar quando abri a porta.
— Entra — disse, estremecendo quando o vento soprou através da minha t-shirt. — Mas é bom que te despaches. Está um frio de rachar aqui fora.
Regressou e bateu violentamente com os pés no tapete, deixando para trás pedaços de neve antes de entrar no meu quarto. Tirou o casaco e pousou-o na mesa perto da porta, e
vi que tinha arranjado uma t-shirt algures. Mantinham peças de roupa escondidas pela cidade no caso de alguém precisar de se vestir rapidamente; peças unissexo, sobretudo:
calças de ganga, t-shirts e camisolas. A t-shirt que envergava era um tanto pequena e colava-se a ele como uma segunda pele. Se tivesse uma banhinha a mais ou um pouco menos
de músculo, pareceria ridículo, todavia tinha a compleição de um dançarino do Chippendales14.
O seu corpo era maravilhoso, mas não sei se mais alguém o acharia bonito. Certamente não possuía os traços extraordinariamente belos de Adam. Os olhos de Sam eram cavos, o
seu nariz era demasiado comprido, a sua boca demasiado larga. A sua cor na forma humana era muito menos apelativa do que quando na forma lupina: olhos de um azul acinzentado
claro e cabelo castanho, com pequenos reflexos provocados pelo Sol.
Olhando para o seu rosto, não conseguia ser suficientemente objetiva para concluir quão atraente era: era simplesmente o Sam que tinha sido o meu amigo, o meu defensor e o
querido do meu coração.
Desviei os olhos da cara dele, baixando a cabeça para que não conseguisse ler a minha raiva — e qualquer outra emoção que me estivesse a ocupar — até que a tivesse sob controlo.
Se lesse a coisa errada em mim, a culpa não era minha. Não o tinha deixado entrar para discutir com ele.
— Achei que não ias falar comigo — disse ele, com um vestígio do seu habitual sorriso afetuoso na voz.
— Eu também — concordei severamente, de olhos cravados nos meus sapatos. Se o olhasse nos olhos não seria capaz de prosseguir com aquilo. — Mas também te devo um pedido de
desculpas.
— Não. — O seu tom denotava prudência. Aparentemente, era demasiado inteligente para acreditar no meu olhar submisso. — Não tens nada por que pedir desculpa. Não devia ter
falado contigo de forma tão brusca há bocado.
— Tudo bem — disse. — Provavelmente tinhas razão. Encontrei o Mac morto e o Adam quase no mesmo estado… e entrei em pânico. — Caminhei em direção à cama e sentei-me nela,
porque era o mais longe que conseguia ficar dele no quarto do motel. Só depois ousei olhar para ele novamente. — Eu é que te devo um pedido de desculpas há muito tempo. Devia
ter falado contigo antes de me ter ido embora. Devia ter-te contado que tinha decidido ir para Portland. — Mas tinha medo de poder vir a fazer alguma coisa estúpida como dar-te
um tiro ou, pior ainda, chorar. Mas essa parte ele não precisava de saber.
O bom humor que normalmente se lhe via na cara esfumou-se, deixando no seu lugar uma prudência vaga, como se estivesse à espera de uma armadilha.
— O meu pai disse-me que tinha falado contigo e te tinha convencido a ires para a casa da tua mãe em vez de fugires comigo — disse.
— Quanto tempo é que esperaste por mim? — Depois de Bran nos ter apanhado no bosque aos beijos e abraços e dizer que me ia mandar para Portland, Samuel decidira que em vez
disso me ia levar consigo para longe dali. O combinado era eu sair à socapa e encontrar-me com ele no bosque a cerca de quilómetro e meio da minha casa. Mas o Marrok descobriu,
como era seu apanágio. Contou-me a razão pela qual Samuel me queria levar como sua companheira; uma razão que jamais poderia ter aceitado.
De modo que naquela manhã, enquanto Samuel esperava por mim, Charles levou-me de carro até Libby, onde apanharia o comboio para Portland.
Samuel desviou o olhar de mim sem responder.
À sua maneira, Samuel era a pessoa mais honrada que alguma vez tinha conhecido — o que fazia com que o facto de o ter traído doesse ainda mais, porque eu sabia que nunca fora
intenção sua fazer-me acreditar que me amava. Tinha-me dito que esperaria por mim, e fiquei a saber que tinha continuado à minha espera por muito tempo, mesmo depois de ter
percebido que eu não iria aparecer.
— Era o que eu pensava — disse em voz baixa. Merda, ele já não devia afetar-me desta maneira. Dei-me conta de que estava a respirar fundo mais vezes do que era normal em mim,
apenas para inalar o seu cheiro.
— Devia ter-te dito que tinha mudado de ideias — confessei-lhe, como que agarrando com as unhas aquilo que precisava de lhe dizer. — Desculpa por te ter abandonado sem ter
dito nada. Não foi nem correto nem justo.
— O meu pai disse-te para ires embora sem voltares a falar comigo — replicou Samuel. O seu tom parecia indiferente, mas tinha-me virado as costas e estava de olhos fixos numa
mancha de humidade no tapete ao pé das suas botas.
— Não pertenço ao bando dele — disparei. — Isso sempre me foi dado a entender de forma muito clara. E nesse caso isso significa que não tinha de obedecer ao Bran. Não devia
ter obedecido, e eu sabia disso na altura. Desculpa. Não por me ter ido embora, essa foi a decisão certa, mas devia ter-te dito o que ia fazer. Fui uma cobarde.
— O meu pai contou-me o que te disse. — Começou a falar num tom razoavelmente calmo, porém, ao continuar, um toque de ira insinuou-se nas suas palavras. — Mas já devias saber
disso tudo. Eu não escondi nada.
Nem a voz nem a postura indicavam que estivesse na defensiva; de facto não compreendia o que me tinha feito — por muito estúpido que isso o tornasse aos meus olhos. Ainda
assim era de certo modo bom saber que a dor que me tinha causado não fora intencional.
Virou-se, os seus olhos encontraram-se com os meus, e senti o assomo que outrora fora tão familiar quanto ao seu rosto. Parte disso devia-se à atração; mas parte resultava
do poder de um lobo dominante. A atração fez com que me levantasse e atravessasse metade do compartimento até finalmente me aperceber do que estava a fazer.
— Olha, Samuel — disse, parando abruptamente antes de tocá-lo. — Estou cansada. Foi um dia duro. Não quero discutir contigo por coisas que já se passaram há muito.
— Está bem. — O seu tom era suave e anuiu tenuemente com a cabeça. — Podemos continuar a falar amanhã.
Voltou a vestir o casaco, avançou para a porta e depois virou-se para trás.
— Já me ia esquecendo, o Charles e o Carl levaram o corpo…
— O Mac — cortei bruscamente.
— O Mac — disse, amaciando o tom de voz. Desejei que não tivesse feito aquilo, porque a sua compaixão trouxe-me lágrimas aos olhos. — Levaram o Mac para a nossa clínica e
trouxeram a tua carrinha. O Charles deu-me as chaves. Ele ter-tas-ia devolvido, mas foste-te embora tão depressa… Eu disse-lhe que vinha aqui pedir-te desculpa, por isso deu-mas.
— Ele trancou a carrinha? — perguntei. — Tenho lá duas armas, carregadas para lobisomens… — A menção às armas fez-me lembrar uma outra coisa, uma coisa estranha. — Ah, e também
lá está uma espécie de dardo tranquilizante que encontrei ao pé do Adam quando o acudi.
— A carrinha está trancada — disse. — O Charles encontrou o dardo e deixou-o no laboratório porque disse que cheirava a prata e ao Adam. Agora que sei onde o encontraste,
vou certificar-me de que o analisam cuidadosamente.
— O Mac disse que alguém o estava a usar para fazer experiências — contei-lhe. — Que tinham descoberto umas drogas que faziam efeito nos lobisomens.
Samuel fez que sim com a cabeça.
— Lembro-me de tu nos contares isso.
Estendeu as minhas chaves e, com todo o cuidado para não o tocar na mão, peguei nelas. Sorriu como se eu tivesse feito algo interessante e apercebi-me de que não deveria ter
sido tão cuidadosa. Se não tinha sentido nada por ele, tocar-lhe a mão não me teria incomodado. Ao viver no seio de humanos normais, tinha-me esquecido de quão difícil era
esconder alguma coisa dos lobisomens.
— Boa noite, Mercy — disse.
Depois foi-se embora e o quarto pareceu mais vazio com a sua partida. É mesmo melhor eu ir de manhã, pensei enquanto ouvia a neve guinchar debaixo dos seus pés à medida que
se afastava.
Estava concentrada a ler a página catorze pela terceira vez quando outra pessoa bateu à porta.
— Trouxe jantar — pronunciou uma agradável voz de tenor.
Pousei o livro e abri a porta.
Um rapaz de cabelo loiro com uma cara indefinível segurava uma bandeja de plástico com duas sandes submarine15 embrulhadas em papel aderente, um par de copos de poliestireno
com chocolate quente e um casaco de inverno azul-escuro. Talvez fosse da comida, mas ocorreu-me que se Bran se aproximava tanto do cliché de um moço de recados, provavelmente
seria de propósito. Ele gostava de ser discreto.
Sorriu brevemente por eu não me ter desviado logo da porta.
— O Charles disse-me que o Adam vai ficar bem. Quanto ao Samuel, fez figura de parvo.
— O Samuel pediu desculpa — disse-lhe, recuando e deixando entrar no quarto.
A kitchenette tinha um fogão com duas bocas, um frigorífico minúsculo e uma mesinha revestida a fórmica, com duas cadeiras. Depois de atirar o casaco para a cama, Bran pousou
a bandeja na mesa e colocou uma sandes e um copo de cada lado.
— O Charles disse-me que não tinhas casaco, por isso trouxe um. Também achei que talvez quisesses comer alguma coisa — disse. — Depois podemos discutir o que vamos fazer em
relação ao teu Alfa e à sua filha desaparecida.
Sentou-se a um lado e gesticulou para que eu ocupasse o outro lugar à mesa. Sentei-me e dei-me conta de que não tinha comido nada o dia todo, não tinha sentido fome. E continuava
a não sentir.
Fiel à sua palavra, não disse nada enquanto comia e eu debicava. A sandes sabia a frigorífico, mas o chocolate quente era rico em alteia e baunilha verdadeira.
Comeu mais depressa do que eu, mas esperou pacientemente até que eu terminasse. A sandes era uma daquelas submarines gigantes, feitas para alimentar uma pessoa durante uma
semana. Comi parte dela e embrulhei o resto no papel aderente. Bran tinha comido a sandes toda, mas os lobisomens precisam muito de comida.
A minha mãe adotiva costumava dizer «Nunca deixes um lobo passar fome senão ele pode convidar-te para almoçar.» A seguir a isso, dava sempre palmadinhas na cabeça do marido,
mesmo se ele estivesse na forma humana.
Não sei por que me veio esse pensamento naquele momento, ou por que é que o pensamento tentou levar-me lágrimas aos olhos. Os meus pais adotivos estavam mortos havia quase
dezassete anos. Ela morreu a tentar transformar-se numa mulher-loba porque, segundo me contara, envelhecia a cada ano e ele não. Há muito menos mulheres que experimentam o
apelo da Lua, pela simples razão de que não superam a Transformação tão bem como os homens. O meu pai adotivo morreu de dor um mês depois. Eu tinha catorze anos.
Sorvi um trago de chocolate quente e esperei que Bran falasse.
Suspirou profundamente e reclinou-se na cadeira, balançando-a sobre duas pernas, com as suas próprias pernas a baloiçar suspensas no ar.
— As pessoas não fazem isso — disse-lhe.
Ergueu uma sobrancelha.
— Isso, o quê?
— Balançar assim. A menos que sejam adolescentes a exibirem-se para as namoradas.
Pousou as quatro pernas no chão abruptamente.
— Obrigado. — Bran gostava de parecer o mais humano possível, mas o seu agradecimento soou um pouco agudo. Dei um gole rápido de chocolate quente para que não se apercebesse
do meu divertimento.
Colocou os cotovelos sobre a mesa e entrelaçou os dedos.
— Quais são as tuas intenções agora, Mercy?
— Como assim?
— O Adam está a salvo e a curar-se. Vamos descobrir como é que o teu jovem amigo foi morto. O que é que tu planeias fazer?
Bran é assustador. Tem algumas características de médium — pelo menos é o que diz se alguém lhe perguntar. O que isso significa é que é capaz de falar com qualquer lobisomem
que conheça usando apenas a mente. Por esse motivo é que Charles foi o seu porta-voz no bosque. Bran usa essa capacidade, entre outras, para controlar os bandos norte-americanos.
Afirma que é unidirecional, que consegue fazer com que as pessoas o ouçam mas não o contrário.
Os murmuradores do bando dizem que ele também tem outras capacidades, mas ninguém sabe ao certo quais são. O rumor mais comum é que ele é mesmo capaz de ler mentes. O facto
é que sempre descobrira os responsáveis pelos males na cidade.
A minha mãe adotiva ria-se sempre e dizia que era a sua reputação de saber tudo que lhe permitia parecer infalível: tudo o que precisava de fazer era atravessar o compartimento
e ver quem parecia mais culpado. Talvez ela tivesse razão, mas tentei parecer inocente na circunstância seguinte, e não funcionou.
— Vou-me embora de manhã. — Cedo, pensei. Para me ir embora sem voltar a falar com o Samuel, mas também para começar a procurar a Jesse.
Bran abanou a cabeça e franziu o cenho.
— De tarde.
Senti a minha sobrancelha erguer-se.
— Bem — disse brandamente —, se sabias o que eu ia fazer, por que é simplesmente não mo disseste em vez de perguntar?
Sorriu brevemente.
— Se esperares até à tarde, o Adam estará preparado para viajar e o Samuel deverá saber alguma coisa sobre como o teu jovem… o Alan MacKenzie Frazier morreu. Ele vai passar
a noite acordado para executar a autópsia e fazer testes no laboratório.
Inclinou-se para a frente.
— Não tens culpa, Mercy.
Entornei o chocolate quente na t-shirt.
— Mer… — Mordi a língua. Bran não aprovava palavrões. — Tu consegues mesmo ler mentes.
— Eu sei como é que a tua mente funciona — disse Bran, com um ligeiro sorriso que conseguiu não parecer muito presunçoso. Com grande rapidez, foi buscar um rolo de papel de
cozinha guardado debaixo da pia e entregou-mo enquanto eu afastava a t-shirt do meu corpo. O chocolate ainda estava quente, mas não a escaldar.
Enquanto eu me limpava junto da pia, ele continuou:
— A menos que tenhas mudado mais do que eu imagino, sempre que acontece alguma coisa, sempre que alguém se magoa, achas que a culpa é tua. O Adam contou-me tudo o que sabe
e não tiveste nenhum tipo de responsabilidade.
— Ah, consegues mesmo ler mentes. Ele está na forma de lobo, e não consegue falar — disse. Tinha feito o melhor que conseguia em relação à t-shirt, mas quem me dera ter uma
muda de roupa.
Bran sorriu.
— Já não está. Às vezes a transformação ajuda-nos a sarar mais depressa. Normalmente fazemos a transformação de humano para lobo, mas o inverso também funciona. Ele não estava
satisfeito com o Samuel. — O sorriso de Bran intensificou-se. — Gastou as primeiras palavras a desancá-lo. Eu disse-lhe que criticar o médico era um erro de amador e ele respondeu
que preferia não ter alguém que não sabia o que estava a fazer a «experimentar coisas» com os seus ferimentos. Também disse que, por vezes, tu tinhas mais coragem do que bom
senso. — Bran apontou para mim com o seu copo. — Por acaso concordo, e por esse motivo pedi ao Adam que te mantivesse debaixo de olho quando te mudaste para o território dele.
Ah, pensei, tentando não mostrar quão devastada me sentia. Então Adam estava encarregado de olhar por mim? Sempre pensei que a nossa estranha relação se baseava noutra coisa
qualquer. Saber que Bran lhe tinha dito para me manter debaixo de olho alterou o matiz de todas as conversas que tínhamos tido, subtraiu-lhes importância.
— Não gosto de mentiras — disse Bran, e eu sabia que tinha sido incapaz de dissimular no meu rosto a dor causada pela sua revelação. — Nem sequer de mentiras por omissão.
É possível lidar com as verdades duras, superá-las, mas as mentiras destroem a alma. — Falava como se com conhecimento de causa. — Essa aversão leva-me a meter-me num assunto
do qual talvez me devesse manter afastado.
Pausou, como se para me deixar falar, mas eu não fazia a menor ideia de onde pretendia chegar com aquilo.
Sentou-se e sorveu mais um trago de chocolate quente.
— Houve quem achasse que a verdade acerca da morte do Bryan devia ser escondida de ti. — Bryan fora o meu pai adotivo.
À memória veio-me o episódio de, pouco depois do Natal, ter acordado com a voz sóbria de Bran vinda da cozinha. Quando saí do quarto, Bran contou-me que a polícia tinha encontrado
o corpo de Bryan no Rio Kootenai.
O suicídio é difícil para os lobisomens. Nem as balas de prata são cem por cento eficazes a derrotar a capacidade que o lobo tem de se curar. A decapitação é eficaz, mas bastante
difícil de executar numa situação suicida. O afogamento funciona muito bem. Os lobisomens são muito densamente musculados; tendem a sentir dificuldades em nadar mesmo que
queiram, uma vez que, à semelhança dos chimpanzés, têm demasiado músculo e gordura insuficiente para flutuarem.
— Alguns elementos do bando pretendiam dizer-te que o Bryan tinha tido um acidente. — A voz de Bran era meditativa. — Disseram-me que catorze anos era uma idade muito tenra
para se lidar com um suicídio, especialmente depois da morte da companheira do Bryan.
— O nome dela era Evelyn — disse-lhe. Bran tinha tendência a lidar com os humanos à sua volta como se eles não existissem. Em tempos, Samuel dissera-me que isso tinha que
ver com o facto de os humanos serem tão frágeis e Bran ter assistido à morte de muitos. Pensei que se eu tinha sido capaz de lidar com a morte de Evelyn quando tinha catorze
anos, Bran também seria.
Lançou-me um olhar reprimido. Ao ver que eu não olhei para baixo conforme exigia o protocolo, torceu os lábios e tapou-os em seguida com o copo.
— Evelyn, de facto — devolveu, suspirar a seguir. — Quando optaste por viver sozinha, em vez de ires para junto da tua mãe, também concordei com isso. Tinhas-me dado provas
das tuas capacidades; entendi que tinhas merecido o direito de fazeres as tuas próprias opções. — Os seus olhos deambularam pelo quarto. — Lembras-te da última vez que tu
e eu falámos?
Fiz que sim com a cabeça e sentei-me por fim. Mesmo que naquela noite não estivesse a insistir no protocolo, sentia-me esquisita permanecendo de pé enquanto ele estava sentado
na cadeira.
— Tinhas dezasseis anos — disse. — Nova de mais para ele; e nova de mais para perceberes o que ele queria de ti.
Quando Bran tinha apanhado Samuel a beijar-me no bosque, mandara-me para casa e na manhã seguinte fora ter comigo para me dizer que já tinha falado com a minha mãe verdadeira
e que ela esperava a minha chegada no final da semana. Estava a mandar-me embora e tinha de fazer as malas.
Tinha feito as malas pois, mas não para ir para Portland; tinha feito as malas para partir com Samuel. Íamo-nos casar, dissera ele. Nunca me tinha ocorrido que aos dezasseis
anos teria problemas em casar sem permissão parental. Sem dúvida que Samuel também teria uma resposta para isso. Tínhamos planeado mudarmo-nos para uma cidade e viver fora
de qualquer bando.
Eu amava Samuel, amara-o desde que o meu pai adotivo morrera e Samuel tinha assumido o seu papel como meu protetor. Bryan tinha sido um querido, mas Samuel mostrou-se um defensor
muito mais eficiente. Até as mulheres deixaram de se meter tanto comigo a partir da altura em que Samuel e eu nos aproximámos. Era divertido e encantador. A descontração não
é um dom muito comum aos lobisomens, mas Samuel tinha-a em abundância. Debaixo da sua asa, aprendi a alegria — uma emoção muito sedutora.
— Disseste-me que o Samuel não me amava — disse a Bran, com a boca a saber-me a serradura. Não sei como descobrira o que Samuel tinha planeado. — Disseste-me que ele precisava
de uma companheira que pudesse ter filhos com ele.
Em mais de metade dos casos, as mulheres humanas perdem os bebés fecundados por um parceiro lobisomem. A gravidez só chega ao fim quando os bebés são completamente humanos.
As mulheres-lobas abortam na primeira Lua cheia. No entanto, coiotes e lobos podem cruzar-se com resultados viáveis; portanto, por que não Samuel e eu? Samuel acreditava que
alguns dos nossos filhos seriam humanos, alguns seriam porventura caminhantes como eu e alguns nasceriam lobisomens — mas todos eles viveriam.
Só quando Bran me explicou tudo é que compreendi a hostilidade que Leah tinha para comigo, uma hostilidade que todas as outras fêmeas tinham adotado.
— Não te devia ter contado as coisas daquela forma — desabafou Bran.
— Estás a tentar pedir desculpa? — perguntei. Não conseguia entender o que Bran estava a tentar dizer. — Eu tinha dezasseis anos. O Samuel pode parecer novo, mas já era adulto
quando o conheci. Portanto, tem que idade? Cinquenta? Sessenta?
Quando estava apaixonada por ele isso não me tinha preocupado. Nunca tinha agido como se fosse mais velho do que eu. Os lobisomens não tinham por hábito falar do passado,
não como os humanos. A maior parte das coisas que sabia acerca de história de Bran tinha-me sido contada pela minha mãe adotiva, Evelyn.
— Era estúpida e nova — afirmei. — Precisava de ouvir o que me disseste. Portanto, se estás à procura de perdão, não precisas dele. Obrigada.
Levantou a cabeça. Na forma humana, os seus olhos eram cor de avelã, como uma folha de carvalho iluminada pelo Sol.
— Não estou a pedir desculpa — replicou. — Não a ti. Estou a explicar. — Depois sorriu, e a semelhança física com Samuel, normalmente vaga, tornou-se subitamente notória.
— E o Samuel tem um bocadinho mais do que sessenta anos. — O divertimento, tal como a fúria, por vezes colocava na voz de Bran um vestígio do seu velho país, Gales. — O Samuel
é o meu primogénito.
Fixei-me nele, apanhada de surpresa. Samuel não tinha nenhum dos traços dos lobos mais velhos. Andava de carro, tinha uma aparelhagem de som e um computador. Na verdade gostava
das pessoas — inclusive dos humanos — e Bran usava-o para interagir com a polícia e os oficiais do governo quando era necessário.
— O Charles nasceu alguns anos depois de teres vindo para aqui com o David Thompson — disse a Bran, como se ele não soubesse. — Isso foi em… 1812? — Motivada pela sua associação
a Bran, lera muitas coisas acerca de David Thompson na universidade. O cartógrafo e negociante de peles galês escrevera diários, mas fizera menção ao nome Bran. Quando os
li, perguntei-me se Bran usaria outro nome, ou se Thompson soubera da verdadeira natureza de Bran e o excluíra dos seus diários — que foram guardados mais como registo para
as suas entidades patronais do que propriamente como reminiscência pessoal.
— Vim com o Thompson em 1809 — indicou Bran. — O Charles nasceu na primavera de 1813, acho. Por essa altura tinha deixado Thompson e a Companhia do Noroeste para trás, e os
salish não se regiam pelo tempo definido pelo calendário cristão. O Samuel nasceu da minha primeira mulher, quando ainda era humano.
Nunca o tinha ouvido falar tanto do passado.
— Quando é que isso foi? — perguntei, encorajada pela sua inusitada abertura.
— Há muito tempo. — Rejeitou o assunto com um encolher de ombros. — Quando falei contigo naquela noite, fiz um desfavor ao meu filho. Cheguei à conclusão de que talvez estivesse
demasiado obcecado com a verdade quando, na realidade, não ta disse por inteiro.
— Oh?
— Disse-te o que sabia, o que entendi ser necessário na altura — disse. — Mas à luz dos acontecimentos subsequentes, subestimei o meu filho e levei-te a fazer o mesmo.
Detestava quando ele optava por ser pouco claro. Comecei a protestar de forma veemente — e depois percebi que tinha os olhos desviados de mim, apontados para baixo. Habituara-me
a viver no seio de humanos, cuja linguagem corporal é menos importante para a comunicação, por isso quase deixara escapar aquele seu gesto. Os Alfa — especialmente aquele
Alfa — nunca desviavam o olhar quando alguém os observava. O facto de o ter feito naquele momento era um sinal de quão mal se sentia.
Portanto, mantive a voz calma e disse simplesmente:
— Diz-me agora.
— O Samuel é velho — começou. — Quase tão velho como eu. A primeira mulher dele morreu de cólera, a segunda de velhice. A terceira morreu no trabalho de parto. No total, as
mulheres dele perderam dezoito filhos; uns quantos morreram na primeira infância, e apenas oito viveram até ao terceiro aniversário. Um morreu de velhice, quatro por causa
da peste, três por não terem resistido à Transformação. Não tem nenhum filho vivo e apenas um, nascido antes da Transformação do Samuel, chegou à idade adulta.
Fez uma pausa e ergueu os olhos na direção dos meus.
— Isto talvez te dê uma ideia do quanto era importante para ele encontrar em ti uma companheira que lhe desse filhos menos vulneráveis aos caprichos do destino, filhos que
pudessem nascer lobisomens como o Charles. Tive muito tempo para pensar sobre a nossa conversa e cheguei à conclusão de que também te devia ter contado isto. Não és a única
que confundiu o Samuel por um lobo jovem. — Sorriu-me brevemente. — Nos dias em que o Samuel era humano, não era incomum uma rapariga de dezasseis anos casar com um homem
muito mais velho do que ela. Por vezes o mundo muda as suas ideias sobre o que é certo e o que é errado de uma forma tão rápida que nós não conseguimos acompanhar.
Ter sabido da extensão da necessidade de Samuel teria mudado o que sentia? Uma adolescente apaixonada e carente de amor confrontada com a frieza dos factos? Teria visto, para
lá dos números, a dor que cada uma dessas mortes tinha provocado?
Não me parece que teria alterado a minha decisão. Sabia disso porque, ainda assim, não teria casado com alguém que não me amasse; mas penso que teria alimentado pensamentos
mais positivos em relação a ele. Ter-lhe-ia deixado uma carta ou ter-lhe-ia telefonado depois de ter chegado a casa da minha mãe. Talvez tivesse inclusive reunido coragem
para falar com ele se não estivesse tão magoada e zangada.
Recusei-me a examinar de que modo é que as palavras de Bran tinham alterado os meus sentimentos em relação a Samuel no tempo presente. De qualquer forma, não tinha importância.
No dia seguinte ia para casa.
— Também havia algumas coisas que eu não sabia. — Bran sorriu, mas não foi um sorriso feliz. — Sabes, às vezes acredito no que me dizem. Esqueço-me de que não sei tudo. Dois
meses depois de teres desaparecido, o Samuel desapareceu.
— Estava zangado por teres interferido?
Bran abanou a cabeça.
— A princípio, talvez. Mas discutimos o assunto a fundo no dia em que te foste embora. Teria ficado mais zangado se não se sentisse culpado por ter tirado proveito da necessidade
de uma criança. — Esticou o braço e deu palmadinhas na minha mão. — Ele sabia o que estava a fazer, e sabia o que tu terias sentido em relação a isso, diga o que disser a
ele próprio ou a ti. Não o vejas como uma vítima.
Sem problema nenhum.
— Não vejo. Então se não estava zangado contigo, por que é que se foi embora?
— Eu sei que compreendes grande parte daquilo que somos porque foste criada entre nós — disse Bran lentamente. — Mas por vezes até eu sou incapaz de ver as implicações maiores.
O Samuel viu em ti a resposta para a sua dor e não a resposta para o seu coração. Mas o que Samuel sentia por ti não se resumia a isso… Creio que nem ele próprio tinha noção
disso.
— O que queres dizer com isso?
— Quando te ausentaste, definhou — explicou Bran numa linguagem antiquada que soava estranha na boca do jovem que aparentava ser. — Perdeu peso, não conseguia dormir. Durante
o primeiro mês, passou a maior parte do tempo como lobo.
— O que é que achas que se passava de errado com ele? — perguntei cuidadosamente.
— Estava a sofrer pela perda da sua companheira — respondeu Bran. — Em certos aspetos, os lobisomens não são assim tão diferentes dos seus primos selvagens. Levei demasiado
tempo a perceber, contudo. Antes que isso acontecesse, deixou-nos sem dizer uma única palavra. Durante dois anos, esperei que os jornais noticiassem a descoberta do seu corpo
no rio, como tinha acontecido ao Bryan. O Charles localizou o Samuel quando este finalmente começou a usar o dinheiro da sua conta bancária. Tinha comprado alguns documentos
e regressado à universidade. — Samuel já tinha frequentado a universidade pelo menos uma vez, que eu tivesse conhecimento, para tirar medicina. — Tornou-se novamente médico,
abriu uma clínica no Texas durante uns tempos e depois regressou para junto de nós, há coisa de dois anos.
— Ele não me amava — disse. — Não da maneira que um homem ama uma mulher.
— Não — concordou Bran. — Mas tinha-te escolhido para sua companheira. — Levantou-se abruptamente e vestiu o casaco. — Não te preocupes com isso agora. Apenas achei que devias
saber. Vê se dormes.
14 Companhia itinerante de dança erótica masculina, originalmente criada em Los Angeles. (N. do T.)
15 Sandes com várias carnes, queijos, vegetais, temperos e molhos. (N. do T.)
7
Na manhã seguinte, aventurei-me até à bomba de gasolina enfiada no meu casaco emprestado e comprei um burrito para o pequeno-almoço. Estava picante, mais do que saboroso,
mas a minha fome era tanta que era capaz de comer qualquer coisa.
O rapaz atrás da caixa parecia ter vontade de fazer perguntas, mas intimidei-o com o meu olhar. As pessoas daquelas bandas sabiam que não era boa ideia entrarem em competições
de olhares. Eu não era um lobi-qualquer coisa, mas ele não sabia disso porque também não o era. Não foi simpático da minha parte intimidá-lo, mas não me estava a sentir muito
simpática.
Precisava de fazer alguma coisa, qualquer coisa, e estava ali presa à espera toda a manhã. Esperar significava preocupar-me com o que Jesse estaria a sofrer nas mãos dos seus
captores e pensar em Mac e perguntar-me o que poderia ter feito para impedir a sua morte. Significava reviver a velha humilhação de ter Bran a dizer-me que o homem que eu
amava me estava a usar. Queria sair de Aspen Creek, onde as memórias de ter dezasseis anos e estar sozinha tentavam agarrar-se a mim por mais que eu as afugentasse; mas a
obediência a Bran estava demasiado arraigada — sobretudo quando as suas ordens faziam sentido. No entanto, não tinha de ser simpática.
Tinha começado a caminhar de regresso ao motel, com as minhas exalações a levantarem nevoeiro e a neve a estalar debaixo dos meus sapatos, quando alguém gritou o meu nome.
— Mercy!
Olhei para o outro lado da estrada, onde um camião verde tinha encostado à berma — porque o condutor me vira, evidentemente, todavia não me pareceu que o conhecesse. O intenso
Sol matutino a brilhar na neve tornava mais difícil a tarefa de distinguir pormenores, pelo que fiz da mão pala e me virei na direção dele para ver melhor.
Assim que mudei de direção, o condutor desligou o motor, pulou para fora e atravessou a estrada a correr.
— Acabei de saber que estavas aqui — disse ele. — Pensei que hoje de manhã já estarias bem longe, de outro modo teria passado por cá antes.
A voz era-me definitivamente familiar, mas não condizia com o cabelo ruivo encaracolado e a cara sem rugas. Pareceu intrigado por momentos, magoado até, por não o ter reconhecido
imediatamente. Depois soltou uma gargalhada e abanou a cabeça.
— Esqueci-me, embora de cada vez que olhe para um espelho ainda sinta que estou a olhar para um estranho.
Os olhos, azul-claros e afáveis, condiziam com a voz, mas foi o seu riso que finalmente me fez perceber.
— Dr. Wallace? — perguntei. — É mesmo você?
Enfiou as mãos nos bolsos, inclinou a cabeça e exibiu um sorriso rasgado.
— Nem mais, Mercedes Thompson, nem mais.
Carter Wallace era o veterinário de Aspen Creek. Não, não costumava tratar dos lobisomens, mas havia cães, gatos e gado em número suficiente para mantê-lo ocupado. A sua casa
era a mais próxima daquela onde eu crescera, e ele tinha-me ajudado a ultrapassar aqueles primeiros meses que se seguiram à morte dos meus pais adotivos.
O Dr. Wallace que eu tinha conhecido ao crescer estava na meia-idade e a ficar calvo, com uma pança que lhe tapava a fivela do cinto. O seu rosto e as suas mãos tinham-se
estragado dos anos de exposição ao Sol. O homem que naquele momento via à minha frente era esguio e franzino; a sua pele era pálida e perfeita como a de um rapaz de vinte
anos — mas a maior diferença não estava na sua aparência.
O Carter Wallace que eu conhecera era dócil e lento de movimentos. Tinha-o visto a persuadir uma doninha fedorenta a sair do meio de uma pilha de pneus sem que expelisse o
seu cheiro; também o tinha visto a aquietar um cavalo assustado com a voz enquanto retirava o arame farpado no qual se vira enredado. Transmitia uma sensação de paz, solidez
e verdade, como um carvalho.
Mas já não era assim. Os seus olhos continuavam brilhantes e generosos, mas também havia algo de predatório no modo como me olhava. A promessa de violência colava-se a ele
até eu quase sentir o cheiro a sangue.
— Há quanto tempo é lobo? — perguntei.
— Fez um ano o mês passado — respondeu. — Eu sei, eu sei, eu jurei que nunca o iria fazer. Sabia de mais sobre os lobos e ao mesmo tempo não sabia o suficiente. Mas tive de
me reformar há dois anos porque as minhas mãos tinham deixado de funcionar direito. — Olhou para baixo, um tanto ansiosamente, na direção das suas mãos e relaxou um pouco
ao mostrar-me como conseguia mexer facilmente todos os dedos. — Eu tinha aceitado essa realidade. Se há coisa a que um veterinário se acostuma, especialmente por estas bandas,
é ao envelhecimento e à morte. O Gerry voltou a insistir comigo, mas eu sou teimoso. Era preciso mais do que uma artritezinha e do que o Gerry para que mudasse de ideias.
— Gerry era o seu filho e um lobisomem.
— O que se passou? — perguntei.
— Cancro dos ossos. — O Dr. Wallace abanou a cabeça. — Estava em fase demasiado avançada, disseram eles. Meses numa cama com a esperança de morrer antes que a morfina deixasse
de fazer efeito para as dores. Toda a gente tem o seu preço, e aquilo estava para lá do que eu conseguia aguentar. Por isso pedi ao Bran.
— A maior parte das pessoas não sobrevive à Transformação se já estiver muito doente — disse-lhe.
— O Bran diz que eu sou teimoso de mais para morrer. — Voltou a exibir um sorriso rasgado, e a expressão começava a incomodar-me porque possuía uma aspereza que o Dr. Wallace,
o meu Dr. Wallace, nunca tivera. Tinha-me esquecido de quão estranho era conhecer alguém dos dois lados da Transformação, tinha-me esquecido de como o lobo altera a personalidade
humana. Especialmente quando o humano não tinha o controlo.
— Pensei que por esta altura estaria novamente a exercer — disse o Dr. Wallace. — Mas o Bran diz que ainda não. — Agitou-se um bocado e fechou os olhos como se conseguisse
ver algo que eu não conseguia. — É o cheiro a sangue e carne. Está tudo bem desde não haja nada a sangrar. — A última frase saiu-lhe na forma de sussurro e distingui-lhe o
desejo na voz.
Recompôs-se respirando fundo e depois olhou para mim com uns olhos apenas um tudo-nada mais escuros do que a neve.
— Sabes, durante anos disse que os lobisomens não eram assim tão diferentes de outros predadores selvagens. — Do tubarão-branco, tinha-me dito, ou do urso-pardo.
— Eu lembro-me — retorqui.
— Os ursos pardos não atacam as suas famílias, Mercy. Eles não anseiam pela violência e pelo sangue. — Fechou os olhos. — Aqui há uns dias estive à beira de matar a minha
filha por ela ter dito uma coisa com a qual eu não concordava. Se o Bran não tivesse aparecido… — Abanou a cabeça. — Tornei-me um monstro, não um animal. Nunca mais vou conseguir
voltar a ser veterinário. A minha família nunca vai estar em segurança, não enquanto eu estiver vivo.
As duas últimas palavras ecoaram entre nós.
Merda, merda e mais merda, pensei. Por aquela altura devia ter mais controlo sobre si mesmo. Se já se tinha passado um ano desde que se tornara lobo e ainda não se conseguia
controlar quando estava zangado, nunca viria a ter o controlo de que precisava para sobreviver. Os lobos que não têm controlo sobre si mesmos são eliminados para segurança
do bando. A única questão, na verdade, tinha que ver com a razão pela qual Bran ainda não tinha tratado disso — mas eu sabia a resposta para essa pergunta. O Dr. Wallace fora
um dos poucos humanos que Bran considerava um amigo.
— Gostava muito que o Gerry pudesse vir para o Dia de Ação de Graças — manifestou o Dr. Wallace. — Mas ainda bem que tive a oportunidade de te ver antes de ires embora.
— Por que é que o Gerry não está cá? — perguntei. Gerry sempre viajara para tratar de assuntos em nome de Bran, mas decerto podia regressar para ver o seu pai antes de…
O Dr. Wallace passou-me a mão pela bochecha, e apercebei-me de que tinha lágrimas a cair-me pela cara.
— Está a trabalhar. Está encarregado de manter debaixo de olho os lobos solitários que vivem em sítios onde não há bandos que os vigiem. É importante.
Era, de facto, importante. Mas uma vez que o Dr. Wallace iria morrer em breve, Gerry deveria estar presente.
— Na maior parte das vezes, viver é mais fácil do que morrer, menina Mercy — disse num tom simpático, reproduzindo o ditado preferido do meu pai adotivo. — Dança quando a
Lua cantar, e não chores por problemas que ainda não chegaram.
O seu sorriso suavizou-se, e por instantes consegui ver de forma bastante clara o homem que outrora fora.
— Está frio aqui fora, Mercy, e esse casaco não te está a servir de muito. Vai-te aquecer, rapariga.
Não sabia como me despedir, por isso não o fiz. Limitei-me a virar costas e ir embora.
Quando o relógio do motel marcou o meio-dia, saí em direção à carrinha, que Charles — ou Carl — tinha estacionado mesmo em frente à porta do quarto número um. Se o Adam não
estiver preparado para ir, vai ter de arranjar outra boleia. Não aguento ficar aqui nem mais um minuto.
Abri a porta traseira para verificar o anticongelante porque a carrinha tinha uma pequena fuga que ainda não tinha arranjado. Quando a fechei, Samuel estava mesmo ali, segurando
um volumoso saco de lona.
— O que é que estás a fazer? — inquiri cautelosamente.
— O meu pai não te contou? — Mostrou-me aquele sorriso indolente que sempre tivera o poder de fazer com que o meu coração batesse mais depressa. Senti consternação ao constatar
que ainda tinha efeito. — Ele mandou-me ir contigo. Alguém tem de tratar dos patifes que atacaram o Adam, e ele mal se consegue mexer.
Rodei sobre mim mesma mas parei porque não fazia a menor ideia de onde estaria Bran. E para o diabo com tudo por Samuel ter razão. Precisávamos de ajuda.
Felizmente, antes de me ver obrigada a inventar qualquer coisa para justificar a minha consternação por de mais evidente, a porta do quarto número um abriu-se.
Adam parecia ter perdido dez quilos no espaço de vinte e quatro horas. Vestia umas calças de fato de treino emprestadas e um casaco aberto por cima do seu torso nu. A maior
parte da pele visível estava pisada: tecnicolor mosqueado de púrpura, azul e preto, com manchas mais claras de cor vermelha, embora não houvesse nenhuma ferida aberta. Adam
era sempre meticuloso com a roupa e o asseio, porém as suas bochechas estavam escurecidas pela barba por fazer e tinha o cabelo despenteado. Mancou lentamente até ao passeio
e manteve-se firmemente agarrado a uma bengala.
Não esperava vê-lo a caminhar tão cedo, e a minha surpresa deve ter sido visível na minha cara por que ele sorriu tenuemente.
— A motivação contribui para a cura — disse ele. — Preciso de encontrar a Jesse.
— A motivação contribui para a estupidez — murmurou Samuel ao meu lado, e o sorriso de Adam expandiu-se, embora já não se tratasse de um sorriso alegre.
— Tenho de encontrar a Jesse — foi tudo quanto Adam disse em resposta à óbvia desaprovação de Samuel. — Mercy, se não tivesses aparecido naquela altura, agora seria um homem
morto. Obrigado.
Ainda não tinha descortinado ao certo em que consistia a nossa relação, e ter ficado a saber que Bran lhe dissera para me manter debaixo de olho não ajudava. Ainda assim,
não consegui resistir à ânsia de me meter com ele — levava a vida demasiado a sério.
— É sempre um prazer socorrer-te — disse-lhe em tom ligeiro, e fiquei satisfeita com a cólera que lhe cintilou nos olhos antes de se rir.
Samuel tinha-se acercado dele discretamente, mas relaxou quando Adam retomou o avanço sem dar um tombo. Abri a porta de correr atrás do lugar do passageiro.
— Queres-te deitar? — perguntei-lhe. — Ou preferes ir sentado? Ires à frente está fora de questão, porque é mais difícil entrares e saíres.
— Vou sentado — grunhiu Adam. — As costelas ainda não estão lá muito católicas para ir deitado.
Quando se aproximou da carrinha, afastei-me para que Samuel lhe desse uma ajuda.
— Mercy — disse Bran atrás do meu ombro, apanhando-me de surpresa porque a minha atenção estava voltada para a expressão no rosto de Adam.
Trazia consigo alguns cobertores.
— Tencionava vir mais cedo para te dizer que o Samuel ia contigo — explicou Bran, entregando-me os cobertores. — Mas estive a tratar de um assunto que demorou mais tempo do
que eu estava à espera.
— Já tinhas decidido que ele ia comigo quando falaste comigo ontem à noite? — perguntei.
Sorriu.
— Achei que era provável, sim. Embora tenha tido outra conversa com o Adam depois de falar contigo, o que ajudou a clarificar algumas coisas. Vou enviar o Charles para Chicago
juntamente com dois lobos do bando, como reforço. — Exibiu um sorriso mais amplo, um sórdido sorriso predador. — Ele vai descobrir quem é que anda a tentar criar lobos novatos
sem permissão e garantir que isso acabe de modo a que não voltemos a assistir a um problema como este.
— Por que não enviar o Samuel e o Charles ir comigo?
— O Samuel não tem estômago para tratar do problema em Chicago — cortou Adam, ofegante. Olhei-o de viés e vi que estava sentado no banco central, com a testa a brilhar-lhe
do suor.
— O Samuel é um médico e suficientemente dominante para impedir que o Adam coma alguém até ficar melhor — retorquiu Samuel, saindo da carrinha e tirando-me os cobertores das
mãos.
O regozijo de Bran suavizou-lhe o sorriso.
— O Samuel esteve fora muito tempo — explicou. — Para além do Adam, penso que só o Darryl, o número dois do Adam, é que o conhece. Até descobrirmos o que se está a passar,
preferia evitar que toda a gente ficasse a saber que estou a fazer uma investigação.
— Achamos que não nos vamos conseguir esconder dos humanos por muito mais tempo — afirmou Samuel, que acabara de envolver Adam com os cobertores. — Mas preferimos ser nós
a controlar a forma como isso acontece do que termos um grupo de lobos assassinos a revelar a nossa existência antes de estarmos preparados.
Devo ter posto uma expressão de choque porque Bran riu-se.
— É apenas uma questão de tempo — disse. — Os seres feéricos têm razão. A medicina legal, a vigilância por satélite e as câmaras digitais estão a dificultar a tarefa de escondermos
os nossos segredos. Por muitos cães-lobo irlandeses e mastins ingleses que o George Brown crie e cruze, eles não se parecem com lobos.
Aspen Creek tinha três ou quatro pessoas que faziam criação de cães de grande porte para justificar pegadas e avistamentos estranhos. George Brown, ele próprio um lobisomem,
tinha conquistado vários títulos nacionais com os seus mastins. Os cães, ao contrário da maior parte dos gatos, tendiam a gostar de lobisomens.
— Estás à procura de um estandarte como o Kieran McBride? — perguntei.
— Não — grunhiu Adam. — Não há nenhum Kieran McBride no mundo dos lobisomens. Não somos inofensivos nem giros. Mas é possível que arranje um herói: um agente da polícia ou
alguém do exército.
— Estavas a par disto? — inquiri.
— Tinha ouvido rumores.
— A última coisa de que precisamos agora é de um cabrão assassino à solta em Tri-Cidades, a usar lobisomens para matar pessoas — disse Bran. Olhou por cima do meu ombro na
direção do seu filho. — Encontra o biltre e elimina-o antes que ele envolva os humanos, Samuel. — Bran era a única pessoa que eu conhecia capaz de usar palavras como «biltre»
e fazer com que soassem a palavrões. Mas, diga-se em abono da verdade, se tivesse dito «coelhinho» com aquele tom de voz, o mesmo arrepio de medo ter-me-ia percorrido a espinha.
Mas estremecia mais pelo frio do que pelo medo. Em Tri-Cidades, a temperatura ainda estava acima dos zero graus a maior parte dos dias. Para o mês de novembro em Montana,
não estava particularmente frio — por exemplo, as minhas narinas não se estavam a fechar quando respirava, portanto ainda não estavam dez graus abaixo de zero — mas ainda
assim fazia muito mais frio do que aquele a que estava habituada.
— Onde está o teu casaco? — perguntou Bran, de atenção fixada nos meus dentes, que trepidavam.
— Deixei-o no quarto — respondi. — Não é meu.
— Podes ficar com ele.
— Agora estou cá fora.
Abanou a cabeça.
— Nesse caso, é melhor ires andando antes que morras congelada. — Olhou para Samuel. — Mantém-me informado.
— Bran — disse Adam. — Obrigado.
Bran sorriu e passou por mim, roçando-me, para se enfiar parcialmente na carrinha e apertar uma das mãos maltratadas de Adam.
— Sempre às ordens.
Quando se afastou, fechou a porta de correr aplicando a força certa para que esta não ressaltasse. Eu demorara três meses a aprender a fazer aquilo direito.
Levou a mão ao bolso do casaco e deu-me um cartão. Era completamente branco e tinha inscritos o seu nome e dois números de telefone em letra simples, de cor preta.
— Para me poderes telefonar se quiseres — disse. — O número de cima é o do meu telemóvel, assim não tens de correr o risco de falar com a minha mulher.
— Bran? — perguntei-lhe impulsivamente. — O que é que o Gerry está a fazer de tão importante ao ponto de não poder vir para casa para estar com o Dr. Wallace?
— A ter pena de si próprio — disparou Samuel.
Bran pôs uma mão no braço de Samuel mas falou comigo.
— O caso do Carter é trágico e invulgar. Normalmente, quando um lobo sobrevive à Transformação mas não sobrevive ao seu primeiro ano, é porque o humano não é capaz de controlar
os instintos do lobo.
— Pensava que era sempre uma questão de controlo — disse a Bran.
Ele assentiu com a cabeça.
— E é. Mas no caso do Carter não se trata de falta de autocontrolo, é uma outra coisa.
— Ele não quer ser lobisomem — interveio Samuel. — Ele não quer sentir o ardor do instinto assassino nem o poder da caça. — Por momentos, o Sol atingiu os olhos de Samuel,
que brilharam. — É um curador, não um predador.
Ah, pensei, essa doeu, não é verdade, Dr. Samuel Cornick? Samuel não era muito dado a conversas profundas — embora isso tanto se possa ter devido à minha idade quanto a uma
inclinação sua — mas lembrei-me de que por vezes tinha problemas porque o seu instinto para curar não era tão forte quanto o seu instinto para matar. Contara-me que tinha
sempre o cuidado de comer bem antes de executar qualquer tipo de cirurgia. Acharia ele que o Dr. Wallace era um homem melhor por ter escolhido não viver com esse conflito?
— A menos que o Carter permita que o lobo seja parte dele, nunca conseguirá controlá-lo. — Bran contraiu os lábios. — Ele é perigoso, e fica mais perigoso a cada Lua, Mercy.
Mas para que ficasse bem a única coisa que precisava de fazer era arranjar uma solução de compromisso em relação aos seus malditos princípios obstinados e aceitar o que é.
Mas se isso não acontecer em breve, não vai acontecer de todo. Não posso permitir que passe por outra Lua cheia.
— Foi o Gerry quem o convenceu a fazer a Transformação — disse Samuel, soando cansado. — Ele sabe que se aproxima a altura em que alguém vai ter de tratar do Carter. Se ele
cá estiver, será esse o seu dever… mas é incapaz de fazê-lo.
— Eu trato disso — afirmou Bran, respirando fundo. — Já o fiz antes. — Deslizou a mão do braço de Samuel até ao seu ombro. — Nem toda a gente é tão forte como tu, meu filho.
— Havia nas suas palavras e na sua postura todo um mundo de tristeza partilhada, e lembrei-me dos três filhos de Samuel que não tinham sobrevivido à Transformação.
— Entra na carrinha, Mercy — disse Samuel. — Estás a tremer.
Bran colocou as mãos nos meus ombros e beijou-me na testa, e depois estragou tudo ao dizer:
— Deixa os rapazes tratarem disto, OK, Mercedes?
— Com certeza — repliquei, afastando-me dele. — Fica bem, Bran.
Contornei a carrinha pela parte da frente. Só não resmunguei entre dentes porque todos os lobisomens ouviriam o que eu estava a dizer.
Liguei o motor da carrinha — protestou por causa do frio, mas não muito. Deixei que aquecesse enquanto Bran dizia as últimas palavras a Samuel.
— Quão bem é que o Bran te conhece? — perguntou Adam em voz baixa. O barulho do motor e o rádio com certeza impediriam que os outros nos ouvissem.
— Não muito bem se pensa que vou deixar que tu e o Samuel resolvam as coisas — sussurrei.
— Já esperava isso — retorquiu com uma satisfação tal que me virei para trás de modo a olhar para ele. Sorriu fatigadamente. — O Samuel é bom, Mercy. Mas não conhece a Jesse,
não quer saber dela para nada. Durante uns tempos não vou servir de muito: preciso de ti, pelo bem da Jesse.
A porta do passageiro foi aberta e Samuel subiu para o seu lugar e fechou a porta.
— As intenções do meu pai são boas — disse-me Sam no momento em que comecei a fazer marcha atrás, provando que me conhecia melhor do que o seu pai. — Está habituado a lidar
com pessoas que o ouvem sempre que lhes diz alguma coisa. No entanto ele tem razão, Mercy. Não estás à altura de lidar com assuntos de lobisomens.
— A mim parece-me que tem lidado bastante bem — interveio Adam em tom calmo. — Matou dois em outros tantos dias e saiu sem um arranhão.
— Sorte — disse Samuel.
— Ah, sim? — Através do espelho retrovisor vi Adam fechar os olhos enquanto rematava num quase sussurro: — Talvez assim seja. Quando eu estava no exército, púnhamos os soldados
sortudos nos sítios onde nos podiam ser mais úteis.
— O Adam quer que eu ajude a encontrar a Jesse — disse a Samuel, carregando no acelerador enquanto deixávamos Aspen Creek para trás.
A conversa a partir daí entrou em declínio. Depois de fazer alguns comentários mordazes, Adam acabou por desistir da discussão e recostou-se para desfrutar do fogo-de-artifício.
Não tinha memória de ter discutido muito com Samuel no passado, mas também já não era uma adolescente de dezasseis anos completamente apaixonada.
Depois de ter deixado de falar com ele de forma deliberada, Samuel tirou o cinto de segurança e deslizou entre os bancos da frente para se sentar atrás, ao lado de Adam.
— Nunca discutas com a Mercy sobre uma coisa que lhe seja cara — aconselhou Adam, dando claros indícios de que se tinha divertido à grande com aquilo. — Mesmo que ela pare
de discutir contigo, acaba por fazer o que quer.
— Cala-te e come alguma coisa — grunhiu Samuel, soando muito diferente do habitual. Ouviu-o retirar a tampa de uma pequena mala térmica e o cheiro metálico do sangue invadiu
a carrinha.
— Hmmm — pronunciou Adam sem entusiasmo. — Bife cru.
Mas comeu-o, adormecendo a seguir. Passado algum tempo, Samuel regressou para o banco da frente e apertou o cinto de segurança.
— Não tinha memória de seres tão teimosa — confessou-me.
— Talvez não fosse — concordei. — Ou talvez não costumasses ser tão mandão comigo. Não sou um membro do teu bando ou do bando do Bran. Não sou uma mulher-loba. Não tens nenhum
direito de me dar ordens como se fosse esse o caso.
Resmungou e andámos mais um pedaço em silêncio.
Finalmente, disse:
— Almoçaste?
Abanei a cabeça.
— Estava a pensar parar em Sandpoint. Cresceu muito desde a última vez que passei por lá.
— Turistas — replicou Samuel num tom de repugnância. — A cada ano que passa são mais e mais pessoas. — Perguntei-me se estaria a recordar a altura em que lá tínhamos ido pela
primeira vez.
Parámos e comemos uma porção de frango frito que dava para alimentar uma equipa inteira de basebol — ou dois lobisomens, com uma quantidade pequena deixada para mim. Adam
voltou a comer com uma ferocidade comedida. A cura era um exercício de absorção de energia, e ele precisava do máximo de proteínas.
Quando terminou e nos fizemos novamente à estrada, com Samuel uma vez mais no banco da frente, finalmente perguntei:
— O que é que aconteceu na noite em que foste atacado? Eu sei que contaste ao Bran e provavelmente ao Samuel, também. Mas eu gostava de saber.
Adam limpou cuidadosamente os dedos ao toalhete que vinha com o frango — aparentemente não o achara apetitoso ao ponto de o fazer lamber os dedos.
— Tinha reunido o bando para lhes apresentar o Mac e para lhes contar as tuas aventuras com os seus captores.
Anuí com a cabeça.
— Cerca de quinze minutos depois de o último do bando se ter ido embora, por volta das três e meia da manhã, alguém bateu à porta. O Mac tinha acabado de conseguir recuperar
a forma humana, e deu um pulo para ir ver quem era. — Fez-se uma pausa, e eu ajustei o espelho retrovisor de modo a conseguir ver a cara de Adam, porém não fui capaz de lhe
ler a expressão.
— Estava na cozinha, por isso não sei ao certo o que se passou, mas a avaliar pelos barulhos, diria que o alvejaram mal ele abriu a porta.
— O que foi estúpido — comentou Samuel. — Eles sabiam que irias ouvir os disparos; até uma arma de dardos tranquilizantes faz um estalido bem audível.
Adam começou a encolher os ombros — e depois imobilizou-se com um esgar de dor.
— Caralho… Desculpa, Mercy. Diabos me levem se eu sabia o que lhes estava a passar pela cabeça.
— Não o mataram de propósito, pois não? — Também estive a pensar. Uma arma com balas de prata é muito mais fiável do que um dardo cheio de drogas experimentais.
— Não me parece — concordou Samuel. — Pareceu-me ser uma reação alérgica extrema à prata.
— Havia prata no dardo que a Mercedes encontrou? Tal como o Charles suspeitava? — perguntou Adam.
— Sim — respondeu Samuel. — Enviei o dardo para o laboratório juntamente com uma amostra do sangue do Mac para uma análise detalhada, mas parece-me que misturaram nitrato
de prata com DMSO e especial K.
— O quê? — perguntei.
— Especial K é quetamina — explicou Adam. — Foi usada como droga recreativa durante algum tempo, mas começou por ser um tranquilizante para animais. Não tem efeito nos lobisomens.
O nitrato de prata é utilizado no fabrico de película fotográfica. O que é DMSO?
— O nitrato de prata consiste num modo eficaz de introduzir prata numa solução — disse Samuel. — É também usado para tratar infeções oculares, embora não o recomendasse a
um lobisomem.
— Nunca ouvi falar de um lobisomem com uma infeção ocular — intervim, embora tivesse compreendido o que ele queria dizer.
Sorriu-me, mas continuou a falar com Adam.
— DMSO é dimetilsulfóxido. Tem muitas propriedades singulares, mas a que mais interessa aqui é que permite transportar consigo outras drogas através das membranas.
Fixei-me na estrada diante de mim e pus a mão direita em frente ao aquecimento para aquecê-la. As borrachas das minhas janelas precisavam de ser substituídas e a chauffage
não conseguia estar à altura do ar frio de Montana. Curioso, não me lembrava de ter sentido frio na viagem de ida. Quando se está a salvar alguém, não há espaço para desconfortos
menores, suponho.
— No meu ano de caloira havia uma substância no laboratório de química — disse. — Misturámo-la com óleo de hortelã-pimenta e pusemos o dedo. Ficou a saber a menta.
— Isso — replicou Samuel. — É essa a substância. Portanto pega-se em DMSO, mistura-se com uma solução de prata, e, abracadabra, a prata circula pelo corpo do lobisomem, envenenando-o
à medida que alastra e permitindo que o tranquilizante, neste caso a quetamina, opere sem interferência do metabolismo do lobisomem, que numa situação normal impediria que
a droga tivesse qualquer efeito.
— Achas que o Mac morreu por causa da prata e não por causa de uma overdose de quetamina? — perguntou Adam. — Só o atingiram duas vezes. Eu fui atingido pelo menos quatro
vezes, talvez mais.
— Quanto mais recente for a exposição à prata, pior a reação — explicou Samuel. — Diria que se o rapaz não tivesse passado os últimos meses exposto ao tratamento cuidadoso
que lhe dedicaram, à base de administração de prata, tinha-se safado na boa.
— Obviamente o nitrato de prata e a quetamina são relativamente fáceis de obter — disse Adam algum tempo depois. — Mas e esse tal de DMSO?
— Se eu quisesse, arranjava. As coisas boas conseguem-se com receita. Aposto que também é possível comprar em qualquer fornecedor de clínicas veterinárias.
— Então precisariam de um médico? — perguntei.
Mas Samuel abanou a cabeça.
— Não para o fornecedor de clínicas veterinárias. E diria que também não será particularmente difícil de conseguir numa farmácia. Não é uma daquelas drogas em relação às quais
têm especial atenção. Não me espantaria que conseguissem produzir a mistura na quantidade que quisessem sem grandes problemas.
— Boa. — Adam fechou os olhos, possivelmente imaginando um exército invasor armado com armas de dardos tranquilizantes.
— Portanto mataram o Mac — afirmei quando se tornou claro que Adam não iria continuar a falar. — E o que aconteceu depois?
— Saí disparado da cozinha e mandei-me a eles feito um idiota; como resultado, também dispararam contra mim. — Adam abanou a cabeça. — Acostumei-me a ser quase à prova de
bala; serviu-me de muito. O que quer que estivesse dentro daqueles dardos, deixou-me grogue, e quando acordei estava preso: pulsos e tornozelos algemados. Não que estivesse
em condições de fazer o que quer que fosse. Estava tão atordoado que mal conseguia mexer a cabeça.
— Conseguiste ver quem eram? — perguntei. — Sei que um deles era o humano que tinha aparecido juntamente com o lobisomem que eu matei na oficina. Senti o cheiro dele no quarto
da Jesse.
Adam agitou-se no banco, fazendo alguma pressão contra o cinto de segurança.
— Adam. — O tom de Samuel era baixo mas firme.
Adam assentiu com a cabeça e relaxou um pouco, esticando o pescoço para atenuar o crescendo de tensão.
— Obrigado. É mais difícil quando estou zangado. Sim, eu conhecia um deles, Mercedes. Sabes como é que me tornei lobisomem?
A pergunta parecia um pouco deslocada — mas Adam tinha sempre uma razão por detrás de tudo o que dizia.
— Só sei que foi durante a guerra do Vietname — respondi. — Pertencias às Forças Especiais.
— Certo — concordou. — Patrulha de reconhecimento de longo alcance. Enviaram-me juntamente com cinco homens para matar um senhor da guerra particularmente ruim; uma operação
de assassinato. Já tínhamos feito isso antes.
— O senhor da guerra era um lobisomem? — perguntei.
Riu-se sem uma centelha de alegria.
— Chacinou-nos. Foi um dos dele que o matou, enquanto estava a comer o pobre do McCue. — Fechou os olhos e sussurrou: — Parece que ainda o estou a ouvir a gritar.
Pusemo-nos à espera, eu e Samuel, e passado um momento Adam prosseguiu:
— Todos os homens do senhor da guerra fugiram e deixaram-nos sozinhos. Parece que não estavam certos de que tivesse morrido, mesmo depois de ter sido decapitado. Passando
um bocado, um longo bocado, apesar de só mais tarde me ter apercebido disso, percebi que me conseguia mexer. Todos estavam mortos exceto o Especialista 416 Christiansen e
eu próprio. Apoiámo-nos um no outro e acabámos por conseguir sair dali. Estávamos tão maltratados que nos enviaram para casa: o Christiansen, de qualquer modo, estava a chegar
ao fim do tempo de destacamento, e quanto a mim suponho que tivessem ficado a pensar que tinha enlouquecido, já que estava sempre a delirar sobre lobos. Enviaram-nos tão depressa
que nenhum dos médicos falou sobre o nosso tempo de recuperação.
— Estás bem? — perguntou Samuel.
Adam começou a tremer e aconchegou-se mais dentro dos cobertores.
— Desculpem. Não costumo falar sobre isto. É mais difícil do que eu estava à espera. Bem, avançando, um dos meus camaradas do exército que tinha regressado aos Estados Unidos
uns meses antes soube que eu estava em casa e foi fazer-me uma visita. Embebedámo-nos, ou pelo menos eu tentei. Tinha começado a reparar que precisava de emborcar uma quantidade
brutal de uísque até começar a sentir algum efeito, mas descontraiu-me o suficiente para que lhe contasse acerca do lobisomem. Graças a Deus que o fiz porque ele acreditou
em mim. Chamou um familiar e ambos me levaram a acreditar que na Lua cheia seguinte me iria crescer pelo e ia matar alguém. Levaram-me para o bando deles e mantiveram toda
a gente em segurança até que eu adquirisse controlo sobre mim mesmo.
— E o outro homem que tinha ficado ferido? — perguntei.
— O Christiansen? — disse, acenando com a cabeça. — Os meus amigos encontraram-no, mas deviam tê-lo feito antes. Quando regressou, ficou a saber que a mulher tinha arranjado
outro homem. Entrou em casa e deu com as malas dele feitas e a mulher e o amante à espera com os papéis do divórcio.
— O que aconteceu? — perguntou Samuel.
— Desfê-lo em pedaços. — Os olhos dele cruzaram-se com os meus através do espelho retrovisor. — Mesmo no primeiro mês, se se ficar mesmo muito furioso é possível acontecer
a Transformação.
— Eu sei — disse-lhe.
Assentiu espasmodicamente.
— Seja como for, conseguiram persuadi-lo a ficar num bando, que lhe ensinou o que precisava de saber para sobreviver. Mas, tanto quanto sei, nunca se juntou oficialmente a
um bando. Tem vivido todos estes anos como um lobo solitário.
Um lobo solitário é um macho que ou recusa juntar-se a um bando ou não consegue encontrar um bando que o aceite. Às fêmeas, devo acrescentar, não é permitida essa opção. No
que diz respeito às mulheres, os lobisomens ainda não chegaram ao século XX, quanto mais ao XXI. Ainda bem que não sou lupina; ou, se calhar, ainda mal. Alguém precisa de
lhes abrir os olhos.
— O Christiansen foi um dos lobos que apareceu em tua casa? — perguntei.
Fez que sim com a cabeça.
— Não o ouvi nem vi, ele manteve-se longe de mim. Mas consegui sentir-lhe o cheiro. Havia vários humanos e três ou quatro lobos.
— Tu mataste dois — disse-lhe. — Eu matei um terceiro. — Tentei rememorar o que tinha cheirado na sua casa, mas apenas seguira o rasto de Jesse. Tinham lá estado imensos lobos
do bando de Adam, mas apenas conhecia alguns pelo nome. — Teria reconhecido o homem, o humano, que nos enfrentou a mim e ao Mac naquela mesma noite, mas quanto a outras pessoas
não estou certa.
— Tenho a certeza de que pretendiam que eu me mantivesse à distância até fazerem o que quer que os tenha levado lá, mas o plano deles foi uma trapalhada — disse Adam. — Primeiro,
mataram o Mac. É óbvio que o queriam, a julgar pela tentativa de levá-lo da tua oficina, mas não me parece que quisessem matá-lo na minha casa.
— Deixaram-no à entrada da minha casa.
— Ah, sim? — replicou Adam, franzindo o sobrolho. — Um aviso? — Percebi que matutava no assunto e acabou por dizer aquilo que eu esperava que dissesse: — Não te metas nos
nossos assuntos se não queres acabar morta.
