Biblio "SEBO"
Capítulo 1
De pé, numa vereda da montanha, um rapaz olhava o mar. Era alto, mas no seu corpo duro e magro pouco restava já da adolescência. Aos dezoito anos Daniel bar Jamin era, indiscutivelmente, um Galileu, com as feições atrevidas dos homens do seu país, a pele bronzeada e uns olhos negros e brilhantes, que um patriotismo ousado podia iluminar e uma cólera surda escurecer. Uma raça orgulhosa esta dos Galileus, violenta e sem descanso, inconformada com a conquista da Palestina, recusando-se a aceitar, como senhor, o Imperador Tibério da longínqua Roma.
Ao olhar para o vale, o rapaz podia ver os socalcos cinzento-prateados das oliveiras, alegrados pelas manchas verdejantes das moitas de aloendros. Recordou-se de que, na cidade de telhados castanhos, cor de lama, cada pedaço de terra, cada fresta das pedras das paredes, deviam estar cobertas de flores primaveris. E, ao recordar-se, o rosto franziu-se-lhe numa expressão de desagrado sob o sol quente do meio-dia.
Estava à espera de que voltassem a aparecer, por entre os pedregulhos caídos do outro lado do caminho, as duas pessoas que vira. Sentia-se admirado e confuso, em luta consigo próprio. Quem seriam estes dois, suficientemente loucos para se atreverem a subir a montanha? Queria-lhes mal por lhe terem recordado a aldeia, receoso de que o descobrissem e, ao mesmo tempo, desejando não os perder de vista. E porque procurava segui-los, quando tudo quanto desejara durante cinco anos, fora esquecer que existia aquele outro mundo do vale?
Voltou a olhar para o rapaz, que estava a pouca distância, e depois, para a rapariga. Uma recordação, fugidia, passou-lhe pelo espírito. Era evidente que eram irmãos. Tinham a mesma maneira de andar, uma espécie de facilidade livre e dançante. As mesmas maçãs do rosto altas, o mesmo tom de pele de um moreno avermelhado. As vozes subiam nítidas no ar claro. Daniel podia ver, facilmente, a rapariga. Parara para apanhar um ramo de flores de linho, cor-de-rosa, e estava agora em equilíbrio em cima de uma rocha, com o rosto erguido e o lenço amarelo, que lhe tapava a cabeça, caído para as costas e deixando à mostra o cabelo negro.
- Repara, Joel! - gritou a rapariga e a voz chegou nítida aos ouvidos de Daniel - Como o lago está azul! Podes ver o palácio do Tetrarca em Tiberíades.
Daniel, com ar feroz, franziu as sobrancelhas negras. Reconhecera o rapaz. Era Joel bar Hezron, o garoto corado que costumava ir à escola da sinagoga, o filho do escriba, que o rabi apontava como exemplo e de quem todos troçavam porque a irmã gêmea ficava sempre à espera dele, lá fora, para voltarem juntos para casa. A rapariga tinha um nome estranho - Malthace.
- Estamos quase a chegar! - gritou o rapaz. A irmã desceu do rochedo. Daniel deixou de os ver: pequenas pedras rolaram pela vereda. Avançou com a precaução de um animal à espreita da presa.
Chegou ao cimo quase ao mesmo tempo que a rapariga que, corada e sem fôlego, se deixou cair na relva ao lado de Joel. Tirou o lenço da cabeça; o vento fazia-lhe esvoaçar o cabelo. Daniel podia vê-los indicando um ao outro os pontos de referência lá em baixo.
Do sítio onde se escondera, não podia ver o vale, mas era como se o estivesse vendo, de tal maneira o conhecia bem. Quantas vezes se não sentara também, onde os dois estavam agora sentados, olhando para a aldeia de Ketzah que fora, outrora, a sua aldeia? Não com frequência, nestes últimos anos, mas a princípio, antes de se ter acostumado a viver na caverna. Quantas vezes subira até ali e ficara até escurecer, procurando ver as manchas de luz, imaginando Lia e a avó durante a refeição da noite e, perguntando a si próprio, se as voltaria a ver alguma vez. Não voltara, e deixara de recordar e de se interrogar a si próprio, até àquele momento.
Joel e a irmã deixaram de gritar e o vento, agora, abafava-lhes as vozes. Daniel observou-os, sentindo-se desapontado e frustrado. Precisava de ouvi-los falar. Mais do que isso, lutava consigo próprio tentando esconder a necessidade que sentia de conversar com eles. Gente da sua terra... e depois de cinco anos! Olhou para os seus pés nus e calejados, para a túnica de pele de cabra, presa na cintura por uma correia. Que iriam pensar dele, aqueles dois, de fatos limpos e sandálias de couro? E se fosse arriscar a liberdade para nada? Mas não podia recuar. Como um animal saindo do esconderijo, deslizou lentamente por detrás da rocha.
O rapaz ergueu-se imediatamente e a rapariga levantou-se a seu lado. Pensou que iam fugir. Mas, com grande espanto seu, ficaram. Viu os punhos de Joel cerrarem-se; o rapaz não era cobarde. Daniel deixou-se ficar onde estava, com o coração a bater desordenado. Não podia suportar a ideia de que fugissem agora. Lembrou-se da saudação habitual.
- A paz seja convosco.
Joel continuou na defensiva.
- Paz - respondeu rapidamente, e depois.
- O que queres de nós?
- Nada de mal, Joel bar Hezron - disse Daniel.
- Como sabes quem sou?
- Ouvi a tua irmã chamar por ti. Eu sou Daniel bar Jamin.
Joel parou, com o rosto iluminado por uma súbita recordação.
- O aprendiz que fugiu de casa do ferreiro?
Daniel acenou com a cabeça.
- Ninguém te censurou - disse Joel rápidamente.- Todos sabem como Amalec trata os rapazes.
- Não me importo com Amalec - respondeu Daniel.- Podem-me dizer alguma coisa a respeito da minha avó e da minha irmã?
Joel franziu o sobrolho e abanou a cabeça.
- Tenho pena, mas não posso. Sabes quem são, Thace?
A rapariga tinha apanhado um susto e a respiração estava ainda ofegante, mas respondeu com a mesma franqueza de Joel.
- Há uma velhota que vai todas as manhãs à fonte. Mora numa casa por detrás da Rua dos Queijeiros.
- Sim - disse Daniel avidamente. A rapariga hesitou:
- Dizem que tem uma rapariguinha com ela, que nunca sai de casa.
"Seria possível?"
Era isto talvez que ele tinha pensado durante todo este tempo. E acabou por dizer:
- É a minha irmã Lia.
Mas logo desejou não ter perguntado nada. Era melhor não saber.
- Nunca ninguém a viu - continuou a rapariga. - Mas eu sei que vive lá. Desculpa. Gostaria de te poder dizer mais alguma coisa.
Daniel hesitou, embaraçado, mas desejando continuar:
- Havia um rapaz chamado Simão, seis ou sete anos mais velho. Estava também a trabalhar com Amalec.
- Deve ser Simão o Zelota* - disse Joel.
Nota: Nome dado aos patriotas Judeus exaltados que desencadearam a revolta da Galileia em 6 d. C. (N. do T.)
- Ouvi falar dele. Já tem uma loja. Dizem que faz mais negócio que o Amalec.
- Costumava ajudar-me - continuou Daniel.
- Tem fama de ser bom homem e um bom patriota.
- És capaz de lhe dar notícias minhas? De lhe dizeres que estou aqui? Gostava que o soubesse.
Joel ficou admirado.
- Queres dizer que vives aqui?
- Sim.
- Sózinho? Mas não é perigoso? Isto é, dizem que a montanha está cheia de salteadores.
Daniel ficou calado.
- Não vives só?
- Não vivo só - respondeu Daniel.
- Oh - Joel estava admirado. - E nunca vais à aldeia?
- Se fosse, obrigavam-me a voltar para a loja de Amalec.
- Creio que sim. Está bem, darei o teu recado a Simão. Há quanto tempo fugiste?
- Há cinco anos. Simão lembra-se de mim, com certeza.
A rapariga falou então num tom de voz longínqua que se harmonizava com o olhar distante e sonhador.
- Cinco anos! Queres dizer que a tua avó nunca soube nada de ti durante todo este tempo?
Daniel pôs os olhos no chão e cerrou os lábios.
- Amanhã, quando a encontrar na fonte, posso dizer-lhe que te vi?
Daniel olhou-a ressentido. Levara muito tempo a adormecer a consciência e não lhe agradava senti-la de novo presente e acordada.
- Se quiseres - respondeu. Sentiu-se desapontado e zangado consigo próprio. Porque voltara atrás, depois de todos estes anos? O que esperava? Não havia mais nada a dizer.
- É melhor ir-me embora - e voltou-se. - Não... Não deviam ter vindo aqui.
- E porque não? - perguntou Joel calmamente.
- Estou a avisá-los. E agora, deixem-se ficar na aldeia. - Começou a afastar-se.
- Espera - chamou Joel. Olhou para a irmã, numa interrogação muda e a rapariga acedeu com a cabeça. - Nós trouxemos merenda. Queres comer connosco?
Daniel sentiu-se corar. Não pedira esmola.
- Não é muito - disse Joel. - Mas gostávamos de continuar a conversar contigo.
Seria possível que este convite fosse feito com amizade? Lentamente, como um animal acossado, voltou para trás e estendeu-se na relva. A rapariga tirou da algibeira, pendurada no cinto, um embrulho cuidadosamente arranjado. Joel entregou à irmã uma pequena garrafa, sentou-se e estendeu, solenemente, as mãos. Daniel viu, admirado, a rapariga deitar água nas mãos do irmão. Lavar as mãos antes das refeições - há cinco anos que deixara de pensar nisso. E nunca poderia imaginar que, até o filho de um escriba, se desse ao trabalho de subir à montanha com uma garrafa de água, apenas para observar os preceitos da lei. A rapariga voltou-se para ele. Havia uma interrogação no seu olhar, Daniel sentiu-se levemente contraído, depois venceu o orgulho ancestral. Era ou não um judeu? Estendeu as mãos e ficou de olhos fixos nas gotas de água que lhe escorriam pelos dedos morenos, um pouco embaraçado, pensando em como se divertiriam os homens da caverna se o pudessem ver.
A rapariga abriu o embrulho e repartiu a merenda em três partes iguais e não, como sua mãe costumava fazer, guardando para si a parte menor. Joel disse uma oração de graças e estendeu a Daniel a sua parte, algumas azeitonas, uma pequena fatia de pão branco e um bolo de mel cujo gosto lhe fez recordar a infância. Daniel sentiu-se descontraído pela primeira vez. Os seus olhos encontraram os de Joel e os dois rapazes observaram-se sem hostilidade.
- Porque vieste para aqui? - perguntou Joel, enquanto sacudia do queixo as últimas migalhas de bolo.
De certo modo tornara-se mais fácil conversar depois de terem comido juntos.
- Sabia que havia cavernas - respondeu Daniel. - Tudo o que desejava era um lugar para me esconder, num local onde Amalec me não pudesse encontrar. Mas não consegui achar nenhuma caverna e vagueei por estes sítios durante três dias, e depois um homem encontrou-me.
Lembrou-se de como Roch deparara com ele estendido no chão, cheio de fome, meio gelado, com as costas ainda feridas das últimas chicotadas que apanhara. Como podia contar a este rapaz o que fora aquela noite? Recordou o momento terrível em que o homem se inclinara sobre ele, da maneira como erguera a mão, não para lhe bater, mas para o ajudar a levantar-se e depois, quando voltara a cair, da foma como Roch lhe pegara ao colo e o levara para a caverna.
- Um salteador? - perguntou Joel.
- Um bom homem - respondeu, com orgulho. - Levou-me para viver com ele.
- Como vivem? O que fazem?
- Caçamos. Lobos e chacais, e até panteras. Chegamos a ir até Merom. E também trabalho no meu ofício. Fiz uma forja para poder trabalhar.
Joel parecia impressionado. Os olhos da rapariga estavam tão vivos como os do irmão. Daniel observou o rapaz com curiosidade. Tentava descobrir nele qualquer sinal que lhe indicasse o que fazia. Acabou por perguntar.
- E qual é o teu ofício?
- Ainda ando na escola - respondeu Joel. - Provavelmente serei um rabi. Mas também aprendi a fazer sandálias. Posso ganhar a vida dessa maneira, mas tenho pena do homem que tiver de usar as sandálias feitas por mim.
Daniel acenou com a cabeça. Claro que Joel seria um rabi. Sempre fora o rapaz mais esperto da escola. Mas mesmo um rabi tem de aprender um ofício, como qualquer outro homem.
- Porque vieram hoje? perguntou - Ninguém da aldeia cá vem.
A rapariga riu.
- Esfolavam-nos vivos, se soubessem que viemos.
- Foi uma coisa que sempre desejámos fazer - explicou Joel - desde crianças. Mas ninguém nos dava licença, porque diziam que era perigoso. Hoje é feriado e decidimos vir sem dizer nada a ninguém. Era a nossa última oportunidade. Deixamos a aldeia e vamos viver para Cafarnaum.
A irmã olhou-o com um certo ar de censura.
- Não percebo porque ficas sempre tão desanimado quando pensas nisso; por mim, julgo que viver em Cafarnaum vai ser maravilhoso.
O rosto de Joel endureceu. Esmagou entre os dedos, uma após outra, as flores vermelhas. Tornou-se claro para Daniel ser aquele um motivo de divergência entre os dois irmãos.
- Que podes tu querer mais? - perguntou ela, como se se tivesse esquecido da presença de Daniel- Uma casa grande para viveres, lojas, pessoas e uma escola com os melhores professores da Galileia!
Joel continuava a esmagar as flores com certa violência.
- O Pai não quer ir, se vai, é apenas para fazer a vontade à Mãe.
- Está bem - respondeu a rapariga. - A Mãe já uma vez abandonou tudo isso para lhe fazer a vontade. Não foi fácil para ela viver em Ketzah. Porque não há-de ir agora para lá, se o Avô lhe deixou a casa? E, vendo bem, tanto faz ao Pai viver num sítio como noutro, desde que tenha os seus livros.
Daniel ouvia, calado, sentindo-se estranho e posto à margem do mundo claro e seguro que ambos compartilhavam. Mas qualquer coisa lhe chamou a atenção. Lá em baixo, na estrada, movia-se uma linha onde, à luz do sol, brilhavam reflexos vermelhos de metal. Legionários. Sentiu de novo, em si, o mesmo ódio surdo. Os irmãos voltaram-se para ele e seguiram-lhe a direcção do olhar selvático de fúria.
- Romanos! - murmurou Joel. Daniel gostou da maneira como Joel pronunciara a palavra. Cuspiu com desprezo.
- Também os odeias - disse Joel em voz baixa. Daniel cerrou os dentes num gesto habitual.
- Amaldiçoo o ar que eles respiram - respondeu num murmúrio rouco.
- Invejo-te - disse Joel. - Aqui és livre.
- Ninguém é livre, enquanto a nossa terra for pisada pelos Romanos.
- Não. Mas, pelo menos, não és obrigado a vê-los. Há uma fortaleza em Cafarnaum. Vou tê-los diante dos olhos o dia inteiro, passeando pelas ruas.
- Oh, Joel - protestou a rapariga. - Para que estás a aborrecer-nos?
- Aborrecer-nos? Aborrecer... - A voz do rapaz estrangulou-se - Sempre julguei que até uma rapariga podia ver...
- Claro que vejo! - Estava quase a chorar - Mas que necessidade tens de te sentires sempre infeliz? Os Romanos não vão ficar aqui para sempre. Bem sabes que há-de chegar o dia em que seremos livres.
- Estás a falar como o Pai.
- Mas ele tem razão! Os Judeus já estiveram em condições bem piores. Já foram conquistados muitas vezes e acabaram sempre por se libertar, Joel.
Mas este já não a ouvia. Olhava para Daniel e os dois rapazes observavam-se numa interrogação muda.
Malthace levantou-se. Tinha tido a intuição de que chegara o momento em que fora afastada para um mundo diferente do dos dois rapazes.
- Não quero estragar o meu feriado por causa daqueles soldados - disse, num amuo infantil. Fizemos toda esta caminhada e tu nem sequer olhaste para os sítios que querias ver.
Joel voltou-se para a irmã e, sorridente, respondeu-lhe:
- Mas vimos o que não esperávamos ver: o Daniel.
A rapariga abanou a cabeça.
- E os lugares de que costumávamos falar? A planície onde Josué marchou ao encontro dos reis pagãos?
Pelos olhos do rapaz passou uma sombra. Mesmo por debaixo deles, a aldeia erguia-se encostada ao declive rochoso e, por entre as casas de telhados baixos, sobressaía, nítida, a mancha negra da sinagoga. À volta da aldeia estendiam-se os campos de oliveiras de um verde-prateado, os trigais de um verde-claro, a que se misturavam os íris vermelhos e os narcisos de um amarelo brilhante. Para o sul ficava o lago, de um azul intenso. Para o norte, para lá das colinas, através do verde difuso e esbatido do vale, serpenteava a fita prateada do rio Jordão que se encaminhava para essa jóia, que era o Lago de Merom. De repente, Daniel levantou-se.
- Ali - apontou - naquela planície. Cavalos, carros, e homens são tantos como as areias da praia. E Josué caíu sobre eles e fê-los recuar até ao mar.
Os dois irmãos olharam-no surpreendidos. Julgavam-no um ignorante e um selvagem. A rapariga, pelo menos, estava convencida disso. Mas esta história era uma coisa que ele conhecia bem. Há cinco anos, naquela primeira manhã em que, quente e bem alimentado, Roch o levara até ali, lhe pusera uma arma nas mãos e apontara a planície distante e lhe contara como um punhado de bravos ousara desbaratar um grande exército e ganhar uma vitória para Israel, ali, à luz da manhã, Daniel bar Jamin, órfão, escravo fugitivo, tinha encontrado uma razão para viver.
- Todos os fortes - continuou, recordando-se das palavras de Roch. - Josué, Gedeão, David, todos, lutaram no solo da Galileia. Ninguém podia nada contra eles. E assim será de novo.
- Sim - murmurou Joel. - Assim será de novo. Deus enviar-nos-á um outro David. Os olhos brilhavam-lhe como se pudesse ver a sombia de um vasto exército movendo-se na planície distante.
- Queres dizer, o Messias! - gritou Malthace - Oh, Joel, lembras-te? Sempre pensámos que o encontraríamos aqui.
- Eu tinha a certeza - disse Joel. - Sabia que o dia em que subisse à montanha seria o dia em que ele viria. Acreditava tanto nisso, que quase me parecia possível fazer com que isso acontecesse.
- Também eu. E seríamos nós a descer a montanha para contar a todos. E toda a gente da aldeia largaria o trabalho e segui-lo-ia. Todas as crianças sonharão assim?
Joel ficou sério.
- O Messias não é um sonho. É uma realidade. Está prometido.
- Mas, se nos esforçarmos a olhar para todas as nuvens distantes, e pensarmos que seremos os primeiros...
- Ainda o desejo! - E o grito de Joel foi tão intenso e apaixonado que ambos o olharam, admirados - Se quiseres chamar a isto criancice, chama. Mas é esse o motivo por que eu não quero ir para Cafarnaum.
- Mas isso pode demorar anos!
- Não. Está para breve. Não da maneira que imaginámos, Thace. Julgava que viria com um grande cortejo de anjos. Agora sei que devem ser homens, homens verdadeiros, treinados, armados e prontos - interrompeu-se a meio da frase.
- Há homens desses - disse Daniel, de olhos fitos nas colinas distantes. Não podia ver, mas sentiu que os músculos de Joel se retesaram.
- Eu sei - respondeu. Cresceu a excitação entre os dois rapazes. Fora dada a resposta à pergunta que não haviam feito.
Malthace olhou para o irmão, admirada com qualquer coisa que não podia compreender.
- Temos de começar a descer - disse. - Precisamos de estar em casa à hora da ceia.
- Vou convosco durante um bocado - propôs Daniel.
Queria sabê-los em segurança na estrada principal.
Começaram a descer. Assim que abandonaram o cimo da montanha o vento deixou de soprar, o sol parecia cair a pino sobre eles e nem uma folha se movia na vereda. Não falavam. Daniel podia ver que o outro rapaz continuava obcecado por uma ideia. Calculava que aquele feriado não se passara como a rapariga esperara. E, quanto a si, começava já a desejar que nunca tivessem vindo. Tinha vivido satisfeito, sem pensar demasiado, afastando as recordações indesejáveis.
E trabalhando para Roch, e esperando, mantido pelo ódio, a hora que havia de chegar. Nunca tivera um amigo e nunca pensara em desejar nenhum. Porque não deixara as coisas como estavam?
Malthace estava impaciente. Talvez a consciência a começasse a perturbar. Mas Joel demorava-se, tentando deliberadamente ficar para trás. Quando viu a irmã distraída com umas flores de mirra, disse a meia voz:
- Há uma coisa que desejava que me acontecesse quando cá voltar. Ouvi dizer que Roch, o fora da lei, vive na montanha. Quem me dera ter a sorte de o ver.
- Porquê?
- Para todos os rapazes da escola, Roch é um herói. Mas nunca nenhum o viu. E tu, já o encontraste?
Daniel hesitou.
- Sim - acabou por dizer. Joel parou, esquecido já das precauções tomadas para que a irmã o não ouvisse.
- O que eu daria para... E o que dizem a respeito dele, é verdade?
- O que é que dizem?
- Que lutou ao lado do grande chefe Judas, quando este se revoltou contra os Romanos, em Seforis, e que quando os outros foram crucificados, ele conseguiu fugir e se escondeu nas montanhas. Alguns afirmam que não passa de um salteador, que até os próprios Judeus rouba. Mas outros juram que tira o dinheiro aos ricos para o dar aos pobres. Conhece-lo? Como é ele afinal?
Por mais que quisesse, Daniel não podia esconder o orgulho que sentia.
- É o homem mais valente do mundo! Deixa-os dizer o que quiserem. Há-de chegar a altura em que todos os homens de Israel saberão o seu nome!
- Então é verdade! - gritou Joel - Está a preparar um exército para lutar contra os Romanos! É o que estão a fazer aqui, não é? E tu... és um deles. Eu sabia-o!
- Roch é o homem de quem lhes falei há pouco, foi ele que me encontrou. Fiquei sempre com ele desde essa altura.
- Tenho inveja de ti! Pensei juntar-me a Roch.
- Então vem. Aqui ninguém te poderá encontrar.
Malthace parara e ficara à espera. Joel olhou para a irmã e fez um pequeno gesto de impotência.
- Não é assim tão simples - disse. - O meu Pai...
- Oh Joel, porque andas tão devagar? De que estão a falar? - A rapariga parou no meio do caminho, com os braços cheios de flores vermelhas, o cabelo negro descoberto, caindo-lhe nos ombros, as faces queimadas pelo sol.
No lugar de Joel fugiria? Daniel começou de repente a imaginar como seria se estivesse nas condições dele. Se o Pai e a Mãe o esperassem, com a lâmpada acesa e uma boa ceia na mesa? Se tivesse uma irmã que pudesse subir à montanha sem se cansar?
Deixou de imaginar como seria. Perto de Malthace surgiu, de repente, outra pessoa. No meio da vereda, impedindo a passagem, estava Ebol, uma das sentinelas de Roch.
Capítulo 2
- Espera aqui - disse Daniel a Joel. Passou pela frente de Malthace e, quase sem a olhar, ordenou - Sobe para junto do teu irmão.
- Onde estiveste o dia inteiro? - perguntou Ebol, mal o viu - Roch precisa de ti.
- Roch? Onde está ele?
O homem indicou, com a cabeça, as colinas rochosas.
- Somos sete. Há um trabalho para fazermos.
Nem mesmo o olhar experimentado de Daniel conseguia notar o mais pequeno sinal de vida na escarpa nua. Perguntou:
- E é para já?
- Para já. Uma caravana que vem de Damasco com um carregamento de escravos. Estão quase a chegar ao desfiladeiro. É fácil. Poucos guardas. Tudo o que temos a fazer é apanhar um escravo.
- E o dinheiro?
- Só o escravo. Um negro, forte como um boi. Roch viu-o ontem, quando pararam em Merom. Diz que é bom demais para ir para as galés. E quem são, aqueles dois?
- Um rapaz meu conhecido, da aldeia, e a irmã.
- Que fazem aqui?
- Vieram cá, é feriado.
O homem resmungou.
- Despacha-os. Não há tempo a perder. Daniel foi ter com os dois irmãos.
- Não posso acompanhá-los - disse, como se não reparasse na curiosidade com que o olhavam. - Daqui para diante estão em segurança, desde que vão depressa.
Joel não se mexeu.
- É um dos homens de Roch? - perguntou.
O outro não respondeu.
- Sei que é - continuou Joel. Com o olhar atento começou a observar a escarpa rochosa. - Roch deve estar por aqui perto. Tenho a certeza, e preciso vê-lo. Por favor, Daniel. Talvez seja a minha única oportunidade.
Daniel sabia que Roch estava a observá-los e não se podia demorar.
- Não! - quase gritou - Esquece Roch e vai-te embora o mais depressa que puderes.
Ficou admirado ao ver o olhar de ódio de Joel.
- Mas quem julgas tu que és, para me dares ordens?
- Faz o que te digo! - insistiu Daniel - Vai haver sarilho. De um momento para o outro!
O rosto de Joel iluminou-se de alegria.
- Romanos?
- Não, grande idiota. Não são romanos.
Joel cerrou os maxilares em ar de desafio.
- A montanha não é tua. Nem sequer de Roch. Ando por onde me apetece!
Olharam-se com raiva.
- E a tua irmã? - perguntou Daniel.
O ar de desafio de Joel começou a desaparecer. É pena, pensou. É o gênero de rapaz que precisamos.
Ouviram-se sons de passos apressados. Um garoto de cerca de doze anos, magro como um espantalho, apareceu a correr, de olhos esbugalhados e rosto afogueado.
- Venham! - parou para tomar fôlego - Já passaram pelo carvalho - Rastejou por entre a escarpa rochosa e desapareceu, como um lagarto, por entre as fendas das pedras.
Daniel podia ouvir, agora, distintamente, os sons de uma caravana que se aproximava, os gemidos de protesto dos camelos, o barulho das pesadas cargas batendo de encontro às paredes rochosas do caminho e, de vez em quando, uma ou outra ordem.
- Já é tarde! - avisou - Escondam-se ambos atrás daquela rocha e não apareçam.
Joel voltou-se para a irmã, que estava aterrorizada.
- Thace, ouviste? Vai para lá, depressu, o mais depressa que puderes!
A rapariga hesitava.
- Que é Joel?
- Depressa, Thace! Explico-te depois! - Desesperado, agarrou-lhe então na mão, levou-a em direcção ao penedo e empurrou-a.
- Sobe! - repetiu - Estende-te ao comprido e fica de cabeça baixa. E não faças o mais pequeno ruído, aconteça o que acontecer.
Daniel observava-o com aprovação. Uma vez metido no assunto, o rapaz agira rapidamente. A rapariga também. Subira para as rochas como uma cabrita montesa. Reparou então que Joel voltava para seu lado.
- Fico contigo - disse o rapaz. Não havia tempo para discussões. Daniel pegou-lhe no braço e arrastou-o para as rochas do outro lado do caminho. No momento em que se escondiam atrás de um dos pedregulhos, chegou Ebol.
- Não tenhas medo, é dos bons - disse Daniel rapidamente. - Responsabilizo-me por ele.
- Se fizer o mais pequeno barulho - e o homem fez o gesto de estrangular.
- Mas não faz - respondeu Daniel.
- Então, fica a teu cuidado. Agora toma bem atenção. Espera pelo sinal. O de turbante amarelo e púrpura é teu. Roch diz que não quer brincadeiras. Nada de matar. Foi-se embora, como se tivesse desaparecido por encanto no meio das rochas.
No ar quieto e calmo, a respiração de Joel parecia ruidosa. Os olhos do rapaz fixavam-se febris no rosto de Daniel, que sentiu o coração começar a bater desordenadamente. "Aí tens Roch, desejava dizer. É isto, nunca sabemos o que nos vai acontecer. Dias intermináveis em que tudo é sossego, e depois, de repente, Roch vê qualquer coisa que deseja ou precisa e cai sobre a presa como um falcão." Daniel começa a sentir um aperto no estômago, uma sensação de medo e de prazer. Só há pouco tempo lhe permitem que tome parte activa nos assaltos. Ainda não está habituado, principalmente a esta espera.
Joel volta-se para ele.
- Que vamos fazer? - murmura.
- Eu é que faço - responde Daniel.- Fica aqui.
Os olhos de Joel brilham. O rosto jovem endurece, aperta as mãos com tanta força que os nós dos dedos ficam brancos e salientes. Daniel sabe que Joel não vai ficar ali à espera e sente um orgulho que nunca sentira antes. Sorri para ele e, nesse momento, ouvem um ruído mesmo por debaixo deles. Levantam a cabeça ao mesmo tempo e espreitam.
A caravana surge; à frente um guarda corpulento com um pesado bastão, atrás um segundo guarda com uma espada à cintura; caminham ambos em silêncio, olhando desconfiados para as rochas. Sabem que estão a chegar a um sítio perigoso, solitário, escuro e traiçoeiro. Os rapazes esperam, com a respiração suspensa, que o resto da caravana apareça. Não têm muito que esperar. Quatro camelos sarnentos, renitentes, avançando aos bordos, com as cargas a bambolear. Uma fila de mulas escanzeladas. Uma liteira com cortinas sujas. Quatro mercadores vulgares. Desgostoso, Daniel preparou-se para atacar o homem de turbante amarelo e púrpura. Gordo e sem fôlego, parecia já morto de medo. Quanto tempo ainda faltaria para que Roch lhe desse um trabalho a valer?
Atrás dos mercadores seguiam os escravos, primeiro os homens e depois um grupo castanho, de mulheres, encostadas umas às outras. Dois guardas, armados de chicotes, obrigavam-nos a andar mais depressa. Não havia dúvidas quanto ao escravo que Roch desejava. Era o mais alto de todos, de olhar assassino, ombros largos e uma terrível cicatriz na face. "Para que queria Roch um bruto destes?, pensou o rapaz." De qualquer modo era uma tarefa fácil. Apenas oito homens. Olhou para Joel e voltou a sorrir. Ao ouvirem o sinal saltaram ambos.
E foi como se, de repente, toda a escarpa se animasse. No momento em que pulava, Daniel pôde ver Roch lançar-se sobre o guarda da frente. Rápidos como falcões, os outros homens cairam sobre as presas previamente escolhidas.
Foi fácil. O do turbante colorido tentava puxar a adaga quando Daniel lhe agarrou o braço e, torcendo-lho para trás das costas, lhe tirou a arma dos dedos gordos e moles, encostando-a ao rolo de gordura que cobria as costelas do homem. Viu-lhe o rosto anafado, os olhos cheios de terror, a pele oleosa, os lábios grossos tremendo; sentiu-se aborrecido. Isto não era uma luta a sério. Mas tinha que cumprir ordens e deixou-se ficar com a adaga pronta para o que desse e viesse. À sua volta travou-se uma luta breve e eficiente, algumas pancadas, um ou outro gemido, um grito de camelo, tudo isto no meio de nuvens de poeira. Depois o silêncio e os gritos familiares de Roch dando ordens. A luta acabara. Guardou a adaga, libertou o braço do homem e ficou atrás dele, à espera.
A caravana começou a reunir-se lentamente e pôs-se a caminho. Gratos, por terem escapado apenas com o prejuízo de um escravo, os mercadores nem pensavam em discutir. Quando desapareceram do alcance da vista, Daniel reparou no que se passava à sua volta. Um dos homens de Roch estava caído no meio do caminho, com as pernas feridas, um outro escorria sangue de um braço. Ninguém mais parecia ter ficado magoado.
Joel estava de pé, esfregando um ombro.
- Foi só isto? - perguntou.
Daniel atravessou o caminho, chegou junto dele e puxou-lhe a túnica, deixando o ombro a descoberto. Tinha uma marca que começava já a escurecer e a inchar.
- Quem te fez isto? - perguntou. Joel corou. - Queria agarrar o outro braço do teu homem - respondeu.- Mas aquela danada mula.
Ouviu-se um coro de gargalhadas.
- Seja como for, temos o escravo - acrescentou Joel, parecendo ridiculamente contente consigo próprio.
O motivo de todo este barulho continuava parado no meio do caminho. Era um homem enorme, coberto apenas com uma pequena tanga, e com a pele negra das costas marcada por feridas vermelhas e suja de poeira. Daniel, com os conhecimentos que tinha de ferreiro, verificou, num relance, que as correntes que lhe amarravam os pulsos e os tornozelos eram reforçadas. o escravo continuava de pé, como um animal de pedra, indiferente ao facto de que toda essa luta se destinara a libertá-lo, indiferente à ideia de ter mudado de dono. E de novo Daniel pôs em dúvida a escolha que Roch fizera. Aquela presa era forte, não havia dúvida. Os seus braços enormes podiam esmagar as costelas de um homem com a mesma facilidade com que uma criança quebraria uma vara. Mas o rosto impassível, desfigurado pela cicatriz lívida, não dava o mais pequeno sinal de entendimento; havia nele apenas a tensão do animal preparado para lutar.
Roch aproximou-se. Atarracado e forte, o pescoço musculoso e curto e a cabeça, grisalha, pareciam nascer directamente dos ombros fortes. Por debaixo das sobrancelhas espessas, os olhos pequenos e pretos observavam Joel, não com surpresa, porque Roch nunca se permitia ficar surpreendido, mas com uma tal hostilidade que Daniel deu um passo em frente e falou primeiro.
- Temos um novo recruta, Roch.
Roch, de braços cruzados, observou o rapaz.
- Fala - gritou. - Quem és tu?
Estava habituado a ver os homens curvarem-se, adulando-o. Joel não se curvou e, apesar de se sentir incapaz de falar, o brilho de puro heroísmo que lhe iluminava o olhar deve ter sido suficiente para atenuar as desconfianças do chefe.
- Joel bar Hezron - conseguiu dizer por fim.
- O teu pai sabe que estás aqui?
- Não, senhor.
- Estás em apuros, é isso?
- Não.
- Então o que queres de mim?
Joel manteve-se firme.
- Queria vê-lo - respondeu - porque todos dizem que acabará por expulsar os Romanos da nossa terra. E, quando isso acontecer, quero estar a seu lado.
Os dentes de Roch brilharam por entre a barba espessa e negra. E quando a sua pesada mão caíu sobre o ombro magoado, Daniel viu as lágrimas aflorarem aos olhos de Joel; mas o rapaz não fraquejou.
- Bem dito! - gritou Roch - Todo aquele que odiar os Romanos é bem recebido aqui.
- Não vim para ficar - explicou Joel, sentindo-se infeliz. - Eu bem gostava, mas agora não posso. Só cá vim passar o feriado e trouxe a minha irmã comigo. Dentro de dias mudamo-nos para Cafarnaum.
A aprovação de Roch transformou-se em fúria.
- Não, não te vais embora, depois do que viste - gritou exaltado. - Agora ficas aqui.
Daniel percebeu que o chefe estava tentando amedrontar Joel. Roch tinha a cabeça a prêmio há tanto tempo que, bem pouco lhe importava já o que se pudesse saber na aldeia a seu respeito. Mas Joel não podia saber isto e Daniel sentiu-se orgulhoso ao ver que o rapaz se mantinha firme.
- Vou levar a minha irmã a casa - respondeu. - Mas, se pensa que era capaz de falar, está enganado. Se ficar calado é tudo quanto posso fazer por agora, pode estar descansado que ficarei.
Roch observou o rapaz.
- Tens a certeza de que queres trabalhar para mim?
- Tenho.
- Julgas que sabes como hás-de ter os olhos abertos e a boca fechada?
- Sim.
- Então vai para Cafarnaum. Temos muito tempo. Quando a tua vez chegar, terás notícias minhas.
Roch voltou-se e foi-se embora; tinha resolvido o assunto. De repente Daniel, sem saber porquê, sentiu-se invadido por uma onda de ciúme. Roch não lhe dissera uma palavra, não o olhara uma única vez. Quem capturara o mercador, quem o segurara enquanto os outros agarravam o escravo? Que tinha feito Joel, além de apanhar o coice da mula? E, mais uma vez, desejou nunca ter encontrado o rapaz.
- Que lhes parece? - perguntava Roch aos homens, apontando o escravo negro - É capaz de nos dar trabalho, não?
- Com o ar que tem - murmurou um dos homens - não me admiraria nada que uma manhã acordássemos todos mortos.
- Não é brincadeira - disse outro. - Pode rebentar-nos a cabeça, como quem parte nozes.
Roch continuava a sorrir. Dirigiu-se para o escravo e pousou-lhe a mão no braço, que mais parecia um tronco de árvore. O seu corpo robusto parecia franzino em comparação com o do prisioneiro.
- Não estejas tão triste, homem - gritou. - Não sabes que estás cheio de sorte?
O escravo olhou-o, impassível.
- Percebes o que te estou a dizer? - perguntou Roch impaciente. - Como te chamas?
Nem o mais pequeno sinal de entendimento nas feições de pedra. Alguns homens riram. "Sansão" sugeriu um. "Golias" - sugeriu outro.
- Talvez seja surdo - aventou um terceiro.
- E aposto que também é mudo. A maior parte destes pretos são mudos.
Roch encolheu os ombros.
- Veremos. Se o apanhámos, foi por causa dos músculos e não por causa da língua. Terá tempo de mostrar o que vale.
- Se conseguir entender de que lado deve lutar - resmungou um dos homens.
A boa disposição de Roch desapareceu. Não gostara da graça.
- Eu é que decido - gritou. - Não estou a pedir a opinião de um bando de chacais cobardes. Tragam-no.
Afastou-se dos homens, sem olhar para trás. Ficaram todos parados, observando-se, indecisos, à espera de ver qual seria o primeiro a tomar uma decisão. Sem saber bem porquê, Daniel avançou.
- Tomo eu conta dele - disse, enquanto pegava na corrente que pendia das grilhetas. Cinco dos homens apressaram-se a seguir o chefe. Até o homem que continuava estendido no meio do caminho se levantou ràpidamente. Dois ficaram ainda parados, um tanto relutantes, procurando aumentar a distância que os separava de Daniel.
Este olhou para Joel. Com a corrente do escravo na mão, sentiu que tinha readquirido o prestígio.
Nada mais havia a dizer agora. Tudo tinha acabado. Os olhos de ambos encontraram-se numa saudação breve e foi como se entre eles alguma coisa tivesse surgido, uma espécie de compreensão muda que era, simultâneamente, um adeus e um princípio.
O escravo avançava devagar e Daniel viu-se forçado a reprimir a impaciência ao ver como era difícil andar com aquelas correntes. Ao chegar à primeira curva do caminho olhou para trás. Joel continuava parado. Depois viu Malthace, descendo do rochedo numa corrida ágil e graciosa com o cabelo negro caindo-lhe solto pelos ombros. Tomou então consciência daquilo em que nunca pensara durante todos os anos em que vivera na montanha: aquele cabelo solto, caindo pelas costas, limpo, vivo e brilhante, enquadrando um rosto macio. Ficou parado vendo-a correr para junto do irmão, depois voltou-se para a montanha. Abandonou a vereda e desviou-se para a direita para seguir um carreiro entre as rochas. A imagem graciosa da rapariga fez-lhe recordar a sua própria irmã, e esta recordação doeu-lhe como uma ferida.
Estava já arrependido do impulso que o levara a tomar conta do escravo. Sabia porque tomara tal atitude. Não passara de um desafio, uma necessidade de se evidenciar, uma vez que notara que Joel tinha caído nas boas graças de Roch. Agora, que tinha de subir a montanha agarrado àquele animal acorrentado, via como fora infantil. Os dois homens, que se tinham deixado ficar para trás, irritados com a lentidão da marcha, abandonaram os gracejos e começaram a rogar pragas ao prisioneiro. Assim que o sol se pôs e a escuridão aumentou, a caminhada tornou-se ainda mais difícil. E foi como se saissem de um pesadelo quando, por fim, sentiram o cheiro da carne assada, ouviram o som de vozes e chegaram junto da fogueira, acesa à entrada da caverna, iluminando o círculo de homens sentados em redor. A refeição estava quase no fim e Daniel e os dois companheiros precipitaram-se para receber a sua parte. Ninguém prestou a mais pequena atenção ao escravo por quem, horas antes, haviam arriscado a vida. Daniel ficou indeciso, agarrado ainda à corrente.
Roch, com um osso gordurento de carneiro na mão, acenou na direcção de Daniel.
- Enche a barriga a esse Sansão - gritou. - A partir desta noite tem tanto direito como nós. Uma explosão de gargalhadas aplaudiu o dito, mas ninguém se mexeu. Daniel percebeu que, durante a sua ausência, tudo fora já combinado. Tinham-lhe posto o nome de Sansão e, fosse qual fosse o seu verdadeiro nome, ficaria Sansão para sempre. E se Daniel tinha sido promovido a guarda do escravo a si próprio se podia censurar.
Dirigiu-se para o interior da caverna, onde estavam os odres de pele de cabra cheios de água e, depois de beber, levou uma cabaça cheia para o escravo. Mas como pouco mais levava que dois goles de líquido Daniel teve que ir encbê-la mais duas vezes. Deu-lhe, depois, uma enorme fatia de carneiro. O preto arrancou-lhe a comida das mãos e começou a comer com tal ferocidade que o rapaz se sentiu agoniado. Cortou duas fatias de pão de cevada e pô-las ao alcance do escravo. Encaminhou-se depois para o outro lado da fogueira e sentou-se longe dos outros. Já não lhe apetecia comer.
Roch não o deixou descansar durante muito tempo.
- De que estás à espera? - berrou-lhe o chefe - Vá, tens que tirar aquelas correntes.
- Esta noite? - Daniel sobressaltou-se. Ao redor da fogueira subiram os protestos dos homens.
- Deixa-o ficar com as correntes!
- Ele nem dá por isso.
- Verás que dá; espera até veres como nos esmaga as cabeças!
- Calados! - berrou Roch - Que raio de patriotas são vocês? Não temos escravos na montanha. Metam bem isto na cabeça: este homem é dos nossos. Vou pôr sentinelas a dobrar para que vocês, seus corações de pombas, durmam sossegados. Mas o homem há-de dormir livre.
Daniel suspirou e levantou-se. De qualquer maneira era um trabalho que lhe competia fazer, uma vez que sabia de ferreiro. Já não era a primeira vez que tirava correntes. Dois dos homens que estavam, agora, sentados à volta da fogueira tinham fugido das minas romanas. Foi buscar o escopro, o malho e uma lima forte.
O escravo, depois de comer, ficou agachado a um canto, encolhido numa espécie de modorra. Quando o rapaz lhe fez sinal para estender os braços, olhou-o estupidamente. Pareceu compreender, lentamente, o que queriam dele. Levantou os braços e deixou que Daniel lhe apoiasse os pulsos algemados em cima de uma rocha. O trabalho começou. Sabia que lhe ocuparia metade da noite.
Roch foi para a caverna e acomodou-se entre as peles de animais. Muitos dos homens ficaram onde estavam, deitaram a cabeça em cima dos mantos e adormeceram. A sentinela, que esperava ser rendida antes de o escravo estar solto, sentou-se a observar o trabalho de Daniel. Limitava-se a atear a fogueira, de vez em quando, para que houvesse luz suficiente, mas não tinha a mais pequena intenção de ajudar o rapaz.
As costas de Daniel começaram a doer-lhe. O ruído constante da lima, que entrava com dificuldade na espessura dupla do metal, dava-lhe cabo dos nervos. Depois de um tempo interminável, o primeiro elo da corrente rebentou. O escravo não se mexeu. A sentinela, aborrecida, andava à volta da fogueira, procurando nas cinzas restos de comida. Para se manter acordado Daniel começou a falar, mas não obteve resposta.
- Sei que isto te custa - dizia. - Mas para mim também não é fácil. Roch tinha razão em te querer libertar das correntes, mas se fosse ele que tivesse de fazer o trabalho, aposto que esperava para amanhã. Mas uma ordem de Roch tem de se cumprir e poderás ficar solto esta noite.
Os olhos negros, na meia escuridão, pareciam pequenas pedras de basalto polido.
- Não sabes o que te aconteceu, pois não? - perguntava Daniel - Tens que agradecer a Roch o não ires agora a caminho das galés. Nem sequer sabes o que são galés. Mas que conheces o chicote, isso vejo eu. Pronto, acabou-se. A vida na caverna não é fácil, mas não há correntes nem chicotes. Estás livre.
O escravo não deu sinal de ter ouvido ou percebido mas Daniel continuava, como se pensasse em voz alta, cobrindo o ruído da lima com o som da sua própria voz.
- Roch é o melhor chefe que podias encontrar. Gosta de aparentar que é descuidado, mas nos últimos tempos não deixa nada ao acaso, nem a mais pequena coisa. Parece que tem olhos nas costas. É por isso que tem tido tanta sorte e que o nosso bando está cada vez mais forte, enquanto os outros acabam ou são presos. E não tem medo de nada, de nada. Ri-se dos Romanos.
- Chegam constantemente mais homens para se nos juntarem. Há-de vir o dia em que serão suficientes. Roch só lhes pede uma coisa, que odeiem os Romanos e que estejam prontos a lutar até que o último Romano seja expulso de Israel. Só vivemos para isso. Roch sabe que não vai ter muita sorte contigo. Todo o homem a quem puseram grilhetas nos pulsos, prefere morrer a ser acorrentado de novo. Percebes o que te estou a dizer, Sansão? Bem vejo que não. Mas muito em breve te hei-de mostrar uma coisa que poderás entender.
A fogueira estava quase apagada e a noite no fim quando a última das quatro correntes de ferro ficou pronta a ser cortada. Daniel assobiou para avisar a sentinela, que correu, nervosa, a acordar os dois companheiros. Ficaram os três, tensos, de armas na mão.
O rapaz bateu com o escopro e o martelo. As correntes caíram com um ruído que acordou metade do campo. Depois afastou-se. O escravo continuava ajoelhado, olhando as mãos, sem se mexer. Por fim Daniel inclinou-se e tocou-lhe num ombro. O homem ergueu-se, desperto, e lançou-se sobre Daniel. Por momentos o rapaz sentiu um terror intenso, quando os braços fortíssimos se ergueram lentamente para, depois, voltarem a cair, enquanto o peito se expandia num suspiro profundo. Num gesto incrivelmente rápido o preto ajoelhou-se e, antes que o rapaz se pudesse mexer, agarrou-lhe num dos pés e colocou-o sobre a própria cabeça.
Daniel tirou o pé.
- Levanta-te! - ordenou-lhe - Foi Roch quem te libertou. - E como o escravo continuasse imóvel, Daniel afastou-se. - Está feito - disse, procurando esconder dos guardas, que se sentia embaraçado. - Era capaz de ficar a dormir uma semana inteira.
Pegou na manta de pele de cabrito, embrulhou-se nela e deitou-se junto da fogueira. Sansão seguiu-o, cambaleando, e anichou-se-lhe aos pés. Furioso, levantou-se, foi à caverna buscar outra manta, pô-la sobre os ombros nus do homem e deitou-se outra vez. Puxou a manta para cima da cabeça e adormeceu. Estava cansado de mais para saber o motivo por que deixara de ter medo.
Capítulo 3
Sob o sol do meio-dia as rochas queimavam as mãos. O ar, que subia da forja, escaldava. Quando Daniel se inclinou para atiçar a massa vermelha do minério, o fumo queimou-lhe as narinas. Olhou de relance para Sansão que passara toda a manhã, sem descanso, a dar ao fole. De onde quer que aquele escravo tivesse vindo, era provável que estivesse habituado a suportar os ardores do sol. Daniel fizera já o seu trabalho. Podia deixar agora a massa informe de ferro até que arrefecesse o suficiente para poder ser cortada aos bocados.
Pegou num cantil de pele de cabra, destapou-o, bebeu um gole de água quente e molhou o queixo e o peito. Estendeu o cantil a Sansão. Depois de quatro semanas no acampamento, o negro ainda não se servia a si próprio de nada. Era Daniel quem tinha de se lembrar constantemente que ele podia ter fome ou sede. Agora, ao vê-lo beber, Daniel pensou que o escravo ganhara, e bem, aquela água. Tinham o dobro de água no acampamento desde que Sansão ajudava a ir buscá-la.
Saberia o homem que era livre? Raramente dava um passo sem que Daniel lho ordenasse. Roch acabara por se aborrecer do preto. Estava habituado a ver os homens correrem mal dava uma ordem mas, por mais que berrasse e gritasse, o gigante ficava imóvel. Exasperado, sem saber ao certo se ele era de facto completamente estúpido ou apenas desconfiado, o chefe achara melhor entregá-lo definitivamente a Daniel. Durante todo o dia Sansão seguia o rapaz como uma sombra e, à noite, dormia tão chegado a ele que Daniel mal podia estender as pernas sem lhe tocar. Era como estar preso a uma rocha enorme que tivesse que arrastar consigo para onde quer que fosse.
Tinha que admitir que o seu trabalho diminuíra. Nunca havia falta de lenha para o fogo e, com Sansão a ajudar ao fole em vez de Joktan, o esquelético garoto de doze anos, podia ter sempre a forja em condições. Também os outros homens beneficiavam dos músculos do escravo. Voltavam-se para Daniel como se lhe pedissem emprestado um martelo ou um machado. Um bloco de minério que cinco homens empurravam com dificuldade podia ser transportado por Sansão com a mesma facilidade com que uma criança pegaria num seixo. Toda a parte oriental do acampamento fora fortificada durante as duas últimas semanas. O próprio Roch tinha que admitir que Sansão ganhava bem o que comia. Mas os homens ainda o odiavam, ainda o temiam e faziam dele o bode expiatório de todas as suas brincadeiras. E esta era uma das razões por que Daniel se ressentia tanto do seu fardo. Sentia-se, mais do que nunca, posto à margem dos outros, porque as partidas pregadas a Sansão incluíam-no também a ele.
Sansão seria surdo? Algumas vezes parecia-lhe que o negro percebia muito mais do que supunham e chegou mesmo a cometer o erro de afirmá-lo.
O único resultado foi fazer com que os homens se encarniçassem cruelmente contra ele fazendo toda a espécie de experiências para ver se o desmascaravam. Acabaram por se cansar ao ver a sua impassibilidade mas não conseguiram convencer Daniel.
Seria mudo? Os sons que, de vez em quando, deixava escapar, seriam sem sentido ou fragmentos de uma linguagem que não conseguia articular? De onde teria vindo? Que pensamentos esconderia aquela face impenetrável? Que recordações teria? Às vezes Daniel odiava-o com um ressentimento surdo. De outras como agora, que Sansão pousara o cantil, passava a mão enorme pela boca e olhava para Daniel com uma expressão infantil, o rapaz, mesmo sem querer, gostava dele.
Dirigiram-se para a gruta. Da provisão de vegetais crús, couves, pepinos e cebolas, roubados nas quintas do vale, Daniel tirou uma parte para si e outra para Sansão. Depois deitaram-se na caverna sombria e fresca e adormeceram.
