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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O APRENDIZ / Tess Gerritsen
O APRENDIZ / Tess Gerritsen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O APRENDIZ

 

Hoje vi um homem morrer.

Foi um acontecimento inesperado e ainda me sinto maravilhado perante o facto de este drama se ter desenrolado mesmo à minha frente. Tão pouco do que passa por excitação na nossa vida pode ser previsto que temos de aprender a saborear os espectáculos conforme aparecem e apreciar as raras emoções que pontuam a passagem do tempo, de outro modo monótona. Os meus dias decorrem lentamente aqui neste mundo atrás de muros, onde os homens são meros números, diferenciados não pelos nomes, nem pelos seus talentos inatos, mas pela natureza dos seus delitos. Vestimo-nos da mesma maneira, comemos as mesmas refeições, lemos os mesmos livros gastos que tiramos do mesmo carrinho da mesma prisão. Os dias são iguais. Mas, depois, algum incidente surpreendente lembra-nos que a vida não vale um chavo.

Foi o que aconteceu hoje, dia dois de Agosto, que acordou gloriosamente quente e soalheiro, precisamente como eu gosto. Enquanto os outros homens suam e se arrastam como gado letárgico, eu ponho-me no meio do pátio com o rosto voltado para o sol como um lagarto a impregnar-se de calor. Tenho os olhos fechados e por isso não vejo o golpe da faca, nem vejo o homem cambalear para trás e cair. Mas ouço ressoar vozes agitadas e abro os olhos.

A um canto do pátio, jaz um homem a sangrar. Todos recuam e assumem as habituais máscaras de indiferença de quem não viu nem ouviu nada.

Só eu me dirijo para o homem que está caído.

Por momentos, fico a olhar para ele. Tem os olhos abertos e está consciente; para ele, não devo passar de uma silhueta escura contra o brilho do céu. É jovem, de cabelo louro-esbranquiçado, barba rala. Abre a boca, de onde sai uma espuma rosada. Uma mancha vermelha espalha-se-lhe pelo peito.

Ajoelho a seu lado e rasgo-lhe a camisa, pondo à mostra o ferimento, mesmo do lado esquerdo do esterno. A lâmina resvalou entre as costelas e decerto lhe perfurou o pulmão e talvez lhe tenha rasgado o pericárdio. É uma ferida mortal e ele sabe disso. Tenta falar comigo. Move os lábios sem emitir qualquer som e esforça-se por focar os olhos. Quer que eu me incline mais, talvez para ouvir uma derradeira confissão, mas não estou minimamente interessado no que ele tem para dizer.

Concentro-me antes no ferimento. No sangue.

Estou muito habituado ao sangue. Conheço a sua composição. Manipulei inúmeros tubos com sangue e admirei as suas muito diferentes tonalidades de vermelho. Centrifuguei-o até se separar em colunas bicolores de células amontoadas e soro cor de palha. Conheço o seu brilho, a sua textura sedosa. Vi-o correr em regatos acetinados de pele acabada de cortar.

O sangue jorra-lhe do peito como água benta de uma fonte sagrada. Pressiono a palma da mão contra aferida, banhando apele naquele calor líquido, e o sangue cobre-me a mão como uma luva escarlate. Julga que estou a tentar ajudá-lo e um breve lampejo de gratidão ilumina-lhe os olhos. O mais provável é este homem nunca ter recebido muita caridade na sua curta vida; que ironia, eu ser confundido com a face da misericórdia!

Atrás de mim, botas arrastam-se e vozes ladram ordens:

Para trás! Toda a gente para trás!

Alguém me agarra pela camisa e me põe de pé. Sou empurrado para trás, para longe do moribundo. A poeira redemoinha e o ar fica impregnado de berros e pragas conforme somos reunidos a um canto. O instrumento de morte, uma navalha, está abandonado no chão. Os guardas exigem respostas, mas ninguém viu nada, ninguém sabe de nada.

Nunca ninguém sabe.

No caos daquele pátio, permaneço ligeiramente à parte dos outros presos, que sempre me evitaram. Levanto a mão ainda a pingar com o sangue do mono e inalo a sua fragrância suave e metálica. Só pelo cheiro, sei que é sangue jovem, tirado de carne jovem.

Os outros presos fitam-me e afastam-se mais ainda. Sabem que sou diferente; sempre o pressentiram. Por muito brutais que estes homens sejam, olham-me de esguelha, porque sabem quem e o quê eu sou. Perscruto-lhes os rostos, em busca do meu irmão de sangue. Um como eu. Não o vejo, pelo menos aqui, nem mesmo nesta casa de homens monstruosos.

Mas ele existe. Sei que não sou o único da minha espécie que caminha sobre a terra.

Algures, há outro. E espera por mim.

 

As moscas formavam já um enxame. Quatro horas no chão quente da zona sul de Boston tinham assado a carne pulverizada, libertando o equivalente químico à sineta que chama para o jantar, e o ar vibrava com o zumbido das moscas. Embora o que restava do tronco estivesse agora coberto com um lençol, ainda havia muito tecido exposto onde os necrófagos se banqueteavam. Pedacinhos de matéria cinzenta e outras partes não identificáveis estavam dispersos pela rua num raio de cerca de dez metros. Um fragmento de crânio aterrara numa floreira do segundo andar e farrapos de carne estavam colados aos carros estacionados.

A detective Jane Rizzoli possuíra sempre um estômago forte, mas até ela teve de parar, de olhos fechados e punhos enclavinhados, furiosa consigo mesma por esse momento de fraqueza. Não percas a cabeça. Não percas a cabeça. Era a única detective da Brigada de Homicídios do Departamento de Polícia de Boston e sabia que os projectores impiedosos estavam sempre focados nela. Qualquer erro, qualquer triunfo, seriam notados por todos. O seu colega, Barry Frost, já vomitara o pequeno-almoço humilhantemente à vista do público e estava agora sentado, com a cabeça entre os joelhos, no veículo com ar condicionado, à espera que o estômago se acalmasse. Jane não podia permitir-se ser vítima de náuseas. Era o agente da lei mais visível em cena e do outro lado do cordão da polícia o público observava e registava cada movimento que ela fazia e cada pormenor do seu aspecto. Sabia que parecia mais nova do que os seus trinta e quatro anos e sentia-se constrangida por ter de manter um ar de autoridade. Compensava o que lhe faltava em altura com um olhar frontal e ombros direitos. Aprendera a arte de dominar qualquer local apenas com o ar firme da sua presença.

Mas aquele calor estava a minar-lhe a determinação. Começara o dia vestida com o fato de calça e casaco do costume e com o cabelo perfeitamente penteado. Agora, já sem casaco, tinha a blusa enrugada e a humidade frisara-lhe o cabelo em caracóis indomáveis. Sentia-se assaltada em todas as frentes pelos cheiros, pelas moscas e pelo sol escaldante. Havia muita coisa em que tinha de concentrar-se ao mesmo tempo. E todos os olhares a observavam.

Vozes alteradas chamaram-lhe a atenção. Um homem de camisa engomada e gravata tentava convencer um polícia a deixá-lo passar.

Ouça, tenho uma reunião de vendas, está a perceber? Já estou uma hora atrasado. Mas vocês puseram a maldita fita da polícia em volta do meu carro e agora dizem-me que não o posso tirar? Mas o carro é meu!

Isto é o local de um crime.

Foi um acidente!

Ainda não esclarecemos isso.

Vocês precisam do dia todo para perceber isso? Porque não ouvem o que estamos a dizer? Toda a vizinhança ouviu o que aconteceu!

Rizzoli aproximou-se do homem, cujo rosto estava coberto de suor. Eram onze e meia e o sol, perto do zénite, brilhava como uma brasa.

O que foi que o senhor ouviu, exactamente? perguntou.

O mesmo que toda a gente resmungou o homem.

Uma pancada forte.

Sim. Por volta das sete e meia. Estava mesmo a sair do duche. Olhei pela janela e lá estava ele, estendido no passeio. Como pode ver, a esquina é perigosa. Os condutores estúpidos surgem a uma velocidade de morcegos a fugir do inferno. Deve ter sido um camião que lhe bateu.

O senhor viu o camião?

Não.

Ouviu o camião?

Não.

E nem sequer ouviu um automóvel?

Automóvel, camião... Encolheu os ombros. Bateram e fugiram.

Era a mesma história, repetida meia dúzia de vezes pelos vizinhos do indivíduo. Algures entre as sete e um quarto e as sete e meia da manhã, ouvira-se na rua uma pancada forte. Ninguém vira realmente o acontecimento. Tinham simplesmente ouvido o barulho e descoberto o corpo do homem. Rizzoli já considerara e rejeitara a hipótese de o homem ter saltado de uma janela. Era um bairro de edifícios de dois andares, nada suficientemente alto que explicasse os estragos catastróficos no corpo de quem se atirasse. Também não via indícios de qualquer explosão que fosse a causa de tal desintegração anatómica.

Ouça, já posso tirar o carro? perguntou o indivíduo. É aquele Ford verde.

O que tem miolos espalhados na porta da bagageira?

Sim.

Que lhe parece? resmungou ela, e afastou-se para junto do médico legista, que se encontrava agachado no meio da estrada, estudando o asfalto.

As pessoas desta rua são umas cretinas disse Rizzoli. Ninguém quer saber da vítima. Nem sequer sabem quem é.

O Dr. Ashford Tierney não ergueu a cabeça para ela e continuou a olhar fixamente para a estrada. Sob os escassos fios de cabelo prateado, o crânio brilhava de suor. O Dr. Tierney estava com um aspecto mais envelhecido e mais desgastado do que ela alguma vez lhe vira. Depois, ao tentar erguer-se, estendeu a mão a pedir ajuda. Ao pegar-lhe na mão, sentiu estalar os ossos cansados e as articulações artríticas. Era um velho cavalheiro sulista, natural da Geórgia, que nunca simpatizara com a franqueza bostoniana de Rizzoli, assim como ela nunca simpatizara com o seu carácter formal. A única coisa que tinham em comum eram os restos mortais que passavam pela mesa de autópsias do Dr. Tierney. Mas, ao ajudá-lo a pôr-se de pé, teve pena da sua fragilidade e lembrou-se do avô, cuja neta preferida fora ela, talvez porque ele se reconhecesse no seu orgulho e tenacidade. Lembrava-se de o ajudar a sair da poltrona e de como a mão paralisada por uma trombose pousava no braço dela como uma garra. Até homens tão enérgicos como Aldo Rizzoli o tempo reduz a ossos e articulações quebradiços. Via os seus efeitos no Dr. Tierney, que cambaleava sob o calor enquanto puxava do lenço e enxugava o suor da testa.

É um caso muito interessante para encerrar a minha carreira declarou. Por isso, diga-me, detective, vem à minha festa de aposentação?

Hum... que festa? perguntou Rizzoli.

A que estão todos a planear para me fazerem uma surpresa. Ela suspirou e admitiu:

Sim, vou.

Ah! Consigo sempre uma resposta directa de si. É para a semana?

Daqui a duas semanas. E eu não lhe disse nada, está bem?

Ainda bem que disse. Baixou os olhos para o asfalto. Não aprecio muito surpresas.

Então, que temos aqui, doutor? Atropelamento e fuga?

Isto parece ser o ponto de impacto.

Rizzoli olhou para a grande mancha de sangue. Depois, observou o cadáver envolto num lençol e que jazia no passeio a uns bons três metros e meio de distância.

Quer dizer que ele, primeiro, bateu no chão aqui e depois ressaltou para ali? perguntou Rizzoli.

Assim parece.

Tinha de ser um camião bastante grande para causar tal ressalto.

Camião, não foi a resposta enigmática de Tierney. Começou a andar ao longo do passeio e a olhar para trás.

Rizzoli seguiu-o, afastando os enxames de moscas. Tierney deteve-se a cerca de um metro de distância e apontou para um montículo acinzentado na curva.

Mais matéria cerebral observou.

Um camião não fazia isto? perguntou Rizzoli.

Não. Nem um carro.

E quanto às marcas de pneu na camisa da vítima? Tierney endireitou-se e prescrutou a rua, os passeios e os prédios.

Nota alguma coisa interessante neste local, detective?

Tirando o facto de haver ali um indivíduo morto a quem faltam os miolos?

Olhe para o ponto de impacto. Tierney fez um gesto para o local da estrada onde estivera agachado antes. Está a ver o padrão de dispersão das partes do corpo?

Sim. Espalharam-se em todas as direcções. O ponto de impacto está no centro.

Exacto.

É uma rua movimentada disse Rizzoli. Os veículos fazem a curva demasiado depressa. Além disso, a vítima tem marcas de pneu na camisa.

Vamos lá olhar outra vez para essas marcas.

Quando regressavam para junto do corpo, juntou-se-lhes Barry Frost, que emergira finalmente do automóvel com ar abatido e algo envergonhado.

Caramba! gemeu.

Sentes-te bem? perguntou ela.

Achas que apanhei alguma gastrite ou quê?

Quê. Rizzoli sempre gostara de Frost, sempre apreciara a sua maneira de ser, esclarecida e paciente, e detestava vê-lo com o orgulho tão em baixo. Deu-lhe uma palmadinha no ombro e fez um sorriso maternal. Frost parecia convidar ao espírito materno, mesmo em alguém tão pouco maternal como Rizzoli. Da próxima vez, trago-te um saco para o enjoo.

Sabes disse ele, seguindo-a, acho mesmo que é uma gastrite...

Chegaram junto do corpo. Tierney gemeu ao baixar-se, com as articulações a protestar perante mais aquele insulto. O médico ergueu o lençol. Frost empalideceu e recuou um passo. Rizzoli combateu o impulso para fazer o mesmo.

O corpo quebrara-se em duas partes, separando-se ao nível do umbigo. A metade superior, vestida com uma camisa de algodão bege, estava estendida no sentido leste-oeste. A metade inferior, vestida de calças de ganga, jazia no sentido norte-sul. As duas metades estavam ligadas apenas por umas tiras de pele e músculo. Os órgãos internos tinham saltado e jaziam numa massa reduzida a polpa. A metade posterior do crânio estilhaçara-se e abrira-se e o cérebro fora cuspido.

Jovem do sexo masculino, bem alimentado, parece ser de origem hispânica ou mediterrânica, nos seus vinte a trinta anos disse Tierney. Vejo obviamente fracturas da coluna ao nível do tórax, costelas, clavículas e crânio.

Um camião não conseguia fazer isto? perguntou Rizzoli.

Decerto que é possível um camião provocar estragos maciços como estes. Olhou para Rizzoli e os seus olhos azul-claros desafiaram os dela. Mas ninguém ouviu nem viu tal veículo, pois não?

Infelizmente, não admitiu ela. Finalmente Frost conseguir emitir um comentário.

Sabem uma coisa? Não me parece que estas marcas na camisa sejam de um pneu de camião.

Rizzoli concentrou-se nas listas pretas na parte da frente da camisa da vítima. Com a mão enluvada, tocou numa das nódoas com o dedo. Uma mancha preta transferira-se para a luva de borracha. Fitou-a por momentos, processando a nova informação.

Tens razão disse. Não é uma marca de pneu. É óleo.

Ergueu-se e olhou para a rua. Não viu marcas de pneu ensanguentadas nem destroços de automóvel. Nenhum fragmento de vidro ou plástico que se tivesse estilhaçado com o impacto contra um corpo humano.

Por instantes, ninguém falou. Limitaram-se a olhar uns para os outros quando, de repente, a única explicação possível encaixou no seu lugar. Como que a confirmar a teoria, um jacto rugiu por cima das suas cabeças. Rizzoli inclinou-se e viu um 747 passar e aproximar-se para aterrar no Aeroporto Internacional Logan, localizado a cerca de oito quilómetros para nordeste.

Oh, meu Deus exclamou Frost, cobrindo os olhos por causa do sol. Que maneira de morrer. Por favor, digam-me que já estava morto quando caiu.

Há muito boas probabilidades respondeu Tierney. Era capaz de afirmar que o corpo escorregou quando as rodas desceram na aproximação à pista. Isso, partindo do princípio de que o voo se dirigia para cá.

Com certeza afirmou Rizzoli. Quantos passageiros clandestinos tentam sair do país? Olhou para a pele cor de azeitona do homem. Portanto, vem num avião proveniente, digamos, da América do Sul...

Teria voado a uma altitude de pelo menos dez mil metros disse Tierney. Os compartimentos das rodas não são pressurizados. Um clandestino teria de lidar com uma rápida descompressão. Frio. Mesmo no pino do Verão, as temperaturas a essas altitudes são gélidas. Algumas horas nessas condições e sofreria de hipotermia e ficaria inconsciente por falta de oxigénio. Ou então foi esmagado quando o trem de aterragem recolheu após a descolagem. Uma viagem prolongada no compartimento do trem de aterragem acabaria com ele, muito provavelmente.

O bíper de Rizzoli interrompeu a aula, porque com toda a certeza aquilo se ia transformar numa lição e o Dr. Tierney estava só a iniciar a sua explanação professoral. Rizzoli olhou para o número do bíper, mas não o reconheceu. Prefixo de Newton. Pegou no telemóvel e ligou.

Detective Korsak respondeu um homem.

Aqui, Rizzoli. Telefonou-me?

Está a falar de um telemóvel, detective?

Estou.

Consegue arranjar um telefone fixo?

De momento, não. Não sabia quem era o detective Korsak e estava ansiosa por acabar com a conversa Porque não me diz do que se trata?

Uma pausa. Ouviu vozes de fundo e o crepitar de um walkie-talkie da polícia.

Estou em Newton, no local de um crime respondeu o indivíduo. Acho que devia vir cá ver isto.

Está a pedir a ajuda da polícia de Boston? É que posso encaminhá-lo para outra pessoa qualquer da nossa brigada.

Tentei falar com o detective Moore, mas disseram-me que está de licença. Por isso estou a telefonar-lhe. Fez nova pausa e, depois, acrescentou em tom bastante carregado de significado É sobre aquele caso de que você e o Moore se ocuparam no Verão passado. Sabe de que se trata.

Rizzoli ficou calada. Sabia exactamente ao que ele se referia. As recordações daquela investigação ainda a perseguiam e afloravam à superfície nos seus pesadelos.

Continue disse com suavidade.

Quer o endereço? perguntou-lhe ele. Rizzoli pegou no bloco-notas.

Momentos depois, desligou e voltou a prestar atenção ao Dr. Tierney.

Já vi ferimentos semelhantes em pára-quedistas cujos pára-quedas não abriram observou. Daquela altura, um corpo em queda atinge uma velocidade terminal. Que são quase sessenta metros por segundo. É o suficiente para causar a desintegração que vemos aqui.

É um preço infernal a pagar para entrar neste país comentou Frost.

Outro jacto rugiu sobre as suas cabeças e a sua sombra caiu sobre eles como a de uma águia.

Rizzoli olhou para cima. Imaginou um corpo a cair num tombo de trezentos metros. Pensou no ar gelado a assobiar. E, depois, o ar mais quente, à medida que a terra se aproximava.

Olhou para os restos mortais, cobertos por um lençol, de um homem que ousara sonhar com um mundo novo, um futuro mais risonho.

Bem-vindo à América.

O polícia Newton, postado diante da casa, era novato e não reconheceu Rizzoli. Deteve-a no perímetro da fita policial e dirigiu-se-lhe em tom brusco que condizia com a farda acabada de estrear. O distintivo com o nome dizia: RIDGE.

Isto é o local de um crime, minha senhora.

Sou a detective Rizzoli do Departamento de Polícia de Boston. Procuro o detective Korsak.

O seu documento de identificação, por favor.

Rizzoli não esperava o pedido e teve de rebuscar na bolsa à procura do distintivo. Na cidade de Boston, praticamente todos os polícias sabiam exactamente quem ela era. Uma pequena viagem fora do seu território e para o interior daquele subúrbio endinheirado e, subitamente, via-se obrigada a apresentar o distintivo. Rizzoli encostou-lho quase ao nariz.

O agente deu-lhe uma olhadela e corou.

Peço imensa desculpa, minha senhora. É que houve uma estúpida jornalista que passou por mim há minutos e não permito que isso volte a acontecer.

O Korsak está lá dentro?

Sim, minha senhora.

Olhou para o aglomerado de veículos estacionados na rua, entre eles uma carrinha branca que tinha gravadas num dos lados as palavras

ESTADO DO MASSACHUSETTS, INSTITUTO DE MEDICINA LEGAL.

Quantas vítimas? perguntou.

Uma. Estão a preparar-se para a trazer cá para fora.

O polícia levantou o cordão para a deixar passar para o jardim da frente. Os passarinhos chilreavam e o ar cheirava a relva cortada. Já não estás na zona sul de Boston, pensou. A paisagem era imaculada, com sebes de buxo aparadas e relvados bem cuidados, exibindo um tom verde brilhante. Parou no caminho de tijoleira e olhou para o telhado de características Tudor. Senhor de uma falsa mansão inglesa, foi o que lhe veio à mente. Não era uma casa nem um bairro que um polícia honesto pudesse permitir-se habitar.

Observando, não? disse-lhe o guarda Ridge.

De que vivia este indivíduo?

Ouvi dizer que era uma espécie de cirurgião.

Cirurgião. Para ela, a palavra tinha um significado especial e o seu som perfurava-a como uma agulha glacial, enregelando-a mesmo num dia quente como aquele. Olhou para a porta da frente e viu que o manípulo estava coberto de pó para impressões digitais. Respirou fundo, calçou as luvas de borracha e enfiou os pés em botas de papel.

Lá dentro viu o soalho de carvalho envernizado e uma escadaria que se elevava com magnificência semelhante à de uma catedral. Uma janela de vitral deixava entrar brilhantes losangos de cor.

Ouviu o ruge-ruge de coberturas de papel de sapatos e viu um homem grande como um urso, que atravancava a entrada. Embora vestisse um fato de homem de negócios, com uma gravata cujo nó estava impecável, o efeito era estragado pelas manchas gémeas de suor que lhe tingiam as axilas. Enrolara as mangas da camisa, revelando braços musculosos cobertos de pêlos escuros.

Rizzoli? perguntou ele.

A própria.

Ele aproximou-se, de braço estendido, mas depois lembrou-se de que estava a usar luvas e deixou cair novamente a mão.

Vince Korsak. Desculpe não ter dito mais ao telefone, mas nos dias que correm toda a gente está a ser vigiada. Uma jornalista conseguiu introduzir-se aqui. Filha da mãe!

Ouvi dizer.

Olhe, sei que provavelmente se interroga por que diabo está aqui. Mas acompanhei o seu trabalho no ano passado. Sabe, os assassinatos do Cirurgião. Pensei que gostaria de ver isto.

Que tem aí? perguntou ela, sentindo a boca seca.

A vítima está no salão. O doutor Richard Yeager, de trinta e seis anos. Cirurgião ortopédico. Mora aqui.

Rizzoli olhou para a janela de vitral.

Vocês, os rapazes de Newton, ficam com os homicídios da alta sociedade.

Ouça, a polícia de Boston pode ficar com todos eles. Não é suposto isto acontecer aqui. Especialmente coisas esquisitas como esta.

Korsak indicou-lhe o caminho pelo corredor até ao salão. A primeira coisa que Rizzoli viu foi uma mancha brilhante de luz que inundava a parede, vinda de duas janelas de alto a baixo. Apesar do grande número de especialistas em homicídios que ali trabalhavam, o aposento parecia espaçoso e perfeito, todo ele paredes brancas e soalho luminoso.

E sangue. Por mais locais de crimes em que penetrasse, aquela primeira visão do sangue chocava-a sempre. Uma cauda de cometa de sangue arterial espirrara para a parede e escorria para o chão em riachos. A fonte desse sangue, o Dr. Richard Yeager, encontrava-se sentada com as costas contra a parede e os pulsos atados atrás. Vestia apenas calções e tinha as pernas estendidas e os tornozelos presos com fita adesiva. A cabeça tombara-lhe para a frente, encobrindo o ferimento que libertara a hemorragia fatal, mas Rizzoli não precisou de ver o golpe para perceber que fora profundo, até à carótida e à traqueia. Estava demasiado familiarizada com as consequências de ferimentos desses e era capaz de ler os momentos finais no padrão do sangue: a artéria a esguichar, os pulmões a encherem-se e a vítima a inspirar através da traqueia cortada. Afogado no seu próprio sangue. Uma nuvem de sangue arterial exalado secara no peito nu. A avaliar pelos ombros largos e pela musculatura, estava fisicamente em forma certamente capaz de ripostar contra um atacante. Porém, morrera de cabeça inclinada e numa posição de obediência.

Os dois auxiliares da morgue já tinham trazido a maca e estavam ao pé do morto, a pensar qual a melhor maneira de remover um corpo já empedernido pelo rigor mortis.

Quando a enfermeira o encontrou às dez da manhã disse Korsak, o rigor mortis era evidente e estava em pleno vigor. Calculou a hora da morte algures entre a meia-noite e as três da madrugada.

Quem o encontrou?

A sua enfermeira assistente. Quando ele não apareceu na clínica esta manhã e não respondeu ao telefone, ela veio ver o que se passava. Encontrou-o por volta das nove da manhã. Não há sinais da mulher.

Rizzoli olhou para Korsak.

Mulher?

Gail Yeager, de trinta e um anos. Desapareceu.

O frio que Rizzoli sentira junto à entrada da casa dos Yeager fez-se sentir de novo.

Rapto?

Só estou a dizer que desapareceu.

Rizzoli fitou Richard Yeager, cujo corpo musculado não conseguira fazer frente à morte.

Fale-me desta gente. Do seu casamento.

Um casal feliz. É o que toda a gente refere.

Isso é o que todos dizem.

Neste caso, parece ser verdade. Eram casados há dois anos apenas. Compraram esta casa há um ano. Ela é enfermeira no hospital dele, portanto tinham o mesmo círculo de amigos e o mesmo horário de trabalho.

Parece-me que estavam juntos de mais.

Sim, eu sei. Ficaria doido se tivesse de andar o dia todo com a minha mulher atrás. Mas parecia darem-se bem. No mês passado, ele tirou duas semanas de férias só para estar em casa com ela quando a mãe desta morreu. Quanto calcula que faz um cirurgião ortopedista em duas semanas? Quinze, vinte mil dólares? Foi um consolo dispendioso o que ele lhe deu.

Ela devia estar a precisar.

Mesmo assim respondeu Korsak, encolhendo os ombros.

Quer dizer que você não vê motivos para ela ter fugido dele.

E muito menos para o matar.

Rizzoli olhou para as janelas do salão. Árvores e sebes tapavam a vista das casas vizinhas.

Disse que a hora da morte foi entre a meia-noite e as três.

Sim.

Os vizinhos ouviram alguma coisa?

O pessoal da esquerda está em Paris. Oh lá lá! Os vizinhos da direita dormiram profundamente a noite toda.

Entrada forçada?

Pela janela da cozinha. Forçaram as portadas e usaram um cortador de vidro. Seis pegadas número quarenta e três no canteiro. As mesmas pegadas de sangue desta sala.

Tirou um lenço e enxugou a testa húmida. Korsak era um daqueles infelizes indivíduos para quem nenhum antitranspirante era suficientemente forte. Nos poucos minutos em que estavam a conversar, as manchas de suor da camisa tinham aumentado.

Pronto, vamos deixá-lo escorregar pela parede dizia um dos auxiliares da morgue. Vamos pô-lo em cima do lençol.

Cuidado com a cabeça! Está a escorregar!

Ai, meu Deus!

Rizzoli e Korsak calaram-se enquanto o Dr. Yeager jazia de lado sobre um lençol descartável. O rigor mortis imobilizara o corpo num ângulo de noventa graus e os homens debatiam a forma de colocá-lo na maca, dada a sua posição grotesca.

De repente, Rizzoli concentrou-se num fragmento branco que via no chão onde o corpo estivera sentado. Baixou-se e apanhou o que parecia ser uma lasca minúscula de porcelana.

Uma chávena partida disse Korsak.

O quê?

Havia uma chávena e um pires junto da vítima. Dá a impressão de ter-lhe caído do colo, ou algo do género. Já os guardámos para procurar impressões digitais. Viu o ar atónito dela e encolheu os ombros. Não me pergunte.

Requinte simbólico?

Acho que sim. Ritual do chá para o mono.

Rizzoli olhou para o pequeno fragmento de porcelana que tinha na palma da mão enluvada e perguntou-se o que significaria. Formara-se-lhe um nó no estômago. Uma terrível sensação de familiaridade. Uma garganta cortada. Ligaduras de fita adesiva. Entrada nocturna por uma janela. A vítima ou vítimas surpreendidas enquanto dormiam.

Onde é o quarto? perguntou. Não querendo vê-lo. Receando vê-lo.

Muito bem. É o que quero que veja.

No corredor que levava ao quarto, viam-se fotografias penduradas, a preto e branco e emolduradas. Não as poses tradicionais de família que a maioria das casas exibe, mas imagens perfeitas de nus femininos, de rostos obscurecidos ou voltados contra a câmara e de troncos anónimos. Uma mulher a abraçar uma árvore, com a pele macia encostada à casca áspera. Uma mulher sentada inclinada para a frente, com o cabelo longo caindo em cascata entre as coxas nuas. Uma mulher a estender-se para o céu, com o tronco a brilhar de suor proveniente de um exercício físico vigoroso. Rizzoli parou para analisar uma foto que se encontrava torta.

São todas da mesma mulher disse ela.

É ela.

Mistress Yeager?

Parece que eram um pouco excêntricos, não?

Rizzoli olhou para o corpo lindamente torneado de Gail Yeager.

Não me parecem nada excêntricos. Estas fotos são lindas.

Bem, como queira. O quarto é aqui. Apontou para a porta. Rizzoli deteve-se à entrada. Lá dentro, uma cama enorme com as cobertas puxadas para trás, como se os seus ocupantes tivessem sido acordados abruptamente. No tapete rosado, o pêlo de náilon fora aplanado em dois sulcos separados que iam da cama à porta. Rizzoli disse suavemente:

Foram ambos arrastados da cama. Korsak assentiu com a cabeça.

O nosso criminoso surpreende-os na cama. Consegue dominá-los. Ata-lhes os pulsos e os tornozelos. Arrasta-os sobre o tapete até ao corredor, onde começa o soalho.

Rizzoli sentia-se desorientada com a actuação do assassino. Imaginou-o ali onde ela se encontrava agora, a olhar para o casal adormecido. Uma ampla janela por cima da cama, sem cortinas, devia lançar luz suficiente para se ver quem era o homem e quem era a mulher. Devia ter-se dirigido primeiro ao Dr. Yeager. Era a coisa lógica a fazer, controlar o homem. Deixar a mulher para mais tarde. Até aí, conseguia Rizzoli perceber. A aproximação, o ataque inicial. O que ela não percebia era o que vinha a seguir.

Para quê movê-los? disse. Porque não matar o doutor Yeager logo aqui? Qual o interesse em retirá-los do quarto?

Não sei. Korsak apontou para a porta. Pode entrar. Já foi tudo fotografado.

Relutante, entrou no quarto, evitando as marcas de arrastamento no tapete, e dirigiu-se para a cama. Não viu sangue nos lençóis nem nas cobertas. Numa almofada, havia um fio de cabelo comprido: era o lado de Mrs. Yeager, pensou. Voltou-se para o toucador, onde uma foto do casal emoldurada confirmava que Gail Yeager era realmente loura. Bonita, também, com olhos azul-claros e uma poalha de sardas na pele profundamente bronzeada. O Dr. Yeager tinha o braço em redor do ombro dela e projectava a forte confiança do homem que sabe que é fisicamente imponente. Não um homem que acabaria um dia morto em roupa interior e de mãos e pés atados.

Está na cadeira disse Korsak.

O quê?

Olhe para a cadeira.

Ela voltou o rosto para ficar de frente para o canto do quarto e viu um cadeirão antigo de espaldar de couro. No assento, estava pousada uma camisa de noite dobrada. Aproximando-se, viu que manchas brilhantes de vermelho manchavam o cetim creme.

Os pêlos da nuca arrepiaram-se-lhe subitamente e, por segundos, esqueceu-se de respirar.

Estendeu a mão e ergueu uma ponta da peça de roupa. A parte inferior da dobra estava igualmente manchada.

Não sabemos de quem é o sangue disse Korsak. Pode ser do doutor Yeager, pode ser da mulher.

Já estava manchada antes de ser dobrada.

Mas não há mais sangue neste quarto. O que significa que foi derramado no outro aposento. Depois, ele trouxe a camisa para o quarto. Dobrou-a muito bem dobrada, colocou-a neste cadeirão, como uma pequena prenda de despedida. Korsak fez uma pausa. Isso lembra-lhe alguém?

Bem sabe que sim respondeu Rizzoli, engolindo em seco.

Este indivíduo está a copiar a antiga assinatura do seu assassino.

Não, este é diferente. Este é totalmente diferente. O Cirurgião nunca atacava casais.

A camisa de noite dobrada. A fita adesiva. As vítimas surpreendidas na cama.

O Warren Hoyt escolhia mulheres solteiras. Vítimas que podia subjugar rapidamente.

Mas repare nas semelhanças! Estou a dizer-lhe, deparámos com um imitador. Algum excêntrico que andou a ler sobre o Cirurgião.

Rizzoli continuava a olhar fixamente para a camisa de noite, recordando outros quartos, outros cenários de morte. Acontecera durante um Verão de calor insuportável, como aquele, quando as mulheres dormiam de janelas abertas e um homem chamado Warren Hoyt se introduzia nas suas casas. Levava consigo as suas fantasias tenebrosas... e bisturis, instrumentos com que realizava os seus rituais sangrentos nas vítimas, que, até ao fim, tinham consciência de todos os cortes da lâmina. Fitou a camisa de noite e uma visão do rosto extremamente vulgar de Hoyt saltou-lhe à mente com toda a nitidez, um rosto que ainda aflorava à superfície nos seus pesadelos.

Mas isto não é obra dele. O Warren Hoyt está bem fechado num lugar de onde não consegue fugir. Sei disso porque eu própria meti lá o safado.

O Boston Globe publicou todos os pormenores mais escabrosos

disse Korsak. Ele até surgiu no New York Times. Agora, este assassino está a reencenar o mesmo.

Não, este faz coisas que o Hoyt nunca fez. Arrasta o casal para fora do quarto, para outro aposento. Senta o homem e depois corta-lhe o pescoço. Parece-se mais com uma execução. Ou parte de um ritual. Depois, há a mulher. Mata o marido, mas que faz ele com a mulher?

Deteve-se, lembrando-se subitamente do fragmento de porcelana no chão. A chávena quebrada. O seu significado atingiu-a como o sopro de um vento gélido.

Sem dizer palavra, saiu do quarto e voltou à sala. Olhou para a parede onde estivera sentado o cadáver do Dr. Yeager. Examinou o chão e começou a andar em círculos cada vez mais largos, estudando as manchas de sangue no soalho.

Rizzoli? inquiriu Korsak.

Ela voltou-se para as janelas e semicerrou os olhos por causa da luz.

Aqui está demasiada luz e há vidraças a mais. Não conseguimos ver tudo. Temos de cá voltar esta noite.

Está a pensar em usar luz especial?

Precisamos de luz ultravioleta.

De que está à procura? Rizzoli voltou-se para a parede.

O doutor Yeager estava sentado ali quando morreu. O nosso assassino arrastou-o para fora do quarto. Encostou-o à parede e pô-lo de frente para o centro do aposento.

Muito bem.

Porque foi colocado ali? Para quê tanto trabalho enquanto a vítima ainda estava viva? Teve de haver uma razão.

Que razão?

Ele foi colocado ali para ver alguma coisa. Para ser testemunha do que acontecia nesta sala.

Finalmente, o rosto aterrado de Korsak demonstrou ter compreendido. Fitou a parede onde o Dr. Yeager estivera sentado a assistir a uma peça de teatro de horror.

Oh, meu Deus! Mistress Yeager exclamou.

 

Rizzoli levou para casa uma piza comprada na loja da esquina e desencantou uma velha alface na caixa dos legumes do fundo do frigorífico. Arrancou as folhas acastanhadas até chegar ao escasso centro comestível. Era uma alface pálida e pouco apetitosa, que comeu por obrigação e não por prazer. Não tinha tempo, comia apenas para se reabastecer para a noite, noite pela qual não ansiava.

Após algumas garfadas, afastou a comida e fitou as manchas carregadas de molho de tomate que tinha no prato. Os pesadelos levam-nos a melhor, pensou. Imaginamos que estamos imunes, que somos suficientemente fortes, suficientemente desprendidos para conviver com eles. Sabemos como proceder, como iludi-los. Mas os rostos ficam connosco. Os olhos dos mortos.

Estaria Gail Yeager entre estes?

Baixou os olhos para as mãos, para as cicatrizes gémeas que lhe percorriam ambas as palmas como feridas saradas de uma crucificação. Sempre que o tempo arrefecia e se tornava húmido, doíam-lhe as mãos, recordação punitiva do que Warren Hoyt lhe fizera havia um ano, do dia em que lhe abrira a carne com as suas lâminas. Do dia que pensara ser o seu último sobre a terra. As velhas feridas doíam-lhe agora, mas não podia culpar o tempo. Não, era por causa do que vira naquele dia em Newton. A camisa de noite dobrada. A mancha de sangue em forma de leque na parede. Entrara num aposento onde até o ar estava carregado de terror e sentira pairar a presença de Warren Hoyt.

Impossível, evidentemente. Hoyt estava na prisão, no lugar exacto onde devia estar. No entanto, ali se encontrava ela, gelada pela lembrança daquela casa em Newton, porque o horror lhe parecera familiar.

Sentiu-se tentada a telefonar a Thomas Moore, com quem trabalhara no caso Hoyt. Moore conhecia todos os pormenores tão intimamente quanto ela e percebia como era tenaz o medo que Warren Hoyt lançara sobre todos eles. Mas, desde o casamento de Moore, a sua vida afastara-se da de Rizzoli. A felicidade recém-encontrada era exactamente o que os tornava agora estranhos. As pessoas felizes são reservadas; respiram um ar diferente e estão sujeitas a leis da gravidade diferentes. Embora Moore talvez não tivesse consciência da mudança que se efectuara entre eles, Rizzoli sentia-a e chorava a perda, se bem que envergonhada por invejar a felicidade dele. Envergonhada, também, pelos ciúmes que sentia da mulher que arrebatara o coração de Moore. Uns dias antes, recebera um postal de Londres, onde ele e Catherine estavam de férias. Era um "olá" rápido garatujado no verso de um postal do Museu da Scotland Yard, apenas algumas palavras para dizer a Rizzoli que a estadia estava a ser agradável e que tudo corria bem no mundo deles. Pensando agora no postal com o seu animado optimismo, Rizzoli viu que não devia incomodá-lo com o caso; não podia trazer de novo às suas vidas a sombra de Warren Hoyt.

Deixou-se estar a ouvir os sons do trânsito na rua em baixo, que pareciam salientar a quietude total do interior do apartamento. Olhou em volta, para a sala parcamente mobilada, para as paredes nuas onde ainda não pendurara um quadro sequer. A única decoração, se é que se podia chamar-lhe isso, era um mapa da cidade pregado à parede por cima da mesa de jantar. Um ano antes, o mapa fora salpicado de alfinetes de cor que marcavam os assassínios do Cirurgião. Estava tão ansiosa por reconhecimento, por que os seus colegas reconhecessem que sim, que ela era sua igual, que vivera e respirara a caçada. Mesmo em casa, tomara as refeições diante da sinistra visão dos passos do assassino.

Os alfinetes do Cirurgião tinham desaparecido, mas o mapa continuava ali à espera de novos alfinetes que marcassem os movimentos de outro assassino. Interrogou-se sobre o que isso contaria sobre si mesma, que penosa interpretação se retiraria do facto de o único adorno que pendia das paredes ser aquele mapa de Boston, embora já vivesse no apartamento há dois anos.

A minha pulsação. O meu universo.

As luzes estavam apagadas na residência dos Yeager quando Rizzoli chegou à entrada, às nove da noite. Foi a primeira a chegar e, como não tinha acesso ao interior, sentou-se no carro com as janelas abertas para deixar entrar ar fresco enquanto esperava que os outros chegassem. A casa ficava numa tranquila rua sem saída e ambas as casas vizinhas estavam às escuras, o que resultaria em seu favor, uma vez que havia menos luz ambiente que obscurecesse a investigação. Mas, naquele momento, ali sozinha a contemplar a casa dos horrores, ansiava por luz forte e companhia humana. As janelas da casa dos Yeager fitavam-na como os olhos vítreos de um cadáver. À sua volta, as sombras tomavam miríades de formas e nenhuma delas benigna. Rizzoli pegou na arma, soltou o travão de segurança e pousou-a no colo. Só então se sentiu mais calma.

O espelho retrovisor reflectiu as luzes de uns faróis. Voltando-se, sentiu-se aliviada por ver a carrinha da polícia parar atrás de si. Voltou a colocar a arma na bolsa.

Um jovem de ombros maciços saiu da carrinha e dirigiu-se para o carro dela. Quando se inclinou para espreitar pela janela, Rizzoli viu brilhar um brinco de ouro.

Olá, Rizzoli disse ele.

Olá, Mick. Obrigada por ter vindo.

Belo bairro.

Espere até ver a casa.

Um novo par de faróis relampejou e entrou na rua sem saída. Korsak chegara.

Já cá está o grupo todo disse ela. Vamos ao trabalho. Korsak e Mick não se conheciam. Quando Rizzoli os apresentou à luz do interior da carrinha, viu que Korsak fitava o brinco de Mick e reparou na sua hesitação antes de lhe apertar a mão. Quase conseguia ver as engrenagens cerebrais a girar na cabeça de Korsak. Brinquinho. Faz musculação. Deve ser homossexual.

Mick começou a descarregar o equipamento.

Trouxe a nova Crimescope disse. Lâmpada de arco de quatrocentos watts. Três vezes mais luz do que a velha GE de trezentos e cinquenta. É a fonte de luz mais intensa com que já trabalhámos. Esta coisa dá ainda mais luz do que a Xenon de quinhentos watts. Olhou de relance para Korsak. Importa-se de levar o material fotográfico?

Antes que Korsak pudesse responder, Mick atirou uma maleta de alumínio para os braços do detective e depois voltou à carrinha para buscar mais equipamento. Korsak limitou-se a segurar a maleta por momentos, com ar incrédulo. Depois, afastou-se em direcção à casa.

Quando Rizzoli e Mick chegaram à entrada com as várias caixas com a Crimescope, cabos eléctricos e óculos de protecção, Korsak ligara as luzes dentro de casa e a porta estava aberta de par em par. Calçaram botas de papel e entraram.

Conforme Rizzoli fizera antes nesse mesmo dia, Mick parou à entrada, olhando espantado para a imensa espiral da escadaria.

No cimo há um vitral disse Rizzoli. Devia ver quando o sol passa através dele.

Korsak, irritado, chamou do salão:

Viemos cá para trabalhar ou quê?

Mick dirigiu a Rizzoli um ar de "mas que estúpido" e Rizzoli encolheu os ombros. Encaminharam-se para o corredor.

O aposento é este afirmou Korsak. Vestia uma camisa diferente da que usara anteriormente nessa tarde, mas também essa já estava manchada de suor. Estendera o maxilar para a frente e abrira as pernas como um Capitão Blight mal-humorado no convés do seu navio.

Vamos concentrar-nos nesta área do chão.

O sangue não perdera nada do seu impacto emocional. Enquanto Mick montava o equipamento, ligando os cabos eléctricos e preparando a câmara e o tripé, Rizzoli sentiu que o olhar lhe era atraído para o corredor. Por mais que se esfregasse, não se conseguiria eliminar aquela testemunha silenciosa da violência. Os vestígios bioquímicos permaneceriam sempre como uma impressão fantasmagórica.

Mas, naquela noite, não era sangue o que procuravam. Procuravam algo muito mais difícil de ver e, para isso, precisavam de uma fonte de luz alternativa que fosse suficientemente intensa para revelar o que agora era invisível a olho nu.

Rizzoli sabia que a luz era simplesmente energia electromagnética que se movia por ondas. A luz visível, a que o olho humano consegue detectar, tem comprimentos de onda entre quatrocentos e setecentos nanómetros. Os comprimentos de onda mais pequenos, no espectro do ultravioleta, não são visíveis. Mas quando os raios ultravioleta incidem sobre um certo número de diferentes substâncias naturais ou produzidas pelo homem, por vezes excita "electrões no interior dessas substâncias, libertando luz visível num processo chamado fluorescência. Os raios ultravioleta conseguem revelar corpos fluidos, fragmentos de osso, cabelos e fibras. Por isso, ela requisitara a Crimescope. Sob uma lâmpada de radiação ultravioleta, podia tornar-se visível todo um novo conjunto de provas.

Estamos quase prontos disse Mick. Agora precisamos de escurecer a sala o mais possível. Pode começar por desligar todas as luzes do corredor, detective Korsak?

Espere. Então e os óculos de protecção? perguntou Korsak.

A radiação ultravioleta vai ferir-me a vista, não?

No comprimento de onda que estou a utilizar não fará grande mal.

Mesmo assim, quero um par de óculos.

Estão nessa maleta. Há óculos para todos.

Eu trato das luzes do corredor disse Rizzoli. Saiu do quarto e deu um piparote nos interruptores. Quando voltou, Korsak e Mick continuavam tão afastados quanto possível, como se tivessem receio de transmitir um ao outro alguma doença contagiosa.

Bem, então em que áreas pretende concentrar-se? perguntou Mick.

Vamos começar por aquela extremidade, onde a vítima foi encontrada disse Rizzoli. Afaste-se a partir dali e cubra todo o salão.

Mick olhou em volta.

Temos ali uma área com um tapete creme, onde provavelmente se vai verificar fluorescência. E aquele sofá branco também vai iluminar-se sob a radiação ultravioleta. Só quero avisá-lo de que vai ser difícil detectar alguma coisa contra aquele fundo. Olhou para Korsak, que já tinha posto os óculos e que agora se assemelhava a um patético indivíduo de meia-idade tentando parecer modernaço, com óculos de sol enormes. Apague as luzes da sala. Vamos ver se conseguimos que fique bastante escuro.

Korsak desligou o interruptor e o aposento mergulhou na escuridão. A luz das estrelas brilhava debilmente através das grandes janelas nuas, mas não havia luar e as árvores espessas do pátio das traseiras bloqueavam as luzes das casas vizinhas.

Nada mal disse Mick. Consigo trabalhar com isto. É melhor que muitos locais de crime em que temos de andar a rastejar debaixo de um cobertor. Sabiam que estão a desenvolver sistemas de detecção de imagens que podem ser utilizados à luz do dia? Em breve já não precisaremos de andar no escuro às apalpadelas como ceguinhos.

Podemos acabar com a conversa e começar? resmungou Korsak.

Só pensei que estava interessado nesta tecnologia.

Num outro dia, está bem?

Como queira respondeu Mick sem se agastar.

Rizzoli pôs os óculos quando a luz azul da Crimescope surgiu. Os clarões espectrais das formas fluorescentes pareciam-se com fantasmas na sala escura, e o tapete e o sofá reflectiam a luz, como Mick previra. A luz azul moveu-se para a parede oposta, onde estivera sentado o cadáver de Yeager, e fibras fulgurantes brilharam na parede.

Bastante bonito, não? disse Mick.

O que é aquilo? perguntou Korsak.

Fios de cabelo colados ao sangue.

Oh, sim, é mesmo bonito.

Brilho no soalho disse Rizzoli. Onde era suposto existir.

Mick apontou o feixe de luz para baixo e um universo novo revelou fibras e cabelos a brilhar a seus pés. Vestígios de provas que a aspiração inicial dos peritos de laboratório deixara ficar.

Quanto mais intensa a fonte de luz, mais intensa a fluorescência

explicou Mick, enquanto inspeccionava o chão. Por isso é que este aparelho é tão especial. Com quatrocentos watts, ilumina o suficiente para apanhar tudo. O FBI comprou setenta e um bebés destes. É tão compacto que podemos trazê-lo como bagagem de mão nos aviões.

Quem é você, algum maluquinho das máquinas? interrogou Korsak.

Gosto de aparelhos giros. Fui major de engenharia.

Foi?

Porque está tão admirado?

Nunca pensei que tipos como você se metessem nessas coisas.

Tipos como eu?

Refiro-me ao brinco... e ao resto. Percebe?

Abre a boca e entra mosca ou... suspirou Rizzoli.

O quê? perguntou Korsak. Não estou a criticar... nem nada. Só que reparei que não são muitos os que vão para engenharia. Preferem o teatro e as artes e essas coisas. Quero dizer, ainda bem. Precisamos de artistas.

Andei na Universidade de Massachusetts disse Mick, recusando-se a sentir-se ofendido. Engenharia electrotécnica.

Bem, os electricistas ganham bem.

Pois, mas não é exactamente o mesmo.

Moviam-se em círculos cada vez mais largos e os raios ultravioleta continuavam a apanhar ocasionalmente uma pequena madeixa de cabelos, fibras e outras partículas não identificáveis. De repente, moveram-se para uma área extremamente brilhante.

O tapete disse Mick. Estas fibras são fluorescentes que se fartam, independentemente do seu material. Não consigo ver grande coisa contra este fundo.

Inspeccione mesmo assim pediu Rizzoli.

A mesa de centro está no meu caminho. Pode afastá-la? Rizzoli aproximou-se do que lhe parecia apenas uma sombra geométrica contra um fundo fluorescente branco.

Korsak, pegue na outra ponta.

Com a mesinha afastada, o tapete era um brilhante lago oval que brilhava com luz branco-azulada.

Como é que vamos descobrir o que quer que seja neste fundo?

observou Korsak. É como se tentássemos ver vidro a flutuar em água.

O vidro não flutua disse Mick.

Bom, está bem. O engenheiro é você. E então, Mick é diminutivo de quê? Mickey.

Vamos inspeccionar o sofá interrompeu Rizzoli.

Mick redireccionou a luz. O tecido do sofá também brilhava, mas era uma fluorescência mais suave, como neve ao luar. Lentamente, inspeccionou a estrutura almofadada e depois os almofadões, mas não descobriu fluidos suspeitos, apenas alguns fios de cabelo compridos e partículas de pó.

Eram pessoas asseadas afirmou Mick. Nenhuma nódoa, nem sequer pó. Aposto que o sofá é novinho em folha.

Korsak resmungou.

Deve ser bom. O último sofá novo que comprei foi quando me casei.

Bem, ali atrás há mais espaço livre. Vamos para lá.

Rizzoli sentiu Korsak esbarrar com ela e um cheiro pastoso a suor. A respiração dele era ruidosa, como se tivesse problemas de sinusite, e a escuridão parecia ampliar o tom fanhoso. Incomodada, afastou-se dele e bateu com a canela na mesa de centro.

Bolas!

Eh, veja lá por onde anda disse Korsak.

Rizzoli engoliu uma resposta; o ambiente da sala já estava suficientemente tenso. Baixou-se e esfregou a perna. A escuridão e a mudança abrupta de posição desorientou-a e fez-lhe tonturas. Teve de baixar-se para não perder o equilíbrio. Por segundos, agachou-se no escuro, na esperança de que Korsak não tropeçasse nela, já que era suficientemente pesado para a esmagar. Conseguia ouvir os dois homens a moverem-se a poucos centímetros de distância.

O cabo está embaraçado disse Mick. A Crimescope virou subitamente na direcção de Rizzoli quando Mick se voltou para soltar o cabo eléctrico.

O raio de luz varreu o tapete onde Rizzoli estava agachada. Enquadrada pela fluorescência de fundo das fibras do tapete, via-se uma mancha escura irregular, mais pequena que uma moeda.

Mick chamou ela.

Pode levantar essa extremidade da mesa? Acho que o cabo está enrolado na perna.

Mick

O que é?

Traga a máquina para aqui. Foque o tapete. Exactamente onde estou.

Mick aproximou-se dela. Korsak fez o mesmo. Rizzoli ouviu aproximar-se a respiração pesada dele.

Foque a minha mão disse ela. Tenho o dedo ao pé da mancha.

Uma luz azulada banhou subitamente o tapete. A mão dela era uma silhueta negra contra o fundo fluorescente.

Ali disse ela. O que é aquilo? Mick agachou-se junto dela.

Uma mancha qualquer. Devia tirar-lhe uma fotografia.

Mas é uma mancha escura salientou Korsak. Pensei que andávamos à procura de coisas fluorescentes.

Quando o fundo é altamente fluorescente, como as fibras deste tapete, os fluidos corporais parecem realmente escuros, porque a sua fluorescência é menor. Esta mancha pode ser qualquer coisa. O laboratório terá de confirmar.

E então, vamos cortar um pedaço deste belo tapete só porque encontrámos uma mancha de café já velha ou algo do género?

Mick fez uma pausa.

Podemos tentar mais um truque.

Qual?

Vou mudar de comprimento de onda neste espectro. Vou passar para a onda curta dos ultravioletas.

Para que serve isso?

Se der resultado, para muito.

Mick ajustou os instrumentos e depois focou a luz na área do tapete onde se encontrava a mancha escura.

Vejam disse, e accionou o interruptor da Crimescope.

O aposento ficou escuro com breu, com excepção de um ponto brilhante iluminado junto aos pés deles.

Mas que diabo é issoí perguntou Korsak.

Rizzoli julgou que estava a ter uma alucinação. Olhou para a imagem fantasmagórica que parecia arder com fogo verde. Enquanto olhava, o brilho espectral começou a desvanecer-se. Segundos depois, estavam em completa escuridão.

Fosforescência disse Mick. É fluorescência residual. Acontece quando a radiação ultravioleta excita electrões em certas substâncias. Os electrões levam um pouco mais de tempo a voltar ao seu estado de energia básico e, ao fazê-lo, libertam fotões de luz. Foi o que vimos. Temos aqui uma mancha com fosforescência verde brilhante após exposição aos ultravioletas de onda curta. É muito sugestivo. Ergueu-se e ligou as luzes do aposento.

Com a súbita claridade, o tapete para o qual tinham estado a olhar tão fascinados parecia completamente vulgar. Mas, agora, Rizzoli não conseguia olhar para ele sem uma sensação de repulsa, porque sabia o que tivera lugar ali; a prova do sofrimento de Gail Yeager continuava agarrada àquelas fibras.

É sémen disse ela.

Pode muito bem ser anuiu Mick, enquanto montava o tripé da máquina fotográfica e colocava o filtro apropriado para a luz ultravioleta. Depois de fotografar isto, vou cortar esta secção do tapete. O laboratório terá de confirmar com fosfatase ácida e o microscópio.

No entanto, Rizzoli não precisava de confirmação. Voltou-se para a parede manchada de sangue. Lembrava-se da posição do corpo do Dr. Yeager, lembrava-se da chávena que lhe caíra do colo e se estilhaçara no soalho. A mancha verde fosforescente do tapete confirmava o que receara. Compreendeu o que sucedera.

Arrastaste-os da cama para esta sala, com o seu chão de madeira. Amarraste os pulsos e os tornozelos do médico e cobriste-lhe a boca com fita adesiva para ele não poder gritar e não te distrair. Sentaste-o ali contra a parede, fazendo dele o teu único e mudo espectador. O Richard Yeager ainda está vivo e perfeitamente consciente do que te preparas para fazer. Mas não pode ripostar. Não pode proteger a esposa. E, para te alertar dos seus movimentos, dos seus esforços, pões-lhe no colo uma chávena e um pires a servir de sistema de alarme. Estilhaçar-se-ão no chão se ele conseguir pôr-se de pé. Nas convulsões do teu próprio prazer, não podes ter debaixo de olho o que está a fazer o doutor Yeager e não queres ser apanhado de surpresa.

Mas queres que ele veja.

Rizzoli baixou os olhos para a mancha que brilhava a verde-claro. Se não tivessem afastado a mesinha de centro, se não estivessem à procura especificamente desses vestígios, não teriam dado por isso.

Dominaste-a em cima deste tapete. Possuíste-a mesmo à vista do marido, que nada pôde fazer para a salvar, que não pôde sequer salvar-se a si próprio. E depois de tudo terminado, depois de te apropriares dos teus despojos, uma pequena gota de sémen ficou nestas fibras e secou numa película invisível.

Matar o marido faria parte do prazer? Ter-se-ia detido com a faca na mão para saborear o momento? Ou teria sido meramente a conclusão prática dos acontecimentos precedentes? Teria sentido alguma coisa ao agarrar Richard Yeager pelos cabelos e ao pressionar a lâmina contra a sua garganta?

As luzes da sala foram apagadas. O obturador da máquina fotográfica de Mick abriu-se repetidamente, captando a mancha escura rodeada pelo brilho fluorescente do tapete.

E depois do trabalho feito e com o doutor Yeager de cabeça inclinada e com o sangue a pingar na parede atrás de si, executaste um ritual que foste buscar ao saco de truques de outro assassino. Dobraste a camisa de noite salpicada de Mistress Yeager e colocaste-a à vista no quarto, tal como o Warren Hoyt costumava fazer.

Mas ainda não acabaste. Isto foi só o primeiro acto. Mais prazeres, prazeres terríveis, se perfilam.

Para isso, levas a mulher.

As luzes da sala voltaram a acender-se e a luminosidade apunhalava-lhe os olhos. Estava aturdida e trémula, abalada por terrores que havia meses não sentia. E humilhada por aqueles dois homens certamente se aperceberem do facto no seu rosto branco e nas mãos pouco firmes. De repente, não conseguiu respirar.

Saiu da sala, saiu de casa. Foi para a entrada principal, inspirando desesperadamente à procura de ar. Seguiram-na passos, mas não se voltou para ver quem era. Só quando ele falou, ela soube que era Korsak.

Está bem, Rizzoli?

Estou bem.

Não me parece.

Estava só a sentir-me um pouco tonta.

Lembrou-se do caso Hoyt, não? Ver isto deve tê-la abalado.

Como sabe?

Uma pausa. Depois, um resmungo:

Sim, tem razão. Como diabo havia eu de saber? E regressou à casa.

Rizzoli voltou-se.

Korsak? chamou.

Olharam um para o outro por momentos. O ar nocturno não era desagradável e a relva tinha um perfume quente e doce. Mas o terror era espesso como um vómito no estômago.

Sei o que ela está a sentir disse suavemente. Sei aquilo por que ela está a passar.

Mistress Yeager?

Tem de encontrá-la. Tem de eliminar todos os obstáculos.

O rosto dela está em todos os noticiários. Estamos a seguir todas as informações dadas por telefone ou por pessoas que dizem tê-lo visto. Korsak abanou a cabeça e suspirou. Mas, como sabe, nesta altura dos acontecimentos, admirar-me-ia que ele ainda a mantivesse viva.

Tem. Sei que tem.

Como pode ter a certeza?

Rizzoli envolveu-se com os braços para parar de tremer e olhou para a casa.

É o que o Warren Hoyt faria.

 

De todas as suas obrigações enquanto detective na Brigada de Homicídios de Boston, o que mais desagradava a Rizzoli eram as visitas ao discreto edifício de tijolo de Albany Street. Embora suspeitasse de que não era mais susceptível do que os seus colegas do sexo masculino, ela, em especial, não podia dar-se ao luxo de manifestar qualquer vulnerabilidade. Os homens eram especialistas em detectar fraquezas e inevitavelmente procurariam os pontos mais fracos para alvo das suas farpas e piadas baixas. Aprendera a apresentar uma fachada estóica e a olhar sem vacilar para o pior que a mesa de autópsias tinha para oferecer. Ninguém desconfiava do sangue-frio a que tinha de recorrer para entrar naquele edifício com tanto desprendimento. Sabia que era conhecida entre os homens como a destemida Jane Rizzoli, uma cadela com tomates de ferro. Mas, sentada no carro no parque de estacionamento localizado nas traseiras do Instituto de Medicina Legal, não se sentia nem destemida nem de ferro.

Na noite anterior, não dormira bem. Pela primeira vez em semanas, Warren Hoyt esgueirara-se para dentro dos seus sonhos e acordara ensopada em suor e com as mãos doridas das antigas feridas.

Olhou para as mãos cheias de cicatrizes e subitamente desejou pôr o motor do carro em andamento e afastar-se, tudo para evitar a provação que a aguardava no interior do edifício. Não precisava de estar ali; afinal, o crime pertencia a Newton, não era responsabilidade sua. Mas Jane Rizzoli nunca fora cobarde e era demasiado orgulhosa para agora recuar.

Saiu do automóvel, bateu ruidosamente com a porta e dirigiu-se para o edifício.

Foi a última a chegar ao laboratório de autópsias, e as outras três pessoas na sala acenaram-lhe rapidamente com a cabeça a cumprimentá-la. Korsak estava coberto por uma bata extragrande e usava uma touca de papel. Parecia uma dona de casa obesa de rede no cabelo.

Perdi muita coisa? perguntou, enquanto enfiava ela também uma bata para proteger a roupa de salpicos inesperados.

Não muita. Estávamos justamente a falar da fita adesiva.

A Dra. Maura Isles realizava a autópsia. "Rainha dos Mortos" fora a alcunha que a Brigada de Homicídios lhe dera havia um ano quando ela entrara para o Instituto de Medicina Legal de Massachusetts. O próprio Dr. Tierney fora buscá-la a Boston, à sua posição extraordinariamente bem paga na Faculdade de Medicina da Universidade de São Francisco. Não foi preciso muito para que a imprensa local começasse a chamá-la também pela mesma alcunha. Na sua primeira aparição no tribunal de Boston para prestar depoimento, chegara vestida de preto, estilo gótico. As câmaras de televisão seguiram a figura principesca quando esta subiu as escadas do tribunal, uma mulher extraordinariamente pálida com uma mancha de batom vermelho, cabelos negros pelos ombros e franja espessa, e uma atitude de fria inacessibilidade. No banco das testemunhas, nada a perturbara. Enquanto o advogado de defesa cortejava, bajulava e, finalmente, recorria em desespero à franca ameaça, a Dra. Isles respondera a todas as perguntas com uma lógica infalível e mantendo sempre o seu sorriso de Mona Lisa. A imprensa adorava-a. Os advogados de defesa temiam-na. E os agentes da Brigada de Homicídios sentiam-se simultaneamente assombrados e fascinados por aquela mulher que escolhera passar os seus dias em comunhão com os mortos.

A Dra. Isles presidia à autópsia da habitual forma desapaixonada. O seu assistente, Yoshima, mantinha também uma atitude indiferente enquanto preparava calmamente os instrumentos e regulava as luzes. Ambos olhavam para o corpo de Richard Yeager com a expressão fria dos cientistas.

O rigor mortis desaparecera desde que Rizzoli vira o corpo no dia anterior e o Dr. Yeager estava agora flácido. A fita adesiva fora cortada e os calções tirados, e a maior parte do sangue que tinha na pele fora lavada. Jazia com os braços estendidos ao lado do corpo e ambas as mãos estavam inchadas e purpúreas como luvas de boxe coloridas, em resultado da fita apertada e do rigor mortis. Mas era na ferida aberta no pescoço que toda a gente agora se concentrava.

Golpe de misericórdia disse Isles. Mediu com uma régua as dimensões da ferida. Catorze centímetros.

Estranho, não parece ser muito profunda observou Korsak.

É porque o corte foi feito pelas chamadas linhas de Langer. A tensão dapele repuxa e une as bordas de modo que dificilmente a ferida abre. É mais profunda do que parece.

Quer o abaixa-línguas? perguntou Yoshima.

Obrigada. Isles pegou no objecto e introduziu delicadamente na ferida a ponta arredondada de madeira. Diga ah... murmurou.

Que diabo... começou Korsak.

Estou a medir a profundidade da ferida. Cerca de cinco centímetros.

Depois, Isles introduziu uma lupa na ferida e examinou o corte cor de carne.

A carótida esquerda e a jugular esquerda foram ambas cortadas. A traqueia também foi seccionada. O nível de penetração traqueal, logo abaixo da cartilagem da tiróide, sugere-me que o pescoço foi primeiramente alongado antes de efectuado o corte. Olhou para os dois detectives. O vosso assassino puxou para trás a cabeça da vítima e depois fez uma incisão muito deliberada.

Uma execução disse Korsak.

Rizzoli lembrou-se de como a Crimescope detectara o brilho de cabelos colados à parede salpicada de sangue. Cabelos do Dr. Yeager, arrancados do couro cabeludo enquanto a lâmina lhe cortava a pele.

Que tipo de lâmina? perguntou ela.

Isles não respondeu imediatamente à pergunta. Em vez disso, voltou-se para Yoshima e pediu:

Fita adesiva.

Tem aí pedaços já cortados.

Eu aproximo os bordos" e você aplica a fita adesiva. Korsak deu uma risada atónita ao perceber o que eles estavam a fazer.

Estão a prendê-lo com fita-cola?

Isles lançou-lhe um olhar frio de divertimento.

Preferia cola?

É suposto isso manter-lhe a cabeça no lugar, ou quê?

Então, detective! Fita adesiva nem a sua cabeça conseguia manter no lugar. Olhou para a lupa e assentiu. Está bem, Yoshima. Já consigo ver.

Ver o quê? perguntou Korsak.

As maravilhas da fita-cola. Detective Rizzoli, perguntou-me que tipo de lâmina ele usou.

Por favor, não me diga que foi um bisturi!

Não, não foi um bisturi. Dê uma vista de olhos.

Rizzoli aproximou-se da lupa e examinou a ferida. Os bordos cortados tinham sido unidos pela fita transparente e o que via agora era aproximadamente a forma transversal da arma utilizada. Havia estrias paralelas num dos bordos da incisão.

Uma lâmina serrilhada disse ela.

À primeira vista, assim parece.

Rizzoli ergueu a cabeça e encontrou os olhos calmamente desafiadores de Isles.

Mas não é?

O gume em si mesmo não é serrilhado, uma vez que o outro bordo da incisão está absolutamente liso. E já reparou como estes arranhões paralelos surgem apenas num terço da incisão? Não a todo o comprimento. Essas marcas de arranhão foram feitas quando a lâmina estava a ser retirada. O assassino começou a incisão sob o lado esquerdo do maxilar e cortou no sentido do meio da garganta, terminando a incisão precisamente no lado mais distante do anel da traqueia. As marcas de arranhão surgem quando ele acaba o corte e torce levemente a lâmina para a retirar.

Então, o que produz esses arranhões?

Não o gume cortante. Esta arma é serrilhada na aresta oposta ao fio de corte e foi a serrilha que fez os arranhões paralelos quando a arma foi puxada. Isles olhou para Rizzoli. Isto é típico da faca de um Rambo ou de uma faca de mato. Algo que um caçador utilizaria.

Um caçador. Rizzoli fitou os ombros fortemente musculados de Richard Yeager e pensou: Este homem não era dos que assumem docilmente o papel de presa.

Ora bem, deixem-me ver se percebi disse Korsak. A vítima, aqui o doutor "Pesos e Halteres", observa enquanto o nosso assassino saca da faca de serrilha à Rambo. Limita-se a ficar sentado e a deixá-lo cortar-lhe a garganta?

Tinha os pulsos e os tornozelos amarrados salientou Isles.

Não quero saber se estava atado como um Tutankhamon. Qualquer homem de sangue quente se contorceria como uma enguia.

Tem razão respondeu Rizzoli. Mesmo com os pulsos e tornozelos atados pode dar-se pontapés. Até se pode dar cabeçadas. Mas o doutor Yeager ficou simplesmente sentado encostado à parede.

A Dra. Isles endireitou-se. Por momentos, não disse nada, ficou apenas numa posição régia, como se a bata cirúrgica fosse a túnica de uma sacerdotisa. Olhou para Yoshima.

Dê-me uma toalha húmida. Dirija a luz para aqui. Vamos examiná-lo a fundo e ver-lhe bem a pele. Centímetro a centímetro.

De que está à procura? perguntou Korsak.

Digo-lhe quando encontrar.

Instantes depois, quando Isles ergueu o braço direito da vítima, reparou nas marcas no lado direito do peito. À lupa, salientavam-se dois leves inchaços avermelhados. Isles passou o dedo enluvado pela pele.

Vergões disse. Trata-se de uma tripla reacção de Lewis.

Tripla quê? perguntou Rizzoli.

Tripla reacção de Lewis. É um efeito indicativo sobre a pele. Primeiro, vemos um eritema... uma mancha vermelha... e depois um inchaço causado por dilatação arteriolar cutânea. E, finalmente, na terceira fase, surgem os vergões devido à crescente permeabilidade vascular.

A mim parece-me a marca de um Taser disse Rizzoli.

Exactamente assentiu Isles. Trata-se da reacção clássica da pele a um choque eléctrico produzido por um instrumento do género do Taser. Certamente que o imobilizaria. Zap... e perde-se todo o controlo neuromuscular. Decerto que durante o tempo suficiente para alguém lhe atar os pulsos e os tornozelos.

Quanto tempo duram em geral estes vergões?

Num indivíduo vivo, normalmente desaparecem após duas horas.

E num indivíduo morto?

A morte pára o processo cutâneo. Por isso ainda os podemos ver. Embora muito fracos.

Portanto, ele morreu nas duas horas a seguir a receber o choque?

Exacto.

Mas um Taser só nos imobiliza por alguns minutos disse Korsak. Cinco, dez, no máximo. Para se manter imobilizado, teria de apanhar outro choque.

E é por isso que vamos procurar mais retorquiu Isles, percorrendo o tronco da vítima com a luz.

O raio de luz iluminou impiedosamente os genitais de Richard Yeager. Até esse momento, Rizzoli evitara olhar para essa região da sua anatomia. Olhar para os órgãos sexuais de um cadáver sempre a incomodara como uma cruel invasão, mais uma ofensa, mais uma humilhação imposta ao corpo da vítima. A luz estava agora focada no pénis flácido e no escroto, e a violação de Richard Yeager parecia agora completa.

Há outros vergões indicou Isles, limpando uma mancha de sangue para deixar a pele à mostra. Aqui, no baixo-ventre.

E na coxa disse Rizzoli suavemente. Isles ergueu o olhar.

Onde?

Rizzoli apontou para as marcas reveladoras, mesmo do lado esquerdo do escroto da vítima. Então, eram aqueles os terríveis últimos momentos de Richard Yeager, pensou. Totalmente consciente e lúcido, mas sem conseguir mover-se. Não pôde defender-se. Os músculos salientes e as horas passadas no ginásio nada significaram no fim, porque o corpo não lhe obedeceu. Os membros foram-lhe inúteis, em curto-circuito devido à tempestade eléctrica que crepitou pelo seu sistema nervoso. Foi arrastado do quarto, indefeso como um bezerro atónito a caminho do matadouro. Apoiado à parede a fim de testemunhar o que ia seguir-se.

Mas o efeito de um Taser é rápido. Depressa os músculos se contorceriam e os dedos se enclavinhariam. Observa o sofrimento da mulher e a raiva inunda-lhe o corpo de adrenalina. Desta vez, quando se move, os músculos obedecem. Tenta levantar-se, mas o ruído da chávena a cair-lhe do colo denuncia-o.

Basta apenas mais um disparo do Taser e cai, desesperado, como Sísifo a rolar pela encosta abaixo.

Olhou para o rosto do Dr. Richard Yeager, para as pálpebras entreabertas, e pensou nas últimas imagens que o seu cérebro teria registado. As suas próprias pernas, inutilmente estendidas à sua frente. A mulher, que jazia, conquistada, no tapete bege. E uma faca que a mão do caçador apertava, aproximando-se para a matança.

A sala de recreio onde os homens andam de um lado para o outro, como animais enjaulados que são, é barulhenta. A televisão está ligada e as escadas metálicas que dão para o renque superior de celas ressoam a cada passo. Nunca estamos longe da vista dos nossos guardas. Há câmaras de vigilância por todo o lado, nos duches e até na área das retretes. Das janelas do posto da guarda, os nossos carcereiros olham para baixo para nós enquanto nos misturamos aqui no poço. Conseguem ver todos os movimentos que fazemos. O Centro Prisional Souza-Baranowski é um estabelecimento de nível seis, o mais recente do sistema do Instituto Correccional de Massachusetts e uma maravilha técnica. As fechaduras não têm chave, são operadas por terminais de computador na torre da guarda. As ordens são-nos transmitidas por vozes incorpóreas através de intercomunicadores. As portas de todas as celas deste sector podem ser abertas ou fechadas por controlo remoto e sem que nunca apareça qualquer ser humano. Há dias em que me pergunto se algum dos nossos guardas é de carne e osso, ou se as silhuetas que vemos atrás dos vidros não serão meramente robôs animatrónicos de troncos articulados e cabeças móveis. Seja por homens, seja por máquinas, estou a ser observado, mas isso não me incomoda, uma vez que não conseguem ver-me o interior da mente; não conseguem penetrar na paisagem tenebrosa das minhas fantasias. Esse lugar pertence só a mim.

Quando me sento na sala de convívio a ver o noticiário das seis na televisão, ando a percorrer essa mesma paisagem. Quem faz a jornada comigo é a locutora que sorri no ecrã. Imagino o seu cabelo escuro como uma mancha de negro sobre a almofada. Vejo o suor a brilhar-lhe na pele e, no meu mundo, ela não sorri, oh, não, tem os olhos esbugalhados e as pupilas dilatadas como lagos sem fundo e os lábios arrepanhados num ricto de terror. Imagino tudo isto enquanto olho para a bonita locutora de fato verde-jade. Vejo-lhe o sorriso, ouço-lhe a voz bem modulada e pergunto-me como serão os seus gritos.

Depois, surgiu na televisão uma imagem nova e todos os meus pensamentos sobre a locutora se desvaneceram. Um jornalista está diante da casa do doutor Richard Yeager, em Newton. Em voz soturna, revela que, dois dias após o assassínio do médico e rapto da esposa, não foram feitas detenções. Já estou familiarizado com o caso do doutor Yeager e mulher. Inclino-me agora para a frente, fitando intensamente o ecrã, à espera de um vis- lumbre.

Finalmente, vejo-a.