— Uma decisão rápida para se desfazerem de um corpo com que não estavam a contar — comentei. — Alguém foi de carro até minha casa para despejar o corpo e desapareceu antes
de eu chegar ao exterior. Os que ficaram em tua casa zarparam rapidamente, provavelmente com a Jesse. Cheguei a tua casa a tempo de matar o último lobisomem com quem estavas
a lutar. — Tentei pensar a que horas tinha sido. — Às quatro e meia da manhã, ou perto disso.
Adam esfregou a testa.
Samuel disse:
— Portanto alvejaram o Mac, alvejaram o Adam, e depois esperaram até que o Mac morresse. Largaram o corpo na tua casa, depois o Adam acordou e agarraram na Jesse e correram,
deixando para trás três lobos com o objetivo de fazerem alguma coisa… Matar o Adam? Mas, nesse caso, porquê levar a Jesse? Certamente não os deixaram lá para os sacrificar.
— O primeiro lobo com que lutei era mesmo novo — expliquei lentamente. — Se eram todos como ele, pode ter acontecido terem-se entusiasmado e os outros terem fugido por não
conseguirem acalmá-los.
— O Christiansen não é novato — afirmou Adam.
— Um dos lobos era mulher — disse-lhe. — O que eu matei tinha a pelagem bege amarelada, parecida com a da Leah, mas mais escura. O outro tinha uma pelagem mais comum, em tons
de cinza e branco. Não me lembro de nenhuma marca.
— O Christiansen é cor de ouro avermelhado — indicou Adam.
— Então foram com o intuito de raptar a Jesse ou o rapto dela foi o resultado da tentativa de tirar o melhor proveito de um plano fracassado?
— Jesse. — A voz de Adam soou rouca, e quando olhei para trás na direção dele percebi que não tinha ouvido a pergunta de Samuel. — Acordei porque a Jesse gritou. Agora me
lembro.
— Encontrei umas algemas partidas no chão da tua sala de estar. — Abrandei a carrinha para não me colar a uma autocaravana que avançava lentamente à nossa frente. Não tive
de abrandar muito. — Algemas com pulsos de prata. E o chão estava cheio de vidros partidos, lobisomens mortos e mobília. Suponho que as algemas dos tornozelos estariam algures
lá no meio. — Ocorreu-me algo. — Talvez eles só tenham aparecido para ir buscar o Mac e talvez castigar o Adam por tê-lo acolhido?
Samuel abanou a cabeça.
— Mercy, a ti talvez possam deixar avisos, ou dar-te uma lição. Um bando de lobisomens novatos, especialmente se comandado por um lobo experiente, não ia chatear um Alfa só
para «castigá-lo» por ter interferido nos seus assuntos. Em primeiro lugar, não me ocorre melhor forma de chatear o Marrok. E, em segundo lugar, o próprio Adam. Ele não é
apenas o Alfa do Bando da Bacia do Columbia, é um dos Alfas mais fortes dos Estados Unidos, excluindo a minha pessoa, claro está.
Adam grunhiu, pouco impressionado com as palavras de Samuel.
— Não temos informações suficientes para sabermos ao certo as intenções deles. O Mac está morto, ou por acidente ou intencionalmente. Quase me mataram e levaram a Jesse. O
humano que reconheceste faz-me pensar que tudo isto tem alguma coisa a ver com a história do Mac, e a presença do Christiansen faz-me pensar que tem alguma coisa a ver comigo.
Diabos me levem se sei o que é que o Mac e eu temos em comum.
— A Mercy — comentou Samuel.
— Esqueci-me de te dizer que me juntei à sociedade secreta de vilões depois de ter saído de Aspen Creek — disse a Samuel, exasperada. — Neste momento estou a tentar reunir
um harém de lobisomens atraentes e musculosos. Por favor. Não te esqueças de que só conheci o Mac quando me caiu no colo algum tempo depois de os vilões lhe terem dado cabo
da vida.
Samuel, satisfeito por me ter conseguido provocar, aproximou-se de mim e deu-me uma palmadinha na perna.
Aconteceu ver o rosto de Adam por acaso, e reparei que os seus olhos se iluminaram, passando de castanho-escuro a âmbar, enquanto se concentravam na mão de Samuel; depois
tive me voltar e olhar para a estrada para me certificar de que a autocaravana à minha frente não tinha voltado a abrandar. Quatro carros enfileiravam-se atrás de nós, subindo
lentamente a montanha.
— Não toques nela — sussurrou Adam. Havia um quê de ameaça na sua voz, e ele próprio também se deve ter apercebido disso, porque acrescentou: — Por favor.
As últimas palavras evitaram o comentário desagradável que me tinha preparado para dizer, e para além disso lembrei-me de que Adam ainda estava magoado, ainda se debatia para
controlar o lobo dentro de si, e a conversa que vínhamos tendo não era propriamente a mais indicada para acalmá-lo.
Mas não era com o meu temperamento que tinha de me preocupar.
Samuel esticou a mão até que os seus dedos abarcassem a minha coxa e em seguida apertou-a, todavia não o fez com força suficiente para me magoar. Não creio que Adam se tivesse
apercebido, mas Samuel acompanhou o gesto com um grunhido gutural de desafio.
Não esperei para ver o que Adam faria. Guinei para a direita e carreguei a fundo no travão assim que a carrinha atingiu a berma da estrada. Tirei o cinto de segurança e virei-me
para trás, fixando-me nos olhos amarelos de Adam. Respirava a custo, com a reação à provocação de Samuel suavizada pela dor que a minha condução brusca tinha causado.
— Tu — disse firmemente, apontando para ele. — Não saias do lugar onde estás. — Por vezes, se se lhes falar com a firmeza certa, até os Alfas dão ouvidos a ordens, especialmente
se se lhes disser para se manterem quietos quando estão demasiado magoados para se mexerem.
— Tu — disse, virando a minha atenção para Samuel —, lá para fora, já.
Depois sacudi a perna de debaixo da mão de Samuel e pulei para fora da carrinha, evitando por muito pouco que um camião que passava naquele momento arrancasse a porta.
Não estava certa de que qualquer um deles me desse ouvidos, mas pelo menos não teria de conduzir com dois lobisomens desejosos de se chacinar mutuamente. No entanto, Samuel
abriu a sua porta enquanto eu contornava a frente da carrinha. Depois de me ter afastado meia dúzia de passos da carrinha, ele estava ao meu lado, e as portas da carrinha
estavam fechadas.
— Mas que diabo é que tu pensas que estás a fazer? — gritei-lhe, com a minha voz a abafar o ruído dos carros que passavam. OK, eu também estava furiosa. — Pensei que estavas
aqui para garantir que ninguém desafiasse o Adam até ele se pôr bom, não para tu próprio o desafiares.
— Tu és propriedade dele — disparou de volta, com os dentes brancos a produzir estalidos sonoros.
— Claro que não! — exclamei num estado de exasperação, e de algum desespero. — Mas também não sou propriedade tua! Pelo amor de Deus, Sam, ele não te estava a dizer que eu
era propriedade dele; apenas que sentia que estavas a invadir o território dele. Ele estava a pedir a tua ajuda. — Alguém me devia ter atribuído um doutoramento em Psicologia
e Terapia especializada em lobisomens. Seguramente merecia alguma coisa por aturar toda aquela merda. — Não era um desafio, idiota. Ele está a tentar controlar o seu lobo
depois de quase ter sido assassinado. Dois lobisomens sem parceira ficam sempre com os instintos territoriais excitados na presença de uma fêmea. Sabes isso melhor do que
eu. Tu é que devias estar em pleno controlo e estás a comportar-te pior do que ele. — Inalei o ar contaminado pelo trânsito.
Samuel manteve-se calado e depois colocou o seu peso sobre os calcanhares, um indício de que estava a considerar desistir daquela luta.
— Chamaste-me Sam — comentou num tom de voz estranho que me amedrontou tanto quanto a violência que ainda lhe conseguia cheirar. Isto porque não sabia o que estava a levá-lo
a comportar-se daquele modo. O Samuel que eu tinha conhecido era descontraído, especialmente para um lobisomem. Começava a pensar que não tinha sido a única a mudar ao longo
dos anos.
Não sabia como responder ao seu comentário. Não conseguia perceber em que medida chamá-lo Sam se relacionava com o que quer que fosse, portanto ignorei-o.
— Como é que podes ajudá-lo a controlar-se se o teu autocontrolo não é melhor do que isto? O que é que se passa contigo? — Sentia-me genuinamente às aranhas.
Samuel era bom a acalmar águas agitadas. Uma das funções que tinha desempenhado consistia em ensinar os lobos novatos a terem controlo sobre si próprios de modo a que lhes
fosse permitido viver. Não é por acidente que a maioria dos lobisomens tem a obsessão do controlo como Adam. Não sabia o que fazer em relação a Samuel — a única coisa que
sabia era que não iria voltar a entrar naquela carrinha enquanto não tivesse controlado o que quer que o estivesse a incomodar.
— Não é só o facto de seres fêmea — murmurou finalmente, embora quase não o tivesse ouvido por causa de duas motas que acabavam de passar por nós.
— O que é então? — perguntei.
Lançou-me um olhar triste, e percebi que não era intenção sua que eu tivesse ouvido as últimas palavras que murmurara.
— Mercedes… Mercy. — Afastou os olhos de mim, fixando-se na encosta da montanha como se os prados em baixo guardassem um segredo de que estivesse à procura. — Sinto-me tão
inquieto como um cachorrinho. Tu sugas-me o controlo.
— Isto é tudo culpa minha? — perguntei incredulamente. O facto de ele me estar a deixar apavorada já era mais do que suficiente. Certamente não ia aceitar a responsabilidade
por isso.
Inesperadamente, gargalhou. E assim, num estalar de dedos, a fúria crescente, a violência evidente e o poder dominante que vinham tornando o ar à nossa volta insuportavelmente
pesado esfumaram-se. Ficámos só nós os dois e o aroma cálido de Samuel, que cheirava a casa e a bosque.
— Fica aqui fora e desfruta do fumo do diesel, Mercy — disse enquanto uma carrinha de transporte de mercadorias a precisar de um motor novo passou por nós a zoar numa nuvem
de fumo negro. — Dá-me uns minutos para desanuviar a atmosfera com o Adam antes de voltares a entrar. — Virou-se e deu dois passos em direção à carrinha. — Depois faço-te
um aceno.
— Nada de violência? — disse.
Colocou a mão sobre o coração e inclinou a cabeça.
— Juro.
Demorou o tempo suficiente para que começasse a ficar preocupada, mas finalmente abriu a porta e chamou-me. Não abriu a janela porque eu tinha as chaves e os vidros eram elétricos.
Por uma razão qualquer que ainda não tinha descortinado, os vidros só funcionavam um de cada vez, mesmo com o carro em andamento.
Enfiei-me no lugar do condutor e lancei um olhar cauteloso a Adam — mas os seus olhos estavam fechados.
16 Posto militar no exército norte-americano. (N. do T.)
8
Assim que a mensagem «sem rede» desapareceu do ecrã do meu telefone, liguei a Zee.
— Quem fala? — atendeu.
— É a Mercy.
— Não me avisaste que a peça era para a carrinha do vampiro — disse em tom ríspido.
Esfreguei a face.
— Não tinha possibilidade de lhes pagar a percentagem — expliquei, embora não pela primeira vez.
Na Bacia do Columbia, que incluía Richland, Kennewick e Pasco, assim como as cidades circundantes mais pequenas como Burbank e West Richland, todos os negócios que os vampiros
entendiam estar sob a sua jurisdição (leia-se: qualquer pessoa com capacidades sobrenaturais que não tivesse poder para lhes fazer frente) implicavam o pagamento de uma dada
quantia para proteção da pessoa que com eles negociava. E sim, à semelhança da máfia, os vampiros só protegem alguém deles próprios.
— Concordaram com a solução de eu lhes arranjar os carros como forma de pagamento, e em troca dão-me peças. Dessa forma eles não saem a perder e eu só tenho de reparar a carrinha
do Stefan e um ou outro Mercedes ou BMW. Para um vampiro, o Stefan não é assim tão mau.
Ouvi um grunhido oriundo do banco ao lado.
— Está tudo bem — disse Adam a Samuel. — Nós mantemo-la debaixo de olho. E ela tem razão, o Stefan não é mau considerando que é um vampiro. Ao que parece, ele mexe uns cordelinhos
para que ela não seja incomodada.
Não fazia ideia de que havia vampiros que tencionavam molestar-me, nem que Stefan se preocupava ao ponto de os impedir.
— Não sabia disso — referiu Zee, que obviamente tinha ouvido o comentário de Adam. Hesitou. — Os vampiros são sinónimo de más notícias, Mercy. Quanto menos te relacionares
com eles, melhor. E preencher um cheque e enviá-lo pelo correio todos os meses é mais seguro do que lidar com eles cara a cara.
— Não tenho possibilidade de pagar — voltei a explicar-lhe. — Ainda estou a pagar ao banco e vou continuar a pagar até ter a tua idade.
— Bem, não interessa — disse finalmente. — Não tive de tratar de nada com eles, de qualquer forma. O teu novo fornecedor enviou a peça errada. Enviei-a de volta e telefonei
ao chefe de vendas. A peça certa deve chegar na sexta-feira. Mais não podia fazer, com o Dia de Ação de Graças amanhã. Liguei para o número que estava na ficha do vampiro
e deixei uma mensagem. Que espécie de vampiro põe a música do Scooby Doo no atendedor de chamadas? — Era uma pergunta retórica, porque continuou a falar. — E apareceu por
cá uma mulher a dizer que o teu amigo Politzei a tinha enviado.
Esfreguei a testa. Tinha-me esquecido da rapariga de Tony.
— Descobriste o problema no carro dela?
— Mercy! — disparou, insultado.
— Não era minha intenção insultar-te. Era alguma coisa que merecesse a pena reparar?
— O sistema elétrico está em mau estado — indicou. — Mercy…
Sorri de orelha a orelha porque tinha visto o efeito daquela mulher sobre o Tony «sou casado com o meu trabalho».
— Tu gostas dela — disse-lhe.
Zee rosnou.
— Fizeste-lhe um orçamento?
— Ainda não falei com ela. Ela tem as palavras «pobre» e «orgulhosa» estampadas em todo o lado. Não deixou que eu lhe desse boleia, portanto foi com os filhos a pé para casa.
Não tem número de telefone para além do local de trabalho.
Ri-me de mim para mim. Havia mais do que uma razão para Zee não ter a quantidade de dinheiro que os seres feéricos mais velhos normalmente juntavam. Bem, provavelmente também
eu nunca vou ser rica.
— OK — disse. — De que tipo de acordo é que estamos a falar?
— Telefonei ao Politzei — anunciou Zee. Ele sabia qual era o nome de Tony; inclusive gostava dele, embora fizesse o melhor que conseguia para o esconder. Apenas desaprovava
o facto de ser permitido às autoridades humanas aproximarem-se tanto. Tinha razão, mas nem sempre sigo as regras da sabedoria. Se seguisse, não estaria a transportar dois
lobisomens na minha carrinha.
— O que é que ele disse? — perguntei.
— Disse que ela tem um filho mais velho que anda à procura de emprego para trabalhar depois das aulas.
Deixei que ele o dissesse; simplesmente era por de mais divertido ouvi-lo embaraçado. Gostava de se fazer de duro, o velhote filho da mãe — mas tinha um coração de manteiga.
— Com o meu Tad longe, faz-te falta um par de mãos.
E com Mac morto. Perdi o interesse em pegar com o velho gremlin.
— Tudo bem, Zee. Se falares com ela, podes dizer-lhe que o filho pode pagar a reparação com trabalho. Se correr bem, ofereço-lhe o emprego que era do Tad. Presumo que já tenhas
reparado o carro?
— Ja — respondeu. — No entanto vais ter de ser tu a falar com a senhora, a menos que também precises de mim amanhã. Ela trabalha durante o dia.
— Não, não vou precisar de ti. Amanhã é o Dia de Ação de Graças. Não vou abrir a oficina. Queria pedir-te que não te esquecesses de pôr um letreiro na janela.
— Na boa. — Hesitou. — Talvez tenha uma pista para ti relacionada com a Jesse. Ia telefonar-te agora mesmo. Uma das criaturas feéricas que ainda está escondida disse que talvez
pudesse ajudar, mas ela não me ia contar nada enquanto não falasse contigo.
«Ainda está escondida» significava ou que os Senhores Cinzentos ainda não tinham dado por ela ou que pertencia ao grupo dos terríveis ou poderosos.
Daquela vez foi Adam quem grunhiu. Eis os inconvenientes de tentar ter uma conversa telefónica privada na presença de lobisomens. Embora não me incomodasse tanto quando era
eu que ouvia as conversas alheias.
— Chegamos à cidade dentro de mais ou menos uma hora — informei. — Podes marcar um encontro hoje à noite num sítio escolhido por ela?
— Está bem — respondeu, e depois desligou.
— Ouviram tudo? — perguntei-lhes.
— O Adam não pode ir — disse Samuel com firmeza. — Não, Adam, tu sabes que não podes.
Adam suspirou.
— Está bem. Posso até concordar que não estou em condições para me desenrascar sozinho, mas quero que a Mercy esteja lá. Podemos telefonar ao Darryl e…
Samuel levantou uma mão.
— Mercy — começou —, o que é que te fez levar o Adam até Montana em vez de chamares o bando para te ajudar?
— Fui estúpida — disse.
— Talvez, mas diz-nos de qualquer das formas.
— Estava a tentar entrar em contacto com o Darryl e de repente senti-me inquieta. Lembrei-me de uma parte de uma conversa que o Ben e o Darryl tinham tido antes, nessa mesma
noite, mas agora, olhando para trás, não era nada de especial.
— Por que é que o Ben e o Darryl estavam a conversar contigo? — inquiriu Adam naquele tom moderado que usava para levar as pessoas a acreditar que não estava zangado.
— Eu sei tomar conta de mim, Adam — afirmei. — Tinha ido levar o lixo à rua e cruzei-me com eles. Tudo o que o Darryl fez foi dizer ao Ben para me deixar em paz. Ele disse
«Agora não». Não sei por que é que interpretei isso como um sinal de que ele sabia que alguma coisa ia acontecer.
— Primeiro sentiste-te inquieta — comentou Samuel —, e depois chegaste a essa conclusão estúpida.
— Sim. — Senti as faces ruborescer.
— Qual é a tua posição em relação ao bando agora?
Abri a boca, depois voltei a fechá-la.
— Raios. Algo de errado se passa. Acho que o Adam não deve ir ter com o bando enquanto não estiver em condições de se defender.
Samuel recostou-se com um ligeiro sorriso presunçoso.
— O que foi? — perguntei.
— Notaste alguma coisa — disse Adam. — Um aroma ou qualquer coisa em minha casa que te fez acreditar que alguém do meu bando está envolvido. Instintos. — O seu tom era severo.
— Achei estranho terem aparecido logo depois de os meus lobos se terem ido embora.
Abanei a cabeça.
— Ouve, eu não sei de nada.
— Não vamos matar ninguém — afirmou Samuel. — Pelo menos não com base nos teus instintos; mas que mal existe em ser-se cauteloso? Volta a ligar ao teu amigo. Amanhã, quando
o Adam tiver autocontrolo suficiente para estar sozinho, ocupamo-nos das informações que ele der.
— Não — cortou Adam.
— Nem pensar. — Era uma sensação estranha concordar com Adam. — Quanto mais depressa encontrarmos a Jesse, melhor.
— Não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo — disse Samuel. — E não vou permitir que vás falar sozinha sabe-se lá com que tipo de criatura feérica.
— Precisamos de encontrar a Jesse — retorqui.
— A minha filha está em primeiro lugar.
Samuel voltou-se para olhar para Adam.
— Tens no teu bando algum lobo dominante no qual confies? Alguém que não esteja à espera de vir a ser o líder do bando?
— O Warren. — Adam e eu dissemos o nome ao mesmo tempo.
Warren era o meu favorito do bando de Adam, e o único lobo cuja companhia eu procurava. Conheci-o pouco depois de me ter mudado para Tri-Cidades, antes sequer de saber que
existia um bando na cidade.
Não tinha conhecido um lobisomem desde que saíra de Montana, e certamente não esperava conhecer um que fazia o turno da noite na loja de conveniência local. Lançara-me um
olhar cauteloso, mas havia outras pessoas na loja, portanto aceitou o meu pagamento sem pronunciar uma única palavra. Aceitei o meu troco com um aceno e um sorriso.
Depois disso basicamente ignorámo-nos, até à noite em que uma mulher com um olho pisado entrou na loja para pagar a gasolina que o marido estava a meter. Deu o dinheiro a
Warren e depois agarrou com firmeza a mão do rapaz que estava ao seu lado, perguntando a Warren se existia alguma porta nos fundos que ela pudesse usar.
Ele sorriu-lhe amavelmente e acompanhou as duas pessoas amedrontadas até um pequeno gabinete nas traseiras da loja e cuja existência eu nunca tinha notado. Encarregou-me de
ficar na caixa e foi até lá fora para ter uma breve conversa com o homem que estava na bomba. Quando regressou, tinha duzentos dólares em dinheiro para ela, e o marido arrancou
com uma velocidade que indicava pavor ou fúria.
Warren e eu, juntamente com a mulher e o rapaz, esperámos até que a senhora que dirigia o centro local de abrigo para mulheres aparecesse para levar os seus novos clientes.
Depois de partirem, virei-me para ele e apresentei-me finalmente.
Warren era um dos gajos bons, um herói. Era também um lobo solitário. Demorou algum tempo até que confiasse em mim ao ponto de me contar o porquê.
Talvez noutro tempo, noutro lugar, o facto de ser homossexual não tivesse tido importância. Mas a maior parte dos lobisomens no poder nos Estados Unidos nascera num tempo
em que a homossexualidade era um anátema, inclusive punível com a pena de morte nalguns sítios.
Um dos meus professores em tempos dissera-me que o último ato oficial da monarquia britânica tinha sido quando a Rainha Vitória se recusara a assinar uma lei que tornava as
relações entre pessoas do mesmo sexo ilegais. Isso teria feito com que a minha admiração por ela aumentasse, todavia a razão pela qual ela se opôs tinha que ver com o facto
de não acreditar que as mulheres fizessem semelhante coisa. O parlamento reescreveu a lei de modo a se referir apenas a homens, e ela assinou-a. A rainha Vitória não era propriamente
um tributo ao Iluminismo; nem ela nem, tal como indiquei anteriormente, os bandos de lobisomens.
Era absolutamente compreensível que Warren não tivesse saído do armário, pelo menos no seio dos lobisomens. Conforme Adam e Samuel tinham demonstrado horas antes, os lobisomens
são muito bons a detetar a excitação. Não apenas os cheiros, mas a temperatura elevada e o ritmo cardíaco acelerado. Nos lobisomens, a excitação tende a trazer ao de cima
o instinto de luta em todos os machos que estejam por perto.
Escusado será dizer que um lobisomem que se sinta atraído por outros lobisomens se envolve em muitas lutas. O facto de ter sobrevivido durante tanto tempo dizia muito acerca
da competência de Warren enquanto lutador. Mas um bando não aceita um lobo que cause demasiados problemas, portanto tinha passado o seu século de vida isolado dos da sua espécie.
Fui eu que apresentei Adam a Warren, mais ou menos na altura em que Adam se mudou para a casa atrás da minha. Numa certa ocasião, tinha convidado Warren para jantar e tínhamos
estado a rir-nos de qualquer coisa, não me lembro de quê, e um dos lobos de Adam uivou. Jamais esquecerei a desolação no rosto de Warren.
Ouvia esta frase a toda a hora quando era mais nova: os lobos devem viver em bando. Ainda não a compreendo completamente, mas a cara de Warren ensinou-me que estar só não
era nada fácil para um lobo.
Na manhã seguinte batera à porta principal da casa de Adam. Ouviu-me educadamente e pegou no papel com o número de telefone de Warren escrito. Tinha saído da sua casa sabendo
que tinha fracassado.
Foi Warren quem me disse o que aconteceu a seguir. Adam chamou Warren a sua casa e interrogou-o durante duas horas. No fim, Adam disse a Warren que pouca diferença lhe fazia
se um lobo quisesse fornicar patos desde que desse ouvidos às suas ordens. Não exatamente com estas palavras, a julgar o sorriso rasgado de Warren ao contar-mo como medida
precisa. Adam usa a crueza como usa todas as suas armas: raramente, mas com grande eficácia.
Suponho que algumas pessoas possam achar estranho que Warren seja o melhor amigo de Adam, embora Darryl ocupe uma posição superior. Mas são heróis, os dois, duas espécies
da mesma casta; bom, tirando o facto de Adam não ser gay.
Os restantes elementos do bando não ficaram particularmente satisfeitos com a chegada de Warren. Ajudou um pouco o facto de a maior parte dos lobos ser ainda mais jovem do
que o próprio Adam, porque nas décadas mais recentes tinham-se verificado grandes avanços em relação à rígida era vitoriana. Para além disso, nenhum dos do bando queria enfrentar
Adam. Nem Warren.
Warren não se importava com o que os restantes lobos pensavam, apenas lhe interessava ter um bando, um sítio ao qual pertencesse. Se Warren precisasse de amigos, tinha-me
a mim e a Adam. Isso bastava-lhe.
Warren jamais trairia Adam. Sem Adam, deixaria de ter um bando.
— Eu dou-lhe uma ligadela — disse, aliviada.
Atendeu ao segundo toque.
— Daqui fala o Warren. És tu, Mercy? Por onde andaste? Sabes onde estão o Adam e a Jesse?
— O Adam está ferido. As pessoas que fizeram isso levaram a Jesse.
— Diz-lhe para não contar a ninguém — aconselhou Samuel.
— Quem é esse? — O tom de Warren pôs-se subitamente frio.
— É o Samuel. O filho do Bran.
— Isto é algum golpe? — perguntou Warren.
— Não — respondeu Adam do lugar de trás. — Pelo menos não da parte do Bran.
— Desculpem lá — disse-lhes —, mas este telefonema é meu. Importam-se, por favor, de fingir que isto é uma conversa privada? Incluindo tu, Warren. Pára de ouvir as outras
pessoas dentro da minha carrinha.
— Está bem — concordou Warren. Depois de ouvir Adam, a sua voz relaxou e readquiriu o habitual e maravilhoso modo arrastado e lento do sul do Texas. — Como é que estás, Mercy?
— perguntou docemente, mas à medida que continuou a sua voz tornou-se mais dura. — E soubeste da notícia aterradora? Parece que forçaram a entrada na casa do nosso Alfa e
ele e a filha desapareceram. A única pista é a mensagem telefónica deixada no telefone da maldita bruxa russa, uma pista que ela não deixou mais ninguém ouvir. Segundo os
rumores que circulam, a mensagem é tua mas ninguém te consegue encontrar.
Samuel inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos e disse:
— Diz-lhe que explicas tudo quando chegares.
Sorri docemente.
— Estou ótima, Warren. Obrigada por perguntares. Montana é um sítio muito simpático, mas não recomendo umas férias de novembro a menos que faças esqui.
— Não ponho esquis há vinte anos — murmurou Warren, parecendo um pouco mais alegre. — O Adam experimentou fazer esqui durante esta tua excursão até Montana?
— Ele tem esquis — disse —, mas a sua saúde não permitiu que o fizesse desta vez. Trouxe um médico comigo, mas os dois ficámos a saber que vamos ter de sair esta noite e ocorreu-nos
perguntar-te se estavas disposto a fazer de enfermeiro.
— Com todo o prazer — respondeu Warren. — De qualquer forma, esta noite não trabalho. Disseste que a Jesse foi raptada?
— Sim. E por enquanto precisamos que guardes essa informação para ti.
— Passei ao pé das vossas casas quando regressava do trabalho esta manhã — disse Warren lentamente. — Tem havido muita atividade por aqui. Acho que é só o bando a vigiar,
mas se quiserem evitá-lo, talvez fosse melhor passarem a noite em minha casa.
— Achas que é o bando? — perguntou Adam.
Warren bufou.
— Quem é que me ia telefonar para falar sobre o assunto? O Darryl? A Auriele ligou-me a dizer que tinhas desaparecido, mas sem a tua presença as mulheres também são praticamente
postas de parte. O resto do bando supostamente anda atrás de vocês, dos três, mas é tudo quanto sei. Durante quanto tempo é que precisam de evitá-los?
— Um dia ou dois. — O tom de Adam era neutro, mas as palavras diziam a Warren tudo aquilo que precisava de saber.
— Venham a minha casa. Acho que para além de ti e da Mercy ninguém sabe onde eu vivo. Tenho espaço suficiente para todos vocês, a menos que estejam aí mais pessoas que ainda
não falaram.
Cada uma das cidades que constitui Tri-Cidades tem os seus traços particulares, e é em Richland que o frenesim do início da era nuclear se arraigou com maior firmeza. Quando
o governo decidiu produzir ali plutónio para armas nucleares, também teve de edificar uma cidade. Dispersos por essa mesma cidade estão vinte e seis tipos de edifícios, concebidos
para alojar os trabalhadores da indústria nuclear. A cada tipo de casa foi atribuída uma letra, começando na A e acabando na Z.
Não reconheço todas, mas os dúplex de grande dimensão, as casas do tipo A e B, são bastante distintos. As casas do tipo A parecem-se, de certo modo, com as casas de quinta
da zona leste: dois pisos, retangulares e sem adornos. As casas do tipo B são retângulos de um único piso. A maior parte delas sofreu ligeiras transformações em relação ao
que em tempos tinham sido, com alpendres acrescentados e com a transformação dos dúplex em vivendas unifamiliares — e vice-versa. Mas por muito que sejam renovadas, todas
possuem uma espécie de fealdade sóbria que suplanta as fachadas ladrilhadas, as coberturas e os revestimentos a madeira de cedro.
Warren vivia na metade de um dúplex A com um ácer enorme que ocupava a quase totalidade da sua porção de terreno no jardim da frente. Estava à espera no alpendre quando cheguei.
Na altura em que o conhecera, tinha um aspeto deprimido que transmitia uma espécie de acomodação. O seu atual amante convencera-o a cortar o cabelo e a ser um pouco mais cuidadoso
no modo de vestir. As calças de ganga não tinham buracos e a sua camisa tinha sido passada a ferro num passado não muito distante.
Consegui estacionar diretamente à frente da sua casa. No momento em que parei, pulou os degraus e abriu a porta de correr da carrinha.
— Dizes que isto aconteceu há duas noites? — perguntou-me.
— Sim. — O seu sotaque era tão carregado que por vezes dava por mim a falar como ele, apesar de nunca ter estado no Texas.
Warren enfiou os polegares nos bolsos e baloiçou para a frente e para trás sobre as botas gastas de vaqueiro.
— Bem, chefe — pronunciou de forma lenta e arrastada —, suponho que me deva sentir alegre por estares vivo.
— Eu cá sentia-me alegre se me viesses dar uma ajuda — grunhiu Adam. — Hoje de manhã até nem me estava a sentir muito mal, mas a suspensão desta coisa deixa muito a desejar.
— Nem todos podemos andar de Mercedes — disse em tom ligeiro depois de ter saído da carrinha. — Warren, este é o filho do Bran, o Dr. Samuel Cornick, que veio até cá para
ajudar.
Warren e Samuel avaliaram-se mutuamente como dois vaqueiros de um filme dos anos cinquenta. Depois, em resposta a um sinal qualquer que me foi impercetível, Samuel estendeu
uma mão e sorriu.
— Prazer em conhecer-te — verbalizou.
Warren não disse nada, mas deu um aperto de mão a Samuel e pareceu sentir prazer com a saudação do outro homem.
Virando-se para Adam, Warren disse:
— Receio que seja mais fácil levar-te ao colo, chefe. Há as escadas na entrada e ainda mais um lanço até aos quartos.
Adam franziu o cenho, descontente, mas anuiu com a cabeça.
— Está bem.
A imagem de Warren a transportar Adam pareceu um tanto estranha porque, embora não muito alto, Adam é largo, e a compleição de Warren aproxima-se mais da de um maratonista.
É o tipo de coisa que os lobisomens devem evitar fazer em público.
Abri-lhes a porta mas permaneci na sala de estar enquanto Warren continuou o seu caminho escadas acima. Samuel esperou comigo.
A metade do dúplex pertencente a Warren tinha mais metros quadrados do que a minha caravana, mas entre os quartos pequenos e a escadaria a minha casa sempre me parecera maior.
Tinha mobilado a casa de forma confortável com artigos em segunda mão e estantes ecleticamente preenchidas com tudo desde livros científicos a livros brochados gastos, contendo
as etiquetas dos preços nas lombadas.
Samuel instalou-se no melhor lado do sofá felpudo e esticou as pernas. Virei-lhe costas e passei os dedos pela estante mais próxima. Conseguia sentir o olhar dele cravado
nas minhas costas, mas não sabia em que estava a pensar.
— Oh, Mercy — suspirou uma voz suave. — Este é bonito. Por que é que não estás a lançar-lhe charme?
Olhei para a porta da cozinha e os meus olhos esbarraram em Kyle, o amante de Warren, que exibia a sua pose típica de ostentação do corpo tonificado e das roupas feitas à
medida.
A pose era enganadora; tal como as pálpebras baixadas e a expressão aborrecida, ao estilo Marilyn Monroe. Tudo isso era fabricado para esconder a inteligência que fazia dele
o advogado especializado em divórcios mais bem pago da cidade. Em tempos dissera-me que assumir abertamente a homossexualidade era tão benéfico para o seu negócio quanto para
a sua reputação de ardiloso. As mulheres em processo de divórcio tendiam a procurá-lo inclusive em detrimento de juristas do sexo feminino.
Samuel retesou-se e lançou-me um olhar duro. Percebi o que isso significava: não queria um humano envolvido em assuntos de lobisomens. Ignorei-o; infelizmente, Kyle não —
apercebeu-se da desaprovação e interpretou mal a causa.
— É bom ver-te — disse-lhe. — Este é um velho amigo de Montana que está de visita. — Não queria entrar em pormenores porque entendia que cabia a Warren decidir até que ponto
Kyle devia ser mantido ao corrente. — Samuel, apresento-te o Kyle Brooks. Kyle, apresento-te o Dr. Samuel Cornick.
Kyle desencostou-se do caixilho da porta com a ajuda do ombro e encaminhou-se para a sala de estar. Parou para me dar um beijo na cara, após o que se sentou no sofá, colocando-se
o mais perto possível de Samuel.
Não que estivesse interessado em Samuel. Reparara na desaprovação de Samuel e tinha decidido empreender uma pequena vingança. Por norma, Warren saía de cena quando alguém
fazia má cara, ou simplesmente ignorava-o. Kyle era uma pessoa completamente à parte. Acreditava que devia fazer os filhos da mãe sofrer.
Gostava de poder dizer que alguma coisa o irritava, mas não tinha como saber que não fora a sua orientação sexual o que causara a reação de Samuel. Warren não lhe tinha contado
que era um lobisomem. Havia um desencorajamento veemente no que dizia respeito a discutir a questão com pessoas que não fossem companheiros permanentes — e para os lobisomens
isso significava relações entre machos e fêmeas — e a punição pela desobediência era dura. Os lobisomens não têm prisões. Aqueles que violam as leis ou são punidos fisicamente
ou mortos.
Para meu alívio, Samuel parecia mais deleitado do que propriamente ofendido com a tentativa descarada de engate de Kyle. Quando Warren desceu as escadas, parou por instantes
ao ver a mão de Kyle na coxa de Samuel. Quando retomou a marcha, os seus movimentos eram suaves e relaxados, mas conseguia sentir o cheiro da tensão a intensificar-se no ar.
A situação não o agradava, porém não era capaz de perceber se sentia ciúme ou preocupação em relação ao seu amante. Não conhecia Samuel, mas sabia, melhor do que ninguém,
qual seria a reação da maior parte dos lobisomens.
— Kyle, talvez não fosse má ideia tirares uns dias para veres como está a tua casa. — O tom de Warren era neutro, mas o seu sotaque tinha desaparecido.
Kyle tinha a sua própria casa, uma moradia cara numa das colinas de West Richland, mas tinha ido viver para a casa de Warren depois de este se ter recusado a ir viver para
a casa de Kyle. Perante as palavras de Warren, imobilizou-se.
— Vou esconder uma pessoa durante uns dias — explicou Warren. — Não é ilegal, mas esta casa não será um sítio seguro enquanto ele aqui estiver.
De súbito, Samuel como que se tornou invisível aos olhos de Kyle.
— Querido, se não me queres por perto, vou-me embora. Nesse caso acho que vou aceitar o convite do Geordi para o Dia de Ação de Graças.
— São só uns dias — disse Warren com o coração nos olhos.
— Isto tem alguma coisa a ver com o facto de teres andado tão ansioso nos últimos dias?
Warren olhou Samuel de viés e depois acenou uma vez com a cabeça num gesto rápido.
Kyle fixou-se nele por instantes e depois retribuiu o aceno.
— Está bem. Uns dias. Vou deixar aqui as minhas coisas.
— Depois ligo-te.
— Faz isso.
Kyle saiu, fechando suavemente a porta atrás de si.
— Precisas de lhe contar — recomendei. — Conta-lhe tudo senão vais perdê-lo. — Eu gostava de Kyle, mas, mais do que isso, até um cego teria percebido que Warren o amava verdadeiramente.
Warren soltou uma quase risada angustiada.
— Achas que ele ia exultar de alegria ao saber que anda a dormir com um monstro? Achas que isso ia resolver as coisas? — Encolheu os ombros e tentou fingir que aquilo não
tinha importância. — De qualquer das formas, ele vai acabar por me deixar, Mercy. Ele licenciou-se em Cornell e eu faço o turno da noite numa estação de serviço. Não é propriamente
uma aliança paradisíaca.
— Nunca o vi preocupado com isso — afirmei. — Ele é capaz de fazer tudo para te ver feliz. Acho que devias fazer alguma coisa como forma de retribuição.
— É proibido — cortou Samuel, embora num tom triste. — Ele não lhe pode contar.
— O que é que achas que o Kyle ia fazer? — retorqui, indignada. — Contar a toda a gente que o Warren é um lobisomem? O Kyle não faria isso. Se fosse um desbocado, não teria
chegado onde chegou. E não é o tipo de pessoa capaz de trair outra. É advogado; é bom a guardar segredos. Além disso, é demasiado orgulhoso para se permitir ser manchete de
um tabloide.
— Está tudo bem, Mercy. — Warren deu-me palmadinhas na cabeça. — Ele ainda não me deixou.
— Acabará por fazê-lo se tiveres de continuar a mentir-lhe — repliquei.
Os dois lobisomens limitaram-se a olhar para mim. Warren amava Kyle e ia perdê-lo porque alguém tinha decidido que era preciso casar antes de se poder dizer ao cônjuge aquilo
que se era — como se isso não fosse uma receita para o desastre.
Tinha a certeza de que Kyle também amava Warren. De outro modo, por que razão viveria na casa de Warren tendo ele uma moradia enorme, moderna, com ar condicionado e uma piscina?
E Warren ia deitar tudo a perder.
— Vou dar uma volta a pé — anunciei, tendo tido a minha dose de lobisomens por um dia. — Volto quando o Zee telefonar.
Não fui tão civilizada com Kyle. Bati a porta com estrondo atrás de mim e segui em passada larga ao longo do passeio. Estava tão furiosa que quase não me apercebi de que passava
ao lado de Kyle, sentado no seu Jaguar de olhos fitos na distância.
Sem refletir, abri a porta do passageiro e entrei.
— Leva-nos ao Howard Amon Park — disse-lhe.
Kyle olhou para mim, mas tinha a cara de advogado posta, pelo que não consegui decifrar o seu pensamento. Todavia, o meu olfato deu-me todos os tipos de informação sobre como
se estava a sentir: zangado, magoado e desanimado.
O que eu estava prestes a fazer era perigoso, quanto a isso não havia dúvidas. Não era só a obrigação que um lobisomem tinha de obedecer ao seu Alfa que mantinha a boca de
Warren fechada. Se Kyle de facto começasse a falar com toda a gente sobre a existência de lobisomens, seria silenciado. E gostando ou não gostando de mim, se Adam e Bran descobrissem
que tinha sido eu a contar, também me silenciariam.
Conhecia Kyle ao ponto de lhe confiar as nossas vidas?
O Jaguar deslizou através do escasso trânsito do final de tarde de quarta-feira como um tigre através da floresta. Nem a condução de Kyle nem o seu rosto davam qualquer indício
da raiva que lhe tinha acelerado o batimento cardíaco, ou da dor que alimentava a sua raiva — mas conseguia sentir-lhes o cheiro.
Meteu pela parte sul de Howard Park e estacionou num dos lugares livres. Havia muitos lugares de estacionamento livres: novembro não é uma altura em que muita gente opte por
ir a um parque fluvial.
— Está frio — disse ele. — Podíamos falar no carro.
— Não — repliquei, saindo em seguida. Ele tinha razão, fazia frio. O vento estava moderado naquele dia, mas o Rio Columbia tornava o ar húmido. Tremi por debaixo da minha
t-shirt manchada com chocolate quente; ou se calhar era por causa dos nervos. Ia levar aquilo avante e esperar não estar enganada em relação a Kyle.
Abriu a mala do carro, tirou de lá um casaco leve e vestiu-o. Também tirou um impermeável e passou-mo.
— Veste isto antes que fiques roxa — disse.
Embrulhei-me no seu casaco e no cheiro a água-de-colónia cara. Éramos mais ou menos do mesmo tamanho, portanto o casaco serviu-me.
— Gostei — disse-lhe. — Preciso de arranjar um destes para mim.
Sorriu, mas os seus olhos estavam cansados.
— Vamos caminhar — sugeri, enfiando o meu braço no dele, conduzindo-o através de um parque infantil vazio e ao longo de um caminho que seguia paralelamente ao rio.
Warren tinha razão, pensei. Dizer a Kyle que ele era um monstro talvez não ajudasse a solucionar as coisas entre eles — mas tinha o pressentimento de que aquele dia ditaria
o fim do relacionamento se ninguém pusesse Kyle a par das coisas.
— Amas o Warren? — perguntei. — Não estou a falar do tipo de amor que se resume à qualidade do sexo e da companhia. Estou a falar do tipo de amor vou-contigo-até-ao-fim-do-mundo-e-para-lá-disso.
Senti-me melhor ao notar que se deteve antes de responder.
— A minha irmã Ally é a única pessoa da minha família com quem ainda falo. Falei-lhe do Warren há uns meses. Só depois de ela mo ter dito é que me apercebi de que nunca lhe
tinha falado de nenhum dos meus outros amantes.
Colocou a mão dele sobre a minha, que estava repousada no braço dele, aquecendo-a.
— Os meus pais negaram durante anos aquilo que eu era. Quando finalmente os confrontei, depois de a minha mãe me preparar o enésimo arranjinho com uma rapariga de boas famílias,
o meu pai deserdou-me. A minha irmã Ally telefonou-me mal soube; no entanto, depois dessa primeira conversa, evitámos falar sobre o facto de eu ser homossexual. Quando falo
com ela, é como se tivesse uma letra escarlate cosida no meu peito e ambos tentássemos fingir que ela não está lá. — Soltou uma risada amarga e zangada que se alterou subtilmente
no final. Quando voltou a falar, a sua voz soava apagada. — A Ally disse-me para o levar a visitá-la. — Olhou para mim e partilhou o que esse convite significava para ele.
Tínhamos acelerado a marcha, começando a caminhar numa passada larga, e o parque tinha-se estreitado em duas tiras de relva em cada um dos lados do caminho. O aspeto bem arranjado
da margem do rio deu lugar a um aspeto mais natural, com arbustos e erva à altura dos joelhos, de um amarelo de inverno. No topo de um alto havia um baloiço de metal, semelhante
ao que se vê nos alpendres, colocado de modo a que quem nele andasse tivesse vista para o rio. Puxei-o até lá e sentámo-nos nele.
Era tão importante fazer aquilo da melhor maneira. Naquele momento em que tinha chegado a hora, estava com receio de estragar tudo.
Baloiçando preguiçosamente, observámos a água correr à nossa frente, quase preta sob as nuvens que se adensavam no céu carregado. Passado algum tempo, esfregou a cara energicamente
para aquecê-la — e para limpar lágrimas que lhe assomavam dos olhos.
— Meu Deus — disse ele, e eu retraí-me. Não sou uma vampira, que não suporta escutar o Seu nome, mas não gosto que o usem em vão. Todavia, quando retomou a fala pensei que
talvez não tivesse sido de todo em vão.
— Eu amo-o. — As palavras soavam como que arrancadas da sua garganta. — Mas ele não me deixa entrar. Há pessoas que telefonam a meio da noite e ele vai-se embora sem me dizer
aonde vai.
Um ciclista solitário, vestindo o uniforme colado ao corpo característico do entusiasta inveterado, surgiu no caminho de onde tínhamos vindo. Passou por nós numa mancha de
raios e licra azul à Super-homem.
— Belas pernas — comentou Kyle.
Era um jogo habitual. Kyle e eu a compararmos comentários sobre homens enquanto Warren fingia estar exasperado.
Pousei a cabeça no ombro de Kyle.
— É muito baixinho. Não gosto de ter mais peso do que os meus homens.
Kyle reclinou-se até um ponto em que já contemplava o céu e não o rio.
— Quando estivemos em Seattle o mês passado, afugentou um grupo de homófobos bêbados e provincianos. Acagaçou-os só com meia dúzia de palavras. Mas aquele Darryl trata-o como…
como merda, e o Warren atura aquilo. Não compreendo. E isto hoje à noite… — Inspirou para se tranquilizar. — Ele está com traficantes de droga?
Abanei a cabeça prontamente.
— Não. Nada de ilegal. — Pelo menos não ainda.
— Então é um ser feérico? — perguntou, como se isso não o incomodasse muito.
— Os seres feéricos foram todos a público há anos.
Bufou.
— Não és assim tão tonta. Conheço alguns médicos e professores que ainda escondem o facto de serem homossexuais, e a única coisa com que se têm de preocupar é a possibilidade
de perderem o emprego, não de ver um grupo de idiotas a incendiar-lhes a casa. — Consegui perceber que concluía que Warren era um ser feérico, e a sua agitação diminuiu consideravelmente.
— Isso explicaria algumas coisas, como a força que tem e o facto de saber quem toca à campainha antes de abrir a porta.
Bem, pensei esperançosa, ser uma criatura feérica não era propriamente a mesma coisa que ser um lobisomem. Mas se era capaz de aceitar um, talvez não lhe fosse assim tão difícil
aceitar o outro.
— Ele não é um ser feérico — disse. Comecei a contar-lhe exatamente o que Warren era, mas as palavras ficaram-me presas na garganta.
— O Warren é que me devia estar a contar isto — comentou Kyle.
— É verdade — concordei. — Mas não pode.
— Queres com isso dizer que se recusa.
— Não. Não pode. — Abanei a cabeça. — Não tenho muitos amigos. Não do tipo de amigos a quem se diz «aparece cá em casa para comermos pipocas e vermos um filme estúpido». Exceto
tu e o Warren. — Não tenho muitas amigas. O meu trabalho não é propício a que se conheça outras mulheres.
— É triste — comentou Kyle. Depois disse: — Tu e o Warren também são as únicas pessoas com quem como pipocas.
— Patético. — A brincadeira ajudou. Inalei fundo e simplesmente disse-o. — O Warren é um lobisomem.
— Um quê? — Kyle parou o baloiço.
— Um lobisomem. Tu sabes. O tipo de lobisomem que é chamado pela Lua e corre sobre quatro patas com presas enormes.
Olhou para mim.
— Estás a falar a sério.
Acenei afirmativamente com a cabeça.
— E não vais dizer uma única palavra sobre isso.
— Oh?
— É por isso que o Warren não te podia contar. Por isso e porque o Adam, o Alfa do bando, o proibiu. Se agora fores falar com as autoridades ou com os jornais, mesmo que eles
não acreditem em ti, o bando mata-te. — Sabia que estava a falar depressa de mais, mas parecia incapaz de abrandar. Na casa de Warren, apenas com Samuel e Warren, não me tinha
parecido tão perigoso. Samuel e Warren podiam zelar por mim, mas havia imensos lobisomens na cidade que ficariam contentes por nos ver, a mim e ao Kyle, mortos por causa daquilo
que acabara de lhe contar. — O Warren vai fazer-lhes frente, mas eles são muitos. Ele acabará por morrer, e tu morrerás com ele.
Kyle levantou a mão.
— Calma lá. É um bocado precipitado colocares o cenário da minha morte e do Warren, não te parece?
Respirei fundo.
— Espero que sim. Tens de acreditar no que te digo, eles levam os segredos deles muito a sério. Como é que achas que conseguiram passar despercebidos durante tanto tempo?
— Mercy. — Agarrou-me a mão. A dele parecia estar fria, mas talvez fosse do vento. — Um lobisomem?
Não acreditou verdadeiramente em mim — isso talvez fosse ainda mais perigoso.
— Há vinte anos também ninguém acreditou na existência de seres feéricos. Ouve, eu posso provar-to.
Atentei num aglomerado de arbustos despidos. Não eram suficientemente densos para que eu me pudesse despir e transformar-me entre eles, mas não havia barcos na água, e desde
que não nos aparecesse outro ciclista na altura errada… Podia simplesmente transformar-me com as roupas vestidas — fico mais pequena, não maior — mas preferia apanhar uma
multa por atentado ao pudor. Um coiote em roupas de humano fica com um aspeto ridículo.
— Espera aqui. — Dei-lhe o impermeável para que não ficasse sujo, depois pulei do baloiço e atravessei a custo a erva alta até alcançar os arbustos. Despi-me o mais depressa
que consegui e transformei-me no preciso instante em que deixei cair a última peça de roupa.
Parei no caminho e sentei-me, procurando parecer inofensiva.
— Mercy? — Kyle tinha a sua cara de advogado posta, o que serviu para perceber quão chocado estava. De facto não tinha acreditado em mim.
Agitei a cauda e emiti um ruído trauteado. Saiu do baloiço como se fosse um homem muito, muito velho e acercou-se de mim.
— Um coiote? — perguntou.
Quando fui buscar a minha roupa, seguiu-me. Transformei-me mesmo à sua frente — depois voltei a enfiar-me nas peças ao escutar a aproximação de outra bicicleta.
— Não sou uma mulher-loba — expliquei-lhe, passando os dedos pelo cabelo. — Mas sou aquilo que de mais parecido verás até convenceres o Warren a transformar-se para ti.
Kyle produziu um som impaciente e afastou as minhas mãos, arranjando ele próprio o meu cabelo.
— Os lobisomens são maiores — disse, sentindo que devia avisá-lo. — Muito maiores. Não se parecem com lobos. Parecem-se com lobos mesmo, mesmo grandes, capazes de te comer.
— OK — replicou ele, recuando. Até retomar a fala pensei que se referia ao meu cabelo. — O Warren é um lobisomem.
Olhei para a sua cara de advogado e suspirei.
— Não te podia contar. Se, agora que te contei, não fizeres nada estúpido, tanto tu como ele estão em segurança. Mas se tivesse sido ele a contar-te, independentemente da
forma como tivesses reagido, teria desobedecido a uma ordem direta. O castigo por fazer isso é brutal.
Continuava sem mostrar qualquer tipo de reação. Estava tão fechado em si mesmo que não conseguia apreender o que estava a sentir. A maior parte dos humanos não tem esse tipo
de autocontrolo.
— O bando… — Tropeçou um pouco na palavra. — Eles não vão ficar a pensar que ele me contou?
— Muitos lobisomens conseguem detetar a mentira — disse-lhe. — Irão arranjar maneira de descobrir como soubeste.
Regressou para o baloiço, pegou no impermeável e entregou-mo.
— Fala-me sobre os lobisomens.
Estava a tentar explicar-lhe quão perigoso um lobisomem podia ser e por que razão não era boa ideia fazer joguinhos de sedução com Samuel — ou com Darryl — quando o meu telemóvel
tocou.
Era Zee.
— Assuntos vossos? — perguntou Kyle assim que desliguei.
— Sim. — Mordi o lábio.
Sorriu.
— Tudo bem. Acho que já ouvi segredos de sobra para um dia só. Presumo que precises de voltar para a casa do Warren?
— Não fales com ele ainda. Espera até teres conseguido assimilar o que te disse. Se houver mais perguntas que queiras fazer, podes ligar-me.
— Obrigado, Mercy. — Colocou o braço em volta dos meus ombros. — Mas acho que deve ser o Warren a contar-me o resto, depois de os assuntos dele estarem resolvidos.
9
Quando entrei, Samuel e Warren estavam sentados frente a frente na sala de estar, e a atmosfera estava carregada de fúria. Olhando-os apenas, não consegui perceber se estavam
zangados um com o outro ou com outra coisa qualquer. Mas, de qualquer modo, os lobisomens estão sempre prontos a ficar zangados com qualquer coisa. Tinha-me esquecido desse
pormenor.
Como é evidente, não era a única com faro. Warren, sentado mais perto da porta, respirou fundo.
— Ela esteve com o Kyle — afirmou num tom neutro. — Cheira à água-de-colónia que lhe ofereci. Contaste-lhe. — Rogou-me pragas, mas havia mais dor do que raiva nas suas palavras.
Senti uma pontada de culpa.
— Tu não ias contar-lhe — disse. Não estava a desculpar-me. — E ele tinha o direito de saber que toda a merda que tem de aturar não é só por culpa tua.
Warren abanou a cabeça e lançou-me um olhar desesperado.
— Tens um interesse especial em morrer? O Adam é bem capaz de vos mandar executar aos dois por isso. Já o vi fazer isso antes.
— Só a mim, não ao Kyle — retorqui.
— Sim, que diabo. Ao Kyle também.
— Só se o teu amante decidir falar com os meios de comunicação social ou a polícia. — A voz de Samuel era suave, mas Warren ainda assim cravou os olhos nele.
— Arriscaste demasiado, Mercy — afirmou Warren, voltando-se novamente para mim. — Como é que achas que eu me iria sentir se vos perdesse aos dois? — De súbito, toda a fúria
que estava dentro dele como que se esfumou, dando lugar à angústia. — Talvez tivesses razão. Era a mim que competia. Era o meu risco. Se ele tinha de saber, deveria ter sido
eu a contar-lhe.
— Não. Pertences ao bando e juraste obediência — cortou Adam, movendo-se de forma vacilante no topo das escadas, inclinando-se um pouco sobre a bengala. Vestia uma camisa
branca e calças de ganga que lhe serviam na perfeição. — Se lhe tivesses dito, teria de fazer valer a lei ou arriscar uma rebelião no bando.
Sentou-se no degrau superior mais abruptamente do que tencionava, penso, e exibiu-me um sorriso rasgado.
— Tanto o Samuel como eu somos testemunhas de que o Warren não disse nada ao Kyle, mas sim tu. Apesar das objeções do Warren, devo acrescentar. E, tal como insistes em dizer
a todo o momento, não pertences ao bando. — Desviou os olhos na direção de Warren. — Ter-te-ia dado permissão há muito tempo, mas também eu tenho de obedecer a ordens.
Fitei-o por instantes.
— Tu sabias que eu ia contar ao Kyle.
Sorriu.
— Ponhamos as coisas do seguinte modo: pensava que ia ter de vir cá abaixo e ordenar-te que não lhe contasses para que assim saísses porta fora antes de o Kyle arrancar com
o carro.
— Meu cabrão manipulador — disse-lhe, com um toque de temor. Estava decidido: ia arrancar três pneus àquele velho Rabbit.
— Obrigado — respondeu com um sorriso modesto.
E quando encontrássemos Jesse, ela podia ajudar-me com os grafitis.
— Como é que ele reagiu? — perguntou Warren. Tinha-se levantado do sofá e olhava para o exterior através da janela. As suas mãos pendiam-lhe descontraidamente nos flancos,
nada desvendando acerca dos seus sentimentos.
— Não foi a correr para a polícia — disse a Adam e a Samuel. Procurei algo mais prometedor para dizer a Warren, mas não queria aumentar-lhe as expectativas, não fosse eu estar
enganada em relação a Kyle.
— Disse que ia falar contigo — acabei por lhe dizer. — Depois de este assunto estar resolvido.
Levou abruptamente as mãos à cara, num gesto muito semelhante ao que Kyle tinha feito.
— Pelo menos não acabou. Ainda.
Não estava a falar com nenhum de nós, mas não conseguia suportar a tristeza na sua voz. Toquei-o no ombro e disse:
— Se não voltares a meter o pé na argola, vai correr tudo bem.
Samuel e eu zarpámos ao encontro de Zee e da sua informadora, e na minha cabeça ainda estava a tentar perceber se devia ter ficado zangada pelo facto de Adam me ter manipulado
daquela maneira. Embora, pensando bem, ele na verdade não tivesse feito nenhuma manipulação. Não fizera mais do que reivindicar o crédito pelas minhas ações.
O semáforo ficou vermelho e tive de parar atrás de um monovolume a uma distância mais curta do que é habitual. Samuel arremessou a mão ao tablier e inspirou fundo. Fiz uma
careta ao miúdo que seguia no banco de trás do monovolume e se tinha virado para olhar para nós, e ele, em resposta, puxou as pálpebras inferiores para baixo e pôs a língua
de fora.
— Não que eu me oponha a participar num acidente de carro — comentou Samuel. — Simplesmente prefiro tê-los de propósito.
— O quê? — Olhei-o de soslaio e depois olhei para a frente. A traseira do outro carro formava um muro a cerca de sessenta centímetros do nosso para-brisas. A compreensão súbita
fez-me sorrir de orelha a orelha. — As Vanagon não têm frente — disse suavemente. — O nosso para-choques está p’raí a uns trinta centímetros dos dedos dos teus pés. Podias
caminhar entre os dois carros.
— Podia pôr o braço de fora e chegar àquele puto — disse. O miúdo tinha feito mais uma careta e Samuel respondera-lhe com uma outra, enfiando os polegares nas orelhas e esticando
os dedos para fora como chifres de alce. — Uma das tarefas do Adam era garantir que tu não andasses por aí a falar a meio mundo sobre os lobisomens.
O semáforo ficou verde, e o miúdo acenou tristemente ao mesmo tempo que a carrinha onde seguia acelerou pela rampa de acesso à interestadual. Também nós acelerámos, mas a
rampa curvava numa inclinação íngreme, portanto iríamos demorar algum tempo até atingir a velocidade de via rápida.
Bufei.
— O Kyle não é meio mundo. — Olhei-o de viés. — Além disso, tu, tal como o Adam, sabias muito bem o que eu ia fazer. Se estivesses mesmo contra, tinhas-me impedido antes de
eu ter saído.
— Talvez eu ache que o Kyle é uma pessoa de confiança.
Bufei novamente.
— Talvez a Lua seja feita de queijo verde. Tu não queres saber. Achas que os lobisomens precisam de ir a público tal como os seres feéricos. — Samuel nunca tivera medo da
mudança.
— Não nos vamos conseguir esconder por muito mais tempo — disse Samuel, confirmando a minha desconfiança. — Quando voltei a estudar, apercebi-me do quanto a medicina forense
evoluiu. Há dez anos, quando só nos tínhamos de preocupar com os laboratórios militares e o FBI, ter alguns lobos nos sítios certos era suficiente. Mas não existem lobos suficientes
para infiltrar nos laboratórios da polícia de todas as cidadezinhas. Desde que os seres feéricos foram a público, os cientistas estão a prestar mais atenção a anormalidades
que costumavam atribuir a falhas dos equipamentos dos laboratórios ou à contaminação de amostras. Se o meu pai não escolher o tempo certo em breve, será o tempo a escolhê-lo
a ele.
— Tu és a razão pela qual ele chega sequer a ponderar essa possibilidade. — Isso fazia sentido. Bran sempre tivera imensa consideração pelos conselhos de Samuel.
— O meu pai não é estúpido. Assim que percebeu aquilo com que nos vemos confrontados, chegou à mesma conclusão. Ele tem uma reunião marcada com todos os Alfas para a próxima
primavera. — Fez uma pausa. — Considerou a hipótese de usar o Adam, o atraente herói da guerra do Vietname.
— Por que não tu? — perguntei. — O médico atraente e altruísta que tem mantido pessoas vivas há séculos.
— É por isso que o meu pai está à frente das operações e tu não és mais do que uma subordinada — respondeu. — Lembra-te de que, segundo a cultura popular, para te tornares
lobisomem basta seres mordido por um. Não muito diferente do que pensam em relação à sida. Vai demorar algum tempo até que as pessoas se sintam confortáveis a conviver connosco
de uma forma mais íntima. É melhor deixá-las pensar que todos os lobos estão no exército e na polícia. Sabes como é: «Para Servir e Proteger».
— Não sou uma subordinada — objetei ardorosamente. — Os subordinados têm de ser seguidores. — Ele gargalhou, satisfeito por me ter irritado uma vez mais.
— Não te importas por eu ter contado ao Kyle? — perguntei passado um bocado.
— Não, tinhas razão. Ele teria muito a perder ser fosse falar com tablóides, e é o tipo de pessoa de que precisamos na nossa retaguarda, para manter as turbas sob controlo.
— Um advogado instruído, bem-falante e com boas maneiras? — experimentei. Sim, todos esses atributos cabiam em Kyle. — Mas ele não é propriamente consensual.
Samuel encolheu os ombros.
— Hoje em dia ser-se homossexual confere uma certa distinção.
Pensei na história que Kyle me tinha contado sobre a sua família e cheguei à conclusão de que Samuel estava enganado, pelo menos nalguns aspetos. No entanto, tudo o que disse
foi:
— Eu digo ao Kyle que ele tem uma certa distinção aos teus olhos.
Inesperadamente, Samuel exibiu um sorriso rasgado.
— Preferia que não o fizesses. Isso vai fazer com que me lance ainda mais charme.
— Por falar em desconforto — disse —, por que é que tu e o Warren estavam tão tensos?
— Era sobretudo o Warren — respondeu. — Sou um estranho, um lobo dominante no território dele, e ele já estava inquieto porque achava que estava a perder o amor da sua vida.
Se eu soubesse que ele é tão dominante, tinha arranjado outro sítio para passar a noite. Arranjaremos maneira de nos entendermos, mas não vai ser confortável.
— Ele é o número três do Adam.
— Teria sido simpático se alguém me tivesse informado disso — resmungou Samuel de forma afável. — Com o Adam ferido e o número dois ausente, o Warren fica a ocupar o lugar
de Alfa. Não admira que estivesse tão enervado. Estava a preparar-me para sair e dar uma volta a pé quando apareceste. — Olhou-me de forma penetrante. — É curioso ver como
ele acalmou quando apareceste. Como se o número dois do Adam estivesse lá, ou o companheiro dele.
— Não pertenço ao bando — repliquei secamente. — Não ando com o Adam. Não tenho qualquer estatuto no bando. O que eu tive foi uma conversa mais do que tardia com o Kyle, e
foi isso que distraiu o Warren.
Samuel continuou de olhos postos em mim. Tinha a boca desenhada numa curva estranha, mas os olhos estavam cheios de coisas que não conseguia descortinar enquanto dizia:
— O Adam declarou perante o bando que tu eras a companheira dele. Sabias disso?
Não sabia. Tive de inalar uma lufada de ar furioso até perceber o motivo pelo qual poderia ter feito aquilo.
— De alguma maneira tinha de impedir que o bando dele me matasse. Os lobos matam os coiotes que estão no seu território. Uma declaração formal a indicar-me como sua companheira
manter-me-ia em segurança. Acredito que tenha sido uma coisa que o Bran lhe pediu para fazer. Mas isso não faz de mim membro do bando, nem faz de mim companheira dele. A primeira
hipótese está excluída porque sou coiote, a segunda porque para alguém me declarar sua companheira primeiro tem de me perguntar se eu quero.
Samuel riu-se, mas não havia qualquer indício de divertimento na atitude.
— Pensa o que quiseres. Quanto tempo é que falta até chegarmos ao bar?
— É no lado oposto de Pasco — indiquei. — Daqui a dez minutos estamos lá.
— Bem — disse ele —, o que é que me podes dizer sobre o Zee e essa tal criatura feérica com quem nos vamos encontrar?
— Não sei grande coisa. Não em relação à criatura feérica. Só sei que ela tem informações que nos podem interessar. Quanto ao Zee, é um gremlin. Deu-me o meu primeiro emprego
quando saí da universidade, e comprei-lhe a oficina quando se reformou. Ainda me dá uma mão sempre que preciso dele, ou quando fica entediado. Ele gosta de desmontar as coisas
e ver o que têm de errado, mas normalmente deixa-me voltar a juntá-las.
— Há uma reserva feérica perto daqui.
Fiz que sim com a cabeça.
— A cerca de sessenta e cinco quilómetros. Mesmo no limite de Walla Walla.
— O Adam diz que a existência de tantos seres feéricos menores por estas bandas atraiu mais seres feéricos superiores.
— Isso não sei — disse. — Consigo cheirar-lhes a magia, mas não sei dizer quão fortes são.
— Ele acha que também é por isso que há mais vampiros, fantasmas e afins em redor de Tri-Cidades do que, por exemplo, em Spokane, que é uma cidade maior.
— Faço por não me meter na vida das outras espécies — expliquei-lhe. — Não tenho como evitar os lobisomens, não com o Adam a viver na porta ao lado, mas tento. Os únicos seres
feéricos a que estou ligada são o Zee e o filho dele, o Tad.