Daniel acordou aos gritos de Roch, que chamava por ele. Saíu ainda meio adormecido, cego pela luz do dia. Ebol, a sentinela, chegara ao acampamento com um homem amarrado e vendado.
- Vem cá, Daniel - berrou Roch. - Este amigo diz que anda à tua procura. Conhece-lo?
O rapaz aproximou-se e observou o jovem de barba negra. De pé, ainda amarrado e com a venda posta, permanecia no meio do grupo desconfiado dos salteadores, com aquela confiança calma de quem nada tem para esconder.
- Este é que é o Daniel? - perguntou com voz profunda - A paz seja contigo, amigo. Há muito que não nos encontrávamos.
Daniel aproximou-se mais.
- Simão? - perguntou ainda incerto. Era difícil relacionar a recordação que tinha, de um aprendiz esfarrapado, com este homem alto e vigoroso. - Joel deu-te o meu recado?
- Sim, fiquei contente. Não podes imaginar quantas vezes perguntei a mim próprio o que seria feito de ti.
- Então sempre é verdade que o conheces? - Roch estava admirado, mas fez sinal aos homens para que o libertassem. - Não podes dizer que o rapaz não tenha sido bem tratado - disse afavelmente.
Assim que lhe tiraram a venda, Simão olhou para Daniel com uma expressão divertida ao ver que o rapaz era mais alto do que ele.
- Lá que cresceu, é verdade - admitiu. - E também nunca esperei que ficasse tão forte.
- É da forja - respondeu Daniel envaidecido. - Joel contou-te que continuei a trabalhar no ofício? Hei-de mostrar-te.
- Mais tarde - respondeu Simão.- Preciso primeiro de beber, se tiverem água. Apanha-se um calor para chegar até aqui!
Daniel apressou-se a ir buscar a água mais fresca que podia encontrar. O chefe deixou-os e os outros homens afastaram-se um pouco, como se fossem trabalhar nas ocupações habituais, mas procurando não perder uma palavra da conversa. Daniel sentia-se feliz e cheio de importância. Nunca lhe acontecera uma coisa assim.
- Como é que sabias onde eu estava? - perguntou.
- Pensei que assim que subisse à montanha, teria logo companhia...
- Mas podias ter sido maltratado.
- Não - respondeu Simão, que parecia muito confiante.
Daniel mostrou-lhe a forja. Sabia que tinha motivos para se sentir orgulhoso, mas ficou satisfeito ao ver a surpresa de Simão. Tinha descoberto, logo no primeiro ano que passara na montanha, alguns sítios onde o solo estava cheio de minério de ferro. Aprendera pouco a pouco a fundi-lo, construíra um forno encostado a uma parede rochosa, rodeara-o de barro e fizera um fole primítivo com peles de cabra.
- Está muito bem - disse Simão, observando a massa de ferro que estava a esfriar. - Já não me admira que tenhas músculos.
- Sansão ajuda-me - disse Daniel, indicando o gigante que continuava sentado à entrada da caverna.
Simão quase deu um salto.
- Pelas barbas de Moisés! Onde foram arranjar aquele gigante?
- Fugiu de uma caravana - respondeu Daniel. - Não sabemos de onde veio.
- Ah. - Olhou demoradamente para Sansão, depois voltou-se para apreciar a espada que Daniel lhe mostrava, passando os dedos, com ar experiente, pelo fio da lâmina. - Nada má. Mesmo nada má. Amalec ensinou-te bem. Fazes outras coisas além de adagas e espadas?
Daniel hesitou.
- Anzóis, às vezes. Não temos cavalos, nem somos lavradores.
- Percebo - Sentou-se numa pedra, de costas voltadas para os homens que continuavam a observá-los com curiosidade.- És feliz aqui?
- Roch é bom para mim - respondeu o rapaz. - Muito diferente do velho Amalec.
- Sempre quiseste lutar contra os Romanos, não foi?
- Tu também - disse Daniel. - Joel disse-me que te chamavam Simão o Zelota. Tens que conhecer Roch. Se já o tivesses conhecido, já te tinhas juntado a ele - Sentiu-se esperançado. - Foi para isso que vieste cá hoje?
Simão abanou a cabeça.
- Há muito que ouvi falar de Roch - disse. - Sim, é certo que sou o Zelota. Roch e eu trabalhamos para o mesmo fim, mas não da mesma maneira.
- Se o conhecesses bem...
- Talvez. Hoje vim apenas para te ver. Daniel, Amalec morreu há cerca de duas semanas. Se quiseres, podes voltar para a aldeia.
Morto, o velho Amalec! Devia sentir qualquer coisa - prazer? remorsos? pena? Tudo se passara já há muito tempo. E há muito tempo já que deixara também de pensar que podia voltar para a aldeia.
- E o meu contrato? - perguntou - Ainda tinha que cumprir mais quatro anos.
- Não há ninguém. O pobre homem não tinha família nem sequer amigos. Duvido de que alguém se lembre ainda disso.
Tentou imaginar como seria se voltasse. Não sabia se gostaria ou não.
Simão deixou-o pensar durante uns momentos.
- Não queres voltar a ver a tua avó e a tua irmã?
Daniel não respondeu. Sentia-se envergonhado, mas a verdade é que não desejava vê-las.
- Preocuparam-se muito contigo, tal como eu - disse Simão.- Se voltares comigo, não precisas de ficar mais de um ou dois dias. É apenas para saberem que estás bom. Davas-lhes prazer, sabes?
- Roch pode precisar de mim - O rapaz estava enervado e ressentido, tal como ficara quando encontrara Joel. O que iria encontrar na aldeia senão as antigas preocupações que conseguira esquecer na montanha?
Mas, por fim, deixou-se convencer por Simão e pela sua própria curiosidade. Roch gritou e barafustou, mas Simão infundia uma tal confiança que Roch admirava-o. A dificuldade surgiu de onde Daniel menos esperava. Quando se afastavam do acampamento, uma sombra enorme abandonou a entrada da caverna e começou a segui-los. Ao olhar para trás, Daniel viu Sansão quase junto deles.
- Volta para trás, Sansão - ordenou-lhe. - Desta vez tenho que ir sozinho. Chamou Joktan, e o rapazito de cabelo ruivo apareceu imediatamente.
- Não te esqueças de lhe dar de comer - disse ao rapaz.
Joktan cerrou os lábios, amuado e desconfiado.
- Ele não te faz mal - avisou Daniel. - É só por um dia, Jok. Quando voltar, faço o teu trabalho.
Joktan concordou de mau modo.
- E se alguém lhe fizer mal, tem que se haver comigo, depois.
Mas, assim que recomeçaram a andar, Sansão continuou a segui-los.
- Não! - gritou Daniel já zangado e abanando os braços. Sansão olhou-o inexpressivamente (ou com uma expressão que Daniel não desejava ver?)
- Não podes vir comigo - disse o rapaz. - Espera. Eu volto - Voltou-se e foi atrás de Simão. Na primeira curva olhou para trás. Sansão ficara no cimo do caminho olhando para baixo. Não se mexeu, Daniel acenou-lhe um adeus rápido e continuou a descer.
Enquanto caminhavam, começou a tentar persuadir Simão.
- Se és o Zelota, se trabalhas para o mesmo fim de Roch, porque não te juntas a ele?
- Quando chegar a ocasião - respondeu Simão. Quando vier o homem que nos há-de guiar, então juntar-nos-emos todos. Entretanto, e como já te disse, Roch e eu não fazemos as coisas da mesma maneira. Para começar, prefiro ganhar o pão que como.
Insultar Roch era como bater em Daniel.
- Um guerreiro não ganha o pão que come? perguntou exaltado - Roch daria a vida por Israel. Porque hão-de os lavradores lamentar as migalhas que ele lhes tira? Devem-lhe muito mais do que aquilo que lhes rouba.
- Talvez - respondeu Simão suavemente. Não te queria aborrecer, amigo. Serão necessários guerreiros. Mas um bom ferreiro é sempre preciso.
Daniel ficou calado. Abandonaram o caminho pedregoso e entraram na estrada ladeada de pastagens verdes que levava à aldeia. Chegaram a um pequeno vau que atravessava o riacho que descia da montanha e se abria num pequeno lago cheio de seixos - onde cresciam fetos e moitas de aloendros cor-de-rosa e de íris vermelhos. Simão parou e observou o local com atenção.
- Parece-me que tem de ser - disse. Começou a tirar o turbante. Daniel estava admirado e confuso.
- Temos que tomar banho aqui - explicou o outro. - Quando chegarmos à aldeia será muito tarde.
- Muito tarde?
- Sim, só chegaremos depois de o sol se pôr e o sábado já terá começado.
Daniel corou. Como podia ele saber quando era sábado? Teria Simão notado que, na caverna, todos os dias eram iguais? Simão, sem olhar para ele, tirava o manto e pendurava-o, cuidadosamente, num arbusto. Aos olhos de Daniel, Simão não precisava de tomar banho. Reparou nos seus próprios braços, sujos de poeira e suor. Se Simão tivesse dito qualquer palavra a esse respeito, Daniel teria desistido imediatamente da visita à aldeia. Mas, depois de um momento de indecisão, meteu-se por entre os fetos, tirou a túnica e entrou na lagoa. A sensação da água, depois de semanas em que apenas se pudera refrescar com umas gotas medidas e contadas, foi-lhe agradável. Esfregou as mãos e os pés com areia. Depois ajoelhou e mergulhou. Quando saíu, escorrendo água, já Simão estava vestido, sentado numa pedra e sorrindo para ele. Daniel sorriu também.
Quando chegaram à aldeia soava a nota clara e aguda do primeiro apelo para o sábado, indicando aos trabalhadores que deviam abandonar os campos. Nada mudara naqueles cinco anos, a não ser que, para o rapaz, tudo parecia mais pequeno, as ruas mais estreitas e sujas, os pátios mais acanhados e desalinhados. Havia poucas casas novas, com as paredes de adobes ainda frescos e com os telhados de colmo ainda verdes. Tentou recordar-se de quem vivia nesta ou naquela casa. Passaram pela loja de Amalec, tão abandonada e em ruínas que ninguém se lembraria de a restaurar. Atravessaram o largo deserto e a fonte onde estavam quatro burros velhos a que os donos davam de beber, à pressa. Entraram numa rua escura e estreita, no fim da qual ficava a pequena casa de que tanto se lembrara, com as paredes de barro negras e estragadas e o telhado desconjuntado. Simão parou.
- Deixo-te aqui - disse. - É melhor ires sozinho.
Daniel olhou para a casa e sentiu-se apreensivo.
- Como é que...
- Estão à tua espera. Disse-lhes que vinhas.
Daniel olhou-o de relance. Como poderia Simão ter tido a certeza de que ele viria? O outro sorriu-lhe numa tentativa para lhe dar coragem e afastou-se. O rapaz ficou só, ressentido, cheio de pânico e, no momento em que hesitava, a porta abriu-se e uma velha, muito velha, apareceu na soleira.
Como estava curvada e magra!
- Daniel? - Esta voz quebrada era a voz da sua avó?
- És tu, Daniel?
- Sim, Avó - balbuciou o rapaz. - A paz seja contigo.
Ao dizer estas palavras ouviu o segundo sinal do Sábado ecoar sobre a aldeia.
- Meu filho! Já era tempo de voltares para casa! - Os olhos, baços e enevoados, abriam-se avidamente para ele. As mãos agarravam-no.
À entrada da porta hesitou, mas a recordação da infância foi mais forte e, sem mesmo saber o que fazia, estendeu a mão e tocou com os dedos no mezuzah, o pequeno nicho na moldura da porta que continha os versículos sagrados do Chema. Só depois atravessou a soleira.
O quarto parecia vazio. Numa das traves estava pendurada uma lamparina de óleo. No chão, a esteira com os pratos para a ceia e o candelabro do Sábado. Olhou para tudo como num sonho.
- Vem, Lia - chamou a avó. - Não deves trabalhar depois do segundo sinal. Vem e dá as boas-vindas ao teu irmão.
Foi então que viu a rapariga, sentada num canto, atrás do tear, com o longo cabelo loiro caído para os ombros.
Ficou calado. Lembrava-se de uma rapariguinha. Tinha na sua frente uma jovem, quase uma mulher, e bonita.
- Lia - insistiu a avó. - É Daniel que volta para casa depois de todos estes anos.
O rapaz humedeceu os lábios com a língua.
- Paz, Lia. A rapariga levantou a cabeça do trabalho e então ele pôde ver-lhe os olhos claros e azuis. O medo que neles viu doeu-lhe como uma chicotada.
- Não te preocupes - disse-lhe a velha. - Daqui a pouco já está habituada a ti. Tem vergonha. Lia, traz água para o teu irmão. Então que maneiras são essas?
A rapariga não se mexeu. Daniel ficou à espera. Sentia-se mal.
- Lia - murmurou hesitante. - Não me conheces? - Continuou a insistir - Não te lembras de que me trazias, sempre, água quando eu vinha a casa?
A jovem voltou a erguer a cabeça. Lentamente, as recordações afloravam-lhe ao espírito.
- És, na verdade, Daniel? - A voz era baixa e trémula - Estiveste tanto tempo longe de nós.
- Por favor, Lia, traz-me água.
Levantou-se, submissa, dirigiu-se para o jarro de barro colocado junto à porta e encheu de água uma tigela. Os gestos eram suaves e graciosos. Mas as mãos tremiam-lhe tanto que a água escorria da tigela. Daniel pegou-lhe, desajeitadamente e inclinou-se para lavar os pés. De que estava à espera? Tudo continuava tal como era há cinco anos. Não; vendo bem, era ainda pior. Lia estava já com 15 anos e tinha no olhar o mesmo terror.
O último sinal soou claramente, anunciando o início do Sábado. A avó acendeu um pavio na chama da lamparina e foi acender com ele o candelabro de Sábado.
- Diz a oração de graças, Daniel. É ao homem que pertence dizê-la.
O rapaz, hesitou, depois, lentamente, começou:
- Louvado sejas, ó Senhor nosso Deus, Rei do Universo, que nos santificaste com os teus mandamentos e nos ordenaste que acendêssemos a luz do Sábado.
Sentaram-se, à volta da esteira, no chão sujo e áspero e, de novo, a avó olhou para ele à espera. Há muito tempo, durante os primeiros meses passados na caverna, dizia uma oração silenciosa sempre que se sentava para comer. Recordava-a bem. "Graças Te sejam dadas, ó Senhor nosso Deus, que nos dás o sustento de cada dia."
Havia muito pouco que agradecer a Deus, uma sopa de lentilhas aguada e um pedaço de pão de cevada do mais inferior. Reparou que nem a avó nem a irmã comiam; limitavam-se a observá-lo, seguindo com os olhos cada pedaço que metia na boca.
- Não comem comigo? - perguntou.
- Já comemos - respondeu a avó. Mas Lia foi mais honesta. - A avó disse que devíamos deixar a comida para ti - explicou, num tom de voz infantil.- A avó disse que tu devias estar cheio de fome.
Daniel perdeu o apetite.
- Mas têm de comer comigo - insistiu, empurrando a tigela para junto da irmã.
Olhando amedrontada para a anciã, a jovem tirou um pedaço de pão e molhou-o na sopa. - Daniel viu-lhe as veias azuis da mão sob a pele delicada e o pulso tão frágil como a patinha de uma ave.
Onde iam arranjar a comida? Pensou como havia de fazer a pergunta.
- É um bom pão. Cultivam o grão?
- É a parte do pobre - respondeu a velha rapidamente. Desejou não ter perguntado nada. Desagradou-lhe a ideia de saber a avó no campo, atrás dos ceifeiros, apanhando os grãos que deixavam cair e que por lei pertenciam aos pobres.
Acabada a refeição ficaram sentados em silêncio. A avó não fez quaisquer perguntas: o queixo pendia sobre o peito e cabeceava sonolenta. Supôs que a velha devia trabalhar ainda nos campos de ketzah, planta de que a aldeia tomara o nome. Curvada o dia inteiro, semeava, cuidava das plantas e, quando as flores azuis caíam, apanhava-as, juntava-as dentro de um pano, tirava-lhes as pequenas sementes, tão picantes que eram vendidas como especiarias para a comida.
Olhou à sua volta. A parede de barro, que dividia outrora o quarto, estava em ruínas e não existia agora senão uma espécie de plataforma onde, com dificuldade, havia espaço para dormir. Num buraco cavado no chão estavam as cinzas frias de um fogo apagado. A mobília consistia num desmantelado baú de madeira e na esteira onde estava sentado.
Assim que escureceu ouviu um pequeno ruído junto à porta. A avó levantou-se e deixou entrar uma pequena cabra preta. O animalzinho foi direito a Lia, que lhe estendeu os braços. A cabra aninhou-se junto da rapariga e preparou-se para dormir com o focinho encostado ao colo da dona. Lia passava-lhe as mãos por entre o pêlo negro e falava-lhe baixinho num murmúrio suave que lembrava o arrulhar das pombas no telhado. Daniel sentiu-se, por momentos, mais à vontade. "Parece-se com a mãe", pensou. Depois começou a prestar atenção ao que a irmã dizia.
- Não deves ter medo dele. É o nosso irmão Daniel que veio para casa. Quando te ordenhar, deves ser boa e ficar quieta. Vê como é grande e forte. Vai tomar conta de nós e defender-nos.
Daniel teve medo. Desviou o olhar, tentando esquecer a imagem da irmã com o cabelo loiro brilhando à luz da lâmpada e procurando não ouvir o murmúrio da sua voz. Tudo por quanto lutara até então, deixava de ter interesse ao ver aquela figurinha indefesa.
Sentia cãibras nos braços e nas pernas. O quarto, pequeno e sem ar, parecia ter guardado todo o calor do dia. O fumo da lamparina de óleo enchia o ar de um cheiro a ranço. Tinha a cabeça pesada e recordava com saudade o vento da tarde que fazia estremecer as ramadas junto à caverna. Viu, com alívio, a avó ir buscar as esteiras a um dos nichos da parede.
- Arranjei-te o teu velho lugar, no telhado - disse a velha.
Daniel pegou no rolo de esteiras usadas, deu-lhe as boas noites, atravessou a porta e subiu a escada vacilante, encostada à parede exterior, e que levava ao telhado. Aí havia um pouco mais de frescura.
O calor abafava a aldeia como uma manta sufocante. Sentou-se, rodeou os joelhos com os braços e ficou a pensar.
Porque viera? Estava ansioso por se ver longe de tudo isto. Tinha fome. Na montanha os homens deviam estar agora sentados à volta do fogo, depois de terem ceado carneiro e uvas roubadas. Riam e contavam uns aos outros as suas façanhas. Depois estender-se-iam debaixo das mantas e adormeceriam com os pulmões cheios do ar limpo da roontanha. As estrelas seriam tão nítidas que parecia que bastava estender as mãos para lhes tocar. Joktan teria dado de comer a Sansão? Perguntou a si próprio quanto tempo teria ficado o homem parado no cimo do caminho. Estendeu-se no chão, de rosto para baixo, com a cabeça escondida entre os braços, e teve vontade de chorar com saudades.
Capítulo 4
Era uma manhã de sábado muito calma. Não se ouvia nem o ruído de uma pedra de amolar nem o som de uma voz. Dos fornos de barro não subia sequer um penacho de fumo. Nem uma mulher passava para a fonte. Quando Daniel desceu e entrou, em casa, já tinha o pequeno almoço à espera, um punhado de azeitonas e um pedaço de pão seco. A cabrinha vagueava no pequeno cercado atrás da casa.
Era ainda muito cedo e perguntava a si próprio como poderia suportar tudo aquilo mais tempo, quando Simão apareceu. Lia, assim que o ouviu bater à porta escondeu-se a um canto. Daniel saíu imediatamente e fechou a porta com cuidado.
- Vou agora à sinagoga - disse Simão. - Gostava que viesses comigo.
O rapaz hesitou.
- Não vou à sinagoga há cinco anos - explicou. - Um Sábado a mais ou a menos não fará diferença.
- Pelo contrário - respondeu, a sorrir, Simão. - Nunca é tarde.
Os lábios de Daniel cerraram-se. Abaixou-se, apanhou uma pedra e atirou-a ao pequeno lagarto verde que saíra duma das fendas debaixo da casa.
Simão franziu as sobrancelhas. Provavelniente seria contra a lei atirar pedras durante o Sábado.
- Há um homem que gostava que visses - disse-lhe Simão. - Parece que vem à nossa sinagoga hoje de manhã.
Daniel olhou-o de relance. Por detrás das palavras pressentira uma ideia determinada.
- Que espécie de homem?
- Não sei ao certo - respondeu Simão. - Vem de Nazaré.
- Mais um motivo para eu não ir - murmurou Daniel. Simão, apesar de silencioso, continuava a fazer pressão para o convencer.- É um Patriota?
- Pode ser que seja. Se vieres, logo vês.
- Com estas roupas?
- Trouxe-te uma túnica e umas sandálias. Olhou para o amigo. Se Simão, tão cumpridor da lei, tinha carregado com um fardo num dia de Sábado apenas para que ele, Daniel, pudesse ver esse homem, é porque considerava o assunto muito importante. Pegou na túnica e entrou em casa. A avó estava de novo a cabecear a um canto. Ergueu a cabeça e murmurou o nome do pai do rapaz. Lia avançou timidamente e inclinou-se para atar a sandália de couro.
- Vais comigo? - perguntou ele impensadamente mas arrependeu-se ao ver o olhar de terror da irmã. - Não tem importância; não era isto o que eu queria dizer - e afastou-se da rapariga.
Simão, mal o viu, olhou-o com aprovação.
- O que te parece estar em casa? - perguntou.
- Chamas a isto casa? - explodiu Daniel - A minha avó passa o tempo a dormir e a minha irmã está possessa dos demónios.
- Não está melhor?
- Antes de eu ir para aprendiz, tinha ela 5 anos, já se escondia naquela casa. Durante todos estes anos nunca chegou a sair.
- Já me tinham dito isso. Os demónios devem ter um poder muito forte sobre ela. Mas é uma boa tecedeira. A tua avó vende os trabalhos dela em Chorazin.
Daniel não prestara muita atenção ao tear que vira num dos cantos da casa mas agora, ao ouvir Simão, sentiu-se envergonhado.
- Quem é esse homem que vamos ver? - perguntou, tentando afastar o pensamento de Lia.
- Jesus, filho de José, um carpinteiro. Abandonou o ofício e anda de cidade em cidade a pregar.
- Pregar? Julguei que tinhas dito que era um Zelota.
- Prega a chegada do reino.
- Já o ouviste?
- Não, mas já o vi. Fui a Nazaré com um amigo que ia arranjar esposa. Quando lá estávamos chegou este carpinteiro para pregar na sinagoga da sua própria terra.
- Calculo... uma cidade como Nazaré! Devem ter ficado orgulhosos.
- Nada disso. Tentaram matá-lo.
Daniel observou ràpidamente o amigo. Sentia-se curioso não tanto pelo que ele dissera, mas pela entoação que dera às palavras. Mas Simão não podia acrescentar mais nada. Estavam a chegar ao pequeno edifício de pedra e cal construído no centro da aldeia e filas de homens e mulheres alinhavam dos dois lados do caminho.
Curvou-se para entrar pela porta baixa. Seguiu encostado à parede, de músculos tensos, consciente da sua altura e dos seus ombros largos, tentando curvar-se e parecer mais pequeno. Mas cedo notou que ninguém se preocupava com ele.
Tinha a certeza de que nunca vira a sinagoga tão cheia de gente. Os homens amontoavam-se nos bancos baixos, com os joelhos quase à boca. Sentavam-se por ordem, segundo os ofícios. Mais perto do púlpito ficavam os mestres dos ofícios, os que trabalhavam na prata, os alfaiates e os que faziam as sandálias. Atrás, os padeiros, os queijeiros e os tintureiros e, ao longo das paredes, onde Daniel e Simão tinham ficado, era o lugar destinado aos ofícios inferiores e aos lavradores. Muitos outros se agrupavam até à porta e vários, como Daniel viu, tinham que ficar na rua porque não cabiam lá dentro. Por detrás da grade, que separava a secção das mulheres, subiam ruídos e murmúrios; isto queria dizer que muitos dos homens ali presentes tinham levado com eles as mulheres.
"Ouve, Israel: o Senhor teu Deus é um só Deus, e amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma e com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças."
As palavras grandiosas do Chema reboavam na sinagoga. Por momentos, Daniel sentiu-se possuído por essas palavras, tal como lhe sucedia na infância.
A longa passagem da Lei era lida, em voz alta, em hebraico e depois traduzida cuidadosamente em aramaico, a língua que o povo falava e compreendia. A atenção de Daniel começou a dispersar-se. Notou o cansaço dos homens, sentados respeitosamente, e a tensão que, subia de momento para momento. Sabiam que, como era costume, seria convidado um rabi de outras terras para ler o Tora. Quando chegou a ocasião, tão esperada, todos os homens se voltaram para observar o desconhecido que se encaminhava para o estrado.
O seu aspecto não era, de forma alguma, impressionante. Era delgado mas com ombros e braços de quem estava habituado a trabalhar desde a infância. Nada tinha de régio nem de dominador. Usava uma simples túnica branca que lhe chegava aos pés. O turbante branco muito rente à testa e prolongando-se para os ombros, escondia-lhe o perfil. Quando se voltou e fez face à congregação, Daniel ficou admirado. Tudo, na sinagoga, deixou de existir para ele menos o rosto daquele homem. Um rosto magro, de feições vincadas. Um rosto vivo, radiante, iluminado por uma intensa luz espiritual.
"Sim! - pensou Daniel, exaltado - Este homem é um lutador! É um dos nossos!"
Jesus recebeu o livro e começou a desenrolá-lo com reverência como se procurasse uma passagem previamente escolhida. Depois ergueu os olhos e falou de improviso.
"O Espírito do Senhor repousou sobre Mim; pelo que Me ungiu para evangelizar os pobres, Me enviou a sarar os contritos do coração, a anunciar aos cativos a redenção e aos cegos a recuperação da vista, a pôr em liberdade os oprimidos, e pregar o ano favorável do Senhor e o dia da retribuição."
Logo às primeiras palavras, Daniel sentiu-se emocionado. Era uma voz suave, baixa, que enchia a sinagoga, uma voz quente, vibrante, com promessas de um poder ilimitado. Era como se apenas uma fracção desta voz estivesse a ser utilizada, como se, uma vez erguida em toda a sua força, pudesse ecoar como um trovão.
Jesus enrolou o livro e deu-o ao ministro. A congregação estava suspensa. E de novo aquela voz:
- Em verdade vos digo, o tempo está cumprido e o reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e acreditai.
Agora! Daniel inclinou-se para a frente. Diz-nos que o momento chegou! Diz-nos o que havemos de fazer! Sentiu crescer dentro de si um desejo intenso, quase insuportável.
Mas Jesus continuava a falar calmamente. A multidão murmurou. Também os outros esperavam as palavras que não tinham sido ditas. O que pretendia aquele homem? Tinha falado em liberdade para os oprimidos. Porque lhes não dissera que pegassem em armas contra o agressor? Arrependei-vos, dizia agora. Arrependei-vos. Como se isso os pudesse livrar dos Romanos. Daniel, desapontado, endireitou-se. O fogo que sentira crescer dentro de si, desapareceu. A voz do homem tinha sido como o apelo de uma trombeta. Mas aonde conduzia esse apelo?
Simão teria compreendido? Daniel ficou ao lado do amigo enquanto a multidão saía da sinagoga.
- Será um Zelota? - perguntou assim que ficaram suficientemente afastados dos outros.
- Que te parece? - perguntou Simão.
- Não sei. Porque tentaram matá-lo em Nazaré?
- Disseram que blasfemava: Ele, filho de um carpinteiro, intitulava-se enviado de Deus! Estavam exaltadíssimos.
- E como conseguiu escapar?
Simão começou a andar mais devagar.
- Não sei bem - respondeu - e no entanto estava lá e vi tudo. Não sei como foi, mas tu sabes o que se passa com as multidões... Corri ao lado deles; agora tenho vergonha de o confessar, mas também tinha um pedra na mão. Empurraram-no para uma colina e queriam-no deitar pelo desfiladeiro abaixo. Mas, quando chegaram mesmo junto ao precipício, recuaram e Ele ficou sozinho, de pé, olhando para a multidão. Não sei o que lhes aconteceu, mas senti-me envergonhado, terrivelmente envergonhado de estar com uma pedra na mão. Depois, voltou a descer a colina e ninguém lhe tocou.
- Não lutou para se defender?
- Não. Nem sequer estava zangado. Estava sem medo. Nunca vi ninguém tão perfeitamente calmo.
Que estranho! Daniel teria apreciado mais a história se o homem tivesse lutado. Ficara, tal como lhe acontecera na sinagoga, um pouco desapontado. Seguiu, ao longo da estrada poeirenta, ao lado de Simão.
- Não posso deixar de pensar no homem - disse por fim. - O que queria ele dizer com aquilo de o dia estar próximo?
Simão continuou a caminhar, com os olhos no chão.
- Não sei - disse lentamente. - Mas hei-de descobrir.
Quando chegaram à encruzilhada, Simão despediu-se.
- Encontramo-nos amanhã. Fica com a túnica. É velha, mas ainda te pode servir. Daniel continuou a caminhar debaixo do sol quente do meio-dia, tentando passar junto das pessoas sem que dessem por ele. Se bem que estivesse consciente da curiosidade com que o olhavam, não tinha pressa de voltar para casa da avó.
O som de uma trombeta agitou, inesperadamente, a calma do Sábado. A paz que o rodeava transformou-se em terror. Todos procuravam, em correrias frenéticas, afastar-se da estrada. Um pouco à frente de Daniel duas mulheres e uma criança corriam desvairadas de um lado para o outro. A mais nova voltou atrás para agarrar a criança e a mais velha seguiu-as. Mal a estrada ficou livre, surgiu um destacamento de cavaleiros romanos. As patas dos cavalos levantavam nuvens de poeira. À retaguarda quatro soldados pararam de repente, empinando os cavalos e mantiveram-se em guarda. Um pouco atrás marchava um destacamento de soldados a pé.
Daniel observava-os paralisado de ódio. Não era o mesmo que vê-los do alto da montanha. Aqui, podia vê-los bem. Nem sequer eram Romanos, mas auxiliares Samaritanos, traidores pagos para lutarem no exército de César. Viu-os passar, um após outro, com as faces brutais e inexpressivas erguidas sempre em frente, sem olharem nem para a direita nem para a esquerda. Se pudesse esmagar aqueles rostos, pelo menos um! Abaixou-se e pegou numa pedra.
- Infiéis - gritou. Uma mão tapou-lhe a boca. Outra agarrou-lhe o braço e torceu-lho para trás. Sentiu-se empurrado de encontro a uma parede, bem seguro, com dois homens na frente; dois homens que estavam entre ele e os soldados que continuavam a marchar. Começou a acalmar. Ficou quieto, sem tentar lutar. Viu que tinham agido tão ràpidamente que nenhum dos soldados dera por nada. O destacamento seguia pela estrada; as botas de tiras entrelaçadas marcavam um ritmo certo.
- Passaram! - disse uma voz - E, graças a Deus, não houve nada.
- Olha, não agradeças a este amigo - disse outra voz.
As mãos que o seguravam soltaram-no.
- Estás doido - gritou-lhe um homem.
- É mais um desses exaltados! - acrescentou outro.
Um dos homens aproximou-se e começou a observá-lo.
- Quem és tu, rapaz? Não és de cá, com certeza.
Daniel olhou para o homem e respondeu mal humorado.
- Sou Daniel bar Jamin.
- O filho de Jamin? Não foi o teu pai que...
- Sim.
- Então já devias saber como é. Queres que nos aconteça o mesmo, a todos nós?
- Desprezo-os! - gritou Daniel- Eu fiz um juramento!
- Guarda o teu juramento para ti - avisou um homem. - Vós, os Zelotas só nos dais trabalhos. Hão-de acabar por fazer com que todas as aldeias da Galileia sejam queimadas e arrasadas, como aconteceu em Seforis.
Daniel sabia que tinha agido como um louco, mas não queria admiti-lo. Afastou-se dos homens e seguiu, aborrecido, pela vereda estreita que o levava a casa da avó.
Ao pôr do Sol o som claro da trombeta anunciou o fim do Sábado. Imediatamente a avó apagou o candelabro de Sábado que estivera aceso desde a sua chegada e embrulhou-o com todo o cuidado para o guardar até à semana seguinte.
Não tinha sono. A longa tarde de inactividade deixara-o cheio de energia. Tinha fome, apesar de saber o sacrifício das duas mulheres que mal tinham tocado na comida. Sentou-se no telhado e sentiu, à sua volta, a aldeia vibrar e agitar-se no escuro, tal como um guisado fervendo dentro de uma panela. Odiou as ruas sufocantes e mal cheirosas, as casas miseráveis, amontoadas umas em cima das outras. Odiou a casa em ruínas, cheia da presença da avó e da voz murmurante de Lia. Aqui, na aldeia, quem se importava com a liberdade?
Até Simão se contentava em esperar e falar, mas nunca agia.
E o homem que ouvira falar na sinagoga, Jesus de Nazaré? Quando começara, parecia que sim, mas, depois, não chegara a dizer nada. Só palavras; nada mais que palavras.
Mas ele, Daniel, conhecia alguém pronto a agir. Roch havia de mostrar a todos como era. Um dia viria em que o exército de Roch seria suficientemente forte e então todos estes tímidos homens da aldeia iriam rastejando pedir para o seguir. E, quando esse dia chegasse também ele, Daniel bar Jamin, lhes mostraria como era. Quando os Romanos fossem vencidos e o último expulso das terras da Galileia, então voltaria. Construiria uma boa casa para a avó e para a irmã, onde houvesse sempre comida e a vida pudesse ser, enfim, agradável. Nunca mais teriam que se afastar da estrada nem falar em voz baixa. Todos poderiam caminhar em liberdade.
Desceu as escadas. Ouviu o som do guizo da cabrinha que se agitava enquanto dormia. Acenou com a mão um leve adeus. Lia ficaria triste quando, ao acordar, desse pela sua falta? Procurou não pensar nisso. Um dia, e seria em breve, voltaria.
Atravessou as ruas estreitas e dirigiu-se para as colinas. Caminhava suavemente, com passos certos e seguros, pela vereda rochosa. Por volta dá meia-noite chegou ao princípio da ladeira que conduzia à caverna. O coração começou-lhe a pulsar de alegria. Quase no fim do caminho, uma sombra escura saíu dos rochedos, destacou-se nítida de encontro ao céu e depois começou, silenciosa, a descer ao seu encontro. Na escuridão podia ver o arco branco dos dentes que brilhavam na face negra.
- Olá, Sansão! - gritou - Voltei.
Chegara-se ao fim do mês de Nisan. O tempo das primeiras ceifas. Nos declives do sopé da montanha os aldeões, homens, mulheres e crianças, moviam-se lentamente por entre os campos de cevada, e as longas espigas felpudas caíam em ondas rítmicas, sob a lâmina das foices. E da montanha os homens de Roch observavam-nos especulando sobre de que campo mal guardado poderiam tirar a sua parte. Daniel, que antes sempre se sentira feliz durante a Primavera, estava agora impaciente. Irritava-se com os dias de trabalho intenso que eram necessários para fazer uma espada de qualidade inferior. Ansiava pelo momento em que deixassem de fazer espadas e começassem a usá-las. Impacientava-o a demora de Roch.
Todos os dias os espias de Roch traziam notícias de caravanas que passavam nas estradas. Quando os homens menos esperavam Roch gritava uma das suas ordens súbitas, e começava, então, uma actividade febril. Era a altura de Daniel se lançar nas lutas com toda aquela fúria com que desejava bater-se contra os Romanos. Depois acalmava. O que tinha ganho com aquilo? Ficara mais perto do momento desejado? Naquela noite, passada no telhado da avó, parecera-lhe que tudo quanto esperava e desejava só era realizável no bando de Roch. Mas agora sentia que a maior parte dos homens não tinha, na realidade, um ideal; que eram tão prosaicos como os homens da aldeia que nada mais desejavam que a refeição seguinte.
Cruzava várias vezes as veredas da montanha, na esperança de voltar a encontrar o rapaz que um dia subira até lá, embora soubesse que Joel bar Hezron devia estar agora a viver na sua grande casa de Cafarnaum. O rapaz das montanhas e o rapaz da aldeia estavam ligados por um sonho comum e esse sonho era tão forte que Joel estivera a ponto de abandonar tudo para se juntar ao bando de Roch. Talvez que, se tivesse outra oportunidade?... Joel era a espécie de homem de que Roch precisava, impaciente, espiritual, capaz de correr todos os riscos. Pouco a pouco Daniel concebeu um plano e depois de ter pensado durante vários dias, encheu-se de coragem e foi falar com Roch. Roch ouviu-o, com os pequenos olhos escuros brilhando de troça.
- Nunca estiveste em Cafarnaum.
- Não - disse Daniel. - Mas seja como for, gostava de tentar. Tenho a certeza de que era capaz de o encontrar.
Roch pensou.
- Vai - disse por fim. - Sabes desembaraçar-te sozinho. Mas não contes demasiado com o rapaz. Lembra-te que teria de abandonar muita coisa. Duvido que o faça. O avô era tão rico como o velho Hezekiah. Mas vai. Ele pode ser-nos útil em Cafarnaum.
Daniel pôs-se a caminho, muito antes do escurecer. Levava a túnica que Simão lhe dera. Desta vez foi mais fácil deixar Sansão. O gigante compreendeu que o rapaz voltaria. As veredas escuras não lhe metiam medo; conhecia de cor todas as saliências e curvas do caminho. De madrugada abandonou a montanha e entrou na estrada que atravessava a planície. Para oriente o céu começava a clarear numa luminosidade dourada de onde se desprendiam longos raios rosados e ametista pálida. Nos olivais cantava a cotovia e os trinados subiam, suaves e límpidos, no ar puro. De todos os lados se erguia o coro do chilrear dos pintarroxos e dos pintassilgos. E, de repente, nasceu o sol. Na sua frente estendia-se a perder de vista um campo dourado de mostarda, e os ramos amarelos eram tão altos que um homem podia caminhar no meio deles sem ser visto.
Alcançou uma caravana. Espicaçados pelos velhos que os guiavam, os camelos avançavam lentamente. Das cargas, que transportavam nos dorsos, desprendia-se um odor que Daniel desconhecia; era uma fragrância suave, de especiarias, que cobria o próprio cheiro dos camelos. À medida que o dia se tornava mais claro a estrada enchia-se de lavradores empurrando pequenos carrinhos, ou levando às costas cestos de vegetais para o mercado da cidade. Sentia-se já animado pela excitação da grande cidade.
Chegou por fim à última curva da estrada. A seus pés estendia-se o mar como uma jóia, enorme e azul, brilhando ao sol. Na margem ficava Cafarnaum, uma massa de casas de pedra escura, construídas sólidamente. Erguia-se dos telhados uma neblina transparente de humidade e fumo. Pareceu-lhe que podia ouvir o ruído de milhares de vozes. Esqueceu o cansaço do longo caminho percorrido e apressou o passo, sentindo-se fresco e animado.
Era ainda muito cedo para ir procurar Joel, mas também não tinha pressa. Havia tanta coisa para ver. Passeou pelas ruas, inebriado pelo movimento, pela cor, pelo som e pelo cheiro que se desprendia da cidade. No mercado os lavradores empilhavam abóboras, pepinos e melões e os mercadores, falando línguas estranhas, estendiam peças de fazenda, cestos ou objectos de cerâmica. Viu quatro chefes dos Fariseus, com os filactéricos* enrolados sobre as testas altivas, passeando com todo o cuidado para que as túnicas com borlas não tocassem em ninguém, porque o menor toque torná-los-ia impuros.
Nota: Tira estreita de pergaminho que tinha escrita uma passagem da Escritura, e que os Judeus traziam enrolada no braço ou sobre a testa (N. da T.).
Viu um escravo negro, atarefado, junto do dono. Falaria a mesma língua de Sansão?
Chegou ao porto. Havia ali imensos barcos de pesca e de recreio, e ainda barcaças cheias de bandeiras.
Das barcaças ancoradas caminhava, num vaivém contínuo, uma longa fila de homens meio-nús, carregando às costas sacos de cereais e cestos de frutos que os lavradores levavam para a cidade. Era então para aqui que vinham os produtos que, dia após dia, cresciam na sua aldeia? Tudo isto para alimentar a cidade demoníaca de Tiberíades que Herodes mandara construir mais ao sul e a que dera o nome do Imperador de Roma. Daniel sentiu de repente que tinha fome e lembrou-se de que se Roch fora magnânimo em lhe dar conselhos, não lhe dera contudo uma única moeda com que pudesse comprar comida.
Ao longo da praia onde estavam varados os barcos de pesca, os pescadores descarregavam o produto do labor nocturno e os grandes cestos pesados brilhavam ao sol. As mulheres iam ao encontro dos homens, estendiam o peixe em cima de pedras lisas e salpicavam-no com sal. Outras levavam os cestos vazios para os lavar. Sobrepondo-se ao cheiro do pescado começava a notar-se um odor convidativo. Várias famílias tinham acendido fogueiras e estavam a preparar a refeição da manhã.
- Tens fome, rapaz?
Daniel parou, envergonhado. Uma mulher jovem e sorridente, com um lenço vermelho escarlate e azul na cabeça, estendeu-lhe um pequeno peixe em cima de uma folha de palma. Daniel recusou.
- Não tenho dinheiro - murmurou.
- Quem falou aqui em dinheiro? Como vês, há muita comida. Toma lá este.
Estava delicioso, com a pele tostada e estaladiça. A mulher olhou-o com admiração.
- E de onde veio um estrangeiro tão simpático? - perguntou-lhe.
Embaraçado, balbuciou o nome de Ketzah.
- Estás à espera do mestre? - voltou a perguntar a mulher.
- Não.
- Pensei que estavas. Ele merece bem que se chegue tarde ao trabalho.
- Que mestre? - perguntou Daniel.
- O carpinteiro. Ali, lá vem Ele - Voltou-se para trás e chamou outra mulher. - Vem! Vai começar.
Daniel, cheio de curiosidade, voltou-se também. A pouca distância estava já reunida uma pequena multidão de pescadores e, de todos os lados, acorriam mais homens que abandonavam as redes. E, no meio deles, havia o que falara na sinagoga. Parecia forte, confiante e feliz. Disse qualquer coisa e os homens riram. Daniel aproximou-se.
Como é forte, pensou. E no entanto, fisicamente, não se podia comparar com os pescadores vigorosos que o rodeavam. A sua força nascia de uma vitalidade extraordinária que parecia existir ro ar que o cercava. E mais uma vez, tal como lhe acontecera na sinagoga, Daniel sentiu-se animado por uma força estranha. A mesma força que via nos homens e mulheres a seu lado.
Alguém fez uma pergunta que não conseguiu ouvir, e Jesus estendeu a mão a pedir silêncio.
- Que é o reino do Céu? - disse - É como um mercador à procura de pérolas finas e que, tendo encontrado uma de grande valor, vai, vende tudo o que tem e compra-a. O reino do Céu é como uma rede lançada ao mar e que apanha toda a casta de peixes.
Um ruído metálico distraiu Daniel. Voltou-se e viu dois soldados que se tinham reunido à multidão. Estavam lado a lado, e olhavam com curiosidade para o orador e para a assembleia que o escutava. Automaticamente, Daniel cuspiu com desprezo. Dois dos pescadores olharam-no descontentes. Era evidente que lhes fora mais desagradável o que ele fizera do que, propriamente, a presença dos soldados. Um dos Romanos observou-o com um ar insolente. Mas Jesus continuou como se nada se tivesse passado. Não podia ter deixado de ver os elmos elevados dos Romanos, mas a sua voz calma não sofreu a mais leve alteração. O rapaz que tinha vivido durante cinco anos na montanha solitária, alimentando o ódio, mantendo-o vivo e fresco, não podia acreditar no que via. Como podia esta gente da cidade suportar que lhe fizessem sentir constantemente a servidão em que estavam? E, mais vergonhoso ainda, viu mercadores brincando e rindo com os soldados. Não podia compreender. Onde estava o orgulho deles? Teriam esquecido tudo? Se Roch aqui estivesse abrir-lhes-ia os olhos. E porque continuava Jesus sem fazer nada?
Ao pensar em Roch, recordou-se do motivo por que viera à cidade. Levou bastante tempo para encontrar a casa do rabi Hezron. Por fim, alguém lhe disse que subisse a colina que se erguia acima do porto. À medida que subia a ladeira íngreme a fome voltava, mais intensa ainda. Contara com a ideia de que Joel observaria o preceito escrito na lei de que todo o estrangeiro que bate à porta de uma casa deve receber comida e agasalho. As habitações de pedra cheias de gente cediam agora o lugar às enormes paredes das casas grandes onde notava jardins e terraços sobrepostos, verdes e dourados, e sentiu a primeira dúvida. Roch avisara-o de que Hezron herdara uma grande fortuna. Daniel não estava preparado para essas grandezas. Casas como estas recordar-se-iam ainda da lei da hospitalidade? Ou mandá-lo-iam embora como se fosse um mendigo?
Capítulo 5
Chegou à pesada porta que lhe tinham indicado e tocou a sineta. Depois de algum tempo a porta de madeira abriu-se e um homem, de aspecto seco, apareceu. Hezron? Notou que as orelhas do homem estavam furadas. Estivera a ponto de fazer uma triste figura, curvando-se diante de um escravo!
- Vim para falar com Joel bar Hezron - anunciou num tom de voz excessivamente alto.
O servo, com certa relutância permitiu-lhe que ficasse à entrada de um pequeno corredor coberto de telhas.
- Espere aqui. Quem devo anunciar ao jovem senhor?
- Diga-lhe que é Daniel bar Jamin, um amigo de Ketzah.
O corredor era frio e escuro; todas as portas de carvalho a que dava acesso estavam fechadas. Daniel viu, admirado, para lá do arco que lhe ficava em frente, um pátio cheio de sol com árvores em flor, canteiros verdes e mármores brancos. Ouviu o murmurejar suave duma fonte e trinados de pássaros.
Nunca sonhara que tais maravilhas pudessem existir, nem mesmo no palácio de Herodes. Que louco fora em pensar que Joel ainda se lembrava dele!
Ouviu uns passos leves, um roçagar de sedas e surgiu na sua frente uma sombra. Não era Joel, mas a irmã, Malthace. Uma túnica de tecido leve e suave caía-lhe em pregas ondulantes até às delicadas sandálias bordadas. O cabelo negro estava puxado para trás e preso com uma delgada rede de ouro. Parou ao ver um estranho. Depois, ao reconhecê-lo, passou-lhe pelo olhar uma expressão inequívoca de retraimento. A saudação que Daniel preparava com tanto cuidado ficou incompleta. A rapariga nem sequer o cumprimentara; ficara parada na sua frente, fixando-o com um olhar de aborrecimento.
Daniel ouviu o som de passos pesados que se aproximavam. O rapaz que nesse momento atravessava o pátio não mudara. Era o mesmo rapaz do campo que, na montanha, saltara para o meio da luta. Os olhos negros brilhavam de alegria, ao agarrar o rapaz pelos ombros.
- Daniel! Bem-vindo sejas! Tanto desejei... - interrompeu-se e olhou rápidamente para os lados. - Ficas para a refeição? Claro que ficas!
Em Daniel o orgulho lutava contra a fome.
- Não - respondeu. - Vim apenas para falar contigo.
- Mas com certeza que, depois de tanto tempo sem nos vermos, não te vais já embora.
- Estou cheio de pó do caminho.
- Ora, isso que importância tem! Deixa a tua túnica aqui, no corredor. É apenas por causa do Pai, sabes.
Daniel corou ao lembrar-se que um homem vulgar que visitasse um Fariseu tinha que deixar a túnica à entrada da porta, sob pena de tornar a casa impura. Começou, lentamente, a despir a túnica que Simão lhe dera, pondo a nú os andrajos que trazia por baixo.
- Não tem importância - disse Joel rápidamente. - Vendo bem, é melhor ficares com a túnica. No fundo, não tem mesmo a menor importância.
Ao conduzir o recém-chegado pelo corredor fora, o rapaz sentia-se incomodado com a presença da irmã que continuava parada junto do arco.
- Thace - chamou em voz pouco segura. - Lembras-te de Daniel, o rapaz que... - fez uma pausa.
As sobrancelhas finas da rapariga arquearam-se mais.
- Lembro-me - respondeu friamente. Voltou-se e afastou-se dos dois rapazes.
Joel, aborrecido, seguiu-a com o olhar, depois encolheu os ombros.
- Não dês importância a Thace - disse. - Resolveu últimamente tomar os modos da cidade. Vem, sobe para o meu quarto para podermos falar à vontade. Se soubesses como gosto de voltar a ver uma pessoa da minha terra!
Daniel atravessou o pátio com tal velocidade que ficou apenas com uma sensação fugidia de uma grande beleza toda verde. Passaram por baixo de uma fila de colunas esguias, entraram noutro corredor, subiram a correr uma escada baixa e chegaram finalmente a um pequeno quarto quadrado. Tudo indicava a Daniel que o amigo dormia neste quarto e que nem sequer era obrigado a compartilhá-lo com ninguém. Havia uma só cama baixa, com uma coberta de linho, às riscas, dois bancos de madeira esculpida, uma arca pintada, uma mesa, penas, um pote de tinta e um rolo de pergaminho estendido, como se Joel tivesse sido interrompido quando estava a trabalhar.
Joel tirou água de um jarro de louça fina e estendeu-lhe uma macia toalha de linho. Daniel, conscienciosamente, lavou as mãos, os pés e tirou o turbante. Era evidente que o amigo não se importava que ele cumprisse ou não as leis; o rapaz estava radiante por voltar a vê-lo. Daniel sentiu-se, de novo, confiante. Nunca mais permitiria que uma rapariguinha tonta o envergonhasse.
- Foi Roch quem te mandou vir ter comigo? - perguntou Joel - Atacaram mais caravanas? E o escravo, aquele preto grandalhão? Não te invejei quando tiveste que o arrastar atrás de ti, pela montanha acima.
- Devia ter ficado calado - respondeu Daniel.
- O que aconteceu?
- Assim que o libertei das correntes foi ele que tomou conta de mim. Isto tem feito com que eu seja o alvo das zombarias de todo o acampamento. Trabalha como uma mula para que a minha forja esteja sempre acesa. Mas não me deixa afastar um passo.
Joel estava divertido.
- Sabe falar? Compreende o que lhe dizes?
- Os outros julgam que não. Mas tenho as minhas dúvidas. Às vezes parece mesmo que tenta dizer-me qualquer coisa.
- Não tens medo dele?
- Por mim, não. Mas tenho que estar sempre a tomar conta dele. É por causa da força que tem - é como uma rocha equilibrada no alto de um desfiladeiro. Um nada, e lá vem ela por ali abaixo. Uma noite tive uma discussão com Joktan e o garoto ameaçou-me com os punhos cerrados. Olhei mesmo a tempo, na altura em que Sansão se dispunha a agarrar Jok com aqueles enormes braços. Tudo o que fiz foi mandá-lo parar.