A câmara voltou-se para a casa e apanha-a em grande plano quando ela saía pela porta da frente. Um homem de ar pesado emerge logo atrás dela. Param a conversar à entrada, sem reparar que naquele momento o operador de câmara se concentrou neles. O homem parece grosseiro e sujo, com as suas bochechas flácidas e esparsas madeixas de cabelo penteadas sobre um crânio quase nu. A seu lado, ela parece pequena e etérea. Já se passou muito tempo desde que a vi pela última vez e muita coisa parece mudada nela. Oh, o cabelo continua a ser uma juba indomável de caracóis escuros e ainda usa aqueles fatos de calça e casaco azul-escuros, cujo casaco é demasiado largo nos ombros e tem um corte que não lhe favorece a estrutura delicada. Mas o rosto é diferente. Outrora, era um rosto de queixo quadrado e ar confiante, não especialmente bonito, mas atraente, ainda assim, por causa da intensa inteligência dos olhos. Agora, tem um ar gasto e preocupado. Perdeu peso. Vejo-lhe sombras no rosto e nas concavidades das faces.

De repente, repara na câmara de televisão e olha, fitando-me directamente, parece que os olhos dela me vêem tal como eu a vejo a ela, como se estivesse a minha frente em carne e osso. Temos uma história em comum, ela e eu, uma experiência partilhada tão íntima que estamos para sempre ligados como amantes.

Levanto-me do sofá e dirijo-me para o televisor. Coloco a mão no ecrã. Não ouço o que diz a voz do jornalista, concentro-me somente no rosto dela.

Minha pequena Janie. As tuas mãos ainda te incomodam? Ainda esfregas as mãos como fizeste na sala de audiências como se tivesses receio de haver alguma farpa presa na carne? Pensas nas cicatrizes do mesmo modo que eu, como prova do meu amor? Pequenas recordações do meu grande afecto por ti?

Sai da frente da televisão! Não conseguimos ver! berra alguém.

Não me mexo. Continuo diante do ecrã, tocando-lhe no rosto e recordando como os seus olhos escuros como carvão outrora me olharam com submissão. Recordando a pele macia. Pele perfeita, não adornada nem sequer pelo mais leve toque de um pincel de maquilhagem.

Desanda, idiota!

De repente, desapareceu, desvaneceu-se do ecrã. A locutora de casaco verde-jade regressou. Há instantes apenas, ficara satisfeito por introduzir este manequim bem arranjado nas minhas fantasias. Agora, surge-me desenxabida, mais um rosto bonito, mais um pescoço esguio. Bastou-me a visão rápida da Jane Rizzoli para me lembrar do que é uma presa que valha realmente a pena.

Volto para o sofá quando começa um anúncio sobre automóveis Lexus. Mas já não estou a olhar para a televisão. Em vez disso, recordo-me de como era caminhar em liberdade. Vaguear pelas ruas da cidade, inalando o perfume das mulheres que passavam por mim. Não os intensos odores florais químicos que saem dos frascos, mas o verdadeiro perfume do suor de uma mulher ou do cabelo de uma mulher aquecido pelo sol. Nos dias de Verão, juntava-me aos outros transeuntes à espera de que a luz do semáforo se tornasse verde. Na multidão de uma esquina apinhada, quem repararia que o homem atrás de si se inclina para cheirar o seu cabelo? Quem repararia que o homem atrás de si fita o seu pescoço, referencia os pontos de pulsação, onde sabe que o cheiro da pele é mais doce?

Mas não reparam. A luz do semáforo torna-se verde. A multidão começa a mover-se. E a mulher avança, sem nunca saber, sem nunca suspeitar de que o caçador lhe apanhou o cheiro.

A camisa de noite dobrada não significa por si só que estejamos a lidar com um imitador disse o Dr. Lawrence Zucker. Trata-se simplesmente de uma manifestação de controlo. O assassino demonstra o seu domínio sobre as vítimas. Sobre o local do crime.

Tal como o Warren Hoyt costumava fazer retorquiu Rizzoli.

Outros assassinos fizeram o mesmo. Não é único, o Cirurgião. O Dr. Zucker fitava-a com um brilho estranho, quase selvagem, nos olhos. Era psicólogo criminalista da Universidade Northeastern e consultado frequentemente pelo Departamento de Polícia de Boston.

Trabalhara com a Brigada de Homicídios durante a investigação do caso do Cirurgião um ano antes, e o perfil psicológico que traçara do indivíduo revelara-se arrepiantemente exacto. Por vezes, Rizzoli interrogava-se até que ponto o próprio Dr. Zucker seria normal. Só um homem intimamente familiarizado com o território do mal poderia ter-se insinuado tão profundamente na mente de uma criatura como Warren Hoyt. Nunca se sentira à vontade ao pé dele; a voz manhosa e sussurrada e o olhar intenso faziam-na sentir-se invadida e vulnerável. Mas fora um dos poucos a compreender verdadeiramente Hoyt; talvez compreendesse também um imitador.

Não são só as camisas de noite dobradas disse Rizzoli. Há outras semelhanças. Foi utilizada fita adesiva para atar a vítima.

Mais uma vez, não é caso único. Alguma vez viu a série de televisão MacGyver. Mostrou-nos mil e uma utilizações da fita adesiva.

A entrada nocturna por uma janela. As vítimas surpreendidas na cama...

Quando estão mais vulneráveis. É uma altura lógica para atacar.

E o corte único na garganta. Zucker encolheu os ombros.

É uma maneira tranquila e eficiente de matar.

Mas junte tudo. A camisa de noite dobrada. A fita adesiva. O método de entrada. O golpe de misericórdia...

E o que consegue é um assassino que opta por estratégias bastante vulgares. Mesmo a chávena no colo da vítima... é uma variação do que já foi feito antes por violadores em série. Colocam uma travessa ou vários pratos em cima do marido. Se este se mover, a louça a cair alerta o criminoso. São estratégias vulgares porque resultam.

Frustrada, Rizzoli tirou da carteira as fotografias tiradas no local do crime de Newton e espalhou-as sobre a secretária.

Estamos a tentar encontrar uma mulher desaparecida, doutor Zucker. Até aqui, não temos pistas. Não quero sequer pensar naquilo por que ela está a passar neste exacto momento... se ainda estiver viva. Portanto, dê uma boa olhadela a estas fotos. Fale-me deste indivíduo. Diga-me como podemos encontrá-lo. Como podemos encontrá-la a ela.

O Dr. Zucker pôs os óculos e pegou na primeira foto. Não disse nada, limitou-se a olhar por momentos e depois pegou na foto seguinte da série de imagens. Os únicos sons eram o rangido da cadeira de couro e um ocasional murmúrio de interesse. Pela janela do gabinete, Rizzoli conseguia ver o campus da Universidade Northeastern, praticamente deserto naquele dia de Verão. Só alguns estudantes se encontravam estendidos na relva, com a mochila e os livros espalhados à sua volta. Invejou os estudantes, invejou os seus dias descuidados e a sua inocência. A fé cega que tinham no futuro. E as suas noites, que não eram interrompidas por sonhos tenebrosos.

Disse que encontrou sémen observou o Dr. Zucker. Relutantemente, Rizzoli afastou os olhos dos estudantes que apanhavam sol e olhou para ele.

Sim. No tapete oval que se vê na fotografia. O laboratório confirma que o tipo de sangue é diferente do do marido. O ADN foi introduzido na base de dados CODIS.

Não sei, mas duvido que este indivíduo seja descuidado ao ponto de poder ser identificado por pesquisa numa base de dados nacional. Não, aposto que o seu ADN não está no CODIS. Zucker ergueu os olhos da foto. Também aposto que não deixou impressões digitais.

Nada que encontrasse correspondência na nossa base de dados. Infelizmente, os Yeager tiveram em casa pelo menos cinquenta visitas depois do funeral da mãe de Mistress Yeager. O que significa que estamos a olhar para uma quantidade de impressões digitais não identificadas.

Zucker observou a fotografia do Dr. Yeager encostado à parede salpicada de sangue.

Este homicídio foi em Newton.

Foi.

Não é uma investigação em que você normalmente participasse. Por que motivo está envolvida? Levantou para ela o olhar, sustentando o dela com desconfortável intensidade.

O detective Korsak pediu-me...

Oficialmente, o encarregado é ele, não é?

Exacto. Mas...

Não há em Boston homicídios suficientes para a manterem ocupada, detective? Porque sente necessidade de participar neste?

Ela devolveu-lhe o olhar, com a sensação de que ele conseguira introduzir-se-lhe no cérebro, de que andava a bisbilhotar, à procura do ponto mais frágil para a atormentar.

Já lhe disse respondeu ela. A mulher pode estar viva ainda.

E você quer salvá-la.

Você não? replicou.

Sinto-me curioso, detective prosseguiu Zucker sem se perturbar com a raiva dela. Falou com alguém sobre o caso Hoyt? Quero dizer, sobre o seu impacto em si, pessoalmente?

Não sei se estou a percebê-lo bem.

Recebeu aconselhamento?

Está a perguntar-me se fui a um psiquiatra?

Deve ter sido uma experiência bastante assustadora... o que lhe aconteceu naquela cave. O Warren Hoyt fez-lhe coisas que atormentariam qualquer polícia. Deixou cicatrizes, tanto emocionais como físicas. A maioria das pessoas ficaria traumatizada para sempre. Recordações, pesadelos. Depressão.

As recordações não têm qualquer piada. Mas consigo lidar com elas.

Sempre foi essa a sua maneira de ser, não? Aguentar. Nunca se queixar.

Queixo-me das coisas como toda a gente.

Mas nunca sobre coisas que possam dar a impressão de que é fraca. Ou vulnerável.

Não suporto choramingas. Recuso-me a ser mais uma.

Não falo de choramingar. Falo de ser suficientemente honesta para reconhecer que está com problemas.

Que problemas?

Diga-me você, detective.

Não, diga-me o senhor, uma vez que parece achar que estou apanhada.

Não disse isso.

Mas pensou.

Quem usou o termo apanhada foi você. É assim que se sente?

Escute, estou aqui por causa disto. Apontou para as fotografias do local do crime dos Yeager. Porque estamos a falar de mim?

Porque quando você olha para estas fotografias só vê o Warren Hoyt. Gostava de saber porquê.

Esse caso está encerrado. Já estou noutra.

Está? Mesmo?

A pergunta, proferida suavemente, fê-la calar-se. Melindrava-a a sondagem e melindrava-a, sobretudo, que ele reconhecesse uma verdade que ela não queria admitir. Warren Hoyt deixara cicatrizes. Só precisava de olhar para as mãos para se lembrar dos danos que ele lhe infligira. Mas o dano pior não era físico. Aquilo que ela perdera naquela cave escura no Verão anterior fora o seu senso de invencibilidade. O seu sentido de confiança. Warren Hoyt ensinara-lhe o quão vulnerável ela era na realidade.

Não estou aqui para falar do Warren Hoyt declarou.

No entanto, é o motivo por que está aqui.

Não. Estou aqui porque vejo paralelos entre os dois assassinos. Não sou a única. O detective Korsak também os vê. Por conseguinte, atenhamo-nos ao assunto, está bem?

Ele fitou-a com um sorriso brando.

Está bem.

Então, quanto a este homicida? Bateu com o dedo nas fotos. Que pode dizer-me acerca dele?

Zucker voltou a concentrar-se na imagem do Dr. Yeager.

O seu assassino é uma pessoa organizada. Mas isso já você sabe, é óbvio. Entrou em cena totalmente preparado. O cortador de vidro, a arma de aturdir, a fita adesiva. Conseguiu dominar o casal tão rapidamente que nos faz pensar... Olhou para ela de relance. Não há possibilidade de existir um segundo criminoso? Um comparsa?

Só temos um par de pegadas.

Então, o indivíduo é muito eficiente. E meticuloso.

Mas deixou sémen no tapete. Deu-nos a chave da sua identidade. Foi um erro de todo o tamanho.

Sim, foi. E ele decerto sabe disso.

Então, porquê atacá-la precisamente ali, em casa? Porque não mais tarde num lugar seguro? É organizado o suficiente para assaltar a casa, controlar o marido...

Talvez o prémio seja esse.

Qual?

Pense nisto: o doutor Yeager ali sentado, atado e indefeso. Forçado a ver enquanto outro homem toma posse da sua propriedade.

Propriedade repetiu ela.

Na mente deste indivíduo, é isso que a mulher é. Propriedade de outro homem. Na sua maioria, os predadores sexuais não se arriscariam a atacar um casal, teriam escolhido só a mulher, um alvo fácil. A existência de um homem em cena torna tudo mais perigoso. Mas este tipo tinha de saber que havia um marido em cena e veio preparado para lidar com ele. Será isso parte do prazer, parte da excitação? O facto de ter assistência?

Uma assistência de uma pessoa. Rizzoli olhou para a foto de Richard Yeager encostado à parede. Sim, essa fora a sua primeira impressão quando entrara no salão.

Os olhos de Zucker voltaram-se para a janela. Uns momentos decorreram. Quando voltou a falar, a voz dele era suave e sonolenta, como se as palavras surgissem em estado de sonho.

É tudo uma questão de poder. E de controlo. Uma questão de domínio de um ser humano sobre outro. Não só sobre a mulher, mas igualmente sobre o homem. Talvez na realidade seja o homem quem o excita, quem é parte vital da sua fantasia. O nosso indivíduo conhece os riscos, mas sente-se impelido a realizar os seus impulsos. As suas fantasias controlam-no e ele, por seu turno, controla as vítimas. É omnipotente. O dominador. O seu inimigo encontra-se imobilizado e impotente e o nosso homem faz o que sempre fizeram os exércitos vitoriosos. Capturou a sua presa. Viola a mulher. O seu prazer é potenciado pela completa derrota do doutor Yeager. Este ataque é mais do que uma agressão sexual; é uma exibição de poder masculino. A vitória de um homem sobre outro. O conquistador que reivindica os seus despojos.

No exterior, os estudantes que se encontravam na relva começavam a pôr as mochilas e sacudiam as ervas da roupa. O sol da tarde banhava tudo de ouro esbatido. Que traria a esses estudantes o dia seguinte?, perguntou-se Rizzoli. Talvez uma tarde de ócio e conversa, piza e cerveja. E um bom sono sem pesadelos. O sono da inocência.

Algo que nunca mais saberei o que é.

O telemóvel gorgeou.

Desculpe disse ela e abriu o telefone.

A chamada era de Erin Volchko, do laboratório de cabelos, fibras e vestígios.

Examinei algumas tiras"" de fita adesiva retiradas do corpo do doutor Yeager disse Erin. Já mandei o relatório ao detective Korsak por faxe. Mas sabia que você também gostaria de saber.

Que conseguimos?

Vários cabelos castanhos, curtos, no adesivo. Pêlos dos membros, arrancados da vítima quando a fita foi retirada.

Fibras?

Também. E isso é que é realmente interessante. Na tira retirada dos tornozelos da vítima, havia um único fio de cabelo castanho-escuro e com vinte e um centímetros de comprimento.

A mulher dele é loura.

Eu sei. É isso que torna interessante este fio de cabelo em especial.

Do nosso homem, pensou Rizzoli. Do nosso assassino.

Há células epiteliais?

Há.

Portanto, talvez consigamos retirar ADN desse fio de cabelo. Se for igual ao do sémen...

Não pode ser igual ao do sémen.

Como sabe?

Porque não é possível que este fio de cabelo pertença ao assassino. Erin fez uma pausa. A menos que seja um morto-vivo.

 

Para os detectives da Brigada de Homicídios da Polícia de Boston, uma visita ao laboratório de criminologia exigia apenas uma curta caminhada por um corredor agradavelmente banhado de sol até à ala sul de Schroeder Plaza. Rizzoli percorrera aquele corredor vezes sem conta, com o olhar frequentemente perdido nas janelas que davam para o problemático bairro de Roxbury, onde as lojas à noite se barricavam atrás de grades e ferrolhos e todos os carros estacionados estavam equipados com alarme. Mas, naquele dia, concentrada na obtenção de respostas, nem sequer olhou para os lados, dirigindo-se directamente para a Sala S269, o laboratório de cabelos, fibras e vestígios.

Nesse aposento sem janelas, apinhado de microscópios e de um prisma de raios gama para cromatografia de fase gasosa, pontificava a criminalista Erin Volchko. Isolada da luz natural e da vista das janelas, concentrava o olhar no mundo que surgia sob as lentes do microscópio e tinha os olhos semicerrados na perpétua expressão oblíqua de alguém que esteve a olhar durante demasiado tempo por uma ocular. Quando Rizzoli entrou na sala, Erin girou na cadeira para ficar de frente para ela.

Acabei de pôr isto no microscópio em sua intenção. Venha ver. Rizzoli sentou-se e observou pelo microscópio. Viu um fragmento de cabelo estendido horizontalmente na platina.

É o fio comprido de cabelo castanho que retirei da tira de fita adesiva que atava os tornozelos do doutor Yeager disse Erin. Era o único cabelo desses colado ao adesivo. Os outros eram cabelos curtos dos membros da vítima e mais um da cabeça da vítima e que estava na fita retirada da boca. Mas este fio comprido é órfão. E deixa-nos bastante perplexos, porque não corresponde nem ao cabelo da vítima nem aos cabelos que retirámos da escova de cabelo da esposa.

Rizzoli moveu a platina e examinou o fragmento de cabelo.

É sem dúvida humano?

Sim, é humano.

Então, porque não pode ser do nosso agressor?

Olhe bem. Diga-me o que vê.

Rizzoli fez uma pausa, recordando tudo o que aprendera sobre análise laboratorial de cabelos. Sabia que Erin devia ter uma razão para a conduzir pelo processo de forma tão sistemática e apercebia-se de bastante excitação na sua voz.

Este fio é curvo, com um grau de encurvamento de cerca de zero vírgula um ou dois. E você disse que o comprimento do fio de cabelo é de vinte e um centímetros.

Dentro da média do estilo de cabelo das mulheres comentou Erin. Mas bastante longo para um homem.

O que a preocupa é o comprimento?

Não. O comprimento não nos revela o género.

Nesse caso, em que devo concentrar-me?

Na extremidade próxima. Na raiz. Nota algo de estranho?

A extremidade da raiz parece um pouco esfarrapada. Com ar de escova.

É exactamente a palavra que eu utilizaria. Chamamos a isso extremidade de raiz em escova. É uma reunião de fibrilas corticais. Examinando a raiz, podemos dizer em que fase de crescimento se encontrava o fio de cabelo. Importa-se de avançar com um palpite?

Rizzoli concentrou-se na extremidade bulbosa com o seu revestimento delicado como uma teia.

Há algo transparente preso à raiz.

É uma célula epitelial explicou Erin.

Isso significa que estava em crescimento activo.

Sim. A própria raiz alargou ligeiramente, pelo que este cabelo estava em anagénese tardia. Encontrava-se precisamente a terminar a fase de crescimento activo. E esta célula epitelial pode fornecer-nos ADN.

Rizzoli levantou a cabeça e olhou para Erin.

Não percebo o que tem isto a ver com mortos-vivos. Erin riu-se suavemente.

Não era para levar à letra.

Que quer dizer?

Olhe outra vez para o cabelo. Analise-o da raiz para a outra extremidade.

Mais uma vez, Rizzoli olhou para o microscópio e focou o olhar num segmento mais escuro do fio de cabelo.

A cor não é uniforme disse.

Continue.

Há uma faixa escura no fio, bastante perto da raiz. O que é isto?

Chama-se banda distai da raiz disse Erin. É onde o dueto da glândula sebácea entra no folículo. As secreções das glândulas sebáceas incluem enzimas que na verdade fraccionam células numa espécie de processo digestivo. Provoca este aumento e esta formação em banda escura perto da extremidade da raiz do cabelo. Por isso quis que você visse. A banda distai. Elimina qualquer possibilidade de este cabelo pertencer ao nosso indivíduo. Pode ter caído da roupa, mas não da cabeça dele.

Porque não?

A banda distai e as extremidades da raiz em escova são modificações post mortem.

Rizzoli ergueu bruscamente a cabeça e olhou para Erin.

Post mortem?

É verdade. Este veio de um couro cabeludo em decomposição. As modificações desse fio de cabelo são clássicas e muito características do processo de decomposição. A menos que o seu assassino se tenha erguido da tumba, esse cabelo não pode ter vindo da cabeça dele.

Rizzoli precisou de alguns momentos para reencontrar a voz.

Há quanto tempo teria a pessoa de estar morta? Para que o cabelo apresentasse essas modificações?

Infelizmente, as modificações da banda não ajudam a determinar o período post mortem. Pode ter sido retirado do couro cabeludo entre oito dias a várias semanas depois da morte. O cabelo dos cadáveres embalsamados há vários anos também pode parecer-se com este.

E se se tirar cabelos a alguém enquanto esse alguém estiver vivo, deixando os cabelos por aí por uns tempos? As modificações também surgem?

Não. Essas modificações devidas à decomposição só aparecem enquanto o cabelo permanecer no couro cabeludo da pessoa. Têm de ser arrancados depois, após a morte. Erin enfrentou o olhar atónito de Rizzoli. O seu assassino teve contacto com um cadáver. Ficou com o cabelo agarrado à roupa e depois deixou-o cair na fita adesiva quando estava inclinado sobre os tornozelos do doutor Yeager.

Existe outra vítima retorquiu Rizzoli em tom suave.

É uma possibilidade. Gostaria de propor outra. Erin dirigiu-se a uma bancada e voltou com um pequeno tabuleiro onde se encontrava um segmento de fita adesiva com o lado colante voltado para cima. Este pedaço foi retirado dos pulsos do doutor Yeager. Quero mostrar-lho sob radiação ultravioleta. Desligue ali o interruptor, se não se importa.

Rizzoli desligou o interruptor. Na escuridão repentina, a pequena lâmpada de Erin emitiu uma fantasmagórica luz azul-esverdeada. Era uma fonte de luz bastante menos forte do que a Crimescope que Mick usara em casa dos Yeager, mas, apesar disso, quando o raio de luz varreu a tira de fita, revelou pormenores espantosos. A fita adesiva deixada no local de um crime pode constituir um achado para um detective. Fibras, cabelos, impressões digitais e até o ADN de um criminoso existente nas células da pele podem aderir à fita. Sob os raios ultravioleta, Rizzoli conseguia agora ver restos de pó e alguns cabelos curtos. E, ao longo de uma borda da fita, o que parecia uma franja muito fina de fibras.

Está a ver como são contínuas essas fibras mesmo na borda? perguntou Erin. Estão a todo o comprimento na borda da fita que foi retirada dos pulsos, bem como dos tornozelos. Parecem quase trabalho feito à mão.

Mas não são?

Não, não são. Se pousar de lado um rolo de fita adesiva, as bordas apanham vestígios daquilo em que o rolo estiver pousado. Estas fibras são dessa superfície. Aonde quer que vamos, apanhamos vestígios desse meio ambiente e, posteriormente, deixamos esses vestígios noutros locais. O mesmo aconteceu com o homicida. Erin acendeu as luzes e Rizzoli piscou os olhos na claridade súbita.

De que espécie são estas fibras?

Vou mostrar-lhe. Erin retirou a lamela com o fio de cabelo e substituiu-a por outra. Dê uma espreitadela pela outra ocular do microscópio. Eu explico-lhe o que estamos a ver.

Rizzoli olhou e viu uma fibra escura enrolada em forma de C.

Isto é da borda da fita adesiva disse Erin. Servi-me de uma corrente de ar quente para separar as várias camadas existentes na fita. Estas fibras azul-escuras percorrem todo o comprimento. Vamos ver agora a secção transversal. Erin pegou numa pasta de arquivo e retirou uma fotografia. É este o aspecto sob o microscópio electrónico. Está a ver como a fibra tem a forma de um delta? Como um triângulo pequeno. É trabalhada desta forma para reduzir a retenção de detritos. A forma em delta é característica das fibras dos tapetes.

Trata-se de material feito pelo homem?

Exacto.

E quanto à birrefringência? Rizzoli sabia que, quando a luz passa por uma fibra sintética, muitas vezes sai polarizada em dois planos diferentes como se atravessasse um cristal. A dupla refracção chamava-se birrefringência. Cada tipo de fibra tinha um índice característico, que podia ser medido com um microscópio de polarização.

Esta fibra azul específica disse Erin tem um índice de birrefringência de vírgula zero seis três.

Característico de alguma coisa em particular?

Náilon seis, seis. Vulgarmente utilizado em tapetes, porque é resisciliente a nódoas, é resistente e é forte. Em particular, a forma transversal e a espectrografia por infravermelhos desta fibra correspondem a um produto DuPont chamado Antron, usado no fabrico de tapetes.

E é azul-escuro? perguntou Rizzoli. Não é uma cor que a maioria das pessoas escolheria para a casa. Parece mais tapete para automóveis.

Erin assentiu com a cabeça.

De facto, esta cor em particular, azul número oito zero dois, há muito que é oferecida como opção padrão para automóveis americanos de luxo. Cadillacs e Lincolns, por exemplo.

Rizzoli percebeu imediatamente onde ela queria chegar.

A Cadillac faz carros funerários observou.

Também a Lincoln replicou Erin, sorrindo.

Estavam a pensar ambas na mesma coisa: o assassino era alguém que trabalhava com cadáveres.

Rizzoli imaginou todas as pessoas que pudessem estar em contacto com mortos. O agente da polícia e o médico legista que são chamados ao local de uma morte inesperada. O patologista e o assistente. O embalsamador e o agente da funerária. O restaurador, que lava o cabelo e aplica maquilhagem para que o ente querido esteja apresentável para a derradeira visão. Os mortos passam por uma sucessão de guardiães vivos e os vestígios da sua passagem podem agarrar-se a todo e qualquer um que tenha posto as mãos nos falecidos.

Olhou para Erin.

A mulher desaparecida. Gail Yeager...

Que tem ela?

A mãe morreu o mês passado.

Joey Valentine estava a trazer os mortos à vida.

Rizzoli e Korsak encontravam-se na sala de preparação vivamente iluminada da Agência Funerária Whitney e observavam Joey que remexia no conjunto de maquilhagem. Lá dentro havia frascos minúsculos de bases cor de carne, ruges e batons. Assemelhava-se a qualquer conjunto de maquilhagem para teatro, mas aqueles cremes e cores destinavam-se a instilar vida na pele acinzentada dos cadáveres. A voz aveludada de Elvis Presley cantava Love Me Tender num gira-discos, enquanto Joey aplicava cera modeladora nas mãos do cadáver, cobrindo as várias incisões e buracos deixados por múltiplos cateteres intravenosos e cortes arteriais.

Era a música favorita de Mistress Ober disse, enquanto trabalhava, olhando de vez em quando para as três fotografias instantâneas presas ao cavalete que colocara ao lado da mesa de preparação.

Rizzoli assumiu que se tratava de imagens de Mrs. Ober, embora a mulher viva que aparecia nas fotos tivesse poucas semelhanças com o cadáver acinzentado e devastado em que Joey estava a trabalhar.

O filho diz que era fanática pelo Elvis continuou Joey. Foi a Graceland três vezes. Trouxe-me esta cassete para eu poder tocá-la enquanto faço a maquilhagem. Tento sempre tocar a música ou canção preferida, sabe? Ajuda-me a sintonizar-me com eles. Ficamos a saber muito sobre as pessoas só pela música que ouvem.

Qual é o suposto aspecto de uma admiradora de Elvis? perguntou Korsak.

Batom mais vivo, percebe? Cabelo mais comprido. Nada como alguém que ouça... digamos, Chostakovitch.

Então, que música ouvia Mistress Hallowell?

Não me recordo, realmente.

Trabalhou nela há um mês apenas.

Sim, mas nem sempre me recordo dos pormenores. Joey terminara o trabalho da cera nas mãos. Moveu-se então para a cabeceira da mesa, onde ficou a abanar a cabeça ao som de You Am't Noting but a Hound Dog. Vestido com calças de ganga pretas e Doe Martens, parecia um jovem artista neurasténico a contemplar uma tela em branco. Mas a tela dele era carne fria e os instrumentos o pincel de maquilhagem e o boião de ruge.

Um toque de Bronze Blush Light, acho disse, e estendeu a mão para o frasco apropriado. Com uma espátula, começou a misturar cores numa paleta de aço inoxidável. Sim, parece-me correcto para uma rapariga do tempo do Elvis. Começou a espalhar a base nas faces do cadáver, esbatendo-a até à linha dos cabelos onde surgiam raízes prateadas entre o cabelo pintado de preto.

Talvez se lembre de falar com a filha de Mistress Hallowell avançou Rizzoli. Pegou numa foto de Gail Yeager e mostrou-a a Joey.

Devia perguntar a Mister Whitney. É ele quem trata de todas as disposições. Eu sou apenas o assistente...

Mas você e Mistress Yeager devem ter conversado sobre a maquilhagem da mãe para o funeral. Uma vez que você preparou os restos mortais.

Joey passeou o olhar pela fotografia de Gail Yeager.

Lembro-me de que era uma senhora muito bonita disse suavemente.

Rizzoli fitou-o com ar inquiridor.

Era?

Olhe, tenho acompanhado os noticiários. Não julga que Mistress Yeager ainda esteja viva, pois não? Joey voltou-se e franziu as sobrancelhas a Korsak, que andava de um lado para o outro a bisbilhotar nos armários. Oh... Detective, anda à procura de alguma coisa em especial?

Não. Só me perguntava que tipo de material vocês têm numa agência funerária. Apontou para um dos armários. Olhe, isto é um ferro de encaracolar?

Sim, lavamos os cabelos e fazemos ondulações. Manicuras. Tudo para que os nossos clientes tenham o melhor aspecto.

Ouvi dizer que você é muito bom nisso.

Todos ficam satisfeitos com o meu trabalho. Korsak riu-se.

E dizem-lhe isso pessoalmente?

Refiro-me às famílias. As famílias ficam satisfeitas. Korsak pousou o ferro de encaracolar.

Você trabalha para Mister-Whitney há quanto tempo? Há uns sete anos?

Mais ou menos.

Deve ter entrado logo que acabou o liceu.

Comecei por lavar os carros funerários. Limpava a sala de preparação. Atendia as chamadas nocturnas. Depois, Mister Whitney pôs-me a ajudá-lo nos embalsamamentos. Agora que ele começa a envelhecer, faço quase tudo.

Presumo que tem licença de embalsamador, não? Uma pausa.

Hum... não. Nunca me preocupei em requerê-la. Só ajudo Mister Whitney.

Porque não a requer? Parece-me que seria uma espécie de promoção.

Estou contente com o meu trabalho tal como ele é.

Joey voltou a atenção para Mrs. Ober, cujo rosto tomava agora um tom rosado. Pegou numa escova de sobrancelhas e começou a dar pequenos toques de castanho nas sobrancelhas grisalhas. As mãos dele trabalhavam com uma delicadeza quase amorosa. Numa idade em que, na sua maioria, os jovens anseiam por agarrar a vida, Joey Valentine optara por passar os dias com os mortos. Acompanhava cadáveres provenientes de hospitais e lares para a terceira idade até àquela sala limpa e iluminada. Lavara-os e enxugara-os, lavara-lhes os cabelos, pusera-lhes cremes e pós para lhes conceder a ilusão da vida. Ao dar cor às faces de Mrs. Ober, murmurou:

Muito bem. Oh! sim, está mesmo muito bem. Vai ter um aspecto fabuloso...

Então, Joey disse Korsak. Há sete anos que trabalha aqui, certo?

Não acabei de lhe dizer isso?

E nunca se deu ao incómodo de requerer qualquer espécie de credencial profissional?

Porque me pergunta isso?

É porque sabia que não conseguia a licença?

Joey franziu a testa ao estender a mão para um batom. Não disse nada.

O velho Mister Whitney sabe do seu cadastro criminal? perguntou Korsak.

Joey levantou finalmente os olhos.

Não lhe disse, pois não?

Talvez devesse. Para ficar a saber como você assustou aquela pobre garota.

Eu só tinha dezoito anos. Foi um erro...

Um erro? Então, foi bisbilhotar na janela errada? Espiou a garota errada?

íamos juntos para o liceu! Não era como se eu não a conhecesse!

Então, só espia as janelas das raparigas que conhece? Que mais fez e nunca foi apanhado?

Já lhe disse, foi um erro!

Já se introduziu na casa de alguém? Foi até ao quarto? Talvez tenha furtado alguma coisinha como um sutiã ou um belo par de calcinhas?

Oh, meu Deus! Joey olhou para o batom que acabara de deixar cair ao chão. Dava a impressão de que ia vomitar.

Os bisbilhoteiros têm o mau hábito de passar a fazer outras coisas, sabe? Coisas más prosseguiu Korsak, implacável.

Joey dirigiu-se para a caixa de pinturas e fechou-a. No silêncio que se seguiu, permaneceu de costas voltadas para eles, olhando pela janela para o cemitério do outro lado da estrada.

Estão a tentar estragar-me a vida lamentou-se ele.

Não, Joey. Estamos só a tentar ter uma conversa franca consigo.

Mister Whitney não sabe de nada.

E não precisa de saber.

A menos que...?

Onde esteve no domingo à noite?

Em casa.

Sozinho? Joey suspirou.

Olhe, sei o motivo de tudo isto, sei o que estão a tentar fazer. Mas, já lhes disse, mal conheci Mistress Yeager. A única coisa que fiz foi tratar da mãe. Fiz um bom trabalho, para que saibam. Toda a gente me disse isso depois. Ela parecia mesmo viva.

Importa-se se dermos uma olhadela ao seu carro?

Porquê?

Só para verificar.

Sim, importo-me. Mas fazem-no de qualquer modo, não fazem?

Só com a sua autorização. Korsak fez uma pausa. Como sabe, a cooperação é uma via com dois sentidos.

Joey continuou a olhar pela janela.

Hoje há ali um enterro disse suavemente. Está a ver aquelas limusinas? Desde criança, adorava ver cortejos fúnebres. São muito bonitos. Muito dignos. É a única coisa que as pessoas ainda fazem como deve ser. A única coisa que não estragaram. Não é como os casamentos, em que fazem coisas estúpidas como saltar de aviões. Ou pronunciam os votos na televisão nacional. Nos funerais, ainda mostramos o respeito adequado...

O seu automóvel, Joey.

Finalmente, Joey voltou-se e dirigiu-se a uma gaveta do armário. Meteu lá a mão e retirou um molho de chaves.

É o Honda castanho.

Rizzoli e Korsak estavam no parque de estacionamento olhando para o tapete acinzentado que forrava a bagageira do carro de Joey Valentine.

Merda! Korsak bateu com a porta da bagageira. Tenho de estar de olho neste tipo.

Não descobriu nada...

Está a ver estes sapatos? Parecem-me um quarenta e três. E o carro funerário tem tapete azul-escuro.

O mesmo acontece com milhares de outros carros. Isso não faz dele o nosso homem.

Bem, com certeza que não é o velho Whitney. O patrão de Joey, Leon Whitney, tinha sessenta e seis anos. Olhe, já temos o ADN do assassino disse Korsak. Só precisamos do do Joey.

Acha que ele vai cuspir para um copo a seu pedido?

Se quiser manter o emprego. Estou convencido de que até me pede de joelhos.

Rizzoli olhou para o outro lado da estrada, que tremulava com o calor, e fitou o cemitério, onde o cortejo fúnebre prosseguia agora dignamente em direcção à saída. Uma vez os mortos enterrados, a vida continua, pensou ela. Independentemente da tragédia, a vida tem sempre de continuar. E o mesmo devo eu fazer.

Não posso dar-me ao luxo de perder mais tempo com isto disse ela.

O quê?

Tenho a minha própria agenda e acho que o caso Yeager não tem nada a ver com o Warren Hoyt.

Há três dias, não pensava assim.

Bem, estava enganada. Atravessou o parque em direcção ao seu próprio carro, abriu a porta e baixou o vidro da janela. Ondas de calor correram para fora do interior quente como um forno.

Ofendi-a ou outra coisa qualquer? perguntou ele.

Não.

Então, por que motivo quer saltar fora?

Rizzoli deslizou para trás do volante. O assento queimava através das calças.

Passei este último ano a tentar ultrapassar o caso do Cirurgião explicou. Tenho de o esquecer. Tenho de deixar de ver a mão dele em tudo aquilo com que deparo.

Sabe, às vezes devemos seguir a nossa intuição.

Às vezes, não passa disso. Uma intuição, não um facto. Não há nada de sagrado no instinto de um polícia. De qualquer modo, que diabo é o instinto? Quantas vezes um palpite acaba por mostrar-se errado? Ligou o motor. Demasiadas vezes.

Então, não a ofendi? Rizzoli bateu com a porta.

Não.

Tem a certeza?

Ela olhou de relance para ele pela janela aberta. Korsak piscou os olhos devido à luz, estreitando-os em pequenas frestas sob sobrancelhas espessas como franjas. Os pêlos que lhe cobriam os braços e a sua posiÇão de ancas atiradas para a frente e ombros descaídos fizeram-na pensar num gorila indolente. Não, ele não a ofendera, mas não conseguia olhar para ele sem sentir uma ponta de aversão.

Só não posso perder mais tempo com isto disse. Sabe como é.

De volta à sua secretária, Rizzoli concentrou a atenção em todo o trabalho burocrático que se acumulara. Em cima estava o processo do "homem do avião", cuja identidade permanecia desconhecida e cujo corpo esfacelado jazia por reclamar na morgue. Negligenciara essa vítima durante demasiado tempo. Mas, mesmo enquanto abria a pasta e passava em revista as fotografias da autópsia, continuava a pensar nos Yeager e no homem que tinha cabelos de defunto presos à roupa. Voltou a estudar o horário de aterragens e descolagens do Aeroporto Logan, mas tinha na mente o rosto de Gail Yeager, sorridente, na foto que estava em cima do toucador. Recordava-se da galeria de fotografias femininas que haviam sido coladas à parede da sala de reuniões um ano atrás durante as investigações do caso do Cirurgião. Aquelas mulheres também sorriam, os seus rostos tinham sido captados no momento em que ainda eram carne quente e a vida lhes brilhava nos olhos. Não conseguia pensar em Gail Yeager sem se lembrar das que tinham morrido antes dela.

Perguntou-se se Gail Yeager já faria parte desse número.

No cinto, o bíper vibrou com um zumbido semelhante a um choque eléctrico. Um aviso precoce de uma descoberta que abalaria o seu dia. Pegou no telefone.

Um instante depois, saiu à pressa do edifício.

 

O cão era um labrador amarelo, excitado quase até à histeria devido aos agentes da polícia que se encontravam perto. Saltava e ladrava preso a uma trela atada a uma árvore. O dono do cão, um homem de meia-idade, magro, de calções de corrida, estava perto, sentado num pedregulho com a cabeça entre as mãos, ignorando os pedidos de atenção do cão.

O dono do cão chama-se Paul Vandersloot. Vive em River Street, a quilómetro e meio daqui disse o agente Gregory, que isolara o local e prendera às árvores cordão policial em semicírculo.

Encontravam-se na periferia do campo de golfe municipal, de frente para os bosques da Reserva de Stony Brook, contígua ao campo de golfe. Localizada no extremo sul dos limites da cidade de Boston, esta reserva estava cercada por um mar de subúrbios. Mas, no interior dos cento e noventa hectares de Stony Brook, existia uma paisagem acidentada de colinas arborizadas e vales, saliências rochosas e pântanos cercados de juncos. No Inverno, os esquiadores de corta-mato exploravam os quinze quilómetros de pistas do parque; no Verão, os corredores encontravam refúgio nas florestas silenciosas.

Era o que fazia Mr. Vandersloot, até que o cão o conduziu ao que jazia entre as árvores.

Diz que vem cá todas as tardes passear o cão informou o agente Doud. Geralmente, sobe primeiro pela pista de East Boundary Road, através da floresta, depois desce pelo perímetro interior do campo de golfe. É um passeio de cerca de cinco quilómetros. Diz que leva o cão pela trela durante o tempo todo, mas, hoje, o cão fugiu-lhe. Iam a subir a pista quando o cão meteu para oeste, para os bosques, e não quis voltar. O Vandersloot foi atrás dele. Praticamente tropeçou no corpo. Doud olhou de relance para o indivíduo, que continuava encolhido na rocha. Chamou o Cento e Doze.

Usou um telemóvel?

Não, senhora. Foi a uma cabina telefónica no Centro Thompson. Cheguei cá por volta das duas e vinte. Tive o cuidado de não tocar em nada. Apenas penetrei no bosque para confirmar que era um corpo. A cinquenta metros já lhe sentia o cheiro. Depois, mais uns cinquenta metros, e vi-o. Recuei e cerquei o local. Encerrei as duas entradas da pista de Boundary Road.

Quando é que chegaram os outros?

Os detectives Sleeper e Crowe chegaram cerca das três. O médico legista por volta das três e meia. Fez uma pausa. Não sabia que a senhora também vinha.

A doutora Isles telefonou-me. Calculo que estejamos todos a estacionar no campo de golfe, não?

O detective Sleeper deu ordens nesse sentido. Não quer quaisquer veículos visíveis de Enneking Parkway. Mantém-nos longe das vistas do público.

Não apareceu ainda nenhum meio de comunicação?

Não, senhora. Tive o cuidado de não transmitir pela rádio. Usei a cabina telefónica da estrada.

Óptimo. Talvez tenhamos sorte e não apareça nenhum.

Oh! exclamou Doud. Será que o nosso primeiro chacal vem a chegar?

Um Marquis azul-escuro atravessou o campo de golfe e estacionou junto da carrinha do médico legista. Uma figura obesa familiar arrastou-se para fora e alisou o cabelo-ralo no crânio cabeludo.

Não é jornalista disse Rizzoli. Estava à espera dele. Korsak deslocou-se pesadamente até ao local.

Acha realmente que é ela?

A doutora Isles diz que há fortes possibilidades. Se sim, o seu homicida mudou-se para a periferia da cidade de Boston. Virou-se para Doud. Por que lado podemos aproximar-nos de forma a não apagar qualquer prova?

Vão bem pela direita. O Sleeper e o Crowe já filmaram o local. As pegadas e marcas de arrastamento vêm todas da outra direcção, a começar em Enneking Parkway. Sigam o vosso nariz.

Ela e Korsak passaram por baixo do cordão policial e meteram pelo bosque. Essa secção de árvores de segunda geração era tão densa como qualquer floresta profunda. Curvavam-se sob ramos afiados que lhes arranhavam o rosto e ficavam com as pernas das calças presas nos silvados. Emergiram na pista de corrida de East Boundary e descobriram uma tira de fita da polícia que esvoaçava presa a uma árvore.

O indivíduo ia a correr por esta pista quando o cão se afastou - disse ela. Dá a impressão de que o Sleeper nos deixou uma pista de fita.

Passaram pelo circuito de corrida e mergulharam novamente no bosque.

Oh, acho que já sinto o cheiro disse Korsak.

Ainda antes de verem o corpo, ouviram o zumbido sinistro das moscas. Galhos secos estalavam sob os pés deles com um ruído tão assustador como o de tiros. Mais à frente, viram através das árvores Sleeper e Crowe de rostos contorcidos de repugnância enquanto com as mãos afastavam os insectos. A Dra. Isles estava agachada junto ao solo e alguns diamantes de luz salpicavam-lhe o cabelo preto. Ao aproximarem-se mais, viram o que Isles estava a fazer.

Korsak soltou um gemido de consternação.

Ah, caramba. Não precisava de ver isto.

Potássio vítreo disse Isles e, na sua voz rouca, as palavras tinham um som quase sedutor. Fornece-nos mais uma estimativa do período post mortem.

Seria difícil determinar a hora da morte, pensou Rizzoli, olhando para o corpo nu. Isles rolara-o para cima de um lençol, e o corpo estava de rosto para cima. Os olhos salientavam-se nos tecidos do interior do crânio inchados pelo calor. Um colar de contusões em forma de disco rodeava-lhe a garganta. O cabelo louro comprido era um emaranhado hirto como palha. O abdómen estava intumescido e a barriga apresentava um tom verde de bílis. Os vasos sanguíneos estavam manchados devido às alterações microbianas do sangue e as veias eram perfeitamente visíveis, como rios negros fluindo sob a pele. Mas todos estes horrores empalideciam à vista do procedimento que Isles estava a executar. As membranas em torno do olho humano são a superfície mais sensível do corpo; uma simples pestana ou um minúsculo grão de areia sob uma pálpebra podem causar imenso desconforto. Por isso, tanto Rizzoli como Korsak estremeceram quando viram Isles perfurar o olho do cadáver com a agulha de uma seringa. Lentamente, aspirou o fluido vítreo para uma seringa de dez centímetros cúbicos.

Parece em boas condições e límpido observou Isles em tom de agrado. Colocou a seringa num saco térmico cheio de gelo, depois ergueu-se e observou o local com um olhar régio. A temperatura do fígado está só dois graus abaixo da temperatura ambiente disse ela.

E não há estragos provocados por insectos ou animais. Não está aqui há muito tempo.

Foi atirada para aqui? perguntou Sleeper.

A lividez indica que morreu de rosto voltado para cima. Veja como está mais escuro nas costas, aonde o sangue afluiu. Mas foi encontrada aqui de rosto para baixo.

Foi trazida para cá.

Há menos de vinte e quatro horas.

Dá a impressão de que morreu há muito mais tempo disse Crowe.

Sim. Está flácida e há um inchaço significativo. A pele já está a soltar-se.

Aquilo é uma hemorragia nasal? perguntou Korsak.

Sangue em decomposição. Começou a purgar. Os fluidos são forçados a sair pelo aumento dos gases internos.

Data da morte? perguntou Rizzoli?

Isles fez uma pausa, com o olhar fixo por momentos nos restos mortais grotescamente intumescidos da mulher que todos acreditavam ser Gail Yeager. As moscas zumbiam, preenchendo o silêncio com o seu ruído voraz. Com excepção do longo cabelo louro, pouco havia no cadáver que se assemelhasse à mulher das fotografias, uma mulher que, outrora, certamente daria a volta à cabeça dos homens com um simples sorriso. Era um lembrete perturbador de que tanto a beleza como a vulgaridade são reduzidas pelas bactérias e insectos à impiedosa igualdade da carne reduzida a pó.

Não posso responder disse Isles. Ainda não.

Há mais de um dia? pressionou Rizzoli.

Sim.

O rapto aconteceu no domingo à noite. Poderá estar morta desde então?

Quatro dias? Depende da temperatura ambiente. A ausência de deterioração causada por insectos faz-me pensar que o corpo foi mantido em casa até muito recentemente. Protegido do meio ambiente. Uma sala com ar condicionado atrasaria a decomposição.

Rizzoli e Korsak trocaram olhares, ambos a pensarem no mesmo. Por que motivo esperaria o desconhecido tanto tempo para se desfazer de um corpo em decomposição?

O walkie-talkie do detective Sleeper crepitou e ouviu-se a voz de Doud:

O detective Frost acabou de chegar. E a carrinha da polícia científica está aqui. Estão prontos para eles?

Aguarde disse Sleeper. Já estava com um ar exausto e esgotado pelo calor. Era o detective mais velho da brigada, não lhe faltavam mais de cinco anos para a aposentação e não tinha necessidade de provar nada. Olhou para Rizzoli.

Estamos a entrar na recta final deste caso. Você tem estado a trabalhar nele com a polícia de Newton? Ela assentiu com a cabeça.

Desde segunda-feira.

Então, vai conduzir isto?

Exacto.

Eh! protestou Crowe. Nós fomos os primeiros a chegar ao local.

O rapto foi em Newton disse Korsak.

Mas agora o corpo está em Boston replicou Crowe.

Meu Deus disse Sleeper. Por que diabo está a discutir por causa disto?

É meu disse Rizzoli. Conduzo eu. Fitou Crowe, desafiando-o a contestá-la. À espera de que a usual rivalidade assomasse como sempre. Rizzoli viu que um dos lados da boca dele se levantava num princípio de sorriso escarninho.

Depois, Sleeper disse para o walkie-talkie:

A detective Rizzoli é quem comanda agora a investigação. Olhou novamente para ela. Está preparada para receber os peritos da polícia científica?

Rizzoli olhou para o céu. Já eram cinco da tarde e o sol mergulhara atrás das árvores.

É melhor que venham enquanto ainda conseguem ver o que estão a fazer.

O local de um crime no exterior, quando a luz do dia esmorece, não é um cenário bem-vindo. Em áreas arborizadas, os animais selvagens saem das tocas e espalham os restos mortais, levando as provas para longe. Os aguaceiros lavam sangue e sémen e o vento espalha as fibras. Não há portas que impeçam a passagem, e os locais facilmente são invadidos pelos curiosos. Por isso, havia uma sensação de urgência quando os peritos em recolha de provas começaram a passar o local a pente fino. Traziam com eles detectores de metais e vista aguçada, bem como sacos para provas que seriam cheios de tesouros grotescos.

Depois de percorrer o bosque em sentido contrário, desembocando no campo de golfe, Rizzoli estava suada, suja e farta de enxotar mosquitos. Parou para retirar gravetos do cabelo e arrancar cardos das calÇas. Endireitando-se, deparou de repente com um homem de cabelo cor de areia, de fato e gravata, que se encontrava ao lado da carrinha do médico legista com um telemóvel encostado ao ouvido.

Dirigiu-se ao agente Doud, que continuava a guardar o local.

Quem é o de fato completo? perguntou.

Doud olhou na direcção do homem.

Aquele? Diz que é do FBI.

O quê?

Mostrou o distintivo e tentou passar por mim. Disse-lhe que tinha de confirmar isso consigo. Não me pareceu muito contente.

O que está ele a fazer aqui?

Não faço ideia.

Rizzoli fitou o homem por momentos, incomodada pela chegada de um agente federal. Como coordenadora da investigação, não queria ambiguidades nas linhas de demarcação da autoridade, e aquele indivíduo, com a sua atitude militar e o fato de homem de negócios, já se dava ares de quem domina o local. Dirigiu-se a ele, que não deu pela sua presença senão quando ela estava mesmo a seu lado.

Desculpe-me disse ela. Disseram-me que é do FBI? Ele fechou o telemóvel com uma pancada seca e voltou para ela o rosto. Rizzoli viu-lhe as feições fortes e bem delineadas e um olhar friamente impenetrável.

Sou a detective Jane Rizzoli e estou à frente deste caso disse ela. Posso ver a sua identificação?

Ele meteu a mão no casaco e retirou um distintivo. Enquanto o analisava, Rizzoli sentia que ele a observava e avaliava. Incomodou-a a avaliação silenciosa, incomodou-a o modo como ele se comportava, como se fosse ele quem estivesse no comando.

Agente Gabriel Dean disse ela, devolvendo-lhe o distintivo.

Sim, minha senhora. -

Posso perguntar-lhe o que anda o FBI a fazer aqui?

Não sabia que estávamos em equipas adversárias.

Eu disse que estávamos?

Tenho a nítida sensação de que acha que eu não devia encontrar-me aqui.

Em geral, o FBI não aparece nos nossos locais de crimes. Sinto-me apenas curiosa com o que o traz cá.

Recebemos uma notificação do Departamento de Polícia de Newton sobre o homicídio Yeager. A resposta era incompleta; ele mostrava muito pouco e obrigava-a a indagar. A retenção de informações era uma forma de poder e ela percebeu qual o jogo dele.

Calculo que vocês recebam um monte de notificações de rotina disse ela.

Sim, recebemos.

Sempre que há um homicídio, não é verdade?

Somos notificados.

- Há neste alguma coisa de especial?

Ele limitou-se a fitá-la com a mesma expressão impenetrável.

Diria que as vítimas achariam que sim.

A raiva dela subia tal como sobe à superfície da água uma lasca de madeira.

Este corpo só foi encontrado há umas horas lembrou ela. Essas notificações agora são instantâneas?

Houve um leve esboço de sorriso nos lábios dele.

Não fazemos totalmente parte do círculo íntimo e portanto agradecíamos que nos mantivesse a par dos seus progressos. Relatórios de autópsias. Provas. Cópias de todas as declarações de testemunhas...

Isso é muita papelada.

Compreendo que seja.

E quer tudo isso?

Sim.

Algum motivo em especial?

Um assassínio e um rapto não deviam interessar-nos? Gostaríamos de acompanhar este caso.

Por imponente que ele fosse, Rizzoli não hesitou em desafiá-lo, aproximando-se mais.

Quando pensa começar a tomar decisões?

O caso continua a ser seu. Eu estou aqui só para dar assistência.

Mesmo que eu não veja necessidade disso?

O olhar dele voltou-se para os dois auxiliares que tinham emergido do bosque e carregavam agora a maca com os restos mortais para a carrinha do médico legista.

Interessa realmente quem conduz o caso? perguntou ele calmamente. Desde que o criminoso seja apanhado?

Viram a carrinha afastar-se, levando o corpo já devassado para mais profanações sob as luzes fortes da sala de autópsias. A resposta de Gabriel Dean lembrara-lhe com dolorosa clareza como eram pouco importantes as questões de jurisdição. Gail Year não se importava com a questão de quem ficaria com os créditos da captura do seu assassino. A única coisa que pedia era justiça, independentemente de quem a fizesse. E justiça era o que Rizzoli lhe devia.

Mas já conhecia a frustração de ver o seu trabalho árduo ser reclamado pelos colegas. Mais do que uma vez, vira os homens avançarem e assumirem com arrogância o comando de casos que ela mesma construíra penosamente a partir do nada. Não permitiria que isso acontecesse ali.

Agradeço a oferta de auxílio do FBI disse ela. Mas, de momento, acho que temos todas as necessidades cobertas. Se precisarmos, comunico-lhes. Com isso, voltou-lhe as costas e afastou-se.

Não tenho a certeza de que tenha entendido a situação insistiu ele. Agora fazemos parte da mesma equipa.

Não me lembro de ter pedido ajuda ao FBI.

O pedido foi feito pelo comandante da sua brigada, o tenente Marquette. Quer confirmar com ele? Estendeu-lhe o telemóvel.

Tenho telemóvel, obrigada.

Então, aconselho-a a telefonar-lhe. Assim, não perdemos tempo em guerrilhas.

Rizzoli estava espantada com a facilidade com que ele se imiscuíra e pela exactidão com que ela o avaliara. Era um homem que não se deixaria ficar sossegadamente nos lugares secundários.

Pegou no seu próprio telefone e começou a marcar o número, mas, antes que Marchette pudesse responder, ouviu o guarda Doud chamá-la.

O detective Sleeper em comunicação para si disse Doud e estendeu-lhe o walkie-talkie.

Rizzoli carregou no botão de transmissão.

Rizzoli.

No meio de uma explosão de estática, ouviu Sleeper dizer:

Talvez queira voltar aqui.

O que descobriu?

Há... é melhor ver você mesma. Estamos a cerca de cinquenta metros acima do local onde o outro foi encontrado.

O outro:

Devolveu o aparelho a Doud e dirigiu-se com celeridade para o bosque. Ia tão depressa que não reparou de imediato que Gabriel Dean a seguia. Só quando ouviu estalar um graveto se voltou e viu que ele vinha logo atrás, de rosto sombrio e implacável. Ela não estava com paciência para discutir e portanto ignorou-o e seguiu em frente.

Descobriu os homens num círculo soturno debaixo das árvores, como se estivessem num funeral, em silêncio e de cabeças baixas. Sleeper voltou-se e encontrou os olhos dela.

Tinham acabado a primeira passagem com o detector de metais disse ele. O perito já se dirigia para o campo de golfe quando o alarme soou.

Ela aproximou-se do círculo de homens e baixou-se para inspeccionar o que eles tinham encontrado.

O crânio fora separado do corpo e jazia afastado dos outros restos mortais quase em esqueleto. Uma coroa de ouro brilhava, como se fosse um dente de pirata, no meio da fieira de dentes sujos de terra. Rizzoli não viu roupas ou restos de tecido, só ossos expostos com farrapos curtidos de carne em decomposição ainda aderentes. Madeixas de cabelos castanhos compridos tinham folhas emaranhadas e sugeriam que os restos mortais pertenciam a uma mulher.

Rizzoli endireitou-se e com o olhar perscrutou o solo da floresta. Mosquitos enxameavam-lhe o rosto e alimentavam-se do seu sangue, mas ela não dava pelas ferroadas. Concentrava-se somente nas camadas de folhas mortas e gravetos, na densa vegetação rasteira. Um retiro profundamente silvestre que agora fitava com horror.

Quantas mulheres jazem nestes bosques?

É a lixeira dele.

Voltou-se e olhou para Gabriel Dean, que acabara de falar. Estava agachado a uns metros de distância, rebuscando entre as folhas com as mãos enluvadas. Ela nem sequer o vira calçar as luvas. Pôs-se de pé e olhou-a nos olhos.

O seu homicida já usou este local antes disse Dean. E provavelmente voltará a usá-lo.

Se não o espantarmos.

O desafio é esse. Manter tudo calmo. Se não o alarmarmos, há uma possibilidade de que ele volte. Não para se desfazer de outro corpo, mas para o visitar. Renovar a adrenalina.

Você pertence à Unidade de Ciências Comportamentais, não pertence?

Ele não respondeu à pergunta, mas voltou-se para avaliar a grande quantidade de pessoal que se encontrava nos bosques.

Se conseguirmos manter isto longe da imprensa, nós podemos ter uma possibilidade. Mas agora devemos calar-nos sobre isto.

Nós. Com esta única palavra, ele passara a fazer parte de uma associação que ela nunca procurara, em que nunca consentira. Mas ali estava ele, dando ordens. O que tornava aquilo especialmente irritante era o facto de toda a gente estar a ouvir a conversa e perceber que a sua autoridade fora desafiada.

Só Korsak, com a sua habitual franqueza, se atreveu a meter-se no diálogo.

Desculpe-me, detective Rizzoli disse. Quem é este cavalheiro?

FBI respondeu ela, continuando a olhar fixamente para Dean.

Então, alguém pode explicar-me quando é que isto se transformou num caso federal?

Não se tornou respondeu ela. E o agente Dean está prestes a abandonar o local. Alguém pode indicar-lhe o caminho?

Ela e Dean fitaram-se por momentos. Depois, ele acenou-lhe com a cabeça, em reconhecimento tácito de que lhe reconhecia a vitória naquele assalto.

Sei o caminho disse. Voltou-se e regressou ao campo de golfe.

Que se passa com estes federais? observou Korsak. Pensam sempre que são os donos do mundo. Que está o FBI a fazer aqui?

Rizzoli olhou para o bosque onde Gabriel Dean acabara de desaparecer, figura cinzenta que se confundia com o crepúsculo.

Quem me dera saber.

O tenente Marquette chegou ao local uma meia hora depois.

A presença de oficiais era geralmente a última coisa que Rizzoli recebia com gosto. Desagradava-lhe ter um superior a espreitar-lhe por cima do ombro enquanto trabalhava. Mas Marquette não interferiu e deixou-se ficar simplesmente entre as árvores, avaliando em silêncio a situação.

Tenente disse ela.

Ele correspondeu com um breve aceno de cabeça.

Rizzoli.

Que se passa com o FBI? Mandaram cá um agente esperando acesso total.

Ele assentiu com a cabeça.

O pedido veio via GCP.

Então, fora aprovado no topo do Gabinete do Comandante da Polícia.

Rizzoli observou o grupo dos peritos em recolha de provas, que embalou o material e se dirigiu para a carrinha. Embora se encontrassem dentro dos limites da cidade de Boston, aquele canto escuro da Reserva de Stony Brook dava uma sensação de isolamento tão grande como uma floresta. O vento levantava as folhas e espalhava o cheiro a decomposição. Através das árvores, viu a lanterna de Barry Frost a relampejar à medida que ele arrancava a fita do local do crime e removia todos os vestígios de actividade policial. Naquela noite, ia começar a vigília em intenção de um assassino, cuja voracidade por um cheirinho a decomposição podia arrastar ao parque solitário e àquela mata silenciosa.

Nesse caso, não tenho escolha disse ela. Sou obrigada a colaborar com o agente Dean.

Assegurei ao gabinete que sim.

Qual é o interesse do FBI neste caso?

Não perguntou ao Dean?

É como falar com aquelas árvores além. Não fica a saber nada. Não estou nada entusiasmada. Temos de dar-lhe tudo, mas ele não tem de dizer-nos absolutamente nada.

Talvez não o tenha abordado da maneira correcta.

A raiva penetrou-lhe na corrente sanguínea como um dardo envenenado. Compreendia o significado tácito daquela afirmação: É o seu modo de estar, Rizzoli. Você hostiliza sempre os homens.

Já conhece o agente Dean? perguntou ela.

Não.

Rizzoli soltou uma gargalhada eivada de sarcasmo.

Sorte sua!

Olhe, vou descobrir o que puder, mas tente trabalhar com ele, está bem?

Alguém disse que não?

Disse-me um telefonema. Ouvi-a expulsá-lo do local. Não é exactamente uma relação de cooperação.

Ele desafiou a minha autoridade. Preciso de esclarecer uma coisa desde já. Sou eu a responsável? Ou não sou?

Uma pausa.

É você a responsável.

Espero que o agente Dean também receba essa mensagem.

Certificar-me-ei de que recebe. Marquette voltou-se e fitou os bosques. Então, agora, temos dois conjuntos de restos mortais. Ambos do sexo feminino?

A avaliar pelo tamanho do esqueleto e pelas mechas de cabelo, o segundo parece ser também de mulher. Quase não restam tecidos. Há danos post mortem causados por necrófagos, mas não há uma causa óbvia de morte.

Temos a certeza de que não há outros corpos por aí?

Os cães de busca não encontraram mais nenhum.

Graças a Deus disse Marquette com um suspiro.

O bíper vibrou. Rizzoli olhou para o cinto e reconheceu o número de telefone que surgiu no ecrã digital. O Instituto de Medicina Legal.

Tal qual como no Verão passado murmurou Marquette, continuando a fitar as árvores. O Cirurgião também começou a matar por esta altura.

É do calor comentou Rizzoli, pegando no telemóvel. Traz os monstros para a rua.

 

Tenho a liberdade na palma da mão.

Surge na forma de um minúsculo pentágono branco que tem numa das faces inscríto "MSD 97". Decadron, quatro miligramas. Que forma tão bonita para um comprimido, não é mais uma monótona cápsula redonda ou em forma de torpedo como tantos medicamentos. A sua concepção mereceu imaginação e uma centelha de inteligência. Imagino os vendedores da Merck, a empresa farmacêutica, à volta da mesa de reuniões e a interrogarem-se uns aos outros: Como podemos tornar imediatamente reconhecível este comprimido? E o resultado é um comprimido de cinco lados, que repousa na minha mão como uma jóia minúscula. Tenho-o poupado, tenho-o escondido num pequeno rasgão do meu colchão, à espera do momento certo para utilizar a sua magia.

À espera de um sinal.

Sento-me, encolhido, no catre da minha cela, com um livro equilibrado sobre os joelhos. A câmara de vigilância vê apenas um preso estudioso a ler as Obras Completas de William Shakespeare. Não consegue ver através da capa do livro. Não consegue ver o que tenho na mão.

Lá em baixo, no salão de convívio, a televisão berra um anúncio e uma bola de pingue-pongue salta de um lado para o outro sobre a mesa. Mais uma noite animada no Bloco de Celas C. Dentro de uma hora, o intercomunicador anuncia que as luzes vão apagar-se e os homens sobem as escadas e vão para as celas com os sapatos a ressoar nos degraus de metal. Cada um dirige-se para a sua gaiola, como ratos obedientes que fazem o que lhes diz o dono no cubículo do altifalante. Na guarita da guarda, a ordem será introduzida no computador e todas as portas das celas se fecharão simultaneamente, encerrando os ratos durante a noite.

Inclino-me para a frente e baixo a cabeça sobre a página como se a letra fosse muito pequena. Olho com implacável concentração: "Noite de Reis, III Acto, Cena Três: Uma rua. António e Sebastian aproximam-se..."

Nada a ver aqui, meus amigos. Só um homem no catre a ler. Um homem que tosse de repente e por reflexo leva a mão à boca. A câmara é cega para o pequeno comprimido que tenho na palma da mão. Não vê o movimento rápido da minha língua nem o comprimido colado a ela como uma bolacha amarga a ser levada para a minha boca. Engulo o comprimido a seco, não preciso de água. É suficientemente pequeno para ir com facilidade para baixo.

Ainda antes de se dissolver no meu estômago, imagino que consigo sentir o seu poder a rodopiar na minha corrente sanguínea. Decadron é a marca da dexametasona, um esteróide adrenocórtico com efeitos profundos em todos os órgãos do corpo humano. Os glicocorticóides como o Decadron afectam tudo, desde o açúcar do sangue até à retenção de líquidos e à síntese do ADN. Sem eles, o corpo sucumbe. Ajudam-nos a manter a tensão arterial e retarda o choque causado por ferimentos e infecções. Afectam o crescimento ósseo e a fertilidade, o desenvolvimento muscular e o sistema imunitário.

Modificam a composição do sangue.

Quando finalmente as portas das gaiolas deslizam e as luzes se apagam, deito-me no catre, sentindo o sangue pulsar em mim e imaginando os glóbulos à medida que percorrem as minhas veias e artérias.

Vi glóbulos sanguíneos inúmeras vezes ao microscópio. Conheço a forma e função de cada um e com uma simples olhadela às lentes sei dizer se uma amostra de sangue está normal. Posso analisar um campo e avaliar imediatamente as percentagens dos diferentes leucócitos os glóbulos brancos do sangue que nos defendem das infecções. O exame chama-se análise diferencial dos glóbulos brancos do sangue e realizei-o inúmeras vezes enquanto técnico de saúde.

Penso nos meus próprios leucócitos em circulação nas minhas veias. Neste exacto momento, a minha contagem diferencial de glóbulos brancos está a mudar. O comprimido de Decadron que tomei há duas horas agora já se dissolveu no meu estômago e a hormona percorre-me o sistema e realiza a sua magia. Uma amostra de sangue retirado da minha veia revelará uma espantosa anormalidade: uma hoste esmagadora de glóbulos brancos de núcleo multilobado e pontilhagem granular. São neutrófilos, que entram automaticamente em acção quando confrontados com a ameaça de uma infecção devastadora.

Ensina-se aos estudantes de Medicina que, quando ouvirem o ruído de cascos, pensem em cavalos e não em zebras. Mas o médico que vê a minha análise ao sangue decerto que pensará em cavalos e chegará a uma conclusão perfeitamente lógica. Não lhe ocorrerá que, desta vez, quem galopa é realmente uma zebra.

Rizzoli vestiu-se no vestiário da sala de autópsias, enfiando bata e coberturas para os sapatos, luvas e touca de papel. Não tivera tempo de tomar um duche depois de ter andado pela Reserva de Stony Brook e na sala exageradamente fria o suor gelava-lhe como orvalho sobre a pele. Também não jantara e sentia a cabeça vazia devido à fome. Pela primeira vez na sua carreira, pensou utilizar um tampão Vicks no nariz para bloquear os cheiros da autópsia, mas resistiu à tentação. Nunca antes recorrera a isso, porque pensava que era sinal de fraqueza. Um agente a trabalhar nos homicídios devia ser capaz de lidar com todos os aspectos da função por mais desagradáveis que fossem e, enquanto os colegas se retiravam para trás do escudo de mentol, ela suportava teimosamente os odores não disfarçados da sala de autópsias.

Respirou fundo, inalando uma última golfada de ar não poluído. Empurrou a porta e entrou.

Esperava encontrar à sua espera a Dra. Isles e Korsak; o que não esperava era encontrar Gabriel Dean igualmente na sala. Dean estava do lado oposto da mesa e vestia uma bata que lhe cobria a camisa e a gravata. Ao passo que a exaustão sobressaía nitidamente no rosto de Korsak e na curva fatigada dos seus ombros, o agente Dean não parecia nem cansado nem abatido pelos acontecimentos do dia. Só o sombreado que lhe escurecia a parte de baixo do rosto lhe toldava o aspecto animado e fresco. Olhou para ela com a expressão ousada de quem sabia que tinha todo o direito de ali estar.

Sob as luzes fortes, o corpo parecia em muito pior estado do que quando Rizzoli o vira apenas algumas horas antes. O nariz e a boca tinham continuado a purgar e os fluidos desenhavam riscos sanguinolentos no rosto. O abdómen estava tão inchado que parecia em adiantado estado de gravidez. Bolhas cheias de líquido salientavam-se sob a pele, separando-a da derme como folhas de papel. A pele descolava-se totalmente em zonas do tronco e sob os seios estava arrepanhada como pergaminho enrugado.

Rizzoli reparou que as pontas dos dedos do corpo estavam cheias de tinta.

Já tiraram as impressões digitais.

Mesmo antes de você entrar disse a Dra. Isles, com a atenção voltada para o tabuleiro de instrumentos que Yoshima levara para junto da mesa. Os mortos interessavam mais a Dra. Isles do que os vivos e, como de costume, ignorava as tensões emocionais que vibravam na sala.

E como estavam as mãos antes de lhes pôr tinta?

Completámos o exame exterior respondeu o agente Dean.

Passou-se fita adesiva pela pele em busca de fibras e recolheram-se os resíduos sob as unhas.

E quando é que você cá chegou, agente Dean?

Já cá estava antes de mim também disse Korsak. Calculo que alguns estarão posicionados mais acima na cadeia alimentar.

Se o comentário de Korsak se destinava a pôr lenha na fogueira da sua irritação, conseguiu-o. As unhas das vítimas podem conter pedacinhos de pele do agressor. Cabelo ou fibras podem estar presos a um punho fechado. O exame das mãos da vítima era um passo crucial numa autópsia e ela não estivera presente.

Mas Dean estivera.

Já temos uma identificação positiva informou Isles. As radiografias dos dentes de Gail Yeager estão no painel de luz.

Rizzoli aproximou-se do painel iluminado e estudou a série de pequenas películas ali presas. Os dentes brilhavam como uma fila de pedras tumulares fantasmagóricas contra o fundo preto da película.

O dentista de Mistress Yeager fez-lhe algumas coroas no ano passado. Pode ver aqui. A coroa de ouro é a número vinte na série periapical. Também tinha obturações de amálgama de prata nos números três, catorze e vinte e nove.

Correspondem?

A Dra. Isles assentiu.

Não tenho dúvidas de que são os restos mortais da Gail Yeager. Rizzoli aproximou-se novamente do corpo que estava sobre a mesa, com o olhar preso ao anel de contusões em volta da garganta.

Radiografou o pescoço?

Sim. Há fracturas bilaterais do istmo da tiróide. Coerente com estrangulamento manual. Isles voltou-se para Yoshima, cuja eficiência silenciosa e espectral por vezes fazia com que as pessoas se esquecessem de que ele se encontrava na sala. Vamos pô-la em posição de exame vaginal.

O que se seguiu chocou Rizzoli como a pior profanação que podia recair sobre os restos mortais de uma mulher. Era pior do que uma barriga aberta, pior do que a ressecção do coração e dos pulmões. Yoshima manipulou e colocou as pernas flácidas numa posição semelhante à de uma rã, afastando as coxas para o exame pélvico.

Desculpe-me, detective disse Yoshima a Korsak, que se encontrava mais perto da coxa esquerda de Gail Yeager. Pode manter essa perna em posição?

Korsak fitou-o, horrorizado.

Eu?

Mantenha só o joelho assim flectido para podermos recolher as amostras.

Relutante, Korsak estendeu a mão para a coxa do cadáver e depois recuou precipitadamente quando uma tira de pele se descolou sob a sua mão enluvada.

Caramba! Por amor de Deus!

A pele soltar-se-á sempre, independentemente do que você fizer. Mantenha só a perna afastada, está bem?

Korsak soltou um suspiro fundo. Não obstante o fedor da sala, Rizzoli sentiu uma lufada de odor a pomada de mentol. Pelo menos Korsak não fora tão orgulhoso que não a pusesse no lábio superior. Com um esgar, agarrou na perna e rodou-a para o lado, expondo os órgãos genitais de Gail Yeager.

Isto faz com que doravante o sexo seja realmente atraente murmurou.

A Dra. Isles dirigiu a luz para o períneo. Gentilmente, afastou os lábios inchados, revelando a entrada. Rizzoli, embora estóica, não suportou ver aquela invasão grotesca e voltou-se de costas.

O seu olhar encontrou o de Gabriel Dean.

Até àquele momento, Dean estivera a observar os procedimentos com calmo distanciamento. Mas, naquele instante, Rizzoli viu raiva nos olhos dele. A mesma raiva que ela sentia agora contra o homem que submetera Gail Yeager àquela suprema degradação. Fitando-se e partilhando da mesma raiva, esqueceram temporariamente a sua rivalidade.

A Dra. Isles inseriu um cotonete na vagina, esfregou-o numa lamela de microscópio e colocou a lamela num tabuleiro. A seguir, fez um esfregaço rectal, que também seria analisado para se verificar a presença de esperma. Depois de Isles ter terminado a colheita e as pernas de Gail Yeager se encontrarem novamente estendidas na mesa, Rizzoli sentiu que o pior passara. Mesmo quando Isles iniciou uma incisão em Y, cortando na diagonal desde o ombro direito até à extremidade do esterno, Rizzoli achou que nada ultrapassava a indignidade do que já fora feito àquela vítima.

Isles preparava-se para fazer uma incisão semelhante a partir do ombro esquerdo, quando Dean interveio:

Quanto aos esfregaços vaginais?

As lamelas vão para o laboratório de medicina legal disse a Dra. Isles.

Não faz uma preparação húmida?

O laboratório pode perfeitamente identificar esperma numa lamela seca.

É a sua única oportunidade de examinar o espécime fresco. A Dra. Isles fez uma pausa com o bisturi pousado na pele do cadáver e lançou um olhar atónito a Dean. Depois, dirigiu-se a Yoshima:

Ponha algumas gotas de solução salina nessa lamela e coloque-a no microscópio. Dou uma olhadela dentro de segundos.

Fez em seguida a incisão abdominal, penetrando com o bisturi no ventre intumescido. Subitamente, o fedor dos órgãos em decomposição foi mais do que Rizzoli podia suportar. Recuou a cambalear até à pia e cobriu a boca, lamentando ter tentado provar de forma tão estúpida a sua resistência. Perguntou-se se o agente Dean estaria a observá-la com algum sentimento de superioridade. Não vira o brilho do mentol no lábio superior dele. Manteve-se de costas voltadas para a mesa e ficou a ouvir em vez de ver a autópsia que prosseguia atrás dela. Escutava o ar a soprar firmemente pelo sistema de ventilação, a água a gorgolejar e o baque dos instrumentos de metal.

