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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ARTISTA DA FACA / Irvine Welsh
O ARTISTA DA FACA / Irvine Welsh

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Ele a ergue na direção do céu e o sol intenso parece explodir por trás da cabeça de Eve, brindando Jim Francis com um momento transcendental. Ele faz uma pausa para desfrutá-lo antes de baixar a criança outra vez. A areia quente logo castigará seus pés descalços, pensa ele, desviando-se do brilho solar, e ele terá de cuidar para que a menina não se queime. Mas por enquanto Eve está numa boa e o metralha com risos borbulhantes para estimulá-lo a continuar a brincadeira.
O que há de glorioso em ser seu próprio patrão, estabelecer seu próprio horário, é que sempre se pode tirar uma folga. Jim gosta de estar ali naquela praia deserta desde o nascer do sol desta manhã de julho, acompanhado pela mulher e suas duas filhas pequenas, enquanto todos os outros dormem para curar a ressaca das comemorações do Dia da Independência. A praia está completamente vazia, à exceção de algumas aves marinhas com seus grasnidos.
Na mudança para a Califórnia, eles se hospedaram no apartamento de dois quartos de Melanie, na pequena cidade universitária de Isla Vista, perto de onde ela trabalhava, no campus da universidade. Jim adorava a proximidade do mar e eles costumavam andar pela trilha litorânea, de Goleta Point a Devereux Slough, às vezes apenas vendo um ou outro catador de praia ou surfista. Quando vieram primeiro Grace, depois Eve, eles se mudaram para uma casa em Santa Barbara e as caminhadas foram reduzidas em favor de passeios mais curtos.
Esta manhã eles acordaram cedo, a maré ainda baixa, e estacionaram o Grand Cherokee na Lagoon Road. Usam tênis velhos para caminhar, porque a areia está repleta de bolas de alcatrão produzidas pelo campo de petróleo próximo ao longo da costa de Ellwood, o único ponto de ataque no continente americano durante a Segunda Guerra Mundial. Caminhando para o mar, passaram pelos penhascos baixos de arenito que separam do oceano Pacífico o campus da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, na direção do azul tranquilo e mais intenso da lagoa. As piscinas de maré e os caranguejos que ficaram presos pela expansão do mar hipnotizaram as meninas, e Jim relutou em prosseguir, querendo participar daquela alegria arregalada que o levava de volta à própria infância. Haveria, porém, mais caranguejos para ver depois em Goleta Point, e assim eles seguem adiante, montando acampamento abaixo dos penhascos, além dos quais ficavam a universidade e Isla Vista. As tempestades durante a noite, o fim de semana de festividades e a baixa estação da faculdade aliaram-se para deixar a praia desprovida de tráfego humano.

 


 


O clima severo incomum foi abrandando mais tarde, porém o mar turbulento criou grandes bancos de areia. Para quem não está inclinado a esperar a alta da maré, eles precisam ser contornados antes de se chegar ao mar. Jim tirou os tênis depressa e pegou Eve, sabendo que a filha de três anos era tão impaciente quanto ele, enquanto Melanie esticava as toalhas na areia para sentar-se com Grace, de cinco anos.

Brincando na água, Jim impele Eve para cima, mais uma vez enfeitiçado pela torrente de risos que isso provoca. As dunas de areia não permitem que ele veja Melanie e Grace, mas ele sabe que Eve as vê. No alto, segura pelos braços esticados do pai, ela tem a mãe e a irmã na linha de visão enquanto ri e aponta para elas sempre que ele a suspende acima da cabeça.

E de repente algo muda.

É a expressão da menina. No balanço seguinte para o céu, Eve deixa as mãos caírem junto do corpo. Ela está olhando na mesma direção, Jim segue seu olhar até o topo do banco de areia, mas o rosto da menina revela um ar de confusão. Ele sente um baque por dentro. Puxando-a para o peito, ele sai da água, sobe rapidamente a duna, a perna ruim pesando na areia. Mas quando Melanie e Grace entram em seu campo de visão, em vez de reduzir o passo, ele vai até elas com uma pressa maior.

Sob o sol turvo que eclode por entre as nuvens, Melanie fica ao mesmo tempo aliviada e assustada ao ver Jim surgindo da areia com Eve nos braços. Talvez agora eles vão embora, os dois homens que apareceram na praia, vindo das trilhas pedregosas que correm sinuosas do penhasco acima. Ela percebera vagamente a presença deles, sem dar muita importância, pensando que fossem estudantes, até que eles se aproximaram e se sentaram bem ao lado dela e da filha. Ela estava passando loção bronzeadora nos braços de Grace e ia fazer o mesmo no próprio corpo.

– Precisa de uma ajuda pra passar essa meleca? – perguntou um deles, com um sorriso torto por baixo dos óculos escuros. Foi o tom que deu arrepios nela; ausente de malícia, mas frio e categórico. Ele vestia uma camiseta preta justa que revelava músculos fortes e passou a mão na cabeça de cabelo batido. Seu cúmplice era um homem mais baixo, de cabelo louro comprido caindo nos olhos azuis penetrantes e com um sorriso distorcido de uma malevolência grosseira.

Melanie não disse nada. Aqueles homens não eram estudantes. Seu último emprego fora trabalhar no interior de instituições prisionais, e eles fediam a cadeia. Sentiu-se então petrificada por uma terrível dissonância cognitiva, porque no passado defendera a liberdade para homens assim. Homens que pareciam sensatos, recuperados. Quantos deles tomavam o rumo errado quando voltavam para a comunidade? Embora Melanie não se deixasse abalar com facilidade, a situação ali emanava maldade. O nó em suas entranhas pulsava insistentemente, dizendo-lhe que eles eram mais do que apenas inoportunos. E Grace a olhava em apelo, exortando-a a fazer ou dizer alguma coisa. Ela queria transmitir de algum modo à filha que, num tipo de situação dessa, não fazer nada era fazer alguma coisa. Melanie olhou os penhascos, a praia e não havia ninguém. Aquele local, em geral tão frequentado, agora era sinistro de tão deserto.

E então surge Jim, andando rapidamente pela areia com Eve agarrada a ele, a menina apontando um dedo gorducho para eles.

– Perdeu a merda da língua, hein, piranha? – disse bruscamente o de camiseta preta. Seu nome é Marcello Santiago e ele está acostumado a ouvir as mulheres responderem quando ele fala.

De súbito, Melanie fica realmente apavorada. Jim se aproxima deles, Ah, meu Deus, Jim.

– Olha, deixe a gente em paz, meu marido está aqui – diz ela calmamente. – Vocês têm a praia toda, só estamos aqui com nossas filhas.

Marcello Santiago se levanta, olhando para Jim, que avançou para eles, ainda segurando Eve.

– A gente achou que podia participar do seu piquenique. – Ele abre um sorriso para Jim.

O louro, que se chama Damien Coover, também se levantou e fica perto de Melanie e Grace.

– O que foi, papai? – pergunta Grace, irritadiça, erguendo a cabeça e olhando para o pai.

Jim sinaliza a Melanie.

– Leve as duas de volta pro carro – diz ele com equilíbrio.

– Jim... – Melanie apela, boquiaberta para ele, depois para Damien Coover e por fim olha para as meninas, levanta-se e coloca Grace de pé.

Ela se aproxima de Jim, que transfere Eve para seus braços sem tirar os olhos de Santiago e Coover nem por um segundo.

– Volte pro carro – repete ele.

Melanie sente a proximidade das meninas, olha os dois homens, depois sobe pela areia na direção do pequeno estacionamento mais acima. Olha para trás e vê que esqueceu a bolsa na toalha. Seu celular e o aparelho de Jim estão dentro daquela bolsa. Ela está aberta. Melanie vê que Coover registra isso. Jim também.

– Vá – diz ele pela terceira vez.

Coover observa Melanie e as crianças se afastando pela areia. De biquíni o corpo dela exibe músculos definidos e tonificados, mas o pavor a recurvou e seus movimentos habitualmente graciosos tornaram-se melancólicos, fraturados e feios. Entretanto, ele aponta com um olhar malicioso.

– Tem uma xota gostosa e tanto ali, meu irmão. – Ele ri para Jim Francis, e seu amigo Santiago, que esteve fechando e abrindo os punhos, se junta a ele, um som baixo e sem humor algum.

Não há nada na reação de Jim Francis: apenas uma avaliação pétrea.

E assim Santiago e Coover são obrigados a contemplar o homem silencioso ali na frente deles, vestido apenas com uma bermuda verde. Um corpo bronzeado e musculoso, mas coberto de cicatrizes estranhas, sugere ser aquele homem o ator mal escalado para aquela família de louras californianas. Sua idade é indeterminada: no mínimo quarenta, possivelmente por volta dos cinquenta, o que faz dele um sujeito com uns bons vinte anos a mais do que a mulher que está com ele. Santiago se pergunta o que um homem assim faz para conseguir uma gostosa daquela. Dinheiro? Difícil deduzir, mas tem alguma coisa nele. O homem encara os dois como se os conhecesse.

Um banco de dados de encontros passados, de bares e rostos da penitenciária rola pela cabeça de Santiago. Nada. Mas aquele olhar.

– De onde você é, colega?

Jim continua em silêncio, o olhar desliza das lentes escuras de Santiago para os olhos azuis de Coover.

– Tá me encarando... – A voz de Coover se eleva, ele pega na bolsa que tem aos pés uma grande faca de caça e brande a arma a pouca distância de Jim Francis. – Quer um gostinho disso aqui? Dá o fora, porra, enquanto pode!

Por alguns segundos, Jim Francis lança um olhar estranho para a faca. Depois se abaixa, os olhos jamais deixando Coover, pega a bolsa e as toalhas e vira-se lentamente, segue a mulher e as filhas praia acima. Eles notam que ele anda com uma leve coxeadura.

– Manco babaca – grita Coover, embainhando a lâmina. Jim para por um segundo, puxa o ar lentamente, depois anda. Os dois homens soltam um riso de escárnio, mas é um riso sublinhado pelo alívio de ver que o homem que os estava enfrentando acabou de partir. É mais do que seu corpo forte e a atitude que ele tem, de quem lutaria com selvageria, e até a morte, para proteger a família. Há algo nele, aquele tecido cicatrizado no corpo e nas mãos, como se tivesse encoberto tatuagens consideráveis; aquelas extensas configurações de cicatrizes no rosto; mas, sobretudo, aqueles olhos. Sim, reflete Santiago, eles indicam que o homem pertence a um mundo diferente daquele habitado pela mulher e as meninas.

Jim chega ao Grand Cherokee, estacionado na vaga de cascalho atrás da praia, a 50 metros da estrada asfaltada. Há outro veículo posicionado ali, uma picape Silverado de quatro portas, amassada. Por um segundo, ele entra em pânico porque não consegue ver Melanie nem as meninas, mas é apenas o sol nascente queimando a cobertura de nuvens, refletindo nas janelas do carro. Elas estão a salvo ali dentro, ele se junta a elas e encontra Grace fazendo perguntas. Quem eram aqueles homens? O que eles queriam? Eles eram maus? Ele a afivela na traseira com Eve e vai sentar no banco do carona, na frente. Melanie dá a partida no Grand Cherokee e passa pelo Silverado, sabendo que o carro pertence aos dois intrusos.

– Devíamos procurar a polícia... – sussurra Melanie, satisfeita porque Grace agora está distraída com um brinquedo – tive muito medo, Jim. Aqueles caras queriam encrenca... – Ela baixa a voz. – Eu estava pensando em Paula... não sei o que teria acontecido se você não aparecesse... eu não conseguia ver você por causa das dunas...

– Vamos deixar as meninas em casa – Jim diz em voz baixa, sua mão pousando no joelho dela, sentindo um tremor constante ali. – Depois eu vejo esse negócio da polícia.

Casa significa uma curta viagem de carro pela Rodovia 101 e depois pouco mais de um quilômetro até uma residência em estilo colonial espanhol em Santa Barbara, a poucas quadras do mar. Melanie estaciona o Grand Cherokee na frente da casa e Jim espera que todas elas desembarquem. Em seguida vai para a segunda garagem que ele converteu em estúdio e sai alguns minutos depois, levando o veículo de volta à rua. Melanie não fala nada, mas fica mais uma vez intranquila enquanto o carro se afasta.


2
O ENTREGADOR 1

O sangue escorreu da cabeça esmagada do homem. Por fim, tudo ficou silencioso e imóvel. Afastando-me do corpo, olhei para aquelas paredes severas e proibitivas. No alto, uma lua cheia cintilava em um céu inchado, cor de malva e preto, seu reflexo polvilhando os degraus de metal engastados na lateral da pedra. Depois daquela provação terrível, fiquei exausto e não havia potência nenhuma em minhas pernas pequenas e frágeis. Pensei: como é que vou voltar subindo por ali, porra?


3
AS CONSIDERAÇÕES

Jim volta algumas horas depois e encontra Melanie brincando com as meninas no fundo do quintal, depois do deque de madeira, embaixo de um grupo de árvores frutíferas maduras. Ela armou um jogo complicado em volta da enorme casa de boneca pintada de vermelho em que ele trabalhou pela maior parte de um ano. As meninas a adoram porque, dentro da estrutura, Jim montou uma série complexa de roldanas, rampas e rolamentos que ativam variadas calamidades para as bonecas que habitam a casa. No gramado, um número improvável de embalagens de guloseimas e brinquedos estão espalhados: a tentativa de Melanie de recuperar pelo menos parte da excursão abandonada à praia.

Ela se levanta e vai até ele.

– Falou com a polícia?

Jim fica em silêncio.

– Não falou, não é?

Jim solta parte do ar que estava segurando.

– Não. Simplesmente não pude fazer isso. Não está em meu DNA falar com eles.

– Quando psicopatas colocam em risco mulheres e crianças, os cidadãos normais denunciam esse tipo de coisa à polícia – rebate Melanie, meneando a cabeça. – Você sabe o que aconteceu com Paula, porra!

Jim ergue uma sobrancelha. As circunstâncias com Paula – os dois caras, estudantes, que ela conhecia – foram outras. Mas ele não vai discutir esses detalhes.

Percebendo que acabou falando num tom mais imperioso do que pretendia e que isso caiu mal com Jim, Melanie faz um carinho tranquilizador no braço dele enquanto murmura seu nome em um apelo urgente.

– Jim...

Jim estreita os olhos para o sol que se infiltra pelo carvalho grande e pendente e puxa outra golfada profunda de ar. Ela vê o peito dele se expandir. Depois ele expira.

– Eu sei... foi idiotice. Simplesmente não pude. Rodei por aí de carro pra ver se aqueles caras ainda estavam por perto, mas não havia sinal nenhum. Eles foram embora, a praia estava deserta.

– Você fez o quê? – Melanie tem um sobressalto. – Você só pode estar de brincadeira!

– Eu não ia confrontar os dois. – Jim balança a cabeça com a boca rígida. – Só queria ter certeza de que eles não estavam incomodando mais ninguém. É isso que eles estariam aprontando, zanzando pelo campus, causando problemas. Depois eu...

– O quê?

– Eu ia ligar pra segurança do campus.

– É exatamente o que vou fazer agora – anuncia Melanie e vai para dentro procurar o celular, que está no balcão de café da manhã da cozinha.

Jim vai atrás dela.

– Não...

– O quê...

– Eu fiz uma coisa – confessa ele, observando que as feições dela desabam. – Não com eles. Com o carro deles. Meti um trapo aceso no tanque de gasolina. Assim, talvez seja melhor que a polícia, ou mesmo a segurança do campus, não saiba que estivemos por lá.

– Você... você o quê...?

Ele repete a explicação, e Melanie Francis pensa naqueles babacas, com suas ameaças arrogantes e agressivas, e considera como eles reagiriam ao ver seu veículo destruído. Ela olha o marido e ri, passa os braços por seu pescoço. Jim sorri, olhando por cima do ombro de Melanie, pela janela e para o quintal, onde Grace faz um colar de margaridas para Eve.


4
O ESTÚDIO

Chinese Democracy, do Guns N’ Roses, berra de um grande sistema de som em um volume que quase empurra Martin Crosby para fora da pesada porta reforçada que ele deslizou a fim de entrar no pequeno estúdio. O sistema de som tradicional e seus alto-falantes imensos e dominantes estão espremidos em um espaço, iluminado pela janela e pelo céu, que mal consegue conter um forno de ceramista e um cavalete, com algumas tintas e material de construção empilhados no chão. Ele não consegue ver Jim Francis em sua bancada de trabalho, mas as cabeças de atores de Hollywood e astros pop enfileiradas na prateleira são reconhecíveis para Martin, apesar das mutilações criativas implausíveis a que o artista as submeteu. Um astro de grande sucesso teve seu rosto retalhado e grosseiramente recosturado. Um ícone de uma série de TV a cabo foi condenado por um tumor massivo crescendo na lateral da cabeça. Uma princesa pop perdeu cruelmente um olho.

E então, de repente, a música para e Francis está junto de seu ombro com um controle remoto na mão, dando um susto em Martin. O artista não diz nada ao agente, como costuma fazer. Martin Crosby, ele próprio um homem calmo e taciturno, que prefere ouvir enquanto espia de seus óculos de armação prateada, tem muitos clientes ingratos, alguns que veem seu papel, na melhor das hipóteses, como um mal necessário. Entretanto, nunca teve nenhum tão... – hostil não era a palavra correta, isso seria quase uma evolução – ... tão impassível como Francis. Tinha acabado de dirigir por duas horas e meia na interestadual engarrafada para dar apoio a seu artista e a sua exposição iminente, e só o que recebe de Jim Francis é: “E aí, o que te traz aqui?”

Enquanto Martin explica, passando a mão em uma barba raspada na mesma altura eriçada do cabelo, Jim Francis apenas diz: “Tá tudo indo bem. É melhor eu voltar àquilo ali”, e ele aponta para uma pequena geladeira. “Sirva-se de uma garrafa de água”, diz enquanto pega o controle e o que para Martin é um rock sem nenhum encanto e excessivamente produzido enche o ar e ataca seus tímpanos. Ele faz menção de falar, mas percebe que seria inútil fazê-lo enquanto Francis vai até sua escultura no canto, debruça-se sobre outra cabeça, modelando-a violentamente com suas mãos grandes e calejadas e lacerando-a com uma seleção de facas.

Entretanto, quase vale a pena ter aparecido, só para ver Jim Francis trabalhar. É de fato uma visão memorável. A maioria dos escultores é fortemente orientada para o físico, mas a Martin parece que a fúria controlada de Francis é marcada pelos acordes frenéticos da guitarra e pelos vocais ressoantes da música a tal ponto que na verdade ele deixa que o som o conduza pela argila. É como se a banda estivesse compondo aquela cabeça e usasse Francis como médium. Fixadas à parede de seu lado estão barras magnéticas que sustentam toda sorte de facas. A maioria tem lâminas de aço inox fino, tradicionais, que ele viu outros artistas usarem na escultura em argila, mas existem algumas maiores que parecem facas de caça, enquanto outras dão a impressão de instrumentos cirúrgicos. Ele se recorda de Francis certa vez dizendo em uma entrevista que gosta de usar utensílios que não são, por tradição, associados com a escultura.

Jim Francis é um sujeito estranho, não há dúvida disso, reflete Martin, embora este traço de caráter não seja único em sua base de clientes. Artistas são artistas. Martin queria conversar sobre a inauguração do mês seguinte, averiguar se todas as peças estariam prontas para a exposição e qual seria a melhor disposição delas, o que não era fácil. Francis tem uma conta de e-mail, mas nunca responde às abordagens de Martin, nem retorna suas mensagens de texto. As conversas por telefone, quando ele se digna a atender, são um exercício de minimalismo áspero. Da última vez que se falaram, Jim disse apenas com aquele estranho sotaque dele: “Lembre-se de convidar aí o Rod Stewart pro dia da abertura.” Depois desligou.

Assim, Martin teve de vir de Los Angeles e até agora vem se provando que será um dia desperdiçado. Francamente, isto não é aceitável. Em sua crescente frustração, Martin grita para as costas do artista, mas a música é alta demais e algo o faz se intimidar e não tocar fisicamente em Jim Francis, nem mesmo um contato mínimo para indicar que uma conversa seria bem-vinda. Ele vê sua chance quando uma faixa acaba e os gritos de Axl Rose somem brevemente.

– JIM!...

O artista gira o corpo e pega o controle remoto, desligando o som. Olha calmamente para Martin.

– Reconheço que você está muito ocupado e admiro muito sua ética de trabalho, mas temos algumas decisões importantes para tomar a respeito da exposição. Preciso sinceramente de algum tempo exclusivo com você. Vim de carro de Los Angeles...

– Tudo bem. – Francis explode nervoso, depois parece amansar-se um pouco. – Me dê uma hora e vamos sair pra um almoço atrasado. Vá até a casa e Mel vai lhe oferecer um café, uma cerveja ou coisa assim. – E ele recoloca a música em um volume que deixa Martin Crosby louco para fugir dali. Fechando a porta depois de sair, Martin passa a uma pequena antessala, depois à própria casa principal. O estúdio provavelmente era uma antiga garagem, de certo modo faz parte das coisas por aqui, mas não em outros aspectos. Um pouco como o próprio Francis, especula ele.

Martin só encontrou a mulher de Jim Francis, Melanie, em uma ocasião, na abertura de uma exposição. Mais uma vez, ela é simpática e cativante na mesma medida em que seu cliente é brusco e distante. O cabelo louro está preso na nuca por uma fita vermelha e ela veste calça de moletom cinza e uma camiseta vermelha. Um tapete para exercícios foi colocado no chão diante de um enorme televisor de tela plana, e pesos e cordas de resistência elástica comprovam, junto com uma fina camada de suor em sua testa, seus recentes exercícios físicos.

Melanie pega duas garrafas de água gelada para os dois e faz com que Martin sente-se no sofá. Ela própria se coloca em uma poltrona de frente para ele, cruzando as pernas em posição de lótus.

– Jim pode ser muito intenso quando está trabalhando. Admiro a determinação dele, eu me distraio com muita facilidade, mas nem sempre é divertido ficar por perto. – Ela meneia a cabeça com expressão de nítido afeto, deixando claro para Martin que essa sua observação não pretendia ser uma crítica ao marido.

Quase uma hora e meia depois surge Jim Francis, e a essa altura Martin já está com fome, embora a companhia agradável de Melanie o tenha distraído. Francis faz um gesto de cabeça para a esposa.

– Não vamos demorar – diz ele, depois se vira para Martin e ergue brevemente as sobrancelhas. Para arrumar uma mulher tão extrovertida, vivaz e bonita, e muito mais nova do que o marido, Jim Francis deve ter algum encanto, mas Martin Crosby sempre teve dificuldade de encontrá-lo.

Eles entram na station wagon de Francis e viajam em silêncio para o centro de Santa Barbara, parando em uma cafeteria à beira-mar chamada Shoreline. Vão a uma mesa em uma área alfresco coberta por uma tenda dando para o Pacífico, e Martin nota que Jim Francis parece mais relaxado. Ele avista um casal com um cachorro oriental grande e enrugado, cumprimenta-os com um aperto de mão no homem, dá um beijo no rosto da mulher, depois acaricia agressivamente o animal entusiasmado.

– Vizinhos – explica ele a Martin, enquanto ambos se sentam. Francis sorri tranquilamente para a jovem garçonete que se aproxima. – Como vão as coisas, Candy?

– Tudo bem, Jim – dispensando-lhe um sorriso radiante.

Martin junta-se a seu cliente no pedido de uma omelete de claras com espinafre e queijo feta, e acompanhamento de frutas frescas. Ele liga seu Mac, exibindo representações de layouts e diferentes plantas baixas onde podem pendurar as pinturas e montar as esculturas. Martin explica a iluminação natural e a instalada e os diferentes efeitos que teriam nas várias peças.

– Achei que você podia reservar uma tarde ou uma manhã para ir de carro e ver o espaço – começa ele, antes de Francis o silenciar com uma batida firme no primeiro conjunto de configurações na tela.

– Este está ótimo – diz ele.

– Bom, ele tem algumas vantagens – concorda Martin, apontando a imagem –, o problema é que tem a parede de tijolos aparentes aqui sem janela nenhuma...

– É ótimo – reitera Francis, olhando uma mesa próxima, onde um grupo de celebrantes do Dia da Independência trata a ressaca com garrafas de cerveja Corona viradas em copos imensos de margarita.

– Bom, humm... tudo bem, Jim, acho que a decisão é sua. – Martin Crosby abre um sorriso rígido. – Gosto das pilastras clássicas e discretas para montar as esculturas de cabeça que dão um efeito de os últimos dias da Roma antiga...

– É, beleza. Teve alguma notícia do pessoal do Rod Stewart? – exclama Francis, enquanto a garçonete chega com as omeletes.

– Nada ainda. Vou pedir a Vanessa para procurar – diz Martin num desalento maior, vendo Francis jogar umas batatas fritas para as gaivotas que esgaravatam as areias fora da área do pátio. Aos olhos dele, seu cliente parece extrair um prazer desmedido do ato de alimentar aquelas aves agressivas. Ele é particularmente atraído a uma delas, que pende no ar em correntes termais, com o cuidado de jogar comida em seu caminho, desfrutando dos gritos animados, desligado da inquietação patente dos outros clientes da cafeteria.

Mais tarde, quando Martin Crosby volta de carro para Los Angeles, sua secretária transfere uma ligação para ele, no viva-voz do carro. Não é Rod Stewart, nem nenhum de seus representantes. É uma mulher de sotaque parecido com o de Jim Francis e ela alega ser irmã dele.


5
O TELEFONEMA

Há muitos anos ele não ouvia a voz de Elspeth. Ainda assim, reconheceu-a na mesma hora ao telefone sem olhar o identificador de chamadas. Mas isso não teria ajudado, porque perdera contato há muito tempo com eles. A mãe dos dois morreu alguns anos antes, depois de Jim ter se mudado para os Estados Unidos. Jim voltou para o funeral, mas logo depois seguiu direto para Los Angeles. Trocou seu número desde então sem se dar ao trabalho de contar a ela. Como Elspeth o obteve? Ela era engenhosa. Irmã mais nova, dez anos e quatro meses entre os dois. O irmão Joe, só um ano mais velho do que ele. E por que ela entrava em contato? Tinha de ser a respeito de Joe, ele bebia muito. A bebida levou o pai deles. Levaria Joe também.

– Elspeth...

– Procurei você no Google. Consegui seu número com seu agente. Levei algum tempo pra saber que era mesmo você... esse negócio de Jim. Mas então, a notícia não é boa... – A voz dela oscila. – Eu sinto muito... – ele pode sentir a hesitação paralisante da irmã – ... mas Sean morreu ontem. Foi encontrado no apartamento dele.

Sean... mas que merda...

– É só o que sei agora – diz Elspeth com uma dor triste e mal-humorada na voz. Mais do que a notícia, que provoca apenas choque, seu tom de voz comove Jim Francis, porque ele e a irmã não se separaram amigavelmente. – Eu sinto muito...

O cérebro de Jim parece incendiar-se com as perguntas que pipocam na sua cabeça, brigando por sua concentração. Ele puxa o ar pelo nariz, enche os pulmões. Pensa em June, a mulher com quem ele teve Sean e outro menino, Michael. Ela havia lhe apresentado o primogênito com um orgulho quase desafiador. Está vendo? Vê o que posso fazer? Ele sentira uma espécie estranha de justificação pessoal que ficou fora de sua expressão, mas pouco mais do que isso. Depois foi ao pub, pagou bebida para todos e tomou um porre. Uma visão da cara de Sean bebê, depois de June, e de todos os rapazes naquele pub permeia rapidamente a sua consciência. E depois lá está a cara de Elspeth, a irmã, agora em silêncio na linha telefônica. Que orgulho ela teve, quando jovem, de ser tia. Todos eles pareciam pertencer a uma vida diferente, vivida por outra pessoa. Ele olha seu semblante bronzeado no espelho da parede. Melanie paira atrás dele, o rosto dela está tenso no reflexo. Quando Grace e Eve nasceram, foi muito diferente. Ele se sentira ínfimo, mesmo assim parte de um cosmo infinito, e, fervilhando de um caleidoscópio íntimo de emoções, ele havia chorado e apertado a mão dela.

– Ainda está aí? – A voz de Elspeth na linha.

– Tem o número de June?

Elspeth enuncia lentamente os números que ele digita no iPhone com a mão livre.

– Evidentemente irei aí. Vai me telefonar se conseguir mais detalhes?

– É claro que sim.

– Obrigado... – Ele fala numa tosse, depois baixa o fone da linha fixa no gancho.

– É Sean – diz ele a Melanie. – Ele morreu.

– Ah, meu Deus. – Melanie cobre a boca com a mão. – O que houve?

– Foi encontrado morto em Edimburgo. – A voz de Jim soa monótona e nivelada. – Preciso ir lá, ao funeral, e descobrir o que aconteceu, obviamente.

– É claro – sussurra Melanie, passando os braços por ele. Ele está tenso; ela se sente como um suéter pendurado numa estátua de bronze. – O que eles disseram?

– Ele morreu, é só isso que eu sei.

Ela o solta um pouco, mas continua abraçada a ele. A conduta de Jim lembra a ela da primeira vez em que tentou abraçá-lo, quando eles ficaram juntos, aquela rigidez terrível no corpo dele.

– Eu me sinto muito mal, não conheci Sean, nem Michael.

Jim fica em silêncio, imóvel e calado como uma de suas esculturas. Melanie sente a tensão dele penetrar nela, endurecendo-a. Rompendo o abraço, ela deixa que os braços caiam junto do corpo.

– Você não vai se envolver em nada por lá, não é?

Jim meneia a cabeça com desdém.

– Me envolver no quê? Só quero descobrir o que aconteceu, ir ao funeral dele – diz Jim, depois acrescenta num tom diferente: – Ver quem tem lágrimas de verdade, quais são as de crocodilo. – E ele passa ao pequeno escritório, senta-se diante do computador e entra na internet.

– Jim...

– Você disse que não o conheceu. Nem eu – resmunga Jim, os olhos castanho-escuros ficam baços. – Quando ele era mais novo, era só uma distração pra mim. Uma irrelevância. Depois, fui preso. Fiz tudo errado com ele e o irmão – diz ele, parecendo a Melanie quase chegar a um tom coloquial, como se falasse com outra pessoa. Isso a deixa desconcertada e ele prossegue, baixando a voz: – Quando tive filhos, disse que eu nunca seria como meu velho foi comigo. E cumpri com minha palavra, fui pior – ele admite, quase objetivamente, enquanto abre na tela a página da American Airlines. Depois se vira para ela e fala com intensidade: – Mas sou diferente com as meninas.

