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O APELO DA SELVA /Jack London
O APELO DA SELVA /Jack London

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O APELO DA SELVA

 

Buck não lia os jornais; caso contrário, teria sabido das atribulações que o aguardavam, de Puget Sound a San Diego, a ele e a todo o cão que fosse rijo de músculos e de pêlo abundante e aconchegador. Tudo porque alguns indivíduos, tateando as trevas do Aretico, tinham topado com um metal amarelo; e, propalada a descoberta aos quatro ventos por companhias de navegação e outros transportes, homens aos milhares se precipitaram para o Norte. Ora estes homens precisavam de cães, e os cães de que precisavam não podiam deixar de ser possantes, de músculos poderosos para o trabalho e de pêlo basto que os protegesse da geada.

Buck vivia numa grande casa, a meio de um vale que o sol beijava - o vale de Santa Clara. Quinta do juiz Miller, era como lhe chamavam. Ficava a casa afastada da estrada, meio escondida entre as árvores que deixavam, a espaços, entrever uma varanda, fresca e ampla, que lhe corria ao longo das quatro faces. Davam-lhe acesso caminhos de cascalho, serpenteando entre vastos relvados, sob ramos entrelaçados de choupos altos. Nas traseiras, era tudo ainda em escala mais grandiosa. Havia aí grandes estábulos, onde uma dúzia de tratadores e moços de estrebaria imperava, fileiras de moradias para a criadagem, revestidas de trepadeiras, estufas intermináveis e bem cuidadas, compridas áleas que se estendiam debaixo de parreiras, pastos verdes, pomares, silvados; e, além disto, a instalação do poço artesiano e o enorme tanque de cimento onde os filhos do juiz davam o seu mergulho matinal e se refrescavam pelas tardes quentes.

Este era o extenso domínio de Buck. Aqui nascera e aqui vivera os quatro anos da sua vida. É certo que havia outros cães. Nem podia deixar de haver outros cães em tão vasta quinta, mas esses não contavam. Iam e vinham, viviam em canis superlotados, ou, então, obscuramente, nos recessos da casa - como Toots, o canicho japonês, ou Isabel, a cadelinha mexicana de pêlo raso -, criaturas bizarras que raras vezes punham o focinho fora da porta ou a pata no jardim. Havia ainda os fox-terriers, uma vintena pelo menos, que ladravam ameaças tremendas para Toots e Isabel, que os observavam das janelas protegidos por uma autêntica legião de criados armados de vassouras e espanadores.

Buck, porém, não era nem cão doméstico nem de canil. Tudo aquilo era feudo seu. Mergulhava na piscina ou ia à caça com os filhos do juiz; escoltava as pequenas, Mollie e Alice, em grandes passeatas, ao cair da tarde ou de manhãzinha; nas noites de Inverno, deitava-se aos pés do juiz diante da lareira crepitante da biblioteca; carregava com os netos do magistrado às costas quando não os fazia rebolar na relva e guardava-lhes os passos nas aventuras destemidas que os levavam até à fonte do pátio junto ao estábulo, e, mais longe ainda, onde começavam os silvados e os valados. Pavoneava-se orgulhosamente por entre os fox-terriers e, quanto a Toots e a Isabel, ignorava-os completamente - porque ele era o rei, rei de tudo quanto naquela quinta gatinhasse, rastejasse ou voasse: rei até dos homens.

O pai de Buck, Elmo, possante cão são-bernardo, fora o companheiro inseparável do juiz e o filho prometia seguir as pisadas do pai. Não era tão corpulento - pesava apenas cento e quarenta libras - talvez porque saísse à mãe, Shep, pastora escocesa de raça. Mesmo assim, cento e quarenta libras, a que se tinham acrescentado a dignidade que vem de uma vida regalada e do respeito universal, davam-lhe a possibilidade de se comportar de maneira autenticamente real. Nos quatro anos que se seguiram à sua meninice vivera a vida de um aristocrata saciado; tinha um grande orgulho em si próprio e era até um tudo-nada egoísta como o são às vezes os aristocratas de província, por pura insularidade. Escapara, porém, de se tornar um mero e apaparicado cão doméstico. A caça e quejandos deleites ao ar livre tinham-lhe abatido a gordura e enrijecido os músculos; e, para ele, como para muito boa gente, o amor da água tinha sido um tónico e um preservador de saúde.

Era este pois o estado em que se encontrava o cão Buck quando, nos fins de 1897, a descoberta das minas de Klondike arrastou homens de todo o mundo para a frialdade do Norte. Buck, porém, não lia os jornais, e não sabia, portanto, que Manuel, um dos ajudantes do jardineiro, era um conhecimento indesejável.

Manuel tinha um vício absorvente: dava o cavaco para jogar na lotaria chinesa e, além disso, o seu jogo apresentava uma fraqueza mortal: a fé num sistema; e isto fazia certa a sua perdição. Porque acreditar num sistema exige dinheiro e o salário dum ajudante de jardineiro mal chega, na verdade, para cobrir as necessidades duma esposa e de numerosa prole.

Nessa noite memorável da traição de Manuel, o juiz tinha ido a uma reunião da Associação dos Vinicultores, enquanto os filhos estavam entretidos na organização de um clube de atletismo.

Ninguém viu portanto Manuel atravessar o pomar com Buck, tão naturalmente que este julgou tratar-se de passeio rotineiro; e, com excepção dum homem solitário, também ninguém os viu chegar à pequena passagem de nível conhecida por College Park.

Esse homem falou com Manuel e, de um para o outro, moedas tilintaram.

- Na minha terra é costume embrulhar a mercadoria antes de a entregar - disse o desconhecido de mau modo, e Manuel passou um pedaço de corda grossa à volta do pescoço de Buck, por baixo da coleira.

- Torce-a e aperta-a bem - replicou Manuel e o desconhecido rosnou afirmativamente.

Buck aceitou a corda com calma dignidade. Tratava-se, é certo, de uma cerimónia nada habitual; mas ele aprendera a confiar nos homens e a dar-lhes o crédito de uma sabedoria que ultrapassava a sua. No entanto, quando as pontas da corda passaram para as mãos do desconhecido, rosnou ameaçador. Dava assim a entender o seu desagrado, acreditando, no seu orgulho, que dar a entender era mandar. Porém, para sua surpresa, a corda apertou-se-lhe à volta do pescoço, cortando-lhe a respiração. Tomado de súbito furor, atirou-se ao homem; mas este, a meio do salto, fez-lhe face, agarrando-o fortemente pelo gasganete, e, com um destro golpe de rins, atirou-o para trás das costas. Foi então que a corda começou a apertar-se, desapiedadamente, enquanto Buck se debatia furioso - a língua de fora, o arcaboiço largo arquejando em vão. Nunca em sua vida fora tão sõezmente tratado, nunca em sua vida se enfurecera tanto. As forças, porém, acabaram por abandoná-lo, os olhos amorteceram-se-lhe e quando o comboio deu sinal de partida e os homens o arremessaram para o furgão das mercadorias, não teve conhecimento de coisa alguma.

Quando voltou a si, teve a vaga sensação de que a língua Lhe doía e, pelos solavancos, que era arrastado por qualquer meio de transporte. O silvo estridente duma locomotiva apitando numa encruzilhada deu-lhe a certeza do lugar onde estava.

Viajara muitas vezes com o juiz para não conhecer a sensação de viajar num furgão. Abriu os olhos e neles cintilou a cólera desmedida dum rei raptado. O homem saltou-lhe ao pescoço mas Buck foi mais rápido do que ele. Ferrou-lhe as mandíbulas na mão e não afrouxou senão quando os sentidos o abandonaram mais uma vez.

- Caramba, tem ataques - disse o homem, escondendo a mão despedaçada do bagageiro que acorrera ao ruído da luta. - Vou levá-lo ao meu patrão que está em São Francisco. O maluco de um veterinário que lá há diz que é capaz de curá-lo.

Dessa cavalgada nocturna, o homem falou o mais eloquentemente que podia num alpendre nas traseiras duma taberna da borda-d'água de São Francisco.

- Depois disto tudo só me dão cinquenta dele - lamuriava. - Garanto-lhe que não voltava a fazê-lo, nem que me pagassem mil, à vista.

A mão pendia-lhe embrulhada num lenço ensanguentado e a perna direita das calças caía-lhe, rasgada do joelho ao tornozelo.

- Quanto é que apurou o outro míscaro? - perguntou o dono da taberna.

- Cem. Não fez a coisa por um tostão menos, assim Deus me ajude.

- Cem mais cinquenta vem a ser cento e cinquenta - calculou o taberneiro -, mas o bicho merece-o ou eu sou uma grande besta.

O raptor de Buck desfez as ligaduras e contemplou a mão dilacerada.

- Se eu não apanhar hidrofobia...

- Ora, ora, tu nasceste para morrer na forca - escarneceu o patrão. E acrescentou: - Olha, dá-me mas é aqui uma ajudinha antes que te chegue a esgana.

Entontecido, com dores intoleráveis na garganta e na língua, a vida quase a abandoná-lo, de sufocado, Buck tentou fazer face aos seus carrascos, mas de todas as vezes foi derrubado; por fim, lá conseguiram arrancar-lhe do pescoço a coleira de metal. Então, libertaram-no da corda, e arremessaram-no para uma armação, espécie de jaula.

Aí ficou o resto daquela noite infindável, remoendo raiva e orgulho ferido. Não atinava compreender o que significava tudo aquilo. Que diabo podiam querer dele aqueles desconhecidos?

Porque o deixavam encurralado nesta gaiola acanhada? Não sabia porquê, mas o vago sentimento de calamidade iminente oprimia-o.

Pela noite fora, quando a porta do alpendre chiava ao abrir-se, várias vezes se pôs de pé, à espera de ver finalmente o juiz ou, ao menos, os rapazes. Mas era sempre a face rotunda do taberneiro que Lhe assomava à luz mortiça duma vela de sebo. E, de todas as vezes, o ladrido de satisfação que estremecia na garganta de Buck se estrangulava em rosnar selvagem.

O taberneiro, porém, acabou por deixá-lo só. Pela manhã chegaram quatro homens para carregar com a gaiola. "Mais carrascos", concluiu Buck pelo aspecto sinistro dos fulanos, esfarrapados e desgrenhados; tanto bastou para arremeter contra eles, mostrando-lhes os dentes, através das grades.

Eles, limitando-se a rir, começaram a atiçá-lo com varetas, que ele mordia com sofreguidão antes de descobrir que era isso mesmo o que eles queriam. Então, casmurro, deitou-se ao comprido e deixou que levassem a grade para um vagão. A partir de aí, ele e a gaiola que o encerrava começaram a passar de mão em mão. Na estação, empregados ficaram a tomar conta dele; atiraram-no depois para outro vagão; um camião levou-o, com um sortido de caixotes e embrulhos, para um barco fluvial; do barco passou para um grande armazém dos caminhos-de-ferro e, por fim, foram depositá-lo numa carruagem do comboio expresso.

Durante dois dias e duas noites a carruagem foi arrastada na cauda de locomotivas ululantes - dois dias e duas noites em que Buck não comeu nem dormiu. Na sua raiva, respondeu às primeiras tentativas de aproximação dos paquetes do expresso com rosnadelas, e eles vingaram-se metendo-se com ele. Quando, fremente, espumante, se atirava de encontro às grades, os moços, escarnecendo, desatavam às gargalhadas. A páginas tantas, puseram-se a rosnar e a ladrar como cães mal-educados, a miar, a bater os braços, a crocitar. Tudo aquilo era ridículo, e ele sabia-o; mas, por isso mesmo, mais sentia ultrajada a sua dignidade e o seu furor aumentava. A fome não o incomodava muito, mas a sede, causando-lhe sofrimentos intoleráveis, levava-lhe a fúria às raias da febre. Por isso, vigoroso mas extremamente sensível como era, os maus tratos tinham-no atirado para um estado febril, alimentado pela inflamação da garganta e da língua, ressequidas e inchadas.

Uma coisa apenas Lhe dava satisfação: tinham-lhe tirado a corda do pescoço. Até aí ela tinha-lhe dado uma desvantagem desleal; mas agora, que lha tinham tirado, havia de mostrar-lhes. Nunca mais ninguém lhe poria outra corda ao pescoço, nunca mais. Estava resolvido a isso. Durante dois dias e duas noites não comera nem bebera e durante esses dois dias e duas noites de tormento acumulara em si tal reserva de ódio que não agourava nada de bom para o primeiro desgraçado que se metesse com ele. Os olhos tinham-se-lhe raiado de sangue, e ele mesmo se transformara num autêntico demónio de fúria. Tão mudado estava que o próprio juiz o não teria reconhecido; e os paquetes do expresso respiraram de alívio quando, em Seattle, o despacharam do comboio.

Quatro homens transportaram com todos os cuidados a gaiola do comboio para um pátio de paredes altas numas traseiras quaisquer. Um homem corpulento, de camisolão encarnado, folgado generosamente no pescoço, veio cá fora e rabiscou uma assinatura num papel que o condutor lhe estendia. "Cá está o homem, o novo carrasco", adivinhou Buck, e, violentamente, atirou-se de encontro às paredes. O homem, que trazia consigo um machado e um cacete, sorriu sinistramente.

- Não o vai tirar agora, pois não? - perguntou o condutor.

- Vou, pois - respondeu o sujeito, enterrando, a experiência, o machado na gaiola.

Num abrir e fechar de olhos, os quatro homens que tinham carregado com ele dispersaram-se, e, empoleirados no alto dos muros, instalaram-se para assistir à função.

Buck atirou-se à madeira já em estilhas, fincou-lhe os dentes e lutou com ela, caracoleando. Sempre que o machado caía do lado de fora, ele, de dentro, rosnava e ladrava furiosamente, ansioso por sair, enquanto o homem do camisolão encarnado, com toda a calma, pretendia que ele saísse.

- Agora, seu diabo de olhos vermelhos, salta daí para fora - disse por fim, quando já tinha aberto a machado uma passagem suficiente para o corpo de Buck; e enquanto dizia isto deitava para longe o machado e mudava o cacete para a mão direita.

E Buck, naquele momento, era na realidade um demónio de olhos vermelhos - formando o salto, o pêlo eriçado, os colmilhos espumantes, um brilho de loucura no olhar estriado de sangue.

Foi direito ao homem, arremessou as suas cento e quarenta libras de fúria, aumentadas pela cólera recalcada de dois dias e de duas noites. Ainda ia no ar, a meio caminho e no momento preciso em que fechava as mandíbulas sobre o homem, quando recebeu um choque tal que lhe travou o corpo, enquanto os dentes lhe batiam uns contra os outros, com um estalido doloroso.

Rodopiou sobre si mesmo e foi bater no chão com os costados e os flancos. Nunca, em sua vida, fora agredido a cacete; por isso não compreendeu. Com um uivo mais gritado que ladrado, sentiu o solo mais uma vez e foi outra vez arremessado ao ar.

E de novo o choque veio, quando batia violentamente no chão.

Agora já sabia que se tratava do cacete, mas mesmo assim a sua loucura não conhecia prudência. Uma dúzia de vezes investiu e outras tantas o cacete Lhe quebrou o ataque e o abateu.

Até que, a um golpe particularmente severo, caiu de joelhos, estonteado de mais para arremeter. Sem forças cambaleou - o focinho, a boca e os ouvidos a escorrer sangue; o pêlo esplêndido salpicado e manchado de baba sanguínea. Foi então que o homem avançou e, deliberadamente, aplicou-lhe uma pancada terrível no focinho. Todas as dores que até então sofrera nada eram comparadas com a agonia intensa desta. Com um rugido quase leonino na sua ferocidade cresceu outra vez para o homem, mas este, passando o cacete da mão direita para a esquerda, apanhou-o calmamente por baixo das mandíbulas, com um movimento para baixo e para trás. Buck descreveu no ar um círculo completo, metade de outro, antes de se estatelar no solo, de cabeça e sobre o peito.

Arremeteu pela última vez. O homem desferiu o golpe que por tanto tempo propositadamente reservara, e Buck, amarfanhado e esvaído, caiu redondo, sem sentidos.

- Ele não é parvo nenhum a domar cães, digo-vos eu - gritou um dos homens empoleirados no muro, entusiasmado.

- Foge, mais valia ter bexigas todos os dias e duas vezes ao domingo - retorquiu o condutor, enquanto subia para a carroça e punha os cavalos a andar.

Buck recobrou os sentidos mas não as forças. Prostrado aonde caíra, pôs-se a fitar o homem do camisolão vermelho.

Dá pelo nome de Buck", dizia este de si para consigo, soletrando a carta do dono da taberna em que este lhe dava parte da consignação da gaiola e seus termos. Muito bem, Buck, meu velho", prosseguiu em voz cordial, ativemos a nossa pega, mas o melhor que temos a fazer agora é esquecer, hem? Se fores bom rapazinho, muito bem, podes fazer de mim o que quiseres; se não, sou capaz de te arrancar as entranhas. Entendido?" Enquanto falava, sem qualquer medo, acariciava a cabeça que antes tão desapiedadamente espancara; e se bem que o pêlo se lhe eriçasse involuntariamente à pressão daquela mão, Buck suportou-a sem o mínimo protesto. Quando o homem lhe trouxe água, bebeu-a com sofreguidão e, mais tarde, chegou a engolir, posta a posta, uma generosa ração de carne crua, da própria mão do homem.

Fora vencido, sabia-o; mas não quebrara. Compreendeu, duma vez para sempre, que contra um homem armado de cacete, não havia esperança. Aprendera a lição e, pela vida adiante, não mais esqueceria. Aquele cacete fora uma revelação. Nem mais nem menos do que a sua iniciação no domínio da lei primitiva e ele fora ter com ela a meio caminho. A vida, com os seus acontecimentos, tomava um aspecto mais duro; e ao enfrentá-la sem temor, fazia-o com toda a astúcia da sua natureza desperta.

A medida que os dias passavam, outros cães chegavam, engaiolados ou simplesmente amarrados - uns dóceis, outros esbravejando e ladrando como ele próprio fizera; e um a um, vira-os submeter-se ao domínio do homem do camisolão encarnado. E todas as vezes que assistia ao brutal espectáculo, a lição calava fundo no íntimo de Buck: um homem com um cacete na mão era um legislador, um patrão a ser obedecido, embora não necessariamente amado. Disto Buck nunca fora réu, apesar de ter visto muitos cães, depois de espancados, adularem o homem, abanando o rabo, lambendo-lhe as mãozorras. Também é verdade que vira um, que não obedecera nem adulara, acabara por morrer na luta pela supremacia.

De quando em quando apareciam desconhecidos que conversavam com o homem do camisolão vermelho, excitados, lisonjeadores, de todas as maneiras possíveis e imagináveis. E sempre que entre eles transitava dinheiro, os desconhecidos levavam consigo um cão, às vezes mais do que um. Buck punha-se a pensar para onde diabo iriam eles, porque nunca os vira voltar; o seu medo do futuro era tão grande que sentia uma enorme alegria sempre que não era escolhido.

No entanto, a sua vez não deixou de chegar na pessoa dum homenzinho ressequido, que cuspia um inglês mascavado e tinha muitas expressões estranhas e toscas que Buck não conseguia compreender.

- Diabos o levem! - exclamou quando os olhos, que brilharam, caíram sobre Buck. - É este o tal cão levado dos diabos, hein? Quanto é que pede por ele?

- Trezentos dólares e é de graça - respondeu prontamente o homem do camisolão encarnado. - E se for em dinheiro do governo, não há caneladas, hein, Perrault?

Perrault arreganhou a dentuça. Atendendo a que os preços tinham subido rapidamente em virtude da procura excepcional, não era nada caro tão belo animal, não senhor. O Governo canadiano não perderia nada com isso; pelo contrário, as suas mensagens chegariam mais depressa. Perrault era perito em cães e assim que lobrigou Buck viu que ele era caso único em mil...

"Upa-upa, um em dez mil!", emendou mentalmente.

Buck viu passar dinheiro de um para o outro e por isso não se surpreendeu quando o homenzinho ressequido o levou, a ele e a Curly, a terra-nova bonacheirona. Foi essa a última vez que viu o homem do camisolão vermelho; e quando, da coberta do Narwahl, ele e Curly olharam para Seattle, que desaparecia no horizonte, foi essa a última vez que viram terras quentes do Sul.

Perrault levou-os para baixo e entregou-os a um gigante negro que se chamava François. Perrault era um canadiano francês moreno, mas François, canadiano francês também, era mestiço e duas vezes mais moreno. Representavam uma espécie de homens nova para Buck (que estava aliás destinado a conhecer muitos mais) e embora não alimentasse por eles a mínima afeição, acabou contudo por sinceramente os respeitar. Depressa compreendeu que Perrault e François eram homens justos, calmos e imparciais na administração da justiça e demasiado sabedores das coisas dos cães para que os cães os pudessem enganar.

Buck e Curly foram fazer companhia a outros cães, entre as duas cobertas do Narwahl. Um deles, um cão enorme, duma brancura de neve, fora trazido de Spitzbergen por um capitão baleeiro a quem, mais tarde, acompanhara a Barrens, numa expedição geológica. Era sociável, embora de maneira traiçoeira, todo ele mesuras enquanto meditava algum golpe baixo, como quando, logo na primeira refeição, roubou a comida de Buck. Quando este preparava o salto para o castigar, já a ponta do chicote de François silvava no ar e atingia o culpado; e Buck não teve mais nada a fazer senão recuperar o osso. "François é justo", concluiu Buck, e desde então o mulato começou a subir na sua consideração.

O outro cão não fazia aproximações, nem as recebia; mas também não tentava roubar os novatos. Era um fulano sombrio, moroso, que deu logo a entender francamente a Curly que desejava que o deixassem só e, mais ainda, que podia muito bem haver sarilho se o não deixassem em paz. Dava pelo nome de Dave; dormia e comia, bocejava nos intervalos, não se interessava por coisíssima nenhuma, nem mesmo quando o Narwahl, ao atravessar o estreito da Rainha Carlota, abanava, arfava e espinoteava como um possesso.

Enquanto a excitação de Buck e Curly, meio loucos de terror, crescia de minuto a minuto, ele, enfadado, ergueu a cabeça, concedeu-lhes um olhar distraído, bocejou e adormeceu outra vez.

Dia e noite, o navio palpitava ao impulso incansável das hélices e não escapava a Buck que os dias, se bem que iguais uns aos outros, se iam tornando, implacavelmente, cada vez mais frios. Uma manhã, a hélice parou finalmente e uma atmosfera de excitação invadiu o navio. Ele sentiu-a, como a sentiram os outros cães e compreendeu que estava à beira duma mudança. François prendeu-os e trouxe-os para o convés. Ao primeiro passo sobre a superfície fria as patas de Buck afundaram-se numa coisa mole, branca, muito parecida com lama.

Saltou para trás, ofegando. Aquilo caía do ar. Sacudiu-se: continuava a cair sobre ele. Cheio de curiosidade, cheirou-a; depois lambeu-a. Queimava como fogo e desaparecia num ápice.

Provou-a uma vez: o mesmo resultado. A sua volta, espectadores riam-se ruidosamente. Envergonhou-se, nem sabia porquê. Era a primeira vez que via neve.

 

A LEI DO CACETE E DOS DENTES

O primeiro dia de Buck na praia de Dyea foi um verdadeiro pesadelo. Não houve uma hora sem sobressalto ou surpresa. Fora arrancado do seio da civilização e lançado no coração das coisas primitivas. A vida de agora estava longe de ser como a outra, em que nada havia a fazer além de mandriar e bocejar ao sol. Agora não tinha paz nem descanso, um momento sequer de segurança. Tudo era confusão e acção; e a todo o momento, a vida e os ossos estavam em perigo. Viver sempre alerta tornava-se uma necessidade imperiosa; porque estes cães e estes homens não eram homens e cães de cidade. Selvagens, todos eles, não conheciam outra lei que não fosse a lei do cacete e dos dentes.

Nunca vira cães lutar como lutavam estas criaturas descendentes de lobos e a sua primeira experiência proporcionou-lhe uma lição que nunca mais esqueceria. E certo que foi uma experiência por interposta pessoa; doutra maneira não teria vivido para tirar proveito dela. A vítima fora Curly. Estavam acampados ao pé dum armazém de lenha, quando ela, com o seu feitio amistoso, se lembrou de tentar a aproximação dum cão esgalgado, do tamanho dum lobo feito, embora não tão alentado como ela. Não houve a mínima advertência; apenas um salto, como um relâmpago, um estalido metálico de dentes, outro salto em sentido contrário igualmente rápido - e o focinho de Curly ficou esfacelado, hiante, dos olhos às mandíbulas.