— Os seres feéricos estão dispostos a falar contigo. — Samuel esticou as pernas e enlaçou os dedos na nuca, destacando os cotovelos como asas. — O Adam diz que o teu antigo
patrão é umas das criaturas feéricas mais velhas. E, só para que saibas, os ferreiros, os gremlins, não estão entre as criaturas feéricas menores. Para além disso, o Warren
contou-me que o Stefan, o vampiro, te visita com bastante frequência. Depois há o agente da polícia humano. Atrair a atenção da polícia é perigoso.
Dito daquela maneira, de facto parecia que estava envolvida em todas as frentes.
— O Zee foi forçado a ir a público pelos Senhores Cinzentos — contei-lhe. — Portanto há quem o considere um ser feérico menor. O Stefan adora a carrinha dele, e eu deixo que
ele me ajude a repará-la.
— Tu quê?
Esqueci-me de que nunca tinha conhecido Stefan.
— Ele não é como a maior parte dos vampiros — tentei explicar. Embora Stefan fosse o único vampiro que alguma vez conhecera, eu sabia o que se podia esperar deles: já fui
ao cinema como toda a gente.
— Todos eles são como a maior parte dos vampiros — replicou Samuel num tom sombrio. — Simplesmente alguns são melhores a escondê-lo do que outros.
Não serviria de nada tentar discutir com ele — especialmente porque, em princípio, concordava com ele.
— E o agente da polícia não foi culpa minha — murmurei, virando para a saída que dava para Pasco. Pareceu-me uma boa altura para mudar de assunto, portanto disse: — O Fairy
Mound17 em Walla Walla é o bar onde os turistas vão para ver os seres feéricos. Os seres feéricos que não querem ter pessoas a olhar para eles de boca aberta param sobretudo
no Tio Mike, um bar aqui em Pasco. O Zee diz que tem um feitiço que faz com que os humanos o evitem. A mim não me afeta, mas em relação aos lobisomens não sei.
— Não vais entrar sem mim — disse ele.
— Está bem — Nunca discutas com lobisomens se puderes evitá-lo, fiz questão de lembrar a mim mesma.
O bar Tio Mike ficava situado do outro lado do Rio Columbia, mesmo em frente à minha oficina, muito perto do Parque Industrial de Pasco. O velho edifício em tempos tinha sido
um pequeno armazém, e havia armazéns de cada um dos lados, ambos pintados com grafitis dos miúdos que ali viviam. Não tinha a certeza se a magia afugentava os miúdos, ou se
era responsabilidade de alguém com muita tinta e uma broxa, mas a parte exterior do Tio Mike estava sempre imaculada.
Parei no parque de estacionamento e desliguei os faróis. Eram aproximadamente sete horas, ainda um pouco cedo para os clientes habituais, e só havia mais quatro carros no
parque, um dos quais a carrinha de caixa aberta de Zee.
No interior, a escuridão era suficiente para fazer com que um humano tropeçasse nos degraus que começavam na entrada e desembocavam no bar propriamente dito. Samuel hesitou
na soleira, mas pensei que se tratava mais de uma questão tática do que de uma reação a um feitiço. O balcão estendia-se ao longo de toda a parede à nossa direita. Havia uma
pequena pista de dança no centro do espaço, com conjuntos de mesinhas espalhados em redor.
— Estão aqui — indiquei a Samuel e dirigi-me para a esquina mais distante, onde Zee estava sentado, aparentemente relaxado, ao lado de uma mulher moderadamente atraente enfiada
num traje conservador de executiva.
Nunca o tinha visto sem o seu glamour; em tempos dissera-me que o usava há tanto tempo que se sentia mais confortável na forma humana. A forma por ele escolhida era a de uma
figura moderadamente alta, com entradas pronunciadas e com uma ligeira pança. A sua cara era sulcada, mas não de uma forma pouco atraente — antes de uma forma que lhe dava
caráter.
Viu-nos a chegar e sorriu. Uma vez que ele e a mulher já tinham ocupado os lugares defensivos, com as costas encostadas à parede, Samuel e eu sentámo-nos em frente a eles.
Não sabia se o facto de Samuel estar de costas viradas para o resto do espaço, quase completamente vazio, o incomodava. Dei uma sacudidela no cabelo para conseguir ter pelo
menos um vislumbre do resto do bar.
— Olá, Zee — disse. — Este é o Dr. Samuel Cornick. Samuel, apresento-te o Zee.
Zee acenou com a cabeça, mas não apresentou a sua companhia. Em vez disso, virou-se para ela e disse:
— Estas são as pessoas de que te falei.
Ela franziu o sobrolho e tamborilou na mesa com as suas unhas longas e bem tratadas. Havia qualquer coisa no modo como as usava que me fez suspeitar que por debaixo do glamour
poderia ter garras. Vinha tentando detetar-lhe o cheiro, mas vi-me finalmente forçada a concluir que ou não o tinha ou cheirava a ferro e terra, tal como Zee.
Quando levantou os olhos que até aí contemplavam as suas próprias unhas, falou para mim e não para Samuel.
— O Zee disse-me que há uma criança desaparecida.
— Ela tem quinze anos — expliquei, procurando ser transparente. Os seres feéricos não gostam de achar que lhes estão a mentir. — É a filha humana do Alfa local.
— Isto pode trazer-me problemas — disse. — No entanto falei com o Zee e o que tenho para contar não tem nada a ver com os seres feéricos, e portanto estou à vontade para falar.
Numa circunstância normal não ajudaria os lobos, mas não gosto daqueles que implicam os inocentes nas suas próprias batalhas.
Pus-me à espera.
— Trabalho num banco — disse finalmente. — Não vou dizer o nome, mas é o banco que a comunidade local de vampiros usa. Os depósitos deles obedecem a um padrão regular. — O
que significava que a maior parte dos pagamentos das suas vítimas era mensal. Bebericou do seu copo. — Há seis dias foi feito um depósito inesperado.
— Tributos pagos por visitantes — intervim, endireitando as costas. Parecia prometedor. Um só ser feérico ou lobo ou o que quer que fosse não teria pago um tributo suficientemente
alto para chamar a atenção de quem quer que fosse.
— Tomei a liberdade de falar com o Tio Mike antes de vocês virem — disse Zee em voz baixa. — Ele não tinha ouvido falar de nenhuns visitantes novos, o que significa que estas
pessoas se estão a mover de forma muito discreta.
— Precisamos de falar com os vampiros — afirmou Samuel. — O Adam saberá como fazê-lo.
— Isso vai demorar demasiado tempo. — Saquei do telemóvel e marquei o número de Stefan. Era cedo para estar acordado, mas já me tinha telefonado não muito depois daquela hora.
— Mercy — atendeu afavelmente. — Regressaste da tua viagem?
— Sim. Stefan, preciso da tua ajuda.
— Em que é que te posso ajudar? — Algo na sua voz mudou, mas não tinha tempo para me preocupar com isso.
— Na terça-feira à noite ou na quarta-feira de manhã cedo, um grupo de pessoas, incluindo lobisomens de outro território, raptou a filha do Alfa. Ela é minha amiga, Stefan.
Uma pessoa disse-me que o teu grupo talvez tivesse conhecimento de um bando que está de visita.
— Ah — respondeu ele. — Isso não está na esfera das minhas responsabilidades. Queres que sonde por ti?
Hesitei. Pouco sabia de vampiros para lá de que as pessoas inteligentes os evitavam. Havia na formalidade das suas palavras algo que me fez pensar que se tratava de uma questão
mais delicada do que poderia parecer.
— Isso significa o quê, ao certo? — inquiri desconfiadamente.
Ele riu-se, produzindo um ruído alegre nada característico de um vampiro.
— Fazes bem em perguntar. Significa que me nomeias como teu representante e isso me dá certos direitos que de outro modo não teria.
— Direitos sobre mim?
— Nada de que eu me venha a aproveitar — disse. — Dou-te a minha palavra de honra, Mercedes Thompson. Não te forçarei a fazer nada que não queiras.
— Está bem — repliquei. — Nesse caso sim, gostava que sondasses por mim.
— Que dados é que tens?
Olhei de relance para o rosto inexpressivo da mulher.
— Não te posso dizer tudo, apenas que me foi dito que a tua comunidade tem conhecimento da existência de um grupo de visitantes em Tri-Cidades que pode ser o mesmo de que
eu ando à procura. Se nesse grupo não houver lobisomens, então não é esse. É possível que estejam a fazer experiências com medicamentos ou drogas.
— Vou sondar — afirmou. — Mantém o teu telemóvel à mão.
— Não estou convencido de que isso tenha sido sensato — disse Zee depois de eu desligar.
— Tinhas-me dito que ela lidava com lobisomens. — A mulher fez-me uma careta. — Não me contaste que ela também lidava com os vampiros.
— Sou mecânica — disse-lhe. — Não ganho o suficiente para pagar aos vampiros em dinheiro, portanto reparo-lhes os carros. O Stefan tem uma carrinha velha que está a restaurar.
Ele é o único com que lidei pessoalmente.
Não parecia particularmente satisfeita, mas desfez a careta.
— Fico reconhecida pelo tempo disponibilizado — disse, quase deixando escapar um «obrigada», palavra que se pode traduzir num grande sarilho. Alguns seres feéricos entendem
o agradecimento como uma admissão de que se está em dívida para com eles. O que significa que se tem de fazer o que eles peçam, seja o que for. Zee tinha-se esforçado muito
para que eu me desfizesse desse hábito. — O Alfa também ficará contente por reaver a sua filha.
— É sempre bom ver o Alfa feliz — comentou. Não sabia dizer se estava a ser honesta ou sarcástica. Levantou-se abruptamente e alisou a saia para me dar tempo de desviar a
minha cadeira para que pudesse passar. Parou ao balcão e falou com o barman, saindo em seguida.
— Ela tem o mesmo cheiro que você — disse Samuel a Zee. — Também é ferreira?
— Gremlin, por favor — replicou Zee. — Pode ser um nome novo para uma coisa antiga, mas pelo menos não é uma má tradução. Ela é um trol; da família, mas não chegada. Os troles
gostam de dinheiro e extorsão, muitos deles vão para a atividade bancária. — Voltando-se para mim, carregou o cenho. — Não te vais meter sozinha naquele ninho de vampiros,
Mercy, nem mesmo com o Stefan a acompanhar-te. Aparenta ser melhor do que os outros, mas já cá ando há muito tempo. Não podes confiar num vampiro. Quanto mais agradáveis parecem,
mais perigosos são.
— Não tenciono ir a lado nenhum — disse-lhe. — O Samuel tem razão, os lobisomens não pagam tributos aqui. O mais provável é serem pessoas que não têm nada a ver com o desaparecimento
da Jesse.
O meu telemóvel começou a tocar.
— Mercy?
Era Stefan, mas havia qualquer coisa na sua voz que me inquietava. Também ouvi outra coisa, mas havia mais pessoas no bar e alguém tinha aumentado o volume da música.
— Espera um bocadinho — pedi-lhe em voz alta, e depois menti. — Desculpa, mas não te consigo ouvir. Vou lá para fora. — Acenei para Samuel e Zee e depois encaminhei-me para
o exterior, rumo ao parque de estacionamento.
Samuel veio comigo. Começou a falar mas levei o dedo indicador aos meus lábios. Não sabia quão apurada era a audição de um vampiro, mas não queria correr riscos.
— Mercy, consegues ouvir-me agora? — A voz de Stefan soava excessivamente seca e neutra.
— Sim — respondi. Também consegui escutar a voz da mulher que num tom doce lhe disse: «Pergunta-lhe, Stefan».
Inspirou como se a mulher desconhecida tivesse feito alguma coisa que o tivesse magoado.
— Está algum lobisomem forasteiro contigo no Tio Mike? — perguntou.
— Sim — respondi, olhando em volta. Não senti nenhum cheiro que se aproximasse do de Stefan, e tenho a certeza de que não me teria escapado. Os vampiros deviam ter um contacto
no Tio Mike, alguém que conseguisse perceber que Samuel era um lobisomem e que conhecesse os lobisomens de Adam.
— A minha senhora acha estranho o facto de não ter sido informada da chegada de um visitante.
— Os lobisomens não pedem permissão para vir até aqui, não à tua comunidade — expliquei-lhe. — O Adam sabe.
— O Adam desapareceu, deixando o bando sem líder. — Falavam ao mesmo tempo, as palavras dele tão próximas das dela que se pareciam com um eco.
Tinha praticamente a certeza de que ela não sabia que eu a conseguia ouvir — embora Stefan soubesse. Ele tinha conhecimento do que eu era porque eu lhe tinha mostrado. Aparentemente
optara por não informar o resto da sua comunidade. Evidentemente, alguém com tão pouco poder quanto eu não tinha particular interesse para os vampiros.
— O bando não está sem liderança — disse eu.
— O bando está enfraquecido — comentaram eles. — E os lobos abriram precedentes. Pagaram a permissão para entrarem no nosso território porque somos mais dominantes do que
o pequeno bando do Adam.
Samuel semicerrou os olhos e apertou os lábios. Os que tinham pagado aos vampiros eram os mesmos que tinham matado Mac, os mesmos que tinham levado Jesse.
— Então entre os novos visitantes há lobisomens — afirmei bruscamente. — Não são os lobos do Bran. Não podem ser um bando. São menos do que nada. Uns marginais sem estatuto.
Eu própria matei dois deles, e o Adam matou outros dois. E tu sabes que não tenho uma força por aí além. Os verdadeiros lobos, os lobos que vivem em bando, jamais teriam sucumbido
perante alguém tão fraco como eu. — Essa era a verdade, e tinha esperança de que ambos pudessem ouvi-la.
Fez-se uma longa pausa, conseguia ouvir murmúrios ao fundo, mas não era capaz de discernir o que estavam a dizer.
— Talvez tenhas razão — disse Stefan finalmente, numa voz cansada. — Anda ter connosco e traz o lobo que está contigo. Decidiremos se ele precisa de um passe de visitante.
Se não precisar, não vemos razão para não te contarmos o que sabemos sobre esses marginais.
— Não sei onde fica o vosso ninho.
— Eu vou buscar-vos — disse Stefan, aparentemente de moto próprio. Desligou.
— Parece que hoje à noite vamos fazer uma visita aos vampiros — anunciei. A dado ponto da conversa, Zee também tinha saído. Não tinha reparado quando, mas estava postado ao
lado de Samuel. — Sabes alguma coisa sobre vampiros?
Samuel encolheu os ombros.
— Coisa pouca. Cruzei-me com um uma ou duas vezes.
— Eu vou convosco — interveio o velho mecânico num tom suave, após o que emborcou o que restava do uísque que tinha levado para o exterior num copo pequeno. — Nada do que
eu sou vos vai servir de grande ajuda. O metal não é a desgraça deles. Mas sei algumas coisas sobre vampiros.
— Não — cortei. — Preciso de ti para uma outra coisa. Se amanhã de manhã não te telefonar, quero que ligues para este número. — Tirei da bolsa um velho recibo de uma mercearia
e escrevi o número de casa de Warren na parte de trás. — Este é o número da casa do Warren, o lobo que é o número três do Adam. Relata-lhe tudo o que sabes.
Pegou no recibo.
— Isto não me agrada. — Mas enfiou o papel no bolso numa aquiescência tácita. — Gostava que tivesses mais tempo para te preparares. Tens um símbolo da tua fé, Mercy? Uma cruz,
talvez? Não é tão eficaz como o Sr. Stoker deu a entender, mas ajuda.
— Eu uso uma cruz — comentou Samuel. — O Bran obriga-nos a todos a usar uma. Não há vampiros na zona de Montana onde vivemos, mas há outras coisas para as quais as cruzes
são úteis. — Alguns dos seres feéricos mais malévolos, por exemplo, mas Samuel não iria mencionar isso na presença de Zee. Seria indelicado. Do mesmo modo que Zee jamais mencionaria
que as terceira e quarta balas na arma que transportava eram de prata. Eu própria as fizera para ele. Não que ele próprio não fosse capaz de as fazer melhor do que eu, mas
se algum dia se viesse a meter numa embrulhada com lobisomens, calculei que seria por minha causa.
— Mercy? — perguntou Samuel.
Não gosto de cruzes. A minha aversão não tem nada que ver com a metafísica, como acontece com os vampiros; quando vivia no seio do bando de Bran, também eu usava cruzes. Podia
recitar todo um arrazoado sem interesse sobre quão doentio é andar com o instrumento da tortura de Cristo como símbolo do Príncipe da Paz que nos ensinou o amor mútuo. É um
bom arrazoado, e a verdade é que acredito nele.
A verdade é que me mexem com os nervos. Tenho uma memória muito vívida de uma ida à igreja com a minha mãe numa das suas raras visitas, quando tinha quatro ou cinco anos.
Ela era pobre e vivia em Portland; simplesmente não tinha dinheiro para me visitar com frequência. Portanto, quando aparecia gostava de fazer alguma coisa especial. Fomos
a Missoula passar um fim de semana de mãe e filha e, no domingo, escolhemos uma igreja ao acaso. Mais porque a minha mãe sentia que me devia levar à igreja do que propriamente
por ela ser particularmente religiosa, estou em crer.
Parou para falar com o pastor ou padre, e eu continuei a andar pelo interior do edifício, portanto, estava sozinha quando contornei a esquina e vi pendurada na parede uma
estátua descomunal de Cristo a morrer na cruz. Os meus olhos estavam exatamente ao nível dos seus pés, que estavam fixados à cruz com um enorme prego. Em princípio não deveria
ter ficado tão impressionada, mas alguém com muito talento tinha pintado aquilo de forma muito realista, com a representação do sangue. Naquele dia não voltámos a entrar numa
igreja — nem naquele dia nem nunca mais, porque não conseguia olhar para uma cruz sem ver o filho de Deus a morrer nela.
Portanto, nada de cruzes para mim. Todavia, tendo crescido no seio do bando de Bran, andava sempre com uma outra coisa. De forma relutante, puxei o meu colar e mostrei-o.
Samuel franziu o sobrolho. A pequena figura era estilizada; suponho que a princípio não conseguiu perceber o que era.
— Um cão? — perguntou Zee, fitando o meu colar.
— Um cordeiro — disse defensivamente, voltando a enfiá-lo cuidadosamente debaixo da t-shirt. — Porque um dos nomes de Cristo é «O Cordeiro de Deus».
Os ombros de Samuel tremeram ligeiramente.
— Parece que já estou a ver, a Mercy a deter uma multidão de vampiros com o seu reluzente cordeiro de prata.
Empurrei-o com força pelo ombro, consciente do calor que lhe trepava as faces, mas de nada serviu. Começou a cantar numa voz suave e sarcástica:
— A Mercy tinha um cordeirinho…
— Ao que sei, o que importa é a fé do portador — interveio Zee, embora também houvesse um quê de dúvida na sua voz.
— Presumo que nunca tenhas usado o teu cordeiro contra um vampiro?
— Não — respondi secamente, ainda zangada por causa da canção. — Mas se a estrela de David funciona, e o Bran diz que funciona, então isto também deve funcionar.
Virámo-nos todos para observar um carro a entrar no parque de estacionamento, mas os seus ocupantes saíram e, depois de o condutor ter cumprimentado Zee tocando nas abas de
um chapéu imaginário, entraram no Tio Mike. Nenhum vampiro naquele grupo.
— Há mais alguma coisa que devamos saber? — perguntei a Zee, que parecia ser o mais bem informado entre nós. As únicas certezas que eu tinha em relação aos vampiros tinham
como título «Mantenha-se Afastado».
— Rezar não funciona — disse. — Embora pareça ter algum efeito sobre os demónios e alguns dos seres feéricos negros mais velhos. O alho não funciona…
— Exceto como repelente para insetos — interrompeu Stefan, aparecendo subitamente de entre dois carros estacionados atrás de Zee. — Não provoca danos, mas cheira mal e sabe
ainda pior. Se não irritares nenhum de nós, e te certificares de que levas um amigo que não comeu alho, pelo menos conseguirás fazer com que sejas posto no final da ementa.
Não o tinha ouvido aproximar-se, não o tinha visto ou sentido a sua presença até ter falado. Não sei de onde, Zee sacou de um punhal de lâmina escura, tão longo quanto o meu
braço, e colocou-se entre mim e o vampiro. Samuel rosnou.
— Peço desculpa — disse Stefan humildemente, depois de constatar o quanto nos tinha assustado. — Mover-me sem ser visto é um talento meu, mas normalmente não o uso com os
meus amigos. Acabei de viver um episódio desagradável e por isso ainda não baixei a guarda.
Stefan era alto, mas deixava-me sempre a impressão de ocupar menos espaço do que devia, por isso raramente pensava nele como um homem grande, a menos que estivesse ao lado
de outra pessoa. Reparei que tinha precisamente a mesma altura que Samuel e era quase tão largo de ombros, embora não fosse tão entroncado como um lobisomem.
O seu rosto tinha traços harmoniosos e, a dormir, talvez pudesse ser considerado atraente, suponho. Porém as suas expressões eram tão imponentes que o desenho dos seus traços
era ofuscado pelo brilhante empenho do seu sorriso rasgado.
Porém, naquele preciso momento olhou-me com o cenho carregado.
— Considerando que te vou levar ao encontro da Senhora, preferia que te tivesses vestido um pouco melhor.
Olhei para baixo e percebi que vestia a mesma roupa que envergava quando tinha ido ver o que se passava na casa de Adam. Parecia que tinha sido uma semana antes e não duas
noites. A t-shirt tinha-me sido oferecida pelo próprio Stefan como forma de retribuir o facto de o ter ensinado a acertar o regulador na sua carrinha. Nela estava escrito
«A felicidade é a engenharia alemã, a cozinha italiana e o chocolate quente» e ostentava uma enorme mancha do chocolate quente que tinha entornado. Ao pensar no tempo que
tinha passado desde que a vestira, apercebi-me de que tinha um cheiro um pouco mais forte do que o habitual — e não era a detergente ou a amaciador.
— Chegámos ao final da tarde — desculpei-me. — Ainda não tive oportunidade de ir a casa mudar de roupa. Mas tu não estás muito melhor.
Olhou para baixo, inclinando-se para trás sobre os calcanhares e esticando os braços como um comediante num espetáculo de variedades que exagerasse os seus movimentos para
atrair o público. Vestia uma camisa preta informal de mangas compridas, desabotoada sobre uma t-shirt branca lisa, e calças de ganga com um buraco num dos joelhos. Nunca o
tinha visto em vestes mais formais, mas, não sei porquê, a sua roupa informal parecia sempre… de algum modo errada, como se estivesse enfiado num traje de fantasia.
— O quê, isto? — perguntou. — Este é o meu melhor look de vampiro — afirmou. — Talvez devesse ter vestido calças de ganga pretas e uma camisa preta, mas detesto exagerar.
— Pensava que nos vinhas buscar. — Olhei em volta deliberadamente. — Onde é que está o teu carro?
— Vim da forma rápida. — Não explicou o que isso era, mas prosseguiu: — Vejo que estás com a tua carrinha. Deve ter espaço de sobra para os quatro.
— O Zee vai ficar — disse-lhe.
Stefan sorriu.
— Para reunir as tropas.
— Sabes onde estão as pessoas que atacaram o Adam? — perguntei, em vez de comentar a observação de Stefan.
Abanou a cabeça pesarosamente.
— A Senhora não achou por bem contar-me mais do que aquilo que te transmiti. — O seu rosto imobilizou-se por instantes. — Nem sequer sei se o que ela me disse é verdade. Se
calhar não sabe nada. Talvez seja melhor arranjares uma desculpa para não ires, Mercy.
— Esses visitantes já mataram um homem e viraram a casa do Adam do avesso — disse-lhe. — Se a tua Senhora sabe onde eles estão, precisamos de ir perguntar-lhe.
Fez uma vénia estranhamente formal e voltou-se para encarar Samuel, exibindo-lhe um sorriso amplo sem desvendar as presas.
— Não o conheço. Deve ser o novo lobo na cidade.
Apresentei-os, mas tornou-se evidente que Samuel e Stefan não iam ser amigos imediatos — e não era por culpa de Stefan.
Fiquei um pouco surpreendida. Ambos partilhavam o charme descontraído que normalmente fazia as outras pessoas sorrir, no entanto o modo de Samuel era invulgarmente carrancudo.
Obviamente não gostava de vampiros.
Pulei para o interior da minha carrinha e esperei enquanto Stefan e Samuel discutiam muito educadamente sobre onde se sentariam. Ambos queriam ficar no banco de trás. Estava
disposta a acreditar que Stefan estava a tentar ser atencioso, mas Samuel não queria que o vampiro se sentasse atrás dele.
Antes de pôr de parte a polidez e dizer isso a Stefan, intrometi-me.
— Preciso que o Stefan vá à frente para me indicar o caminho.
Zee bateu no meu vidro e, quando liguei a carrinha para o baixar, entregou-me o punhal que tinha sacado na altura em que Stefan emergira das sombras, juntamente com um monte
de couro que parecia ser formado por uma bainha e um cinto.
— Leva isto — disse. — O cinto pode ser apertado para te servir.
— Posso? — perguntou Stefan provocadoramente ao mesmo tempo que se instalava no banco da frente. Depois de Zee acenar brevemente, passei-o para o lado.
O vampiro pegou no punhal com a lâmina virada para cima e examinou-a de todos os ângulos sob a luz do teto da carrinha. Ia devolver-mo, mas Samuel enfiou-se entre os lugares
da frente e tirou-o da mão dele. Verificou quão afiado era o gume encostando-o ao polegar ao de leve. Inspirando, afastou a mão e levou o polegar à boca.
Por instantes nada aconteceu. Depois uma espécie de poder percorreu a carrinha; não era o tipo de poder que os Alfas podiam convocar, nem se parecia com a magia que Elizaveta
Arkadyevna usava. Era de algum modo semelhante ao poder do glamour dos seres feéricos, e na minha boca senti o sabor a metal e sangue. Passado um breve momento, a noite voltou
a ficar calma.
— Diria que não é lá muito boa ideia manchar lâminas antigas com o seu sangue — disse Stefan suavemente.
Zee riu-se, um ruído gutural saído de uma boca escancarada que fez com que lançasse a cabeça para trás.
— Ouça o que o vampiro lhe diz, Samuel, Filho de Bran. A minha filha gosta demasiado do seu sabor.
Samuel devolveu-me o punhal e o cinto.
— Zee — disse Samuel. Depois, como se tivesse acabado de perceber alguma coisa, continuou em alemão — Siebold Adelbertkrieger aus dem Schwarzenwald.
— Siebold Adelbertsmiter da Reserva Feérica de Walla Walla — pronunciou Zee calmamente.
— Siebold Adelbert’s Smiter da Floresta Negra — traduzi, fazendo pela primeira vez uso dos meus dois anos de aprendizagem obrigatória de uma língua estrangeira. Não tinha
importância; em alemão ou em inglês, as palavras, que Sam fazia que soassem como um título honorífico, continuavam a não significar nada para mim.
Se formos a uma aldeia irlandesa, dizem-nos os nomes das criaturas feéricas que interagiram com os seus antepassados. Há pedras e lagos com os nomes dos brownies e kelpies18
que ali viveram. As histórias alemãs tendiam a concentrar-se nos heróis. Só algumas das criaturas feéricas, como Lorelei e Rumpelstiltskin, têm histórias onde aparecem os
seus nomes e são dadas informações a respeito do tipo de criaturas que são.
Samuel, todavia, sabia alguma coisa acerca de Zee.
Zee viu a expressão nos meus olhos e riu-se uma vez mais.
— Não comeces, rapariga. Vivemos no presente e o passado já lá vai.
Sou licenciada em História, uma das razões pelas quais sou mecânica. Sempre que posso, satisfaço a minha ânsia pelo passado lendo literatura romântica e romances históricos.
Já tinha tentado que Zee me contasse histórias, mas, tal como os lobisomens, não dizia grande coisa. O passado encerra muitos mistérios. No entanto, munida de um nome, ia
pesquisar na Internet no momento em que finalmente chegasse a casa.
Zee olhou para Stefan, e o riso dissipou-se dos seus olhos.
— Provavelmente o punhal não vai servir de grande ajuda contra os vampiros, mas ia sentir-me melhor se ela tivesse alguma coisa com que se defender.
Stefan assentiu com a cabeça.
— Será permitido.
O punhal repousava no meu colo como se nele não existisse nada de especial, mas ao recordar a carícia do poder, enfiei-o cuidadosamente na bainha.
— Não os olhes diretamente nos olhos — advertiu Zee abruptamente. — Isso também se aplica a si, Dr. Cornick.
— Não entres em jogos de dominação com os vampiros — disse Samuel. — Eu lembro-me.
A segunda metade desse velho aforismo lupino é «limita-te a matá-los». Fiquei contente por ele não a ter verbalizado.
— Mais algum aviso a fazer, vampiro que se diz amigo da Mercy? — perguntou Zee a Stefan.
Stefan encolheu os ombros.
— Não teria concordado com isto se acreditasse verdadeiramente que a Senhora tinha intenções maldosas. O principal problema dela é que se aborrece muito. A Mercy é muito boa
a dar respostas corteses que não comprometem nada. Se o lobo for capaz de fazer o mesmo, todos estaremos são e salvos nas nossas camas antes da madrugada.
17 Literalmente «Montículo das Fadas». (N. do T.)
18 Demónio aquático que se esconde nos lagos e rios e assume a forma de um cavalo, segundo a mitologia celta. (N. do T.)
10
Não tinha a menor suspeita sobre onde viveriam os vampiros. Suponho que tinha sido influenciada por todos aqueles filmes assistidos durante a madrugada e imaginava uma colossal
mansão vitoriana situada num bairro de má reputação. Era possível encontrar alguns vampiros ao longo da baixa de Kennewick, a maior parte dos quais muito elegante e pintada
como as antigas estrelas de ópera. E, dado que em volta existiam alguns bairros degradados, tendiam a eleger casas demasiado pequenas para sequer alojar um grupo pequeno de
vampiros.
O facto de estar a conduzir ao longo de uma rua com Mercedes, Porsches e BMWs estacionados em todas as elegantes rampas de entrada calcetadas não me devia ter surpreendido.
A estrada tinha sido aberta na encosta de uma colina sobranceira à cidade, e, durante trinta anos, médicos, advogados e diretores executivos tinham construído as suas casas
de mil e duzentos metros quadrados naqueles terrenos acentuadamente inclinados. Mas, tal como nos tinha dito Stefan, os vampiros tinham sido os primeiros a instalar-se lá.
No final da rua principal, entrámos numa estrada mais estreita, coberta de gravilha, que passava entre um par de edifícios de tijolo com dois pisos. Parecia-se com um caminho
de entrada, mas alongou-se através das casas até uma zona inexplorada que a elas se seguia.
Andámos cerca de quatrocentos metros entre a habitual vegetação de Washington oriental — sobretudo erva alta, artemísias e ervas daninhas — e depois subimos uma pequena elevação
que tinha a dimensão certa para esconder uma extensa quinta com uma casa de dois pisos, rodeada por um muro de dois metros e meio. À medida que descíamos a estrada da colina,
a nossa visão da casa ficou limitada ao que conseguíamos distinguir através do portão duplo de ferro forjado. Achei que os amplos arcos ao estilo espanhol que adornavam as
faces do edifício disfarçavam muito bem a escassez de janelas.
Obedecendo à indicação de Stefan, estacionei junto aos muros, onde o terreno tinha sido nivelado. O vampiro pulou para o exterior do veículo e contornou-o para abrir a minha
porta, após o que Samuel saiu da carrinha.
— Deixo isto aqui? — perguntei a Stefan, empunhando o punhal de Zee. Durante a viagem, tinha concluído que uma vez que era demasiado grande para ser escondido sem o glamour
feérico, que era algo que eu não possuía, talvez fosse boa ideia não o levar.
Stefan encolheu os ombros, batendo com as mãos nas coxas ao de leve como se estivesse a ouvir uma música que eu não ouvia. Era um comportamento habitual nele; eram raras as
vezes em que estava completamente imóvel.
— Levares um artefacto tão antigo pode fazer com que te respeitem mais — comentou Samuel, que tinha acabado de contornar a carrinha. — Leva-o.
— Estava preocupada com a possibilidade de passar a ideia errada — expliquei.
— Não me parece que venha a existir qualquer tipo de violência hoje — disse Stefan. — O punhal não vai despoletar nada. — Exibiu-me um sorriso rasgado. — Embora seja ilegal
neste Estado. Não te podes esquecer de tirá-lo quando te fores embora.
Dito aquilo, envolvi as minhas ancas várias vezes com o cinto de couro. Tinha uma fivela feita à mão sem fuzilhão na extremidade, pelo que enfiei a outra extremidade na fivela
e atei-a.
— Está muito solto — indicou Stefan, aproximando-se, mas Samuel agarrou o cinto primeiro.
— Aperta-se à volta da cintura — dizia ao mesmo tempo que mo ajustava. — Depois empurra-se até às ancas para que o peso da lâmina não faça com que caia pelas pernas abaixo.
Depois de satisfeito com o trabalho feito, afastou-se.
— Eu não sou o inimigo — disse-lhe Stefan calmamente.
— Nós sabemos disso — afirmei.
Stefan deu uma palmadinha no meu ombro, mas continuou:
— Não sou seu inimigo, Lobo. Corri mais riscos do que possa imaginar ao colocar-vos aos dois sob minha proteção. A Senhora queria que fossem outros vampiros a ir buscar-vos,
e não me parece que vocês iriam gostar disso.
— Porquê correr o risco? — inquiriu Samuel. — Porquê colocar-nos sob a sua proteção? Eu sei o que isso significa. Você não me conhece, e a Mercy é apenas a sua mecânica.
Stefan soltou uma risada, ainda com a mão sobre o meu ombro.
— A Mercy é minha amiga, Dr. Cronick. A minha mãe ensinou-me a olhar pelos meus amigos. A sua não?
Estava a mentir. Não sei por que razão estava tão certa disso, mas estava.
Alguns lobisomens conseguem perceber se uma pessoa está a mentir. Eu apenas consigo fazer isso se se tratar de alguém que eu conheça muito bem, e se estiver a prestar atenção.
Tem a ver com a alteração nos sons normais que uma pessoa produz — respiração e pulsação, coisas desse género. Normalmente não presto muita atenção. Nunca fui capaz de descortinar
nada em relação a Stefan, nem mesmo as habituais emoções que esses odores tão distintos traduzem. E a pulsação e respiração de Stefan tendiam a ser irregulares. Por vezes
achava que respirava apenas porque sabia quão desconfortáveis se sentiam as pessoas quando não o fazia.
Ainda assim, sabia que tinha mentido.
— Acabaste de nos mentir — disse-lhe. — Por que é que nos estás a ajudar? — Saí de debaixo da mão dele para me poder voltar e encará-lo, colocando Samuel atrás de mim.
— Não temos tempo para isto — replicou Stefan, e parte da vivacidade habitual desapareceu-lhe do rosto.
— Preciso de saber se podemos confiar em ti. Ou pelo menos até que ponto podemos confiar em ti.
Fez um daqueles seus gestos grandiloquentes de ilusionista, lançando os braços para cima e pondo a cabeça para trás — mas senti como que um fino manto de magia verdadeira
a pousar à nossa volta. Tal como Zee, sabia a terra, mas havia no feitiço de Stefan elementos mais negros do que em qualquer um dos feitiços que o gremlin tinha executado
comigo por perto.
— Está bem — disse. — Mas não me culpes a mim se ela estiver de mau humor por a termos deixado à espera. Telefonaste-me hoje à noite com uma pergunta.
— O que é que fez agora mesmo? — perguntou Samuel calmamente.
Stefan soltou um suspiro exasperado.
— Garanti que só nós os três iremos participar nesta conversa. No escuro da noite há coisas que ouvem muito bem.
Voltou a concentrar a atenção em mim.
— Quando telefonei à nossa contabilista, ela passou-me logo a chamada à nossa Senhora, o que não corresponde ao procedimento habitual. A nossa Senhora estava obviamente mais
interessada no teu Dr. Cornick do que na tua pergunta. Ela foi ter comigo e obrigou-me a ligar-te de volta; a intenção dela não era que eu te acompanhasse. Nem queria que
tivesses uma proteção por aí além, mas depois de eu me ter oferecido, não me podia contradizer. Estou aqui, Mercy, porque quero descobrir que coisa foi essa que tirou a minha
Senhora do estado de letargia em que vive desde que foi desterrada e enviada para aqui. Preciso de saber se é uma coisa boa ou se é uma coisa má para mim e para a minha espécie.
Assenti com a cabeça.
— Está bem.
— Mas teria feito a mesma coisa apenas em nome da amizade — acrescentou.
Inesperadamente, Samuel gargalhou de forma um pouco amarga.
— Claro que sim. Todos nós fazemos coisas pela nossa Mercy apenas em nome da amizade — disse.
Stefan não nos conduziu através dos portões principais, que eram suficientemente largos para que por entre eles passasse um camião de mercadorias, mas através de uma pequena
porta aberta no muro lateral.
Contrastando com a vegetação enfezada do lado de fora dos portões, o jardim interior estava cuidadosamente tratado. Mesmo em novembro, a relva mostrava-se escura e exuberante
sob a luz esbranquiçada da Lua. Algumas rosas espreitavam de zonas protegidas perto da casa, e os últimos crisântemos ainda tinham alguns botões. Era um jardim tipicamente
francês, com canteiros organizados e um tratamento meticuloso. Se fosse uma casa vitoriana — ou ao estilo Tudor — o conjunto seria maravilhoso. Junto a uma casa de estilo
espanhol em adobe, o jardim simplesmente parecia estranho.
Videiras despidas pelo inverno alinhavam o muro. Ao luar faziam lembrar uma fileira de homens mortos, pendurados com os braços bem abertos e crucificados nas estruturas que
os suportavam.
Estremeci e aproximei-me do calor de Samuel. Lançou-me um olhar estranho, decerto sentindo o odor da minha inquietação, mas colocou o braço no meu ombro e puxou-me para mais
perto dele.
Seguimos por um caminho calcetado que passava junto de uma piscina, coberta para o inverno, e contornava a esquina da casa, desembocando num grande relvado. Do outro lado
do relvado erigia-se uma casa de hóspedes de dois pisos com quase um terço do tamanho da casa principal. Foi na direção deste edifício mais pequeno que Stefan nos conduziu.
Bateu duas vezes à porta, abriu-a e acenou para que entrássemos num vestíbulo agressivamente decorado com as cores e texturas do sudoeste americano; a isso juntavam-se vasos
de barro e bonecas kachina. Mas até a decoração passava completamente para segundo plano em face do cheiro a flores e ervas desconhecidas, e não dos expectáveis odores do
deserto.
Espirrei e Samuel enrugou o nariz. Talvez toda aquela profusão de cheiros tivesse como propósito confundir os nossos olfatos — mas era apenas forte, não cáustico. Apesar de
desagradável, não me impediu de sentir o cheiro a couro velho e tecidos putrefactos. Lancei um breve olhar discreto em volta, mas não vi nada que explicasse o cheiro a putrefação;
tudo parecia novo.
— Esperamos por ela na sala de estar — disse Stefan, indicando o caminho através dos tetos altíssimos de uma sala e de um corredor de ligação.
A divisão para a qual nos levou tinha o dobro da dimensão do maior compartimento da minha caravana. A avaliar pelo que tinha visto do resto da casa, era acolhedora. O tema
do sudoeste tinha ficado para trás, mas ainda predominavam os tons quentes terra.
Os assentos eram confortáveis, se se gostar de mobiliário macio e fofo. Stefan instalou-se numa cadeira e pareceu muito relaxado enquanto o móvel o engolia. Precipitei-me
para a borda frontal do sofá, que era ligeiramente mais firme, se bem que as almofadas me abrandariam um pouco os movimentos se tivesse de me mexer depressa.
Samuel sentou-se numa cadeira idêntica à de Stefan, mas pôs-se de pé assim que começou a afundar-se. Caminhou em passo imponente até ao espaço atrás do sofá onde estava sentada
e pôs-se a olhar para o exterior através da enorme janela que dominava a sala. Era a primeira janela que via em toda a casa.
A luz da Lua penetrou na divisão, lançando feixes ternos contra o seu rosto. Fechou os olhos e deliciou-se com ela, e consegui perceber que o chamava, apesar de não estar
cheia. Ela não falava comigo, mas Samuel em tempos descrevera-me a canção dela nas palavras de um poeta. A expressão de maravilhamento na sua cara enquanto ouvia a sua música
fazia-o belo.
Não era a única a achar isso.
— Oh, mas que belo — disse uma voz; uma voz gutural, com um ligeiro sotaque europeu, a que se seguiu o aparecimento de uma mulher que trajava um vestido de seda dourada, curto
e semi-formal, que ficava esquisito combinado com sapatilhas de corrida e meias de desporto a tapar a barriga das pernas.
Os seus caracóis loiros avermelhados estavam apanhados no topo da cabeça com uma excentricidade elegante e montes de travessões, revelando uns brincos pendentes com diamantes
que condiziam com o colar trabalhado que trazia ao pescoço. Em redor dos olhos e da boca distinguiam-se rugas ligeiras.
Tinha um cheiro parecido com o de Stefan, portanto vi-me obrigada a supor que era uma vampira. No entanto, as rugas no seu rosto surpreenderam-me. Stefan tinha o aspeto de
alguém na casa dos vinte anos, o que de algum modo tinha feito com que achasse que os vampiros eram como os lobisomens, cujas células se reparavam a si mesmas e removiam os
danos provocados pela idade, pela doença e pela experiência.
A mulher entrou na sala em passo suave e seguiu o caminho mais curto em direção a Samuel, que se voltou para olhá-la gravemente. Quando se curvou para ele e se pôs em bicos
de pés para lhe lamber o pescoço ao de leve, ele fez deslizar uma mão até à base do seu crânio e olhou para Stefan.
Desloquei-me ligeiramente para a borda do sofá e virei-me de modo a conseguir vê-los por sobre as costas do sofá. Não estava particularmente preocupada com Samuel — estava
preparado para lhe partir o pescoço. Talvez um humano não fosse capaz de fazê-lo, mas ele não era humano.
— Lilly, minha bela Lilly — suspirou Stefan, cuja voz perfurou a tensão na sala. — Não lambas os convidados, querida. É falta de educação.
Deteve-se, com o nariz encostado a Samuel. Agarrei o punho do punhal de Zee e desejei não ter de usá-lo. Samuel era capaz de se proteger, esperava, mas não gostava de magoar
mulheres — e a Lilly de Stefan tinha um aspeto muito feminino.
— Ela disse que nos podíamos entreter com os convidados. — Lilly parecia uma criança petulante que acaba de perceber que a ida prometida à loja dos brinquedos está prestes
a ser adiada.
— Tenho a certeza de que o que ela queria dizer é que tu devias entreter os nossos convidados, meu doce. — Stefan manteve-se sentado na cadeira, mas tinha os ombros tensos
e o corpo inclinado para a frente.
— Mas ele cheira tão bem — murmurou ela. Fiquei com a impressão de que tinha movido a cabeça para a frente, mas devia estar enganada uma vez que Samuel não se mexeu. — É tão
quente.
— É um lobisomem, querida Lilly. Não seria propriamente uma refeição fácil. — Stefan levantou-se e contornou em passo lento o sofá onde me encontrava sentada. Pegando numa
das mãos de Lilly, beijou-a. — Vem entreter-nos, minha donzela.
Separou-a suavemente de Samuel e acompanhou-a cerimoniosamente até junto de um piano vertical encaixado num canto da sala. Puxou o banco para trás e ajudou-a a sentar-se.
— O que é que eu devo tocar? — perguntou. — Não quero tocar Mozart. Ele era tão rude…
Stefan tocou-a na face com as pontas dos dedos.
— Com certeza. Toca o que te apetecer e nós ouvimos.
Ela suspirou — um som exagerado acompanhado por um baixar de ombros — e depois, como uma marioneta, endireitou-se da cabeça aos pés e colocou as mãos sobre o teclado.
Não gosto de música para piano. Quando era pequena, só havia uma professora de música em Aspen Creek, e ela tocava piano. Andei durante quatro anos a martelar melodias meia
hora por dia e a cada ano que passava detestava piano ainda mais. O piano também me odiava.
Bastaram alguns compassos para me aperceber de que estava enganada em relação ao piano — pelo menos quando Lilly tocava nele. Não parecia possível que todo aquele som viesse
de um pequeno piano vertical e da mulher enfezada sentada diante de nós.
— Liszt — sussurrou Samuel, afastando-se da janela e sentando-se nas costas do sofá onde me encontrava. A seguir fechou os olhos e ouviu, tal como tinha ouvido a Lua.
Stefan afastou-se do piano assim que Lilly se concentrou na sua música. Recuou para se colocar de pé ao meu lado e depois estendeu um braço.
Lancei um olhar de soslaio a Samuel, mas ainda estava abstraído com a música. Agarrei a mão de Stefan e ele puxou-me até que ficasse de pé. Levou-me até ao lado oposto da
sala, largando-me em seguida.
— Não foi o facto de ser vampira que a tornou assim — disse, não propriamente num sussurro, mas num tom baixo que não se sobrepusesse à música. — O seu criador encontrou-a
a tocar piano num bordel de luxo. Decidiu que a queria no seu ninho, portanto levou-a antes de se aperceber de que ela era amalucada. Em circunstâncias normais, teria sido
morta: é perigoso ter uma vampira que não tenha controlo sobre si própria. Eu sei que os lobisomens fazem o mesmo. No entanto, como ninguém conseguia suportar a ideia de perder
a sua música, foi mantida no ninho e guardada como o tesouro que é. — Fez uma pausa. — Mas normalmente não lhe é permitido circular à vontade. Há sempre vigilantes destacados
para a manter a ela e aos nossos convidados em segurança. Talvez a nossa Senhora se queira divertir um bocado.
Observei as mãos delicadas de Lilly moverem-se velozmente sobre as teclas e a produzirem música que denotava um poder e um intelecto que ela própria não tinha. Pensei no que
tinha acontecido quando Lilly entrara no quarto.
— E se o Samuel tivesse reagido mal? — perguntei.
— Não teria a menor hipótese contra ele. — Stefan, com um ar triste, baloiçou-se sobre os calcanhares. — Ela não tem nenhuma experiência em enfrentar presas involuntárias,
e o Samuel é velho. A Lilly é preciosa para nós. Se ele a tivesse magoado, todo o grupo teria exigido vingança.
— Chiu — disse Samuel.
Tocou Liszt por muito tempo. Não as peças líricas mais antigas, mas as que compôs depois de ouvir Paganini, o violinista radical. No entanto, mesmo a meio de uma das suas
loucas sucessões de notas, mudou para uma peça de blues que não reconheci, algo suave e relaxado que preguiçava na divisão como um gato grande. Tocou Beatles, um pouco de
Chopin e algo com um estilo vagamente oriental antes de se lançar nos acordes familiares da Eine Kleine Nachtmusik.
— Pensava que não ias tocar Mozart — disse Stefan depois de ela acabar de tocar a peça e começar a ensaiar uma melodia com a mão direita.
— Eu gosto da música dele — explicou ao teclado. — Mas ele era um porco. — Lançou estrondosamente as palmas às teclas duas vezes. — Mas ele está morto e eu não. Não morta.
Eu não ia discutir com ela. Não depois de um dos seus delicados dedos ter partido uma tecla. Os outros também não disseram nada.
Levantou-se abruptamente e caminhou pela sala em passada larga. Hesitou diante de Samuel, mas quando Stefan aclarou a garganta, ela seguiu velozmente na sua direção e beijou-o
no queixo.
— Agora vou comer-te — disse ela. — Estou com fome.
— Tudo bem. — Stefan abraçou-a e depois conduziu-a para fora da sala com um ligeiro empurrão.
Durante o tempo que ali tinha estado não olhara para mim uma única vez.
— Então acha que nos estão a montar uma cilada, não é? — perguntou Samuel com uma alegria preguiçosa que parecia de certo modo deslocada.
Stefan encolheu os ombros.
— A si, a mim, à Lilly. Escolha à vontade.
— Parece-me demasiado perigoso — arrisquei. — Se o Samuel morresse, o Bran reduzia isto a escombros. Não ia escapar um único vampiro em todo o Estado. — Olhei para Stefan.
— A tua senhora pode ser poderosa, mas os números têm peso. Tri-Cidades não é assim tão grande. Se vocês fossem às centenas, eu teria dado por isso. O Bran pode convocar todos
os Alfas da América do Norte.
— É bom saber como somos estimados pelos lobos. Vou certificar-me de que a nossa Senhora saiba que deve deixar os lobos em paz porque tem razões para os temer — disse uma
mulher mesmo atrás de mim.
Saltei para a frente e virei-me, e de repente Stefan estava entre mim e a nova vampira. Esta não era nem etérea nem sedutora. Se não fosse vampira, ter-lhe-ia dado cerca de
sessenta anos, com cada ano gravado nas rugas de desaprovação sinistra que lhe atravessavam a cara.
— Estelle — disse Stefan. Não consegui perceber se era uma saudação, uma apresentação ou uma admoestação.
— Mudou de ideias. Não quer vir cá acima conversar com o lobo. Eles podem ir ter com ela antes. — Estelle aparentemente não tivera qualquer reação em relação a Stefan.
— Estão sob minha proteção. — A voz de Stefan adquiriu uma qualidade sombria que nunca lhe tinha ouvido.
— Ela diz que também podes ir, se quiseres. — Olhou para Samuel. — Vou precisar de tirar qualquer cruz ou objeto sagrado que esteja a usar, por favor. Não permitimos a presença
de pessoas armadas junto da nossa Senhora.
Estendeu um saco de couro com ouro trabalhado em relevo e Samuel desenganchou o colar. Quando o tirou de debaixo da camisa, não brilhava. Não passava de um pedaço de metal
vulgar, mas notei o seu estremecimento involuntário quando lhe passou perto da pele.
Olhou para mim e puxei o colar de debaixo da t-shirt, mostrando-lhe o meu cordeiro.
— Não tenho nenhuma cruz — disse-lhe numa voz suave. — Não estava a contar falar com a sua Senhora esta noite.
Nem sequer relanceou os olhos ao punhal de Zee, porventura não o considerando uma arma. Depois de apertar o cordão com força, segurou-o e deixou o saco a baloiçar.
— Venham comigo.
— Eu levo-os lá abaixo daqui a nada — anunciou Stefan. — Diz-lhe que nós já vamos.
A outra vampira ergueu as sobrancelhas mas saiu sem dizer uma única palavra, transportando o saco com a cruz de Samuel.
— Passa-se alguma coisa que eu não sei — disse Stefan rapidamente. — Consigo proteger-vos da maior parte dos vampiros que estão aqui, mas não da Senhora. Se vocês quiserem,
levo-vos para longe daqui e tento descobrir a informação sozinho.
— Não — disse Samuel. — Agora que estamos aqui, vamos levar a coisa até ao fim.
As palavras de Samuel foram pronunciadas de forma pouco clara e vi Stefan a lançar-lhe um olhar severo.
— Uma vez mais, ofereço-me para vos escoltar daqui para fora. — Naquela ocasião, Stefan olhou para mim. — Não ia deixar que nenhum mal vos acontecesse, nem a vocês nem aos
vossos.
— Consegues descobrir onde estão os outros lobos mesmo que ela não queira? — perguntei-lhe.
Hesitou, o que para mim era resposta mais do que suficiente.
— Nesse caso vamos falar com ela — afirmei.
Stefan assentiu com a cabeça, mas não como se a minha decisão o agradasse particularmente.
— Nesse caso, vejo-me forçado a repetir as palavras ditas pelo vosso gremlin. Não a olhem diretamente nos olhos. Provavelmente está acompanhada de outros vampiros, embora
eu não saiba se ela irá permitir que vocês os vejam. Não olhem para os olhos de ninguém. Há aqui quatro ou cinco com capacidade para perturbar inclusive o lobo.
Rodou sobre si mesmo e indicou o caminho em direção a uma alcova com uma escada de caracol em ferro forjado. Quando começámos a descer, pensei que íamos para a cave, porém
a escada continuava a descer. Pequenas luzes na parede de cimento que rodeava a escada acendiam-se à passagem de Stefan. Permitiam-nos ver as escadas — e perceber que estávamos
a descer através de um tubo de cimento, todavia não eram suficientemente potentes para que pudéssemos distinguir muito mais. Através de pequenos respiradouros entrava ar fresco,
que, apesar de manter o ar circular, impedia-me de cheirar o que quer que viesse de baixo.
— Quanto mais é que vamos ter de descer? — perguntei, tentando combater o desejo claustrofóbico de correr escada acima.
— Cerca de seis metros da superfície. — A voz de Stefan ecoou um pouco, ou então alguma coisa abaixo de nós emitiu um ruído.
Talvez apenas estivesse agitada.
Finalmente a escada acabou num chão de cimento. Mas mesmo com a minha visão noturna, a escuridão era tão absoluta que a minha vista alcançava apenas escassos metros em todas
as direções. O cheiro a lixívia dançava por entre diversos cheiros que nunca tinha sentido antes.
Stefan mexeu-se e uma série de luzes fluorescentes ganhou vida. Estávamos num compartimento despido com o chão, as paredes e o teto em cimento. O efeito geral era o de esterilidade
e vazio.
Stefan não parou, continuou através do compartimento e entrou num túnel estreito que ia inclinado ligeiramente para cima à medida que caminhávamos. O túnel tinha, em intervalos
regulares, portas de aço sem puxadores ou maçanetas. Conseguia ouvir coisas a mexer-se atrás das portas e acelerei o passo até tocar no ombro de Samuel para me sentir mais
segura. Quando passei em frente à última porta, alguma coisa bateu contra ela, produzindo um estrondo surdo que ecoou longe de nós. Atrás de uma outra porta, alguém — ou alguma
coisa — desatou numa sucessão de gargalhadas agudas e desesperadas que terminaram numa série de gritos.
Quando tudo acabou, estava praticamente montada em Samuel, mas ele continuava relaxado, e a sua respiração e pulsação ainda nem sequer tinham começado a acelerar. Maldito
lobo. Eu só tinha conseguido respirar fundo depois de termos deixado as portas para trás.
O túnel descreveu uma curva apertada, e o chão transformou-se num íngreme lanço de doze degraus que desembocou numa divisão com paredes curvas revestidas a gesso, chão de
madeira e iluminação suave. Diretamente em frente à escadaria estava um sumptuoso sofá de couro cor-de-café cujas formas se harmonizavam com as paredes.
Uma mulher reclinada sobre duas almofadas demasiado cheias e cobertas com tapeçaria apoiou-se num dos braços do sofá. Vestia seda. Senti o cheiro do resíduo dos bichos-da-seda,
da mesma maneira que consegui sentir o odor ténue que começava a identificar com os vampiros.
O vestido era simples e caro, revelando a sua figura num redemoinho de cores entre o roxo e o vermelho. Os seus pés estreitos, descalços e com as unhas pintadas também de
roxo e vermelho, estavam pousados sobre o sofá, portanto, os joelhos serviam-lhe de encosto ao livro brochado que estava a ler.
Acabou de ler a página, dobrou uma esquina e pousou-o descuidadamente no chão. Fez deslizar as pernas para fora do sofá e mudou de posição de modo a ficar de cara voltada
para nós antes de levantar o olhar e nos fitar. Os gestos foram feitos com uma graciosidade tal que não consegui tirar os olhos dela.
— Apresenta-nos, Stefano — disse numa voz grave de contralto, enriquecida por um ligeiro sotaque italiano.
Stefan inclinou a cabeça, um gesto formal que deveria parecer estranho considerando as suas calças de ganga rasgadas, mas que em vez disso se revelou de certo modo elegantemente
antiquado.
— Signora Marsilia — disse —, permita-me que lhe apresente a Mercedes Thompson, uma extraordinária mecânica de automóveis, e o seu amigo, o Dr. Samuel Cornick, que é filho
do Marrok. Mercy, Dr. Cornick, apresento-vos a Signora Marsilia, Senhora do Ninho de Mid-Columbia.
— Bem-vindos — disse ela.
Tinha-me feito confusão o facto de as duas mulheres do piso de cima me terem parecido tão humanas, com as suas rugas e imperfeições. Em Stefan havia um toque de diferença
que eu conseguia ver. Sabia que não era humano desde a primeira vez que o tinha visto. No entanto, à exceção do odor característico de vampiro, as outras duas mulheres teriam
passado por humanas.
Aquela que estava à minha frente não.
Fixei-me nela, tentando perceber o que é que estava a fazer com que os pelos da minha nuca se eriçassem. Aparentava ser uma mulher na casa dos vinte e poucos. Evidentemente,
tinha morrido e transformara-se em vampira antes que a vida deixasse marcas nela. O seu cabelo era loiro, cor que não associava a Itália. Os seus olhos eram escuros, contudo,
tão escuros quanto os meus.
Desviei apressadamente os olhos dela e a minha respiração acelerou quando me apercebi quão fácil era esquecer. No entanto, ela não estava a olhar para mim. Tal como acontecia
com os outros vampiros, a sua atenção estava concentrada em Samuel, e compreensivelmente. Ele era filho do Marrok, o filho de Bran, uma pessoa influente e não uma mecânica
de VW. Embora, na verdade, a maioria das mulheres preferisse olhar para ele do que para mim.
— Disse alguma coisa que a tenha divertido, Mercedes? — perguntou Marsilia. A sua voz era agradável, mas havia como que um poder por detrás dela, algo semelhante ao poder
que os Alfas conseguiam convocar.
Decidi dizer-lhe a verdade e ver o que ela fazia a partir disso.
— É a terceira mulher que praticamente me ignora esta noite, Signora Marsilia. No entanto, acho perfeitamente compreensível, uma vez que eu própria também tenho dificuldade
em desviar a atenção do Dr. Cornick.
— É habitual ter esse efeito sobre as mulheres, Dr. Cornick? — perguntou-lhe maliciosamente. A verdade é que a sua atenção se mantinha concentrada nele.
Samuel, o imperturbável Samuel, balbuciou:
— Eu… eu não… — Parou e inspirou, e a seguir, recuperando um pouco o modo que lhe era habitual, disse: — Espero que tenha mais sorte com o sexo oposto do que eu.
Ela riu-se, e finalmente percebi o que me incomodava. Havia qualquer coisa de deslocado nas suas expressões e nos seus gestos, como se estivesse a imitar o comportamento dos
humanos. Intui que sem a nossa presença, sem aquela necessidade de encenar algo perante nós, a sua aparência não seria de todo humana.
Zee tinha-me contado que os grandes avanços no campo da animação digital permitiam aos realizadores criar pessoas animadas por computador idênticas aos humanos. Mas que todavia
descobriram que a partir de um determinado ponto, quanto mais reais pareciam as personagens, mais os espectadores sentiam repulsa por elas.
Naquele momento percebi exatamente o que ele queria dizer.
Quase tudo nela parecia certo. O seu coração batia, respirava regularmente. A pele estava um tudo-nada ruborescida, como a de uma pessoa que tivesse acabado de caminhar ao
frio. Mas havia nos seus sorrisos algo de ligeiramente errado: como se surgissem demasiado cedo ou demasiado tarde. A sua imitação de um humano estava muito próxima da perfeição,
mas não suficientemente próxima para ser real — e essa pequena diferença estava a provocar-me calafrios.
Normalmente não tenho os problemas de controlo que os lobisomens têm — os coiotes são adaptáveis e afáveis. Mas naquele momento, se estivesse na forma de coiote, ter-me-ia
posto em fuga o mais depressa que conseguisse.
— Aqui o meu Stefano disse-me que andam à procura de informações sobre os visitantes que me pagaram uma quantia tão generosa para os deixar em paz. — Tinha voltado a ignorar-me,
circunstância que na verdade não me desagradava.
— Sim. — Samuel manteve o tom de voz suave, quase devaneador. — Vamos acabar por encontrá-los, mas as suas informações podem ser-nos úteis.
— Depois de vos dar a informação de que disponho — disse com a voz a ressoar-lhe na garganta, como se fosse um gato —, falaremos um pouco sobre o Marrok e aquilo que ele dará
como forma de retribuição.
Samuel abanou a cabeça.
— Lamento, Signora, mas não tenho autoridade para discutir esse assunto. Terei todo o gosto em transmitir qualquer mensagem que tenha para o meu pai.
Ela fez beicinho, e senti o impacto da sua intenção sobre ele, consegui cheirar os primeiros sinais da sua excitação. As coisas assustadoras que faziam barulho atrás das portas
de aço não lhe tinham feito a pulsação acelerar, mas a Senhora do ninho era capaz disso. Inclinou-se para a frente e Samuel percorreu a distância que os separava até o rosto
dela ficar a escassos centímetros da zona pélvica dele.
— Samuel — disse Stefan em voz baixa. — Tem sangue no pescoço. A Lilly cortou-o?
— Deixe-me ver — sugeriu a Signora. Inspirou profundamente e depois emitiu um ruído ávido que se parecia com o chocalhar de ossos velhos e secos. — Eu trato-lhe disso.
De algum modo, aquela não me pareceu ser a melhor das ideias, e não fui a única a achar isso.
— Estão sob minha proteção, Senhora — interveio Stefan num tom rigidamente formal. — Trouxe-os aqui para que pudesse falar com o filho do Marrok. A segurança deles é a minha
honra, e por pouco não a perdi quando a Lilly foi ter connosco sem estar acompanhada. Não gostaria de acreditar que os seus desejos contradizem a minha honra.
Ela fechou os olhos e deixou cair a cabeça, repousando a testa na barriga de Samuel. Ouvi-a inspirar fundo uma vez mais, e a excitação de Samuel cresceu como se se ela a estivesse
a sugar com a sua inalação.
— Já lá vai tanto tempo — sussurrou. — O poder dele chama-me como um brandy numa noite de inverno. Torna-se difícil pensar. Quem estava encarregado de vigiar a Lilly quando
ela foi ter com os meus convidados?
— Vou tratar de saber — respondeu Stefan. — Teria todo o prazer em trazer os miseráveis até si e ver uma vez mais como cuida dos seus, Senhora.
Marsilia assentiu com a cabeça e Samuel grunhiu, fazendo com que ela abrisse os olhos. Já não eram escuros, mas brilhavam num fogo vermelho e dourado à luz fraca do compartimento.
— O meu controlo já não é tão bom como em tempos — murmurou. De certo modo esperava que, com o calor das chamas nos olhos, a sua voz se tornasse mais severa, mas em lugar
disso suavizou-se e tornou-se sedutoramente mais grave, fazendo inclusive com que o meu corpo reagisse. E, por norma, as mulheres não despertam aquele tipo de sensação em
mim.
— Esta seria uma boa altura para sacares do teu cordeiro, Mercy. — A atenção de Stefan estava de tal modo concentrada no outro vampiro que precisei de uns instantes até perceber
que estava a falar comigo.
Estava a aproximar-me de Samuel. Cinco anos de prática de artes marciais tinham-me valido um cinturão roxo, os músculos para levantar peças de carros quase tão bem quanto
os homens e o entendimento de que a minha habilidade insignificante não servia de nada contra um vampiro.
Ponderei se seria sensato sacudir Samuel para longe dela, mas algo que os meus sentidos me vinham tentando dizer há algum tempo finalmente se aclarou: havia ali outros, outros
vampiros que não conseguia ver ou ouvir — apenas farejar.
O conselho de Stefan ofereceu-me uma opção melhor, portanto saquei do colar. A corrente era suficiente grande para a fazer passar em volta da cabeça, e deixei-a a baloiçar
da minha mão assim que Marsilia se mexeu.
Cresci com lobisomens que corriam mais depressa do que galgos, e eu sou ainda um bocadinho mais rápida do que eles — mas ainda assim não consegui ver Marsilia a mexer-se.
Num momento estava encostada à parte da frente das calças de ganga de Samuel e no seguinte as suas pernas estavam presas à volta da cintura dele e tinha a boca no seu pescoço.
Tudo o que aconteceu a seguir pareceu acontecer devagar, embora suponha que se tenham passado apenas breves segundos.
A ilusão que escondia os restantes vampiros dissipou-se no estado de frenesim em que Marsilia entrou ao alimentar-se de Samuel, e então vi-os, seis vampiros alinhados contra
a parede da divisão. Não faziam qualquer esforço para parecerem humanos, e reuni uma impressão apressada de pele cinzenta, faces chupadas e olhos a brilhar como gemas em contraluz.
Nenhum deles se mexeu, embora Stefan se tivesse agarrado a Marsilia e estivesse a tentar desprendê-la de Samuel. Tão-pouco interferiram quando me aproximei de Samuel com o
ridículo colar em volta do meu pulso. Suponho que não viam em nenhum de nós uma ameaça.
Os olhos de Samuel estavam fechados e a cabeça estava tombada para trás de modo a que Marsilia tivesse melhor acesso. Tão assustada ao ponto de mal conseguir respirar, pressionei
o cordeiro de prata contra a testa de Marsilia e disse uma oração apressada, mas fervorosa, na esperança de que o cordeiro tivesse o mesmo efeito que a cruz.
A pequena figura estava cravada na sua testa, mas Marsilia, de tão absorvida no pescoço de Samuel, não me prestou atenção. Depois várias coisas aconteceram quase ao mesmo
tempo — só posteriormente as pus na sua ordem provável.
