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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ARQUIVO DE CHANCELOR / Robert Ludlum
O ARQUIVO DE CHANCELOR / Robert Ludlum

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Era tudo verdade! Jamais fora ficção, mas sim realidade! J. Edgar Hooverfora assassinado!
Ao perceber a terrível verdade, o escritor Peter Chancellor, autor de bestsellers, compreende com aterradora lucidez o inferno em que viveu ao longo dos últimos meses. Tudo começara numa manhã de sol, numa praia solitária. Um estranho de cabelos louros o abordara e contara coisas incríveis. Sobre explosivos arquivos particulares, sobre farsas e chantagem nos mais altos escalões do governo... e de uma morte que não era o que aparentava ser.
A partir desse dia, a vida de Chancellor se transforma num pesadelo. Uma pesquisa superficial leva a fatos estarrecedores, compelindo-o a começar a escrever sua novela. Vê-se obrigado a pôr no papel o que está vivendo. Nomes levam a outros nomes, homens a outros homens... e mulheres... nos escalões mais altos de todos os setores do governo, nos meios de comunicação, na comunidade do serviço secreto, inclusive o próprio FBI. Chancellor é seguido, caçado por ruas escuras durante a noite. É o alvo de tiros, assiste homens morrerem... homens que foram torturados, levados à beira da loucura. Como está lhe acontecendo. Pois Péter Chancellor está vivendo os acontecimentos criados por sua própria imaginação.
Ouve um nome, murmurado em pânico, no momento da morte. É "Inver Brass". Um governo clandestino, tão poderoso que toma decisões pela nação, sem que esta sequer desconfie de sua existência. E de repente Chancellor descobre o que lhe fizeram. Desde o início, fora programado pelos homens de Inver Brass. Fora a isca, para atrair aqueles que podiam fazer o que Inver Brass não era capaz de fazer.
E num clímax surpreendente, ficção e realidade se fundem e a verdade final é revelada.
Como sempre acontece numa novela de Robert Ludlum, o ritmo é vertiginoso, a ação intensa, a trama povoada de surpresas. Mas, acima de tudo, Robert Ludlum criou em Peter Chancellor um herói humano e complexo, escreveu um livro sobre poder e medo... que talvez não seja absolutamente ficção (fim da contracapa).

 

 


 

 


Prólogo
3 de junho de 1968.
O homem de cabelos pretos olhava fixamente para a parede em frente. Sua cadeira, assim como o resto dos móveis, era agradável à vista mas muito desconfortável. O estilo americano antigo, com tema espartano, dava a ideia de que as pessoas que aguardavam ali uma audiência com o ocupante da outra sala deveriam refletir sobre a oportunidade excepcional que lhes seria concedida num ambiente inóspito.
Beirando os 30 anos, o homem tinha o rosto anguloso, as feições bem acentuadas, como que esculpidas por um artífice mais consciente do detalhe do que do todo. Era um rosto em permanente conflito consigo mesmo, um conflito sereno, apesar de incerto. Os olhos eram atraentes, fundos e de um azul muito claro, francos, inquisitivos. Naquele momento, pareciam os olhos de um animal de olhos azuis, prontos a se virarem em qualquer direção, firmes, mas apreensivos.
Seu nome era Peter Chancellor e a expressão de seu rosto era tão rígida quanto a posição em que estava na cadeira. Os olhos estavam furiosos.
Havia uma outra pessoa na ante-sala, uma secretária de meiaidade, cujos lábios finos e descoloridos estavam sempre contraídos, denotando tensão. Os cabelos grisalhos esticados e presos num coque davam-lhe a aparência de um elmo desbotado. Era a Guarda Pretoriana, o cão de guarda que defendia o santuário do homem por trás da porta de carvalho que ficava além de sua escrivaninha.
Chancellor deu uma olhada no relógio; a secretária fitou-o com uma expressão de desaprovação. Qualquer indicação de impaciência era deslocada naquele escritório; a audiência em si era tudo o que importava.
Já passavam 15 minutos das seis horas e todos os demais gabinetes estavam fechados. O pequeno campus da Universidade de Park Forest, no Meio-Oeste, estava se preparando
para outra noite de final de primavera. Havia um clima contido de festa acentuado pela proximidade da formatura.
Park Forest conseguira escapar da onda de inquietação que varrera todos os campus universitários. Num oceano de turbulência, era um banco de areia impassível. Isolada, rica, em paz consigo mesma e inabalável em sua essência. E sem qualquer brilho.
Fora essa ausência de preocupações externas, segundo se dizia, que trouxera a Park Forest o homem que ora encontrava-se atrás da porta de carvalho. Ele procurava a inacessibilidade, se não mesmo o anonimato, o qual, evidentemente, não podia ser-lhe concedido. Munro St. Claire fora Subsecretário de Estado no governo de Roosevelt e Truman, embaixador extraordinário nas gestões de Eisenhower, Kennedy e Johnson. Voara por todo o globo como um verdadeiro ministro sem pasta, levando as preocupações de seu Presidente e a sua própria habilidade e diplomacia às áreas mais conturbadas do mundo. O fato de ter decidido passar um semestre em Park Forest, como professor de política, enquanto organizava os dados que seriam a base de suas memórias, fora uma surpresa para a direção da universidade, muito rica, mas de importância menor. Mas eles haviam garantido a St. Claire o isolamento que ele jamais teria encontrado em Cambridge, New Haven ou Berkeley.
Ou pelo menos era isso o que se contava.
Peter Chancellor pensava na história de St. Claire, para não ter que pensar em sua própria história. Mas não o conseguia inteiramente. No momento, os pontos mais importantes de sua existência eram os mais desanimadores que se podia imaginar. Eram 24 meses perdidos, jogados fora no esquecimento académico. Dois anos de sua vida!
Sua tese de doutorado fora rejeitada por oito votos contra um pelo conselho de catedráticos de Park Forest. O único voto dissidente fora evidentemente o de seu conselheiro académico; assim, não tivera qualquer influência sobre os outros. Chancellor fora acusado de leviandade, de desrespeito arbitrário aos fatos históricos, de pesquisa desleixada e até mesmo de irresponsabilidade, ao apresentar ficção ao invés de dados e informações passíveis de serem comprovados. Não era absolutamente uma situação ambígua. Chancellor fracassara; e não havia qualquer possibilidade de apelação.
Da mais intensa exultação, ele mergulhara na mais profunda depressão. Seis semanas atrás, o Foreign Service Journal, da Universidade de Georgetown, concordara em publicar 14 trechos da tese. Um total aproximado de 30 páginas. Fora seu conselheiro quem conseguira isso, enviando uma cópia da tese para amigos em Georgetown, que consideraram o trabalho ao mesmo tempo
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esclarecedor e assustador. O Journal tinha o mesmo prestígio que o Foreign Affairs e era geralmente lido pelas pessoas mais influentes do país. Alguma coisa tinha que resultar da publicação. Alguém certamente iria oferecer-lhe algo.
Mas os editores do Journal haviam imposto uma condição: devido à natureza da tese, era indispensável a autorização dos catedráticos para que fizessem a publicação. Sem isso, não poderiam publicar os trechos escolhidos.
Agora, era inteiramente impossível publicar o que quer que fosse.
O título da tese era "As Origens de um Conflito Global". O conflito era a II Guerra Mundial, as origens eram uma interpretação imaginativa dos homens e das forças que haviam colidido durante os catastróficos anos de 1926 a 1939. De nada adiantara explicar à comissão de catedráticos da universidade que a tese era uma análise interpretativa e não um documento legal. Chancellor cometera um pecado fundamental: atribuíra diálogos inventados a personalidades históricas. Tamanho absurdo era inaceitável para as merrtalidades académicas de Park Forest.
Mas Chancellor sabia que havia outra falha mais séria aos olhos da comissão. Escrevera sua tese com ultraje e emoção, coisas que eram imperdoáveis numa dissertação académica.
A premissa de que os gigantes das finanças haviam ficado de braços cruzados passivamente, enquanto um bando de psicopatas moldava à sua vontade a Alemanha pós-Weimar, era simplesmente ridícula. Tão ridícula quanto obviamente falsa. As corporações multinacionais não haviam perdido tempo em engordar rapidamente o bando de lobos nazistas; quanto mais forte se tornassem os lobos, mais vorazes seriam os apetites do mercado.
Os objetivos e métodos do bando de lobos nazistas haviam sido convenientemente ignorados, no interesse de expandir a economia. Ignorados uma ova! Haviam sido tolerados, até mesmo aceitos, à medida que os gráficos de lucros iam subindo. A Alemanha nazista, apesar de profundamente doente, recebera um diagnóstico de boa saúde económica dos grandes financistas. E entre os colossos das finanças internacionais que haviam engordado a águia da Wehrmacht havia diversos dos mais famosos e honrados industriais da América.
Era justamente esse o problema. Chancellor não podia sair em campo aberto e identificar as corporações que se haviam acumpliciado com os nazistas porque suas provas não eram conclusivas. As pessoas que lhe haviam fornecido informações e encaminhado a outras fontes não permitiriam que seus nomes fossem citados. De um modo geral, eram homens idosos, cansados e apavorados, vivendo de pensões do governo ou das grandes corporações. O que quer que tivesse acontecido no passado pertencia agora ao passado; não queriam se arriscar a perder as benesses de seus benfeitores. Se Chancellor por acaso divulgasse as conversas particulares, eles certamente iriam negá-las, simplesmente.
Ou melhor, não era tão simples assim. Na verdade, tudo aquilo acontecera. A história não fora devidamente contada e Peter Chancellor desejava intensamente revelá-la ao mundo. Também não queria destruir os velhos que haviam simplesmente executado políticas que não podiam compreender, concebidas por outros, nos altos escalões das grandes corporações, que raramente se tornavam conhecidos. Por outro lado, era um erro ignorar a história que não fora escrita.
Assim, Chancellor seguira a única opção que lhe restava: mudara os nomes das grandes corporações, mas de tal forma a não deixar a menor dúvida a respeito de suas identidades. Quem quer que lesse os jornais saberia quais eram.
O que fora um erro imperdoável. Levantara questões difíceis, que poucos desejavam reconhecer como válidas. A Universidade de Park Forest beneficiava-se quando as corporações e fundações decidiam a concessão de verbas; não era um campus perigoso. Por que essa posição seria ameaçada, no mais remoto que fosse, pelo trabalho de um simples candidato ao doutorado?
Oh, Deus! Dois anos! Havia alternativas, é claro. Poderia pedir transferência para outra universidade e tornar a apresentar a tese. Mas o que aconteceria então? Valeria o esforço? Não significava enfrentar a rejeição, de uma forma ou outra? Até mesmo a que estava nas sombras de suas próprias dúvidas? Peter era sincero consigo mesmo. Simplesmente encontrara um período da história recente que o deixara curioso por causa dos paralelos com o presente. Nada mudara: as mentiras de 40 anos atrás ainda perduravam. Ele não podia simplesmente ignorar tudo; e não iria ignorar de jeito nenhum. Algum dia, de alguma maneira, ainda iria revelar tudo.
No entanto, o ultraje não era um substituto para uma pesquisa de qualidade. A preocupação com as fontes vivas dificilmente podia ser considerada como uma alternativa para a pesquisa objetiva. Embora com relutância, Peter não podia deixar de reconhecer a validade da posição assumida pela comissão. Não era nenhum tolo académico; deixava-se dominar em parte pelos fatos, em parte pela fantasia.
Dois anos. Desperdiçados!
O telefone da secretária zumbiu, ao invés de tocar normalmente. O zumbido fez com que Chancellor se lembrasse de que haviam sido instaladas comunicações especiais, a fim de que Washington pudesse entrar em contato com Munro St. Claire
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a qualquer hora do dia ou da noite. Essas instalações, segundo se dizia, eram a única concessão feita por St. Claire em seu isolamento auto-imposto.
- Pois não, Sr. Embaixador - disse a secretária. - vou mandá-lo entrar ... Não, não há problema. Se precisar de mim, posso ficar.
Aparentemente, ela não seria necessária e Peter teve a impressão de que isso não a deixou muito satisfeita. A Guarda Pretoriana estava sendo dispensada.
- Está sendo esperado na recepção do reitor às seis e meia
- acrescentou ela.
Houve um breve momento de silêncio e depois ela respondeu:
- Está certo. Telefonarei para apresentar suas desculpas. Boa-noite, Sr. St. Claire.
A secretária desligou o telefone e olhou para Chancellor, com uma expressão inquisitiva, dizendo:
- Pode entrar agora.
- Obrigado.
Peter levantou-se daquela cadeira incómoda e respondeu à pergunta que a secretária só formulara com os olhos:
- Também não sei por que estou aqui.
Na sala revestida de carvalho, de janelas compridas, Munro St. Claire levantou-se de trás da mesa antiga que lhe servia de escrivaninha. Ele era um velho, pensou
Chancellor, ao se aproximar da mesa com aiaão direita estendida. Muito mais velho do que aparentava a distância, caminhando pelo campus com passos firmes. Ali, em
seu gabinete, o corpo alto e esguio e a cabeça aquilina de cabelos louros, desbotados, pareciam estar fazendo um esforço enorme para se manterem eretos. Contudo,
St. Claire permanecia firme, como se se recusasse a ceder às enfermidades. Seus olhos eram grandes, de uma cor não discernível, firmes, muito intensos, mas não sem
um brilho de humor. Trazia os lábios finos entreabertos num sorriso, sob o bigode branco bem aparado.
- Entre, entre, Sr. Chancellor. É um prazer vê-lo novamente.
- Não creio que já tenhamos nos visto antes.
- O que foi ótimo para você! Não deve mesmo me deixar escapar impune com uma dessas!
St. Claire riu e indicou uma cadeira na frente da mesa.
- Não tencionava contradizê-lo, apenas...
Chancellor parou de falar de repente, compreendendo que qualquer coisa que dissesse pareceria tola. Sentou-se e St. Claire disse:
- Por que não? Contradizer-me é algo sem a menor importância em comparação com o que fez a uma legião de mentes académicas contemporâneas.
- Como assim, senhor?
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- Estou falando da sua dissertação. Já a li.
- Sinto-me lisonjeado.
- Fiquei bastante impressionado.
- Obrigado, senhor. Houve quem não ficasse.
- O que é perfeitamente compreensível. Já soube que sua tese foi rejeitada pela comissão de catedráticos.
- Exatamente.
- O que é uma pena. Deve ter dedicado muito esforço e trabalho a ela. E apresentou algumas proposições extremamente originais.
Quem é você, Peter Chancellor? Por acaso tem alguma ideia do que fez? Homens esquecidos foram arrancar recordações do fundo do poço e estão sussurrando amedrontados.
Georgetown fervilha de rumores. Um documento explosivo foi remetido de uma obscura universidade do Meio-Oeste. Um insignificante candidato ao doutorado recordou-nos
abruptamente de coisas que ninguém quer lembrar. Sr. Chancelar, Inver Brass não pode permitir que continue a insistir.
Peter percebeu que os olhos do velho eram encorajadores e ao mesmo tempo neutros. Nada teria a perder se fosse direto ao assunto.
- Está querendo insinuar que poderia... ?
- Oh, não! - interrompeu-o St. Claire bruscamente, levantando a mão direita. - Nada disso! Eu não me atreveria a contestar a decisão. Não é minha função e, além disso, desconfio que a rejeição baseou-se em certos critérios válidos. Eu não poderia interferir. Mas gostaria de lhe fazer algumas perguntas, talvez dar-lhe uns conselhos.
Chancellor inclinou-se para a frente.
- Que perguntas?
St. Claire recostou-se na cadeira.
- Em primeiro lugar, a respeito de você mesmo. E gostaria de ressaltar logo que estou apenas curioso. Já conversei cora seu conselheiro, mas prefiro obter as informações diretamente. Seu pai é jornalista?
Chancellor sorriu.
- Ele diria que era. Aposenta-se em janeiro próximo.
- Sua mãe é escritora também, não é mesmo?
- De certa forma. Escreve artigos para revistas, colunas femininas. Escreveu também alguns contos, há alguns anos atrás.
- Portanto, a palavra escrita não constitui um terror para você.
- Como assim?
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- O filho de um mecânico encara um carburador com defeito com menos nervosismo que o filho de um professor de bale. Em termos gerais, é claro.
- Em termos gerais, acho que posso concordar.
- Exatamente.
St. Claire sacudiu a cabeça.
- Está querendo insinuar que minha tese pode ser comparada a um carburador com defeito?
St. Claire soltou uma risada.
- Não vamos pôr os carros adiante dos bois. Você se formou em jornalismo, obviamente querendo se tornar um jornalista.
- Ou pelo menos trabalhar em algum ramo de comunicações. Não tinha certeza qual deles.
- No entanto, persuadiu esta universidade a aceitá-lo para um doutorado em história. O que significa que mudou de ideia.
- A rigor, não foi propriamente o que aconteceu. Nunca cheguei a tomar uma decisão definitiva.
Peter sorriu novamente, agora um tanto embaraçado, antes de acrescentar:
- Meus pais dizem que sou um estudante profissional. Não que eles se importem muito com isso, diga-se de passagem. Fiz o curso de jornalismo com uma bolsa de estudos. E como servi no Vietnã, o governo está pagando minha estada aqui. E eu complemento dando algumas aulas. Para ser franco, estou com quase 30 anos e ainda não sei exatamente o que quero ser. Mas creio que isso não é tão excepcional hoje "cfiT" dia.
- O seu trabalho parece indicar uma preferência pela vida académica.
- Se assim era, creio que já não é mais.
St. Claire fitou-o em silêncio por um momento.
- Fale-me a respeito da tese que apresentou. Fez algumas insinuações desconcertantes, tirou conclusões um tanto assustadoras. Essencialmente, acusa muitos líderes do mundo livre - e também suas instituições - de fecharem os olhos à ameaça de Hitler, há 40 anos. Pior do que isso, acusa-os de, direta e indiretamente, terem financiado o Terceiro Reich.
- Mas não por motivos ideológicos e sim devido a proveitos económicos.
- Cila e Caríbdis?
- Mais ou menos isso. Atualmente, a coisa está se repetindo. ..
- Apesar da conclusão a que chegou a comissão de catedráticos, você deve ter feito bastante pesquisa - interrompeu-o novamente St. Claire. - Até que ponto?
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O que o fez começar? É isso o que precisamos saber, porque temos certeza de que não desistirá. Foi orientado por homens à procura de vingança, depois de iodos esses
anos? Ou teria sido o acaso que acionou o seu ultraje? O que seria bem pior. Podemos controlar as fontes, podemos neutralizá-las, provar que são falsas. Mas não podemos controlar o acaso, os acidentes ao longo do caminho. Nem um ultraje nascido de um acidente. Mas o que não pode é seguir em frente, Sr. Chancellor. Temos que encontrar um meio de detê-lo.
Chancellor demorou um pouco para responder. A pergunta do idoso diplomata era inesperada.
- Pesquisa? Fiz muito mais do que a comissão imagina e muito menos do que se pode pressupor por determinadas conclusões. É a maneira mais honesta pela qual posso responder à pergunta.
- Tem razão. Mas não poderia ser mais específico? Há bem pouca documentação a respeito das fontes.
Subitamente, Peter sentiu-se apreensivo. O que começara como uma conversa estava se transformando num interrogatório.
- Por que isso é tão importante? Há bem pouca documentação porque as pessoas com quem conversei preferem que seja assim.
- Neste caso, deve atender aos desejos delas. Não precisa usar nomes.
St. Claire sorriu. Possuía um charme extraordinário.
Não precisamos de nomes. Os nomes podem ser facilmente descobertos, a partir do momento em que soubermos das áreas. Além do mais, é melhor mesmo não procurar nomes. Muito melhor. Os rumores poderiam recomeçar. Há uma maneira melhor de lidar com a situação.
- Está certo. Entrevistei pessoas que estiveram em atividade no período de 1923 a 1939. Estavam no governo, principalmente no Departamento de Estado, na indústria e no sistema financeiro. Também conversei com meia dúzia de antigas autoridades do Departamento de Guerra e do serviço secreto. E ninguém, Sr. St. Claire, absolutamente ninguém, me autorizou a usar seu nome.
- E foram eles que lhe forneceram todas as informações que usou em sua tese?
- Uma boa parte foi tirada do que eles não falaram. De frases soltas, comentários súbitos e inesperados, quase sempre sem qualquer explicação adicional, mas invariavelmente se enquadrando no panorama geral. Já são agora homens bem idosos, todos ou quase todos - aposentados. Suas mentes vagueiam, assim como suas memórias. Formam um grupo extremamente triste, de homens...
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Chancellor deixou a frase no meio. Não sabia direito como continuar. Mas St. Claire sabia:
- De um modo geral, são pequenos executivos e burocratas amargurados, vivendo com pensões insuficientes. É uma situação que frequentemente gera o ressentimento e recordações distorcidas.
- Não creio que seja uma avaliação justa. Ó que descobri, tudo o que escrevi, é verdade. Ê por isso que qualquer pessoa que ler a tese saberá quais foram as companhias e como operaram.
St. Claire ignorou a declaração como se não a tivesse escutado.
- Mas como chegou a essas pessoas? O que o levou a elas? Como conseguiu marcar os encontros para entrevistá-las?
- Foi meu pai quem me iniciou, indicando algumas pessoas, que me encaminharam a outras. De certa forma, foi uma progressão natural; as pessoas sempre lembram de outras.
- Seu pai?
- No início dos anos 50, ele era correspondente em Washington para a Scripps-Howard...
St. Claire interrompeu-o novamente:
- Ah... Portanto, com a ajuda dele, você obteve uma relação inicial.
- Exatamente. Cerca de uma dúzia de homens que haviam atuado na Alemanha antes da guerra. Pelo governo ou não. E, como eu disse, essas pessoas me levaram a outras. É claro que também li tudo o que Trevor-Roper, Shirer e os apologistas alemães escreveram. Isso está tudo documentado.
- Seu pai sabia o que estava procurando?
- Para ele, era suficiente saber que eu estava trabalhando na tese de doutorado.
Chancellor sorriu, antes de acrescentar: ,-
- Meu pai teve que deixar a universidade para trabalhar ainda no segundo ano. O dinheiro não dava.
- Mas ele sabe o que você descobriu? Ou melhor, o que você julga ter descoberto.
- Não. Achei que era melhor concluir a tese primeiro, antes de mostrar a meus pais. Agora, nem sei se eles ainda vão querer lê-la. Vai ser um golpe e tanto lá em casa.
Peter fez outra pausa, sorrindo um tanto contrafeito.
- O estudante eterno e já velho termina não conseguindo nada...
- Pensei que tivesse dito que era um estudante profissional
- corrigiu o diplomata.
- E há alguma diferença?
- Acho que sim.
St. Claire inclinou-se para a frente e ficou em silêncio por um momento, os olhos grandes fixados em Peter.
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- Gostaria de tomar a liberdade de resumir a situação em termos imediatos, sob meu ponto de vista.
- À vontade!
- Basicamente, você dispõe dos materiais para uma análise teórica perfeitamente válida. As interpretações da história, desde as doutrinárias às revisionistas, são tópicos intermináveis de debates e análises. Concorda?
- Naturalmente.
- Como não podia deixar de acontecer. Afinal, não teria sequer escolhido o tema se não concordasse.
St. Claire fez uma pausa e ficou olhando pela janela, enquanto continuava a falar:
- Mas não acha que uma interpretação heterodoxa dos acontecimentos, especialmente de um período tão recente da história, baseada exclusivamente nos escritos de outros, dificilmente poderia justificar a heterodoxia? O que estou querendo dizer é que os historiadores certamente já teriam se concentrado nesse ângulo há muito tempo, se achassem que era válido. Mas como o material disponível não o permitia, você foi além das fontes normalmente aceitas e entrevistou velhos amargurados e um punhado de antigos especialistas em informações, chegando então a algumas conclusões específicas.
- Tem razão. Mas...
- Isso mesmo, mas - interrompeu St. Claire mais uma vez, voltando a olhar para Peter. - Pelo que você mesmo disse, as conclusões foram muitas vezes baseadas em comentários soltos, súbitos e inesperados, sem qualquer explicação adicional. E suas fontes se recusaram categoricamente a ser indicadas. Em suas próprias palavras, a pesquisa que efetuou não justificava muitas das conclusões a que chegou.
- Não é nada disso! Todas as conclusões estão plenamente justificadas!
- Jamais serão aceitas, pelo menos por qualquer autoridade reconhecida, académica ou judicial. E, na minha opinião, a rejeição é procedente.
- Se pensa assim, Sr. St. Claire, então está redondamente enganado. Porque eu estou certo. Os fatos existem, estão logo abaixo da superfície, mas ninguém quer falar a respeito. Até mesmo agora, 40 anos depois. E quer saber por quê? Porque tudo está acontecendo novamente! Um punhado de corporações está ganhando milhões no mundo inteiro, apoiando governos militares, chamando-os de nossos cmigos, nossa "primeira linha de defesa". Os dirigentes dessas grandes corporações não se preocupam com mais nada além de seus lucros... Está certo, talvez eu não consiga obter a documentação necessária para comprovar tudo. Mas
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também não vou jogar fora dois anos de trabalho. Não vou parar só porque uma comissão declarou que sou academicamente inaceitável. Sinto muito, mas isso é que é inaceitável!
E era justamente isso o que precisávamos descobrir. No final das contas, você iria se contentar em reduzir seus, prejuízos ao mínimo e esquecer tudo? Houve quem achasse que sim, mas eu discordei. Você sabia que estava certo, o que é uma tentação muito grande para os jovens. Temos agora que torná-lo impotente.
St. Claire fitou Peter nos olhos.
- Está na arena errada. Procurou a aceitação das pessoas erradas. Por que não vai procurá-la em outra parte? Onde os problemas referentes à veracidade e à documentação não são tão importantes.
- Não estou entendendo.
- Sua dissertação está cheia de ficção. Por que não se convence disso?
- Como assim?
- Escreva um romance. Ninguém se importa se um romance é acurado ou tem autenticidade histórica. Isso simplesmente não tem qualquer importância.
St. Claire tornou a inclinar-se para a frente, sem desviar os olhos de Peter.
- Escreva uma obra de ficção. Pode continuar a ser ignorado, mas pelo menos terá uma possibilidade de ser ouvido. É inútil prosseguir em seu curso atual. Vai desperdiçar mais outro ano, talvez dois ou três. E, no fundo, para quê? Por isso, escreva um romance. Descarregue nele todo o seu ultraje e depois vá cuidar de sua vida.
Peter ficou olhando para o velho diplomata, completamente aturdido. Não sabia muito bem o que pensar e por isso limitouse a repetir uma única palavra:
- Ficção?
- Exatamente. Acho que estamos de volta ao carburador defeituoso, embora a analogia possa ser terrível.
St. Claire voltou a recostar-se na cadeira.
- Já chegamos à conclusão de que as palavras não lhe incutem o menor medo. Durante quase toda a sua vida, acostumou-se a ver páginas em branco serem rapidamente povoadas de palavras. Pois agora trate de consertar o trabalho que fez com outras palavras, use um ângulo diferente, que elimine a necessidade da aprovação académica.
Peter suspirou lentamente. Por um longo momento, prendeu a respiração, completamente atordoado com a análise de St. Claire.
- Um romance? Isso nunca me passou pela cabeça...
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- Creio que sim, ainda que inconscientemente - interrompeu-o o diplomata. - Afinal, não hesitou em inventar ações e reações - quando isso lhe foi conveniente. E pode estar certo de que dispõe de todos os ingredientes para um romance fascinante. Talvez um pouco forçado, na minha opinião, mas não destituído de méritos para uma tarde de domingo passada numa rede. Conserte o carburador, pois é um motor diferente. Talvez de menor substância, mas nem por isso menos agradável. E alguém pode escutá-lo. O que jamais acontecerá nesta arena. E, para ser franco, com toda razão.
- Um romance... Essa não!
Munro St. Claire sorriu. Seus olhos ainda estavam estranhamente neutros.
O sol da tarde estava mergulhando no horizonte; sombras alongadas se estendiam pelos gramados. St. Claire estava parado diante da janela, olhando para fora. Havia uma certa arrogância na serenidade da cena; era inteiramente deslocada num mundo dominado pela turbulência.
Já podia deixar Park Forest. A missão fora concluída; o final cuidadosamente preparado não tinha sido muito bom, mas pelo menos era suficiente naquele momento.
Suficiente até os limites da fraude.
St. Claire olhou para o relógio. Uma hora já se passara desde cyie o aturdido Chancellor deixara o seu gabinete. O diplomata foi até a escrivaninha, sentou e pegou o telefone. Discou o código de área 202 e depois mais sete algarismos. Um momento depois, houve dois estalidos na linha e em seguida um zumbido. Para quem não estivesse a par dos códigos, o ruído teria indicado simplesmente um aparelho com defeito.
St. Claire discou mais cinco algarismos. Houve um único estalido e depois uma voz disse.
- Inver Brass. O gravador está ligado.
O sotaque era típico de Boston, mas o ritmo da voz era da Europa Central.
- Aqui é Bravo. Ligue-me com Génesis.
- Génesis está na Inglaterra. E já passa de meia-noite lá.
- Infelizmente, não posso me preocupar com isso. Pode completar a ligação? E com segurança?
- Se ele ainda estiver na Embaixada, será perfeitamente possível, Bravo. Mas se já estiver em Dorchester, não há qualquer garantia lá.
- Tente a Embaixada, por gentileza.
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A linha ficou muda, enquanto o telefonista em Inver Brass efetuava a ligação. Três minutos depois, outra voz soou. Estava nítida, sem quaisquer distorções, como se a pessoa estivesse do outro lado da rua e não a 6.500 quilómetros de distância. Era uma voz: um tanto ríspida, um pouco nervosa, mas não destituída de respeito. Mostrava também uma ponta de medo.
- Aqui é Génesis. Eu já estava de saída. O que aconteceu?
- Está tudo resolvido.
- Graças a Deus!
- A tese foi rejeitada. Deixei bem claro para a comissão, particularmente, que não passava, de absurdos radicais. Aleguei que eles iriam se transformar no alvo das risadas de toda a comunidade académica. E eles se mostraram sensíveis, como não podia deixar de acontecer. Afinal, são extremamente medíocres.
- Estou satisfeito.
Houve uma breve pausa em Londres.
- E qual foi a reação dele?
-A que eu já esperava. Está certo e sabe disso; portanto, sente-se frustrado. Não tinha a menor intenção de parar.
- E agora tem?
- Creio que sim. A ideia está firmemente plantada. Se for necessário, continuarei a agir, indiretamente, fazendo com que ele entre em contato com determinadas pessoas. Mas talvez não haja necessidade. Ele é bastante imaginativo; e o que é mais importante, sente-se genuinamente ultrajado.
- Está convencido de que é esse o melhor caminho?
- Claro que estou. A alternativa é ele prosseguir na pesquisa e levantar uma série de questões quase esquecidas. E eu não gostaria que isso acontecesse em Berkeley ou Cambridge.
- Tem razão. E talvez ninguém se interesse pelo que ele escrever, nem mesmo se disponha a publicar. Poderíamos, aliás, providenciar isso facilmente.
Os olhos de St. Claire se estreitaram por um momento.
- Meu conselho é não interferir. Iríamos deixá-lo ainda mais frustrado, impeli-lo a reagir. É melhor deixarmos que as coisas aconteçam naturalmente. Se ele decidir
converter o trabalho num romance, o melhor que podemos esperar é uma edição pequena ou um trabalho amadorístico. Ele terá dito tudo o que queria, sob a forma de
ficção, sem maiores consequências e com as contestações habituais em relação às pessoas vivas ou mortas. A interferência poderia provocar questões embaraçosas, o que não nos interessa.
- Tem toda razão - disse o homem de Londres. - O que não é de estranhar, pois quase sempre você acerta, Bravo.
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- Obrigado. E agora tenho que me despedir, Génesis. Irei embora daqui dentro de mais alguns dias.
- Para onde vai?
- Não tenho certeza. Talvez volte a Vermont, talvez vá para mais longe. Não me agrada o que estou vendo atualmente no cenário nacional.
- O que é mais uma razão para permanecer em contato, Bravo.
- Talvez. Mas posso também estar velho demais.
- Não pode desaparecer. E sabe disso, não é mesmo?
- Sei, sim. Boa-noite, Génesis.
St. Claire desligou sem esperar resposta de Londres. Simplesmente não queria escutar mais nada.
Foi invadido por uma onda de repugnância; não era a primeira vez, não seria a última. A função de Inver Brass era tomar decisões que outros não podiam tomar, era proteger homens e instituições das acusações morais derivadas de uma percepção tar-1 dia dos fatos. O que era certo 40 anos antes, hoje era um anátema.
Homens amedrontados haviam sussurrado ao ouvido de outros homens amedrontados que Peter Chancellor tinha que ser detido. Era um erro permitir que aquele obscuro candidato ao doutorado formulasse perguntas que não tinham qualquer significado 40 anos depois. Os tempos eram diferentes, as circunstâncias inteiramente diversas.
Contudo, havia algumas áreas em que as coisas se confundiam: a responsabilidade não é uma doutrina limitada. Em última análise, eram todos responsáveis. Tnver Brass não era exceção. Portanto, Peter Chancellor tinha que receber a oportunidade de dar vazão a seu ultraje, e de uma forma que impedisse consequências mais sérias. Ou uma catástrofe.
St. Claire levantou-se e examinou os papéis que estavam sobre a mesa. Já havia levado a maior parte dos seus pertences, durante as últimas semanas. Havia bem pouco dele naquele gabinete agora; e era assim que tinha de ser.
Amanhã, ele iria embora.
Foi até a porta. Automaticamente, estendeu a mão para o interruptor e só então percebeu que a luz estava apagada. Havia andado, sentado e pensado no escuro.
The New York Times Book Review
10 de maio de 1969, Página 3
Reichstag! é um livro ao mesmo tempo surpreendente e perceptivo, embaraçoso e inacreditável. O primeiro romance de Peter Chancellor pretende
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nos fazer acreditar que o Partido Nazista foi inicialmente financiado por um grupo de banqueiros e industriais americanos, ingleses e franceses, aparentemente com a aprovação tácita dos respectivos governos. Chancellor nos força a acreditar em suas assertivas, à medida que vamos lendo. A narrativa é emocionante, os personagens possuem uma tremenda força que ilumina suas qualidades e fraquezas e que poderia ter sido prejudicada por uma redação mais disciplinada. O Sr. Chancellor conta-nos a sua história com um vigoroso sentimento de ultraje, até certo ponto de forma melodramática; apesar disso, o livro é de uma leitura fascinante. E, ao final, emerge a pergunta inevitável: Não poderia ter acontecido assim?...
The Washington Pôs! Book World
22 de abril de 1970, Página 3
Em Saraevo! Chancellor faz com os canhões de agosto o mesmo que tinha feito com a Blitzkrieg do Fiihrer no ano passado.
As forças que entraram em choque em julho de 1914, em consequência do assassinato em junho de Ferdinando pelo conspirador Gavrilo Princip, são alteradas, reagrupadas e lançadas numa trilha vertiginosa pelo Sr. Chancellor, de tal forma que ninguém aparece no lado dos anjos e tudo se resume a um triunfo do mal. Do princípio ao fim, o protagonista - neste caso, um agente britânico infiltrado numa organização clandestina servo-croata chamada, melodramaticamente, de A Unidade da Morte - vai desfazendo uma por uma as mentiras sustentadas pelos inspiradores do Reichstag, o Foreign Office, o Parlamento e assim por diante. Mas descobre-se que estes não passam de títeres, manipulados pelos altos interesses industriais.
Como acontece com tantas coisas, as coincidências raramente discutidas são de fato incontáveis.
O Sr. Chancellor possui um elevado senso de conspiração. E deve-se dizer que o expõe de maneira fascinante e com um alto grau de legibilidade. Sarajevo! deve se tornar um livro ainda mais popular que Reichstag.1
The Los Angeles Times Daily Review of Books
4 de abril de 1971, Página 20
Contra-ataque! é até agora o melhor livro de Chancellor, embora, por motivos que escapam a este leitor, seu enredo tortuoso esteja baseado num extraordinário erro de pesquisa, que não era de se esperar de um autor como ele. Esse erro é a atuação clandestina da CIA em relação a um reinado de terror imposto por uma potência estrangeira numa cidade universitária da Nova Inglaterra. O Sr. Chancellor deve saber que todas as operações internas estão expressamente proibidas à CIA por seus estatutos, que datam de 1947.
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Mas tirando essa objeção, Contra-ataque! é certamente um livro extraordinário. As obras anteriores de Chancellor demonstraram que ele é perfeitamente capaz de tecer uma trama com ritmo tão vertiginoso que mal se consegue virar as páginas com rapidez suficiente. Mas agora ele acrescentou uma profundidade que não havia antes.
Os amplos conhecimentos que Chancellor demonstra ppssuir sobre contra-espionagem são objetivos e profundos, segundo os que têm a obrigação de conhecer o assunto. Apesar do erro em relação à CIA.
Ele penetra nas mentes, assim como nos métodos, de todos os envolvidos numa situação absolutamente terrível, desenvolvendo um paralelo explícito com os distúrbios raciais que levaram a uma série de assassinatos em Boston, há alguns anos. Chancellor tornou-se um romancista de primeira categoria, que apresenta os acontecimentos, dá uma nova interpretação aos fatos e chega a conclusões novas e surpreendentes.
A trama é tortuosamente simples: um homem é escolhido para realizar uma missão para a qual parece não estar muito preparado. A CIA encarrega-se de prepará-lo, mas em nenhum momento do treinamento ocorre a menor tentativa de corrigir a sua falha básica. Não demoramos a compreender o motivo: é que se espera que esse defeito acabe causando a morte do homem. Uma conspiração dentro de uma conspiração. E mais uma vez, como nos livros anteriores de Chancellor, ficamos nos perguntando: Será verdade? Será que realmente aconteceu? Será que foi assim?...
Outono. Os campos do Bucks County formavam um imenso oceano amarelo, verde e dourado. Chancellor estava encostado no capo de um Mark Continental, o braço passado pelos ombros de uma mulher. O rosto estava agora mais cheio, as feições bem nítidas expressando menos conflito. A aparência era mais suave, embora ainda vigorosa. Os olhos voltados para uma casa branca ao pé de um caminho sinuoso entre os campos ondulados. Margeando o caminho havia uma cerca branca relativamente alta.
A jovem que estava com Chancellor segurava a mão dele caída por cima de seu ombro, e estava igualmente extasiada com o cenário. Era alta, os cabelos castanhos formando ondas suaves, emoldurando o rosto delicado, mas estranhamente forte e determinado. Seu nome era Catherine Lowell.
- É exatamente como você descreveu - disse ela, apertando com mais força a mão de Peter. - É lindo, realmente lindo...
Fitando-a, Peter comentou:
- Para usar uma frase feita, é um grande alívio ouvir isso.
- Já comprou, não é mesmo? Não está apenas "interessado", como disse. Já comprou!
Peter assentiu.
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- Tive um concorrente. Um banqueiro de Filadélfia estava disposto a pagar qualquer coisa. Por isso, tive que decidir na hora. Mas se você não gostar, estou certo
de que poderei facilmente vender para ele.
- Não diga bobagem! Estou achando ótima!
- Mas ainda nem viu a casa por dentro.
- Nem preciso.
- Ainda bem, porque eu preferia mostrá-la só depois, quando voltarmos. Os antigos proprietários deverão sair aié quintafeira. E é melhor que saiam mesmo, pois na tarde de sexta-feira vai chegar uma grande carga de Washington. E mandei vir diretamente para cá.
- As transcrições?
- São 12 caixotes da Imprensa Oficial. Morgan teve que providenciar um caminhão. É toda a história de Nurembergue, conforme foi registrada pelos tribunais Aliados. Quer tentar adivinhar qual vai ser o título do livro?
Catherine soltou uma risada.
- Posso ver neste momento Tony Morgan andando de um lado para outro em sua sala, como um gato todo desconjuntado, numa roupa cinza de flanela. Subitamente, ele dá um murro na mesa e grita, assustando todo mundo que está a sua volta, ou seja, quase todo o prédio: "Achei! Vamos usar algo inteiramente novo e diferente! Vamos usar Nurembergue e depois um ponto de exclamação!"
Peter riu também.
- Está caluniando o meu santo editor.
-- Nunca! Se não fosse por ele, iríamos morar no quinto andar de um prédio de apartamentos sem elevador e não numa propriedade rural construída para um verdadeiro senhor feudal!
- E você não seria a esposa de um pequeno senhor feudal.
- Exatamente.
Catherine apertou o braço de Peter.
- Por falar em caminhões, não deveria haver alguns seguindo agora por aquele caminho, para fazer a mudança?
Peter sorriu, era um sorriso constrangido.
- Tive que comprar a casa mobiliada. Eles vão se mudar para o Caribe. Se quiser, pode depois jogar tudo fora.
- Ei, mas nós não somos nobres?
- Mas não somos ricos - murmurou Peter, sem chegar a fazer uma pergunta. - Sem comentários, por favor. Vamos embora. Temos pela frente umas três horas de estrada e depois mais duas horas e meia até chegarmos em casa. E já está começando a escurecer.
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Catherine virou-se para Peter, erguendo o rosto, os lábios quase tocando nos dele.
- A cada quilómetro vou ficar mais e mais nervosa. vou começar a ter tiques nervosos e chegar lá como uma idiota que mal sabe balbuciar. Pensei que a dança ritual de conhecer os pais do noivo tivesse sido extinta há mais de dez anos.
- Não pensou nisso quando me apresentou a seus pais.
- Oh, pelo amor de Deus! Eles ficaram tão impressionados só por estarem na mesma sala com você que não precisou fazer nada, a não ser ficar sentado lá gloriosamente!
- Nada disso. Gostei dos seus pais. E acho que também vai gostar dos meus.
- E será que eles vão gostar de mim? Essa é que é a questão.
- Nem pense nisso - disse Peter, abraçando-a. - Eles vão adorá-la. Assim como eu a adoro. Oh, Deus, como eu a adoro!
Está confirmado, Génesis, Esse Peter Chancellor encomendou à Imprensa Oficial uma cópia de todos os documentos relativos a Nurembergue. O editor já providenciou o transporte de todo o material para um endereço na Pensilvânia.
Isso não nos afeia, Banner. Veneza e Christopher concordam. Não tomaremos qualquer providência. É essa a decisão.
Mas é um erro! Ele vai voltar ao tema alemão.
Muito tempo depois que os erros foram cometidos. Não há qualquer ligação. Anos antes de Nurembergue já tínhamos visto claramente o que não havíamos percebido no início. Não há qualquer ligação conosco. com nenhum de nós, inclusive você.
Não se pode ter certeza.
Mas acontece que temos.
O que Bravo acha?
Bravo está longe. Não foi informado nem será.
Por que não?
Por motivos que não lhe dizem respeito. Remontam há alguns anos. Antes mesmo de você ser chamado a Inver Brass.
É um erro, Génesis.
Acho que está muito cansado e por isso preocupa-se sem ne cessidade. Jamais teria sido chamado se suas ansiedades sempre predominassem, Banner. Sei que é um homem extraordinário. Jamais duvidamos disso.
Mesmo assim, continuo a achar que é perigoso.
O tráfego na auto-estrada da Pensilvânia parecia se deslocar ainda mais depressa à medida que o céu ia se tornando mais escuro.
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Nuvens de neblina surgiam abruptamente, distorcendo os clarões dos faróis dos veículos que vinham em sentido contrário. De repente, uma pancada de chuva de vento. Tão intensa que o párabrisa era praticamente inútil.
Havia um crescente frenesi na auto-estrada e Peter sentiu-o imediatamente. Os veículos aceleravam ainda mais, fazendo subir verdadeiras cortinas dágua ao passarem. Os motoristas pareciam pressentir que várias tempestades convergiam para a região ocidental da Pensilvânia e o instinto nascido da experiência impelia-os a tentarem chegar em casa o mais depressa possível.
A voz que saiu pelo rádio do Continental era precisa, autoritária:
O Departamento de Estradas de Rodagem recomenda a todos os motoristas que permaneçam fora das estradas, no trecho Jamesíown-Warren. Se estão neste momento a caminho, sigam para a área de serviço mais próxima. Repetimos: os avisos de tempestade procedentes do Lago Erie já foram confirmados. A tempestade tem ventos com força de furacão...
"- Há uma saída daqui a seis quilómetros - disse Peter, semicerrando os olhos para ver a estrada à sua frente, através do párabrisa. - Vamos pegá-la. E há um restaurante uns 200 ou 300 metros depois dessa saída.
- Como sabe?
- Acabamos de passar por uma placa de Pittsfield. Foi um ponto de referência para mim. Indicava que ainda faltava uma hora de viagem para chegarmos.
Peter jamais conseguiu compreender como tudo aconteceu; a questão iria permanecer em sua mente, atormentando-o, pelo resto da vida. O aclive era um lençol opaco de chuva torrencial, que caía em rajadas sucessivas e intensas, fazendo com que o pesado carro balançasse de um lado para outro, como um pequeno barco num mar turbulento.
E, subitamente, havia faróis ofuscando-o através da janela traseira do carro e refletindo-se no espelho retrovisor. Manchas brancas surgiram diante de seus olhos, obscurecendo até mesmo as torrentes de chuva que batiam contra o pára-brisa. A única coisa que ele conseguiu avistar foi a luz branca ofuscante.
Um instante depois, o caminhão estava ao seu lado. Era um caminhão imenso, de reboque, ultrapassando-o no aclive perigoso, sob a chuva torrencial. Peter gritou para o motorista do caminhão pela janela fechada do carro. O homem só podia ser um louco. Será que não percebia o que estava fazendo? Será que não estava vendo o carro dele por causa da tempestade? Será que perdera inteiramente o juízo?
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O inacreditável aconteceu. O imenso caminhão desviou-se em sua direção! O impacto foi terrível. O chassi de aço do reboque chocou-se contra o Continental. Aço esmagando aço. O louco estava querendo jogá-lo para fora da estrada! O homem estava embriagado ou tinha entrado em pânico por causa da tempestade! Através do lençol de chuva, Peter pôde divisar os contornos do motorista, lá no alto da boleia. O homem não via o seu carro! Não sabia o que estava fazendo!
Houve um segundo impacto, estrondoso, com tanta força que espatifou a janela do lado de Peter. As rodas do Mark Continental ficaram travadas. O carro derrapou para a direita, na direção de um vácuo de escuridão, além da beira da estrada.
O capo se levantou em meio à chuva. Um instante depois, o carro começou a derrapar pelo acostamento e segundos depois estava mergulhando na escuridão.
Os gritos de Catherine se sobrepuseram ao terrível barulho de vidro espatifado e aço triturado, enquanto o Continental ia rolando pela encosta abaixo. O metal estava agora rangendo contra metal, como se cada pedaço do carro estivesse lutando para sobreviver aos sucessivos impactos contra a terra.
Peter arremessou-se na direção de onde viera o grito, na direção de Catherine. Mas estava preso por uma haste de aço. O carro se sacudia todo, rolava sem parar, mergulhava pela encosta abaixo.
Os gritos cessaram. Tudo parou.
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1

A quinta limusine avançou lentamente pelas ruas escuras e arborizadas de Georgetown. Parou diante dos degraus de mármore que levavam, por entre uma folhagem bem
cuidada, ao pórtico situado a 20 metros de distância. Aquela entrada, como o resto da casa, possuía muita imponência, realçada pela iluminação suave além das colunas
que sustentavam a varanda por cima.
As quatro limusines anteriores haviam chegado a intervalos i de três a seis minutos. Tinham sido alugadas em cinco agências !) diferentes, de Arlington a Baltimore.
Se houvesse um observador na rua tranquila desejando descobrir a identidade do único passageiro em cada limusine, simples- [:t mente não o conseguiria. Pois nenhum
deles poderia ser descoberto por meio da locação dos veículos, e os motoristas não os tinham visto. Um painel de vidro opaco separava cada motorista 3 do passageiro
e nenhum motorista podia deixar o volante enquan- i to o passageiro entrava ou saía. Todos os motoristas haviam sido selecionados com extremo cuidado.
Tudo fora previsto nos menores detalhes, tudo devidamente calculado. Duas limusines haviam sido conduzidas a aeroportos particulares, onde ficaram em locais previamente
determinados do estacionamento, fechadas e abandonadas. Ao final de uma hora, os motoristas tinham voltado, sabendo que seus passageiros já estavam lá dentro. Os
outros três veículos haviam sido deixados da mesma maneira em três locais diferentes: na Union Station, em Washington; no shopping center de McLean, Virgínia; e no country club de Chevy Chase, Maryland... ao qual aquele passageiro não pertencia.
E se algum observador naquela rua sossegada de Georgetown tentasse abordar os passageiros que saíam dos carros, um homem louro estava postado nas sombras da varanda por cima do pórtico ao final da escadaria de mármore a fim de impedi-lo. No pescoço desse homem estava pendurado um potente microfone transistorizado, pelo qual podia transmitir ordens a outros homens espalhados pelo quarteirão, utilizando uma língua que não era o
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inglês. Em suas mãos havia um rifle, com um silencioso acoplado ao cano.
O quinto passageiro saltou da limusine e subiu os degraus de mármore. O carro afastou-se rapidamente; não iria voltar. O homem louro na varanda falou baixinho ao microfone. A porta lá embaixo foi aberta.
A sala de reuniões ficava no segundo andar. As paredes eram revestidas de madeira escura, a iluminação indireta. No meio da parede do lado leste estava uma antiga estufa Franklin. Apesar de ser um dia ameno de primavera, um fogo ardia por trás da grade de ferro.
No meio da sala havia uma mesa grande, redonda. Em torno dela estavam sentados seis homens, com idades variando de pouco mais de 50 a 80 anos. Dois deles estavam incluídos na primeira categoria: um homem de cabelos grisalhos ondulados, com feições hispânicas; e um homem de pele muito clara, rosto nórdico, cabelos pretos lisos, penteados para trás, por cima da testa muito grande. Este último estava sentado à esquerda do líder do grupo, que era o centro das atenções. Devia ter mais de 70 anos, umas poucas mechas de cabelos na cabeça quase inteiramente calva, as feições cansadas... ou devastadas pelo tempo. À sua frente, estava sentado um homem esguio,
de aparência aristocrática, cabelos brancos bem ralos e um bigode branco impecável; beirava bem a casa dos 70. À direita dele sentava um homem negro grande,
com uma cabeça imensa, que poderia ter sido esculpida em mogno. À esquerda, sentava o mais velho e o mais frágil dos 3 homens da sala; era um judeu, um yarmulke
sobre a cabeça calva, A o rosto esquelético.
Todos falavam suavemente, de maneira erudita, os olhos sempre firmes e penetrantes. Cada homem possuía uma vitalidade serena, derivada do poder extraordinário.
E cada um era conhecido por um único nome, que possuía um significado específico para todos ao redor da mesa. Em diversos casos, o nome era usado pelo membro há quase 40 anos; em outros, o nome havia sido transmitido, com a morte dos antecessores e a eleição dos sucessores.
Nunca havia mais do que seis homens. O líder era conhecido como Génesis. Era o segundo homem que usava aquele nome. Anteriormente, era conhecido como Paris, identidade
agora pertencente ao homem de feições hispânicas, com cabelos grisalhos ondulados.
Os outros eram conhecidos como Christopher, Banner, Venice. E havia também Bravo.
Esses eram os homens de Inver Brás».
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Na frente de cada um havia uma pasta parda, todas idênticas, com uma folha de papel por cima. Exceto pelo nome no canto superior esquerdo do papel, as demais palavras
datilografadas não fariam sentido para qualquer outra pessoa além daqueles homens.
Génesis falou:
Acima de tudo, a qualquer custo, os arquivos devem ser
apreendidos e destruídos. Quanto a isso, não pode haver qualquer desacordo. Já constatamos, sem a menor sombra de dúvida, que estãc guardados num cofre embutido
na parede de aço do armário, por trás e à esquerda da escrivaninha.
- A fechadura do armário é controlada por um interruptor na gaveta do meio da escrivaninha - informou Banner. - O cofre é protegido por uma série de mecanismos eletrônicos,
o primeiro dos quais deve ser acionado da residência dele. Sem isso, nenhum dos outros poderá ser ativado. Seriam necessárias dez bananas de dinamite para arrombar
o cofre. O tempo previsto de operação para uma tocha de acetileno é de aproximadamente quatro horas, com alarmas soando por causa do calor.
Do outro lado da mesa, com o rosto negro obscurecido pela iluminação difusa, Venice perguntou:
- A localização do primeiro obturador já foi confirmada?
- Já, sim - respondeu Banner. - Está no quarto. Na prateleira por cima da cabeceira da cama.
- Quem a confirmou? - indagou Paris, o membro hispânico de Inver Brass.
- Varak - disse Génesis, na extremidade sul da mesa. Diversas cabeças assentiram lentamente. O idoso judeu, à
direita de Banner, perguntou-lhe:
- E o resto?
- As fichas médicas do indivíduo foram obtidas em La Jolla, Califórnia. Como já sabe, Christopher, ele se recusa a ser examinado em Bethesda. A mais recente cardioanálise indica uma pequena hipocloremia, uma porcentagem reduzida de potássio, que não chega a ser perigosa. O fato por si mesmo, no entanto, pode ser suficiente para justificar a administração de digitalina. Mas existe o risco de descoberta através de uma autópsia.
- Ele já é um velho. - A declaração foi feita por Bravo, que certamente era mais velho que o indivíduo em questão. - Por que se iria cogitar de uma autópsia?
- Porque ele é quem é - explicou Paris, o membro hispânico, a voz revelando claramente seus primeiros anos em Castela. - Pode ser inevitável. E o país não pode tolerar o tumulto de outro assassinato. Proporcionaria a muitos homens perigosos o Pretexto para entrarem em ação, para realizarem uma série de horrores, em nome do patriotismo.
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Génesis voltou a se manifestar nesse momento:
- Estou absolutamente convencido de que se esses mesmos homens perigosos - estou me referindo expressamente, para que não haja equívocos, à Avenida Pensilvânia, 1600 - se esses homens perigosos, repito, chegarem a um acordo com o indivíduo em questão, os horrores de que fala serão bem menores. A chave para o problema, cavalheiros,
está nos arquivos do indivíduo. Estão sendo oferecidos como carne sangrenta a chacais famintos. Esses arquivos nas mãos de 1600 iriam introduzir no governo a coação
e a chantagem. E todos sabemos que isso já está ocorrendo, neste exato momento. Temos que entrar em ação imediatamente.
- Embora relutante, não posso deixar de concordar com Génesis - disse Bravo. - Nossas informações demonstram que 1600 já foi além dos limites em administrações anteriores. O que não foi nada agradável. E já está quase saindo de nosso controle. Não há praticamente qualquer agência ou departamento que não tenha sido contaminado. Mas uma investigação do Serviço de Rendas Internas, por exemplo, fica inteiramente ofuscada em comparação com os arquivos. Tanto pela natureza como, o que é bem mais sério, pelo porte daqueles que estão envolvidos. Não tenho certeza se temos uma alternativa.
Génesis virou-se para o membro mais jovem, que estava ao seu lado:
- Poderia nos fazer um sumário da situação, por gentileza, Banner?
- Claro. - O homem de 50 e poucos anos, esguio, assentiu, fez uma pausa, pôs as mãos sobre a mesa à sua frente. - Não há muito o que acrescentar. Já leram o relatório. Os processos mentais do indivíduo em questão estão se desintegrando rapidamente. Há um médico que suspeita de arterioesclerose, mas não pode confirmar o diagnóstico. As fichas de La Jolla são controladas pelo próprio indivíduo. Na fonte. Ele guarda todas as informações médicas. Psiquiatricamente, no entanto, há um acordo total. O estado maníaco-depressivo já se desenvolveu ao ponto de paranóia aguda.
O homem fez uma nova pausa, a cabeça ligeiramente virada para Génesis, mas sem excluir nenhum dos demais, antes de acrescentar:
- Para ser franco, isso é tudo o que preciso saber para dar meu voto.
- Quem chegou a esse acordo sobre o estado psiquiátrico?
- indagou o velho judeu conhecido como Christopher.
- Três psiquiatras, que não se conheciam mutuamente, contratados por vias indiretas e solicitados a apresentarem relatórios
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independentes. Esses relatórios foram interpretados em conjunto por nosso próprio homem. A única conclusão possível foi a de paranóia aguda.
- Em que os psiquiatras se basearam para apresentar seus diagnósticos?
Venice inclinou-se para a frente, as imensas mãos negras cruzadas, ao fazer a pergunta.
- Câmeras infravermelhas de cinema e câmeras telescópicas foram usadas ao longo de um período de 30 dias, em todas as situações possíveis. Em restaurantes, na Igreja Presbiteriana, em diversas ocasiões formais e privadas que envolviam chegadas ou partidas. Dois especialistas em leitura de lábios providenciaram textos de tudo o que ele disse. Os textos eram idênticos. Há também amplos relatórios, eu diria mesmo que minuciosos, dos nossos próprios homens dentro do serviço. Não há como se contestar o julgamento. O homem está louco.
- E qual a posição de 1600?
Bravo ficou olhando em silêncio para o homem mais jovem, por um momento, antes de responder:
- Estão chegando cada vez mais perto, fazendo progressos a cada semana que passa. Já chegaram ao ponto de sugerir uma associação interna formal, tendo os arquivos como objetivo. O indivíduo em questão está cauteloso; conhece a todos profundamente, e os que estão em 1600 neste momento não são os melhores. Mas admira a arrogância deles. E eles o afagam. Diga-se de passagem, é justamente esse o verbo que usam. Afagar.
- Extremamente apropriado - comentou Venice - E o progresso deles é substancial?
- Receio que sim. Há provas concretas de que o indivíduo em questão já entregou diversas fichas - ou as informações mais nocivas nelas contidas - ao Escritório Oval. São feitos acordos tanto na área das contribuições políticas como na das eleições propriamente ditas. Dois candidatos a indicações presidenciais pela oposição já concordaram em se retirar da disputa, um por estar com as finanças esgotadas, outro por um ato de instabilidade.
- Por gentileza, explique o que isso significa - pediu Génesis.
- Um erro muito grave, por palavras ou ação, que o elimina do acesso à Presidência, mas não chega a ser sério o bastante para ameaçar sua posição no Congresso. Neste caso, o que houve foi uma demonstração de comportamento imoderado durante as eleições primárias. Tais coisas são sempre levadas em consideração, invariavelmente bem articuladas.
- E são terríveis - comentou Paris, irritado.
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- E sempre partem do indivíduo em questão - disse Bravo.
- Se me permitem, gostaria de voltar ao problema da autópsia. Será possível controlá-la?
- Talvez não haja necessidade - respondeu Banner, as mãos agora separadas, as palmas repousando sobre a mesa. - Trouxemos de avião do Texas um homem que é especialista em pesquisa cardiovascular. Ele pensa que está tratando com um membro preeminente de uma família de Maryland: um patriarca que está ficando louco, capaz de causar danos consideráveis, com sintomas orgânicos e psiquiátricos inconfundíveis. Há um derivado químico da digitalina que, combinado com uma injeção intravenosa, não deixa quaisquer vestígios.
- Quem está cuidando disso? - indagou Venice, que visivelmente não estava convencido.
- Varak - informou Génesis. - Ele é que está no controle de todo o projeto.
Mais uma vez, todos ao redor da mesa assentiram.
- Há mais alguma pergunta? - indagou Génesis. Silêncio.
- Nesse caso, podemos votar agora. - Génesis pegou um bloco pequeno embaixo da pasta. Arrancou seis páginas e passou cinco para a sua esquerda. - O algarismo romano I significa afirmativo, o II é negativo. Como sempre, um empate será considerado negativo.
Os homens de Iver Brass escreveram seus votos, dobraram os papéis, devolveram a Génesis. Ele abriu-os.
- A votação é unânime, cavalheiros. O projeto será executado. - Virou-se para Banner. - Por gentileza, mande o Sr. Varak entrar.
O homem mais moço levantou e foi até a porta. Abriu-a e sacudiu a cabeça para o homem que estava parado no corredor, voltando em seguida a seu lugar.
Varak entrou, fechando a porta. Era o mesmo homem que ficara de guarda na varanda escura por cima da entrada da casa. O rifle não mais estava em suas mãos, mas o microfone transistorizado continuava pendurado no pescoço, com um fio fino subindo para a orelha esquerda. Era de idade indeterminada, entre 35 e
45 anos. Daqueles homens em que as marcas do tempo são obscurecidas por eles serem ativos, de corpos fortes e musculosos. Os cabelos louros estavam cortados rentes. O rosto era largo, com malares salientes, o que indicava sua ascendência eslava, juntamente com os olhos ligeiramente enviesados. Em contraste com
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aparência, no entanto, a fala era suave, o sotaque de Boston,
3 bora não muito acentuado, com alguma coisa da Europa Central.
já decidiram? - perguntou ele.
já, sim - respondeu Génesis. -- É afirmativa.
. Não havia opção.
Já fez o seu esquema? - indagou Bravo, inclinando-se
para a frente, os olhos firmes, mas neutros.
Já. Dentro de três semanas. Na noite de 1. de maio. O
corpo será descoberto na manhã seguinte.
- Sendo assim, a notícia será divulgada a 2 de maio. - Génesis olhou para os outros membros de Inver Brass. - Podem começar a preparar suas declarações, se acharem que serão solicitados a fazê-las. E alguns de nós devem estar no exterior na ocasião.
- Está pressupondo que a morte será divulgada de uma maneira normal - disse Varak, alteando ligeiramente a voz, para com isso sugerir que ocorreria justamente o contrário. - Sem qualquer controle. Eu não teria tanta certeza assim.
- Por quê? - perguntou Venice.
- Estou convencido de que 1600 vai entrar em pânico. Aquela turma vai meter o cadáver no gelo, até mesmo dentro do guarda-roupa do Presidente, se achar que com isso poderá ganhar algum tempo para se apossar dos arquivos.
A imagem de Varak provocou alguns sorrisos relutantes ao redor da mesa. Génesis disse:
- Nesse caso, Sr. Varak, trate de tomar todas as providências necessárias para que tudo transcorra da melhor fornia possível. Nós é que temos de ficar com os arquivos.
- Está certo. Isso é tudo?
- É, sim.
Sacudindo a cabeça ligeiramente, Génesis dispensou-o, murmurando:
- Obrigado.
Varak retirou-se em seguida. Génesis levantou a folha com as palavras em código datilografadas. Depois, pegou as seis pequenas folhas do bloco, todas com o algarismo romano I.
- A reunião está suspensa, cavalheiros. Como de hábito, cada um será responsável pela destruição do relatório que recebeu. Se fizeram algumas anotações, tratem de destruí-las também.
Um a um, os homens de Inver Brass encaminhara-se para a estufa Franklin. O primeiro membro a alcançá-la levantou a grade. Largou a sua folha de papel, delicadamente, no poço de carvão em brasa. Os outros o imitaram.
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Os dois últimos homens a realizarem o ritual foram Génesis e Bravo. Ficaram um pouco afastados dos outros e Génesis disse, baixinho:
- Obrigado por ter voltado.
- Disse-me há quatro anos que eu não poderia desaparecer
- respondeu Munro St. Claire. - Estava certo.
- Infelizmente, o problema não se limita apenas a isso. Não estou bem. Resta-me pouco tempo.
- Ora essa...
- Por favor, não diga nada. Não posso deixar de pensar que sou eu o afortunado.
- Como assim?
- Os médicos deram-me a notícia há dois ou três meses. Há dez semanas atrás, para ser mais preciso. E foram bastante minuciosos. Posso sentir que o momento está chegando. E lhe asseguro que não existe qualquer outra sensação igual. É um fato consumado e não se pode deixar de encontrar um certo conforto nisso.
- Lamento muito. Mais não posso dizer. Venice já sabe? Os olhos de St. Claire fixaram-se no imenso negro que estava
conversando baixinho a um canto com Paris e Banner.
- Não. Eu não queria que nada interferisse, ou mesmo influenciasse, a nossa decisão hoje.
Génesis largou a folha datilografada no luzeiro amarelado da estufa. Depois, amassou os seis votos de Inver Brass, fez uma pequena bola de papel e largou-a também dentro da estufa.
- Confesso que não sei o que dizer - murmurou St. Claire, compadecido, observando os olhos estranhamente serenos de Génesis.
- Pois eu sei - respondeu o homem que estava prestes a morrer, sorrindo. - Agora você está de volta. Seus recursos são incomparavelmente superiores aos de Venice. Ou de qualquer outro homem que aqui esteve hoje. Quero que me diga que vai cuidar pessoalmente para que tudo seja levado a bom termo. Isto é, caso eu tenha que sair de cena antes do prazo.
St. Claire olhou para o papel em sua mão. Para o nome no canto superior esquerdo.
- Ele tentou destruí-lo uma vez. E quase conseguiu. Pode deixar que providenciarei para que o plano seja devidamente executado.
- Não com essa disposição - declarou Génesis, a voz firme, desaprovadora. - Não pode haver qualquer rancor, nenhum desejo de vingança. Não é assim que devemos agir, jamais deveremos permitir que nossas ações sejam influenciadas por tais sentimentos.
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Há ocasiões em que objetivos divergentes são perfeitamente
compatíveis. Até mesmo objetivos morais. Estou simplesmente reconhecendo esse fato. O homem é uma ameaça.
Munro St. Claire olhou mais uma vez para o papel em sua mão. Para nome no canto superior esquerdo.
John Edgar Hoover.
Amarrotou o papel e largou-o no fogo.
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2

Peter Chancellor estava deitado na areia úmida, as ondas batendo suavemente em seu corpo. Contemplava o céu, onde o cinza começava a recuar, enquanto o azul ia se espalhando. O amanhecer chegara à praia de Malibu.
Soergueu-se, apoiado nos cotovelos, sentou. O pescoço doía, e ele sabia que logo começaria a sentir a dor nas têmporas. Embriagara-se na noite anterior. E também na outra noite.
Os olhos fixaram-se na perna esquerda, por baixo da cueca. A cicatriz fina, que começava na batata da perna, descrevia uma curva, passava pelo joelho e ia terminar na metade da coxa, era uma linha branca sinuosa, cercada de carne bronzeada. Ainda era sensível ao contato, mas a complexa cirurgia fora bem-sucedida. Podia agora andar quase normalmente, e a dor antes intensa fora substituída por uma incómoda sensação de dormência.
O mesmo já não acontecia com o ombro esquerdo; a dor nunca estava inteiramente ausente, apenas diminuía de vez em quando. Os médicos haviam dito que a maioria dos ligamentos se rompera e diversos tendões tinham sido esmagados. Levaria mais algum tempo para que a recuperação fosse completa.
Distraidamente, Peter levantou a mão direita e apalpou a extensão da pele ligeiramente inchada que se estendia do início do couro cabeludo, passava por cima da orelha direita e descia até a base do crânio. Os cabelos cobriam agora a maior parte dessa cicatriz; seu início, no alto da testa, só podia ser percebido quando se olhava de perto. Ao longo das últimas semanas, muitas mulheres haviam reparado a cicatriz. Os médicos haviam lhe dito que sua cabeça tinha sido cortada como quando se passa uma lâmina afiada por um melão macio; mais alguns milímetros para baixo ou para cima e ele teria morrido. E houve semanas em que Peter desejou ardentemente que isso tivesse acontecido. Sabia que esse desejo iria passar. Não queria morrer; mas, simplesmente, não tinha certeza se queria viver sem Cathy.
O tempo haveria de curar os ferimentos, por dentro e por fora. Ele jamais duvidara disso, apenas desejava que o processo fosse
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mais rápido. Queria que a sua energia retornasse e as primeiras horas do dia pudessem ser ocupadas com trabalho, sem que as têmporas latejassem tão terrivelmente, sem preocupações vagas e apreensivas sobre o seu comportamento na noite anterior.
Mas mesmo que permanecesse sóbrio, as preocupações ainda continuariam. Estava fora do seu ambiente: as tribos de Beverly Hills e Malibu deixavam-no confuso. De acordo com a sabedoria de seu agente, era muito bom que partisse para Los Angeles - Hollywood, por que ele não admitia, não pensava assim? Hollywood
a fim de ser o co-autor do roteiro cinematográfico de Contra-
ataque! O fato de ele nada saber a respeito de roteiros cinematográficos aparentemente não tinha qualquer importância. O terrível Joshua Harris, o único agente que já tivera, o único que já conhecera, dissera-lhe que isso era uma deficiência sem a menor importância, que seria compensada por um bom dinheiro.
A lógica escapara a Peter. Mas o mesmo acontecera com o seu co-autor. Haviam se encontrado três vezes, num total aproximado de 45 minutos, dos quais provavelmente menos de dez minutos tinham sido dedicados a Contra-ataque! E é claro que nada ainda havia sido escrito. Ou pelo menos não na presença dele.
Contudo, ali estava ele, em Malibu, numa casa de cem mil dólares, à beira da praia, guiando um Jaguar e cobrando ao estúdio todas as suas despesas, de Newport Beach a Santa Bárbara.
Não era preciso se embriagar para sentir-se, volta c meia, dominado por um sentimento de culpa, dada a situação. Certamente não o filho da Sra. Chancellor, que fora ensinado desde cedo que se ganha aquilo por que se trabalha, assim como se é aquilo que se vive.
Por outro lado, viver fora a consideração máxima na mente de Joshua Harris quando negociara o contrato. Peter simplesmente não estava vivendo na casa na Pensilvânia; estava apenas sobrevivendo.
Nos três meses seguintes à sua saída do hospital não fizera praticamente nada para o livro sobre Nurembergue.
Praticamente nada. E quando faria alguma coisa? Qualquer coisa?
A cabeça agora estava doendo. A dor fazia os olhos lacrimejarem, o estômago estava embrulhado. Peter levantou-se e avançou pelo mar, varando-as ondas. Talvez, se nadasse um pouco, a quóia vermelha, estuque branco, grossas vigas de madeiras - assim
Mergulhou, depois levantou e olhou para trás, na direção da casa. Que diabo estava fazendo ali na praia? Levara uma mulher para casa na noite anterior. Tinha certeza disso. Ou quase.
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Voltou para a praia, avançou pela areia, a dor cada vez mais forte, subiu os degraus da varanda da casa. Parou no alto, respirando fundo, olhou para o céu. O sol já desaparecera, dissipando o nevoeiro. Ia ser outro dia quente e úmido. Virou-se e avistou duas pessoas passeando à beira dágua com seus cachorros, a cerca de meio quilómetro de distância.
Não ficaria bem se o vissem de cueca, todo molhado, na praia. O que ainda lhe restava do senso de conveniência disse-lhe que entrasse na casa imediatamente.
O senso de conveniência e a curiosidade. E a sensação vaga de que alguma coisa desagradável acontecera na noite anterior. Procurou imaginar como seria a mulher que levara para casa. Recordou-se que era loura. E de seios grandes. Como tinham conseguido dirigir do lugar onde estavam em Beverly Hills, qualquer que fosse, até Malibu? A recordação vaga do incidente desagradável estava de alguma forma relacionada com a mulher. Mas não conseguia lembrar como nem por quê.
Avançou pela varanda de tábuas de sequóia vermelha. Sequóia vermelha, estuque branco, grossas vigas de madeira... assim era a casa na praia. A versão típica de um arquiteto do estilo Tudor na praia de Malibu.
As portas de vidro na extrema direita da varanda estavam parcialmente abertas. Era a entrada para o quarto. Na mesa ao lado da porta havia uma garrafa de Pernod pela metade. A ca- a deira ao lado da mesa estava caída. Um par de sandálias estava ao lado, os calcanhares unidos, numa estranha posição.
Peter começou a se lembrar do que acontecera. Fizera amor : com a mulher de seios grandes - e de maneira inadequada, lem- í brava-se agora - e depois, por náusea ou amor-próprio, saíra f para a varanda e ficara sentado ali, sozinho, bebendo Pernod, no gargalo mesmo.
Por que fizera aquilo? De onde teria vindo o Pernod? Que diferença fazia se tinha um desempenho aceitável ou não com um corpo condescendente recrutado em Beverly Hills? Não conseguia recordar. Segurando-se na grade da varanda, encaminhou-se para a cadeira caída e para as portas de vidro.
Havia moscas mortas flutuando no Pernod; urna outra, ainda viva, circulava hesitante pelo gargalo da garrafa. Peter pensou se deveria ou não levantar da cadeira, mas acabou decidindo que não. A cabeça estava agora doendo muito, não apenas as têmporas, mas também ao longo da cicatriz sinuosa que ia da lesta à base do crânio. A dor parecia ondular, como que orientada por um raio invisível.
Um sinal de advertência. Tinha que se mover lentamente.
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Claudicando, aproximou-se com todo cuidado da porta. estava na maior confusão. Havia roupas espalhadas por todo O quarto
nos móveis e pelo chão, cinzeiros virados, pontas de cigarros
espalhadas por toda parte, um copo quebrado na frente da mesinha de cabeceira, o telefone arrancado da tomada.
A mulher estava na cama, deitada de lado, os seios juntos, comprimidos, estendidos, intumescidos como duas esferas pontudas Os cabelos louros caíam-lhe sobre o rosto,
afundado no travesseiro. O lençol de cima cobria a metade inferior do corpo; uma perna saía para fora do lençol, deixando à mostra a pele queimada de sol da parte
interna da coxa. Contemplando-a, Peter sentiu-se excitado. Respirou fundo algumas vezes, cada vez mais excitado com os seios da mulher, a perna à mostra, o rosto
quase inteiramente oculto pela massa de cabelos louros.
Ainda estava embriagado. Soube disso ao descobrir que não queria ver o rosto da mulher. Queria simplesmente fazer amor com um objeto; não queria admitir a existência de uma pessoa.
Deu um passo na direção da cama e parou. Cacos de vidro estavam em seu caminho. O que explicava as sandálias lá fora. Pelo menos ele tivera a presença de espírito de usá-las. E o telefone. Lembrava-se de ter gritado ao telefone.
A mulher virou-se na cama, ficou deitada de costas. O rosto era bonito, com ar da Califórnia. Um rosto petulante, bronzeado, com as feições pequenas demais e excessivamente harmoniosas para indicarem algum caráter. Os seios grandes se separaram, o lençol caiu para o lado, deixando à mostra os cabelos púbicos, as coxas suaves. Peter foi até o pé da cama e tirou a cueca molhada. Podia sentir um pouco de areia nas pontas dos dedos. Colocou o joelho direito na cama, tomando cuidado para manter a perna esquerda esticada. Só depois, lentamente, estendeu-se sobre os lençóis.
A mulher abriu os olhos. Quando falou, foi com uma voz suave, bem modulada, um pouco arrastada por causa do sono:
- Venha para perto de mim, meu bem. Está se sentindo melhor?
Peter ajeitou-se ao lado da mulher. Ela estendeu a mão para seu pênis, acariciou-o gentilmente.
- Estou lhe devendo desculpas? - perguntou Peter.
- Mas claro que não. Talvez deva a si mesmo, mas não a ""m. Ficou martelando que nem um aríete, mas tenho a impressão ae que não lhe adiantou muita coisa. Ficou simplesmente furioso e acabou saindo do quarto.
- Sinto muito.
Peter estendeu a mão para o seio esquerdo da mulher. O mam»o ficou logo duro sob a pressão dos seus dedos. A mulher ge-
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meu e puxou-o de encontro a seu corpo, com movimentos rápidos e suaves. Ou ela era uma excelente artista ou uma parceira sexual altamente desenvolvida, que não precisava de muito estímulo.
- Ainda estou excitada. Você simplesmente não parou. Continuou e continuou por muito tempo, mas nada aconteceu para você. Para mim, no entanto, foi o paraíso! Vamos, meu carneirinho, venha trepar em mim... trepe sem parar, até não aguentar mais...
Peter enterrou o rosto entre os seios dela. A mulher abriu as pernas, convidando-o a entrar. Mas a dor na cabeça de Peter aumentou ainda mais, fazendo todo o seu crânio latejar terrivelmente.
- Não posso... não posso...
A voz de Peter era quase inaudível.
- Não se preocupe, meu bem. Vamos, não se preocupe com nada. - A mulher fê-lo deitar de costas, gentilmente. - Procure apenas relaxar, meu bem. Relaxe e deixe que eu cuido de tudo.
Os movimentos tornaram-se confusos, indistintos. Peter sentiu que estava diminuindo. Mas as mãos da mulher eram insistentes, ágeis, peritas, os lábios macios, provocantes. Sabia fazer as carícias certas. Peter sentiu que estava voltando a viver. E tinha mesmo necessidade.
Mas que diabo! Ele tinha que servir para alguma coisa!
Peter empurrou a cabeça da mulher em direção de sua virilha. Ela gemeu, abriu as pernas, suave, macia. Peter segurou-a por baixo dos braços, puxou-a até que ficasse paralela a seu corpo. A respiração dela saía em gemidos roucos, guturais, muito altos.
Ele não podia parar agora. Não podia permitir que a dor interferisse.
- Oh, Pete, você é sensacional! Oh, meu Deus, é o maior trepador de todos os tempos! Vamos, meu carneirinho! Agora! A gora!
Todo o corpo da mulher tremia, se retorcia. Os sussurros eram entremeados de gritos.
- Puxa! Está me deixando louca, amor! É o melhor que já existiu! Nunca houve ninguém como você!
Peter explodiu dentro dela. O corpo ficou inerte; sentiu que a a dor nas têmporas retrocedia. Pelo menos servia para alguma coisa. Conseguira excitar a mulher, fazer com que o desejasse.
E foi nesse momento que ouviu a mulher dizer, em tom bastante profissional:
- Pronto, carneirinho. Não foi tão difícil assim, não é mesmo? Peter fitou-a. A expressão dela era a de uma atriz que acabara
de receber muitos aplausos por seu desempenho.
- vou ter que lhe pagar - disse ele, suave e friamente.
- Não precisa. - A mulher soltou uma risada. - Não vou aceitar seu dinheiro. Ele já está me pagando o suficiente.
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Peter lembrou-se de tudo. A festa, a discussão, a viagem na mais completa embriaguez desde Beverly Hills, a sua raiva ao
telefone.
Aaron Sheffield, produtor cinematográfico, o homem que comprara Contra-ataque!
Sheffield estivera na festa, levando a jovem esposa a reboque. Fora Sheffield quem lhe telefonara, convidando-o para a festa. Não havia qualquer razão para recusar o convite e sim para aceitálo: seu esquivo co-autor do roteiro de Contra-ataque! era o anfitrião.
Não precisa se preocupar. Escreveu uma história sensacional, meu querido.
Mas na noite anterior tinha havido algo que justificava a preocupação... E queriam dizer-lhe num ambiente ameno e agradável. Mais do que agradável.
O estúdio recebera diversos telefonemas "muito sérios" de Washington a respeito da filmagem de Contra-ataque! Haviam ressaltado que o livro incorria num grave erro: a CIA não tinha operações internas. Não se envolvia em quaisquer atividades dentro das fronteiras dos Estados Unidos. Os estatutos da CIA, elaborados em 1957, proibiam expressamente tais atividades. Por isso, Aaron Sheffield concordara em modificar essa parte do roteiro. A CIA de Peter Chancellor iria se transformar num corpo de elite de antigos especialistas descontentes com o serviço secreto, operando fora dos canais governamentais.
Mais que coisa!, dissera Aaron Sheffield. Do ponto de vista dramático, fica muito melhor. Conseguimos, assim, dois tipos de vilões e ainda deixamos Washington satisfeita.
Mas Peter ficara furioso. Sabia perfeitamente o que havia dito, conhecia a fundo o assunto sobre o qual escrevera. Conversara com homens realmente descontentes que haviam trabalhado para a organização e ficara estarrecido ao descobrir o que eles tinham sido obrigados a fazer. Surpreendera-se porque era ilegal e porque não tinha havido qualquer alternativa. Um maníaco chamado J. Edgar Hoover cortara todos os vínculos de informações entre o FBI e a CIA. Os próprios homens da CIA tinham que procurar obter as informações de caráter interno que lhes eram negadas. A quem iriam se queixar? A Mitchell? A Nixon?
A maior parte do impacto de Contra-ataque! estava no uso específico da CIA. Eliminar isso seria anular uma grande parte do livro. Peter tinha-se oposto com todo vigor. E quanto mais furioso, mais tinha vontade de beber. E quanto mais embriagado, mais sedutora a mulher a seu lado se tornava.
Sheffield o levara de carro para casa. Peter e a mulher tinham ido no banco traseiro, a saia dela levantada acima da cintura, a blusa desabotoada, os seios enormes à mostra, as sombras deslizan-
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do por cima, deixando-o cada vez mais excitado. A excitação da embriaguez.
Haviam entrado juntos na casa, enquanto Sheffield ia embora. A mulher tinha levado duas garrafas de Pernod, um presente de Aaron. E as coisas tinham continuado. Desvarios, embriaguez, corpos nus.
Até que a dor lancinante no crânio obrigara-o a parar, proporcionando-lhe uns poucos momentos de lucidez. Peter pegara o telefone, procurara furiosamente o número de Sheffield em suas anotações na mesinha de cabeceira, apertara os botões com violência.
E gritara com Sheffield, chamando-o dos piores palavrões de que pudera se recordar, berrando suas objeções - e seu sentimento de culpa - por ter sido manipulado de maneira tão sórdida. Não iria permitir absolutamente qualquer alteração em Contra-ataque!
Deitado agora na cama, com a loura a seu lado, Peter recordou-se das palavras de Sheffield ao telefone:
- Vamos com calma, garoto. Que diferença isso pode fazer para você? Não tem o direito de se manifestar quanto ao roteiro. Estávamos apenas sendo educados. Está na hora de descer da sua torre de marfim. Não passa de um cara insignificante como todos nós.
A loura deitada na cama ao lado de Peter era a esposa de Aaron Sheffield.
Peter virou-se para ela. Os olhos vazios estavam agora um pouco mais brilhantes, mas continuavam mortos. Ela abriu a boca e estendeu a língua experiente, movendo-a sensualmente para a frente e para trás, transmitindo uma mensagem inconfundível.
A atriz merecedora de aplausos estava pronta para apresentar outro número.
E quem se importava? Peter estendeu as mãos para ela.
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O homem cujo rosto figurava entre os mais conhecidos da nação estava sentado sozinho à mesa 10 do Restaurante Mayflower, na Connecticut Avenue. A mesa ficava ao lado da janela e seu ocupante olhava distraidamente pelo vidro, mas não sem sentir uma vaga hostilidade contra as pessoas que passavam pela rua.
Ele tinha chegado ao restaurante precisamente às Ilh35miní terminaria o almoço e partiria às 14h40min. Era um hábito que já durava mais de 20 anos. Uma hora e cinco minutos era o hábito; não o Mayflower. O Mayflower era uma mudança recente, desde o fechamento do Harveys, a alguns quarteirões de distância.
O rosto, de maxilares enormes, boca repuxada, os olhos parcialmente esbugalhados de quem sofre da tiróide, havia desmoronado quase por completo. Os maxilares estavam agora caídos, frouxos; uma carne enrugada e manchada caía por cima das fendas que outrora tinham sido olhos; as mechas de cabelos muito bem cuidadas comprovavam o narcisismo inerente à expressão agressivamente negativa.
Seu companheiro habitual não estava presente. A saúde precária e dois enfartes impediam que aquele homem, sempre muito bem vestido, estivesse ali com seu rosto suave, esforçando-se por exibir ainda alguma virilidade. O homem prestes a almoçar olhou para o outro lado da mesa, como se esperasse avistar o seu atraente alter ego.
O fato de não ver ninguém pareceu desencadear nele um tremor nos dedos e uma comichão recorrente na boca. Parecia envolvido pela solidão. Os olhos correram ao redor,
alertas a inimigos reais e imaginários que o cercavam.
Um garçom predileto estava indisposto naquele dia. Era uma afronta pessoal. E não podia deixá-la passar em branco.
Salada de frutas com requeijão era um pedido da mesa 10. Foi preparado no balcão de aço inoxidável da cozinha. O segundo assistente do chef, um homem louro, contratado temporariamente,
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examinou as diversas bandejas, avaliando a aparência com olhos experientes. Parou por um momento diante da salada pedida pela mesa 10 com uma prancheta nas mãos.
Por baixo da prancheta, segurava com uma das mãos uma pequena pinça prateada. A pinça segurava uma pequena cápsula branca. O homem louro sorriu para o garçom que entrava. No mesmo momento, passou a pinça por baixo da prancheta e mergulhou-a no requeijão, tirou-a rapidamente e seguiu adiante.
Segundos depois, voltou a examinar o pedido da mesa 10, sacudiu a cabeça e ajeitou o requeijão no centro da salada de frutas com um garfo.
Dentro daquela cápsula branca havia uma pequena dose de ácido lisérgico. A cápsula iria se desintegrar e liberar o narcótico sete ou oito horas depois de ser ingerida.
A tensão e desorientação que iria produzir seriam suficientes. E por ocasião da morte, não haveria quaisquer vestígios na corrente sanguínea.
A mulher de meia-idade estava sentada numa sala sem janela. Escutou atentamente a voz que saía do alto-falante, depois repetiu as palavras no microfone de um gravador. Seu objetivo era imitar ao máximo possível a voz do alto-falante, que agora já lhe era bastante familiar. Deveria repetir cada tom inconstante, cada nuança, as pausas curtas, as sibilantes pouco acentuadas.
A voz que saía pelo alto-falante era a de Helen Gandy, há muitos anos secretária particular de John Edgar Hoover.
Havia duas pequenas valises num canto do estúdio. Ambas estavam cheias. Dentro de quatro horas, a mulher e as valises estariam num voo transatlântico para Zurique. Era a primeira etapa de uma viagem que a levaria mais para o sul, até as ilhas Baleares, para uma casa à beira da praia, em Majorca. Mas, primeiro, teria que passar por Zurique, onde o Staats-Banque lhe pagaria, mediante sua assinatura, uma quantia negociada com a Barclays, a qual, por sua vez, efetuaria a transferência do dinheiro, em duas parcelas, para sua filial em Palma. A primeira parcela estaria disponível imediatamente, a segunda dentro de 18 meses.
A mulher tinha sido contratada por Varak. Ele achava que, para cada trabalho, há sempre um candidato certo e eficiente. Os bancos de memórias dos computadores do Conselho de Segurança Nacional haviam sido consultados em segredo, apenas por Varak, até apresentarem a candidata certa que ele procurava.
Á mulher era viúva, antiga atriz de rádio. Ela e o marido haviam sido apanhados pelas correntezas da loucura das malhas dos comunistas em 1954 e nunca mais tinham
se recuperado. Fora
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loucura sancionada e ajudada pelo FBI. O marido dela, con-
u."? .flj0 por muitos como um homem de talento extraordinário,
S1.-g tinha conseguido trabalho durante sete anos. Ao final desse
11 ríodo seu coração não resistiu mais à angústia. O homem mor-
u numa estação do metro, a caminho do banco onde conseguira
empreguinho como escriturário, no centro da cidade. Agora, á fazia 18 anos que a mulher estava liquidada profissionalmente. O sofrimento, a rejeição e a solidão lhe haviam roubado a capacidade de competir.
Não havia qualquer competição no que fazia agora. Não lhe haviam dito por que estava fazendo tudo aquilo. Apenas lhe haviam instruído que sua conversa tinha que resultar num "sim" da pessoa no outro lado da linha.
O interlocutor seria um homem a quem a mulher detestava e odiava com toda a força do seu ser. O principal causador da loucura que lhe arruinara a vida.
Passavam alguns minutos das nove horas. A presença do caminhão da companhia telefónica não era uma cena incomum na Rua 13, no setor noroeste de Washington. A rua pequena era um beco sem saída, terminando nos portões imponentes da residência do embaixador peruano, com o escudo nacional exibido com destaque nas colunas de pedra. A dois terços do final do quarteirão, à esquerda, erguia-se a casa de tijolos vermelhos, já desbotados pelo tempo, pertencente ao diretor do FBI. Uma ou ambas as residências estavam continuamente recebendo novos cabos telefónicos.
De vez em quando, furgões sem qualquer identificação patrulhavam a área, com antenas saindo do teto. Dizia-se que o próprio John Edgar Hoover ordenava tais patrulhas, a fim de verificar se não havia nas proximidades quaisquer sistemas de vigilância eletrônica, colocados por governos estrangeiros inimigos.
Frequentemente, o embaixador peruano apresentava uma queixa ao Departamento de Estado. Era uma situação embaraçosa, pois o Departamento de Estado não podia fazer absolutamente nada. A vida particular de Hoover era uma extensão de seu baronato profissional.
Além do mais, o Peru não era muito importante.
O caminhão da companhia telefónica desceu pela rua, fez uma curva em U e voltou até a ssquina, virou à direita e avançou por cerca de 50 metros, entrando num complexo de garagens. Ao final desse trajeto, havia um muro de pedra que se erguia nos funds da Rua 13, 4936, a residência de Hoover. Acima e além da Saragem, havia outras casas, com janelas que davam para a pro-
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priedade de Hoover. O homem no caminhão da telefónica sabia que, numa dessas janelas, estava postado um agente do FBI, membro de uma equipe que mantinha uma vigilância de 24 horas por dia no local. As equipes eram secretas e trocadas a cada semana.
O motorista do caminhão sabia também que quem quer que estivesse numa daquelas janelas daria um telefonema de rotina para um número especial da companhia telefónica. A indagação seria simples, sobre um estranho zumbido na linha: que problema levara um caminhão de conserto até aquela área, àquela hora?
O operador consultaria sua relação e responderia a verdade, conforme a recebera.
Havia um defeito numa caixa de junção. Suspeita: um esquilo curioso penetrara na proteção. Os danos causados por essa inesperada intromissão eram os responsáveis pelo zumbido na linha. O interlocutor não estava ouvindo o zumbido?
Claro que estava.
Varak aprendera há muitos anos, assim que começara a trabalhar com o Conselho de Segurança Nacional, que nunca se devia dar uma resposta muito simples a perguntas formuladas por equipes de vigilância de uma área. Simplesmente não seriam aceitas, assim como as respostas muito complicadas também não o seriam. Mas havia sempre um terreno intermediário.
O radiotelefone de alta frequência do caminhão começou a zumbir: era um chamado. Um agente alerta do FBI ligara para a companhia telefónica fazendo indagações. O motorista parou o caminhão, deu a volta, percorreu cerca de 35 metros pelo caminho por onde viera, até o poste telefónico. Dali podia avistar a casa perfeitamente. Parou o pequeno caminhão e ficou esperando, algumas plantas abertas sobre o banco da frente, a seu lado, dando a impressão de que as estava examinando.
Os agentes do FBI de serviço muitas vezes davam voltas, a pé, pelos arredores durante a noite. Todas as possibilidades tinham que estar cobertas.
O caminhão estava agora cerca de 80 metros a noroeste da Rua 13, 4936. O motorista deixou o assento, foi para a traseira do caminhão, ligou o equipamento. Tinha que esperar exatamente
46 minutos. Durante esse tempo, teria que fazer uma ligação com as correntes que chegavam à residência de Hoover. As de maior voltagem eram as dos circuitos do sistema de alarma; as de menor voltagem, das lâmpadas e dos aparelhos de rádio e televisão. Definir as correntes do sistema de alarme era crucial, mas não menos importante era o conhecimento das outras correntes, pois indicaria que unidades elétricas estavam ligadas no quarto de empregada. Era vital saber disso. Annie Fields, antiga governanta pessoal de Hoover, estava passando a noite na casa.
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A limusine virou à direita, saindo da Pennsylvania Avenue e entrando na Rua 10, diminuindo a velocidade diante da entrada oeste do FBI. A limusine era idêntica à que diariamente levava o diretor ao prédio; tinha até mesmo a pequena amassadura no pára-choque cromado, que Hoover assim deixara, como um lembrete a seu motorista, James Crawford, de um descuido que nunca mais deveria cometer. Mas é claro que não era o mesmo carro. O veículo pessoal de Hoover era vigiado dia e noite. Mas ninguém, nem mesmo Crawford, poderia perceber qualquer diferença.
O motorista disse as palavras apropriadas ao microfone no painel e as imensas portas de aço se abriram. O guarda noturno bateu continência quando o carro passou pela estrutura de concreto, com seus três portais também de concreto, um seguido do outro. Um segundo guarda do Departamento de Justiça aproximouse e estendeu a mão para a maçaneta da porta traseira direita, abrindo a porta.
Varak saiu rapidamente e agradeceu ao atónito guarda. O motorista e um terceiro homem, que estava sentado ao seu lado, também saltaram, cumprimentando o guarda cordialmente, embora com alguma reserva.
- Onde está o diretor? - perguntou o guarda. - Esse é o carro particular do Sr. Hoover.
- Estamos aqui por instruções dele - disse Varak, calmamente. - Ele quer que sejamos levados diretamente para a Segurança Interna. Devem chamá-lo. A SI tem o número da linha especial. É uma emergência. Por favor, apresse-se.
O guarda olhou atentamente para os três homens bem vestidos e que se portavam com tanta desenvoltura. Sua preocupação diminuiu. Aqueles homens conheciam os códigos altamente secretos dos portões, que mudavam todas as noites. Além disso, traziam instruções para que telefonassem para o próprio diretor. E pela linha especial da Segurança Interna, que raramente era usada.
O guarda assentiu, levou os homens para a sala da Segurança Interna e depois retornou a seu posto lá fora. Por trás do amplo painel de aço, com incontáveis fios e pequenas telas de televisão, estava sentado um agente veterano, que se vestia de maneira não muito diferente dos três homens que apareceram inesperadamente na Segurança Interna. Varak tirou do bolso um cartão de identificação plastificado e colocou-o sobre o balcão, dizendo:
- Agentes Longworth, Krepps e Salter. Você deve ser Parke.
- Isso mesmo - respondeu o agente, pegando o cartão de identificação de Varak e estendendo a mão para os outros dois, que lhe estavam sendo entregues. - Já nos encontramos alguma vez, Longworth?
- Há uns 10 ou 12 anos. Em Quântico.
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O agente examinou rapidamente os cartões de identificação e devolveu-os, estreitando os olhos, procurando recordar.
- É isso mesmo. Estou me lembrando do nome, Al Longworth. Faz um bocado de tempo. - Ele estendeu a mão, que Varak apertou. - Por onde andou todo esse tempo?
- La Jolla.
- Puxa! Isso significa que tem um amigo e tanto!
- É por isso que estou aqui. Esses são os meus dois melhores homens no sul da Califórnia. Ele me telefonou ontem à noite. - Varak inclinou-se ligeiramente por cima
do balcão, antes de acrescentar: - Tenho más notícias, Parke. Pode-se dizer mesmo que são péssimas. - Ele baixou a voz para um mero sussurro: - Podemos estar nos
aproximando de "território aberto".
A expressão no rosto do agente veterano mudou abruptamente. O choque era evidente.
Entre os veteranos e agentes dos primeiros escalões do FBI a expressão "território aberto" significava o inconcebível: o diretor estava doente. Gravemente doente,
talvez com alguma coisa fatal.
- Oh, Deus... - murmurou Parke.
- Ele quer que você lhe telefone pela linha especial.
- Oh, não! - Naquelas circunstâncias, era óbvio que aquilo era a última coisa que o agente desejava fazer. - O que ele quer? O que devo dizer, Longworth? Oh, Deus!
- Ele quer que sejamos levados para Flags. Diga-lhe que estamos aqui. Confirme as instruções e providencie para que um dos meus homens fique nos controles.
- Nos controles? Para quê?
- Pergunte a ele.
Parke ficou olhando para Varak em silêncio por algum tempo, depois estendeu a mão para o telefone.
Quinze quarteirões ao sul, no porão de um prédio da companhia telefónica, um homem estava sentado diante de um painel de fios interligados. Pendurado no casaco, havia um cartão plastificado com a sua fotografia e, em letras grandes, por baixo, a palavra Inspetor. No ouvido direito estava preso um plugue, ligado a um amplificador no chão; ao lado do amplificador havia um pequeno gravador cassete. Os fios se ligavam a outros no painel.
A pequena lâmpada no amplificador acendeu. A linha especial da Segurança Interna do FBI estava sendo acionada. Os olhos do homem estavam fixados num botão do cassete. Ele escutava com os ouvidos de um profissional experiente. Apertou o botão no mesmo instante e a fita começou a rodar. Interrompeu-a quase no
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instante. Esperou alguns segundos e apertou novamente o botão, fazendo a fita recomeçar a rodar.
Quinze quarteirões ao norte, Varak escutava Parke: As palaras haviam sido retiradas, editadas e refinadas de diversas gravações. Conforme o planejado, a voz no outro lado da linha seria mais alta que uma voz normal; seria a voz de um homem esforçando-se para não se deixar dominar pela doença, empenhado em parecer normal e, ao fazê-lo, falando de maneira anormal. Psiquiatricamente, tal atitude não apenas se ajustava ao indivíduo em questão como também possuía um valor adicional. O volume implicava autoridade e a autoridade reduzia a possibilidade de a farsa ser descoberta.
- O que é?
A voz ríspida podia ser ouvida claramente.
- Aqui é o agente Parke, da Segurança Interna, Sr. Hoover, Os agentes Longworth, Krepps e...
Parke parou de falar, esquecendo o nome, com uma expressão desconcertada. Varak sussurrou-lhe:
- Salter.
- Salter, senhor. Longworth, Krepps e Salter. Estão aqui e disseram que deveria telefonar-lhe, para confirmar as instruções. Disseram que devem ser conduzidos a seu gabinete e que um dos homens deve ficar nos controles...
A voz ríspida interrompeu-o bruscamente:
- Esses homens estão aí por ordens pessoais minhas. Faça como eles estão dizendo. Devem receber total cooperação e ninguém deve ser informado. Entendido?
- Sim, senhor.
- Diga o seu nome outra vez.
- Agente Lester Parke, senhor.
Houve uma pausa. Varak contraiu os músculos do estômago, prendeu a respiração. A pausa era longa demais! Mas, finalmente, soou a resposta:
- Não vou esquecer o nome. Boa-noite, Parke.
E se ouviu o clique do telefone sendo desligado do outro lado. Varak voltou a respirar. Até mesmo o uso do nome funcionara. Fora retirado de uma conversa na qual o indivíduo em questão se queixara do alto índice de criminalidade em Rock Creek Park.
- Ele parece estar bem ruim - murmurou Parke, desligando o telefone e metendo a mão sob o balcão para pegar três passes noturnos.
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- Ele é um homem muito corajoso - comentou Varak. Perguntou o seu nome?
- Perguntou - respondeu o agente, inserindo os passes no relógio de ponto.
- Se o pior acontecer, você pode receber uma gratificação - sussurrou Varak, desviando-se ligeiramente dos dois companheiros.
- Como assim?
- Um legado pessoal. Nada de oficial.
- Não estou entendendo.
- Não é para entender. Mas ouviu o homem; eu também ouvi. Guarde segredo, como recomenda o manual. Se não o fizer, terá que me prestar contas... O diretor é o melhor amigo que já tive.
Parke olhou para Varak, espantado, murmurando:
- La Jolla.
- La Jolla - respondeu Varak.
Havia muito mais sendo transmitido que o simples nome de uma pequena cidade à beira-mar na Califórnia. Há anos que circulavam rumores sobre os grandes projetos de um monarca aposentado, numa mansão de frente para o Pacífico, um governo clandestino possuindo os segredos de uma nação.
A mulher de meia-idade e expressão triste observava o ponteiro dos segundos no relógio na parede do pequeno estúdio. Faltavam 55 segundos. O telefone estava em cima da mesa, diante do gravador que ela usara para ensaiar as palavras. E ensaiara as palavras. E ensaiara durante uma semana inteira para uma única apresentação, que não duraria mais do que um minuto.
Ensaio. Performance.
Palavras de um vocabulário quase esquecido.
Ela não era nenhuma tola. O homem estranho e louro que a havia contratado não tinha explicado quase nada, mas havia dito o suficiente para que ela percebesse que estava prestes a fazer algo muito bom. Desejado por homens muito melhores do que o homem com quem iria falar pelo telefone. . . dentro de 40 segundos.
A mulher pôs-se a recordar, enquanto observava o ponteiro do relógio na parede avançar lentamente na direção da marca esperada. Haviam declarado outrora que seu marido era um grande talento. Era o que todos diziam. Estava a caminho de se tornar um astro, um verdadeiro astro, não apenas um acidente fotogênico. Era o que todos diziam.
Mas foi então que apareceram outras pessoas para dizer que ele estava na lista. Uma lista muito importante, a lista que dizia
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e cie não era um bom cidadão. E os que constavam dessa lista haviam recebido um rótulo.
Subversivo.
E o rótulo fora legitimado. Jovens de lábios contraídos e lernos escuros começaram a aparecer nos estúdios e nos escritórios dos produtores.
FBI.
Haviam se reunido por trás de portas trancadas, em conversas
sigilosas.
Subversivo. Era uma palavra associada ao homem com quem estava prestes a falar.
Ela estendeu a mão para o telefone, sussurrando:
- Isso é por você, meu querido...
Sentia-se excitada, a adrenalina corria por suas veias como antes. Subitamente, a calma dominou-a por completo. Estava confiante, era outra vez uma profissional. Seria o maior desempenho de sua vida.
John Edgar Hoover estava deitado na cama, tentando focalizar a televisão no outro lado do quarto. Mudava continuadamente de canal, através do controle remoto. Mas nenhuma das imagens era nítida. Ele se sentia ainda mais irritado por uma estranha secura na garganta, uma sensação de vazio. Nunca experimentara nada parecido antes. Era como se um buraco tivesse sido aberto no pescoço, deixando que ar demais penetrasse na parte superior do peito. Mas não havia dor, apenas uma sensação incómoda, de alguma forma relacionada ao som distorcido que agora saía do aparelho de televisão.
Aumentando e diminuindo. Mais alto, depois mais suave.
E, estranhamente, ele sentia fome. Nunca sentira fome àquela hora. Condicionara-se a não sentir.
Era tudo extremamente irritante... e a irritação foi aumentada pelo toque da campainha de seu telefone particular. Não havia mais de dez pessoas em Washington que tinham aquele número. E ele não estava esperando uma crise. Estendeu a mão para atender o telefone e disse, furiosamente:
- O que é?
- Desculpe incomodá-lo, Sr. Hoover, mas é urgente.
- Miss Gandy? - O que haveria de errado com o seu ouvido? A voz de Gandy parecia flutuar irregularmente, ora mais alta, ora mais suave. - Qual é o problema, Miss Gandy?
- O Presidente telefonou de Camp David. Está a caminho da Casa Branca e gostaria que o senhor recebesse o Sr. Haldeman esta noite.
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- Esta noite? Por quê?
- Ele me disse que o informasse que se trata de um problema da maior importância, relacionado com informações acumuladas pela CIA nas últimas 48 horas.
John Edgar Hoover não pôde evitar a expressão contrariada que se estampou em seu rosto. A CIA era uma abominação, um bando de sicofantas dominados pela ortodoxia liberal. Não merecia a menor confiança.
Como também não merecia confiança o atual ocupante da Casa Branca. Mas se ele dispunha de informações que por direito pertenciam ao FBI, e se estas eram suficientemente vitais para que enviasse um homem - e logo aquele homem - no meio da noite para transmiti-las, então não havia sentido em recusar o encontro.
Hoover desejou que o vazio em sua garganta desaparecesse. Era cada vez mais irritante. Algo mais o aborrecia.
- Miss Gandy, o Presidente tem este número. Por que ele não telefonou pessoalmente?
- Ele foi informado de que o senhor estava jantando fora. E sabe que não gosta de ser incomodado num restaurante. Por isso me incumbiu de coordenar o encontro.
Hoover semicerrou os olhos, verificando a hora, através dos óculos, no relógio na mesinha de cabeceira. Ainda era cedo, apenas 10hl5min. Deixara a casa de Tolson às oito horas, alegando um cansaço súbito. O serviço de informações do Presidente também não era muito acurado. Ele não estivera num restaurante, mas sim com Clyde.
E se sentira tão cansado que fora deitar muito antes da hora habitual.
- Está certo, receberei Haldeman. Aqui em casa.
- Era o que eu estava imaginando, senhor. O Presidente sugeriu que talvez tivesse necessidade de ditar memorandos e instruções para diversos escritórios. Eu me ofereci para ir com o Sr. Haldeman. O carro da Casa Branca deve estar chegando aqui para me buscar.
- Fez muito bem, Miss Gandy. Eles devem ter algo muito interessante para provocar toda essa movimentação.
- O Presidente não quer que ninguém saiba que o Sr. Haldeman vai visitá-lo. Disse que seria terrivelmente embaraçoso se a notícia se espalhasse.
- Use a entrada lateral, Miss Gandy. Tem a chave. O alarme será desligado. Avisarei à vigilância.
- Está certo, Sr. Hoover.
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A mulher de meia-idade desligou o telefone diante do gravador e recostou-se na cadeira.
Ela conseguira! Correra tudo bem! Conseguira reproduzir o ritmo, cada nuança tonal, as pausas quase imperceptíveis, as inflexões ligeiramente anasaladas. Tudo perfeito!
O mais extraordinário era que não tinha hesitado um instante sequer. Era como se os terrores de 20 anos tivessem sido apagados numa questão de segundos.
Tinha mais um telefonema a dar. Neste, poderia usar qualquer voz que quisesse, quanto mais suave melhor. Discou o número.
- Casa Branca - disse uma voz no outro lado da linha.
- FBI, meu bem - disse a atriz de meia-idade, com um sotaque ligeiramente sulista. - É apenas uma informação para o registro, nada de urgente. Às nove horas desta noite, o diretor recebeu a mensagem do Sr. Haldeman. Estou apenas confirmando a recepção, nada mais.
- OK, está confirmado. vou anotar no registro. Um dia sufocante, não acha?
- Mas está fazendo uma linda noite - respondeu a atriz.
- A mais linda noite dos últimos anos.
- Acho que alguém vai ter um encontro dos bons.
- Tenho algo melhor do que isso. Muito melhor. Boa-noite, Casa Branca.
- Boa-noite, FBI.
A mulher levantou, pegou a bolsa.
- Conseguimos, meu querido - murmurou ela.
Seu último desempenho fora o melhor. Estava agora vingada. Estava agora livre.
O motorista no caminhão da telefónica estudou atentamente o mapa do campo elétrico. Havia interrupções nos circuitos de maior voltagem nas áreas esquerda e central inferiores. O que significava que os sistemas de alarme nessas áreas haviam sido desligados: a entrada de carros, a porta no muro de pedra e o caminho que levava aos fundos da casa.
Tudo estava transcorrendo de acordo com o previsto. O motorista consultou o relógio. Estava quase na hora de subir no poste telefónico. Verificou o resto do equipamento. Quando puxasse uma alavanca, a corrente elétrica da residência de Hoover seria interrompida. Lâmpadas, aparelhos de televisão e de rádio iriam apagar, e depois acender novamente, numa rápida sucessão de alterações. As interrupções durariam 20 segundos, não mais do que isso. O tempo era suficiente, a distração momentânea bastaria.
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"
Mas antes que a alavanca fosse puxada, havia um trabalho a fazer. Se um costume inalterado há anos fosse repetido naquela noite, um obstáculo seria eficientemente removido. Olhou de novo para o relógio.
Agora.
Abriu as portas traseiras do caminhão e saltou para a rua. Seguiu rapidamente até o poste, desprendeu uma das extremidades do comprido cinto de segurança e passou em torno do poste de madeira, voltando a prender em seguida no fecho em sua cintura. Levantou as botas, uma de cada vez, ajeitando os espigões.
Olhou em torno. Não havia ninguém à vista. Ajeitou o cinto de segurança e começou a subir. Em menos de 30 segundos estava quase no alto do poste.
A luz do lampião próximo era intensa demais, perigosa demais. O lampião estava suspenso por uma pequena braçadeira de metal, logo acima dele. O homem meteu a mão no bolso e tirou uma pistola de ar comprimido, carregada com chumbinhos. Examinou o terreno da casa, a rua, as janelas por cima da fileira de garagens. Depois, apontou a pistola de ar comprimido para o lampião e puxou o gatilho.
Houve um pequeno ruído, seguido imediatamente pela estática de filamentos elétricos explodindo. O lampião apagou.
O homem ficou esperando, em silêncio. Não houve mais qualquer ruído. Na escuridão, ele abriu a bolsa de equipamento que carregava e tirou um cilindro de metal de 45 centímetros de comprimento. Era o cano de um rifle de aparência estranha. De outro compartimento da bolsa, tirou um cabo de aço e atarraxou-o na extremidade do cilindro. Na extremidade do cabo havia um ponto de apoio. De um terceiro compartimento, extraiu um visor telescópico infravermelho de 30 centímetros, fabricado especialmente para se ajustar ao cilindro. Uma vez ajustado, o visor era consideravelmente acurado. Por fim, o homem tirou do bolso a unidade de disparo, com o gatilho. Ajustou-a na abertura por baixo do cano e testou o gatilho silencioso. Estava tudo pronto, só faltava a munição.
Aninhando o estranho rifle no braço esquerdo, ele meteu a mão direita no bolso e tirou um dardo de aço, cuja ponta fora embebida em tinta luminosa. Inseriu o dardo na câmara e fechou-a. O cão da arma estava puxado para trás. O rifle já estava devidamente preparado para o disparo.
Olhou para o relógio. Eram 10h44min. Saberia em breve se o antigo hábito iria se repetir mais uma vez naquela noite. Suspenso
15 metros acima do solo, o homem ajeitou-se e apertou o cinto de segurança, até que seu corpo ficou comprimido contra o pos-
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Levantou o rifle e ajustou a extremidade curva do cabo no
ombro. ,
Olhcu através do circulo verde luminoso que era o visor e foi deslocando o rifle cuidadosamente, até que a porta dos funHos da residência do diretor do FBI estivesse claramente delineada Apesar da escuridão, a visão era extremamente nítida. As linhas cruzadas da mira apontavam diretamente para os degraus da entrada.
Ele esperou. Os minutos foram se arrastando lentamente. Consultou rapidamente o relógio. Eram 10h53min. Não poderia esperar por muito mais tempo. Teria que voltar ao caminhão para puxar a alavanca.
Justamente naquela noite, entre tantas noites, a rotina não seria observada!
E foi nesse momento que a luz da varanda dos fundos acendeu. A porta abriu. O homem no poste sentiu-se invadido por uma onda de alívio.
O animal entrou na mira do visor infravermelho. Era o enorme mastim de Hoover, tido como um dos cães mais ferozes do mundo. Comentava-se também que o diretor do FBI gostava da comparação entre as caras do animal e do dono.
O costume de muitos anos estava sendo mantido. Todas as noites, entre 10h45min e llh, Hoover ou Annie Fields deixava o cachorro sair de casa, para ficar vagueando pelos jardins.
A porta fechou, a luz na varandinha continuou acesa. O homem no poste deslocou o rifle, acompanhando o cachorro. As linhas cruzadas estavam agora focalizadas na garganta do animal.
Ele apertou o gatilho. Houve um pequeno clique metálico. Pelo visor, o homem pôde observar os olhos do cachorro se arregalarem, em choque. As imensas mandíbulas se abriram, mas nenhum som foi emitido.
O animal desabou no chão, narcotizado.
Um automóvel cinza, sem qualquer característica definida, parou cerca de 30 metros depois da entrada de carros da Rua 13, 4936. Um homem alto, de terno cinza-escuro, saiu pela porta de trás e olhou para um lado e outro do quarteirão. Perto da residência do embaixador peruano havia uma mulher passeando com um dálmata. Na outra direção, talvez a uns 200 metros de distância, um casal se encaminhava para uma porta iluminada.
Afora isso, não se via mais nada.
O homem consultou o relógio, apalpou o volume no bolso do casaco. Dispunha exatamente de meio minuto, 30 segundos. Depois disso, teria precisamente 20 segundos.
Assentiu para o mo-
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í
torista do carro e encaminhou-se para a entrada da casa; as solas de borracha dos sapatos não permitiam que fizesse o menor ruído na calçada. Virou rapidamente na entrada de carros, sem diminuir o passo, aproximou-se da porta no muro. Tirou do cinto uma pequena pistola de ar comprimido, empunhando-a com a mão esquerda. O dardo estava no lugar, mas esperava não ter que usá-la.
Olhou para o relógio. Onze segundos. Deixaria passar três segundos adicionais, como margem de segurança. Verificou a posição da chave na mão direita.
Agora.
Inseriu a chave, girou-a, abriu a porta e entrou na propriedade. Deixou a porta entreaberta 15 centímetros. O imenso cachorro estava caído na grama, as mandíbulas frouxas. O motorista do caminhão da telefónica fizera a sua parte com toda eficiência. Ele iria remover o dardo ao sair. Pela manhã, não haveria qualquer vestígio do narcótico. O homem alto voltou a guardar no bolso a pistola com o dardo.
Seguiu rapidamente para a porta dos fundos no primeiro andar, contando mentalmente os segundos. Podia ver o apagar e acender intermitente das luzes por toda a casa. Pelos seus cálculos, ainda restavam nove segundos quando inseriu a segunda chave na fechadura.
A chave não estava querendo virar! O mecanismo estava emperrado. Pôs-se a mexer com a chave freneticamente.
Quatro segundos, três...
Os dedos, dedos de cirurgião, metidos em luvas cirúrgicas, manipularam rápida e delicadamente o pedaço de metal denteado dentro do orifício como se fosse um bisturi dentro de carne.
Dois segundos, um...
Abriu!
O homem alto entrou na casa, deixando a porta também entreaberta.
Parou por um momento no corredor, escutando. As luzes estavam novamente firmes. Podia ouvir o barulho do aparelho; de televisão no quarto de empregada, no outro lado da casa. Lá em cima, o barulho era mais fraco, embora também desse parai ouvir. Começara o noticiário das 11 h. O médico imaginou porf um momento como seria o noticiário das llh no dia seguinte. Gostaria de poder ficar em Washington só para ouvir.
Foi até a escada, começou a subir. Lá em cima, parou diante da porta à direita da escada. A porta que levava ao homem que desejava encontrar há duas décadas.
Esperava com ódio. Um ódio profundo, um ódio que jamais poderia ser esquecido.
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Virou a maçaneta cautelosamente, abriu a porta bem devagar, n diretor do FBI estava cochilando, a cabeça ligeiramente virada, as papadas caindo sobre o pescoço grosso. Nas mãos gordas e um pouco femininas estavam os óculos, que sua vaidade raramente lhe permitia usar em público.
O médico foi até o aparelho de televisão e aumentou o volume, de modo que o ruído se espalhasse por todo o quarto. Foi para o pé da cama e ficou olhando para o objetivo de seu ódio tão antigo.
A cabeça do diretor do FBI pendeu subitamente, depois se levantou. O rosto estava contorcido.
- O que foi?
- Ponha os óculos - disse o médico, falando mais alto que o barulho da televisão.
- Mas o que houve? Miss Gandy?... Quem é você? Não, não pode ser...
Tremendo, Hoover pôs os óculos.
- Olhe bem. Já se passaram 22 anos.
Os olhos esbugalhados, dentro das dobras de carne além das lentes, finalmente focalizaram o homem alto. E o que viram fez com que Hoover soltasse uma exclamação de espanto.
- Você! Mas como...?
- Foram 22 anos - continuou o médico, mecanicamente, mas alto o bastante para ser ouvido apesar do barulho que saía da televisão. Ele tirou do bolso uma seringa e acrescentou: - Tenho um nome diferente agora. Trabalho em Paris, onde meus pacientes já ouviram algumas histórias, mas não se importam. Lê médecin américain é considerado um dos melhores do hospital...
De repente, Hoover estendeu o braço para a mesinha de cabeceira. O médico adiantou-se, imobilizando-lhe o pulso contra o colchão. Hoover fez menção de gritar, mas o médico deu-lhe uma cotovelada no pescoço, interrompendo qualquer som. Levantou o braço nu, que tremia incontrolavelmente.
com os dentes, o médico tirou a ponta de borracha da agulha. E enfiou-a na carne flácida da axila exposta.
- Isso é por minha esposa e meu filho. Por tudoo que me roubou.
O motorista do carro cinza virou-se no assento, olhando atentamente para as janelas do segundo andar da casa. As luzes se apagaram por cinco segundos, logo voltaram a acender.
O médico desconhecido cumprira a missão. O interruptor na cabeceira da cama havia sido encontrado e acionado. Não havia um segundo a perder. O motorista pegou o microfone da uni-
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dade de rádio, apertou o botão e disse, com um acentuado sotaque britânico:
- Fase Um, concluída.
A sala daquele escritório, conhecido pelo nome de Flags, tinha cerca de 12 metros de comprimento. A grande escrivaninha de mogno numa extremidade estava um pouco elevada, diante de cadeiras baixas, de estofamento em couro. Assim, os visitantes eram obrigados a olhar para cima, a fim de fitar o homem que sentava por trás da escrivaninha. Além da escrivaninha, praticamente escondendo a parede por trás, havia uma fileira de bandeiras, a do FBI e a nacional na posição central.
Varak estava parado diante da escrivaninha, olhando para os dois telefones. Um deles estava com o fone fora do gancho, a linha aberta ligada a um telefone no porão do prédio, na sala de controle, onde se manipulavam todos os sistemas de alarme. O outro telefone estava direito. Era uma linha externa, que passava pela mesa telefónica do FBI. Só que não havia qualquer número impresso no espaço circular no meio do disco.
A gaveta do meio da escrivaninha estava aberta. A seu lado, um segundo homem. A luz do abajur da escrivaninha iluminava sua mão direita, enfiada no espaço aberto da gaveta, a palma virada para cima. Os dedos estavam encostados num interruptor embutido por baixo do tampo da mesa.
O telefone começou a tocar. Varak atendeu imediatamente. Disse apenas uma palavra:
- Flags.
- Fase Um, concluída - foi a resposta que lhe chegou pela linha.
Varak assentiu. O homem à sua frente puxou o interruptor invisível.
Quatro andares abaixo, numa sala de concreto, um terceiro homem observava um painel de quadrados escuros embutidos na parede. Ouviu o zunido do telefone aberto que estava ao alcance de sua mão, na mesa de aço ao lado.
Subitamente, o tilintar de uma campainha rompeu a quietude da sala. Uma luz vermelha acendeu no centro do painel.
O homem apertou o quadrado pôr baixo da luz vermelha.
Silêncio.
Um guarda uniformizado abriu bruscamente a porta que dava para o corredor, os olhos arregalados.
- Estamos testando o sistema - disse o homem sentado dian-
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do painel, repondo o fone no gancho, calmamente. - Eu tinha
avisado.
- Santo Deus! - exclamou o guarda, respirando fundo. Vocês ainda vão fazer eu ter um enfarte!
- Não permita que lhe façamos uma coisa dessas - comentou o homem, sorrindo.
Varak observou Salter abrir a porta do armário que ficava por detrás das bandeiras e acender a luz. Os dois telefones estavam agora direitos. Mas ainda haveria um telefonema. De Varak para Bravo.
Não para Génesis. Génesis estava morto.
O homem agora era Bravo. Ele teria que ser informado de que a missão fora cumprida.
Perto das bandeiras, havia dois carrinhos de metal. Era uma coisa familiar vê-los subir e descer os corredores do FBI, incontáveis vezes, transportando toneladas de papel de uma sala para outra. Dentro de alguns minutos, aqueles carrinhos estariam repletos de Centenas de fichas dos arquivos, talvez milhares. Seriam levados lá para baixo, passariam por um agente chamado Parke e seriam metidos na limusine que estava à espera. Os arquivos de John Edgar Hoover seriam jogados numa fornalha acesa.
E um Quarto Reich cada vez mais ameaçador seria irremediavelmente liquidado.
- Varak! Depressa!
O grito vinha do armário embutido espaçoso além das bandeiras. Varak correu até lá.
O cofre de aço estava aberto, as quatro gavetas abertas.
As duas gavetas da esquerda estavam atulhadas de papéis. Os arquivos de A a L estavam intactos.
As duas gavetas da direita estavam vazias. Os divisores de metal estavam caídos, sem nada para sustentar.
Os arquivos de M a Z estavam faltando. Metade das fichas de corrupção de Hoover havia desaparecido.
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Chancellor estava deitado ao sol quente e lia o Los Angeles Times. A manchete parecia quase irreal, como se o acontecimento não pudesse ter ocorrido na verdade,
como se não passasse de algo que só podia se dar na imaginação.
O homem finalmente estava morto. J. Edgar Hoover morrera de maneira insignificante, na cama, da maneira como milhões de velhos morriam. Sem drama, sem consequências.
Apenas a incapacidade do coração em acompanhar o ritmo vertiginoso dos anos. Mas com aquela morte, uma onda de alívio se estendia pela nação. Isso ficava patente
até mesmo na notícia do jornal sobre a morte.
As declarações do Congresso e do Governo Federal, como era de se esperar, estavam repletas de elogios aduladores. Mas podiase perceber claramente a hipocrisia naquelas
palavras bem escolhidas, podiam-se sentir as lágrimas de crocodilo. O alívio era geral.
Peter dobrou o jornal e enfiou-o na areia, para que não fosse levado pela brisa. Não queria ler mais nada.
E, o que era ainda mais importante, também não queria escrever. Quando voltaria a sentir vontade de escrever? Será que isso algum dia aconteceria? Ou será que estava
condenado a ser pelo resto da vida um vegetal sibarita, se é que isso existia?
O que tornava tudo mais irónico era o fato de estar ficando cada vez mais rico. Joshua Harris tinha telefonado de Nova York meia hora atrás para informar que o estúdio
efetuara outro pagamento, rigorosamente dentro do prazo combinado.
Peter estava ganhando um bocado de dinheiro para não fazer absolutamente nada. Desde o episódio com a esposa de Aaron Sheffield que não se dava sequer ao trabalho
de ir ao estúdio ou mesmo telefonar para qualquer pessoa envolvida com Contraataque!.
Não precisava se preocupar. Escreveu uma história sensacional, meu querido.
Que assim fosse.
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Peter levantou o braço e olhou para o relógio. Já eram qua-
oito e meia. A manhã havia chegado em Malibu. O ar estava
mido, o sol forte demais, a areia também já estava ficando quen-
Lentamente, Peter levantou-se. Entraria em casa, ficaria refestelado no ar condicionado, tomando um drinque.
Por que não? Como era mesmo aquele provérbio? Ah, sim... Nunca bebo antes das cinco horas da tarde. Graças a Deus são cinco horas da tarde em algum lugar!
já passavam de cinco horas - da manhã - lá no Leste? Não, não era bem isso. Sempre estava misturando aquelas coisas. Era justamente o inverso. Lá no Leste, deviam
ser Ilh30min.
O céu estava nublado, o ar sufocante, opressivo. Uma chuvinha fina, úmida e constante, ameaçava transformar-se em um temporal. A multidão na Capitol Plaza estava quieta; cantos mudos dos que se opunham à guerra, por trás das barricadas, intrometiam-se com o zumbido da multidão, ameaçando torná-lo mais alto, assim como a chuva também ameaçava se tornar mais intensa.
Aqui.e ali abriram-se guarda-chuvas, círculos escuros na multidão, protegendo rostos passivos. Os olhos estavam opacos, ressentidos, as expressões sem qualquer animação.
Era um dia que não prenunciava boa coisa. Havia uma onda de medo se espalhando por toda parte, talvez o último legado do homem cujo corpo estava sendo levado no enorme carro fúnebre, já atrasado
25 minutos. Subitamente, o carro fúnebre apareceu, saindo da rua arborizada e entrando no caminho de concreto da praça.
Stefan Varak observou que a multidão parecia recuar, embora não houvesse ninguém no caminho do carro fúnebre. Era uma prova adicional do legado, pensou Varak.
Fileiras de soldados em posição de sentido guarneciam os dois lados dos degraus da rotunda, os uniformes escurecidos pela chuva, o olhar fixo para a frente. Eram Ilh25min. O corpo de John Edgar Hoover ficaria exposto à visitação pública durante o dia e a noite. Era uma honra jamais concedida antes a qualquer servidor civil, durante toda a história da nação.
Ou talvez a nação desejasse provar a si mesma e ao mundo que aquele homem estava realmente morto, aquele homem que! se erguera como um gigante do atoleiro de corrupção que o FBI tinha sido originalmente, moldando uma organização eficiente e1 extraordinária, que também iria se desmoronar com o passar dos anos, apesar de ainda acreditar em sua própria infalibilidade. A única esperança era que ele tivesse de fato sido detido antes que1 a febre o tivesse dominado por completo, pensou Varak.