Era a maneira de lutar dos lobos: atacar e fugir de um salto.

Mas houve mais do que isso. Trinta ou quarenta cães-lobos acorreram ao local e formaram à volta dos contendores um círculo expectante e silencioso. Buck não compreendeu logo essa atenção silenciosa nem a avidez com que lambiam as queixadas. Curly fez frente ao seu antagonista, que atacou de novo e de novo saltou para o lado. Aparou a arremetida seguinte com o peito de tal maneira que logo a derrubou, para não mais se levantar. Era este o momento que os cães-lobos aguardavam. Rosnando e latindo, fecharam o círculo à volta da desgraçada, até ela acabar por ficar sepultada por aquela massa eriçada de corpos, gritando na agonia.

Tão rápido foi isto e tão inesperado, que Buck ficou atónito.

Ainda viu Spitz deitar a língua de fora naquele jeito que ele tinha de se rir; e viu François, volteando no ar um machado, saltar para o meio daquela confusão de cães. Três homens armados de cacetes vieram ajudá-lo a dispersar a canzoada. Não foi preciso muito tempo. Três minutos após Curly ter sucumbido, o último dos seus assaltantes era corrido à cacetada; ela, porém, flácida e sem vida, quase completamente despedaçada, jazia na neve pisada e ensanguentada, aos pés do mulato que praguejava com violência. Esta cena muitas vezes, em sonhos, voltou a perturbar o sono de Buck. Era essa então a lei! Nunca jogo franco. O primeiro a cair era o primeiro a acabar. Muito bem, ele tomaria tento em nunca cair. Spitz pôs a língua de fora e riu mais uma vez; e, desse momento em diante, Buck odiou-o com um ódio amargo e de morte.

Antes de se recompor do choque causado pela trágica morte de Curly, recebeu outro. François atrelou-o a uma armação de correias e fivelas. Era uma sela, como as que vira, lá em casa, pôr aos cavalos. E tal como vira fazer os cavalos, assim ele foi obrigado a puxar François num trenó, até à floresta que bordejava o vale, e a voltar com um carregamento de lenha.

Com a dignidade dolorosamente ferida, por se ver assim transformado num animal de tracção, era demasiado inteligente para se rebelar. Fez das tripas coração e desempenhou o melhor que pôde o seu papel, embora tudo aquilo fosse novo e estranho para ele. François era severo, exigindo obediência imediata; e, por obra e graça do seu chicote, conseguia-a. Ao mesmo tempo, Dave, um guarda-rodas experimentado, sempre que Buck se enganava, mordia-lhe os quartos traseiros. Spitz, igualmente experimentado, era o guia e como nem sempre podia chegar a Buck, rosnava-lhe censuras severas; ou então, astuciosamente, atirava com todo o seu peso para o lado da pista, e assim obrigava o novato a seguir o caminho que devia.

Buck aprendeu com facilidade, e, sob a tripla direcção dos seus dois colegas e de François, fez progressos notáveis.

Quando voltaram ao acampamento já sabia parar ao grito de "aiii oó", avançar ao de "chó", travar nas curvas e conservar-se afastado do guarda-rodas quando o trenó, ajoujado, disparava, encosta abaixo, a dois passos na peugada dos cães.

- Três cães muito bons - disse François a Perrault. - Esse Buck é bom como o diabo. Aprendeu bem depressa.

A tardinha Perrault, ansioso por se pôr a caminho com as suas mensagens, apareceu no acampamento com mais dois cães.

Respondiam aos nomes de Billee e Joe, eram irmãos, ambos cães-lobos puros. Embora filhos da mesma mãe, diferiam como o dia da noite. O único defeito de Billee era o seu feitio bom de mais, ao passo que Joe era precisamente o contrário, azedo e macambúzio, de olhar turvo, sempre pronto a rosnar. Buck recebeu-os como camaradas; Dave limitou-se a ignorá-los; em contrapartida, Spitz pôs-se a atacá-los - primeiro a um, depois ao outro. Billee começou por agitar a cauda apaziguadora, mas ao verificar que as intenções conciliatórias de nada serviam.

deu uma volta para fugir; e quando os dentes afiados de Spitz lhe arranharam um dos flancos, pôs-se a latir, apaziguadora ainda. Em compensação, fosse qual fosse a maneira como o cercava Spitz, Joe, rodando sobre os calcanhares, fazia-lhe sempre face - o pêlo eriçado, as orelhas arrebitadas para trás, o rosnar de faces arreganhadas, as mandíbulas estalando uma contra a outra tão depressa quanto possível, os olhos diabolicamente brilhantes - a verdadeira encarnação do terror combativo. Tão medonho era o seu aspecto que Spitz se viu obrigado a desistir de o disciplinar; mas, para cobrir a derrota, virou-se contra a inofensiva e piegas Billee e correu com ela até ao extremo do acampamento.

A noite, Perrault arranjou outro cão, um velho cão-lobo, comprido, seco e esgalgado, com uma cicatriz no focinho e um só olho que chispava tal valentia que metia respeito.

Chamava-se Sol-Leks, que quer dizer "o Irascível". Como Dave, nada pedia, nada dava, nada esperava; e quando, vagarosa e deliberadamente, vinha para o meio dos outros, até Spitz o deixava sozinho. Tinha uma mania que Buck teve a infelicidade de descobrir: não gostava que se aproximassem dele pelo lado do olho cego. Buck foi inconscientemente réu desta ofensa e só compreendeu a sua indiscrição quando já Sol-Leks crescia para ele e lhe rasgava no flanco um lanho de três polegadas de cima a baixo. Daí em diante Buck evitou sempre passar-lhe pelo lado cego e daí por diante a camaradagem entre eles não conheceu mais perturbações. A sua única aparente ambição, como a de Dave, era que o deixassem só; não obstante, havia de saber mais tarde, cada um deles possuía uma ambição diversa e mais vital, essencial até.

Nessa mesma noite Buck viu-se a braços com o grande problema de saber onde dormir. A barraca, iluminada a velas, brilhava acolhedora a meio da planura toda branca; mas quando ele, muito naturalmente, entrou nela, François e Perrault bombardearam-no com pragas e utensílios de cozinha. Depois de se recompor da sua consternação, esgueirou-se, ignominiosamente para o frio. Soprava um vento gelado e cortante que lhe mordia com requinte o flanco ferido.

Deitou-se sobre a neve e tentou conciliar o sono, mas em pouco tempo a geada obrigou-o a pôr-se de pé, tiritando. Infeliz, desconsolado, vagueou por entre as barracas, até chegar à conclusão de que não havia sítio que não fosse frio. Aqui e além, cães selvagens atiravam-se a ele; mas bastava-lhe eriçar o pêlo do pescoço (aprendera depressa) para o deixarem seguir caminho sem o molestarem.

Por fim, teve uma ideia. Voltar atrás e ver como se tinham arranjado os companheiros. Para pasmo seu, tinham desaparecido todos. Outra vez vagueou através do acampamento enorme à procura deles e, mais uma vez ainda, voltou ao mesmo sítio.

Estariam eles na barraca? Não, não podia ser, de contrário não teria sido corrido de lá. Onde estariam então? De rabo entre as pernas, tiritando, verdadeiramente perdido, andava à volta da barraca, desnorteado. De súbito, perdeu o equilíbrio: a neve abateu debaixo das patas dianteiras. Qualquer coisa lhe estrebuchava debaixo dos pés.

De pêlo eriçado, rosnando, deu um salto para trás, com medo do invisível e do desconhecido. Mas um latido débil e amigável tranquilizou-o. Retrocedeu para investigar de que se tratava.

Uma baforada de ar morno chegou-lhe ao focinho e então viu Billee deitada enrolada debaixo da neve como uma bola; apaziguadora, latiu e, para mostrar boa vontade e intenções pacíficas, mexeu-se e aventurou-se a lamber o focinho de Buck com a língua húmida e tépida.

Outra lição. Era então assim que eles se arranjavam, hein?

Buck, sorrateiro, escolheu um sítio e, com muita bulha e esforço desperdiçado, começou a cavar uma cova para si. Num instante o calor do seu corpo impregnou o espaço limitado e ele adormeceu.~o dia fora longo e árduo e por isso dormiu pesada e reparadoramente, embora no sono rosnasse, ladrasse e lutasse com sonhos maus, desagradáveis.

Não abriu os olhos senão quando o acordaram os primeiros ruídos do acampamento. A princípio nem soube onde se encontrava. Nevara durante toda a noite e ele estava totalmente sepultado. Paredes de neve apertavam-no de todos os lados e uma onda de terror invadiu-o - o terror da armadilha, de tudo quanto é selvagem. Era uma reminiscência que, através da sua própria vida o arrastava muito para trás, para a vida dos seus antepassados; porque ele, cão cultivado, indevidamente civilizado, não podia portanto ter medo delas. Os músculos de todo o corpo contraíram-se-lhe espasmodicamente, instintivamente, o pêlo do pescoço eriçou-se-lhe, e, rosnando com ferocidade, arremessou-se, dum salto, para a luz do dia, que o cegou; uma nuvem brilhante de neve revoluteava à sua volta. Ainda antes de pôr os pés no solo viu o acampamento estender-se-lhe diante e lembrou-se de tudo o que se passara desde o momento em que fora dar um passeio com Manuel até à cova que cavara para ele na noite anterior.

Um grito de François saudou a sua aparição:

- Que dizia eu? - gritava o condutor para Perrault. - Este Buck aprende depressa como o raio.

Perrault acenou a cabeça com gravidade. Como correio do governo canadiano, responsável pela entrega de mensagens importantes, ele desejava possuir os melhores cães e a posse de Buck enchia-o de particular satisfação.

Uma hora depois, mais três cães-lobos se juntaram ao grupo - eram agora nove - e em menos de um quarto de hora, todos atrelados, devoravam já a pista, a caminho de Dyea Canon. Buck ficou satisfeito por partir e, embora o trabalho fosse duro, chegou à conclusão de que não o detestava particularmente.

Ficou surpreendido com a ânsia que animava todo o grupo e que se lhe comunicou; mas mais surpreendido ficou com a transformação operada em Dave e Sol-Leks. Completamente metamorfoseados pelos arreios, eram outros cães. Toda a passividade e a indiferença os abandonara. Eram vigilantes e activos, ciosos de trabalhar bem, ferozmente irritadiços com tudo que, atraso ou confusão, lhes retardasse o serviço. A faina dos trilhos parecia ser a expressão suprema do seu ser, tudo para que viviam e a única coisa que lhes dava prazer.

Dave era guarda-roda; à frente dele corria Buck, depois Sol-Leks; o resto da equipa, em fila indiana, seguia atrás do guia, posto ocupado por Spitz.

Para poder ser ensinado, Buck fora colocado de propósito entre Dave e Sol-Leks. Se ele era bom aluno, melhores eram os mestres que o não deixavam perseverar muito tempo no erro; eles reforçavam as suas lições com os dentes afiados. Dave era justo e sensato. Nunca mordia sem razão, mas também, sempre que era preciso, nunca deixava de morder. E como era secundado pelo chicote de François, Buck chegou à conclusão de que emendar-se era mais fácil que resistir. Certa vez, durante uma paragem breve, porque se enveredou nos tirantes e retardou a partida, Dave e Sol-Leks cresceram para ele e administraram-lhe uma realíssima sova. É certo que, com isso, Buck ainda mais se enveredou nos arreios, mas daí em diante tomou mais cuidado em conservar os arreios desimpedidos; e antes de acabar o dia, tão bem tinha dominado o seu trabalho, que os companheiros deixaram de o importunar. O chicote de François começou a estalar com menos frequência e Perrault chegou ao ponto de lhe erguer as patas, honrando-as com um exame minucioso.

Foi uma corrida dura, a daquele dia, Canon acima, por Sheep Camp, para além de Scales e da linha de florestas, através de glaciares e de geleiras de mil pés de profundidade por sobre a imponência de Chilcoot Divide, que fica entre a água salgada e o fresco e interdito, o (graças sejam dadas aos guardas) melancólico e solitário Norte. Fizeram uma boa média ao descer a cadeia de lagos que enche as crateras de vulcões extintos e, noite adentro, irromperam pelo enorme acampamento da nascente do Lago Bennett, onde milhares de pesquisadores de ouro construíam barcos para enfrentar o degelo na Primavera. Buck abriu a sua cova na neve e dormiu o sono dos justos - dos justos exaustos - mas, manhãzinha ainda, despertaram-no para a escuridão gelada e atrelaram-no ao trenó com os companheiros.

Nesse dia fizeram apenas quarenta milhas porque estava obstruído o trilho, mas no dia seguinte, e em muitos que se seguiram, eles próprios tiveram que abrir o trilho, trabalhando mais duramente e por isso fizeram médias mais modestas. Em regra, para lhes facilitar o caminho, Perrault viajava à cabeça da matilha, esmagando a neve com sapatos cardados. François que, ao leme, guiava o trenó, trocava às vezes o lugar com ele, mas não muitas. Perrault estava cheio de pressa e tinha orgulho no seu conhecimento do gelo, conhecimento na verdade indispensável, porque o gelo das quedas era delgado e onde a água era mais rápida não havia gelo.

Dias após dias, dias infindáveis, Buck mourejava aos tirantes.

Todos os dias levantavam o acampamento ainda noite, e o primeiro calor da manhã já os ia encontrar batendo o trilho com milhas recentes desdobradas atrás deles. E todos os dias, noite feita, armavam o acampamento comendo o seu pedaço de peixe e enroscando-se debaixo da neve para dormir. Buck andava esfomeado. A libra e meia de salmão seco ao sol, que mais não era a sua ração diária, não sabia para onde lhe ia. Nunca achava bastante e sofria de fome dores perpétuas. No entanto, os outros cães, ou porque tinham nascido para aquela vida, recebiam apenas uma libra de peixe e conseguiam conservar boa forma.

Depressa perdeu a niquice que o caracterizava na sua antiga vida. Comendo com requintes, deu por que os companheiros, que acabavam primeiro, lhe roubavam o resto da ração. Não havia maneira de a defender. Enquanto atacava dois ou três, já ela tinha desaparecido pela goela doutros. Só havia um remédio:

começar a comer tão depressa como eles e de tal maneira a fome o compelia, que não resistiu a tirar o que não lhe pertencia.

Observava e aprendia. Quando um dia, viu Pike, um dos novos cães, um espertalhão dissimulado e ratoneiro, roubar, astuciosamente, nas costas de Perrault, uma fatia de toucinho, ele, no dia seguinte, repetiu a façanha, fugindo com o naco inteiro. Levantou-se um grande berreiro, mas não desconfiaram dele, e foi o desastrado do Dub, que era sempre apanhado, quem foi castigado pelo delito de Buck.

Este primeiro roubo provou a aptidão de Buck para sobreviver no meio hostil do Norte. Provou a sua adaptabilidade, a sua capacidade para se ajustar a condições mutáveis, cuja carência teria significado nada mais nada menos do que a morte - imediata e terrível. Assinalou além disso, a decadência ou a desintegração da sua natureza moral, coisa inútil, obstáculo até, na impiedosa luta pela existência. No Sul, onde imperava a lei do amor e da fraternidade, sim senhor, era muito bonito respeitar a propriedade privada e os sentimentos do indivíduo; mas no Norte, sob a lei do cacete e dos dentes, era louco todo aquele que tais coisas tivesse em consideração, tanto quanto ele observara, não podia fazer vida.

Não que Buck racionalizasse todas estas coisas. Estava apto, era tudo e inconscientemente ia-se acomodando ao novo modo de vida. De seus dias, por muito ridículo que isso fosse, nunca fugira a dar luta. Mas o cacete do homem do camisolão vermelho gravara nele um código mais primitivo e fundamental.

Civilizado, ele teria morrido por considerações de ordem moral, como por exemplo pela defesa da chibatinha de montar do juiz Miller; agora a perfeição da sua descivilização era evidenciada pela habilidade com que fugia da defesa de considerações de ordem moral para salvar a pele. Ele não roubava pelo prazer de roubar, mas por exigências do estômago.

Não roubava abertamente, mas secreta e astuciosamente, por temor do cacete e dos dentes. Em suma: as coisas que fazia, fazia-as porque era mais fácil fazê-las - que não fazê-las.

A sua evolução (ou involução) foi rápida. Os músculos tornaram-se-lhe rijos como aço e acabou por ficar insensível a todas as dores vulgares. Conseguiu uma economia tanto interna como externa. Podia agora comer o quer que fosse, por mais repugnante e indigesto; e, uma vez comido, os sucos do seu estômago sabiam extrair de tudo a mais pequena partícula de alimento, que o sangue lhe transportava para as mais remotas regiões do corpo, transformando-o em tecidos fortes e resistentes. A vista e o olfacto tornaram-se-lhe extraordinariamente finos, e o ouvido desenvolveu-se nele com tal agudeza que, mesmo a dormir, ouvia o ruído mais indistinto e sabia distinguir se ele pressagiava paz, se perigo. Aprendeu a arrancar com os dentes o gelo que se lhe encravava entre os dedos das patas; e quando, cheio de sede, deparava com uma espessa camada de gelo formada sobre a fonte, sabia quebrá-la, empinando-se e batendo-lhe com as patas dianteiras tesas. A sua característica mais especial era uma habilidade extraordinária para farejar o vento e prevê-lo com uma noite de avanço. Mesmo que não soprasse a mais pequena aragem quando ele cavava o ninho, junto de qualquer árvore ou margem, o vento que soprava mais tarde ia dar invariavelmente com ele a bom recato, bem abrigado e agasalhado.

E aprendia tudo isto não apenas por experiência: mas acordavam nele instintos há muito adormecidos. Desapareciam dele todas as gerações domesticadas.

De maneira vaga retrocedia à infância da raça, ao tempo em que cães selvagens vagueavam em alcateias pela floresta virgem abatendo eles mesmos o seu sustento. Não foi problema para ele aprender o jeito esquivo de lutar e a dentada furtiva dos lobos: dessa maneira tinham lutado os seus ancestrais. Eram eles que avivavam dentro de si a vida de outrora; e as manhas actuais de Buck eram as velhas manhas que se tinham diluído na hereditariedade da raça. Vinham até ele, sem esforço, sem revelação, como se acaso tivessem sido sempre suas. E quando, em noites frias e silenciosas, ele, apontando o focinho para uma estrela qualquer, uivava longamente, à maneira dos lobos, eram os seus antepassados mortos, pulverizados, que apontavam os focinhos para essa estrela e que uivavam, uivavam, através dos séculos até ele. E as cadências do uivo de Buck eram as cadências deles - cadências que exprimiam a sua angústia e o que para eles significava a solidão e o frio e a escuridão.

Assim, símbolo de como a vida é absurda, a canção antiquíssima ecoava dentro dele, e ele encontrava de novo o que era seu; e tudo porque alguns indivíduos tinham descoberto, para as bandas do Norte, um metal amarelo e porque Manuel era um ajudante de jardineiro cujos salários não davam para prover às necessidades da mulher e das várias pequenas cópias dele próprio.

 

A FERA

Dominadora, a besta primitiva apoderava-se de Buck, e, nas condições duras da vida dos trilhos, o seu império crescia, crescia. Era, não obstante, um crescimento secreto, imperceptível. A sua astúcia recente dava-lhe equilíbrio e autodomínio. Andava demasiado ocupado em adaptar-se à nova vida para se sentir à vontade, e não só não provocava conflitos como os evitava sempre que podia. Um certo ar de resolução caracterizava todas as suas atitudes. Não se entregava a loucuras e acções precipitadas: apesar do ódio azedo que nutria por Spitz, não traía a mínima impaciência, desarmando todas as suas provocações.

Por seu lado, talvez porque adivinhava em Buck um perigoso rival, Spitz nunca perdia ocasião de lhe mostrar os dentes.

Chegava ao ponto de sair do seu caminho para provocar Buck, procurando constantemente iniciar um combate que só podia acabar pela morte dum ou outro Não fora um incidente desusado, logo no princípio da viagem isso teria sucedido. Ao fim desse dia, tinham armado um acampamento, miserável e desabrigado, na margem do lago LeBarge. A ventaneira, que arrastava a neve e cortava como um punhal em brasa, a escuridão, obrigaram-nos a procurar, às apalpadelas, um lugar para acampar. Não podiam ter dado com pior. Atrás deles, erguia-se, perpendicular, uma muralha de rocha, e Perrault e François viram-se na contingência de acender a fogueira e estender as roupas de dormir sobre o gelo do próprio lago. Tinham-se descartado da barraca em Dyea para viajarem mais leves. Com alguns pedaços de lenha fizeram uma fogueira que, esmorecendo com o derreter da neve, deixou-os às escuras durante a ceia.

Buck cavou a sua toca resvés à rocha protectora. Tão quente e abrigada era que a abandonou com relutância, quando François, depois de assar o peixe sobre as brasas, o distribuiu pelos cães. Quando, porém, devorada a sua ração Buck quis regressar à toca, encontrou-a ocupada. Pelo grunhido de advertência soube que o intruso era Spitz. Até aqui Buck tinha evitado sarilhos com o seu inimigo, mas isto passava as marcas. A fera rugiu dentro de si. Saltou sobre Spitz com uma fúria que a ambos surpreendeu e particularmente Spitz, a quem toda a sua convivência com Buck ensinara a ser o seu rival um bicho excepcionalmente tímido, que apenas conseguia subsistir graças ao seu grande peso e à estatura.

Também François ficou surpreendido quando os viu surgir da toca já destruída, engalfinhados, e adivinhou a causa do barulho.

- A-a-ah! - gritou para Buck. - Dá-lhe, por Deus! Arreia-me nesse larápio ranhoso!

Spitz também não queria outra coisa. Gania de pura raiva e de impaciência, enquanto pulava de trás para diante, à coca de uma oportunidade para saltar. Buck não estava menos impaciente nem era menos cauteloso ao procurar da mesma maneira uma vantagem para cá e para lá. Foi então que sucedeu o inesperado, o acontecimento que postergou aquela luta pela supremacia para um futuro longínquo, muitas milhas de trilho e de canseira mais além.

Uma praga de Perrault, um cacete a ressoar de encontro a uma estrutura de ossos, um ganido agudo de dor - precederam o estalar do pandemónio. O acampamento animou-se subitamente de formas furtivas e felpudas - cães-lobos esfomeados, perto de cem, que, de alguma aldeola índia, tinham farejado o acampamento. Rastejaram enquanto Buck e Spitz lutavam, e, quando os dois homens saltaram para o meio deles de cacete em punho, arremeteram de dentes à mostra. O cheiro da comida punha-os fora de si. Perrault surpreendeu um deles, já com o focinho todo enterrado no caixote das provisões. Deixou cair com toda a força o cacete nas costelas escanzeladas do bicho e o caixote virou-se, espalhando as provisões pelo solo. Num abrir e fechar de olhos, vinte feras esfaimadas porfiavam à volta do pão e do toucinho. Em vão caíam os cacetes sobre eles: ganiam, uivavam, sob a chuva dos golpes, mas nem por isso deixavam de lutar, desvairadamente, pela última das migalhas.

Entretanto, os cães do acampamento, atónitos, saíam das tocas sendo imediatamente atacados pelos invasores impetuosos. Buck nunca vira cães iguais. Parecia que os ossos lhes furavam a pele: não mais eram que esqueletos, cobertos prodigamente de couro sujo, olhos coruscantes, a dentuça a pingar baba.

Enlouquecidos pela fome, eram medonhos, irresistíveis. Não era possível opor-lhes resistência. Logo à primeira investida, os cães de tiro foram empurrados contra a rocha. Buck foi cercado por três cães-lobos, e, enquanto o diabo esfrega um olho, ficou com o focinho e o cachaço arranhados e rasgados. O chinfrim era assustador. Billee gemia, como habitualmente.

Dave e Sol-Leks, a gotejar sangue duma vintena de feridas, lutavam com bravura, lado a lado. Joe, como um demónio, tentava abocanhar o primeiro. A certa altura, fechou os dentes na parte dianteira de um lobo que trincou até ao osso. Pike, o ronha, saltou para cima do animal estropiado e, com uma dentada rápida e um torcegão quebrou-lhe o pescoço. Buck filou pelo pescoço um adversário, que espumava, e quando lhe enterrou os dentes na jugular, ficou salpicado de sangue. O sabor tépido do sangue na boca acirrou-lhe a ferocidade.

Quando se atirava a outro, sentiu dentes cravarem-se-lhe na garganta. Era Spitz que, traiçoeiramente, o atacava de lado.