O cordeiro debaixo da minha palma irrompeu numa chama de um azul fantástico semelhante à produzida por um bico de Bunsen bem ajustado. De repente, Marsilia estava aninhada
atrás das costas do sofá, colocando-se o mais longe que conseguia do meu colar — e de Samuel. Guinchou num ruído agudo quase insuportável aos meus ouvidos, e fez um gesto
com as mãos.
Todos se estatelaram no chão: Samuel, Stefan e os guardas de Marsilia. Apenas eu permaneci de pé, com o meu cordeirinho a brilhar como um anúncio luminoso absurdamente pequeno,
virado para a Senhora do ninho. A princípio pensei que os outros tinham caído voluntariamente, reagindo a um sinal secreto qualquer que eu não teria visto. Todavia, Marsilia
sacudiu o queixo num gesto rápido e inumano e voltou a soltar um grito. Os corpos no chão contorceram-se um pouco, como se tivessem sentido alguma dor mas não se pudessem
mexer para aliviá-la — e finalmente percebi que não era apenas o medo que tirava o fôlego, mas também magia. Marsilia estava a fazer alguma coisa para os magoar a todos.
— Pare com isso — disse com toda a autoridade que consegui convocar. A voz saiu-me aguda e trémula, não particularmente impressionante.
Aclarei a garganta e tentei novamente. Se eu tinha sido capaz de enfrentar Bran depois de lhe ter espatifado o Porsche contra uma árvore sem carta de condução nem permissão
para o conduzir, de certeza que era capaz de estabilizar a voz de modo a que não guinchasse.
— Basta. Ninguém lhe fez mal nenhum.
— Mal nenhum? — silvou, meneando a cabeça de tal modo que a sua juba se mexeu e deixou a testa a descoberto, revelando uma queimadura com muito mau aspecto e que tinha vagamente
a forma do meu colar.
— Estava a alimentar-se de Samuel sem a permissão dele — disse firmemente, como se soubesse que o seu ato me tinha dado o direito de defendê-lo. Não sabia ao certo se seria
assim, mas fazer bluff funcionava com os lobos. E os vampiros pareciam ser muito dados a normas de conduta.
Levantou a cara mas não replicou. Respirou fundo, e nessa altura apercebi-me de que não respirava desde que a tinha afastado de Samuel. Agitou as pálpebras quando se apercebeu
do cheiro do compartimento — também eu o conseguia sentir: medo, dor, sangue e algo doce e estimulante, tudo isso mesclado com os perfumes daqueles que estavam presentes.
— Já há muito tempo que não era presenteada com algo assim — explicou. — Estava a sangrar e já meio dominado. — O seu tom não era de desculpa, mas eu contentar-me-ia com meras
explicações desde que isso fizesse com que todos saíssemos dali vivos.
Stefan conseguiu pronunciar uma única palavra.
— Cilada.
Marsilia desenhou rapidamente um círculo no ar e afastou e baixou a mão a seguir. Em resposta, todos os homens que estavam no chão relaxaram. Reparei com alívio que Samuel
ainda respirava.
— Explica-te, Stefan — disse ela, e eu respirei funda e aliviadamente por ver que a sua atenção se desviava de mim.
— Uma cilada para si, Senhora — explicou Stefan com a voz rouca, como um homem que tivesse estado aos gritos. — Fazer o lobo sangrar e apresentá-lo a si como se fosse um presente
embrulhado. Fizeram a coisa bem feita. Só percebi que ele estava dominado quando vi o sangue.
— Talvez tenhas razão — replicou. Lançou-me um olhar irritado. — Guarde essa coisa, por favor. Já não precisa dela.
— Está tudo bem, Mercy — interveio Stefan, ainda com a voz débil como um sussurro. Não se tinha levantado do chão, permanecendo deitado e de olhos fechados, como se tivesse
esgotado por completo as suas forças.
Voltei a esconder o colar, e o compartimento ficou a parecer ainda mais sombrio com a iluminação mais mundana que restava.
— Fala-me dessa tal cilada, Stefano — disse vivamente enquanto trepava as costas do sofá e voltava a ocupar o seu lugar. Não sei se os seus olhos se tinham detido demasiado
em Samuel, que ainda estava débil, mas pelo menos as chamas inumanas que neles ardiam tinham-se convertido numa luz trémula.
Todos os vampiros começavam a dar sinais de vida, mas apenas Stefan se estava a mexer. Gemeu enquanto se sentava e esfregou a testa como se lhe doesse. Os seus movimentos
eram espasmódicos, inumanos.
— Alguém mandou a Lilly ir ter connosco sem o seu vigia. Pensei que ela tinha sido enviada para criar um incidente. Se o Samuel a tivesse matado, isso significava guerra entre
o nosso ninho e o Marrok. Mas talvez fosse mais do que isso. Pensava que nos tínhamos livrado dela antes que tivesse oportunidade de o marcar, mas, olhando para trás, creio
que esteve dominado a partir desse momento. Enviaram-no cá abaixo a sangrar como um bife mal passado e ofereceram-no a si. Se tivesse matado o Samuel, e acho que isso seria
provável considerando que se tem mantido meio esfomeada… — Consegui distinguir o tom de desaprovação nas suas palavras. — Se tivesse matado o Samuel… — deixou que o silêncio
falasse por si.
Ela lambeu os lábios como se neles ainda houvesse um vestígio de sangue. Distingui na sua cara um instante de arrependimento enquanto fitava Samuel, como se desejasse que
ninguém a tivesse impedido.
— Se eu o tivesse matado, haveria guerra. — Desviou os olhos de Samuel e deteve-os nos meus, mas nada aconteceu. Franziu-me a testa, mas parecia menos surpreendida do que
eu. Talvez o cordeirinho que me teria protegido da sua magia ainda estivesse a operar. Casou as unhas longas e trabalhadas e começou a tamborilar, dando a impressão de que
estava a considerar alguma coisa.
— Estaríamos em considerável inferioridade numérica — comentou Stefan ao ver que Marsilia não ia dizer mais nada. Fez um esforço visível antes de se pôr de pé. — Se a guerra
estalasse, seriamos forçados a abandonar este país.
Ela imobilizou-se, como se as palavras de Stefan tivessem uma grande importância.
— A abandonar este deserto maldito e a regressar a casa — disse, fechando os olhos a seguir. — Ora aí está um prémio pelo qual muitos que aqui estão se arriscariam a enfrentar
a minha ira.
Por aquela altura, os outros vampiros começavam a mexer-se. Coloquei-me entre ele e Samuel, confiando que Stefan manteria a sua Senhora longe de nós. Quando se levantaram,
pareciam mais concentrados em Samuel do que em Marsilia. Como quase toda a gente naquela noite, ignoraram-me enquanto se começavam a abeirar vagarosamente.
— Acorda, Sam — disse, golpeando-o com o calcanhar.
Stefan disse qualquer coisa num tom líquido, com a inconfundível cadência do italiano. Como se estivessem envolvidos numa espécie de jogo da estátua, os outros vampiros simplesmente
imobilizaram-se, alguns deles em posições incómodas.
— O que se passa com o Samuel?
Coloquei a questão a Stefan, mas foi Marsilia quem respondeu.
— Ele está enfeitiçado pela minha mordedura — explicou. — Alguns chegam a morrer com o Beijo, mas é pouco provável que cause algum dano permanente num lobisomem. Se tivesse
sido outra que não eu, não teria sucumbido — rematou, parecendo satisfeita.
— Então como é que a Lilly conseguiu? — perguntou Stefan. — Não foi um Beijo completo, mas ele ficou dominado.
Marsilia aninhou-se aos meus pés e tocou no pescoço de Samuel. Não gostava da forma como simplesmente aparecia nos lugares, especialmente quando o fazia perto de Samuel, que
não se podia defender.
— É uma boa pergunta — murmurou. — É dominante, este filho do Bran?
— Sim — respondi. Sabia que os humanos tinham dificuldade em distinguir um lobo dominante de um submisso, mas não pensava que o mesmo acontecesse com um vampiro.
— Então a Lilly não tinha como o dominar. Mas… talvez lhe tivessem emprestado o poder. — Levou os dedos aos lábios e lambeu o sangue de Samuel. Os seus olhos estavam novamente
a brilhar.
Enfiei a mão na t-shirt e comecei a tirar o cordeiro, mas uma mão pálida envolveu-me o pulso e puxou-me bruscamente contra um corpo que era todo ossos frios e tendões.
Antes de me dar conta de que tinha sido agarrada, já o tinha derrubado. Se tivesse tido tempo para pensar, jamais teria tentado derrubar um vampiro como se fosse um humano,
mas era um ato reflexo resultante de centenas de horas passadas no dojo.
Caiu mesmo em cima de Samuel porque Marsilia se tinha desviado. A criatura voltou-se, e pensei que se ia mandar a mim novamente, mas em vez disso concentrou-se em Samuel,
lançando-se ao seu pescoço ensanguentado.
Marsilia afastou o seu vampiro com um sacão, deixando pele rasgada onde as presas já se tinham cravado na carne. Sem qualquer esforço ou emoção visíveis, atirou-o de encontro
à parede mais próxima. Uma porção de gesso despedaçou-se, mas pôs-se de pé num pulo com uma rosnadela que se desvaneceu assim que viu que o tinha lançado da segunda vez.
— Fora, meus queridos. — Reparei que a queimadura na sua testa estava a sarar. — Fora antes que percamos toda a honra, dominados por semelhante encanto que se estende diante
de nós como um tentador banquete.
Finalmente tinha tirado o meu cordeiro de debaixo da t-shirt, mas antes que começasse a brilhar, estávamos sozinhos: Stefan, Samuel e eu.
11
Havia um elevador escondido atrás de uma das portas no corredor. Stefan, fatigado, encostou-se à parede; transportava Samuel, que estava manchado de sangue e muito débil,
mas que ainda respirava.
— Tens a certeza de que ele está bem? — perguntei, não pela primeira vez.
— Não vai morrer por causa disso — respondeu, o que não era propriamente a mesma coisa.
O elevador parou suavemente, e as portas abriram-se revelando uma cozinha. Luzes brilhantes refulgiam em móveis de ácer e bancadas de pedra creme. Não havia janelas, mas um
uso inteligente de espelhos e vitrais retroiluminados compensava a falta. Ao lado do frigorífico estava algo que me interessou bem mais, uma porta exterior. Sem esperar por
Stefan, abri a porta e corri lá para fora em direção à relva cuidadosamente tratada. Quando inspirei um ar que cheirava a pó e gás de escape e não a vampiros, percebi que
tinha saído da casa principal.
— As casas estão ligadas pelos túneis — disse enquanto Stefan descia os degraus.
— Não há tempo para conversas — grunhiu Stefan.
Olhei para ele e reparei que estava a ter dificuldades com o peso de Samuel.
— Pensava que os vampiros eram fortes ao ponto de arrancar árvores pela raiz — disse.
— Não depois de a Marsilia dar cabo deles — replicou Stefan. Mudou a posição de Samuel, tentando agarrá-lo melhor.
— Por que é que não usas a posição de bombeiro? — perguntei.
— Porque não quero correr o risco de ele acordar comigo a transportá-lo dessa maneira. Não ia ficar lá muito contente. Desta forma posso pô-lo no chão e afastar-me dele se
precisar.
— Eu levo-o — disse uma voz desconhecida.
Stefan virou-se com uma rosnadela e, pela primeira vez desde que o conhecia, vi-lhe as presas, brancas e afiadas.
Um outro vampiro estava postado perto de nós, vestindo calças de ganga e uma daquelas camisas brancas de pirata, aberta até à cintura, que é comum ver-se nas Feiras Renascentistas
e nos filmes de Errol Flynn. Não lhe ficava bem. Tinha os ombros demasiado estreitos, e o seu estômago liso parecia cadavérico em vez de sexy — ou se calhar estava farta de
vampiros por uma noite.
— Calma, Stefan — pronunciou o vampiro, levantando uma mão. — A Marsilia achou que podias precisar de ajuda.
— O que tu queres dizer é que ela não queria que o Dr. Cornick estivesse por perto quando recuperasse do efeito do Beijo. — Stefan relaxou um pouco. — Está bem.
Samuel foi transferido de um vampiro para outro — o recém-chegado aparentemente não partilhava da preocupação de Stefan porque colocou o lobisomem sobre o ombro.
A noite estava calma, mas havia nela um traço de espera que reconhecia da caça. Alguém estava a observar-nos — que grande surpresa. Nenhum de nós falou enquanto atravessámos
o jardim e saímos pelos portões principais, que alguém tinha aberto enquanto tínhamos estado no interior.
Fiz deslizar a porta da carrinha e apontei para o banco longo. O vampiro vestido de pirata tirou Samuel do ombro e colocou-o na parte do banco traseiro mais distante da porta.
Aos meus olhos, toda aquela força era ainda mais assustadora nos vampiros do que nos lobisomens — pelo menos os lobos pareciam-se com pessoas que aparentavam ser fortes.
Depois de Samuel estar devidamente instalado, o vampiro virou-se diretamente para mim.
— Mercedes Thompson — disse. — A minha senhora agradece a sua visita, que nos permitiu descobrir problemas que de outro modo poderiam ter passado despercebidos. Também lhe
está grata por ter permitido que mantivesse a sua honra e a do seu vassalo, Stefano Uccello. — Notou o ceticismo no meu rosto e sorriu. — Ela disse que nunca tinha sido repelida
por um cordeiro. Cruzes, escrituras e água benta, mas não um cordeiro.
— O Cordeiro de Deus — explicou Stefan. Parecia-se mais com o que costumava aparentar, com um cotovelo encostado à porta da carrinha. — Também achei que não ia funcionar.
De outro modo é claro que lhe tinha dito para o entregar à Estelle.
— Claro. — O outro vampiro dirigiu-me mais um sorriso rápido e encantador. — Seja como for, cabe-me comunicar as desculpas da Signora Marsilia por qualquer desconforto que
você e os seus tenham sentido esta noite e esperamos que estenda as nossas desculpas ao Dr. Cornick. Por favor, explique-lhe que a Senhora não tencionava fazer-lhe qualquer
mal, mas que a sua recente indisposição permitiu que alguma da sua gente se tornasse… revoltosa. Essa gente será punida.
— Diga à Signora que agradeço as suas desculpas e que também eu lamento qualquer problema que lhe possa ter causado esta noite. — Menti. E devo tê-lo feito bem, porque Stefan
dirigiu-me um curto aceno de aprovação.
O vampiro inclinou a cabeça, e depois, segurando-a cautelosamente pela corrente, entregou-me a cruz de Samuel e uma folha de papel, do tipo espesso, feito à mão. Tinha o mesmo
cheiro das ervas que perfumavam a casa e nela estava escrita, com a caligrafia cuidada de quem tinha aprendido a escrever com uma pena, uma morada em Kennewick.
— Ela tencionava entregar-lhe isto em mão, mas pediu-me que lhe dissesse algo mais. Os lobos pagaram-nos quase dez mil dólares pelo direito de residirem nesta morada durante
dois meses.
Stefan endireitou-se.
— Isso é demasiado dinheiro. Por que é que ela lhe cobrou tanto?
— Não cobrou. Pagaram-nos sem qualquer negociação. Expressei à Signora as minhas preocupações acerca da estranheza da transação, mas… — Olhou para Stefan e encolheu os ombros.
— A Marsilia nunca mais foi a mesma desde que foi exilada de Milão — explicou-me Stefan. Dirigiu um olhar ao outro vampiro e disse: — O que aconteceu esta noite foi bom. É
maravilhoso ver como a nossa Senhora recuperou a sua avidez, Andre.
«Maravilhoso» não seria a palavra que eu teria escolhido.
— Espero que sim — replicou o outro duramente. — Mas ela tem estado a dormir há dois séculos. Sabe-se lá o que vai acontecer com a Senhora desperta? É bem possível que desta
vez tenhas sido vencido pela tua própria astúcia.
— Não fui eu — murmurou Stefan. — Alguém estava a tentar provocar problemas outra vez. A nossa Senhora disse que eu devia investigar.
Os dois vampiros fitaram-se sem que nenhum deles respirasse.
Finalmente, Stefan disse:
— Qualquer que fosse o propósito deles, conseguiram finalmente despertá-La. Se não tivessem posto os meus convidados em risco, não iria à caça deles de boa vontade.
Política de vampiros, pensei. Não interessa a espécie: humanos, lobisomens, ou, aparentemente, vampiros; junte-se mais de três e a luta pelo poder começa.
Compreendia parte do problema. Os lobos mais velhos afastam-se do mundo quando entendem que este muda demasiado, e alguns deles passam a viver como eremitas nas suas cavernas,
saindo apenas para comer. E acontece que, ao cabo de algum tempo, acabam por perder interesse inclusive nisso. Parecia que Marsilia sofria da mesma doença. Evidentemente,
alguns dos vampiros estavam satisfeitos com a negligência da sua Senhora, mas Stefan não. Andre falava como se não soubesse de que lado estava. Eu estava do lado que significasse
ser deixada em paz.
— A Senhora disse-me para também te dar uma coisa a ti — indicou Andre a Stefan.
Produziu-se um som, como o estalido de uma bala, e Stefan cambaleou às arrecuas contra a carrinha, com uma mão a tapar a cara. Só quando um ligeiro vermelhão com a forma de
uma mão apareceu na face de Stefan é que percebi o que tinha acontecido.
— Um prenúncio — disse-lhe Andre. — Hoje está ocupada, mas amanhã, ao anoitecer, vais informá-la. Devias ter-lhe contado o que a Mercedes Thompson era quando ficaste a saber.
Devias ter avisado a Senhora, não deixar que ela descobrisse apenas quando a caminhante ofereceu resistência à sua magia. Não a devias ter trazido aqui.
— Não trazia nenhuma estaca nem água benta. — A voz de Stefan não dava qualquer indício de que o golpe o tivesse incomodado. — Ela não representa qualquer perigo para nós.
Nem sequer compreende bem a sua natureza, e não há ninguém que lha ensine. Ela não caça vampiros, nem ataca aqueles que a deixam em paz.
Andre virou a cabeça com uma velocidade improvável e pôs-se a olhar para mim.
— Isso é verdade, Mercedes Thompson? Não caça aqueles que simplesmente a assustam?
Estava cansada, preocupada com Samuel, e de certo modo surpreendida por ter sobrevivido ao meu embate com a Signora Marsilia e a sua gente.
— Não caço nada a não ser um coelho, um rato ou um faisão ocasionais — expliquei. — Até esta semana, não tinha feito mais do que isso. — Se não estivesse tão cansada, jamais
teria pronunciado esta última frase.
— O que é que aconteceu esta semana? — Foi Stefan quem fez a pergunta.
— Matei dois lobisomens.
— Matou dois lobisomens? — Andre dirigiu-me um olhar que não era propriamente lisonjeador. — Suponho que se estivesse a defender e por acaso tinha uma arma à mão?
Abanei a cabeça.
— Um deles estava alienado. Teria matado qualquer pessoa que se atravessasse no seu caminho. Cortei-lhe a goela e ele sangrou até morrer. Ao outro dei um tiro antes que matasse
o Alfa.
— Cortaste-lhe a goela? — murmurou Stefan, enquanto Andre claramente hesitava entre acreditar ou não.
— Estava na forma de coiote, a tentar atrair a atenção dele para que me perseguisse.
Stefan franziu o cenho.
— Os lobisomens são rápidos.
— Eu sei disso — repliquei irascivelmente. — Mas eu sou mais rápida. — Lembrei-me da perseguição com a companheira de Bran e acrescentei: — Pelo menos a maior parte das vezes.
Não era minha intenção matar…
Alguém gritou e eu parei de falar. Pusemo-nos à espera, mas não escutámos mais nenhum ruído.
— É melhor ir ter com a Signora — disse Andre, e desapareceu, simplesmente desapareceu.
— Eu conduzo — afirmou Stefan. — É conveniente que vás atrás com o Dr. Cornick. Quando acordar é melhor que tenha ao seu lado alguém em quem confie.
Dei-lhe as chaves e pulei para trás.
— O que é que vai acontecer quando ele acordar? — perguntei enquanto me instalava no banco traseiro, levantando a cabeça de Samuel de modo a pousá-la no meu colo. Passei as
minhas mãos pelo seu cabelo e depois pelo pescoço. As marcas dos vampiros, ásperas ao meu toque suave, já estavam a formar crosta.
— Se calhar não vai acontecer nada — respondeu Stefan, enfiando-se no lugar do condutor e ligando o motor. — Mas às vezes não reagem bem ao Beijo. A Signora Marsilia costumava
preferir lobos a presas mais mundanas. Foi por essa razão que perdeu o seu lugar em Itália e foi enviada para aqui.
— Sugar sangue de lobisomens é um tabu? — inquiri.
— Não. — Deu meia-volta com a carrinha e seguiu ao longo do caminho que tínhamos percorrido. — Sugar sangue da amante loba do Senhor da Noite é tabu.
Disse «Senhor da Noite» como se eu devesse saber quem era, portanto perguntei:
— Quem é o Senhor da Noite?
— O Senhor de Milão. Ou pelo menos era da última vez que tivemos notícias dele.
— Quando é que foi isso?
— Há duzentos anos, mais ou menos. Exilou a Signora Marsilia para aqui juntamente com aqueles que lhe deviam a vida ou vassalagem.
— Há duzentos anos não existia nada aqui — comentei.
— Disseram-me que se limitou a espetar uma agulha no mapa. Tens razão; não existia nada aqui. Nada a não ser deserto, pó e índios. — Tinha acabado de ajustar o espelho retrovisor
de forma a conseguir ver-me, e os olhos dele encontraram-se com os meus quando prosseguiu. — Índios e algo que nunca tínhamos encontrado aqui, Mercy. Metamorfos que eram imunes
ao apelo da Lua. Homens e mulheres capazes de assumir a forma de coiote quando desejavam. Eram imunes à maior parte das magias que nos permitiam viver entre os humanos sem
sermos detetados.
Fitei-o.
— Eu não sou imune à magia.
— Não disse que eras — respondeu. — Mas algumas das nossas magias não te afetam. Por que é que achas que fizeste frente à ira da Marsilia e todos nós tombámos?
— Foi o cordeiro.
— Não foi o cordeiro. Em tempos que já lá vão, Mercedes, aquilo que tu és teria sido a tua pena de morte. Matávamos os da tua espécie onde quer que os encontrássemos, e eles
retribuíam o favor. — Sorriu-me, e o meu sangue pôs-se gélido perante a expressão daqueles olhos frios. — Há vampiros em toda a parte, Mercedes, e tu és a única caminhante
aqui.
Sempre tinha pensado em Stefan como meu amigo. Mesmo no coração do ninho dos vampiros não tinha questionado a sua amizade. Que estupidez a minha.
— Eu levo o carro até minha casa — disse-lhe.
Voltou a concentrar a atenção na rua diante dele e riu-se suavemente ao mesmo tempo que encostava a carrinha. Saiu e desapareceu a correr. Tirei a mão do ombro de Samuel e
forcei-me a sair do resguardo do banco traseiro.
Não vi nem cheirei Stefan quando saí da carrinha e me dirigi para o lugar do condutor, mas conseguia sentir os seus olhos atrás de mim. Arranquei e depois tirei o pé do acelerador
e carreguei bruscamente no travão.
Abri a janela e falei para a escuridão:
— Eu sei que tu não vives lá. Cheiras a lenha queimada e pipocas. Precisas de boleia para casa?
Ele riu-se e pulei em sobressalto. Depois sobressaltei-me novamente quando se debruçou na janela e me deu uma palmadinha no ombro.
— Vai para casa, Mercy — disse, e a seguir desapareceu. De vez.
Avancei aos soluços atrás de reboques e Suburbans19 e pus-me a pensar no que tinha acabado de descobrir.
Sabia que os vampiros, tal como os seres feéricos e os lobisomens e seus análogos, eram todos criaturas preternaturais do Velho Mundo. Tinham vindo para este país pelas mesmas
razões que tinham motivado a maioria dos humanos: adquirir riqueza, poder ou terra, e fugir a perseguições.
Durante o Renascimento, os vampiros foram um segredo público; ser-se considerado um vampiro era sinal de poder e prestígio. As cidades de Itália e França tornaram-se refúgios
para eles. Ainda assim, não existiam em grande número. À semelhança do que acontecia com os lobisomens, a maior parte dos humanos que se transformasse em vampiro morria no
processo. O grosso dos príncipes e nobres que se julgava serem vampiros não passavam de homens inteligentes que viam na alegação dessa condição uma forma de desencorajar rivais.
A Igreja via as coisas de forma diferente. Quando a invasão espanhola do Novo Mundo encheu os cofres da Igreja, permitindo que esta não mais tivesse de depender dos favores
da nobreza, ela iniciou uma caça aos vampiros e a todas as criaturas preternaturais que conseguisse encontrar.
Centenas de pessoas morreram, se não milhares, acusadas de vampirismo, bruxaria ou licantropia. Apenas uma pequena percentagem dos que morreram eram vampiros de facto, mas
ainda assim as perdas foram graves — os humanos (sorte a deles) reproduzem-se muito mais depressa do que os não mortos.
Portanto os vampiros dirigiram-se para o Novo Mundo, vítimas de perseguição religiosa, como aconteceu aos Quackers e aos Puritanos — mas com contornos diferentes. Os lobisomens
e os seus parentes convocados pela Lua vieram a encontrar um novo território de caça. Os seres feéricos vieram a escapar ao ferro frio da Revolução Industrial, que de qualquer
modo os seguiu. Juntos, todos estes imigrantes destruíram a maior parte das criaturas preternaturais que até aí viviam nas Américas, acabando também por tratar de extinguir
as histórias que davam conta da sua existência.
E aparentemente os da minha espécie estavam entre eles.
Quando entrei na rampa de acesso à auto-estrada para Richland, lembrei-me de uma coisa que a minha mãe me tinha dito uma vez. Não tinha conhecido muito bem o meu pai. Na minha
caixa de jóias, praticamente vazia, existia uma fivela de cinto em prata que ele tinha ganho num rodeio e que depois lhe oferecera. Ela disse-me que os olhos dele eram da
cor de uma root beer20 iluminada pelo Sol, e que ressonava quando dormia de barriga para cima. Para além disso, a única coisa que sabia a seu respeito era que se alguém tivesse
encontrado mais cedo a sua carrinha espatifada, talvez tivesse sobrevivido. O acidente não o tinha matado logo. Qualquer coisa afiada tinha-lhe rasgado uma veia grande e ele
sangrou até morrer.
Ouvi um barulho vindo da parte de trás da carrinha. Ajeitei o espelho retrovisor até conseguir ver o banco traseiro. Os olhos de Samuel estavam abertos, e tremia violentamente.
Stefan não me tinha dito qual poderia ser a má reação ao Beijo, mas tinha a certeza absoluta de que estava prestes a descobrir. Quase deixei escapar a saída para o Columbia
Park, mas consegui virar sem levar uma traseirada.
Conduzi até alcançar um pequeno parque de estacionamento ao pé de um depósito. Estacionei, desliguei as luzes e depois passei por entre os bancos da carrinha e aproximei-me
cautelosamente de Samuel.
— Sam? — disse, e por instantes relaxou um pouco.
Os seus olhos brilhavam na escuridão do interior da carrinha. Senti o cheiro a adrenalina, pavor, suor e sangue.
Tive de fazer um grande esforço para não fugir. Parte de mim sabia que tanto medo tinha de ter uma causa. O resto de mim compreendeu por que é que alguns lobisomens reagiam
mal ao Beijo do vampiro — ao acordar incapaz de se mexer e tendo como última memória uma coisa a sugar-lhe o sangue, era certo que todos os botões de pânico de um lobisomem
eram acionados.
— Chiu — disse-lhe, agachando-me no espaço entre o segundo assento e a porta de correr. — Os vampiros foram-se embora. O que estás a sentir é uma coisa que eles conseguem
fazer com a sua mordedura. Torna as vítimas deles passivas para que se possam alimentar sem atrair e dar nas vistas. Agora está a desaparecer. O Stefan disse que não vai deixar
sequelas.
Estava a começar a ouvir-me. Consegui perceber isso através do relaxamento dos seus ombros — depois o meu telemóvel tocou.
Atendi, mas o barulho súbito tinha sido excessivo. A carrinha foi sacudida e baloiçou enquanto Samuel pulou sobre o banco traseiro e se enfiou no espaço da mala atrás do assento.
— Ei — pronunciei, mantendo o tom suave.
— Mercy. — Era Warren. Pelo tom percebi que seria logo urgente. — Precisas de vir cá ter assim que puderes, e traz o Samuel.
Samuel estava a produzir sons chocantes atrás do banco. No melhor dos cenários, a transformação era dolorosa para os lobos — quando se sentiam confortáveis e ávidos de caçar.
A tentativa de transformação quando o ar está carregado de medo e sangue não seria uma coisa boa. Mesmo nada boa.
— O Samuel está indisposto — disse enquanto ele gritava, soltando rugidos de agonia e desespero. Estava a lutar contra a transformação.
Warren praguejou.
— Então diz-me uma coisa. O Adam tem receio que alguém do bando o tenha traído?
— Isso é culpa minha — repliquei. — Warren, o bando está a caminho da tua casa?
Grunhiu em resposta. Entendi aquilo como um sim.
— Diz ao Adam.
— Fiz bifes e dei-lhe de comer há coisa de uma hora, e agora está a dormir. Tentei acordá-lo antes de te ligar, mas está completamente apagado num sono terapêutico. Não sei
o que seria preciso para o acordar.
— O Dr. Cornick sabe — murmurei, retraindo-me perante os ruídos que Sam estava a fazer na parte de trás da carrinha. — Mas ele agora não está disponível para atender o telefone
agora.
— Tudo bem, Mercy — replicou, soando subitamente calmo. — Eu trato disso. Se aquilo que eu estou a ouvir é o Samuel a meio de uma transformação involuntária, precisas de te
pôr a andar daí e de lhe dar tempo para se acalmar.
— O quê? E deixar que o Samuel vá à caça no meio de Kennewick? Não me parece.
— Ele não te vai reconhecer, não se se estiver a transformar dessa maneira. Não será o filho do Bran, será apenas o lobo.
Os barulhos atrás do banco estavam a tornar-se mais caninos e menos humanos.
— Mercy, sai daí.
— Está tudo bem, Warren — disse, esperando ter razão.
Os lobos, os verdadeiros lobos, normalmente não são animais perigosos a menos que estejam assustados, feridos ou encurralados. Os lobisomens são sempre perigosos, e estão
sempre prontos a matar.
— Se isto não correr bem, diz-lhe que os vampiros me apanharam — disse. — Não me parece que ele se vá lembrar. E, em grande medida, é verdade. Foram os vampiros que forçaram
esta transformação. Diz-lhe isso. — Desliguei o telefone.
Já era demasiado tarde para fugir, mas de qualquer modo não o teria feito. Deixar Samuel para lidar com as consequências da sua fúria de lobo? Samuel era um curador, um defensor
dos fracos. Não estou certa de que seria capaz de viver com sangue inocente nas mãos.
Tinha-o abandonado uma vez, muito tempo antes. Não ia voltar a fazê-lo.
Os barulhos foram-se dissipando até se ouvir apenas o ofego violento da sua respiração, todavia conseguia cheirar-lhe a ira. Não me dei ao trabalho de me despir antes de metamorfosear
— teria demorado demasiado tempo. Quando a cabeça branca de Samuel apareceu sobre o topo do banco, estava a desfazer-me da t-shirt e do sutiã.
Parei o que estava a fazer e aninhei-me no chão da carrinha, de cauda enfiada entre as patas. Não olhei para cima, mas senti as molas a ceder enquanto ele trepava lentamente
para cima do banco, estacando em seguida.
Estava tão assustada que mal conseguia respirar. Sabia o que tinha de fazer a seguir, mas não estava certa de que seria capaz de fazê-lo. Se alguma parte de mim não estivesse
absolutamente convencida de que Sam, o meu Sam, jamais me magoaria, não teria sido capaz de concretizar a parte seguinte.
Ele estava no mais absoluto silêncio. Em Montana, durante uma caçada, os lobos uivam e gritam, mas na cidade toda a caça é feita sem o menor ruído. Rosnadelas, ganidos e latidos
não passam de instrumentos de bluff — é o lobo silencioso que mata.
Com Samuel silenciosamente empoleirado no banco traseiro, rodei até ficar sobre as costas e expus a minha barriga às suas mandíbulas. Estiquei o queixo de modo a que também
o meu pescoço ficasse vulnerável. Foi uma das coisas mais difíceis que fiz em toda a minha vida. Podia ter-me matado com a mesma facilidade se eu estivesse de barriga para
baixo, mas havia algo de intrinsecamente negativo no facto de expor o meu estômago desprotegido. Ser submissa é uma merda.
A carrinha voltou a oscilar quando ele saltou para baixo, caindo quase em cima de mim. Conseguia cheirar-lhe a ira — o cheiro amargo do seu medo tinha-se esfumado por completo
juntamente com a sua humanidade, ficando apenas o lobo. Um bafo quente agitou a minha pelagem enquanto me cheirava de baixo para cima, com o seu focinho a abrir um risco no
meu pelo à medida que avançava. Lentamente, a ira foi-se dissipando juntamente com a intensidade que me tinha permitido perceber o que ele estava a sentir.
Inclinei a cabeça e arrisquei-me a olhá-lo. Samuel preenchia o espaço entre o assento e a porta de correr. Aprisionada debaixo dele, cada uma das patas dianteiras em cima
dos meus ombros, senti uma claustrofobia repentina e tentei instintivamente rebolar.
Detive o movimento assim que ele começou, mas Samuel precipitou-se para a frente com uma rosnadela de aviso e um estalar de dentes junto da minha cara. Tentei encontrar algum
conforto na rosnadela, uma vez que, teoricamente, se estava a rosnar provavelmente não me iria matar — porém tinha consciência plena da natureza volátil dos lobisomens.
Mexeu-se subitamente, fechando a boca sobre a minha garganta — mas de forma demasiado larga para um ataque jugular. Senti os seus dentes através do pelo no meu pescoço, mas
pararam no instante em que me tocaram a pele.
Depois rezei para que Bran tivesse razão e o lobo de Samuel me olhasse como sua parceira. Se ele estivesse enganado, tanto Samuel como eu pagaríamos o preço.
Mantive-me absolutamente imóvel enquanto o meu coração batia com toda a força, como que a querer desesperadamente sair da caixa torácica. Soltou-me, mordiscou-me o focinho
e agastou-se silenciosamente.
Rebolei até ficar sobre as patas e sacudi o pelo para o pôr direito, desfazendo-me finalmente do sutiã. Samuel estava estendido ao longo do assento, observando-me com os seus
belos olhos brancos. Pestanejou uma vez, depois recolocou o focinho sobre as patas dianteiras e fechou os olhos, dizendo, da forma mais clara que era capaz sem palavras, que
as duas metades da sua alma estavam novamente juntas.
Escutei o ruído surdo de um motor grande a aproximar-se do parque. Transformei-me o mais depressa que consegui e comecei a tactear à procura da minha roupa. A minha roupa
interior era verde-pálida e encontrei-a em primeiro lugar. O sutiã desportivo foi mais fácil de colocar do que tinha sido de retirar, e dei com a minha t-shirt quando o meu
pé tocou nela.
O carro abrandou à medida que se acercava, os seus faróis a perfurar a janela da minha carrinha.
— Calças, calças, calças — entoei enquanto esfregava as mãos pelo chão. Os meus dedos tocaram nelas no momento em que as rodas do carro trituraram gravilha e este foi estacionado
atrás de nós. Também encontrei o punhal de Zee. Enfiei-o debaixo do tapete de borracha perto do lado da carrinha mais distante da porta de correr.
Enfiei-me febrilmente nas calças, puxei o fecho e abotoei-as ao mesmo tempo que a porta do condutor do outro carro era aberta. Sapatos. Felizmente eram brancos e peguei neles
e calcei-os nos meus pés nus sem os desapertar.
Lancei um olhar ansioso à pesada besta estendida a todo o comprimento do banco traseiro. Ainda seria necessário algum tempo até que Samuel fosse capaz de se transformar novamente,
provavelmente algumas horas. Demora muito a recuperar de uma transformação forçada, mesmo no caso de um lobisomem com a pujança de Samuel, e era tarde de mais para tentar
escondê-lo.
— És um cãozinho bom, Samuel — disse-lhe autoritariamente. — Não assustes o senhor agente da polícia, que é muito simpático. Não temos tempo para sermos acompanhados à esquadra.
A luz de uma lanterna veio ao meu encontro e eu acenei com os braços, abrindo lentamente a porta de correr logo a seguir.
— Vim fazer jogging, senhor agente — disse. — A luz da lanterna não me deixava distinguir-lhe o rosto.
Fez-se uma pausa longa.
— É uma da manhã, minha senhora.
— Não conseguia dormir — retorqui, dirigindo-lhe um sorriso apologético.
— Fazer jogging sozinha à noite não é seguro, minha senhora. — Baixou a lanterna, e eu pestanejei rapidamente, esperando que as imagens residuais desaparecessem em pouco tempo.
— É por isso que o trago sempre comigo — expliquei, sacudindo o polegar na direção da parte traseira da carrinha.
O polícia soltou um palavrão.
— Peço desculpa, minha senhora. Que diabo, nunca tinha visto um raio de um cão tão grande. E cresci rodeado de São Bernardos.
— Não me pergunte a raça dele — disse enquanto saía da carrinha para me colocar ao lado dele em vez de ficar abaixo dele. — Arranjei-o no canil quando ainda era um cachorrinho.
O meu veterinário diz que ele talvez seja o resultado do cruzamento de um Wolfhound irlandês com outro cão que tenha alguma coisa de lobo, como um Husky ou um Samoiedo.
— Ou um Tigre Siberiano — murmurou, sem intenção que eu o ouvisse. Numa voz mais alta, disse: — Gostaria de ver a sua carta de condução, o livrete e o seguro, minha senhora.
— Naquele momento estava relaxado, sem contar com nenhum tipo de problema.
Abri a porta do passageiro e tirei a minha bolsa do porta-luvas, onde a tinha enfiado quando tinha ido ao Tio Mike. Mesmo ao lado da licença estavam os papéis do seguro e
a minha SIG.
A vida seria muito mais fácil se o simpático agente da polícia não visse aquilo — ou a Marlin .444 na parte de trás. Tinha uma licença de porte de armas, mas preferia manter
as coisas discretas. Especialmente porque, segundo Stefan, o punhal de Zee não era legal.
Peguei nos papéis do seguro e no livrete, e depois fechei o porta-luvas — devagar, para que a SIG não fosse agitada. Não precisava de me ter preocupado. Quando olhei para
ele, o agente da polícia estava sentado no chão da carrinha a dar festas a Samuel.
Se fosse outro lobisomem, ficaria preocupada — não são animais de estimação, e alguns deles detestam ser tratados como tal. Samuel virou a cabeça de modo a que os dedos do
polícia tocassem no sítio certo atrás da orelha e gemeu de prazer.
Samuel gostava de humanos. Lembro-me de ele brincar com os miúdos da escola primária — todos eles humanos — durante o recreio. A maior parte dos lobisomens evita crianças,
mas Samuel não. Todos sabiam quem ele era, claro, e quando o viam como homem chamavam-no Dr. Cornick e tratavam-no como tratariam qualquer outro humano. Mas quando aparecia
na escola na forma de lobo, montavam-no como se fosse um pónei e brincavam com ele como se fosse um cão vadio ou um feroz, mas leal, amigo lobo. Fazia-o com o mesmo entusiasmo
que as crianças.
— É mesmo bonito — disse o polícia, saindo finalmente da carrinha e pegando na minha papelada. — De que tamanho é quando está de pé?
Estalei os dedos.
— Samuel, anda.
Ergueu-se no banco traseiro, e o topo do seu lombo roçou no teto da carrinha. Depois espreguiçou-se e pulou do banco para a gravilha sem tocar no chão da carrinha. Moveu-se
deliberadamente como um cão grande, um pouco trapalhão e lento. A sua densa pelagem de inverno e a noite serviam para camuflar as diferenças que nenhuma espécie de cruzamento
poderia explicar.
As patas dianteiras dos lobisomens assemelham-se mais às de um urso ou de um leão do que à de um lobo-cinzento norte-americano. Tal como os dois primeiros, os lobisomens usavam
as suas garras para rasgar e arrancar carne, e isso significa que a sua musculatura também é diferente.
O polícia assobiou e pôs-se a caminhar à volta dele. Teve o cuidado de evitar apontar a lanterna para os olhos de Samuel.
— Olha para ti — murmurou. — Nem uma grama de gordura e deves pesar uns bons noventa quilos.
— Acha que sim? Nunca o pesei — disse. — Só sei que é mais pesado do que eu.
O polícia devolveu-me a carta e juntou os papéis sem na verdade ter olhado para nenhum deles.
— Ainda assim, continuo a achar que seria melhor que corresse durante o dia, minha senhora. Seja como for, este parque está fechado à noite. É mais seguro para toda a gente.
— Agradeço a sua preocupação pela minha segurança — repliquei com seriedade, dando palmadinhas levas na cabeça do lobo.
O agente da polícia desviou o carro, mas esperou até que fechasse Samuel no interior da carrinha e seguiu atrás de mim desde o parque até à rampa de acesso à auto-estrada
— portanto não pude parar para calçar as peúgas. Detesto andar com sapatilhas de couro sem peúgas.
Samuel encostou o corpanzil ao banco do passageiro e pôs a cabeça de fora através da janela, com o vento a colar-lhe as orelhas à cabeça.
— Para com isso — repreendi-o. — mantém todas as partes do corpo dentro da carrinha.
Ignorou-me e abriu a boca, deixando que a língua fosse varrida para trás como as orelhas. Passado um bocado, voltou a meter a cabeça no interior do carro e exibiu-me um sorriso
rasgado.
— Sempre quis fazer isso — confessei. — Talvez quando tudo isto acabar tu possas conduzir e eu possa enfiar a cabeça fora da janela.
Voltou-se para mim e pousou as patas dianteiras no chão entre os nossos bancos. Depois enfiou o focinho na minha barriga e gemeu.
— Para com isso — guinchei, esbofeteando-lhe o focinho. — Agora estás a ser mal-educado.
Puxou a cabeça para trás e dirigiu-me um olhar perplexo. Aproveitei a oportunidade para espreitar o conta-quilómetros e certificar-me de que não estava a exceder o limite
de velocidade.
— Ainda vais causar um acidente, Samuel Llewellyn Cornick. Não metas o nariz onde não deves.
Bufou e pôs uma pata no meu joelho, golpeando-o duas vezes — e depois voltou a enfiar o focinho no meu umbigo. Naquela circunstância foi mais rápido do que o meu estalo, recuando
até ao seu assento.
— A minha tatuagem? — perguntei, e ele ganiu, um ganido muito grave. Mesmo abaixo do umbigo tinha uma tatuagem de uma pegada. Devia tê-la visto enquanto estava à procura das
minhas peças de roupa. Também tinha duas nos braços.
— A Karen, a minha colega de quarto na universidade, estava a fazer uma especialização em Artes. Ganhava algum dinheiro para despesas a fazer tatuagens às pessoas. Eu ajudei-a
a passar à cadeira de Química e ela em troca ofereceu-se para me fazer uma de borla.
Tinha passado os dois anos anteriores a viver com a minha mãe e a fingir que era perfeita, com medo de perder o direito de permanecer na minha segunda casa tão abruptamente
como tinha perdido na primeira. Jamais me teria ocorrido fazer algo tão ousado quanto uma tatuagem.
A minha mãe ainda culpa a Karen por eu ter mudado da especialidade de Engenharia para História — o que a torna diretamente responsável pela minha atual profissão, reparar
carros velhos. A minha mãe provavelmente tem razão, mas sou muito mais feliz assim do que seria como engenheira mecânica.
— Ela entregou-me um livro de tatuagens que tinha feito e mais ou menos a meio aparecia um gajo que tinha pegadas de lobo tatuadas ao longo das costas, desde a anca até ao
ombro no flanco oposto. Eu queria uma coisa mais pequena, por isso decidimo-nos por uma única pegada.
A minha mãe e a família dela tinham conhecimento do que eu era, mas não me faziam nenhuma pergunta, e eu escondia-lhes a minha natureza de coiote, transformando-me em alguém
que encaixasse melhor nas suas vidas. Tinha sido uma escolha minha. Os coiotes são muito adaptáveis.
Lembro-me de olhar para as costas do homem e perceber que, embora me tivesse de esconder de toda a gente, já não me podia esconder mais de mim própria. Portanto pedi a Karen
que fizesse a tatuagem no centro do meu corpo, onde podia proteger o meu segredo e ao mesmo tempo manter-me íntegra. Finalmente tinha começado a desfrutar daquilo que era
em vez de desejar ser uma mulher-loba ou uma humana para me adaptar melhor.
— É uma pegada de coiote — disse firmemente. — Não de lobo.
Dirigiu-me um sorriso rasgado e voltou a enfiar a cabeça de fora; daquela vez também pôs os ombros.
— Ainda vais cair — disse-lhe.
19 Modelo da Chevrolet. (N. do T.)
20 Cerveja feita a partir da raiz do sassafrás. (N. do T.)
12
— O bando vem a caminho — disse a Samuel, enquanto inspecionava a casa de Warren circulando lentamente perto dela. — Não sei se te lembras do que aconteceu enquanto te estavas
a transformar, mas o Warren telefonou a pedir ajuda. O Adam estava a dormir e não havia maneira de acordá-lo… — Com Samuel a salvo, podia concentrar-me em Adam. — Isso é normal?
Samuel fez que sim com a cabeça, e eu senti uma sensação de alívio a percorrer-me o corpo. Aclarando a garganta, continuei:
— Uma vez que não podemos confiar no bando, acho que o Warren vai tentar mantê-los afastados do Adam, o que seria ótimo não fosse o facto de o Darryl ser o número dois do
Adam. — O que significava luta.
Samuel em tempos tinha-me dito que, apesar de todos os benefícios físicos que obtinham, a esperança média de vida de um lobisomem após a sua primeira Transformação situava-se
nos dez anos. Aqueles que tinham de ser eliminados no primeiro ano, como o meu velho amigo Dr. Wallace, contribuíam para essa média, mas a maior parte dos lobisomens morria
em lutas de domínio com outros lobos.
Não queria que Warren ou mesmo Darryl morressem naquela noite — e se isso acontecesse a algum deles, a culpa seria minha. Sem aquele meu instante de intuição ou paranoia que
me tinha feito acreditar que algo de errado se passava com o bando, Warren não estaria a tentar manter Darryl afastado de Adam.
Apesar da calma reinante em Richland, ambos os lados da rua do quarteirão de Warren estavam cheios de carros estacionados. Reconheci o Mustang de 67 de Darryl quando passei
junto dele: o bando já lá estava. Estacionei no quarteirão seguinte e segui em direção à casa de Warren em passada larga, com Samuel ao meu lado.
Debaixo do alpendre suspenso sobre a porta principal da casa de Warren estava postada uma mulher. Tinha o cabelo preto-azeviche preso num rabo-de-cavalo que lhe chegava à
cintura. Cruzou os braços lisos e musculados e fez peito quando me viu. Era professora de Química na escola secundária de Richland e companheira de Darryl.
— Auriele — disse eu, subindo os degraus e colocando-me perto dela.
Franziu-me o sobrolho.
— Eu disse-lhe que tu não farias nada que prejudicasse o Adam, e ele acreditou em mim. Disse-lhe que não irias fazer nada contra o bando. Tens umas quantas explicações a dar.
Como companheira de Darryl, Auriele ocupava uma posição de destaque no bando. Numa circunstância normal, teria discutido o assunto com ela de forma educada — mas precisava
de passar por ela e entrar na casa de Warren antes que alguém acabasse magoado.
— Muito bem — retorqui. — Mas preciso de me explicar ao Darryl, não a ti, e não agora.
— O Darryl está ocupado — disse, não engolindo o meu argumento. Já tinha reparado que dar aulas a adolescentes fazia de Auriele uma pessoa difícil de enganar.
Abri a boca para tentar uma vez mais, mas ela disse:
— Mantemos o Silêncio.
Os lobos têm poucos poderes mágicos, como a maior parte das pessoas sabe. Por vezes aparece um, como Charles, que tem um dom, mas a grande maioria está limitada à própria
transformação e a uma ou outra magia que lhe permite permanecer escondida. Uma delas é o Silêncio.
Relanceei os olhos em volta e vi quatro pessoas (sem dúvida que veria mais se me desse ao trabalho de olhar mais atentamente) discretamente postadas em redor do dúplex de
Warren, de olhos fechados e lábios a acompanhar o cântico que impunha o Silêncio a todos aqueles que se encontrassem no interior do seu círculo.
O propósito era esconder do mundo exterior a batalha que acontecia lá dentro. Significava que a luta já tinha começado; o bando não iria quebrar o Silêncio de bom grado para
me deixar entrar.
— Esta luta não tem sentido — disse-lhe num tom de urgência. — Não há necessidade.
Os seus olhos abriram-se.
— Há toda a necessidade, Mercy. O Darryl é o número dois, e o desafio do Warren não pode ficar sem resposta. Podes falar depois de ele ter disciplinado aquele sujeito. — As
suas sobrancelhas móveis uniram-se ao fitar Samuel. Num tom de voz completamente diferente, perguntou: — Quem é esse? Encontrámos lobos desconhecidos mortos na casa do Adam.
— Este é o Samuel — respondi impacientemente, olhando para cima na direção dos degraus. — Vou entrar.
Tinha avançado para me impedir e depois hesitou ao aperceber-se da invulgar coloração de Samuel.
— Samuel quê? — inquiriu.
Os Alfas reuniam-se com Bran duas vezes por ano no seu quartel-general no Colorado. Por vezes levavam os seus números dois e três — mas nunca as mulheres. Isso devia-se, em
parte, a uma questão prática. Os Alfas sentem-se desconfortáveis fora do sue próprio território, e interagem mal com outros Alfas. Se tivessem as companheiras ao seu lado,
todo esse desconforto e territorialidade teriam uma maior tendência de se transformarem em violência.
Isso significava que Auriele nunca tinha conhecido Samuel mas já tinha ouvido falar nele. Lobos brancos com o nome de Samuel não são muito comuns.
— Este é o Dr. Samuel Cornick — disse-lhe firmemente. — Deixa-nos passar. Tenho informações sobre as pessoas que atacaram o Adam.
Estava cansada e preocupada em relação a Warren — e Darryl; de outro modo, não teria cometido um deslize tão crasso: duvido que tivesse ouvido mais alguma coisa além da minha
ordem.
Ela não era estúpida; sabia que eu não era a companheira de Adam, independentemente de ele ter afirmado isso perante o bando. Não era mulher-loba, não pertencia ao bando,
não era dominante em relação a ela, pelo que não se podia permitir dar-me ouvidos e depois disso esperar manter a sua posição.
Toda a sua hesitação se dissipou e atacou-me fisicamente. Era um pedaço mais alta do que ela, mas isso não a deteve. Ela era uma mulher-loba, e quando pôs as mãos nos meus
ombros e me empurrou, dei três ou quatro passos para trás.
— Tu aqui não mandas — pronunciou num tom de voz que, estou certa, seria muito eficaz nas suas salas de aula.
Tentou empurrar-me novamente. Erro dela. Era muito mais forte do que eu, mas não tinha qualquer experiência de luta na forma humana. Desviei-me, deixando que o seu impulso
fizesse o grosso do trabalho por mim. Ajudei-a a cair escadas abaixo apenas com um ligeiro empurrão que a fez perder o equilíbrio e o controlo sobre a queda. Estatelou-se
violentamente contra o passeio, batendo com a cabeça num degrau.
Não esperei para me certificar se estaria bem. Era preciso muito mais do que uma cabeçada num degrau para abrandar consideravelmente um lobisomem. O lobo mais próximo de mim
começou a mexer-se, mas teve de parar de modo a não quebrar o feitiço do Silêncio.
A porta não estava trancada, por isso abri-a. Samuel roçou em mim ao passar. O som da rosnadela enraivecida de Auriele fez com que entrasse disparada atrás dele.
A sala de estar de Warren estava cheia de livros espalhados e pedaços de mobiliário partido, mas tanto Warren como Darryl estavam na forma humana. Isso fez-me perceber que
Darryl ainda estava a tentar evitar que a luta se transformasse num combate até à morte — à semelhança de Warren. Os lobisomens na forma humana podem ser muito fortes, mas
não têm sequer metade do potencial de ataque de um lobo.
Warren pegou numa das cadeiras da sua sala de jantar e partiu-a na cara de Darryl. O som do golpe foi absorvido pelo feitiço do bando, portanto apenas podia avaliar a força
através do número de pedaços em que se partiu a cadeira e através do volume de sangue jorrado.
Num movimento tão rápido que os meus olhos não tiveram capacidade de acompanhar, Darryl tinha Warren no chão preso pela goela.
Samuel precipitou-se na direção deles e abocanhou o pulso de Darryl — após o que se afastou, ficando fora do alcance de Darryl. O caráter inesperado da situação — Darryl não
nos tinha ouvido a entrar — afrouxou a mão de Darryl, e Warren libertou-se, afastando-se para conseguir algum espaço.
Isso significava que Samuel se podia colocar entre os dois. Warren, que respirava com dificuldade, encostou-se a uma parede e limpou o sangue que tinha nos olhos. Darryl tinha
dado dois passos rápidos em frente até reconhecer Samuel, altura em que quase caiu de costas ao evitar tocar nele. Uma expressão de absoluto espanto ocupava-lhe o rosto.
Assim que tive a certeza de que nem Darryl nem Warren iam continuar a lutar, dei uma palmadinha no ombro de Samuel para atrair a sua atenção. Quando olhou para mim, apontei
para a minha boca e para as minhas orelhas. Não existia a mais ínfima possibilidade de os lobisomens no exterior me ouvirem e pararem com o seu cântico, e o que mais precisávamos
naquele momento era de falar.
Estava à espera que Samuel se encaminhasse para o exterior, mas fez uma outra coisa. O seu poder varreu a casa com a força de uma explosão, como a causada por um idiota qualquer
que abre uma porta e deixa entrar oxigénio numa sala que está em combustão latente há horas. O ar foi preenchido por ele, pelo seu cheiro e poder; rebentou e crepitou até
me sentir como se estivesse a respirar os pauzinhos de fogo-de-artifício que faíscam usados pelas crianças no 4 de Julho. Descargas chisparam na minha pele até sentir que
estava em carne viva, perdendo o controlo sobre as minhas extremidades. Caí impotentemente sobre os joelhos. Também a minha visão começou a faiscar. Espirais negras e luzes
brilhantes fizeram-me tombar a cabeça contra os joelhos enquanto lutava para me manter consciente.
— Basta, Samuel — disse uma voz que reconheci vagamente como sendo a de Adam. — Acho que já passaste a mensagem, seja lá qual for.
Continuei com a cabeça entre os joelhos. Com Adam presente, tudo o resto podia esperar até que eu recuperasse o fôlego.
Associei o som dos passos a descer as escadas aos movimentos leves e rápidos de Adam — a sua recuperação ia de vento em popa. Levantei a cabeça cedo de mais e tive de voltar
a baixá-la. Adam pousou a mão no meu cocuruto, e depois afastou-se.
— O que vem a ser isto? — perguntou.
— Andamos à tua procura há dois dias, Adam. — A voz de Darryl soava um pouco distorcida. — Tudo o que tínhamos era uma mensagem no atendedor de chamadas da Elizaveta Arkadyevna
que, segundo nos disse ela, era da Mercy. Isso e a tua casa em pantanas com três lobisomens mortos que ninguém conhecia. Tu, a Jesse e a Mercy tinham desaparecido. Temos andado
a vigiar a tua casa, mas foi uma sorte dos diabos alguém do bando ter visto a Mercy a andar de carro com o Kyle. Quando liguei ao Warren, ele não admitiu que estavas aqui,
mas também não disse que não estavas, por isso telefonei ao bando e vim cá ter.
Olhei novamente para cima, e naquela ocasião o mundo não andou à roda. Darryl e Warren estavam ambos ajoelhados no chão, perto do sítio onde tinham estado a lutar da última
vez que os vira. Percebi a razão para a forma estranha como Darryl articulava as palavras — um corte profundo no seu lábio estava a sarar visivelmente.
— Não podia mentir ao Darryl — explicou Warren. — Estavas num sono terapêutico, e eu não te podia acordar. Não podia deixar nenhum dos membros subir enquanto estavas vulnerável.
Samuel sentou-se ao meu lado e lambeu-me a cara, gemendo suavemente.
— Xô — disse, empurrando-o para longe de mim. — Isso é nojento. Para com isso, Samuel. O Bran não te ensinou a teres modos?
Era uma distração deliberada que tinha como propósito dar-nos a todos a possibilidade de decidirmos como lidar com a situação sem mais derramamento de sangue.
— O Warren estava a agir de acordo com as minhas ordens — afirmou Adam lentamente.
— Estou a ver — replicou Darryl, com a rosto a pôr-se inexpressivo.
— Não contra ti. — Adam acenou com a mão à altura do peito. Não fiques magoado, dizia o gesto, não foi nada pessoal.
— Então contra quem?
— Não sabemos — cortei. — Simplesmente havia qualquer coisa a preocupar-me.
— Conta-lhes o que se passou naquela noite — disse Adam.
Foi o que fiz.
Para surpresa minha, quando lhes contei que tinha um mau pressentimento em relação a chamar o bando, Darryl limitou-se a assentir com a cabeça, dizendo:
— Como é que eles sabiam onde o Adam vivia? Ou quando ia acabar a reunião? Como é que eles sabiam que ele não tinha um exército em casa como acontece com alguns Alfas? A Jesse
não é estúpida. De certeza que não gritou quando ouviu o barulho das armas de dardos tranquilizantes. Mas mesmo assim sabiam onde ela estava.
Pensei naquele último aspeto.
— Só enviaram um humano lá acima à procura dela… e ele foi diretamente ao quarto dela.
Darryl fez um gesto dramático.
— Não estou a dizer que não haja outras explicações para além de uma traição por parte de um dos membros do bando… mas tomaste a decisão acertada.
Não me devia ter feito sentir bem, mas, como acontece com qualquer outra mulher, gosto de ser elogiada.
— Continua, Mercy — disse Adam.
Portanto continuei com a explicação da forma mais sucinta possível — o que significa que deixei de fora todos os pormenores que não lhes diziam respeito, como por exemplo
a minha relação passada com Samuel.
O resto do bando foi entrando pouco a pouco enquanto eu falava, e foi-se sentando no chão — desviando móveis partidos se necessário fosse. Não estava lá o bando todo, mas
eram entre dez e quinze.
Auriele sentou-se ao pé de Darryl, com o seu joelho a roçar no dele. Tinha uma valente nódoa negra na testa, e perguntei-me se a partir dali iria tratar-me com a cortesia
fria que sempre me mostrara — ou se, tal como as fêmeas do bando de Bran, me iria ver como uma inimiga a partir dali.
Warren, pensei, com o apoio de Adam, acabara de cimentar a sua posição no bando — pelo menos em relação a Darryl, cuja linguagem corporal comunicava ao resto do bando que
Warren não tinha caído em desgraça. Darryl valorizava a lealdade, pensei, subitamente convicta de que não tinha sido Darryl a trair Adam.
Então quem? Passei todos os rostos em revista, alguns familiares, outros nem tanto; mas Adam era um bom Alfa, e, para além de Darryl, não havia nenhum outro lobo suficientemente
dominante para reclamar o papel de Alfa.
Cheguei à parte em que tínhamos tomado a decisão de levar Adam para a casa de Warren, explicando apenas que pensávamos que seria um esconderijo melhor do que a sua casa ou
a minha. Depois parei porque Darryl estava ansioso por fazer perguntas.
— Por que é que levaram a Jesse? — inquiriu assim que me calei.
— O Warren disse-me que ninguém telefonou a pedir um resgate — interveio Adam. Tinha começado a caminhar algures durante o relato da minha história. Não conseguia ver nele
qualquer indício de que tivesse estado ferido, mas suspeitei que parte disso era encenação; um Alfa nunca admite fraqueza em frente do bando. — Tenho estado a pensar nisso,
mas honestamente não sei. Um dos lobos que veio à minha casa era alguém que tinha conhecido em tempos. Há trinta anos. Tornámo-nos lobos na mesma altura. A experiência dele
foi… lancinante, porque ele passou pela Transformação sem ajuda. — Vi vários dos lobos estremecer. — Talvez guarde alguma espécie de rancor por causa disso, mas trinta anos
é muito tempo de espera para sequestrar a Jesse como forma de vingança.
— Ele pertence a algum bando? — perguntou Mary Jo do fundo da sala. Mary Jo era uma bombeira de Kennewick. De estatura baixa, ar duro, queixava-se muito por ter de fingir
ser mais fraca do que todos os homens da sua equipa. Eu gostava dela.
Adam abanou a cabeça.
— O David é um lobo solitário por opção. Ele não gosta de lobisomens.
— Disseste que havia humanos no meio deles, e lobos novatos — disse Warren.
Adam fez que sim com a cabeça, mas eu ainda estava a pensar no lobo solitário. O que é que um homem que tinha sido um lobo solitário durante trinta anos estava a fazer num
bando de lobos novatos? Tinha sido ele próprio a Transformá-los? Ou seriam eles vítimas tal como Mac tinha sido?
Samuel pousou o focinho no meu joelho, e eu dei-lhe festas distraidamente.
— Disseste que eles usaram nitrato de prata, DMSO e quetamina — interveio Auriele, a professora de Química. — Isso quer dizer que eles têm um médico a trabalhar para eles?
Ou talvez um passador de droga? A quetamina não é tão comum como as metanfetaminas ou o crack, mas de vez em quando vemo-la na escola secundária.
Endireitei-me.
— Um médico ou um veterinário — afirmei. Ao meu lado, Samuel retesou-se. Olhei para ele. — Um veterinário teria acesso a tudo isso, não teria, Samuel?
Samuel emitiu um grunhido. Não gostou do que me estava a passar pela cabeça.
— Onde é que queres chegar com isso? — perguntou Adam, olhando para Samuel, embora estivesse a falar comigo.
— Ao Dr. Wallace — respondi.
— O Carter tem problemas por não poder aceitar ser um lobisomem, Mercy. É violento de mais para ele, e preferia morrer a ser o que nós somos. Estás a tentar dizer que ele
está envolvido numa conspiração onde lobos novatos são mantidos em jaulas para se fazer experiências neles? Alguma vez ouviste o que ele tem a dizer sobre experiências em
animais e a indústria cosmética?
Por instantes fiquei surpreendida com o facto de Adam saber tantas coisas acerca do Dr. Wallace. No entanto, com base nas reações das pessoas em Aspen Creek, tinha a certeza
de que Adam tinha lá passado algum tempo. Suponho que, sendo isso verdade, fazia sentido que estivesse a par dos problemas do Dr. Wallace. Contudo, a julgar pelos murmúrios
à nossa volta, o resto do bando não estava.
Adam deixou de discutir comigo para explicar a toda gente quem era o Dr. Wallace. Isso deu-me tempo para pensar.
— Olha — disse depois de ele terminar —, todos os químicos necessários para a droga que te injetaram são fáceis de obter. Mas quem é que pensaria em combiná-los e porquê?
Quem quereria tranquilizar um lobisomem? O Dr. Wallace corre o risco de perder o controlo, eu própria testemunhei isso esta semana. Está preocupado com a família dele. Não
ia desenvolver uma forma de administrar drogas a lobisomens para raptar a Jesse, mas é possível que tenha desenvolvido um tranquilizante para as pessoas usarem nele próprio.
No caso de perder o controlo por completo, e o lobo que existe nele atacar alguém.
— Talvez — pronunciou Adam vagarosamente. — Amanhã ligo ao Bran e digo-lhe para perguntar isso ao Dr. Wallace. Ninguém consegue mentir ao Bran.
— Mas o que é que eles pretendem obter com o sequestro da Jesse? — perguntou Darryl. — Nesta altura, a hipótese do dinheiro parece-me ridícula. Parece que este ataque foi
dirigido mais ao Alfa do Bando da Bacia do Columbia do que ao Adam, homem de negócios.
— Concordo — replicou Adam, carregando o cenho. — Talvez alguém queira assumir o controlo do bando? Sou capaz de fazer tudo pela minha filha.
Controlo do bando ou controlo de Adam, perguntei-me, e haverá alguma diferença entre as duas coisas?
— Havemos de descobrir quem são e o que querem antes do romper do dia. Nós sabemos onde eles estão instalados — disse eu, enfiando a mão no bolso das minhas calças de ganga
e sacando o papel que os vampiros me tinham dado para o entregar a Adam. — Segundo a informadora do Zee, os nossos inimigos pagaram quase dez mil dólares aos vampiros para
que fossem deixados em paz enquanto aqui estivessem — contei a Adam.
As sobrancelhas de Adam ergueram-se subitamente e agarrou o papel com os dedos pálidos.
— Dez mil é demasiado — comentou. — Por que é que terão feito isso?
Relanceou os olhos ao papel e percorreu a sala com os olhos.
— Darryl? Warren? Estão preparados para uma nova aventura hoje à noite?
— Não tenho nada partido.
— Eu também já não tenho — indicou Warren. — Estou preparado.
— Samuel?
O lobo branco dirigiu-me um sorriso aberto.