Oito soldados saíram solenes da formação e foram se postar na porta traseira do carro fúnebre, quatro de cada lado. A porta
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se abriu e o caixão coberto por uma bandeira saiu, inclinando-se ligeiramente, enquanto os soldados pegavam as alças de aço e o tiravam todo do veículo. Lentamente, os soldados se encaminharam para a escadaria, sob a chuva cada vez mais forte.
Iniciaram a angustiante subida dos 35 degraus até a entrada da rotunda. Os olhos opacos não focalizavam coisa alguma; os rostos estavam encharcados de chuva e suor; veias prestes a estourar podiam ser vistas sob os punhos dos uniformes; as golas estavam escuras dos filetes de suor que escorriam dos pescoços retesados no esforço.
A multidão pareceu prender a respiração, até que o caixão chegou ao alto dos degraus. Os soldados pararam, em posição de sentido. Depois recomeçaram a andar, conduzindo o pesado fardo através das grandes portas de bronze da rotunda.
Varak virou-se para o cinegrafista a seu lado. Os dois estavam sobre uma pequena plataforma. As iniciais de metal sob a lente grossa da câmara eram de uma emissora de televisão de Seattle, Washington. A emissora integrava o pool que estava transmitindo a cerimónia para toda a Costa Oeste.
- Está pegando tudo? - perguntou Varak, em francês.
- Cada grupo, cada fileira, cada rosto que a zootn pode alcançar - respondeu o francês.
- A claridade diminuindo, por causa da chuva, não constitui um problema?
- Não com o filme que estou usando.
- Ótimo. vou subir agora.
Varak, com um cartão de identificação, com fotografia, do Conselho de Segurança Nacional, abriu caminho entre a multidão até uma das entradas, passou pelos guardas e encaminhou-se para a mesa do serviço de segurança. Falou ao guarda uniformizado que estava de plantão:
- A escada que dá acesso à documentação já está fechada?
- Não sei, senhor. - O guarda verificou suas instruções, antes de acrescentar: - Não há nada aqui a respeito.
- Mas que coisa! - exclamou Varak. - Não podia deixar de haver! De qualquer forma, trate de providenciar, por favor.
Varak afastou-se. Não havia qualquer razão vital para que aquela escada fosse fechada. Mas o simples fato de ordenar já afirmava sua autoridade sobre o guarda. Se, por acaso, o equipamento de comunicações apresentasse qualquer defeito, precisaria ter acesso a um telefone, sem desperdiçar segundos preciosos se identificando.
Esses momentos preciosos numa emergência não seriam perdidos, pois o guarda se lembraria dele.
Varak subiu a escada, de dois em dois degraus, e foi postarse atrás da multidão que ocupava a entrada da Câmara para a
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rotunda. Um deputado muito suado estava tentando passar por ali. Estava visivelmente embriagado e por duas vezes tropeçou. Tjrn homem mais jovem, obviamente seu assistente, segurou-o pelo cotovelo esquerdo, tirou-o do meio da multidão. O deputado girou bruscamente, cambaleou, foi bater na parede.
Contemplando o rosto aturdido e suado, Varak recordou que o deputado acusara publicamente o FBI de ficar na escuta de seu telefone. O diretor ficara numa situação difícil. Depois, as acusações haviam cessado. As provas que o deputado prometera não tinham sido apresentadas. O homem nada mais tinha a dizer.
Ele é uma das fichas desaparecidas, concluiu Varak, ao se encaminhar pelo corredor até uma porta. Assentiu para o guarda, que examinou atentamente a identificação do Conselho de Segurança Nacional e depois abriu-lhe a porta. Lá dentro, havia degraus estreitos e em espiral, que levavam ao domo da rotunda.
Três minutos depois, Varak estava ajoelhado ao lado de um segundo cinegrafista, 50 metros acima do chão da rotunda. Estavam no passadiço superior, há anos fechado aos turistas. O zumbido da câmara era quase inaudível. A teleobjetiva estava atarraxada no lugar e reforçada com dois grampos. Não havia a menor possibilidade da câmara ou do cinegrafista serem vistos lá de baixo. A alguns passos deles, havia três caixas de filmes.
Lá embaixo, na rotunda, os soldados haviam acabado de depositar o caixão na essa. Espremidos pelos cordões de isolamento, os líderes da nação competiam por um reconhecimento solene. A guarda de honra assumiu sua posição; todos os ramos das forças armadas estavam representados. Em algum lugar distante, na imenso salão, um telefone tocou duas vezes. Instintivamente, Varak tirou do bolso a pequena unidade de rádio que era o seu vínculo com os outros. Levou-o ao ouvido, levantou o interruptor, ficou escutando. Não havia nada e ele voltou a respirar normalmente.
Uma voz flutuou até lá em cima. Era de Edward Elson, o capelão do Senado e ministro da Igreja Presbiteriana, pronunciando a prece inicial. Foi seguido por Warren Burger, que não poupou palavras de elogio ao morto. Varak ficou ouvindo as palavras com os músculos dos maxilares contraídos:
- ... um homem de coragem incomparável, que não sacrificava qualquer princípio ao clamor público... que bem serviu a seu país e mereceu a admiração e respeito de todos aqueles que acreditam na liberdade com ordem.
Que princípios? E o que significava liberdade com ordem?, pensou Varak, enquanto contemplava a cena lá embaixo. Sussurrou para o cinegrafista, em tcheco:
- Está tudo bem?
"r
- Está, sim... se eu não ficar com cãibras.
- Estique as pernas de vez em quando, mas não se levante. Virei substituí-lo por 30 minutos, a cada quatro horas. Poderá ficar na sala ao lado do segundo passadiço. Trarei comida também.
- vou ter que ficar também a noite inteira?
- É para isso que está sendo pago. Quero que filme todos os rostos que passarem por aquelas portas de bronze. Todos, sem exceção.
Além das palavras sonoras que ressoavam pelo domo, Varak podia agora ouvir outro som. Bem distante, lá fora, do outro lado da praça, por trás das barricadas, sob
a chuva, os que se opunham à guerra haviam iniciado o seu próprio canto fúnebre. Não pelo morto que estava na rotunda, mas pelos milhares de mortos no outro lado
do mundo. Um drama litúrgico estava se realizando, numa amarga ironia eclesiástica.
- Todos os rostos, sem exceção - repetiu Varak.
Os esguichos da fonte caíam ruidosamente nas águas da piscina circular nos jardins da frente da Igreja Presbiteriana. Além da fonte, erguia-se a torre de mármore
branco. À direita, ficava a pista de duas faixas que passava sob um pórtico de pedra, com portas à esquerda dando acesso ao interior da igreja. A impressão era de um posto de pedágio, não da entrada abrigada para uma casa de Deus.
Varak estava com as câmaras em posição, os dois cinegrafistas exaustos cheios de café e Benzedrina. Mais algumas horas e estaria tudo terminado. Os dois estariam mais ricos que alguns dias antes, voltando de avião para casa. Um a caminho de Praga, outro seguindo para Marselha.
As limusines começaram a chegar às 9h45min. A missa fúnebre estava marcada para 11 h. O tcheco estava lá fora. Agora, era o francês quem estava com cãibra, ajoelhado, não em posição de prece, num portal mais alto que o nível do chão, na extrema esquerda do altar. O homem e sua câmara estavam ocultos por cortinas. A identificação parecia oficial, pregada com um alfinete no bolsinho do paletó, e com o carimbo do Departamento de Arquivos.
Ninguém a tinha contestado. Pois ninguém sabia o que significava.
Os espectadores da missa fúnebre começaram a saltar de suas limusines e entrar na igreja. As câmaras estavam rodando. Os acordes sombrios do órgão se espalharam pela igreja. Um coral militar de 25 homens, em túnicas brancas com fitas douradas, marchou até o lugar que lhe estava reservado. Os homens mais pareciam sonâmbulos.
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A missa começou. Houve discursos intermináveis, pronunciados pelos que o amavam e pelos que o odiavam. Preces e salmos. Tudo muito frio, contido, pensou Varak. Não que ele se importasse com isso. A única coisa que o preocupava era o fato de as câmaras estarem em ação.
EP de repente, ele ouviu a voz familiar, empestada, do Presidente dos Estados Unidos, sua cadência peculiar apropriada à ocasião. Um eco sem vida, cavo.
- A tendência à permissividade, uma tendência que perigosamente tem corroído a herança nacional de- um povo respeitador da lei, está agora sendo invertida. O povo americano está hoje cansado do desrespeito à lei. A América quer retornar à lei como um modo de vida...
Varak virou-se e saiu da igreja.
Havia coisas mais importantes a fazer. Atravessou o gramado muito bem aparado, passou por um amplo canteiro de flores, seguiu por um caminho de pedras que levava à fonte. Sentou na beira da fonte, sentindo os respingos no rosto. Tirou do bolso um mapa rodoviário e estudou-o atentamente.
A última etapa seria no Cemitério do Congresso. Chegariam antes do cortejo e arrumariam as câmaras em lugares onde não pudessem ser vistas. Filmariam os momentos finais, quando o corpo de J. Edgar Hoover seria sepultado, ficando esquecido debaixo da terra.
Mas a presença dele permaneceria. A presença dele continuaria a se manifestar, enquanto metade dos seus arquivos pessoais estivesse desaparecida.
Os arquivos de M a Z. Total calculado de fichas: três mil. Eram três mil fichas que podiam determinar o governo, alterar as leis e as atitudes do país.
Quem estava com aquelas fichas?
Quem quer que fosse, fora certamente registrado pelas câmaras. Não podia deixar de sê-lo. Não havia outra conclusão possível. Nenhum estranho a Washington poderia ter passado pelo complexo sistema de segurança e roubado as fichas.
Em algum lugar, nos milhares de metros de filmes que tinham rodado, havia um rosto. E um nome que acompanhava esse rosto. Teria que descobrir esse rosto e esse nome, pensou Varak, furioso. Teria que descobrir, de qualquer maneira.
Fracassar era algo inconcebível.
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O filme estava rodando na máquina, projetando imagens na parede. Na tela, uma sucessão de rostos ampliados. Varak esfregou os olhos, extremamente cansado. Já vira
aquele filme provavelmente umas 50 vezes, ao longo dos últimos três meses.
M a Z. Quatorze letras. Era mais do que provável que fosse um rosto cujo nome começava com uma dessas letras. O homem que roubara os arquivos não iria ignorar a
possibilidade de sua ficha estar ali. Mas que homem? As possibilidades matemáticas pareciam infinitas, aumentadas pela certeza de que não se poderiam excluir os
nomes em código. Um homem cujo nome começasse com um K ou G, comoKleindiénst ou Grey, poderia ser conhecido pelo FBI como "Nelson" ou "Stark". Na verdade, "Nelson"
e "Stark" eram Kleindiènst e Grey.
O porão da casa em Georgetown fora transformado num estúdio, com um escritório e uma sala de estar adjacente. Os filmes, as fotografias, as caixas com documentos, fichas pessoais e médicas, dossiês do governo, entrevistas, contas telefónicas e de cartões de crédito, era tudo por demais esmagador. E não se podia providenciar uma equipe para separar e relacionar o material. Somente um homem podia ter acesso a tudo. Mais de uma pessoa só faria com que qualquer possibilidade de descoberta se reduzisse.
E não se podia começar por um estranho. Em princípio, só podia ter sido um amigo, um amigo íntimo, um associado. De outra forma, não fazia sentido. Havia barreiras demais para que um estranho pudesse superá-las. Nenhum estranho poderia interromper os circuitos de segurança; nenhum estranho poderia ter acesso a interruptores secretos e salas proibidas, vigiadas dia e noite.
Mas que amigos? Que associados? Treze semanas a examinar e repassar um extraordinário volume de fichas, dossiês, filmes e fotografias não haviam levado Varak a parte alguma. Cada rosto insólito, de M a Z, cada informação fora do normal, num dossiê, entrevista ou conta de cartão de crédito, haviam provocado um
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exame meticuloso do suspeito. Mas não se havia encontrado a menor pista.
Varak passou para o pequeno escritório sem janela. Tinha a sensação de que nunca veria o sol, não voltaria a respirar ar fresco. Olhou para o quadro de cortiça na parede. A luz na mesa incidia sobre uma ampliação fotográfica do Testamento e Última Vontade de Hoover.
A soma total do espólio estava escrita no canto superior direito. Era de 551.500 dólares.
Nela estavam incluídos a propriedade da Rua 13, depósitos bancários, ações e outros títulos, benefícios do Serviço Civil, no valor de 326.500 dólares. Uma casa da família, em Georgetown, fora avaliada em 100 mil dólares. Havia ainda arrendamentos de exploração de petróleo, gás e minerais no Texas e Louisiana. Total: 551.500 dólares.
O principal beneficiário era um velho amigo de Hoover e seu substituto imediato no FBI, Clyde Tolson. Quase tudo lhe fora deixado. E quando Tolson morresse, a herança de Hoover seria dividida entre os escoteiros e a Fundação Damon Runyon. Um beco sem saída.
Havia pequenos legados, de dois, três e cinco mil dólares, respectivamente para James Crawford, o motorista, Annie Fields, a governanta, e a temível Helen Gandy, a secretária. Três pessoas que haviam consumido suas vidas a serviço de Hoover e eram agora recompensadas com migalhas. Revelava algo um tanto repulsivo, mas nem por isso deixava de ser outro beco sem saída.
Havia também os que nem eram mencionados no testamento, os oito sobreviventes da "unida" família Hoover. Quatro sobrinhas e quatro sobrinhos, inclusive um sobrinho que passara dez anos trabalhando no FBI. Quase todos haviam comparecido ao funeral.
Nenhum deles fora lembrado no testamento. Era outro beco sem saída, onde podia haver raiva e condenação, mas que certamente não estavam nos arquivos desaparecidos.
E com isso estava liquidado o Testamento e Última Vontade de John Edgar Hoover, gigante e mito. Como tudo o mais estava também liquidado!
Varak foi para a sala de estar. Sala de estar, quarto, sala de jantar, cela. O fato é que Bravo lhe providenciara mais do que precisava. Bravo também lhe dera instruções específicas para o caso do diplomata morrer. Inver Brass tinha que ser protegida a qualquer custo.
Era estranho, mas ele nunca pensava em Bravo como Munro St. Claire. Nunca pensava em qualquer um deles por seus verdadeiros nomes. Bravo era simplesmente Bravo.
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O telefone tocou. O da linha externa.
- Sr. Varak? Era Bravo.
- Poif não, senhor?
- Infelizmente, já começou. Estou na cidade. Pique onde está. Irei para aí assim que puder.
St. Claire acomodou-se na poltrona de couro e respirou fundo por diversas vezes. Era a sua maneira de enfrentar uma crise iminente. com toda a calma.
- Nas últimas 24 horas, houve dois pedidos de demissão surpreender.íes - disse ele. - O do General Bruce MacAndrew, do Pentágono, e de Paul Bromley, da Administração de Serviços Gerais. Conhece qualquer um dos dois?
- Conheço MacAndrew. Não conheço Bromley.
- Qual é a sua opinião a respeito do general?
- Aprecio bastante as posições dele. Expressa opiniões que frequentemente divergem das posições de muitas pessoas por lá.
- Exatamente. Ele é uma influência moderadora, mas nem por isso deixa de ser altamente respeitado. Mas, de repente, quando está no ápice de sua carreira, ele renuncia a tudo.
- Por que pensa que a renúncia dele tem algo a ver com os arquivos desaparecidos?
- Porque o pedido de demissão de Bromley tem. Acabei de conversar com ele. Paul Bromley é um burocrata de 65 anos que sempre foi honesto e levou seu trabalho a sério.
- Estou me lembrando dele agora - disse Varak. - Há cerca de um ano prestou depoimento num comité de investigação do Senado sobre custos excessivos. Criticou os pagamentos C-quarenta.
- E por causa disso foi vigorosamente censurado. Rebaixaram-no a fazer a auditoria dos cafés do Congresso e outras estatísticas igualmente vitais. Mas, há cerca de um mês, os homens que controlam a Administração de Serviços Gerais cometeram um erro. Apresentaram um relatório sobre Bromley declarando que seus serviços eram insatisfatórios, o que lhe impedia qualquer promoção. Bromley processou-os. E baseou a ação judicial em seu depoimento a respeito de C-quarenta. Mas, agora, está tudo acabado. O pedido de demissão dele é irrevogável.
- Ele explicou o motivo?
- Explicou. Recebeu um telefonema. - Bravo fez uma pausa, fechando os olhos. - Bromley tem uma filha. Ela tem 30 e poucos anos, é casada, vive num bairro suburbano de Milwaukee. É o segundo casamento dela, e aparentemente é muito feliz. O
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e já não aconteceu com o primeiro. Ela era então ainda adolescente, o marido tinha apenas 20 anos. Ambos eram viciados em drogas, viviam pelas ruas. Ela se prostituía a fim de arrumar dinheiro para as drogas. Bromley passou quase três anos sem ver a filha. Até que um dia lhe apareceu em casa um homem e informou que a filha fora presa por ter assassinado o marido.
Varak não precisava que Bravo lhe informasse o resto. Os advogados da moça haviam alegado insanidade temporária, no julgamento. Depois, ela passara por vários anos de reabilitação e cuidados psiquiátricos. Mas ficara registrada a história do crime, com todos os detalhes repugnantes. A esposa de Bromley levara a filha para a casa dos avós maternos, no Wisconsin. A moça voltara a levar uma vida normal. Assentara a cabeça, conhecera e desposara um engenheiro que trabalhava para uma corporação do Meio-Oeste, começara a ter filhos.
Agora, dez anos depois, um telefonema ameaçava fazer com que o passado voltasse a aflorar. Pública e escandalosamente. Iria não apenas destruir a filha, mas marcar toda uma família. A menos que Paul Bromley cancelasse sua ação judicial e pedisse demissão da Administração de Serviços Gerais.
Varak inclinou-se para a frente.
- O segundo marido sabe do que aconteceu antes?
- Sabe de modo geral, provavelmente ignora os detalhes. Mas é claro que esse não é o único problema. Eles teriam que se mudar, começar tudo novamente em outro lugar. O que seria inútil. Acabariam sendo descobertos, o escândalo os seguiria.
- Tem toda razão. Bromley descreveu a voz ao telefone?
- Descreveu. Era um sussurro...
- Para causar efeito - comentou Varak. -- Nunca falha.
- Ou para disfarçar a voz. Ele não sabe nem dizer se era uma voz de homem ou de mulher.
- Ele notou algo de insólito na maneira de falar?
- Não. Bromley ficou prestando atenção nisso. Ele é contador, o que está fora do normal sempre o atrai. Disse que a coisa mais estranha era a característica mecânica da voz.
- Não seria por acaso uma gravação?
- Não. A voz respondeu às perguntas dele. Não poderia ter previsto quais seriam.
Varak voltou a se recostar.
- Por que ele foi procurá-lo?
Bravo demorou um pouco a responder. Quando finalmente falou, havia alguma tristeza em sua voz, como se se julgasse pessoalmente responsável, por alguma razão abstrata:
- Depois do depoimento de Bromley a respeito de C-quarenta, tive vontade de conhecê-lo. Queria saber quem eraio buro-
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crata de nível médio que estava disposto a enfrentar o Pentágono. Convidei-o para jantar.
- Aqui?
- Claro que não. Fomos nos encontrar num restaurante à beira da estrada, em Maryland.
Bravo parou de falar.
- Ainda não me explicou por que ele foi procurá-lo.
- Porque eu lhe disse que o fizesse. Nunca pensei que ele pudesse escapar impune depois de contestar o Pentágono. Mandei que me procurasse, se houvesse represálias.
- Por que está convencido de que a pessoa que telefonou para Bromley é a mesma que está com os arquivos de Hoover? Os problemas da filha dele constam dos arquivos do tribunal.
- Porque a voz ao telefone disse algo que me levou a chegar a essa conclusão. Falou para Bromley que dispunha de toda a "carne crua" a respeito dele e da família. Sabe o significado de "carne crua"?
- Sei - respondeu Varak, com um evidente desdém. - Era uma das expressões prediletas de Hoover. Mas continua a haver uma incongruência. Ò nome de Bromley começa com B.
- Bromley explicou isso, embora eu não lhe tenha falado sobre os arquivos. Tanto no Pentágono como no FBI ele tinha um nome em código: Víbora.
- Como se ele fosse um agente inimigo. y
- Exatamente.
- E o que me diz de MacAndrew? Temos alguma coisa?
- Creio que sim. Estamos interessados nele há alguns anos. Era um dos poucos soldados que acreditavam totalmente no controle civil dos militares. Para ser franco, ele podia se tornar algum dia um candidato à Inver Brass. Chegamos a examiná-lo cuidadosamente, antes da sua chegada. Mas havia um lapso em sua folha de serviço. Os símbolos indicavam que no período em questão, oito meses em 1950, houvera uma transferência para G-2, SAP.
- Sistema de Análise Psiquiátrica - disse Varak. - No nível dele, isso está geralmente reservado aos desertores.
- Isso mesmo. É claro que ficamos surpresos. Procuramos o G-2 abstraio e descobrimos que também tinha sido removido. Tudo o que restava era a frase "Mensagem entregue, SI FBI". Segurança Interna. Tenho certeza de que pode calcular o resto.
- Posso, sim. Obteve a ficha oficial dele no FBI e não havia qualquer referência. Verificou com a Segurança Interna. Também não havia nada. "Carne crua".
- Precisamente. Cada documento, cada anotação, cada acréscimo relacionado com a Segurança passava pela mesa de Hoover.
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E, como sabemos, "Segurança" para Hoover tinha a extensão mais ampla possível. Atividades sexuais, hábitos alcoólicos, problemas conjugais e familiares, os detalhes mais pessoais das vidas das pessoas - nada era remoto ou insignificante demais. Hoover Andrew não teria recebido permissão para acesso a segredos de Estado, se por acaso fosse uma condição permanente.
- É mais informação. Em algum ponto, as informações irão
- A questão é a seguinte: o que navia na folha de serviço de MacAndrew? Não há nada que possa nos impedir de perguntar-lhe agora.
- Nós?
- Pode-se providenciar.
- Através de um intermediário?
- Isso mesmo. E um intermediário cego. Não haverá qualquer relação.
- Não tenho a menor dúvida quanto a isso - disse Bravo.
- Mas... e depois? Vamos supor que descubra alguma falha de caráter, sexual ou outra qualquer. De que isso adiantaria? MacAndrew não teria recebido a permissão para acesso a segredos de Estado, se por acaso fosse uma condição permanente.
- É mais informação. Em algum ponto, as informações irão apontar uma fraqueza na corrente. E conseguiremos rompê-la.
- É com isso que está contando?
- É, sim. E pode estar certo que acontecerá. Quem quer que tenha roubado os arquivos possui uma mente de primeira classe. Mas inevitavelmente a corrente acabará se rompendo.
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, Varak esperando por aprovação, Bravo imerso em seus pensamentos.
- A corrente não vai se romper com tanta facilidade disse St. Claire finalmente. - Você é o melhor que existe e não está mais perto agora do que estava há três meses. Falou em uma "mente de primeira classe", mas nem mesmo sabemos se estamos lidando com uma mente ou com várias mentes. Se é um homem ou são muitos.
- Nem mesmo temos certeza se é um homem.
- Mas, quem quer seja, o fato é que os primeiros movimentos já foram feitos.
- Portanto, deixe-me pôr alguém em cima de MacAndrew.
- Espere um pouco... - Bravo cruzou as mãos por baixo do queixo. - Um intermediário? Um cego?
- Isso mesmo. Sem a menor possibilidade de que cheguem até nós.
- Gostaria que acompanhasse o meu raciocínio. Ainda não o desenvolvi inteiramente, mas tenho certeza de que pode ajudar. Basicamente, é a sua estratégia.
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Varak ficou olhando em silêncio para St. Claire. Depois de uma breve pausa, o diplomata continuou:
- Estou certo ao pressupor que um cego, termo que você usa em relação a um interrogatório ou vigilância, é alguém que descobre o que está querendo saber sem que tenha de se envolver pessoalmente? envolver pessoalmente?
- Exatamente. O cego tem os seus próprios motivos para querer a mesma informação. O sistema consiste em obter a informação por intermédio dele sem que descubra o que está acontecendo.
- Sendo assim, o cego é escolhido com extremo cuidado. Era uma declaração, não uma pergunta.
- Normalmente, tudo se resume a encontrar alguém que tenha os mesmos interesses. Às vezes, pode ser difícil.
- Mas sempre podemos requisitar a ajuda de algum órgão de investigação. Podemos alertar as autoridades - ou até mesmo um jornal - para a possibilidade dos arquivos pessoais de Hoover terem sobrevivido à morte dele.
- Claro que podemos. Mas o resultado seria fazer com que a pessoa que está com os arquivos disfarce ainda mais a sua pista.
Bravo levantou-se e começou a andar de um lado para outro.
- Não houve quase nenhuma alusão aos arquivos nos jornais. É estranho, porque a existência deles era conhecida. Parece até que ninguém quer falar a respeito.
- Se não é publicado, é esquecido e não constitui um perigo - comentou Varak.
- Exatamente. É o que acontece com Washington inteira. Até mesmo com os meios de comunicação. Ninguém sabe se está ou não incluído nos arquivos. Por isso, todo mundo prefere se calar, há silêncio. E quando os homens se calam, a consequência é o triunfo do mal. Buker estava certo em relação a isso.
- Por outro lado, romper o silencio nem sempre é a solução.
- Isso depende de quem rompe. - Bravo parou de andar.
- Diga-me uma coisa: sob o mais implacável e profissional dos microscópios, haveria possibilidade de se descobrir qualquer uma das pessoas envolvidas na morte de Hoover?
- Não.
- E onde estão todos eles, especificamente?
- Os dois homens que cuidaram dos telefones estão na Austrália. Nunca mais voltarão. Estão sujeitos a julgamentos por homicídio no Corpo de Fuzileiros Navais. O homem que usou o disfarce de "Salter" está em Tel Aviv. Para ele, nada é mais importante que a Terra Santa ou sua guerra santa. Nós lhe fornecemos informações sobre terroristas palestinos. Ele vive apenas para sua causa e nós tornamos a sua luta mais prática. A
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atriz está em Majorca. Saldou uma dívida antiga e não quer mais nada além do que recebeu. O inglês que cuidou do carro e se encarregou de transmitir a conclusão da Fase Um está de volta ao Ml-Seis. Ele ganhou dinheiro dos russos como agente duplo, em Berlim Oriental, e sabe que eu disponho das provas que podem levar à sua execução. Conhece o caso do médico de Paris, que é a menor das nossas preocupações. Cada um tinha um motivo, nenhum deles pode ser descoberto. E estão todos agora a milhares de quilómetros de distância.
St. Claire olhou firmemente para Varak.
- Deixamos alguém de lado. E o homem que estava na sala de controle dos alarmes, o que usou o nome de "Krepps"?
Varak sustentou o olhar de Bravo.
- Eu o matei. A decisão foi minha e tornaria a toma-la, nas mesmas circunstâncias.
St. Claire assentiu.
- Em suma, o que está me dizendo é que todas as pessoas, todos os fatos foram ocultos. Estão além de qualquer possibilidade de descoberta. A morte de Hoover jamais poderá ser atribuída a qualquer outra coisa que não causas naturais.
- Exatamente. Causas naturais.
- Portanto, se usássemos um cego, não haveria qualquer possibilidade desse homem descobrir a verdade. O assassinato de Hoover está além de qualquer possibilidade de descoberta.
- Exatamente.
Bravo recomeçou a andar.
- Nunca lhe perguntei por que não houve autópsia.
- Ordens da Casa Branca. Transmitidas discretamente, pelo que fui informado.
- Da Casa Branca?
- Eles tinham uma razão. Que eu lhes forneci.
St. Claire não se aprofundou no assunto. Sabia que Varak havia estudado a estrutura da Casa Branca e podia pressupor a sua estratégia, com uma avaliação totalmente profissional.
- Além de qualquer possibilidade de descoberta - repetiu Bravo. - Isso é vitalmente importante.
- Para quem?
- Para um cego que não se limitasse aos fatos. Para um homem interessado apenas numa concepção. Uma teoria que não tenha de ser provada a cada passo. Um homem assim poderia dar motivos para alarmes, possivelmente levar a pessoa que está com os arquivos a se revelar.
- Não estou entendendo. Sem fatos passíveis de serem descobertos não há motivo para um cego. O que ele poderia esperar descobrir? E o que nós poderíamos descobrir?
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- Talvez muita coisa. A palavra chave é fato.
St. Claire olhou para a parede por cima de Varak. Era estranho, refletiu ele. Há muito tempo que não pensava em Peter Chancellor. E quando pensava nele, ao deparar com seu nome num jornal ou suplemento literário, era sempre com uma recordação vaga do homem aturdido com sua tese de doutorado, procurando pelas palavras certas, seis anos atrás. Desde então, Chancellor conseguira encontrar as palavras que procurava. E muitas.
- Receio não estar compreendendo - disse Varak. Bravo baixou os olhos.
- Já ouviu falar de um escritor chamado Peter Chancellor?
- Contra-ataque! Li o livro. Deixou muita gente assustada lá em Langley.
- No entanto, era ficção.
- Mas chegou bem perto. Chancellor usou muitos termos errados e procedimentos incorretos, mas descreveu no fundo o que realmente aconteceu.
- Porque ele não estava limitado pelo fatos. Chancellor elabora uma concepção, encontra uma situação básica e dela extrai fatos selecionados, tornando a ordená-los de maneira que se encaixem à realidade conforme a percebe. Não está limitado por causa e efeito, pois cria o relacionamento quando assim o precisa. Disse que ele assustou muita gente em Langley. Não duvido. Chancellor é um escritor bastante popular. E sempre pesquisa a fundo. Suponhamos agora que ele estivesse pesquisando para um livro sobre os últimos dias de Hoover.
- Sobre os arquivos - acrescentou Varak. - Podemos usar Chancellor como o cego. Dizer-lhe que os arquivos desapareceram. Quando ele começar a investigar, acionará uma porção de alarmes... e estaremos em seus calcanhares.
- Vá para Nova York, Sr. Varak. Descubra tudo o que puder a respeito de Chancellor. As pessoas que o cercam, seu estilo de vida, seu método de trabalho. Tudo, em suma. Chancellor tem um complexo de conspiração. Vamos programá-lo com uma inspiração que ele achará irresistível.
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- Sr. Peter Chancellor? - perguntou a telefonista.
Peter tirou a mão de baixo das cobertas e tentou focalizar o relógio no pulso. Eram quase 10 horas. A brisa da manhã ondulava as cortinas, entrando pelas portas abertas para a varanda.
- Pois não?
- Interurbano de Nova York. O Sr. Anthony Morgan chamando. Um momento, por favor.
- Claro.
Houve um clique e um zumbido na linha. Parou abruptamente e uma voz disse:
- Oi, Sr. Chancellor.
Peter reconheceria aquela voz em qualquer situação. Pertencia à secretária de seu diretor. Se ela algum dia tivera um momento de desânimo, ninguém jamais o soubera.
- Oi, Radie. Como tem passado?
Peter esperava que a garota estivesse melhor do que ele. gf- Muito bem. Como vai a Califórnia?
- Ensolarada, úmida, reluzente, verde. Pode escolher. A moça riu. Era uma risada jovial.
- Não o acordamos, não é mesmo? Sempre levantou cedo.
- Não, Radie, não me acordou - mentiu Peter, sem qualquer motivo para isso. - Eu estava na praia.
- Um momento, por favor. O Sr. Morgan vai falar. Houve dois cliques na linha.
- Olá, Peter.
- Como vai, Tony?
- Esqueça como eu vou. O importante é: como você ;i? Marie disse que você telefonou ontem à noite. Desculpe eu não estar em casa.
Peter lembrou-se de tudo.
- Eu é que tenho de pedir desculpas. Estava bêbado.
- Marie não me falou nisso, mas disse que você estava furioso.
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- E estava. E continuo a estar. Também estava bêbado. Peça desculpas a Marie por mim.
- Não há necessidade. O que disse a ela deixou-a furiosa também. Ao chegar em casa, fui recebido com um sermão sobre a falta de proteção aos meus autores. E agora me diga: o que aconteceu com Contra-ataque!?
Peter ajustou a cabeça no travesseiro e limpou a garganta. Esforçou-se em evitar qualquer laivo de amargura na voz:
- Às quatro e meia da tarde de ontem, um portador do estúdio trouxe-me o primeiro esboço completo do roteiro. E eu nem sabia que tínhamos começado a trabalhar nele.
- E...?
- Está tudo errado. Saiu exatamente o inverso do que escrevi. Morgan deixou passar algum tempo antes de dizer, suavemente:
- Ego ferido, Peter?
- Mas claro que não! Sabe perfeitamente que não sou disso. Não falei que o roteiro está ruim. Ao contrário, é muito bom. Extremamente eficaz. Eu me sentiria melhor se não fosse. Mas é tudo mentira.
- Josh me disse que iam mudar o nome da CIA...
- Mudaram tudo! - interrompeu-o Peter, piscando os olhos de dor, com o afluxo de sangue à cabeça. - O pessoal do governo está do lado dos anjos. Eles não têm sequer um pensamento impuro na cabeça! Os conspiradores são... "eles". Estranhos expoentes e promotores da violência e da revolução, com - que Deus me ajude! - "ligeiros sotaques europeus". Inverteram tudo o que estava no livro. Por que diabo precisavam comprar o livro?
- O que Josh diz?
- Pelo que me recordo, vagamente, consegui falar com ele quando era meia-noite aqui. Acho que era por volta das três horas da madrugada aí em Nova York.
- Não saia de casa, Peter. vou entrar em contato com Josh. Um de nós dois ligará para você.
- Está certo.
Peter já ia formular um último pedido de desculpas à esposa de Morgan quando compreendeu que o editor ainda não acabara de falar. Era um daqueles silêncios que indicavam que Morgan ainda tinha algo a dizer.
- Peter?
- Pois não?
- Vamos supor que Josh consiga resolver o problema do seu contrato com o estúdio...
- Não há nada para resolver - interrompeu-o Peter novamente. - Não precisam de mim, não me querem.
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- Podem querer seu nome. Estão pagando por isso.
- Pois não irão tê-lo. Não da maneira como estão fazendo o filme. Já lhe disse que prepararam um roteiro que é exatamente o inverso de tudo o que escrevi.
- E isso é muito importante para você?
- Como literatura... claro que não! Como uma declaração pessoal minha... claro que sim! Ninguém mais parece se preocupar com essas coisas.
- Eu estava apenas querendo saber. Achei que poderia estar pronto para começar o livro sobre Nurembergue.
Peter olhou para o teto.
- Ainda não, Tony. Em breve estarei pronto, mas não agora. Falarei com você a respeito mais tarde.
Peter desligou, tendo esquecido inteiramente o pedido de desculpas. Estava pensando na indagação de Morgan e em sua própria resposta.
Se ao menos a dor desaparecesse... E a letargia. As duas coisas haviam atenuado, mas ainda persistiam. E quando sentia qualquer uma das duas, as recordações voltavam. O vidro espatifado, a luz ofuscante, o metal esmagado. Os gritos. E seu ódio contra um homem no alto de um caminhão que desaparecera na tempestade. Deixando um morto e um quase morto em sua esteira.
Peter empurrou as pernas para fora da cama, pôs os pés no chão, levantou, inteiramente nu. Olhou ao redor, procurando o calção. Estava atrasado para o seu mergulho matutino. O amanhecer já se transformara em dia alto. Sentia-se culpado, como se tivesse quebrado um ritual importante. Ou pior, compreendia perfeitamente que o ritual tomara o lugar do trabalho.
Avistou o calção pendurado numa cadeira e começou a andar para pegá-lo. O telefone tocou novamente. Mudou de direção e foi atender.
- Sou eu, Joshua. Acabei de passar uma hora conversando com Aaron Sheffield.
- Ele é um ganhador. Ah! E antes que me esqueça, gostaria de pedir-lhe desculpas por ontem à noite.
- Esta manhã - corrigiu o agente, não sem alguma condescendência. - Não se preocupe com isso, Peter. Estava cansado pelo excesso de trabalho.
- Nada disso. Eu estava bêbado.
- Isso também. Mas vamos voltar a Sheffield.
- Creio que não há outro jeito. Imagino que você entendeu o que eu lhe disse ontem à noite.
- Tenho certeza de que quase toda a praia de Malibu pode repetir as melhores frases, palavra por palavra.
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- Qual é a posição dele? Não tenho a menor intenção de mudar a minha.
- Legalmente, isso não faz a menor diferença para Sheffield. Você não pode reclamar. Não tem o direito à aprovação do: roteiro.
- Sei disso. Mas posso falar. Posso dar entrevistas. Posso exigir que meu nome seja retirado do filme. Posso até mesmo ten- tar nos tribunais uma ação para mudar o título. Aposto que há algumas possibilidades de ganhar.
- É improvável. í
- Eles mudaram todo o sentido do livro, Josh!
- Os tribunais podem verificar o dinheiro que você recebeu e não se impressionarem com mais nada. l
Peter piscou novamente, esfregou os olhos. Exalou, cansado.
- Acho que está querendo dizer que não ficariam impressionados e ponto final. Não sou Solzhenitsyn escrevendo sobre os campos de concentração siberianos ou Dickens falando da morte das crianças nas primeiras fábricas inglesas. Muito bem, o que posso fazer?
- Quer que eu diga claramente?
- Quando você começa assim, já sei que a notícia não é boa.1
- Mas algo de bom pode resultar.
- Agora sei que é terrível. Continue.
- Sheffield quer evitar qualquer conflito, e o estúdio também. Não querem que você dê entrevistas ou faça conferências contra o filme. Sabem que você pode perfeitamente fazer isso e não querem ter problemas.
- Estou entendendo. Chegamos ao coração do problema: grandes receitas de bilheteria. B o orgulho essencial deles, a única virilidade que conhecem.
Harris ficou em silêncio por um momento. Ao voltar a falar, a voz estava extremamente suave:
- Peter, esse tipo de controvérsia não iria afetar a bilheteria do filme em nada. Se houver alguma influência, será inevitavelmente a inversa: a de aumentar a bilheteria.
- Então por que eles estão preocupados?
- Querem realmente evitar qualquer embaraço.
- Eles vivem num estado perpétuo de embaraço por aqui. Mas nem ao menos são capazes de reconhecê-lo. Não acredito nisso.
- Estão dispostos a pagar-lhe integralmente o contrato, retirar seu nome dos créditos do filme, se assim o desejar - mas não vão mudar o nome, é claro - e ainda por cima dar-lhe uma gratificação adicional de 50 por cento do preço de compra dos direitos do livro.
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- Santo Deus... - Chancellor estava aturdido. A cifra que Joshua Harris estava anunciando montava a um quarto de milhão de dólares. - Para quê?
- Simplesmente para você sair do caminho e não fazer polémicas por causa da adaptação.
Peter ficou olhando para as cortinas onduladas pelo vento. Havia algo incongruente, algo terrivelmente errado.
- Ainda está no telefone, Peter?
- Espere um pouco, Josh. Disse que a controvérsia só contribuiria para aumentar a receita do filme. Contudo, Sheffield está disposto a pagar todo esse dinheiro para evitar qualquer controvérsia. Ele vai sair perdendo. E isso não faz sentido.
-V Não sou o analista dele. A única coisa que me interessa é ouvir o barulho do dinheiro entrando. Talvez ele queira manter as bolas intactas.
- Não é isso. Conheço bem Sheffield, sei como ele opera. Não é um cara de coragem. - Subitamente, Peter compreendeu tudo. - Sheffield tem um sócio nesse negócio, Josh. E não é o estúdio. É -o governo. É Washington! Eles é que não querem a polémica. Para citar um escritor muito melhor do que eu jamais serei, eles não podem suportar a realidade. Mas que diabo! É exatamente isso!
- Isso também me passou pela cabeça - confessou Harris.
- Diga a Sheffield para enfiar a gratificação no rabo. Não estou interessado!
Novamente o agente demorou algum tempo antes de falar:
- Acho melhor contar-lhe o resto, Peter. Sheffield andou reunindo depoimentos de toda Los Angeles e de outros lugares ao sul e ao norte. A imagem que ressalta desses depoimentos não é das mais agradáveis. Você é descrito como um alcoólatra irrecuperável, quase uma ameaça pública.
- Isso é ótimo para o próprio Sheffield. A controvérsia aumenta a receita. Venderemos duas vezes mais livros.
- Ele diz que tem mais, Peter. Afirma que possui declarações juramentadas de algumas mulheres, acusando-o de estupro e abusos físicos. Tem fotografias, feitas pela polícia, mostrando os danos que você infligiu. Uma das fotografias é de uma garota de
14 anos de Beverly Hills. Sheffield afirma que tem amigos que podem jurar que tiraram narcóticos de seus bolsos, quando desmaiou nas casas deles. Diz que você chegou mesmo a atacar a esposa dele, algo que prefere não tornar público, mas que não hesitará em divulgar, caso seja necessário. Diz ainda que há semanas estão vigiando-o para que não cometa maiores loucuras.
- Mas tudo isso é mentira, Josh! É uma loucura completa! Não há um mínimo de verdade em tudo isso!
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- Talvez seja esse o problema. Provavelmente há alguns grãos de verdade. Não estou me referindo a estupro, sevícias ou narcóticos. Essas coisas podem ser fabricadas com a maior facilidade. Mas você andou bebendo, não responde aos telefonemas, tem andado com mulheres. E conheço a esposa de Sheffield. Não a estou excluindo da sua lista, mas tenho certeza de que não foi você o culpado, se houve alguma coisa.
Peter sentiu a cabeça girar, as têmporas latejavam terrivelmente.
- Nem sei o que dizer, Josh! Não posso acreditar que sejam capazes de uma coisa dessas!
- Pois eu sei o que dizer, sei em que acreditar - declarou Joshua Harris. - Eles não estão jogando de acordo com nenhuma das regras que eu conheço, Peter.
Varak inclinou-se para a frente no sofá de veludo e abriu sua mala sobre a mesinha de café. Tirou duas pastas de arquivo, colocou-as à sua frente, empurrou a mala para o lado. O sol da manhã entrava pelas janelas que davam para o Central Park, enchendo a luxuosa suíte de hotel com raios de luz dourada.
Do outro lado da sala, Munro St. Claire serviu-se de uma xícara de café, do bule que estava numa bandeja de prata. Depois foi sentar diante do agente.
- Tem certeza de que não quer um café? - perguntou Bravo.
- Não, obrigado. Já tomei café demais esta manhã. Agradeço-lhe que tenha vindo. com isso, ganhamos tempo.
- Cada dia é vital. Não podemos perder um minuto enquanto os arquivos estiverem desaparecidos. O que conseguiu?
- Praticamente tudo o que precisamos. Minhas fontes básicas foram o editor de Chancellor, Anthony Morgan, e seu agente literário, Joshua Harris.
- E eles não se opuseram a cooperar?
- Não foi difícil convencê-los. Disse que era uma rotina normal, iríamos efetuar uma verificação mínima de segurança.
- Verificação de segurança para quê?
Varak tirou uma folha da pasta que estava à esquerda.
- Antes de sofrer o acidente, Chancellor tinha pedido à Imprensa Oficial que lhe remetesse as transcrições dos tribunais de Nurembergue. Vai escrever um romance sobre os julgamentos. Para ele, Nurembergue foi dominado por conspirações judiciais Crê que milhares de nazistas escaparam impunes, livres para emigrar por todo o mundo, transferindo vultosas somas para onde iam.
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- Ele está enganado - comentou Bravo. - Isso foi a exceção, não a regra.
- No entanto, algumas transcrições ainda estão classificadas, como sigilosas. Ele não as obteve, mas não sabe disso. Insinuei o contrário, e que meu trabalho era simplesmente o de fazer uma verificação rotineira. Nada de mais sério. Disse também que era um fã de Chancellor, que gostava de conversar com pessoas que o conheciam.
- Ele já escreveu esse livro sobre Nurembergue?
- Ainda nem começou.
- Por quê?
Varak examinou outra folha, enquanto falava:
- Chancellor quase morreu num acidente de automóvel no outono passado. A mulher que estava com ele morreu. Segundo as fichas médicas, ele teria morrido com mais dez minutos de hemorragia interna e toxemia patogênica. Chancellor passou cinca meses no hospital. Foi todo remendado. Prevê-se uma recuperação de 85 a 90 por cento.
Isso quanto à parte física.
Varak fez uma pausa, virou a página. Bravo perguntou: !
- Quem era a mulher? ) Varak deslocou sua atenção para a pasta à direita.
- O nome dela era Catherine Lowell. Viviam juntos há quase um ano e planejavam casar. Estavam indo visitar os pais de Chancellor, no noroeste da Pensilvânia, quando ocorreu o acidente. A morte dela foi um choque terrível para Chancellor. Ele entrou num longo período de depressão. E ainda continua nesse estado, até certo ponto, segundo o editor e o agente.
- Morgan e Harris - acrescentou Bravo, para o seu próprio esclarecimento.
- Isso mesmo. Os dois se empenharam na recuperação de Chancellor, primeiro dos danos físicos, depois da depressão. Ambos reconhecem que, nos últimos meses, houve ocasiões em que pensaram que Chancellor estivesse liquidado como escritor.
- Uma suposição compreensível. Afinal, ele não tem escrito nada.
- Mas supostamente está escrevendo agora. Encontra-se neste momento na Califórnia, trabalhando como co-autor do roteiro para a filmagem de Contra-ataque!, embora ninguém espere que faça muita coisa. Ele não tem qualquer experiência de cinema.
- Então por que o contrataram?
- Pelo valor do seu nome, segundo Harris. E o fato de que o estúdio teria uma vantagem sobre os outros na compra do próximo livro de Chancellor. Mas, na verdade, isso só aconteceu porque foi assim que Harris impôs o contrato.
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- O que significa que ele queria que Chancellor se envolvesse compulsoriamente no roteiro, já que não estava trabalhando em coisa alguma.
- Na opinião de Harris, Chancellor está sendo importunado por sua casa na Pensilvânia e pelas recordações. Por isso é que quis despachá-lo para a Califórnia. - Varak virou diversas páginas. - Aqui está. As palavras exatas de Harris. Ele queria que seu cliente "experimentasse as extravagâncias, perfeitamente normais, de um residente temporário de Malibu".
Bravo sorriu.
- E tais extravagâncias estão tendo algum efeito positivo?
- Há algum progresso. Não muito grande, mas algum. Varak tirou os olhos do relatório. - E isso é algo que nós não podemos permitir que aconteça.
- Como assim?
- Chancellor nos será muito mais valioso num estado psicológico enfraquecido. - O agente gesticulou para as duas pastas de arquivo, antes de acrescentar: - O resto descreve um homem aparentemente normal, antes do acidente. Quaisquer hostilidades ou excessos porventura existentes foram transferidos para os livros. Chancellor
não os exibiu em sua maneira de viver. Se retornar à normalidade, será naturalmente cauteloso, irá se retrair no momento em que isso não nos interessa. Quero mantê-lo
desequilibrado, num estado de ansiedade.
St. Claire tomou um gole de café, sem fazer qualquer comentário.
- Continue, por favor. Descreva o estilo de vida dele.
- Não há realmente muita coisa. Chancellor tem um apartamento num prédio antigo da Rua 71-Leste. Levanta cedo, geralmente antes do amanhecer, começa a trabalhar.
Não usa máquina de escrever. Escreve em blocos amarelos, tira xerox, recorre a um serviço de datilografia em Greenwich Village. - Varak tornou a levantar a cabeça.
- Isso pode ser uma vantagem para nós quando ele começar a pesquisa. Poderemos interceptar os originais e tirar nossas próprias cópias.
- Vamos supor que ele trabalhe na Pensilvânia e mande os originais diretamente para o serviço de datilografia, através de um portador.
- Nesse caso, poderemos nos infiltrar no escritório da firma de Village.
- Claro. Continue.
- Praticamente não resta mais nada importante. Chancellor tem um restaurante predileto, onde é conhecido por todos. Gosta de esquiar e jogar ténis, mas não poderá mais voltar a praticar nenhum desses esportes. Seus amigos, além de Morgan e Harris,
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são principalmente outros escritores e jornalistas. Estranhamente, é amigo também de diversos advogados de Nova York e Washington. E isso é tudo. - Varak fechou a pasta da direita. - Agora, gostaria de levantar um problema. - Qual?
- De acordo com as informações que acabamos de analisar, acho que sei como programar Chancellor. Mas vou precisar de apoio. Usarei o disfarce de Longworth, que é bastante seguro. Longworth está no Havaí e continuará escondido. Somos muito parecidos, até mesmo na duplicação da cicatriz. E sempre se pode confirmar a ficha dele no FBI. Mas, além disso, vamos precisar de mais uma isca, da qual Chancellor não possa escapar.
- Por favor, esclareça.
Varak fez uma pausa, antes de dizer, com extrema convicção:
- Temos um crime, mas não temos qualquer conspiração. Ou nenhuma que possamos identificar. Chancellor terá que seguir suas próprias especulações. Nada temos para oferecer-lhe. Se tivéssemos, nem.precisaríamos usá-lo.
- O que está querendo propor? - indagou St. Claire, percebendo a hesitação nos olhos de Varak.
- Quero mcluir no esquema um outro homem de Inver Brass. Um homem que, na minha opinião, é o único que possui a sua estatura pública. Chama-o de Venice. É o Juiz Daniel Sutherland. Quero permissão para encaminhar Chancellor até ele.
O diplomata ficou em silêncio por um longo tempo.
- Para dar peso ao que vai dizer a Chancellor? A chamada confirmação irresistível?
-- Isso mesmo. Para consolidar a nossa história dos arquivos desaparecidos. Isso é tudo o que preciso. A palavra de Sutherland será a isca que Chancellor não poderá deixar de engolir.
- É perigoso. Nenhum membro de Inver Brass deve participar diretamente de qualquer estratégia.
- Mas o tempo assim o exige. Eu o excluí por causa de seu relacionamento anterior com Chancellor.
- Compreendo. A coincidência poderia provocar indagações. Falarei com Venice... E agora, se me permite, quero voltar a algo que disse. Sobre o estado psicológico de Chancellor. Se entendi corretamente o que falou...
- Entendeu, sim - interrompeu-o Varak, calmamente. Não podemos permitir que Chancellor se recupere. Não podemos permitir que volte a seu nível racional anterior. Ele tem que atrair atenção para si mesmo, para sua pesquisa. Se ele permanecer inconstante, vai se tornar uma ameaça, e se essa ameaça for suficientemente perigosa, quem quer que esteja com os arquivos
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será compelido a eliminá-lo. E quando ele - ou eles - tentar fazê-lo estaremos por perto.
Bravo empertigou-se na cadeira, a expressão preocupada.
- Acho que isso vai além dos parâmetros por nós estabelecidos.
- Eu não sabia que havíamos estabelecido parâmetro algum.
- São intrínsecos. Há limites ao uso de Peter Chancellor. Não incluem pôr a vida dele em perigo.
- Reconheço que é uma extensão lógica da estratégia. Objetivamente, a estratégia poderia ser inútil sem esse fator. Mas creio que estaríamos dispostos a trocar a
vida de Chancellor por aqueles arquivos. Não é mesmo?
St. Claire não respondeu.
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Peter Chancellor estava parado diante das portas que davam para a praia. Entreabriu novamente as cortinas. O homem louro ainda estava ali. Há mais de uma hora que
estava ali, andando para frente e para trás, ao sol quente da tarde, os sapatos afundando na areia quente, o colarinho aberto, o paletó pendurado no ombro.
Estava andando para cima e para baixo, entre a varanda de sequóia. vermelha e a beira dágua, uma distância de 50 metros, olhando de vez em quando para a casa de Peter. Era de estatura mediana, talvez tivesse um pouco mais de l,80m. Era musculoso, os ombros largos, estofando a camisa.
Peter vira-o pela primeira vez por volta de meio-dia. O homem ficara parado na areia olhando para a varanda. Ou melhor, olhando para ele, Peter.
A presença do homem, a princípio desconcertante, agora tornara-se irritante. O primeiro pensamento que ocorrera a Peter fora de que Sheffield tinha decidido contratar um cão de guarda para vigiá-lo. Havia agora muito dinheiro envolvido em Contraataque! Muito dinheiro lhe fora oferecido em circunstâncias que levantavam questões inquietantes.
Peter não gostava de cães de guarda. Não daquele tipo. Puxou as cortinas, abriu a porta, saiu para a varanda. O homem parou de andar e ficou novamente imóvel na areia.
Os dois se fitaram e as dúvidas de Peter se desvaneceram. O homem estava ali por causa dele. A irritação transformou-se em raiva. Peter resolveu descer para a praia. O homem permaneceu onde estava, não fez qualquer movimento para se aproximar.
Que se dane!, pensou Peter. Havia poucas pessoas naquele trecho particular de Malibu. Mas se alguém estivesse observando, certamente acharia estranho um homem de calça esporte, nu da cintura para cima, aproximar-se de um homem inteiramente vestido, de pé, imóvel, na frente de uma casa. Era de fato estranho. O estranho louro tinha algo curioso. Parecia simpático, o rosto jovial, uma aparência até gentil. Contudo, havia algo de
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ameaçador nele. Ao chegar mais perto, Peter percebeu o que era: os olhos do homem denotavam um estado de alerta e precaução. Não eram os olhos de um cão de guarda
subserviente, contratado por um executivo de estúdio apreensivo.
- Está quente aqui fora - disse Peter, bruscamente. - Não pude deixar de me perguntar por que está andando para frente e para trás neste calor. Especialmente porque não pára de olhar para minha casa.
- Para sua casa alugada, Sr. Chancellor.
- Acho que é melhor você se explicar, já que é óbvio que conhece meu nome e a situação da casa onde estou morando. Não seria porque foi contratado pelas mesmas pessoas que estão pagando o aluguel?
- Não.
- Marque um ponto para mim. Eu achava que não era. Agora, tem duas opções. Ou satisfaz minha curiosidade ou fica esperando até eu chamar a polícia.
- Quero que faça mais do que isso. Sei que tem fontes em Washington. Quero que telefone para uma delas e peça para verificar meu nome nas fichas pessoais do FBI.
- Como?
Peter estava atónito. O homem falava com muita calma, mas havia um tom patente de urgência em sua voz.
- Estou aposentado - acrescentou o homem rapidamente.
- Não estou aqui em caráter oficial. Mas meu nome está no fichário de pessoal do FBI. Pode verificar.
Peter estava apreensivo.
- Por que eu deveria fazer isso?
- Li seus livros.
- Isso é problema seu, não meu. Não há motivo.
- Pois eu acho que há. Foi justamente porque li seus livros que me dei ao trabalho de descobrir onde estava.
O homem hesitou, como se não soubesse muito bem como continuar.
- Continue.
- Em todos os seus livros, fala de certos acontecimentos que podem não ter ocorrido da maneira como geralmente se pensa. E há menos de um ano aconteceu uma coisa que se inclui nessa categoria.
- O que foi?
- Um homem morreu. Um homem muito poderoso. Disseram que ele morreu de causas naturais. Mas não foi isso o que aconteceu. Ele foi assassinado.
Peter ficou surpreso.
- Por que não procura a polícia?
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- Não posso. Se verificar minha ficha, compreenderá por quê.
- Sou um romancista, escrevo ficção. Por que veio me procurar?
- Já lhe disse. Li seus livros. E estou convencido de que talvez a história só possa ser contada num livro. E um livro do tipo que costuma escrever.
- Romances.
Peter não estava fazendo uma pergunta.
- Isso mesmo.
- Ficção.
Novamente era uma declaração, não uma pergunta:
- Isso mesmo.
- Mas disse que não é ficção, e sim um fato real.
- É o que acredito piamente. Mas não tenho certeza se conseguirei prová-lo.
- E não pode procurar a polícia.
- Não posso.
- Procure um jornal. Descubra um repórter investigador. Há dezenas nessa categoria, alguns excelentes.
- Nenhum jornal cuidaria de um assunto assim. Pode estar certo.
- E por que diabo eu deveria me interessar?
- Vai se interessar, depois de verificar quem sou. Meu nome é Alan Longworth. Fui agente especial do FBI durante 20 anos. Aposentei-me há cinco meses. Tinha base em San Diego... e trabalhava também no norte. Vivo agora no Havaí. Na ilha de Maui.
- Longworth? Alan Longworth? O nome deve significar alguma coisa para mim?
- Isso não é nem remotamente possível. Tudo o que lhe peço é que verifique quem sou eu.
- Suponhamos que eu faça isso. E depois?
- Voltarei amanhã de manhã. Se quiser continuar a conversar, ótimo. Caso contrário, irei embora. - O estranho hesitou novamente. Quando voltou a falar, havia urgência em seus olhos:
- Viajei muito para encontrá-lo. Arrisquei-me demais. Talvez tenha quebrado um acordo que pode me custar a vida. Por isso, tenho que pedir-lhe mais uma coisa. E quero que me dê sua palavra.
- E seu eu não quiser dar?
- Neste caso, não verifique quem sou. Não faça nada. Esqueça que apareci aqui, esqueça que conversamos.
- Mas o fato é que apareceu aqui e conversamos. É um pouco tarde para impor condições.
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Longworth demorou um pouco a voltar a falar:
- Será que nunca ficou assustado? Não, imagino que não. Ou pelo menos não da maneira a que estou me referindo. O que é estranho, pois sempre escreve sobre o medo.
Parece ser capaz de compreendê-lo.
- Não parece o tipo de homem que se assusta facilmente.
- E não me assusto mesmo. Minha ficha no FBI poderá confirmar isso.
- E qual é a condição?
- Pergunte a meu respeito. Descubra tudo o que puder, diga qualquer coisa que quiser. Mas, por favor, não diga que nos encontramos, não repita o que eu lhe disse.
- Isso é loucura. O que devo dizer então?
- Tenho certeza de que pode imaginar alguma coisa. Afinal, é um escritor.
- O que não significa necessariamente que eu seja um bom mentiroso.
- É um homem que está sempre viajando. Pode dizer que ouviu falar a meu respeio no Havaí. Por favor...
Pçter remexeu os pés sobre a areia quente. O bom senso lhe dizia para afastar-se daquele homem. Havia algo perigoso no rosto expressivo e controlado, nos olhos alerta demais. Mas o instinto não permitiria que o bom senso prevalecesse e ditasse a decisão.
- Quem é esse homem que morreu e que você diz ter sido assassinado?
- Não vou lhe dizer agora. Revelarei quem é amanhã, se quiser continuar a conversar.
- Por que não diz agora?
- É um escritor famoso. Tenho certeza de que muitas pessoas o procuram para contar coisas que parecem absurdas. Provavelmente se livra delas o mais depressa possível, como não podia deixar de ser. Não quero que se livre de mim. Quero que se convença de que possuo uma estatura pessoal razoável.
Peter achou que as palavras de Longworth faziam sentido. Nos últimos três anos, desde Reichstag!, muitas pessoas o puxavam para um canto em coquetéis ou sentavam-se à sua mesa em restaurantes para revelar as informações mais fantásticas. O mundo estava repleto de conspirações. E de conspiradores em potencial.
- É uma posição compreensível - disse Peter finalmente. Seu nome é Alan Longworth. Foi agente especial durante 20 anos. Aposentou-se há cinco meses e vive agora no Havaí.
- Maui.
- Isso deve constar na sua ficha.
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Ao ouvir a palavra ficha, Longworth encolheu-se abruptamente.
- Tem razão. Deve estar tudo lá.
- Mas qualquer um pode conseguir descobrir o que tem uma ficha específica. Dê-me alguma coisa para identificá-lo.
- Estava me perguntando se não iria pedir isso.
- Nos meus livros, procuro ser convincente. É uma simples questão de lógica, passo a passo, sem nenhum hiato. Quer que eu fique convencido. Pois então preencha o hiato.
Longworth mudou o casaco do ombro direito para o esquerdo. com a mão direita, desabotoou a camisa. Abriu-a. Ao longo de seu peito, descendo além da cintura, havia uma horrível cicatriz, meio curva.
- Não creio que nenhum dos seus ferimentos possa se comparar a isso.
Peter reagiu a tais palavras com um breve acesso de raiva. Mas não havia sentido em explorar a declaração. Se Longworth era Jc fato quem dizia ser, tinha tido tempo suficiente para descobrir os fatos que lhe interessavam. Entre eles se incluiriam, sem a menor dúvida, muitos detalhes a respeito da vida de Peter Chancellor.
- A que horas vai aparecer amanhã?
- Qual a hora mais conveniente?
- Eu costumo me levantar bem cedo.
- Estarei aqui bem cedo.
- Oito horas.
- Então, até as oito.
Longworth virou-se e começou a se afastar pela praia.
Peter ficou parado onde estava, observando-o, consciente de que a dor na perna desaparecera. Sentira-a o dia inteiro, mas agora havia desaparecido. Telefonaria para Joshua Harris, em Nova York. Deveriam ser quatro e meia da tarde no Leste: ainda havia tempo. Havia um advogado em Washington, um amigo comum, que poderia obter a informação a respeito de Alan Longworth. Josh comentara certa ocasião, de brincadeira, que o advogado deveria exigir royalties por Contra-ataque!, tão grande tinha sido a contribuição dele na pesquisa de Peter.
Peter descobriu que estava inconscientemente se apressando, ao subir os degraus da varanda. Era uma sensação estranhamente satisfatória, e não podia explicá-la.
Há menos de um ano aconteceu uma coisa... Um homem morreu. Um homem muito poderoso. Disseram que ele morreu de causas naturais. Mas não foi isso o que aconteceu. Ele foi assassinado...
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Peter telefone.
atravessou a varanda rapidamente, na direção do
A manhã estava ameaçadora. Nuvens escuras pairavam sobre o mar, a chuva em breve começaria a cair. Peter estava preparado para a chuva há mais de uma hora. Usava
um casaco de náilon por cima da calça caqui. Eram 7h45min, 10h45min em Nova York. Joshua havia prometido telefonar por volta das 7h30min, o que equivalia a lOhSOmin
lá no Leste. Por que o atraso? Longworth chegaria por volta das oito horas.
Peter serviu-se de outra xícara de café, a quinta daquela manhã.
O telefone tocou.
- Escolheu um cara dos mais estranhos, Peter - disse Harris, de Nova York.
- Por que diz isso?
- Segundo nosso amigo em Washington, esse Alan Longworth fez o que ninguém estava esperando. Aposentou-se na hora errada. i
- Ele passou mesmo 20 anos no serviço? :
- Praticamente isso. í
- Não é suficiente para receber uma pensão?
- É, sim. Mas é necessário que a pessoa complemente com outro salário. O que ele não fez. Mas não é isso o mais importante.
- O que é então?
- Longworth tinha uma ficha excepcional. Havia sido escolhido pelo próprio Hoover para promoção aos altos escalões. Hoover escreveu, com o próprio punho, uma recomendação
favorável, que foi anexada à ficha. Era de se imaginar que iria continuar no serviço.
- Por outro lado, Josh, ele poderia conseguir um emprego excepcional aqui fora, com esse tipo de ficha. É o que fazem muitos homens do FBI. Talvez ele esteja trabalhando
para alguém e o FBI não saiba disso.
- Não é provável. Eles mantêm fichas atualizadas sobre seus agentes aposentados. E se ele tem algum emprego, por que está vivendo em Maui? Não há muita atividade
por lá. Seja como for, não há qualquer informação de um empregador no momento. Tudo indica que ele não está mesmo fazendo nada.
Peter olhou pela janela. Uma chuva miúda tinha começado a cair do céu escuro.
- As outras informações conferem?
- Conferem. A base de operações dele era mesmo San Diego. Aparentemente, ele era a ligação pessoal de Hoover com La Jolla.
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- La Jolla? O que isso significa?
- Era o refúgio predileto de Hoover. Longworth estava no comando de todas as comunicações.
- E o que me diz da cicatriz?
- Está relacionada entre as marcas de identificação, mas sem qualquer explicação. E é nesse ponto que chegamos à parte mais estranha da ficha. Os últimos registros médicos estão faltando, os dois últimos checkups anuais. O que é muito estranho.
- É tudo muito incompleto - comentou Peter, alteando a voz. - Tudo, mesmo.
- Tem toda razão.
- Quando ele se aposentou?
- Em março último. No dia 2.
Peter fez uma pausa, impressionado pela data. Ao longo dos últimos anos, as datas haviam adquirido um significado especial para ele. Condicionara-se a procurar coerências e incoerências em relação a datas. O que havia de estranho agora? Por que aquela data subitamente lhe causava uma impressão?
Pelas janelas da cozinha, Peter avistou o vulto de Alan Longworth caminhando pela praia na direção da casa, sob a chuva. Por alguma razão, a vista provocou outra imagem. Dele próprio. Na areia, com o sol brilhando. E um jornal.
Dia 2 de maio. J. Edgar Hoover morrera no dia 2 de maio.
Um homem morreu. Um homem muito poderoso. Disseram que ele morreu de causas naturais. Mas não foi isso o que aconteceu. Ele foi assassinado...
- Santo Deus - murmurou Peter ao telefone.
Foram andando pela praia, beirando a água, sob a chuva miúda. Longworth não tinha querido falar dentro da casa nem em qualquer outro lugar fechado onde pudesse haver alguma vigilância eletrônica. Era experiente demais para isso.
- Já verificou quem sou?
- Sabia que eu faria isso - respondeu Peter. - Tinha acabado de desligar o telefone quando chegou.
- Está satisfeito?
- com o fato de ser quem diz ser, estou. E por você ter uma excelente ficha, com recomendações pessoalmente feitas por Hoover, e por saber que se aposentou há cinco meses... também estou.
- Não mencionei qualquer elogio pessoal de Hoover.
- Mas isso está na sua ficha.
- Sei disso. Trabalhei diretamente para ele.
- Estava com base em San Diego, como disse. Era a ligação de Hoover com La Jolla.
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Longworth sorriu, sombriamente, sem qualquer humor.
- Eu passava mais tempo em Washington do que jamais passei em San Diego. Ou La Jolla. Não vai encontrar tal informação na minha ficha do FBT.
- Por que não?
- Porque o diretor não queria que ninguém soubesse.
- Por que não?
- Já lhe disse. Eu trabalhava para ele. Pessoalmente. »
- De que maneira?
- Cuidando dos seus arquivos particulares. Eu era um mensageiro. La Jolla significava muito mais que o simples nome de uma cidadezinha na costa do Pacífico.
- Isso está enigmático demais para mim. O homem louro parou.
- E é assim que vai continuar. Tudo o mais que descobrir terá que vir de outra pessoa.
- Agora está sendo presunçoso. O que o leva a pensar que irei investigar alguma coisa?
- Porque não pode compreender o motivo pelo qual me aposentei. Ninguém pode, não fez o menor sentido. Tenho uma pensão mínima, sem qualquer rendimento adicional. Se tivesse permanecido no FBI, poderia ter-me tornado um assistente de diretor ou alcançado algum outro posto importante.
Longworth recomeçou a andar. Peter acompanhou-o, sem sentir qualquer dor na perna.
- Está certo, vou fazer a pergunta. Por que se aposentou? Por que não tem um emprego?
- A verdade é que não me aposentei. Fui transferido para outro serviço do governo e recebi algumas garantias. Meu empregador na ficha; uma ficha que não encontrará em nenhum arquivo, é o Departamento de Estado. Serviço Exterior, operações no Pacífico. A dez quilómetros de Washington. Se eu tivesse permanecido em Washington, seria inevitavelmente morto.
- Vamos parar por aqui! - Peter parou também de andar.
- Tenho uma ideia de onde está querendo chegar e não aguento mais tanto rodeio. Está querendo insinuar que J. Edgar Hoover foi assassinado. Ele é o "homem poderoso" a quem se referiu.
- O que significa que já juntou todas as informações.
- É uma conclusão bastante lógica, mas não acredito nela. É simplesmente ridícula.
- Eu não disse que poderia prová-la.
- Nem eu esperava que pudesse. A ideia é absurda. Ele era um velho com distúrbios cardíacos.
- Talvez sim, talvez não. Jamais conheci alguém que tivesse visto as fichas médicas dele. Os originais eram-lhe enviados dire-
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lamente e não havia cópias. Ele tinha meios de fazer com que suas determinações fossem cumpridas. Não foi permitida a autópsia do corpo.
- Ele tinha mais de 70 anos. - Peter sacudiu a cabeça, irritado. - Você tem uma tremenda imaginação.
- Não é com isso que se fazem os romances? Não começa sempre com uma concepção qualquer? com uma ideia?
- Reconheço que sim. Mas as histórias que escrevo precisam ter um mínimo de credibilidade. Tem que haver alguma realidade básica ou pelo menos uma aparência.
- Se por realidade está se referindo a fatos, há vários. Enumere-os.
- O primeiro sou eu mesmo. Em março, fui procurado por algumas pessoas que não poderiam ser identificadas, mas que eram influentes o bastante para acionar os mais altos escalões do Departamento de Estado. Providenciaram uma transferência que Hoover jamais teria permitido. Nem mesmo eu sei como o conseguiram. Estavam preocupadas com determinadas informações que Hoover- acumulara. Dossiês sobre milhares de pessoas.
- Entre as quais estavam as mesmas pessoas que lhe deram as garantias? Por serviços que lhes iria prestar?
- Exatamente. Tenho a impressão, embora não possa ter certeza, que sei qual é a identidade de uma delas. Estou disposto a lhe dar o nome.
Longworth parou novamente. Como no dia anterior, estava outra vez indeciso. A impressão de urgência retornara a seus olhos. Peter disse, impacientemente:
- Continue.
- Tenho a sua palavra de que não irá se referir ao meu nome quando se encontrar com essa pessoa?
- Mas claro! Para ser franco, tenho a impressão de que iremos nos despedir dentro de alguns minutos e nunca mais voltarei sequer a pensar em você.
- Já ouviu falar de Daniel Sutherland?
Peter ficou atónito. Daniel Sutherland era um gigante, tanto figurativa como literalmente. Um preto gigantesco, cujos feitos extraordinários condiziam com seu enorme tamanho. Um homem que emergira da miséria dos campos do Alabama há meio século e atingira os círculos mais altos do sistema judiciário da nação. Por duas vezes recusara indicações presidenciais para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, preferindo um posto mais ativo.
- O juiz?
- Exatamente.
- Claro que já ouvi falar dele. E quem não ouviu? Por que acha que ele integrava o grupo que foi procurá-lo?
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- Vi o nome dele num memorando do Departamento de Estado a meu respeito. Não deveria ter visto, mas o fato é que vi. Vá procurar Sutherland. Pergunte-lhe se não
havia um grupo em ação, com um objetivo determinado, nos dois últimos anos de vida de Hoover.
A sugestão era irresistível. As histórias a respeito de Sutherland eram lendárias. Peter agora levava Alan Longworth muito mais a sério que alguns segundos antes.
- É possível que eu faça isso mesmo. Quais são os outros fatos?
- Só há um que realmente conta. Os demais são insignificantes, em comparação com esse. Há um outro homem, um general chamado MacAndrew. General Bruce MacAndrew.
- Quem é ele?
- Até recentemente, estava nos altos escalões do Pentágono. Tinha tudo a seu favor. Provavelmente poderia ocupar a qualquer momento o cargo de chefe do Estado-Maior
Conjunto. De repente, sem qualquer razão aparente, ele renunciou a tudo. Uniforme, carreira, Estado-Maior, tudo, enfim.
- De certa forma, não foi uma atitude muito diferente da sua. Talvez ele tenha renunciado para se lançar a alguma coisa numa escala ainda maior.
- A situação dele é muito diferente da minha. Tenho informações a respeito de MacAndrew. Digamos que figurava entre aqueles serviços prestados. Aconteceu-lhe algo
há 21 ou 22 anos. Aparentemente, ninguém sabe o que foi. Ou, se sabem, não dizem. Mas foi algo grave o bastante para que fosse retirado de sua folha de serviço. Foram omitidos oito meses em 1950 ou 51, isso é tudo o que me lembro. Pode estar ligado àquele fato único fundamental, o seu fato básico, Chancellor. E confesso que isso me deixa apavorado.
- E que fato é esse?
- Os arquivos particulares de Hoover. MacAndrew podia figurar neles. São mais de três mil fichas, uma parcela considerável das pessoas mais importantes do país. Homens do governo, indústria, universidades, forças armadas, dos mais poderosos aos menos significativos. Podem lhe dizer o contrário, mas tenho certeza de que estou lhe contando a verdade. Esses arquivos estão desaparecidos, Chancellor. Ainda não foram encontrados desde a morte de Hoover. Alguém se apossou deles e agora os está usando.
Peter ficou olhando em silêncio para Longworth, por algum tempo. Estava aturdido.
- Os arquivos de Hoover? Mas isso é um absurdo!
- Pense um pouco a respeito. vou lhe expor a minha teoria. Quem quer que esteja com os arquivos, matou Hoover para
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obtê-los. Já verificou quem sou. Dei-lhe mais dois nomes para investigar. Não me importo com o que possa dizer a MacAndrew, mas deu sua palavra de que não irá mencionar
meu nome ao juiz. E não quero absolutamente nada de você. Gostaria apenas que pensasse a respeito, mais nada. Pense nas possibilidades.
Sem indicar que havia terminado, sem qualquer aceno de cabeça ou gesto, Longworth virou-se e, como no dia anterior, foi se afastando pela praia. Aturdido, Peter ficou parado, sob a chuva, observando o agente aposentado do FBI começar a correr na direção da estrada.
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Chancellor estava no bar do restaurante da Rua 56-Leste. O estabelecimento se esforçava em parecer uma casa inglesa transferida para a América. Peter gostava do
ambiente, propício a almoços compridos, com muita conversa.
Telefonara para Tony Morgan e Joshua Harris, pedindo-lhes que fossem encontrá-lo lá. Embarcara no avião que saíra de Los Angeles no final da tarde. Pela primeira
vez, em muitos meses, dormira em seu próprio apartamento e se sentira muito bem. Chegara à conclusão que deveria ter voltado antes. Seu falso refúgio na Califórnia
se transformara numa verdadeira prisão.
Estava acontecendo. Algo dentro de sua cabeça rompera, uma barreira fora destruída, liberando a energia acumulada. Não tinha a menor ideia se as histórias que Longworth
lhe contara faziam algum sentido. Não, não podiam fazer. Era tudo por demais absurdo. A hipótese de assassinato era simplesmente inaceitável. Mas a premissa era
fascinante. E qualquer boa história sempre começava com uma premissa. As possibilidades eram tão sedutoras quanto as das outras histórias investigadas antes. Será
que um homem extraordinário chamado Sutherland iria admitir a possibilidade de que Hoover tivesse sido assassinado? Será que um registro há muito desaparecido na
ficha de um general chamado MacAndrew poderia estar ligado a essa hipótese?
Um clarão momentâneo passou pelas janelas que davam para a rua, atraindo sua atenção lá para fora. Chancellor sorriu ao avistar Anthony Morgan e Joshua Harris se
aproximando da entrada do restaurante. Os dois estavam discutindo, mas somente quem os conhecesse bem poderia percebê-lo: para um observador acidental, eram dois
homens conversando tranquilamente, indiferentes a tudo que os cercava e, presumivelmente, um ao outro.
Tony Morgan era a própria personificação física de um pósgraduado de algumas das universidades americanas tradicionais que virara editor em Nova York. Alto, esguio,
os ombros ligeiros encurvados de tanto simular interesse pelas opiniões de mortais inferiores. O rosto era fino, as feições serenas, os olhos castanhos
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sempre um pouco distantes, mas nunca apáticos. Seus uniformes de trabalho eram os ternos cinzentos e os casacos de twced ao estilo inglês por cima das inevitáveis
calças de flanela cinzentas. Durante quase 41 anos, Morgan e a Brooks Brothers haviam se dado bem e não viam agora nenhum motivo para mudar.
As roupas e a aparência, porém, não retratavam a essência de Anthony Morgan. Esta podia ser encontrada em suas explosões de entusiasmo e no interesse contagioso
por um original em elaboração ou pela descoberta de um novo talento. Morgan era um editor de extraordinária percepção.
Se Morgan dava a impressão de ter saído diretamente dos muros académicos da Nova Inglaterra, Joshua Harris parecia ter flutuado ao longo dos séculos, vindo de alguma corte elegante do século XVI U. De cintura exuberante, Harris tinha uma postura ereta, uma pose imperial. O corpo volumoso se deslocava graciosamente, cada passo dado com visível determinação, como se fizesse parte de um cortejo real. Beirava também os 40 anos, mas disfarçando os anos a mais com uma barbicha preta, que dava a seu .rosto, ao mesmo tempo, um aspecto jovial e uma característica ligeiramente sinistra.
Peter sabia que havia dezenas de editores e agentes em Nova York com o mesmo porte ou talvez mesmo superiores a eles. Sabia também que Morgan e Harris não eram admirados por todo mundo. Já ouvira as críticas: a arrogância de Tony e seus entusiasmos frequentemente inoportunos; o apetite de Josh por confrontações desagradáveis, baseadas
muitas vezes em infundadas acusações de abuso. Mas essas calúnias não faziam a menor diferença para Peter. Para ele, aqueles dois homens eram os melhores. Porque
se preocupavam com ele.
Peter assinou a conta do bar e encaminhou-se para a entrada a fim de recebê-los. Josh passou pela porta da frente, que Tony segurava. E, como já era de se esperar
de um cavalheiro como Tony, ele continuou segurando a porta para deixar que um casal entrasse na sua frente. Os cumprimentos foram excessivamente calorosos, efusivos demais. Peter percebeu a preocupação nos olhos de ambos. Fitavam-no como se estivessem examinando um irmão confuso e desorientado.
A mesa era a de sempre, no canto, ligeiramente afastada das outras. Os drinques eram os de sempre. Peter ficou ao mesmo tempo divertido e irritado ao constatar que Josh e Tony observavam-no atentamente quando os uísques chegaram.
- Podem ficar sossegados - disse ele. - Prometo que não vou dançar em cima da mesa.
- Ora, Peter... - começou Morgan.
- Não estávamos pensando nisso... - arrematou Harris.
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Os dois se preocupavam com ele. Isso era o mais importante. E no momento seguinte, ficou claro que deviam entrar no assunto dos negócios e Peter ccmeçou imediatamente.
- Conheci um homem. Não me perguntem quem, pois não vou dizer. Encontrei-o na praia e ele esboçou uma história na qual não acredito absolutamente, mas acho que pode ser a base para um tremendo livro.
Harris interrompeu-o:
- Antes de continuar, pode me dizer se fez algum acordo com ele?
- O homem não quer coisa alguma. Dei-lhe a minha palavra de que nunca o identificaria. - Peter parou de falar por um momento, fitando Joshua Harris, que fizera as indagações, dera os telefonemas para Washington. - Para ser franco, você é o único que poderia identificá-lo, Josh. Pelo nome. Mas não pode fazê-lo. E tenho certeza de que não o fará. (
- Continue - disse Harris. l
- Há alguns anos, diversos homens de Washington ficaram , alarmados com o que consideravam uma situação extremamente perigosa. Talvez mais do que perigosa, talvez catastrófica. J. Edgar Hoover tinha acumulado dossiês sobre cerca de duas mil das pessoas mais influentes do país. Na Câmara, no Senado, na Casa Branca, no Pentágono. Incluindo assessores presidenciais e do Con- gresso, destacadas autoridades em vários setores. Quanto mais vê- f lho Hoover ficava, mais preocupado o grupo se tornava. Começa- » ram a circular no FBI histórias de que Hoover estaria usando i esses arquivos para intimidar as pessoas que lhe faziam qualquer oposição.
Foi a vez de Morgan interrompê-lo:
- Espere um pouco, Peter. Essa história - e variações dela
- tem circulação há anos. Onde está querendo chegar?
Peter fitou Morgan nos olhos.
- vou dar um pulo no meu relato. Hoover morreu há quatro meses, e não se permitiu uma autópsia do corpo. E os seus arquivos particulares desapareceram.
- Quem disse que os arquivos estão desaparecidos? - indagou Harris. - Podem ter sido destruídos. Ou enterrados.
- É bem possível.
- Mas você está insinuando que alguém matou Hoover para se apossar dos arquivos - disse Morgan.
- Não estou insinuando nada. Estou fazendo uma declaração. Como uma premissa para ficção, não como um fato. Não disse que acreditava, mas acho que posso fazer com que ia! possibilidade seja acreditável.
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Novamente houve silêncio. Morgan olhou para Harris e depois para Peter.
- É uma ideia sensacional - disse ele, com cautela. - Uma hipótese muito forte. Talvez até demais, talvez excessivamente a t uai. Teria que providenciar bases sólidas para formular tal hipótese e não sei se isso será possível.
- Esse homem na praia que nenhum de nós vai identificar... disse Harris. - Ele acredita nisso?
Peter ficou olhando para o seu drinque. Ao responder à pergunta de Harris, sabia que sua voz era tão especulativa quanto seu julgamento:
- Para ser franco, não sei. Tenho a impressão, apenas uma impressão, de que ele pensa que alguém, em algum tempo, em algum lugar, planejou o assassinato. O que é suficiente para ele. O bastante para que me desse duas fontes para verificar.
- Relacionadas com Hoover? - indagou Morgan.
- Não, ele não chegou a esse ponto. Disse que era apenas especulação. Um dos nomes está relacionado com o tal grupo de Washington que ficou apreensivo por causa dos arquivos e o uso que Hoover poderia fazer deles. O outro é muito remoto. Relaciona-se com informações perdidas há mais de 20 anos.
Morgan atraiu a atenção de Peter, comentando:
- Pode ser a base de tudo.
- Claro. Mas se for verdade o que a pessoa disse a respeito do tal grupo de Washington, terei que converter tudo à mais pura ficção. Ele é esse tipo de homem. Nada sei a respeito do outro.
- Quer nos dizer quem são esses homens? - indagou Harris.
- Ainda não. Queria apenas verificar a reação de vocês à ideia de um romance a respeito do assassinato de Hoover. Tudo engendrado por pessoas que sabiam da existência dos arquivos particulares queriam obtê-los para atingir interesses próprios.
- A ideia é sensacional - repetiu Morgan.
- Vai ihe custar muito - disse Harris, olhando para o editor.
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O Deputado Walter Rawlins, integrante de uma dinastia, sem grande importância, de políticos da Virgínia, estava sentado na biblioteca de sua casa, situada no subúrbio
de Arlington. A única iluminação provinha de um abajur de latão na mesinha ao seu lado, por baixo de fotografias ampliadas de diversos Rawlins, montados em diversos cavalos, em diversos estágios de uma caçada. Já passava da ineia-noite.
Estava sozinho em casa. A esposa fora passar o fim de semana em Roanoke e era o dia de folga da empregada, o que significava que sua noite também seria livre. Aquela negra mal podia esperar pela noite de quinta-feira para ir exibir o rabo negro pelas redondezas. Rawlins sorriu e levou o copo aos lábios, tomando diversos goles de cerveja amarga. Era um rabo de negra dos mais macios e ele teria dito à dona dessa carne toda que ficasse em casa, se não receasse a volta inesperada da outra. A esposa dissera que estava indo no Cessna para Roanoke, mas podia perfeitamente dizer ao piloto que voltasse para a pista em McLean. A cadela da esposa poderia naquele exato momento estar esperando num carro do outro lado da rua, prestes a entrar em casa a qualquer momento.
Ela adoraria surpreendê-lo a trepar com a negra.
Rawlins piscou os olhos bruscamente. Olhou para a escrivaninha. O telefone estava tocando! E era a linha do escritório, a sua ligação direta com Washington. Mas que merda!
O telefone continuou a tocar. Não ia parar. Ele detestava falar ao telefone depois que bebia alguma coisa. Levantou-se da cadeira, segurando o copo, encaminhou-se tropegamente para a escrivaninha.
- AIO? O que é?
- Boa-noite,
A voz ao telefone era um sussurro, urn pouco estridente, absolutamente irreconhecível. Não podia nem determinar se era homem ou mulher.
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- Quem está falando? Como conseguiu descobrir este telefone?
- Nenhuma dessas perguntas é relevante perto do que tenho para lhe dizer.
- Não vai me dizer coisa nenhuma! Não falo...
- Newport News, Rawlins! Eu não desligaria, se fosse você. Rawlins ficou totalmente imóvel por um momento. Olhou,
aturdido, através de um nevoeiro, para o fone em sua mão. Lentamente, levou-o ao ouvido, quase prendendo a respiração.
- Quem 6 você? O que está querendo dizer? Newport... Sua voz sumiu de repente. Ele simplesmente não podia concluir o nome.
- Três anos atrás, Deputado. Tenho certeza de que irá recordar, se fizer um pequeno esforço. O médico-legista de Newport News calculou que a morte ocorreu por volta de meia-noite e meia, Mais ou menos a esta hora. A data foi 22 de março.
- Quem é você afinal de contas?
Rawlins estava sentindo um frio terrível no estômago.
- Já lhe disse que isso não é importante. Não mais importante que a garota negra em Newport News. Que idade ela tinha, Deputado? Quatorze anos? Era isso? Não acha que foi grotesco? Disseram que ela tinha sido toda retalhada, barbara mente espancada.
- Não sei do que está falando! Isso nada tem a ver comigo! - Rawlins levou o copo à boca, bebeu rapidamente. O líquido escorreu por seu queixo. - Eu não estava nem perto...
- De Newports News? - interrompeu-o o sussurro estridente. - Na noite de 22 de março de 1969? Acho que estava. Para dizer a verdade, tenho na minha frente um plano de voo detalhado de um avião Cessna, aterrissando e decolando de um aeroporto particular 15 quilómetros ao norte de Newport News. Há uraeí descrição do passageiro, que apareceu embriagado, com as roupas sujas de sangue. Quer que eu leia?
Rawlins largou o copo, que se espatifou no chão.
- Você... pare... com isso!
- Não precisa se preocupar, Deputado. Afinal, está presidindo um comité da Câmara que me interessa. O único problema é que não me agrada a sua oposição ao projeto H.R. três-sete-cinco. Vai mudar a sua posição, Rawlins. Vai passar a apoiar integralmente o projeto...
Phvllis Maxwell passou pela mesa de recepç5o do Hay-Adams e foi para o Salão Lafayette. A turma habitual da hora do almoço estava esperando uma vaga para sentar. Mas ela não tinha esse problema. O maitre do Lafayette iria vê-la e a encaminharia, na
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frente dos outros, à sua mesa. Estava 15 minutos atrasada, o que era ótímo. O homem com quem ia almoçar devia estar nervoso, preocupado, talvez até pensando que ela havia esquecido o compromisso. O que seria ótimo: ele ficaria na defensiva.
Ela parou por um momento diante de um grande espelho, e ficou satisfeita. Nada mau, pensou. Nada mau para uma garota gorda e feia de Chillicothe, Ohio, que estava agora com 47 anos. Ela era... bom, elegante era o termo mais apropriado. Era es- guia, as pernas bem torneadas, os seios firmes, o pescoço comprido, quase grego, acentuado pela gargantilha de pérolas. Era um bom rosto. Novamente a palavra elegante se aplicava perfeitamente. Os olhos, é claro, eram impressionantes. Não havia quem não os notasse. Pintalgados, curiosos, os olhos de uma jornalista experiente. Sabia usar aqueles olhos, cravava-os fixamente em quem estivesse entrevistando, como que transmitindo uma mensagem: J Não acredito em nada do que esíá me dizendo. Vai ter que encontrar coisa melhor.
com aqueles olhos, havia arrancado muitas verdades de muitos mentirosos. Mais de uma vez surpreendera Washington com uma história comprovada que muitos conheciam mas jamais tinham imaginado que um dia veriam publicada. Arrancara muitas confirmações, frequentemente pelo simples expediente de se manter em silêncio, deixando apenas que os olhos trabalhassem.
É ciaro que muitas vezes os olhos tinham feito algo mais além de duvidar; haviam também prometido. Mas não costumava enganar a si mesma. Afinal, 47 anos não eram mais 27 anos, com ou sem elegância. com o passar dos anos tinha havido mais dúvidas do que promessas. E por diversas razões.
Phyllis Maxwell era o nome, não Paula Mingus, dos Mingus, de Chillicothe. O primeiro editor que a deixara assinar uma matéria tratara de providenciar a mudança, um quarto de século antes. E ela era boa na profissão, levava o seu trabalho a sério. Estava sempre atrás das grandes notícias, as mais difíceis de se descobrii.
Como naquele dia. Havia algo de podre, de terrivelmente podre, na campanha eleitoral em andamento. Estavam arrancando dinheiro, em quantias impressionantes, de relutantes contribuintes. Ameaças indefinidas e garantias impossíveis eram as armas que estavam sendo usadas.
- Miss Maxwell! Mas que prazer vê-la outra vez! Era o maítre do Lafayette.
- Obrigada, Jacques.
- Por aqui, Miss Maxwell. Seu acompanhante já chegou.
E lá estava ele, sentado à mesa, um jovem de aparência afável, rosto de querubim, a pele limpa, os olhos ansiosos, com uma
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expressão aduladora. Outro mentiroso de aparência impecável. Eles estavam agora em toda parte. Trate de ajagá-la, Phyllis quase que podia ouvir as instruções.
- Desculpe o atraso - disse ela.
- Quem disse que se atrasou? Acabei de chegar, O jovem sorriu.
- Nesse caso, você estava atrasado. - Era uma afirmativa, e foi aceita com um sorriso embaraçado. - Não tem importância, Paul. Tome um drinque. Acho que está precisando.
E ele tomou mesmo. Não um, mas três. Mal tocou nos ovos à Benedict. Impaciente, não conseguiu suportar a espera e foi direto ao assunto.
- Está ladrando na árvore errada, Phyl! E não vai querer cair do galho!
- Está misturando as metáforas, Paul. Vocês fazem isso com frequência. E geralmente quando têm algo a esconder.
- Não temos nada a esconder.
- Pois então vamos tratar de negócios. - Ela sempre detestara a conversa fiada, os rodeios. Uma das suas técnicas mais eficientes era ir direto ao assunto. - vou lhe dizer quais são as minhas informações. Duas empresas aéreas querendo novas rotas foram informadas, não muito sutilmente, de que a Comissão de Aeronáutica Civil poderia considerar desfavoravelmente as solicitações et cetera, et cetera, a menos que houvesse contribuições apreciáveis et cetera. Uma grande firma transportadora foi procurada por representante do sindicato dos motoristas. Ou contribuía substancialmente ou enfrentava a possibilidade de uma greve, A maior corporação farmacêutica do Leste foi ameaçada com uma investigação da Administração Federal de Drogas, dois dias depois que lhe solicitaram uma contribuição. Eles pagaram. Não haverá qualquer investigação. Quatro banco. Quatro bancos de primeira linha, Paul. Dois em Nova York, um em Detroit, outro em Los Angeles, todos em processo de fusão, foram informados de que suas petições poderiam ser proteladas durante anos, se não procurassem um contato com as pessoas certas. Houve contribuições, as petições foram despachadas favoravelmente. Tudo isso está documentado, Paul. Tenho nomes, datas, cifras. E tenciono soprar um apito dos mais estridentes, a menos que você me providencie respostas que isolem, e isolem de fato, esses oito exemplos do resto da campanha. Não vão conseguir comprar esta nem qualquer outra eleição. Meu Deus, como são idiotas! E nem precisavam!
O rosto de querubim empalideceu.
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- Está entendendo tudo errado! As posições radicais deferi» elidas pela oposição iriam destruir a nação, enfraquecer suas próprias fundações, suas liberdades fundamentais...
- Ora, Paul, não venha com essa história pra cima de mim.
- Srta. Maxwell? - Era Jacques. Trazia um telefone na mfio. - Um telefonema para a senhorita. Quer que eu ligue?
- Por gentileza, obrigada.
O maítre ligou a tomada. Depois, fez uma mesura e afastou-se.
- Aqui é Phyllis Maxwell.
- Lamento perturbar seu almoço.
- Desculpe, mas não o estou ouvindo direito.
- Tentarei falar mais claramente.
- Quem está falando? - A voz ao telefone não passava de ttm sussurro. Um tanto estridente.
- Por acaso é um trote?
- Absolutamente, Miss Mingus.
- Maxwell é o meu nome profissional. O fato de conhecei meu nome verdadeiro nada significa. Consta do meu passaporte.
- Sei disso - respondeu a voz sussurrante, estranha, repulsiva. - Já o vi registrado no Serviço de Imigração, na ilha de Saint Vincent. Nas Granadinas, Srta. Mingus.
Phyllis Maxwell ficou pálida. Uma dor terrível lhe correu pela cabeça. A mão tremia. Teve a sensação de que poderia vomitar a qualquer momento.
- Ainda esta no telefone? - indagou o horrível sussurro.
- Quem é você?
Ela mal conseguia falar.
- Alguém em quem pode confiar. Pode estar certa disso.
Oh, Deus! A ilha! Como era possível? Quem podia se importar com uma coisa daquelas? Que mentalidade obscena e asquerosa iria se dar àquele trabalho?... Em defesa da virtude! Mas os virtuosos estavam errados. O que se passava ali era o puro exercício da liberdade. Da dissimulação e das suspeitas. E a quem elas prejudicavam?
Todos os anos, durante três semanas Phyllis Maxwell deixava Washington e se isolava de tudo e de todos em Caracas, a fim de descansar. Mas Paula Mingus não ficava em Caracas. Ela e outras - voavam para as Granadinas, para a ilha delas. E ali eram elas mesmas. Mulheres que encontravam a mais plena expressão do amor. com outras mulheres.
Paula Mingus era lésbica. Phyllis Maxwell - no interesse do profissionalismo e visando o seu bem-cstar pessoal - não reconhecia tal palavra.
- N5o passa de um obsceno - murmurou ela para o terrível sussurro.
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- A maioria das pessoas aplicaria essa palavra a você. Iria se tornar o alvo das zombarias, sua carreira estaria destruída... Se a história incontestável fosse divulgada.
- O que está querendo?
- Você deve garantir ao rapaz bem-intencionado que está em sua companhia que não mais insistirá no assunto que obviamente já discutiram. Não irá publicar coisa alguma.
Phyllis Maxwel repôs o fone no gancho. Lágrimas saltaram daqueles olhos profissionais. Quando finalmente falou, a voz era quase inaudível:
- Não há nada que vocês não façam, não é mesmo?
- Phyl, eu lhe juro...
- Vocês podem roubar o país!
Phyl levantou-se e saiu correndo do restaurante.
Carroll Quinlan OBrien, conhecido como Quinn por seus colegas no FBI, entrou em sua sala e sentou atrás da escrivaninha, Eram quase oito horas. O turno da noite
já havia começado, o que significava que metade das salas estava vazia.
Mas 64 por cento de todos os crimes violentos ocorriam entre sete e meia da noite e seis horas da manhã, pensou OBrien. E justamente nesse período é que a maior
organização policial do país ficava com metade do seu efetivo de folga.
Não era uma crítica válida. O FBI não era um organismo preventivo, mas sim uma organização empenhada na descoberta dos fatos. E era mais fácil obter as informações
quando o resto do país estava desperto. Não, não era um ponto válido, embora uma ampla reorganização estivesse se processando naquele momento. Era o que todos diziam.
Poderiam começar com o termo ridículo de Hoover, Sede do Governo. S.G. Era muito mais incisivo e menos pretensioso dizer simplesmente FBI.
Havia muita coisa antediluviana, pensou OBrien. Quadros de organização confusos. Áreas de atuação contraditórias e superpostas. Força onde era desnecessária, fraqueza
onde a força era indispensável. Códigos sobre a maneira de vestir, parâmetros de comportamento, social, sexual, até mesmo de pensamento. Punições aplicadas por faltas
sem a menor importância. Medo, medo, medo. Era o que dominava o FBI, pelo menos desde que Quinri estuva em Washington.
Durante quatro anos ele ficara de boca fechada. Ele e uns poucos, que sinceramente acreditavam contribuir com alguma sanidade dentro dos escalões superiores do FBI. Precisavam ficar de olhos abertos, atentos aos que eram realmente irregulares, poten-
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cialmente perigosos. Depois, tinham que fazer com que os outros soubessem, quando chegasse o momento oportuno.
Ele próprio transmitira informações para a comunidade do serviço secreto, regularmente, quando a fúria do diretor proibia qualquer contato. Recordou-se disso quando
seus olhos por acaso se fixaram no pequeno trevo de prata que pendia de uma corrente pendurada no porta-caneta. Era um presente de Stefan Varak, do Conselho de Segurança
Nacional. Encontrara-se pela primeira vez com Varak há dois anos atrás, quando Hoover tinha-se recusado a transmitir informações sobre o pessoal do bloco socialista
que servia na ONU. O Conselho de Segurança Nacional precisava daquelas informações. OBrien simplesmente entrara na Seção I, tirara cópias e entregara-as a Varak
no primeiro jantar que liveram. Desde então, haviam voltado a jantar inúmeras vezes. Soubera muitas coisas de Varak.
Hoover agora estava morto e as coisas iam mudar. Era o que todos diziam. OBrien acreditaria quando visse as novas diretivas. Nesse caso, talvez a decisão de quatro
anos atrás passasse a fazer algum sentido.
Jamais enganara a si mesmo ou à esposa. Sua nomeação para o FBI tinha sido um disfarce político. Era assistente da promoloria em Sacramento quando teve que ir para
a Guerra do Vietnã devido a sua posição de oficial da reserva. Mas não tinha sido designado para qualquer trabalho jurídico. Puseram-no na G-2, por motivos vagamente
relacionados com a promotoria criminal. Um advogado fora subitamente transformado em investigador do Serviço Secreto do Exército. Isso, em 1964. Depois, um combate
no setor norte, onde se encontrava, a captura, dois anos de sobrevivência em condições primitivas, a fuga.
Escapara em março de 1968 e seguira sob chuvas torrenciais para o sudoeste, através das linhas inimigas, até chegar a território em poder dos americanos. Perdera
mais de 20 quilos, o corpo estava extremamente debilitado. E voltara para casa como herói.
Era uma ocasião em que se procuravam heróis. Eram desespeladamente necessários. Disseminava-se o descontentamento, os mitos estavam sendo destruídos. O FBI havia
notado os talentos de Quinn. Hoover era um homem que se impressionava com heróis. Por isso, apresentaram-lhe uma proposta... e o herói aceitou-a. Seu raciocínio
tinha sido simples. Se pudesse começar o mais alto possível e aprender bem e depressa, teria excelentes oportunidades no Departamento de Justiça. Muito mais que
em Sacramento. Agora, era um ex-herói às 49 anos, que havia aprendido muito e mantinha a boca fechada. Aprendera muito e era justamente isso o que o incomodava agora.
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Algo estava errado. Tinha que ter acontecido alguma coisa que não aconteceu. Um elemento vitalmente importante do reinado ditatorial de Hoover não fora revelado
nem explicado.
J. Edgar Hoover tinha em seu poder centenas - talvez IDÍ lharcs - de dossiês altamente explosivos. As fichas continham informações devastadoras a respeito de muitos
dos homens e mulheres mais influentes e poderosos da nação.
Desde a morte de Hoover, no entanto, nada se dissera a respeito desses arquivos. Não tinha havido indagações sobre sua existência nem clamores por sua destruição.
Parecia que ninguém queria assumir a responsabilidade de trazer o problema à tona. O medo era grande demais; se nada fosse dito, talvez tudo ficasse no esquecimento.
Mas essa não era uma posição objetiva e realista. Os arquivos tinham que estar em algum lugar. Por isso, Quinn já começava a entrar em campo. Primeiro, as salas
de destruição de matéria!j havia meses que nada descia do gabinete de Hoover. Verificou nos. laboratórios de microfilmes e micropontos: há muito tempo nãa faziam
reduções de dossiês. Examinou os registros, à procura de qualquer coisa relacionada com Hoover nas áreas de entregas ç recebimentos autorizados: não encontrou nada.
Descobriu a primeira pista nos registros de segurança. Era uma entrada recente, autorizada por telefone, na noite de 1. de maio, a noite anterior à morte de Hoover.
Quinn ficou perplexo", Três agentes de campo, Salter, Krepps, e um homem chamado Longworth, haviam sido admitidos às Ilh57min da noite, mas sem o passe departamental.
Tinha havido apenas uma autorização telefónica, pela linha especial do diretor. Diretatnente da casa de Hoover.
Não fazia sentido. Quinn, então, contatou o agente que admitira o trio, Lestér Parke. Não fai fácil, porque Parke tinha-se aposentado um mês depois da morte de Hoover,
ganhando uma pensão mínima, mas com dinheiro suficiente para comprar uma grande propriedade em Fort Lauderdale. O que também não faía o menor sentido.
Parke nada esclareceu, informou que havia faiado pessoalmente com Hoover por telefone, naquela noite. O próprio Hoover lhe dera instruções específicas e confidenciais
para admitir os três agentes de campo. Se Quinn quisesse descobrir qualquer coisa, teria que procurar os três homens.
Então, Quinn tentou descobrir os agentes de campo chamados Salter, Krepps e Longworth. Mas "Salter" e "Krepps" eram os chamados disfarces flutuantes, nomes usados
por diversos agentes, em diversas ocasiões, para operações clandestinas. Não havia qualquer registro de que agentes tivessem usado esses nomes du-
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rante o mês de maio; ou, se havia, Quinn não tinha acesso à informação.
Pouco mais de uma hora antes, tinha recebido informação sobre Longworth. Esta informação foi tão surpreendente que telefonou para a esposa avisando que não iria
jantar em casa.
Longworth tinha-se aposentado dois meses antes da morte de Hooverl Estava agora vivendo no Havaí. Como se tratava de uma informação confirmada, o que Longworth estava
fazendo em Washington, na entrada oeste da sede do FBI, na noite de 1. de maio?
Quinn sabia que encontrara discrepâncias inexplicáveis nos registros oficiais. Estava convencido de que tais discrepâncias se relacionavam com os arquivos sobre
os quais ninguém falava. Iria se encontrar com o Procurador-Geral na manhã seguinte.
O telefone começou a tocar, provocando-lhe um sobressalto. Atendeu logo.
O seu tom de voz não escondia a sua surpresa. O telefone raramente tocava depois das cinco horas da tarde.
- Han Chow! - A voz que saía do fone não era mais que um sussurro. - Lembre-se dos mortos de Han Chow.
Carroll Quinlan OBrien ficou sem respirar por um momento. Os olhos ficaram cegos, a escuridão e uma luz branca substituíram as imagens familiares.
- Como? Quem está falando?
- Eles lhe suplicaram. Lembra-se como suplicaram?
- Não! Nem sei do que está falando! Quem é?
- Claro que sabe - continuou o sussurro, implacável. - O comandante vietcongue ameaçou represálias, execuções, s« alguém em Han Chow fugisse. Bem poucos estavam
em condições de tentar. Concordaram que não o fariam, pelos outros. Mas não fez a mesma coisa, Major OBrien.
- É mentira! Não houve acordo! Absolutamente nenhum!
- Sabe muito bem que houve. Mas ignorou tudo. Havia nove homens na cabana em que estava preso. Era o mais saudável de todos. Disse-lhes que tentaria fugir e imploraram
para que não o fizesse. Na manhã seguinte, depois de sua fuga, eles foram levados para o campo e fuzilados.
Mas não era isso que deveria ter acontecido! Tudo o que ele precisava fazer era chegar aos canhões, esquivando-se do inimigo no caminho. Assim que chegasse às linhas
americanas, apontaria a localização da prisão de Han Chow num mapa. O local seria rapidamente capturado. Os homens seriam libertados! Mas a chuva, a doença e a noite
haviam-no enganado. Jamais encontrara os canhões. E os homens tinham morrido.
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- Está se lembrando? - O sussurro era agora extremamente suave. - Oito homens foram executados, a fim de que o major pudesse ter um desfile triunfal em Sacramento.
Sabia que Han Chow foi capturada menos de duas semanas depois?
Não, OBrien! Não jaca isso! Se eles estão tão perto assim, os vietcongues vão fugir e nos deixarão! Não podem nos levar! Iríamos atrasar a juga deles! E também não
vão nos matar! A menos que lhes forneçamos um pretexto! Não lhes dê esse pretexto! Não agora! Isso é uma ordem, Major!
As palavras haviam sido pronunciadas na escuridão por um tenente-coronel meio faminto, o único oficial na cabana, além dele.
- Não entendeu nada - disse OBrien ao telefone. - Distorceu tudo. Não foi assim que aconteceul
- Foi, sim, Major. Meses depois, encontrou-se um documento em poder de um vietcongue morto. Era o depoimento final de um tenente-coronel que sabia o destino que
aguardava os prisioneiros em Han Chow. Oito homens foram fuzilados porque você desobedeceu a uma ordem do seu oficial superior.
- Nada foi dito... Por quê?
- Os desfiles já tinham ocorrido. Não havia motivo para interferir.
Carroll Quinlan OBrien levou a mão à testa. Sentia um imenso vazio no peito.
- Por que está me dizendo tudo isso agora?
- Porque se envolveu em assuntos que não lhe dizem respeito. Não deve seguir adiante.
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A imensa figura de Daniel Sutherland estava de pé na outra extremidade do seu gabinete, diante de uma estante. Estava de perfil, os óculos de aros de tartaruga na
enorme cabeça, um livro grosso nas mãos negras gigantescas. Virou-se e falou, com voz profunda, sonora, extremamente jovial:
- Precedentes, Sr. Chancellor. Na grande maioria das vezes, a lei é orientada por precedentes, que em si mesmos são imperfeitos. - Sutherland sorriu, fechou o livro,
tornou a colocá-lo na estante, cuidadosamente. Encaminhou-se para Peter. Apesar da idade, movia-se com firmeza, com dignidade. - Meu filho e minha neta são leitores
vorazes dos seus livros. Ficaram muito impressionados ao saberem que viria me procurar. E confesso que me sinto constrangido por ainda não ter tido uma oportunidade
de ler seus livros.
- Eu é que estou impressionado, senhor - respondeu Peter, falando sério, a mão envolvida pela de Sutherland. - Obrigado por ter-me recebido. Não lhe tomarei muito
tempo.
Sutherland sorriu, largando a mão de Peter, deixando-o à vontade. Indicou-lhe uma cadeira.
- Sente-se, por favor.
- Obrigado.
Peter esperou até que o juiz escolhesse seu próprio lugar na extremidade da mesa. Ambos sentaram. Três cadeiras os separavam.
- Em que posso servi-lo? - Sutherland recostou-se na cadeira. A expressão no rosto negro era afável, com um leve vestígio de bom humor. - Confesso que estou fascinado.
Disse à minha secretária que se tratava de um assunto pessoal. Contudo, nunca nos encontramos antes.
- É difícil saber por onde começar.
- Correndo o risco de ofender o seu senso de escritor, por que não começa pelo princípio?
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- justamente esse o problema. Não sei qual é o princípio. Nem mesmo tenho certeza se existe algum. E se existe, pode achar que não tenho o direito de conhecê-lo.
- Se for esse o caso, eu lhe direi, não é mesmo? Peter assentiu.
- Conheci um homem. Não posso lhe dizer quem ele é ou onde nos encontramos. Mencionou seu nome como estando relacionado com um pequeno grupo de pessoas influentes
aqui em Washington. Disse que esse grupo se formou há vários anos, com o objetivo específico de controlar as atividades de J. Edgar Hoover. Disse que o senhor era
o homem responsável pela existência desse grupo. Gostaria de perguntar-lhe se isso é verdade.
Sutherland não se mexeu. Os imensos olhos negros, ampliados ainda mais pelas lentes dos óculos, estavam inexpressivos.
- Esse homem por acaso mencionou outros nomes?
- Não, senhor. Ou pelo menos não relacionado com o grupo. Disse que não sabia de ninguém mais.
- Posso perguntar-lhe como meu nome surgiu na conversa?
- Quer dizer que reconhece que é verdade?
- Agradeceria se respondesse primeiro à minha pergunta. Peter pensou por um momento. Contanto que não dissesse o
nome de Longworth, poderia responder à pergunta.
- Ele viu seu nome num documento, aparentemente indicando que deveria receber informações específicas.
- A respeito de quê?
- Imagino que a respeito dele. E também das pessoas sobre as quais Hoover teria ordenado uma vigilância negativa.
O juiz respirou fundo.
- O homem com quem falou chama-se Longworth. Um antigo agente de campo, Alan Longworth, atualmente relacionado como funcionário do Departamento de Estado.
Peter contraiu os músculos do estômago, num esforço para ocultar seu espanto, balbuciando, embaraçado:
- Não posso fazer qualquer comentário a respeito.
- Nem precisa. O Sr. Longworth também lhe disse que era o agente encarregado dessa vigilância negativa?
- O homem com quem falei fez uma referência a isso. Mas foi apenas uma referência.
- Nesse caso, permita que eu lhe preste mais alguns esclarecimentos. - O juiz mudou de posição na cadeira, antes de continuar: - Primeiro, vou responder à sua pergunta inicial. Sim, houve um grupo de pessoas preocupadas com esse problema. E faço questão de chamar-lhe a atenção para o tempo do verbo. Houve. Quanto à minha participação, foi pequena e limitada a determinados aspectos jurídicos do problema.
;
- Não estou compreendendo. Que problema?
- O Sr. Hoover era mestre em formular acusações sem qualquer comprovação. E o que era pior, tais acusações frequentemente se limitavam a insinuações contra as quais não havia praticamente qualquer recurso legal. Era um lapso de julgamento imperdoável, levando-se em consideração a posição dele.
- E por isso esse grupo de homens preocupados...
- E mulheres também, Sr. Chancellor.
- ... e mulheres foi formado para proteger as vítimas de Hoover.
- Basicamente, foi isso mesmo. Em seus últimos anos, Hoover transformou-se num homem rancoroso, com uma visão totalmente distorcida. Via inimigos em toda parte. Homens de bem eram subitamente destruídos, sem nenhuma razão aparente. Mais tarde, quase sempre muitos meses depois, revelava-se a influência de Hoover. Estávamos tentando conter essa maré de abusos.
- Estaria disposto a me dizer quem mais fazia parte desse grupo?
- Claro que não. - Sutherland tirou os óculos, segurando-os delicadamente entre os dedos. - Basta que saiba que eram pessoas capazes de levantar objeções veementes, vozes que não podiam ser ignoradas.
- Esse homem de quem falou, esse agente aposentado. . Sutherland interrompeu novamente:
- Não falei em aposentado, mas sim em antigo. Peter hesitou, aceitando a censura.
- Disse que esse antigo agente estava encarregado da vigilância negativa?
- De determinadas vigilâncias específicas. Hoover ficou impressionado com Longworth. Incumbiu-o de coordenar as informações sobre indivíduos com antipatia comprovada contra o FBI ou contra o próprio Hoover. A lista era bem grande.
- Mas é óbvio que ele parou de trabalhar para Hoover. Peter hesitou novamente. Não sabia como formular a pergunta.
- Disse que ele está agora contratado pelo Departamento de Estado. Se é assim, ele desligou-se do FBI em circunstâncias estranhas.
Sutherland tornou a pôr os óculos, deixando a mão cair para o queixo.
- Já percebi o que está querendo perguntar. Diga-me uma coisa, Sr. Chancellor: por que veio me procurar?
- Estou procurando saber se há ou não uma base para um livro sobre o último ano de Hoover. Ou, para ser franco, sobre a morte dele.
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A mão do juiz caiu para o colo. Ficou completamente imóvel por um momento, olhando fixamente para Peter.
- Não estou muito certo se compreendi. Por que veio procurar justamente a mim?
Foi a vez de Peter sorrir.
- O tipo de romance que escrevo exige uma certa credibilidade. É claro que não passa de ficção, mas procuro usar o máximo de fatos que possam ser reconhecidos. Antes de começar um livro, converso com muitas pessoas. E me esforço em sentir todos os conflitos existentes.
- Obviamente, é muito bem-sucedido com esse esquema. Meu filho aprova as suas conclusões. Foi muito firme sobre isso ontem à noite. - Sutherland inclinou-se para a frente, os antebraços apoiados na mesa. O brilho divertido retornou a seus olhos.
- E sempre aprovo o julgamento do meu filho. Ele é um excelente advogado, embora talvez seja veemente demais num tribunal. Respeita confidências, não é mesmo, Sr. Chancellor?
- Claro.
- E identidades. Mas isso também é evidente. Não vai admitir em hipótese alguma que conversou com Alan Longworth.
- Eu jamais usaria o nome de uma pessoa, a menos que, esta me desse permissão.
- Do ponto de vista legal, sugiro que não o faça mesmo.
- Sutherland sorriu. - Estou me sentindo como se fosse parte de uma criação.
- Eu não chegaria a tanto.
- Nem a Bíblia. - O juiz voltou a se recostar na cadeira.
- Muito bem. Isso é agora história do passado. E não é particularmente extraordinária. Acontece todos os dias em Washington. Há ocasiões em que chego a pensar que isso é inerente ao sistema de controle e equilíbrio do nosso governo. - Sutherland fez outra pausa, levantando a palma da mão direita na direção de Peter, delicadamente - Se por acaso usar alguma coisa do que estou lhe dizendo, deve fazê-lo com discrição; não se esqueça de que o objetivo é o mais decente possível.
- Sim, senhor.
- Em março último, Alan Longworth recebeu uma aposentadoria prematura de um setor do governo, sendo transferido em segredo para outro. A transferência foi realizada de maneira a afastá-lo inteiramente de uma investigação do FBI. As razões eram óbvias. Quando soubemos que Longworth estava encarregado da coordenação dessa vigilância negativa, uma expressão das mais apropriadas, diga-se de passagam - procuramos mostrar-lhes os perigos dos abusos de Hoover. Ele se dispôs a cooperar. Durante dois meses, forneceu-nos centenas de nomes, indicando quais
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eram as informações nocivas. Ele viajou de um lado para outro, alertando as pessoas que julgamos deverem ser advertidas. Até a morte de Hoover, Longworth era a nossa
arma defensiva. E devo dizer que era bastante eficiente.
Peter estava começando a compreender o homem estranho que conhecera em Malibu. Era um agente dilacerado por lealdades conflitantes, acabrunhado por um sentimento
de culpa. Isso explicava o seu comportamento esquisito, as acusações súbitas, os recuos abruptos.
- Quer dizer que o trabalho desse homem terminou quando Hoover morreu?
- Exatamente. com a morte súbita e, diria mesmo, inesperada de Hoover, não havia mais necessidade de uma operação defensiva. Tudo terminou com o enterro de Hoover.
- E o que aconteceu com o agente?
- Na minha opinião, foi generosamente recompensado. O Departamento de Estado transferiu-o para uma posição que é considerada excelente. Ele está hoje vivendo num
lugar dos melhores, com um mínimo de trabalho.
Peter observou Sutherland atentamente. Tinha que fazer a pergunta. Não havia agora motivo para não fazê-la.
- Qual seria a sua reação se eu lhe dissesse que o meu informante questionou a morte de Hoover?
- A morte é a morte. Como se pode questioná-la?
- A maneira como ele morreu. De causas naturais,
- Hoover era um homem já velho, doente. Eu diria que Longworth - pode não usar o nome dele, mas eu usarei - pode estar sofrendo de intensas pressões psicológicas.
Remorso, sentimento de culpa - tais coisas não seriam de estranhar. Ele tinha um relacionamento pessoal com Hoover. Talvez esteja agora achando que o traiu.
- Foi o que eu pensei.
- Neste caso, o que o está perturbando?
- Algo que me foi dito por esse homem com quem conversei. Ele informou que os arquivos particulares de Hoover nunca foram encontrados. Desapareceram com sua morte.
Houve um brilho súbito e rápido nos olhos do negro. Peter não soube determinar muito bem o que significava, talvez raiva.
- Eles foram destruídos. Todos os documentos pessoais de Hoover foram rasgados e queimados. Recebemos essa garantia.
- De quem?
- É uma informação que não posso lhe dar. Mas posso lhe dizer que estamos satisfeitos.
- E se os arquivos não foram destruídos? Daniel Sutherland sustentou o olhar de Peter.
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- Seria uma complicação extraordinária, na qual prefiro não pensar - disse ele firmemente. Um momento depois, o sorriso voltou e o juiz acrescentou: - Mas é uma
possibilidade praticamente inexistente.
- Por quê?
- Porque, a esta altura, já saberíamos, não é mesmo? Peter sentiu-se perturbado. Pela primeira vez, Sutherland não
parecia convincente.
Ao descer a escadaria do tribunal, Peter lembrou a si mesmo que devia tomar todo cuidado. Não estava procurando fatos concretos, apenas credibilidade. Era apenas
isso o que queria. Acontecimentos tirados da história e usados como uma ponte para transpor o abismo inevitável entre a realidade a a fantasia.
Poderia agora consegui-lo. Daniel Sutherland lhe dera a resposta para o enigma básico: Alan Longworth. O juiz tinha conseguido explicar o que se passara com aquele
agente com uma simplicidade excepcional. Tudo se resumia a uma única palavra: remorso, Longworth se virara contra seu mentor, o diretor que o incumbira da mais confidencial das missões e escrevera elogios pessoais em sua folha de serviço. Era natural que Longworth se sentisse culpado, que quisesse agora se vingar dos homens que o haviam induzido à traição. E existiria melhor maneira de fazê-lo do que lançar suspeitas sobre a morte de Hoover?
Tal conhecimento liberava a imaginação de Peter. Removia qualquer obrigação que pudesse sentir para com Longworth. Toda a história podia ser aceita pelo que era: uma ideia fascinante para um livro. Nada mais era necessário. Tudo agora não passava de um estranho jogo, uma complexa conspiração. E o escritor que havia em Peter estava começando a gostar.
Ele avançou até o meio-fio e fez sinal para um táxi que passava. Embarcou e ordenou ao motorista:
- Hotel Hay-Adams.
- Lamento, senhor, mas o nome não consta da lista - disse a telefonista, com a condescendência característica que a companhia telefónica reservava para informações assim.
- Está certo. Obrigado.
Peter desligou e recostou-se nos travesseiros. Não estava surpreso. Já não havia encontrado o nome de MacAndrew no catálogo de Rockville, Maryland. Um repórter de Washington que ele conhecia tinha informado que o general aposentado morava numa casa alugada, no campo, há vários anos.
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Mas Peter era filho de jornalista e não ia desistir tão facilmente. Sentou na cama e abriu o catálogo. Encontrou o número que estava procurando e discou.
- Exército dos Estados Unidos, Operações do Pentágono disse uma voz masculina do outro lado da linha.
- General Bruce MacAndrew, por favor. Peter falou rispidamente.
- Um momento, por favor. - Segundos depois, a voz acrescentou o que era de se esperar: - O nome dele não consta da relação, senhor.
- Mas constava há um mês, soldado - disse Peter, autoritariamente. - Ligue-me para a Diretoria de Pessoal.
- Pois não, senhor.
- Diretoria de Pessoal do Pentágono, boa-tarde. Desta vez, a voz era feminina.
- Parece que está havendo alguma confusão por aí. Aqui é o Coronel Chancellor. Acabei de voltar do Comando de Saigon e estou precisando falar com o General MacAndrew. Tenho uma carta do general datada de 12 de agosto. De Arlington. Por acaso ele foi transferido?
A telefonista levou menos de meio minuto para descobrir a informação:
- Não, Coronel, ele não foi transferido. Foi reformado. Peter deixou passar o momento apropriado de silêncio.
- Estou entendendo. Seus ferimentos foram consideráveis. Posso encontrá-lo no Walter Reed?
- Não tenho a menor ideia, Coronel.
- Neste caso, dê-me o telefone e o endereço dele, por favor.
- Não sei se posso...
- Escute aqui, mocinha, acabei de voar 15 mil quilómetros. O general é um grande amigo e estou muito preocupado. Falei claro?
- Sim, senhor. O endereço não está indicado. O código de interurbano é...
Peter escreveu o número. Agradeceu e desligou. Discou novamente.
- Residência do General MacAndrew.
A voz arrastada pertencia obviamente a uma empregada.
- Posso falar com o general, por favor?
- Ele não está. Deve chegar dentro de uma hora. Quer deixar recado?
Peter pensou rapidamente. Não havia por que perder tempo.
- Sou do Serviço de Mensageiros do Pentágono. Temos uma correspondência para o general, mas o endereço não está muito
claro. Qual é mesmo o nome do lugar aí em Rockville?
- Old MUI Pike, 23.
- Obrigado.
Peter desligou e novamente recostou-se nos travesseiros, recordando o que Longworth dissera a respeito de MacAndrew. O general renunciara a uma carreira brilhante,
aparentemente ao próprio comando do Estado-Maior Conjunto, sem qualquer razão conhecida. Longworth sugerira que podia haver uma relação entre alguma informação desaparecida
da folha de serviço de MacAndrew e a sua renúncia inesperada e surpreendente.
Um pensamento ocorreu-lhe. Por que Longworth falara em MacAndrew? O que MacAndrew representava para ele?
Peter sentou na cama. Será que Longworth, ao querer se vingar daqueles que o tinham usado, estava usando também o general? Não teria sido o próprio agente quem usara a informação prejudicial sobre MacAndrew?
Se assim era, Longworth estava empenhado num jogo perigoso. Que ia muito além dos limites do remorso. Tudo dependia do general. Que tipo de homem ele seria?
Era de estatura mediana, corpulento, ombros largos. Estava de calça esporte e camisa branca, aberta no colarinho. O rosío era o de um soldado profissional, rugas profundas, olhos neutros. Estava parado à entrada da casa velha, numa estradinha rural pouco movimentada, um lugar isolado, um homem de meiaidade, meio desconcertado com a presença de um estranho, cujas feições lhe pareciam vagamente familiares.
Peter estava acostumado a essa reação. O motivo eram os aparecimentos ocasionais em entrevistas na televisão. As pessoas raramente sabiam quem ele era, mas tinham certeza de já o terem visto em algum lugar.
- General MacAndrew?
- Sou eu mesmo.
- Não nos conhecemos - disse Peter, estendendo a mão.
- Meu nome é Peter Chancellor. Sou escritor. Gostaria de falar-lhe.
Será que era medo o que havia nos olhos do general?
- Mas é claro que eu já o tinha visto! Em fotografia, na televisão. Creio que li um dos seus livros. Entre, Sr. Chancellor. Perdoe o meu espanto, mas... como acabou de dizer, não nos conhecíamos.
Peter entrou.
- Um amigo comum deu-me o seu endereço. Mas o telefone não consta do catálogo.
- Um amigo comum? Quem?
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Peter observou atentamente os olhos do general ao responder:
- Alan Longworth.
Não houve qualquer reação.
- Longworth? Acho que não o conheço. Mas é óbvio que deveria. Ele serviu em algum dos meus comandos?
- Não, General. Creio que ele é apenas um chantagista.
- Como?
Era mesmo medo. Os olhos do general desviaram-se rapidamente para a escada, depois voltaram a se concentrar em Peter.
- Podemos conversar?
- Acho melhor. Ou conversamos ou eu o expulso desta casa a pontapés. - MacAndrew virou-se e gesticulou na direção de uma arcada, acrescentando bruscamente: - No meu escritório.
A sala era pequena, com poltronas de couro, uma escrivaninha de pinho e diversas recordações da carreira do general na« paredes.
- Sente-se - disse o general, indicando uma cadeira na frente da escrivaninha.
Era uma ordem. MacAndrew permaneceu de pé.
- Talvez eu tenha sido injusto - comentou Peter.
- Realmente. Agora, trate de se explicar.
- Por que se reformou?
- Não é da sua conta.
- Talvez tenha razão, talvez não seja mesmo da minha conta. Mas é da conta de alguém mais, além da sua.
- De que diabo está falando?
- Ouvi falar a seu respeito por intermédio de um homem chamado Longworth. Ele sugeriu que foi obrigado a apresentar seu pedido de reforma. Que algo importante lhe aconteceu há alguns anos e essa informação foi retirada da sua folha de serviço, insinuou que essa informação tornou-se parte de arquivos desaparecidos. Dossiês contendo fatos secretos capazes de destruir várias pessoas. Fez-me acreditar que saiu do Exército porque foi ameaçado de denúncia.
MacAndrew ficou em silêncio por um longo tempo, absolutamente imóvel, tendo nos olhos uma estranha mistura de ódio e pavor. Quando finalmente falou, a voz estava neutra:
- Esse Longworth disse qual era a informação?
- Afirmou que não sabia. A única conclusão a que posso chegar é de que se trata de algo tão grave, que teve de obedecer às instruções que lhe deram. E se me permite dizer, a sua reação parece confirmar essa suposição.
- Seu filho da puta miserável! - A voz estava impregnada de desprezo. - Você não sabe o que está falando.
Peter sustentou o olhar de MacAndrew.