Depois, ouviu Yoshima exclamar em voz espantada:

Doutora Isles?

Sim?

Pus a lamela no microscópio e...

Há esperma?

Tem de ver pessoalmente.

Sentindo os vómitos desaparecerem, Rizzoli voltou-se e viu que Isles retirava as luvas e se sentava ao microscópio. Yoshima inclinou-se sobre a médica enquanto esta espreitava pela ocular.

Está a vê-los?

Sim murmurou ela. Endireitou-se com ar espantado. O corpo foi encontrado cerca das duas da tarde? perguntou a Rizzoli.

Aproximadamente.

São agora nove da noite...

Bem, há esperma ou não? cortou Korsak.

Sim, há esperma respondeu Isles. E com motilidade. Korsak franziu as sobrancelhas.

Que significa isso? Que se move?

Sim, move-se.

O silêncio invadiu a sala. O significado da descoberta deixara todos sobressaltados.

Durante quanto tempo o esperma conserva a motilidade? perguntou Rizzoli.

Depende do meio ambiente.

Quanto tempo?

Depois da ejaculação, os espermatozóides podem conservar a motilidade durante um a dois dias. Pelo menos metade dos que estão neste microscópio está a mover-se. É uma ejaculação recente. Provavelmente, não tem mais de um dia.

E há quanto tempo é que a vítima está morta? perguntou Dean.,

Com base nos níveis de potássio vítreo que retirei há cerca de cinco horas, está morta há pelo menos sessenta horas.

Novo silêncio. Rizzoli viu perpassar pelos rostos dos outros a mesma conclusão. Olhou para Gail Yeager, que jazia agora com o tronco aberto e os órgãos à mostra. Com a mão a cobrir-lhe a boca, Rizzoli rodou na direcção da pia. Pela primeira vez na sua carreira de polícia, Jane Rizzoli sentia-se agoniada.

Ele sabia disse Korsak. Aquele filho da mãe sabia. Estavam todos no parque de estacionamento por detrás do edifício do Instituto de Medicina Legal. A ponta do cigarro de Korsak brilhava com um tom alaranjado. Depois do ar gelado da sala de autópsias, quase sabia bem banharem-se no vapor quente de uma noite de Verão, fugirem das luzes cruas e retirarem-se para aquele manto de escuridão. Rizzoli sentira-se humilhada pela sua manifestação de fraqueza, humilhada, sobretudo, por o agente Dean estar ali para ver. Fora, pelo menos, suficientemente delicado para não fazer comentários e olhara para ela sem manifestar pena ou troça, apenas indiferença.

Foi o Dean quem pediu aquela análise ao esperma disse Korsak. Seja lá que nome lhe deu...

Preparação em meio húmido.

Isso, essa tal preparação em meio húmido. A Isles nem sequer ia analisar aquilo ainda fresco. Ia deixá-lo secar primeiro. Temos então este federal a dizer à médica o que há-de fazer. Como se soubesse exactamente o que procura, exactamente o que vamos encontrar. Como é que ele sabia? E, de qualquer modo, que raio está o FBI a fazer neste caso?

Você fez o historial dos Yeager. O que há nele que possa atrair o FBI?

Absolutamente nada.

Estariam metidos nalguma coisa em que não deviam?,

Até parece que os Yeager se mataram a eles próprios.

Ele era médico. Estaremos a tratar com um caso de droga? Uma testemunha federal?

Ele estava limpo. A mulher também.

Aquele golpe de misericórdia... como uma execução. Talvez seja o simbolismo. Um corte na garganta para o silenciar.

Credo, Rizzoli. Você deu uma volta de cento e oitenta graus. Primeiro, pensou num agressor sexual que mata pela excitação que isso causa. Agora, está a pensar em conspirações.

Estou a tentar perceber por que motivo o Dean está envolvido. O FBI está-se nas tintas para o que fazemos. Nunca se metem no nosso caminho, nós nunca nos metemos no deles e é assim que todos ficam satisfeitos. Não lhes pedimos ajuda aquando do Cirurgião. Tratámos de tudo com a prata da casa e usamos o nosso próprio psicólogo criminalista. A Unidade de Ciências Comportamentais deles está demasiado ocupada com Hollywood para nos dispensar o seu precioso tempo. Portanto, que há de diferente neste caso? O que tornará os Yeager especiais?

Não lhes encontrámos nada disse Korsak. Não há dívidas, não há bandeiras vermelhas nas finanças deles. Não há processos pendentes em tribunal. Ninguém pode apontar-lhes seja o que for.

Então, porquê o interesse do FBI? Korsak pôs-se a pensar.

Talvez os Yeager tivessem amigos em lugares importantes. Alguém que esteja a gritar por justiça.

E o Dean não se descoseria e não nos contaria isso?

Os federais nunca gostam de contar nada replicou Korsak. Rizzoli olhou de novo para o edifício. Era quase meia-noite e não tinham visto Maura Isles sair. Quando Rizzoli deixara a sala de autópsias, Isles estava a ditar o relatório e mal lhe acenara a desejar-lhe boa noite. A "Rainha dos Mortos" dava pouca atenção aos vivos.

Serei diferente? Quando à noite estou deitada, o que vejo são os rostos dos assassinados.

Este caso tem mais que se lhe diga para além dos Yeager observou Korsak. E agora temos um segundo conjunto de restos mortais.

Parece-me que isso deixa de fora o Joey Valentine afirmou Rizzoli. Explica como é que o nosso assassino apanhou aquele cabelo de um cadáver. Foi de uma vítima anterior.

- Ainda não pus o Joey de parte. Ainda lhe dou mais um apertão.

Descobriu alguma coisa sobre ele?

- Estou à procura, estou à procura.

Precisa de algo mais para além de uma antiga acusação de voyeurismo.

Mas aquele Joey é esquisito. Tem de ser-se esquisito para se gostar de pôr batom nos mortos.

Não basta ser esquisito. Rizzoli fitou o edifício, pensando em Maura Isles. De certo modo, todos nós somos esquisitos.

Sim, mas somos esquisitos normais. O Joey não é normal na sua esquisitice.

Rizzoli riu-se. A conversa enveredara pelo absurdo e sentia-se demasiado cansada para tentar dar-lhe algum sentido.

Que diabo hei-de dizer? perguntou Korsak. Ela voltou-se para o carro.

Estou a ficar atordoada. Preciso de ir para casa e dormir um pouco.

Estará cá para o médico dos ossos?

Cá estarei.

No dia seguinte, à tarde, um especialista reunir-se-ia com Isles para examinar as ossadas da segunda mulher. Embora Rizzoli não desejasse outra visita àquela casa de horrores, era uma obrigação a que não podia furtar-se. Dirigiu-se para o carro e destrancou a porta.

Eh, Rizzoli? chamou Korsak.

Sim?

Já jantou? Não quer ir comer um hambúrguer ou algo do género? Era a espécie de convite que qualquer polícia podia fazer a outro.

Um hambúrguer, uma cerveja, algumas horas de relaxamento depois de um dia enervante. Nada de invulgar ou incorrecto, mas fê-la sentir-se desconfortável por pressentir solidão e desespero por detrás do convite e não queria ver-se emaranhada na rede pegajosa de carências daquele homem.

Talvez outro dia respondeu.

Sim, tudo bem disse ele. Outro dia. E com um aceno rápido voltou-se e dirigiu-se para o seu próprio carro.

Ao chegar a casa, Rizzoli encontrou uma mensagem do seu irmão Frankie no gravador. Enquanto dava uma vista de olhos pelo correio, ouvia a voz dele ressoar e conseguia imaginá-lo a cambalear e de rosto inchado.

Olá, Janie? Estás aí? Uma pausa longa. Ai, caramba. Olha, esqueci-me que a mãe faz anos amanhã. Que tal comprarmos a prenda em conjunto? Põe também o meu nome, está bem? Oh, espera, como estás?

Rizzoli atirou o correio para cima da mesa e murmurou:

Sim, Frankie. Hás-de pagar-me tanto como pagaste a do ano passado. De qualquer modo, era tarde de mais, porque a prenda já fora enviada: um jogo de toalhas de banho cor de pêssego com as iniciais de Angela bordadas. Este ano, a Jane recebe todos os agradecimentos. Embora faça pouca diferença. Frankie era o homem das mil desculpas, todas elas totalmente aceitáveis no que à mãe dizia respeito. Era sargento instrutor em Camp Pendleton, e Angela preocupava-se com ele, obcecada com a sua segurança, como se ele enfrentasse diariamente fogo inimigo na perigosa selva da Califórnia. Até se interrogara em voz alta se Frankie estaria a comer o suficiente. Sim, é claro, mamã. Os Fuzileiros Navais dos Estados Unidos vão deixar morrer à fome o seu bebé de cento e dez quilos. Na verdade, Jane é que não comia nada desde o meio-dia. A embaraçosa golfada que vomitara para a pia do laboratório esvaziara-a do que estivesse no estômago e agora sentia-se esfomeada.

Assaltou o armário e encontrou o tesouro das mulheres preguiçosas: conserva de atum, que comeu directamente da lata, acompanhada de um punhado de tostas. Ainda com fome, foi buscar ao armário uma lata de pêssegos em conserva e devorou-os também, lambendo a calda do garfo enquanto fitava o mapa pregado à parede.

A Reserva de Stony Brook era uma ampla mancha de verde rodeada por subúrbios West Roxbury e Clarendon Hills a norte, Dedham e Readville a sul. Em qualquer dia de Verão, a reserva recebia grande número de famílias e outras pessoas que corriam e faziam piqueniques. Quem repararia num homem sozinho num carro a percorrer Enneking Parway? Quem se daria ao trabalho de o observar ao estacionar numa das áreas de parqueamento, olhando para os bosques? Um parque suburbano é irresistível para os que estão fartos de betão e asfalto, de brocas e buzinas estridentes. Juntamente com os que buscam refúgio na frescura dos bosques e da relva, alguém surgira com um objectivo totalmente diferente em mente. Um predador à procura de um local onde descartar-se da sua vítima. Rizzoli viu o local com os olhos dele: as árvores densas, o tapete de folhas mortas. Um mundo onde insectos e animais da floresta colaborariam de bom grado no acto de destruição.

Pousou o garfo, que tilintou contra a mesa de forma espantosamente estridente.

Da prateleira, retirou um pacote de alfinetes de cores variadas. Pregou um alfinete vermelho na rua onde Gail Yeager vivera em Newton e pregou outro vermelho na Reserva de Stony Brook, onde fora encontrado o corpo de Gail. Acrescentou um segundo alfinete em Stony Brook este azul, representando os restos mortais da mulher desconhecida. Depois, sentou-se e analisou a geografia do mundo do assassino.

Aquando das atrocidades que o Cirurgião cometera, aprendera a estudar o mapa de uma cidade da maneira como um predador estuda os seus terrenos de caça. Afinal, também ela era uma caçadora e para apanhar a sua presa tinha de compreender o universo em que ela vivia, as ruas que percorria, os bairros por onde deambulava. Sabia que os predadores humanos caçavam mais frequentemente em zonas que lhes eram familiares. Como toda a gente, tinham as suas zonas preferidas, as suas rotinas diárias. Por isso, ao olhar para os alfinetes pregados no mapa, sabia que estava a ver mais do que simplesmente locais de crimes e de despejo dos corpos. Estava a ver a sua esfera de acção.

A cidade de Newton era cara e de nível social elevado, um subúrbio de profissionais liberais. A Reserva de Stony Brook ficava a cinco quilómetros para sudeste, num subúrbio bastante menos elegante que Newton. Residiria o assassino num desses subúrbios, apanhando as presas que cruzassem o seu caminho entre a casa e o trabalho? Tinha de ser alguém bem integrado, alguém que não levantasse suspeitas de ser um estranho. Se vivia em Newton, devia ser um indivíduo de colarinho branco com gostos de colarinho branco.

E vítimas de colarinho branco.

A grelha das ruas de Boston esborratou-se ante os seus olhos cansados, mas não desistiu e não se deitou. Sentou-se num nevoeiro de exaustão com milhares de pormenores a rodopiarem-lhe na cabeça. Pensou em esperma fresco num corpo em decomposição. Pensou nas ossadas incógnitas. Fibras de um tapete azul-escuro. Um assassino que arranca os cabelos das vítimas anteriores. Uma pistola de atordoar, uma faca de caça e roupas de dormir Sobradas.

E Gabriel Dean. Qual era o papel do FBI naquilo tudo?

Pousou a cabeça entre as mãos, sentindo-se a explodir com tanta informação. Quisera ser ela a dirigir a operação, exigira-o mesmo, e agora o peso da investigação estava a esmagá-la. Sentia-se demasiado cansada para pensar e demasiado tensa para dormir. Perguntou-se se um esgotamento seria assim, mas suprimiu impiedosamente o pensamento. Jane Rizzoli nunca se permitira ser tão frágil ao ponto de sofrer um esgotamento nervoso. No decurso da sua carreira, perseguira um criminoso por cima de um telhado, abrira portas a pontapé e enfrentara a sua própria morte numa cave escura.

Matara um homem.

Mas, até àquele momento, nunca se sentira tão perto de se desmoronar.

A enfermeira da prisão não é carinhosa ao apertar o torniquete em torno do meu braço direito, fazendo estalar o látex como uma tira de borracha, que me morde apele e arranca os pêlos, mas ela não se preocupa; para ela, sou apenas mais um a fingir-se doente, que afez levantar-se da cama e interrompeu o seu turno normalmente rotineiro na clínica da prisão. É de meia-idade ou, pelo menos, assim parece, tem olhos salientes e sobrancelhas demasiado depiladas e o hálito cheira a sono e a cigarros. Mas é uma mulher e olho para o pescoço dela, flácido e cheio de peles, quando ela se inclina sobre o meu braço para localizar uma veia boa. Penso no que está debaixo daquela pele branca e sedosa. A artéria carótida, a pulsar com sangue claro e, ao lado, a veia jugular, inchada com o seu rio mais escuro de sangue venoso. Estou intimamente familiarizado com a anatomia do pescoço da mulher e estudo o dela, ainda que seja muito pouco atraente. A minha veia está saliente e ela grunhe de satisfação. Abre uma compressa com álcool e limpa-me a pele. É um gesto descuidado e desmazelado, feito de hábito e nada mau, não o que se espera de um profissional de saúde.

Vai sentir uma picada anuncia ela.

Registo a mordedura da agulha sem estremecer. Apanhou imediatamente a veia e o sangue corre para o tubo a vácuo de tampa vermelha. Trabalhei com o sangue de inúmeras pessoas, mas nunca com o meu e, por isso, olho para ele com interesse, reparando que é rico e escuro, cor de ginja.

O tubo está quase cheio. Retira-o da agulha e coloca nesta um segundo tubo a vácuo. Este tem a tampa púrpura e destina-se à análise completa do sangue. Quando também este está cheio, retira a agulha da veia, solta o torniquete e pressiona o local da picada com um bocado de algodão.

Segure ordena.

Impotente, chocalho a algema do pulso esquerdo, que está preso à estrutura da marquesa.

Não posso respondo em voz decepcionada.

Oh, por amor de Deus suspira ela. Nenhuma compaixão, só irritação. Há quem despreze os fracos e ela é uma dessas pessoas. Dêem-lhe poder absoluto e um sujeito vulnerável, e facilmente se transforma na mesma espécie de monstros que torturavam judeus nos campos de concentração. A crueldade está logo abaixo da superfície, disfarçada pela farda branca e pelo distintivo que diz "Enfermeira".

Olha de relance para o guarda e diz-lhe:

Segure nisto.

O guarda hesita, mas depois espeta os dedos no algodão e pressiona-o contra a minha pele. A sua relutância em tocar-me não tem a ver com medo de qualquer violência da minha parte; fui sempre bem-comportado e educado, um preso modelo, e nenhum guarda me receia. Não, é o meu sangue que o enerva. Vê o sangue ressumar para o algodão e imagina toda a espécie de horrores microbianos a enxamear-lhe os dedos. Parece aliviado quando a enfermeira rasga uma tira de adesivo e prende a compressa. O guarda dirige-se imediatamente para o lavatório e lava as mãos com água e sabão. Sinto vontade de rir pelo seu terror perante algo tão elementar como o sangue. Mas permaneço imóvel na marquesa, de joelhos erguidos e olhos fechados, soltando de vez em quando um gemido de dor.

A enfermeira abandona a sala com os tubos de sangue, e o guarda, de mãos perfeitamente lavadas, senta-se numa cadeira à espera.

E espera.

Aparentemente, passam-se horas naquela sala fria e estéril. Não sabemos nada da enfermeira; é como se nos tivesse abandonado ou esquecido. O guarda contorce-se na cadeira, perguntando-se o que poderia levar tanto tempo.

Eu já sei.

Por esta altura, já o aparelho completou a análise do meu sangue e ela tem o resultado na mão. Os números alarmam-na. Desapareceram-lhe as preocupações com quaisquer fingimentos por parte do preso; vê na folha impressa as provas de que uma infecção perigosa grassa no meu corpo. De que a minha queixa de dores abdominais é certamente genuína. Embora me tivesse examinado a barriga, sentisse os músculos estremecer e me ouvisse gemer quando me tocou, não acreditou totalmente nos meus sintomas. É enfermeira prisional há demasiado tempo e a experiência tornou-a céptica quanto às queixas físicas dos detidos. Aos olhos dela, somos todos manipuladores e trapaceiros e cada sintoma é mais um engodo para conseguirmos drogas.

Mas uma análise laboratorial é objectiva. O sangue vai para um aparelho e sai um número. A enfermeira não pode ignorar uma contagem alarmante de glóbulos brancos. E, por isso, decerto que está ao telefone, a consultar o oficial médico.

Tenho cá um preso com dores abdominais fortes. Tem sons intestinais e a barriga mole no quadrante inferior direito. O que realmente me preocupa é a contagem de glóbulos brancos...

A porta abre-se e ouço o rangido dos sapatos da enfermeira no linóleo. Quando se dirige a mim, já não há vestígios do tom sarcástico que utilizara antes. Agora é educada, até respeitosa. Sabe que está a lidar com um homem gravemente doente e que, se alguma coisa me acontecer, a responsável é ela. De repente, deixo de ser um objecto de desprezo e passo a ser uma bomba-relógio que pode destruir-lhe a carreira. E já adiou de mais.

Vamos transferi-lo para o hospital diz ela, e olha para o guarda. Tem de ser levado imediatamente.

Shattuck? pergunta o guarda, referindo-se ao Hospital Prisional Lemuel Shattuck, em Boston.

Não, esse fica muito longe. Não podemos esperar tanto. Consegui transferência para o Hospital de Fitchburg. Há urgência na sua voz e agora o guarda olha-me com preocupação.

Então, qual é o problema dele? pergunta.

Pode ser um apêndice perfurado. Já temos a papelada toda pronta e chamámos o Serviço de Urgências de Fitchburg. Ele tem de ir de ambulância.

Que chatice! Então, tenho de ir com ele. Quanto tempo é que isso vai demorar?

Provavelmente será internado. Acho que precisa de ser operado. O guarda olhou para o relógio. Está a pensar no fim do turno e se aparecerá alguém a tempo de o substituir no hospital. Não está a pensar em mim, mas nos pormenores do seu próprio horário, na sua própria vida. Eu sou uma mera complicação.

A enfermeira dobra um maço de papéis e introdu-lo num sobrescrito, que entrega ao guarda.

Isto é para o Serviço de Urgências de Fitchburg. Certifique-se de que o médico o recebe.

Sim. O problema é a segurança.

A enfermeira olha-me de relance. O meu pulso continua algemado à marquesa. Estou deitado completamente imóvel e com os joelhos dobrados a posição clássica de um doente que sofre de uma peritonite fulminante.

Se fosse eu, não me preocupava muito com a segurança. Este está demasiado doente para dar trabalho.

 

A necrofilia ou "amor pelos mortos" disse o Dr. Lawrence Zucker foi sempre um dos segredos mais tenebrosos da humanidade. A palavra vem do grego, mas já em tempos tão remotos como o dos faraós há provas da sua prática. Uma mulher bela e de posição social elevada era sempre mantida longe dos embalsamadores durante pelo menos três dias após a sua morte. Isto destinava-se a assegurar que o corpo não era sexualmente abusado pelos homens encarregados de a preparar para o funeral. Ao longo da história, tem sido registado o abuso sexual dos mortos. Diz-se que até mesmo o rei Herodes fez sexo com a mulher durante sete anos após a morte desta.

Rizzoli olhou em torno da sala de reuniões e sentiu-se chocada com a arrepiante familiaridade da cena: uma reunião de detectives cansados, pastas e fotos de locais de crimes espalhadas sobre a mesa. A voz sussurrada do psicólogo Lawrence Zucker, atraindo-os para a mente de pesadelo de um predador. E o frio... Lembrava-se principalmente do frio da sala e de como se lhe entranhara nos ossos e adormecera as mãos. Muitos dos rostos eram igualmente os mesmos: os detectives Jerry Sleeper e Darren Crowe e o seu parceiro, Barry Frost. Os agentes com quem trabalhara na investigação do Cirurgião no ano anterior.

Outro Verão, outro monstro.

Mas, desta vez, um rosto estava ausente do grupo. O detective Thomas Moore não estava entre eles e ela sentia falta da sua presença, sentia falta da sua calma segurança, da sua firmeza. Embora tivessem tido uma zanga durante a investigação do caso do Cirurgião, tinham reatado a amizade e agora a sua ausência era como uma lacuna gritante no grupo.

No lugar de Moore, sentado na própria cadeira que Moore geralmente ocupava, estava um homem em quem ela não confiava: Gabriel Dean. Quem quer que entrasse ali para a reunião notaria imediatamente que Dean era o estranho naquela reunião de polícias. Desde o fato de bom corte até à postura militar, diferenciava-se dos outros e todos tinham consciência dessa diferença. Ninguém falava com Dean. Este era o observador silencioso, o homem do FBI cuja função continuava a ser um mistério para todos eles.

O sexo com um cadáver é uma actividade sobre a qual a maioria de nós não se dá ao trabalho de pensar prosseguiu o Dr. Zucker. Mas é reiteradamente mencionada na literatura, na história e em vários casos criminais. Nove por cento das vítimas dos assassinos em série são violadas sexualmente post mortem. Jeffrey Dahmer, Henry Lee Lucas e Ted Bundy admitiram, todos eles, terem-no feito. O seu olhar recaiu sobre a fotografia da autópsia de Gail Yeager. Por conseguinte, a presença nesta vítima de esperma acabado de ejacular não é de modo algum surpreendente.

Costumavam dizer que isso era uma coisa que só os malucos faziam interveio Darren Crowe. Foi o que me disse uma vez um psicólogo criminalista do FBI. Que esses são os doidos que andam a vaguear e a falar sozinhos.

Sim, antigamente pensava-se que isso indicava um assassino com uma mente gravemente doente concordou Zucker. Alguém que vagueia de um lado para o outro numa desorientação psicótica. É verdade, alguns desses agressores são psicopatas que têm lugar na categoria dos assassinos desorganizados... nem sãos, nem inteligentes. Têm tão pouco controlo sobre os seus impulsos que deixam atrás de si toda a espécie de provas. Cabelos, sémen, impressões digitais. Esses são os fáceis de apanhar, porque não sabem ou não se preocupam com os aspectos da medicina legal.

Então, e quanto a este indivíduo?

Este indivíduo não é um psicótico. É uma criatura totalmente diferente. Zucker abriu a pasta com as fotos da casa dos Yeager e dispô-las em cima da mesa. Depois, olhou para Rizzoli. Detective, você esteve no local do crime, Rizzoli assentiu.

Este homicida foi metódico. Levou os instrumentos para assassinar. Foi limpo e eficiente. Quase não deixou vestígios.

Havia sémen observou Crowe.

Mas não num lugar onde seria provável procurarmos retorquiu ela. Podíamos facilmente não ter reparado. De facto, por pouco não reparávamos.

E qual é a sua impressão geral? perguntou Zucker.

É organizado. Inteligente. Fez uma pausa. Exactamente como o Cirurgião acrescentou.

Os olhos de Zucker ficaram presos aos dela. Zucker sempre a fizera sentir-se pouco à vontade e o seu olhar especulativo invadiu-a. Mas Warren Hoyt tinha de estar presente na mente de todos. Ela não podia ser a única a sentir que se tratava da reposição de um pesadelo antigo.

Concordo consigo disse Zucker. É um assassino organizado. Segue aquilo a que certos psicólogos criminalistas chamariam tema objecto-cognitivo. O seu comportamento não tem por fim a gratificação imediata. Os seus actos têm um objectivo específico e esse objectivo é deter o controlo total do corpo de uma mulher... neste caso, a vítima, Gail Yeager. Este indivíduo quer possuí-la, usá-la mesmo após a morte dela. Ao violá-la diante do marido, determina esse direito de posse. Torna-se o dominador, acima de ambos.

Pegou na fotografia da autópsia.

Acho interessante ela não estar nem mutilada nem desmembrada. Com excepção das modificações naturais do início da decomposição, o cadáver parece estar em condições bastante boas. Olhou para Rizzoli à espera de confirmação.

Não havia feridas abertas respondeu esta. A causa da morte foi o estrangulamento.

Que é o modo mais íntimo de matar alguém.

Íntimo?

Pense no que significa estrangular alguém com as mãos. Como é pessoal. O contacto próximo. Pele com pele. As mãos dele na carne dela. Pressionando-lhe a garganta enquanto sente que a vida se esvai.

Rizzoli fitou-o com repugnância.

Meu Deus!

É assim que ele pensa. É isso o que ele sente. É o universo onde habita e temos de saber como é esse universo. Zucker apontou para a fotografia de Gail Yeager. Ele é levado a possuir-lhe o corpo, a ser seu dono, morta ou viva. É um homem que desenvolve uma ligação pessoal a um cadáver e que continuará a acarinhá-lo. A abusar sexualmente dele.

Nesse caso, porquê deitá-lo fora? perguntou Sleeper. Porque não conservá-lo junto de si por sete anos? Como o rei Herodes fez com a mulher.

Razões práticas? propôs Zucker. Talvez viva num edifício de apartamentos, onde o cheiro de um corpo em decomposição chamaria as atenções. Três dias é praticamente o máximo que se consegue manter um cadáver.

Experimente três segundos disse Crowe, rindo-se.

Está então a dizer que ele tem com esse corpo uma ligação quase de amante sugeriu Rizzoli.

Zucker assentiu.

Deve ter-lhe sido difícil atirá-la para ali. Em Stony Brook prosseguiu Rizzoli.

Sim, deve ter sido difícil. É como se a amante o abandonasse. Rizzoli pensou naquele local da floresta. As árvores, as manchas de sombra. Muito longe do calor e do barulho da cidade.

Talvez não seja uma simples lixeira disse ela. Talvez seja chão consagrado.

Todos olharam para ela.

Repita lá isso? disse Crowe.

A detective Rizzoli tocou exactamente no ponto onde eu queria chegar comentou Zucker. Aquele sítio na reserva não é só um local para onde atirar cadáveres usados. Temos de perguntar a nós mesmos: Porque é que ele não os enterrou? Por que razão os deixou à mercê de uma possível descoberta?

Porque os visita disse Rizzoli em tom suave. Zucker voltou a assentir.

São suas amantes. São o seu harém. O assassino volta uma e outra vez, para olhar para elas, para lhes tocar. Talvez até enlaçá-las. Por isso ele lhes arranca cabelos. Quando mexe nos corpos, fica com os cabelos agarrados à roupa. Zucker fitou Rizzoli. O fio de cabelo post mortem corresponde aos segundos restos mortais?

A detective assentiu com a cabeça.

O detective Korsak e eu começámos por assumir que o indivíduo trouxera o cabelo do local de trabalho. Agora que sabemos de onde veio esse cabelo, fará algum sentido continuar a seguir a pista da agência funerária?

Sim respondeu Zucker. E digo-lhe porquê. Os necrófilos são atraídos pelos cadáveres. Sentem-se sexualmente recompensados ao manipular os corpos. Ao embalsamá-los, ao vesti-los. Ao maquilhá-los. Podem tentar ter acesso a tal excitação escolhendo um emprego na "indústria" da morte. Como assistente de embalsamador, por exemplo, ou como esteticista funerário. Não se esqueçam de que esses restos mortais não identificados podem não pertencer a nenhuma vítima. Um dos necrófilos mais conhecidos foi um psicopata chamado Ed Gein, que começou por assaltar cemitérios. Desenterrava os corpos das mulheres e levava-os para casa. Só mais tarde se tornou homicida como meio de obter cadáveres.

Safa! murmurou Frost. Isto está cada vez melhor.

É um aspecto do amplo espectro do comportamento humano. Os necrófilos repugnam-nos como doentes e pervertidos, mas estiveram sempre entre nós, este subsegmento de gente impelida por obsessões estranhas. Desejos esquisitos. Sim, alguns são psicopatas. Mas outros são perfeitamente normais em todos os aspectos. O Warren Hoyt também era perfeitamente normal Foi Gabriel Dean quem falou a seguir. Até ali, não dissera uma palavra durante toda a reunião e Rizzoli ficou admirada ao ouvir a voz de barítono profundo.

Diz que este indivíduo talvez volte aos bosques para visitar o seu harém.

Sim respondeu Zucker. Por isso é que a vigilância de Stony Brook deve continuar por tempo indeterminado.

E que acontece quando ele descobrir que o harém desapareceu? Zucker fez uma pausa.

Não vai apreciar o facto.

Um arrepio percorreu a espinha de Rizzoli perante aquelas palavras. São as suas amantes. Como reagiria qualquer homem se lhe roubassem a amante?

Ficará frenético prosseguiu Zucker. Furioso por alguém se apoderar do que lhe pertence e ansioso por substituir o que perdeu. Incitá-lo-á a voltar a caçar. Zucker olhou para Rizzoli. Têm de manter isto longe dos olhares dos meios de comunicação tanto tempo quanto possível. A vigilância pode ser a vossa melhor oportunidade de o apanharem. Porque ele voltará àqueles bosques, mas só se julgar que está em segurança. Só se pensar que o harém continua lá à espera dele.

A porta da sala de reuniões abriu-se. Voltaram-se todos e viram o tenente Marquette enfiar a cabeça na sala.

Detective Rizzoli? chamou. Preciso de falar consigo.

Agora?

Se não se importa. Vamos para o meu gabinete.

A julgar pela expressão dos que se encontravam na sala, a todos assaltou o mesmo pensamento: Rizzoli foi chamada ao bosque. Mas esta não fazia ideia do motivo. Levantou-se de um salto e saiu da sala.

Marquette manteve-se em silêncio ao percorrerem o corredor até às instalações da Brigada de Homicídios. Entraram no gabinete dele, que fechou a porta. Através da divisória de vidro, viu detectives a fitarem-na das secretárias. Marquette dirigiu-se à janela e fechou os estores.

Porque não se senta, Rizzoli?

Estou bem. Só quero saber o que se passa.

Por favor disse em voz agora mais calma, quase gentil. Sente-se.

Aquela solicitude invulgar deixou-a pouco à vontade. Ela e Marquette nunca haviam simpatizado muito um com o outro. A Brigada de Homicídios continuava a ser um clube de rapazes e Rizzoli sabia que era considerada uma invasora. Afundou-se numa cadeira e sentiu a pulsação disparar.

Por momentos, Marquette ficou silencioso, como se tentasse encontrar as palavras certas.

Quero dizer-lhe isto antes que os outros ouçam falar do caso, porque julgo que será mais difícil para si. Tenho a certeza de que não passa de uma situação temporária e que se resolverá dentro de dias, se não horas.

Que situação?

Esta manhã, cerca das cinco horas, o Warren Hoyt fugiu da prisão.

Compreendia agora por que motivo ele insistira em que ela se sentasse: estava à espera que caísse.

Mas não caiu. Continuou sentada, perfeitamente imóvel, bloqueando as emoções e adormecendo todos os nervos. Ao falar, a voz dela era tão espectralmente calma que ela própria mal a reconheceu.

Como é que isso aconteceu? perguntou.

Foi durante uma transferência por motivos de saúde. Foi internado a noite passada no Hospital de Fitchburg para uma apendicectomia de urgência. Não sabemos como aconteceu realmente. Mas na sala de operações... Marquete fez uma pausa. Não há testemunhas vivas.

Quantas pessoas morreram? perguntou Rizzoli. A voz continuava átona. Parecia pertencer a uma estranha.

Três. Uma enfermeira e uma anestesista, que o preparavam para a operação. Mais o guarda que o acompanhou ao hospital.

Souza-Baranowski é uma instalações de nível seis.

É.

E permitiram-lhe ir para um hospital civil?

Se fosse um internamento de rotina, teria sido transportado para o Hospital Prisional Shattuck. Mas, numa emergência médica, é política do ministério levar os reclusos para a unidade hospitalar mais próxima com quem têm contrato. E a mais próxima era em Fitchburg.

Quem decidiu que era uma emergência?

A enfermeira da cadeia. Examinou o Hoyt e consultou um médico. Ambos concordaram que ele precisava de cuidados imediatos.

Com base em que factos? A sua voz começava agora a tornar-se mais aguda e a manifestar o primeiro sinal de emoção.

Havia sintomas. Dores abdominais...

Ele tem formação médica. Sabia o que dizer-lhes exactamente.

As análises laboratoriais também não estavam normais.

Que análises?

Qualquer coisa sobre um número elevado de leucócitos.

Sabiam com quem estavam a lidar? Faziam alguma ideia?

Não se consegue falsificar uma análise ao sangue.

Ele consegue. Trabalhou num hospital. Sabe como se manipulam análises clínicas.

Detective...

Por amor de Deus, ele fazia análises de sangue! Espantou-a o tom agudo da sua voz. Olhou para ele, chocada pela sua explosão e esmagada pelas emoções que finalmente a invadiam. Revolta. Impotência.

E medo. Durante todos aqueles meses, suprimira-o porque sabia que era irracional ter medo de Warren Hoyt, que fora encerrado num local onde não podia atingi-la, não a podia magoar. Os pesadelos tinham sido simples sequelas, ecos que haviam restado de um terror anterior que, esperava ela, havia de desaparecer. Mas, agora, fazia perfeitamente sentido ter medo e o medo tinha-a entre as suas mandíbulas.

Abruptamente, levantou-se e voltou-se para se ir embora.

Detective Rizzoli! Rizzoli parou junto da porta.

Aonde vai?

Acho que sabe aonde tenho de ir.

O Departamento de Polícia de Fitchburg e a polícia estadual têm o caso sob controlo.

Têm? Para eles, é mais um condenado em fuga. Esperam que cometa os mesmos erros que todos os outros. Mas não. Escapar-se-á das suas redes.

Não lhes dá muito crédito.

Eles não dão muito crédito ao Hoyt. Não compreendem aquilo com que estão a lidar respondeu.

Mas eu sim. Compreendo perfeitamente.

Lá fora, o parque de estacionamento tremulava de calor ao rubro-branco sob o sol forte, e o vento que soprava da rua era espesso e sulfuroso. Quando entrou no carro, já tinha a camisa ensopada em suor. Hoyt gostaria deste calor, pensou ela. Vicejava sob o calor como um lagarto viceja no calor abrasador da areia do deserto. E, como qualquer réptil, sabia como rastejar para longe do perigo.

Não o encontrarão.

Ao dirigir-se a Fitchburg, pensou no Cirurgião novamente à solta no mundo. Imaginou-o a passear-se pelas ruas da cidade, predador de novo atrás da presa. Perguntou-se se ainda teria força interior suficiente para o enfrentar. Se não teria gasto a sua quota-parte de coragem ao derrotá-lo uma vez. Não se considerava cobarde; nunca recuara perante um desafio e sempre mergulhara de cabeça nas refregas. Mas pensar em voltar a enfrentar Warren Hoyt punha-a a tremer.

Lutei contra ele uma vez e isso quase me matou. Não sei se sou capaz de fazê-lo novamente. Se consigo derrotá-lo e metê-lo de novo na sua jaula.

O local não estava vigiado. Rizzoli parou no corredor do hospital e olhou em volta em busca de alguém de uniforme, mas só viu enfermeiras nas proximidades, duas delas abraçadas para se reconfortarem, as outras amontoadas e a falar em voz baixa e de rostos acinzentados devido ao choque.

Passou sob a fita amarela, que tombara, e dirigiu-se sem ser interpelada para as portas duplas, que se abriram automaticamente e lhe permitiram entrar na área de recepção do bloco operatório. Rizzoli viu no chão os fluidos e as marcas desordenadas de pegadas sobre o sangue. Um perito de investigação estava já a arrumar os seus utensílios. Era um local frio, remexido e espezinhado, só à espera de ser liberado para limpeza.

Mas, embora frio, embora contaminado, Rizzoli ainda conseguia perceber o que sucedera naquela sala, porque isso estava escrito a sangue nas paredes. Viu os arcos já secos de sangue pulverizado da artéria ainda a pulsar da vítima. Desenhava uma onda sinusoidal na parede e esparrinhara para o grande quadro onde se tinham anotado as operações marcadas para aquele dia, com a lista das salas do bloco operatório, os nomes dos pacientes, os nomes dos cirurgiões e os procedimentos cirúrgicos. O dia inteiro estava ocupado. Perguntou-se o que acontecera aos doentes cujas operações tinham sido abruptamente canceladas porque o bloco operatório era agora o local de um crime. Interrogou-se sobre quais seriam as consequências do adiamento de uma colecistectomia fosse isso o que fosse. A agenda completa explicava por que motivo o local do crime fora analisado tão rapidamente. Tinha de atender-se às necessidades dos vivos. Não se podia fechar indefinidamente o bloco operatório mais movimentado da cidade de Fitchburg.

Os arcos de sangue esguichado percorriam o quadro, davam a volta à esquina e continuavam até à outra parede. Ali, os picos eram menores à medida que a tensão sistólica baixava e as pulsações começavam a desenhar um rasto para baixo, descendo até ao chão. Terminavam num lago fluido junto da secretária da recepção.

O telefone. Quem quer que tivesse morrido aqui estava a tentar chegar ao telefone.

Para lá da área da recepção, um corredor amplo ladeado por lavatórios levava às salas de operação individuais. Vozes masculinas e um rádio portátil a crepitar conduziram-na a uma porta aberta. Percorreu a fileira de lavatórios e passou por um perito que mal olhou para ela. Ninguém a interpelou, nem sequer quando entrou na Sala 4 do bloco operatório e estacou, esmagada pelos testemunhos da carnificina. Embora não tivessem ficado vítimas na sala, o seu sangue estava por todo o lado, manchando paredes, armários e tampos, e fora espalhado pelo chão por todos os que tinham entrado por causa do crime.

Minha senhora. Minha senhora.

Dois homens à paisana estavam junto do armário dos instrumentos e franziram as sobrancelhas. O mais alto dirigiu-se a ela e as coberturas de papel dos sapatos colaram-se ao chão pegajoso. Tinha trinta e tal anos e movia-se como um galarote, com o ar de superioridade que todos os homens fortemente musculados exibem. Compensação masculina pelo cabelo que recua cada vez mais, pensou ela.

Antes que ele pudesse fazer a pergunta óbvia, ela ergueu o distintivo.

Jane Rizzoli. Homicídios. Departamento de Polícia de Boston.

Que está Boston a fazer aqui?

Desculpe. Não sei como se chama replicou ela.

Sargento Canady. Secção de Captura de Fugitivos.

Agente da Polícia Estadual do Massachusetts. Rizzoli ia para lhe apertar a mão quando reparou que ele estava de luvas de borracha. De qualquer modo, não parecia inclinado a retribuir-lhe a cortesia.

Podemos ajudá-la? perguntou Canady.

Talvez eu os possa ajudar.

Canady não se mostrou especialmente entusiasmado com a oferta.

Como?

Rizzoli olhou para os múltiplos riscos de sangue que haviam esguichado para a parede.

O homem que fez isto... O Warren Hoyt...

Que tem ele?

Conheço-o muito bem.

Então, o homem mais baixo juntou-se a eles. Tinha rosto pálido e orelhas de Dumbo e, embora também ele fosse obviamente polícia, não parecia partilhar do senso de territorialidade de Canady.

Olá, eu conheço-a. Rizzoli. Foi você quem lhe deitou a mão.

Trabalhei com a equipa.

Não, foi você quem o encurralou em Lithia. Ao contrário de Canady, não usava luvas e deu-lhe um aperto de mão. Detective Arlen. Departamento de Polícia de Fitchburg. Fez esta viagem até cá por causa disto?

Assim que soube. Desviou o olhar para as paredes. Tem consciência de quem tem de enfrentar, não?

Canady interrompeu-a.

Temos as coisas sob controlo.

Conhece a história dele?

Sabemos o que fez aqui.

Mas conhece-o a ele.

Temos os processos do Centro Prisional Souza-Baranowski.

Mas os guardas não faziam ideia do tipo de indivíduo com que estavam a lidar. Ou isto não teria acontecido.

Nunca deixei de apanhar nenhum replicou Canady. Todos eles cometem os mesmos erros.

Este não.

Só fugiu há seis horas.

Seis horas? Rizzoli abanou a cabeça. Já o perderam. Canady eriçou-se.

Estamos a passar a pente fino os arredores. Montámos bloqueios nas estradas e controlos de veículos. Os meios de comunicação foram alertados e a fotografia dele difundida em todas as emissoras de televisão locais. Como lhe disse, está tudo sob controlo.

Rizzoli não respondeu e dirigiu a atenção para as manchas de sangue.

Quem morreu aqui? perguntou suavemente. Quem respondeu foi Arlen.

A anestesista e a enfermeira do bloco operatório. A anestesista jazia ali, naquela extremidade da marquesa. A enfermeira foi encontrada aqui, junto da porta.

Não gritaram? Não alertaram o guarda?

Teriam de esforçar-se muito para fazer qualquer som. Foram ambas degoladas até à laringe.

Rizzoli aproximou-se da cabeceira da marquesa e olhou para a vareta onde estava pendurado um saco de soro. O tubo de plástico e o cateter jaziam no meio de um lago de água no chão. Uma seringa de vidro estava estilhaçada debaixo da marquesa.

Já lhe tinham posto o soro disse ela.

Começaram no Serviço de Urgências disse Arlen. Trouxeram-no directamente para aqui depois de o cirurgião o ter examinado lá em baixo. Diagnosticaram-lhe um apêndice perfurado.

Porque é que o cirurgião não subiu com ele? Onde estava?

Estava a examinar outro doente. Subiu provavelmente dez ou quinze minutos depois de tudo acontecer. Passou pelas portas duplas, viu o guarda prisional morto na área de recepção e correu para o telefone.

Praticamente todo o pessoal do Serviço de Urgências veio para cá, mas nada puderam fazer por nenhuma das vítimas.

Rizzoli olhou para o chão e viu as pisadelas e manchas feitas por demasiados sapatos, demasiado caos para poder ser interpretado.

Porque é que o guarda não estava aqui a vigiar o recluso? perguntou.

É suposto o bloco operatório ser uma zona estéril. Não são permitidas roupas do exterior. Provavelmente disseram-lhe que esperasse fora do bloco.

Mas não é política prisional que os reclusos estejam algemados sempre que saem das instalações?

É.

Mesmo no bloco operatório, mesmo sob anestesia, o Hoyt devia estar algemado à marquesa pela perna ou pelo braço.

Pois devia.

Encontrou as algemas?

Arlen e Canady olharam um para o outro.

As algemas estavam no chão, debaixo da marquesa respondeu Canady.

Então, estava algemado.

Ao que parece, sim...

Porque o teriam soltado?

Talvez por razões médicas? sugeriu Arlen. Para lhe porem outro soro? Mudá-lo de posição?

Rizzoli abanou a cabeça. -

Precisavam do guarda para abrir as algemas. O guarda não se ia embora, deixando o recluso desalgemado.

Então, deve ter-se descuidado disse Canady. Toda a gente no Serviço de Urgências tinha a impressão de que o Hoyt estava muito doente e com demasiadas dores para poder lutar. Obviamente que não esperavam...

Meu Deus murmurou ela. Não perdeu o jeito. Olhou para o carrinho de anestesia e verificou que uma gaveta estava aberta. Dentro, sob a luz forte do bloco operatório, brilhavam frascos de tiopental. Um anestésico. Estavam a preparar-se para o adormecer, pensou. Está deitado nesta marquesa com o soro metido no braço. Geme e a dor contorce-lhe o rosto. Não fazem ideia do que está prestes a acontecer; estão ocupados no seu trabalho. A enfermeira pensa nos instrumentos que há-de retirar, quais as necessidades do médico. A anestesista calcula as doses do medicamento, enquanto observa a pulsação cardíaca do doente no monitor. Talvez veja que tem o coração acelerado e parte do princípio de que se deve às dores. Não se apercebe de que ele se prepara para dar a estocada. Para a matança.

E depois... que aconteceu depois?

Olhou para o tabuleiro dos instrumentos junto da marquesa. Estava vazio.

Terá usado um bisturi? perguntou.

Não encontrámos a arma.

É o seu instrumento preferido. Usava sempre um bisturi. De repente, um pensamento eriçou-lhe os pêlos da nuca. Olhou para Arlen. Poderá estar ainda no edifício?

Não está no edifício cortou Canady.

Antes, fez-se passar por médico. Sabe como misturar-se com o pessoal médico. Revistaram o hospital?

Não precisámos.

Então, como sabem que ele não está cá?

Porque temos provas de que saiu do edifício. Está no vídeo. A sua pulsação disparou.

Apanharam-no nas câmaras de vigilância? Canady assentiu.

Suponho que queira ver pessoalmente.

 

É estranho o que ele faz disse Arlen. Vimos esta gravação várias vezes e não percebemos.

Tinham descido até à sala de reuniões do hospital. A um canto, havia um armário de rodas com um aparelho de televisão e um leitor de vídeos. Arlen esperou que Canady ligasse todos os botões e pegasse no comando remoto. O comando pertencia aos machos alfa e Canady precisava de ser esse macho. Arlen era suficientemente autoconfiante e não se importava.

Canady tamborilou na cassete.

Muito bem disse. Vejamos se o Departamento de Polícia de Boston consegue decifrar isto. Era o equivalente verbal do atirar da luva. Carregou no PLAY.

No ecrã apareceu a imagem de uma porta fechada ao fundo de um corredor.

Esta câmara está montada no tecto num corredor do primeiro andar disse Arlen. Aquela porta que está a ver dá directamente para o exterior, para o parque de estacionamento do pessoal, à direita do edifício. É uma de quatro saídas. A hora está gravada em baixo.

Cinco e dez leu Rizzoli.

Segundo o registo do Serviço de Urgências, o recluso foi levado para cima, para o bloco operatório, cerca das quatro e quarenta e cinco, portanto, isto aconteceu vinte minutos depois. Agora, veja. Acontece cerca das cinco e onze.

No ecrã, os segundos avançavam. Depois, às cinco horas, onze minutos e treze segundos, surgiu de repente uma figura que se dirigiu em passo calmo e lento para a saída. Tinha as costas voltadas para a câmara. Por cima da gola da bata branca de laboratório, via-se uma orla de cabelo castanho. Vestia calças de trabalho de cirurgião e sapatos de papel. Percorreu todo o caminho até à porta e ia para carregar na barra de saída quando, de repente, parou.

Veja isto disse Arlen.

Lentamente, o homem voltou-se. Ergueu os olhos para a câmara.

Rizzoli inclinou-se para a frente, com a garganta seca e os olhos pregados no rosto de Warren Hoyt. Ao olhar para ele, tinha a impressão de que ele a fitava. Hoyt dirigiu-se para a câmara e ela viu que ele tinha algo debaixo do braço. Um pacote qualquer. Continuou a andar e parou directamente sob a lente.

Esta é a parte estranha salientou Arlen.

Continuando a olhar para a câmara, Hoyt ergueu a mão direita com a palma voltada para a frente como se estivesse a jurar em tribunal que só diria a verdade. Com a mão esquerda, apontou para a palma aberta. E sorriu.

Que diabo quer isto dizer? perguntou Canady.

Rizzoli não respondeu. Em silêncio, ficou a ver enquanto Hoyt se voltava, caminhava para a saída e desaparecia do outro lado da porta.

Passe outra vez.

Canady franziu as sobrancelhas, mas carregou em REWIND e depois P1AY.

Mais uma vez, Hoyt dirigiu-se para a porta. Voltou-se. Regressou para junto da câmara com o olhar focado em quem estava agora a observá-lo.

Rizzoli sentou-se com todos os músculos tensos e o coração a bater disparado enquanto esperava pelo gesto seguinte de Hoyt. Que já compreendera.

Hoyt ergueu a palma.

Pare disse ela. Aí mesmo. Canady carregou em PAUSE.

No ecrã, Hoyt ficou imóvel com um sorriso no rosto e o dedo indicador esquerdo a apontar para a palma da mão direita. A imagem deixou-a petrificada.

Foi Arlen quem finalmente quebrou o silêncio.

Que significa isto? Sabe?

Sei disse ela, engolindo em seco.

Bem... Então é o quê! rosnou Canady.

Ela abriu as mãos que mantivera de punhos cerrados no colo. Em ambas as mãos estavam as cicatrizes deixadas pelo ataque de Hoyt, um ano antes, nódulos espessos que haviam sarado sobre os dois buracos rasgados pelo bisturi.

Arlen e Canady olharam para as cicatrizes.

O Hoyt fez-lhe isso? perguntou Arlen. Rizzoli assentiu.

É o que aquilo significa. Foi por isso que ele levantou a mão. Olhou para a televisão, onde Hoyt continuava a sorrir e mantinha a palma da mão virada para a câmara. É uma piada só cá entre nós. A sua maneira de dizer "olá". O Cirurgião está a falar comigo.

Você deve tê-lo deixado bem enraivecido disse Canady. Apontou com o comando para o ecrã. Olhe para aquilo. É como se estivesse a dizer: "À sua!"

Ou... "vemo-nos por aí" disse Arlen suavemente.

Estas palavras gelaram-na. Sim, sei que o verei. Só não sei quando ou onde.

Canady carregou no PLAY e a gravação continuou. Viram Hoyt baixar a mão e voltar-se novamente para a saída. Nesse momento, Rizzoli reparou no pacote que Hoyt levava debaixo do braço.

Pare outra vez pediu. Canady carregou em PAUSE.

Rizzoli inclinou-se para a frente e tocou no ecrã.

Que coisa é esta que ele leva? Parece uma toalha enrolada.

E é anuiu Canady.

Porque iria ele com uma toalha?

Não se trata da toalha, mas do que ele leva dentro dela. Rizzoli franziu as sobrancelhas, pensando no que acabara de ver no andar superior no bloco operatório. Lembrou-se do tabuleiro vazio ao pé da marquesa. Olhou para Arlen.

Instrumentos disse. Levou os instrumentos cirúrgicos. Arlen assentiu com a cabeça.

Falta um conjunto de laparotomia na sala.

Laparotomia? O que é isso?

É o termo médico para abertura do abdómen disse Canady.

No ecrã, Hoyt dirigira-se já para a saída e via-se apenas um corredor vazio e uma porta fechada. Canady desligou o vídeo e voltou-se para ela.

Parece que o seu tipo está ansioso por voltar ao trabalho.

O toque do telemóvel fê-la estremecer. Sentia o coração a bater como um martelo ao pegar no telefone. Os dois homens olhavam para ela e, por isso, voltou-se para a janela antes de responder ao telefonema.

Era Gabriel Dean.

Não se esqueceu de que o especialista em ossos se encontra connosco às três horas? perguntou-lhe ele.

Rizzoli olhou para o relógio.

Estou aí a horas. Por pouco.

- Onde está?

Ouça, vou estar aí, está bem? E desligou. Olhando pela janela, inspirou profundamente. Não aguento, pensou. Os monstros estão a puxar demasiado por mim...

Detective Rizzoli? disse Canady. Ela voltou-se.

Desculpe. Tenho de regressar à cidade. Telefona-me assim que souber alguma coisa sobre o Hoyt?

Canady assentiu com a cabeça. Sorriu.

Pensamos que não tardará muito.

A última pessoa com quem lhe apetecia falar era com Dean, mas, ao entrar no parque de estacionamento do Instituto de Medicina Legal, viu-o parado junto do carro. Estacionou rapidamente num espaço livre e desligou o motor, pensando que se esperasse uns minutos ele se dirigiria primeiro para o edifício e ela podia evitar conversas desnecessárias. Infelizmente, ele já a vira e, qual obstáculo inevitável, ficou à espera no parque de estacionamento. Rizzoli não tinha outro remédio senão falar com ele.

Saiu para o calor abrasador e dirigiu-se a ele com a rapidez de quem não tem tempo a perder.

Você não voltou à reunião desta manhã observou ele.

O Marquette chamou-me ao gabinete.

Ele contou-me. Ela parou e fitou-o.

Contou-lhe o quê?

Que um dos seus antigos criminosos fugiu.

É verdade.

E que isso a abalou.

O Marquette também lhe disse isso?

Não. Mas, como você não voltou para a reunião, parti do princípio de que estava incomodada.

Outros assuntos requereram a minha atenção. Começou a andar em direcção ao edifício.

Quem conduz este caso é você, detective Rizzoli exclamou ele, seguindo-a.

Ela parou e voltou-se para fitá-lo.

Porque é que acha necessário lembrar-mo?

Lentamente, ele aproximou-se, até se encontrar tão perto dela que a intimidou. Talvez fosse essa a sua intenção. Estavam agora frente a frente e, embora ela nunca recuasse, não pôde evitar corar sob o olhar dele. Não era apenas a sua superioridade física que a fazia sentir-se ameaçada; era a súbita percepção de que ele era um homem desejável, reacção terrivelmente perversa à luz da sua raiva. Tentou suprimir a atracção, mas esta já lhe enterrara as garras e ela não conseguiu sacudi-las.

O caso vai requerer toda a sua atenção disse ele. Ouça, compreendo perfeitamente que se sinta perturbada com a fuga do Warren Hoyt. É o suficiente para assustar qualquer polícia. O suficiente para lhe abalar o equilíbrio...

Você mal me conhece. Não tente ser meu psiquiatra.

Limito-me a perguntar-me se está suficientemente concentrada para conduzir esta investigação ou se tem outros problemas que possam interferir.

Rizzoli conseguiu conter a irritação e perguntou muito calmamente:

Sabe quantas pessoas o Hoyt matou esta manhã? Três, agente Dean. Um homem e duas mulheres. Cortou-lhes a garganta e foi-se embora como se não fosse nada com ele. Tal como consegue fazer sempre. Ergueu as mãos e Dean olhou para as cicatrizes. São as recordações que ele me deixou no ano passado precisamente quando se preparava para me cortar a garganta. Baixou as mãos e riu-se. Portanto, sim, tem absoluta razão. Tenho problemas com ele.

Também tem um trabalho a fazer. Aqui.

Estou a fazê-lo.

Está distraída com o Hoyt. Está a permitir que ele se intrometa.

O único problema que se está a intrometer é você. Nem sequer sei o que está a fazer aqui.

Cooperação entre departamentos. Não é essa a orientação superior?

Eu sou a única que coopera. Que me dá você em troca?

De que está à espera?

Podia começar por dizer-me por que razão o FBI está envolvido. Nunca se intrometeu antes em nenhum dos meus casos. Porque é que os Yeager são diferentes? Que sabe você acerca deles que eu não sei?

Sei tanto quanto você replicou ele.

Seria verdade? Rizzoli não o sabia. Não conseguia adivinhar o pensamento daquele homem. E agora a atracção sexual aumentava a sua confusão e baralhava toda e qualquer mensagem entre eles. Dean olhou para o relógio.

Já passa das três. Estão à nossa espera.

Começou a andar em direcção ao edifício, mas Rizzoli não o seguiu imediatamente. Ficou sozinha por momentos no parque de estacionamento, abalada com a sua reacção perante Dean. Por fim, respirou fundo e dirigiu-se para a morgue, reunindo forças para mais uma visita aos mortos.

Aquele, pelo menos, não lhe deu volta ao estômago. O fedor esmagador a putrefacção que a agoniara durante a autópsia de Gail Yeager estava praticamente ausente do segundo conjunto de restos mortais. No entanto, Korsak tomara as precauções do costume e voltara a pôr mentol sob o nariz. Só alguns fragmentos de tecido conjuntivo semelhante a couro aderiam aos ossos, e embora o cheiro fosse decerto desagradável pelo menos não enviou Rizzoli a cambalear para a pia. Estava decidida a evitar a repetição da embaraçosa situação da tarde anterior, especialmente com Gabriel Dean agora mesmo à sua frente e em posição de ver toda e qualquer contracção do seu rosto. Manteve uma fachada de estoicismo enquanto a Dra. Isles e o especialista, o Dr. Carlos Pepe, partiam o selo da caixa e retiravam as ossadas, pousando-as na mesa coberta por um lençol.

Com sessenta anos e curvo como um gnomo, o Dr. Pepe estava excitado como uma criança ao retirar o conteúdo da caixa, contemplando cada pedaço como se fosse ouro. Ao passo que Rizzoli via apenas um conjunto aleatório de ossos manchados de sujidade e tão desinteressantes como galhos de árvore, o Dr. Pepe via rádios, cúbitos e clavículas, que eficientemente classificava e colocava nas suas posições anatómicas. Costelas desarticuladas e o esterno partido sobre o aço inoxidável coberto. Vértebras, duas delas cirurgicamente fundidas, formavam uma cadeia nodosa do centro da mesa até ao aro oco da pelves, com a forma de uma coroa macabra destinada a um rei. Os ossos dos braços formavam membros esguios que terminavam em amontoados que pareciam de cascalho sujo mas que na realidade eram os ossos minúsculos que conferem à mão humana a sua milagrosa versatilidade. Imediatamente óbvia era a prova de um ferimento antigo: parafusos cirúrgicos de aço no colo do fémur esquerdo. A cabeceira da mesa, o Dr. Pepe colocou o crânio e o maxilar desarticulado. Sob a crosta de sujidade, brilhavam dentes de ouro. Todos os ossos estavam agora na sua posição.

Mas a caixa não estava vazia.

O Dr. Pepe virou-a e despejou o resto do conteúdo num tabuleiro revestido com um pano, onde caiu um chuvisco de terra, folhas e madeixas de cabelos embaraçados. Dirigiu a luz de observação para o tabuleiro e, com uma pinça, começou a esgaravatar na terra. Em poucos segundos encontrou aquilo que procurava: uma minúscula pepita preta com a forma de um bago de arroz.

Uma pupa disse ele. Muitas vezes confundida com dejectos de ratos.

Era o que eu diria observou Korsak. Cocó de rato.

Há muitas aqui. Só precisamos de saber o que procuramos. O Dr. Pepe apanhou mais alguns bagos pretos e pô-los à parte num montinho. Da espécie Calliphoridae.

Quê? perguntou Korsak.

Varejeiras disse Gabriel Dean. O Dr. Pepe anuiu com a cabeça.

É nestes invólucros que se desenvolvem as larvas das varejeiras. São como casulos. E o exosqueleto das larvas na terceira fase. Daqui, emergem como moscas adultas. Aproximou a lupa das pupas. Todas estas pupas já estão eclodidas.

Que significa isso? Eclodidas? perguntou Rizzoli.

Significa que estão vazias. As moscas já nasceram.

Qual é o período de desenvolvimento das Calliphoridae nesta região? perguntou Dean.

Nesta época do ano, é de cerca de trinta e cinco dias. Mas já reparou como estas duas pupas diferem em cor e desgaste? São todas da mesma espécie, mas estes invólucros estiveram expostos aos elementos durante mais tempo.

Duas gerações diferentes aventou Isles.

Calculo que seja isso, mas interessa-me saber o que o entomologista tem para dizer.

Se cada geração leva trinta e cinco dias a atingir a maturidade, significa isso que estamos a falar de uma exposição de setenta dias? perguntou Rizzoli. E que a vítima esteve ali durante esse tempo?

O Dr. Pepe olhou de relance para os ossos em cima da mesa.

O que vejo aqui não é inconsistente com um período post mortem de dois meses de Verão.

Não consegue ser mais específico?

Não com restos de ossadas. Este indivíduo pode estar no bosque há dois meses. Ou há seis.

Rizzoli viu Korsak rolar os olhos, até ali pouco impressionado com o perito em ossos.

Mas o Dr. Pepe apenas começara. Dirigiu a atenção para os restos em cima da mesa.

Um único indivíduo, do sexo feminino disse, analisando os ossos. Para o baixo, pouco mais de um metro e cinquenta e cinco. São evidentes as fracturas saradas. Temos uma fractura com estilhaçamento do fémur, corrigida com parafusos cirúrgicos.

Parece um prego disse Isles. Apontou para a coluna lombar. E tem uma fusão cirúrgica da segunda e terceira vértebras.

Ferimentos múltiplos? perguntou Rizzoli.

Esta vítima passou por um grave episódio traumático. O Dr. Pepe continuou o inventário.

Faltam duas costelas esquerdas, bem como... Rebuscou entre a colecção de minúsculos ossos das mãos. Diria que algum necrófago levou uma refeição rápida.

Uma sanduíche de mão disse Korsak. Ninguém se riu.

Os ossos longos estão todos presentes. O mesmo acontece com as vértebras... Fez uma pausa, olhou para os ossos do pescoço e franziu as sobrancelhas. Falta o hióide.

Não o conseguimos encontrar informou Isles.

Peneiraram a terra?

Sim. Voltei ao local e procurei pessoalmente.

Pode ter sido levado por algum animal disse o Dr. Pepe. Pegou numa omoplata, um dos ossos da cintura escapular, que sobressaem na parte de trás do ombro. Estão a ver aqui as perfurações em forma de V? Foram feitas pelos caninos de algum animal carnívoro. Ergueu a cabeça. Encontraram a cabeça separada do corpo?

Foi Rizzoli quem respondeu:

Estava a uns metros do tronco.

Típico dos cães. Para eles, uma cabeça é uma bola grande. Um brinquedo. Rolam-na, mas não conseguem realmente enterrar os dentes numa cabeça como fazem num membro ou num pescoço.

Espere disse Korsak. Estamos a falar dos nossos animais de estimação?

Todos os canídeos, selvagens ou domésticos, se comportam de maneira semelhante. Até os coiotes e os lobos gostam de brincar com bolas como os nossos animais de estimação. Como estes restos estavam num parque suburbano rodeado por residências, é quase certo que os cães domésticos frequentam estes bosques. Como todos os canídeos, são instintivamente necrófagos e roem tudo o que puderem abocanhar. A extremidade do sacro, a coluna vertebral. As costelas e as saliências ilíacas. E, é evidente, rasgam qualquer tecido mole que ainda reste.

Korsak parecia petrificado.

A minha mulher tem um highlander terrier pequenino. É a última vez que o deixo lamber-me a cara.

Pepe pegou no crânio e lançou a Korsak um olhar desconfiado.

Bem, doutora Isles, vamos brincar às sabatinas. Qual é a sua leitura?

Sabatina? perguntou Korsak.

É um termo da Faculdade de Medicina explicou Isles. Fazer uma sabatina a alguém significa pôr à prova os seus conhecimentos.

Uma coisa que, estou certo, você costumava fazer com os seus alunos de Patologia na universidade disse Pepe.

Impiedosamente admitiu Isles. Encolhiam-se quando eu olhava na direcção deles. Sabiam que vinha lá uma pergunta difícil.

Agora vou eu "sabatiná-la" disse ele com um toque de satisfação. Fale-nos desta pessoa.

Isles concentrou-se nos restos mortais.

Os incisivos, a forma do palato e o comprimento da caveira correspondem à raça branca. A caveira é pequena, com arestas supra-orbitárias mínimas. Depois, há a pelve. A forma do encaixe, o ângulo suprapúbico. É uma pessoa do sexo feminino, de raça branca.

E a idade?

Há fusão epifisária incompleta da saliência ilíaca. Não há alterações artríticas na coluna. Uma pessoa adulta jovem.

Estou de acordo. O Dr. Pepe pegou no maxilar. Três coroas de ouro observou. E há um grande número de obturações de amálgama. Fez-lhe radiografias?

O Yoshima fez-lhas hoje de manhã. Estão na caixa de luz disse Isles.

Pepe dirigiu-se à parede para as examinar.

Fez duas aberturas de canal. Apontou para a película do maxilar. Repare nas obturações de gúta-percha. E olhe para isto. Está a ver como as raízes do sétimo ao décimo e do vigésimo segundo ao vigésimo sétimo são curtas e arredondadas? Houve movimento ortodôntico.

Não reparei nisso disse a Dra. Isles.

Fico satisfeito por ainda haver alguma coisa para lhe ensinar, doutora Isles observou Pepe, sorrindo. Começava a fazer-me sentir totalmente supérfluo.

Estamos, portanto, a falar de alguém com meios para pagar tratamentos dentários disse o agente Dean.

Tratamentos dentários muito caros acrescentou Pepe.

Rizzoli pensou em Gail Yeager e nos seus dentes perfeitamente alinhados. Muito depois de o coração cessar de bater, muito depois de a carne apodrecer, o que distinguia os ricos dos pobres era o estado dos dentes. Os que tinham de lutar para pagar a renda da casa negligenciavam a dor num molar, a dentição disforme. As características daquela vítima começavam a tornar-se assustadoramente familiares.

Mulher jovem. Branca. Abastada.

Pepe pousou o maxilar e voltou a atenção para o tronco. Estudou por momentos a caixa desfeita formada pelas costelas e pelo esterno. Pegou numa costela desarticulada, arqueou-a no sentido do esterno e estudou o ângulo formado pelos dois ossos.

Pectus excavatum disse ele.

Pela primeira vez, Isles pareceu desanimada.

Não reparei.

E quanto às tíbias?

Ela aproximou-se imediatamente dos pés da mesa e pegou num dos ossos longos. Observou-o, franzindo profundamente a testa. Depois, pegou no membro correspondente da outra perna e colocou-os ao lado um do outro.

Genum varum bilateral disse, agora em tom muito perturbado. Talvez quinze graus. Não sei como deixei passar isto.

Estávamos concentrados na fractura e este parafuso cirúrgico prendeu-nos logo a atenção. Também é um problema que já não se vê muito. É preciso um velhote como eu para o reconhecer.

Não há desculpa. Devia ter notado imediatamente. Isles ficou em silêncio por momentos, passeando o olhar vexado pelas tíbias até ao esterno. Isto não faz sentido. Destoa do arranjo dos dentes. É como se estivéssemos a lidar com dois indivíduos diferentes.

Korsak interrompeu-a.

Não se importa de nos dizer de que está a falar? Que é que não faz sentido?

Este indivíduo tem um problema conhecido por genum varum explicou o Dr. Pepe. Geralmente conhecido como pernas cambaias. As canelas têm um afastamento de cerca de quinze graus em relação à vertical, o que é o dobro do grau de curvatura normal de uma tíbia.

Mas porque estão tão excitados? Montes de pessoas têm as pernas tortas.

Não são só as pernas tortas respondeu Isles. É também o peito. Olhe para o ângulo que as costelas fazem com o esterno. Tem pectus excavatum, ou peito em funil. Uma anormalidade no osso e na formação da cartilagem fizeram com que o esterno, o osso do peito, se afundasse. É grave, pode causar falta de ar e problemas cardíacos. Neste caso, era ligeiro e provavelmente não lhe provocava sintomas. O problema seria principalmente estético.

E isso deve-se a formação anormal do osso? perguntou Rizzoli.

Sim. Um defeito no metabolismo ósseo.

De que tipo de doença estamos a falar? Isles hesitou e olhou para o Dr. Pepe.

É de estatura pequena.

Qual é a estimativa de Trotter-Gleiser?

Isles pegou numa fita métrica e estendeu-a sobre o fémur e a tíbia.

Diria que um metro e cinquenta e cinco. Mais três, menos três.

Temos, então, um pectus excavatum. Genus varum bilateral. Estatura baixa. Acenou com a cabeça. É altamente sugestivo.

Isles olhou para Rizzoli.

Sofreu de raquitismo em criança.

Era uma palavra quase exótica, raquitismo. Para Rizzoli, evocava imagens de crianças descalças em cabanas decrépitas, de bebés a chorar e de sujidade associada à pobreza. Uma época diferente colorida a sépia. Raquitismo era uma palavra que não condizia com uma mulher com três coroas de ouro e dentes ortodonticamente corrigidos.

Gabriel Dean também reparou nesta contradição.

Julgava que o raquitismo era causado pela subnutrição disse ele.

E é respondeu Isles. Falta de vitamina D. As crianças, na sua maioria, tem um aporte adequado de vitamina D ou pelo leite ou pelo sol. Mas, se a criança estiver subalimentada e for mantida em casa, terá deficiências vitamínicas. E isso afecta o metabolismo do cálcio e o desenvolvimento dos ossos. Fez uma pausa. Na verdade, nunca tinha visto nenhum caso.

Venha um dia comigo numa pesquisa propôs o Dr. Pepe. Mostro-lhe imensos casos do século passado. Escandinávia, norte da Rússia...

Mas hoje? Nos Estados Unidos? interrogou Dean. Pepe abanou a cabeça.

Muito raro. A avaliar pelas deformações ósseas, bem como pela baixa estatura, diria que este indivíduo vivia em situação de pobreza. Pelo menos, durante a adolescência...

Isso não condiz com o tratamento dos dentes.

Não. Por isso, a doutora Isles disse que parecia que estávamos a lidar com dois indivíduos diferentes.

A criança e o adulto, pensou Rizzoli. Recordou-se da sua própria infância em Revere, a família amontoada numa casa alugada, pequena e quente, um lugar tão acanhado que tinha de rastejar para o seu espaço secreto debaixo do pátio de entrada. Lembrava-se do curto período após o pai ter sido suspenso, dos sussurros assustados no quarto dos pais, dos jantares de milho em lata e batatas. Os maus tempos não tinham durado muito; em menos de um ano, o pai voltara ao trabalho e a carne à mesa. Mas um encontro com a pobreza deixa marcas, se não no corpo pelo menos na mente, e os três filhos tinham escolhido todos eles carreiras com salários seguros, ainda que não espectaculares: Jane na polícia, Frankie nos fuzileiros e Mickey nos correios, tentando fugir à insegurança da infância.

Olhou para as ossadas em cima da mesa.

Esfarrapados e depois ricos afirmou. Acontece.

Parece saído de Dickens disse Dean.

Oh, sim concordou Korsak. O Pequeno Tim. A Dra. Isles assentiu com a cabeça.

O Pequeno Tim sofria de raquitismo.

Mas depois viveu feliz para sempre, porque o velho Scrooge provavelmente lhe deixou uma pipa de massa disse Korsak.

Mas tu não viveste feliz para sempre, pensou Rizzoli, fitando os restos mortais. Estes já não eram apenas uma triste colecção de ossos, mas uma mulher cuja vida começava agora a tomar forma na mente de Rizzoli. Viu uma criança de pernas arqueadas e peito metido para dentro, crescendo, enfezada, no solo daninho da pobreza. Viu essa criança passar para a adolescência, vestindo blusas com botões desirmanados, de tecido transparente de tão gasto. Mesmo então, havia algo de diferente, algo de especial, nessa rapariga? Uma expressão de determinação nos olhos ou um queixo erguido que anunciassem que ela estava destinada a uma vida melhor do que aquela em que nascera?

Porque a mulher em que ela se tornara vivia num mundo diferente, onde o dinheiro comprava dentes perfeitos, ou talvez a atenção do homem certo a tivesse erguido a uma situação muito mais confortável. Mas a pobreza da sua infância ainda lhe estava inscrita nos ossos, na curvatura das pernas e na concavidade do peito.

Havia igualmente vestígios de sofrimento, de algum acontecimento catastrófico que lhe quebrara a perna esquerda e a coluna, deixando-a com duas vértebras fundidas e um varão de aço permanentemente embebido no fémur.

A julgar pela extensão dos tratamentos dentários e pela sua provável situação socioeconómica, é uma mulher cuja ausência seria notada observou a Dra. Isles. Está morta há pelo menos dois meses. É muito possível que esteja na base de dados do FBI, na secção dos desaparecidos.

Sim, ela e mais umas cem mil disse Korsak.

O Centro Nacional de Informações Criminais do FBI mantinha um ficheiro de pessoas desaparecidas onde podiam ser introduzidos os dos restos mortais não identificados obtendo-se uma lista de possíveis compatibilidades.

Não temos nada localmente? perguntou Pepe. Não há em aberto dados de pessoas desaparecidas que possam condizer?

Rizzoli abanou a cabeça.

Não no estado do Massachusetts.

Embora exausta, nessa noite não conseguiu dormir. Levantou-se uma vez para verificar novamente a fechadura da porta e o trinco da janela que dava para a escada de incêndio. Depois, uma hora mais tarde, ouviu um barulho e imaginou Warren Hoyt a percorrer o corredor em direcção ao quarto dela com um bisturi na mão. Pegou na arma que estava na mesinha-de-cabeceira e agachou-se no escuro. Ensopada em suor, ficou à espera, de arma em riste, que a sombra se materializasse à porta.

Não viu nada, não ouviu nada, excepto o martelar do seu próprio coração e a vibração da música de um automóvel que passava na rua.

Por fim, conseguiu dirigir-se para o corredor e acendeu a luz.

Nenhum assaltante.

Continuou até à sala e acendeu outra luz. Com uma vista de olhos rápida, viu que a corrente da porta estava no lugar e a janela da escada de incêndio bem trancada. Ficou a olhar para a sala que estava exactamente como a deixara e pensou: estou a perder o juízo.