— Podemos ir na minha carrinha — propus.
— Obrigado — replicou Adam —, mas vais ficar aqui.
Levantei o queixo e ele deu-me uma palmadinha na face — o paternalista de merda. Riu-se da minha expressão, não como se estivesse a fazer pouco de mim, mas como se estivesse
de facto a desfrutar de alguma coisa… de mim.
— Não és fácil de substituir, Mercedes, e não estás preparada para entrar numa guerra de bandos. — Quando acabou de falar, o sorriso tinha-lhe desaparecido do rosto, e estava
de olhos postos nas pessoas que se encontravam na sala.
— Ouve lá, pá — disse. — Eu matei dois lobisomens, o que faz com que a minha folha de serviço desta semana rivalize com a tua, e também não me saí nada mal ao conseguir obter
essa morada dos vampiros.
— Tu obtiveste a morada dos vampiros? — pronunciou Adam num tom de voz perigosamente suave.
— Paternalista de merda — murmurei enquanto conduzia a minha carrinha pelas ruas vazias de East Kennewick. — Eu não pertenço ao bando. Ele não tem o direito de me dizer o
que fazer ou como o fazer. Não tem nenhum direito de berrar comigo por eu ter falado com os vampiros. Ele não é o meu guarda.
Finalmente acabei por reconhecer que tinha razão quando dizia que eu serviria de pouca ajuda numa luta com outro bando de lobisomens. Warren tinha prometido telefonar-me quando
tudo tivesse terminado.
Bocejei e apercebi-me de que estava acordada há quase vinte quatro horas — e que tinha passado aquela última noite às voltas numa cama de motel estranha, sonhando alternadamente
com Mac a morrer por causa de alguma coisa que eu não tinha feito e com Jesse sozinha e a gritar por ajuda.
Meti para a rampa de entrada da minha casa e não me dei ao trabalho de estacionar a carrinha no seu lugar habitual, na segurança da garagem erigida com estacas. De manhã limparia
a carrinha. O punhal de Zee, que tinha voltado a colocar à cintura para garantir que não me esqueceria dele na carrinha, ficou preso no meu cinto de segurança. Estava tão
cansada que me caíam lágrimas dos olhos na altura em que finalmente consegui libertá-lo.
Ou se calhar estava a chorar como a criança que é a última a ser escolhida para a equipa de softball na escola — e a quem é dito para ficar especada num sítio qualquer e não
se atravessar no caminho enquanto o resto da equipa joga.
Lembrei-me de tirar as armas da carrinha e de pegar na minha bolsa. Assim que comecei a subir os degraus, apercebi-me de que Elizaveta Arkadyevna ainda não tinha aparecido
para limpar o alpendre porque ainda conseguia sentir o cheiro de Mac e os odores característicos da morte.
Não, concluí ao mesmo tempo que rosnava com os dentes a destacar-se dos lábios, estava a chorar porque queria participar na matança. Aquelas pessoas tinham entrado no meu
território e magoado pessoas de quem gostava. Era meu dever, meu direito, puni-las.
Como se eu pudesse fazer alguma coisa contra um bando de lobos. Fiz descer a mão até ao parapeito e parti a madeira seca tão facilmente como se tivesse estado apoiada nos
blocos de carvão do dojo. Uma pequena e suave presença esfregou-se nos meus tornozelos e deu-me as boas-vindas com um miado exigente.
— Olá, Medea — disse, limpando os olhos antes de pegar nela e a enfiar debaixo do braço que não estava a segurar nas minhas armas. Abri a porta com a chave, mas não me dei
ao trabalho de acender a luz. Guardei as armas. Pus o telemóvel a carregar ao lado do telefone da rede fixa e depois enrosquei-me no sofá com Medea a ronronar e adormeci à
espera do telefonema de Warren.
Acordei com a Sol a embater-me nos olhos. Durante os primeiros instantes não me lembrava do que estava a fazer a dormir no sofá. O relógio no meu leitor de DVD marcava as
9:00, o que significava que eram dez da manhã. Nunca o reprogramo quando o horário muda.
Verifiquei as mensagens e o telemóvel. Tinha uma chamada de Zee, mas apenas isso. Liguei-lhe de volta e deixei uma mensagem no seu atendedor de chamadas.
Telefonei para o número de casa de Adam, para o seu telemóvel e para o seu pager. Depois também liguei para a casa de Warren. Procurei o número de Darryl na lista telefónica
e telefonei-lhe, anotando os outros números indicados pelo atendedor. Mas também ele não atendia o telemóvel.
Depois de refletir por um momento, liguei a televisão no canal local, mas não havia nenhuma notícia relativa a qualquer emergência. Ninguém tinha noticiado um banho de sangue
em West Richland na noite anterior. Talvez ninguém tivesse encontrado os corpos ainda.
Peguei no telemóvel, entrei no Rabbit e conduzi em direção à morada que os vampiros me tinham dado — tinha dado o papel a Adam, mas lembrava-me do endereço. A casa estava
completamente vazia e tinha uma placa a dizer VENDE-SE no relvado frontal. Senti vagamente o cheiro do bando fora do perímetro do edifício, mas não havia qualquer sinal de
sangue ou violência.
Se a morada era falsa, onde se tinha enfiado toda a gente?
Segui de carro até à minha oficina até me lembrar de que era Dia de Ação de Graças e ninguém iria aparecer com carros para eu reparar. Ainda assim, era melhor ir para lá do
que ficar em casa a pensar no que poderia ter acontecido. Abri uma das portas grandes da oficina e comecei a trabalhar no projeto que tinha em mãos.
Era-me difícil fazer o que quer que fosse. Não tinha o telemóvel comigo, para não correr o risco de parti-lo enquanto trabalhava, e a todo o momento achava que estava a tocar.
Mas ninguém telefonou, nem sequer a minha mãe.
Um carro desconhecido aproximou-se e parou em frente à oficina, dele saindo uma mulher minúscula enfiada numa sweatshirt vermelha e num par de sapatilhas brancas. O olhar
dela encontrou-se com o meu, fez um aceno, e em seguida caminhou energicamente em direção a mim.
— Chamo-me Sylvia Sandoval — disse, estendendo a mão.
— Acho que não é boa ideia apertar-me a mão neste momento — repliquei com um sorriso profissional. — Eu sou a Mercedes Thompson. Em que posso ser-lhe útil?
— Já foi. — Baixou o braço e acenou para trás na direção do seu carro, um velho Buick que, apesar das marcas de ferrugem e de uma amolgadela no lado direito do para-choques
frontal, estava imaculadamente limpo. — Desde que você e o Sr. Adelbertsmiter o repararam, tem andado como novo. Queria saber quanto lhe devo, por favor. O Sr. Adelbertsmiter
disse-me que talvez estivesse interessada em cobrar o seu tempo e esforço com o trabalho do meu filho.
Encontrei um trapo limpo e comecei a esfregar o lubrificante das minhas mãos para me dar tempo para pensar. Gostei do facto de se ter dado ao trabalho de aprender o nome de
Zee. Não era propriamente o nome mais fácil de pronunciar, especialmente quando se tem o espanhol como primeira língua.
— Deve ser a amiga do Tony — disse. — Não tive tempo de olhar para a fatura que o Zee fez, mas dava-me jeito uma ajuda aqui na oficina. O seu filho sabe alguma coisa sobre
reparação de carros?
— Sabe mudar o óleo e desmontar rodas — respondeu. — Ele aprende o resto. É muito trabalhador e aprende depressa.
Tal como Zee, dei por mim a admirar-lhe o modo franco e determinado. Assenti com a cabeça.
— Está bem. Façamos uma coisa, diga ao seu filho para vir. — Quando? Não fazia a menor ideia do que iria fazer nos dias seguintes. — Segunda-feira depois das aulas. Ele pode
trabalhar para pagar a reparação, e, se correr bem, pode ficar com o emprego. Depois das aulas e sábado, todo o dia.
— Os estudos dele estão em primeiro lugar — disse ela.
Anuí com a cabeça.
— Não há problema. Vamos ver como funciona.
— Obrigada — disse. — Ele virá.
Observei-a a entrar no carro e refleti que Bran tinha sorte por ela não ser uma mulher-loba, de outro modo podia vir a ter problemas em manter a sua posição como Alfa.
Parei e pus-me a olhar fixamente para as minhas mãos sujas. Na noite anterior alguém tinha perguntado o que quereriam os raptores. Se tinham o seu próprio bando, não precisavam
do posto de Adam. Se quisessem dinheiro, certamente haveria alvos mais fáceis do que a filha do Alfa. Portanto havia algo de especial em Adam. Entre os lobisomens, saber sempre
que posição se ocupa no bando é uma questão de segurança. Na hierarquia dos Marrok essa questão não era assim tão importante — desde que toda a gente mantivesse presente que
Bran estava no topo. Mas, de qualquer forma, as pessoas mantinham-se sempre a par.
Tinha uma memória muito nítida do meu pai adotivo aninhado à frente da minha cadeira a apontar nomes para cada um dos meus dedos. Tinha eu uns quatro ou cinco anos. «O um
é o Bran», dizia, «O dois é o Charles e o três é o Samuel. O quatro é o Adam, do Bando de Los Alamos. O cinco é o Everett, do Bando de Houston».
— O um é o Bran — disse eu depois de recordar. — O dois é o Charles e o três é o Samuel, ambos filhos do Bran. O quatro é o Adam, que agora pertence ao Bando da Bacia do Columbia.
Se havia algo de especial em Adam, era isso — excluindo os filhos de Bran, era o candidato mais bem posicionado para ocupar o lugar de Marrok.
A princípio tentei descartar aquele pensamento. Se eu quisesse pôr Adam a lutar com Bran, certamente não começaria por raptar a sua filha. Mas talvez eles não pensassem do
mesmo modo.
Sentei-me no lugar do condutor do Carocha, e o vinil velho estalou debaixo de mim. E se eles tivessem ido com o intuito de falar com Adam e não de o atacar? Fechei os olhos.
Suponhamos que era alguém que conhecia Adam muito bem, como o seu velho camarada do exército. Adam tinha um temperamento impulsivo, explosivo até — embora fosse possível persuadi-lo
a ouvir assim que se tivesse acalmado novamente.
Considerando que o inimigo era um lobisomem, teria medo de Adam, ou pelo menos cautela em relação a ele. É assim que o jogo de dominação funciona. Encontrar-se com um Alfa
no seu território coloca-o numa posição superior. Sacar de uma arma carregada com balas de prata equivaleria a uma declaração de guerra, pelo que ou teria de ter matado Adam
ou ele próprio teria de morrer. Suponhamos que esse inimigo tinha consigo uma droga, algo para acalmar um lobisomem. Algo para impedir que Adam o matasse no caso de as negociações
correrem mal.
Porém, as coisas não correm bem. Alguém entra em pânico e dispara contra a pessoa que abre a porta — lobisomens menos dominantes teriam tendência a entrar em pânico se invadissem
a casa de um Alfa. Suponhamos que disparam várias vezes contra ele. Um erro, mas não irreparável.
Só que depois Adam ataca. Portanto também alvejam Adam, e algemam-no de modo a poderem segurar nele enquanto ele ouve. Mas Mac morre e Adam não está minimamente disposto a
ouvir. Começa a libertar-se, e quando já se lhe injetou droga suficiente para impedir que isso aconteça, ele está demasiado anestesiado para discutir o que quer que seja.
Estão em pânico. Têm de engendrar um novo plano. O que podem fazer para que Adam coopere?
— A Jesse está lá em cima — verbalizei, estalando os dedos à mesma velocidade que os meus pensamentos.
Levar Jesse e depois forçar Adam a ouvir. Ou, se ele se recusar a ouvir, ameaçar matar Jesse.
Fazia mais sentido do que qualquer outra hipótese até aí colocada. Mas em que parte entravam Mac e as experiências com as drogas?
Saí do Carocha e corri até ao escritório à procura de um bloco de notas. Não tinha nada que provasse a minha teoria, apenas instintos — mas os meus instintos por vezes eram
muito bons.
Numa página escrevi: Experiências com drogas/comprar lobos novatos?, e na seguinte: Porquê substituir Bran por Adam?
Apoiei a anca num banco de três pernas e pus-me a tamborilar com a esferográfica no papel. Para além dos tranquilizantes que tinham matado Mac, não havia nenhuma prova física
de quaisquer outras drogas, mas as experiências de Mac pareciam indicar que havia mais. Passado um momento, escrevi: Quetamina/nitrato de prata/DMSO eram as únicas drogas?
Depois anotei os nomes das pessoas que provavelmente tinham conhecimento de todas as drogas. Samuel, Dr. Wallace, e, depois de uma pausa meditativa, escrevi Auriele, a professora
de Química. Suspirando, admiti: pode ser qualquer pessoa. Depois, teimosamente, coloquei um círculo em volta do nome do Dr. Wallace.
Tinha competência e um motivo para fazer um tranquilizante que o tornasse inofensivo em relação às pessoas que amava. Parei de brincar com a esferográfica. Seria mesmo assim?
O Beijo do vampiro não era um tranquilizante? Era possível que um lobisomem submisso ao despertar dele tivesse a mesma reação que qualquer outro animal injetado com um tranquilizante,
grogue e sossegado. Stefan tinha dito que só alguns lobos se tornavam problemáticos. A reação de Samuel tinha sido violenta; o lobo que nele existia estava pronto a atacar,
como se tivesse sido encurralado.
Pensei nas algemas partidas que Adam tinha deixado para trás na sua casa. Tinha atribuído a sua reação ao rapto de Jesse — mas talvez isso apenas fosse parte da explicação.
Todavia, naquele momento, esse assunto era secundário.
Olhei para a segunda página. Porquê substituir Bran por Adam?
Esfreguei essas palavras com o dedo. Não tinha a certeza de que esse seria o motivo, mas era o tipo de motivo que deixaria corpos no chão sem desencorajar os perpetradores.
Deixaram Adam vivo quando facilmente o poderiam ter matado, portanto queriam alguma coisa dele.
Bran era Marrok havia quase dois séculos. Por que é que alguém de repente queria desesperadamente mudar o estado de coisas?
Escrevi: desejo de mudança.
Bran podia ser um cabrão, um governante no antiquado sentido déspota, mas isso era algo que os lobisomens pareciam querer. Sob o seu comando, os lobisomens da América do Norte
tinham prosperado, tanto em poder como em número — enquanto na Europa a população de lobos decaía.
Mas com Adam as coisas seriam diferentes? Bom, sim, mas não de nenhuma forma que, aos meus olhos, beneficiasse alguém. Estava convencida de que Adam seria tirânico. Samuel
dissera que Bran tinha considerado usar Adam como estandarte dos lobisomens — mas nunca teria funcionado. Adam era demasiado temperamental. Se um repórter lhe pusesse uma
câmara na cara, quando desse por ela estaria estatelado no chão.
Era isso.
Sustive o ar. Não era mudança que queriam — queriam, isso sim, manter tudo na mesma. Bran estava a planear levar os lobos a público.
Subitamente não parecia tão estranha a possibilidade de um dos lobos de Adam o ter traído. (Não tinha tanta confiança na pontaria dos meus instintos como todas as outras pessoas
pareciam ter.) Mas conseguia perceber em que medida é que um dos lobos de Adam podia sentir que ajudar o inimigo não tinha sido uma traição. Estavam a preparar o caminho para
que assumisse o poder. Não pretendiam causar nenhum dano no seu assalto a casa de Adam — mas também não se deixariam desanimar pelas mortes que ali tinham acontecido. Os lobisomens
morrem — e os lobisomens deles tinham morrido por uma causa. Um lobo como Mac, que nem sequer pertencia a um bando, não seria uma grande perda se se considerasse o que estava
em risco.
O traidor podia ser qualquer um. Nenhum dos elementos do bando de Adam devia lealdade pessoal a Bran.
Saquei o cartão que Bran me tinha dado e liguei para o primeiro número. Atendeu ao segundo toque.
— Bran, é a Mercy. — Naquele momento que estava com ele ao telefone, não sabia ao certo o que lhe dizer. Muitas das minhas conclusões eram resultantes de mera especulação.
Finalmente perguntei-lhe: — Tiveste notícias do Adam?
— Não.
Dei uma pancada leve no dedo do pé.
— O… o Dr. Wallace ainda está por aí?
Bran suspirou.
— Sim.
— Podias perguntar-lhe se desenvolveu um tranquilizante que tem efeito sobre os lobisomens?
Levantou o tom de voz.
— O que é que tu sabes?
— Nada. Nada de nada, incluindo o paradeiro do Adam e do teu filho. Quando é que estás a pensar levar os lobisomens a público?
— O Samuel está desaparecido?
— Não diria tanto. O bando todo está com eles. Simplesmente não se deram ao trabalho de me manter informada.
— Ainda bem — disse, claramente nada surpreendido com a opção de não me manterem a par das coisas. — Respondendo à tua pergunta anterior, acho que é uma coisa que tem de ser
feita dentro de pouco tempo. Não nesta semana nem na próxima, mas também não daqui a um ano. Segundo os meus contactos nos laboratórios do FBI, atualmente a nossa existência
é um segredo quase público. Tal como os Senhores Cinzentos, cheguei à conclusão de que dado que é inevitável ir a público, é imperativo controlar a forma como isso é feito.
Estão a ver? Os lobisomens são obcecados pelo controlo.
— Quantas pessoas… quantos lobos sabem disto? — perguntei.
Fez-se uma pausa.
— Isso é relevante para o ataque ao Adam?
— Sim, acredito que sim.
— A maior parte dos lobos daqui deve saber — disse. — Não tenho feito disso segredo. No próximo mês, vou fazer um anúncio oficial no Conclave.
Não disse mais nada, limitou-se a esperar que eu dissesse o que vinha pensando. Era pura especulação, e ao dizer o que quer que fosse estaria a expor-me ao ridículo. Sentei-me
no banco e percebi que também eu tinha as minhas lealdades. Não era uma mulher-lobo, mas ainda assim Bran era o meu Marrok. Tinha de avisá-lo.
— Não tenho nenhuma prova — expliquei-lhe. — Apenas uma teoria. — E disse-lhe o que achava que tinha acontecido e porquê.
— Não faço ideia de quem possa ser — disse ao silêncio do outro lado da linha. — Ou sequer se estou certa.
— Se é um lobisomem desagradado com a ideia de se revelar aos humanos, parece-me estranho que houvesse humanos a trabalhar com ele — comentou Bran, mas não o disse como se
achasse a minha teoria estúpida.
Quase me tinha esquecido dos humanos.
— Certo. E também não tenho propriamente uma explicação para os testes de drogas de que nos falou o Mac. Talvez estivessem preocupados com a dosagem ou os efeitos secundários.
Comprar lobisomens novatos parece-me um grande risco para poucos benefícios.
— Quando dois lobos estão a lutar, o facto de um deles estar drogado pode influenciar enormemente o desfecho — disse Bran. — Gosto da tua teoria, Mercedes. Não é perfeita,
mas parece que estás no caminho certo.
— Ele não teria de se preocupar com as lealdades dos humanos — comentei, pensando em voz alta.
— Quem?
— O Adam diz que um dos lobos que atacou a casa dele era alguém que ele conhecia, um lobo que partilhou o seu renascimento.
— David Christiansen.
— Sim. — O facto de o Marrok saber de quem eu estava a falar não me surpreendeu. Bran passava sempre a impressão de que conhecia pessoalmente todos os lobisomens de toda a
parte. Se calhar era verdade.
— O David trabalha com humanos — disse Bran lentamente. — Mas não com outros lobisomens. Jamais me ocorreria que ele pudesse fazer parte de uma conspiração que incluísse o
sequestro e a Transformação de pessoas como o teu Alan MacKenzie Frazier. Ainda assim é uma hipótese a considerar. Vou telefonar ao Charles e ver o que é que ele acha.
— Ainda está em Chicago?
— Sim. Tinhas razão; foi o Leo. Aparentemente o salário dele não era suficiente para suportar o tipo de vida de que queria desfrutar. — A voz de Bran soou neutra. — Ele não
conhecia o lobo a quem vendeu as jovens vítimas como o teu Alan MacKenzie Frazier. Ao todo eram seis. Nem sabia para que fim é que queriam os novatos. Que estupidez, a dele.
O número dois do Alfa foi quem tratou do negócio, mas o Charles está a ter dificuldades em conseguir mais informações do número dois porque ele saiu da cidade. É possível
que demore algum tempo até o encontrarmos. Aparentemente, o resto do bando não estava a par do que se estava a passar, mas de qualquer modo vamos separá-los.
— Bran? Se tiveres notícias do Samuel ou do Adam dizes-lhes para me ligarem?
— Farei isso — disse gentilmente, desligando em seguida.
13
Depois da conversa com Bran, não estava com a menor disposição para trabalhar no Carocha, portanto fechei a oficina e fui para casa. Bran tinha conferido mérito às minhas
ideias, o que era muito bom, mas isso não me tinha ajudado a desfazer o nó que tinha no estômago e que me indicava que por aquela altura já deveria ter recebido um telefonema.
O meu faro dissera-me que Adam não tinha encontrado Jesse na casa vazia em West Richland, mas não me dissera para onde tinham ido depois.
Parei novamente no alpendre perante o cheiro a morte que ainda persistia. Concluí que Elizaveta Arkadyevna me estava a castigar por não lhe ter contado o que se estava a passar.
Eu própria teria de limpar o alpendre se não quisesse ser lembrada da morte de Mac de todas as vezes que entrasse na minha casa durante os meses seguintes.
Quando abri a porta, ainda com Mac no pensamento, descobri tarde de mais aquilo que os meus sentidos me vinham tentando dizer. Apenas tive tempo para deixar cair o queixo
de modo a que o homem que se escondia atrás da porta não tivesse possibilidade de me esganar por trás, mas ainda assim conseguiu apertar o braço firmemente em volta da minha
cabeça e do meu pescoço.
Virei-me abruptamente enquanto me agarrava até ficarmos cara a cara, e depois concentrei toda a força que tinha num soco repentino dirigido ao centro nervoso da parte exterior
do enorme músculo da sua coxa. Soltou um palavrão, o seu aperto afrouxou e consegui libertar-me, começando logo a lutar de forma impetuosa.
O meu estilo de karaté, o Shi Sei Kai Kan, era pensado para soldados que tinham de enfrentar vários adversários ao mesmo tempo — o que era bom, porque estavam três homens
na minha sala de estar. Um deles era um lobisomem, na forma humana. Não tive tempo para pensar, apenas para reagir. Consegui aplicar alguns bons golpes, mas depressa se tornou
claro que aqueles homens eram muito mais versados em violência do que eu.
Mais ou menos na altura em que percebi que a única razão pela qual ainda estava de pé e a lutar era que eles estavam a ter um extremo cuidado para não me magoarem, o lobisomem
deu-me um golpe, forte e direto, no diafragma e depois, enquanto tentava recuperar o fôlego, atirou-me para o chão e imobilizou-me.
— Parti o cara…
— Há senhoras presentes — ralhou o homem que me segurava com um aperto implacável mas tão gentil quanto o abraço de uma mãe ao seu bebé. A voz dele tinha a mesma qualidade
arrastada que por vezes caracterizava a voz de Adam. — Nada de palavrões.
— Nesse caso, parti o maldito nariz — disse a primeira voz secamente, como se de algum modo abafada; presumivelmente pelo nariz partido.
— Vai sarar — afirmou, ignorando as minhas tentativas de libertação do seu abraço. — Mais alguém está ferido?
— Ela mordeu o John-Julian — disse o primeiro homem novamente.
— Uma mordidelazinha amorosa, senhor. Está tudo bem comigo. — Aclarou a garganta. — Desculpe, senhor. Nunca me passou pela cabeça que ela pudesse praticar artes marciais.
Não estava a contar.
— Agora já passou. Vê se aprendes a lição, rapaz — disse o meu captor. Depois inclinou-se sobre mim e, numa voz poderosa que vibrou pela minha espinha abaixo, disse: — Vamos
conversar um bocadinho, OK? A ideia não é magoá-la. Se não tivesse oferecido resistência, nem sequer teria as nódoas negras que tem agora. Podíamos tê-la magoado muito mais
se fosse essa a nossa vontade. — Eu sabia que tinha razão, mas isso não fazia dele o meu melhor amigo.
— O que é que você quer? — perguntei no tom mais razoável que consegui em face da circunstância de estar estatelada no chão com um lobo desconhecido em cima de mim.
— Linda menina — aprovou, enquanto eu fitava o chão entre o meu sofá e a mesinha, a cerca de sessenta centímetros da minha mão esquerda, onde o punhal de Zee devia ter caído
quando tinha ido dormir na noite anterior.
— Não estamos aqui para a magoar — disse. — Essa é a primeira coisa que precisa de saber. A segunda é que os lobisomens que têm andado a vigiar a sua casa e a do Sarge foram
mandados embora, portanto não há ninguém que a possa ajudar. A terceira é… — Parou de falar e inclinou a cabeça para respirar fundo. — Você é uma loba? Não, mulher-lobo não
é. O cheiro não é esse. Pensei que podia ser da gata, nunca tive nenhuma, mas quem cheira a pelo e caça é você.
— Avô?
— Está tudo bem — replicou o lobisomem —, ela não me vai magoar. O que é que você é, rapariga?
— Isso tem alguma importância? — inquiri. Tinha chamado «Sarge» a Adam. Seria «Sarge» de «Sargento»?
— Não — respondeu. Tirou o corpo de cima de mim e libertou-me. — Não tem a menor importância.
Rebolei em direção ao sofá e agarrei no punhal, libertando-o da bainha e do cinto. Um dos intrusos precipitou-se para a frente, mas o lobisomem levantou uma mão e o outro
homem estacou.
Continuei a mexer-me até estar aninhada atrás do sofá, de punhal em punho e costas voltadas para a parede.
A pele do lobisomem era tão escura que os reflexos eram azuis e púrpura em vez de castanhos. Ajoelhou-se no chão, no mesmo lugar onde se tinha mexido quando me libertara.
Vestia calças de caqui largas e uma camisa azul-clara. Em reposta a um novo gesto, os dois homens recuaram, dando-me o máximo de espaço possível. Eram esguios e tinham aspeto
de durões, para além de serem tão parecidos ao ponto de poderem ser gémeos. Tal como o lobisomem, tinham a pele muito escura. Considerando o tom de pele, a constituição geral
e aquele «Avô», estava capaz de apostar que eram todos familiares.
— Você é o companheiro de exército do Adam — disse ao lobisomem, procurando parecer relaxada, como se acreditasse que estava do meu lado, como se não soubesse que tinha estado
envolvido no incidente em casa de Adam. — O que se Transformou com ele.
— Sou, sim — respondeu. — David Christiansen. Estes são os meus homens. Os meus netos, Connor e John-Julian. — Acenaram com a cabeça enquanto ele dizia os nomes deles. John-Julian
estava a esfregar o ombro no sítio onde lhe tinha conseguido cravar os dentes e Connor segurava um lenço de papel no nariz com uma mão enquanto a outra segurava a minha caixa
de lenços de papel da Kleenex.
— Chamo-me Mercedes Thompson — disse-lhe. — O que é que você quer?
David Christiansen sentou-se no chão, mostrando-se o mais vulnerável que um lobisomem podia ser.
— Pois muito bem, minha senhora — começou. — Metemo-nos numa espécie de enrascada, e esperamos que nos possa ajudar a sair dela. Se sabe quem eu sou, provavelmente também
sabe que sou um lobo solitário por opção desde a Transformação.
— Sim — respondi.
— Nunca cheguei a acabar os estudos secundários, e o exército era a única realidade que conhecia. Quando um velho camarada me recrutou para uma tropa mercenária, fiquei feliz
por ir. Com o passar do tempo, acabei por me fartar de receber ordens e formei a minha própria tropa. — Dirigiu-me um sorriso. — Quando os meus netos renunciaram aos seus
postos e se juntaram a nós, decidi parar de travar as batalhas dos outros. A nossa especialidade é recuperar vítimas raptadas, minha senhora. Homens de negócios, Cruz Vermelha,
missionários, seja o que for, tiramo-los das mãos dos terroristas.
Começava a sentir as pernas cansadas, por isso sentei-me nas costas do sofá.
— O que é que eu tenho a ver com isso?
— Sentimo-nos um pouco embaraçados — disse o lobisomem.
— Estamos do lado errado — disse o homem que tinha respondido a John-Julian.
— O Gerry Wallace foi ter convosco — sussurrei, como se o mais leve ruído pudesse destruir o meu entendimento súbito do que se tinha passado. Tinha-me ocorrido enquanto David
falava sobre ser um lobo solitário. Os lobos solitários e o Dr. Wallace apontavam para Gerry, a ligação do Marrok e os lobos sem bando. — Ele disse-vos que o Bran tencionava
falar ao mundo sobre os lobisomens. — Não era de admirar que Gerry estivesse demasiado ocupado para passar tempo com o pai.
— Isso mesmo, minha senhora — assentiu David, após o que me franziu o sobrolho — Você não é uma mulher-loba, sou capaz de jurar, portanto como é que sabe tantas coisas sobre
nós… — Interrompeu o discurso no momento em que uma expressão de compreensão repentina lhe assomou ao rosto. — Coiote. Você é a rapariga que se transforma em coiote, aquela
que foi criada pelos Marrok.
— A própria — repliquei. — Então o Gerry falou consigo sobre a decisão do Bran de levar os lobisomens a público?
— O Bran está a entregar os lobisomens aos humanos, tal como os Senhores Cinzentos fizeram com a sua gente — interveio Connor, o do nariz ensanguentado. A minha estranheza
foi obviamente ofuscada pela sua indignação com Bran. — É dever dele proteger os seus. Alguém tinha de o deter antes que o fizesse.
— Portanto vocês sugeriram o Adam?
— Não, minha senhora. — A voz de David era branda, mas aposto que se estivesse na forma humana as suas orelhas se lhe teriam colado à cabeça. — Foi o Gerry. Ele queria que
eu viesse falar com ele, de velho amigo para velho amigo.
— O Bran não é um dos Senhores Cinzentos. Jamais abandonaria os seus lobos. Presumo que não vos tenha passado pela cabeça telefonar ao Adam para falar com ele, ou mesmo ao
Bran — disse.
— Estávamos mesmo a regressar de uma missão — explicou David. — Tínhamos tempo. Algumas coisas simplesmente funcionam melhor em pessoa.
— Como raptar? — perguntei secamente.
— Isso não foi planeado — disse Connor, com uma certa irritação na voz.
— Será que não? — murmurou David. — Tenho andado a pensar. Correu tudo tão mal, com quatro lobos do Gerry mortos, que não posso deixar de me perguntar se as coisas não terão
sido planeadas dessa forma.
— Três lobos do Gerry — disse eu. — O Mac era nosso.
David sorriu, mais com os olhos do que com os lábios.
— Como queira, minha senhora. Morreram três lobos dele e um do Adam.
— Por que é que ele haveria de querer matar os seus próprios lobos? — inquiriu Connor.
— Teríamos de analisar os lobos que morreram. — David parecia meditativo. — Pergunto-me se seriam lobos dominantes. Não conhecia bem nenhum deles, exceto Kara. Ela não ia
gostar de receber ordens do Gerry por muito tempo. O rapaz, o Mac, traiu-o ao ir ter com o Adam a pedir ajuda.
— Da maneira como fala, parece que o Gerry é um psicopata — comentou John-Julian. — A mim não me pareceu louco.
— Ele é um lobisomem — explicou-lhe David. — Nós estamos um bocado mais conscientes da cadeia de comando do que os humanos. Se ele deseja permanecer em controlo, tem de se
ver livre dos lobos que são mais dominantes e dos lobos que possam eventualmente trair o bando.
Olhei para David.
— Não conheço o Gerry, mas se tivesse de fazer uma suposição, diria que você é dominante em relação a ele.
David fez uma careta.
— Eu tenho a minha própria gente. Não quero a do Gerry, e ele sabe disso melhor do que ninguém porque me vigiou durante anos.
— Portanto sabia que era seguro recorrer a si — disse a medo. — O facto de o conhecer não seria um desafio à liderança dele.
— O Gerry disse ao Avô que o Adam não queria desafiar o Bran, mas que talvez ouvisse um velho amigo — explicou John-Julian calmamente. — Ofereceu-se para nos pagar o voo até
aqui, portanto concordámos. Não foi preciso muito tempo até percebermos que as coisas eram um pouco diferentes do modo como nos foram apresentadas.
— Eu tinha feito umas investigações — cortou David, apoderando-se da narrativa. — Liguei a uns amigos e descobri que o Bran tenciona mesmo dizer aos Alfas na reunião de dezembro
que irá tornar pública a nossa existência. Por isso viemos aqui falar com o Adam. Não achei que fosse servir de muito. O Adam gosta demasiado do Marrok para desafiá-lo.
— Mas as coisas não eram exatamente como tinham sido apresentadas — interveio Connor. — O Gerry nunca nos disse que estava a reunir um exército de mercenários e lobisomens.
— Um exército? — retorqui.
— Um exército pequeno. Dois ou três lobos solitários como a Kara, lobos que não tinham como integrar um bando — explicou John-Julian. — E um pequeno grupo de mercenários,
pessoas solitárias que aparentemente se ofereceram para se transformar em lobisomens.
— Devia ter posto um ponto final a isso quando o grande imbecil armou uma cambada de idiotas acagaçados com armas de dardos traquilizantes. — David abanou a cabeça. — Talvez
se eu me tivesse apercebido de que o Gerry ia engendrar alguma coisa que pudesse fazer mal a um lobisomem… Seja como for, a partir desse momento tudo se transformou numa enorme
confusão.
— O Adam disse que atiraram contra o Mac na altura em que ele abriu a porta — indiquei.
— O Gerry convenceu-os de tal modo que Adam era muito perigoso que antes mesmo de verem quem era, dispararam. — A voz de John-Julian transparecia apenas um arrependimento
ligeiro, e tinha para comigo que era sobretudo pela estupidez dos disparos e não tanto pela morte de Mac.
— Vocês conheciam o Mac? — perguntei, olhando para baixo na direção do punhal de Zee porque não queria que percebessem quão zangada estava. No entanto, claro está, o lobisomem
tinha percebido.
— Não, não conheciam — disse David. — Chegámos de avião durante a tarde da segunda-feira passada. — Dirigiu-me um olhar previdente. — Estávamos lá quando um dos mercenários
do Gerry, um humano, apareceu completamente aterrorizado.
— O homem disse que alguém tinha matado o seu parceiro — adiantou John-Julian, também ele cravando os olhos em mim. — Um demónio.
— Não foi nenhum demónio — disse, encolhendo os ombros. — Não é preciso um demónio para matar um lobisomem novato e sem treino que era demasiado estúpido para viver.
Engoli a minha fúria — não tinha culpa de não conhecer Mac. Olhei para eles e hesitei. Se calhar conheciam.
A minha inclinação foi confiar neles. Em parte porque a sua história parecia verdadeira — embora não os conhecesse ao ponto de ter a certeza. A outra parte tinha a ver com
a memória que me tinha ficado do tom de voz de Adam ao falar de David Christiansen.
— Permitam-me que vos fale do Mac, o rapaz que morreu no meu alpendre — disse, e depois falei-lhes da sua Transformação, do Alfa de Chicago que o tinha vendido a Gerry e das
experiências com drogas.
— A única coisa que vimos foram as armas de dardos tranquilizantes — comentou John-Julian, vagarosamente. — Mas o lobo novato morreu com dois disparos, e ao Adam tiveram de
fazer cinco até que ele ficasse suficientemente dopado para o prenderem.
— A prata faz com que os nossos metabolismos deixem de funcionar enquanto esse DMSO conduz a droga de forma mais rápida até ao nosso sistema sanguíneo? — perguntou David.
— Isso significa que alguém podia simplesmente substituir a quetamina por outra coisa qualquer?
— Não sou médica — respondi. — No entanto parece-me que isso seria possível.
— Talvez o Gerry pensasse o mesmo e estivesse a testar essa possibilidade — disse David. — Com um bando verdadeiro não teria funcionado, mas com aquela mistura de lobos solitários
desviantes e lobos novatos criados a partir de mercenários que também têm de operar sozinhos, ninguém ia considerar necessário proteger os prisioneiros.
Aquele era o equilíbrio da natureza associado ao papel do lobo dominante. O instinto dos lobisomens de seguir aqueles que eram dominantes era tão forte quanto o instinto dos
dominantes de proteger aqueles que eram mais fracos do que eles próprios.
— Nem todos os lobos solitários são desviantes — protestou Connor.
David sorriu.
— Obrigado. No entanto, os lobisomens precisam de bandos. É preciso algo mais forte para os manter afastados. Alguns são como eu, detestamos demasiado aquilo que somos para
vivermos no seio de um bando. A maioria, no entanto, é constituída por excluídos, homens que o bando não aceitou.
O seu sorriso mudou, tornou-se sombrio.
— Eu tenho o meu bando, Connor. Simplesmente não é um bando de lobisomens… — Virou-se para mim. — Deixei os outros membros da nossa equipa com o Gerry para que vigiem com
cuidado a situação. Ao todo somos seis. Um bando pequeno, mas serve-me perfeitamente. A maior parte dos lobos que vive muito tempo fora de um bando fica um bocado avariada
da cabeça. Com os mercenários acontece um pouco a mesma coisa. Um mercenário que apenas trabalhe sozinho normalmente fá-lo porque ninguém quer trabalhar com ele, seja por
ser estúpido ou por ser louco. E os estúpidos estão, na sua maioria, mortos.
— Ora aí está alguém com quem não gostaria de me cruzar, ainda por cima se fosse lobisomem — confessei enquanto o meu telefone começava a tocar. — Dê-me só um minuto, por
favor — disse, tacteando os bolsos à procura do meu telemóvel, que tinha escapado miraculosamente a qualquer dano.
— Feliz Dia de Ação de Graças, Mercy!
— Feliz Dia de Ação de Graças, mãe — retribuí. — Posso ligar-te de volta? Agora estou um bocadinho ocupada.
— A tua irmã acabou de nos dizer que ficou noiva… — anunciou a minha mãe, ignorando-me despreocupadamente. Portanto pus-me a ouvi-la tagarelar sobre os meus irmãos e o meu
padrasto enquanto três mercenários estavam postados na minha sala de olhos fixos em mim.
— Mãe — cortei no momento em que dava indícios de abrandamento. — Mãe, estou com visitas.
— Oh, que bom! — exclamou. — Estava tão preocupada por passares o Dia de Ação de Graças sozinha. É o Warren e aquele namorado dele simpático? Espero que conserve este. Lembras-te
do último? Agradável aos olhos, devo dizer, mas não era uma pessoa com que se pudesse manter uma conversa, não achas?
— Não, mãe — disse. — São amigos novos. Mas agora tenho de ir, senão vão pensar que os estou a ignorar.
Passados uns minutos, desliguei o telefone educadamente.
— Esqueci-me que hoje era o Dia de Ação de Graças — comentou David, porém não consegui perceber se isso lhe fazia diferença ou não.
— Tenho estado a pensar sobre essas tais experiências com drogas, senhor — disse Connor. — A maior parte dos homens que tenta assassinar um líder fá-lo com a intenção de ascender
ao posto.
— Estamos a falar de lobisomens — explicou-lhe o avô. — Não de humanos. O Gerry jamais poderia ser Marrok. É verdade que é um dominante, mas duvido que tenha a força necessária
para vir a ser o Alfa de um bando, quanto mais de todos os bandos. Ele sabe disso.
— Mas será que isso o agrada? — inquiriu Connor. — Viu-o no meio dos lobos dele? Não reparou que os mercenários que ainda são humanos dão indícios de serem dominantes? Ele
diz-lhes que não pode correr o risco de perdê-los neste momento, mas eu acho que ele está a ser cauteloso. Ele não gosta quando você dá ordens aos lobos dele e eles obedecem.
— Ele não pode mudar aquilo que é — disse David, mas não como se estivesse em desacordo.
— Não, senhor. Mas agora tem o Adam sob o seu controlo, não é verdade? Entre encontrar a combinação certa de drogas e a filha do Adam, podia tê-lo sob o seu controlo o tempo
que quisesse.
David inclinou a cabeça, e depois abanou-a.
— Não funcionaria. Não por muito tempo. Um Alfa preferiria morrer numa luta a submeter-se por muito tempo. Venceria as drogas ou morreria.
Não tinha assim tanta certeza disso. Estava convencida de que ninguém sabia ao certo qual seria o efeito do cocktail de drogas — nem mesmo Gerry, que tinha feito experiências
em lobos novatos e não em lobos poderosos como Adam.
— Não interessa o que nós pensamos. Será que o Gerry acreditava que teriam efeito no Adam? — perguntou John-Julian.
Não sei por que razão, puseram-se a olhar para mim, mas não pude fazer outra coisa senão encolher os ombros.
— Eu não conheço o Gerry. Ele não passava muito tempo com o bando e viajava muito em trabalho. — Hesitei. — O Bran não colocaria uma pessoa estúpida numa posição dessa importância.
David concordou com um aceno.
— Nunca pensei que Gerry fosse estúpido, mas aquele banho de sangue fez-me repensar a minha opinião.
— Ouçam — disse-lhes. — Adoraria falar sobre o Gerry, mas antes disso gostava de saber o estão aqui a fazer e o que querem de mim.
— Não me agrada o que o Bran está a fazer — pronunciou David com uma voz cavernosa. — Não me agrada mesmo nada. Mas ainda me agrada menos o que o Gerry está a fazer.
— O Gerry pediu-nos para deixar o corpo do rapaz à porta da sua casa — explicou John-Julian. — Disse que você estava a precisar de um aviso para não se meter nos assuntos
dos lobos. Encontrámo-nos com ele na casa que ele estava a usar como quartel-general e foi aí que descobrimos que tinha raptado a filha do Adam e abandonado três dos seus
lobos à sua sorte.
— Uma pessoa não pode abandonar os seus homens — disse Connor.
— Uma pessoa não pode atacar os inocentes — afirmou John-Julian, virando-se para mim. Parecia um credo.
David dirigiu-me um meio sorriso.
— E, apesar de achar que alguém tem de pôr um travão ao Bran, só um tonto poderia pensar que ele conseguiria obrigar o Adam a fazer uma coisa que ele não quisesse. Deixaria
que o Gerry aprendesse a sua lição, mas a nossa honra está em jogo. Nós não magoamos os inocentes, por isso esta noite vamos levar o Adam e a filha dele.
— Eles têm o Adam? — Na verdade, o que acabava de me ser dito não era propriamente uma surpresa. Que mais poderia ter mantido o bando longe dos telefones o dia todo? Na realidade,
até era um alívio saber aquilo porque me tinham ocorrido uma dúzia de coisas bem piores.
O que de facto me surpreendeu foi a abertura da porta, porque não tinha detetado a presença de ninguém no meu alpendre frontal. Samuel, de regresso à sua forma humana, entrou
na minha casa. Vestia apenas umas calças de ganga. Nem calçado estava, e, ao caminhar em direção a mim, coxeava um pouco.
— Eles têm o Adam — confirmou.
Posso não o ter ouvido ou cheirado, mas David não pareceu surpreendido. Tinha feito um gesto subtil que mantivera os seus homens nos lugares onde estavam — embora eu conseguisse
perceber que estavam tensos e prontos a atacar.
— David Christiansen, apresento-lhe o Dr. Cornick — disse. — Samuel, este é o David, o velho companheiro de armas do Adam. Está aqui para libertar o Adam e a Jesse.
— Sim, eu ouvi — disse Samuel, sentando-se no sofá ao lado dos meus pés.
— O que é que te aconteceu? — perguntei.
— Fomos até à morada que tínhamos à procura dos outros lobos e encontrámos alguns sinais, mas nada de definitivo. Andámos pelos arredores durante um bom pedaço até que o Darryl
se apercebeu de que o Adam não nos mandava regressar da caça porque tinha desaparecido, juntamente com o seu carro. Houve alguém que o viu com um telemóvel que ele não tinha
quando saímos da casa do Warren. Vários lobos viram o carro a afastar-se, mas ninguém pensou em questionar o Adam.
— Esperem lá — disse, porque estava com um pressentimento muito mau. — Esperem lá. Os vampiros teriam verificado o endereço. O Bran diz que não existe nada mais paranóico
do que um vampiro. Teriam confirmado se havia lobisomens onde se supunha que eles estavam, não te parece? Quanto mais não fosse para se certificarem de que eram lobisomens.
Mas, quando metade do nosso bando aparece, o rasto não é suficiente para localizar os outros? — Olhei para David. — E quando o corpo do Mac foi deixado no meu alpendre, não
consegui cheirar mais ninguém. Não o consegui cheirar a si. — Encolhi os ombros. — Devia ter-me apercebido na altura, não devia? Não é só o Gerry, pois não? — Ao ver que Samuel
tinha ficado tenso, lembrei-me de que ele não sabia. — O Gerry Wallace está a trabalhar com a nossa bruxa.
Havia imensas bruxas capazes de esterilizar um corpo de modo a que nem o nariz mais apurado nem as equipas de médicos legistas mais bem equipadas e formadas conseguissem detetar
uma pista. Mas Elizaveta Arkadyevna era uma das poucas bruxas capaz de remover o cheiro de David e dos seus homens sem remover o cheiro da casa de Adam.
— Há uma bruxa russa — indicou David.
— Se os bandos de lobos forem a público, as bruxas vão perder uma boa parte do seu negócio — disse eu. — O facto de se estar escondido comporta um preço elevado, e as bruxas
são algumas das pessoas que beneficiam com isso. Nem sequer tenho a certeza se equivaleria a um rompimento de contrato, tendo em conta que Gerry quer fazer do Adam o Marrok.
— O quê? — O tom de voz de Samuel era tão baixo que me pôs nervosa.
— O Gerry não quer que os lobos sejam revelados — expliquei. — Entendeu que o Adam é o único que pode impedir isso, matando o Bran.
Levantou uma mão, os seus olhos glaciais enquanto se fixava nos outros homens.
— Acho que o Sr. Christiansen me devia dar a opinião dele sobre o que está a acontecer. — Para assim confirmar se estava a mentir ou não. Samuel era um dos lobos capaz de
fazer isso.
David também sabia disso, consegui perceber isso no seu sorriso.
— O Gerry Wallace disse-me que o Bran ia abandonar os seus. Perguntou-me se eu podia falar com o Adam e fazer com que ele se opusesse.
— Leia-se: lutar com o Marrok pela liderança — clarificou Samuel.
— Sim. Para esse fim, enviou-me a mim e aos meus rapazes até aqui. Fiquei surpreendido com o método que escolheu. Eu não teria levado homens armados para confrontar um Alfa
na sua própria casa, mas não podia objetar de forma mais veemente sem que daí resultasse uma luta que me teria deixado a cargo dos lobos do Gerry, e lobos mais deprimentes
do que aqueles não há. Sabia que o Adam era capaz de se defender, portanto alinhei.
David encolheu os ombros.
— Em conversa com a menina Thompson, chegámos à conclusão de que o Gerry pretendia um banho de sangue porque os lobos que morreram teriam sido sinónimo de problemas para ele.
Penso que desde o início tinha em mente chantagear e não tanto falar.
Samuel inclinou a cabeça.
— Ele conhece o Adam. O Adam não iria desafiar o meu pai, mesmo que discordasse com o que o Bran estava a fazer. Ele não quer ser o Marrok.
— Ele não conhece o Adam assim tão bem se acha que pode controlá-lo ameaçando a sua filha — disse David.
— Penso que está enganado — intervim. — Acho que o Adam era capaz de fazer qualquer coisa para salvar a Jesse.
— Vocês falam todos como se fosse um dado adquirido que o Adam seria capaz de matar o meu pai.
Considerei aquela frase.
— Quem acredita nisso é o Gerry. Talvez tencione fazer alguma coisa que garanta a morte do Bran. Ele ainda acha que é o único que tem conhecimento dos tranquilizantes.
Samuel rosnou, e eu dei-lhe uma palmadinha ligeira no cocuruto. As costas do sofá não eram tão confortáveis como o assento — mas gostava de ser mais alta do que os dois lobisomens.
Samuel puxou a minha mão até ao seu ombro e manteve-a lá.
— Então por que é que vieram aqui? — inquiriu Samuel. — Não conseguiram encontrar o bando do Adam?
— Eu não estava à procura do bando — respondeu David. — O Gerry deixou o Adam completamente drogado. Entrei para falar com ele e quase rebentava as correntes. Pelo que disse,
acha que tem um traidor no seu bando. Eu acho que ele tem razão. Suspeito que foi assim que o levaram. Ainda assim, acho que a droga o está a tornar mais paranóico. Tirá-lo
de lá em segurança com a filha humana vai requer a cooperação dele. Ele não confia em mim. E lamento dizer que tem razões para isso. — Olhou para Samuel. — Acho que também
não confia em si. Não aceitaria a presença de mais um macho com a filha dele ali. — Voltou-se novamente para mim. — Mas você tem o cheiro dele impregnado na sua carrinha,
e ele tem uma fotografia sua no quarto.
Samuel dirigiu-me um olhar penetrante.
— No quarto?
Para mim aquilo também era uma novidade. Mas estava mais preocupado com Adam e Jesse do que com uma fotografia.
— Está bem — disse. — Onde é que eles o têm preso?
Salvo duas exceções, Samuel não parecia ter problemas em deixar David fazer todos os planos. Em primeiro lugar, Samuel insistiu em chamar o bando de lobos, embora tivesse
aceitado que apenas serviriam de apoio, ficando portanto à espera a alguns minutos de distância. Apenas Darryl seria posto a par, e só em cima do acontecimento.
Também insistiu em telefonar ao seu pai e contar-lhe o que sabia.
— O Adam não o vai enfrentar — disse Samuel ao rosto pétreo de David. — Eu sei que ele não gosta da ideia de ir a público, mas compreende as razões do meu pai. — Suspirou.
— Ouça, nenhum de nós está satisfeito com a situação, nem mesmo os Marrok. Mas vários lobos informaram o meu pai de que uma agência do governo está a ameaçar expô-los se não
cooperarem.
Pelo rosto de David passou uma expressão demasiado veloz para que a pudesse interpretar, mas Samuel assentiu.
— Não sabia se alguém tinha falado consigo também. Os outros pertenciam todos ao exército. Transformámo-nos num segredo público, e isso não é seguro. Para ser franco, surpreende-me
que o Bran nos tenha conseguido manter escondidos durante tanto tempo. Pensava que depois de as pessoas terem aceitado os seres feéricos, elas nos descobririam a todos.
— Elas não queriam saber — comentei. — A maior parte aprecia muito o seu mundinho seguro.
— O que é que o seu pai vai fazer ao Avô? — perguntou Connor.
Samuel ergueu as sobrancelhas.
— Não me parece que ele tenha feito nada de errado. Não fez nenhum juramento ao Bran ou a qualquer outra pessoa, nem fez nada que traísse os nossos segredos. Precisamente
o contrário.
O meu telemóvel voltou a tocar — era Bran. Aquele lobisomem era inquietante.
— Mercedes, deixa-me falar com o meu filho.
Olhei para Samuel e disse:
— Ele não está comigo. Já te tinha dito que não ouço notícias dele desde ontem à noite.
— Basta de joguinhos — retorquiu Bran. — Passa o telefone ao Samuel.
Erguendo as sobrancelhas para David Christiansen e os seus homens, passei o telefone a Samuel e ouvi-o a explicar os acontecimentos. Bran provavelmente detetara a mentira
na minha voz quando lhe tinha dito que o Samuel não estava comigo. Provavelmente. Mas David, que tinha ouvido ambos os lados da conversa, ficaria para sempre convencido de
que o Marrok sabia que Samuel estava sentado ao meu lado.
Escondi a minha satisfação. Quanto mais os lobos considerassem Bran poderoso, mais seguro estaria.
14
Seguimos com Christiansen e os seus netos durante grande parte do caminho, eu como humana e Samuel na forma lupina. Tinha-se transformado novamente em minha casa porque os
outros lobos podiam perceber a transformação.
David deixou-nos a cerca de quilómetro e meio do sítio e deu-nos indicações de como lá chegar. A ideia era eu e Samuel aproximarmo-nos furtivamente. Depois veria se era capaz
de entrar sorrateiramente através de um buraco da parte lateral do armazém onde Adam e Jesse estavam presos, e Samuel encontrar-se-ia com o bando e ficaria à espera até que
fossem chamados.
Adam e Jesse estavam numa quinta de árvores, escondida nos campos ondulados mesmo a sul de Benton City, uma pequena cidade que ficava a cerca de vinte minutos de Richland.
Embora a quinta de árvores estivesse circunscrita, ainda havia muitos acres de árvores por ceifar. Reconheci vários áceres e carvalhos à medida que passávamos por eles, bem
como alguns pinheiros.
Um enorme edifício sustentado em estacas, obviamente o armazém de que David me tinha falado, estava escondido bem atrás da casa prefabricada. Esta encontrava-se entaipada
e ao pé dela havia uma placa de um agente imobiliário que orgulhosamente a anunciava como VENDIDA.
Com Samuel ao meu lado, agachei-me numa vala ladeada por uma mata de oleastros e analisei atentamente o lugar. Do local onde estava não conseguia ver nenhum veículo, portanto
era provável que estivessem todos estacionados do outro lado do armazém.
Christiansen tinha-nos dito que a quinta de árvores tinha sido adquirida por um estabelecimento vinícola local que pretendia usar a terra para cultivar vinhas. Uma vez que
não iriam plantar nada até à primavera seguinte, era de esperar que todo o espaço — a casa e o armazém — estivessem vazios até lá.
A placa do agente imobiliário fez-me perceber que um dos lobos de Adam de facto o tinha traído e, para além disso, facultou-me um nome.
Saquei do telemóvel e liguei a Darryl. Por aquela altura, já tinha memorizado o número.
— Já entraste em contacto com o John Cavanaugh? — perguntei. Cavanaugh era um dos lobos que eu não conhecia muito bem. Tinha estado na casa de Warren para o nosso conselho
de guerra.
— Ainda não conseguimos localizá-lo.
Emiti um suspiro de alívio que Darryl ignorou, ainda perdido na sua irritação por ninguém lhe ter explicado exatamente o que estávamos a fazer. Também não se sentia particularmente
satisfeito por ter de seguir as ordens de Samuel.
— Conforme as instruções que me foram dadas, não vou deixar mensagens em atendedores de chamadas.
— Estou neste momento a ver o nome do John Cavanaugh num letreiro de um agente imobiliário ao lado da casa onde têm o Adam preso — disse-lhe.
Fez-se uma longa pausa.
— Estou a ver — replicou pensativamente, e depois desligou. Não é o tipo de pessoa para longas despedidas, o nosso Darryl, mas é um homem inteligente. John Cavanaugh não seria
chamado para aquele resgate, nem para nenhum outro. Talvez me devesse ter incomodado mais o facto de ter acabado de assinar a sentença de morte de um homem, mas ia esperar
para ver como é que Adam e Jesse saíam da situação antes de sentir pena de Cavanaugh.
Ao meu lado, Samuel uivou baixinho.
— Está bem — disse-lhe, e comecei a despir-me. Fazia frio. Não tanto frio como em Montana, mas o suficiente para me desfazer das peças de roupa o mais depressa possível, tendo
ao mesmo tempo o máximo cuidado para não me picar nos espinhos dos oleastros. Dobrei a minha roupa sem grande cuidado e desliguei o telemóvel.
— Não tens de esperar que eu entre — disse-lhe novamente.
Limitou-se a fitar-me.
Emiti um suspiro de desaprovação, e a seguir transformei-me. Maravilhosamente quente uma vez mais, estiquei-me, abanei a cauda a Samuel e dirigi-me para o armazém. Ainda era
dia, portanto percorri um caminho sinuoso para evitar ser vista. Estava consciente de que Samuel me seguia, apesar de nunca o ter visto. Bastante impressionante considerando
a sua coloração — o branco é bom para o inverno de Montana, mas o inverno na parte leste de Washington normalmente é cinzento e castanho.
Uma esquina da placa de alumínio que cobria o armazém estava dobrada, apenas um bocadinho, exatamente onde Christiansen me tinha dito que estaria. Teria de me esforçar, mas
consegui passar à custa de algum pelo. O meu faro disse-me que um outro coiote e várias criaturas mais pequenas tinham usado aquela mesma via nos meses anteriores. Se Gerry
ou um dos seus lobos detestasse o meu cheiro, com alguma sorte limitar-se-iam a pensar que tinha entrado mais um coiote.
O interior do armazém era cavernoso e a temperatura não era mais elevada do que no exterior. Apesar de Christiansen me ter dito que não teria qualquer problema em arranjar
um sítio para me esconder, imaginava-o vazio. Em vez disso, estava cheio de grades de contraplacado — às centenas, talvez milhares — da largura de paletes e com um metro de
altura, consumidas pela humidade e pelo uso. As grades estavam empilhadas às três em prateleiras que chegavam ao teto, talvez uns nove metros acima da minha cabeça.
O ar cheirava a mofo. Olhando em redor, reparei que no chão havia um sistema de rega instalado e escoadouros. Fazia sentido, suponho. Quando o armazém estava cheio de árvores,
teriam de manter as plantas húmidas até as transportarem.
Encontrei uma pilha cuja grade inferior tinha uma folha de papel que dizia «Hamamelis Virginiana — Hamamélia 3’ — 4’». Estava vazia, mas o cheiro adstringente do arbusto ainda
estava impregnado na madeira cinzenta. Podia ter-me escondido na grade superior, mas seria facilmente vista se pulasse para dentro ou para fora. Em vez disso, enrosquei-me
no cimento entre a grade inferior e a porta metálica exterior, o local mais seguro onde podia estar dadas as circunstâncias.
O plano consistia em esperar que um dos netos de David me viesse buscar. Iam «fazer a extração» (palavras de David) à noite, que ainda estava a algumas horas de distância.
Gerry estava a ter problemas com Adam. Mesmo com o tranquilizante, tinham descoberto que a presença de guardas no espaço onde o mantinham o agitava demasiado. Lembravam-se
da forma como tinha quebrado as algemas na sua casa, portanto faziam o seu melhor para o manter calmo: isso significava que ele e Jesse estavam sozinhos a maior parte do tempo,
com um guarda do lado de fora da porta. O cheiro de Gerry incomodava Adam ao ponto de ele ter de se manter completamente afastado do armazém.
Embora só os fôssemos tirar dali a uma horas, podia entrar e fazer o meu melhor no sentido de preparar Adam para o resgate.
Tínhamos discutido sobre isso. David tinha querido que eu esperasse até que o seu homem se pusesse de guarda perto do anoitecer, mas eu não queria deixar Adam e Jesse sozinhos
nem mais um minuto do que o necessário. David entendeu que o risco de ser descoberta era demasiado elevado.
Samuel resolveu a discussão.
— Deixe-a ir. Ela vai fazê-lo de qualquer das formas, e desse modo podemos reduzir os riscos.
David não ficou satisfeito, mas inclinou a cabeça à autoridade superior — e ao melhor julgamento. Samuel tinha razão. Não ia deixar que Adam e Jesse ficassem à espera sem
proteção quando podia estar com eles. Gerry era o único lobo que reconheceria o meu odor, e ia manter-se afastado do armazém. Os restantes lobos simplesmente achariam que
eu era um coiote, e havia imensos coiotes na zona.
No entanto, ainda tinha de esperar por escolta, o que poderia demorar muito tempo, mas era mais seguro do que andar a vaguear à procura do sítio onde tinham escondido Adam
e Jesse.
É impossível permanecer em estado de alerta quando se espera imóvel. Acabei por cair num sono leve que terá durado talvez uma hora até ser acordada pelo cheiro recém-familiar
de John-Julian.
Movi-me sorrateiramente, mas ele estava sozinho, com a minha mochila ao ombro. Não falou comigo, limitou-se a virar de direção e seguir através das grades em direção a uma
secção do armazém que tinha aspeto de em tempos ter sido ocupada por escritórios. Tal como as grades, estavam amontoados em três pisos.
Subiu as escadas até ao nível intermédio, onde a porta mais distante tinha um ferrolho brilhante e reluzente que o fazia destacar-se dos outros. Quando girou o ferrolho e
abriu a porta, entrei disparada e estaquei.
Não era de espantar que Gerry os deixasse apenas com um guarda de cada vez. Não havia a menor hipótese de Jesse ou Adam escaparem sozinhos.
Jesse estava deitada num colchão despido. Alguém lhe tinha colocado fita adesiva em redor da metade inferior da cara, tapando-lhe a boca, o cabelo e o pescoço. Tirá-la não
ia ser um espetáculo bonito de se ver. Tinha algemas nos pulsos e uma corda de alpinista prendia as algemas à estrutura da cama. Os tornozelos estavam unidos e atados aos
pés da cama, impossibilitando-a de fazer muito mais do que contorcer-se.
Fixou-se em John-Julian com uns olhos mortiços — e não pareceu sequer ter reparado em mim. Vestia um pijama, provavelmente aquilo que estaria a usar quando a levaram, um daqueles
conjuntos de algodão macio com uma t-shirt na parte de cima. Na parte interior do braço esquerdo tinha uma pisadela tão escura que parecia preta em vez de roxa.
Adam estava sentado numa cadeira, obviamente feita pelo mesmo carpinteiro de gosto suspeito que tinha feito a estrutura da cama. Era rudimentar, feita de madeira e parafusos,
e presumo que sem qualquer preocupação estética. Grilhetas pesadas, como algo que se esperaria encontrar num museu da cera ou numa câmara de tortura medieval, prendiam-lhe
os pulsos aos braços da cadeira e um outro par prendia-lhe os tornozelos às pernas da cadeira. Mas nem mesmo a destruição da cadeira o libertaria, uma vez que havia em volta
dele correntes de prata suficientes para financiar o sistema escolar local durante um ano.
— O Gerry não vai aparecer aqui — disse-me John-Julian. Adam abriu os olhos, apenas um bocadinho, e vi que as suas íris estavam amarelo-douradas e a arder de fúria. — A presença
dele tem o mesmo efeito sobre o Adam que a do meu avô. Nem mesmo as drogas são suficientes para manter o Adam calmo, portanto o Gerry vai manter-se afastado. O nosso homem
só vai ficar de guarda mais cinco minutos. O próximo é o inimigo; mas depois disso, o Shawn, um dos nossos homens, vai substitui-lo num turno de duas horas.
John-Julian continuou a dar-me informações que eu já sabia, repetindo-as para se certificar de que eu compreendia.
— O Shawn vai entrar para a ajudar da forma que conseguir. É de esperar que os guardas permaneçam lá em baixo, exceto quando começarem o turno. Mas você precisa de deixar
os dois presos até que o Shawn fique de guarda no caso de não o fazerem. Há um guarda a vigiar os prisioneiros e há quatro homens a patrulhar a propriedade. Um deles supostamente
circula no exterior do armazém. Há eletricidade e televisão por satélite na casa, portanto a maior parte deles está lá dentro quando não está de serviço. Na verdade, ninguém
espera que o bando do Adam os encontre em tão pouco tempo, por isso não estão muito alerta.
Os homens de David vigiavam os prisioneiros a maior parte do tempo porque Gerry não tinha muitas pessoas a quem pudesse confiar uma rapariga indefesa de quinze anos — um talento
que não era muito comum no mundo dos mercenários loucos e dos lobos solitários. David dissera que Gerry lhes tinha pagado para cumprirem as tarefas de guarda. Gerry parecia
acreditar que David não o iria atraiçoar desde que lhes estivesse a pagar.
Enquanto John-Julian falava, relanceei os olhos ao compartimento, que não estava propriamente cheio de locais onde uma pessoa se pudesse esconder. Desde que não entrassem
até ao fundo, poderia esconder-me atrás da porta ou no armário grande com porta de correr — alguns clichés são clichés porque funcionam. Não havia nenhuma razão para os guardas
revistarem o quarto enquanto Adam e Jesse permanecessem ali.
Jesse mexeu-se finalmente, depois de se ter apercebido de que John--Julian não estava a falar com ela. Retorceu-se numa posição estranha até encontrar o ângulo de visão certo
para me observar, e a seguir emitiu um ruído áspero atrás da mordaça.
— Chiu — disse-lhe John-Julian, e em seguida, viando-se para mim, continuou: — Tem cerca de quatro horas. Vamos fazer uma manobra de diversão; não me cabe a mim fazê-la, mas
perceberá quando a ouvir. A sua tarefa consiste em levar aqueles dois escada abaixo até ao compartimento mais próximo da porta grande da garagem. O meu avô irá encontrar-se
consigo lá, e depois acompanhamo-la até ao exterior.
Fiz que sim com a cabeça e ele pousou a mochila que transportava no chão.
— Boa sorte — disse baixinho, e saiu, trancando a porta atrás de si.
Transformei-me assim que a porta foi fechada e abri a mochila imediatamente, retirando roupa interior, a t-shirt escura e um velho par de calças de fato de treino. Vesti-me,
coloquei o meu arnês e enfiei nele a minha SIG. Estava carregada e pronta a ser usada. Também tinha levado a Smith & Wesson do meu pai adotivo. Era demasiado grande para ser
colocada num arnês, e não podia usá-la tantas vezes, mas as balas magnum .44 tinham mais poder de impacto do que as do revólver de 9 mm. Se tudo corresse bem, não ia precisar
de usar nenhuma das armas.