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- Qualquer que seja o problema que o está perturbando, não é da minha conta. Talvez eu nem devesse ter vindo aqui. Mas estava curioso... e a curiosidade é a doença do escritor. Pode estar certo de que não quero saber qual é o seu problema, é uma coisa que não me atrai. Queria apenas saber por que me deram o seu nome e creio agora que sai. É um substituto, o.
JMacAndrew parecia um pouco menos hostil.
- Substituto de quem?
- De alguém que está sob a mira de uma arma. Se os tais arquivos estivessem realmente desaparecidos, nas mãos de um fanático, se esse fanático quisesse usar as informações contra outra pessoa... o senhor é exatamente como seria a outra pessoa, General.
- Não estou entendendo. Por que iriam lhe dar o meu nome?
- Porque Longworth quer que eu acredite em algo a ponto de escrever um livro a respeito.
- Mas por que logo eu?
- Porque algo aconteceu anos atrás e Longworth tinha acesso à informação. Sei disso agora. Creio que ele usou a nós dois, General. Deu-me seu nome. Mas, antes de fazê-lo, ameaçou denunciá-lo. Queria uma vítima. Acho...
Peter não conseguiu falar mais nada. com a rapidez adquirida em centenas de combates, MacAndrew cobriu com um pulo o espaço que os separava. As mãos estavam curvadas em garras que agarraram Peter pelo casaco, empurraram-no para baixo, depois levantaram-no bruscamente.
- Onde ele está?
- Ei, pelo amor de Deus...
- Longworth! Onde ele está? Diga-me logo, seu filho da puta nojento!
- Largue-me! Está ficando maluco? - Peter era maior, mas não chegava a ser um adversário à altura da força do general.
- Mas que diabo! Tome cuidado com a minha cabeça!
Era um absurdo falar aquilo agora, mas foi tudo o que passou pela mente de Peter. O general encostou-o na parede, o rosto dominado pela fúria quase colado no dele.
- Fiz uma pergunta e quero que responda! Onde posso encontrar esse Longworth?
- Não sei! Encontrei-o na Califórnia!
- Em que lugar da Califórnia?
- Ele não vive lá. Está no Havaí. Mas que diabo! Largueme logo de uma vez!
- Só depois que me disser o que estou querendo saber! MacAndrew puxou Peter para a frente, depois voltou a empurrá-lo bruscamente contra a parede. - Ele está em Honolulu?
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- Não! - A cabeça de Peter doía insuportavelmente. A dor se irradiava da têmpora direita e descia pela nuca. - Ele está em Maui. Pelo amor de Deus, tem que me largar! Não compreende...
- Como compreender? São 35 anos jogado no lixo! E logo agora que sou necessário. Muito necessário! Será que você não pode compreender isso?
Não era uma pergunta.
- Posso... - Peter agarrou os pulsos do general com toda a força que ainda lhe restava. A dor era terrível. Falou bem devagar: - Eu lhe pedi para me escutar. Não me importo com o que possa ter-lhe acontecido. Não é da minha conta. Mas é claro que me importo com o fato de Longworth tê-lo usado para chegar até a mim. Nenhum livro vale isso. Sinto muito.
- Sente muito? É um pouco tarde para isso! - O general explodiu novamente, empurrando Peter com toda força contra a parede. - Tudo isso aconteceu por causa de um maldito livro.
- Por favor! Não pode...
Houve um estrondo perto da porta. Vinha da sala de estar. Foi seguido por um lamento terrível, um gemido lancinante, meio canto, meio loucura, uma cadência monótona, sem qualquer inflexão. MacAndrew ficou paralisado, olhando para a porta. Largou Peter, empurrando-o na direção de escrivaninha, e encaminhou-se para a porta. Abriu-a e desapareceu na sala de estar.
Peter apoiou-se na beira da mesa. A sala estava girando. Respirou fundo, várias vezes, procurando se recuperar, esperando que a dor da cabeça diminuísse.
Ouviu novamente. O lamento monótono, de loucura. Foi-se tornando mais alto. Já podia agora distinguir as palavras.
- ... á fora está pavoroso, mas o fogo é delicioso e já que não temos para onde ir... Vai nevar! Vai nevar! Vai nevar!
Peter foi até a porta do escritório, quase se arrastando. Olhou para a sala de estar... e no mesmo instante se arrependeu de tê-lo feito.
MacAndrew estava no chão, aninhando uma mulher em seus braços. Ela usava um négligé rasgado e amarrotado, que mal cobria uma camisola velha e desbotada. Ao redor, havia cacos de vidro. A haste de um copo de vinho espatifado rolava silenciosamente sobre o tapete.
MacAndrew percebeu subitamente a presença dele.
- Agora já sabe qual era a informação prejudicial que ti nham a meu respeito.
- ... á que não temos para onde r... Vai nevar! Vai nevar! Vai nevar!
Peter sabia. Aquilo explicava a casa velha, isolada, no campo, o telefone fora do catálogo, a ausência de um endereço m
120
Pentágono. O General Bruce MacAndrew vivia no maior isolamento porque sua esposa era louca.
- Não estou compreendendo - disse Peter, suavemente. É por isso?
- É sim. - O general hesitou, olhou para a esposa. - Houve um acidente. Os médicos disseram que ela deveria ser internada. Mas eu não podia deixar.
Peter podia compreender. Não se permitiam determinadas tragédias a generais importantes do Pentágono. Aceitavam-se outras tragédias, é verdade. Como a morte ou a mutilação num campo de batalha. Mas não aquilo, não uma esposa louca. As esposas deviam ficar mergulhadas nas sombras da vida de um militar, sem qualquer interferência em sua carreira.
- ... e quando a gente se beijar na hora da despedida, vou detestar sair pela tempestade...
A esposa de MacAndrew estava agora olhando para Peter. Seus olhos se arregalaram, os lábios finos e pálidos se entreabriram. E ela gritou. O grito foi seguido por outro. E mais outro. Ela contorceu o pescoço, arqueou as costas, os gritos cada vez mais frenéticos, incontroláveis.
MacAndrew apertou-a firmemente em seus braços e olhou para Peter, que começou a recuar para o escritório.
- Não! - berrou o general. - Volte! Vá para a luz! Ponha seu rosto bem debaixo da luz! Na luz, seu idiota!
Peter obedeceu, sem pensar. Foi até um abajur numa mesa « deixou que a luz incidisse em seu rosto.
- Está tudo bem, está tudo bem...
No chão, MacAndrew balançava a esposa para frente e para trás, o rosto encostado no dela, acalmando-a. Os gritos foram cessando gradaHvamente e sendo substituídos
por profundos soluços.
- E agora suma daqui! - disse MacAndrew para Peter.
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A Old Mill Pike virava para oeste ao sair de Rockville, seguindo depois para o sul, até a auto-estrada de Maryland que levava a Washington. A auto-estrada ficava
a mais de 30 quilómetros da casa de MacAndrew. A velha estradinha rural era sinuosa e estreita, contornando imensas aflorações rochosas, transpondo incontáveis morros.
Não era uma região das mais ricas. Mas era afastada, isolada.
Como MacAndrew devia ter procurado um lugar assim!r pensou Peter. O sol poente estava agora diretamente à sua frente, enchendo o pára-brisa com uma claridade ofuscante.
Peter baixou o visor; não adiantou muito. Seus pensamentos retornaram à cena que acabara de deixar para trás.
Por que a mulher transtornada reagira tão histericamente ao vê-lo? Ele estava imerso na sombra quando a mulher o vira pela primeira vez. Só se acalmara depois que MacAndrew lhe ordenara que mostrasse o rosto à luz do abajur. Será que ele se parecia com alguém? Não, isso era impossível. As janelas da casa velha eram pequenas, as árvores lá fora altas e copadas, bloqueando o sol do fim de tarde. A esposa do general não poderia vê-lo nitidamente. Assim, provavelmente não fora o seu rosto que provocara a reação histérica. Mas o que mais poderia ter sido? E que pesadelos a presença dele evocara?
Longworth era desprezível, mas conseguira marcar seu ponto. Que maneira melhor poderia haver do que apresentar a figura patética de MacAndrew como a vítima do tipo mais impiedoso de chantagem? Aceitando-se a premissa de Longworth de que os arquivos particulares de Hoover tinham sobrevivido e podiam ser usados implacavelmente, o general era a vítima perfeita. O homem em Peter sentia-se ultrajado, o escritor estimulado. A ideia era válida; havia um romance latente. O início podia se basear em acontecimentos recentes. Daniel Sutherland lhe fornecera os fatos necessários. E ele próprio observara um exemplo do que poderia ter acontecido.
Peter sentiu sua energia fluindo. Queria voltar a escrever.
122
Um carro prateado emparelhou com o seu. Peter diminuiu a velocidade, para deixar que o carro o ultrapassasse, à luz ofuscante do sol poente. O motorista deve conhecer a estrada, pensou sle. Somente alguém familiarizado com as curvas iria ultrapassar outro carro daquele jeito, especialmente com o sol incidindo diretamenle sobre o pára-brisa.
Mas o carro prateado não o ultrapassou. Continuou paralelo ao dele e, se os olhos de Peter não o estavam enganando, começou pouco a pouco a diminuir a distância que os separava. Talvez o motorista estivesse querendo avisá-lo de alguma coisa.
Ele não estava... ela não estava. Era uma mulher que estava ;io volante. Os cabelos pretos, encimados por um chapéu de aba larga, caíam pelos ombros. Usava óculos escuros, tinha um batom vermelho nos lábios, contrastando com a pele muito branca. Uma echarpe laranja saía por cima do casaco. Ela olhava para a frente fixamente, como se ignorasse inteiramente o automóvel a seu lado.
Peter apertou a buzina várias vezes. Os carros estavam separados agora por poucos centímetros. A mulher não demonstrou qualquer reação. Estavam se aproximando de uma curva, à direita, numa descida. Peter sabia que, se freasse, iria bater no outro carro. Segurou o volante bem firme, preparando-se para fazer a curva, tirando a todo instante os olhos da estrada para ver o outro carro, perigosamente perto. Podia agora ver um pouco mais claramente. Os raios do sol estavam bloqueados por árvores.
Era uma curva em S. Peter virou o volante para a esquerda, freando cautelosamente. A luz ofuscante voltou ao pára-brisa. À sua direita, mal dava para divisar a ravina além do acostamento. Recordava-se de tê-la visto na vinda, quando passara por ali, cerca de uma hora antes.
E houve o impacto. O carro prateado colidiu com o de Peter, de lado. Estava tentando forçá-lo a sair da estrada. A mulher estava tentando jogá-lo na ravina! Estava tentando matá-lo!
Era a Pensilvânia novamente! O carro prateado era um Mark IV Continental. Como o carro que ele estava guiando naquela terrível noite de tempestade. com Cathy.
Havia um pequeno trecho reto na estrada, ao final da descida. Peter apertou o acelerador, fazendo seu carro avançar rapidamente.
Mas o Continental acompanhou-o sem a menor dificuldade. O Chevrolet alugado não tinha a menor possibilidade de se distanciar do outro carro. Chegaram à base do morro, entrando no pequeno trecho plano e reto. Peter sabia que o pânico o impedia de pensar claramente. Devia simplesmente parar o carro... pare maldito carro!,.. mas não podia. Tinha que se afastar daquela horrível aparição prateada.
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Sua respiração era agora entrecortada. Apertou o acelerador até o fundo. Adiantou-se um pouco, mas a massa prateada de aço arremessou-se para a frente, a grade reluzente batendo contra a porta do Chevrolet.
A mulher de cabelos pretos continuava a olhar para a frente fixa e impassivelmente, como se ignorasse o jogo terrível em que estava empenhada.
- Pare! - gritou Peter, pela janela aberta. - Que diabo está querendo?
Mas a mulher parecia não ter ouvido.
O Continental ficou novamente para trás. Será que os gritos dele haviam causado algum efeito? Peter apertou o volante com toda força. O suor lhe cobria as mãos, escorria pela testa, aumentando ainda mais a cegueira já provocada pelo brilho do sol.
Peter sentiu um solavanco. A cabeça foi jogada para trás, depois para a frente, batendo no pára-brisa. O impacto fora por trás. Pelo espelho retrovisor, ele avistou o capo reluzente do Continental. Que arremeteu outra vez e mais outra contra a mala do Chevrolet. As batidas continuaram. Peter era jogado para frente e para trás. Desviou-se para o lado esquerdo da estrada; o Continental seguiu-o. Se parasse agora, o outro carro, maior e mais pesado, iria destruir inteiramente o Chevrolet, iria atingi-lo fatalmente.
Não podia fazer outra coisa. Subitamente, Peter deu uma violenta guinada para a direita. O Chevrolet saiu da estrada. Uma batida final fez o carro derrapar de lado, a traseira se adiantando e indo bater de lado numa cerca de arame farpado.
Mas ele estava fora da estrada!
Voltou a pisar no acelerador. Tinha que escapar. O carro foi avançando pelo campo.
Subitamente, houve o terrível impacto da colisão. Peter abaixou-se, por cima do volante, o corpo fora do assento. O motor continuava a rodar vigorosamente, mas o Chevrolet parara.
Tinha batido numa pedra grande que havia no campo. Involuntariamente, Peter virou o pescoço para trás. O sangue escorria profusamente por suas narinas, misturando-se com o suor do rosto.
Pela janela aberta, viu o Continental prateado seguindo para oeste pela reta da estrada, ao pôr-do-sol. Foi a última coisa que viu antes de seus olhos se fecharem.
Não podia dizer por quanto tempo ficou ali, mergulhado em sua própria escuridão. A distância, ouviu o barulho de uma sirene. Não demorou muito para que um homem de uniforme aparecesse na janela. Estendeu o braço e desligou a ignição.
- Pode falar? - perguntou o guarda.
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Peter assentiu.
- Posso. Estou bem.
- Parece todo arrebentado.
- É apenas uma hemorragia nasal - respondeu Peter, tateando os bolsos à procura de um lenço.
- Quer que eu chame uma ambulância pelo rádio?
- Não. Apenas ajude-me a sair. Preciso andar um pouco. O guarda ajudou-o. Peter deu alguns passos pelo campo, claudicando. Recuperou a sanidade.
- O que aconteceu? vou precisar de sua carteira e dos documentos do carro.
- O carro é alugado - disse Peter, tirando do bolso a carteira de motorista. - Como apareceu aqui?
- Recebemos um telefonema daquela casa ali.
O guarda apontou para uma casa que havia a distância.
- Eles só telefonaram? Não vieram ver o que tinha acontecido?
- Era uma mulher. O marido não está em casa. Ouviu o impacto. Às circunstâncias eram suspeitas e por isso o QG determinou que ela ficasse em casa.
Peter sacudiu a cabeça, aturdido.
- O outro carro estava sendo guiado também por umamulher.
- Que outro carro?
Peter contou-lhe a história. O guarda tirou um caderninho do bolso e anotou todos os detalhes. Ao final, o guarda deu uma olhada nas anotações e depois perguntou:
- O que veio fazer em Rockville? Peter não quis mencionar MacAndrew.
- Sou escritor e frequentemente saio para dar umas voltas de carro, quando estou trabalhando. Serve para clarear os pensamentos.
- Espere aqui, por favor. vou me comunicar pelo rádio com o QG.
O guarda voltou cinco minutos depois, sacudindo a cabeça.
- Como é que pode! Como é que deixam gente assim pegar um carro? Já a pegaram, Sr. Chancellor. Tudo o que disse foi confirmado.
- Como assim?
- A maluca foi avistada perto de Gaithesburg. Ela tentou se meter a besta com um caminhão. Pode imaginar uma coisa dessas? com um caminhão! Meteram-na numa cela
por embriaguez. O marido }á foi avisado.
- Quem é ela?
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- A esposa de um vendedor Lincoln-Mercury de Pikesville. Já foi detida antes por guiar embriagada. A carteira de motorista dela tinha sido cassada há dois meses.
Ela vai escapar com um sursis e uma multa. O marido é um cara influente.
Peter não deixou passar a ironia. Quinze quilómetros atrás, um homem angustiado, um militar com a carreira destruída, aninhava em seus braços uma mulher transtornada. Quinze ou vinte quilómetros à frente, um vendedor de carros corria pela estrada, para tirar da cadeia a esposa bêbada e perigosa.
- Acho melhor eu procurar um telefone para avisar à agência que me alugou o carro - disse Peter.
- Não precisa se incomodar - disse o guarda, inclinando-se no Chevrolet e tirando as chaves da ignição. - Ficarei com as chaves. vou esperar pelo reboque e trazê-lo até aqui. Diga-lhes que procurem o guarda Donnelly, em Rockville.
- É muita gentileza sua.
- Vamos indo. Eu o levarei até Washington.
- E pode fazer isso?
- O QG me autorizou. O acidente ocorreu dentro dos nossos limites municipais.
Peter olhou atentamente para o guarda.
- Como soube que estou em Washington?
Os olhos do guarda hesitaram por um momento, antes da resposta:
- Está bastante abalado, Sr. Chancellor. Disse-me isso há poucos minutos.
O Continental prateado pára logo depois da curva na estrada. O gemido da sirene diminuiu à distância. O homem de uniforme está prestes a fazer sua parte. Foi contratado para representar o papel de um guarda inexistente chamado Donnelly, e fornecer informações erradas a Peter Chancellor. Tudo parte do plano, assim «orno o Continental prateado, cuja aparição devia ter assustado o escritor, despertando-lhe recordações da noite em que quase morrera.
Tudo fora planejado meticulosamente, cada fragmento de verdade, meia-verdade e mentira se entrelaçando rapidamente numa rede de tal forma que Chancellor não fosse capaz de distinguir uma coisa da outra. Era preciso fazer tudo em poucos dias.
E a chave estava na mente de Chancellor. A vida dele era perfeitamente dispensável. A única coisa que tinha importância era encontrar os arquivos desaparecidos.
O motorista tirou o chapéu de abas largas e os óculos escuros. As mãos abriram um pote de creme. O lenço de papel foi
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tirado de uma caixa no assento. O batom foi removido dos lábios. O echarpe e o casaco foram também tirados, jogados na chão do carro. E finalmente Varak tirou a peruca de cabelos pretos que caíam até os ombros. Largou-a também no chão do carro. Olhou para o relógio. Passavam dez minutos de seis horas.
Bravo recebera um aviso. O sussurro estridente talvez tivesse feito contato com outra pessoa que constava dos arquivos secretos de Hoover. Havia um deputado chamado Walter Rawlins, presidente do poderoso Subcomitê de Apropriações da Câmara. Na semana anterior, o comportamento dele deixara os colegas espantados. Rawlins era um racista cuja intransigência em relação a diversos projetos, a um especialmente, havia desaparecido sem qualquer explicação. E ele próprio se ausentara em diversas reuniões cruciais, em votações a que prometera comparecer.
Se Rawlins tinha sido procurado pela voz sussurrante, outro nome seria fornecido a Peter Chancellor.
Ao se encaminhar para os elevadores, Peter avistou seu reflexo num espelho do saguão. Como o guarda Donnelly dissera, ele parecia todo arrebentado. O paletó estava rasgado, os sapatos imundos, o rosto sujo de terra e sangue ressequido. Não era exatamente a imagem de respeitabilidade a que o Hay-Adams estava acostumado. Tinha a impressão de que os porteiros queriam que ele deixasse o saguão o mais depressa possível. Algo contra o qual Peter não tinha qualquer objeção. Queria tomar um banho de chuveiro quente, tomar uma bebida gelada.
Enquanto esperava pelo elevador, avistou uma mulher se aproximando. Era a jornalista Phyllis Maxwell, o rosto familiar de dezenas de entrevistas coletivas transmitidas pela televisão.
- Sr. Chancellor? Peter Chancellor?
- Ele mesmo. Miss Maxwell, não é?
- Sinto-me lisonjeada.
- Eu também.
- O que lhe aconteceu? Foi assaltado? Peter sorriu.
- Não, não fui assaltado. Sofri apenas um pequeno acidente,
- Pois parece estar todo arrebentado.
- Todo mundo está achando isso. vou subir para o meu quarto e me arrumar.
O elevador chegou, as portas se abriram. Phyllis Maxwell falou rapidamente:
- Poderia me dar uma entrevista depois?
- Por quê?
- Sou jornalista.
- Mas eu não sou notícia.
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- Claro que é. É ura autor de bestsellers, provavelmente está em Washington para pesquisar outro livro como Contra-ataquel E o descubro quase se arrastando pelo saguão do Hay-Adams, dando a impressão de que foi atropelado por um caminhão. É uma notícia em potencial.
- Há muito tempo que ando me arrastando, e o acidente foi realmente pequeno. - Peter sorriu. - E se eu estivesse trabalhando num novo livro, não falaria a respeito.
- Se falasse e não quisesse que fosse divulgado, eu não publicaria absolutamente nada.
Peter sabia que ela estava dizendo a verdade. Ouvira seu pai classificá-la como uma das melhores correspondentes em Washington. O que significava que ela era uma estudiosa de Washington. Poderia dizer-lhe coisas que estava querendo saber.
- Está certo. Pode me dar uma hora?
- Claro. No bar? Peter assentiu.
- Dentro de uma hora.
Ele entrou no elevador, sentindo-se meio tolo. Quase que sugerira que ela podia esperar lá em cima, em sua suíte. Afinal, Phyllis Maxwell era uma mulher maravilhosa.
Peter ficou debaixo do chuveiro por quase 20 minutos, mais tempo que o habitual. Era parte do seu processo de recuperação, quando estava muito nervoso ou deprimido. Aprendera alguns pequenos expedientes ao longo dos últimos meses, pequenas indulgências que ajudavam a restaurar o equilíbrio momentaneamente perdido. Deitou-se na cama inteiramente nu e ficou olhando para o teto, respirando fundo.
O tempo foi passando, ele recuperou a calma. Vestiu um terno marrom e desceu.
Phyllis Maxwell estava numa mesa pequena, a um canto. O bar estava tão pouco iluminado que quase não conseguiu divisála. Mas as chamas bruxuleantes da vela incidiam sobre as feições do rosto bonito. Ela podia não ser a mais jovem, mas era certamente a mulher de melhor aparência entre as que ali estavam.
O início da conversa foi descontraído e agradável. Peter pediu uma rodada de drinques e depois uma segunda. Conversaram a respeito das respectivas carreiras, de Ernie, Pensilvânia e Chillicothe, Ohio, para Nova Yoik e Washington. Peter pediu uma terceira rodada de drinques.
- Eu não deveria beber mais - disse Phyllis, firmemente, mas não o bastante. - Não posso me lembrar da última vez em que tomei três drinques seguidos. Isso interfere com a minha taquigrafia. Mas também não me lembro de ter entrevistado antes um jovem escritor tão atraente.
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A voz dela tornou-se, ao final, um pouco estridente. Como se estivesse nervosa, pensou Peter.
- Não tão atraente assim e... já não mais tão jovem.
- Mas eu também não sou. Meus dias de juventude irreverente ocorreram quando ainda estava aprendendo álgebra na escola.
- O que é muito convincente, além de falso. Olhe ao redor, mocinha. Não há nenhuma outra mulher aqui que possa jogar no seu time.
- Graças a Deus que está escuro ou eu teria que descrevêlo como um mentiroso encantador. - Os drinques chegaram, a garçonete se afastou. Phyllis tirou um pequeno bloco de anotações da bolsa. - Não quer falar sobre o projeto em que está trabalhando. Muito bem. Nesse caso, diga-me o que acha da ficção atual. Por acaso, o chamado entretenimento retornou ao romance atual?
Peter contemplou os olhos ansiosos do outro lado da mesa. A luz de vela fazia com que parecessem maiores, atenuaram as rugas no rosto.
- Não sabia que escrevia para a seção humorística. Ou será que sou tão categorizado assim?
- Está se sentindo ofendido? Achei que era um bom assunto
O que pensa um contador de histórias bem pago e bem aceito? Você deixa suas teorias bem claras. E não se pode classificá-las de humorísticas.
Peter sorriu. Phyllis Maxwell era bastante objetiva. Não havia a menor dúvida de que causaria um efeito devastador em qualquer contador de histórias que se levasse
a sério. Peter respondeu a todas as perguntas cautelosamente, ansioso em mudar de assunto. Ela foi anotando, enquanto ele falava. Era uma hábil entrevistadora, como
Peter já imaginava.
Os drinques acabaram. Peter sacudiu a cabeça para os copos vazios.
- Outra rodada?
- Não, obrigada. Acabei de escrever errado o um. - Usa o um em taquigrafia?
- É outra razão para eu recusar.
- Onde vai jantar? Phyllis hesitou.
- Já tenho um compromisso.
- Não acredito.
- Por que não? ? ; .
Porque não olhou para o relógio. Mulheres organizadas
sempre consultam o relógio quando têm um compromisso para o jantar.
Nem todas as mulheres são iguais, meu jovem.
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Peter estendeu a mão por cima da mesa, segurando o pulso dela.
- A que horas é o jantar?
Phyllis ficou rígida ao contato da mão de Peter, mas rapidamente retomou o jogo, dizendo:
- Isso não é justo.
- Vamos, diga logo, a que horas? Ela sorriu, piscando os olhos.
- Oito e meia?
- Neste caso, pode tratar de esquecê-lo - disse Peter, tirando a mão. - Ele já desistiu e foi embora. Faltam dez para as nove. Terá agora que jantar comigo.
- Você é incorrigível.
- Vamos comer aqui mesmo? Ela hesitou novamente.
- Está certo.
- Ou prefere ir a algum outro lugar?
- Não, aqui está ótimo. Peter sorriu.
- Talvez nem saibamos a diferença. - Ele fez sinal para a garçonete e pediu mais dois drinques; acrescentou em seguida para Phyllis: - Já sei, já sei. Sou incorrigível! Posso fazer-lhe algumas perguntas? Conhece Washington tão bem quanto qualquer outra pessoa.
- Onde está o seu bloco de anotações? - indagou Phyllis, guardando o dela na bolsa.
- Tenho uma fita de gravação rodando na cabeça.
- Isso não chega a me tranquilizar. O que está querendo saber?
- Fale-me a respeito de J. Edgar Hoover.
Ao ouvir o nome, os olhos de Phyllis ficaram subitamente furiosos. Mas havia também algo mais além da raiva, pensou Peter.
- Ele era um monstro. Falo mal dos mortos sem o menor escrúpulo.
- Tão ruim assim?
- Nos últimos anos, pior ainda. Estou em Washington há
16 anos e não me recordo de um único ano, em todo esse período, no qual ele não tenha destruído alguém de extraordinário valor.
- Está falando com bastante veemência.
- É que sinto também com veemência. Eu o odiava. Testemunhei todo o mal que ele causou. Se algum dia houve um exemplo de terror por indução, foi Hoover quem o personificou. A história ainda não foi contada. E tenho a impressão de que jamais o será.
- Por que não?
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- O FBI irá protegê-lo. Ele era o monarca. Os herdeiros aparentes não vão permitir que sua imagem seja maculada. Temem que a infecção se espalhe, no que estão absolutamente certos.
- E como eles podem impedir?
" Phyllis soltou uma risadinha desdenhosa.
- Não apenas podem como o estão fazendo. As fornalhas, meu querido. Pequenos robôs de terno escuro vasculharam todo o prédio, recolhendo e queimando toda e qualquer coisa que pudesse sequer, remotamente, ser prejudicial à memória de seu falecido progenitor. Estão querendo a canonização, o que é a melhor proteção para eles. E depois poderão voltar ao trabalho, como de hábito.
- Tem certeza?
- A informação - e admito que não passa de um rumor é de que Clyde apareceu na casa de Eddie antes mesmo que o corpo estivesse frio. Dizem que ele e uns poucos cortesãos foram de aposento em aposento, destruindo todos os documentos comprometedores.
- Está falando de Tolson?
- O próprio. O que ele não queimou está bem guardado.
- Há testemunhas?
- Deve haver.
Phyllis parou de falar. A garçonete estava na mesa, removendo os copos vazios, substituindo-os por novos drinques. Peter olhou para ela.
- Temos que reservar uma mesa no restaurante?
- Pode deixar que cuido disso, senhor - disse a garçonete, afastando-se.
- O nome é...
-- Eu sei, senhor. Maxwell.
A garçonete foi embora. Percebendo a satisfação nos olhos de Phyllis, Peter disse, sorrindo:
- Estou devidamente impressionado. Mas continue, por favor. Houve testemunhas?
Ela inclinou-se para a frente. O espaço aberto no alto de sua blusa deixava à mostra o colo dos seios. Peter sentiu-se irresistivelmente atraído pela vista, mas ela parecia indiferente ao interesse dele.
- Está trabalhando num livro sobre Hoover, não é mesmo?
- Não sobre o homem propriamente. Não propriamente a história dele, embora isso seja uma parte vital. Tenho que descobrir tudo o que puder. Conte-me o que sabe. E prometo que depois explicarei.
Phyllis começou no bar e continuou no restaurante. Era uma narrativa impregnada de raiva, acentuada pelo seu profissionalismo.
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Phyllis não publicava o que não podia comprovar e, naquele caso, a comprovação era impossível, apesar de ser verdade.
Falou de senadores e deputados, até mesmo de membros do Gabinete, obrigados a aceitar as imposições de Hoover. Descreveu homens poderosos que haviam chorado ou
permanecido em silêncio, quando o silêncio representava para eles uma abominação. Relatou as atitudes de Hoover depois dos assassinatos dos dois Kennedy e de Martin
Luther King. O comportamento dele fora repulsivo, sua alegria evidente, sua responsabilidade negada.
- A imprensa está convencida de que Hoover ocultou informações valiosas da Comissão Warren. E Deus sabe como tais informações eram importantes. Poderiam ter alterado
o julgamento em Dálas. E em Los Angeles. E em Memphis. Mas, agora, nunca mais saberemos com certeza.
Ela descreveu os métodos de vigilância eletrônica e telefónica usados por Hoover; eram dignos da Gestapo. Ninguém tinha sido inviolável; inimigos e inimigos em potencial
eram mantidos permanentemente acuados. Gravações haviam sido trabalhadas e editadas. Comprovara-se a culpa por associação remota, insinuações, rumores, provas fabricadas.
Enquanto ela falava, Peter pôde perceber que estava dominada por uma fúria que ia muito além do simples desprezo. Phyllis tomou vinho durante a refeição, bebeu conhaque depois. Quando finalmente acabou, ficou em silêncio por um longo momento e depois forçou um sorriso. A raiva consumira quase todo o álcool; estava em pleno controle de si mesma, mas ainda não inteiramente sóbria.
- Agora, cumpra sua promessa - disse ela. - E eu prometi que não publicaria coisa alguma. Em que está trabalhando? Outro livro como Contra-ataque!?
- Creio que pode-se dizer que existe um paralelo. É um romance baseado na teoria de que Hoover foi assassinado.
- Fascinante. Mas sem a menor credibilidade. Quem se atreveria?
- Alguém que tinha acesso aos arquivos particulares dele. Foi por isso que lhe perguntei se havia testemunhas da destruição dos documentos pessoais de Hoover. Se alguém os viu serem realmente destruídos.
Phyllis estava paralisada, os olhos fixados nele.
- E se eles não foram destruídos...?
- É essa a suposição em que basearei meu trabalho. Ficcionalmente.
- Como assim?
A voz dela soava abruptamente fria.
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- A pessoa que, ficcionalmente, matou Hoover está agora com os arquivos e é capaz de tanta extorsão e chantagem quanto o falecido diretor do FBI. Não apenas capaz como também já está operando. Atingindo pessoas influentes, forçando-as a se curvarem a imposições. Hoover era obcecado por sexo. Portanto, o sexo deve ser uma arma
básica. E é sempre eficaz. Uma chantagem simples e bastante poderosa.
Phyllis recuou um pouco da cadeira, as mãos em cima da mesa. Peter mal conseguiu ouvi-la:
- com um sussurro pelo telefone, Sr. Chancellor? Diga-me uma coisa: isso é alguma piada de mau gosto?
- É o quê?
Ela fitou-o atentamente, os olhos expressando um estranho pavor.
- Não, não pode ser - continuou Phyllis, com o mesmo tom distante e frio. - Eu estava no saguão porque assim o quis. Eu é que o vi e fui ao seu encontro, não o contrário...
- Qual é o problema, Phyllis?
- Oh, Deus! Acho que estou perdendo o juízo...
Peter estendeu a mão por cima da mesa para segurar a dela, que estava fria, tremendo.
- Ei, acalme-se! - Peter sorriu, tentando tranquilizá-la. Acho que o último conhaque foi preparado especialmente contra você.
Os olhos dela piscaram bruscamente.
- Acha-me realmente atraente?
- Claro que acho.
- Podemos subir para o seu quarto?
Peter ficou calado por um momento, esforçando-se em compreender.
- Não precisa fazer tal sugestão.
- Não me deseja, não é mesmo?
Não havia uma pergunta nas palavras dela, não da maneira como as pronunciou.
- Ao contrário, eu a desejo muito. E... Abruptamente, Phyllis inclinou-se para a frente, agarrando a
mão dele, interrompeu-o.
- Leve-me para o seu quarto...
Phyllis estava de pé ao lado da cama, inteiramente nua. Os seios firmes contradiziam sua idade. Os quadris descrevendo uma curva suave, sob a cintura fina, eram extremamente sedutores, as coxas roliças, bem torneadas. Peter estendeu a mão na direção dela, convidando-a para a cama.
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Ela sentou graciosamente, mas ainda hesitante. Peter largou a rnSo, segurou-lhe o seio. Ela tremeu, prendeu a respiração. Súbita e inesperadamente, ela virou-se e estendeu a mão para a barriga dele, desceu para a virilha.
Sem dizer nada, rolou o corpo nu por cima dele, comprimiu o rosto contra o dele. Peter sentiu as lágrimas dela. Phyllis rolou novamente, ficou ao lado dele, abrindo as pernas, puxando-o para cima.
- Depressa! Depressa!
Foi o mais estranho ato sexual que Peter jamais tivera. Durante os minutos seguintes, minutos confusos, desconcertantes, sem qualquer explicação, ele fez amor com um corpo dócil, mas que não manifestou qualquer reação. Estava fazendo amor com uma carne sem vida.
Tudo acabou rapidamente e Peter saiu de cima dela, gentilmente, afastando as pernas, tirando o peito de cima dos seios dela, firmes, mas sem qualquer sinal de estarem excitados. Contemplou-a, sentindo ao mesmo tempo compaixão e perplexidade. O pescoço dela estava arqueado, o rosto comprimido de lado contra o travesseiro. Os olhos estavam firmemente fechados, as lágrimas escorriam pelas faces. Soluços abafados saíam de ua garganta.
Ele estendeu a mão e tocou-lhe os cabelos, passou os dedos entre as mechas, gentilmente. Phyllis estremeceu, comprimiu ainda mais o rosto contra o travesseiro. Quando falou, a voz era terrivelmente tensa:
- Acho que vou vomitar...
- Sinto muito. Quer um copo dágua?
- Não! - Ela virou o rosto molhado de lágrimas para fitálo. E gritou, sem abrir os olhos: - Mas pode dizer a eles! Pode dizer a eles agora!
- Foi o conhaque - sussurrou Peter.
Aquilo foi tudo o que lhe ocorreu para dizer no momento.
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Peter ouviu primeiro os passarinhos. Abriu os olhos e focalizou-os na clarabóia que mandara construir no teto, entre as grossas vigas, no seu quarto. A luz do sol
se filtrava pelas árvores altas e frondosas.
Estava em casa. Tinha a impressão de que passara muitos anos longe dali. E era uma manhã muito especial. A primeira manhã da sua vida em que tinha vontade de trabalhar
em sua própria casa.
Saiu da cama, vestiu um roupão, desceu. Tudo estava exatamente como deixara, mas infinitamente mais arrumado. Estava contente por ter conservado os móveis do antigo
proprietário. Eram confortáveis, com muita madeira, aconchegantes.
Atravessou a sala, até a porta que dava para a cozinha. Estava impecável, tudo em seu lugar. Peter sentiu-se grato à Sra. Alcott, a empregada de expressão severa,
mas jovial, que herdara ao comprar a casa.
Fez um café, foi toma-lo no escritório, que ficava no lado oeste da casa, com enormes janelas dando para o jardim, con painéis de carvalho em todo o resto.
As caixas de Nurembergue estavam empilhadas impecavelmente num canto, perto da porta, ao lado de sua máquina xerox. Certamente não fora assim que as deixara. Abrira
as caixas indiscriminadamente, espalhando o conteúdo pelo chão. Procurou imaginar quem se dera ao trabalho de arrumar tudo. Pensou novamente na Sra. Alcott. Ou será
que tinham sido Josh e Tony, vindo de Nova York para tentar pôr em ordem outra parte da sua vida?
As caixas continuariam no canto. Nurembergue podia esperar. Ele tinha algo mais importante para fazer. Encaminhou-se para a mesa comprida, na frente da janela do outro lado. Todo o seu equipamento estava ali, tudo o que precisava. Dois blocos de papel amarelo estavam à esquerda do telefone, os lápis bem apontados. Levou seus instrumentos de trabalho para a mesa grande
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de café, diante do sofá de couro. Sentou-se. Não houve qualquer hesitação. Seus pensamentos iam brotando tão depressa quanto podia escrever.
"Para: Anthony Morgan, Editor
Assunto: Originais de Hoover - Livro sem titulo
No prólogo, uma figura militar das mais conhecidas, um homem extremamente simpático, um estrategista na tradição de George Marshall. Acaba de voltar de uma excursão pelo Sudeste Asiático. Está prestes a confundir Washington com provas de que as estimativas de vitória foram absurdamente exageradas e, o que é mais importante, com provas incontestáveis de incompetência e corrupção nos altos escalões. Chacinas indesculpáveis foram as consequências da inépcia e falsidade em Saigon. Os poucos colegas que estão a par do que pretende fazer suplicam-lhe que não tome tal atitude. Alegam que o momento escolhido é desastroso. Ele responde que a maneira como a guerra está sendo conduzida é que é desastrosa.
O militar é procurado por um estranho, que lhe entrega uma mensagem, com uma alusão a um incidente que havia ocorrido muitos anos antes. O incidente decorrera de um distúrbio temporário, sob extrema pressão. Apesar disso, foi um ato inconveniente, até mesmo imoral; se revelado agora, iria desacreditar o militar e destruir sua reputação, carreira, esposa e família.
O estranho exige que o militar destrua o relatório de Saigon, não apresente quaisquer acusações, permaneça calado. Em suma, ele deve deixar que o status quo militar continue... e assim, por conseguinte, também as chacinas. Se por acaso recusar, a informação colhida em seu passado será divulgada. Ele tem
24 horas para decidir.
A frustração do militar é aumentada pela mais longa lista de baixas transmitida de Saigon em muitos meses. O momento da decisão se aproxima. Ele está atormentado, mas acaba chegando à conclusão de que não pode desobedecer à ordem do homem desconhecido.
Na sua sala de estar, tira da pasta os documentos incriminadores que trouxe do Sudeste Asiático, amassa-os, queima tudo na lareira.
Muda a cena. Vemos o estranho entrar num imenso cofre no FBI. Vai até uma gaveta, abre-a, repõe a ficha do militar no lugar devido. Fecha a gaveta, tranca-a.
No centro da gaveta, há um cartão indicando:
A - Propriedade do Diretor
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Peter recostou-se no sofá, releu o que acabara de escrever. Será que MacAndrew iria se reconhecer no personagem? Pelo que descobri a respeito dele, a descrição ficcional se aplicava perfeitamente. A influência do general seria terrivelmente sentida no Pentágono. Mas não pelo Pentágono.
No capítulo inicial, quatro ou cinco pessoas influentes, mas bem diferentes entre si, no governo e fora dele, são apresentadas como vítimas, em diversos estágios do processo de extorsão. Os chantagistas estão empenhados apenas em calar os que discordam Líderes de organizações legítimas, representando os descontentes, os desprivilegiados e as minorias, são implacavelmente atacados. As acusações baseiam-se em associações remotas, insinuações, rumores e provas fabricadas, frustrando a todos os que discordam O país está quase se tornando um estado policial.
Peter parou novamente de escrever, embatucado com as palavras. Associações remotas, insinuações, rumores e provas fabricadas. Eram palavras de Phyllis Maxwell.
Ele recomeçou a escrever:
O principal personagem será diferente do herói habitual doe romances de suspense. Vejo-o como um advogado de quarenta e poucos anos, simpático, com esposa e dois ou três filhos. Sei4 nome é Atexander Meredith. É um homem que só agora começa a desabrochar, descobrindo toda a sua capacidade. Veio para l
Washington a fim de ocupar um serviço temporário, no Departamento de Justiça. Sua especialidade é o Direito Criminal. É um homem meticuloso, com amplos conhecimentos.
Foi contratado para avaliar os procedimentos usados por determinados setores do FBI, um trabalho criado por causa do alarmante aumento de métodos contestáveis aplicados pelos "escritórios de campo" da organizaçSo. Acusações não comprovada» foram levadas a público, buscas e prisões ilegais multiplicaram-se. Os promotores do Departamento de Justiça estão preocupados com a possibilidade de casos legítimos serem repelidos pelos tribunais, em decorrência das violações constitucionais.
Meredith está exercendo seu cargo em Washington há um ano. E o que havia começado como uma missão profissional relativamente rotineira acabou se transformando numa sucessão de revelações espantosas.
Dentro do FBI, há uma operação secreta em pleno andamento, visando reunir informações explosivas sobre uma ampla variedade de figuras destacadas da vida pública e privada. Meredith estabelece
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uma ligação entre diversas notícias de jornais, a respeito de homem que fazem justamente o que é inesperado, e os nomes que descobriu estarem sendo investigados pelo FBI. Sáo as vítimas descritas no capítulo inicial. Há dois casos desconcertantes. O primeiro é o de um ministro do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, quem Hoover odeia abertamente, que sem mais nem menos se afasta do cargo. O segundo é um líder negro que luta pelos direitos civis, condenado publicamente por Hoover. Ele é encontrado morto e o caso é considerado suicídio.
Alarmado, Meredith começa a procurar provas concretas dos atos ilegais que estão sendo praticados pelo FBI. Insinua-se junto a executivos que cercam Hoover. Simula ter posições com que absolutamente não concorda. E vai investigando, cada vez mais fundo. Fica apavorado com o que descobre.
No mais alto escalão do FBI, há um pequeno grupo de fanáticos cegamente devotados a Hoover. Põem em prática as políticas « executam as ordens emitidas pelo diretor, sabendo muito bem uue algumas são totalmente ilegais. Meredith descobre que existe um homem, designado para o escritório do FBI em La Jolla, Califórnia, que age como o executor de Hoover. Ele aparece em cena quando um homem de grande projeção nacional toma uma decisão inesperada. Sua descrição corresponde à do estranho que aparece no prólogo.
Peter largou o lápis e terminou de tomar o café. Pensou em Alan Longworth, o "executor" de Hoover na vida real. Longworth permanecia um enigma. Aceitando a premissa de que fora o remorso por sua traição a Hoover que levara o agente a Malibu, por que ele iria arriscar a sua atual situação privilegiada no Havaí? Por que rompera um acordo, o que poderia custar-lhe a vida? Por que, em suma, encaminhara Peter a Daniel Sutherland, que imediatamente identificara o antigo agente do FBI?
Será que o sentimento de culpa de Longworth era tão intenso que nada restara do interesse próprio? Será que a sua necessidade de vingança era tão grande que nada mais importava? Aparentemente, era esse o caso. Longworth não hesitara em destruir MacAndrew no processo. E porque Longworth fizera tal coisa, Peter não sentia o menor escrúpulo em incluir um retrato do homem em seu romance.
Meredith vai acumulando provas. O quadro é assustador. J. Edgar Hoover preparou milhares de dossiês sobre as pessoas mais importantes da nação. Contêm todos os rumores, meias-verdades, mentiras. Além disso, como poucos seres humanos são inteiramente
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santos, os arquivos estão repletos de fatos documentados da natureza mais perniciosa que se possa imaginar. Apetites e aberrações sexuais são esmiuçados, até os detalhes mais repugnantes. A divulgação de tais arquivos iria destruir centenas de homens eo
l;í mulheres que, afora tais anormalidades, se comportam muito bem,
1 até mesmo de maneira extraordinária.
A existência dos arquivos constitui uma ameaça para o paíi. E o pior de tudo, o mais aterrador, é que Hoover está realmente usando-os. Sistematicamente, entra em contato com dezenas de pessoas que julga estarem se opondo à política que ele favorece,
ameaçando denunciar suas fraquezas caniculares, se não
mudarem de posição.
Meredith sabe que tem de encontrar uma resposta para a questão mais alarmante: Hoover estará agindo sozinho ou tem aliados? Se ele fez algum pacto com sósias ideológicos, na comunidade do serviço secreto, no Congresso ou na Casa Branca, a república pode muito bem estar se aproximando do fim.
Meredith decide apresentar suas provas a um assistente do Procurador-Geral. A partir desse momento, sua vida se torna praticamente insuportável. O assistente do Procurador-Geral é decente., embora medroso. Mas é a arma disponível. Membros de sua equipe enviam trechos do relatório ao FBI. Em seu único gesto corajoso, o assistente do Procurador-Geral entrega secretamente o relatório ao gabinete de um importante senador.
Peter recostou-se no sofá, espreguiçou-se. Já tinha um modelo para o seu senador. Há menos de um ano atrás, o homem fora o principal concorrente de seu partido à indicação presidencial. Milhões de pessoas haviam ficado hipnotizadas pela integridade que saía de seus olhos. O Presidente no cargo não era adversário à altura da lucidez de seu pensamento, da profundeza de sua visão, da capacidade de comunicação. A exposição objetiva e racional dos problemas despertara uma ampla aceitação em todo o país. E, de repente, algo lhe acontecera. Em poucos minutos, numa manhã de inverno, a neve caindo, toda a sua campanha malograra. Um discurso intempestivo e suicida fora pronunciado por um candidato exausto. E, com isso, o senador perdera todas as suas chances.
Peter inclinou-se novamente para a frente, pegou outro lápis.
Um amplo esquema de pressão psicológica é desencadeado contra Meredith. Todos os seus movimentos são observados. Ele permanentemente vigiado. Dão telefonemas para sua esposa.
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alguns obscenos, outros com ameaças de abusos físicos. Os filhos são interrogados a respeito do pai por agentes do FBI, durante e depois das horas de aula. Automóveis
ficam estacionados diante da casa de Meredith durante a noite. Faroletes incidem sobre as janelas. Cada dia é um pesadelo, as noites são ainda piores.
O objetivo é lançar dúvidas sobre a confiança de Meredith, desacreditando sua vida. Ele procura as autoridades. Tenta confrontar os homens no FBI, assim como aqueles que o estão seguindo. Procura o seu congressista. Mas fracassam todos os esforços para escapar ao terror. Está a ponto de desistir. Até mesmo o assistente do Procurador-Geral não quer mais falar-lhe. O homem foi devidamente advertido. Os controles insidiosos de Hoover estão por toda parte.
Você deve estar notando que tenho usado o nome de Hoover. Como se costuma dizer, falo mal dos mortos sem o menor escrúpulo..
Peter parou de escrever por um momento. Phyllis Maxwell é que dissera aquilo.
... e pretendo usá-lo também no livro. Não vejo razão sequer para disfarçar a identidade ou ficar em alguma fórmula boba, como J. Edwin Haverford, pretor de uma organização chamada FCI. Quero dar nome aos bois, mostrar quem ele realmente foi: um megalomaníaco perigoso que deveria ter sido demitido
20 anos atrás. Um monstro...
Phyllis Maxwell novamente. Quanto mais pensava a respeito, mais Peter compreendia que a jornalista pintara um retrato tão memorável - e grotesco - que se tornara um trampolim para leválo a investigar ainda mais, tanto quanto Longworth o fizera. A sua fúria era contagiosa.
... cujas táticas estavam mais de acordo com o Terceiro Reich do que com uma sociedade democrática. Quero que o público fique furioso com as vergonhosas manipulações de . Edgar Hoover. (Acho que seria bom você mostrar este roteiro ao departamento jurídico. Steve provavelmente vai ter um ataque de apoplexia e iniciará uma pesquisa para saber se existem parentes vivos que possam iniciar uma ação judicial.)
Todo o material anterior vai exigir seis capítulos, aproximadamente um terço do livro. Nessa altura, o foco vai se deslocar de Meredith para as vítimas de chantagem de Hoover. Basicamente para o senador, que se tornará um dos alvos de Hoover.
Como as vítimas são homens de considerável influência no governo, nada mais natural que duas delas acabem fazendo o
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contato. No caso, entre o senador e um alto membro do governo, que se opôs ao Presidente e foi forçado a renunciar. Imagino uma cena em que os dois confessam-se impotentes diante dos ataques de Hoover. São gigantes acuados por um chacal envelhecido.
Contudo, algo de positivo resulta desse encontro. Os dois reconhecem o óbvio: se Hoover pode forçá-los ao silêncio, pode fazer a mesma coisa com outros. Assim, reúnem um pequeno grupo de homens...
Peter tirou o lápis do papel. Estava lembrando as palavras de Daniel Sutherland a respeito do grupo de Washington: "E mulheres, Sr. Chancellor." Mas que tipo de mulheres seriam recrutadas? Ou selecionadas? Ele sorriu para si mesmo. Por que não uma jornalista? Uma personagem calcada em Phyllis Maxwell. Mas diferente dela. No livro, a mulher tinha que se tornar uma vítima antes de ingressar no grupo. Isso era vital.
... e mulheres, com a finalidade de organizar um sistema de .defesa contra os ataques de Hoover. Dispõem de um ponto de partida: o executor de Hoover. Procuram a comunidade do serviço secreto e discretamente são informados de tudo o que é possível a respeito do homem. Dossiês, folha de serviço, ficha bancária, referências de crédito... tudo o que está disponível.
Peter parou novamente de escrever. Lá estava novamente o enigma chamado Longworlh. Sutherland tinha dito que apelaram para a consciência do agente e depois o recompensaram com um bom emprego em Maui, a sua segurança garantida. Tudo isso talvez fosse possível, mas o que Hoover fizera durante todo esse tempo? Será que havia ficado de braços cruzados, dizendo: "Claro, meu querido Alan, 20 anos é muita coisa, e bem merece se aposentar, com os meus votos de um agradável descanso"?
Não era provável. O Hoover que lhe haviam descrito teria mandado matar Longworth antes de deixá-lo ú" embora.
Tinha que haver outra explicação.
O executor é procurado pelo grupo do senador. Através de «ma combinação de pressões, seus serviços são recrutados. Monta-se um embuste médico. O homem queixa-se de prolongadas dores abdominais e é internado no Hospital Walter Reed. O "relatório médico" é encaminhado a Hoover: o agente está com câncer duodenal. Já se espalhou e a cirurgia é agora impossível. Na melhor da hipóteses, não deve viver mais que uns poucos meses.
Hoover não tem alternativa. Libera o agente, convencido de que ele está indo para casa a fim de morrer.
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Assim se forma o núcleo anti-Hoover. O agente de campo "aposentado" começa a trabalhar. Ficará patente que ele não apenas tinha acesso aos arquivos mas também, sendo menos um santo e mais um oportunista, examinara-os com uma voracidade digna de um burocrata do KGB durante um expurgo.
Fornece centenas de nomes e biografias ao grupo anti-Hoover. Nomes e fatos atraem outros nomes e fatos adicionais. É preparada, uma lista básica das vítimas em potencial.
Seu tamanho é assustador. Inclui não apenas homens poderosos nos três ramos do governo, mas também líderes da indústria, do movimento trabalhista, do mundo académico e dos meios de comunicação.
O Núcleo, como se intitula o grupo de Washington, tem que agir imediatamente.
São articulados encontros confidenciais. O agente é enviado a dezenas de pessoas, alertando-as sobre os dossiês de Hoover.
A estratégia deles será descrita em poucas páginas. Não vou me deter em informações específicas. Seria por demais confuso introduzir nesse ponto todo um novo grupo de personagens.
Por falar em personagens, vou me referir a eles daqui a pouco. Quero primeiro concluir o esboço do enredo.
Peter fez uma nova pausa, pegando outro lápis.
O momento decisivo é provocado por dois acontecimentos. O primeiro ocorre quando Alexander Meredith é procurado pelo Núcleo. O segundo é a decisão de dois ou três membros do Núcleo de que a melhor solução é assassinar Hoover.
Chegarão a essa decisão gradativamente, já que não são assassinos. Passam a considerar o assassinato como uma solução aceitável, o que constitui a falha inaceitável deles. Ao tomar conhecimento disso, sabendo que é a decisão de mentes superiores, Meredith descobre que todos os seus valores estão submetidos a um teste final. Para ele, o assassinato não pode ser uma solução. Neste momento se vê em luta contra forças opostas: os fanático; do FBI e os fanáticos do Núcleo.
As tentativas dele de impedir o assassinato e denunciar os atos ilegais do FBI proporcionam o impulso necessário para leva) o livro à sua conclusão.
Em termos de ficção, o aspecto mais difícil tia narrativa será precisamente o que horroriza Alex Meredith: a decisão de duas ou três. pessoas extraordinárias de aceitarem o assassinato como uma solução.
Nesse ponto, a lógica terá que ser cuidadosa e irrefutável, de maneira a que pareça não haver qualquer outra solução possível.
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Creio que a aceitação da ideia do assassinato poderá ser consequência de dois acontecimentos da história recente, devidamente reoondicionados": a retirada do candidato
mais qualificado da disputa presidencial e a renúncia de um inovador ministro do Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
O Núcleo confirma que as duas catástrofes são resultantes da atuaçao de J. Edgar Hoover. Um dano irreparável está sendo feito ao organismo político.
A ponta do lápis quebrou, sob a força da pressão da mão de Peter. Ele estava ficando novamente furioso. A raiva, no entanto, deveria ser aproveitada mais tarde, quando estivesse escrevendo o livro propriamente dito. Agora era o momento para pensar.
A história tinha providenciado uma solução pacífica. A morte de um lunático e a destruição dos seus venenos permitiram que o Núcleo se dispersasse, se é que Sutherland estava contando a verdade. O alerta terminara.
Esses eram os fatos. Mas ele não estava lidando com a realidade histórica. O que faria um grupo de pessoas decentes e preocupadas diante da possibilidade de colapso do sistema de controle e equilíbrio tão vital para uma forma aberta de governo? Tal grupo aceitaria uma execução? Um assassinato?
Num certo sentido, não lhes restava alternativa. Contudo, ao adotarem esse ato extremo, estariam descendo ao mesmo nível do homem assassinado. Portanto, nem todos apoiariam tal solução, que não poderia também ser proposta abertamente.
Mas talvez dois ou três homens pudessem considerá-la como a única decisão possível. E era justamente essa a falha do Núcleo. Assassinato é assassinato, sua definição alterada apenas por condições específicas de guerra. Os que recorrem ao assassinato como solução não são melhores do que suas vítimas, em última análise. O Núcleo passaria a abrigar dois ou três membros que se tornariam assassinos em potencial.
Era essa a concepção ficcional de Peter.
No Núcleo, há dois homens e uma mulher (o que permitiria muitas possibilidades dramáticas) de destacada estatura, devotados aos mesmos princípios apoiados pelo resto do grupo. Mas, gradativamente, as perspectivas deles vão se alterando. Derivam da frustração e angústia, de uma genuína aversão ao avanço de Hoover, da aparente ineficácia do Núcleo. A situação chega a um impasse com a manipulação de uma eleição presidencial e o aumento das medidas repressivas. Eles estão acuados, não resta qualquer alternativa. A não ser o assassinato.
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Mas isso removeria apenas a metade do câncer. A outra metade sendo constituída pelos arquivos de Hoover. É preciso se apossar deles. Não se pode permitir que, depois da morte de Hoover, caiam nas mãos do sucessor dele.
Os rebeldes dentro do Núcleo elaboram um plano de assassinato e roubo. Acho que essa parte deve ser escrita num estilo documentário, o suspense acentuado pela engenhosidade do próprio plano e a compreensão de que, a qualquer momento, um erro de cálculo ou reacão pode fazê-lo desmoronar.
Até agora, esse é o ponto máximo do enredo.
Peter esticou os braços, estremecendo com uma pontada de dor que se irradiou pelos músculos do ombro esquerdo. Mas não pensou nisso uma segunda vez. Toda a sua atenção concentravase na página à frente. Agora ia começar. As pessoas.
E iniciou a descrição de vultos informes, indistintos, lentamente entrando em foco. E depois os nomes. Como era seu hábito, delineou rapidamente os personagens, limitando cada retraio a duas páginas no máximo, sabendo que cada um levaria a seus próprios amigos e inimigos, conhecidos e desconhecidos. Os personagens davam origem a outros. De um modo geral, era o que invariavelmente acontecia.
Além dos personagens que já havia esboçado - o militar no prólogo, Alexander Meredith, o executor de Hoover, o senador e o membro do Gabinete - iria inicialmente definir o Núcleo. Haveria nele diversas pessoas que não pertenciam ao governo. Talvez um advogado famoso. Poderia incluir um juiz respeitado. Só que não seria um juiz negro. Afinal, só existia um Daniel Sutherland. Teria que pensar cuidadosamente nas mulheres. Devia resistir à tentação de inventar uma equivalente ficcional muito próxima de Phyllis Maxwell. Mas algumas qualidades dela entrariam no livro.
Peter inclinou-se para a frente e recomeçou a escrever.
Há um homem de setenta e poucos anos, chamado...
Não sabia há quanto tempo estava escrevendo. Tinha esquecido do tempo, sua concentração era absoluta. Os raios de sol entravam pela janela do lado norte.
Peter verificou as páginas ao lado do bloco amarelo. Já tinha esboçado nada menos de nove personagens. Sua energia fluía fácil. Sentia-se satisfeito pelo fato das palavras estarem outra vez brotando espontaneamente.
O telefone tocou, deixando-o desorientado. Atravessou a sala para atender.
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Alo?
É um escritor chamado Chancellor quem está falando? Pe-
ter Chancellor?
O sotaque sulista da voz era patente.
- É, sim. É Peter Chancellor quem está falando.
O que está tentando fazer comigo? Não tem o direito...
- Quem está falando?
- Sabe perfeitamente quem eu sou!
- Lamento, mas não tenho a menor ideia.
- Engraçadinho! Seu amigo Longworth foi me procurar em Washington!
- Alan Longworth?
- Esse mesmo. E estão batendo na porta errada. Se querem começar uma coisa que não vão conseguir controlar depois, podem seguir em frente. Mas é bom pensarem direitinho no que estão fazendo.
- Não tenho a menor ideia do que está dizendo. Quem está falando?
-Sou o Deputado Walter Rawlins. Hoje é quarta-feira. Estarei em Nova York no domingo. Vamos nos encontrar lá.
- Vamos?
- E vamos de qualquer maneira! Antes que nós dois percamos a cabeça!
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Peter estava fazendo algo que nunca fizera antes: começava a escrever o livro antes que Morgan aprovasse o esboço. Não podia se conter. As palavras não paravam de
saltar de sua cabeça para o papel.
com uma pontada de culpa, Peter admitiu para si mesmo que a aprovação de Morgan não faria a menor diferença. Tudo o que importava era a história. Através dela, um monstro chamado Hoover estava sendo revelado. Era importante para Peter, de certa forma mais importante do que qualquer outra coisa que ele já tentara fazer antes, que o mito de Hoover fosse devidamente desmascarado o mais depressa possível, a fim de que nunca mais tomasse a acontecer algo parecido.
Mas o trabalho tinha que ser interrompido por um dia. Concordara em se encontrar com Rawlins. Preferia não encontrá-lo e por isso tinha assegurado a Rawlins que Alan Longworth não era seu amigo, quaisquer que fossem as coisas que pudesse ter dito, quaisquer que fossem as ameaças que pudesse ter feito. Peter não queria mais saber de Longworth.
Apesar disso, o fato é que Longworth estivera em Washington quatro dias antes, quando Rawlins telefonara. Não voltara ao Havaí. O enigma reaparecera. Por quê?
Peter decidiu passar a noite em seu apartamento em Nova York. Tinha prometido jantar com Joshua Harris.
Seguiu para o norte pela velha estrada paralela ao rio Delaware, passando pela cidadezinha de LambertviUe e virando para oeste, subindo pelo longo aclive até a Rota 202. Se não houvesse muito movimento na estradinha, alcançaria a auto-estrada em 45 minutos; e da Saída 14 até Nova York era apenas mais meia hora.
Quase não havia tráfego na auto-estrada. Uns poucos caminhões de feno e leite saíam cautelosamente de estradinhas de terra, alguns carros ultrapassavam-no de vez em quando, em alta velocidade. Deviam ser vendedores que depois de haverem feito a cobertura de um território, prevista para aquele dia, seguiam em disparada para o próximo motel. Se quisesse, poderia ultrapassar
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praticamente qualquer carro na estrada, pensou Peter, apertando o volante. Seu carro era um Mercedes 450 SEL.
O medo determinara a escolha do carro. Preferira o mais pesado que pudera encontrar. O único carro disponível no momento da compra era azul-escuro. O que era ótimo. Qualquer cor servia, contanto que não fosse...
Prateado?
Prateado! Ele não podia acreditar no que estava vendo!
Atrás dele! Pelo espelho convexo do lado de fora da janela» a imagem ampliada pela curvatura, podia avistar o imenso radiador reluzente! Era um automóvel prateado! O Continental prateado!
Os olhos estavam lhe pregando uma peça. Tinham que estar! Peter ficou com medo de olhar para a pessoa ao volante. Mas nem precisou fazê-lo. O Continental prateado emparelhou com o Mercedes.
Era a mulher! A mesma mulher! A 300 quilómetros de distância! O chapéu de abas largas, os cabelos pretos compridos, os óculos escuros, a pele muito branca, batom vermelho nos lábios, uma echarpe laranja. Só podia estar ficando louco!
Peter apertou o acelerador. O Mercedes disparou. Nenhum outro carro conseguiria acompanhá-lo!
Mas o Continental conseguiu. Sem a menor dificuldade. Absolutamente nenhuma! E a macabra motorista olhava fixamente para a frente. Como se nada fosse irreal, como se nada houvesse de anormal. Olhando diretamente à frente. Para nada!
Peter olhou para o velocímetro. A agulha oscilava acima dos
150 quilómetros horários. Os carros em sentido contrário não passavam de manchas indistintas. Carros. Caminhões.1 Havia dois caminhões à frente! Seguiam um atrás do outro, numa curva longa da estrada. Peter diminuiu a pressão no acelerador. Esperaria até chegar mais perto.
Agora! Peter calcou no freio. O Continental disparou à frente, passando para o lado direito da estrada, a fim de bloqueá-lo.
Outra vez... agora! Peter calcou novamente o acelerador, desviando-se para o lado esquerdo da estrada, o motor trovejando ao passar velozmente pelo terrível carro prateado e a lunática que o guiava.
Ele ultrapassou os dois caminhões na curva, deixando os motoristas aturdidos, os pneus do Mercedes entrando na grama que separava as duas pistas da estrada.
Ringos. O cartaz na estrada dizia Ringos!
Tinha havido um Ringo muitos anos atrás, num lugar onde a morte surgira, um pistoleiro disparando incessantemente num acesso de fúria.
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Por que estava pensando naquelas coisas? Por que sua cabeça doía tanto?
Buffalo BUI é defunto...
Jesus foi um homem bonito
... e.e. cummings. Por que pensava em e.e. cummings? Que diabo estava acontecendo?
Sua cabeça estava estourando.
A distância, talvez a um quilómetro e meio, podia avistar um círculo de luz âmbar suspenso no ar. Por um momento, ficou sem saber o que era.
Não demorou a descobrir. Era um sinal de trânsito num cruzamento da auto-estrada. Três carros à sua frente estavam diminuindo a velocidade, um à esquerda, dois à direita. Não podia passar. Estava agora a menos de um quilómetro de distância. Reduziu a velocidade do Mercedes.
Oh, Deusi Lá estava novamente!
O Continental aproximava-se rapidamente, o radiador aumentando cada vez mais no espelhinho retrovisor. Mas o sinal estava logo à frente. Os dois carros teriam que parar.
Peter tinha que se controlar, controlar a dor na cabeça, fazer o que era necessário. A loucura ia terminar!
Passou para o lado direito da estrada, atrás dos dois carros, esperando para ver o que o Continental iria fazer. O Continental foi para o lado esquerdo, parando atrás do carro único, mas ao lado do Mercedes.
Peter abriu a porta e saltou. Correu para o Continental, segurou a maçaneta da porta, puxou com toda força.
A porta estava trancada. Ele bateu na janela.
- Quem é você? O que está querendo fazer?
O rosto impassível, uma máscara macabra, continuou a olhar fixamente à frente, pelo pára-brisa. Não havia qualquer indício de que houvesse percebido a nresença de Peter
Peter sacudiu a maçaneta, esmurrou o vidro.
- Não pode fazer isso comigo!
Os motoristas dos outros carros estavam olhando. O sinal ficou verde, mas ninguém avançou. Peter correu pela frente do Continental até a janela do lado do motorista, sacudindo a maçaneta, batendo na janela.
- Sua cadela doida! Quem é você? O que está querendo? O rosto pálido e terrível, oculto pelos cabelos pretos, pelos
óculos e pelo chapéu, virou-se e fitou-o. Era uma máscara, hor-
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rível, totalmente impassível. As faces cobertas de pó-de-arroz, os lábios finos muito vermelhos, contraídos. Peter tinha a impressão de estar contemplando algum
inseto gigantesco obsceno, invenlado para parecer uma aparição grotesca.
- Mas que diabo! Responda! Responda!
Nada. Nada, a não ser aquele olhar terrível da máscara terrível.
Os carros à frente começaram a andar. Peter ouviu o barulho dos motores acelerando. Continuava a segurar a maçaneta, hipnotizado pela visão macabra por trás da janela. Bateu novamente no vidro.
- Quem...?
O motor do Continental explodiu. Peter largou a maçaneta, o Continental lançou-se para a frente, passando pelo cruzamento já em grande velocidade.
Peter tentou descobrir qual era a placa. Mas não existia nenhuma placa.
- Sua louca! vou arrebentar sua cabeça! Desgraçada!
As palavras iradas nem pareciam suas. O primeiro dos dois caminhões pelos quais passara na curva, na maior imprudência, parou a 20 metros de distância. O motorista corpulento estava saltando, com uma imensa chave inglesa na mão.
- Seu filho da puta! Quase me jogou para fora da estrada! Peter voltou para o Mercedes. Sentou ao volante, bateu a
porta, trancando-a. O motorista estava agora a poucos passos, a chave inglesa erguida ?tneaçadoramente.
O motor do Mercedes ainda estava funcionando. Peter engrenou e pisou no acelerador, segurando firmemente o volante. O Mercedes saiu com uma tremenda potência. Peter
deu uma guinada no volante, para evitar que o carro saísse da estrada. E seguiu em frente, aumentando a velocidade.
Era um pesadelo. Um terrível pesadelo!
Peter estava sentado sozinho na sala de estar de seu apartamento há mais de uma hora. O abajur em cima do piano era a única fonte de iluminação. Os ruídos da noite
de Nova York entravam pela janela parcialmente aberta. Peter queria que o ar entrasse na sala. Além disso, os ruídos eram tranquilizadores. Ainda estava suando.
Tinha que controlar seu pânico. Tinha que pensar claramente. Alguém estava tentando levá-lo à loucura. Tinha que reagir, tinha que descobrir a quem pertencia aquela terrível máscara. Tinha que voltar a uma estrada rural de Maryland onde o rosto terrível aparecera pela primeira vez.
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Como era mesmo o nome daquele guarda em Rockville? Connelly? Donovan? Comunicara o nome à agência locadora de carros do Aeroporto Dulles. Telefonaria para lá a descobriria. Depois ligaria para o guarda e perguntaria...
O telefone tocou. Peter estremeceu e levantou. Só podia ser o deputado da Virgínia. Ninguém mais sabia que ele estava na cidade. Rawlins dissera que telefonaria de noite e combinariam então a hora e o lugar do encontro.
- Alo?
- Peter?
Era Joshua Harris. Peter esquecera dele inteiramente.
- Oh, desculpe, Josh. Tive alguns problemas. Acabei de chegar.
- O que aconteceu?
O alarme na voz de Harris era evidente.
- Eu... - Não, não iria contar a Joshua. Não agora. Ainda estava tudo muito confuso. - Nada de mais sério. Um simples enguiço no carro. O conserto levou mais tempo do que eu esperava. Onde você está?
- Estava de saída para o restaurante. Lembra-se que combinamos um jantar no Richelieu?
Peter lembrava. Mas não podia suportar agora um jantar num restaurante elegante. Acabaria ficando doido, querendo e não querendo contar tudo a seu agente literário.
- Será que se importaria de transferir o nosso jantar para amanhã, se não tiver nenhum outro compromisso, Josh? Trabalhei de quatro e meia da madrugada de hoje até quatro da tarde, sem parar. E depois a viagem de carro... Estou que não me aguento em pé.
- Quer dizer que o livro sobre Hoover está caminhando?
- Melhor e mais depressa do que eu julguei.
- Isso é ótimo, Peter. Estou contente por você. Mas é estranho que Tony nada me tenha dito.
Peter esclareceu:
- Ele ainda não sabe. Enviei-lhe o mais longo dos meus esboços. Ele vai levar alguns dias para ler tudo.
Por que ele simplesmente não dissera que começara o maldito livro por conta própria?
- Espero que me leve uma cópia amanhã. Nem sempre confio em vocês dois, muito menos lidando com tantas palavras.
- Prometo que levarei amanhã de noite.
- Está certo. vou passar a reserva da mesa para amanhã Boa-noite, Peter.
- Boa-noite, Josh.
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Peter desligou e foi até a janela que dava para a Rua 72. Era um quarteirão tranquilo, arborizado, o tipo de quarteirão que todos associavam a outra época da vida na cidade.
Ao olhar pela janela, Peter sentiu subitamente que uma imagem estava entrando em foco. Sabia que não era real, mas também era impotente para impedi-la. Era o rosto macabro no Continental. Estava olhando para aquela máscara terrível! Estava no vidro, fitando-o, olhos invisíveis por trás dos imensos óculos escuros, o batom vermelho pintado com precisão num mar de póde-arroz.
Peter fechou os olhos, levou a mão à testa. O que estava querendo fazer um momento antes de Josh telefonar? Era algo relacionado com aquela horrível imagem no vidro. E com o telefone. Ia usar o telefone.
O telefone tocou. Mas tocara apenas um momento atrás! Não podia estar tocando novamente!
Mas estava tocando! Oh, Deus! Ele tinha que deitar. As têmporas doíam terrivelmente, e não tinha certeza. . . Atenda o telefone. Peter atravessou a sala rapidamente.
- Chancellor?
- Ele mesmo.
-- Rawlins. Como se sente pela manhã?
- Está querendo me gozar?
- Hem?
- Sempre trabalho de manhã.
- Isso não me interessa. Conhece um lugar aqui em Nova York chamado Cloisters?
- Conheço.
Peter prendeu a respiração. Será que aquilo também era uma piada macabra? Aquele tinha sido um dos lugares prediletos de Catby. Em quantos domingos de verão não haviam passeado por aqueles gramados? Mas Rawlins não podia saber disso. Ou será que podia?
- Esteja lá às cinco e meia da manhã. Entre pelo portão oeste, que estaria aberto. Há um caminho cerca de 50 metros ao norte que leva a um pátio aberto. Irei encontrá-lo lá.
O telefone ficou mudo. O sulista escolhera um estranho lugar, uma hora ainda mais estranha. Eram as escolhas de um homem apavorado. Alan Longworth conseguira novamente desencadear o medo. Aquele agenle "aposentado", aquele executor dominado pelo remorso, teria que ser detido de qualquer maneira.
Mas não era o momento apropriado para pensar em Longworth. Peter sabia que tinha de descansar. Quatro e meia da madrugada chegaria rapidamente.
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Foi para o quarto, tirou os sapatos, desabotoou a camisa. Sentou na beira da cama. Involuntariamente, seu corpo caiu para trás, lentamente, a cabeça afundando no travesseiro.
E os sonhos chegaram. Os pesadelos.
A relva estava úmida de orvalho, a claridade do amanhecer ia aumentando no céu a leste. Havia relíquias e estátuas por toda parte, árvores retorcidas pareciam ter sido transportadas através dos séculos. A única coisa que faltava era a música de um alaúde ou vozes cantando madrigais.
Peter encontrou o caminho indicado. Era margeado por fiorés e levava a uma pequena elevação próxima dos muros, onde fora reconstruído um claustro de um mosteiro francês do século XIII. Peter parou diante da arcada. Dentro do pátio, havia bancos de mármore e árvores em miniatura, num isolamento artístico. Era tudo muito quieto. Ele ficou esperando.
Os minutos foram passando. A claridade do início de manha foi aumentando, o suficiente para produzir reflexos no mármore branco. Peter consultou o relógio de pulso. Eram dez para as seis, Rawlins estava 20 minutos atrasado.
Ou será que o deputado, no final das contas, decidira não comparecer? Será que o medo dele era tão grande assim?
- Chancellor.
Peter virou-se, sobressaltado com o sussurro. Vinha de algumas moitas a cerca de dez metros de distância, em torno de um pedestal no meio do gramado. Por cima do pedestal havia uma escultura: a cabeça de um santo medieval. Um homem estava emergindo da sombra.
- Rawlins? Há quanto tempo está a;?
- Há cerca de 45 minutos.
Rawlins encaminhou-se para Peter. Sem estender a mão para um cumprimento.
- Por que esperou tanto tempo para aparecer? - indagou Peter. - Estou aqui desde cinco e meia.
- Chegou exatamente às 5h33min. Esperei para verificar se estava sozinho.
- Estou. Vamos logo falar.
- Vamos andar.
Os dois começaram a caminhar pelo caminho que se afastava do pedestal.
- Tem algum problema com a perna? - perguntou Rawlins.
- É uma antiga contusão do futebol. Ou um ferimento de guerra. Pode escolher o que achar melhor. Não quero andar. Quero ouvir o que tem a dizer. Não pedi esse encontro e tenho muito trabalho a fazer.
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O rosto de Rawlins ficou vermelho.
- Há um banco ali adiante.
- Também há bancos lá dentro do pátio.
- E talvez microfones também.
- Você está completamente doido. Assim como Longworth. O deputado não respondeu até chegarem a um banco branco, de ferro batido.
- Longworth é seu sócio, não é mesmo? Nesta chantagem. Rawlins sentou enquanto falava. A luz ainda fraca iluminava
,eu rosto. A atitude arrogante de um momento atrás estava desaparecendo.
- Não - respondeu Peter. - Não sou sócio de ninguém e ião sou um chantagista.
- Mas está escrevendo um livro.
- É disso que eu vivo. Escrevo livros.
- Claro. Foi por isso que o pessoal da CIA teve que lavar uma porção de roupa suja. Ouvi falar dessa história. Um livro chamado Contra-ataque!
- Acho que está exagerando a importância do meu livro. Mas o que queria me dizer?
- Deixe as coisas como estão, Chancellor. A informação que tem não vale porra nenhuma. Pode me arruinar, é verdade, mas legalmente sou capaz de salvar a pele. Posso perfeitamente fazer isso. E depois terá que aguentar as consequências pelo que acontecer em seguida.
- Que informação? O que quer que Longworth lhe tenha dito não passa de mentira. Não tenho nenhuma informação a seu respeito.
- Não venha com merda para cima de mim. Não nego que tenho problemas. Sei muito bem o que pessoas como você pensam de mim. Falo desdenhosamente dos negros. Mais do que gostariam de ouvir. Bem que gosto de um bom rabo de crioula, especialmente quando estou de porre. Mas isso até que pode depor a meu favor. Sou casado com uma cadela sem-vergonha que pode soprar o apito na hora em que bem quiser e me arrancar praticamente tudo o que tenho ao norte de Roanoke. Posso aguentar tudo isso, mas procuro fazer o meu trabalho direito lá na Câmara. E não sou nenhum assassino! Está me entendendo?
- Claro que estou. É um homem dedicado a seus nobres afazeres cotidianos. Tudo muito louvável. Já disse o que queria. E agora vou embora.
- Não vai, não! - Rawlins levantou-se abruptamente, bloqueando o caminho de Peter. - Por favor, escute-me! Posso ser uma porção de coisas, mas não pode me rotular de racista intransigente. Ninguém que tenha a cabeça no lugar pode ser uma coisa
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dessas. Porque os números e os motivos não são mais como antigamente. O mundo inteiro está mudando e ficar cego a isso é abrir as portas a um tremendo banho de sangue. Ninguém ganha, todo mundo sai perdendo.
- Motivos? - Peter examinou atentamente o rosto do sulista. Ele parecia estar sendo sincero. - Onde está querendo chegar?
- Jamais bloqueei qualquer mudança. Mas luto como um gato acuado quando a mudança é irresponsável. Entregar decisões de milhões de dólares a pessoas que não estão qualificadas, que não têm a cabeça no lugar, é provocar um atraso para todo mundo.
Peter estava fascinado, como sempre ficava quando a Imagem e a substância se chocavam.
- O que tem isso a ver com a informação que julga que eu tenho?
- Armaram-me uma armadilha em Newport News! Deramme para beber um barril inteiro e depois levaram-me por ruas escuras que eu nunca tinha visto antes! Posso ter trepado com aquela garota, mas não a matei. Não saberia nem fazer aquilo que fizeram com ela. Não sei quem fez. E aqueles filhos da puta crioulos sabem que eu sei! São piores que lixo. São negros nazistas, matando a sua própria gente, se escondendo por trás...
Houve um zumbido em aigum lugar atrás deles. E depois o incrível - o inconcebível - aconteceu. Peter ficou olhando aterrorizado, incapaz de se mexer.
A boca de Rawlins abriu-se bruscamente. Um círculo vermelho surgiu por cima de sua sobrancelha direita. O sangue jorrou, esguichando primeiro, depois escorrendo pela pele pálida, sobre o olho que não piscava. Apesar disso, o corpo permaneceu de pé, paralisado na morte. E depois, lentamente, como num grotesco bale, as pernas de Rawlins cederam e o corpo tombou, desabando sobre a relva úmida.
Uma explosão abafada de ar saiu da garganta de Peter. Um grito nascera, mas nenhum som foi emitido, o choque sufocava qualquer grito de terror.
Houve outro zumbido. As ondas de ar explodiram por cima dele. E outro e mais outro. A terra explodiu a seus pés. Uma bala ricocheteara no banco. A ponta de instinto que ainda restava fez com que Peter mergulhasse para a esquerda, rolando pela relva, procurando sair da área que estava sendo alvejada. Houve mais zumbidos, mais explosões raivosas de relva e terra. Um fragmento de pedra passou zunindo ao lado do ouvido de Peter: mais alguns milímetros e poderia tê-lo cegado ou mesmo matado. Subitamente, sua testa roçou numa superfície dura, a palma da mão comprimiu-se contra uma pedra de formato irregular. Estava aã lado de algum monumento de pedra, cercado de arbustos.
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Peter virou-se abruptamente. Estava agora abrigado, mas as »valas zuniam ao seu redor.
E depois houve gritos, meio frenéticos, histéricos. Vinham de várias direções, deslocando-se, correndo, sumindo. E finalmente uma voz, um rugido, ríspido, gutural, exigindo obediência:
- Saia daí!
Uma mão poderosa agarrou Peter pela frente do casaco, levantando-o, arrancando-o da proteção do escudo de pedra. Uma segunda mão empunhava uma automática imensa, um cilindro grosso no cano. Estava apontada na direção de onde partiam os firos. Fogo e fumaça saíram pelo cilindro, repetidas vezes.
Peter estava incapaz de falar, incapaz de fazer qualquer protesto. Acima dele estava o louro Longworth. Era o desprezível Alan Longworth quem estava lhe salvando a vida!
Peter avançou rapidamente, esbarrando nos arbustos, o corpo abaixado, abrindo caminho entre urtigas e espinheiros, até o gramado mais além. Caiu sobre o gramado, de quatro, deu um impulso para a frente. O ar sumira dos seus pulmões, mas somente fugir tinha importância. E ele saiu correndo pelos jardins.
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Peter caminhou pelas ruas como um homem a vaguear t esmo num sono profundo. Perdeu a noção de tempo e lugar, estava inteiramente desorientado. O primeiro impulso
fora o de procurar ajuda, chamar a polícia, encontrar alguém que pudesse impor alguma ordem ao caos do qual conseguira escapar por um triz. Mas não havia ninguém.
Abordou diversas pessoas que passavam, mas todas trataram de se desvencilhar diante da sua aparência estranha, afastando-se apressadamente. Peter cambaleava; buzinas
soavam estridentes, carros se desviavam dele, furiosamente. Não havia qualquer guarda à vista, nenhuma radiopatrulha naquela parte tranquila da cidade.
Suas têmporas latejavam, o ombro esquerdo doía, tinha a impressão de que a testa fora raspada com uma lixa. Olhou para a palma da mão direita; a p.ele estava vermelha,
pontas de sangue haviam aflorado à superfície.
Lentamente, depois de caminhar por quilómetros, Peter começou a recuperar o controle. Foi um estranho reencontro, um estranho processo. Sabendo e não sabendo, consciente
de um estado mental extremamente perigoso. Compreendia vagamente que suas defesas não eram capazes de repelir as investidas contra a sua mente e por isso tentava
expulsar as imagens de sua consciência. Era urn homem procurando desesperadamente recuperar o controle. Tinha decisões a tomar.
Olhou para o relógio, sentindo-se como um viajante perdido numa terra estranha, informado de que se não alcançasse um destino determinado numa hora específica, era
porque seguira pelo caminho errado. E Peter enveredara por muitos caminhos erra dos. Olhou para a placa da rua. Jamais ouvira falar do nome.
O sol dizia-lhe que ainda era manhã. Sentiu-se grato por isso. Vagueara pelas ruas durante quatro horas.
Quatro horas. Oh, Deus, preciso de ajuda.
O carro! O Mercedes estava lá em Cloisters, estacionado na rua, diante da entrada oeste. Peter enfiou a mão no bolso da
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calça e tirou o clipe onde guardava dinheiro. Dispunha do suficiente para pegar um táxi.
- Aqui é o portão oeste - disse o motorista do táxi, de rosto vermelho. - Não estou vendo nenhum Mercedes. A que horas deixou-o aqui?
- De manhã bem cedo.
E não viu a placa? - O motorista apontou pela janela. -
Esta é uma rua bastante movimentada.
Peter tinha estacionado numa zona de reboque.
- Estava escuro... - murmurou ele, defensivamente, dando ao motorista seu endereço em Manhattan.
O táxi saiu da Lexington Avenue, virando à esquerda na Rua 71. Peter ficou atónito. Seu Mercedes estava estacionado na frente do prédio em que morava, o azul-escuro
faiscando ao sol. Não havia qualquer outro automóvel igual no quarteirão.
Por um momento de insanidade, Peter perguntou-se como o carro teria sido transferido do outro lado da rua, onde o deixara na noite anterior. Cathy devia ter mudado
o carro de lugar. Ela fazia isso frequentemente, por causa dos regulamentos de estacionamento. Os carros tinham que ser retirados do outro lado da rua até oito horas
da manhã.
Cathy? Oh, Deus, o que havia de errado com ele?
Peter ficou esperando na calçada até que o táxi desaparecesse. Aproximou-se do Mercedes, examinando-o cuidadosamente, como se inspecionasse um objeto que não via
há anos. O carro fora lavado, polido, haviam passado um aspirador no interior, limpado o painel.
Peter pegou as chaves e começou a subir os degraus do prédio, degraus que pareciam nunca mais acabar. Do lado de fora de sua porta havia um bilhete datilografado
espetado na madeira.
As coisas escaparam ao controle. Não vai acontecer novamente. E nunca mais voltará a me ver.
Longworth
Peter arrancou o bilhete da porta. Examinou cuidadosamente o papel. Os os estavam ligeiramente levantados; o papel era grosso, cortado em cima.
O bilhete havia sido datilografado em sua própria máquina; o papel era o seu, o timbrado. Seu nome havia sido removido.
- O nome dele é Alan Longworth. Josh é que descobriu as informações a seu respeito.
Peter estava encostado na janela, olhando para o Mercedes lá na rua. Anthony Morgan estava sentado numa cadeira de bra-
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cos do outro lado da sala, o corpo esguio surpreendentemente rígido.
- Está com uma aparência horrível. Bebeu muito ontem à noite?
- Não. É que não dormi bem. E o pouco sono que tive foi repleto de pesadelos. O que é outra história...
- Mas não bebeu.
- Já disse que não!
- E Josh está em Boston?
- Exatamente. O escritório dele informa que deverá voltar TIO avião das quatro horas. Combinamos jantar esta noite.
Morgan levantou-se, aparentemente convencido. E disse enfático:
- Mas por que não chamou a polícia? Que diabo pensa que está fazendo? Viu um homem morrer! Um deputado foi assassinado diante dos seus olhos!
- Já sei, já sei... E quer saber de algo pior? Apaguei inteiramente. Fiquei andando a esmo durante quatro horas, inteiramente atordoado. Nem mesmo sabia onde estava.
- Ouviu alguma coisa, pelo rádio? A esta altura, a notícia já deve ter se espalhado.
- Nem liguei o rádio.
Tony foi até o rádio que estava na estante e ligou-o numa emissora noticiosa, mantendo o volume baixo. Depois, encaminhou-se para Peter, obrigando-o a se virar.
- Preste bem atenção, Peter. Numa emergência, não deve procurar qualquer outra pessoa além de mim. Nesse caso, devia também ter procurado a polícia. Quero saber
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por que não o fez.
Peter hesitou, procurando pelas palavras certas.
- Não sei, Tony. E não estou certo se sequer posso dizerlhe o que talvez tenha sido a causa.
- Estou preparado para qualquer coisa, Peter - disse Tony, suavemente.
- Não estou falando de histeria, algo com que estou aprendendo a conviver. O problema é outro. - Peter mostrou a mão ferida. - Lembro-me que, depois, peguei o carro
e fui até Fort Tryon. Olhe para a minha mão. Devia haver no volante as minhas impressões digitais, talvez manchas de sangue. A grama estava molhada, havia um pouco
de lama. Olhe para os meus sapatos, para o casaco. Devia haver vestígios no carro. Mas o carro estava impecavelmente limpo. Parecia até que tinha acabado de sair
da loja. Nem mesmo sei como veio parar aqui na frente. E o bilhete na porta. Foi datilografado na minha máquina, no meu papel timbrado. E por horas após, a... loucura,
á insanidade. Não sei explicar com certeza o que fiz!
Pare com isso, Peter! - Morgan agarrou Peter pelos ombros, alteando a voz. - Isso não é ficção! Você não é um dos seus personagens! Isso tudo é real! Aconteceu!
- Ele voltou a baixar a voz e acrescentou: - vou chamar a polícia.
Dois detetives do 22. Distrito Policial interromperam o relato de Peter com perguntas esporádicas. O mais velho tinha cinquenta e poucos anos, com cabelos grisalhos
ondulados; o mais moço era negro, aproximadamente da idade de Peter. Ambos eram profissionais alerta e experientes, fizeram um esforço para deixar Peter à vontade.
Quando Peter terminou de contar a história, o mais velho foi falar ao telefone, enquanto o mais moço ficava conversando sobre Sarajevof Gostara muito do livro.
Somente quando o mais velho voltou é que Peter compreendeu que o preto impedira-o de escutar a conversa telefónica. Peter não pôde deixar de admirar o profissionalismo.
Não iria esquecer a lição.
- Parece que há um problema, Sr. Chancellor - começou o detetive de cabelos grisalhos, cautelosamente. - Assim que o Sr. Morgan telefonou, despachamos uma equipe
para o local. Para ganhar tempo, incluímos o pessoal técnico. E pedimos à delegacia do Bronx que cercasse o local com guardas, a fim de evitar qualquer interferência.
Mas não encontramos qualquer sinal de um tiroteio no local. Não encontramos absolutamente nada dê anormal.
Peter ficou atónito.
- Mas isso é uma loucura! Não pode ser! Eu estava lá quando aconteceu!
- Nossos homens são bastante meticulosos, Sr. Chancellor.
- Mas não foram meticulosos o bastante agora! Acha mesuio que eu iria inventar uma história dessas?
- É uma história excelente - comentou o preto, sorrindo. Talvez esteja experimentando algum material novo para seus livros.
- Ei, espere aí! - Morgan adiantou-se. - Peter jamais faria isso.
- Seria uma tolice fazê-lo - disse o detetive mais velho, assentindo, sem concordar. - É ilegal comunicar falsamente a ocorrência de um crime. De qualquer crime,
quanto mais de homicídio.
- Mas isso é uma loucura... - Peter fez uma pausa, respirou fundo. - Não está me acreditando. Recebeu o seu relatório pelo telefone, aceitou-o como evangelho e concluiu
que não passo de um lunático. Que tipo de policiais vocês são?
- Muitos bons - respondeu o preto. -
- Pois eu não acho! - Peter foi claudicando até o telefone.
- Há um meio de esclarecer o problema. Já faz cinco ou seis horas que o crime ocorreu. - Ele discou e segundos depois falou: - Informações, Washington? Quero saber
o telefone do escritório do Deputado Walter Rawlins, Câmara dos Representantes.
Peter discou o número que a telefonista forneceu. Tony Morgan assentiu. Os dois detetives ficaram observando, sem fazerem qualquer comentário.
A espera foi interminável. Peter sentia o coração batendo mais forte. Apesar de não ter a menor dúvida quanto ao acontecimento, tinha que provar àqueles dois profissionais
que não estava mentindo, não era doido.
Uma mulher atendeu, falando baixo, um sotaque inconfundivelmente sulista. Peter pediu para falar com o deputado. E quando ouviu as palavras que a mulher lhe disse,
a dor retornou a suas têmporas, os olhos ficaram momentaneamente desfocados:
- É simplesmente terrível, senhor. A família desolada só divulgou a notícia há poucos minutos. O deputado faleceu ontem à noite. Sofreu um enfarte enquanto dormia.
- Não é possível!
- Todos estamos nos sentindo assim, senhor. As disposições para o funeral serão anunciadas...
- Não! É mentira! Não diga isso! É tudo mentira! Cinco ou seis horas atrás... em Nova York! É mentira!
Peter sentiu que seguravam-no gentilmente pelos ombros, mãos .pegavam as suas, tiravam-lhe o telefone, puxavam-no para trás. Desferiu um pontapé, deu uma violenta cotovelada no policial que estava às suas costas. A mão direita estava livre; agarrou a cabeça mais próxima, puxou os cabelos vigorosamente, largou-os; o homem caiu de joelhos.
O rosto de Tony Morgan estava à frente dele, contorcido de dor, mas ele não fez qualquer movimento para proteger-se.
Morgan. Morgan... seu amigo! O que estava fazendo?
Peter parou de se mexer. Braços levaram-no até o chão.
- Não vai haver acusações - disse Morgan, entrando no quarto com drinques. - Eles foram muito compreensivos.
- O que significa que sou um lunático - acrescentou Peter, estendido na cama, com um saco de gelo na cabeça.
- Mas claro que não! Você está apenas com estafa. Andou trabalhando demais. Os médicos aconselharam-no a...
- Pelo amor de Deus, Tony, não venha com essa para cima de mim! - Peter sentou na cama. - Tudo o que eu disse era verdade!
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- Está bem, está bem. Aqui está seu drinque.
Peter pegou o copo, mas não bebeu. Colocou-o na mesinha
Sei que não está acreditando em mim, Tony. - Peter
apontou para uma cadeira. - Sente-se. Quero deixar algumas coisas bem claras.
- Está certo.
Morgan foi até a cadeira e sentou, esticando as pernas compridas. A exibição de indiferença não enganava Peter. Os olhos do editor traíam sua preocupação.
- Calma e racionalmente, Tony. Acho que sei agora o que aconteceu. E não vai acontecer novamente, o que explica o bilhete de Longworth. Ele quer que eu acredite nisso; está convencido de que se eu não acreditar, vou começar a uivar como uma alma penada.
- Quando teve tempo para pensar em alguma coisa, Peter?
- Durante aquelas quatro horas andando pelas ruas. Não tinha compreendido antes, mas as peças estavam se juntando em seus hagares. E quando você e os policiais foram conversar lá embaixo, percebi imediatamente o que havia.
Morgan levantou os olhos do copo.
- Não fale como um escritor, Peter. Peças se juntando nos lugares... tudo isso é besteira.
- Não, Tony, não é. Longworth tem que pensar como um escritor. Não percebe que ele tem de pensar como eu?
- Não estou percebendo coisa alguma. Mas continue, por favor.
- Longworth tem que ser detido. E ele sabe que eu sei disso. Fez-me entrar em ação com fragmentos de informações e um exemplo patético do que poderia acontecer se os arquivos particulares de Hoover ainda existissem. Lembre-se de que ele conhecia esses arquivos e guardou informações terríveis. Depois, para ter certeza de que eu estava mesmo fisgado, providenciou mais um exemplo: um deputado sulista com problemas, envolvido com o estupro de uma garota negra e com um assassinato que ele não cometeu. Longworth pôs as engrenagens em funcionamento, comigo no meio. Mas, de repente, percebeu que tinha ido longe demais. A armadilha ia resultar em assassinato. Ele não tinha pensado nessa possibilidade. Quando descobriu, tratou de salvarme a vida.
- Salvando, assim, também o livro?
- Exatamente.
- Não! - Morgan levantou-se. - Está falando como um garoto em torno de uma fogueira, Peter. E por que não? É o seu trabalho. Todos os contadores de histórias são como garo-
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tos em torno de uma fogueira de acampamento. Mas, pelo amor de Deus, não confunda isso com a realidade!
Peter contemplou atentamente o rosto de Morgan. A descoberta era dolorosamente óbvia.
- Não acredita em mim, não é mesmo? t
- Quer saber a verdade?
- Desde quando mudamos as regras?
- Está certo. - Tony esvaziou o copo. - Acho que foi realmente a Cloisters. Não tenho a menor ideia de como conseguiu entrar lá. Provavelmente pulou o muro. Sei que adora o amanhecer e Cloisters deve ser um espetáculo sensacional a essa hora... Acho que ouviu uma referência qualquer à morte de Rawlins...
- Mas como seria possível? O escritório dele, quando telefonei, informou que a notícia havia sido liberada poucos minutos antes.
- com licença, Peter, mas foi você quem ouviu essa informação, não eu.
- Oh, Cristo!
- Não estou querendo magoá-lo, Peter. Há um ano atrás, ninguém sabia se você ia viver ou morrer. Esteve perto da morte. Sofreu uma perda terrível. Cathy era tudo para você, todos nós sabíamos disso. . . Há seis meses, pensávamos - e eu sinceramente acreditava nisso - que você estava acabado como escritor. O desejo de escrever morrera em você. O garoto contando história numa fogueira de acampamento havia morrido na auto-estrada da Pensilvânia. Mesmo depois que saiu do hospital, houve dias inteiros, às vezes semanas, em que não dizia uma só palavra. Absolutamente nada. E foi então que começou a beber. De repente, há menos de três semanas, seu vulcão pessoal entra em erupção. Vem de avião da Califórnia, mais excitado do que em qualquer outro momento anterior desde que o conheci, cheio de energia, querendo voltar a trabalhar com uma gana extrema. Exagerada, Peter... Será que não percebe?
- Perceber o quê?
- A mente humana é curiosa, Peter. Não se pode arrancála da imobilidade assim, de repente. Alguma coisa tem que arrebentar. Você mesmo disse que não sabia onde esteve durante quase quatro horas.
Peter não se mexeu. Ficou olhando para Morgan, pensamentos conflitantes surgiam em sua mente. Estava furioso com o editor por não acreditar nele; contudo, sentia-se ao mesmo tempo estranhamente aliviado. Talvez fosse melhor assim. Por natureza, Morgan era protetor; os acontecimentos do último ano haviam ampliado esse instinto natural. Se ele acreditasse - Peter não tinha
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menor dúvida - faria com que o trabalho no livro fosse
suspenso.
. Está certo, Tony. Vamos esquecer tudo. Já acabou. Não
estou mesmo muito bem. Não posso pretender estar. Não sei muito bem o que fazer.
Pois eu sei - respondeu Morgan, gentilmente. - Vamos
tomar um drinque.
Munro St. Claire estudou Varak atentamente, desde o momento em que este entrou na biblioteca de sua casa em Georgetown. O braço direito do agente estava numa tipóia e havia um curativo no lado esquerdo do seu pescoço. Varak fechou a porta e aproximou-se da escrivaninha, por trás da qual o diplomata estava sentado, com uma expressão sombria.
- O que aconteceu?
- Já providenciei tudo. O Cessna dele estava no aeroporto de Westchester. Levei-o até Arlington e entrei em contato com um médico que costumamos usar no Conselho de Segurança Nacional. A esposa não tinha alternativa. Nem queria ter. Rawlins não tinha seguro de vida contra assassinato. Além do mais, ela é um livro pornográfico. Li alguns capítulos.
- E o que me diz dos outros? - perguntou Bravo.
- Eram três, um deles foi morto. Assim que Chancellor escapou, parei de atirar e escondi-me no outro lado da área. Rawlins estava morto. O que mais eles podiam querer? Fugiram, levando o corpo do companheiro morto. Vasculhei toda a área, recolhendo as capsulas deflagradas, endireitando a grama. Não deixei qualquer sinal de que algo anormal havia acontecido ali.
Bravo levantou-se, com uma ira aparente.
- O que fez está muito além do que planejamos! Tomou decisões que sabia que eu não iria aprovar, provocou uma ação que custou a vida de dois homens e quase matou Chancellor!
- Um dos homens era um assassino - respondeu Varak, calmamente. - E Rawlins estava marcado. Era apenas uma questão de tempo. Quanto a Chancellor, quase perdi minha própria vida para salvar a dele. Creio que paguei pelo meu erro de julgamento.
- Erro de julgamento? E quem lhe deu esse direito?
- Você deu. Todos vocês deram.
- Havia proibições inerentes! Você compreendeu isso muito bem!
- Compreendi que há centenas de arquivos desaparecidos que podem ser usados para transformar este país num estado policial. Por favor, não se esqueça disso.
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- E eu lhe peço para não esquecer de que não estamos na Tchecoslováquia. Aqui não é Lídice em 1942. Você não é um garoto de 13 anos rastejando entre cadáveres, matando quem quer que pudesse ser seu inimigo. Não foi trazido para cá há 30 anos para transformar-se no seu próprio Sturm und Drang.
- Fui trazido para cá porque meu pai trabalhou para os Aliados! Minha família foi massacrada porque ele trabalhava para vocês!
Varak fechou os olhos. Apanhado de surpresa, não pôde conter as lágrimas ao recordar a manhã ensolarada de 10 de junho de 1942. Uma manhã de morte por toda parte. Noites passadas em um esconderijo nas minas. Dias e noites fazendo um X numa viga da mina, cada marca representando outro alemão morto. E tinha apenas 13 anos... Um menino convertido em assassino pelos acontecimentos. Até que os ingleses o tinham salvado.
- Recebeu tudo - disse Bravo, baixando a voz. - As obrigações foram reconhecidas, nada foi poupado. Esteve nas melhores escolas, todas as vantagens...
- E as recordações, Bravo. Não se esqueça delas.
- E as recordações - concordou Munro St. Claire.
- Está me compreendendo mal - Varak apressou-se a dizer. Não estou procurando compaixão. Estou simplesmente querendo dizer que não esqueci. - Varak deu um passo na direção da mesa. - Passei 18 anos pagando pelo privilégio dessas recordações. E pagando com o maior prazer. Sou o melhor que existe no Conselho de Segurança Nazista. Caço os nazistas sob qualquer forma na qual possam ressurgir. E se pensa que há alguma diferença entre o que representam esses arquivos e os objetivos do Terceiro Reich, devo dizer que está redondamente enganado. 3.
Varak parou de falar abruptamente. O sangue lhe afluíra à cabeça, estava quase gritando; mas é claro que tal possibilidade não existia. Munro St. Claire ficou observando o agente em silêncio por algum tempo, sua própria raiva se desvanecendo.
- É muito persuasivo, meu caro. vou convocar Inver Brass. É preciso informar os outros.
- Não, não convoque uma reunião. Ainda não.
- Já há uma reunião marcada para este mês. Temos que escolher um novo Génesis. Estou velho demais, assim como Venice e Christopher. Restam Banner e Paris. É uma...
- Por favor... - Varak comprimiu os dedos na beira du mesa. - Não convoque a reunião.
Os olhos de St. Claire se estreitaram.
- Por que não?
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Chancellor já começou o livro. A primeira parte: do orirfoi entregue anteontem. Entrei no escritório da firma de dgrafiaeitudo.
" liateoria pode estar mais acurada do que você imagina. rhanlelSr concebeu várias coisas que nunca me haviam ocorrido. E Inver Brass está no livro.
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A onda de frio chegou, transformando o outono em inverno. As eleições haviam acabado, os resultados tão previsíveis quanU a geada que cobria os campos da Pensilvânia.
A mentira e Madison Avenue haviam prevalecido sobre amadores vacilantes. Ninguém ganhou qualquer coisa de valor, muito menos a república.
Peter não havia prestado muita atenção à política. A partir do momento em que os concorrentes foram definidos, não havia mais o que pudesse lhe interessar. Em vez disso, estava inteiramente absorvido pelo romance, e era, todas as manhãs, a sua aventura pessoal. Refinara o enredo, os personagens tinham adquirido vida.
Estava no sétimo capítulo, o ponto em que homens decentes gradativamente chegam a uma decisão indecente: homicídio. O assassinato de J. Edgar Hoover.
Antes de começar a escrever realmente um capítulo, Peter sempre o esboçava; depois, punha o esboço de lado. Quase não o consultava. Era uma técnica que lhe fora sugerida por Anthony Morgan, anos atrás:
Saiba para onde está indo, dê a si mesmo uma orientação, a fim de não se atrapalhar; mas não restrinja de jeito nenhum a inclinação natural para divagar.
Era estranha a atitude de Tony, pensou Peter, debruçado sobre a mesa. Haviam conversado por diversas vezes desde a incrível loucura de Cloisters, várias semanas antes, mas Tony jamais voltara a mencionar o incidente. Era como se nada tivesse acontecido.
Tony já tinha lido as primeiras cem páginas da novela e declarara que era a melhor coisa que Peter já havia escrito. Isso era tudo o que importava. O livro era tudo.
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Capítulo 7 - Esboço
Uma tarde de chuva, numa suíte de hotel em Washington. O senador está sentado diante da janela, contemplando a chuva bater contra o vidro. Estava pensando em 30 anos atrás, nos seus dias na universidade, quando ocorrera o incidente que, revelado três décadas mais tarde, iria afastá-lo da disputa presidencial. Era com isso que o adversário de Hoover o ameaçara. Não podia recordar como ou quando acontecera. Suas emoções haviam se soltado, tomando rumos perigosos. Mas ali estava: sua assinatura como membro de uma organização que, posteriormente, se revelaria como parte do aparato comunista. Era uma acusação inócua, é claro; defensável, não havia a menor dúvida; ridícula, provavelmente. Mas não em termos da presidência. Era suficiente para afastá-lo da disputa. Não teria sido, é claro, se sua atual filosofia política estivesse em sintonia com os pensamentos do diretor do FBI.
Os pensamentos do senador foram interrompidos pela chegada da jornalista, a colunista silenciada por Hoover e que agora integrava o Núcleo. O senador levanta e lhe oferece um drinque.
A mulher responde que se pudesse aceitar, nem mesmo estaria ali. Explica que era uma alcoólatra, há mais de cinco anos não toma um só drinque. Antes, porém, muitas vezes ficava embriagada durante dias seguidos. Era a arma que Hoover tinha contra ela. Durante uma dessas bebedeiras, haviam tirado fotografias.
"A melhor maneira de descrevê-las é dizer que me mostram cometendo atos insólitos com cavalheiros repulsivos. Mas juro que não me lembro de nada. E como poderia me lembrar de alguma coisa?"
Hoover está com as fotografias. A oposição ocupada por ela foi completamente neutralizada.
Chega o terceiro membro do Núcleo. É o antigo membro do Gabinete descrito no primeiro capítulo, cujo deslize é ser um homossexual enrustido.
Ele traz notícias alarmantes. Hoover fez um pacto temporário com a Casa Branca. Todos os candidatos viáveis da oposição serão investigados e eliminados. Onde não existirem fatos serão usaiias conjeturas, com o apoio do FBI. O nome da organização c suficiente para semear a confusão e o terror entre os políticos. Quando as defesas forem erguidas, os danos causados já terão sido irreparáveis.
A oposição irá escolher seu candidato mais fraco. A eleição do atual Presidente está assegurada. Inerente a esse acordo é o fato de que Hoover dispõe de armas não menos poderosas para
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usar contra a Casa Branca. Em suma, o diretor estará em breve controlando os pontos de pressão do país; estará dirigindo-o.
"Ele foi longe demais. Os cadáveres estão se acumulando muito depressa, há mortos demais. Ele tem que ser removido e não me importo como. Nem que seja necessário matá-lo."
O senador fica assustado com as palavras do membro do Gabinete. Sabe o que é sentir a faca aguçada de Hoover, mas há meios legítimos de convencê-lo. Tira da pasta o relatório de Meredith.
Os três tomam a decisão de procurar o emissário de Hoover, o homem que opera com os arquivos particulares do diretor. Usarão tudo o que for necessário para recrutá-lo; acima de tudo, é preciso se apossar dos arquivos.
"Primeiro os arquivos. Se podem ser usados da maneira como Hoover o está fazendo, podem também ser usados da maneira inversa. Podem ser usados para o bem! E depois a execução. Não há alternativa." O antigo membro do Gabinete não se afasta de sua posição.
O senador não quer ouvir mais nada. Recusa-se a aceitar tal declaração. Deixa o encontro, dizendo apenas que vai providenciar uma reunião com Meredith.
Peter parou de escrever. Já tinha o suficiente para começar a escrever o capítulo. Pegou outro lápis e começou:
Estava esquecido do tempo, imerso nas páginas que iam se acumulando à sua frente. Recostou-se no sofá, olhou pelas janelas. Ficou ligeiramente surpreso ao avistar pequenos flocos de neve flutuando no ar. Lembrou-se que já estavam em fins de dezembro. Para onde os meses teriam ido?
A Sra. Alcott trouxera-lhe o jornal há uma hora atrás e ele sentiu vontade de fazer uma pausa no trabalho. Eram dez e meia; tinha começado a escrever às dez para as cinco. Pegou o jornal na beira da mesinha de café e abriu-o.
As manchetes eram as de sempre. As negociações de Paris haviam chegado a um impasse, o que quer que isso pudesse significar. Pessoas estavam morrendo; ele sabia o que isso significava.
Subitamente, Peter concentrou-se numa notícia de uma coluna, no canto inferior direito da primeira página. Uma pontada de dor lhe passou pelas têmporas.
GENERAL BRUCE MACANDREW PROVÁVEL VÍTIMA DE HOMICÍDIO Corpo Encontrado na Praia de Waikiki
Waikiki! Oh, Deus! Havaí!
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A história era macabra. O corpo de MacAndrew apresentava . is ferimentos a bala. A primeira penetrara na garganta, a seda no crânio, logo abaixo do olho esquerdo. Tinha tido morte istantânea e há cerca de dez ou 12 dias.
Aparentemente, ninguém sabia que o general estava no Havaí. Os hotéis e empresas aéreas não tinham reservas em seu nome. As inquirições nas bases militares da ilha não haviam proporcionado qualquer resultado. Ele não tinha entrado em contato com ninguém.
Lendo mais adiante, reter teve um novo sobressalto ao deparar com um subtítulo quase ao final da página:
Esposa Morreu Há Cinco Semanas
A informação era escassa. Ela simplesmente morrera "depois de uma doença prolongada, que limitara suas atividades nos últimos anos". Se sabia de mais alguma coisa, o repórter caridosamente omitira.
A notícia mudava abruptamente de rumo, seguia por um caminho estranho. O repórter se mostrara caridoso com a Sra. MacAndrew, lançara suspeita sobre o general em termos dignos de Hoover:
Ao que se informa, a polícia do Havaí estava investigando rumores de que um antigo oficial de alta patente do Exército Americano estaria envolvido com elementos criminosos, operando com base na Península Malaia, através de Honolulu. Há muitos oficiais reformados vivendo com suas famílias nas ilhas havaianas. Não foi possível determinar se esses rumores tinham ou não alguma relação com a vítima de homicídio.
Nesse caso, por que então incluir a informação?, pensou Peter, furioso, recordando a cena patética do soldado a abraçar ternamente a esposa louca. Ele abriu o jornal para ler a continuação da notícia. Havia uma sucinta biografia da vida militar de MacAndrew, culminando com uma referência ao súbito e inesperado pedido de renúncia do general e suas divergências dos chefes do Estado-Maior Conjunto, especulações quanto ao custo extramilitar da doença da esposa e insinuações sutis de que estivera sujeito a extremas pressões psicológicas. Cabia ao leitor concluir a ligação entre essas "pressões" e os "rumores" previamente mencionados; nenhum leitor poderia deixar de tirar as conclusões.
A última parte da notícia era também inesperada, deixando Peter novamente surpreso. Ele não sabia que MacAndrew tinha uma filha adulta. Pela descrição no jornal, tratava-se de uma mulher independente e indignada.
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Procurada em seu apartamento de Nova York, a filha do general, Alison MacAndrew, de 31 anos, ilustradora da Agência Welton Greene, uma firma de publicidade da Terceira Avenida, 950, reagiu com indignação às especulações em torno da morte de seu pai. "Forçaram-no a sair do Exército e agora estão tentando destruir sua reputação. Tenho estado em contato com as autoridades do Havaí, pelo telefone, durante as últimas 12 horas. Concluíram que meu pai foi morto quando lutava contra um ataque de assaltantes armados. Roubaram-lhe a carteira, o relógio, o anel e todo o dinheiro que levava."
Indagada se podia explicar por que não havia registros nas empresas aéreas ou reservas de hotel, Miss MacAndrew respondeu: "Isso nada tem de extraordinário. Ele e mamãe geralmente viajavam sob nomes supostos. Se o pessoal do Exército no Havaí soubesse que ele estava passando férias lá, certamente iria procurá-lo e tirar sua privacidade."
Peter podia perfeitamente compreender o que ela dissera. Se MacAndrew viajava para qualquer lugar com a esposa mentalmente doente, não poderia deixar de usar um nome suposto, a fira de protegê-la. Mas a esposa de MacAndrew estava morta. E Peter sabia que o general não fora ao Havaí em férias. Fora procurar um homem chamado Longworth.
E Longworth o matara.
Peter largou o jornal. Estava dominado por uma intensa repulsa, em parte de culpa, em parte de fúria. O que ele fizera? O que deixara acontecer? Um homem decente fora morto! Para quê?
Um livro.
Em seu ímpeto messiânico para se livrar de sua própria culpa, Longworth novamente matara. Novamente. Pois ele era responsável pela morte de Rawlins em Cloisters. E agora, a meio mundo de distância, outra morte, outro assassinato.
Peter levantou-se, meio trôpego, começou a andar a esmo pela sala, o santuário resguardado onde a ficção imperava, onde a vida e a morte eram apenas produtos da imaginação. Mas, fora daquela sala, a vida e a morte eram reais. E o afetavam, porque eram parte de sua ficção; as marcas que estavam no papel haviam derivado dos motivos que impeliam outras vidas, tinham sido provocadas por outras mortes. Vida real e morte real.
O que estava acontecendo? Um pesadelo, mais realista e grotesco do que qualquer outra coisa que ele pudesse imaginar, estava se desenrolando diante do pano de fundo da ficção. Um pesadelo.
Peter parou ao lado do telefone, como se alguém lhe tivesse ordenado que ficasse imóvel. As recordações de MacAndrew de-
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encadearam imagens de um Mark IV Continental prateado e de uma máscara facial ao volante.
Subitamente, Peter se lembrou do que ia fazer, meses atrás, antes que o telefonema de Walter Rawlins culminasse com a loucura em Cloisters. Estava prestes a telefonar
para a polícia de Rockville, Maryland! Jamais chegara a dar esse telefonema! Resguardara-se com o esquecimento. Mas agora estava lembrado. Até mesmo do nome do guarda.
Era Donnelly.
Discou o ramal de informações, pedindo o código de área de Rockville. Meio minuto depois estava falando com um sargento de polícia chamado Manero. Descreveu o incidente
na estradinha secundária, informou a data e identificou o guarda Donnelly.
Manero hesitou.
- Tem certeza de que está mesmo procurando Rockville, senhor?
- Claro que tenho!
- Qual era a cor da radiopatrulha, senhor?
- A cor? Não me lembro. Preto e branco, talvez azul e branco. Mas que diferença isso faz?
- í«íão há nenhum guarda Donnelly em Rockville, senhor. E nossos carros são verdes, com listras brancas.
- Então era verde! O guarda disse que seu nome era Donnelly. E levou-me no carro até Washington!
- Levou-o até... Espere um momento, senhor.
Houve um clique no telefone. Peter ficou olhando para a janela, contemplando os flocos de neve impelidos pelo vento e perguntando-se se não estaria perdendo o juízo.
Manero voltou a falar:
- Acabei de verificar os nossos registros, senhor. Não há qualquer referência a um acidente envolvendo um Chevrolet e um Lincoln Continental.
- Era um Mark IV prateado! Donnelly disse-me que já tinham prendido o carro! Era guiado por uma mulher, de óculos escuros, que bateu num caminhão!
- Não temos aqui nenhum guarda chamado Donnelly, senhor.
- Mas tem que haver! - Peter não podia conter a voz. Estava agora gritando. O suor brotava em sua testa, a dor nas têmporas aumentava. Sua memória disparou de volta
à cena. Lembro-me perfeitamente! Ele disse que a mulher era uma bêbada, já tinha cometido diversas violações! Era esposa de um revendedor Lincoln-Mercury de... Pikesville!
- Ei, espere um pouco! - disse o sargento, alteando a voz.
- Está querendo fazer alguma brincadeira? Tenho parentes em Pikesville. E não existe nenhum vendedor Lincoln por lá. Quem
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poderia ter condições para comprar um Lincoln em Pikesville? E não há nenhum guarda chamado Donnelly aqui. E agora desligue esse telefone de uma vez! Está interferindo
com o trabalho da polícia!
O telefone ficou mudo. Peter permaneceu imóvel, sem acreditar nas palavras que acabara de ouvir. Estavam querendo lhe dizer que simplesmente vivera uma fantasia!
A agência de aluguel de carros no Aeroporto Dulles! Telefonara do Hay-Adams e falara com o gerente. O gerente lhe assegurara que iriam cuidar de tudo e depois lhe
mandariam a conta. Peter discou.
- Claro que me lembro da nossa conversa, Sr. Chancellor. Gostei muito do seu último livro...
- Recuperaram o carro?
- Claro.
- Neste caso, alguém teve que levar um caminhão-reboque até Rockville. Por acaso se encontrou com um guarda chamado Donnelly? Será que pode localizar para mim o
homem que esteve lá?
- Não foi necessário mandar ninguém a Rockville, Sr. Chancellor. O carro estava de volta ao nosso estacionamento na manhã seguinte. Disse que tinha a impressão de
que talvez houvesse alguns danos. Mas não havia. Lembro-me até que o despachante comentou que fora o automóvel mais limpo que já tinham nos devolvido.
Peter fez um esforço para se controlar.
- A pessoa que levou o carro de volta não tinha que assinar algum papel?
- Claro que tinha.
- E de quem é a assinatura?
- Se quiser esperar um momento, vou verificar.
- Ficarei esperando.
Peter apertava o telefone com toda força. Os músculos do antebraço doíam. A mente era um turbilhão. Lá fora, a neve caía.
- Sr. Chancellor?
- Receio que esteja havendo um equívoco. Segundo o depósito, a assinatura constante do papel é a sua. Obviamente, tratase de um engano. Como o carro lhe tinha sido
alugado, o homem que o devolveu provavelmente pensou...
- Não há qualquer engano - interrompeu-o Peter, rapidamente.
- Como?
- Obrigado - disse Peter, desligando.
De repente, tudo estava ficando claro. Tudo. A máscara terrível. O Continental prateado. Um Chevrolet consertado e lim-
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num estacionamento em Washington. Um Mercedes em estado impecável na frente do prédio em que morava em Nova York. Um bilhete na porta.
Era Longworth. Tudo era Longworth. O rosto grotesco, coberto de pó-de-arroz, os cabelos pretos compridos, os óculos escuros... e as recordações de uma horrível noite de morte, um ano atrás, em meio a uma tempestade. Longworth fizera a sua pesquisa. Estava tentando levá-lo à loucura. Mas por quê?
Peter voltou para o sofá. Tinha que sentar e esperar que a dor nas têmporas passasse. Os olhos se fixaram no jornal e ele compreendeu o que tinha de fazer.
Alison MacAndrew.
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Peter encontrou o nome dela no catálogo telefónico de Nova York. Mas o telefone fora desligado. O que significava que ela tinha agora um novo número, não relacionado.
Telefonou para a Agência Welton Greene. Uma secretária informou que Miss MacAndrew não iria ao escritório durante muitos dias. Nenhuma explicação foi apresentada, nenhuma foi pedida.
Mas ele ainda tinha o endereço. Era um prédio de apartamentos na Rua 54-Leste. Peter sabia que ficava à beira do rio. Não tinha alternativa. Precisava encontrar aquela mulher, conversar com ela.
Jogou algumas roupas numa mala, guardou os originais na pasta e partiu no Mercedes para Nova York.
Ela abriu a porta, os olhos castanhos grandes transmitindo ao mesmo tempo inteligência e curiosidade. A curiosidade talvez estivesse impregnada de alguma raiva, apesar da tristeza do rosto. Ela era alta e parecia ter a mesma reserva do pai. As feições, no entanto, eram da mãe. Os cabelos castanho-claros estavam penteados informalmente. Ela usava uma calça comprida bege e uma blusa amarela, aberta no pescoço. Estava de olheiras. Os efeitos do sofrimento eram evidentes, mas não para exibição.
- Sr. Chancellor? - disse ela, sem estender a mão.
- Eu mesmo. Obrigado por me receber.
- Foi muito persuasivo ao me falar pelo telefone lá de baixo. Entre, por favor.
Peter entrou no apartamento pequeno. A sala de estar era moderna e funcional, com muito vidro e cromados. Era a sala de uma designer, extremamente fria, mas tornando-se de certa forma aconchegante pela presença da dona. Além da franqueza, Alison MacAndrew possuía uma exuberância e cordialidade que não era capaz de ocultar. Apontou para uma poltrona e Peter sentou. Ela sentou no sofá em frente a ele.
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Eu poderia lhe oferecer um drinque, mas não tenho certeza se vou querer que se demore tanto tempo aqui.
- Eu compreendo.
- Apesar disso, estou impressionada. E talvez um pouco intimidada.
- Ora essa! Mas por quê?
- Através de meu pai, "descobri" seus livros há vários anos. Tem uma fã em sua presença, Sr. Chancellor.
- Por meu editor, espero que existam mais dois ou três assim. Mas isso não é importante. Não foi por isso que vim até aqui.
- Meu pai também era seu fã. Leu seus três livros, disseme que eram muito bons. Leu Contra-ataque! duas vezes. Disse que era assustador e possivelmente verdadeiro.
Peter ficou aturdido. O general não lhe transmitira tal sentimento. Não houvera qualquer vestígio de admiração, apenas uma vaga impressão de reconhecimento, muito vaga mesmo.
- Eu não sabia disso. Seu pai não me falou nada a respeito quando nos encontramos.
- Jile não era dado a lisonjas.
- Conversamos sobre outras coisas. Muito mais importantes para ele.
- Foi o que disse ao telefone. Um homem lhe deu o nome de meu pai e insinuou que ele tinha sido forçado a deixar o Exército. Por quê? Como? Acho que isso é ridículo. Não que não houvesse muita gente que desejasse vê-lo longe, mas não poderiam forçá-lo a se reformar.
- E o que me diz de sua mãe?
- O que há com ela?
- Ela estava doente.
- Estava, sim.
- O Exército queria que seu pai a internasse. Ele se recusou.
- Foi uma opção dele. É um fato discutível saber se ela teria recebido melhores cuidados se fosse internada. Deus sabe que papai escolheu o caminho mais difícil para ele próprio. Amava mamãe e isso era o que mais importava.
Peter observou-a atentamente. A expressão impassível, as palavras precisas e aparentemente indiferentes, tudo isso era apenas parte da superfície. Por baixo, ele podia sentir que existia uma imensa vulnerabilidade, que ela se esforçava ao máximo para ocultar. Ele não podia fazer nada; tinha que sondar, custasse o que custasse.
- Fala como se não partilhasse esse sentimento. Isto é, como se não a amasse.
A raiva brilhou por um momento nos olhos dela.
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- Mamãe ficou... doente quando eu tinha seis anos. Jamais cheguei a conhecê-la realmente. Nunca conheci a mulher com quem meu pai casou, a mulher que ele recordava
tão nitidamente. Isso serve para lhe explicar alguma coisa?
Peter ficou em silêncio por um momento.
- Desculpe. Não passo de um idiota. Claro que explica tudo.
- Não, não é um idiota. É um escritor. Vivi com um escritor por quase três anos. Vocês jogam com as pessoas. Não podem se controlar. ,
- Não é essa a minha intenção. Ç
- Eu disse que não podiam se controlar.
- Será que conheço o seu amigo? "
- É possível. Ele escreve para a televisão. Está atualmente morando na Califórnia. - Ela não disse o nome. Em vez disso, pegou um maço de cigarros e um isqueiro
que estavam na mesa ao seu lado e indagou: - Por que acha que meu pai foi forçado a deixar o Exército?
Peter ficou confuso.
- Já lhe disse. Por causa de sua mãe.
Ela tornou a pôr o isqueiro e o maço em cima da mesa, fitando-o nos olhos.
- Como assim?
- O Exército queria que ele a internasse. E seu pai recusou.
- E acha que foi esse o motivo?
- Exatamente.
- Neste caso, devo dizer que está redondamente enganado. Como já deve ter percebido, há muitas coisas no Exército que absolutamente não aprecio. Mas a atitude do
Exército em relação a minha mãe não é uma delas. Por mais de 20 anos, os homens em torno de meu pai se mostraram compreensivos e prestativos, tanto os que estavam
por cima como os que estavam por baixo. Ajudaram-no em tudo que podiam. Está parecendo espantado.
Peter estava realmente espantado. O general lhe dissera: Agora já sabe qual era a informação prejudicial... os médicos disseram que ela deveria ser internada...
mas eu não podia deixar. Tinham sido essas as palavras dele!
- Tem razão, estou de fato surpreso. - Peter inclinou-se subitamente para a frente. - Nesse caso, por que seu pai renunciou tão abruptamente ao cargo que ocupava?
Por que pediu a reforma? Sabe qual foi o motivo?
Ela tragou o cigarro. Seus olhos vaguearam para longe, contemplando coisas que Peter não podia ver.
- Meu pai disse que estava tudo acabado, que não se importava mais com coisa alguma. Quando me disse isso, compreendi que uma parte dele tinha desmoronado. E compreendi
também que
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o resto dele iria em breve ruir também. Não da maneira como aconteceu, é claro, mas de alguma outra forma. Até o modo como aconteceu, morto a tiros num assalto...
Tenho pensado muito a respeito. Ajusta-se muito bem. Um último protesto. Ao final, provando alguma coisa para si mesmo.
- Como assim?
Os olhos de Alison voltaram a se fixar em Peter.
- Para ser o mais simples possível, meu pai perdeu a vontade de lutar. Na ocasião em que me falou assim, era o homem mais triste que jamais vi.
Peter levou algum tempo para responder. Estava se sentindo profundamente perturbado.
- Foram essas as palavras que ele usou? Disse que não mais se importava?
- Essencialmente, sim. Estava cansado de tudo. As lutas internas no Pentágono são as mais cruéis que se pode imaginar. Jamais há uma trégua. Tem-se que ser sempre mais implacável. Meu pai costumava dizer que isso era compreensível. Os homens que agora comandavam o Exército eram oficiais jovens numa guerra que realmente importava, onde era necessário ser implacável para conseguir a vitória. Se perdêssemos a guerra, nada restaria.
- Ao dizer que era uma guerra que "realmente importava", está querendo... ?
- Estou querendo dizer, Sr. Chancellor, que meu pai se opôs durante cinco anos à nossa política no Sudeste Asiático. Combateu-a de todas as maneiras, em todas as oportunidades. Era uma posição extremamente solitária. Creio que se podia dizer que meu pai se tornou um pária.
- Oh, Deus...