Perrault e François, tendo libertado a sua parte do acampamento, apressaram-se em vir salvar os seus cães. A onda selvagem das feras esfaimadas recuou perante eles e Buck conseguiu libertar-se. Mas isto durou apenas um momento. Os dois homens tiveram que voltar atrás, numa corrida, a tentar salvar as provisões que os cães-lobos tinham tornado a atacar.

Billee, que o terror tornava valente, conseguiu saltar sobre o círculo selvagem e fugir por sobre o gelo. Pike e Dave correram-lhe na peugada, com o resto da matilha atrás. Quando Buck se dispunha a saltar atrás deles, pelo rabo do olho, viu Spitz precipitar-se sobre ele com a intenção evidente de o derrubar. Uma vez caído, e debaixo da massa dos cães-lobos, não lhe podiam restar mais esperanças. Buck preparou-se para aguentar o embate de Spitz, e, depois, juntou-se aos que fugiam para o lago.

Mais tarde, os nove cães da matilha reuniram-se e procuraram abrigo na floresta. Embora já não fossem perseguidos, estavam todos num estado lamentável. Não havia um único que não estivesse dilacerado em quatro ou cinco sítios e estavam gravemente feridos. Dub fora severamente atingido numa das patas traseiras; Dolly, o último cão-lobo a juntar-se-lhes em Dyea, tinha a garganta literalmente estraçalhada; Joe perdera um olho; e Billee, a boazona da Billee, com uma orelha moída e feita em tiras, ganiu e gemeu toda a noite. Ao alvorecer, coxeando, regressaram cautelosamente ao acampamento, de onde já os intrusos tinham sido escorraçados e onde foram encontrar os homens de má catadura. Bem metade das provisões tinham desaparecido. Os cães-lobos até tinham roído as correias dos trenós e as coberturas de lona. Na realidade, coisa alguma, vagamente comestível que fosse, lhes escapara, desde um par de botas de pele de gamo de Perrault e grandes nacos dos tirantes de coiro até a alguns centímetros da ponta do chicote de François. Este saiu da contemplação dolorosa de tudo isto para olhar os cães estropiados.

- Ah, meus amigos - disse carinhosamente -, quem sabe se vocês se não tornaram raivosos com tanta dentada! Todos raivosos, santo Deus! Que acha você, Perrault, hein?

O correio abanou a cabeça em ar de dúvida. Com quatro milhas de trilho ainda entre eles e Dawson, enraivecerem-lhe os cães era o pior que lhes podia suceder agora. Mas duas horas de pragas e de canseiras foram suficientes para pôr os tirantes no seu lugar e eis a estropiada matilha a caminho, lutando penosamente no troço mais difícil da pista até agora encontrado, e, por isso, o mais duro até Dawson.

O rio Thirty Mile deparou-se-lhes escancarado. As águas, revoltas, desafiavam a geada e apenas nas margens ou nos sítios de águas paradas o gelo conseguia formar-se. Foram precisos seis dias de trabalho exaustivo para cobrir essas trinta milhas de pesadelo. De pesadelo, porque cada passo era dado com o risco das vidas dos cães e dos homens. Dúzias de vezes, Perrault, que tacteava o caminho, desapareceu pelo gelo adentro, sendo salvo apenas pelo longo varapau que trazia e manejava de maneira a deixá-lo atravessado no buraco aberto com o próprio corpo. Nesse momento passaram uma vaga de frio - o termómetro marcava cinquenta graus abaixo de zero -, todas as vezes que isso sucedia, ele tinha que acender uma fogueira para secar as roupas sob pena de morrer.

Mas nada o intimidava. Fora, aliás, porque nada o intimidava que ele tinha sido escolhido para correio do governo.

Expunha-se a toda a espécie de riscos, oferecia, com resolução, o semblante miudinho e mirrado à geada e lutava de manhã à noite. Ladeava precipícios ameaçadores, pisando gelo escorregadio que lhe estalava debaixo dos pés e sobre o qual nem se atreviam a parar. Uma vez, o trenó afundou-se com Dave e Buck. Quando os retiraram estavam meio gelados e quase afogados. A fogueira do costume foi necessária para os salvar.

Uma camada de gelo envolvia-os tão solidamente que os homens os obrigaram a correr à volta da fogueira para que suassem, tão perto das chamas que se chamuscaram.

De outra vez foi Spitz que se afundou arrastando atrás de si a matilha, salvo Buck que, com as garras dianteiras fincadas na borda escorregadia, atirava todo o corpo para trás, com o gelo a ceder e a estalar por todos os lados. Atrás dele Dave fazia o mesmo, e atrás do trenó, François puxava com tanta força que os tendões lhe estalavam.

Novamente o gelo das extremidades começou a quebrar-se, por detrás e por diante, e já não havia solução possível senão escalar o penhasco. Enquanto François rezava invocando um milagre, Perrault escalou-o na verdade miraculosamente e, com as carreiras e os tirantes amarrados a uma vara comprida, içaram, um a um, os cães para o cocoruto do rochedo. François foi o último a subir depois do trenó e da carga. Trataram depois de encontrar um bom sítio para a descida e lá desceram por fim com a ajuda duma corda. A noite já os foi encontrar sobre o rio com um quarto de milha a seu favor.

Quando alcançaram Hootalinqua sobre gelo sólido, Buck estava arrasado. O resto da matilha encontrava-se no mesmo estado, mas Perrault, para compensar o tempo perdido, puxava por eles de manhã à noite. No primeiro dia, até Big Salmon, cobriram trinta e cinco milhas; no segundo, outras trinta e cinco até Little Salmon; no terceiro, quarenta, para atingirem Five Fingers.

As patas de Buck não eram tão duras e calejadas como as dos cães-lobos. Tinham amaciado ao longo de muitas gerações, desde o dia em que o primeiro dos seus antepassados selvagens fora domesticado pelo homem das cavernas ou pelo homem das povoações lacustres. Por isso todo o santo dia ele coxeava numa agonia e, assim que se armava o acampamento, deitava-se ao comprido, como morto. Esfomeado como estava não se mexia para ir receber a ração de peixe, que François tinha que lhe vir dar. O condutor todas as noites depois do jantar tinha de dar massagens durante meia hora às patas de Buck e chegou ao ponto de sacrificar o cano das botas para lhe fazer quatro pequenos botins. Foi um grande alívio para Buck; e na manhã em que François se esqueceu de lhos pôr, Perrault teve que distender a face pergaminhada num largo sorriso, ao aperceber Buck deitado de costas, as quatro patas no ar como quem implora, recusando-se a dar um passo sem eles. Mais tarde, quando a pista lhe calejou as patas, deitaram fora, já gastas, as botas improvisadas.

Uma manhã, em Pelly, quando punham os arreios, Dolly, que tudo aceitava, enraiveceu de repente. Deu sinal disso com um longo uivo de lobo, dilacerante, que eriçou o pêlo a todos os cães, depois acometeu direita a Buck. Este nunca vira um cão raivoso nem tinha qualquer razão especial para se atemorizar com a raiva; no entanto, logo se apercebeu de que estava em face de qualquer coisa de horrível, e fugiu, tomado de pânico. Abalou, com Dolly atrás, resfolegando e escumando, à distância dum salto. Nem Dolly o podia alcançar, tão grande era o terror que o possuía, nem ele ver-se livre dela, tão grande a loucura que a arrastava. Embrenhou-se no coração da floresta da ilha, varou-a até à extremidade, atravessou canais cheios de gelo sólido até alcançar outra ilha, ganhou uma terceira ilha ainda, voltou para trás outra vez em direcção ao rio principal, e, desesperadamente, começou a cruzá-lo. E, durante todo este tempo, embora não se atrevesse a olhar para trás, ouvia Dolly rosnar atrás de si, a dois passos. Já à distância dum quarto de milha, François chamou por ele e Buck sempre com Dolly a dois passos, voltou outra vez para trás, sorvendo penosamente o ar, esperançado em que François o salvaria. O condutor baloiçava uma machada na mão e, quando Buck, disparado, passou rente a ele, a machada voou e foi esmagar a cabeça da cadela raivosa.

Buck cambaleou, exausto, de encontro ao trenó, tentando respirar - inerme. Foi essa a oportunidade de Spitz. Cresceu para Buck e por duas vezes cravou os dentes na vítima indefesa, rasgando-lhe a carne até aos ossos. Foi então que o chicote de François caiu sobre Spitz e Buck teve a satisfação de o ver apanhar a maior sova até ali sofrida por qualquer cão da matilha.

- É um demónio, este Spitz - disse Perrault. - um dia destes ainda dá cabo do Buck.

- E o Buck é dois demónios - replicou François. - Basta olhar para ele. Oiça uma coisa: um dia destes ainda ele se zanga a valer e trinca o Spitz todo aos bocadinhos e vai vomitá-lo depois na neve. Vai ver. Eu sei.

Daí em diante, na verdade, a guerra estava declarada entre os dois. Spitz, como guia e chefe reconhecido da matilha, sentia a supremacia ameaçada por este estranho cão meridional. E, na verdade, Buck era para ele um cão bastante insólito, porque de todos os cães do Sul que conhecera, nenhum deles se mostrara à altura do trabalho dos trilhos e das condições de vida do acampamento. Eram todos demasiado delicados, deixando-se morrer de cansaço, com a geada ou de fome. Buck parecia ser uma excepção. Apenas ele aguentava e medrava, rivalizando com os cães-lobos em força, selvajaria e astúcia. Era, portanto, da raça dos chefes e o que o tornara perigoso fora precisamente o facto das cacetadas do homem do camisolão encarnado terem tirado toda a bravura cega e toda a temeridade do seu desejo de supremacia. Agora ele era predominantemente astucioso e podia aguardar a sua vez com uma paciência nada menos do que primitiva.

Era pois inevitável que se desse entre eles o choque pela supremacia. Buck desejava-o. Desejava-o porque era de sua natureza desejá-lo; porque calara nele, fundo, o inominado e incompreensível orgulho da pista e dos tirantes - esse orgulho que se apossava dos cães até ao último hausto, que inclusivamente os levava a morrer contentes nos tirantes e que lhes despedaçaria o coração se os afastassem dos arreios. Era esse o orgulho de Dave e o de Sol-Leks, quando puxavam com todas as forças; o orgulho que se apoderava deles ao levantar do acampamento transformando-os de súbito, de brutos morosos e azedos, em criaturas esforçadas, sôfregas e ambiciosas; o orgulho que os acicatava pelo dia adiante e que só os abandonava à noite na escuridão do acampamento, mergulhando-os de novo num estado sombrio de desassossego e insatisfação. Era esse orgulho que arrastava~Spitz a malhar na canzoada do trenó quando desatinava e se desviava dos trilhos ou quando, de manhã, à hora de pôr os arreios algum deles tentava esconder-se. Era igualmente esse orgulho que o fazia temer Buck como a um eventual substituto. Era esse também o orgulho de Buck.

Buck passou a desafiar abertamente a supremacia do outro.

Punha-se entre ele e os infractores que deviam ser castigados.

E fazia-o de caso pensado. Uma noite caiu um denso nevão e, na manhã seguinte, Pike, o sonso, não apareceu. Estava em segurança, muito bem escondido na sua cova, com dois pés de neve em cima. François chamou por ele e procurou-o em vão por toda a parte. Spitz espumava de raiva. Assolou o acampamento, farejando e esgaravatando todos os sítios prováveis e rosnando tão assustadoramente, que Pike, ouvindo-o do seu esconderijo tremia de medo.

Mas quando, por fim, o desenterraram e Spitz Ja voava para ele a castigá-lo, Buck, com igual fúria, correu a pôr-se no meio dos dois. Foi tão inesperado, manobrou com tamanha astúcia, que Spitz, violentamente arremessado para trás, caiu. Pike, que até aí tremia abjectamente, perante esta sedição aberta tomou animo e atirou-se ao chefe derrubado. Buck, para quem o jogo leal era código esquecido, deitou-se também a Spitz. Mas François, embora o incidente o divertisse, inflexível na administração da justiça, deixou cair o chicote com quanta força tinha sobre Buck. Mas como não conseguiu desta maneira arrancar Buck do rival prostrado, pôs em acção o castão do chicote. Meio atordoado com o golpe, Buck foi atirado para trás e o açoute caiu-lhe em cima uma vez e mais outra...

enquanto Spitz punia com vigor o reincidente Pike.

Nos dias que se seguiram, à medida que mais se aproximava de Dawson, Buck continuava a interferir entre Spitz e os culpados; mas fazia-o agora manhosamente, quando François não estava perto. A coberto da revolta de Buck, uma insubordinação generalizada germinou e alastrou. Dave e Sol-Leks não foram contaminados, mas o resto da matilha foi de mal a pior. As coisas já não andavam direitas. Havia disputas e brigas constantes. Estava-se continuamente em pé de guerra; e na raiz de tudo estava Buck. François não tinha agora um momento de sossego porque vivia na apreensão constante da luta de vida ou morte entre os dois cães que ele sabia ser inevitável mais cedo ou mais tarde; e, mais do que uma noite, o ruído de rixas e zaragatas entre outros cães arrancaram-no da sua roupa de dormir, temeroso de que Buck e Spitz se tivessem já travado de razões.

Essa oportunidade, porém, não surgiu, e, por isso, chegaram a Dawson numa noite sombria sem que o grande combate se tivesse travado. Havia aqui inúmeros homens e cães sem conta, e Buck encontrou-os todos a trabalhar. Que os cães trabalhassem, parecia ser a ordem natural das coisas. Todo o santo dia, em matilhas numerosas, cirandavam, rua acima, rua abaixo; e, noite velha, ainda se lhes ouvia o tilintar dos guizos.

Transportavam lenha e madeiramento das cabanas, fretados pelas minas, e realizavam todos aqueles trabalhos que, no vale de Santa Clara, era costume serem feitos por cavalos. Aqui e além, Buck encontrou cães naturais do Sul, mas, na sua maioria, eram cães-lobos bravios. E todas as noites, com regularidade, às nove, à meia-noite, às três, eles erguiam a sua canção nocturna - canto terrível e fatalista - a que Buck se juntava com deleite.

Com a aurora boreal ardendo friamente por sobre as suas cabeças ou as estrelas como que dançando por entre a geada que caía e a terra paralisada e transida debaixo duma mortalha de neve - esta canção podia ter sido uma canção de desafio à vida.

Simplesmente, descera a um tom menor, com lamentações fundas e quase soluços, e era mais uma súplica de vida, a expressão sonora da luta pela existência. Era uma velha canção, tão velha como a própria espécie - uma das primeiras canções de quando o mundo era jovem, quando as canções eram tristíssimas.

Grávido da angústia de gerações sem número, este queixume agitava Buck muito estranhamente. Quando ele gemia e soluçava, gemia e soluçava de dor de viver, que fora outrora a dor dos seus antepassados bravios, e de medo do frio e do mistério e das trevas que para eles eram terror e desconhecido. E que ele fosse tão agitado por esta canção dizia bem da plenitude do seu retrocesso através das idades de abrigo e de agasalho, até aos primórdios virginais da vida nas idades ululantes.

Sete dias depois de terem chegado a Dawson, desceram a margem alcantilada de Barracks e de Yukon Trail e tomaram o rumo de Dyea e de Salt Water. Perrault levava agora documentos oficiais ainda mais importantes do que os que trouxera, e, ainda por cima, o espírito de competição apoderara-se dele: propusera-se fazer a viagem recorde do ano. Vários factores o favoreciam. A semana de descanso restabelecera os cães e pusera-os em plena forma.

O trilho que iam seguir estava bem calcado pelos últimos viajantes. E, além disso, a polícia tinha colocado ao longo do caminho, em dois ou três lugares, depósitos de mantimentos para homens e para cães, e, portanto, ele podia viajar com menos peso.

No primeiro dia, alcançaram Sixty Mile, o que era uma etapa de bem cinquenta milhas; e o segundo dia já os encontrou escalando o Yukon a caminho de Pelly. Mas tão esplêndida corrida não foi conseguida sem grandes canseiras e ralações por parte de François. A rebelião insidiosa chefiada por Buck destruía a solidariedade da matilha. Já se não comportavam como um só cão, a puxar os tirantes. O encorajamento que Buck dava aos rebeldes incitava-os a cometer toda a espécie de pequenos delitos. Spitz já não era um chefe grandemente temido. Destruído o respeito antigo, já ousavam desafiar-lhe a autoridade. Uma noite Pike chegou a roubar-lhe metade dum peixe e devorou-o debaixo da protecção de Buck. Outra noite, Dub e Joe cresceram para Spitz, fazendo-o desistir do castigo que aliás mereciam. E até Billee, de tão bom feitio, o tinha agora muito pior e gania cinquenta por cento menos apaziguadoramente do que antes.

Buck não se aproximava de Spitz sem rosnar e eriçar o pêlo ameaçadoramente. De facto, a sua conduta ia-se aproximando da fanfarronada e ele chegava a manear-se provocadoramente para cá e para lá, mesmo debaixo do nariz de Spitz.

A quebra de disciplina afectou igualmente as relações dos cães entre si. Brigavam e altercavam mais do que nunca, tanto que por vezes o acampamento se transformava num autêntico manicómio ululante. Apenas Dave e Sol-Leks se mantinham inalteráveis, embora também eles se estivessem a tornar irritáveis com as disputas intermináveis. François soltava pragas tremendas, batia o pé na neve, de raiva inútil, arrancava os cabelos. O seu cacete zunia continuamente sobre os cães - sem grande resultado. Logo que voltava costas, recomeçavam. François protegia Spitz com o chicote, enquanto Buck protegia o resto da matilha. François sabia que ele estava atrás de todas as desordens e Buck sabia que ele sabia, mas era agora demasiado experiente para ser outra vez apanhado com a boca na botija. Fazia o seu trabalho com fervor, porque aquela faina se tornara um prazer para ele; mas maior prazer era ainda precipitar astuciosamente uma luta entre os companheiros e emaranhar os tirantes.

Uma noite, depois do jantar, à boca de Tahkeena, Dub desencantou um coelho de patas brancas como a neve, mas atrapalhou-se e deixou-o fugir. Num segundo, a matilha inteira pôs-se em campo. Uma centena de jardas adiante havia um acampamento da Polícia Montada do Nordeste com cinquenta cães, todos cães-lobos, que se juntaram à perseguição. O coelho disparou rio abaixo, desviou-se em direcção a uma pequena enseada e ei-lo a subir sem hesitação o seu leito gelado.

Corria com ligeireza à superfície da neve, ao passo que os cães avançavam a poder de força. Buck conduzia a matilha, sessenta cães possantes, curva após curva, mas não conseguia levar a melhor. Entregava-se à corrida, ganindo de sofreguidão, o corpo esplêndido lançado para a frente, relampejando a cada salto, à luz pálida da Lua. E, a cada salto, o coelho das patas brancas como a neve, como pálido espectro nascido da geada, branquejava à sua frente.

Todo o acordar de velhos instintos que, em certos períodos, arrasta os homens das cidades rumorosas para o silêncio das florestas e das planuras, para matar com balas impulsionadas quimicamente, a volúpia do sangue, a alegria de exterminar - tudo isso sentia-o Buck, apenas de maneira infinitamente mais íntima. Ei-lo à cabeça da matilha, correndo atrás de caça bravia, de alimento com vida para, com os seus próprios dentes, mergulhar o focinho até aos olhos em sangue ainda tépido.

Existe um êxtase que assinala a plenitude da vida e para além do qual a vida cessa. E, tal é o paradoxo do viver, este arrebatamento que chega quando estamos mais vivos, surge com o esquecimento de que estamos vivos. Este êxtase, este esquecimento da vida, conhece-o o artista arrebatado e fora de si numa língua de fogo; conhece-o o soldado no campo da derrota quando, de cabeça perdida, não dá quartel; e conhecia-o Buck, nesse momento, à cabeça da matilha, soltando o velho grito dos lobos, correndo, correndo, tenso, atrás do alimento ainda vivo que se esgueirava, velocíssimo, como através do luar. Ressoavam nele as profundezas da sua natureza e das partes da sua natureza que eram mais profundas do que ele e recuavam até às entranhas do Tempo. Possuía-o o puro cachoar da vida, a maré do ser, a alegria perfeita de cada músculo, cada articulação, cada tendão, tudo o que não estava morto, mas vivo e palpitante, expelindo-se em movimento, voando triunfalmente sob as estrelas, face à matéria morta e sem movimento.

Porém Spitz, frio e calculista mesmo nos estados de espírito supremos, abandonou a matilha e atravessou um braço estreito de terra num ponto em que a enseada fazia uma curva larga.

Buck não se apercebeu disso e, ao fazer a curva (o espectro branco esgueirando-se sempre diante dele), viu outro fantasma alvo, muito maior, saltar da margem sobranceira para o caminho que o coelho seguia. Era Spitz. O coelho não podia voltar para trás, e quando os dentes brancos lhe quebraram a espinha, em pleno ar, ele guinchou como um homem ferido de morte. Ao ouvi-lo, o grito da Vida precipitada do cume da Vida nas garras da Morte, toda a matilha, atrás de Buck, ergueu um coro demoníaco de puro deleite.

Buck não; nem sequer se deteve: atirou-se a Spitz, flanco contra flanco, com tanta violência que não lhe atingiu a garganta. Rolaram muitas vezes na neve pulverulenta. Spitz pôs-se de pé como se não tivesse sido derrubado, rasgou o flanco de Buck e, de um salto, pôs-se ao largo. Por duas vezes as mandíbulas lhe bateram uma de encontro à outra, como os dentes de aço duma ratoeira, enquanto recuava à procura de melhor piso, com o focinho chupado e erguido, arreganhado e rosnando.

Num clarão, Buck compreendeu que chegara o momento. Era a vida ou a morte. Enquanto, rosnando, andavam um à roda do outro, as orelhas deitadas para trás, vivamente atentos à mínima vantagem; toda esta cena se representou a Buck com um sentido de familiaridade. Parecia-lhe que se lembrava de tudo - a floresta alvacenta e a terra, o luar e a emoção da batalha.

Por sobre a alvura e o silêncio pairava uma calmaria sobrenatural. Não havia a mais leve deslocação do ar - nada mexia, nem uma folha abanava, os bafos dos cães subiam vagarosamente e permaneciam no ar glacial.

Estes cães que, mais não eram que lobos mal domesticados, tinham dado cabo do coelho das patas brancas enquanto o diabo esfrega um olho, ficaram depois alinhados num círculo expectante. Também Buck e Spitz estavam silenciosos, os olhos, só os olhos, coruscando e os bafos subindo vagarosamente no ar. Para Buck não era nova nem estranha esta cena de tempos remotos. Era como se tivesse sempre acontecido, como se fosse a ordem natural das coisas.

Spitz era lutador experimentado. De Spitzenberg a Barrens, através do Arctico e do Canadá, ele levara a melhor a toda a espécie de cães, alcançando a supremacia sobre todos eles. A sua cólera era amarga, mas nunca cega. Na ânsia de despedaçar e de destruir, não se esquecia nunca que o inimigo também estava animado de igual ânsia de despedaçar e destruir.

Nunca investia sem estar preparado para receber um assalto, nem atacava sem ter primeiro defendido esse ataque.

Buck tentava, em vão, mergulhar os dentes no pescoço do canzarrão branco. Onde quer que procurasse com as presas carne mais tenra, encontrava sempre as presas de Spitz. Dentes contra dentes, os beiços dilacerados e sangrentos - mas Buck não conseguia romper a guarda do inimigo. A certa altura, excitado já, envolveu Spitz num turbilhão de arremetidas. Por mais de uma vez tentou atingir a garganta alva como a neve onde a vida palpitava à superfície; e, todas essas vezes, Spitz arranhava-o e fugia. Então Buck fingia que se atirava à garganta e, erguendo a cabeça e guinando de repente para o lado, atirou os ombros contra os ombros de Spitz, como uma alavanca para o derrubar. Porém, em vez disso, Spitz rasgava-lhe sempre o flanco enquanto que, dum salto, lhe fugia com ligeireza.

Quando Buck já escorria sangue e respirava com dificuldade, Spitz não tinha ainda uma beliscadura. A luta tornava-se desesperada. E, durante todo este tempo, silenciosos, os lobos, em círculo, aguardavam o momento de acabar com o primeiro que caísse. Buck já se ia cansando, enquanto Spitz multiplicava as arremetidas. Buck cambaleava, tentava firmar-se nas patas. Duma vez caiu e logo todo o círculo de sessenta cães se levantou ansioso; mas lá conseguiu equilibrar-se a meio do ar e a matilha agachou-se e pôs-se outra vez à espera.