Joel assobiou.
- Penso que... - começou a dizer, mas nessa altura foi interrompido pelo som de um gong e levantou-se imediatamente - O Pai insiste para sermos pontuais às horas das refeições. É melhor falarmos depois.
Hezron estava à espera no pátio, perto da fonte. Era um homem alto, de rosto esguio e cabelo grisalho. Cumprimentou friamente, quando Joel apresentou o amigo.
- A paz seja contigo - disse-lhe.- Ês bem-vindo - Observou, com ar desgostoso, a túnica de Daniel que não estava de acordo com os preceitos da lei.
"Um camelo seria tão bem-vindo como eu - pensou o rapaz. - O homem vai ter que purificar toda a casa depois de eu sair!"
Duas mulheres chegaram, ao lado uma da outra, deslizando graciosamente sobre o pavimento de tijolo. Era Malthace e a mãe, que devia outrora ter sido muito semelhante ao que a filha era agora. Um pequeno pássaro de plumagem azul forte desceu de uma pereira anã e pousou por segundos no ombro da rapariga e depois desapareceu no ar.
A boca de Thace curvou-se num ligeiro sorriso e olhou para Daniel como se quisesse dizer-lhe "Podia contar-lhes muita coisa, se quisesse." A mãe estendeu-lhe a mão e sorriu com afabilidade.
Atravessaram um arco e entraram numa sala espaçosa. Daniel sentiu um choque ao ver os leitos. Esperavam que ele, Daniel, comesse deitado como um Romano? Mas, depois de um desagradável momento de hesitação, deitou-se cautelosamente e apoiou-se num cotovelo, como vira Joel fazer. Thace estava divertida e Daniel sabia-o. Apesar dos ares que tomava, ele podia apostar que a rapariga nunca vira um leito daqueles antes de vir para Cafarnaum. Ninguém na aldeia tinha coragem de exibir tal contrasenso.
A mãe de Joel despediu-se com uma frase graciosa e afastou-se com a filha, indo ambas esconder-se atrás de um biombo de seda para ficarem longe das vistas dos homens enquanto estes comiam. Outro contrasenso. Daniel tinha a certeza de que na aldeia se sentavam em esteiras e comiam juntos, como todas as outras famílias faziam.
Daniel esteve inquieto durante a prolongada operação da lavagem das mãos, preocupado com os jarros de prata, os guardanapos finíssimos e os escravos que andavam num vaivém constante. Quando chegou a comida esqueceu tudo. Bebeu de um trago a taça de vinho de palma e só depois notou que ninguém tocara ainda nas suas taças. E, só demasiado tarde, se lembrou de pôr em cima da mesa o que restava da sua pequena fatia de pão. Lançara-se sobre a comida como Sansão fazia e viu que a boca de Hezron se torcia num ricto de desagrado. Malditas sejam todas aquelas maneiras afectadas. Alguma vez teriam tido fome?
- E a tua casa? - perguntou Hezron, depois de ter comido em silêncio as delicadas porções de peixe e de fruta - É longe de Cafarnaum?
Daniel deixou de pensar na taça vazia que tinha na sua frente.
- É em Ketzah, senhor.
- Na verdade? - Hezron parecia surpreendido - E o teu pai também lá vive? Não me recordo...
- O meu pai era Jamin, inspector chefe das vinhas.
- Ah, sim - disse Hezron com desdém. - Agora me lembro. Foi um caso trágico. O teu pai era um bom homem, mas um exaltado.
O ar desdenhoso e frio com que estas palavras foram ditas acordaram a cólera de Daniel. Baixou os olhos para o prato e calou-se.
- Então, és tu o amparo da tua mãe? - A minha mãe também já morreu.
Hezron ficou hesitante.
- Foste ferido duplamente - disse num tom de voz mais agradável, julgando ser tristeza a cólera que o rapaz sentia. - Segues o ofício do teu pai?
- Não. Fui contratado por Amalec, o ferreiro. Vendido! esteve quase a gritar. Vendido como escravo por um período de seis anos a um homem que nem sequer merecia ser dono de uma mula. E tinham os rabis protestado, tinha alguém, na aldeia, feito um gesto para o ajudar?
- Claro, claro - disse Hezron - todos os rapazes precisam de aprender um ofício. Joel, como já deves saber, aprendeu a fazer sandálias, tal como eu. Mas, para dizer a verdade, apliquei-me mais do que ele. Não me recordo de te ter visto na loja de Amalec.
- Já não trabalho lá, há muito tempo.
- Mas fique o pai sabendo que é um bom ferreiro - interrompeu Joel tentando desviar a atenção do pai. - Com os teus músculos havias de fazer sensação no ginásio. Já lá foste?
- Ao ginásio romano? - Daniel olhou espantado para o amigo - Nunca seria capaz de lá entrar!
- Espero que não - disse Hezron fitando o filho em ar de censura. - Seria uma atitude de muito mau gosto.
- Claro que seria, Pai - emendou à pressa o rapaz.
- Isto não é assunto para brincadeiras - disse o pai. - É ultrajante a forma como alguns dos nossos jovens Judeus se deixaram tentar, a ponto de tomarem parte nesses jogos deselegantes. E chegou-se ao ponto de os mais velhos irem ver essa vergonha.
- Bem; mas há outras coisas para ver na cidade - insistiu Joel com ar despreocupado. - Esta tarde vou mostrar-te tudo, Daniel.
O rapaz continuava de olhos fitos na taça vazia. Ainda tinha fome. O rabi colocara-o em desvantagem com todas as perguntas que fizera. Sentia-se ressentido contra tudo e todos, incluindo Joel.
- Já vi que chegasse - respondeu rudamente. - Tudo o que tenho para ver é a fortaleza romana e as águias nas ruas. Para onde quer que vá, só oiço o ruído das botas romanas ecoando no pavimento.
Joel, com a testa franzida, tentava distrair o pai e conduzir a conversa noutro sentido.
- Também senti o mesmo, a princípio. Mas habituei-me. A maior parte deles preocupa-se apenas com o que têm que fazer. E alguns procuram mesmo estar em boas relações connosco.
- Em boas relações! - Daniel deu um salto - Hoje de manhã, na estrada, passei por um velho que estava a consertar um dos eixos da roda do carrinho. Era surdo e não podia ouvir o barulho do carro que se aproximava e lhe bateu na roda de trás. O velho disse que havia espaço suficiente na estrada para o carro passar e começou a discutir. Afirmava que o soldado o fizera de propósito. As couves ficaram estragadas e o velho lamentava-se. Podes alguma vez habituar-te a coisas como estas? - e olhou à sua volta.
Joel, de cabeça baixa, parecia desanimado. A voz de Hezron era severa:
- Sabemos que, infelizmente, essas coisas acontecem. O teu amigo deve ter encontrado alguém que lhe comprasse as couves. Não nos podemos esquecer de que, em Cafarnaum, devemos estar gratos aos Romanos pela linda sinagoga que temos.
Mas Daniel fora longe demais para recuar agora. Perdeu a cabeça, esqueceu toda a delicadeza e o motivo que o levara a casa de Hezron.
- Uma sinagoga romana? - gritou - Erguida com os impostos lançados pelos Romanos. Que diferença faz essa sinagoga, do estádio? Em que é melhor?
Joel respirava com dificuldade. Hezron, com os olhos a faiscar, ergueu-se do leito.
- Vê como falas, rapaz! - avisou-o - A sinagoga é a casa de Deus, quer os Romanos a tenham ajudado a construir, quer não.
Daniel pôs-se de pé. E, com os olhos brilhantes, gritou para o velho:
- Nunca seria capaz de lá entrar. Foi construída com sangue!
Havia uma tal paixão nas suas palavras que a sala parecia vibrar.
- Jovem! - E as palavras de Hezron pareciam chicotadas - Guarda essas ideias para ti. Se não te importas com a própria vida, respeita ao menos a segurança dos que te oferecem hospitallidade.
Daniel acalmou. Sentiu-se corar de vergonha.
- Desculpe-me, senhor - balbuciou. - Eu... eu não sou ingrato. Mas não posso compreender. Terão as pessoas da cidade esquecido tudo? Não parecem importar-se com coisa alguma. Para onde quer que me volte vejo-os sempre com os rostos estúpidos e de armas ao lado. Como podem sentir gratidão por estes homens? Gratidão por terem construído uma sinagoga, apenas para nos terem calados, gratidão por nos deixarem respirar o ar que eles poluem? Não devia ter vindo. Não pertenço à cidade, nem a uma casa como esta. Não posso continuar a viver como se nada se passasse quando o meu povo é prisioneiro na sua própria terra.
Fez uma pausa, aterrorizado com a sua ousadia e viu, com surpresa, que Hezron já não o olhava com ira mas com uma espécie de sentimento de piedade. O homem deu volta à mesa e pousou a mão no ombro de Daniel.
- Meu rapaz - disse, calmamente - não esquecemos. Sentimos o mesmo que tu. Há, no coração de cada Judeu, a mesma dor. Precisamos de um patriotismo como o teu. Mas precisamos também de paciência. Não devemos dizer que nos é impossível suportar o que Deus, nos seus desígnios, achou por bem enviar-nos.
- Mas por quanto tempo? Esta provação terá que ser para sempre?
- Deus não disse ainda a sua última palavra. Até que Ele o faça, devemos esperar e suportar.
- Mas...
- Eu sei. Estiveste a ouvir os Zelotas. Convencem os jovens exaltados como tu para que os sigam.
Daniel afastou-se.
- Os Zelotas são os melhores homens da Galileia. São valentes e honrados.
Hezron interrompeu-o.
- A Galileia tem tido muitos homens corajosos - disse - mas não tem tido muitos homens senstos.
Os Patriotas lançam-se sobre os conquistadores sempre que podem, e o que têm ganho com isso? Fileiras de cruzes, aldeias queimadas e impostos mais pesados. Vêem uns quantos Romanos a marchar, uma corte, e o poder de Roma parece fraco e fácil de atacar. Esquecem-se que por detrás desses poucos Romanos há outros, outra coorte, uma legião, legiões sem conta, mais e mais, tantos quanto a imaginação pode conceber, todos armados, todos treinados na arte de matar. Para um poder que segura o mundo inteiro nas suas garras o que é uma horda de Patriotas atrevidos?
- Mas eles...
- Fixa bem as minhas palavras, rapaz. Israel tem uma força enorme, maior que todo o poder de Roma. É a Lei, dada por Moisés aos nossos pais. Quando o último imperador romano desaparecer da terra a Lei ainda existirá. É à Lei que devemos devotar a nossa lealdade. Desejo que Joel compreenda isto e devo proibi-lo de ver os velhos amigos que tentam atraí-lo para a violência. E agora peço-te que partas, imediatamente. Vai em paz, Daniel, e rogo a Deus que possas ver a verdade antes da tua exaltação te destruir. Mas não voltes - Chamou um dos servos que estava junto à porta.- Vai com o nosso hóspede e indica-lhe o caminho.
Joel esboçou um gesto, mas reprimiu-o e ficou sentado calmamente. Em silêncio e demasiado confuso para tentar sequer despedir-se, Daniel voltou-se e saíu da sala atrás do servo.
Assim que se viu na rua, encolerizou-se consigo próprio. Como podia ter destruído tudo tão estupidamente? Fizera com que o plano de Roch falhasse. Roch nunca mais confiaria nele, e como poderia confiar? Daniel não ousava sequer erguer a cabeça. E perdera Joel.
Para lá da humilhação que seria ter que contar a Roch que nada conseguira, tinha outro motivo de desgosto ainda mais forte. Não perdera apenas um novo recruta. Perdera algo que encontrara pela primeira vez na vida - um amigo.
Capítulo 6
Daniel ergueu o rosto para a montanha, Tencionava deixar a cidade e nunca mais voltar. Mas em vez disso, magoado pela atitude de Hezron, receoso de encarar Roch, furioso consigo e com tudo o que o rodeava, foi meter-se em mais trabalhos. Numa encruzilhada aproximou-se de um poço e, vendo ali perto uma tigela partida, ajoelhou-se para tirar água. Mal tinha tido tempo para refrescar a boca quando surgiu uma sombra na sua frente. Viu primeiro os flancos negros e húmidos de um cavalo e, ao erguer os olhos, deparou-se-lhe o rosto de um Romano.
- Água para o cavalo, rapaz - ordenou o soldado, mas não num tom desagradável. - Fizemos uma longa viagem.
Daniel estremeceu. Mas, mesmo sem querer, reparou na respiração ofegante do animal extenuado, na espuma que lhe cobria o pescoço lustroso. Também aquele animal estava indefeso nas mãos do Romano. Não lhe podia negar água. Encheu a tigela e segurou-a enquanto o animal matava a sede.
- Basta! - gritou o Romano - Vais fazê-lo ficar com a barriga inchada. Agora, dá-me água.
Daniel hesitou. Depois, mal encarado, estendeu a tigela ao homem. Deu um passo em falso e a água caíu em pequenas gotas.
- Escumalha impudente! - berrou o homem - Água fresca!
O ódio de Daniel reacendeu-se. E, sem pensar, atirou com a tigela à cara do Romano. Pelo espaço de um segundo, ficou paralisado. Depois, recobrou animo e começou a correr. Ouviu, atrás de si, um grito. Uma pancada forte nas costas fê-lo vacilar e uma lança caiu na estrada, mesmo à sua frente. Endireitou-se e continuou a correr, esgueirando-se de encontro a uma parede de pedra; correu assim inclinado durante algum tempo, abrigando-se conforme podia e depois numa correria louca atravessou a descoberto o espaço que o separava de um maciço de árvores. Ouviam-se mais gritos e ruídos de passos. Daniel não ousava olhar para trás. Deixou o abrigo das árvores, passou por uma fila de casas e meteu-se por uma ruela estreita. Os passos continuavam atrás dele.
No fim da ruela esquivou-se para um beco e depois para outro. Estava agora a subir a colina e quase não podia já respirar. Tropeçou. Saltou uma parede baixa e escondeu-se, para descansar. As costas doíam-lhe cada vez mais e o rapaz levou as mãos ao sítio dorido. Ficaram vermelhas de sangue. Viu que estava num jardim e que, na sua frente, se erguia uma escada que conduzia ao terraço superior. Conseguiu subi-la, com dificuldade, mas ficou em vantagem. Ainda ouvia os passos mas podia agora continuar a subir mais lentamente. Chegou ao terraço seguinte e alcançou depois o outro.
Parou finalmente, ofegante, e encostou-se a uma parede do terraço. Conseguira despistá-los. No pomar calmo não se ouvia o mais pequeno eco da perseguição. Mas Daniel estava exausto. Doía-lhe o peito e a dor descia-lhe já para o braço e para a mão. Em breve teria que se deitar e aguardar que o encontrassem. Para onde podia ir? Lá em baixo, no meio de todas aquelas casas haveria alguém que lhe desse abrigo e o escondesse? Roch ensinara-o a desconfiar de todos, até dos Judeus. Os métodos romanos eram demasiado eficazes. Que homem seria capaz de esconder um desconhecido, sabendo o perigo que isto significava para a sua família? Não; devia ficar na colina. Talvez os Romanos não se lembrassem de o procurar ali.
Começou a sentir os olhos enevoados. Tomou consciência, aterrorizado, de que já nem sequer era capaz de pensar com clareza. Agarrava-se agora a uma esperança e viu que fora essa esperança que o fizera ir até ali e lhe dirigira inconscientemente os passos, mesmo enquanto corria demasiado depressa para poder pensar. Se conseguísse encontrar Joel, Joel trataria dele. Não sabia por que motivo tinha a certeza de que seria assim. Mas logo sentira confiança no rapaz, no momento em que o encontrara na montanha pela primeira vez.
Nunca soube como conseguiu chegar à porta nem como teve a intuição necessária para puxar a túnica de maneira a tapar a mancha de sangue que lhe escorria das costas. Lembrava-se apenas de que o servo o deixara entrar e fora chamar Joel. Enquanto esperava, pela segunda vez, naquele corredor, não conseguia pensar em nada; esforçava-se apenas para se manter de pé. Ouviu passos e uma figura indistinta que se aproximava. Conseguiu ver que, tal como acontecera da primeira vez, não era Joel quem estava na sua frente, mas Malthace. A rapariga aproximou-se rapidamente.
- Daniel, vai-te embora depressa! Joel não está. Foi com o Pai para a sinagoga, mas podem voltar de um momento para o outro.
Daniel moveu os lábios lentamente. Não sabia o que estava a dizer, mas viu que tudo falhara mais uma vez. Não podia sequer mexer-se.
- Não compreendes? - disse a rapariga com dureza - Se o Pai te encontra aqui, perde a paciência. Mas porque voltaste?
Tentou explicar.
- Preciso de ver Joel - disse em voz sumida. - É importante.
- Nada é mais importante que os estudos de Joel - respondeu-lhe Malthace, zangada... - Se és amigo dele, deixa-o em paz. Pode vir a ser um rabi famoso. Não vai arriscar o futuro por um bando de salteadores.
Daniel fitou a rapariga com um olhar parado. A voz de Malthace parecia cada vez mais distante.
- Não vês que Joel hesita entre dois caminhos, embora saiba qual é o verdadeiro. Por favor, Daniel, peço-te vai-te embora e deixa-o em paz.
Conseguiu ficar suficientemente lúcido para ver que, mais uma vez, agira sem reflectir. Malthace tinha razão. Só podia prejudicar e pôr em perigo a vida do amigo. Voltou-se e foi como se a porta começasse a dançar na sua frente e se dissolvesse na parede, deu dois passos e mergulhou na escuridão.
Capítulo 7
Voltou a si muito lentamente. A princípio sentiu apenas que tinha qualquer coisa muito macia debaixo da cabeça. Essa sensação lhe bastava e continuou deitado e quieto. As dores no peito e nas costas recomeçaram. E só abriu os olhos quando a dor se tornou tão forte que lhe fez recobrar por completo a consciência. Devia ser já noite fechada porque tudo à sua volta era escuridão. Viu depois qualquer coisa que se inclinava para ele e, só após algumas tentativas, conseguiu perceber que se tratava de uma cabeça de mulher com longos cabelos negros e uma face branca brilhando na escuridão. Foi então que se lembrou de quanto lhe acontecera e procurou levantar-se. Voltou a ficar inconsciente. Depois tudo recomeçou, as dores, o despertar, a face da rapariga inclinada para ele.
- Onde estou? - perguntou devagar, sem se mexer.
- Silêncio! - murmurou Malthace - Não fales alto. Estás num celeiro.
As palavras pareciam vir de muito longe. Daniel esforçava-se por lhes entender o sentido.
- Daniel, podes ouvir-me? - murmurou de novo a rapariga.
- Sim.
- Vou-te deixar agora para ir buscar qualquer coisa para tratar da tua ferida. Não te mexas, nem faças barulho. Volto assim que puder. Compreendes?
- Sim.
Ouviu um pequeno ruído, viu uma réstea de luz e depois tudo voltou ao silêncio e à escuridão. Percebeu que a rapariga se tinha ido embora e que não precisava agora de se mexer.
Passado um momento a réstea de luz reapareceu e Malthace voltou a inclinar-se para ele.
- Estás acordado? - segredou - Olha. Bebe isto. Eu seguro.
Sentiu a superfície fria de uma taça bater-lhe nos lábios. Uma mão suave ergueu-lhe a cabeça.
O vinho era forte e tinha um gosto amargo. Aqueceu-o e atenuou-lhe as dores.
Malthace pousou a taça.
- Agora preciso de te tirar essas roupas. Vou fazer o possível para não te magoar muito.
Daniel cerrou os dentes enquanto a rapariga, lentamente, lhe despia a túnica manchada de sangue. O vinho fazia-lhe andar a cabeça à roda. Suspeitava que Malthace misturara na bebida um medicamento qualquer. Sentiu que a rapariga lhe estava lavando a ferida. À sua volta o ar ficou impregnado do odor forte do endro e da fragrância suave do óleo. Depois, sentiu que lhe cobria a ferida com um pano seco e macio.
- Como vim para aqui?
- Fui eu que te trouxe. Porque não me disseste logo que estavas ferido? Joel nunca me perdoaria se eu... se alguma coisa te...
Ficou calada, enquanto lhe aconchegava a roupa. Voltou a aproximar-lhe a taça dos lábios.
- Não posso demorar-me mais. Joel deve estar a chegar, e depois resolve o que devemos fazer. Não te mexas. Espera até nós voltarmos.
Nunca soube quanto tempo esperou. Era como se estivesse flutuando num rio. Voltou a reaparecer a réstea de luz e depois tudo ficou iluminado. Joei trouxera uma vela e a luz batia-lhe em cheio no rosto preocupado.
- Daniel, como te sentes? Graças a Deus que vieste para cá!
- Eu... não sabia... onde... - começou dizendo o ferido.
- Não fales. Já sei o que se passou. Andam à tua procura por toda a cidade. Quando Thace me contou, vi logo que devias ter sido tu. Estavas louco, Daniel!
- Não o obrigues a falar, Joel - Malthace estava junto dele, mesmo a seu lado. - Vê, Daniel, trouxe-te caldo de aveia. Podes comer um poucochinho?
Joel segurava a vela, enquanto a irmã lhe dava de comer. O caldo estava quente e saboroso, mas o esforço era demasiado violento para ele. Depois de três colheres teve que fechar os olhos e descansar. Tentou falar.
- Pus a tua casa em perigo.
- Não. Nunca se lembrarão de vir fazer buscas em casa do Pai. Deixa-me ver a tua ferida, Daniel. - Joel ajoelhou e, com todo o cuidado, tirou a ligadura. Deu um pequeno assobio. - Tiveste sorte.
Mais uma polegada e ...! Tens um buraco enorme. Não vale a pena insurgires-te, tens que ficar aqui, sossegado.
Não tentou discutir. Sabia que não conseguiria, sequer, levantar-se.
- Não me parece que este sítio seja seguro - continuou Joel. - Um dos escravos pode vir aqui de um momento para o outro buscar cereais. Há uma passagem entre as duas paredes. Fomos nós, Thace e eu, que a descobrimos quando éramos garotos e vínhamos cá de visita. Achas que podes aguentar, se te pusermos em cima de uma manta e te arrastarmos?
- Sim - respondeu Daniel. Na sua imensa gratidão sentia-se capaz de suportar tudo.
A passagem teria, quando muito, dois cúbitos* de largura.
Nota: Cúbito era uma,antiga medida linear que correspondia ao comprimento desde o cotovelo à extremidade do dedo médio da mão; equivalia a cerca de 18 polegadas (N. da T.).
Joel, curvado, puxava com esforço, enquanto atrás Thace empurrava. Os progressos eram lentos e difíceis naquele chão rugoso e áspero. Depois, Joel arranjou a manta com todo o cuidado e Thace foi buscar sacos de cereais para fazerem de almofadas e uma outra manta para tapar o ferido.
- Custa-me muito ter que te deixar neste sítio - disse Joel iluminando com a vela as paredes dessa espécie de caixa. - Não é muito arejado, mas não ficas sufocado; e aqui ninguém dá contigo.
Daniel tentou agradecer.
- Gostava de te poder ajudar mais - respondeu Joel. - Lamento que tudo tivesse corrido mal durante a refeição de hoje. O Pai na realidade não é assim. O que aconteceu é que sempre suspeitou das minhas ideias e tem medo que eu me vá juntar aos Zelotas.
- Portei-me como um louco - disse Daniel.
- Bem... sim; isso é verdade - Joel sorriu pela primeira vez. - Mas gostava de ter a tua coragem e de lhe poder dizer o que lhe disseste.
- E se ele sabe que... ?
- Nunca te mandaria embora. Tenho a certeza. Mas começaria a fazer perguntas. A respeito de Amalec e da montanha e do resto. Não sabemos até onde poderia ir. Deixa-te estar aqui e não te preocupes. Thace e eu viremos ter contigo, sempre que pudermos.
A rapariga murmurou qualquer coisa ao ouvido do irmão.
- Sim, temos que ir - respondeu Joel. - Ficas bem sozinho, Daniel?
- Sim - disse Daniel. - Eu...
- Dorme o mais que puderes. Voltarei.
O rapaz ficou deitado. A luz da vela e os passos afastaram-se. E, antes de a escuridão ser completa, pareceu-lhe ouvir uma voz murmurar, "Boa noite, Daniel". Mas não teve a certeza. A febre começara a subir e imaginou que fora a voz de sua mãe dizendo-lhe as palavras que já não ouvia há anos.
Capítulo 8
- "E os Reis e os poderosos e os exaltados e aqueles que governam a Terra prostrar-se-ão perante Ele ... "
A voz de Joel pouco mais era que um murmúrio, mas tremia de orgulho à medida que lia. Estava sentado no chão sujo da estreita passagem, com o rolo do livro inclinado para a luz do pequeno pavio, que era a única coisa que se atreviam a acender naquele lugar. Daniel e Malthace estavam, também, sentados no chão, encostados à parede; não se mexiam e quase nem ousavam respirar, presos à música das palavras e ao encanto da antiga profecia.
- "E as suas feições ficarão cobertas de vergonha, cairá sobre as suas faces uma escuridão maior, Ele entregá-los-á aos anjos para que sejam castigados, Para que executem a vingança, porque eles oprimiram os Seus filhos e o Seu eleito; O eleito rejubilará, Porque a ira do Senhor dos Espíritos cairá sobre eles, E a Sua espada ensopar-se-á no seu sangue."
Daniel inclinou-se para trás e o rosto ficou escondido na sombra. Estas palavras eram como o vinho que Thace lhe trazia todas as tardes. Sentia-as correndo-lhe pelas veias como fogo. E hoje, pela primeira vez, começava a sentir que as forças lhe voltavam. Passara cinco dias e cinco noites naquele esconderijo estreito e, pouco a pouco, a febre diminuíra e as dores haviam começado a desaparecer. Dentro em breve teria que partir e estas palavras ficariam gravadas no seu espírito e acompanhá-lo-iam quando estivesse na caverna.
Joel chegou ao fim do rolo. Ficaram todos em silêncio. Depois, começou a enrolar o papiro com todo o cuidado e a irmã deu um profundo suspiro.
- Joel - perguntou, pensativa. - O Pai já leu o Livro de Henoch*?
Nota: Um dos livros da tradição hebraica que não entravam na forma canónica do Antigo Testamento (N. da T.).
- Pois claro que leu.
- Então, porque é que diz que os Judeus não devem lutar pela liberdade?
- O Pai acredita que devemos deixar o futuro a Deus. Que, quando chegar o momento, Deus estabelecerá o seu reino na Terra.
- E tu também pensas o mesmo, Joel?
O rapaz franziu as sobrancelhas.
- De certo modo, também. Mas outrora, os homens não esperavam que Deus batalhasse por eles. Erguiam-se e lutavam, e Deus dava-lhes força. Talvez Deus esteja à nossa espera. Parece-me que já tentámos, durante tempo suficiente, o caminho apontado pelo Pai. Que dizes, Daniel?
Daniel contentara-se, até ali, em ouvi-los. Invejava a facilidade com que Joel falava. Franziu o rosto, com o esforço que fez, para tornar mais claros os seus pensamentos.
- Esperámos já, demasiado tempo - respondeu. - Esse Fineias, de quem nos leste a história ontem à noite, pegou na espada e matou os inimigos de Deus, e Deus recompensou-o.
- Quando nos enviará Deus outro Fineias? - suspirou Joel.
- E, se já o tiver feito? - gritou Daniel, esquecido da dor que voltara a sentir nas costas - Um só homem não é suficiente. O que pode fazer sem um exército? Sem homens, milhares de homens, e sem armas para lutar. Porque não nos preparamos nós para a luta?
- Não é o que Roch está fazendo, na montanha?
- Sim, mas Roch nada pode fazer sozinho. Somos poucos.
- Daniel - e Joel inclinou-se para a frente, com os olhos abertos numa expressão de súbito temor. A respiração ficara quase suspensa e falava com dificuldade. - Pensas que Roch pode ser o chefe de que estamos à espera?
Chegara finalmente o momento em que fora dito aquilo que, nenhum deles, ousara ainda dizer ao outro.
- Sei que é - respondeu Daniel. Ficaram sentados, em silêncio, tremendo ante o imenso segredo que compartilhavam.
- Roch é como um leão! - disse Daniel, sentindo aumentar a confiança - Não tem medo de nada. Lá em cima, na caverna, diga ele o que disser, os homens obedecem-lhe sem fazer perguntas. Se fossemos mais, se pudessemos ao menos arranjar homens em quantidade suficiente, Roch libertar-nos-ia de todos estes malditos Romanos.
Antes que Joel pudesse responder, Malthace interrompeu-o.
- Mas Roch é um fora da lei! - protestou - Com certeza que Deus nunca iria escolher um homem desses para estabelecer na Terra o seu reino!
Daniel ficou irritado. Não havia maneira de compreender esta rapariga. Estava a seu lado ou era contra ele? Escondera-o, tratara-o, trouxera-lhe comida. Mas, antes, pedira-lhe que deixasse Joel em paz. Tudo quanto fizera tinha sido por causa do irmão, mas agora não iria continuar a lutar para manter Joel dentro do seu mundo calmo e seguro?
- Que diferença faz o que Roch possa ser? - perguntou - Se pode livrar-nos dos Romanos, o Reino estabelecer-se-á por si.
- Mas é a mesma coisa - disse Joel. - A vitória é o Reino.
- Chama-lhe o que quiseres - disse Daniel impaciente. - Tudo o que sei é que detesto os Romanos. Quero-lhes o sangue. É para isso que vivo. Foi para isso que sempre vivi desde...
- Desde o quê, Daniel? - insistiu Joel.
- Desde que mataram o meu pai e a minha mãe.
Ficaram todos três em silêncio. Depois, suavemente, Malthace pediu:
- Conta-nos tudo, Daniel.
O rapaz ficou indeciso. Sentia-se dividido, tal como lhe acontecera naquele primeiro dia na montanha, entre o desejo de guardar o seu segredo e a necessidade de tudo lhes contar. Na caverna ninguém conhecia a história completa do que acontecera. Nunca falara nisso. Fizera sempre o possível para esconder de todos o que se passara; mas agora sentia uma necessidade cada vez maior de compartilhar o fardo que carregara sozinho durante tantos anos.
- Não é uma história agradável para uma rapariga - disse, por fim.
- É a respeito da tua mãe? - perguntou Malthace.
- De ambos.
- Se diz respeito ao meu povo, se diz respeito a outra mulher como eu, posso bem ouvi-la.
Daniel viu as faces coradas da rapariga. Os olhos, intensos e profundos, brilhantes de expectativa. Estava a seu lado ou contra ele?
Começou a recordar tudo desde o princípio.
- Tinha eu oito anos. Andava então na escola da sinagoga. O meu pai era o inspector chefe das vinhas. Era um bom ofício. Nunca me lembro de ter fome ou medo. Costumava contar-nos histórias, depois da refeição da noite. Sabia-as todas de cor. A minha irmã tinha 5 anos. O cabelo era louro e os olhos azuis como os da mãe. A mãe da minha mãe era uma escrava grega; o dono, que era judeu, casou com ela. Mas a minha mãe nunca aprendeu nenhum dos costumes estrangeiros. Acredilava no Deus dos Judeus. Ensinava-nos versículos da Escritura, para que os soubéssemos de cor. Julgo que éramos iguais a qualquer outra família. Talvez ainda seja assim nas outras casas da aldeia.
Joel anuiu com a cabeça.
- Era também assim na nossa casa.
- O meu pai tinha um irmão, mais novo do que ele, e eram muito amigos. Quando eu era pequenito o meu tio vivia em nossa casa, depois casou-se e foi viver para a - casa dele, não muito longe da nossa. Lembro-me ainda do seu casamento. Fui na procissão e sentia-me tão feliz que deixei cair o archote e fiz um buraco no meu manto novo.
Fez uma pausa. Esta era a parte das boas recordações, que voluntariamente não procurava nunca evocar. Os dois irmãos continuavam em silêncio, deixando-o à vontade.
- O meu tio sentia-se orgulhoso com a mulher que tinha! Quando nasceu o primeiro filho, um rapaz, era como se nunca ninguém, antes dele, tivesse tido um filho. Fez uma autêntica loucura. Estava-se quase na altura do pagamento dos impostos e ele comprou um presente para a mulher com parte do dinheiro que poupara. Era um chale com fios de ouro para ela usar no dia em que dessem o nome à criança. O meu tio contava poder fazer trabalhos a mais para arranjar o dinheiro. Mas naquele ano os Romanos estavam a construir uma nova parte da estrada e o cobrador dos impostos chegou mais cedo. O meu tio podia ter pedido ao meu pai o dinheiro que lhe faltava, mas teve vergonha porque, claro, naquela altura ninguém tinha muito dinheiro. E resolveu discutir e dizer que não era ainda o tempo de pagar impostos. Era um homem muito exaltado; o cobrador zangou-se e fez queixa dele. Os soldados meteram-no na prisão. Assim que o meu pai soube, foi ter com todos os amigos e conseguiu arranjar dinheiro suficiente para pagar o imposto. Mas o meu tio perdera a cabeça e tentara fugir e os soldados, depois, não o deixaram sair. Disseram que tinha que ir para as pedreiras para pagar a dívida. Todos nós sabíamos que nunca o libertariam ou que ele procuraria lutar e seria morto. A mulher estava como louca. Foi ter com o meu pai, abraçou-se-lhe aos joelhos e começou a chorar e a gritar. Meu pai concebeu um plano. Era um homem pacífico, mas pegou em armas. Escondeu-se, com mais quatro amigos, num campo de trigo e esperou o momento em que os Romanos levavam o meu tio para a cidade. Atacaram. Claro que foram todos presos. Um dos soldados foi ferido com uma foice e morreu nessa mesma noite. Os Romanos quiseram dar uma lição que servisse de exemplo a toda a aldeia. Crucificaram os seis, até o meu tio que nada fizera porque tinha as mãos atadas atrás das costas.
Thace deixou escapar um suspiro que mais parecia um gemido. Joel nem se mexia. Depois de uma pausa, Daniel continuou.
- A minha mãe ficou em pé junto das cruzes, dia e noite, durante dois dias. De noite estava frio e humidade e quando voltou para casa nada mais fazia que chorar e tossir. Viveu apenas mais algumas semanas.
- Também lá estavas? - perguntou Thace, com a voz estrangulada.
- Sim. Depois da morte do meu pai fiz um juramento. Talvez digam que um rapaz de 8 anos não pode fazer um juramento verdadeiro. Mas eu fiz. Jurei que os havia de vingar, durante toda a minha vida. E é este o motivo por que os odeio e quero combatê-los e quero matá-los. É para isso que vivo.
Quando terminou, sentiu que todo ele tremia e que estava gelado de frio. Desejou que se fossem embora e o deixassem só. Mas Thace continuou a fazer perguntas.
- Quem tomou conta de ti depois disso?
- A minha avó. Mandou-me à escola durante cinco anos. Depois adoeceu e como já não tínhamos que comer vendeu-me a Amalec.
- E a tua irmã?
Daniel hesitou. Sim, também tinham que saber mais isso.
- Disse-lhes que ela tinha apenas 5 anos. Naquela noite estava em casa de uma vizinha e fugiu. Nunca ninguém soube quanto tempo esteve parada em frente das cruzes antes que a encontrassem e a voltassem a trazer para casa. Costumava gritar enquanto dormia. Depois, nunca mais quis sair de casa. Se procurávamos obrigá-la, gritava até ficar roxa, caía numa espécie de desmaio, parecia mesmo morta e depois ficava doente durante muito tempo. Desistimos. Ficou sempre adoentada. Não come o suficiente. Julgo que deve ter esquecido tudo o que se passou, mas os demónios não a abandonam. Nunca mais saiu de casa.
Parou sem saber corno lhes fazer compreender como era Lia.
- É muito gentil e boa - continuou, olhando humildemente para Malthace.
Viu, com surpresa, que os olhos da rapariga estavam cheios de lágrimas. Afastou o olhar.
Desde que Daniel começara a contar a sua história que Joel não dizia uma palavra. Continuava sentado em silêncio, com os olhos perdidos no espaço. Era como se tivesse em poucos momentos, envelhecido uns anos. O homem em que se tornaria um dia, revelava-se agora na sua face de jovem. Ergueu-se num movimento impulsivo, depois ajoelhou-se com os ombros muito direitos. Daniel viu que os lábios lhe tremiam.
- Daniel! - disse, numa voz estrangulada - Também eu vou fazer o juramento! Em face do Céu, vingarei o teu pai! Juro! Lutarei contra os Romanos, enquanto viver!
Daniel ficou estupefacto ante a paixão vibrante do amigo e sentiu-se culpado. Não tivera intenção de provocar uma tal atitude. Seria honesto arrastar Joel desta maneira?
- Não! - exclamou Daniel - Não, Joel! Não é um assunto que te diga respeito.
- Isso é que diz! - gritou o outro - A mim e a qualquer judeu. O teu pai é apenas um entre os
milhares que morreram às mãos deles. Devemos fazer tudo, tudo, para libertarmos o nosso país.
Era isto o que Daniel desejava; cumprira a missão que o levara a Cafarnaum. Mas não se sentia com a consciência sossegada. Devia arrancar Joel da sua vida calma e segura de estudante, para o arrastar para o mundo perigoso e inseguro em que vivia?
Thace compreendeu. Suspirou desalentada e encostou-se à parede, olhando para o irmão com um olhar aterrorizado. Mas nos seus olhos não havia apenas terror, havia também orgulho.
Joel voltou-se para ela.
- Compreendes que é este o caminho, não compreendes Thace? Não posso continuar agarrado aos livros, enquanto coisas como esta acontecem todos os dias. Tens que perceber isto. Nós sempre pensámos da mesma maneira.
Thace olhou para o irmão tentando vencer o medo que sentia e Daniel percebeu, num relance, o significado de ser gêmeo. Thace suspirou profundamente.
- Sim - respondeu rapidamente.- Compreendo. Se eu fosse um rapaz, faria também juramento.
E, de repente, o rosto iluminou-se-lhe com o mesmo ardor que havia no do irmão.
- E porque não hei-de poder? - exclamou quase num grito- Porque não pode uma rapariga servir também Israel? E Debora e a Rainha Ester? Joel, deixa-me jurar também! Prometo ajudar-te.
O ciúme de Daniel fê-lo perder a cabeça.
- Não! - explodiu - Isto é voto para um homem! Não é para uma criança bonita!
O rosto de Thace ficou branco. O rapaz arrependeu-se, logo, ao ver quanto a magoara. O que é que o teria levado a dizer-lhe uma coisa daquelas?
Joel pôs-se imediatamente ao lado da irmã.
- Faremos então um novo juramento - disse. - Os três. Juraremos lutar por Israel para... para... - hesitou.
- Pela vitória de Deus! - acrescentou Thace suavemente - Lembram-se da senha dos Macabeus?
- Sim! É isso! Venham, vamos jurar os três. E já sobre o Livro de Henoch. Poderia ser melhor? Ponham ambos as vossas mãos sobre a minha. Juramos continuar juntos. Os três. Pela vitória de Deus!
Thace colocou a mão com firmeza sobre a do irmão.
- Pela vitória de Deus! - repetiu.
Olharam para Daniel. Estava quieto; à espera. Os três, dissera Joel, incluindo-o assim a ele, que sempre estivera posto à margem, no círculo das suas vidas. Ergueu, com esforço, a mão e colocou-a sobre a da rapariga. Sentiu-lhe os ossos frágeis e delicados.
- Pela vitória de Deus! - repetiu Daniel. Afastou-se rapidamente para a sombra, receoso de que lhe pudessem ver a expressão do rosto. Mas os dois irmãos estavam excitados demais para se preocuparem com as suas reacções.
- Agora temos que combinar o que havemos de fazer - disse Joel, solenemente. - Amanhã, à noite, trago-te...
- Oh - lembrou Thace. - Amanhã à noite é Sábado.
Joel pensou durante alguns instantes.
- Podemos vir - decidiu. - A Lei não proíbe a visita aos doentes.
- Não podemos tratar-lhe da ferida, nem vestir-lhe uma túnica lavada.
- Não tem importância - disse Daniel. - A ferida está quase curada.
- Trago-te a comida antes do pôr do Sol - prometeu Thace. - Mas em quantidade suficiente para durar durante todo o Sábado.
- Temos que combinar tudo - continuou Joel entusiasmado com a nova resolução que tomara. - Quando voltares para a montanha, vou contigo.
- Não - disse Daniel. - Não é isso o que Roch quer de ti. Precisa de um homem aqui, em Cafarnaum. Para já, é melhor que continues a ir à escola.
Pôde ver que, apesar do juramento, Joel se sentiu aliviado.
- Mas desejo abandonar a escola - insistiu Joel. - É isso que quero. Farei tudo o que me mandarem.
- Então continua na escola. Ainda não estamos prontos para a luta. Temos que esperar e prepararmo-nos. Roch tem uma ideia qualquer a teu respeito. Não sei o que é, mas quando chegar a altura, avisar-te-á.
- Tens a certeza?
- Sim. Podes contar com isso.
- Estive a pensar - continuou Joel. - Se trouxeres uma mensagem de Roch ou se voltares a fugir dos Romanos, há uma abertura na parede exterior, no ângulo da junção desta passagem com o celeiro. É usada para trazer da rua os sacos de cereais, mas é suficientemente grande para um homem poder passar; eu já experimentei. Farei com que não a fechem com o cadeado, para que a possas abrir. Dessa maneira, ninguém desconfiará de que estás aqui.
- E como sabes, tu, que cá estou?
- Também já pensei nisso. Fazes um sinal na parede.
- Um arco! - exclamou Thace - Sabes do Salmo de David que leste ontem à noite!
- O arco de bronze - gritou Daniel. Agradava-lhe saber que Thace se recordava da leitura da noite anterior. - És capaz de voltar a ler essa parte, Joel?
- Não trouxe o rolo, mas sei-a de cor - Encostou-se à parede e pôs-se a declamar: - "O Deus que me revestiu de fortaleza, e fez o meu caminho imaculado. Que tornou os meus pés rápidos como os dos veados, e me estabeleceu sobre as alturas. Que adestrou as minhas mãos para a peleja, e os meus braços para retesar o arco de bronze."
- Mas, na realidade, não podia ser de bronze - disse Daniel, admirado. - Nem o homem mais forte podia arquear um arco de bronze.
- Talvez só as extremidades fossem de metal - sugeriu Joel.
- Não - disse Thace. - Acredito que era mesmo de bronze. Penso que David se queria referir a um arco que nenhum homem pudesse dobrar e que queria dizer que, quando Deus nos dá forças, podemos fazer coisas que nos parecem impossíveis de realizar.
- Pode ser - disse Joel. - Tu sempre tens uma imaginação, Thace! - E continuou a recitar o cântico de David. - "Tu me deste o teu escudo salvador..."
- Oh - interrompeu Thace, preocupada. - Agora me lembro. O Pai pediu-me para tocar, esta noite, para os nossos convidados.
- Então, temos que ir - disse Joel rapidamente, enrolando o rolo do Livro de Henoch. - O Pai gosta que Thace toque harpa para ele ouvir - explicou, ao ver a admiração de Daniel.
O rapaz voltou-se para Thace.
- Nunca ouvi tocar harpa.
- Então, amanhã venho tocar para ti - prometeu. - Não... é Sábado. Mas não me esquecerei.
- Queres ficar com a luz, Daniel?
- Não; já estou habituado à escuridão.
Afastaram-se. A claridade foi diminuindo até desaparecer por completo. Depois, muito baixo, num murmúrio, ouviu "Boa noite, Daniel". Desta vez tinha a certeza de ter ouvido.
Ficou deitado no meio da escuridão e parecia-lhe que uma luz quente o envolvia. Juntos, dissera Joel. Os três juntos. Thace não estava contra ele.
"Que adestrou as minhas mãos para a peleja, e os meus braços para retesar o arco de bronze... "
Podia ver o arco brilhante, o arco que nenhum homem poderia dobrar apenas com a sua própria força.
Sentou-se. Compreendeu, de repente, que Joel lhe dera a resposta à sua pergunta mais premente. Chegara o momento de partir. Durante dois dias, sem que o soubessem, experimentara as forças, caminhando para trás e para diante na passagem estreita. Joel tentaria tudo para que ficasse. Mas era melhor partir. Ficariam horrorizados quando vissem que tinha escolhido um Sábado para se ir embora, porque a Lei não permite que um homem se afaste de casa mais de dois mil cúbitos nessa ocasião. Mas a Lei era para os que viviam bem, para os estudantes e não para os pobres. Já pecara tantas vezes contra ela que nem pensava em ser perdoado. Que importância tinha mais um pecado?
De madrugada, quando teve a certeza de que todos estavam ainda a dormir, saiu do esconderijo. Encontrou o trinco, às apalpadelas, e abriu a pequena porta de serviço. Deixou-se escorregar para a rua, pôs-se em pé e atravessou a cidade em direcção à montanha.
Pensou, mais uma vez, quanto gostaria de ter ouvido Thace tocar harpa. Mas tentou esquecer essa ideia. Repetiu o Cântico de David.
"Que tornou os meus pés rápidos como os dos veados, e me estabeleceu sobre as alturas ... "
Era a mesma coisa, afinal: continuaria a desejar saber como seria o som duma harpa...
Capítulo 9
Julgara-se mais forte do que na realidade estava. Muito antes de chegar à montanha, viu que saíra do esconderijo cedo de mais. Subiu a colina debaixo de um sol abrasador e teve que parar tantas vezes, para descansar, que só atingiu a vereda que levava à montanha, ao cair da tarde. Não sabia se teria forças para continuar.
Teve, de repente, a impressão que uma das rochas negras se desprendia do monte e rolava na sua direcção. Era Sansão que descia, a correr, para se vir ajoelhar a seus pés. Tentou falar mas não conseguiu articular palavra; então o gigante, com os braços enormes, pegou delicadameente no rapaz e levou-o ao colo até à caverna.
Durante três dias não consentiu que Daniel se levantasse. Velou por ele, noite e dia, como uma sombra. Dava-lhe água misturada com vinho e infusão de lírios da montanha. Escolhia os melhores bocados de comida e, se necessário, tirava-os da frente do próprio Roch.
Daniel notou que os homens já se tinham habituado a Sansão e o tratavam melhor, embora evitassem sempre ter com ele qualquer questão. A situação de Daniel tornara-se, também, diferente.
A notícia do que fizera na cidade chegara à caverna dias antes, por intermédio dos infalíveis espias de Roch. Consideravam-no já perdido para sempre, pensando que teria sido preso ou estaria morto. Alguns dos homens admiravam a coragem que tivera; outros sentiam-se aliviados por ver que voltara e que ficaria, de novo, com Sansão a seu cargo. Durante uns dois ou três dias trataram-no como se fosse um herói, depois foram esquecendo o caso e a vida na caverna continuou igual ao que sempre fora.
Mas, para Daniel, tudo mudara. Nunca admitira a si próprio o sentir-se solitário na montanha. Venerara e temera Roch. Lutara, comera e dormira lado a lado com os homens duros que compunham o seu bando. Mas, os poucos dias que passara no esconderijo, perto de Joel, haviam-lhe desvendado um novo mundo. Encontrara alguém com quem podia conversar, alguém que pensava como ele e que, espontaneamente, quisera fazer o mesmo voto, compartilhar o mesmo fardo. A recordação do juramento, brilhava dentro de si como um carvão incandescente brilha no seio da forja.
Deitado de costas sobre as rochas cinzentas aquecidas pelo sol, evocava as crónicas que Joel lera em voz alta, os feitos gloriosos de Josué, de Fineias, de Saul e de David. E, mais do que qualquer outro, evocava Judas Macabeu, a quem haviam ido buscar a palavra de senha. Os outros tinham vivido e lutado em épocas muito longínquas. Mas Judas vivera numa época que se assemelhava à sua, há menos de duzentos anos, quando Israel estava, como agora, à mercê do invasor. Judas, ajudado pelo pai e pelos irmãos, ousara erguer-se e desafiar o opressor e Israel voltara a ser livre. Aqui, nestas mesmas montanhas, Judas, jovem, ousado e astuto como uma pantera, escondera-se dos inimigos e atacara-os de surpresa. E muitos heróis deram, alegremente, a vida por Judas. E nada fora demais, nunca fora. Agora!... quantos jovens não desejavam ter a mesma sorte e a mesma possibilidade de lutar. Mas juntos, ele e Joel, haviam de encontrá-los.
E Thace? Não confiava ainda em Thace. Durante toda a sua vida, conhecera apenas duas raparigas e nunca as compreendera. Comparada com a irmã, Thace era como um lírio brilhante e escarlate, vivo e ousado. Seria leal a Joel, mas, em relação a todas as outras coisas, era imprevisível. O simples facto de pensar nela perturbava-o. Tentou esquecê-la, tal como tentara esquecer Lia. E ambas, tão profundamente diferentes, pareciam ter de comum a capacidade de lhe alterarem todos os planos.
A ideia de voltar a ver Joel enchia-lhe todos os pensamentos. E, mais cedo do que esperava, surgiu uma oportunidade inesperada de rever o amigo. Uma semana mais tarde, estava ele a trabalhar na forja fazendo um trabalho leve, que era o que Sansão consentia quando Roch lhe levou uma adaga para arranjar. Era uma adaga especial que o chefe usara durante anos como um talismã e que, por um acaso mal afortunado, deixara cair para um abismo. Mandara cinco homens procurá-la. Os quatro primeiros tinham voltado de mãos vazias, mas horas mais tarde o quinto, exausto e escorrendo sangue, trouxera-a para cima. Recebeu-a com uma gratidão sem limites. Ficara torta, meia solta do cabo e praticamente inutilizada.
- Arranja-a - disse a Daniel. Este pegou na adaga. Sabia o que era preciso fazer para consertar a arma, mas sabia, também, que não podia fazer o trabalho.
- Não tenho os instrumentos necessários explicou a Roch. - Precisa de um novo cabo e de ser cravada. A minha forja não tem calor suficiente para esse trabalho.
- Então arranja os rebites para a cravar.
Daniel olhou para Roch. Seria muito mais fácil arranjar outra adaga, mas sabia que Roch dava uma importância especial a esta arma.
- Vou procurá-los na cidade? - perguntou.
- Procura-os onde os houver. Esse teu amigo, Simão, disse que era ferreiro. Vai lá buscá-los.
Recordou-se que Roch e Simão não viam as coisas da mesma maneira.
- Vou lá comprá-los?
- Comprar? Simão é um Zelota. Pode muito bem dar um pedaço de metal para a causa.
Daniel acordou na manhã seguinte desejando que Roch se tivesse esquecido da conversa, mas viu imediatamente que estava mais decidido do que nunca a ter a adaga arranjada. Não deu dinheiro ao rapaz. E Daniel, durante todo o caminho para a aldeia, procurou inventar uma razão com que pudesse convencer Simão. Os bocados de metal de que necessitava eram bastante caros. Talvez Roch pensasse que bastava chegar à aldeia e apanhá-los como quem apanha abóboras num quintal. Pensou que talvez pudesse, sem Roch saber, propor a Simão trabalhar durante um dia na loja em troca dos pedaços de metal.