Os pensamentos de Peter retornaram involuntariamente ao romance sobre a morte de Hoover. Ao prólogo. O general que ele inventara era o pária que Alison MacAndrew acabara de descrever.
- Meu pai não era político, Sr. Chancellor. Seu julgamento nada tinha a ver com política. Era puramente militar. Sabia que a guerra não poderia ser vencida por meios convencionais e que era inconcebível recorrer a meios não-convencionais. E não podíamos vencer porque não havia um empenho verdadeiro por parte daqueles que apoiavam a guerra. Havia mais mentiras saindo de Saigon que em todas as cortes marciais da história militar. Era o que meu pai sempre dizia. Considerava que a guerra não passava de um enorme desperdício de vidas.
Peter recostou-se na poltrona. Tinha que clarear a mente. Estava ouvindo as próprias palavras que escrevera. Ficção.
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- Eu sabia que o general se opunha a determinados aspectos da guerra. Mas nunca pensei que se preocupasse com as mentiras e a corrupção.
- Era o que mais o preocupava. E devo dizer que se mostrava bastante veemente. Estava catalogando centenas de relatórios contraditórios, erros logísticos, informações erradas sobre baixas. Disse-me certa vez que se a contagem de corpos viecongues fosse pelo menos 50 por cento acurada, inevitavelmente venceríamos a guerra em 1968. j
- Como? t Peter estava atónito. Aquelas eram as suas palavras!
- Qual é o problema? - indagou Alison.
- Nada, nada... Continue, por favor.
- Não há mais nada a dizer. Papai fei impedido de comparecer a conferências das quais deveria participar, era ignorado nas reuniões de estado-maior. Quanto mais lutava, mais o ignoravam. E finalmente chegou à conclusão de que era tudo inútil.
- Pode me dizer alguma coisa sobre os relatórios, erros de interpretação e mentiras de Saigon que ele estava coligindo?
Alison desviou os olhos.
- Foi a última coisa sobre a qual conversamos. E, infelizmente, eu não estava num bom dia. Disse-lhe coisas de que agora me arrependo profundamente. Não percebi como ele estava deprimido.
- Mas sabe alguma coisa sobre os relatórios? Alison levantou a cabeça, fitou-o.
- Tenho a impressão de que se transformaram num símbolo para papai. Representavam meses, talvez anos, de mais agonia, virando-se contra os homens com quem servira. Ele não podia aguentar mais. Não podia enfrentar o que teria pela frente. E por isso preferiu largar o Exército.
Peter inclinou-se novamente para a frente. Deliberadamente, sua voz estava fria e incisiva quando falou:
- Tal atitude não combina absolutamente com o soldado profissional com quem conversei.
- Sei que não combina mesmo. E foi justamente por isso que briguei com meu pai. Eu podia discutir com ele. Éramos mais que pai e filha. Éramos amigos. Iguais, de certa forma. Tive de crescer depressa, porque papai não tinha mais ninguém com quem conversar.
Era um momento repleto de angústia. Peter deixou-o passar sem qualquer comentário. Depois de uma pausa, ele disse:
- Há poucos minutos, disse que eu estava errado. Agora é a minha vez. A última coisa que seu pai queria fazer era
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largar o Exército. E não foi ao Havaí para descansar. Foi simplesmente procurar o homem que o tinha forçado a sair do Exército.
- Aconteceu algo com seu pai, há muitos anos. Algo que ele
não queria que ninguém soubesse. Esse homem descobriu e ameaçou-o. Simpatizei muito com seu pai. E apreciava tudo o que ele representava. Por isso, me sinto tremendamente culpado. E quero contar-lhe toda a história.
Alison MacAndrew ficou imóvel por um longo tempo, fitando-o com os olhos castanhos grandes, antes de finalmente perguntar:
- Aceita agora aquele drinque?
Peter contou-lhe toda a história, tudo o que recordava. Do estranho louro na praia de Malibu ao surpreendente telefonema naquela manhã para a polícia de Rockville. Omitiu apenas o assassinato em Cloisters. Se havia alguma ligação, não queria sobre- , carregá-la com mais isso.
Ao relatar a história, Peter sentiu-se vulgar; parecia o escritor estritamente comercial à procura de uma grande conspiração. Ficou esperando que Alison se sentisse ultrajada, que o censurasse asperamente por ter sido o instrumento involuntário da morte do pai dela. E estava querendo que ela o condenasse, tão profundo era o seu sentimento de culpa.
Em vez disso, Alison pareceu compreender a profundidade do sentimentos de Peter. Procurou atenuar-lhe o sentimento de culpa, dizendo-lhe que não era absolutamente o vilão, se o que estava contando era verdade; ao contrário, era uma vítima. Mas, apesar do que ele pudesse acreditar, ela não aceitava a teoria de que tinha havido um incidente no passado do pai tão prejudicial que ameaças de denúncia podiam forçá-lo a renunciar a seu cargo no Exército.
- Isso não faz sentido. Se houvesse alguma coisa assim, já teriam usado contra papai há muitos anos.
- Disse ao jornal que ele havia sido forçado a renunciar.
- Tem razão. Mas não foi nesse sentido. Foi no sentido de que o exauriram, ignorando suas decisões. Foi esse o método usado. Eu vi acontecer.
Peter recordou-se de seu prólogo. Teve quase medo de formular a pergunta:
- E o que me diz da relatório de seu pai a respeito da corrupção em Saigon?
- Qual é o problema?
- Não é possível que tenham tentado detê-lo?
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- Tenho certeza de que tentaram. Mas não era a primeira vez que papai fazia algo assim. Os relatórios de campanha aue ele fazia eram sempre críticos. Amava o Exército e queria que fosse o melhor possível. Jamais permitiria que suas críticas fossem divulgadas, se é nisso que está pensando. r
- É nisso, sim.
- Papai jamais faria isso. i Peter não compreendeu, mas também não a pressionou era
busca de uma explicação. Mas tinha que perguntar o óbvio:
- Por que ele foi ao Havaí? )
- Sei o que está pensando. E não tenho condições de refutá-lo. Mas sei o que papai me disse. Falou que queria se afastar de tudo, fazer uma longa viagem. Não havia nada para impedi-lo, depois que mamãe morreu.
Não era resposta. A pergunta permanecia em suspenso. E os dois continuaram a conversar. Até que, finalmente, ela falou. O corpo do pai chegaria a Nova York na tarde seguinte, vindo do Havaí num jato de carreira. Uma escolta militar estaria esperando o avião no Aeroporto Kennedy. O caixão seria transferido para um avião militar e levado para a Virgínia. O sepultamento seria no outro dia, em Arlington. Ela não tinha certeza se conseguiria aguentar o suplício.
- Já tem alguém para fazer-lhe companhia?
- Não.
- Posso acompanhá-la?
- Não há razão...
- Acho que há - disse Peter, firmemente.
Os dois estavam de pé, juntos, no enorme campo de concreto que era a área de carga. Dois oficiais do Exército estavam em posição de sentido a alguns metros de distância, à esquerda. O vento era forte, fazendo turbilhonar em círculos pedaços de papel e folhas arrancadas de árvores distantes. O imenso DC-10 veio taxiando até ali e parou. Um momento depois, o painel por baixo da fuselagem gigantesca se abriu. Um carro de carga elétrico aproximou-se, sendo ajustado por baixo da abertura. Segundos depois, o caixão foi baixado.
O rosto de Alison ficou subitamente pálido, o corpo rígido. O tremor começou nos lábios, estendeu-se para as mãos; os olhos castanhos olhavam fixamente, sem piscarem; as lágrimas começaram a escorrer pelas faces. Peter passou o braço pelos ombros dela.
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Alison se conteve por tanto tempo quanto conseguiu. Peter podia sentir as convulsões sob seu braço. Apertou-a firme Finalmente ela não conseguiu mais se conter. Virou-se e se encostou nele, enterrando a cabeça em seu paletó, os soluços abafados numa terrível agonia.
- Desculpe... desculpe... - balbuciou ela. - Prometi a mim mesma que iria me controlar.
Peter apertou-a com firmeza e disse, suavemente:
- Não se prenda... É permitido...
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Peter tomara uma decisão, mas Alison tratou de mudá-la. Ele ia abandonar o livro. Fora manipulado e o preço por isso estava simbolizado pela morte de MacAndrew.
Havia insinuado tudo isso a Alison na noite anterior.
- Digamos que você esteja certo - comentara Alison. Não creio que esteja, mas vamos supor que seja tudo verdade. Não é mais uma razão para continuar?
Era.
Naquele momento, Peter estava sentado no outro lado do corredor do avião militar. Alison queria ficar sozinha. Ele tinha percebido e podia perfeitamente compreender. Por baixo deles, no compartimento de carga do avião, estava o corpo do pai dela. Alison tinha muito em que pensar e Peter não podia ajudá-la. Agora, ela precisava ficar a sós.
Alison era também imprevisível. Peter o descobrira ao ir buscá-la de táxi, no início da tarde. Ele disse que tinha ligado para o Hay-Adams, em Washington, fazendo reservas para ambos.
- Isso é bobagem. A casa de Rockville está vuzia e dispõe de espaço suficiente. Ficaremos lá. Acho que devemos.
Por que deveriam? Peter não quis se aprofundar.
Ele abriu a pasta e tirou o bloco de capa de couro que sempre levava consigo, aonde quer que fosse. Joshua Harris dera-lhe de presente, há dois anos atrás. Numa bolsa na parte interna da capa havia diversos lápis, as pontas afiadas. Ele pegou um lápis e escreveu no bloco:
Capítulo 8 - Esboço
Antes de começar, recordou o comentário de Alison na noite anterior.
- ... vamos supor que seja tudo verdade. Não é mais uma razão para continuar?
Olhou para as palavras que acabara de escrever: Capítulo 8
- Esboço. A coincidência era inquietante. Aquele era o capítulo
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em que Meredith era levado quase à loucura por causa de algum segredo terrível.
Alex deixa seu gabinete no FBI mais cedo que o habitual. Sabe que está sendo seguido e tenta despistar os agentes misturando-se a multidões, passando por ruas secundárias e vielas, atravessando diversos prédios, entrando por um lado, saindo por outro. Corre para pegar um ônibus. Salta a um quarteirão do prédio em que mora o assistente do Procurador-Geral. Tinham marcado um encontro
À entrada do prédio, o porteiro entrega-lhe um bilhete do assistente do Procurador-Geral. Ele não irá receber Alex. Não quer mais ter qualquer contato com ele. Se Meredith insistir, o homem diz que será obrigado a informar seu estranho comportamento a outros. Segundo seu julgamento, Alex é um desequilibrado, um paranóico, sempre atormentado por ofensas imaginárias.
Meredith fica aturdido. O advogado que existe nele está furioso. A prova ali está. O assistente do Procurador-Geral foi devidamente atingido, como já tinha acontecido com tantos outros. As forças de Hoover conseguiam bloquear todos os movimentos de Meredith. O poder do FBI parece ser o mais amplo possível. Diante do prédio, ele avista o carro do FBI que reencontrou sua trilha. Está ocupado pelo motorista e um outro homem. Os dois ficam olhando para Alex, em silêncio. Isso é parte da estratégia do medo, que inevitavelmente surge quando um homem sabe que está sendo vigiado, especialmente à noite. Ajusta-se perfeitamente aos métodos de Hoover.
Meredith pega um táxi e segue para a garagem onde está seu carro. Pega-o e avança pela Memorial Parkway, ziguezagueando entre os outros carros, sabendo que o carro do FBI o segue.
Num súbito impulso, muda de direção, descendo por uma saída desconhecida da auto-estrada, nos campos da Virgínia. O marido e o pai que ele é se rebelam. Não vai mais levar aqueles que o estão seguindo de volta à sua casa, à sua esposa e filhos. O medo está se transformando em fúria.
Há uma perseguição através de estradas secundárias. A velocidade, a paisagem, os pneus rangendo em curvas fechadas, tudo contribui para o crescente pânico de Alex. É um homem sozinho, correndo por um labirinto, lutando pela sobrevivência. Compreendemos que a desorientação produzida pelos acontecimentos da última semana é acentuada pela loucura da perseguição. Meredith está começando a entregar os pontos.
Na crescente escuridão, Alex comete um erro de cálculo numa curva súbita da estrada. Pisa no freio; o carro derrapa, sai da estrada, arrebenta a cerca, entra pelo campo.
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O corpo dolorido, a testa sangrando do impacto com o pára-brisa, Meredith salta do carro. Avista o carro preto do FBI na estrada. Corre em sua direção, gritando. Seu estado mental exige violência, confrontação física.
Mas não a encontra da maneira como está querendo. Em vez disso, os dois agentes do FBI saem do carro e rapidamente o subjugam. Simulam uma atitude profissional, revistando-o à procura de alguma arma.
O motorista diz, friamente: "Não nos faça perder a paciência, Meredith. Não temos qualquer utilidade para pessoas como você. Não gostamos de homens que vestem um uniforme e trabalham para o outro lado."
Alex desmorona por completo. É o segredo que está sepultado em seu passado. Anos atrás, durante a Guerra da Coreia, quando era um jovem tenente, mal saído da adolescência,
Meredith havia sido capturado e torturado por seus captores. Não fora o único. O mesmo havia acontecido com centenas de outros soldados, levados à loucura por torturas físicas e psicológicas desconhecidas na guerra moderna. O Exército compreendera; as convenções de Genebra tinham sido violadas. Os homens torturados haviam recebido a garantia de que todos os registros de seu pesadelo seriam destruídos. Haviam servido honradamente, mas tiveram que enfrentar coisas para as quais o Exército não os tinha preparado. Cada um poderia retomar sua vida normal, sem qualquer punição.
Alex descobre agora que o momento mais sombrio de sua vida é conhecido por homens que o usarão impiedosamente para destruí-lo, para destruir até mesmo sua esposa e filhos.
Os agentes do FBI acabam soltando-o! E ele vagueia pela estradinha rural, ao crepúsculo.
Peter fechou o bloco e olhou para Alison. Ela estava olhando fixamente para a frente, os olhos arregalados, sem piscarem. Os dois homens da escolta militar estavam sentados lá na frente, onde não precisariam ver a dor da filha do general morto.
Alison sentiu que Peter a estava fitando e virou a cabeça, forçando um sorriso.
- Estava trabalhando?
- Estava, sim. Mas não estou mais.
- Fico contente por isso. Faz-me sentir melhor, por descobrir que não o estou atrapalhando.
- Isso dificilmente poderia acontecer. E foi você mesma que me fez prosseguir no trabalho. Está lembrada?
- Chegaremos daqui a pouco - disse ela, mecanicamente.
- Dentro de uns 10 ou 15 minutos, se não me engano.
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- Isso mesmo.
Alison voltou a seus pensamentos, olhando pela janela para o céu muito azul.
O avião começou a descer na direção do Campo Andrews.
Taxiou pela pista e finalmente parou. Peter e Alison desembarcaram, foram instruídos a ficarem esperando no salão dos oficiais, no terminal seis.
A única outra pessoa que lá estava era um jovem capelão militar, que obviamente recebera ordens para estar presente. Ele ficou ao mesmo tempo aliviado e um pouco espantado ao descobrir que sua presença era supérflua.
- Agradeço por ter vindo - disse Alison, firmemente, retirando-se em seguida. Alison virou-se para Peter:
- Marcaram o sepultamento para as 10 horas de amanhã, em Arlington. Pedi que se limitassem ao mínimo e haverá apenas o cortejo de oficiais no cemitério. São quase seis horas. Por que não jantamos mais cedo em algum lugar e depois vamos para Rockville?
- Bpa ideia. Devo alugar um carro?
- Não há necessidade. Puseram um carro à nossa disposição.
- O que implica um motorista, não é mesmo?
- Tem razão. - Alison franziu o rosto. - É uma complicação e tanto. Está com a sua carteira de motorista?
- Claro.
- Neste caso, pode alugar um carro. Importa-se?
- Absolutamente.
- Será mais simples sem uma terceira pessoa nos acompanhando. Os motoristas do Exército são conhecidos por contarem tudo a seus superiores. Mesmo que não o convidemos a entrar, tenho certeza de que as ordens dele serão para permanecer por perto, até ser dispensado.
As palavras de Alison podiam ser encaradas por diversos ângulos e por isso Peter indagou:
- Onde está querendo chegar?
Alison percebeu a cautela de Peter e explicou:
- Se aconteceu algo a meu pai há muitos anos, algo que ele considerava tão terrível que podia mudar inteiramente a sua vida, é possível que haja uma pista qualquer na casa em Rockville. Papai guardava em casa recordações dos diversos postos em que serviu. Fotografias, escalas de serviço, tudo o que ele achava importante. Acho que devemos dar uma busca.
- Estou entendendo. E é melhor que tal busca seja feita a dois do que a três. - Peter sentia-se estranhamente satisfeito por constatar que era apenas a isso que Alison se referia. - Talvez
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seja até melhor você procurar sozinha. Posso ficar por perto, fazendo as anotações que julgar necessárias.
Alison fitou-o nos olhos, à sua maneira estranha, inteiramente neutra, que fazia Peter recordar o pai dela. Mas, ao falar, a voz dela tinha um tom inequívoco de afeto:
- Agradeço a sua consideração. É uma qualidade que muito aprecio. Não sou assim, mas bem que gostaria de ser.
- Tenho uma ideia - disse Peter. - Possuo um talento realmente único: sei cozinhar. Está ansiosa em chegar logo a Rockville. Eu também estou. Por que não paramos num supermercado e compramos o que for necessário? Ou seja, alguns bifes, batatas e scotch.
Alison sorriu.
- Ganharíamos um bocado de tempo.
- Então está combinado.
Seguiram pela estrada através dos campos de Maryland, parando numa mercearia em Randolph Hills para comprar a comida e o uísque.
Estava escurecendo, o sol de dezembro já além das colinas. Sombras alongadas se projetavam no pára-brisa do carro, criando formas estranhas, que surgiam e desapareciam inesperadamente. Ao saírem da auto-estrada, entrando na sinuosa estradinha rural que levava à casa do general, Peter sentiu-se vagamente apreensivo. Ao chegarem a uma reta na estrada, Peter avistou os contornos da cerca de arame farpado e do campo além, o local onde três meses antes pensara que ia morrer.
A estrada fazia uma curva brusca. Peter manteve o pé no acelerador, com receio de diminuir a pressão. Tinha que escapar dali. A dor era agora em sua têmpora direita, irradiando-se para baixo, fazendo uma curva no pescoço, latejando intensamente na base do crânio. Mais depressa!
- Pelo amor de Deus, Peter!
Os pneus rangeram. Peter segurava o volante firmemente, enquanto fazia a curva. Pisou no freio, reduzindo a velocidade.
- Há algo errado, Peter? Ele mentiu:
- Não. Desculpe. É que eu não estava prestando atenção na estrada. - Peter sentiu que Alison o fitava com atenção. Não conseguira enganá-la. E acrescentou: - A verdade
é que eu estava recordando a última vez em que estive aqui, quando conheci seu pai e sua mãe.
- Eu também estava pensando na minha última visita. Foi no verão passado. Vim passar alguns dias em casa. Deveria ficar
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uma semana inteira, mas não foi o que aconteceu. Acabei indo embora mais cedo do que pretendia, depois de dizer algumas palavras das quais estou agora profundamente arrependida.
- Foi nessa ocasião que seu pai lhe disse que ia1 renunciar a tudo?
- Ele já tinha renunciado. Creio que foi isso o que mais me deixou aborrecida. Sempre havíamos discutido todas as coisas importantes. E, de repente, no momento da decisão mais importante da vida dele, eu fui simplesmente ignorada. E por isso falei coisas terríveis.
- Ele tomou uma decisão extraordinária sem explicá-la a você. Sua reação foi natural.
Os dois ficaram em silêncio. Não disseram nada importante durante os últimos 15 quilómetros da viagem. A noite tinha chegado, a lua já havia surgido no céu.
- Lá está a caixa de correspondência branca - disse Alison. Peter diminuiu a velocidade e virou na entrada de carro,
escondida por arbustos e pelos galhos mais baixos das árvores próximas. Se não fosse pela caixa de correspondência, podia-se perder facilmente a entrada.
A casa estava sozinha, quieta. O luar se filtrava pelas árvores, espalhando sombras pela fachada. As janelas eram menores do que Peter recordava, o teto ainda mais baixo. Alison saltou do carro e subiu lentamente pelo caminho estreito até a porta. Peter seguiu-a, carregando as comidas e o uísque que tinham comprado em Randolph Hills. Ela abriu a porta.
Os dois sentiram o cheiro no mesmo instante. Não era opressivo ou mesmo desagradável, mas se espalhava por toda parte. Um odor almiscarado, levemente aromático, uma fragrância se desvanecendo, escapando de aposentos fechados para o ar noturno. Alison apertou os olhos ao luar, a cabeça ligeiramente inclinada, imersa em pensamentos. Peter ficou observando-a; teve a impressão de que ela estremeceu por um momento.
- É mamãe - disse ela, finalmente.
- Perfume?
- Exatamente. Mas ela morreu há mais de um mês. Peter recordou as palavras dela no carro.
- Disse que esteve aqui pela última vez no verão passado. Não veio...
- Para o enterro?
- Isso mesmo.
- Não. É que eu não sabia que mamãe tinha morrido. Papai só me telefonou depois que estava tudo acabado. Não houve qualquer comunicação, pode-se mesmo dizer que não houve qualquer serviço fúnebre. Foi um enterro particular, apenas ele e a
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mulher de quem se lembrava como ninguém. - Alison entrou no vestíbulo às escuras e acendeu a luz. - Vamos levar as compras para a cozinha.
Atravessaram a pequena sala de jantar e passaram pela porta de vaivém que dava acesso à cozinha. Alison acendeu a luz, revelando balcões e armários estranhamente antiquados, em contraste com uma geladeira moderna. Era como se um aparelho eletrodoméstico futurista tivesse sido introduzido numa cozinha dos anos 30. Peter estava impressionado: lembrava-se muito bem da casa. Exceto pelo gabinete do general, tudo o que tinha visto era antiquado, como que deliberadamente decorado para parecer uma era diferente.
Alison deu a impressão de ler os pensamentos dele, pois comentou nesse momento:
- Papai procurou reconstituir, sempre que possível, o tipo de ambiente que mamãe associava à sua infância.
- É uma extraordinária história de amor.
Isso foi tudo o que Peter pôde pensar para dizer.
- Foi um extraordinário sacrifício - murmurou Alison.
- Você tinha um ressentimento contra ela, não é mesmo? Alison não se esquivou à pergunta.
- Tinha, sim. Ele era um homem excepcional. Por acaso era meu pai, mas isso é irrelevante. Era um homem de ideias. Li certa vez que uma ideia é um monumento maior que uma catedral, e acredito piamente nisso. Mas a catedral dele - ou catedrais jamais foram construídas. Seus esforços eram sempre desviados. Nunca teve tempo para se dedicar às suas ideias. Pois tinha que cuidar de mamãe.
Peter não deixou que os olhos furiosos dela se desviassem.
- Disse que os homens em torno dele se mostraram compreensivos. Ajudaram-no de todas as formas possíveis.
- Claro que ajudaram. Ele não era o único com uma mulher doente. Segundo se diz em West Point, isso é até comum. Mas ele era diferente, pois tinha algo a dizer. E algo original. Quando não queriam ouvi-lo, liquidavam-no com bondade: "Pobre Mac! Pensem só no que ele tem de aguentar na vida!"
- Você era a filha dele, não a esposa.
- Eu era a esposa! Em tudo menos na cama! E algumas vezes me perguntei se... Mas isso não tem mais importância. Acabou. - Ela segurou-se na beira do balcão. - Desculpe. Não o conheço muito bem. Não conheço ninguém muito bem.
Ela inclinou-se sobre o balcão, tremendo. Peter resistiu à tentação de segurá-la.
- Pensa que é a única mulher no mundo que já se sentiu assim? Creio que está enganada, Alison.
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- Está frio. - Ela se recuperou parcialmente, mas Peter achou que ainda não devia tocá-la. - A fornalha deve ter apagado. - Ela estava agora ereta; enxugou as lágrimas com as costas da, mão. - Entende alguma coisa de fornalha?
.- Gasolina ou óleo?
- Não sei.
- vou descobrir. Essa é a porta para o porão? Peter apontou para uma porta na parede da direita.
- É, sim.
Ele encontrou o interruptor e desceu a escada estreita, parando ao chegar ao fundo. A fornalha ficava no meio do porão; havia um tambor de óleo encostado na parede esquerda. Estava mesmo frio, uma umidade intensa impregnava o porão, como se uma porta externa estivesse aberta.
Mas a porta externa estava trancada. Peter verificou o mostrador do tambor de óleo. Indicava que estava cheio até a metade, mas era possível que o registro não estivesse bom. Caso contrário, por que a fornalha estaria apagada? MacAndrew não era o tipo de homem que pudesse deixar uma casa no campo sem aquecimento durante o inverno. Peter bateu no tambor. Em cima, o som era oco. Por baixo, estava cheio. O mostrador estava certo.
Ele puxou a placa do mecanismo de disparo e descobriu a causa do problema. A chama do piloto apagara. Em circunstâncias normais, seria preciso uma forte rajada de vento para apagála. Ou algum entupimento. Mas a fornalha fora verificada recentemente. Havia um pequeno adesivo plástico informando a data da última inspeção. Fora há seis semanas.
Peter leu as instruções. Eram quase idênticas às da fornalha da casa de seus pais.
Aperte o botão vermelho durante 60 segundos. Mantenha o fósforo por baixo.. .
Ele ouviu um barulho súbito, um matraquear estridente. O ruído deixou-o tenso. Sentiu os músculos do estômago se contraírem. Inclinou a cabeça, prestando atenção no ra-ta-la-ta em algum lugar atrás dele. O barulho cessou.
Um instante depois, o barulho recomeçou. Peter virou-se e foi até a escada. Olhou lá para cima.
Havia uma janela aberta no alto da parede do porão. Ficava no nível do chão. O vento lá fora martelava contra a janela.
Era essa a explicação. O vento entrara pela janela aberta e apagara a chama do piloto. Peter foi até a parede. Subitamente, estava outra vez com medo.
O vidro da janela tinha sido espatifado. Ele podia sentir os cacos sob seus pés. Alguém arrombara a janela para entrar na casa de MacAndrew!
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Aconteceu depressa demais. Por um instante, ele não conseguiu transmitir ordens da mente para o corpo.
Gritos vinham lá de cima. Repetidamente. Alison!
Peter subiu correndo a escada estreita até a cozinha. Alison não estava ali. Os gritos continuavam, aterrorizados.
- Alison! Alison!
Ele correu para a sala de jantar.
- Alison!
Os gritos cessaram abruptamente, substituídos por gemidos e soluços. Vinham do outro lado da casa, através do vestíbulo e da sala de estar. Do gabinete de MacAndrew!
Peter atravessou os aposentos correndo, afastando com um pontapé uma cadeira que estava em seu caminho, derrubando outra no chão, ruidosamente. Chegou ao gabinete.
Alison estava de joelhos, segurando entre as mãos uma camisola desbotada e manchada de sangue. Ao seu redor, havia uma porção de vidros de perfume quebrados, o cheiro agora opressivo, enjoativo.
E, na parede, em vermelho, estavam escritas as seguintes palavras:
MAC, O TRAIDOR. MATADOR DE CHASONG
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A tinta na parede estava mole ao contato, mas não estava íímida. O sangue na camisola rasgada estava úmido. O gabinete do general fora revistado meticulosamente,
por profissionais. A escrivaninha fora quase desmontada, os estofamentos de couro rasgados. As estantes haviam sido esvaziadas, as encadernações dos livros rasgadas.
Peter levou Alison de volta à cozinha, despejando scotch puro em dois copos. Voltou depois ao porão, acendeu a fornalha, tapou a janela quebrada com alguns trapos
que encontrou. Subiu para a sala de estar e descobriu que podia acender um fogo na lareira com a lenha que estava na cesta de vime ao lado. Depois, sentou com Alison
no sofá, diante do fogo. O horror estava se desvanecendo, mas as questões permaneciam.
- O que é Chasong? - perguntou Peter.
- Não sei. Tenho a impressão de que é um lugar na Coreia, mas não tenho certeza.
- Quando descobrirmos, talvez saibamos o que aconteceu... O que eles estavam procurando.
- Pode ter acontecido qualquer coisa. Era guerra e... Alison parou de falar e ficou olhando para as chamas.
- E ele era um soldado que mandou outros soldados para o combate. Pode ter sido apenas isso. Alguém que perdeu um filho ou um irmão, alguém à procura de vingança.
Já ouvi falar de casos assim.
- Mas por que logo ele? Havia centenas de pessoas na mesma situação. E papai era conhecido por comandar seus homens pessoalmente, por nunca ficar na retaguarda.
Ninguém jamais contestou nenhum dos seus comandos. "Não dessa maneira.
- Alguém o fez agora. E alguém muito doente.
Alison ficou fitando-o em silêncio por um longo momento, antes de finalmente responder:
- Sabe o que está dizendo, não é mesmo? Quer a pessoa esteja ou não doente, o que quer que saiba ou pense saber é verdade.
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- Não cheguei a esse ponto. E não tenho certeza se é a consequência inevitável.
- Só pode ser. Papai não teria virado as costas a tudo em que sempre acreditou se não fosse por isso. - Alison estremeceu
- O que ele poderia ter feito?
- Foi algo relacionado com sua mãe.
- Impossível.
- Acha mesmo? Vi aquela camisola na tarde em que estive aqui. Ela a estava usando. Tinha caído e havia cacos de vidro ao seu redor.
- Mamãe estava sempre quebrando coisas. Podia ser terrivelmente destrutiva. A camisola é uma última piada cruel. Creio que serve para representar a impotência de
papai. Isso não era um segredo. ;
- Onde estava sua mãe durante a Guerra da Coreia?
- Em Tóquio. Nós duas estávamos lá.
- Foi em 50 ou 51, não é mesmo?
- Por aí. Eu era muito criança nessa ocasião.
- Tinha seis anos de idade? }
- Isso mesmo.
Peter tomou um gole do scotch.
- Foi nessa ocasião que sua mãe ficou doente? ,
- Foi, sim.
- Seu pai disse que houve um acidente. Lembra-se do que aconteceu?
- Eu sei o que aconteceu. Ela se afogou. Literalmente. Fizeram-na voltar a si com um choque elétrico, mas a perda de oxi- { génio foi por demais prolongada. O suficiente
para causar lesão cerebral. i
- Como aconteceu?
- Ela foi apanhada pelo recuo das ondas e arrastada para longe, na Praia de Funabashi. Os banhistas não conseguiram alcançá-la a tempo.
Ambos ficaram em silêncio por um longo tempo. Peter terminou seu scotch, levantou, foi atiçar o fogo.
- Quer que eu prepare alguma coisa para comermos? Depois, poderemos...
- Não vou voltar para lá! - gritou Alison, bruscamente, sem desviar os olhos do fogo. Um momento depois, levantou a cabeça, e murmurou: - Desculpe. Você é a última
pessoa com quem eu deveria gritar.
- Sou a única outra pessoa que está aqui. Se sentir vontade de gritar...
- Já sei... é permitido...
- Acho que é.
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- Não há limites para a sua tolerância?
Alison fez a pergunta suavemente, um brilho gentil nos olhos. Peter pôde sentir a afeição que a dominava. E a vulnerabilidade
dela.
- Não me considero particularmente tolerante. Não é uma palavra que possa ser aplicada a mim com frequência.
- Talvez eu teste esse julgamento.
Alison levantou e aproximou-se dele, pondo as mãos em seus ombros. Passou os dedos da mão direita, gentilmente, pela face esquerda dele, pelos olhos, finalmente chegou aos lábios.
- Não sou uma escritora, mas sim uma desenhista. Minhas palavras são desenhos. E não sou capaz de desenhar o que estou pensando ou sentindo neste momento. Por isso, Peter, peço a sua tolerância. Poderia concedê-la?
Ela encostou-se em Peter, os dedos ainda nos lábios dele. Comprimiu a boca contra a dele, só retirando os dedos quando seus lábios se entreabriram.
Peter podia sentir o corpo dela tremendo. As necessidades que ela sentia naquele momento derivavam da exaustão e de uma súbita e opressiva solidão, pensou ele. Ela queria desesperadamente uma manifestação de amor, porque um amor lhe fora arrancado. Alguma coisa, talvez qualquer coisa, tinha que substituí-lo, ainda que por um breve momento.
Oh, Deus, como ele compreendia! E porque a compreendia, ele a queria. De certa forma, era uma confirmação das suas próprias agonias. Haviam nascido da mesma exaustão, da mesma solidão, também de um sentimento de culpa. Ocorreu-lhe subitamente que há meses não tinha com quem conversar, há meses não permitia que ninguém chegasse perto.
- Não quero subir - sussurrou ela, a respiração saindo rapidamente, contra a boca de Peter, os dedos se cravando nas costas dele firmemente.
- Não vamos subir - respondeu Peter, suavemente, estendendo a mão para os botões da blusa dela.
Alison afastou-se parcialmente dele, levou a mão direita à garganta. Num gesto brusco, ela rasgou a blusa; num segundo gesto, abriu a camisa dele. As carnes se encontraram.
Peter sentiu-se excitado de uma maneira como há muitos meses não acontecia. Desde Cathy. Levou-a para o sofá, desabotoou gentilmente o sutiã. Os seios eram macios, atraentes, os mamilos duros, excitados. Ela puxou-lhe a cabeça para baixo. E enquanto a boca de Peter acariciava a sua pele, Alison estendeu a mão para o seu cinto. Os dois se acomodaram no sofá, confortavelmente.
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Alison mergulhou num sono profundo. Peter sabia que era inútil tentar levá-la para uma cama lá em cima. Em vez disso, foi lá em cima buscar travesseiros e cobertas. O fogo se apagara. Ele levantou gentilmente a cabeça de Alison, ajeitou o travesseiro por baixo, cobriu-lhe o corpo nu com um lençol. Ela não se mexeu.
Peter estendeu dois lençóis no chão, diante da lareira, ao lado do sofá. Deitou-se. Compreendera muitas coisas durante as últimas horas, mas não o seu estado de profunda exaustão. Adormeceu quase imediatamente.
Despertou com um sobressalto, sem saber por um momento onde estava, arrancado do sono pelo barulho de uma acha se acomodando em seu leito de brasas. Uma claridade fraca entrava pelas pequenas janelas da frente. Um novo dia raiava. Olhou para Alison, estendida no sofá. Ela ainda estava dormindo, a respiração profunda não se alterara. Peter levantou o braço para verificar as horas. Eram vinte para as seis. Ele dormira quase sete horas.
Levantou, vestiu a calça, foi para a cozinha. As compras ainda estavam onde as deixara e tratou de guardá-las. Vasculhou os armários e descobriu uma cafeteira. Era antiquada, para não destoar do ambiente. Devia ter sido fabricada pelo menos há 40 anos. Havia café na geladeira e Peter tentou recordar como se usava aquela cafeteira antiga. Fez o melhor que pôde, deixando a cafeteira sobre um fogo baixo no fogão.
Voltou para a sala de estar. Silenciosamente, vestiu o resto de suas roupas. Foi para o hall, saiu pela porta da frente. De nada adiantaria deixar as duas malas e sua pasta no carro estacionado lá fora.
Estava frio e úmido. O inverno de Maryland não conseguia decidir se produzia neve ou ficava à beira de uma névoa congelante. O resultado era uma umidade que penetrava até os ossos. Peter abriu a porta do carro, inclinou-se para pegar as malas no banco de trás.
E, abruptamente, seus olhos se arregalaram, em choque. Não conseguiu conter a exclamação de horror que escapou por sua garganta. A cena era aterradora, grotesca.
E explicava o sangue na camisola, no gabinete de MacAndrew.
Sobre a sua mala, em cima do banco, por cima da mala de Alison, que estava no chão, estavam as pernas traseiras cortadas de uma carcaça de animal, os tendões se estendendo além do pêlo empapado de sangue. E no couro da mala, escrita a sangue, com a ponta do dedo, estava a palavra: Chasong.
O choque de Peter foi substituído por um sobressalto de medo e repugnância. Recuou para fora do carro, correndo os olhos pela espessa folhagem até a estrada mais adiante. Contornou o auto-
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nióvel, cautelosamente. Ajoelhou-se e pegou uma pedra, sem ter certeza por que o fazia; e, ao mesmo tempo, estranhamente, sentia-se apenas ligeiramente confortado com a arma primitiva.
Houve um estalo! Um graveto fora quebrado em algum lugar. Ali ou ali ou... passos!
Alguém estava correndo! Pelo cascalho.
Peter não sabia se seu medo desaparecera por causa do barulho ou pelo fato dos passos estarem correndo para longe, mas saiu correndo atrás deles, o mais depressa que podia. Um momento depois, os passos se tornaram abafados. Os pés estavam agora correndo sobre uma superfície dura. não mais sobre o cascalho. A estrada!
Ele avançou através da folhagem, os galhos batendo em seu rosto, raízes e troncos estorvando a sua passagem. Chegou à estrada. A cerca de 50 metros, um vulto correndo, à luz difusa do amanhecer, na direção de um automóvel. O vapor se misturou com a neblina da manhã; o motor do carro estava sendo acionado. O vulto entrou no carro, que no mesmo instante se afastou, logo desaparecendo na semi-escuridão.
Peter ficou parado na estrada, o suor escorrendo de sua testa. Largou a pedra e enxugou o rosto.
E lembrou-se das palavras, as palavras pronunciadas por uma mulher irada, à luz de vela, no Hay-Adams, em Washington.
Terror por indução.
Era o que ele estava testemunhando agora. Alguém queria assustar Alison MacAndrew, fazê-la perder o juízo. Mas por quê? O pai dela estava morto. O que eles poderiam ganhar aterrorizando a filha?
Peter decidiu ocultar de Alison pelo menos uma parte do horror. Queria protegê-la. Tudo acontecera depressa demais, mas sabia que um vazio estava sendo preenchido. Alison surgira em sua vida.
Perguntou-se se iria durar. Subitamente, tal pergunta era muifo importante para ele. Virou-se e voltou para o carro, removeu as pernas empapadas de sangue do animal, jogou-as no mato. Pegou as duas malas e sua pasta, voltou para a casa. Sentiu-se grato ao verificar que Alison ainda estava dormindo.
Deixou a mala de Alison no hall, levou a sua para a cozinha, juntamente com a pasta. Lembrava-se de ter lido em algum lugar que água fria removia o sangue mais facilmente que água quente. Abriu a torneira, encontrou toalhas de papel e durante 15 minutos esfregou o couro, até deixá-lo limpo. Removeu com uma faca de pão o que ficou, das marcas, rasgando o couro até que os contornos das letras desaparecessem inteiramente.
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Depois, por motivos que não podia explicar para si mesmo, abriu a pasta tirou o bloco de capa de couro e colocou-o em cima da mesa da cozinha antiquada. A cafeteira estava borbulhando. Serviu-se de uma xícara de café e voltou para a mesa. Abriu o bloco e olhou para a folha amarela, coberta de palavras até a metade. Não era simplesmente a compulsão da manhã. De alguma forma, sentia que precisava analisar seus pensamentos, repassá-los através de outra mente. Pois acabara de viver uma experiência que havia atribuído a um personagem que criara. Havia sido seguido na escuridão.
f í
Os agentes do FBI acabam soltando-o. E ele vagueia pela estradinha rural, ao crepúsculo. ,
Há um lapso de tempo.
Meredilh volta para casa. Conta à esposa que sofreu um L
acidente na Memorial Parkway, o carro foi rebocado para conserto, j Ela não acredita.
"Não se fala mais a verdade aqui", grita ela. "Não posso mais suportar tudo isso! O que está acontecendo conosco?"
Alex sabe o que está acontecendo. A estratégia de medo de Hoover é extremamente eficaz. As tensões se tornaram insuportáveis; até mesmo o casamento deles, sempre tão forte, está ameaçado de desmoronar. Sente-se derrotado. E aceita o ultimato da esposa: irão embora de Washington. Ele deixará o Departamento de Justiça e voltará à advocacia particular, uma parte dele morta. A parte mais profissional. Hoover tinha vencido.
Outro espaço. Já passa de rneia-noite. A família de Alex está deitada. Ele ficou na sala de estar, com apenas um pequeno abajur aceso, há sombras por toda parte. Está bebendo continuamente. Misturada com o medo, há a terrível compreensão de que tudo em que sempre acreditou não tem o menor sentido.
Em seu estado de embriaguez, passa por uma janela. Assustado, entreabre as cortinas e espia para fora. Avista um carro do FBI estacionado no final do quarteirão. Há homens vigiando sua casa.
Sua mente explode. O álcool, o medo, a depressão e a ansiedade se combinam para produzir a histeria. Corre para a porta da frente e sai de casa. Não grita, não berra; em vez disso, impõe a si mesmo um grotesco silêncio, um silêncio de conspiração. Em sua embriaguez, quer aproximar-se dos seus algozes e entregar-se, colocar-se à mercê deles, tornar-se um deles. Seu pânico é idêntico ao colapso psicológico que sofreu durante a guerra, anos atrás.
Sai correndo pelo quarteirão. O carro desapareceu. Ouve vozes nu escuridão, mas não vê ninguém. Corre pelas ruas atrás
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de vozes invisíveis, uma parte dele imaginando se não estará louco, outra parte querendo desesperadamente entregar-se, ceder aos vitoriosos e suplicar por perdão.
Não tem ideia de quanto tempo esteve correndo, mas o ar da noite, a respiração forçada e o esforço físico reduzem os efeitos do álcool. Começa a recuperar o controle.
Volta para casa, sem saber muito bem o caminho. Deve ter corrido vários quilómetros.
Avista o carro do FBI. Está parado na esquina, nas sombras. Não há ninguém lá dentro. Os homens que o têm seguido, vigiado, maltratado também estão andando, nas
ruas escuras e tranquilas.
Ouve passos na escuridão. Por trás dele, à sua frente, à direita, à esquerda. Entram no mesmo ritmo das batidas do seu coração, vão se tornando cada vez mais fortes,
parecem agora tambores, ameaçadores, ensurdecedores.
Reconhece uma placa de rua. Sabe agora onde está. Começa novamente a correr. Os passos acompanham-no, provocando novamente o pânico. Corre pelo meio da rua, vira
esquinas. Parece um louco.
Avista sua casa. Subitamente, está ainda mais alarmado, dominado por um novo medo, opressivo. Deixara a porta da frente aberta. E há um automóvel estranho estacionado
diante da sua casa.
Corre mais depressa, na direção do carro estranho, disposto a matar, se for necessário.
Mas o homem dentro do automóvel chegou ali apenas há poucos minutos. Está esperando, pensando que Alex talvez tenha saído para dar uma volta com um cachorro, deixando
a porta da frente descuidadamente aberta.
"Às cinco e meia da tarde de amanhã, vá ao Hotel Carteret. Quarto 1.201. Pegue o elevador até o último andar e depois desça pela escada para o 12. andar. Teremos
homens vigiando. Se for seguido, trataremos de afastá-los."
"Mas que história é essa? Quem é você?"
"Um homem quer conhecê-lo. É um senador."
- Peter, onde você está?
Era Alison, a voz espantada vindo da sala de estar. O barulho trouxe Peter de volta ao outro mundo, ao mundo real.
- Na cozinha! - gritou ele, olhando para a mala; o couro ainda estava úmido, as marcas eram evidentes. - Já estou indo!
- iNão precisa se incomodar - respondeu Alison, com um alívio na voz. - Deve haver café na geladeira e tem uma cafeteira no lado direito do armário.
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- Já encontrei - respondeu Peter, pegando a mala, virando-a e colocando-a num canto. - O café não saiu muito bom. Mas vou tentar fazer outro melhor.
Peter foi até a mesa, pegou a cafeteira e levou-a para a pia, tentando desmontar o mecanismo antiquado. Jogou o pó de café num saco de compras vazio e abriu a torneira.
Segundos depois, Alison passou pela porta, envolta num lençol. Os olhos deles se encontraram, numa mensagem, uma comunicação bem clara. Ao contemplá-la, Peter sentiu-se dominado por um afeto profundo.
- Você entrou na minha vida - disse ela, suavemente. Fico agora imaginando se vai permanecer.
- Eu também pensei na mesma coisa... se você continuaria em minha vida.
- É o que vamos descobrir, não é mesmo?
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Varak entrou no gabinete de Bravo sem bater antes na porta, como sempre fazia.
- É mais de um homem - disse ele, - Ou se é apenas um homem, está comandando outros. Fizeram o primeiro movimento aberto. Chancellor pensa que está dirigido contra a moça. Mas é claro que não é esse o caso. Tudo está dirigido contra ele.
- Neste caso, já estão querendo detê-lo. Bravo não estava fazendo uma pergunta.
- E se ele não desistir - acrescentou Varak - vão tratar de despistá-lo. Preparar-lhe uma armadilha.
- Explique, por favor.
- Já examinei todas as gravações. Pode ouvi-las, se quiser. E ver também os filmes. Destruíram o gabinete de MacAndrew, procurando por alguma coisa... ou criando a ilusão de que estavam procurando. Acredito mais na segunda hipótese. A armadilha estava no nome. Chasong. Querem que Chancellor pense que é uma chave.
- Chasong? - repetiu Bravo, pensativo. - Se não estou enganado, já faz muito tempo. Lembro-me que Truman explodiu por causa disso. A Batalha de Chasong, Coreia.
- É isso mesmo. Recebi há cinco minutos um relatório de computador dos arquivos da G-2. Chasong foi a nossa pior derrota ao norte do paralelo 38. Foi um ataque sem autorização ...
- Pela conquista de um território insignificante - interrompeu-o St. Claire. - Umas poucas colinas sem a menor importância estratégica. Foi a primeira de uma série de débâcles que acabaram levando à demissão de MacArthur.
- O relatório do computador não apresentou as coisas por esse ângulo, é claro.
- O que já era de se esperar. E que mais?
- MacAndrew era coronel na ocasião, um dos comandantes no setor.
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Bravo pensou por um momento.
- Chasong corresponde no tempo aos dados desaparecidos da folha de serviço de MacAndrew?
- Aproximadamente. Se é a armadilha, deve ser isso mesmo. Quem quer que esteja com os arquivos particulares de Hoover não pode saber o que MacAndrew disse exatamente a Chancellor. Um homem em pânico, sob a pressão de ser descoberto, frequentemente baseia a sua defesa numa cronologia e falsa informação.
- "No momento em que o banco estava sendo roubado, há
10 dias, eu estava no cinema."
- Exatamente.
- Levada a esse nível, a coisa se torna bastante cerebral, não é mesmo?
- O torneio de xadrez começou. Acho que deve ouvir e ver as gravações.
- Está certo.
Os dois saíram rapidamente do hall e entraram no elevador de grades nos fundos do hall. Um minuto depois, St. Claire e Varak entraram no pequeno estúdio no complexo do porão. O equipamento foi acionado.
- Vamos começar pelo princípio. É o vídeo-teipe. - Varak ligou o projetor de vídeo. A fita projetou um quadrado branco na parede - A câmara era óbvia demais para colocar no interior da casa. De passagem, quero ressaltar que pode ser ativada eletronicamente. Lembre-se disso, por favor.
A imagem da casa de MacAndrew apareceu na parede. Mas a claridade não era a do meio da tarde, ocasião em que Peter e Alison tinham chegado. Em vez disso, o sol brilhava intensamente.
O agente levantou um interruptor. A projeção parou. Uma imagem imóvel da casa permaneceu na parede.
- A câmara foi ativada - explicou Varak. - É muito sensível. Pelo cronometro, ocorreu às três horas da tarde. Alguém entrou na casa, obviamente pelos fundos, fora do alcance da câmara.
Varak tornou a mexer no interruptor. A fita continuou a correr, mas logo parou outra vez. O projetor se fechou automaticamente. St. Claire olhou zombeteiramente para Varak.
- Eles estão agora no interior da casa. O gatilho eletrônico foi desativado. Vamos ao áudio.
O agente apertou o botão do gravador. Ouviram-se sons de passos, uma porta sendo aberta, o rangido de uma dobradiça, mais passos, a abertura de uma segunda porta.
- São dois homens - disse Varak. - Ou possivelmente um homem e uma mulher corpulenta. Segundo a contagem de decibéis, cada um pesa mais de 70 quilos.
200
Houve uma série de ruídos indefinidos e depois um estranho balido. O mesmo balido soou novamente, agora mais pronunciado e, de certa forma, terrível. Varak falou:
- É um animal. Creio que da família das ovelhas. Mas pode lambem ser um porco. vou definir isso posteriormente.
Os minutos seguintes foram ocupados por ruídos ásperos e rápidos. Papel rasgado, couro e pano cortados, gavetas abertas. Finalmente houve o barulho de vidro quebrado, entremeando com os guinchos estridentes do animal desconhecido, que subitamente se transformaram num grito lancinante.
- Estão matando o animal - explicou Varak, calmamente.
- Santo Deus!
Nesse momento, uma voz humana saiu pelos alto-falantes. Dizendo apenas duas palavras. Vamos embora. A gravação parou. Varak desligou a máquina.
- Vamos recomeçar aproximadamente três horas depois. com a chegada de Chancellor e da filha de MacAndrew. Há ainda 20 segundos-de vídeo da casa. Correspondem à saída dos intrusos, novamente fora do alcance da câmara. Assim, não temos qualquer fotografia deles. - O agente fez uma pausa, hesitante, como se não soubesse muito bem como explicar alguma coisa. - Retirei um determinado trecho da gravação e, com sua permissão, vou destruí-lo. É irrelevante. Simplesmente confirma que Chancellor e a mulher estabeleceram um relacionamento mais íntimo. Provavelmente temporário.
- Compreendo sua atitude e agradeço a providência.
A casa novamente apareceu na parede por um rápido momento. Agora, já estava quase escurecendo. Um carro subia pelo caminho de pedra que levava à porta da frente. Alison saltou do carro e ficou parada por um momento, olhando para a casa. Começou a se encaminhar para a porta. Chancellor apareceu na tela, carregando sacolas de compras. Os dois pararam na pequena varanda, falaram rapidamente. A mulher abriu a bolsa, procurou a chave. Tirou-a e abriu a porta.
Os dois pareceram ficar surpresos com alguma coisa. Falaram novamente, um pouco mais animadamente do que antes, entrando depois na casa. O vídeo-teipe cessou quando a porta se fechou. Sem dizer nada, Varak estendeu a mão e apertou o botão do áudio.
Vamos levar as compras para a cozinha. A mulher. Passos, barulho de papel, o rangido de uma porta e depois um silêncio prolongado A mulher finalmente voltou a falar.
Papai procurou reconstituir, sempre que possível, o tipo de ambiente que mamãe associava à sua infância.
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Chancellor: É uma extraordinária história de amor. Foi um extraordinário sacrifício. A mulher. Você tinha um ressentimento contra ela, não é mesmo? Chancellor.
Tinha, sim. Ele era um homem excepcional... Subitamente, Varak se inclinou e apertou novamente o botão.
- Essa chave é a chave. A mãe. Sou capaz de apostar qualquer coisa nisso. Chasong não passa de uma armadilha. Escute atentamente a próxima meia hora. O escritor
em Chancellor sintonizou nela instintivamente, mas a filha esforçou-se em dissuadi-lo. Não intencionalmente, pois estou convencido de que ela não sabe.
- Pode estar certo de que escutarei com toda atenção, Sr. Varak.
E os dois ficaram escutando. Por diversas vezes, Bravo foi obrigado a desviar os olhos, em reação ao inesperado: o grito da mulher no interior do gabinete do pai,
os soluços e lágrimas que se seguiram, a compaixão e o interrogatório de Chancellor. A imaginação do escritor não seria detida. Sua premissa original estava certa,
pensou St. Claire. Em menos de nove semanas, Chancellor realizara um progresso extraordinário. Nem ele nem Varak sabiam como ou por que, mas o assassinato de Walter
Rawlins estava de alguma forma relacionado com os arquivos desaparecidos. E agora havia aquele general dissidente, sua filha muito franca e um chamariz chamado Chasong.
Acima de tudo, fora efetuado o primeiro movimento em campo aberto. Homens haviam saído das sombras, os sons de suas ações haviam sido gravados.
St. Claire não tinha a menor ideia do rumo para o qual Chancellor os estava levando. Sabia apenas que os arquivos particulares de Hoover estavam cada vez mais perto.
A imagem apareceu novamente na parede. Chancellor saindo da casa, abrindo a porta do carro, recuando bruscamente. Depois contornando o carro cautelosamente, pegando
uma pedra, correndo para a folhagem, voltando, tirando dois objetos indistintos do carro, jogando-os no mato, pegando as malas, entrando novamente na casa.
O ruído recomeçou: água correndo e o som de algo sendo raspado.
- Uma hora atrás, parei a gravação e estudei a imagem. Ele está removendo o nome Chasong da mala - explicou Varak. Não quer que a mulher veja.
Seguiu-se o silêncio. Os microfones captaram o ruído de um lápis no papel. Varak avançou a fita para o som de vozes gravadas.
Peter, onde você está?
Na cozinha-
Uma conversa sobre fazer café, passos rápidos, algum movimento indefinido.
Você entrou na minha vida. Fico agora imaginando se vai permanecer. Falado suavemente por Alison MacAndrew.
Eu também pensei na mesma coisa... se você continuaria na minha vida.
É o que vamos descobrir, não é mesmo?
Tinha acabado. Varak desligou a máquina e levantou-se. Bravo permaneceu na cadeira, os dedos aristocráticos unidos por baixo do queixo.
- O arranhado que ouvimos - disse ele, finalmente. - Podemos presumir que Chancellor estava escrevendo?
- Creio que sim. Isso se ajusta aos hábitos dele.
- Não acha extraordinário? No meio de toda a confusão, ele se concentra em seu romance.
- Insólito, talvez. Não sei até que ponto se pode dizer que é extraordinário. Se estamos agindo da maneira certa, o romance está se tornando extremamente real para
ele.
Bravo-separou os dedos e colocou as mãos sobre os braços da cadeira.
- O que nos leva ao romance e a sua interpretação. Por mais inconcebível que eu possa achar, ainda acredita que nossa presa é um membro de Inver Brass?
- Antes de responder, gostaria de fazer-lhe uma pergunta. Quando lhe pedi que convocasse uma reunião na noite de anteonte, forneceu aos membros a informação que
eu julguei aconselhável? A de que Chancellor se encontra com a mulher?
- Eu teria lhe comunicado se não tivesse transmitido a informação aos outros.
- Eu sabia que desaprovava.
- Minha desaprovação se baseava em convicção. A mesma convicção. A mesma convicção que me levou a seguir suas intruçoes, quando mais não fosse para provar que está
errado. - Bravo falava de maneira incisiva, quase ríspida. - Agora, pode me dar a resposta? Ainda está convencido de que os arquivos estão com um membro de Inver
Brass?
- Saberei disso dentro de um ou dois dias.
- O que não é resposta.
- É o melhor que posso fazer, no momento. Falando com toda franqueza; acho que estou certo. Tudo aponta nessa direção.
St. Claire empertigou-se.
- Porque eu falei com eles sobre Chancellor e a mulher e dei o nome de MacAndrew?
- Não foi apenas o nome, mas principalmente o fato de oito meses não estarem registrados na folha de serviço dele.
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- Mas isso é inconcludente! Quem quer que tenha os arquivos de Hoover sabe do fato.
- Exatamente. O chamariz diversionário, Chasong, ocorreu durante esse período de oito meses. Creio que podemos supor, com alguma segurança, que qualquer coisa que possa ter ocorrido em Chasong, quaisquer que tenham sido as decisões que MacAndrew tomou ou recusou-se a tomar não poderiam ser suficientemente prejudiciais para levá-lo a renunciar agora. Se fosse esse o caso, haveria muitos homens no Pentágono que o teriam obrigado a se reformar há muito tempo.
- Tem razão. Chasong pode ter sido um incidente desagradável, mas certamente não foi desastroso. Era uma parte do arquivo, mas não a parte essencial.
- É apenas uma cobertura para esse fato essencial. Aconteceu algo, talvez relacionado, talvez não. Pressupondo que existe uma ligação básica - e esse não pode deixar
de ser o nosso ponto de partida - é o algo mais ocorrido que pode nos levar àpessoa que está com os arquivos de Hoover.
- No fundo, o que está querendo me dizer que foi no período de 24 horas entre a reunião de Inver Brass e a chegada de Chancellor à casa de MacAndrew que se extraiu
o chamariz diversionário dos arquivos. A noite de anteontem foi a primeira vez que Inver Brass ouviu falar de Chancellor, quanto mais de MacAndrew. ,
- Isto é, a primeira vez que Inver Brass ouviu falar de Chanf cellor como um grupo. Mas não da pessoa que está com os arquifvos. Já o conhecia, porque Chancellor
fez contato com duas vítimas, MacAndrew e Rawlins. Não creio que possa haver a
menor dúvida de que os dois foram vítimas.
- Está certo, aceito o seu raciocínio. - Bravo levantou-se.
- Sendo assim, tudo se resume a uma informação específica: Pe- ter Chancellor entrara em contato com a filha do general. Os dois estavam a caminho da casa em Rockville.
E para que esse encontro não levasse a um beco sem saída, foi plantada a armadilha de Chasong. A fim de despachar Chancellor por um caminho errado.
- Exatamente. Caso contrário, por que iriam usar Chasong?
- Mesmo assim, por que tem de ser um membro de Inver Brass?
- Porque ninguém mais sabia que Chancellor tinha feito contato com a mulher. Eis algo que posso lhe garantir. Afora a nossa interferência, os telefones dele estão
limpos. E ninguém mais o está vigiando, a não ser nós mesmos. Contudo, 12 horas depois da reunião de Inver Brass, a casa de MacAndrew é arrombada e
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se planta um elaborado chamariz para Chancellor. Essas 12 horas foram suficientes para se examinar o dossiê de MacAndrew e descobrir o chamariz de Chasong. St. Claire assentiu, tristemente.
- Está sendo muito convincente.
- Os fatos são convincentes. Gostaria que não fossem.
- E Deus sabe que eu também gostaria que não fossem. Um membro de Inver Brass! Os homens mais honrados da nação. Fala em probabilidades. Pois eis uma que eu teria considerado inexistente.
- Chancellor não o fez. Para ele isto estava definido desde o início. Foi o primeiro a dizer, quando começamos; ele não está limitado por fatos ou condicionamentos. De passagem, ele chama a sua Inver de Núcleo.
St. Claire olhou para a parede onde minutos antes as imagens tinham sido projetadas.
- A realidade e a fantasia... É extraordinário... Ele não prosseguiu no comentário.
- Era- justamente isso o que queríamos - disse Varak. O que estávamos esperando.
- Tem razão. Mas irá mesmo ter certeza dentro de um ou dois dias?
- vou garantir, se convocar outra reunião. Depois do funeral de MacAndrew. Quero que mais dois nomes sejam fornecidos a Inver Brass.
- Mais dois? Quais?
- O primeiro é o de uma jornalista, Phyllis Maxwell. Ela...
- Sei quem ela é. Por quê?
- Não tenho certeza... ela ainda não tinha aparecido antes. Mas Chancellor encontrou-a e depois criou uma personagem em seu romance que possui uma extraordinária semelhança com ela.
- Entendo. E quem é a outra pessoa?
Varak hesitou. Era evidente que esperava encontrar alguma resistência.
- Paul Bromley. O homem da Administração de Serviços Gerais.
- Não! - O diplomata reagiu veementemente. - Não vou permitir. Dei minha palavra a Bromley. Além do mais, não faz sentido. Bromley começa com B e estamos atrás de nomes de M a Z
- Não esqueça de que o nome em código de Bromley é Víbora. Há mais de 20 meses que é usado no Pentágono, G-2 e FBI. Bromley está praticamente sumido desde agosto. É perigoso para uma porção de gente em Washington, mas ninguém tem no-
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tícias dele. Víbora é o homem esquecido e por isso ideal para os nossos objetivos.
Bravo começou a andar de um lado para outro, lentamente.
- O homem já sofreu muito. Está pedindo demais.
- É um problema menor comparado com o nosso objetivo. Pelo que sei a respeito de Bromley, creio que ele seria o primeiro a concordar.
St. Claire fechou os olhos, pensando em toda a angústia por que Bromley passara. O idoso e irascível contador que tivera a coragem de enfrentar o Pentágono sozinho. Sua recompensa tinha sido uma filha viciada, que estivera desaparecida durante três anos e reaparecera como uma assassina desequilibrada. E agora que o mundo dele era novamente estável, o pesadelo prometia retornar. Bromley estava para ser usado como isca.
Mas no campo, nos recessos escuros de sua exótica profissão, Varak era excepcional. E estava certo.
- Pode tomar as providências necessárias - disse St. Claire.
- Convocarei uma reunião de Inver Brass para esta noite.
Os tambores rufavam suavemente. Os estrondos surdos de Iro-, voadas distantes eram trazidos pelo vento de dezembro. A sepultura ficava na parte norte do Cemitério de Arlington. A guarda de honra estava postada a um lado. A rígida falange cumprira à ris-( ca a ordem tácita do Exército: O caixão será levado até este ponto c não mais além. Será então baixado à terra. Estamos aqui em esplendor militar para impor respeito. E é o que será prestado. Mas silenciosamente. Não haverá qualquer sinal manifesto de dor, pois isso não é apropriado. Isto é terreno do Exército. Somos homens. Homens mortos.
Era terrível, pensou Peter, de pé alguns passos atrás de Alison, que estava sentada numa cadeira simples, toda preta, à beira da área cercada por um cordão de isolamento. Ninguém podia se comover, ninguém podia se emocionar. Tudo o que importava era o ritual.
Temos que reagir apenas de acordo com o ritual.
Em torno da sepultura, além do cordão de isolamento, havia cerca de uma dúzia de oficiais superiores do Pentágono. Haviam se aproximado de Alison, falando suavemente, apertando-lhe a mão. Ela era o coro grego que informava a Peter quem eram os personagens em relação a seu pai. E ele estava alerta. Era bem possível que alguém à beira do túmulo tivesse o segredo de Cha-
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song. Naquele momento, ele podia apenas estudar os rostos e deixar livre a sua imaginação.
Havia um homem, mais ou menos da mesma idade que MacAndrew, que atraiu a atenção de Peter. Era um major, de pele morena. Herança mediterrânea, pensou Peter. O homem ficou em silêncio durante todo o tempo, sem falar com ninguém. E quando o caixão foi retirado do carro fúnebre e levado pelo gramado até a sepultura, os olhos do homem permaneceram inalterados. Não admitia a presença do morto.
Foi somente quando o capelão fez o elogio fúnebre de MacAndrew que o major demonstrou alguma emoção. Foi rápido, apenas um brilho súbito nos olhos, uma contração nos cantos da boca. A expressão era de ódio.
Peter ficou observando-o atentamente. Por um momento, o major pareceu sentir que estava sendo observado. Olhou para Peter. O ódio tornou a se estampar em seus olhos e logo desapareceu. O homem desviou os olhos.
Depois que a cerimónia terminou e a bandeira foi dada à filha do soldado morto, os oficiais novamente se aproximaram de Alison, um a um, para murmurarem as palavras apropriadas.
Mas o major de pele morena virou-se e foi embora, sem dizer nada. Peter ficou observando-o. O homem chegou a uma pequena elevação além das fileiras de sepulturas e parou. Virou-se, lentamente, olhou para trás, um vulto isolado, acima das lápidas.
Peter teve a impressão instintiva de que o major queria dar uma última olhada na sepultura de MacAndrew, como se quisesse confirmar para si mesmo que o objeto de seu ódio estava realmente morto. Foi um estranho momento.
Quando se acomodaram na limusme que os levaria do Cemitério de Arlington para Washington, Alison disse a Peter:
- Pude sentir os seus olhos atrás de mim durante todo o tempo. Virei-me uma vez para olhá-lo. Estava estudando os presentes. E tenho certeza de que ouviu atentamente todas as palavras que me foram ditas. Descobriu alguém -ol alguma coisa interessante?
- Descobri. Um major, parecendo italiano ou espanhol. Ele não foi falar com você. Foi o único dos oficiais presentes que não a procurou.
Alison olhou pela janela, contemplando as sepulturas que desfilavam lá fora. Falou baixo, para não ser ouvida pelo motorista militar e a escolta:
- Também reparei nele.
- Neste caso, deve ter visto a maneira como ele se comportou. Foi muito estranha.
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- Foi normal... para ele. É um homem que usa os seus ressentimentos como condecorações. Eu diria mesmo que são parte de suas condecorações.
- Quem é ele?
- Seu nome é Pablo Ramirez. É de San Juan, um dos primeiros homens nascidos no território a ingressarem em West Point. Creio que o chamaria de símbolo hispânico, antes de alguém ter alguma noção do que isso podia significar.
- Ele conheceu seu pai?
- Conheceu. Serviram juntos. Ramirez foi de uma turma dois anos atrás de papai em West Point.
Peter tocou no braço dela. »
- Serviram juntos na Coreia? :!
- Está se referindo a Chasong?
- Exatamente.
- Não sei. Tenho certeza de que estiveram juntos na Coreia. E também na África do Norte, durante a II Guerra Mundial. E ainda no Vietnã, há alguns anos. Mas nada sei a respeito de Chasong.
- Eu gostaria de descobrir. Sabe por que ele tinha um ressentimento contra seu pai?
- Não sei se era um ressentimento específico. Ele tem ressentimento contra todos. Foi por isso que falei em ressentimentos. No plural.
- Por quê?
- Ele ainda é major. A maioria dos seus contemporâneos já íoi promovida a coronel ou mesmo a general.
- E o ressentimento é justificado? Será que ele foi preterido pelo simples fato de ser porto-riquenho?
- Creio que sim. Ou pelo menos em parte. O Exército é uma sociedade muito fechada. E não foram poucas as vezes que ouvi as piadinhas: "Tomem cuidado se levarem Ramirez para um coquetel da esquadra. É bem possível que o obriguem a vestir um casaco de garçom." Na Marinha, os porto-riquenhos tradicionalmente estão sempre lá embaixo. E há muitas outras coisas no mesmo género.
- Essas coisas sempre justificam um ressentimento profundo.
- Também acho, mas não é tudo. Ramirez teve muitas oportunidades, talvez mais do que a maioria dos outros oficiais, provavelmente porque era membro de uma minoria. Mas não soube aproveitá-las.
Peter olhou pela janela, vagamente perturbado. A expressão que vira nos olhos de Ramirez era um ódio específico, dirigido contra objetivos específicos. O caixão de MacÂndrew. A sepultura de MacAndrew. O próprio MacÂndrew.
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- O que seu pai achava dele?
- Praticamente o que acabei de lhe dizer. Que Ramirez era inseguro, muito estouvado, deixava-se facilmente dominar pelas emoções. Não merecia uma confiança absoluta em combate. Papai se recusou a apoiar duas promoções de campanha para ele. Além disso, não me falou muito mais.
- O que ele estava querendo dizer com "não merecia uma confiança absoluta"?
Alison franziu o rosto.
- Tenho que me lembrar. Foi algo ligado às áreas de Sucom e Recon, se não me engano.
- Não tenho nem ideia do que está falando. Ela soltou uma risada.
- Desculpe. São relatórios escritos para o quartel-general. Sumários de combate e de reconhecimento.
- Isso não ajuda muito, mas tenho a impressão que sei o que seu pai estava querendo dizer. Ramirez era um mentiroso. Emocional ou deliberadamente.
- Deve ser isso mesmo. Mas ele não é importante, Peter. Alison pós a mão sobre a dele. - Está tudo acabado. Encerrado para sempre. E sinto-me profundamente grata a você, muito mais do que jamais conseguirei expressar.
- Nós não estamos acabados. Alison sustentou-lhe o olhar.
- Espero que não. - Depois de uma pausa, ela sorriu. Um hotel seria uma grande ideia. Poderíamos passar um dia inteiro esquecidos do mundo, sem pensar em mais nada. Estou cansada de pensar. E amanhã irei procurar o advogado para providenciar o que for necessário. Mas não quero que se sinta na obrigação de ficar em minha companhia. Voltarei a Nova York daqui a alguns dias.
Peter ficou surpreso, perguntando-se se ela já tinha esquecido. Tão abrupta e tão completamente. Segurou a mão dela, não querendo largá-la.
- Mas não podemos esquecer a casa em Maryland, os homens que a arrombaram e...
- Oh, Deus! Vamos esquecer tudo isso! Ele está morto. E os homens que entraram na casa já conseguiram atingir seu objetivo, qualquer que tenha sido.
- Conversaremos sobre isso mais tarde,
- Está certo.
Peter podia compreender. Alison enfrentara a agonia da morte do pai e a angústia adicional de investigar essa morte. No entanto, deparara com os próprios homens que haviam tentado destruir seu pai. A cerimónia em Arlington fora um símbolo para ela.
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O nó górdio fora cortado. Ela agora estava livre para descobrir seu próprio mundo. E era justamente nesse momento que ele, Peter, pedia-lhe para voltar.
Mas ele tinha que fazê-lo: o caso não estava acabado. Ele sabia disso, ela também sabia.
E Peter sabia também de algo mais. Alison dissera que Ramirez não era importante.
Mas era.
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Mais uma vez as limusines chegaram à casa de Georgetown em ocasiões diferentes, de diferentes pontos de origem. Mais uma vez os motoristas silenciosos encontraram-se
com passageiros que não viam. Inver Brass se reunia.
Há várias semanas já havia um acordo tácito entre os membros mais velhos, Bravo, Venice e Christopher, para que a escolha de um novo Génesis recaísse entre os dois outros membros mais jovens, Banner e Paris.
Não havia a menor dúvida de que ambos eram qualificados, ambos se destacavam de maneira extraordinária em diversos setores.
Banner entrara para Inver Brass há seis anos. Tinha sido o mais jovem presidente de uma grande universidade do Leste, mas deixara o cargo para assumir a presidência da Fundação Roxton, que operava em escala internacional. Seu nome: Frederick Wells; sua especialidade: finanças globais. Contudo, apesar do impacto de suas decisões, Wells jamais perdera de vista a necessidade humana fundamental de dignidade, respeito e liberdade de opção e expressão. Wells acreditava profundamente nos seres humanos, com todos os seus defeitos. Aqueles que tentavam reprimir os seres humanos, moldá-los ou dominá-los invariavelmente eram vítimas de sua ira.
Assim havia acontecido com John Edgar Hoover.
Paris era o mais novo membro do grupo. Ingressara em Inver Brass apenas há quatro anos. Seus antepassados estavam em Castela, mas suas raízes pessoais estavam na América, para onde sua família fugira, a fim de escapar aos falangistas. Seu nome era Carlos Montelán. Ocupava a Cátedra Maynard de Relações Internacionais em Harvard e era considerado o mais arguto analista do pensamento geopolítico do século XX. Por muitos anos, sucessivas administrações haviam tentado recrutar os serviços de Montelán para o Departamento de Estado, mas ele tinha recusado sistematicamente. Era um estudioso, não um ativista. Conhecia bem
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os riscos que se corria quando teóricos se voltavam para o mundo sutil das negociações pragmáticas.
Contudo, Montelán jamais parava de investigar, jamais cessava de sondar os homens e seus motivos, quer fossem pessoais ou relacionados a uma causa maior. E quando
constatava que eram destrutivos, não hesitava em tomar uma decisão ativa. E não hesitara no caso de John Edgar Hoover. Bravo adiara a escolha de um dos dois, apesar
da insistência de Christopher. Este era Jacob Dreyfus, um banqueiro, o último dos patriarcas judeus, cuja casa rivalizava com a de Baruch c Lehman. Christopher estava
com 80 anos e sabia que não lhe restava muito tempo. Achava que era muito importante que Inver Brass escolhesse seu líder. Uma casa sem um homem para dar-lhe a orientação
necessária não podia sobreviver. E para Jacob Dreyfus não havia qualquer outra "casa" naquela terra tão amada que fosse mais vital que aquela que ele ajudara a fundar,
Inver Brass. Brass.
Isso foi o que ele disse a Bravo... e Munro St. Claire sabia que ninguém estava em melhores condições que Jacob para falar tal coisa. St. Claire estava em Inver
Brass desde o início,. assim como Daniel Sutherland, o gigante negro, cuja inteligência extraordinária tinha feito com que saísse dos campos do Alabama para os mais
altos círculos judiciais da nação. Mas nem Bravo nem Venice eram capazes de resumir tão bem quanto Christopher as palavras que podiam definir Inver Brass.
Como Jacob Dreyfus costumava dizer, Inver Brass nascera no caos, numa ocasião em que a nação estava desmoronando, à beira da autodestruição. O mercado financeiro
se aniquilara por completo, os negócios estavam paralisados, fábricas fechadas, as lojas sem terem o que vender, as fazendas abandonadas, o gado morrendo, as máquinas
enferrujando. As inevitáveis explosões de violência já tinham começado a ocorrer.
Em Washington, líderes ineptos eram incapazes de qualquer ação positiva. Tudo isso tinha feito com que Inver Brass fosse criada, nos últimos meses de 1929. O primeiro
Génesis tinha sido um escocês, um banqueiro que seguira o conselho de Baruch e Dreyfus e se retirara do mercado antes da catástrofe. Foi ele quem deu o nome ao grupo,
o nome de um pequeno lago pantanoso das Highlands da Escócia, que não constava de nenhum mapa: Inver Brass tinha que existir no mais absoluto segredo. Operava fora
da burocracia do governo porque tinha de operar rapidamente, sem quaisquer empecilhos que impedissem ou retardassem sua ação.
Quantias vultosas haviam sido transferidas para muitas áreas atingidas pela crise, onde a violência, nascida da necessidade, já
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havia irrompido. Por todo o país, as arestas de violência foram devidamente aparadas pela riqueza de Inver Brass, as fogueiras da explosão tinham sido abafadas,
contidas em limites razoáveis.
Mas, no processo, haviam sido cometidos erros, corrigidos no mesmo instante em que eram percebidos. Alguns erros, no entanto, haviam sido irreparáveis. A Depressão deu-se em escala mundial; capitais foram investidos em transações que ultrapassavam, em muito, as fronteiras da nação.
Havia a Alemanha. As devastações económicas do Tratado de Versailles, a impropriedade dos pactos de Locarno, a inexequibilidade do Plano Dawes - tudo isso constituía uma tremenda incompreensão do problema, segundo pensavam os homens de Inver Brass. E os homens de Inver Brass haviam cometido o erro mais calamitoso. O mesmo erro que, 35 anos depois, um estudante de pós-graduação chamado Peter Chancellor começava a perceber como a única coisa que não era. Uma conspiração de política global.
O jovem chamado Chanceílor tinha que ser detido. Inver Brass estava nas sombras de sua imaginação e ele não sabia disso.
O erro cometido havia levado os homens de Inver Brass a entrar em um novo território. O da política nacional. A princípio, fora apenas para retificar as consequências dos erros. Mais tarde, porém, passou a ser porque podiam contribuir. Inver Brass dispunha da sabedoria e dos recursos. Podia agir e reagir rapidamente, sem qualquer interferência, não tendo que dar satisfações a ninguém, a não ser à sua própria consciência coletiva.
Munro St. Claire e Daniel Sutherland escutaram em silêncio a súplica de Jacob Dreyfus para a escolha imediata de um novo Génesis. Nenhum dos dois respondeu com veemência. Concordaram sem convicção, nada dizendo na essência. St. Claire tinha certeza que Sutherland não podia estar a par do que ele sabia: havia a possibilidade de que Inver Brass estivesse abrigando um traidor. Portanto, as dúvidas de Sutherland tinham que ser outras. E St. Claire achava que sabia quais eram essas dúvidas. Os dias de Inver Brass estavam chegando ao fim. Talvez terminasse com os mais velhos - e talvez fosse melhor assim. As necessidades mudam com o passar do tempo; estavam agora vivendo em outra era.
As dúvidas de St. Claire eram muito mais específicas. E era justamente por isso que não podia permitir a escolha de um novo Génesis. Pois se havia um traidor em Inver Brass, só podia ser Banner ou Paris.
Sentaram em torno da mesa redonda, a cadeira vazia de Génesis como um lembrete da transitoriedade a que todos estavam
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submetidos. Desta vez, não havia necessidade de um fogo aceso na estufa Franklin. Não haveria papéis para serem queimados; eles não estavam sobre a mesa no início da reunião e não estariam no final. Não havia relatórios codificados a serem entregues, pois não seriam tomadas decisões. Havia apenas informação a ser transmitida, comentários a serem ouvidos.
Uma armadilha tinha que ser armada ali. Primeiro, os acontecimentos precisavam ser descritos de tal maneira que St. Claire pudesse observar as reações de cada homem em redor da mesa. E, depois, dois nomes teriam que ser comunicados: Phyllis Maxwell, a jornalista, e Paul Bromley, notne em código Víbora, crítico desaparecido do Pentágono. Desaparecido mas que podia ser facilmente encontrado por qualquer um dos homens ali presentes.
- Nossa reunião de hoje será rápida disse Bravo. - O ob-
jetivo c colocá-los a par dos últimos acontecimentos e ouvir quaisquer comentários que possam fazer sobre os novos procedimentos.
- Espero que se possam incluir comentários sobre as últimas decisões - disse Paris.
- Inclui tudo o que quiserem.
- Ótimo - continuou Paris. - Desde a nossa última reunião, já li dois livros de Peter Chancellor. Não entendo muito bem o motivo pelo qual ele foi escolhido. É verdade que ele possui uma mente ágil e um bom talento para a prosa, mas dificilmente se potíeria considerá-lo como um escritor de méritos duradouros.
- Não estamos à procura de méritos literários.
- Nem eu. E também não desprezo o chamado bestseller. Estou simplesmente me referindo a esse escritor em particular. Será que ele é tão capaz quanto uma dúzia de outros? E por que logo ele foi o escolhido?
- Porque já o conhecíamos - interveio Christopher. - E não conhecíamos uma dúzia de outros.
-- Como assim? - indagou Paris, inclinando-se para a frente.
- Christopher lembrou bem - disse Bravo. - Conhecemos muita coisa a respeito de Chancellor. Há seis anos, tivemos razões para investigá-lo. Vocês dois conhecem a história de Inver Brass. Não lhes escondemos nada. Nossas contribuições, nossos erros. Ao final dos anos 60, Chancellor estava escrevendo - Bravo fez uma pausa, virando-se para Paris, antes de continuar - uma dissertação analítica a respeito do colapso da República de Weimar e da emersão da Alemanha Nazista. Chegou bem perto de identificar! Inver Brass. Tivemos que detê-lo.
Houve silêncio em torno da mesa. St. Claire sabia que o negro e o judeu estavam pensando naqueles dias. Cada um com a sua própria angústia.
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- A dissertação transformou-se no romance Reichstag! -esclareceu Banner, olhando para Paris.
- E isso não foi perigoso? - indagou Paris.
- Era procedente - comentou Venice.
- E era também ficção - acrescentou Christopher.
- Isso responde à minha pergunta - declarou Paris, - Era uma questão de conhecimento como outra qualquer. É melhor uma entidade conhecida, com suas limitações, do que outra desconhecida, embora com uma promessa maior.
- Porque insiste em depreciar Chancellor? - indagou Venice. - Estamos à procura dos arquivos particulares de Hoover e não de distinção literária.
- É uma questão pessoal - explicou Paris. - Ele é o tipo de escritor que me irrita. Conheço alguma coisa a respeito dos acontecimentos de Sarajevo e das condições predominantes na ocasião. Li o livro dele a respeito. Chancellor baseia suas conclusões em fatos intencionalmente distorcidos e associações exageradas. Contudo, tenho certeza de que milhares de leitores aceitam o que ele escreve como história verídica.
Bravo recostou-se na cadeira.
- Também li esse livro e conheço alguma coisa dos acontecimentos que culminaram com Sarajevo. Acha que a inclusão da conspiração industrial foi um erro?
- Claro que não. Isso já foi inclusive comprovado.
- Neste caso, independente da maneira como chegou a essa , conclusão, ele estava certo.
Paris sorriu.
- Se me permite dizè-lo, sinto-me aliviado pelo fato de não ensinar história. Mas, como eu disse antes, minha pergunta já foi respondida. Quais são as novidades?
- Estamos indo muito bem. Eu diria que as coisas estão numa fase de autêntico progresso.
Bravo começou a descrever a ida de Chancellor e Alison ao Aeroporto Kennedy, o encontro com a escolta militar, a chegada do avião trazendo o caixão do general. Como Varak havia sugerido, St. Claire falava bem devagar, observando atentamente, à procura de qualquer reação que pudesse indicar que alguém à mesa previa suas palavras, porque já conhecia os acontecimentos. Varak havia dito que esta reação se manifestaria nos olhos da pessoa envolvida. Uma reação súbita, uma expressão pensativa indicariam o reconhecimento. Determinadas alterações químicas não podiam ser escondidas; os olhos eram o microscópio.
St. Claire não encontrou as reações indicadas. Não encontrou qualquer reação. Somente a total absorção da parte de cada membro de Inver Brass.
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Por fim, descreveu o que tinha ouvido na fita e visto no filme.
- Sem os preparativos de Varak, não teríamos tomado conhecimento dessa ação contra Chancellor. E foi realmente contra Chancellor, não contra a filha de MacAndrew. Achamos que é uma tentativa de desviá-lo do curso, de convencê-lo de que a renuncia de MacAndrew foi uma decorrência de decisões de comando tomadas anos atrás, na Coreia, num lugar chamado Chasong.
Os olhos de Paris se arregalaram, sua reação era evidente. Ele disse, um momento depois:
- Os matadores de Chasong...
St. Claire sentiu uma dor aguda no peito. Perdeu a respiração, por um instante ficou incapaz de recuperá-la. Esforçou-se para se controlar, enquanto olhava fixamente para Carlos Montelán.
As palavras de Paris haviam-lhe provocado um calafrio. Não havia a menor possibilidade de Paris conhecer a expressão! Não tinha sido empregada em nenhum ponto da gravação e St. Claire iião a usara!
- O que isso significa? - indagou Venice, deslocando o corpo imenso na cadeira.
- Como qualquer historiador militar poderá contar, foi um epíteto usado para designar os oficiais da Batalha de Chasong explicou Paris. - Foi uma loucura suicida. Os soldados se rebelaram ao longo das linhas e muitos foram mortos a tiros por seus próprios oficiais. Foi uma estratégia desastrosa, e, sob certos aspectos, determinou a reviravolta política da guerra. Se MacAndrew esteve lá, c bem possível que uma vítima há muito esquecida tenha voltado. Poderia ser esse o motivo para á sua renúncia.
St. Claire olhou atentamente para Paris, aliviado com a explicação do professor.
- Será que isso poderia ter relação com a morte dele no Havaí? - indagou Christopher, as mãos encarquilhadas tremendo enquanto falava.
- Não - respondeu Bravo. - MacAndrew foi morto poi Longworth.
- Varak? - perguntou Wells, incrédulo.
- Não. O verdadeiro Longworth. No Havaí.
Era como se um chicote tivesse estalado subitamente na sala. Todos os olhos estavam fixados em Bravo.
- Como? Por quê?
Havia uma raiva intensa na voz de Venice. Daniel Sutherland estava indignado.
- Foi imprevisível e, por conseguinte, incontrolável. Como já sabe, Varak usou o nome de Longworth com Chancellor. Era uma fonte que Chancellor podia verificar, levando-o a entrar em ação.
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E Chancellor dou o nome a MacAndrew, disse-lhe que Longworth tinha acesso aos arquivos. Depois que a esposa morreu, o general voou por metade do mundo para encontrar Longworth. E encontrou.
- Sendo assim, MacAndrew presumiu que somente Longworth sabia o que havia acontecido em Chasong - comentou Frederick Wells, pensativo. - Que a informação estava nos arquivos particulares de Hoover e em nenhum outro lugar.
- E isso não nos leva a parte alguma. A não ser de volta aos arquivos.
Christopher novamente falava com alguma irritação na voz.
- Mas ajuda - acrescentou Banner, olhando para Bravo. Confirma o que acabou de dizer. Chasong não passa de uma manobra diversionária.
- Por quê? - indagou Venice. Wells virou-se para o juiz.
- Porque não havia razão para tanto. Sendo assim, por que então foi usada?
- Concordo plenamente. - St. Claire inclinou-se para a frente, já tendo recuperado o controle. A primeira parte da armadilha de Varak não tinha dado resultado. Era o momento de lançar a segunda parte, a apresentação dos dois nomes. - Como eu informei na última reunião, Chancellor estava bastante adiantado no romance. Varak conseguiu ter acesso aos originais. Há dois acontecimentos inesperados e surpreendentes. Duas pessoas surgiram ríe repente. Nenhuma das duas havia sido considerada antes. Não sabemos por quê. Uma delas é uma personagem um pouco disfarçada no livro. O outro é um homem cujo nome consta das anotações de Chancellor - um homem que ele está tentando descobrir. A primeira pessoa é a jornalista Phyllis Maxwell. O homem é um contador chamado Paul Bromley. Trabalhava na Administração de Serviços Gerais. Alguém tem informações específicas sobre qualquer um dos dois?
Ninguém tinha. Mas os nomes estavam devidamente inseridos, a segunda parte da armadilha fora acionada. St. Claire perguntouse qual deles seria apanhado, se fossem. procedentes as conclusões de Varak. Banner ou Paris? Frederick Wells ou Carlos Montelán?
A conversa foi aos poucos morrendo. Bravo declarou que a reunião de Inver Brass estava encerrada. Empurrou a cadeira para trás, a fim de levantar, mas foi detido pela voz de Wells:
- Varak está esperando lá fora?
- Claro que está - respondeu o diplomata. - Ele já tomou as providências necessárias para a partida.de cada um, como de hábito.
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- Eu gostaria de fazer uma pergunta a Varak. Antes, vou explicar a todos. Havia microfones instalados no interior da casa em Rockville. Descreveu os ruídos de homens
quebrando e vasculhando o gabinete de MacAndrew, mas não houve palavras acompanhando tais sons. Do lado de fora, uma câmara foi acionada, mas nada mostra, porque
os intrusos estavam fora do alcance visual. Parece até que os intrusos sabiam quais os equipamentos instalados.
- Qual é a sua pergunta? - indagou Montelán, a voz subitamente ríspida.
Banner olhou para Paris. Não podia haver a menor dúvida, pensou St. Claire. Os leões estavam à solta. Os mais jovens enfrentando os mais velhos, lutando pela liderança
do orgulho.
- Acho a situação muito estranha. Os arquivos foram roubados de tal maneira e numa ocasião tão propícia que não se pode deixar de pensar que os ladrões talvez previssem
a morte de Hoover. Meses de intensas investigações não levaram a parte alguma. Um dos melhores agentes deste país comunica que não conseguiu efetuar qualquer progresso.
Bravo tem a ideia de usar o tal escritor, Chancellor, como uma sonda. Nosso agente põe o plano em execução. O escritor é programado e começa a trabalhar. Como se
esperava, cria rapidamente uma agitação. Os que estão com os arquivos de Hoover ficam alarmados e fazem um movimento contra ele. Era de se supor que isso fosse o
suficiente para surpreendêlos. Mas ninguém aparece no filme, não há vozes na gravação.
Montelán inclinou-se para a frente.
- Por acaso está insinuando... ? Banner não o deixou continuar:
- Estou simplesmente sugerindo que, embora o nosso especialista seja conhecido por sua meticulosidade, houve uma notável ausência disso ontem.
- Mas isso é demais! - explodiu Christopher. As feições esqueléticas estavam contraídas, os dedos ossudos tremiam. - Sabe quem é Varak? Sabe o que ele sofreu na
vida? Sabe o que o impulsiona?
- Sei que ele está cheio de ódio - respondeu Banner, suavemente. - E isso me assusta.
Houve silêncio ao redor da mesa. A verdade essencial da declaração de Frederick Wells não podia deixar de causar algum efeito. Era possível que Stefan Varak operasse
num nível diferente do deles, motivado por um ódio desconhecido de todos os que estavam naquela sala.
St. Claire recordou as palavras de Varak: Caço os nazistas sob qualquer forma na qual eles possam ressurgir. E se pensa que há alguma diferença entre o que representam
esses arquivos e os obje-
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tivos do Terceiro Reich, devo diter que está redondamente enganado.
A partir do momento em que o nazista fosse encontrado e destruído, qual a melhor fornia de controlar seus discípulos que através do controle dos arquivos?
Bravo empurrou a cadeira para trás e levantou. Foi até um armário na parede, abriu-o e tirou uma pistola de calibre 38, cano curto. Fechou o armário, voltou ao seu
lugar, sentou. A arma estava em sua mão, fora de vista.
- Pode pedir ao Sr. Varak para entrar, por favor?
Stefan Varak ficou parado atrás da cadeira vazia de Génesis, estudando os membros de Inver Brass. St. Claire observava-o atentamente, até que os olhos de ambos se
encontraram.
- Sr. Varak, temos uma pergunta a fazer-lhe. Agradeceria se apresentasse uma resposta concisa. Pode falar, Banner.
E Wells não hesitou:
- Através de Chancellor, Sr. Varak, o senhor previu um acontecimento que poderia nos levar aos arquivos de Hoover. Bastava uma identificação, visual ou auditiva.
Preparou a armadilha, o jue pressupõe que conhecia a importância da mesma. Contudo, não houve, no caso, uma manifestação da sua reconhecida meticulosidade, do seu
profissionalismo. Perguntei-me por quê. Seria muito simples instalar duas, três, até seis câmaras, se fosse necessário. Se assim o tivesse feito, a esta altura a
caçada já poderia estar terminada, com os arquivos em nosso poder. Por que, Sr. Varak? Ou por que não?
O sangue afluiu à cabeça loura de Varak. Ele ficou vermelho de raiva. Todos os indícios que havia pedido a Bravo que observasse estavam evidentes no professor. Será
que a raiva, assim como o medo, também produzia as alterações químicas de que Varak falara? St. Claire deslocou a pistola em seu colo, pôs o dedo no gatilho.
Mas o momento passou. Varak recuperou o controle. E disse calmamente:
- É uma pergunta procedente. Como sabem, trabalho sozinho, exceto em raras ocasiões, quando contrato os serviços de terceiros. Mesmo assim, estes nunca podem descobrir
a minha identidade. Um deles foi um motorista de táxi em Nova York. Ele pegou Chancellor e a mulher e levou-os para o aeroporto. A conversa foi gravada. O motorista
entrou em contato comigo, em Washington, tocou a gravação pelo telefone. Foi a primeira vez que ouvi uma referência à ida deles para Rockville. Tinha muito pouco
tempo para pegar o eqiiipamento, ir até a casa e instalá-lo. Foi muita sorte conseguir instalar a tempo uma única câmara, com o filme infravermelho apropriado. Essa
é a minha resposta.
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Instalou-se o silêncio, enquanto os membros de Inver Brass examinavam Varak atentamente. Por baixo da mesa, St. Claire tirou o dedo do gatilho. Passara a vida inteira
aprendendo a reconhecer a verdade quando a ouvia. Na sua opinião, acabara de ouvir a verdade.
E esperava ardentemente que estivesse certo.
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O hábito fez com que Peter acordasse às quatro e meia da manhã. O costume levou-o a sair da cama, pegar sua pasta numa cadeira do quarto e tirar o bloco com capa
de couro.
Estavam numa suíte do Hay-Adams e foi a introdução de AHson às estranhas horas em que ele normalmente trabalhava.
Ela ouviu-o e soergueu-se na cama, bruscamente.
- Está havendo algum incêndio?
- Desculpe. Não pensei que fosse me ouvir.
- Sei que não posso vê-lo porque ainda está escuro lá fora. O que aconteceu?
- Não aconteceu nada. Já é de manhã, a hora em que mais gosto de trabalhar. Volte a dormir. Ficarei lá na sala.
Alison voltou a se recostar nos travesseiros, sacudindo a cabeça. Peter sorriu e levou o bloco para a sala. Para a mesa de café e o sofá.
Três horas depois tinha terminado o oitavo capítulo. Não consultara o esboço; não tinha sido necessário. Conhecia as emoções que estava definindo como as de Alexander Meredith. Ele também fora dominado pelo medo, ele também entrara em pânico. Sabia o que era ser o alvo de uma violenta perseguição; também ouvira passos correndo na escuridão.
Alison acordou pouco antes das oito. Peter voltou ao quarto e fizeram amor. Devagar, explorando-se mutuamente, despertando reações ainda mais maravilhosas e excitantes que as anteriores, até serem invadidos e dominados pelo ritmo desesperado da fome comum. Nenhum dos dois permitia que o outro diminuísse a intensidade.
Depois adormeceram, enlaçados, cada um encontrando conforto e segurança nos braços do outro.
Acordaram às lOhSOmin, tomaram café no quarto, começaram a pensar no resto do dia. Peter prometera-lhe "um dia esquecidos do mundo" e estava disposto a proporcioná-lo. Ao contemplá-la agora, sentada no outro lado da mesa, ele ficou impressionado com
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algo que já deveria ter notado antes. Apesar da tensão e da tristeza. Alisou possuía uma jovialidade interior que nunca era abafada por completo.
Cathy também fora assim.
Peter estendeu a mão para ela, por cima da mesa. Alison segurou-a, sorrindo, os olhos se encontrando com os dele, afetuosamente.
O telefone tocou. Era o advogado do pai dela. Havia diversos documentos a serem assinados, formulários do governo a serem preenchidos, direitos a serem explicados. O testamento do general era simples, mas os procedimentos do Exército em caso de morte não eram. Alison poderia estar no escritório dele às duas horas da tarde? Se não houvesse complicações ela estaria livre por volta das cinco.
Peter prometeu que passariam o dia seguinte "esquecidos do mundo". Ou melhor, começariam um minuto depois das cinco horas daquela tarde.
Porque no dia seguinte, pensou Peter, ele iria abordar o problema da casa em Rockville.
Alison partiu à uma e meia para o escritório do advogado. Petei voltou ao seu bloco de páginas amarelas.
Capítulo 9 - Esboço
O objetivo do capítulo é descrever o encontro entre Alex Meredith e o senador. Ocorrerá no quarto de hotel, depois de uma dramática perseguição, durante a qual Alex consegue despistar aqueles que o estão seguindo. No encontro com o senador, Alex descobre que existe um grupo de homens poderosos, dispostos a lutar contra Hoover. Ele não está soinho. É o início de sua viagem de volta à sanidade.
Aceita agora os perigos que terá de enfrentar, pois há pessoas a quem pode recorrer; sua dependência dessas pessoas é imediatamente definida. O alívio de Alex é aumentado pelo impacto da revelação das identidades de dois colaboradores do senador: o antigo membro do Gabinete e a jornalista. Eles também querem se encontrar com Meredith.
Há um plano. Alex não sabe qual é, mas a sua simples existência já é suficiente. Ele se empenha totalmente, sem compreender direito em que está se metendo.
As horas foram passando, as palavras surgindo compulsivamente, Peter havia chegado ao ponto em que o senador está ex-
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plicando a conversão do emissário de Hoover. Releu, satisfeito,- um trecho do capítulo que praticamente não precisava modificar.
Por motivos de sobrevivência, Alan Long compreendera o erro de sua atitude. Seu passado não é mais imune que o dos outros a uma investigação rigorosa. Um fato isolado pode ser distorcido aqui, apresentado fora do contexto ali. Só o que importa é a fonte, a terrível sanção oficial - como as letras F-B-I. Long está prestes a se aposentar, por causa de uma doença fatal. O diretor recebera um relatório médico com esse diagnóstico. Na verdade, porém, Long vai trabalhar para nós. Embora não se possa dizer exatamente que ele tenha visto a luz, o fato é que é menos inclinado para o arcanjo da escuridão. Long está assustado. E o medo é a arma que ele mais conhece.
Não tinha sido um mau dia de trabalho, pensou Peter, olhando para o relógio. Eram quatro e meia da tarde. O sol de fim de tarde projetava sombras alongadas nos prédios além da janela do hotel. O vento de dezembro soprava forte; de vez em quando uma folha se elevava até a altura da janela.
Alison voltaria em breve. Iria levá-la para um pequeno restaurante que conhecia em Georgetown, onde teriam um jantar tranquilo, olhando um para o outro, se tocando. Haveria riso nos olhos dela, na voz, Peter ficaria feliz por estar tão perto dela. E depois voltariam para o hotel e fariam amor. Maravilhosamente. com um profundo significado. Um significado que há muito tempo ele não encontrava na cama.
Peter levantou, espreguiçou-se, revolvendo o pescoço. Era um hábito; quando sentia dor nas têmporas, sempre ajudava mexer a cabeça em círculos. Mas não havia dor agora. Apesar da tensão das últimas 48 horas, apenas em uns poucos momentos sentira o sinal de alarme. Alison MacAndrew entrara em sua vida. E isso era o melhor que poderia ter acontecido.
O telefone tocou. Peter sorriu, reagindo como um adolescente. Só podia ser Alison; ninguém mais sabia onde ele estava. Pegou o fone, esperando ouvi-la dizer, com sua risada característica, que todos os táxis de Washington estavam fugindo dela; estava sozinha e desamparada num jardim zoológico de concreto e todos os bichos rosnavam em sua direção.
Era uma voz de mulher, mas não a de Alison. E com o tom tenso e ríspido de um ser humano apavorado.
- O que está fazendo, por Deus? Como pôde me incluir em seu livro? Quem lhe deu esse direito?
Era Phyllis Maxwell.
E também o início da loucura.
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Peter deixou um bilhete para Alison, com uma segunda mensagem na escrivaninha, caso ela não visse o bilhete. Não tinha tempo para explicar, mas uma emergência tinha feito com que se ausentasse durante uma hora, aproximadamente. Telefonaria para ela na primeira oportunidade. E a amava.
Phyllis Maxwell. Mas isso era uma loucura! E o que ela tinha dito era absurdo. Peter deu rápidas explicações. Havia de fato uma personagem do livro que alguns poderiam, apenas poderiam, pensar que talvez fosse, apenas talvez, vagamente baseado nela. Mas podia também ser associada a diversas outras mulheres!
Não! Ele não estava a fim de destruí-la. Não estava a fim de destruir ninguém. Exceto a reputação de J. Edgar Hoover, mas por isso jamais pediria desculpas a quem quer que fosse! Pelo amor de Deus, não! Ele trabalhava sozinho! Qualquer que fosse a pesquisa que fizesse, quaisquer que fossem as fontes que usasse, nada tinham a ver com ela!
Ou... com Paula Mingus... quem quer que fosse essa mulher.
Mas não havia a menor possibilidade de argumentar com a voz i.o outro lado do fio, um momento fraca e quase inaudível, no momc.ito seguinte estridente e histérica. Phyllis Maxwell estava perdendo o juízo. E, de alguma forma, ele era o responsável.
Peter bem que tentou falar racionalmente, mas foi inútil. Tentou gritar com ela; foi o caos. Finalmente, Peter arrancou-lhe a promessa de um encontro.
Ela não iria ao Hay-Adams. Já estivera com ele no HayAdams. Será que ele não estava lembrado? Será que fora tão repulsivo assim?
- Deus do Céu! Pare com isso!
Ela não iria encontrá-lo em qualquer lugar escolhido por ele. Não confiava nele. E como poderia? E também não se encontraria com ele em nenhum lugar onde pudessem ser vistos juntos. Havia uma casa na Rua 35-Noroeste, perto da esquina da Wisconsin, por trás de Dumbarton Oaks. Pertencia a amigos dela que estavam no campo; ela estava com uma chave. Não sabia o número, mas isso não tinha importância, pois era fácil identificar a casa. Tinha uma varanda pintada de branco, com um vidro colorido por cima da porta. Ela estaria lá dentro de meia hora.
E Phyllis Maxwel desligara com as seguintes palavras:
- Estava trabalhando com eles, não é mesmo? Deve se sentir muito orgulhoso pelo que está fazendo.
Um táxi encostou no meio-fio. Peter embarcou e deu o destino ao motorista. Ajeitou-se a um canto do banco, tentando pôr em ordem es pensamentos.
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Alguém tinha lido seus originais; isso era óbvio. Mas quem? E como? Era o como que o assustava, porque significava que a pessoa, quem quer que fosse, se dera a um trabalho extraordinário para consegui-lo. Peter conhecia as precauções adotadas pelo serviço de datilografia que utilizava. Faziam parte do serviço, uma de suas mais fortes recomendações. O serviço de datilografia tinha que ser excluído.
Morgan! Não por deliberação ou permissão, mas por acidente! Tony se caracterizava por uma aristocrática negligência. Sua mente peripatética vivia em permanente ebulição, supervisionando simultaneamente dezenas de projetos. Era bem possível que Morgan tivesse distraidamente deixado os originais na mesa de outra pessoa. Ou, que Deus não permitisse, no banheiro do escritório.
O táxi chegou ao cruzamento da Pennsylvania Avenue com a Rua 20. Havia uma cabine telefónica vazia na esquina. Peter olhou para o relógio. Faltavam dez minutos para cinco horas. Tony ainda devia estar no escritório.
- Quer parar ao lado daquele telefone, por favor? - disse ele ao motorista. - Tenho que dar um telefonema. Não vou demorar.
- Demore o quanto quiser. O taxímetro está correndo. Peter fechou a porta de vidro da cabine e discou para o telefone particular de Morgan.
- Sou eu, Tony, Peter. Tenho que fazer-lhe uma pergunta.
- Onde você está? Falei com a Sra. Alcott esta manhã e ela disse que você estava em Nova York. Telefonei para o seu apartamento, mas ninguém atendeu.
- Estou em Washington, Tony. Não tenho tempo para explicar. Preste atenção. Alguém leu os originais de Hoover. E fez algo terrível, cometeu um grande engano...
- Ei, espere um pouco! - interrompeu-o Morgan. - Isso é inteiramente impossível! Vamos por partes. Que coisa terrível? E que engano?
- Disse que ela... ele... eslava no livro.
- Ele ou ela?
- Que diferença isso faz? O problema é que alguém leu os originais e está usando a informação para deixar uma pessoa apavorada!
- E isso foi um erro? Existe algum personagem como essa pessoa que está apavorada?
- Não exatamente. Podia ser meia dúzia de pessoas diferentes. Mas isso não tem importância.
Não havia tempo para as perguntas de Morgan.
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- Eu estava apenas querendo dizer que vários dos personagens são mais ou menos baseados em pessoas daí. É o caso, por exemplo, daquele general.
- Oh, Deus...
No confuso processo de inventar um personagem, Peter aproveitara um aspecto da vida de Phyllis Maxwel, a carreira dela como jornalista, fabricando em seguida uma pessoa inteiramente diferente. Outra pessoa, não ela! Não Phyllis. A pessoa que ele criara era vítima de uma chantagem. O que não era o caso de Phyllis! Era ficção! Mas a voz que soaria ao telefone no HayAdams não era um produto da ficção.
- Por acaso deixou que alguém mais lesse o original, Tony?
- Claro que não. Acha que vou permitir que alguém descubra como você é impublicável antes que a minha equipe editorial comece a trabalhar no seu original?
Era uma piada costumeira entre os dois, mas desta vez Peter não riu.
- Neste caso, onde está sua cópia?
- Onde? Está na gaveta da minha mesinha de cabeceira... e há seis meses que não somos assaltados.
- Quando viu a cópia pela última vez?
Morgan fez uma pausa, subitamente sério, reconhecendo a intensa preocupação de Peter.
- Na noite passada. E deixei a gaveta trancada.
- Tirou uma xerox para Joshua?
- Não. Ele a receberá depois que editarmos o original. Alguém não teria lido a sua cópia?
- Não. Está na minha mala.
Peter parou de falar de repente. A mala. A sua pasta estava no carro com as malas! A noite em Rockville! O início da manhã, os passos correndo; as horríveis pernas cortadas de um animal; a mala manchada de sangue. Poderia ter acontecido nessa ocasião.
- Não pense mais nisso, Tony. Voltarei a telefonar-lhe dentro de um ou dois dias.
- O que está fazendo em Washington?
- Ainda não sei muito bem. Vim até aqui para descobrii alguma coisa. Mas agora não sei...
Peter desligou antes que Morgan pudesse dizer qualquer coisa.
Ele avistou a varanda branca e a luz fraca a brilhar através do vidro colorido por cima da porta. Todo o quarteirão era ocupado por casas antigas, outrora imponentes, agora já perdidas no tempo.
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- É essa a casa - disse Peter ao motorista. - Muito obrigado e pode ficar com o troco.
O motorista hesitou por um momento, mas acabou falando:
- Ei, moço, posso estar errado e isso talvez não seja da minha conta. Talvez já estivesse esperando por isso, talvez tenha sido o motivo do seu telefonema. Mas acho que foi seguido até aqui.
- Como? Onde está o carro?
Peter virou-se, olhando pela janela traseira do carro.
- Não se dê ao trabalho de procurar, moço. Ele esperou até que diminuíssemos a velocidade e virou à esquerda na esquina ali atrás. Também diminuiu a velocidade. Provavelmente para verificar onde ia parar.
- Tem certeza?
- Como eu disse antes, posso estar enganado. com os faróis acesos à noite, os carros não são muito diferentes. A gente pode se enganar
- Eu compreendo. - Peter pensou por um momento. Quer ficar esperando aqui? Pagarei bem.
- Não, obrigado. Essa corrida me afastou um bocado do meu caminho. A esta altura, a minha velha já deve estar resmungando. Além do mais, Wisconsin fica aqui perto. Vai encontrar uma porção de táxis voltando para o centro.
Peter saltou e fechou a porta. O táxi arrancou. Peter virou-se para contemplar a casa. Exceto pela lâmpada fraca, não havia qualquer outra luz acesa na casa. Contudo, já se passara quase uma hora desde que falara com Phyllis Maxwell. Àquela altura, ela já deveria estar ali. Peter se perguntou se ela estaria em condições de seguir as próprias instruções. Encaminhou-se para a varanda, a fim de verificar se havia mesmo alguém na casa.
Ouviu o clique de uma fechadura no momento mesmo em que pisou no último degrau. A porta se abriu à sua frente, mas ninguém apareceu.
- Phyllis?
- Entre depressa - sussurrou ela, em resposta.
Phyllis estava encostada na parede à esquerda da porta, as costas comprimidas contra o papel de parede desbotado. Na semi-escuridãOj parecia muito mais velha que à luz de vela no restaurante do Hay-Adams. O rosto estava extremamente pálido... de medo. Rugas de tensão acentuavam e aumentavam os cantos da boca. Os olhos dela estavam penetrantes, mas desprovidos do antigo brilho. Não havia agora qualquer curiosidade neles, apenas medo. Peter fechou a porta.
- Não precisa ficar com medo de mim. Nunca precisou. E estou falando sério, Phyllis.
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- Ah, jovem, você é o pior tipo - disse ela, o sussurro impregnado de tristeza e desprezo. - Mata suavemente.
- Mas isso tudo é um absurdo que não tem mais tamanho, Phyllis. Quero conversar com você. E não da maneira como estamos, num lugar onde eu não posso vê-la.
- Não vai acender luz nenhuma!
- Pelo menos agora eu posso ouvi-la.
Subitamente, os pensamentos de Peter retornaram à informação alarmante do motorista do táxi. Havia um carro lá fora. Espreitando, esperando.
- Está certo, não vamos acender nenhuma luz. Mas podemos sentar?
A resposta dela foi um olhar furioso, seguido por um movimento brusco para longe da parede. Peter foi atrás dela. Passaram sob uma arcada e entraram na sala de estar às escuras. À fraca claridade que vinha do vestíbulo Peter pôde avistar poltronas de couro e um imenso sofá. Phyllis seguiu diretamente para a poltrona na frente do sofá. O farfalhar do vestido dela era o único ruído. Peter tirou o sobretudo, jogou-o no braço do sofá e sentou-se diante da moça. O rosto de Phyllis refletia a luz do vestíbulo melhor do que se ela estivesse sentada ao lado dele.
- vou lhe contar uma coisa, Phyllis. Se lhe parecer algo desajeitado, é porque nunca tive de explicar nada parecido antes. Talvez mesmo eu nunca tenha analisado o que é confusamente chamado de processo criativo. - Peter deu de ombros, desdenhando a expressão, e acrescentou: - Fiquei terrivelmente impressionado com você.
- É muito generoso...
- Por favor, deixe-me falar. Sabe o que estou querendo dizer. Meu pai foi jornalista durante toda sua vida. Quando nos encontramos, fiquei muito mais impressionado e intimidado do que você. O fato de querer me entrevistar pareceu-me um absurdo. Deu-me um ânimo novo, num momento em que eu estava precisando muito... e isso nada tinha a ver com os meus livros. Você é parte de alguma coisa muito importante, cujo significado não conheço muito bem. Seja como for, fiquei bastante impressionado. Foi uma noite extraordinária. Bebi demais e você também... Mas qual é o problema?
- Vamos, meu jovem, continue a matar suavemente - sussurrou ela.
Peter prendeu a respiração, controlando-se.
- Fui para a cama com uma mulher maravilhosa. Se é esse o meu crime, então sou culpado.
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- Continue.
Phyllis fechou os olhos.
- Fiz-lhe uma porção de perguntas a respeito de Hoover naqueía noite. E você det-me as respostas, disse-me coisas que eu não sabia. Sua veemência foi eletrizante. Seu senso de moral estava profundamente ofendido, e demonstrou pessoalmente uma raiva que eu jamais tinha encontrado em nada do que escreveu.
- Onde está querendo chegar?
- Isso é parte da minha explicação desajeitada. Eu estava em Washington à procura de fatos em que basear o meu livro. Comecei a trabalhar alguns dias depois. Sua raiva não me saí da cabeça. Ainda por cima, era uma raiva de mulher. E uma mulher inteligente, bem-sucedida. Portanto, era um passo lógico inventai uma variação dessa mulher, alguém possuindo as mesmas características. É essa a minha explicação. Deu-me a ideia para a personagem, mas não é ela. A minha personagem não passa de uma invenção.
- Também inventou um general que foi sepultado ontem em Arlington?
Peter ficou imóvel, perplexo. Os olhos mortos de Phyllis Maxwell observavam-no através da luz difusa.
- Não, não o inventei. Quem lhe falou a respeito dele?
- Tenho certeza de que sabe perfeitamente. Um sussurro horrível, estridente, ao telefone. É terrivelmente eficaz, para algo tão simples. Mas já sabe de tudo isso.
Phyllis espaçava as suas palavras, como se tivesse medo de ouvi-las.
- Não, não sei - murmurou Peter, ignorando realmente o que ela estava querendo dizer, mas começando a perceber a extensão de um terrível esboço. Esforçou-se para permanecvr calmo, para se mostrar controlado, mas sabia que sua raiva estava transparecendo, - Acho que tudo isso já foi longe demais. Sussurros pelo telefone. Palavras pintadas na parede. Casas arrombadas. Animais mortos. Já chega.
Ele levantou-se, virou-se.
- Tudo isso vai acabar! - Peter descobriu o que estava procurando: um abajur grande, em cima de uma mesa. Foi até lá, decidido, estendeu a mão por baixo da aba. encontrou a corrente, puxou-a. A luz se acendeu. - Não vai mais haver gente se escondendo, não vai mais haver salas escuras. Alguém está tentando levá-la à loucura! Alguém está tentando levar Alison à loucura! Alguém está tentando me levar à loucura! Mas já chega! Não vou mais permitir...
Peter não foi além disso. Um vidro numa das janelas da frente explodiu. Ao mesmo tempo, ouviu-se o ruído de madeira sen-
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do lascada. Uma bala havia se encravado em algum lugar. Um instante depois, outro vidro quebrou, os fragmentos se espalhando pelo ar.
Instintivamente, Peter deu um safanão, derrubando o abajur da mesa para o chão. O abajur caiu de lado, a queda amortecida pela aba, a lâmpada ainda acesa, projetando
sombras fantásticas pelo chão.
- Abaixe-se! - gritou Phyllis.
Ao mergulhar para o chão, Peter compreendeu que havia balas, mas não havia estampidos. E recordou no mesmo instante a cena terrível.
O amanhecer em Cloisters! Um homem assassinado diante de seus olhos; um círculo de sangue abruptamente, sem qualquer aviso, no centro de uma testa branca. Um corpo
se contorcendo em espasmos, antes de cair. Também não houve estampidos naquela ocasião. Apenas os zumbidos aterradores, que interrompiam a quietude de lugar e espalhavam
a morte pelo ar.
Mexa-se! Pelo amor de Deus, faça alguma coisa. Em seu; pânico, Peter se jogara na direção de Phyllis, levando-a também para o chão.
Outro vidro explodiu, outra bala arrancou um pedaço do reboco. E depois mais outra, esta ricocheteando na pedra em algum lugar, espatifando o vidro de uma fotografia
emoldurada na parede.
Mexa-se! É a morte!
Peter tinha que chegar ao abajur. com a luz acesa, eram alvos fáceis. Empurrou Phyllis para o lado, mantendo-a abaixada, ouvindo os gemidos de pavor dela. Olhou
para a direita, depois para a esquerda. Pedra! Tinha que haver uma lareira! Estava logo atrás dele e Peter avistou o que estava procurando. Um atiçador encostado
nos tijolos. Avançou para pegá-lo.
Houve uma nova explosão de vidro. Fendas gémeas apareceram numa parede, parcialmente obscurecidas pelas sombras. Phyllis gritou. Por um momento, Peter acalentou
a esperança de que alguém ouvisse. Mas logo recordou-se que a casa ficava na esquina, a casa mais próxima pelo menos a 30 metros de distância. A noite estava fria,
janelas e portas estavam fechadas. Os gritos dela não lhes trariam qualquer ajuda.
Peter. rastejou na direção do abajur, ergueu o atiçador e baixou-o com toda força, como se estivesse matando um animal venenoso.
Mas ainda havia a luz no hall! Adquiria agora a intensidade de um holofote, estendendo-se aos cantos mais remotos, banhando a sala com uma claridade que Peter nunca
julgaria possível. Ele
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correu ale a arcada e arremessou o atiçador na direção da lâmpada no teto. O globo de luz foi espatifado. Tudo ficou escuro.
Peter jogou-se novamente ao chão e rastejou na direção de Phyllis, indagando, num sussurro:
- Onde fica o telefone?
Podia senti-la tremer; ela não era capaz de responder.
- O telefone? Onde está?
Phyllis compreendeu finalmente. Em meio às sombras densas produzidas pelos lampiões distantes, podia ver os olhos dela compreendendo o que ele acabara de dizer. A voz de Phyllis, entre soluços, soou quase inaudível:
- Não está aqui. Há uma tomada, mas não tem telefone.
- O quê?
O que ela estava tentando dizer-lhe? Uma tornada? Mas não tinha telefone?
Mais uma explosão de vidro ocorreu, a bala passando poucos centímetros acima de suas cabeças. Subitamente, lá fora, houve ura estrondo- em contraponto com os disparos abafados. Em seguida, um grito gutural, que cessou abruptamente. Depois, o barulho de pneus rangendo, metal se chocando contra metal. Outro rugido, uma voz furiosa. Uma porta de carro se abriu e fechou.
- A cozinha - sussurrou Phyllis, apontando para a direita, na escuridão.
- O telefone está na cozinha? Onde?
- Por ali.
- Fique abaixada!
Peter rastejou pelo chão como um inseto em pânico, passando por uma arcada e uma porta. Sentiu os ladrilhos da cozinha sob seu corpo. O telefone! Onde estava? Procurou ajustar os olhos àquela nova escuridão.
Passou as mãos ao longo das paredes, o pânico cada vez maior. Telefones na cozinha geralmente ficavam na parede, o fio caído... encontrou o telefone. Levantou a mão direita, tirando o fone do gancho e levando ao ouvido, enquanto a outra se erguia para o disco. À procura do último círculo. O zero.
O telefone estava mudo.
Houve um estrondo ensurdecedor. Vidro espatifado no outro lado da cozinha escura. A parte superior da porta da frente fora quebrada. Um tijolo batei na parede. Haviam arremessado um tijolo pelo vidro.
Um tijolo! A lareira! Vira a coisa no canto da lareira, à direita da grade. Tinha certeza de que estava ali. Era a solução, a única que restava.
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De quatro, meio rastejando, meio correndo, voltou para a escuridão da sala. Phyllis estava toda encolhida ao lado do sofá, paralisada pelo choque.
Lá estava! Só faltava agora que os donos da casa tivessem sido práticos ao deixarem aquilo ali, não pensando apenas num simples objeto decorativo.
Algumas pessoas chamam aquilo de isqueiro da Nova Inglaterra; no Meio-Oeste, era conhecido como starter do Lago Erie. Era uma pedra redonda, porosa, presa na extremidade de uma vareta de metal, dentro de um pote de querosene. Colocada debaixo das achas, na lareira, servia para atear e espalhar o fogo.
Peter tirou a tampa do pote de metal. Havia um líquido lá dentro. Querosene!
A sucessão de zumbidos era cada vez mais intensa. As balas zuniam pelo ar, algumas espatifando novos vidros, outras passando por buracos já abertos. As paredes e o teto absorviam as balas. De vez em quando havia um estalo, quando as balas ricocheteavam em objetos de metal, desviando-se de seu curso.
O suor escorria pelo rosto de Peter. Tinha certeza de que encontrara a solução, mas não sabia como aplicá-la. E, de repente, as palavras lhe ocorreram, saindo de sua própria ficção. Já havia inventado aquela solução antes.
Dobric tirou a camisa e mergulhou-a no tambor de gasolina. A colheita terminara; havia pilhas de feno no campo. O que estava mais perto se incendiaria e o vento se incumbiria de espalhar o fogo. Não demoraria muito para que as plantações estivessem em chamas, desviando pelotões de soldados de sua busca...
Sarajevo! Um incidente assim ocorrera logo depois do assassinato do Arquiduque Ferdinando.
Peter tirou o casaco e a camisa. Arrastou-se pelo chão até a mesa onde antes estivera o abajur. Arrancou a toalha e voltou para a lareira. Estendeu a camisa no chão, pôs a toalha por cima; despejou querosene sobre ambas, aguardando apenas um pouco. Foi até o sofá e pegou uma almofada, sobre ela despejando o resto do querosene.
Havia mais zumbidos lá fora, mais vidros sendo quebrados. Peter teve a impressão de que ia vomitar de tanto medo. A dor nas têmporas ressurgira com tanta intensidade que mal conseguia focalizar qualquer coisa. Fechou os olhos por um instante, querendo gritar, mas sabendo que não podia.
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Colocou o pote de ferro vazio no meio da toalha, dobrando-a e à camisa em torno. Amarrou as mangas da camisa, até que o pote ficasse bem preso. Deixou uma das mangas
estendida. Tirou uma caixa de fósforos do bolso.
Estava pronto. Rastejou até as janelas do lado esquerdo, arrastando a trouxa com o pote de ferro por trás, empurrando a almofada na frente. Levantou-se lentamente,
encostado na parede, fora das vistas de quem estava lá fora, uma das mãos segurando na manga estendida, a almofada encharcada de querosene no chão. Ajeitou a caixa
de fósforos entre as mãos, tirou um fósforo, riscou-o. Largou o fósforo sobre o pano saturado de querosene, que explodiu num jato de fogo.
Em dois movimentos rápidos, Peter balançou a manga para trás e depois arremessou-a para a frente com toda força, largando-a no último instante. O que ainda restava
de vidro foi espatifado pelo pote em chamas, que voou sobre o gramado como uma bola de fogo. O fluxo de ar lá fora intensificou as chamas; o líquido pingou na passagem,
pegando fogo, deixando uma esteira de chamas.
Peter ouviu passos, depois gritos incompreensíveis. E mais passos, agora vindos do lado da casa. Havia homens tentando apagar a bola de fogo. Era o momento para
usar a sua segunda arma. Riscou outro fósforo, segurando-o com a mão esquerda. com a direita, pegou a almofada e encostou-a no fósforo aceso.
Houve novamente uma erupção de fogo, chamuscando os cabelos de seu braço. Ele correu até a janela da extremidade direita e jogou a almofada em chamas pelo vidro quebrado. A almofada foi cair justamente onde ele esperava: na base da varanda branca.
A madeira velha e o fogo de querosene, impelido pelo vento, faziam a união necessária. A varanda começou a arder.
Novamente houve gritos, palavras ditas em alguma língua desconhecida. O que seria? Que língua era aquela? Peter nunca a tinha ouvido antes.
Uma última rajada de tiros abafados foi disparada contra as janelas, a esmo. Peter ouviu um motor potente sendo ligado. Portas de carro se abriram e fecharam, pneus rangeram, o carro se afastou, aumentando a velocidade a cada metro.
Peter correu ao lugar em que deixara Phyllis. Levantou-a, amparando-a, sentindo o seu corpo trémulo.
- Acabou tudo... Está tudo bem agora... Temos que sair daqui. Pela porta dos fundos. Esta casa vai pegar fogo como... uma pilha de feno.
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Phyllis encostou o rosto no peito nu de Peter, as lágrimas rolando sem parar.
- Vamos sair logo. Ficaremos esperando pela polícia lá fora. Alguém verá o fogo e avisará a polícia. Vamos sair logo!
Lentamente, Phyllis levantou a cabeça, fitando-o, um pânico estranho, patético, nos olhos, que Peter pôde perceber claramente à luz das chamas rada vez mais intensas lá fora.
- Não! - disse ela, no mesmo sussurro rouco com que falara antes. - Não! A polícia não!
- Pelo amor de Deus! Tentaram nos matar! É melhor falar com a polícia!
Phyllis afastou-se. Uma estranha passividade parecia dominála. Peter teve a impressão de que ela estava tentando recuperar um mínimo de controle.
- Está sem camisa...
- Tenho o paletó. E um sobretudo. Vamos embora.
- Eu... eu... Minha bolsa. Pode ir buscar minha bolsa? está no hall.
Peter olhou para o hall. A fumaça entrava pelas frestas da porta da frente. A varanda estava em chamas, mas o fogo ainda não entrara na casa.
- Claro.
Peter foi pegar o paletó, que deixara ao lado da lareira.
- Acho que deixei a bolsa na escada. Ou então no armário. Não tenho certeza.
- Está certo. Irei buscá-la. Pode ir saindo da casa. Pela cozinha.
Phyllis virou-se e começou a se afastar. Peter vestiu o paletó e seguiu para o hall, pegando o sobretudo no sofá, na passagem.
Estava tudo acabado. Haveria um longa conversa com a polícia, com outras autoridades, com quem quer que quisesse escutar. Avias aquela noite seria o fim de tudo. Não havia nenhum livro que valesse tanto.
A bolsa não estava na escada. Peter subiu até o meio da escada, mas não encontrou a bolsa. A fumaça estava agora mais densa. Tinha que se apressar. A porta da frente já estava em chamas. Peter desceu os degraus correndo e virou à esquerda, procurando pelo armário. Ficava na extremidade direita do hall. Foi até lá rapidamente e abriu a porta. Havia casacos, dois chapéus, diversos cachecóis, em ganchos e cabides. Mas não havia nenhuma bolsa.
Peter tinha que sair agora, de qualquer maneira. A fumaça estava se tornando quase impenetrável. Ele começou a tossir, os olhos lacrimejavam. Atravessou a sala correndo, passou pela arca-
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da para a sala de jantar, entrou na cozinha, saiu pela porta aberta dos fundos.
A distância, podia ouvir o gemido de sirenes.
- Phyllis?
Peter correu pelo lado da casa até a frente. Ela não estava ali. Ele contornou a casa pelo outro lado, passou pelo caminho de carro, voltou para os fundos.
- Phyllis! Phyllis!
Ela não estava em parte alguma. E foi nesse momento que Peter compreendeu tudo. Não havia bolsa alguma na escada ou no armário. Phyllis havia fugido.
As sirenes estavam mais altas, não mais que a uns poucos quarteirões de distância. A casa velha estava ardendo rapidamente. Toda a parte da frente já estava em chamas e o fogo se espalhava muito depressa pelo interior.
Peter não sabia muito bem por que, mas estava absolutamente convencido de que não podia falar com a polícia sozinho. Não agora, ainda não.
E saiu correndo pela noite.
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A dor nas têmporas fazia com que Peter sentisse vontade de se jogar no chão e bater com a cabeça no meio-fio. Mas ele sabia que isso de nada adiantaria.
Em vez disso, continuou a andar, olhando para o tráfego que seguia para o centro de Washington. Estava à procura de um táxi.
Deveria ter ficado na casa em chamas da Rua 35 e contado a história incrível à polícia. Mas uma parte dele insistia em dizer que se fizesse isso sem a presença de Phyllis, seriam formuladas perguntas para as quais ele não sabia se tinha respostas. Respostas que excluíssem a destruição de Phyllis Maxwell. As sombras da responsabilidade se imiscuíram em seus pensamentos. Havia coisas que ele não sabia, mas tinha que saber de qualquer maneira. Devia pelo menos isso a Phyllis. Talvez não mais, mas pelo menos isso.