Ouvi alguém a subir os degraus e dei-me conta de que não tinha escutado John-Julian a descer — o que era muito bom para um humano. Presumindo que seria o novo guarda, agarrei
na mochila e escondi-me dentro do armário, com a SIG em punho. O armário tinha uma porta de correr, mas deixei o lado mais distante da porta aberto, exatamente como estava
antes de me enfiar nele.
Consegui ver Jesse a puxar as cordas no momento em que alguém rodava o ferrolho e abria a porta.
— Olá, coisinha linda — disse o guarda. Distingui o cheiro do alho que tinha comido não muito tempo antes, bem como o odor de alguma coisa pouco saudável e azeda. Não era
um lobisomem, mas também não era alguém que gostasse particularmente de ver perto de Jesse. — Estou aqui para te levar à casa de banho. Se fores boazinha, até te deixo comer
qualquer coisa. Aposto que estás com fome.
Caminhou em direção a Jesse e fiquei com um ângulo perfeito para o alvejar nas costas. A tentação de disparar foi intensificada pelo pânico nos olhos de Jesse e pelo cheiro
a medo que dela brotava.
Adam rosnou e o guarda sacou da arma e virou-se para ele. Apertou o gatilho e Jesse emitiu um som horrível de incredulidade. Coloquei o meu revólver fora do armário e estava
com o dedo encostado ao gatilho quando me apercebi de que a arma produzira um suave estalido em vez de um estampido — era uma pressão de ar que disparava dardos tranquilizantes.
Se ele tivesse uma audição de lobisomem, seria forçada a alvejá-lo porque não consegui conter o gole em seco que dei na altura em que disparou contra Adam.
— Isso vai-te acalmar por um bom bocado — disse, presumivelmente a Adam. Enfiou a arma no coldre e dobrou-se para desfazer os nós nos pés de Jesse. Se se tivesse virado, tinha-me
visto; como me via Jesse.
Abanei-lhe a cabeça e toquei nos meus olhos, apontando depois para o guarda. Percebeu a mensagem porque parou de olhar para mim — pondo-se antes a olhar fixamente para o teto.
Não me pareceu que o guarda tivesse ouvido, mas alguém estava a subir as escadas a correr — possivelmente atraído pelo som da descarga da arma, independentemente de ter sido
suave. A porta estava aberta de par em par, pelo que o segundo homem entrou imediatamente. Daquela vez, sim, era um lobisomem. Não conseguia vê-lo, mas conseguia cheirá-lo
perfeitamente.
— Cheira a animais aqui dentro — disse numa voz tão grave que parecia abafada.
A princípio, tive a certeza de estava a falar de mim.
O guarda que estava no meu campo de visão deu meia-volta, obviamente apanhado de surpresa. Se tivesse virado os olhos dez graus para o lado, tinha-me visto, mas o segundo
guarda prendeu-lhe a atenção.
— És um animal, Jones? — perguntou o segundo homem com uma avidez discreta na voz. — Eu sou.
Jones recuou até bater com a parte de trás das pernas na cama e se sentar, meio em cima de Jesse. Se tivesse possibilidade, tinha-lhe dito que aquilo era um gesto estúpido.
Nunca se foge de um predador — transmite-lhe a ideia errada.
Ao ver que Jones não dizia nada, o lobisomem gargalhou.
— Pensava que o chefe te tinha dito para não te aproximares desta criança. Estarei enganado?
Não sei o que o lobisomem estava a fazer, mas deve ter sido assustador porque Jones não parava de fazer barulhinhos. O lobisomem mexeu-se finalmente, um homem ruivo muito
alto com uma barba escura cortada rente à cara. Agarrou em Jones, uma mão em cada um dos ombros da camisa, e levantou-o da cama com um grunhido de esforço. Virou-se para a
porta e arremessou o homem mais leve através do compartimento. Não vi Jones a aterrar no chão, mas ouvi-o arquejar.
— Vai — ordenou o lobisomem.
Escutei Jones a descer apressadamente as escadas, mas não estava segura de que isso melhorasse as circunstâncias. O homem que tinha ficado era bem mais perigoso. Tinha feito
aquele comentário sobre animais. Tinha-me farejado, ou estaria apenas a fazer pouco de Jones?
Mantive-me imóvel, excetuando um ligeiro tremor que não consegui controlar, e tentei pensar em coisas boas. O cheiro do medo é intenso, e embora Jesse sentisse um pavor que
valia pelas duas, estava esperançosa de permanecer despercebida.
— Muito bem, meu anjo, vamos lá desamarrar-te — disse o lobisomem a Jesse num tom suave que poderia ter sido mais tranquilizador se eu não tivesse sentido o cheiro da sua
luxúria. Jesse não tinha essa capacidade, e vi-a relaxar pouco a pouco.
As suas manápulas ajudaram-no a desfazer os nós rapidamente, e ajudou-a a sentar-se como um cavalheiro, dando-lhe tempo para se desfazer da rigidez nos ombros e nas costas.
Ela, como rapariga esperta que era, posicionou-se de modo a que o olhar dele se mantivesse afastado do armário.
Deu-lhe um ligeiro empurrão para ajudá-la a levantar-se, depois ajudou-a a equilibrar-se sobre os pés e caminharam para longe da minha vista, saindo pela porta. Encostei-me
à parede, fechei os olhos e rezei para que a decisão que tinha tomado fosse a mais acertada, para que ele não lhe fizesse mais nada além de levá-la à casa de banho.
Entretanto, precisava de ver como estava Adam.
O dardo ainda estava espetado no seu pescoço, e eu puxei-o e deixei-o cair no chão. Abriu os olhos quando o toquei, mas creio que não terá visto absolutamente nada.
— Está tudo bem — disse-lhe, esfregando levemente a mancha de sangue que tinha no pescoço. — Estou aqui, e nós vamos tirar-vos daqui. Sabemos quem é pelo menos um dos traidores,
e os outros não vão ter hipótese de causar mais danos.
Não lhe disse quem se incluía no «nós». De qualquer das formas, não tinha a certeza se me estaria a ouvir, mas ainda assim queria tranquilizá-lo e não irritá-lo. Tinha mais
um dardo pendurado na manga do braço direito, e puxei-o, curvando-me sobre o seu corpo para o efeito. A cabeça dele caiu para a frente até o seu rosto ficar enterrado entre
o meu ombro e o meu pescoço. Não sabia dizer se tinha sido um gesto propositado ou se tinha chocado contra ele, mas conseguia ouvir a sua respiração tornar-se mais profunda.
— Isso mesmo — disse-lhe. — Dorme e livra-te desse veneno.
Permaneci ali, segurando-o contra mim até ouvir alguém começar a subir os degraus novamente. Coloquei Adam conforme estava quando tinham saído do compartimento, à exceção
dos dardos, e depois regressei apressada mas silenciosamente ao meu esconderijo.
Esperei, preocupada, enquanto ouvia apenas uma pessoa a subir as escadas. Só quando surgiu no meu campo de visão é que me apercebi de que transportava Jesse em braços. Estava
rígida e tinha os olhos cravados na parede.
— Desculpa, meu anjo — trauteou, ao mesmo tempo que a atava eficientemente. — Tinha-te dado privacidade se me coubesse a mim decidir, mas não podíamos correr esse risco, pois
não?
Era um homem morto, pensei, memorizando-lhe os traços e o modo como se movia para assim o vir a reconhecer mais tarde — mesmo dando-se o caso de Gerry ter no seu bando dois
gigantes ruivos com mais de um metro e oitenta e cinco. Percebi a satisfação na sua voz, e tinha a certeza de que Jesse também. Queria assustá-la.
Adam mexeu-se. Apesar de estar fora do meu campo de visão, ouvi-o.
— Mercy — pronunciou numa voz áspera e rouca.
O guarda riu-se.
— Mercy21? Não vais encontrar muito disso por aqui. — Curvou-se e deu uma palmadinha leve na face de Jesse. — Até à próxima, meu anjo.
Adam tratava-a por «Anjo», lembrei-me, sentindo uma ligeira náusea. A porta foi fechada e o ferrolho girado. Esperei que alcançasse o piso térreo antes de sair do armário.
Jesse ainda estava de olhos fixos na parede.
A cabeça de Adam estava novamente caída para a frente, e não pude deixar de tocá-lo uma vez mais para me certificar de que ainda respirava. A seguir fui ao encontro da filha
dele.
Não tinha mudado de posição desde que o guarda a tinha voltado a amarrar. Era seguro libertá-los duas horas antes, pensei ao mesmo tempo que tacteava o interior da minha mochila
à procura de alguma coisa para cortar as cordas de Jesse. Para mim era impensável deixá-la naquela situação durante mais duas horas.
Não sei por que levei o punhal de Zee comigo, ou por que razão o agarrei em vez de agarrar o canivete que também estava na mochila, mas foi parar à minha mão como se aquele
fosse o seu lugar.
Jesse mexeu-se bruscamente quando coloquei um joelho sobre a cama, pelo que a toquei no ombro.
— Sou eu, a Mercy. Mais ninguém te vai fazer mal. Ainda temos de esperar um bocado, mas vamos tirar-vos daqui. É preciso que te mantenhas sossegada. Se fores capaz de fazer
isso por mim, tiro-te estas cordas e vejo o que consigo fazer em relação à fita adesiva.
Assim que comecei a falar com ela, passou de um estado de absoluta passividade para uma sucessão de tremores, como se estivesse a congelar. Fazia muito frio no quarto, e eles
não a tinham tapado, portanto supus que parte do problema pudesse estar aí. No entanto fazia todos os esforços para inalar a maior quantidade de ar possível — uma tarefa difícil,
dado que apenas conseguia respirar pelo nariz.
Encostei o gume do punhal ao polegar. Estava afiado, mas não suficientemente afiado para tornar a tarefa de cortar corda de alpinista muito fácil. Fiz deslizar a lâmina entre
um fio da corda e a estrutura da cama e quase me apunhalei a mim mesma quando puxei o punhal e não senti qualquer resistência. A princípio pensei que o punhal tinha deslizado
de debaixo da corda — mas esta estava completamente cortada.
Dirigi ao punhal um olhar de respeito. Devia ter intuído que qualquer punhal que Zee usasse para proteção pessoal reservaria algumas surpresas. Cortei a corda que lhe prendia
os pés e ela levou os joelhos ao peito e, com os braços a envolver a cintura, rodou o estômago. Escorriam-lhe lágrimas pela cara, e acariciei-lhe as costas durante algum tempo.
Quando parecia estar a acalmar um pouco, voltei a vasculhar a mochila e tirei uma pequena lata de WD-40.
— A par do vinagre e do bicarbonato de soda, o WD-40 é a descoberta milagrosa do século — disse-lhe. — Vamos usá-lo para desprender a fita adesiva.
Não tinha a certeza se funcionaria, embora o tivesse usado para limpar resíduos de fita adesiva em carros. Mas, à medida que o óleo penetrava a fita, consegui descolá-la lentamente
da pele. Quando a quantidade suficiente de fita estava solta, encostei-lhe o punhal de Zee e cortei-a perto da zona da orelha. Naquele momento ainda não estava preocupada
em libertar-lhe o cabelo — precisava apenas de lhe tirar a fita da cara.
Saiu com a mesma facilidade que nos carros. Não passou muito tempo até que lhe libertasse a boca. Cortando-lhe o resto da fita, ficou apenas com uma tira presa ao cabelo.
— Isso tem um sabor horrível — comentou roucamente, limpando a boca com a bainha da t-shirt.
— Também não gosto — concordei, tendo já passado pela experiência de provar o óleo uma ou duas vezes, quando me esquecia de que tinha as mãos sujas com ele. — Há quanto tempo
é que não bebes nada?
— Desde que trouxeram o meu pai — sussurrou com os olhos fitos nos joelhos. — Sempre que eu falava, ele acordava do efeito do que quer que lhe estavam sempre a injetar, por
isso amordaçaram-me. Pensava que os lobisomens eram insensíveis às drogas.
— Não a esta — disse-lhe enquanto tirava da mochila a garrafa-termo com café. — Embora não me pareça que esteja a funcionar tão bem como eles queriam. Devia ter-me lembrado
de trazer água — desabafei, segurando uma garrafa-termo cheia com uma coisa preta de cheiro horrível perto da sua cara. Sei que a maior parte das pessoas gosta do cheiro,
mas, por alguma razão que desconheço, não o suporto.
Quando vi que ela não se mexia, disparei:
— Vá lá, agora não tens tempo para ficar em baixo. Hoje à noite, quando estiveres em casa, podes ficar catatónica se quiseres. Preciso que me ajudes a pôr o teu pai de pé
e levá-lo daqui.
A sensação que tive foi que estava a bater num cão choroso, mas sentou-se e pegou na chavenazinha de metal com a mão trémula. Já esperava que isso acontecesse, e por isso
apenas tinha enchido a chávena até meio. Fez uma careta depois de provar.
— Bebe — pedi-lhe. — Vai ajudar-te a ficares melhor. Cafeína e açúcar. Eu não bebo, por isso passei em tua casa e roubei as coisas caras do teu frigorífico. Não deve ser assim
tão mau. O Samuel disse para o fazer forte e para lhe deitar açúcar. Deve saber a qualquer coisa parecida com xarope amargo.
Dirigiu-me um sorriso discreto, depois um mais amplo, e em seguida enfiou o nariz na chávena antes de beber tudo de uma só golada.
— Da próxima vez — disse numa voz rouca —, faço eu o café.
Sorri-lhe rasgadamente.
— É isso.
— Existe alguma maneira de tirar as algemas? — perguntou.
— Daqui a duas horas vai aparecer aqui um conspirador — disse-lhe. — Ele vai trazer chaves.
— OK — replicou, mas a sua boca tremeu. — Mas talvez pudesses tentar abri-las. Estas não são das boas, como as que os polícias têm; são mais parecidas com as que se encontra
em lojas de artigos de sadomasoquismo.
— Jessica Taramind Hauptman — pronunciei, chocada. — Como é que sabes isso?
Soltou uma risadinha tonta.
— Um amigo meu tem umas que arranjou numa feira de artigos usados. Usou-as nele mesmo e não conseguia dar com a chave. Ficou em completo pânico até que a mãe dele abriu a
fechadura.
Olhei atentamente para o buraco da fechadura. Pareceu-me estranhamente foleira. Não tinha à mão nenhum gancho de cabelo ou arame, mas o punhal de Zee tinha uma ponta estreita.
Peguei numa das algemas e tentei introduzir a ponta do punhal. Primeiro pensei que não ia encaixar, mas com alguma pressão acabou por entrar perfeitamente.
— Ai. — Jesse puxou os braços.
Afastei o punhal e olhei para o arranhão no seu pulso. Depois olhei para a algema onde o punhal tinha deslizado através do metal quase tão facilmente como acontecera na corda.
— Um mago do metal, sem dúvida — murmurei.
— Que tipo de faca é essa? — perguntou Jesse.
— Um punhal. Emprestado. — Encostei-o à corrente que unia as algemas e observei-a a derreter à passagem da lâmina cinzenta-escura. — Hmmm. Acho que da próxima vez que algum
ser feérico me emprestar uma coisa vou fazer mais perguntas.
— Dá para cortar completamente as algemas? — Jesse levantou a parte danificada, que já estava cortada até meio.
Mantive-a afastada da pele escoriada e, com toda a cautela, fiz deslizar o punhal entre o seu punho e a algema. O efeito produzido pelo metal a separar-se da lâmina parecia
uma espécie de efeito especial mal conseguido. Um realizador teria acrescentado faíscas ou uma incandescência vermelha — a única coisa que consegui detetar foi um ligeiro
rasto de ozono.
— Quem é que to emprestou? — inquiriu enquanto cortava a segunda algema. — O Zee? — O seu estatuto passava do de velho amigo rabugento a mistério intrigante. — Que fixe. —
Quase parecia a mesma Jesse de sempre, e isso contrastava dolorosamente com o hematoma roxo que tinha na face e com as marcas em volta dos pulsos.
Não me lembrava de ver o hematoma na sua cara antes de o lobisomem a ter levado ao piso térreo.
— Ele bateu-te há bocado? — perguntei-lhe, tocando-a na bochecha e recordando a imagem do guarda a transportá-la enquanto ela tentava parecer o mais pequena possível.
Afastou-se, o sorriso desapareceu-lhe da cara e os olhos puseram-se melancólicos.
— Não quero pensar nele.
— Está bem — concordei de imediato. — Já não precisas de te preocupar mais com ele.
Eu própria me encarregaria de ver se precisava de me preocupar com ele. O véu da civilização caiu-me com bastante facilidade, pensei ao mesmo tempo que pegava na chávena vazia
e a voltava a enroscar na garrafa-termo. Para isso bastou-me ver aquele hematoma; a partir daí, estava pronta a cometer um assassinato.
— Devias beber mais um bocado — disse-lhe. — Mas preciso da cafeína para o teu pai. Talvez o Shawn traga alguma coisa com ele quando chegar.
— Shawn?
Falei-lhe de David Christiansen e da promessa de nos ajudarem a sair dali inteiros.
— Confias neles? — inquiriu, e depois de eu acenar afirmativamente, ela disse: — OK.
— Vamos ver como está o teu pai.
Depois de ter libertado Jesse, não havia grande vantagem em deixar Adam acorrentado, e toda aquela prata certamente não o estava a ajudar nada. Voltei a empunhar o punhal
de Zee, mas Jesse agarrou-me a mão.
— Mercy? — sussurrou. — Quando ele começa a despertar, é…
— Bastante assustador? — Dei-lhe uma palmadinha suave na mão. Numa ou noutra circunstância tinha-me ocorrido que a sua experiência com lobisomens a teria levado a vê-los mais
como animais de estimação do que como predadores perigosos. No entanto, não me parecia que isso viesse a ser um problema. Lembrei-me de David a dizer que Adam tinha enlouquecido
quando entrara no quarto e lembrei-me da destruição na sala de Adam. Talvez o véu tivesse sido arrancado dos olhos de Jesse de forma demasiado brusca. — O que é que esperavas,
estando ele indefeso nas mãos dos seus inimigos? — disse-lhe sensatamente. — Ele está a tentar defender-te o melhor que consegue. É preciso uma tremenda força de vontade para
suportar as coisas que lhe estão a injetar. Não podes esperar que os resultados sejam muito agradáveis.
Ia começar a cortar uma das correntes, mas as preocupações de Jesse fizeram-me perceber que também eu estava um bocado preocupada com a ideia de libertar completamente o Adam.
Tinha de me desfazer daquela sensação se o queria de pé e a andar. Se tivesse medo dele, o predador seria excitado.
Resolutamente, pressionei a faca contra a pesada grilheta que lhe prendia o pulso esquerdo. Tive de ser cuidadosa porque as grilhetas estavam mais apertadas do que as algemas
de Jesse. Entre a sua pele e o metal não havia espaço suficiente para fazer passar o punhal sem o ferir. Ao recordar a forma como a lâmina tinha reagido após o corte em Samuel,
pensei que alguma coisa má podia acontecer. Portanto, pousei a lâmina no metal sem fazer qualquer força de modo a poder afastá-la assim que o tivesse atravessado.
A princípio pensei que era o calor das minhas mãos que aquecia o cabo, mas enquanto a lâmina penetrava a grilheta, tive de deixar cair o punhal porque tinha ficado quente
de mais para que o conseguisse segurar. A mão de Adam deslizou do braço da cadeira e repousou no seu colo.
Precisei de quase uma hora para cortar o resto das grilhetas e correntes. O punhal aquecia cada vez mais depressa e demorava mais tempo a arrefecer. Quando Adam foi finalmente
libertado das correntes de prata, havia manchas pretas no chão de linóleo e umas quantas bolhas na minha mão.
Jesse ajudou-me a reunir todas as correntes e a colocá-las na cama. Tínhamos de ter o máximo cuidado para não as arrastar no chão, uma vez que o som do metal em superfícies
duras tende a ressoar.
Estávamos precisamente a pousar as últimas correntes quando ouvi as passadas do guarda na escada. Deixei cair o punhal de Zee na cama juntamente com a prata, empurrei Jesse
na direção do armário e saquei da arma. Apontei-a aproximadamente um metro e oitenta acima do nível do chão e estaquei, à espera que o ferrolho rodasse.
Assobiou ao mesmo tempo que introduzia a chave e eu firmei a posição da arma. O meu plano era atingi-lo no centro do peito em primeiro lugar, e depois alvejá-lo duas vezes
na cabeça. Se depois disso não estivesse morto, ficaria incapacitado e então aí poderia acabar com ele. Atrairia a atenção de toda a gente, mas não tinha alternativa: não
dispunha nem de tempo nem de inclinação para voltar a amarrar os prisioneiros.
Ao inspirar ouvi a voz de um homem, distorcida pela porta e pela distância, portanto não consegui perceber exatamente o que dizia. Mas ouvi o homem do lado de fora da porta.
Se tivesse de matar alguém, ficaria contente se fosse o homem que tinha batido em Jesse.
— Vou dar uma olhadela aos prisioneiros — disse. — Está na altura de dar outro tiro ao Hauptman.
O segundo homem disse mais qualquer coisa.
— Não preciso de ordens para controlar o relógio — afirmou. — É preciso injetar uma dose no Hauptman. Ele não vai esticar o pernil por causa de um bocadinho de prata. Que
se lixe o que o Wallace disse.
Inspirei fundo enquanto uma força poderosa deslizava escadaria acima. Não do calibre da de Adam ou Samuel, mas ainda assim uma força poderosa, e suspeitei que o homem que
estava a falar com o nosso guarda fosse David Christiansen.
O guarda rosnou, mas tirou a chave da porta e desceu ruidosamente os degraus. Escutei o barulho de uma breve, mas feia, discussão, e ao constatar que ninguém voltava a subir
as escadas, concluí que Christiansen tinha levado a melhor. Passado um instante, voltei a guardar a arma.
— Bom — disse a Jesse enquanto tentava estabilizar a minha respiração —, de divertido não teve nada.
Tinha-se enroscado no fundo do armário. Por momentos pensei que ia permanecer ali — mas ela era uma rapariga dura. Reuniu a sua coragem e pôs-se de pé.
— E agora?
Olhei para Adam. Não se tinha mexido.
Atravessei o quarto e coloquei a minha mão na cara dele. A pele estava fria ao meu toque, o que não era bom sinal. Por causa dos seus metabolismos fortes, os lobisomens normalmente
são mais quentes ao toque. Perguntei-me que quantidade de prata lhe teria injetado no sistema.
— Preciso que ele beba algum desse café — indiquei a Jesse. — E também tenho alguma comida, que deverá ajudar.
Ela postou-se ao meu lado e pôs-se a olhar para ele, desviando em seguida os olhos na minha direção.
— OK — acabou por concordar. — Eu faço isso. Mas como é que o vamos pôr a beber café?
Acabámos por arrastá-lo para fora da cadeira e apoiámos-lhe a cabeça na coxa de Jesse. Vertemos o café, que ainda estava quente, na sua boca. Nenhuma de nós conseguiu descortinar
uma forma de o fazer engolir, mas depois de algumas tentativas, acabou por fazê-lo sozinho.
Depois do terceiro trago, abriu os olhos, que tinham a cor do veludo negro. Esticou o braço e agarrou a mão de Jesse, mas os seus olhos fixavam-se em mim.
— Mercy — balbuciou. — Que diabo é que fizeste ao meu café torrado francês?
Por momentos, acreditei que todas as minhas preocupações não tinham razão de ser, mas de repente Adam largou a mão de Jesse e curvou a coluna para trás, enterrando a cabeça
no colo dela. A sua pele ficou cinzenta, depois sarapintada, e cerrou os punhos. Os olhos reviraram-se até ao ponto de neles apenas se ver branco.
Deixei cair o café e agarrei Jesse pelas axilas, puxando-a para longe de Adam o mais depressa que consegui.
— Ele vai bater com a cabeça — disse, começando a debater-se assim que percebeu, tal como eu, que ele estava a ter um ataque.
— Ele é capaz de se curar de uma cabeça rachada, mas tu não — expliquei-lhe. — Jesse, ele é um lobisomem. Não podes chegar perto dele quando está assim. Se ele te bater, vai-te
partir os ossos. — Agradeci sentidamente a Deus por ele ter largado a mão de Jesse antes de a esmagar.
Como se tivesse despertado pelos mesmos demónios que lhe causavam as convulsões, senti a varredela do seu poder passar por mim — como teriam sentido todos os outros lobisomens
que estivessem por perto, lobisomens esses que, se os números de Christiansen estivessem certos, ascendiam aos doze.
— Sabes usar uma arma? — inquiri.
— Sim — respondeu Jesse, sem desviar os olhos do pai.
Saquei da SIG e entreguei-lha.
— Aponta-a para a porta — disse-lhe, metendo a mão no fundo da mochila à procura das .44. — Se eu te disser para disparares, puxa o gatilho. O primeiro puxão vai ser um bocadinho
difícil. Está carregada para lobisomens. Temos aqui aliados nossos, por isso espera até que eu te diga para disparares.
Encontrei o revólver. Não havia tempo para verificá-lo, mas tinha-o carregado antes de o colocar na mochila. Teria de servir. A Smith & Wesson era bastante mais pesada do
que a SIG, e capaz de causar muito mais estragos.
— O que é que se passa? — sussurrou Jesse, e lembrei-me de que era humana e portanto não era capaz de sentir a melodia do poder do Alfa.
O volume da música aumentou, duplicou, e a sua origem dissipou-se ao ponto de não conseguir perceber se vinha de Adam. Alguém correu escada acima em passada leve e o ferrolho
foi aberto. Jesse ainda estava a olhar para mim, mas eu tinha o meu revólver erguido e apontei para a porta no exato momento em que esta foi aberta.
— Não dispares — disse, levantando a arma e colocando a minha mão por cima da dela para que o cano da arma automática ficasse virado para o chão. — É um dos nossos.
O homem postado em frente à porta tinha uma tez cor de chocolate quente, uma t-shirt verde que dizia OS DRAGÕES MATARAM OS DINOSSAUROS, e olhos cor de avelã. Foi a t-shirt
que me indicou que era um dos homens de David. Mantinha-se muito quieto, dando-nos tempo concluir que estava do nosso lado.
— Sou o Shawn — disse, e depois olhou para Adam.
— Merda — proferiu, entrando no quarto e fechando a porta devagar. — O que é que se passa aqui? — perguntou, de olhos postos em Adam, que estava estendido sobre as costas
com os braços e as pernas a ensaiarem uma espécie de dança estranha e irregular.
— Acho que ele se está a transformar — respondeu Jesse.
— Convulsões — disse eu. — Não sou médica, mas acho que lhe entrou muita prata no sistema nervoso e danificou alguma coisa importante.
— Ele vai ficar bem? — A voz de Jesse tremia.
— Ele é duro — disse-lhe, esperando que ela não reparasse que não lhe tinha respondido à pergunta. Quanta prata seria necessária para matar um lobisomem? Normalmente era uma
questão de poder, mas alguns lobisomens são mais sensíveis a ela do que outros.
— Estava a trocar de turno com o Hamilton quando o capitão se pôs à bulha com o Connor e me fez o sinal para vir cá acima — explicou Shawn. — Ainda nem tinha dado três passos
e já todos os lobos se estavam a aproximar do capitão. Suponho que este ataque do Adam se relaciona de alguma maneira com isso, não?
Fiz que sim com a cabeça e expliquei aos dois o melhor que consegui.
— Não sei como é que o Christiansen está a fazer isto — disse —, mas está a atrair o poder do Adam e a turvá-lo. Aposto que toda a gente vai pensar que é ele.
— Por causa da luta — completou Shawn num tom de confirmação.
No entanto, tinha perdido o interesse na rápida intervenção de Christiansen uma vez que Adam se acalmou e pareceu ficar mole. Jesse ia aproximar-se dele nessa altura, mas
segurei-a.
— Espera — disse, aproveitando a oportunidade para lhe tirar a pistola automática para que não a disparasse por acidente. — Certifica-te de que acabou.
— Ele não está morto? — perguntou Jesse.
— Não. Consigo ouvir a respiração dele. — Era débil e pouco profunda, mas constante.
Guardei a Smith & Wesson no bolso superior da minha mochila e recoloquei a SIG no coldre. Graças a Christiansen, não íamos ter um bando de lobos a convergir em direção a nós
— mas isso podia mudar a qualquer momento.
Adam não se mexia, mas a sua respiração tornava-se mais profunda. Comecei a dizer a Jesse que estava tudo bem, quando, subitamente, Adam rodou sobre o flanco e se encolheu
numa posição fetal ao mesmo tempo que soltava um gemido grave.
21 Jogo de palavras intraduzível. «Mercy», para além de ser um diminutivo de «Mercedes», significa «misericórdia», «compaixão». (N. do T.)
15
— Agora está a transformar-se? — perguntou Jesse.
— Isso seria mau — disse Shawn. — Não é bom que ele se transforme antes de os efeitos das drogas terem desaparecido completamente. Falei com alguns dos homens que estavam
na tua casa quando se libertou. Nessa altura também lhe tinham injetado tranquilizantes.
— Pare de a assustar — disparei. — Ele vai ficar bem. Além disso, não me parece que ele se esteja a transformar. — Na verdade, aquela sensação de poder lupino tinha-se esfumado.
Não fazia a mais pálida ideia do que estava a fazer.
A camisa que Adam vestia, suja, rasgada e manchada com sangue, parecia mais cinzenta do que branca. Muito mais cinzenta. Tinha começado a suar, e o tecido começou a colar-se-lhe
ao corpo, realçando os músculos tensos dos seus ombros e costas. Conseguia inclusive ver os altos da sua coluna. A camisa brilhava ligeiramente sob as frias lâmpadas fluorescentes
enquanto ele tremia miseravelmente. Não conseguia perceber se estava consciente ou não.
Pus o revólver no coldre e caminhei vagarosamente em direção a ele.
— Adam — disse, porque estava de costas voltadas para mim. Nunca é bom assustar um lobisomem. — Estás bem?
Sem surpresas, não respondeu.
Agachei-me e toquei no tecido molhado. Aí agarrou-me o pulso — num movimento tão rápido que de repente estava ali, sobre as costas. Não me lembro de o ter visto virar-se.
Os seus olhos estavam amarelos e frios, mas não me agarrava com muita força.
— Estás a salvo — disse-lhe, tentando permanecer calma. — A Jesse está aqui, e também ela está a salvo. Vamos pôr-te de pé e pronto a lutar, e depois vamos embora daqui.
— É a prata — disse Shawn, amedrontado. — Por isso é que a camisa está a ficar cinzenta. Cara… Raios partam, quero eu dizer. Raios partam. Ele está a suar prata. Raios partam.
Adam não desviou os olhos de mim, embora tivesse pestanejado subtilmente perante o som da voz de Shawn. Os seus chamejantes olhos dourados, de certo modo quentes e glaciais
em simultâneo, como que hipnotizaram os meus. Devia ter desviado o olhar — mas não me parecia uma competição pelo domínio. A sensação que tinha era que estava a usar os meus
olhos para sair de um qualquer sítio onde as drogas o mantinham. Tentei não pestanejar e assim quebrar o feitiço.
— Mercy? — A sua voz correspondia a um sussurro rouco.
— C’est moi, c’est moi, sou eu — respondi-lhe. Parecia apropriadamente melodramático, embora não estivesse certo de que ele tivesse percebido a referência. Não me devia ter
preocupado.
Inesperadamente, riu-se.
— Imaginava-te a citar Lancelote e não Genebra.
— Ambos eram estúpidos — disse-lhe. — O Rei Artur devia tê-los deixado casar como forma de castigo e ter-se posto a andar para viver feliz sozinho. Só gosto do Camelot por
causa da música. — E cantarolei um pouco por entre dentes.
A conversa banal estava a funcionar. A sua pulsação estava menos acelerada e respirava profunda e constantemente. Quando os seus olhos regressassem ao normal estaríamos fora
de perigo. Excetuando, claro, a pequena questão de estarmos num armazém apinhado de inimigos. Um problema de cada vez, é esse o meu lema.
Fechou os olhos amarelos e senti-me momentaneamente à deriva e abandonada até me aperceber de que ainda segurava o meu pulso como se tivesse medo que eu me fosse embora se
o largasse.
— Estou com uma dor de cabeça brutal — disse —, e parece que um cilindro das estradas me passou por cima. A Jesse está bem?
— Estou ótima, pai — interveio Jesse, embora tivesse obedecido ao sinal imperioso que lhe fiz com a mão livre e tivesse permanecido onde estava. Podia soar calmo, mas o seu
cheiro e a forma compulsiva como se agarrava ao meu pulso contradizia o seu aparente controlo.
— Magoada e assustada — disse. — Mas nada de sério. — Apercebi-me de que, na verdade, não estava certa de que assim fosse, e dirigi um olhar preocupado a Jesse.
Ela sorriu, uma imitação abatida da sua expressão habitual.
— Ótima — repetiu, desta vez dirigindo-se a mim.
O suspiro dele parecia de alívio.
— Conta-me o que aconteceu.
Dei-lhe uma versão curta — ainda assim demorei algum tempo a contá-la —, exceto quando lhe falei da invasão da sua casa feita por David Christiansen. Nessa altura, manteve
os olhos fechados, como se fosse doloroso para ele abri-los. Antes de eu terminar, começou a retorcer-se desconfortavelmente.
— Sinto um formigueiro na pele — disse.
— É da prata. — Devia ter pensado naquilo anteriormente. Tocando-lhe na camisa com a minha mão livre, mostrei-lhe o metal cinzento no meu dedo indicador. — Já tinha ouvido
falar em suar balas, mas nunca prata. — Comecei a ajudá-lo a tirar a camisa quando me apercebi de que ele não podia andar por ali nu com a Jesse presente. — Shawn, por acaso
não tem nenhuma roupa extra? Se aquela prata lhe continuar a tocar na pele, vai queimá-lo.
— Ele pode ficar com a minha t-shirt — respondeu. — Mas não posso sair para ir buscar roupas; estou de guarda.
Suspirei.
— Ele pode ficar com as minhas calças de fato de treino. — A t-shirt que eu tinha vestida dava-me pelo meio das coxas.
Shawn e eu despimos Adam o mais depressa que conseguimos, utilizando a camisa para retirar a maior parte da prata da sua pele antes de o enfiarmos nas minhas calças de fato
de treino e na t-shirt verde de Shawn. Adam estava a tremer quando acabámos.
Todo o conteúdo pegajoso da chávena da garrafa-termo se tinha espalhado pelo chão na altura em que a deixara cair, mas tanto a chávena como a garrafa-termo tinham sobrevivido.
Pedi a Jesse que desse ao pai o máximo de café quente que conseguisse, e ela, concentrada na tarefa, sossegou. Depois de bebido o café, deu-lhe a carne mal passada que tinha
trazido em sacos herméticos, sem pestanejar.
Estava preocupada com o facto de Adam estar tão passivo, um estado em que nunca o tinha visto. Samuel dissera-me que a exposição prolongada à prata aumentava a sensibilidade.
Pensei na dor de cabeça de Adam e nos ataques e esperei que a licantropia fosse suficiente para permitir que se curasse.
— Sabe? — disse Shawn pensativamente. — Para alguém que quer que este enfrente o lobo chefe dentro de um mês, o Gerry não está a tratar lá muito bem dele.
Estava virado para ele com o sobrolho franzido quando ouvi a porta a abrir.
— Ei, Morris — disse o estranho enquanto abria a porta —, o patrão quer falar contigo e… — Os seus olhos detiveram-se em Adam e Jesse e parou de falar, levando a mão à arma.
Se estivesse sozinha, todos teríamos morrido. Nem sequer me ocorreu sacar da arma, simplesmente espequei em choque, apercebendo-me tardiamente de que Shawn não tinha trancado
a porta ao entrar. A arma de Shawn emitiu três estalidos surdos numa rápida sucessão, desenhando um triângulo de sangue perfeito sobre o coração do intruso. O barulho produzido
era pouco mais ruidoso do que o da abertura de uma lata de refrigerante. Tinha disparado com uma pistola de baixo calibre, equipada com som silenciador.
O homem ferido caiu lentamente sobre os joelhos, e depois para a frente, esbarrando com a cara no chão. Finalmente saquei da minha SIG e fiz pontaria.
— Não — disse Adam. — Espera. — Olhou para a sua filha. — Disseste-me que não estavas ferida. Isso é verdade?
Jesse assentiu resolutamente.
— Só nódoas negras.
— Muito bem — replicou. — Mercy, vamos tentar matar o menor número de pessoas. Homens mortos não contam histórias, e eu quero saber exatamente o que tem andado a acontecer.
Quando este homem recuperar ao ponto de ser um perigo, já não vamos estar aqui. Deixa-o estar.
— Ele não está morto? — perguntou Shawn. — O capitão diz que se pode matar lobisomens com chumbo.
Por não enfrentarem lobisomens com frequência, os homens de Christiansen não tinham balas de prata, e as que eu tinha eram em número escasso. As balas de prata são caras,
e não tenho por hábito andar a caçar lobisomens. De qualquer modo, apenas Connor tinha uma arma que podia usar os projéteis com o calibre dos meus. Tinha-lhe dado seis das
minhas balas de 9 mm.
— Para matar um lobisomem sem prata é preciso arrancar-lhe a coluna vertebral — expliquei-lhe. — E mesmo assim… — Encolhi os ombros. — As munições de prata provocam ferimentos
que não saram tão depressa, possibilitando que morram por perda de sangue.
— Raios partam! — exclamou Shawn, dando uma última olhadela ao lobisomem ensanguentado que tinha alvejado. Sacou de um telemóvel e marcou vários números.
— Assim todos ficam a saber que estamos a caminho — disse-me depois de ter terminado, voltando a enfiar o pequeno aparelho no bolso das calças. — Temos de sair daqui agora.
Com alguma sorte vão pensar que está alguém no campo de tiro e não vão prestar atenção aos meus disparos. Mas alguém vai dar pela falta do Smitty, e precisamos de estar longe
daqui quando isso acontecer. — A seguir, concentrou-se e organizou a nossa fuga.
Recoloquei a SIG no coldre e tirei a arma com as balas magnum .44. Não tinha coldre para ela, portanto ia ter de transportá-la na mão. Enfiei o carregador extra para a SIG
no sutiã porque não tinha nenhum sítio melhor para o guardar.
Arrastámos o lobo ferido porta fora, e depois Shawn e Jesse puseram Adam de pé. Shawn, porque era o mais forte entre nós, e Jesse, porque eu sabia usar uma arma. Fui a primeira
a sair.
Aquela parte do armazém estava afastada da sala principal. Os escritórios tinham sido edificados numa secção com metade da extensão do edifício, e abaixo de mim estava uma
tira de cimento suficientemente larga para que nela conduzissem dois camiões lado a lado. Inclinando-me sobre o parapeito para verificar a parte inferior da escadaria, percebi
que não havia ninguém por perto, todavia não conseguia perscrutar muito bem o resto do edifício por causa das estantes com grades gigantescas.
Assim que os outros saíram do compartimento e atingiram o patamar das escadas, desci a correr à frente deles até ao patamar do segundo piso, onde podia proteger a descida
deles. Segundo o plano de Shawn, íamos tentar levar Adam até à zona dos carros. Um dos homens de Gerry tinha uma carrinha de caixa aberta Chevy, modelo clássico, que Shawn
disse ser capaz pôr a funcionar mais depressa com ligação direta do que colocando a chave na ignição.
Tentei controlar a respiração de forma a conseguir ouvir, mas o armazém estava em completo silêncio, à exceção do barulho feito pelos meus camaradas a descer as escadas e
do zumbido dos meus ouvidos, que era capaz de se sobrepor aos movimentos de um exército.
Junto aos escritórios havia uma porta de garagem, uma daquelas portas enormes que permitem a passagem de um reboque. Shawn disse-me que estava fechada a cadeado do lado de
fora e que Gerry tinha disparado contra o motor que a abria. Isso tinha acontecido na altura em que decidira manter Jesse num dos escritórios — onde poderia controlar quem
tinha acesso a ela. Teríamos de regressar à outra extremidade do armazém e sair através de uma porta normal, que era a única destrancada.
Enquanto esperava ao fundo das escadas, tentando perscrutar o armazém através do impossível labirinto de grades que poderia ocultar uma dezena de lobisomens com um sem número
de potenciais esconderijos, finalmente pensei no que Shawn tinha dito. Ele tinha razão. Se Gerry queria que Adam matasse Bran, iria precisar dele em muito melhor forma. Considerando
a condição em que Adam se encontrava, Bran não iria precisar de muito mais do que alguns segundos para matá-lo.
Gerry não era estúpido, dissera-me Samuel. Portanto se calhar aquele era o resultado que pretendia.
Ocorreu-me que havia uma imensidão de coisas que não faziam sentido se Gerry não fosse estúpido — e Samuel era bastante bom a ajuizar o caráter das pessoas. David parecia
pensar que o banho de sangue na casa de Adam tinha servido para que Gerry se desfizesse de uma série de competidores indesejados — mas também tinha atraído a atenção do Marrok.
E Bran ter-se-ia inteirado, mesmo que não tivesse levado Adam ao seu encontro. O ataque à casa de um Alfa era algo importante. E depois havia a questão daquele pagamento aos
vampiros. É verdade que posso ter ficado a saber desse assunto mais cedo do que estava à espera, mas se Bran tivesse ido sondar no terreno, tenho a certeza de que também ele
o teria descoberto.
Se eu estivesse a tentar fazer com que alguém desafiasse o lugar de Marrok, não faria com que o meu candidato me odiasse raptando-lhe a filha. Se eu quisesse meios secretos
de forçar um desafio que não tinha a certeza se o meu candidato iria ganhar, garantiria que o meu rastro fosse apagado de modo a que Bran nunca descobrisse — e Bran tinha
a reputação merecida de descobrir tudo.
Gerry não fizera outra coisa senão pintar um painel publicitário que dizia «Vejam o que eu estou a fazer!», e, se não era estúpido, tinha-o feito de propósito. Porquê?
— Mercy. — O sussurro de Shawn puxou-me de volta à realidade. Tinham chegado ao fundo das escadas e eu estava a bloquear-lhes a passagem.
— Desculpem — disse num sussurro idêntico.
Pus-me em marcha, adiantando-me um pouco em relação a eles e inspecionando cada recanto no labirinto de caixas à medida que por elas passávamos. A marcha era lenta. Adam estava
a ter problemas com a perna que tinha ficado maltratada no primeiro ataque, e Jesse era demasiado baixa para levar o pai em braços juntamente com Shawn, que teria aproximadamente
um metro e oitenta e cinco.
Tinha ouvido qualquer coisa, ou pensava que tinha ouvido, e parei. Mas ao constatar que o som não se repetia, calculei que fosse ainda o zumbido nos meus ouvidos, que ia e
vinha. Não tinha dado mais do que três passos quando o poder me atravessou como um vento quente e agradável.
— O bando está aqui — disse Adam.
Nunca antes me tinha sentido assim, embora nunca me tivesse visto numa situação em que todos se aproximavam com um propósito comum. Talvez fosse só isso, ou talvez fosse pelo
facto de estar tão perto do Alfa do bando.
Adam parou e fechou os olhos, inalando profundamente. Quase conseguia ver a força a penetrar nele. Endireitou-se e suportou todo o seu peso.
Jesse também estava de olhos postos no pai. Apenas Shawn se mantinha de mente e olhos concentrados na sua tarefa, e foi a dilatação dos seus olhos que me fez rodar novamente.
Se o lobisomem me tivesse a mim como alvo, eu teria morrido. Mas tinha escolhido o mais perigoso entre nós e roçou em mim como uma bala de canhão, lançando-me contra uma grade.
A Smith & Wesson voou-me da mão, mas não disparou quando atingiu o chão. Ouvi o meu braço estalar e senti um assomo de dor enquanto ainda rodopiava com a força da sua passagem,
até aterrar no chão de cara virada para Adam no instante em que o lobo se lançava a ele.
Jesse gritou. Shawn tinha esvaziado o carregador da arma sem conseguir abrandar o lobo. Sacou de uma faca de aspeto sinistro e aproximou-se para usá-la, porém o lobisomem
atingiu-o com uma daquelas rápidas e felinas bordoadas laterais que supostamente seria impossível a qualquer canino. Como tinha acontecido comigo, Shawn foi projetado contra
uma grade e colapsou no chão.
Levantei-me a custo e saquei do punhal de Zee com a mão esquerda. Não sei por que razão não saquei da SIG; suponho que a estonteante rapidez do ataque me tinha deixado aturdida.
Excetuando aquela semana, normalmente mantinha a violência na minha vida controlada e confinada a um dojo.
Precipitei-me para a frente e algo vermelho passou subitamente por mim num movimento turvo. Outro lobisomem. Acreditei que a nossa sorte tinha acabado, mas eis que o lobisomem
agarrou o primeiro pelo cachaço e o arremessou em direção à extremidade oposta do corredor, para longe de Adam.
O lobo vermelho não se ficou por aí, lançando-se ao animal cinzento e castanho-claro antes de este ter aterrado. Adam estava coberto de sangue, mas antes de chegar perto dele
os ferimentos fecharam-se num ímpeto de poder que cheirava a bando. Rebolou e pôs-se de pé, apresentando um aspeto quase tão saudável como o que tinha antes da noite segunda-feira.
Eu, de forma um tanto tardia, lembrei-me de que tinha outra arma, e deixei cair a faca de Zee para poder sacar da SIG. Em seguida, pus-me à espera que os dois lobos se separassem
o suficiente para poder disparar. Com uma perspetiva reduzida, consegui ver que o animal vermelho era mais alto e delgado do que o habitual, como se tivesse sido criado para
correr e não tanto para lutar.
— Não quero que eles morram se puder evitá-lo — disse Adam, embora não tivesse tentado tirar-me a arma.
— Este precisa de morrer — repliquei. Tinha-lhe reconhecido o cheiro. Era o que tinha esbofeteado Jesse.
Adam não teve possibilidade de discutir comigo porque o lobo cinzento e castanho-claro se pôs em cima do outro e disparei três vezes. Não foi a de calibre .44, mas mesmo uma
pistola de 9 mm provoca muitos estragos quando as balas atingem a parte posterior do crânio a menos de quatro metros.
Adam estava a dizer alguma coisa. Via a boca dele a mexer, mas nos meus ouvidos maltratados ressoava um barulho do tamanho de um oceano. Uma das desvantagens de uma audição
apurada é a sensibilidade dos ouvidos — algo com que os lobos não têm de se preocupar muito por causa das suas capacidades curativas.
Deve ter-se apercebido de que estava com dificuldades em ouvi-lo porque deu uma palmada na minha arma e ergueu uma sobrancelha, fazendo-me uma pergunta. Olhei para o lobisomem
amarfanhado, e depois para Jesse. Adam acompanhou a minha mirada, e o seu rosto tornou-se frio e severo. Quando estendeu a mão, dei-lhe a minha SIG.
Aproximou-se dos lobisomens sem qualquer sinal de debilidade na sua passada. Agachou-se, agarrou no lobo morto com uma mão e tirou-o de cima do outro, que rodou até ficar
sobre as patas e permaneceu quieto, de cabeça virada para baixo e ar atordoado. Adam colocou a mão em concha debaixo da mandíbula do lobo vermelho, verificando os ferimentos
que tinha. Aparentemente satisfeito, voltou-se para o oponente derrotado e esvaziou o carregador disparando contra o corpo inerte.
Vi-o estalar os dedos e o lobo vermelho sacudiu o corpo todo como se tivesse acabado de sair de uma piscina. A seguir, foi sentar-se aos pés de Adam, como um cão bem treinado.
Jesse pegou no punhal e embainhou-o por mim enquanto Shawn se levantava lentamente. Colocou um novo carregador na sua arma e depois pôs uma mão no meu braço partido.
Devo ter emitido um ruído, mas a única coisa de que me recordo é de estar de joelhos, com a cabeça curvada para baixo, e sentir uma mão grande e quente na minha nuca. O perfume
de Adam, rico e exótico, envolvia-me completamente, dando-me a força para acalmar o meu estômago desarranjado. Não acho que tenha perdido completamente a consciência, mas
terei estado perto disso.
Quando ergui a cabeça, o lobo vermelho enfiou o focinho na minha cara e passou-me com a língua na face antes de Adam lhe dar uma leve bofetada. Pus-me de pé com a ajuda de
Adam, mas aguentei-me sozinha.
Adam recarregou a pistola automática quando lhe dei um novo carregador — embora tivesse sorrido de orelha a orelha quando o tirei do sutiã. Ainda bem que não conseguia ouvir
suficientemente bem para decifrar o que dizia. Colocou a SIG no meu coldre, pegou no meu revólver e entregou-mo. Depois concentrou a atenção em Shawn, que com um aceno indicou
a Adam para não se preocupar.
Quando nos encaminhámos para a porta, pensei que o facto de termos um lobisomem a acompanhar-nos era mais tranquilizador do que transportar uma arma carregada. Não que ele
fosse mais eficaz do que as .44, mas a sua presença significava que o bando estava por perto. Tudo o que tínhamos de fazer era juntarmo-nos a eles, e a partir daí estaríamos
a salvo.
Relanceei os olhos a Adam. Parecia saudável, como se nunca tivesse estado magoado. Alguém me contara que o Alfa tinha a capacidade de absorver a energia do seu bando; no entanto,
não sabia por que razão tinha funcionado ali quando na casa de Warren não tinha tido o mesmo efeito.
Shawn foi o primeiro a transpor o limiar da porta, com o lobo vermelho logo atrás dele. Era de noite, e a Lua crescente exibia-se bem lá no alto do céu. Adam segurou a porta
para que Jesse e eu passássemos, e em seguida encaminhou-se para o terreno repleto de carros estacionados como um homem que caminhasse na sua própria sala de estar.
A princípio não consegui ver ninguém, mas depois uma forma indistinta emergiu de detrás de um carro, e depois outra, e outra ainda. Silenciosamente, o bando de Adam formou-se
em volta dele. A maior parte estava na forma de lobo, mas Warren e depois Darryl apareceram na forma humana. Vestiam roupas escuras e estavam ambos armados.
Warren fitou o lobo vermelho, o nosso salvador, e ergueu uma sobrancelha, mas não quebrou o silêncio. Examinou Adam e depois tocou a face pisada de Jesse.
— Warren. — Adam falou em voz baixa de modo a ser ouvido apenas pelos que estavam perto dele. — Levas a minha filha e a Mercedes para um lugar seguro, por favor?
Noutra altura teria discutido com Adam. Afinal de contas, quem é que tinha salvado quem? Mas o meu braço latejava brutalmente e já tinha matado quanto bastasse por um dia.
A única coisa boa era que tinha deixado de ouvir um zumbido nos ouvidos. Que Adam e a sua gente acabassem aquilo, pensei. Estava pronta para ir para casa.
— Não te quero deixar aqui — disse Jesse, agarrando firmemente a t-shirt emprestada do pai.
— Eu levo-a para a minha casa — interveio Warren, dirigindo um sorriso tranquilizador a Jesse. — Podes ir lá buscá-la quando estiveres a caminho de casa. — Num tom mais suave,
disse: — Eu fico contigo até ele chegar. Comigo estarás em segurança.
— Está bem — respondeu Jesse com um aceno rápido e espasmódico. Julgo que ela tinha acabado de perceber que o pai dela queria-a longe dali antes de tratar das pessoas que
a tinham raptado.
— No entanto, estou sem carro — disse Warren a Adam. — Corremos cerca de cinco quilómetros para chegarmos aqui.
— Shawn? — disse eu, tentando manter o volume da voz tão baixo quanto o das pessoas que tinham falado antes de mim. — Disse-me que havia nesta zona uma carrinha de caixa aberta
velha na qual era fácil fazer ligação direta? Se me disser onde a procurar, eu própria posso fazer a ligação para que o Warren nos leve daqui.
— No lado oposto do armazém, longe dos carros de toda a gente — replicou.
Comecei a andar sozinha, mas, passado pouco tempo, Warren e Jesse estavam atrás de mim. A carrinha de caixa aberta era o único carro no outro lado do armazém. No centro da
débil iluminação de uma das lâmpadas exteriores do armazém estava estacionada uma carrinha Chevy de 69, pintada com uma qualquer cor escura que refulgia. Alguém ia ficar muito
triste ao constatar o desaparecimento do seu brinquedo — se sobrevivesse à ira de Adam.
Mas o meu problema não era esse. O meu problema estava em como fazer ligação direta tendo o braço direito partido. Vinha-o mantendo encostado ao meu flanco, mas isso não ia
servir por muito mais tempo. A dor estava a aumentar de forma constante e a deixar-me com vertigens.
— Sabes fazer ligação direta num carro? — perguntei esperançosamente a Warren à medida que nos acercávamos da carrinha.
— Receio que não.
— E tu, Jesse?
Olhou para cima.
— O quê?
— Sabes fazer ligação direta num carro? — perguntei novamente, e ela abanou a cabeça. Exalava o odor a medo, e pensei no modo como se tinha agarrado ao pai.
— Aquele guarda, esta noite — disse-lhe.
Por momentos pareceu desconcertada, depois o seu rosto ruboresceu e encolheu os ombros.
— Ele nunca mais vai voltar a incomodar ninguém.
— O lobisomem morto era ele? — Não consegui ler-lhe a expressão na face. — Foi por isso que o mataste? — De repente, carregou o cenho. — Por isso é que o meu pai disparou
contra ele daquela maneira. Como é que ele sabia? Ele estava inconsciente, e tu não lhe disseste nada.
— Não precisava — respondi, e tentei explicar aquele momento de entendimento perfeito, em que um gesto tinha dito a Adam tudo aquilo que ele precisava de saber. — Ele percebeu
pela minha cara, acho. — Voltei-me para Warren e entreguei-lhe a .44 para tentar o meu melhor em relação à carrinha.
Fazer a ligação direta com uma mão levou-me mais tempo do que levaria com as chaves, e a posição maljeitosa em que tive de me colocar de forma a tirar o invólucro abaixo do
volante e chegar aos fios fez com que batesse com o meu braço lesionado. Mas finalmente o motor — com mais cavalos do que os que teria o motor original — deu sinal de vida
com um rugido, e apercebi-me de que tinha recuperado completamente a audição.
— Nunca te tinha ouvido a dizer palavrões — comentou Jesse, parecendo um pouco melhor. — Pelo menos não dessa forma.
— Palavras de poder. Sem elas, o mundo superior estaria irremediavelmente perdido. — O tom de Warren era ligeiro e as suas mãos gentis, ajudando-me a sair do habitáculo. Entregou-me
a minha arma e, quando me atrapalhei ao agarrá-la, voltou a pegar nela e certificou-se de que o cão não estava puxado antes de ma voltar a entregar.
Abriu a porta do passageiro e ajudou Jesse a entrar e a seguir estendeu-me o braço. Dei um passo em direção a ele e depois algo que chamou a atenção.
A princípio pensei que era um som, mas isso era apenas porque estava cansada. Era magia. Não era magia lupina nem magia feérica.
E então lembrei-me de Elizaveta.
Samuel tinha conhecimento da existência dela, disse a mim própria. Mas sabia que não me podia ir embora. Nenhum dos lobisomens era capaz de sentir a sua magia, não até ser
tarde de mais, e Samuel talvez não soubesse quão importante era Adam ter conhecimento de que Elizaveta estava a trabalhar com Gerry.
Elizaveta Arkadyevna Vyshnevetskaya não era uma bruxa qualquer. Era a bruxa mais poderosa do Pacífico Noroeste.
Tinha de avisar Adam.
— Leva a Jesse para a tua casa — disse a Warren. — Dá-lhe de comer, obriga-a a beber litros de sumo de laranja, cobre-a com um cobertor. Mas eu vou ter de ficar.
— Porquê?
— Porque se o Bran levar os lobos a público, a bruxa do Adam perde a sua fonte de rendimento.
— A Elizaveta?
Uma arma foi disparada, seguida de um segundo e depois um terceiro estalido.
— Leva a Jesse daqui, tenho de avisar o Adam. A Elizaveta está aqui e está a lançar um feitiço qualquer.
Dirigiu-me um olhar implacável.
— Como é que eu desligo a carrinha?
Abençoado fosse Warren. Não ia discutir.
— Basta separar os fios.
Havia troca de tiros no outro lado do armazém, quatro disparos. Pareciam vir de perto da casa entaipada.
— Tem cuidado — adverti. Beijou-me na testa sem tocar no meu pobre corpo dorido e em seguida pulou para o interior da carrinha.
Observei-o enquanto fazia marcha a ré, ligava os faróis e seguia caminho. Jesse estava a salvo.
Sempre tive a capacidade de detetar magia de todos os tipos, fosse de lobisomens, bruxas ou seres feéricos — e sei que isso não é comum. Charles, quando descobriu, disse-me
para manter isso em segredo — à luz da reação dos vampiros quando descobriram o que eu era, conseguia perceber que o conselho de Charles não era tão inocente quanto eu tinha
pensado.
Com base no que Stefan me tinha dito, eu era de certo modo imune à magia dos vampiros, mas não era tonta ao ponto de presumir que o mesmo se aplicava à feitiçaria. Quando
a encontrasse não fazia ideia do que lhe ia fazer — mas tento não me preocupar com uma tarefa impossível antes de ter terminado a primeira.
Rodando sobre mim mesma consegui encontrar uma direção. A energia da magia batia-me na cara como um vento morno. Dei dois passos em direção a ela… e o feitiço desvaneceu-se.
A única coisa de que tinha a certeza era que Elizaveta estava ali, e estava algures à minha frente. A melhor coisa a fazer era encontrar Adam e avisá-lo, portanto fiz o caminho
inverso, contornando o armazém.
As coisas tinham mudado desde que eu me tinha ido embora. Adam, ainda com o lobo vermelho sentado aos seus pés, tinha apenas um punhado de lobos consigo. Shawn, os netos de
David e um par de humanos que não conhecia estavam de armas apontadas a um grupo de homens estendidos no chão de braços abertos.
Enquanto me aproximava deles, David e Darryl acompanharam mais um homem até ao exterior e estenderam-no ao comprido junto dos restantes homens.
— Aqui estão os humanos todos, Sarge — disse David. — Deixámos alguns mortos dentro da casa. Mas os lobos dispersaram, e não consegui seguir o rastro do Gerry, nem sequer
quando comecei a procurá-lo a partir do último sítio onde o vi. O cheiro dele simplesmente desaparece.
— Adam — intervim.
Virou-se para olhar para mim e o lobo vermelho subitamente deu um pulo no ar ao som de um disparo. Não se tratara de um disparo particularmente ruidoso; parecia ser de uma
arma de baixo calibre.
— Baixem-se! — berrou David enquanto se lançava para o chão. Os seus homens aninharam-se, ainda com as armas apontadas aos prisioneiros.
O lobo ao lado de Adam permaneceu de pé durante mais um bocado, e depois colapsou, como se também tivesse ouvido David — mas consegui ver o dardo pendurado no seu flanco e
percebi que tinha sido atingido por um dos dardos tranquilizantes.
Adam não se atirou para o chão. Em vez disso, fechou os olhos e inclinou a cabeça para cima. Por momentos, perguntei-me o que estaria a fazer, depois percebi que a luz no
seu rosto vinha da Lua, que se erguia sobre nós exatamente a meio do seu ciclo.
Darryl, deitado no chão, percorreu a distância que o separava de Adam. Parou ao lado do lobo tombado e tirou-lhe o dardo do corpo.
— O Ben está bem — disse Darryl, erguendo a arma enquanto examinava a escuridão que nos rodeava.
Ben era o lobo vermelho. Tinha sido Ben, o assassino psicopata de Londres, a salvar-nos a todos. Tinha salvado Adam duas vezes.
Outro tiro disparado. Adam mexeu a mão e o dardo caiu no chão, rodando inofensivamente contra os seus pés. Os seus olhos ainda estavam fechados.
— Sarge, Mercy — sibilou David. — Baixem-se!
Nessa altura percebi que também eu estava de pé, ligeiramente inclinada na direção de Adam enquanto este convocava a Lua. Podia ter-me agachado naquele momento, se não por
mais nada, porque David me tinha dito para fazê-lo, mas Adam lançou a cabeça para trás e uivou, uma melodia lupina que lhe provinha da garganta humana.
Por um momento, aquele som misterioso intensificou-se, ecoou, depois e dissipou-se em silêncio, mas não num silêncio vazio. Antes uma calma letal como a que precede o início
da caça. Quando voltou a uivar, todos os lobos que o ouviram responderam.
Senti uma melodia a assomar-me à garganta, mas, tal como os meus irmãos selvagens, sabia que não era boa ideia cantar com os lobos.
Quando Adam chamou a Lua uma terceira vez, tanto Darryl como David deixaram cair as suas armas e começaram a transformar-se. O apelo da Lua ressoou por entre as árvores e
conseguia senti-lo a apoderar-se do resto dos lobos e a forçá-los a assumir a forma lupina. Conseguia ouvir gritos de agonia daqueles que lhe resistiam e gemidos daqueles
que o aceitavam.
Adam manteve-se de pé sob o luar, que de certo modo parecia mais brilhante do que instantes antes. Abriu os olhos e olhou para a face da Lua. Daquela vez, usou palavras.
— Venham — disse.
Não falou muito alto, mas, de um modo que não sei explicar, a sua voz, tal como a melodia, disseminou-se pela quinta de árvores abandonada como o ribombar de um trovão, poderoso
e inevitável. E os lobos foram.
Apareceram sozinhos ou aos pares. Alguns apareceram em joviais passos de dança, outros a arrastar as patas e com as caudas em baixo. Alguns ainda se estavam a transformar,
de corpos esticados e estranhamente dobrados.
A porta do armazém abriu-se de par em par e um homem saiu aos cambaleios, com uma das mãos agarrada ao peito. Era o guarda que Shawn tinha alvejado. Apesar de demasiado débil
para se transformar, respondia ao poder do apelo de Adam.
Eu não era imune. Dei um passo em frente sem olhar para o chão e tropecei num pau. Recuperei o equilíbrio, mas o movimento brusco provocou dor no meu braço — e a dor limpou-me
a cabeça como uma dose de amoníaco. Limpei os olhos lacrimejantes e com o pulso e senti a inconfundível vaga da feitiçaria.
Ignorando a magia de Adam e o meu braço, desatei a correr, porque, na atmosfera da noite, densa de poder, distingui a morte no feitiço e nela estava escrito o nome de Adam.
Não podia perder tempo à procura da bruxa; o feitiço já tinha sido lançado. A única coisa que podia fazer era atirar-me contra ele, da mesma maneira que Ben se tinha lançado
contra o dardo.
Não sei por que funcionou. Mais tarde disseram-me que não era de esperar que funcionasse. Assim que é atribuído um nome a um feitiço, assemelha-se mais a um míssil guiado
do que a um raio laser. Era de esperar que me tivesse contornado e atingido Adam.
Atingiu-me a mim, atravessando-me como uma torrente de penas, fazendo-me tremer e arfar. Depois parou, e, como se fosse um rio de ferro fundido e eu um íman, toda a magia
convergiu novamente em mim. Era magia de morte e sussurrava-me «Adam Hauptman».
Tinha uma voz. Não era a de Elizaveta, mas pertencia a alguém que eu conhecia: um homem. A bruxa não era de todo Elizaveta — era o seu neto, Robert.
Os meus joelhos cederam sob o peso da voz de Robert e sob a tensão de ter assumido o nome de Adam para que a magia se detivesse em mim. Sentia os pulmões como se respirasse
fogo e sabia que a minha interferência não podia durar muito tempo.
— Sam — sussurrei. E como se a minha voz o tivesse sugado do nada, subitamente estava à minha frente. Esperava que estivesse na forma de lobo como todos os outros, mas não
estava.
Levou as mãos em concha às minhas faces.
— O que se passa, Mercy?
— Bruxa — disse, e vi entendimento nos seus olhos.
— Onde é que ela está?
Abanei a cabeça e arfei.
— Robert. É o Robert.
— Onde? — inquiriu.
Julgava que lhe ia dizer que não sabia, mas o meu braço ergueu-se e apontou para o telhado da casa entaipada.
— Ali.
Samuel desapareceu.
Como se o meu gesto tivesse desencadeado alguma coisa, o fluxo de magia quintuplicou. Colapsei completamente, pressionando a cara contra a poeira fria na esperança de impedir
que o fogo que ardia dentro de mim me consumisse a pele. Fechei os olhos e consegui ver Robert, aninhado no telhado.
Tinha perdido alguma coisa na sua beleza, o seu rosto estava torcido em resultado do esforço e tinha a pele pintalgada de manchas avermelhadas.
— Mercedes. — Pronunciou suavemente o meu nome no seu feitiço e senti-o a mudar como um cão de caça a quem é dado a cheirar um lenço diferente. — Mercedes Thompson.
Mercedes, sussurrava o feitiço, satisfeito. Tinha atribuído à morte o meu nome.
Gritei enquanto a dor se apoderava de mim, uma dor que tornava insignificante a agonia anterior provocada pelo meu braço. Mesmo mergulhada no fogo que me consumia, consegui
ouvi uma canção. Apercebi-me de que havia um ritmo no feitiço de Robert, e dei por mim a mexer-me com ele, murmurando suavemente a melodia. A música encheu os meus pulmões,
e depois a minha cabeça, sustendo o fogo enquanto eu esperava.
E a seguir Samuel pôs fim à magia por mim.