A forja estava fechada e tinha uma corrente e um cadeado na porta. Era estranho, porque se Simão se tivesse ausentado da aldeia para consertar uma fechadura ou um arado, não fechava a loja. Sentou-se no degrau de pedra e ficou à espera. Mas, passado um bocado, já não se sentia à vontade. Cada vez se lhe arreigava mais a ideia de que Simão tinha partido, e foi sem surpresa que ouviu um dos homens que passava, dizer-lhe:
- Se estás à espera do ferreiro, tens muito que esperar. A loja está fechada há um mês.
- E onde está Simão? - perguntou Daniel.
- Foi-se embora. Ouvi dizer que seguiu um pregador que esteve cá há uns tempos. Se precisas de algum trabalho, há um novo ferreiro em Chorazin.
Tinha ido atrás de um pregador! Daniel recordou-se imediatamente daquela manhã de Sábado e da expressão estranha que vira nos olhos de Simão. "Não sei o que ele pretende", dissera Simão, "mas hei-de descobrir."
Que teria descoberto, para estar ausente há um mês?
Daniel, depois de ter vivido cinco anos com Roch, sabia que não podia regressar sem o metal. E sabia, também, o que o chefe esperava que ele fizesse. Mas Simão fora bom para ele e não tinha coragem de entrar na loja e roubar-lhe nada. A única coisa a fazer era ir à procura de Simão e esta ideia era-lhe bem agradável. Tinha um pretexto para voltar a Cafarnaum.
Mas reconhecê-lo-iam na cidade? Era natural que não. Tinha uma ideia a respeito dos Romanos. Para ele, eram todos iguais. E pensava que, para os Romanos, todos os Judeus deviam ser semelhantes. Tinha a certeza de que, raramente, curvavam os pescoços emproados para olharem mais demoradamente para um judeu. Havia muito poucas probabilidades de que o soldado se lembrasse dele. De qualquer modo, o melhor era tentar. Levantou-se e pôs-se a caminho de Cafarnaum.
Chegou à cidade a meio da tarde e dirigiu-se imediatamente para o porto. Se alguém podia saber onde o pregador estava, eram os pescadores e as mulheres destes. Sabiam sempre quando ele lá ia e era natural que também soubessem onde passava o resto do dia.
Estava tudo calmo e sossegado. Os Judeus costumavam dizer, em tom de brincadeira, que só os cães e os soldados trabalhavam durante as horas de calor. As pesadas barcaças vogavam molemente ao sabor das vagas. Não muito longe, na praia, alguns homens preparavam, com gestos lentos e arrastados, os barcos de pesca para o trabalho da noite.
Aproximou-se de um pescador que enrolava a rede.
- Ando à procura de um pregador - explicou. - Ouvi-o falar uma vez, aqui, de manhã.
- É o carpinteiro. Agora deve estar na cidade. Mas amanhã volta cá, com certeza.
- E onde posso encontrá-lo, agora?
- Isso é mais difícil. Umas vezes vai pregar. Outras vezes trabalha no ofício. Mas podes encontrá-lo, à noite, em casa de Simão bar Jonas, em Betsaida. É lá que dorme.
Betsaida ficava do outro lado da cidade, a cerca de duas milhas. Daniel tinha ainda muitas horas à sua frente antes de a noite cair. Havia, assim, uma desculpa para fazer o que tanto desejava. Subiu a colina e dirigiu-se a casa de Hezron. Procurou a porta, que se abriu mal lhe tocou. Pegou num seixo aguçado e traçou no muro o desenho de um arco. Olhou cuidadosamente para todos os lados, meteu-se depois pela abertura e foi ter ao esconderijo.
Esperou bastante tempo. Por duas vezes foi até à porta espreitar. As sombras começavam a descer e Daniel sabia que dentro em pouco teria que se pôr, de novo, a caminho. E, quando já perdera toda a esperança, chegou Joel.
- Tenho vindo aqui todos os dias, mas nunca supus que voltasses tão depressa.
- Foi por acaso. - E explicou-lhe o caso da adaga.
- E como estás agora, Daniel? Thace disse que a tua ferida não estava ainda bem cicatrizada. Devias ter ficado mais tempo aqui.
Joel, como sempre pensava em tudo, trouxera-lhe uma fatia de pão, que Daniel devorou.
- Preciso de encontrar Simão. Vão sendo horas de me pôr a caminho de Betsaida - Hesitou um pouco e depois perguntou - Podes ir comigo? Gostava de saber a tua opinião sobre esse tal Jesus.
Joel ficou pensativo.
- Fala-se dele por toda a parte - acabou por dizer. - Pensas que será um Zelota? O Pai diz que é um homem perigoso. Gostava de conhecê-lo. Está bem, arrisco-me a ir também.
Os dois rapazes sairam do esconderijo ao anoitecer e Joel guiou o amigo pelas ruas menos frequentadas até chegarem ao atalho mesmo por cima do lago. Lá em baixo quatro homens empurravam um barco para a água. Depois, três deles subiram para o barco; um pegou nos pesados remos e o que ficara na margem deu um empurrão e a embarcação afastou-se lentamente da margem, enrugando a imagem reflectida na superfície espelhada da água.
O remador começou a cantar e os outros acompanharam-no em coro. E durante muito tempo, à medida que os rapazes avançavam, a canção como que flutuava sobre o lago, envolvendo tudo numa estranha tristeza.
A aldeia de Betsaida era um amontoado de cabanas de pescadores perdida numa escuridão profunda. Das portas abertas saía uma luz enevoada. Seguiram por uma rua estreita até encontrarem um homem e uma mulher que caminhavam lentamente com um rapazito, que tropeçava, no meio de ambos. Antes que Daniel pudesse fazer qualquer pergunta, o homem interpelou-os.
- Sabem onde fica a casa de Simão, o pescador?
- É do que andamos também à procura.
O homem abanou a cabeça.
- Com tanta gente a procurar, não deve ser difícil encontrar. Mas o garoto começa a estar cansado. Partimos hoje de Caná e fizemos todo o caminho sem parar. Disseram-nos, na cidade, que o pregador devia estar em casa de Simão.
Daniel olhou para o rapazito e notou que um dos braços estava encostado ao corpo, e embrulhado no manto.
- É a mão - explicou a mulher. Afastou o manto e os rapazes puderam ver a carne vermelha e inchada. A criança olhou-os com raiva, tapou-se de novo com o manto e continuou a caminhar de cabeça baixa.
- Foi mordido por um camelo - disse o homem. - Há dois meses e não há maneira de se curar. Sou tecelão, o rapaz há-de seguir o meu ofício e um tecelão precisa de ter as duas mãos boas.
- Só ouvimos falar do pregador ontem - disse a mulher. - E não perdemos tempo. Daniel estava admirado.
- Este pregador também é médico? perguntou.
- De onde vêm, que nunca ouviram falar do pregador? - perguntou o homem. - O nosso vizinho, que chegou de Cafarnaum, diz que não se fala lá noutra coisa. O meu vizinho viu-o curar um homem que era coxo há vinte anos. O homem corria, disse-me ele, corria como um rapaz. Se o pregador pode fazer isso, também pode curar o meu filho.
Daniel olhou para Joel, pouco à vontade.
- Tinhas ouvido falar nisso? - perguntou-lhe em voz baixa.
Joel hesitou.
- Falou-se nisso. O Pai diz... - Interrompeu-se e continuaram a caminhar em silêncio, guardando para si próprios as dúvidas que sentiam. Parecia-lhe um crime terem obrigado uma criança a fazer uma caminhada daquelas, desde Caná.
Ouviam agora o murmúrio de vozes. Seguiram o som e chegaram a um beco, no fim do qual distinguiram o contorno de uma casa.
O rectângulo de luz da porta da rua estava obscurecido por figuras sombrias. O quarto estava cheio de gente e as pessoas que não cabiam lá dentro agrupavam-se no pátio, impedindo a entrada em casa. Alguns estavam sentados no chão, de pernas cruzadas, outros encostados ao portão. Pareciam estar à espera. Daniel reparou que muitos eram doentes. Os que não podiam andar tinham sido levados de qualquer maneira e estavam estendidos no chão em leitos improvisados. E, por toda a parte, se viam bengalas, muletas e ligaduras. Do forno de barro, num dos cantos do pátio, subia um rolo de fumo que se espalhava num cheiro acentuado a peixe frito.
Os rapazes pararam junto dos doentes e Daniel tocou na manga da túnica de um homem que estava encostado à porta.
- Paz - disse-lhe.
- Paz - respondeu o homem. - Não há lugar lá dentro. O Mestre, assim que acabar de comer, sai.
- Ando à procura de um amigo d'Ele - explicou Daniel. - É Simão, o ferreiro, de Ketzah. Conhece-o?
- O Zelota? Está lá dentro. - O homem inclinou-se para a porta e chamou - Simão! Estão à tua procura.
As pessoas, que enchiam a entrada da casa, afastaram-se e Simão apareceu.
- Estou aqui, Simão. Sou Daniel, de Ketzah.
- Daniel! - A voz de Simão vibrava de satisfação - Ainda bem que deste com a casa. Vem para dentro. Já comeste?
Os dois rapazes entraram para o pequeno quarto cheio de fumo, abafado, onde se acotovelavam, já, imensos homens de barbas negras. O cheiro do pão fresco, do peixe e do óleo entonteceu Daniel. Apresentou Joel a Simão.
- Pelo teu aspecto deves ter acabado de chegar da montanha - disse-lhe o ferreiro. - Mas primeiro têm que conhecer o Mestre. E, apoiando as mãos nos braços dos rapazes, guiou-os através do quarto.
Daniel ficou face a face com o carpinteiro. O homem olhou-o directamente nos olhos e Daniel sentiu que todos os outros pensamentos se desvaneciam. Aqueles olhos, cheios de luz e calor, acolhiam-no com amizade, apesar de serem inquiridores, perturbadores, exigentes.
- Ainda bem que vieste - disse Jesus.
Daniel não conseguiu responder. Por momentos teve medo. E, só quando o homem desviou o olhar do seu, conseguiu voltar a respirar naturalmente.
Simão arranjou lugar para os rapazes entre dois homens corpulentos que cheiravam a peixe e a alho. Alguém levara Jesus para o lugar de honra no topo da mesa. As mulheres passavam agora no meio dos homens, carregando travessas de madeira cheias de pão, alface, pequenos peixes, fritos em azeite. Puseram os pratos em cima da esteira, em frente de Jesus, que olhou para elas com um sorriso cheio de simpatia.
- Devem ter tido muito trabalho, minhas filhas - disse- para arranjarem uma ceia para tanta gente.
As mulheres entreolharam-se sorridentes e com as faces morenas muito coradas. Jesus estendeu a mão e tirou uma fatia de pão da travessa.
Da extremidade da mesa ergueu-se uma voz.
- Mestre - disse um dos homens - ninguém nos deu água para lavarmos as mãos. Nesta casa não se cumpre a Lei?
A dona de casa sobressaltou-se e levou a mão à boca num movimento apreensivo. De um momento para o outro, todo o prazer e orgulho que sentia tinham desaparecido.
- Era necessário? - e voltou-se para o carpinteiro com um olhar suplicante - Não pensei que eram tantos...
- Não estejas aflita - respondeu-lhe Jesus, suavemente.- Não era necessário. Depois, dirigiu-se directamente ao homem que falara - Nesta casa a comida foi-nos dada com amor - disse lentamente. - Que os nossos corações estejam mais limpos do que as nossas mãos, para receber esta dádiva.
Ergueu-se e a sua longa túnica branca parecia reflectir toda a luz que existia no quarto. E, sobre o pão, disse a oração de graças. Depois, passou a travessa ao homem que estava sentado a seu lado.
Daniel olhou de relance para Joel. O rapaz, com ar perturbado, tirara um pequeno pedaço de pão e levara-o à boca. E Daniel sentiu que, pela primeira vez na vida, Joel, deliberadamente, deixara de cumprir a Lei. Também ele devia ter percebido a censura implícita nas palavras do carpinteiro.
Depois da refeição terminar, Jesus levantou-se e agradeceu de novo, a Deus e às mulheres da casa, depois atravessou o quarto cheio de gente e dirigiu-se para a porta da rua. Ergueu-se um clamor no pátio, um frenesi de gemidos, gritos, de vozes suplicantes.
- Deixa-me tocar-te, Rabi. Deixa-me apenas tocar a bainha da tua túnica!
- O meu filho, Rabi! Há sete dias que tem febre!
- Volta-te para aqui, Mestre! Olha para mim! Não posso mexer-me!
Jesus parou por instantes na soleira da porta, olhando para a multidão que o esperava. Daniel, que estava quase a seu lado, esteve a ponto de o agarrar para o puxar de novo para trás. Aquela gente lá fora - tão frenética - podia desfazer um homem em pedaços! Mas Jesus estendeu a mão e falou e, imediatamente, o clamor cessou. Algumas vozes continuaram suplicando e ouviam-se ainda murmúrios, mas a multidão aguardava com calma. Jesus desceu para o pátio e caminhou serenamente por entre o povo. Mãos débeis erguiam-se para Ele, agarravam-Lhe e puxavam-Lhe a túnica. Alguns dos doentes inclinavam-se para O tocarem e, quando não podiam alcançá-Lo, beijavam o chão que Ele pisava. E Jesus ia parando junto de todos. Por vezes falava com palavras calmas e suaves. Outras vezes, num gesto breve, tocava num homem ou numa criança. O que Ele dizia ninguém conseguia ouvir.
De repente, ouviu-se um grito.
- Estou curada! gritou uma mulher- Ele curou-me! Estou bem! - E, de novo, o clamor se ergueu, abafando a voz da mulher.
As mulheres que tinham servido Jesus passavam agora por entre a multidão com as travessas de comida e os pescadores de barbas ajudavam-nas. À medida que a comida passava, as mãos estendiam-se, agarravam-na, levavam-na à boca com avidez frenética. E Daniel compreendeu então, por que motivo os que estavam dentro de casa tinham comido tão pouco. Não teria chegado, de outro modo, para satisfazer esta multidão esfomeada. Ao vê-los assim, estremeceu. De onde teriam vindo estes infelizes que se tinham arrastado até ali, na esperança de um pedaço de pão?
Daniel viu, então, o homem e a mulher que encontrara na estrada. Estavam quase junto de Jesus. No momento em que Ele se voltava, empurraram a criança para a sua frente. A mulher ajoelhou-se e escondeu a face. O homem ficou de pé, de frente para o Mestre. Nesse momento, a passagem de uns homens que transportavam um leito, impediu que continuasse a vê-los e, quando os viu de novo, estavam já a atravessar o portão. Correu atrás deles.
- Viram-No? - perguntou - Ele falou-lhes? A face da mulher estava banhada em lágrimas. No seu olhar havia uma expressão deslumbrada e não conseguia falar. E no homem o mesmo olhar deslumbrado.
- O rapaz está curado - respondeu.
- Como sabem? - perguntou Daniel- Já viram?
- Não. Não vi. Mostra-me o teu braço - pediu ao filho.
O rapazito afastou o manto e ergueu a mão.
- Já não me dói - disse, admirado.
Daniel estremeceu. Aproximou-se mais.
- Ainda está inchado! - disse ao homem, em tom de acusação.
O homem não olhou.
- A dor desapareceu - respondeu. - O inchaço também há-de desaparecer.
- O que fez ele? Tocou-lhe?
- Não - disse o homem. - Não me parece que lhe tenha tocado. Comecei a contar-lhe a nossa desgraça, mas não fui capaz de falar. A única coisa que podia fazer era olhar para Ele. E depois senti que o meu filho já estava bem.
Daniel ficou furioso.
- Mentira! - gritou - Deve haver uma habilidade...
- Mas porque havia eu de mentir? - e o homem olhou-o com firmeza - É o que te digo, a mão do rapaz está curada e agora já pode vir a ser um tecelão.
Simão ficara no pátio com Joel. Daniel foi ter com ele e balbuciou:
- Aquele rapaz, Simão, disse que tinha o braço curado!
Simão não pareceu ficar surpreendido, nem sequer perguntou de que rapaz se tratava.
- Sim - respondeu calmamente.
- Mas eu vi, vimos ambos, ainda não há uma hora. E o rapaz diz que lhe deixou de doer.
- Muitas pessoas ficaram curadas esta noite - disse Simão.
- É impossível! Que habilidade fazem?
- Tu próprio disseste que viste o braço. Que te parece?
- Não compreendo.
- Nem eu - respondeu Simão. - Mas tenho que acreditar naquilo que vejo. E já vi isto acontecer muitas vezes.
Joel, pensativo, perguntou:
- É um mágico?
- Nenhum mágico pode fazer as coisas que Ele faz. Afirma que o seu poder vem de Deus.
- Mas os outros, todos os outros?
- Não sei o motivo por que nem todos ficam curados. Parece que é preciso que haja também qualquer coisa da parte da pessoa, uma espécie de entrega. A criança que viste, ou os pais, devem ter tido essa fé.
- Talvez o braço, de qualquer modo, acabasse por ficar bom.
- Talvez - respondeu Simão. Tocou no cotovelo de Daniel para lhe chamar a atenção. - Espera agora, vai falar.
E, pela terceira vez, Daniel sentiu um desejo intenso de responder ao apelo daquela voz. Não era a voz alegre e imperativa que ouvira na praia cheia de sol. Esta noite, era uma voz suave que descia sobre todo aquele povo sofredor como uma carícia reconfortante. E, no entanto, apesar de toda a suavidade, era uma voz forte e segura.
- Não tenhais medo - dizia-lhes Jesus.- Porque vós sois filhos de Deus. E um pai não conhece a dor e a necessidade dos seus filhos? Porque Eu digo-vos que nem mesmo uma avezita do céu cai no solo sem que o nosso Pai o saiba, e vós tendes mais valor que muitas avezitas do céu. Suportai com paciência o vosso sofrimento porque Deus vos guardará um lugar no seu Reino.
O Reino! Daniel olhou à sua volta. Para quê falar em Reino a estes miseráveis famintos? O que representava para eles quando nenhum podia, sequer, erguer uma mão para lutar? Mas viu que todos os rostos, manchas brancas destacando-se na escuridão, se voltavam para aquele homem. As respirações estavam como que suspensas. Ouviam estas palavras como se fossem alimento de que nunca se saciassem.
- Deveis amar-vos uns aos outros - continuava a voz - porque cada um de vós é precioso para Deus.*
Nota: Este texto, assim como outros dispersos pela obra, apenas resumem palavras de Jesus (N. T.).
O homem de longa túnica branca cambaleou ligeiramente. Parecia estar muito cansado. E logo um dos pescadores se aproximou. Outro saiu de casa com uma lanterna acesa. Juntos, afastaram-se da multidão e levaram-no através do quintal. As pessoas olhavam-nos, calmas, quase deslumbradas pela fascinação daquela voz suave. Os três subiram a escada exterior e entraram no abrigo do telhado.
Daniel endireitou os ombros, tentando libertar-se daquela fascinação que parecia irmaná-lo, intimamente, com a multidão silenciosa. Recordou-se do motivo que o conduzira até ali.
Simão ouviu, sem mostrar grande interesse pelo pedido de Roch. Daniel tinha quase a certeza de que iria recusar, mas em vez disso olhou-o firmemente e perguntou pensativo:
- Esse Roch, tens muita fé nele, não tens?
- Claro que tenho.
- Está bem. Não tenho nada disso de que precisas na minha loja. Mas há uma loja, aqui, na cidade, na Rua dos Ferreiros. É a que tem uma ferradura de bronze na porta. Algumas vezes faço lá alguns trabalhos. O dono da loja chama-se Samuel e ainda me deve uns salários. Diz-lhe que te dê as coisas de que precisas.
- Então os teus salários?...
- Neste momento não tenho grande necessidade de dinheiro. Leva as coisas.
Daniel não se podia despedir do amigo sem lhe fazer a pergunta que tanto o preocupava.
- Ficas com Jesus, Simão?
- Se Ele me quiser.
- Ele é um dos nossos?
Simão sorriu.
- Queres dizer, um Zelota?
- Não foi por isso que vieste? Pediste-lhe que se juntasse a nós?
- Quando vim, a minha ideia era mais ou menos essa - admitiu Simão. - Mas as coisas não se passaram como eu esperava. Não, não pedi a Jesus que se juntasse a nós. Tudo o que mais desejo agora é que me peça para me juntar a Ele.
O rapaz sentiu que não conseguiria obter uma resposta mais concreta. Em silêncio, os dois encaminharam-se para a estrada. E quando Joel quebrou o silêncio, a sua voz juvenil traía uma perturbação profunda.
- Como pode Ele chamar àquela gente filhos de Deus? Nunca ouviram falar na Lei. São impuros desde que nasceram.
Para Daniel isto era um aspecto sem grande importância. Também ele próprio estava muito afastado da Lei.
- Talvez a esperança lhes não faça mal - sugeriu.
- Mas não têm o direito de ter esperança!
Joel calou-se, tentando conciliar, de uma forma que Daniel não podia compreender, aquilo que ouvira com tudo quanto aprendera durante toda a sua vida.
- Creio que o Pai tem razão - disse por fim, mal disposto. - Este homem não é um verdadeiro Rabi. Praticamente chegou a dizer que estava muito bem comer sem lavar as mãos. Talvez que o simples facto de o ouvirmos seja perigoso. E no entanto...
E uma dúvida, apenas pressentida, insidiosa, erguia-se na escuridão que os envolvia e acompanhou-os no seu regresso à cidade.
Uma manhã, cinco dias mais tarde, estava Daniel sentado no atalho da montanha, à espera. Apesar do ardor do sol ser cada vez mais intenso, tinha as palmas das mãos frias e húmidas. O homem de quem estava à espera podia aparecer de um momento para o outro. Era o primeiro trabalho que tinha que fazer completamente só. Não podia falhar. Claro que havia poucas probabilidades de falhar, senão Roch não o teria mandado. Compreendia que, da parte de Roch, isto equivalia a uma oferta para lhe retribuir o arranjo da adaga. Mas, por outro lado, era também uma experiência, o gênero de experiência fácil de que o chefe se servia muitas vezes para experimentar, se um homem lhe podia ser útil.
"Virá só - dissera. - Viaja sempre só, pelas estradas afastadas, aquele velho sovina. Faz-se passar por mendigo e pede a toda a gente um bocado de pão para comer. Mas, se quisesse, podia comprar o palácio do Petrarca. Vive como um miserável mas todos os meses atravessa a montanha e vai até à costa com um saco cheio de ouro, que entrega depois a um amigo, que lhe compra as propriedades em Antioquia. Um dia desaparece de aqui e vai passar o resto dos dias a viver como um rei. Mas, primeiro, tem que ajustar contas comigo. Desta vez o saco é para mim.
Era esta a ideia de justiça de Roch e o género de desporto que mais lhe agradava. Apresentou as coisas a Daniel como se esta oportunidade fosse um privilégio. A princípio o rapaz concordou. Porque havia um velho miserável e avarento de viver como um rei em Antioquia, enquanto os Judeus se fartavam de trabalhar e morriam de fome? Para mais, a coisa seria feita ràpidamente. Um pedaço de estrada deserta, um momento de susto - e o homem seguiria o seu caminho são e salvo, mas não sem ter contribuído primeiro para a liberdade do seu país. Bastante justo, pensou Daniel. E, apesar de raciocinar assim, não se sentia à vontade.
Depois de quase uma hora de espera, o homem surgiu na curva da estrada. Escondeu-se atrás de uma rocha e aguardou. O outro subia lentamente, respirando com dificuldade. Enganaria qualquer um, com aqueles andrajos e aquele andar vacilante. O aspecto do homem deu-lhe a sensação de que o trabalho seria ainda mais fácil do que julgara. Assim que o miserável passou em frente do rochedo, Daniel saltou.
O homem não resistiu. Pôs-se de joelhos, servilmente. Que era um pobre homem, lamuriou, que nada possuía que pudesse excitar a cobiça. Daniel obrigou-o a levantar-se e deitou-lhe a mão ao cinto. Então, como uma cobra, o homem atacou. Daniel quando viu o brilho da lâmina do punhal só teve tempo para lhe torcer o pulso. Os olhos do mendigo eram duros. Lutaram num silêncio de morte. Quem poderia imaginar que aquele corpo esquelético tinha tanta força? Foi então que Daniel viu o outro punhal, desta vez na mão esquerda. Esquivou-se e deu-lhe um soco, o homem caiu de costas no chão.
O rapaz ficou de pé, ofegante. Tirou-lhe o cinto.
O saco do dinheiro lá estava; era um saco enorme e cheio. Prendeu-o à cintura e afastou-se. o trabalho estava feito.
Quando chegou à curva, olhou para trás. O outro continuava estendido na estrada, e de repente, uma recordação há muito esquecida voltou-lhe à memória com a violência de uma pancada. E, por momentos, ali ficou parado, sentíndo-se aflito e sem saber ao certo o que significava aquela recordação. Depois tudo se tornou claro. Quantas vezes, durante a infância, acordara de manhã muito cedo e vira o avô estendido assim na esteira com o turbante desfeito e pendurado de ambos os lados da careca cor-de-rosa e os músculos do pescoço esticados como tendões das pernas dos frangos?
Maldito Roch! Daniel via agora o que as ordens significavam. Devia afastar-se dali o mais depressa possível. Olhou para cima, para a colina rochosa. Se alguém estivesse a observá-lo, assim que chegasse ao acampamento rir-se-iam dele. Mas não podia abandonar no meio da estrada, sem auxílio, um velho que se parecia com o avô. Voltou para trás, ajoelhou-se e afastou os andrajos para ver o peito do velho. Sentiu, aliviado, que o coração ainda batia. Pegou no homem, levou-o para o outro lado da estrada e deitou-o à sombra de um rochedo. Depois sentou-se e ficou à espera.
Passou~se ainda bastante tempo antes que recobrasse os sentidos. Por fim despertou, voltou a cabeça e Daniel sentiu a cólera subir ao ver o terror naqueles olhos.
- Deixa-te estar deitado - gritou. - Não te vou fazer nada. Espera até te sentires em condições de caminhar.
Mas o velho não esperou. Pôs-se em pé e afastou-se.
- Espera - disse Daniel. - Pega lá nisto. Podes precisar dele.
E estendeu-lhe um dos punhais que, uma hora antes, lhe havia posto a vida em perigo. Ficou a observá-lo até o ver desaparecer na curva por onde viera.
Quando chegou ao acampamento atirou com a bolsa para os pés de Roch. Ele apanhou-a, avaliou-lhe rapidamente o peso balançando-a na palma da mão, abriu os cordões e deixou cair uma mão-cheia de moedas brilhantes em cima da pedra. Algumas saltaram e rolaram e Roch espalmou a mão para as segurar.
- Ah! - regozijou-se - Que bela manhã. O velho camelo já tem agora com que se preocupar.
Daniel ficou calado, à espera.
- Também lhe tiraste o punhal? Daniel deitou-o para o chão. Já sabia o que ia acontecer. Alguém tinha contado o que se passara.
- E o outro?
- Entreguei-lho - disse Daniel. - Não podia viajar sem ele.
Roch olhou-o com ar trocista.
- Com que então foste levado pelas lamúrias do velho. Sempre te julguei mais esperto.
O rapaz não respondeu. Roch esfregava uma moeda entre os dedos sujos.
- Pensas que te vai agradecer? Espera até o encontrares na cidade. Devias ter acabado logo com ele.
- Não me disseste que o matasse - respondeu Daniel aborrecido.
- Esperei que te servisses da cabeça. Que diabo tens tu? Tens medo de umas gotas de sangue?
- É sangue romano que eu quero! - explodiu Daniel - Lutamos contra os Judeus?
Roch meteu as moedas no saco, apertou os cordões e ergueu-se. Apesar do brilho perigoso que tinha no olhar, a voz era calma.
- Louco! Descansa que te hás-de fartar de sangue romano! Perdeste o teu tempo comigo? És ainda um desses estúpidos camponeses que se atiram aos Romanos de mãos vazias? São precisos homens, armas e comida. E tudo isto tem que ser pago com dinheiro. Mete bem isto na cabeça de uma vez para sempre - vamos buscar o dinheiro onde o podemos encontrar!
Daniel cerrara os lábios e continuava de olhos no chão.
- Achas que esse velho miserável te dava dinheiro para libertar Israel? - continuou Roch - Preferia morrer! Morrer decentemente pelo país era ainda mais do que ele merecia. E o que se perdia? um velho a mais ou a menos...
De repente, e numa das suas bruscas reviravoltas de disposição, aproximou-se do rapaz e pôs-lhe uma das mãos no ombro.
- Sei o que estás a pensar. Que é melhor não matar, sempre que se pode evitá-lo. Mas há um defeito em ti, rapaz, um traço de brandura. Há anos que noto isso. É como uma fenda num pedaço de metal. Ou tu corriges isso ou então não nos podes servir para nada. Quando chegar o momento não há lugar para os fracos.
Daniel recuou.
- Espera um pouco! - gritou Roch segurando o ombro do rapaz como se quisesse dominar a revolta que sentia crescer dentro dele - Não estou a falar em covardia. Julgas que não te conheço por dentro e por fora? Mas a brandura pode ser tão perigosa como a covardia. E, por todos os profetas, hei-de destruir essa brandura em ti, nem que seja a última coisa que eu faça na vida. Um dia hás-de agradecer-me!
Tirou a mão do ombro do rapaz, dominou-se e ficou à espera. Daniel olhou para o rosto barbado, marcado pelo tempo, para os olhos negros e orgulhosos do homem que, durante cinco anos, fora o seu herói, e a desconfiança que sentira desapareceu. Fora vencido pela lógica de Roch ou pela amizade rude que percebera na voz rouca e na mão pousada sobre o seu ombro? Procurou libertar-se e pôde ver a satisfação do homem quando a sua mão, treinada na bigorna, afastou a garra de ferro do chefe.
"Roch tem razão", pensou depois, ao retomar o trabalho. "Tem mais razão do que supõe." Mas teria a mesma paciência se pudesse ver o que se passava no espírito de Daniel? Sabia quanto ele desejava o momento de poder lutar contra os Romanos. Mas desconhecia todos os outros pensamentos em que se enredava como em teias de aranha quando acordava a meio da noite. Lia. A avó. Thace! Sentiu-se corar. Não podia transigir com tais fraquezas. Ergueu o martelo e bateu no metal amolecido, pancada após pancada, como se fora na sua própria fraqueza que batia. Levou o metal ao fogo e viu-o aquecer até ao rubro, retirou-o com as tenazes e voltou a bater-lhe até os braços lhe doerem. Saberia libertar-se desse defeito!
E, como uma falha que reaparece, a dúvida voltou. Os argumentos de Roch também teriam falhas? Não conseguia percebê-las, mas sentia que existiam. Desejou poder conversar com Joel sobre esse assunto. Joel talvez pudesse encontrar a resposta nas Escrituras que estudava. Pelo menos Daniel aprendera na infância que havia uma resposta nas Escrituras, porque Moisés escrevera na Lei uma resposta para todas as situações em que um homem se pudesse encontrar: "Não matarás". Mas essa resposta não se aplicava à guerra. E que diferença faria se houvesse uma resposta e ele soubesse o capítulo e o versículo? Roch tinha a sua própria lei.
E, súbitamente, sentiu que ecoavam na sua memória estas palavras: "Porque cada um de vós é precioso para Deus." Não eram da Escritura, eram as palavras do carpinteiro. Sentiu-se confuso. Para Roch, um homem era uma coisa de que se podia utilizar, como um instrumento ou uma arma. Para Jesus, era um filho de Deus. Sê-lo-ia também o velho miserável com o saco de dinheiro?
Bateu no metal com tal violência que se ergueram faíscas e o ferro se partiu em pedaços como barro. Teve que voltar a aquecê-lo e começar tudo outra vez. Sansão, junto ao fole, olhava-o admirado.
Capítulo 10
Ebol, a sentinela, trouxe a mensagem a Daniel numa abafada manhã de Agosto. Era uma simples frase gravada num fragmento de barro partido. "A tua avó está a morrer", assinado "Simão". A mensagem fora entregde a Ebol três dias antes e ninguém podia calcular por quantas mãos teria passado antes de chegar ao seu destino. Melhor fora que nunca tivesse chegado, pensou Daniel ferozmente, guardando-a no fundo da bolsa que trazia à cintura. E durante metade do dia trouxe-a assim consigo, sem dizer nada a ninguém; mas o pedaço de barro cada vez parecia mais pesado. Acabou por mostrar a mensagem a Roch e partiu para a aldeia.
A porta da casa da avó estava fechada e, quando bateu, ninguém respondeu. Ficou parado sem saber que fazer. Da casa mais próxima sairam duas mulheres, seguidas por um velho fraco e débil.
- Já era tempo de vires - disse uma das mulheres em ar de censura. - Há dez dias que estão fechadas lá dentro. Não sabemos se a velha ainda estará viva.
- Porque não arrombaram a porta? - perguntou Daniel.
- A rapariga está possuída pelos demónios - respondeu o velho.- Não deixa que ninguém se aproxime.
- Atiramos-lhe pão pela janela - acrescentou a outra mulher. - Mas não podemos fazer mais nada. Supõe que os demónios a abandonavam e ficavam por aí à solta?
- A minha irmã é inofensiva - disse-lhes o rapaz impaciente. - Não faz mal a ninguém.
Mas com certeza que nenhuma daquelas mulheres vira a irmã durante todos aqueles anos. Viu que não podia esperar qualquer ajuda da parte delas. Olhou para a janela, estreita e alta. Depois tirou a escada da parede, encostou-a e tentou espreitar para dentro de casa. Não podia ver senão um pedaço do chão. Não ouviu o mais ligeiro ruído, mas quando se preparava para descer pareceu-lhe ver uma sombra.
- Lia - chamou, primeiro em voz baixa, depois com mais força. - Sou Daniel, o teu irmão. Deixa-me entrar. - A sombra não se moveu.
Começou a ficar aterrorizado. Que horror estaria dentro daquela casa? Desejava fugir para muito longe daquele quarto silencioso. Ainda que amedrontados, os três vizinhos fixavam-no à espera de que resolvesse a situação. Não podia escolher. Tinha que arrombar a porta e entrar.
Ao segundo empurrão dos seus ombros vigorosos as dobradiças cederam a precipitou-se na escuridão da casa, que cheirava a imundície e a bafio. O sol entrou no quarto e iluminou uma figura encolhida a um canto com uma longa cabeleira loura emaranhada.
Na face pálida o olhar era sombrio e selvagem. Fugiu e cheia de terror e encostou-se à parede. Na esteira, junto da qual Lia estivera encolhida, estava deitada uma forma cinzenta e esquelética. Daniel parou horrorizado. Mas depois, com intenso alívio, viu a avó voltar lentamente a cabeça.
- Daniel, vieste - murmurou. E foram estas as últimas palavras que ele ouviria a avó pronunciar.
O rapaz afastou as duas mulheres que se tinham aproximado cheias de curiosidade e pediu ao velho que fosse chamar o médico. Abriu a porta e deixou entrar o ar fresco no pequeno quarto abafado e fétido. Deitou fora as côdeas de pão, roídas pelos ratos, que estavam espalhadas pelo chão.
Ao chegar o médico inclinou-se para a velha e abanou a cabeça.
- O que a manteve viva foi o desejo de te ver. Aguentou até chegares. Deixa-a descansar agora, pobre criatura. É melhor que tomes conta da tua irmã e que a obrigues a comer.
Daniel não sabia como tratar de doentes. Arranjou, o melhor que pôde, uma nova esteira de juncos limpos e mudou a roupa à pobre velha esquelética. Foi ao poço buscar um jarro de água e lavou-lhe as mãos, magras e secas como folhas mortas. Uma das vizinhas chamou-o da rua e deu-lhe uma tigela cheia de caldo e um prato de barro com carvões acesos, para Daniel acender o lume. O rapaz ateou uma fogueira para dissipar a humidade que havia no quarto. E tentou dar um pouco de caldo à avó.
Durante todo este tempo, Lia continuara encostada à parede. Por duas ou três vezes Daniel vira que a rapariga movera levemente a cabeça e tinha a impressão de que o observava por entre a longa cabeleira que lhe caía para a cara. Procurou não olhar para Lia, tentando libertar-se do medo que sentia mal via o aspecto desgrenhado da irmã. Tinha estado ali fechada durante dez dias na maior escuridão. Estaria já completamente possessa dos demónios?
Daniel foi ao quintal ordenhar a cabra. A princípio custava-lhe, mas depois, pouco a pouco, foi-se habituando e os gestos tornaram-se fáceis e hábeis. Levou o jarro de leite para casa e colocou-o em cima de uma prateleira. A cabrinha seguiu-o para dentro de casa, farejando-o timidamente. Daniel lembrou-se de que precisava de consertar a porta, antes que escurecesse. A cabrinha deu a volta ao quarto e foi ter com Lia. A rapariga estendeu a mão e meteu os dedos por entre os pêlos negros do animal.
A noite começava a cair. Arranjou a porta e voltou a colocá-la. Foi então que viu que não havia azeite na lâmpada. Quantas noites teriam estado sem luz? Não se lembrara de pedir dinheiro a Roch e agora já estava escuro para ver se havia dinheiro em casa, coisa de que duvidava. A segunda vizinha, a que maior medo tivera dos demónios, trouxe-lhe um pequeno pires de azeite com um pavio aceso.
Aceitou envergonhado. Durante todos os anos em que vivera longe da aldeia, recordara a pobreza, a escuridão, as discussões, a miséria e o desespero. Mas esquecera-se de que também havia bondade.
Pôs a lâmpada no chão e sentou-se ao lado da esteira onde a avó estava deitada. Sentia-se cansado, muito mais cansado do que depois de um dia inteiro de trabalho na forja ou depois de uma longa caçada na montanha. Voltou a ter medo. Um medo terrível de passar a noite naquele quarto. Roch tinha razão. Era um fraco. Aquele demónio do terror que mantinha sua irmã sem defesa seria suficientemente astuto para tomar conta também da sua própria fraqueza? Se pudesse fugir, se pudesse correr para a rua e voltar para a montanha, o demónio nunca o apanharia. Mas não podia. Tinha que ficar ali sentado, sentindo o medo crescer dentro de si, prisioneiro do pequeno círculo de luz que o resguardava da escuridão.
De vez em quando a avó estremecia, abria as pálpebras finas e os olhos sem vida voltavam-se para ele. Assim que ele falava, fechava os olhos, satisfeita. Como podia ter-se sentido tão segura de que o neto voltaria? Que tinha ele feito até ali pela avó para que pudesse acreditar que voltaria? Gostava de lhe poder dizer os motivos por que fugira. Gostava de lhe explicar tudo a respeito de Roch e o que significava para si trabalhar na montanha. Mas agora era tarde de mais. A única coisa que podia fazer era estar sentado a seu lado para que tivesse a consciência de que ele estava ali.
Talvez que se a avó o ouvisse falar não precisasse de fazer um esforço tão grande para o procurar com o olhar. Começou a falar, como fizera naquela noite com Sansão enquanto lhe cortava as correntes, não lhe interessando saber se alguém o ouvia ou compreendia, mas apenas porque assim correspondia a um intenso desejo interior.
- Talvez julgues que me esqueci - dizia. - Mas ainda me lembro do momento em que eu e Lia viemos viver contigo. O teu cabelo era ainda tão negro, Avó. Naquele Verão trabalhavas no campo de ketzah. Mas à noite contavas-nos histórias.
Dos lábios da avó não saiu o mais pequeno som e a irmã continuava imóvel encostada à parede. Talvez fosse imaginação sua, mas pareceu-lhe ver que os lábios finos e duros da avó se tinham entreaberto um pouco, quase como num sorriso. Continuou a falar.
- Foste tu a única pessoa que me contou a história do profeta Daniel, de quem eu tenho o nome. Daniel recusara-se a ser infiel ao seu Deus e Dario lançou-o na fossa dos leões, mas Deus enviou um anjo e Daniel saiu são e salvo. Foste tu que me contaste a história dos três jovens arremessados à fornalha acesa e que se salvaram sem que nenhum dos cabelos ficasse sequer chamuscado. Ainda me lembro dos seus nomes - Sidrac, Misac e Abdenago. Gostava do som destes nomes. Fizeste-me sentir orgulhoso por me chamar Daniel.
Ouviu um ligeiro ruído junto da parede, mas não voltou a cabeça. Continuou a falar.
- À noite, antes de nos deitarmos, dizíamos um salmo. Já os esqueci, mas ainda me recordo de um, daquele de que mais gostavas.
Procurou lembrar-se das palavras e, lentamente, começou a dizer:
- "O Senhor é meu pastor: nada me falta; em verdes pastos me faz recostar. Conduz-me junto das águas para descansar; reconforta a minha alma, guia-me por veredas rectas, por causa do seu nome."
Sentiu atrás de si uns passos ligeiros. Não sabia o que fazer, receava voltar-se e cada vez o medo era mais forte. Estendeu a mão. Os dedos de Lia pousaram nos seus. Continuou a dizer o salmo.
- "Ainda que eu ande por um vale tenebroso, não temerei males, porque tu estás comigo. A tua vara e o teu báculo consolam-me. Preparaste uma mesa para mim, à vista dos meus adversários; unges com óleo a minha cabeça, o meu cálice transborda. Benignidade e graça me acompanharão todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor durante longuíssimos tempos."
Lia sentou-se a seu lado. E juntos, em silêncio, os dois irmãos velaram o sono da avó. A mão de Lia na sua, era como a de uma criancinha em busca de confiança e ajuda. Era sinal de que os demónios não a tinham ainda dominado por completo. E Daniel deixou de sentir medo.
O silêncio era quebrado apenas por pequenos ruídos, o crepitar do pavio no azeite, a respiração e os suspiros da cabra adormecida, o sussurro incessante das pequenas criaturas que tinham os seus abrigos ou os seus ninhos no telhado. Uma cobra desceu, enroscou-se e desapareceu. Um rato surgiu na sombra, sentou-se sobre as patitas traseiras e ficou a observá-los. Lia olhou para a cobra e para o rato sem medo nem surpresa. De repente Daniel tomou consciência de que um dos sons desaparecera. A avó deixara de respirar.
Capítulo 11
Na manhã seguinte um pequeno cortejo fúnebre atravessou a aldeia em direcção ao cemitério, que ficava longe da povoação. Não havia flautas, nem carpideiras contratadas, mas apenas uma fila de vizinhas que lamuriavam, com pouca convicção, atrás da carreta que transportava o corpo da velha. A frente ia o único parente, um jovem de ombros largos e aspecto decidido e ousado.
Depois do enterro e quando voltava para casa, Daniel viu uma figura que se aproximava a correr e reconheceu, cheio de gratidão, que era o seu amigo ferreiro: Simão.
- Desculpa, amigo - disse, apertando-lhe as mãos. - Fiz todo o possível para chegar cá à hora do enterro. Mas, se não te importas, vou contigo para casa.
Simão foi o único convidado do festim fúnebre que as vizinhas prepararam fora de casa. Comeram em silêncio e quando as mulheres levaram os pratos e os deixaram sós, Simão voltou-se para Daniel:
- E agora? - perguntou.
- É preciso fazer mais alguma coisa? - inquiriu Daniel com voz cansada.
- Refiro-me ao futuro. O que tencionas fazer?
Daniel olhou para o horizonte. Desde que recebera a mensagem de Simão que evitava fazer a si próprio essa pergunta.
- Tenho outro motivo para estar hoje aqui - continuou Simão. - Disse-te, em Cafarnaum, que tencionava seguir Jesus. Mas pesa-me na consciência ter a loja fechada. Não é o dinheiro que me importa. Aprendi a passar sem ele. Mas custa-me ter as ferramentas paradas sabendo que os homens não têm quem lhes conserte os arados. Lembrei-me de que talvez me pudesses ajudar. Se quisesses tomar conta da loja enquanto estou fora - impedir que caia para aí aos bocados - , ficava-te muito grato.
Era mesmo próprio de Simão, arranjar maneira de que esta proposta parecesse um favor que Daniel lhe fazia! Baixou a cabeça, e, com o pé descalço, desenhou um traço no pó do caminho. Estava quase a chorar. Mas ao mesmo tempo o orgulho impedia-o de olhar de frente para o amigo. Todos tinham decidido por ele. Todos: o médico, Lia, as vizinhas, e agora Simão, todos consideravam como ponto assente que voltara para ficar. A sua opinião não contava? E a sua vida na montanha? Não seria mais importante do que esses aldeões que precisavam dos arados consertados? E Roch e Sansão, e o trabalho que tinha que fazer na caverna? Tudo o que amava, o vento no cimo da montanha, a vida irresponsável, a excitação das lutas, tudo isso venceu a proposta que Simão fizera com tanta bondade.
Mas a batalha não durou muito. Fora apanhado. E Simão sabia-o. E ainda que desejasse desafiá-los a todos, ainda que desejasse lutar pela liberdade como um lobo da montanha, o mais fraco de todos vencê-lo-ia. Não podia deixar Lia ficar sentada, sozinha, numa casa vazia com a porta fechada. Simão que ficara à espera em silêncio, observava atentamente a rua estreita, quando Daniel finalmente ergueu o olhar.
- E dar-me-ão trabalho? - perguntou o rapaz, tristemente.
- Isso depende de ti - respondeu Simão, a sorrir.
- Se eu puder encontrar alguém que queira tomar conta de Lia, enquanto trabalho.
- Também pensei nisso - interrompeu Simão. - A minha casa tem comunicação com a loja. Não me agrada tê-la vazia. Porque não vão os dois para lá e se servem das minhas coisas? É melhor que a tua irmã esteja num sítio onde a possas vigiar.
Nem uma palavra sobre as paredes a cair, sobre o telhado desmantelado ou a porta desconjuntada da velha casa, que Simão tão bem podia ver do sítio onde estava. Daniel sentiu que o coração quase lhe doía.
- Obrigado - murmurou. - És bom...
- É um bom negócio - disse Simão com rudeza. - Sei que trabalhas bem e que a minha reputação fica em boas mãos.
E continuou a dar-lhe indicações sobre a loja e sobre o trabalho que este ou aquele freguês costumava mandar fazer.
- Há ainda outra coisa - acrescentou.- De vez em quando, não muitas vezes, aparece um ou outro legionário para um conserto, um arreio partido ou uma corrente. É claro que têm forja na guarnição mas, de vez em quando, necessitam de uma reparação feita mais depressa.
Daniel revoltou-se.
- Nunca trabalharei para um porco romano!
- Sim - disse Simão calmamente. - Trabalharás e mostrar-te-ás amável. Há uma coisa que tens que aprender, meu amigo. Um fora da lei pode pensar que não tem responsabilidades para com ninguém. Mas, na aldeia, cada um é responsável pela segurança de todos. Se um legionário estiver mal disposto e pronto a levantar problemas, é preciso não ligar. O mais pequeno insulto pode custar metade das vidas da aldeia. E isto é uma das coisas que te quero pedir.
Para Daniel era o golpe final. Simão riu-se.
- Não é assim tão mau. No fim de contas um cavalo merece um bridão confortável, quer pertença a um romano ou a um dos nossos. Para mais um bom Zelota não deve levantar suspeitas.
Daniel olhou directamente para o amigo. Simão queria dizer que...
- Julgavas que ias deixar de servir o teu país? Nem todos os patriotas vivem na montanha. Também há Zelotas nas lojas dos ferreiros. Faz o que quiseres, a loja agora é tua. Mas só enquanto não arranjares complicações aos homens da aldeia. Prometes?
- Prometo - disse o rapaz, cheio de esperança e gratidão.
- Volto esta noite para Cafarnaum - disse Simão.- Talvez possas encontrar um vizinho que te ajude a mudar as coisas.
Antes de anoitecer Daniel subiu à montanha e explicou a Roch que precisava de ficar na aldeia. Roch ouviu-o em silêncio e só depois falou.
- A louca da tua irmã é mais importante do que a liberdade do teu país?
Daniel corou.
- Não. Mas não posso abandoná-la.
- Na sinagoga fartam-se de falar em caridade, não é? Eles que tomem conta dela.
Daniel recordou os pedaços de pão atirados pela janela e em que Lia nem sequer tocara.
- Morria de fome - respondeu.
- Já uma vez te disse - acrescentou Roch em tom de troça. - És muito brando.
Mas desta vez Daniel não afastou o olhar. Encarou Roch calmamente.
- Hei-de mostrar-te que não tens razão. Trabalharei na aldeia pela nossa causa. Verás. Pertenço aqui, à montanha. Nunca o esquecerei. Mas agora vou-me embora e amanhã mudo-me para casa de Simão o Zelota.
Na manhã seguinte começou a arrumar tudo. Não havia quase nada, praticamente, para levar. Havia muito mais coisas no tempo em que lá vivera com a avó. Lembrava-se muito bem de um prato azul vidrado de que muito gostava e de um tapete vermelho de lã pendurado na parede. Tudo devia ter sido vendido para arranjarem dinheiro para a comida. As coisas melhores que pôde encontrar meteu-as dentro de um pequeno saco.
Desde a morte da avó que Lia estava sentada muito quieta, à espera, de mãos cruzadas. Obedecia-lhe em tudo como uma criancinha e assim que o rapaz lhe pôs a comida na frente começou a comer.
- A avó tem fome? - perguntou.
- Não - respondeu Daniel.
- E onde ela está, faz frio?
- Nunca mais voltará a ter fome ou frio - prometeu-lhe o rapaz. Depois, com o maior cuidado possível, começou a explicar-lhe que precisavam de mudar de casa.
- A casa de Simão é muito mais bonita do que esta. Não podem lá entrar os ratos, nem a chuva nem o frio durante o Inverno. Terás um colchão para dormir como as raparigas ricas.
Lia ouviu-o sempre com a mesma expressão parada e Daniel pensou que compreendera. Mas quando chegou o momento de partirem viu que se enganara. Assim que abriu a porta, a irmã fugiu da luz do sol como se visse uma espada na sua frente. A vizinhança tinha-se juntado na estrada para os ver sair. Mal os viu, encolheu-se de encontro à parede. Nada do que Daniel pudesse dizer a convencia a sair. O rapaz começou a ficar impaciente. Esteve quase tentado a pegar nela e a levá-la de qualquer maneira. Mas sentiu, instintivamente, que se lhe tocasse a rapariga nunca mais confiaria nele. Acabou por sair e ir falar com os vizinhos.
- Não há solução - disse-lhes. - Não pode suportar que a vejam. Nunca conseguiremos atravessar a aldeia. Tenho que a deixar aqui, sozinha, enquanto vou trabalhar.
- É melhor amarrá-la - propôs um homem. - Um parente meu tem uma filha possessa. Amarraram-na, para toda a vida, com uma corrente.
Daniel abanou a cabeça. Tivera já oportunidade de ver pessoas assim, pobres farrapos presos às árvores, como cães. Nunca faria isso a Lia, preferia ficar naquela casa até que caísse aos bocados. Voltou para dentro e atirou a porta com tanta força que caíram no chão pedaços de barro e cal.
À tarde bateram ao de leve no ferrolho. Mesmo em frente da casa estava um veículo tão extraordinário que o rapaz não conseguia perceber do que se tratava. E ao lado dessa coisa, estava um velho carpinteiro que morava perto. O homem sorria.