– É claro que é, você é um ótimo pai – diz Melanie, provavelmente com certa urgência demasiada. – Agora é diferente. Você era jovem demais, você...

– Eu era viciado em violência – confessa Jim com frieza, digitando informações e pegando o cartão de crédito. – Mas agora tenho essa insensatez sob controle, porque ela não me leva a nenhum lugar interessante. Só à cadeia. Já fiz muito disso.

– Sim. – Melanie olha para Jim, aperta sua mão. Ela tenta encontrá-lo, este homem com quem se casou, que ela trouxe para os Estados Unidos. Só o que consegue ver é o presidiário escocês que conheceu anos atrás chamado Francis Begbie.


6
O ENTREGADOR 2

Eles chegavam à casa nas noites de sexta-feira pro carteado, quando minha mãe estava no bingo. Eram o vô Jock, Carmie, Lozy e um homem muito mais novo, Johnnie “Bonitão” Tweed, o único deles que me dava dinheiro. Ele me puxava de lado e apertava uma ou outra nota de uma libra ou cinquenta pence na minha mão, e dava a dica com uma piscadela. Então eu sabia que isto ficava só entre nós. Eles formavam um quarteto arrogante e presunçoso que costumava se pavonear com seus sobretudos Crombie e chapéus Trilby. Eu era fascinado por todos eles, assim como meu irmão Joe.

Meu pai tomava porres com meu tio Jimmy. Ele sempre foi bebum. Minha mãe o botava pra fora, às vezes durante anos. Quando ele voltava, ficava sóbrio por algum tempo, mas isso nunca durava. Depois ele sumia por séculos. Diziam que ele estava trabalhando nas plataformas, mas eu sabia que estava na prisão ou doidão com alguma puta idiota. E então ele voltou mais uma vez e ficou tempo suficiente pra dar minha irmã mais nova Elspeth à minha mãe.

Eu esperava com ansiedade aquelas noites de sexta-feira, mesmo que elas tivessem um caráter estranho. O vô Jock acalentava uma cerveja, que raras vezes terminava, e bebericava um uísque. Só um. Ele olhava os dois filhos: bêbados, esparramados, flatulentos e gritões, e, mesmo sendo criança, eu o sentia fervilhar de decepção. Suponho que tínhamos isso em comum.

Minha mãe o odiava e ao seu trio de parceiros. Gângsteres, ela os chamava. Na época, final dos anos 1970, eles estavam entre os últimos homens nas docas decadentes. Todos eles, menos Johnnie, estavam lá desde a guerra e se aproximavam da aposentadoria. Os três mais velhos, embora tivessem uma ocupação exclusiva, tinham perdido toda a luta. Eu sempre achava estranho que uns babacas que se achavam durões usassem seu status de trabalho pra se safar de matar nazistas. Mas o ganho pessoal era o verdadeiro motivo deles. “Eles levaram tudo que era importante pros trabalhadores”, lembro de minha mãe certa vez me dizendo: “Roubaram deles. O negócio da guerra era pra todo mundo, não só praqueles ladrões de merda.”

Isso era meio desonesto. Eu olhava todas as coisas em nossa casa, comparada com as casas dos outros. Tínhamos de tudo, até o velho torrar com a bebida. E a gente sabia de onde vinha tudo aquilo. Nunca ouvi minha mãe falar que ia devolver.

Mas ela tentava me manter afastado do vô Jock e seus companheiros. Eu tinha treze anos e estava no primeiro ano na escola quando eles começaram a demonstrar interesse por mim. Era bom que eles não dessem a mínima pro meu irmão Joe, catorze meses mais velho. Fazia com que me sentisse importante.

Mas não era muito na época.

Ralei muito pra aprender a ler durante toda a escola primária e, no secundário, fui colocado na turma dos burros. Letras e palavras numa folha de papel não significavam nada, eram só um código borrado que eu não conseguia decifrar. Muitos anos depois, recebi o diagnóstico de dislexia. Na época, porém, os professores e os garotos esnobes riam de mim por ser lento e burro. Eu me enfurecia por dentro, com tanta intensidade que quase adoecia. Sentado ali, na minha carteira, com a respiração presa, quase desmaiando de fúria. Depois aprendi que deixar essa fúria sair era o jeito de parar com os risos: parar com eles, transformando em sangue e choro.

Então era bom ser valorizado pelo vô Jock e por seus amigos; aqueles homens destemidos e dissimulados que as pessoas pareciam temer e respeitar. Mas Johnnie Tweed nunca conseguia entender. Ele era da idade de meu pai, e eu sempre achava que devia ser companheiro dele, e não de meu avô. Como sugeria seu apelido, Johnnie “Bonitão” era um cara de boa aparência, com dentes grandes e brancos e um cabelo preto e farto cortado à escovinha. Tinha um cheiro forte de loção pós-barba, cigarros e álcool, como todos os homens quando você é criança, mas sempre havia algo um pouco mais fragrante em Johnnie.

Eu detestava a escola e trabalhava meio expediente como entregador da R & T Gibson, um mercadinho em Canonmills. Pedalava a bicicleta grande e preta com quadro de metal, levava caixas de mantimentos metidas no cesto enorme na frente. Pedalava essa monstruosidade pesada pelas ruas movimentadas, minhas pernas magricelas bombeando com força só pra mantê-la reta. Eu também abastecia as prateleiras da loja. O dono da loja não se chamava Gibson, mas Malcolmson: um filho da puta nervosinho de voz aguda. Malcolmson estava sempre me dando ordens, também a Gary Galbraith, o outro estudante que trabalhava lá.

Num sábado de manhã, o vô Jock apareceu na loja com Carmie. Willie Carmichael era um homem enorme e silencioso com mãos que pareciam pás e estava perpetuamente ao lado do meu avô. Jock tinha um sorriso torto, sua marca registrada, que eu agora associo com a palavra sarcástico. Ele encarava intensamente Malcolmson, que se remexia, pouco à vontade, enquanto eles conversavam, a voz ficando mais aguda.

– Os estivadores do Leeeeth, é sim, Jock, precisamos manter os estivadores do Leeeeth felizes!

O sorriso sacana de meu avô jamais deixava sua cara. Ele e Carmie puxaram Malcolmson de lado e cochicharam alguma coisa pra ele. Fiquei fora do caminho, empilhando nas prateleiras as latas de abacaxi em pedaços, mas vi que os olhos de Malcolmson aumentavam e se arregalavam e os de Jock e Carmie ficavam estreitos, como fendas. Depois, Jock falou comigo.

– Trate de trabalhar bem e se comporte com o sr. Malcolmson aqui, entendeu, moleque?

– Sim.

E então eles saíram da loja. Malcolmson passou algum tempo falando vão se foder, porém depois olhou pra mim com um misto estranho de assombro e medo. Em seguida nos disse que Gary Galbraith ia fazer a maior parte das entregas e eu ficaria abastecendo as prateleiras, dentro da loja, aquecido. Pra mim, foi boa notícia, mas não pro Gary. Estava frio pra caralho lá fora naquela bicicleta. Mas só havia uma entrega que eu tinha de fazer três vezes por semana: uma caixa de frutas e legumes pros caras da estiva do Leith. Nunca vi meu avô nem nenhum de seus amigos, nem uma vez, comer uma fruta que fosse, ou um legume que não fosse uma batata.

Um maluco chamado John Strang, óculos grossos, cabelo puxado pra trás com gel, era o cara no portão. Era conhecido como um psicopata violento, tinha cumprido pena em Carstairs, uma instalação pra criminosos loucos. O calçamento era de pedra, o que não importava tanto na ida, mas quando eu saía, depois de visitar a toca deles, a caixa estava cheia de garrafas pesadas de bebida alcoólica que a gente podia ouvir chocalhar e tinir. É claro que Strang mandava um foda-se; evidentemente ele era protegido por Jock e os outros, mas só passar por aqueles olhos ampliados já era perturbador. Depois eu voltava de bicicleta pra loja e colocava as garrafas numa caçamba no fundo do prédio. Johnnie aparecia mais tarde com um furgão pra buscá-las. Fiquei sabendo que este era o jeito deles de operar enquanto eu esperava atrás dos arbustos certa noite, perto da trilha do Water of Leith, e o via aparecer.

Mas eu gostava de ir ao estaleiro pra encontrar meu avô Jock e seus companheiros. Dava pra ver que eles formavam um grupo separado e que os outros estivadores não tinham tempo pra eles. Eles ficavam num anexo de tijolos aparentes perto de uma antiga doca seca, de que eles se apropriaram como seu QG. Ficava bem no lado leste das docas, limitado por uma cerca alta de tela e uma série de unidades industriais, bem afastado dos outros estivadores. Acho que esse arranjo era bom pra todas as partes. A “toca”, como eles chamavam esse anexo, evidentemente foi feita pra ser um antigo depósito; tinha uma mesa e cadeiras de madeira, e uma estante contendo material de limpeza. Havia uma lâmpada, nenhuma janela, o lugar era ventilado apenas por tijolos furados no alto e na base, e trancado por uma grande porta de madeira, deixada entreaberta quando estávamos lá dentro.

Eu me sentava com eles, bebendo chá de uma caneca, mantendo-me aquecido por um fogão a gás Calor, que eles sempre deixavam aceso no inverno, e ouvindo as conversas deles. Pareciam estranhas a meus ouvidos jovens, eles costumavam falar por enigmas, usavam palavras e jeitos de se expressar que eu não conseguia decifrar. Era como se fosse uma língua diferente, uma espécie de código. Eles pareciam relíquias de outra época.

Eles podiam saber a merda toda sobre o Jam estar no topo das paradas, mas conheciam as pessoas e suas fragilidades.

– Veja o seu irmão Joe, ele tem medo de você – disse-me o vô Jock certa vez na toca. – Ele sabe que é mais fraco do que você.

Fiquei pasmo com essa revelação. Joe me atormentava constantemente: espancava, fazia da minha vida um inferno. Mas eu reconhecia uma estranha credibilidade na declaração de meu avô. Havia um pânico nos olhos de Joe quando ele me batia, quase como se ele previsse uma retaliação que nunca chegava. Porém, armado deste discernimento, resolvi que agora ela viria. E Joe não estaria esperando por ela. Aquele velho filho da puta do Jock, que podia farejar a vulnerabilidade de um homem como um tubarão, sente o cheiro de sangue na água, ele via tudo. Entendia tudo.

Quando eu era mais novo, costumava contar pra todo mundo essa história de Joe e eu, a história da virada de jogo. Mas pelo modo como eu contava dava a impressão de que foi meu pai que me puxou de lado e me disse pra dar com o tijolo na cara de Joe enquanto ele dormia. Era assim que eu queria que meu pai fosse, que tivesse essa vontade de potência. Mas não foi meu pai. Foi meu avô. Foi o velho Jock.

O principal, porém, foi que a cara era de Joe e o tijolo estava na minha mão. Ele chorou a noite toda, o sangue escorrendo no travesseiro. Tive medo, mas fiquei radiante, quase tropeçava em minha própria sensação de poder. Daí em diante, nós dois passamos a saber qual era a parada.


7
A IRMÃ

Aviagem de avião foi um borrão glorioso e tortuoso de conhecimento. Os audiolivros berravam nos ouvidos pelos fones, agora complementados pelo Kindle. Foi uma libertação magnífica. Ele podia ampliar o texto, aprimorar seu foco em palavras isoladas sem a distração do bolo de palavras próximas. Ele aprendeu a modificar a tipologia; algumas fontes eram de leitura mais fácil do que outras e esta experimentação rendeu frutos. Junto com os atores que liam o texto, ele aprendeu a reconhecer palavras em uma página. Aos poucos, a frustração abrasadora do fracasso foi substituída pela euforia do aprendizado. O escárnio dos professores, os risos dos colegas de turma, a vergonha mordente e a fúria violenta e incandescente pertenciam a outra pessoa de outra época.

Todavia, o nome ainda estava em seu passaporte: Francis James Begbie. Era assim, apesar de ele usar profissionalmente “Jim Francis” e sua mulher se referir a ele principalmente como Jim. Foi uma evolução tranquila: por uma pequena coincidência, o sobrenome de Melanie era idêntico ao nome de batismo dele, e ela com frequência era chamada de “Frankie” pelos colegas de faculdade. Entretanto, ela ficou lisonjeada quando ele disse que queria ser conhecido como Jim, e quando Grace nasceu, todos assumiram o sobrenome Francis. “Não quero que ela cresça como uma Begbie”, disse ele enfaticamente na época.

Independentemente de como fosse chamado, ele nem acreditava que um dia voltaria à Escócia. Simplesmente não estava em sua programação e ele jurou que o funeral da mãe seria sua última visita. Ele não era íntimo do irmão e da irmã, nem dos próprios filhos, que ele imaginava que fariam o que faziam. O que não havia pensado de qualquer um deles era que fossem morrer. E sua reação visceral não o surpreendeu, o que o chocou foi a profundidade com que aconteceu.

Quanto à amizade, aquela que existia entre inveterados homens de violência, ela podia desenvolver-se em camaradagem e até em carinho autêntico por algum tempo, desde que a hierarquia fosse devidamente resguardada. Quando se rompia, porém, os resultados eram arrasadores e algumas relações podiam sobreviver a eles, supondo-se que ambas as partes também conseguissem. De todo modo, seus velhos amigos levavam uma vida que não tinha mais nenhum apelo para ele.

Ele falou com June, rapidamente sondando através de seu choro confuso e atrapalhado por antidepressivos que a principal preocupação dela era conseguir que ele pagasse os custos do funeral, o que ele prontamente se dispôs a fazer. Ela lhe contou o essencial do caso; que depois de uma denúncia anônima, Sean foi encontrado sangrando em um apartamento em Gorgie, tendo levado várias facadas. A polícia supõe que ele foi atacado ali, porém não havia mais ninguém presente e os vizinhos não ouviram nada que indicasse uma briga. O apartamento era alugado de um senhorio para um famoso traficante de drogas que atualmente cumpria uma pena de prisão. Não havia provas de uma transação com drogas e, pelo que todos sabiam, a residência estava desocupada muito tempo antes de Sean se mudar para lá.

O voo se arrastou e provou-se cansativo, a conexão do aeroporto de Heathrow saiu atrasada. Ele agora desembarca em Edimburgo, com frio e cansado, usando uma jaqueta de couro leve e empurrando a mala de rodinhas vermelha tamanho médio que ele entupiu principalmente de camisetas, meias e cuecas. Os ventos do mar do Norte sopraram quando ele saiu do prédio do terminal do aeroporto. Foi um erro não ter trazido roupas mais apropriadas. Ele pegou seu iPhone, porque apareceu uma mensagem da empresa de telefonia em sua caixa de texto, delineando as tarifas extorsivas que ele pagaria enquanto estivesse no exterior. Depois dessa, uma mensagem mais agradável de Melanie:

Te amo!!! Bjs

Ele digita a resposta:

Cheguei intero! Te amo!!! Bj

Ele olha desanimado, percebendo ter digitado “inteiro” errado. Depois, para sua surpresa, quando vai para a fila de táxi, descobre que conhece o taxista, que pode ser imediatamente reconhecido pelo característico cabelo de molinha. E o motorista o reconhece.

– Tudo bom, parceiro? É Franco, né? O velho parceiro de Sick Boy!

– Terry. – Franco, como ele sempre será conhecido em Edimburgo, repuxa um sorriso duro. Terry Lawson é um dos personagens da cidade e é reconfortante ver um rosto de antigamente. Da última vez que ele soube, Terry ainda fazia vídeos pornôs com seu velho amigo Sick Boy e dirigia um táxi nas horas vagas.

– Li sobre você. Se deu bem. – Terry sorri, depois seu rosto se franze. – Escute aqui... aí, soube do seu garoto. Minhas condolências, parceiro. Tão jovem ainda...

– Obrigado, mas eu meio que perdi o contato com ele.

Terry rapidamente remói a resposta, tentando entender se é verdadeira ou uma bravata estoica.

– Veio pro funeral, né?

– É.

Levando Franco ao endereço solicitado em Murrayfield, uma rua que é uma miscelânea de habitações baixas, Terry deixa um cartão com ele.

– Se um dia quiser uma corrida de carro, dá um grito. – Ele pisca. – Não tenho placa de “Táxi” nesse, se tá me entendendo.

Franco coloca o cartão no bolso interno, sai do táxi, despede-se e observa Terry acelerar. Por uma névoa matinal que caía sinistra, ele vê do outro lado da rua o imponente estádio de rúgbi. Depois, rodando a mala vermelha a suas costas, percorre a curta entrada da casa revestida de pedra onde a irmã mora com o marido e os dois filhos. Ele bate na porta, e Elspeth abre, tem o cabelo amontoado no alto da cabeça e preso ali por um leque quase implausível de grampos e prendedores. De imediato ela o abraça, apertando com força.

– Ah, Frank... eu sinto muito... entre, você deve estar exausto...

– Estou bem – ele fala arrastado, dando-lhe um tapinha nas costas. Eles rompem o abraço, e Elspeth o leva para dentro, ao calor oportuno, oferece-lhe uma cerveja que ele rejeita com muita secura. – Não toco nessas coisas.

– Desculpe – diz ela, fazendo certo estardalhaço com a declaração, depois se corrige. – Ainda é abstêmio?

– Quase sete anos.

Elspeth prepara para si um gim-tônica, embora ainda seja de manhã.

– Você me parece muito bem – diz ela, sentando-se ao lado dele.

Frank Begbie não pode dizer o mesmo a respeito da irmã mais nova. Ela parece mais pesada, inchada no rosto.

– Pilates. – Ele sorri.

– Tá brincando!

– Estou, é a Mel que faz isso. Eu só vou a uma academia de boxe quatro vezes por semana.

Elspeth ri de um jeito que a faz perder anos de idade.

– Não dá pra imaginar você fazendo pilates, mas, na Califórnia, nunca se sabe!

– Suponho que coisas mais estranhas aconteceram.

Como quem reconhece a verdade nisso, Elspeth declara:

– Então agora você é artista?

– É o que dizem alguns.

Os olhos dela se estreitam enquanto ela leva o copo à boca. Toma um gole.

– É, li um artigo sobre você no Scotland on Sunday. Todas aquelas estrelas de Hollywood querendo amizade com você. – Elspeth ergue uma sobrancelha. – Chegou a conhecer George Clooney?

– Sim. Eu o encontrei uma vez.

– Como ele era?

– Gostei dele – admite Franco. – E por causa disso não acho que seja educado falar das pessoas quando elas não estão presentes.

Há uma pompa em sua resposta que irrita Elspeth.

– Desde quando você se importa com a educação?

– Nunca é tarde demais.

Elspeth parece considerar isso, como se refletisse, depois reprime uma réplica cáustica que se formava em seus lábios.

– Lamento muito por Sean – começa ela, depois sua expressão fica séria. – Mas precisamos colocar as cartas na mesa. Só pra gente saber em que pé estamos.

Franco ergue uma sobrancelha.

– Por mim, tudo bem.

– Você pode enganar os outros com seu grande teatro do reabilitado – Elspeth sorri com escárnio –, mas a mim você não engana. Conheço você. Sei o que você é. – Ela olha para ele, esperando uma reação.

Não resulta em nada. O irmão dá a impressão não tanto de quem não se ofendeu, mas de não ter ouvido realmente o que ela disse.

– Mas ainda somos da família. – Ela suspira. – Então, você é bem-vindo pra ficar no nosso quarto de hóspedes até depois do funeral.

– Fico muito agradecido.

Os olhos de Elspeth se estreitam.

– Mas dê um passo em falso e vai sair por aquela porta. Eu falo sério, Frank. Tenho os meninos aqui.

Frank Begbie sente algo familiar surgir dentro dele. Quer se levantar, mandá-la à merda e simplesmente sair daquela casa de subúrbio obtusa e arrumada, com sua decoração e mobiliário suave e bege. Mas ele puxa o ar para os pulmões e olha os dois cães de porcelana sobre a lareira. Eram de sua mãe, vieram da casa antiga. Depois ele se vira e assente lentamente para ela, numa resposta afirmativa.

– Eu entendo.

Elspeth fica desconcertada com essa resposta dócil e é visível que engole em seco.

– Sean veio aqui algumas vezes, sabia?

– Ah, sim?

– No início foi até bom, era ótimo vê-lo – ela sorri, antes de menear a cabeça com desânimo –, depois, quando ele desceu a ladeira, só vinha pra pegar dinheiro.

– Vou pagar a você.

– Não se trata disso. – Elspeth levanta o copo. – Eu não queria ele perto de Thomas e George. Eles são bons meninos. Mas eles o admiravam, porque tinha mais idade e era o primo mais velho.

Frank tenta apreender tudo isso. Sean, seus sobrinhos, aquela casa ali em Murrayfield. Era bastante aceitável, embora não fosse nem de longe tão impressionante como sua própria casa na Califórnia, reflete ele com certa satisfação. Quando ele era criança no Leith, Murrayfield parecia o playground de um milionário. Agora, a seus olhos críticos, parece – pelo menos esta parte da localidade – só outro bairro pardacento e desgastado, absolutamente nada a se aspirar. Mas sua cabeça crepita de estática, e um bocejo imenso é arrancado dele.

– Olha, estou com um pouco de jet lag. Se importa se eu for me deitar um pouquinho?

– Claro que não – diz Elspeth, e ela o leva ao quarto de hóspedes.

Franco fica só de cueca e se mete embaixo do edredom. Desfruta do luxo de se esticar depois do avião apertado e vaga para um sono insatisfatório, repleto de sonhos desconexos. Algumas horas se passaram quando ele é acordado por barulhos que vêm do andar de baixo. Ele então coloca o número de Terry em seu iPhone, depois faz alguns alongamentos, seguidos por golpes de um boxe fictício no espelho de corpo inteiro e 150 flexões; por fim, toma um banho.

Os meninos, George e Thomas, com dez e nove anos, voltaram da escola. Olham-no com um fascínio tímido. Depois de uma troca de amabilidades sobre aviões e a América, George se arrisca:

– A mamãe disse que você ficou na prisão.

– George! – sibila Elspeth.

– Não, tá tudo bem. – Franco sorri. – Sim, fiquei.

– Nossa... você deve ter feito umas coisas ruins, não é?

– Algumas coisas ruins – concorda Franco –, mas principalmente burrices. É por isso que as pessoas vão presas. Mas vocês, garotos, parecem inteligentes demais pra essas besteiras. E como vão na escola?

Os dois meninos têm interesse em contar o dia e, conversando com eles, Franco fica confuso ao constatar o quanto gosta dos sobrinhos. Até Elspeth parece ficar mais leve, e ele lhe mostra fotos das meninas no iPhone.

– Elas são lindas – diz ela, mas quase numa acusação, seu tom sugere a inevitabilidade de ele destruí-las de algum modo.

Greg, marido de Elspeth, chega do trabalho. Ele engordou um pouco e seu cabelo está mais ralo.

– Frank! É ótimo te ver. – Ele estende a mão e aperta a de Franco com firmeza. – É claro que lamento pelas circunstâncias – ele se corrige sombriamente.

– Sim, você também, e obrigado – Franco consegue dizer, pensando em como Greg é parecido com o clássico gerente de nível médio britânico; cansado, atormentado e tolhido pela consciência devastadora de que foi o mais longe que podia e que a próxima grande mudança a conquistar na vida será uma distante aposentadoria ou, pior, sua demissão que pode não estar tão distante assim. – Como está o trabalho?

– Nem queira saber. – Greg meneia a cabeça.

Nem queira saber o quanto não quero saber, pensa Franco.

Mas Greg, como os filhos, é simpático e quer entabular conversa.

– Estão falando numa fusão. Isso nunca é bom, Frank. – Ele olha fixamente pela janela. Soltando a respiração, repete: – Isso nunca é bom.

Depois do jantar (Franco fica desconcertado ao flagrar-se chamando assim também, em vez de chá), os meninos vão para os quartos e Greg fica mais sério, acalenta um uísque, enquanto Elspeth carrega o lava-louças na cozinha.

– Sinceramente eu admiro você, Frank, o jeito como transformou sua vida pela arte. Deve ser muito recompensador.

– O dinheiro é bom, mas, sim.

– Sempre sonhei em escrever o grande romance escocês... – Greg entoa com tristeza e aponta uma estante. – Uma vez fiz um curso de redação criativa...

Franco acompanha o olhar de Greg, vendo as lombadas dos suspeitos de sempre, descobrindo que leu a maioria deles.

– Disseram que eu era bom em arte na escola, mas nunca imaginei isso. Uma vez fiz um desenho com um sol preto. O professor surtou: “Um sol preto, Francis Begbie?” Mas eu gostava da ideia de um sol preto, como um buraco negro no espaço. Sugando tudo pra escuridão: de onde viemos, pra onde vamos.

Greg concorda com a cabeça, mas seu sorriso desmorona enquanto o peso desolador das palavras de Franco o atinge. Ele se reanima e se arrisca, com admiração.

– Ter essa criatividade... queria que fosse eu! Conhecer todas aquelas estrelas... chegou a conhecer Jennifer Aniston?

– O melhor boquete que já me fizeram.

Greg ergue as sobrancelhas, olha para a cozinha e baixa o tom de voz.

– Caramba, tá brincando, né?

– Tô. Ela não foi tão boa assim.

– Ha, ha, ha... – Greg ri, caindo em silêncio enquanto Elspeth reaparece.

Frank esteve olhando os CDs exibidos em um armário grande. Abaixo dele, chamam sua atenção vários jogos de tabuleiro empilhados em uma prateleira. Ele se levanta para examinar.

– Monopólio... Um Edinburgh yin! Nem sabia que fizeram isso. Topam uma partida?

– Não – diz Elspeth com uma determinação de ferro. – Lembra-se da última vez que jogamos Monopólio em família? Naquele Natal, na casa da mãe?

Franco de repente fica taciturno, enquanto os meninos vêm de seus quartos.

– O que aconteceu? – pergunta George.

– Deixa pra lá – diz Elspeth.

Franco se recorda de que eles tinham colocado uma garrafa do uísque Famous Grouse no meio do tabuleiro. A ideia era a de que quando alguém caísse no estacionamento gratuito tomariam um gole. Parecia que ele caía muito lá. Depois Joe trapaceou, alegando que tinha tirado um 10 em vez de 11, posicionando-se em Park Lane, pretendendo adicionar a Mayfair, que já era dele. Frank pegou a garrafa e a fez se quebrar na cabeça do irmão, para choque de Elspeth, June, Sandra, a ex de Joe, e a mãe deles, Val. Levaram Joe ao hospital, onde ele recebeu 12 pontos. Essa lembrança faz Franco mudar de ideia. Ele pega o Jogo da Ratoeira.

– Não vejo um desses há anos – diz ele, abrindo a caixa.

– Antigamente você detestava esse jogo – lembra Elspeth. – Você mesmo disse que era trabalho demais dar a volta no tabuleiro só pra disparar a coisa, e isso nem sempre dava certo.

– Mas eu queria jogar um pouco, pelos velhos tempos – sugere Frank. – Esse é melhor do que aquele que temos. Não ligo pro homem na banheira. – E ele olha as peças de plástico que George e Thomas já montam avidamente no tabuleiro.


8
O ACIDENTE

Na manhã seguinte, Franco acorda cedo, vê pela janela o final da rua e a pequena ponte que atravessa o Water of Leith, levando ao estádio de rúgbi. É estranho que o rio role sinuoso, indo para o Leith, e o estuário do rio Forth, descendo as docas. Mais uma vez, sua percepção do bairro o deixa indignado. Com suas casas baratas e vagabundas, revestidas de pedra, fica um passo acima de um programa de habitação popular.

Ele pega o celular americano, nota que a bateria tem pouca carga e percebe que na pressa de fazer as malas só trouxe um carregador americano. Entretanto, telefona para Melanie, apostando que ela tenha acordado tarde. Ela atende prontamente.

– Ei, oi!

– Oi, querida, como vão as coisas? – Franco sente seu sotaque abrandar. – Como estão minhas meninas?

– Estamos todas bem. Só é difícil saber o que dizer a elas. Me conformei com “um velho amigo do papai está doente”, não consegui pensar em outra coisa.

Franco pensa nisso, reconhecendo.

– Boa atitude, deve ser melhor assim.

Melanie se derrama contando uma história engraçada sobre Grace, e Frank lhe conta que eles jogaram o Jogo da Ratoeira. Quando parece que seu telefone vai arriar de vez, eles se despedem e ele vai à cozinha preparar o café da manhã.

Elspeth fica surpresa ao entrar e encontrá-lo nos domínios dela, preparando uma omelete de claras e queijo suíço, exibindo um avental que descreve o corpo de uma gorda de roupas íntimas. Ela nunca o viu fazer mais do que ferver a água de uma chaleira.

– Novos talentos – observa ela.

– Algum de vocês estaria interessado nisso? – diz ele, com aquela leve afetação americana ainda presente na voz.

Elspeth declina, mas Greg, tentando alisar o tufo de cabelo ao entrar na cozinha, aceita a oferta com entusiasmo. Devorando a comida, Franco depois some brevemente, ressurgindo com um suéter fechado, pronto para sair.

– E aonde você vai assim tão cedo? – pergunta Elspeth.

– Pensei em dar uma caminhada pela cidade, depois talvez ir até o Leith, ver se tem alguma cara antiga por lá.

Elspeth fica em silêncio, entregando a ele uma cópia da chave. Ele pode ver aquela intensa atividade, característica da irmã, zunindo por trás de seus olhos enquanto ela processa os possíveis desdobramentos disto.

Quando Franco sai, Greg comenta:

– Seu irmão é um cara completamente diferente! Tivemos uma ótima conversa sobre o processo criativo dele.

– Você vê o melhor nas pessoas, Greg. – Elspeth fala com frieza. – Não sabe como ele é de verdade.

Franco começa tentando entender os últimos dias de Sean. Sua primeira parada é o apartamento em Gorgie onde o filho encontrou seu fim. O apartamento fica num prédio de conjunto habitacional que não recebe sol, nos fundos do estádio Tynecastle. Canais de musgo crescem entre as pedras do calçamento e o lugar é permeado por uma quietude e um silêncio mortais. Na portaria do prédio há um sistema de interfone, mas ele para, sem inclinação para atormentar os vizinhos em busca de informações, até saber mais detalhes do caso.