Peter finalmente avistou um táxi. A luz amarelada no teto parecia um farol. O táxi diminuiu a velocidade. O motorista examinou-o cautelosamente pela janela, antes de parar.
- Hotel Hay-Adams, por favor - disse Peter.
Ao abrir a porta da suíte, Alison ficou aturdida e exclamou:
- Santo Deus! O que aconteceu?
- Há um vidro de pílulas na minha mala. Na divisão de trás. Pegue-as, por favor. E depressa!
- Peter, meu querido! O que houve? - Ela amparou-o, quando Peter cambaleou contra a porta. - vou chamar um médico.
- Não! Faça o que estou dizendo. Sei exatamente o que tenho. Apenas pegue as pílulas. Depressa.
Peter podia sentir que estava prestes a cair. Segurou-se em Alison e, apoiado nela, cambaleou até o quarto. Deitou-se de costas e gesticulou na direção da mala, ainda fechada, no canto. Alison correu até lá.
Peter íez o que raramente fazia. Tomou duas pílulas.
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Ela correu para o banheiro, voltando segundos depois com um copo com água. Sentou-se ao lado dele, segurando-lhe a cabeça, enquanto lhe dava a água.
- Por favor, Peter, deixe-me chamar um médico.
Ele sacudiu a cabeça, murmurando debilmente e tentando exibir um sorriso tranquilizador:
- iNão. O médico não poderia mesmo fazer nada. Vai passar em poucos minutos.
A escuridão estava começando a envolvê-lo, as pálpebras pareciam terrivelmente pesadas. Mas não podia deixar que a escuridão o dominasse antes de conseguir acalmar Alison. E prepará-la para o que poderia acontecer quando a escuridão fosse total.
- Posso dormir por algum tempo. Não muito. Nunca dura muito tempo. Posso também falar, até mesmo gritar um pouco. Não se preocupe. Isso nada significa. Serão apenas divagações, bobagens sem qualquer importância.
A escuridão dominou-lhe a mente. Começara sua noite especial. Era o nada, ele flutuava, suspenso em brisas suaves.
Abriu, os olhos, sem saber por quanto tempo ficara na cama. Deparou com o rosto adorável de Alison a contemplá-lo, os olhos ainda mais bonitos com as lágrimas que neles brilhavam.
- Ei, está tudo bem - murmurou Peter, estendendo a mão para tocar-lhe o rosto úmido.
Alison segurou a mão dele, comprimindo-a contra os lábios.
- O nome dela era Cathy, não é mesmo?
Peter tinha feito o que não esperava, tinha dito o que não queria. Não havia mais nada a fazer. Ele assentiu.
- Era.
- Ela morreu, não é mesmo?
- Morreu.
- Oh, querido! Tanto sofrimento, tanto amor...
- Sinto muito.
- Não precisa.
- Não pode ser muito agradável para você.
Alison estendeu a mão, tocou-lhe os olhos, depois as faces, os lábios. E murmurou:
- Foi um presente, um lindo presente...
- Não estou entendendo.
- Depois que você falou o nome dela, chamou por mim...
Peter contou a Alison o que acontecera na casa da Rua 35. Procurou atenuar o perigo físico, classificando os tiros a esmo de estratégia do medo, visando aterrorizá-lo, não feri-lo ou matá-lo.
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Era evidente que Alison não acreditava, mas ela era a filha de um soldado. Sob uma forma ou outra, já ouvira antes falsas palavras tranquilizadoras. Aceitou a explicação esfarrapada sem fazer qualquer comentário, deixando que apenas os olhos transmitissem a sua incredulidade.
Ao acabar, Peter foi postar-se ao lado da janela, contemplando as decorações de Natal na Rua 16. Do outro lado da rua, sinos de igreja repicavam numa cadência angustiante. Faltavam poucos dias para o Natal; ele ainda não tinha pensado nisso. E não estava realmente pensando agora. Estava inteiramente concentrado no que tinha de fazer: ir ao FBI, à própria fonte da loucura, fazer com que a loucura cessasse. Mas uma propriedade particular havia sido destruída, armas letais tinham sido disparadas. Phyllis Maxwell teria que acompanhá-lo.
- Tenho que encontrá-la - disse ele, baixinho. - Tenho que fazê-la entender que deve me acompanhar.
- vou procurar o telefone dela para você. - Alison foi pegar o catálogo telefónico na mesinha de cabeceira. Peter continuou a olhar pela janela. - O telefone dela não consta da lista.
Peter recordou-se. O telefone do pai de Alison também não constava do catálogo. Perguntou-se se conseguiria descobrir o telefone de Phyllis tão facilmente quando descobrira o de MacAndrew. Seria uma variação do mesmo estratagema, um truque de jornalista. Um repórter, velho amigo, passando uma noite em Washington, ansioso em encontrá-la.
Mas o truque não funcionou. O homem que atendeu o telefone provavelmente já tinha usado aquele mesmo truque muitas vezes. O jornal simplesmente não podia fornecer o telefone particular de Phyllis Maxwell.
- Deixe-me tentar - disse Alison. - Há um oficial de imprensa de plantão no Pentágono, durante todas as horas do dia e da noite. As más notícias não se limitam ao horário de expediente normal. Ser filha de,um general proporciona alguns privilégios. Certamente conheço alguém de serviço lá ou alguém vai me conhecer.
O Pentágono tinha dois telefones de Phyllis Maxwell. Um era o seu telefone particular, o outro da mesa do prédio de apartamentos em que ela morava.
Ninguém atendeu no telefone particular. A mesa telefónica do prédio não dava informações sobre os moradores; apenas anotava os recados. Mas como o interlocutor não tinha muita certeza do endereço correio, a telefonista forneceu-o.
- Quero ir com você - disse Alison.
- Acho que não deve. Ela mencionou seu pai, não pelo nome, mas com uma alusão a um enterro que houve ontem em
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Arlingíon. Está simplesmente apavorada. Tudo o que quero é convencê-la a me acompanhar até a polícia. Se você for também, ela poderá recuar.
- Está certo. -- A filha do soldado compreendia. - Mas estou preocupada com você. Suponhamos que haja outro ataque?
- Não haverá - Peter ficou calado por um momento, depois estendeu a mão, segurou-a, puxou-a para junto de si, fitando-a nos olhos. - Há algo mais. Não quero envolvê-la. Está tudo acabado. Você mesma disse isso, lembra-se? Não concordei na ocasião... mas agora concordo.
- Obrigada. O que eu estava querendo dizer é que o que quer que papai tenha feito, está feito e não pode ser mudado. Ele representou algo. E não quero que isso seja afetado.
- Também estou pensando em algo importante e que não será mudado. Nem afetado. Nós. - Peter beijou-a de leve. Depois que esta noite acabar, poderemos começar a viver nossas próprias vidas. Uma perspectiva das mais emocionantes para mini.
Alison sorriu e retribuiu o beijo.
- Fui terrível. Peguei-o num momento de fraqueza e o seduzi. Deveria -ser marcada a fogo. - O sorriso dela desapareceu abruptamente. Os olhos estavam fixados nos de Peter, revelando toda a vulnerabilidade dela. - Tudo aconteceu muito depressa. E eu não estou exigindo qualquer compromisso, Peter.
- Mas eu estou.
- Se quiser sentar lá dentro do saguão, senhor, irei falar-lhe daqui a pouco - disse o porteiro do prédio em que Phyllis Maxwell morava.
O homem não hesitou por um instante sequer. Parecia até que estava esperando por Peter.
Peter sentou em uma cadeira de plástico verde e ficou esperando. O porteiro simplesmente continuou lá fora, balançando-se sobre os calcanhares, para frente e para trás, as mãos enluvadas cruzadas por trás do casaco do uniforme.
Era muito estranho.
Cinco minutos se passaram. O porteiro não dava a impressão de que iria entrar no saguão. Será que ele tinha esquecido? Peter levantou-se e olhou ao redor. Falara com uma telefonista. Onde estaria a mesa telefónica do prédio?
Havia um pequeno painel de vidro no fundo do saguão, espremido entre as fileiras de caixas de correspondência e um banco de elevadores. Peter foi até lá e deu uma espiada. A telefonista estava falando por urn bocal do aparelho preso na cabeça. Falava rapidamente, com toda ênfase. A conversa era de amigos, não
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entre telefonista e um estranho. Peter bateu no vidro. A telefonista suspendeu a conversa e levantou o painel de vidro.
- O que deseja, senhor?
- Estou querendo falar com Phyllis Maxwell. Pode ligar para o apartamento dela e deixar-me falar por um momento, por gentileza? É urgente.
A reação da telefonista foi tão estranha quanto a do porteiro. Diferente, é verdade, mas nem por isso menos estranha. Ela hesitou, embaraçada.
- Acho que Miss Maxwel não está.
- Não vai saber enquanto não ligar para o apartamento dela, não é mesmo?
- Já falou com o porteiro?
- Mas que diabo está acontecendo aqui? - Subitamente, Peter compreendeu tudo. Aquelas pessoas estavam seguindo instruções. - Ligue para o apartamento dela!
Como Peter podia ter previsto, ninguém atendeu. Não havia por que desperdiçar mais tempo. Ele atravessou a saguão rapidamente e saiu do prédio, postando-se diante do porteiro.
- Vamos parar com a besteira, está bem? Tem algo a me dizer. O que é?
- É algo meio delicado.
- O que é?
- Ela descreveu-o, disse que se chamava Chancellor. Se chegasse às lOh, eu deveria dizer-lhe que voltasse às 11 h, que ela tinha telefonado informando que só chegaria em casa a essa hora.
Peter olhou para o relógio.
- Está certo. Já são quase 11 horas. O que acontece nesse caso?
- Espere mais um pouco, está certo?
- Não, não está. Agora. Ou então vai ter que dizer o que quer que seja para a polícia e para mini.
- Está bem, está bem. Afinal, faltam apenas alguns minutos. O porteiro enfiou a mão no bolso interno do casaco e tirou
um envelope, entregando-o a Peter.
Peter olhou para o homem, depois para o envelope. Seu nome estava escrito nele. Peter voltou ao saguão, rasgou o envelope e tirou a carta.
Meu caro Peter:
Lamento ter fugido, mas sabia que você me procuraria. Salvou-me a vida e, até certo ponto, também a minha sanidade mental. Por isso, merece uma explicação. Mas, infelizmente, terá que ser limitada.
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Quando estiver lendo esta carta, já estarei num avião. Não tente me descobrir. Seria impossível. Por vários anos, mantive um passaporte falso sempre pronto, sabendo que algum dia poderia ter que usá-lo. Ao que parece, esse momento chegou.
Esta tarde, depois daquele terrível telefonema informando que eu era personagsm de seu romance, comuniquei ao meu jornal que iria tirar uma licença, provavelmente prolongada, por motivos de saúde. Para ser franca, o editor não se esforçou muito em me dissuadir. Meu trabalho não tem sido muito bom nos últimos meses.
A decisão de ir embora não é súbita. Há algum tempo que venho pensando nisso. E o que aconteceu esta noite tornou a decisão irreversível. Quaisquer que tenham sido as minhas faltas, não justificara a perda de vida. Nem a minha, nem a sua, nem a de ninguém mais. Também não devem comprometer minha profissão.
E foi justamente essa última coisa o que aconteceu. Meu trabalho está comprometido. As verdades são suprimidas, quando deveriam ser reveladas. A perda da vida foi evitada - quem sabe por quanto tempo? - graças a você. Não posso mais continuar.
Agradeço-lhe por minha. vida. E peço desculpas por ter pensado que você fazia parte de algo em que não estava metido.
Uma parte de mim diz: pelo amor de Deus, desista do seu livro! Mas é contrabalançada por outra voz que diz que você não pode fazer isso lie jeito nenhum!
Náo voltará a ter notícias minhas, meu caro jovem. Mas sempre terá uma parte do meu amor. E da minha gratidão.
Phyllis
Peter releu a carta, procurando perceber o significado por trás das palavras. Phyllis escolhera as palavras com uma determinação nascida do medo. Mas medo de quê? Quais seriam as "faltas" dela? O que ela poderia ter feito - ou deixado de fazer - que pudesse agora levá-la a renunciar à carreira tão arduamente construída? Aquilo tudo era simplesmente uma loucura!
Era tudo uma loucura. Tudo! E a loucura iria parar! Peter encaminhou-se para a porta. Ouviu um zumMdo prolongado em algum lugar. Parou no momento em que estendeu a mão para a maçaneta da porta. E foi nesse instante que ouviu o barulho do painel de vidro sendo aberto e as palavras:
- Sr. Chancellor? - Era a telefonista quem o chamava, metendo a cabeça pela abertura. - Estão lhe chamando ao telefone.
Phyllis? Talvez ela tivesse mudado de ideia! Peter atravessou o saguão correndo para atender.
Mas não era Phyllis Maxwel. Era Alison.
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- Aconteceu algo terrível, Peter. Um homem de Indianápolis acaba de telefonar. Estava furioso. Ligou do aeroporto, um momento antes de pegar um avião para Washington...
- Quem era ele?
- Um homem chamado Bromley. Disse que vinha a Washington para matá-lo!
Carroll Quinlan OBrien recebeu do guarda os registros da segurança e agradeceu. As portas da Pennsylvania Avenue foram fechadas. A relação dos que haviam entrado e saído seria processada e enviada para a entrada principal. Em todas as ocasiões, sempre havia registro das pessoas que estavam no complexo do FBI. Ninguém tinha permissão de sair sem devolver seu passe.
Um registro de entrada desencadeara tudo, quatro meses atrás, pensou OBrien. Tinha sido o início do seu rápido declínio no FBI. Quatro meses atrás, descobrira três nomes registrados como entrando no prédio à uma hora da madrugada de 1. de maio: Salter, Krepps e Longworth. Dois nomes eram coberturas que na ocasião não estavam atribuídas a nenhum agente, o terceiro pertencia a um agente aposentado que estava vivendo na ilha de Maui, no Pacífico. Esses três homens desconhecidos haviam entrado no prédio de madrugada. Na manhã seguinte, Hoover estava morto e os arquivos do diretor haviam desaparecido, sem deixar o menor vestígio. Os próprios dossiês haviam se transformado num legado do inferno rapidamente esquecido e ninguém queria examiná-los ou investigar seu desaparecimento.
Quinn OBrien tinha feito indagações, discretamente, procurando aqueles que sabia iriam escutá-lo, porque se importavam. Homens como ele, que haviam se sentido profundamente revoltados pelos acontecimentos dos últimos anos. Há mais tempo do que ele. Pois OBrien só tinha chegado ao FBI quatro anos e meio antes, o herói de guerra de Sacramento, o homem da G-2 do Exército, o advogado de 40 anos que escapara de um campo de prisioneiros vietcongues, e posteriormente ganhara desfiles triunfais na Califórnia. Washington o convocara, o Presidente o condecorara. Hoover o contratara. Ele proporcionava ao FBI uma aparência de dignidade desesperadamente necessária. Imaginava-se que isso também seria bom para OBrien; ele poderia ter um futuro no Departamento de Justiça.
Poderia. Agora, tal possibilidade não mais existia, porque ele tinha feito perguntas. Um sussurro ao telefone lhe ordenara que parasse de indagar. Um sussurro terrível, estridente, informando-o do que eles sabiam. E eles tinham um depoimento por escrito de um tenente-coronel capturado pelos vietcongues, que fora executa-
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do juntamente com sete outros homens, por causa das ações de uni certo Major Carroll Quinlan OBrien. O major desobedecera a uma ordem expressa. Em consequência, oito soldados americanos haviam sido executados.
É claro que isso era apenas a metade da história. Havia a outra metade. Esse mesmo major cuidava dos doentes e feridos no campo de prisioneiros com muito mais desvelo e preocupação que o tenente-coronel posteriormente executado; havia assumido pessoalmente o trabalho dos que não tinham forças suficientes para realizá-lo; havia roubado alimentos c medicamentos dos guardas para ajudar a salvar os companheiros; em última análise, havia escapado para libertar outros prisioneiros e a si mesmo.
Ele era um advogado, não um soldado. Fora a lógica do advogado que o guiara, não a estratégia de um soldado. Nem a disposição de um soldado de aceitar as crueldades insuportáveis da guerra. OBrien compreendia perfeitamente que era nisso que estava o ponto fraco de sua argumentação. O que ele fizera fora realmente por todos? Ou estava preocupado exclusivamente consigo mesmo?
OBrien não tinha certeza se havia uma resposta definida. Mas essa questão poderia destruí-lo. Um "herói de guerra" desmascarado era o mais desprezível dos cidadãos. As pessoas tinham sido enganadas e se sentiam embaraçadas - exatamente isso as deixava mais furiosas.
O sussurro terrível tinha-lhe mostrado essas coisas. E tudo porque ele havia feito algumas perguntas. Três homens desconhecidos, sem qualquer explicação, haviam entrado no prédio do FBI na noite anterior à morte de Hoover. E na manhã seguinte os arquivos particulares de Hoover tinham desaparecido.
Se OBrien precisasse de provas do seu continuado declínio no serviço teria apenas que olhar para a sua ordem de atividades. Fora afastado de diversos comités, não mais recebia os relatórios confidenciais sobre as ligações recentemente restabelecidas com a CIA e outros órgãos da comunidade do serviço secreto. E estava começando a ser frequentemente designado para plantões noturnos. Plantão noturno! Era o equivalente de Washington ao serviço de campo em Omaha. Obrigava um agente a reavaliar uma porção de coisas, a começar por seu próprio futuro.
E também levava OBrien a pensar em quem seria, dentro do FBI, o desconhecido que o estava perseguindo. Quem quer que fosse, sabia alguma coisa sobre três homens não identificados que haviam se infiltrado no prédio na noite anterior à morte de Hoover. E quem quer que fosse provavelmente sabia muita coisa a respeito de centenas e centenas de dossiês que constituíam os arquivos particulares de Hoover.
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E obrigava OBrien a mais uma consideração, na qual não gostava de pensar. Mas desde que o sussurro lhe falara ao telefone, há quatro meses atrás, ele perdera inteiramente
a vontade de resistir, o desejo de lutar. Era bem possível que seu declínio no FBI se devesse a ele mesmo, a seu recente desempenho.
A campainha do telefone interrompeu-lhe os pensamentos, trazendo-o de volta à realidade do plantão noturno. OBrien olhou para o botão aceso. Era um telefonema interno, de uma das duas mesas que estavam em funcionamento.
- Aqui é a recepção da Rua 10. Estamos com um problema. Há um homem aqui embaixo que insiste em falar com quem quer que seja no comando neste momento. Nós lhe falamos para voltar de manhã, mas ele se recusa a ir embora.
- Ele está bêbado? Ou por acaso é maluco?
- Não posso dizer que seja uma coisa ou outra. Para dizer a verdade, sei quem ele é. Li um dos livros que escreveu, Contraataque! O nome do cara é Peter Chancellor.
- Já ouvi falar. O que ele está querendo?
- Não quer dizer. A única coisa que falou foi que é uma emergência.
- O que acha?
- Acho que ele vai passar a noite inteira aqui, até que alguém o receba. E acho que vai ter de ser você, Quinn.
- Está certo. Verifique se ele está armado, providencie uma escolta e mande trazê-lo até aqui em cima.
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Peter entrou na sala, agradecendo ao guarda uniformizado, que fechou a porta e se retirou. Por trás da mesa, na frente da lanela, um homem corpulento, de cabelos
castanho-avermelhados, levantou-se e estendeu-lhe a mão. Peter aproximou-se e apertou a mão estendida. O aperto foi estranho, frio, fisicamente frio, e abrupto.
- Sou o Agente OBrien, Sr. Chancellor. Tenho certeza de que não preciso dizer-lhe que sua presença aqui, a esta hora, é altamente irregular.
- As circunstâncias são irregulares.
- Tem certeza de que não quer ir à polícia? Nossa jurisdição é limitada.
- Quero o FBI.
- O que quer seja, não pode esperar até amanhã? - indagou OBrien, ainda de pé.
- Não.
- Está certo. Sente-se, por favor.
O agente gesticulou para uma das duas cadeiras diante da escrivaninha. Peter hesitou.
- Eu prefiro ficar de pé, pelo menos por enquanto. Para dizer a verdade, estou muito nervoso.
- Faça como preferir. - OBrien tornou a sentar. - Mas pelo menos tire o sobretudo. Isto é, se tenciona se demorar por algum tempo.
- Posso ter que passar o resto da noite aqui - disse Peter, tirando o sobretudo e colocando-o numa cadeira.
- Eu não contaria com isso - comentou OBrien, observando-o atentamente.
- Deixarei que decida. Está bem assim?
- Sou um advogado, Sr. Chancellor. Respostas elípticas, especialmente quando formuladas como perguntas, são despropositadas e irritantes. Não me agradam.
- É advogado? Pensei que tivesse dito que era um agente.
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- E sou. A maioria dos agentes é constituída por advogados. Ou contadores.
- Eu tinha esquecido.
- Pois acaba de ser lembrado. Não creio, porém, que isso seja pertinente.
- Não, não é - respondeu Peter, fazendo um esforço para se concentrar novamente no problema que o levara até ali. Tenho uma história para contar-lhe, Sr. OBrien. Quando terminar poderei acompanhá-lo a quem quer que julgue que deva ouvi-la também. Mas devo começar pelo princípio; de outra forma, não faria sentido. Antes de qualquer coisa, no entanto, gostaria de lhe pedir que desse um telefonema.
- Ei, espere um pouco! Veio aqui voluntariamente e recusou nossa sugestão de voltar pela manhã para uma reunião formal. Não vou aceitar nenhuma condição prévia e não vou dar nenhum telefonema.
- Tenho uma boa razão para fazer-lhe tal pedido.
- Se é uma condição prévia, não estou interessado. Volte pela manhã.
- Não posso! Entre outros motivos, porque há um homem vindo de avião de Indianápolis com a intenção de matar-me.
- Procure a polícia.
- Isto é tudo o que tem a dizer, além de "Volte pela manhã"? O agente recostou-se na cadeira, os olhos deixando transparecer a sua crescente suspeita.
- iNão escreveu um livro chamado Contra-ataciuen
- Escrevi. Mas isso não...
- Estou lembrando agora - interrompeu-o Brien. - Foi publicado no ano passado. Muita gente pensou que fosse verdade. E houve também quem ficasse profundamente aborrecido.
Disse que a CIA estava realizando operações internas.
- Estou convencido de que isso é verdade.
- Estou entendendo - murmurou o agente, cautelosamente.
- No ano passado, foi a CIA. Este ano será o FBI? Aparece aqui repentinamente no meio da noite, tentando provocar-nos a fazer alguma coisa sobre a qual possa depois escrever. É esse o seu objetivo?
Peter segurou o encosto da cadeira, apertando com toda a força.
- Não vou negar que tudo começou com um livro. com a ideia para um livro. Mas já foi muito além. Pessoas foram mortas. É esta noite eu quase fui assassinado, assim como a pessoa que estava comigo. Está tudo relacionado.
- vou repetir mais uma vez: procure a polícia.
- Quero que telefone para a polícia.
- Por quê?
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- Para acreditar em mim. Porque envolve pessoas que são do FBI. E acho que vocês são os únicos que podem deter o que está acontecendo.
OBrien inclinou-se para a frente, ainda cauteloso, mas subitamente atraído.
- Deter o quê?
Peter hesitou. Tinha que parecer racional diante daquele hornem desconfiado. Se o agente pensasse que ele era um lunático, iria entregá-lo à polícia. Peter não rejeitava a polícia; podia proporcionar-lhe proteção e isso seria ótimo. Mas a polícia não poderia encontrar uma solução. Só o FBI poderia. Ao falar, ele procurou se mostrar o mais calmo possível:
- Deter as mortes, antes de mais nada. E depois deter o terror, a extorsão, a chantagem. Há muitas pessoas sendo destruídas.
- Por quem?
- Por outras que julgam possuir informações que podem afelar irreparavelmente o FBI.
OBrien permaneceu imóvel.
- E qual é a natureza desses danos irreparáveis?
- Pode ser encontrada na teoria de que Hoover foi assassinado.
CTBrien ficou rígido.
- Entendo. E qual o motivo desse telefonema para a polícia?
- Uma casa velha na Rua 35-Noroeste, perto da Wisconsin, por trás de Dumbarton Oaks. Estava pegando fogo quando a deixei, há algumas horas atrás. E fui eu que provoquei o incêndio, dissera, quaisquer que fossem suas faltas, não justificavam a perda
Os olhos do agente se arregalaram, a voz insistente:
- Está fazendo uma confissão. Como advogado, eu diria... Peter não deixou o agente continuar:
- Se a polícia procurar, vai encontrar cápsulas de balas no gramado da frente, buracos de balas nas paredes e nos móveis. E os fios do telefone cortados.
- Que diabo está querendo dizer?
- Foi uma emboscada.
- Andaram disparando armas no meio de um bairro residencial.
- Os estampidos foram abafados por silenciosos. Ninguém ouviu nada. Houve períodos de suspensão do fogo, provavelmente por causa dos carros que passavam. Foi por isso que pensei no incêndio. O fogo não poderia deixar de ser avistado por alguém.
- E deixou o local?
- Fugi. Mas agora estou arrependido de tê-lo feito.
- E por que o fez? Peter hesitou novamente.
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- Eu estava confuso. E apavorado.
- E a pessoa que estava com você?
- Creio que também estava envolvida. - Peter fez uma pausa, percebendo a indagação óbvia nos olhos do diretor. Por uma centena de razões, não podia protegê-la. Como a própria Phyllis dissera, quaisquer que fossem suas faltas, não justificavam a perda da vida. - O nome dela é Phyllis Maxwell.
- A jornalista?
- Exatamente. Ela fugiu primeiro. Tentei encontrá-la, mas não consegui.
Disse que tudo isso aconteceu há várias horas. Sabe onde ela está agora?
- Sei. Está num avião.
Peter meteu a mão no bolso do casaco e tirou a carta de Phyllis. Relutantemente, mas sabendo que não havia alternativa, entregou-a a OBrien.
Enquanto o agente lia, Peter teve a nítida impressão de que alguma coisa estava acontecendo com ele. Por um momento, a cor pareceu sumir do rosto de OBrien. Em determinada ocasião, ele levantou os olhos da carta e fitou Peter, que conhecia muito bem a expressão transmitida, embora não a compreendesse vindo daquele estranho. Era uma expressão de medo.
Ao terminar de ler, o agente pôs a carta em cima da mesa, virada para baixo, tirou um folheto da gaveta, abriu-o numa página determinada e pegou o telefone. Apertou um botão e discou.
Aqui é Q FBI, um dos agentes de plantão, código de emergência sete-cinco-oito. Houve um incêndio numa casa na Rua
35-Noroeste. Perto da Wisconsin. Há alguém no local?... Pode, por favor, transferir a ligação para o oficial encarregado? Obrigado.
OBrien olhou para Peter. Falou rispidamente; não era um convite, mas sim uma ordem,
- Sente-se.
Peter obedeceu, compreendendo vagamente que, apesar do tom autoritário do agente, o estranho medo que vira nos olhos dele estava agora também na voz.
- Sargento, aqui é o FBI. - O agente transferiu o telefone para a mão direita. Aturdido, Peter percebeu que a palma da mão esquerda de OBrien, a mão que antes segurava o fone, estava molhada de suor. - Já recebeu o meu código. Quero fazer-lhe algumas perguntas. Há algum indício sobre a maneira como o incêndio começou? Há sinais de tiros? Foram encontradas cápsulas deflapradas na frente da casa e buracos de bala no interior?
O agente ficou escutando, os olhos fixos na mesa, sem ver nada, realmente. Peter o observava, impressionado. Pequenas gotas
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de suor afloraram na testa de OBrien. Distraidamente, ele prendeu a respiração, levantou a mão esquerda e limpou o suor da testa. Quando finalmente falou, a
voz era quase inaudível:
- Obrigado, Sargento. Não, não é um caso nosso. Não sabemos de nada, apenas seguimos uma pista anónima. Mas não tem nada a ver conosco.
OBrien desligou. Estava profundamente perturbado; havia uma tristeza súbita em seus olhos. Fitou Peter e disse:
- Pelo que se pôde verificar, o incêndio foi até:;ado deliberadamente. Foram encontrados restos de pano embebido em querosene. Havia cápsulas deflagradas no gramado,
janelas quebradas. Há motivos para se acreditar que foram disparados tiros contra o interior e que se encontrarão as balas entre os destroços. Eles vão fazer exames de laboratório meticulosos.
Peter inclinou-se bruscamente para a frente. Alguma coisa estava
errada.
- Por que disse ao sargento que não sabia de nada? O agente engoliu em seco.
- Porque quero ouvir o que tem a dizer. Declarou que envolvia o FBI, falou numa teoria absurda do assassinato de Hoover. È o suficiente para mim. Sou um profissional e quero primeiro ouvir sua história. E posso a qualquer momento pegar o telefone e ligar novamente para aquela delegacia.
OBrien apresentou sua explicação numa voz calma, visivelmente controlada. Mas era uma explicação aceitável, pensou Peter. Tudo o que já aprendera sobre o FBI dizia que um dos pontos vitais era a preocupação com as relações públicas. Evitar situações embaraçosas a qualquer custo. Proteger a Sede do Governo. Recordou-se de repente das palavras de Phyllis Maxwell.
A história não foi contada e creio que jamais será... O FBI taberá se proteger... Os herdeiros aparentes não vão permitir que a imagem seja maculada. Nem que possa haver uma infecção, no que estão absolutamente certos.
É isso mesmo, pensou Peter. CTBrien se ajustava perfeitamente a esse quadro. E o fardo que trazia era ainda mais pesado, por ser o primeiro a tomar conhecimento das notícias extraordinárias. Havia algo de podre no FBI e aquele agente teria que transmitir a mensagem dessa podridão a seus superiores. Seu dilema era compreensível. Os emissários geralmente eram responsabilizados pelas catástrofes que comunicavam; no final das contas, a infecção podia se espalhar. Não era de admirar que aquele homem estivesse suando tanto.
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Mas nada em sua imaginação preparou Peter para o que se seguiu.
- vou começar pelo princípio - disse Peter. - Há quatro ou cinco meses, eu estava na Califórnia, morando em Malibu. Ao final de uma tarde, um homem apareceu na praia e ficou olhando para a minha casa. Fui ao seu encontro e perguntei-lhe por quê. Ele me conhecia. Disse que seu nome era Longworth.
OBrien inclinou-se bruscamente para a frente, os olhos fixados nos de Peter. Os lábios dele formaram o nome, mas emergiu apenas um sorriso quase inaudível:
- Longworth!
- Isso mesmo, Longworth. Quer dizer que sabe quem ele é.
- Continue - sussurrou o agente.
Peter compreendia a causa do choque de CTBrien. Alan Longworth traíra Hoover, desertara do FBI. De alguma forma, a notícia transpirara. Mas Hoover estava morto, o desertor a meio mundo de distância, a mancha fora removida. Agora o Agente OBrien tinha que ouvir a notícia de que o desaparecido Longworth ressurgira repentinamente. Estranhamente, Peter sentiu pena daquele profissional de meia-idade.
- Longworth disse que queria conversar comigo porque havia lido meus livros. Tinha uma história a contar e achava que eu era o mais apropriado para escrevê-la. Declarei que não estava querendo saber de nada. Foi nesse momento que ele fez a declaração extraordinária sobre a morte de Hoover, vinculando-a a alguns arquivos particulares, que estariam desaparecidos. Ele pediu-me que verificasse seu nome. Eu dispunha de fontes para isso, algo que Longworth sabia. Sei que parece absurdo, mas a verdade é que mordi a isca. Não acreditava na história. Hoover era um homem já velho e que sofria do coração. Mas a ideia me fascinava. Além do mais, o fato de Longworth ter-se dado ao trabalho...
OBrien levantou-se bruscamente. Ficou de pé atrás da escrivaninha, olhando fixamente para Peter, os olhos ardendo.
- Longworth. Os arquivos. Quem o mandou me procurar? Quem é você? E quem eu represento para você?
- Como?
- Espera que eu acredite na sua história? Aparece aqui de repente, no meio da noite, e vem me contar tudo isso! Pelo amor de Deus, o que está querendo de mim? O que mais estão querendo?
- Não sei do que está falando - disse Peter, desconcertado.
- Nunca o vi antes em toda a minha vida.
- Salter e Krepps! Vamos, continue, diga logo! Salter e Kreppxf Eles também estavam!
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- Quem são Salter e Krepps?
OBrien virou-se. A respiração era ofegante.
- Sabe perfeitamente quem eles são. Coberturas para agentes, que na ocasião não estavam sendo usadas. E Longworth está ntf Havaí.
- Ele vive atualmente em Maui - concordou Peter. - Foi assim que o recompensaram. Nada sei a respeito dos outros dois nomes. Ele não os mencionou. Os dois trabalhavam com Longworth?
OBrien ficou imóvel, o corpo rígido. Virou-se lentamente, fitando Peter outra vez, os olhos semicerrados. E perguntou, a voz um mero sussurro:
- Se trabalhavam com Longworth? O que está querendo dizer com isso?
- Apenas isso. Longworth foi transferido do FBI, para trabalhar com o Departamento de Estado. Mas isso não era verdade. Não passava de um disfarce. Descobri pelo menos isso. O que me espanta é o fato de vocês ainda pensarem em Longworth.
O agente continuou a fitar Peter em silêncio, os olhos assustados se arregalando, até que finalmente murmurou:
- Você está limpo...
- Como?
- Está limpo. Aparece aqui de repente, saindo do nada, e está limpo!
- Como assim?
- Se não estivesse, não me diria o que acabou de falar. Só se fosse louco. Um disfarce... e com o Departamento de Estado! Essa não!
OBrien parecia um homem em transe e estava consciente disso. Sentia que estava num estado de suspensão, mas era incapaz de se controlar. Segurou-se na escrivaninha, as duas mãos comprimindo fortemente a madeira. Fechou os olhos. Peter ficou alarmado.
- Talvez seja melhor me levar a alguém mais.
- Não! Espere um minuto. Por favor.
- Acho melhor não. - Peter também se levantou. - Como você mesmo disse, esse não é um caso seu. Quero falar com um dos outros oficiais do plantão noturno.
- Não há mais ninguém.
- Mas disse ao telefone...
- Sei o que disse! Tente compreender. Você tem que falar comigo. Tem que me contar tudo o que sabe. Todos os detalhes!
Nunca, pensou Peter. Não faria qualquer menção a Alison, não podia envolvê-la. Como também não tinha certeza se devia
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dizer mais alguma coisa àquele homem estranhamente perturbado.
- Quero que outros também ouçam o que tenho a dizer. OBrien piscou diversas vezes. Õ transe estava desfeito. Ele
caminhou rapidamente até uma prateleira no outro lado da sala, pegou um gravador cassete e voltou à escrivaninha. Sentou-se e abriu a gaveta do fundo. Ao levantar a mão, segurava uma caixa de plástico onde havia uma fita cassete.
- O lacre está intacto, a fita ainda não foi usada. Poderei tocá-la toda para que possa verificar, se quiser. - O agente abriu a caixa, tirou a fita, colocou-a no gravador. - Tem a minha palavra. Outros irão ouvir o que tem a dizer.
- Uma gravação não vai servir.
- Tem que confiar em mim. Pense o que quiser do meu comportamento nos últimos minutos, mas confie em mim. Pode simplesmente contar a sua história na fita. Não precisa se identificar. Descreva a si mesmo como um escritor. Não precisa dizer mais nada. Use todos os outros nomes envolvidos, exceto aqueles que lhe sejam associados pessoal ou profissionalmente. Se isso se tomar impossível, se a participação dessas pessoas nos acontecimentos não puder ser contornada, levante a mão. Pararei a fita e me contará tudo, sem gravar. Está certo assim?
- Não! Agora é você que vai esperar um pouco! Não foi para isso que vim aqui!
- Veio aqui para tentar parar tudo o que está acontecendo. Foi o que me disse. Parar os assassinatos, parar o terror, parar a chantagem. Pois é o que eu também quero! Não é o único que está sendo encostado contra a parede! Nem essa tal de Phyllis Maxwell, nem qualquer um dos outros! Oh, Deus, também tenho mulher e filhos!
Peter recuou, aturdido com as palavras de OBrien.
- O que foi mesmo que disse?
O homem do FBI baixou a voz, parecia envergonhado.
- Também tenho uma família. Mas isso não é importante agora. Esqueça.
- Ao contrário, acho que é tudo muito importante. Eu nem mesmo saberia dizer o quanto é importante para mim nesse momento.
OBrien interrompeu-o, voltando a ser, abruptamente, o completo profissional:
- Nem precisa se dar ao trabalho de tentar explicar. Porque, agora, eu é que vou passar a falar. Vamos começar a gravação. Lembre-se do que eu disse: não se identifique, mas use os nomes de todos os que se aproximaram de você ou lhe foram encaminhados... pessoas que não conhecia anteriormente. Dê-me os no-
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mês das outras pessoas depois, fora da gravação. Não quero que o descubram. Fale bem devagar, pense no que está dizendo. Se tiver alguma dúvida, basta olhar para mim que saberei. vou começar agora. Dê-me só um momento para apresentar minha identificação e as circunstâncias.
ÓBrien apertou dois botões do pequeno gravador e disse, em voz precisa:
- Esta gravação está sendo preparada pelo Agente C. Quinlan OBrien, identificação dezessete-doze, na noite de 18 de dezembro, às 23 horas aproximadamente. O homem
que vão ouvir foi escoltado até o gabinete do oficial de plantão noturno. Retirei o nome dele dos registros de segurança e determinei ao agente na recepção que me comunicasse toda e qualquer inquirição a respeito, sob o código de segurança dezessete-doze anteriormente mencionado. - OBrien fez uma pausa, pegou um lápis e escreveu uma anotação para si mesmo, num bloco sobre a mesa. - Considero as informações contidas nesta gravação altamente confidenciais e por razões de segurança não posso admitir qualquer interferência. Compreendo a irregularidade dos métodos que estou empregando e, por razões pessoais, assumo toda a responsabilidade.
O agente parou o gravador e olhou para Peter.
- Está pronto? Comece no verão passado. Em Malibu e no seu encontro com Longworth.
Ele tornou a apertar os botões, a fita recomeçou a rodar. Peter começou a narrar os acontecimentos, falando lentamente, procurando seguir as instruções daquele homem que, subitamente, estranhamente, conhecia tão bem. Aquele homem que, de certa forma, era parte de sua própria invenção. C. Quinlan OBrien. Alexander Meredith. Advogado. Advogado. O FBI. O FBI. Esposa e filhos... Esposa e filhos...
Homens apavorados.
OBrien foi ficando cada vez mais abalado à medida que Peter ia contando a história, ao mesmo tempo aturdido e perturbado com os incidentes descritos. Sempre que Peter aludia aos arquivos particulares de Hoover, o agente ficava tenso, suas mãos tremiam.
Quando Peter relatou a descrição de Phyllis do sussurro horrível e estridente, CTBrien não conseguiu ocultar sua reação. Respirou fundo, encolheu o pescoço, fechou os olhos.
Peter parou de falar. A fita continuou a rodar. Houve silêncio. CTBrien abriu os olhos, fitando o teto. Lentamente, voltou a fixar Peter, dizendo simplesmente:
- Continue.
- Não há muito mais a dizer. Já leu a carta dela.
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- Tem razão. Mas descreva o que aconteceu. Os tiros, o fogo. Por que fugiu.
Peter obedeceu. E, pouco depois, estava acabado. Ele contara tudo. Ou quase tudo. Não mencionara Alison.
OBrien parou a fita, voltou-a por alguns segundos, tocou um trecho da gravação, para verificar se estava suficientemente clara. Satisfeito, fechou o gravador.
- Muito bem. Já falou tudo o que desejava. E agora conte-me o resto.
- Que resto? ....
- Eu lhe pedi que confiasse em mim. Sei que não contou tudo. Estava escrevendo na Pensilvânia e abruptamente vem parar em Washington. Por quê? Segundo disse, já havia concluído sua pesquisa. Fugiu de uma casa em chamas na Rua 35 há cerca de cinco horas. Está aqui há duas horas. Onde esteve durante essas três horas de diferença? E com quem? Preencha as lacunas, Chancellor. São importantes.
- Não. Isso não faz parte do nosso acordo.
- Que acordo? De proteção? - OBrien levantou-se, furioso.
- Como posso oferecer-lhe proteção, seu idiota, se não sei a quem proteger? E não tente se enganar, pois o que mais está precisando nesse momento é de proteção. Além do mais, eu não levaria - eu, ou qualquer outra pessoa que estiver interessada - mais que uma hora para descobrir todos os seus movimentos desde que deixou a Pensilvânia.
A lógica do agente era incontestável. Peter teve a sensação de que era um amador despreparado enfrentando um profissional calejado.
- Não quero que ela seja envolvida. Terá que me dar sua palavra. Ela já sofreu demais.
- O mesmo já aconteceu com todos nós. Ela também recebeu um telefonema?
- Não. Mas você recebeu, não é mesmo?
- Eu é que estou fazendo as perguntas. - O agente voltou a sentar. - Fale-me a respeito dela.
Peter contou a história do General Bruce MacAndrew, a esposa e a filha, obrigada a crescer prematuramente. Descreveu a casa isolada numa estradinha rural de Maryland e as palavras escritas na parede: Mac, o Traidor. Matador de Chasong.
Quinn OBrien fechou os olhos e disse baixinho:
- Han Chow.
- Isso é na Coreia?
- Uma guerra diferente. Mas foi o mesmo método de pressão: registros militares que jamais chegaram ao Pentágono. Ou, se chegaram, foram removidos. E agora estão
com alguém.
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Peter prendeu a respiração.
- Está falando dos arquivos de Hoover?
OBrien ficou olhando para ele sem responder. Peter sentiu que desmoronava; a insanidade era total.
- Os arquivos foram destruídos - murmurou Peter, tremendo interiormente. - Que diabo está querendo insinuar? É um livro, nada mais que um livro! Nada disso é real! Tem que proteger o seu maldito FBI! Mas não isso! Não os arquivos!
OBrien levantou-se, erguendo as mãos. Era um gesto tranquilizador, um pai procurando acalmar um filho histérico.
- Fique calmo. Não falei coisa alguma a respeito dos arquivos de Hoover. Passou por muita coisa esta noite e agora começa a fazer suposições. Por um segundo, também fiz. Mas é um erro. Depois, incidentes isolados, envolvendo registros militares, não chegam a constituir um padrão. Os arquivos foram destruídos. Não temos a menor dúvida quanto a isso.
- O que é Han Chow?
- Isso não vem ao caso.
- Um minuto atrás, achou que vinha.
- Um minuto atrás, muitos pensamentos me passaram pela cabeça. Mas tudo está mais claro agora. Você está certo. Alguém o está usando. A mim também e provavelmente a mais algumas pessoas. Para destruir o FBI. Alguém que nos conhece está a par da magnitude desse órgão, e de como ele funciona. Ê possível que seja um de nós. Não seria a primeira vez.
Peter estudou atentamente o homem do FBI. Desde a morte de Hoover que circulavam rumores, alguns publicados pelos jornais, de que facções internas do FBI estavam lutando entre si. E a sinceridade de Quinn era convincente.
- Desculpe - disse ele. - Mas você me deixou aterrorizado,
- Tem todo direito de ficar assim. Muito mais do que eu. Afinal, ninguém atirou em cima de mim. - OBrien sorriu, querendo tranquilizá-lo: - Mas isso está acabado. vou providenciar alguns homens para protegê-lo durante as 24 horas do dia.
Peter retribuiu o sorriso, debilmente.
- Quem quer que eles sejam, espero que sejam os melhores. Não me importo de dizer que nunca senti tanto medo em toda a minha vida.
O sorriso desapareceu do rosto de OBrien.
- Quem quer que eles sejam, não serão do FBI.
- É mesmo? E por que não?
- Não sei em quem confiar.
- Se é assim, aparentemente sabe que há pessoas em que não pode confiar. Pensa em alguém em particular?
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- Em mais de um. Há um bando de extremistas aqui. Conhecemos alguns, mas não todos. São chamados de Grupo Hoover. Quando Hoover morreu, eles pensaram que iriam tomar conta do FBI. Mas não conseguiram e estão furiosos. Alguns são tão paranóicos quanto o próprio Hoover o era.
Peter ficou outra vez aturdido com as palavras de OBrien. Era a confirmação de sua impressão original. Tudo o que acontecera, de Malibu a Rockville e à casa velha na Rua 35, era o resultado de uma violenta luta interna no FBI. E Longworth havia reaparecido.
- Fizemos um acordo, CTBrien. Quero proteção. Para mini e para Alison.
- Você a terá.
- De onde? De quem?
- Falou no Juiz Sutherland. Há cerca de dois anos, ele foi o intermediário para restabelecer as ligações interrompidas entre o FBI e o resto da comunidade do serviço secreto. Hoover tinha suspendido o fluxo de informações para a CIA e o Conselho de Segurança Nacional.
- Sei disso. Escrevi um livro a respeito.
- Foi Contra-ataque!, não é mesmo? Acho que está na hora de eu ler esse livro.
- vou mandar um exemplar para você. E você me providencia proteção. Mas repito: De onde? De quem?
- Há um homem chamado Varak. É um homem ligado a Sutherland. Ele me deve um favor.
CTBrien desabou na cadeira. Inclinou a cabeça para trás, a respiração rápida e irregular, como se não conseguisse aspirar ar suficiente para satisfazer os pulmões. Depois inclinou o rosto para a frente, encostando-o nas mãos. Podia sentir os dedos tremendo.
Tinha, a um determinado momento, pensado se conseguiria seguir adiante. Por algumas vezes, durante as duas últimas horas, chegara a pensar que iria desmoronar por completo.
O pânico do escritor tinha-lhe ajudado a aguentar os últimos minutos. A compreensão de que Chancellor tinha de ser controlado; não se podia deixar que ele descobrisse a verdade.
Os arquivos de Hoover não tinham sido destruídos, como Quinn já sabia. Pelo menos isso parecia certo. E agora alguém mais também sabia. Quantos mais? Quantos telefonemas teriam sido dados? Quantos outros teriam sido procurados pelo sussurro estridente e terrível? Um general morto, um deputado assassinado, uma jornalista desaparecida...
quantos mais?
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As coisas já não eram como duas horas antes. A revelação cie Peter Chancellor significava que havia um trabalho a fazer rapidamente. Para seu imenso alívio, CTBrien descobriu que estava novamente começando a pensar que era capaz de fazê-lo.
Pegou o telefone e discou para o Conselho de Segurança Nacional. Mas não conseguiu encontrar Stefan Varak.
Onde estaria Varak? Que tipo de missão estaria isolando o agente do Conselho de qualquer contato como o FBI? Especialmente ele? Varak e ele eram amigos. Dois anos antes, Quinn assumira um tremendo risco, por Varak. Fornecera-lhe informações que Hoover proibira que fossem transmitidas. Isso poderia ter-lhe custado a carreira.
Agora ele estava precisando de Varak. Entre todos os homens da comunidade do serviço secreto, Varak era o melhor. Suas áreas de conhecimento e a extensão de seus contatos eram extraordinárias. Era o homem que Quinn queria que fosse o primeiro a ouvir a fita gravada por Chancellor. Varak saberia o que fazer.
Enquanto esperava por Varak, OBrien já tinha providenciado uma- proteção temporária para o escritor. O nome dele fora removido dos registros de segurança, toda e qualquer inquirição deveria ser encaminhada a OBrien. Havia alguns homens na CIA a quem Quinn fornecera informações durante o período de proibição de Hoover. Quando lhes informara que o homem a ser protegido era o autor de Contra-ataque!, os dois homens com quem falou quase se recusaram a prestar qualquer colaboração. Mas é claro que não haviam recusado. Eram homens sensatos na mais insensata das profissões e todos precisavam se ajudar mutuamenle. Caso contrário, homens insensatos iriam assumir o controle e isso seria o desastre total.
Talvez já tivessem assumido. Talvez o desastre já tivesse começado.
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A escolta do FBI efetuou a entrega no saguão do Hay-Adams. A mercadoria era Peter. O recebimento foi acusado por um aceno e um correspondente "OK. . . Boa-noite",
pronunciado polidamente pelo homem da CIA.
No elevador, Peter tentou puxar conversa com aquele estranho que se oferecera voluntariamente para protegê-lo.
- Meu nome é Chancellor - disse ele, tolamente.
- Sei disso. Li seu livro. Disse uma porção de coisas a nosso respeito.
Não era um cumprimento dos mais tranquilizadores.
- Não foi a minha intenção. Tenho vários amigos na CIA.
- Quer apostar?
O que era ainda menos tranquilizador.
- Há um homem chamado Bromley que está vindo de avião de Indianápolis.
- Já sabemos. Ele tem 65 anos e a saúde precária. Estava armado ao embarcar no aeroporto de Indianápolis. Como tem licença, a arma supostamente deverá ser-lhe devolvida ao desembarcar. Mas isso não vai acontecer. A arma vai se extraviar.
- Ele pode arrumar outra arma.
- Não é provável. OBrien pôs um homem para vigiá-lo.
O elevador chegou ao andar, as portas se abriram. O homem da CIA bloqueou a saída de Peter com o braço e saiu primeiro, a mão no bolso do sobretudo. Olhou para um lado e outro do corredor, virou-se e sacudiu a cabeça para Peter.
- E o que me diz de amanhã? - indagou Peter, saindo do elevador. - Bromley pode entrar em qualquer loja de armas...
- com uma licença de Indianápolis? Nenhum varejista lhe venderia uma arma de fogo.
- Aleuns venderiam. Sempre há meios.
- Há meios melhores de impedir.
Estavam na porta da suíte. O homem da CIA tirou a mão do bolso. Empunhava uma automática pequena. com a mão esquer-
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da, abriu os dois botões do meio do sobretudo e escondeu a arma. Peter bateu na porta.
Ouviu os passos de Alison correndo pela sala. Ela abriu a porta e adiantou-se para abraçá-lo, parando ao deparar com o estranho.
- Alison, esse é... Desculpe, mas não sei seu nome.
- Esta noite não tenho nenhum - disse o homem da CIA, sacudindo a cabeça para Alison. - Boa-noite, Srta. MacAndrew.
- Ahn? - Alison estava compreensivãmente aturdida. - Entre, por favor.
- Não, obrigado. - O agente olhou pra Peter. - Ficarei o tempo todo aqui no corredor. Meu substituto vai chegar às oito horas da manhã, o que significa que terei de acordá-lo para que saiba quem é.
- Estarei acordado.
- Ótimo. Boa-noite.
- Espere um pouco... - Uma ideia súbita ocorrera a Peter.
- Se Bromley aparecer e você tiver certeza de que não está armado, talvez eu devesse conversar com ele. Não o conheço. Não sei por que está querendo me matar.
- Isso é problema seu. Vamos agir de acordo com os acontecimentos.
O agente fechou a porta. Alison abraçou Peter, encostando o rosto no dele.
- Você ficou tanto tempo fora! Quase enlouqueci! Peter apertou-a gentilmente.
- Isto está acabado. Ninguém mais vai enlouquecer. Nunca mais.
- Contou?
- Contei. - Peter afastou-a um pouco, a fim de poder fitá-la.
- E contei tudo. Inclusive sobre seu pai. Não podia deixar de fazê-lo. O homem com quem conversei percebeu facilmente que eu estava escondendo alguma coisa. E deixou bem claro que poderiam descobrir todos os nossos passos sem a menor dificuldade. Não precisariam ir muito longe para isso; bastaria atravessarem o rio até o Pentágono.
Alison assentiu e afastou-o da porta, segurando-lhe o braço.
- Como está se sentindo?
- Muito bem. Aliviado. O que me diz de um drinque?
- vou prepará-lo. "
Alison encaminhou-se para o bar. Peter sentou numa poltrona, o corpo inerte, as pernas esticadas. Servindo o uísque e abrindo o balde de gelo, Alison disse:
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- Estava querendo lhe fazer uma pergunta. Sempre tem um bar bem provido onde quer que vá? Não bebe tanto assim.
- Há alguns meses, eu bebia muito. - Peter soltou uma risada; era ótimo recordar, sabendo que as coisas haviam mudado, pensou ele. - Para responder à sua pergunta, não posso deixar de confessar que é uma indulgência que passei a ter com o primeiro grande adiantamento. Recordei-me de todos os filmes que tinha visto. Escritores em quartos de hotel sempre tinham bares bem providos e usavam jumoir. Só me falta o fumoir.
Foi a vez de Alison rir. Levantou o drinque para Peter e sentou na poltrona à sua frente.
- vou comprar-lhe um fumoir no Natal.
- Deixe para o outro Natal - murmurou Peter, fitando-a nos olhos. - Neste Natal, dê-me apenas um anel de ouro simples. Uma aliança. Ficará no terceiro dedo da minha mão esquerda. Assim como haverá outra igual na sua mão.
Alison tomou um gole de uísque e desviou os olhos.
- Falei a sério algumas horas atrás. Não exijo nenhum compromisso.
Peter ficou alarmado. Largou o copo, levantou-se e foi se ajoelhar ao lado dela, tocando-lhe o rosto.
- O que devo dizer? "Obrigado, Srta. MacAndrew, foi um agradável interlúdio"? Não vou dizer isso, porque não é o que penso. E tenho certeza de que você também não pensa assim.
Os olhos de Alison estavam extremamente vulneráveis.
- Há muita coisa a meu respeito que ainda não sabe. Peter sorriu.
- O que, por exemplo? É a filha do regimento? A meretriz do batalhão? Virgem você não é, mas também não se ajusta ao tipo pudico. É independente demais para isso.
- Chega a conclusões muito depressa.
- Ótimo! Fico contente que pense assim. Sou um homem de decisões rápidas, uma qualidade que esteve ausente por muito tempo... até que a conheci.
- Está se recuperando de uma experiência muito dolorosa. E eu apareci. com os meus próprios problemas.
- Obrigado, Madame Freud. Mas quero que saiba que já estou recuperado e que não volto atrás nas minhas decisões. Experimente só tentar me dissuadir dessa. Sei que
o casamento não está em moda este ano, é considerado muito "classe média". Peter chegou mais perto dela. - Mas eu estava falando sério no que disse antes. Exijo
um compromisso. Acredito no casamento e quero viver ao seu lado pelo resto da minha vida.
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Os olhos dela se encheram de lágrimas. Alison sacudiu a cabeça, segurando o rosto dele.
- Oh, Peter, por onde você andou por tantos anos?
- Numa vida diferente.
- Eu também estava. Como é mesmo aquele poema tolo? "Venha viver comigo e ser meu amor..."
- É de Marlowe. E não é tão tolo assim.
- E eu vou viver com você, Peter. E serei seu amor. Durante o tempo que isso fizer sentido para nós dois. Mas não me casarei com você.
Peter recuou, novamente alarmado.
- Quero mais do que isso.
- Não posso lhe dar mais. Sinto muito.
- Sei que pode! Tanto como. .. Peter parou de falar de repente.
- Como ela? Como a sua Cathy?
- Isso mesmo. Não posso esquecer isso.
- Jamais desejei que você esquecesse. Talvez possamos ter algo igualmente bonito. Mas não o casamento.
- Por quê?
As lágrimas escorriam pela face dela.
- Porque o casamento significa... Não vou ter filhos, Peter. Ela, indiretamente, estava dizendo algo e Peter sabia. Não
podia atinar o que era.
- Está se precipitando. Eu não tinha pensado nisso... Subitamente, ele compreendeu tudo. - É por causa de sua mãe. Da loucura dela.
Alison fechou os olhos, o rosto coberto de lágrimas.
- Oh, meu querido, procure compreender...
Peter não se afastou; permaneceu ao lado dela. obrigando-a a fitá-lo.
- Escute bem, querida. Compreendo também outra coisa. Jamais acreditou no que lhe disseram, no que seu pai falou. Que a doença da sua mãe foi causada por um quase
afogamento. Nunca aceitou isso. Por que não?
A expressão dos olhos de Alison era patética.
- Eu não podia ter certeza. E não sei por quê. Isso é o mais terrível de tudo.
- Por que não podia ter certeza? Por que seu pai haveria de mentir para você?
- Não sei! Eu o conhecia profundamente, cada inflexão da voz, cada gesto. Ele deve ter-me contado a história mais de 50 vezes, sempre compulsivamente, como se quisesse
que eu a amasse. Tanto quanto ele a amava. Mas havia sempre algo que soava fal-
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só, algo que estava faltando. Até que compreendi: Ela era simplesmente uma mulher louca. Havia enlouquecido naturalmente. Naturalmente. E ele jamais quis que eu
soubesse. Está compreendendo agora?
Peter segurou a mão de Alison.
- Ele podia estar lhe escondendo alguma outra coisa.
- O quê? Por que iria...?
O telefone tocou. Peter consultou o relógio. Já passava de três horas da madrugada. Quem iria telefonar-lhe àquela hora? Só podia ser OBrien. Ele atendeu.
- Pensou que ia me deter, mas está redondamente enganado! A voz ao telefone era estridente, a respiração ofegante.
- Bromley?
- Seu animal! Seu canalha asqueroso!
A idade transparecia agora na voz. A voz histérica pertencia a um velho.
- Quem c você, Bromley? O que lhe fiz? Nunca o conheci antes em toda a minha vida!
- Isso não era necessário, não é mesmo? Não precisa conhecer uma pessoa para destruí-la. Ou destruir uma criança! Ou os filhos dessa pessoa!
PhylHs Maxwell usara a mesma palavra! Destruir. Será que Bromley estava se referindo a Phyllis? Estaria falando dela? Não era possível; Phyllis não tinha filhos.
- Juro que não sei do que está falando. Alguém lhe mentiu. Eles já mentiram para outros.
- Ninguém mentiu! Eles leram para mim! Descobriu as transcrições do tribunal, os autos confidenciais, os relatórios psiquiátricos. E reproduziu tudo, contou todos
os detalhes repulsivos! Usou os nossos nomes, revelou onde vivemos, onde ela vive!
- Nada disso é verdade! Nunca usei quaisquer transcrições de tribunal e relatórios psiquiátricos! Não há nada disso no meu livro! Não tenho a menor ideia do que
está falando!
- Canalha! Mentiroso! - O velho pronunciou as palavras impregnadas de ódio. - Está pensando que sou idiota? Acha que eles não me deram uma prova? Tenho sido responsável
pela publicação de milhares de auditorias! - A voz explodiu. - Deramme um telefone, liguei para lá e constatei tudo! Gráfica Bedford! Falei com o tipógrafo, que
me leu o que você tinha escrito! O que ele compusera há uma semana!
Peter estava aturdido. Sua editora sempre utilizava os serviços da Bedford.
- Isso é impossível! O original não está na Bedford! Não pode estar! Está muito longe de acabar!
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Houve um silêncio momentâneo. Peter só podia torcer que o velho começasse a aceitar suas garantias. Mas as palavras seguintes de Bromley revelaram-lhe que isso não
tinha acontecido:
- Você só sabe mentir! A data da publicação já está até marcada! Será em abril! Sempre lança os seus livros em abril!
- Não este ano.
- Seu livro já está impresso! E não me importo com mais nada! Não se contentou em me destruir, agora está querendo também destruí-la! Mas vou detê-lo, Chancellor!
Não pode se esconder de mim! Eu o encontrarei e o matarei! Porque não me importo com mais nada! Minha vida está acabada!
Peter pensou rapidamente.
- Escute! O que aconteceu com você também aconteceu com outros. Deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Alguém lhe telefonou, sussurrando? Um sussurro estridente... ?
O telefone ficou mudo. Peter fitou-o por um momento, depois virou-se para Alison, que ainda estava com o rosto molhado de lágrimas.
- Ele está louco.
- Parece que é a temporada da loucura.
- Não vou ficar esperando. - Peter tirou do bolso o papel em que anotara o telefone de OBrien e discou. - Aqui é Chancellor. Bromley telefonou. Está desesperado.
Acha que meu livro vai sair em abril. E, como Phyllis Maxwell, está convencido de que contém informações prejudiciais a ele.
- E contém? - indagou OBrien.
- Não. Nunca ouvi falar nele antes.
- O que me surpreende. Bromley é o contador da Administração de Serviços Gerais que investiu contra o Departamento de Defesa por causa do avião de carga C-quarenta.
Disse que houve fraude nos excedentes.
- Estou lembrando... - A mente de Peter disparou ao passado, reconstituindo o noticiário dos jornais. - Houve audiências no Senado. Se bem me recordo, ele parecia
um cara muito solitário. Os superpatriotas acusaram-no de uma porção de coisas, acuaram-no num canto.
- Ê esse mesmo. O nome em código dele por aqui era Víbora.
- O que aconteceu com ele?
- Afastaram-no das, auditorias "delicadas", como costumam chamá-las. E foi então que algum idiota da Administração resolveu marcar um ponto com seus superiores e
tirou-lhe uma promoção merecida. Bromley entrou com uma ação na justiça.
- E...?
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- Não sabemos o resto. Ele desistiu da ação e desapareceu.
- Mas agora sabemos, não é mesmo? Ele recebeu um telefonema ... um sussurro estridente na linha. E acaba de receber outro. com um mínimo de fragmentos de informações acuradas, para convencê-lo de que está ouvindo a verdade.
- Fique calmo. Ele não conseguirá alcançá-lo. O que quer que esteja pensando que fez a ele...
- Não a ele. Bromley falou em "criança" e "os filhos dela". OBrien fez uma pausa. Peter sabia o que o homem do FBI
estava pensando. Tenho mulher e filhos. Alexander Meredith.
- Tentarei descobrir o que é - disse o agente finalmente.
- Bromley se hospedou num hotel no centro. Está sendo vigiado.
- E seu homem sabe por quê? Ele não poderia...
- Claro que não. Código Víbora foi suficiente. E o fato de terem encontrado urna arma em seu poder, em Indianápolis, foi a pá de cal. Ele está sob controle. Procure dormir um pouco. . .
- OBrien...
- O que é?
- Diga-me uma coisa: Por que ele? Por que um velho doente? O agente ficou outra vez calado por um momento, antes de
responder. E quando falou, provocou um calafrio em Peter:
- Os velhos podem se deslocar por toda parte livremente. Bem poucas pessoas são capazes de detê-los ou desconfiarem deles. Ninguém lhes dá muita importância. Meu palpite é de que um velho desesperado pode ser facilmente programado para se tornar um assassino.
- Por que ele não se importa com mais nada?
- Em parte por isso. Mas não se preocupe. Ele não vai nem chegar perto de você.
Peter desligou. Precisava dormir um pouco. Havia muitas coisas em que pensar, mas era incapaz de ter qualquer pensamento racional naquele momento. A tensão da noite voltava a dominá-lo: o efeito das pílulas havia passado.
Sentiu Alison observando-o, esperando que ele dissesse alguma coisa. Virou-se e os olhos de ambos se encontraram. Peter aproximou-se dela, mais seguro de si a cada passo. E disse, calmamente, mas com profunda preocupação:
- Aceitarei todas ar condições que desejar, quaisquer que sejam, aceitarei o modo de vida que preferir, contanto que possamos ficar juntos. Não quero perdê-la. Mas insisto numa condição. Não vou permitir que se atormente por algo que talvez nem exista. Acho que aconteceu algo com sua mãe para levá-la à loucura. Nunca ouvi falar de uma pessoa normal num minuto e mentalmen-
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te desequilibrada no momento seguinte... a menos que tenha sofiido uma pressão qualquer. Quero descobrir o que aconteceu. Pode ser doloroso, mas acho que você tem de descobrir. Está disposta a aceitar minha condição?
Peter parou de respirar por um instante. Alison assentiu. Um princípio de sorriso apareceu no rosto dela.
- Talvez nós dois tenhamos que saber.
- Ótimo. - Peter recomeçou a respirar. - Agora que a decisão foi tomada, não quero falar a respeito por algum tempo. Nem precisamos falar agora, pois teremos todo o tempo do mundo para isso. Para ser franco, eu não gostaria de falar sobre coisa alguma que pudesse ser desagradável durante alguns dias.
Alison permaneceu na poltrona, fitando-o atentamente.
- Seu romance é desagradável?
- O mais possível. Por quê?
- Vai parar de escrevê-lo?
Peter fez uma pausa. Era estranho, mas agora que tomara uma decisão, agora que tinha ido ao FBI e contado a sua história, a pressão fora removida e descobria que podia pensar com mais lucidez. O profissional que havia nele estava novamente emergindo.
- Será um livro diferente. Tirarei alguns personagens, acrescentarei, mudarei as circunstâncias. Mas ainda vai ficar muita coisa.
- E pode consegui-lo?
- Certamente. A premissa ainda é bem forte. vou encontrar um meio qualquer. Por algum tempo, o livro vai avançar lentamente, mas logo encontrarei o novo caminho.
Alison sorriu.
- Fico contente por isso.
- É a última decisão desta noite. Além do mais, estou querendo voltar à primeira.
- E qual é?
Foi a vez de Peter sorrir.
- Você. Venha comigo e seja meu amor...
Peter ouviu batidas rápidas, através da névoa do sono. Alison remexeu-se ao seu lado, enterrando a cabeça ainda mais fundo no travesseiro. Ele saiu da cama e pegou a calça na cadeira onde a deixara. Saiu nu para a sala, fechando a porta do quarto. Ainda tonto de sono, vestiu a calça e foi para o hall.
- Quem é?
- São oito horas - disse o homem da CIA, do outro lado da porta.
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Peter lembrou-se. Às oito horas, o guarda mudava; era o momento para identificações, dele e do seu novo sentinela.
Ao abrir a porta, Peter teve que fazer um tremendo esforço para ocultar seu espanto. Piscou e abafou um bocejo, esfregou os oihos para esconder ainda mais o choque. E que o novo homem da CIA era a "fonte interna" que fornecera a Peter o material para Contra-ataque! E fornecera livremente. De raiva. Profundamente preocupado com as ilegalidades que a agência estava sendo obrigada a cometer.
- Não há necessidade de nomes - disse o agente inicialmente designado para proteger Peter. - Ele irá me substituir.
Peter assentiu.
- Está certo. Nada de nomes, nada de apertos de mão. Eu não gostaria que pegassem alguma infecção por meu intermédio.
- O que você tem não me atrai - disse o segundo homem, calmamente, num tom ofensivo digno do seu companheiro. Ele virou-se para o primeiro agente e indagou: - O homem vai ter que ficar no hotel, não é mesmo?
- Foi o que combinamos. Nada de trabalho externo.
Os dois agentes se viraram, dispensando-o. Seguiram na direção dos elevadores. Peter entrou na suíte e fechou a porta. Ficou prestando atenção ao barulho distante do elevador. Depois que o elevador começou a. descer, ele esperou mais dez segundos antes de abrir a porta.
O homem da CIA entrou rapidamente na suíte. Peter fechou a porta. E o agente disse:
- Quase tive uma parada cardíaca quando recebi o telefonema ontem à noite.
- E eu quase tive uma coisa quando o vi parado diante da porta.
- Mas saiu-se muito bem. Desculpe, mas não podia correr o risco de telefonar-lhe.
- Como aconteceu?
- OBrien. Ele é um dos nossos contatos no FBI. Quando Hoover suspendeu as comunicações, Brien e vários outros trabalharam conosco, fornecendo as informações que
precisávamos. De nada adiantaria ele ligar para quaisquer outros, pois certamente iriam repeli-lo. Mas ele sabia que nós não faríamos isso.
- Devia-lhe pelo menos isso.
- Devemos muito mais do que pode imaginar. OBrien e seus amigos arriscaram o pescoço e a carreira por nós. Se tivessem sido descobertos, Hoover ficaria furioso. Providenciaria imediatamente para que fossem metidos numa prisão rigorosa durante 10 ou
20 anos.
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Peter estremeceu.
- Ele podia fazer isso, não é mesmo?
- Podia e fazia. Até agora ainda existem diversos prisioneiros desconhecidos apodrecendo em celas no Mississippi. Foi a última Sibéria de Hoover. OBrien se arriscou
muito e não podemos esquecer isso.
- Mas Hoover está morto.
- Talvez alguém esteja tentando revivê-lo. Não é justamente isso o que está acontecendo? Caso contrário, por que OBrien iria nos procurar?
Peter ficou aturdido. A possibilidade era perfeitamente válida. OBrien falara do Grupo Hoover, alguns conhecidos, outros não, mas nenhum digno de confiança. Será que eles estavam com os arquivos de Hoover? Estavam tentando recuperar o controle do FBI? Se assim fosse, homens como Quinn OBrien tinham que ser destruídos para que não houvesse qualquer obstáculo.
- Talvez você esteja certo. O homem assentiu.
- Começa tudo novamente. Não que tenha parado, na verdade. Quando ouvi seu nome ontem à noite, perguntei-me por que tinha demorado tanto.
- Como assim? - indagou Peter, confuso.
- Usou as informações que lhe forneci exclusivamente contra nós. Por quê? Havia muita gente errada, não apenas nós.
- Posso repetir agora o que lhe disse há dois anos. A agência usou os erros dos outros como um pretexto. Depressa demais, com um entusiasmo excessivo. Pensei que concordássemos quanto a isso. E pensei que isso tivesse sido o motivo pelo qual me forneceu as informações.
O homem sacudiu a cabeça.
- Pensei que fosse espalhar a culpa mais um pouco. Depois, imaginei que estivesse reservando para outro livro. E é justamente isso, não é mesmo? Está escrevendo um livro sobre o FBI.
Peter ficou ainda mais aturdido.
- Onde foi que ouviu falar nisso?
- Não ouvi. Li. No jornal de hoje. A notícia saiu na coluna de Phyllis Maxwell.
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Phyllis dera a notícia. A coluna era curta, sinistra em sua brevidade assim como no conteúdo, no meio da página editorial, com uma tarja preta ao redor. Seria amplamente lida, provocando polémicas e alarmes. Peter podia imaginar Phyllis Maxwel no aeroporto, profundamente nervosa, apegando-se ao que lhe restava de sanidade mental, tomando a decisão inevitável e telefonando para o plantão noturno do jornal. Nenhum editor iria cortar seu texto, pois ela tinha reputação de sempre poder comprovar tudo o que escrevia. Mas, além disso, era um último gesto, um derradeiro testamento, facilmente reconhecível. Phyllis devia isso à sua profissão e essa profissão não iria dar-lhe as costas no momento final.
Washington, 19 de dezembro - Informações de fontes seguras revelam que o FBI será em breve confrontado com impressionantes acusações de transgressões, extorsão,
supressão de provas criminais e vigilância ilegal de cidadãos, em flagrante violação de direitos constitucionais. Essas acusações serão formuladas num romance que está para ser publicado, de Peter Chancellor, autor de Contra-ataque! e Sarajevo!. Embora o livro tenha sido escrito como ficção, Chancellor baseou-se em fatos. Ele descobriu diversas vítimas e constatou as pressões que sofreram. Exclusivamente por causa de seu senso moral, Chancellor ocultou as identidades dessas vítimas e deu um caráter de ficção aos fatos. É um livro há muito necessário. Por toda esta cidade maravilhosa, repleta de símbolos da luta de um povo pela liberdade, há homens e mulheres com medo. Por si próprios, por seus entes queridos, por seus pensamentos, muitas vezes até por sua sanidade mental. Convivem com seus medos porque um polvo gigantesco estendeu os seus tentáculos por todos os lados, disseminando o terror. A cabeça desse monstro está em algum lugar do FBI.
Esta repórter também foi atingida por tais táticas. Por isso, por uma questão de consciência, estarei ausente destas páginas por um período indeterminado. Tenho a esperança de poder voltar um dia.
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mas será apenas quando puder me desincumbir das minhas responsabilidades da maneira que vocês, leitores, julgarem.
Uma palavra final. Muitos homens dignos e poderosos do governo estão comprometidos pelos métodos de trabalho do FBI. Esses ataques devem cessar. Talvez a ficção do Sr. Chancellor possa revelar essa realidade. Se tal acontecer, uma parte do nosso sistema terá sido purgada.
Era uma verdadeira bomba, a cratera fumegante, definida pela margem negra. Peter olhou para o relógio. Passavam 20 minutos das oito horas. Estava surpreso por CTBrien ainda não ter telefonado. Não havia a menor dúvida de que ele já teria lido o jornal; o FBI devia estar um caos Talvez o agente estivesse sendo excepcionalmente cauteloso. Um telefone se transformava num instrumento de perigo.
E nesse momento, como que provocando seus pensamentos, o telefone tocou. Era OBrien.
- Eu sabia que iam acordá-lo às oito horas - disse ele. Já viu o jornal?
- Já. Estava esperando por seu telefonema.
- Estou num telefone público, é evidente. Não quis telefonar-lhe de casa. Deixei o escritório às quatro horas da manhã e dei uma volta de carro, para pensar um pouco. E depois consegui dormir por umas duas horas. Já estava esperando que ela fizesse isso?
- Era a última coisa que eu esperava. Mas posso compreender. Talvez ela tenha pensado que era a única coisa que podia fazer.
- É uma complicação desnecessária, mais nada. Vão começar a procurá-la. E que Deus a ajude se a encontrarem. Um lado vai querer a vida dela, o outro seu depoimento.
Peter pensou por um momento.
- Ela não teria agido assim se pensasse que poderiam encontrá-la. Falava sério na carta que me deixou: há tempo que tinha planejado esse momento.
- Ou seja, é o que costumamos chamar de galinha morta. Já vi muitos casos assim. Mas isso não vem ao caso. Já temos os nossos próprios problemas.
- Sua compaixão me comove. Conseguiu encontrar o tal de Varak?
- Lancei uma chamada de emergência para ele. Varak terá que responder. É a sua especialidade.
- O que faremos até lá?
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mi
- Continue onde está. Iremos transferi-lo mais tarde. Varak saberá para onde.
- Eu sei para onde! - Peter estava furioso. OBrien tratava-os como se fossem fugitivos. - Iremos para a minha casa na Pensilvânia. Basta que...
- Não - interrompeu-o o agente, firmemente. - Por enquanto, ficará longe daquela casa e do seu apartamento. Irá para onde eu o mandar. Quero você vivo, Chancellor. E muito importante para mim.
As palavras causaram o efeito desejado. Peter recordou-se dos tiros.
- Está certo. Vamos ficar sentados, esperando.
- Alguém em Nova York ou Pensilvânia sabe onde você está?
- Não especificamente. Sabem apenas que estou em Washington.
- E saberiam onde procurá-lo?
- Provavelmente neste hotel. Costumo me hospedar aqui.
- (Não está mais registrado aí. Saiu ontem à noite. Ò gerente já comunicou o fato à recepção.
Era uma notícia assustadora. O fato de semelhante coisa ser conseguida tão facilmente, até mesmo de ser necessária na opinião do agente, fez com que Peter engolisse em seco. Mas, depois, ele recordou-se de algo:
- Liguei para a copa, dei meu nome e número do quarto. E assinei a nota.
- Mas que diabo! - explodiu OBrien. - Eu não tinha pensado nessa possibilidade.
- Fico contente por descobrir que você não é perfeito.
- Sou muito menos do que gostaria de pensar. É o tipo de erro que Varak não cometeria. Mas daremos um jeito. Será apenas por umas poucas horas. Você simplesmente quer ficar incógnito.
- Qual é o meu novo nome?
- Charles Peters. Não é muito original, mas não tem importância. Serei o único a telefonar-lhe. Agora, assim que puder, telefone para alguém de Nova York que saiba que você está em Washington. Diga que decidiu tirar alguns dias de descanso, em companhia da Sra. MacAndrew. Vão fazer uma excursão pela Virgínia, seguindo a auto-estrada de Fredericksburg, na direção de Shenandoah. Entendido?
- Entendido. Mas não sei de que se trata. Por quê?
- Há um número limitado de hotéis e motéis onde poderiam passar a noite. Quero ver quem vai aparecer.
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Peter sentiu um calafrio no estômago. Por um momento, não conseguiu falar. Depois, balbuciou:
- O que está querendo insinuar? Acha que Tony Morgan ou Josbua Harris estão metidos nisso? Ficou inteiramente doido!
- Já lhe disse. Esta madrugada, dei uma volta de carro para pensar um pouco. Tudo o que lhe aconteceu foi por causa do livro que está escrevendo. A maioria dos lugares em que esteve não todos, mas a maioria - era conhecida pelos dois, porque lhes informou.
- Não vou escutar mais nada! Eles são meus amigos!
- Talvez não tenham alternativa. Conheço os métodos de recrutamento melhor do que você. E não estou afirmando que eles estão envolvidos, apenas que é possível. No fundo, estou simplesmente lhe recomendando para não confiar em ninguém. Pelo menos por enquanto, até descobrirmos mais alguma coisa. - OBrien baixou a voz ao acrescentar: - Talvez nem mesmo em mim. Acho que estou pronto para ser posto à prova, mas ainda não fui. Posso apenas lhe dar a minha palavra de que tentarei ajudá-lo por todos os meios possíveis. Ficarei em contato.
OBrien desligou abruptamente, como se não fosse capaz de falar por mais um segundo sequer. O simples fato de manifestai dúvidas a respeito de si mesmo era extraordinário. Era um homem bravo, estava assustado, aceitando o seu medo numa solidão que Peter não tinha que conhecer.
Peter sentou para tomar o café da manhã. Não prestou atenção no que estava comendo, tomou o suco de laranja, acabou com os ovos com bacon e as torradas. Seus pensamentos estavam concentrados no que OBrien lhe dissera: No fundo, estou simplesmente lhe recomendando para não confiar em ninguém.
Havia algo de real naquelas palavras. Há muito estavam incluídas em qualquer melodrama para poderem ser parte da vida real. Era anormal, falso.
Ficção.
Sem que estivesse pensando a respeito, seu olhos de repente se desviaram do bule de café para o seu bloco de capa de couro, sobre a mesa diante do sofá. Levantou-se, carregando a xícara de café, foi sentar no sofá. Abriu o bloco, olhando para as palavras que escrevera no dia anterior, antes da loucura começar. A loucura que o levara a Quinn OBrien.
A compulsão estava ali. Reconheceu-a logo: uma necessidade enorme de traduzir a loucura, por que passara para uma loucura que podia ser comunicada. Tinha experimentado coisas incríveis. Sempre imaginara o que significaria ser caçado, acuado, ficar apavorado e confuso, enfrentar a morte... exigir o máximo de cada
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fibra e cada célula do cérebro em busca da fuga e da sobrevivência. Nunca antes vivera tais sentimentos. Até agora. As mudanças no livro podiam ser feitas mais tarde. Agora, tinha que seguir a trama que desenvolvera e completar o capítulo no dia seguinte. Tinha que pôr no papel toda aquela loucura que vivera.
Capítulo 10 - Esboço
Meredith ingressou no Núcleo. Tem que providenciar provas irrefutáveis de que existe no FBI um grupo de homens específico que estão envolvidos em atividades ilegais. Não palavras no papel, mas vozes em gravações.
O método será uma armadilha e Alex é orientado por Alan Long. O convertido executor de Hoover diz a Meredith que a única tática exequível é simular uma total capitulação aos fanáticos do FBI. Ele dispõe do motivo para essa mudança de atitude: não aguenta mais as perseguições.
A armadilha será proporcionada por um gravador em miniatura, colocado no lenço que fica no bolso do paletó, ativado por contato.
Há uma série de confrontações rápidas e emocionais, nas quais Alex aparece se "rendendo" às forcas de Hoover. Não lhe é difícil ser convincente, pois está simplesmente refletindo um estado de espírito que já experimentou.
Há uma cena à noite em que Meredith ouve, em detalhes, um plano para "eliminar" um informante do FBI que ameaçou denunciar o envolvimento da organização na morte de cinco negros radicais de Chicago. O massacre foi o resultado direto da provocação do FBI. O informante é marcado para morrer; o método será uma arma, cuja origem ninguém poderá descobrir, disparada num trem do metro apinhado de gente.
Alex acionou o gravador. Ouviu as vozes que estão na fita. A prova é agora incontestável: conspiração para cometer homicídio.
A gravidade da acusação é suficiente para afastar Hoover do cargo. Levará à descoberta de outras transgressões, pois é apenas um incidente numa vasta teia de conspirações. Hoover está liquidado.
Alex é visto ao se retirar e os homens de Hoover sentem sua duplicidade.
Meredith sai correndo do prédio para o seu carro. Havia recebido um endereço em McLean, Virgínia, que deveria procurar em caso de uma emergência. Tem no bolso a prova que irá destruir o Homem e os homens que querem transformar o país num estado policial.
Ao sair do estacionamento, Meredith avista um carro atrás dele. Tem a impressão de que é do FBI.
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Há uma perseguição vertiginosa pelas ruas de Washington. Num sinal de trânsito, o homem ao lado do motorista do carro do FBI abaixa a janela, gritando: "Agora!" E ele salta e avança para a porta do carro de Meredith.
Alex avança o sinal, os pneus guinchando, apertando a buzina, desviando-se perigosamente de outros carros.
Recorda uma tática: largar o carro, livrar-se da perseguição. Pára na frente de um prédio do governo, deixa o motor funcionando, salta, sobe correndo os degraus.
Há somente um guarda uniformizado na entrada. Meredith mostra-lhe sua identificação do FBI e corre pelo chão de mármore, passando pelos elevadores, apertando os botões ao acaso, à procura de uma segunda saída. Avista uma porta dupla de vidro, que dá acesso a um corredor aberto que liga o prédio a outro. Corre para lá. Subitamente, um homem sai de trás de uma coluna. É um dos dois homens que o estavam seguindo. Empunha uma arma. Alex toca no gravador, ativando-o.
"É um truque antigo, Meredith. Não é muito bom nessas coisas."
- "Vocês são carrascos! Os carrascos de Hoover", grita Alex, em pânico.
Os gritos são suficientes para fazer com que o homem perca momentaneamente a concentração; gritos podem ser ouvidos. Nesse breve instante, Meredith faz o que jamais imaginaria que fosse capaz. Investe contra o homem armado.
Há uma luta violenta; dois tiros são disparados.
O primeiro acerta Alex no ombro. O segundo mata o fanático do FBI.
Meredith cambaleia pelo corredor, segurando o ombro ferido. O segundo homem do FBI aparece correndo na direção da porta de vidro, na outra extremidade do corredor.
Meredith atravessa o outro prédio e sai para a rua. Faz sinal para um táxi, desaba no banco traseiro e dá ao motorista o endereço em McLean.
Está quase inconsciente ao chegar a McLean. Tem que fazer um grande esforço para chegar até a porta. Aperta a campainha. O antigo membro do Gabinete atende. É a residência dele.
"Levei um tiro. No meu bolso. O gravador. Está tudo na fita."
E Meredith mergulha na escuridão da inconsciência.
Desperta numa sala às escuras. Está deitado num sofá, com ataduras no peito e ombro. Ouve vozes, além da porta fechada. Levanta e, amparando-se na parede, vai até a porta, abrindo-a. Em torno da mesa de jantar, estão sentados o membro do Gabinete, a jornalista e Alan Long. O senador não está presente.
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O gravador de Alex está diante do antigo membro do Gabinete. Ele está falando com Long.
"Sabia alguma coisa sobre esses... esses esquadrões de extermínio?"
"Ouvi rumores", responde Long, cautelosamente. "Mas nunca estive envolvido."
"Não está tentando salvar a sua própria pele?"
"O que tenho para salvar?", pergunta Long. "Se alguém descobrir o que eu fiz, o que estou fazendo, sou um homem morto."
"O que nos leva de volta a esses esquadrões de extermínio", diz a mulher. "Quais foram os rumores que ouviu?"
"Nada de específico", responde Long. "Nenhuma prova. Hoover sempre faz tudo em compartimentos estanques. £ isola também as pessoas. Ê tudo secreto. Ninguém sabe realmente quem é o homem que está na sala ao lado. Dessa maneira, todo mundo fica no caminho."
"Gestapo!", exclama a mulher.
"O que ouviu?", insiste o antigo membro do Gabinete.
"Apenas o comentário de que sempre havia soluções finais, se tudo mais num projeto saísse errado."
A mulher olha fixamente para Long, depois fecha os olhos e murmura: "Soluções finais... Oh, meu Deus!"
"Se alguma vez precisamos de uma última justificativa, é o que temos agora", comenta o homem calvo. "Hoover será morto dentro de duas semanas, a contar de segunda-feira; os arquivos serão roubados."
"Não!" Alex empurrou a porta com tanta força que ela bateu violentamente na parede. "Não podem fazer isso! Já têm tudo o que precisam! Levem-no a julgamento! Obriguem-no a enfrentar os tribunais! A enfrentar o país!"
"Você não compreende", diz o antigo membro do Gabinete. "Não existe nenhum tribunal deste país, nenhum juiz, nenhum membro da Câmara ou do Senado, nem mesmo o Presidente ou qualquer membro do Gabinete, que possa levar Hoover a julgamento. Ele está fora do alcance dos tribunais."
"Não, não está! Existem leis!"
"Há os arquivos", diz a mulher, suavemente. "As pessoas seráo pressionadas... por outras que têm de sobreviver."
Meredith contempla os olhos que o estão fitando. São olhos frios, desprovidos de qualquer compaixão.
"Se pensam assim, não são melhores do que ele", diz Alex, mesmo sabendo que se sair daquela casa, será novamente caçado."
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Peter largou o lápis. Havia percebido subitamente a presença de Alison na porta. Ela estava imóvel, num roupão azul, fitando-o Peter sentiu-se profundamente grato pela afeição nos olhos dela e pelo sorriso nos lábios.
Sabe que estou parada aqui há quase três minutos sem que
você tivesse me percebido?
- Desculpe.
Não precisa se desculpar. Eu estava fascinada. Você estava muito longe daqui.
. Eu estava em McLean, Virgínia.
- Não é tão longe assim.
- Seria melhor que fosse. - Peter levantou-se e foi abraçá-la.
- Você é adorável, eu a amo e estou com vontade de ir para a
cama.
- Acabei de sair da cama. Vamos tomar um café. Isso servirá para me despertar.
- Despertar para quê?
- Para poder desfrutá-lo melhor. Alison beijou-o. Peter disse:
- O café está frio. vou pedir mais.
- Está bom assim. Não me importo.
- Quero também mandar uma coisa pelo correio.
- O quê?
- O trabalho que fiz durante os dois últimos dias. Tenho que mandá-lo para o serviço de datilografia.
- Agora? Peter assentiu.
- Eu deveria reler antes, tirar uma xerox e despachar por um mensageiro especial. Mas não estou com vontade de reler o que escrevi, pelo menos por algum tempo. Quero apenas me livrar de tudo imediatamente. Tenho alguns envelopes grandes na minha pasta. - Peter encaminhou-se para o telefone, no outro lado da sala, recordando as instruções de OBrien. - Telefonista? Aqui é o Sr. Peters, do 511. Gostaria que me ligasse com a copa, mas preciso também despachar uma encomenda pelo correio. Posso entregar ao garçom para que leve até a recepção?
- Claro, Sr. Peters.
Parecia haver uma estranha satisfação na voz da telefonista,
Eles estavam deitados na cama, nus, enlaçados, animados pelo momento e pelo desejo que renascia.
O sol da tarde refletia-se em janelas invisíveis lá fora. De algum lugar lá embaixo, na rua, vinha um cântico de Natal. Ocorreu a Peter que o dia já estava chegando ao fim.
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O telefone tocou. Peter atendeu.
- Sr. Peters?
Era a telefonista. Peter reconheceu a voz.
- Pois não?
- Sei que é muito impróprio, Sr. Peters. Sei que não deseja que ninguém saiba que está hospedado aqui e não falei nada...
- O que é, afinal? - interrompeu-a Peter, o coração disparado.
- Há um homem na linha. Ele diz que é uma emergência e que tem de falar de qualquer maneira com um Sr. Chancellor. Ele parece estar muito doente, senhor.
- Quem é ele?
- Disse que seu nome é Longworth... Alan Longworth. A dor nas têmporas obrigou Peter a fechar os olhos.
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26
- Saia da minha vida, Longworth! Está tudo acabado! Fui ao FBI e contei tudo!
- Seu idiota! Não tem a menor ideia do que fez!
Era a voz de Longworth, mas parecia bem mais gutural do que Peter recordava, o sotaque da Europa Central mais acentuado.
- Sei exatameute o que fiz e sei exatamente o que você está tentando, fazer. Você e seus amigos estão tentando controlar .o FBI. Pensam que pertence a vocês, por algum estranho direito de herança. Pois não pertence! E agora eles irão impedi-los!
- Você está enganado, redondamente enganado. Somos nós que queremos impedir que isso aconteça. Sempre nós. - Longworth tossiu; era um som horrível. - Não posso falar pelo telefone. Temos que nos encontrar.
Lá estava novamente o estranho eco de um sotaque.
- Por quê? Para que você possa enviar contra mim outro esquadrão de execução como fez na Rua 35?
- Eu estive lá. E tentei impedir.
- Não acredito!
- Escute, por favor! - Longworth teve outro acesso de tosse. - Havia silenciosos. Por toda parte. Armas com silenciosos, como havia acontecido em Cloisters.
- Eu me lembro muito bem. Jamais esquecerei.
- Mas um tiro ontem à noite não foi disparado através de um silencioso! Pode se lembrar disso?
As palavras de Longworth desencadearam uma recordação. Houvera realmente um estampido, uma súbita explosão, em contraponto com os zumbidos. E um grito de raiva. Peter não havia pensado a respeito na ocasião, pois tinha muitas outras coisas com que se preocupar. Mas agora tudo parecia bem claro. Um dos pistoleiros tinha esquecido de usar um silencioso.
- Está lembrando? - insistiu Longworth. - Tem que lembrar!
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- Estou, sim. Onde está querendo chegar?
- Fui eu!
Lá estava o sotaque novamente.
- Você?
- Exatamentc. Eu o segui. Tenho sempre estado perto de você. Quando aqueles homens apareceram, eu não estava preparado para o que aconteceu. Fiz o que pude. Para ser franco, não sei como conseguiu escapar com vida...
Longworth tossiu novamente. Peter jamais tinha ouvido o chamado estertor da morte. Mas, em sua imaginação, estava ouvindo-o agora. E se estava, então Longworth dizia a verdade.
- Tenho uma pergunta a fazer, Longwonh. Talvez uma acusação, não sei. Disse que está sempre perto de mim. Sei que anda num Continental prateado, que depois...
- Depressa!
- Se está sempre perto de mim, isso significa que esperava que alguém tentasse me alcançar.
- Isso mesmo.
- Quem?
- Não posso falar pelo telefone! E especialmente não agora!
- Fui usado como isca!
- Não deveria acontecer-lhe nada.
- Mas aconteceu, não é mesmo? Quase me mataram. Disse que não estava preparado. Em Nova York e aqui. Por que não?
Longworth demorou algum tempo para responder.
- O que aconteceu era contrário a tudo o que sabíamos, a tudo que planejávamos.
- Era inconcebível? - indagou Peter, sarcasticamente.
- Isso mesmo. O fato de que tais riscos seriam assumidos... Mas não há mais tempo. Estou muito fraco e sempre se pode descobrir a origem de telefonemas. Tem que vir me procurar, para a sua própria segurança. Para a segurança da moça.
- Há um homem da CIA no corredor. Ele ficará aqui. E irei com a polícia.
- Se fizer isso, eles o matarão imediatamente. E a moça morrerá em seguida.
Peter sabia que era verdade. Estava na voz de Longworth. A voz de um homem agonizante.
- O que aconteceu? Onde você está?
- Consegui escapar. Preste atenção e faça o que eu lhe disser. vou lhe dar três telefones. Tem um lápis?
Peter virou-se.
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Há um lápis e papel... - Ele não precisou terminar a
frase. Alison saiu da cama e levou-lhe rapidamente o lápis e papel. - Pode falar.
Longworth disse os três telefones, repetindo cada um.
Leve moedas com você. Dentro de 30 minutos, precisamente, ligue para esses três telefones, de uma cabine pública. Em um dos telefones, reconhecerá algo que escreveu. E saberá onde me encontrar. Tenho certeza que compreenderá. Irão lhe fazer perguntas.
- Perguntas? Algo que escrevi? Mas já escrevi três livros!
- É um pequeno parágrafo, mas tenho certeza absoluta de que pensou muito a respeito quando o escreveu. Provavelmente irão segui-lo. Leve junto o homem que está no corredor. Tem exatamente 30 minutos. Livre-se daqueles que o seguirem. O agente no corredor saberá o que fazer.
- Não! - disse Peter, firmemente. - Ele vai ficar aqui. com a filha de MacAndrew. A menos que seja substituído por outro homem.
- Não há tempo!
- Neste caso, terá que confiar em mim. Sei o que estou fazendo.
- Mas você não sabe!
- É o que veremos. Telefonarei dentro de 30 minutos. Peter desligou e ficou olhando em silêncio para o telefone.
Alison tocou-lhe o braço.
- Quem fica comigo e para onde você vai?
- O homem da CIA. E eu vou sair.
- Por quê?
- Porque tenho de sair.
- Isso não é resposta. Pensei que tivesse dito que estava tudo acabado!
- Eu estava enganado. Mas em breve estará realmente acabado. É uma promessa.
Peter levantou e começou a se vestir.
- O que vai fazer? Não pode sair assim, sem me dizer nada! A voz de Alison era estridente. Peter virou-se, abotoando a
camisa.
- Longworth está ferido e acho que gravemente.
- E por que se importa? Pense no que ele fez a você! No que ele fez com todos nós!
- Não está compreendendo. É assim que o quero, a única maneira pela qual posso obrigá-lo a me acompanhar.
Peter tirou da mala uma suéter marrom escura e vestiu-a.
- Acompanhá-lo? Aonde?
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- À presença de OBrien. Não importa o que Longworth possa dizer, confio nele. Quinn não me disse tudo. mas sabe o que está acontecendo. Ouvi-o na gravação. Ele está arriscando sua carreira, talvez a própria vida. Tudo isso começou dentro do FBI e é lá que tem de terminar. Longworth é a chave. vou entregá-lo a OBrien. E deixar que OBrien decifre o resfo.
Alison pôs as mãos nos braços dele, segurando-o com firmeza.
- Por que ir entregá-lo? Por que não chama OBrien agora? Deixe que ele vá procurá-lo!
- Não daria certo. Longworth é um profissional. Adotará todas as precauções. Se desconfiar das minhas intenções, tratará de escapar.
Peter não explicou que o seu receio maior era que Longworth pudesse morrer antes que CTBrien lhe arrancasse as respostas, todas as identidades. Se isso acontecesse, a loucura continuaria.
- Por que ele lhe deu os três telefones?
- Estará em um deles. É parte das suas precauções. Não está querendo correr riscos.
- Ao falar com ele, mencionou seus livros...
- Mais precauções. - Peter foi ao armário e pegou o casaco. - Ele vai citar algum trecho que, segundo me disse, eu reconhecerei imediatamente. E que me dirá especificamente onde encontrá-lo. É outra razão pela qual OBrien seria inútil neste momento.
- Peter! - Alison postou-se na frente dele, os olhos preocupados e furiosos. - Ele queria que aquele homem no corredor o acompanhasse, não é mesmo?
- Não faz a menor diferença o que ele possa querer.
Peter foi para a sala. Arrancou diversas folhas do bloco e pegou um lápis. Alison seguiu-o.
- Leve-o com você, Peter.
- iNão. Não há tempo.
- Para quê?
Peter virou-se, fitou-a nos olhos.
- Para continuar a conversar. Tenho que ir. Mas Alison não queria deixá-lo partir.
- Disse a ele que ia ligar para a polícia, levá-la com você. Por que não o faz?
Era a pergunta que Peter não queria que ela fizesse. A resposta estava nas ameaças de morte, ameaças que ele sabia estariam baseadas na verdade.
- Pela mesma razão por que não posso telefonar para OBrien. Longworth escaparia. Tenho que encontrá-lo, dominá-lo e entregá-lo. Não posso deixá-lo escapar. - Peter segurou-a pelos
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ombros e acrescentou: - Não se preocupe. Confie em mim. Sei o que estou fazendo.
Ele beijou-a e foi para o liall sem olhar para trás. Saiu para o corredor. O agente levantou a cabeça abruptamente, surpreso.
- Tenho que sair - disse Peter.
- De jeito nenhum. Isso não está nas regras.
- Não há regras. Por exemplo: nós dois temos um acordo. Há dois anos atrás, eu precisava de informações e você me forneceu. Jurei que nunca revelaria a fonte. Mas posso mudar de ideia. Se não me ajudar agora, voltarei para o quarto, ligarei para a CIA e revelarei todas as minhas fontes para Contraataque! Entendido?
- Seu filho da puta nojento...
- É melhor acreditar. - Peter não alterou a voz. - E, agora, vamos ao que interessa. Há homens vigiando este hotel, homens que tentarão me seguir. Se eu conseguir sair sem que me vejam, terei uma boa chance. Quero essa chance e vai me dizer como consegui-la. E é bom que seja a melhor possível, pois você estará perdido se eu for apanhado. Mas não deve deixar este corredor. Porque se o fizer, se acontecer alguma coisa à mulher que está lá dentro, vai se arrepender amargamente.
O agente não disse nada. Foi até os elevadores e apertou o botão de chamada. O elevador da direita chegou primeiro, mas estava com passageiros. Deixou-o seguir. O segundo elevador subiu vazio do saguão. O homem da CIA entrou, apertou o botão de emergência e pegou o telefone interno. Quando o serviço de manutenção atendeu, ele identificou-se como um inspetor de edificações. Mas apresentou-se jovialmente, gracejando com o interlocutor. Disse que precisava de ajuda. Será que o seu novo amigo poderia mandar um mecânico imediatamente? Ele tinha aberto o painel de controle, mas não estava com as ferramentas necessárias. Desligou e virou-se para Peter.
- Está com dinheiro?
- Algum.
- Dê-me 20 dólares. Peter entregou o dinheiro.
- O que vai fazer?
- Tirá-lo daqui.
Menos de um minuto depois, a porta do elevador da esquerda se abriu e o mecânico saiu. Estava de macacão e com um cinto de ferramentas. O agente cumprimentou-o, exibiu sua identificação da CIA e pediu-lhe que entrasse no elevador parado. Conversaram em voz baixa, de maneira que Peter não pôde ouvir. Mas
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viu quando o agente entregou o dinheiro ao mecânico. Depois, ele saiu e fez sinal para que Peter entrasse no elevador.
- Faça o que ele disser. O homem está pensando que é um exercício de treinamento da agência.
Peter entrou no elevador. O mecânico estava tirando o macacão. Peter observou-o, atónito. Por baixo da roupa de trabalho, o homem usava uma camiseta suja e uma cueca com pontinhos azuis e vermelhos.
- Não posso lhe dar também o cinto de ferramentas. Espero que compreenda. É propriedade pessoal.
- Eu compreendo...
Peter vestiu o macacão e pôs o quepe do mecânico. Saíram do elevador diretamente para o porão. Seguiram para um canto e subiram um lance de degraus de cimento para um vestiário. Dois empregados do hotel estavam devidamente, vestidos, prontos para partirem. O mecânico falou-lhes rapidamente.
- Vamos indo, moço - disse o homem da direita. - Acaba de entrar para o sindicato.
- Os superespiões gostam muito de brincar - comentou seu companheiro.
A porta do porão dava para um beco, que ia desembocar na rua. Era um beco estreito, cheio de latas de lixo. Peter avistou um homem de capa na entrada do beco, delineado contra a claridade amarelada do crepúsculo. As ruas em breve estariam escuras. Teria que aproveitar a escuridão e as multidões, pensou Peter. Mas, primeiro, precisaria passar pelo homem de capa. O homem não estava ali por coincidência.
Andando entre os dois empregados do hotel, ele apontou com a cabeça o homem de capa que estava à frente. Os dois compreenderam. E começaram a participar do que pensavam ser uma brincadeira, apreciando-a intensamente. Puseram-se a falar ao mesmo tempo, dirigindo-se a Peter, enquanto se aproximavam do homem de capa.
- Você! - berrou subitamente o homem de capa.
Peter sentiu um calafrio. O homem segurou-o pelo ombro. Peter desvencilhou-se, violentamente. O homem fê-lo girar em sua direção, arrancando de sua cabeça o quepe de mecânico.
Peter investiu contra o homem, empurrando-o com o corpo para dentro do beco. Os dois empregados do hotel se entreolharam, subitamente preocupados.
- Esses caras têm uma maneira esquisita de brincar - comentou o da esquerda.
- Acho que eles não estão brincando - murmurou seu companheiro, tratando de se afastar.
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Peter não ouviu mais. Saiu correndo, ziguezagueando entre as pessoas que caminhavam pela calçada. Chegou à esquina. O sinal estava vermelho, o tráfego era intenso. Virou para a direita, consciente de que um vulto corria atrás dele. Pôs-se a correr pelo quarteirão. Abruptamente, correu para a rua, desviando-se dos carros e conseguindo chegar ao outro lado. Havia uma multidão na frente de uma vitrine; além do vidro, estava sendo encenado um espetáculo de marionetes, apresentando Papai Noel e seus anões. Peter forçou passagem entre os corpos parados como um homem fora de si. Olhou para trás, por cima das cabeças da multidão.
O homem de capa estava do outro lado da rua, mas não parecia empenhado em atravessá-la. Segurava um objeto retangular contra o rosto. Estava falando por um rádio.
Peter avançou encostado ao edifício, afastando-se da multidão. Antes que o percebesse, estava diante de outra vitrine, de uma joalheria. Subitamente, o vidro se estilhaçou; nunca antes Peler tinha ouvido um barulho como aquele.
Um alarme soou, enchendo o ar com uma campainha ensurdecedora. Aterrado, Peter olhou para a vitrine. A poucos centímetros de sua cabeça, havia um pequeno círculo no vidro. Um buraco de bala! Uma mão invisível estava atirando nele!
As pessoas na calçada começaram a gritar. Peter correu para a esquina; um homem correu atrás dele.
- Pare! Sou da polícia!
Peter avançou pela multidão. Se o policial estava apontando arma, não se atreveu a disparar. Esbarrando e empurrando os outros, Peter chegou à beira da calçada, correndo. O cruzamento estava atulhado de carros, o tráfego da hora do rush momentaneamente imobilizado.
Havia um táxi vazio na metade do quarteirão, seguindo na direção da esquina seguinte. Peter correu até lá, rezando para que ninguém o alcançasse primeiro. Era mais do que um meio de viajar, era um refúgio.
- Já larguei o serviço, companheiro. Não estou mais pegando passageiros.
- Mas a bandeira está levantada!
- Um simples engano. Agora está baixada.
O motorista fitou-o, sacudindo a cabeça, irritado. Peter compreendeu subitamente que o macacão de mecânico se abrira. Ele parecia amarfanhado, talvez pior. Sem pensar, começou a tirar o macacão no meio da rua.
- Uma garota bonita... é como... uma melodia...
Um bêbado na calçada o estava observando, batendo palmas no ritmo da melodia. Peter tirou o macacão e arremessou-o em cima do bêbado.
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Os carros estavam parando bruscamente. Pulando por cima de pára-lamas e capôs, Peter voltou à calçada, para o meio da multidão. Olhou para o relógio. Já se haviam passado 27 minutos desde que falara com Longworth. Tinha que encontrar um telefone.
No quarteirão seguinte, do outro lado da rua, avistou o reflexo de luzes coloridas no vidro de uma cabine telefónica. Já não era mais crepúsculo, a noite caíra. Lá em cima, o céu de Washington estava escuro.
Peter novamente avançou por entre os carros que passavam pela rua. A cabine estava ocupada. Uma adolescente de macacão falava animadamente. Peter olhou novamente para o relógio: 29 minutos já haviam passado. Longworth dissera que deveria telefonar precisamente 30 minutos depois. Até que ponto isso seria fundamental? Será que um ou dois minutos a mais fariam alguma diferença?
Peter bateu no vidro da cabine. A garota lançou-lhe um olhar hostil. Ele empurrou a porta e gritou:
- Sou da polícia! Preciso do telefone!
Foi a única coisa que lhe ocorreu. E foi suficiente. A garota largou o telefone.
- Está bem, está bem...
Ela começou a sair da cabine, mas voltou a enfiar a cabeça e gritou para o fone pendendo do fio:
- Ligo para você depois, Jennie!
A garota saiu correndo pela multidão. Peter repôs o fone no gancho. Tirou do bolso o papel com os telefones que anotara, inseriu uma moeda na fenda e discou.
- Manfriedie - anunciou a voz no outro lado da linha. Peter podia ouvir uma música ao fundo. Era um restaurante.
- Aqui é Peter Chancellor. Disseram-me que ligasse para esse número.
Peter tinha certeza de que era um despiste. A voz disse:
- Houve uma estranha ocorrência em Munique no ano de
1923. Era um presságio do que estava para vir, mas ninguém o percebeu. Descreva o que era e indique o livro seu em que consta esse acontecimento.
- Ocorreu na Marienplatz. Milhares de homens realizaram um comício. Estavam vestidos em uniformes idênticos e cada um carregava uma pá. Intitulavam-se de Exército dos Pazeiros. O Schutzstaffell. Era o início do nazismo. O livro foi Reichstag!
Houve um breve silêncio, antes que a voz voltasse a falar.
- Ignore o telefone seguinte que lhe foi dado. Use a mesma estação, mas os quatro últimos algarismos são agora cinco, um, sete, sete. Cinquenta e um, setenta e sete. Entendido?
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- Entendido. Cinco, um, sete, sete. Mesma estação. O homem desligou. Peter discou o novo número.
- Artes e Indústrias - disse uma mulher.
- Meu nome é Chancellor. Tem alguma pergunta para mim?
- Tenho, sim - respondeu a mulher, jovialmente. - Houve uma organização na Sérvia, criada na segunda década do século e dirigida por um homem...
.- Deixe-me poupar-lhe tempo. A organização era chamada de Unidade da Morte. Formou-se em 1911 e seu líder era conhecido como Ápis. Seu verdadeiro nome era Dragutin
e era o chefe do serviço secreto militar da Sérvia. O livro era Sarajevo!
- Muito bem, Sr. Chancellor. - A mulher parecia que estava numa sala de aula, aplaudindo um aluno que sabia direito a lição. - vou lhe dar um novo telefone.
Peter discou o novo número. O diálogo seguiu a mesma linha.
- História e Tecnologia, Divisão de Laboratórios.
A voz era de homem. Peter identificou-se e foi-lhe pedido que esperasse um instante. Uma mulher veio falar, com sotaque estrangeirot
- Gostaria que me dissesse o que leva um homem a afastar-se de tudo o que sempre conheceu e aceitou, a se arriscar a virar um pária aos olhos de seus semelhantes.
Pois recusar-se a assumir esse risco, continuar como sempre foi, é morrer interiormente.
Peter olhou para o fone branco, aturdido. Aquelas palavras eram suas, de
Contra-ataque! Um curto parágrafo, entre milhares, mas para Peter era a chave de todo o
livro. Se Longworth tivera a capacidade de perceber isso. talvez fosse muito mais do que ele imaginara.
- A descoberta de que a administração da justiça não mais tinha qualquer importância para os líderes do país. Era preciso mostrar isso ao povo, desafiar os líderes.
Peter sentiu-se um pouco tolo por citar a si mesmo.
- Obrigada, Sr. Chancellor - disse a mulher com sotaque.
- Por favor, analise sua resposta e os telefonemas que acaba de dar. A combinação irá informá-lo do que está querendo saber.
Peter ficou aturdido.
- Mas não me diz nada! Tenho que encontrar Longworth! Diga-me logo onde ele está!
- Não conheço nenhum Sr. Longworth. Estou apenas lendo o que me foi ditado pelo telefone por um velho amigo.
Houve um clique e depois um zumbido no fone. Peter tornou a pô-lo no gancho, violentamente. Tudo aquilo era uma loucura! Três telefonemas sem a menor relação, envolvendo
livros que ele escrevera... Sem a menor relação? Não, não era bem assim. Os
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diálogos - todos idênticos. Isso significava que os locais... Onde estava -ngo?
Estava preso numa corrente, no lado direito da cabine. Peter encontrou o Restaurante Manfriedie. Ficava na Rua 12-Noroeste. O segundo telefonema fora atendido por
uma mulher que dissera as palavras Artes e Indústrias. No terceiro ele ouvira as palavras História e Tecnologia. Onde estava a relação?
E, subitamente, ficou óbvio. Eram prédios no complexo do Instituto Smithsonian! O Manfriedie ficava perto do Mall. Perto lo Smithsonian! Provavelmente era o único restaurante na área.
Mas em que lugar do Smithsonian? O complexo era imenso.
Analise sua resposta.
A descoberta de que a administração da justiça...
Administração!
O prédio da administração no Smithsonian! Era um dos pontos de referência de Washington.
Era isso! Longworth estava lá!
Peter largou bruscamente o catálogo. Virou-se e empurrou a porta.
E estacou abruptamente. À sua frente, estava parado o homem de capa. Na escuridão, iluminado pelas cores a piscar das luzes de Natal, Peter avistou a arma na mão do homem. Sobre o cano estava o tubo perfurado de um silencioso. E a arma estava .apontada para a sua barriga.
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Não havia tempo para pensar. E por isso Peter gritou. Tão alto e tão desesperadamente quanto podia.
Abaixou a mão esquerda com toda a força na direção do repulsivo cilindro perfurado. Houve duas vibrações, dois tiros; um pedaço de cimento explodiu. A alguns metros,
um homem e uma mulher gritaram histéricos. A mulher levou as mãos à barriga» caindo na calçada, a se contorcer; o homem cambaleou, segurando o rosto, o sangue escorrendo
entre os dedos.
Houve o caos. O homem de capa puxou o gatilho novamente. Peter ouviu o zumbido, sua mão sentiu o calor do cilindro. Um vidro atrás dele se espatifou. Mas Peter não
largou a arma fatal. Chutou as pernas do atacante, desferiu-lhe uma joelhada na virilha, empurrou-o para trás, para a rua. Os carros estavam em movimento. O homem foi bater no pára-lama de um carro que avançava, o impacto lançou-o de volta à calçada.
A mão de Peter estava queimada, a pele empolada, mas o dedos ainda seguravam o cilindro. A arma lhe pertencia.
com a força derivada do pânico, o homem de capa conseguiu se levantar. Tinha uma faca na mão, a lâmina comprida saíra do cabo, impulsionada por uma mola. E avançou para Peter.
Peter pulou para trás, batendo na cabine, mas conseguindo evitar a faca. Arrancou o cilindro da mão esquerda, levando junto uma parte da pele da palma. Apontou o cano para o homem de capa.
Não conseguia puxar o gatilho! Não podia disparar a arma!
O homem desferiu um novo golpe com a faca, de lado, visando a cortar a garganta de Peter. Ele se esquivou, sentindo a ponta da faca penetrar na suéter. Levantou o pé direito, atingindo o homem no peito e jogando-o para trás. O homem caiu sobre o ombro ficou atordoado por um instante.
Sirenes gemiam a distância agora. Apitos estridentes soavam enquanto guardas convergiam de todos os lados. Peter seguiu os seus instintos. Empunhando firmemente a pistola, avançou para o atacante atordoado e bateu com o cano em sua cabeça.
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Depois saiu correndo por entre a multidão histérica até o cruzamento, atravessou a rua, esgueirando-se dos carros, Continuou a correr.
Entrou numa rua transversal estreita. A cacofonia de sirenes e gritos estava ficando para trás. A rua agora estava. mais escura que as outras. Não havia lojas acesas para iluminar, apenas pequenos escritórios, em prédios antigos, de dois e três andares.
Peter foi ocultar-se nas sombras de um portal. As pernas, o peito e as lêmporas doíam terrivelmente. Respirava com tanta dificuldade que tinha a impressão de que ia vomitar. Procurou relaxar o corpo, deixar que o ar penetrasse em seus pulmões.
Teria que encontrar algum meio de chegar ao Smithsonian. Alcançar Alan Longworth. Mas não queria pensar a respeito, não por alguns minutos. Tinha agora que encontrar um momento de tranquilidade, uma trégua no turbilhão, para que a cabeça parasse de latejar, caso contrário não poderia...
Oh, não! Na esquina da rua estreita, iluminados pelos lampiões, dois homens estavam detendo os pedestres e fazendo perguntas. Fora seguido. Sua trilha era igual à de um fugitivo perseguido por sabujos.
Peter tentou proteger-se em outras sombras que havia na calçada. Não podia correr, pois assim seria facilmente avistado. Contornou uma grade de ferro ao lado de degraus de pedra. Olhou para trás. Os dois homens estavam agora trocando algumas palavras, o da direita segurando um walkie-talkie perto do ouvido.
Houve o barulho de uma buzina. Um carro estava entrando na rua e os dois homens estavam no caminho. Afastaram-se para a esquerda, a fim de deixarem o carro passar. Peter não podia mais vê-los. E se não podia vê-los, eles também não podiam vê-lo! Mas tal situação duraria apenas uns poucos segundos, não mais que dois ou três.
Peter saiu de trás da grade e começou a correr pela calçada. Se conseguisse correr na mesma velocidade do carro que avançava poderia prolongar mais um pouco o tempo em que ficaria fora das vistas dos dois homens; mais três ou quatro segundos seriam suficientes. Ouviu o barulho do motor às suas costas. A manobra «stava dando certo! Chegou à esquina. Esgueirou-se pela quina do prédio, comprimiu as costas contra a pedra. Deslocou o rosto alguns centímetros e olhou cautelosamente para a rua estreita. Os dois homens estavam avançando, lentamente, de portal em portal, com tamanha cautela que Peter ficou espantado. Mas logo compreendeu o motivo. No pânico, esquecera inteiramente, mas o peso no bolso do casaco lembrou-o subitamente. Estava com a arma. A arma que não tinha conseguido disparar.
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Os transeuntes olhavam-no; um casal afastou-se apressadamente mãe e filho pequeno foram para o meio-fio a fim de evitá-lo, pèter levantou os olhos para a placa da rua. New Hampshire Avenue. Mais adiante ficava a Rua T. Partira da zona comercial ao norte da Lafayette Square. Correra entre 15 e 20 quarteirões, talvez mais, contando com os desvios e vielas por que passara. Tinha que dar um jeito de voltar e seguir para sudeste, na direção do Mall.
Os dois homens não estavam a mais de 50 metros de distância. À sua direita, a meio quarteirão do lugar onde estava, o sinal passou a verde. Peter recomeçou a correr. Chegou à esquina, atravessou a rua e parou. Um guarda estava parado ao lado do sinal, fitando-o.
Talvez fosse a sua única oportunidade, pensou Peter. Poderia abordar o guarda, identificar-se, dizer que estava sendo perseguido. O guarda poderia dar um telefonema e se informar do caos a 20 quarteirões dali, ouvir pessoalmente a notícia do tiroteio e dos transeuntes feridos. Peter poderia contar tudo ao guarda, suplicar ajuda. -
No instante mesmo em que cogitava da ideia, no entanto, compreendeu que haveria perguntas, formulários a serem preenchidos, declarações a serem prestadas. Longworth não esperaria por tanto tempo. E havia homens com rádios e armas à sua procura. No hotel, Alison estava sozinha, com apenas um homem para protegê-la. A loucura não seria detida se recorresse à polícia. Seria apenas prolongada.
O sinal mudou. Peter atravessou rapidamente o cruzamento, passou pelo guarda e entrou na Rua T. Recuou para um portal mergulhado na escuridão, olhou para trás. A um quarteirão o meio dali, para o sul, uma limusine preta, seguindo para o norte, parou na esquina da rua estreita com a New Hampshire Avenue. Bem em frente ao carro havia um lampião. Peter avistou os dois homens se aproximando do carro. Uma janela de trás foi abaixada.
Um táxi seguia para o sul, pela New Hampshire. O sinal estava vermelho; o táxi parou. Peter correu até lá. Um homem idoso, bem vestido, estava sentado no banco de trás. Peter abriu a porta.
- Ei! - gritou o motorista. - Está ocupado!
Peter dirigiu-se ao passageiro, procurando parecer controlado, um homem esforçando-se em permanecer calmo numa emergência:
- Perdoe-me, por favor, mas é uma emergência. Tenho que ir imediatamente para o centro. Minha... minha esposa está muito doente... acabei de saber...
- Entre, entre - disse o homem idoso, sem a menor hesitação. - Só vou até Dupont Circle. Serve para você? Posso...
- Está ótimo, senhor. Muito obrigado.
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Peter entrou no carro no momento em que o sinal mudou. Bateu a porta e o táxi arrancou.
Peter jamais soube se foi a batida da porta ou o grito do motorista, mas percebeu que os dois homens avistaram-no, quando o táxi passou pela limusine no outro lado da New Hampshire. Olhou pela janela traseira. O homem da direita estava com o walkie-talkie encostado no rosto.
Chegaram a Dupont Circle e o homem idoso saltou. Petet determinou ao motorista que continuasse para o sul, pela Connecticut Avenue. O tráfego era mais intenso e prometia ficar pior ainda, à medida que se aproximavam do centro de Washington. O que era ao mesmo tempo uma vantagem e um perigo. As ruas congestionadas permitiam-lhe olhar em todas as direções para verificar se alguém retomara a perseguição. Mas, por outro lado, permitia também que outros o encontrassem e alcançassem, até mesmo a pé.
Chegaram à Rua K; à direita, ficava a Rua 17. Peter procurou visualizar um mapa de Washington, fixando as principais vias de penetração ao sul da Elipse.
A Constitution Avenue! Poderia mandar que o motorista virasse à esquerda, entrando na Constitution e seguindo para o Smithsonian através do Máíl. Havia uma entrada naquele trecho?
Tinha que haver. No esboço de capítulo que escrevera naquela manhã, imaginara Alexander Meiedith afastando-se desesperadamente do Mall. Será que escrevera mesmo isso? Ou será que fora apenas...?
Peter viu o que aconteceu pela janela traseira. Um carro cinza emergiu do meio do tráfego e avançou pela esquerda, emparelhando com o táxi. Subitamente, um facho de luz passou pela janela, misturando-se com a claridade dos faróis por trás. Peter inclinou-se para a frente, procurando manter o rosto nas sombras. Olhou para fora. O homem ao lado do motorista, no carro cinza, havia abaixado a janela. A lanterna estava focalizando a identificação do táxi, pintada na porta. E, de repente, ele disse:
- Ali está! É esse mesmo! Agora!
Era uma loucura dentro da loucura. Em sua imaginação, naquela manhã, dois homens haviam corrido num carro pelas ruas de Washington, atrás de Alexander Meredith. O carro emparelhara com o de Meredith, a janela fora abaixada e um homem gritara:
- Ali está! Agora!
O homem saiu do carro. Avançou rapidamente pelo estreito espaço que separava os dois veículos, estendendo a mão e segurando a maçaneta da porta do táxi. O sinal mudou nesse momento e Peter gritou para o motorista.
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- Entre na Rua 17! Depressa!
O táxi pulou para a frente, o motorista apenas vagamente consciente de que havia um problema no qual não queria se envolver. Por trás dele, soaram buzinas. Peter
olhou pela janela traseira. O homem ainda estava no meio da rua, confuso, furioso, bloqueando o tráfego.
O táxi avançou para o sul, pela Rua 17, passando pelo Executive Office Building e entrando na New York Avenue, aproximando-se da Corcoran Gallery. O sinal estava
vermelho, o táxi parou. Havia luzes acesas na galeria. Peter recordou-se de ter lido no jornal a notícia sobre uma nova exposição ali, de um museu de Bruxelas.
O sinal estava demorando demais a mudar! O carro cinza chegaria ali a qualquer momento. Peter tirou o dinheiro que tinha no bolso. Havia diversas notas de um dólar
e duas de 10 dólares. Inclinou-se para a frente.
- Quero que faça uma coisa por mim. Tenho que entrar na galeria, mas quero que fique esperando por mim nsrntrada, com o motor ligado e a bandeira baixada: se eu
me demorar mais de 10 minutos, pode me esquecer e seguir adiante. Já estará pago.
O motorista deu uma olhada nas notas e disse:
- Pensei que sua esposa estava doente. Quem era o cara lá atrás? Ele tentou abrir a porta...
Peter interrompeu-o:
- Não importa. O sinal está mudando. Faça como estou lhe pedindo, por favor.
- O dinheiro é seu. Tem 10 minutos.
- Está combinado.
Peter- saltou. As portas de vidro estavam fechadas acima do pequeno lance de degrau. Do outro lado, um guarda uniformizado estava de pé ao lado de uma mesa pequena.
Peter subiu rapidamente os degraus e abriu as portas. O guarda fitou-o, mas não fez qualquer menção de barrar-lhe a passagem, limitando-se a dizer:
- Pode me mostrar seu convite, senhor?
- Para a exposição?
- Isso mesmo, senhor.
- Estou com um problema - disse Peter, tirando a carteira do bolso. - Sou do New York Times e fui incumbido de cobrir a exposição para o suplemento dominical. Mas
estive envolvido num acidente de tráfego há poucos minutos e não sei onde está...
Ele estava rezando para que ainda estivesse com sua carteira. Há cerca de um ano, escrevera diversos artigos para o suplemento
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dominical do New York Times. Os editores lhe haviam fornecido uma credencial de imprensa temporária.
Encontrou-a entre os cartões de crédito. Estendeu-a para o guarda, o polegar escondendo o prazo de validade. A mão tremia, e não podia saber se o guarda estava reparando.
- Não há problema - disse o guarda. - Pode ficar tranquilo. Basta assinar o livro de registro.
Peter inclinou-se sobre a mesa, pegou a caneta esferográfica presa a uma corrente e assinou no livro.
- Onde é a exposição?
- Pegue um dos elevadores à direita, para o segundo andar. Peter encaminhou-se rapidamente para os elevadores, aper
tando os botões de chamada. Olhou para o guarda; o homem não estava lhe prestando a menor atenção. A porta de um elevador se abriu, mas Peter não tinha a menor intenção
de subir. Queria apenas que o barulho cobrisse os seus passos, enquanto se afastava à procura de uma saída no outro lado do prédio.
Mas foi nesse momento que ouviu outro som. Por trás dele, as portas de vidro se abriram. Peter avistou o homem do carro cinza entrando no prédio. Não tinha alternativa.
Entrou rapidamente no elevador vazio, apertando os primeiros botões que sua mão alcançou. A porta se fechou, o elevador subiu.
Peter saiu do elevador no meio de uma multidão, iluminada por lâmpadas no teto. Garçons de casaco vermelho, carregando bandejas de prata, esgueiravam-se entre os
convidados. Havia quadros e esculturas por toda parte, intensamente iluminados. Os convidados eram do corpo diplomático e os habitues de cerimónias daquele género,
inclusive muitos representantes da imprensa de Washington. Peter reconheceu diversos jornalistas.
Ele deteve um garçom, pegando uma taça de champanhe. Bebeu rapidamente, a fim de poder manter a taça vazia levantada, escondendo parcialmente o rosto. Olhou em redor.
- Você é Peter Chancellorí Eu o reconheceria em qualquer lugar! - Quem assim o saudava era uma verdadeira Brunhilde, o capacete de valquíria substituído por um chapéu
florido, pousado sobre o rosto wagneriano. - Quando seu novo romance será publicado?
- Não estou trabalhando em nenhum livro no momento.
- E por que está em Washington? Peter olhou para a parede.
- Sou apaixonado pela arte flamenga.
A Brunhilde tinha um pequeno bloco de espiral na mão esquerda, um lápis na direita. E escreveu enquanto falava:
- Convidado pela Embaixada Belga... um connoisseur da arte flamenga...
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- Eu não disse isso - protestou Peter. - Não sou nenhum connoisseur.
Por entre a multidão, ele viu a porta do elevador se abrir. O homem do carro cinza saiu. Brunhilde estava dizendo alguma coisa, mas Peter não ouviu.
- Seria muito melhor que estivesse tendo um caso com a esposa de algum diplomata. com a esposa de qualquer um.
- Há uma escada por aqui?
- Como?
- Uma escada! Uma saída!
Peter segurou o braço da Brunhilde e manobrou-lhe o corpo generoso para que ficasse entre ele e o homem do carro cinza. E foi nesse momento que outra mulher o abordou,
uma colunista loura que Peter vagamente reconheceu, de voz estridente:
- Mas eu sabia que já o tinha visto antes! Você é Paul Chancellor, o escritor!
- Chegou perto. Sabe onde existe uma saída? Tenho que descer pela escada sem demora.
- Use o elevador - disse a colunista. - Olhe, tem um à espera agora.
A mulher recuou para apontar e o movimento atraiu a atenção do homem do carro cinza. Ele começou a avançar na direção de Peter, que imediatamente tratou de recuar.