- É uma liteira - explicou. - Como essas em que as caprichosas senhoras romanas viajam. Mete a tua irmã lá dentro e ficará tão abrigada como na própria cama. A minha mulher juntou as nossas capas e coseu-as para fazerem de cortinas. Há quatro homens prontos para carregarem a liteira, mas só aparecemos depois de a tua irmã estar lá dentro.
Daniel sentiu uma imensa gratidão. E, mais uma vez, ficou envergonhado. Por que motivo eram todos tão bondosos para um estranho e um fora da lei?
Assim que os vizinhos se afastaram, Daniel convenceu a irmã a ir até à porta espreitar.
- É desta maneira que a rainha viaja - disse-lhe. - Foi assim que a Rainha do Sabá foi visitar o Rei Salomão. Tu entras e depois corremos as cortinas. E, num instante, estamos na nova casa.
Lia abanou a cabeça. Era melhor não insistir. O rapaz notou que a irmã estava cheia de curiosidade. E de vez em quando os olhos azuis voltavam-se para a porta.
- E quando estiver lá dentro ninguém me pode ver? - perguntou.
- Nem a ponta do teu dedo mínimo.
- É preciso que eu me vá embora daqui, Daniel?
- Gostava de te ter perto de mim, enquanto trabalho. E tu não gostavas, Lia?
Depois de um certo tempo a rapariga começou a concordar. Dirigiu-se para a porta e parou aterrada. Mas antes que pudesse recuar, Daniel agarrou-a. Lia escondeu o rosto no ombro do irmão e começou a soluçar, mas não gritou. Levou-a com toda a delicadeza para dentro da caixa de madeira e correu as cortinas.
E foi desta maneira que Lia atravessou a aldeia, como uma rainha. Atrás seguia Daniel com o pequeno saco dos haveres e com a cabrinha à trela. Um dos vizinhos levava o tear, que era a única coisa de valor que Lia possuía.
Havia tanto que fazer na nova casa que Daniel quase nem tinha tempo para pensar na caverna.
De manhã, muito cedo, antes que as mulheres e as raparigas aparecessem, Daniel ia buscar água ao poço. Não era um trabalho de homem; como não eram trabalhos de homem varrer, cozinhar ou lavar a roupa. E, para mais, todas essas coisas tinham que ser feitas de determinada maneira. Aprendera a tratar de si na caverna onde não existiam mulheres para fazer esses serviços. Mas na aldeia tudo era diferente e mais complicado; e tinha ainda de cuidar de Lia.
Desde a abertura da loja que apareciam homens com trabalhos, que tinham guardado à espera do regresso de Simão. Olhavam desconfiados para o jovem ferreiro. Daniel aceitou o desafio. Não podia negar que, todas as manhãs, se sentia satisfeito ao entrar na loja de Simão, cheia de barras de ferro e de instrumentos pendurados. Durante cinco anos Daniel fundira o ferro de que precisava e trabalhara-o com instrumentos toscos e improvisados. Nunca compreendera que se habituara a superar com a perícia o que lhe faltava em equipamento. Depois de um ligeiro período de prática descobriu que podia trabalhar tal qual como Simão trabalhava. Tudo o que fazia era correcto, forte e limpo. Correu a notícia de que o novo ferreiro fazia um bom trabalho, apesar de ser orgulhoso e de poucas falas.
Tinha dinheiro seu pela primeira vez na vida, e podia comprar carne no carniceiro e, no padeiro pães de cevada, moles, grandes e redondos. Não comia tão bem como na montanha, onde a carne dos rebanhos dos lavradores estava sempre à disposição, mas segundo calculava, Lia nunca conhecera tanta abundância como agora.
Uma vez passado o choque da viagem e o terror inspirado pela nova casa, ficava sentada calmamente durante dias inteiros. Começou a ter prazer em pequeninas coisas, como pentear os longos cabelos sedosos, arrumar os jarros na prateleira e ver os raios de sol reflectidos na parede branca de cal. Em certa medida lembrava-lhe Sansão porque tal como o negro, nunca o deixava afastar-se para muito longe. Estranho, pensava Daniel, libertei-me daquela enorme sombra negra, para ficar preso a uma sombrazinha clara, pouco maior que um rato, mas com uma força extraordinária. Lia insistia para que a porta de comunicação entre a casa e a loja estivesse sempre aberta. Ficava sentada, durante horas a fio a observá-lo. Quando os fregueses chegavam escondia-se num canto e esperava até se irem embora. Daniel tinha a impressão de que, algumas vezes, também os observava por entre as longas madeixas louras caídas para o rosto.
O irmão não gostava de a ver inactiva durante o dia inteiro. Insistiu para que trabalhasse no tear, mas embora Lia também o desejasse, não fazia a mais pequena ideia do sítio onde podia arranjar o fio. A avó comprava-lho e levava depois o tecido já feito; era tudo o que sabia. Mas certa manhã entrou um homem na loja; não levava trabalho para Daniel mas sim meadas de linho fino. Era o servo de uma viúva rica de Chorazin que, segundo parecia, costumava comprar os tecidos feitos por Lia. Daniel sempre julgara que os trabalhos da irmã tinham sido comprados por pessoas caridosas que tinham pena da rapariga. Ficou admirado ao saber que a viúva nunca se importara, nem desejara saber nada a respeito da tecedeira e que o que lhe interessava era a fina qualidade do tecido. o servo ficou radiante quando soube que Lia se encarregava do trabalho. Daniel pôs o tear num dos cantos, de maneira que Lia pudesse trabalhar e, ao mesmo tempo, ver o que se passava na loja. E foi, admirado, que viu a destreza com que a irmã tecia.
Certa manhã em que Daniel não tinha trabalho, resolveu tentar fazer pão com uma medida de farinha de trigo que encontrara numa das prateleiras de Simão. Acendeu o forno do quintal, tirou um monte de farinha, misturou-lhe um pouco de água e procurou amassar, como vira uma vez a mãe fazer. Estava de tal maneira absorto no trabalho, que ficou admiradíssimo quando viu duas mãozitas meterem-se de repente na massa.
- Não é assim - disse Lia, suavemente. Estendeu a massa em cima de uma pedra chata com um rolo que foi buscar à prateleira, deu-lhe forma com as mãos e ficou o pão pronto para meter no forno. Enquanto cozia o cheiro era delicioso e depois de pronto estava bastante saboroso. Depois passaram a fazer o pão em casa poupando assim o dinheiro do padeiro. Lia ensinou-lhe como devia fazer para deixar um pouco de massa a fermentar para preparar o pão do dia seguinte.
Mas a rapariga reservava-lhe ainda uma surpresa maior. Simão plantara atrás da casa uma pequenina horta, que lhe fornecia apenas os vegetais indispensáveis para a sua mesa. Por entre a vegetação que crescera desordenadamente, Daniel viu as folhas verdes dos pepinos e uma tarde, depois de fechar a loja, resolveu ir tratar da horta e ver o que por lá havia. Depois de trabalhar um bocado, sentindo-so feliz com o cheiro que subia da terra e das plantas verdes, ouviu uns passos leves que se aproximavam e, de repente, Lia ajoelhou-se a seu lado e meteu as mãos por entre as folhas como fizera no dia em que o ajudara a amassar.
- Não faças isso, Daniel - disse-lhe - estás a deitar fora todas as cenouras!
Daniel olhou para a irmã, quase com receio de falar.
- Ora vê - indicou-lhe a rapariga - estas folhas vermelhas são beterrabas, e aquelas são cebolas. Todas as outras são ervas.
Depois desse dia, Lia passava a maior parte do tempo no jardim, protegida pelo muro alto que circundava a casa. O rostozinho pálido tomou uma cor dourada. Enquanto acendia a forja, Daniel pensava. Sem ter a mais pequena ideia do que se passava naquela casa fechada e escura por detrás da rua dos queijeiros, sempre tivera como certo que Lia perdera o juízo durante a terrível noite em que fugira. Era melhor, pensava envergonhado, do que os vizinhos que queriam amarrá-la com cordas? Também não podia censurar a avó. Tivera muitos desgostos e trabalhara até não poder mais, aterrorizada pelos gritos da criança e receosa de lhe confiar as mais pequenas tarefas caseiras. Agora podia ver que Lia recordava quase tudo que vira a avó fazer. Graças a Deus que, para o futuro, a irmã já se podia encarregar de fazer a maior parte do trabalho da casa o que faria com que se sentisse mais liberto.
Mas, à medida que os dias passavam, viu que esperara demasiado. Os progressos eram lentos. O mais ligeiro esforço deixava Lia exausta. Por vezes ficava amedrontada com os homens que entravam na loja e pedia ao irmão que voltasse a fechar a porta. Daniel não conseguia fazer-lhe compreender que precisava de trabalhar. No momento em que parecia mais feliz bastava uma pancada na porta, um grito ao longe, um ruído qualquer, para que os antigos terrores voltassem e podia levar horas ou dias a recompor-se, até conseguir voltar a pegar numa colher. De outras vezes passeava pela casa, penteava o cabelo e sentava-se ao tear durante horas. Daniel desistiu de compreendê-la e aceitava-a tal como aceitara Sansão: como um fardo.
Um dia, já quase ao cair da tarde, Daniel viu um legionário parado em frente da porta. Quase esquecera já a recomendação que Simão lhe fizera e, instintivamente, ergueu o martelo. Recordou-se a tempo e pousou-o em cima da pedra. Não cuspiu como costumava fazer, mas havia várias outras maneiras de mostrar o seu descontentamento. Absorveu-se no trabalho que estava a fazer, esfregando continuamente uma falha imaginária na superfície do metal. Por fim, e quando bem entendeu, levantou a cabeça. Viu que conseguira o fim desejado.
O soldado estava vermelho de raiva, mas não dizia nada. Era evidente que também recebera ordens para não perturbar a paz.
- A cabeçada do meu cavalo tem um anel partido - disse o soldado num aramaico pomposo e relativamente fluente.
Daniel pegou na cabeçada como se tratasse de um escorpião.
- Vai demorar um bocado - murmurou. - Venha buscá-lo amanhã.
- Preciso disso imediatamente - respondeu o romano.- Fico aqui à espera.
Daniel observou-o, tentando avaliar quanto tempo de espera suportaria o soldado. Depois, encolheu os ombros e começou a trabalhar. Quanto mais depressa acabasse, mais depressa ficaria livre dele.
O soldado não se sentou no banco junto à porta como os outros fregueses costumavam fazer. Hesitou, por orgulho - Daniel nunca admitiria que pudesse ser por decência - esperando que o rapaz o convidasse a sentar-se. "Pois que rebente de pé, pensou Daniel. Nunca faria tal convite." Voltou-lhe as costas, agarrou-se ao fole e começou a atiçar o fogo.
Quando voltou a olhar para o soldado viu-o retirar o elmo deixando à mostra o cabelo louro e encaracolado. Passou as costas da mão pela testa húmida onde o capacete deixara uma marca. Daniel reparou que era ainda muito jovem, talvez da mesma idade de Joel. A barba mal despontava ainda. A pele branca tinha sinais evidentes de queimaduras do sol, pelo que Daniel percebeu que o soldado não devia estar há muito tempo na Galileia. Os olhos eram azuis claros e brilhantes. Parecia querer dizer qualquer coisa mas Daniel voltou-lhe as costas e recomeçou a trabalhar.
Levou imenso tempo para acabar um trabalho tão simples. Quando finalmente voltou a olhar para o soldado viu-o ainda de pé, cheio de calor e fadiga, passando o elmo de bronze de uma mão para a outra. Daniel seguiu-lhe a direcção do olhar e ficou horrorizado. A porta de casa estava aberta. Lia, que não devia saber que estava um homem na loja, voltava do quintal com as mãos cheias de alfaces.
O longo cabelo dourado caía-lhe pelos ombros e brilhava com os reflexos de sol. Os olhos, azuis como flores de ketzah, abriam-se surpreendidos.
Antes que Lia pudesse recuar, Daniel deu um salto e fechou a porta. Sentiu-se possuído por um ódio intenso. Como ousava aquele homem olhar para a irmã? Ao vê-la, profanara-a tanto como se lhe tivesse tocado. Daniel tremia quando entregou ao soldado o anel da cabeçada. Teve que se dominar para não lho atirar à cara.
E nessa noite começou a pensar outra vez na montanha.
Capítulo 12
Era já tarde quando um rapaz da aldeia entrou na loja com uma foice para ser arranjada. Tinha um rosto saudável, uma espessa cabeleira negra, um ar ousado e vivo e um olhar negro e esperto que despertou a curiosidade de Daniel. E enquanto este examinava a lâmina da foice, o rapaz passeava para trás e para diante a todo o comprimento da loja.
- Senta-te - sugeriu Daniel, indicando com o cotovelo o banco junto da porta. O rapaz, incapaz de estar muito tempo parado, recomeçou em passadas nervosas. Daniel preparou-se para começar o trabalho, atiçando o fogo com os foles. Depois, aqueceu a lâmina, martelou-a, e aplicou pedra arenosa nas mossas feitas pelo solo rochoso. E, de vez em quando, olhava para o rapaz. Era raro falar com um freguês. Fazia o trabalho que lhe pediam, recebia o dinheiro, sem se importar que lhe pudessem chamar pessoa de poucas falas. Mas hoje, pela primeira vez, sentia-se com disposição para conversar. Talvez porque o freguês era da sua idade, talvez também porque tinha todo o aspecto de ter lutado. Quando o barulho diminuiu, tentou um gracejo.
- Deves estar metido em maus lençóis...
Não obteve resposta; mas insistiu.
- E que lhes fizeste tu?
Uma pausa. E depois:
- Que podia eu fazer? - explodiu o rapaz - Eram cinco!
Daniel ergueu as sobrancelhas. Depois, recomeçou a trabalhar.
- Os meus próprios amigos! - A voz do rapaz estava rouca de cólera - Esperaram-me e assaltaram-me a noite passada quando voltava do campo e ia para casa.
- Porquê?
- Porque o meu pai foi trabalhar para Chomer, o cobrador dos impostos.
Agora compreendia por que motivo o rapaz parecia tão desconfiado. Era de facto um mau negócio para um judeu ir cobrar os impostos que os Romanos não conseguiam receber.
- Há melhor maneira de ganhar a vida - observou Daniel.
- Bem tentou. O ano passado foram os gafanhotos e este ano uma doença qualquer que deu cabo dos cereais, nem vale a pena fazer a colheita. Nunca conseguiria arranjar dinheiro para pagar os impostos.
Daniel não deu resposta.
- É certo que podia ter vendido a minha irmã. Não era vergonha nenhuma se o fizesse. Mas o meu pai tem muito bom coração.
- Era uma decisão difícil - concordou Daniel.
- São estes malditos Romanos que nos obrigam a isto. A terra chegava bem para comermos se nos víssemos livres deles.
Daniel inclinou-se mais para o trabalho e tirou, cuidadosamente, uma pequena limalha.
- Mas não é verdade o que disseram - continuou o rapaz. - O meu pai é incapaz de guardar para si um único dinheiro dos impostos.
Daniel ficou calado. Um cobrador de impostos podia ser, de facto, a princípio um homem honesto. Mas, um homem suficientemente fraco para aceitar tal emprego, era difícil que resistisse à facilidade de se aproveitar da situação. Sentiu-se embaraçado. Era mau que um rapaz tivesse vergonha do próprio pai.
- Parece que ficou boa - disse-lhe, passando o polegar pela lâmina da foice. Sabia que o rapaz não lhe estava a pedir compaixão.
Pagou e dirigiu-se hesitante para a porta. Daniel reparou no olhar desconfiado com que observava a rua escura.
- Estarão de novo à espera? - perguntou.
O rapaz encolheu os ombros, mas parecia receoso.
- Espera um bocado - sugeriu Daniel. - Quando fechar a loja tenho que ir entregar o ferro de um machado. Podemos ir juntos.
- Posso muito bem defender-me - disse o rapaz, exaltado.
- Não duvido. A propósito, como te chamas?
- Nathan.
- Então vem comigo, Nathan. Preciso de falar contigo.
Quase nem valia a pena falar com uma pessoa que só prestava atenção aos mais pequenos ruídos que se ouvissem na estrada sombria. Daniel quase podia sentir-lhe os músculos tensos, mas viu com agrado que o rapaz não perdia a coragem. Desistiu de conversar e continuou a caminhar em silêncio, saboreando o prazer penetrante da ideia de um próximo ataque. Nunca pensara que esta antecipação lhe fazia tanta falta.
E, da escuridão, surgiu bruscamente o grupo de rapazes. Eram seis ou sete, reparou Daniel no momento em que derrubava o primeiro. Com um grito de alegria, agarrou mais dois, um em cada mão. Houve uma certa agitação e um murmúrio - "O ferreiro!"
Um puxão violento, o som de roupas rasgadas - e um dos prisioneiros libertou-se, deixando o manto na mão de Daniel. O outro, com os dentes a bater de medo e de um soco que Daniel lhe dera, fugiu atrás do amigo. Daniel ficou parado, a observar o seu novo amigo, que punha fora de combate os outros dois jovens atacantes.
- Nada mau - comentou quando o bando se perdeu na escuridão. - Precisas de tomar mais cuidado com a defesa. Agora, que já tudo acabou, podes dar-me um pouco de atenção e ouvir o que tenho para te dizer. Gostavas de pôr a tua força ao serviço de uma boa causa?
E foi desta maneira que Daniel arranjou o primeiro recruta da aldeia, Nathan, filho do novo cobrador de impostos.
E, como se esta sua atitude tivesse actuado como um sinal entre ambos, dias depois chegou Joel com um novo recruta que arranjara também.
- Como sabias onde me podias encontrar? - perguntou Daniel, olhando com curiosidade para o estudante magro que acompanhava o amigo.
- Encontrei o teu amigo Simão - respondeu Joel, depois de um momento de hesitação.- Foi ele que me disse que estavas a tomar conta da loja. E sugeriu-me que te viesse ver.
- Foi uma boa ideia - respondeu Daniel. - Tenho andado a pensar como poderia ir a Cafarnaum. O trabalho que tenho aqui chegava bem para dois homens. - Procurava falar em tom desprendido mas não podia esconder o orgulho que sentia.
Joel mostrou-se muito interessado pela loja. Andou de um lado para o outro, pegando nas ferramentas e tomando o peso às barras de metal. E ficou muito impressionado com o brilho resplandecente de uma espada acabada de fazer.
- Trouxe-te alguém que deseja juntar-se a nós - disse a certa altura.- Kemuel pensa como nós.
Daniel olhou desconfiado para o rapaz. Era saudável e parecia habituado a fazer o que queria. Na sua voz havia uma ponta de desdém, que transparecia, também, no rosto simpático e altivo. Mas havia mais qualquer coisa. E de repente o rapaz voltou-se para Daniel e interrogou-o directamente.
- Estás disposto a combater? Ou não passa tudo de um fingimento? Vim hoje para ver se de facto a coisa é a sério.
- Somos sérios - respondeu Daniel calmamente.- Que direito tens de fazer perguntas?
- Estou cansado de palavras! - respondeu o rapaz - Por toda a parte os homens falam e discutem enquanto Israel continua indefesa, calcada aos pés dos Romanos. Onde está a nossa coragem? Porque é que ninguém tem coragem para ir para a frente? Se estás disposto a combater, estou a teu lado. Mas não sirvo para brincadeiras de crianças.
Os olhos negros brilhavam de exaltação. Daniel comparava-o a uma pantera, esguia, negra e altiva. E sentiu-se também exaltado. As suspeitas desapareceram.
- Ês bem-vindo, Kemuel - respondeu. - Verás que não estamos a brincar.
Sim, Joel escolhera bem. Encontrar músculos e braços fortes era fácil. Encontrar um espírito ousado era bem mais difícil.
Nathan de volta a casa parara na loja, como costumava fazer. Perdera já a desconfiança. Ao primeiro olhar que deitou aos rapazes da cidade sentiu-se imediatamente atraído pelo ar simpático de Joel. Daniel separou os foles, apagou o fogo, fechou a porta e os quatro rapazes prepararam-se para a primeira reunião. Seguro da aprovação de Simão, ofereceu a loja como local de reunião. Combinaram encontrar-se no terceiro dia de cada semana.
- Se desejas mais gente... - ofereceu Nathan - Posso dizer-te os nomes de dez rapazes da aldeia que davam o braço direito para estar contigo.
Daniel hesitou.
- Já tinha pensado nisso - respondeu.- Sei que há muitos. Se a notícia se espalhasse amanhã, creio que antes da noite, metade da aldeia estaria connosco. Uns porque amam a sua terra ou odeiam os Romanos, e outros apenas porque gostam de uma boa luta. Mas entregar-se-iam de alma e coração? O problema está em que não podemos lutar amanhã. Temos que trabalhar lentamente e isso pode demorar muito tempo.
- Quanto? - perguntou Kemuel.
- Até termos força suficiente para não fracassarmos.
Tentou recordar-se da maneira como Roch lhes falava na caverna, dominando-lhes a impaciência, mas procurando sempre manter-lhes o entusiasmo pelo momento da luta. Sentiu que tinha ainda muito que aprender com Roch.
- Para já, precisamos de gente disposta a trabalhar sem receber em troca qualquer recompensa - continuou sem olhar directamente para Kernuel, mas dirigindo-se-lhe em especial. - Temos que ter a certeza absoluta de que podemos confiar neles aconteça o que acontecer.
- Nesse caso não poderemos arranjar muitos - disse Joel pensativo.
- Não podemos facilitar - acrescentou Kemuel. - Só podemos dar valor às coisas que pagamos.
- E quem tem dinheiro para pagar? - insurgiu-se Nathan - Isso faz com que todos os da aldeia fiquem de fora.
- Não falava em dinheiro - respondeu Kemuel, com certa ironia. - Referia-me ao facto de que devemos estar ligados uns aos outros, sem a mais pequena reserva. Só assim nos podemos sentir em segurança.
- Cada um de nós prestará juramento - lembrou-lhe Joel.
Mas o amigo não estava ainda convencido.
- Um juramento pode significar uma coisa para um, e outra coisa completamente diferente para outro - argumentou.
Daniel ficou com a impressão de que Kemuel gostava de discutir e esta ideia agradou-lhe, como agradava aos escribas a discussão sobre as minúcias da Lei.
- Já sei! - disse Nathan, erguendo-se. E tirou da parede uma barra de ferro - Marcamo-nos a nós próprios! Dessa maneira já sabemos.
- Esqueces a Lei? - interrompeu friamente o estudante - Não farás marcas em ti próprio! - E era como se se envolvesse no manto para impedir ser contaminado pela impureza.
Camponês! era o que o tom da voz exprimia sem sombra de dúvida. O coração de Daniel parou. O seu pequeno exército estava-se já comportando tal e qual os homens na caverna.
- Não necessitamos de uma marca - disse Joel rapidamente, naquele seu tom agradável que fazia com que tudo o que dissesse parecesse tão convincente. - Se escolhermos com cuidado, podemos confiar uns nos outros. É no espírito que traremos a marca do arco. Lembrem-se do Cântico de David: "Que adestrou as minhas mãos para a peleja, e os meus braços para retesar o arco de bronze." Esta é a nossa senha.
Em três semanas, os quatro membros aumentaram para sete, depois para nove, doze, dezasseis.
Os jovens haviam de encontrar-se nas ruas da aldeia, na escola em Cafarnaum. "Já viste um arco feito de bronze?", perguntariam ao passar. Ou iriam ao ferreiro buscar um pedaço de metal. "Faria um belo arco", diriam. A palavra de senha agradava-lhes e fazia-os sentir orgulhosos. Estavam ligados uns aos outros por este símbolo. No primeiro dia de Ab, reuniram-se 21 rapazes na loja do ferreiro. Daniel sentia-se entusiasmado.
- Quando podemos falar com Roch? - perguntou Joel, ansioso por voltar a ver o seu herói.
- Ainda não - respondeu Daniel. Nem mesmo a Joel podia confessar como sonhava com o momento de contar tudo a Roch. E agora, enquanto Joel lia em voz alta para os rapazes ouvirem, os feitos gloriosos de David e de Judas Macabeu, que lera para Daniel dentro do esconderijo, pensava no momento em que chamaria Roch, da montanha, para lhe entregar um exército, pronto a combater e a obedecer-lhe. Deixaria então de ser um fora da lei. Todos reconheceriam nele o chefe porque tinham esperado e o dia da luta aproximar-se-ia.
Uma manhã, depois da terceira reunião, o louro soldado romano voltou a aparecer na loja. Desta vez era um estribo que precisava de conserto. Não se importou nada com os modos de Daniel que mostravam bem claramente que não desejava fazer o trabalho. Ficou de pé, com as pernas afastadas, naquela pose romana que todos pareciam ter aprendido logo em pequenos, olhando deliberadamente para tudo, para as barras de metal, para os instrumentos, para a porta que Daniel fechara imediatamente e que dava acesso ao interior da habitação.
O ferreiro mantinha os olhos fixos no trabalho, procurando não dar a entender que estava interessado em saber do que estaria o soldado à procura. Seria de algum indício da reunião da noite anterior? E não conseguiu respirar à vontade enquanto o romano não pegou no estribo, atravessou a porta, montou a cavalo e se afastou. Depois, observou cuidadosamente a loja, mas não conseguiu encontrar nada que pudesse ter levantado suspeitas ao soldado. Teria sido imaginação sua?
O Romano voltou. Algumas vezes no próprio dia da reunião, outras vezes entre duas reuniões. Ou trazia trabalhos de amigos legionários ou vinha com desculpas ridículas dizendo que precisava dos arreios, que estavam bons, arranjados. Uma ou duas vezes Daniel, ao ouvir passos de cavalo na rua, ia espreitar e viu o rapaz passar lentamente em frente da porta e depois, quase imediatamente, voltar a passar. Descobriu marcas de ferraduras na terra mole do caminho que circundava a parede do jardim. E não havia o mais pequeno motivo para alguém andar a cavalo naquele caminho. Não havia dúvida de que a casa estava sob observação. O lugar da reunião tinha de ser mudado.
Um novo recruta, filho de um lavrador da aldeia, ofereceu uma solução. Levou Daniel a uma torre de vigia abandonada, no meio do campo de pepinos do pai. Era uma pequena casa de pedra, redonda, e onde a família inteira vivera durante a época das colheitas para impedir que os campos fossem roubados.
Por baixo da torre havia um alçapão disfarçado. Daniel suspeitava que servia para esconder dos cobradores de impostos parte da colheita. Seria um óptimo lugar para esconder as armas que planeavam arranjar. A torre era de acesso fácil, por todos os lados, através das vinhas. Era um lugar ideal para as reuniões.
E de repente, quase logo a seguir a terem mudado o local das reuniões, o soldado romano deixou de aparecer. Por precaução, mantinham sentinelas junto da torre; sentinelas que se iam revesando continuamente. Nunca ninguém viu o soldado. "Estavam com sorte", pensou Daniel. Mas ainda agora, ao pensar nisso, se sentia apreensivo.
Capítulo 13
A principal dúvida de Daniel sobre o novo local de reunião consistia em ter que se afastar de casa durante várias horas. Mas esse aspecto ficou solucionado de uma forma mais simples do que supunha. Lia ouviu todas as explicações que o irmão lhe deu e foi-se acostumando às suas ausências como se acostumara ao facto de a avó ter que sair para trabalhar no campo. Lia sentia-se agora mais segura. Já não se cansava tanto quando trabalhava no tear. Completara um dos trabalhos encomendados pela viúva de Chorazin. Assim que o servo pagou, Daniel entregou à irmã o talento de prata brilhante. Lia ficou admirada. Daniel viu que a irmã nunca recebera antes qualquer compensação pelas horas que passara trabalhando no tear. Ensinou-lhe como devia coser a moeda no interior do lenço, onde todas as raparigas da aldeia, mesmo as mais pobres, guardavam as moedas que seriam um dia o dote. Lia estava tão feliz como uma criança. E agora, até quando trabalhava usava o lenço e, de vez em quando, apalpava a moeda. E por debaixo do lenço o cabelo louro estava sempre arranjado e penteado. Tinham sido as horas passadas no pequeno jardim que tinham tornado rosadas as faces pálidas de Lia?
Uma tarde, ao olhar para a rua, Daniel viu duas figuras que se aproximavam lentamente. Uma era Joel. A outra não sabia quem era. Seria um novo recruta? Estavam quase em frente da porta quando reconheceu, cheio de alegria, que a outra figura era Malthace. Usava um manto amarelo com uma tira verde bordada, e um lenço às riscas brancas e verdes que apenas deixava à mostra uma madeixa de cabelo negro.
- Nunca tinha estado numa loja de ferreiro - exclamou a rapariga, deitando para trás o lenço, naquele gesto impulsivo que Daniel sempre recordava em primeiro lugar, todas as vezes que pensava nela. - Pedi a Joel que me deixasse vir com ele.
Embaraçado, Daniel limpou as mãos sujas e trouxe de casa um jarro de água, desejando poder oferecer mais qualquer coisa.
- Gostaria de te pedir que entrasses na minha... na casa de Simão... - começou.
- Não tem importância. É bom estar aqui na loja - respondeu Malthace rapidamente.
Os dois irmãos sentaram-se no banco e ficaram a vê-lo acabar a fechadura que prometera entregar antes do pôr do Sol.
- Ainda bem que vieste hoje - disse Daniel, mal acabou o trabalho. - Há um aprendiz com quem quero que fales, na Rua dos Tecelões. Parece-me que se quer juntar a nós, mas tem umas certas ideias loucas que o Rabi lhe meteu na cabeça.
Não consigo que mas diga, mas tu consegues com certeza.
- Vão ter com ele - sugeriu Malthace.- Não me importo de ficar aqui sozinha. Assim que lá houvesse mais frio, teria que voltar.
- Tens a certeza? Deve demorar pouco.
Demorou muito mais do que Daniel pensava, porque Joel e o jovem tecelão embrenharam-se num intrincado debate teológico. E era quase Sol posto quando se puseram a caminho da loja de Daniel.
- Vai ser um dos melhores que nós temos - disse Joel. - Mas devias ter-nos interrompido. Quando comecei a discutir esqueci-me das horas.
No entanto, não parecia apressado e Daniel notou que o amigo tinha qualquer coisa para dizer.
- Pensei não te dizer nada - desabafou finalmente. - Não sei bem porquê. Voltei a ver o carpinteiro.
- Simão estava com Ele?
- Estava. Na verdade, quando te disse outro dia que tinha encontrado Simão, não foi bem assim. Fui de propósito a Betsaida. Voltei lá várias vezes. Ultimamente tenho-me levantado cedo para ir ouvir Jesus falar aos pescadores.
Daniel estava surpreendido.
- Julgas que nos vai ajudar?
O outro hesitou.
- A mim ajudou-me. Explicou-me vários pontos da Lei que sempre me tinham feito confusão.
- Explicou-tos, a ti? Tu és um estudante e Ele não passa de um carpinteiro.
- Não sei onde aprendeu - disse Joel. - Mas conhece a Escritura. Algumas das suas ideias são iguais às do Pai, mas parece ir mais longe. Tem uma maneira de tornar tudo muito claro e fácil, de tal modo que ficamos a pensar por que razão nunca tínhamos compreendido as coisas antes.
- A primeira vez que O ouvi - disse Daniel - pensei que, se Ele e Roch se pudessem encontrar...
- Também tive a mesma ideia. Há tanta gente que O segue. Certas manhãs são mais de cem. Se alguém os pudesse convencer... Mas não tenho a certeza. Gostava que O ouvisses, Daniel. De todas as vezes que O oiço, desejava que estivesses comigo. Ambos pensamos...
- Kemuel vai contigo?
Joel riu.
- Kemuel, não. Convenci-o a ir uma vez. Ficou horrorizado. É muito parecido com o Pai. Não, Thace vai comigo, ela... oh! o tempo que perdi a conversar! Esqueci-me de Thace! Vai ficar furiosa comigo!
A rapariga não estava na loja. Os dois rapazes ficaram indecisos à entrada quando um murmurar suave lhes chegou aos ouvidos. Com certeza que não era... Foi então que Daniel ouviu o riso claro e límpido de Thace.
- Espera aqui - disse a Joel.
Não estava ninguém no quarto. As duas raparigas estavam sentadas no banco do pequeno jardim, ao lado uma da outra.
- Oh Daniel! - gritou Lia assim que viu o irmão - Thace veio ver-me!
Mudo de espanto Daniel olhava, ora para Lia ora para Thace.
- Como? - balbuciou, e depois viu o olhar de aviso de Thace. Era como se lhe dissesse claramente: não estragues isto. Como o conseguira, quando ninguém, nem mesmo uma vizinha ou uma velha amiga, pudera ver o rosto de Lia durante quase dez anos?
- Passámos uma bela tarde - disse Thace despreocupadamente como se fosse uma coisa que acontecesse todos os dias. - Lia mostrou-me as plantas. O tempo passou a correr. Tínhamos tanto que contar uma à outra.
As duas... tão profundamente diferentes!
- E de que podiam ter falado? - exclamou Daniel quase sem querer.
O olhar de Thace era trocista.
- De ti - respondeu. Daniel sentiu-se corar até às orelhas. Viu que nunca saberia como Thace conseguira aproximar-se de Lia. As raparigas eram uns seres muito estranhos. Não podia compreendê-las. Mas notava a transformação do rosto da irmã. Ao lado da beleza viva de Thace, era frágil e pálida, mas o sorriso era tão parecido com o da mãe, que Daniel se sentiu comovido.
Joel, impaciente e curioso, aproximara-se da porta. Mas era esperar demasiado que o milagre o incluísse também. Assim que o viu, a face alegre de Lia transformou-se numa máscara de terror. Thace fez-lhe sinal para que se afastasse.
- O meu irmão e eu precisamos de voltar para casa - disse gentilmente. - Mas depressa voltarei. Não me esqueces, Lia?
A rapariga não respondeu. Tinha a cabeça inclinada e as pontas do lenço, que lhe escondiam o rosto, tremiam.
- Quero que fiques com uma coisa para que te lembres de mim - disse Thace. Desatou o cinto verde bordado e pô-lo carinhosamente nos joelhos de Lia. Os fios de ouro brilhavam ao sol poente.
- Deus seja contigo - disse ràpidamente e, sem esperar resposta, passou diante de Daniel, dirigiu-se para a loja sem dar tempo ao rapaz para lhe tentar sequer agradecer. Ficou de pé olhando para a irmã. Viu-a estender a mão lentamente para o cinto, seguindo com os dedos os desenhos escarlates, azuis e púrpura, como se temesse que se desvanecessem mal lhes tocasse. Era a primeira coisa bela que possuía.
A visita de Thace fez com que Daniel passasse a olhar para a irmã de uma maneira diferente e uma coisa em que nunca reparara antes envergonhou-o. Lia passava o dia inteiro a tecer roupas finas para uma mulher rica e ela própria usava uma túnica andrajosa, gasta e cinzenta. Na manhã seguinte tirou da prateleira o jarro onde guardava o dinheiro, contou uma mão cheia de moedas e foi ao mercado.
Era um lugar confuso, o gênero de lugar que não agradava muito a um homem. As tendas dos tecelões estavam rodeadas de mulheres que falavam tanto e tão depressa que mais pareciam árvores cheias de pardais, que mediam com as mãos os comprimentos dos tecidos escarlate e púrpura, discutindo os preços com gritos agudos e altos. Daniel encheu-se de coragem e aproximou-se, tentando fazer de conta que não via os olhares de troça das mulheres. Encontrou finalmente o que procurava, uma peça de algodão macio de um azul claro e fresco como o das flores de ketzah.
- Quanto custa? - resmungou. A rapariga de argolas de ouro nas orelhas observou-o com astúcia.
- O tinto azul é raro - disse.- Dois siclos. Daniel sabia que era demasiado, Mas não tinha maneira de calcular o preço normal e não tinha feitio para discutir. Pagou o que lhe pediram e ficou furioso consigo próprio quando viu que a rapariga não conseguia esconder a satisfação.
- Linha! - E olhou para a rapariga. E assim que lhe arranjou a linha, perguntou:
- E uma agulha?
A rapariga riu.
- Não vendemos agulhas. Mas com certeza que a tua mulher tem agulhas.
Daniel não respondeu, mas corou tanto que a rapariga recomeçou a rir.
- Oh - disse - é um presente, não é?.
Espera.
- E foi procurar no meio de uma enorme confusão de artigos - Aqui está. Toma uma das minhas. Não te levo dinheiro por ela.
Como Daniel podia ver, a gentileza não passava de uma desculpa pelo lucro escandaloso que obtivera no tecido. Pegou no embrulho e afastou-se com as orelhas vermelhas.
Lia nem podia acreditar que o tecido fosse para ela. Apalpar a superfície macia dava-lhe tal alegria que Daniel quase nem ousava dizer-lhe que lho oferecera com um fim útil. Só passados dois dias lhe levou a agulha e a linha. Fascinada, observava as tentativas desajeitadas do irmão. E de repente deu uma gargalhada tão clara e alegre que o rapaz deixou cair a agulha. Nunca a ouvira rir assim! Mas mal sentiu o olhar do irmão, calou-se.
- Oh, Daniel! Pegas nisso como se fosse uma barra de ferro. Dá-me a agulha.
- Sabes enfiar uma agulha? - perguntou admirado.
- Toda a gente sabe enfiar uma agulha! Daniel, achas que... ficas zangado comigo se eu fizer daquele tecido azul um vestido para mim?
E por entre a porta da forja viu Lia estender o tecido no chão, encantado com a maneira correcta como o arranjava e cortava. Graças a Deus! Talvez lhe pudesse até fazer uma túnica nova!
Capítulo 14
Tudo começou com uma pergunta inocente.
- Daniel, o que é um casamento?
Por sobre a esteira com os pratos de barro, Daniel olhou para a irmã. Depois da refeição da manhã tinham-se deixado ficar sentados. O rapaz sabia que eram horas de ir abrir a porta da loja, mas não estava com disposição para se apressar. Às primeiras horas da manhã fora assistir ao casamento do seu novo amigo, Nathan, o filho do cobrador de impostos. Sentia o corpo pesado e o espírito entorpecido. Desejava que Lia deixasse de o incomodar com perguntas.
Como a rapariguinha sabia pouco do que se passava para além das paredes da casa! A avó nunca teria conversado com ela? Durante os primeiros dias passados em casa de Simão tinham comido as refeições e trabalhado quase em silêncio. Depois, saindo da sua própria solidão começara a falar, como costumava fazer com Sansão, dizendo em voz alta o que pensava, sem esperar resposta. Lia ouvira-o em silêncio, tal como Sansão, mas mais tarde Daniel admirara-se ao ver que a irmã recordava o que ouvira. Começara a fazer perguntas; estranhas e infantis perguntas que revelavam uma ignorância incrível. Nos últimos dias, depois da visita de Thace, as perguntas haviam-se tornado até demasiado frequentes. Desejava saber coisas acerca das raparigas que ele encontrava na aldeia, o que usavam, o que faziam na cidade, de que falavam. Daniel respondia-lhe o melhor que podia porque compreendia que as suas palavras eram como uma janela através da qual a irmã podia observar um mundo de pessoas que não se atrevia a olhar de frente. E agora, fazendo um esforço, tentou falar-lhe do casamento.
- É uma festa - disse lentamente. - No dia em que um homem leva a noiva para a sua casa. É quando todos os amigos festejam o casamento e lhe desejam felicidade.
- A noiva também tem amigas?
- Sim, e todas brincam e falam ao mesmo tempo.
- Foi muita gente ao casamento de Nathan?
- Não; suponho que não foi tanta como é costume. Claro que este foi o primeiro casamento a que fui desde... desde aquela noite distante em que segurei um archote no cortejo de casamento do tio! - Apressou-se a continuar - Bem vês, Nathan tem vergonha de o pai ser cobrador de impostos e não consentiu que o pai lhe fizesse a festa. Bem percebi que foi uma festa de casamento muito pobre, mas Nathan estava satisfeito.
- E tinham coisas boas para comer?
- Sim. Bolos e muitos frutos e vinho - "Que maldito egoísmo o seu! Não lhe poderia ter trazido um bocado de bolo?"
- Conta-me tudo, Daniel! - E os olhos azuis de Lia cintilavam. O rapaz desejou ser capaz de falar como Joel.
- Primeiro fomos a casa da noiva. A família fizera grinaldas de flores. Nathan e Debora estavam sentados no jardim atrás da casa, porque esta era pequena para tanta gente.
- A noiva estava bonita?
- Não sei. Creio que Nathan pensava que sim.
- Tão bonita como Thace?
Daniel ficou, por momentos, desconcertado. Depois recordou-se de que Thace era a única rapariga que a irmã conhecia.
- Não - disse honestamente. - Nem tão bonita como tu.
- O que tinha ela vestido? - Lia parecia satisfeita e estava corada.
- Oh - continuou o rapaz com dificuldade. Um vestido... parece-me que era branco. E um véu na cabeça, e flores. Depois fomos todos em cortejo até à nova casa de Nathan. Alguns rapazitos tocavam gaita, todos levávamos archotes e as pessoas mais velhas atiravam arroz e grãos à noiva.
- Porquê?
- Oh, é um costume. Para lhe desejar uma boa família. E todos cantámos canções, gritámos, batemos palmas e saltámos.
Parou ao ver o olhar de medo da irmã. A simples menção de barulho aterrorizava-a. Não podia compreender que o barulho significasse alegria. Daniel levantou-se e começou a tirar a louça da esteira. Lia não se mexeu, continuou sentada pensando em tudo quanto o irmão lhe contara.
Por último perguntou-lhe: - A noiva de Nathan vai viver sempre com ele, nessa casa?
- Pois claro. Como os nossos pais viviam na nossa casa.
- Daniel - disse a rapariga lentamente. - Quando trouxeres uma noiva para viver contigo, o que será de mim?
Daniel ficou completamente aturdido.
- Que pergunta idiota - resmungou. - Não me caso.
- E porque não?
- Porque não tenho tempo para essas loucuras. Pelo menos até o último dos Romanos ser expulso da nossa terra.
- Nathan é louco por ter uma noiva?
Daniel sentiu que a boa disposição lhe estava a desaparecer por completo.
- Isso é outro assunto. Eu fiz um juramento. Vivo apenas para uma coisa, livrarmo-nos dos nossos senhores Romanos.
A voz soara-lhe forte aos próprios ouvidos. Contra quem gritara, contra Lia, ou contra si? Exaltado, começou a vestir a túnica. Sentia-se magoado, como se tivesse, de repente, tomado consciência de uma ferida que lhe passara desapercebida.
- Os Romanos são os nossos senhores? - perguntou Lia num tom de voz suave e admirado.
- Nem sequer sabes isso?
Lia sentou-se em silêncio. Mas ao abrir a porta da loja, Daniel percebeu que a irmã se preparava para lhe fazer outra pergunta. Não desejava continuar a ouvi-la. Para uma manhã já respondera que bastasse. Mas as palavras prenderam-no como se, inesperadamente, uma rede o tivesse apanhado.
- Aquele soldado, o que vem à tua loja algumas vezes, o que vem a cavalo? É um Romano?
- Sim. Quem me dera vê-lo a arder!
- Então é teu senhor?
- Pergunta-lhe! E ele dir-te-á que sim!
- Oh Daniel, que patetice! Não passa de um rapaz que nem chega a ter metade do teu tamanho e da tua força. E tem saudades de casa.
Daniel ficou furioso.
- E que importância tem a força dele? Usa uma espada. E tem todo o exército romano a protegê-lo!
- Daniel, porque detestas tanto os Romanos?
Olhou para a irmã com raiva impotente. "Porque fizeram isto de ti!", desejou gritar-lhe. "Porque te tiraram os pais, te roubaram a vida decente que tinhas, destruiram a possibilidade de beberes a taça do casamento como a noiva de ontem à noite. Porque te tiraram tudo, tudo menos uma coisa: um irmão para te vingar!"
E, de repente, tudo o que desejava era afastar-se dela. Sentiu-se abatido. Um peso estranho que não podia compreender caiu sobre ele. Mas ao atravessar a porta voltou-se para trás.
- Porque dizes que aquele soldado tem saudades de casa?
Os olhos da rapariga fitaram-no, azuis e claros.
- Parece-me que tem saudades de casa - disse. Inclinou-se e começou a enrolar a esteira.
Furioso, bateu com a porta. Saudades de casa! Aquele emproado filho de um camelo!
Mas onde fora ela aprender aquelas palavras? Não conseguia prestar atenção ao trabalho. A cabeça doía-lhe. Sem se dar conta, as perguntas infantis de Lia haviam desencadeado toda a revolta que conseguira dominar tão cuidadosamente. E durante todo o dia, enquanto trabalhava na forja, ia pensando na montanha. Por duas vezes pousou o martelo e foi-se sentar à porta da loja de Simão olhando para a linha brilhante das colinas que se recortavam num céu de um azul puríssimo. Até então fora sempre capaz de lutar contra esta saudade, de desviar a vista dos montes, de sufocar a sua revolta dando grandes marteladas na forja. Mas hoje essa saudade agarrara-o com a força de uma centena de demónios. Passou o dia a trabalhar, tentando esquecer o desejo que sentia, tentando afastar o olhar das colinas distantes. Ao fim da tarde pousou o martelo, apagou o fogo com terra, cuidadosamente como se se preparasse para o Sábado e fechou a porta da loja.
- Tenho que sair esta noite - disse à irmã. - Tens comida e água e óleo suficiente para te iluminares durante toda a noite.
- Voltas?
Teria ela tido a intuição dos demónios que o possuíam?
- Claro que volto. Tranca a porta assim que eu sair.
Dirigiu-se para a estrada da montanha. À medida que avançava, sentia que o cansaço desaparecia. O ar tornava-se mais fresco. Uma brisa ligeira fazia estremecer os ciprestes. E cada golfada de ar que respirava, era como se respirasse liberdade.
Quantas noites, deitado no telhado da casa de Simão, imaginara o momento em que voltaria a entrar no acampamento. E, por instantes, foi tal como imaginara, os gritos, a surpresa, a sensação de ter voltado a casa. Mas a breve excitação depressa se desvaneceu. Roch, depois de umas rápidas perguntas, recomeçou a discussão com dois dos homens. Ninguém tinha grande coisa para lhe contar. Daniel passeou pelo acampamento, viu alguns rostos novos e tentou sentir a alegria que imaginara. Foi então que viu o que lhe faltava. Esperara ver, durante todo o caminho, uma sombra na colina, uma sombra familiar que fosse a correr ao seu encontro. Ridículo. O preto tinha muito mais que fazer do que ficar sentado à sua espera durante todas aquelas semanas. Mas porque não estava Sansão ali? A forja tinha sido acesa. Podia ainda sentir o calor da pedra quando lhe pôs a mão em cima.
- Como vai a aldeia? - perguntou Joktan, assim que chegou com um molho de lenha que deixou cair junto do lume. Havia uma nota de hostilidade, ou de inveja, na voz. - Trouxeste alguma coisa para comer?
Daniel ficou surpreendido. Chegara de mãos vazias e nem sequer pensara nisso.
- Ultimamente temos tido certas dificuldades para arranjar carne - explicou Joktan. - Alguns dos pastores fizeram-nos uma emboscada. Até parece que aprenderam connosco. Dois dos nossos ficaram feridos, e mal. Os pastores estão zangados, e Roch disse-nos para ficarmos quietos durante uns tempos.
E, de repente, Daniel deixou de se sentir à vontade. Durante o tempo que passara na montanha considerara sempre como ponto assente que os rebanhos que pastavam nas encostas podiam ser atacados livremente. Agora sabia o nome dos homens a quem esses rebanhos pertenciam. Não eram homens ricos.
- Mas, claro - continuou Joktan - Roch não vai ficar quieto durante muito tempo.
Daniel riu, procurando ficar à vontade.
- Onde está Sansão? - perguntou.
Joktan resmungou.
- Isso é que ninguém sabe. Sansão só faz o que quer.
- E Roch consente?
- Roch consente. Se me perguntares a minha opinião sempre te digo que me parece que já está arrependido de ter apanhado aquele bruto. Mas Sansão ganha o que come. Olha! Lá vem ele. Vê meu Deus, repara no que ele trouxe!
O gigante estava de pé, no fim do atalho. Carregava aos ombros, tão fà cilmente como se se tratasse de um coelho, um carneiro que devia pesar mais do que um homem. Com um balanço deixou-o cair no chão e ficou a sorrir, olhando para os homens à espera de que o elogiassem.
Daniel avançou com um grito. E o largo sorriso que iluminou a face negra foi uma reconfortante resposta. Ficaram parados olhando um para o outro. Sansão deu um salto por sobre a carcaça do carneiro e, quando se ia ajoelhar, Daniel agarrou-lhe os braços e fê-lo ficar de pé. Sorriram um para o outro em silêncio.
Dois homens lançaram-se sobre o animal e começaram a esfolá-lo com a ferocidade de chacais. Outros atiçavam o lume e preparavam o espeto. À medida que a notícia do festim ia correndo, os homens saíam da caverna. Roch, à entrada, encolheu os ombros e não disse palavra.
Enquanto o carneiro assava, Daniel perguntava a si próprio se seria a melhor altura para contar a Roch que organizara o seu próprio bando. Não desejava estragar o momento em que pudesse mostrar a Roch um autêntico exército. Além disso escolhera uma má ocasião para ir à montanha. Roch, como era evidente, não andava em maré de sorte.
- O teu amigo Joel? - perguntou Roch - Voltaste a vê-lo?
- Sim - disse Daniel. - Várias vezes.
- Não o percas de vista - resmungou Roch. - Mais dia menos dia devo estar a precisar dele. - Não acrescentou mais nada e quase nem prestou atenção às tentativas que Daniel fez para lhe contar o trabalho que tinha na loja de Simão.
Mais tarde, durante a noite, Daniel sentou-se, observando a fogueira a estalar e a crepitar. Sentia-se bem, repleto de carneiro assado. Encostou-se ao rochedo, procurando com os ombros as reentrâncias onde se costumava aconchegar.
- É bom ter voltado - disse.
- É bom ter a barriga cheia - comentou Joktan, passando a mão pelo queixo engordurado. - E temos que te agradecer isso a ti.
- Queres dizer que tens que agradecer a Sansão.
- Sansão só fez isto por ti. Sabia que tu vinhas. Ele sabe as coisas. Talvez seja surdo mas consegue ouvir coisas que nós não ouvimos. Repara nele, ali sentado a olhar para ti. Podes pensar que és um dos seus deuses. Julgas que foi por acaso que foi esta a única refeição decente desta semana?
Havia mais alguém, também, que sabia que a refeição não fora um acaso. Ao olhar para Roch, Daniel viu-lhe os olhos pequenos, brilhando por sobre a barba negra, fixos em Sansão. E o ar de ódio que observou, desagradou-lhe. Roch enchera-se do carneiro proibido, mas não perdoava ao único homem do acampamento que ousara desobedecer-lhe.