Acho que estive desmaiada durante algum tempo porque, de repente, estava nos braços de Samuel.
— Então todos aqui, exceto um — disse.
— Sim. — A voz de Adam ainda conservava o poder da Lua.
Debati-me e Samuel pôs-me no chão. Ainda tive de me inclinar contra ele, mas estava de pé. Samuel, Adam e eu éramos os únicos de pé.
Pareceu-me impossível serem tantos. O Bando da Bacia do Columbia não era tão grande, e o bando de Gerry era muito mais pequeno — mas todos eles estavam sentados no chão como
um pelotão de Esfinges, aguardando a ordem de Adam.
— Dois dos lobos solitários, mais velhos e dominantes, correram quando os chamaste da primeira vez — disse Samuel. — Os outros responderam. Agora são teus. Só te falta chamar
o Gerry.
— Ele não virá — replicou Adam. — Mas tão-pouco pode ir embora. É tudo o que eu posso fazer. No entanto não é um lobo solitário. Pertence ao Marrok.
— Deixas-me ajudar?
A Lua iluminou os olhos de Adam e, embora ainda estivesse na forma humana, os seus olhos eram completamente lupinos. Consegui sentir o cheiro da sua reação à pergunta de Samuel.
Um rugido grave ergueu-se sobre os lobisomens quando também eles detetaram o cheiro. Os lobos são territoriais.
Adam esticou o pescoço e ouvi-o estalar.
— Ficaria reconhecido — respondeu calmamente.
Samuel estendeu o braço e Adam apertou-lhe a mão. Endireitou-se e levantou rosto em direção à Lua uma vez mais.
— Gerry Wallace do Bando do Marrok, convoco a tua presença diante dos teus acusadores.
Devia estar muito perto, porque não demorou muito tempo a chegar. Tal como Samuel, permanecera na forma humana. Deteve o passo no limite do aglomerado de lobos.
— Gerry, meu velho amigo — disse Samuel. — É chegada a hora. Vem até aqui.
As palavras gentis não me impediram de lhes sentir o poder subjacente — nem a Gerry. Pôs-se de quatro e gatinhou por entre os lobisomens imóveis, com a cabeça submissamente
virada para baixo. Não ia lutar mais.
Parei quando se abeirou de nós. Pensei que ia estar zangado — como eu teria ficado se alguém me tivesse forçado a fazer alguma coisa contra a minha vontade. Ou talvez amedrontado.
Mas não sou um lobisomem. A única emoção que consegui distinguir foi a resignação. Tinha perdido e sabia disso.
Adam agachou-se até ficar de joelhos e colocou a mão no ombro de Gerry.
— Porquê?
— Foi pelo meu pai — respondeu Gerry. O seu rosto estava calmo e a sua voz possuía qualquer coisa de etéreo, dominado que estava pelo apelo da Lua. — Ele estava a morrer.
Cancro, disseram eles. Eu falei vezes sem conta. Implorei e roguei. Por favor, papá, ser lobisomem é uma coisa maravilhosa. Acho que quando concordou o fez porque simplesmente
já estava faro de me ouvir. Quem o fez foi o Bran, porque eu não era capaz de suportar. E no princípio foi perfeito. O cancro desapareceu e ele podia correr.
— Eu sei — replicou Adam. — Ele não conseguia controlar o lobo.
— Não queria. — Era estranho escutar aquele tom pacífico enquanto as lágrimas lhe escorriam pela cara. — Não queria. Até aí era vegetariano, e de repente começou a sentir
necessidade de comer carne crua. Tentou curar a asa de um pássaro, mas este morreu com medo da coisa em que ele se tinha transformado. O Bran disse que o meu pai estava a
ficar com o coração destroçado por ser um lobisomem. Ele não podia, não queria, aceitar o que era porque não queria ser um predador. Não queria ser como eu.
Adam carregou o cenho.
— Pensava que estavas a tentar impedir que o Bran nos expusesse aos humanos.
Gerry limpou a face.
— O Bran disse que se o meu pai não fosse tão dominante, não teria sido capaz de resistir ao lobo. Mas quanto mais resiste, menos controlo tem. Quase matou a minha irmã.
— Gerry. — A voz de Samuel era firme. — O que é que isso tem a ver com o Adam?
Gerry levantou a cabeça. Não conseguia olhar diretamente nos olhos de Samuel, ou de Adam, portanto olhou para mim.
— Quando lutamos — explicou —, o homem e o lobo transformam-se num só. Só seria preciso uma vez. Apenas uma vez e o meu pai seria pleno.
— Ele não queria que o Adam lutasse com o Bran — disse eu, subitamente. — Pois não, Gerry? Por isso é que não estavas preocupado com a quantidade enorme de prata que os teus
homens estavam a injetar nele. Querias matá-lo?
Olhou-me com os olhos iguais aos do pai e disse:
— O Adam tinha de morrer.
— Estás-te a marimbar para a decisão que o Bran tomou de expor os lobisomens, não estás? — inquiriu Samuel.
Gerry sorriu-lhe.
— Desde a altura em que os seres feéricos foram a público que tenho feito por que isso aconteça. Mas precisava de dinheiro para pôr o meu plano em funcionamento, e há muitos
lobos que não querem ser expostos ao conhecimento público, e estão dispostos a pagar por isso.
Subitamente, tudo se tornou claro. E Samuel tinha razão. Gerry não era estúpido: era genial.
— A compra de lobisomens novatos ao Leo, em Chicago, as experiências com drogas, o ataque à casa do Adam; tudo isso visava fazer duas coisas — disse eu. — Mostrar ao Bran
que estavas por detrás de tudo isto e provar ao teu pai que não estavas.
Assentiu com a cabeça.
— O Adam tinha de morrer — continuei, deixando-me guiar pela intuição. — Mas tu não o podias matar. Por isso é que o deixaste à mercê dos teus lobisomens quando ele ainda
estava drogado. Por isso é que te mantiveste afastado do armazém, à espera que os teus homens injetassem no Adam doses de prata suficientes para o matar.
— Sim. Ele tinha de morrer, mas não pelas minhas mãos. Tinha de ser capaz de olhar o meu pai nos olhos e dizer-lhe que não tinha matado o Adam.
Estava a tremer porque fazia frio e porque o meu braço, que surpreendentemente não me incomodava havia alguns minutos, começou novamente a doer.
— Quem tu querias que lutasse com o Bran não era o Adam, mas sim o teu pai. Estavas a contar que o Bran fosse ter com o teu pai assim que descobrisse o que estavas a fazer.
— O meu pai telefonou-me hoje à tarde — disse Gerry. — Bran tinha-lhe perguntado acerca do tranquilizante e disse-lhe que era possível que eu estivesse por detrás dos ataques
dirigidos ao Adam. O meu pai sabe que eu quero que os lobos parem de se esconder. Ele conhece a minha posição em relação às experiências em animais e à forma como alguns Alfas
exploram alguns dos lobos novatos. Ele sabe que eu nunca iria tentar matar o Adam.
— Se o Adam morresse, o meu pai contaria ao teu antes de vir aqui para te matar — interveio Samuel.
Gerry riu-se.
— Não me parece. Acho que o Bran teria vindo aqui para me matar pelos meus crimes. Tinha esperança que o fizesse. Matei demasiados inocentes. Mas quando ele disse ao meu pai
o que eu tinha feito, ele não acreditou.
— Se o Carter acreditasse que o Marrok te tinha executado por uma coisa que não tinhas feito, iria desafiá-lo. — O tom de Samuel era quase de admiração. — E o meu pai não
poderia recusar o desafio.
— E se o Bran falasse com o Dr. Wallace primeiro? — perguntei.
— Não teria feito diferença. — Gerry parecia absolutamente convicto. — Fosse para me proteger ou para me vingar, o meu pai teria desafiado o Bran. Mesmo antes de ser lobo,
o meu pai era o braço direito do Marrok. Ele respeita-o e confia nele. A traição do Bran, e o meu pai ia ver as coisas dessa maneira, só podia ter uma resposta. O Bran era
o único que podia unir o meu pai, juntar homem e lobo, contra ele. O meu pai ama-o. Se o meu pai e o lobo que há nele enfrentarem o Bran numa luta, vão fazê-lo como um ser
uno: o Bran disse-me que bastaria essa única vez para que o meu pai estivesse a salvo.
— Se o Dr. Wallace desafiasse o Bran, o Bran matava-o — afirmou Adam.
— As bruxas são caras — sussurrou Gerry. — Mas há muitos lobos que querem manter-se escondidos e me deram dinheiro para que pudessem manter os seus segredos.
— Estás a pagar ao Robert, o neto da Elizaveta. Ele faria alguma coisa para garantir a vitória do teu pai. — Achava que Robert o tinha feito por dinheiro. Só não me tinha
apercebido de que o ia receber de forma tão direta.
— Toda a gente se ia pôr à procura das drogas — disse Gerry. — Mas ninguém, à exceção de outra bruxa, consegue detetar magia.
— Eu consigo — disse-lhe. — O Robert já está arrumado. Se o teu pai desafiar o Bran, quem vai morrer não é o Bran.
Fraquejou um pouco.
— Nesse caso, Samuel, posso pedir-te o favor de dizeres ao Bran para garantir que o meu pai nunca venha a saber disto? Não quero causar-lhe mais dor do que aquela que já causei.
— Tens mais perguntas a fazer? — perguntou Samuel a Adam.
Adam fez que não com a cabeça e pôs-se de pé.
— Esta noite ele é o teu lobo ou meu?
— Meu — respondeu Samuel, dando um passo em frente.
Gerry olhou para cima em direção à Lua, suspensa sobre nós.
— Por favor — rogou. — Que seja rápido.
Samuel pressionou os dedos contra o cabelo de Gerry — um toque suave e reconfortante. Tinha a boca apertada de pesar: se o instinto de um lobisomem submisso é o de se curvar
perante a autoridade, o de um dominante é o de se proteger.
Samuel moveu-se tão depressa que Gerry não tinha como saber o que estava a acontecer. Com uma sacudida brusca, Samuel usou as suas mãos de curador para partir o pescoço de
Gerry.
Entreguei a minha arma a Adam para ficar com uma mão livre. Depois saquei do punhal de Zee e estendi-o a Samuel.
— Não é de prata — expliquei —, mas serve.
Observei enquanto Samuel garantia que Gerry permanecesse morto. Não era agradável, mas era necessário. Desviar os olhos não ia encurtar o momento.
— Vou telefonar ao Bran assim que arranjar um telefone — disse, limpando o punhal às calças. — Ele vai-se certificar de que o Dr. Wallace nunca venha a saber o que aconteceu
ao filho dele.
Algumas horas depois, Bran e Carter Wallace corriam na floresta. Bran disse que o luar cintilava nos cristais da neve que estalavam debaixo das suas patas dançantes. Atravessaram
o leito congelado de um lago e surpreenderam uma fêmea de veado que dormia; esta meneou a cauda branca e desapareceu por entre a vegetação rasteira quando passaram ao seu
lado. Contou-me que as estrelas cobriam o céu, tão distantes das luzes da cidade, como um cobertor de brilho dourado.
Pouco antes de os primeiros raios discretos de Sol iluminarem o céu a nascente, o lobo que tinha sido Carter Wallace foi dormir, enroscado ao lado do seu Alfa, para nunca
mais acordar.
Samuel não tinha matado Robert, por isso entregámo-lo à sua avó: um destino que não parecia achar muito prometedor. Elizaveta Arkadyevna não ficou nada agradada com ele, mas
a verdade é que fiquei sem perceber se estava desagradada por causa da sua traição a Adam ou pelo facto de ter sido apanhado.
Samuel decidiu ficar em Tri-Cidades durante algum tempo. Tem passado grande parte do tempo livre de volta da papelada necessária para estender a sua licença médica ao estado
de Washington. Até lá, trabalha na mesma loja de conveniência onde Warren está — e parece gostar muito de lá estar.
Bran, claro está, não revelou os seus lobos ao mundo, deixando-os à sua sorte. Não é um daqueles Senhores Cinzentos que forçam a aparição pública daqueles que se querem esconder.
Portanto, a maior parte dos lobisomens ainda permanece escondida, embora Bran tenha encontrado o seu estandarte.
É impossível ligar a televisão ou abrir um jornal sem esbarrar com uma imagem do homem que se infiltrou num acampamento terrorista para resgatar um missionário e a sua família
de um sequestro.
O missionário e a sua mulher já tinham sido assassinados, mas foram resgatadas três crianças. Há uma fotografia a cores que foi capa de uma das revistas noticiosas. Nela aparece
David Christiansen abraçado à criança mais jovem — uma criança loira na primeira infância com a marca dos dedos de um homem claramente visível na sua pele de porcelana. A
sua cara está caída contra o ombro dele, e ele está a olhar para ela com uma expressão de ternura tal que me traz as lágrimas aos olhos. Mas a melhor parte da fotografia é
o rapaz que está postado ao seu lado, de rosto pálido e sujo. Quando o vi pela primeira vez, o meu pensamento foi que estava petrificado, como se tivesse passado por experiências
demasiado terríveis para ser capaz de suportá-las, mas depois reparei que tinha a mão enfiada na de David e que os nós dos seus dedos estavam brancos por causa da força com
que agarrava os enormes dedos do homem.
16
Uma vez que não há muito que uma mecânica com um braço partido possa fazer, para além de atrapalhar, Zee mandou-me para o escritório para trabalhar na minha papelada. Também
aí não fiz grande coisa, mas pelo menos — nas palavras de Zee — não estava a lamuriar-me diante dele.
Recusava-se a dizer-me o que quer que fosse acerca do seu punhal ou sobre quem era Adelbert e por que razão precisava de forjar metal — e também não tinha conseguido descobrir
a resposta na Internet. Quando me tornei insistente, Zee disse-me que gostava mais da era moderna, com o seu aço e a sua eletricidade, do que do tempo antigo porque um Metalzauber,
um gremlin, tinha possibilidade de fazer mais do que construir espadas para matar outra malta. Depois exilou-me no escritório e voltou a concentrar-se na reparação de carros.
Sou destra, e o braço que tinha partido era precisamente o direito. Não conseguia sequer usá-lo para segurar direito numa folha de papel porque o médico nas urgências tinha
insistido para eu andar com o braço pendurado ao peito. Inclusive tinha de escrever no meu computador usando apenas uma mão — o que tornava a realização de qualquer trabalho
laboriosamente lenta. Portanto pus-me a usar o computador para jogar ao solitário estilo Las Vegas e perdi dois mil dólares imaginários.
Provavelmente não era a melhor altura para Gabriel Sandoval aparecer. Tinha-me esquecido de que dissera à sua mãe para ele aparecer na segunda-feira depois das aulas.
Teve de esperar que eu acabasse de digitar os dados da fatura deles, e depois um salário/hora que me parecesse justo. No entanto, para compensar a despesa teria de trabalhar
vinte horas, e isso pareceu-me demasiado. Portanto, acrescentei um par de dólares por hora para subtrair ao tempo de horas para cobrir a despesa.
Imprimi os dados e entreguei-lhos. Deu uma vista de olhos e riscou o salário, substituindo-o pelo original.
— Ainda não valho tanto — disse. — Mas vou valer no final do primeiro mês.
Reavaliei-o. Não era alto, e nunca seria um homem grande, mas havia nele qualquer coisa de sólido, independentemente de ser tão novo.
— Está bem — disse. — Combinado.
Mostrei-lhe o escritório, o que demorou cinco minutos. Depois sentei-o ao computador e mostrei-lhe como funcionava o meu programa de inventário e o meu sistema de faturação.
Depois de me parecer que tinha compreendido o funcionamento, dei-lhe as minhas pilhas de papelada e deixei-o a tratar dela.
Regressei à oficina e, quando Zee olhou para mim, levantei o polegar na direção do escritório.
— Acho que encontrei o substituto do Tad — disse-lhe. — Dei-lhe a minha papelada e nem sequer resmungou.
Zee ergueu as sobrancelhas.
— O Tad nunca resmungou contigo.
— «Que merda, Mercy, será que não és capaz de te lembrar de me dar as faturas no dia em que as recebes?» — citei, imitando o melhor que conseguia a voz de Tad-rezingão.
— Seria de esperar que uma pessoa criada no meio de lobisomens soubesse a diferença entre resmungar e dizer palavrões — observou Zee. Pousou a chave de porcas e suspirou.
— Estou preocupado com aquele rapaz. Sabes que ele conseguiu aquela bolsa para em troca terem um ser feérico que pudessem transportar de um lado para o outro e para ser apontado.
— Provavelmente — concordei. — Embora nunca venham a saber o que têm entre mãos.
— Achas que ele está bem?
— Não me ocorre nenhum sítio onde o Tad não estivesse bem. Nada o assusta, nada o incomoda, e é assustadoramente competente em tudo aquilo que decide fazer. — Dei uma palmadinha
nas costas de Zee. Dava-me prazer vê-lo a desempenhar o papel de pai nervoso. Aquela era uma conversa que vínhamos tendo desde que Tad tinha partido para Harvard. Uma vez
por semana, mandava um mail a Tad com a narração detalhada das mesmas.
Ouvi a porta do escritório a abrir e acenei a Zee para que não fizesse barulho de modo a podermos ouvir como é que o meu novo empregado de escritório lidava com os clientes.
— Em que posso ajudá-la? — disse numa voz suave e profunda que me surpreendeu. Não estava à espera que lançasse charme.
Mas depois ouvi Jesse dizer:
— Vim à procura da Mercy. Ela não me disse que tinha uma pessoa nova a trabalhar para ela.
Fez-se uma pausa breve, e a seguir Gabriel disse numa voz dura:
— Quem é que te bateu?
Jesse riu-se e, em tom ligeiro, respondeu:
— Não te preocupes. O meu pai viu a nódoa negra e a pessoa que me bateu agora está morta.
— Ainda bem. — Gabriel falou como se não se importasse com a possibilidade de aquelas palavras corresponderem à verdade. E o facto é que correspondiam.
— Tenho uma pessoa à espera no carro — disse. — É melhor ir falar com a Mercy.
Entrou na oficina com um ar pensativo plasmado no rosto.
— Gosto dele — comentou.
Anui com a cabeça.
— Eu também. Belo corte.
Tínhamos passado na casa de Warren depois da limpeza na quinta de árvores e deparámos com Jesse sem a fita adesiva que tinha estado presa ao seu cabelo — e também sem a maior
parte do cabelo. Warren estava… Bom, na verdade devia estar envergonhado, mas havia divertimento nos seus olhos.
Jesse revirou os olhos.
— Quem havia de dizer que um homem gay não sabia cortar cabelo. — Fez deslizar os dedos através dos fios de cabelo de dois centímetros com brilhantes madeixas douradas. Parecia
uma rapariga da década de 1920 com um daqueles chapéus em forma de conta.
— Ele disse-te que não sabia fazer cortes de cabelo — disse-lhe enquanto passava por mim para se dirigir a Zee e dar-lhe um beijo na cara.
— Fui arranjá-lo no dia seguinte. — Exibiu-me um sorriso rasgado, e logo a seguir o sorriso sumiu-se-lhe do rosto. — O meu pai telefonou ontem à minha mãe e contou-lhe o que
aconteceu. Tudo o que aconteceu.
Conhecia a mãe dela. Só tinham passado quatro anos desde o seu divórcio e Adam vivia ao pé de mim há quase sete.
— O que é que ela disse?
— Que ele me devia meter no primeiro avião para Eugene e nunca mais lhe aparecer lá em casa. — Tocou nos próprios lábios. — Ela faz de propósito, sabes? Tenta fazer com que
ele se sinta mal, como se fosse um animal. Se isso não funcionar, ela traz à baila os quatro abortos dela, como se isso não o magoasse a ele tanto como a magoa a ela. Como
se fosse tudo culpa dele. E ele vai sempre na cantiga dela. Eu sabia o que ela ia fazer, por isso obriguei-os a deixarem-me ouvir a conversa noutro telefone. Eu acho que ele
ia concordar com ela e enviar-me de volta, por isso disse algumas coisas que se calhar não devia ter dito.
Não lhe perguntei, limitei-me a esperar. Podia contar-me se quisesse. Aparentemente, queria.
— Falei ao meu pai do namorado dela que se tentou enfiar na minha cama quando eu tinha doze anos. E de uma situação que aconteceu há dois anos, quando ela foi passar um fim
de semana a Las Vegas sem me dizer que ia viajar. A coisa ficou feia.
— Lamento.
Levantou o queixo.
— Eu não. A minha mãe concordou que eu ficasse aqui durante o resto do ano escolar, depois disso vão falar. Bom, seja como for, o Warren está lá fora à minha espera no carro.
O meu pai disse-me que ia demorar algum tempo até que me deixasse voltar a sair de casa sozinha. Pelo menos uma semana. Queria perguntar-te uma coisa.
— De que é que precisas? — perguntei.
— O meu pai pediu-me para passar por cá para te convidar para jantar. Num sítio caro, porque estamos em dívida para contigo.
— Eu fecho a oficina para que te possas ir preparar — disse Zee de forma um tanto ansiosa. Não tinha sido assim tão choramingona. A sério.
— Está bem — respondi. — Podem apanhar-me às… — Comecei a rodar o meu pulso direito, estremeci e lembrei-me de que naquela manhã tinha posto o relógio no pulso esquerdo. Eram
quase quatro. — Seis e meia.
— Ele lá estará — disse, regressando em passo descontraído ao escritório para lançar charme ao ajudante.
— Vai — disse Zee.
Não era assim tão fácil, evidentemente. Apresentei Gabriel e Zee, e a seguir andei de um lado para o outro a acabar algumas coisas até perto das cinco. Tirei a minha mala
do cofre e saí porta fora quando o meu amigo sob disfarce estacionou um Mustang descapotável dos anos oitenta, preto e brilhante, no parque de estacionamento.
— Tony — disse.
Quando saiu do carro, pulando por cima da porta, reparei que ainda estava com o seu disfarce de super-macho. Os óculos de sol pretos, opacos, que lhe ocultavam os olhos davam-lhe
um ar ameaçador e sexy.
— O teu carro está sem motor — disse-lhe.
— Que estranho — replicou, lançando ao carro um olhar implacável —, ainda há instantes estava aqui.
— Ha-ha — pronunciei. O braço doía-me, e não estava com disposição para piadas estúpidas. — Tens de arranjar alguém que te veja o motor.
— O que é que fizeste ao braço? — perguntou.
Lembrei-me do método de Jesse, que consistia em dizer toda a verdade, e respondi:
— Fui atirada contra um monte de grades de madeira por um lobisomem enquanto estava a tentar salvar uma rapariga das garras de uma bruxa malvada e de um senhor da droga.
— Ha-ha — disse, exatamente no mesmo tom com que eu reagira à sua piada. — Deve ter sido uma coisa estúpida para não me dizeres a verdade.
— Bem — repliquei, considerando a questão —, talvez «senhor da droga» tenha sido uma expressão muito forte. E talvez devesse ter mencionado o pai bonito e sexy da rapariga.
Que te parece?
— Mercy — disse, pegando no meu braço funcional e fazendo-me dar meia-volta para que caminhássemos para o interior do escritório. — Precisamos de falar.
— Não posso falar. Tenho um encontro.
— Boa tentativa, mas desde que te conheço que não tiveste um único encontro. — Abriu a porta e acompanhou-me até ao interior.
Gabriel levantou os olhos da minha… da sua papelada e o sorriso agradável que tinha na cara dissipou-se.
— O que é que tu estás aqui a fazer? — disse, levantando-se e contornando o balcão. — Larga-a. Já.
Boa, pensei. Exatamente aquilo de que eu precisava, mais um machão na minha vida a tentar tomar conta de mim.
Tony largou o meu braço e deixou-se cair numa das cadeiras desconfortáveis que uso para encorajar os meus clientes a arranjarem outra coisa para fazer em vez de se porem à
espera enquanto lhes reparo os carros. Enterrou a cara nas mãos e começou ou a rir ou a chorar. O meu palpite era que se estava a rir.
Quando levantou a cabeça, tinha feito uma daquelas extraordinárias transformações — parcialmente ajudado, tenho de admitir, pela ausência dos óculos de sol. Mas, acima de
tudo, a sua transformação estava na linguagem corporal e na expressão facial. Subitamente, ficou a parecer dez anos mais velho e, excetuando os brincos, muito mais respeitável.
— Tony? — disse Gabriel, obviamente estupefacto.
— Tenho andado a trabalhar sob disfarce em Kennewick High mesmo nas barbas dele — contou-me Tony. — Ele nunca sequer suspeitou. Eu bem te disse que a maior parte das pessoas
não me reconhece.
— Nunca questionei isso — repliquei. — Acho que és um bom polícia secreto.
Tony abanou a cabeça.
— Olha lá, Gabriel, dás-nos um minuto a sós? Queria fazer umas perguntas à Mercy.
— Claro. — Gabriel abanou a cabeça e foi-se embora. Virou-se para trás uma vez enquanto se encaminhava para a oficina, como se para se certificar de que Tony ainda ali estava
sentado.
— Tenho-o feito passar maus bocados na escola — disse Tony assim que ficámos a sós. — Mas ele sabe tomar conta de si próprio.
— Preciso mesmo de ir a casa — disse-lhe. — De que é que precisavas?
Levantou uma anca e tirou uma folha de papel dobrada do bolso de trás.
— Aquele puto que esteve aqui a ajudar-te — disse. — Tenho informações sobre ele.
Peguei no papel e desdobrei-o. Era uma fotografia de Mac, a preto e branco e granulosa, com «DESAPARECIDO» escrito em letras maiúsculas no topo. Para além das suas características
vitais — tinha dezasseis anos —, não continha mais informações.
— Alan MacKenzie Frazier — li.
— Localizaram-no aqui a partir de uma chamada que fez à família a semana passada.
Assenti com a cabeça, devolvendo-lhe o papel, e continuei a mentir a Tony com a verdade.
— Ele perguntou se podia fazer uma chamada de longa distância no último dia que esteve aqui, faz hoje uma semana. Trabalhou o dia todo, mas depois disso nunca mais o vi.
Tinha falado com Bran acerca de Mac. Assegurou-me que um caminheiro iria encontrar os restos mortais de Mac na primavera, de modo a que os seus pais não tivessem de ficar
eternamente à espera ao pé do telefone. Não era muito, mas era o melhor que eu podia fazer.
Foi necessária alguma barafunda e uma dose razoável de ajuda, mas consegui pôr-me aperaltada, asseada e bonita para o jantar com Adam e Jesse. Que acabou por ser um jantar
apenas com Adam porque Jesse lhe disse que se sentia indisposta. Deixou-a em casa a ver um filme com Darryl e Auriele porque Warren tinha saído com Kyle.
Sob a aprazível influência de boa comida e boa música, Adam relaxou, e descobri que por debaixo daquela capa de Alfa autoritário e com mau génio existia um homem encantador,
autoritário e com mau génio. Pareceu ter gostado de descobrir que, tal como sempre suspeitara, eu era teimosa e desrespeitadora da autoridade.
Pediu sobremesa sem me consultar. Teria ficado mais zangada se não fosse algo que eu jamais poderia ter pedido para mim: chocolate, caramelo, nozes, gelado, chantilly autêntico
e um bolo tão delicioso que provavelmente era um brownie22.
— Então — disse enquanto comia a última porção —, estou perdoado?
— És arrogante e ultrapassas os limites — respondi, apontando-lhe o meu garfo limpo.
— Eu tento — disse com falsa modéstia. Depois os seus olhos puseram-se mais sérios e esticou o braço por cima da mesinha, passando o seu polegar pelo meu lábio inferior. Manteve-se
de olhos fixos em mim enquanto lambia o caramelo do dedo.
Bati com as mãos na mesa e inclinei-me para a frente.
— Isso não é justo. É verdade que comi a tua sobremesa e gostei, mas não podes usar o sexo para me impedires de ficar zangada.
Riu-se, um daqueles risos suaves que começam na barriga e sobem ao longo do peito: um riso relaxado e feliz.
Para mudar de assunto, porque as coisas estavam a aquecer a um ritmo que me deixava desconfortável, disse:
— Ora, o Bran disse-me que te ordenou que me mantivesses debaixo de olho.
Parou de rir e ergueu ambas as sobrancelhas.
— Sim. Agora pergunta-me se eu te estava a vigiar por causa do Bran.
Era uma pergunta manhosa e consegui ver-lhe o deleite nos olhos. Hesitei, mas decidi que ainda assim queria saber.
— OK, tu ganhas. Andavas a vigiar-me por causa do Bran?
— Querida — pronunciou de modo lento e arrastado, regressando às suas raízes sulistas. — Quando um lobo vigia um cordeiro, não está a pensar na mamã do cordeiro.
Sorri abertamente. Não consegui evitá-lo. A ideia de Bran como a mamã de um cordeiro era demasiado engraçada.
— Não sou propriamente um cordeiro.
Adam limitou-se a sorrir.
Altura de mudar novamente de assunto, pensei, dando um gole rápido de água gelada.
— O Warren disse-me que aceitaste o nosso violador em série favorito como membro permanente do bando.
— Ele não foi o responsável pelas violações em Londres.
Falava com certeza, o que significava que tinha perguntado a verdade a Ben e a tinha conseguido. Ainda assim, percebia-lhe a irritação na voz e não pude deixar de esticar
um bocadinho mais.
— Pararam depois de ele se ter ido embora.
— Salvou-me duas vezes, e da segunda vez foi apenas por acaso que intercetou um tranquilizante em vez de uma bala. Os homens do Gerry andavam com munições de prata — disparou
impacientemente.
Sorri-lhe, e ele, sentindo repugnância, amassou o guardanapo.
— Um ponto para ti — disse.
— Aposto que não o deixavas sair com a Jesse — pronunciei presunçosamente.
Quando me levou a casa, saiu do carro e contornou-o para me abrir a porta. Talvez o tivesse feito porque eu não o podia fazer com o braço partido, mas pensei que pudesse ser
o tipo de coisa que fazia sempre.
Acompanhou-me até ao alpendre e envolveu o meu rosto com as mãos em concha. Permaneceu imóvel por um momento e depois olhou por cima do próprio ombro na direção da Lua, que
estava quase cheia. Quando se virou novamente para mim, o castanho dos seus olhos era atravessado por listras amarelas.
Os seus lábios macios tocaram os meus ao de leve, timidamente, até que inclinei a cabeça contra a pressão das suas mãos, tentando aproximar-me dele. Depois riu-se, produzindo
um som grave e profundo, e beijou-me de facto.
Com o meu braço partido entalado entre nós, não havia linguagem corporal envolvida, apenas boca e mãos. Usava água-de-colónia. Algo rico e subtil que se misturava com o seu
exótico odor natural.
Quando se afastou de mim, deixei a mão na sua face, desfrutando da ligeira rugosidade da sua barba e do batimento pujante do meu coração. Fez-se silêncio entre nós, silêncio
e algo hesitante e novo.
Depois a porta foi aberta e o meu companheiro de casa olhou para nós com um sorriso rasgado.
— Então, meninos, já acabaram? Fiz chocolate quente porque calculei que a Mercy não estaria com muita roupa vestida… mas presumo que tenhas tratado de pôr fim a qualquer arrepio
provocado pelo frio.
Samuel tinha ficado como uma fera quando cheguei a casa da oficina e lhe disse que ia jantar fora com Adam. Tive de lembrá-lo de forma convincente de que não tinha nenhum
direito sobre mim, não mais. Estava em minha casa até conseguir arranjar um apartamento para ele, e isso não lhe dava o direito de ditar com quem eu ia jantar.
Se soubesse que iria ser um encontro romântico, teria sido mais amável. Sabia que Samuel ainda estava interessado em mim — e parte de mim ainda o amava.
Quando Jesse, a casamenteira, me telefonou para dizer que o pai dela estava a caminho, e para não me preocupar com ela porque estava bem, Samuel encaminhou-se, amuado, para
o seu quarto, o maior de entre os que tinha disponíveis. Mas quando tinha começado a colocar o meu vestido, irrompeu pelo meu quarto dentro para ajudar. Tê-lo-ia feito sozinha;
a verdade é que não estava a emitir barulhos de dor como ele dizia. No entanto, devo admitir que o manejo das roupas, da miríade de misteriosas, mas eficientes, presilhas
de velcro que seguravam a ortótese que o médico no hospital me tinha dado para manter o braço imobilizado, bem como do meu braço partido, era mais fácil com três mãos do que
com uma.
Quando saí, Samuel não estava propriamente exultante, mas recusei-me a permitir que a culpa decidisse com quem deveria ter um encontro. Não entro em joguinhos com as pessoas
de quem gosto, e não permito que entrem em joguinhos comigo. Prometi-lhe que não teria relações sexuais com Adam, da mesma maneira que não teria relações sexuais com Samuel.
Não até ter a certeza do que sentia e do que eles sentiam. Mais do que isso não estava disposta a fazer.
Sabia que tinha sido um erro deixá-lo a pensar sobre aquilo naquela noite. Provavelmente devia ter dito a Adam que Samuel estava hospedado em minha casa assim que me apercebi
de que ele não sabia — porém o que tínhamos vivido naquela noite era ainda demasiado frágil para justificar um gesto desses.
De modo que Adam foi apanhado de surpresa por Samuel, O Amante Residente.
— Não estás a ser lá muito correto — disse, e a seguir virei-me para Adam. — Ele está em minha casa até conseguir arranjar um apartamento. — Olhei para Samuel. — Já deve faltar
pouco.
— Pensava que tinha um consultório em Montana, Dr. Cornick — disse Adam. Tinha-me soltado na altura em que a porta fora aberta, mas depois colocou a mão no fundo das minhas
costas: um daqueles gestos possessivos que os homens fazem ao pé de outros homens.
Samuel assentiu com a cabeça e recuou, segurando na porta para que todos entrássemos. Assim que ambos se viram no espaço fechado da minha sala de estar, senti o cheiro do
poder de ambos intensificar-se.
— Estava a trabalhar numa clínica por turnos, juntamente com mais três médicos — explicou, encabeçando a ida até à cozinha. — Não se vão ressentir. Deixei Aspen Creek há algum
tempo, e quando regressei há pouco tempo percebi que não podia voltar a viver ali. Por isso pensei na possibilidade de me instalar num sítio mais próximo do que o Texas.
Adam aceitou uma chávena vaporosa e soprou-lhe pensativamente.
— Queres com isso dizer que me estás a pedir para integrar o meu bando?
O sorriso de Samuel, que não tinha abandonado a sua cara desde que tinha aberto a porta, expandiu-se ainda mais.
— Nem pensar. Vou tornar-me um lobo solitário. Provavelmente vais receber a carta oficial do Bran a informar-te disso durante esta semana.
Deixei-os a sós. De qualquer maneira, não me estavam a prestar atenção nenhuma. Não conseguia tirar o vestido facilmente sem ajuda, por isso vesti um fato de treino por cima.
Uma camisola larga tapava-me o braço partido, aparelho de tortura seguro por presilhas incluído. Em relação aos sapatos foi mais difícil, mas encontrei um velho par de sapatilhas
cujos cordões não estavam apertados e calcei-as por cima de um par de soquetes.
Quando regressei à sala de estar, ambos estavam ainda envolvidos numa daquelas agradáveis, mas perigosas, conversas que normalmente acabavam mal. Pararam de falar quando abri
a porta principal, mas no preciso momento em que a fechei atrás de mim, ouvi-os retomar a conversa.
Conduzi a carrinha porque o meu Rabbit não tinha direção assistida. Tive de encostar a alguns quilómetros de casa para usar o telemóvel.
— Stefan — disse. — As tuas peças já chegaram. Estou com um braço partido, por isso vais ter de fazer o trabalho todo, mas de qualquer maneira posso explicar-te os passos.
— Como é que partiste o braço, Mercy? — perguntou.
— Um lobisomem atirou-me contra um monte de grades de madeira enquanto estava a tentar salvar uma rapariga assustada que tinha sido raptada por uma bruxa malvada e um senhor
da droga.
— Parece-me interessante — comentou Stefan. — Encontramo-nos na tua oficina.
Estão a ver? Há pessoas que acreditam em mim.
22 Bolo de chocolate típico dos Estados Unidos. (N. do T.)
EXTRAS
Uma entrevista com Patricia Briggs
Os livros da Mercy Thompson são de ritmo rápido, agradáveis e variados. Tem alguns segredos sobre como manter a tensão e o interesse de modo a prender os leitores ao longo
de uma coleção?
Apenas sei como me manter interessada [risos]. Tenho necessidade de personagens pelas quais sinta afeto, o que significa que preciso de compreender e acreditar nas motivações
delas para que pareçam reais. Isto significa que os acontecimentos de uma história têm de ter um impacto nas personagens, um impacto que possa transitar de um livro para o
seguinte. Preciso de um enredo que faça sentido e cujo desfecho seja importante para as personagens principais. Preciso de um mundo que seja consistente e credível.
Como é que a Mercy Thompson e o seu mundo surgiram?
Quando a minha editora me telefonou a pedir-me para escrever uma fantasia urbana (ela sabia que eu as adorava, pois vínhamos trocando listas de leitura há já muito tempo)
disse-me que queriam que a história se focasse em vampiros e lobisomens, com uma «protagonista feminina forte que tivesse uma vida amorosa complicada», uma vida amorosa que
de alguma maneira se relacionasse com vampiros e lobisomens. Ficou então claro para mim que essas histórias teriam lugar no nosso mundo, mas um mundo onde os acontecimentos
sobrenaturais efabulados fossem reais.
Estranhamente, o nome da Mercy foi a primeira coisa que me veio à cabeça. O trocadilho (de ela ser uma mecânica de VW chamada Mercedes) foi puramente casual, apesar de eu
ter tirado proveito dele.
Gosto de metamorfos, sempre gostei. E sabia que queria uma personagem com menos poder porque é mais divertido trabalhá-las na escrita. Um coiote parecia a resposta perfeita
aos lobisomens – e uma vez que o coiote é uma espécie norte-americana nativa, tornou-se evidente que a Mercy teria de ser parcialmente ameríndia. E uma vez que por essa altura
eu já sabia que ela ia viver entre dois mundos, o humano e o preternatural, pareceu-me adequado criá-la metade ameríndia, metade caucasiana, para que também abrangesse esses
mundos.
Depois de já ter a Mercy, joguei com vários locais onde colocar as suas histórias. Conheço razoavelmente bem Spokane, em Washington; Seattle, em Washington; Portland, no Oregon;
e mesmo Chicago. Mas depois comecei a pensar em Tri-Cidades (onde estava a viver). Encaixava como uma luva. Era algo um pouco diferente, com montes de pessoas interessantes:
hispânicos, índios, indianos, russos, laocianos, japoneses, chineses e uma multidão de outras gentes. Existem alguns locais porreiros: a Central Nuclear de Hanford, os Laboratórios
do Pacífico Noroeste e uma enorme indústria de produção de vinho/cerveja. E estava tudo no meu próprio quintal (até nos mudarmos de novo [risos]).
O seu livro parece reunir uma série de tradições mitológicas diferentes (sendo a própria Mercy ameríndia, e tendo o ser feérico Zee origem germânica, citando apenas alguns
exemplos). Tem de fazer muita pesquisa para os seus livros?
Completamente. Eu cresci com a minha irmã a ler-me contos de fadas todas as noites: os Irmãos Grimm, as antologias coloridas de contos de fadas do Lang, o Hans Christian Andresen
e todos os outros; eu era a única na minha turma da escola primária que sabia quem era o Dick Whittington. Comprei a Encyclopedia of Fairies de Katherine Briggs há vinte e
cinco anos (quando a minha irmã levou a dela consigo). Portanto, estou razoavelmente familiarizada com o folclore feérico celta/britânico e do Norte da Europa, o que me proporcionou
um ponto de partida sólido.
Também li muitos contos folclóricos ameríndios. Mas quando os lia em criança, não prestava atenção a que tribos pertenciam as histórias. Portanto, quando comecei os livros
da Mercy, trabalhei bastante para aprofundar o meu conhecimento do folclore índio. De modo a, uma vez mais, ter bases para começar a escrever.
Quando entro em especificidades faço mais pesquisa. Não uso o folclore como um esquema, mas mais como uma sugestão ou um ponto de partida.
Reparei que ensinou mitologia grega e romana. Isso foi uma consequência do seu interesse pela ficção fantástica ou tratou-se de um desenvolvimento simultâneo/autónomo?
Ah, isso soa muito mais… sofisticado do que realmente foi. Dei aulas a uma data de crianças de 11 e 12 anos (alunos do sexto ano, para aqueles que conhecem o sistema de ensino
dos EUA). Foi muito divertido, mas dificilmente era preciso um especialista.
O meu interesse pela mitologia, como muitos dos meus interesses, começou com cavalos, neste caso Pégaso. Assim que li sobre Pégaso tive de descobrir quem era Medusa e… isto
aconteceu quando eu tinha sete anos, mais ou menos. Durante grande parte dos três ou quatro anos seguintes li histórias de cavalos (ainda sei de cor excertos longos do Black
Beauty), contos de fadas (incluindo mitologia grega, que eu considerava fazer parte do mesmo género), e histórias do Robin dos Bosques. Só mais tarde é que associei a mitologia
grega e romana aos gregos e aos romanos. Investiguei um pouco mais sobre eles na universidade, mas quando comecei a ensinar aquilo que sabia a uma data de miúdos inocentes,
que iam acreditar no que eu lhes dissesse (quando estivessem a prestar atenção) como se do Evangelho se tratasse, li e estudei muito mais.
Como é que consegue encaixar a sua rotina de escrita na sua vida? Com uma vida familiar agitada, deve ser difícil conciliar as imprevisibilidades da família com o trabalho…
Às vezes torna-se bastante difícil. Neste momento tenho um escritório na cidade e isso ajuda muito. Levo a minha mais nova para a escola de manhã e trabalho até ela sair.
Mas sou esposa e mãe, em primeiro lugar, e escritora, em segundo. Isso significa, por vezes, que às duas da manhã eu estou a escrever enquanto estão todos a dormir.
Ainda sobre o tema escrever/escritores, é uma autora publicada há mais de dez anos, com uma extensa lista de livros com o seu nome inscrito. O ofício tornou-se mais fácil
com o tempo? Ou não?!
Algumas coisas são muito mais fáceis. Sei escrever diálogos (ou pelo menos acho que sei!), transições e descrições de espaços que não emperram a história. Consigo perceber,
quando uma história segue um rumo inesperado, se vale a pena segui-lo ou se devo pôr-lhe travão e seguir o caminho que tinha definido previamente. Consigo escrever mais depressa
e melhor.
O mais difícil é tentar não reescrever uma história que já escrevi, ou desenvolver temas que já tenha abandonado. Por vezes, o caminho mais lógico para um enredo é a repetição
de uma cena que usei no último livro, por isso tenho de criar algo diferente.
Até que ponto delineia o enredo dos seus romances antes de escrevê-los? Faz um esboço de toda a trilogia/coleção antes de começar a escrever ou prefere deixar a história seguir
o seu curso livremente?
Não faço grandes esboços antecipadamente. Existem duas razões para isso. Primeira, penso que se souber para onde a história se encaminha perco toda a motivação para a escrever.
Predisponho-me a encontrar uma nova história com que possa brincar. A segunda é que, quando me sento a delinear uma história, esse enredo/esboço só é válido durante alguns
dias de escrita, até que a história tome outro rumo.
A única excepção foi a duologia Raven (Raven Shadow e Raven Strike). Pare esses livros fiz um esboço prévio. Em parte porque foi a primeira vez que escrevi uma proposta a
sério. (Dragon Blood também foi escrito sem plano, mas eu não sabia que estava a escrever uma proposta quando a minha editora me pediu uma sinopse, por isso escrevi a primeira
coisa que me veio à cabeça e enviei-lhe). Foi então que descobri que é muito mais divertido escrever livros quando não sei exactamente o que vai acontecer.
Começo, então, com uma personagem num local e crio um problema para ela resolver. Normalmente tenho uma ideia de como gostaria que a história terminasse, mas não fico muito
triste se não resultar dessa forma. Trabalhar deste modo significa que as minhas revisões são extensivas, sobretudo as primeiras duas, em que tenho de cortar partes do início
que já não são pertinentes. Mas agrada-me a forma como a história acaba por resultar melhor, é menos previsível e mais divertido para mim.
O seu sítio da Internet é fantástico, recheado de informações interessantes a seu respeito e a respeito dos seus livros. Sinto que um dos assuntos que carece de uma explicação
mais aprofundada é o nome do seu gato. Há alguma razão em especial para ele se chamar Roadkill23?!
Sim. Ele era um gato gordo e também preguiçoso, desde que deixou de ser um gatinho. Deitava-se pelos cantos com as duas patas dianteiras esticadas para a frente e o focinho
entalado debaixo do peito. Ele era o tipo de siamês à moda antiga (corpulento), portanto parecia que tinha morrido e começado a inchar há uns dias.
Agora num tom mais sério, para mais informações acerca de Patricia e dos seus livros, poderá encontrar (quase!) tudo o que quer saber em www.hurog.com
23 Cadáver de animal atropelado. (N. do T.)
Leia nas próximas páginas um excerto do 2º Volume da série Mercy Thompson
Vínculo de Sangue
A fantasia urbana tem uma nova heroína: Mercy Thompson. Ela é forte e independente, mas num mundo repleto de perigos, será isso suficiente?
Mercy tem amigos em lugares estranhos e sombrios. E agora deve um favor a um desses amigos: o vampiro Stefan precisa das capacidades de metamorfose de Mercy para entregar
uma mensagem a um vampiro recém-chegado à cidade. O que Mercy não sabe é que este novo vampiro tem um segredo: na verdade é um feiticeiro possuído por um demónio prestes a
lançar o caos na cidade. Depois de várias tentativas da comunidade paranormal para destruir a criatura, Mercy vê-se envolvida na refrega: embora os seus amigos vampiros e
lobisomens sejam mais fortes do que ela, são as suas habilidades especiais que poderão salvar a todos. E quando descobre a verdade sobre essas habilidades, Mercy vai aprender
muito sobre o seu passado e os lobisomens que a criaram...
Mais informações em
www.saidadeemergencia.com
1
Como acontece com a maior parte das pessoas que têm os seus próprios negócios, trabalho longas horas desde manhã cedo. Portanto, quando alguém me telefona a meio da noite,
é bom que esteja a morrer.
— Olá, Mercy — disse-me Stefan no seu tom afável. — Gostava de te pedir um favor.
Stefan tinha batido as botas há muito tempo, portanto não vi qualquer razão para ser simpática.
— Atendi o telefone às — espreitei com a visão turva os números vermelhos no meu relógio de cabeceira — três da manhã.
OK, o que eu disse não foi exatamente isso. É possível que tenha acrescentado algumas daquelas palavras que uma mecânica aprende para depois dirigir a parafusos recalcitrantes
e alternadores que lhe caem nos dedos dos pés.
— Até podias pedir um segundo favor — continuei —, mas preferia que desligasses e me voltasses a telefonar a uma hora mais civilizada.
Riu-se. Talvez tivesse pensado que estava a tentar ter graça.
— Tenho um trabalho em mãos, e creio que os teus talentos especiais seriam um elemento muito valioso na garantia do sucesso da tarefa.
As velhas criaturas, pelo menos segundo a minha experiência, gostam de ser um pouco vagas quando pedem a alguém para fazer alguma coisa. Sou uma mulher de negócios, e acredito
na ideia de ir aos elementos concretos o mais depressa possível.
— Precisas de uma mecânica às três da manhã?
— Sou um vampiro, Mercedes — replicou suavemente. — Três da manhã ainda é horário nobre. Mas não preciso de uma mecânica, preciso de ti. Deves-me um favor.
Tinha razão, para o diabo com ele. Tinha-me ajudado quando a filha do lobisomem Alfa local fora raptada, e avisara-me que iria cobrar o favor.
Bocejei e sentei-me, abdicando de qualquer esperança de voltar a dormir.
— Muito bem. O que é que eu posso fazer por ti?
— Tenho de transmitir uma mensagem a um vampiro que está aqui sem a autorização da minha senhora — disse, indo direto ao assunto. — Preciso de uma testemunha da qual ele não
se aperceba.
Desligou sem obter uma resposta, e sem sequer me dizer quando me ia buscar. Era bem feito para ele que eu simplesmente voltasse a dormir.
Resmoneando comigo mesma, vesti-me à pressa: umas calças de ganga, a t-shirt do dia anterior adornada com uma mancha de mostarda e duas peúgas com apenas um buraco. Depois
de estar mais ou menos vestida, segui para a cozinha a arrastar os pés e enchi um copo com sumo de arando.
Era noite de Lua cheia, e o meu colega de casa, o lobisomem, estava na rua com o bando local, portanto não tinha de lhe explicar por que razão ia sair com Stefan. O que era
bom.
Samuel não era um mau companheiro de casa, mas tinha tendência para se tornar possessivo e ditatorial. Não que o deixasse levar a dele avante, mas discutir com lobisomens
requer uma certa subtileza que me faltava. Espreitei o relógio de pulso: 03:15.
Apesar de ter sido criada por eles, não pertenço à espécie dos lobisomens, não sou lobi-nada. Não sou uma serva das fases da Lua, e na forma de coiote, que é a minha segunda
forma, pareço-me com qualquer outro canis latrans: tenho as cicatrizes de chumbo grosso no rabo a prová-lo.
Os lobisomens não podem ser confundidos com os lobos: os lobisomens são muito maiores do que os seus homólogos não preternaturais — e muito mais assustadores.
O que eu sou é uma caminhante, embora esteja certa de que em tempos tenha existido outro nome para me designar — um nome índio perdido quando os europeus devoraram o Novo
Mundo. Talvez o meu pai me pudesse ter dito qual era se não tivesse morrido num acidente de carro antes de saber que a minha mãe estava grávida. Portanto tudo o que sei resume-se
ao que os lobisomens me souberam dizer, que não foi muito.
O termo «caminhante» provém dos mutantes caminhantes das tribos índias do sudoeste, mas tenho menos em comum com um mutante caminhante, pelo menos daquilo que li, do que com
os lobisomens. Não faço magia, não preciso de uma pele de coiote para mudar de forma — e não sou malévola.
Beberiquei o meu sumo e olhei lá para fora, através da janela da cozinha. Não conseguia ver a Lua propriamente dita, apenas a luz prateada que tocava a paisagem noturna. Pensamentos
malévolos pareciam de algum modo apropriados enquanto esperava que o vampiro me fosse buscar. Se não por outra razão, impedir-me-ia de adormecer: o medo tem esse efeito em
mim. Tenho medo do mal.
No nosso mundo moderno, até a palavra parece… antiquada. Quando sai por momentos de um Charles Manson ou de um Jeffrey Dahmer, tentamos justificá-lo através do consumo de
drogas, de uma infância infeliz ou de uma doença mental.
Os americanos em particular são invulgarmente inocentes na sua fé de que a ciência tem explicações para tudo. Quando os lobisomens, vários meses antes, finalmente admitiram
ao público o que eram, os cientistas puseram-se imediatamente à procura de um vírus ou de uma bactéria que pudesse causar a Transformação — sendo a magia algo que os seus
laboratórios e computadores não tinham como explicar. Ao que fiquei a saber da última vez que ouvira falar no assunto, John Hopkins tinha toda uma equipa dedicada ao estudo
dessa questão. Não tinha dúvidas de que descobririam alguma coisa, mas aposto que nunca conseguirão explicar como é que um homem de oitenta quilos se transforma num lobisomem
de cento e dez quilos. A ciência não considera a magia, da mesma maneira que não considera o mal.
A crença devota de que o mundo é explicável é simultaneamente uma terrível vulnerabilidade e uma sólida proteção. O mal prefere que as pessoas não acreditem. Os vampiros,
enquanto exemplo não aleatório, raramente saem para matar pessoas na rua. Quando vão à caça, encontram alguém cuja falta não será sentida e levam-no para casa, onde será tratado
e mantido numa situação de conforto — como uma vaca numa fazenda de confinamento de gado. Segundo as regras da ciência, não é permitido queimar bruxas, matar por afogamento
ou executar linchamentos públicos. Em troca, o cidadão comum respeitador da lei e sensato não tem de se preocupar com as coisas do sobrenatural. Há alturas que gostava de
ser um cidadão comum.
Os cidadãos comuns não recebem a visita de vampiros.
E tão-pouco se preocupam com um bando de lobisomens — pelo menos não propriamente da mesma maneira que eu.
Ir a público foi um passo corajoso da parte dos lobisomens; um passo que facilmente se poderia virar contra eles. De olhos fixos na noite iluminada pela Lua, pensei, inquietada,
sobre o que iria acontecer se as pessoas começassem novamente a ter medo. Os lobisomens não são maus, mas também não correspondem propriamente à imagem de heróis pacíficos
e respeitadores da lei que estão a tentar passar.
Alguém bateu à minha porta.
Os vampiros são maus. Eu tinha consciência disso — mas Stefan era mais do que simplesmente um vampiro. Havia alturas em que estava absolutamente certa de que era meu amigo.
Portanto, na verdade não estava com medo até ao momento em que abri a porta e vi o que me esperava no alpendre.
O cabelo escuro do vampiro estava puxado para trás, deixando-lhe a pele muito pálida exposta ao luar. Vestido de preto da cabeça aos pés, seria de esperar que se parecesse
com um refugiado de um filme mau do Drácula, mas de certo modo todo o conjunto, desde a sobrecasaca de couro preto às luvas de seda, parecia mais autêntico em Stefan do que
a sua habitual combinação de t-shirt de cor viva e calças de ganga sujas. Como se tivesse tirado um traje de fantasia, e não tanto o contrário.
Tinha ar de quem seria capaz de matar com a mesma facilidade com que eu seria capaz de mudar um pneu, com o mesmo grau de ponderação ou remorso.
Depois as sobrancelhas treparam-lhe a testa — e subitamente era o mesmo vampiro que tinha pintado a sua carrinha VW de modo a ficar idêntica à Máquina Mistério do Scooby Doo.
— Não pareces contente por me ver — disse, com um rápido sorriso rasgado que não lhe pôs os colmilhos a descoberto. Na escuridão, os seus olhos pareciam mais pretos do que
castanhos; mas a verdade é que o mesmo acontecia com os meus.
— Entra. — Afastei-me da porta para que pudesse fazê-lo; em seguida, porque me tinha assustado, acrescentei em tom mal-humorado: — Se queres ser bem recebido, tenta aparecer
por cá a uma hora decente.
Hesitou na soleira, sorrindo-me, e disse:
— A convite teu. — E a seguir entrou em minha casa.
— Aquela coisa na soleira funciona mesmo? — perguntei.
O seu sorriso voltou a ampliar-se, e daquela vez vi um brilho branco.
— Não depois de me teres convidado a entrar.
Passou por mim e encaminhou-se para a sala de estar, virando-se como um manequim numa passarela. As dobras da sua sobrecasaca abriram-se com o seu volteio num efeito que se
assemelhava ao girar de uma capa.
— Então, o que é que achas do meu aspeto à la Nosferatu?
Suspirei e admiti.
— Assustou-me. Pensava que evitavas tudo o que fosse gótico. — Raramente o tinha visto com outra roupa que não calças de ganga e t-shirts.
O sorriso dele ampliou-se ainda mais.
— Normalmente evito. Mas o look à Drácula ocupa o seu lugar. Por estranho que pareça, se usado com moderação assusta outros vampiros quase tanto quanto assusta a singular
menina-coiote. Não te preocupes, também tenho um traje para ti.
Enfiou a mão dentro do casaco e sacou de um arnês de couro ornamentado com prata.
Fitei-o por momentos.
— Vamos a um clube de striptease sadomasoquista, é? Não sabia que havia disso por estas bandas. — Não havia, pelo menos não que fosse do meu conhecimento. Washington oriental
é mais puritana do que Seattle ou Portland.
Gargalhou.
— Hoje não, querida. Isto é para o teu outro eu. — Sacudiu as tiras para que eu percebesse que se tratava de um arnês para cão.
Tirei-o das mãos dele. O couro era de boa qualidade, macio e flexível, com tanta prata que parecia peça de joalharia. Se fosse estritamente humana, sem dúvida que me recusaria
a usar semelhante coisa. Mas quando se passa uma parte considerável do tempo a correr de um lado para o outro como coiote, coleiras e quejandos são bastante úteis.
O Marrok, líder dos lobisomens norte-americanos, faz questão que todos os lobos usem uma coleira quando correm pelas cidades, com uma etiqueta que os identifique como animais
de estimação de alguém. Também faz questão que os nomes nas etiquetas correspondam a algo inócuo como Fred ou Mancha, nada de Assassinos ou Presas. Dessa forma é mais seguro
— tanto para os lobisomens como para os agentes da autoridade que com eles se possam cruzar. Escusado será dizer que, quando essa prática se concretizou, se tornou tão popular
entre os lobisomens como a lei do uso obrigatório de capacete entre os motociclistas. Não que algum deles sequer sonhasse em desobedecer ao Marrok.
Não sendo mulher-loba, não tenho de obedecer às regras do Marrok. Por outro lado, também não gosto de correr riscos desnecessários. Tinha uma coleira na gaveta de tralhas
da cozinha — mas não era feita de couro preto de qualidade.
— Então eu faço parte da tua máscara? — perguntei.
— Digamos apenas que acho que este vampiro é capaz de precisar de mais intimidação do que a maior parte — respondeu de forma ligeira, embora algo nos seus olhos me tivesse
feito pensar que se passava mais alguma coisa.
A Medea apareceu, vinda de onde quer que tivesse estado a dormir. Provavelmente na cama de Samuel. Ronronando furiosamente, roçou o seu pequeno ser em volta da perna esquerda
de Stefan e depois esfregou a cabeça na sua bota para o demarcar como propriedade dela.
— Os gatos e os fantasmas não gostam de vampiros — disse Stefan, olhando para baixo na direção dela.
— A Medea gosta de tudo o que lhe possa dar de comer ou acariciar — expliquei-lhe. — Não é esquisita.
Agachou-se e pegou nela. Ser pegada ao colo não é propriamente a coisa que a Medea mais aprecia, por isso miou-lhe várias vezes até voltar a ronronar enquanto afundava as
garras na sua dispendiosa manga de couro.
— Não estás a cobrar-me o favor só para pareceres mais intimidatório — disse, levantando a vista do arnês de couro macio para o olhar diretamente nos olhos. Uma coisa pouco
sensata a fazer com os vampiros, ele próprio mo tinha dito, mas tudo o que vi foi uma escuridão opaca. — Disseste que querias uma testemunha. Uma testemunha de quê?
— Não, não preciso de ti para parecer intimidatório — concordou Stefan num tom suave, depois de ter estado fixada nele durante alguns segundos. — Mas ele vai pensar que a
intimidação é a razão pela qual eu levo um coiote na minha trela. — Hesitou, e a seguir encolheu os ombros. — Este vampiro já esteve por cá antes, e eu acho que ele conseguiu
enganar um dos nossos novatos. Por causa daquilo que és, és imune a muitos poderes vampíricos, especialmente se o vampiro em questão não sabe o que tu és. Ao pensar que és
um coiote, provavelmente nem sequer vai desperdiçar a magia dele em ti. É pouco provável, mas é possível que consiga enganar-me tão bem como enganou o Daniel. Mas não me parece
que seja capaz de te enganar a ti.
Só há pouco tempo tinha ficado a saber dessa pequena vantagem de ser resistente à magia vampírica. Não me era particularmente útil uma vez que um vampiro tem força suficiente
para me partir o pescoço com o mesmo esforço que eu teria de investir para partir um pedaço de aipo.
— Ele não te vai fazer mal — disse Stefan depois de eu ter permanecido demasiado tempo calada. — Dou-te a minha palavra de honra.
Não sabia que idade tinha Stefan, mas usou aquela frase como um homem que falava muito a sério. Às vezes fazia com que fosse difícil lembrarmo-nos de que os vampiros são maus.
Mas na verdade isso não tinha grande importância. Estava em dívida para com ele.
— Está bem — repliquei.
Olhando para baixo na direção do arnês, pensei que seria melhor eu própria arranjar a coleira. Podia mudar de forma com a coleira posta — quando estava na forma humana, o
meu pescoço não era maior do que quando estava na forma de coiote. O arnês, adequado a um coiote de treze quilos, seria demasiado apertado quando quisesse readquirir a forma
humana. A vantagem do arnês, todavia, era que não estaria presa a Stefan pelo pescoço.
A minha coleira era lilás com flores cor-de-rosa bordadas. Não era lá muito Nosferatu.
Entreguei o arnês a Stefan.
— Vais ter de mo pôr depois de eu me transformar — indiquei-lhe. — Volto já.
Mudei de forma no meu quarto porque, para o fazer, tinha de me despir. Na verdade não sou tão pudica quanto isso, um metamorfo ultrapassa isso com bastante rapidez, mas tento
não me pôr nua em frente a alguém que possa confundir a minha nudez necessária com necessidades noutras áreas.
Embora Stefan tivesse pelo menos três carros de que eu tivesse conhecimento, aparentemente tinha optado por uma «via mais rápida», palavras suas, para chegar a minha casa,
pelo que entrámos no meu Rabbit para seguirmos viagem rumo ao seu encontro.
Durante alguns minutos, não tinha a certeza de que iria conseguir pô-lo a funcionar. O velho carro a diesel, tal como eu, não gostava de se levantar tão cedo. Stefan murmurou
entre dentes alguns palavrões em italiano, e por fim arrancou e partimos.
Nunca viajem num carro ao lado de um vampiro que está com pressa. Não sabia que o Rabbit pudesse andar daquela maneira. Virámos para a via rápida com as rpm no vermelho; o
carro manteve-se sobre as quatro rodas, mas à rasca.
Na verdade, o Rabbit parecia gostar mais do condutor do que de mim; a irregularidade do motor da qual me vinha tentando livrar há anos desapareceu e transformou-se num ruído
surdo. Fechei os olhos e desejei que as rodas não se soltassem.
Quando Stefan atravessou o rio na ponte de cabos que desembocava no meio de Pasco, estava a conduzir sessenta km/h acima do limite de velocidade. Sem abrandar muito, atravessou
o coração da zona industrial rumo a um aglomerado de hotéis erigido na orla mais distante da cidade, perto da rampa de acesso à auto-estrada que seguia para Spokane e outros
pontos a norte. Por um qualquer milagre — provavelmente ajudado pela hora — não fomos apanhados por excesso de velocidade.
O hotel para o qual Stefan nos levou não era nem o melhor nem o pior. Estava pensado para camionistas, embora só houvesse um camião no parque de estacionamento. Talvez as
terças fossem pouco movimentadas. Stefan estacionou o Rabbit ao lado do único carro que se encontrava no parque, um BMW preto, apesar da grande quantidade de lugares vazios.
Pulei do carro através da janela aberta e fui atingida pelo cheiro a vampiro e sangue. O meu olfato é muito bom, especialmente quando estou na forma de coiote, mas, como acontece
com qualquer outra pessoa, nem sempre distingo aquilo que estou a cheirar. Na maior parte das vezes é como tentar ouvir todas as conversas num restaurante apinhado. Mas aquele
odor era impossível deixar escapar.
Talvez fosse mau ao ponto de afugentar humanos normais, e fosse esse o motivo para o parque de estacionamento estar praticamente vazio.
Olhei para Stefan de modo a perceber se também ele tinha sentido o cheiro, mas a sua atenção estava concentrada no carro ao lado do qual tínhamos estacionado. Assim que atraiu
a minha atenção para o dito carro, percebi que o cheiro vinha do BMW. Como era possível que o carro cheirasse mais a vampiro do que Stefan, o vampiro?
Captei um outro odor, mais subtil, que fez com que os dentes me assomassem por entre os lábios, apesar de não conseguir perceber a que correspondia o cheiro amargo e misterioso.
No momento em que me chegou ao focinho, como que me embrulhou, sobrepondo-se a todos os outros cheiros ao ponto de não conseguir farejar mais nada.
Stefan contornou o carro apressadamente, pegou na trela e puxou-a com força para esganar a minha rosnadela. Cheguei-me para trás com uma sacudida e mostrei-lhe os dentes.
Eu não era um raio de uma cadela. Podia ter-me pedido para eu não fazer barulho.
— Acalma-te — disse, mas não estava de olhos postos em mim. Estava a observar o hotel. Foi então que senti um novo cheiro, um odor ténue logo sufocado pelo outro. Mas mesmo
aquela breve baforada foi suficiente para identificar o familiar cheiro do medo, do medo de Stefan. O que poderia assustar um vampiro?
— Anda — pronunciou, voltando-se para o hotel e puxando-me para fora da minha confusão.
Depois de ter deixado de oferecer resistência ao seu puxão, falou comigo de modo rápido e baixo.
— Não quero que faças nada, Mercy, independentemente do que vires ou ouvires. Não estás à altura de uma luta com este. Só preciso de uma testemunha imparcial que não faça
nada que ponha a sua vida em risco. Portanto, age como um coiote com toda a tua força e se eu não escapar daqui vivo, vai contar à Senhora aquilo que eu pedi que fizesses
por mim e relata-lhe o que viste.
Como é que ele podia esperar que eu escapasse a algo que podia matá-lo? Não tinha falado assim anteriormente, nem estava com medo. Talvez conseguisse cheirar o mesmo que eu
— e soubesse do que se tratava. No entanto, não lhe podia perguntar o que era, porque um coiote não está equipado com a fala humana.