Afundou-se no sofá, largou a arma e pousou a cabeça nas mãos, desejando poder expulsar do cérebro todos os pensamentos sobre Warren Hoyt. Mas este estava sempre presente como um tumor que não pudesse ser extirpado, contaminando todo e qualquer momento de vigília da sua vida. Na cama, não estivera a pensar em Gail Yeager nem na mulher anónima cujos ossos acabara de examinar. Também não pensara no "homem do avião", cujo processo estava em cima da sua secretária no gabinete, fitando-a em silenciosa censura pela sua negligência. Tantos nomes e relatórios que exigiam a sua atenção, mas, à noite, quando se deitava e ficava a olhar para o escuro, só lhe vinha à mente o rosto de Warren Hoyt.

O telefone tocou. Endireitou-se de um salto com o coração a martelar-lhe o peito. Teve de respirar fundo várias vezes para se acalmar o suficiente para pegar no telefone.

Rizzoli? disse Thomas Moore. Não esperava ouvir aquela voz e foi apanhada de surpresa por um súbito sentimento de saudade. Havia apenas um ano, Moore e ela tinham trabalhado juntos como parceiros durante a investigação do caso do Cirurgião. Embora a sua relação nunca tivesse ultrapassado a de dois colegas, haviam falado das suas vidas um ao outro e, em vários aspectos, o nível de intimidade era tão profundo como o de qualquer casamento. Ao ouvir agora a voz dele, lembrou-se de como sentira a sua falta. E como o casamento dele com Catherine ainda a fazia sofrer.

Olá, Moore disse ela, cuja resposta em tom casual nada revelava destas emoções. Que horas são aí?

Perto das cinco. Desculpa por te telefonar a esta hora. Não queria que a Catherine ouvisse isto.

Tudo bem. Ainda estou acordada. Uma pausa.

Também tens tido problemas de sono. Não uma pergunta, mas uma afirmação. Moore sabia que o mesmo fantasma os perseguia a ambos.

O Marquette telefonou-te? perguntou ela.

Telefonou. Estava esperançado de que por esta altura...

Não há nada. Já se passaram cerca de vinte e quatro horas e não há sequer vislumbre dele.

Então o rasto arrefeceu.

Para começar, nunca existiu nenhum rasto. Mata três pessoas no bloco operatório, transforma-se no homem invisível e sai do hospital. Fitchburg e a polícia estadual passaram as redondezas a pente fino e montaram bloqueios nas estradas. A cara dele está em todos os noticiários da noite. Nada.

Há um lugar para onde ele será atraído. Uma pessoa...

O vosso prédio já está a ser vigiado. Por onde quer que o Hoyt se aproxime, será apanhado.

Houve um longo silêncio. Depois, em tom calmo, Moore anunciou:

Não posso levá-la para casa. Vou mantê-la cá, onde sei que está em segurança.

Rizzoli sentiu medo na voz dele, não por ele próprio, mas pela mulher, e, com uma ponta de inveja, perguntou-se como seria ser amada assim tão profundamente.

A Catherine sabe que ele fugiu? perguntou.

Sabe. Tive de dizer-lhe.

Como reagiu ela?

Melhor do que eu. Ou então está a tentar acalmar-me a mim.

Ela já enfrentou o pior, Moore. Venceu-o duas vezes. Provou que é mais forte do que ele.

Ela. julga que é mais forte. E É aí que as coisas se tornam perigosas.

Bem, agora tem-te a ti. E eu só me tenho a mim. Como sempre fora e como provavelmente seria sempre.

Moore deve ter-se apercebido da nota de preocupação na voz dela e proferiu:

Para ti também vai ser diabólico.,

Estou bem.

Então, estás a reagir melhor do que eu.

Rizzoli riu-se num tom agudo e surpreendente, que não passava de fanfarronada.

Como se eu tivesse tempo para me preocupar com o Warren Hoyt! Estou atolada em investigações numa nova missão especial. Encontrámos um corpo atirado para a Reserva de Stony Brook.

Quantas vítimas?

Duas mulheres, mais um homem que matou durante o rapto. Mais um sujeito difícil, Moore. Sabemos que é difícil quando o Zucker lhes dá uma alcunha. Chamamos "Dominador" a este assassino.

Porquê "Dominador"?

Porque parece que é o que ele procura. O gozo do poder. O controlo absoluto sobre o marido. Monstros e seus rituais doentios.

Parece uma repetição do Verão passado.

Só que desta vez não estás cá para me vigiares a retaguarda. Arranjaste outras prioridades.

Alguns progressos? perguntou ele.

Poucos. Temos envolvidas múltiplas jurisdições, múltiplos jogadores. Temos a polícia de Newton e... escuta-me esta: o diabo do FBI também se meteu.

O quê?

Sim. Um tal Gabriel Dean. Diz que é conselheiro, mas mete o nariz em tudo. Tens conhecimento de alguma vez isto ter acontecido?

Nunca. Uma pausa. Há alguma coisa de muito estranho, Rizzoli.

Eu sei.

Que diz o Marquette?

Encolheu-se, porque vieram ordens superiores para que cooperássemos.

Qual é a história do Dean?

Mal abre a boca. Sabes, ele é do género: "Se te disser tenho de te matar." Calou-se, lembrando-se do olhar de Dean, de olhos tão penetrantes como estilhaços de vidro azul. Sim, era capaz de o imaginar a carregar no gatilho sem pestanejar. De qualquer modo prosseguiu, o Warren Hoyt não é de momento a minha preocupação número um.

Mas é a minha respondeu Moore.

Se houver novidades, sou a primeira a telefonar-te. Desligou e, no silêncio que se fez, a fanfarronice que mostrara ao falar com Moore desvaneceu-se instantaneamente. Estava de novo a sós com os seus medos, sentada num apartamento de porta trancada, janelas fechadas e uma arma por única companhia.

Talvez sejas a minha melhor amiga, pensou. Pegou na arma e levou-a para o quarto.

 

O agente Dean veio falar comigo esta manhã disse o tenente Marquette. Tem dúvidas a seu respeito.

O sentimento é mútuo replicou Rizzoli.

Não põe em causa os seus méritos. Acha que você é uma boa agente.

Mas?

Pergunta-se se você será a detective certa para conduzir este caso. Rizzoli nada disse por momentos, apenas se sentou calmamente em frente da secretária de Marquette. Quando este a chamara ao seu gabinete, nessa manhã, já ela calculara sobre o que seria a reunião. Entrara decidida a manter um controlo férreo sobre as suas emoções, a não lhe oferecer o mínimo vestígio daquilo por que ele esperava: um sinal de que ela atingira o limite e precisava de ser substituída. Quando falou, foi em voz calma e razoável.

Quais são as preocupações dele?

Que você ande distraída. Que tenha questões por resolver relacionadas com o Warren Hoyt. Que ainda não tenha recuperado totalmente da investigação do caso do Cirurgião.

Que quer ele dizer com "não tenha recuperado"? perguntou ela, sabendo já exactamente o que ele quisera dizer.

Marquette hesitou.

Caramba, Rizzoli. Não é fácil dizer isto. Sabe que não é.

Gostava simplesmente que o senhor fosse franco e o dissesse.

Ele pensa que você é instável, percebe?

Que pensa o senhor, tenente?

Penso que você teve uma dose mais do que suficiente. Penso que a fuga do Hoyt a abalou.

Acha que sou instável?

O doutor Zucker também exprimiu algumas preocupações. Você nunca foi às consultas no Outono passado.

Nunca ninguém me mandou ir.

Consigo as coisas só funcionam assim? Tem de ser mandada?

Não senti que estivesse necessitada.

O Zucker acha que você ainda não se desligou do Cirurgião. Que você vê o Warren Hoyt debaixo de cada pedra. Como pode conduzir esta investigação se continua a reviver a última?

Acho que gostaria de ouvir da sua boca, tenente. O senhor pensa que sou instável?

Marquette suspirou.

Não sei. Mas quando o agente Dean entra aqui e me expõe as suas preocupações, tenho de tê-las em consideração.

Não acredito que o agente Dean seja uma fonte totalmente fiável.

Marquette fez uma pausa. Inclinou-se para a frente, franzindo as sobrancelhas.

É uma acusação grave.

Não é mais grave do que a acusação que ele me faz.

Tem alguma prova disso?

Hoje de manhã, telefonei para o gabinete do FBI em Boston.

Sim?

Não sabem nada sobre o agente Gabriel Dean. Marquette recostou-se e fitou-a por momentos sem dizer nada.

Veio directamente de Washington acrescentou ela. O gabinete de Boston não teve nada a ver com isso. Não é assim que é suposto trabalhar. Se lhes pedirmos um perfil criminal, esse pedido segue através do coodenador da respectiva divisão, mas este pedido não passou pelo coordenador de divisão. Veio directamente de Washington. Em primeiro lugar, porque é que o FBI está a meter o nariz na minha investigação? E que tem Washington a ver com isso?

Marquette continuou sem dizer nada.

Rizzoli pressionou-o, sentindo-se cada vez mais frustrada e a perder o autocontrole.

O senhor disse-me que a ordem para cooperarmos veio de instâncias superiores.

Sim, veio.

Quem do FBI contactou com essas "instâncias superiores"? Com que parte do FBI estamos a trabalhar?

Marquette abanou a cabeça.

Não foi o FBI.

O quê?

O pedido não veio do FBI. Falei com eles a semana passada quando o Dean apareceu. Fiz-lhes a mesma pergunta.

E?

Prometi-lhes que manteria isto confidencial. Espero que faça o mesmo. Só após ela ter assentido com a cabeça é que ele continuou. O pedido veio do gabinete do senador Conway.

Rizzoli fitou-o, atónita.

Que tem o nosso senador a ver com tudo isto?

Não sei.

Eles não puderam dizer-lhe?

Talvez nem sequer saibam. Mas não é um pedido de que pudessem descartar-se, quando vem directamente do Conway. E o Conway não pede a Lua. Apenas cooperação entre departamentos. Estamos sempre a fazer isso.

Rizzoli inclinou-se para a frente e disse calmamente:

Há alguma coisa de muito estranho, tenente, e o senhor sabe disso. O Dean não foi franco connosco.

Não a chamei cá para falar do Dean. Estamos a falar de si.

Mas o senhor está a confiar na palavra dele. O FBI agora dita ordens ao Departamento de Polícia de Boston?

Marquette foi apanhado de surpresa. Endireitando-se abruptamente, fitou-a do outro lado da secretária. Tocara-lhe no nervo certo. O FBI contra Nós. O senhor é realmente quem manda?

Muito bem disse ele. Conversámos, você ouviu, e isso, para mim, é quanto basta.

Para mim também. Rizzoli levantou-se.

Mas vou estar atento, Rizzoli.

Não está sempre? replicou ela, erguendo a cabeça.

Encontrei algumas fibras interessantes disse Erin Volchko. Foram retiradas com fita adesiva da pele da Gail Yeager.

Mais tapete azul-marinho? perguntou Rizzoli.

Não. Para ser honesta, não tenho a certeza do que sejam. Erin não admitia muitas vezes que estava desorientada e só isso

despertou o interesse de Rizzoli pela lamela que estava no microscópio. Através das lentes, viu um único fio escuro.

Estamos a ver uma fibra sintética, cuja cor eu caracterizaria como verde-seco. Com base nos índices de refracção, trata-se do nosso velho amigo, o náilon DuPont, tipo seis, seis.

Tal como as fibras do tapete azul-marinho.

Sim. O náilon seis, seis é uma fibra muito popular devido à sua força e resiliência. Encontramo-la numa grande variedade de tecidos.

Diz que isto foi retirado da pele da Gail Yeager?

As fibras foram encontradas presas aos lábios, seios e um ombro.

Rizzoli franziu as sobrancelhas.

Um lençol? Algo que ele utilizou para embrulhar o corpo?

Sim, mas não um lençol. O náilon não seria adequado para esse fim devido ao baixo poder de absorção de humidade. Além disso, estes fios em particular são feitos de filamentos extremamente finos de trinta denieres, dez filamentos por fio. E o fio é mais fino do que um cabelo humano. Este tipo de fibra resulta num produto acabado de trama muito apertada. Talvez à prova de água.

Uma tenda? Uma lona?

É possível. É o género de tecido que se pode usar para embrulhar um corpo.

Rizzoli teve uma estranha visão de lonas enroladas, penduradas no Wal-Mart e com as sugestões de utilização do produtor impressas no rótulo: PERFEITAS PARA ACAMPAR, PARA INTEMPÉRIES E... PARA EMBRULHAR CADÁVERES.

Se é apenas lona, estamos a lidar com um pedaço de tecido bastante genérico disse Rizzoli.

Ora, detective. Eu arrastá-la-ia até aqui para olhar para uma fibra perfeitamente genérica?

Não é?

Na verdade, é bastante interessante.

Que há de interessante numa lona de náilon?

Erin pegou numa pasta do armário do laboratório e retirou uma folha com um gráfico feito em computador onde uma linha traçava uma silhueta de picos denticulados.

Corri um programa de RTA com estas fibras e o que saiu foi isto.

RTA?

Reflexão Total Atenuada. Utiliza a microspectrometria de infravermelhos para examinar fibras simples. A radiação infravermelha é focada na fibra e lemos os espectros de luz que se reflectem. Este gráfico mostra as características de infravermelho da própria fibra. Confirma simplesmente que é náilon seis, seis, como lhe disse antes.

Nada de surpreendente.

Ainda não replicou Erin com um sorriso a pairar-lhe nos lábios. Pegou num segundo gráfico que tirou da pasta e pousou-o ao lado do primeiro. Aqui, vemos o traçado de infravermelho da mesmíssima fibra. Nota alguma coisa?

Rizzoli examinou-o demoradamente.

São diferentes.

Sim, são.

Mas, se são da mesma fibra, o gráfico devia ser idêntico.

Para este segundo gráfico, alterei o plano da imagem. Esta é o reflexo da superfície da fibra. Não o núcleo.

Então, a superfície e o núcleo são diferentes.

Exacto.

Duas fibras diferentes entretecidas?

Não. É uma única fibra. Mas o tecido recebeu um tratamento de superfície. Foi isso o que a segunda análise apanhou: os químicos da superfície. Passei a fibra pelo cromatógrafo e parece ter por base o silicone. Uma vez as fibras tecidas e tingidas, foi aplicada uma camada de silicone no tecido acabado.

Porquê?

Não tenho a certeza. Para o tornar à prova de água? Por causa da resistência ao rasgamento? Deve ser um processo caro. Penso que este tecido tem uma finalidade muito específica. Só não sei qual.

Rizzoli recostou-se no banco do laboratório.

Encontramos este tecido e descobrimos o nosso assassino disse ela.

Sim. Ao contrário do tapete azul, que é genérico, este tecido é único.

As toalhas com monograma bordado estavam dobradas sobre a mesa de apoio para que todos os convidados as vissem, com as letras AR, de Angela Rizzoli, entrelaçadas num desenho barroco. Jane escolhera-as cor de pêssego, a cor preferida da mãe, e pagara um extra pelo embrulho luxuoso de prenda de anos, com fitas cor de pêssego e um molho de flores de seda. Tinham sido entregues pessoalmente pela Federal Express, porque a mãe associava os camiões vermelhos, brancos e azuis a embrulhos surpresa e acontecimentos felizes.

E a festa dos cinquenta e nove anos de Angela Rizzoli devia ser qualificada de acontecimento feliz. Os aniversários eram acontecimentos importantes na família Rizzoli. Todos os meses de Dezembro, quando Angela comprava um novo calendário para o ano seguinte, a primeira coisa que fazia era percorrer os meses anotando os vários aniversários da família. Esquecer o dia especial de um ente querido era uma transgressão grave. Esquecer o aniversário da mãe era um pecado imperdoável e Jane nunca deixaria esse dia passar sem ser celebrado. Fora ela quem comprara o gelado e pendurara as decorações, fora ela quem enviara convites a dúzias de vizinhos que se amontoavam agora na sala de estar dos Rizzoli. Era ela quem cortava agora o bolo de anos e passava os pratos de papel aos convidados. Fizera a sua obrigação como sempre, mas, este ano, a festa estava morna. Tudo por causa de Frankie.

Alguma coisa não vai bem disse Angela. Sentou-se no sofá, ladeada pelo marido e pelo filho mais novo, Michael, e olhava sem alegria para as prendas dispostas na mesa de apoio: várias embalagens de óleo para banho e pó de talco, suficientes para a perfumarem durante a década seguinte. Talvez esteja doente. Talvez tenha havido algum acidente e ninguém me telefonou ainda.

Mãe, o Frankie está bem disse Jane.

Sim intrometeu-se Michael. Talvez o tenham mandado para fora para... como é que se diz? Quando brincam às guerras?

Manobras informou Jane.

Isso, alguma espécie de manobras. Ou mesmo para fora do país. Para algum lugar de que ele não deva falar com ninguém e onde não tem telefone.

Ele é sargento instrutor, Mike. Não é nenhum Rambo.

Até o Rambo manda um cartão de parabéns à mãe resmungou Frank, o pai.

No silêncio súbito, todos os convidados se esquivaram e começaram a comer simultaneamente o bolo. Passaram os segundos seguintes a mastigar com feroz concentração.

Foi Gracie Kaminsky, a vizinha do lado dos Rizzoli, quem corajosamente quebrou o silêncio.

Este bolo é muito bom, Angela. Quem o fez?

Fi-lo eu respondeu Angela. Imaginem, ter de fazer o meu próprio bolo de aniversário. Mas esta família é assim.

Jane corou como se tivesse sido esbofeteada. A culpa era toda de Frankie. Na realidade, era com ele que Angela estava furiosa, mas, como sempre, Jane apanhava por tabela. Em tom razoável e calmo, disse:

Mãe, eu ofereci-me para trazer o bolo. Angela encolheu os ombros.

De uma pastelaria.

Não tive tempo para o fazer.

Era verdade, mas, infelizmente, era o que não devia dizer. Soube-o mal as palavras lhes saíram da boca. Viu o irmão, Mike, encolher-se no sofá. Viu o pai corar e cruzou os braços.

Não teve tempo! exclamou Angela. Jane deu uma gargalhada desesperada.

De qualquer modo, os meus bolos saem sempre mal.

Não teve tempo! repetiu Angela.

Mãe, quer gelado? Ou...

Uma vez que estás tão ocupada, calculo que devia pôr-me de joelhos e agradecer-te por arranjares tempo para o aniversário da tua única mãe.

A filha não disse nada, deixou-se estar, simplesmente, com o rosto manchado de vermelho, tentando controlar as lágrimas. Os convidados voltaram a devorar freneticamente o bolo, sem se atrever a olhar uns para os outros.

O telefone tocou. Toda a gente se imobilizou.

Por fim, o pai atendeu.

A tua mãe está mesmo aqui. E estendeu a Angela o telefone portátil.

Por amor de Deus, Frankie, porque demoraste tanto? Com um suspiro de alívio, Jane começou a apanhar pratos de papel e garfos de plástico usados.

Que prenda? perguntou a mãe. Não a recebi.

Jane estremeceu. Oh, não, Frankie. Não tentes passar-me as culpas. Numa fracção de segundos, a ira da mãe desapareceu-lhe da voz como por magia.

Oh, Frankie, compreendo, querido. Sim, compreendo. Os fuzileiros trabalham imenso, não é verdade?

Abanando a cabeça, Jane dirigia-se para a cozinha quando a mãe a chamou: -

Ele quer falar contigo.

Quem, eu?

Foi o que ele disse. Jane pegou no telefone.

Olá, Frankie saudou.

Mas que raio, Janie? bradou o irmão.

Desculpa?

Sabes do que estou a falar.

Jane saiu imediatamente da sala, levando o telefone para a cozinha, e deixou a porta bater atrás de si.

Raios, pedi-te um favor! exclamou ele.

Estás a falar da prenda?

Telefonei a dar-lhe os parabéns e ela veio para cima de mim.

Já devias estar à espera.

Aposto que estás a pensar que é estupendo, não? Pôr-me na lista de mágoas dela.

Tu mesmo é que te puseste. E dá a impressão de que mais uma vez a aldrabaste muito bem.

O que te chateia é isso, não é?

Na verdade, não me interessa, Frankie. Isso é entre ti e a mãe.

Sim, mas tu estás sempre por perto a tramar-me pelas costas. Fazes tudo para eu parecer mau. Nem sequer foste capaz de pôr o raio do meu nome na merda da tua prenda.

A minha prenda já tinha sido enviada.

E imagino que daria muito incómodo arranjar qualquer coisa em meu nome!

Sim, dava. Não estou aqui para te encobrir. Ando a trabalhar dezoito horas por dia.

Oh, sim. Estou sempre a ouvir-te dizer isso. "Coitadinha de mim, que trabalho tanto que à noite só posso dormir quinze minutos."

Além disso, não me pagaste a última prenda.

Com certeza que paguei.

Não, não pagaste. E ainda me chateia que a mãe se refira à prenda como "aquele lindo candeeiro que o Frankie me deu".

Então, é tudo uma questão de dinheiro, é isso? disse ele. O bíper que Jane trazia ao cinto começou a crepitar. Olhou para o número.

Estou-me nas tintas para o dinheiro. É a maneira como continuas a tratar as coisas. Nem sequer tentas, mas consegues sempre ficar com os agradecimentos todos.

Temos outra vez a cena do "coitadinha de mim"?

Vou desligar, Frankie.

Passa-me outra vez à mãe.

Primeiro, vou responder à minha chamada. Volta a ligar dentro de um minuto.

Mas que diabo? Não estou para pagar outra chamada de longa distância...

Jane desligou. Parou por momentos para se acalmar e depois marcou o número que o mostrador do bíper exibia.

Respondeu Darren Crowe.

Jane não estava com disposição para lidar com outro homem desagradável e disse com brusquidão:

Rizzoli. Quer falar comigo?

Caramba! Porque não experimenta tomar um calmante?

Não se importa de me dizer o que se passa?

Sim, temos um dez cinquenta e quatro. Beacon Hill. O Sleeper e eu chegámos cá há cerca de meia hora.

Jane ouviu gargalhadas na sala da mãe e olhou de relance para a porta fechada. Pensou na cena que de certeza a esperava se saísse durante a festa de aniversário de Angela.

Há-de querer ver este disse Crowe.

Porquê?

Será óbvio quando cá chegar.

 

Ao chegar à varanda da frente, Rizzoli detectou o cheiro a morte que saía pela porta e deteve-se, relutante em dar aquele primeiro passo para dentro de casa. Ver o que já sabia que a esperava lá dentro. Teria preferido adiar por uns momentos e preparar-se para a provação, mas Darren Crowe, que lhe abrira a porta para ela entrar, ficara a olhá-la e ela não teve outro remédio senão calçar as luvas e as coberturas dos sapatos e prosseguir com o que tinha de ser feito.

O Frost já está cá? perguntou, fazendo estalar as luvas.

Chegou há cerca de vinte minutos. Está lá dentro.

Também eu podia ter chegado mais cedo, mas tive de vir de Revere.

Que há em Revere?

A festa de aniversário da minha mãe. Ele riu-se.

Dá a impressão de que estava realmente a divertir-se muito.

Não pergunte nada. Enfiou o pé na segunda cobertura e endireitou-se. A sua expressão era agora totalmente profissional. Homens como Crowe só respeitavam a força e força era a única coisa que ela permitia que ele visse. Quando entraram, sabia que ele tinha os olhos cravados nela, que estaria a observar a sua reacção diante do que quer que fosse que estava prestes a enfrentar. Testando-a, testando-a sempre, à espera do momento em que ela fraquejaria. Sabendo que, mais cedo ou mais tarde, isso aconteceria.

Crowe fechou a porta da frente e, de repente, Rizzoli sentiu-se com claustrofobia, privada de ar fresco. O fedor da morte era mais forte e enchia-lhe os pulmões com o seu veneno. Não permitiu que se manifestasse nenhuma dessas emoções enquanto se dirigia para a sala de estar, reparando no pé-direito de quatro metros, no relógio de pêndulo antigo parado. Sempre considerara o sector de Beacon Hill, em Boston, o seu bairro de sonho, o lugar para onde se mudaria se alguma vez ganhasse na lotaria ou, ainda mais complicado, se se casasse com o Príncipe Encantado. E aquela casa seria a sua casa de sonho. Já se sentia enervada com a semelhança com o local do crime dos Yeager. Uma bela casa num belo bairro. O odor a matança no ar.

O sistema de segurança estava desligado disse Crowe.

Avariado?

Não. As vítimas simplesmente não o ligaram. Talvez não soubessem mexer nele, porque a casa não era deles.

De quem é a casa?

Crowe folheou o bloco-notas e leu:

O proprietário é Christopher Harm, de sessenta e dois anos. Negociante aposentado. Presta serviço na administração da Orquestra Sinfónica de Boston. Está a passar o Verão em França. Emprestou a casa aos Ghent enquanto estes estão em digressão em Boston.

Que quer isso dizer, em digressão?

São ambos músicos. Chegaram de Chicago há uma semana. A Karenna Ghent é pianista. O marido, Alexander, era violoncelista. Hoje à noite estava previsto o espectáculo final no Symphony Hall.

Rizzoli não deixou escapar que Crowe se referira ao marido no passado, mas não à mulher.

As coberturas de papel restolhavam no chão de madeira enquanto percorriam o corredor, orientados pelo som de vozes. Ao entrar na sala, Rizzoli não viu imediatamente o corpo, porque estava encoberto por Sleeper e Frost, que se encontravam de costas para ela. O que viu foi o já familiar horror escrito nas paredes: múltiplos arcos de esguichos de sangue. Devia ter respirado fundo, porque Frost e Sleeper se voltaram simultaneamente e a fitaram. Afastaram-se e revelaram a Dra. Isles agachada junto à vítima.

Alexander Ghent estava encostado à parede como um triste fantoche, com a cabeça inclinada para trás, pondo à mostra a ferida escancarada que fora a sua garganta. Tão jovem! Chocada, foi a sua primeira reacção ao fitar o rosto desconcertantemente despreocupado e os olhos azuis abertos. É mesmo muito jovem!

Uma funcionária do Symphony Hall, chamada Evelyn Petrakas, veio buscá-los cerca das seis horas para o espectáculo da noite disse Crowe. Não atenderam, mas a funcionária verificou que a porta estava no trinco e entrou para saber deles.

Ele está com as calças do pijama disse Rizzoli.

Atingiu o rigor mortis acrescentou a Dra. Isles, pondo-se de pé. Há um arrefecimento significativo, mas serei mais específica quando tiver os resultados do potássio vítreo. Mas, para já, calculo a hora da morte entre catorze e vinte horas atrás. O que significa... Olhou para o relógio de pulso. Algures entre a uma e as cinco da manhã.

A cama está desfeita disse Sleeper. A última vez que viram o casal foi ontem à noite. Saíram do Symphony Hall por volta das onze e Miss Petrakas deixou-os aqui.

As vítimas estavam a dormir, pensou Rizzoli, olhando para as calçças do pijama de Alexander Ghent. A dormir e sem desconfiar de que estava alguém em casa. A dirigir-se para o quarto deles.

Há uma janela aberta na cozinha que dá para um quintalzinho nas traseiras indicou Sleeper. Encontrámos várias pegadas no canteiro, mas não são do mesmo tamanho. Algumas talvez pertençam ao jardineiro. Ou mesmo às vítimas.

Rizzoli olhou para a fita adesiva que prendia os tornozelos de Alexander Ghent.

E Mistress Ghent? perguntou, sabendo de antemão a resposta.

Desapareceu respondeu Sleeper.

Examinou um círculo maior em volta do cadáver, mas não viu chávenas quebradas nem fragmentos de louça. Alguma coisa não batia certo, pensou.

Detective Rizzoli?

Voltou-se e viu um perito da polícia no corredor.

O guarda de serviço diz que está um tipo lá fora que afirma que a conhece. Está a fazer um barulho dos diabos e diz que quer entrar. Quer ir ver de quem se trata?

Sei quem é respondeu ela. Vou ter com ele.

Korsak estava a fumar um cigarro e andava de um lado para o outro, tão furioso pela indignidade de se ver reduzido à condição de expectador civil que parecia sair-lhe fumo das orelhas também. Viu-a e imediatamente deitou fora a beata, esmagando-a como se fosse um insecto repugnante.

Está a pôr-me de fora, ou quê? perguntou ele.

Ouça, desculpe. O guarda não percebeu.

O diabo do rapaz! Não mostrou qualquer respeito.

Não sabia, percebe? A culpa foi minha. Levantou o cordão que delimitava o local e Korsak passou por baixo. Quero que veja isto.

A porta de entrada, Rizzoli esperou que ele enfiasse as coberturas dos sapatos e as luvas de borracha. Korsak cambaleou ao tentar equilibrar-se num só pé. Ao ampará-lo, Rizzoli ficou chocada ao sentir cheiro a álcool no hálito dele. Telefonara-lhe do carro e apanhara-o em casa numa noite em que ele estava de folga e, agora, lamentava tê-lo avisado. Korsak já se mostrava irado e beligerante e ela não podia recusar-lhe a entrada sem provocar uma cena muito ruidosa e em público. Só esperava que ele estivesse suficientemente sóbrio para não os envergonhar a ambos.

Muito bem bufou ele. Mostre-me o que temos.

Na sala, Korsak olhou sem comentários para o cadáver de Alexander Ghent mergulhado num lago de sangue. Tinha a fralda da camisa fora das calças e respirava com o habitual resfolegar provocado pelos adenóides. Rizzoli viu Crowe e Sleeper olharem de esguelha na direcção de ambos e ficou furiosa por Korsak se apresentar naquelas condições. Telefonara-lhe porque fora ele o primeiro detective a penetrar no local do crime dos Yeager e queria saber qual a sua impressão quanto a este. Em vez disso, conseguira um polícia bêbedo cuja presença era suficiente para a humilhar.

Podia ser o nosso indivíduo disse Korsak.

Nem por sombras, Sherlock resfolegou Crowe. Korsak voltou os olhos raiados de vermelho para Crowe.

Você é um desses geniozinhos, não? Sabem tudo.

Não é preciso ser-se um génio para se ver o que temos aqui.

Que lhe parece que temos aqui?

Uma repetição. Assalto nocturno à casa. O casal surpreendido na cama. A mulher raptada, o marido recebe o golpe de misericórdia. Está tudo aqui.

Então, onde está a chávena? Embora não estivesse nos seus melhores dias, Korsak conseguira rebater o outro exactamente com o pormenor que incomodara Rizzoli.

Não há nenhuma respondeu Crowe. Korsak olhou para o colo vazio da vítima.

Ele conseguiu imobilizar a vítima. Conseguiu sentá-la contra a parede para ver o espectáculo, como da última vez. Mas abandonou o sistema de vigilância. A chávena. Se violar a mulher, como dá pelos movimentos do marido?

O Ghent é um tipo franzino, não constitui grande ameaça e, além disso, está todo atado. Como é que vai levantar-se e defender a mulher?

É uma alteração, é o que estou a dizer. Crowe encolheu os ombros e voltou-se.

Então, reescreveu o guião.

O menino bonito sabe tudo, não é?

A sala ficou silenciosa. Até a Dra. Isles, que estava frequentemente pronta para um comentário irónico, nada disse, limitando-se a olhar com uma expressão vagamente divertida.

Crowe voltou-se e os olhos dele eram como raios laser sobre Korsak, mas as palavras foram dirigidas a Rizzoli.

Detective, há alguma razão para este indivíduo ter penetrado no local do crime?

Rizzoli agarrou no braço de Korsak. Estava pegajoso e húmido e sentia-se o cheiro a suor.

Ainda não vimos o quarto. Vamos lá.

Sim riu-se Crowe. Não perca o quarto.

Korsak soltou o braço com um sacão e deu um passo incerto em direcção a Crowe.

Ando a trabalhar neste caso antes de ti, imbecil.

Vamos lá, Korsak disse Rizzoli.

... corria com os chefes todos. Quem devia ter sido chamado em primeiro lugar era eu, porque já o conheço. Sinto-lhe o cheiro.

Oh, é o mesmo que me cheira a mim? perguntou Crowe.

Vamos! exclamou Rizzoli, prestes a perder a paciência e com receio da ira que, se tal acontecesse, podia saltar a ferver de dentro dela. Ira contra Korsak e contra Crowe pelo estúpido confronto.

Foi Barry Frost quem elegantemente se aproximou para desanuviar a tensão. Em qualquer discussão, o instinto de Rizzoli era geralmente atirar-se com unhas e dentes, o de Frost era fazer de pacificador. É a maldição de se ser filho do meio, explicou-lhe ele um dia, o miúdo que sabe que vai apanhar com os punhos de todas as partes envolvidas. Nem sequer tentou acalmar Korsak, dizendo antes a Rizzoli:

Têm de ver o que encontrámos no quarto. Relaciona os dois casos. Atravessou a saleta e dirigiu-se a outro corredor, com um passo indiferente que anunciava: "Se quiserem ir aonde está a acção, sigam-me."

Um instante depois, Korsak seguiu-o.

No quarto, Frost, Korsak e Rizzoli olharam para os lençóis desalinhados, as cobertas atiradas para trás. E para os dois sulcos impressos no tapete.

Foram arrastados da cama disse Frost. Como os Yeager. Mas Alexander Ghent era menor e muito menos musculado do que o Dr. Yeager e para o assassino teria sido mais fácil transportá-lo para a sala e encostá-lo à parede. Mais fácil agarrá-lo pelos cabelos e pôr-lhe a garganta a descoberto.

Sobre a cómoda indicou Frost.

Era um pijama curto de uma só peça, de tamanho pequeno e em tom azul-claro, cuidadosamente dobrado, salpicado de sangue. Algo que uma jovem usaria para atrair um amante ou excitar um marido. Decerto que Karenna Ghent nunca imaginara a violenta cena em que a peça de roupa serviria ao mesmo tempo de vestuário e incentivo. Ao lado, estavam dois sobrescritos com bilhetes da Delta Airlines. Rizzoli espreitou lá para dentro e viu o itinerário, que fora tratado através da agência artística dos Ghent.

Estava previsto partirem amanhã disse ela. A paragem seguinte seria em Memphis.

Azar replicou Korsak. Nunca verão Graceland.

Lá fora, Rizzoli e Korsak sentaram-se no carro dele com as janelas abertas, enquanto ele fumava um cigarro. Korsak inspirou profundamente e soltou um suspiro de satisfação quando o fumo lhe realizou nos pulmões a sua venenosa magia. Parecia mais calmo e mais concentrado do que quando chegara três horas antes. A chicotada de nicotina aguçara-lhe a mente. Ou talvez o álcool se tivesse dissipado.

Tem alguma dúvida de que se trata do mesmo indivíduo? perguntou a Rizzoli.

Não respondeu-lhe ela.

A Crimescope não encontrou sémen.

Talvez desta vez tenha sido mais cuidadoso.

Ou não a violou disse Korsak. Por isso é que não precisou da chávena.

Incomodada pelo fumo, Rizzoli virou a cara para a janela aberta e abanou a mão para purificar o ar.

O crime não segue um guião disse ela. Cada vítima reage de maneira diferente. É uma peça com duas personagens, Korsak. O assassino e a vítima. Qualquer deles pode afectar o resultado. O doutor Yeager era um homem muito maior do que o Alexander Ghent. Talvez o nosso indivíduo se sentisse menos confiante quanto a dominar Yeager e por isso usou a chávena como sinal de aviso. Algo cuja necessidade não sentiu com o Ghent.

Não sei. Korsak sacudiu a cinza pela janela. É uma coisa tão esquisita e inesperada, essa da chávena. Faz parte da assinatura dele. Algo de que não abdicaria.

Tudo o mais é idêntico observou Rizzoli. Um casal abastado. O homem atado e encostado à parede. A mulher desaparecida.

Ficaram em silêncio, enquanto o mesmo pensamento soturno decerto que ocorria a ambos: A mulher. Que fez ele à Karenna Ghent?

Rizzoli já sabia a resposta. Embora a imagem de Karenna em breve aparecesse nos ecrãs de televisão da cidade e fosse emitido um pedido de ajuda ao público, embora a polícia de Boston envidasse todos os esforços para investigar todas as pistas dadas por telefone, todas as indicações sobre terem avistado uma mulher de cabelo escuro, Rizzoli sabia qual seria o resultado. Sentia-o como se fosse uma pedra fria dentro do estômago. Karenna Ghent estava morta.

O corpo da Gail Yeager foi deitado fora cerca de dois dias após o rapto disse Korsak. Passaram-se agora... quantas?, cerca de vinte horas depois de o casal ter sido atacado.

Reserva de Stony Brook afirmou Rizzoli. É para ali que ele a levará. Vou reforçar a equipa de vigilância. Olhou de relance para Korsak. Vê aqui alguma coisa que faça lembrar o Joey Valentine?

Estou a trabalhar nisso. Deu-me finalmente uma amostra de sangue. Aguarda-se o ADN.

Não me parece um indivíduo culpado. Anda a vigiá-lo?

Andava. Até que ele apresentou queixa de que eu estava a persegui-lo.

E estava?

Korsak riu-se, soltando uma baforada de fumo.

Qualquer adulto que se dedique a empoar cadáveres de damas guincha como uma menina independentemente do que eu faça.

E como é que as meninas guincham, exactamente? retorquiu ela, irritada. Da mesma maneira que os meninos?

Irra, Rizzoli. Não me venha com essas balelas outra vez. A minha filha está sempre a fazer isso. Mas, quando fica sem dinheiro, vem a chorar pedir ajuda ao porco chauvinista do papá. De repente, Korsak endireitou-se. Olhe! Veja quem vem aí.

Um Lincoln preto estacionara num lugar do parque do outro lado da rua. Rizzoli viu Gabriel Dean emergir do automóvel. A figura esbelta e atlética parecia ter saído directamente das páginas de uma revista. Ficou a olhar para a fachada cor de tijolo da residência. Depois, aproximou-se do agente de serviço ao local e mostrou-lhe o distintivo.

O polícia deixou-o passar.

Repare-me naquilo! exclamou Korsak. Fico mesmo chateado! Aquele mesmo polícia fez-me ficar cá fora até você vir buscar-me, como se fosse mais um mirone. Mas o Dean, esse, só precisa de acenar com o distintivo mágico e dizer "agente federal dum raio" e todas as portas se abrem. Por que diabo é que ele tem um passe?

Talvez porque se tenha dado ao trabalho de o prender à camisa.

Oh, claro, um bom fato faria o mesmo por mim. Tudo está na atitude. Olhe para ele. Como se fosse dono do raio do mundo.

Rizzoli observou Dean equilibrar-se numa perna para calçar as coberturas dos sapatos. Enfiou as mãos longas nas luvas como um cirurgião a preparar-se para operar. Sim, tudo dependia da atitude. Korsak era um pugilista enraivecido que esperava que o mundo o esmurrasse, e, naturalmente, o mundo esmurrava-o.

Quem o chamou cá? perguntou Korsak.

Eu não.

Mas a verdade é que veio.

Vem sempre. Alguém o mantém informado. Mas não é ninguém da minha equipa. Isso vai mais acima.

Voltou a olhar para a porta da rua. Dean entrara em casa e Rizzoli imaginou-o de pé na sala a examinar as manchas de sangue. Lendo-as tal como se lê um relatório de campo. Separando os salpicos brilhantes da humanidade da sua fonte.

Sabe uma coisa, tenho andado a pensar disse Korsak. O Dean só surgiu em cena quase três dias depois de os Yeager terem sido atacados. A primeira vez em que o vimos foi na Reserva de Stony Brook, quando o corpo de Mistress Yeager foi encontrado. Exacto?

Exacto.

Então, porque demorou tanto? No outro dia, brincámos com a ideia de que se tratava de uma execução. Devido a algum problema em que os Yeager se tivessem metido. Se já estivessem na mira dos agentes federais... sob investigação, digamos ou sob vigilância, seria de pensar que os federais estariam em cima do caso no mesmo instante em que o doutor Yeager foi abatido. Mas esperaram três dias para aparecer. O que foi que, finalmente, os impeliu? O que lhes despertou o interesse?

Rizzoli fitou-o.

Você preencheu um questionário do VICAP?

Sim. Perdi uma hora a preenchê-lo. Cento e oitenta e nove perguntas. Coisas esquisitas como: "Alguma parte do corpo foi mordida? Que objectos foram introduzidos em que orifícios?" Agora tenho de preencher um questionário suplementar sobre Mistress Yeager.

Pediu uma avaliação do perfil psicológico quando devolveu o impresso?

Não. Não vi justificação para que um psicólogo do FBI me viesse dizer o que eu já sabia. Fiz apenas o meu dever cívico e enviei o impresso.

O VICAP, um programa para a captura de criminosos violentos, era a base de dados do FBI para esse tipo de crimes. A actualização da base de dados exigia a cooperação de agentes de segurança muitas vezes assoberbados de trabalho que, ao verem-se confrontados com o longo questionário, nem sequer se davam ao trabalho de o preencher.

Quando é que apresentou o relatório? perguntou Rizzoli.

Logo após o exame post mortem do doutor Yeager.

Foi quando o Dean apareceu. Um dia depois.

Acha que foi isso? perguntou Korsak. Foi isso que o trouxe cá?

Talvez o seu relatório tenha disparado um alarme.

O que seria que lhes chamou a atenção?

Não sei. Rizzoli olhou para a porta da rua por onde Dean desaparecera. E é óbvio que ele não nos vai dizer.

 

Jane Rizzoli não era o género de rapariga amante de música clássica. O seu interesse pela música resumia-se à sua colecção de discos de música ligeira e aos dois anos em que tocara trompete no conjunto do liceu, uma das duas únicas raparigas que escolheram esse instrumento. Atraíra-a o trompete porque produzia o som mais forte e mais metálico, não era como aqueles clarinetes estridentes ou as flautas chilreantes que as outras raparigas tocavam. Não, Rizzoli queria ser ouvida e, por isso, sentava-se lado a lado com os rapazes na secção dos trompetes. Adorava o som trovejante das notas.

Infelizmente, as notas saíam geralmente desafinadas.

Após o pai a expulsar para o quintal para praticar e os cães da vizinhança desatarem a uivar em sinal de protesto, pôs finalmente e para sempre de lado o trompete. Até ela conseguia reconhecer que puro entusiasmo e pulmões fortes não bastavam para disfarçar uma desencorajadora falta de talento.

Desde então, a música pouco mais significara para si do que a música de fundo dos elevadores e os sons baixos e surdos provenientes dos automóveis que passavam. Entrara no Symphony Hall, na esquina da Huntington Avenue com a Massachusetts, apenas duas vezes na vida, de ambas as vezes como estudante do liceu em visita de estudo para assistir aos ensaios da orquestra sinfónica. Em 1990, fora acrescentada a Ala Cohen, uma parte do Symphony Hall que nunca visitara antes. Quando ela e Frost entraram na ala, Rizzoli ficou surpreendida com o seu aspecto moderno: já não era o edifício escuro e que rangia por todos os lados de que se lembrava.

Mostraram os distintivos ao agente de segurança mais velho, que endireitou um bocadinho a coluna atacada de cifose ao ver que os dois visitantes pertenciam à Brigada de Homicídios.

Tem a ver com os Ghent? perguntou o guarda.

Sim, senhor respondeu Rizzoli.

Terrível. Realmente terrível. Vi-os a semana passada, logo após chegarem à cidade. Pararam aqui para se apresentar. Abanou a cabeça. Formavam um belo e jovem casal.

O senhor estava de serviço na noite em que eles actuaram?

Não, minha senhora. Só trabalho aqui durante o dia. Tenho de sair às cinco para ir buscar a minha mulher ao centro de dia. Sabe, é que ela precisa de cuidados vinte e quatro horas por dia. Esquece-se de desligar o fogão... Calou-se, corando subitamente. Mas calculo que os senhores não estão aqui para passar o tempo. Vieram encontrar-se com a Evelyn?

Sim. Como se vai para o escritório dela?

Não está lá. Vi-a passar para a sala de espectáculos há uns minutos.

Está a decorrer algum ensaio ou algo do género?

Não, minha senhora. Estamos na época baixa. A orquestra sai para Tanglewood durante o Verão. Nesta altura do ano, recebemos apenas alguns executantes convidados.

Então, podemos ir à sala?

Minha senhora, ambos tem distintivo. Pelo que me diz respeito, podem ir a todo o lado.

Não viram imediatamente Evelyn Petrakas. Ao entrar na penumbra do auditório, o que Rizzoli viu primeiro foi apenas um vasto mar de cadeiras vazias voltadas para o palco iluminado por projectores. Levados pela luz, começaram a descer a coxia. O chão de madeira rangia como as traves de um velho navio. Já tinham chegado ao palco quando uma voz os chamou debilmente:

Precisam de alguma coisa?

Franzindo os olhos por causa do clarão das luzes, Rizzoli voltou-se para as traseiras às escuras do auditório.

Miss Petrakas?

Sim?

Sou a detective Rizzoli. Este é o detective Frost. Podemos conversar consigo?

Estou aqui, na fila de trás.

Percorreram a coxia ao encontro dela. Evelyn não se levantou. Continuou encolhida onde estava, como se se escondesse da luz. Acenou desinteressadamente para os detectives quando estes se sentaram ao lado dela.

Já falei com um agente da polícia. A noite passada disse Evelyn.

Com o detective Sleeper?

Sim. Acho que se chamava assim. Um homem mais velho, muito simpático. Sei que estava previsto esperar e falar com outros detectives, mas tive de ir-me embora. Não consegui estar naquela casa nem mais um minuto... Fitou o palco, como se estivesse hipnotizada por um espectáculo que só ela conseguia imaginar. Mesmo na penumbra, Rizzoli conseguia ver que tinha um rosto bonito, uma mulher na casa dos quarenta, com madeixas prateadas prematuras no cabelo escuro. Tenho responsabilidades aqui continuou Evelyn. A devolução do preço dos bilhetes. E a imprensa, que começou a aparecer. Tive de voltar para cá e tratar disso. Soltou uma gargalhada cansada. Estou sempre a apagar fogos. É o meu trabalho.

Quais são exactamente as suas funções aqui, Miss Petrakas? perguntou Frost.

A minha categoria oficial? Encolheu os ombros. "Coordenadora de programas para artistas convidados". O que isso significa é que faço tudo para que eles se sintam felizes e bem-dispostos enquanto estão em Boston. É espantoso como alguns conseguem ser tão indefesos. Passam a vida nas salas de ensaios e nos estúdios. O mundo real deixa-os desorientados. Por isso, recomendo-lhes os sítios onde hão-de ficar, trato de os mandar buscar ao aeroporto, mando pôr um cesto de fruta no quarto. Trato das comodidades extras de que possam precisar. Levo-os pela mão.

Quando é que conheceu Os Ghent? perguntou Rizzoli.

No dia seguinte à chegada deles à cidade. Fui buscá-los a casa. Não podiam apanhar um táxi porque ficavam muito apertados com o violoncelo do Alex, mas eu tenho um carro em que se pode rebaixar um dos bancos de trás.

Andou a passear com eles pela cidade enquanto cá estiveram?

Só fizemos o percurso de casa para o Symphony Hall e o regresso. Rizzoli deu uma olhadela ao bloco-notas.

Soube que a casa de Beacon Hill pertence a um membro da administração da orquestra sinfónica, um tal Christopher Harm. Convida frequentemente músicos a hospedarem-se lá?

No Verão, quando está na Europa. É muito mais simpática do que um quarto de hotel. Mister Harm confia nos músicos clássicos. Sabe que cuidam bem da casa.

Algum hóspede da casa de Mister Harm já se queixou de problemas?

Problemas?

Assaltos. Roubos. Qualquer coisa que os assustasse. Evelyn abanou a cabeça.

Trata-se de Beacon Hill, detective. Não se pode pedir melhor vizinhança. Sei que o Alex e a Karenna adoraram o sítio.

Quando foi que os viu pela última vez? Evelyn engoliu em seco e respondeu suavemente:

Ontem à noite. Quando encontrei o Alex...

Quero dizer ainda em vida, Miss Petrakas.

Oh! Evelyn deu uma gargalhada embaraçada. Claro que queria dizer isso. Desculpe, não estou a raciocinar. Estou com dificuldade em concentrar-me. Abanou a cabeça. Nem sei porque me incomodei a vir trabalhar hoje. Só porque me pareceu que era algo que precisava de fazer.

A última vez que os viu? interrompeu Rizzoli. Desta vez, Evelyn respondeu em voz mais firme.

Foi anteontem à noite. Depois do espectáculo, levei-os a Beacon Hill. Eram mais ou menos umas onze da noite.

Limitou-se a deixá-los ou entrou em casa com eles?

Deixei-os diante de casa.

Viu-os de facto entrar?

Vi.

Então, não a convidaram a entrar.

Penso que estavam bastante cansados. E sentiam-se um bocadinho deprimidos.

Porquê?

Depois de todas as expectativas quanto à actuação em Boston, não tinham uma assistência tão numerosa como esperavam. E somos nós considerados a cidade da música! Se aquilo era o melhor que conseguíamos arranjar, que podiam esperar em Detroit ou Memphis? Evelyn olhou para o palco com expressão infeliz. Somos uns dinossauros, detective. A Karenna disse isso no carro. Quem é que ainda aprecia música clássica? Na sua maioria, os jovens preferem ver vídeos de música. Gente eriçada, com tachas de metal, a saracotear-se. É só sexo, suor e trajes estúpidos. E por que razão aquele cantor, como é que ele se chama?, tem de deitar a língua de fora? O que tem isso a ver com música?

Absolutamente nada concordou Frost, animando-se de imediato com a conversa. Sabe, Miss Petrakas, a minha mulher e eu tivemos essa mesma conversa no outro dia. A Alice adora música clássica. Adora, realmente. Todos os anos compramos bilhetes para a época de espectáculos.

Evelyn sorriu-lhe tristemente.

Então, receio que também sejam uns dinossauros.

Quando se levantavam para se irem embora, Rizzoli descobriu um programa de cartolina brilhante no banco à sua frente. Inclinou-se e pegou no programa.

Os Ghent estão aqui? perguntou.

Veja na página seis respondeu Evelyn. Isso. É a fotografia publicitária.

Era a foto de duas pessoas apaixonadas.

Karenna, esbelta e elegante num vestido comprido preto sem ombros, fitava os olhos sorridentes do marido. Tinha o rosto luminoso e o cabelo escuro como o de uma espanhola. Alexander olhava para ela com um sorriso arrapazado e com uma madeixa indisciplinada de cabelo pálido sobre um olho.

Eram belos, não eram? comentou Evelyn em tom suave. É esquisito, sabe? Nunca tive oportunidade de parar e falar realmente com eles. Mas conhecia bem a sua música. Ouvia os discos deles. Vi-os actuar ali no palco. Pode-se dizer muita coisa sobre alguém só por ouvir a sua música. E uma das coisas de que me lembro era da maneira terna como tocavam. Acho que é a palavra que usaria para os descrever. Eram pessoas muito ternas.

Rizzoli olhou para o palco e imaginou Alexander e Karenna na noite da sua derradeira actuação. O cabelo negro dela, lustroso sob os projectores, o brilho do violoncelo dele. E a sua música, como as vozes de dois amantes a cantarem um para o "outro.

Disse que na noite em que eles actuaram a afluência foi decepcionante lembrou Frost a Evelyn.

Foi.

Quantas pessoas na assistência?

Creio que vendemos cerca de quatrocentos e cinquenta bilhetes. Quatrocentos e cinquenta pares de olhos, pensou Rizzoli, todos eles focados no palco onde um casal apaixonado estava banhado de luz. Que emoções inspiraram os Ghent à assistência? O prazer da música bem executada? A alegria de observar dois jovens apaixonados? Ou ter-se-iam agitado outras emoções mais tenebrosas no coração de alguém sentado nessa mesma sala? Fome. Inveja. A amargura de desejar o que outro homem possui.

Voltou a baixar os olhos para a fotografia dos Ghent.

Terá sido a beleza dela o que lhe prendeu o olhar? Ou o facto de estarem apaixonados?

Tomou um café simples e fitou os mortos empilhados em cima da sua secretária. Richard e Gail Yeager. A "dama com raquitismo", Alexander Ghent. E o "homem do avião", que, embora já não fosse considerado vítima de homicídio, continuava a pesar-lhe na consciência. Os mortos pesavam-lhe sempre. Um fornecimento interminável de cadáveres, todos eles exigindo a sua atenção, cada qual com o seu próprio conto de terror para narrar, bastando a Rizzoli cavar apenas o suficiente para pôr a nu os ossos dessas histórias. Havia tanto tempo que cavava, que todos os mortos que conhecera começavam a misturar-se como esqueletos enredados numa vala comum.

Quando o laboratório de ADN a chamou ao meio-dia, ficou aliviada por fugir pelo menos momentaneamente àquela pilha acusadora de pastas. Levantou-se da secretária e dirigiu-se pelo corredor para a ala sul.

O laboratório de ADN ficava em S253 e o perito que a chamara era Walter De Groot, um holandês louro com rosto pálido de lua cheia. Em geral, estremecia quando a via, uma vez que as visitas dela tinham quase sempre a finalidade de o espicaçar ou adular só para o apressar a fornecer um perfil de ADN. Naquele dia, porém, recebeu-a com um largo sorriso.

Revelei o auto-radiograma disse. Está ali pendurado. O auto-radiograma era uma chapa de raios X que captava o padrão de fragmentos de ADN. De Groot retirou a radiografia da linha de secagem e prendeu-a numa caixa de luz. Filas paralelas de traços escuros corriam de cima a baixo.

O que vê aqui é o perfil dos chamados "números variáveis de repetições em série" disse ele. Extraí o ADN das diferentes fontes que vocês me forneceram e isolei os fragmentos com os níveis particulares que estamos a comparar. Não são verdadeiramente genes, mas secções do cordão de ADN que se repetem sem um objectivo claro. São bons marcadores de identificação.

Então, o que são estes vários traçados? A que correspondem?

As duas primeiras faixas, as que começam à esquerda, são os controlos. A número um é uma escada-padrão de ADN, que nos ajuda a calcular as posições relativas das várias amostras. A faixa dois é uma linha-padrão de células, também usada como controlo. As faixas três, quatro e cinco são linhas-testemunho retiradas de origens conhecidas.

Que origens?

A faixa três é do suspeito Joey Valentine. A faixa quatro é do doutor Yeager. A faixa cinco é de Mistress Yeager.

O olhar de Rizzoli passeou-se pela faixa cinco. Tentou adaptar a mente ao conceito de que aquilo fazia parte do projecto original que criara Gail Yeager. Que um único ser humano, desde a tonalidade exacta do seu cabelo louro até ao som do seu riso, podia ser codificado naquela cadeia de traços escuros. Não viu humanidade naquele auto-radiograma, nada da mulher que amara um marido e chorara uma mãe. Somos apenas isto? Um colar de químicos? Onde jaz a alma na dupla-hélice?

Desviou o olhar para as duas últimas faixas.

E o que são as últimas? perguntou.

São as não identificadas. A faixa seis é da mancha de sémen no tapete dos Yeager. A faixa sete é o sémen fresco colhido na cavidade vaginal da Gail Yeager.

Estas duas parece corresponderem-se.

Exacto. Ambas as amostras não identificadas de ADN pertencem ao mesmo homem. E, repare, não pertencem nem ao doutor Yeager nem a Mister Valentine. Com efeito, isto elimina Mister Valentine como fonte do sémen.

Rizzoli fitou as duas faixas não identificadas. A impressão genética de um monstro.

Eis o seu assassino disse De Groot.

Telefonou para o CODIS? Há alguma possibilidade de lhes falarmos para que eles andem um pouco mais depressa com a busca de dados?

Sendo o CODIS o banco nacional de dados de ADN, encontravam-se ali guardados os perfis genéticos de milhares de delinquentes condenados, bem como perfis não identificados recolhidos em locais de crimes por todo o país.

Na realidade, foi essa a razão por que lhe telefonei. Enviei-lhes a mancha de ADN do tapete a semana passada.

Rizzoli suspirou.

Quer dizer que teremos notícias daqui a um ano.

Não, o agente Dean acabou de me telefonar. O ADN do seu assassino não consta do CODIS.

Surpreendida, Rizzoli fitou-o.

O agente Dean é que lhe deu a notícia?

Deve ter andado sempre em cima deles. Durante o tempo todo em que cá estou, nunca vi um pedido ao CODIS despachado com tanta rapidez.

Confirmou isso directamente com o CODIS?

Bem, não respondeu De Groot, franzindo as sobrancelhas. Parti do princípio de que o agente Dean saberia...

Telefone-lhes, por favor. Quero que isso seja confirmado.

Há alguma... há... dúvida quanto à fiabilidade do Dean?

Joguemos apenas pelo seguro, está bem? Olhou de novo para a caixa de luz. Se for verdade que o nosso homem não consta do CODIS...

Então arranjou um novo jogador, detective. Ou alguém que tem conseguido manter-se invisível perante o sistema.

Frustrada, Rizzoli fitou a cadeia de traços. Temos o seu ADN, pensou. Temos o seu perfil genético. Mas ainda não sabemos como se chama.

Rizzoli introduziu um disco no leitor de CDs e afundou-se no sofá enquanto enxugava com uma toalha o cabelo húmido. A toada rica de um solo de violoncelo jorrou das colunas de som como chocolate derretido. Embora não fosse grande apreciadora de música clássica, comprara na loja de brindes do Symphony Hall uma das primeiras gravações de Alex Ghent. Se tinha de familiarizar-se com todos os aspectos da sua morte, então também devia conhecer-lhe a vida. E grande parte da sua vida era a música.

O arco de Ghent deslizava sobre as cordas do violoncelo, e a melodia da Suíte N." 1 em Dó Maior de Bach subia e descia como as vagas de um oceano. Fora gravada quando Ghent tinha apenas dezoito anos. Quando se sentara no estúdio, os seus dedos quentes dominavam o arco ao pressionar as cordas. Esses mesmos dedos jaziam agora brancos e gelados no frigorífico da morgue e a música calara-se. Rizzoli presenciara a autópsia naquela manhã e reparara nos dedos longos, imaginara-os a voarem para cima e para baixo ao longo do braço do violoncelo. Que as mãos humanas pudessem unir-se a madeira e cordas para produzir sons tão ricos parecia um milagre.

Pegou na caixa do CD e estudou a fotografia, que fora tirada era ele ainda um rapaz. Tinha os olhos baixos e o braço esquerdo em volta do instrumento, abraçando-lhe as curvas como um dia abraçaria a mulher, Karenna. Embora Rizzoli tivesse procurado um CD em que actuassem ambos, todas as suas gravações em conjunto estavam esgotadas na loja de brindes. Só havia as de Alexander. O violoncelo solitário, chamando a companheira. E onde estava agora essa companheira? Viva e atormentada, enfrentando o supremo terror da morte? Ou estava para além da dor e já nas primeiras fases de decomposição?

O telefone tocou. Baixou o som do leitor de CDs e pegou no auscultador.

Está aí constatou Korsak.

Vim a casa tomar um duche.

Telefonei há minutos. Não respondeu...

Então, não devo ter ouvido. O que se passa?

Isso quero eu saber.

Se surgir algo de novo, você será a primeira pessoa a quem telefono.

Claro. Como me telefonou ontem? Só soube do resultado do ADN do Joey Valentine pelo tipo do laboratório.

Não tive oportunidade de dizer-lhe. Andei numa roda-viva.

Lembre-se de que fui eu quem a trouxe para este caso.

Não me esqueci.

É que já vai em cinquenta horas desde que ele a raptou disse Korsak.

E Karenna Ghent estaria provavelmente morta há dois dias, pensou Rizzoli. Mas a morte não dissuadiria o seu assassino. Aguçar-lhe-ia o apetite. Olharia para o cadáver e veria apenas um objecto de desejo. Alguém a quem podia controlar. Ela não oporia resistência. Seria carne fria e passiva, cederia a todas as indignidades. Seria a amante perfeita.

O disco continuava a tocar suavemente. O violoncelo de Alexander tecia o seu feitiço lamentoso. Rizzoli sabia ao que aquela conversa levava, sabia o que Korsak pretendia, mas não sabia como descartar-se dele. Ergueu-se do sofá e desligou o leitor de CDs. Mesmo no silêncio, pareciam pairar os acordes do violoncelo.

E como da última vez, vai desfazer-se dela hoje à noite disse Korsak.

Estaremos preparados para ele.

Então, faço parte da equipa ou quê?

Já escolhi a equipa de vigilância.

Mas não me tem a mim. Podia utilizar mais uma mão.

Já destinámos as posições. Ouça, telefono-lhe logo que alguma coisa...

Para o diabo que o carregue a esse telefonema. Não vou ficar de plantão ao pé do telefone. Conheço este criminoso há mais tempo do que você, há mais tempo do que qualquer outra pessoa. Como se sentiria você se alguém lhe cortasse as vazas? Se a pusesse de fora para não assistir ao desfecho? Pense nisso.

Pensou. E compreendeu a revolta que o invadia. Compreendia melhor do que ninguém, porque já lhe acontecera uma vez. Ser posta de lado, observar com amargura de uma posição secundária enquanto outros avançavam e reclamavam para si a vitória que era dela.

Olhou para o relógio.

Vou sair agora mesmo. Se quiser juntar-se a mim, vá ter comigo lá.

Qual é a sua posição de vigia?

A área de estacionamento do outro lado da estrada de Smith Playground. Podemos encontrar-nos no campo de golfe.

Lá estarei.

 

Às duas da madrugada na Reserva de Stony Brook, o ar era sufocante e denso como sopa. Rizzoli e Korsak estavam sentados no automóvel estacionado quase encostado a uma sebe densa de arbustos. Daquela posição, podiam observar todos os carros que entrassem em Stony Brook vindos da direita. Outros veículos de vigilância encontravam-se estacionados ao longo de Enneking Parkway, a principal via que serpenteava pela reserva. Qualquer carro que parasse numa das áreas de estacionamento de terra batida podia ser rapidamente cercado por todos os lados pela polícia. Era uma armadilha em forma de saco da qual nenhum carro conseguia escapar.

Rizzoli transpirava sob o colete. Desceu o vidro e inspirou o odor a folhas em decomposição e terra húmida. Os cheiros da floresta.

Ei, está a deixar entrar mosquitos queixou-se Korsak.

Preciso de ar puro. Aqui dentro cheira a tabaco.

Só acendi um cigarro. Não me cheira a nada.

Os fumadores nunca sentem o cheiro. Korsak fitou-a.

Caramba, tem resmungado comigo a noite inteira. Se tem algum problema em relação a mim, talvez seja melhor falarmos disso.

Rizzoli olhou pela janela para a estrada que continuava escura e sem trânsito.

Não tem a ver consigo respondeu.

Então tem a ver com quem?

Como ela não respondeu, Korsak soltou um grunhido de compreensão.

Oh, outra vez o Dean. Que fez ele desta vez?

Há uns dias, queixou-se de mim ao Marquette.

Que foi que ele lhe disse?

Que não sou a pessoa indicada para este trabalho. Que talvez precise de aconselhamento para problemas não resolvidos.

Estava a referir-se ao Cirurgião?

Que lhe parece?

Mas que idiota!

E hoje descobri que tivemos resposta instantânea do CODIS, coisa que nunca aconteceu antes. O Dean só tem de estalar os dedos e toda a gente salta. Só queria saber o que está ele a fazer cá.

Bem, é próprio dos federais. Dizem que saber é poder, não é verdade? Por isso, escamoteiam de nós as informações, porque, para eles, isto é um jogo de jovens machos. Você e eu não passamos de peões de Mister James "Velhaco" Bond.

Está a fazer confusão com a CIA.

CIA, FBI... Encolheu os ombros. Todos esses serviços conhecidos só pelas siglas gostam de segredos.

O rádio crepitou.

Vigilante Três. Temos um veículo ligeiro último modelo a dirigir-se para sul em Enneking Parway.

Rizzoli ficou tensa, à espera que a equipa seguinte comunicasse. Ouvia-se agora a voz de Frost no veículo a seguir.

Vigilante Dois. Estamos a vê-lo. Continua a dirigir-se para sul. Não me parece que vá abrandar.

Segundos depois, uma terceira unidade comunicava:

Vigilante Cinco. Acabou de passar pelo cruzamento com a Bald Knob Road. Dirige-se para fora do parque.

Não é o nosso homem. Mesmo àquela hora da madrugada, Enneking Parkway era bastante movimentada. Já tinham perdido a conta do número de veículos que haviam passado pela reserva. Demasiados falsos alarmes que pontuavam longos intervalos de aborrecimento tinham-lhe queimado toda a adrenalina e Rizzoli começava a deslizar rapidamente para um torpor de privação de sono.

Recostou-se com um suspiro de decepção. Para além do pára-brisas, via a escuridão dos bosques iluminada apenas pela ocasional centelha de algum pirilampo.

Vamos lá, seu filho da mãe... murmurou. Vem à mamã...

Quer café? perguntou Korsak.

Obrigada.

Korsak deitou café da garrafa térmica numa chávena e entregou-lha. O café era simples e amargo e muitíssimo desagradável, mas, mesmo assim, bebeu-o.

Esta noite fi-lo especialmente forte disse ele. Duas medidas em vez de uma. Até lhe faz crescer cabelos no peito.

Talvez seja o que eu preciso.

Pergunto-me se bebendo bastante disto algum cabelo me emigrará para a cabeça.

Rizzoli olhou para os bosques, onde a escuridão ocultava folhas em decomposição e animais à caça. Animais com dentes. Lembrou-se dos restos roídos da "dama com raquitismo" e pensou em guaxinins a roer costelas e cães a rolar crânios como se fossem bolas. Ao olhar para as árvores, não pensava em Bambi.

Já nem sequer posso voltar a falar do Hoyt disse ela. Não posso mencioná-lo sem que as pessoas me olhem com aquele ar de piedade. Ontem, tentei chamar a atenção para os paralelos entre o Cirurgião e o nosso novo indivíduo e até conseguia adivinhar o que estava o Dean a pensar: "Ela ainda tem o Cirurgião na cabeça." Julga que estou obcecada. Suspirou. Talvez esteja. Talvez passe a ser sempre assim. Chego ao local de um crime e vejo ali a mão dele. Todos os criminosos passaram a ter o rosto dele.

Olharam ambos para o rádio quando a central comunicou:

Temos um pedido de assistência a propriedade, Cemitério de Fairview. Alguma unidade na área?

Ninguém respondeu.

A central repetiu o pedido:

Temos uma chamada para assistência local, Cemitério de Fairview. Possível entrada forçada. Unidade Doze, ainda está na área?

Unidade Doze. Estamos no dez quarenta, River Street. Código Um. Impossível atender.

Entendido. Unidade Quinze? Qual a sua posição?

Unidade Quinze. West Roxbury. Ainda em Míssil seis. Esta gente não acalma. Calculo pelo menos uma meia hora até podermos ir a Fairview.

Alguma unidade? disse a central, percorrendo as ondas de rádio em busca de um carro-patrulha disponível. Numa noite quente de sábado, a inspecção de rotina de um cemitério não era uma chamada de alta prioridade. Os mortos já não se preocupam com casais de namorados nem com vândalos adolescentes. Quem deve estar em primeiro lugar na atenção da polícia são os vivos.

O silêncio do rádio foi quebrado por um membro da equipa de vigilância de Rizzoli.

Aqui Vigilante Cinco. Estamos situados em Enneking Parkway. O Cemitério de Fairview está na nossa vizinhança imediata...

Rizzoli agarrou no microfone e pressionou o botão de transmissão, interrompendo-o:

Vigilante Cinco, aqui Vigilante Um. Não abandone a sua posição. Entendido?

Temos cinco veículos de vigilância...

O cemitério não é prioridade nossa.

Vigilante Um disse a central. Todas as unidades foram chamadas esta noite. Alguma possibilidade de libertar uma?

Negativo. Quero que a minha equipa mantenha as posições. Entendido, Vigilante Cinco?

Entendido. Mantemos posição. Central, pode dizer isso à chamada para observação do local.

Rizzoli soltou um suspiro. Talvez houvesse queixas na manhã seguinte, mas não estava disposta a ceder um único veículo da equipa de vigilância, pelo menos para uma chamada trivial.

Não estamos propriamente mergulhados em acção criticou Korsak.

Quando acontecer, será rápido. Não permito que isto seja obstruído seja pelo que for.

Sabe... aquilo de que estávamos a falar antes? Sobre você andar obcecada?

Não comece!

Não, não é aí que quero chegar. Você comia-me vivo! exclamou, abrindo a porta do carro.

Onde vai?

Vou urinar. Preciso de autorização?

Só estava a perguntar.

É o café a querer sair.

Não admira. O seu café até abria um buraco em ferro fundido. Korsak saiu do carro e dirigiu-se para as árvores, já com as mãos na braguilha. Não se deu ao trabalho de se pôr atrás de uma árvore e urinou mesmo ali para os arbustos. Era algo que Rizzoli não precisava de ver e afastou os olhos. Há nas crianças de todas as classes uma ovelha ronhosa e Korsak era essa ovelha, o garoto que metia às escâncaras o dedo no nariz, arrotava com prazer e pingava a camisa com o almoço. O garoto cujas mãos húmidas e rechonchudas se evitava tocar a todo o custo, porque se tinha a certeza de apanhar alguma maleita. Rizzoli sentia repugnância e, simultaneamente, pena dele. Olhou para o café que ele lhe servira e atirou pela janela o que restava. Do rádio irrompeu uma nova voz, sobressaltando-a.

Temos um veículo a dirigir-se para leste em Dedham Parkway. Parece um táxi.

Um táxi às três da manhã? observou Rizzoli.

É isso mesmo.

Para onde vai?

Acabou de voltar para norte, para Enneking.

Vigilante Dois? disse Rizzoli, chamando a unidade que se seguia na estrada.

Vigilante Dois respondeu Frost. Sim, estamos a vê-lo. Acabou de passar por nós...

Silêncio. Depois, com súbita tensão, Frost acrescentou:

Está a abrandar...

A fazer o quê?

A travar. Parece que vai estacionar...

Localização? perguntou Rizzoli bruscamente.

Na zona de terra batida do parque. Acabou de estacionar no parque!

É ele!

Korsak! Está na hora! silvou pela janela. Enquanto ligava o transmissor comum e ajustava o auscultador, cada nervo seu cantava de excitação.

Korsak puxou o fecho das calças para cima e recuou a cambalear até ao carro.

O quê? O quê?

Um veículo acabou de estacionar em Enneking... Vigilante Dois, que está ele a fazer?

Está só ali sentado. As luzes estão apagadas.

Rizzoli inclinou-se para a frente, pressionando, concentrada, o auscultador contra a orelha. Os segundos passavam, as transmissões estavam em silêncio e toda a gente esperava pelo movimento seguinte do suspeito.

Está a observar a área. A confirmar se é seguro continuar.

A decisão é tua, Rizzoli disse Frost. Avançamos sobre ele? Rizzoli hesitou, pesando as opções. Receosa de accionar demasiado cedo a armadilha.

Espera disse Frost. Voltou a acender os faróis. Ah! Bolas! Está a fazer marcha atrás. Mudou de ideias.

Avistou-te? Frost, ele viu-te?

Não sei! Voltou para Enneking. Em direcção a norte...

Assustámo-lo! Numa fracção de segundos, tornou-se-lhe clara como cristal a única decisão possível. Todas as unidades, vão, vão, vão! exclamou ao transmissor comum. Cerquem-no agora.

Ligou a ignição e meteu a mudança. Os pneus rodopiaram e escavaram um buraco no chão mole de terra e folhas caídas. Ramos de árvores chicotearam o pára-brisas. Ouviu as transmissões em rápida sucessão da equipa e o gemido afastado de múltiplas sirenes.

Vigilante Três. Já bloqueámos Enneking a norte.

Vigilante Dois. Em perseguição.

Veículo a aproximar-se! Está a travar.

Interceptem-no! Interceptem-no!

Não o enfrentem sem apoio! ordenou Rizzoli. Esperem por apoio.

Entendido. O veículo parou. Estamos a colocar-nos em posição. Quando Rizzoli parou com os pneus a chiar, Enneking Parkway era um enovelado de automóveis e luzes azuis a pulsar. Rizzoli ficou temporariamente cega ao sair do carro. A descarga de adrenalina criara uma enorme excitação. Rizzoli percebia pelas vozes dos homens a tensão crepitante à beira da violência.

Frost abriu desabridamente a porta do condutor e meia dúzia de armas foram apontadas à cabeça do suspeito. O taxista permaneceu sentado, piscando os olhos, desorientado. Luzes azuis reflectiam-se-lhe no rosto.

Saia do veículo ordenou Frost.

Quê... que foi que eu fiz?

Saia do veículo. Naquela noite carregada de adrenalina até Barry Frost se transformara num indivíduo assustador.

O taxista saiu lentamente com as mãos erguidas. No momento em que ambos os pés tocaram o solo, foi virado e empurrado de rosto para baixo contra o capo do carro.

Que é que eu fiz? exclamou o homem quando Frost o empurrou.

Diga o seu nome! ordenou Rizzoli.

Não sei porque é tudo isto...

O seu nome!

Wilenski. Soluçou. Vernon Wilenski...

Confirmado disse Frost, lendo a identificação do taxista. Vernon Wilenski, branco, sexo masculino, nascido em mil novecentos e cinquenta e cinco.

Está conforme a carta de condução disse Korsak, que se debruçara para o interior do automóvel para verificar o cartão de identificação preso ao retrovisor.

Rizzoli olhou para cima, estreitando os olhos por causa da luz dos faróis de um carro que se aproximava. Mesmo as três da madrugada, havia trânsito no parque e com a estrada bloqueada agora pelos carros da polícia em breve haveria veículos a fazer marcha atrás em ambas as direcções.

Concentrou a atenção no taxista. Agarrando-o pela camisa, voltou-o de frente para si e apontou-lhe a lanterna aos olhos. Viu um homem de meia-idade, cabelo louro ralo e áspero, pele lívida sob a luz dura da lanterna. Aquele não era o rosto que ela imaginara para o seu assassino. Olhara nos olhos do mal mais vezes do que se dera ao trabalho de contar e carregava na memória todos os rostos pertencentes aos monstros com que deparara ao longo da sua carreira. Aquele homem assustado não pertencia àquela galeria.

Que está a fazer aqui, Mister Wilensky? perguntou-lhe ela.

Eu só... ia só buscar um cliente.

Que cliente?