A noite avançou e Daniel continuava acordado. Por cima da sua cabeça as estrelas eram enormes e pareciam estar muito perto. O ar fresco era límpido, livre dos fumos e odores da aldeia. Ficou estendido, cheio de carne e vinho, ao lado dos antigos companheiros. Era tudo tal como imaginara nas noites sem fim que passara na aldeia. Não conseguia adormecer. Voltou-se, procurando um lugar mais confortável no chão pedregoso. Nas poucas semanas que estivera ausente, o corpo esquecera a dureza das pedras. E, simultâneamente, sentia o pensamento agitar-se de uma forma desconfortável tentando encontrar um lugar de descanso.
Começou a ver imagens desfilando na sua frente. Lia sózinha por detrás de uma porta aferrolhada. Joel lendo em voz alta os rolos de pergaminho. Thace de pé à entrada da loja com o lenço às riscas na cabeça. Simão olhando para a estrada à espera de que ele aceitasse a oferta que lhe fazia de tudo quanto possuía.
Simão escolhera um chefe diferente. Daniel pensava agora na única refeição que partilhara com os companheiros de Simão. Recordava o silêncio que se fizera quando Jesus, de pé, abençoava o magro festim; recordava a maneira como cada um tirara menos do que necessitava para que a comida chegasse para os que esperavam fora de casa. Parecia que uma intimidade os unia e ligava. Esta noite quem, além de Sansão, se importara com a sua vinda?
Pensou imediatamente na cabrinha preta de Lia. Alguma criança na aldeia iria passar fome por causa do festim desta noite?
Aos primeiros alvores da madrugada ergueu-se. Sansão acordou imediatamente. Daniel pôs-lhe uma mão no ombro. E durante uns momentos ali ficou, perturbado pela interrogação que podia ler nos olhos escuros. Abanou a cabeça e atravessou por entre os corpos adormecidos. Sansão não tentou segui-lo.
Desejava poder levar o negro consigo. Mas como podia aquele gigante caber na pequena gaiola da sua vida que era a loja do ferreiro? Sansão iria amedrontar os vizinhos e aterrorizar Lia para sempre. Não, Sansão pertencia à vida livre das montanhas.
E a que lugar pertencia ele?
O fogo da forja de Simão estava quase apagado. Afastou as cinzas, assoprou as brasas e reanimou o lume. Depois abriu a porta de casa. Lia olhou-o com os olhos quase tão apagados como o fogo. Não se penteara nem arranjara a refeição da manhã. Viu, irritado, que o jarro de água estava vazio e que teria que ir meter-se na fila de mulheres que palravam junto da fonte. Inclinou-se, pegou no jarro e sentiu-se outra vez preso nas grades daquela prisão.
Capítulo 15
Desde aquela manhã em que Daniel voltara para ouvir Jesus na praia de Cafarnaum, a vida na aldeia parecia ter-se tornado menos opressiva. E embora ficasse surpreendido se tivesse pensado nisso, o certo é que os longos dias quentes do mês de Ab eram os mais felizes de quantos conhecera até então.
Foi primeiro porque Joel lhe pedira e também porque sentia curiosidade em saber o que havia naquele pregador que atraíra, primeiro Simão e depois Joel. Dois dias depois voltou, porque não conseguia esquecer as palavras do carpinteiro. E desde então levantava-se quase todas as manhãs antes do sol nascer, caminhava três milhas até à cidade para se reunir à pequena multidão que esperava na praia. E, mesmo sabendo que a loja só poderia ser aberta mais tarde, Simão encorajava-o a ir e parecia ficar satisfeito com a sua presença. Daniel podia encontrar Joel, falar-lhe à vontade e várias vezes recebia a recompensa do sorriso de Thace. E até os pescadores começavam a cumprimentá-lo e sabiam-lhe o nome.
Era difícil explicar a si próprio porque voltava tantas vezes de noite a Betsaida, mesmo sabendo que não iria encontrar Joel, mas que apenas podia ficar sentado no pequeno jardim da casa de Simão ouvindo as palavras de Jesus. Nem sempre compreendia essas palavras, e muitas vezes regressava a casa perturbado e impaciente, mas algumas noites depois, quase contra o seu desejo, voltava de novo.
Não estava ainda bem certo do que Jesus tencionava fazer, mas dia após dia as suas palavras, cheias de esperança e promessas, obrigavam-no a voltar.
Durante as refeições contava a Lia as histórias que ouvira. E muitas vezes pensava que, se as compridas caminhadas até Cafarnaum e as longas horas em que se afastava do trabalho mais nenhum resultado tivessem, lhe davam pelo menos a possibilidade de ter assuntos para conversar com Lia.
- André estava lá? - perguntava a irmã - Tinha muito peixe? As mulheres ricas levavam comida para os pobres?
Ficava sentada, sem tocar na comida desejando apenas ouvir o que o irmão lhe contava. Muitas vezes, quando voltava de noite, muito tarde, Lia saltava da esteira, os olhos brilhantes, e sentava-se rodeando os joelhos com os braços. Mesmo quando se sentia demasiado cansado para contar o que quer que fosse, não podia subir para a cama, no telhado, deixando-a desapontada.
Admirava-se como era possível que aquela criaturinha tímida, que nunca se aventurara para além do pequeno jardim que rodeava a casa, pudesse ter tanta curiosidade acerca da vida agitada da cidade. Como podia dar-lhe uma noção dessa vida se ela nem sequer vira nunca a pequena encruzilhada, a fonte e a humilde sinagoga que eram o centro da sua própria aldeia?
- Gosto mais de ir de manhã - disse-lhe Daniel. - Quando os pescadores estão a voltar da pesca da noite. Algumas famílias levam os barcos para o mesmo sítio durante anos, de maneira que toda a gente sabe que alguns lugares pertencem a certos pescadores. E é por isso que ninguém ousa intervir quando Jesus se senta e começa a falar, porque todos sabem que esse lugar pertence, por direito, a Simão e a André.
- E porque desejariam intervir?
- Os capatazes pensam que Ele distrai os homens do trabalho. Não os pescadores, porque esses estiveram fora durante toda a noite e já fizeram o seu trabalho. São os homens que andam na descarga dos barcos que param a ouvi-Lo, quando deviam estar a trabalhar. E ainda as pessoas como eu, que têm o trabalho em casa à espera de ser feito.
Tinha tanto para lhe contar que nunca seria capaz de encontrar palavras suficientes para lhe dar uma visão de tudo: o lago, cinzento e calmo ao nascer do Sol, as colinas que o rodeavam como carneiros amontoados, as primeiras filas de camelos e burros caminhando preguiçosos pelas margens. O cantar de um galo erguendo-se na cidade, os primeiros chilreios dos pardais, e, de repente, os gaviões surgindo de todos os lados, enchendo o ar, lançando-se como flechas sobre a água. E o sol raiando por sobre as colinas, quente e amarelo; o nevoeiro dissipando-se e o lago brilhando, azul e cintilante. Os barcos a chegar com os cestos cheios de peixe. O fumo das pequenas fogueiras acesas ràpidamente e o odor do peixe a fritar. Homens corajosos erguendo-se na escuridão mesmo quando os músculos cansados pediam um pouco mais de descanso, homens corajosos fazendo a longa caminhada até à cidade e esperando. Mas como podia ele traduzir isto em palavras?
E como lhe podia contar coisas acerca das pessoas? As mulheres que ajudavam os homens a estender as redes molhadas na praia. Os homens quase nus, de ombros brilhantes, descarregando dos barcos os cestos pesados, estendendo o peixe nas pedras lisas para o salgarem e secarem. As filas intermináveis de homens com sacos de cereal e cestos de frutos e vegetais.
- Jesus fica de pé, na areia, e fala a todos - contava Daniel a Lia. - Primeiro aos amigos e a pessoas como eu. Depois aos pobres e aos estropiados. Deus sabe lá onde dormem, mas todas as manhãs se arrastam para a praia, para ouvirem Jesus e também porque Simão, André e as mulheres lhes dão peixe. Depois juntam-se os curiosos que se aproximaram porque viram uma multidão. Os capatazes ficam como doidos quando os homens param para ouvir Jesus. E, mais cedo ou mais tarde aproximam-se e levam-nos. Algumas vezes Jesus entra num dos barcos de Simão e afasta-se um pouco da praia, de maneira que o não possam mandar embora, mas de forma que a multidão o continue a ouvir.
- O que disse Ele hoje? - perguntava Lia. E Daniel tinha que fazer o que podia para se recordar. Tentaria fazer reviver a margem do lago, o marulhar da água, os gritos dos trabalhadores e até a respiração dos homens e mulheres reunidos junto de si. Podia ouvir a sua quietude e aquela voz calma e profunda. Algumas vezes conseguia quase recordar todas as palavras, porque Jesus deixara impressa no seu espírito uma imagem inesquecível.
- Contou-nos uma história de um viajante que caiu no meio dos ladrões que o atacaram e o deixaram meio morto na berma do caminho. Um sacerdote e um levita passaram, viram-no e afastaram-se para a outra berma da estrada, mas um samaritano amaldiçoado parou, tratou-lhe as feridas e cuidou dele. Gostava mais de que a história falasse de um judeu em vez de um samaritano. Se Jesus pensa que os Judeus e os Samaritanos podem entender-se uns com os outros como bons vizinhos, está enganado. É uma coisa que nunca poderia acontecer.
Algumas vezes esquecia-se das palavras e recordava apenas o som daquela voz profunda ecoando dentro de si. Era verdade, gostava mais de ir de manhã, não só por ter prazer em ver o lago de madrugada e a agitação do começo do trabalho, pelo passeio através dos campos ainda frescos do orvalho da noite, mas também porque ali, sob a luz clara do sol, nada parecia impossível. Podia acreditar que o Reino de Deus estava a chegar e quase podia ouvir o som das trombetas vindo das colinas distantes.
Quando ia para a cidade, à noitinha, tudo parecia diferente e não se sentia tão seguro. Era como se uma certa tristeza envolvesse a terra. À noite as pessoas aproximavam-se em grupos da casa de Simão, o pescador, onde Jesus vivia. Os trabalhadores reuniam-se cansados do trabalho árduo de um dia de labuta na forja, nos teares ou nas vinhas. Enchiam o pequeno quarto, a passagem estreita, tão apertados uns contra os outros que era difícil passar no meio deles. Era de noite que os esfomeados, que não tinham comido durante todo o dia, chegavam para que os alimentassem; e era quando surgiam os vagabundos e os miseráveis. O ar tornava-se pesado com o calor do dia, a quentura dos corpos e o cheiro da febre. Os olhos dos doentes e aleijados que aguardavam a manhã cheios de esperança, brilhavam de noite com o sofrimento acumulado durante todo o dia. Daniel não gostava da forma como gracejavam uns com os outros, nem da maneira como se lançavam sobre a comida e arrancavam o pão das mãos dos mais fracos, nem gostava de ver que ninguém se importava quando algum desgraçado, que mal se podia arrastar, era empurrado ou pisado até.
à noite até Jesus parecia cansado. Os olhos brilhantes estavam cheios de piedade. Mas nunca se afastava das gentes nem se recusava a falar-lhes. E quando falava, conseguiam esquecer tudo durante uns momentos. Podia ver os rostos erguidos para a luz que saía da porta aberta. Podia notar que as palavras lhes tocavam o coração e o espírito como bálsamo reconfortante, e que as feridas que os haviam atormentado durante todo o dia perdiam a força e, por uns momentos, deixavam de ter importância. Algumas vezes um dos homens erguia-se, fortalecido por um poder novo, e uma esperança surgia então no coração de todos.
Mas quando Daniel voltava para casa, sufocado pelo calor da noite, toda a miséria que vira caía sobre si e, nessas ocasiões, não ouvia as trombetas distantes. Nessas noites era difícil arranjar fosse o que fosse para contar a Lia. E quando se deitava e tentava adormecer, era sempre a mesma pergunta que o atormentava. Quando, quando? Quanto tempo teriam que esperar?
Havia uma história que quase desejava não ter contado a Lia, tantas vezes a irmã lhe pedia que a repetisse.
- Conta-me aquela história da rapariguinha que estava doente - pedia ela.
E Daniel voltava a repetir as palavras que quase lhe pareciam já uma lição aprendida na escola.
- Jesus foi a casa dela e...
- Não, começa mesmo no princípio - insistia Lia como uma criança. - Quando estavam à espera na praia.
E o rapaz começava, sabendo que só a história completa tal como lha contara da primeira vez a satisfaria.
- Estávamos à espera na praia. Jesus tinha atravessado o lago com alguns companheiros para ir visitar umas aldeias e voltava de barco. As pessoas aguardavam-No desde a madrugada, esfomeados e cheios de calor, mas não se queriam ir embora sem O ter visto. Por fim, uma delas avistou o barco: todos se puseram de pé e à medida que Jesus se aproximava, quase ficavam loucos de alegria. Parecia que se tratava de um príncipe de quem todos gostavam. Simão e Tiago faziam o que podiam para arranjar espaço para Jesus desembarcar. Julgo que Simão procurava convencê-lo a voltar para o barco, como algumas vezes acontecia porque à medida que lhe chamavam mestre, iam perdendo a cabeça e já nem se importavam com o que faziam. Foi nessa altura que soou um grito. Todos se voltaram. Os que estavam atrás procuravam abrir espaço para deixar passar alguém e vimos, então, um homem que tentava aproximar-se de Jesus.
Joel murmurou: "É Jairo", e todos começaram a afastar-se para o deixar passar. Alguns tentaram mesmo esconder-se atrás dos outros, com medo que Jairo os reconhecesse. Jairo é um dos homens que governam a sinagoga. Até Joel parecia um pouco assustado. Os amigos de Jesus rodearam-no. Ninguém sabia o que poderia acontecer. Mas Jesus fez-lhes sinal para que se afastassem e ficou à espera, muito calmo. Jairo passou mesmo junto de mim. A túnica caía-lhe para os lados e estava ofegante como se tivesse corrido, e ninguém precisava de se esconder porque Jairo não via nada senão Jesus. E o que então aconteceu, era a última coisa que se podia esperar. Jairo parou diante de Jesus como um pedinte, estendeu-lhe as mãos e a voz era tão baixa e humilde que só os que estavam muito perto o podiam ouvir. Mas a notícia depressa correu. A filha estava a morrer. A única filha que tinha. E Jesus disse...
- Não, conta-me primeiro o que Joel disse.
- Oh, Joel disse: "A única filha que tem, pobre homem! É a menina dos seus olhos."
- A menina dos seus olhos - repetia Lia suavemente, como se acariciasse as palavras.
- Claro que tive pena, mas lembrei-me de que era também um momento de sorte para Jesus. Um homem importante como aquele, um dos que governam a sinagoga! Pensei se o Mestre iria fazer um negócio com ele, mas seria incapaz de tal coisa. Limitou-se a estender a mão, ajudou Jairo a levantar-se e dirigiu-se imediatamente para casa dele. A multidão deixou-os passar e depois seguiu-os. Também fui, porque quando uma multidão se põe em movimento, nem tempo temos para pensar. Sentia tanta curiosidade como os outros e queria ver o que se ia passar.
Mas a meio caminho da sinagoga vimos um homem que se aproximava a correr, foi ao encontro de Jairo e de Jesus e fê-los parar. Não pude ouvir o que disseram mas compreendi, pelas expressões dos rostos que eram más notícias. Disseram-me depois que anunciara que a menina estava morta e que já não valia a pena incomodar o Mestre. Mas, antes que Jairo pudesse falar, Jesus pôs a mão no braço do mensageiro, disse-lhe qualquer coisa, e continuaram a caminhar. Nós continuámos também.
Depois, ouvimos as mulheres a gritar e as flautas tocando; as mulheres que nos seguiam começaram também a chorar com pena da menina. Jesus voltou-se para nós e disse-nos: "Não choreis, porque ela não está morta, mas a dormir." E nenhum de nós soube o que pensar. As mulheres que estavam à porta de casa gritavam e imploravam. Jesus disse à multidão que se afastasse, fez um sinal a Simão, João e Tiago, os três que estavam mais perto e levou-os para dentro de casa. As carpideiras, que lá estavam, sairam. Umas estavam zangadas, outras assustadas, mas Jairo fechou-lhes a porta.
- Gostava que também tivesses entrado - dizia Lia nessa altura.
- Bem, não podia; nem eu nem nenhum dos outros, a não ser aqueles três. E só soubemos o que aconteceu pelo que eles nos contaram. Disseram que a criança estava deitada em cima da cama e juraram que estava morta. Jesus não hesitou sequer, dirigiu-se para junto do leito, inclinou-se, pegou na mão da menina e falou-lhe.
- Conta-me - murmurava Lia - conta-me exactamente o que Jesus disse.
- Disse: "Menina, levanta-te!" Tal como se a menina estivesse apenas a dormir, ela acordou, ergueu-se e caminhou.
E então Jesus disse: "Dêem-lhe de comer", e foi-se embora, antes que o pai e a mãe tivessem tempo para lhe agradecer. Quando chegou à rua ninguém ousou perguntar-lhe nada porque havia um não sei que no seu rosto, não posso descrever o que era, mas vi o mesmo acontecer noutras ocasiões; era como se estivesse exausto. Simão e João compreendem quando Ele está assim e afastam-no da multidão; levam-no para casa e todos sabem que não vale a pena segui-los.
- A menina ficou mesmo boa?
- Ficou. Via-a caminhar ao lado do pai. Ninguém diria que tinha estado doente.
- É bonita?
- É - acrescentava Daniel, se bem que nem tivesse reparado nisso, mas sabia que Lia tinha prazer em sabê-la bonita.
- Sim - murmurava Lia. - Claro que é bonita. E deve ser muito feliz.
Daniel desejava que a irmã lhe não pedisse para contar a história. Parecera-lhe maravilhosa no momento em que acontecera, mas agora perturbava-o. Alguns dos que acompanhavam Jesus pensavam que Jairo se oferecera para lhe pagar e que Jesus recusara, e Daniel não compreendia esta recusa quando havia tanta gente que todas as noites ia ter com Jesus para que lhe dessem de comer; e para mais o dinheiro não faria falta a Jairo. De qualquer forma, segundo diziam, Jesus ordenara que não se falasse mais no caso. Simão, que estava dentro da casa quando tudo acontecera, também nada dizia. Mas Daniel reparou que Simão raramente se afastava agora do barco e que seguia Jesus de muito perto, para onde quer que Ele fosse. Os pescadores cuidavam do Mestre com mais carinho do que nunca, protegendo-O da multidão, e quando Ele falava os olhos de Simão não lhe abandonavam o rosto.
Um dia, depois de Daniel ter acabado a história, Lia ficou sentada em silêncio durante bastante tempo.
- Julgas que Jesus virá alguma vez à nossa aldeia? - perguntou por fim.
- Veio cá uma vez, pode ser que volte.
- E se vier, juntar-se-á muita gente?
- Junta-se sempre, para onde quer que vá.
- Tanta como no dia em que nos mudámos para aqui?
- Pensas que aquilo era uma multidão? Era muito pouca gente. Onde Jesus está, aparecem centenas de pessoas. - Daniel compreendia que a irmã não podia imaginar o que significava uma centena de pessoas.
- As mulheres também vão?
- Claro.
- E as pessoas, apertam-se e empurram-se umas às outras?
- Às vezes mal nos conseguimos aguentar em pé.
Lia ficou calada durante tanto tempo que Daniel julgou que deixara de pensar no assunto. Por fim perguntou:
- E as crianças também vão?
- Sim, geralmente há muitas crianças.
- E magoam as crianças?
- Claro que não. Porque julgas isso?
- Jesus não deixava que as magoassem, pois não?
- Nem sequer deixa que as mandem embora. Insiste em falar com elas, pergunta-lhes como se chamam e gosta de ouvi-las. Alguns dos homens ficam furiosos, como se achassem que Jesus lhes dá demasiada importância.
Continuou sentada em silêncio, e desta vez Daniel perguntou-lhe muito suavemente:
- Se Jesus vier, vais comigo vê-Lo?
Não respondeu; limitou-se a baixar a cabeça e a esconder o rosto.
"Como estava mudada" pensou Daniel, olhando-a cheio de esperança. Deve ser por causa das visitas de Thace. Porque agora Thace vinha várias vezes com Joel e ficava com Lia, enquanto os dois rapazes iam para as reuniões na torre. Trazia-lhe sempre uma pequena oferta, um bolbo de lírio para plantar no jardim, um pequeno jarro de alabastro com perfume, uma meada de fio escarlate. Para Lia era um novo mundo que se abria.
Depois da última visita de Thace, Daniel chegara a casa e encontrara a irmã olhando-se no pequeno espelho de bronze polido que a amiga lhe oferecera. Olhava-se com tal atenção que nem dera pela entrada do irmão. Havia no seu rosto uma curiosidade tão grande e um desejo tão intenso, que o rapaz ainda se sentia perturbado ao recordá-lo. Algumas vezes, quando lhe falava, parecia-lhe que não o escutava, como se estivesse longe dali, à espera de ouvir um ruído qualquer. De outras vezes notava-lhe no olhar qualquer coisa de sonhador. E, por duas vezes, ao ouvir as primeiras gotas de chuva soando no jardim como passos, correra para a porta, abrira-a e ficara a observar atentamente a escuridão. As raparigas eram umas criaturas muito estranhas! Thace seria capaz de compreender estas coisas? Talvez não passasse tudo de imaginação sua, mas de qualquer modo tudo isto lhe causava uma impressão estranha que não conseguia definir.
Mas tinha também outras alegrias. Tornara-se mais hábil e o trabalho era uma nova fonte de prazer. Agradava-lhe entregar a um dos homens da aldeia um par de gonzos para a casa e saber que não eram apenas fortes e bem feitos, mas também bem proporcionados e bonitos. Começou a sentir necessidade de fazer outras coisas, além das simplesmente úteis, e procurou experimentar.
Numa tarde abafada em que pouco tinha que fazer, apanhou no chão um pedaço de bronze que caíra durante a fundição. Ao ver-lhe o brilho baço teve uma ideia. Aqueceu-o com todo o cuidado, retirou-o do fogo com as tenazes mais pequenas e bateu-o cuidadosamente com o mais pequeno,dos martelos que Simão tinha. Depois de várias tentativas conseguiu obter uma lâmina estreita e depois um fio como se fosse arame. Aqueceu-o outra vez, torceu-o entre os dedos e viu-o tomar, lentamente, a forma de um arco elegante e pequeno. Ficou a admirá-lo com um prazer puro e intenso. Teve depois uma nova inspiração, moldou um delgado alfinete de bronze que pudesse passar por debaixo como uma flecha entre o arco e o arame fino que reunia as extremidades, de maneira que o arco se tornasse num broche como os que vira as pessoas usar na cidade para prenderem as túnicas.
Escondeu-o, meio envergonhado, meio orgulhoso. Guardá-lo-ia para se lembrar daquilo a que se propusera.
"Que adestre as minhas mãos para a peleja, e os meus braços para retesar o arco de bronze..."
Pensou de novo em Jesus e sentiu a esperança renascer-lhe. Por certo que esse homem, tal como o seu antepassado David, trazia em si a força de Deus. Se quisesse poderia arquear o arco de bronze. Mas estaria Jesus adestrando as mãos para a peleja? Daniel não estava muito seguro de que assim fosse. Sentia que precisava de voltar naquela noite ao jardim de Betsaida.
E para Daniel o mês de Ab foi um tempo de expectativa. Só mais tarde, ao recordar-se, sentiria que aqueles dias haviam sido de paz e de esperança.
Capítulo 16
- Farei tudo, Daniel. Sabes que tudo! - A voz de Joel tremia de orgulho. Os olhos, brilhando à luz da lâmpada, fixavam-se no rosto do amigo. Estavam os três sentados no pequeno esconderijo da casa de Joel.
De manhã cedo Daniel recebera uma mensagem de Roch. Subira à caverna, e depois de uma breve conversa, seguira imediatamente para a cidade. Um pouco antes de anoitecer, Joel e Thace tinham-se-lhe reunido no esconderijo habitual.
Daniel trouxera uma ordem de Roch para Joel. A princípio, quando estava só no pequeno corredor, lutara contra o ciúme que o invadira. Joel ia ter a primeira oportunidade para agir enquanto que ele, que o recrutara, tinha que ficar de lado e esperar! Mas começava a ver que assim é que era razoável e que isto não era senão o começo de tudo.
- Roch precisa de umas informações - disse ao amigo ansioso. - Tu és o único que as pode obter. Conheces a cidade e todos estão habituados a ver-te. Nenhum de nós tem essa possibilidade.
- O que é que Roch quer? Consegui-lo-ei, seja lá o que for!
Daniel disse-lhe com a voz vibrante de ódio, como sempre acontecia quando um Galileu falava do tetrarca - o meio judeu, Herodes Antipas, que fora escolhido para os governar - e da cidade extravagante que mandara construir junto ao mar.
- Está de visita a Herodes uma delegação especial vinda de Roma. Enquanto estão em Tiberíades planearam vir a Cafarnaum um ou dois dias para inspeccionar a guarnição. Para alguns, os ricos que se curvaram aos Romanos, será uma grande ocasião. Matatias, o banqueiro, vai oferecer um grande banquete em honra de toda a guarnição, e alguns dos homens mais ricos de Cafarnaum estarão presentes.
- Matatias fará tudo para obter as boas graças do tetrarca - disse Joel com ódio. - Como soube Roch do banquete?
- Não mo perguntes. Roch tem lá as suas maneiras de ser informado. O que ele agora quer é saber quem são os outros que vão ao banquete. Os nomes, dia e a hora do dito banquete.
Joel fez que sim com a cabeça.
- Já estou a ver. Assim já podemos fazer uma ideia dos que estão contra nós. Todo o judeu que se sentar à mesa do tetrarca...
- É isso. Precisamos de conhecer tanto os nossos amigos como os nossos inimigos.
- É só isso que tenho que fazer? Apenas isso? - Joel parecia desapontado.
- É capaz de não ser tão fácil como supões. Roch não deu quaisquer instruções. Deixou tudo a teu cargo.
- E como o poderei avisar? - perguntou o rapaz, mais orgulhoso.
- Isso é comigo. Dir-me-ás o que conseguires saber, ou mandar-me-ás recado por um dos nossos, alguém em quem possamos ter confiança. Eu farei chegar a mensagem a Roch.
Os olhos de Joel brilhavam de expectativa.
- Deixa ver - começou. - Não me ajuda muito o facto de ser conhecido aqui na cidade. As pessoas daquele género não estarão muito dispostas a falar, por causa do Pai. Não sei se serei capaz de saber alguma coisa. Para mais, Matatias e o meu Pai não se falam. Não; os únicos por quem posso saber são os servos. Se eu pudesse falar com os servos... Se eu pudesse vender qualquer coisa.
- Peixe! - interrompeu Thace- Podes arranjar o peixe que quiseres por intermédio de Simão e André.
Em momentos como estes, unidos pelo mesmo sentimento de excitação, os dois irmãos reagiam mais do que nunca como gémeos.
- Boa ideia - aprovou Joel. - Vou arranjar um cesto cheio dos melhores peixes e vendê-los por bom preço. Poderei ver se me encomendam mais para uma ocasião especial. Os escravos da cozinha falam sempre muito quando há festas. Tenho a certeza de que isto vai dar resultado!
Daniel ficou sentado, em silêncio, lutando de novo contra a inveja que sentia crescer dentro de si. O amigo estava excitado de mais para pensar por que motivo ele, o mais novo do grupo, tinha sido incumbido de uma tal tarefa. "A verdade era pensou Daniel - que Roch não tinha mais ninguém que pudesse mandar. O bando das montanhas possuía mais músculos que esperteza. Que poderia ele fazer com os seus ombros de ferreiro e as suas maneiras de camponês? Tinha que ser Joel.
E, ao observar o rosto deste, corado de alegria, sentiu desvanecer-se-lhe todo o sentimento de inveja. "E se alguma coisa corresse mal?" Olhou para Thace. Os olhos de ambos encontraram-se e Daniel viu reflectida nos da rapariga a mesma dúvida.
- Joel - disse ao amigo. - Não és obrigado a fazer isto. Roch não tem o direito de ter dar ordens.
- E porque é que não tem? Se te pedisse a ti?
- Comigo é diferente.
- E porquê?
- Eu não valho nada. Tu tens o teu futuro, tens o teu pai, a tua mãe e Thace.
- Não - interrompeu esta rapidamente. - Não há que pensar em mim. Fiz um juramento, lembras-te? Mas Daniel, o que o meu irmão vai fazer é perigoso?
- Deixem-se de conversas - interrompeu Joel com a autoridade da importância que lhe fora concedida. - Deixem-me pensar. Posso arranjar o peixe muito cedo, antes de amanhecer. Mas suponham que o Pai descobre que não estou na escola? Talvez lhe possa pedir um feriado.
Thace inclinou-se para a frente.
- Joel, tive uma ideia! E se tu e Daniel fossem vistos fora da cidade, amanhã de manhã? Suponham que passavam pelos guardas e que até lhes falavam; assim, se precisassem, as pessoas podiam jurar que os tinham visto. Isto não vos dava liberdade suficiente para fazerem depois o que quisessem?
Joel olhou para a irmã entusiasmado.
- Thace! Porque não me lembrei disso? Farás isso, a sério?
- Sabes que sim. Como sempre, Daniel sentiu-se perturbado pela intimidade que ligava os dois irmãos e que o deixava um pouco à margem.
- Não vejo... - disse aborrecido. Joel riu-se. - Fizemos isto muitas vezes apenas para nos divertirmos. Quando éramos pequenos e Thace usava o cabelo curto, costumávamos trocar as roupas e algumas vezes divertiamo-nos com os vizinhos, pelo menos com os que não tinham muito boa vista. Claro que, agora, Thace é mais baixa do que eu, mas quem dará por isso se não estivermos ao lado um do outro?
Daniel compreendeu.
- Queres dizer que?...
- Claro - Joel interrompeu-o como fizera a irmã, sem dar por isso.- Thace usará as minhas roupas e com o cabelo escondido pelo turbante, quem reparará que não é um rapaz? Vão os dois juntos. Arranjo maneira de ter um dia livre. Podem ir para fora da cidade, para onde quiserem, mas para um sítio onde não nos conheçam bem.
- Vou visitar Lia. Já tencionava fazê-lo há bastante tempo.
Ao ver o entusiasmo dos dois irmãos, os últimos escrúpulos de Daniel desapareceram. E antes de sair do esconderijo combinaram encontrar-se os três na manhã seguinte junto dos barcos de Simão e André.
Antes de amanhecer já Daniel se juntara aos lavradores que iam a caminho da cidade. No porto a multidão habitual esperava as embarcações que regressavam da pesca. Ao aproximar-se, viu dois rapazes que iam ao seu encontro. Um deles era um vendedor de peixe, descalço, com o peito e os braços nus e envolvido numa grosseira túnica de algodão. O outro, quase fez Daniel dar um salto. Sob um apertado turbante estava meio escondido um segundo Joel, mais jovem, de pele mais delicada, feições mais suaves, mas com os mesmos olhos brilhantes. Thace escondeu o rosto do olhar perscrutador de Daniel num gesto que lhe fez recordar Lia.
- Não está tão bem como antigamente - admitiu Thace. - É melhor afastarmo-nos do mercado. Fora da cidade já não haverá perigo.
Os dois irmãos estavam entusiasmados e as dúvidas de Daniel começaram a desvanecer-se. Joel arranjara já um carregamento de peixe e escondera-o debaixo de um barco voltado, dentro de um cesto tapado com folhas verdes. Afastou-se com andar arrastado e um largo sorriso. Thace tomou imediatamente o seu comando com uma eficiência que admirou Daniel.
- Vamos por este lado - ordenou. - Por aqui não teremos grande possibilidade de encontrar gente conhecida.
- Não esperamos? - perguntou Daniel surpreendido.- Jesus deve estar a chegar.
A expressão de Thace alterou-se um pouco.
- Não - disse.- Hoje, não. Prefiro sair da cidade.
- Julguei que querias que nos vissem.
- Sim, mas não quero encontrar ninguém mesmo ao pé.
Levou-o quase a correr por ruas desconhecidas até às portas da cidade. Durante uns momentos caminharam em silêncio e, por fim, Thace disse-lhe com a maior sinceridade:
- Não é que tivesse medo que me vissem. O que não queria era esperar por Jesus; não gostava que me visse desta maneira.
Daniel ficou admirado. Depois lembrou-se, vagamente, da antiga lei que proibia aos homens e às mulheres vestirem-se com os fatos uns dos outros.
- Estás preocupada por causa da Lei? - perguntou-lhe Daniel - Não me parece que Jesus...
- Ora, a Lei! - respondeu-lhe Thace - Joel e eu já a infringimos tantas vezes ultimamente, que nem pensamos nisso. - Fez uma pausa, embaraçada, pois lembrou-se de que Daniel sabia que as leis infringidas tinham alguma coisa a ver com as visitas que eles lhe faziam. E acrescentou rapidamente - A verdade é que não quero mentir na presença de Jesus. Não seria capaz de Lhe suportar o olhar quando me visse assim.
- Se compreendesse o motivo, não te censuraria.
- Sim, julgo que me censuraria - disse pensativa.
- Para Jesus a mentira é impossível, seja qual for o motivo que lhe dê origem.
- A mentira, na guerra, é uma arma - retorquiu Daniel. - E nós precisamos de nos servir das armas que temos. Até Jesus há-de compreender isto.
- Não me parece que compreendesse - disse Thace. E, depois de uma pausa, continuou - Daniel, porque é, que tu e Joel estão convencidos de que Jesus quer lutar?
- Porque diz que o reino está próximo. Que outro significado pode isto ter?
- Nunca pensaste que quisesse dizer que o reino seria estabelecido de outra forma? Sem luta?
- Queres dizer, esperar para sempre como o teu pai diz?
Thace franziu o rosto, concentrando-se no esforço de traduzir por palavras o que pensava.
- Não é bem isso. Repara, Jesus fez-me compreender que não precisamos de esperar que Deus tome conta de nós. Deus faz isso agora. Toma conta de cada um de nós. Jesus diz que Deus lê nos nossos coraçoes e que nos ama. Se todos compreendessemos isto, se todos os homens e mulheres...
- E isso livrava-nos dos Romanos?
- Supõe que os Romanos também compreendiam...
Daniel parou e olhou-a admirado.
- Romanos? Mas pensas que Deus ama os Romanos?
Thace suspirou.
- Julgo que é impossível. Mas então porque diz Jesus que devemos amar os nossos inimigos?
- Quando fala, dirige-se aos homens. Uma rapariga não pode compreender estas coisas! - Respondeu-lhe em voz alta e áspera porque as palavras de Thace tinham ido ao encontro da sua secreta dúvida. Respondera tão alto que duas pessoas que passavam perto deles se voltaram para os observar. Thace baixou a cabeça e começou a andar mais depressa. E quando voltou a falar mudou de assunto.
- O que Joel está a fazer é perigoso? Não consigo compreender. Para que é que Roch quer saber aqueles nomes?
- Não me parece que seja perigoso - respondeu-lhe o rapaz, para a acalmar. - Joel é inteligente. Não te preocupes.
Mas à última parte da pergunta não respondeu. Não queria admitir que também não compreendia por que motivo Roch desejava saber o nome daqueles homens.
Thace, que desejava compartilhar a confiança de Daniel contentou-se com a resposta. Passaram pelas últimas casas de pedra, atravessaram as portas de Cafarnaum e tiveram a preocupação de saudar as sentinelas. Depois seguiram pela estrada que se dirigia para o norte.
Daniel ficou tenso. Vira, mesmo na sua frente, dois homens com os bem conhecidos elmos de metal. Eram dois soldados que estavam sentados na berma da estrada a descansar, com os pesados fardos poisados na poeira. Um deles, sentado no muro de pedra, tinha a espada a seu lado. O outro inclinara-se para atar a sandália, mas ergueu os olhos e Daniel percebeu que já não valia a pena recuar.
- É mais do que certo que vão meter conversa connosco - murmurou em voz baixa, para avisar Thace.
- E que tem isso? - perguntou ela - É para que vejam bem que estou contigo.
- Está bem, mas deixa-me ser eu a falar.
Os dois soldados viam-nos aproximar, cheios de interesse.
- Apesar de tudo os deuses fizeram-nos um favor - disse um deles. - Não te tinha dito?
- É mais do que mereces - respondeu o outro. Mas os deuses lá sabem. Anda cá, rapaz! Apontou os fardos e o gesto que fez foi suficientemente claro.
Daniel ficou louco de raiva. Conhecia bem a lei que permitia a um romano obrigar um judeu a levar-lhe os fardos durante uma milha. Mas ainda estava para nascer o homem que o obrigasse a carregar o fardo de um romano! Olhou bem de frente para o soldado. E, deliberadamente, escarrou para o chão. A bofetada que recebeu na boca foi quase instantânea, mas Daniel não baixou a cabeça.
O segundo soldado levantou-se, calmo, como se nada se passasse mas com os olhos atentos.
Houve um pequeno silêncio. Depois, rapidamente, Thace avançou e pegou num dos fardos. Era mais pesado do que julgara, parou durante uns segundos, fez nova tentativa e conseguiu equilibrá-lo às costas. Os soldados esperavam. Daniel permanecia de pé, impotente de raiva. Depois, pela primeira vez na sua vida, curvou-se às ordens de um romano e pegou no segundo fardo.
Tinha vontade de chorar. O sangue batia-lhe nas têmporas. Não sabia que mais odiar, se os dois soldados, se a rapariga que ia a seu lado e o obrigara a tal humilhação. Olhou-a. Caminhava num passo fácil e apenas a respiração mais apressada traía o esforço que fazia. Deixá-la rebentar! Bem se importava se a visse caída no chão! Voltou a olhá-la. Viu-lhe as gotas de suor escorrendo pelo rosto. E sentiu-se envergonhado. Thace!
- Põe isso no chão - murmurou-lhe em voz baixa. - Depois de levar este fardo venho buscar o teu.
- Nem penses nisso - arquejou a rapariga. - Tem calma. Não digas nada.
Os dois soldados seguiam atrás, falando tão naturalmente como se os dois não passassem de mulas. Chegaram finalmente ao marco de pedra que marcava uma milha. Segundo a lei os soldados poderiam obrigá-los a continuar porque haviam pegado nos fardos muito depois do limite do último marco. Mas os passos de Thace eram tão arrastados e o cansaço tão visível que era evidente que, mesmo que quisesse, não poderia continuar. E foi o próprio soldado, a quem o fardo pertencia, que lho tirou dos ombros; o outro soldado deixou que Daniel pousasse o seu e despediu-se dando-lhe uma bofetada pelos seus maus modos. Os Romanos afastaram-se e Thace sentou-se no chão esfregando o ombro dorido.
- Estás bem? - perguntou por fim Daniel, mas sem a olhar.
- Não. E graças a ti. Porque ficaste assim, Daniel?
O rapaz baixou a cabeça.
- Basta-me vê-los para perder a cabeça. Malditos estrangeiros! Se não estivesses comigo...
- Ficavas mesmo sem cabeça. E tornavas-te assim mais útil ao teu país?
- Está bem! - explodiu Daniel - Fui um louco! Queres voltar para casa?
- Claro que não! - e levantou-se - Quero ir visitar Lia.
Continuaram. Daniel de olhos no chão arriscava de-vez em quando um olhar furtivo na direcção de Thace e viu que a rapariga o estava a observar.
- Devo ser honesta contigo, Daniel - disse de repente. - Quando aquilo aconteceu tive orgulho de ti. Quase morta de medo, mas orgulhosa. Se fosse um rapaz gostava de ter a tua coragem.
As palavras francas de Thace surpreenderam Daniel. O prazer que sentiu corria-lhe pelas veias, embriagando-o. Nunca ninguém lhe dera tanto valor e nem sabia como reagir.
Quando sairam da planície e comecaram a subir, o vento refrescou-lhes as faces escaldantes. Dos dois lados da estrada a terra estendia-se, acastanhada e ressequida pelo sol do Verão. De longe em longe um debulhador solitário atirava o grão ao ar em grandes pàzadas e o vento espalhava a palha enquanto os grãos pesados caíam no chão.
Chegaram à aldeia. Daniel bateu à porta e chamou a irmã. Lia correu o ferrolho e quando Daniel abriu a porta, Thace deixou-se ficar para trás.
- Veio comigo uma amiga tua - avisou Daniel. Lia que se escondera num canto, mal vira uma figura desconhecida, espreitou e gritou cheia de alegria:
- Thace! Porque vestiste as roupas de Joel? Thace entrou no quarto a rir e tirou o pesado turbante com um suspiro de alívio.
- Que sorte nem todos terem tão boa vista como tu! Não me mandas embora, pois não? É um... uma espécie de brincadeira que fizemos.
Lia avançou lentamente.
- Daniel nunca brinca - disse muito séria.
- Que pena - respondeu Thace a sorrir. - Joel e eu brincamos muitas vezes. Vou dizer-te um segredo. O teu irmão também sabe rir. E até muito bem. Nem sempre se esconde atrás daquela carranca de meter medo.
Lia soltou uma gargalhada e daí a nada estavam ambas a rir. E, com um ar mais feroz do que nunca, Daniel foi para a loja. Mas deixou aberta a porta de comunicação com a casa.
Junto de Thace, Lia era uma rapariga diferente. Daniel, enquanto trabalhava, ia ouvindo por entre o ruído da forja e do martelo, o som confuso das vozes das duas raparigas e o riso cada vez mais alegre da irmã. Quando atravessou o quarto para ir buscar uma ferramenta, viu-as inclinadas, com, as cabeças unidas, cosendo. E passou a manhã a arranjar pretextos para atravessar o quarto.
Ao meio-dia comeram juntos a refeição. Lia apresentou, muito orgulhosa, o pão duro, as azeitonas e as tâmaras de qualidade inferior, sem se dar conta da pobreza do festim. Daniel recordava as roupas brancas e finas, os cochins de damasco e o vinho nas taças de alabastro. Mas Thace parecia ter esquecido tudo isso. "Que havia naquela rapariga?", perguntava Daniel a si próprio. Seria uma espécie de naturalidade que fazia com que parecesse estar à vontade, sem o menor esforço, em todas as situações, na montanha, na casa luxuosa e entre os barcos dos pescadores? A sua alegria dava uma graça especial a tudo o que a rodeava.
Lia começara a arrumar os pratos quando foi distraída por um som qualquer. Daniel, recostado nos cotovelos, meio adormecido pelo calor, foi o primeiro a reparar no olhar da irmã. Ficara de pé junto à porta aberta da loja e começara a corar. Daniel sentou-se. Viu depois o reflexo de um elmo de metal. Toda a alegria que sentia desapareceu. Levantou-se, correu para a loja e fechou a porta.
Pensara que nunca mais veria o romano louro. Por que motivo teria voltado? Maldito fosse por ter escolhido o momento de maior calor para lhe levar trabalho. Furioso, reanimou o fogo.
Assim que a tarde começou a escurecer tiveram que pensar no regresso. Antes de voltar para a cidade, Daniel levou Thace à loja.
- Tens trazido tantas coisas a Lia - disse procurando escolher as palavras com todo o cuidado. - Deixas que te ofereça uma também?
Meteu a mão num nicho profundo da parede e retirou um pequeno objecto embrulhado num pedaço do tecido azul que dera a Lia. Timidamente, entregou o pequeno broche a Thace.
- Fiz isto com um pedaço de limalha - explicou.
Thace murmurou:
- Um arco de bronze!
- Lembras-te? Foste tu que pensaste nele, naquela noite, que o arco de bronze significava qualquer coisa de impossível, que não podemos fazer sozinhos. Nunca o esqueci. Não sei como te hei-de explicar, mas isto representa o que estamos fazendo. Significa o nosso juramento. Significa o Reino.
Nunca vira Thace ficar assim, sem poder falar. E enquanto vivesse havia de recordar a maneira como o olhara, antes de baixar a cabeça.
Mas quando respondeu, fê-lo em palavras rápidas.
- E pensar eu que foste tu que fizeste isto - disse comovida.- Devias trabalhar em prata, Daniel. Não devias estar aqui a trabalhar nestes enormes pedaços de ferro!
- Gostava de experimentar - confessou o rapaz.- Talvez faça isso um dia, quando vivermos em paz.
Era a primeira vez que confessava, mesmo a si próprio, aquilo que ambicionava fazer.
Quando voltaram para a estrada, Thace levava de novo o turbante de Joel.
- Sempre que venho, encontro Lia mudada e melhor - disse-lhe. - É como uma flor desabrochando lentamente. Mal posso esperar entre uma semana e outra com o desejo que tenho de ver os progressos que faz.
Sorriu.
- Pequenas coisas - acrescentou. - O cabelo, a maneira como prende o véu. Mas não é bem isto o que quero dizer.
- Agora já faz quase todo o trabalho de casa - disse Daniel. - Mas há dias em que volta para trás - Gostava de poder conversar com Thace sobre a irmã. - Dias em que não presta atenção a nada. Custa-me muito ter que ser paciente.
A rapariga voltou a sorrir.
- Não, ninguém te pode considerar um homem com paciência - disse-lhe. - Mas julgas que eu e Joel não sabemos o que fazes pela tua irmã?
Daniel sentiu uma enorme gratidão. Gostava de pensar que conseguira fazer bem à irmã.
- Lia é adorável - continuou Thace pensativa. - Não acredito que tenha demónios dentro dela. Já perguntaste a algum médico?
- O único que há na aldeia disse que não tem cura. Apareceu uma vez um viajante que tinha poderes mágicos para curar as doenças e a minha avó pagou-lhe para que visse Lia. E também não conseguiu fazer nada. Disse que os demónios que tornam as pessoas medrosas são os mais difíceis de expulsar. Disse umas coisas misteriosas. Lia era apenas uma criança, mas ele afirmou que ela não desejava curar-se.
Thace ficou em silêncio e depois acrescentou:
- Ouvi Jesus dizer qualquer coisa nesse género, quando as pessoas lhe pedem para que as cure.
Estava, uma vez, um aleijado deitado numa liteira. Jesus inclinou-se, olhou-o bem nos olhos e perguntou-lhe: "Desejas curar-te?" Parecia uma pergunta muito estranha. Por que motivo havia alguém de querer continuar aleijado?
Daniel hesitou. Ali estava uma coisa em que já pensara muitas vezes quando voltava a Betsaida, à noite, pela estrada deserta. Mas não sabia se o que pensara era exacto.
- Nunca imaginaste - tentou explicar - que espécie de bem lhes proporciona o serem curadas? A princípio ficam felizes. Mas o que lhes acontece depois? Que pensará um cego quando recupera a vista e vê a mulher em farrapos e os filhos cobertos de feridas? O aleijado que viste, sentirá gratidão, agora? Será preferível poder andar e passar o resto dos dias a carregar fardos como uma mula?
- Nunca tinha pensado nisso - respondeu Thace com os olhos cheios de lágrimas.- É por isso, pensas tu, que tantos ficam por curar?
Era uma ideia que os perturbava a ambos. Continuaram a caminhar em silêncio. Mas a alegria natural da rapariga fez com que deixassem de se preocupar.
- Já pensaste em levar Lia a Jesus?
- Sim, pensei nisso. Mas não vejo como poderia levá-la a Cafarnaum sem a aterrorizar por completo. Ela perguntou-me uma vez se Jesus viria à nossa aldeia. Mas não acredito que tivesse coragem para O ir ver.
- Se vier e se ela não quiser ir vê-Lo, pede ao Mestre que vá contigo a tua casa. Bem sabes que vai muitas vezes a casa das pessoas.
- Sim, a casa do centurião ou de um rico.
- Pensas, na verdade, que isso tem a mais pequena importância para Jesus?
- Não. Não, sei que não tem. Mas muitas vezes penso nestas coisas. É o mesmo caso do aleijado. O mundo é assim tão bom? Será melhor tentar fazer com que Lia volte a viver nele?
Thace parou.
- Sim! - gritou; e Daniel viu, admirado, que estava a chorar - Oh Daniel, sim! Se te pudesse explicar e fazer ver que sim, que vale a pena! Tudo isto - exclamou, estendendo os braços para o céu de um azul profundo, para o lago brilhando ao longe, para a montanha coberta de neve. - Tanta coisa! Deves também olhar para isto e não apenas para as coisas desagradáveis - E, de repente, pegou-lhe na mão. - Olha! - murmurou.
O rapaz ergueu a cabeça e seguiu-lhe o olhar. No céu azul recortava-se uma longa sombra prateada. Eram grous, centenas de grous que voavam em bando. O sol batia-lhes nas asas e os reflexos da luz nas penas brancas brilhavam como a neve nas montanhas. E ficaram ambos imóveis vendo as aves desaparecer no horizonte.
Thace murmurou:
- Que belo! É belo viver na Galileia!
Daniel olhou-a. Tinha a cabeça inclinada para trás e os lábios entreabertos. Sob a pele delicada, cor de marfim, via pulsar-lhe as veias que desenhavam no pescoço como que o arco elegante e longo dos pássaros a voar.
Só então Thace reparou no olhar de Daniel e tomou consciência de que estavam de mãos dadas. Corou e afastou-se. Ficaram ambos parados e quando recomeçaram a andar iam tão apressados que quase corriam.
Ao chegar à encruzilhada encontraram duas sentinelas romanas que nem sequer repararam nos dois rapazes sujos de poeira. E, pela primeira vez, Daniel quase se sentiu grato aos Romanos. Nessa noite não poderia suportar voltar a ver Thace carregando um fardo.
Capítulo 17
- Desta vez - diziam os homens da aldeia quando Daniel fez uma pausa entre duas marteladas - Roch foi longe demais.
- Como sabem que foi Roch? - perguntou Daniel com os olhos fixos no machado que estava a arranjar.
- Haverá outro homem na Galileia capaz de uma coisa dessas? Cinco das casas mais ricas da cidade foram assaltadas a noite passada! Mas como soube ele? É isso que não percebo. Como podia saber na montanha que Matatias ia dar um banquete? E quais seriam os homens que levavam consigo metade dos escravos para se exibirem durante a festa? Nenhum de nós sabia sequer que o tetrarca ia à cidade.
- Então porque é que julgam que foi Roch?
- Eu não julgo. Os legionários é que descobriram que tinha sido ele. Roch podia ter fugido se lhe bastasse roubar apenas. Mas não, teve que fazer mais alguma coisa.
Daniel ficou perturbado. Ter-se-ia passado mais qualquer coisa além daquilo que já sabia? Ficou à espera, agarrado ao martelo.
- Tentaram entrar na casa do centurião. Roch devia saber que o centurião não ia deixar a casa sem guardas. Tinha sido muito fácil roubar as outras casas e entraram na do centurião julgando que se passaria o mesmo. Dois dos homens foram presos; aliás, segundo dizem, eram dois condenados que andavam. fugidos. Um morreu assim que o começaram a interrogar, mas o outro contou tudo e por fim mataram-no.
"Qual seria? - pensava Daniel aflito - Qual dos homens que vivera a seu lado na caverna?"
- Quanto a mim acho que tiveram o que mereceram. Aquilo não passa tudo de um bando de ladrões, pelo que ouvimos contar.
Daniel não podia consentir que se dissesse tal coisa na sua loja.
- Roch não é um bandido - disse. - Quando rouba, fá-lo movido por uma boa finalidade.