Indicou o caminho para uma porta de vidro fumado. Estava trancada, mas nela havia uma caixa para cartões-chave com uma luzinha de LED vermelha a piscar. Bateu com o dedo ao
de leve na caixa e a luz ficou verde, como se tivesse passado um cartão magnético através dela.
A porta abriu sem qualquer protesto e fechou-se atrás de nós com um estalido final. Não havia nada de sinistro no vestíbulo, mas ainda assim inquietava-me. Provavelmente seriam
os nervos de Stefan a contagiar-me. O que poderia assustar um vampiro?
Algures alguém bateu uma porta e eu dei um salto.
Ou Stefan sabia onde estava o vampiro, ou o seu olfato não estava a ser estorvado pelo odor daquela alteridade, como acontecia comigo. Bruscamente, levou-me através de um
longo corredor e parou mais ou menos a meio. Bateu à porta com os nós dos dedos, embora eu, e presumivelmente também Stefan, tivesse conseguido perceber através da audição
que quem quer que estivesse à nossa espera no interior do quarto tinha avançado em direção à porta no preciso momento em que paráramos diante dela.
Depois de toda a tensão crescente, o vampiro que abriu a porta serviu quase de anticlímax — como se se estivesse à espera de ouvir Pavarotti a cantar Wagner e aparecessem
o Bugs Bunny e o Elmer Fudd.
O novo vampiro estava impecavelmente barbeado e tinha o cabelo penteado e preso atrás num pequeno e bem arranjado rabo-de-cavalo. As roupas eram elegantes e limpas, embora
um pouco engelhadas como se tivessem estado numa mala — todavia, de um modo que não sei explicar, a impressão que tive foi de desalinho e imundície. Era significativamente
mais baixo do que Stefan e muito menos intimidatório. Primeiro ponto a favor de Stefan, o que era bom considerando o esforço empreendido no seu traje de Príncipe das Trevas.
A camisa do homem desconhecido, de malha com mangas compridas, ficava-lhe pendurada, como se pousada em ossos em vez de carne. Quando se mexeu, uma das mangas deslizou para
cima, revelando um braço tão descarnado que se lhe conseguia ver a cavidade entre os ossos do antebraço. Andava ligeiramente corcovado, como se não tivesse a energia suficiente
para se endireitar.
Já tinha conhecido outros vampiros além de Stefan: vampiros assustadores com olhos e colmilhos reluzentes. Aquele parecia um toxicodependente tão doente que nele já nada restava
da pessoa que em tempos fora, como se a qualquer momento pudesse definhar, deixando apenas o corpo para trás.
Stefan, contudo, não se sentia tranquilizado pela aparente fragilidade do outro — dir-se-ia até que a sua tensão tinha aumentado. A impossibilidade de detetar cheiros no meio
daquela amargura desagradável e penetrante estava a incomodar-me mais a mim do que ao vampiro que não parecia ser grande oponente.
— A notícia da sua chegada chegou aos ouvidos da minha senhora — disse Stefan, num tom firme e de forma um pouco mais articulada do que era habitual nele. — Ela está muito
desapontada por não a ter informado que viria ao seu território.
— Entre, entre — disse o outro vampiro, afastando-se da porta para que Stefan passasse. — Não há necessidade de ficarmos no corredor a acordar pessoas que estão a tentar dormir.
Não sabia ao certo se ele tinha percebido que Stefan estava com medo. Nunca soube muito bem até que ponto os vampiros têm um olfato apurado — embora seja claramente superior
ao dos humanos. Não parecia intimidado por Stefan e pelas suas roupas pretas, todavia; aliás, parecia quase distraído, como se tivéssemos interrompido alguma coisa importante.
A porta da casa de banho estava fechada quando passámos por ela. Levantei as orelhas, mas não consegui ouvir nada atrás da porta fechada. O meu faro era inútil. Stefan levou-me
até ao lado oposto do quarto, para perto das portas de vidro deslizantes que estavam quase completamente tapadas por pesadas cortinas que iam do chão ao teto.
Stefan esperou que o outro vampiro fechasse a porta e depois disse num tom frio:
— Ninguém está a tentar dormir neste hotel.
Parecia um comentário estranho, mas o homem desconhecido deu indicações de perceber o que Stefan queria dizer porque deu uma risadinha, levando à boca uma mão em concha num
jeito que parecia mais conforme a uma rapariga de doze anos do que a um homem de qualquer idade. Foi um pouco estranho eu ter demorado algum tempo a avaliar a observação de
Stefan.
Certamente não queria dizer o que a sua entoação indicava. Nenhum vampiro são teria matado toda a gente no hotel. Os vampiros eram tão inabaláveis quanto os lobisomens no
cumprimento da sua regra de não atrair para si qualquer atenção indesejada — e a chacina geral de humanos atrairia a atenção. Mesmo que não houvesse muitos hóspedes, haveria
os empregados do hotel.
O vampiro deixou cair a mão da face, deixando para trás um rosto sem centelha de divertimento. Não fez com que me sentisse minimamente melhor. Era como observar Dr. Jekyll
e Mr. Hyde, tal era a mudança.
— Ninguém para acordar? — perguntou, como se não tivesse reagido de mais nenhuma forma ao comentário de Stefan. — Talvez tenha razão. Ainda assim não é de bom-tom deixar alguém
plantado à porta, pois não? Qual dos subordinados é você? — Levantou uma mão. — Não, espere, não me diga. Deixe-me adivinhar.
Enquanto Stefan esperava, com a sua habitual animação completamente sumida, o desconhecido contornou-o, parando precisamente atrás de nós. Sem nada a constranger-me para além
da trela, virei-me para o observar.
Quando estava diretamente atrás de Stefan, o outro vampiro curvou-se e coçou-me atrás das orelhas.
Normalmente não me importo que me toquem, mas assim que os dedos dele roçaram o meu pelo, percebi que não queria que me tocasse. Involuntariamente, afastei-me dele e encostei-me
à perna de Stefan. O meu pelo impediu que a pele dele tocasse a minha, mas isso não impediu que o seu toque me parecesse imundo, impuro.
O seu cheiro permaneceu no meu pelo e apercebi-me de que o odor desagradável que me vinha obstruindo o olfato era proveniente dele.
— Cuidado — advertiu Stefan sem olhar para trás. — Ela morde.
— Os animais adoram-me. — O comentário dele provocou-me um arrepio. Era tão desadequado vindo daquele… monstro rasteiro. Agachou-se e voltou a esfregar-me as orelhas. Não
sabia se Stefan queria que o mordesse ou não. Optei por não o fazer porque não queria o sabor dele na minha língua. Podia sempre mordê-lo mais tarde se quisesse.
Stefan não fez qualquer comentário, nem olhou para outro sítio que não diretamente em frente. Perguntei-me se teria perdido pontos em termos do seu estatuto acaso se virasse.
Os lobisomens também fazem jogos de poder, mas conheço-lhes as regras. Um lobisomem jamais teria permitido que um lobo desconhecido caminhasse atrás dele.
Parou de me fazer festas, levantou-se e rodeou Stefan até ficar novamente frente a frente com ele.
— Então você é o Stefan, o soldadinho da Marsilia. Eu já ouvi falar de si, embora a sua reputação já não seja a mesma de outros tempos, verdade? Fugir de Itália daquela maneira
mancharia a honra de qualquer homem. Ainda assim, de certo modo esperava mais. Todas aquelas histórias… Estava à espera de encontrar um monstro entre monstros, uma criatura
de pesadelos que assustasse inclusive outros vampiros… e tudo o que vejo é uma criatura acabada e mirrada. Suponho que é isso que acontece quando uma pessoa se esconde numa
cidadezinha no fim do mundo durante alguns séculos.
Fez-se uma ligeira pausa depois das últimas palavras do outro vampiro.
Stefan riu-se e disse:
— Ao passo que você nem reputação tem. — A sua voz era mais leve do que o habitual, soando quase apressada, como se o que estava a dizer não pertencesse a nenhum momento.
Afastei-me dele um passo sem intenção de o fazer, de algum modo assustada por aquela voz leve e divertida. Sorriu tenuemente ao outro vampiro e o seu tom suavizou-se ainda
mais quando disse: — É isso que acontece quando se é feito e logo abandonado.
Aquilo devia ser alguma espécie de super-insulto entre os vampiros, porque o segundo vampiro entrou em erupção, reagindo como se as palavras de Stefan tivessem sido uma ferroada
elétrica. No entanto não se lançou a Stefan.
Em vez disso, curvou-se e agarrou na base da enorme cama box e levantou-a, juntamente com tudo o que estava em cima dela, acima da cabeça. Girou-a na direção da porta de acesso
ao corredor e depois rodou-a mais um pedaço de modo a que as extremidades da cama box, o colchão e a roupa da cama se mantivessem equilibrados por um momento.
Agarrou-a noutro sítio e lançou-a através da parede até ao quarto anexo, que estava vazio, onde aterrou no chão, levantando uma nuvem de pó de gesso acartonado. Duas das vigas
da parede ficaram estilhaçadas, suspensas algures no interior da parede, dando ao buraco nela criado o aspeto de um sorriso de abóbora do Dia das Bruxas. A cabeceira falsa,
permanentemente instalada na parede onde a cama tinha estado, parecia desamparada e estúpida, pendurada trinta centímetros ou mais acima do suporte da cama.
A rapidez e a força do vampiro não me surpreenderam. Tinha visto alguns lobisomens a ter acessos de fúria, os suficientes para saber que se o vampiro estivesse verdadeiramente
zangado, não teria tido o controlo necessário para gerir os aspetos da Física implicados no lançamento dos dois colchões que não estavam ligados através da parede. Aparentemente,
à semelhança do que acontece nas lutas entre lobisomens, as batalhas entre vampiros têm muito fogo-de-artifício impressionante antes do espetáculo principal.
No silêncio que se seguiu, ouvi algo, um ruído enrouquecido e choroso oriundo de detrás da porta fechada da casa de banho — como se o que quer que o tivesse emitido já tivesse
gritado tanto que apenas conseguia produzir um barulho pequeno, porém um barulho que continha muito mais terror do que um grito dado a plenos pulmões.
Perguntei-me se Stefan saberia o que estava na casa de banho e se essa seria a razão pela qual tinha sentido medo quando estávamos no parque de estacionamento — havia coisas
das quais até um vampiro devia ter medo. Respirei fundo, mas não conseguia sentir outro cheiro além do da escuridão amarga — e esse cheiro estava a intensificar-se. Espirrei,
tentando desimpedir o nariz, mas não funcionou. Ambos os vampiros se mantiveram quietos até que o barulho terminasse. Depois, o desconhecido sacudiu o pó das mãos levemente,
com um sorriso ligeiro na cara, como se não tivesse existido fúria nele instantes antes.
— Sou remisso — disse, mas as palavras antiquadas soavam falsas vindas dele, como se estivesse a fingir ser um vampiro da mesma forma que os antigos vampiros tentavam ser
humanos. — Obviamente não sabe quem eu sou.
Inclinou a cabeça a Stefan num gesto fútil. Era óbvio, até para mim, que aquele vampiro tinha nascido num tempo e num lugar onde inclinar a cabeça era um gesto feito nos filmes
de Kung Fu e não na vida quotidiana. — Sou Asmodeus — anunciou imponentemente, parecendo uma criança que finge ser rei.
— Eu disse que você não tem qualquer reputação — replicou Stefan, ainda com aquela voz ligeira e descuidada. — Não disse que não sabia o seu nome, Cory Littleton. Asmodeus
foi destruído há séculos.
— Kurfel, então — disse Cory, nada infantil no modo.
Eu conhecia aqueles nomes, Asmodeus e Kurfel, ambos, e assim que me lembrei de onde os tinha escutado, percebi o que tinha vindo a cheirar. No momento em que me ocorreu a
ideia, conclui que o cheiro não podia ser outra coisa. Subitamente, o medo de Stefan deixou de ser surpreendente ou alarmante. Os demónios eram suficientes para assustar qualquer
um.
«Demónio» é uma expressão abrangente, como «ser feérico», utilizada para descrever seres que são incapazes de se manifestar no nosso mundo de forma física. Em vez disso, possuem
as suas vítimas e alimentam-se delas até não restar mais nada. Kurfel não seria o nome daquele, nem Asmodeus: o conhecimento do nome de um demónio dá ao conhecedor um poder
sobre ele. Nunca antes tinha ouvido falar num vampiro possuído pelo demónio. Tentei meditar em torno do conceito.
— Também não és o Kurfel — disse Stefan. — Embora alguma coisa semelhante a ele o esteja a permitir usar alguns dos seus poderes sempre que você o diverte. — Olhou para a
porta da casa de banho. — O que é que tem andado a fazer para o divertir, feiticeiro?
Feiticeiro.
Pensava que não passavam de fábulas — quer dizer, quem é que seria estúpido ao ponto de convidar um demónio para entrar nele? E por que é que um demónio, que podia possuir
a alma corrupta que quisesse (e alguém oferecer-se a um demónio de certo modo pressupõe uma alma corrupta, não é verdade?), haveria de fazer um acordo com quem quer que fosse?
Não acreditava em feiticeiros; certamente não acreditava em feiticeiros vampiros.
Seria de supor que alguém criado por lobisomens deveria ter uma mente mais aberta — mas tinha de estabelecer o limite nalgum sítio.
— Não gosto de si — disse Littleton friamente, e o pelo atrás do meu pescoço eriçou-se à medida que a magia se concentrava em volta dele. — Não gosto mesmo nada de si.
Esticou o braço e tocou Stefan no meio da testa. Esperei que Stefan lhe desse um safanão no braço, mas não fez nada para se defender, limitou-se a cair sobre os joelhos, aterrando
com um baque pesado.
— Pensei que fosse mais interessante, mas não é — continuou Cory, mas tanto a sua dicção como o seu tom eram diferentes. — Nada divertido. Vou ter de tratar disso.
Deixou Stefan de joelhos e encaminhou-se para a porta da casa de banho.
Gemi a Stefan e estiquei-me sobre as patas traseiras para lhe conseguir lamber a face, mas nem sequer olhou para mim. Os seus olhar era vago e descentrado; não estava a respirar.
Os vampiros não precisavam de respirar, claro, mas Stefan a maior parte das vezes precisava.
O feiticeiro tinha-o enfeitiçado de alguma forma.
Dei um puxão à trela, mas a mão de Stefan ainda estava fechada em volta dela. Os vampiros são fortes, e mesmo quando me lancei com todos os meus quinze quilos, a mão dele
nem se mexeu. Se tivesse meia hora, poderia ter mastigado o couro, mas não queria ser apanhada quando o feiticeiro regressasse.
Arquejando, olhei através do quarto para a casa de banho com a porta aberta. Que novo monstro estava à espera no interior? Pensei que se saísse daquela situação viva, nunca
mais ia deixar ninguém puxar-me por uma trela. Os lobisomens têm força, garras semi-retrácteis e presas com centímetros de comprimento — Samuel não teria ficado preso pelo
estúpido do arnês e da trela de couro. Uma mordidela e estava resolvido. Tudo o que eu tinha era rapidez — algo que a trela limitava com eficácia.
Estava preparada para uma visão horrífica, uma visão de algo que pudesse destruir Stefan. Mas o que Cory Littleton arrastou daquele compartimento deixou-me estupefacta com
um tipo de terror completamente diferente.
A mulher vestia um daqueles uniformes estilo anos cinquenta que os hotéis dão às suas empregadas; aquele verde-menta com um espesso avental azul. As cores que vestia jogavam
com as dos cortinados e dos tapetes do corredor, mas a corda à volta dos seus pulsos, escurecida com sangue, não.
Excluindo os pulsos ensanguentados, parecia, de um modo geral, incólume, embora os sons que estava a produzir me tivessem feito duvidar disso. O seu peito palpitava em resultado
do esforço para gritar, mas mesmo sem a porta da casa de banho entre nós, não estava a fazer muito barulho, antes emitia uma série de grunhidos.
Voltei a puxar a trela e, ao ver que Stefan continuava sem se mexer, mordi-o, com força, fazendo sangue. Nem reagiu.
Não aguentava ouvir o terror daquela mulher. Respirava com arquejos roucos e engasgados e debatia-se nos braços de Littleton, tão concentrada nele que não creio que nos tenha
visto, a mim e a Stefan.
Puxei novamente a trela. Ao ver que isso não funcionava, rosnei e movi-me rapidamente, virando-me para conseguir mastigar o couro. A minha coleira estava equipada com um fecho
de segurança que eu podia ter partido, mas o arnês de couro de Stefan estava apertado com fivelas metálicas antiquadas.
O feiticeiro deixou cair a sua vítima no chão, à minha beira, um pouco para lá do meu alcance — embora não esteja certa do que poderia ter feito por ela, mesmo que estivesse
ao meu alcance. Ela não me viu; estava demasiado ocupada a tentar não ver Littleton. Mas os meus esforços tinham atraído a atenção do feiticeiro e ele pôs-se de cócoras para
ficar mais próximo do meu nível.
— O que é que será que tu farias se eu te libertasse? — perguntou-me — Estás com medo? Fugias? Atacavas-me, ou o cheiro do sangue dela excita-te como excita um vampiro? —
A seguir olhou para cima, na direção de Stefan. — Estou a ver as tuas presas, Soldado. O esplêndido perfume do sangue e do terror: chama por nós, não chama? Prende-nos com
a mesma firmeza com que prendes o teu coiote. — Usou a pronunciação espanhola, três sílabas em vez de duas. — Exigem que bebamos apenas um gole de cada quando os nossos corações
anseiam por muito mais. O sangue na verdade não sacia sem a morte, não é verdade? És suficientemente velho para te lembrares dos Tempos Antigos, não és, Stefan? Quando nós,
vampiros, comíamos a nosso bel-prazer e nos divertíamos no terror e nos últimos estertores da nossa presa. Quando nos alimentávamos verdadeiramente.
Stefan produziu um ruído e arrisquei olhá-lo de relance. Os seus olhos tinham mudado. Não sei por que é que essa foi a primeira coisa que reparei nele, quando tantas outras
coisas estavam diferentes. Os olhos de Stefan normalmente tinham o tom da madeira de nogueira encerada, mas naquele momento reluziam como rubis sangue. Os lábios estavam puxados
para trás, revelando presas mais curtas e delicadas do que as de um lobisomem. A sua mão, que tinha apertado a minha trela, ostentava garras curvas nas extremidades dos dedos
alongados. Depois de um vislumbre, tive de virar a cara, com quase tanto medo dele como do feiticeiro.
— Sim, Stefan — disse Littleton, rindo-se como um vilão num filme antigo a preto e branco. — Vejo que te lembras do sabor da morte. Benjamin Franklin em tempos disse que aqueles
que abdicam da sua liberdade em favor da sua segurança não merecem nenhuma delas. — Aproximou-se. — Sentes-te seguro, Stefan? Ou sentes falta daquilo que tiveste em tempos,
daquilo que permitiste que roubassem de todos nós?
Em seguida, Littleton virou-se para a sua vítima. Esta não produziu praticamente nenhum ruído quando tocada por ele, os seus lamentos eram de tal modo enrouquecidos que teriam
sido inaudíveis a um humano fora daquele quarto. Esforcei-me por me libertar do arnês, tentando que ele rasgasse nos meus ombros, mas não me serviu de nada. As minhas garras
rasgaram o tapete, todavia Stefan era pesado de mais para que o fizesse mexer.
Littleton demorou imenso tempo a matá-la: ela desistiu de lutar antes de mim. No fim, o único barulho no quarto era o dos vampiros; o que estava à minha frente alimentava-se
humidamente e o que estava ao meu lado emitia ruídos impotentes e ansiosos, embora sem se mover.
O corpo da mulher entrou em convulsões e os seus olhos cruzaram-se com os meus, apenas por instantes, antes de ficarem ausentes com a sua morte. Senti o ímpeto da magia no
momento em que ela se imobilizou e a amargura fétida, o cheiro do demónio, abandonou o quarto, deixando atrás de si apenas um ténue rasto.
Recuperei o olfato, e quase desejei que isso não tivesse acontecido. Os odores da morte não são muito melhores do que o cheiro do demónio.
A arfar, a tremer e a tossir por ter ficado à beira de me estrangular, baqueei no chão. Agora não havia nada que eu pudesse fazer para ajudá-la, se é que alguma vez essa possibilidade
tivesse existido.
Littleton continuava a alimentar-se. Lancei um olhar de soslaio a Stefan, que tinha parado de produzir aqueles ruídos perturbadores. Abandonara a sua postura petrificada.
Mesmo sabendo que ele tinha observado aquela cena com desejo e não tanto com horror, Stefan era infinitamente preferível a Littleton, e recuei até a minha anca tocar a sua
coxa.
Acostei-me a ele enquanto Littleton, cujo branco da camisa tinha desaparecido quase por completo debaixo do sangue da mulher que matara, levantava os olhos da sua vítima para
examinar o rosto de Stefan. Dava risadinhas entre arquejos nervosos. Tinha tanto medo dele, da coisa que o dominava, que mal conseguia respirar.
— Oh, querias aquilo — trauteou, estendendo uma mão e esfregando-a nos lábios de Stefan. Instantes depois, Stefan lambeu os beiços.
— Deixa-me partilhar — disse o outro vampiro num tom suave. Inclinou-se na direção de Stefan e beijou-o apaixonadamente. Fechou os olhos, e apercebi-me de que estava finalmente
ao meu alcance.
Às vezes a diferença entre a raiva e o medo é mínima. Pulei com a boca escancarada e cerrei-a em redor do pescoço de Littleton, sentindo, em primeiro lugar, o sabor do sangue
humano da mulher na sua pele, e, depois, uma outra coisa, amarga e horrível, que viajou da minha boca através do meu corpo como um relâmpago. Esforcei-me por fechar o maxilar,
mas tinha-o deixado escapar e as minhas presas superiores atingiram-lhe o osso da coluna vertebral e ressaltaram.
Não era uma mulher-loba ou uma bulldog, portanto não tinha a capacidade de esmagar osso; limitei-me a afundar os dentes na carne enquanto o vampiro me agarrava pelos ombros
e se libertava, arrancando a trela da mão de Stefan com o esforço empreendido.
Do seu pescoço começou a derramar sangue, desta vez o seu sangue, porém o golpe começou a fechar-se imediatamente, e o vampiro curou-se mais depressa do que um lobisomem.
Desesperada, apercebi-me de que não lhe tinha causado ferimentos sérios. Lançou-me ao chão e afastou-se às arrecuas, tapando com as mãos o golpe que lhe fizera. Senti a magia
dele a flamejar e, quando as mãos lhe caíram da garganta, o golpe tinha desaparecido.
Rosnou-me, com os colmilhos à vista, e eu rosnei-lhe em resposta. Não me lembro de o ver mexer-se, apenas da sensação momentânea das suas mãos nos meus flancos, um breve momento
em que fui arremessada pelo ar e depois nada.
2
Acordei no meu sofá com cadenciadas carícias de língua na cara e o rumor distinto da Medea. A voz de Stefan serviu-me de alívio porque significava que estava vivo, tal como
eu. Todavia, quando Samuel respondeu, pese embora o seu tom de voz surdo se parecesse bastante com o barulho que a minha gata estava a fazer, não havia como sentir qualquer
alívio com a ameaça glacial existente por baixo da sua voz suave.
Perante o som, fui invadida por um assomo de adrenalina. Afugentei a memória dos terrores noturnos. O importante agora era que aquela noite seria de Lua cheia e havia um lobisomem
enraivecido a menos de meio metro de mim.
Tentei abrir os olhos e levantar-me, mas deparei com vários problemas. Em primeiro lugar, um dos meus olhos parecia recusar-se a abrir. Em segundo lugar, uma vez que raramente
durmo na forma de coiote, tinha-me tentado sentar como um humano. O meu modo desajeitado piorou porque o meu corpo, hirto e dorido, não estava a reagir muito bem a qualquer
espécie de movimento. Finalmente, assim que mexi a cabeça, fui recompensada com uma dor aguda e um sentimento de náusea a acompanhar. A Medea repreendeu-me com palavrões felinos
e, toda zangada, pulou para fora do sofá.
— Chiu, Mercy. — O tom ameaçador desapareceu por completo da voz de Samuel enquanto trauteava e se ajoelhava ao lado do sofá. As suas mãos dóceis e competentes deslizaram
sobre o meu corpo dorido.
Abri o meu olho funcional e fixei-me nele prudentemente, não confiando que o tom da sua voz indicasse o seu estado de espírito. Os olhos dele não eram visíveis, mas a sua
boca larga mostrava-se meiga debaixo do nariz longo e aristocrático. Reparei vagamente que precisava de um corte; o cabelo castanho-acinzentado tapava-lhe as sobrancelhas.
Havia tensão nos seus largos ombros, e agora que estava completamente desperta, conseguia cheirar a agressividade que se vinha acumulando no compartimento. Virou a cabeça
para acompanhar o movimento das mãos enquanto estas se moviam delicadamente sobre as minhas patas traseiras e consegui ver-lhe os olhos.
Azul-claros, não brancos, como estariam se o lobo estivesse na iminência de emergir.
Relaxei o suficiente para me sentir francamente grata por, apesar de maltratada e deprimida, estar deitada no meu próprio sofá e não morta — ou pior, ainda na companhia de
Cory Littleton, vampiro e feiticeiro.
As mãos de Samuel tocaram-me na cabeça e eu gani.
Para além de lobisomem, o meu companheiro de casa era médico, um médico muito bom. Como é evidente, suponho que devesse ser. Há muito tempo que era médico e tinha pelo menos
três licenciaturas em medicina em dois séculos diferentes. Os lobisomens podem ser criaturas com uma grande longevidade.
— Está tudo bem com ela? — perguntou Stefan. Havia qualquer coisa na sua voz que me causou incómodo.
A boca de Samuel comprimiu-se.
— Não sou veterinário, sou médico. Posso dizer-lhe que não tem nenhum osso partido, mas até que ela possa falar comigo, é tudo quanto sei.
Tentei transformar-me de modo a ajudar, mas o único resultado foi uma dor ardente através do peito e em volta das costelas. Soltei um pequeno ruído de pânico.
— O que foi? — disse Samuel, passando o dedo suavemente ao longo do contorno da minha maxila.
Também doeu. Estremeci e ele afastou as mãos.
— Espere — anunciou Stefan da extremidade do sofá.
A voz dele não soou como devia. Depois do que o vampiro possuído pelo demónio lhe tinha feito, tinha de me certificar de que Stefan estava bem. Contorci-me, gemendo de desconforto,
até conseguir observar atentamente o vampiro com o meu olho funcional.
Estivera sentado no chão ao fundo do sofá, mas, quando olhei para ele, ergueu-se até ficar de joelhos — tal como tinha estado quando o feiticeiro o tinha dominado. Do canto
do olho vi Samuel lançar um golpe súbito na direção de Stefan. Porém, este esquivou-se da mão de Samuel. Mexeu-se de forma estranha. A princípio, pensei que estivesse magoado,
que Samuel já lhe teria batido, depois apercebi-me de que se movia como Marsilia, a Senhora do ninho local — como um fantoche, ou um vampiro muito velho que se tivesse esquecido
de como é ser-se humano.
— Calma, lobo — disse Stefan, e compreendi o que havia de errado na sua voz. Estava morta, esvaziada de qualquer emoção. — Tente tirar-lhe o arnês. Acho que ela estava a tentar
transformar-se, mas não pode fazê-lo enquanto estiver com o arnês.
Não me tinha dado conta de que ainda o tinha colocado. Samuel produziu um ruído sibilante quando tocou nas fivelas.
— São de prata — indicou Stefan sem se aproximar. — Posso desapertá-las, se me permitir.
— Quer-me parecer que de repente já lhe sobram as palavras, vampiro — grunhiu Samuel.
Samuel era o lobisomem mais calmo e sereno que conhecia — embora isso não diga lá grande coisa — mas era capaz de distinguir na gravidade da sua voz os prenúncios de violência
que fizeram a minha caixa torácica vibrar.
— Fez-me perguntas às quais não posso responder — replicou Stefan calmamente, todavia a sua voz tinha-se animado em cadências mais humanas. — Espero sinceramente que a Mercedes
seja capaz de satisfazer a sua curiosidade e a minha. No entanto, antes de mais, é preciso que alguém lhe tire o arnês para que ela possa regressar à forma humana.
Samuel hesitou, após o que se afastou de mim.
— Faça-o você — rosnou em vez de falar.
Stefan avançou lentamente, à espera que Samuel se desviasse antes de me tocar. Cheirava ao meu champô e tinha o cabelo húmido. Teria tomado um duche — e encontrado roupas
lavadas algures. Nada naquele quarto de motel tinha escapado ao sangue da mulher assassinada. As minhas próprias patas ainda estavam cobertas dele.
Tive uma súbita e visceral recordação da forma como o tapete ficara empapado, supersaturado com fluido escuro e viscoso. Teria vomitado, mas a repentina dor aguda na minha
cabeça perfurou a náusea, uma distração bem-vinda.
Stefan não demorou muito tempo a desafivelar o arnês, e logo depois de este ter sido retirado, transformei-me. Stefan afastou-se e deixou que Samuel regressasse para o seu
lugar ao meu lado.
Uma fúria comprimiu os limites da boca de Samuel no instante em que me tocou no ombro. Olhei para baixo e apercebi-me de que a minha pele estava pisada e esfolada dos sítios
onde o arnês tinha roçado, e que por todo o meu corpo havia pequenas manchas de sangue seco, cor de ferrugem. Parecia que tinha sofrido um acidente de carro.
Pensar em carros fez com que me lembrasse do trabalho. Olhei lá para fora através da janela, mas o céu ainda estava escuro.
— Que horas são? — perguntei. A voz saiu-me num crocito rouco.
Foi o vampiro que respondeu.
— Cinco e quarenta e cinco.
— Preciso de me ir vestir — disse, levantando-me abruptamente, o que foi um erro. Agarrei-me à cabeça, praguejei, e sentei-me antes que caísse.
Samuel afastou as minhas mãos da minha testa.
— Abre os olhos, Mercy.
Esforcei-me ao máximo, mas o meu olho esquerdo não queria de forma alguma abrir. No momento em que consegui abrir os dois, ele cegou-me com uma caneta luminosa.
— Porra, Sam — disse, contorcendo-me para me libertar da sua mão.
— Só mais uma vez. — Foi implacável, desta vez abrindo ele próprio o meu olho magoado. Depois pousou a lanterna ao lado e percorreu a minha cabeça com as mãos. Sibilei assim
que os dedos dele tocaram numa ferida. — Não tens um traumatismo craniano, Mercy, embora tenhas um galo considerável na nuca, uma pisadura dos diabos no olho, e, se não estou
enganado, o resto do lado esquerdo da tua cara vai estar roxo antes do romper do dia. A saber, por que é que estás inconsciente há quarenta e cinco minutos, segundo diz o
chupador de sangue?
— Há perto de uma hora, agora — interveio Stefan. Encontrava-se novamente sentado no chão, mais longe de mim do que tinha estado, mas observava-me com uma atenção predatória.
— Não sei — respondi, e a voz saiu-me mais trémula do que tencionava.
Samuel sentou-se ao meu lado no sofá, puxou bruscamente o pequeno cobertor que escondia os danos que Medea tinha provocado nas suas costas, e envolveu-me nele. Começou a estender
as mãos na minha direção e eu afastei-me. O desejo de proteção de um lobo dominante era um instinto forte — e Samuel era muito dominante. Dêem-lhe algum espaço e ele tomará
conta do mundo, ou da minha vida se eu o permitir.
Ainda assim, cheirava a rio, deserto e pelagem — e ao familiar odor adocicado que só lhe pertencia a ele. Desisti de lhe oferecer resistência e deixei a minha cabeça dorida
pousar no ombro dele. A resiliência e o calor da sua carne contra a minha têmpora ajudaram a amenizar a minha dor de cabeça. Talvez se não me mexesse a minha cabeça não caísse.
Samuel emitiu um som suave e tranquilizador e percorreu o meu cabelo com os seus dedos hábeis, evitando a parte dorida.
Não tinha esquecido nem o tinha perdoado pela lanterna, mas ficámos quites quando me comecei a sentir melhor. Já se tinha passado muito tempo desde a última vez em que me
tinha encostado a alguém, e, mesmo sabendo que era estúpido permitir que Samuel me visse tão débil, não fui capaz de me forçar a afastar-me.
Ouvi Stefan a dirigir-se para a cozinha, a abrir o frigorífico, e a remexer os armários. Em seguida, o odor do vampiro aproximou-se e ele disse:
— Ela que beba isto. Vai ajudar.
— Ajudar a quê? — A voz de Samuel soou bastante mais austera do que o habitual. Se a cabeça me doesse um pouco menos, tinha-me afastado.
— À desidratação. Ela foi mordida.
A sorte de Stefan foi que eu estava encostada a Samuel. O lobisomem levantou-se de um pulo, mas parou a meio caminho quando soltei um gemido perante o seu movimento súbito.
OK, estava a fazer jogo sujo, mas isso impediu Samuel de atacar. Stefan não era o vilão. Se se tivesse alimentado de mim, tinha a certeza de que teria sido por necessidade.
Não estava em condições de separá-los, portanto optei por assumir o papel de indefesa. Só desejei que tivesse sido um bocadinho mais difícil fazê-lo.
Samuel voltou a sentar-se e afastou o cabelo do meu pescoço. Com as pontas dos dedos, passou ao de leve por uma parte dorida de um dos lados, que se juntou às minhas outras
dores e aflições. Assim que tocou nela, contudo, senti ardor e dor até à clavícula.
— Não fui eu — disse Stefan, mas havia um quê de vacilante na sua voz, como se não tivesse inteira certeza do que dizia. Desenterrei a cabeça de modo a vê-lo. Todavia, o que
quer que estivesse na sua voz não lhe tinha tocado a expressão terna que o rosto exibia.
— Não corre nenhum risco para além de anemia — disse a Samuel. — É preciso mais do que uma mordidela para transformar um humano num vampiro… E, seja como for, não tenho a
certeza de que a Mercy pudesse ser transformada. Se ela fosse humana, teríamos de nos preocupar com a possibilidade de ele a chamar e ordenar a sua obediência, mas os caminhantes
não são tão vulneráveis à nossa magia. Ela apenas precisa de se hidratar e descansar.
Samuel lançou um olhar lancinante ao vampiro.
— Agora está cheiinho de informações, não é verdade? Se não foi você que a mordeu, o que é que foi?
Stefan sorriu tenuemente, não como tencionava, e entregou a Samuel o copo com sumo de laranja que tinha tentado dar-lhe antes. Percebi o porquê de o ter dado a Samuel e não
a mim. Samuel estava a tornar-se territorial — fiquei impressionado com o facto de um vampiro ser capaz de o ler tão bem.
— Acho que a Mercy seria uma narradora melhor — replicou Stefan. Havia na sua voz indícios de uma ansiedade incaracterística que me distraíram da preocupação em relação à
possessividade de Samuel.
Por que razão estava Stefan tão ansioso para ouvir o que eu tinha a dizer? Ele também tinha lá estado.
Peguei no copo que Samuel me entregou e endireitei-me até me desencostar dele. Não me tinha apercebido quão sedenta estava até ter começado a beber. Não sou grande apreciadora
de sumo de laranja — quem o bebia era Samuel — mas naquele preciso instante soube-me a ambrósia.
Não era magia, contudo. Quando acabei, a cabeça ainda me doía, e a única coisa que queria era enfiar-me na minha cama e tapar-me por completo com os cobertores, todavia não
ia ter nenhum descanso enquanto Samuel não tivesse conhecimento de tudo — e Stefan aparentemente não ia falar.
— O Stefan telefonou-me há umas horas — comecei. — Devia-lhe um favor por nos ter ajudado quando a Jesse foi raptada.
Ambos ouviram atentamente, com Stefan a acenar com a cabeça de vez em quando. Quando cheguei à parte em que entrámos no quarto do hotel, Stefan sentou-se no chão, próximo
dos meus pés. Recostou-se no sofá, desviou a cabeça de mim e tapou os olhos com uma mão. Talvez estivesse simplesmente a ficar cansado — os estores começavam a iluminar-se
com os primeiros vestígios da alvorada na altura em que terminava a descrição da minha tentativa falhada de matar Littleton e o meu subsequente impacto contra a parede.
— Tens a certeza de que foi isso que aconteceu? — inquiriu Stefan sem destapar os olhos.
Franzi-lhe o sobrolho, endireitando as costas.
— Claro que tenho a certeza. — Ele tinha lá estado, portanto o que é que o levava a falar como se eu pudesse estar a inventar?
Esfregou os olhos e fitou-me, e depois notei alívio na sua voz.
— Sem ofensa, Mercy. As memórias que tens da morte da mulher são muito diferentes das minhas.
Carreguei o cenho.
— Diferentes como?
— Dizes que me limitei a ficar ajoelhado no chão enquanto o Littleton assassinava a empregada do hotel?
— Exatamente.
— A minha recordação não é essa — replicou num sussurro. — Lembro-me de o feiticeiro ter trazido a mulher, de o sangue dela me chamar e de eu ter respondido. — Lambeu os lábios
e a combinação de horror e fome nos seus olhos fizeram-me desviar a atenção dele. Continuou num sussurro, quase de si para si: — Há imenso tempo que não era dominado pela
sede de sangue.
— Bom — disse, sem estar certa de que o que tinha para lhe dizer ajudaria ou prejudicaria —, o teu aspeto não era lá muito agradável. Os teus olhos brilhavam e viam-se-te
os colmilhos. Mas não fizeste nada à mulher.
Por instantes, um pálido reflexo do brilho vermelho-rubi que tinha visto no quarto do hotel cintilou-lhe nas íris.
— Lembro-me de me deleitar com o sangue da mulher, de pintar as minhas mãos e a minha cara com ele. Ainda o tinha quando te trouxe para casa e tive de o tirar com água. —
Fechou os olhos. — Há uma velha cerimónia… proibida há muito tempo, mas eu lembro-me… — Abanou a cabeça e concentrou a atenção nas próprias mãos, que estavam frouxamente enlaçadas
em redor de um joelho. — Ainda consigo sentir o sabor dela.
Aquelas palavras pairaram desconfortavelmente no ar por um momento, antes de ele prosseguir:
— Estava absorto no sangue. — Pronunciou aquela frase como se as palavras pertencessem umas às outras e pudessem significar algo mais complexo do que o seu significado literal.
— Quando voltei a mim, o outro vampiro tinha desaparecido. A mulher jazia conforme me lembro de a ter deixado, e tu estavas inconsciente.
Engoliu em seco e depois cravou os olhos na janela iluminada, a sua voz baixou uma oitava, como por vezes pode acontecer com a dos lobos.
— Não me conseguia lembrar do que te tinha acontecido.
Esticou o braço e tocou-me no pé, que era a parte do meu corpo mais próxima dele. Quando voltou a falar, a sua voz soou quase normal.
— Um lapso de memória não é inconsistente com a sede de sangue. — A mão dele moveu-se até se fechar cuidadosamente em volta dos meus dedos dos pés, a sua pele fria contra
a minha. — Mas a sede de sangue normalmente só tem o efeito de entorpecer as coisas sem importância. Tu és importante para mim, Mercedes. Ocorreu-me que não serias importante
para o Cory Littleton. E esse pensamento deu-me esperança enquanto te trazia de carro até aqui.
Eu era importante para Stefan? Não era mais do que a sua mecânica. Tinha-me feito um favor, e na noite anterior tinha-o retribuído em grandes proporções. Possivelmente seremos
amigos — embora eu pensasse que os vampiros não tivessem amigos. Pensei no assunto durante algum tempo e cheguei à conclusão de que Stefan era importante para mim. Se alguma
coisa lhe tivesse acontecido esta noite, algo permanente, teria ficado sentida. Talvez ele sentisse o mesmo.
— Achas que ele interferiu na tua memória? — perguntou Samuel enquanto eu ainda estava a pensar. Tinha-se aproximado lestamente e lançado um braço em redor dos meus ombros.
Foi uma sensação boa. Boa de mais. Deslizei para a frente no sofá, para longe de Samuel — e Stefan deixou a mão cair do meu pé quando me mexi.
Stefan acenou afirmativamente com a cabeça.
— É óbvio que algo de errado se passa ou com a minha memória ou com a da Mercy. Não me parece que ele conseguisse afetar a da Mercy, mesmo sendo um feiticeiro. Esse tipo de
coisa simplesmente não funciona em caminhantes como ela, a menos que ele se tenha esforçado mesmo muito.
Samuel produziu um som de hesitação.
— Não estou a ver por que razão haveria de querer que a Mercy pensasse que você era inocente de um assassinato, especialmente se pensava que ela era apenas um coiote. — Cravou
os olhos em Stefan, que encolheu os ombros.
— Os caminhantes só foram uma ameaça durante um par de décadas, e isso foi há séculos. O Littleton é muito novo; ficaria surpreendido se ele sequer tivesse ouvido falar em
algo parecido com a Mercy. É possível que o demónio saiba, nunca se sabe ao certo o que os demónios sabem. Mas a melhor prova de que o Littleton pensa que a Mercy não passava
de um coiote é o facto de ela ainda estar viva.
Ainda bem para mim.
— Muito bem. — Samuel esfregou a face. — É melhor ligar ao Adam. Ele precisa de enviar a equipa de limpeza dele ao hotel antes que alguém veja a bagunça e comece a gritar
«lobisomem». — Ergueu uma sobrancelha a Stefan. — Embora ache que podíamos simplesmente dizer à polícia que foi um vampiro.
Tinham-se passado menos de seis meses desde que os lobisomens tinham seguido os seres feéricos na opção de ir a público. Não tinham contado tudo à população humana, e apenas
os lobisomens que optaram por fazê-lo se revelaram — a maioria estava no exército, pessoas já separadas da população geral. Mantivemo-nos em suspenso, à espera de ver o que
daí resultaria, mas, até à data, não se registaram quaisquer distúrbios, contrariamente ao que acontecera aquando da exposição dos seres feéricos algumas décadas antes.
Parte da reação serena deveu-se ao planeamento cuidadoso do Marrok. Os americanos sentem-se seguros no nosso mundo moderno. Bran fez tudo o que estava ao seu alcance para
proteger essa ilusão, apresentando os seus lobos públicos como vítimas que suportaram a sua aflição e a usaram corajosamente para proteger os outros. Os lobisomens — queria
ele que o público acreditasse, pelo menos durante algum tempo — eram simplesmente pessoas que ficavam peludas aquando da Lua cheia. Os primeiros lobos a vir a público eram
heróis que colocavam a sua vida em risco para proteger os humanos mais frágeis. O Marrok, à semelhança do que sucedera com os seres feéricos que o antecederam, optou por manter
os aspetos mais negros dos lobisomens escondidos da forma mais cuidadosa que lhe era possível.
Todavia, penso que o grosso do mérito pela aceitação pacífica da revelação pertence aos seres feéricos. Durante mais de duas décadas, os seres feéricos tinham tido a capacidade
de se apresentar como frágeis, amáveis e dóceis — e qualquer pessoa que tenha lido os Irmãos Grimm ou Andrew Lang compreenderá a dimensão de tamanha proeza.
Independentemente da ameaça de Samuel, o seu pai, o Marrok, jamais concordaria com a exposição dos vampiros. Não havia como suavizar o facto de que os vampiros se alimentavam
de humanos. E assim que as pessoas se apercebessem de que de facto existiam monstros, era bem possível que se apercebessem de que os lobisomens, também eles, eram monstros.
Stefan sabia tão bem quanto Samuel o que o Marrok diria. Sorriu desagradavelmente ao lobisomem, mostrando os colmilhos.
— Já se tratou da bagunça. Telefonei à minha senhora antes de trazer a Mercy para casa. Não precisamos de lobisomens para nos fazer a limpeza. — Normalmente, Stefan era mais
amável, mas também ele tinha tido uma noite má.
— O outro vampiro provocou-te memórias falsas — disse para distrair os homens do seu antagonismo. — Isso aconteceu por ele ser um feiticeiro?
Stefan inclinou a cabeça, como se estivesse embaraçado.
— Nós conseguimos fazer isso aos humanos — disse, dando-me uma informação que eu dispensava. Ele viu a minha reação e explicou: — Isso significa que podemos deixar vivos aqueles
de quem nos alimentamos despreocupadamente, Mercedes. Ainda assim, os humanos são uma coisa, e os vampiros outra. Supostamente, não conseguimos fazer isso uns aos outros.
No entanto, não tens com que te preocupar. Nenhum vampiro consegue transformar a tua memória, provavelmente nem mesmo um que seja feiticeiro.
Uma sensação de alívio trepou-me pelo corpo. Se tivesse de escolher coisas que não queria que um vampiro me fizesse, desordenar os meus pensamentos estaria numa posição cimeira
da minha lista. Toquei no meu pescoço.
— Por isso é que querias que estivesse contigo. — Endireitei as costas. — Disseste que o tinha feito a outro vampiro. O que é que ele levou o outro vampiro a pensar que tinha
feito?
Stefan exibiu um ar cauteloso… e culpado.
— Tu sabias que ele ia matar alguém, não sabias? — acusei-o. — Foi isso que ele fez ao outro vampiro? Levá-lo a pensar que tinha matado alguém? — A recordação da morte lenta
que eu não tinha sido capaz de impedir fez-me cerrar os punhos.
— Não sabia o que ele ia fazer. Mas sim, acreditava que tinha matado antes e levado o meu amigo a pensar que tinha sido ele o responsável. — Falou como se as palavras lhe
deixassem um sabor amargo na boca. — Mas não podia agir sem provas. Portanto morreram mais pessoas que não deviam ter morrido.
— Você é um vampiro — disse Samuel. — Não tente fazer-nos acreditar que se importa com a morte de pessoas inocentes.
Stefan fitou Samuel olhos nos olhos.
— Já tolerei mortes de sobra em tempos que já lá vão, mas acredite no que quiser. Tantas mortes ameaçam os nossos segredos, lobisomem. Mesmo que eu não me importasse minimamente
com a morte de qualquer humano, não ia querer que tantos morressem e comprometessem os nossos segredos.
Que tantos morressem?
A sua certeza de que, na altura em que Littleton nos tinha convidado para entrar, nenhum barulho incomodaria quem quer que fosse no hotel tornou-se subitamente clara. A coisa
que eu tinha visto a matar a mulher não teria hesitado em matar as pessoas que fosse necessário.
— Quem mais é que morreu esta noite?
— Quatro. — Stefan não desviou o olhar de Samuel. — O rececionista do turno da noite e três hóspedes. Por sorte o hotel estava quase vazio.
Samuel praguejou.
Eu engoli em seco.
— Portanto os corpos vão simplesmente desaparecer?
Stefan suspirou.
— Tentamos não fazer desaparecer pessoas cuja falta será sentida. Os cadáveres serão explicados de modo a causar o menor espalhafato possível. Uma tentativa de assalto, uma
discussão de amantes que ficou descontrolada.
Abri a boca para dizer algo temerário, mas contive-me. As regras segundo as quais todos tínhamos de viver não eram da responsabilidade de Stefan.
— Pôs a Mercy em risco — grunhiu Samuel. — Se ele já tinha feito outro vampiro matar involuntariamente, podia ter feito com que você matasse a Mercy.
— Não. Ele não me podia ter forçado a fazer mal à Mercy. — A voz de Stefan continha tanta raiva quanto a de Samuel, o que conferia alguma dúvida à firmeza da sua resposta.
Também ele devia ter notado, porque voltou a concentrar a atenção em mim. — Eu jurei-te, pela minha honra, que nenhum mal te seria feito esta noite. Subestimei o inimigo,
e sofreste por causa disso. Falhei com o prometido.
— «Para que o mal triunfe basta que os homens bons nada façam» — murmurei. Tivera de ler Reflexões Sobre a Revolução Francesa, de Edmund Burke, três vezes na universidade;
algumas das suas observações tinham-me parecido especialmente relevantes, para mim que fora educada com a compreensão da dimensão do mal que realmente existia no mundo.
— O que queres dizer com isso? — inquiriu Stefan.
— A minha presença naquele quarto de hotel vai ajudar-te a destruir aquele monstro? — perguntei.
— Espero que sim.
— Então o pouco que me magoei valeu a pena — disse com firmeza. — Não te martirizes por causa disso.
— A honra não é reposta assim tão facilmente — interveio Samuel, fixando-se em Stefan.
Stefan pareceu concordar, mas não havia mais nada que eu pudesse fazer por ele a esse respeito.
— Como é que sabias que havia algo de errado no Littleton? — perguntei.
Stefan interrompeu a sua competição de olhar fixo com Samuel, baixando os olhos na direção da Medea que tinha deslizado para o seu colo e ali se agachara, ronronando. Se ele
fosse humano, teria dito que tinha um ar cansado. Se tivesse baixado os olhos daquela maneira diante de um lobisomem menos civilizado, poderia ter tido problemas, porém Samuel
sabia que o facto de um vampiro baixar o olhar não era sinónimo de admitir submissão.
— Tenho um amigo chamado Daniel — disse Stefan passado um bocado. — Ele é muito novo, para os da nossa espécie, e pode dizer-se que é um bom rapaz. Há um mês, quando um vampiro
se registou num hotel local, enviaram o Daniel para verificar a razão pela qual ele não nos tinha contactado para as habituais permissões.
Stefan encolheu os ombros.
— É uma coisa que fazemos com muita frequência; não era de esperar que fosse perigoso ou invulgar. Era uma missão apropriada para um vampiro novato. — Acontece que havia na
sua voz um toque de desaprovação que me indicou que ele não teria enviado Daniel para confrontar um vampiro desconhecido. — O Daniel foi de alguma maneira desencaminhado,
não se lembra como. Uma coisa qualquer despertou-lhe a sede de sangue. Nunca chegou a ir ao hotel. Havia um pequeno grupo de trabalhadores sazonais que estavam a acampar no
pomar de cerejeiras, à espera de começar a colheita. — Trocou um olhar com Samuel sobre a minha cabeça. — Como aconteceu hoje à noite, a bagunça não foi bonita, mas foi solucionável.
Pegámos nas caravanas e nos veículos deles e fizemo-los desaparecer. O proprietário do pomar ficou a pensar que eles se tinham fartado de esperar e se puseram a andar. O Daniel
foi… punido. Não de forma demasiado dura, porque é novo e a sede é extraordinariamente forte. Mas agora, por vontade própria, não come de todo. Está a morrer de culpa. Tal
como te disse, é um bom rapaz.
Stefan inspirou, uma inalação profunda e de limpeza. Stefan em tempos dissera-me que a maior parte dos vampiros respirava porque não respirar atraía a atenção humana. No entanto,
penso que alguns deles o fazem porque não respirarem é tão perturbador para eles como é para nós. Seja como for, é evidente que se eles querem falar têm de respirar um pouco.
— No meio do frenesim — prosseguiu Stefan —, ninguém investigou o vampiro visitante que, afinal de contas, passou apenas uma noite na cidade. Nem sequer me passou pela cabeça
questionar o que tinha acontecido até ter tentado ajudar o Daniel há uns dias. Ele falou comigo sobre o que tinha acontecido, e havia qualquer coisa que simplesmente não batia
certo na história dele. Eu conheço a sede de sangue. Ele não se conseguia lembrar da razão pela qual tinha decidido viajar até Benton City, a mais de trinta quilómetros do
hotel onde devia estar. O Daniel é muito obediente, como um dos vossos lobos submissos. Não se teria desviado das suas ordens sem instigação. Ele não tem a capacidade de se
deslocar como eu, teria de ter conduzido todo o percurso: e conduzir não é uma coisa que um vampiro no auge da sede de sangue faça bem. Decidi investigar um pouco o vampiro
com quem devia ter ido ter. Não foi difícil sacar o nome dele ao rececionista do hotel onde tinha ficado. Não consegui descobrir nada sobre um vampiro chamado Cory Littleton,
mas havia um homem com esse nome a oferecer os seus serviços em assuntos de magia na Internet.
Stefan sorriu ligeiramente de face voltada para o chão.
— Estamos proibidos de transformar alguém que não seja totalmente humano. De qualquer das formas não iria funcionar, mas há histórias… — Encolheu os ombros descontente. —
Já vi o suficiente para saber que esta é uma boa regra. Quando fui em perseguição, esperava encontrar uma bruxa que tinha sido transformada. Nunca me ocorreu que pudesse ser
um feiticeiro: há séculos que não via um feiticeiro. Nos dias de hoje, a maior parte das pessoas não tem a crença no mal e o conhecimento necessário para fazer um pacto com
o demónio. Portanto pensava que Littleton era uma bruxa. Uma bruxa poderosa, contudo, para ser capaz de afetar a memória de um vampiro, mesmo sendo um novato como o Daniel.
— Por que é que foi atrás dele só com a Mercy? — perguntou Samuel. — Não podia ter arranjado outro vampiro para ir consigo?
— O Daniel tinha sido punido, o assunto foi dado por terminado. — Stefan bateu com a mão no joelho, impaciente em relação ao julgamento. — A Senhora não quis voltar a ouvir
falar nisso.
Tinha conhecido Marsilia, a Senhora do ninho de Stefan. Ficara com a impressão de que não era do tipo de se preocupar particularmente com a morte de alguns humanos, ou mesmo
de algumas centenas de humanos.
— Estava a ponderar agir ao arrepio da decisão dela, quando o vampiro regressou. Não tinha nenhuma prova das minhas suspeitas, compreendem? Na opinião de todos os outros,
o Daniel tinha sido vítima da sua sede de sangue. Portanto voluntariei-me para eu próprio falar com este desconhecido. Pensei que talvez pudesse ver se ele era alguém capaz
de fazer com que o Daniel se lembrasse de fazer coisas que na verdade não tinha feito. Levei a Mercy comigo como precaução. De facto não esperava que ele me pudesse afetar
como tinha afetado o Daniel.
— Então achas que o Daniel não matou as pessoas que achava que tinha matado? — perguntei.
— Uma bruxa que também fosse vampira talvez fosse capaz de implantar memórias, mas não seria capaz de levar o Daniel a matar. Um feiticeiro… — Stefan esticou as mãos. — Um
feiticeiro podia fazer muitas coisas. Considero-me sortudo por ele ter sentido tanta ânsia de matar que nem usou a sede de sangue a que me induziu para me levar a matar a
arrumadora de quarto, como estava meio convencido que tinha feito. Fui-me tornando arrogante ao longo dos anos, Mercedes. Na verdade, não acreditava que ele me pudesse fazer
alguma coisa. O Daniel, afinal de contas, é muito novo. A tua função era servires de salvaguarda, mas não estava à espera de precisar de ti.
— O Littleton era um feiticeiro — disse-lhe. — Um vampiro idiota qualquer escolheu transformá-lo. Quem é que fez isso? Foi alguém destas bandas? E se não, por que é que ele
está aqui?
Stefan sorriu novamente.
— Essas são perguntas que haverei de fazer à minha senhora. A transformação pode ter sido um erro, como a nossa bela Lilly.
Tinha conhecido Lilly. Era louca quando era humana, e ter-se transformado em vampira não tinha alterado isso. Era também uma pianista incrível. O seu criador tinha-se deixado
envolver tanto pela sua música que não tinha arranjado tempo para reparar em qualquer outra característica dela. À semelhança dos lobisomens, os vampiros tendem a livrar-se
de alguém que possa atrair para si uma atenção indesejada. O extraordinário dom de Lilly tinha-a protegido, embora o seu criador tivesse sido morto por ser tão descuidado.
— Como é que pode ter sido um erro? — perguntei. — Eu vi a tua reação. Cheiraste o demónio antes de termos entrado no hotel.
Abanou a cabeça.
— Os demónios não são propriamente comuns nos dias de hoje. Os possuídos pelo demónio são rapidamente enjaulados em hospitais psiquiátricos onde são dominados por drogas.
A maior parte dos vampiros mais novos nunca se cruzou com um feiticeiro. Tu própria disseste que não sabias o que tinhas cheirado até eu te dizer.
— Por que é que o demónio não impediu que esse feiticeiro se tornasse vítima do vampiro? — inquiriu Samuel. — Normalmente protegem os seus simbiontes até não quererem mais
nada com eles.
— Por que é que havia de o fazer? — intervim, varrendo mentalmente tudo o que tinha ouvido acerca de feitiçaria, que não era muito. — O único desejo dos demónios é gerar o
máximo de destruição possível. O vampirismo não faria outra coisa senão aumentar a capacidade de Littleton de criar o caos.
— Sabe alguma coisa sobre demónios, Samuel Cornick? — perguntou Stefan.
Samuel abanou a cabeça.
— Não o suficiente para servir de ajuda. Mas eu ligo ao meu pai. Se ele não souber, conhecerá alguém que saiba.
— Este é um problema que diz respeito aos vampiros.
As sobrancelhas de Samuel ergueram-se rapidamente.
— Não se o feiticeiro estiver a deixar estragos e sangue pelo caminho.
— Nós tratamos dele… e dos estragos dele. — Stefan virou-se para mim. — Tenho mais dois favores para te pedir, embora já não me devas nada.
— De que é que precisas? — A minha esperança era que não fosse nada imediato. Estava cansada e mais do que preparada para lavar o sangue das minhas mãos, tanto figurativa
como literalmente, embora temesse que a primeira se afigurasse difícil.
— Importas-te de ir até junto da minha senhora e relatar-lhe o que me contaste sobre os acontecimentos desta noite? Ela não vai querer acreditar que um vampiro recém-transformado
tivesse sido capaz de fazer o que ele fez. A notícia de um feiticeiro entre nós nunca mais será bem acolhida por nenhum dos membros do ninho.
Não tinha particular vontade de reencontrar Marsilia. Ele deve ter notado isso na minha cara, porque continuou:
— É preciso pôr-lhe travão, Mercy. — Respirou fundo uma vez mais, mais fundo do que o necessário se apenas fosse usar o ar para falar. — Vão-me interrogar ao pormenor sobre
esta noite. Vou dizer-lhes o que vi e ouvi, e eles vão perceber se o que eu digo é verdadeiro ou falso. Posso contar-lhes os acontecimentos que tu dizes que tiveram lugar,
mas não têm como saber se são verdade a menos que tu, tu própria, fales por mim. Sem a tua presença lá, vão assumir a minha recordação da morte da empregada como um facto
e as palavras que me disseste como boato.
— O que é que eles vão fazer se não acreditarem em ti? — perguntei.
— Não sou um vampiro novato, Mercedes. Se eles decidirem que pus em risco a nossa espécie ao matar aquela mulher, destroem-me, da mesma maneira que o líder do teu bando teria
de destruir um lobo para proteger os restantes.
— Está bem — concordei vagarosamente.
— Só se eu puder ir com ela — emendou Samuel.
— Uma companhia à escolha dela — aquiesceu Stefan. — Talvez o Adam Hauptman ou um dos seus lobos. Dr. Cornick, por favor não fique ofendido, mas não me parece que deva ir.
A minha senhora ficou encantada por si da última vez, e o autocontrolo nessa matéria não é o forte dela.
— Quando precisares de mim, diz-me — apressei-me a dizer antes que Samuel pudesse começar a discutir. — Eu arranjo alguém para servir de escolta.
— Obrigado — replicou Stefan, e depois hesitou: — É perigoso para ti lembrar ao ninho aquilo que tu és.
Os caminhantes não são populares entre os vampiros. Tinha concluído isso quando os vampiros vieram pela primeira vez para esta parte do Novo Mundo. Os caminhantes por estas
bandas tinham-se tornado uma praga e os vampiros exterminaram praticamente todos. Stefan recusava-se a contar-me mais pormenores. Algumas coisas tinha descoberto sozinha —
como, por exemplo, o facto de a maior parte da magia dos vampiros não ter efeito sobre mim. Contudo, não conseguia perceber em que medida é que eu representava qualquer perigo
para eles — contrariamente, por exemplo, a um lobisomem.
Stefan sabia o que eu era há quatro anos, mas mantivera segredo do seu ninho até à altura em que fui ao encontro deles para pedir ajuda. Tinha-se metido em sarilhos por causa
disso.
— Eles já sabem o que eu sou — disse-lhe. — Eu vou. Qual é o segundo favor?
— Já está muita claridade lá fora para me poder deslocar — disse, acenando vagamente com a mão em direção à minha janela. — Tens algum sítio escuro onde eu possa passar o
dia?
O único sítio onde Stefan podia dormir era o meu armário. Os armários do quarto de Samuel e do terceiro quarto tinham portas venezianas que permitiam a passagem de muita luz.
Todas as minhas janelas tinham estores, mas nada que permitisse a escuridão necessária para manter um vampiro em segurança.
O meu quarto ocupava uma das extremidades da caravana — o quarto de Samuel era na extremidade oposta. Abri a minha porta e acenei a Stefan para que entrasse, mas Samuel também
entrou. Suspirei e não barafustei. Samuel não me ia deixar a sós com Stefan sem uma discussão da qual o meu abatimento extremo não me permitiria desfrutar.
O meu quarto estava atulhado de peças de roupa, algumas sujas, algumas limpas. As peças limpas estavam dobradas em pilhas que ainda não me tinha decidido a guardar nas gavetas.
Espalhados por entre a roupa estavam livros, revistas e correio que ainda não tinha separado. Se soubesse que ia ter um homem no quarto, tinha-o arrumado.
Abri o armário e tirei do interior algumas caixas e dois pares de sapatos. Depois disso ficou vazio — com exceção dos quatro vestidos pendurados a uma lado. Era um armário
grande, suficientemente comprido para que Stefan se deitasse confortavelmente.
— O Samuel pode arranjar-te uma almofada e um cobertor — disse, pegando em peças de roupa ao mesmo tempo que falava. A minha necessidade de estar limpa vinha-se intensificando
desde que acordara, e agora era já uma necessidade desesperada. Precisava de remover da minha pele o cheiro da morte da mulher porque não conseguia tirá-lo da cabeça.
— Mercedes — disse Stefan num tom amável —, não preciso de um cobertor. Não vou estar a dormir, vou estar morto.
Não sei por que é que aquilo foi a última gota. Talvez por se tratar de uma insinuação de que não compreendia o que ele era — numa altura em que acabara de presenciar um exemplo
gráfico do que os vampiros podiam fazer. Ia a meio caminho da casa de banho, mas dei meia volta e pus-me a olhar fixamente para os dois homens.
— O Samuel vai arranjar-te um cobertor — disse-lhe com firmeza. — E uma almofada. Vais dormir no meu armário. Pessoas mortas não ficam no meu quarto.
Fechei a porta da casa de banho atrás de mim e deixei cair a manta afegã que tinha vestido no chão. Ouvi Samuel dizer «Vou buscar roupa de cama» antes de abrir a torneira
do chuveiro para que aquecesse.
A porta da minha casa de banho está totalmente revestida com um espelho. Um daqueles baratos com a imitação de um caixilho de madeira. Quando me virei para colocar a roupa
por cima do lavatório, onde não ficaria molhada, olhei para mim atentamente.
A princípio, não conseguia ver mais nada a não ser sangue ressequido. No meu cabelo, na minha cara, nos ombros, nos braços e nas ancas. Nas minhas mãos e nos meus pés.
Vomitei na sanita. Duas vezes. Em seguida lavei as mãos e a cara e passei a boca por água.
O sangue não me é completamente estranho. Afinal de contas por vezes sou coiote. Já matei a minha quota-parte de coelhos e ratos. No inverno passado matei dois homens — lobisomens.
Mas esta morte foi diferente. Malévola. Não a tinha matado por comida, vingança ou autodefesa. Tinha-a matado, a ela e a mais quatro pessoas, porque gostava disso. E eu não
tinha sido capaz de o impedir.
Olhei novamente para o espelho.
Nas minhas costelas e pescoço destacavam-se nódoas negras. Marcas roxo-escuras traçavam o percurso que o arnês tinha percorrido em torno do meu peito e costelas. Devo ter
feito isso enquanto me tentava libertar da mão de Stefan cerrada na minha trela. A pisadura na parte lateral do meu ombro direito era mais negra do que roxa. O lado esquerdo
da minha cara estava inchado da maçã do rosto até ao maxilar com um vermelho que prometia uma nódoa negra verdadeiramente espetacular.
Inclinei-me para a frente e toquei na minha pálpebra intumescida. Parecia uma vítima de violação — com exceção das duas marcas escuras no meu pescoço.
Assemelhavam-se a uma mordedura de cascavel, duas crostas escuras quase formadas rodeadas por pele inchada e avermelhada. Tapei-as com a minha mão e perguntei-me até que ponto
confiava no que Stefan dissera em relação ao facto de nem me vir a transformar em vampira nem vir a ficar sob o controlo de Littleton.
Peguei na água oxigenada e apliquei-a nos meus ferimentos, sibilando com as dores agudas. Não me fez sentir de todo mais limpa. Levei o frasco comigo para o duche e verti
o conteúdo no meu pescoço até que ficasse vazio. Depois esfreguei.
O sangue depressa desapareceu, embora por segundos a água aos meus pés ficasse da cor da ferrugem. Todavia, por muito sabonete e champô que usasse, ainda me sentia suja. Quanto mais esfregava, mais nervosa me sentia. Littleton não me tinha estuprado, mas ainda assim tinha-me violado o corpo. O pensamento da boca dele em mim embrulhou-me novamente o estômago.
Permaneci debaixo do chuveiro até que a água ficasse fria.

 

 

                                                   Patricia Briggs         

 

 

 

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