Um indivíduo que telefonou a pedir um táxi. Disse que ficou sem combustível em Enneking Parkway.

Onde está ele?

Não sei! Parei onde ele disse que estaria à espera, mas não estava lá. Por favor, é tudo um equívoco. Telefonem para a minha central! Dir-lhes-ão o mesmo!

Vou abrir a bagageira disse ela a Frost.

Ao dirigir-se para as traseiras do táxi, crescia-lhe no estômago uma sensação de peso. Ergueu a porta da bagageira e apontou a lanterna. Agora, a sensação de enjoo transformava-se em nítida náusea. Calçou luvas. Sentiu o rosto congestionado e suado e o peito arquear-se de desespero ao afastar o tapete cinzento que cobria a bagageira. Viu um pneu sobresselente, um macaco e algumas ferramentas. Começou a puxar o tapete e a afastá-lo mais ainda, com toda a sua raiva concentrada em explorar cada centímetro quadrado, expondo todo e qualquer recanto obscuro que pudesse esconder alguma coisa. Parecia uma louca desesperadamente agarrada aos farrapos da sua própria redenção. Quando já não havia tapete para puxar e a bagageira estava reduzida a metal nu, fitou o rosto vazio recusando-se a aceitar o que era evidente. A prova irrefutável de que falhara.

Uma artimanha. Isto foi só uma artimanha destinada a distrair-nos. Mas de quê?

A resposta chegou-lhe com celeridade estonteante. Uma chamada irrompeu dos rádios.

Dez cinquenta e quatro, dez cinquenta e quatro, Cemitério de Fairview. Todas as unidades, dez cinquenta e quatro, Cemitério de Fairview.

Os olhos de Frost encontraram os seus, ambos atingidos naquele instante pela mesma terrível compreensão. Dez cinquenta e quatro. Homicídio.

Fica com o táxi! ordenou a Frost, e correu para o carro. Naquela confusão, o dela era o mais fácil de retirar, o mais rápido a fazer a inversão de marcha. Enquanto se atirava para trás do volante e girava a chave, amaldiçoava-se pela sua própria estupidez.

Ei! EU berrou Korsak. Corria ao lado do carro e batia com o punho na porta.

Rizzoli travou apenas o tempo suficiente para o deixar atirar-se para dentro e bater com a porta. Depois, carregou no acelerador a fundo, atirando-o contra o assento.

Mas que diabo, ia deixar-me cá? berrou Korsak.

Ponha o cinto.

Não sou nenhum passageiro.

Ponha o cinto!

Korsak puxou o cinto de segurança sobre o ombro e fechou-o com um estalido. Mesmo por cima das vozes que tagarelavam no rádio, Rizzoli conseguia ouvir a respiração ofegante, húmida de mucosidades.

Vigilante Um a responder a dez cinquenta e quatro disse ela à central.

- O seu dez dez?

Enneking Parkway, logo após o cruzamento com Turtle Pond. Tempo de chegada estimado em menos de um minuto.

É a primeira a chegar ao local.

Situação?

Não há mais informações. Prepare-se para dez cinquenta e oito. Armado e considerado perigoso.

O pé de Rizzoli pesava como chumbo no acelerador. A estrada para o Cemitério de Fairview surgiu tão rapidamente que por pouco a falhava. Fizeram a curva com os pneus a guinchar e Rizzoli a tentar por controlar o volante.

Chiça! balbuciou Korsak quando quase embateram contra uma fila de blocos de pedra arredondada que ladeava a estrada. O portão de ferro fundido estava aberto e Rizzoli entrou com o carro. O cemitério encontrava-se às escuras e à luz dos faróis estendiam-se relvados de onde sobressaíam pedras tumulares como dentes brancos.

Um veículo de uma patrulha de segurança privada encontrava-se estacionado a cem metros do portão do cemitério. A porta do condutor estava aberta e a luz do tejadilho acesa. Rizzoli travou e ao sair pegou de imediato na arma, num reflexo tão automático que nem deu por ele. Havia muitos outros pormenores que a assaltavam: o cheiro a relva recém-cortada e terra húmida. As pancadas que o coração lhe dava contra o esterno.

E o medo. Enquanto perscrutava a escuridão, sentia o toque gélido do medo porque sabia que, se o táxi fora uma artimanha, aquilo também o podia ser. Um jogo sangrento, do qual ainda nem sequer se apercebera de que fazia parte.

Imobilizou-se, com os olhos fixos numa poça sombria junto da base de um obelisco fúnebre. Apontando a lanterna, viu o corpo enrodilhado do segurança.

Ao dirigir-se para ele, sentiu cheiro a sangue. Não havia outro cheiro igual e disparava-lhe no cérebro alarmes primitivos. Ajoelhou-se na relva húmida e ainda quente de sangue. Korsak estava mesmo a seu lado apontando igualmente a lanterna e Rizzoli ouvia-lhe a respiração ruidosa, os grunhidos que saíam sempre que fazia esforços.

O segurança jazia de rosto para baixo. Rizzoli rolou-o sobre as costas.

Meu Deus! latiu Korsak, com um sacão tão violento que a luz da lanterna apontou às cegas para o céu.

A luz de Rizzoli tremia igualmente ao fitar o pescoço quase separado do corpo, onde pedaços protuberantes e esbranquiçados de cartilagens sobressaíam da carne cortada. Uma baixa, sem dúvida. Morto, eliminado e praticamente com a cabeça separada do corpo.

Luzes azuis a rodopiar cortaram a noite num caleidoscópio surreal, avançando para eles. Rizzoli ergueu-se. Tinha as calças pegajosas de sangue e o tecido colado aos joelhos. Apertando os olhos por causa das luzes dos veículos que se aproximavam, voltou-se e ficou de frente para a negra vastidão do cemitério. No instante em que os faróis dos carros que se aproximavam desenharam um arco na escuridão, uma imagem gravou-se-lhe na retina: um vulto que se movia entre as pedras tumulares. Foi uma visão de uma fracção de segundos; quando as luzes voltaram a incidir ali, o vulto perdera-se por entre o mar de sepulturas de mármore e granito.

Korsak disse ela. Alguém a mover-se... às duas horas.

Não consigo ver nada.

Ela voltou a olhar e tornou a vê-lo a descer a encosta em direcção ao abrigo das árvores. Desatou a correr, ziguezagueando por entre a pista de obstáculos constituída pelas sepulturas e com os pés a ressoar no chão onde dormiam os mortos. Ouviu Korsak logo atrás, arquejando como um acordeão, mas sem conseguir acompanhá-la. Em poucos segundos estava entregue a si mesma com as pernas a bombear o combustível da adrenalina. Já quase ao pé das árvores e a aproximar-se do local onde detectara o vulto, não viu qualquer silhueta em movimento, nenhuma alteração da escuridão contra a escuridão. Abrandou, parou, olhou para trás e para diante, procurando o mais leve movimento nas sombras.

Embora estivesse agora parada, o medo acelerou-lhe as pulsações. Devido à certeza, que podia sentir como um formigueiro na pele, de que ele estava nas proximidades. Ele estava a observá-la. No entanto, sentia relutância em acender a lanterna, em enviar um sinal luminoso a anunciar a sua localização.

O estalido de um galho fê-la rodopiar para a direita. As árvores avultavam à sua frente numa cortina negra e impenetrável. Através do rugido do seu próprio sangue e da correria do ar pelos pulmões, ouviu folhas a ranger e galhos a estalar.

Ele está a andar na minha direcção.

Agachou-se e apontou a arma com os nervos à flor da pele.

Os passos pararam subitamente.

Acendeu a lanterna e apontou-a às cegas. Viu-o então, vestido de preto e de pé no meio das árvores. Apanhado pelo feixe de luz, voltou-se de costas e ergueu o braço para proteger os olhos.

Pare! exclamou Rizzoli. Polícia!

O indivíduo ficou perfeitamente imóvel com o rosto escondido, levou a mão à cara e disse-lhe:

Vou tirar os óculos.

Não, idiota! Vai ficar parado onde está.

E depois, detective Rizzoli? Trocamos distintivos? Atiramo-nos ao chão?

Rizzoli fitou-o, reconhecendo de súbito a voz. Lenta e deliberadamente, Gabriel Dean tirou os óculos protectores e voltou-se de frente para ela. Com a luz a incidir-lhe nos olhos, não conseguia vê-la, mas ela via-o muitíssimo bem e a expressão dele era fria e calma. Rizzoli percorreu-lhe rapidamente o corpo com o feixe de luz e viu as calças pretas e a arma no coldre da anca. Na mão, os óculos de visão nocturna que acabara de tirar. As palavras de Korsak acorreram-lhe à mente: Mr. James "Velhaco" Bond.

Dean deu um passo na direcção dela.

A arma foi instantaneamente engatilhada.

Fique onde está.

Calma, Rizzoli. Não há motivos para me estoirar a cabeça.

Não há?

Vou apenas aproximar-me. Para podermos conversar.

Podemos conversar muito bem a esta distância. Dean olhou para os faróis relampejantes dos veículos.

Quem pensa que fez pelo rádio o aviso de homicídio? Rizzoli permaneceu firme e sem titubear.

Use a cabeça, detective. Parto do princípio de que a tem e boa. Dean deu mais um passo.

Pare onde está!

Pronto! Ergueu as mãos. Pronto! repetia serenamente.

Que está a fazer aqui?

O mesmo que você. É aqui que está a acção.

Como sabe? Se foi você que avisou sobre aquele dez cinquenta e quatro, como sabia que a acção estava aqui?

Não sabia.

Aconteceu vir cá por simples acaso e encontrou-o?

Ouvi a central pedir uma averiguação de entrada forçada no Cemitério de Fairview. Possível assaltante.

E então?

Então imaginei se não seria o nosso indivíduo.

Imaginou? Sim.

Deve ter tido uma boa razão.

Instinto.

Não me goze, Dean. Aparece totalmente equipado para uma operação nocturna e é suposto eu acreditar que você apenas veio o mais rapidamente possível averiguar um possível assalto?

O meu instinto é bom.

Tinha de possuir percepção extra-sensorial para ser tão bom assim.

Estamos a perder tempo, detective. Ou me detém, ou trabalha comigo.

Estou inclinada para a primeira hipótese.

Ele fitou-a com uma expressão impertubável. Havia demasiadas coisas que ele não estava a dizer-lhe, demasiados segredos que ela nunca lhe sacaria. Não ali, nem naquela noite. Por fim, Rizzoli baixou a arma, mas não a meteu no coldre. Gabriel Dean não lhe inspirava esse nível de confiança.

Como foi o primeiro a chegar ao local, o que viu?

Encontrei o guarda, que já fora abatido. Usei o rádio do carro dele para chamar a central. O sangue estava ainda quente. Pensei que havia uma possibilidade de o nosso homem se encontrar ainda por perto. Por isso, fui à procura.

Rizzoli resfolegou em tom de dúvida.

Nas árvores?

Não vi outros veículos no cemitério. Sabe que bairros nos cercam, detective?

Rizzoli hesitou.

Dedham a leste. Hyde Park a norte e a sul.

Exacto. Bairros residenciais de todos os lados e com imensos lugares para se estacionar um carro. De lá, é apenas uma pequena caminhada até este cemitério.

Porque viria cá o assassino?

Que sabemos acerca dele? O nosso homem é obcecado pelos mortos. Adora o seu cheiro, adora tocar-lhes. Conserva os cadáveres até que o fedor se torne impossível de disfarçar, de ocultar. Só então se desfaz dos restos mortais. É um homem que provavelmente se excita só por andar num cemitério. Portanto, ei-lo ali, no escuro, comprazendo-se com uma pequena aventura erótica.

Isso é doentio.

Entre na mente dele, no universo dele. Podemos achar que é doentio, mas, para ele, este local é uma pequena parcela do paraíso. O local de repouso dos mortos. Precisamente o local onde viria o "Dominador". Anda por aqui e provavelmente imagina todo um harém de mulheres adormecidas mesmo debaixo dos seus pés. Mas, depois, foi incomodado, surpreendido com a chegada do agente de segurança. Um guarda que provavelmente não esperava ter de lidar com algo mais perigoso do que alguns adolescentes em busca de uma aventurazinha nocturna.

E o guarda permitiu que um homem sozinho o abordasse e lhe cortasse a garganta?

Dean ficou silencioso. Não tinha explicação. Nem Rizzoli.

Quando começaram a descer a ladeira, a noite pulsava de luzes azuis e a equipa de Rizzoli estendia já a fita delimitadora do local do crime, prendendo-a a estacas. Rizzoli olhou para o sinistro carnaval de actividade e subitamente sentiu-se demasiado exausta para lidar com o que quer que fosse. Raramente questionara a sua capacidade de avaliação ou duvidara dos seus instintos. Mas, naquela noite, confrontada com a prova do seu fracasso, perguntava-se se Gabriel Dean não teria razão... que ela não tinha arcaboiço para conduzir a investigação, que o trauma infligido por Warren Hoyt lhe causara tantos danos que já não conseguia funcionar como polícia. Naquela noite, fizera a escolha errada, recusara-se a ceder alguém da sua equipa para responder a um pedido de averiguação de invasão de propriedade. Estávamos a menos de dois quilómetros. Sentados nos nossos canos à espera de nada enquanto este homem estava a morrer. A série de derrotas caíra-lhe sobre os ombros com tanto peso que sentiu que se lhe vergavam as costas como se fosse atingida por verdadeiros pedregulhos. Voltou para o carro e abriu o telemóvel com um movimento seco. Frost respondeu.

A central de táxis confirma a história do taxista disse-lhe ele. Receberam a chamada às duas e dezasseis. Um indivíduo do sexo masculino que afirmou que o automóvel estava sem combustível em Enneking Parkway. A central enviou Mister Wilensky. Estamos a tentar descobrir de que número veio a chamada.

O nosso homem não é estúpido. A chamada não leva a lado nenhum. Ou utilizou uma cabina telefónica ou um telemóvel roubado. Porra! Deu uma palmada no painel de instrumentos.

Então, que fazemos com o taxista? Não parece culpado de nada...

Soltem-no.

Tens a certeza?

Foi tudo um jogo, Frost. O nosso homem sabia que estávamos à espera dele. Está a brincar connosco. Quer mostrar que quem controla é ele. Que é mais esperto do que nós. E acabou de o provar.

Desligou e ficou sentada por momentos, reunindo energias para sair do carro e enfrentar o que se seguiria. Outra investigação de homicídio. Todas as perguntas que certamente se seguiriam acerca das decisões que tomara nessa noite. Pensou na forma como depusera intensamente as suas esperanças na convicção de que o indivíduo aderiria ao seu padrão. Em vez disso, ele utilizara esse mesmo padrão para escarnecer dela. Para produzir o fiasco para o qual olhava agora.

Vários polícias que se encontravam junto da fita delimitadora do local do crime voltaram-se e olharam na sua direcção sinal de que por muito cansada que estivesse não poderia esconder-se no carro durante muito mais tempo. Lembrou-se do café que estava na garrafa térmica de Korsak; por mais horroroso que fosse, podia aproveitar a injecção de cafeína. Voltou-se para pegar no termo que se encontrava no banco de trás e, de repente, deteve-se. Olhou para os agentes da autoridade parados entre os veículos. Viu Gabriel Dean, esbelto e macio como um gato preto, que percorria o perímetro do local do crime. Viu polícias a perscrutarem o chão com as lanternas a relampejar de um lado para o outro. Mas não viu Korsak.

Saiu do carro e aproximou-se do guarda Doud, que fizera parte da equipa de vigilância.

Viu o detective Korsak? perguntou.

Não, minha senhora.

Não estava aqui quando você chegou? Não estava à espera ao pé do corpo?

Ainda não o vi.

Rizzoli olhou para as árvores onde encontrara Gabriel Dean. O Korsak ia a correr logo atrás de mim. Mas não chegou a apanhar-me. E não voltou...

Começou a caminhar em direcção às árvores, repetindo o percurso que fizera ao correr pelo cemitério. Durante essa corrida, estivera tão concentrada na perseguição que dera pouca atenção a Korsak, que seguia no seu encalce. Recordava-se do seu próprio medo, do coração a bater, do vento nocturno a fustigar-lhe o rosto. Lembrava-se da respiração pesada de Korsak ao tentar acompanhá-la. Depois, ficara para trás e Rizzoli perdera-lhe o rasto.

Começou então a andar mais depressa, varrendo o solo, à esquerda e à direita, com o feixe de luz da lanterna. Fora por aquele caminho que seguira? Não, não, passara por uma fila diferente de pedras tumulares. Reconheceu um jazigo que sobressaía à sua esquerda.

Corrigindo o percurso, dirigiu-se ao jazigo e quase tropeçou nas pernas de Korsak.

Korsak tombara junto a uma sepultura, com cujo granito se fundia a sombra do seu tronco corpulento. Rizzoli ajoelhou-se imediatamente e gritou a pedir ajuda enquanto o rolava e deitava de costas. Um olhar de relance para o rosto inchado e escuro disse-lhe que Korsak estava em paragem cardíaca.

Palpou-lhe o pescoço, desejando tão desesperadamente detectar a pulsação da carótida que quase confundiu a forte palpitação dos seus próprios dedos com a dele. Mas Korsak não tinha pulsação.

Bateu com o punho no peito dele. Nem mesmo aquele soco violento lhe fez despertar o coração.

Inclinou-lhe a cabeça para trás e abriu-lhe o maxilar saliente para deixar entrar o ar. Muita coisa em Korsak lhe repugnava anteriormente. O cheiro a suor e a cigarro, a respiração ofegante, o aperto de mão pegajoso. Nada disso lhe veio à mente ao cobrir-lhe a boca com a dela, soprando-lhe para os pulmões. Sentiu o peito dele expandir-se e ouviu um silvo ruidoso quando os pulmões voltaram a expelir o ar. Pôs-lhe as mãos no peito e começou a praticar a reanimação cardiopulmonar, fazendo o trabalho a que o coração dele se recusava. Continuou a comprimir-lhe o peito, enquanto outros polícias vinham em seu auxílio. Os braços começaram a tremer-lhe e o colete ficou ensopado em suor. Enquanto o massajava, amaldiçoava-se mentalmente. Como não dera por ele ali estendido? Porque não notara a sua ausência? Ardiam-lhe os músculos e doíam-lhe os joelhos, mas não parou. Devia-lhe isso e não o abandonaria uma segunda vez.

Uma sirene uivou mais perto.

Rizzoli ainda tentava reanimá-lo quando chegaram os paramédicos. Só desistiu quando alguém lhe pegou num braço e a afastou com firmeza. Recuou com as pernas trémulas e os paramédicos substituíram-na e introduziram nele a agulha de um tubo ligado a um saco de soro. Inclinaram a cabeça de Korsak para trás e enfiaram-lhe pela garganta o tubo de um laringoscópio.

Não consigo ver as cordas vocais!

Credo, que grande pescoço!

Ajuda-me a reposicionar.

Certo. Tenta de novo!

O paramédico voltou a inserir o laringoscópio, esforçando-se por aguentar o pesado maxilar de Korsak. Com o pescoço maciço e a língua inchada, Korsak parecia um touro acabado de matar.

O tubo entrou!

Rasgaram-lhe a camisa, pondo à mostra um espesso emaranhado de pêlos, e colocaram-lhe as pás do desfibrilador. No monitor do electrocardiógrafo apareceu uma linha denteada.

Está em taquicardia ventricular!

As pás do desfibrilador dispararam e o peito de Korsak foi percorrido por uma descarga eléctrica. O sacão levantou-lhe da relva o tronco pesado, que voltou a cair num monte flácido. Os feixes de luz das múltiplas lanternas dos polícias revelavam cada pormenor cruel, desde a pálida barriga de cerveja às mamas quase femininas que são a vergonha de muitos homens com excesso de peso.

Pronto! Já tem ritmo. Sinusçidal...

Tensão arterial?

A manga encheu-se em torno do braço carnudo.

A sistólica a noventa. Vamos levá-lo!

Mesmo depois de terem transferido Korsak para a ambulância e os faróis da retaguarda terem desaparecido na noite, Rizzoli não se mexeu.

Entorpecida pelo cansaço, continuou a fitar a noite, imaginando o que viria a seguir para Korsak. As luzes cruas das Urgências. Mais agulhas, mais tubos. Ocorreu-lhe que devia telefonar à mulher dele, mas não sabia o nome dela. De facto, não sabia quase nada acerca da sua vida pessoal e abalou-a de forma insuportável saber muito mais sobre os falecidos Yeager do que sobre o homem que estava vivo e respirava e que trabalhara a seu lado. O seu parceiro de trabalho, junto de quem falhara.

Fitou a relva onde Korsak jazera. Ainda conservava a marca do seu peso. Imaginou-o a correr atrás de si, mas com demasiada falta de ar para conseguir acompanhá-la. Apesar disso, devia ter-se esforçado, impelido pela vaidade masculina, pelo orgulho. Ter-se-ia agarrado ao peito antes de cair? Teria tentado pedir ajuda?

De qualquer modo, não o ouviria. Estava demasiado ocupada a correr atrás de sombras. A tentar resgatar o seu próprio orgulho.

Detective Rizzoli? disse o agente Doud. Aproximara-se tão silenciosamente que ela nem se apercebera de que ele se encontrava a seu lado.

Diga.

Infelizmente, acho que encontrámos outro.

O quê?

Outro corpo.

Espantada, não conseguiu dizer nada ao seguir pela relva húmida atrás de Doud, que com a lanterna iluminava o caminho mergulhado na escuridão. Outras luzes em movimento mais à frente indicavam o destino. Quando Rizzoli finalmente detectou o primeiro bafo de decomposição, estavam a várias centenas de metros do local onde o segurança caíra.

Quem o encontrou? perguntou ela.

O agente Dean.

Porque é que ele andava a vasculhar isto tudo?

Calculo que estivesse a fazer uma verificação geral. Dean voltou-se para ela quando Rizzoli se aproximou.

Acho que encontrámos a Karenna Ghent disse ele.

A mulher jazia sobre uma pedra tumular, tinha os cabelos pretos dispersos à sua volta e molhos de folhas entrelaçadas nas madeixas escuras, numa decoração escarninha da carne mortificada. Estava morta havia tempo suficiente para o ventre inchar e lhe escorrer fluido das narinas. Mas o impacto de todos estes pormenores diluía-se e transformava-se num horror ainda maior perante o que fora feito no baixo-ventre. Rizzoli fitou a ferida arrepiante. Um único corte transversal.

O chão pareceu ceder sob os seus pés e Rizzoli recuou a cambalear, buscando às cegas apoio e só encontrando o vazio.

Foi Dean quem a agarrou, pegando-lhe firmemente pelo ombro.

Não é coincidência disse-lhe ele.

Ela ficou calada e com os olhos fixos na ferida terrível. Lembrava-se de feridas semelhantes noutras mulheres. Lembrava-se de um Verão ainda mais quente do que o actual.

Ele tem acompanhado as notícias afirmou Dean. Sabe que é você quem conduz a investigação. Sabe como tirar vantagens, sabe que também pode jogar connosco ao gato e ao rato. É o que isto é para ele agora. Um jogo.

Embora registasse as palavras de Dean, Rizzoli não comprendia o que ele tentava dizer-lhe.

Que jogo?

Não está a ver o nome? Apontou a lanterna para as palavras inscritas na pedra de granito.

Anthony Rizzoli

1901-1962

Marido e pai muito querido

É um procedimento de escárnio disse Dean. E destina-se a si pessoalmente.

 

A mulher que estava sentada à cabeceira de Korsak tinha cabelo castanho liso que parecia não ser lavado nem penteado havia dias. Não tocava nele, fitava simplesmente a cama com olhar vazio e tinha as mãos pousadas no colo, sem vida, como as de um manequim. Rizzoli manteve-se do lado de fora do cubículo da Unidade de Cuidados Intensivos, a decidir se entrava ou não. Finalmente, a mulher levantou a cabeça e os olhos de ambas encontraram-se através do vidro. Rizzoli não podia ir-se simplesmente embora. Entrou no cubículo.

Mistress Korsak? perguntou.

Sim.

Sou a detective Rizzoli. Jane. Por favor, trate-me por Jane. A expressão da mulher continuou impávida. Era óbvio que não reconhecera o nome.

Desculpe, mas não sei o seu nome próprio disse Rizzoli.

Diane. A mulher ficou calada por momentos e depois franziu as sobrancelhas. Desculpe. Repita lá, quem é você?

Jane Rizzoli. Pertenço à polícia de Boston. Tenho andado a trabalhar com o seu marido num caso. Ele deve ter falado disso.

Diane encolheu vagamente os ombros e olhou para o marido. O rosto dela não exprimia nem desgosto nem medo. Só a passividade entorpecida da exaustão.

Por momentos, Rizzoli deixou-se ficar simplesmente em silêncio a olhar para a cama. Tantos tubos!, pensou. Tantas máquinas. E, no meio, estava Korsak, reduzido a carne insensível. Os médicos tinham confirmado o enfarte e, embora o ritmo cardíaco estivesse agora estável, Korsak continuava mergulhado em letargia. Estava de boca aberta, da qual sobressaía um tubo endotraqueal como uma serpente de plástico. Pendurado da cama, um saco recolhia um fio lento de urina. Embora as roupas da cama lhe ocultassem as partes genitais, o peito e o abdómen estavam descobertos e uma perna peluda emergia do lençol e mostrava o pé de unhas amarelas que precisavam de ser cortadas. Ao anotar esses pormenores, Rizzoli sentiu-se envergonhada por invadir a sua privacidade, por vê-lo no seu estado mais vulnerável. Porém, não conseguia olhar para outro lado. Sentia-se compelida a fazê-lo e os olhos eram atraídos para todos os pormenores íntimos, para as próprias coisas que, estivesse ele consciente, ele não quereria que ela visse.

Precisa de fazer a barba disse Diane.

Era uma preocupação muito trivial, mas fora a única observação espontânea feita por Diane. Não movera um músculo, continuara sentada perfeitamente imóvel, com as mãos sem energia e a expressão plácida como se esculpida em pedra.

Rizzoli procurou algo para dizer, algo que, em sua opinião, devia dizer para a confortar, e optou por uma frase feita:

Ele é um lutador. Não desiste com facilidade.

As suas palavras caíram como pedras num lago sem fundo. Nenhuma ondulação, nenhum efeito. Decorreu um longo silêncio antes que os olhos azuis inexpressivos de Diane finalmente se voltassem para ela.

Desculpe, esqueci-me outra vez do seu nome.

Jane Rizzoli. O seu marido e eu estávamos juntos numa acção de vigilância.

Ah! É você.

Rizzoli calou-se, subitamente assolada por um sentimento de culpa. Sim, sou eu. A que o abandonou. A que o deixou estendido no escuro porque estava num frenesim de salvar"a minha maldita noite.

Obrigada disse Diane.

Porquê? perguntou Rizzoli franzindo as sobrancelhas.

Por tudo o que fez. Por tê-lo ajudado.

Rizzoli fitou os olhos azuis de expressão vaga da mulher e pela primeira vez reparou nas pupilas fortemente contraídas. Olhos de quem está anestesiado, pensou. Diane Korsak estava entorpecida por calmantes.

Rizzoli olhou para Korsak. Lembrou-se da noite em que o chamara ao local do assassínio dos Ghent e em que ele chegara embriagado. Lembrou-se também da noite em que tinham estado juntos no parque de estacionamento da morgue e Korsak parecia relutante em voltar para casa. Era aquilo o que Korsak enfrentava todas as noites? Uma mulher de olhar vazio e voz de robô?

Nunca me contou nada e eu nunca me dei ao trabalho de perguntar.

Aproximou-se da cama e apertou-lhe a mão. Recordou-se de como o seu aperto de mão húmido costumava repugnar-lhe. Naquele momento, não. Ter-se-ia alegrado se ele tivesse retribuído. Mas as mãos de Korsak permaneceram flácidas.

Eram onze da manhã quando Rizzoli finalmente entrou no seu apartamento. Correu os dois ferrolhos, carregou no botão da fechadura e prendeu a corrente. Noutros tempos, teria pensado que todas aquelas fechaduras eram sinal de paranóia e ficaria satisfeita com uma fechadura simples e uma arma na mesinha-de-cabeceira. Mas, havia um ano, Warren Hoyt mudara a sua vida e desde então a sua porta adquirira aqueles luzidios acessórios de cobre. Olhou para a panóplia de ferrolhos, subitamente consciente de que se tornara igualzinha a todas as vítimas de crimes violentos, desesperada por se barricar em casa e isolar-se do mundo exterior.

O Cirurgião fizera-lhe isso.

E, agora, o novo assassino a quem chamavam o "Dominador" acrescentara a sua voz ao coro de monstros que bramiam do outro lado da porta. Gabriel Dean apercebera-se imediatamente de que a escolha da sepultura onde fora depositado o cadáver de Karenna Ghent não fora acidental. Embora o ocupante dessa sepultura, Anthony Rizzoli, não fosse seu parente, o nome em comum era nitidamente uma mensagem destinada a ela.

O "Dominador" sabe como me chamo.

Não retirou o coldre enquanto não fez uma ronda completa ao apartamento. Não era um espaço grande e precisou de menos de um minuto para olhar para a cozinha e para a sala, percorrendo a seguir o pequeno corredor até ao quarto, onde abriu o roupeiro e espreitou para debaixo da cama. Só então desafivelou o coldre e guardou a arma na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Despiu-se e foi para a casa de banho. Fechou a porta à chave: mais um reflexo automático e completamente desnecessário, mas era a única maneira de conseguir entrar para o duche e arranjar coragem suficiente para correr a cortina. Momentos depois, após ter aplicado o amaciador no cabelo, foi acometida pela sensação de que não estava sozinha. Abriu de repelão a cortina e olhou para a casa de banho vazia, com o coração a martelar. A água escorria-lhe pelos ombros e dali para o chão.

Fechou a torneira e encostou-se à parede de azulejos respirando profundamente, à espera que o coração abrandasse. Através do rumor das suas próprias pulsações, ouvia o zunzum da ventoinha. Os ruídos surdos da canalização do prédio. Os sons quotidianos, nos quais, até ali, não se dera ao trabalho de reparar, mas cuja trivialidade se tornara tranquilizadora.

Quando as pulsações finalmente abrandaram e se tornaram normais, a água gelara-lhe a pele. Saiu do duche, secou-se com a toalha e depois ajoelhou-se para limpar o chão. Apesar da sua bravata em serviço, da sua actuação de polícia calejada, estava agora reduzida a pouco mais do que carne trémula. Viu no espelho como o medo a modificara. Devolvia-lhe o olhar uma mulher que perdera peso, cuja estrutura já de si esguia lentamente se reduzia a magreza. Cujo rosto, outrora quadrado e vigoroso, parecia agora insubstancial como o de um espectro, de olhos grandes e escuros com olheiras cada vez mais fundas.

Afastou-se rapidamente do espelho e dirigiu-se para o quarto. Com o cabelo ainda húmido, deixou-se cair na cama e ficou de olhos abertos, sabendo que podia tentar dormir pelo menos algumas horas. Mas a luz forte do dia penetrava pelas frestas das persianas e ouvia o ruído do trânsito na rua em baixo. Era meio-dia, estava acordada havia cerca de trinta horas e não comia há doze. Apesar disso, nem tinha apetite nem vontade de adormecer. Os acontecimentos da madrugada ainda zumbiam como uma corrente eléctrica pelo seu sistema nervoso e as recordações crepitavam numa acrobacia repetitiva. Via a garganta aberta do segurança, a cabeça torcida num ângulo impossível em relação ao corpo. Via Karenna Ghent e as folhas emaranhadas nos seus cabelos.

E via Korsak com o corpo eriçado de tubos e fios.

As três imagens vinham-lhe à mente ciclicamente como uma luz intermitente e não conseguia expulsá-las. Não conseguia calar o zumbido. Seria assim a loucura?

Umas semanas antes, o Dr. Zucker aconselhara-a a procurar ajuda e ela, irritada, ignorara-o. Perguntava-se agora se ele detectara alguma coisa nas suas palavras ou no seu olhar de que nem mesmo ela tivesse consciência. As primeiras fissuras na sua sanidade, abrindo-se cada vez mais profundas e largas, desde que o Cirurgião abalara a sua vida.

O toque do telefone acordou-a. Parecia-lhe que acabara de fechar os olhos e a primeira emoção que borbulhou nela ao agarrar no auscultador foi de raiva por não lhe concederem um momento sequer de descanso. Respondeu, breve:

Rizzoli.

Há... Detective Rizzoli, aqui Yoshima, do Instituto de Medicina Legal. A doutora Isles está à espera que a senhora chegue por causa da autópsia de Mistress Ghent.

Vou já.

Bem, ela já começou e...

Que horas são?

Quase quatro. Tentámos contactá-la pelo bíper, mas não respondeu.

Sentou-se tão abruptamente que o quarto rodopiou. Sacudiu a cabeça e olhou para o relógio que tinha ao pé da cama: três horas e cinquenta e dois minutos. Dormira de tal maneira que não ouvira nem o alarme nem o som do bíper.

Desculpe disse ela. Estou aí logo que possa.

Aguarde um momento. A doutora Isles quer falar consigo. Rizzoli ouviu o tilintar de instrumentos contra uma bandeja de metal, depois a voz da Dra. Isles surgiu ao telefone.

Detective Rizzoli, vem para cá, não?

Preciso de uma meia hora para chegar aí.

Nesse caso, espero por si.

Não queria atrasá-la.

O doutor Tierney também está a chegar. Ambos precisam de ver isto.

Era muitíssimo invulgar. De todos os patologistas do pessoal entre os quais podia escolher, por que motivo a Dra. Isles iria buscar o Dr. Tierney à sua recente aposentação?

Há algum problema?

A ferida no abdómen da vítima disse a Dra. Isles. Não é um simples corte. É uma incisão cirúrgica.

O Dr. Tierney já mudara de roupa e aguardava na sala de autópsias quando Rizzoli chegou. Tal como a Dra. Isles, geralmente dispensava qualquer protecção facial, usando apenas uma pequena máscara de plástico através da qual Rizzoli podia ler-lhe a expressão soturna. Toda a gente que se encontrava no aposento parecia igualmente sombria e fitaram Rizzoli com um silêncio enervante quando esta entrou. Por essa altura, a presença do agente Dean já não a surpreendia e retribuiu-lhe o olhar com um leve aceno de cabeça, perguntando-se se ele conseguira arranjar também algumas horas de sono. Pela primeira vez, viu cansaço nos seus olhos. Até Gabriel Dean se abatia lentamente com o peso daquela investigação.

O que foi que me falhou? perguntou. Como não estava ainda preparada para enfrentar os restos mortais, manteve o olhar fixo na Dra. Isles.

Terminámos o exame exterior. Os peritos já recolheram fibras, detritos sob as unhas e cabelos soltos.

E quanto aos esfregaços vaginais? Isles acenou com a cabeça.

Havia esperma com motilidade.

Rizzoli inspirou e finalmente fitou o corpo de Karenna Ghent. O cheiro revoltante quase suplantou o mentol que, pela primeira vez, pusera sob as narinas. Já não confiava no seu estômago. Tanta coisa correra mal nas últimas semanas que perdera a confiança nas próprias forças que a tinham sustentado ao longo de outras investigações. Quando pusera os pés naquele aposento, o que receara não era a autópsia em si, e sim a sua própria reacção. Não podia prever nem controlar a forma como reagiria e isso, mais do que qualquer outra coisa, assustava-a.

Comera um punhado de biscoitos em casa de modo a não enfrentar a provação de estômago vazio e sentiu-se aliviada por não sentir o mínimo enjoo apesar dos cheiros e do grotesco aspecto dos restos mortais. Conseguiu manter a compostura ao olhar para o abdómen amarelo-esverdeado. A incisão em Y ainda não fora feita. A única coisa para onde não conseguia convencer-se a olhar era para a ferida aberta no ventre. Em vez disso, olhou para o pescoço e para as contusões arredondadas, visíveis sob os ângulos do maxilar apesar da descoloração post mortem subjacente. As marcas feitas pelos dedos do assassino ao pressionarem a carne.

Estrangulamento manual disse Isles. Como a Gail Yeager. O modo mais íntimo de se matar alguém, classificara-o o Dr. Zucker.

Pele com pele. As mãos dele na carne dela. Pressionando-lhe a garganta enquanto sentia a vida escoar-se.

E os raios X?

Uma fractura do istmo esquerdo da tiróide.

O que nos preocupa não é o pescoço interveio o Dr. Tierney. É a ferida. Sugiro que calce umas luvas, detective. Precisa de examinar isto pessoalmente.

Rizzoli dirigiu-se ao armário onde estavam arrumadas as luvas. Levou algum tempo a calçar um par de luvas pequenas, servindo-se desses momentos para se controlar. Por fim, regressou para junto da mesa.

A Dra. Isles já apontara a luz de cima para o abdómen. As bordas da ferida estavam abertas como lábios enegrecidos.

A camada de pele foi aberta com um único corte disse a Dra. Isles. Feito com uma lâmina não serrilhada. Uma vez sob a pele, seguiram-se incisões mais profundas. Primeiro, a fase superficial, depois o músculo e finalmente o peritoneu pélvico.

Rizzoli olhou para a caverna da ferida, pensando na mão que empunhara a lâmina, uma mão tão firme que traçara a incisão com um golpe único e confiante.

A vítima estava viva quando ele fez isto? perguntou Rizzoli com brandura.

Não. Ele não usou sutura e não houve sangramento. Foi uma excisão post mortem executada depois de o coração da paciente ter parado e a circulação cessado. A maneira como este procedimento foi realizado... a sequência metódica de incisões... indica que tem experiência cirúrgica. Já fez isto antes.

Vamos, detective insistiu o Dr. Tierney. Examine a ferida. Rizzoli hesitou, sentindo as mãos geladas nas luvas de borracha.

Lentamente, introduziu a mão na incisão, pesquisando o interior da pelve de Karenna Ghent. Sabia exactamente o que ia encontrar, mas, mesmo assim, a descoberta abalou-a. Olhou para o Dr. Tierney e viu a confirmação nos olhos deste.

O útero foi removido disse ele. Rizzoli retirou a mão.

Foi ele proferiu suavemente. Foi o Warren Hoyt quem fez isto.

Mas tudo o mais é coerente com o nosso "Dominador" disse Gabriel Dean. O sequestro, o estrangulamento. Relações sexuais post mortem...

Mas não isto declarou Rizzoli fitando a ferida. Isto é uma fantasia do Hoyt. É isto o que o excita. Cortar e retirar o próprio órgão que as define como mulheres e lhes dá um poder que ele nunca terá. Olhou directamente para Dean. Conheço o trabalho dele. Já o vi anteriormente.

Ambos vimos disse o Dr. Tierney a Dean. Realizei as autópsias às vítimas do Hoyt o ano passado. Esta técnica é dele.

Dean abanou a cabeça com incredulidade.

Dois assassinos diferentes mas que partilham técnicas?

O Dominador e o Cirurgião disse Rizzoli. Encontraram-se um ao outro.

 

Sentou-se no carro. O ventilador soprava ar quente e, no rosto, formavam-se-lhe gotas de suor. Nem mesmo o calor da noite conseguia afastar o gelo da sala de autópsias que continuava a sentir. Devo ter apanhado algum vírus, pensou, massajando as têmporas. E não era de admirar; andara a todo o gás durante dias e agora ressentia-se. Doía-lhe a cabeça e a única coisa que queria era enfiar-se na cama e dormir durante uma semana.

Dirigiu-se imediatamente para casa. Entrou no apartamento e executou novamente o ritual que se tornara parte tão importante na manutenção da sua saúde mental. Correr os ferrolhos e colocar a corrente na ranhura foram actos executados com cuidado deliberado e só depois de completar a lista de procedimentos de segurança, dar a volta a todas as fechaduras e espreitar em todos os armários, é que finalmente atirou com os sapatos e despiu as calças e a blusa. Apenas de roupa interior, deixou-se cair na cama e começou a massajar as têmporas, perguntando-se se teria ainda aspirina no armário dos medicamentos, mas sentindo-se demasiado exausta para se levantar e procurar.

A campainha do apartamento zumbiu. Levantou-se de um salto com o pulso a galopar e toques de alarme a soar em cada nervo. Não estava à espera de visitas, nem as queria. O zumbido soou novamente com um som de palha de aço a raspar terminais nervosos expostos.

Rizzoli levantou-se, foi à sala e carregou no botão do intercomunicador.

Sim?

Gabriel Dean. Posso subir?

Era a última voz que esperava ouvir e ficou tão admirada que, por momentos, não respondeu.

Detective Rizzoli? disse ele.

De que se trata, agente Dean?

Da autópsia. Há coisas sobre as quais precisamos de conversar. Rizzoli carregou no botão e quase de imediato desejou não o ter feito. Não confiava em Dean e, apesar disso, estava prestes a deixá-lo entrar no porto seguro do seu apartamento. Ao carregar descuidadamente no botão, tomara a decisão e agora não podia mudar de ideias.

Mal tivera tempo para vestir um roupão de algodão quando ele bateu. Através do orifício do visor da porta, as feições duras dele surgiam distorcidas. Sinistras. Quando acabou de correr os vários ferrolhos, a imagem grotescamente distorcida solidificara-se-lhe na mente. A realidade era muito menos ameaçadora. O homem que se encontrava à sua porta tinha olhos cansados e um rosto que exibia a tensão de ter testemunhado demasiados horrores e horas de sono a menos.

No entanto, a sua primeira pergunta foi sobre ela:

Está a aguentar-se bem?

Ela percebeu as implicações da pergunta: Que ela não estava bem. Que precisava de ser examinada, que era uma agente da polícia prestes a quebrar-se em mil fragmentos.

Estou perfeitamente bem respondeu.

Saiu tão depressa depois da autópsia... Antes de termos oportunidade de conversar...

Sobre quê?

O Warren Hoyt.

Que quer saber acerca dele?

Tudo.

Receio que levasse a noite inteira e estou cansada. Apertou mais o roupão, subitamente embaraçada. Fora sempre importante para ela parecer profissional e em geral vestia um casaco antes de se dirigir para o local de um crime. Agora, estava diante de Dean apenas de roupão e roupa interior e não gostava da sensação de vulnerabilidade.

Estendeu a mão para a porta, gesto com uma mensagem inequívoca: Esta conversa acabou.

Dean não se moveu da soleira da porta.

Ouça, admito que cometi um erro. Desde o início que devia ter-lhe dado ouvidos. Foi você a primeira a ver isso. Não reconheci os paralelos com o Hoyt.

Isso é porque não o conheceu.

Por isso mesmo, fale-me dele. Precisamos de trabalhar juntos, Jane.

O riso dela foi cortante como vidro.

Agora está interessado em trabalho de equipa? Isso é novo e diferente.

Resignada ao facto de que ele não se iria embora, voltou-se e dirigiu-se à sala de estar. Ele seguiu-a e fechou a porta atrás de si.

Fale-me do Hoyt.

Pode ler o processo dele.

Já li.

Nesse caso, sabe tudo o que é preciso.

Nem tudo.

Rizzoli voltou-se de frente para ele.

Que mais há?

Quero saber o que você sabe. Aproximou-se e ela sentiu um sobressalto de alarme por estar em tão grande desvantagem diante dele, descalça e demasiado cansada para se defender da sua provocação. Parecia uma provocação. As exigências que fazia e o modo como o olhar dele parecia penetrar na pouca roupa que ela vestia.

Há uma espécie de laço emocional entre vocês os dois disse ele. Uma ligação.

Raios, não lhe chame uma ligação.

Como lhe chamaria você?

Ele é o criminoso e eu quem o apanhou. Tão simples como isso.

Pelo que ouvi dizer, não é assim tão simples. Quer o queira admitir, quer não, há uma ligação entre ambos. Ele voltou a entrar na sua vida propositadamente. Aquela sepultura onde deixaram o corpo da Karenna Ghent não foi escolhida ao acaso.

Rizzoli não disse nada. Nesse ponto, não podia discordar.

Ele é um caçador, tal como você prosseguiu Dean. Ambos caçam seres humanos. Isso é um laço entre ambos. Terreno comum.

Não há terreno comum.

Mas compreendem-se um ao outro. Independentemente dos seus sentimentos, está ligada a ele. Você viu a influência dele sobre aquele a que chamamos o "Dominador" antes de qualquer outra pessoa. Já estava muito adiantada em relação a nós.

E pensa você que eu preciso de um psiquiatra!

Sim. Naquela altura, pensei.

Então, não sou doida. Sou brilhante.

Descobriu o caminho para o interior da mente dele. Pode ajudar-nos a descobrir o que ele fará a seguir. Que quer ele?

Como hei-de saber?

Você teve com ele um contacto mais íntimo do que qualquer outro polícia.

íntimo? É assim que lhe chama? Aquele filho da mãe quase me matou.

E não há nada mais íntimo do que o assassínio. Há?

Nesse momento, odiou-o, porque afirmara uma verdade da qual ela preferia esconder-se. Chamara a atenção para a única coisa que ela não suportava reconhecer: que ela e Warren Hoyt estavam mutuamente ligados para sempre. Que o medo e a aversão são emoções mais fortes do que alguma vez o será o amor.

Afundou-se no sofá. Outrora, teria ripostado. Outrora, teria sido suficientemente violenta para responder a qualquer homem palavra a palavra. Mas, naquela noite, estava cansada, muito cansada, e não tinha forças para se furtar às perguntas de Dean. Este continuaria a pressioná-la e a espicaçá-la até obter respostas e ela render-se-ia ao inevitável. Despachar o assunto para que ele a deixasse em paz.

Endireitou-se e viu-se a olhar fixamente para as mãos e para as cicatrizes iguais em ambas as palmas. Estas eram somente as lembranças mais óbvias deixadas por Hoyt; as outras cicatrizes não eram tão visíveis: as fracturas consolidadas das costelas e dos ossos faciais que ainda se podiam ver nas radiografias. Menos visíveis do que quaisquer outras eram as fendas que as linhas de fractura continuavam a abrir na sua vida como se fossem rachas deixadas por um terramoto. Nas últimas semanas, sentira que essas fendas começavam a alargar-se como se o próprio chão ameaçasse ceder sob os seus pés.

Não me apercebi de que ele ainda lá estava murmurou ela. Mesmo atrás de mim naquela cave. Naquela casa...

Dean sentou-se numa cadeira diante dela.

Foi você quem o encontrou. O único agente que soube onde procurar.

Sim.

Porquê?

Sorte de principiante disse encolhendo os ombros e dando uma risada.

Não, teve de ser mais do que isso.

Não me atribua méritos que não mereço.

Julgo que não lhe tenho atribuído mérito suficiente, Jane. Ela levantou a cabeça e viu que ele a fitava com uma frontalidade que lhe deu vontade de se esconder. Mas não havia lugar para onde recuar, não existia nenhuma defesa que pudesse erguer contra um olhar tão penetrante. Até onde é que ele vê?, perguntou-se ela. Saberá até que ponto me faz sentir exposta?

Conte-me o que aconteceu na cave pediu-lhe ele.

Sabe o que aconteceu. Consta das minhas declarações.

Há coisas que as pessoas omitem nas declarações.

Não há mais nada a dizer.

Nem sequer vai tentar?

A cólera explodiu dentro dela como uma granada.

Não quero pensar nisso!

Mas não consegue evitar e volta sempre a isso, ou consegue? Ela olhou para ele, perguntando a si mesma que jogo estaria ele a jogar e como fora tão facilmente arrastada para isso. Conhecera outros homens igualmente carismáticos, homens que conseguiam atrair o olhar das mulheres num piscar de olhos. Rizzoli tinha bom senso suficiente para se manter à distância desses homens e considerá-los como aquilo que eram: geneticamente abençoados entre os simples mortais. Pouca utilidade esses homens tinham para ela, bem como ela para eles. Mas, naquela noite, havia algo de que Gabriel Dean necessitava e este concentrava nela todo o seu poder de atracção. Estava a resultar. Nunca antes um homem a fizera sentir-se tão confusa e simultaneamente tão excitada.

Ele armou-lhe uma cilada numa cave começou Dean.

E eu fui lá direitinha. Não sabia.

Não sabia porquê?

Era uma pergunta surpreendente e fê-la calar-se. Recuou mentalmente até àquela tarde. Estava junto da cave, cuja porta se encontrava aberta. Sentia receio de descer as escadas às escuras. Lembrava-se do calor sufocante da casa e de como o suor lhe ensopava o sutiã e a camisa. Lembrava-se de como o medo acordara cada nervo do seu corpo. Sim, soubera que algo não batia certo!" Soubera o que a esperava ao fundo dos degraus.

Que foi que correu mal, detective?

A vítima murmurou.

A Catherine Cordell?

Estava na cave. Amarrada a um catre na cave.

O isco.

Fechou os olhos. Quase conseguia sentir o cheiro do sangue de Cordell e da terra húmida. Do seu próprio suor, ácido de medo.

Engoli-o. Engoli o isco.

Ele sabia que isso ia acontecer.

Devia ter-me apercebido...

Mas estava concentrada na vítima. Na Cordell.

Queria salvá-la.

E foi esse o seu erro.

Rizzoli abriu os olhos e fitou-o, encolerizada.

Erro?

Não se certificou primeiro da segurança do local. Ficou vulnerável ao ataque. Cometeu o erro mais básico. Surpreendente para alguém tão perspicaz.

Você não estava lá. Não conhece a situação que enfrentei.

Li as suas declarações.

A Cordell jazia ali. A sangrar...

E por isso você reagiu como qualquer outro ser humano. Tentou ajudá-la.

Sim.

E meteu-se em sarilhos. Esqueceu-se de pensar como polícia.

A expressão ofendida de Rizzoli não pareceu incomodá-lo minimamente. Limitou-se a retribuir-lhe o olhar, de expressão imóvel e rosto tão composto, tão seguro, que só servia para aumentar a sua própria perturbação.

Nunca me esqueço de pensar como polícia replicou ela.

Naquela cave, esqueceu-se. Permitiu que a vítima a distraísse.

A minha primeira preocupação é sempre com a vítima.

Quando isso põe ambas em perigo? Isso tem lógica?

Lógica. Sim, era próprio de Gabriel Dean. Nunca conhecera nenhum homem como aquele, capaz de encarar tanto os mortos como os vivos com igual ausência de emoção.

Não podia deixá-la morrer respondeu ela. Foi o meu primeiro... e único pensamento.

Conhecia-a? A Cordell?

Conhecia.

Eram amigas?

Não.

A resposta foi tão imediata que Dean ergueu as sobrancelhas numa interrogação silenciosa. Rizzoli respirou fundo.

Participava na investigação do caso do Cirurgião retorquiu. Só isso.

Você não gostava dela?

Rizzoli fez uma pausa, apanhada de surpresa pela penetrante perspicácia de Dean, mas respondeu:

Não simpatizava com ela, digamos assim. Tinha inveja dela. Da sua beleza. E do seu efeito sobre o Thomas Moore.

Mas a Cordell era uma vítima constatou Dean.

Não tinha a certeza do que ela era. Pelo menos a princípio. Mas, por fim, tornou-se evidente que era o alvo do Cirurgião.

Você deve ter-se sentido culpada. Por ter duvidado dela. Rizzoli não disse nada.

Foi por isso que sentiu tanta necessidade de salvá-la? Rizzoli ficou hirta, ferida com a pergunta.

Ela corria perigo. Não precisei de mais nenhuma razão.

Mas você correu riscos que não foram prudentes.

Não me parece que riscos e prudentes sejam palavras que caibam na mesma frase.

O Cirurgião montou a armadilha. Você mordeu o isco.

Sim, pronto, foi um erro...

Que ele sabia que você cometeria.

Como podia ele saber isso?

Ele sabe muita coisa sobre si. Mais uma vez, é esse laço. Essa ligação entre ambos.

Rizzoli ergueu-se de um salto.

Tretas! exclamou, abandonando a sala.

Dean seguiu-a até à cozinha, perseguindo-a implacavelmente com as suas teorias, teorias que ela não queria ouvir. A ideia de qualquer laço emocional entre si e Hoyt era demasiado repelente para ser tomada em consideração e Rizzoli não conseguia continuar a ouvir. Mas ali estava ele, atravancando a cozinha, já de si claustrofóbica, e obrigando-a a ouvir o que tinha para dizer.

Assim como você tem um canal directo para a psique do Warren Hoyt disse Dean, ele tem um para a sua.

Naquela época ele não me conhecia.

Como pode ter a certeza? Deve ter seguido a investigação. Deve ter sabido qual a sua posição na equipa.

E era tudo o que podia saber de mim.

Acho que ele sabe mais coisas do que aquilo que você lhe atribui. Alimenta-se dos temores das mulheres. Está tudo escrito ali no perfil psicológico dele. É atraído pelas mulheres fragilizadas. Pelas emocionalmente desgastadas. O odor do sofrimento de uma mulher excita-o e é extremamente sensível à sua presença. Consegue detectá-lo servindo-se do indício mais subtil. O tom de voz de uma mulher. O modo como ergue a cabeça ou recusa o contacto visual. Todos os sinais físicos mínimos que a maioria de nós era capaz de ignorar. Mas ele apercebe-se. Sabe quais são as mulheres que estão feridas e são essas as que ele quer.

Eu não sou uma vítima.

Agora é. Ele fez de si uma vítima. Dean aproximou-se dela, tão próximo que quase se tocavam. Ela sentiu um impulso súbito e violento de se atirar para os seus braços e de se apertar contra ele. Mas o orgulho e o senso comum mantiveram-na perfeitamente rígida.

Soltou uma gargalhada forçada.

Quem é a vítima aqui, agente Dean? Eu não. Não se esqueça, eu sou a pessoa que o pôs atrás das grades.

Sim respondeu Dean calmamente. Pôs o Cirurgião atrás das grades. Mas não sem sofrer imensos danos pessoais.

Retribuiu-lhe o olhar em silêncio. Danos. Era exactamente a palavra para o que lhe fora feito. Uma mulher com cicatrizes nas mãos e uma bateria de ferrolhos na porta. Uma mulher que nunca mais poderia sentir o bafo quente do mês de Agosto sem se recordar do calor daquele Verão e do cheiro do seu próprio sangue.

Sem pronunciar uma palavra, voltou-se e saiu da cozinha, regressando à sala de estar. Ali, deixou-se cair no sofá e sentou-se num silêncio aturdido. Ele não a seguiu imediatamente e por momentos ela ficou numa abençoada solidão. Desejava que ele desaparecesse, saísse do apartamento e lhe concedesse a solidão pela qual anseia todo o animal em sofrimento. Não teve essa sorte. Ouviu-o sair da cozinha. Ergueu os olhos e viu que ele trazia dois copos. Estendeu-lhe um.

O que é isso? perguntou ela.

Tequila. Encontrei-a no armário.

Ela pegou no copo e franziu as sobrancelhas.

Já nem me lembrava de que a tinha. Já é antiga.

Pois, mas a garrafa ainda não tinha sido aberta.

Porque ela não apreciava o sabor da tequila. Aquela garrafa era mais uma das prendas inúteis que o seu irmão Frankie lhe trazia das viagens, como um licor do Havai com um nome esquisito e o saqué do Japão. Era a maneira de Frankie mostrar como era um homem viajado graças ao Corpo de Fuzileiros dos Estados Unidos. Era uma altura tão boa como qualquer outra para provar a lembrança que ele trouxera do soalheiro México. Bebeu um gole e a ferroada fê-la lacrimejar e piscar os olhos. Enquanto a tequila descia para o estômago e a aquecia, Rizzoli pensou de repente num pormenor do passado de Warren Hoyt. As suas primeiras vítimas tinham sido drogadas com Rohypnol, um medicamento que ele punha nas bebidas. Como é fácil apanhar-nos desprevenidas, pensou ela. Quando uma mulher está distraída ou não tem motivos para desconfiar do homem que lhe estende uma bebida, torna-se em mais um cordeiro para o sacrifício. Mesmo ela aceitara um copo de tequila sem questionar. Mesmo ela introduzira no seu apartamento um homem que não conhecia bem.

Olhou novamente para Dean, que se sentara à sua frente. Os olhos de ambos estavam agora ao mesmo nível. Ao cair-lhe no estômago vazio, a bebida começava a impor-se e Rizzoli sentia os membros entorpecidos.

A anestesia do álcool. Sentia-se desprendida e calma, perigosamente desprendida e calma.

Ele inclinou-se para ela e ela não recuou com a sua habitual atitude defensiva. Dean estava a invadir-lhe o seu espaço pessoal de um modo que poucos homens já haviam tentado e ela permitia-o. Rendera-se a ele.

Já não estamos a lidar com um único assassino disse ele. Estamos a lidar com uma parceria. E um dos parceiros é um homem que você conhece melhor do que ninguém. Quer o queira admitir quer não, você tem uma ligação especial com o Warren Hoyt. O que faz de si igualmente o elo com o outro.

Rizzoli soltou um suspiro fundo e disse suavemente:

É da maneira como o Warren Hoyt funciona melhor. É o que ele adora. Um parceiro. Um mentor.

Tinha um em Savannah.

Tinha. Um médico chamado Andrew Capra. Depois de o Capra ter sido morto, o Warren ficou por sua própria conta. É então que vem para Boston. Mas nunca deixou de procurar um novo parceiro. Alguém que partilhasse os seus gostos. As suas fantasias.

Infelizmente, acho que o encontrou.

Fitaram-se mutuamente, compreendendo ambos as tenebrosas consequências desse novo desenvolvimento.

São agora duplamente eficazes disse ele. Os lobos funcionam melhor em alcateia do que sozinhos.

Caça cooperativa.

Dean assentiu com a cabeça.

Torna tudo mais fácil. A espera. O cerco. O controlo das vítimas...

Rizzoli endireitou-se.

A chávena disse ela.

Que tem a chávena?

No local do crime dos Ghent não havia nenhuma. Agora já sabemos porquê.

Porque o Warren Hoyt estava lá para o ajudar. Rizzoli assentiu.

O indivíduo não tinha necessidade de um sistema de aviso. Havia um parceiro que podia alertá-lo se o marido se movesse. Um parceiro que ficava a ver tudo. E o Warren procederia assim. Teria gostado. Faz parte da sua fantasia. Ver enquanto a mulher é violada.

E o outro adora ter espectadores. Rizzoli voltou a anuir com a cabeça.

Por isso escolhe casais. Para que haja alguém a ver. A vê-lo gozar do supremo poder sobre o corpo de uma mulher.

A provação que Rizzoli descrevia era uma violação tão íntima que lhe era doloroso fitar Dean nos olhos. Mas aguentou o olhar dele. O ataque sexual às mulheres era um crime que despertava a curiosidade mórbida de muitos homens. Enquanto única mulher na sala durante as reuniões de investigação matinais, observara os seus colegas do sexo masculino discutirem os pormenores desses ataques e escutara o zumbido eléctrico de interesse nas suas vozes, mesmo quando se esforçavam por manter a aparência de sóbrio profissionalismo. Demoravam-se nos relatórios dos patologistas sobre as lesões sexuais, olhavam durante demasiado tempo as fotografias tiradas nos locais dos crimes de mulheres com as pernas afastadas. Tais reacções faziam-na sentir-se igualmente violada e, com o passar dos anos, desenvolvera uma apuradíssima sensibilidade para detectar o mínimo brilho de interesse indecoroso nos olhos de um polícia sempre que o assunto fosse violação. Agora, fitando os olhos de Dean, procurou esse brilho perturbador, mas não viu nada. Também nada vira, excepto uma severa determinação, nos olhos dele ao olhar para os cadáveres violados de Gail Yeager e Karenna Ghent. Dean não se excitava com essas atrocidades; ficava profundamente angustiado.

Você disse que o Hoyt adora ter um mentor observou ele.

Sim. Alguém que indique o caminho. Que o ensine.

Que lhe ensine o quê? Ele já sabe matar.

Rizzoli fez uma pausa para tomar mais um gole de tequila. Quando voltou a olhar para ele, verificou que Dean se inclinara ainda mais para ela como se receasse perder a mínima palavra.

Variações sobre o mesmo tema disse ela. As mulheres e a dor. De quantas maneiras se pode profanar um corpo? De quantos modos se pode infligir tortura? O Warren possuía um padrão a que se agarrou durante vários anos. Talvez esteja preparado para expandir os horizontes.

Ou este assassino está preparado para expandir os seus. Rizzoli fez uma pausa e depois perguntou:

O "Dominador"?

Talvez os papéis se tenham invertido. Talvez seja o nosso homem quem procura um mentor e escolheu o Warren Hoyt como mestre.

Rizzoli fitou-o, gelada perante a ideia. A palavra mestre implicava subjugação. Autoridade. Fora esse papel que Hoyt assumira durante os meses que passara entre as paredes da prisão? A reclusão ter-lhe-ia alimentado as fantasias e exasperado os impulsos? Hoyt fora suficientemente medonho antes da detenção; Rizzoli não queria sequer pensar numa encarnação mais poderosa de Warren Hoyt.

Dean recostou-se na cadeira e os seus olhos azuis fitaram o copo de tequila. Bebera com parcimónia e agora pousara o copo na mesinha. Sempre a impressionara o facto de ser um homem que nunca permitia que a sua disciplina enfraquecesse e que aprendera a controlar todos os impulsos. Mas o cansaço começava a cobrar o seu preço. Curvara os ombros e tinha os olhos raiados de vermelho. Esfregou o rosto com a mão.

Como é que dois monstros conseguem encontrar-se numa cidade com o tamanho de Boston? interrogou-se ele. Como se descobriram um ao outro?

E tão depressa? acrescentou ela. Os Ghent foram atacados apenas dois dias depois de o Warren ter fugido.

Dean ergueu a cabeça e olhou para ela.

Já se conheciam.

Ou já sabiam um do outro.

Certamente, o "Dominador" devia ter conhecimento da existência de Warren Hoyt. Era impossível ler-se um jornal de Boston no Outono anterior e ignorar as atrocidades que ele cometera. E mesmo que nunca se tivessem conhecido, também Hoyt devia igualmente saber da existência do outro, pelo menos através dos noticiários. Devia ter ouvido falar das mortes dos Yeager, devia ter sabido que existia um monstro muito parecido consigo. Ter-se-ia-interrogado sobre quem seria esse predador, esse irmão de sangue. Comunicação através do assassínio, mensagem transmitida através dos noticiários da televisão e do Boston Globe.

Também me viu na, televisão. O Hoyt soube que estive no local do crime dos Yeager. E agora está a tentar travar relações comigo de novo.

O toque de Dean fê-la vacilar. Franzira as sobrancelhas e aproximara-se ainda mais; a ela parecia que nunca nenhum homem a observara com tanta concentração.

Nenhum homem, excepto o Cirurgião.

Não é este que não conhecemos que anda a brincar comigo disse ela. É o Hoyt. O fiasco da emboscada teve por objectivo humilhar-me. É a única maneira de se aproximar de uma mulher, humilhando-a primeiro. Desmoralizando-a, arrancando-lhe pedaços de vida. Por isso, escolhia para matar vítimas de violação. Mulheres que, simbolicamente, já tinham sido destruídas. Antes de atacar, precisa que estejamos fracas. Amedrontadas.

Você é a última mulher a quem eu alguma vez classificaria de fraca.

Rizzoli corou com o elogio, porque sabia que não era merecido.

Estou apenas a tentar explicar-lhe o modo como ele funciona disse ela. Como acossa a presa. Incapacita-as antes de avançar. Fê-lo com a Catherine Cordell. Antes do ataque final, jogou psicologicamente com ela para a aterrorizar. Enviava-lhe mensagens para que ela soubesse que podia entrar e sair da vida dela sem que ela soubesse que ele ali estava. Como um fantasma, caminhando através das paredes. Ela nunca sabia quando é que ele voltaria a aparecer ou de que direcção viria o ataque. Mas sabia que viria. É assim que ele desgasta as pessoas. Fazendo-as saber que um dia, quando menos esperarem, ele virá à procura delas.

Apesar da natureza aterradora das suas palavras, Rizzoli mantivera a voz calma. Anormalmente calma. Entretanto, Dean observava-a com serena intensidade como se procurasse um lampejo de verdadeira emoção ou de verdadeira fraqueza. Ela não permitiu que ele visse.

Agora tem um parceiro prosseguiu ela. Alguém com quem pode aprender. Alguém a quem em troca pode ensinar. Uma equipa de caça.

Acha que continuarão juntos?

O Warren há-de querer. Há-de querer um parceiro. Já mataram juntos uma vez. É um laço forte, selado com sangue. Bebeu o último gole, esvaziando o copo. A bebida insensibilizar-lhe-ia o cérebro para os pesadelos naquela noite? Ou já estava para além do conforto da anestesia?

Você já pediu protecção? A pergunta surpreendeu-a.

Protecção?

Um carro, no mínimo. Para lhe vigiar o apartamento.

Sou polícia.

Dean inclinou a cabeça como se aguardasse o resto da resposta.

Se eu fosse homem prosseguiu ela, você ter-me-ia feito essa pergunta?

Mas você não é um homem.

Isso significa que eu, automaticamente, preciso de protecção?

Porque parece tão ofendida?

Porque é que o facto de ser mulher me torna incapaz de defender a minha própria casa?

Dean suspirou.

Detective, você tem sempre de suplantar os homens?

Trabalhei muito para ser tratada como toda a gente respondeu ela. Não vou pedir favores especiais porque sou mulher.

É porque é mulher que está nesta situação. As fantasias sexuais do Cirurgião são sobre mulheres. E os ataques do outro não têm a ver com os maridos, mas com as mulheres. Ele viola as mulheres. Não vai dizer-me que o facto de você ser mulher é irrelevante para esta situação.

Rizzoli estremeceu perante a menção de violação. Até ali, a discussão sobre os ataques sexuais tinham sido sobre outras mulheres. Que ela fosse uma vítima potencial dirigia o pólo da conversa para um nível muito mais íntimo, um nível sobre o qual não se sentia à vontade para discutir com nenhum homem. E mais ainda do que o tema da violação, era o próprio Dean que não a punha à vontade. O modo como a estudava, como se ela detivesse algum segredo que ele ansiasse desvendar.

A questão não é se você é polícia ou se é capaz de se defender disse ele. A questão é que você é mulher, e uma mulher acerca da qual o Warren Hoyt construiu fantasias em todos estes meses.

Eu não. Quem ele quer é a Cordell.

A Cordell está fora do seu alcance. Não consegue tocar-lhe. Mas você está mesmo aqui. Ao alcance da mão dele e precisamente a mulher que ele quase derrotou. A mulher que ele pregou ao chão naquela cave. Ele tinha o bisturi na sua garganta. Já sentia o cheiro do seu sangue.

Pare com isso, Dean!

De certo modo, ele já a reclamou. Você já lhe pertence. E você anda por fora o dia todo a trabalhar nos crimes que ele vai deixando para trás. Cada cadáver é um recado dirigido aos seus olhos. Uma antestreia do que ele planeou para si.

Já disse, pare com isso!

E acha que não precisa de protecção? Acha que uma arma e uma maneira de estar é tudo o que é necessário para continuar viva? Então, está a ignorar os seus próprios instintos. Sabe o que ele fará a seguir. Sabe o que ele cobiça, o que o excita. E o que o excita é você. O que planeia fazer consigo.

Cale-se! A sua explosão surpreendeu-os a ambos. Ela fitou-o, consternada perante aquela perda de autodomínio e as lágrimas que saltaram sabe-se lá de onde. Irra, irra, não choraria. Nunca deixara que nenhum homem a visse ir-se abaixo e não permitiria que Dean fosse o primeiro.

Respirou fundo e, calmamente, replicou:

Quero que se vá embora agora.

Só estou a pedir-lhe que ouça os seus instintos. Que aceite a mesma protecção que ofereceria a qualquer mulher.

Rizzoli levantou-se e dirigiu-se para a porta.

Boa noite, agente Dean.

Ele não se moveu durante uns instantes e ela perguntou-se o que seria preciso para pôr aquele homem fora de casa. Por fim, Dean levantou-se para sair, mas, ao chegar à porta, parou e olhou para ela.

Você não é invencível, Jane disse-lhe. E ninguém espera que o seja.

Muito depois de ele ter saído, continuou encostada à porta aferrolhada, de olhos fechados, tentando acalmar a agitação que a visita dele deixara. Sabia que não era invencível. Aprendera a lição no ano anterior ao olhar para o rosto do Cirurgião, aguardando o ataque do bisturi. Não precisava que lho recordassem e sentia-se ferida com a maneira brutal como Dean lhe levara a casa a lição.

Dirigiu-se para o sofá e pegou no telefone pousado na mesinha de apoio. Em Londres, o dia ainda não começara a romper, mas Rizzoli não podia adiar a chamada.

Moore respondeu ao segundo toque, com a voz empastada mas alerta apesar da hora.

Sou eu disse Rizzoli. Desculpa ter-te acordado.

Deixa-me ir para o outro quarto.

Rizzoli esperou. Pelo telefone, ouviu chiar as molas da cama quando ele se levantou e depois o som de uma porta a fechar-se atrás dele.

O que se passa? perguntou Moore.

O Cirurgião começou a caçar novamente.

Alguma vítima?

Assisti à autópsia há algumas horas. É trabalho dele.

Não perdeu tempo.

Isto está cada vez pior, Moore.

Como é que pode piorar?

Ele tem um novo parceiro.

Uma pausa longa. Depois, suavemente:

Quem é?

Achamos que é o mesmo homicida que matou aquele casal em Newton. Ele e o Hoyt conseguiram de algum modo encontrar-se. Andam à caça juntos.

Tão depressa? Como conseguiram juntar-se assim sem mais nem menos?

Já se conheciam. Tinham de conhecer-se.

Onde se conheceram? Quando?

É o que temos de descobrir. Pode ser a chave para a identidade do nosso homem. De repente, Rizzoli pensou na sala de cirurgia de onde Hoyt fugira. As algemas. Não fora o guarda quem as abrira. Alguém entrara no bloco operatório para libertar Hoyt, alguém disfarçado com uma farda de encarregado da limpeza ou com uma bata de médico retirada do laboratório.

Eu devia estar aí disse Moore. Devia estar a trabalhar nisso contigo...

Não, não devias. Deves estar exactamente onde estás, com a Catherine. Acho que o Hoyt não consegue encontrá-la. Mas tentará. Nunca desiste, e tu bem sabes. Mas agora são dois e não fazemos ideia do aspecto do parceiro. Se aparecer em Londres, não lhe reconheces o rosto. Tens de estar preparado.

Como se alguém pudesse estar preparado para o ataque do Cirurgião, pensou ela ao desligar. Havia um ano, Catherine Cordell pensara que estava preparada. Transformara a casa numa fortaleza e vivia como se estivesse sitiada. Mas Hoyt introduzira-se nas suas defesas; atacara quando menos se esperava e num local que ela considerava seguro.

Assim como eu penso que a minha casa é segura.

Levantou-se e dirigiu-se para a janela. Olhando para a rua, perguntou-se se naquele momento alguém estaria a olhar para ela, observando-a ali enquadrada pela claridade da janela. Não era difícil encontrá-la. A única coisa que o Cirurgião tinha de fazer era procurar na lista telefónica em RIZZOLI.

Na rua, um veículo abrandou e" estacionou depois da curva. Um carro da polícia. Olhou-o por momentos, mas não se mexeu. As luzes apagaram-se, indicando que parara para ficar. Não solicitara vigilância de protecção, mas sabia quem o fizera.

Gabriel Dean.

A história ressoa com os gritos das mulheres.

As páginas dos manuais prestam pouca atenção aos pormenores sinistros que ansiamos conhecer. Em vez disso, fazem-nos relatos secos de estratégias militares e ataques de flanco, da astúcia dos generais e da concentração dos exércitos. Vemos ilustrações de homens de armadura, de espadas em riste, corpos musculosos contorcidos nos estertores do combate. Vemos quadros de chefes em cima de nobres montadas, a fitarem os campos onde os soldados se dispõem como filas de trigo à espera da foice. Vemos mapas com setas que traçam a marcha dos exércitos conquistadores e lemos os versos das baladas marciais entoadas em nome do rei e da pátria. Os triunfos dos homens são sempre escritos em letras grandes com o sangue dos soldados.

Ninguém fala das mulheres.

Mas todos nós sabemos que elas estão lá, carne suave e pele macia, e que o seu perfume perpassa pelas páginas da história. Todos nós sabemos, embora, possamos não falar disso, que a selvajaria da guerra não se confina aos campos de batalha. Que, quando o último soldado inimigo tomba e um exército se ergue vitorioso, é para as mulheres conquistadas que o exército volta seguidamente a atenção.

Sempre assim foi, embora a realidade brutal raramente seja mencionada nos manuais de história. Em vez disso, leio sobre guerras fulgurantes como bronze, donde todos saem gloriosos. Sobre gregos, que combatem sob o olhar vigilante dos deuses, sobre a Guerra de Tróia, que, segundo o poeta Homero, foi uma guerra travada por heróis: Aquiles e Heitor, Ajax e Ulisses, nomes hoje consagrados por toda a eternidade. Homero escreve sobre o tinir das espadas, sobre o voo das flechas e sobre o solo ensopado de sangue.

Mas deixa de fora as melhores partes.

É o poeta Eurípides quem nos fala das consequências para as mulheres de Tróia, mas até ele é circunspecto. Não se demora nos pormenores mais sumarentos. Conta-nos que uma aterrorizada Cassandra foi arrastada do Templo de Atena por um chefe grego, mas deixa à nossa imaginação o que se segue. O rasgar das suas vestes, o desnudar da sua pele. As estocadas dele entre as coxas virgens. Os gritos de dor e desespero dela.

Por toda a vencida cidade de Tróia devem ter ecoado gritos desses das gargantas de outras mulheres, à medida que os gregos vitoriosos se apoderavam do que lhes era devido e marcavam a sua vitória na carne das mulheres conquistadas. Teriam deixado vivo algum troiano para que este visse? Os Antigos não falam disso. Mas que melhor maneira de cantar vitória do que abusar do corpo dos entes queridos do inimigo? Que prova mais poderosa pode haver de que o inimigo foi derrotado, humilhado, do que obrigá-lo a olhar enquanto o vencedor goza vezes sem conta?