- Já ouvi dizer o mesmo. Roch rouba os ricos para dar de comer aos pobres. Mas gostava de conhecer o pobre que recebesse uma só moeda do que roubou ontem à noite.
- Pode haver necessidades mais importantes do que essa - disse Daniel.
- As de se encher, não? Vamos a ver se se contenta agora com o que tem. Sempre quero ver se deixa agora os nossos rebanhos em paz. Só acredito quando vir que os nossos carneiros podem ser deixados à vontade na montanha.
Daniel recomeçou a martelar e interrompeu os queixumes do homem. Era o terceiro homem, desde manhã, que lhe contava as novidades que se tinham espalhado rapidamente por todas as aldeias em redor da cidade. Alguns apreciavam a ousadia de Roch, satisfeitos por saberem que os ricos haviam sido roubados. Mas a maior parte estava indignada.
Daniel sentira-se orgulhoso quando soubera as primeiras notícias. Mas, à medida que o tempo passava, surgira a dúvida. E ao terminar o dia estava indeciso e acabrunhado. Fora então esse o motivo do trabalho feito por Joel? Um assalto às casas mais ricas da cidade. Tinham ambos pensado que o motivo fosse mais nobre, mais de acordo com a causa por que lutavam. Que iria Joel pensar de tudo isto? Valera a pena as horas de estudo que perdera, o risco que correra?
Mas esse problema nem se pôs. Nessa noite a reunião na torre de vigia foi cheia de entusiasmo. Pouco a pouco os rapazes da cidade contaram aos da aldeia todos os pormenores. Joel era duas vezes herói. Não só fornecera todas as informações que tinham tornado possível o assalto, mas voltara de manhã a bater à porta das casas roubadas para saber o que diziam os escravos.
- Vou continuar - vangloriava-se ele. - É uma pena perder uma oportunidade destas. Consegui que o dispenseiro-chefe do centurião me fizesse uma encomenda especial, duas dúzias de peixes todos os segundos e quartos dias da semana. Nem é preciso dizer a sorte que isto é! - Estava demasiado exaltado para notar o silêncio de Daniel.
- Roch está em perigo? - perguntou um dos rapazes - O rato imundo que foi apanhado...
- Imundo? - interrompeu outro rapaz – Sabes o que os Romanos fazem a um homem? Quanto tempo julgas tu que ficavas calado?
Fez-se um silêncio desconfortável. Era a dúvida. A dúvida que não ousavam confessar, mas que os atormentava à noite quando estavam sós.
- Não se preocupem com Roch - disse Daniel. - Há anos que tem a cabeça a prémio. Mas, quanto a pôr-lhe a mão em cima, é outro caso.
Começaram a fazer perguntas. Que destino daria Roch ao dinheiro? Seria para comprar armas? Iria distribuí-lo pelos camponeses, talvez como pagamento dos carneiros que lhes roubara? Havia tanta coisa onde gastar aquele dinheiro! Daniel ficou sentado, em silêncio, enquanto os outros discutiam a melhor aplicação a dar ao produto do assalto.
- Deixem isso com Roch - acabou por dizer. - Sabemos que é para a causa.
A discussão terminou. O argumento satisfizera-os. E ao olhar os rostos entusiastas, os olhos brilhantes, plenos de devoção a Roch, Daniel venceu as dúvidas que o atormentavam. Porque não havia de se satisfazer também com a resposta que dera?
Mas os homens da aldeia não se conformavam. E todos os dias, na loja, no mercado, à porta da sinagoga, se ouvia o nome de Roch, umas vezes para o censurarem àsperamente, outras para o defenderem com entusiasmo. Por fim andava em todas as bocas tal como ele predissera. Uns juravam que era o defensor dos Judeus. Outros diziam que se voltara contra eles. Mas apesar de tudo, muitos dos homens sentiam-se ligados a Roch por uma confiança cega. Continuavam a olhar para a montanha, considerando-a o símbolo da liberdade e da esperança.
A troca de mensagens que resultara tão bem era agora mais intensa do que nunca. Joel metera-se definitivamente na pele de vendedor de peixe e, à medida que o tempo passava, ia adquirindo maior capacidade para interpretar os comentários que ouvia e os sinais de actividade que observava às portas das cozinhas onde ia vender o pescado. E porque nem sempre podia sair de casa à noite eram outros membros do grupo que traziam as mensagens à loja de Daniel. À noite, Joktan descia a encosta como um chacal, atravessava o campo de pepinos, ia à torre e regressava para junto de Roch com o relatório do que se passara durante o dia. Os rapazes reuniam-se agora quase todas as noites e o entusiasmo crescia. Agora sim, já havia qualquer coisa para fazer. Agora podiam ver os resultados do seu trabalho.
Porque os resultados nunca se faziam esperar muito. Roch adquirira finalmente a ligação com a cidade. Os rapazes haviam-lhe dado uma arma de que necessitava e utilizava-a em todos os sentidos com rapidez e precisão. Joel soubera, por um mercador Galileu, que ia ser entregue na manhã seguinte um carregamento de sete talhas de azeite em casa do centurião. E se bem que o mercador tivesse saído de casa antes do amanhecer, nunca mais houve notícias nem dele nem do azeite. Um noivo, filho de um dos chefes mais ricos da sinagoga, saiu da cidade com um acompanhamento de amigos, carregados de prendas, para irem buscar a noiva a Seforis.
A noiva esperou em vão. No dia seguinte regressaram todos a casa, apenas com as túnicas vestidas, sem os mantos ricos, sem as prendas e quase meio mortos. Um grupo que regressava já tarde, à luz de archotes, dos jogos do teatro de Tiberíade, foi atacado, roubado e muito maltratado.
Os rapazes não sentiram o mais leve sentimento de piedade por estas vítimas. Todo o traidor que se vendesse aos Romanos agia por conta e risco e merecia tudo o que lhe fizessem. Os que gastassem a riqueza ou ajudassem um teatro romano eram presas legítimas. E cada talha de azeite, cada peça de prata ia aumentar os fundos que serviriam para manter o exército de Israel.
Mas à medida que Roch se tornava mais atrevido, as caravanas e os viajantes viam-se na obrigação de se protegerem melhor. Os homens de Roch também sofreram perdas. Mais dois cairam nas mãos dos Romanos, três foram enterrados em segredo depois de uns ataques nocturnos e quatro estavam feridos na caverna. Roch precisava de novos recrutas. E foi assim que os rapazes foram admitidos, por último, a participar nos assaltos que preparavam. Não era este o exército treinado que Daniel sonhara entregar a Roch. Não passava de uma força de guerrilha composta por 19 rapazes atrevidos. Encontravam-se na torre. Chegavam um a um, rastejando através das vinhas e esperavam impacientes as ordens de Roch. A aldeia ficou cheia de rapazes com ligaduras. Rapazes com feridas, olhos negros e que sorriam apesar dos lábios inchados.
Atacar os Romanos era o maior prazer que podiam ter. Roubar o que quer que fosse a um romano, uma espada, uma manopla de couro, era um prémio mais do que suficiente para arriscarem a vida. Um rapaz da cidade que conseguira fugir com o elmo de um legionário que o pousara para beber água na fonte, foi quase considerado tão herói como o próprio Joel.
Daniel observava a maior parte destas coisas com desgosto. Não era para este género de façanhas que sonhara formar o grupo. Estas coisas pareciam-lhe infantis. O seu plano fora esperar, treinarem-se até se sentirem suficientemente fortes e só depois atacarem. Esta actividade era como um fogo aceso antes do tempo. Consumir-se-ia antes de o dia chegar?
Mas até ele se sentiu orgulhoso com o caso da catapulta. Foram dois rapazes ofegantes que, uma tarde, lhe deram a notícia.
- Deixaram-na mesmo na estrada! - arquejou um deles - Só há dois guardas. É um dos maiores engenhos que usaram no cerco de Seforis. Tem uma roda partida e têm que lá ficar até amanhã de manhã.
- Vou avisar Roch - disse Daniel, pousando o martelo.
- Espera! Vamos nós tratar disto - sugeriu o outro rapaz. - Para que quer Roch uma catapulta? Vamos, Daniel. Fomos nós que a descobrimos. Porque não ter uma iniciativa?
- Podemos regá-la com óleo e pegar-lhe fogo! E que linda fogueira que fazia!
- Uma fogueira que seria vista não sei quantas milhas em redor - fez-lhe compreender Daniel. - E não devemos queimar madeira boa. Precisamos de reservas, não de fogueiras.
- Está bem, então ficamos com ela - decidiram. E antes que Daniel pudesse reagir tomaram o comando. A notícia espalhou-se. Reuniram à pressa as armas que puderam arranjar, as limas da loja, os cinzéis, os malhos. E um a um, por vários caminhos, seguiram para o local sobranceiro à Via Maris e observaram o monstro que jazia no meio da estrada como um animal sem coração.
- Por que motivo estarão a levar aquela coisa? - murmurou um.
- Tenho uma ideia - respondeu Daniel. - Foi com coisas assim que Herodes atacou as cavernas de Arbela.
- Julgas que terão a ousadia de atacar Roch?
- Se Roch os incomodar muito.
- Mais uma razão - disse o rapaz - para darmos cabo dela.
- Esperem - avisou Daniel.- Não devemos matar os guardas, porque isso significaria a morte da nossa aldeia. Eu agarro um deles e Nathan toma conta do outro, como lhe ensinei.
E, antes que o guarda desse por tal, já Daniel lhe passara um braço em torno do pescoço. Assim que o homem ficou estendido no solo, atordoado e amarrado, Daniel tirou-lhe a espada e a adaga. Momentos depois um assobio anunciava que o segundo guarda fora dominado. Só então os outros rapazes desceram, como sombras, dos rochedos e rodearam o monstro. Trabalhavam em silêncio, amortecendo com as túnicas o ruído das limas e o barulho dos cinzéis. Pouco a pouco, pedaço a pedaço, foram destruindo o monstro. Passaram a noite a transportar as tábuas para a torre de vigia, escondendo-as depois debaixo das traves e do pesado soalho. E quando na manhã seguinte o sol se ergueu, a pesada catapulta desaparecera sem deixar rasto. Os Romanos não ofereceram recompensas para quem indicasse o seu paradeiro nem exerceram represálias. Era como se a catapulta nunca tivesse existido.
Os rapazes ficaram loucos de alegria. Passeavam pela aldeia sem se preocuparem em esconder os arranhões e as mãos esfoladas. Daniel tentou avisá-los.
- Vão dar cabo de tudo. E isto é apenas o começo.
- Porquê - perguntavam - Porque não podemos começar a lutar já? Repara nas pessoas da aldeia. Achas que havia um só que nos abandonasse? Estão à espera. Basta dizermos uma só palavra e seguir-nos-ão. Porque é que Roch não dá as ordens para começarmos?
Joel mandou indicações da cidade. Os Romanos estavam a aumentar e a fortalecer o exército. Chegara de Tiberíade um destacamento de guardas a pé. As rondas da estrada tinham sido duplicadas. E mesmo na própria aldeia apareciam soldados desconhecidos, passeando descontraídos, como que por acaso, mas de olhar atento sob os elmos brilhantes. Daniel insistia para que abandonassem as actividades nocturnas durante uns tempos. Os rapazes, impacientes, murmuravam. O clima era de excitação.
Uma manhã, um pastor correu para a aldeia dizendo que três dos rebanhos da cidade tinham sido atacados e roubados. E Daniel recebeu a visita de dois homens.
- Diz-se que, se quiseres, podes fazer chegar uma mensagem às mãos de Roch - começou um deles.
Daniel não respondeu.
- Se quiseres, diz-lhe isto: que deixe os nossos rebanhos em paz.
- Lamentam dar um carneiro de vez em quando - perguntou-lhes calmamente - ao homem que dará a vida pela vossa liberdade?
- Estamos fartos dos seus gritos de liberdade. Livre está ele, lá em cima. Livre dos impostos que nos sugam o sangue. Livre para brincar com os Romanos, enquanto nós recebemos os castigos. Por todos os profetas, se tens alguma amizade a esse vosso salvador, avisa-o agora. Estamos fartos.
Dois dias depois um lavrador, que se preparava para se mudar com toda a família para a torre de vigia do seu campo foi encontrar a seara, quase madura, toda roubada, pisada e irremediavelmente perdida.
Desanimado, Daniel subiu à montanha para avisar Roch e o único resultado que obteve foi uma gargalhada.
- Têm medo da própria sombra - troçou Roch. - Não prestam senão para fornecer a comida aos homens que lutam.
- Estão desesperados - insistiu Daniel. - Bem sabes que não podem usar armas. Terão que pedir auxílio ao centurião. Querem que lhes mandem legionários.
- Deixa-os vir! - berrou Roch - Deixa-os saber o que é a montanha. Chegam cá e partem os dentes.
O rapaz voltou, desanimado e aflito. A própria aldeia estava contra ele. E, se o dia não chegasse depressa, ninguém o seguiria.
Capítulo 18
No fim da tarde do último dia do mês de Ebul, Daniel ao levantar os olhos do trabalho que estava a fazer viu uma figura correndo pela estrada, uma figura desconhecida, disfarçada sob um pesado turbante e cuja pressa lhe pressagiava que qualquer coisa não estava bem. Pousou o martelo e esperou. E só quando o estranho entrou na loja e puxou o turbante, reconheceu que se tratava de Thace. Quem poderia imaginar que Thace pudesse aparecer-lhe assim; aflita, pálida, despenteada?
- Oh Daniel! - soluçou a rapariga - Prenderam Joel!
- Os soldados?
- Sim. Eu sabia, sabia desde o princípio que isto ia acontecer. Que vamos fazer?
"Também eu o sabia", pensou Daniel desanimado.
- E onde está ele?
- Na guarnição. Não voltou a casa esta noite. De manhã fui ao porto e não o encontrei. Fui ter com Kemuel que conseguiu saber tudo. Suspeitavam dos escravos da cozinha do centurião. Ontem prenderam cinco e, quando Joel chegou à porta, prenderam-no também.
- Kemuel conseguiu saber mais alguma coisa?
- Vão enviar uns prisioneiros para o Oriente, de manhã. Joel também vai. Isto significa as galés? Daniel, Joel nunca poderá viver nas galés... ele...
Horrorizado viu que Thace estava quase a desmaiar. Amparou-a com ternura.
- Roch vai ajudar-nos - disse. - Sabe o que é preciso fazer.
Assim que Daniel lhe tocou, Thace começou a chorar cobrindo o rosto com as mãos. "Suportara tudo durante uma noite inteira - pensou Daniel - e durante todo o dia. Teria comido ou descansado?"
Através da porta viu Lia sentada ao tear, e olhando-os surpreendida. Que teria compreendido? Passou o braço à volta dos ombros de Thace e levou-a para casa.
- Toma conta dela - disse à irmã. - Vou à montanha.
Lia levantou-se, abriu os braços e Thace encostou-se à amiga. A cabeça loura inclinou-se suavemente para a cabeça morena.
Daí a duas horas Daniel estava na caverna. O fogo estava aceso e pairava no ar o cheiro a carneiro assado. Os homens, estendidos no chão, mal o olharam. À entrada da caverna estava sentado Roch, polindo uma adaga de marfim. Ouviu tudo o que Daniel lhe dizia, mas prestando mais atenção à adaga do que à mensagem que o rapaz lhe levava.
- Estava a tornar-se muito atrevido - disse por entre os dentes.
- Não sabem quem ele é - insistiu Daniel. - Joel nunca lhes dirá o nome do pai. Julgam que não passa de um vendedor de peixe. E nunca irão supor que vão ser atacados.
- Atacados? - repetiu Roch friamente - De que estás tu a falar?
- Se andarmos depressa, podemos atacá-los de surpresa na estrada.
- Podemos?
- Todos temos que ajudá-lo. Podes contar connosco.
- Fala por ti - disse Roch. - O assunto não me pertence.
Daniel ficou louco de raiva.
- Joel estava a cumprir as tuas ordens! - gritou - És responsável.
Roch continuava a polir a arma.
- Nesta montanha cada homem é responsável por si próprio. É o mesmo com Joel.
Daniel tentou dominar-se.
- Ouve-me, Roch - procurava falar-lhe em tom calmo e razoável. - Para apanhar Sansão não foram precisos mais do que 8 homens.
- E apanhámo-lo aos Romanos? Pensa um bocado. Sansão foi roubado a uns mercadores miseráveis. Soldados Romanos... isso já é outro caso.
Daniel desesperado tentou nova táctica.
- Joel é muito importante para nós - continuou a insistir.
- Importante? Foi suficientemente estúpido para se deixar apanhar. Julgas que posso dispensar oito homens, ou mesmo um só, para isso?
Daniel perdeu todo o domínio sobre si.
- Serviste-te dele e agora voltas-lhe as costas? Sem sequer tentar...
Roch olhou-o de soslaio.
- Já te tinha avisado - disse-lhe mal humorado. - És um fraco. Enquanto não perderes essa fraqueza não serves para a causa.
O ódio de Daniel desapareceu. Olhou para o homem que fora o seu chefe. Viu-lhe o rosto endurecido, enquadrado pela barba suja. Viu a boca dura e os pequenos olhos astuciosos. Viu na sua frente um homem para quem nunca olhara antes.
- A causa! - disse desesperado - Sabes o que isso é?
O olhar de Roch era de ódio.
- Tem cuidado...
- Não me metes medo - respondeu Daniel. - Não sou um dos teus homens. Já não sou.
Roch recuou.
- Louco! - gritou-lhe - Como podes continuar sem a minha ajuda?
Daniel olhou-o bem de frente. Em qualquer outro momento Roch ter-se-ia atirado a ele. Na expectativa, estendeu as mãos com um prazer selvagem. Mas dominara-se. Não podia lutar com Roch. Devia a força das suas mãos a esse homem. E que utilidade teria para Joel essa luta? Voltou-se e atravessou o círculo dos homens silenciosos e tensos. Sabia que abandonava a montanha para sempre.
Ao descer o atalho ouviu passos atrás de si.
- Daniel, espera - Era Joktan. - O que vais fazer?
- Vou libertar Joel.
- Sózinho?
- Não. Somos dezanove.
- Vinte - disse Joktan. E empertigou-se todo. - Deixa-me ir contigo - pediu, antes que Daniel pudesse recusar.
Daniel decidiu rapidamente. - Então vem - respondeu-lhe.- Podes ajudar-nos.
Mas estava desapontado. Desejara que os passos fossem os de Sansão. Gostava de se ter podido despedir do gigante, apertar-lhe a manápula enorme, dizer-lhe que não o esperasse mais. Mas não devia pensar mais nisso.
Seguiram para a aldeia. Mas, à medida que descia, tornava-se cada vez mais consciente de que era seguido. Roch teria mandado alguém atrás de si? De vez em quando olhava à volta, mas não via ninguém. Começou a ficar impressionado. Alargou os passos até Joktan se ver obrigado a correr para o poder acompanhar.
Na torre de vigia era esperado por doze rapazes silenciosos. Tinham-se arrastado através dos campos para se reunirem. Kemuel avisara todos os rapazes da cidade.
- Que vai Roch fazer? - perguntaram a Daniel, cheios de orgulho.
O silêncio de Daniel foi uma resposta elucidativa.
- Nada? - gritou Nathan incrédulo - Depois do que Joel... - e a voz morreu-lhe na garganta.
Os outros olhavam para o ferreiro, enraivecidos demais para poderem falar.
"Traí-os a todos – pensou - Confiavam em mim!"
- E isso que importa? - explodiu Kemuel - Não precisamos de Roch, o teu grande chefe! Lutaremos sem ele.
O ódio transformou-se em esperança.
- Esperem - disse Daniel. - Vamos primeiro definir uma coisa. Talvez alguns pensem como Roch, que cada homem é apenas responsável por si próprio.
- Somos responsáveis por todos! - respondeu Nathan calmamente. Os outros fizeram coro com ele.
Kemuel pediu silêncio.
- Já têm um plano?
- Sim - disse Daniel e os rapazes calaram-se imediatamente.
- Dezanove rapazes contra uma força romana?
- Vinte - respondeu Daniel, pondo a mão em cima do ombro de Joktan. - Se nos soubermos servir da cabeça, cem podem ser vencidos por vinte. Não tentaremos sequer travar combate. Limitar-nos-emos a salvar Joel.
- Mas como? - Estavam de novo confiantes.
- Na estrada - Daniel sentia-se calmo e seguro. - Não podemos atacar a guarnição. Um combate frente a frente é impossível. Podemos ir para o sul, rodeando Magdala e depois esperamos no desfiladeiro perto de Arbela. Escondemo-nos nos rochedos e atiramos pedras lá de cima, mas de maneira que não possam saber quantos somos. Os Romanos não têm motivos para estar à espera de um ataque. E, depois de causarmos a maior confusão possível, soltamos Joel.
- Como? - perguntavam - Joel vai preso com correntes.
- Aí está trabalho para um ferreiro. Fez-se silêncio.
- Não podes fazer isso tudo sózínho - disse Nathan. - Vou contigo.
- Antes de continuarmos - disse Daniel- precisamos de um chefe. Até agora temos estado todos em igualdade.
- Já escolhemos - respondeu um dos rapazes. - Foste sempre o nosso chefe.
- Mas não fui escolhido por votos. - Não precisamos de votar - disse Nathan. Há alguém aqui que esteja em desacordo com a escolha? - Nem um só murmúrio se ergueu.
- Nesse caso têm que obedecer às minhas ordens - decidiu Daniel. Não sentia nem a glória nem o orgulho com que sonhara ao imaginar-se chefe. Tudo o que sentia era uma fria noção de responsabilidade. - Ainda não chegou o momento de podermos combater os Romanos - disse-lhes.- Não temos o direito de perder vidas, que serão necessárias à causa. Nem sequer para libertar Joel. Deixem-se ficar nos rochedos e distraiam os Romanos enquanto eu soltar Joel. Fujam depois o mais depressa que puderem. Não me parece que os Romanos os queiram perseguir. Terão medo de cair numa emboscada.
Ninguém pensou em discutir as ordens do chefe.
- Levem todas as armas que tiverem - continuou.- Iremos já - Hesitou, mas sentiu-se obrigado a dizer-lhes mais qualquer coisa. - Foi sempre Joel quem leu as Escrituras. Agora teremos que recordar o que ele nos leu. Judas, Jonathan e Simão sairam ao encontro do inimigo com um punhado de homens. Também nós seremos capazes de o fazer. O mesmo Deus nos dará as forças necessárias.
Os rapazes apertaram as mãos dos companheiros.
- Pela vitória de Deus! - disseram em coro, solenemente.
Capítulo 19
Antes de amanhecer, já os rapazes ocupavam a posição prevista. Durante a noite tinham seguido pela estrada do sul, junto à costa, que passava por Magdala, encaminharam-se depois para o interior, para um local onde a Via Maris, a estrada que os Romanos seguiriam em direcção à costa, se estreitava num desfiladeiro rodeado de escarpas quase inacessíveis. Subiram penosamente e esconderam-se atrás dos rochedos. Assim que o céu começou a clarear aventuraram-se a sair, mas só um de cada vez, para arranjar as pedras que lhes iriam servir de armas. Muito poucos tinham espadas ou adagas. No momento de o sol nascer já todos estavam bem armados de pedregulhos e bem escondidos.
Como era a principal estrada para o mar, havia sempre movimento de viajantes, mesmo durante a noite. De madrugada viram cinco longas caravanas, com as intermináveis filas de camelos carregados. Do esconderijo iam vendo passar famílias, mercadores e até pequenos destacamentos de soldados. Este desfiladeiro fora um lugar perigoso, mas agora os viajantes atravessavam-no calmamente porque há mais de cinquenta anos que o grande Rei Herodes expulsara os salteadores que se escondiam nas cavernas de Arbela e, presentemente, uma parede construída pelos Romanos flanqueava as escarpas. E desde o dia em que os bandidos haviam sido vencidos, nunca mais os Romanos pensaram em serem alvo de um ataque naquele desfiladeiro.
Daniel escondeu-se num sítio que ficava mesmo por debaixo das rochas onde os rapazes estavam. Uma fissura da parede rochosa estendia-se numa linha oblíqua contornando o rochedo pela parte inferior e suficientemente larga e profunda em certos locais para esconder vários homens, e terminando numa proeminência estreita a cerca de dez pés da estrada. Na reentrância inferior do rochedo colocou Nathan e Kemuel.
- Assim que libertar Joel, puxem-no para cima - ordenou. - E se algum soldado o tentar seguir, usem as espadas. Só pode subir um de cada vez e penso que o segundo não estará muito disposto a tentar a escalada.
- E tu, como sobes? - perguntou-lhe Nathan fixando-o bem nos olhos.
- Assim que Joel estiver em cima, estendam-me a mão - respondeu Daniel.
Não estava muito convencido de poder subir mas queria ver, pelo menos, Joel salvo. Nathan abriu a boca, mas voltou a fechá-la ao ver nos olhos de Daniel qualquer sinal que lhe fez recordar que o haviam escolhido para chefe.
À medida que o tempo aquecia, a energia dos rapazes diminuía, minada pelo calor. Daniel ia ficando cada vez mais apreensivo. Esta expectativa era diferente das que experimentara quando, escondido atrás das rochas esperava o sinal de Roch. Não era uma caravana mal defendida que aguardavam. E atrás de si não tinha um bando de homens duros e rápidos, mas apenas um punhado de rapazes inexperientes. Olhou para cima e viu a manga de uma túnica traindo a presença de um deles. Apesar de tudo, podia confiar nos companheiros. Sabia que todos estavam prontos a dar a vida, se necessário fosse. Cabia-lhe a ele, o chefe escolhido, fazer tudo para que isso não fosse preciso.
Mas como era diferente do combate glorioso que haviam desejado! Chegaria alguma vez o dia em que pudessem combater abertamente os Romanos para a vitória de Deus? Pôs de parte esse pensamento. Tinha outra preocupação mais imediata; durante toda a noite tinha tido a sensação desagradável de estar a ser seguido e observado, mesmo em plena escuridão. Ao preparar a armadilha para os Romanos caíra com todo o seu grupo noutra armadilha? Estava quase tentado a mandá-los regressar à aldeia. Mas era preciso salvar Joel.
Ao meio-ia, Joktan deu o sinal de aviso, De todo o bando era ele o único preparado para este gênero de ataques. Veio rastejando ao longo da estrada, e subiu para o rochedo.
- Cavaleiros! - avisou - Cerca de oito. Dez soldados a pé. Depois os prisioneiros.
- Viste Joel?
- Não. Estava muito longe. Devem caminhar há muito. Os cavalos estão cheios de espuma.
Daniel assobiou duas vezes seguidas, que era o sinal combinado, e olhou para cima.
- Vai lá para cima, sim? - ordenou a Joktan, apontando-lhe os rochedos - Diz-lhes que se escondam, quando não, ainda apanham com algum dardo - Era também uma maneira de afastar Joktan da linha de perigo.
O primeiro cavaleiro apareceu, muito devagar para poder acompanhar o passo dos homens a pé. Os cavaleiros caminhavam a par, as esporas quase tocando nas paredes do desfiladeiro, silenciosos, erectos, com as plumas dos elmos ondulando.
Os outros recordar-se-iam de tudo? Deviam deixar passar os cavaleiros. Daniel estava tenso de expectativa. Sentiu um alívio enorme quando viu que nenhum som nem o mais pequeno movimento traía a presença dos rapazes. Atrás dos cavaleiros seguiam os soldados a pé, dois a dois. Viu-os passar. Contou dezasseis. Depois os prisioneiros, agrilhoados pelos tornozelos, numa longa fila. Joel era o quinto, descalço, desgrenhado, com os pés a sangrar. Entre ele e o rochedo caminhava um soldado armado com um potente chicote. Atrás dos prisioneiros devia haver mais soldados a pé.
Daniel susteve a respiração. E no momento em que Joel estava a passar debaixo do rochedo deu o sinal. A primeira pedra fendeu o ar e atingiu o alvo. Um dos soldados foi derrubado. E imediatamente cairam pedras de todos os lados. Ouviu-se uma ordem e logo todos os Romanos, como um só homem, ergueram os escudos protegendo as cabeças. Quatro homens sairam da fila e tentaram escalar o rochedo quase vertical. Uma pedra apanhou o primeiro no peito e fê-lo rolar até à estrada. Uma espadeirada pôs o segundo fora de combate. Mas a linha da retaguarda mantinha-se intacta e unida.
O coração de Daniel pulsava desordenadamente. Calculara mal. Os Romanos iam atacar a escarpa e os rapazes não poderiam aguentar durante muito tempo.
Mas no momento em que gritava para que fugissem, um ruído violento cobriu-lhe a voz. E, ao erguer a cabeça, Daniel viu horrorizado que um enorme rochedo que estava no cimo da escarpa oposta, se soltava e rolava pelo declive cada vez com maior força e velocidade, levando na sua frente tudo o que encontrava. Estupefacto, viu os soldados a fugir desordenadamente. Não havia ninguém na outra escarpa. O que teria feito cair aquele rochedo?
Foi então que viu uma figura negra, correndo curvada como um animal. Viu num relance os braços poderosos, a enorme cabeça preta. Sansão! Mas como... ?
E imediatamente ficou lúcido. Era aquela a sua oportunidade. Deu um impulso ao corpo e saltou para a plataforma inferior. No momento em que assentava os pés na parede rochosa golpeou com a espada o ombro do guarda. O homem caiu de joelhos, inconsciente. Daniel correu para Joel, e com o escopro começou a bater na corrente. A primeira pancada causou uma ligeira amolgadela. Continuou a bater e sentiu o elo ceder.
Reinava a maior confusão à sua volta. Os prisioneiros gritavam. Ouviu um segundo estrondo, mas nem olhou para cima. No momento em que erguia o braço para dar outra martelada, sentiu-se agarrado por detrás, erguido do solo e arremessado para cima como se fosse um saco. Ficou por instantes no ar e caiu depois de encontro à rocha. A dor parecia envolvê-lo em círculos apertados, e para além das dores, sentiu mãos que o agarravam e puxavam, raspando-lhe a carne de encontro às arestas dos rochedos. No cimo estava um corpo pesado. Pernas que passavam sobre a sua cabeça. Depois ficou inconsciente.
Quando recobrou os sentidos, o sol brilhava. Estava deitado na rocha e o corpo doía-lhe. Pestanejou, tentando ver o que se passava. Perto dele viu uma pessoa - Joel - sentado, com os joelhos erguidos e o rosto escondido nos braços.
- Não te mexas! - avisou uma voz. A face de Kemuel surgiu na sua frente.- Já devem ter acabado de arranjar tudo.
Daniel recordou-se imediatamente de quanto se passara. Tentou erguer-se mas voltou a cair, vencido pelas dores. Viu que estava numa fenda da escarpa, mas acima da plataforma.
- Cuidado - avisou Kemuel. - Deves ter um ombro partido. E também algumas costelas. Joel teve mais sorte. Apoiou-se em ti. Ficou apenas com uns arranhões.
Daniel levou a mão à cabeça, que lhe pareceu estar com um formato esquisito.
- Foram as minhas correntes que te magoaram - disse Joel numa voz velada e fraca.
- Que novidade - disse Kemuel a Joel. - Não me dirás como o podia ter trazido para cima?
Daniel ergueu-se um pouco.
- Os soldados ... ?
- Foram-se embora. Mas devem ter deixado sentinelas.
- Não subiram a escarpa?
- Não. Parece que o comandante foi ferido por aquela rocha. E os soldados não voltaram a organizar-se.
A rocha!...
- Sansão! - gritou Daniel - Vi-o lá em cima! Joel e Kemuel entreolharam-se. Daniel tentou compreender o que se passara.
- Como subimos nós? Estávamos na estrada. Os rapazes calaram-se por instantes. Depois Joel acabou por perguntar:
- Não viste?
- Depois de terem caído em cima de mim, não sei mais nada.
- Não foram os soldados - disse Joel. - Foi Sansão. Julguei que era outra rocha que vinha por ali abaixo, só depois vi que era ele. Atirou-te para a escarpa. Por cima da cabeça. Pegou nas correntes, torceu-as com as mãos e libertou-me. A seguir atirou-me também pelo ar. Nathan e Kemuel agarraram-nos e puxaram-nos para cima.
Fora Sansão que o fizera subir. Sansão que o seguira durante toda a noite, sem saber o que iam fazer, mas sabendo que fosse o que fosse que tentassem não o poderiam levar a cabo sozinhos. E fora Sansão, o estúpido, que se escondera na outra escarpa e atacara os soldados. Daniel olhava aflito para Joel. E, por fim, perguntou:
- Onde está Sansão?
Joel fixou-o bem nos olhos.
- Prenderam-no. Estava ferido. Feriram-no com uma espada, ainda antes de me ter libertado das correntes.
- Talvez ainda lá esteja...
- Não - disse Kemuel. - Amarraram-no aos outros. Nem sequer lutou. Estava... não precisas de te preocupar com as galés, Daniel. Não chegará vivo à costa.
Daniel voltou a cabeça para o lado. Foi então que viu Nathan, estendido no solo com o rosto encostado à rocha e um charco de sangue ao lado.
- Expôs-se demasiado quando te puxou! - disse Kemuel.
Nathan casado há tão poucas semanas e cuja noiva o esperava na casa nova!
Joel soluçou inesperadamente.
- Porque fizeste isto? - perguntou - Era preferível... deviam ter-me abandonado.
- Quem mais? - perguntou Daniel.
- Ainda não vimos os outros. Achas que podes andar? Nesse caso vamo-nos encontrar no sítio combinado.
- Posso andar - disse Daniel.
Arrastando-se, rastejando ao longo da escarpa, agarrando-se uns aos outros, segurando-se com as mãos e os pés, conseguiram chegar por fim ao cimo do rochedo. Daniel estendeu-se no chão quase louco de dor. Quando conseguiu olhar à sua volta viu quatro rapazes pálidos, deitados em cima da rocha.
E durante a hora seguinte, que parecia não ter fim, mais doze rapazes chegaram ao local do encontro. Finalmente reuniram-se todos, - todos menos Nathan. Ficaram escondidos até ao pôr do Sol, quase sem falar. Assim que escureceu, quatro foram buscar o corpo de Nathan. Não podiam pensar em levá-lo para casa. Sepultaram-no ali mesmo. Depois, lentamente, com toda a cautela, foram descendo para a estrada um de cada vez e encaminharam-se para o norte como se fossem uns vulgares viajantes. Reconfortava-os a ideia de que Joel os acompanhava. Mas o poder de Roma, visto tão de perto, abalara-os. Sabiam que sem Sansão nada poderiam ter feito e a confiança da noite anterior nunca mais seria recuperada.
Capítulo 20
O mês de Tichri trouxe as primeiras chuvas de Outono. Os campos ressequidos sugavam avidamente a humidade. E a terra encharcada, de um vermelho negro, enriquecia-se assim para a próxima sementeira. Nas estradas, depois dos aguaceiros, os charcos de água brilhavam como pequenos lagos de chumbo derretido.
Deixara de haver reuniões na torre de vigia. Os rapazes do grupo procediam cautelosamente, procurando não ser vistos juntos muitas vezes. Murmuravam, quando passavam uns pelos outros, que tudo começaria de novo daí a pouco tempo. Voltariam a arranjar armas. Aprontar-se-iam para quando o dia chegasse. Mas não havia a mesma ousadia de outrora naqueles murmúrios. Sabiam que o dia não estava próximo. Tinham perdido a fé na montanha.
No meio do fumo espesso da forja, Daniel trabalhava todos os dias até ao limite das suas forças. Sem conseguir pegar no martelo ocupava o tempo com pequenos trabalhos, limando, polindo, moldando, procurando nem se lembrar da dor que sentia no ombro. Maldizia o trabalho que se ia acumulando. Ansiava por vencer os próprios pensamentos com umas marteladas que o envolvessem numa parede de sons furiosos. De noite, no telhado que partilhava agora com Joktan, punha o manto enrolado debaixo da cabeça e caía exausto num sono profundo. Mas sempre, durante as longas horas, acordava ao ouvir o ruído da chuva. Nesses momentos não podia esquecer a dor que o atormentava, e os pensamentos tornavam-se mais tristes do que nunca.
E na escuridão eram sempre as mesmas palavras que ecoavam continuamente: "Quem vive pela espada, morrerá pela espada." A princípio não conseguia recordar-se onde as ouvira. Não se pareciam com as palavras das escrituras que Joel costumava ler. Depois recordou-se. Fora Jesus quem as dissera numa quente manhã de Verão sob um céu azul. Daniel não se preocupara com o sentido destas palavras. Viver pela espada era a vida por que ansiava. Empunhar a espada pela liberdade da pátria e morrer por ela - que coisa melhor podia um homem desejar? Mas acontecera qualquer coisa em que nunca pensara antes. Empunhara a espada, mas fora Sansão que morrera por ele; Sansão que não lutava pela liberdade. Fora Nathan, que deixara uma noiva. Estas mortes eram obra sua. E a liberdade continuava tão distante como anteriormente.
Sem o auxílio de Joktan não teria conseguido fazer nada. O rapaz que o seguira e regressara com ele à aldeia, fazia o que podia para lhe demonstrar a sua gratidão. Como nunca vivera numa casa, não lhe fazia a mais pequena diferença não poder entrar em casa de Simão. Comia as refeições na loja ou na soleira da porta onde podia conversar com as pessoas que passavam. Não sentia a perda da liberdade que usufruíra na montanha e habituara-se com naturalidade à vida da aldeia. Partia alegremente todas as manhãs para a fonte e ria bem humorado com os ditos inocentes das raparigas. Ia entregar o trabalho, arranjando sempre novos amigos com aquele ar risonho que tinha. Os fregueses de Daniel julgavam-no um novo aprendiz e louvavam-lhe a diligência, se bem que duvidassem que pudesse vir a ser um ferreiro, com uns braços tão franzinos como tinha.
Joel e Thace haviam regressado a Cafarnaum há nove dias e desde essa altura que não tinham notícias deles. Cada dia que passava tornava mais insuportável este silêncio. Estaria Joel em perigo? Que pensaria? Lamentaria o juramento que fizera? As grilhetas romanas teriam feito vacilar a sua determinação?
Uma noite, já tarde, quando Daniel se preparava para subir para o telhado ouviu bater à porta da loja. Acendeu uma segunda lâmpada de azeite, atravessou a oficina e abriu. Um estranho, envolvido até aos olhos numa pesada túnica, entrou rapidamente e fechou logo a porta. Daniel, cheio de alegria, viu que era Joel quem estava na sua frente. Limitou-se a apertar a mão de Daniel sem dizer nada.
- Julgavas que não vinha? - perguntou - Pareceu-me mais acertado esperar uns dias.
- Andas vigiado?
- Receio bem que sim. Só saí uma vez, no Sábado.
Quando voltava da sinagoga com o Pai, encontrei um dos dispenseiros do centurião. Reconheceu-me, mas não me parece que tenha tido a certeza. É por isso que o Pai não me deixa sair agora.
- O teu Pai sabe do que se passou?
- Não lho podia esconder por mais tempo. Contei-lhe tudo, o nosso esconderijo, as reuniões e o papel que tive no trabalho de Roch. Daniel, o meu Pai merecia que lhe contasse tudo. Quando vi como envelhecera naqueles dois dias...
Também Joel se tornara mais velho. Havia no seu rosto uma nova determinação.
- Como me deve desprezar - disse Daniel envergonhado.
- Por me teres salvo? O Pai envia-te uma mensagem. Diz que não precisas de te esconderes. Podes entrar em nossa casa sempre que quiseres. De certo modo preferia que não tivesse feito um esforço tão grande para nos perdoar. Esta noite tudo seria mais fácil para mim.
- Esta noite?
- Deixei-o sem lhe dizer nada. Não volto para casa. Se não puder ficar aqui contigo, vou para a montanha juntar-me a Roch.
Daniel esqueceu todas as dúvidas que tivera. Como pudera pensar que Joel esquecera o juramento feito? Agora, trabalhando juntos, podiam vencer todas as dificuldades. O grupo reorganizar-se-ia, mais forte ainda. Mas surgiu-lhe uma nova dúvida.
- Porque partiste de casa, Joel? O nosso grupo nunca pediu tal sacrifício a ninguém.
- Não posso ficar em casa. O Pai fica aterrorizado mal me vê sair. Sabia que estava a preparar qualquer coisa. E hoje disse-me que me ia mandar para Jerusalém, amanhã de manhã, com um amigo dele. Preparara tudo para que fosse estudar para uma escola. Foi por isso que tive que fugir à pressa.
Daniel olhou para o amigo, sentindo-se quase perdido.
- Uma escola em Jerusalém? - perguntou com a voz velada - Não foi sempre o que desejaste?
Joel não encarou o amigo imediatamente.
- Desejei, de facto - admitiu - mas isso foi antes de termos constituído o nosso grupo.
- Já não o desejas?
- Preciso de trabalhar para a vitória. Foi o que jurei. Se não puder ficar contigo, se não for seguro, então irei para a montanha.
- Roch deixou de ser o nosso chefe - disse Daniel.
Joel hesitou e depois acrescentou:
- Não devias ter-te afastado de Roch por minha causa.
- Isso teria que acontecer mais tarde ou mais cedo - respondeu Daniel. - Pensei muito sobre isso nestes últimos dias. De certo modo temos caminhado numa direcção errada. As coisas que fizemos para Roch não foram o que planeáramos quando começámos a organizar o nosso grupo. Atacar as pessoas na estrada, especialmente o nosso próprio povo, não fará com que o dia da liberdade se torne mais próximo. Não enfraquecemos Roma. Enfraquecemo-nos a nós próprios. Perdemos Nathan e Sansão. E quase te perdemos a ti.
Joel permaneceu calado durante uns instantes.
- Virá um novo chefe - disse -. Precisamos de estar prontos para o seguir.
- Sim - retorquiu Daniel. Ao ouvir a afirmação de Joel sentiu renascer a esperança que perdera. Chegara o momento de dizer o que entendia que devia ser dito.
- Até vir esse chefe, Joel, deves continuar a estudar. É esse o teu lugar. Quando chegar o dia da nossa libertação, não precisaremos apenas de lavradores e camponeses. Também serão necessários padres e escribas, e tu estarás em condições de os orientares porque os compreendes.
Joel nunca fora capaz de esconder o que pensava. Não podia dissimular agora a esperança que lhe brilhava no olhar.
- Foi o que Thace me disse também - admitiu.- Tens a certeza de que preferes que seja assim, Daniel?
- Tenho.
- Que irão pensar os outros?
- Escolheram-me para chefe.
Joel ficou pensativo durante alguns momentos.
- Também gostava de continuar a estudar, por causa do Pai - disse finalmente. - É um bom homem. Não podes supor como é bom, porque lhe conheceste apenas o lado pior. Sei que o magoei. Desejava poder orgulhar-se de mim. Pode ter orgulho num filho que dê a vida por Israel, mesmo que seja um Zelota. Mas quando me vi na estrada, carregado de grilhetas, compreendi que não lhe deixara nada, nada, de que se pudesse orgulhar. Agora tu, Sansão e Nathan, deram-me outra oportunidade. Nunca o esquecerei. Farei tudo quanto puder para merecer esta oportunidade.
- Podes voltar esta noite, para casa, sem correres perigo?
- Julgo que sim. Mas primeiro preciso de te dizer umas coisas. Trouxe um presente de Thace para Lia. Agora não pode vir cá sozinha. Para mais, também está proibida de sair de casa.
- Lia vai ficar muito agradecida - disse Daniel, tentando esconder o desgosto que sentia.
Joel hesitou.
- Achas que Lia me deixará entregar-lho? - perguntou.
- Podes tentar - respondeu Daniel em ar de dúvida. - Já te viu muitas vezes pela porta entreaberta.
Abriu a porta de casa. Lia, sentada junto à lâmpada, ergueu a cabeça dourada.
- Joel trouxe-te um presente de Thace - disse-lhe o irmão. Ficou à espera. Joel atrás dele, permanecia quieto e silencioso. A rapariga pareceu entrar numa espécie de pânico. Não se mexeu, mas começou a tremer, olhando-o aterrorizada.
- Thace envia-te saudações - disse por fim Joel com muito carinho. - Pede-te que não a esqueças e manda dizer que te virá visitar assim que puder. - Avançou um pouco e colocou, com gestos suaves, um pacote no nicho, junto à entrada da porta. Depois saiu e Daniel seguiu-o.
- Já pensaste - disse Daniel sonhador - que foste a única pessoa que estiveste para lá daquela porta, a única pessoa além da tua irmã?
- Thace disse-me que tentasse. Lia é muito bonita. Desejava... a propósito tenho também um recado da minha irmã para ti.
Daniel sentiu-se corar.
- Daqui a quatro dias é o Dia da Propiciação. Primeiro o jejum, claro, e depois o serviço na sinagoga. Nunca pensei que iria assistir ao serviço no Templo de Jerusalém! Quase nem posso acreditar! Mas terei saudades da festa de Cafarnaum. As raparigas vão dançar e cantar nos vinhedos. Irás à cidade ver a festa?
- Tenho estado hesitante no que deva fazer - respondeu Daniel.
- Pensa nisso. Darias uma grande alegria a Thace. Agora, a outra coisa de que te quero falar é a respeito de Lia. Thace e eu queremos que saibas que não precisas de te preocupar com a ideia de a deixares, porque nós tomaremos conta dela. Quando chegar o dia, e se tiveres de te afastar, Thace virá, ou ainda melhor, gostávamos de levá-la para nossa casa.
E acrescentou à pressa, enquanto Daniel tentava encontrar palavras para lhe agradecer.
- Thace gosta muito dela. Vai ter pena de não a poder visitar. E eu receio bastante que a minha irmã fique agora muito sozinha.
Daniel baixou os olhos com ar embaraçado.
- O Pai lamenta ter-lhe dado tanta liberdade para me acompanhar para toda a parte. Thace está estragada com mimos. Não está habituada a ficar em casa, como as outras raparigas.
"Será como meter na gaiola um pássaro livre da montanha", pensou Daniel.
Joel desviou o olhar e começou a observar um dos cantos da loja.
- O Pai deseja casá-la - disse. Daniel nem teve consciência de ter pegado num martelo nem de o ter apertado com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.
- Há um velho amigo da família - continuou Joel.- Mas Thace nem quer ouvir falar nisso, o que coloca o Pai numa má posição, porque, por muito que o lamente, está preso à promessa que fez. Compreendes, é diferente na nossa família. Quando a nossa mãe tinha apenas 8 anos foi prometida em casamento. Mas quando tinha 15, apareceu o meu pai, que era um estudante pobre, para fazer uns trabalhos na biblioteca do meu avô e apaixonaram-se. Isto causou um escândalo terrível. O meu avô ficou furioso. Teve que tratar de arranjar os papéis do divórcio com o rapaz que a minha mãe nunca tinha visto. E os meus Pais prometeram um ao outro que nunca arranjariam casamentos para os filhos e que nos deixariam escolher livremente.
Daniel não ousava olhar para o amigo.
- O problema é que - disse Joel - Thace está em idade de escolha, mas recusa-se a fazê-lo.
Daniel continuava sem poder encarar o amigo.
Sabia que Joel falara sinceramente, com aquela franqueza impulsiva que fora sempre um dos traços da sua maneira de ser. Mas sabia também que a lealdade do amigo sempre o tornara cego para a verdade.
- Thace deve escolher - explodiu Daniel, em voz demasiado alta.- Deve escolher alguém da sua classe. O teu Pai tem razão. E tu terás também de escolher dentro de pouco tempo.
- E tu? - perguntou Joel calmamente.
- Eu não posso escolher. Como pode um homem, preso à vingança e à morte, casar-se?
As palavras revoltadas ecoaram num silêncio que nenhum dos dois rapazes parecia poder quebrar.
- Só mais uma coisa - disse finalmente Joel, com esforço. - É sobre Jesus. É preciso avisá-Lo. Tem inimigos em toda a parte.
- Referes-te aos homens de Herodes? - perguntou Daniel, satisfeito por ver que o amigo mudara de assunto.
- Desses já Ele sabe. Refiro-me aos chefes da sinagoga. Os rabis e os escribas. Não podem compreendê-Lo. Estão furiosos com as coisas que diz e faz. Não segue a Lei à risca. E eles dizem que Jesus está tentando destruir a autoridade do Templo. Alguns até afirmam que Jesus fez pacto com o demónio.
- Tem alguma importância o que dizem? Jesus não se incomoda com isso.
- Mas deve incomodar-se agora. Alguns odeiam-No tanto, que penso que seriam capazes de O matar se pudessem. Vais tentar avisá-Lo, sim?
- Simão disse-me que Jesus está sempre a ser avisado.
- Vais procurá-Lo e fala-Lhe, Daniel. Gostava eu de ir, mas agora já é muito tarde para mim. Talvez nos tivéssemos enganado. Talvez Jesus seja de facto o chefe por que esperamos.
Endireitou os ombros e acenou com a mão.
- De qualquer modo não te esqueças do festival - disse. - Thace está à tua espera.
Apertaram as mãos.
- Para a vitória de Deus - disseram.
Depois Joel tapou o rosto com o manto e saiu.
"É o fim de tudo", pensou Daniel, olhando para a porta fechada. O fim de tudo para que trabalhara. Pela primeira vez duvidou que o dia pudesse chegar alguma vez.
Capítulo 21
- Foi bom teres vindo, Daniel. Mas julgas que Jesus não sabe já tudo isso?
Olhou aborrecido para Simão. Fizera uma longa caminhada desde a aldeia, depois de um dia cheio de trabalho. A chuva encharcara-o até aos ossos por duas vezes, e o ar da noite carregado de nevoeiro fizera-o tremer de frio e não lhe secara a roupa. Abrira caminho através da multidão compacta que enchia o jardim e agora, que chegara à porta, não o deixavam aproximar-se de Jesus. O Mestre, explicaram-lhe, estava a conversar com umas pessoas importantes que tinham vindo de Jerusalém para O interrogar. E, por último, Simão encarava o aviso urgente de Joel como coisa de pouca importância.
- Desculpa, Daniel - disse Simão ao ver que ofendera o jovem amigo. - Também estamos preocupados. Estes sacerdotes da Judeia, não Lhe dão um momento de sossego há três dias. Procuram mostrar-se cheios de respeito, e estão apenas tentando fazê-Lo cair numa armadilha, para ver se conseguem ouvi-Lo dizer alguma coisa que possam provar que é blasfémia. E isto faz com que estejamos todos no limite das nossas forças.
- Mas, porque continua aqui, se sabe que corre perigo? Porque não se esconde até ser suficientemente forte para os vencer?
- O povo precisa d'Ele. Volta noutro dia, Daniel. Não Lhe posso falar esta noite.
A porta fechou-se e o rapaz ficou no jardim cheio de gente. Desejava desesperadamente ver Jesus. Sabia agora que o aviso não fora senão uma desculpa para este desejo. Se pudesse ouvir uma palavra, ver um sinal do Mestre, podia encontrar a força suficiente para continuar a trabalhar e a lutar.
Esperou durante muito tempo, perdido na sua própria miséria. Por fim, André apareceu à porta.