Os fatos rudimentares coletados por June precisam de muita suplementação. A caminho da ponte George IV e da Biblioteca de Edimburgo, ele lê as matérias de jornal sobre o incidente. Depois telefona à central de polícia da Gayfield Square para o número de assistência dado em ligação com o caso. Para sua surpresa, o recepcionista o coloca imediatamente com o policial responsável pela investigação. O homem se apresenta como inspetor-detetive Ally Notman. Expressando solidariedade pela perda de Franco, ele diz que quer vê-lo pessoalmente, pergunta quando ele pode aparecer. Franco lhe diz que pode chegar dali a uma hora, com o que Notman concorda. Depois desse telefonema, ele espera que a barra de energia do iPhone indique a perda total da carga, mas ela se aguenta resolutamente.

Ele anda pela cidade com uma estranha leveza de espírito. Quando chega ao final da Leith Walk, sua pulsação se acelera ainda mais; foi por essas portas que ele entrou um dia. Apesar de sua recepção positiva por telefone, é uma sensação estranha entrar voluntariamente na central de polícia da Gayfield Square. Na última visita, muitos anos antes, ele fora arrastado por essas portas para uma cela de detenção, semiembriagado, enfurecido e coberto do sangue de Donnelly, outro rival, depois de uma briga de faca na frente do pub Joseph Pearce, do outro lado da rua. Isso aconteceu em plena luz do dia. Ele se pergunta, o que ele estava pensando? A porra de um piloto camicase. Ele fica parado, afasta-se das portas de vidro da central, olha do degrau da Georgian Square o pub. Teria sido uma amolação menor simplesmente ter entrado na central e atacado o policial da recepção.

Agora o policial que o recebe tem um sorriso de boas-vindas e esse tratamento solidário contínuo deixa Franco se sentindo ainda mais fora dos eixos. O detetive com quem ele conversou antes é convocado e aparece prontamente. O inspetor-detetive Ally Notman é um homem alto de cabelos escuros, magro, mas com uma barriga crescente de quem bebe. Notman troca um aperto de mãos com Franco, transmitindo os pêsames por sua perda, enquanto o conduz a uma sala silenciosa. Só então o detetive dispensa a bajulação e repassa sistematicamente os detalhes do caso.

– Sean sofreu múltiplas facadas no peito, barriga, abdome e coxas. As lacerações em apenas um braço indicam que ele só conseguiu impor uma resistência simbólica, provavelmente devido à extrema intoxicação. O golpe que o matou foi uma ferida que cortou a artéria femoral, na perna. Ele teria morrido de hemorragia em um minuto. – Notman ergue as sobrancelhas escuras, procurando por uma reação da parte de Franco.

– Parece que o cara que fez isso estava furioso e teve sorte – reflete Franco. – Não é exatamente o trabalho de um assassino calculado e frio.

Notman se mantém inexpressivo, embora Franco pense ver uma centelha de reconhecimento nos olhos do policial. E então o detetive lhe mostra uma cópia do relatório do toxicologista.

– Isto indica que Sean estava bastante drogado.

Franco passa os olhos pelo documento; em meio ao jargão técnico, saltam as palavras heroína, ecstasy, cocaína, sulfato de anfetamina, cannabis, Valium, nitrato de amila e antidepressivos. Quem entrou naquele apartamento e atacou o coitado do babaquinha, nunca teve lá alguma dificuldade.

– Tudo isso e mais um pouco – observa Franco. – O que ele não tomou?

– Como eu disse, é improvável que ele tivesse muita noção do ataque nestas condições.

Isso é tomar liberdades demais, decide Franco.

– Algum suspeito?

– Nossas investigações estão em andamento – diz Notman mansamente. – Evidentemente manteremos o senhor e sua ex... a mãe de Sean... informados de qualquer novidade.

– Beleza – diz Frank Begbie. Ele conhece o esquema. A polícia não vai fazer hora extra para encontrar o culpado deste caso. Para seu desânimo, ele agora descobre que mal consegue culpá-los. Sean, como ele próprio, provavelmente se perdera há muito tempo e teria causado estragos a sua volta. Por que mimar gente assim quando eles simplesmente se eliminam mutuamente se você os deixar por conta própria? Apesar de nossa limitada retórica cheia de relutâncias e desânimos, a verdade é que fomos além da democracia, da universalidade e da igualdade aos olhos da lei e, de facto, adotamos uma visão de mundo hierárquica e elitista. Aqueles que estão na base não são importantes, desde que só ameacem uns aos outros, mais insignificantes do que os do topo, ou os fluxos de receita, como os turistas. Seus próprios filhos, Sean, Michael e River, o filho da ex-namorada Kate (de quem ele praticamente se esqueceu quando começou a cumprir sua longa sentença pouco antes de o menino nascer, separando-se dela quando o moleque ainda estava na barriga): eles não são importantes para ele. Como podem ser comparados a Eve e Grace, nascidas de uma mãe instruída em circunstâncias vantajosas? Sempre se pode apostar num elegante e lustroso puro-sangue em vez de num cavalo de carga. Se ele faz distinção de sua própria prole desse jeito, como pode condenar a polícia por seu desinteresse, quando algum pobre turista provavelmente tem sua bolsa afanada na cidade?

– Uma coisa – diz Franco –, quem o encontrou?

– Alguém deu um telefonema anônimo, chamando a ambulância, disse que houve um acidente feio, depois desligou.

Frank Begbie pensa nisso. Quem telefonou evidentemente está implicado de alguma maneira. Um inocente teria chamado a polícia, além da ambulância, e não teria descrito o que houve com Sean como um acidente.

– Será possível que quem telefonou tenha feito isso com ele?

– É possível. Ou um amigo, ou cúmplice que testemunhou o assassinato e conhecia Sean e a pessoa que fez isso. Talvez tenha sofrido uma crise de consciência depois – diz Notman –, mas não sabemos.

Franco reflete, sentindo que chegou ao máximo que pode obter da polícia.

– Você parece ter dado uma guinada na sua vida. Soube que vai muito bem no mundo da arte. – Notman abre um meio sorriso.

– Não tenho do que reclamar. Tive um empurrãozinho – diz Franco, agora percebendo plenamente que eles fariam a porra toda por Sean. E ele também entendeu que o principal motivo para terem concordado em recebê-lo tão prontamente era para dizer que ele devia fazer também a porra toda.

– Agradeço que tenha se dado ao trabalho, sr. Begbie – declara Ally Notman, seu tom agora de uma gravidade profissional. – Mas é desnecessário dizer que precisa deixar isto conosco. Estamos esclarecidos?

– Fico feliz em deixar que vocês, rapazes, façam o que fazem melhor. – Franco sorri e acrescenta sombriamente: – E deixe-me fazer o que eu faço melhor.

A expressão de Notman arria.

Franco abre um sorriso radiante.

– O que, naturalmente, é pintar e esculpir.


9
A PARCEIRA DE DANÇA 1

Eles se encontravam na varanda externa da boate, nos fundos do prédio, atraídos pelo ritmo dançante que se derramava do sistema de som, cortesia de um DJ na esquina. Depois do interior melancólico e quase deserto, este lugar se mostrou um oásis: havia gente dançando, sentada às mesas bebendo e fumando, ou reunida à toa em pequenos grupos. Melanie e Jim imediatamente registraram que eles eram dois dos poucos não latinos presentes; outro casal branco rodava com certo estilo e proficiência, enquanto dois negros recostavam-se no corrimão, alternadamente olhando a rua e se virando para apreciar as pessoas. Por estímulo de Melanie, ela e Jim ocuparam lugares posicionados junto da parede do outro lado da área do bar. Enquanto eles olhavam a pista de dança de madeira encerada, a toalha vermelha da mesa roçava em suas pernas.

Não estavam sentados há muito tempo quando duas mulheres incrivelmente bonitas, muito produzidas e com idêntica postura, desfilaram no pátio. Uma era fascinante e esguia, tinha o corpo magro e curvas quase implausíveis de tão angulosas. Tinha de ser modelo, pensou Melanie em voz alta. A outra, com os lábios ardentes e cabelo preto e comprido, tinha um andar de leoa que provocou reação de todos os presentes. Jim e Melanie não foram os únicos a se entreolharem; algo estava acontecendo com a insinuação de muito mais a seguir.

Segundos depois, atrás das duas intrusas que desfilavam, entrou um jovem de terno azul-claro. Era bonito e magro, confiante, mas de movimentos tranquilos. Fumando um cigarro, ele avaliou tudo com um ar de desdém altivo, mas jovial. Quando seus olhos caíram primeiro nos dois negros, depois em Jim e Melanie, ele abriu sorrisos largos, como se reconhecesse novos convidados. Depois acenou para o DJ e se juntou às duas mulheres a uma mesa, onde pediram uma garrafa de vinho branco.

Melanie se esforçou para não encarar, mas algo naquele trio cintilava. A aura dos três tinha ressonância no espaço e eles emanavam uma ligação completa com a música e a atmosfera. Pareciam importantes, mas por um motivo mais profundo do que sua aparência. Era como se pertencessem àquele lugar; tinham um propósito quase divino nos atos.

Passou-se meia hora, e Melanie e Jim ficaram decepcionados porque o trio impressionante não se juntou à dança, como quase todos os outros pareciam pretender. Por insistência de Melanie, ela e Jim se levantaram e se esforçaram para dançar alguma coisa, sendo contemplados com olhares gentis, embora um tanto piedosos. Depois o DJ colocou uma música de ritmo mais acelerado e o homem de terno azul se levantou, assentindo para a mulher magra, do tipo modelo, que bebia seu drinque. Tirando um trago fundo do cigarro antes de apagá-lo no cinzeiro, ele a pegou pela mão e os dois foram para a pista. No início ela parecia ter pouco interesse, mas pelo visto o olhar dele a estimulou e eles começaram a dançar a música.

Melanie sentia o coração se acelerar. Olhou para Jim, que estava inteiramente hipnotizado pela dupla. Por instinto, eles foram para seus lugares, a fim de apreciar melhor a apresentação. Era extraordinária, porque o casal que dançava parecia incorporar o som em movimento humano: ritmo, charme, estilo, elegância e uma paixão incendiária. Jim e Melanie não conseguiam tirar os olhos deles. O homem passava as mãos suavemente pelo cabelo da mulher, acariciava seu rosto e, de súbito, enquanto o ritmo explodia violentamente, segurou-a pela cintura, jogou seu corpo para baixo, a cabeça da mulher foi lançada para trás.

Melanie sentiu a boca escancarar, a coluna formigar e as palmas das mãos transpirarem. Depois, por baixo daquela toalha de mesa pendente, a mão de Jim estava em seu joelho, em seguida arrastando-se como uma tarântula por sua coxa. Apesar disso, ela não conseguia tirar os olhos do casal na pista. Cada batida da música era marcada por um lampejo da mão, a torção de um braço, o giro de um quadril, enquanto cada crescendo era impulsionado por uma rodada... depois duas... então três... depois quatro... seguidas por uma pausa, e Melanie sentia os dedos de Jim subindo por sua saia, dentro da calcinha, sondando sua boceta molhada à procura do clitóris. E quase ao mesmo tempo a mão dela estava por dentro do zíper dele, abria o primeiro botão no cós da calça, segurava seu pau duro feito uma pedra. Ela ouvia a respiração dele, lenta e entrecortada, enquanto eles continuavam fixados no casal dançando. As inalações de Jim ficaram ainda mais superficiais, espelhando as dela, enquanto eles gozavam com a dança e o estilo, o jazz e o sex appeal do casal incandescente.

Toda a multidão, casal por casal, abriu espaço na pista à medida que aumentava a intensidade da performance das estrelas. Aparentemente era negligente, mas ao mesmo tempo associada com uma perfeição técnica em cada batida. Formou-se uma roda em torno deles, as pessoas olhavam e batiam palmas. Isto bloqueou a visão de Melanie e Jim do casal e eles também teriam se levantado da mesa se não estivessem presos pelo próprio clímax impressionante. Quando a música terminou, todo o salão aplaudiu, assoviou e gritou. Melanie e Jim ficaram sentados em um estupor, percebendo que algo significativo acabara de acontecer. Ele então sussurrou no ouvido dela.

– Será que dão aulas de salsa na cidade?

– Sim – disse Melanie. – Estou certa de que vamos encontrar alguma coisa.

Tinha de ser Harry o homem mandado pelo departamento de polícia. O solitário de olhos tristes Harry Pallister, que ela conheceu na sétima série da Goleta Valley Junior High School. Os pensamentos de Melanie voltaram rapidamente àquela época. De alguns meninos, ela podia sentir o cheiro do desejo por ela, os feromônios deles enchiam o ar. E com alguns ela demonstrou um ardor recíproco. Mas Harry escondia-se nas sombras, imóvel e em silêncio, de vez em quando a capturando com seu olhar triste e cheio de desejo. Depois, quando Melanie começou no primeiro ano da Santa Barbara High School, ao entrar no campus daquele prédio colonial, corada de empolgação, o primeiro rosto conhecido que viu foi o de Harry.

A alegria dela evaporou.

Agora Harry está parado na varanda da frente e mesmo com o sol por trás dele, obrigando-a a estreitar os olhos, Melanie consegue ver seu rosto fino e sincero, aquela expressão tranquilamente martirizada que ele tem, como se o mundo fosse demais para ele, mas ainda assim ele lutasse com valentia sem reclamar. Na época, como agora, parecia ser o prenúncio da grande decepção.

– Algumas novidades, sobre aqueles homens de seu telefonema.

Ela já desejava não ter telefonado denunciando a ameaça daqueles sujeitos. Por que fez isso? Jim tinha se vingado, de certo modo, explodindo o veículo deles. Ela sabia que o verdadeiro motivo foi o estupro sofrido pela amiga, Paula Masters, nas mãos de outros dois homens. Os culpados não eram vagabundos, eram estudantes, mas isso não importava. Homens perigosos para mulheres eram simplesmente isso.

– Oi, Harry, entre – ela se obrigou a entoar, entrando na casa. Ele a acompanhou, olhou vagamente para as obras de arte nas paredes, a área de estar e, a convite dela, sentou-se no sofá.

Harry vasculhou a pasta de couro para documentos, retirando duas fotografias e as colocando na mesa diante dela.

– Foram eles? Os dois homens que assediaram você?

Não havia como confundir a dupla. As fotos policiais faziam com que parecessem ainda mais quem e o que eram; podiam ter sido tiradas ontem mesmo. O moreno, silencioso e ameaçador; o louro, o rosto ainda fixo naquele escárnio. Melanie engoliu em seco, desejou ter aceitado os conselhos de Jim. Por que, por que, por que deu aquele telefonema? Mas só o que ele fez foi explodir o carro deles...

Ela assentiu, concordando.

– Eles criaram mais problemas?

Harry age como se ela não tivesse falado, voltando a sua pasta de documentos, retirando uma folha de papel datilografada. De onde está sentada, Melanie não consegue distinguir o que é pertinente e muito menos seu conteúdo específico. Ele deixa que o silêncio perdure enquanto lê. Ela interpreta o comportamento dele como uma espécie de declaração de dominação.

Melanie nunca teve medo de assumir quem era. Não via necessidade de se desculpar por sua beleza ou pela família rica. Simplesmente reconhecia que os valores liberais da família a dotaram de magnanimidade e preocupação pelos outros que levavam a vida num conforto menos ostentoso do que o dela, entendendo que sua relativa riqueza também lhe dava espaço para satisfazer sua vocação. Consciente de que sua beleza atraía para si atenção positiva e negativa, ela aprendeu, com uma calma determinação, a lidar com atletas, nerds e tudo que ficava entre estas duas categorias. Não devemos nos deixar sugar pelos objetivos dos outros. Nunca.

Mas o desejo mudo de Harry sempre a incomodou. Como se ele só estivesse rondando, esperando que Melanie validasse a vida dele com um sorriso, um cumprimento ou até mesmo um “eu te amo”. Agora ele está em silêncio novamente.

Melanie o estimula a falar.

– Harry?

– Você disse que eles foram ameaçadores. – Ele tosse, tirando um bloco pequeno do bolso da calça.

Agora ela está entendendo. O inofensivo Harry com o bloco. Eles nunca são inofensivos, “os canas”, como Frank, não, Jim os chamava, comentando numa reserva glacial depois da primeira vez que ela os apresentou em um vernissage de seu trabalho. Harry apareceu como convidado de um amigo em comum do colégio com quem ela resolveu ter uma palavrinha discreta. O que Harry sentiu emanar de Jim? A criminalidade? O perigo? Ou mesmo a arte? Naquela noite, sempre que ela olhava para Harry, ele não estava lançando os olhares desconcertantes de costume para ela. Examinava atentamente Jim. Talvez estivesse tentando entender a atração que mulheres como Melanie, bonitas, inteligentes e ricas, sentiam por homens que obviamente ele considerava programados para decepcionar. Tentando discernir a vantagem desses homens sobre tipos como ele próprio, os leais soldados rasos que só queriam cuidar de uma mulher. Ser seu provedor. Salvá-la. Melanie refletiu como esses homens podiam ser assustadores a sua própria maneira, sem nem mesmo terem noção disso. Com mais frequência do que muitos psicopatas criminosos. Agora o olhar lento de Harry, seu comportamento um tanto desajeitado e pateta, enquanto lhe perguntava sobre o confronto com aquelas duas almas perturbadoras e perturbadas.

– E Jim, como ele reagiu?

– Ele foi muito calmo – diz Melanie, estendendo a palavra para tentar relaxar. – Disse para eu levar as meninas para o carro. Depois encarou os caras de algum jeito e foi atrás de nós.

Depois de mais algumas anotações e outro silêncio, Harry pergunta, batendo a caneta no bloco:

– O que ele disse aos dois?

Melanie sabe que ele não quer saber dos caras. Ela respira fundo e sente o atrito escapulir na voz.

– Acho que ele não disse coisa alguma àqueles imbecis. Por que diria? Quem eles eram?

Harry fecha o lábio inferior por cima do superior, dá um estalo com a boca.

– Um corpo foi retirado do mar. Estava preso na estrutura da Holly, a plataforma de petróleo offshore. Foi encontrado por um operário da manutenção. Caso contrário, a correnteza o teria levado diretamente para alto-mar. Era este sujeito, Marcello Santiago, membro de uma gangue e criminoso profissional. – Ele passa uma das fotografias novamente. O homem mais moreno, aquele dos músculos, que assustadoramente quis passar o bronzeador nela. – Ele tem ficha suja, vários crimes, inclusive violência e estupro. O parceiro dele, Damien Coover, com quem ele foi visto recentemente e que no momento está desaparecido, é um conhecido pedófilo. Vocês tiveram sorte por Jim estar com você e as meninas. Esses sujeitos são perigosos. Eram, no caso de Santiago.

Melanie olha a foto de Santiago. Seu sangue gela nas veias. O termostato do ar-condicionado liga de repente, soprando ar frio na sala. Ela estremece.

– Ele... morreu – ela sussurra. Foi uma tolice de se dizer, uma vez que Harry explicou há pouco que seu corpo foi retirado do mar, mas ela está em choque.

Porém, ao dizer isso, Melanie percebe que deu algum poder ao policial. Para mérito dele, Harry finge que não ouviu sua observação estúpida e oca. Em vez disso, olha o bloco.

– Jim voltou com você e as meninas, não foi?

– Sim. – Melanie se retrai. Depois entra em um espasmo de tremores, justo quando Harry ergue os olhos para ela.

– Está tudo bem com você?

Melanie respira fundo e faz que sim.

– É assustador pensar que eles chegaram tão perto das meninas... – Ela volta a olhar as fotos na mesa, recuperando o autocontrole. – O que você acha que aconteceu?

– Bom, ainda não temos o relatório oficial do legista, mas exames preliminares indicam várias facadas.

– Ah, meu Deus – diz Melanie, depois pergunta, talvez rápido demais: – Acha que o assassinato desse cara tem relação com a gangue?

– Santiago está morto, Coover desapareceu. Talvez Coover o tenha matado depois de algum conflito menor e o levou para o mar, tentando forjar uma conexão com a gangue, mas ele não contava com a plataforma... mas com esses caras nunca se sabe. – Harry bateu a caneta no bloco novamente. – Eles podem ter ficado alterados, tiveram uma discussão, sei lá, qualquer coisa... aquela faixa da praia normalmente é movimentada, mas depois do Dia da Independência... o relatório completo da perícia vai sair em breve – diz ele, depois muda de tom. – Mas, escute, Mel, evidentemente não é meu trabalho tirar conclusões precipitadas. Estou lhe contando isto em confiança, como um amigo – acrescenta ele, depois se interrompe, olhando para ela, esperançoso.

Melanie fica agradecida, sem saber que dívida ele espera que ela tenha para com ele.

– Eu agradeço por isso, Harry.

– Mas também estou sendo franco porque sei que posso discutir isso racionalmente com você em vista de sua experiência com homens assim... – ele se interrompe de novo e Melanie sente um tinido nos ouvidos – ... com seu trabalho.

– Obrig...

– Mas então, esses caras não são uma grande perda – diz Harry animadamente, dobrando os documentos. – Dois elementos muito perigosos. – Ele se levanta.

Melanie se levanta também.

– Sim, isso ficou evidente pelo comportamento deles.

– Existe outra teoria – ele acrescenta, analisando a reação dela. – A de que Coover talvez também esteja morto. Assim, embora esses caras sejam perigosos, talvez eles não sejam tão perigosos como quem tirou a vida deles. Se é que alguém fez isso.

– É verdade. – Melanie sente a própria mente começar a desabar e sabe que Harry tenta interpretá-la novamente. Ela tenta desviar seus pensamentos para Devereux Slough, a vida marinha e aquelas andorinhas-do-mar que nidificavam e tanto interessaram a Jim.

– E como está Jim? – Harry entoa com descontração.

– Foi à Escócia. Um falecimento na família. – Ela atravessa o corredor até a varanda da frente, coagindo-o a segui-la. Na esperança, desta vez, de que ele fique distraído, de olho em seu traseiro.

– Lamento saber disso. Alguém próximo? – Ela ouve às costas a voz incorpórea dele, fina e metálica.

Melanie abre a porta de entrada e se vira de frente para ele.

– Felizmente, não – diz ela, sem se retrair. Foi mais fácil falar do que deveria ter sido. Mas ela já disse mais do que o suficiente a Harry. – Agora, se me der licença, preciso buscar as crianças.

– É claro. – Ele sorri, saindo. – Foi bom ver você. Eu a manterei informada. – Ele lhe faz uma pequena saudação e segue pela entrada de carros.


10
O IRMÃO

Omelhor jeito de ir ao Leith é a pé, andando pela Walk, a partir do centro da cidade. Franco estava decidido a saborear cada passo da descida, mas parou em duas lojas de material elétrico barato. Nenhuma das duas tinha um adaptador de tomada do Reino Unido para o modelo americano, nem um carregador britânico para o iPhone. Em vez disso, eles tentaram lhe vender quase todos os outros produtos elétricos ou relacionados com telefone ou serviço que se possa imaginar. Ele declinou e voltou para a rua.

Começou a chover e ele pega um ônibus para a Leith Walk. Quando chega em Pilrig, a chuva diminuiu e ele desce depois de dois pontos, seguindo pelo Foot of the Walk, pela Junction Street, pela Ferry Road, até Fort House. O prédio imponente, um monumento à arquitetura municipal dos anos 1960, agora está vazio e sinistro, mas ainda não foi demolido. Ele olha as paredes imensas que cercam o prédio e lança os olhos para os apartamentos. Lá está a antiga casa de Renton, de Keasbo, de Matty... mas na realidade não resta mais nada. Uma melancolia cai sobre ele e Franco segue na direção do Firth, acompanhando os gritos das gaivotas. Logo se vê atravessando um novo e saturado empreendimento imobiliário em Newhaven. Deixou a área irreconhecível para ele.

Elspeth não tinha o número de seu irmão Joe, só um endereço que ele lhe deixou quando apareceu uns quinze dias atrás, bêbado, querendo dinheiro emprestado. Parecia um tiro no escuro que ainda estivesse no mesmo lugar. Joe era um rematado bebum que não saía do sofá, passando de um aluguel inseguro da associação habitacional a outro, ou vivia da beneficência de um velho amigo ao seguinte, queimando organizações e amizades pelo caminho.

Esta área era uma parte do novo Leith projetada por urbanistas, mas os apartamentos foram construídos com material da pior qualidade e, sem nenhuma comodidade social durante a recessão, eles se tornaram invendáveis. As empreiteiras cortaram as perdas e os entregaram à associação habitacional, que os alugava a inquilinos pouco acima da linha de pobreza, em geral aqueles despejados dos edifícios por comportamento antissocial. Assim, os poucos jovens profissionais liberais que foram enganados o bastante para comprar essas propriedades se viram aprisionados no embrião de um gueto.

Para espanto de Franco, Joe ainda está no endereço e atende quase de imediato, abrindo alegremente a porta, depois voltando para dentro, exortando-o a acompanhá-lo. Seu irmão o olhou de um jeito demasiado superficial, como se Franco tivesse acabado de sair para comprar um maço de cigarros, em vez de ter ido para a Califórnia por seis anos. Joe Begbie, usando uma parca, joga-se no sofá e bebe de uma garrafinha plástica de sidra que parece vagabunda, demonstrando alívio quando Franco rejeita um gole.

Franco lança os olhos pela sala pequena e quase vazia. As paredes são pintadas de branco e sujas em torno dos interruptores de luz. O carpete bege, pegajoso sob seus pés, tem a cor alterada por manchas diferentes de coisas derramadas. O lugar está tomado de embalagens vazias de comida, latas de bebida e cinzeiros transbordando. Parece um anúncio de como não deve viver um homem de meia-idade.

– Aquela Sandra, Frank, você tinha razão a respeito dela. Você sacou bem aquela vaca – diz Joe, os olhos vermelhos e fundos, enquanto potencializa o consumo de sidra com um gole de uísque de uma garrafa de Grouse.

Ele faz o gesto de quem vai passá-la para Franco, que de novo dispensa, enquanto pensa em Sandra e nas batatas fritas. Ele sempre associou os dois depois de um incidente sexual adolescente no antigo pátio de trens.

– Ela deu um pé na tua bunda, foi?

– Uma filha da puta perversa. – Joe sibila com os olhos ardendo. – Envenenou os garotos contra nós e tudo. – Ele meneia a cabeça, depois seu rosto de súbito se enche de alegria. – Ainda assim, é bom te ver de novo. Sabia que você ia voltar!

– Só pro funeral. Depois vou embora.

O rosto de Joe se franze em uma carranca enquanto ele baixa o uísque na mesa de centro de madeira, cuja periferia está manchada de queimaduras de cigarro.

– Nem te conto como procuro pelo escroto que matou Sean! Eu estive procurando!

– Sei, daí desse sofá?

– Eu procurei, sim! – Joe protesta. – Não é assim tão fácil... não sabe como é por aqui agora...

– Sei, a vida pode ser complicada – concorda Franco com brandura.

– Tô sem cigarro.

– Que tragédia. Você tem minha apatia.

– Você parou?

– Parei.

– Cigarro?

– Sim.

– Parou de fumar?

Franco nega com a cabeça.

– De quantos jeitos tenho que te dizer isso?

– Humpf. – Joe fixa um olhar penetrante no irmão. – Ganhou uma graninha nessa parada da arte, então?

– Eu me dei bem.

– É, li sobre isso, é verdade. É, você se deu bem! Sapatos – diz Joe com amargura, apontando com a cabeça o couro preto e engraxado nos pés de Franco. Isso parece detonar algo nele, porque ele explode de repente. – Não pode dizer que não cometeu seus erros, Frank!

Frank Begbie mantém o controle, puxa uma respiração regular e constante.

– Erros são o que os outros cometem. Gente que tentou foder os outros. Eles cometeram erros. Em geral, pagaram por todos eles.

Isto é o suficiente para baixar o volume do irmão.

– Califórnia. Como é que tá indo por lá, Frank?

– Tudo bem.

– Aposto que sim. – Os olhos de Joe dançam, ou melhor, algo por trás deles. – Como é que caras como você vão parar na Califórnia? – Ele fala arrastado, depois explode de súbito: – Casa grande, é?

– Cinco quartos. Um anexo grande convertido em ateliê, ou estúdio, como gosto de chamar. – Franco quase cantarola enquanto o sabor doce enche sua boca.

– Perto do mar?

– Não. Bom, a cerca de um quilômetro.

– Mas a casa é grande. – O tom acusador de Joe continua.

– É, mas tem um monte maior no bairro. E você? Ainda morando no sofá dos outros, parceiro?

– É, essa casa é do meu amigo Darren, isso mesmo.

– Não pode ser mais divertido. – Franco assente, olhando novamente a sala, as paredes que parecem se fechar um pouco mais sempre que ele as vê. – Talvez eu não esteja captando o lado glamouroso.

Joe se enfurece, olha colérico para Frank.

– Volta pra cá como se fosse dono de tudo...

– Quando você afunda, acho que deve parecer que o resto do mundo está por cima – diz Franco.

– Tem alguma grana aí? – pergunta Joe em um tom completamente diferente. No início da conversa, Franco percebe que a gentileza ou o desprezo exteriores não faz diferença nenhuma para o estado de espírito de Joe. É puramente determinado pelas unidades de álcool que fluem por seu organismo e pelas narrativas internas e fraturadas que o seu cérebro encharcado alternava.

Franco se levanta, tira uma nota de dez do bolso. Coloca na mesa.

– Tchau, a gente se vê por aí atrás do gol.


11
O SEGUNDO FILHO

Ele passou a pé pela antiga escola Leith Academy na Duke Street, agora convertida em apartamentos, recordando-se de estar sentado ao lado do magricela e ruivo Mark Renton na aula de inglês. Como tinha dificuldade para entender as palavras no papel, ele sabia que o professor Hetherington, um brutamontes barbudo que jogava rúgbi e tinha reforço de couro nos cotovelos do paletó xadrez, pediria a ele para ler novamente. Em seu olho mental, ele viu o professor correndo os olhos pela sala, fazendo-os crescer, enquanto, por dentro, o jovem Frank Begbie se comprimia densamente e parecia cair diante dele.

– Francis, se puder ler a próxima...

A alegria antecipada por sua humilhação enchia a sala. E então, ao lado dele, Mark Renton sussurrava: “Julie foi ao cinema com Alice.”

– Julie foi ao cinema com Alice – repetia Franco.

– Muito bem, Francis Begbie. Mas eu apreciaria mais se Mark Renton ficasse de boca fechada. A próxima frase, Francis.

Os rabiscos dançavam diante de seus olhos no papel, reverberavam.

– El... El... El...

– O que Julie e Alice fizeram... lembra-se delas? O que Julie e Alice foram ver no cinema, Begbie? Que filme elas foram ver?

O riso se formando em ondas lentas em volta dele. Ele sentia Renton, apenas Renton, partilhando sua raiva.

– Alguém pode ajudar Francis Begbie?