Buck, porém, possuía uma qualidade que podia levar a grandes coisas: imaginação. Lutava por instinto, mas também podia lutar com a cabeça. Arremeteu, como a tentar o velho truque dos ombros, mas no último instante, rapidíssimo, coseu-se com a neve e atirou-se para a frente. Fechou os dentes na perna dianteira esquerda de Spitz. Ouviu-se um estalido de osso a partir-se e o cão branco enfrentou-o só com três patas. Buck tentou derrubá-lo ainda mais três vezes; depois, repetindo o seu truque, partiu-lhe a pata dianteira direita. A despeito da dor e da situação desesperada, Spitz tentou furiosamente aguentar-se. Ele bem via o círculo silencioso dos cães, os olhos coruscantes, as línguas pendentes, os bafos prateados elevando-se lentamente no ar, apertando-se por cima da sua cabeça - como vira tantas vezes, no passado círculos similares apertarem-se por sobre os seus antagonistas vencidos. Desta vez, simplesmente, o vencido era ele.

Já não havia esperança para ele. Buck era inexorável. A misericórdia era uma coisa muito boa para os climas mais suaves. Preparou-se para o ataque final. O círculo apertara-se tanto que ele sentia nas espáduas o bafo dos cães-lobos. Ele via-os, para lá de Spitz, dum e doutro lado, já meio agachados para o salto, com os olhos fixos nele. Parecia ter havido uma pausa. Os animais estavam imóveis, como petrificados. Apenas Spitz palpitava e se eriçava todo, ao cambalear para cá e para lá, rosnando ameaças terríveis, como a querer assustar a morte iminente. Foi então que Buck saltou para o centro e para trás.

Foi só quando saltou para o centro que as espáduas dum e doutro se encontraram sem reserva. O círculo negro tornou-se um ponto a meio da neve invadida de luar e Spitz desapareceu da vista. Buck, de pé, ao largo, assistia - como o vencedor, a fera primordial, que fizera a matança e que gostara de a fazer.

 

O QUE PODE A SUPREMACIA

- Hem? Que dizia eu? Falei verdade quando disse que Buck era dois diabos.

Foi o que disse François na manhã seguinte ao dar com o desaparecimento de Spitz e com Buck coberto de feridas.

Levou-o para o pé da fogueira e, à sua luz, examinou-as.

- Aquele Spitz lutava como um demónio - disse Perrault, ao examinar os rasgões e as feridas hiantes.

- E este Buck luta como dois demónios - replicou-lhe François. - Agora, sim, vamos fazer boas médias. Acabou-se Spitz, acabaram-se os sarilhos; vais ver.

Enquanto Perrault enfardava o equipamento de campanha, François começou a pôr os arreios aos cães. Buck correu para o lugar que Spitz ocupava como guia. François, porém, sem reparar, trazia Sol-Leks para o lugar ambicionado. Em seu entender era Sol-Leks o melhor cão-guia que lhes restava.

Enfurecido, Buck atirou-se a Sol-Leks, fê-lo recuar e pôs-se no lugar dele.

- Eh? Eh? - e François dava palmadas nas coxas, divertidíssimo. - Olhem para este tipo. Matou o Spitz e agora quer-lhe o lugar.

- Põe-te a mexer - gritou, mas Buck recusou-se a dar um passo.

François agarrou Buck pela nuca e, apesar de o cão rosnar ameaçadoramente, pô-lo de lado e tornou a colocar Sol-Leks no lugar. O velho cão, que não estava a gostar nada da coisa, deu a entender claramente que estava com medo de Buck. François era teimoso, mas mal voltava costas, Buck tornava a afastar Sol-Leks, que não se importaria nada que o deixassem ir-se embora, muito pelo contrário.

François zangou-se. Disse num berro:

- Santo Deus, espera aí que eu já te arranjo - e quando voltou trazia um grande cacete na mão.

Buck, lembrando-se do homem do camisolão encarnado recuou vagarosamente; nem sequer tentou arremeter, quando François mais uma vez trouxe Sol-Leks para a frente. Mas pôs-se a andar à roda, fora, está claro, do alcance do cacete, rosnando de azedume e de raiva; e, enquanto andava às voltas não tirava os olhos do pau para poder esquivar-se a tempo, caso François lho arremessasse, porque em cacetes era ele licenciado.

O condutor prosseguiu o seu trabalho; quando o acabou, chamou Buck para o colocar no antigo lugar em frente de Dave. Buck deu dois ou três passos para trás. François aproximou-se e ele vai de recuar mais uma vez. Andaram algum tempo nisto, até que François, julgando que o que Buck temia era uma sova, deitou o cacete fora. Buck porém, encontrava-se em franca revolta. O que ele queria era menos escapar às cacetadas do que alcançar a chefia. A chefia era sua, de direito. Merecera-a e não se contentaria com menos.

Perrault veio dar uma ajudinha. Boa meia hora andaram eles a correr atrás do cão. Atiraram-lhe com paus; ele esquivava-se.

Rogaram-lhe pragas, a ele, ao pai e à mãe, e a toda a sua descendência até à geração mais remota, a cada pêlo que Lhe cobria o corpo e a cada gota de sangue que Lhe corria nas veias. As pragas, Buck respondia rosnando, mas conservava-se sempre ao largo, fora do alcance dos homens. Não tentava fugir, punha-se simplesmente a distância, nas imediações do acampamento, dando claramente a entender-lhes que se eles lhe fizessem a vontade ele voltaria e seria razoável.

François sentou-se a coçar a cabeça. Perrault olhou para o relógio e praguejou. O tempo voara e ele já devia estar a caminho há mais duma hora. François coçou outra vez a cabeça.

Sacudiu-a e arreganhou timidamente os dentes para o correio, que encolheu os ombros em sinal de que tinham sido vencidos.

François levantou-se e, junto de Sol-Leks, chamou por Buck.

Buck riu-se, está bem de ver, como riem os cães, mas conservou-se ainda a distância. François, então, soltou Sol-Leks dos tirantes e colocou-o outra vez no lugar antigo. A matilha permanecia atrelada ao trenó numa fila sem quebra, pronta a enfrentar o trilho. Não havia outro lugar para Buck a não ser o da frente. François chamou mais uma vez e uma vez mais Buck se riu e se pôs ao largo.

- Deita o cacete fora - ordenou Perrault.

François obedeceu e só então Buck se aproximou, rindo do triunfo; e foi-se pôr em posição, à cabeça da companha. Assim que lhe apertaram os arreios, o trenó, com os dois homens correndo atrás, atirou-se rio abaixo.

Por muito que o condutor tivesse sobrestimado Buck, comparando-o a dois demónios, compreendeu, mal começara o dia, que afinal ainda o tinha subestimado. Num ápice Buck assumiu a responsabilidade da chefia e sempre que era preciso decisão ou pensamento e acção rápidos ele soube mostrar-se superior até a Spitz, inigualável até aí para François. Mas era sobretudo a fazer a lei e a fazer com que os companheiros vivessem exclusivamente para ela, que Buck era mestre. Dave e Sol-Leks não se ralaram nada com a mudança do guia. Não era coisa da sua conta. De sua conta era apenas mourejar, e mourejar duramente nos trilhos. Desde que lhes não pusessem obstáculos a isto, era-lhes indiferente o que sucedesse. Desde que soubesse manter a ordem, até a boazona da Billee podia ser o guia, que eles não se importavam. O resto da matilha, porém, tinha-se indisciplinado durante os últimos dias de Spitz e a sua surpresa foi grande ao ver agora Buck empenhado em mantê-los na ordem.

Pike, que puxava mesmo atrás de Buck e que nunca punha contra a correia dos arreios uma onça a mais do que a estritamente necessária foi mais do que uma vez sacudido prontamente; antes de acabar o primeiro dia já ele puxava mais do que alguma vez fizera em toda a sua vida. Logo na primeira noite de acampamento, Joe, o rezingão, foi abertamente castigado - coisa que Spitz nunca conseguira fazer. Buck, muito simplesmente, abafou-o com a força superior do seu peso e assim se deixou estar até que o outro desistiu de tentar morder e começou a gemer, pedindo misericórdia.

O tom geral da matilha subiu imediatamente. Recuperou a solidariedade dos velhos tempos e uma vez mais os cães saltavam nos trilhos como um só cão. Em Rink Rapids juntaram-se à matilha mais dois cães-lobos: Teek e Koona; e a rapidez com que Buck os dominou cortou a respiração de François.

- Nunca vi cão como Buck - exclamou. - Não, nunca! Vale bem um milhar de dólares, com todos os diabos! Hein? Que é que você acha, Perrault?

Perrault disse que sim com a cabeça. Já tinha batido o seu recorde e todos os dias melhorava. Os trilhos estavam em excelente condição, bem batidos, sólidos e há muito que não caía neve. Não fazia demasiado frio. A temperatura descera a cinquenta graus abaixo de zero e assim se conservou durante toda a viagem. Os homens, à vez, ou iam de trenó ou corriam atrás deles; os cães conservaram o trote e as paragens eram pouco frequentes.

O rio Thirty Mile estava praticamente revestido de neve e por isso eles cobriam num dia o trajecto que à ida lhes tinha levado dez dias. Só numa etapa chegaram a fazer sessenta milhas desde o lago Le Barge até aos rápidos do White Horse.

Através de Marsh, Tagish e Bennett - sessenta milhas de lagos - eles voaram tão céleres, que o homem a quem cabia a vez de correr tinha de se agarrar à ponta duma corda amarrada ao trenó. Por fim, na última noite da segunda semana, alcançaram os cimos de White Pass e desceram a encosta até o mar, com as luzes de Skaguay e dos navios aos pés.

Foi uma corrida recorde. Durante catorze dias tinham feito uma média de quarenta milhas diárias. Durante três dias, Perrault e François, de peito para fora, pavonearam-se acima e abaixo da rua principal de Skaguay e foram inundados de convites para beber, enquanto a matilha se tornava o centro constante da admiração dum magote de treinadores e doutra gente entendida em cães. Depois, três ou quatro malandrins do oeste tentaram limpar a cidade e o interesse do público voltou-se para outros ídolos. Chegaram ordens oficiais. François chamou Buck a si, rodeou-o com os braços e choramingou em cima dele. E foi essa a despedida de François e de Perrault. Como outros, desapareceram para sempre da vida de Buck.

Um mestiço escocês tomou conta dele e dos companheiros e, com mais uma dúzia de outras matilhas, empreenderam de novo o trilho difícil, de regresso a Dawson. Não se tratava agora duma viagem ligeira nem de obter médias recordes, mas de trabalho pesado, quotidiano, a puxar uma carga pesadíssima:

este era o comboio correio, que levava as notícias do mundo aos homens que procuravam ouro nas sombras do pólo.

O trabalho não agradava a Buck, mas aguentava-o bem, tirando dele orgulho à maneira de Dave e de Sol-Leks e esforçando-se por que os companheiros, quer se orgulhassem com isso quer não, fizessem o que Lhes competia. Era uma vida monótona que funcionava com a regularidade duma máquina. Um dia era exactissimamente igual a outro dia. Todas as manhãs, a uma hora certa, os cozinheiros saíam das barracas, acendiam as fogueiras - e comia-se o pequeno-almoço. Depois, enquanto uns levantavam o acampamento, outros punham os arreios aos cães e uma hora e picos antes de desaparecer a escuridão anunciando a aurora já estavam a caminho. A noite, armavam o acampamento.

Uns matavam mosquitos, outros cortavam lenha para a fogueira e ramas de pinheiro para as camas; outros ainda traziam água ou gelo aos cozinheiros. Davam de comer aos cães. Para os animais, este era aliás o único acontecimento do dia, embora também fosse agradável, depois de comidinho o peixe, vagabundear, uma hora ou mais, com os outros cães - cinco vintenas deles e bem pândegos. Havia lutadores temíveis entre eles, mas bastaram três combates com os mais temíveis para Buck alcançar a supremacia e de tal sorte que lhe bastava eriçar o pêlo e mostrar os dentes para os afastar a todos do seu caminho.

Porém, mais do que tudo talvez, Buck gostava de estar deitado perto da fogueira, as patas traseiras encolhidas debaixo do corpo, as dianteiras esticadas, a cabeça erguida, os olhos pestanejando sonhadoramente às chamas. As vezes pensava na grande casa do juiz Miller, a meio do vale de Santa Clara, inundado de sol, e no tanque de cimento que servia de piscina, e em Isabel, a cadelinha mexicana de pêlo rapado, e em Toots, a mascote Japonesa; as mais das vezes, porém, lembrava-se do homem do camisolão vermelho, da morte de Curly, do seu grande combate com Spitz, das coisas boas que comera e das que desejaria comer. Saudades não tinha. O Sul agora era nebuloso e distante, e tais recordações já não tinham domínio sobre ele. Incomparavelmente mais fortes eram as recordações da sua hereditariedade, que emprestavam a coisas que nunca vira antes uma familiaridade fantasmagórica; os instintos - que mais não eram que as recordações dos seus antepassados tornadas hábitos -, que nos últimos dias, e antes ainda, se tinham calado nele, tomaram força e viveram outra vez.

As vezes, ali agachado, piscando sonhadoramente os olhos às chamas, tinha a impressão que aquelas chamas eram doutra fogueira e que, agachado ao pé dessa outra fogueira, ele via um homem, outro homem muito diferente do cozinheiro mulato que estava realmente diante dele. O outro tinha as pernas mais curtas e os braços mais compridos, de músculos encordoados e nodosos, não roliços e túrgidos. O cabelo era comprido e entrançado e, logo abaixo, a cabeça obliquava para trás a partir dos olhos. Soltava sons estranhos e parecia assustadíssimo com a escuridão, que perscrutava continuamente, apertando na mão, pendente entre o joelho e o pé, um varapau com uma pedra pesada encastoada na ponta. Andava quase nu, apenas com uma pele rugosa e chamuscada a descer-lhe costas abaixo, mas cobria-lhe o corpo uma floresta de pêlo. Em alguns sítios, no peito, nos ombros e na parte exterior dos braços e das coxas, até abaixo, era basto como espessa pelagem. Não se mantinha erecto, mas com o tronco inclinado para a frente a partir das ancas, sobre as pernas tortas que cambavam a partir dos joelhos. Havia em todo o seu corpo uma elasticidade peculiar, quase felina, e um estado de alerta de alguém que vive no perpétuo terror das coisas visíveis e invisíveis.

Outras vezes o homem peludo acocorava-se ao pé do fogo, a cabeça entre as pernas, e dormia. Nessas ocasiões repousava os cotovelos nos joelhos e apertava as mãos por cima da cabeça, como quem entorna chuva pelos braços peludos. E, para além da fogueira, na escuridão, duas a duas, sempre duas a duas, Buck via brasas coruscantes que ele sabia serem olhos de feras.

Chegava a ouvir-lhes os corpos a estalar por entre o mato e todos os ruídos que faziam pela noite adiante.

Desta maneira, a sonhar junto à margem do rio Yukon, piscando à fogueira os olhos lazeirentos, estes sons e estas visões doutro mundo eriçavam-lhe o pêlo do lombo, das espáduas e do pescoço, e faziam-no latir baixinho, com contenção, ou rosnar devagarinho, até que o cozinheiro mulato lhe gritava: "Aí, Buck, acorda!" Só então se desvanecia o outro mundo e Lhe voltava aos olhos o mundo real. Ao levantar-se bocejava e espreguiçava-se como se tivesse dormido.

Foi uma viagem dura, com o correio atrás, e o trabalho pesado arrasou os cães. Perderam peso e quando chegaram a Dawson estavam num estado de tal maneira lastimoso que mereciam bem um descanso de dez dias ou, pelo menos, duma semana. Dois dias depois, porém, já eles saíam de Barracks, descendo a margem do Yukon, carregados de cartas para o litoral. Os condutores estavam estafados, refilavam e, ainda por cima, todos os dias caía neve. Isto traduzia-se em trilho mole, maior fricção nos deslizadores, maior esforço por parte dos cães; no entanto, verdade se diga, no meio de tudo isto os condutores eram fixes e faziam pelos animais tudo o que estava ao seu alcance.

Todas as noites, antes de mais nada, tratavam dos cães. Estes comiam antes dos condutores e nenhum homem enfiava a roupa de dormir sem primeiro examinar as patas dos cães que tinham a seu cargo. Apesar disto tudo, as forças abandonavam os bichos. Desde o princípio do Inver no tinham percorrido nada mais nada menos do que mil e oitocentas milhas, arrastando trenós ao longo de toda aquela distância arrasante; e mil e oitocentas milhas contavam bem, mesmo na vida do mais resistente. Buck, embora também ele caísse de cansaço, alombava com isto tudo e ainda obrigava os companheiros a trabalhar e mantinha a disciplina. Billee não havia noite que não ganisse e gemesse durante o sono. Joe andava mais azedo do que nunca e Sol-Leks era inabordável por que lado fosse: do cego ou do outro Mas Dave sofria mais do que todos. Havia qualquer coisa nele que não andava bem. Tornara-se mais sombrio e irritável e assim que armavam o acampamento esgueirava-se para a toca, onde o condutor tinha que lhe ir levar o comer. Logo que Lhe tiravam os arreios não se tinha mais nas pernas até à manhã seguinte, à hora de pôr os tirantes. Por vezes, em pleno trilho, quando sacudido por uma paragem súbita do trenó ou no esforço de fazê-lo andar, gania de dor. O condutor examinava-o mas não descobria nada. Todos os condutores, aliás, acabaram por se interessar pelo seu caso. Falavam sobre ele à hora das refeições e antes de se deitarem, ao fumar o último cachimbo e, uma noite, reuniram-se em conferência. Foram buscá-lo à toca, trouxeram-no para junto do fogo e tanto o apalparam, tanto o apertaram, que ele ganiu mais do que uma vez. Tinha qualquer coisa, isso tinha, mas não puderam localizar nem ossos partidos, nem o quer que fosse.

Quando chegaram a Cassiar Bar estava tão fraco que se deixava cair constantemente. O mestiço escocês mandou parar o comboio, afastou-o da matilha e atrelou ao trenó Sol-Leks, que corria ao lado dele. A sua intenção era deixar Dave descansar, deixando-o correr livremente atrás do trenó. Embora doente, Dave sentiu a ofensa de o rejeitarem, barafustando e rosnando quando Lhe tiraram os arreios e latindo desabaladamente ao ver Sol-Leks ocupar o lugar que era seu e em que servira durante tanto tempo. Tão grande era o seu orgulho dos tirantes e da pista que, mesmo tocado pela morte, não podia suportar que outro cão fizesse o seu trabalho.

Quando o trenó arrancou de novo, Dave arrastou-se sobre a neve flácida, ao longo do trilho batido, e atacou Sol-Leks à dentada, correndo atrás dele, tentando fazê-lo cair para o outro lado, esforçando-se por saltar para dentro dos tirantes e pôs-se entre ele e o trenó, e, durante este tempo todo, gemia, gania e chorava de mágoa e de dor. O mestiço tentou afugentá-lo a chicote, mas Dave não deu atenção aos golpes e o homem não teve coragem de Lhe bater com mais força. Dave recusava-se a seguir calmamente atrás do trenó por onde o caminho era mais fácil. Continuou a arrastar-se penosamente ao longo da neve fofa, pelo caminho mais difícil, até à exaustão.

Então caiu, e assim ficou, uivando lugubremente, enquanto o longo comboio de trenós o ultrapassava, aos ziguezagues.

Com as forças que Lhe restavam lá conseguiu cambalear atrás do comboio até à primeira paragem e aí, arrastando-se com dificuldade, conseguiu alcançar o seu trenó e pôs-se ao lado de Sol-Leks. O condutor deteve-se um momento a pedir lume para o cachimbo ao homem de trás.

Depois, voltando-se, deu ordem de marcha aos seus cães. Estes oscilaram no trilho com notável falta de empenho, voltaram as cabeças cheios de inquietação e detiveram-se surpresos. Também o condutor estava surpreendido; o trenó não se mexia. Chamou os companheiros para apreciarem o espectáculo: Dave trincara os tirantes a Sol-Leks e estava agora em frente do trenó, no seu lugar.

Com os olhos implorava que o deixassem ali ficar. O condutor estava perplexo. Os companheiros discutiam como era possível a um cão ficar com o coração despedaçado ao ser-lhe negado o trabalho que o matava e lembravam casos que conheciam de cães que, velhos de mais para trabalhar ou já muito estropiados, tinham sucumbido ao serem afastados dos tirantes. Por isso achavam que era um acto de misericórdia, já que de qualquer maneira Dave ia morrer, deixá-lo morrer aos tirantes, de ânimo leve e contente. Portanto puseram-lhe outra vez os arreios e ele começou a puxar orgulhosamente, como nos velhos dias, embora mais do que uma vez gritasse involuntariamente, com as mordeduras da sua ferida secreta. Várias vezes caiu e foi arrastado pelos tirantes. Uma vez até o trenó passou por cima dele e daí em diante ficou coxo duma das patas traseiras.

Conseguiu, no entanto, aguentar-se até ao acampamento, onde o condutor lhe arranjou um lugar ao pé do fogo. A manhã encontrou-o demasiado fraco para a viagem. A hora de atrelar conseguiu arrastar-se até ao condutor. Com esforços convulsivos, pôs-se de pé, cambaleou - e caiu. Então, vagarosamente, rastejou até ao sítio onde estavam a pôr os arreios aos companheiros. Deitava para a frente as patas dianteiras e arrastava depois o corpo numa espécie de solavanco; em seguida avançava outra vez as patas dianteiras e com um novo solavanco ganhava mais algumas polegadas. As forças abandonaram-no por fim, e na última imagem que dele tiveram os companheiros, ele jazia na neve, arfando, os olhos voltados para eles, como quem implora. E quando lhe saíram do seu campo de visão, por detrás dum maciço de árvores ao pé do rio, ainda o ouviam a uivar lugubremente.

O comboio parou aí. O mulato escocês retrocedeu vagarosamente ao acampamento abandonado. Os homens calaram-se. Um tiro de revólver ecoou. O mestiço voltou apressadamente. Os chicotes estalaram, as campainhas chocalharam alegremente, os trenós deslizaram ao longo do trilho; mas Buck sabia, todos os cães sabiam o que se passara junto ao rio, atrás do A TAREFA DoS TIRANTES E D( .S TRILHo.

Trinta dias após ter deixado Dawson, a mala de Salt Water, com Buck e os companheiros na dianteira, chegava a Skaguay.

Estavam num estado lastimoso, arrasados por dentro e por fora.

As cento e quarenta libras de Buck tinham minguado para cento e quinze. O resto da matilha, cães mais leves embora, tinha perdido relativamente mais peso ainda do que ele. Pike, o ronha, que fingira em toda a sua vida e que mais do que uma vez simulara com êxito uma perna partida, coxeava agora a valer. Sol-Leks também estava coxo e Dub tinha uma omoplata deslocada.

A todos doíam terrivelmente as patas. Estavam sem seiva, sem coragem. Arrastavam as patas pesadamente nos trilhos, desequilibrando-se e redobrando assim a fadiga de um dia de estirão. Nada tinham a não ser uma fadiga extrema. Não era a exaustação causada por um esforço breve mais excessivo, cuja recuperação é uma questão de horas; mas aquela que vem da drenagem lenta e prolongada das forças em meses de labuta. Já não tinham qualquer poder de recuperação ou reserva de forças a que recorrer. Tudo fora utilizado até à última partícula. Não havia músculo, fibra, célula, que não estivesse cansada, mortalmente cansada. E havia razão para isso. Em menos de cinco meses tinham percorrido duas mil e quinhentas milhas e tinham tido apenas cinco dias de descanso durante as últimas mil e oitocentas. Quando alcançaram Skaguay davam a impressão de já não se terem nas pernas. Mal podiam conservar os tirantes esticados e nas descidas conseguiam a custo afastar-se do caminho do trenó.

- Aguentem-me só mais um bocado essas pobres patas - encorajava-os o condutor ao descerem a rua principal de Skaguay. - Estamos no fim. Depois vamos fazer um bom descanso.

Hein? Verdade. Um belo descanso.

E, na realidade, os condutores esperavam, confiantes, que a paragem fosse longa. Eles próprios tinham, à sua conta, coberto mil e duzentas milhas com dois dias apenas de descanso e, com toda a razão e segundo a justiça mais elementar, mereciam agora um intervalo de ociosidade. Porém, eram tantos os homens que se tinham precipitado para o Klondik e tantas as namoradas, esposas e os parentes que os não tinham seguido, que a mala, congestionada, atingia proporções alpinas; e, além disso, havia ordens oficiais.