- Não vale a pena esperarem - disse para a multidão. - O Mestre está muito fraco. Não pode ver ninguém esta noite.
Um gemido encheu o jardim. Depois, pouco a pouco, os doentes e os aleijados, convencidos que de facto Jesus não apareceria, começaram a dirigir-se para a estrada. Alguns deixaram-se ficar estendidos no jardim, porque não tinham outro lugar onde passar a noite. A porta voltou a abrir-se e Simão, André e Jesus sairam. Caminhavam lentamente. Jesus falava com suavidade com os que Lhe obstruíam o caminho, tocando-lhes algumas vezes com as mãos piedosas. Os dois discípulos, com firmeza, iam abrindo caminho para o Mestre até à escada que conduzia ao quarto de cima. Ficaram a vê-Lo subir com a pequena lanterna na mão, até que desapareceu e fechou a porta.
O jardim estava muito escuro. Ouando os discípulos voltaram para casa, Daniel avançou e ficou junto às escadas. Não podia suportar a ideia de ter que se ir embora.
Tinha a certeza de não ter feito o mais leve ruído, mas a porta abriu-se.
- Quem está aí? - perguntou Jesus. Ergueu a lanterna.
Daniel não ousava falar, mas quase sem pensar, dirigiu-se para o pequeno círculo iluminado pela lanterna e levantou a cabeça até a luz lhe bater em cheio no rosto.
- Sobe, meu amigo - disse Jesus suavemente.
O quarto estava completamente nu e muito limpo. No chão estendida a esteira onde Jesus costumava dormir.
- Senta-te - disse, e Ele próprio se sentou também no chão, em frente de Daniel. - Porque estás tão perturbado? - perguntou-lhe.
- Vim para Te avisar - apressou-se Daniel a dar o recado. - Joel diz que estás em perigo. Que estão contra Ti na sinagoga. Receia que tentem matar-Te.
- Obrigado - disse Jesus gravemente. - Tu e Joel são muito amáveis. Agora diz-Me o que te preocupa.
Envergonhado, consciente de que não devia perturbar o descanso do Mestre, Daniel ficou sentado sem saber o que dizer. Depois, de repente, deixou explodir toda a sua miséria.
- Não sei que fazer. Tudo falha. Tudo aquilo que tem sido a minha esperança e a razão da minha vida.
- E qual tem sido a razão da tua vida?
- Apenas uma coisa. A liberdade do meu povo. E vingar-me da morte do meu pai.
- Duas coisas - disse Jesus - e não apenas uma.
- São a mesma coisa. Lutarei por ambas ao mesmo tempo.
- Tens a certeza? - perguntou Jesus. A boca de Daniel cerrou-se na dura linha habitual. Viera para ser ajudado, não para ser interrogado.
- Tudo o que desejava era ter uma oportunidade! - continuou - Pensei que chegara o momento, finalmente, e lutei e fiz planos. Mas depois tudo correu mal. Tudo o que tenho é mais uma dívida para pagar... Sansão.
Jesus ficou calado durante uns momentos.
- Esse Sansão - perguntou - era teu amigo?
A pergunta surpreendeu Daniel. Pensara em Sansão, como um fardo, um símbolo da sua própria fraqueza. Nunca encarara Sansão como um amigo, mas agora compreendia que o era de facto.
- Morreu por mim. Nada sabia de Israel ou do Reino. Morreu apenas, sem fazer a mais pequena ideia do motivo por que lutara.
Depois, sem se preocupar com a fraqueza do Mestre, esquecendo tudo para sentir apenas o remorso que o torturava desde o dia do ataque, contou toda a história de Roch, a traição da montanha, a morte de Nathan e o débito em que ficara pelo sacrifício de Sansão.
- Sim - disse Jesus lentamente. - Olho por olho. Dente por dente. Assim está escrito. Devemos fazer como nos fazem a nós. Mas Sansão deu tudo o que tinha. De que maneira podes tu pagar o que ele te deu?
- Vingando-me!
- Sansão não te deu vingança. Deu-te amor. Não há maior amor do que esse, que faz com que um homem dê a vida pelo seu amigo. Pensa, Daniel, podes pagar esse amor com ódio?
- É muito tarde para amar Sansão. Já deve estar morto - E depois acrescentou - Devo amar os Romanos que o mataram?
Jesus sorriu.
- Julgas que é impossível, não é verdade? Não vês, Daniel, que o inimigo é o ódio? Não os homens. O ódio não morre com a acção de matar. Cresce. A única coisa mais forte do que o ódio é o amor.
O rapaz baixou a cabeça e olhou para o chão. Não era para isto que viera. Procurou afastar, aterrorizado, as palavras que começavam a infiltrar-se traiçoeiramente na sua própria fraqueza. Quando ergueu a cabeça, Jesus estava sentado com a cabeça inclinada e uma das mãos tapando, os olhos. Tudo no seu corpo denunciava a urgente necessidade de descanso. Daniel sentiu remorsos. Mas o desejo que sentia de ser esclarecido era mais forte. Tinha que falar.
- Não compreendo - continuou. - Mas sei que podes salvar-nos a todos, se quiseres. Mestre! Porque não és o nosso chefe? Há tantos, centenas, milhares, na Galileia, que esperam apenas uma palavra! Quanto tempo terão ainda que esperar?
Jesus parecia não ter ouvido. Nem se moveu.
Lentamente Daniel ergueu-se. E, no momento em que tocava no trinco da porta, Jesus falou. Levantara-se também e olhava directamente para o rapaz.
- Daniel, gostava que me seguisses.
- Mestre! - E uma enorme sensação de esperança quase o fez ajoelhar - Lutarei por Ti até ao fim!
Jesus sorriu-lhe gentilmente.
- Meu leal amigo - disse-lhe.- Vou pedir-te uma coisa muito mais difícil do que essa. Amar-me-ás até ao fim?
Daniel, frustrado, sentiu que a esperança se desvanecia.
- Não compreendo - repetiu. - Falas do Reino ao povo. E não vais lutar por ele?
- O preço do Reino é muito grande - respondeu Jesus. - Ontem apareceu um que desejava seguir-me. Era muito rico e quando lhe pedi que abandonasse toda a riqueza que possuía, foi-se embora.
- Dar-Te-ei tudo o que tenho!
Qualquer coisa, como que uma ligeira expressão de bom humor, iluminou por instantes o olhar triste de Jesus.
- Não é a riqueza que te afasta do Reino disse. - Precisas de abandonar o ódio que tens.
Daniel sentiu-se tremer. Era como se estivesse em luta consigo próprio. Perante o apelo do olhar de Jesus, sentiu que tudo que fora até então a razão da sua vida estava prestes a desmoronar-se e que o próprio solo parecia fugir-lhe debaixo dos pés como areia movediça. Reuniu todas as suas forças para lutar pelo que considerava a coisa mais importante da sua vida.
- Fiz um juramento em nome de Deus! - lançou num desafio - Não será um juramento sagrado?
Jesus olhou-o com firmeza, com uma expressão que Daniel não mais esqueceria, cheia de tristeza e de pena e com uma solidão tão imensa que parecia intransponível.
- Sim - respondeu. - É sagrado. Que juraste tu, Daniel?
- Lutar! - Daniel interrompeu-se, recordando a noite em que fizera o juramento, evocando o rosto de Joel, tentando lembrar-se das palavras exactas que tinham dito. Foi como se ouvisse de novo a voz de Thace: "Viver e morrer pela vitória de Deus!"
Um sorriso iluminou de repente o rosto de Jesus, o antigo sorriso, radiante, pleno de juventude e de força. Pôs a mão no ombro de Daniel.
- Não é um juramento de ódio - disse. - Vai em paz, meu filho. Já não estás muito longe do Reino.
Capítulo 22
No décimo quinto dia de Tichri, Dia da Propiciação, estava Daniel à porta da loja. Apesar de ser muito cedo, um ar festivo alegrava já, como uma brisa fresca, a rua estreita. Na aldeia ninguém trabalhava. Os Judeus piedosos dirigiam-se com dignidade para a sinagoga, olhando com desdém para os foliões que aproveitavam o dia de festa para se divertirem. Risos e vozes alegres cruzavam-se de umas casas para as outras.
Joktan, sentado na soleira da porta, comia a fatia de pão de trigo que Daniel lhe dera.
- Os aprendizes hoje não trabalham - disse intencionalmente, olhando para Daniel com uma certa esperança.
- Então vai - respondeu Daniel. - Hoje deve haver pouco que fazer.
Assim que Joktan desapareceu, voltou para a forja. Passou toda a manhã a trabalhar, tentando ignorar o ar de descanso que envolvera a aldeia. Sentira outrora a tentação da montanha. Desta vez era a cidade que o chamava.
Ao meio-dia ouviu cantar. Pousou o martelo e entrou em casa.
- Queres ir comigo, visitar Thace? - perguntou a Lia - Deve ir dançar com as outras raparigas para os vinhedos - Disse isto num tom desprendido, meio a sério meio a brincar, pensando que o desejo de ver Thace talvez a pudesse tentar.
- Tu vais? - gritou a irmã - Se fores, conta-me tudo, depois!
- Vais comigo? - insistiu Daniel.
O olhar de Lia escureceu.
- Não me arrelies, Daniel. Mas tu vais, não vais?
- Não sei ainda - respondeu o rapaz, tentando iludir-se a si próprio. - Se tiver tempo, vou. Tenho que ir à cidade entregar um cadeado e uma chave ao velho Omar.
- Mas não vais com essas roupas do trabalho - protestou Lia.- Estive a ver as pessoas que passavam. Iam bem vestidas. Espera... - Foi a correr buscar a túnica de lã à arca e enfiou-lha à força, rindo ao vê-lo depois todo despenteado.
Encaminhou-se para a cidade, mantendo-se sempre afastado dos viajantes alegres que não se atreviam a falar-lhe ao vê-lo com um rosto tão infeliz e uma expressão tão sorumbática. Em Cafarnaum, tal como já calculava, a casa do velho Omar estava deserta e deixou o embrulho atrás da porta.
Continuava a dizer a si próprio que não tencionava ir à festa, mas quase contra vontade, foi-se dirigindo para os vinhedos. Não era difícil encontrar o caminho. Bastava orientar-se pelas vozes e pelas risadas que ouvia. Em redor de uma das vinhas, os rapazes da cidade tinham-se reunido num círculo animado e alegre. Viu imediatamente que aquele não era o seu lugar. Mesmo com a sua melhor túnica notava-se logo o que era, um camponês e um ferreiro. Nem sequer ousou aproximar-se daqueles jovens elegantes com as túnicas de barras coloridas, as sandálias de couro e as barbas e os cabelos cuidadosamente oleados e penteados. Conheciam-se todos, saudavam-se, diziam gracejos uns aos outros, enquanto ele permanecia acanhado, triste e solitário.
De repente calaram-se. O círculo de rapazes apertou-se e avançaram. Daniel que era mais alto do que a maior parte deles, estendeu o pescoço para ver o que se passava. Do outro lado da vinha, uma fila de raparigas saía lentamente dos maciços verdes, vestidas de branco, com coroas de flores na cabeça e segurando grinaldas floridas. As suas vozes agudas, altas e meigas subiam por entre as árvores.
- Não procureis, jovens, nem ouro, nem prata, nem beleza nestas donzelas. Considerai apenas as boas famílias a que pertencem, para que vos possam dar filhos dignos.
Apesar de continuar por detrás do círculo de rapazes, Daniel via agora melhor a fila de raparigas. Quase deixou de respirar quando viu Thace. Nunca a vira dançar, mas sempre imaginara que fosse assim, graciosa e gentil. Notara-o logo naquele primeiro dia em que a vira na montanha. Como era ágil! Não como as outras, tentando atrair as atenções, ou procurando apagar-se de olhos baixos e envergonhados. Dançava com simplicidade, como se sentisse prazer na própria dança, de cabeça erguida, olhos brilhantes, um sorriso nos lábios entreabertos quando cantava. Quando se aproximou viu que, de vez em quando, olhava directamente para os rapazes. Não era um olhar envergonhado nem atrevido. Era como se estivesse à procura de alguém. E Daniel não podia suportar a ideia de a ver quando ela o encontrasse. Ficou aterrorizado. Dentro de instantes, Thace passaria na sua frente e vê-lo-ia ali, com a sua túnica grosseira feita em casa, as suas mãos rudes e os seus pés descalços. Continuaria a olhar como o fazia agora? Teria sequer a coragem de mostrar, diante de todos, que o conhecia? Teria vergonha dele? Aproximava-se agora. Daniel voltou-se, meteu-se por entre os rapazes e desapareceu em direcção à planície.
Mal se afastara quando ouviu a voz de Thace. Olhou para trás e viu-a correndo por entre as vinhas, com o véu branco flutuando. Parou junto dele, ofegante e corada.
- Porque te vais embora? - gritou-lhe.
- Sabes bem porquê - respondeu Daniel. - Fui um louco em ter vindo.
- Fui eu que te convidei.
- Não és obrigada a ser boa para mim. - Viu que a magoara. - Sei que querias ser agradável - continuou. - Gostei muito de te ver dançar. Agora já posso ir contar a Lia como foi a festa.
- Foi esse o único motivo por que vieste... para contar à Lia?
Daniel olhou para ela com uma expressão desalentada.
- Volta para junto dos teus amigos - disse-lhe. - É aí o teu lugar.
Thace avançou, devagar, até ficar muito perto do rapaz.
- Ainda pensas que não passo de uma menina bonita, Daniel?
O rapaz corou até às orelhas. Thace recordava-se ainda do que ele dissera. Ao olhá-la viu que os lábios lhe tremiam e que os olhos negros brilhavam cheios de lágrimas.
- Não! - explodiu por fim, sentindo a necessidade imperiosa de lhe pedir desculpa - Nem nunca pensei que o fosses. Naquele dia, quando acordei no esconderijo, foi uma cara de mulher que vi. A cara que recordarei sempre enquanto viver.
A rapariga não respondeu. Ficou imóvel, altiva e orgulhosa, com o rosto erguido para ele e nem sequer tentou esconder o que aquelas palavras representavam para si. A alegria profunda que sentia, iluminava-lhe o olhar como uma luz brilhante e era tão intenso este brilho que Daniel perdeu a noção de tudo.
- Não, Thace! - murmurou - Não queria que o soubesses.
- Porque não?
- Porque não vale a pena. Só peço uma coisa à vida. Não tenho o direito de possuir o mesmo que os outros.
- O que tu desejas é assim tão importante? Tens a certeza, Daniel?
- Fiz um juramento.
Viu que o olhar de Thace perdia o brilho e entristecia.
- Também fiz o mesmo juramento - disse. - Jurámos viver e morrer pela vitória de Deus. Há mais de uma maneira de lutar. Joel compreende agora que é assim.
- Só conheço uma maneira de lutar - respondeu Daniel. - Não sei falar como Joel. Só possuo estas duas mãos.
A voz de Thace era hesitante.
- Não haverá nunca um fim para isso, odiar e matar?
- Thace! - quase gritou Daniel - Não me atormentes! Preciso de continuar só. Na minha vida não pode haver lugar para mais ninguém.
Ela não voltou a falar. Ficou em silêncio, aceitando esta verdade como aceitara a outra, de cabeça erguida, sem procurar esconder o desgosto tal como não escondera a alegria, e com uma tal expressão de orgulho que fazia com que a altivez natural das outras mulheres parecesse uma coisa sem sentido.
- Deixa-me ir agora embora, Thace.
A rapariga anuiu com a cabeça.
- Que Deus vá contigo - disse - para onde quer que vás.
Daniel olhou para trás e viu-a ainda voltada para ele, vendo-o desaparecer.
Regressou a casa como fora, afastado de todos, isolado na sua tristeza. Sentia-se fraco e indisposto e não desejava falar da festa, mas assim que viu Lia compreendeu que não podia fugir. A irmã esperava-o como uma criança ajuizada, com as mãos cruzadas no colo e os olhos azuis brilhando de expectativa.
- Como era? Thace estava bonita? Que vestido tinha?
- Uma espécie de coisa branca - respondeu Daniel em tom indiferente. Depois, ao ver a irmã, sentiu pena ao imaginá-la esperando por ele naquele quarto fechado enquanto as outras raparigas dançavam à luz do sol. O menos que podia fazer era contar-lhe a festa.
- Tinham flores no cabelo - começou com esforço. Depois, impulsivamente, abriu a porta e colheu um ramo de flores da trepadeira que crescera junto de casa, teceu uma grinalda e colocou-a nos cabelos louros.
- Era assim - disse.
Encantada, Lia levou as mãos ao cabelo e tocou as flores com os dedos.
- Formavam uma longa fila e dançavam...
- Assim? - E Lia começou a mover-se de um lado para o outro, erguendo os pés e com os braços levantados. Daniel admirado viu-a dançar. Como podia saber o que significava dançar? Aqueles gestos espontâneos possuíam um ritmo instintivo.
Surpreendido, sorriu-lhe.
- Devias ter ido dançar também com elas, Lia. És tão bonita como qualquer delas.
Parou e ficou na sua frente com uma expressão muito séria no olhar.
- Eu sou bonita, Daniel?
"Por que motivo lhe haviam de fazer a mesma pergunta duas vezes no mesmo dia!" A recordação da beleza maravilhosa de Thace fez com que respondesse gentilmente à irmã.
- Claro que és bonita, Lia.
- É mesmo verdade, Daniel? Tão bonita como as outras raparigas que viste hoje?
- Muito mais bonita que a maior parte delas.
Procurara agradar-lhe mas ficou admirado ao perceber como fora importante para Lia a resposta que lhe dera.
- Thace também me disse o mesmo - explicou muito séria como se estivesse a pensar numa coisa que nunca a preocupara antes. - Achas que as outras pessoas, além de ti e de Thace, também possam pensar o mesmo?
- Joel também me disse que te achava bonita. Lia com um pequeno sorriso afastou a opinião de Joel.
- É tão bondoso como Thace, não é? - perguntou um pouco ausente. Depois, numa das suas reviravoltas habituais, dirigiu a conversa para assuntos mais práticos.
- A ceia está pronta - disse. - Tenho hoje uma surpresa para ti.
A esteira estava já estendida e os pratos postos e Daniel viu que, por muito pouca fome que tivesse, era preciso comer. Lia, ainda com a grinalda na cabeça, desembrulhou o pão e foi buscar as cenouras e as cebolas cozidas. Apesar de preocupado reparou na ansiedade com que a irmã o via comer, tal como uma criança que não conseguisse esconder um segredo.
Assim que acabaram os legumes, Lia dirigiu-se para a cortina do canto e trouxe um cesto com fruta. O rapaz viu imediatamente que era fruta muito boa, romãs escarlates, figos maduros, o género de fruta que nunca entrava nas refeições de nenhum galileu e que apenas, uma vez por ano, ousavam reservar para o sacrifício dos Primeiros Frutos no Templo em Jerusalém. Que vizinha lhe teria feito semelhante oferta?
- Foi em pagamento do teu trabalho de tear? - perguntou-lhe.
- Não - respondeu Lia, tão alegre que quase nem podia falar. - Foi um presente que me deram.
Daniel ficou à espera, admirado.
- Marcos trouxe-me isto, hoje.
Tinha já dado uma dentada, mas parou como se tivesse mordido qualquer coisa apodrecida.
- Quem é Marcos?
- Tu sabes. O soldado que vem a cavalo.
Deitou fora a romã. Ouviu-a esmigalhar-se quando bateu na parede e o cesto rolou com a violência do gesto. Levantou-se, quase cego de raiva. Lia, com um gemido, ajoelhou-se e agarrou uma laranja. Soluçando, tentava limpá-la ao vestido. Daniel arrancou-lha das mãos.
- Como sabes o nome dele? - gritou - Como ousa um cão romano trazer-te seja o que for?
Lia recuou e encostou-se à parede.
- Responde-me! Como o conheces? - Agarrou-a pelos ombros e levantou-a. Lia, em silêncio, voltou a cair.
Daniel ouviu a sua própria voz gritando palavras que nunca dissera antes, palavras que ouvira na caverna. Depois, pouco a pouco, começou a acalmar e a ver tudo mais nítido. Reparou na irmã que tremia sob o peso das suas mãos, com a grinalda de flores caída pelos cabelos louros desfeitos, com o rosto pálido e transtornado, à espera de que lhe batesse. Largou-a e deixou-a cair no chão. Envergonhado, recuou.
- Não te vou bater - disse-lhe num tom mais calmo.- Responde-me. O que te fez esse homem?
A voz, muito fraca, era ainda abafada pelos cabelos caídos para a face.
- Tem sido meu amigo.
- Desde quando?
- Desde o Verão. Vem ver-me, quando tu sais. Daniel ficou rígido. - Deixaste um romano entrar na minha casa?
- Não, não! Nunca entrou em casa.
- Então, como foi? Conta-me tudo.
- Ele, ele fica a cavalo do outro lado do muro do jardim e conversa comigo.
- Só isso? Dás-me a tua palavra?
Lia ergueu a cabeça e olhou-o com uma tal dignidade que Daniel recuou.
- De que te fala ele?
- Não sabe muitas palavras. Conta-me coisas da família, vivem num sítio muito longe chamado Gália. Vive numa pequena aldeia no meio de uma floresta. A sua aldeia foi conquistada pelos Romanos. Tem um irmão e duas irmãzitas, e disse-me que todos têm os cabelos louros como os meus.
Gostava de te ter contado isto, Daniel. Desejei-o tantas vezes! Mas sempre que ele vinha à loja ou sempre que pensavas nele, ficavas tão mal disposto. Tive medo.
- Bem podias ter medo. Se soubesse arrancava-lhe a língua. E é o que vou fazer, quando o encontrar.
O rosto de Lia ficou branco.
- Não! Oh não! - Ergueu-se imediatamente - Não lhe faças mal! Diz-me que não lhe vais fazer mal! Oh, se o magoares, morrerei!
Daniel olhou para a rapariga e viu que o que lhe dizia era verdade. O romano não entrara em casa.
- Deixa-te de gemidos e ouve-me - disse-lhe cruelmente. - Não o mato, se me prometeres que não lhe voltas a falar.
- Não. Nunca mais.
- Tens que me jurar solenemente.
- Juro. Prometo tudo o que quiseres.
- Nunca mais apareces quando ele vier.
- Não. Nunca mais irei para o jardim.
- Envergonhaste a minha casa, a casa de Simão e o nome do nosso pai. E até o nome de Israel.
Lia recomeçou a soluçar.
- Chora! - gritou-lhe - Chora as lágrimas todas que tiveres! Vê se consegues chorar toda a tua vergonha.
Encaminhou-se meio cego para a porta, desejando apenas deixar de ver a irmã. Lia continuava estendida no chão, com o rosto encostado à terra batida e a face escondida. Daniel hesitou. Depois recordou-se de um pequeno pormenor. Uma vez, num dia de Verão, Lia dissera: "Ele tem saudades de casa". Já nessa altura! Durante todo este tempo a irmã enganara-o. Atravessou a porta e saiu para a rua.
Caminhou durante horas através das ruas da aldeia, calcorreou as pastagens da colina, correu pela estrada, encharcado por uma chuva contínua. A princípio animava-o o desejo selvático de encontrar o romano. Mas quando chegou à noite, já nem sabia na realidade para onde ia. Aos primeiros alvores da madrugada regressou à aldeia. Sentia-se exausto e vazio, e o ombro doía-lhe cada vez mais. Libertara-se do ódio que sentira. E agora, em seu lugar, estava envergonhado.
Fora bom não ter encontrado um legionário durante a noite. Porque se o tivesse encontrado talvez toda a aldeia viesse a ser vítima de represálias. Agora, que estava mais calmo, via que, apesar do seu ódio intenso, ninguém compreenderia o ardente desejo de vingança que o possuíra. A legião romana tinha as suas próprias leis, tão estritas como as dos Judeus. Mas não havia nenhuma lei, nem dos Romanos nem dos Judeus, que proibisse a um legionário romano de conversar com uma mulher judia por cima do muro de um jardim.
Que significado tinha Roma para Lia? Vira um rapaz, apenas pouco mais velho do que ela, com cabelos louros como os seus. Mas porque não tivera medo?
"Não devia ter gritado - pensou envergonhado. Farei com que se esqueça. Preciso de lhe mostrar que não deve ter medo de mim. Mas que o romano nunca mais entre na loja!"
A casa estava muito sossegada. Os frutos continuavam caídos no chão. Lia, sentada a um canto, tinha ainda uma flor presa no cabelo. Quando Daniel entrou, nem sequer levantou a cabeça.
Capítulo 23
Destruíra em momentos o trabalho de meses. Durante a noite, Lia transformara-se de novo no fantasma pálido que encontrara agachado ao lado da avó moribunda. Deixara de se pentear, de varrer a casa ou de falar. Nem sequer parecia reconhecer o tear. Passava os dias sentada, de cabeça inclinada e de mãos cruzadas. Era como se nada se tivesse passado desde o dia em que Daniel regressara a casa. Apenas uma coisa era diferente. Agora, a juntar ao resto, Lia tinha medo do irmão.
Atormentado pelo remorso, Daniel fazia todo o trabalho da casa, varria, lavava e cozia o pão. Procurara tornar-se insensível à maneira como a irmã tremia e se enroscava a um canto sempre que ele entrava em casa. E sempre que se recusava a dar atenção à comida enquanto o via no quarto, colocava-lhe a tigela na esteira e saía. Algumas vezes, quando voltava, estava meia vazia; mas, a maior parte das vezes, Lia não tocava na comida. Pedia-lhe então, carinhosamente, que comesse. Tinha mais paciência do que julgara poder ter. Mas os olhos de Lia, nas raras vezes que o fitavam, pareciam janelas vazias. Receava olhá-la com medo de ver os demónios. Porque, agora, tinha a certeza de que a possuíam completamente.
Não sabia ao certo o momento em que começara a ter esperança em Jesus. A princípio era como um pequeno raio de luz na escuridão do seu espírito. E durante os dias inteiros, na forja, a esperança ia crescendo lentamente até tomar conta de todos os pensamentos. Diziam que Jesus podia expulsar os demónios, mesmo os demónios mais terríveis que obrigavam um homem a dilacerar a própria carne. Poderia também expulsar os demónios silenciosos, os que se escondem nas sombras?
Podia pedir fosse o que fosse a Jesus, quando se recusara a segui-Lo? Atrever-se-ia a pedir-Lhe para ajudar Lia, quando sabia que fora ele o culpado de os demónios terem voltado? Mas não podia deixar de recordar como Jesus, de uma forma que nunca conseguira compreender, o havia libertado do peso terrível da morte de Sansão. Se Jesus o libertasse agora deste fardo ainda mais pesado! Durante as longas horas de insônia esqueceu todas as dúvidas que sentira naquela noite em que falara com o Mestre. Recordava apenas a doçura infinita do seu olhar. Não podia imaginar que Ele o abandonasse.
E chegou a altura em que se decidiu. Pousou o martelo e dirigiu-se a Cafarnaum. Entrou na cidade ao entardecer e encaminhou-se logo para a praia.
Os barcos dos pescadores estavam abandonados. Apenas um homem já velho, de muletas, olhava para o lago.
- Foram-se todos embora - queixou-se. - E nem se lembraram dos que não podem andar.
- Foram para onde?
- Sabe-se lá! - respondeu o homem - Partiram durante o dia. Seguiam o Mestre; era uma multidão. O Mestre foi de barco e André levou-O pelo lago fora. O povo seguia-os, correndo pela margem. Eram centenas. Não pude acompanhá-los.
- E para que lado foram?
- Para Oriente. Através da planície.
Daniel apressou-se. Não se sentia com disposição para esperar, para mais em companhia tão pouco animada. Resolveu ir ao encontro da multidão e esperá-la no regresso. Compreendia agora porque se recusavam a ficar para trás. Agora, que desejava pedir que Jesus o ajudasse, compreendia a impaciência dos outros.
Não era difícil seguir o caminho que o povo tinha tomado ao longo da praia. Começou a perceber, à medida que uma pessoa após outra lhe indicava o caminho, que imensa gente passara por ali e que deviam ter sido muitos os que haviam largado o trabalho para O seguir. Viu na sua frente a áspera subida das colinas. A última luminosidade da tarde estava quase a desaparecer, mas podia ainda ver uma enorme multidão, como nunca vira antes, reunida como um imenso rebanho. O que estariam ali a fazer tão tarde?
Distinguia já o som das vozes que ecoava como o rumor do mar durante uma tempestade, cada vez mais alto, em vagas sucessivas. O Mestre não devia estar a falar, porque era impossível alguém fazer-se ouvir no meio de semelhante barulho. Ouviu um grito isolado, histérico, agudo. Nunca ouvira um grito assim. Sentiu que o coração lhe batia desordenadamente.
Chegou por fim junto da multidão. Estavam de pé, empurrando-se, encostados uns aos outros, estendendo as cabeças com um frenesi que Daniel nunca vira antes. As vozes subiam numa espécie de cântico.
- Que se passa? - perguntou, tocando no braço do homem que estava mais perto - Porque estão a gritar?
- Porquê? Então não sabes, rapaz?
- Cheguei agora mesmo. Conta-me!
- É o Messias! Ouve!
Ao ouvir estas palavras, o coração deu-lhe um salto no peito. "Hossana! Bem-vindo O que veio!..."
E isto continuamente, uma vez e outra, e outra ainda.
- É o dia do Senhor! - gritava uma voz elevando-se por sobre o rumor.
"Dissera finalmente quem era!", pensou Daniel extasiado, esquecendo Lia, esquecendo o cansaço e as dúvidas, esquecendo tudo o que não fosse aquela alegria sem limites que o sacudia da cabeça aos pés.
- Foi Ele que o disse? - perguntou agarrado ainda ao braço do homem - Conta-me, o que disse Ele?
- Dizer? Fez melhor do que isso. Deu-nos de comer. Não viste o pão? Toma também tu algum desse pão. Há muito - E libertou-se das mãos de Daniel que lhe continuava a agarrar o braço.
- Graças sejam dadas a Deus! - gritou avançando - A salvação está a chegar!
Daniel olhou para baixo. Viu qualquer coisa branca brilhando no chão e tocou-lhe. Pão. Segurou-o na mão. Mais longe, viu outro pedaço de pão e depois ainda outro. Pão? Para toda esta gente? Para toda esta gente que cobria a montanha? Deviam ser milhares.
- Espera um momento! - e correu atrás do homem - De onde veio este pão?
- Como posso saber? Tudo o que sei é que nos mandou dizer que nos sentássemos. Depois passaram-me o pão.
O rumor era cada vez maior.
- É o nosso Rei! - gritavam - É o nosso Salvador! Abaixo Roma!
Daniel continuava sem poder ver Jesus. Começou a abrir caminho por entre a multidão. "Se Joel pudesse também estar ali... - pensou cheio de pena - O fim de toda a longa espera e Joel que não estava ali para assistir a tudo!"
- Daniel - e da escuridão chegou-lhe o som de uma voz familiar.
- Simão! - Os dois amigos abraçaram-se. - Onde está Ele, Simão?
- Partiu.
- Partiu! Vão coroá-Lo rei!
- Eu sei. Mas foi-se embora. Pedimos-Lhe que ficasse. Mas disse-nos que dispersássemos a multidão e depois foi-se embora com André, Tiago e João.
- Para onde?
- Para um sítio qualquer das montanhas.
- Precisamos de ir atrás d'Ele. Depressa!
- Não O encontraremos. Disse-nos que não queria que ninguém O seguisse.
Foi como se estas palavras tivessem erguido um muro na sua frente. Ficou atónito, tremendo, com os olhos fixos na escuridão. Mas que podia ver em tal negrume? Voltou-se desapontado para o amigo. Viu, depois que, à sua volta, como um fogo que se tivesse erguido muito alto, a exaltação estava a decrescer. Os gritos de alegria começavam a dar lugar a gritos de desgosto. Tal como Daniel, a multidão não podia acreditar que Jesus se tivesse ido embora. Devia estar escondido à espera de que O adulassem. Começaram a estalar, de repente, aqui e além, discussões exaltadas. Se o Homem desejava ser rei, porque não ficava ali e procedia como um rei? As mulheres passavam por entre a multidão à procura dos maridos e pedindo-lhes para voltarem para casa. E, lentamente, a multidão começou a descer a colina.
- Vem - disse Simão calmamente. - Podes passar a noite comigo.
- Simão, porquê?... - explodiu Daniel - Iam coroá-Lo?
- Não sei. Talvez não fosse o momento próprio.
- Quando haverá outro momento melhor do que este?
- Ele é que deve escolher.
- Escolherá? Que desejará? Afinal, que género de homem é?
Simão voltou-se e olhou-o. Na escuridão os olhos brilhavam como brasas.
- Creio que é o Messias enviado por Deus disse.
Daniel sentiu um arrepio nas costas.
- Foi Ele que o disse?
- Não a mim. Talvez àqueles três. Parece-me que André sabe.
- Então porque não quis ser rei?
- Já te disse que não sei.
- Se é o Messias, quando nos levará a combater o inimigo?
Simão continuou a caminhar em silêncio durante uns momentos. Finalmente disse:
- Nunca será o nosso chefe na luta contra os Romanos, Daniel. Já perdi essa esperança.
As palavras calmas de Simão tiveram a força de um golpe violento. Daniel conseguira a resposta que tanto desejara. Joel tentara dizer-lha. Thace também. E o próprio Jesus. Agora Simão confirmava a dúvida que durante todos esses meses estivera entre si e o homem de Nazaré.
- Então porque continuas a segui-Lo? - Nesta censura ia toda a tristeza que sentia.
- Para onde podia eu ir? - respondeu Simão.
- Que te ofereceu Jesus que possa ser superior à liberdade de Israel?
- O Reino.
A cólera de Daniel começara a explodir.
- E quando julgas tu que terás o Reino?
- Não podes compreender isto - disse Simão. - De certo modo, já o tenho.
- Isso é bonito! - Daniel estava quase a chorar - Tens o Reino! Como podes fechar os olhos quando tudo à tua volta...
- Não fechei os olhos - respondeu Simão. - Bem sei que nada se modificou em Israel. Mas sei que isso acontecerá, mesmo que não viva o tempo suficiente para ver com os meus próprios olhos. Ouve-me, Daniel - continuou. - Viste como cuidava de todos, mesmo daqueles tão miseráveis que mais ninguém, a não ser Ele, se preocupa com o que lhes possa acontecer. Quando vi isto, senti que o Deus de Israel não nos esquecera. Se não fosse assim, por que motivo enviara Ele Jesus aos pobres, em vez de O enviar aos ricos e letrados? Tal como um pastor, diz Ele, que não deixará perder-se nenhuma das suas ovelhas. Sou um homem pobre e ignorante, mas sei que com um Deus assim estou salvo.
Daniel ficou a olhar para o amigo. Simão perdera o juízo.
- Salvo? Jesus pôs-vos a todos em perigo!
A voz de Simão era calma e segura.
- Jesus ensinou-nos que não devemos recear o que os homens nos possam fazer.
- Imagina que vos acorrentam a todos e vos metem na prisão?
- Jesus diz que as únicas correntes que nos devem importar são o medo e o ódio, porque acorrentam a nossa alma. Se não odiarmos nem temermos ninguém, somos livres.
- Livres? Mesmo carregados de grilhetas? Simão, sabes o que te podem fazer! E não tens medo?
- Não disse que não tenho medo - respondeu Simão. - Mas Jesus não tem. Ele é a esperança de Israel.
- O que fez para o provar? Como sabes que não está a arriscar a tua vida para nada!?
- Nunca o podemos saber - respondeu Simão lentamente. - Deus esconde o futuro dos olhos dos homens. Temos que escolher, sem saber. Escolhi Jesus.
- Esta noite teve uma oportunidade. Pensas que voltará a tê-la?
- Não sei o que fará. Para mim basta-me o que prometeu.
- Mas para mim não chega! - gritou Daniel. É fácil prometer. As promessas não passam de palavras. Quero um chefe que realize as suas promessas!
Afastou-se de Simão e perdeu-se na escuridão. Não podia ver o caminho, mas sabia que desde aquele momento estava só. Não tinha a seu lado um único amigo que o ajudasse a lutar. Não tinha um chefe a quem pudesse seguir. Não tinha nada, além do ódio e do juramento que fizera.
Capítulo 24
A Primavera chegou à Galileia. A chuva deu lugar a um céu azul, claro e brilhante. As encostas cobriram-se de um verde vivo até às margens de um mar sereno. Nas bermas dos caminhos as flores abriam, espreitando das mais pequenas frestas abertas nas rochas, alegrando as paredes cinzentas e os telhados desmantelados e matizando de cores vivas as entradas das casas.
Mas Daniel não dava por nada. Dentro da loja trabalhava com uma expressão carregada e triste. Em casa, Lia ficava sentada de mãos cruzadas no regaço. O tear cobria-se de pó. "Eram ambos semelhantes", pensava Daniel, voltando as costas à estrada coberta de flores. Não eram capazes de voltar a ter esperança.
Apesar de tudo, sempre era mais forte que Lia. Enquanto para ela tudo parecia perdido, Daniel continuava com um propósito. O seu ódio era mais forte do que nunca, tão forte que se não encontrasse onde utilizá-lo acabaria destruído por ele. Era como um homem preso numa armadilha, violento e sem ninguém que o socorresse.
Se fosse livre podia ir à procura de um bando de Zelotas. Havia Zelotas por toda a Galileia. Os homens falavam deles furtivamente. Nalgumas aldeias, em certas cavernas distantes, reuniam-se e preparavam-se e acolhê-lo-iam bem. Mas Daniel estava acorrentado à forja e ao círculo vicioso do trabalho que precisava de continuar a fazer, para manter viva uma rapariga para quem a própria vida era indiferente. E, mesmo que encontrasse um grupo de Zelotas, como podia reconhecer o homem em quem devia confiar? Como ter a certeza de que não voltava a ser enganado?
"Que adestra as minhas mãos para a peleja, e os meus braços para retesar o arco de bronze..."
De que lhe serviam as mãos fortes? Deus não lhe queria dar o arco de bronze. No primeiro mês da Primavera, Lia perdeu a única coisa que ainda tinha alguma importância para si. A pequena cabrinha abandonou-a. O cabritinho nascido durante o mês de Adar era muito fraco e foi vendido pelo preço mais barato, mas quando o levaram, a cabrinha começou a definhar.
O leite que dava, mal chegava para encher uma chávena. Certa manhã o animalzinho não se conseguiu levantar. Daniel observou-a apreensivo, sabendo que as cabras estavam sujeitas a acessos de febre. Levou-a para casa e tentou fazê-la comer. A cabrinha deitou-se ao lado de Lia, tão indiferente como a dona. Dois dias depois estava morta.
A princípio julgou que Lia se recusava a comer com o desgosto, mas depressa verificou que a irmã estava cheia de febre. Ficava deitada na esteira, os olhos brilhantes e vazios, as faces vermelhas, os lábios entreabertos. De vez em quando gritava aterrorizada. Parecia vaguear por regiões distantes e ver pessoas horríveis que ele nem sequer conseguia imaginar como seriam.
Viu que a irmã estava muito doente. O médico, que primeiro se tinha recusado a ir, quando a viu, abanou a cabeça. Já havia muito pouco sangue naquele corpinho frágil, disse, enquanto punha de lado a garrafa com as sanguessugas. Deixou um cozimento de arruda* e partiu com um encolher de ombros resignado e um olhar de piedade.
Nota: Arruda é uma planta medicinal à qual se atribuem, entre outras, propriedades anti-hemorrágicas. É uma planta vivaz e de baixo porte (N. T.).
- Não posso trabalhar hoje. A minha irmã está com febre - disse Daniel a um freguês e fechou a loja, assim que o homem se afastou. A notícia deve ter corrido depressa por toda a aldeia porque não apareceu mais nenhum freguês.
Sentou-se, acabrunhado, ao lado da esteira de Lia. Todos os que haviam entrado na sua vida tinham-no abandonado um a um. Roch, Sansão, Joel, Thace, Simão, Jesus. Agora, era a vez de Lia. A morte de Lia dava-lhe a liberdade. Mas a liberdade surgia na sua frente como um vazio terrífico e, para encher este vazio, não tinha senão ódio. "Também Lia tem que ser vingada", pensou.
No silêncio do quarto recordou as palavras que ouvira. "Podes pagar o amor com o ódio?" Lia amara-o com o seu coraçãozinho simples e confiante, da mesma maneira que Sansão o amara. Mas tudo quanto tinha para dar em troca era ódio. Era melhor que nada.
Lia, como Sansão, morria pela espada que erguera contra Roma. E, tal como Sansão não deixava ninguém, a não ser ele, que se importasse com o seu desaparecimento. Recordou-se depois que isso não era exacto. Thace importar-se-ia. Durante o dia teve a sensação de que Thace sabia do que se estava a passar. Agora já não podia fazer nada por Lia, mas Daniel sabia que Thace teria pena.
Como podia fazer chegar-lhe a notícia? Lembrou-se da mensagem que Simão lhe enviara quase um ano antes. Procurou na loja e encontrou um pedaço de barra e, com a unha escreveu a mesma mensagem que Simão escrevera: "Lia está a morrer. "
Joktan, sentado à porta, juntava, distraído, um monte de pregos. Não vira senão uma vez a rapariga que estava a morrer, mas o desgosto de Daniel entristecia-o. Sentiu-se feliz quando o amigo o mandou fazer um recado. Deu-lhe a direcção da casa de Hezron em Cafarnaum e disse-lhe que entregasse a mensagem ao porteiro.
Joktan não regressou. Daniel foi por três vezes à fonte buscar água pois estava continuamente a refrescar as mãos e o rosto de Lia. Ia e vinha de cabeça baixa sem olhar e sem falar com ninguém. Da segunda vez quando regressava lentamente viu Marcos, o soldado romano, à porta de casa. Parou sentindo as pernas fraquejarem. Uma onda de sangue escureceu-lhe o olhar. Tremia tanto que mal podia segurar o jarro de água. Ali, naquela figura odiada, estava concentrada, toda a miséria da sua vida. Desejava lançar-se com toda a força sobre o rapaz romano, apertar-lhe o pescoço entre as mãos, senti-lo morrer pouco a pouco. Mas não podia matar o romano enquanto Lia estava, dentro daquela casa, a morrer. Tinha que esperar.
Marcos avançou e colocou-se na sua frente barrando-lhe a passagem e Daniel viu-se obrigado a parar. Não podia proibir o soldado de lhe falar, mas voltou a cara para o lado. Quando, contra sua vontade, olhou para ele que continuava em silêncio, viu que o rosto do legionário denunciava o esforço que fazia para conseguir falar.
- Ouvi dizer que a tua irmã está doente - balbuciou. - Como está hoje?
Daniel cuspiu. Avançou com ar tão decidido que Marcos, involuntariamente, afastou-se e deixou-o entrar em casa. Já na soleira Daniel voltou-se.
- Que te importa que mais um judeu esteja a morrer? - resmungou.
Ao terceiro dia da ausência de Joktan, regressava Daniel da fonte, muito devagar, com as pernas a tremer de fraqueza e angustiado com a ideia de que Lia pudesse ter morrido enquanto estivera fora. Nem reparou no soldado que estava no meio da estrada, como estivera já nos dois dias anteriores. Todas as horas livres que tinha passava-as ali, ao sol, com os olhos fitos na casa de Daniel. Mas desta vez o romano atravessou a estrada e esperou, como fizera da primeira vez, à entrada de casa.
- Preciso de te falar - disse o rapaz quando Daniel parou.
Daniel não levantou sequer o olhar.
- Odeias-me - disse o rapaz.- Compreendo o teu ódio. Sou germano. O meu povo foi conquistado pelos Romanos.
- E tu serves Roma - disse Daniel com raiva.
O soldado encolheu os ombros.
- Todos os da minha tribo são guerreiros. Quando acabar o meu tempo de serviço serei um cidadão romano.
- Era melhor morreres primeiro!
O rapaz corou.
- Já te disse que compreendo o teu ódio - acrescentou. - Mas peço-te que me oiças.
Daniel ficou calado, à espera.
- A minha coorte vai ser transferida. Amanhã parto para Corinto. Peço a Deus que nunca mais ponha os pés na tua terra.
Daniel sentiu-se desamparado. Até a vingança lhe era negada! Agora nunca mais teria a oportunidade de matar aquele homem.
- A tua irmã foi a única coisa boa que encontrei nesta terra maldita. Nunca mais a verei. Mesmo que não fosse judia nunca poderia casar com ela porque os legionários estão proibidos de casar. Quero vê-la antes de me ir embora. Só por um momento. É só o que peço.
Daniel, admirado, olhou directamente para o rapaz que estava na sua frente. Nunca imaginara que um romano se pudesse curvar para pedir fosse o que fosse a um judeu! Mas a humildade do pedido enlouqueceu-o ainda mais. Toda a sua raiva explodiu.
- Mesmo que pudesses salvar a minha irmã, não consentiria que profanasses a minha casa - disse-lhe. - Preferia deixá-la morrer. Compreende bem isto. Se tentares atravessar aquela porta, mato-te.
Marcos era um soldado apesar de tudo. Ficou branco, os olhos brilhando como aço, e a mão procurou a arma que trazia ao lado. Os dois rapazes enfrentaram-se. Depois o romano afastou-se, muito direito.
"Se Lia estiver morta - pensou Daniel- corro atrás dele e mato-o."
Mas Lia, apesar de muito fraca, continuava viva. Não deu pelo seu regresso. Estava deitada em silêncio, sem força para gritar contra os demónios que a possuíam. Estava definitivamente presa por eles.
De tarde, Daniel deve ter adormecido por instantes. Dormir e acordar era tudo a mesma coisa, a mesma tristeza sem fim. Mas um som fê-lo erguer a cabeça e viu a porta de casa aberta. No meio, iluminado pela luz do sol, estava Jesus com a sua túnica branca. Assombrado, levantou-se. Jesus entrou e tocou o mezuzah ao passar. Atrás d'Ele, vinha Thace. Jesus não disse nada. Dirigiu-se calmamente para a esteira de Lia e olhou-a.
Thace foi para junto de Daniel.
- Estávamos fora - murmurou - com Joel, em Jerusalém. Joktan só nos conseguiu encontrar hoje de manhã.
Daniel mal conseguia ouvi-la. Não via senão aquela figura luminosa. Jesus viera! Nem podia acreditar. Jesus viera a sua casa! Desejava gritar, ajoelhar-se, mas tinha medo. Qualquer coisa em Jesus o obrigava a ficar quieto e em silêncio. O Mestre sentou-se ao lado de Lia e fez sinal a Thace e a Daniel para que se sentassem também, do outro lado do quarto. Depois inclinou a cabeça, cobriu a face com a mão e ficou quieto como se estivesse a descansar.
"Se Lhe pudesse falar! - pensava Daniel- Se Lhe pudesse dizer o que fiz à minha irmã!..."
Se bem que quase nem respirasse, e se mantivesse em silêncio, Jesus ergueu a cabeça e os seus olhos encontraram os de Daniel. Não era preciso falar. Jesus sabia. Compreendia tudo o que se passara com Lia. Sabia que Daniel O abandonara. Os seus olhos, perscrutadores e cheios de piedade, penetraram no íntimo do rapaz e viram a fraqueza e o ódio, as esperanças desfeitas e a solidão. E Jesus sorriu.
Incapaz de suportar aquele sorriso, Daniel baixou a cabeça. De repente, com uma ânsia que ultrapassava tudo quanto sentira até então, desejou deixar de lutar contra este Homem. Compreendeu nesse momento que daria tudo quanto tinha para seguir Jesus.
Até o juramento que fizera? Tentou agarrar-se mais uma vez às palavras de David que sempre lhe haviam dado ânimo e força "que adestra as minhas mãos para a peleja".
Mas Jesus dissera que a vitória fora prometida por Deus. Chamava os homens e dizia-lhes que se preparassem de espírito e coração para a vitória.
Seria possível que o amor pudesse arquear o arco de bronze?
E ali ficou sentado, a tremer, divisando um novo caminho que nunca vira nem compreendera antes. "Nunca podemos ter a certeza - dissera Simão. - Temos que escolher, sem saber."
Conhecer Jesus bastava. E com este pensamento deixou de sentir o terrível peso que o oprimira. Em seu lugar, sentiu força e segurança, uma paz que nunca imaginara antes envolveu-o e acalmou-lhe o espírito e o coração.
Depois de um longo momento sentiu a mão de Thace pousada na sua. Levantou a cabeça e viu que os olhos de Thace estavam cheios de lágrimas.
- Olha - murmurava.
Esquecera Lia! Agora, ao vê-la tão calma, pensou que tinha morrido. Jesus erguera-se e estava de pé, olhando-a ainda. As pálpebras de Lia estremeceram e viu que a irmã abria lentamente os olhos. Os olhos azuis estavam límpidos, como se acabasse de acordar de um sono profundo. Olhou para a face do Mestre e todo o seu rosto se animou de uma admiração intensa e maravilhosa.
- Jesus? - sussurrou.
E no rosto do Mestre surgiu o antigo sorriso que vira tantas vezes, quando olhava para as crianças que O rodeavam.
- Está tudo bem? - murmurou.
- Sim - respondeu Jesus. - Não tenhas medo.
Daniel, soluçando, ajoelhou-se, escondeu o rosto e deixou correr livremente as lágrimas como nunca fizera desde a infância, nem sequer na noite em que o pai morrera. Julgou sentir que alguém lhe pousava a mão no ombro. Quando levantou a cabeça Jesus tinha saído já. Thace com o rosto coberto de lágrimas olhava-o com os olhos brilhando como estrelas.
- Daniel - disse Lia muito suavemente. Sem ousar falar, estendeu a mão e apertou na sua a mão da irmã.
- Sei como ela se sentiu - murmurou - a menina, a filha de Jairo, o que tu me contaste.
- Também sei - disse Daniel humildemente. Ouviu a respiração de Thace e voltou-se. Olhou-a demoradamente. Sabia que não era merecedor da oferta que lia no olhar da rapariga, mas sabia também que estava finalmente livre para lhe oferecer, por sua vez, tudo o que tinha para lhe dar. E naquele breve olhar fizeram um novo juramento.
- Como tudo está claro - murmurou Lia mesmo depois de Jesus se ter ido embora.
Só então Daniel compreendeu que Jesus partira e correu para a porta. Podia vê-Lo ainda no fim da estrada, já meio escondido pela multidão que sempre O rodeava para onde quer que fosse.
- Preciso de ir! - gritou - Antes de mais nada, preciso de Lhe agradecer.
Correu para a porta e parou. No meio da estrada, estava o soldado. Daniel correu, não atrás de Jesus, mas em direcção ao rapaz. Teve que tentar por duas vezes antes que lhe fosse possível falar.
- A minha irmã está melhor - disse em voz rouca. - Já não tem febre.
Um som gutural escapou-se da garganta do soldado. Daniel olhou para a estrada. Quem podia acreditar que um romano...?
- Parece-me que gostaria de se despedir de ti - disse.
O soldado ficou à espera, sem compreender. Daniel olhou de novo para a estrada e viu o lampejo branco da túnica de Jesus. Depois, endireitou os ombros.
- Queres vir a nossa casa?
Elizabeth George Speare
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