O homem abriu caminho pela multidão. No outro extremo da sala, por trás de uma mesa de hors-ãoeuvres, um garçom estava passando por uma porta de vaivém. Peter largou
a taça e segurou as duas atónitas jornalistas pelo braço, empurrando-as na direção da porta.
O homem estava apenas uns poucos metros atrás dele. Peter afastou-se um pouco para o lado, ainda segurando as duas mulheres. No momento em que o homem se desvencilhou
da multidão, Peter virou-se e empurrou as duas mulheres na direção dele, com toda força. O homem soltou um grito; o lápis da Brunhilde atingira seu lábio inferior.
O sangue começou a escorrer. Peter enfiou as mãos por baixo da mesa grande, repleta de comida e com duas imensas poncheiras. Virou a mesa, jogando ao chão, estrondosamente,
toda aquela massa de prataria, cristais, comida e bebida.
Soaram gritos, alguém soprou um apito. Peter correu para a porta de vaivém, entrando na copa.
Na parede da esquerda avistou a placa vermelha de Saída. Peter pegou um carrinho de comida e empurrou-o na direção da porta de vaivém, com tanta força que uma roda
se desprendeu. Tif-elas de salada se espalharam na frente da porta de vaivém. Peter correu para a porta de saída, abriu-a com o corpo. Olhou para
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trás. Reinava o caos na entrada da copa e não havia o menor sinal do homem que o perseguia.
A escada estava vazia. Desceu de três em três degraus, até o patamar lá embaixo, segurando-se no corrimão de ferro para fazer a curva.
Estacou abruptamente, o joelho esquerdo batendo no corrimão de ferro. Na frente da porta do saguão estava o homem que ele vira pela última vez na Connecticut Avenue,
um dos seus perseguidores. Não era agora parte de um romance, um simples personagem, mas sim um homem real, de carne e osso. Assim como a arma em sua mão também
era real.
A loucura! Ocorreu a Peter o pensamento absurdo de que devia ter um gravador em miniatura no lenço no bolsinho do paletó. Involuntariamente, levantou o braço esquerdo,
comprimiu o tecido. Para acionar o gravador. Um gravador inexistente! O que estava lhe acontecendo?
- O que estão querendo comigo? Por que estão me seguindo? - sussurrou Peter, sem ter mais certeza do que era ou não realidade.
- Queremos apenas conversar com você. Para que possa compreender...
- Não!
A mente de Peter explodiu. Ele pulou do patamar, consciente apenas do espaço vazio. Em algum ponto das ondas de som que percorriam esse espaço, ouviu o zunido de
uma bala. Mas não foi atingido. Sua incredulidade era total.
Subitamente, suas mãos agarraram cabelos e pele. O impulso do corpo arremessado pelo ar levara-o a atingir o alvo. A cabeça do homem foi se chocar violentamente
contra a porta.
O homem real, com a arma real, desabou no chão, os cabelos e o rosto cobertos de sangue. Peter levantou e ficou imóvel por um momento, em estado de choque, procurando
separar a fantasia da realidade.
Tinha que correr. Não tinha alternativa senão correr. Atravessou o saguão correndo. O guarda estava de pé ao lado das portas de vidro que davam para a rua, a mão
no coldre, um walkie-talkie encostado no ouvido. Quando Peter se aproximou, o guarda disse:
- Houve alguma confusão lá em cima, não é mesmo?
- Houve, sim. Acho que foi uma dupla de bêbados.
- Os dois caras o encontraram? Disseram-me que também era do FBI.
Peter estacou, segurando a porta.
- Como?
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Os outros dois caras que estavam à sua procura. Mostraram as identificações. Também são do FBI.
Peter não esperou para ouvir o resto. A loucura agora era completa. O FBI! Ele desceu os degraus correndo, quase sem ver nada, a respiração ofegante.
- O taxímetro ainda está marcando, moço.
O táxi estava parado a dois ou três metros dele, encostado no meio-fio. Peter embarcou.
- Vamos até a Ellipse Road! E depressa, pelo amor de Deus! Dê a volta pelo Smithsonian Park. Eu lhe direi onde deve me deixar.
O táxi arrancou, com o motorista comentando:
- O dinheiro é seu.
Peter virou-se no banco e olhou pela janela traseira para a Corcoran. Um homem desceu os degraus correndo, uma das mãos no rosto, a outra segurando um walkie-lalkie.
Era o homem da recepção do segundo andar, o homem cujo lábio tinha sido furado pelo lápis da Brunhilde. Ele avistou o táxi. O que significava que outros estariam
à espera. Em algum lugar.
O táxi entrou na curva da Ellipse. Ao sul, ficava o Washington Monument, refletores iluminando a coluna branca. Peter disse ao motorista:
- Diminua a velocidade, o mais perto possível do gramado. Mas não pare. vou saltar com o carro em movimento, pois não quero que ninguém...
Peter deixou a frase no meio; não sabia como explicar. O motorista ajudou-o:
- Não quer que ninguém o veja saltando do meu táxi, não é isso?
- Exatamente.
- Está metido em alguma encrenca?
- Estou.
- com a polícia?
- Oh, não! É... pessoal.
- Está me parecendo ser um cara direito. E como foi direito comigo, tenho que retribuir. - O motorista diminuiu a velocidade. - Cerca de 50 metros adiante, no final
da curva, um instante antes de começar a reta, pule do carro. E depois vou acelerar, avançando à toda por uns dois quarteirões. Certo?
- Certo. E obrigado.
- Agora!
O táxi diminuiu a velocidade. Peter abriu a porta e pulou além da calçada, ajudado pelo impulso do carro.
O motorista pôs a mão na buzina e acelerou. Outros carros se desviaram para a direita, dando passagem ao táxi. A buzina
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contínua era um sinal de emergência; alguém estava com algum problema e ninguém queria atrapalhar.
Peter ficou observando a cena do gramado, meio escondido atrás de um arbusto. Um carro não parou, nem hesitou, nem se desviou para a direita como os outros. Não
parecia afetado pelo sinal de alarme e pânico do táxi. Ao contrário, saiu em disparada atrás do táxi.
Era a limusine preta que Peter vira pela última vez na New Hampshire Avenue.
Peter ficou imóvel por um momento. Pneus rangiam à distância. No outro lado da Ellipse, na direção do Continental Hall, outro carro estava entrando na curva, velozmente.
À procura dele? Peter levantou e começou a correr pelo gramado.
Não demorou a sentir concreto sob os pés. Estava na rua. Havia prédios à sua frente, carros avançando lentamente a seu lado. Continuou a correr, sabendo que além
dos prédios às escuras e das árvores esparsas estava o Smithsonian.
Subitamente, lançou-se ao chão e rolou pela calçada. Por trás dele, soava o barulho inconfundível de passos a correr. Haviam encontrado a sua pista.
Levantou-se um instante depois, disparando para a frente, como um corredor dispara, extremamente ansioso, ao som do estampido da pistola de partida. Continuou a
correr, na direção para a qual o instinto o impelia. E, de repente, lá estava, os parapeitos delineados contra o céu! O Smithsonian! Correu tão depressa quanto podia
através de um gramado interminável, pulando as grades baixas que margeavam os caminhos, até parar, ofegante, na frente do enorme prédio.
Havia chegado. Mas onde estaria Longworth?
Peter teve a impressão de ouvir passos às suas costas. Virouse bruscamente, mas não avistou ninguém.
De repente, uma luz faiscou duas vezes na escuridão, além dos degraus que levavam à entrada do prédio, à esquerda da estátua no alto dos degraus. A luz piscou novamente,
como se estivessem a chamá-lo! Peter encaminhou-se rapidamente para a luz, mais perto, cada vez mais perto, dez metros, oito metros... Estava se dirigindo para um
canto do prédio imenso, onde havia alguns arbustos.
- Chancellor! Abaixe-se!
Peter jogou-se ao chão. Dois clarões surgiram na escuridão; eram tiros de pistola, abafados.
Um corpo caiu às suas costas. Olhando para trás, Peter avistou uma arma na mão do corpo que caíra. A pistola tinha sido apontada para ele!
- Arraste-o até aqui!
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Era uma ordem sussurrada que partiu da escuridão. Atordoado, Peter obedeceu. Arrastou o corpo pelo gramado até os arbustos e depois rastejou ao encontro de Alan
Longworth.
O homem estava morrendo, com as costas apoiadas na parede de pedra do Smithsonian. A mão direita empunhava a arma com que salvara a vida de Peter, a mão esquerda estava comprimida contra a barriga. Os dedos estavam cobertos de sangue.
- Não tenho tempo para agradecer-lhe - murmurou Peter, em voz quase inaudível. - E talvez não haja motivos para isso. Afinal, era um dos seus homens.
- Não tenho homem nenhum trabalhando comigo - murmurou o assassino louro.
- Vamos conversar sobre isso depois. Agora, neste momento, você vai comigo.
Peter levantou-se, furioso.
- iNão vou a lugar nenhum, Chancellor - disse Longworth.
- Se eu continuar quieto aqui, talvez ainda me restem alguns minutos. Se me mexer, nem isso.
A voz de Longworth tinha novamente aquele som estranho, gutural, que Peter já tinha ouvido antes.
- Pois então vou procurar ajuda! - A voz de Peter estava agora impregnada de medo. Não podia deixar Longworth morrer. Não agora. - vou providenciar uma ambulância.
- Uma ambulância não vai adiantar. Acredite em mim, Chancellor. Mas tenho que lhe contar tudo... precisa compreender. ..
- Já sei de tudo que precisava compreender! Um grupo de fanáticos está tentando destruir o FBI, para poder assumir o controle. E você é um deles.
- Não é verdade. A coisa não se limita ao FBI. Estamos tentando impedi-los. Empenhei-me ao máximo, mas fracassei. E agora você é o único que pode detê-los. É quem está mais perto do centro dos acontecimentos. Ninguém mais conta com essa vantagem senão você.
- Por quê?
Longworth pareceu ignorar a pergunta. Respirou fundo e murmurou:
- Os arquivos desaparecidos... os dossiês particulares de Hoover...
- Não existem arquivos desaparecidos! - interrompeu-o Peter, furioso. - Existem apenas homens como você e como o outro que acabou de matar. Cometeu um erro, Longworth. Ele estava atrás de mim, perseguindo-me. E usou a sua identificação. Ele era do FBI! Um de vocês!
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Longworth olhou para o corpo do homem que acabara de matar.
- com que então os maníacos já descobriram que os arquivos desapareceram! Eu já imaginava que isso era inevitável. Podem ser usados pelo homem que os roubou e eles serão culpados por tudo o que acontecer.
Peter não estava prestando atenção. A única coisa que importava era entregar Longworth a Quinn OBrien.
- iNão estou interessado em ficar aqui parado a ouvir seus comentários.
- Diz que ama aquela mulher - balbuciou Longworth, a respiração cada vez mais difícil. - Se realmente a ama, então não pode deixar de me escutar.
- Deixe-a fora disso, seu desgraçado!
- A mãe dela, o pai... Descubra tudo. Algo aconteceu com a mãe dela.
Peter ajoelhou-se ao lado do agonizante Longworth.
- O que sabe a respeito da mãe dela?
- Não o bastante. Mas você pode descobrir. Escute o que tenho para lhe dizer. Antes de mais nada, precisa saber que meu nome não é Longworth.
Peter ficou incrédulo; mas, no fundo, sabia que estava ouvindo a verdade. Círculos dentro de círculos. Realidade e fantasia. Qual delas estaria vivendo? A lua apareceu no céu noturno. Pela primeira vez, Peter pôde contemplar claramente o rosto de Longworth. O homem agonizante estava sem sobrancelhas, sem pestanas. A região em torno das órbitas estava em carne viva, o rosto estava todo empolado. Ele fora torturado, barbaramente espancado.
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- Meu nome é Stefan Varak. Sou um especialista em códigos do Conselho de Segurança Nacional, mas também desempenho certas funções especiais para um grupo de...
- Varak? - Demorou alguns segundos para que o nome se registrasse no cérebro de Peter; mas quando isso aconteceu, o choque provocou-lhe um terrível calafrio. - É o homem que OBrieit está procurando!
- Quinn OBrien? - indagou Varak, estremecendo de dor.
- Exatamente. Conversei com OBrien, contei-lhe toda a história. E ele está à sua procura desde então!
- Eu não estava em condições de receber qualquer mensagem. Teve muita sorte. Quinn é um dos homens mais limpos e inteligentes do FBI. Confie nele. - Varak tossiu, a dor intensa se estampando em seu rosto. - Se os maníacos se manifestarem, Quinn saberá detê-los.
- O que tem para me contar? O que sabe a respeito da esposa de MacAndrew?
Varak levantou a mão ensanguentada.
- Tenho que explicar tudo. O mais depressa possível. Tem que compreender... Desde o início, você foi programado. Parto verdade, parte mentira. Tínhamos que envolvê-lo, fazê-lo entrar em ação, forçar o inimigo a reagir, a se mostrar.
Varak foi dominado por um espasmo de dor. Peter esperou que passasse para perguntar:
- Parte mentira, parte verdade. O que era o quê?
- Já lhe disse... os arquivos... desapareceram mesmo...
- E não houve nenhum assassinato?
- Inconcebível... - Varak olhou atentamente para Peter, a respiração cada vez mais acelerada. - Os homens que lutavam contra Hoover eram honrados. Procuravam proteger as vítimas de Hoover dentro da lei, não à margem dela.
- Mas os arquivos foram roubados.
- Exatamente. Isso é verdade. Levaram os dossiês de M a Z. Não se esqueça disso. - Varak foi dominado por um novo es-
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pasmo de dor. Peter segurou os ombros dele. Não lhe ocorria outra coisa a fazer. Depois que o tremor passou, Varak continuou:
- E, agora, vou recorrer as suas próprias palavras...
As suas palavras? Os olhos de Varak estavam vidrados, o sotaque era novamente acentuado.
- Minhas palavras? Como assim?
- No quarto capítulo...
- Como?
- Do seu livro...
- Você leu os originais?
- Li.
- Como?
- Não tem importância. Não há tempo para explicar... Seu Núcleo. Concentrou-se em três pessoas. Um senador, uma jornalista, um antigo membro do Gabinete...
Os olhos de Varak reviraram nas órbitas, a voz se apagou. Sem compreender, Peter insistiu:
- O que há com eles?
- Usar os arquivos para o bem... - O homem agonizante aspirou fundo. - Você escreveu isso...
Peter recordou-se. Os arquivos. No original, ele atribuía as palavras ao antigo membro do Gabinete. Se podem ser usados da maneira como Hoover os está usando, também podem ser usados da maneira inversa. Podem ser usados para o bem! Era esse falso raciocínio que acabaria levando à tragédia.
- E daí? O que isso significa?
- É o que está acontecendo... - Os olhos de Varak se focalizaram por um momento, numa concentração total. - Um homem transformou-se num assassino. Um assassino que contrata assassinos.
- Como assim?
- Cinco homens. Um dos quatro... não Bravo... Bravo nunca..
- Não estou entendendo. Quem é Bravo?
- Uma esplêndida tentação... usar os arquivos para o bem ..
- Esplêndida? Não tem nada de esplêndida! Não passa de extorsão!
- É justamente essa a tragédia. Oh, Deus! As palavras dele!
- Que cinco homens são esses? A que está se referindo?
- Já conhece Venice... Bravo também... mas não pode ser Bravo! Bravo nunca! - Varak moveu a mão ensanguentada, com um tremendo esforço. Levou-a do ferimento na barriga
ao bolso do casaco. Tirou um pedaço de papel, sujo de sangue.
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com nome de quatro homens. Pensei que fosse Banner ou Paris. Agora não tenho certeza. - Ele estendeu o papel para Peter. - Nomes em código. Venice, Christopher, Banner,
Paris. É um deles. Não Bravo.
- Venice... Bravo... quem são eles?
- O grupo. O seu Núcleo. - Varak tornou a baixar a mão para o ferimento. - Um deles sabe.
- Sabe o quê?
- O significado de Chasong. A mãe.
- MacAndrew? A esposa dele?
- Não ele. Ela! Ele é o chamariz.
- Chamariz? Tem que ser mais claro.
- O massacre... O significado por trás do massacre de Chasong!
Peter olhou para o papel manchado de sangue em sua mão. Havia nomes escritos nele. E perguntou ao homem agonizante, sem ter muita certeza de que significava a sua
própria indagação:
- Um desses homens?
- Exatamente.
- Por quê?
- Você e a filha. Você! Era para tirá-lo da pista. Para fazê-lo pensar que era a resposta. Mas não é.
- Que resposta?
- Chasong. Alguma coisa além.
- Pare com isso! O que está querendo dizer?
- Bravo não...
Os olhos de Varak reviravam nas órbitas.
- Quem é Bravo? É um deles?
- Não. Bravo nunca.
- O que aconteceu, Varak? Por que tem tanta certeza assim com relação a Chasong?
- Há outros que poderão ajudar...
- Mas o que há com Chasong?
- Rua 35. A casa. Pegaram-me, puseram adesivo nos meus olhos, no rosto todo. Não cheguei a vê-los. Precisavam de um refém. Sabiam o que fiz... Não os vi, mas ouvi.
Falavam uma língua que eu não conhecia, o que significa que sabiam que eu ignorava. Mas usaram o nome Chasong. Todas as vezes... e como fanáticos. Tem outro significado. Descubra o que há por trás do massacre de Chasong. Isso o levará aos arquivos.
Varak tombou para a frente, Peter segurou-o, empurrando-o para trás.
- Tem que haver mais alguma coisa!
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- Há muito pouco... - O sussurro de Varak era agora quase inaudível; Peter quase que teve de encostar o ouvido nos lábios dele para conseguir escutar. - Levaram-me pela cidade... pensaram que estivesse desmaiado... ouvi outros carros... jogueime pela porta, mesmo com os olhos vendados... atiraram em minha direção, mas se afastaram... eu tinha que falar-lhe a sós... não podia falar pelo telefone... e estava certo... os dois primeiros números que lhe dei foram procurados... Se eu tivesse falado pelo telefone o que estou lhe contando agora, já o teriam matado... proteja a mulher... e descubra o que há por trás do massacre de Chasong...
Peter sentiu o pânico invadi-lo, a cabeça prestes a explodir. Varak estava quase morto. Mais um momento, uns poucos segundos, e ele sucumbiria.
- Disse que havia outros! A quem posso procurar? Quem irá ajudar?
- OBrien... - Varak focalizou os olhos uma derradeira vez e fitou Peter, com um sorriso estranho nos lábios. - Procure em seus originais. Há um senador. Ele pode ter sido... Vá procurálo. Ele não tem medo.
Varak fechou os olhos. Estava morto.
E a mente de Peter foi invadida por um clarão intenso, estrondos incessantes. As explosões sacudiam a terra; tudo parecia insano. Um senador... Ele ultrapassara uma fronteira pela qual ninguém podia passar. Deixou a cabeça de Varak se encostar na pedra e levantou-se lentamente, recuando, dominado por um terror tão intenso que nem conseguia pensar.
Mas podia correr. E foi o que fez, cegamente.
Estava perto da água. Os reflexos de luz faiscavam na superfície como milhares de velas em miniatura tremeluzindo a um vento que não se sentia. Peter não sabia dizer por quanto tempo correra. Quando sua mente começou a clarear, pensou por um momento que estava de volta a Nova York, ao amanhecer, em Cloisters, onde um homem louro chamado Longworth acabara de salvar-lhe a vida.
Mas p nome dele não era Longworth. Era Varak e agora estava morto.
Peter fechou os olhos. O vazio que tanto procurara finalmente dominou-o. Abaixou lentamente, os joelhos encostaram no gramado. Ele estremeceu.
Ouviu o barulho de um motor se aproximando, o cascalho esmagado pelas rodas. Abriu os olhos. Uma motocicleta parou, o
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farol único apontado diagonalmente para baixo. Um guarda saltou, apontando sua lanterna para Peter.
- Está se sentindo bem, senhor?
- Estou, sim.
O guarda chegou perto. Peter levantou, meio trôpego, percebendo que, por trás do facho de luz, a mão do guarda pairava por cima do coldre desabotoado.
- O que está fazendo aqui?
- Eu... não sei direito... Para dizer a verdade, bebi demais e saí para dar uma volta. Sempre ajo assim. É melhor do que pegai um carro.
- Claro que é. Mas não está pensando em fazer alguma tolice, não é mesmo?
- Como assim?
O guarda estava postado diante de Peter, fitando-o atentamente.
- Como dar um mergulho com a intenção de não voltar?
- O quê?
- Está com um aspecto horrível...
- Levei um tombo. Já lhe disse que...
- Andou bebendo demais. Engraçado, não estou sentindo o cheiro.
- É que bebi vodca.
- Está deprimido? com problemas de família? Alguma encrenca? Quer ver um padre ou um rabino? Ou quem sabe um advogado?
Peter finalmente compreendeu.
- Estou entendendo. Pensa que quero me afogar.
- Já aconteceu. Volta e meia temos que recolher um corpo na Basin.
- Estamos na Tidal Basin?
- A sudoeste da ponta. - O guarda apontou para a direita e acrescentou: - Ali está o Ohio Drive. E do outro lado da água fica o Jefferson Memorial.
Peter olhou para o mostrador luminoso do relógio. Passava um pouco das nove e meia. Perdera quase duas horas; tivera um branco total por duas horas! E havia coisas a fazer, muitas coisas. A primeira era tranquilizar um guarda preocupado. Peter esforçou-se por encontrar as palavras certas:
- Estou realmente me sentindo bem, seu guarda. E tenho que dar um telefonema urgente. Há alguma cabine telefónica por perto?
O guarda fechou o coldre.
303
- Ali na Ohio, a cerca de cem metros para o sul, talvez menos. E talvez possa também pegar um taxi ali. Mas tome cuidado para não ser detido novamente. Outros guardas podem não ser tão camaradas como eu.
- Obrigado pelo aviso. - Peter sorriu. - E obrigado por sua preocupação.
- Faz parte do trabalho. E procure se cuidar.
Peter assentiu e começou a atravessar o gramado na direção da Ohio Drive. Alguém estava na escuta do seu telefone no hotel. Podia ligar para Alison, mas não podia
dizer-lhe coisa alguma. Em vez disso, devia entrar em contato com Quinn OBrien.
- Onde você está? Minhas ordens eram para que não saísse do hotel! Mas que diabo...
- Os maníacos tentaram me matar - interrompeu-o Peter, recordando a descrição de Varak.
- Os maníacos? - OBrien parecia aturdido. - Onde foi que ouviu esse termo?
- É sobre isso que vamos conversar... sobre isso e outras coisas. Acabo de sair da Corcoran Gallery.
- Da Corcoran? Esteve lá?
- Estive.
- Oh, Deus!
OBrien parecia assustado.
- Estou na...
- Cale-se! - gritou o homem do FBI, bruscamente. - Não diga mais nada! Espere um instante... e não saia da linha! Peter podia ouvir OBrien respirando; o agente estava pensando.
- Nossa conversa ontem à noite. Pense cuidadosamente. Disse que fez três ligações para Nova York, de telefones públicos. Usou o seu cartão de crédito.
- Mas eu...
- Eu mandei ficar de boca fechada! Pense um pouco. Os telefonemas foram dados antes e depois do incêndio na Rua 35.
- Eu...
- Fique escutando! Houve um telefonema em particular... creio que foi depois, mas não tenho certeza. Vá à cabine de onde deu esse telefonema. Está entendendo agora? Não responda imediatamente. Pense um pouco antes.
Peter esforçou-se em compreender o que OBrien estava querendo dizer. Não tinham sido três telefonemas, mas apenas um. Ligara para Tony Morgan antes da loucura na Rua 35. Não dera qualquer telefonema depois.
Pensar um pouco. Filtrar. Eliminar. Era isso! O agente referia-se àquele telefonema, àquela cabine.
- Já entendi.
- bom. Foi depois da Rua 35, não foi?
304
- Exatamente - respondeu Peter, sabendo que era uma mentira.
- Em algum ponto da Wisconsin se não me engano.
- Isso mesmo. Novamente um embuste.
- Vá até lá. Ficarei ligando de dez em dez minutos. Escolha uma frase de que se recordar da nossa conversa e diga-a quando atender. Entendido?
- Entendido.
Peter desligou e saiu da cabine. Continuou a andar para o sul, na direção das luzes da ponte que se estendia sobre o Potomac, procurando por um táxi. Enquanto caminhava,
procurou recordar a localização exata da cabine de onde ligara para Morgan. Ficava perto da Universidade George Washington.
Um táxi apareceu. Peter encontrou a cabine sem maiores dificuldades. Havia novamente multidões na rua, luzes coloridas e cantigas de Natal saindo de alto-falantes invisíveis. Ele pediu ao motorista que esperasse. O único dinheiro de que dispunha eraro duas notas de 50 dólares que estavam na carteira. Precisaria trocá-las e precisaria também do táxi.
Sabia exatamente o que ia fazer.
Descubra o significado de Chasong.
Fechou a porta da cabine e tirou o fone do gancho, continuando a mantê-lo abaixado, com o dedo. A campainha mal tinha começado a tocar quando largou o gancho e falou:
- Posso ter que passar o resto da noite aqui... Deixarei que decida...
Fora uma das primeiras coisas que dissera ao agente, ao se encontrarem.
- Ótimo - disse OBrien. - Estou a dez quarteirões de distância, na Rua 20. Posso ter sido seguido e por isso não vamos nos encontrar. Agora me conte o que aconteceu. Onde ouviu o termo maníacos?
- Por quê? É algo muito especial?
- Não comece com brincadeiras. Não temos tempo para isso.
- Não estou brincando. E estou vigilante. Se avistar alguém a me olhar atentamente ou se um carro parar, sairei correndo. Acho que é limpo, OBrien. Ou pelo menos foi o que me contaram. Mas quero ter certeza; E agora diga-me o que significa o termo. Quem são os maníacos?
OBrien deixou escapar um suspiro audível.
- Cinco ou seis agentes especiais que trabalhavam secretamente, e eram intimamente ligados a Hoover. Querem o antigo
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regime de volta, querem controlar o FBI. Já lhe falei a respeito ontem à noite. Mas não usei a palavra maníacos.
- Mas eles não estão envolvidos nisso, não é mesmo? Não são eles que estão com os arquivos desaparecidos.
OBrien ficou calado por um longo momento; o choque dele era evidente, mesmo pelo telefone.
- Quer dizer que já sabe?
- Já, sim. Disse que os arquivos haviam sido destruídos, mas estava mentindo. Disse que não havia nenhum padrão, mas acontece que há. Os arquivos não foram destruídos. E quem quer que os tenha, pensa que estou prestes a descobrir sua identidade... quem são eles. Foi o plano que desencadeou tudo. Eu deveria servir de isca. Quase deu certo, mas o homem que me programou foi morto em sua própria armadilha. Agora, conte-me tudo o que sabe, e é melhor ser sincero!
OBrien respondeu calmamente, controlando-se:
- Acho que são os maníacos que estão com os arquivos. Operavam com os arquivos, tinham todo o acesso a eles. Por isso é que eu não podia falar com você da minha sala, pois eles estão na escuta do telefone. E agora, pelo amor de Deus, conte-me o que aconteceu.
- Está certo. Encontrei o homem que estava procurando... Varak.
- O quê?
- Eu o conhecia como Longworth.
- Longworth? Ei, 1. de maio... os registros de segurança! Ele está com os arquivos!
Involuntariamente, OBrien estava gritando ao telefone.
- Mas isso não faz sentido! - disse Peter, aturdido. Varak está morto. Arriscou a vida para descobrir os arquivos e acabou perdendo.
Peter contou ao, agente tudo o que acontecera desde o telefonema até a morte de Varak. Informou a convicção do homem agonizante de que QBrien seria capaz de deter
os maníacos. Mas não mencionou Chasong. Por enquanto, isso era particular.
- Varak está morto... - murmurou OBrien. - Não posso acreditar. Era um dos homens com quem podíamos contar. Agora, não restam muitos.
- O cara da CIA... já nos conhecíamos. Disse que alguns de vocês trabalham juntos. Por toda Washington. Que assim fazem porque não há outro jeito.
- Exatamente. Mas o problema é que não podemos recorrer a ninguém para uma assistência legal. Não confio em nenhum procurador do Departamento de Justiça.
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- Talvez haja alguém para ajudar. Um senador. Varak me falou a respeito. Mas ainda não, não agora... É muito bom dar ordens, OBrien. O que me diz agora de recebê-las?
- Só se fizerem algum sentido.
- Não acha que os arquivos desaparecidos fazem bastante sentido?
- É uma pergunta estúpida.
- Nesse caso, faça duas coisas para mim. Tire Âlison MacAndrew do HayrAdams, leve-a para algum lugar seguro, fique com ela. Estão querendo me pegar. E usarão Âlison para me encontrar.
- Está certo. E qual é a outra coisa?
- Preciso do endereço de um major chamado Pablo Ramirez. Ele está servindo no Pentágono.
- Espere um instante.
Peter sentiu-se subitamente alarmado. Podia ouvir pelo telefone o barulho de papel. Papel! Levou a mão ao gancho, prestes a cortar a ligação e sair correndo.
- OBrien! Pensei que tivesse dito que estava a dez quarteirões de distância! Numa cabine telefónica!
- E estou... procurando pelo endereço no catálogo.
- Oh, Deus... Peter engoliu em seco.
- Aqui está. Ramirez, P. Ele mora em Bethesda. - O agente leu o endereço e Peter decorou-o. - Isso é tudo?
- Não. Quero me encontrar com Âlison ainda esta noite ou amanhã de manhã. Como poderei descobrir onde está, para onde a levou? Tem alguma ideia?
Silêncio. Cinco segundos depois, OBrien respondeu:
- Conhece Quántico?
- A base dos fuzileiros?
- Isso mesmo. Mas não o quartel. Há um motel na baía. O nome é Pines. Eu a levarei para lá.
- Alugarei um carro.
- Não faça isso. As agências de aluguel de carro são facilmente cobertas. Há um sistema de verificar constantemente todas as que existem na cidade. Iriam encontrá-lo. O mesmo se aplica aos táxis, que não vão a lugar nenhum sem comunicar seu destino. Eles descobririam facilmente o seu paradeiro.
- E que devo fazer para ir até lá, afinal? Por acaso quer que eu vá a pé?
- Há trens para Quantico de hora em hora, se não me engano. É o melhor que pode fazer.
- Está certo. Voltaremos a nos falar mais tarde. .
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- Espere um instante! - A voz de OBrien era novamente insistente, embora ainda controlada. - Está retendo alguma informação, Chancellor. A respeito de MacAndrew.
Peter virou a cabeça bruscamente, olhando para a multidão na rua através do vidro da cabine.
- Está fazendo suposições, OBrien.
- Você é que está bancando o tolo. Não é preciso muito para chegar a essa conclusão. Ramirez trabalha no Pentágono... « MacAndrew também trabalhou.
- Não insista mais, OBrien. Por favor.
- Por que não? Ainda não me falou a coisa mais importante que Varak lhe disse: por que tinha de vê-lo.
- Mas claro que já contei! Ele me revelou a sua estratégia, como eu tinha sido programado.
- Varak não perderia tempo com isso, especialmente no momento em que estava morrendo. Ele descobriu alguma coisa? disse-lhe o que era.
Peter sacudiu a cabeça; o suor escorria de sua testa. OBrien não podia ser informado do significado de Chasong, até que Peter descobrisse qual era. É que, quanto mais se aprofundava, mais Peter ficava convencido de que a sobrevivência de Alison estava em jogo.
- Espere até amanhã de manhã.
- Por quê?
- Por que eu amo Alison.
Paul Bromley olhava para o espelho rachado por cima da cómoda, com os puxadores faltando na gaveta do meio. E o que via o deixava triste: o rosto pálido de um velho
doente. Os fios grisalhos já apareciam no rosto, pois há 48 horas não fazia a barba. O espaço amplo entre o colarinho engomado sujo e o pescoço era um indício de
sua doença. Restava-lhe muito pouco tempo. Mas seria suficiente. Tinha que ser.
Virou-se e foi até a cama. A colcha estava imunda. Seus olhos correram pelas paredes e pelo teto. Havia rachaduras por toda parte, a tinta estava descascando.
Pensavam que o tinham acuado, mas a presunção deles não tinha sentido. Deviam-lhe favores. Uma vida inteira em Washington, supervisionando, verbas fabulosas, havia deixado muita gente lhe devendo favores. Tudo era uma troca; pode fazer isso, se me der aquilo. Quase sempre funcionava muito bem. De um modo geral, Paul Bromley tinha orgulho de seus serviços em Washington. Fizera muitas coisas boas.
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Mas também havia feito muitas coisas das quais não se orgulhava. Era o caso de uma em particular, para um patife que lhe fornecera as informações necessárias para acuar os ladrões no Departamento da Defesa. Era essa a dívida que iria agora cobrar. Se o homem recusasse, daria um telefonema para o Washington Post. Mas tinha
certeza de que o homem não recusaria.
Bromley pegou o casaco na cama e vestiu-o. Saiu para um corredor imundo, desceu um lance de escada até o saguão. O agente do FBI designado para vigiá-lo estava de pé num canto, obviamente constrangido, um manequim impecável entre os destroços humanos. Pelo menos o homem não precisava ficar esperando no corredor lá em cima. A única saída do hotel era a porta da frente... uma prova da confiança depositada em sua clientela.
Bromley foi ao telefone público na parede, inseriu a moeda e discou.
- Alo?
A voz era anasalada, desagradável.
- Aqui é Paul Bromley.
- Quem?
- Há três anos. Detroit. O projeto.
Houve uma pausa prolongada, antes que a voz respondesse:
- O que está querendo?
- Aquilo a que tenho direito. A menos que prefira que eu ligue para alguns amigos no Post. Eles quase o agarraram há três anos. Podem fazê-lo agora. E tenho também uma carta já pronta. Será devidamente remetida, se eu não voltar para casa.
Houve nova pausa, ainda mais prolongada.
- Diga o que quer.
- Mande um carro vir me buscar. Eu lhe direi onde. E quando o fizer, mande um dos seus capangas junto. Há um agente federal me vigiando. Quero que seja temporariamente despistado. E uma das coisas que sabe fazer muito bem.
Bromley ficou esperando na calçada, diante do Hay-Adams. Esperaria a noite inteira, se fosse necessário. E quando a manhã raiasse, poderia se esconder na entrada da igreja no outro lado da rua. Chancellor acabaria aparecendo, mais cedo ou mais tarde. E quando isso acontecesse, Bromley iria matá-lo.
A arma em seu bolso .custara 500 dólares. Duvidava que valesse mais de 20. Pedira ajuda a seu contato de Detroit. Implorara até.
Bromley olhava constantemente para as janelas à direita da fachada, no quinto. Eram os aposentos de Chancellor. Uma suíte muito cara. Na noite anterior, ele perguntara o número da suíte
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à telefonista, que de nada suspeitava, antes de falar com Chancellor. O miserável escritor vivia no luxo.
Mas não continuaria a viver por muito tempo.
Bromley ouviu o barulho de um carro correndo para o sul, pela Rua 16. O carro parou na frente do hotel. Um homem de cabelos vermelhos saltou, falou com o porteiro e entrou no saguão.
O contador reconheceu o carro sem qualquer identificação. Havia rotineiramente aprovado dezenas de compras daquele tipo, sempre que era necessário. Era o FBI. Não restava a menor dúvida de que tinham ido buscar Chancellor.
Bromley atravessou a rua e subiu pelo caminho de carros, permanecendo nas sombras projetadas pelas paredes do prédio. Foi postar-se à direita da entrada, perto do carro do FBI. O porteiro descera pelo caminho, com um apito na mão, para chamar um táxi. Um casal seguiu-o até o meio-fio, já que o caminho de carro estava bloqueado.
Tudo estava perfeito! Chancellor iria morrer!
Não demorou muito para que o homem de cabelos vermelhos voltasse, acompanhado por uma mulher. Mas não havia o menor sinal de Chancellor!
E ele tinha que estar ali!
- Tem certeza? - indagou a mulher, preocupada.
- Ele vai pegar o trem mais tarde - respondeu o homem de cabelos vermelhos. - Ou amanhã de manhã. Não se preocupe.
Um trem.
Bromley levantou a gola do sobretudo e iniciou a longa caminhada para a Union Station.
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No táxi que seguia para a casa de Ramirez, Peter tirou do bolso o papel ensanguentado que Varak lhe entregara. Ficou novamente impressionado com os nomes. Impressionado
e intimidado, pois eram homens extraordinários, famosos, brilhantes, imensamente poderosos. E um deles estava com os arquivos de Hoover.
Mas por quê? Peter olhou para cada nome; cada um evocava uma imagem.
Frederick Wells, esguio, as feições finas, nome em código: Banner. Presidente de universidade, um homem que distribuía milhões de dólares através da gigantesca Fundação Roxton, um dos mais brilhantes artífices dos anos Kennedy. Um homem que se destacara por jamais ceder em seus princípios, mesmo quando essa posição atraía a ira de toda Washington.
Daniel Sutherland, Venice, provavelmente o negro mais destacado do país, louvado não só por suas realizações pessoais como pela sabedoria de suas decisões judiciais. Peter sentira o quanto o juiz era condescendente na breve conversa de meia hora que haviam tido, meses atrás. Era visível nos olhos dele.
Jacob Dreyfus, Christopher. O rosto de Dreyfus era menos claro na mente de Peter que os dos outros. O banqueiro não gostava de chamar atenção de público, mas não
podia ser ignorado pela comunidade financeira... e pela imprensa financeira. Sua influência muitas vezes orientava a política económica nacional. O Banco da Reserva
Federal raramente tomava decisões sem consultá-lo antes. Sua caridade era conhecida no mundo inteiro, sua generosidade não tinha limites.
Carlos Montelán, Paris, era o tutor de presidentes, uma forca no Departamento de Estado, um gigante académico cujas análises de política eram argutas e ousadas.
Montelán era americano naturalizado: sua família era espanhola - intelectuais castelhanos que haviam lutado contra Franco. Ele era um inimigo declarado da opressão, sob qualquer forma.
Um desses quatro homens excepcionais havia traído as crenças que declarava professar. Seria a "esplêndida tentação" a que
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Varak se referira? A decisão de cometer atos terríveis em nome de razões idealistas? Era impossível aceitar tal possibilidade. De outros homens, talvez fosse possível, mas não daqueles.
A menos que um dos quatro não fosse o que aparentava. E essa era a perspectiva mais assustadora. O fato de um homem haver alcançado tal status e esconder-se nas malhas da corrupção era algo incompreensível.
Chasong.
Varak sabia que estava morrendo e por isso escolhera com cuidado cada uma de suas palavras. A princípio, havia-se limitado a Wells e Montelán, Banner e Paris, mas depois mudara de ideia e sugerira também Sutherland e Dreyfus, Venice e Christopher. A mudança de ideia estava relacionada com uma língua que ele não conhecia e a repetição doentia do nome Chasong. Mas por quê? O que levara Varak a dar tamanha importância a uma língua desconhecida e a repetir tão insistentemente um nome? Qual teria sido o raciocínio dele? Varak não tinha tido tempo para explicar.
O significado por trás do massacre de Chasong. O massacre! Peter recordou a expressão de ódio no rosto de Ramirez por ocasião do enterro de MacAndrew. Ramirez odiava MacAndrew Mas será que isso tinha alguma relação com Chasong? Ou seria apenas uma terrível inveja, que não encontrara alívio nem com a morte do rival? Era uma possibilidade. Mas havia algo bem específico nos olhos de Ramirez.
Em breve ele iria descobrir, pois o táxi estava naquele momento entrando em Bethesda. E se a relação estivesse ali? Chasong levaria a qual daqueles quatro homens extraordinários? E como?
Peter dobrou o papel que Varak lhe dera e tornou a guardá-lo no bolsinho do paletó. Havia um quinto homem, não identificado, cujo nome de código era Bravo. Quem seria ele? Será que Varak o estava protegendo erroneamente? O desconhecido Bravo não poderia estar com os arquivos? Subitamente, Peter recordou-se de algo mais... Já conhece Venice... e Bravo também ... Mas como poderia conhecer um homem assim?, perguntou-se Peter. Quem seria Bravo?
Havia perguntas demais e poucas respostas. Somente uma sobressaía: Alison MacAndrew. Ela era a resposta para muitas coisas.
A casa era pequena, num dos conjuntos habitacionais de classe média que proliferavam em Washington, em terrenos do mesmo tamanho, fachadas idênticas. Peter disse a verdade ao motorista: não sabia quanto tempo iria demorar. Nem mesmo sabia se Ramirez estava em casa. Ou se era casado e tinha filhos. Era pos-
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sível que tivesse ido a Bethesda por nada. Mas se telefonasse primeiro, o Major Ramirez certamente se recusaria a recebê-lo.
A porta se abriu. E, para alívio de Peter, foi o próprio Pablo Ramirez quem atendeu, com uma expressão irónica.
- Major Ramirez?
- Sou eu mesmo. Já nos conhecemos?
- Não. Mas ambos estivemos no Cemitério de Arlington na mesma ocasião. Meu nome é...
- Você estava com a filha dele. É o escritor.
- Isso mesmo. Meu nome é Peter Chancellor e gostaria de falar-lhe.
- Sobre o quê?
- MacAndrew.
Ramirez demorou algum tempo para responder, estudando atentamente o rosto de Peter. Ao falar, não havia o menor vestígio de sotaque em sua voz; como também não havia hostilidade, o que deixou Peter surpreso:
- Não tenho nada a dizer com relação ao general. Ele está morto. O melhor é deixá-lo em paz.
- Não era o que estava pensando durante o enterro. Se fosse possível matar um morto pela segunda vez, seu olhar teria conseguido isso.
- Peço desculpas.
- É tudo o que tem a dizer?
- Creio que é suficiente. E agora, se não se importa, tenho trabalho a fazer.
Ramirez deu um passo para trás, com a mão na maçaneta. Peter apressou em dizer:
- Chasong. O massacre de Chasong.
O major parou no mesmo instante, o corpo rígido. A ligação era realmente essa.
- Já faz muito tempo. O "massacre", como o chamou, foi devidamente investigado pelo Inspetor-Geral. As baixas intensas foram atribuídas ao poder de fogo inesperado e superior dos chineses.
- E talvez a um excesso de zelo do comando. Como, por exemplo, o comando de Mac, o Traidor, o matador de Chasong.
O major permaneceu imóvel, os olhos enevoados, naquela maneira estranha e neutra característica dos militares.
- Acho que é melhor entrar, Sr. Chancellor.
Peter teve uma estranha sensação de déjà vu. Mais uma vez ele entrava na casa de um estranho, de um oficial do Exército, pedindo uma audiência com base numa informação que não deveria ler. Havia até mesmo uma semelhança entre os gabinetes de Ramirez e MacAndrew. As paredes estavam cobertas de fotografias
313
e recordações de uma carreira. Peter olhou pela porta aberta do gabinete, os pensamentos retornando por um momento à casa isolada de MacAndrew. Ramirez interpretou
erroneamente o seu olhar e falou bruscamente, tão bruscamente quanto MacAndrew falara alguns meses antes:
- Não há mais ninguém em casa. Sou solteiro.
- Eu não sabia disso. Sei muito pouco a seu respeito, Major. Exceto que esteve em West Point na mesma ocasião que MacAndrew. E que também serviu junto com ele na África do Norte e mais tarde na Coreia.
- Tenho certeza de que descobriu também outras coisas. Não poderia saber nem isso, se não tivessem lhe revelado outras coisas.
- Tais como?
Ramirez sentou-se numa poltrona, diante de Peter.
- A de que sou um descontente, ou mesmo um revoltado. Um criador de casos de Porto Rico, que se sente preterido por causa de sua raça.
- Ouvi uma piada da Marinha de muito mau gosto a esse respeito.
- Sobre o coquetel da esquadra? Aquela em que me metem num casaco de garçom? - Um sorriso mecânico apareceu no rosto do major. Peter assentiu. - Não é das piores. Eu mesmo a inventei.
- Como?
- Trabalho num departamento especializado e extremamente sensível do Pentágono. Mas não tem nada a ver com o serviço de informações ortodoxo. Por falta de uma expressão melhor, costumamos chamá-lo de relações com as minorias.
- O que está querendo insinuar, Major?
- Não sou um major. Meu verdadeiro posto é general-debrigada. E certamente receberei a minha segunda estrela em junho. Mas um major, especialmente da minha idade, pode ter acesso a muitas áreas e estabelecer um contato melhor com os homens do que um coronel ou general.
- E há necessidade de se chegar a tais extremos?
- Enfrentamos hoje um problema extraordinário. Ninguém gosta de convertê-lo em palavras, mas também é impossível ignorá-lo. O Exército está sendo invadido pelos que não conseguem arrumar outro emprego, pelos que são rejeitados em todos os outros setores. Sabe qual pode ser o resultado quando isso acontece?
- Claro. A qualidade do serviço diminui consideravelmente.
- Esse é apenas o primeiro estágio. Passamos a ter os My Laís e tropas viciadas em narcóticos. Mas há uma outra etapa, que não está muito distante da primeira: por uma simples questão de desgaste, pela ausência de qualidade no recrutamento e a
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superioridade numérica, a qualidade da liderança, do comando, rapidamente se deteriora. Do ponto de vista histórico, isso é alarmante. Esqueça Genghis Khan ou até
mesmo o caso mais recente dos cossacos. Afinal, o ambiente em que viviam era bárbaro. Há um outro exemplo, mais recente. Os criminosos assumiram o controle do Exército
alemão e o resultado foi a Wehrmacht nazista. Está começando a compreender agora?
Peter sacudiu a cabeça, lentamente. O julgamento do militar parecia-lhe por demais exagerado. Havia controles demais.
- Não posso aceitar essa perspectiva de uma junta terrorista.
- Também não podemos. As estatísticas, puramente demográficas, confirmam o que já desconfiávamos há muito tempo. O preto médio atraído para o Exército está mais
e melhor motivado que seu equivalente branco. E os que não estão motivados acabarn se perdendo. No fundo, é um sistema de filtragem dos mais democráticos: o lixo
atrai o lixo. As minorias começam a predominar: os latinos do Harlem, os eslovacos de Chicago, os chicanas de Los Angeles. Pode-se resumir em três palavras os fatores
que levam a essa situação: desemprego, miséria e ignorância.
- E você é a solução prevista pelo Exército?
- Represento apenas um começo. Estamos tentando entrar em contato com essa gente, a fim de elevar a todos, fazer com que se tornem melhores do que são. Através da
promoção de programas educativos, a redução dos ressentimentos, a conquista do autorespeito. Todas as coisas, em suma, que os liberais consideram que somos incapazes
de praticar.
Alguma coisa estava faltando, alguma coisa não fazia sentido naquilo tudo.
- Tudo isso é muito esclarecedor, mas o que tem a ver com o General MacAdndrew? com o que eu vi em Arlington?
- Qual é a razão de se referir a Chasong?
Peter desviou os olhos de Ramirez, contemplando as fotografias e condecorações nas paredes, que o faziam recordar o gabinete de MacAndrew.
- Não vou lhe dizer como, mas o nome Chasong apareceu logo depois da renúncia de MacAndrew. E estou convencido de que teve alguma relação com a renúncia dele.
- É muito improvável.
- E pouco depois eu o observei em Arlington - continuou Peter, ignorando o comentário de Ramirez. - Não sei muito bem por que, mas achei que poderia haver alguma
relação. E estava certo, pois havia mesmo. Há poucos minutos, estava prestes a me fechar a porta. Mas falei em Chasong e convidou-me a entrar.
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- Simplesmente fiquei curioso. Trata-se de uma questão muito controvertia-v ; explosiva.
- Mas antes de falarmos a respeito - continuou Peter, ignorando novamente a interrupção - obrigou-me a ouvir a história do departamento secreto em que trabalha.
Estava me preparando para alguma coisa. O que é? E por que odiava MacAndrew?
- Está certo.
O general mudou de posição na poltrona. Peter sabia que ele estava procurando ganhar tempo, fazendo uma pausa para poder determinar o quanto deveria esconder. Seria
parte verdade, parte mentira. Peter já descrevera muitos personagens usando a mesma tática.
- Todos nós funcionamos melhor nas áreas em que nos sentimos mais seguros. Embora eu não seja um revoltado, não posso negar que sou um descontente. Sempre fui, durante
toda a minha carreira militar. Um homem furioso, pode-se dizer. E, sob muitos aspectos, MacAndrew representava a razão para a minha raiva. Ele era um elitista, um
racista. Por mais estranho que possa parecer, no entanto, ele era um excelente comandante, pois se julgava superior e achava que todos os outros eram inferiores.
Todas as falhas do chamado comando intermediário eram o resultado de se atribuírem responsabilidades a seres humanos inferiores, responsabilidades além da capacidade
deles. MacAndrew estudava os quadros de oficiais e relacionava os sobrenomes com as origens étnicas, muitas vezes baseando-se nisso para as suas decisões.
Ramirez parou de falar. Peter ficou calado por um momento, desconcertado demais para conseguir falar. A explicação do militar parecia verdadeira, mas ao mesmo tempo
dava também uma impressão falsa. Ou seja, era parte verdade, parte mentira.
- Quer dizer que conhecia MacAndrew bastante bem - comentou ele, finalmente.
- O suficiente para compreender a insídia do pensamento dele.
- E conhecia também a esposa de MacAndrew?
Lá estava novamente, a súbita rigidez de Ramirez. Mas desapareceu tão depressa quanto surgiu.
- Foi um caso muito triste. Era uma mulher infeliz, instável, vazia demais, com muitos criados, pouca coisa para fazer e muita para beber. Acabou se desequilibrando
por completo.
- Eu não sabia que ela era alcoólatra.
- Os termos exatos não são importantes.
- Não houve um acidente em que ela quase morreu afogada?
- Ela esteve envolvida em diversos "acidentes". E alguns fo-
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ram extremamente desagradáveis, pelo que ouvi dizer. Mas, na minha opinião, o acidente maior foi a falta do que fazer. Para dizer a verdade, não sei muita coisa a respeito dela.
Peter sentiu novamente que Ramirez estava mentindo. Aquele general sabia muito mais a respeito da mãe de Alison, mas estava decidido a nada revelar. Que assim fosse, pensou Peter. Não ele. Ela! Ele é o chamariz. As palavras de Varak.
- Não há mais nada?
- Não! Fui franco com você. E agora pode me dizer o que ouviu falar a respeito de Chasong?
- Que houve um massacre inteiramente desnecessário, em que milhares de homens foram mortos ou ficaram mutilados.
- Chasong é apenas uma entre muitas batalhas cujas consequências podem ser encontradas em dezenas de hospitais de veteranos. Mas foi devidamente investigada, como eu já disse.
Peter inclinou-se para a frente.
- Muito bem, General, está querendo que eu seja franco t vou sê-lo. Estou absolutamente convencido de que Chasong não foi investigada como devia. Ou, se foi, os resultados da investigação foram escondidos debaixo do tapete, para que não levantasse muita poeira. Há muitas coisas que ainda não sei, mas o quadro está se tornando cada vez mais claro. Odiava MacAndrew, ficou desconcertado ao ouvir o nome Chasong. Fez-me um sermão, revelando como é um camarada extraordinário. E depois ficou novamente desconcertado à menção da esposa de MacAndrew, mas insistiu em dizer que não sabe muita coisa a respeito dela. É uma mentira óbvia. E me disse várias mentiras, uma porção de evasivas. vou lhe dizer o que penso. Estou convencido de que Chasong está relacionado com MacAndrew, com a renúncia e o assassinato dele, com o hiato em sua ficha de serviço, com o arquivos desaparecidos do FBI. E a esposa de MacAndrew ocupa um lugar de destaque em toda essa confusão. Ainda não tenho a mais vaga ideia do que pode haver além disso, mas é melhor contar-me logo. Porque pretendo descobrir tudo. Há uma mulher envolvida e eu a amo. Não vou permitir que ninguém continue com a farsa. Pare de dizer evasivas, Ramirez, e conte-me logo a verdade!
O general reagiu como se estivesse sob a mira de um revólver. O corpo ficou tenso, a voz se reduziu a um sussurro nervoso:
- O hiato na folha de serviço dele... Como soube disso? Não tinha falado nisso antes. Não tinha o direito... Você me enganou! - Subitamente, Ramirez estava gritando. - Não tinha o direito de fazer isso! Não pode compreender! Nós tentamos!
- O que aconteceu em Chasong? Ramirez fechou os olhos.
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- Apenas o que está pensando. O massacre foi desnecessário. As decisões do comando foram erradas... Mas aconteceu há muito tempo. Deixe como está!
Peter levantou-se bruscamente, sem desviar os olhos do general.
- Não, não vou deixar. Porque estou começando a compreender. Acho que Chasong foi um dos maiores embustes da história deste país. E tudo está contado nos arquivos desaparecidos. Estou convencido de que, depois de tantos anos, MacAndrew não conseguia mais aguentar. Ia finalmente falar a respeito. E por isso vocês todos se juntaram e trataram de tirá-lo do caminho, porque também não poderiam suportar a revelação de tudo.
Ramirez arregalou os olhos.
- Não é verdade. Pelo amor de Deus, deixe as coisas como estão!
- Não é verdade? Não tenho muita certeza se conhece toda a verdade. Parece culpado, dá a impressão de que está num impasse. A atitude virtuosa que está assumindo agora é muito suspeita, General. Preferi a sua atitude em Arlington; pelo menos a raiva que deixou transparecer naquela ocasião era genuína. Está escondendo alguma coisa... talvez de si mesmo, não sei. Mas sei que vou descobrir de qualquer maneira o que significa Chasong.
- Neste caso, que Deus tenha misericórdia de sua alma murmurou o General Pablo Ramirez.
Peter atravessou rapidamente o saguão imenso da Union Station na direção do portão da Amtrak. Já passava de duas horas da madrugada e a estação estava quase deserta. Havia alguns velhos espalhados pelos bancos, em busca de algum calor, escapando ao frio de dezembro em Washington. Um velho deu a impressão de se empertigar no banco e ficar olhando fixamente para Peter. Talvez houvesse sido perturbado um sonho solitário do que nunca mais voltaria a ser.
Peter tinha que se apressar. O trem para Quântico era o último até as seis horas da manhã. Ele precisava se encontrar com Alison o mais depressa possível, conversar com ela, fazê-la recordar. Além do mais, precisava também dormir um pouco. Ainda havia muito o que fazer e a falta de repouso iria reduzir ainda mais a capacidade que ainda lhe restava. Estava começando a formular um plano, baseado num comentário de passagem de Ramirez: Chasong... cujas consequências podem ser encontradas em dezenas de hospitais de veteranos.
Peter foi para o meio de um vagão vazio e sentou-se ao lado da janela, contemplando o seu reflexo no vidro sujo. Embora a
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imagem fosse escura e meio indistinta, dava para ver como seu rosto estava fatigado e tenso. Lá fora, em algum ponto da plataforma, uma voz mecânica saiu de um alto-falante. Peter fechou os olhos e deixou-se dominar pelo cansaço, à medida que as rodas iam aumentando de velocidade, num ritmo hipnótico.
Ouviu passos abafados às suas costas, no corredor do vagão, ouviu-os apesar do barulho do trem. Imaginou que fosse o condutor e por isso continuou de olhos fechados, esperando que o homem lhe pedisse a passagem.
Mas não houve qualquer pedido. Os passos cessaram. Peter abriu. os olhos e virou-se.
E tudo aconteceu muito depressa. O rosto pálido, doentio, com uma expressão desvairada, o estampido abafado, a explosão ao lado dele.
Um tiro! O homem a apenas um metro dele tentara matá-lo! Peter pulou do banco, virando o corpo no ar, as mãos estendidas para os dedos ossudos que empunhavam a arma. O velho tentou se desvencilhar, tentou forçar o cano da arma na barriga de Peter. com um tremendo esforço, Peter comprimiu o pulso esquelético do velho contra o braço de metal do assento. A arma caiu no corredor e saiu deslizando. Peter virou-se novamente e deslizou atrás, até alcançá-la. Levantou-se de um pulo. O velho estava correndo na direção da extremidade do vagão. Peter correu atrás, segurando-o com uma das mãos. Obrigou o velho a parar, encostando-o num dos assentos.
- Bromley!
- Assassino de crianças!
- Você está doido!
Peter virou-se, empurrando Bromley violentamente contra o banco do vagão deserto. Onde estaria o condutor? O condutor poderia parar o trem, entregar Bromley à polícia! No instante mesmo em que assim pensou, Peter hesitou. Será que queria mesmo a presença da polícia?
- Como ele pôde fazer uma coisa dessas? - O velho estava choramingando, balbuciando as palavras entre lágrimas. - Por que ele foi contar-lhe tudo?
- De quem está falando?
- Somente um homem sabia... St. Claire... Munro St. Claire. Pensei que fosse um homem honrado...
Bromley desatou a chorar. Peter largou-o, incapaz de controlar o seu próprio choque. Munro St. Claire. Um nome saído do passado, mas sempre uma parte do presente. O homem responsável por tudo o que acontecera desde os dias da rejeição e indecisão na Universidade de Park Forest.
Tudo?
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Oh, Deus!
Venice você conhece.,. Bravo também. Mas não pode ser Bravo! Bravo, nunca! Stefan Varak.
Um homem honrado. Paul Bromley.
O quinto homem. Bravo.
Munro St. Claire.
A mente de Peter era um turbilhão incontrolável, as têmporas doíam terrivelmente. Ficou olhando, impotente, incapaz de se mexer, incapaz de impedir que o velho corresse para a porta de metal entre os vagões e a puxasse. E um momento depois houve o estrondo de outra porta batendo, uma rajada de vento entrando pelo vagão, enquanto as rodas de metal martelavam os trilhos lá embaixo.
Houve um grito de angústia - ou de coragem. Qualquer que fosse, era também um grito de morte. Bromley se lançara na noite escura.
E não havia qualquer perspectiva de paz para Peter Chancellor.
Munro St. Claire.
Bravo.
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O táxi de Quântico saiu da estrada que contornava a baía e passou entre as colunas de pedra à entrada do Motel e Restaurante Pines. Não havia qualquer outra construção
nas proximidades. O motel parecia estar praticamente dentro dágua. Todo o conjunto era cercado por um muro alto, de tijolos.
Peter saltou e pagou ao motorista, sob claridade intensa das luzes na entrada do motel. Havia refletores por toda parte. O táxi se afastou. Peter virou-se e seguiu para as largas portas colòiiiais.
- Pare onde está! E não mexa as mãos!
Peter ficou paralisado. As ordens ríspidas partiam da escuridão além dos refletores, à esquerda da entrada.
- O que está querendo?
- Vire-se para cá - ordenou o homem nas sombras. - Devagar! Ah, é você mesmo. Eu não tinha certeza.
- Quem é você?
- Basta que saiba que não sou um dos seus maníacos. Entre e pergunte pelo Sr. Morgan.
- Morgan?
- Sr. Anthony Morgan. Irão levá-lo ao quarto.
A insanidade outra vez. Anthony Morgan! Aturdido, Peter seguiu as instruções incompreensíveis e entrou no saguão. Encaminhou-se para a recepção. Um jovem alto e musculoso estava postado atrás do balcão. Peter pediu para falar com o Sr. Anthony Morgan.
O jovem assentiu. O brilho em seus olhos não era apenas de quem sabia de alguma coisa; era de conspiração. Ele bateu numa campainha que estava em cima do balcão.
Segundos depois, apareceu um empregado uniformizado; também era jovem, alto e musculoso.
- Leve esse cavalheiro ao quarto sete, por favor.
Peter seguiu o homem uniformizado por um corredor atapetado. A janela na extremidade do corredor dava para a baía. Peter
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teve a impressão de que havia uma grade de ferro além do vidro. Chegaram a uma porta com o número sete: o homem uniformizado bateu de leve.
- O que é? - indagou uma voz do outro lado da porta.
- Agulha um - disse o homem uniformizado.
- Quatro - respondeu a voz por trás da porta.
- Onze.
- Treze.
- Dez.
- Finito - concluiu o homem invisível.
Uma tranca foi puxada. A porta se abriu e o vulto de OBrien surgiu, delineado à luz fraca de uma sala de estar confortável. Sacudiu a cabeça para o homem uniformizado e fez um gesto para que Peter entrasse. Peter viu-o guardar uma pistola no coldre.
- Onde ela está? - indagou Peter imediatamente.
- Psiu... - O homem do FBI fechou a porta, encostando o dedo nos lábios. - Ela começou a cochilar há cerca de 20 minutos. Não conseguiu dormir de tão preocupada.
- Mas onde ela está?
- No quarto. Não se preocupe. Há alarmes eletrônicos nas janelas, além de grades e vidros à prova de bala. Ninguém poderá alcançá-la. Deixe-a descansar e vamos conversar um pouco.
- Quero vê-la antes de mais nada! OBrien assentiu.
- Está certo. Pode entrar no quarto, mas não faça barulho.
Peter entreabriu a porta. Havia um abajur aceso. Alison estava deitada na cama, coberta por uma colcha. A cabeça inclinada para trás, a luz do abajur incidia sobre o rosto adorável. A respiração era profunda. Alison estava dormindo há apenas 20 minutos. Peter decidiu que só a deixaria dormir mais um pouco. Seria melhor fazer o que precisava quando ela estivesse à beira da exaustão.
Ele fechou a porta.
- Há um quarto aqui atrás onde podemos tomar um café disse OBrien.
Foi só então que Peter percebeu que a sala de estar era maior do que imaginara a princípio. No outro lado, além de um biombo, havia uma mesinha redonda, ao lado de uma janela que dava para á baía. Peter podia agora divisar nitidamente a grade por trás do vidro. Havia uma kitchenette, com café no fogo. OBrien pegou duas xícaras numa prateleira e serviu o café. Peter sentou.
- Este não é um motel comum, não é mesmo? OBrien sorriu.
- Mas é um bom restaurante. Muito popular entre a turma da sociedade.
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- É particular? Da CIA?
- Sim à primeira pergunta, não à segunda. Pertence ao Serviço Secreto Naval.
- Quem são os homens lá fora?
- Varak já lhe falou a respeito. Não somos muitos, mas sabemos quem somos. E nos ajudamos mutuamente. - OBrien toinou um gole de café. - Peço desculpas por ter usado o nome de Morgan. Mas havia uma boa razão para isso.
- Qual?
- Você e a mulher irão embora daqui ao amanhecer, mas Morgan continuará registrado. Se alguém encontrar sua pista e chegar até aqui, o nome Morgan no registro irá significar alguma coisa. Virão ao quarto sete... e saberemos então quem são.
- Pensei que sabia quem eram os maníacos - comentou Peter, tomando o café e observando OBrien atentamente.
- Só conhecemos alguns. Está pronto para falar?
- Dentro de um minuto. - A dor na cabeça estava diminuindot mas ainda não desaparecera de todo. Peter precisava de mais algum tempo, pois queria pôr as coisas no lugar. - Obrigado por tomar conta dela.
- Foi um prazer. Tenho uma sobrinha da idade dela... a filha de um irmão. As duas são muito parecidas. Rostos simpáticos e fortes. Não apenas bonitos, entende?
- Entendo. - A dor já desaparecera quase por completo. O que significavam todos os números que falaram na porta?
O homem do FBI tornou a sorrir.
- É algo batido, mas ainda eficaz. Não muito diferente do que se costuma ler nas histórias de espionagem, basicamente progressões e tempos. Vocês, escritores, não conseguem entender direito essas coisas.
- Mas o que são?
- Um código básico com um número. Acrescento um número ao ser chamado e o contato está preparado para associá-lo com outro número, maior ou menor. E tem que responder sem qualquer demora.
- O que acontece se ele não o fizer?
- Viu que eu tinha sacado a arma. Nunca precisei usá-la num caso desses, mas não teria hesitado. Iria matá-lo com um tiro através da porta.
Peter largou a xícara de café em cima da mesa e disse:
- Já podemos conversar.
- Ótimo. O que aconteceu?
- Bromley seguiu-me até o trem. Tentou matar-me. Tive muita sorte, mas o mesmo não se pode dizer a respeito dele. Correu para escapar de mim e acabou caindo do trem.
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- Bromley? Mas isso é impossível!
Peter tirou do bolso o revólver de Bromley.
- Esta arma foi disparada através de um banco no terceiro ou quarto vagão do trem que partiu de Washington às duas horas da madrugada. E não fui eu que disparei.
OBrien levantou-se e íoi até o telefone, dizendo enquanto discava:
- O homem que pusemos para vigiar Bromley estava em missão oficial. Podemos verificar imediatamente o que aconteceu.
- O agente se transformou em perfeito executivo ao falar ao telefone: - Segurança. Vigilância, área D.C., Oficial de Plantão OBrien... Sou eu mesmo, Chet. Obrigado. Por favor, complete a ligação... Aqui é OBrien. Há um agente especial vigiando um suspeito chamado Bromley. No Hotel Olympic, no centro. Chame-o, por favor. E imediatamente.
OBrien pôs a mão sobre o fone e virou-se para Peter:
- Voltou para o hotel? Disse a alguém... a Ramirez, a qualquer pessoa... que ia pegar um trem?
- Não.
- A motoristas de táxi?
- Só tomei um táxi às nove e meia. Ele me levou a Bethesda e ficou esperando. O motorista não tinha a menor ideia de que eu seguiria de lá para a Union Station.
- Isso não... Pois não? O que houve? Não consegue entrar em contato? - OBrien estreitou os olhos, enquanto acrescentava ao telefone: - Não há quulquer resposta? Mande um esquadrão de apoio imediatamente. Pode comunicar e pedir a ajuda da polícia. Aquele homem pode estar em perigo. Voltarei a entrar em contato mais tarde, para saber o que aconteceu.
OBrien desligou, visivelmente aturdido.
- O que acha que aconteceu? - indagou Peter.
- Não sei. Somente duas pessoas sabiam, eu e a moça. O agente olhou fixamente para Peter.
- Ei, espere um pouco! Se está pensando...
- Não, não estou. Estive perto dela desde o momento em que a informei. E ela não usou o telefone.
- E o que me diz dos homens lá fora, os que são tão bons com progressões?
- Não há condição. Esperei até que o último trem partisse de Washington antes de informar que você poderia aparecer. E não cheguei a mencionar como iria viajar. Não me interprete erroneamente. Eu confiaria as nossas vidas aos homens que estão aqui, sem a menor hesitação. Se não lhes contei tudo, foi porque assim é mais fácil; quanto menos responsabilidade se espalhar, melhor.
- O agente voltou lentamente para a mesa. De repente, bateu
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com a mão na testa. - Santa Mãe de Deus, pode ter sido eu mesmo! Ao sairmos do Hay-Adaras para entrarmos no carro. Ela estava transtornada e informei-a que você viria de trem para cá. Ele podia estar esperando no caminho, encostado na parede, mergulhado nas sombras.
- Do que está falando?
OBrien sentou, com uma expressão contrariada.
- Bromley sabia onde você estava. Podia estar esperando na frente do hotel, aguardando uma oportunidade de alvejá-lo de perto. Se ele estava, talvez tenha me ouvido. Creio que devo pedirlhe desculpas por ter sido quase o causador de sua morte.
- Acho muito difícil aceitar tal pedido de desculpa.
- Não o culpo por isso. O que me diz de Ramirez? Por que foi procurá-lo?
A transição de Bromley para Ramirez foi rápida demais para Peter. Ele levou alguns segundos para tirar da mente a imagem do velho doente. Mas tomara uma decisão. Iria contar tudo ao homem do FBI. Meteu a mão no bolso e tirou o papel sujo de sangue, com os nomes escritos.
- Varak estava certo. Ele disse que a chave de tudo era Chasong.
- Foi o que não me disse ao telefone, não é mesmo? Por causa de MacAndrew e da filha. Ramirez estava em Chasong?
Peter assentiu.
- Tenho certeza agora. Todos eles estão escondendo alguma coisa. Acho que é um gigantesco embuste. Mesmo depois de 22 anos, eles continuam apavorados. Mas é apenas o princípio. O que quer que tenha acontecido em Chasong, levará a um desses quatro homens. - Peter entregou o papel a OBrien, acrescentando: - Um deles está com os arquivos particulares de Hoover.
O agente leu os nomes, empalidecendo.
- Santo Deus! Tem ideia de quem são esses homens?
- Claro. Há um quinto homem, mas Varak não quis identificá-lo. Tinha grande consideração por ele e não queria que fosse atingido. Estava convencido de que o quinto homem fora usado, que não estava envolvido.
- Quem será ele?
- Já descobri sua identidade.
- Está se mostrando um homem cheio de surpresas.
- Descobri-o por intermédio de Bromley, embora ele não soubesse que estava revelando a identidade do quinto homem. Eu já o tinha conhecido, há alguns anos. Ele resolveu um dilema em que eu estava metido. Devo-lhe muito. Se insistir, eu lhe direi quem é. Mas prefiro só revelar depois de conversar com ele.
OBrien pensou por um momento.
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- Está certo. Mas somente se concordar em me proporcionar uma opção de apoio.
- Fale em linguagem inteligível.
- Escreva o nome e entregue o papel a um advogado. Depois de um prazo determinado, relativamente curto, ele me entregará o papel.
- Por quê?
- É possível que esse quinto homem queira matá-lo.
Peter examinou atentamente os olhos de OBrien. O agente estava falando sério.
- Combinado.
- E agora vamos conversar a respeito de Ramirez. Conte-me tudo o que ele disse, descreva todas as reações que recordar. Qual era o relacionametno dele com MacAndrew? E com Chasong? Como descobriu que havia alguma ligação? O que o levou a procurar Ramirez?
- Algo que vi no Cemitério de Arlington e algo que Varak me disse. Juntei as duas coisas. Digamos que foi um palpite baseado em fatos... ou talvez tenha sido por causa de alguma coisa que escrevi. iNão sei direito. Mas fiquei convencido de que não estava muito longe da pista certa. E não estava mesmo.
Peter levou menos de 10 minutos para contar tudo. Durante o relato, percebeu que Quinn OBrien estava fazendo anotações mentais, exatamente como ele fizera na noite anterior, em Washington.
- Vamos deixar Ramirez de lado por um momento e voltar para Varak. Ele estabeleceu um vínculo entre Chasong e um dos quatro homens da lista porque deixaram passar informações específicas que não poderiam ter partido de outra fonte. É isso mesmo?
- É, sim. Varak trabalhava para esses homens. Forneceulhes as informações.
- E o fato de que falaram uma língua que ele não conhecia.
- Aparentemente, Varak conhecia seis ou sete línguas - disse OBrien.
- O argumento dele é de que os homens que o capturaram na casa da Rua 35 sabiam que ele não poderia compreender o que falavam. Portanto, deviam conhecê-lo. O que leva novamente a um desses quatro homens. Eles o conheciam a fundo, estavam a par de seus antecedentes.
- Outro elo na ligação. Varak conseguiu pelo menos identificar a raiz da língua desconhecida? Seria oriental?
- Ele não me disse nada a respeito. Revelou apenas que o nome Chasong foi pronunciado insistentemente, repetido diversas vezes.
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- O que ele talvez estivesse querendo dizer era que Chasong se transformou numa espécie de culto.
- Um culto?
- Vamos voltar a Ramirez. Ele confirmou o massacre e reconheceu os erros de comando?
- Exatamente.
- Mas ele também disse que Chasong já foi investigado pelo Inspetor-Geral, que as baixas foram atribuídas a forças inimigas inesperadas em superioridade numérica e de poder de fogo.
- Ramirez estava mentindo.
- A respeito da investigação? Duvido muito. OBrien levantou e foi servir-se de mais café.
- Devia então estar mentindo a respeito das conclusões disse Peter.
- Também duvido muito. Você poderia descobrir tudo facilmente.
- Onde está querendo chegar?
- Estou procurando a sequência. Já esqueceu que sou advogado? -- OBríen largou o bule no fogo e voltou para a mesa com a xícara cheia de café. - Ramirez contou-lhe que houve uma investigação sem a menor hesitação. Estava supondo que você aceitaria as conclusões da investigação, se as confirmasse. Mas um momento depois ele muda de posição. Não tem mais certeza se você vai aceitar as conclusões do inquérito e isso o deixa preocupado. Ele chega a suplicar para que deixe o assunto esquecido. Você deve ter-lhe dado um motivo para mudar de ideia. Foi certamente alguma coisa que falou.
- Acusei-o. Disse que estava havendo algum embuste gigantesco.
- Mas acusou-o de quê? O que estavam querendo encobrir? Você não o disse, porque não sabia. E acusações assim são esclarecidas pelas investigações do Inspetor-Geral. Não era de tais acusações que Ramirez sentia medo, mas de algo mais. Procure se lembrar.
Peter fez um esforço para recordar tudo.
- Disse-lhe que ele odiava MacAndrew, que ficara desconcertado ao ouvir o nome Chasong, que isso estava ligado à renúncia de MacAndrew, ao hiato na folha de serviço dele e aos arquivos desaparecidos. Falei ainda que Ramirez estava se perdendo em mentiras e evasivas. Que ele e os outros haviam se juntado porque estavam apavorados...
- com Chasong - arrematou OBrien. - Mas vamos voltar atrás. O que disse especificamente a respeito de Chasong?
- Que MacAndrew estava envolvido e renunciou porque se preparava para denunciar tudo. Que a informação, o fato que
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estão encobrindo, estava nos arquivos desaparecidos do FBI. E que foi por isso que o mataram.
- Isso é tudo? Não disse mais nada?
- Oh, Deus, estou tentando me lembrar!
- Acalme-se. - OBrien pôs a mão no braço de Peter, acrescentando: - Muitas vezes, a informação mais relevante está diante de nossos olhos e não a percebemos. Tanto
procuramos recordar os detalhes que acabamos por esquecer o óbvio.
O óbvio. Palavras, sempre palavras... A maneira fantástica como podiam provocar um pensamento, desencadear uma imagem, trazer à tona uma recordação... a recordação
de um breve brilho de reconhecimento nos olhos assustados do general. A declaração de um homem agonizante: Não ele. Ela! Ele é o chamariz. Peter olhou para a porta
do quarto onde Alison estava dormindo, antes de virar-se para OBrien, murmurando:
- Oh, Deus, é isso mesmo...
- Isso o quê?
- A esposa de MacAndrew.
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O agente Carroll Quinlan OBrien concordou em se retirar. Compreendia perfeitamente. Havia coisas a serem ditas por trás daquela porta que eram terrivelmente particulares.
Além do mais, tinha muito trabalho a fazer. Precisava descobrir o máximo de informações a respeito de quatro homens famosos e sobre algumas colinas na Coreia que
duas décadas antes haviam sido o cenário de um massacre. Era necessário acionar toda uma vasta engrenagem, desenterrar segredos há muito esquecidos.
Peter entrou no quarto, sem saber muito bem como iria começar, certo apenas do que precisava fazer. Alison remexeu-se no sono com o barulho, deslocando a cabeça
de um lado para outro. Abriu os olhos bruscamente, como se estivesse espantada, ficou olhando para o teto por um momento.
- Olá - disse Peter, suavemente.
Alison deixou escapar uma exclamação de surpresa, sentou na
- Peter! Você chegou!
Ele foi até a cama, sentou na beira, abraçou-a.
- Está tudo bem...
Ao falar, Peter estava pensando no pai e na mãe de Alison. Quantas vezes ela não teria ouvido o pai dizer aquelas mesmas palavras para a louca que era sua mãe?
- Eu estava assustada...
Alison segurou o rosto dele com as duas mãos. Olhos castanhos grandes fixaram-se nos dele, à procura de algum indício de sofrimento. A expressão dela era de intensa preocupação. Peter jamais conhecera uma mulher tão bonita... e boa parte dessa beleza vinha de dentro.
- Não há motivo para ficar assustada - garantiu ele, sabendo que era uma mentira absurda e que Alison também sabia disso.
- Está quase terminado. Só preciso agora fazer-lhe algumas perguntas.
- Perguntas?
Lentamente, ela tirou as mãos do rosto de Peter.
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- A respeito de sua mãe.
Alison piscou os olhos, aturdida. Por um momento, Peter percebeu o ressentimento dela. Sempre surgia quando se mencionava sua mãe.
- Já lhe disse tudo o que sei. Ela ficou doente quando eu era muito pequena.
- Mas ela continuou a viver na mesma casa. Não podia deixar de conhecê-la, mesmo na doença.
Alison recostou-se na cabeceira da cama. Mas não estava relaxando. Ao contrário, mostrava-se visivelmente cautelosa, como se temesse a conversa.
- Não foi bem o que aconteceu. Havia sempre alguém cuidando dela e aprendi desde cedo a me manter a distância. £ a partir dos 10 anos sempre passei a maior parte do tempo em colégios internos. Sempre que era transferido para um novo posto, a primeira providência de papai era arranjar-me uma escola. Durante os dois anos que passamos na Alemanha, estudei numa escola na Suíça. E quando ele foi transferido para Londres, fui internada na Academia Gateshead para Moças, que fica no norte, perto da Escócia. Portanto, eu raramente estava em casa junto com mamãe.
- Fale-me a respeito de sua mãe. Não depois que ela ficou doente, mas antes.
- Mas como? Eu não passava de uma criança!
- Conte-me tudo o que souber. Seus avós, a casa de sua mãe, onde ela vivia. Como conheceu seu pai.
- É mesmo necessário?
Alison pegou um maço de cigarros na mesinha de cabeceira. Peter fitou-a firmemente.
- Concordei com a sua condição ontem à noite. E disse que aceitaria a minha. Está lembrada?
Ele tirou a caixa de fósforos das mãos dela, acendeu-lhe o cigarro, a chama entre os dois. Alison sustentou-lhe o olhar, assentindo.
- Estou, sim. Está certo. vou falar de mamãe, como era antes de eu conhecê-la. Nasceu em Tulsa, Oklahoma. O pai era um bispo da Igreja do Cristo Celestial, uma seita batista muito rica e exclusivista. Meus dois avós eram missionários e mamãe viajou quase tanto quanto eu quando era pequena. Esteve em lugares remotos, como a índia, Birmânia, Ceilão, o golfo de Po Hai.
- Onde ela foi educada?
- Principalmente em escolas missionárias. Isso fez parte de sua educação. Todos os filhos de Deus eram iguais aos olhos de
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Jesus. Mas, no fundo, era uma posição inteiramente falsa. Podiase frequentar a mesma escola, pois isso provavelmente ajudava os professores, mas não se podia comer nem brincar com as outras crianças.
- Há uma coisa que não consigo entender.
Peter estendeu-se de lado sobre a cama, por cima das pernas cobertas de Alison, apoiando o cotovelo na cama e a cabeça na mão
- O que é?
- Aquela cozinha em Rockville. O ambiente dos anos 30. Até mesmo aquela maldita cafeteira antiga. Disse que seu pai projetou tudo para que sua mãe se recordasse da infância.
- Somente dos momentos mais felizes da infância dela. Se eu não disse isso, deveria ter dito. Em criança, mamãe só se sentia realmente feliz quando voltava a Tulsa. Meus avós sempre retornavam à cidade periodicamente, para um recondicionamento espiritual. Mas não acontecia com muita frequência. Mamãe detestava o Extremo Oriente, detestava viajar.
- É «stranho que ela tenha se casado com um militar.
- Talvez seja irónico, mas nada tem de estranho. O pai era um bispo, o marido tornou-se um general. Eram ambos homens fortes, decididos, extremamente persuasivos.
Alison evitou os olhos de Peter, que não fez qualquer esforço para voltar a fixá-los.
- Quando ela conheceu seu pai? Alison deu uma tragada.
- Deixe-me pensar.... Papai me contou uma porção de vezes, mas sempre havia variações. Como se ele estivesse constantemente, deliberadamente, exagerando ou romantizando os fatos.
- Ou deixando de contar alguma coisa?
Alison estava olhando para a parede do outro lado do quarto. Voltou rapidamente a fitar Peter.
- Isso mesmo... isso também. Seja como for, eles se conheceram durante a Segunda Guerra Mundial, aqui mesmo, em Washington. Papai tinha sido chamado de volta, logo depois da campanha da África do Norte. Ia ser transferido para o Pacífico, o que implicava novas instruções e treinamento, em Washington e Forte Benning. Conheceu mamãe numa das recepções militares que eram promovidas com frequência naquele tempo.
- O que a filha de um bispo batista estava fazendo numa recepção militar em Washington durante a guerra?
- Ela trabalhava para o Exército COE.IO tradutora. Nada de dramático, apenas a versão de panfletos, manuais, coisas assim... "Sou um piloto americano que saltou de pára-quedas em seu lindo
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país e sou seu aliado." Mamãe conhecia diversas línguas do Extremo Oriente. Podia escrever até mesmo em mandarim. Peter sentou-se na cama.
- Chinês?
- Exatamente.
- Ela esteve na China?
- Já lhe disse isso antes. Se não me engano, passou quatro anos nas províncias do Golfo de Po Hai. Meu avô operava... se é essa a palavra correta... entre Tientsin e Tsingtao.
Peter desviou os olhos tentando controlar sua apreensão súbita. Soara uma nota dissonante e o som incómodo deixava-o perturbado. Deixou que o momento passasse o mais depressa possível e depois virou-se para fitar Alison.
- Conheceu seus avós?
- Não. Recordo-me vagamente da mãe de papai, mas do meu avô...
- Estava me referindo aos pais de sua mãe.
- Não. - Alison se inclinou e apagou o cigarro no cinzeiro. - Eles morreram durante o seu trabalho de missionários.
- Onde?
Alison ficou esmagando o cigarro apagado contra o cinzeiro de vidro e respondeu baixinho, sem olhar para Peter:
- Na China.
Os dois ficaram em silêncio por um longo momento. Alison tornou a recostar-se na cabeceira da cama. Peter permaneceu imóvel, fitando-a nos olhos.
- Acho que ambos sabemos sobre o que estamos falando, Alison. Vai querer continuar a falar?
- Sobre o quê?
- Tóquio. Há 22 anos. O acidente com sua mãe.
- Não me lembro de nada.
- Acho que lembra.
- Eu era muito pequena.
- Não era tão pequena assim. Disse que tinha cinco ou seis anos, mas na verdade andou reduzindo um pouco a sua idade. Estava com nove anos na ocasião. Os jornalistas geralmente são muito acurados em questões de idade, pois é algo fácil de se verificar. Aquela notícia sobre seu pai dava a sua idade certa...
- Por favor...
- Eu a amo, Alison. Quero ajudá-la, ajudar a nós dois. A princípio, apenas eu tinha que ser detido. Mas agora você também está envolvida, porque é parte da verdade. Chasong é parte de tudo o que está acontecendo agora.
- De que verdade está falando?
- Dos arquivos de Hoover. Foram roubados.
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- Não! Isso está apenas em seu livro, não aconteceu na vida real!
- Era real desde o início, Alison. Os arquivos foram roubados antes da morte de Hoover. E estão sendo usados agora. As pessoas que os possuem estão de alguma forma ligadas a Chasong. Isso é tudo o que sabemos. Sua mãe também estava ligada e seu pai procurou protegê-la durante toda a sua vida. Agora, temos que descobrir de qualquer maneira o que aconteceu. É a única coisa que poderá nos levar ao homem que está com os arquivos. E temos que encontrá-lo o mais depressa possível.
- Mas isso não faz sentido! Mamãe era uma mulher doente, piorando sempre! Não tinha a menor importância!
- Ela era importante para alguém. E ainda é. Pelo amor de Deus, Alison, pare de fugir da verdade! Não pode mentir para mim e por isso fica fazendo rodeios, contornando a verdade. Mas acabou me dizendo: China. As províncias do Po Hai ficam na China. Os pais de sua mãe morreram na China. E em Chasong estávamos lutando contra a China!
- E o que isso significa?
- Não sei! Posso estar muito longe da verdade, mas não consigo deixar de pensar. 1950... Tóquio, Coreia. Os nacionalistas chineses foram expulsos do continente. É de se imaginar que tenham vagueado livremente. E se isso aconteceu, não haveria a menor dificuldade para uma infiltração. Os orientais podem se distinguir, mas isso é impossível para os ocidentais. Será que entraram em contato com sua mãe? A esposa de um alto comandante na Coreia foi procurada pelo inimigo e forçada a fazer alguma coisa... porque seus pais estavam na China. Até que houve uma ruptura total. O que aconteceu há 22 anos, Alison?
Ela se pôs a falar, com evidente dificuldade:
- Acho que tudo começou vários meses antes. Assim que chegamos a Tóquio. Mamãe foi gradativamente se afastando.
- Como assim?
- Eu lhe dizia alguma coisa e ela ficava simplesmente me olhando, sem escutar. Depois se virava, sem responder, e saía do quarto, cantarolando alguma música.
- Ouvi-a cantarolar uma dessas músicas na casa de Rockville. Era uma cantiga muito antiga. Vai Nevar!
- Esse tipo de coisa só começou mais tarde. Ela se apegava a uma música qualquer e cantarolava-a durante meses a fio. Interminavelmente.
- Sua mãe era alcoólatra?
- Ela bebia, mas não creio que fosse alcoólatra. Ou pelo menos não era naquela ocasião.
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- Recorda-se dela bastante bem - comentou Peter, suavemente.
Alison fitou-o.
- Mais do que meu pai conhecia e menos que imagina. Peter aceitou a censura, dizendo gentilmente:
- Continue. Ela começou a se afastar. Alguém o percebeu? O que fizeram para ajudá-la?
Alison estendeu a mão nervosamente para pegar outro cigarro.
- Creio que foi por minha causa que acabaram fazendo alguma coisa. Eu não tinha ninguém com quem pudesse falar. Todos os criados eram japoneses. E as poucas visitas que recebíamos eram das esposas de outros oficiais. Não podia falar coro elas a respeito da minha própria mãe.
- O que significa que você estava inteiramente sozinha... Era uma criança sozinha, sem ter a quem recorrer.
- Exatamente. Eu estava sozinha. Não sabia o que podia fazer. E foi então que começaram os telefonemas, tarde da noite. Mamãe se vestia e saía, muitas vezes com uma expressão aturdida nos olhos. Eu nunca sabia se ela ia ou não voltar. Uma noite papai telefonou da Coreia. Mamãe sempre estava em casa quando ele telefonava. Ê que papai sempre escrevia antes para avisar, informando o dia e a hora. Mas naquela noite mamãe não estava em casa e eu lhe contei tudo. Acho que foi um impulso súbito. Alguns dias depois, papai estava em Tóquio.
- Como ele reagiu?
- Não me lembro. Fiquei extremamente feliz por vê-lo, convencida de que tudo voltaria a ser como antes.
- E voltou mesmo?
- A situação se estabilizou por algum tempo. É essa a palavra que prefiro usar agora. Um médico militar começou a k à nossa casa regularmente. Mais tarde, ele apareceu acompanhado por outros médicos. Levaram mamãe para algum lugar, durante várias horas por dia. Os telefonemas cessaram, ela deixou de sair de casa à noite.
- Por que disse que "a situação se estabilizou por algum tempo"? As coisas voltaram a se deteriorar?
Havia agora lágrimas nos olhos de Alison.
- Aconteceu de repente, sem qualquer aviso. Ela desmoronou abruptamente. Foi numa tarde de sol. Eu tinha acabado de voltar da escola. Mamãe estava gritando freneticamente. Tinha expulsado de casa toda a criadagem. Estava delirando, quebrando as coisas. E de repente olhou para mim com uma expressão que eu nunca tinha visto antes. Como se me amasse num momento,
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me odiasse no instante seguinte e logo depois ficasse aterrorizada com a minha presença.
Alison fez uma pausa, levando a mão à boca. Estava tremendo. Baixou os olhos para o lençol, angustiada. E contou o resto num sussurro quase inaudível.
E foi então que mamãe me atacou. Foi horrível. Ela tinha uma faca de cozinha na mão. Agarrou-me pela garganta, tentou enfiar a faca na minha barriga. Segurei o pulso dela e comecei a gritar desesperadamente. Ela queria me matar! Oh, Deus! Ela queria me matar!
Alison tombou para o lado, o corpo todo convulsionado,, o rosto pálido. Peter segurou-a, balançando-a para frente e para trás, gentilmente. Mas não podia deixar que ela parasse agora.
- Por favor, Alison, tente se recordar de tudo. Quando entrou na casa, quando a viu, o que ela estava gritando? O que ela estava dizendo?
Alison desvencilhou-se das mãos dele, voltou a se recostar na cabeceira da cama, os olhos fechados, o rosto banhado de lágrimas. Mas não estava mais chorando.
- Não sei.
- Tente se lembrar!
- Não posso! Não entendi o que ela estava falando!
Os olhos de Alison se abriram, fixando-se em Peter. Ambos tinham compreendido. E Peter disse, firmemente, uma conclusão, não uma pergunta:
- Porque ela estava falando uma língua estrangeira. Gritava em chmês. Sua mãe, que passou quatro anos nas províncias de Po Hai, que falava fluentemente o mandarim, estava lhe gritando em chinês.
Alison assentiu.
- Isso mesmo.
Peter sabia que a pergunta mais importante ainda não fora respondida. Por que á mãe iria atacai a filha? Por alguns segundos, Peter deixou que a mente vagueasse, recordando vagamente as centenas de páginas que escrevera, descrevendo conflitos irracionais que levavam a terríveis atos de violência. Não era psicólogo, tinha que pensar nos termos mais simples possíveis. Infanticídio esquizofrênico, complexo de Medeia... não eram essas as áreas nas quais deveria sondar, mesmo que fosse capaz. A resposta se encontrava em outra área. Em descrições mais óbvias... Descrições! Uma louca num acesso de fúria, desequilibrada, sem ver direito. Sem ver direito... De tarde, um sol intenso. A maioria das casas japonesas era clara e arejada. O sol entrando
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pelas janelas. Uma criança aparece na porta. Peter pegou a mão da criança.
- Procure recordar como estava vestida, Alison.
- Não é difícil. Usávamos a mesma coisa todos os dias. Os vestidos eram considerados inconvenientes. Usávamos uma calça comprida bem larga e blusão. Era o uniforme da escola.
Peter desviou os olhos. Um uniforme.
- Seus cabelos eram curtos ou compridos?
- Naquela ocasião?
- Naquele dia. Quando sua mãe a viu entrando pela porta, ao voltar da escola.
- Eu estava usando um boné. Todas as crianças usavam bonés e geralmente os cabelos eram bem curtos.
Era isso!, pensou Peter. Uma mulher desequilibrada, em meio a um acesso de fúria, o sol entrando pelas janelas, talvez pela porta aberta... e de repente aparece um vulto usando um uniforme. Ele segurou a outra mão de Alison.
- Sua mãe não a viu, Alison.
- O quê?
- Sua mãe não chegou a vê-la. Chasong foi justamente isso. Explica o vidro quebrado, a velha camisola por baixo das palavras na parede do gabinete de seu pai, a expressão nos olhos de Ramirez quando falei em sua mãe.
- O que está querendo dizer com isso? Como ela não me viu? Eu estava lá!
- Mas ela não a viu. A única coisa que viu foi um uniforme. E mais nada.
Alison novamente levou a mão à boca, a curiosidade e o medo conflitando em seu rosto.
- Um uniforme? Ramirez? Foi procurar Ramirez?
- Há muita coisa que não posso lhe dizer, porque eu mesmo ainda não sei. Mas estamos chegando cada vez mais perto. Os oficiais eram constantemente transferidos das zonas de combate da Coreia para os centros de comando em Tóquio e vice-versa. Todo mundo sabe disso. Disse que sua mãe saia à noite frequentemente. É um estranho comportamento, Alison.
- Está querendo insinuar que ela era uma vagabunda! Que se prostituía para obter informações!
- Estou apenas querendo dizer que é possível que ela tenha sido obrigada a cometer atos que acabaram por destruí-la. Marido e pai. De um lado, o marido, um extraordinário comandante na frente de combate; de outro, o pai adorado, prisioneiro na China. O que ela podia fazer?
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Alison levantou os olhos para o teto. Ela podia novamente compreender. Era um conflito com o qual podia se identificar.
- Não quero continuar, Peter. Não quero saber de mais
nada.
- Mas é necessário. O que aconteceu depois do ataque?
- Saí correndo de casa. Um dos criados estava do lado de fora. Havia telefonado para a polícia, da casa vizinha. Levou-me para lá e fiquei esperando... com a família japonesa a olhar para mim, como se eu estivesse doente. Finalmente apareceu um PM e levou-me para a base. Passei vários dias com a esposa de um coronel, até que meu pai voltou.
- E depois? Foi ver sua mãe?
- Cerca de uma semana depois, se bem me lembro. É dificil recordar com exatidão. Quando ela voltou para casa, estava acompanhada por uma enfermeira. E nunca mais, desde então, ficou sem uma enfermeira ou alguém em sua companhia.
- E qual era o estado dela?
- Parecia totalmente longe do mundo.
- Permanentemente afetada?
- É difícil dizer. Foi mais que um simples colapso. Agora, isso é óbvio para mim. Mas ela pode ter-se recuperado o suficiente para parecer normal.
- Naquela ocasião?
- Quando voltou do hospital na primeira vez. com a enfermeira. Não na segunda vez.
- Conte-me o que aconteceu na segunda vez.
Alisou piscou os olhos repetidamente. Era evidente que a recordação era tão dolorosa quanto a imagem violenta do ataque da mãe
- Foram tomadas providências para que eu voltasse aos Estados Unidos, onde ficaria morando com os meus avós paternos. Como eu disse antes, mamãe estava muito quieta, distante. Três enfermeiras se revezavam, em turnos de oito horas. Ela jamais ficava sozinha. Papai precisava voltar à Coreia. E acabou partindo, achando que tudo estava sob controle. As esposas dos outros oficiais iam constantemente nos visitar, levavam mamãe e eu a piqueniques, acompanhavam-na em compras durante a tarde. Todos se oiostravam muito bondosos. Até demais. Mas agora posso entender o que houve. As pessoas mentalmente doentes são como os alcoólatras. Se ficam dominadas por uma obsessão, se queiem romper os laços que as prendem, subitamente passam a aparentar uma perfeita normalidade. Sorriem, soltam risadas, mentem convincentemente. E de repente, quando menos se espera, elas fazem o que estão querendo. Foi justamente o que aconteceu.
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- Mas não tem certeza?
- Não, não tenho. Contaram-me que tiraram mamãe do mar. Que ela ficara tempo demais debaixo dágua, pensaram que tivesse morrido. Eu era uma criança, podia aceitar tal explicação. Fazia sentido. Mamãe tinha ido passar o dia na praia de Funabashi. Era um domingo, mas fiquei em casa, porque estava resfriada. No meio da tarde, o telefone tocou. Perguntaram se mamãe estava, se já tinha voltado. Os primeiros telefonemas foram das mulheres que a tinham acompanhado à praia. Mas elas não quiseram que eu soubesse disso. Fingiram que eram outras pessoas, provavelmente para não me alarmarem. Dois oficiais do Exército apareceram em nossa casa. Estavam muito nervosos, apreensivos, mas também não queriam que eu desconfiasse de alguma coisa. Fui para o meu quarto. Sabia que alguma coisa estava errada e tudo o que queria era a presença de papai.
As lágrimas voltaram aos olhos de Alison. Peter segurou as duas mãos dela e murmurou gentilmente:
- Continue.
- Foi horrível. De noite, já bem tarde, ouvi gritos. E pessoas correndo lá fora. Logo depois ouvi o barulho de carros e sirenes, pneus rangendo nas ruas. Levantei da cama, fui até a porta, abria-a. Meu quarto ficava no patamar por cima do hall. Lá embaixo, a casa parecia repleta de americanos... a maioria militares, mas havia também alguns civis. Provavelmente não havia mais que dez homens, mas todos andavam rapidamente de um lado para cutro, falavam ao telefone, em rádios portáteis. Depois, a porta se abriu e trouxeram mamãe. Ela estava numa maca, coberta por um lençol, onde havia manchas de sangue. E o rosto dela... estava terrivelmente pálido. Os olhos estavam arregalados, sem verem coisa alguma, como se estivessem mortos. Filetes de sangue escorriam pelos cantos da boca, descendo pelo queixo, caindo no pescoço. Quando a maca passou por baixo de uma lâmpada, mamãe se soergueu bruscamente, gritando, a sacudir a cabeça para frente e para trás, contorcendo o corpo, preso poi correias. Soltei um grito e desci correndo a escada. Mas um major.. um major negro muito bonito, que jamais esquecerei... deteve-me. Pegou-me no colo, dizendo que tudo ia acabar bem. Não queria que eu me aproximasse de mamãe, não naquele momento. E ele estava certo. Mamãe estava histérica, não teria me reconhecido. Puseram a maca no chão, desamarraram-na. Mas continuaram a segurá-la. Um médico se aproximou, com uma seringa na mão. Aplicou a injeção e segundos depois mamãe ficou quieta. Eu estava chorando. Comecei a fazer perguntas, mas ninguém prestou atenção em mim. O major levou-me para o meu quarto,
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deitou-me na cama. Ficou ao meu lado por muito tempo, procurando tranquilizar-me, dizendo que tinha havido um acidente, que mamãe ficaria boa. Mas eu sabia que ela nunca mais voltaria a ficar boa. Fui levada para a base e lá fiquei até que papai apareceu pela última vez, antes de voltarmos para a América. Só faltavam uns poucos meses para que terminasse o período de serviço dele na Coreia. Peter abraçou-a.
- A única coisa que parece evidente é que o acidente nada icve a ver com o banho de mar, que sua mãe não foi apanhada por uma correnteza e quase morreu afogada. Por um lado, porque ela foi levada para casa e não para um hospital. Foi um embuste elaborado, no qual você fingiu acreditar. Mas, no fundo, jamais acreditou. Como não acredita agora. Por que fingiu durante todos esses anos?
- Talvez porque fosse mais fácil - sussurrou Alison.
- Porque pensava que ela havia tentado matá-la? Por que ela gritou-lhe em chinês e preferia não pensar nisso? Não pode continuar a fugir, Aiison. É justamente isso o que está nos arquivos de Hoover, Sua mãe trabalhava para os chineses. Foi responsável pelo massacre de Chasong.
- Oh, Deus...
- Mas ela não o fez voluntariamente. Talvez nem mesmo soubesse o que estava fazendo. Meses atrás, quando fui visitar seu pai, sua mãe desceu e pôs-se a gritar quando me viu. Comecei a recuar para o gabinete, mas seu pai gritou-me que voltasse e fosse me colocar ao lado de um abajur aceso. Queria que sua mãe visse meu rosto. Ela me olhou, acalmou-se imediatamente, ficou apenas soluçando. Acho que seu pai queria que ela visse que eu não era um oriental. Acho que o tal acidente, naquela tarde de domingo, não foi absolutamente um acidente. Creio que ela foi capturada e torturada pelas pessoas que a estavam usando, obrigando-a a trabalhar para elas. É bem possível que sua mãe tenha sido uma mulher muito mais corajosa do que jamais a julgaram. Ela pode, ao final, ter enfrentado seus inimigos, arcando com as consequências. Não é um caso de loucura congénita, Alison. Sua mãe foi levada à loucura por outras pessoas.
Peter ficou ao lado de Alison durante quase uma hora, até que a exaustão finalmente forçou-a a fechar os olhos. Já passava das cinco horas; o céu fora estava se tornando cada vez mais claro. Em breve estaria amanhecendo. Dentro de umas poucas horas,
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Quinn OBrien iria transferi-los para outro lugar seguro. Peter sabia que também precisava dormir um pouco.
Mas, antes de dormir, tinha que saber se era realmente verdade tudo aquilo em que estava acreditando. Tinha que obter uma confirmação e somente um homem poderia proporcioná-la: Ramirez.
Peter saiu do quarto e foi ao telefone. Vasculhou os bolsos, até encontrar o pedaço de papel em que anotara o telefone de Ramirez. Não havia a menor dúvida de que um homem de OBrien estaria escutando na mesa telefónica. Mas não tinha importância. Nada mais importava agora, além da verdade. Peter discou e atenderam quase que imediatamente:
- Quem é?
A voz estava enrolada devido ao sono. Ou seria por causa de álcool?
- Ramirez?
- Quem está falando?
- Chancellor. Consegui descobrir a resposta e vai ter que confirmá-la. Se hesitar, se mentir, vou entrar em contato imediatamente com o meu editor. Ele saberá o que fazer.
- Já lhe disse para ficar fora disso!
As palavras saíam enroladas, esbarrando umas nas outras. O general estava embriagado.
- A esposa de MacAndrew. Não havia uma ligação com os chineses? Há 22 anos ela estava fornecendo informações aos chineses. E foi responsável por Chasong.
- Não!... Isto é, sim... Você não entende! Deixe o caso como está!
- Quero a verdade!
Ramirez ficou em silêncio por um longo tempo.
- Os dois já morreram.
- Ramirez!
- Eles conseguiram viciá-la em drogas. Ela estava totalmente dependente, não podia passar dois dias sem tomar uma dose. Descobrimos tudo. Procuramos ajudá-la. Fizemos tudo o que era possível. Mas a situação estava se deteriorando. Fazia sentido... e tínhamos que fazer o que fizemos. Todos concordaram.
Peter estreitou os olhos. A nota dissonante soava novamente, mais alta e perturbadora que antes.
- Ajudaram-na porque isso fazia sentido? As coisas estavam se deteriorando e por isso fazia algum sentido?
- Todos concordaram...
A voz do general estava agora quase inaudível.
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- Estou começando a perceber tudo! Não a ajudaram, mas sim mantiveram-na escravizada às drogas, a fim de que transmitisse as informações que queriam!
- A situação estava cada vez pior. Em Yalu...
- Ei, espere um pouco! Está por acaso insinuando que MacAndrew também participou da trama? Que ele deixou que a esposa fosse usada?
- MacAndrew nunca soube de nada. Peter ficou enojado.
- Contudo, apesar de tudo o que fizeram com ela, Chasong ainda aconteceu. E, durante todos esses anos, MacAndrew pensou que a esposa fosse responsável. Drogada, torturada, espancada quase até a morte, transformada em traidora por um inimigo que tinha os pais dela em seu poder! Vocês são uns miseráveis!
Ramirez gritou ao telefone:
- Ele também era um miserável! Não se esqueça disso! Era um assassino, um matador impiedoso!
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Ele também era um miserável! Não se esqueça disso! Era um assassino!... um matador! As palavras pronunciadas pelo general embriagado ressoavam nos ouvidos de Peter.
Contemplando os campos que passavam rapidamente pela janela do carro, sentado no assento traseiro, ao lado de Alison, Peter esforçou-se em compreendê-las.
Ele também era um miserável! Não fazia sentido. MacAndrew e a esposa eram vítimas. Haviam sido manipulados pelos dois lados. A mulher fora destruída e o general passara o resto de sua vida dominado pelo pavor de ser denunciado.
Ele também era um miserável!... um assassino! Se Ramirez estava querendo dizer com isso que MacAndrew se tornara irracional, um comandante que não se importava com nada quando queria destruir o inimigo e destruíra sua esposa, o termo mais apropriado não seria miserável. Mac, o Traidor, provocara a morte de centenas de soldados, talvez milhares, numa inútil tentativa de vingança. A razão o abandonara; a vingança passara a ser a única coisa importante.
Se eram esses os motivos que levavam Ramirez a julgar o general tão desfavoravelmente, havia decerto um exagero. Mas o que mais perturbava Peter era a imagem pouco nítida daquele novo MacAndrew, o miserável, o assassino, o matador de Chasong. Conflitava com o homem que ele conhecera, o soldado que odiava a guerra com toda sinceridade, porque a conhecia muito bem. Ou será que o pai de Alison mergulhara momentaneamente, talvez apenas por alguns meses durante toda uma vida, em sua própria loucura particular?
O segredo de Chasong já era conhecido. Mas onde isso os levava? Como a esposa traída e manipulada poderia levar a um dos quatro homens da relação que Varak lhe entregara? Varak estava convencido de que o segredo de Chasong iria levá-los diretamente ao homem que estava com os arquivos de Hoover. Mas como?
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Talvez Varak estivesse enganado. O segredo era conhecido e não levava a parte alguma.
O carro chegou a um cruzamento na estrada. À direita, havia um posto de gasolina isolado, com um único automóvel parado, ao lado de uma bomba. O motorista ao lado de CVBrien virou o volante e o carro entrou no posto. Ele assentiu para OBrien, parou o carro e saltou. OBrien sentou-se ao volante. O motorista foi até o outro carro, ao lado da bomba, cumprimentou o motorista e depois sentou-se ao seu lado.
- Eles irão nos acompanhar até Saint Michael - explicou OBrien.
Um minuto depois, estavam novamente na estrada, o segundo carro seguindo-os a uma distância razoável.
- Onde fica Saint Michael? - indagou Alison.
- Ao sul de Anápolis, à margem da Chesapeake. Temos «ma casa lá. Não é vigiada. Querem falar agora? O rádio está desligado, não há gravadores. Estamos a sós.
Peter sabia a que OBrien estava se referindo.
- -Gravaram a minha conversa com Ramirez?
- Não. Fizemos apenas um transcrição taquigrafada. com uma única cópia, que está no meu bolso.
- Não tenho tempo para explicar tudo a Alison, mas ela já sabe de alguma coisa. - Peter virou-se para Alison e acrescentou:
- Sua mãe foi viciada em narcóticos, provavelmente heroína, pelos chineses. Tornou-se dependente. Por isso é que você teve a impressão de que ela estava se afastando do mundo. Era usada para obter fragmentos de informações. Deslocamentos de tropas, forcas de combate, rotas de abastecimento... uma centena de coisas que podia ouvir dos oficiais com os quais se encontrava à noite. Além das drogas, ela era também intimidada por ameaças a seus pais, prisioneiros dos chineses. A combinação era poderosa demais, ela não tinha a menor condição de resistir.
- Oh, Deus... - murmurou Alison, olhando pela janela.
- Duvido muito que ela tenha sido a única. Estou certo de que houve inúmeros outros casos parecidos.
- Eu conheço vários - confirmou OBrien.
- Tenho a impressão de que isso não ajuda muito - comentou Alison. - Será que meu pai sabia?
- Seu pai sabia apenas o que o Exército queria que ele soubesse. E que era apenas uma parte da verdade, a parte chinesa. Ele nunca soube do resto.
Alison virou-se para fitar Peter.
- Que resto?
Peter segurou a mão dela.
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- Houve outra manobra. A do Exército. Sua mãe foi manipulada para transmitir informações falsas aos chineses.
Alison ficou rígida.
- Como assim?
- Há diversas maneiras para se conseguir isso. Talvez continuassem a fornecer narcóticos a ela ou talvez usassem outros elementos químicos que lhe aguçassem a necessidade. Provavelmente recorreram à segunda alternativa. A agonia iria levá-la a procurar novamente os chineses. com as informações que o Exército queria que fossem transmitidas.
Alison puxou a mão, num gesto de raiva. Fechou os olhos, respirando fundo, numa agonia particular. Peter não a tocou. Sabia que era melhor que ela se isolasse naquele instante.
Depois de algum tempo, Alison virou-se novamente para Peter e murmurou:
- Eles têm que pagar...
- Sabemos agora o que Chasong significa - disse OBrien, do banco da frente. - Mas onde isso nos leva?
- Segundo Varak, a um dos quatro homens. - Peter reparou que OBrien levantou bruscamente a cabeça, fitando-o pelo espelho retrovisor. Apressou-se em explicar: - Disse a ela que havia quatro homens, mas não revelei quem eram.
- Por que não? - perguntou Alison.
- Para a sua própria proteção, Srta. MacAndrew - respondeu o agente do FBI. - Estou investigando esses homens, mas não sei muito bem o que devo procurar.
- Algo relacionado com a China - disse Peter. - Qualquer relação com os chineses.
- Disse que queria entrar em contato com um quinto homem. Quando será?
- Antes do dia terminar.
Quinn ficou em silêncio por um longo tempo, antes de íinalmente murmurar:
- Concordou em deixar o nome dele com um advogado.
- Não preciso de um advogado. Informarei o nome dele a Morgan, em Nova York. Leve-me a um telefone. Deve haver algum aqui por perto.
OBrien franziu o rosto.
- Não tem qualquer experiência nesse tipo de contato. Não quero que assuma riscos desnecessários. Acho que não tem a menor ideia daquilo em que está se metendo.
- Ficaria surpreso se soubesse quantas reuniões secretas já inventei. Basta que me arrume um carro sem qualquer identificação e me dê algumas horas. E não mude de ideia. Pode estar
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certo de que acabarei descobrindo, se quebrar sua palavra e me
seguir.
- Sou forçado a aceitar suas imposições. Santa Mãe de Deus, que nunca mais um escritor me caia nas mãos!
- Mas onde você se meteu rapaz? - Tony disse isso aos gritos, mas suas palavras seguintes foram um pouco menos estridentes: - Informaram no hotel que você tinha saído e o gerente noturno disse que estava a caminho do Vale de Shanandoah! E seu médico telefonou, indagando quando chegaria a Nova York! Pode fazer o favor de explicar...?
- Não há tempo para explicar. Basta que saiba que não era um gerente do hotel, mas sim um homem do FBI. E duvido muito que tenha sido meu médico que lhe telefonou. Era alguém mais, à minha procura.
- O que você anda fazendo?
- Estou tentando descobrir o homem que se apossou dos arquivos de Hoover.
- Pare com isso! Já conversamos a respeito há dois meses! Está cruzando a fronteira novamente, pensando que é um dos personagens do seu maldito livro!
- Mas os arquivos estão de fato desaparecidos. Desde o início. E tudo começou justamente por causa disso. Prometo que voltarei em breve para Nova York. Mas antes quero que telefone para alguém por mim. Quero que essa pessoa se encontre comigo de carro num local e hora que vou lhe dar. Ele está em Washington e provavelmente será muito difícil falar-lhe. Mas poderá consegui-lo se disser que seu nome é Varak. Stefan Varak. Nào se esqueça disso: não deve usar o seu próprio nome.
- E imagino que está querendo também que eu faça a ligação de um telefone público - disse Morgan, sarcástico.
- Exatamente. E deve ser de uma cabine na rua, não num prédio.
- Essa não, Peter! Já está...
- O homem para quem deve telefonar chama-se Munro St. Claire.
O nome causou um efeito profundo. Morgan ficou aturdido.
- Não está brincando comigo, não é? Não era bem um pergunta
- Não, Tony, não estou. Assim que St. Claire atender, digalhe que é um contato meu. Diga-lhe que Varak está morto. Talvez ele já saiba, talvez não. Está com um lápis à mão??
- Estou.
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- Pois então escreva o que vou lhe dizer. St. Claire usa o nome de Bravo...
Peter ficou esperando num carro sem identificação, na estrada secundária que levava à Chesapeake. Era uma estrada sem saída, que terminava na água. As margens do rio eram pantanosas, cheias de juncos altos, que balançavam ao vento de dezembro. Passavam alguns minutos das duas horas da tarde. O céu estava nublado, o vento era frio, o ar estava impregnado de umidade.
Alison e OBrien estavam vários quilómetros ao norte, na casa em Saint Michael. O agente do FBI concordara em dar três horas a Peter, até cinco da tarde, antes de ligar para Morgan a fim de indagar a identidade de Bravo. Se Peter não tivesse voltado até essa hora, OBrien diria que ele estava presumivelmente morto e era necessário tomar as providências necessárias.
Peter recordou-se das palavras de Varak. Havia um senador. Um homem que não tinha medo, que podia ser procurado em busca de ajuda, entre todos os homens de Washington. Para Peter, aquilo tinha sido outra parte da loucura. Inventara um senador para o seu Núcleo. O paralelo era novamente estreito demais; o personagem da ficção tinha a sua base num homem de carne e osso, do mundo real.
Ele deu o nome do senador a OBrien, para ser procurado caso ele não voltasse.
A distância, uma limusine preta contornou uma curva da estrada e veio se aproximando, lentamente. Peter. abriu a porta do carro e saltou. A limusine parou a seis ou sete metros de distância. A janela do motorista estava abaixada.
- Sr. Peter Chancellor?
- Eu mesmo - respondeu Peter, alarmado. Não havia ninguém no banco traseiro. - Onde está o Embaixador St. Claire?
- Se quiser entrar no carro, senhor, eu o levarei ao lugar onde está o embaixador.
- Mas não foi assim que eu determinei!
- Mas terá que ser assim, senhor.
- Não!
- O embaixador mandou que eu lhe dissesse que era para a sua própria segurança. Pediu que lhe recordasse uma conversa que tiveram há quatro anos e meio. Ele não o enganou naquela ocasião.
Peter parou de respirar por um instante. Munro St. Claire realmente não o enganara há quatro anos e meio. Ao contrário, dera-lhe a sua vida. Peter acabou assentindo e entrou na limusine.
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A enorme mansão vitoriana ficava à beira dágua. Um ancoradouro comprido se estendia pela baía, no centro de um amplo gramado. A casa tinha quatro andares. No primeiro, por toda a extensão que dava para a Chesapeake, havia uma varanda, protegida por telas.
O motorista subiu os degraus para a entrada na frente de Peter. Abriu a porta e fez um gesto para que Peter entrasse.
- Vire à direita, passe pela arcada e entre na sala de estar. O embaixador está a sua espera.
Peter entrou no hall; estava sozinho. Atravessou a arcada, entrando numa sala de teto alto. Ajustou os olhos à claridade. Na oulra extremidade, um vulto solitário estava de pé, diante das portas francesas que davam para a varanda e para as águas da Chesapeake. O homem estava de costas para Peter, contemplando A superfície sempre ondulante da baía.
- Seja bem-vindo - disse Munro St. Claire, virando-se para Peter. - Esta casa pertenceu a um homem chamado Génesis. Ele era amigo de Bravo.
- Já ouvi falar de Banner e Paris, de Venice e Christopher. E também de Bravo, é claro. Mas não tinha ouvido falar de Génesis.
Era evidente que St. Claire o estava sondando. Ele conseguiu controlar sua surpresa, mas mesmo assim Peter a percebeu.
- Nem havia motivo para que ouvisse falar de Génesis. Ele está morto. Acho inacreditável que Varak tenha lhe fornecido o meu nome.
- Não foi ele. Para ser franco, Varak recusou-se a me dizer quem era Bravo. Foi um homem chamado Bromley quem me revelou a sua identidade, embora não tivesse a menor ideia do que estava fazendo. O nome em código dele no FBI era Víbora. O B virou V e assim passou a fazer parte dos arquivos desaparecidos. Parte verdade, parte mentira. Foi assim que me programaram.
St. Claire estreitou os olhos, enquanto se afastava das portas de vidro e se encaminhava para Peter.
- Parte verdade, parte mentira... Varak disse isso?
- Disse. Morreu diante dos meus olhos... mas não sem antes me contar tudo.
- Tudo?
- Desde o início. De Malibu a Washington. Como fui levado a me envolver, como fui transformado na isca para que os outros aparecessem. Ele não chegou a dizê-lo expressamente, mas não tinha a menor importância se eu vivesse ou morresse, não é mesmo? Como pôde se meter numa coisa dessas?
- Sente-se.
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- Prefiro ficar de pé.
- Está certo. Ficaremos como dois gladiadores a se rodearem, não é mesmo?
- É possível.
- Se é assim, já perdeu a batalha. Meu motorista está nos observando da varanda.
Peter virou-se na direção das portas de vidro. O motorista estava de pé lá fora, imóvel, empunhando uma arma.
- Acha que vim até aqui para matá-lo? - indagou Peter.
- Não sei o que pensar. Sei apenas que nada pode impedir que recuperemos aqueles arquivos. Eu daria a minha própria vida para consegui-los.
- Letras de Aí a Z. O homem que está com os arquivos sussurra pelo telefone, ameaça suas vítimas. E é um dentre quatro homens: Banner, Paris, Venice ou Christopher. Ou talvez seja Bravo. Eu diria que até isso é possível. Ele entrou em contato com Phyllis Maxwell, Paul Bromley e o General Bruce MacAndrew. O general estava prestes a denunciar um gigantesco embuste ocorrido há 22 anos, com cuja recordação não mais podia viver, quando foi obrigado a renunciar. Ninguém pode saber quantas outras pessoas já foram procuradas pelo sussurro. Mas se ele não for descoberto, se os arquivos não forem encontrados - e destruídos - esse homem poderá controlar os pontos de pressão do governo.
Peter disse tudo isso calmamente, a voz monótona, mas nem por isso o efeito foi menor.
- Sabe de coisas que podem lhe custar a vida - comentou St. Claire.
- Como estive prestes a perdê-la por diversas vezes, graças a vocês, isso não mais me surpreende. Mas me deixa assustado. E quero acabar com tudo isso.
- Eu gostaria de poder acabar imediatamente com tudo o que está acontecendo. Gostaria de poder recuperar os arquivos e destruí-los. E gostaria também de estar convencido de que tudo vai terminar bem.
- Há uma maneira de providenciar para que tudo aconteça como está querendo. Para garantir esse desfecho.
- E qual é?
- Revele publicamente as identidades dos homens que integram seu grupo. Revele o desaparecimento dos arquivos particulares de Hoover. Force uma solução para o problema.
- Isso seria uma loucura.
- Por quê?
- O problema é muito mais complexo do que imagina. - St. Claire aproximou-se de uma poltrona. Pôs as mãos sobre o en-
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costo, os dedos compridos estendidos sobre o tecido. Suas mãos tremiam. - Disse que Bromley lhe revelou meu nome. Como?
Ele me seguiu até um trem e tentou matar-me. Havia sido
informado de que meu livro estava pronto, contendo informações a respeito de sua família. Imagino que tenha sido a pessoa que lhe forneceu tal informação. Ele mencionou seu nome e subitamente tudo ficou claro para mira. Desde o início, um início bastante remoto, lá em Park Forest. Eu lhe devia algo, e cobrou devidamente. A dívida agora está cancelada.
St. Claire levantou a cabeça para fitá-lo.
- Sua dívida para comigo? Nunca existiu. Mas eu diria que tem uma dívida para com seu país.
- Reconheço essa dívida, quero apenas saber como pagá-la.
- Peter alteou a voz, sem o perceber. - Revele publicamente o nomes do grupo! Diga ao país - com o qual todos temos uma dívida - que os arquivos particulares de Hoover desapareceram!
- Por favor! - St. Claire levantou a mão. - Procure compreender. Nós nos reunimos em circunstâncias extraordinárias...
- Para deter um maníaco - interrompeu-o Peter. Bravo assentiu.
- Para tentar deter um maníaco. Ao fazê-lo, ultrapassamos os limites da autoridade em diversas áreas. Pressionamos a engrenagem governamental, porque achamos que isso se justificava. Podíamos ser arruinados, tudo o que representávamos corria o risco de ser destruído. Compreendemos isso perfeitamente. Nosso único motivo era a justiça, nossa única proteção o anonimato.
- Mudem as regras! Um de vocês já as mudou!
- É por isso que temos de descobri-lo de qualquer maneira. Mas os outros não podem pagar pelos erros de um.
- Não aceito a sua posição. A dívida está cancelada, Sr. St. Claire. Fui usado, manobrado, até quase perder o equilíbrio mental. E para quê? Para que vocês, o Pentágono, o FBI... até mesmo, pelo que eu sei, a Casa Branca, o Departamento de Justiça, o Congresso, a metade do governo... possam continuar a mentir? Para que possam dizer ao povo que os arquivos foram destruídos, embora isso não seja verdade? Não estou pedindo, estou exigindo! Ou revelam tudo ou eu o farei!
St. Claire podia controlar seu tremor, mas não era capaz de ocultá-lo. Os dedos compridos e finos comprimiam-se com toda força contra o encosto da poltrona.
- Fale-me a respeito de Varak - disse ele, suavemente. Tenho o direito de saber, pois ele era meu amigo.
Peter contou-lhe tudo, omitindo apenas a conclusão de Varak, de que Chasong era a chave do segredo. Alison estava intrínseca-
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mente ligada a essa chave e Peter não confiava o bastante em St. Claire para revelar-lhe o nome dela.
- Ele morreu convencido de que não era você, mas sim um dos outros quatro. "Bravo nunca." Varak disse isso várias vezes.
- Você, o que pensa? Também está convencido?
- Ainda não. Mas pode me convencer. Basta que divulgue toda a história.
- Entendo. - St. Claire virou-se, contemplando novamente as águas da Chesapeake. - Varak disse-lhe que foi programado com parte verdade, parte mentira. Ele lhe explicou isso?
- Claro. Os arquivos desaparecidos eram a parte da verdade, o assassinato a mentira. Mas eu não tinha acreditado. Para mim, não passava de ideia para um livro... Mas já conversamos por tempo demais. Quero a sua resposta. Vai revelar toda a história ou terei que fazê-lo?
St. Claire tornou a virar-se, lentamente. A ansiedade de alguns segundos antes havia desaparecido, substituída por um olhar tão frio que Peter ficou assustado.
- Não me ameace. Não está em condições de fazê-lo.
- Não pode ter certeza. Não sabe quais foram as precauções que tomei.
- Está pensando que é personagem de um de seus romances? Não seja tolo. - Bravo olhou peia janela. O motorista observava-os atentamente, a arma bem firme em sua mão. - Você não é importante. Assim como eu também não sou.
Peter sentiu-se à beira do pânico.
- Há um homem em Nova York que sabe que vim procurálo. Se algo me acontecer, ele irá identificá-lo. Falou inclusive com esse homem.
- Limitei-me a escutá-lo. Não concordei com coisa alguma. Foi em seu próprio carro até uma estrada sem saída, à margem da Chesapeake. Pelos registros do Departamento de Estado, estou neste exato momento tendo uma reunião com um subsecretário, que poderá jurar que compareci. Mas não há necessidade de um álibi. Poderíamos matá-lo a qualquer momento. Esta noite, amanhã, na próxima semana, no mês que vem. Só que ninguém deseja matá-ío. Isso nunca foi parte do plano... Há quatro anos e meio. desviei-o para o mundo da ficção. Volte para esse mundo. Deixe este mundo, o real, para os outros.
Peter estava aturdido. Os papéis tinham sido invertidos. Os temores de St. Claire se haviam dissipado, como se as notícias qus lhe tinham sido levadas por um jovem ultrajado não mais fossem vitais. Não fazia sentido. O que teria causado essa mudança? Os olhos dele se desviaram para a janela. O motorista pareceu
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sentir a tensão no interior da sala e chegou um pouco mais perto do vidro. St. Claire percebeu a preocupação de Peter e sorriu.
- Eu disse que poderia ir embora. Aquele homem está ali apenas para a minha proteção. Eu não podia saber como o senhor estaria mentalmente ao vir me procurar.
- E ainda não sabe. Como pode ter certeza de que não sairei daqui para contar toda a história aos jornais?
- Porque ambos sabemos que não é esse o caminho certo. Muitas pessoas acabariam morrendo e nenhum de nós dois quer que isso aconteça.
- Eu deveria dizer-lhe que sei quem são Banner, Paris, Venice e Christopher! Varak escreveu os nomes deles para mim!
- Eu já imaginava isso. E deve fazer o que é necessário.
- Mas que diabo! vou revelar a verdade a todo mundo! Os assassinatos têm que parar! As mentiras não podem continuar!
- Se revelar tudo, tenho a impressão de que Alison MacAndrew estará morta antes do dia terminar - comentou St. Claíre,. friamente.
Peter ficou tenso, depois deu um passo na direção de Bravo. Houve o barulho de vidro sendo quebrado e o revólver ao motorista avançou pelo buraco aberto.
- Vá embora, Sr. Chancellor. Trate de fazer o que é necessário.
Peter virou-se e saiu correndo da sala.
Munro St. Claire abriu as portas de vidro e saiu para a varanda. O ar estava frio, o vento que soprava da baía era cada ver mais forte. O céu estava agora escuro. Não demoraria muito para começar a chover.
Era extraordinário, pensou St. Claire. Mesmo depois de morto, Varak continuava a comandar os acontecimentos. Ele compreendia perfeitamente que só havia restado uma opção: Peter Chancellor tinha que substituir Varak. O escritor era agora o agente provocador. Não tinha alternativa que não sair à procura de Banner, Paris, Venice e Christopher.
Chancellor dissera que tinha sido manipulado. O que ele não desconfiava era que tal manipulação não havia cessado. Tudo agora se resumia a vigiar o escritor atentamente, acompanhar-lhe todos os movimentos, até que os levasse ao homem que estava com os arquivos de Hoover.
Haveria uma tragédia final. E, como o assassinato de John Edgar Hoover, não poderia ser evitada. Dois homens morreriam.
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O traidor de Inver Brass e, não podia haver a menor dúvida, Peter Chancellor.