Alguém pode ajudar Francis Begbie?

– Elaine! Você nunca nos decepciona!

E então a voz de bebê de Elaine Harkins, cheia de autoridade, impaciente. Francis Begbie está atrasando a todos de novo.

– Elas decidiram ver ...E o vento levou, com Clark Gable e Viven Leigh. Alice foi comprar sorvete e pipoca no quiosque de lanches.

O quiosque de lanches. Porradaria em Tyney.

Frustrado com as lojas de material elétrico do bairro, Franco decide que sua melhor aposta é comprar um celular britânico. Ele opta por escolher um modelo barato e pré-pago e vai à Tesco no Foot of the Walk, onde se lembra de existir uma Scotmid. Com sorte, pensa ele, não vai precisar desse aparelho por muito tempo. Na calçada, ele o testa, telefonando para Terry. Cai direto na caixa postal (“Aqui é o Terry. Se for mulher, deixe um recado que eu ligo pra você. Se for homem, nem se dê ao trabalho. Simples assim.”), mas pelo menos ele sabe que funciona. Olhando o Marksman Bar do outro lado da rua, ele se recorda de antigas associações, depois pensa na família.

Ao atravessar o Kirkgate Centre, Franco percebe que um jovem descarnado, mas musculoso, de jaqueta vermelha Harrington, o encara. É Michael, o mais novo de seus dois filhos com June que ele soube que está criando fama.

Quando ele se desloca para a parede perto da loja fechada, os olhos estreitos do garoto se arregalam um pouco.

– Ah, é você – diz Michael com desdém. – Minha mãe disse que você ia voltar.

Franco quer retorquir, Não, é outra pessoa. Em vez disso, fala:

– É. Quer uma xícara de chá?

Michael pensa nisso por um segundo.

– Tá. Tudo bem.

Enquanto eles andam pela Junction Street, Franco nota dois jovens, grandes e barulhentos, andando pela rua na direção deles. Ao verem a aproximação dos dois, os jovens caem em um silêncio repentino e evitam o olho no olho. Franco está acostumado a induzir uma reação dessas no Leith e se vira para o filho, de certo modo se desculpando, mas percebe que Michael não viu os garotos e segue em frente, perdido em pensamentos. Franco examina seu perfil, não enxerga nada de si mesmo, nem de June, aliás. O garoto parece uma entidade totalmente distinta.

O Canasta Cafe, na Bonnington Road, ainda se aguenta ali, embora como uma encarnação ainda mais empobrecida do que da última vez em que ele esteve na cidade. Eles encontram uma mesa, sentam-se e lhes servem o tradicional café com leite para ele ao mesmo tempo repulsivo e estranhamente tranquilizador. Franco pergunta ao filho:

– Qual é a história do Sean?

Michael começa a falar; de má vontade, comedido e em frases econômicas e concisas, como faria com um policial. Franco ouve poucas novidades. Michael fala de Sean de modo geral, sem nada revelar sobre sua proximidade ou a falta dela. Eles podem ter sido amigos do peito ou tiveram uma relação como a dele com Joe. A história dos dois filhos, pelas poucas informações que ele colheu, gera poucas surpresas. Pelo visto, Sean tendia a oscilações de humor, sua exuberância de alma da festa seguida pela resignação falida característica de June, o que fazia dele um candidato ideal para a administração regular de drogas. Michael, por outro lado, parece ter herdado parte da agressividade ensimesmada do próprio Franco. É difícil para ele distinguir quem teve a pior herança. Um seria curvado, depois esmagado pelo mundo, sem resistir às ruas encharcadas de heroína e álcool. O outro tentaria curvá-lo a sua vontade, depois seria quebrado por ele. Franco fica decepcionado porque parte dele tinha esperanças de que sua própria história de maltrapilho-à-relativa-riqueza pudesse de algum modo inspirar os filhos. Ele percebe o quanto este conceito de sua parte é mesquinho e irreal.

Michael mantém o olhar perscrutador apontado para ele, como se exigisse alguma revelação mais profunda do que as superficialidades que o pai está preparado a oferecer. Franco sente que conhece aquele olhar de algum lugar e não consegue situar muito bem, mas não é do espelho de barbear. Qualquer que seja sua origem, é irritante para ele. Assim, Frank Begbie dá de ombros e respira fundo.

– Sabe de uma coisa, eu nunca troquei as fraldas dele. Nem as suas. Nem uma vez. Deixava vocês cheio de merda até sua mãe voltar. Tem outros dois filhos que são meus, em algum lugar por aqui... não os conheço, mal conheci as mães deles.

O exame intenso de Michael nunca vacila.

– Mas minhas meninas, minhas doces meninas californianas – diz Franco, quase com tristeza –, eu trocava as fraldas delas sem nem mesmo pensar. Sempre achei que queria meninos. “Se for menina, manda de volta”, eu costumava dizer. Agora sou diferente. Gosto de meninas, não de meninos.

– Que bom pra você...

– Fodam-se os meninos – Franco o interrompe. – Vocês, eu jamais quis. Não verdadeiramente.

Enfim o filho pisca. Tira um cigarro do maço. Uma mulher atrás do balcão dá a impressão de que vai dizer alguma coisa e, em vez disso, vira a cara.

Franco sente a própria boca estreitar-se num sorriso de satisfação.

– Gosto da ideia de ter filhos homens, mas nunca me interessei realmente por você ou por Sean. Nunca amei vocês como amo minhas meninas. Minhas filhas lindas, ricas e mimadas. Vocês, meninos – ele meneia a cabeça –, nunca houve, pra mim, nenhum sentido em vocês.

A expressão de desprezo na boca de Michael de repente se abre. O cigarro entre seus dedos é apontado para Franco.

– É isso que você tem pra me dizer?

– Não – diz Franco, levantando-se para ir embora. – Onde sua mãe mora mesmo?

Michael sorri pela primeira vez. Acende o cigarro. Olha para o pai.

– Sei lá, caralho.


12
A EX

Aostensiva falta de cooperação de Michael é supérflua. O endereço a que ele se dirige está grudado na cabeça de Franco, porque fica ao lado da casa onde antigamente morava um rival seu muito odiado. Seguindo do Foot of the Walk pela Duke Street, para a Easter Road e pela Restalrig Road, ele vê um vídeo que chegou em seu celular americano quase morto. Grace e Eve estão sentadas no sofá, acenando para a câmera, uma com entusiasmo, a outra timidamente reservada. A mensagem de texto de Melanie:

“Estamos com saudades e amamos você!”

Franco sente algo mexendo por dentro, mas desliga o telefone e sufoca a sensação. É Lochend e sob a chuva fina as ruas escuras que o cercam não lembram nada além de um fluxo constante de brigas e vendetas do passado. Ali não é lugar para ele ficar em conflito. No abrigo do ponto de ônibus ele se agacha e pega o telefone Tesco, tenta entrar com o número de celular de Melanie usando um teclado multifunção antiquado. A fúria sobe em seu peito e ele procura respirar lentamente, porque, com a atividade de seus dedos grandes e a tela oscilante no cristal líquido, os hieróglifos inconstantes aos poucos tomam a forma do número dela. Presentes com ele no ponto de ônibus: um pombo morto, um quibebe descartado (que parece estar em melhor forma do que a ave falecida) e duas latas vazias de Tennent’s Super Lager, uma colocada caprichosamente em cima da outra. A euforia o domina quando o número todo de Melanie, mais o código de discagem dos Estados Unidos, é concluído em sua totalidade.

Depois o telefone morre. Simplesmente se desliga sozinho.

Febril, Franco pressiona os botões. Nada. Morreu. Franco olha o aparelho com uma fúria em brasa, pensa em esmagá-lo com o calcanhar. Em vez disso, ele amassa as latas na calçada e mete o telefone de volta no bolso.

Respire. Um, dois, três.

A chuva aumentou e bate na parte de trás do abrigo do ponto de ônibus, enquanto Franco sucumbe de repente a uma lembrança fantasma, boa e acolhedora, mas que jamais saiu completamente das sombras de sua mente para se revelar em sua inteireza. A mão de uma garota tocando a sua, o cabelo dela roçando em seu rosto, o cheiro dela em suas narinas. Aconteceram coisas assim com ele antes de Melanie? Certamente que sim. Mas ele não pode deixá-la vazar, não pode permitir que aquele lugar seja outra coisa do que ele quer que seja agora. E então o barulho diminui com o vento e a chuva aos poucos cede, voltando a um chuvisco ralo.

O prédio é facilmente encontrado. Em certa época, ele fez planos bem avançados de incendiar a casa vizinha, ocupada por Cha Morrison, sua antiga nêmese. Agora fica assombrado ao pensar ter se importado o suficiente com esse sujeito para considerar essa ação. Que grande crime Morrison cometeu contra ele, ou ele contra Morisson? Nada lhe vem à mente. Foi tudo papo que depois se intensificou, tornando-se uma sequência bizarra de ameaças e contra-ameaças. Tirando isso, não havia base nenhuma para a rivalidade dos dois. Eles fabricaram conjuntamente esse conflito para conferir drama à vida, imaginando-o na realidade brutal.

Ele vai ao prédio vizinho e percebe que dos seis apartamentos não consegue se lembrar daquele que é ocupado por June. Não sabe que nome ela estará usando. Não há uma plaquinha de “Chisholm”, seu nome de solteira, nem, para alívio dele, de “Begbie”, que ela passara a assumir e usou para registrar Sean e Michael, embora ela e Franco nunca tivessem se casado. Nenhuma porta sugere muita riqueza. Assim, ele opta por aquela que dá a mais forte impressão de fervilhar miséria. É pintada de preto, parte dela despencou do batente e parece amassada, com uma folha de papel amarelada colada com fita adesiva, indicando que alguém de nome J. Mcnaughton mora ali. Ele bate à porta e June atende.

Desde a última vez que ele a viu brevemente no funeral da mãe, numa obesidade que o surpreendeu, June se expandiu horrivelmente ainda mais. É impossível conciliar essa versão com aquela magra e frágil de suas lembranças. Ela o olha e, por um segundo torturante, parece que vai abraçá-lo. Seus lábios tremem e os olhos imploram. Mas então ela se vira subitamente e vai para dentro. Atacado pelo cheiro de gatos, de gordura de fritura velha e, sobretudo, de tabaco rançoso, ele a acompanha para o interior do apartamento.

Franco tem dificuldade para acreditar que está diante dela. Ela se sentou de frente para ele em uma poltrona desbotada de estampa floral, parte de um conjunto estofado grande demais para o apartamento barato e apertado. Ele nem entende mais como as moradias podem ser tão pequenas. A sala parece ostentar pobreza por todos os poros.

– A vida não é justa – diz ela, visivelmente dopada de antidepressivos. Seus olhos parecem opacos e muito fundos em uma cabeça agora bulbosa, antigamente pouco mais do que uma caveira.

– Sim – concorda ele, enquanto entra na sala um menino cauteloso de uns catorze anos. Fixa em June uma careta de beligerância desafiadora e pega um maço de cigarros na mesa de centro, depois sai rapidamente.

– Seu? – pergunta Franco.

– O CIGARRO É MEU! – grita ela depois da saída do garoto, enquanto acende um.

– Não o cigarro, o garoto.

– Sim, esse é Gerard. – June tira um trago, chupa as faces. – Eu tive Andrea e Chloe também. Assim como nossos Michael e Sean... – Seus olhos ficam vidrados e um lenço de papel, arrancado de uma caixa na mesa de centro, vai diretamente a eles. Enquanto ela tem uma tosse rouca, Franco observa June tremer: a gordura balança amorfa por dentro, as roupas esportivas desbotadas. Sua primeira gravidez e o nascimento de Sean parecem ter estragado seu corpo, mas, depois do inchaço, June encolheu como um cadáver de campo de concentração e ele perdeu grande parte do interesse por ela depois disso. Ele resmungara algo parecido com “que merda” quando ela lhe contou que esperava Michael. Daí veio a prisão, e a vida doméstica dos dois juntos era uma lembrança dela banhada na luz azulada do aparelho de televisão, através de uma névoa de fumaça de cigarro. Embora ainda fosse especialista no consumo de tabaco, agora June estava obesa e parece ter a pele tão cinzenta quanto a dele depois da temporada mais longa no presídio. Ela puxa outro trago, o rosto volumoso se encova em tal extremo que ela parece ter tido os dentes extraídos.

– Então você se casou de novo? – ela pergunta.

– Sim, oficialmente – anuncia ele, olhando-a com frieza, mostrando a aliança –, não só informalmente. Tivemos de casar, por minha condição de imigrante. Mas eu também queria isso. Se você sente amor, por que não fazer a declaração?

June se eriça um pouco.

– Sim, dizem que foi aquela garota americana que você conheceu na cadeia.

– Ela era a arteterapeuta, isso. – Ela espera que eu diga, sei a impressão que isso dá. Foda-se. – Ela é jovem, bonita, inteligente, de uma família rica. Temos duas filhas maravilhosas. E você? Algum vínculo amoroso?

June ergue os olhos para ele e tosse, conseguindo negar com a cabeça antes de ser tolhida por uma crise lacrimejante.

– Um dia isso ainda vai te matar – observa ele.

June puxa o ar e ofega.

– Parou de fumar?

– Sim. Parei com a bebida também. Fiquei cheio de tudo isso.

– E as outras coisas? As brigas?

– É, fiquei farto com a prisão. Esse lance da arte é uma vida boa e gosto dela.

June mexe a cabeça e ela parece afundar no corpo. Franco não consegue divisar um pescoço.

– Você sempre foi bom com artes. Na época da escola.

– É verdade. – Franco ri.

– Angie Knight, quando ela soube que você voltou, ela me procurou. – A expressão de June assume uma timidez de menina que ele acha grotesca. – “Vou te contar, June, eu não ficaria surpresa se você e Franco acabassem juntos de novo.”

– Eu ficaria – diz Franco com brutalidade, pensando: ela é uma porra de simplória. Por que não vi isso antes? Provavelmente porque eu era também.

O rosto de June fica súbita e dramaticamente vermelho. É uma transformação tão violentamente abrupta que por um segundo Franco acredita que ela está tendo uma convulsão. E então ela começa a chorar.

– O nosso filho, Frank, o nosso Sean, o que vai fazer a respeito disso? Alguém matou nosso menino e você não vai fazer nada!

– A gente se vê. – Ele se levanta para ir embora. Era um padrão conhecido. Atrás das portas eles condenavam a violência dele com aquelas expressões azedas e funestas, até o momento em que queriam um idiota para resolver os problemas. Depois, subitamente, ele se tornava o grande herói. Manipulação. Ele discutiu isso tudo com Melanie, com seu mentor, John Dick, o carcereiro. Era útil a todos que ele se conservasse como era. Ainda é útil. Ele os abandonará aqui, em Edimburgo. Eles podem bater a porta na cara dele, ou pegá-lo em um abraço hipócrita, não importa; ele vai se afastar de todos.

– Descubra quem foi e acabe com eles, Frank, você é bom nisso! – grita ela a suas costas.

Isso o faz parar de súbito. Ele se vira para olhá-la.

– Acho que bati muito em você algumas vezes. Uma vez quando você estava grávida dele. – Frank arria. – Isso foi um erro.

– Meu Deus, agora é meio tarde pra se desculpar!

– Quem está se desculpando? Foi errado – ele admite –, mas não lamento ter machucado você. É indiferente pra mim. Sempre foi. Não tenho nenhuma ligação emocional com você. Então, como posso me desculpar?

– Eu sou a mãe de nossos... dos seus... – June gagueja, depois explode. – Você não tem ligação emocional com ninguém!

– A raiva é uma emoção – diz Franco, abrindo a porta e saindo.

Ele desce e vai para a rua, rumo ao ponto de ônibus. Pensa nas noites na cama com June. June tinha um viço de juventude desejável, seu corpo era magro e firme, excitante como a batida insolente de sua franja, e tinha aquele mascar de chicletes piranhudo que o excitava e irritava em igual medida. Entretanto, ele nem mesmo conseguia se lembrar de fazer um carinho nela. Só fodia firme.

No bolso, os dois telefones, o celular Tesco, tão frio, grosseiro e morto. Ele o empurra de lado e aperta delicadamente o iPhone americano elegante. Pensa em Melanie, de conchinha com ela à noite, a fragrância dela, seu cabelo louro fazendo cócegas em suas narinas. A marca de nascença em formato de foice em seu pulso. O amor fluindo pela pele em seus corpos, como sangue. Como Melanie era o ponto fraco dele. Como, se eles quisessem, podiam cravar nele uma faca, atravessando-a e o atingindo. Naquela parte que ficou mole pelo amor.


13
A PARCEIRA DE DANÇA 2

Preciso ver a loura americana de que todo mundo está falando. A notícia da loura se espalhou pelo sistema carcerário como um vírus. O pessoal se juntou pra fazer suas aulas de arte; procuram por um sorriso, um sopro de perfume. Tudo devido ao acúmulo de material de punheta. Sexualidade violenta do espaço imaginativo, aonde a gente ia quando estava trancado naquele caixote. A derradeira liberdade.

Eu pensei, por quê? Por que ela está fazendo isso? Ela tem dinheiro. Por que trabalhar com a escória do planeta? Mas ela me surpreendeu. Além de ser uma boa pessoa, ela era forte e justa. Não tinha personalidade fraca. Sim, ela era dona de todas as vantagens, mas tinha escolhido tentar fazer uma diferença na vida de alguns dos homens mais destruídos e perdidos.

Lembro de que naquela primeira aula ela estava com um suéter verde justo e leggings pretas com uma faixa verde no cabelo. Depois disso, achei que ia bater punheta até morrer a noite toda pensando nela. Mas eu não me masturbei nem por um segundo. Só fiquei deitado ali, lembrando de suas palavras, de sua voz, criando fantasias românticas com ela. Elas faziam com que me sentisse patético e fraco. Mas me imaginei conversando com ela a sós. Sem os risos e comentários de todos os cretinos do grupo. Como eu poderia conversar com ela? Não tentei. Eu trabalhei.

Teve o retrato que comecei, Parceiro de Dança, de Craig Liddel. O Seeker. Foi por causa desse cara que peguei a sentença grande por assassinato, minha segunda condenação por homicídio culposo, reduzida de doloso, porque o tribunal considerou (corretamente) que foi legítima defesa. Foi nosso terceiro confronto, o primeiro foi na prisão, quando ele levou a melhor, o segundo num antigo moinho em Northumberland, onde a vantagem era minha. O ataque decisivo no estacionamento foi conclusivo. Na pintura a cara de Liddel, não em um esgar de escárnio, nem franzida de um desdém frio ou fúria homicida, como era quando nos encontramos, mas franca e sorridente. Em volta dela, uma série de fantasmas de homens, mulheres e crianças. E então Melanie Francis, aproximando-se de mim, intrigada. Pergunta sobre minha obra. Foi assim que ela chamou; não minha pintura, mas minha obra.

Contei a ela que era o homem que matei. As pessoas em torno dele cuja vida mudei. A família e os amigos dele. Havia outros; as mulheres que ele nunca conheceu, os filhos que nunca teve e os lugares, a Torre Eiffel, a Estátua da Liberdade que ele nunca veria.

– Você aspira a ver esses lugares? – ela me perguntou.

Olhei em seus olhos azul-escuros e percebi pela primeira vez, pro meu choque e horror, que eu aspirava.

– Sim – respondi a ela.

Fiquei caído por ela desde o primeiro dia. Era ridículo. Eu me atrevia a sonhar, a fantasiar com um futuro pra nós juntos quando eu mal tinha falado uma palavra com ela. Pensava em nós dois juntos na América, em um conversível grande, dirigindo pra Big Sur e Joshua Tree. Não conseguia encontrar nenhum ponto fraco em sua luz calorosa e missionária, nem mesmo conseguia determinar sua origem; política, religiosa, filosófica ou só rebeldia contra a própria classe privilegiada? Não me importava. Eu lia o máximo que podia, lutava com minha dislexia, agora tinha motivação, até meu cérebro doer. Ouvia os audiolivros e enfim aprendia a decodificar todo aquele absurdo confuso. Ela foi um catalisador poderoso, é verdade, mas esta mudança não girava só em torno dela.

Eu ficava de saco cheio dos livros básicos sobre crimes reais que usava pra desenvolver minhas habilidades de leitura; a maioria era meia-boca, uma bobajada oportunista escrita por ghostwritters, uns jornalistas sujos que queriam impressionar moleques e punheteiros com sacos que não se enchiam nunca. Eu lia coisas mais desafiadoras. Filosofia e história da arte. As biografias dos grandes pintores. Pra aprender, sim, mas também pra impressioná-la.

Mas quem era ela? Ela era boa e forte, eu era mau e fraco. Foi isso que mais me afetou por estar perto dela. Que eu fosse fraco. A ideia era ridícula; contrariava tudo em que passei a acreditar sobre minha persona e imagem, contrariava como eu conscientemente forjei a mim mesmo com o passar dos anos. Entretanto, quem senão um homem fraco passaria metade da vida deixando que os outros o trancafiassem feito bicho?

Eu era uma das pessoas mais fracas do planeta. Não tinha controle nenhum sobre meus impulsos mais sombrios. Portanto, eu era alimento constante pra prisão. Algum escroto linguarudo fazia merda, tinha de ser dizimado no ato e eu voltava pra cadeia. Assim, esses ninguéns tinham total controle de meu destino. Esta foi minha primeira grande revelação: eu era fraco porque não tinha controle de mim mesmo. Melanie tinha controle de si. Pra ficar com alguém igual a ela, pra ter uma vida livre, não num conjunto habitacional no limiar da pobreza, nem mesmo num subúrbio e estropiado por uma vida inteira de dívidas, eu precisava ter a mente livre. Tinha de ganhar controle sobre mim mesmo.

Eu disse isso a ela.


14
O MENTOR

Franco voltou à casa de Elspeth bem cedo na noite anterior e ligou para Melanie do telefone americano. A bateria enfim morreu no meio da conversa. Isso o deixou frustrado porque ele sentiu que ela se preparava para dizer algo importante. Aquele celular Tesco parecia pertencer a uma época anterior a três sentenças de prisão. Ficava na palma de sua mão como o último de uma espécie em risco de extinção. Ele o conectou no carregador e bombeou eletricidade para seu cadáver, vendo se conseguia reanimá-lo. Colocou dez libras na conta, por conselho da vendedora. “Vinte é demais”, disse-lhe ela com franqueza. Ele balançou a cabeça sem acreditar. Agora entendia o que ela quis dizer, a coisa parecia projetada para se desintegrar assim que ele saísse do supermercado. Agora ele precisava se lembrar de conseguir um adaptador para o carregador americano. E então, de súbito, o jet lag que ele pensou ter dominado o atingiu como uma marreta e ele se retirou cedo, dormiu um sono profundo e restaurador.

Levantando-se em uma manhã insípida, Franco prepara seu desjejum habitual com provisões que comprou no Waitrose, substituindo o queijo suíço por feta, e desta vez consegue convencer a irmã a se juntar a eles. Sentados à mesa da cozinha, com a exceção de Greg, que saiu cedo para o trabalho, Elspeth pergunta:

– E como está June?

– A mesma. Só que mais gorda – acrescenta ele.

George e Thomas abrem um sorriso, depois param, com o olhar de censura de Elspeth.

– Ela falou com você sobre os arranjos do funeral?

– Sim, mas não há muita coisa além do que já sabemos. Será na sexta-feira, às duas da tarde, no Warriston, e estou pagando a conta.

– Bom, é o seu filho. – Elspeth olha para ele com raiva. – E você pode pagar e ela não.

– Eu não estou reclamando.

Elspeth o olha em dúvida, mas vê os meninos mais interessados, e assim se contém.

– Greg disse que vai tirar a tarde de folga.

– Eu disse a ele que não há necessidade.

– Ainda somos da família – declara ela, seu olhar de avaliação o desafia. Mas não há resposta, ele mantém os olhos no prato.

– Que será que acontece quando a gente morre? – diz George.

Fodeu, pensa Franco. Você deixa de existir, é só isso. Ele está prestes a falar alguma coisa, mas pensa que talvez não seja o lugar certo.

– Não se importe com isso – grita Elspeth –, termine seu café da manhã!

– Mas é muito estranho pensar que nunca mais vamos ver Sean – diz George. – Nunca mais.

– Ninguém sabe – propõe Franco.

– A gente vai pro céu ou pro inferno? – Thomas pergunta a ele.

– Talvez os dois – diz Franco. – Talvez exista algum tipo de trânsito entre os dois, quando você fica entediado com um, pode misturar um pouco e vai pro outro.

– Como se fossem as férias? – Thomas se admira.

– Como um ônibus entre dois terminais do aeroporto – George propõe.

– Sim – pensa Franco –, por que não? Se ninguém sabe, o que acontece depois pode ser qualquer coisa que a gente imaginar ou talvez não seja nada.

Thomas ainda está no modo férias.

– Férias no inferno – diz ele com um jeito sonhador.

– Já passei por isso. – Frank Begbie olha a irmã. – Lembra quando fomos a Butlins at Ayr? – Ele se vira para os meninos. – Não, sua mãe não foi, ela era só um bebezinho.

Os meninos parecem olhar para a mãe em uma luz quase mística, tentando imaginar isso.

– Não consigo imaginar a mamãe como um bebê – diz George, fechando um pouco os olhos, como quem conjura a imagem.

Elspeth se vira para os filhos.

– Muito bem, vocês dois, lesto.

– Não ouço essa palavra há anos. – Franco fala.

– O que quer dizer? – pergunta George.

– Quer dizer pra se apressar – responde Elspeth com energia –; então, menos papo e mais ação.

Enquanto os sobrinhos partem, Franco se recosta na cadeira.

– Quem era que dizia isso? Era o velho vovô Jock?

– Como Butlins at Ayr, isso não é do meu tempo – diz Elspeth, esnobe. – O que tem pra fazer hoje?

– Vou encontrar um velho amigo.

– Outro velho amigo da prisão, imagino. – Elspeth mastiga uma fatia de torrada.

– Sim. – Franco pega o bule de chá e completa sua xícara. – E ele cumpriu um tempo ainda maior do que eu.

Elspeth meneia a cabeça com desprezo.

– Você é um fracasso, Frank. Não consegue deixar de se...

Franco levanta a mão para silenciá-la.

– Ele é um cana. Um carcereiro. O cara que me botou pra ler, escrever, pintar.

– Ah, tudo bem... – diz Elspeth, e ela parece verdadeiramente envergonhada e contrita.

Franco decide sair enquanto tem a dianteira, bebendo todo o chá e partindo para seu quarto para se arrumar. O telefone Tesco, para seu espanto, ativou-se em algum tipo de vida. Emite um brilho verde-lima radioativo. Ele tenta digitar o número de Melanie, mas a tecla do zero agarra e um 0000000 voa pela tela.

– Merda – ele xinga, puxando bem fundo o ar para encher os pulmões.

É claro que ele ia ver John Dick. Antes de Melanie houve John, o homem que acreditou nele, apesar de Franco estar decidido a apresentar todas as provas em contrário. O carcereiro radical, que ia contra tudo que era estabelecido, da política econômica e social estreita e redutora do governo às regras e aos procedimentos mesquinhos da instituição e ao fatalismo contraproducente dos próprios presidiários. Dick levou escritores, poetas e artistas para ver se alguma coisa dava liga. Viu uma faísca se acender em alguns, sendo Frank Begbie o mais improvável.

Eles se encontram no café Elephant’s House, na ponte George IV, perto de onde ele havia começado ontem, na Biblioteca Central. Ele tem a impressão de que John Dick vai bem; rosto alongado, óculos de armação escura, cabelo preto curto, uma permanente barba por fazer e roupas largas que escondem um corpo magro, mas musculoso. Franco se lembra de que Dick, quando eles se conheceram, tinha uma atitude relaxada que ele sabia vir da posse da confiança física. Em meio a todos os outros canas parrudos e agressivos, John Dick parecia um encantador de prisioneiros, sua voz suave tinha o dom de baixar o volume dos outros. Com a exceção de Melanie, ele provavelmente não ouviu ninguém na vida fazer isso como o carcereiro. Prontamente, John expressa seu pesar por não comparecer ao funeral de Sean. Franco assente, sem precisar perguntar por quê. A ideia do cana e do presidiário como amigos teria feito os histéricos e amargurados em ambos os lados gritarem “dedo-duro” ou “vendido” em segundos.

John Dick consegue a promessa de Frank Begbie de voltar à cidade para conversar com os prisioneiros quando sua exposição chegar a Edimburgo. Embora concorde, o presidiário convertido em artista insiste em não ter nenhuma cobertura da imprensa; ele não seria garoto propaganda da reabilitação. Ser saudado pelo “ele não é maravilhoso?” das bichas artísticas de um lado, ou levar o escárnio amargo do “ele nunca vai mudar” dos céticos do outro, não exerce sobre ele nenhuma atração. Estas são as narrativas de pigmeus e eles continuarão a persegui-las firmemente sem a sua ajuda. Ele tem uma vida para levar.

Franco conta a gênese de sua fama.

– Aquele ator idiota que apareceu pro nosso projeto de arte, aquele que você e Mel arrumaram, foi procurar inspiração pro papel de durão que ia fazer. Disse que seríamos grandes parceiros – ele estremeceu com a própria ingenuidade –, mas nunca retornou meus telefonemas quando eu saí. Fiz um busto dele. Eu o mutilei, furioso. Depois os outros. Eu os expus daquele jeito como uma piada. Foi quando a coisa decolou. Escreveram uma crítica, olha só, eu tenho bem aqui – e Frank Begbie pega a carteira e retira um artigo de jornal dobrado. Entrega a John Dick, que abre e lê:

A exposição, trazendo os esforços de três prisioneiros da Penitenciária Saughton de Edimburgo, contém algumas obras de arte contundentes e completas, desenvolvidas sob a tutela e supervisão da arteterapeuta Melanie Francis. A californiana trabalhou com presidiários violentos em seu próprio país e acredita que a missão da arte nestes ambientes “é, para colocar com simplicidade, o redirecionamento de energia que, por sua vez, leva a uma reavaliação de comportamentos pessoais e objetivos na vida. Há muito talento em estado bruto aqui que nunca teve a oportunidade de brilhar”. E ninguém brilhou mais do que o criminoso reincidente Francis Begbie. Seus retratos e esculturas marcantes de estrelas da televisão britânica e de Hollywood, com mutilações cruéis, tocam em nosso desejo subconsciente, como público, de criar e depois destruir a celebridade...