Há uma coisa que eu compreendo: o triunfo exige espectadores.

Vou a pensar nas troianas enquanto o nosso carro desliza pela Commonwealth Avenue apinhada com o fluxo do trânsito. É uma rua movimentada e mesmo às nove da noite os automóveis rodam lentamente e dão-me tempo para estudar com calma o edifício.

As janelas estão às escuras; nem a Catherine Cordell nem o marido se encontram em casa.

É tudo o que me permito, esse único olhar, depois o edifício desaparece de vista. Sei que o quarteirão está a ser vigiado, mas mesmo assim não resisto a dar uma olhadela à sua fortaleza, tão inexpugnável quanto as muralhas de qualquer castelo. Um castelo agora vazio, já sem qualquer interesse para os que o poderiam assaltar.

Olho para o meu motorista, cujo rosto está escondido na sombra. Vejo somente uma silhueta e o brilho dos olhos como duas centelhas esfomeadas na noite.

No Canal Discovery, vi documentários, filmados durante a noite, sobre leões. O lume verde dos seus olhos ardia na escuridão. Vêm-me à lembrança esses leões, a fixidez do olhar de quem vai matar a fome e só espera pelo momento de dar o salto. Neste momento, vejo fome nos olhos do meu companheiro.

A mesma fome que decerto ele vê nos meus.

Baixo o vidro da janela e inalo profundamente o perfume quente do bafo da cidade. O leão farejando o ar da savana. Em busca do odor da presa.

 

Foram juntos no carro de Dean e dirigiram-se para a cidade de Shirley, a cerca de setenta quilómetros a oeste de Boston. Dean pouco disse durante a viagem, mas o silêncio entre ambos parecia ampliar a consciência que ela tinha da sua presença e da calma segurança. Mal olhou para ele, com receio de que ele visse nos seus olhos a agitação que inspirava.

Em vez disso, baixou os olhos e viu sob os pés um tapete azul-escuro. Perguntou-se se seria de náilon azul seis, seis, número oitocentos e dois, perguntou-se quantos automóveis tinham tapetes semelhantes. Era uma cor muito vulgar. Agora, parecia-lhe que, para onde quer que olhasse, via tapetes azuis e imaginava inúmeras solas de sapatos a espalharem pelas ruas de Boston fibras de náilon número oitocentos e dois.

O ar condicionado estava frio de mais; fechou o ventilador junto dos joelhos e olhou para os campos de ervas altas, ansiando pelo calor do exterior daquela bolha super-refrigerada. Lá fora, a neblina matinal pairava como gaze sobre os campos verdejantes. As árvores estavam imóveis, nem a mais leve brisa lhes agitava as folhas. Rizzoli raramente se aventurava pela Massachusetts rural. Era uma rapariga da cidade, ali nada e criada, e não tinha afinidades com o campo, com os seus espaços vazios e insectos que picavam. Também naquele dia não se sentia atraída.

Na noite anterior, não dormira bem. Acordara sobressaltada várias vezes e ficara com o coração a bater fortemente enquanto tentava ouvir passos ou o sussurro da respiração de um intruso. As cinco da manhã, levantou-se com a sensação de estar drogada e cansada. Só depois de duas chávenas de café se sentira suficientemente desperta para telefonar para o hospital e perguntar pelo estado de saúde de Korsak.

Continuava na Unidade de Cuidados Intensivos. Ainda ligado a um ventilador.

Baixou um pouco a janela e o ar quente penetrou com o seu cheiro a ervas e a terra. Pensou na triste possibilidade de Korsak nunca mais voltar a gozar desses cheiros nem sentir o vento no rosto. Tentou lembrar-se se as últimas palavras que tinham trocado haviam sido agradáveis, amigáveis, mas não conseguiu recordar-se.

Na Saída 36, Dean seguiu os sinais para o Souza-Baranowski, e o estabelecimento prisional de segurança de nível seis que havia albergado Warren Hoyt agigantou-se à sua direita. Dean estacionou na área destinada aos visitantes e voltou-se para a fitar.

Se a qualquer momento sentir necessidade de se vir embora, não hesite disse-lhe.

Porque espera que me ponha a andar?

Porque sei o que ele lhe fez. Qualquer pessoa na sua situação teria problemas em trabalhar neste caso.

Rizzoli viu-lhe no olhar uma genuína preocupação, que não desejava porque só reforçava o facto de a sua coragem se encontrar muito fragilizada.

Limitemo-nos a avançar, está bem? respondeu ela, abrindo a porta do carro. O orgulho fê-la caminhar em direcção ao edifício com severa determinação. Impeliu-a para o controlo de segurança no balcão de admissão exterior, onde ela e Dean apresentaram os distintivos e entregaram as armas. Enquanto esperavam a escolta, Rizzoli leu o regulamento do vestuário, afixado na área de recepção dos visitantes.

Não é permitido a qualquer visitante usar os artigos de vestuário que se seguem: Pés descalços. Fatos de banho ou calções. Roupa que demonstre filiação num grupo. Roupa parecida com a que é fornecida aos reclusos ou com a do pessoal uniformizado. Várias camadas de roupa. Roupa apertada com cordões. Roupa facilmente descartável. Roupa excessivamente larga, solta, espessa ou pesada...

A lista era interminável e proibia tudo desde fitas a sutiãs com armação de arame.

Finalmente apareceu um funcionário prisional, um homem corpulento vestido com o uniforme azul dos guardas prisionais.

Detective Rizzoli e agente Dean? Sou o guarda Curtis. Por aqui. Curtis era simpático, até jovial, enquanto os conduzia pela primeira porta aferrolhada para a passagem de peões. Rizzoli perguntou-se se seria tão agradável se eles não fossem agentes da autoridade e parte da mesma irmandade. Disse-lhes que tirassem os cintos, sapatos, casacos, relógios e chaves e que colocassem tudo na mesa para os examinar. Rizzoli tirou o seu Timex e pousou-o ao lado do resplandecente Omega de Dean. Depois, despiu o casaco, tal como Dean. Havia algo de desconfortavelmente íntimo no processo. Ao desapertar o cinto e ao retirá-lo das presilhas das calças, sentiu Curtis a olhar para ela do modo como um homem olha para uma mulher a despir-se. Descalçou os sapatos rasos, pousou-os ao lado dos sapatos de Dean e, friamente, fixou o olhar de Curtis. Só então este desviou os olhos. Seguidamente, puxou os bolsos para fora e seguiu Dean pelo detector de metais.

Ei, sorte sua disse Curtis quando Rizzoli passou. Por pouco escapou a ser a apalpação do dia.

O quê?

Todos os dias, o comandante de turno escolhe ao acaso o número do visitante que será sujeito a apalpação. Você, foi por pouco. A pessoa que vier a seguir vai ser apalpada.

Rizzoli respondeu secamente:

Ser apalpada teria sido o momento mais feliz do meu dia!

Podem voltar a pôr tudo. E ambos podem conservar os relógios.

Você diz isso como se fosse um privilégio.

Só os advogados e funcionários judiciais podem usar relógio depois deste ponto. Todos os outros têm de entregar todas as jóias. Agora vou carimbar-lhes o pulso esquerdo e podem dirigir-se para os corredores.

Temos um encontro marcado para as nove com o superintendente Oxton disse Dean.

O Oxton está atrasado. Pediu-me que os levasse primeiro a ver a cela do recluso. Depois conduzo-os ao gabinete dele.

O Centro Prisional Souza-Baranowski era o mais recente estabelecimento prisional, com um sistema de segurança do mais alto nível, sem chaves, operado por quarenta e dois terminais de computador com interface gráfica, explicou o guarda Curtis. Apontou para numerosas câmaras de vigilância.

Estão a gravar durante vinte e quatro horas por dia. A maioria dos visitantes nunca vê um guarda ao vivo. Só ouvem o intercomunicador dizer-lhes o que fazer a seguir.

Ao passarem pela porta de aço, seguidamente por um longo corredor e depois por outra série de portas gradeadas, Rizzoli tinha plena consciência de que cada movimento que fazia estava a ser vigiado. Com alguns toques no teclado do computador, os guardas podiam fechar qualquer passagem, qualquer cela, sem abandonar a sala de controlo.

À entrada do Bloco de Celas C, uma voz no intercomunicador ordenou-lhes que encostassem os passes à janela para inspecção. Voltaram a dizer como se chamavam e o guarda Curtis acrescentou:

Dois visitantes para inspeccionarem a cela do recluso Hoyt. A porta de aço deslizou e entraram na sala de convívio do Bloco C,

a área comum dos reclusos. Estava pintada no deprimente tom de verde dos hospitais. Rizzoli viu uma televisão montada na parede, sofás e cadeiras, e uma mesa de pingue-pongue onde dois homens batiam numa bola para trás e para a frente. Toda a mobília estava aparafusada ao chão. Os homens, uma dúzia, vestidos com a ganga azul dos presos, voltaram-se e fitaram-nos. Em especial Rizzoli, a única mulher da sala.

Os dois homens que estavam a jogar pingue-pongue pararam abruptamente o jogo. Por instantes, o único som foi o da televisão, sintonizada na CNN. Rizzoli olhou frontalmente para os reclusos, recusando-se a ser intimidada, muito embora adivinhasse o que pensava cada um daqueles homens. O que imaginavam. Só reparou que Dean se aproximara mais dela quando sentiu o braço dele roçar o seu e percebeu que estava mesmo a seu lado.

Uma voz disse do intercomunicador:

Visitantes, podem dirigir-se à cela C Oito.

É por aqui indicou o guarda Curtis. Um nível acima. Subiram as escadas. Os passos ressoavam nos degraus de metal. Da galeria superior que dava para as celas individuais, podiam olhar para baixo para o espaço ocupado pela sala de convívio. Curtis conduziu-os pelo corredor até à cela número oito.

É esta. A cela do recluso Hoyt.

Rizzoli deteve-se à entrada e olhou para a jaula. Não viu nada que distinguisse aquela cela das outras nem fotografias, nem objectos pessoais que lhe dissessem que Warren Hoyt habitara aquele espaço, mas sentiu os cabelos porem-se-lhe em pé. Embora ele já lá não estivesse, a sua presença ficara gravada no próprio ar. Se fosse possível a maldade permanecer, então de certeza que aquele lugar estava agora contaminado.

Podem entrar, se quiserem disse Curtis.

Rizzoli entrou na cela. Viu três paredes nuas, uma plataforma com colchão para dormir, um lavatório e uma pia. Um cubo perfeito. Era disto que Warren Hoyt teria gostado. Era um homem rigoroso e exacto, que outrora trabalhara no mundo estéril de um laboratório médico, um mundo onde as únicas manchas de cor provinham dos tubos de sangue que ele manipulava diariamente. Não tinha necessidade de rodear-se de imagens tétricas; as que trazia na mente eram suficientemente aterradoras.

Esta cela não voltou a ser atribuída? perguntou Dean.

Ainda não, senhor.

E nenhum recluso esteve aqui depois de o Hoyt se ter evadido?

Precisamente.

Rizzoli aproximou-se do colchão e levantou um canto. Dean agarrou o outro canto e juntos levantaram o colchão e olharam por baixo dele. Não encontraram nada. Enrolaram completamente o colchão, a seguir rebuscaram o forro de riscado em busca de quaisquer rasgões no tecido, qualquer esconderijo onde Hoyt pudesse ter ocultado qualquer coisa. Descobriram apenas um rasgãozinho lateral com pouco mais de dois centímetros. Rizzoli rebuscou com o dedo mas não encontrou nada.

Endireitou-se e examinou a cela, integrando-se no mesmo ambiente para o qual Hoyt olhara. Imaginou-o estendido naquele colchão com os olhos focados no tecto nu enquanto tecia fantasias que teriam horrorizado qualquer ser humano normal. Mas Hoyt sentir-se-ia excitado com elas e ficaria coberto de suor, excitado pelos gritos das mulheres que lhe ressoavam na cabeça.

Interpelou o guarda Curtis.

Onde estão as coisas dele? Os seus objectos pessoais? Correspondência?

No gabinete do superintendente. Vamos lá a seguir.

Logo após terem telefonado esta manhã, mandei trazer as coisas do recluso para as inspeccionarem disse o superintendente Oxton, apontando para uma grande caixa de papelão que estava em cima da secretária. Já examinámos tudo e não encontrámos nenhum objecto suspeito. Salientou este último ponto como se isso o ilibasse de todas as responsabilidades pelo que correra mal. Oxton deu a Rizzoli a impressão de ser um homem que não tolerava infracções e que devia ser impiedoso no cumprimento das regras e regulamentos. Decerto que pesquisaria minuciosamente qualquer objecto, isolaria todos os indivíduos conflituosos e exigiria que todas as noites as luzes se apagassem à hora exacta. Bastou-lhe uma olhadela ao escritório, com fotografias de um Oxton jovem e de expressão feroz, com farda do exército, para saber que se tratava do domínio de alguém que tinha necessidade de controlar tudo. Mas, apesar de todos os seus esforços, um preso evadira-se e agora Oxton pusera-se na defensiva. Cumprimentara-os com um aperto de mão rígido e a sombra de um sorriso nos olhos azuis distantes.

Abriu a caixa e retirou uma bolsa grande, de fecho de correr, que estendeu a Rizzoli.

Os artigos de toalete do recluso disse ele. Objectos de higiene pessoal vulgares.

Rizzoli viu uma escova de dentes, pente, luva de banho e sabonete. Uma loção hidratante à base de vaselina. Pousou rapidamente a bolsa, repugnada perante a ideia de que Hoyt usara aqueles objectos para cuidar de si. Ainda conseguia ver cabelos castanho-claros presos aos dentes do pente.

Oxton continuou a retirar objectos de dentro da caixa. Roupa interior. Uma pilha de revistas da National Magazine e vários números do Boston Globe. Duas barras de chocolate, um bloco de papel amarelo, sobrescritos brancos e três esferográficas brancas.

E a correspondência disse Oxton, retirando outra bolsa de fecho de correr, esta com um maço de cartas. Analisámos a correspondência carta a carta acrescentou Oxton. A polícia tem os nomes e endereços destes correspondentes todos. Entregou o maço a Dean. Claro que este é apenas o correio que ele guardava. Havia provavelmente uma parte que ele deitou fora.

Dean correu o fecho da bolsa e retirou o conteúdo. Havia cerca de uma dúzia de cartas ainda dentro dos sobrescritos.

A instituição prisional censura as cartas dos reclusos? perguntou Dean. Analisam-nas antes de as entregar?

Temos autoridade para fazer isso. Dependendo do tipo de correio.

Tipo?

Se for classificado de correio privilegiado, os guardas só têm permissão de olhar lá para dentro em busca de contrabando. Mas não estão autorizados a lê-lo. A correspondência é privada, entre remetente e recluso.

Por conseguinte, não fazem ideia do que lhe escreveram.

Se for correio privilegiado.

Qual é a diferença entre correio privilegiado e correio não privilegiado? perguntou Rizzoli.

Oxton respondeu à interpelação com um clarão de aborrecimento nos olhos.

O correio não privilegiado é proveniente dos amigos, família e público em geral. Por exemplo, alguns dos nossos reclusos arranjam correspondentes do exterior que pensam que estão a fazer uma obra de caridade.

Correspondendo-se com assassinos? Estão doidos?

Muitos são mulheres ingénuas e solitárias. Susceptíveis de serem usadas por um artista em manipulação. Esse tipo de cartas são não privilegiadas e os guardas têm autoridade para as ler e censurar. Mas nem sempre temos tempo para as ler todas. Lidamos aqui com um grande volume de correspondência. No caso do recluso Hoyt, havia muito correio a inspeccionar.

Vindo de quem? Não tenho conhecimento de que ele tivesse muita família disse Dean.

No ano passado teve muita publicidade e isso despertou o interesse do público. Toda a gente queria escrever-lhe.

Rizzoli estava espantada.

Está a dizer que ele recebia correio de admiradores.

Sim.

Meu Deus! As pessoas passaram-se!

O público sente-se estimulado por falar com um assassino. É algo como estar em contacto com a fama. O Manson, o Dahmer e o Gacy, todos eles recebiam cartas de admiradores. Os nossos reclusos recebem propostas de casamento. As mulheres enviam-lhes dinheiro ou fotografias delas em biquini. Os homens escrevem porque querem saber o que se sente quando se comete um assassínio. O mundo está cheio de tarados de um raio, com perdão da palavra, que não perdem uma oportunidade de conhecer um assassino ao vivo.

Mas um deles fora mais além do que simplesmente escrever a Hoyt. Na realidade, um juntara-se ao clube exclusivo de Hoyt. Rizzoli fitou o maço de cartas, revoltada perante a prova tangível da fama do Cirurgião. O assassino como estrela de rock. Pensou nas cicatrizes que tinha inscritas nas mãos e cada carta daqueles admiradores era como mais um golpe do bisturi.

E quanto ao correio privilegiado? perguntou Dean. Disse-nos que não é lido nem censurado. Que é que classifica uma carta como privilegiada?

É o correio confidencial proveniente de alguns funcionários estaduais ou federais. Um funcionário judicial, por exemplo, ou o procurador-geral. Correio do Presidente, do governador ou das forças de segurança.

O Hoyt recebia correio desse?

Deve ter recebido. Não mantemos registos de cada carta que entra.

Como sabem que uma carta é realmente correio privilegiado? perguntou Rizzoli.

Oxton olhou para ela com impaciência.

Acabei de dizer-lhe. Se for de um funcionário federal ou estadual...

Não. Quero dizer, como sabem se não é uma falsificação ou se o papel não foi roubado? Eu podia enviar os planos de evasão a um dos vossos detidos e metê-los num sobrescrito, por exemplo, do gabinete do senador Conway. Não fora por acaso que escolhera aquele exemplo. Observou Dean e viu-o erguer o queixo à menção do nome de Conway.

Oxton hesitou.

Não é impossível. Mas há penalidades...

Então, isso já aconteceu antes. Oxton, relutantemente, assentiu.

Há vários casos. São enviadas informações criminosas sob o disfarce de assunto oficial. Tentamos estar atentos a isso, mas, de vez em quando, há alguma coisa que nos escapa.

E quanto ao correio que é expedido? As cartas que o Hoyt enviava? Também inspeccionam essas?

Não.

Nenhuma?

Não tínhamos motivos para o fazer. O Hoyt nunca foi considerado um recluso problemático. Foi sempre cooperante. Muito calmo e educado.

Um preso modelo disse Rizzoli. Claro. Oxton fitou-a com olhar gélido.

Temos cá homens que lhe arrancavam os braços e achariam graça, detective. Homens que se atirariam ao pescoço de um guarda só porque a refeição não lhes agradou. Um recluso como o Hoyt não estava entre os primeiros na nossa lista de preocupações.

Calmamente, Dean reencaminhou a conversa para o que estava em discussão.

Portanto, não sabemos a quem ele poderá ter escrito?

A pergunta em tom desprendido pareceu acalmar a crescente irritação de Oxton, que voltou as costas a Rizzoli e passou a dar atenção a Dean, de homem para homem.

Não, não sabemos respondeu. O recluso Hoyt pode ter escrito a qualquer pessoa.

Numa sala de reuniões ao fundo do corredor onde ficava situado o gabinete de Oxton, Rizzoli e Dean calçaram luvas de borracha e espalharam a correspondência dirigida a Warren Hoyt sobre a mesa. A detective viu vários tipos de papel de carta, alguns com motivos florais e um que tinha impresso Jesus salva. Sim, precisamente o que se devia enviar ao Cirurgião. Como ele devia ter-se divertido ao receber aquilo.

Abriu um sobrescrito com gatinhos e encontrou lá dentro uma fotografia de uma mulher sorridente e de olhos esperançosos. Havia anexa uma carta, escrita com letra ameninada e cujos is tinham animados circulozinhos em vez de pontos:

Para: Mr. Warren Hoyt, recluso

Centro Prisional do Massachusetts

Caro Mister Hoyt,

Vi-o hoje na televisão quando o levavam para o tribunal. Considero-me uma excelente ajuizádora do carácter das pessoas e, quando olhei para o seu rosto, pude ver uma imensa tristeza e dor. Oh, mas quanto sofrimento! Há bondade em si, sei que há. Se ao menos o senhor tivesse alguém que o ajudasse a encontrar-se dentro de si...

De repente, Rizzoli apercebeu-se de que, com a raiva, estava a amarrotar a carta. Gostaria de conseguir chegar ao pé da cretina que escrevera aquelas palavras e abaná-la. De obrigar a mulher a olhar para as fotos das autópsias das vítimas de Hoyt e a ler o relatório do médico legista sobre a agonia que tinham sofrido antes de a morte, misericordiosamente, ter acabado com a sua provação. Teve de forçar-se a ler o resto da carta, um apelo açucarado à humanidade de Hoyt e à "bondade que está dentro de todos nós".

Pegou no sobrescrito seguinte. Não havia gatinhos nesse papel, só um simples sobrescrito branco com uma carta escrita em papel pautado. Mais uma vez, era de uma mulher, que incluíra a sua foto, um instantâneo demasiado exposto de uma loura oxigenada estrábica.

Caro Mister Holt,

Pode dar-me o seu autógrafo? Colecciono muitas assinaturas de pessoas como o senhor. Até tenho a de Jeffry Dahmer. Se quiser continuar a corresponder-se comigo, será óptimo. A sua amiga

Gloria.

Rizzoli olhou para aquelas palavras, sem conseguir acreditar que algum ser humano com sanidade mental as pudesse ter escrito. Será óptimo. A sua amiga.

Meu Deus! exclamou. Esta gente é doida!

É o fascínio da fama respondeu Dean. Não têm vidas próprias. Sentem-se desprezíveis e anónimos. Por isso, tentam aproximar-se de quem tem um nome. Também querem a magia de se colarem a eles.

Magia? Rizzoli fitou Dean. É o que você lhe chama?

Percebe o que quero dizer.

Não, não percebo nada disso. Não percebo por que motivo há mulheres que escrevem a este monstro. Andam à procura de romance? De uns momentos ardentes com um tipo que se volta para o lado e as estripa? É suposto isso levar excitação às suas vidas patéticas?

Empurrou a cadeira para trás, levantou-se e dirigiu-se para a parede com janelas em fenda. Ficou ali de braços fortemente apertados contra o peito, olhando para uma faixa estreita de luz, uma tira azul de firmamento. Qualquer paisagem, mesmo escassa como aquela, era preferível a olhar para o correio das admiradoras de Warren Hoyt. Decerto que Hoyt apreciara as atenções. Devia ter considerado cada carta como uma prova de que ainda detinha poder sobre as mulheres, de que, mesmo ali encerrado, conseguia tocar-lhes a mente e manipulá-las. Transformá-las em coisas suas.

É uma perda de tempo afirmou Rizzoli com amargura, vendo um passarinho passar a voar pelos edifícios onde quem estava em gaiolas eram os homens, onde as grades continham monstros e não o canto das aves. Ele não é estúpido. Destruiu tudo o que pudesse ligá-lo ao nosso assassino. Protegeu o novo parceiro. Com certeza que não ia deixar para trás nada que nos fosse útil para o encontrarmos.

Útil, talvez não disse Dean, remexendo em papéis atrás de Rizzoli. Mas esclarecedor, sem dúvida.

Ah, pois! Como se eu estivesse na disposição de ler o que as doidas daquelas mulheres lhe escrevem! Metem-me nojo.

Poderá ser essa a intenção?

Rizzoli voltou-se para ele e fitou-o. Uma faixa de luz que passava pelas janelas estreitas batia-lhe no rosto e iluminava os olhos azuis brilhantes. Rizzoli sempre achara que ele tinha feições atraentes, mas nunca como nesse momento ao olhá-lo do outro lado da mesa.

Que quer dizer com isso?

Incomoda-a ler o correio das admiradoras.

Mexe comigo. Não é óbvio?

Também para ele. Dean acenou com a cabeça para o maço de cartas. O Hoyt sabia que você ficaria perturbada.

Acha que tudo isto tem por intenção confundir-me a cabeça? Estas cartas?

É um jogo mental, Jane. Ele deixou isto para si. Esta bela colecção de cartas das suas admiradoras mais ardentes. Ele sabia que você acabaria por vir cá, exactamente onde está agora, e que leria o que elas tinham a dizer-lhe. Talvez quisesse demonstrar-lhe que tem realmente admiradoras. Que, muito embora você o despreze, há mulheres que não, mulheres que se sentem seduzidas por ele. Ele é como um amante rejeitado e que tenta fazer-lhe ciúmes. Tenta desestabilizá-la.

Não me lixe!

E está a dar resultado, não está? Olhe bem para si. Ele mexeu consigo de tal forma que você nem consegue ficar sentada. Sabe como a manipular, como dar-lhe a volta à cabeça.

Está a sobrestimá-lo.

Estou mesmo?

Rizzoli apontou para as cartas.

É suposto tudo isto ser em minha intenção? Qual quê, sou o centro do universo dele?

Ele não é o centro do seu? replicou Dean com mansidão. Rizzoli fitou-o, incapaz de lhe dar resposta porque o que ele dissera a atingira nesse instante como uma verdade irrefutável. Warren Hoyt era o centro do seu universo. Reinava como um senhor das trevas sobre os seus pesadelos e dominava igualmente as suas horas de vigília, sempre determinado a saltar-lhe do armário e a regressar aos seus pensamentos. Naquela cave, ela fora marcada como coisa sua, do modo como qualquer vítima é marcada por um agressor, e ela não conseguia obliterar o selo de propriedade. Estava gravado nas suas mãos, cauterizado na sua alma.

Regressou à mesa e sentou-se. Revestiu-se de aço para completar a tarefa.

O sobrescrito seguinte tinha dactilografado o endereço do remetente: Dra.. P. O'Donnell, 1634, Brattle Street, Cambridge, MA 02138. Perto da Universidade de Harvard, Brattle Street era um bairro de boas casas, para gente educada, onde os professores universitários e os industriais aposentados percorrriam os mesmos passeios e acenavam uns aos outros junto às sebes bem tratadas. Não era a espécie de bairro onde se esperasse encontrar o acólito de um monstro.

Retirou e abriu a carta. Estava datada de seis semanas antes.

Caro Warren,

Agradeço a sua última carta, bem como por preencher os dois questionários. Os pormenores que me forneceu foram-me extremamente úteis para a compreensão das dificuldades por si enfrentadas. Tenho muitas mais perguntas a fazer-lhe e sinto-me feliz por você continuar a pretender encontrar-se comigo conforme planeado. Se não levantar objecções, gostaria de gravar em vídeo a entrevista. Como é evidente, você sabe que a sua ajuda é absolutamente essencial para o meu projecto.

Com os melhores cumprimentos,

Dra. O'Donnell.

Quem neste mundo é a. P. O'Donnell? exclamou Rizzoli. Dean levantou a cabeça, surpreendido.

Joyce O'Donnell?

O sobrescrito só diz. P. O'Donnell, Cambridge, Mass. Entrevistou o Hoyt.

Dean franziu as sobrancelhas ao olhar para o sobrescrito.

Não sabia que ela se tinha mudado para Boston.

Conhece-a?

É neuropsiquiatra. Digamos apenas que nos conhecemos em circunstâncias hostis nas coxias de um tribunal. Os advogados de defesa adoram-na.

Não me diga! Uma testemunha pericial. Vai em defesa dos meninos maus.

Dean assentiu.

Independentemente do que fez o cliente ou de quantas pessoas matou. A O'Donnell fica feliz por prestar um testemunho atenuante.

Pergunto-me por que razão terá escrito ao Hoyt. Voltou a ler a carta. Fora escrita com o maior respeito e elogiando-o pela cooperação. Já antipatizava com a Dra. O'Donnell.

O sobrescrito que se seguia no maço também era de O'Donnell, mas não continha nenhuma carta. Em vez da carta, Rizzoli retirou três polaróides fotos de amador sem qualquer dúvida. Duas tinham sido tiradas ao ar livre e à luz do dia; a terceira era uma cena interior. Por instantes, limitou-se a olhar, com os cabelos da nuca eriçados e os olhos a registarem o que o cérebro se recusava a aceitar. Recuou e as fotos caíram-lhe das mãos como carvões em brasa.

Jane? O que se passa?

Sou eu murmurou.

O quê?

Ela tem-me seguido. Tem-me tirado fotografias. Envia-as para ele.

Dean levantou-se da cadeira e deu a volta à mesa para espreitar por cima do ombro dela.

Não a vejo aqui...

Olhe. Olhe. Apontou para a foto de um Honda verde-escuro estacionado na rua. É meu.

Não se consegue ler a matrícula.

Sou capaz de reconhecer o meu carro!

Dean apanhou a polaróide. No verso, alguém desenhara uma absurda face sorridente e escrevera a caneta de feltro azul: O meu carro. O medo tamborilava-lhe no peito.

Veja a seguinte disse ela.

Dean pegou na segunda fotografia. Esta também fora tirada à luz do dia e mostrava a fachada de um edifício. Não foi preciso dizerem-lhe de que edifício se tratava; estivera lá na noite anterior. Voltou a foto e viu as palavras: A minha casa. Sob as palavras havia outra face sorridente.

Dean pegou na terceira fotografia, que fora tirada dentro de um restaurante.

À primeira vista, parecia apenas uma imagem desfocada de clientes sentados às mesas e uma empregada apanhada em movimento ao atravessar a sala com uma cafeteira. Rizzoli precisou de alguns segundos para distinguir a figura sentada à esquerda, uma mulher de cabelo escuro, rosto apanhado só de perfil e feições obscurecidas pela luminosidade da janela. Esperou que Dean reconhecesse a mulher.

Sabe onde foi tirada esta fotografia? perguntou-lhe ele com doçura.

No Café Starfish.

Quando?

Não sei...

É um lugar que você visita com frequência?

Aos domingos. Ao pequeno-almoço. E o dia da semana em que eu... Extinguiu-se-lhe a voz. Fitou a foto do seu próprio perfil, ombros descontraídos, rosto baixo, a olhar para um jornal. Devia ser o jornal de domingo. Aos domingos dava-se ao luxo de tomar o pequeno-almoço no Starfish. Eram as manhãs dos crepes, do toucinho fumado e da banda desenhada.

E de quem a espiava. Nunca reparara que alguém a vigiava. Tirava fotos suas e enviava-as para o próprio homem que a perseguia em pesadelos.

Dean virou a polaróide.

No verso estava desenhada outra face sorridente. E, por baixo, metido dentro de um coração, uma única palavra:

Eu.

 

O meu carro. A minha casa. Eu.

Rizzoli voltou para Boston com um nó de ira no estômago. Embora Dean estivesse mesmo a seu lado, não olhou para ele; estava demasiado concentrada em alimentar a raiva e sentir as suas chamas a consumi-la.

Essa raiva aprofundou-se ainda mais quando Dean estacionou em frente da morada de O'Donnell em Brattle Street. Rizzoli fitou a grande casa colonial de ripas pintadas de branco imaculado acentuado por persianas cinzento-escuras. Um gradeamento de ferro forjado cercava o jardim da frente, com um relvado bem tratado e caminho pavimentado de granito. Mesmo pelos elevados padrões de Brattle Street, era uma casa luxuosa com que nenhum funcionário público podia sonhar. No entanto, eram os funcionários públicos como ela que enfrentavam os Warren Hoyts deste mundo e sofriam as sequelas desses combates, pensou Rizzoli. Era ela quem aferrolhava as portas e janelas à noite, que acordava sobressaltada ao som de passos fantasmagóricos a aproximarem-se da sua cama. Combatia os monstros e sofria as consequências, ao passo que ali, naquela casa majestosa, vivia uma mulher que oferecia a esses mesmos monstros uma atenção simpática, que entrava nos tribunais para defender o indefensável. Era uma casa construída sobre os ossos das vítimas.

A mulher de cabelo louro-acinzentado que atendeu à porta estava arranjada tão meticulosamente como a residência. A cabeleira parecia um elmo refulgente, o camiseiro e as calças de boa marca estavam impecavelmente engomados. Tinha cerca de quarenta anos e um rosto leitoso como alabastro. E, como o verdadeiro alabastro, aquele rosto não revelava qualquer calor. Os olhos projectavam apenas um interesse gélido.

Doutora O'Donnell? Sou a detective Jane Rizzoli. Este é o agente Gabriel Dean.

Os olhos da mulher ficaram presos aos de Dean.

O agente Dean e eu já nos conhecemos.

E, obviamente, tinham-se impressionado um ao outro... de forma pouco favorável, pensou Rizzoli.

Nitidamente desagradada com a visita, O'Donnell agiu de forma mecânica e sem um sorriso enquanto os conduzia através de uma ampla entrada até um salão formal. O sofá era de pau-rosa e forrado a seda branca e o soalho de teca realçado por tapetes orientais em tons quentes de vermelho. Rizzoli sabia pouco de arte, mas até ela reconhecia que os quadros pendurados nas paredes eram originais e provavelmente muito valiosos. Mais ossos de vítimas, pensou. Ela e Dean sentaram-se no sofá diante de O'Donnell. Não lhes fora oferecido chá ou café, nem sequer água, indício pouco subtil de que a anfitriã queria que a conversa fosse breve.

O'Donnell foi direito ao assunto e dirigiu-se a Rizzoli.

Disse que se tratava do Warren Hoyt...

Trocou correspondência com ele.

Sim. Algum problema com isso?

Qual era a natureza da vossa correspondência?

Uma vez que sabe disso, parto do princípio de que a leu.

Qual era a natureza da vossa correspondência? repetiu Rizzoli em tom inflexível.

O'Donnell fitou-a por momentos, avaliando silenciosamente a acusação. Agora sabia que Rizzoli era a acusação e respondeu consentaneamente; a sua postura tornou-se rígida como uma armadura.

Primeiro, gostaria de fazer-lhe uma pergunta, detective retorquiu O'Donnell. Por que motivo a minha correspondência com Mister Hoyt preocupa a polícia?

Sabe que ele se evadiu da cadeia?

Sei. Vejo os noticiários, como é evidente. Além disso, a Polícia Estadual contactou-me para saber se o Hoyt tentara aproximar-se de mim. Contactaram todos os que se corresponderam com o Warren.

Warren. Tratavam-se pelo nome próprio.

Rizzoli abriu um grande sobrescrito de papel que trouxera consigo e retirou três polaróides metidas em bolsas fechadas, que estendeu à Dra. O'Donnell.

Enviou estas fotos a Mister Hoyt?

O'Donnell olhou simplesmente de relance para as imagens.

Não. Porquê?

Mal olhou para elas.

Não preciso. Nunca mandei a Mister Hoyt nenhuma foto de qualquer tipo.

Estas foram encontradas na cela dele. Num sobrescrito com o seu endereço.

Então deve ter utilizado o meu sobrescrito para as guardar. Devolveu a Rizzoli as polaróides.

O que lhe mandou exactamente?

Cartas. Questionários para ele preencher, assinar e devolver.

Questionários sobre quê?

Sobre o comportamento escolar, a infância... quaisquer informações que pudessem ajudar-me a avaliar a história dele.

Quantas vezes lhe escreveu?

Acho que foram quatro ou cinco vezes.

E ele respondeu?

Respondeu. Tenho as cartas dele arquivadas. Posso fornecer-lhe cópias.

Tentou contactá-la depois da evasão?

Não acha que eu teria dito às autoridades se ele o tivesse feito?

Não sei, doutora O'Donnell. Não sei qual é a natureza da sua relação com Mister Hoyt.

Foi uma troca de correspondência. Não uma relação.

Mas escreveu-lhe. Quatro ou cinco vezes.

Também o visitei. A entrevista está gravada em vídeo, se quiser vê-la.

Porque foi falar com ele?

Ele tem uma história para contar. Lições a dar-nos.

Como chacinar mulheres, por exemplo? As palavras saíram-lhe da boca antes de se dar conta, como um dardo de amarga emoção que não conseguiu perfurar a armadura da outra mulher.

Imperturbável, O'Donnell replicou:

Como agente da autoridade, você só vê o resultado final. A brutalidade, a violência. Crimes terríveis, que são consequência natural daquilo por que estes homens passaram.

E a doutora, o que vê?

O que se passou anteriormente nas suas vidas.

A seguir dir-me-á que se deve tudo a uma infância infeliz.

Sabe alguma coisa sobre a infância do Warren?

Rizzoli sentia a tensão arterial a subir. Não tinha vontade de conversar sobre as raízes das obsessões de Hoyt.

As vítimas estão-se nas tintas para a infância dele. E eu também.

Mas sabe alguma coisa?

Disseram-me que foi perfeitamente normal. Sei que teve uma infância melhor do que a de muitos homens que não andam a esfaquear mulheres.

Normal. O'Donnell parecia achar a palavra divertida. Olhou para Dean pela primeira vez depois de se terem sentado. Agente Dean, porque não nos dá a sua definição de normal?

Perpassou entre eles um olhar hostil, ecos de uma antiga luta ainda não resolvida. Mas a voz de Dean não manifestou quaisquer emoções que estivesse a sentir, fossem quais fossem, e respondeu calmamente:

A detective Rizzoli é quem está a fazer as perguntas. Sugiro-lhe que responda, doutora.

Surpreendeu Rizzoli o facto de Dean ainda não ter tentado apoderar-se do controlo da entrevista. Dean dera-lhe a impressão de ser um homem habituado a dominar, mas, desta vez, cedera e preferira o papel de observador.

Rizzoli permitira que a cólera desviasse a conversa. Era altura de reassumir o comando e para isso tinha de dominar-se. Agir calma e metodicamente.

Quando começaram a corresponder-se? perguntou.

Há cerca de dois meses respondeu O'Donnell em tom igualmente profissional.

E porque resolveu escrever-lhe?

Um momento! O'Donnell soltou uma gargalhada de espanto. Está enganada. Não fui eu quem iniciou esta correspondência.

Quer dizer que foi o Hoyt?

Sim. Primeiro escreveu-me ele. Dizia que ouvira falar do meu trabalho sobre a neurologia da violência. Sabia que fora testemunha de defesa noutros julgamentos.

Queria contratá-la?

Não. Sabia que não havia possibilidades de modificar a sentença tanto tempo depois. Mas pensou que eu estaria interessada no seu caso. E estava.

Porquê?

Está a perguntar-me por que motivo eu estava interessada?

Porque havia de perder tempo a escrever a alguém como o Hoyt?

O Hoyt é exactamente o tipo de pessoa sobre o qual quero saber mais.

Foi observado por meia dúzia de psiquiatras. Não há nada de errado nele. É perfeitamente normal, com excepção do facto de gostar de matar mulheres. Gosta de as amarrar e de lhes abrir o abdómen. Excita-o brincar aos cirurgiões. Só que faz isso com elas perfeitamente despertas. Enquanto sabem com exactidão o que ele lhes está a fazer.

Apesar disso, chamou-lhe normal.

Não é louco. Sabia o que estava a fazer... e gostava.

Então, acha que ele nasceu simplesmente mau.

É exactamente a palavra que eu usaria para o definir disse Rizzoli.

O'Donnell fitou-a por um momento com um olhar que pareceu penetrá-la. Até onde veria? A sua formação de psiquiatra possibilitar-lhe-ia perscrutar sob a máscara pública de uma pessoa e ver a face oculta traumatizada?

Abruptamente, O'Donnell levantou-se.

Porque não vem ao meu escritório? disse. Há uma coisa que devia ver.

Rizzoli e Dean seguiram-na por um corredor, onde o som dos passos eram abafados por um tapete cor de vinho a todo o comprimento. O aposento para onde ela os levou contrastava fortemente com a sala ricamente decorada. O escritório de O'Donnell era dedicado exclusivamente ao trabalho: paredes brancas, estantes carregadas de livros de consulta e armários metálicos. Quem pusesse os pés naquela sala, pensou Rizzoli, entrava de imediato em processo de trabalho. E pareceu exercer exactamente esse efeito sobre O'Donnell. Com firmeza e decisão, dirigiu-se à secretária, retirou de lá um sobrescrito de radiografias e levou-o para a caixa de luz montada na parede. Prendeu-lhe uma chapa e rodou um interruptor.

A caixa de luz tremeluziu e iluminou a imagem de um crânio humano.

Vista frontal disse O'Donnell. Indivíduo do sexo masculino, vinte e oito anos, operário de construção civil. Era um cidadão cumpridor da lei, descrito como sensato e bom marido. Pai extremoso de uma filha de seis anos. Um dia, ficou ferido no local de trabalho quando uma viga lhe caiu sobre a cabeça. Olhou para os dois visitantes. O agente Dean provavelmente já está habituado a ver isto. E você, detective?

Rizzoli aproximou-se da caixa de luz. Não observava radiografias com muita frequência e só as conseguia entender nos aspectos mais latos: a cúpula do crânio, os buracos gémeos das órbitas, a fiada de dentes.

Vou pôr a vista lateral disse O'Donnell, colocando uma segunda radiografia na caixa de luz. Já vê agora?

A segunda chapa mostrava o crânio de perfil. Rizzoli conseguia ver agora uma rede fina de linhas de fractura que irradiavam no crânio de frente para trás. Apontou para elas.

O'Donnell assentiu.

Estava inconsciente quando o levaram para as Urgências. A tomografia mostrou que havia hemorragia, acompanhada de um grande hematoma subdural... uma grande quantidade de sangue que estava a pressionar os lobos frontais do cérebro. O sangue foi aspirado cirurgicamente e o indivíduo começou a recuperar. Ou melhor, pareceu recuperar. Foi para casa e acabou por voltar ao trabalho. Mas não era o mesmo homem. Perdia as estribeiras no emprego cada vez com maior frequência e era despedido. Começou a abusar sexualmente da filha. Depois, na sequência de uma discussão com a mulher, espancou-a tão brutalmente que o cadáver ficou irreconhecível. Começou a bater e não conseguiu parar. Mesmo depois de lhe ter partido os dentes todos. Mesmo depois de o rosto dela estar reduzido a polpa e fragmentos de osso.

Vai dizer-me que se podem atribuir as culpas àquilo perguntou Rizzoli, apontando para o crânio fracturado.

Sim.

Poupe-me!

Olhe para a película, detective. Vê onde está localizada a fractura? Pense na parte do cérebro que fica exactamente por baixo. Voltou-se e olhou para Dean.

Dean fitou-a inexpressivamente nos olhos.

Os lobos frontais disse ele.

Um leve sorriso contorceu os lábios de O'Donnell. Era evidente que estava a apreciar a oportunidade de desafiar um velho rival.

Qual o objectivo desta radiografia? perguntou Rizzoli.

Fui chamada pelo advogado de defesa do indivíduo a fim de realizar uma avaliação psiquiátrica. Usei aquilo a que chamamos o Teste Winconsin Card Sort e o Teste de Classificação de Halstead-Reitan. Pedi também um exame ao cérebro por ressonância magnética. Tudo isto apontou para a mesma conclusão: este indivíduo sofria de graves afecções de ambos os lobos frontais.

Mas disse-nos que ele recuperara totalmente do acidente...

Parecia ter recuperado.

Tinha ou não o cérebro afectado?

Mesmo com danos extensos nos lobos frontais, podemos continuar a andar, a conversar e a executar as funções diárias. Podemos ter uma conversa com alguém que tenha sofrido uma lobotomia frontal e não detectar nada de estranho. Mas com toda a certeza que essa pessoa estaria afectada. Apontou para a radiografia. O que este indivíduo tem chama-se síndroma de desinibição frontal. Os lobos frontais afectam a capacidade de previsão e julgamento. A capacidade de controlar impulsos inadequados. Se esses lobos estiverem afectados, o indivíduo torna-se socialmente desinibido. Manifesta comportamentos desajustados, sem quaisquer sentimentos de culpa e sem sofrimento emocional. Perde a capacidade de dominar impulsos violentos. E todos nós os temos, esses momentos de raiva, quando nos apetece ripostar. Embater com o carro em quem nos cortou o trânsito. Tenho a certeza de que sabe como isso é, detective. Estar com tanta raiva que nos apetece bater em alguém.

Rizzoli não disse nada, silenciada pela verdade das palavras de O'Donnell.

A sociedade pensa nos actos violentos como manifestações de maldade ou imoralidade. Dizem-nos que temos absoluto controlo sobre o nosso próprio comportamento, que todos e cada um de nós goza do livre arbítrio de não agredir outro ser humano. Mas não é só a moral o que nos guia. A biologia também. Os lobos frontais ajudam-nos a integrar pensamentos e actos. Ajudam-nos a pesar as consequências desses actos. Sem esse controlo, cederíamos a todos os impulsos selváticos. Foi o que aconteceu a este homem. Perdeu a capacidade de controlar o seu comportamento. Tinha sentimentos sexuais em relação à filha e, portanto, abusou dela. A mulher irritou-o e, portanto, espancou-a até à morte. De tempos a tempos, todos nós temos pensamentos perturbantes ou inapropriados, ainda que fugazes. Vemos um estranho atraente e relampejam-nos no cérebro ideias de sexo. Mas não passam disso: pensamentos rápidos. Mas... e se cedêssemos ao impulso? Que aconteceria se não conseguíssemos dominar-nos? Esse impulso sexual podia conduzir à violação. Ou pior.

E foi essa a defesa dele? "O meu cérebro obrigou-me a fazer isto"?

Os olhos de O'Donnell cintilaram de irritação.

A síndroma de desinibição frontal é um diagnóstico aceite entre os neurologistas.

Pois, mas resultou no tribunal? Uma pausa fria.

O nosso sistema judicial ainda funciona com base na definição de insanidade do século dezanove. Será de admirar que sejam igualmente ignorantes em matéria de neurologia? Este homem está agora no corredor da morte em Oklahoma. Com expressão soturna, O'Donnell arrancou as radiografias da caixa de luz e meteu-as no sobrescrito.

Que tem isto a ver com o Warren Hoyt?

O'Donnell dirigiu-se para a secretária, pegou noutro sobrescrito de radiografias e retirou um novo par de chapas, que prendeu à caixa de luz. Era outro conjunto de chapas de um crânio, uma vista frontal e uma lateral, mas mais pequenas. Um crânio de criança.

Este garoto caiu ao trepar por uma sebe explicou O'Donnell. Caiu de rosto para baixo e embateu com a cabeça no chão. Veja aqui, nesta vista frontal. Pode observar uma fenda minúscula que parte para cima ao nível da sobrancelha esquerda. Uma fractura.

Estou a ver disse Rizzoli.

Veja o nome do paciente.

Rizzoíi olhou para o quadradinho ao canto da película com os dados de identificação. O que viu fê-la imobilizar-se.

Tinha dez anos na altura do acidente disse O'Donnell. Um rapaz normal e activo, a crescer num subúrbio abastado de Houston. Pelo menos, é o que indicam as fichas pediátricas e o que declarou a escola primária. Uma criança saudável, de inteligência acima da média. Brincava bem com as outras crianças.

Até crescer e começar a matá-las.

Sim, mas por que razão o Warren começou a matar? O'Donnell apontou para as radiografias. Este ferimento pode ser um dos factores.

Olhe, caí dos espaldares quando tinha sete anos e bati com a cabeça numa das barras. Não ando por aí a esquartejar ninguém.

Mas caça pessoas. Tal como ele. Você é, de facto, uma caçadora profissional.

A raiva incendiou de calor o rosto de Rizzoli.

Como pode comparar-me a ele?

Não estou a comparar, detective. Mas pense no que está a sentir neste preciso momento. Provavelmente apetecia-lhe esbofetear-me, não? Portanto, o que a detém? O que a faz dominar-se? A moral? As boas maneiras? Ou será apenas a fria lógica que a informa de que haverá consequências? A certeza de que será detida? Todas essas considerações em conjunto impedem-na de me agredir. E é nos seus lobos frontais que tem lugar esse processamento mental. Graças a esses neurónios intactos, você consegue controlar os seus impulsos destrutivos.

O'Donnell fez uma pausa. Depois, com olhar conhecedor, acrescentou:

A maioria das vezes.

Estas últimas palavras, apontadas como uma lança, encontraram o alvo. Um ponto frágil de vulnerabilidade. Apenas um ano antes, durante a investigação do caso do Cirurgião, Rizzoli cometera um erro terrível que a envergonharia para sempre. No calor da caçada, atingira e matara um homem desarmado. Devolveu o olhar de O'Donnell e viu nos olhos da outra mulher uma centelha de satisfação.

Dean quebrou o silêncio.

Disse-nos que foi o Hoyt que a contactou. Que esperava ele ganhar com tudo isto? Atenção? Simpatia?

Que tal simples compreensão humana? replicou O'Donnell.

Não lhe pediu mais nada?

O Warren tenta conseguir respostas. Não sabe o que o leva a matar. Mas sabe que é diferente. E quer saber porquê.

Disse-lhe realmente isso?

O'Donnell dirigiu-se à secretária e pegou numa pasta.

Tenho aqui as cartas dele. E a gravação em vídeo da nossa entrevista.

Foi ao Souza-Baranowski?

Fui.

Por sugestão de quem? O'Donnell hesitou.

Pensámos ambos que seria útil.

Mas de quem foi, realmente, a ideia do encontro?

Foi Rizzoli quem respondeu à pergunta em vez de O'Donnell.

Foi dele. Não foi? Foi o Hoyt quem pediu o encontro.

Pode ter sido sugestão dele. Mas queríamos ambos o mesmo.

Não faz a mínima ideia do real motivo por que ele lhe pediu para lá ir, pois não? perguntou Rizzoli.

Tínhamos de encontrar-nos. Não posso avaliar um paciente sem o ver cara a cara.

E enquanto ali se encontrava, cara a cara, o que acha que ele estava a pensar?

A expressão de O'Donnell foi de desdém.

Você saberia?

Oh, sim! Sei exactamente o que vai na cabeça do Cirurgião. Rizzoli reencontrara novamente a voz e as palavras saíram-lhe frias e implacáveis. Ele pediu-lhe que lá fosse porque queria auscultá-la. Faz isso com as mulheres. Sorri para nós, fala-nos com gentileza. Consta das cadernetas escolares, não é assim? "Um rapaz educado", disseram os professores. Aposto que foi educado quando se encontraram, não foi?

Sim, foi...

Apenas um indivíduo vulgar e cooperante.

Detective, não sou ingénua ao ponto de achar que ele é um homem normal. Mas foi cooperante. E estava incomodado com os seus próprios actos. Queria compreender as razões do seu comportamento.

E, portanto, você disse-lhe que era por causa do "galo" que ele tinha na cabeça.

Comuniquei-lhe que a fractura do crânio era um factor que contribuía para semelhante comportamento.

Deve ter ficado feliz por a ouvir dizer isso. Por ter uma desculpa para o que fez.

Dei-lhe a minha opinião franca.

Sabe o que mais o fez feliz?

O quê?

Estarem ambos na mesma sala. Sentaram-se na mesma sala, não é assim?

Encontrámo-nos na sala de visitas. Sob constante vigilância de vídeo.

Mas não havia nenhuma barreira entre os dois. Nenhuma divisória. Nenhum vidro de protecção.

Ele nunca me ameaçou.

Podia inclinar-se para si. Estudar o seu cabelo, cheirar a sua pele. Gosta especialmente de sentir o cheiro das mulheres. Estimula-o. O que realmente o excita é o cheiro do medo. Os cães são capazes de cheirar o medo, sabia disso? Quando ficamos amedrontados, libertamos hormonas que os animais conseguem detectar. O Warren Hoyt também lhes sente o cheiro. É como qualquer criatura que caça. Apanha o odor do medo, da vulnerabilidade, e isso alimenta-lhe as fantasias. Sou capaz de imaginar quais eram as fantasias dele quando estavam os dois na mesma sala. Vi ao que levam essas fantasias.

Numa tentativa inútil, O'Donnell tentou rir-se.

Está a tentar assustar-me...

A senhora tem um pescoço muito longo, doutora O'Donnell. Acho que lhe chamam pescoço de cisne. Ele deve ter reparado. Não o apanhou a olhar-lhe para essa zona pelo menos uma vez?

Oh, por favor.

Não parecia olhar para baixo muitas vezes? Talvez pensasse que ele estava a olhar-lhe para os seios, como fazem os outros homens. Mas o Warren não. Parece que não se preocupa muito com seios. O pescoço é que o atrai. Pensa no pescoço de uma mulher como numa sobremesa. A parte que deixa para cortar no fim. Depois de ter acabado com outra parte da anatomia da mulher.

Enrubescendo, O'Donnell olhou para Dean.

A sua parceira está a passar dos limites.

Não disse Dean em tom brando. Acho que a detective Rizzoli foi exactamente ao ponto.

Isto é pura intimidação. Rizzoli riu-se.

A senhora esteve numa sala com o Warren Hoyt e nessa ocasião não se sentiu intimidada?

O'Donnell fitou-a com um olhar frio.

Era uma entrevista de carácter clínico.

A senhora pensou que era. Mas ele considerou-a diferentemente. Rizzoli aproximou-se dela, num movimento de agressão silenciosa que não passou despercebido a O'Donnell. Embora esta fosse mais alta e mais imponente tanto em estatura como em posição social, não conseguia competir com a implacável presença de Rizzoli e corou cada vez mais à medida que as palavras de Rizzoli continuavam a socá-la. Ele foi bem-educado, disse a senhora. Cooperante. Bem, claro. Tinha exactamente aquilo que queria: uma mulher com ele na mesma sala. Uma mulher sentada perto dele o bastante para o excitar. Mas oculta o facto, é bom nisso. É bom a manter uma conversa perfeitamente normal, mesmo quando está a pensar em cortar-lhe o pescoço.

Você está descontrolada! exclamou O'Donnell.

Julga que estou apenas a tentar assustá-la?

Não é óbvio?

Aqui tem uma coisa que devia realmente assustá-la. O Warren Hoyt conseguiu farejá-la bem. Sentiu-se excitado consigo. E agora está cá fora e voltou a caçar. E sabe de uma coisa? Ele nunca se esquece do odor de uma mulher.

O'Donnell retribuiu-lhe o olhar, finalmente mostrando medo. Rizzoli não conseguiu deixar de retirar alguma satisfação por ver aquele medo. Queria que O'Donnell provasse um pouquinho do que ela mesma sofrera no ano anterior.

Habitue-se a ter medo acrescentou Rizzoli. Porque bem precisa.

Já trabalhei com homens como ele respondeu O'Donnell. Sei quando devo ter medo.

O Hoyt é diferente de todos os que conheceu. O'Donnell soltou uma gargalhada. A sua jactância regressara envolta em orgulho.

São todos diferentes. Todos únicos. E nunca voltei as costas a nenhum.

 

Minha cara doutora O'Donnell,

Questionou-me sobre as recordações da minha primeira infância. Ouvi dizer que poucas pessoas conservam a memória da sua vida antes dos três anos, porque o cérebro ainda imaturo não adquiriu a capacidade de processar a linguagem e precisamos da linguagem para interpretar as experiências visuais e auditivas por que passamos durante a infância. Seja qual for a explicação para a amnésia infantil, não se me aplica, uma vez que me recordo bastante bem de alguns pormenores da minha infância. Vêm-me à mente imagens nítidas, que, segundo creio, datam de quando eu tinha cerca de onze meses. Sem dúvida que as afastará como sendo lembranças fabricadas, construídas sobre histórias que devo ter ouvido contar aos meus pais. Mas asseguro-lhe que essas recordações são absolutamente reais e que se os meus pais estivessem vivos lhe diriam que as minhas lembranças são exactas e não poderiam basear-se em histórias que eu tivesse ouvido. Pela própria natureza das imagens, era muito pouco provável que a minha família falasse desses acontecimentos.

Lembro-me da minha pequena cama, de ripas de madeira pintadas de branco e com o rebordo amassado com as marcas dos meus dentes. Uma manta azul que tinha uma espécie de seres minúsculos estampados. Passarinhos ou abelhas, ou talvez ursinhos. Por cima da cama, uma engenhoca que subia e descia e que hoje sei que era um móbile, mas que, naquela época, me parecia pura magia. Brilhava e estava sempre em movimento. Estrelas, luas e planetas, disse mais tarde o meu pai, precisamente o tipo de brinquedo que ele penduraria por cima da caminha do filho. O meu pai era engenheiro aerospacial e acreditava que se pode transformar qualquer criança num génio se se estimular o cérebro em crescimento, quer com móbiles, quer com brinquedos luminosos, quer com uma gravação da voz do pai a dizer a tabuada de multiplicação.

Fui sempre bom em matemática.

Mas duvido que tenha muito interesse por estas recordações. Não, anda à procura dos temas mais tenebrosos e não das minhas lembranças sobre caminhas brancas e brinquedos bonitos. Quer saber por que motivo sou como sou.

Portanto, suponho que devo falar-lhe da Mairead Donohue.

Soube o nome dela anos mais tarde, quando falei com uma tia minha sobre as minhas primeiras recordações e ela disse: "Oh, meu Deus! Lembras-te mesmo da Mairead?" Sem dúvida, lembro-me dela. Quando me vêm à ideia as imagens do meu quarto de bebé, não é o rosto da minha mãe, mas o da Mairead que me olha por cima do rebordo da cama. Pele branca, maculada apenas por um único sinal que lhe sobressai na face como uma mosca preta. Olhos verdes, simultaneamente belos e frios. E o sorriso... Até uma criança tão pequenina como eu conseguia ver aquilo perante o qual os adultos são cegos: havia ódio naquele sorriso. Ela odeia a família para quem trabalha. Odeia o cheiro das fraldas. Odeia o meu choro de fome que lhe interrompe o sono. Odeia as circunstâncias que a levaram para aquela quente cidade do Texas, tão diferente da sua Irlanda natal.

Mas, principalmente, odeia-me a mim.

Sei disso porque o demonstra de uma dúzia de maneiras silenciosas e subtis. Não deixa provas dos maus tratos, oh, não, é demasiado esperta para tal. Em vez disso, o ódio dela toma a forma de sussurros raivosos, suaves como o silvo das serpentes, ao inclinar-se sobre a minha cama. Não compreendo as palavras, mas ouço o seu veneno e vejo a raiva nos olhos semicerrados. Não descura nenhuma das minhas necessidades físicas; a minha fralda está sempre limpa e o biberão quente. Mas há sempre os beliscões secretos, a minha pele torcida, a mordedura do álcool passado directamente sobre a minha uretra. Naturalmente que choro, mas nunca há cicatrizes nem contusões. Sou simplesmente um bebé que sofre de cólicas, diz ela aos meus pais, que nasceu com um temperamento nervoso. Coitada da Mairead, tão trabalhadora! Ela é que tem de aturar o rebento chorão, enquanto a minha mãe cumpre as suas obrigações sociais. A minha mãe, que cheira a perfume e a pele de maria.

É então disto que me recordo. As espantosas explosões de dor. O som dos meus gritos. E, principalmente, a pele branca do pescoço da Mairead ao inclinar-se sobre a minha caminha para me dar um beliscão ou uma picada na pele macia.

Não sei se é possível uma criança tão pequena como eu era odiar. Penso que é mais provável que fiquemos simplesmente atónitos perante tal castigo. Sem capacidade para raciocinar, o melhor que podemos fazer é relacionar causa e efeito. E eu devo ter compreendido, mesmo então, que a fonte do meu tormento era uma mulher de olhos frios e pescoço branco como leite.

Rizzoli sentou-se à secretária e olhou para a caligrafia meticulosa de Warren Hoyt, para as margens perfeitamente alinhadas e as palavras em letra pequenina e apertada a formarem uma linha recta na página. Embora tivesse escrito a carta a tinta, não havia correcções nem palavras riscadas. Cada frase estava já organizada antes de a caneta tocar no papel. Imaginou-o debruçado sobre a página, os dedos esguios pousados em volta da esferográfica, a pele a deslizar sobre o papel, e, de repente, sentiu uma necessidade quase desesperada de lavar as mãos.

Na casa de banho das senhoras esfregou as mãos com sabão e água, tentando erradicar quaisquer vestígios dele, mas mesmo depois de ter as mãos lavadas e secas continuou a sentir-se contaminada, como se as palavras dele lhe tivessem penetrado na pele como um veneno. E havia mais cartas daquelas para ler, mais veneno para ser absorvido.

Uma pancada na porta da casa de banho deixou-a hirta.

Jane? Está aí? Era Dean.

Estou respondeu ela.

Já tenho o vídeo pronto na sala de reuniões.

Vou já.

Olhou-se no espelho e não ficou contente com o que viu. Os olhos cansados, o ar confiante abalado. Não o deixes ver-te assim, pensou. Abriu a torneira, salpicou o rosto com água fria e enxugou-se com uma toalha de papel. Depois, endireitou-se e respirou fundo. Melhor, pensou ela, olhando para o seu reflexo. Nunca os deixes verem-te suar.

Dirigiu-se para a sala de reuniões e fez a Dean um rápido aceno de cabeça.

Muito bem. Estamos prontos?

Dean já tinha o televisor ligado e a luz do vídeo estava acesa. Pegou no envelope que O'Donnell lhe dera e introduziu o vídeo na ranhura.

Tem a data de sete de Agosto disse ele.

Foi só há três semanas, pensou ela, incomodada porque as imagens e as palavras seriam muito recentes.

Sentou-se à mesa de reuniões com o bloco preparado para tomar notas.

Comece.

Dean introduziu a gravação e carregou no PLAY.

A primeira imagem que viram foi a de O'Donnell, muito bem penteada, diante de uma parede de betão branca, com um aspecto incongruentemente elegante no seu fato de malha azul.

Hoje é o dia sete de Agosto. Estou no Centro Prisional Souza-Baranowski, em Shirley, no Massachusetts. Este indivíduo é Warren D. Hoyt.

A imagem tremelicou no ecrã e este ficou escuro; depois, surgiu outra imagem: um rosto tão horrendo para Rizzoli que esta recuou na cadeira. Para qualquer outra pessoa, Hoyt parecia vulgar e até sem nada para recordar. O cabelo castanho-claro estava perfeitamente penteado e o rosto tinha a palidez da reclusão. A camisa de ganga da cor azul da prisão estava um tamanho acima da sua estatura esbelta. Os que o tinham conhecido na sua vida diária descreviam-no como agradável e cortês e era esta a imagem que projectava no filme. Um jovem simpático e inofensivo.

O olhar de Hoyt afastou-se da câmara e fixou-se em algo que estava fora do campo de visão. Ouviu-se arrastar uma cadeira e depois a voz de O'Donnell.

Está confortável, Warren?

Sim.

Então, podemos começar?

Quando quiser, doutora O'Donnell. Hoyt sorriu. Não vou para lado nenhum.

Muito bem. O som da cadeira de O'Donnell a estalar e de O'Donnell a pigarrear. Nas suas cartas, já me contou bastante sobre a sua família e infância.

Tentei ser abrangente. Acho que é importante compreender todos os aspectos de quem sou.

Sim, e agradeço. Não é muito frequente ter oportunidade de entrevistar alguém tão comunicativo como o Warren, e menos ainda que tente ser tão analítico acerca do seu comportamento.

Hoyt encolheu os ombros.

Bem, conhece o ditado sobre quem vive sem reflectir. É uma vida que não vale a pena viver.

No entanto, às vezes podemos levar longe de mais a auto-análise. É um mecanismo de defesa. O intelectualismo, como meio de nos distanciarmos das nossas emoções primárias.

Hoyt fez uma pausa. Depois, disse em tom levemente trocista:

Quer que eu fale de sentimentos.

Sim.

Alguns sentimentos em particular?

Quero saber o que faz os homens matar. O que os arrasta para a violência. Quero saber o que lhes passa pela cabeça. O que sentem quando matam outro ser humano.

Hoyt nada disse por momentos, ponderando a questão.

Não é fácil descrever.

Tente.

A bem da ciência? A voz soava novamente com um laivo de troça.

Sim. A bem da ciência. O que sente? Uma longa pausa.

Prazer.

Então, sabe bem?

Sim.

Descreva-me essa sensação.

Quer mesmo saber?

É a base da minha investigação, Warren. Quero saber o que sente quando mata. Não é curiosidade mórbida. Preciso de saber se tem alguns sintomas que possam denotar anormalidades neurológicas. Dores de cabeça, por exemplo. Sabores ou cheiros estranhos.

O cheiro do sangue é bastante agradável. Fez uma pausa. Oh, acho que a choquei.

Continue. Fale-me de sangue.

Costumava trabalhar com sangue, como sabe.

Sim, sei. Era técnico de laboratório.

As pessoas pensam no sangue como sendo apenas um fluido vermelho que nos circula pelas veias. Como o óleo de um motor. Mas é muito complexo e individual. O sangue de todos é único. Assim como cada homicídio é único. Não há um que seja típico e se possa descrever.

Mas todos lhe deram prazer?

Uns mais do que outros.

Fale-me de um que para si tenha sido especial. Um de que se recorde em particular. Há algum?

Hoyt assentiu.

Há um em que estou sempre a pensar.

Mais do que noutros?

Sim. Passou-se na minha mente.

Porquê?

Porque não o terminei. Porque nunca tive oportunidade de ter esse prazer. É como ter uma comichão que não se consegue coçar.

Dito assim, parece vulgar.

Parece? Mas, com o tempo, até uma vulgar comichão lhe prende totalmente a atenção. Está sempre ali a fazer-lhe cócegas na pele. Uma forma de tortura é fazer cócegas nos pés, sabia? Pode parecer insignificante a princípio. Mas quando se prolonga por dias a fio sem alívio torna-se uma das formas de tortura mais cruéis. Julgo que mencionei nas minhas cartas que sei uma ou duas coisas sobre a história da desumanidade do homem para com o homem. A arte de infligir dor.

Sim. Escreveu-me acerca do seu, ha... interesse pelo assunto.

Os torcionários de todas as épocas sempre souberam que o mais subtil desconforto se torna insuportável com o tempo.

E essa comichão que mencionou tornou-se insuportável?

Mantém-me acordado à noite. Penso no que poderia ter sido. No prazer que me foi negado. A vida inteira fui meticuloso quanto a acabar o que começo. Portanto, isto incomoda-me. Penso nisso o tempo todo. As imagens estão sempre a passar-me pela cabeça.

Descreva-as. O que vê, o que sente.

Vejo-a a ela. É diferente, de modo algum como as outras.

Como assim?

Odeia-me.

As outras não?

As outras estavam nuas e assustadas. Conquistadas. Mas esta continua a lutar contra mim. Sinto isso quando lhe toco. A pele dela está carregada de electricidade devido à raiva, embora saiba que a venci. Inclinou-se para a frente como se estivesse prestes a partilhar os seus pensamentos mais íntimos. Já não fitava O'Donnell, mas a câmara, como se conseguisse ver através das lentes e fitar Rizzoli directamente. Sinto a fúria dela prosseguiu. Absorvo a sua raiva só por tocar-lhe na pele. É como algo ao rubro. Algo líquido e perigoso. Energia pura. Nunca me senti tão poderoso. Quero sentir-me assim outra vez.

Isso excita-o?

Sim. Penso no pescoço dela. Muito esguio. Tem um pescoço bonito e branco.

Que mais pensa?

Penso em tirar-lhe a roupa. Como os seios dela são firmes. E a barriga. Uma barriga linda e lisa...

Então, as suas fantasias acerca da doutora Cordell são de natureza sexual?

Hoyt fez uma pausa. Pestanejou, como se tivesse saído de um transe.

A doutora Cordell?

Era dela que estávamos a falar, não? A vítima que você não chegou a matar, Catherine Cordell.

Oh! Também penso nessa. Mas não estou a falar dela.

De quem está a falar?

Da outra. Olhou para a câmara com uma expressão de tal intensidade que Rizzoli conseguia sentir-lhe o calor. Da agente da polícia.

Refere-se à que o apanhou? As suas fantasias são sobre essa mulher?

Sim. Chama-se Jane Rizzoli.

 

Dean levantou-se e carregou no STOP do leitor de vídeo. O ecrã ficou em branco. As últimas palavras de Warren Hoyt ficaram a pairar no silêncio como um eco perpétuo. Nas fantasias dele, Rizzoli fora despojada da roupa e da dignidade e reduzida a partes nuas de corpo. Pescoço, seios e ventre. Perguntou a si mesma se seria assim que Dean a via agora, se as visões eróticas que Hoyt conjurara estavam agora impressas igualmente na mente de Dean.

Dean voltou-se e olhou para ela. Nunca achara fácil ler o rosto dele, mas, nesse instante, a raiva existente nos olhos de Dean era inequívoca.

Percebe, não? perguntou ele. A intenção era você ver esta gravação. Ele deixou uma pista de migalhas de pão para você seguir. O sobrescrito com o endereço da O'Donnell conduzia à própria O'Donnell. Às cartas dele, a esta gravação. Ele sabia que você acabaria por ver tudo.

Rizzoli fitou o ecrã da televisão em branco.

Ele está a falar comigo.

Exactamente. Está a servir-se da O'Donnell como intermediária. Quando o Hoyt fala com ela, na entrevista, na realidade está a falar consigo. A contar-lhe as suas fantasias. A usá-las para a assustar e humilhar. Ouça o que ele diz. Dean rebobinou a fita.

O rosto de Hoyt surgiu novamente no ecrã.

"Mantém-me acordado à noite. Penso no que poderia ter sido. No prazer que me foi negado. A vida inteira fui meticuloso quanto a acabar o que começo. Portanto, isto incomoda-me. Penso nisso o tempo todo..."

Dean carregou no STOP e olhou para ela.

Como se sente com isto? Sabendo que está sempre na mente dele?

Você sabe perfeitamente como me sinto.

Também ele. Por isso ele quer que você ouça. Dean fez andar a cassete mais para a frente e carregou no PLAY.

Os olhos de Hoyt estavam arrepiantemente fixos na assistência que não podia ver.

"Penso em tirar-lhe a roupa. Como os seios dela são firmes. E a barriga. Uma barriga linda e lisa..."

O agente Dean carregou no STOP. O olhar dele fê-la corar.

Não me diga antecipou-se ela. Quer saber como é que me sinto.

Exposta?

Sim.

Vulnerável?

Sim.

Violada.

Rizzoli engoliu e afastou os olhos. Suavemente, acrescentou:

Sim.

Tudo o que ele quer que sinta. Você disse-me que ele se sente atraído por mulheres feridas. Por mulheres que foram violadas. E é precisamente dessa maneira que ele está a fazê-la sentir-se agora. Com simples palavras numa gravação de vídeo. Como uma vítima.

O olhar dela correspondeu ao dele.

Não disse. Uma vítima, não. Quer saber o que estou realmente a sentir neste momento?

O quê?

Estou capaz de desfazer em pedaços aquele filho da mãe. Era uma resposta atirada por pura bravata e as palavras socaram o ar. Ele foi apanhado de surpresa, mas apenas franziu as sobrancelhas por momentos. Notaria como lhe estava a ser difícil manter as aparências? Teria ouvido na voz dela a nota falsa?

Rizzoli prosseguiu sem lhe dar tempo a analisar-lhe a falsa coragem.

Você diz que ele sabia, já então, que eu acabaria por ver isto? Que a gravação foi feita em minha intenção?

Não lhe pareceu?

Pareceu-me mais uma fantasia de um tarado.

Mas não um tarado qualquer. E não uma vítima qualquer. Ele está a falar de si, Jane. Está a falar do que gostaria de fazer-lhe.

Nos seus terminais nervosos crepitaram alarmes. Dean estava a transformar aquilo em algo pessoal e apontava a seta directamente ao alvo. Gostaria de a ver contorcer-se? Isso servia mais algum objectivo que não fosse aumentar-lhe os temores?

Na altura em que isto foi gravado, ele já tinha a evasão planeada observou Dean. Lembre-se de que foi ele quem contactou a O'Donnell. Sabia que ela falaria com ele, que não era capaz de resistir à oferta. A O'Donnell foi um microfone aberto que registou tudo o que ele disse, tudo o que ele quis que as pessoas ouvissem. Especialmente você. Depois, provocou uma sequência lógica de acontecimentos que conduziram directamente a este momento: você a ver esta gravação.

Alguém é assim tão brilhante?

O Warren Hoyt não é? retorquiu Dean. Foi mais uma seta atirada para lhe trespassar as defesas. Para expor o óbvio. O Hoyt passou um ano atrás das grades. Teve um ano para alimentar as suas fantasias prosseguiu Dean. E eram todas sobre si.

Não, quem ele queria era a Catherine Cordell. Foi sempre a Cordell...

Não foi o que ele disse à O'Donnell.

Então estava a mentir.

Porquê?

Para me atingir. Para me fazer perder o sangue-frio...

Então, concorda. A intenção era que esta gravação acabasse nas suas mãos. É uma mensagem dirigida a si.

Rizzoli fitou o ecrã do televisor em branco. O fantasma do rosto de Hoyt parecia continuar a olhar para ela. Tudo o que ele fizera tivera por objectivo desmoronar o seu universo e destruir-lhe a paz de espírito. Fora o que fizera a Cordell antes de avançar para acabar com ela. Queria as vítimas aterrorizadas, amachucadas pela exaustão, e só colhia a sua presa depois de perfeitamente amadurecida pelo terror. Não lhe sobravam recusas a contrapor, nem defesas perante o óbvio.

Dean sentou-se à mesa diante dela.

Acho que você devia retirar-se desta investigação afirmou calmamente.

Espantada, ela olhou para ele.

Retirar-me?

Tornou-se um assunto pessoal.

Entre mim e um delinquente, é sempre pessoal.

Não a este ponto. Ele quer que esteja neste caso para poder pôr em prática os seus joguinhos. Insinuar-se em todos os aspectos da sua vida. Como detective responsável, você é visível e acessível. Totalmente imersa na caçada. E ele agora começou a montar os locais dos crimes em sua intenção. Para comunicar consigo.

Mais uma razão para eu continuar.

Não. Mais uma razão para você se afastar. Para pôr alguma distância entre si e o Hoyt.

Nunca me afastei de nada, agente Dean ripostou em tom incisivo.

Após uma pausa, ele disse secamente:

Não. Não a imagino a fazê-lo.

Foi ela quem se inclinou para ele numa atitude de confronto.

Seja como for, qual é o seu problema em relação a mim? Desde o princípio que embirra comigo. Falou com o Marquette nas minhas costas. Levantou dúvidas sobre mim...