Mudas frescas de cães da baía de Hudson tomariam o lugar dos que estivessem inutilizados para o caminho. Tinham que desembaraçar-se dos inutilizados e, como os cães pouco contavam contra dólares, havia que vendê-los.

Três dias se passaram, ao fim dos quais Buck e os companheiros compreenderam, de facto, a que ponto estavam cansados e enfraquecidos. Ora, na manhã do quarto dia apareceram dois americanos que os compraram, com arreios e tudo, por dez réis de mel coado. Os homens davam-se entre si os nomes de Hal e Charles. Charles era homem de meia-idade, de carnação clara, de olhos suaves e húmidos e usava um bigode de pontas enérgicas e vigorosamente levantadas, a desmentir os lábios debilmente lânguidos que escondiam. Hal era um jovem de dezanove, vinte anos, com um grande Colt e uma faca de mato enfiados num cinturam aparatosamente inchado de cartuchos.

Esse cinturão era nele, aliás, a coisa que mais dava nas vistas. Anunciava ao mundo que ele era um duro - de uma dureza implacável e inconfessável. Ambos os homens estavam ali manifestamente desenraizados, e a razão por que os homens como estes se aventuravam pelo Norte adentro faz parte do mistério das coisas que ultrapassa o entendimento.

Buck ouviu-os regatear, viu dinheiro passar do homenzinho para o agente governamental e compreendeu que o mestiço escocês e os outros condutores da mala iam desaparecer da sua vida, na peugada de Perrault e de François e dos outros antes destes. Quando o levaram, mais os companheiros, para o acampamento dos novos donos, Buck foi deparar com um espectáculo de desmazelo e desalinho - a barraca mal esticada, as louças por lavar, tudo em desordem; e também uma mulher. Os homens chamavam-lhe Mercedes. Era mulher de Charles e irmã de Hal. Uma encantadora reunião familiar. Buck observou-os com apreensão, quando eles começaram a desarmar a tenda e a carregar o trenó. Havia em todos os seus movimentos um enorme dispêndio de esforço, mas não havia sombra de método.

Enrolaram a barraca numa trouxa deselegante, três vezes maior do que podia ser. Guardaram os pratos de estanho sem os lavarem. Mercedes saltitando, atravessava-se continuamente no caminho dos homens e desfiava uma algaraviada ininterrupta de reprimendas e conselhos. Quando os homens puseram o saco da roupa na frente ela sugeriu que o deviam pôr atrás; e quando eles o puseram atrás de si e já o tinham até coberto com um par de outros embrulhos ela descobriu coisas esquecidas que não podiam ir senão naquele saco e os desgraçados tiveram que o descarregar outra vez.

Três homens saíram duma barraca das vizinhanças e puseram-se a observar aquilo, arreganhando a cara e piscando o olho uns para os outros.

- Vocês já têm uma carga muito razoável, sim senhor - disse por fim um deles. - Não sou quem Lhes vai dar conselhos, não tenho nada com isso; mas se fosse a vocês não levava a barraca - Nem pensar nisso! - gritou logo Mercedes, erguendo as mãos num belo gesto de consternação senhoril. - Como diabo me ia eu arranjar sem uma barraca?

- Estamos na Primavera, minha senhora, e vocês já não apanham o tempo frio - replicou o homem.

Mercedes abanou a cabeça com decisão e Charles e Hal equilibraram as últimas ninharias no topo da montanha de carga.

- Você acha que isso anda? - tornou um dos homens.

- Porque não? - retorquiu Charles laconicamente.

- Está bem, está bem. - O homem apressou-se a responder com brandura. - Estava só cá a pensar, mais nada. Parecia-me um bocadinho pesado de mais.

Charles virou-lhe as costas e apertou as correias aos cães o melhor que pôde, o que estava muito longe de ser bem.

- Sim, não há dúvida que os bichos podem puxar todo o santo dia com aquele contrapeso atrás deles - afirmou o segundo dos homens.

- Pois claro - disse Hal com cortesia glacial, empunhando o leme do trenó com uma das mãos e brandindo o chicote com a outra. - Vamos! - gritou. - Vamos aí-óó! Para a frente !

Os cães atiraram-se de encontro às correias, puxando com toda a gana durante alguns momentos. Depois afrouxaram. Foram incapazes de fazer mover o trenó - Seus mandriões, eu já vos arranjo - gritou Hal, preparando-se para cair sobre os cães de chicote na mão.

Mercedes, porém, interpôs-se, chorando:

- Oh, Hal, tu não tens o direito-e ao mesmo tempo agarrava-se ao chicote e arrancava-o das mãos do homem. - Coitadinhos!

Vamos, promete-me já que não voltas a ser mau para eles no resto da viagem; se não, não dou mais um passo.

- Sabes muito de cães, não há dúvida - escarneceu o irmão. - Deixas-me mas é em paz. Pois tu não vês que são uns preguiçosos? Só a chicote se faz alguma coisa deles. Eles são assim. Pergunta a quem quiseres. Olha, pergunta a um desses fulanos.

Mercedes olhou para os homens, implorativa: tinha escrita, no rosto bonito, uma indizível repugnância pela visão da dor.

- Fracos é o que eles estão, se estão muito interessados em sabê-lo-foi a resposta dum dos homens. - Arrasadinhos, mais nada. Bem estão a precisar dum descanso.

- Raios partam o descanso, mas é - foi a praga que saiu dos lábios de Hal. E Mercedes ao ouvi-la, aflita, consternada, disse: "oh!" Ela, porém, era uma criatura gregária e num instante já corria em defesa do irmão.

- Não te importes com o que esse diz - exclamou sem mais aquelas. - És tu quem guias os nossos cães, não és? Pois faz-lhes o que entenderes, que é melhor.

Mais uma vez o chicote de Hal caiu sobre os cães. De novo estes se atiraram de encontro às correias, enterraram as patas na neve amontoada, enterraram-se nela e desenvolveram toda a força de que eram capazes. O trenó resistiu como se estivesse ancorado. Após duas tentativas ficaram quietos, arfando. O chicote zimbrava desapiedadamente, quando, uma vez mais, Mercedes se interpôs. Caiu de joelhos diante de Buck, os olhos rasos de lágrimas, e atirou-lhe os braços à volta do pescoço.

- Coitadinhos, coitadinhos - chorava ela cheia de piedade. - Porque é que vocês não puxam com toda a força para não serem chicoteados? - Buck não a podia ver, mas sentia-se naquele momento demasiado infeliz para Lhe poder oferecer resistência, considerando-a como fazendo parte do negregado trabalho daquele dia.

Um dos espectadores, que até ali cerrara os lábios para não dizer qualquer coisa desagradável, não se conteve mais:

- Estou-me nas tintas para o que lhes possa acontecer a vocês, mas, pelos cães, sempre lhes digo que os ajudariam muito se vocês conseguissem libertar esse trenó. Pois não vêem que os deslizadores estão gelados? Façam peso contra o leme, para a direita e para a esquerda, e safem-no, andem.

Fizeram uma terceira tentativa, mas desta vez, seguindo o conselho, Hal desimpediu os deslizadores que tinham gelado de encontro à neve. O trenó, sobrecarregado, moveu-se pesadamente, com Buck e os companheiros debatendo-se debaixo dum turbilhão de pancadas. Uma centena de jardas adiante o caminho fazia uma curva e precipitava-se a pique, na rua principal. Para ter mão num trenó, em tal acidente, era preciso um homem de experiência e Hal estava muito longe de sê-lo. Por isso, ao virar a esquina tem-te não caias, o trenó voltou-se espalhando por entre os arreios lassos metade da carga. Os cães nem sequer pararam. O trenó, aliviado, saltava atrás deles, tombado para um lado.

Estavam enraivecidos pelos maus tratos e pela carga desmesurada. Buck espumava. Disparou a correr com a matilha atrás. Hal bem lhes gritava: "Aíí-óóó! Aíí-óó!", mas não lhe davam atenção. Tropeçou e caiu. O trenó, de borco, rangeu por cima dele e os cães lançaram-se rua acima, espalhando o resto do equipamento ao longo da rua principal, para gáudio de Skaguay.

Alguns cidadãos de bom coração detiveram os cães e apanharam as coisas espalhadas. Depois puseram-se a dar conselhos.

Metade da carga e o dobro dos cães, se é que queriam chegar a Dawson, decretaram eles. Hal, a irmã e o cunhado ouviam contrafeitos; armaram a barraca e passaram revista ao acampamento. Quando apanharam do chão algumas latas de conserva toda a gente desatou a rir, porque conservas em Long Taril era coisa que não lembrava ao diabo!

- Tantos cobertores chegavam bem para um hotel - disse a rir um dos homens que tinham vindo ajudar. - Metade chegava muito bem; deitem-me essa bodega fora. E essa barraca e essa loiça toda, quem é que a vai lavar, não me dirão? Santo Deus, mas vocês julgam que estão a viajar de comboio, em primeira classe, ou quê?

E assim levaram por diante a eliminação inexorável do supérfluo. Mercedes chorou quando esvaziaram no chão os sacos de roupa e deitaram fora peça após peça. Chorava de uma maneira geral e chorava em particular por cada coisa desprezada. Com as mãos fincadas nos joelhos, baloiçava o corpo de trás para diante, esmagada de dor. Garantia que já não dava um passo dali, nem por uma dúzia de Charles. Apelava para tudo e para todos; por fim, enxugando os olhos, começou a arremessar fora até artigos de vestuário estritamente necessários. E, na sua fúria, quando acabou as suas coisas atacou as dos homens como um furacão.

Feito isto, a bagagem reduzida embora a metade era ainda um volume de respeito. A tardinha Charles e Hal ausentaram-se e voltaram com mais seis cães. Estes, como os seis da primitiva matilha, e ainda Teek e Koona, os cães-lobos adquiridos em Rink Rapids aquando da viagem recorde, aumentaram o número de cães para catorze. No entanto, valha a verdade, os novos cães, se bem que praticamente adestrados desde a sua chegada, não contavam grande coisa. Três deles eram perdigueiros de pêlo raso, um era um terra-nova e os outros três rafeiros de raça indeterminada. Estes recém-chegados pareciam não saber coisa alguma. Buck e os companheiros encararam-nos com aversão e embora ele lhes tivesse ensinado rapidamente os seus lugares e o que deviam fazer, não conseguiu ensinar-lhes o que não deviam fazer. Não aceitavam de boa mente os tirantes e os trilhos. Com excepção dos dois rafeiros, estavam desnorteados, de espírito quebrantado pela dureza do ambiente estranho e pelos maus tratos recebidos os dois rafeiros, esses, nem ânimo tinham; as únicas coisas que tinham susceptíveis de ainda se quebrarem eram os ossos.

Com estes recém-chegados, assim desanimados e desamparados, a matilha velha arrasada pelas duas mil e quinhentas milhas de viagem ininterrupta, a perspectiva estava muito longe de ser brilhante. Não obstante, os dois homens andavam radiantes. E vaidosos, ainda por cima. Estavam a fazer as coisas em grande estilo, com nada mais nada menos do que catorze cães. Tinham já visto muitos trenós sair de Pase para Dawson, ou chegar de Dawson, mas nunca tinham visto ainda um único trenó com tantos cães. Pela própria natureza das viagens do Arctico havia uma razão para um só trenó nunca ser puxado por catorze cães e essa razão era simplesmente esta: é que um só trenó não podia transportar comida para catorze cães. Charles e Hal, porém, desconheciam isto. Planeavam a viagem toda de lápis na mão-tanto por cão, tantos cães, tantos dias, quod erat demonstrandum. Mercedes olhava para aquilo por cima do ombro deles e acenava a cabeça com um ar entendido; era tudo tão simples.

No dia seguinte, já a manhã ia adiantada, Buck conduziu a interminável matilha rua acima. Nele e nos companheiros não havia a mínima centelha de vigor ou de entusiasmo. Começavam a viagem já mortos de cansaço. Muitas vezes Buck já cobrira a distância que separa Salt Water de Dawson e só a ideia de que mais uma vez enfrentava o mesmo trilho, cansado e debilitado, enchia-o de azedume. Não punha a alma no trabalho - nem ele nem nenhum dos cães. Os novos porque, tímidos, estavam assustados; os antigos porque não tinham confiança nos donos.

Buck sentia vagamente que não podia confiar nestes dois homens e nesta mulher. Não sabiam coisa alguma e à medida que os dias passavam tornava-se evidente que não poderiam aprender coisa alguma. Eram relaxados em tudo, sem ordem nem disciplina.

Levavam metade da noite a armar mal e desajeitadamente o acampamento, metade da manhã para o desarmar e carregar o trenó de maneira tão desmazelada que levavam todo o resto do dia a parar para ajustar a bagagem. Dias havia em que não chegavam a fazer dez milhas. Outros, em que nem sequer chegavam a partir. E nenhum houve em que chegassem a fazer metade da distância que os homens tinham usado como base dos seus cálculos para a alimentação dos cães.

Era inevitável que, mais dia menos dia, lhes viria a faltar a comida para os animais. Não obstante, apressavam esse momento superalimentando-os, aproximando-se mais depressa do dia em que teriam que lhes reduzir a ração. Os novos cães, cujas digestões a fome crónica não tinham treinado a tirar o máximo do mínimo, mostravam um apetite voraz. E, ainda por cima, quando os cães-lobos, derreados, se puseram a puxar debilmente, Hal concluiu daí que a ração habitual era pequena de mais - duplicou-a. E, para coroar isto tudo, Mercedes com lágrimas nos olhos bonitos e trémulos na voz não conseguindo convencê-lo a dar mais comida aos cães, foi às sacas de peixe e distribuiu-o às escondidas. Não era de comida, porém, que Buck e os cães-lobos mais estavam necessitados, mas de repouso, porque embora estivessem a fazer médias ridículas, a carga pesadíssima minava-lhes as forças inexoravelmente.

Chegou finalmente o racionamento. Hal, um dia, abriu os olhos para o facto de as provisões para os cães estarem reduzidas a metade apesar de se ter percorrido apenas um quarto da distância; e mais, que não podia contar obter nenhum reforço, nem por dinheiro nem pelos seus lindos olhos. Por isso diminuiu a ração habitual e tentou ainda aumentar as médias diárias. A irmã e o cunhado secundaram-no; mas foram frustrados nos seus propósitos pela bagagem monstruosa e pela própria incompetência. Dar menos comida aos cães era coisa fácil; mas era impossível fazer com que os animais andassem mais depressa, quando era a própria incapacidade dos homens em se porem mais cedo a caminho, de manhã, que os impedia de viajar mais horas. Os homens não só não sabiam governar os cães como não sabiam mesmo governar-se a si próprios.

Dub foi o primeiro a sucumbir. Pobre ratoneiro desastrado, sempre apanhado com a boca na botija e castigado, fora, não obstante, um trabalhador esforçado. A sua costela deslocada, sem tratamento e sem repouso fora de mal a pior, de tal modo que, por fim, Hal o abatera a tiro com o seu Colt enorme.

Segundo um ditado da terra, um cão vindo de fora morre à fome com a ração de um cão-lobo; não admira, pois, que os seis novos cães que Buck guiava com metade da ração dum cão-lobo não pudessem fazer outra coisa senão morrer. O primeiro foi o terra-nova, seguido de perto pelos três perdigueiros de pêlo raso; os rafeiros agarravam-se à vida com mais afinco, mas, por fim, acabaram por ir atrás dos outros.

Já por esta altura todas as amenidades e toda a gentileza das terras do Sul tinham desertado dos três indivíduos. Destituída da sua magia e do seu romantismo, a viagem árctica transformara-se-lhes numa realidade demasiado brutal para as suas condições de homem e de mulher. Mercedes desistiu de choramingar pelos cães, demasiado ocupada a chorar por si própria e a querelar com o marido e com o irmão. Aliás, brigar parecia ser a única coisa que os não fatigava. A sua irritabilidade nascia-lhes do desespero, crescia com ele, duplicava-o, ultrapassava-o. A admirável paciência dos homens que labutam duramente na pista e sofrem calados e conservam uma linguagem doce e amável, não era apanágio destes homens e desta mulher. Não possuíam sombra desta resignação. Estavam feridos e empedernidos; doíam-lhes os músculos, os ossos, o próprio coração; talvez por isso se tornarem desabridos no falar e a primeira coisa que diziam logo pela manhã, e a última, à noite, eram palavrões.

Charles e Hal discutiam sempre que Mercedes lhes dava oportunidade para isso. Cada um deles tinha firme convicção que fazia mais trabalho do que lhe competia e nenhum deixava escapar a mais pequena ocasião de o proclamar. As vezes Mercedes punha-se do lado do irmão, outras do marido.

Resultado: uma interminável e comovedora disputa de família. A partir duma discussão sobre quem devia rachar algumas achas de lenha para a fogueira (discussão que dizia unicamente respeito a Charles e Hal), num instante todo o resto da família estava envolvida: pais, mães, tios, primos, pessoas a milhares de milhas de distância, algumas delas já mortas. Nem se percebe a razão por que os pontos de vista de Hal sobre arte ou as peças que o irmão de sua mãe escrevia para sociedades filantrópicas tinham alguma coisa a ver com o rachar lenha para a fogueira; no entanto, a zaragata tanto podia evoluir nessa direcção como na dos preconceitos políticos de Charles. E a razão por que a má-língua da irmã de Charles tinha a sua importância para acender uma fogueira em Yukon, era só aparente para Mercedes, que se desentranhava em copiosas considerações sobre esse assunto, e como por acaso, em outras características desagradáveis peculiares da família do marido. Entretanto, a fogueira ficava por acender, o acampamento por armar e os cães por alimentar.

Mercedes alimentava um agravo muito especial - o agravo do sexo. Ela era bonita e delicada e, desde que se conhecia, tinha sido sempre tratada com cavalheirismo. Ora o tratamento que actualmente lhe davam o marido e o irmão podia ser tudo, menos cavalheiresco. Estava habituada a não fazer nada. Os homens, claro, queixavam-se. E porque lhe punham em causa aquilo que para eles era a prerrogativa mais essencial do seu sexo, ela fazia-lhes a vida num inferno. Já não tinha nenhuma consideração pelos cães e até, porque se sentia magoada e estafada, persistia em ir de trenó. Ela era bonita e delicada, mas pesava cento e vinte libras - uma última palha demasiado pesada para a carga que os animais fracos e esfomeados já arrastavam Desta maneira viajou dias inteiros até que os cães caíram nos trilhos e o trenó ficou quedo. Charles e Hal pediram-lhe para descer e ir a pé, argumentaram com ela, suplicaram-lhe, enquanto ela choramingava e importunava os céus com a descrição da brutalidade deles.

Por fim em certa altura, eles arrancaram-na à força do trenó.

Não o tornariam, porém, a fazer. Como uma criança amimada, ela fez as pernas bambas e deixou-se cair sentada no trilho. Eles continuaram o seu caminho; ela fez um gesto. Depois de terem percorrido três milhas, descarregaram o trenó, voltaram até ela e à força escarrancharam-na outra vez no trenó.

Por excesso do seu próprio infortúnio eram coriáceos para com o sofrimento dos animais. A teoria de Hal, que, aliás, punha em prática com os outros, era de que as pessoas se devem tornar calejadas.

Começara por pregá-la à irmã e ao cunhado. Tendo falhado com estes, pôs-se a experimentá-la com os cães - a cacete. Quando chegaram a Five Fingers as provisões dos cães tinham acabado e uma velha índia squaw prestou-se a trocar algumas libras de pele de cavalo gelada pelo Colt que na anca de Hal fazia companhia à faca de mato. Pobre substituto de comida era esta pele, tal como fora arrancada, às tiras dos cavalos esfomeados dos boeiros, seis meses atrás. Assim, gelada, mais parecia tiras de ferro galvanizado e quando o estômago dum cão lutava com ela fazia-se em fibras de couro delgadas e pouco nutritivas e numa massa de pêlo curto, incomodativa e indigesta.

E no meio de tudo isto, Buck lá ia à cabeça da matilha, como num pesadelo. Puxava quando podia, quando já não podia puxar mais caía e deixava-se ficar estendido até que as chicotadas e as cacetadas o obrigavam a pôr-se outra vez de pé. O seu pêlo perdera já completamente toda a tesura e todo o brilho, e tombava agora desfeito e sujo ou empastado em sangue seco nos sítios martirizados pelo cacete de Hal. Os músculos tinham-se-lhe transformado em cordas nodosas e tinham-lhe desaparecido os refegos de carne, de tal modo que as costelas e os ossos se lhe desenhavam nitidamente através da pele folgada que se enrugava em pregas cheias de vazios. Era de partir o coração, se o coração de Buck fosse da qualidade de partir. O homem do camisolão encarnado tinha-o provado.

O que se dava com Buck acontecia com os companheiros. Eram autênticos esqueletos ambulantes, ao todo sete, incluindo Buck. No seu extremo desespero tinham-se tornado insensíveis à mordedura do chicote ou à contusão do cacete. A dor da pancada chegava até eles esmorecida e distante, da mesma maneira que lhe pareciam amortecidas e longínquas as coisas que os olhos viam e as que os ouvidos ouviam. Não estavam meio-vivos, nem metade disso: eram uns tantos sacos de ossos em que algumas chispas de vida fulgiam baçamente. Quando havia uma paragem deixavam-se cair como mortos e as chispas esmoreciam, empalideciam e pareciam desaparecer de vez. E quando sobre eles caía o cacete ou o chicote, a chispa tornava a tremeluzir debilmente e eles, pondo-se de pé, vacilantes, lá iam aos tombos.

Um dia chegou em que Billee, a de bom feitio, caiu e não pôde levantar-se mais. Hal, que vendera o revólver, puxou do machado e deu com ele na cabeça de Billee, no momento em que ela jazia prostrada nos trilhos; depois, à machadada, arrancou-lhe a carcaça dos tirantes e arrastou-a para o lado.

Buck e os companheiros viram tudo e ficaram cientes que o mesmo destino estava muito próximo deles. No dia seguinte foi a vez de Koona. Apenas restavam cinco: Joe, já sem forças para poder fazer mal; Pike, estropiado, coxo, apenas meio consciente, mas já incapaz de poder fingir; Sol-Leks, o zarolho, fiel ainda ao trabalho dos tirantes e do trilho, de ânimo sombrio por lhe restar pouca força para puxar; Teek, que não andara tanto como os outros nesse Inverno, e que, por estar mais fresco, levava agora mais pancada do que os outros; e finalmente Buck, ainda à cabeça da matilha, mas já não impondo a disciplina, nem sequer tentando impô-la, cego de fraqueza metade do tempo e seguindo o trilho apenas pela intuição que tinha dele e pela sensação amortecida que dele conservavam os pés.

Fazia já um tempo maravilhoso de Primavera, mas nem os cães nem os homens tinham olhos para isso. Cada dia que passava o sol nascia mais cedo e punha-se mais tarde. As três horas da manhã já era dia e o crepúsculo durava até às nove da noite.

Ao longo do dia a luz do sol abrasava. O silêncio espectral do Inverno dera lugar ao amplo murmúrio primaveril do acordar da vida. Este murmúrio erguia-se da terra toda prenhe de alegria de viver. Vinham de todas as coisas que viviam e se moviam outra vez, das coisas que tinham estado adormecidas e inertes durante os intermináveis meses de geada. A seiva palpitava nos pinheiros. Os chorões e as videiras desentranhavam-se em rebentos tenros. Arbustos e vinhas envergavam frescos atavios de verdura. A noite, grilos cantavam e, pelo dia adiante, toda a espécie de coisas que trepam e rastejam, murmuravam ao sol.

Perdizes e pica-paus enchiam a floresta de ruídos.

Esquilos tagarelavam, pássaros cantavam e, muito alto, grasnavam aves selvagens vindas do Sul que fendiam o ar em voos laboriosos em forma de cunha.

Das vertentes vinha o som da água corrente, a música de fontes escondidas. Todas as coisas degelavam, vergavam, estalavam. O rio Yukon tentava libertar-se da prisão de gelo que o sepultava. Ia-o roendo por baixo, enquanto o sol fazia o mesmo por cima. Formavam-se bolhas de ar, abriam-se gretas que se propagavam para os lados, enquanto pedaços de gelo caíam ao rio, como corpos mortos. E, a meio de toda esta eclosão, deste dilaceramento e deste frémito de vida a despontar, debaixo do sol abrasador e através das brisas brandamente sussurrantes - os dois homens, a mulher e os cães cambaleavam como viandantes da morte.