– E aí a ex-mulher dele, aquela atriz que ele estava traindo – Franco ri –, pagou uma grana pela peça. Começa aquele movimento artístico Schadenfreude – diz ele, um desprezo azedo entra furtivamente em sua voz. – Tragam-me suas celebridades. Vou machucá-las, envelhecê-las, degradá-las, imaginar o parto de seu primeiro filho feito por Fred e Rosemary West. Gravar a dor em seus rostos bonitos. Mostrar a todos que eles são iguais a nós.

– Não importa de onde vem. – John Dick devolve a ele o recorte de jornal. Franco reconhece o quanto John ascendeu no Serviço Penitenciário, cavando um espaço do qual faria seus experimentos progressistas. Seu estilo sensato e amistoso é uma fachada que esconde um intelecto afiado e arrasador. As pessoas sempre vão subestimá-lo, depois nunca terão certeza de como este modesto sorridente invariavelmente consegue o que quer. – A arte só tem o valor que as pessoas estão dispostas a pagar. Você se aproveitou de um clima. Você tem talento.

– Meu talento era machucar as pessoas. Eu dava vazão a isso, o desejo de ferir outro ser humano. – Frank leva o café à boca. Está quente e o queima, ele então sopra a bebida. – A sociedade está fodida, eu só dou às pessoas fodidas o que elas querem. Isso não me faz ter talento, a não ser pra exibir os pontos fracos e desejos distorcidos dos outros.

– Todos nós temos esses impulsos, mas só os fracassados e psicóticos cedem a eles. – John Dick sorri, de lábios finos. – Outros sublimam isso em arte e negócios. E ganham muito dinheiro. Você só criou juízo, aprendeu a ter algum autocontrole e entrou para um clube muito mais lucrativo.

– Aos clubes lucrativos de autocontrole. – Frank Begbie levanta habilmente a xícara.

John Dick se junta ao brinde sóbrio e olha o relógio.

– Preciso voltar ao trabalho. Posso deixar você em algum lugar?

– Não, vou andar um pouco pelas docas. Todas aquelas novidades por lá; Ocean Terminal, o cassino...

– Sim – John Dick assente. – Sem dúvida tudo mudou naquele buraco.


15
O ENTREGADOR 3

As frutas e legumes frescos nunca eram muito frescos porque os pedidos costumavam ser feitos com um dia de antecedência. Peguei uma caixa que dizia: Autoridade Portuária de Forth, Docas do Leith, Jock Begbie. A etiqueta nela parecia ser de 3 de novembro, mas por algum motivo estava borrada e de qualquer modo eu não lia muito bem. Na realidade era pra 4 de novembro, mas eu coloquei por engano na bicicleta de entrega.

Quando desci pras docas, eram 4h20 da tarde no relógio digital vagabundo que comprei num brechó, mas estava escuro, chuviscava e essa merda toda, como a Escócia costuma ser nessa época do ano. As lâmpadas laranja de sódio já estavam acesas e derramavam seus reflexos pelas calçadas e ruas molhadas. A primeira coisa estranha foi que o segurança, John, não estava no portão. Passei direto com a bicicleta por aquela faixa dissonante de paralelepípedos, depois atravessei a grade de ferro do mata-burro. Pedalei no escuro próximo, indo na direção daquele imponente anexo de tijolos. A doca seca e antiga era pouco iluminada pelos postes de luz. Ao me aproximar, ouvi vozes; sons urgentes e ameaçadores, transportados na noite silenciosa. Parei e desmontei cautelosamente da bicicleta, e a empurrei devagar e em silêncio pra frente, encostando nos fundos da casa de tijolos. No começo parecia que as vozes vinham de dentro, mas então entendi que sua origem era a frente da toca.

Contornei furtivamente a casa e vi os homens, parados perto da beira do cais. Johnnie Bonitão estava meio longe do vô Jock e dos outros dois, Carmie e Lozy. A luz de um poste os banhava em um brilho fraco, seu bafo de dragão no ar frio enquanto as sombras se derramavam nas pedras do calçamento. Vi que Johnnie estava com medo. Tinha as mãos estendidas, um apelo.

– O que é isso, rapazes... Jock... sou eu...

– Se você pular, e pular de pé, vai quebrar as pernas – disse meu avô, olhando pra baixo no cais. – Mas terá uma chance de sobreviver. Vale a aposta!

Carmie tinha uma corda nas mãos e se aproximava de Johnnie.

– É desse jeito ou do nosso jeito, Johnnie, meu garoto!

Eu me agachei, encostado na lateral da casa. Estava me cagando. Acho que o lado esquerdo do meu rosto entrou em um espasmo de contorções.

– Estamos te dando essa chance – escarneceu o vô Jock, com a cabeça virada de lado. – Nós te devemos essa. – E ele se virou pra Carmie e Lozy. – Não tenho razão em dizer que devemos essa ao Johnnie, rapazes?

– Imagino que sim, Jock – disse Lozy.

– Mas o Carmie não tem tanta certeza, não é, Carmie? – Meu avô sorriu.

O cabeção de Carmie parecia distorcido embaixo da luz mortiça.

– Eu diria que um dedo-duro ladrão e duas caras não merece é nada. Um dedo-duro que trai os próprios companheiros.

– Pelos velhos tempos, Carmie, é pelos velhos tempos – disse sabiamente Jock. – E aí, o que vai ser, Johnnie?

– Mas eu não posso... rapazes... sou eu... – suplicou Johnnie.

– Ah, estamos vendo bem que é você! Estamos vendo isso! – Carmie riu sombriamente, como se Johnnie fosse um garoto que foi flagrado roubando doces do confeiteiro do bairro.

– Se a gente te amarrar e depois te jogar, acabou pra você, Johnnie. Ou te pendura ali, na tua grua, como quer o Carmie. Pensa bem – implorou o vô Jock. – O que vai ser? Pensei que você gostasse de uma aposta. Pensei que essa confusão tivesse começado assim. Perdeu o instinto de apostador? Que vergonha...

Johnnie vai lentamente pra beira e olha pra baixo. Recuo um passo lento pra me esconder nas sombras e sinto o coração disparado no peito. Ainda não acredito inteiramente, quero crer que ele vai ficar bem, que eles só estão “dando um sacode” nele (uma expressão ao gosto de Jock) e que logo estarão no pub Marksman, rindo e brincando, Johnnie sem ter sofrido nada além da calça borrada. Mas havia algo de estranho neles; era sua imobilidade assustadora.

– No seu lugar, eu simplesmente pulava. É só se virar e pular – disse meu avô Jock, e sacou uma lâmina comprida. Vi seu brilho prateado debaixo da luz do poste.

E então Johnnie fechou os olhos e simplesmente desapareceu na escuridão. Talvez eu tenha fechado os meus também. É estranho como a memória pode enganar a gente, porque sei que vi o rosto dele só com as pálpebras expostas, mas não testemunhei, nem tenho nenhuma recordação de ele ter pulado. E não ouvi seu grito, nem ele batendo no fundo. Mas eu não conseguia vê-lo mais com eles, na beira daquela doca seca, e ele não poderia ter ido pra nenhum outro lugar. Meu avô fez um sinal pra Carmie e Lozy e eles foram até a beira do cais e olharam pra baixo.

– Acabou. Melhor dar o fora, lesto – disse ele.

– Morreu? – perguntou Lozy.

– Já virou patê. Lesto – repetiu o vô Jock, depois se virou e foi pro anexo. Se eles fossem pra direita me veriam, mas pegaram a esquerda e isso me deu tempo pra manobrar a bicicleta pro outro lado da construção de tijolos aparentes.

Eu os ouvi rindo no escuro enquanto se afastavam. Era como se estivessem terminando um turno ou fossem de casa pro pub ou pro futebol.

Fui até a beira da doca seca e olhei pra baixo. A luz do poste se dissipava pela beira do cais e nada no fundo era visível naquela escuridão de breu. Não ouvi barulho nenhum vindo de baixo.

Então, desci os degraus de metal pra doca. Ouvia meu coração martelar no peito. Eu me cagava de medo, mas ao mesmo tempo acho que me sentia empolgado e vivo. Mas estava preocupado porque a escuridão era muita. Só consegui enxergar o fundo quando o senti na sola de meus tênis. Olhei pra cima; eu tinha ido longe demais e havia um longo caminho de volta. E então, atrás de mim, ouvi uns gemidos baixos e o barulho de alguém sussurrando palavras que não faziam sentido.

Vi um amontoado escuro e dele saía uma respiração fraca e rala. Parecia um bicho ferido esperando pelo último suspiro. O monólogo estranho continuava. Talvez, peguei-me pensando, Johnnie estivesse pedindo a todas as mulheres que ele enganou que o perdoassem, que o ajudassem, mas nada seria de nenhuma ajuda pra ele. Quando me aproximei mais, seus olhos vidrados voltaram-se pra mim e ele repetiu: “Por favor... Frank... por favor...”

O topo de sua cabeça estava esmagado e um sangue espesso escorria dele. Afastei-me pra não sujar os tênis. Os olhos dele eram desvairados, mas ficavam baços. Eu sabia que ele estava morrendo.

E rapidamente entendi o que ele queria que eu fizesse.

Então eu fiz, depois voltei lentamente pro muro da doca. Olhei os degraus que levavam ao topo. Estava trêmulo e exausto. Sabia que de jeito nenhum ia conseguia subir aquilo, sair da doca, e que seria perigoso até tentar.

Mas eu não podia ficar onde estava.


16
O PATRONO DAS ARTES

Alimusine ronca lentamente junto do meio-fio, parando bem na frente dele. Parece incongruente estar na Leith Walk a essa hora; cedo demais para ser um casamento ou despedida de solteiro, não havia cortejo fúnebre. Franco tenta enxergar dentro dela, mas as janelas escurecidas nada revelam. E então a janela do carona se abre e aparece a mão gorducha e tomada de anéis de ouro, seguida por uma cabeça grande e raspada.

– Entra.

Frank Begbie cede, de imediato tem a impressão de que Davie “Tyrone” Power não mudou muito. Ele sempre teve a cabeça raspada, assim não havia nenhum efeito de calvície ou grisalho visivelmente dramático do passar dos anos. É ainda um escroto gordo, pensa Begbie, enquanto deixa que o confortável estofamento o sugue para suas entranhas. “God Gave Rock and Roll to You”, dos Argent, toca em volume baixo no rádio do carro.

– Soube que tinha voltado pra cidade – diz Tyrone, sem olhar para ele. – Meus pêsames. Perder um filho, isso é muito ruim.

Frank Begbie continua em silêncio. Um... dois... três... Ele observa o padrão da respiração de Tyrone. Pode-se dizer muito de uma pessoa pelo modo como respira. Power puxa o ar regularmente pelo nariz, mas de súbito toma uma grande golfada, como um tubarão subindo à tona para engolir a presa. Alguns talvez vejam apenas agressividade e força neste movimento, mas Frank Begbie registra fraqueza. Talvez seja um sinal de ansiedade. Ou talvez tenha metido cocaína demais nas fuças.

Ele olha um cabo saindo sinuoso do isqueiro eletrônico de Tyrone. Sua pulsação se acelera. É claro que não.

– Esse carregador de celular – arrisca-se ele, pegando seu dispositivo móvel – encaixa no meu iPhone aqui?

– Não vejo por que não... – Tyrone olha a conexão. – Sim, pode plugar.

– Maneiro – diz Frank, percebendo na hora que há anos não usava esta palavra, enquanto encaixa o plug na entrada do telefone com um estalo satisfatório. O dispositivo começa a pulsar, uma tira vermelha logo é visível na beira do ícone da bateria.

– Então é artista, Frank? – Tyrone vira-se para ele com um brilho jocoso nos olhos. – Não engoli a merda desse papo-furado de você já-ter-isso-aí-dentro. Eu não teria previsto nem em um milhão de anos!

Frank Begbie responde com um sorriso estudado.

– Surpreendeu a mim também.

– Soube que você mora com uma americana. Arteterapeuta – Tyrone sonda.

Franco sente a coluna enrijecer. Puxa o ar lenta e firmemente. É sempre assim com esses putos. Ficar fuçando um ponto fraco. Ele sente sua barriga macia contra as costas nuas de Melanie. Um... dois... três...

– Ainda no mesmo lugar?

– Não, casa nova, no Grange – diz Tyrone, xingando um motorista em um Mini em câmera lenta na frente deles.

E é para o Grange que eles vão. Tyrone dirige com impaciência carrancuda pelo trânsito, na direção sul, até um bairro arborizado onde, atrás de enormes muros de pedra, entradas de cascalho levam a grandiosas casas de luxo. Ele para em uma imensa casa de arenito que esbanja riqueza. Vários carros estão estacionados do lado de fora de uma garagem, alguns cobertos com capas sob medida, indicando que todos pertencem a ele. Tyrone sempre foi maluco por carros, lembra-se Frank Begbie.

Tyrone desliga o motor e despluga o telefone de Franco, que parou com 21% de carga, o ícone da bateria nem entrou na zona verde. O papel de parede se acendeu, mostrando a foto de uma Melanie sorridente, com dentes brancos em destaque, um tipo quase desconhecido na Escócia.

– Bonita. – Tyrone sorri, devolvendo o celular a Franco. – A dona?

– Sim.

– Então ela ainda é arteterapeuta, hein?

Melanie agora tem um emprego de meio expediente na universidade, mas trabalha principalmente em seus próprios projetos de arte. Mas isto não é da conta de Tyrone.

– Sim – diz Frank Begbie, acompanhando-o para um hall grandioso e luxuosamente mobiliado, com pinturas decorando a maior parte do espaço das paredes. Franco não reconhece as obras, mas sabe, pela qualidade das molduras, que o que tem ali dentro terá um valor considerável.

– Você vai gostar disso, sendo artista, Frank – diz Tyrone, com um prazer de pretenso contador de histórias, ao levá-lo a uma grande sala de estar, com uma área de jantar ao fundo e dois imensos lustres ornamentados no alto. E ali há outras telas. – Uma das maiores coleções particulares de arte escocesa influenciada por pré-rafaelitas. Este é um David Scott e essas duas são de William Dyce. E tenho esse Murdo Mathieson Taits original. – Ele passa a mão por uma parede decorada com várias telas de figuras e paisagens. – Nada mal prum cara da Niddrie Mains!

– Não gosto muito de arte imbecil – diz Franco com desdém.

– Mas você é um artista, cara! Ganha a vida com...

– Já ouviu o Chinese Democracy, do Guns N’ Roses?

– O quê?

– Um monte de gente diz que é excessivamente produzido. Que não pode ser colocado no mesmo saco de coisas como Appetite for Destruction. Acho besteira. – Frank Begbie olha em desafio para seu antigo chefe. – É preciso usar os valores de produção disponíveis na época.

– Não conheço esse – diz Tyrone com irritação.

– Procure ouvir. – Franco sorri. – É altamente recomendável. – E ele vai para a mesa de jantar, passando a mão pelo brilho encerado de sua superfície. – Bonita. Mogno?

– Sim. – Tyrone assente, gesticula para Frank se sentar e, assim, Frank joga-se em um sofá bem estofado. Tyrone então baixa o próprio corpanzil, com uma delicadeza surpreendente, na poltrona de frente para ele.

Frank Begbie olha em volta procurando vestígios que possam ajudá-lo a descobrir quem mais mora ali. Tyrone foi casado, tem filhos adultos; entretanto, não há provas de nenhuma coabitação naquela sala grandiosa.

– E como vão as coisas? Você ainda tá com a como-se-chama-mesmo? – Ele lança a isca.

O rosto do homem de frente para ele quase não registra nada, nenhum sinal de que Franco falou, que dirá de que o assunto é proibido. Então os olhos de Tyrone se estreitam de repente.

– Sabia que aquele seu garoto... Sean – diz ele, estendendo a palavra de forma a parecer um bocejo –, Sean estava metido com aquele puto do Anton Miller?

– Não.

– E aquela garota, Frances, Frances Flanagan, dizem que ela estava presente na noite em que ele foi morto.

Isso sem dúvida é uma novidade. Dois nomes novos. Anton Miller. Frances Flanagan. A polícia não confirmou ninguém com Sean, porém isto fazia sentido; alguém chamou a ambulância, mesmo que fosse tarde demais. Talvez a garota tenha estado lá e deixado o assassino entrar, sem saber o que ele ia fazer, depois entrou em pânico quando ele matou Sean e talvez tenha fugido e chamado a polícia. Ou talvez ela tenha armado para ele. Ou ela própria o esfaqueou. Porém, Frank Begbie é desconfiado. Ele já ouviu esse tipo de conversa e simplesmente não é da natureza de Davie Power fazer favores a ninguém.

– E por que tá me contando isso?

– Não é só pelos velhos tempos. – Tyrone balança a cabeça lentamente, depois abre um sorriso de verdadeiro prazer. – E eu não insultaria você fingindo que é este o caso. Veja bem, tenho vários problemas com o filho da puta do Miller. Pra falar a verdade, eu só queria que uma chuva de bosta desabasse em cima dele. Você fez merda e se deu bem, Frank – diz Tyrone, querendo avaliar a reação de Frank Begbie. – Ele é um escroto do caralho. São todos uns pistoleiros. Fazendo tiroteio nas ruas de dentro do carro como uns covardes. Não tá certo – acrescenta ele, de novo meneando a cabeça. – E ele tá por trás da morte do seu garoto, tão certo como depois do dia vem a noite. Sean estava trabalhando pra ele. Drogas. Então temos um interesse em comum – ele argumenta, levantando-se e indo a um balcão de mármore de aparência opulenta embutido em um canto da sala.

– Se algum puto desses estivesse te aporrinhando tanto assim – diz Franco, vendo-o pegar uma garrafa de vidro arredondada com uísque em uma prateleira atrás do balcão –, a essa altura você teria acabado com ele. Todos aqueles babacas que foram chegando aos conjuntos habitacionais através dos anos, Pilton, Sighthill, Niddrie, Gilmerton... você acabou com todos – acrescenta ele, pensando em um velho companheiro, Donny Laing, que desafiou publicamente Tyrone e depois desapareceu. – O que tem de diferente nesse garoto?

– Miller é o epítome da astúcia. – O domo raspado de Tyrone se balança. – De toda uma nova raça de moleques dos conjuntos, um gângster rematado em vez de marginalzinho estúpido. – Ele olha para Franco por um segundo longo demais. – Ele tem miolos, sabe fazer política e formar alianças. Uniu todas as quadrilhas do norte de Edimburgo; Drylaw, Muirhoose, Pilton, Royston, Granton e até os edifícios novos de parte do Leith, até Newhaven – explica Tyrone, baixando a garrafa de uísque no balcão com tampo de mármore.

Begbie assente. O Leith sempre foi uma entidade própria. A ideia de seu lugar agora como apenas um posto avançado, um território de propriedade de algum jovem burro de conjunto habitacional, isso o desanima mais do que deveria.

– Ele e sua quadrilha têm ambição e certo gosto empreendedor. Miller controla uma forte lealdade entre eles. Se eu avançar nele, vão cair em cima de mim. Haveria uma guerra, o que seria ruim pros negócios e ruim pra cidade. – Tyrone prossegue e Frank Begbie concorda com a cabeça, compreendendo. Tyrone sempre nutriu um senso pervertido de responsabilidade cívica. Os velhos gângsteres de Edimburgo tiveram todo aquele sucesso historicamente porque conseguiram evoluir daquele status, integrando-se na respeitável comunidade de negócios e minimizando a teatralidade da violência. Evitavam muito as disputas por território, os tiroteios e as biografias confessionais e as acusações de criminosos, repletas de serializações no Daily Record, que caracterizavam a vizinha Glasgow. Eles estavam em segurança, eram organizados e há muito estabelecidos. Recrutavam os talentos mais brilhantes dos conjuntos habitacionais, mas esmagavam a emergência de qualquer quadrilha autêntica dessas periferias, qualquer um que pudesse ter propósitos nos mercados da cidade.

Franco entende que uma firma nova que não joga segundo as antigas regras seria uma grande dor de cabeça para eles.

E Tyrone também sofre pressão de outro lado.

– Tem uma nova parte aí da polícia da Escócia que está na mão de Glasgow, é basicamente a velha polícia de Strathclyde, e eles estão caindo sobre nós com mais força do que jamais fizeram os melhores de Lothian, que Deus os tenha – explica ele, depois encara Franco com um olhar de conspiração. – Mas alguém de fora... o que você é agora... bom, eu faria valer o seu tempo. Você conseguiria vingar seu filho, me ajudaria, seria pago e livraria sua cidade natal de uma força muito maligna. Você deu um jeito em Craig Liddel... o Seeker... – Tyrone se corrige e sorri – pode dar em Anton.

– Também cumpri muito tempo de cadeia por isso. Pra mim, essa merda acabou.

– Até parece que os canas vão dar a mínima pra quem pegar Anton. – Tyrone zomba, levantando a garrafa de uísque.

– Sou uma figura reformada – diz Franco, o rosto imóvel como um bloco de pedra.

Mais uma vez, Tyrone parece não ter ouvido.

– Isto é puro malte, 22 anos – explica ele, servindo duas doses generosas do uísque nos copos grossos de cristal Edimburgo. Numa pequena guilhotina no balcão, ele decapita e depois acende dois charutos Havana. Passa um copo e um charuto a Franco, que os olha, depois para Tyrone. – Você ainda tem uma queda pela violência, vejo isso nos seus olhos. Beba – instrui Tyrone, brindando com ele.

Frank Begbie o olha com um sorriso curto.

– Como eu disse, figura reformada – repete Franco, largando o charuto no copo, ouvindo seu chiado e levantando-se do sofá.

Ele vê que Tyrone o encara sem acreditar, primeiro na profanação de sua hospitalidade, depois diretamente nele.

– Posso encontrar a saída sozinho. – Franco baixa o copo na mesa de centro, vira-se e sai da sala, consciente de que o pescoço do homem atrás dele está ardendo. Não são muitos que dão as costas a um Davie “Tyrone” Power furioso, mas Francis Begbie apenas puxa um pouco de ar e sorri consigo mesmo enquanto atravessa o hall e sai pela porta.


17
O TIO

Achuva parou e o sol saiu piscando de trás de nuvens enfumaçadas, como um velho ex-presidiário acostumando-se com a liberdade. Uma pistola subsônica de largada parece disparar, seu tom invisível abrindo novas possibilidades para os cidadãos rejuvenescidos de Edimburgo. Mas, para Frank Begbie, é hora de encerrar antigos capítulos; amanhã cremarão seu filho. O serviço fúnebre será um grande dia; ele sente que nas narrativas saturadas e abastecidas por tristeza e álcool que o sitiarão poderá surgir certa verdade e compreensão. Depois de levantar cedo, ele decide sair para correr, partindo em um trote lento e desajeitado, ganhando velocidade até que a perna rígida se solta.

De súbito, ele sente, depois de ver, o iPhone sair do bolso de sua calça de moletom, bater na coxa e, enquanto ele para e se vira, vê que ele bate na grade de um bueiro, vira de lado e escorrega para dentro. Parece afundar em câmera lenta na água escura e suja. A raiva lhe sobe e ele segura a grade da pesada tampa de ferro do bueiro. Ao levantá-la, as veias do braço estouram na superfície. Mas ele não pode fuçar aquela sujeira, pode? Um... dois... três... já estava fodido mesmo... compre um novo... Ele o deixa cair, sacudindo as mãos para se livrar do estrume e vai para uma fábrica convertida que abriga uma academia de boxe de um antigo amigo.

O interior da academia zumbe de atividade. Lutadores passam pelos rituais sob a supervisão de treinadores, três dos quatro ringues ocupados com trios ou duplas treinam com manoplas. Em volta de um grupo de sacos de pancada, trabalhadores de escritório fazem treinamento de boxe compreendendo o saco de pancada, sparring e exercícios de força e condicionamento na preparação para um dia preso a uma escrivaninha.

Franco cumprimenta com um gesto o seu antigo camarada Mickey Hopkins, sentado à mesa da recepção, conversando ao celular. Em troca, recebe uma piscadela de reconhecimento. Depois começa a se alongar antes de se exercitar num ritmo satisfatório na pera de velocidade. Um... dois... três... Um... dois... três... Ele sente os olhos fixos de homens fortes brilharem com aprovação estoica, alguns que ele sabe que flertaram com o diabo e que depois se afastaram da beira do abismo. Esses homens estão presentes em academias do mundo todo, inclusive a frequentada por ele na Califórnia. Franco gosta de ficar perto deles; a maioria consegue entender que os seres humanos mais sensatos são estudantes, eternamente aprendendo a lidar com a vida, continuamente readaptando-se diante das oportunidades e ameaças das mais variáveis que ela apresenta.

Frank Begbie enrola suas mãos enquanto Mickey Hopkins termina o telefonema, pegando duas manoplas ao apontar o ringue com a cabeça. Os homens pulam as cordas. Tudo é a respiração e Franco puxa o ar numa golfada regular, soltando enquanto desfere cada golpe combinado, estimulado aos gritos por Mickey, no ponto prateado das manoplas do treinador.

– Jab duplo, cruzado, gancho de esquerda, gancho de direita duplo, uppercut de esquerda, jab...

Franco se vê nesse ritmo glorioso, que se abre para a transcendência, enquanto alguns espectadores param sua atividade para reconhecer a dança dos homens. Depois da sessão, ele está suado e ofegante, e deixa a respiração ficar mais lenta e regular. Sentado com alguns rapazes, tem o cuidado de não fazer perguntas sobre Anton Miller, satisfaz-se em deixar que as pessoas deem informações voluntariamente. Se são amigos ou inimigos de Miller, eles têm de conviver com ele nesta cidade. A impressão geral que ele tem é de respeito autêntico pelo jovem, bem como um medo evidente. Aqueles traços de caráter que o tornariam muito perigoso para Tyrone.

Mickey e alguns rapazes o levam para almoçar, frango assado em um café próximo, e eles colocam em dia os velhos tempos. Ocorre a ele que os homens presentes à mesa o mantiveram a certa distância durante anos e agora o estão acolhendo no clube do “ele era um idiota, mas agora é legal”. Ele percebe que todos descobriram anos atrás como obter inscrição nesta fraternidade e, por outro lado, quanto tempo ele levou para tanto. Pela primeira vez depois que saiu do avião, ele se sente à vontade em sua cidade natal.

Quando retorna a Murrayfield naquela mesma tarde, Frank vai até o telefone fixo e disca o número de Melanie. Queria estar em Santa Barbara com ela, o amanhecer entrando pelas janelas de seu quarto, ela dormindo nua de bruços, o cabelo cor de magnésio ao sol, o quarto resfriado pelo ar do Pacífico. Ele fica meio constrangido porque Elspeth está sentada no sofá bebendo gim e assistindo à programação diurna da TV. Cai na caixa postal e Frank tenta explicar a situação com o telefone Tesco, até que soa o bipe, interrompendo seu recado. Elspeth parece azeda e ele pensa se deveria ter perguntado primeiro se podia fazer uma ligação de longa distância. Algumas pessoas são esquisitas com esse tipo de coisa. Assim, Franco senta-se na poltrona de frente para ela e eles trocam algumas banalidades. Depois ele avista uma foto dos meninos no aparador com idênticas camisetas marrons dos Hearts.

– São bons garotos – diz ele.

– Sim, nunca tive nenhum problema com eles... – diz Elspeth, depois hesita. Franco sabe que ela está pensando nos filhos dele, talvez percebendo que pode não ser a melhor coisa a dizer.

Ele decide manter a conversa leve.

– Como foi que você deixou que eles virassem Jambos?

Elspeth o olha com um leve desânimo.

– O pai de Greg leva eles no Tynecastle.

– Nossa família sempre foi Hibs. É uma tradição.

Elspeth zomba abertamente dele.

– Você acha mesmo que pode ficar sentado aí com essa cara de pau e falar de nossa família? De tradições? Você, que passou a maior parte da vida na cadeia, depois simplesmente fugiu pra Califórnia. – Ela intensifica a raiva. Ele olha o copo na mão dela. Aposta que não é a primeira dose do dia. – Onde você estava pra levar seus sobrinhos, ou mesmo seus próprios filhos, onde você estava pra levá-los a algum lugar que fosse? – A bile se derrama de Elspeth. – Algum dia o tio Frank deles levou os sobrinhos pra ver os Hibs?

– Um comentário justo – concorda Franco, segurando o cadarço dos tênis. – Só achei que como tivemos uma criação com os Hibs você podia ter forçado um pouco a mão, é só isso.

– O quê? Até parece que eu dou a mínima pra essa porcaria. – Ela fecha a cara para ele. – Sei o que está fazendo, Frank. Eu vejo no que você se tornou. Você é o mesmo filho da puta mau, só aprendeu a controlar a raiva. Posso ver isso nos seus olhos, os mesmos olhos de matador egoísta e assassino...

Respire...

Franco se vê se eriçando, enquanto uma fúria vulcânica cresce nele. A mesma merda que o Tyrone disse, essa bobagem sobre meus olhos. Um... dois... três...

– Do que você tá falando? – Ele meneia a cabeça, deixa-se arriar na poltrona. – Olhos são olhos! – Relaxe e aproveite a disputa. Se perder a frieza primeiro, você dança. – Como posso mudar meus olhos? Quer que eu use lentes de contato de zumbi ou coisa assim?

– Você está pior. – Elspeth toma outro gole de gim. – Você aprendeu a ser dissimulado e manipulador. Pelo menos quando não podia controlar essa fúria, você era sincero.

Frank Begbie respira fundo de novo e baixa o tom de voz.

– Então, se eu me soltar e quebrar o lugar todo... – ele olha a sala confortável – ... seria eu sendo sincero? Mas se eu me esforço e converso com as pessoas, então sou um psicopata? Não tem nenhum sentido no que você diz, Elspeth. – Ele bufa com desprezo, apontando a bebida dela na mesa de centro entre os dois. – Esse é um copo de gim bem grande. Talvez você queira pegar mais leve. A filha do seu velho?

Elspeth sente o golpe da observação. Uma coisa é a consciência de que você está bebendo demais, outra bem diferente é que isto seja registrado por terceiros. Ela pensa em Greg e se pergunta o quanto ele percebeu. Certamente não os meninos...

Ela levanta a cabeça e vê que o irmão a olha como se lesse seus pensamentos. Franco pode ter sido temível quando explodia, mas sempre era mais assustador quando cuidava de sua ira, mantendo a pólvora seca. Esta incubação latente nunca durava muito, sempre esteve fora do controle dele evitar que a raiva derretida explodisse, mas agora parece a Elspeth que ele dominou a arte. Na mente de Elspeth, isto o torna ainda mais perigoso. O ar é denso, tem um véu de ameaça. Ela nunca sentiu isso diretamente de Frank, apesar de tê-lo testemunhado administrando a violência a outros familiares, particularmente a Joe.