Stefan Varak tinha sido um profissional até o fim.- com a morte de Chancellor, todos os caminhos estariam fechados. E Inver Brass iria se dissolver, para sempre
desconhecida.
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- Ainda não quer me dizer quem ele é? - perguntou OBrien a Peter.
Os dois estavam sentados à mesa da cozinha, cada um com
11 m copo de uísque pela metade à sua frente.
- Não. Varak estava certo. Ele não está com os arquivos.
- Como pode ter certeza?
- Se estivesse, ele nunca mais me deixaria sair vivo de lá.
- Está certo. Não vou insistir. Acho que você ficou doido, mas não vou insistir.
Peter sorriu.
- Mesmo que insistisse, isso de nada adiantaria. O que descobriu a respeito dos outros quatro? Existe alguma ligação com a China, mesmo remota?
- Há duas possibilidades. Extremamente positivas. Uma delas é até dramática. Eu diria mesmo que é a mais provável. As outras duas são basicamente negativas.
- Qual é a mais provável?
- Jacob Dreyfus. Christopher.
- De que maneira?
- Dinheiro. Ele coordenou um maciço apoio financeiro a diversas multinacionais operando em Taiwan.
- Abertamente?
- Sim. A posição pública dele contribuiu para tornar viável a economia de Formosa. Houve muitas resistências. A maioria dos bancos estava convencida de que Taiwan acabaria caindo. Mas Dreyfus jamais foi homem de desistir facilmente. Ao que tudo indica, ele arrancou garantias de Eisenhower e Kennedy. Recrutou a colaboração de diversas indústrias e, praticamente sozinho, promoveu a instalação de novas indústrias na ilha.
Peter ficou imediatamente em dúvida. Não poderia ser Dreyfus. Não seria tão óbvio assim.
- Não houve nada secreto? Nenhum acordo secreto ou algo parecido?
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- Pelo menos nada conseguimos descobrir. Mas por que seriam necessários? Dinheiro significa envolvimento... e é justamente isso o que estamos procurando.
- Se o dinheiro está por trás de tudo, talvez seja essa a pista certa. Mas ainda não estou convencido. Qual é a outra possibilidade?
- Frederick Wells. Banner.
- Qual é a relação dele com os nacionalistas chineses?
- com a China, não necessariamente com o governo. Wells é um sinófilo. Seu hobby é a história oriental antiga. Possui uma das maiores coleções de arte chinesa do mundo. Volta e meia empresta-a a museus.
- Uma coleção de arte? E o que tem isso a ver com qualquer coisa?
- Não sei. Estamos procurando uma relação qualquer. Não deixa de ser uma ligação.
Peter franziu o rosto. Na verdade, Wells podia ser um candidato mais lógico que Dreyfus. Um homem enfronhado na cultura de uma nação era mais propício a ser envolvido pela mística dessa cultura do que alguém lidando simplesmente com dinheiro. Seria possível que, sob o pragmatismo de Frederick Wells, houvesse uma mística oriental em conflito com a carapaça ocidental? Ou isso seria um absurdo?
Tudo era possível. Nada podia ser ignorado.
- Disse que as ligações dos outros dois eram basicamente negativas. Como assim?
- Não se pode dizer que qualquer dos dois tenha alguma simpatia declarada pelos chineses. Não obstante, Sutherland, isto é, Venice, decidiu contra o governo num processo movido por três jornalistas de Nova York, aos quais o Departamento de Estado havia negado passaportes para entrarem na China Continental. Essencialmente, ele argumentou que, enquanto Pequim se mostrasse disposta a permitir-lhes a entrada, nosso governo não poderia proibir, nos termos da Primeira Emenda.
- Parece uma decisão lógica.
- E era mesmo. Não houve apelação.
- E qual a ligação de Montelán?
- Paris é um antinacionalista ativo há bastante tempo. Anos atrás, classificou Chiang Kai-chek de um senhor corrupto. Sempre defendeu o ingresso da China Vermelha na ONU.
- Como muitas outras pessoas.
- Foi por isso que eu falei que as relações eram basicamente negativas. Tanto Venice como Paris assumiram posições que podiam não ser populares mas que também não eram insólitas.
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.- A menos que houvesse outros motivos para que assumissem tais posições.
- A menos qualquer coisa. A esta altura, fico com as probabilidades. Acho que devemos nos concentrar em Dreyfus e
Paris. ,
- Eles podem ser os primeiros, mas vou procurar todos os quatro. Um por um.
Peter terminou de tomar seu uísque. OBrien recostou-se na cadeira.
- Importa-se de repetir o que disse?
Peter levantou e foi até a pia, levando seu copo. A garrafa de scotch estava quase cheia, pois só haviam tomado uma dose. Peter hesitou por um instante, mas acabou se servindo de outra dose.
- com quantos homens pode contar? Como aqueles que estavam no motel em Quântico e os que nos seguiram até aqui.
- Pedi que repetisse o que tinha falado.
- Não se ponha contra mim. Procure ajudar-me, sem atrapalhar.- Sou o elo entre os quatro homens. Todos sabem como fui manipulado. E um deles saberá - ou assim pensará - que me concentrei nele.
- E o que acontecerá então? Peter tomou um gole do uísque.
- Ele tentará me matar.
- Foi o que eu pensei. E pensa que vou assumir a responsabilidade? Esqueça!
- Não pode me impedir. Pode apenas me ajudar.
- Uma ova que não posso impedi-lo! Posso apresentar uma dúzia de acusações contra você, metendo-o na cadeia, na mais absoluta reclusão!
- E o que fará depois? Não pode confrontar os quatro homens.
- Por que não?
Peter voltou à mesa e sentou-se.
- Porque você já foi alcançado. Está se esquecendo de Han Chow?
OBrien permaneceu imóvel por um momento, sustentando o olhar firme de Peter.
- O que sabe a respeito de Han Chow?
- Nada, Quinn. E nem quero saber. Mas posso imaginar. Naquela primeira noite em que conversamos, quando falei em Longworth, quando contei o que aconteceu com Phyllis Maxwell, quando mencionei o nome Chasong... seu rosto, seus olhos, tudo deixava transparecer o seu medo. Falou em Han Chow como se
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isso o estivesse matando. Fitou-me do mesmo jeito que está fazendo agora. Começou a acusar-me de coisas que eu não podia compreender. Talvez não acredite, mas inventei-o
antes mesmo de conhecê-lo.
- Mas que besteira é essa? - perguntou OBrien, a voz muito tensa.
Peter tomou um gole do uísque, embaraçado. Desviou os olhos de Quinn, fixando-o no copo.
- Você era o meu agente de limpeza, Quinn. O mocinho que tem de enfrentar as suas próprias deficiências e superá-las.
- Não estou entendendo.
- Toda história sobre corrupção precisa ter um vingador. O personagem que está do lado dos anjos. Acho que a diferença entre um bom romance e uma caricatura é que no romance ninguém começa como herói. Se o personagem se transforma em herói, é apenas porque faz um tremendo esforço para superar seus próprios medos. Não sou bom o suficiente para escrever uma tragédia, por isso não se pode dizer que o medo seja um defeito trágico. Mas pode-se classificá-lo como uma fraqueza. Han Chow foi sua fraqueza, não é mesmo? Sei que seu nome também consta dos arquivos desaparecidos.
Quinn engoliu em seco, involuntariamente, sem desviar os olhos de Peter.
- Quer saber o que aconteceu?
- Não. E estou sendo sincero. Mas quero saber por que o procuraram. Só pode ter sido antes do nosso encontro.
As palavras de OBrien saíram entrecortadas, como se ele estivesse com medo delas:
- Na noite anterior à morte de Hoover, três nomes foram registrados pela segurança do prédio do FBI, onde entraram depois da meia-noite. Eram Longworth, Krepps e Salter.
- Mas Longworth era Varak! - interrompeu-o Peter, bruscamente.
- Seria mesmo? Contou-me que Varak morreu tentando recuperar os arquivos. Um homem não se mata na tentativa de recuperar o que já possui. Era alguém mais.
- Continue.
- Não havia a menor possibilidade do verdadeiro Longworth ter aparecido de repente em Washington. Krepps e Salter eram coberturas do FBI que não estavam atribuídas a ninguém na ocasião. Não consegui descobrir suas identidades. Em outras palavras, três homens desconhecidos tiveram acesso ao gabinete de Hoover naquela noite. Comecei a fazer perguntas. E recebi um telefonema ...
- Um sussurro estridente?
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- Um sussurro. Muito preciso, muito cortês. Disse-me que parasse de fazer perguntas. Por causa de Han Chow.
Peter inclinou-se para afrente. Duas noites atrás, OBrien fora o interrogador; agora era a sua vez. O amador estava se impondo ao profissional. Porque o profissional
estava apavorado. «
- O que é exatamente uma cobertura do FBI?
- Uma identidade preparada com antecedência, para ser usada em emergências. Inclusive com dados biográficos, nomes dos pais, escolas que frequentou, amigos, ocupações, antecedentes... todas essas coisas.
- Em dez minutos, um homem passa a ter toda uma história pessoal diferente.
- Digamos que há necessidade de duas horas. O agente precisa decorar diversos fatos.
- O que o levou a examinar os registros de segurança?
- Os arquivos. Alguns homens se perguntaram o que teria acontecido com eles. Conversamos a respeito, discretamente.
- Mas por que foi verificar os registros de segurança?
- Não sei muito bem. Provavelmente foi um processo de eliminação. Verifiquei nas salas de destruição de documentos, nas fornalhas, nos computadores. Não havia o menor sinal dos arquivos particulares. Cheguei mesmo a investigar as caixas de objetos pessoais que haviam sido retiradas de Flags.
- Flags?
- O apelido que dávamos ao gabinete de Hoover, por causa das bandeiras. Ele não gostava do nome, que jamais era mencionado em sua presença.
- E levaram muitas caixas de lá?
- Não o bastante para conter os arquivos. Para mim, a conclusão era inevitável: os arquivos haviam sido retirados antes da morte de Hoover. O que me deixou apavorado. Não se esqueça que eu já tinha observado antes como podiam ser usados.
- Alexander Meredith... Já passei por isso antes.
- Quem é esse Meredith?
- Alguém que devia conhecer... só que ele não existe.
- Um personagem do seu livro?
- Exatamente. Continue.
- Como a remoção física era uma possibilidade, comecei a verificar os registros de segurança. Todos sabiam que Hoover estava morrendo. Havia mesmo um nome em código para indicar a morte dele: "território aberto". Acho que o significado é bem claro. Depois do diretor... quem?
- Ou o quê?
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- Tem razão. Examinei os registros, começando vários meses antes da morte de Hoover. Concentrei-me nos registros noturnos, porque seria um pouco embaraçoso levar
carrinhos cheios de caixas de Flags durante o dia. Não havia nada de anormal, tudo e todos tinham sido devidamente verificados. Até que cheguei aos registros da noite de 1. de maio. Encontrei três nomes, dois sem qualquer significado, sem identidades.
Quinn fez uma pausa, tomando um gole do uísque.
- E qual foi a sua teoria no momento em que compreendeu que não havia qualquer possibilidade de verificar as identidades dos homens?
- A teoria que formulei naquele momento e na qual continuo a acreditar, pelo menos em parte. - OBrien fez outra pausa, acendendo um cigarro. - Acho que Hoover morreu um dia antes do que foi anunciado.
O agente deu uma tragada.
- É uma declaração espantosa.
- Mas lógica.
- Por quê?
- Por causa das coberturas que não haviam sido atribuídas a ninguém. Quem quer que as tenha usado, estava a par das operações clandestinas, era capaz de apresentar cartões de identificação autênticos. O agente de plantão na recepção naquela noite, um homem chamado Parke, não gosta de falar sobre o que aconteceu. Limita-se a dizer que os três homens foram autorizados a entrar pelo próprio diretor, através de sua linha pessoal. Verifiquei a alegação; o telefone pessoal de Hoover foi realmente usado. Mas não creio que ele tenha falado com Hoover. Falou com alguma outra pessoa que estava na casa de Hoover. O que era suficiente para ele. Aquele telefone era sagrado.
- Portanto, ele falou com alguma outra pessoa que estava na casa de Hoover. E daí?
- Alguém cuja autoridade ele não iria contestar. Alguém que encontrou Hoover morto e queria que os arquivos particulares fossem removidos antes que a notícia se
divulgasse. Acho que os arquivos foram roubados na noite de 1. de maio.
- Tem alguma ideia de quem possa ter sido?
- Tinha uma ideia bem definida até duas horas atrás. Estava convencido de que fora o substituto eventual de Hoover, Tolson, e os maníacos. Mas, graças a você, não penso mais assim.
- Graças a mim?
- Exatamente. Quase matou um homem na Corcoran Gallery. Encontraram-no no poço de uma escada. Era um dos maníacos. Foi levado para o hospital, onde o pressionaram.
Tinha
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duas opções: denunciar os outros e pedir a aposentadoria ou enfrentar um julgamento, a perda da pensão e uma longa sentença de prisão. É claro que ele preferiu a primeira opção. Duas horas atrás, recebi a informação de um dos nossos. Todos os maníacos pediram aposentadoria. Não agiriam dessa maneira se estivessem com os arquivos.
Peter observou CTBrien atentamente.
- O que nos leva de volta aos nossos quatro candidatos, Banner, Paris, Venice e Christopher.
- E Bravo - acrescentou OBrien. - Quero que o use. Adote o seu próprio conselho. Obrigue-o a forçar o problema. Se ele é o homem que você julga - e que Varak também julgava não irá recusar. Volte a procurá-lo.
Peter sacudiu a cabeça, lentamente.
- Não está percebendo o mais importante. Bravo está cansado, não mais consegue aguentar a pressão. Varak sabia disso. Foi por isso que me procurou. Somos só nós dois agora, OBrien, eu e você. Não adianta procurar por mais ninguém.
- Neste caso, vamos forçar o problema! Vamos denunciá-los!
- Para quê? O que quer que possamos dizer, seria inevitavelmente negado. Eu seria considerado como um escritor mercenário tentando promover um livro. E, o que seria muito pior, você teria que arcar com as consequências de Han Chow. - Peter afastou o copo de uísque da sua frente, antes de acrescentar: - E não ficaria por aí. Bravo foi bem claro. Mais cedo ou mais tarde, haveria um par de acidentes. Temos que enfrentar a realidade: somos perfeitamente dispensáveis.
- Mas que diabo! Eles não vão poder negar o desaparecimento dos arquivos.
Peter ficou observando o agente, que estava dominado inteiramente pela raiva e frustração. Alex Meredith vivia em Quinn OBrien. Peter decidiu dizer-lhe tudo.
- Receio que poderiam negar, Quinn, com o maior sucesso. Porque só desapareceu a metade dos arquivos. As letras de M a Z. O resto foi recuperado.
OBrien ficou aturdido.
- Recuperado? Por quem?
- Peter! Quinn!
Era Alison quem estava gritando, na sala de estar. OBrien foi o primeiro a chegar à porta. Estava tudo escuro. Alison estava de pé ao lado da janela, com a mão nas cortinas.
- O que houve? - perguntou Peter, aproximando-se dela.
- Alguma coisa errada?
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- Lá na estrada. A elevação além do portão. Vi alguém. Tenho certeza absoluta. Ele ficou parado ali por um riomento, observando a casa. E depois recuou.
Quinn encaminhou-se rapidamente para um painel na parede, oculto parcialmente pelas cortinas. Havia duas fileiras de discos brancos convexos, mal dando para se ver na semi-escuridão da sala. Pareciam duas colunas de olhos cegos.
- Nenhuma das células fotelétricas foi acionada - comentou ele, como se estivesse falando sozinho.
Peter ficou imaginando o que tornaria uma casa "segura", além do equipamento de rádio, do vidro grosso à prova de balas e das grades por toJa parte.
- Há raios eletrônicos ao redor da casa?
- Há, sim. São raios infravermelhos, que se cruzam. E há geradores auxiliares subterrâneos, caso haja uma falha no fornecimento de eletricidade. Esses geradores são testados todas as semanas.
- Quer dizer que esta casa é como o motel em Quântico?
- Foi o mesmo arquiteto que a projetou, a mesma empreiteira que a construiu. É tudo de aço, até mesmo as portas.
- A porta da frente é de madeira - disse Peter.
- Apenas um painel por cima do aço.
- Não poderia ter sido um vizinho que estava dando uma volta? - perguntou Alison.
- É possível, mas não é provável. As casas por aqui ocupam lotes de três acres. E as duas vizinhas são de propriedade do Departamento de Estado, habitadas por pessoal do corpo diplomático. Eles foram devidamente avisados para não se aproximarem.
- E isso é comum?
- Ninguém estranha. Esta casa é usada também para alojar desertores, durante o período em que estão fornecendo informações.
- Lá está ele!
Alison puxou a cortina. Delineado a distância, entre as colunas de pedra, podia-se ver o vulto de um homem de sobretudo. Estava na elevação da estrada, claramente visível contra o céu noturno.
- Ele está simplesmente parado ali - comentou Peter.
- Sem fazer qualquer movimento para passar pelo portão acrescentou Quinn. - Sabe que a passagem está engatilhada. E quer que saibamos que ele sabe.
- Olhem! - murmurou Alison. - Ele está se movendo!
O homem deu um passo para a frente e levantou o braço direito. Como se fosse um gesto ritualista, baixou-o lentamente, à
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sua frente, cortando o ar. No mesmo instante, houve um zumbido no painel. Um disco branco ficou vermelho.
O homem deslocou-se para a esquerda e desapareceu na escuridão da noite.
- Por que ele fez aquilo? - perguntou OBrien, mais para si mesmo do que para os outros.
- Já explicou - disse Peter. - Ele quer que saibamos que está a par do sistema de alarme eletrônico.
Abruptamente, soou um segundo zumbido no painel; outro disco branco ficou vermelho.
Seguiu-se um zumbido depois de outro, em rápida sucessão, uma luz vermelha se acendendo depois de outra. A cacofonia era assustadora, os alarmes soavam dolorosamente aos ouvidos. Em menos de 30 segundos, todos os discos estavam vermelhos, todos os zumbidos ativados. Uma claridade magenta se espalhava pela sala. OBrien olhava para o painel, atordoado.
- Eles conhecem todos os pontos vetores! Não esqueceram um único L - Ele atravessou a sala e abriu um armário na parede. Continha um equipamento de rádio. Apertou um botão e começou a falar, a urgência patente em sua voz. - Aqui é Saint Michael Um! Contato, por favor! Repito! Saint Michael Um, emergência!
A única resposta foi a estática contínua.
- Contato, por favor! Aqui é Saint Michael Um! Emergência!
Nada. Apenas a estática, que parecia se tornar cada vez mais alta. Peter correu os olhos ao redor, ajustando-os ao clarão vermelho e às sombras.
- O telefone! - disse ele.
- Nem precisa se dar ao trabalho. - OBrien afastou-se do equipamento de rádio. - Eles não o deixariam funcionando. Certamente cortaram os fios. O telefone está mudo.
E estava mesmo.
- Por que não está conseguindo se comunicar pelo rádio? perguntou Alison, procurando falar calmamente.
Quinn fitou-os, sem conseguir esconder sua apreensão.
- Eles interferiram na frequência, o que significa que a conheciam. É trocada diariamente.
- Pois então tente outra frequência! - gritou Peter.
- Não adianta. Em algum lugar lá fora, a uma distância entre 50 e 100 metros da casa, há uma antena computadorizada. Quando eu finalmente conseguisse localizar alguém, eles já teriam interferido, antes da transmissão de qualquer mensagem.
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- Mas tente de qualquer maneira!
- Não - respondeu OBrien, voltando a olhar para o painel.
- É justamente isso o que eles estão querendo... que fiquemos em pânico. Estão contando com isso.
- E por que não deveríamos entrar em pânico? Que diferença isso faz? Disse que ninguém poderia nos descobrir aqui. Pois alguém descobriu e o rádio não funciona! Também não vou confiar em suas construções de aço e vidros de duas polegadas! Não podem resistir a um par de tochas de acetileno e a um malho! Pelo amor de Deus, faça alguma coisa!
- Não vou fazer nada, justamente o que eles não esperam. vou deixar passar dois ou três minutos e depois voltarei a falar pela mesma frequência, tentando transmitir uma segunda mensagem. - Quinn olhou para trás, fitando Alison. - Suba e verifique as janelas da frente e de trás. Chame-nos, se avistar alguma coisa. E você. Chancellor, volte para a sala de jantar. Faça a mesma coisa.
Peter continuou onde estava.
- O que vai fazer?
- Não há tempo para explicar.
OBrien foi até a janela da frente e olhou para fora. Peter foi postar-se ao seu lado. O homem de sobretudo estava novamente parado entre as colunas de pedra do portão,
delineado contra o céu no turno. Ficou imóvel por 10 ou 15 segundos e depois levantou as duas mãos à sua frente.
No mesmo instante, um potente refletor se acendeu, a luz cortando a escuridão.
- Lá na frente! - gritou Alison, do segundo andar. - Há um...
- Já vimos! - berrou OBrien, virando-se em seguida para Peter e acrescentando: - Verifique nos fundos da casa!
Peter atravessou a sala correndo, na direção da pequena arcada que levava à sala de jantar. Um segundo clarão ofuscante iluminou a janela menor da parede dos fundos
da sala de jantar. Peter virou a cabeça, fechando os olhos. A luz fazia com que sua testa doesse. E ele gritou:
- Há outro refletor aqui atrás!
- E também dests lado! - gritou OBrien, da alcova, na outra extremidade da sala. - Verifique na cozinha! No lado norte!
Peter correu para a cozinha. Como Quinn previra, um quarto projetor lançava a sua luz forte pelas janelas gradeadas no lado norte da casa. Peter fechou novamente os olhos. Era um terrível pesadelo. Para onde quer que olhassem, eram ofuscados pela luz intensa. Estavam sendo atacados por luzes ofuscantes!
362
- Chancellor! - gritou OBrien, de algum lugar além da cozinha. - Suba! Pegue Alison e fiquem longe das janelas! Fiquem bem no meio da casa! Depressa!
peter não era capaz de pensar, só podia obedecer. Enoaminhou-se para a escada. Ao começar a subir, segurando-se no corrimão, ouviu a voz de OBrien. Apesar da loucura, a voz era precisa, controlada. Ele estava novamente falando pelo rádio:
- Se houver contato, a emergência está cancelada. Saint Michael Um falando. Repito, a emergência está cancelada. Conseguimos fazer contato com Chesapeake pelo equipamento alternativo. Eles já estão a caminho, deverão chegar dentro de três ou quatro minutos. Repito. Fiquem longe da área. Emergência cancelada.
- O que está fazendo? - gritou Peter.
- Mas que diabo! Suba logo de uma vez! Pegue Alison e fiquem bem no meio da casa!
- De que lado você está?
- Aqueles malucos estão tentando nos enganar! Querem atrair-nos para as janelas e depois ofuscar-nos!
- Mas o que estava falando pelo rádio?
- É a nossa única esperança! Agora vá pegar Alison e faça o que estou mandando!
OBrien tornou a se virar para o rádio, apertando o botão do microfone. Peter não esperou para ouvir o que ele ia dizer. O agente estava agachado ao lado do armário do rádio, por trás de uma cadeira, a mão erguida para o aparelho. Peter terminou de subir a escada correndo.
- Alison!
- Aqui! No quarto da frente!
Peter atravessou correndo o hall do segundo andar e entrou no quarto. Alison estava na janela, hipnotizada pelo que acontecia lá fora.
- Alguém está correndo!
- Saia já daí!
Peter quase arrastou-a para fora do quarto, até o hall. Um instante depois, ouviu um ruído metálico, um objeto batendo no vidro ou na grade da janela do quarto. E depois aconteceu.
A explosão foi ensurdecedora, o impacto arremessando-os ao chão. O vidro grosso da janela do quarto voou em todas as direções, fragmentos se cravando nas paredes e no chão. Pedaços da grade retiniram, ao baterem em objetos sólidos.
Toda a casa tremeu. O reboco caiu, enquanto as vigas se entortavam. E Peter compreendeu, enquanto apertava Alison em seus braços, que deviam ter ocorrido duas ou três explosões, quase simultâneas, a ponto de não se poder distinguir uma da outra.
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Não. Haviam sido quatro explosões, uma em cada lado da casa, uma de cada fonte de luz ofuscante. OBrien acertara. A estratégia consistira em atraí-los para as janelas e depois disparar os explosivos. Se estivessem diante das janelas, os fragmentos de vidro extremamente afiados teriam se cravado em seus corpos. Veias e artérias seriam cortadas, cabeças seriam atingidas... como lhe acontecera muitos meses antes, na auto-estrada da Pensilvânia. As semelhanças eram por demais dolorosas. Até mesmo a poeira do reboco recordava-lhe a terra dentro do automóvel a rodopiar; e a mulher em seus braços era outra mulher.
-- Chancellor! Vocês estão bem? Responda!
Era Quinn, a voz estridente, deixando transparecer uma dor intensa, gritando de algum lugar lá de baixo. Peter podia ouvir automóveis correndo velozmente, a distância.
- Estamos!
- Eles se foram! - A voz de OBrien era agora mais fraca.
- Temos que sair daqui! E depressa!
Peter rastejou até a beira da escada e acendeu a luz do hall, OBrien estava inclinado sobre o último degrau, segurando-se no corrimão. Levantou a cabeça para fitar Peter.
Seu rosto estava coberto de sangue.
Peter foi guiando. Alison aninhava CTBrien em seus braços, no banco traseiro do carro. O agente do FBI tinha fragmentos de vidro cravados no braço e ombro direitos, além de numerosos cortes no rosto e no pescoço. Mas os ferimentos não eram graves, apenas dolorosos.
- Acho que deveríamos levá-lo para casa - disse Peter, a respiração ofegante, acelerada pelo medo. - Deve ficar aos cuidados de sua esposa e de seu médico.
- Faça o que estou lhe dizendo - respondeu Quinn, procurando controlar a dor que sentia. - Minha esposa pensa que estou na Filadélfia. E meu médico faria muitas perguntas. Há um outro médico a quem podemos recorrer.
- Pois acho que está na hora de provocarmos as perguntas!
- Ninguém ouviria as respostas.
- Não pode fazer isso - disse Alison, enxugando o rosto de OBrien com um lenço. - Peter está certo.
- Não, não está. - OBrien estremeceu. - Estamos mais perto daqueles arquivos que antes. Temos que encontrá-los. É a única solução. Para nós.
- Por quê? - indagou Peter.
- A casa de Saint Michael é território proibido. Uma pro-
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priedade de quatro milhões de dólares que não está ao alcance de qualquer um.
- Mas você conseguiu requisitá-la.
Por mais estranho que possa parecer, não consegui. -
Quinn aspirou fundo. A dor logo passou e ele continuou: - Se o Departamento de Estado e o FBI descobrirem algum dia como menti, passarei pelo menos 20 anos numa penitenciária federal. Violei todos os juramentos que prestei.
Peter sentiu uma profunda afeição pelo agente.
- O que aconteceu?
- Usei o nome de Varak com o Departamento de Estado. Ele era um especialista em desertores e eu conhecia os procedimentos para se obter uma casa segura. O FBI também já se envolveu antes com desertores. Eu disse que era uma operação conjunta entre o FBI e o Conselho de Segurança Nacional. O nome de Varak garantiu a aceitação. O FBI pode ser questionado. Mas Varak não.
Peter entrou com o carro numa curva longa, para a direita. Até na morte, Varak ainda participava de tudo.
- Não era perigoso usar o nome de Varak? Ele estava morto e já devem ter encontrado seu corpo.
- As impressões digitais de Varak foram queimadas há alguns anos. Se não me engano, até mesmo os serviços dentários foram efetuados sob um nome falso. com os inúmeros homicídios que ocorrem em Washington e com a burocracia que a polícia leni que seguir, é possível que se passe uma semana antes que descubram a identidade dele.
- Onde está querendo chegar? Usou o nome de Varak para obter o uso da casa de Saint Michael. E daí? Por que acha que estamos mais perto dos arquivos?
- Você jamais daria um bom advogado. Quem quer que nos atacou esta noite, não podia deixar de conhecer dois fatos específicos. Um: as providências no Departamento de Estado para colocar a casa à nossa disposição. E dois: que Varak estava morto. Os quatro homens que ia procurar, Banner, Paris, Venice ou Christopher... Um deles sabia dessas duas coisas.
Peter apertou o volante com toda força. Recordava-se das palavras que ouvira umas poucas horas antes.
Pelos registros do Departamento de Estado, estou neste exato momento tendo uma reunião...
Munro St. Claire, embaixador extraordinário, com acesso aos segredos da nação, sabia que Varak estava morto.
- Ou Bravo - acrescentou Peter, furioso. - O quinto homem.
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Não havia mais casas "seguras" à disposição de OBrien. Seus recursos estavam esgotados. Até mesmo o mais compreensivo dos seus associados não continuaria a ajudá-lo.
Saint Michael Um fora destruída, haviam explodido uma propriedade do governo no valor de quatro milhões de dólares.
Poderia haver explicações para esse desastre, explicações que provavelmente seriam em favor de OBrien. Mas não havia qualquer explicação, na comunidade do serviço secreto, que pudesse atenuar a revelação chocante de um determinado assassinato.
O cadáver de Varak fora encontrado no local, o corpo crivado de balas. Do lado de fora da casa. Não se podia deixar de cogitar a hipótese de traição. Peter compreendia, mas sua compreensão não tinha a menofj importância. O corpo de Varak fora encontrado pelos homens que o estavam seguindo, caçando-o pelos gramados
do Smithsonian. Fora levado a Saint Michael para complicar mais a coisa.
Ele não tinha a menor importância. Quem iria querer escutá-lo? }
A notícia se espalhou rapidamente. O agente Carroll Quinlan? OBrien desaparecera. O pedido urgente para a utilização de Saint Michael Um fora transmitido ao Departamento
de Estado do gabinete de OBrien no FBI. O nome de Varak fora usado, com a informação de que se tratava de uma operação conjunta entre o FBI e o Conselho de Segurança
Nacional. O que era falso. E agora, OBrien não era encontrado em parte alguma.
Ainda por cima, um centro secreto fora destruído.
OBrien deu alguns telefonemas de cabines ao longo da autoestrada e de estradas secundárias. Verificou que o cerco do governo estava se fechando com uma rapidez alarmante.
A esposa de OBrien estava frenética. Tinha sido procurada por diversos homens, que lhe haviam dito coisas terríveis... homens que dias antes eram grandes amigos do casal. OBrien podia apenas tentar tranquilizá-la. E depressa. Não podia dizer nada de importante.
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pois certamente estavam na escuta de seu telefone. Além do mais, ele, Peter e Alison tinham que se afastar o mais depressa possível dos locais de onde telefonavam. Pois era possível localizar as cabines telefónicas de onde se faziam as ligações. ,
Peter telefonou para Tony Morgan, em Nova York. O editor estava assustado, pois havia sido procurado por agentes do governo. O que também acontecera com Joshua Harris. Os agentes haviam feito acusações espantosas. Peter fizera falsas declarações a um oficial de plantão noturno no FBI, o que resultara na morte de funcionários do Departamento de Justiça. Além disso, ele atacara um agente do FBI na Corcoran Gallery. O homem estava em estado grave; se morresse, a acusação seria de homicídio. Ainda por cima, havia indícios que o ligavam à destruição de uma propriedade altamente secreta do governo, no valor de quatro milhões de dólares.
- É tudo mentira! - gritou Peter. - O homem que ataquei estava tentando me matar! Era um maníaco e foi obrigado a pedii aposentadoria. Também lhe contaram isso?
- Não. E quem lhe falou isso? Um agente chamado OBrien? "
- Exatamente.
- Não acredite nele. OBrien é um agente amargurado e incompetente. Os agentes deixaram isso bem claro. Ele estava prestes a ser dispensado quando você o encontrou.
- Ele salvou-me a vida!
- Talvez ele apenas quisesse que você pensasse assim. Volte para Nova York, Peter. Vamos lhe arrumar os melhores advogados. Há explicações legítimas e o pessoal do governo pode perfeitamente compreender isso. Afinal, você esteve submetido a uma terrível pressão. Quase morreu no ano passado. Sua cabeça quase foi cortada de um lado a outro. Ninguém pode saber exatamente a extensão dos danos.
- Tudo isso é besteira e você sabe muito bem!
- Não, Peter, não sei. Estou me esforçando para encontrai as razões aceitáveis.
A voz de Morgan era tensa, sinal evidente de que ele se importava.
- Preste atenção, Tony. Não tenho muito tempo. Será que não percebe o que eles estão fazendo? Não podem admitir a verdade. Tentarão remediar a situação, mas não podem admitir que a situação existe! Os arquivos particulares de Hoover estão desaparecidos!
- Saia de perto do fogo, Peter! Está se matando!
A explosão de Morgan vinha lá do fundo. Peter compreendeu. Agora Tony estava sendo usado, sendo também manipulado.
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- Por acaso mencionou os arquivos?
- Abordei o assunto...
A voz de Morgan era quase inaudível.
- E eles negaram que os arquivos estivessem desaparecidos?
- Claro. Nunca estiveram desaparecidos, porque foram destruídos. O próprio Hoover deu instruções expressas nesse sentido.
A mentira era total. Peter recordou as palavras de Phyllis Maxwell. Eles temem uma infecção. Seriam mesmo de Phyllis? Ou será que ele próprio as inventara? Não tinha mais certeza. A realidade e a fantasia haviam se unido e transformado na mesma coisa. A única certeza era a conclusão de Quinn OBrien: os arquivos tinham que ser encontrados e apresentados. Não havia alternativa. Enquanto isso não acontecesse, os três seriam fugitivos.
- Mentiram para você, Tony. Eu bem que gostaria que não fosse verdade, mas infelizmente é.
Peter repôs o fone no gancho e correu da cabine para o carro.
Encontraram um motel quase deserto, à beira da praia, em Ocean City. Era inverno, dois dias antes do Natal; havia uma escassez de hóspedes. Um médico cuidou de Quinn, aceitando o di nheiro. mas sem demonstrar maior interesse. Aquele hóspede caíra de encontro a uma porta de vidro. Era uma explicação suficiente.
Na véspera de Natal, o agente caçado pelos companheiros esteve a ponto de desmoronar. A esposa e os filhos de Quinn estavam a menos de duas horas de distância, mas
era como se estivessem no outro lado do mundo, por trás de cercas de arame farpado, vasculhadas por holofotes. Quinn não podia enviar-lhes nenhuma palavra de conforto,
nem mesmo de esperança. Havia apenas a separação e a certeza do sofrimento que estava causando. Petet ficou observando Quinn lutar contra o medo, o sentimento de
culpa e a solidão, sabendo que um dia as palavras e emoções dele seriam postas na mente de outro. O que via, no fundo, era um homem de coragem relutante, cujo pânico
estava a consumi-lo e cujo coração começava a ceder. E isso tanto o comovia como o deixava revoltado.
Um profissional. Dois amadores. Três fugitivos. Agora estavam sozinhos. Não podiam apelar para mais ninguém. Alison não podia mais ser excluída; ela era necessária.
Juntos, teriam que decifrar o enigma ou a destruição continuaria. E eles próprios seriam destruídos no processo. Era uma terrível injustiça.
Foi um triste Natal. Os três partilhavam o que o gerente do motel chamava de Suíte Superior Sul. Era um conjunto no segundo andar, com janelas dando para o lado
do prédio e para â
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praia. A entrada ficava abaixo das janelas, bem visível. A suíte tinha um quarto e uma sala de estar com um sofá-cama, juntamente com uma pequena kiíchenette. »
Eles ficaram esperando, sabendo que isso era necessário. O rádio e a televisão eram mantidos constantemente ligados, para que pudessem ouvir qualquer notícia inesperada, qualquer indício de que em Washington, a 150 quilómetros de distância, alguém decidira reconhecer o desaparecimento deles. Compravam os jornais na máquina automática que havia no saguão, lendo-os meticulosamente. Depararam com uma estranha notícia:
Saint Michael, Maryland - Uma explosão causada por uma fornalha de gás defeituosa danificou consideravelmente uma casa nesta área exclusiva da Chesapeake. Felizmente, não havia ninguém na residência na ocasião. Os proprietários, Sr. e Sra. Chancellor, OBrien, estão no exterior. Estão sendo procurados...
- O que significa essa notícia? - perguntou Peter.
- Querem que saibamos que possuem provas da nossa presença na casa - explicou Quinn. - Não acha que são muito sutis?
- Como eles podem saber?
- É muito fácil: pelas impressões digitais. Você serviu o Exército e as minhas estão em diversas fichas.
- Mas eles não sabem nada de Alison.
Peter sentiu uma onda de alívio, que se desvaneceu rapidamente quando OBrien comentou:
- Acho que sabem. Foi por isso que usaram o "Sr. e Sra."
- Pois eu não me importo! - disse Alison, furiosa. - Quero mesmo que eles saibam! Pensam que podem ameaçar quem lhes aprouver! Pois as ameaças não vão surtir o menor efeito comigo! Tenho muita coisa para contar!
- Eles lhe dirão que também têm muito para contar - disse Quinn, suavemente, encaminhando-se para a janela que dava para a praia. - Meu palpite é que lhe darão uma opção... por razões de segurança nacional. Fique calada a respeito de tudo que viu e ouviu ou irão revelar as atividades de sua mãe há 22 anos... atividades recentemente descobertas e que causaram a morte de mais tle mií americanos em um único dia. E isso inevitavelmente irá levantar dúvidas a respeito de seu pai.
- Mac, o Traidor? - disse Peter, friamente. - O Matador de Chasong?
OBrien virou-se para fitá-los.
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- Isso mesmo... o traidor de Chasong, cuja esposa viciada em drogas se prostituía há 22 anos para fornecer informações ao inimigo e com isso causou a morte de incontáveis soldados americanos.
- Eles não se atreveriam! - gritou Alison.
- Seria forçado demais - comentou Peter. - Eles estariam entrando em terreno perigoso. Poderiam sofrer graves consequências.
- Revelações desse tipo são sempre as mais dramáticas disse OBrien, com uma convicção serena, que Peter reconheceu como sendo intensamente pessoal. - Aparecem na primeira página dos jornais. As explicações que possam surgir depois não parecem ser importantes. O dano já foi feito e não é fácil evitar as consequências.
- Não acredito nisso! - reagiu Alison, nervosamente. - Não quero acreditar!
- Aceite a minha palavra de que acontecerá assim. É a história dos arquivos de Hoover.
- Neste caso, vamos nos apoderar dos arquivos - disse Peter, dobrando o jornal. - E começaremos por Jacob Dreyfus.
- Ele não é Christopher? - indagou Alison.
- Exatamente.
- Acho que não resta alternativa - disse ela, virando-se para fitar OBrien. - Não acredito que não haja ninguém a quem possamos recorrer.
- Há um senador - comentou Peter. - Podemos procurá-lo.
- Mas até mesmo ele vai querer mais provas do que dispomos - comentou Quinn - Talvez há dois dias ele pudesse aceitar as nossas palavras. ma.í não agora.
- Como assim?
Peter ficou alarmado. Não fazia muito tempo que OBrien se mostrava bastante seguro. Os arquivos haviam desaparecido e ele tinha como prová-lo. Agora, porém, a situação parecia desesperadora.
- Não podemos procurá-lo neste momento.
- Por que não?
- Por causa de Saint Michael. Houve destruição de propriedade do governo, violação de normas de segurança. Ele está obrigado por juramento a comunicar tudo, se por acaso o procurarmos. Se não o fizer, estará obstruindo a justiça.
- Mas que merda! Palavras, palavras e mais palavras!
- É a lei. Ele talvez ofereça ajuda. Se Varak estava certo, provavelmente o fará. Mas só depois. Insistirá para que nos entreguemos às autoridades. Legalmente, não terá alternativa.
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E se nos entregarmos, estaremos fazendo justamente o que
eles querem! Não vai adiantar coisa alguma!
AHson segurou o braço dele.
- Quem são "eles", Peter?
Peter fez uma pausa. A resposta à pergunta era tão assustadora quanto as circunstâncias em que se encontravam.
Todo mundo. O homem que está com os arquivos quer
nos matar; sabemos disso agora. As pessoas que sabem que os arquivos estão desaparecidos e se recusam a admitir o fato querem que fiquemos calados. E estão disposta?,,
a nos sacrificar para garantir o silêncio. Contudo, querem a mesma coisa que nós.
Peter atravessou a sala lentamente, passando por OBrien parando diante da janela. Olhou para , mar e disse:
- Bravo me disse uma coisa que não consigo esquecer Falou que, há quatro anos e meio, desvlou.me para um aunào novo, que eu até aquele momento não havia cogitado.
Disse-me que voltasse para esse mundo, que deixasse o outro. o mundo real, para ele e para as pessoas como ele. - Peter Virou-se abruptamente e arrematou: - Mas
acontece que ele, não são bons o suficiente para tomarem conta desse nundo. Não sei se nós somos, mas tenho certeza de que eles não são.
Jacob Dreyfus levitou-se da mesa do café, um pouco aborrecido. O mordomo ussera que a Casa Branca estava ao telefone. O idiota provavelmente estava ligando para
desejar-lhe Feliz Nalal. Feliz Natal! O Presidente jamais teria se lembrado de ligar no primeiro dia de Chanukah, que era o 25. dia de Kislev e não exatamente a data em que se comemora o nascimento de Cristo.
Corria o rumor de que o homem andava bebendo demais. O que não era de surpreender. Jamais houvera uma administração como aquÉíla na história da nação. A venalidade
era insuportável, a sede de poder era o mal essencial. É claro que o homem estava bebendo muito. Era o seu bálsamo de Gilead.
Jacob pensou em não atender, mas o respeito pelo cargo exigia que fosse falar ao telefone.
- Bom-dia, Sr. Presi...
- Não sou o Presidente, mas sim outra pessoa. Assim como também é outra pessoa, Christopher.
O sangue se escoou do rosto de Jacob, Subitamente, ele sentia dificuldade em respirar. As pernas esqueléticas ficaram fracas, ele receou cair. O segredo de uma vida
inteira era conhecido por alguém. O que era inacreditável.
- Quem está falando?
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- Um homem que esteve trabalhando para vocês. Meu nome é Peter Chancellor e fiz meu trabalho muito bem... até demais. Descobri coisas que jamais pensaram que eu
viesse a saber. E por causa disso temos que nos encontrar. Hoje. No início da tarde.
- Esta tarde? - Dreyfus sentiu que estava prestes a desmaiar. Peter Chancellor, o escritor? Mas como o escritor poderia íê-lo descoberto? - Não costumo aceitar reuniões com tão pouca antecedência.
- Aceitará desta vez.
Jacob podia perceber que o escritor estava nervoso.
- Não aceito ordens de ninguém. E jamais ouvi falar de nenhum Christopher. Usou um ardil esperto para conseguir falar comigo ao telefone. Contudo, aprecio bastante a sua ficção. Se quiser almoçar comigo em algum dia da próxima semana...
- Esta tarde. Sem almoço.
- Não quer escutar...
- Nem preciso. É possível que minha "ficção" já não tenha mais qualquer importância. Talvez eu esteja interessado em outras coisas. É possível até que nós dois possamos chegar a um acordo.
- Não posso imaginar qualquer possibilidade de um acordo.
- E não haverá mesmo nenhum acordo, se falar com os outros.
- Que outros?
- Banner, Paris, Venice ou Bravo. Não fale com eles. O corpo de Jacob tremeu.
- Do que está falando?
- Estou querendo dizer que eles não o compreendem. Eu acho que o compreendo. É justamente esse o trabalho do escritor... tentar compreender as pessoas. Foi por isso que me usaram, não é mesmo? Tenho certeza de que posso compreendê-lo. O que já não acontece com os outros.
- Mas de que diabo está falando? Jacob já não podia controlar as mãos.
- Vamos dizer que se trata de uma esplêndida tentação. Qualquer pessoa a par de Chasong perceberia a lógica. Mas os outros seriam capazes de matá-lo por isso.
- Chasong? Matar-me? - Jacob sentiu-se tonto, não conseguia focalizar os olhos. Um terrível erro fora cometido! - Onde podemos nos encontrar?
- Há um trecho reto de praia ao norte de Ocean City, em Maryland. Qualquer motorista de táxi saberá encontrá-lo. Portanto, pegue um táxi. E venha sozinho. Pegue um lápis, Christopher. Eu lhe darei todas as indicações. Quero que esteja lá exatamente à uma e meia.
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O suor escorria da testa de Peter. Recostou-se no painel de vidro da cabine telefónica. Conseguira... conseguira de verdade! Uma ideia nascida da ficção dera certo no mundo real!
A estratégia era apresentar a Christopher, assim como a outros, diversas opções. Se Christopher estava com os arquivos, só poderia tirar uma conclusão: fora descoberto. Se fosse esse o caso, concordaria em se encontrar com o homem que descobrira tudo com o objetivo exclusivo de matá-lo. E dificilmente iria sozinho ao encontro.
Se Christopher não estivesse com os arquivos, teria duas opções. Poderia desligar, recusando-se a comparecer a qualquer encontro. Ou concordaria com o encontro, diante da terrível possibilidade de que um ou todos os outros tivessem traído a causa. Neste caso, iria sozinho.
Somente a opção de desligar e recusar o encontro é que poderia eximir inteiramente o candidato. E Christopher não a escolhera. Peter não tinha certeza se algum deles escolheria tal opção.
Alison bateu na porta da cabine. Por um segundo, Peter limitou-se a fitá-la através do vidro, mais uma vez aturdido com aquele rosto adorável, com os olhos inteligentes, que transmitiam uma mensagem de amor, em meio a tremenda ansiedade.
Ele abriu a porta da cabine, dizendo:
- Já falei com um.
- E como foi?
- Depende do ângulo pelo qual se analisar a questão. Ele vai comparecer ao encontro.
O amor e a ansiedade permaneceram nos olhos de Alison. Mas havia agora um novo elemento. Medo.
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Frederick Wells, fazendo a primeira refeição do dia de Natal com a família, ficou atónito. Não tinha certeza se ouvira direito as palavras da empregada, em meio
à gritaria das crianças.
- Fiquem quietos! - ordenou ele, impondo silêncio ao redor da mesa. - O que foi mesmo que disse?
- A Casa Branca está no telefone, senhor.
Os gritos que acompanharam a informação serviram apenas para recordar a Wells que casara muito tarde. Ou pelo menos muito tarde para ter filhos. No fundo, não gostava realmente de crianças; considerava-as basicamente desinteressantes.
Ele se levantou, os olhos encontraram-se por um momento com os da esposa, que parecia estar lendo seus pensamentos.
Por que a Casa Branca estaria lhe telefonando? Frederick Wells já havia deixado bem clara a sua posição. Esteve a ponto de insultar abertamente o Presidente e seu bando de incompetentes. Não aprovava o homem que estava na Casa Branca.
Seria possível que o Presidente estivesse usando o Natal como pretexto para oferecer um ramo de oliveira a seus inimigos? O homem não tinha o menor constrangimento!
Wells fechou a porta de seu gabinete e encaminhou-se para a escrivaninha, olhando de relance para os vasos Yuan e Ming que estavam trancados em armários de vidro. Eram obras de arte excepcionais; jamais se cansava de contemplá-los. Faziam-no recordar que havia paz e beleza em meio a tanta podridão.
Ele atendeu o telefone.
- Sr. Frederick Wells?
Sessenta segundos depois, o mundo pessoal de Frederick Wells desmoronava por completo. O escritor tinha descoberto tudo!
Inver Brass poderia resguardar-se. A dissolução imediata, arquivos inexistentes... Se necessário fosse, poderia haver um segundo assassinato justificado, Peter Chancellor poderia ser removido deste mundo.
Mas... e ele? Banner dispunha de todas as armas, menos uma. E essa arma era a denúncia. A revelação de um nome sobre
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o qual não tinha o menor controle. Para Weljs, a denúncia equivalia à destruição.
Uma vida inteira jogada fora!
Mas ele ainda podia lutar. Desta vez, numa estrada rural a oeste de Baltimore. Era preciso chegar a um acordo. Para o bem de todos.
Ele olhou novamente para os vasos chineses por trás do vidro. De nada lhe adiantavam agora.
Carlos Montelán estava sentado no banco da igreja, observando o padre a rezar a missa de Natal, com alguma hostilidade. Não iria se ajoelhar. Havia limites para a hipocrisia que assumia por causa da esposa e dos filhos.
Boston não era Madri, mas as recordações ainda eram por demais nítidas. A Igreja espanhola fora uma companheira inseparável dos ventos políticos, concentrando-se em sua própria sobrevivência, sem qualquer compaixão por seus rebanhos brutalizados.
Montelán sentiu a vibração um instante antes de ouvir o zumbido. Os fiéis ao seu redor ficaram surpresos, diversos se viraram para fitá-lo, com expressões furiosas. A Casa do Senhor estava sendo violada por um intruso, mas quem assim era chamado era um grande homem, conselheiro de Presidentes. A Casa do Senhor não era imune às emergências do mundo daquele homem.
Carlos meteu a mão dentro do paletó, desligando o zumbido. A esposa e os filhos viraram-se para fitá-lo. Ele sacudiu-lhes a cabeça, indicando que deviam continuar na missa. Saiu de seu lugar em seguida, percorrendo a nave de mármore por entre as velas acesas. Saiu da igreja, encontrou uma cabine pública nas proximidades e ligou para seu serviço telefónico.
A Casa Branca estava à sua procura, mas ele não deveria telefonar para lá. A ligação seria efetuada através de um telefone especial. Ele deveria informar o telefone onde poderia ser encontrado.
As conspirações de idiotas!, pensou Carlos. E deu o número da cabine telefónica onde estava.
O telefone tocou, a campainha estridente ressoando ensurdecedoramente dentro da cabine. Carlos atendeu logo.
As palavras que ouviu foram como facas afiadas a peneirarem em sua barriga, provocando uma dor intensa, o calafrio a percorrer-lhe o corpo. O escritor descobrira! Tudo o que ele fizera,
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tudo aquilo com que concordara, explodia agora nas acusações de Petcr Chancellor.
O acordo, o pacto oferecido por ele, fora absolutamente necessário! Significava a preservação final da integridade de Inver Brass! Não havia outra alternativa!
Era preciso fazer com que o escritor compreendesse. Claro que iria encontrá-lo. Um campo de golfe, a leste de Anápolis, no décimo green? Não havia problema, ele descobriria. A hora não tinha importância; estaria no local pouco depois da meia-noite.
Carlos Montelán desligou, as mãos tremendo. Ficou imóvel por um longo momento, olhando para o aparelho. Pensou por um rápido instante em ligar para Jacob Dreyfus.
Não, não podia fazer isso. Christopher era velho demais. Poderia ter um enfarte.
Daniel Sutherland tomava seu sherry e escutava o filho, Aaron, discursar para as duas irmãs e os respectivos maridos. Os casais tinham vindo de avião de Cleveland para o Natal. As crianças estavam naquele momento no solário, com a avó e a esposa de Aaron, abrindo os presentes. Aaron, como sempre, mantinha a audiência hipnotizada.
O juiz contemplava o filho com um misto de emoções: o amor predominava, é claro, mas bem próximo estava um sentimento de desaprovação. Os jornais diziam que Aaron era um agitador, o brilhante advogado que defendia a esquerda negra. Daniel gostaria que o filho não fosse tão veemente, tão convencido de que possuía as respostas
para todos os problemas raciais.
Havia um ódio intenso nos olhos do filho e o ódio não era o caminho. Não havia uma força essencial no ódio. Um dia, o filho iria descobri-lo. E nesse dia aprenderia
também que o ódio indiscriminado contra todos os brancos não era só infrutífero mas errado.
O próprio nome do filho era uma prova disso. Fora sugerido pelo amigo mais querido que Daniel já tivera na vida. Jacob Dreyfus.
O nome dele deve ser Aaron, dissera Jacob. O irmão mais velho de Moisés, o primeiro sacerdote dos hebreus. É um lindo nome, Daniel. E é um lindo filho o que você tem.
O telefone tocou.
A esposa de Aaron, Abby, entrou na sala. Como sempre, Daniel contemplou-a afetuosamente e não sem um certo respeito. Alberta Wright Sutherland era provavelmente a melhor atriz negra do país. Alta, empertigada, uma presença magnífica, que podia,
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quando necessário, subjugar até mesmo o marido. O público dela, infelizmente, estava limitado pelo seu gosto: ela não aceitava papéis que explorassem o seu sexo ou a sua raça.
- vou tentar dar a notícia com a expressão mais impassível do mundo, está bem? - disse ela.
- Está bem, minha querida.
- A Casa Branca está ao telefone.
- É espantoso, para não dizer coisa pior - comentou Daniel, levantando-se. - vou atender na sala de jantar.
E era de fato espantoso. Suas quatro últimas decisões judiciais, em apelações, haviam enfurecido a Casa Branca, a desaprovação de seu ato posta no papel.
- Aqui é o Juiz Sutherland.
- E é também Venice.
O escritor conseguira descobrir tudo! O esforço de uma vida inteira estava subitamente ameaçado. Se todo o seu trabalho fosse destruído, nada restaria, pois nada valeria tamanha perda. Os fariseus herdariam a terra!
Daniel ouviu cuidadosamente, avaliando cada palavra que o escritor dizia, cada inflexão de sua voz.
Podia haver uma. saída. Era uma estratégia desesperada; não tinha certeza se conseguiria sobreviver, muito menos se seria capa? de executá-la. Mas tinha que tentar.
Um ardil.
- Amanhã de manhã, Sr. Chancellor. Ao amanhecer. Na pequena enseada a leste da Deal Island, no ancoradouro das traineiras. Saberei encontrar o local. E irei encontrá-lo lá.
Os olhos de Daniel Sutherland focalizaram distraidamente algo por cima do telefone, através da arcada do hall, na sala de estar distante. A nora surgiu em seu campo de visão. Empertigada, orgulhosa.
Ela tinha sido uma Medeia extraordinária, recordou Daniel. Ainda se lembrava das palavras finais, no último ato, um clamor irado para os céus.
Aqui estão meus filhos, ensanguentados e mortos pelo amor de um deus chamado Jasão!
Daniel Sutherland ficou imaginando por um momento por que tais palavras lhe haviam ocorrido. E de repente compreendeu.
Estavam no fundo de sua mente apenas alguns segundos antes.
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O vento de inverno soprava pela água em rajadas, curvando a vegetação nas dunas. O sol insistia em aparecer a todo instante por entre as nuvens que se deslocavam
rapidamente pelo céu, brilhando muito, mas sem transmitir calor em seus raios. Era o início da tarde do dia de Natal e fazia muito frio na praia.
Peter contemplou suas pegadas. Estivera andando de um lado para outro, dentro dos limites determinados por Quinn OBrien. Naquele espaço de dez metros, tinha uma visão nítida dos arbustos acima das dunas, à esquerda do caminho de tábuas que começava na estrada. OBrien estava ali, escondido de qualquer outra pessoa que não estivesse no mesmo lugar que Peter.
Segundo OBrien, era uma tática primária. Ele ficaria esperando nos arbustos até a chegada de Jacob Dreyfus. Verificaria se Dreyfus iria mesmo dispensar o táxi, de acordo com as instruções. Se Christopher por acaso os traísse, não dispensando o táxi ou aparecendo em companhia de seus próprios homens, em outros carros, Quinn imediatamente avisaria a Peter. E os dois sairiam correndo para uma área oculta, onde Alison estava esperando no carro.
Quinn classificara aquela medida de proteção de "primária". A proteção mais imediata, menos sujeita a algum controle, caberia ao próprio Peter. Era por isso que ele tinha no bolso do casaco o revólver de calibre 38, cano curto, que tomara de Paul Bromley no trem. A arma que deveria matá-lo. Peter iria usá-la, se fosse necessário.
Peter ouviu um assovio curto e agudo. Era o primeiro sinal. O táxi estava à vista.
Ele não soube dizer quantos minutos se passaram até que o vulto esquelético aparecesse. Cada segundo era interminável; o coração batia descompassadamente. Ficou observando o pequeno e frágil Dreyfus avançar pelo caminho de tábuas até a praia. Era muito mais velho do que Peter imaginara... mais velho e infinitamente mais frágil. O vento que soprava do mar o fustigava, a
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areia era arremessada contra seu corpo, obrigando-o a se curvar e virar a cabeça, a bengala tateando pelas tábuas.
Chegou ao final do caminho e espetou a bengala na areia, antes de pisá-la. Peter percebeu a indagação nos olhos deie, por trás das lentes grossas dos óculos. O corpo devastado não queria fazer o resto da jornada; será que o homem mais jovem não poderia vir ao seu encontro?
Mas Quinn fora inflexível. A posição era tudo; tinha-se que pensar na necessidade de uma fuga rápida. Peter continuou onde estava e Dreyfus avançou com dificuldade pela praia varrida pelo vento.
Dreyfus caiu. Peter começou a andar em sua direção, mas foi prontamente detido por OBrien, a sacudir os braços freneticamente, mais além. O agente do FBI se mantinha irredutível, a sua mensagem era clara.
Dreyfus estava agora a apenas dez metros de distância, Peter podia avistar seu rosto nitidamente. O banqueiro compreendeu e assumiu uma expressão determinada. Apoiando-se na bengala, conseguiu se levantar. Meio trôpego, piscando os olhos contra o vento e a areia, caminhou até Peter. Nenhum dos dois estendeu a mão.
- Estamos reunidos - falou Dreyfus, simplesmente. - Tenho coisas a dizer-lhe e você tem coisas a me dizer. Qual dos dois vai começar?
- Seguiu as minhas intruções? - indagou Peter, conforme OBrien lhe determinara.
- Claro que segui. Temos informações a trocar. Ambos queremos saber o que o outro sabe. Por que aumentar as complicações? Creio que sabe que está sendo procurado.
- Claro que sei. E procurado pelas razões erradas.
- Não é o que pensam as pessoas que o estão caçando. Contudo, isso é irrelevante. Se não é culpado, sua inocência poderá ser comprovada.
- Sou culpado apenas de ter bancado o idiota! Mas não estamos aqui para discutir a minha pessoa.
- Exato. Estamos aqui para discutir determinados acontecimentos que afetam a ambos. - Dreyfus levou a mão ao rosto para protegê-lo de uma súbita rajada de vento. - Temos que chegar a um acordo.
- Não tenho que fazer nenhum acordo com vocês! Fui manipulado, enganado, tentaram me matar! E quatro homens morteram... talvez mais! Presenciei pessoalmente a morte de três! E só Deus sabe quantas pessoas foram levadas à loucura por um sussurro ao telefone! Sabe quem elas são! Eu mesmo conheço várias!
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Peter desviou os olhos para o mar por um rápido instante, mas logo voltou a se concentrar em Dreyfus.
- Já escrevi tudo o que sei. Não é o que esperavam que eu escrevesse, mas foi o que escrevi. Agora, vão ter que chegar a um acordo comigo ou revelarei ao mundo quem vocês realmente são.
Dreyfus ficou fitando Peter em silêncio por um longo tempo. O uivo do vento era o único ruído que se interpunha entre os dois. Não havia medo nos olhos do velho.
- E quem você pensa que eu sou? O que pensa que eu sou?
- É Jacob Dreyfus, conhecido como Christopher.
- Admito que é verdade. Não sei como descobriu, mas é um nome que uso com orgulho.
- Talvez o tenha merecido, até que se virou contra eles.
- Virei-me contra quem?
- Contra os outros, Banner, Paris, Venice e Bravo. Traiu-os.
- Traí? Acha que traí Paris? Ou Venice? Não tem a menor ideia do que está falando!
- Chasong! Chasong está nos arquivos de Hoover, que estão em seu poder!
Jacob Dreyfus permaneceu imóvel por um momento, chocado com tudo aquilo.
- Você acredita mesmo nisso? .
- Tem trabalhado com o Departamento de Estado!
- Em diversas ocasiões.
- Podia facilmente localizar uma casa segura, se soubesse onde procurar!
- É possível... e se eu soubesse o que é uma casa segura.
- Sabia que Varak estava morto!
- Varak está morto? Mão é possível!
- Está mentindo!
- Você é louco. E perigoso. O que quer que tenha escrito, deve ser destruído. Não sabe o que fez. São mais de 40 anos de serviços ao país, muitos milhões investidos. Deve compreender. Preciso fazer com que compreenda!
E o inacreditável estava acontecendo! Dreyfus enfiou a mão trémula dentro do sobretudo. Peter sabia que ele ia sacar uma arma.
- Não faça isso! Pelo amor de Deus, não faça isso!
- Não me resta alternativa.
Além de Dreyfus, em meio aos arbustos no alto de uma duna, Peter avistou OBrien se levantando. Ele estava vendo a mesma coisa que Peter, O velho ia sacar uma arma. Viera sozinho, mas viera armado. No momento decisivo, Jacob Dreyfus estava disposto a matar.
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Peter segurou a arma que estava em seu próprio bolso, com o dedo no gatilho. Mas não podia atirar! Não podia puxar o gatilho!
O estampido de um tiro soou acima do vento. A cabeça de Dreyfus pulou bruscamente para trás, o pescoço uma massa de sangue e ossos espatifados. Ò corpo se arqueou e depois caiu de lado na areia. OBrien abaixou a arma e aproximou-se correndo.
Christopher estava morto, baleado numa praia deserta, varrida pelo vento.
E foi nesse momento que Peter viu o que ele tinha na mão.
Era um papel dobrado. Não uma arma. Uma carta.
Peter ajoelhou-se ao lado do corpo, dominado por uma terrível sensação de repugnância. Pegou o papel. Levantou-se, a respiração irregular, a dor nas têmporas impedindo-o de pensar direito. OBrien estava ao seu lado. Tirou-lhe o papel da mão e desdobrou-o. Peter virou a cabeça e leram ao mesmo tempo o que estava escrito. Era uma cópia xerox de uma carta manuscrita. O destinatário tinha um único nome: Paris.
I.B. deve ser dissolvida. Venice e Bravo concordara com essa conclusão. Posso perceber nos olhos deles, embora não tenhamos conversado a respeito. Estamos sendo destruídos pelas recordações. E estamos velhos, não nos resta muito tempo. O que mais me preocupa é a possibilidade de que o fim possa chegar para um ou todos nós sem as providências apropriadas para a dissolução. Ou pior: que nossas faculdades nos abandonem e nossas línguas de homens velhos se soltem de repente. Não se pode permitir que isso jamais aconteça. Eu lhe suplico: caso a idade destrua a razão, faça por um ou todos nós o que não podemos fazer pessoalmente. Os tabletes que foram enviados, separados, por um portador especial. Coloque-os nas bocas dos velhos e reze por nós.
Se isso lhe for impossível, mostre esta carta a Varak. Ele compreenderá e tratará de fazer o que é necessário.
Finalmente, quero que cuide de Banner, cuja única fraqueza é o compromisso que tem com sua própria inteligência, que é extraordinária. Ele se sentirá tentado a continuar com I.B. O que também não pode ser permitido. Nosso tempo já passou. Se ele insistir, Varak saberá o que fazer.
O que está escrito .acima é o nosso pacto.
Christopher
- Ele disse que não sabia o que era uma casa segura - comentou Peter, debilmente.
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- E também não sabia que Varak estava morto - acrescentou OBrien, suavemente, relendo a carta. - Não era ele.
Peter afastou-se, caminhando na direção do mar. Caiu de joelhos nas ondas suaves e vomitou.
Enterraram o corpo de Jacob Dreyfus na areia, sob as dunas. A questão da responsabilidade não foi sequer considerada. Precisavam de todo o tempo de que pudessem
dispor. Só depois é que pensariam na responsabilidade.
Frederick Wells não iria a um encontro numa praia deserta. Em vez disso, o homem conhecido como Banner deveria caminhar por um campo ao sul de uma pequena estrada
que ia terminar na Rota 40, a oeste de Baltimore. OBrien usara o local para um encontro com um informante, há menos de seis meses. Conhecia-o bastante bem.
O trecho da estrada era curvo, distante de todos os restaurantes e postos de gasolina. Os campos dos dois lados davam a impressão de pântanos, na escuridão.
Peter ficou esperando no campo, a alguns metros além do lugar em que Wells deveria deixar seu carro. Olhou para os faróis dos carros que passavam em alta velocidade
pela auto-estrada, os clarões ampliados pela chuva que encharcava o campo e lhe provocava calafrios. OBrien estava escondido perto da estrada, com a arma na mão,
também esperando. As instruções de Peter eram expressas: ao primeiro sinal de problema, devia imobilizar Frederick Wells com sua arma. E atirar, se fosse necessário.
Como precaução adicional, OBrien estava com uma lanterna. Se Wells trouxesse outros homens em sua companhia, OBrien acenderia a lanterna, cobrindo-a com os dedos
e sacudindo-a em círculos. Era o sinal para que Peter corresse pelo campo e subisse a estrada no outro lado, onde Alison esperava com o carro.
Houve duas buzinadas impacientes na estrada. Um carro diminuiu a velocidade e desviou-se para o acostamento. O carro que vinha atrás ultrapassou-o, o motorista acelerando
bruscamente, num gesto, de raiva.
O carro parou no acostamento e um vulto solitário saltou. Era Frederick Wells. Foi até a grade por cima do campo e esquadrinhou atentamente a escuridão, através
da chuva.
A lanterna se acendeu por um rápido instante. Era o primeiro sinal de OBrien. Wells estava sozinho, não havia qualquer indício visível de uma arma. Peter não se
mexeu. Banner é que tinha de ir ao seu encontro.
Wells passou por cima da grade e começou a descer a pequena encosta. Peter abaixou-se no mato todo molhado e sacou o 38.
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- Tire as mãos do bolso! - gritou ele,f seguindo as intruções de OBrien. - Avance devagar, com as mãos nos lados!
Wells parou e por um momento ficou imóvel, debaixo da chuva. Depois, recomeçou a avançar, da maneira como lhe fora determinado. Quando ele estava a dois metros,
Peter levantou-se abruptamente.
- Pare onde está!
Wells deixou escapar uma exclamação de surpresa, arregalou os olhos.
- Chancellor?
Ele respirou fundo por diversas vezes, piscando os olhos repetidamente, enquanto a chuva batia em seu rosto. Não disse nada, até regularizar a respiração. Era um
exercício oriental para suspender o pensamento, recuperar a calma.
- Está entrando num terreno que não conhece, Chancellor
- disse Wells finalmente. - Fez amizade com as pessoas erradas. Tenho que apelar para os sentimentos que ainda tenha por este país, quaisquer que sejam. Dê-me os
nomes dessas pessoas. É claro que conheço uma delas. Quero saber quem são as outras.
Peter ficou desconcertado. Wells tomara a iniciativa.
- Sobre o que está falando?
- Os arquivos! Os dossiês de M a Z! Estão com as mesmas pessoas que o estão usando! Não sei o que lhe prometeram... o que ele prometeu. Se foi a sua vida, posso
garanti-la muito melhor do que ele. E a da moça também.
Peter examinou atentamente o rosto molhado de Frederick Wells, meio indistinto na escuridão da noite.
- Pensa que alguém me enviou. Acha que não passo de um emissário. Não lhe mencionei os arquivos ao telefone.
- E achava que isso era necessário? Pelo amor de Deus, pare com isso! Destruir Inver Brass não é solução! Não deixe que façam isso!
- Inver Brass?
Peter recordou a carta manuscrita na mão de um morto, o pacto entre Christopher e Paris. f.B. deve ser dissolvida... í.B. Inver Brass.
- Não pode continuar a participar desse jeito, Chancellor! Será que não percebe o que ele fez? Programou-o bem demais e você acabou descobrindo muita coisa e depressa
demais. Está chegando a ele! E ele não pode matá-lo agora, pois sabe que descobriríamos imediatamente. Por isso está lhe contando uma porçãode coisas, desmascarando
Inver Brass, incutindo-lhe mentiras, para que possa nos lançar uns contra os outros!
- Quem é ele?
- O homem que está com os arquivos! Varak!
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- Oh, Deus...
Peter sentiu um calafrio no estômago. Não era Frederick Wells.
- Tenho a solução! - Wells estava falando com uma voz estridente, anasalada. Peter mal escutava, de repente tudo lhe parecia inútil. - Irá livrá-lo de tudo e permitirá a recuperação dos arquivos. Pois temos que recuperá-los de qualquer maneira! Diga a Varak que não há a menor possibilidade de ligar Inver Brass com os acontecimentos de maio. Não há registros, nada pode ser comprovado. Varak foi o assassino e não Inver Brass. Ele fez um ótimo trabalho; não há quaisquer vínculos. Mas posso e irei levantar questões incómodas sobre todos os movimentos dele, de 10 de abril até a noite de 1. de maio. E o farei de uma maneira que não deixará margem a dúvidas. Varak será desmascarado. E nós continuaremos no anonimato. Transmita-lhe esse recado.
Era demais para Peter. Verdades, meias-verdades e mentiras se acumulavam em cima de abstrações, as datas se entrelaçavam numa teia de acusações.
- Acha mesmo que Varak traiu os outros?
- Tenho certeza! É por isso que deve trabalhar comigo. O país precisa de mim neste momento. E é Varak quem está com os arquivos!
A chuva caía agora torrencialmente.
- Saia daqui - disse Peter.
- Só depois que me der sua palavra. ,
- Saia daqui!
- Não está entendendo! - Wells não podia tolerar que o dispensassem, mas sua arrogância acabou sufocada pelo desespero. O país precisa de mim! Tenho que comandar Inver Brass! Os outros são velhos, muito fracos! O tempo deles já passou! Agora é a minha vez! E preciso daqueles arquivos! Estou neles!
Peter levantou o revólver.
- Saia daqui antes que eu o mate.
- Está querendo um pretexto para isso, não é mesmo? É o que realmente quer! - Banner falava agora precipitadamente, a voz ainda mais estridente, em pânico. - Varak lhe contou que tinha sido eu, não é mesmo? Mas nada tive a ver com o caso! Foi ele! Pedi-lhe que intercedesse junto a Bravo, mais nada! Era ele quem estava mais próximo de St. Claire! Todos sabiam disso! Varak tinha jurado proteger a todos nós, a cada um de nós... E você ia se concentrar novamente em Nurembergue! Não podíamos permitir que fizesse tal coisa! Varak compreendeu perfeitamente!
- Nurembergue...
Peter podia sentir a chuva em sua pele. Estava chovendo na noite em que o Continental prateado fora atingido, na noite em que
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Cathy morrera. Havia agora uma auto-eStrada à distância, como naquela ocasião. E também estava chovendo.
Mas juro por Deus que não queria que ele o matasse!
Nem à garota! Foi decisão dele! Varak nunca teve a menor hesitação na hora de agir!
Varak. Longworth. Uma máscara horrível por trás de um volante. Um motorista à noite, indiferente à tempestade, olhando fixamente para a frente... enquanto matava.
Varak, o profissional, que usava veículos como armas.
A dor nas têmporas era insuportável. Peter levantou a arma, apontando-a para a cabeça de Banner. E puxou o gatilho.
A vida de Banner foi salva pela inexperiência de um amador. A trava de segurança impediu que o cão deflagrasse a cápsula.
Frederick Wells saiu correndo pela chuva, na direção da estrada.
A leste, de Anápolis, vários quilómetros além do rio Severn, ficam as colinas ondulantes de Chanticlaire. Havia ali um aristocrático campo de golfe, fundado na década
de 1930, e de caráter particular. Era também um ponto de encontro de executivos da CIA, uma organização propensa a hábitos conservadores.
O local fora usado como ponto de troca de informações entre agentes do FBI e da CIA, durante os períodos em que J. Edgai Hoover proibira qualquer contato entre as
duas organizações. OBrien conhecia bastante bem o clube de golfe. Seria ali que Carlos Montelán, Paris, iria se encontrar com Peter, não antes de meia-noite, não
depois de meia-noite e meia. No décimo tee; as instruções haviam sido expressas.
Quinn estava ao volante, pois conhecia todas as estradas secundárias da Rota 40 até Chanticlaire. Alison e Peter estavam sentados no banco traseiro. Peter estava
procurando se enxugar, ainda atordoado com a terrível revelação de Banner.
- Ele a matou - murmurou Peter, contemplando distraidamente os faróis dos carros que passavam, sob a chuva agora mais fraca. - Varak matou Cathy. Que tipo de homem
ele era?
Alison segurou a mão dele. E OBrien disse, de trás do volante:
- Não posso responder a essa pergunta. Não creio que ele pensasse em termos de vida e morte. Em determinadas situações, ele pensava apenas em eliminar problemas.
- Não era humano.
- Era um especialista.
- Que é a coisa mais fria que já conheci.
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OBrien parou numa hospedaria à beira da estrada. Entraram, para tomar um café e se esquentar um pouco. Sentados a uma mesa no restaurante mal iluminado, OBrien perguntou:
- O que é Inver Brass?
- Frederick Wells pensava que eu sabia. Assim como também estava convencido de que Varak me mandara procurá-lo.
- Tem certeza de que ele não estava lhe fornecendo informações falsas, para despistá-lo?
- Tenho. Seu pânico era sincero. E seu nome está nos arquivos. Qualquer que seja a informação lá contida, pode arruinálo inteiramente.
- Inver Brass... - repetiu OBrien. - Inver é uma palavra escocesa, brass pode ser uma porção de coisas. O que significa a combinação?
- Acho que está exagerando. É simplesmente o nome que eles dão a seu núcleo.
- Seu o quê?
- Desculpe. O meu "Núcleo".
- Algo do seu livro? - perguntou Alison.
- Exatamente.
- Acho que está na hora de eu ler esse maldito livro comentou OBrien.
- Há alguma possibilidade de verificarmos todos os movimentos de Varak de 10 de abril até o dia 2 de maio deste ano?
- Agora, não.
- Sabemos que Hoover morreu a 2 de maio - continuou Peter. - Portanto, a dedução...
- Nenhuma dedução resistirá a uma verificação. Hoover morreu de uma parada cardíaca. Isso já foi determinado.
- Por quem?
- Pelos registros médicos. Não são completos, mas não deixam margem a qualquer dúvida.
- O que significa que estamos de volta ao princípio concluiu Peter, visivelmente exausto.
- Não, não estamos - disse Quinn, olhando para o relógio.
- Já eliminamos dois candidatos. E está na hora de irmos ao encontro do terceiro.
Era o ponto de contato mais seguro que OBrien escolhera e por isso ele se mostrou particularmente cauteloso. Chegaram a Chanticlaire uma hora antes do encontro marcado
com Montelán. O agente revistou toda a área meticulosamente. Ao terminar, determinou a Peter que fosse para o décimo tee, enquanto Alisou
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ficaria no carro perto dos portões e ele- se esconderia no mato à beira do campo.
A grama estava molhada, mas a chuva cessara. A lua esforçava-se por aparecer em meio às nuvens, sua claridade se tornava progressivamente mais intensa. Peter ficou esperando à sombra de uma árvore.
Ouviu o barulho de um carro passando pelo portão e olhou para o mostrador luminoso do relógio. Passavam cinco minutos da meia-noite. Era evidente que Montelán estava ansioso. Mas não podia estar mais ansioso do que ele próprio, pensou Peter. Tateou o cano do revólver no bolso.
Menos de um minuto depois, ele avistou o vulto de Carlos Montelán contornando rapidamente a sede do clube. O espanhol estava andando depressa demais, pensou Peter. Um homem assustado era um homem cauteloso... e o vulto que se aproximava dele não estava se mostrando cauteloso.
- Sr. Chancellor?
Paris começou a chamar a 50 metros do tee. Parou de repente, meteu a mão esquerda no bolso do sobretudo. Peter sacou o 38 e apontou, observando o espanhol atentamente, em silêncio.
Montelán tirou a mão do bolso. Peter baixou a arma. Paris empunhava uma lanterna. Acendeu-a, apontando-a para diversas direções. A luz se fixou em Peter.
- Apague essa lanterna! - gritou ele, abaixando-se.
- Como quiser.
A luz desapareceu. Recordando as instruções de OBrien, Peter correu alguns metros além de sua posição original, sem tirar os olhos de Montelán. O espanhol não fez qualquer movimento brusco. Era óbvio que não estava armado. Peter parou e ergueu-se, sabendo que poderia ser visto nitidamente ao luar.
- Estou aqui - disse ele.
Montelán virou-se, ajustando os olhos à escuridão.
- Desculpe ter acendido a lanterna. Não o farei novamente.
- Ele aproximou-se de Peter. - Não tive a menor dificuldade em encontrar o lugar. Sua orientação foi perfeita.
Ao luar ainda fraco, Peter pôde examinar o rosto de Montelán. A espressão era firme, as feições latinas, os olhos escuros penetrantes. Peter compreendeu que não havia qualquer vestígio de medo -naquele homem. Apesar de lhe ter sido determinado que se encontrasse com um estranho, que conhecia apenas de nome, num campo de golfe deserto, à meia-noite, sabendo que o estranho poderia até se mostrar violento, Paris comportava-se como se o encontro fosse apenas uma conferência de negócios mutuamente desejável.
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- O que tenho na mão é um revólver - disse Peter, levantando o cano.
Montelán semicerrou os olhos.
- Por quê?
- Depois do que me fizeram... depois do que Inver Brass fez... ainda pergunta?
- Não tenho a menor ideia do que fizeram com você.
- Está mentindo.
- Vamos pôr as cartas na mesa. Sei que lhe forneceram informações deturpadas, na esperança de que escrevesse um romance baseado nelas. A previsão era de que isso
iria alarmar determinadas pessoas, que participam de uma conspiração, obrigando-as a se revelarem. Para ser franco, duvidei da eficácia desse plano desde o início.
- É tudo o que sabe?
- Imagino que houve alguns acontecimentos desagradáveis, mas foi-nos dada a garantia de que nada de mal lhe aconteceria.
- Quem são essas "determinadas pessoas" a que se referiu? E qual é a "conspiração"?
Paris ficou em silêncio por um momento, como se estivesse decidindo um conflito interior.
- Se ninguém ainda lhe disse, talvez já esteja na hora de saber. Há de fato uma conspiração. Bastante real e extremamente perigosa. Desapareceu uma boa parte dos
arquivos particulares de J. Edgar Hoover.
- Como sabe disso?
Novamente Montelán ficou em silêncio por um momento. Mas logo tomou sua decisão e continuou:
- Não posso lhe fornecer detalhes específicos. Mas como mencionou o nome e, mais importante do que isso, referiu-se aos outros em seu telefonema desta manhã, devo supor que já descobriu mais do que deveria. Seja como for, não tem grande importância, pois está tudo terminado. Inver Brass conseguiu se apoderar da outra parte dos arquivos.
- Como?
- Não posso dizer. -
- Não pode ou não quer?
- Um pouco das duas coisas.
- Isso não é o bastante!
- Conheceu um homem chamado Varak? - perguntou Paris, suavemente, como se Peter não tivesse gritado.
- Conheço.
- Pergunte a ele. Varak talvez lhe conte, talvez não.
- Peter examinou atentamente o rosto do espanhol ao luar. Montelán não estava mentindo. Ele não sabia da morte de Varak.
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Peter sentiu um vazio na garganta; um terceiro candidato fora eliminado. Ainda restavam muitas dúvidas, mas a principal já fora resolvida. Paris não estava com
os arquivos.
O que estava querendo dizer quando falou que não tinha
importância que eu soubesse, pois estava tudo terminado?
- Os dias de Inver Brass estão chegando ao fim.
- O que é exatamente Inver Brass?
- Pensei que soubesse.
- Não faça pressuposições!
O espanhol novamente fez uma pausa, antes de falar:
- Um grupo de homens dedicado ao bem-estar desta nação.
- Um núcleo...
- Creio que se pode chamar assim. Ê integrado por homens eminentes, de caráter imaculado e com um amor extraordinário por seu país.
- É um deles?
- Tive o privilégio de ser convidado a participar do grupo.
- É o grupo que foi formado para alertar as vítimas de Hoover? -
- Sempre teve muitas funções.
- Há quantas semanas foi convidado a ingressar no grupo? Ou teriam sido meses?
Pela primeira vez, Paris pareceu ficar desconcertado.
- Semanas? Meses? Sou um membro há quatro anos.
- Quatro anos?
Era outra nota dissonante. Pelo que Peter sabia, o grupo, o núcleo de St. Clair, Inver Brass, fora criado para combater a tática final e mais perniciosa de Hoover: a exploração do medo, através de seus arquivos particulares. Era uma defesa tardia, nascida da necessidade. Existia há um ano, um ano e meio, dois anos no máximo. Contudo, Paris falara em quatro anos...
E Jacob Dreyfus usara "40 anos de serviços", fazendo depois uma referência a "muitos milhões investidos". Na ocasião, durante aqueles momentos de pânico na praia, Peter pensara que Dreyfus estivesse se referindo a si próprio. Mas agora... 40 anos... muito milhões...
E subitamente Peter recordou também as palavras de Frederick Wells. O país precisa de mim! Tenho que comandar Inver Brass! Os outros são velhos, muito fracos! O tempo deles já passou! Agora é a minha vez!
Quatro anos... quarenta anos! Muitos milhões!
Finalmente, Peter recordou a carti de Dreyfus para Montelán. O pacto entre Christopher e Paris.
Estamos sendo destruídos pelas recordações...
Recordações do quê?
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- Quem são vocês? - perguntou Peter, olhando fixamente para Montelán.
- Não vou lhe dizer mais nada, além do que já falei. Mas eu já imaginava que estava na pista certa, Sr. Chancellor. Seja como for, não vim até aqui para discutir tais assuntos, mas sim para tentar persuadi-lo a não mais interferir. Sua inclusão foi um erro de julgamento de um homem brilhante mas frustrado. Não houve maiores danos, enquanto permaneceu em segundo plano, remexendo entre as ruínas. Mas se tiver que se expor publicamente e responder a perguntas, isso seria um desastre.
- Está assustado - disse Peter, surpreso. - Finge estar muito calmo, mas por dentro está apavorado.
- Claro que estou. Por você e por todos nós.
- Ao falar em "nós", está se referindo a Inver Brass?
- E a muitos outros. Há uma cisão neste país entre o povo e seus líderes. Há corrupção nos mais altos níveis do governo. A crise se estende muito além do mero poder político. A Constituição tem sido gravemente violada, nosso modo de vida está ameaçado. Não estou sendo melodramático. É a pura verdade. Talvez uma pessoa que não nasceu aqui, que já viu a mesma coisa acontecer antes, possa compreender mais claramente o que significam essas coisas.
- E qual é a solução? Será que existe alguma?
- Claro que existe. É a aplicação rigorosa e imparcial do processo legal. Repito: imparcial. O povo deve ser alertado para os perigos reais dos abusos cometidos. Claramente, racionalmente, sem se deixar levar por acusações emocionais e exigências de represálias. O sistema irá funcionar, se lhe dermos uma oportunidade. O processo já começou. Não é o momento para revelações explosivas. Ao contrário, é o momento para uma avaliação intensiva. E para reflexão.
- Estou entendendo - murmurou Peter, lentamente. - Não é o momento para desmascarar Inver Brass, não é mesmo?
- Não - disse Montelán, firmemente.
- Talvez o momento não chegue nunca.
- É possível. Como eu já lhe disse, o tempo de Inver Brass passou.
- Foi por isso que fez um pacto com Jacob Dreyfus? com Christopher?
Parecia até que Paris acabara de levar um violento tapa no rosto, tamanho foi o seu choque.
- Quase telefonei para ele, mas achei melhor não fazê-lo disse Montelán, suavemente. - Mas você procurou-o.
- Exatamente.
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Tenho certeza de que ele falou como eu. Sua devoção ao
oaís é infinita. Ele pode compreender.
v Mas eu não posso. Não consigo compreender nenhum de
Porque seu conhecimento é limitado. E não irá saber de
mais nada por meu intermédio. Posso apenas suplicar-lhe que esaueça tudo aquilo em que foi envolvido. Se continuar, acho que acabará sendo morto.
Já me fizeram essa insinuação. Uma última pergunta: o
que aconteceu em Chasong?
- Chasong? A Batalha de Chasong?
- Isso mesmo.
- Foi um terrível desperdício. Milhares de baixas, por causa de algumas colinas áridas, sem a menor importância estratégica. A megalomania suplantou a autoridade civil. Tudo isso está registrado.
Peter percebeu que ainda estava empunhando o revólver. O que não fazia mais sentido. Guardou-o no bolso, dizendo para Montelán:
- Volte para Boston.
- Vai pensar cuidadosamente em tudo o que eu lhe disse?
- vou.
Mas Peter sabia que teria de continuar.
Para Daniel Sutherland, OBrien escolhera uma pequena enseada a leste da Deal Island, na Chesapeake. O ponto de encontro era uma marina comercial onde estavam atracados barcos de pesca basicamente empenhados na pesca de ostras e que continuariam na praia por mais uma ou duas semanas: a pesca não era muito propicia naquele período de dezembro.
As ondas batiam contra as pilastras por baixo do cais. As embarcações rangiam em seus cabos, as gaivotas guinchavam estridentemente, voando pelo céu à primeira claridade da manhã.
Venice. O último dos candidatos, pensou Peter, sentado na amurada de uma traineira, na extremidade do cais. Isto é, o último se não se incluísse Bravo na relação dos suspeitos. Peter não tinha a menor dúvida de que voltaria a procurar Munro St. Claire. Era bem remota a possibilidade de que Sutherland fosse o traidor de Inver Brass, o assassino que estava com os arquivos e costumava sussurrar ao telefone. Mas a verdade era que nada parecia ser como devia. Tudo era possível.
Sutherland dissera-lhe que o comité formado para combater a corrupção de Hoover fora dissolvido. E afirmara também que os
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arquivos haviam sido destruídos. Como um membro de Inver Brass, ele sabia que as duas coisas eram mentiras.
Mas por que Sutherland haveria de querer os arquivos? Por que iria matar? Por que iria infringir a lei, que defendia com tanta tenacidade?
Peter mal podia divisar o acesso ao cais, por entre incontáveis roldanas e guinchos. Formavam uma estranha arcada, os contornos escuros abruptos recortados contra o céu cinzento do amanhecer. Peter olhou para a água, à sua direita. Sabia que OBrien estava escondido ali, no convés de um saveiro. Virou a cabeça para a esquerda, tentando divisar o carro espremido entre duas traineiras que haviam sido tiradas da água para reparos. Alison estava no carro. Tinha na mão uma caixa de fósforo. Deveria riscar um fósforo e aproximá-lo da janela, a chama escondida da frente, caso houvesse mais alguém no carro que se aproximasse, além de Sutherland.
Subitamente, Peter ouviu o zumbido de um motor possante se aproximando, ainda a distância. Momentos depois, os faróis lançaram seu clarão pela entrada do cais, refletindo-se nos cascos das embarcações. O carro foi parar à beira dágua, num amplo espaço entre duas embarcações.
Os faróis foram apagados, deixando um resíduo de luz nos olhos de Peter. Ele se abaixou por trás da amurada da traineira, observando atentamente a base do cais. As ondas continuavam a bater contra as estacas, num ritmo irregular; as embarcações continuavam a ranger incessantemente.
Uma porta de carro se abriu e fechou. Momentos depois, o vulto imenso de Sutherland apareceu na semi-escuridão, ocupando uma área imensa sob a arcada formada pelas hastes de metal e cabos dos guinchos. Ele encaminhou-se na direção de Peter, os passos firmes, cautelosos, mas sem qualquer hesitação.
Chegou à extremidade do cais e parou. Ficou imóvel, olhando para o outro lado da baía, um gigante negro ao amanhecer, à beira dágua. Daniel Sutherland dava a impressão
de ser o último homem sobre a terra, contemplando o fim do universo. Ou esperando que uma embarcação atracasse e começasse a descarregar.
Peter levantou-se, afastando-se da amurada da traineira, com a mão no bolso, segurando a arma. ;
- Bom-dia, Juiz. Ou devo chamá-lo Venice? j Sutherland virou-se e olhou para a traineira, para o lugar en
que Peter estava. Mas não disse nada. - Eu disse bom-dia - insistiu Peter, suavemente, até mesmo com cortesia, incapaz de esquecer o respeito que sentia por aquele homem que tanto subira na vida, apesar das dificuldades que encontrara.
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Ouvi o que disse - respondeu Sutherland, a voz returnbante, que era uma arma em si mesma. - Chamou-me de Venice.
- É esse o nome pelo qual é conhecido. O nome que Inver Brass lhe deu.
- Está quase certo. É um nome que dei a mim mesmo.
- Quando? Há 40 anos?
Sutherland demorou um pouco a responder. Parecia estar absorvendo as palavras de Peter, com doses iguais de ira e surpresa, ambas controladas.
- A época não é importante. Nem o nome.
- Pois acho que ambos são importantes. Venice significa o que estou pensando?
- Isso mesmo. É uma referência ao Mouro.
- Otelo foi um assassino.
- Este Mouro não é.
- Estou aqui justamente para descobrir isso. Mentiu-me uma vez.
- Enganei-o para o seu próprio bem. Nunca deveria ter-se envolvido. "
- Já estou cansado de ouvir isso. Se é assim, por que fui envolvido?
- Porque as outras soluções fracassaram. Valia a pena tentar usá-lo. Estávamos diante de uma catástrofe nacional.
- Os arquivos desaparecidos de Hoover?
Sutherland fez uma pausa, os olhos pretos se fixando nos de Peter.
- Ah! Então já descobriu! Ê verdade. Os arquivos tinham que ser encontrados e destruídos. Mas fracassaram todas as tentativas de localizá-los. Bravo estava desesperado e decidiu recorrer a medidas desesperadas. Você foi uma delas.
- Nesse caso, por que me disse que os arquivos haviam sido destruídos?
- Pediram-me que confirmasse alguns aspectos da história que lhe foi contada. Mas eu não queria que você se levasse muito a sério. É um romancista, não um historiador. Se lhe permitíssemos maior amplitude, iria correr um grande perigo. E eu não concordava com isso.
- Podiam usar-me como isca, mas não totalmente. Era isso?
- Creio que é suficiente.
- Não, não é. Há muito mais. Está protegendo alguns homens que formam um grupo chamado Inver Brass. É inclusive um deles. Disse-me que alguns homens e mulheres preocupados se reuniram para combater Hoover e depois se dispersaram, quando ele morreu. Também mentiu em relação a isso. Esse grupo já existe há 40 anos.
393
- Está deixando a sua imaginação correr à solta. O juiz respirava mais depressa.
- Não, não estou. Já conversei com os outros.
- Você o quê?
O controle desaparecera por completo, já não havia mais o senso de conveniência judicial que assinalara cada frase. A cabeça de Sutherland estava tremendo, à luz fraca do amanhecer.
- Mas que diabo andou fazendo?
- Ouvi as palavras de um homem agonizante. E acho que sabe quem era esse homem.
- Oh, Deus! Longworth!
O gigante negro estava paralisado.
- Você sabia!
O choque fez com que Peter perdesse o fôlego. Os músculos se contraíram, ele escorregou. Fez um esforço para manter o equilíbrio. Era Sutherland. Nenhum dos outros fizera a ligação. Só Sutherland. Não a teria feito, não poderia tê-la feito, se não estivesse vigiando Varak, se não estivesse na escuta da mesa telefónica do Hay-Adams.
- Sei disso agora - falou o juiz, num tom monótono, sinistro. - Descobriu-o no Havaí, trouxe-o de volta, obrigou-o a falar. Pode ter desencadeado uma sucessão de acontecimentos que levarão os fanáticos às últimas consequências! Talvez seja o que eles estão esperando para saírem às ruas com acusações de conspiração e outras coisas muito piores! O que Longworth fez era necessário. Era certo!
- De que está falando? Longworth era Varak e sabe disso perfeitamente! Ele é que me descobriu! Salvou-me a vida e fiquei a seu lado quando morreu.
Sutherland pareceu perder o equilíbrio. Prendeu a respiração, o corpo imenso cambaleou, como se pudesse cair a qualquer momento. E falou suavemente, como se dominado por uma dor profunda:
- Quer dizer que era Varak. Cheguei a cogitar essa possibilidade, mas preferi não acreditar. Ele trabalhava com os outros e pensei que fosse um deles. Varak, não.
Os ferimentos de sua infância jamais poderiam cicatrizar. Mas ele não pôde resistir à tentação. Tinha que se apossar de todas as armas.
- Vai querer me dizer que foi Varak quem se apossou- dos arquivos? Não vou aceitar isso. Não estavam com ele.
- Ele os entregou a alguém mais.
- Ele o quê? Peter deu um passo para a frente, atordoado com as pala-
vras de Sutherland. :
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- O ódio dele era profundo demais. Seu senso de justiça era distorcido, tudo o que desejava era vingança. E os arquivos poderiam proporcionar-lhe tal vingança.
- O que quer que esteja querendo dizer, está completamente errado! Vafak sacrificou a própria vida para descobrir os arquivos! Está mentindo! Ele me disse a verdade!
Disse que era um dos quatro homens.
- É... - Sutherland parou de falar, virando a cabeça na direção da baía. O silêncio opressivo era quebrado apenas pelos ruídos habituais da baía. O juiz voltou a
olhar para Peter. - Se ele tivesse ido me procurar... eu poderia tê-lo convencido de que havia uma maneira melhor. Se ao menos ele tivesse me procurado...
- E por que deveria? Você não estava a salvo das suspeitas. Falei com os outros. Ainda não está livre de suspeitas. Ê um dos quatro.
- Seu idiota arrogante! - berrou Daniel Sutherland, a voz ecoando pela baía. Um instante depois, ele se controlou e acrescentou baixinho, embora com enorme intensidade:
- Diz que estou mentindo. Diz que falou com os outros. Pois deixe-me dizerlhe que alguém lhe mentiu muito mais.
- Como assim?
- Sei quem está com os arquivos! E já sei há semanas! É realmente um dos quatro homens, mas não sou eu! A descoberta não foi tão difícil assim, mas será extremamente
difícil recuperálos. Não é fácil convencer um homem que enlouqueceu a procurar ajuda. Você e Varak talvez tenham tornado isso impossível.
Peter contemplava o gigante negro com uma expressão aturdida.
- Nunca disse a ninguém...
- Nem podia dizer! Era preciso controlar a situação delicadamente, pois os riscos eram muito grandes. Ele contrata assassinos. E tem mil reféns naqueles arquivos.
- Sutherland deu um passo na direção de Peter. - Disse a alguém que viria até aqui? Procurou verificar se foi seguido?
Peter sacudiu a cabeça.
- Viajo com a minha própria proteção. E ninguém me seguiu.
- Viaja com o quê?
- Não estou sozinho.
- Há outros com você?
- Não há problema - disse Peter, assustado com o súbito pavor nos olhos do velho juiz. - Ele está do nosso lado.
- OBríen?
- Ele mesmo.
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- Santo Deus!
E, nesse momento, houve um barulho na água. Não havia como confundi-lo com um peixe ansioso. Havia um ser humano sob o cais. Na escuridão. Peter correu até a beira.
Dois estampidos, em rápida sucessão, soaram atrás dele. Da direção do barco em que estava Quinn! Peter jogou-se ao chão, comprimindo o corpo contra as tábuas. Toda a área parecia ter entrado em erupção, tiros sendo disparados da superfície da água, da amurada de outras embarcações. Zumbidos cortavam o ar, das balas disparadas por armas equipadas com silenciosos. Peter rolou para a esquerda, procurando instintivamente a proteção das estacas adjacentes. Madeira foi estilhaçada diante do seu rosto. Peter cobriu os olhos, abrindo-os um instante depois, a tempo de ver o clarão de um tiro disparado do cais oposto. Levantando o seu próprio revólver, em pânico, puxando o gatilho.
Houve um grito, seguido pelo barulho de um corpo caindo, esbarrando em objetos invisíveis, rolando pelo cais e mergulhando nas águas da baía.
Peter ouviu um grunhido às suas costas. Virou-se rapidamente. Um homem metido num traje de mergulho preto estava subindo pela beira do cais. Peter mirou e disparou. O homem-monstro arqueou as costas, depois caiu para a frente, numa última tentativa de alcançá-lo.
AUson! Ele tinha que alcançá-la! Peter arremessou-se para trás e levou um choque ao esbarrar em carne humana. Era o corpo de Sutherland! O rosto estava coberto de sangue, assim como toda a parte superior do sobretudo. Havia manchas vermelhas por toda parte.
O gigante negro estava morto!
- Chancellor!
OBrien estava gritando para ele, a voz soando acima das explosões e dos zumbidos dos disparos. Para quê? Para matá-lo? Quem era OBrien? O que era OBrien?
Ele não iria responder, não iria se tornar um alvo. O instinto de sobrevivência fê-lo se mexer. Passou por cima do corpo de Daniel Sutherland, seguindo para a massa de equipamentos na base do cais. De quatro, abaixado, contorcendo-se, ziguezagueando, Peter avançou o mais depressa possível sobre as tábuas imundas.
Subitamente, ele ouviu o retinido de uma bala ricocheteando. Já o tinham avistado! Feter não tinha alternativa. Levantou-se parcialmente, as pernas doendo de muito medo, correu na direção das máquinas de metal. Estava na frente delas. Mergulhou através da arcada de cabos, virando-se para a direita, a fim de se abrigar atrás de um escudo de aço.
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- Chancellor! Chancellor!
Os gritos de OBrien ainda soavam entre os disparos. Mas Peter não lhe deu qualquer atenção. Pois só havia uma explicação. O homem de quem se compadecera, o homem a quem admirara, em cujas mãos depositara sua vida, levara-o àquela armadilha!
Houve uma súbita fuzilaria, seguida por uma explosão. Surgiram chamas na proa de uma traineira, não muito distante. Houve uma segunda detonação e outra embarcação se incendiou. Soaram gritos, ordens. Homens corriam pelas docas, pulavam de embarcações para a água. Na confusão, o tiroteio pareceu diminuir um pouco. Houve uma
nova explosão e uma terceira embarcação se incendiou. Houve um estampido, um homem gritou. E gritou palavras.
Eram todas ininteligíveis, menos uma: Chasong.
- Chasong!
Um homem fora baleado, suas últimas palavras eram um rugido de desafio, antes da morte. Nenhum outro motivo poderia haver para aqueles gritos fanáticos. Era a língua que Varak não compreendera! Peter ouvia agora pessoalmente. Era diferente de todas as outras línguas que já tinha ouvido. O barulho diminuiu. Dois homens em trajes de mergulho subiram à extremidade do cais em que estava caído o corpo de Daniel Sutherland. No ancoradouro próximo, soaram três tiros, em rápida sucessão. Uma bala ricocheteou numa caixa de metal por cima de Peter e foi cravar-se na madeira ao lado de sua cabeça. Um vulto correu para a praia, pulando entre os barcos, saltando por cima de amuradas, contornando cabines. Mais tiros; Peter agachou-se por trás de seu escudo de aço. O vulto a correr chegou à praia lamacenta e mergulhou para trás de um bote encalhado. Ficou ali apenas alguns segundos, depois se levantou e correu para a escuridão.
Era OBrien! Peter ficou olhando, incrédulo, enquanto ele desaparecia no mato em torno do ancoradouro.
O tiroteio cessou. Peter ouviu o barulho do motor de uma lancha. Não podia mais esperar. Rastejando, afastou-se do seu abrigo, depois levantou e correu entre os barcos na direção do automóvel.
Alison estava deitada no chão, ao lado do carro. Os olhos dela estavam aturdidos, o corpo tremia. Peter jogou-se ao seu lado, abraçou-a.
- Nunca pensei que voltaria a vê-lo com vida! - sussurrou Alison, os dedos se comprimindo contra Peter, o rosto molhado de lágrimas se encostando nele.
- Vamos embora! Depressa!
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Peter puxou-a, fazendo-a levantar. Abriu a porta do carro e empurrou-a para dentro.
Houve um movimento mais intenso no ancoradouro. A lancha a motor que ele ouvira a distância havia atracado. Soaram vozes; diversos homens começaram a correr na direção da praia.
Era o momento de se afastar dali. Mais alguns segundos e seria tarde mais. Peter olhou pelo pára-brisa e virou a chave na ignição. O motor resmungou mas não pegou.
A umidade da manhã! Há horas que o carro não era ligado!
Ele ouviu gritos na base do cais. Alison também ouviu. Pegou a arma de Peter no assento, onde ele a largara. Automaticamente, com a rapidez nascida da experiência, ela tirou o pente de balas.
- Só tem duas cápsulas! Não tem mais?
- Balas? Não!
Peter virou novamente a chave, comprimindo o acelerador. O vulto de um homem em traje de mergulho apareceu entre os cascos das traineiras encalhadas. Começou a correr na direção do carro.
- Proteja os olhos! - gritou Alison.
Ela disparou a arma, a explosão ensurdecedora dentro do carro fechado. A janela lateral explodiu. E, nesse momento, o motor pegou.
Peter pisou no acelerador até o fundo. O carro pulou para a frente, num brusco arranco. Peter deu uma guinada no volante para a direita. O carro derrapou, de lado, levantando uma nuvem de lama e poeira. Ele endireitou o carro e seguiu para a saída.
Ouviram tiros atrás deles; a janela traseira explodiu.
Peter empurrou Alison para o chão do carro, ao mesmo tempo em que dava uma guinada para a esquerda. Ela não ficou abaixada, levantando-se um instante depois para
disparar a segunda e ultima bala. Por um breve momento, os tiros atrás deles cessaram.
E logo depois recomeçaram, as balas disparadas a esmo, sem qualquer efeito. Peter chegou à entrada do ancoradouro e disparou pelo caminho entre o mato que ia desembocar
na auto-estrada.
Estavam sozinhos. Uma hora antes, eram três fugitivos; agora, restavam apenas dois.
Haviam depositado sua confiança em Quinn OBrien e ele os traíra.
A quem poderiam recorrer agora?
Só tinham um ao outro. Casas e prédios comerciais estavam sendo vigiados. Amigos, conhecidos, todos estavam sendo observa-
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dos. Telefones estavam sendo escutados, o carro deles era conhecido. As auto-estradas e as pequenas estradas secundárias seriam em breve patrulhadas.
Peter começou a sentir uma mudança extraordinária dentro de si. Por um momento, perguntou-se se seria real ou apenas mais uma manifestação da sua imaginação. O que quer que fosse, sentiu-se grato por tudo estar acontecendo.
O medo, a sensação de total impotência estavam sendo substituídos pela raiva.
Ele apertou o volante e seguiu em frente, o grito de morte que ouvira alguns minutos antes ainda ressoando em seu ouvidos.
Chasong!
Depois de tudo o que fora dito, ainda era a chave para o mistério.
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O cidadão comum não estava a par da fuga deles. Não houve notícias pelo rádio a descrevê-los, não apareceram fotografias na televisão ou nos jornais. E, no entanto,
eles estavam fugindo, porque sabiam que não poderiam contar com qualquer proteção; leis tinham sido infringidas, homens haviam sido mortos. Se decidissem se entregar, poderiam cair em uma dezena de armadilhas. Os desconhecidos estavam por toda parte, infiltrados entre as autoridades.
Os arquivos particulares de Hoover constituíam a sua única defesa, a única esperança de sobrevivência.
A morte levara-os para mais perto da resposta. Varak dissera que era um dos quatro homens. Peter acrescentara um quinto. Agora, Sutherland e Dreyfus estavam mortos e só restavam três homens, Banner, Paris e Bravo.
Frederick Wells, Carlos Montelán, Munro St. Claire.
Alguém lhe mentiu muito mais.
Mas era aquela mesma a chave. Chasong. Não era uma mentira. Um dos três membros restantes de Inver Brass estava, de alguma forma, profunda e irremediavelmente ligado ao massacre em Chasong, há 22 anos. Quem quer que fosse, estava com os arquivos.
Peter recordou as palavras de Ramirez. Chasong... as consequências se encontram em dezenas de hospitais de veteranos.
Havia uma possibilidade remota de que se pudesse descobrir alguma coisa por intermédio dos sobreviventes. As recordações deles seriam vagas, mas era o único recurso que ocorria a Peter. Talvez o último.
Os pensamentos dele concentraram-se em Alison. Ela passara a sentir uma raiva que se igualava à dele, demonstrando um senso extraordinário de determinação. A filha do general tinha recursos e sabia usá-los; o pai acumulara favores, ao longo de uma vida inteira de serviço militar. Alison foi procurar apenas aqueles que sabia estarem distantes dos centros de influências e controle do Pentágono. Homens com quem ela não falava há muitos anos re-
400
ceberam telefonemas pedindo ajuda, discreta, a ser prestada particularmente, sem perguntas.
E para que nenhum quadro completo pudesse levar a uma fonte única, os pedidos foram divididos.
Um coronel da Força Aérea, que trabalhava no Departamento de Material Bélico da NASA, atravessou a fronteira de Delaware e foi encontrá-los em Laurel, entregando-lhes seu carro. O automóvel de OBrien foi escondido no mato, perto da margem do rio Nanticoke.
Um capitão de artilharia de Forte Benning fez reservas para eles, em seu nome, num Holiday Inn nas proximidades de Arundel Village.
Um comandante do Terceiro Distrito Naval, que estivera numa lancha de desembarque em Omaha Beach, foi até Arundel e deulhes três mil dólares. Sem fazer qualquer pergunta, aceitou um bilhete de Peter, endereçado a Joshua Harris, determinando que o agente literário pagasse a quantia emprestada.
A última coisa de que eles precisavam era a mais difícil de obter: os registros de baixas de Chasong. Mais especificamente, o paradeiro dos que tinham ficado permanentemente inválidos. Se havia um único ponto focal que devia estar sendo vigiado 24 horas por dia era justamente Chasong. Tinham que agir com base na suposição de que homens invisíveis estavam observando, à espera de que manifestassem algum interesse.
Eram quase oito horas da noite. O oficial da Marinha partira poucos minutos antes, os três mil dólares estavam jogados sobre a mesinha-de-cabeceira. Peter estava estendido na cama, recostado na cabeceira. Alison estava sentada à escrivaninha, do outro lado do quarto. Na frente dela, havia anotações. Eram dezenas de nomes, quase todos riscados, por uma ou outra razão. Ela sorriu.
- Você é sempre tão displicente com dinheiro?
- E você é sempre tão perita com uma arma nas mãos?
- Sempre estive cercada de armas, durante a maior parte da minha vida. O que não significa que as aprove.
- Há três anos e meio que vivo cercado por dinheiro. E devo dizer que aprovo.
- Papai costumava levar-me a estandes de tiro, várias vezes por mês. Ensinou-me a atirar. É claro que eu só me exercitava quando não havia ninguém por perto. Sabia
que, aos 13 anos, eu podia demonstrar uma carabina e um 45 regulamentar com os olhos vendados? Oh, Deus, como papai gostaria que eu tivesse nascido homem!
- Ele devia estar doido por querer uma coisa dessas - disse Peter, imitando a cadência dela. - O que vamos fazer com a lista de baixas? Será que não tem mais ninguém a quem recorrer?
401
- Há uma possibilidade. Conheço um médico no Walter Reed. O nome dele é Phil Brown. Era enfermeiro na Coreia quando papai o conheceu. Voava em helicópteros para
a linha de frente, a fim de tratar de feridos, quando os médicos diziam: "Não, obrigado!" Mais tarde, papai colocou-o na direção certa, proporcionando-lhe inclusive a oportunidade de cursar uma faculdade de medicina, como cortesia do Exército. Ele era de uma família pobre e não poderia se tornar médico de outra forma.
- Mas isso aconteceu há muito tempo.
- Mas continuamos a manter contato, tanto papai como eu. Vale a pena tentar. Não consigo encontrar mais ninguém que esteja em condições de nos ajudar neste caso.
- Poderia trazê-lo até aqui? Eu não gostaria de falar tudo pelo telefone.
- Posso tentar.
Uma hora depois, um médico militar esguio, de 43 anos, passou pela porta e abraçou Alison. Peter achou que o médico era naturalmente afável e simpatizou com ele
imediatamente, embora tivesse a impressão de que Alison tinha usado as palavras certas dizer que haviam permanecido em contato. Eram bons amigos; e por um tempo
tinham sido algo mais que bons amigos.
- É tão bom vê-lo de novo, Phil!
- Desculpe não ter comparecido ao enterro de Mac - disse o médico, segurando Alison pelos ombros. - Imaginei que compreenderia. Não poderia suportar todas aquelas
palavras hipócritas dos miseráveis que queriam cassar-lhe as estrelas.
- Estou vendo que ainda não perdeu a sua franqueza, CharJie Brown.
O major-médico beijou-a na testa.
- Há anos que ninguém me chama assim. - Ele virou-se para Peter. - Ela é fanática pelos Peanuts. Costumávamos ficar esperando ansiosamente pelos jornais de domingo...
Alison interrompeu-o:
- Este é Peter Chancellor, Phil. [ O médico imediatamente estendeu-lhe a mão.
- Está subindo de categoria em matéria de amigos, Ali. Estou devidamente impressionado. Gostei muito dos seus livros, Pe-
1er... se me permite chamá-lo assim.
- Somente se eu puder chamá-lo de Charlie.
- Não no hospital. Eles pensariam que sou um intelectual, o que não é bem visto... E agora podem me contar o que está .acontecendo? Ao telefone, Ali parecia uma fugitiva do esquadrão de narcóticos.
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- Está certo na primeira suposição, mas o problema é muito pior que a segunda - disse Alison. - Posso contar-lhe tudo,
Peter?
Peter contemplou o major, que estava subitamente preocupado por trás da jovialidade, que transmitia uma sensação de força,, sob a aparência relaxada.
- Acho que pode.
- Acho que é melhor - disse Brown. - Essa moça significa muito para mim. O pai dela teve um papel muito importante
na minha vida.
Contaram-lhe tudo. Alison começou, Peter preencheu aslacunas. O relato era quase catártico; havia finalmente alguém emquem podiam confiar. Alison falou sobre os
acontecimentos em Tóquio, há 22 anos antes. Parou no momento em que a mãe a atacara, sem conseguir seguir adiante.
O médico ajoelhou-se diante dela e disse, profissionalmente:
- Quero saber de tudo, Ali. Sinto muito, mas terá que me
contar até o fim.
Ele não a tocou, mas sua voz era autoritária, embora suave. Quando ela acabou, Brown sacudiu a cabeça para Peter e foi servir-se de um drinque. Peter abraçou Alison,
enquanto o médico
preparava o drinque.
- Os desgraçados! - murmurou Brown, sacudindo o copoligeiramente. - Alucinógenos... foi o que deram a ela. Podem tê-la viciado com um derivado de morfina ou cocaína,
mas os alucinógenos é que provocam distorções visuais. É o sintoma básico. Os dois lados estavam fazendo muitas experiências com essas coisasnaquele tempo. Mas que
desgraçados!
- Que diferença faz quais os narcóticos que foram usados? indagou Peter, com o braço sobre os ombros de Alison.
- Talvez nenhuma. Mas pode haver. Essas experiências eramaltamente secretas. Em algum lugar, deve haver registros. Só Deus sabe onde... mas deve existir. Podem revelar-nos
a estratégia, informar nomes e datas, indicar até que ponto a rede se espalhou.
- Prefiro falar com os homens que estiveram em Chasong declarou Peter. - Alguns dos sobreviventes. E quanto mais alta for a patente deles, melhor será. Os que estão
nos hospitais de veteranos. Maá não há tempo para se percorrer o país inteiro à
procura deles.
- Acha mesmo que encontrará a resposta entre esses homens?
- Estou absolutamente convencido. Chasong tornou-se uma espécie de culto. Ouvi um homem agonizante gritar este nome, como se sua própria morte fosse um sacrifício
voluntário. Não havia a menor possibilidade de algum equívoco.
- Está certo - disse Brown, assentindo. - Mas por que o sacrifício não poderia estar baseado na vingança? Uma retaliação pelas atividades da esposa de Mac, a mãe
de Alison? - O médico olhou para Alison, com uma expressão de quem pedia desculpas.
- Ela não tinha o menor controle sobre as suas atitudes, mas quem quer que esteja à procura de vingança não saberia disso.
- É justamente esse o problema - interveio Peter. - Os homens que estão envolvidos nesta história são sectários, dispostos a morrer, comandados, que não agem por
conta própria. Não poderiam saber coisa alguma a respeito da mãe de Alison. Acabou le dizê-lo. Ramirez já o tinha confirmado. As experiências eram altamente secretas.
Apenas umas poucas pessoas estavam a par. Não há qualquer ligação.
- Já descobriu tudo, com Ramirez.
- Era o que esperavam que eu descobrisse. Mas algo mais aconteceu em Chasong. Varak teve esse pressentimento, mas não conseguiu determinar o que era. E por isso
disse que se tratava de um chamariz.
- Um chamariz?
- Exatamente. O mesmo lago, mas o pato errado. "Mac, o Traidor" nada teve a ver com a manipulação da esposa. A camisola rasgada no chão do gabinete em Rockville,
os vidros quebrados, o perfume... não passavam de placas apontando para a direção errada. Apontando para a ruína de uma mulher, destruída pelo inimigo. E eu deveria
seguir por esse caminho. Foi o que fiz, mas acabei percebendo que estava errado. Aconteceu algo mais em Chasong.
- Como sabe de tudo isso? Como pode ter tanta certeza?
- Porque eu mesmo inventei tudo isso, nos meus livros!
- Nos livros? Ora, Peter, este é o mundo real!
- Eu poderia responder a isso, mas levaria tempo e acabariam me levando para o hospital para observação. Assim, trate apenas de descobrir o maior número possível
de nomes de sobreviventes de Chasong.
O major-médico Philip Brown olhou para o memorando que acabara de redigir, como resultado da reunião que tivera pela manhã. Estava satisfeito consigo mesmo. O memorando
tinha o tom solene apropriado, mas sem levantar alarmes que poderiam ser por demais estridentes.
Era o tipo de memorando que poderia ser usado para garantir-lhe o acesso aos milhares de registros microfilmados, que indicavam a localização e histórias médicas
resumidas dos inválidos
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que estavam residindo em hospitais de veteranos espalhados pelo país.
Essencialmente, o memorando formulava a teoria de que, em alguns soldados inválidos mais velhos, determinados tecidos internos estavam se deteriorando num ritmo muito maior do que o previsto no processo normal de envelhecimento. Esses homens haviam servido na Coreia, na Província de Chagang. Era bem possível que algum vírus tivesse lhes infeccionado o sangue. O memorando especificava que se tratava do Hynobius, um antígeno microscópico transmitido por insetos da Província de Chagang. Eram recomendáveis estudos adicionais, de acordo com as prioridades possíveis.
Era um absurdo eficaz. O major não tinha a menor ideia se existia algum antígeno chamado Hynobius. Mas se o tivesse inventado, seria ainda melhor, pois neste caso ninguém poderia contestá-lo.
com o memorando na mão, Brown encaminhou-se para a sala dos microfilmes. Não usou o nome de Chasong com o sargento encarregado. Ao contrário, deixou que o próprio sargento se encarregasse das seleçôes. O homem estava levando muito a sério o seu trabalho de detetive. Verificou entre as diversas estantes de metal e voltou com os microfilmes apropriados.
Três horas e 25 minutos depois, Brown estava olhando para a última projeção na tela. Há muito que já tirara o jaleco, deixando-o pendurado numa cadeira. Afrouxara
também a gravata, desabotoara o colarinho. Recostou-se na cadeira, aturdido.
Nas centenas de metros de microfilme que acabara de ver não havia qualquer menção a Chasong.
Absolutamente nenhuma.
Era como se Chasong nunca tivesse existido. Nada jamais acontecera ali, segundo os arquivos microfilmados do Hospital Walter Reed.
Brown levantou-se e levou os rolos de microfilmes para o sargento. Sabia que tinha de ser cauteloso, mas não podia deixar de assumir o risco. Chegara a um beco sem saída.
- Já obtive muitas informações que estava precisando, mas creio que ainda há mais. Hynobius dos subgrupos S foram constatados em laboratórios volantes em torno
de Pyongyang. Diversos desses registros referem-se a uma província no distrito de Chasong. Não tem por acaso alguma coisa a respeito?
Houve uma reação imediata do sargento, um brilho de reconhecimento nos olhos.
- Chasong? Conheço esse nome. E o vi recentemente. Estou tentando recordar onde.
Brown sentiu o pulso acelerar.
405
- Pode ser importante, Sargento. É apenas outra linha no espectógrafo, mas pode ser justamente a que estamos precisando. O Hynobius é terrível. Procure lembrar,
por favor.
O sargento levantou-se e foi até o balcão, ainda de rosto franzido.
- Se não estou enganado, foi um registro em outro turno, na coluna da extrema direita. Como isso raramente acontece, sempre sobressai.
- Por que raramente acontece?
- É a coluna para indicar as retiradas de microfilmes. Raramente acontece porque as pessoas consultam os microfilmes aqui mesmo, como acabou de fazer.
- Pode dizer quando isso aconteceu?
- Não pode ter sido há mais que um ou dois dias. Mas vou verificar. - O sargento pegou um livro de assentamentos com capa de metal numa prateleira. - Aqui está. Foi ontem à tarde. Doze microfilmes foram retirados. Todos referentes a Chasong. Faz algum sentido.
- Por quê?
- Qualquer pessoa levaria pelo menos dois dias para examinar todo esse material. Estou surpreso por terem sido localizados tão facilmente.
- Como assim?
- É material classificado como confidencial, de interesse da segurança nacional. É preciso recorrer aos índices secretos para localizar os microfilmes. Até mesmo o senhor, que é médico, não poderia consultá-los.
- Por que não?
- Seu posto não é suficientemente alto, senhor.
- E quem retirou esses microfilmes?
- O General-de-Brigada Ramirez.
Brown entrou com seu TR-6 no terreno do enorme centro de processamento de dados, em McLean, Virgínia. Havia uma casa de guarda à esquerda. No meio do caminho, um cavalete de metal exibia o cartaz inevitável: Entrada Proibida a Pessoas Não Autorizadas.
Não precisara esforçar-se muito para convencer o sargento dos arquivos do Walter Reed de que ele seria o responsável se alguns homens morressem porque um general chamado Ramirez removera todos os meios de se descobrir o Hynobius.
Além do mais, Brown estava inteiramente disposto a assumir plena responsabilidade, militar e médica, assinando o seu próprio nome na requisição dos números de identificação dos microfilmes.
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O sargento não iria fornecer-lhe os microfilmes, apenas os números de identificação. A Segurança do Walter Reed lhe daria a autorização necessária para consultar as duplicatas em McLean.
O médico havia chegado à conclusão de que tinha uma conta pessoal a acertar com Ramirez. Afinal, ele destruíra MàcAndrew, o homem que lhe havia proporcionado uma
chance decente na vida, ainda quando garoto pobre de uma fazenda em Gandy, Nebrasca. Se Ramirez não gostasse, que apresentasse as acusações que bem entendesse.
Mas, de certa forma, Brown tinha quase certeza de que o general não tomaria tal atitude.
Obter a autorização necessária do serviço de segurança do Walter Reed não fora muito difícil. Tivera apenas que usar o memorando para intimidar o oficial de segurança, que não era médico, arrancando-lhe a autorização necessária.
Brown mostrou a autorização ao civil que estava na mesa de recepção em McLean. O homem apertou os botões de um computador; pequenos números verdes apareceram na tela em miniatura. O médico foi encaminhado ao andar indicado.
O maisimportante, refletiu Brown, ao entrar na Seção M, de processamento de dados, é que não precisava de mais nada, já que dispunha dos números de identificação dos microfilmes. A autorização médica foi aceita, os obstáculos removidos. Dez minutos depois, Brown estava sentado diante de uma máquina complexa, mas que, estranhamente, parecia uma versão nova e reluzente de uma antiquada moviola.
E passados outros dez minutos, já sabia que o sargento nos arquivos do Walter Reed estava enganado ao dizer que seriam necessários pelo menos dois dias para examinar todos aqueles registros. Levaria menos de uma hora. Brown ainda não sabia muito bem o que descobrira. Mas o que quer que fosse, deixou-o estarrecido, contemplando
aturdido a pequena tela verde à sua frente. Das centenas de homens que haviam sido lançados na Batalha de Chasong, apenas 37 haviam sobrevivido. Se isso, por si
só, já não fosse bastante espantoso, a distribuição dos 37 sobreviventes era simplesmente inacreditável. Era contrária a todas as práticas psicológicas universalmente adotadas. Homens mutilados ou aleijados na mesma operação de combate eram raramente separados. Já que iriam passar o resto de suas vidas internados em hospitais, os companheiros eram tudo o que lhes restava, pois as famílias e amigos iam espaçando as visitas cada vez mais, até que se transformavam em meras sombras constrangedoras e incómodas em enfermarias esquecidas.
Contudo, os 37 sobreviventes de Chasong haviam sido meticulosamente isolados uns dos outros. Para ser mais exato: 31 ti-
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iham sido separados em 31 hospitais diferentes, de San Diego a Bangor, no Maine.
Os outros seis estavam juntos, mas sua ligação era praticamente inútil. Estavam internados num hospital psiquiátrico de alta segurança, 15 quilómetros a oeste de Richmond. Brown conhecia o hospital. Os pacientes eram comprovadamente insanos, todos perigosos, muitos homicidas.
Apesar disso, estavam juntos. Não era uma perspectiva das mais agradáveis. Mas se Chancellor achava que daquela maneira poderia descobrir alguma coisa, ali estavam os nomes de seis sobreviventes de Chasong. Do ponto de vista do escritor, as circunstâncias seriam vantajosas. Contanto que fosse possível alguma comunicação, aqueles homens cujas faculdades mentais haviam sido destruídas em Chasong poderiam revelar muitos segredos. Talvez inconscientemente e sem as restrições inibidoras impostas pelo pensamento racional. As causas da insanidade raramente deixavam as mentes dos loucos.
O médico sentiu-se perturbado por algo que não conseguiu definir, mas estava aturdido demais para tentar analisar o que poderia ser. Não conseguia pensar em coisa alguma.
Além disso, queria sair o mais depressa possível do centro de processamento de dados, para voltar a respirar um pouco de ar fresco.
Peter sentiu que não estavam entrando num hospital, mas sim numa prisão. Uma versão melhorada de um campo de concentração.
- Não se esqueça de que seu nome é Conley e que é um especialista no subgrupo M.N. - disse Brown. - E deixe que eu fale tudo o que for necessário.
Percorreram o corredor comprido e branco, com portas brancas de metal nos dois lados. Havia pequenas janelas na parede, ao lado das portas, através das quais Peter podia avistar os internados. Homens adultos estavam enroscados no chão, muitos espojando-se nas próprias fezes. Outros andavam de um lado para outro, como animais enjaulados. Quando viam os estranhos no corredor, imediatamente encostavam os rostos contorcidos no vidro. Havia ainda alguns que estavam parados diante das janelas, completamente imóveis, olhando impassíveis para o sol que brilhava lá fora, perdidos em silenciosas fantasias.
- Jamais conseguimos nos acostumar - comentou o psiquiatra que os estava acompanhando. - Seres humanos reduzidos à condição de primatas inferiores. Contudo, eles já foram humanos. Jamais devemos esquecer isso.
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Peter quase não prestou atenção no que o homem estava lhe falando. Ao mesmo tempo, compreendeu que seu rosto refletia o impacto das emoções que estava experimentando,
partes iguais de compaixão, curiosidade e repulsa.
- Queremos conversar com os sobreviventes de Chasong disse Brown, aliviando Peter da necessidade de responder. - Pode providenciar, por gentileza?
O psiquiatra pareceu ficar surpreso, mas não fez qualquer objeção.
- Disseram-me que queriam amostras de sangue.
- Queremos também. Mas precisamos conversar com os sobreviventes.
- Dois não podem falar e três normalmente não dizem nada. Os primeiros são catatônicos, os outros esquizofrênicos. Estão aqui há muitos anos.
- Falou em cinco - disse Brown. - E o sexto? Será que ele não poderia recordar alguma coisa?
- Nada que queiram ouvir. Ele é maníaco homicida. E qualquer coisa pode desencadear sua raiva... um gesto de sua mão ou o brilho de uma lâmpada. Está quase sempre numa camisa-deforça.
Peter não estava se sentindo bem, as têmporas lhe doíam terrivelmente. Haviam feito a viagem em vão, nada poderiam descobrir. Ouviu Brown fazer uma pergunta, e o tom de sua voz refletiu também uma sensação de desespero:
- Onde eles estão? É melhor acabar com isso logo.
- Estão todos juntos, num dos laboratórios da ala sul. Já estão preparados para receber vocês. Por aqui, por favor.
Chegaram ao final do corredor e entraram em outro, mais largo. Havia cubículos separados nos dois lados, com bancos encostados nas paredes, outros com mesas de exame bem no centro. Em cada cubículo havia uma janela para observação, feita com o mesmo vidro grosso das que estavam no corredor que tinham acabado de percorrer. O psiquiatra levou-os ao último cubículo e apontou para a janela.