Com os cães a cair, Mercedes a choramingar em cima do trenó, Hal a praguejar baldadamente e Charles, com os olhos ansiados, a gotejar, eles entraram aos tombos pelo acampamento de John Thornton adentro, na embocadura do rio White. Assim que pararam, os cães arrojaram-se ao chão, como se tivessem sido feridos de morte. Mercedes enxugou os olhos e fitou John Thornton. Charles sentou-se num cepo a descansar. Sentou-se muito devagar e com muito cuidado, o que traduzia bem o seu estado de grande entorpecimento. Foi Hal quem falou. John Thornton dava os últimos retoques num cabo de machado que fizera dum ramo de vidoeiro. Enquanto aparava ia ouvindo e dando respostas por monossílabos, e, se lhos pediam, conselhos lacónicos. Conhecera-lhes logo a raça e dava os conselhos na certeza de que nunca Parim.

- Disseram-nos lá em cima que o fundo do rio estava a dar de si e que o melhor que tínhamos a fazer era pôrmo-nos à espera - disse Hal em resposta ao conselho de John Thornton de se não arriscarem por sobre o rio a degelar. - Disseram-nos também que não podíamos chegar a White River; pois, olhe, aqui estamos. - Esta última frase foi dita em ar sarcástico de triunfo.

- E disseram-lhes a verdade - respondeu John Thornton. - o fundo do rio vai abaixo em qualquer altura. Só loucos, com a sorte cega dos loucos, o atravessam. Digo-lhes com toda a franqueza: eu não arriscava a minha carcaça por cima dele nem por o oiro do Alasca.

- Bem, isso é porque o senhor não é louco nenhum, suponho eu - disse Hal. - Mesmo assim, nós vamos até Dawson. - Desenrolou o chicote. - Buck, de pé! Chó! De pé! Para a frente !

Thornton continuou a aparar o seu cabo. Não valia a pena, sabia-o, pôr-se de permeio entre um louco e a loucura: e, bem vistas as coisas, dois ou três loucos a mais ou a menos não alteravam grandemente a ordem geral dos acontecimentos.

A matilha, porém, não se levantou à ordem. Já atingira há muito o estado em que se erguia à pancada. O chicote estalou, aqui e acolá, sem misericórdia. John Thornton apertou os lábios. Sol-Leks foi o primeiro a pôr-se de pé, arrastando-se.

A seguir, Joe, ganindo de dor. Pike fez esforços dolorosos.

Por duas vezes caiu, mas, à terceira tentativa lá conseguiu pôr-se de pé.

Buck, esse, não fez o mínimo esforço. Deixou-se estar deitado, e quieto, onde caíra. O açoute mordeu-o uma e outra vez, mas ele não gemeu nem fez face. Por mais duma vez Thornton fez menção de falar, mas mudava sempre de opinião. Uma humidade cobriu-lhe os olhos e, como as chicotadas não acabassem, levantou-se e pôs-se a andar para cá e para lá, irresoluto.

Era a primeira vez que Buck não obedecia, e isto, por si só, era razão suficiente para enfurecer Hal. Trocou o chicote pelo cacete do costume. Buck, debaixo da chuva de pancadas cada vez mais fortes que caíam agora sobre ele, recusava-se a levantar-se. Como os companheiros, mal podia pôr-se de pé, mas ao contrário deles, decidira não se levantar. Tinha a sensação vaga de desgraça iminente. Apoderara-se fortemente dele, logo ao chegar à margem e nunca mais o abandonara. Pelo gelo frio e esboroado que sentia debaixo das patas durante todo o dia tinha a impressão de desastre iminente, além, precisamente para onde o dono tentava agora arrastá-lo. Recusou-se a esboçar o mínimo movimento. Tão enormemente tinha sofrido, tão perdido se sentia, que as pancadas não o magoavam muito. E, à medida que continuavam a cair sobre ele, a centelha de vida que ainda o habitava vacilava e ia esmorecendo. Quase se extinguia. Sentia-se estranhamente entorpecido. Tinha a consciência, mas muito longínqua, de que estava a ser espancado. As últimas sensações de dor abandonavam-no. Já não sentia coisa alguma, embora, muito desmaiadamente, pudesse ouvir o embate do cacete sobre o seu corpo. Mas já não era do seu corpo que se tratava, tão distante lhe parecia.

Foi então que, subitamente, sem o menor aviso, soltando um grito inarticulado que mais parecia o grito dum animal, John Thornton se atirou ao homem que empunhava o cacete. Hal foi brutalmen te arremessado para trás, como atingido pela queda duma árvore. Mercedes gritou. Charles continuou a olhar ansiosamente, enxugou os olhos aguados, mas não se ergueu sequer, de entorpecido que estava.

John Thornton inclinou-se para Buck, esforçando-se por controlar-se, tão convulsionado que não podia falar.

- Se você torna a pôr as mãos neste cão eu mato-o - conseguiu dizer, por fim, com a voz estrangulada.

- O cão é meu - replicou Hal, limpando o sangue dos lábios, e voltando à carga. - Saia do meu caminho, ou tem que se haver comigo. Eu vou para Dawson.

Thornton pôs-se entre ele e Buck e não mostrava a mínima intenção de se afastar do caminho. Hal puxou da faca de mato.

Mercedes gritava, chorava, ria e manifestava o abandono caótico da histeria. Thornton deu uma pancada rápida nos nós dos dedos de Hal, fazendo-o largar a faca, que caiu no chão.

Quando Hal tentou levantá-la bateu-lhe outra vez nos nós dos dedos. Depois, detendo-se, levantou ele próprio a faca e com dois golpes cortou os tirantes. já não tinha o mais pequeno ânimo para a luta. Além disso tinha as mãos ocupadas com a irmã, ou melhor, os braços; e Buck estava demasiado perto da morte para ser ainda utilizado a puxar o trenó. Alguns minutos mais tarde eles deixavam a margem e desciam em direcção ao rio. Buck ouviu-os partir e ergueu a cabeça para ver. Pike era o guia, Sol-Leks ia junto das rodas e, no meio deles, Joe e Teek. Coxeavam, cambaleantes. Mercedes ia em cima do trenó ajoujado. Hal manejava a direcção e Charles, na retaguarda, lá ia aos tropeções.

Enquanto Buck os observava, Thornton ajoelhou-se ao pé dele e, com as mãos rudes, procurou, ternamente, ossos partidos. O exame nada revelou a não ser muitas contusões e um estado de terrível subalimentação. Por esta altura já o trenó estava a um quarto de milha de distância. O homem e o cão viam-no arrastar-se sobre o gelo. De repente, viram a parte de trás do trenó desaparecer, como num buraco e a direcção erguer-se no ar, com Hal agarrado a ela. Ouviram Mercedes gritar. Viram Charles voltar-se e dar um passo para retroceder, mas nessa altura toda uma secção de gelo cedeu e cães e homens desapareceram. Um buraco hiante era tudo o que restava à vista. O leito do rio cedera debaixo do trilho.

John Thornton e Buck olharam um para o outro.

- Pobre diabo - disse John Thornton, e Buck lambeu-lhe as mãos.

 

POR AMOR DUM HOMEM

Em Dezembro os pés de John Thornton tinham gelado e os companheiros, rodeando-o de todos os confortos, deixaram-no a restabelecer-se, enquanto eles se metiam rio acima com uma jangada cheia de lenha para Dawson. No dia em que viera em auxílio de Buck ainda coxeava levemente, mas com a continuação do bom tempo até esse ligeiro coxear desapareceu. E foi ali, estendido na margem do rio, pelos dias compridos de Primavera, com os olhos fixos na água corrente, ouvindo indolentemente o cantar dos pássaros e o sussurro da natureza, que Buck, pouco a pouco, foi recuperando as forças.

Um descanso calha sempre bem depois de se viajar três mil milhas e, porque não confessar, Buck tornava-se preguiçoso à medida que lhe saravam as feridas, lhe enrijavam os músculos e a carne voltava a cobrir-lhe os ossos. Verdade seja que todos medravam - Buck, John Thornton e Skeet e Nig - enquanto esperavam a jangada que os levaria, rio abaixo, até Dawson. Skeet era uma perdigueira irlandesa, muito pequena, que logo se tornou amiga de Buck quando este, quase moribundo, estava incapacitado de se furtar às suas tentativas de aproximação. Ela possuía aquela vocação para curar que têm alguns cães; e, como uma gata a lavar e a limpar os filhos, ela lavava e limpava as feridas de Buck. Matematicamente, todas as manhãs, depois de ele ter acabado o seu pequeno-almoço, ela vinha desempenhar a tarefa que a si mesma se impusera, de tal modo que Buck começou a desejar os seus cuidados tanto como os de Thornton. Nig, igualmente cordial, embora menos expansivo, era um cão preto, enorme, arraçado de galgo, com olhos que riam e um bom humor sem limites.

Para surpresa de Buck, estes cães não mostravam ter ciúmes dele. Pareciam participar da bondade e da liberdade de John Thornton. A medida que Buck ia ganhando forças, eles desafiavam-no para toda a espécie de brincadeiras ridículas; o próprio Thornton não resistia a juntar-se-lhes; e assim brincando, Buck ia convalescendo e entrava numa nova existência. O amor, o genuíno amor apaixonado, pela primeira vez o conhecia. Nunca tivera a experiência desse amor na quinta do juiz Miller, no vale de Santa Clara inundado pelo sol. Com os filhos do juiz, caçando e vagabundeando, tinha-se tratado duma camaradagem de trabalho; com os netos do juiz, uma espécie de tutela altiva; e com o próprio juiz, uma amizade grave e digna. Mas amor, febre e chama, adoração, loucura, coubera a John Thornton despertar-lhe.

Este homem salvara-lhe a vida, o que já era qualquer coisa; mas, além disso, era o dono ideal. Outros homens cuidavam dos seus cães por um sentido do dever ou por exigências de negócio; este cuidava do bem-estar dos seus como se seus filhos fossem, porque não podia deixar de fazê-lo. E mais:

nunca se esquecia de lhes dirigir uma saudação carinhosa ou uma palavra de encorajamento e de, sentado no chão, ter com eles longas conversas ("conversas fiadas", como ele dizia), sentindo nisso tanto prazer como eles. Tinha uma maneira muito sua de agarrar rudemente a cabeça de Buck entre as mãos, de descansar a cabeça na do cão e de o abanar para diante e para trás, enquanto lhe chamava nomes feios que, para Buck, soavam como palavras de amor. Buck não conhecia maior alegria do que esse rude abraço e do que o som dessas pragas sussurradas, e, a cada movimento, para diante ou para trás, parecia-lhe que o coração, de agitado, lhe saltava do peito, tão grande era o seu êxtase. E quando, já liberto, se punha de pé num salto, o focinho a rir-se todo, os olhos brilhantes, a garganta vibrante de sons inarticulados e assim ficava sem um movimento, John Thornton dizia reverentemente:

- Santo Deus, só te falta falar!

Buck tinha uma maneira quase dolorosa de exprimir o seu amor.

Muitas vezes costumava agarrar a mão de John Thornton entre as mandíbulas e apertá-la com tanta força que a pele do homem guardava a marca dos dentes muito tempo depois. E, da mesma maneira que Buck traduzia pragas para palavras de amor, também o homem entendia esta dentada fingida como uma carícia.

A maior parte das vezes, porém, o amor de Buck exprimia-se em adoração. Embora ficasse louco de felicidade quando Thornton lhe tocava ou Lhe falava, não provocava estas manifestações.

Ao contrário de Skeet, que era costumeira em enfiar o focinho por baixo da mão de Thornton e em esfregar e tornar a esfregar até ser acariciada, ou de Nig, que ia sorrateiramente e apoiava a cabeça enorme nos joelhos do dono, Buck contentava-se em adorá-lo à distância. Podia jazer durante uma hora, tenso, alerta aos pés de Thornton, olhando-lhe para a cara, suspenso dela, perscrutando com o maior interesse a expressão mais fugaz, o mínimo movimento ou alteração do rosto. Ou então, sempre que calhava, ficava deitado bastante longe, ao fundo, observando os contornos do homem e os movimentos ocasionais. E, frequentemente, tão grande era a comunhão em que viviam, a força do olhar fixo de Buck obrigava John Thornton a voltar a cabeça e a devolver o olhar, sem uma palavra, o coração a transbordar-lhe dos olhos como acontecia com Buck.

Muito tempo ainda depois do seu salvamento, Buck não gostava de perder John Thornton de vista. Desde o momento em que ele saía da barraca até àquele em que voltava a entrar nela, Buck não Lhe largava os calcanhares. Os donos efémeros que tinha tido desde que chegara ao Norte alimentavam-lhe o pavor de que nenhum dono podia ser permanente. Tinha medo que John Thornton saísse da sua vida como Perrault e François ou como o mestiço escocês. Mesmo durante a noite, em sonhos, era obsidiado por este terror. Nesses momentos, sacudia o sono e esgueirava-se através do frio para a entrada da barraca, onde quedava a ouvir o som da respiração do dono.

E, no entanto, apesar deste grande amor que dedicava a John Thornton e que parecia um vestígio da suave influência civilizadora, o apelo do primitivo, que o Norte despertara nele, continuava vivo e activo. Fidelidade e devoção, sentimentos que nascem do aconchego da lareira e debaixo dum tecto - conhecia-os ele; conservava, no entanto, a ferocidade e a astúcia. Ele era mais um filho da selva, vindo da selva para se sentar à beira da fogueira de Thornton, do que um cão das terras suaves do Sul, marcado por gerações de civilização.

Seria incapaz de roubar este homem, por virtude do grande amor que lhe tinha, mas a outro homem qualquer, em qualquer acampamento, não hesitaria um instante; e a manha com que o faria permitir-lhe-ia evitar ser descoberto.

Tinha o focinho e o corpo todo riscado pelo dente de muito cão e lutava agora tão ferozmente como nunca e talvez com mais astúcia. É certo que Skeet e Nig tinham demasiado bom feitio para brigar - e, além disso, eram ambos pertença de John Thornton; mas qualquer cão estranho, fosse qual fosse a sua raça ou o seu valor, reconhecia logo a supremacia de Buck ou era de repente obrigado a lutar pela vida com um adversário temível. E Buck não conhecia misericórdia. Aprendera bem a lei do cacete e dos dentes e nunca deixava escapar uma vantagem ou largava um inimigo que lançara no caminho da Morte. Aprendera a lição com Spitz e com os melhores cães lutadores da polícia e da mala e sabia não haver meio termo. Vencedor ou vencido, ter piedade era fraqueza. Não havia piedade na vida primitiva.

Era interpretada com medo e tais equívocos conduziam à morte.

Matar ou ser morto, comer ou ser comido, era essa a lei; e Buck obedecia a esta ordem, provinda das profundezas do Tempo.

Ele era mais velho que os dias que vivera e do que os haustos que respirara. Estabelecia a ligação entre o passado e o presente; e a eternidade que o precedia palpitava através dele num ritmo poderoso que o fazia oscilar como oscilam as marés e as estações. Ali estava ele sentado à beira da fogueira de John Thornton, cão de peito amplo, de garras brancas e de pêlo comprido; mas atrás dele agitavam-se as sombras de cães de toda a casta, semilobos ou lobos bravios exigentes e insinuantes, saboreando a carne que ele comia, sequiosos da água que ele bebia, fareJando com ele o vento, escutando com ele e ensinando-lhe os rumores da vida selvagem da floresta, ditando-lhe os estados de espírito, dirigindo-lhe as acções, deitando-se para dormir com ele, sonhando com ele e para além dele - tornando-se eles próprios a essência dos seus sonhos.

Tão imperiosamente lhe acenavam estas sombras, que cada dia Buck sentia mais longe os homens e as suas exigências. Das profundezas da floresta soava um apelo; e todas as vezes que ele ouvia essa voz, misteriosamente vibrante e hipnotizadora, sentia-se tentado a voltar costas à fogueira e à terra batida que o rodeava para mergulhar na floresta e ir para longe, cada vez mais para longe, não sabia onde nem porquê; nem a Si próprio perguntava para onde e nem porquê: o apelo soava imperiosamente nas profundezas da floresta. Não obstante, sempre que chegava àquela terra suavíssima e inviolada debaixo da sombra verde, o amor por John Thornton obrigava-o a voltar para junto da fogueira.

Apenas Thornton tinha mão nele. O resto da humanidade não contava. Viajantes de acaso podiam elogiá-lo ou mesmo acariciá-lo; ele ficava frio e, perante alguém demasiado expansivo, ele levantava-se e punha-se ao largo. Quando os sócios de Thornton, Hans e Pete, regressaram na jangada, há tanto esperada, Buck recusou dar-se com eles antes de verificar que eram amigos de Thornton; depois disso tolerou-os, mas de maneira passiva, aceitando-lhes os favores como se fosse ele que lhos fazia. Hans e Pete eram do mesmo tipo avantajado de Thornton, como ele vivendo em intimidade com a terra, com pensamentos simples e vistas claras; e a partir do momento em que encalharam a jangada junto da grande enseada perto da serração de Dawson, eles compreenderam imediatamente Buck e as suas manias; e não demoraram muito a fazer com ele uma intimidade como a que já tinham com Skeet e Nig.

Em compensação, o amor de Buck por Thornton parecia não parar de crescer. Na viagem de Verão, apenas ele, de entre os homens, podia pôr qualquer fardo às costas de Buck. Quando era Thornton que mandava, nada lhe parecia demasiado difícil. Um dia (tinham já abastecido a jangada e largado de Dawson pela corrente principal do Tanana), os homens e os cães estavam sentados na crista dum penhasco que descia a pique sobre um leito de rocha nua, a trezentos pés de altura. John Thornton estava sentado à beirinha com Buck encostado a ele. Um capricho insensato apoderou-se dele. Chamou a atenção de Hans e Pete para a experiência que tinha em mente.

- Buck, salta! - ordenou, estendendo o braço por cima do abismo.

Um segundo depois, agarrado a Buck, debatia-se na extremidade do rochedo, enquanto Hans e Pete puxavam os dois para trás, pondo-os a salvo.

- É espantoso! - disse Pete, depois de tudo passado e quando recuperaram a fala.

Thornton abanou a cabeça:

- Não, é maravilhoso e terrível ao mesmo tempo. As vezes tenho medo, sabes?

- Não é o filho da minha mãe que te põe as mãos em cima quando ele estiver ao pé - anunciou Pete à laia de conclusão, apontando Buck com um aceno de cabeça.

- Caramba! - acrescentou Hans. - Nem eu!

Foi na cidade de Circle, ainda não acabara o ano, que se realizaram as apreensões de Pete. Black Burton, homem de maus fígados e velhaco, provocara num bar uma briga com um novato.

Thornton, cheio de boas intenções, pôs-se-lhes de permeio.

Buck, como de costume, estava estendido a um canto, a cabeçorra nas patas, observando todos os movimentos do dono.

Burton, sem dizer água vai, atacou com um soco bem puxado.

Thornton rodopiou sobre si mesmo e só não caiu porque se agarrou à grade do balcão.

Os espectadores ouviram qualquer coisa que não era um ladrido nem um latido, qualquer coisa a que melhor seria chamar urro e viram o corpanzil de Buck levantar-se no ar, do solo à garganta de Burton. O homem salvou a vida porque instintivamente pôs um braço à frente; mas foi violentamente arremessado ao chão, com Buck em cima. Buck descerrou os dentes da carne do braço e atirou-se de novo à garganta. Desta vez o homem apenas se conseguiu libertar em parte e ficou com a garganta aberta, dilacerada. A multidão precipitou-se para Buck e enxotou-o; mas enquanto um médico estancava o sangue, ele rondava para trás e para diante, rosnando de fúria, tentando ainda arremeter só recuando à vista hostil dos cacetes. Uma "assembleia de mineiros", convocada no local, decidiu que o cão sofrera provocação suficiente - e Buck foi absolvido. Porém, a sua reputação estava feita e, desse dia em diante, o seu nome foi pronunciado em todos os acampamentos do Alasca.

Mais tarde, já o ano ia no fim, ele salvou a vida de John Thornton, mas de maneira diferente. Os três sócios dirigiam um barco, comprido e estreito, por perigosa extensão de quedas de água, na enseada de Forty Mile. Hans e Pete corriam ao longo da margem, travando-o com uma corda delgada, passada de árvore a árvore, enquanto Thornton estava dentro do barco, auxiliando a descida com uma vara e gritando ordens para a margem. Buck, em terra, aflito e ansioso, conservava-se a par do barco, não despegando os olhos do dono.

Numa passagem particularmente perigosa, em que uma saliência de rochas mal submersas avançava rio adentro, Hans largou a corda e, enquanto Thornton com a vara arrastava o barco para o meio da corrente, ele corria ao longo da margem com a ponta na mão para travar o barco quando ultrapassasse a saliência. O barco ultrapassou-a realmente, e lá ia arrastado pela corrente, veloz como uma mó de moinho em movimento, quando Hans, querendo detê-lo, o fez talvez demasiado bruscamente. O barco, às guinadas, disparou em direcção à margem já com o fundo para o ar, enquanto Thornton, arremessado de súbito para fora dele, era arrastado corrente abaixo, precisamente para a parte pior dos rápidos, uma extensão de água revolta, em que mesmo o melhor nadador não poderia sobreviver.

Buck num abrir e fechar de olhos atirou-se à água; e ao cabo de trezentas jardas, a meio do remoinho enfurecido da água, alcançou John Thornton. Quando sentiu este agarrar-se-lhe à cauda, Buck tomou a direcção da margem, nadando com toda a sua magnífica força. Mas o avanço em direcção à praia era lento e a força da corrente espantosamente rápida. Vinha do fundo o rugido funesto da corrente, que nesse ponto era mais bravia e se despedaçava em farrapos e em espuma de encontro aos rochedos que a atravessavam como dentes dum pente gigantesco.

O sorvo da água, ao lançar-se finalmente no precipício, era medonho e Thornton compreendeu que era impossível alcançar a praia. Passou vertiginosamente por sobre uma rocha, arranhando-se, ferindo-se de encontro a uma segunda e embateu contra uma terceira com força esmagadora. Com ambas as mãos agarrou-se-lhe ao topo escorregadio libertando Buck; dominando o ronco da água tumultuosa, gritou:

- Volta, Buck, volta!

Buck já não podia resistir e deixava-se ir corrente abaixo, lutando com desespero, mas incapaz de levar a melhor. Quando ouviu a ordem de Thornton pela segunda vez, pôs de um salto a cabeça meio fora da água, erguendo-a ao alto, como para um último olhar e, depois, obedientemente, dirigiu-se para a margem. Nadou poderosamente. E no momento preciso em que a salvação deixava de ser possível e a morte era certa, foi puxado para a praia por Hans e Pete.

Sabendo que um homem não pode estar agarrado a uma rocha escorregadia, face a uma corrente impetuosa, senão uma questão de minutos, Hans e Pete correram, o mais depressa que puderam, pela margem para um ponto muito acima do local em que se encontrava Thornton. Amarraram a corda com que tinham travado o barco, ao cachaço e às espáduas de Buck, de maneira que o não estrangulasse nem Lhe impedisse os movimentos, e atiraram-no à corrente. Ele arrojou-se cheio de coragem, mas não suficientemente para o meio da corrente. Descobriu o erro demasiado tarde, quando, com Thornton a uma escassa meia dúzia de braçadas foi inexoravelmente arrastado para longe.

Hans, prestamente, manejava a corda como se Buck fosse um barco. A corda esticada pela força da corrente arrastou-o para debaixo da água e debaixo de água ele ficou até ser arremessado de encontro à margem e puxado para fora. Estava meio afogado. Hans e Pete deitaram-se a ele para, à força de massagens, Lhe restituírem a respiração e tiraram a água que engolira. Ainda se pôs de pé, vacilante, mas caiu. A voz de Thornton, sumida, chegou até eles, e, embora não conseguissem distinguir as palavras, compreenderam que ele estava desesperado. A voz do dono teve em Buck o efeito dum choque eléctrico. Pôs-se imediatamente de pé e correu para a margem à frente dos homens para o lugar onde fizera a primeira tentativa.

Mais uma vez o amarraram à corda e ele foi arremessado à água, mais uma vez ele se deitou para a frente, mas desta vez mesmo para o meio da corrente. Tinha calculado mal uma vez, mas não incorreria no erro uma segunda vez. Hans ia-lhe dando corda sem folga, enquanto Pete a conservava sem nós. Buck aguentou-se até ficar na mesma linha recta de Thornton; então, voltou-se e, à velocidade dum expresso, dirigiu-se para ele.