Frank rompe o silêncio, coloca-se de pé, fica acima dela com um sorriso estranho.

– Mas talvez, se sua própria vida fosse um pouquinho mais satisfatória, você não bebesse tanto. Só pra sua informação – diz ele, num tom desinibido dos americanos e seguindo para seu quarto.

Na mesa de cabeceira, o telefone Tesco agora exibe 100% de carga, mas Franco descobre que não consegue abri-lo. “Inacreditável”, ele fala sozinho, respira fundo e opta por relaxar deitado na cama, lendo Laranja mecânica no Kindle. Ele se lembra de ter visto o filme na juventude. Ler é um esforço, mas é recompensador, porque sua mente trabalha os símbolos pulsantes em sons e ritmos na cabeça. Não leia livros, cante-os, foi o conselho inovador que ele recebeu do especialista na prisão.

Há uma batida na porta e Greg entra. Evidentemente é hora de alguma reconciliação.

– Soube que você e Elspeth... er, bom, acho que estamos todos meio nervosos com o funeral amanhã...

– Sim.

– Os meninos estão na casa de minha mãe. Quer se juntar a nós? Vamos comer um frango assado que eu preparei.

– Beleza – diz Franco, levantando-se. Ele não quer particularmente nenhuma companhia e o segundo prato de frango assado não o anima em nada, mas ele queimou muitas calorias hoje e seria sensato comer novamente.

O clima em volta da mesa é tenso. Franco olha para Elspeth, sabe que ela está bêbada. Foi aberta uma garrafa de vinho branco. Greg tomará um copo dele, se tiver sorte. De súbito a irmã começa a choramingar, esfrega os olhos com a mão.

– Ah, meu Deus... – ela diz baixinho.

– Querida... – Greg passa o braço por ela. – Você está bem?

– Não! Eu não estou bem! Meu sobrinho morreu, o Sean – geme Elspeth, parece contorcida de dor. Depois ela se volta para Franco e fala com tristeza. – Lembro quando eu era nova, fiquei muito animada e orgulhosa quando você e June o levaram pra casa.

Franco fica em silêncio. Ele se lembra da ocasião, o estardalhaço irritante que fizeram Elspeth e sua mãe. O neném isso, o neném aquilo. A implicação amargamente ressentida de que a vida dele agora acabou, que ele viveria por tabela através do filho. E ele percebeu que tinha sido manipulado, que a gravidez e o nascimento da criança representaram uma esperança (vã) de June e sua mãe de que ele mudaria. Ao pensar nesta última, ele deseja ter podido levar Val Begbie para Santa Barbara, tê-la feito conhecer suas filhas. Mostrado a ela que afinal tudo deu certo, como ele sempre lhe garantiu que daria, por todas aquelas décadas de batidas policiais no meio da noite, telefonemas de celas de prisão, comparecimentos em juízo e idas rituais e deprimentes a penitenciárias. Mas só o que conseguiu Val – na época com câncer em estágio avançado – foi um breve encontro com Mel e algumas fotos de Grace recém-nascida.

– Mas você, você não se importou – Elspeth ruge para ele. – Você nunca se importou!

– Elspeth, sinceramente, isso não está ajudando – protesta Greg.

– Estou tentando descobrir o que aconteceu com ele – diz Franco. – Se eu não me importasse, não estaria tentando, não é?

– É, mas você não se importa com ele – Elspeth ferve. – Você não o conhecia! Ele era um garoto adorável, Frank, um ótimo garoto, até que as drogas o pegaram – declara ela, quase sem fôlego. – Tinha um sorriso pra todo mundo e uma gargalhada maravilhosa. Estou triste pra cacete com a morte dele! Você não está, seu pai de merda. Não está triste com a morte dele? – ela pede. – Diga! Me diga que está triste!

– O quê? Está brincando comigo? – Os olhos de Franco se estreitam em fendas vincadas. – Nós não nos víamos há cinco anos e você quer que eu fique sentado aqui e fale de como me sinto por meu filho ser assassinado, com você, agora, com o funeral amanhã? Não vai acontecer – diz Franco enfaticamente.

– Elspeth – Greg suplica –, é o filho de Frank. Cada um processa a perda de um jeito diferente. Por favor, procure mostrar algum respeito, vamos ajudar um ao outro a passar por isso.

– Mas ele nunca nem mesmo tentou ajudá-lo! Olhe pra ele! Só fica sentado aí como se não tivesse acontecido nada!

Franco baixa a faca e o garfo.

– Escute, eu tomei a decisão de que não tinha nada a oferecer a eles...

– Mesmo quando você virou um artista!

– Tenho minha própria família... minha outra família, minha nova família.

– Mas esses meninos precisavam de um pai... e aquele outro garoto, aquele River...

– E eles não tiveram um. É uma merda, mas acontece. Comigo. Com você. Com muita gente. É verdade que eu falhei com eles, mas não podia agir corretamente com eles – diz ele com firmeza, agitando o garfo. – Esse barco já zarpou há muito tempo.

Então, você simplesmente lava as mãos pra bagunça que criou! – rebate Elspeth. – Aquele River, você nem mesmo conheceu o pobre neném! – ela berra a acusação.

Greg franze a cara, mas Franco continua calmo.

– Só o que posso fazer por eles é tentar viver minha vida de um jeito decente. Mostrar a eles as diferentes consequências disso. Mostrar que agir como um animal raivoso significa um caixote de concreto de três metros e meio em Saughton, o que não é bom. Mas se abrir e descobrir no que você é bom e se expressar: isto significa uma casa de praia na Califórnia, o que é ótimo. É a única lição que posso dar a alguém. Não vou fazer sermão. – Ele baixa os talheres e abre as mãos. – Está tudo aí pras pessoas verem, se elas simplesmente quiserem abrir a merda dos olhos.

Elspeth se retrai com isso, mas continua a olhar feio o irmão.

– Cada um sofre de seu próprio jeito – repete Greg, acariciando o braço da mulher. – Acho que Frank faz muito bem em segurar tudo. Não vai nos fazer nenhum bem perder a cabeça a essa altura. – Ele olha para Franco, que está pegando uma porção de purê de batatas. – Você não sabe o que ele está passando em seu íntimo.

– É, ninguém sabe, mas podemos imaginar! Imbecil! – declara Elspeth. – Um garoto jovem e bonito foi morto a facadas por um maníaco e ninguém se importa! Ninguém!

– Sinceramente, acho que você deve largar a bebida. Não está ajudando a ninguém. – Franco corta um pedaço de peito de frango e mastiga.

Elspeth olha primeiro para ele, depois para Greg, e se levanta, vai intempestivamente para a sala da frente. Greg vira-se para Franco e faz menção de ir atrás dela.

– Deixe que ela vá – sugere Franco. – Talvez eu esteja errado, talvez ela só precise de alguns drinques. Como você disse, cada um de nós lida com as coisas de um jeito diferente e esse evidentemente é o jeito dela. Houve uma época em que eu mesmo agiria como ela, ficaria irritado e criaria uma cena, mas isso não funciona mais pra mim. – Ele dá de ombros. – Agora me diga uma coisa que vem me incomodando...

– O quê? – Greg baixa a voz e se curva para Franco.

– Estou sentindo um leve traço de coentro nesse molho?

E ele estreita os olhos para saborear.

– Está muito bom.


18
O FUNERAL

Franco se sente desagradavelmente molhado cinco minutos depois de Terry deixá-lo com Greg e Elspeth na chuva fina do crematório de Warriston. Uma umidade fria entrava pela gola da camisa e parecia se espalhar entre a camisa e a pele. O celular Tesco destravou misteriosamente e ele consegue mandar uma mensagem de texto a Melanie, confiando pouco que realmente vá chegar a ela. Há grupos de pessoas reunidas, algumas o olham com gravidade. Elspeth, felizmente em silêncio esta manhã (provavelmente devido à ressaca, pensa ele), começou a circular com Greg. Franco, porém, não está inclinado a bater papo com ninguém e fica feliz com a companhia de Terry como dissuasor. O olhar do taxista de filme pornô se fixa numa garota de cabelo louro-escuro que veste uma camiseta preta com zíper e fuma um cigarro eletrônico.

– Tentaram botar essa daí no programa do Roy Hudd. – Ele sorri. – Meio chegada numa maconha. Fez compras e até fez teste de câmera, mas ela é uma tremenda pinguça e tá ligada naquele Anton Miller. Seu velho amigo Larry Wylie também esteve lá, dizem até que ele pegou o David Bowie. – Terry revira os olhos com desprezo, tirando a chuva dos cachos de cabelo. – Então é melhor ficar bem longe dela.

Franco fica interessado na menção não solicitada de Anton Miller.

– Qual é o nome dela?

– Frances Flanagan.

Aqueles nomes novos mais uma vez aparecem. Franco vê Frances Flanagan se aproximar de um grupo de jovens fanfarrões. Imagina se eles seriam amigos de Sean e se o outro nome que ele tem ouvido ultimamente, Anton Miller, está no meio deles.

– Filha de Mo – observa Terry. – Conhece Mo Flanagan?

Esse nome lembra várias coisas e Franco assente, recordando-se de Mo como um antigo membro da gangue de rua YLT da época. A South Sloan Street se insinua. Outra recordação é que Mo bebia pra cacete e Terry informa a Frank que ele morreu vários anos atrás.

– A garota tem a mesma fraqueza do velho dela. Uma pena, porque ela é um doce de garota e tudo – lamenta ele. – Mas isso não vai durar.

Franco olha para Frances Flanagan, agora falando com duas mulheres mais velhas. Ela tem uma beleza frágil e viciosa, o cabelo raspado na nuca destaca as maçãs do rosto lacerantes. Ele estremece de frio, a chuva penetra ainda mais sua pele. Pensa na Califórnia e considera sem nenhuma paixão o quanto detesta este lugar. Procura no celular Tesco algum sinal de Melanie, teclando laboriosamente outra mensagem para dizer que agora está no funeral.

Uma boa multidão se reúne ali. Pelo que soube, Sean parece ter sido um saco de drogas, eternamente preso em negócios obscuros, mas evidentemente era bastante popular. Ou talvez a multidão tenha se formado simplesmente por sua juventude. Você pode ser um filho da puta dos piores, mas, se morrer jovem, é agraciado com uma espécie de perdão; sempre houve a possibilidade de mudança, embora realisticamente remota. Ele se lembra do primeiro funeral a que compareceu ali, o de seu velho avô, Jock Begbie. Pensa então que aquele podia caber numa cabine telefônica. Muito pouca coisa mudou no crematório nesses trinta anos. Os mesmos prédios funcionais e jardins bem cuidados, atochados naquele canto afastado e inóspito da cidade. A chuva interminável.

E então ele vê June, paramentada em roupas pretas. Parecem muito caras, parece que ela de fato fez um esforço. A irmã Olivia está junto dela, pode ser reconhecida pela expressão pensativa que lhe é característica. Ele se lembra de trepar com ela uma vez, quando ela estava cuidando dos meninos. Ele e June tinham voltado para casa, e June, bêbada, desmaiou no sofá. Franco a pegou no colo e depositou na cama como um saco de carvão. Depois foi para a sala de estar, assentiu para o sofá e disse a Olivia: “Então vamos trepar. Eu e você.”

Ela protestou que eles não deviam e ele argumentou que era só para se divertirem um pouco. Olivia o olhou com estranheza, mas ele se despiu. Ele se aproximou dela e a conduziu para o sofá, depois pulou em cima e a comeu rapidamente, silencioso e agressivo, apalpando rudemente seus peitos enquanto metia. Acabou logo. Depois disso ela começou a chorar e ele resmungou, “Puta merda, vocês piranhas me botam maluco”, e se retirou para dormir.

Olivia agora ganhou peso, mas ainda não no nível de obesidade mórbida de June. Os olhos pretos de inseto morto em seu rosto seboso e marcado o fitam praticamente com a mesma expressão que ela lhe dispensou na época. Um estremecimento visível atormenta seu corpo roliço. Franco está pensando que o episódio talvez não tenha sido tão sórdido como pareceu; o que é a juventude senão uma brincadeira violenta? Se houve motivo para lamentações, reflete ele, trepar com alguém não é digno de inclusão na lista, em particular porque ele não sente quase nenhuma ligação com o incidente.

Cada vez mais sua vida parece fraturada, como se o passado fosse vivido por outra pessoa. Não é só que o lugar onde ele agora mora e as pessoas que o cercam sejam diferentes, é como se ele próprio fosse alguém inteiramente diferente. As obsessões e deficiências predominantes do homem que ele foi no passado agora parecem completamente ridículas no morador atual de sua mente e corpo. A única ponte é a raiva; quando furioso, ele sente o gosto de seu antigo ser. Mas, na Califórnia, como ele agora leva sua vida, poucas coisas podem irritá-lo a esse ponto. Mas isto é lá.

June pega o olhar dele e se aproxima. Franco teria levantado a mão para impedir seu avanço, teria previsto que ela passaria os braços carnudos em volta dele.

– O nosso menino, Frank... – ela geme lastimosamente – o nosso menininho bonito...

Franco olha por cima do ombro dela, concentrado na alvenaria do lado de fora da Capela do Repouso. O fedor de cigarros de June é tão profundo que nenhum perfume pode pensar em encobrir. Se ele ainda estivesse bebendo, o efeito do álcool na noite anterior possivelmente o teria feito vomitar.

– Sim, é mesmo uma infelicidade – diz ele entre os dentes. – Com licença um minuto. – E ele retira os braços que o agarram. Felizmente Michael, com um terno cinza carvão, apareceu e June se agarra ao segundo filho, anunciando em um balido alto: “MAI-AI-KEL...”

Isto dá a Franco a oportunidade de escapulir para Terry. O taxista traficante de pornô conversa com uma mulher bem-vestida que ergue uma sobrancelha sedutora para ele. Mas, quando vai se aproximando dos dois, Franco reconhece uma voz familiar e áspera no ouvido.

– Você devia ter entrado em contato!

Larry está praticamente o mesmo, talvez um pouco diminuído pela idade. Isso interessa a ele de um jeito mórbido, o fato de que o passar dos anos incha alguns, enquanto reduz outros.

– Larry. – Franco reconhece sua presença.

– Eu conhecia bem o Sean, Frank. – Larry chega mais perto e baixa o tom. – Tentei ficar de olho nele um pouco. Levar pro lado certo – murmura ele, piscando um pouco sob o olhar inabalável de Franco. – Mas ele se meteu com Anton Miller e aquela turma. – Larry agora fala aos sussurros, enquanto os olhos giram para varrer os presentes. – Mas note que ele não está aqui pra prestar seus respeitos.

Franco não teria reconhecido Anton Miller em meio a nenhum dos jovens presentes, porém é bom ter sua ausência confirmada. Certamente há muitos deles. Alguns lhe atiram olhares reverentes e furtivos; outros abrem um meio sorriso presunçoso, como se imaginassem suas chances. Um ano em Londres, outros cinco na Califórnia e outro mundo se desenvolveu em sua ausência. Ou talvez um mundo estranhamente familiar, apenas tripulado por um pessoal diferente.

– Então, enquanto estiver aqui, considere qualquer coisa que eu tenha a sua disposição – diz Larry com uma formalidade reflexiva. – Se quiser o furgão emprestado a qualquer hora, é seu. Se precisar de um lugar pra ficar, é bem-vindo na minha casa.

– Valeu, Larry – observa Franco, ainda correndo os olhos pela multidão –, mas estou bem na casa de minha irmã.

Michael se coloca meio afastado dos grupos, conversando com outro jovem, de olhos duros e com um punhado de anéis de ouro. Franco os vê olhando a jovem, Frances Flanagan. Mas ela não percebe porque está de olhos fixos nele e em Larry. Larry se vira e dá uma piscadela para Frances, acenando para que ela se aproxime.

– A Frances aqui conhecia Sean também – informa Larry enquanto ela se junta a ele –, não é, meu bem?

– Sim. Meus pêsames – ela diz a Franco. Ele reconhece a beleza da garota. Um maxilar anguloso e longo lhe confere uma agudeza e uma intensidade perfeitamente congruentes com seus olhos penetrantes e o verde-esmeralda estranhamente cativante.

– Soube que você estava lá na hora.

Frances olha como se Franco tivesse acabado de dizer que ela está de pé em um campo tomado de minas terrestres. Frank Begbie quase pode ver um filme passar acelerado naqueles olhos expressivos.

– Bom, eu estava e não estava... – diz ela timidamente.

De acordo com Tyrone, mas não do conhecimento da polícia, ela esteve com Sean quando ele estava no quarto, chapado de um coquetel de drogas tão formidável que podia tê-lo destruído se seu adversário não o tivesse apanhado primeiro. Era bem provável, como Frances explica a Franco, que ela tenha despertado, depois desmaiado com Sean, e o encontrou morto em uma poça de sangue, a porta do apartamento destrancada. Compreensivelmente, ela deu o fora e chamou a ambulância.

– Vamos falar sobre isso mais tarde – diz Frances, ciente da proximidade do olhar rapace de Larry.

Franco vê o sentido disso, mas seu cérebro zumbe. A história dela é verdadeira? Ou ela conhece o assassino e o estava protegendo, ou tinha medo dele? Foi ela? Uma briga de amantes por drogas ou dinheiro? Ela é magra e leve, mas Sean estava tão drogado, como disse o policial Notman, que teria sido muito fácil acabar com ele.

– Sim – concorda ele. – Vamos.

– Tudo bem – ela assente. Franco a observa se afastar, juntando-se a outras duas jovens. Certamente é uma garota bonita. Nos Estados Unidos, ela talvez tivesse tomado o ônibus Greyhound para West Hollywood, trabalhado como garçonete por algum tempo enquanto fazia cursos de interpretação e esperava ser descoberta ou casar. Ele pensa nas jovens iguais a ela que conheceu e que estranha moeda de troca a beleza feminina podia ser aqui. Muitas mulheres ficavam agradecidas por tê-la, mas depois se decidiam a gastá-la com a maior rapidez possível. Com mais frequência, era tratada como qualquer outro bônus inesperado, algo a ser consumido antes que outra pessoa pusesse as mãos. Aqui, Frances ia embriagar e drogar sua aparência até transformá-la em um caos exaurido. O desespero parecia grudado nela. Mas então, supôs ele, olhando os presentes, a maioria dos homens fazia o mesmo com suas próprias feições atraentes da juventude e ele foi acometido da consciência súbita de que foi apenas a prisão que o impediu do vexame de virar um bêbado sujo. As pessoas tinham uma vida difícil; elas trabalhavam, ficavam cansadas, em geral deprimidas, e não tinham tempo nem dinheiro para spas, academias ou uma alimentação sensata. Por cima do ombro, ela lança um rápido olhar a Tyrone com o velho amigo de Franco, Nelly. A certa distância, ouve uma mulher dizer algo sobre o lugar estar cheio de “putas, escroques, drogados e bufões”. Parece ser a verdade.

De repente June voltou ao lado dele, apontando para a capela.

– Precisamos entrar.

O serviço fúnebre nada diz a Frank sobre seu filho morto. A preleção do ministro religioso é recheada de lugares-comuns insípidos. Entretanto, para alguns serve de um evidente alívio e conforto; o choro baixo de June se interrompe a intervalos suaves, através da névoa de seus medicamentos, flanqueada como ela está por ele e Michael. Durante todo o procedimento, o lábio inferior de seu segundo filho é solene, seus olhos maculados de uma suspeita soturna. Michael nunca olha para ele, e Franco admite consigo mesmo que não pode culpá-lo em vista de como se desenrolou seu último encontro. Além deles, há muitos rostos antigos. Alguns são amigos verdadeiros, como Mickey e os rapazes da academia de boxe; outros, muitos com quem ele cruzou ao longo dos anos, basicamente parecem acompanhar a solenidade com uma satisfação mal disfarçada.

Junto com June e Michael, ele tem Elspeth, Greg e Olivia dividindo o banco da frente. Joe está sentado atrás deles, parece desmazelado, bêbado e estragado por uma briga. O único alívio das recitações monótonas do ministro vem do celular Tesco; de súbito ele explode em um toque de sanfona, obrigando Franco a atender.

– Sim?

“Está pagando juros demais em seus empréstimos?”, pergunta uma voz de robô. Franco fecha o aparelho, June olha para ele de seu jeito magoado antiquado. Depois é hora de todos saírem. Ele vê Kate, outra de suas ex, ela parece bem, com os dois filhos, Chris, de uns catorze anos, e River, por volta de doze, que é dele. Mais do que qualquer um da prole de Franco, o garoto, que ele nunca viu fora de algumas fotos de bebê que ela lhe enviou na prisão, é parecido com ele de um jeito desconcertante. Ele aperta a mão do garoto, pergunta sobre a escola, diz para ele se esforçar bastante e ser bonzinho com a mãe. É só o que consegue dizer e fica aliviado ao ser interrompido pelo antigo vizinho, Stevie Duncan, e sua mulher Julie. Ele não os vê há anos e é um prazer saber que a mãe de Stevie, a velha sra. Duncan, ainda vive e mora no abrigo em Gordon Court. É aquele em que morreu seu avô Jock. Ele lembra que ela tricotou para ele seu primeiro cachecol verde e branco dos Hibs. Eles são boa gente.

– Ela teria vindo, Frank – Stevie diz a ele, enquanto eles estão na fila para o frio. – São as pernas, ela não consegue ficar de pé por muito tempo.

– Lamento saber disso. Eu adoraria fazer uma visita a ela.

– Ela ia gostar disso, Frank.

O funeral é seguido por uma recepção em um hotel em Leith Links. As pessoas o procuram, muitas mal podem ser reconhecidas como gente dos velhos tempos. Gavin Temperley inchou como um balão.

– Tá uma bela figura, Gav – observa Franco de brincadeira.

– Vivendo direito. – Temperley também sorri com o ar levemente reprimido de desespero.

Depois outra voz no ouvido dele, hesitante e cautelosa.

– Muito bem, Franco...

Ele se vira e vê um homem magro e abatido, com o cabelo seboso e grisalho cor de areia, sob o qual se assentam dois olhos grandes e escuros com pouco brilho, fundos numa cara de uma palidez fantasmagórica.

– Tudo bem... – Franco responde com cautela. – Como estão as coisas?

– Você está vendo, Franco.

Spud Murphy lhe parece tão velho e murcho que, se ele não tivesse falado, Franco não teria conseguido confirmar sua identidade.

– É claro que não pode ser tão ruim assim!

Um sorriso de enforcado repuxa as feições de Spud em uma espécie de animação. Depois elas despencam novamente para o sul.

– Lamento por Sean. É uma cidade ruim, Franco. Tudo mudou. Agora é uma cidade ruim, sabe – alerta Spud.

Franco assente, isso não pode ser contestado. Todas as cidades têm seus lados ruins; esta não é pior nem melhor do que nenhuma outra. Na Califórnia, eles moravam a poucos quilômetros de onde o filho privilegiado de um cineasta recentemente tinha criado um tumulto, matando gente a tiros porque não conseguiu trepar. Felizmente eles não têm armas por aqui, ele pensa com malícia, olhando o coitado do Spud. Apesar da representação no cinema, da política externa militarista e do racismo dissimulado, ele acha que a América de modo geral é um lugar educado se comparado com este, mas eles deixam que loucos comprem armas e isso pode mudar tudo.

Por cima do ombro de Spud, ele vê June, ainda chorosa, reconfortada por Olivia, com Michael olhando, quase indiferente. Franco sente uma estranha reverberação vindo bem do fundo dele. Respire...

Um... dois... três... Quem somos nós...

E pensar que antigamente esta era sua família e estes eram seus amigos do peito do passado. Ele pensa em Mel, Grace e Eve, tenta isolar os detalhes de seus rostos enquanto eles deslizam por sua mente, os amigos Ralph e Juan, até os cunhados e seu agente, Martin, lá, ao sol da Califórnia. E chamam este lugar cinzento de Sunny Leith. Leith Ensolarado. Era bizarro. A vida costumava parecer uma piada sem sentido. Ou você leva a torta na cara, ou tem de rir daqueles que levam.

– É bem verdade, Spud – Franco quase grita, contendo uma gargalhada borbulhante.

Enquanto a bebida bate, cresce exponencialmente a procissão de velhos conhecidos de toda a cidade se chegando nele, cheios de conspirações sussurradas à moda da prisão. São quase dominadoras a conversa vazia e as exortações à violência, a maioria considerando a vingança contra Anton Miller. Ele sente a desolação se esgueirar para seu crânio. Franco respira num ritmo estável, tenta se desligar de tudo. Aquela pressão no cérebro. Destruindo o foco. Desviando o fluxo de pensamento para os antigos canais neurais desastrosos. Ele está pensando em suas cabeças de atores e em mutilações específicas nelas. Em suas telas, aquelas versões clássicas de Dorian Gray, encharcadas de sangue vermelho. Ele fica de olho em Frances Flanagan e quase satisfeito quando Elspeth e Greg aparecem para resgatá-lo.

– Tem um garoto do jornal local aqui, um repórter policial – informa Elspeth a ele.

– É repulsivo que eles não deixem uma família em paz em sua tristeza – reflete Greg, olhando o repórter, vermelho na cara e sujo nas roupas, de pé e sozinho em um canto. Depois ele se vira para um grupo de jovens que vinham lançando olhares para Franco.

Frank Begbie registrou isso também, decidindo que pelo menos alguns tinham de ser da quadrilha de Anton Miller. Ele podia não estar ali, mas ainda assim veria tudo que acontecia.

– Sim – ele concorda.

– Hmm. – Greg lança outro olhar à turma jovem. – Acha que há o perigo de você ser visto como um herói por alguns garotos daqui?

Franco dá de ombros prontamente.

– Eu sou um herói pra alguns garotos daqui – diz ele, parando para olhar Elspeth. – Fui um herói pro meu filho e nunca estive aqui pra ele. Agora ele está em uma cova a sete palmos de terra. E eu não estarei aqui pro filho de outra pessoa também.

Greg vê as sobrancelhas da mulher consternada se arquearem para o teto.

Terry conversa com alguns membros do grupo jovem. Franco o vê brincar tranquilamente com eles, o tempo todo atraindo as namoradas para a conversa, despertando risos enquanto ignora os meninos. O grupo jovem mantém distância de Tyrone, que está no bar, com um aspecto vingativo inquietante pendurado nos ombros largos, como uma capa. E ele está com Nelly, o velho amigo de Franco, que o evita meticulosamente. Está prestes a se aproximar para cumprimentar, talvez dar alguma desculpa a Tyrone, quando de repente Larry está de volta na sua cara.

– E então, Franco, o que mudou na Escócia?

– Os babacas ainda têm dentes estragados, bebem demais, se drogam demais... – Ele olha para Tyrone. – Eles engordaram. Foi isso que mudou.

A cara de Larry se franze em um sorriso.

– Até parece que não existem babacas gordos na América. Foram eles que começaram com toda essa merda de gordura!

– É, agora é um problema global. – Franco sorri, notando uma coisa em Larry que levava as pessoas a evitarem-no. Elspeth e Greg, por exemplo, que escapuliram pelo salão. Ele tem sua utilidade.

– É verdade – argumenta Larry. – Dizem que hoje em dia trezentos milhões de chinas são obesos. Quase tem mais chinas obesos do que americanos de todos os tamanhos, o que significa que fornecem um monte de comida de merda. Não se consegue isso com um tantinho de arroz!

– Já ouviu Chinese Democracy?

– Não existe democracia na China.

– Não, é um álbum do Guns N’ Roses.

– Não.

– Ouve só. É altamente recomendável.

– Tudo bem... e como está a vida na Califórnia, Frank?

Frank Begbie olha dois antigos adversários. Um é Cha Morrison, de Lochend, originário do prédio vizinho àquele onde agora mora June. Com um punhado de anéis de ouro fechados em um copo de cerveja, ele parece o gato que conseguiu o creme. Frank reflete que aquilo de certo modo é uma realização para Cha; veio rir do falecimento de Sean enquanto toma a bebida que foi paga pelo pai, um rival de longa data.

– Tem sido agradável, mas falta alguma coisa – reflete ele. – Como uma guerra.

– Clima meio estranho nesta sala – reconhece Larry.

Frank Begbie lembra-se de que Larry certa vez foi uma vítima da lâmina de Cha Morrison; seu agressor cumpriu pena por isso. Ele sente a pulsação se acelerar. Obriga-se a respirar lentamente e com regularidade, entra ar pelo nariz, sai pela boca. Tranquilo. Fique tranquilo. O melhor momento de bater em alguém é quando ele está puxando a respiração.

– Tudo bem, Frank? – pergunta Larry.

Segue-se então uma calmaria ameaçadora na energia, como na pista de dança de uma boate lotada, pouco antes de o DJ colocar aquela faixa que vai fazer a pista enlouquecer. E ele percebe que o DJ é ele. Todos esperam que ele coloque a música. Para lançar o punho ou a bota, ou jogar o copo, dar a cabeçada, ou até o grito horripilante pelo salão, o que vai acender o lugar.

– Sempre dizem “escute sua reação instintiva” – diz Franco em voz baixa. – Se eu ouvisse meus instintos, nenhum puto nesta sala estaria respirando. – Ele sorri alegremente. – E isso não seria bom – acrescenta ele, olhando para Frances Flanagan.

– É Miller, aquele Anton Miller, Frank – declara Larry. Franco sente os eflúvios de álcool em seu hálito, imagina que ele está se aproximando daquele ciclo de bêbado em que vai repetir o mesmo argumento sem parar. – Ele entrava e saía daquele apartamento. Sean devia a ele, e ele não gostou de Sean andando com a cabeluda ali. – Ele aponta para Frances, que olha fixamente uma fileira de taças de vinho cheias na mesa. – Guarde minhas palavras, Miller é o cara.

– É o que estou ouvindo o tempo todo – diz Begbie.

E então Cha Morrison chega saltitando com um sorriso largo gravado na cara. Ele fede a bebida, evidentemente de uma comemoração que veio antes desta.

– É melhor cremar esse lixo. Assim a doença não pode se espalhar.

Franco pensou que experimentaria um violento surto psicopata com estas palavras, mas não há nada. Ele respira tranquilamente e até sorri para Morrison.

Cha Morrison não previa esta reação e parece verdadeiramente perturbado por ela.

– Alguém poderia tirar essa bichinha daqui? O artista frutinha. – Cha escarnece, desmunheca e faz beicinho, enquanto os corpos começam a se fechar em volta dos dois homens. – Também vai fazer uma pintura, querida? Aaah, amiga, como o clima está te tratando na Califórnia?