Nunca pus em causa a sua competência.

Então, qual é o seu problema comigo?

Dean respondeu à revolta dela em voz calma e razoável.

Pense no indivíduo com que está a lidar. Um homem que você já perseguiu. Um homem que a culpa da sua captura. Que continua a pensar no que gostaria de fazer-lhe. Quanto a si, passou esse mesmo ano a tentar esquecer o que ele fez. Ele anseia por um segundo acto, Jane. Está a cavar os alicerces e a arrastá-la exactamente para onde ele quer que você esteja. Não é um lugar onde se encontre segura.

É realmente a minha segurança o que o preocupa?

Está a insinuar que tenho segundas intenções? perguntou ele.

Não sei. Ainda não consegui compreendê-lo.

Dean ergueu-se e dirigiu-se para o vídeo. Retirou a cassete e voltou a enfiá-la no envelope. Estava a arranjar tempo, tentando surgir com uma resposta plausível.

Voltou a sentar-se e fitou-a.

A verdade é que também eu não a compreendi ainda disse ele.

Rizzoli riu-se.

A mim? O que vê é o que sou.

Só me deixa ver a agente policial. E quanto à Jane Rizzoli, à mulher?

São uma e a mesma pessoa.

Sabe que não é verdade. Só que não permite que alguém veja para lá do distintivo.

Que é suposto eu deixar ver? Que me falta o precioso cromossoma Y? O meu distintivo é a única coisa que quero que vejam.

Dean inclinou-se para a frente com o rosto suficientemente próximo para invadir-lhe o espaço pessoal.

Trata-se agora da sua vulnerabilidade enquanto alvo. Trata-se de um agressor que já sabe como manobrá-la. Um homem que conseguiu chegar suficientemente perto para dar o golpe. E você nem sequer soube que ele ali estava.

Saberei da próxima vez.

Acha?

Olharam um para o outro, com os rostos próximos como os de dois amantes. O dardo de desejo sexual que a trespassou foi tão súbito e inesperado que parecia, em simultâneo, dor e prazer. Abruptamente, ela recuou, com o rosto corado, mas, embora os seus olhos encontrassem os dele a uma distância mais segura, continuou a sentir-se exposta. Não era boa a esconder emoções e sempre se sentira desesperadamente inadequada quando se tratava dos pequenos jogos de sedução que homens e mulheres põem em cena entre si. Tentou manter a expressão inalterada, mas descobriu que não conseguia continuar a olhar para ele sem se sentir transparente ao seu olhar.

Compreende que há uma segunda vez? perguntou-lhe Dean. Agora não é só o Hoyt. São dois. Se isso não a assusta, pois devia.

Rizzoli olhou para o envelope com a cassete que Hoyt pretendera que ela visse. O jogo estava apenas a começar, a vantagem estava do lado de Hoyt e, sim, sentia-se assustada.

Em silêncio, reuniu os seus papéis.

Jane?

Ouvi tudo o que disse.

Mas tanto lhe faz, não é assim? Rizzoli fitou-o.

Sabe uma coisa? Posso ser atropelada por um autocarro ao atravessar a rua. Ou posso desmaiar de repente em cima da secretária com um enfarte. Mas não penso nessas coisas. Não posso permitir que me dominem. Quase o fiz, como sabe. Os pesadelos... desgastaram-me ao máximo. Mas recuperei um segundo fôlego. Ou talvez esteja simplesmente anestesiada e já não consiga sentir nada. Por isso, o melhor que posso fazer é pôr um pé adiante do outro e continuar a andar. É assim que se ultrapassa, simplesmente continuar a andar, a única coisa que ambos podemos fazer.

Quase se sentiu aliviada quando o bíper tocou. Deu-lhe uma razão para quebrar o contacto visual e olhar para o mostrador do aparelho. Sentiu que ele a observava ao dirigir-se para o telefone da sala de reuniões e ao marcar o número.

Cabelo e Fibras. Volchko respondeu uma voz.

Rizzoli. Contactou comigo.

É sobre aquelas fibras verdes de náilon. As que foram retiradas da pele da Gail Yeager. Encontrámos fibras idênticas igualmente na pele da Karenna Ghent.

Então, ele está a utilizar o mesmo tecido para embrulhar todas as vítimas. Nesse aspecto não há surpresas.

Sim, mas tenho uma surpresazinha para si.

Qual?

Sei que tecido ele utilizou.

Erin apontou para o microscópio.

As lamelas estão todas preparadas para si. Dê uma olhadela. Rizzoli e Dean sentaram-se um diante do outro pressionando os olhos contra a dupla ocular do microscópio de ensino. Viam a mesma coisa através das lentes: dois fios colocados lado a lado para comparação.

A fibra da esquerda foi retirada da Gail Yeager. A da direita da Karenna Ghent disse Erin. Que lhes parece?

Parecem idênticas observou Rizzoli.

E são. São ambas de náilon DuPont tipo seis, seis, verde-seco. Os filamentos têm trinta denieres, extremamente finos. Erin pegou numa pasta e retirou dela dois gráficos, que pousou na bancada. E aqui novamente os espectros de reflexão total atenuada. O número um é da Yeager, o número dois da Ghent. Olhou para Dean. Está familiarizado com estas técnicas, agente Dean?

É um processo por infravermelhos, não é?

Exacto. Utilizamo-lo para distinguir os tratamentos de superfície e as próprias fibras. Para detectarmos quaisquer químicos que tenham sido aplicados ao tecido após a tecelagem.

E há?

Sim, um banho de silicone. A semana passada, a detective Rizzoli e eu debruçámo-nos sobre as possíveis razões para esse tratamento de superfície. Não sabíamos a que se destinava o tecido. Mas sabíamos que eram resistentes à luz e ao calor. E que os fios são tão finos que, quando tecidos juntos, são impermeáveis.

Pensámos que podia ser uma tenda ou lona disse Rizzoli.

E qual seria o benefício do silicone? perguntou Dean.

Propriedades antiestáticas respondeu Erin. Alguma resistência ao rasgamento e à água. Além disso, acaba por reduzir quase a zero a porosidadade deste tecido. Por outras palavras, nem sequer o ar consegue passar através dele. Erin olhou para Rizzoli. Algum palpite sobre o que é?

Você disse que já sabia a resposta.

Bem, tive uma ajudazinha. Do laboratório da Polícia do Estado do Connecticut. Erin pousou um terceiro gráfico na bancada.

Mandaram-me um faxe esta tarde. É uma espectrografia deste tipo de fibras provenientes de um caso de homicídio na zona rural do Connecticut. As fibras foram recolhidas nas luvas e no casaco do suspeito. Compare-as com as fibras da Karenna Ghent.

Os olhos de Rizzoli voaram de um gráfico para o outro.

Os espectros correspondem-se. As fibras são idênticas.

Correcto. Só a cor é diferente. As fibras dos nossos dois casos são em tom verde-seco. As fibras do homicídio do Connecticut apareceram em duas cores diferentes. Umas eram em laranja fluorescente; outras verde-lima brilhante.

Está a brincar!

Parecem muito garridas, não é verdade? Mas, tirando as cores, as fibras do Connecticut correspondem às nossas. Náilon DuPont tipo seis, seis. Filamentos de trinta denieres, acabamento com banho de silicone.

Fale-nos do caso do Connecticut pediu Dean.

Foi um acidente de salto de avião. O pára-quedas da vítima não abriu como devia. Só quando estas fibras cor de laranja e verde-lima foram encontradas na roupa do suspeito é que se deu início à investigação do homicídio.

Rizzoli olhou para as espectrografias.

É um pára-quedas.

Exactamente. O suspeito do homicídio do Connecticut mexeu no pára-quedas da vítima na noite anterior. Esta fibra é característica do tecido dos pára-quedas. É resistente ao rasgamento e à água. Facilmente embalado e guardado entre utilizações. É o que o nosso assassino anda a usar para embrulhar as suas vítimas.

Rizzoli ergueu os olhos para ela.

Um pára-quedas disse. Constitui o sudário perfeito.

 

Havia papéis por todo o lado, pastas abertas sobre a mesa de reuniões e fotografias de locais de crimes espalhadas como pequenas lajes lustrosas. As canetas arranhavam os blocos de papel amarelo. Embora se esteja na era dos computadores e havia alguns computadores portáteis ligados e com os ecrãs iluminados, quando a informação extravasa rápida e furiosamente, os polícias continuam a procurar o conforto do papel. Rizzoli deixara na secretária o computador portátil, preferindo tomar notas com as suas garatujas escritas a preto. A página era uma misturada de palavras, setas e pequenas caixas que salientavam pormenores significativos. Mas havia ordem na confusão e segurança na permanência da tinta. Virou para uma nova página, tentando concentrar a atenção na voz sussurrada do Dr. Zucker. Procurava não se distrair com a presença de Gabriel Dean, que estava sentado a seguir a ela, tomando as suas próprias notas, mas numa caligrafia muito mais legível. O olhar dela vagueou-lhe pela mão de veias grossas, que se salientavam da pele conforme agarrava a caneta; o punho da camisa espreitava, branco e engomado, da manga do casaco cinzento. Dean entrara para a reunião depois dela e escolhera um lugar ao seu lado. Quereria dizer alguma coisa? Não, Rizzoli. Significa apenas que havia, um lugar vago ao teu lado. Era uma perda de tempo, uma distracção, deixar-se prender por tais pensamentos. Sentia-se dispersa e com a atenção dividida por diferentes direcções, e até as notas começavam a vaguear na página numa linha torta. Havia mais cinco homens na sala, mas só Dean lhe prendia a atenção. Já conhecia o seu odor e conseguia distingui-lo, fresco e limpo, da sinfonia olfactiva de perfumes das loções de barba existente na sala. Rizzoli, que nunca usava perfume, estava rodeada de homens que o usavam.

Baixou os olhos para o que escrevera:

Mutualismo: simbiose com vantagem mútua para ambos os organismos envolvidos.

A palavra que definia o pacto de Warren Hoyt com o novo parceiro. O Cirurgião e o Dominador, trabalhando em equipa. Caçando e alimentando-se juntos de carne putrefacta.

O Warren Hoyt sempre trabalhou melhor com um parceiro dizia o Dr. Zucker. É como ele gosta de caçar. Da maneira como costumava caçar com o Andrew Capra até à morte deste. Aliás, o Hoyt exige a participação de outro homem como parte do seu ritual.

Mas caçou por conta própria no ano passado disse Barry Frost. Nessa altura não tinha parceiro.

De certo modo, tinha replicou Zucker. Pense nas vítimas que ele escolheu aqui em Boston. Todas elas eram mulheres que tinham sido abusadas sexualmente, não pelo Hoyt, mas por outros homens. Sente-se atraído por mulheres agredidas, mulheres que tenham sido marcadas pela violação. A seus olhos, isso torna-as sujas, contaminadas. E, por isso, abordáveis. Lá no fundo, o Hoyt tem medo das mulheres normais e esse medo torna-o impotente. Só se sente cheio de força quando pensa nelas como seres inferiores. Simbolicamente destruídas. Quando caçava com o Capra, era o Capra quem violava as mulheres. Só depois o Hoyt usava o bisturi. Só então conseguia obter satisfação total com o ritual que se seguia. Zucker olhou em volta e viu cabeças a anuírem. Eram pormenores que os polícias que se encontravam na sala já conheciam. Com excepção de Dean, todos tinham trabalhado na investigação do caso do Cirurgião; estavam todos familiarizados com o trabalho manual de Warren Hoyt.

Zucker abriu uma pasta em cima da mesa.

Vamos agora ao nosso segundo assassino, aquele a que chamámos o "Dominador". O seu ritual é quase o reflexo oposto do do Warren Hoyt. Não tem medo das mulheres. Nem dos homens. De facto, escolhe para atacar mulheres que vivem com companheiros do sexo masculino. Não é só uma questão de o marido ou namorado estarem inconvenientemente presentes. Não, o indivíduo parece que quer o homem ali e entra preparado para lidar com ele. Uma arma de atordoar e fita adesiva para imobilizar o marido. O posicionamento da vítima do sexo masculino de forma a ser obrigada a ver o que em seguida se passa. Não se limita a matar imediatamente o homem, o que seria a jogada mais prática. Sente-se excitado por ter assistência. Por saber que outro homem está ali para o ver reclamar o seu galardão.

E o Warren Hoyt sente-se excitado por ver disse Rizzoli. Zucker assentiu.

Exactamente. Um assassino gosta de actuar. O outro gosta de ver. É um exemplo perfeito de mutualismo. Estes dois homens são parceiros naturais. Os seus desejos completam-se. Juntos, são mais eficientes. Conseguem controlar melhor a presa. Combinam os respectivos talentos. Mesmo quando o Hoyt ainda estava na prisão, já o nosso homem copiava as técnicas do Hoyt. Já ia buscar elementos à assinatura do Cirurgião.

Era um ponto de que Rizzoli se apercebera antes de todos os outros, mas ninguém na sala reconheceu este pormenor em particular. Talvez se tivessem esquecido, mas não ela.

Sabemos que o Hoyt recebeu uma série de cartas do público em geral. Mesmo na prisão, conseguiu recrutar um admirador. Cultivou-o e talvez o tenha até instruído.

Um aprendiz disse Rizzoli com suavidade. Zucker olhou para ela.

Foi uma palavra interessante a que utilizou. Aprendiz. Alguém que adquire um conhecimento ou arte sob a tutela de um mestre. Neste caso, é a arte da caça.

Mas qual deles é o aprendiz? perguntou Dean. E qual é o mestre?

A pergunta de Dean enervou Rizzoli. Durante o ano anterior, Warren Hoyt representara o mal sob a pior forma que ela conseguia imaginar. Num mundo de caçadores de emboscada, nenhum se lhe igualava. Agora, Dean levantara uma possibilidade que ela não queria considerar: que o Cirurgião fosse apenas um acólito de alguém ainda mais monstruoso.

Seja qual for a sua relação, são muito mais eficientes em equipa do que individualmente prosseguiu Zucker. E em equipa é possível que o padrão dos seus ataques se modifique.

Como assim? perguntou Sleeper.

Até agora, o assassino escolheu casais. Coloca o homem na posição de quem assiste, de alguém que observa a violação. Quer ali outro homem para o ver apoderar-se do seu prémio.

Mas agora tem um parceiro disse Rizzoli. Um homem que fica a ver. Um homem que quer ver.

Zucker assentiu com a cabeça.

O Hoyt pode desempenhar um papel fulcral na fantasia do outro. O expectador. A assistência.

O que significa que pode não escolher um casal, da próxima vez disse Rizzoli. Escolherá... Parou, sem vontade de terminar o pensamento.

Mas Zucker estava à espera de ouvir a sua resposta, uma resposta a que ele já chegara. Sentou-se, de cabeça inclinada, os olhos pálidos a observarem-na com grande intensidade.

Foi Dean quem falou.

Escolherão uma mulher que viva sozinha disse ele. Zucker assentiu.

Fácil de dominar, fácil de controlar. Sem marido com quem se preocupem, podem concentrar toda a atenção na mulher.

O meu carro. A minha casa. Eu.

Rizzoli estacionou num lugar vago do parque do Hospital Pilgrim e desligou o motor. Por momentos, deixou-se ficar no carro, de portas trancadas, perscrutando a garagem. Enquanto polícia, sempre se considerara uma guerreira, uma caçadora. Nunca pensara em si como presa. Mas, agora, descobria-se a agir como presa, assustada como um coelho que se preparasse para abandonar a segurança da sua toca. Ela, que sempre se sentira destemida, estava reduzida a lançar olhadelas nervosas pela janela do automóvel. Ela, que arrombara portas a pontapé, que sempre fizera parte da primeira vaga de agentes que invadiam a casa de um suspeito. Olhou-se de relance no espelho retrovisor e viu o rosto abatido e os olhos obcecados de uma mulher que mal reconhecia. Não uma conquistadora, mas uma vítima. Uma mulher que desprezava.

Empurrou a porta e saiu. Endireitou-se, tranquilizada pelo peso da arma confortavelmente pendurada na anca. Que viessem os pulhas; estava preparada para eles.

Dirigiu-se sozinha para o ascensor da garagem, de ombros direitos. O orgulho triunfara sobre o medo. Ao sair do ascensor, viu outras pessoas e a arma pareceu-lhe desnecessária e até excessiva. Ajeitou o casaco de forma a esconder o coldre ao dirigir-se para o hospital e entrou noutro ascensor com três estudantes de medicina de rosto animado e estetoscópios a saírem-lhes dos bolsos. Trocaram entre si termos médicos, exibindo o seu vocabulário recentemente enriquecido e ignorando a mulher de aspecto cansado que ia ao seu lado. Sim, a que levava a arma escondida na anca.

Na Unidade de Cuidados Intensivos, passou pela secretária do funcionário da recepção e dirigiu-se para o cubículo número cinco. Ao chegar junto da divisória de vidro, parou e franziu as sobrancelhas.

Na cama de Korsak estava uma mulher.

Desculpe, minha senhora, mas as visitas têm de se inscrever disse uma enfermeira.

Rizzoli voltou-se e perguntou:

Onde é que ele está?

Quem?

O Vince Korsak. Devia estar nesta cama.

Desculpe, mas entrei ao serviço às três...

Era suposto telefonarem-me se alguma coisa acontecesse! Entretanto, a sua agitação atraíra a atenção de outra enfermeira,

que interveio rapidamente, falando no tom tranquilizador de quem já lidou muitas vezes com familiares preocupados.

Mister Korsak foi extubado esta manhã, minha senhora.

Que quer isso dizer?

O tubo da garganta, o que o ajudava a respirar, retirámo-lo. Agora está bem, por isso transferimo-lo para os cuidados intermédios, ao fundo do corredor explicou. Mas olhe que telefonámos para a mulher de Mister Korsak acrescentou em tom defensivo.

Rizzoli pensou em Diane Korsak e nos olhos vazios e perguntou-se se ela teria tomado conhecimento do telefonema ou se a informação caíra simplesmente como uma moeda num poço escuro.

Quando chegou ao quarto de Korsak, estava mais calma e novamente controlada. Espreitou em silêncio para dentro do quarto.

Korsak estava acordado e fitava o tecto. Sob as cobertas, via-se a saliência da barriga. Os braços permaneciam totalmente imóveis aos lados, como se ele tivesse medo de os mover, não fosse aumentar o emaranhado de fios e tubos.

Ei disse ela suavemente. Ele olhou para ela.

Ei respondeu em tom rouco.

Apetece-lhe uma visita?

Em resposta, ele deu umas palmadinhas na cama, num convite para ela se sentar. Para ficar.

Rizzoli puxou uma cadeira para junto da cama e sentou-se. Korsak erguera novamente os olhos, não para o tecto, como ela pensara a princípio, mas para um monitor cardíaco que estava montado num canto do quarto. Um electrocardiograma piscava no ecrã.

É o meu coração disse ele. O tubo deixara-o rouco e o que saía era um mero sussurro.

Veja como está a bater bem observou ela.

Sim. Fez-se silêncio e Korsak continuou a fitar o monitor. Rizzoli viu o ramo de flores que lhe enviara de manhã pousado na mesa-de-cabeceira. Era a única jarra do quarto. Ninguém mais se lembrara de lhe mandar flores? Nem a mulher?

Conheci a Diane ontem proferiu ela.

Korsak olhou para ela e depois, rapidamente, desviou os olhos, mas não antes que ela visse desânimo espelhado neles.

Calculo que ela não lhe disse acrescentou Rizzoli.

Korsak encolheu os ombros.

Não veio cá hoje.

Oh! Talvez se tenha atrasado.

Macacos me mordam se sei!

A resposta apanhou-a de surpresa. Talvez também o tivesse surpreendido a ele porque corou subitamente.

Não devia ter dito isto acrescentou Korsak.

Pode dizer-me o que quiser.

Ele voltou a olhar para o monitor e suspirou.

Nesse caso... É uma porcaria.

O que é uma porcaria?

Tudo. Um tipo como eu vai vivendo e fazendo o que é suposto fazer. Leva para casa o cheque do vencimento. Dá à filha tudo o que a mulher quer. Nunca recebe subornos, nem uma vez sequer. Depois, de repente, tenho cinquenta e quatro anos e, pimba!, o meu próprio relógio volta-se contra mim. Estou estendido na cama e a pensar: "Para que diabo foi tudo isto?" Sigo as regras e acabo com uma filha fracassada que ainda chama pelo pai sempre que precisa de dinheiro. E com uma mulher que se droga com tudo o que consegue apanhar na farmácia. Não consigo competir com o príncipe Valium. Eu sou só o sujeito que lhe põe um tecto sobre a cabeça e paga todas as receitas. Deu uma gargalhada, resignado e amargurado.

Porque continua casado?

Qual é a alternativa?

Ficar solteiro...

Ficar sozinho, quer você dizer. Pronunciou a palavra sozinho como se, de todas, fosse a pior opção. Certas pessoas fazem escolhas na esperança do melhor; Korsak fizera uma escolha simplesmente para evitar o pior. Levantou os olhos para o traçado da pulsação cardíaca, o crispado símbolo verde da sua mortalidade. Boas ou más escolhas, todas elas tinham desembocado naquele momento, naquele quarto de hospital, onde o medo fazia companhia à mágoa.

"Onde estarei eu nesta idade?", perguntou-se Rizzoli. "Estendida de costas num hospital, lamentando as minhas escolhas e ansiando pela estrada por onde nunca enveredei?" Pensou no apartamento silencioso com as suas paredes brancas e a sua cama solitária. Até que ponto a sua vida era melhor do que a de Korsak?

Estou sempre preocupado se aquilo vai parar disse ele. Percebe, se fica só uma linha direita. Isso assusta-me ao máximo.

Não olhe mais.

Se não olhar mais, quem diabo vai estar atento àquilo?

As enfermeiras estão a ver à secretária. Têm monitores lá fora também, sabia?

Mas estão realmente a ver Ou estão só feitas parvas a falar de compras e namorados e dessas porcarias? É que se trata do meu coração!

Também têm sistemas de alarme. Ao mínimo batimento irregular, a máquina desata a apitar.

A sério? perguntou-lhe, olhando para ela.

Então, não confia em mim?

Sei lá!

Fitaram-se por momentos e Rizzoli sentiu-se invadida pela vergonha. Não tinha o direito de esperar a confiança dele, sobretudo depois do que acontecera no cemitério. Ainda a perseguia a visão de um Korsak atingido por um ataque cardíaco, estendido sozinho e abandonado no escuro. E ela tão concentrada e esquecida de tudo o mais que não fosse a perseguição. Não conseguiu olhá-lo de frente e baixou os olhos, fitando-lhe o braço carnudo, percorrido por tubos intravenosos e adesivos.

Lamento muito disse ela. Meu Deus, como lamento!

O quê?

O não ter cuidado de si.

De que está a falar?

Não se lembra? Korsak abanou a cabeça.

Rizzoli fez uma pausa, apercebendo-se subitamente de que ele não se lembrava mesmo. Que podia parar de falar de imediato e ele nunca saberia que ela não o ajudara. O silêncio seria a melhor saída, mas ela sabia que não poderia viver com esse fardo.

De que se lembra no que se refere à noite no cemitério? perguntou-lhe ela. A última coisa?

A última coisa? Ia a correr. Calculo que fôssemos a correr, ou não? A perseguir o suspeito.

De que mais?

Lembro-me de me sentir realmente aborrecido.

Porquê? Korsak resfolegou.

Porque não conseguia acompanhar uma simples rapariga.

E depois? Encolheu os ombros.

Só isso. É a última coisa de que me lembro. Até aquelas enfermeiras começarem a enfiar-me o tubo pelo... Parou. Acordei logo. E pode crer que elas também o ficaram a saber.

Instalou-se o silêncio. Korsak continuou de queixo caído e olhos obstinadamente presos ao monitor. Depois, sereno, mas com mágoa, declarou:

Presumo que estraguei a perseguição. Rizzoli foi apanhada de surpresa.

Korsak...

Olhe para isto. Apontou para a barriga saliente. Parece que engoli um cesto de basquetebol! É o que parece. Ou que estou grávido de quinze meses! Nem sequer consigo correr ao lado de uma rapariga. Costumava ser rápido, sabia? Tinha a constituição de um cavalo de corrida. Não é como agora. Devia ter-me visto nessa época, Rizzoli. Não me reconheceria. Aposto que não acredita em nada disto, pois não? Porque só me vê como sou agora. Um pedaço de porcaria. Fumo de mais, como de mais.

Bebe de mais, acrescentou ela mentalmente.

... nada mais que um feio barril de toucinho. Deu uma palmada raivosa na barriga.

Korsak, ouça-me. Quem estragou tudo fui eu, não foi você. Ele fitou-a, nitidamente confuso.

No cemitério, íamos os dois a correr. A perseguir quem pensávamos ser o suspeito. Você vinha logo atrás de mim. Ouvi a sua respiração ao tentar acompanhar-me.

Como se quisesse dar-lhe uma lição.

A seguir, já lá não estava. Não estava, muito simplesmente. Mas continuei a correr e foi tudo uma perda de tempo. Não era o suspeito. Era o agente Dean que percorria o perímetro. O suspeito há muito que se fora embora. Não estávamos a perseguir nada, Korsak. Algumas sombras. Só isso.

Korsak manteve-se calado à espera do resto da história. Rizzoli fez um esforço para continuar.

Nesse momento, eu devia tê-lo procurado. Devia ter percebido que você já não estava por ali. Mas as coisas descontrolaram-se e não pensei, pura e simplesmente. Não parei para ver onde é que você estaria... Suspirou. Não sei quanto tempo se passou até que me lembrei. Talvez fossem apenas uns minutos. Mas parece-me, receio, que fosse muito mais. E durante todo esse tempo, você estava estendido atrás de uma das sepulturas. Levei muito tempo para começar a procurá-lo. Para me lembrar.

Fez-se silêncio. Rizzoli perguntou-se se ele teria registado o que ela dissera, porque começou a remexer nos tubos intravenosos que estavam embaraçados. Parecia que não queria olhar para ela e tentava concentrar-se noutra coisa qualquer.

Korsak.

Diga.

Não tem nada a dizer?

Sim. Esqueça. É o que tenho a dizer.

Sinto-me tão idiota!

Porquê? Por estar a fazer o seu trabalho?

Porque devia ter prestado atenção ao meu parceiro.

Então sou seu parceiro?

Naquela noite, era. Korsak riu-se.

Naquela noite era um peso morto. Uma corrente com uma esfera de duas toneladas a puxá-la para trás. Você tem andado preocupada por não ter cuidado de mim e eu fiquei ali estendido furioso por me ter estatelado no trabalho. Literalmente. Como um pedregulho. Tenho pensado em todas as estúpidas mentiras que conto a mim mesmo. Está a ver esta barriga? Bateu novamente no ventre. Ia desaparecer. Sim, também acreditei nisso. Que um dia destes ia começar uma dieta e livrar-me do pneu. Em vez disso, fui comprando calças cada vez maiores. Dizia a mim próprio que os fabricantes de vestuário andavam a aldrabar os números e pronto. Daqui a um par de anos, estaria a vestir calças de palhaço. E nem uma tonelada de laxantes e diuréticos me ajudaria a perder peso.

Você fez mesmo isso? Tomou comprimidos para emagrecer?

Não digo que o fizesse, só digo que este problema com o coração há muito que estava a preparar-se. Não ignorava que podia acontecer. Mas, agora que aconteceu, irrita-me. Soprou de raiva. Voltou a olhar para o monitor, onde as pulsações cardíacas piscavam mais rapidamente no ecrã. Agora, o relógio está todo agitado.

Ficaram calados por momentos, a olhar para o monitor, à espera de que o coração abrandasse. Rizzoli nunca dera muita atenção ao coração que lhe batia no peito. Ao observar o padrão traçado pelo de Korsak, tomou consciência da sua própria pulsação. Nunca se lembrava do coração e perguntava-se como seria estar suspenso de cada batimento e com medo de que o próximo nunca chegasse. Que a pulsação da vida parasse subitamente no seu peito.

Fitou Korsak, que continuava com os olhos colados ao monitor, e pensou: "Está mais do que irritado; está aterrorizado."

De repente, Korsak sentou-se, com os olhos esbugalhados de pânico, e as mãos voaram-lhe para o peito.

Chame a enfermeira! Chame a enfermeira!

O quê? O que foi?

Não ouve o alarme? É o meu coração...

Korsak, é só o meu bíper.

Quê?

Rizzoli soltou o bíper do cinto e desligou o som. Ergueu-o para que Korsak pudesse ver o mostrador com o número de telefone.

Está a ver? Não é o seu coração. Korsak afundou-se na almofada.

Meu Deus! Leve-me essa coisa daqui para fora. Podia ter-me provocado outro ataque.

Posso usar este telefone?

Korsak tinha ainda a mão a pressionar o peito e o corpo flácido de alívio.

Sim, sim. Não me importo.

Rizzoli levantou o auscultador e marcou o número. Respondeu-lhe uma familiar voz de fumadora.

Gabinete Médico-Legal, doutora Isles.

Rizzoli.

O detective Frost e eu estamos aqui a olhar para uma série de radiografias dentárias no meu computador. Percorremos a lista que nos mandaram de mulheres desaparecidas na área da Nova Inglaterra. Este processo foi-me enviado por correio electrónico pela Polícia Estadual do Maine.

Qual foi o caso?

Foi um de assassínio e sequestro, no dia dois de Junho deste ano. A vítima de assassínio foi Kenfleth Waite, de trinta e seis anos. A sequestrada foi a mulher, Maria Jean, de trinta e quatro. É para as radiografias da Maria Jean que estou a olhar.

Encontrámos a "dama com raquitismo"?

Coincidem respondeu Isles. A sua jovem já tem nome: Maria Jean Waite. Vão enviar-nos o processo por faxe.

Espere. Disse que este assassínio e sequestro aconteceu no Maine?

Numa cidade chamada Blue Hill. O Frost diz que esteve lá. Fica a cerca de cinco horas de carro.

O nosso assassino tem um território de caça maior do que pensávamos.

Ouça, o Frost quer falar consigo.

A voz bem-disposta de Frost surgiu na linha.

Ei, já comeste rolinhos de lagosta?

O quê?

Podemos comer rolinhos de lagosta pelo caminho. Há um restaurante à beira da estrada de Lincolnville Beach que serve almoços.

Saímos daqui amanhã por volta das oito e chegamos lá a horas para o almoço. No meu carro ou no teu?

Podemos levar o meu. Rizzoli fez uma pausa. O Dean provavelmente quer ir connosco não pôde deixar de acrescentar.

Houve um silêncio.

Está bem. Se achas que sim... retorquiu Frost, sem entusiasmo.

Vou telefonar-lhe.

Ao desligar, sentiu o olhar de Korsak.

Então, Mister FBI agora faz parte da equipa observou ele. Rizzoli ignorou-o e carregou no número do telemóvel de Dean.

Quando é que isso aconteceu?

Ele é apenas mais um recurso.

Não era o que você pensava dele anteriormente.

Depois disso, tivemos oportunidade de trabalharmos juntos.

Não me diga. Você viu o outro lado dele.

Fez sinal a Korsak para que se calasse quando o telefone começou a chamar, mas Dean não atendeu. Em vez disso, surgiu na linha uma mensagem gravada: "De momento, o número pretendido não está disponível."

Desligou e olhou para Korsak.

Algum problema?

Quem parece ter algum problema é você. Fornecem-lhe uma pista fresca e você não consegue esperar para telefonar ao seu amigo do FBI. Que se passa?

Não se passa nada.

Não é o que me parece.

Subiu-lhe o calor ao rosto. Não estava a ser honesta com ele e ambos sabiam disso. Já ao marcar o número do telemóvel de Dean, sentira o pulso a acelerar e sabia exactamente o que isso significava. Incapaz de se impedir de telefonar para o hotel dele, parecia um drogado ansioso pela dose. Virando as costas ao olhar turvo de Korsak, olhou pela janela quando o telefone tocou.

Colonnade.

Podia ligar-me a um hóspede? Chama-se Gabriel Dean.

Um momento, por favor.

Enquanto esperava, procurou as palavras certas a dizer-lhe e o tom de voz correcto. Comedido. Profissional. Polícia. És uma agente da polícia.

A voz do telefonista do hotel voltou a ouvir-se:

Desculpe, mas Mister Dean já não é nosso hóspede. Rizzoli franziu as sobrancelhas e apertou mais fortemente o telefone.

Mister Dean deixou algum número de telefone?

Não tenho nenhum anotado.

Rizzoli olhou pela janela, sentindo de repente os olhos encandeados pelo sol-poente.

Quando é que ele saiu? perguntou,

Há uma hora.

 

Rizzoli fechou a pasta que continha as páginas enviadas por faxe pela Polícia do Estado do Maine e olhou pela janela para os bosques que passavam e para a vista ocasional de uma casa rural branca no meio das árvores. Ler no carro sempre lhe provocara náuseas e os pormenores do desaparecimento de Maria Jean Waite só intensificaram a má disposição. O almoço que tinham ingerido pelo caminho também não ajudava. Frost estava ansioso por provar os rolinhos de lagosta de um dos restaurantes à beira da estrada e, embora na altura a comida lhe tivesse sabido bem, a maionese andava-lhe agora às voltas no estômago. Olhou para a estrada em frente esperando que o enjoo passasse. Ainda bem que Frost era um condutor calmo e cuidadoso, que não dava guinadas inesperadas e mantinha sempre a mesma velocidade. Rizzoli sempre apreciara a sua extrema previsibilidade, mas nunca como agora, em que se sentia tão incomodada.

Conforme se foi sentindo melhor, começou a reparar na beleza natural que via pela janela do automóvel. Nunca se aventurara tanto pelo Maine. O mais a norte a que já fora era Old Orchard Beach, tinha então dez anos de idade, quando a família fora passar lá o Verão. Recordava-se dos caminhos ladeados por ripas de madeira e dos passeios de bicicleta, do algodão-doce e das espigas de milho na maçaroca. Lembrava-se de entrar na água e de como esta era tão gelada que o frio lhe penetrava nos ossos como pingentes de gelo. Apesar disso, continuara a avançar devagar, precisamente porque a mãe a avisara de que não o fizesse.

Está fria de mais para ti, Janie gritara-lhe Angela. Fica aqui na areia quente.

A seguir, foram os irmãos de Jane que se intrometeram:

Isso, Janie, não vás! As tuas lindas pernas de galinha vão ficar congeladas!

Por isso, é evidente que ela fora para a água, correndo de rosto carrancudo pela areia até onde o mar batia e espumava e entrando na água, que a fez engolir em seco. Mas não era do ferrão gélido da água aquilo de que se lembrava após todos esses anos, mas do calor do olhar dos irmãos, que, da praia, a observavam, escarneciam dela e a desafiavam a entrar cada vez mais naquele frio de cortar a respiração. Por isso, avançara mar adentro, com a água a subir-lhe até às ancas, ao peito e aos ombros, movendo-se sem hesitar, sem sequer parar para se ir habituando. Teimara porque aquilo que mais receava não era a dor, era a humilhação.

Old Orchard Beach ficara agora a centenas de quilómetros para trás e a paisagem que via do automóvel não se parecia nada com o Maine de que se recordava da sua infância. Àquela distância da costa, não havia carreiros de ripas de madeira nem passeios de bicicleta. Em vez disso, viam-se árvores e campos verdes e uma ou outra aldeia, rodeando o pináculo de uma igreja branca.

A Alice e eu fazemos este percurso todos os anos em Julho disse Frost.

Nunca estive aqui.

Nunca? Ele fitou-a com um olhar de surpresa e que ela achou incomodativo. Um olhar que dizia: Mas onde é que estiveste?

Nunca vi motivos para cá vir respondeu.

A família da Alice acampa em Little Deer Isle. Ficamos lá.

Que engraçado. Nunca considerei que a Alice fosse do tipo de acampar.

Bem, chamam àquilo acampamento, mas, na verdade, é uma casa normal. Casas de banho a sério e água quente. Frost riu-se. A Alice passava-se se tivesse de ir fazer chichi na mata.

Só os animais é que deviam fazer chichi nas matas.

Gosto das matas. Se pudesse, era lá que vivia.

E perdias toda a excitação das cidades grandes? Frost abanou a cabeça.

Já te digo o que perdia. Os maus carácteres. Carácteres que nos fazem perguntar: "Mas que raio é que se passa com as pessoas?"

Achas que aqui são melhores?

Frost ficou calado, com o olhar concentrado na estrada, um tapete contínuo de árvores a correr pelas janelas.

Não disse por fim. Uma vez que é por isso que aqui estamos.

Rizzoli olhou para as árvores e pensou: O assassino também passou por aqui. O caçador, em busca da sua presa. Podia ter percorrido aquela mesma estrada e olhado para aquelas mesmas árvores ou parado para comer lagosta no restaurante à beira da estrada. Nem todos os predadores se encontravam nas cidades. Alguns vagueavam pelas estradas secundárias e atravessavam pequenas cidades, terras de vizinhos confiantes e portas abertas. Estivera ali de férias e deparara simplesmente com uma oportunidade que não podia perder? Os predadores também iam de férias. Metiam por caminhos nos campos e apreciavam o cheiro do mar como toda a gente. Eram perfeitamente humanos.

No exterior, através das árvores, Rizzoli começou a ver de relance o mar e pequenos promontórios de granito, paisagem escarpada que teria apreciado mais se não soubesse que o indivíduo que procuravam também andara por ali.

Frost abrandou e estendeu o pescoço para perscrutar a estrada.

Já passámos o cruzamento?

Que cruzamento?

Devíamos virar à direita em Cranberry Ridge Road.

Não o vi.

Avançámos de mais. Já devíamos ter chegado.

Já estamos atrasados.

Eu sei, eu sei.

É melhor telefonar ao Gorman. Dizer-lhe que os espertalhões da cidade se perderam na mata. Abriu o telemóvel e franziu as sobrancelhas ao ver o sinal da bateria fraco. Achas que o bíper dele funciona a esta distância?

Espera disse Frost. Parece-me que estamos com sorte. Mais adiante, um veículo com matrícula oficial do estado do Maine encontrava-se estacionado na berma da estrada. Frost parou ao lado e Rizzoli desceu o vidro da janela para falar com o condutor. Antes mesmo de poder apresentar-se, o homem disse-lhes:

Vocês é que são do Departamento de Polícia de Boston?

Como adivinhou? perguntou ela.

Pela matrícula do Massachusetts. Calculei que se tivessem perdido. Sou o detective Gorman.

Rizzoli e Frost. íamos agora mesmo telefonar-lhe para nos dar indicações.

Os telemóveis não funcionam lá muito bem aqui no sopé da colina. Zona morta. Querem seguir-me pela montanha? Ligou o motor do carro.

Sem Gorman para lhes indicar o caminho, teriam falhado totalmente o cruzamento para Cranberry Ridge. Tratava-se de uma simples estrada de terra batida aberta pelo meio do bosque e assinalada apenas com uma tabuleta pregada a um poste: CAMINHO FLORESTAL 24. O automóvel saltava nos sulcos, atravessando um denso túnel de árvores que ocultava toda a paisagem à medida que a estrada subia em curvas e contracurvas. Depois, o bosque cedeu o lugar a uma explosão de luz e viram jardins em socalcos e um campo verdejante que se estendia até uma vasta casa no topo da colina. A paisagem deixou-os tão admirados que Frost abrandou abruptamente e ambos ficaram a olhar.

Nunca se adivinharia disse ele. Vemos aquela humilde estrada de terra batida e imaginamos que dá para uma cabana ou caravana. Nada como isto.

Talvez seja essa a intenção da estrada humilde.

Afastar a ralé?

Sim. Mas não serviu de nada, pois não?

Quando estacionaram atrás do automóvel de Gorman, este já se encontrava à entrada e à espera para lhes apertar a mão. Como Frost, estava de fato completo, mas o dele caía-lhe mal, como se tivesse perdido muito peso desde que o comprara. O rosto, de pele amarelada e flácida, também reflectia a sombra de alguma maleita anterior.

Estendeu a Rizzoli uma pasta e uma gravação de vídeo.

O vídeo do local do crime disse ele. Estamos a copiar para si as restantes pastas. Algumas estão na minha bagageira... Pode levá-las quando se for embora.

A doutora Isles vai enviar-lhe o relatório final sobre as ossadas disse Rizzoli.

Causa da morte? Rizzoli abanou a cabeça.

O corpo estava reduzido a ossos. Não se conseguiu determinar. Gorman suspirou e olhou em direcção à casa.

Bem, pelo menos sabemos onde a Maria Jean está agora. Isso é que me punha louco. Fez um gesto na direcção da casa. Não há muito que ver lá dentro. Foi limpa. Mas, como pediram...

Quem vive ali agora? perguntou Frost.

Ninguém. Depois do assassínio, ninguém.

A casa é lindíssima, pena estar vazia.

Ainda está em processo de partilhas, mas, mesmo que pudessem pô-la no mercado, seria difícil vendê-la.

Subiram alguns degraus até um pátio em que se tinham acumulado folhas levadas pelo vento e onde se encontravam pendurados vasos de gerânios murchos. Parecia que ninguém varria nem regava havia semanas. Sobre a casa, pairava já, como teias de aranha, um ar de negligência.

Desde Julho que não venho cá disse Gorman, pegando num chaveiro e procurando a chave apropriada. Só voltei ao trabalho a semana passada e ainda estou a ambientar-me. Deixem que lhes diga que a hepatite rebenta com qualquer pessoa. E eu tive apenas o tipo menos grave, o tipo A. Pelo menos não me matou... Olhou de relance para os visitantes. Um conselho: não comam marisco no México.

Por fim, encontrou a chave certa e abriu a porta. Ao entrar, Rizzoli inalou os odores a tinta fresca e cera, os cheiros de uma casa esfregada de alto a baixo e desinfectada. E depois abandonada, pensou, olhando para as formas fantasmagóricas da mobília coberta de lençóis na sala. O soalho de carvalho-branco brilhava como vidro polido. A luz penetrava por janelas que iam do chão ao tecto. Ali, no cimo da montanha, debruçavam-se sobre o punho claustrofóbico dos bosques. A paisagem estendia-se até à baía de Blue Hill. Um avião a jacto traçou um rasto branco no céu azul e, em baixo, um barco abriu um sulco à superfície da água. Rizzoli ficou à janela por momentos, olhando para a mesma paisagem que Maria Jean Waite decerto apreciara.

Fale-nos destas pessoas pediu ela.

Não leu o processo que lhe enviei por faxe?

Li. Mas não fiquei com uma ideia acerca deles. Do que lhes interessava.

Alguma vez saberemos realmente?

Rizzoli voltou-se para o olhar de frente e ficou chocada com o tom levemente amarelado dos olhos dele. A luz vespertina parecia acentuar-lhe a cor doentia.

Comecemos pelo Kenneth. O dinheiro é todo dele, não é? Gorman assentiu.

Era um cretino.

Isso não li no relatório.

Há coisas que simplesmente não podem dizer-se nos relatórios. Mas era a opinião geral na cidade. Sabe, temos cá muitos ricaços como o Kenny. Blue Hill agora é o lugar que está na moda para os refugiados abastados de Boston. A maioria integra-se bem. Mas, de vez em quando, deparamos com um Kenny Waite, que pratica o jogo do "Sabe quem eu sou?" Sim, todos sabiam quem ele era. Era uma pessoa com dinheiro.

De onde lhe veio?

Dos avós. Construção naval, acho eu. O Kenny é que não o ganhou de certeza. Mas gostava de o gastar. Tinha um bom barco no porto. E costumava ir e voltar de Boston no Ferrari vermelho, sempre a abrir. Até que lhe retiraram a carta de condução e viu o carro confiscado. Infracções a mais. Gorman resmungou. Penso que foi demasiado dinheiro para o Kenneth Waite Terceiro. Muito dinheiro e pouca cabeça.

Que desperdício comentou Frost.

Você tem filhos? Frost abanou a cabeça.

Ainda não.

Se quiser criar um rancho de garotos inúteis disse Gorman, só tem de deixar-lhes dinheiro.

E quanto à Maria Jean? perguntou Rizzoli. Lembrava-se dos restos mortais da "dama com raquitismo" sobre a mesa da autópsia. As tíbias curvas e o esterno deformado, provas de uma infância pobre, fornecidas pelo esqueleto. Os princípios dela não foram com dinheiro, pois não?

Gorman abanou a cabeça.

Cresceu numa cidade mineira da Virgínia Ocidental. Veio para cá num emprego de Verão como criada. Foi assim que conheceu o Kenny. Acho que ele casou com ela porque foi a única que conseguiu aturá-lo. Mas não parecia um casamento feliz, principalmente depois do acidente.

Acidente?

Há uns anos. O Kenny ia a conduzir, embriagado como de costume. Embateu com o automóvel contra uma árvore. Ele saiu sem um arranhão... Sorte a dele, não é assim? Mas a Maria Jean ficou no hospital durante três meses. -

Deve ter sido quando partiu o colo do fémur.

O quê?

Havia uma peça de metal no fémur dela, aplicada cirurgicamente. E duas vértebras esmagadas.

Gorman assentiu.

Ouvi dizer que ficara a coxear. Uma verdadeira pena, também, porque era uma bonita mulher.

Quanto às feias, não importa que coxeiem, pensou Rizzoli, mas conteve-se. Dirigiu-se a uma parede com prateleiras embutidas e estudou a fotografia de um casal em fato de banho. Estavam numa praia e a água azul-turquesa lambia-lhes os tornozelos. A mulher era franzina, quase infantil, e o cabelo castanho-escuro caía-lhe sobre os ombros. Agora, cabelo de cadáver, não pôde Rizzoli impedir-se de pensar. O homem tinha cabelo claro, a cintura começava a engrossar e os músculos a tornarem-se flácidos. O que podia ter sido um rosto atraente era estragado por uma vaga expressão de desdém.

O casamento não era feliz? perguntou Rizzoli.

Foi o que me disse a criada. Depois do acidente, a Maria Jean não queria viajar e o Kenny só conseguia arrastá-la até Boston. Mas o Kenny estava habituado a ir para St. Bart todos os anos em Janeiro e portanto deixou-a cá.

Sozinha? Gorman assentiu.

Um bom tipo, hein? Ela tinha uma criada que lhe fazia os recados, a limpeza. Ia às compras, uma vez que a Maria Jean não gostava de conduzir. Isto aqui é um lugar bastante isolado, mas a criada achava que a Maria Jean na verdade parecia mais feliz quando o Kenny não estava. Gorman fez uma pausa. Tenho de admitir que, depois de termos encontrado o Kenny, me passou pela cabeça a possibilidade de...

De a Maria Jean o ter feito completou Rizzoli.

É sempre a primeira coisa em que se pensa. Estendeu a mão para o casaco à procura de um lenço e limpou o rosto. Está muito calor para si?

Está quente.

Não passo muito bem com o calor, actualmente. O corpo ainda não está equilibrado. Foi o que arranjei por comer amêijoas no México.

Percorreram a sala, passando pelas formas espectrais dos móveis cobertos de lençóis e por uma maciça lareira de pedra que tinha arrumado por baixo um molho de lenha cortada em toros. Combustível para alimentar as chamas nas noites gélidas do Maine. Gorman conduziu-os a uma parte do aposento onde havia apenas o soalho nu e a parede de branco imaculado e sem decorações. Rizzoli olhou para a camada de tinta fresca e sentiu eriçarem-se-lhe os cabelos da nuca. Olhou para o chão e viu que ali a madeira de carvalho era mais clara, que fora raspada e novamente envernizada. Mas o sangue não é facilmente eliminado e, se quisessem pôr o aposento às escuras e pulverizar com luminol, o chão continuaria a exibir sangue, porque os vestígios químicos estariam embebidos demasiado profundamente nas frestas e no grão da madeira para serem completamente apagados.

O Kenny foi encostado aqui disse Gorman, apontando para a parede recém-pintada. As pernas para a frente e os braços atrás. Pulsos e tornozelos atados com fita adesiva. Um golpe único no pescoço com uma faca tipo Rambo.

Não havia outros ferimentos? perguntou Rizzoli.

Só no pescoço. Como numa execução.

Marcas de arma de atordoar? Gorman fez uma pausa.

Sabe, ele já estava aqui há dois dias quando a criada o encontrou. Dois dias de calor. Entretanto, a pele já não tinha bom aspecto. Para não falar do cheiro. Podem ter-se deixado passar marcas feitas por uma arma de atordoar.

Alguma vez examinaram o soalho sob qualquer fonte de luz alternativa?

Isto estava feito num mar de sangue. Não tenho a certeza que se conseguisse ver alguma coisa com um Luma-lite. Mas está tudo na cassete de vídeo. Olhou em volta do aposento e descobriu o televisor e o vídeo. Porque não damos uma olhadela? Talvez responda à maior parte das suas perguntas.

Rizzoli dirigiu-se ao televisor, carregou no botão e inseriu a cassete na ranhura. Um canal de vendas, o Home Shopping Network, iluminou o ecrã, apresentando um colar de pendente com zircónio, cujas facetas cintilavam na garganta de uma modelo de pescoço de cisne, por apenas noventa e nove dólares e noventa e cinco cêntimos.

Estas coisas deixam-me louca disse Rizzoli, remexendo em dois comandos remotos diferentes. Nunca aprendi a programar o meu. Olhou de relance para Frost.

Ei, não me perguntes.

Gorman suspirou e pegou no comando. A modelo adornada com o zircónio desapareceu repentinamente e foi substituída por uma imagem do caminho para casa dos Waite. O vento zunia no microfone, distorcendo a voz do operador de câmara quando este enunciou o seu nome, detective Pardee, a hora, a data e a localização. Eram cinco horas da tarde do dia dois de Junho, um dia de vento em rajadas que abanavam as árvores. Pardee voltou a câmara para a casa e começou a subir os degraus. As imagens da câmara saltitavam no ecrã. Rizzoli viu gerânios em flor nos vasos, os mesmos gerânios que agora a negligência deixara morrer. Ouviu-se uma voz chamar por Pardee e por segundos o ecrã ficou em branco.

A porta da frente foi encontrada aberta disse Gorman. A criada disse que não era raro. As pessoas de cá deixam muitas vezes as portas no trinco. A criada partiu do princípio de que estava alguém em casa, uma vez que a Maria Jean nunca saía. Primeiro, bateu, mas não houve resposta.

Subitamente, uma nova imagem saltou à vista no ecrã. A câmara focou a porta de entrada e imediatamente depois a sala. Era o que a criada devia ter visto ao abrir a porta. O fedor e o horror ter-se-iam abatido sobre ela.

Talvez ela tenha dado um passo para dentro de casa disse Gorman. Viu o Kenny encostado à parede do fundo. E aquele sangue todo. Não se recorda de ter visto muito mais. Só queria fugir da casa. Saltou para o carro e carregou no acelerador com tanta força que os pneus escavaram sulcos na gravilha.

A câmara moveu-se para o interior do aposento, deu uma panorâmica do mobiliário e concentrou-se no principal acontecimento: Kenneth Waite III, vestido apenas de calções e com a cabeça pendurada sobre o peito. A decomposição precoce deformara-lhe as feições. O abdómen cheio de gases parecia um balão e o rosto estava inchado e irreconhecível como algo humano. Mas Rizzoli não se concentrou no rosto; concentrou-se no objecto de incongruente delicadeza pousado nas coxas dele.

Não sabíamos o que fazer com aquilo disse Gorman. Pareceu-me uma espécie de objecto simbólico. Foi assim que o classifiquei. Uma maneira de ridicularizar a vítima. "Olhem para mim, todo atado e com esta estúpida chávena no colo." Precisamente o que uma esposa faria ao marido para mostrar como o desprezava. Suspirou. Mas isso foi enquanto pensei que fora a Maria Jean quem fizera aquilo.

A câmara afastara-se do cadáver e movia-se agora pelo corredor, reproduzindo os passos do assassino em direcção ao quarto onde tinham dormido Maria Jean e Kenny. A imagem balouçava, provocando náuseas como se se olhasse pela vigia de um navio a balançar. A câmara parava em cada porta para mostrar o interior. Primeiro, uma casa de banho, depois um quarto de hóspedes. Conforme a câmara avançava pelo corredor, as pulsações de Rizzoli tornavam-se mais rápidas. Sem se aperceber, aproximara-se do televisor como se fosse ela e não Pardee quem caminhava pelo corredor.

Subitamente, uma imagem do quarto principal saltou para o ecrã. Janelas com reposteiros de damasco verde. Um roupeiro e guarda-fatos, ambos pintados de branco, e a porta do armário. Uma cama de dossel com as roupas puxadas para trás, quase desfeita.

Foram surpreendidos enquanto dormiam explicou Gorman. O estômago de Kenny estava praticamente vazio. À hora em que foi morto, não comia havia pelo menos oito horas.

Rizzoli aproximou-se ainda mais do televisor, perscrutando rapidamente o ecrã. Pardee voltava agora para o corredor.

Rebobine pediu ela a Gorman.

Porquê?

Volte só atrás. Quando vemos o quarto pela primeira vez. Gorman entregou-lhe o comando.

É todo seu.

Rizzoli carregou em REWIND e a fita guinchou ao enrolar.

Pardee estava novamente no corredor e aproximava-se do quarto principal. Mais uma vez a câmara voltou-se para a direita e deu a imagem panorâmica do toucador, do guarda-fatos e das portas do armário, focando então a cama. Frost encontrava-se agora ao lado de Rizzoli e procurava a mesma coisa.

Rizzoli carregou em PAUSE.

Não está cá.

O que é que não está? perguntou Gorman.

A camisa de noite dobrada. Voltou-se para ele. Não encontrou nenhuma?

Não sabia que era suposto encontrar.

Faz parte da assinatura do assassino. Dobra a camisa de noite da mulher. Expõe-na no quarto como símbolo do seu domínio.

Se foi ele, aqui não fez isso.

Tudo o mais condiz com ele. A fita adesiva, a chávena no colo. A posição da vítima masculina.

O que está a ver é o que encontrámos.

Tem a certeza de que não mexeram em nada antes de se gravar o vídeo?

A pergunta era destituída de tacto e Gorman empertigou-se.

Bem, calculo que seja sempre possível que o primeiro agente que aqui entrou tenha decidido mexer nas coisas só para tornar o caso mais interessante para nós.

Frost, sempre diplomata, avançoupara serenar os ânimos que Rizzoli tantas vezes azedava no seu rasto.

Não é que este agressor actue de acordo com uma lista de preceitos. Parece que desta vez ele variou um pouco.

Se for o mesmo indivíduo replicou Gorman.

Rizzoli desviou-se do televisor e olhou novamente para a parede onde Kenny morrera e lentamente inchara sob o calor. Pensou nos Yeager e nos Ghent, na fita adesiva e nas vítimas, atacadas enquanto dormiam, na vasta rede de pormenores que tão intimamente ligavam aqueles casos uns aos outros.

Mas aqui, nesta casa, o assassino omitiu um passo. Não dobrou a camisa de noite. Porque ele e o Hoyt ainda não eram uma equipa.

Lembrou-se da tarde em casa dos Yeager, do seu olhar fixo na camisa de noite de Gail Yeager, e recordou-se da sensação de familiaridade que lhe enregelava os ossos.

Só com os Yeager é que o Cirurgião e o nosso assassino iniciaram a sua aliança. Foi nesse dia, com a camisa de noite dobrada, que me engodaram para entrar no jogo. Mesmo da prisão, o Warren Hoyt conseguiu enviar-me o seu cartão-de-visita.

Olhou para Gorman, que se sentara numa das cadeiras cobertas de lençóis e estava novamente a enxugar o suor do rosto. O encontro esgotara-o e começava a ir-se abaixo diante dos olhos deles.

Nunca identificaram quaisquer suspeitos? perguntou ela.

Ninguém em quem pudéssemos pegar. Isso depois de quatro ou cinco interrogatórios.

E os Waite, tanto quanto você saiba, não se davam nem com os Yeager nem com os Ghent?

Esses nomes nunca foram mencionados. Olhe, receberá cópias dos nossos processos dentro de um ou dois dias. Pode comparar tudo o que temos. Gorman dobrou o lenço e voltou a guardá-lo no bolso do casaco. Talvez queira comparar também com o FBI acrescentou. Veja se eles têm alguma coisa a acrescentar.

Rizzoli fez uma pausa.

O FBI?

Enviámos-lhes um relatório. Veio cá um agente da Unidade de Ciências Comportamentais, passou algumas semanas a acompanhar a nossa investigação e depois voltou para Washington. Desde então, não soubemos dele.

Rizzoli e Frost olharam um para o outro e ela viu o seu próprio espanto reflectido nos olhos dele.

Gorman ergueu-se lentamente da cadeira e pegou nas chaves, indício de que gostaria de terminar a reunião. Só quando ele se encaminhava já para a porta é que Rizzoli finalmente conseguiu fazer a pergunta óbvia. Muito embora não quisesse ouvir a resposta.

O agente do FBI que veio cá disse ela. Lembra-se do nome dele?

Gorman parou à saída, com a roupa pendurada do corpo magro.

Lembro-me. Chamava-se Gabriel Dean.

 

Conduziu durante toda a tarde e início da noite com os olhos cravados na auto-estrada e a mente em Gabriel Dean. Frost dormitava a seu lado e ela estava sozinha com os seus pensamentos e a sua revolta. Que mais lhe omitira Gabriel Dean?, pensou. Que outras informações açambarcara enquanto a via remexer tudo em busca de respostas? Desde o início que estivera alguns passos à frente dela. Fora o primeiro a chegar junto do segurança morto no cemitério. O primeiro a descobrir o corpo de Karenna Ghent pousado em cima de uma sepultura. O primeiro a sugerir a preparação em meio húmido durante a autópsia de Gail Yeager. Já sabia antes de todos eles que revelaria esperma vivo. Porque já deparara antes com o assassino.

Mas o que Dean não previra é que aquele arranjaria um parceiro. Foi quando o Dean apareceu no meu departamento. Foi a primeira vez que manifestou interesse por mim. Porque eu tinha algo que ele queria, algo de que ele precisava. Eu era a guia para a mente do Warren Hoyt.

A seu lado, a dormir, Frost soltou uma forte ressonadela. Rizzoli olhou para ele e viu-lhe o queixo caído numa imagem de inocência indefesa. Nunca, em todo o tempo em que trabalhavam juntos, ela vira qualquer faceta menos leal em Barry Frost. Mas a traição de Dean abalara-a tão profundamente que agora, ao olhar para Frost, ela se perguntava o que é que ele também lhe escondia. Que crueldades conservaria ocultas das vistas dos outros.

Eram quase nove horas quando Rizzoli finalmente se dirigiu para o apartamento. Como sempre, levou algum tempo a correr todos os fechos da porta, mas, desta vez, não era o medo o que a possuía enquanto corria a corrente e as linguetas, mas a raiva. Empurrou o último ferrolho com uma pancada seca e depois dirigiu-se directamente para o quarto sem parar para executar os rituais habituais de inspeccionar os armários e olhar para dentro de todos os aposentos. A traição de Dean afastara temporariamente os seus pensamentos de Warren Hoyt. Soltou o coldre, meteu a arma na gaveta da mesinha-de-cabeceira e fechou a gaveta com uma pancada. Depois, voltou-se e examinou-se ao espelho do toucador, insatisfeita com o que viu. O manto de cabelo indisciplinado. O olhar magoado. O rosto de uma mulher que deixou que a atracção de um homem a cegasse perante o óbvio.

A campainha do telefone sobressaltou-a. Olhou para o mostrador de chamadas recebidas: WASHINGTON D.C.

O telefone tocou duas vezes, três vezes, enquanto ela invocava algum controlo sobre as suas emoções. Quando finalmente atendeu, saudou o interlocutor com um frio "Rizzoli".

Sei que tentou encontrar-me disse Dean. Rizzoli fechou os olhos.

Você está em Washington disse e, embora tentasse eliminar da voz qualquer hostilidade, as palavras saíram como uma acusação.

Fui chamado a noite passada. Desculpe, mas não tivemos tempo de conversar antes de eu me ir embora.

E que me teria dito? A verdade, para variar?

Tem de compreender que se trata de um caso muito sensível.

Por isso é que nunca me falou da Maria Jean Waite?

Não era imediatamente vital para a sua parte da investigação.

Quem diabo é você para decidir? Oh, um momento! Esqueci-me. É da porra do FBI.

Jane disse ele calmamente, quero que você venha a Washington.

Ela deteve-se, atónita, perante a reviravolta abrupta na conversa.

Porquê?

Porque não podemos falar sobre isto ao telefone.

Está à espera de que eu salte para um avião sem saber porquê?

Não lho pedia se não achasse necessário. Já foi tudo tratado com o tenente Marquette. Hão-de telefonar-lhe com os pormenores.

Espere. Não compreendo...

Vai compreender. Quando cá chegar. A linha ficou em silêncio.

Lentamente, Rizzoli pousou o auscultador. Ficou a olhar para o telefone, sem acreditar no que acabara de ouvir. Quando o telefone voltou a tocar, pegou nele imediatamente.

Detective Jane Rizzoli? perguntou uma voz feminina.

A própria.

Estou a telefonar-lhe para combinar consigo a sua viagem a Washington amanhã. Posso arranjar-lhe lugar na US Airways, voo seis-cinco-dois-um, que sai de Boston às doze horas e chega a Washington às treze e trinta e seis. Convém-lhe?

Só um momento. Rizzoli pegou numa caneta e no bloco-notas e começou a escrever a informação do voo. Parece-me bem.

E para o regresso a Boston, na quinta-feira, há o voo seis-quatro-zero-seis da US Airways, que parte de Washington às nove e trinta e chega a Boston às dez e cinquenta e três.

Fico lá de um dia para o outro?

Foi esse o pedido do agente Dean. Marcámos-lhe um quarto no Hotel Watergate, a menos que haja outro hotel que prefira.

Não. O Watergate está bem.

Uma limusina vai buscá-la ao seu apartamento amanhã às dez da manhã para a levar para o aeroporto. Há outra à sua espera quando chegar a Washington. Pode dar-me o seu número de faxe, por favor?

Momentos depois, o faxe de Rizzoli começou a imprimir. Sentou-se na cama a olhar para o itinerário nitidamente dactilografado e espantada com a rapidez com que os acontecimentos ocorriam. Nesse momento, o que mais desejava era falar com Thomas Moore e pedir-lhe conselho. Estendeu a mão para o telefone; depois, lentamente, baixou-a de novo. A precaução de Dean assombrara-a por completo e já não confiava na segurança da sua própria linha telefónica.

Subitamente, ocorreu-lhe que não executara o ritual nocturno de verificação do apartamento. Sentia-se agora impelida a confirmar que estava tudo seguro na sua fortaleza. Estendeu a mão para a gaveta da mesinha-de-cabeceira e retirou a arma. Depois, como fizera todas as noites durante aquele ano, foi de aposento em aposento em busca de monstros.

Cara doutora O'Donnell,

Na sua última carta, perguntou-me até que ponto eu sabia que era diferente dos outros. Para ser honesto, não tenho a certeza de ser diferente. Acho que sou simplesmente mais honesto, mais consciente. Mais em contacto com os mesmos impulsos primitivos que nos sussurram a todos. Tenho a certeza de que também a senhora ouve esses sussurros e de que imagens proibidas lhe relampejam na mente como raios que iluminam, ainda que por um instante, a paisagem sangrenta do seu tenebroso subconsciente. Ou então, caminhando pelos bosques e descobrindo um pássaro brilhante e raro, o seu primeiríssimo impulso, antes de que o tacão da bota de uma moral mais elevada o esmague, é o de o caçar. Matar.

É um instinto previamente programado pelo seu ADN. Todos nós somos caçadores, temperados ao longo das eras no caminho sangrento da natureza.

Nisso, não sou diferente de si ou de outros e tem constituído para mim fonte de algum divertimento ver quantos psicólogos e psiquiatras desfilaram pela minha vida nestes últimos doze meses, procurando compreender-me, sondando a minha infância, como se algures no meu passado houvesse um momento, um incidente, que me transformasse na criatura que sou hoje. Receio tê-los decepcionado a todos, porque tal momento definidor não existiu. Preferi voltar contra eles as suas perguntas. Preferi perguntar-lhes por que motivo pensam que são diferentes. Decerto que alimentaram imagens das quais se envergonham, imagens que os horrorizam, imagens que não conseguem suprimir.

Divertido, vi como o negavam. Mentem-me, tal como mentem a si próprios, mas leio nos olhos deles a incerteza. Gosto de os enervar, de os obrigar a olhar para o precipício, para o poço tenebroso das suas fantasias.

A única diferença entre mim e eles é que eu não me envergonho nem me horrorizo com as minhas.

Mas eu é que sou classificado de doente. Eu é que preciso de ser psicanalisado. Portanto, digo-lhes tudo o que eles secretamente desejam ouvir, coisas que sei que os fascinam. Durante aquela hora em que me visitam, satisfaço-lhes a curiosidade porque essa é a verdadeira razão por que vieram ver-me. Mais ninguém alimentaria as suas fantasias da maneira como eu o faço. Mais ninguém os transportaria para territórios tão proibidos. Mesmo quando tentam desenhar o meu perfil psicológico, eu estou a desenhar o deles e a medir-lhes o apetite por sangue. Quando falo, observo-lhes o rosto em busca de indícios reveladores de excitação. As pupilas dilatadas. O pescoço estendido para a frente. As faces coradas, a respiração suspensa.

Conto-lhes a minha visita a San Gimignano, uma cidade alcandorada nas colinas ondulantes da Toscana. Ao passear entre as lojas de recordações e as esplanadas, deparei com um museu totalmente dedicado ao tema da tortura. Precisamente o que me interessava, como sabe. Lá dentro está escuro. A iluminação escassa destina-se a reproduzir a atmosfera de uma masmorra medieval. A obscuridade também encobre a expressão dos turistas e poupa-lhes a vergonha de revelarem quão avidamente olham para os objectos expostos.

Um objecto em particular chama a atenção de todos: um instrumento veneziano, datado de mil e seiscentos, destinado a castigar mulheres declaradas culpadas de relações sexuais com Satanás. Feito de feno e moldado na forma de uma pêra, é inserido na vagina da infeliz acusada. A cada volta de um parafuso, a pêra expande-se, até que a cavidade se rompe com resultados fatais. A pêra vaginal é só um dispositivo numa grande quantidade de antigos instrumentos destinados a mutilar seios e genitais em nome da Santa Igreja, que não suportava o poder sexual das mulheres. Sou perfeitamente imparcial ao descrever estes instrumentos aos meus médicos, a maioria dos quais nunca visitou tal museu e sem dúvida que se sentiria envergonhada por admitir qualquer desejo de o visitar. Mas mesmo quando lhes falo dos instrumentos com quatro garras para rasgar seios e dos cintos de castidade mutiladores, observo-lhes os olhos. Procurando ver sob a repulsa e o horror da superfície a corrente subjacente da estimulação. Excitação.

Oh, sim, todos querem ouvir os pormenores.

Quando o avião tocou no solo, Rizzoli fechou a pasta com a carta de Warren Hoyt e olhou pela janela. Viu o céu cinzento e pesado de chuva e o suor a brilhar no rosto dos trabalhadores que se encontravam na pista. Lá fora devia parecer um banho de vapor, mas a tal ponto as palavras de Hoyt a tinham enregelado que se sentiu grata pelo calor.

Na viagem de carro para o hotel, olhou pelas janelas foscas para uma cidade que só visitara duas vezes anteriormente, da última vez para um encontro entre instituições de segurança no Edifício Hoover do FBI. Nessa visita, chegara à noite e lembrava-se de como ficara maravilhada com a vista dos monumentos banhados de luz. Recordava uma semana de duras reuniões e de como tentara acompanhar os homens cerveja a cerveja, piada grosseira a piada grosseira. Como a bebida, as hormonas e uma cidade estranha tinham resultado numa noite de sexo desesperado com um colega, um polícia de Providence casado, é claro. Era isso o que Washington significava para ela: a cidade do arrependimento e dos lençóis manchados.-A cidade que lhe ensinara que não era imune às tentações de um mau lugar-comum. Que embora pudesse pensar que era igual a qualquer homem, quando chegava a manhã seguinte era ela quem se sentia vulnerável.

À espera junto do balcão de registo do Hotel Watergate, observou a loura elegante que estava à sua frente. Cabelo perfeito, sapatos vermelhos de saltos altíssimos. Uma mulher que parecia pertencer verdadeiramente ao Watergate. Rizzoli tinha a dolorosa consciência dos seus próprios sapatos azuis, rasos, gastos e empoeirados. Sapatos de mulher-polícia, próprios para andar a uso e muito usados. Não são necessárias desculpas, pensou. Isto sou eu; isto é quem eu sou. A rapariga de Revere que tem por ganha-pão caçar monstros. Saltos altos não é coisa que os caçadores usem.

Em que posso ser-lhe útil, minha senhora? dirigiu-se-lhe um empregado.

Rizzoli empurrou a mala até junto do balcão.

Deve haver uma reserva. Rizzoli.

Sim, o seu nome está aqui. E há uma mensagem de Mister Dean. A sua reunião está marcada para as três e trinta.

Reunião?

O empregado levantou os olhos do ecrã do computador.

Não sabia disso?

Acho que agora já sei. Há algum endereço?

Não, minha senhora. Mas estará cá uma limusina para a levar às três horas. Estendeu-lhe uma chave e sorriu. Parece que estão a cuidar muito bem de si.

Nuvens negras manchavam o céu e o formigueiro de uma tempestade a aproximar-se arrepiava-lhe a penugem dos braços. Estava do lado de fora da recepção, a transpirar no ar pesado de chuva, e aguardava que a limusina chegasse. Mas foi um Volvo azul-escuro que virou para a entrada e parou a seu lado.

Espreitou pela janela do passageiro e viu que era Gabriel Dean quem estava ao volante.

A porta abriu-se e ela deslizou para o assento ao lado dele. Não esperara enfrentá-lo tão cedo e não se sentia preparada. Despeitada por ele aparecer tão calmo e controlado, enquanto ela ainda se sentia desorientada com a viagem da manhã.

Bem-vinda a Washington, Jane disse ele. Como foi a viagem?

Bastante boa. Era capaz de habituar-me a andar de limusina.

E o quarto?

Melhor do que aquilo a que estou habituada.

Uma sombra de um sorriso aflorou-lhe aos lábios, e Dean voltou a prestar atenção à condução.

Então, nem tudo é uma tortura para si.

Eu disse que era?

Não parece particularmente feliz por estar aqui.

Estaria muito mais feliz se soubesse por que motivo estou aqui.

Será evidente uma vez lá chegados.

Rizzoli olhou para os nomes das ruas e apercebeu-se de que se dirigiam para noroeste, na direcção contrária à da sede do FBI.

Não vamos para o Edifício Hoover?

Não. Georgetown. Ele quer encontrar-se consigo em casa.

Quem quer?

O senador Conway. Dean olhou para ela. Não está armada, pois não?

A minha arma ainda está guardada na mala.

Óptimo. O senador Conway não permite armas de fogo em sua casa.

Preocupações com a segurança?

Paz de espírito. Serviu no Vietname. Não tem necessidade de ver mais armas.

As primeiras gotas de chuva começaram a salpicar o pára-brisas. Rizzoli suspirou.

Quem me dera poder dizer o mesmo.

O escritório do senador Conway estava mobilado em madeira escura e cabedal um aposento masculino, com uma colecção masculina de objectos, pensou Rizzoli, reparando na quantidade de espadas japonesas montadas na parede. O possuidor daquela colecção, de cabelos prateados, cumprimentou-a com um aperto de mão caloroso e voz calma, mas os olhos escuros como carvão eram directos como raios laser e ela sentiu que ele a avaliava abertamente. Aguentou o escrutínio, mas só porque percebeu que nada se desenrolaria a menos que ele ficasse satisfeito com o que via. E o que viu foi uma mulher que lhe retribuía directamente o olhar. Uma mulher que se preocupava pouco com as subtilezas da política, mas que se preocupava muito com a verdade.

Por favor, sente-se, detective disse ele. Sei que acabou de chegar de Boston. Provavelmente precisa de tempo para se descontrair.

Uma secretária trouxe um tabuleiro com café e chávenas de porcelana. Rizzoli dominou a impaciência enquanto o café era servido e se passavam leite e açúcar em volta. Por fim, a secretária retirou-se, fechando a porta atrás de si.

Conway pousou a chávena, intacta. Na realidade, não lhe apetecia e agora que podia pôr de parte a cerimónia concentrou toda a atenção nela.

Bondade sua ter vindo.

Não tive propriamente escolha.

A franqueza dela fê-lo sorrir. Embora Conway cumprisse todos os rituais sociais dos apertos de mão e da hospitalidade, Rizzoli desconfiava que ele, como a maioria dos naturais da Nova Inglaterra, dava tanto valor às palavras como ela.

Vamos então directos ao assunto?

Preferia isso respondeu Rizzoli, e pousou igualmente a chávena.

Foi Dean quem se levantou e se aproximou da secretária. Levou um volumoso processo para onde estavam sentados e pegou numa fotografia, que pousou sobre a mesinha de café diante dela.

Vinte e cinco de Junho de mil novecentos e noventa e nove disse ele.

Rizzoli olhou para a imagem de um homem de barba, que tombara sentado, com uma mancha de sangue atrás da cabeça na parede caiada. Vestia calças escuras e uma camisa branca rasgada. Estava descalço. No colo, equilibrava-se uma chávena e um pires de porcelana.

Rizzoli ainda estava tonta, lutando por processar a imagem, quando Dean colocou ao lado uma segunda fotografia.

Quinze de Julho de mil novecentos e noventa e nove disse. A vítima era novamente um homem, este barbeado. Também morrera encostado a uma parede salpicada de sangue.

Dean pousou uma terceira fotografia com outro homem. Este estava tumefacto e tinha o ventre inchado devido aos gases de decomposição em expansão.

Doze de Setembro disse. Do mesmo ano.