Thornton viu-o aproximar-se, e, quando Buck embateu nele como um aríete, com toda a força da corrente a empurrá-lo, ergueu-se com esforço e fechou os braços à volta do pescoço hirsuto do cão. Hans amarrou a corda a uma árvore. Buck e Thornton mergulharam na água. Engasgados, sufocados, qual de cima, qual de baixo, arrastados por sobre o abismo encapelado, atirados de encontro às rochas e saliências, lá alcançaram a margem.

Thornton veio a si de barriga para baixo, violentamente impelido para cá e para lá por Hans e Pete. O seu primeiro olhar foi para Buck, sobre cujo corpo desfalecido e aparentemente sem vida Nig já começara a uivar, enquanto Skeet lhe lambia o focinho molhado e os olhos fechados. O próprio Thornton estava confuso e amachucado, mas, mal se refez, debruçou-se carinhosamente sobre o corpo de Buck e descobriu-lhe três costelas partidas.

- Isto resolve tudo - anunciou. - Vamos acampar mesmo aqui. - E acamparam, realmente, até se soldarem as costelas de Buck e ele poder continuar viagem.

Nesse Inverno, em Dawson, Buck realizou outra façanha, não tão heróica talvez, mas que fez aumentar a cotação da sua fama em todo o Alasca. A façanha foi particularmente grata aos três homens, porque eles bem estavam precisados do equipamento que ela lhes proporcionou, e porque lhes veio permitir empreender uma viagem, que há muito planeavam, ao leste ainda virgem, onde os mineiros não tinham ainda posto o pé. Tudo começara com uma conversa no bar Eldorado, em que os homens se puseram a gabar os seus cães favoritos. Buck, pela sua fama, era o alvo das conversas e Thornton foi obrigado a defendê-lo com veemência. Ao cabo de meia hora um dos homens afirmou que o seu cão podia arrancar e puxar um trenó com quinhentas libras; outro jactou-se de que o seu podia fazê-lo com seiscentas; um terceiro, com setecentas.

- Ora! ora! - disse John Thornton. - Buck pode arrancar mil libras.

- Quê? Arrancá-lo e andar com ele cem jardas? - perguntou Matthewson, um "rei" de Bonanza, o tal que se gabara que o seu cão podia arrancar setecentas libras.

- Sim, senhor, arrancá-lo e andar com ele cem jardas - afirmou John Thornton, displicentemente.

- Muito bem - disse Matthewson vagarosa e deliberadamente para que todos o pudessem ouvir. - Tenho mesmo aqui mil dólares que vão dizer que ele não pode. Aqui estão eles. - E, ao dizer isto, bateu no balcão com um saco de ouro em pó do tamanho dum paio.

Ninguém disse palavra. A fanfarronada de Thornton, se fanfarronada era, seria assim posta à prova. Sentiu uma onda de sangue quente subir-lhe ao rosto. A língua traíra-o. Sabia lá se Buck podia arrancar mil libras! Meia tonelada! A enormidade da cifra aterrava-o. Tinha uma grande fé na força de Buck e muitas vezes já o considerara capaz de arrancar uma carga assim; mas nunca, como agora, tinha encarado a possibilidade disso, com os olhos duma dúzia de homens fixos sobre ele, silenciosos e expectantes. Além do mais não tinha mil dólares; nem os tinham Hans ou Pete.

- Tenho agora mesmo um trenó lá fora precisamente carregado com vinte sacas de farinha de cinquenta libras - continuou Matthewson, brutal e directo. - Portanto, não há problema para você, creio eu.

Thornton não respondeu. Não sabia o que havia de dizer. Mirou as caras de cada um dos homens com o ar abstracto de quem perdeu a capacidade de pensar e procura algures qualquer coisa que lha restitua. Os olhos detiveram-se na cara de Jim oBrien, um "rei" de Mastodonte camarada dos velhos tempos. Foi uma sugestão para ele, parecendo instigar nele o que nunca sonhara fazer.

- Emprestas-me mil "dele"? - perguntou-lhe, quase num murmúrio.

- Mas com certeza - aquiesceu oBrien, atirando um saco recheado de ouro para o lado de Matthewson -, embora não acredite, caro John, que o bicho faça tal coisa.

O Eldorado despejou na rua, para verem a prova, todos os fregueses. As mesas ficaram desertas e os guardas-florestais saíram a ver o resultado das apostas e a fazer também as suas.

Alguns cem homens, guarnecidos de peles, enluvados, postaram-se à volta do trenó, a uma distância razoável. O trenó de Matthewson, ajoujado com as mil libras de farinha, já estava parado há um bom par de horas; e ao frio intenso (fazia sessenta graus abaixo de zero), os deslizadores, gelando, aderiram à neve bem batida. Os homens apostaram dois contra um em como Buck não conseguia fazer mexer o trenó. Levantou-se uma discussão sobre o problema de saber o que se devia entender pela palavra "arrancar". OBrien era de opinião que Thornton tinha o direito de soltar antes os deslizadores, deixando Buck "arrancar" dum ponto morto. Matthewson insistia em que a palavra "arrancar" abrangia soltar os deslizadores das garras geladas da neve. A maior parte dos homens que tinham assistido às apostas decidiu a seu favor, pelo que as apostas subiram a três contra um, em desfavor de Buck.

Aliás, não houve ninguém a favor. Nenhum homem o julgava capaz da proeza. O próprio Thornton fora levado à aposta cheio de dúvidas; e agora que olhava o trenó, facto concreto, com a matilha da praxe de dez cães enroscados diante dele, mais impossível lhe parecia a façanha. Matthewson, pelo contrário, não cabia em si de contente.

- Três contra um - proclamou. - Aposto mais mil dólares, contra um, Thornton. Que diz você?

A dúvida estava estampada na cara de Thornton, mas o seu espírito combativo acordara-o espírito combativo que se eleva acima das desigualdades, se recusa a reconhecer impossíveis e a tudo é surdo, salvo ao clamor da batalha. Chamou Hans e Pete de parte. As sacas de ouro dum e doutro eram magras, e, com as de John, os três companheiros apenas puderam reunir duzentos dólares. Ao cabo de todas as suas andanças esta soma era o único capital que possuíam; não obstante, puseram-na sem a mínima hesitação contra os seiscentos de Matthewson.

A matilha de dez cães foi desatrelada e Buck, com os seus arreios próprios, foi atrelado ao trenó. A excitação contagiara-o e ele sentia que, duma maneira ou doutra, tinha que realizar qualquer coisa de grande para John Thornton. A sua aparição esplêndida levantou murmúrios de admiração. Estava em perfeita forma, sem uma onça de carne supérflua e as cento e cinquenta libras que pesava eram outras tantas libras de energia e de força. O pêlo brilhava como o lustro da seda. Pescoço abaixo, através das espáduas, a crina, em repouso embora, eriçava-se-lhe ao menor movimento, como se o excesso de vigor tornasse cada pêlo vivo e activo. O peito amplo e as poderosas pernas dianteiras estavam em proporção com o resto do corpo, onde os músculos se traíam em rolos compactos debaixo da pele.

Os homens vieram apalpar-lhe os músculos e proclamaram-nos rijos como ferro - e as apostas desceram de dois contra um.

- Caramba, amigo! Caramba, amigo! - gaguejava um membro da última "dinastia", um "rei" de Skookum Benches. - Dou-lhe oitocentos por ele antes da prova, amigo; oitocentos por ele, tal como está.

Thornton abanou negativamente a cabeça e foi pôr-se ao lado de Buck.

- Têm que sair de ao pé dele - protestou Matthewson. - Jogo limpo e espaço em barda.

A multidão fez silêncio; apenas se ouviam as vozes dos jogadores oferecendo, em vão, dois contra um. Todos reconheciam que Buck era um animal magnífico, mas vinte sacas de cinquenta libras tomavam volume demasiado grande a seus olhos para alargarem os cordões à bolsa.

Thornton ajoelhou ao pé de Buck. Tomou-lhe a cabeçorra nas mãos e encostou-lhe a cara ao focinho. Não o abanou, a brincar, como de costume, nem lhe disse ternas pragas de amor; mas murmurou-lhe ao ouvido:

- Por amor de mim, Buck. Por amor de mim.

Eis o que lhe sussurrou. Buck latiu de ânsia reprimida.

A multidão observava-os, cheia de curiosidade. O caso estava a tornar-se misterioso. Dava a impressão duma conjura. Quando Thornton se levantou, Buck agarrou-lhe a mão entre as mandíbulas, premindo-a com os dentes e libertando-a vagarosamente, quase com relutância. Era a resposta, em termos, não de conversa, mas de amor. Thornton deu um passo, grande, para trás.

- Agora, Buck! - disse.

Buck esticou os tirantes, depois folgou-os coisa dalgumas polegadas. Assim aprendera.

- Chóó! - A voz de Thornton soou vibrante no silêncio tenso.

Buck obliquou para a direita e rematou o movimento com um impulso que acabou com a folga; depois, com um sacão repentino, suspendeu as suas cento e cinquenta libras. A carga estremeceu e dos deslizadores ergueu-se um ruído de estalidos secos.

- Chóó! - ordenou Thornton.

Buck repetiu a manobra, desta vez para a esquerda. O estalido tornou-se estalo, o trenó girou sobre si mesmo e os deslizadores escorregaram e resvalaram algumas polegadas para o lado. O trenó estava liberto. Os homens sustinham a respiração, sem terem a consciência disso.

- Agora, para a frente!

A ordem de Thornton estalou como um tiro de pistola. Buck atirou-se para a frente, esticando os tirantes, num ruidoso arranque. Todo o corpo se contraiu num esforço tremendo, os músculos distendendo se e enovelando se como coisas vivas debaixo do pêlo sedoso. O peito amplo a rasar o chão, a cabeça baixa lançada para diante, enquanto as patas voavam como doidas e as garras escalavravam, na neve bem batida, sulcos paralelos. O trenó oscilou, estremeceu, quase descolava. Uma das patas escorregou-lhe e um homem gemeu alto. Então, o trenó, aos bordos, avançou no que parecia ser uma sucessão rápida de solavancos, embora na realidade nunca mais parasse... meia polegada... uma... duas polegadas... Os solavancos foram diminuindo perceptivelmente; e à medida que o trenó ganhava ritmo, dominou-os e passou a deslizar com estabilidade.

Os homens arfavam e respiravam de novo, inconscientes de que, por um momento, tinham deixado de o fazer. Thornton corria adiante, encorajando Buck com palavras breves e animadoras. A distância tinha sido marcada, e, à medida que o cão se aproximava da pilha de lenha que assinalava o fim das cem jardas, começou a crescer uma ovação, que se transformou num berro quando ele ultrapassou a meta e, à ordem de parar, estacou. Todos perderam a cabeça, inclusive Matthewson. Voavam chapéus e luvas. Os homens apertavam as mãos, não importava de quem e havia um alarido geral de incoerente babel.

Entretanto, Thornton ajoelhava diante de Buck. Cabeça contra cabeça, abanava-o para cá e para lá. Os que corriam para eles ouviram-no rogar pragas - pragas compridas e veementes, brandas e carinhosas.

- Caramba, homem! Caramba, homem! gaguejava o "rei" de Skookum Benches. - Dou-lhe mil por ele, homem, mil... mil e duzentos, homem!

Thornton pôs-se de pé. Os olhos estavam marejados. As lágrimas corriam-lhe francamente pela cara abaixo.

- Homem - respondeu ao "rei" do Skookum Benches -, não! E vá para o diabo, homem. É o melhor que lhe posso fazer.

Buck agarrou com os dentes na mão de Thornton. Thornton abanou-o de trás para diante. Como animados dum impulso comum, os mirones recuaram para uma distância respeitável; não cometeriam segunda vez a indiscrição de os interromper.

Buck, ao ganhar para John Thornton mil e seiscentos dólares em cinco minutos, permitiu ao dono saldar certas dívidas e pôr-se, com os companheiros, a caminho do leste à procura duma fabulosa mina perdida, cuja história era tão antiga quanto a história da região. Muitos homens a tinham procurado; alguns tinham-na encontrado; mas a maior parte deles nunca regressou da aventura. A mina estava imersa em tragédia e amortalhada em mistério. Ninguém conhecera o primeiro homem que a encontrara.

A tradição mais remota perdia-se antes de chegar até ele.

Desde o princípio existia ali uma cabana antiga e desmoronada.

Moribundos, à hora da morte, tinham jurado por ela e pela mina cujo lugar assinalava, confirmando o seu testemunho com pepitas de ouro dum quilate até então desconhecido nas terras do Norte. Porém, nenhum homem trouxera esse tesouro para casa e os mortos, mortos estavam; por tudo isto, John Thornton, Pete e Hans, com Buck e meia dúzia doutros cães, fizeram rumo a leste por um trilho desconhecido, decididos a triunfar onde outros homens e outros cães tão bons como eles tinham falhado.

Andaram setenta milhas Yukon acima; chegados ao rio Stewart voltaram para a esquerda, ultrapassaram Mayo eMcQuestion, continuaram até onde o mesmo Stewart se transforma num riacho e contorna os picos alterosos que definem a espinha dorsal do continente.

John Thornton exigia muito pouco do homem e da natureza. Não tinha medo da selva. Com uma mão-cheia de sal, apenas, e uma carabina, podia mergulhar no ermo e andar por onde lhe desse na real gana e pelo tempo que quisesse. Não tendo pressa, como os índios, caçava o jantar no decurso do dia de viagem; e se calhava não encontrá-lo, como o índio continuava a viagem, seguro de que mais tarde ou mais cedo ele apareceria. Deste modo, nesta grande viagem para leste, a carne fresca era a ementa habitual, as munições e as ferramentas constituíam a carga principal do trenó e o horário estava traçado sobre o futuro ilimitado.

Para Buck eram um prazer sem limites estes dias passados a caçar e a pescar e este vaguear infindável através de lugares desconhecidos. Durante semanas, avançavam, firmes, dia após dia; e, durante semanas, acampavam aqui e além, os cães madraçando e os homens abrindo covas e fogo através do estrume e do cascalho gelados e lavando, ao calor das fogueiras, um sem-número de panelas sujas. Umas vezes seguiam sem comer, outras banqueteavam-se até à saciedade, tudo conforme a abundância da caça e a sorte dos tiros. O Verão chegou, e homens e cães, carga às costas, atravessavam em jangada lagos azulíssimos das montanhas, e desciam ou subiam rios desconhecidos em frágeis barcos talhados nas árvores de florestas imemoriais.

Os meses vinham e iam, e eles, para trás e para diante, insinuavam-se através da vastidão que ainda não vinha nos mapas, onde não havia homens, mas onde, no entanto, eles já tinham estado, a ser verdadeira a história da Cabana Perdida.

Atravessaram vertentes debaixo de nevões do Estio, tiritaram ao sol da meia-noite sobre montanhas escalvadas entre a linha das florestas e as neves eternas, desceram a vales quentes por entre enxames de mosquitos e de moscas, e, na sombra dos glaciares, apanharam morangos tão maduros e flores tão belas como aqueles de que se vangloria o Sul. Ao cair do ano penetraram numa região de lagos fantasmagórica, triste e silenciosa, habitada outrora por aves selvagens, mas onde agora não havia vida nem sinais dela - apenas o soprar do vento gelado, formações de neve em sítios abrigados e o sussurro melancólico das ondas em praias solitárias.

E por todo outro Inverno vaguearam pelos trilhos já apagados dos homens que tinham ali vindo antes deles. De uma vez depararam com um caminho aberto na floresta, um caminho antiquíssimo: a Cabana Perdida parecia estar perto. Porém, o caminho começava algures e acabava não se sabia onde, e permaneceu para eles tão misterioso como o homem que o abrira e a razão por que o fizera. De outra vez encontraram, por acaso, uma cabana de caça destroçada e, entre os destroços de cobertores apodrecidos, John Thornton topou com uma espingarda de pederneira, de cano comprido. Reconheceu-a como sendo uma espingarda da Companhia da Baía de Hudson, dos velhos dias do Noroeste em que tais espingardas valiam o seu peso em peles de castor bem calcadas. E era tudo - do homem que num dia longínquo construíra a cabana e deixara a espingarda entre as mantas, nem sinal.

A Primavera chegou mais uma vez, e, ao cabo de todo este vaguear, eles encontraram, não a Cabana Perdida, mas, a meio dum amplo vale, um charco pouco profundo, que deixava, no fundo da vasilha de lavagem, ouro como manteiga amarela. Não procuraram mais longe. Cada dia de trabalho rendia-lhes milhares de dólares, em pó e em pepitas, e todos os dias trabalhavam. Metiam o ouro em sacos de pele de veado, cinquenta libras por saco, e empilhavam-nos como lenha, junto à cabana de madeira de abeto. Como gigantes mourejavam, dia após dia - velozes os dias passavam como relâmpagos, como sonhos - à medida que acumulavam o tesouro.

Para os cães nada havia a fazer a não ser, de vez em quando, arrastar para o acampamento alguma caça, que Thornton matava; e, por isso, Buck passava horas esquecidas modorrando ao pé da fogueira. A visamo do homem peludo de pernas curtas visitava-o com maior frequência, agora que havia muito pouco trabalho a fazer; e muitas vezes, piscando os olhos ao fogo, Buck vagueava com ele nesse outro mundo de que se lembrava.

A coisa mais saliente desse outro mundo parecia ser o medo.

Quando observava o homem peludo a dormir junto ao fogo, a cabeça entre os Joelhos, as mãos apertadas acima, Buck bem via que ele dormia inquieto, cheio de sobressaltos e que acordava muitas vezes para espreitar, medrosamente, a escuridão e deitar mais lenha na fogueira. Se passeavam na praia, junto ao mar, onde o homem peludo apanhava mariscos e os ia comendo à medida que os apanhava, era com olhos que sondavam, em todos os cantos, perigos ocultos e com pernas preparadas para fugir como o vento, assim que ele surgisse. Através da floresta esgueiravam-se ambos sem barulho, Buck colado aos calcanhares do homem peludo; os dois alerta, vigilantes, as orelhas arrebitadas e as narinas frementes, porque o homem tinha o ouvido e o faro tão apurados como Buck. O homem peludo podia saltar às árvores e podia andar em cima delas tão depressa como no chão, suspendendo-se pelos braços de ramo em ramo, separados às vezes de doze pés, deixando-se ir pelo ar até se agarrar a outro ramo, nunca falhando, nunca perdendo a mão. De facto, ele parecia tão à vontade em cima das árvores como no chão; e Buck recordava-se de noites de vigília passadas debaixo das árvores em que o homem peludo bem agarrado, se empoleirava para dormir.

Muito próximo das visões do homem esta o apelo que continuava a soar vindo das profundas da floresta. Enchia-o de enorme desassossego e de desejos estranhos. Causava-lhe um sentimento vago e doce de alegria e acordava-lhe anelos e impulsos selvagens, não sabia de quê. As vezes, perseguia o apelo na floresta, procurando-o como se se tratasse de coisa tangível, ladrando baixinho ou em desafio, conforme a disposição.

Mergulhava o focinho no musgo fresco das árvores ou no solo negro onde crescia a erva alta e resfolgava de prazer com o cheiro enjoativo da terra; ou, então, agachava-se durante horas, como quem se esconde, atrás de troncos de árvores caídas e já cobertas de fungos, de olhos e de ouvidos muito abertos para tudo o que se movia e fazia barulho à sua volta.

Talvez que, assim deitado, ele esperasse surpreender aquela voz que não podia compreender. No entanto, não sabia por que fazia estas coisas todas. Era impelido a fazê-las sem de maneira alguma pensar acerca delas.

Irresistíveis impulsos apoderavam-se dele. Podia estar deitado no acampamento, dormitando preguiçosamente na hora mais quente do dia, quando de repente, levantava a cabeça e espevitava as orelhas, atento, o ouvido à escuta; e de um salto punha-se de pé e disparava a correr, durante horas, para longe, cada vez mais para longe, através das neves da floresta e das clareiras onde as peónias cresciam a esmo. Gostava de descer, correndo, os cursos de água já secos e, esgueirando-se, surpreender a vida dos pássaros nos bosques. Chegava a ficar um dia inteiro deitado, escondido na vegetação, donde podia observar as perdizes picando as árvores e pavoneando-se de cá para lá. Mas gostava muito especialmente de correr no lusco-fusco das noites de Verão, escutando os murmúrios abafados e sonolentos da floresta, decifrando os sinais e os sons como quem lê um livro, procurando essa coisa misteriosa, o que quer que fosse que o chamava, acordado ou não, a todos os momentos, para que ele a seguisse.

Uma noite em que dormia, acordou sobressaltado e pôs-se de pé dum salto, os olhos esgazeados, as ventas palpitantes, farejando, a crina eriçando-se-lhe em ondas sucessivas. Da floresta chegava o apelo (ou uma nota dele, porque habitualmente a voz tinha muitas notas), distinto e imperativo como nunca fora antes, um uivo prolongado, igual, e no entanto diferente ao de qualquer cão-lobo. E ele reconhecia nele um som qualquer já antes ouvido, familiar e antigo. Furtivamente, sem fazer barulho, atravessou o acampamento adormecido e correu para o bosque. A medida que se ia aproximando da voz, ia diminuindo a marcha, com movimentos cautelosos, até chegar a uma clareira entre as árvores; e, olhando à sua frente, viu, erecto sobre os quadris, focinho apontado ao céu, um lobo magro, comprido, seco.

Buck não tinha feito o mais pequeno ruído; mesmo assim o lobo parou de uivar e procurou aperceber-se da sua presença. Buck, pé ante pé, entrou na clareira, meio agachado, o corpo tenso, a cauda direita, tesa, colocando as patas com desusado cuidado.

Todos os movimentos denunciavam ao mesmo tempo a ameaça e o convite à amizade. Era a trégua ameaçadora que caracteriza os encontros das feras. O lobo, porém, ao vê-lo, fugiu. Buck seguiu-o, aos saltos, na ânsia de o alcançar. Conduziu-o ao canal sem saída, no leito da enseada, onde um monte de lenha barrava o caminho. O lobo voltou-se, girando sobre as patas traseiras, à maneira de Joe e de todos os cães-lobos acuados, rosnando, eriçado, batendo muitas vezes os dentes numa rápida sucessão de estalos.

Buck não atacou, mas andou à volta dele e envolveu-o em investidas amigáveis. O lobo estava desconfiado e amedrontado:

Buck tinha três vezes o peso dele e a sua cabeça mal lhe chegava às espáduas. Assim que encontrou uma oportunidade deitou a fugir e a perseguição recomeçou. De vez em quando era apanhado e a cena repetia-se, porque o lobo estava fraco, caso contrário Buck não o teria alcançado com tanta facilidade.

Corria até a cabeça de Buck estar a par do flanco; então, ao sentir-se apanhado, voltava-se para ele, apenas para tornar a fugir à primeira oportunidade.

Mas, ao fim e ao cabo, a pertinácia de Buck foi recompensada, porque o lobo, vendo que o outro não lhe queria mal, consentiu finalmente em que esfregassem os focinhos. Ficaram amigos e começaram a brincar daquela maneira nervosa e meio envergonhada com que as feras desmentem a sua agressividade.

Depois de algum tempo desta brincadeira o lobo começou a andar num galope ligeiro que, iniludivelmente, indicava dirigir-se a um sítio determinado. Deu claramente a entender a Buck que devia segui-lo e, lado a lado, os dois correram ao lusco-fusco sombrio, pelo leito da enseada acima, direitos ao desfiladeiro donde ela brotava e através da encosta desolada onde se formava.

Passando para a encosta oposta à queda-d'água desceram para uma região plana onde havia grandes extensões de floresta e por elas correram sem parar, horas a fio, enquanto o Sol subia cada vez mais alto no horizonte e o dia ia aquecendo. Buck sentia uma alegria selvagem. Sabia que estava finalmente a responder ao chamamento, correndo ali, lado a lado com o seu irmão da floresta, a caminho do sítio donde certamente Lhe viera a voz. Assaltavam-no recordações antigas e ele estremecia como outrora com as realidades de que elas eram a sombra. Isto já ele fizera antes, algures, nesse outro mundo obscuramente recordado. E fazia-o agora outra vez correndo ao ar livre, com a terra virgem debaixo das patas, o céu infinito sobre a cabeça.