– Eu estava meio de saco cheio disso tudo aqui – diz Franco rindo –, mas você me animou um pouco com seu espetáculo de bêbado. Eu até sentia certa falta disso. O clima na Califórnia é bom, muito bom, obrigado por perguntar. O que anda fazendo ultimamente? Abastecendo as prateleiras da Tesco com crianças de escola?

– Seu escroto de merda. – Morrison avança e sente um aperto firme no ombro que o puxa para trás. Ele se vira e vê não só Tyrone, mas também Nelly e os rapazes da academia de boxe.

– Sugiro que você caia fora enquanto ainda pode – propõe Tyrone. Cha resmunga alguma coisa, mas os pugilistas e Nelly já o estão conduzindo para fora, com Franco sendo levado para a direção contrária por Elspeth. Ele tem um vislumbre de Michael, que se aproximou da origem do tumulto.

– Tenho orgulho de você, Frank – está dizendo a irmã –, pelo modo como reagiu com aquele bêbado rancoroso. Nunca pensei que diria isso, mas é verdade.

– Um pouco de autocontrole tem ótimos resultados. – Ele sorri, mas não tira os olhos da porta.

Ele vê Tyrone voltar primeiro, vai para o bar, seguido por Nelly, alguns passos atrás dele.

– Sorte que eu não fui lá fora. – Joe está junto do ombro dele, depois olha para Elspeth. – Eu teria matado o filho da puta...

– Ah, é, soltando seu bafo nele? – Elspeth o desafia e eles começam a brigar.

Felizmente, Mickey e alguns rapazes voltaram para dentro e Franco vai se encontrar com eles, agradecido. Mickey conta o que aconteceu, que eles só mantiveram a paz. Nelly rachou o queixo de Cha, mas depois ele cambaleou para a rua e foi evitado um espancamento brutal.

– Ele jurou vingança contra todo mundo, mas é só papo de bêbado.

– Beleza. Obrigado, Mickey – diz ele, quase com pena de Morrison, por tanto tempo considerado a nêmese que o definia, porém substituído primeiro por Donnelly, depois por Seeker. – Não quero nenhuma cena aqui, hoje não. – Franco dá um tapa em suas costas. – Eu devia agradecer a Tyrone e Nelly. Fui meio impróprio com o gordo da última vez que o vi... – E ele está pronto para fazer as pazes no bar quando vê Frances Flanagan passando os olhos furtivamente pelo salão, depois escapulindo porta afora. Seu comportamento sugere que ela pretende que a saída continue não detectada e vai além da toalete. Ela disse que eles precisavam conversar. Eles fariam isso. Franco pede licença para ir ao banheiro e parte, seguindo-a porta afora, aliviado por escapar deles todos. Ele chega à rua e olha dos dois lados.

Frances parece ter desaparecido na chuva, mas só atravessou para o lado da rua de Links e anda pelo estacionamento. Ele vai atrás dela e a alcança, andando atrás dela. Os olhos dele vão instintivamente a seu traseiro. O movimento ondulante de sua bunda o seduz por um segundo, depois ele se lembra das conversas com Melanie sobre o olhar masculino objetificante e ergue os olhos para ver todo seu corpo. Pensa nos homens olhando para suas filhas desse jeito enquanto elas crescem. O que ele faria? Ele os mataria. Faria picadinho deles. Brindaria à memória de seus olhares com um caneco de seu sangue ainda quente.

Não. Respire. Um. Dois. Três.

Perto de um carvalho grande, ele se coloca ao lado dela.

– Tudo bem?

Ela fica parada e tensa, os olhos assustados se arregalam quando o veem. Depois olha o estacionamento quase deserto.

– Sim...

– Não quer ficar?

– Não. Não com aquele Larry por lá. – Ela olha com desconfiança. – Ele tentou me levar pra casa dele.

– Parece que algumas pessoas levam você pra casa.

Ela o olha de cima a baixo, encontrando sua confiança.

– O que isso quer dizer? O que você tem com isso?

– Como o nosso Sean?

Ele vê que isso a atinge como um soco no estômago.

– Não... ele não era desses. Nós éramos amigos.

Agora é a vez de Frank Begbie sentir algo golpeá-lo à força por dentro. Ele não era desses. Ele pensou que as provocações de Cha Morrison eram aquecimento padrão, mas agora parece que tem alguma base nos fatos. Que jovem ficaria satisfeito em ser “amigo” de uma garota dessas? Mas é tudo demasiado para pensar agora. Ele puxa algum ar para dentro e tenta se refazer.

– Ainda surpreso por você não ter ficado para uma bebidinha. Você gosta de uma bebida, pelo que soube.

– Estou sóbria há três semanas e mesmo que eu bebesse não ficaria com Larry por perto.

– Que tal beber comigo? – sugere Franco, enquanto um ônibus Lothian Transport marrom e branco encosta na rua ao lado do estacionamento. Mais à frente, umas gaivotas sentam-se nos campos de futebol encharcados como se preparassem um ninho. – Quem sabe ter aquela conversa de que estávamos falando?

Frances passa os braços pelo próprio corpo.

– Estou no AA – diz ela, evidentemente decepcionada com o próprio anúncio.

– Eu também. – Franco sorri. – Bom, não o AA, não me dou com reuniões, mas não bebo também. Vamos tomar um café. Mora aqui perto?

– Sim, por aqui – diz ela, assentindo para a nevoenta Links, e eles partem juntos.

Andar com uma jovem, no Leith, leva Franco de volta a uma identidade anterior que ainda transborda de possibilidades, antes de o torno da violência apertar e começar a eliminar suas opções. Apesar de sentir o frio se insinuar no peito, ele está estranhamente em paz, anda na brisa fria como um fantasma: um homem deste lugar, entretanto quase oniricamente desligado dele. Ele a ouve falar, desfrutando dos ritmos tranquilizadores de seu sotaque feminino de Edimburgo, a ênfase que ela dá a algumas palavras como se fosse uma pergunta. É material padrão do AA; sua conversa é pontilhada de termos como jornada e desfecho, mas parece desajeitada e performativa, como uma criança usando roupas de adulto que não cabem nela. A certa altura, ela arqueia uma sobrancelha e pergunta:

– Como você se mantém sóbrio se não vai às reuniões?

– Eu não bebo.

– Mas é uma doença e...

– Doença o cacete – ele zomba. – Isso se chama escolha. Eu tinha escolhido ser um idiota. Agora escolho não ser. É simples. Você vai a essas reuniões e elas são cheias de supostos bebuns sóbrios, ligados de nicotina e cafeína e obcecados pela bebida.

– Mas o que você faz quando sente o impulso?

– Pintura e escultura. Visto meu moletom e vou correr. Ponho uma luva e esmurro um saco de pancada.

Frances fica em silêncio agora e pelo resto do caminho até seu apartamento na Halmyres Street. Depois de uma xícara de café, durante a qual ela vai ficando mais nervosa, mexendo na xícara, Frank Begbie declara:

– Vou comprar alguma coisa pra nós.

– Eu não... – começa ela.

– Depende de você se vai beber ou não – declara ele e sai, desce à loja de bebidas e volta pouco tempo depois com meia dúzia de garrafas de vinho tinto.

– Eu não... – Frances protesta de novo sem tirar os olhos do vinho.

– Você bebe. Você quer um – diz Franco, sentando-se à mesa enquanto abre uma garrafa com um saca-rolha que comprou na loja. – Eu sei disso – E ele serve o vinho em dois copos, porque ela não tem taças. – Um copinho civilizado de vinho – cantarola ele, embora saiba que o seu será só para exibição.

Ela bebeu dois copos e está no terceiro quando percebe que ele não tocou na bebida.

– Não está bebendo?

– Sou meio lento – diz ele.

Frances não é tão lenta. Ela se embriaga, ruborizada de uma confiança bombástica, mas com parte do cérebro ainda reservada para a sobriedade. Esta seria a hora de ela parar, pensa Begbie, enquanto completa o copo de Frances, mas isso não vai acontecer.

– Eles te tratam bem. Não te sacaneiam como os caras mais novos.

Franco ri na cara dela, meneando a cabeça.

– Larry, um saco de doenças, querendo que você vá pra cama com ele. Terry tentando te colocar nas merdas de filmes pornôs dele. Sim, são perfeitos cavalheiros! O grupo jovem deve ser de uns filhos da puta cruéis, é bem verdade!

Isso a afetou. Seus olhos se enchem de uma fúria fixa.

– Isso não é... não é justo! Eles nunca me deixam sozinha. – Ela meneia a cabeça e vira outro grande gole do claret. – Porque eles não te deixam ser...

Ele reconhece o dilema que ela sofre: como a garota bonita no ambiente deles pode estar encurralada de forma semelhante. Como eles tinham um recurso a que se voltar, foram colocados em um pedestal por isso e desestimulados de aprender qualquer outra coisa, jamais poderiam superar, porque o pedestal os aprisionara. Mas outras coisas também podem aprisionar uma pessoa.

– É uma maldição, é isso que é, a bebida. – Franco levanta seu copo cheio. Olha para ele com desprezo, não tem nenhum interesse por seu conteúdo. – O seu velho, Mo, apodreceu dela. Um sujeito legal, mas não conseguia desprezar uma birita. Os velhos genes irlandeses e criado na Escócia... não é uma boa mistura, não é receita para uma vida sóbria.

– Você conheceu meu pai? – Os olhos dela estão grandes, tristes, suplicantes.

– Sim. – Franco pega a garrafa vazia pelo gargalo, seus olhos faíscam de violência. – Bom sujeito, mas a filha dele, não tenho certeza a respeito dela. A última pessoa que viu Sean vivo. Pra mim, isso te enquadra direitinho.

O lábio inferior de Frances treme. Ele levanta a garrafa de vinho e em um movimento súbito a bate na mesa, quebrando-a. O vidro voa pela sala e desperta um arquejar alto de Frances.

– Chegou a hora – ele segura na cara dela o gargalo quebrado da garrafa – de você abrir o verbo.

Frances o olha boquiaberta, num terror atroz. É como se ela percebesse que qualquer outro pesadelo que tenha tido na vida existiu unicamente a fim de prepará-la para este. Ela assente, pega sua bebida e vira na boca. Depois começa a falar em tal compulsão sem fôlego que parece que só outra ameaça de violência pode fazê-la parar.

– Eu e Sean fomos ao apartamento onde ele estava morando e ficamos doidões. Totalmente chapados. De tudo. Ele tomou muito, eu tomei também, mas não tanto quanto ele. Ninguém tomava tanto quanto ele. – Ela esfrega os olhos, depois os arregala. – Eu desmaiei e quando recuperei a consciência encontrei Sean daquele jeito. A porta estava aberta e dei o fora dali. Depois chamei a ambulância do telefone público do posto Esso.

Franco baixa a garrafa quebrada na mesa.

– Por que você fugiu? Por que não telefonou pra polícia?

– Você disse que conheceu meu pai – diz Frances em tom de censura.

Não agrada a Franco o gosto disso, mas ele é obrigado a engolir.

– A porta foi trancada depois que você entrou no apartamento?

– Acho que sim, mas não posso ter certeza. – Ela estremece. Pelo modo como ele a olha, com a mão ainda segurando o gargalo da garrafa quebrada. Parece que ele vai arrancar a cara dela. Frances estende lentamente a mão para a garrafa aberta e intacta, esvaziando o que resta do conteúdo em seu copo.

– Então, se estava trancada, outra pessoa tinha uma chave, ou Sean apareceu e ouviu que tinha gente na porta. Ele sabia quem era e deixou entrar – especula Franco.

– Como eu disse, Sean estava muito mais chapado do que eu. – Frances ri com amargura e o olha nos olhos. É um olhar de apelo e pede outra bebida. Ele coloca a garrafa quebrada na mesa e pega o saca-rolha, abrindo outra para ela. – Duvido que ele conseguisse se levantar do sofá.

– Quem mais tinha a chave do apartamento?

– Fallon deve ter uma – diz ela, levando o copo à boca.

– Quem?

– Fallon. Ele é o senhorio – diz Frances espontaneamente, sentindo o baque satisfatório do anestésico do vinho. – O apartamento é dele. – Ela pega a garrafa que ele abriu e se serve.

– Onde ele mora?

– Não sei. – Frances vira para dentro um copo cheio até a boca como se fosse uma única dose pequena. – Mas sei onde ele toma o brunch toda manhã... no Valvona & Crolla, no alto da Walk – diz ela e olha o copo dele. – Não vai tomar essa bebida?

– Tome você, eu não bebo.

Ela puxa o copo dele e o olha fixamente, embora exista uma garrafa quase cheia ao lado de Franco.

– Não vai me dizer que eu não devia fazer isso. – Ela de repente ri.

– Faça a merda que quiser – responde ele. – Não estou nem aí.

– Eu sei que não. – Ela ri com desprezo. – Mas pelo menos você não finge. Não como os outros. Pelo menos você é sincero, porra.

Franco ergue as sobrancelhas. A carga de vinho agora a colocou em um lugar além do medo. A garota está condenada.

– Mais uma coisa. Quem você acha que entrou e meteu a faca nele?

– Não sei.

– Anton Miller?

– Não... – diz ela e ele está enganado sobre o efeito do vinho porque Frances está incapacitada pelo pavor, apesar do encorajamento da bebida. – Eu não sei. Sinceramente, eu estava doidona. Sinceramente eu não sei. – E ela então chora, o rosto inchado da bebida e das lágrimas. – Sean era meu amigo, era o melhor amigo que eu já tive!

E Frank Begbie deixa Frances Flanagan com seu vinho e a sensação de que tudo que ela lhe disse é a verdade absoluta.


19
AS MENSAGENS DE TEXTO

Ovento tinha apertado um pouco e a neblina soprava do norte do estado. No deque dos fundos, Melanie Francis espreguiça, depois malha os braços com pesos de um quilo e meio presos com velcro nos pulsos, completando uma série inflamada de exercícios. Ao terminar a rotina, ela vai para a cozinha, procura no telefone sinais de ligações recebidas. Uma da mãe, mas ainda nada de Jim. Os relâmpagos do pânico começam a estourar em seu peito.

Melanie sente que decepcionou muito Jim quando telefonou para a polícia. Se tivesse explicado como a provação do estupro de Paula pesava nela, talvez ele tivesse compreendido. Mas isto se mostrou um erro e agora ela havia permitido que Harry, com seus planos antigos e mal reprimidos entrasse na vida deles. O lugar dele não era ali. Só das meninas e de Jim.

Sua mente dispara de volta à noite de abertura daquela exposição na Fruitmarket Gallery em Edimburgo. Todos estavam eufóricos com seu sucesso, beberam vinho e conversaram. De súbito ela percebeu que Jim, cuja obra tinha recebido a maior parte dos elogios, não estava em lugar nenhum. Por um segundo terrível, ela pensou, apesar da tornozeleira que ele usava, que ele tinha usado a exposição como uma fachada para fugir. Mas ela foi à saída de incêndio e ele estava ali, na escada.

Quando Melanie perguntou o que ele fazia, sozinho naquele lugar frio na semiescuridão, ele a olhou como quem diz estava esperando por você. Mas o que ele falou, com uma convicção discreta, foi que aquele era o melhor dia da vida dele. Depois seu olhar ficou ao mesmo tempo indagativo e agudo enquanto ele sussurrava: “Deve ser pedir demais, mas só tem uma coisa que o tornaria ainda melhor”, e ele fechou os olhos.

Foi aí que Melanie o beijou na boca. Era só o que podia fazer. Era só nele que ela esteve pensando. Foi o beijo mais íntimo que ela já teve: simples, delicioso, uma viagem. Os olhos dele continuaram fechados e os dela também. Quando eles ouviram um barulho da galeria e se afastaram, ele sorriu e falou.

– Obrigado.

– O prazer é meu – insistiu ela e os dois apertaram-se as mãos e voltaram para a festa.

O Parceiro de Dança, a pintura de um Craig Liddel sereno, parecendo Jesus, foi vendida. Ela o ouviu falar com os colecionadores ricos que pagaram muito pela tela. Eram uma dupla de marido e mulher meio jovens. A mulher usava um vestido de festa azul e cintilante.

– Esse homem que você matou, como você sabe que ele teria se transformado nesta figura santificada?

– Não sei, mas não se trata do que ele possa ter feito ou não. Ao matá-lo, fiz desta pergunta uma questão de especulação. Trata-se do que eu faço agora. Para tirar a vida dele, tive de desumanizar a nós dois. Para salvar minha vida, agora tenho de nos reumanizar. Não é nada fácil de fazer – disse ele, calmo e sincero. – É uma batalha que tenho de travar todo dia.

Francis James Begbie.

Ela foi à procura do número de Elspeth, mas não havia nada escrito no bloco, ele deve ter digitado diretamente no iPhone. Depois, quando Melanie baixava o celular na mesa de centro, uma série de mensagens de texto jorrou na tela, ou melhor, as mesmas três mensagens, repetidas:

Este é meu novo número.
Perdi meu iPhone.
No funeral – eu te amo – me ligue quando receber esta.

Melanie ligou para o número. Ele atendeu prontamente.

– Jim... eu estava ficando meio preocupada... as mensagens chegaram todas de uma vez... como foi o funeral?

– É tão bom ouvir sua voz! Aquela merda de telefone! – Jim suspira na linha, deliciado. – Foi tudo bem no funeral... é ótimo me livrar daquilo. Agora não vou ficar muito tempo. Só quero ver algumas pessoas...

Intimamente, Melanie se debateu se contava ou não a respeito de Harry e o corpo de Santiago, retirado do mar. Jim tinha o direito de saber, mas a confusão foi dela e a imposição também. É injusto aumentar o nível de estresse dele agora. Enquanto ela escuta a pronúncia escocesa regenerada na voz dele, pensa ouvir uma batida na porta, depois tem consciência de um farfalhar do lado de fora assim que a linha fica muda. Ela liga de novo para o número de Jim e vai até a porta. Desta vez só há um bipe alto e contínuo do telefone enquanto ela abre e olha para fora.

Não tem ninguém ali.

Em seguida, perto da garagem, tentando ver o estúdio de Jim, está a figura de um homem, de costas para ela na luz mortiça. A primeira coisa que passa por sua cabeça: É Harry... e ela se deprime.

Depois ele se vira e olha para ela.

Não é Harry, é Martin, o agente de Jim.

– Oi, Melanie – diz ele.


20
O SENHORIO

Frank Begbie deixou Frances Flanagan e foi a pé até o centro da cidade para pegar um bonde. Tinha acabado de subir e se acomodar quando o celular Tesco morreu. Foi ótimo ouvir a voz de Melanie, mas, para fúria dele, a ligação foi interrompida quase imediatamente. Ele gritou “CARALHO!”, chamando a atenção de uma velhinha de cara azeda, antes de respirar fundo e abrir um sorriso amarelo e forçado para ela.

Ele passou a desmontar o telefone, percebendo que a bateria deve ter se soltado do suporte. Ao retirá-la, colocou o dispositivo na boca e um pouco abaixo de uma das cavilhas, puxando para fora. Ele sentiu o chip esmaltado por baixo dos dentes, mas quando ele soltou, a cavilha estava mais para fora e a bateria reinserida parecia presa de um jeito ainda mais firme.

Quando chegou à casa de Elspeth, optou por ir para o quarto depois do jantar e colocou o telefone para carregar. Pegou seu Kindle e começou a ler Laranja mecânica. O sono rapidamente o dominou e ele desfrutou da noite mais tranquila e repousante que teve desde seu retorno à Escócia.

No dia seguinte acordou cedo, piscando para uma fraca luz matinal que se infiltrava pelas cortinas finas. O quarto estava frio; a temperatura tinha caído durante a noite. O celular Tesco estava carregado, piscando para ele numa sedução verde. Ele o pega e liga para Melanie, pensando que provavelmente ela ainda estará acordada, curtindo algum trabalho ou relaxamento com as meninas adormecidas. De imediato uma voz diz que ele precisa comprar crédito para fazer uma ligação transatlântica.

– Vai se foder com sua ligação transatlântica, seu merda – responde ele para a voz robotizada impassível. Porém, ele tinha crédito suficiente para ligar para Larry. – Preciso do furgão emprestado. Como você ofereceu no funeral.

O silêncio de Larry sinaliza para Franco que Larry tenta esconder a irritação por ele ter aceitado uma oferta feita sob a onerosa liberdade do álcool. Por fim ele responde, tossindo sua relutância.

– Claro... venha aqui. – E lhe dá o endereço. Franco passa a alça da bolsa esportiva no ombro, porque espera ir à academia de boxe mais tarde, e vai para a casa do amigo em Marchmont.

O maior choque é o apartamento de Larry. É espaçoso e luxuoso. Devia haver muito mais dinheiro no tráfico de drogas de Edimburgo do que ele pensava. Larry está de ressaca e entrega de má vontade as chaves a Franco.

– Tudo bem... mas cuide bem dele... não dirija do lado errado da rua – diz ele num ânimo forçado.

É libertador estar motorizado de novo e a primeira parada de Franco é no Leith. Passando pela Leith Academy, ele mais uma vez se lembra de seus torturantes dias de dislexia ali. Hetherington logo desistiu dele, tirando um ou outro comentário desdenhoso para ridicularizá-lo, como “Não vamos pedir para Francis ler. Afinal, só temos dois períodos, e não dois dias”; o riso tinha eco em seus ouvidos e ele sentiu a fúria crescer no íntimo, enquanto reprimia sua explosão. Sua mente vaga para o dia em que o professor pediu a Mark Renton para fazer as honras. “Não”, dissera Renton.

– Como é? O que quer dizer com “não”, Renton?

– Não vou ler.

– Por que não?

– Não estou com vontade – disse ele, enquanto o riso explodia na turma.

– Muito bem, vou lhe dar motivo para ter vontade. – A voz de Hetherington ficou alta e ele retirou o cinto da primeira gaveta. – Leia o trecho, Renton – ordenou ele.

Mark Renton manteve os olhos concentrados na carteira.

– Não.

– Muito bem, venha cá!

Renton levantou-se e se aproximou, de mãos estendidas, uma por cima da outra, para receber quatro chibatadas. A cada pancada, Frank Begbie olhava de dentes trincados. Renton tinha um meio sorriso que confessava a dor intensa; entretanto, deixava claro que ele considerava toda a coisa cômica e ridícula. Ele se sentou sobre as mãos doloridas.

– Babaca – sussurrou ele para os ouvidos apenas de Franco. Frank Begbie sabia que o gesto de Mark Renton foi de solidariedade para com ele. Depois disso, passou a adorar Renton e teria feito qualquer coisa por ele. Foram amigos inseparáveis. Porém, tudo correu muito mal entre os dois. Drogas. Elas pegaram Renton, como pegaram Sean.

Na Tesco da Duke Street, ele comprou 30 libras de crédito para o celular. O vendedor, desta vez outro, olhou-o como se ele fosse louco. Ele disca diretamente para Melanie e houve uma voz americana: “Não foi possível efetuar a ligação neste momento; por favor, tente novamente mais tarde.”

– Vai se foder, babaca! – De novo ele vomita para o telefone e depois, olhando o vendedor, fica parado e faz seus exercícios de respiração. A vida pode te atingir com mil cortes ou apenas com um ataque ensandecido.

Gordon Court é outra pista da memória de suas andanças. Agnes Duncan fica feliz ao vê-lo, já fazia muito tempo. A velha frágil expressa seu pesar pela morte do filho de Frank, mas fica deliciada quando ele lhe mostra uma fotografia das meninas. Está meio arranhada por ter ficado na carteira, mas, como aquelas no celular agora estão no esgoto da cidade, esta é sua única opção, como ele explica a ela.

– Ah, sim, outra má notícia – diz ela.

As más notícias parecem não dar trégua a Ross Fallon. Vários anos atrás, a morte de um jovem numa festa em sua casa deu origem a uma farra dos tabloides, abastecida depois pelas revelações sensacionalistas de garotos de programa mercenários. Frank Begbie lembra-se vagamente de ler sobre isso.

Este homem de negócios e um dia possível candidato conservador ao Parlamento de Edimburgo (o que na Escócia significa pouco mais do que um status de um ninguém) ficou ainda mais maculado desde então. O sujeito corpulento que devorava sua comida no Valvona & Crolla não parece pouco à vontade com sua massa gourmet e a taça de vinho branco. A informação de Frances Flanagan sobre o modus operandi de seus brunches era certa.

Frank Begbie se posiciona em uma mesa próxima, observando Fallon devorar a comida. Ele nem acredita nos aromas e na gama de vegetais neste lugar maravilhoso, por onde ele passou mil vezes e jamais pôs os pés. Porque se supunha que não era lugar para gente como ele. Ele especula como sua cidade natal pode ser diferente para alguém que habitualmente faz compras no Valvona & Crolla, e não no Scotmid.

Quando a garçonete se aproxima, Franco pergunta sobre a possibilidade de uma omelete só de claras e ela o olha como se ele tivesse duas cabeças. Ele se conforma com um café da manhã vegetariano, de que desfruta muito, despachando-o rapidamente, sentado atrás do Scotsman. Ele ouvira Greg mencionar que o jornal mudou-se da sede vitrine construída sob encomenda, perto do Parlamento escocês, para um armário de vassouras em Orchard Brae. De fato, o jornal tem o tom surrado e castigado e o conteúdo depressivo de uma publicação em seus estertores. Cada matéria parece ou indecisa e infundada, ou desesperadamente exagerada, como se o jornal se afogasse na própria inutilidade, de vez em quando tomado de surtos repentinos e apavorados de consciência. Ele vai para a seção de esporte, mas as façanhas dos clubes de primeira divisão de Edimburgo não são animadoras. Fallon fica ali sentado por um bom tempo, ele próprio lendo o Financial Times. Esses babacas não têm nada para fazer?, pergunta-se ele, percebendo que quase não sentia falta de seu estúdio. Ocorre a ele a ideia de até que ponto ele gosta de levar adiante as coisas.

Enfim, Fallon mexe o corpanzil e se levanta ruidosamente da cadeira para pagar a conta. Frank Begbie faz o mesmo e o segue até seu carro, depois entra no furgão. Enquanto segue o senhorio, não é bem dirigir do lado esquerdo da rua que ele acha estranho, mas o ato de estar sentado ali, no veículo. Fallon sai da cidade, Franco o segue até uma mansão nos arredores de Haddington. Vendo-o desaparecer pela entrada de carros, Franco deixa que ele entre, depois percorre a entrada a pé e bate na porta. Quando Fallon atende, Frank Begbie explode e força a entrada na casa.

– Fallon, como senhorio você alugou um apartamento para Sean Begbie, não foi?

– Mas que merda é essa? – protesta Fallon. – Não pode entrar aqui...

– Já entrei, então sua declaração não tem sentido nenhum, caralho – diz Franco, indo para a sala da frente.

– Saia daqui ou vou chamar a polícia!

– Fique à vontade. – Franco pega um pesado cinzeiro de vidro na mesa de centro.

Ele vê Fallon hesitar. Seus instintos estão certos: o sujeito não quer a polícia envolvida em seus negócios.

– Então, perdeu a vontade de chamar a polícia? – ele provoca.

– Quem é você, porra?

Franco se vira e segura o cinzeiro no alto, na luz. Parece se esforçar para enxergar alguma coisa através do vidro azul.

– O peso dessas coisas. – Seus olhos voltam-se rapidamente para Fallon.

Fallon arqueja, olha o cinzeiro, depois a encarada firme de Frank Begbie.

– Por favor... não quero problema nenhum... o que você quer...?

– Você alugou um apartamento para Sean Begbie – repete Franco, batendo o cinzeiro na palma da mão.

– Não... não... aluguei para Arbie... não sabia que ele tinha sublocado para Sean, nem para mais ninguém!

Outro nome. Arbie.

– Então, você conhecia Sean?

– Vagamente... por intermédio de Arbie e uns outros... eles andavam juntos.

Os olhos de Franco flamejam, mas para Ross Fallon eles parecem engastados em fendas profundas. Parecem dois trens que se aproximam em túneis ferroviários vizinhos. Depois Begbie baixa o tom quase a um sussurro.

– Você tava comendo ele?

Fallon demonstra ficar escandalizado.

– Não! – ele grita, depois resvala em um tom confessional. – Tive meninos aqui, para festas. Foi tudo muito inofensivo, mas eles sacanearam, roubando, essas coisas. Eu fui burro... estava solitário...

– Não estou nem aí se você é solitário ou não!

– Sean e eu nunca... é sério!

Franco pensa nisso. Provavelmente não há um motivo verdadeiro para ele mentir.

– Frances Flanagan, ela esteve aqui, não é?

– Sim.

– Anton Miller?

Fallon treme visivelmente ao ouvir este nome.

– Tudo bem, vou tomar isto como um sim. – Franco cospe as palavras. – E esse tal de Arbie, onde ele mora?

– Gorgie. Saiu da prisão há pouco tempo.

– Me dê o endereço dele. Nem pense em avisá-lo, ou voltarei aqui. – Franco baixa seu cinzeiro na mesa. Olha pela janela, depois alisa a cortina entre o polegar e o indicador, falando num tom despreendido e pragmático, como quem se dirige ao tecido que tem na mão. – Eles vão conseguir remontar a sua cara toda depois que eu acabar. – De súbito ele vira o pescoço, os olhos frios avaliam o senhorio. – Mas será um processo longo e doloroso e nunca mais será a mesma. – E suas sobrancelhas se erguem, como se de fato estimassem o tamanho da tarefa que terá o cirurgião.

A mão trêmula de Fallon pega uma caneta e escreve o endereço em um bloco. Ele arranca a folha e passa a Frank Begbie. O endereço parece conhecido.

Franco leva quase uma hora para chegar a Gorgie, com o trânsito pesado. Depois fica espantado ao se encontrar batendo na porta de um apartamento do segundo andar da Gorgie Road, na mesma rua e no mesmo prédio onde Sean encontrou seu fim. Foi fácil intimidar Fallon. Ele achara que seria assim logo que botou os olhos naquele gordão de olhos lacrimosos. Não sabia se a mesma tática daria os mesmos resultados impressionantes com esse tal de Arbie, quem quer que ele fosse.

Uma segunda batida mais forte, e um homem de cabelos brancos e barba atende à porta. Com a pele fibrosa da cor de mingau, ele parece bater ponto em presídio. Franco não consegue situar o nome nem o rosto, mas Arbie demonstra algum reconhecimento dele.

– Sim?

– Oi, Arbie.

– Eu te conheço? – O rosto de Arbie se contorce em um esgar ameaçador.

As feições do próprio Franco continuam glaciais.

– Sabe quem é sua família?

– Sei... – diz Arbie, hesitante.