Rizzoli sentia-se atordoada com aquela galeria de mortos tão nitidamente exposta sobre a mesa de cerejeira. Um registo de horror montado incongruentemente entre a desordem civilizada de chávenas e colherinhas. Enquanto Dean e Conway aguardavam em silêncio, ela pegou nas fotos uma por uma, obrigando-se a anotar os pormenores que tornavam único cada um dos casos. Mas tratava-se sempre de variações sobre o mesmo tema que ela vira executado nos lares dos Yeager e dos Ghent. A testemunha silenciosa, conquistada, forçada a ver o inenarrável.

E as mulheres? perguntou ela. Deve ter havido mulheres. Dean assentiu.

Só uma foi identificada positivamente. A esposa do caso número três. Foi encontrada parcialmente enterrada nos bosques cerca de uma semana depois de esta fotografia ter sido tirada.

Causa da morte?

Estrangulamento.

Agressão sexual post mortem?.

Havia sémen fresco recolhido nos restos mortais. Rizzoli inspirou profundamente e perguntou em tom suave:

E as outras duas mulheres?

Devido ao adiantado estado de decomposição, não se pôde confirmar as identidades.

Mas há restos mortais?

Há.

Por que razão não conseguiram identificá-las?

Porque estávamos a lidar com mais de dois corpos. Muitos, muitos mais.

Ela ergueu o olhar e viu-se a fitar Dean directamente nos olhos. Estivera Dean a observá-la durante o tempo todo à espera de uma reacção de choque? Em resposta à sua pergunta silenciosa, ele estendeu-lhe três processos.

Ela abriu a primeira pasta e encontrou um relatório de autópsia de uma das vítimas do sexo masculino. Saltou automaticamente para a última página e leu as conclusões:

Causa da morte: hemorragia maciça devida a ferimento único, com corte transversal da artéria carótida esquerda e da veia jugular esquerda.

O chamado "Dominador", pensou. Esta actuação é dele.

Deixou as folhas voltarem ao seu lugar. De repente, estava a olhar para a primeira página do relatório. Para um pormenor que lhe passara despercebido na pressa de ler as conclusões.

Era no segundo parágrafo: Autópsia realizada a dezasseis de Julho de mil novecentos e noventa e nove, às vinte e duas horas e quinze minutos, nas instalações móveis localizadas em Gjakove, Kosovo,

Pegou nos outros dois processos de patologia e concentrou-se imediatamente na localização das autópsias.

Peje, Kosovo.

Djakovika, Kosovo.

As autópsias foram feitas em campo disse Dean. Realizadas, por vezes, em circunstâncias primitivas. Em tendas e à luz de lanternas. Sem água corrente. E com tantos restos mortais para tratar que ficávamos esmagados.

Eram investigações de crimes- de guerra observou ela. Ele assentiu.

Fui com a primeira equipa do FBI que chegou em Junho de mil novecentos e noventa e nove. Fomos lá a pedido do Tribunal Criminal Internacional para a antiga Jugoslávia. Fomos sessenta e cinco a entrar em campo nessa primeira missão. A nossa função era localizar e preservar provas num dos maiores locais de crime da história. Recolhemos provas balísticas nos locais do massacre. Exumámos e autopsiámos mais de cem vítimas albanesas e provavelmente falharam-nos mais umas centenas que não conseguimos encontrar. E, durante o tempo todo em que lá estivemos, a matança continuou.

Assassínios por retaliação disse Conway. Totalmente previsíveis, dado o contexto daquela guerra. O agente Dean e eu éramos ex-fuzileiros. Eu servi no Vietname e o agente Dean esteve na Operação Tempestade no Deserto. Vimos coisas de que não conseguimos falar, coisas que nos fazem questionar por que motivo os seres humanos se acham melhores do que os animais. Durante a guerra, foram os Sérvios a chacinar os Albaneses e depois da guerra foi o Exército de Libertação do Kosovo, albanês, a chacinar civis sérvios. Há muito sangue nas mãos de ambos os lados.

Foi o que pensámos que eram estes homicídios, a princípio disse Dean, apontando para as fotos dos locais dos crimes sobre a mesa do café. Assassínio por retaliação na sequência da guerra. Não era missão nossa lidar com a criminalidade comum. Estávamos lá especificamente a pedido daquele tribunal a fim de tratarmos de provas de crimes de guerra. Não destes.

No entanto, trataram deles replicou Rizzoli, olhando para o cabeçalho do FBI que estava impresso no relatório das autópsias. Porquê?

Porque os reconheci como aquilo que eram respondeu Dean.

Estes assassínios não tinham razões étnicas. Dois dos homens eram albaneses, um era sérvio. Mas todos tinham algo em comum. Eram todos casados com mulheres jovens. Mulheres atraentes, que eram sequestradas de suas casas. Ao terceiro ataque, já eu conhecia a assinatura deste assassino. Sabia com o que estávamos a lidar. Mas estes casos caem sob a jurisdição do sistema judicial local, não sob o Tribunal Criminal Internacional, que nos levou lá.

Então, o que se fez? perguntou ela.

Numa palavra? Nada. Não houve detenções, porque não se identificou nenhum suspeito.

Evidentemente, houve um inquérito acrescentou Conway.

Mas, pese a situação, detective. Milhares de mortos na guerra enterrados em mais de cento e cinquenta valas comuns. Tropas de manutenção da paz a esforçar-se por manter a ordem. Marginais armados que percorriam as aldeias bombardeadas, procurando apenas motivos para matar. E os próprios civis, que alimentavam ódios antigos. Aquilo era um... um faroeste, onde rebentavam combates com armas de fogo por causa de droga, feudos familiares ou vinganças pessoais. E a matança era quase sempre atribuída a tensões étnicas. Como se podia distinguir um assassínio de outro? Eram demasiados.

Para um assassino em série, era o paraíso terrestre concluiu Dean.

 

Rizzoli olhou para Dean. Não ficara surpreendida ao saber do seu serviço militar. Já se apercebera disso devido ao seu porte e ar de comando. Conhecia zonas de guerra e estava familiarizado com os papéis que os conquistadores militares sempre haviam desempenhado. A humilhação do inimigo. A apreensão de despojos.

O nosso indivíduo esteve no Kosovo disse ela.

É o tipo de local que ele adoraria observou Conway. Onde a morte violenta faz parte da vida quotidiana. Um assassino pode ir para um desses sítios, cometer atrocidades e voltar sem que ninguém note a diferença. Não há maneira de se saber quantos assassínios são registados como meros actos de guerra.

Então, podemos estar a lidar com um imigrante recente disse Rizzoli. Um refugiado do Kosòvo.

É uma possibilidade respondeu Dean.

Uma possibilidade que sempre consideraram.

Sim. A resposta dele saiu-lhe sem hesitação.

Você omitiu informações. Recostou-se e ficou a observar enquanto os parvos dos polícias corriam em círculos.

Permiti que chegassem às vossas próprias conclusões.

Sim, mas sem completo conhecimento dos factos. Apontou para as fotos. Isto podia ter feito a diferença.

Dean e Conway fitaram-se. Depois, Conway declarou:

Receio que haja mais coisas que não lhe dissemos.

Mais?

Dean pegou na pasta mais volumosa e retirou dela outra fotografia do local de um crime. Embora Rizzoli julgasse que estava preparada para enfrentar esta quarta imagem, o impacto da foto atingiu-a com força visceral. Viu um homem, jovem e de cabelo louro e com um leve bigode. Era mais nervos do que músculos. O peito era uma abóbada ossuda de costelas e os ombros estreitos sobressaíam para a frente como rótulas brancas. Conseguia ver claramente a expressão do homem a morrer, os músculos do rosto contraídos num ricto de horror.

Esta vítima foi encontrada a vinte e nove de Outubro do ano passado disse Dean. O corpo da esposa nunca foi encontrado.

Rizzoli engoliu e desviou os olhos do rosto da vítima.

Outra vez o Kosovo?

Não. Fayetteville, na Carolina do Norte.

Atónita, ergueu para ele os olhos. Sustentou o olhar dele, enquanto o calor da cólera lhe inundava o rosto.

Que mais é que não contou? Quantos mais casos é que há?

Estes são todos os que conhecemos.

Significa isso que pode haver outros?

Pode haver. Mas não temos acesso a essa informação. Ela deitou-lhe um olhar de incredulidade.

O FBI não tem acesso?

O que o agente Dean pretende dizer é que pode haver casos fora da nossa jurisdição interveio Conway. Países que não possuem dados criminais acessíveis. Lembre-se de que estamos a falar de zonas de guerra. Áreas de convulsões políticas. Precisamente os locais para onde se sentiria atraído o nosso homem. Lugares onde se sentiria em casa.

Um assassino que se movimenta à vontade pelos vários continentes. Cuja zona de caça não conhece fronteiras nacionais.

Pensou em tudo o que soubera acerca daquele a quem chamavam o "Dominador". A rapidez com que subjugava as vítimas. A sua avidez de contactar com os mortos. A utilização das facas tipo Rambo. E as fibras do pára-quedas de tom verde-seco. Sentiu que ambos a observavam enquanto ela digeria o que Conway acabara de dizer. Estavam a pô-la à prova, à espera de ver se se encontrava à altura das suas expectativas.

Olhou para a última foto sobre a mesa do café.

Diz que esta agressão foi em Fayetteville.

Sim disse Dean.

Há uma base militar naquela zona, não há?

O Forte Bragg. A cerca de quinze quilómetros a noroeste de Fayetteville.

Quantos estão colocados nessa base?

Cerca de quarenta e um mil de serviço activo. É a base do Décimo Oitavo Corpo Aerotransportado, da Octagésima Segunda Divisão Aerotransportada e do Comando de Operações Especiais do Exército. O facto de Dean ter respondido sem hesitação significava que era informação que ele considerava relevante. Informação que já tinha na ponta da língua.

Por isso me mantiveram às escuras, não? Estamos a lidar com alguém que tem prática de combate. Alguém que é pago para matar.

Também fomos mantidos às escuras, tal como você. Dean inclinou-se para a frente, com o rosto tão próximo do dela que a única coisa em que ela conseguia concentrar-se era nele. Conway e tudo o mais na sala desapareceram da sua vista. Quando li o relatório elaborado pela polícia de Fayetteville, pensei que estava a ver o Kosovo outra vez. O assassino podia perfeitamente ter assinado o nome, tão único era o aspecto do lugar do crime. A posição do corpo da vítima do sexo masculino. O tipo de lâmina utilizada no golpe de misericórdia. A porcelana ou louça colocada no colo da vítima. O sequestro da esposa. Voei imediatamente para Fayetteville e passei duas semanas com as autoridades locais, ajudando na investigação. Nunca foi identificado nenhum suspeito.

Mas porque é que não podia falar-me disso antes? perguntou ela.

Por causa da possível identidade do nosso assassino.

Não me interessa que seja um general de quatro estrelas. Eu tinha o direito de saber do caso de Fayetteville.

Se fosse uma questão crítica para a identificação de um suspeito em Boston, ter-lhe-ia contado.

Disse que estão colocados em Forte Bragg quarenta e um mil soldados no activo.

Sim.

Quantos desses homens serviram no Kosovo? Parto do princípio de que você fez essa pergunta.

Dean assentiu.

Solicitei ao Pentágono uma lista de todos os soldados cuja folha de serviços coincidisse com os lugares e datas das matanças. O nosso "Dominador" não está nessa lista. Só alguns desses homens residem agora na Nova Inglaterra e nenhum deles coube no perfil do nosso homem.

Devo confiar em si nesse aspecto?

Sim. Ela riu-se.

Isso exige um acto de fé bastante grande.

Neste caso, estamos ambos a fazer um acto de fé, Jane. O meu é que posso confiar em si.

Confiar em mim para quê? Até agora, não me disse nada que justifique algum secretismo.

No silêncio que se seguiu, Dean olhou de relance para Conway, que acenou quase imperceptivelmente com a cabeça. Com esse diálogo mudo, concordaram em entregar-lhe a peça vital do quebra-cabeças.

Alguma vez ouviu falar de "mergulhadores", detective?

Calculo que o termo não tem nada a ver com verdadeiro mergulho.

Dean sorriu.

Não, não tem. É calão militar. Refere-se à prática da CIA de pedir soldados de operações especiais militares, de vez em quando, para certas missões. Aconteceu na Nicarágua e no Afeganistão, quando o grupo de operações especiais da própria CIA precisou de mão-de-obra adicional. Na Nicarágua, os tipos da marinha "mergulharam" para minar os portos. No Afeganistão, os Boinas Verdes "mergulharam" para treinar os mujahiddin. Enquanto trabalham para a CIA, esses soldados tornam-se essencialmente funcionários da Cla. Saem dos livros do Pentágono e os militares não possuem registos das suas actividades.

Rizzoli olhou para Dean.

Então, essa lista que o Pentágono lhe forneceu... Os nomes dos soldados de Fayetteville que serviram no Kosovo...

A lista estava incompleta disse ele.

Incompleta, como? Quantos nomes foram eliminados?

Não sei.

Perguntou à CIA?

Foi onde embati contra uma parede.

Não fornecem os nomes?

Não são obrigados explicou Conway. Se o seu assassino esteve envolvido em operações escuras lá fora, isso nunca será reconhecido.

Mesmo que o menino deles esteja agora a matar no nosso quintal?

Principalmente se estiver a matar no nosso quintal salientou Dean. Seria um desastre em termos de relações públicas. E se ele resolvesse prestar declarações? Que informações sensíveis poderiam transpirar para a imprensa? Julga que a CIA quer que saibamos que o menino deles assalta casas e chacina cidadãos cumpridores da lei? Que abusa dos cadáveres das mulheres? Não se olha a meios para manter isso longe das primeiras páginas dos jornais.

Então, o que lhe disse a CIA?

Que não possuíam informações que fossem relevantes para o homicídio de Fayetteville.

Dá a impressão de que estavam a despachá-lo.

Foi muito mais do que isso disse Conway. Um dia depois do seu pedido à CIA, o agente Dean foi retirado da investigação de Fayetteville e mandaram-no regressar a Washington. A ordem veio directamente do gabinete do director adjunto do FBI.

Rizzoli fitou-o, atordoada por verificar quão profundamente imersa em secretismo estava a identidade daquele assassino.

Foi quando o agente Dean me procurou disse Conway.

Porque o senhor está na Comissão das Forças Armadas?

Porque nos conhecemos há anos. Os fuzileiros sabem como encontrar-se uns aos outros. E confiar uns nos outros. O agente Dean pediu-me que fizesse algumas perguntas por ele. Mas, infelizmente, não consegui quaisquer progressos.

Nem um senador conseguiu? Conway dirigiu-lhe um sorriso irónico.

Um senador democrata num estado liberal, devo acrescentar. Posso ter servido o meu país como soldado. Mas certos elementos no interior do Departamento da Defesa nunca me aceitarão totalmente. Nem confiarão em mim.

O olhar dela caiu sobre as fotos que estavam em cima da mesa. Sobre a galeria de homens que tinham sido mortos, escolhidos para serem chacinados, não por causa da sua opção política, etnia ou convicções, mas porque eram casados com mulheres bonitas.

Podia ter-me contado isso há semanas comentou ela.

As investigações policiais têm mais fugas de informação do que uma peneira disse Dean.,

As minhas, não.

Todas as investigações policiais. Se estas informações fossem partilhadas com a sua equipa, acabariam por transpirar para os meios de comunicação. E isso atrairia imediatamente as atenções das pessoas erradas para o seu trabalho. Pessoas que tentariam impedi-la de fazer uma detenção.

Acha realmente que o protegem? Depois do que ele fez?

Não, acho que querem afastá-lo, tanto quanto nós. Mas querem fazer isso silenciosamente e longe do olhar do público. É evidente que lhe perderam o rasto. Saiu do controlo deles e começou a matar civis. Tornou-se uma bomba-relógio ambulante e eles não podem dar-se ao luxo de ignorar o problema.

E se o apanharem antes de nós?

Nunca saberemos. As mortes pararão, simplesmente. E nós só poderemos fazer conjecturas.

Não é aquilo a que chamo conclusão satisfatória disse ela.

Não, você quer justiça. Uma detenção, um julgamento, uma condenação. A ementa completa.

Dá a impressão de que estou a pedir a Lua.

Neste caso, talvez esteja.

Foi por isso que me trouxe cá? Para me dizer que nunca o hei-de apanhar?

Dean inclinou-se para ela com uma expressão de súbita intensidade.

Nós queremos exactamente o mesmo que você, Jane. A ementa completa. Persigo este homem desde o Kosovo. Acha que me contentaria com menos?

Calmamente, Conway proferiu:

Compreende agora, detective, porque a trouxemos cá? A necessidade de secretismo?

A mim parece-me que já há de mais.

Mas, por ora, é a única maneira de se acabar por alcançar um desfecho satisfatório. Que é, presumo, o que todos queremos.

Rizzoli fitou por momentos o senador Conway.

O senhor pagou a minha viagem, não pagou? Os bilhetes de avião, as limusinas, um bom hotel. Isto não foi à custa do FBI.

Conway assentiu, esboçando um sorriso forçado.

As coisas que interessam realmente devem ser mantidas confidenciais replicou o senador.

 

O céu rasgara-se e a chuva batia como um milhar de martelos no tecto do Volvo de Dean. Os limpa-pára-brisas permitiam ver uma paisagem aquática de trânsito parado e ruas inundadas.

É bom você não regressar esta noite disse ele. O aeroporto está provavelmente numa confusão.

Com este tempo, prefiro manter os pés no chão, obrigada. Ele dirigiu-lhe um olhar divertido.

E eu que pensava que você era destemida!

O que lhe deu essa impressão?

Você. E esforça-se bastante por isso. Está sempre de armadura posta.

Novamente a tentar entrar na minha cabeça. Está sempre a fazer isso.

É só uma questão de hábito. Era o que fazia durante a Guerra do Golfo. Acções psicológicas.

Bem, mas eu não sou o inimigo.

Nunca pensei que fosse, Jane.

Ela fitou-o e não pôde deixar de admirar, como sempre, as linhas perfeitas e duras do seu perfil.

Mas não confiava em mim.

Ainda não a conhecia.

Então, mudou de opinião?

Porque acha que lhe pedi que viesse a Washington?

Oh, não sei respondeu ela com uma risada ousada. Porque sentia a minha falta e já não podia esperar mais?

O silêncio dele fê-la corar. De súbito, sentiu-se estúpida e desesperada, precisamente as características que desprezava nas outras mulheres. Olhou para fora, evitando o olhar dele, e com o som da sua própria voz e das palavras tontas que pronunciara ainda a ressoar-lhe nos ouvidos.

À frente, os automóveis começaram a movimentar-se novamente, mergulhando os pneus em charcos profundos.

Na verdade, queria mesmo vê-la disse ele.

Sim? A palavra saiu-lhe em tom indiferente. Já se envergonhara e não repetiria o erro.

Queria pedir-lhe desculpa. Por ter dito ao Marquette que você não se encontrava à altura do trabalho. Estava enganado.

Quando é que descobriu isso?

Não houve um momento específico. Foi apenas... vendo-a a trabalhar dia após dia. Como é rigorosa a fazer tudo. Depois acrescentou calmamente, descobri aquilo com que você tem convivido desde o Verão passado. Problemas de que não tinha conhecimento.

Uau! "E apesar disso ela consegue fazer o seu trabalho!"

Pensa que tenho pena de si? inquiriu ele.

Não é especialmente lisonjeiro ouvir dizer: "Vejam o que ela consegue realizar, considerando o que tem de enfrentar." Dêem-me então uma medalha dos Jogos Olímpicos Especiais. A medalha para polícias emocionalmente deficientes.

Dean soltou um suspiro de exasperação.

Você procura sempre um motivo oculto atrás de cada elogio, de cada palavra de louvor? As vezes, as pessoas pensam exactamente aquilo que dizem, Jane.

Compreende porque sou um pouquinho céptica em relação a tudo o que me diz?

Continua a achar que tenho segundas intenções.

Já não sei nada.

Mas devo ter, não? Porque você com certeza não merece da minha parte um elogio genuíno.

Já percebi.

Pode perceber, mas não acredita realmente. Travou no semáforo que passara a vermelho e olhou para ela. Donde vem todo esse cepticismo? Tem sido assim tão duro para si ser a Jane Rizzoli?

Não vamos por aí, Dean disse ela com uma gargalhada de preocupação.

Tem a ver com ser polícia do sexo feminino?

Talvez você consiga preencher os espaços em branco.

Os seus colegas parece respeitarem-na.

Há algumas excepções importantes.

Há sempre.

O semáforo passou a verde e Dean voltou a fitar a estrada.

E a natureza do trabalho policial explicou ela. Toda aquela testosterona.

Então, porque o escolheu?

Porque chumbei na escola!

Ambos se riram com a saída, o primeiro riso franco que ambos partilhavam.

A verdade é que desde os meus doze anos que quis ser polícia disse ela.

Porquê?

Todos respeitam os polícias. Pelo menos, é o que parece a uma criança. Queria o distintivo, a arma. As coisas que fazem com que as pessoas se detenham e reparem em mim. Não queria acabar num escritório onde desapareceria. Onde me transformaria na mulher invisível. Isso seria como ser enterrada viva, seria ser uma pessoa que ninguém escuta. Em quem ninguém repara. Pousou um cotovelo na porta e encostou a cabeça à mão. Agora, o anonimato começa a parecer bastante agradável. Pelo menos o Cirurgião não saberia o meu nome.

Parece ter pena de ter escolhido a carreira policial.

Rizzoli pensou nas longas noites a pé, alimentada a cafeína e adrenalina. Nos horrores de confrontar o pior que os seres humanos podem fazer uns aos outros. Pensou no "homem do avião", cujo processo continuava em cima da sua secretária como símbolo perpétuo de futilidade. A dele, bem como a sua. Sonhamos os nossos sonhos, pensou, e estes às vezes levam-nos a lugares que nunca previmos. Uma cave de uma quinta, com o fedor do sangue no ar. Ou uma queda livre do céu azul com os membros a lutar contra a força de gravidade. Mas são os nossos sonhos e vamos aonde eles nos levam.

Não, não tenho pena disse", por fim. É o meu trabalho. É o que me interessa. É o que me revolta. Tenho de admitir que muito deste trabalho tem a ver com revolta. Não sou capaz de ficar simplesmente a olhar para o corpo de uma vítima sem ficar revoltada. É nesse momento que me torno advogada da vítima... quando considero minha aquela morte. Quando não ficar revoltada, saberei que está na altura de sair.

Nem toda a gente tem esse fogo interior. Dean olhou para ela. Acho que você é a pessoa mais veemente que já conheci.

Isso não é muito bom.

É, a veemência é uma coisa boa.

E se significar que se está sempre prestes a explodir?

E você está?

Às vezes, é assim que me sinto. Olhou para a chuva que vergastava o pára-brisas. Devia tentar ser mais como você é.

Ele não respondeu e ela perguntou-se se o teria ofendido com essa última afirmação, por parecer implícito que ele era frio e desapaixonado.

Mas fora essa a impressão que ele sempre lhe dera: o homem do fato cinzento. Durante semanas, desconcertara-a e agora, na sua frustração, queria provocá-lo, fazê-lo demonstrar alguma emoção, mesmo que desagradável, pelo menos para provar que era capaz disso. O desafio do inexpugnável.

Mas eram precisamente esses desafios que levavam as mulheres a tornarem-se ridículas.

Quando ele finalmente parou diante do Hotel Watergate, estava preparada para uma despedida seca.

Obrigada pela boleia disse ela. E pelas revelações. Voltou-se e abriu a porta, deixando entrar uma rajada de ar quente e húmido. Vemo-nos em Boston.

Jane?

Diga.

Não mais segundas intenções entre nós, está bem? O que digo é o que sinto.

Se insiste...

Não acredita em mim, pois não?

Isso interessa realmente?

Sim respondeu em tom calmo. Interessa e muito.

Ela fez uma pausa com a pulsação subitamente acelerada. Olhou-o nos olhos. Tinham ocultado segredos um do outro durante tanto tempo que nenhum deles sabia como ler a verdade na expressão do outro. Foi um momento em que tudo poderia ser dito, em que tudo poderia ter acontecido. Nenhum se atreveu a fazer o primeiro movimento. O primeiro erro.

Uma sombra dirigiu-se para a porta aberta do carro.

Bem-vinda ao Hotel Watergate, minha senhora. Precisa de ajuda com a bagagem?

Rizzoli ergueu os olhos, estonteada, e deparou com o porteiro do hotel que lhe sorria. Vira-a abrir a porta e assumira que estava a sair do carro.

Já estou alojada, obrigada disse ela, e voltou a fitar Dean. Mas o momento passara. O porteiro continuava ali, à espera que ela descesse. O que ela fez.

Um olhar pela janela, um aceno; foi assim o adeus. Voltou-se e dirigiu-se para o átrio, parando apenas o suficiente para ver o automóvel dele afastar-se da entrada e desaparecer na chuva.

No ascensor, inclinou-se para trás, de olhos fechados, e silenciosamente escarneceu de si mesma por todas as emoções não disfarçadas e que pudesse ter revelado, por todas as tolices que pudesse ter dito no automóvel. Quando chegou ao quarto, o que mais desejava era simplesmente deixar o hotel e regressar a Boston. Decerto que havia um voo que pudesse apanhar nessa noite. Ou comboio. Sempre gostara de viajar de comboio.

Agora cheia de pressa de fugir, pôs Washington e a vergonha para trás das costas, abriu a mala e começou a arrumá-la. Trouxera pouca coisa e não precisou de muito tempo para retirar a blusa e as calças do roupeiro onde as pendurara; atirou-as para cima da arma e do coldre e guardou a escova de dentes e o pente no estojo de toalete. Correu o fecho da mala e já a levava para a porta quando ouviu bater.

Dean estava no corredor. Tinha o fato cinzento salpicado de chuva e o cabelo molhado e brilhante.

Acho que não terminámos a nossa conversa declarou ele.

Tinha mais alguma coisa a dizer-me?

Sim, de facto. Entrou no quarto e fechou a porta. Franziu as sobrancelhas perante a mala já feita e pronta para a partida.

Meu Deus, pensou ela. Alguém aqui tem de ter coragem. Alguém tem de pegar o boi pelos cornos.

Antes de haver tempo para se pronunciar qualquer palavra, ela puxou-o para si. Simultaneamente, sentiu os braços dele em volta da cintura. Quando os lábios de ambos se encontraram, não houve dúvidas da parte de nenhum deles de que aquele abraço era mútuo e de que, se fosse um erro, estavam ambos igualmente em falta. Ela não sabia quase nada acerca dele, só que o queria e que mais tarde pensaria nas consequências.

O rosto dele estava húmido da chuva e, quando tirou as roupas, estas deixaram-lhe na pele o cheiro a lã molhada, um cheiro que ela inalou avidamente conforme explorava o corpo dele com a boca e ele se apoderava do dela. Jane não estava com paciência para gentilezas, queria fazer amor com frenesim e ousadia. Sentia que ele se retraía, que tentava abrandar e controlar-se. Combateu-o e usou o corpo para o espicaçar. E ali, no seu primeiro encontro, a conquistadora foi ela. Quem se rendeu foi ele.

Dormitaram enquanto a luz da tarde desaparecia lentamente da janela. Quando ela acordou, só o leve brilho do crepúsculo iluminava o homem a seu lado. Um homem que mesmo agora continuava a ser para si um enigma. Usara o corpo dele tal como ele usara o seu e, embora soubesse que devia sentir-se de algum modo culpada pelo prazer que tinham obtido, tudo o que conseguia sentir era um cansaço de satisfação. E a sensação de estar maravilhada.

Tinha a mala pronta disse ele.

Preparava-me para sair e voltar para casa esta noite.

Porquê?

Não vi motivos para ficar cá. Estendeu a mão e tocou-lhe no rosto, acariciando a pele áspera da barba. Até que você apareceu.

Quase que não vinha. Dei várias voltas ao quarteirão. Para arranjar coragem.

Ela riu-se.

Até parece que tem medo de mim.

A verdade? Você é uma mulher temível.

É realmente essa a impressão que dou?

Feroz. Apaixonada. Espanta-me tudo aquilo que consegue gerar. Acariciou-lhe a coxa e o toque dos seus dedos enviou-lhe pelo corpo um novo tremor. No carro, disse que gostava de ser mais parecida comigo. A verdade, Jane, é que eu gostava de ser mais parecido consigo. Gostava de ter a sua veemência.

Ela pousou a mão no peito dele.

Fala como se aqui dentro não batesse um coração.

Não é o que você pensa?

Ela ficou calada. O homem do fato cinzento.

É, não é? insistiu ele.

Não sei que ideia fazer de si admitiu ela. Parece sempre tão desprendido. Pouco humano.

Entorpecido.

Dissera a palavra tão suavemente que ela pensou se ele quereria ser ouvido. Um pensamento sussurrado a si mesmo.

Reagimos de maneiras diferentes disse ele. Às coisas com que se espera que lidemos. Você disse que fica revoltada.

Sim, grande parte das vezes.

Portanto, atira-se para a luta. Arremete com todos os cilindros a funcionar. Do mesmo modo como arremete contra a vida. Deu uma gargalhada suave. Com mau feitio e tudo acrescentou.

Como é que você consegue não se enfurecer?

Não mo permito. É assim que lido com os problemas. Dou um passo atrás e respiro fundo. Trato cada caso como um jogo de paciência. Olhou para ela. Por isso é que você me deixa curioso. Toda essa agitação, toda a emoção que investe em tudo aquilo que faz. Parece, de certo modo... perigoso.

Porquê?

Colide com aquilo que sou. Com o que tento ser.

Tem receio de que eu o contagie.

É como aproximarmo-nos de mais do fogo. Somos atraídos para ele, embora saibamos muito bem que ele nos queima.

Ela pressionou os lábios contra os dele.

Um pouco de perigo pode ser muito excitante murmurou.

A tarde deslizou para a noite. Lavaram-se do suor debaixo do duche e sorriram perante a sua imagem ao espelho vestidos de igual com os roupões do hotel. Jantaram no quarto e beberam vinho na cama com a televisão sintonizada num canal que passava séries cómicas. Naquela noite, não havia CNN nem más notícias para estragarem a disposição. Naquela noite, ela queria estar a um milhão de quilómetros de distância de Warren Hoyt.

Mas mesmo a distância e o conforto dos braços de um homem não conseguiam expulsar Hoyt dos seus sonhos. Acordou sobressaltada no escuro, ensopada no suor do medo, não da paixão. Por entre as pancadas do coração, ouviu tocar o telemóvel. Levou alguns segundos a desembaraçar-se dos braços de Dean. Estendeu o braço para a mesa-de-cabeceira do lado dele e abriu o telemóvel.

Rizzoli.

Saudou-a a voz de Frost.

Calculo que te acordei.

Ela lançou uma olhadela para o radiodespertador.

Cinco da manhã? Sim, acertaste.

Estás bem?

Estou óptima. Porquê?

Escuta, sei que regressas hoje" Mas pensei que devias saber antes de cá chegares.

O quê?

Frost não respondeu imediatamente. Pelo telefone, Rizzoli ouviu alguém fazer-lhe uma pergunta sobre guardar provas em sacos e percebeu que naquele momento ele se encontrava no local de um crime.

A seu lado, Dean espreguiçou-se, alertado pela súbita tensão de Rizzoli. Sentou-se e acendeu a luz.

O que se passa? Frost regressou à linha.

Rizzoli?

Onde é que tu estás?

Fui chamado para um dez sessenta e quatro. É onde estou precisamente agora...

Porque foste chamado para um caso de arrombamento?

Porque é no teu apartamento.

Rizzoli ficou petrificada, com o telefone encostado à orelha e escutando as pancadas da sua própria pulsação.

Como estavas fora da cidade, suspendemos temporariamente a vigilância do teu edifício explicou Frost. A tua vizinha ao fundo do corredor telefonou às duas horas e três minutos. Miss... ha...

Spiegel disse ela suavemente. Ginger.

Isso. Parece uma rapariga realmente esperta. Diz que trabalha como empregada de bar no McGinty. Dirigia-se para casa vinda do trabalho e reparou que havia vidro debaixo da escada de incêndio. Olhou para cima e viu que a tua janela estava quebrada. Telefonou imediatamente para o Cento e Doze. O primeiro agente a chegar ao local percebeu que era a tua casa e telefonou-me.

Dean tocou-lhe no braço numa interrogação silenciosa. Ignorou-o. Pigarreando, conseguiu perguntar com calma enganadora:

Ele levou alguma coisa? Já estava a utilizar a palavra ele. Sem lhe pronunciar o nome, ambos sabiam quem fizera aquilo.

É is tu que tens de dizer-nos quando cá chegares respondeu Frost.

Estás aí neste momento?

Estou na tua sala.

Rizzoli fechou os olhos, quase a vomitar de raiva ao pensar em estranhos a invadirem-lhe o lar. Abrindo-lhe os armários, tocando-lhe na roupa. Pairando sobre os seus bens mais íntimos.

Parece-me que as coisas não foram remexidas disse Frost. O televisor e o leitor de CDs estão aqui. Há um frasco grande cheio de moedas, que continua em cima do armário da cozinha. Há alguma coisa que pudessem querer roubar?

A minha paz de espírito. A minha saúde mental.

Rizzoli?

Não consigo lembrar-me de nada.

Uma pausa. Depois, Frost disse com gentileza:

Verifico tudo contigo centímetro a centímetro. Quando regressares a casa, fazemo-lo juntos. O senhorio já entaipou a janela e por isso a chuva não entra. Se quiseres ficar em minha casa durante uns tempos, sei que a Alice não se importa. Temos um quarto a mais que nunca é utilizado...

Estou bem disse ela.

Não há problema...

Estou bem.

Havia raiva na sua voz... e orgulho. Acima de tudo, orgulho. Frost sabia quando parar e não se ofendeu. Imperturbável, pediu-lhe:

Telefona-me assim que chegares.

Dean observava-a quando ela desligou. De repente, Rizzoli não suportou que a vissem nua e assustada. Com a sua vulnerabilidade totalmente exposta. Saltou da cama, dirigiu-se para a casa de banho e fechou a porta à chave.

Momentos depois, ele bateu.

Jane?

Vou tomar outro duche.

Não me feches a porta. Voltou a bater. Sai e vem conversar comigo.

Quando acabar. Abriu a torneira. Entrou para o duche, não porque precisasse de lavar-se, mas porque a água a correr impedia conversas. Era uma cortina ruidosa de privacidade atrás da qual se escondia. A água batia nela, que ficou de cabeça inclinada e as mãos espalmadas na parede de azulejo, lutando contra o medo. Imaginou o medo a deslizar-lhe pela pele como sujidade e a gorgolejar pelo ralo abaixo. Vertido camada a camada. Quando finalmente fechou a água, sentia-se calma. Purificada. Secou-se e no espelho embaciado apanhou de relance o rosto, que já não estava pálido, mas rosado do calor. Novamente pronta para desempenhar o papel público de Jane Rizzoli.

Saiu da casa de banho. Dean estava sentado no cadeirão junto da janela. Não disse nada, limitou-se a vê-la começar a vestir-se, apanhando a roupa do chão em redor da cama, cujos lençóis amarfanhados eram a prova muda da sua paixão. Um telefonema pusera-lhe fim e ela agora andava pelo quarto com uma determinação que parecia frágil, abotoando a blusa, puxando o fecho das calças. Na rua ainda estava escuro, mas, para ela, a noite acabara.

Não me vais contar? perguntou Dean.

O Hoyt esteve no meu apartamento.

Sabem que foi ele? Ela voltou-se para Dean.

Quem mais podia ser?

As palavras saíram-lhe mais estridentes do que tencionara. Corando, tirou os sapatos de baixo da cama.

Tenho de voltar para casa.

São cinco da manhã. O teu avião sai às nove e meia.

Esperas realmente que volte a dormir? Depois disto?

Vais chegar a Boston exausta.

Não estou cansada.

Porque estás cheia de adrenalina. Meteu os pés nos sapatos.

Pára com isso, Dean.

Paro com quê?

De tentar tomar conta de mim.

Fez-se silêncio por momentos. Depois, Dean disse com uma nota de sarcasmo:

Desculpa. Estou sempre a esquecer-me de que és perfeitamente capaz de tomar conta de ti própria.

Ela fez uma pausa, de costas para ele, lamentando o que dissera. Desejando pela primeira vez que ele tomasse conta dela. Que pusesse os braços à sua volta e a levasse de novo para a cama. Que dormissem abraçados até serem horas de ela partir.

Porém, quando se voltou para ele, viu que já não se encontrava na cadeira e começara a vestir-se.

 

Adormeceu no avião. Quando começaram a descer para Boston, acordou com a sensação de estar drogada e morta de sede. O mau tempo seguira-a de Washington e a turbulência fazia chocalhar os tabuleiros nas costas das cadeiras bem como os nervos dos passageiros quando atravessavam as nuvens. Do lado de fora da sua janela, as pontas das asas desapareciam atrás de uma cortina cinzenta, mas estava demasiado cansada para sentir uma pontada sequer de ansiedade por causa do voo. E Dean continuava na sua mente, distraindo-a daquilo em que devia concentrar-se. Olhou para a neblina exterior e lembrou-se do toque das mãos dele e do calor da sua respiração na pele dela.

Lembrou-se também das últimas palavras na curva para o aeroporto, um adeus frio e apressado sob os salpicos da chuva. Não uma separação de amantes, mas de sócios de negócios, ansiosos por se entregarem às suas diferentes preocupações. Ela culpava-se pela nova distância entre ambos e culpava-o igualmente a ele por a deixar afastar-se. Mais uma vez, Washington se transformara na cidade do arrependimento e dos lençóis manchados.

O avião aterrou sob uma chuva torrencial. Viu o pessoal de terra, de impermeáveis e capuz, a esparrinhar água na pista, e começou logo a temer a perspectiva do que se avizinhava. A viagem para um apartamento que nunca mais pareceria seguro porque ele estivera lá.

Retirou a mala do tapete rolante, saiu e foi chicoteada por uma rajada de chuva atirada pelo vento que entrou pela cobertura. Uma fila longa de pessoas desanimadas esperava por um táxi. Observando a fila de limusinas que estavam estacionadas na rua, ficou aliviada ao ver o nome RIZZOLI afixado na janela de uma delas.

Bateu do lado do condutor e este abriu a janela. Era um motorista diferente, não o velho negro que a levara ao aeroporto no dia anterior.

Sim, minha senhora?

Sou Jane Rizzoli.

Que vai para Claremont Street, não é assim?

Eu mesma.

O motorista apeou-se e abriu-lhe a porta de trás.

Bem-vinda. Vou pôr a sua mala na bagageira.

Obrigada.

Entrou no carro e com um suspiro cansado recostou-se contra o cabedal luxuoso. Lá fora, soavam buzinas e os pneus derrapavam na chuva que caía a potes, mas o mundo no interior da limusina era abençoadamente silencioso. Fechou os olhos ao deslizarem para longe do Aeroporto Logan, dirigindo-se para a estrada directa para Boston.

O telemóvel tocou. Espantando a exaustão, endireitou-se e, estonteada, deixando cair canetas e moedas no chão do carro, procurou dentro da carteira o telemóvel. Finalmente conseguiu responder ao quarto toque.

Rizzoli.

Aqui Margaret, do gabinete do senador Conway. Fui eu que tratei da sua viagem. Só queria confirmar que tem transporte do aeroporto.

Sim. Estou agora na limusina.

Ah. Uma pausa. Bom. Ainda bem que tudo se esclareceu.

O que foi?

O serviço de limusinas telefonou a confirmar o seu cancelamento do transporte do aeroporto.

Não, estavam à minha espera. Obrigada.

Desligou e inclinou-se para apanhar tudo o que lhe caíra da carteira. A esferográfica rolara para debaixo do assento do condutor. Ao pegar-lhe, depois de tactear o chão, reparou subitamente na cor do tapete. Azul-escuro.

Lentamente, sentou-se.

Tinham acabado de entrar no Túnel Callahan, que passava sob o rio Charles. O trânsito tornara-se mais lento e arrastavam-se ao longo de um tubo interminável de betão cujo interior estava iluminado de um tom ambarino doentio.

Náilon seis, seis DuPont Antron azul-escuro. Tapete comum nos Cadillacs e Lincolns.

Ficou perfeitamente imóvel com o olhar voltado para a parede do túnel. Pensou em Gail Yeager e em cortejos fúnebres, na fila de limusinas serpenteando lentamente em direcção ao portão do cemitério.

Pensou em Alexander e Karenna Ghent, que tinham chegado ao Aeroporto Logan apenas uma semana antes de morrerem.

E pensou em Kenneth Waite e na infracção de trânsito. Um homem que não tinha permissão para conduzir, mas que levara a mulher a Boston.

É assim que ele as descobre?

Um casal sentado no carro. O rosto bonito da mulher reflecte-se no espelho retrovisor. Ela recosta-se no assento de cabedal macio enquanto é conduzida a casa, sem desconfiar de que está a ser observada. Aquele homem em cujo rosto ela mal reparou está naquele momento exacto a decidir que ela é a tal.

As luzes ambarinas do túnel deslizavam por Rizzoli enquanto esta construía a teoria tijolo a tijolo. Um carro muito confortável, uma viagem tranquila, assentos de cabedal macios como pele humana. Um homem anónimo atrás do volante. Tudo pensado para fazer a passageira sentir-se segura e protegida. A passageira não sabe nada sobre o homem ao volante. Mas o condutor conhece o nome da passageira. O número do voo. A rua onde vive.

O trânsito estava agora parado. Mais à frente, via a abertura do túnel, um pequeno portal de luz acinzentada. Manteve o rosto voltado para a janela, sem se atrever a olhar para o condutor. Não queria que ele se apercebesse da sua apreensão. Tinha as mãos a suar ao pegar na carteira para agarrar no telemóvel. Não o retirou, ficou apenas com a mão à volta dele, a pensar no que faria a seguir, se é que podia fazer alguma coisa. Até ali, o condutor não fizera nada para a alarmar, nada que a fizesse pensar que era tudo menos o que afirmara ser.

Lentamente, retirou o telemóvel da carteira. Abriu-o. Na obscuridade do túnel, esforçou-se por ver os números para poder ligar. Mantém um ar casual, pensou. Como se estivesses apenas a contactar Frost e não a gritar-lhe um SOS. Mas que diria? "Acho que estou em sarilhos, mas não tenho a certeza"? Carregou na ligação automática para Frost. Ouviu chamar e depois um "está" longínquo seguido de estática.

O túnel. Estou no maldito túnel.

Desligou. Olhou para a frente para ver se estavam perto da saída. Nesse instante, os seus olhos voltaram-se involuntariamente para o espelho retrovisor do condutor. Cometeu o erro de lhe encontrar os olhos, de registar o facto de que ele estava a observá-la. Foi quando ambos souberam, ambos compreenderam.

Sai. Sai do carro!

Lançou-se à maçaneta da porta, mas ele já accionara o fecho de segurança. Tentando destravar o fecho, agarrou-se em pânico ao botão.

Foi o tempo de que ele precisou para estender o braço por cima do banco, apontar o Taser e disparar.

O choque apanhou-a no ombro. Cinquenta mil volts penetraram-lhe no tronco, uma descarga eléctrica que lhe atingiu o sistema nervoso como um relâmpago. A vista escureceu. Caiu no banco, as mãos inúteis e todos os músculos a contrair-se numa tempestade de convulsões, o corpo descontrolado, estremecendo em submissão.

Um tamborilar e uma sucessão rápida de pequenos ruídos arrancaram-na à escuridão. Um nevoeiro de luz acinzentada iluminou-lhe lentamente as retinas. Sentiu sabor a sangue, quante e metálico, e a língua doeu-lhe onde a mordera. O nevoeiro desvaneceu-se lentamente e viu a luz do dia. Estavam fora do túnel e dirigiam-se... para onde? Ainda tinha a vista turva, mas pela janela apercebia-se dos vultos dos prédios altos contra o pano de fundo do céu cinzento. Tentou mover o braço, mas estava pesado e flácido e os músculos sem força por causa das convulsões. A visão dos edifícios e árvores a deslizarem pela janela entonteciam-na de tal forma que teve de fechar os olhos. Concentrou todos os esforços em fazer os membros obedecerem às suas ordens. Sentiu os músculos retorcerem-se e os dedos cerrarem-se num punho. Mais cerrados. Com mais força.

Abre a porta. Destrava a porta.

Abriu os olhos. Sentiu uma vertigem e o estômago às voltas quando pela janela viu o mundo rodar. Obrigou o braço a endireitar-se. Cada centímetro era uma pequena vitória. A mão estendia-se agora para a porta, para o fecho de segurança. Carregou no botão e ouviu um estalido sonoro quando o destravou.

Subitamente, outra pressão na sua coxa. Viu-lhe o rosto a olhar por cima do banco ao encostar-lhe o Taser à perna. Outra descarga de energia penetrou-lhe no corpo.

Os membros de Rizzoli foram atacados de espasmos. Sobre ela caiu um manto de trevas.

Uma gota de água fria a cair-lhe no rosto. O rangido de fita adesiva a ser arrancada do rolo. Despertou quando ele lhe atou os pulsos atrás das costas, enrolando a fita várias vezes antes de a cortar do rolo. A seguir, tirou-lhe os sapatos e atirou-os para o chão. Descalçou-lhe as peúgas para que a fita aderisse à pele nua. A visão dela tornou-se lentamente mais nítida à medida que ele trabalhava e viu-lhe o topo da cabeça quando ele se inclinou para o interior do carro com a atenção concentrada em atar-lhe os tornozelos. Atrás dele, pela porta aberta do carro, via-se uma grande extensão verdejante. Charcos e árvores. Nenhum edifício. Os pântanos? Teria estacionado em Back Bay Fens?

A fita adesiva chiou de novo. Depois, o cheiro ao adesivo quando ele a pressionou sobre a boca dela.

Ele olhou para ela, que viu pormenores que não se dera ao trabalho de anotar quando o vidro da janela descera pela primeira vez. Pormenores que na altura foram irrelevantes. Olhos escuros. Um rosto de ângulos acentuados, expressão de fera à espreita. Excitação com o que viria a seguir. Um rosto em que ninguém repararia do banco de trás de um automóvel. São estes que constituem o exército sem rosto mas de uniforme, pensou ela. Os que nos limpam os quartos de hotel, nos transportam a bagagem e nos conduzem as limusinas em que viajamos. Movimentam-se num mundo paralelo, e raramente se dá por eles até que são necessários.

Até que se introduzem no nosso mundo.

Ele apanhou o telemóvel que se encontrava no chão onde caíra. Atirou-o para a estrada e bateu-lhe com o calcanhar, esmagando o telemóvel que ficou transformado num monte de plástico e fios. Deu-lhe um pontapé para os arbustos. Nenhum sistema avançado de detecção levaria a polícia até ela.

Agora, todo ele era eficiência. O profissional experiente, fazendo o que melhor sabe fazer. Inclinou-se para o carro, puxou-a para a porta e depois levantou-a em braços sem um grunhido de esforço. Um soldado de operações especiais que consegue marchar durante quilómetros com uma mochila de cinquenta quilos às costas pouca dificuldade encontraria em levantar uma mulher de pouco mais de sessenta quilos. A chuva salpicou-lhe o rosto ao ser transportada para a retaguarda do automóvel. Vislumbrou de relance algumas árvores, que a neblina prateava, e um emaranhado denso de arbustos. Mas nenhum outro carro, embora ouvisse para lá das árvores o ruído do trânsito como o som do oceano quando se encosta uma concha ao ouvido. Suficientemente próximo para gerar um grito abafado de desespero na garganta dela.

A bagageira já estava aberta e o pára-quedas verde-claro aberto e à espera de lhe receber o corpo. Ele pousou-a lá dentro, foi ao carro buscar-lhe os sapatos e atirou-os também para junto dela. Depois, fechou a bagageira e ela ouviu-o girar a chave na fechadura. Mesmo que conseguisse libertar as mãos, não poderia fugir daquele caixão escuro.

Ouviu-o bater a porta; depois, o carro voltou a pôr-se em andamento. Dirigindo-se para um encontro com um homem que, sabia-o, estaria à sua espera.

Pensou em Warren Hoyt. Pensou no sorriso brando, nos dedos longos metidos em luvas de borracha. Pensou no que ele estaria a agarrar com as mãos enluvadas e o terror submergiu-a. A respiração tornou-se mais acelerada. Sentiu-se asfixiada, sem conseguir inspirar profunda e rapidamente, para evitar sufocar. Em pânico, retorceu-se, agitando-se como um animal enlouquecido e desesperado por viver. Bateu com o rosto contra a mala e a pancada deixou-a momentaneamente tonta. Ficou exausta e com a face a latejar.

O carro reduziu a velocidade e parou.

Ficou rígida, com o coração a bater-lhe contra o peito, enquanto esperava pelo que se seguiria. Ouviu um homem dizer: "Tenha um bom dia." O carro rolava de novo e tomava velocidade.

Uma portagem. Estavam no Turnpike.

Pensou em todas as pequenas cidades que ficavam a oeste de Boston, em todos os campos desertos e manchas de florestas, locais onde ninguém pensaria em parar. Locais onde um corpo podia nunca ser encontrado. Lembrou-se do cadáver de Gail Yeager, tumefacto e raiado de preto, e dos ossos espalhados de Maria Jean Waite, que jaziam na quietude dos bosques. É o destino de toda a matéria.

Fechou os olhos, concentrando-se no rumor da estrada sob os pneus. Iam muito depressa. Agora, já fora dos limites da cidade de Boston. E que estaria Frost a pensar enquanto aguardava a sua chamada? Quanto tempo até se aperceber de que alguma coisa correra mal?

Não faz diferença. Não saberá onde procurar. Ninguém saberá.

O braço esquerdo estava cada vez mais dormente devido ao peso do corpo e sentia um formigueiro insuportável. Rolou sobre o ventre e ficou com o rosto encostado ao tecido sedoso do pára-quedas. O mesmo tecido que servira de mortalha aos cadáveres de Gail Yeager e Karenna Ghent. Imaginou que conseguia sentir nas suas dobras o cheiro da morte. O odor da putrefacção. Repugnada, tentou pôr-se de joelhos e bater com a cabeça no tecto da bagageira. Magoou-se no couro cabeludo. A mala, pequena como era, deixava pouco espaço de manobra e a claustrofobia fazia-a entrar novamente em pânico.

Autodomínio. Raios, Rizzoli. Domina-te.

Mas não conseguia expulsar as imagens do Cirurgião. Lembrava-se do rosto dele a pairar por cima dela enquanto jazia imobilizada no chão da cave. Lembrava-se de estar à espera do golpe do bisturi, sabendo que não lhe escaparia. Que o melhor que podia desejar era uma morte rápida.

E que a alternativa era infinitamente pior.

Obrigou-se a respirar de maneira lenta e profunda. Uma gota quente deslizou-lhe pela face. Doía-lhe a parte de trás da cabeça. Cortara-se no couro cabeludo e agora sangrava continuamente e salpicava o pára-quedas. Provas, pensou. A minha passagem marcada com sangue.

Estou a sangrar. Onde é que embati com a cabeça?

Levantou os braços presos atrás das costas e tacteou o tecto da bagageira, procurando o que poderia ter-lhe perfurado o couro cabeludo. Sentiu plástico moldado e uma parte macia de metal. Depois, subitamente, a ponta aguçada de um parafuso saliente arranhou-lhe a pele.

Parou para aliviar a dor nos músculos dos braços e pestanejou para afastar o sangue dos olhos. Ouvia-se o rumor contínuo dos pneus na estrada.

Continuavam a circular depressa e Boston ficava cada vez mais distante.

É maravilhoso isto aqui na floresta. Estou rodeado por um anel de árvores, cujos topos perfuram o céu como os pináculos de uma catedral. Choveu durante toda a manhã, mas agora irrompe das nuvens uma faixa de luz que se derrama pelo chão onde espetei quatro estacas de ferro, às quais atei quatro pedaços de corda. Com excepção dos pingos que caem das folhas, está tudo em silêncio.

Depois, ouço uma restolhada de asas. Olho para cima e vejo três corvos empoleirados em ramos altos. Observam com uma estranha avidez, como se previssem o que vem a seguir. Já sabem o que é este lugar e agora esperam, adejando as asas negras, atraídos para aqui pela promessa de carniça.

O sol aquece o solo e das folhas húmidas soltam-se rolos de vapor. Pendurei a mochila num ramo para a secar e, carregada de instrumentos, pende como um fruto pesado. Não preciso de fazer o inventário do conteúdo. Juntei os instrumentos com cuidado, acariciando o aço frio ao colocá-los dentro da mochila. Nem mesmo um aríd de reclusão embotou a minha familiaridade e quando os meus dedos se fecham em redor do bisturi a sensação é tão agradável como a do aperto de mão de um velho amigo.

Estou agora prestes a saudar outra velha amiga.

Dirijo-me para a estrada e fico à espera.

As nuvens transformaram-se em farrapos finos e a tarde pôs-se calma e quente. A estrada pouco mais é do que dois sulcos de terra batida, onde crescem algumas ervas daninhas altas, cujas cabeças carregadas de sementes não foram incomodadas pela passagem recente de nenhum carro. Ouço grasnar. Olho para cima e vejo que os três corvos me seguiram e estão à espera do espectáculo.

Todos gostam de ver.

Um fino rolo de poeira levanta-se por trás das árvores. Está a chegar um carro. Espero com o coração a bater mais depressa e as mãos a transpirar com a expectativa. Finalmente, surge à vista, um monstro negro e cintilante que se move pela estrada de terra batida com a lentidão exigida pela sua dignidade. Trazendo a minha amiga para me ver.

Será uma visita longa, penso. Levantando os olhos, vejo que o sol ainda vai alto, deixando-nos muitas horas de luz. Horas de divertimento estival.

Avanço para o meio da estrada e a limusina detém-se em frente a mim. O condutor sai. Não precisamos de trocar qualquer palavra; limitamo-nos a olhar um para o outro e a sorrir. O sorriso de dois irmãos, unidos não por laços de família, mas por desejos partilhados, ânsias partilhadas. Palavras numa página reuniram-nos. Em longas cartas tecemos as nossas fantasias e forjámos a nossa aliança, fluindo as palavras das nossas canetas e prendendo-nos um ao outro como os fios de seda de uma teia de aranha. Trazendo-nos a esta floresta onde os corvos nos observam com olhos ávidos.

Dirigimo-nos ambos para as traseiras do automóvel. Ele está excitado e quer possuí-la. Bem vejo a protuberância nas suas calças e como sacode as chaves que tem na mão. Tem as pupilas dilatadas e o lábio superior a brilhar de suor. Parámos junto da bagageira, ambos esfomeados pela primeira visão da nossa hóspede. Pela primeira e deliciosa exalação do seu terror.

Mete a chave na fechadura, e dá-lhe uma volta. A porta da bagageira abre-se.

Ela está deitada, enrolada e de lado, piscando os olhos ainda ofuscados pela súbita luminosidade. Estou tão concentrado nela que não reparo imediatamente no significado do sutiã branco que pende de um canto da pequena mala. Só quando o meu parceiro se inclina para a frente para a erguer da bagageira é que compreendo o que aquilo significa e berro:

Não!

Mas ela já levara as mãos a frente e já estava a carregar no gatilho.

A cabeça dele explode numa mistura de sangue.

É um bailado estranhamente gracioso a maneira como o corpo dele se arqueia ao cair para trás e o modo como os braços dela rodam na minha direcção com infalível precisão. Só tenho tempo para me contorcer para o lado e então a segunda bala irrompe da arma.

Não a sinto perfurar-me a parte de trás do pescoço.

O estranho bailado continua, só que agora o meu corpo é que executa a dança, agitando os braços em círculo no ar num mergulho de cisne. Aterro de lado, mas o impacto não provoca dor, só o som do meu tronco a embater no chão. Fico deitado à espera da dor, do latejar, mas nada acontece. Só uma sensação de surpresa.

Ouço-a enquanto tenta sair do carro. Esteve imobilizada por mais de uma hora e leva alguns minutos a fazer com que as pernas lhe obedeçam.

Aproxima-se de mim. Enterra o pé no meu ombro e faz-me rolar de costas. Estou totalmente consciente e olho para ela sabendo bem o que está para acontecer. Ela aponta-me a arma ao rosto, com as mãos a tremer e a respiração entrecortada e superficial. Tem na face esquerda manchas de sangue seco como pinturas de guerra. Todos os músculos do seu corpo estão preparados para matar. Todos os seus instintos lhe gritam que prima o gatilho. Devolvo-lhe o olhar, sem medo, observando a luta que se desenrola nos seus olhos. Perguntando a mim mesmo por que forma de derrota ela optará. Nas suas mãos segura a arma da sua própria destruição; eu sou um mero catalisador.

Mata-me, e as consequências destruir-te-ão.

Deixa-me viver, e habitarei para sempre os teus pesadelos.

Ela solta um soluço fraco. Lentamente, baixa a arma.

Não murmura. E depois, mais alto, em tom de desafio: Não. Então, endireita-se, respira fundo e dirige-se para o carro.

 

Rizzoli encontrava-se na clareira e olhava para as quatro estacas de ferro que tinham sido espetadas no chão. Duas para os braços, duas para as pernas. Cordas com nós, já com o laço feito e à espera de ser apertado em volta dos pulsos e tornozelos foram encontradas perto. Evitou demorar-se sobre a finalidade óbvia daquelas estacas. Em vez disso, percorreu as imediações com o comportamento profissional de qualquer polícia ao examinar o local de um crime. Que teriam sido os seus membros a serem imobilizados pelas estacas e a sua carne a ser rasgada pelos instrumentos guardados na mochila de Hoyt era um pormenor que mantinha à distância. Sentia que os colegas a observavam, ouvia o modo como baixavam a voz e sussurravam quando ela se aproximava. A ligadura na sutura da cabeça rotulava-a manifestamente como uma vítima ambulante e todos lidavam com ela como se fosse de vidro e facilmente se estilhaçasse. Não o tolerava, sobretudo agora, quando mais do que nunca precisava de se convencer de que não era uma vítima. Quando dominava plenamente as suas emoções.

E, assim, percorreu o lugar como faria noutro local de um crime qualquer. O sítio já fora fotografado e inspeccionado pela polícia na tarde anterior e estava oficialmente liberado, mas naquela manhã Rizzoli e a sua equipa tinham-se sentido compelidos a examiná-lo também. Meteu-se pela floresta acompanhada por Frost. A fita métrica saía e entrava na caixa de lata conforme iam medindo a distância da estrada até à pequena clareira onde a polícia descobrira a mochila de Warren Hoyt. Apesar do significado pessoal daquele círculo de árvores, examinou a clareira com distanciamento. Registado no bloco-notas havia um catálogo do que fora encontrado dentro da mochila: bisturis e pinças, retractores e luvas. Estudara as fotos das pegadas de Hoyt, agora vazadas em gesso, e observara os sacos das provas que continham cordas com nós, sem parar para pensar nos pulsos a que se destinavam aquelas cordas. Olhou para cima para ver se o tempo estava a mudar, sem reconhecer perante si própria que aquela mesma paisagem de topos de árvores e céu teria sido a sua última visão. Jane Rizzoli, a vítima, hoje não estava ali. Muito embora os colegas a observassem, à espera de um vislumbre, não a veriam. Ninguém veria.

Fechou o bloco-notas e ao erguer os olhos viu Gabriel Dean dirigir-se para ela por entre as árvores. Embora o coração lhe desse um salto ao vê-lo, cumprimentou-o com um simples aceno de cabeça e um olhar que dizia: "Vamos manter isto ao nível profissional."

Dean compreendeu e ficaram frente a frente como dois profissionais, tendo o cuidado de não trair com a menor insinuação a intimidade que tinham partilhado apenas dois dias antes.

O motorista foi contratado há seis meses por uma empresa de aluguer de limusinas disse Rizzoli. Os Yeager, os Ghent, os Waite... transportou-os a todos. E tinha acesso ao calendário de transportes da empresa. Deve ter visto lá o meu nome. Cancelou o meu pedido de forma a poder ocupar o lugar do condutor que devia ter estado lá.

A empresa verificou as referências dele?

As referências já tinham alguns anos, mas eram excelentes. Fez uma pausa. No currículo, não havia menção a nenhum serviço militar.

Porque John Stark não era o seu verdadeiro nome.

Roubo de identidade? perguntou Rizzoli, franzindo as sobrancelhas.

Dean fez um gesto em direcção às árvores. Afastaram-se da clareira e começaram a andar pela floresta onde podiam falar em particular.

O verdadeiro John Stark morreu em Setembro de mil novecentos e noventa e nove, no Kosovo disse Dean. Funcionário substituto das Nações Unidas, morto quando o jipe embateu numa mina terrestre. Está sepultado em Corpus Christi, no Texas.

Então, nem sequer sabemos o verdadeiro nome do nosso homem.

Dean abanou a cabeça.

Vão ser enviados ao Pentágono e à CIA impressões digitais, radiografias dentárias e amostras de tecidos.

Não obteremos respostas deles, pois não?

Se o assassino tiver sido um deles, não. No que lhes diz respeito, tu resolveste-lhes o problema. Nada mais precisa de ser dito ou feito.

Posso ter resolvido o problema deles, mas o meu continua vivo disse Rizzoli com amargura.

O Hoyt? Nunca constituirá uma preocupação para ti.

Meu Deus, devia ter disparado mais uma bala...

Provavelmente, fica tetraplégico, Jane. Não consigo imaginar maior castigo.

Saíram da floresta para a estrada de terra batida. A limusina fora rebocada na noite anterior, mas as provas do que ali acontecera ainda lá permaneciam. Olhou para o sangue seco onde o homem conhecido como John Stark morrera. Uns metros à frente, estava uma mancha menor onde Hoyt caíra, com os membros insensíveis e a medula espinal transformada numa papa.

Podia ter acabado com isto, mas deixei-o viver. E continuo sem saber se foi a coisa certa a fazer.

Como te sentes, Jane?

Ouviu a nota de intimidade na sua pergunta, num reconhecimento tácito de que eram mais do que simples colegas. Olhou para ele e de repente tomou consciência do seu próprio rosto magoado e da saliência da ligadura na cabeça. Não era dessa maneira que queria que ele a visse, mas, agora que estava diante dele, não fazia sentido esconder as feridas, não havia nada a fazer senão manter-se direita e enfrentar o olhar dele.

Sinto-me bem respondeu. Alguns pontos na cabeça, alguns músculos doridos. É um caso verdadeiramente sério de mau aspecto. Apontou vagamente para as equimoses do rosto e riu-se. Mas devias ver o outro indivíduo.

Não me parece que seja bom para ti andares por aqui disse ele.

Que queres dizer?

É demasiado cedo.

Quem deve andar por aqui sou eu.

Tu nunca te poupas, pois não?

Porque havia de poupar-me?

Porque não és nenhuma máquina. Vais sofrer as consequências. Não podes andar por aqui a fingir que se trata apenas de mais um local de um crime.

É exactamente assim que estou a tratar do caso.

Mesmo depois do que quase aconteceu? O que quase aconteceu.

Olhou para as manchas de sangue no solo e por instantes a estrada pareceu ondular, como se um tremor tivesse abalado a terra, derrubando as muralhas cuidadosamente construídas e que ela erguera como um escudo, ameaçando até os próprios alicerces que pisava.

Ele pegou-lhe na mão, num toque firme que lhe fez vir as lágrimas aos olhos. Um toque que dizia: "Só por esta vez, tens autorização para ser humana. Para ser fraca."

Lamento muito por Washington disse ela docemente. Viu mágoa nos olhos dele e percebeu que ele interpretara mal as suas palavras.

Então, desejavas que não tivesse acontecido nada entre nós observou ele.

Não. Não, não é nada disso...

Então, o que lamentas? Jane suspirou.

Lamento ter-me vindo embora sem te dizer o que aquela noite significou para mim. Lamento não me ter despedido realmente de ti. E lamento por... Fez uma pausa. Por não ter permitido que tu cuidasses de mim, só por aquela vez. Porque a verdade é que precisava realmente que o fizesses. Não sou tão forte quanto gosto de pensar.

Dean sorriu e apertou-lhe a mão.

Ninguém é, Jane.

Ei, Rizzoli? Era Barry Frost que a chamava da orla da floresta. Jane pestanejou e voltou-se para ele.

Sim?

Acabámos de receber um duplo dez cinquenta e quatro. Quik-Stop Grocery Store, Jamaica Plain. Morreram um empregado de balcão e um cliente. O local já foi isolado.

Meu Deus! Tão cedo.

A seguir pegamos neste caso. Sentes-te capaz de ir?

Jane respirou fundo e voltou-se novamente para Dean. Este soltara-lhe a mão e, embora ela sentisse a falta do toque dele, estava mais forte, o tremor desaparecera e o chão era novamente sólido sob os seus pés. Mas não estava preparada para pôr fim àquele momento. O seu último adeus em Washington fora apressado e não permitiria que isso voltasse a acontecer. Não deixaria que a sua vida se tornasse igual à de Korsak, uma triste crónica de arrependimentos.

Frost? disse, com o olhar preso em Dean.

Diz.

Não vou.

O quê?

Deixa que outra equipa se encarregue. Não estou preparada neste momento.

Não houve resposta. Ela olhou para Frost e viu-lhe o rosto espantado.

Queres dizer... que hoje tiras o dia? perguntou Frost.

Sim. É a minha primeira baixa por doença. Algum problema? Frost abanou a cabeça e riu-se.

Já não era sem tempo, é a única coisa que posso dizer.

Viu Frost afastar-se. Ouviu-o ainda a rir-se ao dirigir-se para a floresta. Esperou que Frost desaparecesse no meio das árvores antes de voltar a olhar para Dean.

Ele abriu os braços; ela lançou-se contra o peito dele.

 

De duas em duas horas, vêm examinar-me a pele à procura de escaras. É um trio de rostos rotativo: Armina, no turno de dia, Bella de tarde e no turno da noite a silenciosa e tímida Corazon. As minhas meninas ABC, é como lhes chamo. Para os menos observadores, não se distinguem umas das outras, todas elas com rostos castanhos macios e vozes musicais. Um coro chilreante de filipinas de uniformes brancos. Mas vejo as diferenças entre elas. Vejo-as no modo como se aproximam da minha cama, nas várias maneiras como pegam em mim e me rolam sobre um lado ou sobre o outro para me mudarem de posição sobre a pele de ovelha. Isto tem de fazer-se dia e noite, porque não consigo virar-me e o peso do meu corpo contra o colchão raspa-me a pele. Comprime os capilares e interrompe o fornecimento de sangue, enfraquecendo os tecidos, tornando-os pálidos e frágeis, facilmente abrindo feridas. Uma pequenaescara pode alastrar e aumentar rapidamente, como um rato mordiscando a carne.

Graças às minhas meninas ABC, não tenho escaras ou assim me dizem. Não posso confirmar porque não consigo ver nem as costas nem as nádegas, nem tenho qualquer sensação dos ombros para baixo. Estou completamente dependente de Armina, Bella e Corazon para me manter saudável e, como qualquer bebé, presto uma atenção extasiada a quem cuida de mim. Estudo-lhes os rostos, inalo os seus odores, memorizo as suas vozes. Sei que a cana do nariz de Armina não é totalmente direita, que o hálito de Bella cheira frequentemente a alho e que Corazon sofre de uma leve gaguez.

Também sei que têm medo de mim.

Sei, é claro, porque estou aqui. Todos os que trabalham na unidade que se ocupa da espinal medula sabem quem sou, e, embora me tratem com a mesma cortesia que oferecem a todos os outros pacientes, reparo que não me olham directamente nos olhos, que hesitam antes de tocarem em mim, como se se preparassem para tocar num ferro em brasa. Apanho as auxiliares a fitar de esguelha do corredor, deitando-me olhares enquanto trocam segredinhos. Tagarelam com os outros pacientes, perguntam-lhes sobre os amigos e a família, mas a mim nunca me fazem perguntas dessas. Oh, querem saber como me sinto e se dormi bem, mas a nossa conversa não passa daí.

No entanto, sei que sentem curiosidade. Todos são curiosos, todos querem dar uma espreitadela ao Cirurgião, mas têm medo de se aproximar de mais, como se eu pudesse de repente saltar e atacá-los. Por isso, lançam-me olhares rápidos da porta, mas não entram a não ser que o dever os obrigue. As meninas ABC tratam-me da pele, da bexiga e dos intestinos e depois desaparecem, deixando o monstro sozinho no seu quartinho, acorrentado à cama pelo seu próprio corpo em ruínas.

Por isso não admira que eu anseie tão avidamente pelas visitas da doutora O'Donnell.

Tem vindo uma vez por semana. Traz o gravador de cassetes e o bloco-notas e uma bolsa cheia de esferográficas azuis com que toma notas. E traz a sua curiosidade, exibindo-a intrépida e desavergonhadamente como uma capa vermelha. A sua curiosidade é puramente profissional, ou assim o crê. Aproxima a cadeira da minha cama e coloca o microfone na mesa do tabuleiro para apanhar todas as palavras. Depois, inclina-se para a frente e arqueia o pescoço na minha direcção como se me oferecesse a garganta. É naturalmente loira e bastante pálida e as veias correm em delicadas linhas azuis sob a brancura da pele. Fita-me, sem medo, e faz as suas perguntas.

Sente a falta do John Stark?

Bem sabe que sinto. Perdi um irmão.

Um irmão? Mas você nem sequer sabe o verdadeiro nome dele.

E a polícia não pára de me perguntar. Mas não a posso ajudar, porque ele nunca me disse.

Mas durante todo aquele tempo você correspondeu-se com ele da prisão.

Para nós, os nomes não eram importantes.

Conheciam-se suficientemente bem para matar em conjunto.

Só daquela vez em Beacon Hill. É como fazer amor, acho eu. Na primeira vez, ainda estamos a aprender a confiar um no outro.

Então, matar era uma maneira de o conhecer?

Há maneira melhor?

Ela arqueia uma sobrancelha, como se não estivesse totalmente certa de eu estar a falar a sério. Mas estou.

Refere-se a ele como irmão diz ela. Que quer dizer com isso?

Tínhamos um laço, nós os dois. Um laço sagrado. É tão difícil encontrar pessoas que me compreendam totalmente!

Imagino.

Estou atento a qualquer laivo de sarcasmo, mas não o ouço na voz dela nem o vejo nos seus olhos.

Sei que deve haver por aí outros como nós digo. O desafio é encontrá-los. Estabelecer ligação. Todos queremos estar com os da nossa própria espécie.

Fala como se fosse de uma espécie à parte.

Homo sapiens reptilis digo com ironia.

Perdão?

Li que há uma parte do nosso cérebro que remonta as nossas origens reptilianas. Controla as nossas Junções mais primitivas. A luta e a fuga. O acasalamento. A agressão.

Oh! Refere-se ao Archipallium.

Sim. O cérebro que possuíamos antes de nos tornarmos humanos e civilizados. Não contém emoções ou consciência. Nem valores morais. É o que vemos quando olhamos nos olhos de uma serpente. A mesma parte do nosso cérebro que responde directamente ao estímulo olfactivo. Por isso os répteis têm um sentido do olfacto tão apurado.

É verdade. Em termos neurológicos, o nosso sistema olfactivo está intimamente ligado ao Archipallium.

Sabia que tive sempre um sentido do olfacto extraordinário?

Por momentos, ela fita-me simplesmente. Mais uma vez não sabe se estou a falar a sério ou se teço esta teoria porque ela é neuropsiquiatra e sei que a apreciará.

A sua pergunta seguinte revela que decidiu levar-me a sério.

O John Stark também tinha um sentido do olfacto extraordinário?

Não sei. Olho-a com fixidez. Agora que morreu nunca saberemos.

Ela estuda-me como um gato prestes a dar o salto.

Parece irritado, Warren.

Não tenho razões para estar? O olhar cai-me no corpo inútil, que jaz inerte no resguardo de pele de ovelha. Já nem sequer penso neste corpo como sendo meu. Porque havia de pensar? Não o sinto. Não passa de um pedaço de carne alheia.

Está irritado com a agente da polícia diz ela.

Uma afirmação tão óbvia nem sequer merece resposta e, por isso, não dou nenhuma.

Mas a doutora O'Donnell está treinada para esmiuçar sentimentos, descamar cicatrizes e expor as feridas abertas e sangrentas sob a pele. Farejou o aroma de emoções supuradas e agora aproxima-se para as extrair, raspar e escavar.

Ainda pensa na detective Rizzoli? pergunta,

Todos os dias.

Que espécie de pensamentos?

Quer realmente saber?

Estou a tentar compreendê-lo, Warren. O que pensa, o que sente. O que o leva a matar.

Então, continuo a ser o seu ratinho de laboratório. Não sou seu amigo.

Uma pausa.

Sim, posso ser sua amiga...

Mas não é por isso que vem cá.

Para ser honesta, venho cá pelo que você pode ensinar-me. Pelo que pode ensinar a todos sobre os motivos que levam os homens a matar. Inclina-se ainda mais para mim. Portanto, conte-me acrescenta calmamente. Todos os seus pensamentos, por mais perturbadores que sejam.

Faz-se um longo silêncio. Depois, digo com brandura:

Tenho fantasias...

Que fantasias?

Sobre a Jane Rizzoli. Sobre o que gostaria de lhe fazer.

Conte-me.

Não são fantasias simpáticas. Tenho a certeza de que as considerará repugnantes.

Mesmo assim, gostava de ouvir.

Os olhos dela possuem um brilho estranho, como se fossem iluminados do interior. Os músculos do rosto estão tensos de expectativa. Retém a respiração.

Olho para ela e penso: "Oh, sim, ela vai gostar de ouvir." Como toda a gente, quer conhecer todos os pormenores tenebrosos. Afirma que o seu interesse é puramente académico, que o que lhe conto se destina apenas à sua investigação. Mas vejo-lhe nos olhos a centelha da avidez. Farejo o odor a feromonas da excitação.

Vejo o réptil agitando-se na sua jaula.

Ela quer saber aquilo que eu sei. Quer penetrar no meu mundo. Está finalmente preparada para a jornada.

É tempo de a convidar a entrar.

 

                                                                                            Tess Gerritsen

 

                      

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