Quando pararam para beber num arroio inquieto, Buck lembrou-se de John Thornton. Sentou-se. O lobo, esse, continuou o seu caminho, rumo ao sítio donde lhe vinha, certamente, a voz; depois, voltou-se até ele e esfregou-lhe o focinho com o seu e fazendo-lhe outros tagatés, como a encorajá-lo. Buck, porém, virou-lhe as costas e encetou, vagarosamente, o caminho do regresso. Quase durante uma hora o irmão selvagem correu ao lado dele, latindo baixo. Depois, sentou-se e, focinho apontado ao céu, uivou. Era um uivo tristíssimo, e, enquanto Buck seguia o caminho sem se voltar, ouvia-o enfraquecer, enfraquecer, até se perder na distância.

John Thornton jantava, quando Buck, precipitando-se pelo acampamento adentro, se atirou a ele num frenesim de afeição, derrubando-o, subindo por ele acima, lambendo-lhe a cara, mordendo-lhe a mão - "as maluqueiras do costume" - como logo as definiu John Thornton, ao sacudir Buck enquanto lhe rogava pragas, amorosamente.

Durante dois dias e duas noites Buck não abandonou o acampamento nem perdeu nunca John Thornton de vista. Seguia-o enquanto trabalhava, observava-o quando comia, via-o meter-se entre os lençóis de noite e sair deles de manhã. Mas passados dois dias o chamamento da floresta começou a soar mais imperiosamente do que nunca. O desassossego apoderou-se dele outra vez e obcecavam-no as recordações do seu irmão selvagem, da terra ridente para além do desfiladeiro e da correria de ambos, lado a lado, através das extensões enormes da floresta.

Mais uma vez começou a vaguear pelos bosques, mas o irmão selvagem nunca mais voltou; e embora ele estivesse à escuta, durante longas vigílias, o uivo tristíssimo nunca mais se fez ouvir.

Começou a dormir as noites fora, ficando dias seguidos sem voltar ao acampamento; e uma vez atravessou a vertente no extremo da enseada e desceu até à região de floresta e de arroios. Aí vagabundeou durante uma semana inteira buscando, em vão, vestígios recentes do seu irmão selvagem, matando para comer, enquanto avançava e caminhava a passo largo e ligeiro que parecia não o fatigar. Apanhou salmões num riacho grande que se lançava algures no mar; foi perto desse riacho que ele matou um urso negro, enorme, que os mosquitos haviam cegado quando também apanhava peixe e que, furioso, desencabrestou pela floresta fora, terrível e desamparado. Mesmo assim foi um combate difícil, que acendeu os últimos restos da ferocidade latente de Buck. Dois dias mais tarde, ao voltar para junto da sua vítima, surpreendeu uma dúzia de lobos que disputavam os despojos; foi fácil pô-los em debandada e os que fugiram deixaram atrás de si dois que nunca mais disputariam.

A ânsia de sangue crescia dentro dele, imperiosamente. Era um assassino, um ser que pilhava, que vivia doutros seres vivos, sem auxílio, solitário, só por virtude de força e destreza, sobrevivendo triunfantemente num ambiente hostil onde só os fortes podem sobreviver. Por tudo isto, encheu-se dum orgulho em si próprio, orgulho que se comunicou, como por contágio, a todo o corpo. Via-se isto em todos os seus ademanes, era aparente no jogo de todos os seus músculos, gritante mesmo na maneira como pisava, e tornava-lhe ainda mais resplandecente, se possível, o pêlo magnífico. Não fosse o castanho desgarrado do focinho e acima dos olhos, e a pincelada branca que lhe corria a meio do peito, podia muito bem ser tomado por um lobo gigantesco, se bem que maior entre os maiores da sua raça. Do pai são-bernardo herdara estatura e peso; mas fora a mãe pastora que dera forma a essa estatura e a esse peso. O focinho, era o focinho comprido dum lobo, salvo ser maior que o de qualquer outro lobo; e a cabeça, um tanto mais volumosa, era uma cabeça de lobo em proporções maciças.

A astúcia era astúcia de lobo, uma astúcia selvagem; a inteligência, inteligência de cão pastor, de são-bernardo; e tudo isto - mais uma experiência adquirida na mais dura das escolas - fazia dele uma criatura tão formidável como nenhuma outra das que percorriam a selva. Animal carnívoro, vivendo duma dieta estrita de carne, ele estava na pujança, na vaga alta da sua vida, transbordante de vigor e vitalidade. Quando Thornton, acariciando-o, lhe passava a mão ao longo do dorso, cada pêlo, ao contacto, descarregava magnetismo contido. Todas as partes, corpo e cérebro, tecido nervoso e fibras, estavam afinadas ao mais alto grau; e entre todas as partes existia um equilíbrio ou ajustamento perfeito. As imagens, aos sons e aos eventos que requeriam acção; respondia com a rapidez do relâmpago. Para atacar ou para se defender saltava duas vezes mais rápido do que um cão-lobo. Via o movimento ou ouvia o som e respondia em menos tempo do que o necessário a outro cão para poder apenas ver ou ouvir. Via, deliberava e respondia ao mesmo instante. Para ser exacto, as três acções de ver, deliberar e reagir sucediam-se no tempo; porém, tão infinitesimais eram os intervalos entre elas, que mais pareciam simultâneos. Os músculos estavam sobrecarregados de vitalidade e entravam em acção, estalando desabridamente, como molas de aço. A vida corria através dele num fluxo tão esplêndido, jubiloso e exuberante, que mais parecia querer aniquilá-lo de puro êxtase e derramar-se generosamente por sobre o mundo.

- Este cão .é único - disse um dia John Thornton aos companheiros que olhavam Buck a afastar-se do acampamento.

- Quando o fizeram, partiram o molde pela certa - observou Pete.

- Caramba! Também digo - concordou Hans.

Viram-no sair do acampamento, mas não viram a transformação súbita e terrível que Buck sofreu ao penetrar no íntimo da floresta. Já não andava. Num instante transformou-se numa coisa da selva, esgueirando-se cautelosamente, de andar felino, sombra transitória a surgir e a desaparecer entre as sombras. Sabia tirar vantagem de todos os abrigos, arrastar'se. sobre o ventre como uma cobra e, como uma cobra, saltar e atacar. Podia arrancar do ninho um galo bravo, matar um coelho que dormia, abocanhar no ar os esquilos que tentavam fugir demasiado tarde para cima das árvores. Os peixes, nas lagoas abertas, não eram suficientemente rápidos para lhe escapar; nem os castores, ao consertarem os seus diques subterrâneos, eram suficientemente cautelosos. Matava para comer, não por desfastio; preferia comer o que ele próprio matava. Por isso uma ponta de humor escondido percorria todos os seus actos. Comprazia-se em surpreender os esquilos e, depois de os agarrar, deixá-los fugir, mortos de medo, para o cimo das árvores, algaraviando.

Ao aproximar-se o fim do ano os veados apareceram em grande quantidade, deslocando-se vagarosamente para o Sul, para que o Inverno os fosse surpreender nos vales mais baixos e de clima menos rigoroso. Buck já uma vez abatera um veado jovem, desgarrado; mas cobiçava ardentemente uma vítima maior e mais temível Uma dia deu com ela na vertente, à saída da enseada.

Uma manada de vinte veados, tendo por chefe um enorme macho, viera da região dos rios e das florestas. Enfurecido e medindo seis pés acima do solo, era um adversário tão formidável quanto Buck o podia desejar. O macho sacudia no ar, para cá e para lá, uma enorme armação espalmada que se ramificava em catorze pontas, com sete pés de uma ponta à outra. Nos olhos, pequenos, ardia-lhe uma luz cruel e maliciosa e rugiu de fúria à vista de Buck.

Dum dos flancos saía-lhe a ponta emplumada duma flecha, o que explicava eloquentemente a sua fúria. Guiado por aquele instinto que lhe vinha dos velhos dias de caça do mundo primitivo, Buck começou por tentar afastar o macho do resto da manada. Não era empresa fácil. Teve que ladrar e saltar à frente do veado, fora do alcance das hastes enormes e dos terríveis cascos bifurcados que podiam arrancar-lhe a vida dum só golpe. Incapaz de voltar as costas ao perigo e continuar avante, o macho enfurecia-se até ao paroxismo.

Nessas ocasiões, carregava sobre Buck, que retrocedia astuciosamente, enganando-o com uma inabilidade simulada para fugir. Mas quando desta maneira ele foi separado dos companheiros, dois ou três dos machos mais jovens carregaram sobre Buck, o que permitiu ao veado ferido juntar-se de novo à manada.

Existe uma espécie de paciência muito própria da selva - incansável, persistente como a vida - que conserva imóvel, durante horas esquecidas, a aranha na sua teia, a serpente em rosca e a pantera na emboscada; ora esta paciência - muito peculiar da vida que caça alimento vivo - possuía-a Buck ao acompanhar o flanco do rebanho, atrasando-lhe a marcha, irritando os machos jovens, criando preocupações às corças pela vida dos seus gamos mal crescidos e enchendo o veado ferido de raiva impotente. Isto continuou durante meio dia.

Buck multiplicava-se, atacando de todos os lados, envolvendo a manada num turbilhão de ameaças, barrando o caminho à sua vítima sempre que ela ia reunir-se aos companheiros, arrasando a todos a paciência, já de si pequena, porque a paciência das criaturas perseguidas é sempre menor do que a dos que perseguem.

A medida que o dia ia morrendo e o Sol descaía para nordeste (a escuridão voltara e a noite levava então seis horas a descer), os veados novos iam mostrando cada vez maior relutância em voltar atrás para auxiliar o chefe cercado. A aproximação do Inverno arrastava-os para as regiões mais baixas e parecia que nunca mais se veriam livres desta criatura implacável que lhes atrasava o passo. Além disso, não era a vida da manada, ou a dos jovens machos, que estava ameaçada. Era apenas exigida a vida dum membro, o que era dum interesse menor do que as vidas de todos. No fim, ficariam contentes, por pagar o tributo de passagem.

O lusco-fusco caía, quando o velho cervo, de cabeça baixa, se deixou ficar, a observar os companheiros - as corças que conhecera, os gamos que gerara, os machos que submetera - que desapareciam, a passo rápido, na luz esmaecida. Não os podia seguir porque, diante dele, se erguia, implacável, um monstro de colmilhos brancos, que o não deixava. Pesava mais de meia tonelada: mais de trezentos quilos; vivera longa vida viril, plena de perigos e de combates, e no fim, ia encontrar a morte nos dentes duma criatura cuja cabeça não lhe alcançava os altos joelhos nodosos.

Daí em diante, dia e noite, Buck não mais abandonou a sua vítima nem lhe concedeu um momento de descanso, não lhe consentindo sequer comer as folhas tenras no alto das árvores ou o rebento dos vidoeiros novos e dos salgueiros; nem matar a sede nos ribeiros quase secos que atravessavam. Muitas vezes, desesperado, este entregava-se a longas, vertiginosas correrias. Nessas ocasiões, Buck não tentava sequer detê-lo, mas galopava ligeiro atrás dele, satisfeitíssimo com a feição que o jogo ia tomando - deitando-se quando o veado parava, atacando-o com ferocidade quando ele tentava comer ou dormir.

A cabeça enorme, debaixo da ramada dos chifres, pendia-lhe cada vez mais e o seu trote tornava-se lento a olhos vistos.

Deu, a certa altura, para ficar longos períodos com o focinho ao rés do solo e as orelhas pendentes de desespero e fraqueza; e, assim, Buck encontrou-se com mais tempo para procurar água para si e para descansar. Nesses momentos, arfando, a língua vermelha pendente, os olhos fixos no veado enorme, parecia-lhe que uma transformação estava a dar-se na face das coisas.

Parecia-lhe sentir um estremecimento novo sobre a terra.

Quando os veados chegavam, outras espécies de vida apareciam.

A floresta, as correntes, o próprio ar, pareciam palpitar com a sua presença. Notícia disso teve ele, não através da vista ou do ouvido, ou do olfacto, mas através doutro sentido mais subtil. Nada ouvira, nada vira; no entanto, sabia que a terra estava, dalguma maneira, diferente; que novas coisas se erguiam e vagueavam; decidiu investigar o quê, depois de ter liquidado o assunto que tinha entre mãos.

Finalmente, ao findar do quarto dia, abateu o grande veado.

Durante um dia e uma noite conservou-se junto dos despojos, comendo e dormindo. Então, apaziguado, fresco, forte, virou o focinho na direcção do acampamento e de John Thornton. Num trote ligeiro, avançou, durante horas, sem se enganar uma única vez no caminho emaranhado, direito a casa, através de regiões desconhecidas, com uma certeza de orientação de envergonhar o homem e a sua agulha magnética.

A medida que prosseguia, mais e mais tomava consciência do novo estremecimento que havia na terra. Havia nela uma vida estranha, diferente da que a habitara no Verão. Este facto já não chegava até ele por forma misteriosa e subtilíssima. Os pássaros falavam dele em voz baixa, e os esquilos, a própria brisa. Muitas vezes, parava, e, na manhã fresca, aspirava o ar aos haustos e decifrava qualquer mensagem que o fazia seguir mais depressa e aos saltos. Oprimia-o uma sensação de calamidade iminente, se não mesmo de calamidade já acontecida; e quando atravessou o último curso de água e desceu ao vale em direcção ao acampamento, começou a avançar com maior cautela.

Três milhas adiante deparou com um trilho recente que lhe ondeou e eriçou o pêlo do pescoço. Ia dar directamente ao acampamento de John Thornton. Buck estugou o passo, ligeiro e firme, os nervos tensos, atento à multidão de detalhes que contavam uma história inteira - menos o final. O olfacto fornecia-lhe o relato variado da passagem da vida cujos vestígios seguia. Deu conta do silêncio ansiado da floresta. A passarada tinha debandado. Os esquilos de viam estar escondidos. Apenas viu um, e esse cinzento-claro, estava espalmado contra um ramo seco, cinzento-escuro, de tal maneira que mais parecia ser parte dele, excrescência de madeira da própria árvore.

Buck, ao esgueirar-se ao longo das árvores, como escura sombra escorregadia, virou de repente o nariz para o lado, como se uma força autêntica lho tivesse agarrado e puxado. Seguiu o novo rasto até um maciço de árvores e deparou com Nig. Jazia de lado, morto, no sítio até onde se arrastara, com uma seta a sair-lhe, ponta e penas, de cada um dos lados do corpo.

Cem jardas adiante Buck deparou com um dos cães de tiro que Thornton comprara em Dawson. Debatia-se nas vascas da morte, mesmo em cima do trilho; Buck passou por ele sem se deter. Do acampamento vinha o ruído desmaiado de muitas vozes, que subia e descia como uma ladainha. Avançou de rastos para o limiar da clareira e topou com Hans, de borco crivado de setas como um porco-espinho. No mesmo instante Buck avistou o que fora a cabana de ramos de abeto e o que viu pôs-lhe em pé o pêlo do lombo e do cachaço.

Uma onda de raiva incontida inundou-o. Não deu por que estava a rugir, mas rugiu alto com ferocidade terrível. Pela última vez na sua vida deixou que a paixão se lhe sobrepusesse à astúcia e à razão; e foi por causa do seu grande amor por John Thornton que ele perdeu a cabeça.

Os Yeehats dançavam à roda dos destroços da cabana de madeira de abeto, quando ouviram um rugido assustador e viram atirar-se a eles um animal como nunca tinham visto antes. Era Buck, vivo furacão de fúria, que arremetia sobre eles num frenesi de destruição. Atirou-se ao primeiro homem que encontrou pela frente (era o chefe dos Yeehats), e rasgou-lhe a garganta que ficou, hiante, a esguichar, pela fenda, uma fonte de sangue. Não se deteve a esfacelar a vítima; passou adiante, dilacerando com um segundo salto a garganta a outro homem. Nada podia detê-lo. Mergulhou no meio deles, despedaçando, rasgando, destruindo, num movimento constante e terrífico, que desafiava as setas que lhe disparavam. Na realidade, tão incrivelmente rápidos eram os seus movimentos e tão intimamente estavam misturados, que estes disparavam as setas uns sobre os outros; e houve até um Juvenil caçador que, ao atirar a lança a Buck, a enterrou no peito de outro caçador, com tal força, que a ponta atravessou a pele das costas do desgraçado e ficou à mostra do outro lado. Então, o pânico apoderou-se dos Yeehats e eles fugiram tomados de terror, através da floresta, proclamando, enquanto corriam, o Advento do Espírito do Mal.

E, na realidade, Buck era bem a encarnação do demónio, encarniçando-se-lhes na peugada e derrubando-os como se fossem gamos, ao fugirem através das árvores. Foi um dia funesto para os Yeehats, aquele. Dispersaram-se pelos quatro ventos daquela terra; e foi apenas uma semana mais tarde que os últimos sobreviventes se reuniram num vale mais abaixo para contar as perdas. Quanto a Buck, estafado da perseguição, regressou ao acampamento abandonado. Encontrou Pete no lugar onde fora assassinado, entre os lençóis, ao primeiro momento de surpresa. A luta desesperada de Thornton estava escrita de fresco sobre a terra e Buck farejou os mínimos detalhes até à beira da lagoa profunda. Mesmo à beirinha, cabeça e pernas dianteiras já dentro de água, jazia Skeet, fiel até ao fim. A própria lagoa, lamacenta e descolorida das caixas das eclusas, escondia avaramente o que continha - e continha John Thornton.

Buck seguira-lhe o rasto até à água, precisamente, e o rasto não ia mais além.

Todo aquele dia Buck meditou junto à lagoa ou vagueou sem descanso através do acampamento. A morte, como a cessação do movimento, como a passagem para fora de si e para além das vidas dos seres vivos, ele conhecia-a, e por isso compreendeu que John Thornton estava morto. Deixara nele um vazio imenso, dalguma maneira semelhante à fome, mas um vazio que lhe doía, doía, e que nenhuma comida poderia fazer cessar.

Por vezes, ao deter-se para contemplar os cadáveres dos Yeehats, esquecia a sua dor; e, nessas ocasiões, tomava consciência dum enorme orgulho em si próprio - um orgulho como nunca experimentara até então. Matara o homem, das caças a mais nobre de todas, e matara-o à face da lei do cacete e dos dentes. Cheirava os corpos com curiosidade. Tinham morrido com demasiada facilidade. Era muito mais difícil matar um cão-lobo do que isto. Não seriam mesmo adversários dignos, não fossem as setas, as lanças e os cacetes. Doravante não teria medo deles, a não ser quando armados de setas, lanças e cacetes. Caiu a noite e a lua cheia subiu no céu, bem alto por sobre as árvores, iluminando de tal maneira a terra, que esta ficou banhada por uma luz diurna fantasmagórica. E com a chegada da noite, meditando e velando ao pé do lago, Buck tomou consciência dum novo estremecimento de vida diferente do causado pelos Yeehats. Ergueu-se, alerta, farejando. De muito longe vinha até ele um ganido desmaiado, agudo, seguido por um coro de outros ganidos agudos semelhantes. De minuto para minuto os ganidos ficavam mais altos e mais próximos. Mais uma vez Buck os reconheceu como sendo coisas ouvidas nesse outro mundo que lhe persistia na memória. Caminhou para o centro da clareira e pôs-se a ouvir. Era o apelo, a voz de muitas notas, que soava mais tentadora e imperativa do que nunca. E como nunca, ele estava disposto a obedecer. John Thornton estava morto. Quebrara-se o último elo. O homem e as exigências do homem já não o prendiam.

Caçando o seu sustento, enquanto os Yeehats lhes davam caça, nas fileiras dos veados migradores, a alcateia atravessara finalmente a região dos arroios e das florestas e invadira o vale de Buck. Entraram de roldão, como uma onda prateada, na clareira banhada pelo luar; e no centro da clareira estava Buck, imóvel, como uma estátua, esperando-lhes a chegada.

Pararam aterrados, tão imóvel e grande lhes pareceu, e houve um momento de espera, até que o mais ousado deles saltou, direito a ele. Como um relâmpago, Buck atacou, partindo-lhe o pescoço. Depois, deixou-se ficar, como antes, sem um movimento, enquanto o lobo atingido se estorcia na agonia, atrás dele. Outros três tentaram sucessivamente a sua sorte com a maior veemência; e um após outro, recuaram, escorrendo sangue das gargantas abertas e dos lombos rasgados.

Isto foi suficiente para atirar para a frente a alcateia inteira, em confusão, misturados todos e impedindo-se uns aos outros, na ânsia de derrubar o adversário. A rapidez maravilhosa de Buck e a sua agilidade davam-lhe grande vantagem. Apoiando-se nas pernas traseiras, tentando abocanhar e rasgar à sua volta, estava simultaneamente em todos os sítios, apresentando uma frente aparentemente inteiriça, tão rapidamente rodava sobre si mesmo e se defendia de todos os lados. Porém, para evitar que o surpreendessem por trás, foi obrigado a recuar, para lá da lagoa e para dentro do leito da enseada; só se deteve junto da margem alta de cascalho. Conseguiu desviar-se para a direita, para um ângulo da margem cavado no decorrer da mineração e aí se entrincheirou, protegido dos três lados; agora, só tinha que fazer face.

E tão bem se houve que, ao cabo de hora e meia, os lobos recuaram destroçados. Estavam todos com as línguas pendentes e mostravam as dentuças cruelmente brancas, à luz do luar.

Alguns estavam deitados com a cabeça erguida e as orelhas arrebitadas para a frente; outros, de pé, observavam Buck; outros ainda, sorviam a água da lagoa. Então, um deles - comprido, escanzelado e cinzento - avançou, cautelosamente, com ademanes de amigo, e Buck reconheceu nele o seu irmão selvagem com o qual correra durante um dia e uma noite. Gemia de manso e, quando Buck gemeu também, encostaram os focinhos.

Então, um lobo velho, descarnado e coberto de cicatrizes, avançou. Buck arreganhou as mandíbulas como quem se prepara para rosnar, mas acabou por esfregar o focinho no dele. Feito isto, o lobo velho sentou-se, apontou o focinho para a lua e desentranhou-se todo num longo uivo de lobo. Os outros sentaram-se e uivaram. Agora o apelo chegava a Buck em acentos inconfundíveis. Sentou-se também e uivou. De pois saiu do seu canto e a alcateia rodeou-o, cheirando-o de maneira meio amistosa, meio selvagem. Os chefes ergueram o grito da alcateia e precipitaram-se, floresta adentro. Os outros lobos seguiram-nos ganindo em coro. E Buck foi atrás deles, lado a lado com o seu irmão selvagem, ganindo enquanto corria.

E a história de Buck pode acabar aqui. Não passaram muitos anos sem que os Yeehats começassem a notar uma transformação na raça dos lobos da floresta: porque passaram a ser vistos muitos com manchas castanhas na cabeça e no focinho e com uma listra branca correndo-lhes pelo centro do peito abaixo. Mas, muito mais extraordinário do que isto, os Yeehats falam dum Cão Fantasma que corre à cabeça da alcateia. Eles temem este Cão Fantasma porque a sua astúcia é maior do que a deles e porque lhes assalta os acampamentos durante os invernos rigorosos, roubando-lhes as armadilhas, matando-lhes os cães e desafiando os mais bravos dos seus caçadores.

Mas ai!, a história torna-se mais sombria. Caçadores há que nunca mais voltam ao acampamento e outros têm sido encontrados com a garganta cruelmente aberta e com pegadas de lobo à volta, na neve, porém, maiores do que as de qualquer lobo. No outono, quando os Yeehats seguem o movimento dos veados, há um certo vale em que nunca entram. E mulheres há que ficam tristes sempre que, à volta da fogueira, ouvem contar que o Espírito do Mal escolheu esse vale para morar.

No entanto, não há Verão sem que o vale tenha um visitante que os Yeehats não conhecem. É um lobo enorme, de pêlo resplandecente como o de qualquer lobo e, no entanto, diferente. Sozinho, atravessa a região ridente das florestas e desce até uma clareira aberta entre o arvoredo. Aí um ribeiro amarelo corre entre sacos de pele de veado apodrecidos e some-se no solo, na erva alta que cresceu a meio dele e do musgo que o invadiu e lhe escondeu do sol a cor amarela. Aí, o lobo fica absorto durante algum tempo, uivando longa e tristissimamente, antes de partir.

Mas nem sempre vem só. Quando chegam as longas noites de Inverno e os lobos perseguem as suas vítimas até os vales mais baixos, ele pode ser visto a correr à cabeça da alcateia, através da palidez do luar ou da claridade baça da aurora boreal, saltando, gigantesco, acima dos companheiros, com a imensa goela escancarada, porque entoa a canção do princípio do mundo, a canção da alcateia.

 

                                                                                            Jack London  

 

                      

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