Peter olhou pelo vidro, prendendo a respiração, arregalando os olhos. Seis homens estavam lá dentro, em roupas verdes, sem botões. Dois estavam sentados no banco, imóveis, os olhos distantes. Três estavam estendidos no chão, os corpos se contorcendo, em movimentos horríveis, torturados, parecendo gigantescos insetos. O sexto estava de pé a um canto, o pescoço e os ombros se contorcendo, o rosto também, os braços fazendo pressão contra o tecido grosso que lhe envolvia a parte superior do corpo.
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Mas o que causou um terror súbito e profundo a Peter não foi meramente a visão daqueles patéticos seres subumanos que estavam além do vidro, e sim a cor de suas
peles.
Eram todos negros. e
- E isso! - ele ouviu Brown murmurar. - A letra n!
- Como? - balbuciou Peter, mal conseguindo se fazer ouvir, tão intenso era o seu medo.
- Estava lá. Em toda parte. - O major-médico falava baixinho, visivelmente intimidado. - Não pensei nisso duas vezes porque estava procurando outras coisas. Mas
havia uma pequena letra n depois dos nomes. Centenas de nomes. N de negro. Todos os soldados que estiveram em Chasong eram negros.
- Genocídio - murmurou Peter, o medo total, a náusea completa.
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Seguiram para o norte pela auto-estrada, em silêncio, cada um imerso em seus próprios pensamentos, dominados por um horror que nunca antes haviam experimentado.
Ambos sabiam exatamente o que tinha de ser feito. O homem que tinham de confrontar estava devidamente identificado: era o General Pablo Ramirez.
- Quero pegar aquele filho da puta - disse Brown, ao saírem do hospital.
- Nada faz sentido - comentou Peter, sabendo que isso não era resposta. - Sutherland era negro. Era a única ligação. Mas ele está morto.
Silêncio.
- vou telefonar - disse Brown finalmente. - Você não pode fazê-lo. Ele jamais o atenderia. E há muitas maneiras para um general ser subitamente transferido para o outro lado do mundo.
Paravam agora num restaurante em estilo colonial do interior da Virginia. Havia uma cabine telefónica ao final de um corredor pouco iluminado. Peter ficou esperando junto à porta aberta. Brown entrou e ligou para o Pentágono.
r- Major Brown? - disse Ramirez ao telefone, irritado. - O que pode ser tão urgente, que se recusa a falar com minha secretária?
- É mais do que urgente, General. Encontrei seu nome nos registros dos arquivos de microfilmes do Walter Reed. Eu diria que se trata de uma emergência.
Um silêncio momentâneo revelou o choque de Ramirez. Quando ele falou, á voz era quase inaudível:
- Mas de que diabo está falando?
- Creio que se trata de um acidente médico, senhor. Sou médico e fui designado para estudar um vírus que surgiu na Coreia. Isolamos os distritos de incidência. Um deles era Chasong. Todos os registros de baixas foram retirados dos arquivos, com a sua assinatura.
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- Chasong é um assunto confidencial, classificado como de interesse da segurança nacional.
- Mas não é uma classificação médica, General. Temos uma prioridade controlada. Recebi autorização para verificar as duplicatas dos microfilmes no centro de processamento de dados...
Brown parou de falar de repente, como se tivesse algo mais a dizer mas não soubesse como. Ramirez não conseguiu suportar a tensão:
- Onde está querendo chegar?
- O problema é justamente esse, senhor: não sei. Mas, de um militar para outro, devo dizer-lhe que estou apavorado. Centenas de homens morreram em Chasong, centenas de outros desapareceram em ação, sem que houvesse qualquer tentativa de determinarlhes o destino, depois da guerra. E eram todos soldados negros. Há 37 sobreviventes; exceto por seis homens insanos, todos os outros 31 estão em hospitais separados. Todos são pretos, todos estão isolados. Isso é contra todos os procedimentos habituais. Não me importo que tenha acontecido há 22 anos, mas se o caso se tornar público...
- Quem mais sabe a respeito desses registros? - interrompeu-o Ramirez.
- Neste momento, mais ninguém, além de mim. Estou lhe telefonando porque seu nome...
- Não fale com mais ninguém! - ordenou Ramirez, bruscamente. - É uma ordem! São 17h30min. Vá à minha casa em Bethesda. Esteja lá precisamente às 19h.
Ramirez deu o endereço e depois desligou. Brown saiu da cabine.
- Já que estamos aqui e ainda temos algum tempo, vamos comer alguma coisa.
Comeram mecanicamente. Quase não conversaram. O café foi servido. Brown inclinou-se para a frente e disse:
- Como explica a atitude de OBrien?
- Não tenho qualquer explicação plausível. Assim como não consigo explicar um homem chamado Varak. Eles tiram as vidas dos outros, arriscam as próprias vidas... e para quê? Vivem num mundo que não posso compreender. - Peter fez uma pausa, recordando. - Talvez o próprio OBrien tenha explicado a si mesmo com algo que me disse quando o interroguei a respeito de Varak. Falou que havia ocasiões em que a vida e a morte não tinham a menor importância, em que a única coisa que importava era a eliminação de um problema.
- Isso é incrível!
- Acima de tudo, é inumano.
- Mesmo assim, ainda não explica OBrien.
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- Algo mais pode explicar. O nome dele constava dos arquivos. Disse-me que tinha a impressão de que estava prestes a ser posto à prova mas não sabia como iria reagir.
Sabemos agora.
Os olhos de Peter foram atraídos para um ligeiro movimento na janela do restaurante que dava para a varanda. As luzes da frente estavam se acendendo, o dia chegava ao fim. Subitamente, Peter ficou paralisado. A mão permaneceu suspensa no ar, o copa encostado nos lábios, os olhos fixados na janela, num homem que estava na janela.
Por um instante, Peter se perguntou se não estaria enlouquecendo, se sua mente não estaria desmoronando sob a tensão, cruzando a fronteira entre o real e o irreal. Mas, no momento seguinte, ele teve certeza de que estava contemplando alguém que já tinha visto antes. Lá fora, em outra janela, em outra varanda. Um homem com uma arma!
O mesmo homem. Do outro lado da janela, na varanda da antiga mansão vitoriana na baía de Chesapeake: o motorista de Munro St. Claire. Estava esperando por eles, certificando-se deque ainda estavam no restaurante!
- Fomos seguidos - disse Peter.
- Como?
- Há um homem na varanda. Está olhando aqui para dentro. Não tire os olhos de mim!... Ele está se afastando agora.
- Tem certeza?
- Absoluta. É o motorista de St. Claire. O que significa que, se nos seguiu até aqui, está nos seguindo desde o início. E sabe que Alison está em Arundel! - Peter levantou-se, esforçando-se o mais possível para disfarçar seu medo. - vou telefonar.
Alison atendeu.
- Graças a Deus que você está aí! Preste atenção ao que voudizer, Alison, e faça o que eu mandar. Procure aquele oficial da. Marinha, o que nos deu dinheiro, peça-lhe
para ir ficar aí com você. Diga-lhe para ir armado. Enquanto ele não chegar, liguepara a segurança do hotel e diga que eu telefonei, insistindo para que fosse levada
para o restaurante. Haverá muita gente lá. Fique no restaurante até a chegada dele. E, agora, trate de fazer oque estou mandando.
- Claro - respondeu Alison, percebendo o pânico de Peter.
- Mas pode me explicar por quê?
- Fomos seguidos. E não sei há quanto tempo.
- Entendo... E você está bem?
- Estou, sim. Tenho a impressão de que estão nos seguindopara descobrir onde iremos levá-los. Não para nos fazerem mal.
- E você os está levando a algum lugar?
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- Estou. Mas não quero. Não tenho tempo para explicar. Faça apenas o que estou mandando. Eu a amo.
Peter desligou e voltou à mesa.
- Ela está no hotel? - indagou Brown. - Está tudo bem?
- Está, sim. Alguém vai fazer-lhe companhia. Outro amigo do general.
- Ele tinha muitos amigos. Já estou me sentindo melhor. Como já deve ter imaginado, gosto muito de Alison.
- Eu já havia percebido.
- É um homem de sorte. Ela não quis mais saber de mim.
- O que me surpreende.
- Pois eu não fiquei surpreso. Ela não queria ter qualquer relacionamento permanente com um uniforme. Queria alguém como você mesmo quando... Mas o que vamos fazer?
A mudança de assunto abrupta teria divertido Peter, em quaisquer outras circunstâncias.
- Você é muito forte?
- É uma pergunta desconcertante. Para quê?
- Pode brigar?
- Prefiro não ter que fazê-lo. Como não está me desafiando, só pode estar se referindo ao nosso amigo lá fora.
- Pode haver mais de um. yt
- Neste caso, a perspectiva me atrai ainda menos. O que está pensando fazer?
- Não quero que nos sigam até a casa de Ramirez.
- Também não quero. Vamos descobrir se são "eles" ou apenas "ele".
Era apenas um. Estava encostado num seda, no fundo do estacionamento, sob os galhos de uma árvore, olhando para a entrada do restaurante. Peter e Brown saíram por uma porta lateral. O homem de St. Claire não os viu.
- Há apenas um - sussurrou Brown. - Voltarei para o interior do restaurante e sairei pela porta da frente. Ficarei fazendo manobras com o carro. Boa sorte.
- Espero que saiba o que está fazendo.
- É melhor do que brigar. Poderíamos perder. Pode começar a se preparar. Não vou levar muito tempo.
Peter continuou escondido nas sombras ao lado da porta lateral, até que o homem de St. Claire afastou-se do capo do seda e foi postar-se atrás da árvore, inteiramente oculto. Devia ter visto Brown saindo pela porta da frente. Mas o homem não entrara em seu carro. Era estranho...
Vários segundos se passaram. Brown atravessou calmamente o estacionamento na direção do Triumph, iluminado pelos refletores do restaurante.
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Peter começou a se mover. Agachado, avançou pela beira da área pavimentada, oculto pelos carros estacionados, na direção do homem de St. Claire. No terreno além
do estacionamento havia muitos arbustos e um mato alto. A cerca de dez metros do motorista, Peter entrou no mato, o mais silenciosamente possível. Continuou a avançar,
lentamente, chegando cada vez mais perto, aproveitando o barulho do motor do Triumph para encobrir qualquer ruído que pudesse fazer.
No estacionamento, Brown saiu de marcha à ré de sua vaga,, apontando-o para a saída. Depois, subitamente, inverteu a mudança e acelerou. O carro pulou em direção
da árvore.
Peter estava a cinco metros do motorista de St. Claire, ocultopelo mato e pela escuridão. O homem estava confuso e a surpresa se estampava em seu rosto. Ele abaixou-se
por trás das janelas do seda; não tinha alternativa. Brown pisara no freio d» Triumph, a poucos centímetros do pára-choque dianteiro do seda. Ele saltou. O motorista
começou a recuar, totalmente concentrado em Brown.
Peter emergiu subitamente da escuridão, as mãos estendidas na direção do homem. O motorista ouviu o barulho que partia da escuridão, à direita. Virou-se no mesmo
instante, reagindo ao ataque. Peter agarrou-o pelo casaco, virando-o ao encontro do seda.
o motorista desferiu um pontapé, acertando Peter no joelho. Um soco violento
atingiu Peter no pescoço. Uma cotovelada explodiu em seu peito, provocando uma dor terrível. Uma joelhada foi desferida contra sua virilha.
Numa agonia súbita e incontrolável, Peter descobriu-se levadoa um estado de frenesi. Podia sentir a revolta explodindo dentro dele. Só havia agora a violência, só
lhe restava a força bruta, quetanto odiava.
Peter cerrou o punho direito. A mão esquerda permanecei» aberta, uma garra pronta para agarrar carne humana. Lançou-se com toda força contra o motorista, esmagando
o corpo dele contra o metal do seda, o punho cerrado martelando-lhe a barriga e maisabaixo. A mão aberta encontrou o rosto do motorista. Peter enfiou os dedos nos
olhos dele, o polegar rasgou uma narina. Puxou com toda força, batendo com o crânio de lado contra o teto ao carro. O sangue esguichou da boca, olhos e narinas do
motorista. Apesar disso, ele não parou; a sua fúria se igualava à de Peter.
Peter empurrou novamente a cabeça do motorista, afastandose dos joelhos dele. Bateu com o crânio contra o metal. Suas mãos estavam agora escorregadias, cobertas
de sangue. Empurrou o homem contra a janela, com tanta força que o vidro se espatifou.
- Pelo amor de Deus! - gritou Brown. - Pare!
Mas Peter não podia mais se controlar. Sua raiva encontrara uma razão, brutal e satisfatória. Estava se vingando de tudo.
A mão desceu para o pescoço do motorista, dando a volta para agarrar a garganta. Subitamente, empurrou-a para cima, pegando o queixo do homem e empurrando-lhe a
cabeça novamente para trás, contra o metal, ao mesmo tempo em que levantava o joelho contra a calça escura do uniforme de motorista, atingindo-o na virilha com tremendo
impacto.
O motorista soltou um grito e começou a ficar inerte.
- Mas que merda! - explodiu Brown.
- O que houve? - balbuciou Peter, quase sem ar nos pulmões.
- A maldita agulha quebrou!
O médico tinha uma seringa na mão; enfiara a agulha no ombro do motorista. Subitamente, o homem caiu para a frente, em cima de Peter. Brown deu um passo para trás
e falou novamente:
- Filho da puta... Mas deu para injetar o suficiente... Uma multidão se reunira na varanda do restaurante. Alguém
ouvira o grito do motorista e fora pedir ajuda.
- Vamos sair logo daqui! - disse Brown, segurando o braço de Peter.
A princípio, Peter não reagiu. Sua mente estava dominada por sombras e clarões. Não conseguia pensar.
Brown pareceu compreender. Arrastou Peter para longe do seda, até a porta do Triumph. Abriu-a e empurrou Peter para dentro. Depois, correu em torno do carro e sentou-se
ao volante.
Saíram em disparada do estacionamento, entrando na escuridão da auto-estrada. Seguiram em silêncio por vários minutos. Brown estendeu o braço para o banco traseiro
e pegou sua maleta médica.
- Há uma garrafa de álcool e gaze aqui dentro, Peter. Trate de se limpar.
Ainda atordoado, Peter obedeceu. Um momento depois, o major-médico voltou a falar:
- Que diabo você foi? Um Boina Verde?
- Não, não fui nada.
- Peço permissão para discordar. Não pode deixar de ter sido alguma coisa! Confesso que eu não teria acreditado se não tivesse visto. Não parece o tipo.
- Não sou e nunca fui nada.
- Pois se algum dia eu levantar a voz para você, já estou pedindo desculpas antecipadamente. E, além disso, ainda sairei correndo como se o diabo estivesse em meus
calcanhares. Você é
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o melhor lutador de vale-tudo que já vi. Para uma briga de rua, acho que é imbatível.
Peter olhou para Brown, murmurando:
- Não fale assim, por favor...
Os dois ficaram em silêncio novamente. Brow diminuiu a velocidade ao se aproximarem de um cruzamento, virando em seguida para a esquerda e entrando na estrada para Bethesda. Peter tocou no braço do médico.
- Espere um pouco...
A dúvida obscura que o invadira quando Brown saíra do restaurante voltara à sua mente, insistente. Por que o motorista não entrara em seu carro?
Peter recordou fatos de dois anos e meio atrás, quando estava pesquisando para Contra-ataque!, as conversas com os homens descontentes, a tecnologia que lhe haviam descrito.
- Qual é o problema? - indagou Brown.
- Se fomos seguidos, como não o percebemos antes? Estamos atentos desde o início.
- Onde está querendo chegar?
- Pare o carro! - gritou Peter, visivelmente alarmado. Tem uma lanterna?
- Claro. Está no porta-luvas.
Brown desviou o carro para o acostamento e parou. Peter pegou a lanterna, saltou do carro e correu para a mala, abaixando-se. Acendeu a lanterna e rastejou para baixo do chassi.
- Encontrei! - gritou ele subitamente. - Pegue a caixa de ferramentas! E me dê a chave inglesa!
Brown atendeu o pedido. Peter continuou debaixo do carro, trabalhando furiosamente com a ferramenta. Ruídos de metal triturado partiam da área traseira do eixo. Pouco depois, Peter saiu de debaixo do carro, segurando dois pequenos objetos de metal na mão esquerda.
- São dois transmissores! É por isso que não víamos ninguém. Podiam ficar de cinco a oito quilómetros para trás e continuar a nos seguir. Onde quer que fôssemos, quem quer que encontrássemos, eles simplesmente ficariam esperando pelo momento propício. - Peter fez uma pausa, a expressão sombria. - Mas encontrei os transmissores. Estão desligados. E agora vamos para Bethesda.
- Mudei de ideia - disse Brown, ao entrarem na rua arborizada onde ficava a casa de Ramirez. - Acho que devo acompanhá-lo.
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- Não. Deixe-me na próxima esquina. Chegarei até a casa a pé.
- Já lhe ocorreu que ele pode tentar matá-lo? Ele está me esperando e usamos o mesmo uniforme.
- É por isso que ele não irá me matar. Eu lhe direi a verdade. E deixarei bem claro que está à minha espera. Um oficial, colega. Se eu não voltar, você irá a algum lugar determinado e o segredo de Chasong será revelado publicamente.
O carro se aproximou da esquina. Brown diminuiu a velocidade.
- Se Chasong é o que estamos pensando...
- Sabemos muito bem o que joi!
- Está certo, diga toda a verdade. Talvez ele não esteja disposto a enfrentar as consequências. Não se esqueça de que Ramirez é um oficial de carreira. Pode decidir liquidá-lo e ir junto.
- Cometer suicídio? - indagou Peter, incrédulo.
- A incidência de suicídio entre os militares não é muito comentada - disse o médico, parando o carro - mas posso lhe garantir que é extremamente alta. Alguns dizem que sobe à medida que se ascende na carreira. Não lhe perguntei antes, mas não posso deixar de fazê-lo agora: está armado?
- Não. Eu estava com um revólver, mas as balas acabaram. Não me preocupei em arrumar outra.
Brown abriu a maleta medica e tirou um pequeno revólver de uma bolsa lateral.
- Leve isto. Temos porte de arma porque costumamos levar drogas. Boa sorte. Ficarei esperando.
Peter chegou ao caminho de pedras. Ramirez estava na janela, olhando para fora, o rosto refletindo seu espanto em ver Peter. Espanto, mas não choque, não pânico. Ele largou a cortina e desapareceu. Peter subiu os degraus e tocou a campainha.
A porta se abriu. Os olhos latinos do general fixaram-se friamente em Peter.
- Boa-noite, General. O Major Brown mandou pedir desculpas. Ficou tão transtornado com os registros de Chasong que nem quis falar-lhe. Mas está à minha espera, no fim do quarteirão.
- Eu já esperava por isso. O seu médico tem memória curta ou pensa que os outros têm. Sei quem ele é, o enfermeiro da Coreia que MacAndrew transformou em médico. O mesmo que teve um caso com a filha dele.
Ramirez levantou a mão, cortou o ar duas vezes, olhando além de Peter.
Era um sinal.
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Peter ouviu o barulho de um motor na rua, às suas costas. Virou-se. Os faróis de um carro da polícia militar foram acesos. O carro arrancou bruscamente, aumentando a velocidade em poucos segundos. Disparou rapidamente e chegou à esquina em poucos segundos, freando também bruscamente, quase sob a luz de um lampião. Dois soldados saltaram e correram na direção de um terceiro vulto o qual, por sua vez, também correu. Mas não foi suficientemente rápido.
Peter ficou observando o Major Philip Brown ser capturado. Ele não era adversário para a polícia militar. Foi empurrado para dentro do carro dos militares.
- Não há mais ninguém à sua espera - comentou Ramirez.
Peter virou-se, furioso, estendendo a mão para sua arma. Interrompeu o gesto no meio. Havia uma automática 45 apontada para seu peito.
- Não pode fazer isso!
- Acho que posso - declarou Ramirez. - O médico será mantido no mais absoluto isolamento, não lhe permitiremos visitas, nenhum telefonema, nenhum contato com o exterior. É o procedimento habitual para os oficiais que violam a segurança nacional. Vamos entrar, Sr. Chancellor.
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Estavam no gabinete de Ramirez. Os olhos do general Se arregalaram, os lábios se entreabriram, ele abaixou a arma.
Procure a ficção, sempre a ficção, pensou Peter. Na ficção está a realidade, os recursos da imaginação são mais poderosos do que qualquer arma.
- Onde está a cana? - perguntou o general.
Peter mentira para Ramirez, declarando que escrevera uma carta relatando o que realmente acontecera em Chasong: um massacre racial. A carta fora remetida para Nova York. Seriam enviadas cópias aos principais jornais, ao Comité das Forças Armadas do Senado e ao secretário do Exército, caso o general não cooperasse.
- Está fora do meu controle. E também do seu. Não pode interceptá-la. Será aberta, a menos que eu apareça amanhã em Nova York, por volta do meio-dia. A história de Chasong será lida por um editor extremamente agressivo.
- Ele a trocará por sua vida - disse Ramirez, cautelosamente.
A ameaça não tinha conteúdo; a voz dele carecia de convicção.
- Não creio. Ele avaliaria as prioridades. E tenho quase certeza de que correria o risco.
- Mas há outras prioridades que estão muito acima de nós!
- Acho que acabou se convencendo disso!
- Mas é verdade! Não se pode dar um rótulo indevido a um acidente de comando, uma coincidência que não pode voltar a ocorrer nem em mil anos!
- Já percebi.
Peter olhou para a arma. O general hesitou por um momento, depois colocou a automática em cima da mesa, ao seu lado. Mas não se afastou da mesa. A arma continuava ao alcance de sua mão. Peter reconheceu o gesto como um aceno e repetiu:
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- Já percebi. É essa a explicação oficial. Um acidente. Uma coincidência. Foi por acaso que todos os soldados em Chasong eram negros. Mais de 600 homens mortos, só Deus sabe quantas centenas de outros desaparecidos... e todos negros.
- Foi assim mesmo.
- Não foi, não! Não havia batalhões segregados naquele tempo!
A expressão de Ramirez era desdenhosa:
- Quem lhe disse?
- Truman deu a ordem em 1948. Todos os ramos das forças armadas eram integrados.
- Deviam ser, com a rapidez apropriada - comentou o general, em tom monótono. - As forças armadas não foram mais rápidas que outros setores da nação.
- Está querendo insinuar que foram apanhados de surpresa pela demora deliberada que demonstraram? Que a resistência ao cumprimento de uma ordem presidencial acabou resultando no terrível massacre de Chasong É isso?
- Exatamente. - Ramirez deu um passo à frente. - A resistência a uma política inexequível! Mas será que não percebe como isso seria distorcido pelos radicais? E não só aqui na América, mas também no exterior!
- Compreendo perfeitamente.
Peter percebeu um brilho de esperança nos olhos de Ramirez. O oficial resolvera enveredar por uma manobra evasiva e por um momento pensou que poderia dar certo, Peter alterou o tom de voz o mínimo necessário para tirar todo proveito possível da falsa esperança do general:
- Vamos esquecer as baixas por um momento. Qual a participação de MacÂndrew em Chasong?
- Já conhece a resposta. Quando telefonou, falei coisas que nunca deveria ter-lhe dito.
Era tudo um embuste. A mentira estava lá no fundo, pensou Peter. Havia dois medos de revelação, sendo que um bem mais terrível do que o outro para Ramirez. Assim, o medo menor, a transmissão de informações falsas para o inimigo, fora revelado, a fim de evitar o outro, mais pernicioso. Qual seria esse medo?
- Sobre a esposa de MacÂndrew?
O general assentiu, aceitando a culpa com humildade.
- Fizemos o que achávamos certo na ocasião. O objetivo era salvar vidas americanas.
- Ela foi usada para transmitir falsas informações.
- Exatamente. Era um veículo perfeito. Os chineses operavam amplamente no Japão, ajudados por fanáticos japoneses. Paia muitos, tudo se reduzia a uma guerra entre orientais e brancos.
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- Nunca ouvi falar disso antes.
- O problema jamais teve muita diuulgação. Era um espinho constante no flanco de MacArthur e seus efeitos foram devidamente atenuados.
- Que tipo de informações foram fornecidas à esposa de MacAndrew?
- As informações habituais. Movimentos de tropas, rotas de abastecimentos, depósitos militares, opções táticas. Especialmente movimentos de tropas e opções táticas.
- Foi ela quem transmitiu as informações táticas a respeito de Chasong?
Ramirez hesitou, olhando para o chão. Havia algo de artificial na reação do general, que parecia ensaiada. Ele acabou murmurando, relutantemente:
- Foi, sim.
- Mas essa informação não era falsa. E resultou num massacre.
- Ninguém sabe como aconteceu. Para poder entender, deve compreender como funcionam as pessoas encarregadas de transmitir ao inimigo as informações que preparamos, sem saber o que estão fazendo. Não lhes fornecemos mentiras totais. Se tal acontecesse, o inimigo suspeitaria da pessoa que estamos usando, as informações seriam rejeitadas. Por isso, fornecemos variações da verdade, sutis alterações do possível. "O 6. Batalhão de Engenharia chegará ao Setor de Combate Baker a 3 de julho." Só que não é o 6." de Engenharia, mas sim o 6. Batalhão Blindado, e que chega ao setor a -5 de julho, flanqueando o inimigo. No caso da operação em Chasong, a variação fornecida à esposa de MacAndrew não foi absolutamente uma variação. De algum modo, as ordens foram trocados no comando da G-2. E ela transmitiu as informações que resultaram no lamentável massacre.
O general se empertigou, fitou Peter nos olhos e acrescentou:
- Já sabe agora a verdade.
- Será mesmo?
- Tem a palavra de honra de um oficial-general.
- Tenho dúvidas se tal palavra vale alguma coisa.
- Não me provoque, Chancellor. Já lhe falei muito mais do que tem o direito de saber. Quero apenas que entenda como seria grande a angústia se a tragédia de Chasong fosse revelada ao público. Os fatos seriam interpretados da maneira errada, a recordação de pessoas de bem seria arrastada na lama.
- Ei, espere um pouco!
Ao falar hipocritamente no óbvio, Ramirez desencadeara uma recordação. As recordações de Alison. Os pais de sua mãe prisio-
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neiros no Golfo de Po Hai. Essa tinha sido a primeira ligação chinesa, mas não era isso! Era algo que Alison dissera ter ocorrido depois da noite em que trouxeram
sua mãe numa maca. Algo a respeito do pai... O pai viera a Tóquio pela penúltima vez, antes de voltarem para a América. Era isso: a penúltima vez! Antes do colapso final da esposa e o retorno aos Estados Unidos, MacAndrew voltara à Coreia! E fora nessa ocasião que ocorrera a Batalha de Chasong! Semanas depois da mãe de Alison ter sido hospitalizada. Ela não poderia ter transmitido as informações sobre Chasong, acuradas ou não.
- Qual é o problema? - indagou o general.
- O que você disse! Mas, que diabo, é isso mesmo! As datas! Não poderia ter acontecido! O que foi mesmo que disse há poucos minutos? A história de algum batalhão que é esperado em algum lugar no dia 3 de julho mas só chega no dia 5 e ainda por cima é um batalhão diferente. Como foi mesmo que chamou? Alguma frase imbecil... ah, sim, "sutis alterações do possível". Não foi isso mesmo? Pois acabou de se trair, General. O massacre em Chasong ocorreu semanas depois que a esposa de MacAndrew foi hospitalizada. Ela não poderia ter dado a informação a ninguém. E agora vai me contar o que realmente aconteceu! Se não o fizer, não haverá nenhuma espera até amanhã. A carta que remeti para Nova York será lida esta noite mesmo!
Os olhos de Ramirez estavam fixados nos de Peter, sua boca tremia.
- Não! Não pode! Não vou permitir! Ele estava estendendo a mão para a arma! Peter avançou subitamente, jogando-se em cima do general. Seu ombro bateu no lado de Ramirez, arremessando-o contra a parede. Ramirez ainda conseguiu segurar a arma pelo cano, procurando acertá-la em Peter. O cabo atingiu a têmpora de Peter. Uma dor intensa se espalhou pela cabeça dele, fazendo mil pontos brancos explodirem diante de seus olhos.
A mão direita de Peter segurava a túnica de Ramirez, o pano comprimido contra o peito do oficial. A mão direita se deslocava freneticamente, golpeando e aparando golpes, procurando desesperadamente agarrar a pesada arma.
Subitamente, Peter sentiu o cabo em sua mão. Levantou o joelho e atingiu a barriga do general, empurrando-o contra a parede. Agora que conseguira segurar na arma, Peter não pretendia mais largá-la, em hipótese alguma. Ramirez continuou a golpear historicamente o rim de Peter, que tinha a sensação de que a qualquer momento poderia desmaiar, tão intensa era a dor.
Seu dedo estava perto do gatilho! Nos movimentos bruscos dos dois braços, Peter podia sentir a proteção do gatilho.
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Mas não podia disparar! Um estampido atrairia os vizinhos! E a polícia! Se isso acontecesse, Peter nada poderia descobrir!
Ele deu um passo para trás e levantou a perna- direita, ao mesmo tempo em que puxava a túnica de Ramirez para baixo, com toda força. O joelho acertou no rosto de Ramirez, jogando-lhe a cabeça para trás. O general deixou escapar todo o ar dos pulmões, largou a arma, os dedos se contraíram na agonia. A automática voou pela sala, indo bater no porta-canetas de mármore que estava em cima da escrivaninha. Peter largou a túnica. Ramirez desabou, desmaiando, o sangue esguichando das narinas.
Peter levou um minuto para conseguir se recuperar. Ajoelhouse diante do soldado e esperou até que sua própria respiração estivesse mais firme, até que os pontos
brancos diante dos olhos desaparecessem e a dor nas têmporas se desvanecesse. Só depois que foi pegar a arma.
Havia uma garrafa de água de Evian numa bandeja de prata, em cima de uma prateleira. Ele abriu a garrafa e despejou um pouco de água na palma, passando no rosto.
Ajudou um pouco. Estava começando, a recuperar a lucidez.
Peter despejou o que restava da água no rosto do general desmaiado. A água misturou-se com o sangue que estava no chão, derramado do nariz de Ramirez, formando um rosa repulsivo.
Lentamente, Ramirez foi recuperando os sentidos. Peter pegou uma almofada solta numa poltrona e jogou-a para o general. Ramirez enxugou o rosto e o pescoço com a almofada e depois levantou-se, apoiando-se na parede.
- Sente-se - ordenou Peter, sacudindo o cano da arma na direção de uma poltrona de couro.
Ramirez afundou na poltrona, jogando a cabeça para trás e murmurando:
- Aquela vaca! Aquela puta sem-vergonha!
- Já é algum progresso - comentou Peter, suavemente. -, Há poucos dias, disse que ela era uma mulher "infeliz", "instável".
- Ela não passava de uma vaca.
- Ela era assim mesmo ou foi nisso que a transformaram?
- O material estava à espera de ser moldado. E ela não hesitou em trair seu país.
- Não se esqueça de que ela tinha o pai e a mãe na China.
- Tenho dois irmãos que emigraram para Cuba. Acha que os fidelistas não tentaram fazer chantagem comigo? Mas estão apodrecendo na cadeia neste momento! Eu não faria jamais qualquer concessão!
- É mais forte do que ela era. E foi preparado para não fazer qualquer concessão.
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- Ela era a esposa de um oficial do Exército dos Estados Unidos! O Exército dele era o Exército dela também!
- O que significa que ela não estava à altura de sua posição, não é mesmo? Mas em vez de ajudá-la, vocês a usaram. Viciaram-na em tóxicos e a despacharam para uma luta que ela não podia vencer. Brown é que disse a verdade. Vocês não passam de uns miseráveis, uns filhos da puta!
- A estratégia era perfeita!
- Pare de dizer besteira! Quem lhe deu o direito?
- Ninguém! Eu percebi a tática! Eu criei a estratégia! Eu era o controle!
Ramirez empalideceu. Tinha ido longe demais.
- Você?
Peter recordou as palavras de Alison. Perguntara-lhe, logo depois do enterro, o que MacAndrew pensava de Ramirez. Um homem arrebatado, que se deixa levar pelas emoções. Não merece a menor confiança. Papai se recusou a recomendar duas promoções para ele.
- Havia muitas operações assim - acrescentou Ramirez, procurando bater em retirada. - E é claro que havia outros envolvidos.
- Não havia, não! Não neste caso específico! Foi tudo ideia sua! Que maneira melhor de se vingar de um homem que sabia exatamente quem você era? Um estouvado! Um mentiroso! Queria se vingar do homem que lhe negou a promoção para a qual não estava qualificado! Vingou-se na esposa dele!
- Eu conquistei a promoção a que tinha direito! Ele não podia me impedir! Aquela puta não podia me atrapalhar!
- Mas claro que não podia! Você o imobilizou, através dela! Como começou? Indo para a cama com ela?
- Não foi difícil. Ela era uma vaca!
- E você tinha o bombom para atraí-la, não é mesmo? Ah, era um grande garanhão! E quando conquistou sua promoção, não teve coragem de exibir o novo posto, porque sabia como fora obtido. Inventou motivos para ocultar a promoção, porque sabia que não estava qualificado. Fingiu ser um major para poder conversar com todos livremente. Não dá a menor importância a ninguém para se preocupar com essas coisas. Tinha era medo do posto a que foi promovido. Não passa de uma fraude!
Ramirez levantou-se de um pulo, o rosto vermelho de raiva. Peter acertou-lhe um pontapé na barriga. O general voltou a desabar na poltrona, gritando:
- Seu mentiroso nojento!
- Acertei em cheio, não é mesmo? - Não era uma pergunta. Subitamente, Peter parou de falar. Puta? Não fazia sentido. Uma
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enorme contradição estava patente. - Ei, espere um pouco! Não poderia ter comprometido MacAndrew dessa maneira. Ele simplesmente o mataria. Nunca soube que a esposa
fornecia as suas informações preparadas para o inimigo, porque você não poderia contar-lhe. Ninguém jamais poderia contar-lhe isso. Só podem terlhe dito outra coisa. Ele nunca soube da verdade!
- Ele sabia que a esposa não passava de um puta! Sabia disso perfeitamente!
Uma imagem aflorou na mente de Peter. Um homem forte, mas angustiado, aninhando em seus braços uma mulher louca, no chão de uma casa isolada. E embalando-a afetuosamente, dizendo que estava tudo bem. Era uma contradição grande demais. Independente da angústia pessoal, uma esposa prostituída teria destruído inteiramente a vida de MacAndrew.
- Não acredito nessa sua história, Ramirez.
- Ele próprio viu! Tinha que saber!
- Ele viu alguma coisa, disseram-lhe alguma coisa. Ou talvez tenham apenas insinuado. Vocês têm uma extraordinária capacidade para insinuar as coisas, sem jamais enunciá-las expressamente. Não acredito que MacAndrew pensasse que a esposa era uma puta. Não acredito que ele pudesse suportar tal ideia por um momento que fosse!
- Todos os sintomas eram evidentes. A mentalidade de vagabunda sempre existiu.
Sintomas. Peter olhou atentamente Ramirez. Estava chegando perto. Sintomas... Segundo Alison, a mãe começara a se "afastar" vários meses antes da explosão final. O pai de Alison não sabia por que e assim atribuíra os sintomas a uma deterioração das faculdades mentais, usando um acidente na praia como a causa do colapso final. E usando com tanta frequência que ele próprio acabara acreditando.
No fundo de sua, mente, um homem como MacAndrew continuaria a amar e proteger a esposa, por não considerá-la culpada. Não importava o que ela tivesse feito. Forças conflitantes, os pais nas mãos do inimigo, o marido combatendo esse mesmo inimigo diariamente, acabariam levando aquela mulher à loucura.
E, durante todo o tempo, os amigos de confiança insinuavam um comportamento promíscuo, a fim de encobrirem as suas próprias ações.
O que esses colegas não haviam compreendido era que MacAndrew sempre fora um homem muito melhor do que podiam imaginar. Muito melhor e muito mais compassivo. Quaisquer que fossem as manifestações de uma doença, era a doença que devia ser desprezada e não as ações dos seres humanos por ela afetados.
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E aquele verme com o rosto ensanguentado, suando na poltrona, aquele "controle" que acenara com uma isca até dormir com a esposa do homem a quem odiava, ainda insistia em repetir continuamente a palavra puta.
Era a palavra que servia de tela para esconder a verdade.
- O que é uma mentalidade de vagabunda, General?
Os olhos de Ramirez estavam cautelosos; ele desconfiava de alguma armadilha.
- Ela frequentava o Ginza, ia aos bares escusos, pegava homens por lá.
- Esses bares não ficavam a sudoeste do Ginza? Já visitei Tóquio. Esses bares ainda existiam em 1967.
- Alguns deles.
- Traficavam com narcóticos.
- É possível. Mas faziam algo mais importante: vendiam sexo.
- E vendiam em troca de que, General?
- Do que sempre se pede em troca.
- Dinheiro?
- Claro. E emoção.
- Não tem nada de claro, General! A esposa de MacAndrew não precisava de dinheiro. Nem de emoção. Estava procurando por drogas! Conseguiu viciá-la e ela decidiu procurar as drogas por sua própria iniciativa. Sem ter que recorrer aos chineses! No momento em que ela começou a agir assim, toda a sua maldita estratégia ficou ameaçada! Bastaria uma prisão, uma batida policial de alguma organização independente, e estaria liquidado! Seria desmascarado! Tinha muito o que esconder, seu filho da puta! Mas havia outros envolvidos também. O que foi mesmo que disse há poucos minutos? "Havia muitas operações assim..." Estavam todos tentando se proteger, procurando algo para encobrir seus atos! - Peter parou de falar. De repente começava a compreender. Respirou fundo e acrescentou: - O que significa que tinham de controlar o que aconteceu...
- Aconteceu por acaso! - gritou Ramirez, interrompendo-o.
- Não fomos os responsáveis! Ela foi encontrada num beco no Ginza! Não fomos nós que a levamos para lá! E ela foi encontrada a tempo, caso contrário poderia ter morrido!
As imagens e frases apareciam e sumiam da mente de Peter, numa sucessão vertiginosa. As palavras de Alison ressoavam em sua cabeça, como os ecos de tambores. A mãe dela fora levada numa tarde de domingo para a praia de Funabashi. No meio da tarde, o telefone tocou. Perguntaram se mamãe estava, se já tinha voltado... Dois oficiais do Exército apareceram em nossa casa. Estavam muito nervosos, apreensivos...
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Perguntaram se mamãe estava... Perguntaram se mamãe estava...
De noite, já bem tarde, ouvi gritos... Lá embaixo... homens... andavam rapidamente de um lado para outro, jalavam ao telefone, em rádios portáteis. Depois, a porta se abriu e trouxeram mamãe. Numa maca... E o rosto dela... estava terrivelmente pálido. Os olhos estavam arregalados, sem verem coisa alguma... sangue... descendo pelo queixo, caindo no pescoço. Quando a maca passou por baixo de um lâmpada, mamãe se soergueu bruscamente, gritando... contorcendo o corpo, preso por correias...
Santo Deus!, pensou Peter. As palavras seguintes de Alison!
Soltei um grito e desci correndo a escada. Mas um major... um major negro... deteve-me, pegou-me no colo...
Um major negro!
E ele devia estar ao pé da escada, perto da luz! Fora ele que a mãe de Alison vira!
Peter recordou outras palavras. Uma ordem que lhe fora gritada por um homem em terrível agonia, 22 anos depois, num fim de tarde, ainda protegendo a mulher amada, levada à loucura por um acontecimento tão horrível que ela jamais esqueceria.
Fique perto da luz! Mostre o seu rosto! Não era para mostrar que as feições dele, Peter, eram ocidentais e não orientais. Não era absolutamente para isso! Era para mostrar que ele não era preto!
A mãe de Alison não fora torturada por agentes chineses quando transmitia uma mensagem preparada pelo serviço secreto do Exército americano. Fora estuprada! Comparecera a um bar proibido na área mais sórdida do Ginza, onde faria um contato. E, .chegando ali, fora arrastada para um beco e estuprada.
- Oh, Deus! - exclamou Peter, dominado por uma repugnância incontrolável. - Foi o que disseram a ele! Foi isso o que lhe incutiram, foi isso o que usaram! Ela foi estuprada por negros. Estava procurando um contato num bar e foi estuprada!
- Era a verdade!
- Num lugar como aquele, ela poderia ter sido estuprada por qualquer um! Absolutamente qualquer um! Mas não foi, e você tratou de tirar proveito do acontecimento! Culpou os negros! Santo Deus! - Peter teve que fazer um tremendo esforço para se conter. Sua vontade era matar, destruir impiedosamente, tão intensa era a aversão que sentia por aquele homem. - Não precisa contar o resto. Está tudo terrivelmente claro! É a informação que está faltando na folha de serviço de MacAndrew. E é o que está nos arquivos de Hoover! Depois que a esposa foi para o hospital, providenciou para que MacAndrew voltasse à Coreia. Mas não para a sua própria unidade! Para outra! Uma unidade só de negros!
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E, de alguma forma, comunicou aos chineses os planos de combate, toda a estratégia verdadeira! Era mais do que óbvio! A esposa de um oficial é estuprada e levada à loucura por negros. Por isso, ele expõe seus soldados negros a um fogo inimigo mortal, disposto a morrer com eles se fosse necessário, mas querendo acima de tudo se vingar! Uma armadilha preparada por seus próprios colegas oficiais! Centenas de homens mortos, centenas desaparecidos, para que jamais transpirasse a verdade sobre o que fizeram com ela e provavelmente com dezenas de outras! Suas experiências ocultas para sempre! Era a arma que tinham contra ele: estupro e genocídio! Sobre a primeira ele não queria falar, enquanto a segunda não chegava a compreender. Mas podia perceber a ligação entre os dois acontecimentos! E com isso ficou paralisado!
- É tudo mentira! - Ramirez sacudia a cabeça para frente e para trás, convulsivamente. - Não foi isso o que aconteceu! Está inventando uma mentira monstruosa!
Peter parou diante do general, quase no limite extremo do ódio, dizendo sarcasticamente:
- Parece mesmo com um homem que acaba de ouvir uma mentira. Não, General, tudo o que eu disse é verdade. E está fugindo dessa verdade há 22 anos.
A cabeça de Ramirez se deslocava mais depressa, a negativa mais enfática.
- Não há provas!
- Mas haverá perguntas. Que levarão a outras perguntas. É assim que funciona. Pessoas nos mais altos postos traindo a todos nós, que as pusemos lá. Filhos da puta! - Peíer baixou a mão esquerda e agarrou Ramirez pela túnica, obrigando-o a ficar de pé, a arma a poucos centímetros dos olhos dele. - Não quero mais falar com você. Estou enojado. Acho que poderia facilmente puxar o gatilho e matá-lo. O que me deixa apavorado. Portanto, faça exatamente o que vou mandar, se quer continuar a viver para fazer qualquer coisa que seja. Vá até o telefone que está em sua mesa e ligue para o lugar em que está aquele major que mandou prender. Diga que o soltem. E imediatamente!
- Não!
Num movimento súbito, Peter bateu com o cano da automática no rosto de Ramirez. A pele arrebentou, um filete de sangue escorreu pelo rosto do general. Peter não sentiu absolutamente nada. E havia algo assustador naquela ausência total de sentimento.
- Dê o telefonema.
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Lentamente, Ramirez levantou-se, os olhos fixados na arma, a mão procurando conter o sangue no rosto. Ele foi até o telefone e discou.
- Aqui é o General Ranoirez. Pedi um destacamento especial para a minha residência, às 18 horas, a fim de efetuar uma prisão. O prisioneiro é um certo Major Brown, Podem soltá-lo.
Ramirez ficou escutando, enquanto a voz do outro lado do fio dizia alguma coisa. Peter encostava o cano da automática na têmpora do general.
- Façam o que estou determinando! - disse Ramirez. - Levem o major de volta ao carro dele! - Ele repôs o fone no gancho, mas sem largá-lo. - O major estará aqui dentro em breve. O quartel da PM fica a menos de dez minutos de carro.
- Eu lhe disse que não queria mais falar com você, mas acontece que mudei de ideia. Vamos ficar esperando por Brown. Enquanto isso, vai me contar tudo o que sabe
a respeito dos arquivos de Hoover.
- Não sei nada.
- Uma ova que não sabe! Vocês estão afundados nisso como se fosse um bolsão de areia movediça. E estão quase sufocando. Removeram oito meses da folha de serviço
de MacAndrew.
- Foi tudo o que fizemos.
- Oito meses! E as datas correspondiam aos acontecimentos que levaram a Chasong. Todo o material incriminador. E depois o massacre, quando MacAndrew enviou ondas sucessivas de soldados negros para ataques suicidas. Ocultaram tudo, menos a verdade! E sabiam perfeitamente para onde todo esse material estava indo!
- A princípio, não sabíamos. - A voz do general era um sussurro quase inaudível. - No início, era um procedimento normal. Todas as informações comprometedoras sobre candidatos ao Estado-Maior Conjunto são removidas e transferidas para os arquivos do G-2. Mas também achou que isso era perigoso e tais informações foram transferidas para o RAP.
- E o que é isso?
- Registro de Análises Psiquiátricas. Até recentemente, alguns homens do FBI tinham acesso ao RAP. Ê lá que estão as fichas de desertores, de oficiais de alta patente que podem se tornar vítimas de chantagem, de espiões... de muitas coisas, enfim.
- Quer dizer que sabiam que a informação sobre MacAndrew estava nos arquivos de Hoover!
- Descobrimos isso.
- Como?
- Por intermédio de um homem chamado Longworth. Era um agente aposentado do FBI que vivia no Havaí. Voltou por
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um dia, talvez dois, não me recordo direito, e avisou a Hoover que ia ser assassinado. Por causa dos arquivos. Hoover ficou furioso. Vasculhou os arquivos, procurando por algo que pudesse levar à identidade dos assassinos. Deparou com Chasong e recebemos um telefonema. Juramos que não estávamos envolvidos, oferecemos garantias, proteção, tudo o que ele quisesse. Hoover queria apenas que soubéssemos que ele estava a par de Chasong. E logo depois, é claro, ele foi assassinado.
Peter largou a arma. O barulho do metal se chocando com a madeira foi alto, estrondoso mesmo. Mas Peter não ouviu. A única coisa que ouvia era o eco das últimas
palavras do general.
E logo depois, é claro, ele foi assassinado.... E logo depois, é claro, ele foi assassinado... E logo depois, é claro, ele foi assassinado. ..
E ditas como se a terrível informação não fosse chocante, surpreendente, assustadora ou até mesmo anormal. Parecia que era rotina, algo do conhecimento comum, um fato registrado e universalmente aceito, já consignado nos anais.
Mas não era real. Outras coisas eram reais, mas não aquilo. Não aquele assassinato. Aquilo era fantasia, a ficção que o impelira ao pesadelo, mas que era a única coisa que não havia acontecido!
- O que foi mesmo que disse?
- Nada que já não soubesse - respondeu Ramirez, olhando para a arma no chão.
- Hoover morreu de parada cardíaca. Os médicos disseram que ele tinha uma doença cardiovascular. Foi assim que ele morreu! Já era um velho!
Peíer falou de um jato, sem sequer respirar. Ramirez fitou-o nos olhos.
- Está querendo brincar? Não houve autópsia. Sabe perfeitamente por que e eu também.
- Diga-me por quê. Não fique supondo que sei de tudo. Por que não houve uma autópsia?
- Ordens expressas de 1600.
- De quem?
- Da Casa Branca.
- Por quê?
- Eles mataram Hoover. Se não o fizeram, pelo menos assim pensaram. Acharam que alguém de lá era o responsável. Eles dão ordens indiretas e extremamente ambíguas lá na Casa Branca. Ou se é do grupo ou não se é. E quando se é, aprende-se a ler nas entrelinhas. Era preciso matar Hoover. Que diferença fazia quem fosse o autor do crime?
- Foi por causa dos arquivos?
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- Em parte. Mas são registros que podem ser queimados, destruídos. Ó outro problema, as unidades de eliminação, era muito maior. Eles tinham ido longe demais.
- Unidades de eliminação? Que diabo é isso?
- Pelo amor de Deus, Chancellor! Sabe perfeitamente do que estou falando, caso contrário não estaria aqui! Não teria feito tudo o que fez!
Peter tornou a agarrar Ramirez pela túnica.
- O que são essas unidades de eliminação? O que eram as unidades da eliminação de Hoover?
Os olhos do general estavam impassíveis. Dava a impressão de que não mais se importava com coisa alguma.
- Eram grupos de assassinato, homens incumbidos de criar situações em que pessoas específicas seriam assassinadas. Ou provocar violência que resultava em ação da polícia ou guarda nacional locais ou contratar psicopatas, assassinos profissionais ou assassinos em potencial para fazerem o serviço, eliminando-os em seguida. Tudo era imediatamente apagado dos registros, o segredo era total até mesmo dentro do FBI. Ninguém sabe até que ponto isso chegou. Ou até que ponto continua. Como também não se sabe quais os assassinatos que podem ser atribuídos a Hoover. Ou quem seria classificado de inimigo em seguida.
Lentamente, atordoado, as têmporas latejando dolorosamente, Peter largou o general. Pontos ofuscantes convergiam novamente diante dos seus olhos.
Unidades de eliminação! Pelotões de execução!
Recordou suas próprias palavras. Viu a página e leu-a na mente, terrivelmente angustiado.
"Sabia alguma coisa a respeito desses, . . pelotões de execução?
"Tem havido rumores."
"O que ouviu?"
"Nada de especifico. Não há prova... Hoover isola tudo em compartimentos estanques. E também a todos. Faz tudo secretamente... Dessa maneira, tldo mundo anda na
linha."
"Geslapof"
"O que ouviu?"
"Somente que havia soluções finais..."
"Soluções finais... Santo Deus!"
"Se precisávamos de uma última justificativa, acho que já a temos. Hoover será morto dentro de duas semanas, a contflr de segunda-feira, os arquivos removidos."
Era tudo verdade. Verdade desde o início: nunca fora ficção, era tudo realidade!
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J. Edgar Hoover não tivera a morte natural de um homem velho e doente. Fora assassinado.
- E, com súbita clareza, Peter compreendeu quem determinara aquele assassinato. Não fora a Casa Branca. Em vez disso, fora um grupo de homens irrepreensíveis, homens que tomavam decisões de tamanho impacto que frequentemente constituíam a força invisível e não eleita que dirigia a nação,
"Não podem fazer isso. Já têm tudo de que precisam! Levem-no a julgamento! Obriguem-no a enfrentar as decisões dos tribunais! Do país!"
"Você não compreende. .. Não há um só tribunal neste país, nenhum juiz, nenhum membro da Câmara ou do Senado, nem mesmo o Presidente ou qualquer membro do Gabinete,
que possa levá-lo a julgamento. Ele esta acima de tudo!"
"Não está, não. Existem leis."
"Existem os arquivos... Pessoas seriam atingidas... por outras que têm de sobreviver." (...)
"Se é assim que pensam, então não são melhores do que ele."
Era tudo verdade.
Inver Brass havia determinado a morte de J. Edgar Hoover e a ordem fora executada.
Aconteceu tão depressa que Peter mal teve tempo de reagir, limitando-se a virar o corpo e dar um pulo. Sentiu mãos em seu peito e depois o ombro de Ramirez chocando-se
contra suas costelas. Caiu, virando para o lado a fim de evitar um segundo golpe. Mas já era tarde demais.
o general se agachara sobre um joelho, estendendo a mão direita para a arma caída no chão. Segurou-a, virou-a, os dedos envolvendo rapidamente o cabo, o polegar
levantando instintivamente a trava de segurança. Ele levantou a aima.
Peter pensou que, se tinha de morrer naquele momento, devia pelo menos morrer tentando evitar a morte. Levantou-se de um pulo, saltando na direção do general.
E. novamente, já era tarde demais. A explosão ensurdecedora ressoou pela sala. Sangue e tecido foram arremessados contra a parede mais próxima. A fumaça saída do cano se elevou lentamente pelo ar.
O homem estava morto. O General Pablo Ramirez, o controle do massacre de Chasong, havia estourado a própria cabeça com um tiro.
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O estampido - a explosão - foi tão violento que não poderia deixar de ser ouvido a muitos quarteirões de distância. Alguém iria chamar a polícia. £ Peter não podia
ser visto saindo da casa. Tinha que sair pelos fundos e depressa, desaparecer na escuridão, nas sombras da noite.
Em pânico, Peter correu por um corredor estreito e chegou à cozinha. Abriu a porta dos fundos, cautelosamente, saiu, esgueirando-se para o lado, as costas- comprimidas contra a parede.
A essa à sua frente era separada da casa de Ramirez por uma sebe alta. Peter podia ver um caminho de carro, além da garagem. Pulou a pequena varanda dos fundos para o gramado e correu para a sebe, espremendo-se entre os galhos até chegar ao outro lado. Desceu correndo e chegou à rua. Virou para a esquerda e continuou a correr. O Triumph de Brown estava no quarteirão seguinte, na rua de Ramirez. Na esquina, Peter virou novamente à esquerda. Uma sirene gemia estridentemente a distância,
aproximando-se cada vez mais. Peter passou a andar. Era óbvio que a polícia iria prestar atenção num homem que estivesse correndo, informada já do estampido de um tiro.
Chegou ao Triumph e entrou. Pela janela traseira, viu que uma multidão, muito excitada, estava reunida no gramado da casa de Ramirez. As luzes faiscantes de uma radiopatrulha apareceram no final da rua, acompanhando a sirene.
Peter ouviu o barulho de outro motor, desta vez vindo da direção oposta. Virou-se. Era o veículo da polícia militar. Parou ao lado do Triumph. Brown saltou, pegando as chaves do carro com um dos soldados.
Eles bateram continência para o major, que não retribuiu. O carro militar se afastou.
- Ainda bem que já voltou - disse Brown para Peter, abrindo a porta.
- Vamos sair logo daqui! Depressa!
- O que houve? Por que aquela multidão...?
- Ramirez está certo.
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Brown não disse nada. Sentou-se ao volante e ligou o Triumph. Avançaram velozmente pelo quarteirão. De repente, apareceu uma limusine na direção contrária, os faróis ofuscantcs, mas parecendo um gigantesco tubarão negro a deslizar por águas escuras. Peter não pôde se conter e ficou olhando atentamente para as janelas da limusine.
O motorista estava concentrado exclusivamente em chegar a seu destino. Pela janela traseira do Triumph, Peter descobriu qual era esse destino: a casa de Ramirez.
E o motorista era preto. Peter fechou os olhos, procurando pensar.
- O que aconteceu? - perguntou Brown, virando o Triumph para oeste, na direção da auto-estrada. - Você o matou?
- Não. Poderia tê-lo matado, mas não o fiz. Você estava certo. Ele se suicidou. Não podia enfrentar as consequências de Chasong. Foi o responsável pelo massacre. Planejou-o como um meio para ocultar o que tinham feito com a esposa de MacAndrew.
Brown ficou calado por algum tempo. Quando falou, a voz estava impregnada de ódio e de incredulidade ao mesmo tempo:
- Filhos da puta!
- Se a história da esposa de MacAndrew fosse divulgada, dezenas de outras operações semelhantes seriam também reveladas. Outras experiências. Eles sabiam o que estavam fazendo.
- Ramirez admitiu tudo?
Peter olhou para Brown atentamente, antes de responder:
- Digamos que a verdade transpareceu em nossa conversa. Contudo, o mais espantoso é o resto. Nem mesmo tenho
certeza se conseguirei dizer. É absurdo demais!
- Está se referindo aos arquivos de Hoover?
- Não, ao próprio Hoover. Ele foi assassinado! Era verdade desde o início! Nunca foi mentira!
- Calma, calma... Se bem me lembro, disse que Varak declarou-lhe que era mentira.
- Ele estava mentindo! Estava protegendo...
Peter parou de falar abruptamente. Varak. O especialista. O homem de mil armas, uma centena de rostos... e dezenas de nomes. Santo Deus! Sabia de tudo desde o início e não tinha percebido! Longwonh. Varak assumira o nome de um agente chamado Longworth na noite de 1." de maio. Não era ninguém mais. Varak, apresentando-se como Longworth, fora um dos três homens que entrara no prédio do FBI, sem qualquer explicação, na noite anterior à morte de Hoover... o que significa que eles sabiam que a morte era certa! Encontraram metade dos arquivos desaparecidos. Essa parte era verdadeira. E Varak dera a vida para encontrar o resto
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e proteger Bravo... proteger com sua própria vida o extraordinário diplomata que o mundo conhecia como Munro St. Claire.
Varak tinha assassinado Hoover! O que foi mesmo que Frederick Wells disse? Varak foi o assassino e não Inver Brass... Mas posso e irei levantar questões incómodas sobre todos os movimentos dele, de 10 de abril até a noite de 1." de maio... Varak está com os arquivos!
- O que significa que Munro St. Claire estava com os arquivos. O próprio Varak fora enganado, manipulado!
Por seu mentor, Bravo.
E agora o culto de Chasong se concentrava em Ramirez. O culto que adquirira influência e poder de Munro St. Claire, que usara Varak assim como usara todos os outros. Inclusive um certo Peter Chancellor.
Estava tudo chegando ao fim. As forças estavam se encontrando, colidindo, como Carlos Montelán previra que iria acontecer. Acabaria naquela noite, de um jeito ou de outro.
- vou lhe contar tudo o que sei - disse ele a Brown. - Siga para Arundel. Eles não podem nos seguir. Contarei no caminho. Quero que fique com Alison. Quando chegarmos lá, levarei seu carro. Espere algum tempo e depois telefone para Munro St. Claire. em Washington. Diga-lhe que estarei esperando por ele na casa de Génesis, na baía. Ele deve ir sozinho. Estarei vigiando. Ele não me encontrará se não estiver sozinho.
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Da beira dágua vinha o barulho das ondas batendo suavemente contra os rochedos. Peter estava deitado na relva úmida. O ar estava frio, assim como o chão. O vento
soprava da baía em rajadas, assoviando entre as árvores altas que margeavam o gramado. Um homem o traíra, um homem a quem julgara amigo, que até chegara a ensinar-lhe algumas coisas. Esse era o motivo de Peter estar agora onde estava, os olhos nas colunas de pedra à entrada da propriedade, a 50 metros de distância, e na estrada mais adiante.
Ao se fazer um contato, a posição era tudo: procurar se proteger, buscando, ao mesmo tempo, ficar em condições de observar todos os veículos que se aproximassem; manter sempre em mente uma rota de fuga, rápida e segura.
Os amigos eram inimigos e os inimigos ensinavam estratégias com as quais se podia combatê-los. Era parte da loucura que se tornara por demais real.
Peter avistou faróis se aproximando, a menos de um quilómetro de distância. Não podia ter certeza, mas tinha a impressão de que os faróis oscilavam de um lado para outro. De vez em quando pareciam ficar parados, como se o carro tivesse parado, e no momento seguinte recomeçavam a movimentar-se. Se as circunstâncias fossem diferentes, pensou Peter, poderia estar observando um motorista embriagado tentando encontrar o caminho de volta para casa. Seria possível que aquele poderoso manipulador de homens e governos estivesse embriagado? Ramirez se matara porque não podia enfrentar as consequências de Chasong. Será que as revelações a respeito de Inver Brass eram mais do que St. Claire esíava disposto a suportar num estado mental estável?
O carro passou pelas colunas de pedra, hesitante. Peter prendeu a respiração por um momento, os olhos cravados na terrível visão. Era o Mark IV Continental prateado! O fato de St. Claire ter vindo nele para o encontro confirmava que o homem, assim como o veículo, era um monstro.
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Peter ficou observando o monstro prateado rodar pelo caminho circular, até parar ao pé da escadaria na entrada da casa. Voltou a olhar para a estrada, além das colunas
de pedra. Esquadrinhou a escuridão atentamente, numa concentração total. Não havia faróis na estrada, não havia qualquer sombra mais escura que pudesse ser identificada como um carro se aproximando com as luzes apagadas.
Peter continuou deitado na relva por quase cinco minutos mais, alternadaraente observando a estrada e St. Claire. O diplomata saltara do carro, subira os degraus e fora até a extremidade da varanda. Estava parado ali, olhando para a baía.
Outro homem, cheio de compaixão, ficara parado num cais de pescadores, olhando para outra extensão de água, 12 horas antes. Ao amanhecer. Esse homem estava morto, caíra numa armadilha preparada por um inimigo, fora liquidado por fanáticos que obe-, deciam às instruções de um monstro.
Peter finalmente sentiu-se satisfeito. Munro St. Claire viera, sozinho.
Ele levantou-se e atravessou o gramado na direção da varanda vitoriana. St. Claire permaneceu onde estava. Peter aproximou-, se dele por trás. Meteu as mãos nos
bolsos e tirou a automática de Brown com a direita e a lanterna com a esquerda. A menos de três metros de distância, apontou as duas para St. Claire e acendeu, a lanterna, ordenando:
- Levante o braço direito. Enfie a mão esquerda no bolso,!? pegue as chaves do carro e jogue para mim. O embaixador levou vários segundos para responder. Parecia abalado. O aparecimento súbito de Peter, a luz ofuscante da lanterna e as instruções ríspidas partidas
da escuridão deixaram-no momentaneamente paralisado. Peter não pôde deixar de sentir-se grato pelas instruções que o inimigo lhe dera.
- Não estou com as chaves, meu jovem. Deixei-as no carro.
- Não acredito - disse Peter, furioso. - Dê-me logo as chaves!
- Sugiro que voltemos ao carro, para que possa verificar pessoalmente. Ficarei com os braços levantados, se assim o desejar.
- É o que eu quero.
As chaves estavam na ignição do Mark IV. Peter manteve o diplomata comprimido contra o capo, enquanto lhe revistava
os bolsos e o peito. St. Claire não estava armado.
O que era surpreendente, tão desconcertante quanto as chaves deixadas no Mark IV. Um automóvel era um meio de fuga; o homem que controlava Inver Bass não poderia deixar de saber disso.
Peter apagou a lanterna e comprimiu a automática contra as costas de St. Claire. Subiram os degraus e caminharam até a extre-
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midade da varanda. Peter obrigou o velho a virar-se e ficar encostado contra a grade.
- Perdoe-me se cheguei atrasado - disse o embaixador. Há quase 12 anos que não guiava um carro. Tentei explicar isso ao seu amigo desconhecido que me telefonou, mas ele se recusou a escutar.
A declaração de St. Claire fazia sentido. Explicava os faróis oscilando. E provava também que St. Claire estava assustado. Se não estivesse, jamais teria assumido o risco de guiar à noite na auto-estrada e em perigosas estradas secundárias.
- Mas veio assim mesmo, não é?
- Você sabia que eu hão poderia recusar. Descobriu o meu homem. Descobriu os transmissores. Imagino que tudo pudesse ter sido traçado por mim.
- Isso teria sido possível?
- Não sou um perito nessas coisas. Varak era, mas eu não sou. Nem mesmo sei coiro foram obtidas.
- Não aceito essa declaração. O homem que dirige Inver Brass é muito mais habilitado.
St. Claire se encolheu na escuridão. A menção do nome parecia deixá-lo angustiado.
- Quer dizer que já lhe contaram tudo.
- E isso o surpreende? Eu lhe disse que conhecia as identidades de Venice, Christopher, Paris e Banner. E de Bravo. Por qus não podia conhecer também Inver Brass?
- O que mais descobriu desde que nos encontramos?
- O suficiente para deixar-me apavorado. Quarenta anos, dinheiro à beça rolando. Homens desconhecidos controlando o país.
- Está exagerando. Procuramos ajudar o país, em períodos de crise. Esta sim é avaliação mais correta.
- E quem determinava o que era uma crise? Você?
- As crises sempre encontram um jeito de se tornarem patentes.
- Nem sempre. Não para todo mundo.
- Tínhamos acesso a informações que não eram disponíveis para "todo mundo".
- E agiam com base nessas informações secretas, ao invés de divulgá-las publicamente?
- Eram, no essencial, atos de caridade. Em última análise, para o bem desse "todo mundo" a que se referiu. Jamais agimos em proveito próprio.
A voz de St. Claire havia se alteado, na defesa veemente de Inver Brass.
- Há meios de se fazer caridade publicamente. Por que não os usaram?
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- Esse tipo de caridade é sempre temporário. Não ataca as raízes do problema.
- E não se pode deixar as raízes dos problemas entregues ao julgamento dos que são eleitos para compreendê-las, não é mesmo?
- Está simplificando demais a nossa posição e sabe disso muito bem, Sr. Chancellor.
- Sei que prefiro correr todos os riscos com um sistema imperfeito do que seguir outro que não posso ver.
- Está sofismando. É muito fácil para você falar em civismo. Mas no instante mesmo em que assim argumenta, muita frustração está se espalhando inexoravelmente. E
se essa frustração incubada supurar, como um tumor, haverá uma erupção de violências alem das suas fantasias mais delirantes. Quando isso acontecer, a liberdade de opção será eliminada em nome de uma dieta adequada. Reconheço que é simples, mas é isso mesmo. Ao longo dos anos, temos tentado controlar as possíveis infecções. Iria querer nos deter?
Peter não podia deixar de reconhecer a lógica do raciocínio de St. Claire, sabendo que aquele homem extraordinário e tortuoso, mascarado com um simulacro de generosidade, estava forçando-o à defensiva, desviando-o do motivo da confrontação. Teve que recordar a si mesmo que Sr. Claire era um monstro, que havia sangue nas mãos dele.
- Há sempre outros meios, outras soluções.
- Pode haver, mas não tenho certeza se iremos encontrá-las durante as nossas vidas. Certamente não na minha. Mas é possível que no processo de procurar soluções esteja a própria prevenção da violência, com que tanto sonhamos.
Peter partiu subitamente para o ataque:
- Mas encontraram uma solução que estava enraizada na verdade, não é mesmo? A isca era verdadeira, no final das contas. !
- Como assim?
- Vocês mataram Hoover! Inver Brass ordenou o assassinato dele i
Ao ouvir tais palavras, St. Claire ficou rígido, um grito abafado saiu de sua garganta. Sua confiança se desvaneceu. Era súbita-mente um velho acusado de um crime
terrível.
- Onde...? Quem...? Ele não era capaz de articular a pergunta.
- No momento, isso não tem a menor importância. O que importa é que a ordem foi dada e executada. Executaram um homem sem julgamento, sem os procedimentos legais num tribunal reconhecido. E são os tribunais e os julgamentos apropriados que
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nos separam de uma parcela considerável do mundo, Sr. Embaixador., da violência que tanto abomina.
- Mas havia razões!
- Porque estavam convencidos de que ele era um. assassino? Porque tinham ouvido falar de seus bandos de assassinato, as "unidades de eliminação"?
- Em termos gerais, foi isso mesmo!
- Não é suficiente. Se sabiam, deveriam ter revelado tudo publicamente.
- Não seria possível conseguir nada assim! Eu lhe disse que tínhamos as nossas razões!
- .Outras razões?
- Exatamente.
- Os arquivos? v
- Pelo amor de Deus. c isso mesmo! Os arquivos!
"Não podem fazer isso! Já têm tudo de que precisam! Levem-no a julgamento! Obriguem-no a enfrentar as decisões dos tribunais! Do país! Existem leis!"
Existem os arquivos... Pessoas seriam atingidas... por outras que têm de sobreviver..."
Se é assim que pensam, então não são melhores do que ele."
- Eram melhores do que ele - disse Peter, suavemente.
- Acreditamos, sinceramente, que éramos. - St. Claire estava superando as primeiras ondas de choque, reencontrando parte do controle que perdera. - Ainda não posso
acreditar. Enganei-me totalmente com Varak.
- Não me venha com essa! - disse Peter, friamente. - Desprezo tudo que ele era, mas Varak deu sua vida por você. A verdade é que o enganou.
- Nunca!
- E enganou o tempo todo! Varak era "Longworth" e Lonçworth" entrou no prédio do FBI na noite em que Hoover foi assassinado. Varak se apoderou dos arquivos! E entregou a você!
- Tem razão. Mas só os dossiês de A a L. Nunca negamos
- Tem razão. Mas só os dossiês de A a L. Nunca negamos isso. Eles foram destruídos. Mas não os dossiês de M a Z. Esses «stavam desaparecidos e assim continuam!
- Não! Varak pensou que estivessem desaparecidos porque era assim que queria que ele pensasse.
- Você está doido! - murmurou St. Claire.
- Havia dois outros homens com Varak naquela noite. Um deles, talvez os dois, trabalhando juntos, esvaziou os dossiês, misturou todos ou simplesmente mentiu. Não sei como, mas
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foi lá que aconteceu. Você sabia que Varak não faria qualquer concessão em relação aos arquivos e por isso tratou de enganá-lo.
SI. Claire sacudiu a cabeça, com uma expressão torturada.
- Não, não foi nada disso. Está completamente enganado. Reconheço que a teoria é plausível, até mesmo engenhosa. Mas simplesmente não é verdadeira!
- Os dois homens desapareceram! Seus nomes eram simples coberturas, era impossível descobrir suas identidades!
- Por um motivo diferente! Hoover tinha que ser eliminado. O país não poderia suportar nem mesmo a possibilidade de um outro assassinato assim. Teria sido o caos, proporcionando munição aos fanáticos que querem dominar este país, violando todos os princípios constitucionais. Não podíamos permitir que ficasse qualquer pista. Tem que acreditar nisso!
- Só tem dito mentiras! Não há a menor possibilidade de me fazer acreditar em qualquer coisa!
St. Claire fez uma pausa, pensativo.
- Talvez haja. Explicando-lhe o porquê e depois dando um passo adiante, pondo minha vida e tudo o que defendi ao longo de 50 anos em suas mãos.
- Primeiro, quero saber o motivo - disse Peter, asperamente. - Por que Hoover foi assassinado?
- Ele era o soberano absoluto de um governo dentro do governo. Não uma linha de comando definida. Seu governo era amorfo, sem estrutura, e ele fazia questão de mantê-lo
assim. Tinha ido muito além das mais graves ilegalidades. Ninguém realmente sabia até que ponto fora, mas há indícios suficientes apontando para os assassinatos
a que se referiu. E tínhamos conhecimento das chantagens, que inclusive, alcançaram o Gabinete Oval. Tudo isso, por
si só, já teria justificado a decisão. Mas houve uma consideração adicional que a tornou irrevogável. Uma linha de comando amorfa estava se organizando, dentro e fora do FBI. Homens sem quaisquer princípios estavam cercando Hoover, lisonjeando, adulando, simulando idolatrá-lo. Tinham apenas um único objetivo: os arquivos particulares dele. com os arquivos, poderiam dominar o país. Era necessário eliminar Hoover antes que se fizessem pactos secretos.
St. Claire parou de falar. Estava ficando cansado, suas próprias dúvidas estampadas no rosto.
- Não concordo absolutamente com seu ponto de vista, mas as coisas estão agora mais claras - disse Peter. - Como vai colocar 50 anos de serviços em minhas mãos?
Saint Claire respirou fundo.
- Acredito no instinto humano para perceber a verdade em determinados momentos, apesar de tudo. Creio que este é um des-
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sés momentos. Somente dois homens, no mundo inteiro, conheciam todos os detalhes do assassinato de Hoover: o homem que formulou o plano e eu. O autor do plano está morto. Morreu na sua presença. Fiquei eu. Esse plano é sua prova final, pois nenhuma prova concebida por seres humanos é perfeita. Sempre fica algo por fazer, se outros sabem onde procurar. Revelando-lhe tudo, não apenas estarei colocando minha vida em suas mãos, mas também, o que é mais importante, pondo à sua disposição o trabalho de uma vida inteira. O que quer que faça com isso significa mais para mim do que o tempo que possa me restar. Aceitará? Deixará que eu tente convencê-lo?
- Continue.
EnquanV
St. Claire falava, Peter compreendeu a terrível natureza do que estava sendo posto em suas mãos. O embaixador estava certo em dois pontos. Peter percebeu, instintivamente, que estava ouvindo a verdade. Além dessa certeza, compreendeu também que era possível provar que Hoover fora assassinado. St. Claire não usou qualquer outro nome além do de Varak, mas era de se supor que as outras identidades poderiam ser descobertas.
Uma atriz cujo marido fora destruído durante a loucura de McCarthy; dois antigos especialistas em comunicações do Corpo de Fuzileiros Navais, ambos com profundos
conhecimentos de eletrônica e interceptações telefónicas, sendo que um era também um exímio atirador; um agente do MIbritânico, que trabalhara em estreita colaboração
com o Conselho de Segurança Nacional durante a crise de Berlim; um médico americano que vivia em Paris, um socialista expatriado que perdera a esposa e o filho num
acidente com um carro do FBI, envolvido em vigilância ilegal, não autorizada. Eram essas as pessoas que haviam participado da trama. Os fios não estavam cortados, podiam ser seguidos até a fonte. O plano era obra de um génio do serviço secreto, até mesmo a sutil inclusão do nome de um conselheiro da Casa Branca.
Explicava a opinião de Ramirez: Não houve autópsia... Ordens expressas de 1600... A Casa Branca... Eles mataram Hoover. Se não o fizeram, pelo menos assim o pensaram. Acharam que alguém de lá era o responsável.
Que mente extraordinária Varak possuía!
St. Claire acabou o relato, exausto.
- Acha que lhe contei a verdade? Acredita em mim agora?
- Até o ponto em que chegamos, acredito. Mas ainda há uma etapa adicional. Se eu perceber alguma mentira, então é tudo mentira. Está certo assim?
- Não há mais mentiras, pelo menos em relação a você. Mas está certo.
- Qual é o significado de Chasong?
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- Não sei.
- Acha que não é relevante?
- Muito ao contrário. Varak disse que era um "chamariz". Estava convencido de que era a chave para o homem de Inver Brass que nos traiu.
- Explique, por favor.
St. Claire respirou fundo novamente, sua exaustão ainda mais patente.
- Tinha relação com MacAndrew. Algo aconteceu em Chasong para desonrar o comando dele. Daí a frase "Mac, o Traidor, matador de Chasong". Houve baixas tremendas e a responsabilidade foi atribuída a MacAndrew. A partir do momento em que a culpa dele foi definida, era de se esperar que tudo parasse por aí. Mas Varak achava que não deveria parar. Sentia que havia algo mais, envolvendo a esposa de MacAndrew.
- Sabia qual era a composição das tropas em Chasong?
- Composição?
- A composição racial.
Peter ficou observando o velho atentamente.
- Não. Eu nem mesmo sabia que existia algo chamado "composição racial".
- Suponha que eu lhe diga que os registros das baixas em Chasong estão entre os segredos mais bem guardados dos arquivos do Exército; houve centenas de mortos e muitos mais dados como desaparecidos. Há apenas 37 sobreviventes, seis dos quais são totalmente incapazes de se comunicarem com o mundo exterior. Os outros 31 sobreviventes estão em 31 hospitais diferentes, espalhados pelo país. Tudo isso significaria alguma coisa para você?
- Seria uma confirmação adicional da paranóia que predomina no Pentágono. E que não é muito diferente do regime de Hoover no FBI.
- Isso é tudo o que tem a dizer?
- Estamos falando de vidas humanas desperdiçadas. Talvez paranóia seja um termo vago demais.
- Eu diria que sim. Porque não foi uma perda de vidas desnecessária por causa de MacAndrew. Foi uma armadilha, preparada pelo nosso próprio Exército. Uma conspiração de comando. As tropas em Chasong, até o último soldado, eram constituídas exclusivamente de negros. Foi um assassinato racial.
St. Claire segurou-se na grade, atordoado. Os segundos se passaram. Os únicos ruídos eram das ondas a baterem rias pedras e do vento a soprar pela água. O embaixador finalmente conseguiu recuperar a vo? e balbuciou:
- Mas por quê?
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Petcr ficou olhando para o diplomata, fixamente, sentindo ao mesmo tempo alívio e espanto. O velho não estava mentindo, seu choque era genuíno. St. Claire podia ser muitas coisas imperdoáveis, inas não era o traidor de Inver Brass. Não estava com os arquivos. Peter guardou a arma no bolso.
- Para encobrir uma operação de serviço secreto que envolvia a esposa de MacAndrew. Para impedir que MacAndrew fizesse perguntas. Se a história fosse revelada, teria trazido à luz dezenas de operações similares. Homens e mulheres viciados em drogas, em alucinógenos. Experiências que teriam destruído aqueles que as conceberam, liquidado com suas carreiras e provavelmente provocada a morte de vários, nas mãos do homem que meteram na armadilha: MacAndrew.
- E por essas razões eles sacrificaram... Santo Deus!
- É isso o que Chasong significa. Tudo o mais era o chamariz de Varak.
St. Claire deu um passo para a frente, trôpego, as feições contorcidas.
- Será que percebe o que está dizendo? Inver Brass... Somente um membro de Inver Brass é...
- Ele está morto.
O ar escapou inteiramente dos pulmões de St. Claire. Por um instante, todo o seu corpo tremeu em convulsões. Peter acrescentou suavemente:
- Sutherland está morto. Jacob Dreyfus também. E os arquivos não estão em seu poder. Assim, só restam dois homens. Wells e Montei án.
A notícia da morte de Dreyfus era demais para St. Claire. Seus olhos pareciam flutuar nas órbitas. Segurou-se na grade, tremendo.
- Mortos... todos mortos...
Era um sussurro angustiado. Peter aproximou-se do velho, sentindo compaixão e alívio. Finalmente encontrava um aliado. Um homem poderoso que poderia acabar com o pesadelo.
- Sr. Embaixador?
Ao ouvir o título, St. Claire levantou bruscamente a cabeça para fitar Peter, com um brilho inconfundível de gratidão nos olhos.
- Pois não?
- Eu deveria deixá-lo sozinho por algum tempo, mas não posso. Há homens me seguindo. Creio que sabem o que descobri. A filha de MacAndrew está escondida, com dois amigos em sua companhia. Mas não há qualquer garantia de que ela esteja em segurança. Não posso procurar a polícia, não posso obter proteção em parte alguma. Preciso da sua ajuda.
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O diplomata estava encontrando o que ainda lhe restava de forças.
- É claro que terá toda a minha ajuda. E está absolutamente certo ao dizer que não há tempo para remorso. Os pensamentos ficarão para depois.
- O que podemos fazer?
- Remover o câncer, mesmo sabendo que o paciente pode morrer. E, neste caso, o paciente já está morto. Inver Brass acabou.
- Posso levá-lo ao encontro dos meus amigos? Para o lugar em que está a filha de MacAndrew?
- Claro. - St. Claire largou a grade, já agora mais firme. Não, seria pura perda de tempo. O telefone é mais rápido. Apesar do que pensa, há pessoas em Washington nas quais se pode confiar. Eu diria mesmo que a esmagadora maioria. Terá a proteção que está precisando.
St. Claire apontou para a porta da frente, tirando uma chave do bolso. Teriam que entrar rapidamente. O diplomata explicou: o sistema de alarme ficava interrompido pela chave durante dez segundos, enquanto entravam, sendo reativado no instante em que a porta era fechada.
Lá dentro, St. Claire passou pela arcada, entrando na imensa sala de estar e acendendo as luzes. Encaminhou-se para o telefone. Tirou o fone do gancho, hesitou por um instante, deixou-o novamente no lugar. Virou-se para Peter, dizendo:
- A melhor proteção é deter os atacantes. Wells ou Monteián, um dos dois ou ambos.
- Meu palpite é Wells. - Por quê? O que ele lhe disse? ,
- Que o país precisava dele.
- E precisa mesmo. A presunção dele não anula sua inteligência extraordinária.
- Os arquivos deixaram-no em pânico. Chegou a dizer que era parte deles.
- E era mesmo. Ou melhor, é.
- Não estou entendendo.
- Wells é o sobrenome da mãe. Os arquivos deixam isso bem claro. Foi legalmente adotado pouco deoois que os pais se divorciaram. Ele era criança na ocasião. Seu sobrenome, ao nascer, era Reisler. Está nos arquivos desaparecidos, letras M a Z. Será que esse nome não lhe diz nada?
- Claro. - Peter recordou um vulto pomposo e veemente, que surgira no cenário americano 35 anos antes. - Frederick Reisler. Um dos líderes do Volksbund Germano-Americano. Usei-o
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como base para um personagem de Reichstag!. Ele era um corretor da Bolsa.
- Um génio em Wall Street. Canalizou milhões de dólares para Hitler. Wells vem fugindo desse estigma por toda a sua vida. E o que é mais importante: serviu a seu país como para reparar esse erro. E está apavorado com a possibilidade de os arquivos revelarem publicamente um legado que sempre o atormentou.
- Neste caso, deve ser ele. A herança se ajusta.
- É possível, mas duvido muito. A menos que sua astúcia seja muito maior do que posso imaginar, por que ele iria temer unij possível revelação se estivesse com os arquivos? E o qufr me diz do hidalgo?
- Quem?
- Montelán. Paris. Muito mais simpático que Banner, mastambém muito mais arrogante. Gerações e gerações de castelhanos ricos, uma família com imensa influência, mas roubada e despojada de tudo pelos falangistas. Carlos tem ódio dentro de si. Despreza todas as fontes de controle absoluto. Às vezes penso queele vasculhou o mundo à procura de aristocratas destituídos...
Peter interrompeu-o nesse momento:
- O que foi mesmo que disse? Ele despreza o quê?
- Os absolutistas. A mentalidade fascista, sob todas as formas.
- Não, não é isso. Falou em controle. Fontes de controle
- Exatamente.
Ramirez!, pensou Peter. A fonte de controle de Chasong. Seria isso? Seria essa a ligação? Ramirez. Montelán. Dois aristocratas do mesmo sangue. Ambos com ódio no coração. Apelando para... usando... as próprias minorias que tanto desdenhavam?
- Não tenho tempo para explicar - disse Peter, subitamente convencido. - Mas é Montelán! Pode entrar em contato com ele?
- Claro. Todo membro de Inver Brass pode ser alcançado em questão de minutos, em qualquer ocasião. Há códigos que ele não pode ignorar.
- Montelán pode.
O embaixador franziu as sobrancelhas.
- Ele não saberá por que estou telefonando. Seu própriomedo de uma revelação o levará a atender. Mas é claro que uma denúncia não é suficiente, não é mesmo? - St. Glaire fez uma pausa, mas Peter não fez qualquer comentário. - Ele deve ser morto. Uma última vida exigida por Inver Brass. Como tudo terminou tragicamente!
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St. Claire pegou o telefone. E no mesmo instante ficou inteiramente imóvel, o rosto pálido agora totalmente branco.
- Está mudo!
- Mas não pode estar!
- Não estava, um momento atrás.
Sem qualquer aviso, abruptamente, o som ensurdecedor de uma campainha se espalhou pela sala imensa.
Peter virou-se para a arcada, a mão direita se encaminhando para o bolso, segurando a pequena automática, sacando-a.
Um estampido acompanhou o barulho de vidro estilhaçado numa janela da varanda. Uma dor intensa se espalhou pelo braço e ombro de Peter, o sangue apareceu em seu casaco. Ele largou a arma, que caiu no chão.
Ouviu-se o impacto de madeira batendo em madeira, lá no hall. A porta da frente foi arrombada e bateu violentamente contra a parede. Dois homens, ambos negros, com calças justas e camisas escuras, correram para a sala, meio agachados, com armas apontadas para Peter.
Por trás deles, um vulto imenso emergiu da escuridão do hall e avançou para a sala iluminada.
Era Daniel Sutherland.
Ficou imóvel por um momento, olhando para Peter, com uma expressão desdenhosa. Estendeu a mão imensa e abriu-a. Nela estava uma cápsula. Ele fechou a mão e virou a palma para baixo, os dedos a comprimi-la.
Um fluido vermelho escuro escorreu entre seus dedos, pingando no chão.
- O teatro, Sr. Chancellor. A arte do embuste.
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Tudo aconteceu em movimentos precisos e rápidos, característicos de profissionais. Outros negros entraram; a casa estava cercada. Munro St. Claire foi empurrado
contra a mesa. Improvisaram uma atadura no ferimento no ombro de Peter. Um homem foi despachado para os portões, a fim de aguardar a polícia local e apresentar uma explicação apropriada para o fato do alarme ter sido disparado.
Daniel Sutherland sacudiu a cabeça, virou-se e voltou para a escuridão do hall. E outra vez, subitamente, inesperadamente, o inconcebível aconteceu. O homem que segurava Bravo soltou-o e recuou alguns passos. Explosões soaram no mesmo instante.
Munro St. Claire foi arremessado contra a parede, crivado de balas, o corpo recebendo uma fuzilaria cerrada. Ele tombou, os olhos arregalados na morte, com uma expressão de incredulidade.
- Oh, Deus...
Peter ouviu as palavras aterrorizadas, sem saber que fora ele mesmo que as pronunciara. Só podia pensar no horror que acabara de presenciar.
Segundos depois, Sutherland voltou do hall. Os olhos estavam tristes, o porte ereto parecia oprimido pelo sofrimento. E falou suavemente, enquanto olhava para o corpo de St. Claire:
- Você jamais compreenderia. Nem os outros. Aqueles arquivos não podem ser destruídos. Devem ser usados para corrigir uma porção de erros. - O juiz levantou a cabeça e fitou Peter.
- Demos a Jacob um enterro mais apropriado do que aquele que lhe concederam. A morte dele será anunciada no momento oportuno. Assim como a morte dos outros.
- Você matou todos eles... - murmurou Peter.
- Exatamente... Banner há duas noites e Paris ontem à noite.
- Será apanhado.
- A Sra. Montelán está convencida de que o marido foi enviado para o Extremo Oriente pelo Departamento de Estado. Temos
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homens no Departamento de Estado. Providenciarão os documentos necessários e Montelán será morto supostamente por terroristas. Não é uma coisa das mais raras
hoje em dia. Wells sofreu um acidente de automóvel fatal, numa estrada secundária escorregadia por causa da chuva. O carro dele foi encontrado pela manhã.
Sutherland falava tranquilamente, como se o assassinato e a violência fossem fenómenos perfeitamente naturais, que nada tivessem de extraordinários, coisas com as quais não se precisava perder tempo.
- Tem homens no Departamento de Estado? - indagou Peter, aturdido. - Então podiam descobrir a casa em Saint Michael.
- Podíamos e descobrimos.
- Mas não precisava se dar a esse trabalho. Tinha alguém para informá-lo de tudo.
- Acho que não deve tentar nos enganar, Sr. Chancellor. Nunca tivemos OBrien. Tivemos outros, mas não ele.
- Não ele...
Peter podia apenas repetir as palavras de Sutherland.
- O Sr. OBrien é um homem engenhoso, cheio de recursos continuou Sutherland. - É extremamente corajoso. Atirou nos tanques de combustível, incendiando os barcos. E depois arriscou a própria vida para nos afastar de seu carro. A coragem e a engenhosidade, quando se juntam, formam uma combinação que merece respeito.
Peter não pôde disfarçar a exclamação de surpresa que saiu subitamente de sua garganta. OBrien não os tinha traído!
Sutherland estava falando, mas as palavras não tinham qualquer significado. Nada mais tinha qualquer significado.
- O que foi mesmo que disse? - indagou Peter, olhando ao redor, para os rostos dos negros.
Havia agora cinco homens na sala, cada um com uma arma na mão.
- Eu disse, o mais gentilmente possível, que sua morte não pode ser evitada.
- Por que não me matou antes?
- No início, bem que tentamos. Depois, mudei de ideia. Já linha começado a escrever o seu livro. Tínhamos de provar que estava louco. Algumas pessoas já tinham lido o que havia escrito e não podíamos determinar quantas. Chegara muito perto da verdade e não podíamos permitir isso. O país tem de acreditar que os arquivos foram totalmente destruídos. Mas escreveu justamente o contrário. Felizmente, seu comportamento tem sido duvidoso e há quem pense que enlouqueceu. Sofreu ferimentos na cabeça, num acidente que quase o matou. Perdeu a mulher amada e sua
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recuperação foi anormalmente lenta. Seu senso paranóico de conspiração aparece em cada um dos seus livros, cada vez mais agudo. A pi ova final da sua instabilidade...
- Prova final? - interrompeu-o Peter, aturdido com o argumento de Sutherland.
- Isso mesmo. A prova final de sua instabilidade ocorreria quando jurasse que eu estava morto. É desnecessário dizer que minha reação seria divertida. Eu o havia encontrado uma vez, não recordava muito bem das circunstâncias. A conversa nada tivera de extraordinário. Seria classificado prontamente de maníaco.
- Maníaco..., - repetiu Peter. - O FBI tem "maníacos". Os herdeiros de Hoover. Trabalharam com você.
- Só três trabalharam. Não compreenderam que seria uma associação de vida curta. Tínhamos o mesmo objetivo: os arquivos de Hoover. O que eles não sabiam é que já tínhamos nos apossado de metade dos arquivos, a metade que não foi destruída. Queríamos que fanáticos reconhecidos entrassem em ação, para serem apanhados e mortos. Todos passariam a supor que os arquivos haviam sido destruídos, com a morte deles. A outra função deles seria a de levá-lo até a beira do precipício. Se o matassem, seria por iniciativa deles. Você não passava de um intrometido inofensivo, mas eles o levavam muito a sério.
- E agora você vai me matar. Não me diria essas coisas se não fosse essa a sua intenção.
Peter fez o comentário calmamente, quase com indiferença.
- Não sou um homem inteiramente desprovido de sentimentos. Não desejo acabar com sua vida. Matar não me proporciona o menor prazer. Mas não tenho alternativa. E o mínimo que posso fazer é tentar satisfazer a sua curiosidade. E também tenho uma proposta para fazer-lhe.
- Que proposta?
- A vida de Alison MacAndrew. Não há razão para que ela morra. O que quer que a moça possa pensar, saberá que todas as informações lhe foram prestadas por um escritor que acabou reconhecendo a própria loucura e se matou. A patologia é clássica para pessoas criativas. A depressão se impõe quando as fronteiras da realidade se tornam confusas.
Peter estava espantado com a própria calma.
- Obrigado. Está me incluindo em companhia que não tenho certeza se mereço. Qual é a troca? Farei qualquer coisa que disser.
- Onde está OBrien?
- Como?
Peter ficou atordoado.
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- Onde está OBrien? Falou com ele enquanto estava na casa de Ramirez? Ele não pode ir ao FBI nem à polícia. Saberíamos imediatamente se o fizesse. Onde ele está?
Peter observava atentamente os olhos de Sutherland. Procure na ficção, pensou ele. Alguma coisa era melhor do que nada, não importava o quão remotas fossem as possibilidades. E havia uma possibilidade.
- Se eu lhe disser, que garantias terei de que deixará Alison viver?
- Em última análise, nenhuma. Apenas a minha palavra.
- Sua palavra? É você quem está louco! Aceitar a palavra do homem que traiu seus amigos, que traiu Inver Brass?
- Não há qualquer contradição. Inver Brass foi criada para proporcionar uma ajuda extraordinária ao país, em momentos de desesperada necessidade... a todos os homens e mulheres deste país, porque esta nação era para todo o seu povo. O que se tornou patente é que o país não é para todo o seu povo. E nunca será. Mas tem que ser obrigado a incluir aqueles que prefere ignorar. A nação traiu a mim, Sr. Chancellor. E a milhões como eu. O que não altera quem eu sou. Pode ter mudado o que eu sou, mas não meus valores. E minha palavra é um deles. É o que estou lhe dando neste momento.
A mente de Peter disparou, recordando, selecionando. OBrien só tinha um lugar para ir depois da marina de Chesapeake, um único lugar onde não tinham sido seguidos. O motel em Ocean City. Iria esperar ali, pelo menos um dia, por Alison e Peter. Quinn não tinha qualquer outro lugar para onde ir.
Procure na ficção; não resta mais nada.
Em Contra-ataque! havia um telefonema para pedir ajuda numa fuga. O método era simples: uma falsa mensagem, lógica para quem estivesse ouvindo, mas sem qualquer sentido para o interlocutor. E nessa mensagem estava oculta uma pista para um local específico. Competia ao interlocutor imaginar qual era.
- Vamos fazer uma troca - disse Peter, finalmente. O Major Brown pela filha de MacAndrew.
- O Major Brown não está incluído. Ele não faz parte da troca. É propriedade nossa.
- Já sabe de tudo a respeito dele?
- Claro. Desde que esteve no centro de processamento de dados em McLean. Minutos depois dos registros de Chasong terem sido pedidos, já estávamos devidamente informados.
- E pretende matá-lo?
- Vai depender de algumas coisas. Não o conhecemos. Ele pode perfeitamente ser transferido para um hospital militar a mi-
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lhares de quilómetros de distância. Não matamos indiscriminadamente.
Você irá matá-lo, pensou Peter. A partir do momento em que o conhecer, irá inevitavelmente matá-lo.
- No fundo, o que está querendo me dizer é que sabe onde estão Brown e Alison.
- Claro que sabemos. Em Arundel Village. Temos um homem lá, vigiando o hotel.
- Quero que Alison seja levada a Washington, onde eu possa falar com ela.
- Está fazendo exigências, Sr. Chancellor?
- Se é que quer OBrien...
- Nada acontecerá com ela. Tem a minha palavra.
- Vamos dizer que se trata da prova inicial de que irá cumprir sua palavra. Pelo amor de Deus, não me pressione. Não quero morrer... estou apavorado.
Peter falava bem baixo; não era difícil ser convincente.
- E que garantias eu tenho, Sr. Chancellor? Como irá nos entregar OBrien?
- Teremos que ir a um telefone. Este está mudo, mas já sabe disso, é claro. Tenho apenas um telefone e o número de um quarto, mas não tenho a menor ideia do lugar. - Peter levantou o braço para olhar o relógio; o movimento provocou uma dor intensa no ombro ferido. - OBrien deverá ficar lá por mais 20 ou
30 minutos. Depois disso, ele deverá me telefonar.
- Qual é o número do telefone?
- De nada lhe adiantaria saber. Ele está quase a cem quilómetros daqui. Elaborou um código para meu uso e indicou diversos lugares para um contato, em horários específicos.
A mente de Peter funcionava ativamente, enquanto ele falava. Algumas noites atrás, OBrien usara uma cabine telefónica fictícia na Wisconsin Avenue como uma cobertura para um segundo local, outra cabine telefónica, onde Peter deveria receber o telefonema dele. Havia um telefone público num posto de gasolina nas proximidades de Salisbury. Quinn e Alison haviam estado ali em sua companhia, quando telefonara para Morgan, em Nova York. OBrien iria se recordar dessa cabine.
- São duas e quinze da madrugada. Onde poderiam se encontrar a esta hora?
Sutherland permaneceu imóvel, a voz cautelosa.
- Num posto de gasolina perto de Salisbury. Mas tenho que confirmar. Ele vai querer que eu descreva o carro que estarei dirigindo. E não pense que OBrien vai aparecer se avistar outras pessoas no carro junto comigo. Terão que se esconder.
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- Isso não é problema. Quais são as palavras do código? Quero saber quais são exatamente.
- Não significam coisa alguma. OBrien estava lendo um jornal na ocasião.
- Quais são as palavras?
- "O senador pediu a verificação de quorum no último minuto, durante a votação das despesas do Departamento de Defesa."
Peter estremeceu e levantou a mão para o ombro ferido. O gesto reduzia qualquer importância que pudesse ser atribuída ao significado do código. Eram apenas palavras escolhidas ao acaso num jornal.
- Vamos usar o carro do embaixador - disse Sutherland finalmente. - Você irá guiar nos últimos quilómetros. Até lá, irá no banco traseiro, ao meu lado. Dois dos meus homens irão nos acompanhar. Quando assumir o volante, eles se esconderão. Tenho certeza de que irá cooperar.
- Também espero a sua cooperação. Quero que seu homem se afaste de Arundel. Quero que Alison seja levada para Washington. Brown pode se encarregar disso. Tratará do problema dele mais tarde. Onde fica o telefone mais próximo?
- Em cima da mesa, Sr. Chancellor. Ou estará, em uma questão de minutos.
O juiz virou-se para o negro musculoso que estava à sua esquerda. Falou rapidamente, numa língua desconhecida. Era a mesma língua que fora gritada na marina em Chesapeake. Gritada em desafio, no momento da morte. A língua que Varak não compreendera.
O negro alto e forte assentiu e correu para o hall, saindo pela porta da frente.
- O telefone será novamente ligado - explicou Sutherland.
- Os fios não foram cortados, apenas ligados a um circuito intermediário, que não rompe o contato com o terminal. - O juiz fez uma pausa, antes de acrescentar: - Falei em ashanti. Era a língua da Costa do Ouro da África, nos séculos XVII e XVIII. Não é fácil aprendê-la, pois não existe nenhuma outra língua parecida. Podemos conversar em qualquer parte, entre quaisquer pessoas, transmitir instruções, dar ordens, sem correr o menor risco de sermos entendidos.
Sutherland virou-se para os dois homens que estavam no outro lado da sala, falando novamente naquela língua tão estranha, o ashanthi. Os dois negros enfiaram as armas no cinto e se encaminharam rapidamente para o corpo de St. Claire. Pegaram-no e tiraram-no da sala. O telefone tocou uma vez e Sutherland disse:
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- Está consertado. Ligue para OBrien. Nosso homem está escutando na linha. Se disser qualquer coisa inaceitável, a ligação será interrompida e mataremos a mulher.
Peter foi até o telefone. O sangue de St. Claire formava manchas vermelhas irregulares na parede ao lado da mesa. Podia senti-lo também sob as solas do sapato. Tirou o fone do gancho.
Discou para o motel em Ocean City e pediu à telefonista que o ligasse com a Suíte Superior Sul. O telefone começou a tocar. A espera era interminável. OBríen não estava!
E de repente houve um clique e uma voz disse:
- Pois não?
- Quinn!
- Peter! Mas onde você está? Estive...
- Não há tempo! - interrompeu-o Peter, falando com uma irritação que normalmente não demonstrava, na esperança de que OBrien percebesse uma mensagem em suas palavras. - Pediu que falasse num maldito código e por isso lá vai: "O senador pediu a verificação de quoroum no último minuto, durante a votação das despesas do. Departamento de Defesa." Não é isso mesmo? Se não é, deve ser algo parecido.
- Mas que diabo...?
- Precisamos nos encontrar o mais depressa possível! Novamente a interrupção foi irritada, grosseira, quase desdenhosa. Surpreendente, incongruente.
- Estamos entre duas e três horas da madrugada. Segundo a sua programação, será no posto de gasolina na estrada para Salisbury. Irei num Continental de cor bem clara. Um Mark IV prateado. E vá sozinho!
Houve um breve silêncio no outro lado da linha. Peter virou a cabeça para o papel de parede manchado de sangue, fechou os olhos. Ao ouvir as palavras de OBrien, sentiu vontade de chorar. Lágrimas de alívio.
- Está certo - disse OBrien, a voz tão hostil quanto a de Peter. - Um Mark IV. Estarei lá. E, para sua informação, um código não tem nada de estúpido. Como o usou, sei que não está sob pressão. E no seu caso, isso é bem raro, seu filho da puta. Voltaremos a nos falar dentro de uma hora.
OBrien desligou. Ele havia compreendido. As últimas palavras de Quinn confirmavam isso. Pareciam tão deslocadas quanto as palavras do próprio Peter. A falsa mensagem fora devidamente entendida.
Peter virou-se para o juiz.
- Agora é a sua vez. Ligue para Arundel.
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Sutherland escava sentado ao lado de Peter no bane» traseiro do Continental, com os dois negros na frente. Seguiram para o sul, por estradas locais, atravessando
o rio Choptank,. passando por placas que indicavam as cidadezinhas de Bethlehem, Preston e Hurlock. Na direção de Salisbury. O juiz mantivera a sua palavra. Alison estava em Washington; chegaria ao Hay-Adams muito antes de eles atingirem Salisbury. Peter telefonaria para ela de uma cabine na estrada, assim que OBrien fosse capturado. Seria a sua despedida, um momento antes da morte, misericordiosamente rápida, num momento inesperado... o que também estava no acordo.
Peter virou-se para o juiz. A imensa cabeça negra refletia os clarões e sombras produzidos pelo carro em disparada.
- Como conseguiu os arquivos?
- De M a Z, Chancellor. É só o que temos. Os dossiês de A a L foram destruídos por Inver Brass. Só consegui me apoderar da metade.
- vou morrer, o que não é fácil de dizer, muito menos pensar. Mas, antes, gostaria de saber como se apoderou dos arquivos.
O juiz olhou para Peter, os olhos pretos parecendo ampliados pela semi-escuridão.
- Não há mal nenhum em contar-lhe. Não foi muito difícil. Como sabe, Varak assumiu a identidade de Longworth. O verdadeiro Alan Longworth é exatamente o que eu lhe disse em meu gabinete, há vários meses: um dos colaboradores mais íntimos de Hoover, persuadido a trabalhar contra Hoover. A recompensa dele foi passar o resto da vida no Havaí, com todas as suas necessidades atendidas, fora do alcance daqueles que poderiam tentar matá-lo. Hoover foi informado que ele morrera de uma doença. Foi providenciado até mesmo o enterro simulado de Longworth, durante o qual Hoover disse algumas palavras de elogio ao falecido.
Peter recordou-se do esboço de seu romance, A ficção novamente era a realidade.
Arma-se um embuste médico... A informação é transmitida a Hoover: o agente está sofrendo de câncer duodenal. O câncer já se espalhou, não há mais qualquer possibilidade-de extirpá-lo pela cirurgia. Não deverá viver mais que alguns meses, na melhor das hipóteses. Hoover libera o agente, pensando que ele está voltando para casa a fim de morrer...
- Hoover jamais teve alguma dúvida sobre a morte de Longworth?
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- Não havia razão para isso. Ele recebeu os relatórios médicos. Não deixavam margem a qualquer dúvida.
A ficção. A realidade.
- Mas tratei de ressuscitar Alan Longworth - continuou o juiz. - Trouxe-o de volta do Havaí. Por um dia. Foi dramático. Um homem voltando do mundo dos mortos por um único dia. Mas foi um dia em que J. Edgar Hoover quase parou as engrenagens do governo. Sua fúria foi imensa. Assim como o medo.
Um sorriso se insinuou no rosto de Sutherland, claramente visível na semi-escuridão. Depois de uma breve pausa, olhando para a frente, fixamente, ele continuou:
- Longworth disse a verdade a Hoover, o que ele sabia, o que lhe havíamos dito. Estava psicologicamente preparado para se comportar assim, tão intenso era o seu sentimento de culpa. Hoover fora o seu mentor, de certa forma o seu deus. E fora obrigado a traí-lo. Havia uma conspiração para assassiná-lo, disse Longworth a Hoover. Por causa dos arquivos particulares. Os conspiradores eram desconhecidos, dentro e fora do FBI. Homens com acesso a todos os códigos, a todos os segredos dos cofres, numa emergência.- Hoover entrou em pânico, como sabíamos que iria acontecer. Foram dados telefonemas para toda Washington, inclusive para Ramirez, diga-se de passagem. Mas Hoover não conseguiu descobrir coisa alguma. Havia apenas uma única pessoa em quem ele sentia que podia confiar: seu amigo mais íntimo, Clyde Tolson. Sistematicamente, Hoover começou a remover os arquivos para a casa de Tolson. . . transferiu-os para o portão da casa, para ser mais preciso. Mas se atrasou e ficou aquém das nossas previsões. Nem todos os arquivos tinham sido removidos. Não podíamos pressioná-lo, pois seria um risco excessivo. Não havia a menor dificuldade em entrar na casa de Tolson. Tínhamos o suficiente. Temos o suficiente. Os dossiês de M a Z irão nos dar a arma que nunca tivemos antes.
- A arma para quê?
- Para obrigar o governo a fazer o que é certo - disse Sutherland, enfaticamente.
- O que aconteceu com Longworth?
- É o responsável pela morte dele, Sr. Chancellor. Foi MacAndrew quem puxou o gatilho, mas a responsabilidade é sua. Enviou MacAndrew atrás dele.
- E seus homens mataram MacAndrew.
- Não tínhamos alternativa. Ele sabia demais. Tinha de morrer, de qualquer maneira. Embora ele não fosse responsável, era o símbolo de Chasong. Centenas de soldados negros assassinados, levados à morte inevitável por seus próprios comandantes. O mais hediondo crime de que um homem é capaz.
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- Assassinato racial... - murmurou Peter.
- Uma forma de genocídio... a forma mais desprezível. Sutherland fez uma nova pausa, um ódio intenso nos olhos. - E Simplesmente porque isso era conveniente. Para impedir que um homem descobrisse a verdade que iria denunciar uma série de crimes, experiências, como eles chamavam. . . crimes que homens civilizados jamais deveriam
cometer nem aprovar.
Peter deixou passar o momento. O silêncio era opressivo.
- Os telefonemas, os assassinatos... Por quê? O que Phyllis Maxwell, Bromley ou Rawlins tiveram a ver com Chasong? Ou OBrien? Por que querem liquidá-lo?
O juiz respondeu rapidamente. Ás vítimas mencionadas não tinham a menor importância.
- Chasong não estava envolvida. Phyllis Maxwell descobrira informações que nós mesmos tencionávamos utilizar, pois levavam diretamente ao Gabinete Oval. Bromley também merecia. Teve a coragem de enfrentar o Pentágono, mas impediu a execução de um projeto de renovação urbana em Detroit que iria beneficiar milhares de indigentes. Todos negros, Sr. Chancellor. Vendeu-se a elementos criminosos, que lhe forneceram informações para continuar em sua cruzada ostensiva contra os militares. À custa dos negros! Rawlins era o mais perigoso exemplo do falso Novo Sul. Defendia publicamente os "novos valores", mas particularmente, em seu comité, abortava todas as tentativas do Congresso de tornar eficazes as novas leis. E não se esqueça que ele tinha o hábito de abusar de mulheres pretas. Os pais das crianças que ele perverteu jamais irão esquecer.
Sutherland tinha acabado.
- E o que me diz de OBrien? - indagou Peter. - Por que querem liquidá-lo agora?
- Mais uma vez, a responsabilidade é sua. Ele é o único que está a par do desaparecimento dos arquivos. Se fosse apenas isso, ele poderia viver. Poderíamos contar com seu silêncio, pois jamais teria qualquer prova. Mas agora isso não é mais possível. OBrien conhece a identidade de Venice. E foi o senhor quem a revelou, Sr. Chancellor.
Peter desviou os olhos. Estava cercado pela morte, era o precursor da morte.
- Mas por que você? - perguntou ele, suavemente. - Por que logo você, entre todos os homens?
- Por que eu posso - respondeu Sutherland, sem desviar os olhos da estrada à frente do carro.
- Isso não é resposta.
- Levei a vida inteira para perceber o que os jovens estão vendo todos os dias. Eu estava dominado por dúvidas. Mas nada
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há de complicado. A nação abandonou seus cidadãos negros. O negro não deve mais interferir. A América está cansada de seus sonhos, seus talentos são suspeitos. Era moda apoiá-lo enquanto se empenhava para conquistar uma posição, mas não passava de algo anómalo. Deixou de ser quando o negro se transformou num desafio e foi ser vizinho dos brancos.
- Você não foi abandonado.
- O homem extraordinário nunca o é. E falo assim sem qualquer senso de falso orgulho. Meus talentos foram dados por Deus e eram extraordinários. Mas... e o homem comum? E a mulher comum, a criança comum, que cresce para se tornar menos que um ser humano comum, porque está marcada desde o nascimento? Nenhuma mudança de nome pode alterar esse estigma, nenhum certificado pode clarear a pele. Não sou revolucionário no sentido geralmente aceito, Sr. Chancellor. Sei perfeitamente que tal curso iria resultar num holocausto desconhecido para os judeus. Para reduzir a situação a sua expressão mais simples, basta dizer que os números e os meios estão contra nós. Estou apenas usando os instrumentos da sociedade em que vivemos. Medo. A arma mais comum conhecida pelo homem: não tem preconceito, não respeita barreiras sociais. É justamente isso o que aqueles arquivos representam, nada mais, nada menos. Podemos conseguir muitas coisas com eles, influenciar a legislação, corrigir decisões, dar força a estatutos que são violados diariamente. É isso o que os arquivos podem realizar. Não quero a violência, pois tenho certeza de que estaria assim promovendo a nossa própria aniquilação. O que não me interessa. Quero apenas o que nos pertence por direito e que até hoje nos foi negado. A providência deu-me a arma necessária. E pretendo tirar o preto comum de seu sofrimento e humilhação.
- Mas tem recorrido à violência, ordenado a morte de muita gente.
- Somente daqueles que iriam provocar também a morte de nossa gente! - berrou Sutherland, a voz ressoando no interior do carro. - E tirei as vidas de outros assim como também tiraram as nossas próprias vidas! Só eliminei os que iriam interferir!
A explosão de Sutherland levou Peter a reagir da mesma forma, igualmente veemente, igualmente furioso:
- Olho por olho, dente por dente? É isso o que está querendo? É esse o ponto a que chegou, depois de uma vida inteira a serviço da lei? Pelo amor de Deus, qualquer um, menos o Juiz Daniel Sutherland! Por quê? Por quê?.
Sutherland virou-se para Peter, uma fúria intensa nos olhos.
- vou lhe dizer por quê. Não foi a conclusão de uma vida inteira de pensamento. Foi o resultado de apenas meia hora, há
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cinco anos. Dei uma sentença que não era particularmente popular no Departamento de Justiça. Proibia abusos adicionais nos termos de Miranda e confirmava a condenação
de um conhecido superintendente de polícia.
- Lembro-me dessa decisão.
Peter realmente recordava. Fora chamada de Decisão Sutherland, um anátema às chamadas forças da lei-e-da-ordem. Se tivesse sido qualquer outro juiz que não Sutherland, teria havido uma apelação ao Supremo Tribunal.
- Recebi um telefonema de J. Edgar Hoover, convidando-me a comparecer a seu gabinete. Mais por curiosidade que qualquer outra coisa, curvei-me à sua arrogância e aceitei o convite. E foi durante esse encontro que ouvi o inacreditável. Sobre a mesa da mais alta autoridade policial do país estavam espalhados os dossiês dos principais líderes negros dos direitos civis: Kinh, Abernathy, Wilkins, Rowan, Farmer. Eram informações sórdidas, rumores torpes, boatos insidiosos, transcrições de gravações de conversas telefónicas, palavras retiradas do contexto a fim de parecerem provocadoras, em termos morais, sexuais, legais, até mesmo filosóficos. Fiquei furioso, indignado, apavorado! Não podia admitir que tais coisas se encontrassem logo naquele gabinete. Chantagem! Mas Hoover já passara por situações iguais muitas vezes antes. Deixou que extravasasse toda a minha raiva. Quando terminei, ele disse simplesmente que se eu continuasse a atrapalhá-lo, aqueles dossiês seriam usados. Muitos homens e suas famílias seriam destruídos. O movimento negro seria inevitavelmente frustrado. Ao final da reunião, Hoover me disse: "Não queremos outra Chasong, não á mesmo, Juiz Sutherland?"
- Chasong... - repetiu Peter. - Então foi lá que ouviu falar a respeito pela primeira vez.
- Levei quase dois anos para descobrir o que tinha acontecido em Chasong. E quando o fiz, tomei uma decisão. As crianças estavam certas o tempo todo. Como um povo, éramos dispensáveis. Mas percebi também o que jovens não eram capazes de compreender. A resposta jamais seria a violência e protestos indiscriminados. A solução era recorrer à mesma arma que Hoover usava, tirar proveito do sistema por dentro. Pelo medo!... Mas chega de conversa. Deve se manter em silêncio, a fim de procurar fazer as pazes com seu Deus.
O homem ao lado do motorista estudou um mapa, com a ajuda de uma lanterna pequena. Virou a cabeça ligeiramente para falar com Sutherland, em ashanti.
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O juiz assentiu e respondeu também na estranha língua afrif cana. Olhou em seguida para Peter e acrescentou em inglês:
- Estamos a cerca de dois quilómetros e meio do posto de gasolina. Vamos parar a meio quilómetro de distância. Esses homens são batedores eficientes. Aprenderam em patrulhas noturnas no Sudeste Asiático... patrulhas normalmente entregues a soldados negros, pois apresentavam os mais altos índices de baixas entre todas as missões. Se OBrien veio com alguém, se houver o menor indício de uma armadilha, eles voltarão e iremos embora. E a filha de MacAndrew morrerá diante dos seus olhos.
Peter sentiu a garganta ressequida. Está tudo acabado. Ele deveria ter imaginado. Sutherland jamais iria aceitar integralmente as simples palavras pronunciadas ao telefone. Peter condenara Alison à morte. Amara duas mulheres em sua vida e matara a ambas.
Pensou em dominar Sutherland quando ficassem a sós. Era algo para impedi-lo de gritar.
- Como OBrien poderia fazer isso? - disse Peter, finalmente. - Falou que OBrien não poderia recorrer a ninguém e que saberia imediatamente, se ele o tentasse.
- Aparentemente, isso é realmente impossível. Ele está isolado.
- Nesse caso, por que estamos parando? Por que estamos perdendo tempo?
- Vi o que OBrien fez naquela marina ontem de manhã. Coragem e engenhosidade merecem todo respeito. É uma simples precaução.
1 O carro parou. As ideias que Peter acalentava, de atacar Su-
therland, foram rapidamente desfeitas. O homem ao lado do motorista saltou do carro, abriu a porta ao lado de Peter e segurou-lhe o braço. Prendeu um par de algemas em seu pulso e na alça de metal por baixo da janela. O movimento provocou uma terrível agonia no ombro de Peter, que estremeceu e prendeu a respiração.
O juiz também saltou do carro, dizendo:
- Deixo-o entregue a seus pensamentos, Sr. Chancellor. Os dois jovens negros desapareceram na escuridão.
Foram os 45 minutos mais longos que Peter podia imaginar. Tentou pensar em várias táticas que OBrien poderia imaginar; quanto mais pensava a respeito, no entanto, mais sombrias se tornavam suas conclusões. Se Quinn tinha conseguido arrumar ajuda, como certamente aconteceria, os homens seriam vistos pelos batedores de Sutherland. Morte. Se, por alguma razão, Quinn tivesse de-
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adido vir sozinho, então ele iria morrer. Mas pelo menos Alison viveria. Era algum consolo.
Os batedores voltaram, encharcados de suor. Tinham corrido e rastejado, os corpos estavam cobertos de lama.
O preto à esquerda abriu a porta e Sutherland entrou no carro.
- Parece que o Sr. OBrien compareceu direitinho ao encontro. Está sentado num carro, com o motor ligado, no meio da estrada, de onde pode observar todos os lados. Não há mais ninguém num raio de cinco quilómetros do posto.
Peter estava atordoado demais para pensar claramente. Seu último gesto amadorista levara Quinn a uma armadilha.
Está tudo acabado.
O Mark IV arrancou. Aproximaram-se do cruzamento. O motorista freou o carro lentamente, até para-lo. O preto à direita do motorista saltou e abriu a porta de Peter. Abriu as algemas. Peter movimentou o pulso, procurando restabelecer a circulação. O ombro ferido estava começando a doer novamente. Mas não importava.
- Sente-se ao volante, Sr. Chancellor. Irá guiar agora. Meus dois amigos ficarão agachados às suas costas, no banco traseiro, empunhando as armas. E não se esqueça de que a mulher morrerá se por acaso desobedecer às instruções.
Sutherland saltou do carro junto com Peter e parou, fitando-o atentamente.
- Está errado - disse-lhe Peter. - E sabe disso, não é mesmo?
- Está procurando termos absolutos. E como acontece com os precedentes, são muitas vezes imperfeitos e quase nunca se aplicam. Não há certo ou errado entre nós. Somos produto de uma crise muito antiga pela qual não somos responsáveis, mas que está arrastando a ambos.
- É uma opinião judicial?
- Não, Sr. Chancellor. É uma opinião de um negro. Eu já era negro antes de me tornar juiz.
Sutherland virou-se e afastou-se. Peter ficou observando por um momento, depois entrou no carro, sentou-se ao volante e bateu ?. porta. Está tudo acabado. Oh, Deus, se você existe, faça com que aconteça rapidamente, abruptamente. Não tenho coragem.
Peter virou à direita no cruzamento e avançou lentamente pela estrada. O posto de gasolina ficava à esquerda, uma única lâmpada acesa, num suporte de metal por cima das bombas.
- Diminua a velocidade - ordenou um dos negros que estavam agachados no banco traseiro.
- Que diferença isso faz?
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- Diminua!
O cano de um revólver foi encostado na base do crânio de Peter. Ele pisou no freio do Mark IV e aproximou-se lentamente do posto. Seguiu na direção do carro de OBrien, por trás. Só podia ser o carro de Quinn. A fumaça que saía do cano de desrarga subia pelo ar noturno, os faróis iluminavam a estrada adiante.
Peter ficou alarmado. Os faróis do Mark IV iluminaram diretamente a janela traseira do carro de OBrien. Estava vazio.
- Ele não está no carro - sussurrou Peter.
- Está abaixado no assento - disse a voz à sua direita.
- Saia e ande até o carro - ordenou o outro homem. Peter desligou o motor, abriu a porta e saltou para a estrada.
Fechou os olhos por um instante, imaginando se não iriam atirar nele no momento em que Quinn aparecesse. Não se deixara enganar. Sutherland iria poupar Alison, mas não lhe permitiria falar com ela pelo telefone. O juiz jamais correria tal risco. Mas OBrien não saiu do carro.
- Quinn - chamou Peter. Não houve resposta.
Que diabo está fazendo, OBríen? Está tudo acabado!
Nada.
Peter aproximou-se do carro, as têmporas latejando, a dor na garganta angustiante. O barulho do motor ligado misturou-se com os ruídos noturnos. Uma brisa soprava folhas secas pelo leito da estrada. A qualquer segundo Quinn iria aparecer, haveria tiros. Será que iria ouvir os estampidos no instante em que sua vida estivesse terminando? Aproximou-se da janela do motorista.
Não havia ninguém dentro do carro.
- Chancellor! Abaixe-se!
O grito partiu da escuridão. O súbito rugido de um motor potente povoou a noite. Faróis ofuscantes foram acesos à esquerda, no posto de gasolina. Um carro avançou bruscamente, na direção do Mark IV prateado. A porta do lado do motorista se abriu, um vulto rolou pela estrada.
O impacto foi estrondoso, metal destroçando metal, vidro estilhaçado, os gritos dos dois homens lá dentro... tudo ao mesmo tempo.
Seguiram-se tiros, como ele sabia que iria acontecer. Peter fechou os olhos, comprimindo-se contra a superfície dura do leito da estrada, esperando que a dor final sobreviesse. A escuridão iria envolvê-lo.
Os tiros continuaram. Peter virou o rosto para o lado. Era Quinn OBrien quem estava atirando.
Peter levantou a cabeça. Fumaça e poeira turbilhavam no ar. À sua frente, viu OBrien jogar-se para o lado do carro para-
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do com o motor ligado. Estava a poucos passos de Peter. O agente abaixou-se, estendendo as suas mãos por cima da mala, apontando a pistola.
- Venha para cá! - ele gritou para Peter.
Peter arremessou-se para a frente, de quatro, caindo, até alcançar o carro.
Viu OBrien hesitar, depois levantar a cabeça e apontar cuidadosamente.
A explosão foi tremenda. O tanque de gasolina do Mark IV se incendiou. Peter agachou-se na frente de Quinn. Através de uma cortina de chamas, um dos batedores de Sutherland saltou do carro incendiado, disparando na direção dos tiros de OBrien.
Mas o homem podia ser visto claramente à luz do fogo, pois as chamas se espalhavam por suas roupas. OBrien mirou novamente. Houve um grito. O batedor caiu por trás do carro em chamas.
- Quinn! - berrou Peter. - Como?
- Percebi sua mensagem! Quando usou a palavra "senador" no código, compreendi que era sua última esperança. Estava querendo dizer que havia uma crise. Disse que eu deveria ir sozinho, o que significava que você não estaria sozinho. E estaria num carro, naquele carro. Assim, eu precisava de dois. Um chamariz!
OBrien estava gritando, inclinando-se na direção de Peter.
- Um chamariz?
- Diversionismo! Paguei a um cara para me acompanhar e deixar seu carro aqui. Se eu pudesse atacar e depois fugir, teríamos uma chance. Não restava qualquer alternativa!
OBrien levantou novamente a arma e apontou.
- Não restava qualquer alternativa... - murmurou Peter, subitamente compreendendo que era a verdade absoluta.
Quinn disparou três tiros, em rápida sucessão. A mente de Peter se apagou inteiramente por um momento, mas ele foi logo levado de volta à loucura por uma segunda explosão do Mark IV.
OBrien virou-se para Peter, gritando:
- Vamos entrar e sair daqui o mais depressa possível! Peter levantou-se, segurando o casaco de OBrien, detendo-o.
- Espere, Quinn! Não há mais ninguém! Apenas ele! Lá atrás, na estrada! E está sozinho!
- Ele quem?
- Sutherland! É Daniel Sutherland!
O
Brien ficou paralisado por um instante, fitando Peter com os olhos arregalados. E em seguida ordenou:
- Entre no carro.
Ele sentou-se ao volante, fez uma curva em U e acelerou na direção do cruzamento.
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À distância, os faróis iluminavam o vulto gigantesco de Daniel Sutherland, parado no meio da estrada. O gigante negro tinha visto tudo o que acontecera. Levantou a mão para a cabeça.
Houve um último estampido.
Sutherland caiu.
Venice estava morto. Inver Brass tinha desaparecido.
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Epílogo
Manhã. Peter estava de pé ao lado da escrivaninha, em seu gabinete, o fone encostado no ouvido, escutando a voz irada, mas controlada, que lhe falava de Washington. O sol entrava pelas janelas. Lá fora, a neve era profunda, imaculadamente branca. Os reflexos do sol dançavam nos vidros. Uma prova do movimento da terra. Assim como a voz ao telefone era prova de um aspecto da condição humana; ao final, sempre se havia de encontrar um senso moral.
O interlocutor era o filho de Daniel Sutherland, Aaron. Um estourado, impetuoso advogado, extraordinário líder do movimento negro, um homem a quem Peter gostaria de chamar de amigo, mesmo sabendo que jamais o poderia.
- Não vou lutar dessa maneira! Não vou me rebaixar a usar suas próprias armas! E não vou deixar também que outros as usem. Encontrei os arquivos. E queimei-os! Terá que aceitar minha palavra.
- Eu me dispus a aceitar a palavra de seu pai, quando estava convencido de que iria morrer. Acreditei nele. E acredito agora em você.
- Não tem alternativa.
O advogado desligou. Peter voltou para o sofá e sentou. Pela janela do lado norte, podia avistar Alison, metida num casaco, rindo, os braços cruzados, procurando se proteger do frio do inverno. Ela estava entre a Sra. Alcott e o taciturno jardineiro, Murrows, que naquele dia parecia surpreendentemente loquaz. A Sra. Alcott estava sorrindo para Alison.
A Sra. Alcott aprovava. A dona da casa chegara para se instalar. E aquela casa estava precisando de uma mulher.
Os três se encaminharam para o estábulo, pelo caminho aberto entre a neve e margeado por arbustos, uma colunata verde e branca. A distância, além da cerca, um potro corria livremente. Parou de repente, esticou a cabeça na direção das três pessoas que se aproximavam. Empinou, a crina tremulando.
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Peter olhou para as laudas do seu original. Para a ficção. A fantasia que era sua realidade. Havia tomado uma decisão.
Começaria desde o início, sabendo que agora sairia muito melhor. A invenção estaria presente, pensamentos e palavras nas mentes de outros. Mas para si mesmo não havia necessidade de qualquer invenção. A experiência jamais seria esquecida.
À história seria contada como ficção.
A sua realidade. Que os outros encontrassem outros significados.
Peter inclinpu-se para a frente e pegou um lápis. Começou a escrever num bloco amarelo novo.
O homem de cabelos pretos olhava fixamente para a parede em frente. A cadeira, assim como os restos dos móveis, era agradável à vista, mas muito desconfortável.
O estilo americano antigo, com tema espartano, dava a ideia de que as pessoas que aguardavam ali uma audiência com o ocupante da outra sala deveriam refletir sobre a oportunidade excepcional que lhes seria concedida num ambiente inóspito.
Beirando os 30 anos, o homem tinha o rosto anguloso, as feições bem acentuadas, como que esculpidas por um artífice mais consciente do detalhe do que do todo. Era um rosto em permanente conflito consigo mesmo, um conflito sereno...

 

 

                                                                  Robert Ludlum

 

 

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