Um cenário familiar se desenrola para Frank Begbie. É um tipo de dominância que ele sempre achou sedutor; sentir que é capaz de extrair o poder e a certeza dos outros homens durões. Algo em seu íntimo queima com esta confirmação. Mas é importante não sucumbir a esta emoção. Não elevar a voz. Os psicoterapeutas o treinaram, não para eliminar este espírito – ele levou muitos a acreditar nisso –, mas para simplesmente direcioná-lo. Um... dois... três... Ele respira com regularidade pelo nariz.

– Sabe quem são os seus bons parceiros?

– Sei... um pouco...

– Bom, você saberá que não sou um deles; então, se me conhece, não seremos íntimos – diz Franco, vendo a resistência do homem virar farelo. – Quero saber sobre Sean Begbie.

Arbie olha a escada por cima do ombro.

– Então é melhor você entrar.

A não ser que estivesse em uma fúria cega, Frank Begbie costumava pegar no pé dos valentões. Não porque fosse uma espécie de protetor ou vingador. Na verdade, ele detestava mais os fracos idiotas que nunca os enfrentavam do que os próprios opressores. Ele se lembra de uma ocasião, quando, depois de espancar um agressor, a empolgação da vítima indicou que ela acreditava que a violência de Begbie fora empreendida por sua causa, ou por um conceito abstrato de justiça. Begbie então espancou o imbecil, para garantir que soubesse que a brutalidade aconteceu puramente por satisfação própria. Que ele só preferia atacar com ferocidade os tiranos porque isso os mudava mais. Aos olhos dele, os fracos já estavam derrotados pelo medo. Então não havia euforia verdadeira em espancá-los. Mas ver a confiança e o poder do valentão evaporando e ser testemunha desta mudança: isto era infalivelmente um prazer.

É o que ele sente agora com Arbie.

Agnes Duncan tinha boas cartas em seu jogo de trunfo com Rita Reilly e Mary Henderson, mas ela desiste, estava ficando entediada e exasperada com a atividade. É um problema que os jogos de cartas repetidos tendem a induzir nela. Em vez disso, Agnes opta por voltar ao tricô. Ela tem certeza de ter deixado seis agulhas de fora, mas só cinco estão ali. Sua memória faz isso quando você envelhece, costuma pregar-lhe essas peças irritantes.


21
O VELHO CÚMPLICE

Franco teve uma conversa frutífera com Arbie, depois foi para a academia de boxe. Completou uma série de afundos, agachamentos, burpees e flexões, o básico dos tempos na prisão, depois se sujeitou a algumas rotinas punitivas na bola medicinal que ele sabia que sentiria no dia seguinte. Em seguida, subiu no ringue para três assaltos com Mickey. Depois disso, esmurrou os sacos em outras seis rodadas catárticas.

Alguns rapazes disseram que teve gente procurando por ele. Sendo essa gente Anton Miller. Assim, ele se deixaria ser encontrado. Ele ouviu falar muito sobre Miller, as armas, os tiroteios de carro, para acreditar que se o jovem gângster realmente o quisesse morto seria provável que ele já tivesse se unido a seu primogênito. Estava na hora de encontrar Anton.

Ele entra em uma espelunca em Canonmills, muito conhecida de um certo grupo, mas em geral evitada pelo público em geral. É um pub subestimado, escondido em uma transversal com calçamento de pedra, um lugar frequentado por várias gerações de bandidos de Edimburgo com o passar dos anos. Ainda é o início da tarde e o lugar está deserto, exceto por dois homens mais velhos que jogam dominó, apostando moedas, e uma garçonete no início dos vinte anos. Ela lhe entrega uma água com gás e limão, não quer cobrar pela bebida, mas ainda assim ele deixa uma libra no balcão.

O televisor do pub mostra o porta-voz insípido e esnobe que foi reeleito. Fala com maneiras conciliatórias de uma só nação, enquanto planeja cortes maciços nos serviços públicos para os pobres, revogando a Lei de Direitos Humanos e recuperando a caça à raposa para os ricos. As pessoas guardam deferência pelo poder. Você só precisa fazer o barulho certo.

Ele cumprimenta os coroas com um gesto de cabeça. Eles têm a cara amarrada e cuidadosamente neutra de quem já viu de tudo de ex-presidiários, e Franco, sem dúvida, conhece um deles, mas só consegue situar os olhos em seu semblante genérico envelhecido. Ele dá uma piscadela e lhes mostra o polegar erguido, recebendo uma resposta semelhante.

Uma figura sem dúvida conhecida entra no bar, com seu andar de pernas quase arqueadas. Nelly nem mesmo falou com ele no funeral, mas interferiu para expulsar Cha Morrison. Agora está sentado ao lado de Franco na banqueta vizinha do balcão. Está maior e mais pesado do que antes, Frank Begbie vê no espelho, enquanto seu velho amigo tira a jaqueta de couro. Um pit-bull em forma de homem, trincado de esteroides, que malha pesado.

– Franco.

– Obrigado por ir ao funeral. – Frank Begbie vira o rosto para o companheiro de outros tempos. – Desculpe-me por ter saído cedo, antes de termos a oportunidade de conversar. E obrigado por se livrar de Morrison. Não deu em nada comigo, mas perturbou alguns da família.

– Ele é bocudo. Sempre foi.

Franco não está interessado em falar de Cha Morrison, nem de outra coisa com Nelly. É Anton que ele quer encontrar.

– Escute, amigo, é bom te ver e tudo, mas pra falar com sinceridade não estou a fim de fazer uma social.

– Nem eu – responde Nelly num tom sombrio. – Tyrone quer ver você, Frank.

– Ah, é?

– Podemos fazer isso do jeito fácil, ou do jeito difícil. – Nelly se levanta, ondulando de músculos, enquanto a garçonete dá alguns passos discretos de volta ao caixa.

– Vou te dizer uma coisa... – fala Frank Begbie, levantando as mãos em um gesto de rendição – vai ser do jeito fácil, há muito tempo que superei essas coisas de caubói. Além disso – ele ri, apertando o bíceps de Nelly –, não levo fé nas minhas chances. Você está ótimo, amigão!

– Beleza, cara. – Nelly sorri. – É, estive me cuidando. – Ele cora de orgulho. – Você também – diz ele olhando para Franco de cima a baixo, apreciando. – Mas não tem pressa. – E ele olha a garçonete e pede um caneco de lager. – Não está bebendo?

– Larguei a birita já faz algum tempo. É bom pra enxergar as coisas com mais clareza. – Franco sorri, depois aponta para os banheiros com a cabeça. – Volto num minuto, vou dar uma mijada.

– Não vá fugir – Nelly o repreende.

– Você me acharia. – Franco ri, apontando para ele.

– Pode contar com isso.

Franco vai ao banheiro. Esvazia a bexiga e pensa nos velhos tempos com Nelly. Eles sempre tiveram uma rivalidade, às vezes amistosa, em outras ocasiões nem tanto, desde que ambos eram garotos no Leith. Depois disso, nem trabalhar juntos como agentes de Tyrone diminuiu o caráter competitivo entre os dois. Bom, agora ele estava fora de tudo isso. O campo era todo de Nelly.

Ao balcão, Nelly está sossegado com seu caneco de Stella, desfrutando dos dois primeiros goles gelados. Sente algo nas costas, como uma picada de inseto. Arde mais fundo, depois ele vê o terror nos olhos da garçonete diante dele. Ele tenta se levantar, mas um braço se fechou em seu pescoço e a dor fica mais intensa, rasgando seu íntimo. À medida que o braço relaxa, a cabeça de Nelly fica turva e ele desaba no chão, o sangue escorre no piso frio.

Frank Begbie retira a agulha de tricô ensanguentada, com sua ponta afiada.

– Mudei de ideia. – Ele escarnece da figura prostrada e sangrenta. – Vamos fazer do jeito difícil.

Ele olha a garota apavorada atrás do balcão.

– Chame uma ambulância, não a polícia. Rápido, porque furei o fígado dele. – Ele pensa na precisão tranquila de fazer as coisas. Fica assombrado com o amadorismo (apesar de muito entusiasmado) que teve em sua vida anterior, dando vazão à mera agressão em vez de ter um projeto calculado.

Depois Frank Begbie agita uma nota de cinco libras na frente dos dois caras velhos e pisca, colocando-a no bolso daquele que lhe é mais familiar.

– Tranquilo, Franco – diz o velho bandido alegremente, como se tivesse acabado de apostar em alguns cavalos.

Sim, ele queria ser encontrado, mas não por Tyrone, e ele olha para Nelly, agora semiconsciente e gemendo a seus pés.

– Adiós, amigo. – E ele rapidamente sai pela porta e ganha a rua fria e cinzenta.


22
O AUTOCONTROLE

Naquela manhã, depois de deixar Melanie, Grace e Eve, Jim voltou de carro direto para a praia. Preferiu tocar Appetite for Destruction do Guns N’ Roses no som do carro, em vez de Mahler. A picape dos homens estava estacionada no mesmo lugar e ele parou a cerca de vinte metros de sua traseira. Não havia ninguém dentro. Em seguida, do deque de observação construído em pedra ele correu os olhos pela margem da praia e os avistou na areia ainda deserta. Estavam se afastando na direção do promontório rochoso de Goleta Point. Em vez de segui-los de imediato, ele voltou à picape Silverado amassada dos dois. Pegou a faca de caça produzida no Alasca Alpha Wolf na jaqueta de brim, meteu no cinto, depois tirou a jaqueta e enrolou na mão, quebrando a janela lateral da picape.

Enquanto o vidro se espatifava, ele olhou para o grupo de construções a apenas 50 metros dali. Melanie havia dito que abrigavam as instalações de biologia marinha da universidade. Mas era o fim de semana do Dia da Independência e os prédios estavam vazios, nenhum veículo estacionado na frente. Ele entrou na picape. Estava cheia de lixo: embalagens velhas, latas vazias de cerveja e refrigerante. Porém, no porta-luvas, havia uma pistola. Jim pensou que entendia pouco de armas de fogo, só em uma ocasião teve uma delas na mão, mas percebeu, por sua leitura de livros sobre crimes reais na biblioteca da penitenciária, que se tratava de uma Glock semiautomática. Era mais leve do que ele imaginava. Ele retirou o pente. Estava carregado com oito balas. Ele apontou a arma para o painel, puxou a trava de segurança. Depois colocou a pistola no bolso da jaqueta, guardando ali também a faca.

A perna, aquele membro avariado que não tinha se curado direito desde o acidente em que ele fora atingido por um carro ao correr atrás de Mark Renton, o reteve enquanto ele andava pelo alto do penhasco até as pedras de Goleta Point. Aproximando-se deles pelo alto e por trás, ele podia garantir que na praia não estavam presentes nem os catadores de praia, nem estudantes solitários e desgarrados antes de ele atacar. O timing era tudo. Eles tinham virado pelo canto do pontal de pedra, e a maré subia rapidamente. Jim apertou o passo; parecia que quanto mais rápido ele ficava, menos percebia a perna. De seu ponto de observação no penhasco, no alto, ele acompanhou o movimento dos homens entre duas das pedras maiores no final da extremidade irregular, que se estendia para o oceano Pacífico como um píer quebrado e pequeno. Dava uma cobertura perfeita, protegendo-os de quaisquer olhos acima, enquanto o mar avançava.

Ele desceu à areia e pelo alto das pedras, até se colocar acima deles. Rapidamente, Jim olhou os penhascos, depois a praia, na direção de Devereux Slough; tudo liberado, depois a sua atenção se fixou inteiramente nos homens, enquanto avançava para o campo de visão deles. Os dois estavam absortos porque o louro tinha um caranguejo na faca; ele o havia apunhalado através da casca, e o animal se contorcia nos estertores da morte. Parecia um caranguejo vermelho, com sua carapaça cor de tijolo e manchas cor de ferrugem no ventre branco. Ele passara a identificar as diferentes espécies de vida marinha nas excursões com as crianças.

– Acha que ele sabe que vai morrer? – Ele apontou para o caranguejo.

Os dois homens levantaram a cabeça ao mesmo tempo, vendo-o parado acima, na pedra grande. Deram um passo para trás quando Jim pulou para baixo, pousando diante deles na areia macia.

– Que merda é essa? – disse o mais baixo, o louro, Damien Coover. – Olha, a gente não quer problemas...

Jim Francis sacou a arma.

– Tarde demais pra isso, porra. – Ele avançou e apertou o gatilho. Soou um disparo, depois um estalo, as gaivotas levantaram voo aos gritos enquanto Coover caía, tombava nas pedras e na areia. Ele gritou de agonia, contra o barulho do mar, as ondas disparando nas pedras. Jim olhou o oceano, não viu barco nenhum, apenas Holly, a plataforma de petróleo, longe, no horizonte a sua direita. O outro homem, Marcello Santiago, recuava para a face rochosa imensa e escura, com a maré tomando seus tornozelos.

– Peraí, cara... olha...

Jim o ignorou, olhou brevemente para trás, ninguém, tudo ainda limpeza, depois voltou aos homens. Coover gemia baixinho, agarrando a perna. Jim viu que tinha conseguido atirar acima da rótula. O sangue atravessava o brim, caía na pedra e penetrava na areia e na água salgada.

– Nunca atirei em ninguém – disse Jim Francis. – É como eu pensei que seria. Não há prazer nenhum nisso. Uma merda de arma de fogo da porra de um babaca. – Ele meneou a cabeça, olhou para Coover com extrema decepção.

– Minha perna, caralho... – Coover gemeu para Santiago, que não tirava os olhos de Jim.

Jim retirou a faca do caranguejo. Colocou a criatura em uma pedra achatada e a esmagou com o salto da bota. Santiago ainda o olhava, confuso, tentava avaliar como aquilo se desenrolaria.

– Diversão – disse Jim, lendo os pensamentos dele. Ele colocou a arma em cima da pedra, junto do que restava do caranguejo. Olhou a lâmina comprida e lisa da faca. – Bonita – acrescentou ele, depois tirou a própria arma do bolso. – A minha é uma Alpha Wolf, produzida no Alasca. Não tem uma lâmina tão comprida quanto a sua, mas tem uma ótima pegada no cabo e essa borda convexa reduz o arrasto. Vamos nessa. – E ele jogou a faca de Santiago na areia diante dele, convidando-o a avançar.

– Não, cara, peraí...

Mas Jim já investia para o homem. Santiago combateu o medo e pegou a arma, levantando a cabeça enquanto Jim desferia um golpe de baixo para cima, abrindo seu rosto no queixo, a pele virando uma aba sobre o osso. Santiago o atacou, desequilibrou-se e Jim investiu para ele, derrubou-o, pulou em cima de Santiago, cravando a lâmina em sua coxa e os dentes no pulso do adversário, enquanto o sangue jorrava do braço e da perna e Santiago deixava cair a faca. Com a Alpha Wolf enterrada no osso da coxa do homem, Jim pegou a arma largada e a desceu no pescoço do combatente. Mais sangue esguichou no ar, depois o segundo golpe de Jim cravou a lâmina pelo crânio do homem. Ele teve de segurar a cabeça de Santiago com o pé a fim de recuperar a faca para o terceiro golpe planejado. Mais uma vez, ele não viria, e ele se virou, vendo Coover pulando pelas pedras, partia para a arma, e foi em sua perseguição.

– O manco está chegando... – Ele olhou com malícia, enquanto alcançava sua presa. Agachando-se, sem interromper o passo, ele pegou uma pedra e bateu na cabeça de Coover, por trás.

Damien Coover caiu prostrado nas pedras achatadas, tonto, mas conseguindo rolar, levantou as mãos enquanto Jim montava nele com a pedra erguida.

– Não, por favor... – ele implorou, de olhos entreabertos, esperando pelo golpe seguinte.

– Quando você machuca um filho da puta – disse Jim, no rosto uma carranca fixa e grave, assentindo para a figura imóvel de Santiago, que sangrava na areia –, é seu dever tirar prazer disso. Caso contrário, o que você fez não vale porra nenhuma. Não significa nada.

– Por favor...

A pedra desceu e esmagou a ponte do nariz de Coover, espatifando-a em um estalo de osso e uma explosão de sangue. Coover soltou um grito agudo, seguido por um gemido longo e triste.

– Você teria prazer de machucar minha mulher e minhas filhas? – perguntou Jim, olhando para cima, para o alto do pequeno penhasco, depois a praia a sua esquerda. – O que você teria feito com elas? Diga!

– Não, a gente estava... a gente estava...

– Vocês não estavam nada – disse Jim com frieza, descendo a pedra na cabeça de Coover com outro estalo. – O QUE ME DIZ, SEU MERDA?!

– Não... – gemeu Coover.

– O QUE VOCÊ ME DIZ?!

– Não, por favor...

Ele sussurrou no ouvido de Coover:

– Meu nome é Begbie. – Depois se sentou e gritou para Coover, mas acima de sua cabeça, como quem se dirige para o mar, para aquelas ondas que se quebravam: – FRANK BEGBIE!! – Ele voltou a olhar para Coover. – FALA A PORRA DO MEU NOME! FRANK BEGBIE!!!

– Frank... Frank...

– FALA ESSA MERDA DIREITO! FRANK BEGBIE!

– Frank Begbie...

Ele sabia que era burrice e que poderia sair caro, mas se permitiu se perder naquilo. Precisou de muitos golpes para se convencer de que o homem estava acabado, esmagando os ossos de seu rosto, ocultando sua identidade. Foi muito diferente de quando ele tinha catorze anos, a primeiríssima vez, quando aquele único esforço foi tão decisivo. Porém, na época, não houve nenhum prazer no ato, nenhum alívio, só o medo e um senso de misericórdia que no momento ele não podia alcançar.

Ele se ergueu sobre o rosto destruído, deixou a respiração se normalizar. A fúria foi um belo brinde, mas foi autocomplacente, e agora não fazia nenhum bem a ele. Ele olhou a praia, depois o mar. Nada além de Holly, parecendo uma poltrona preta, lá onde o céu cinza-azulado tempestuoso encontrava o mar batido. Nem mesmo um barco distante. Depois um avião solitário trovejou em sua descida, rumo ao aeroporto local próximo, que ficava do outro lado da universidade. A ironia era que, se ele fosse descoberto agora, mais provavelmente seria por um estudante solitário, alguém que ficara para trás nas comemorações do feriado da Independência em 4 de julho, e que possivelmente acabaria estuprado ou assassinado, se ele não eliminasse as ameaças. Mas não havia ninguém. Se acreditasse em toda essa merda, refletiu Jim, ele teria suspeitado de que um poder superior agia com ele. Mas o único poder que o guiava, percebeu Jim, era Frank Begbie. E agora Jim precisava se livrar dele.

Jim sentiu-se motivado a se dirigir à cabeça esmagada do cadáver.

– Se liga no que eu pensei – disse ele, olhando a praia vazia. – Vocês sabem o que eu pensei? – ele se corrigiu. – Seria ótimo se algum outro puto estivesse com vocês. Dois não bastam.

Begbie mostrava que era difícil se livrar dele.

Em seguida, Jim se levantou e ficou só de cueca, colocando a roupa em uma pilha arrumada. Carregou primeiro Coover, depois Santiago, pela beira da formação rochosa irregular. Quase de imediato, torceu a faca do crânio de Santiago e a retirou, mas precisou de trinta segundos torturantes para soltar a Alpha Wolf da coxa do homem. Depois tirou a roupa dos dois, colocando-as em uma pilha separada, perto de sua própria. A enseada entre as duas pedras grandes daria uma cobertura fundamental, mas o que estava prestes a fazer era a parte mais arriscada. Jim subiu novamente nas pedras achatadas e olhou a areia da praia, primeiro à esquerda, depois à direita. Ainda sinistra de tão deserta, nem mesmo um catador solitário. Ele podia enxergar para além dela, até a margem da cidade. Jim se virou para o mar. Longe, bem longe no horizonte, havia uma embarcação, mas ele tinha sorte. Seguia para o outro lado e ele a viu se fundir na nuvem reverberante e no mar luminoso.

Jim levou para o mar primeiro o homem mais pesado, Santiago, arrastando-o, aliviado quando a maré alta o levou em sua flutuação, quase pegando o corpo como um par de mãos prestativas. A água estava fria e ele sentiu o ar ser arrancado dos pulmões. Ele se lembrou de respirar. Regular. Respirando corretamente, você pode não conquistar nenhum adversário, mas ganha tempo. Dá a si mesmo uma chance melhor. Ele nadou, puxando Santiago, pelo que pareceu uma longa distância, mas na realidade talvez não passasse de vinte metros, e então o soltou. Ele observou o corpo boiar.

Quando voltou para fazer o mesmo com Coover, estava cansado e a correnteza era mais forte, as ondas batiam em seu rosto em tapas provocantes, e assim ele não se atreveu a ir tão longe. Para sua surpresa, ouviu um gemido fraco do homem que tinha nos braços; Coover ainda estava vivo. Mas não continuaria assim por muito tempo. “Shh...”, disse ele, com a ternura que uma mãe usaria com um filho bebê, segurando-o debaixo da água, vendo subirem à tona as bolhas do nariz e da boca esmagados. Depois de soltar Coover, ele nadou de volta, vestiu as roupas no corpo molhado e embolou as vestimentas dos mortos. A praia ainda estava deserta. Longe, na direção de Santa Barbara, ele via um grupo de pessoas, provavelmente jovens, pelo jeito como se deslocavam, indo para a areia. Ele se abaixou em uma trilha sinuosa, no alto do penhasco, onde recuperou o fôlego e avaliou o mar. A maré já teria levado os corpos.

Jim examinou o monte de roupas que tinha no colo, retirou duas carteiras, uma delas um acessório de couro decente, a outra mercadoria barata. Era esta a que continha dinheiro, cerca de trezentos dólares, que ele embolsou, junto com um isqueiro gravado com L FUCKING A. Ele examinou a identidade, pensando no filme O exorcista ao ler o nome DAMIEN COOVER, esperando até ouvir passar o grupo de jovens, três rapazes, três garotas. Então desceu pelos arbustos e andou junto da margem da lagoa.

Quando alcançou os veículos, colocou no Silverado as roupas encharcadas de gasolina do galão sobressalente na mala de seu Grand Cherokee e acendeu o isqueiro.

Entrou em seu carro, arrancou e estava quase na estrada que ia para a via expressa quando ouviu o tanque de combustível do outro veículo explodir em um bafo estranhamente oco e petulante. Provavelmente teve mais dramaticidade para os estudantes na praia, mas, quando eles subissem para investigar, Jim já estaria longe.


23
O AGENTE

Depois de sair do pub Canonmills e deixando seu velho amigo e colega sangrando profusamente no chão, Franco entra em um ônibus número 8 que estava de passagem. Na extremidade leste da Princes Street, ele desce e pega um bonde, vai para oeste, a Murrayfield.

Afundado no banco acolchoado, ele desfruta o veículo elegante que desliza suavemente pelos trilhos. Franco encosta a cabeça na janela e se concentra na própria respiração. Logo está em um semidevaneio, pensando mais uma vez nos tempos de escola. Ele se lembra de dizer a Renton, ao se sentarem na mureta perto da escada na frente do Leith Town Hall, que ele não ia aturar. O amigo evidentemente pensou que ele queria dizer o castigo com o cinto, mas sua preocupação era mais geral. Ele se recorda de Bobby Halcrow, outro leitor disléxico e conturbado, e uma vítima dos bullyings; uma figura nervosa, desajeitada e assustada no canto do pátio, com medo demais para olhar nos olhos de alguém. Bobby aturava deles todos: o riso, o escárnio, os maus-tratos, a humilhação. Pelo olho de sua mente, Frank Begbie vê Phillip McDougal, um atormentador persistente, com sua gangue cercando Bobby no pátio.

– Qual é o seu nome? Diga o seu nome.

O gentil Bobby Halcrow piscou, temeroso, o pomo de adão subiu e desceu.

– Bó-bó-bób...

– Toma aqui o seu bó-bó. – McDougal levantou o joelho com força bem na virilha de Halcrow. Enquanto o garoto apavorado se dobrava em dois com as gargalhadas sincopadas, McDougal virou-se e viu que Francis Begbie o encarava.

– Tá olhando o quê, demente?! – gritou Phillip McDougal, enquanto seus companheiros soltavam uma risadinha. – Quer levar seu chute no saco também?!

Franco continuou em silêncio, mas sustentou o olhar. A voz veio de outro lugar.

– Dá o fora daqui, seu mongo – disse Mark Renton. Renton era um daqueles garotos que não tinham fama de durão, mas tinha um irmão mais velho que era, um fator de que ele se aproveitava impiedosamente.

– E vai obrigar a gente, Renton? – McDougal o desafiou.

– Talvez. – Renton respondeu com menos confiança.

McDougal avançou, evidentemente pronto para esmurrar o magricela Renton e se arriscar com o irmão mais velho, quando Francis Begbie disse a ele:

– Uma luta. Você vai morrer.

McDougal olhou para Begbie sem acreditar. Antes, Frank Begbie podia ter baixado os olhos para os pés. Agora mantinha uma encarada firme. Pelo olho da mente: a visão de um tijolo batendo repetidamente na cabeça de McDougal. E então a sineta tocou.

– Depois da aula – sibilou McDougal. – Vamos ver quem vai morrer nessa porra. – E ele partiu, rindo com os companheiros, fazendo sinais de punheta para Begbie e Renton.

– Vai mesmo brigar com ele? – perguntou Renton, no assombro animado de alguém que percebe que eles acabaram de obter uma enorme prorrogação.

Frank Begbie negou com a cabeça.

– Não. Vou matar esse merda.

Normalmente, Renton teria rido disso, mas na outra semana ele tinha visto em que estado ficou a cara de Joe Begbie. Ninguém sabia o que aconteceu, mas os boatos eram abundantes. Porém, ele percebeu que acontecia alguma coisa com o irmão mais novo de Joe. Havia um ar desligado em seu amigo Francis Begbie, e um silêncio ensimesmado tinha caído sobre ele.

Na casa dos Begbie, Franco mais uma vez tinha apanhado de Joe. Depois de um tempo, ele percebeu, a dor não era nada. Simplesmente estava ali. Na verdade ele começou a gostar dela, apenas saboreando o momento em que lhe daria um fim. E então ele deu, para sempre, com um único ato violento.

Naquele mesmo dia, Franco viu McDougal novamente, no corredor, entre uma aula e outra, e o garoto musculoso passou o dedo pelo rosto, simulando um corte, apontando para ele, caso existisse alguma ambiguidade.

As hostilidades foram marcadas para depois das aulas nos Links, na parte do parque mais próxima dos loteamentos, que era protegida pelas árvores. Franco se lembra de atravessar o gramado com Renton e outros dois, apequenados pela comitiva de McDougal e os espectadores que esperavam uma aniquilação unilateral. A briga começou com Francis Begbie correndo para Phillip McDougal, chocando a todos com sua ferocidade. Eles trocaram socos e pontapés. McDougal era maior, mais forte e brutal, mas Begbie insistia no ataque. E então eles se agarraram, McDougal o havia derrubado e estava por cima dele, espancava-o às cegas.

– Já chega?! – gritou McDougal em sua cara ensanguentada, enquanto os oohs e aahs da multidão indicavam a extensão da surra que levou Begbie.

Como resposta, um bolo ensanguentado voou da boca de Francis Begbie para a cara de McDougal. McDougal voltou a seus murros brutais até que sirenes da polícia e gritos de “cuidado” encheram o ar, enquanto uma viatura preta e branca parava na rua e os garotos rapidamente se dispersavam.

McDougal levantou-se, aclamado vitorioso, mas em seu triunfo havia uma apreensão, porque ele olhou para trás e viu Mark Renton ajudar a colocar de pé Begbie, espancado mas sem se curvar.

– Ele é uma porra de animal imundo – protestou McDougal a um grupo, usando a manga do suéter Fair Isle para tirar a saliva ensanguentada do rosto.

Frank Begbie não apareceu na escola no dia seguinte e choveram boatos de que McDougal o havia hospitalizado. Satisfeito consigo mesmo ao ir para casa, Phillip McDougal de súbito sentiu alguém pular em suas costas. Viu o pavor no rosto dos dois amigos. Frank Begbie estava em cima dele e batia com meio tijolo. Um McDougal aturdido livrou-se de Begbie e rapidamente dominou o adversário, espancando-o às cegas mais uma vez. Ele disse ao garoto surrado e exausto no chão, “Já chega, estou te avisando”, mas a voz trazia um medo e uma incerteza que ele não conseguiu esconder.

No dia seguinte, Frank Begbie, com os olhos roxos, um deles mal se abria, andou a passos firmes até McDougal no pátio durante o intervalo do almoço. Bateu a testa no nariz de um estático McDougal, quebrando-o, o sangue do valentão da escola pingava no asfalto. Para o choque de quase todos os presentes, McDougal ficou prostrado e levou uma série de chutes humilhantes e selvagens que ele sabia, mesmo naqueles anos de juventude, que possivelmente salvaram sua vida. Quando terminou, Begbie virou-se para o grupo silencioso de McDougal. “QUEM É O PRÓXIMO?”, rugiu. Nenhum deles conseguia olhar naquelas fendas no roxo bulboso que eram seus olhos e suas habilidades de leitura nunca mais foram ridicularizadas publicamente.

O bonde para com um silvo pneumático das portas e arranca Frank Begbie de seus devaneios. Quando chega à casa de Elspeth, ele telefona para Melanie, mas cai direto na caixa postal. Ele tenta uma segunda vez, só para ouvir a voz dela atendendo ao telefone. Tão tranquila e não abrasiva, tão diferente dos muitos tons que ele conhecia por aqui.

Elspeth tinha saído para fazer compras e voltou com o que ele passou a considerar sua expressão pronta-para-uma-briga. Envolvia raspar os dentes superiores no lábio inferior e estreitar os olhos. Ela fazia isso desde criança; uma força dominadora e autocentrada com que nem ele, nem Joe eram lá muito capazes de lidar quando, na juventude, ela entrou na vida deles. Franco, portanto, fica aliviado quando um telefonema com número americano se manifesta em seu telefone Tesco. Raciocinando que podia ter alguma relação com Melanie ou as meninas, ele atende.

– Jim, é Martin. Mel me deu o seu número.

Franco sente um desânimo esmagador ao ouvir a voz do agente.

– Tudo bem. Oi. – Ele vai para seu quarto, olhando pela janela.

– Não consegui falar com você na outra linha. Não tive muita sorte com este número. Mel disse que teve problemas com ele.

– Sim – concorda Franco –, não é o melhor dos aparelhos.

– Como vão as coisas em Edinboro?

– Tudo bem – diz ele, de imediato sentindo o sorriso irônico torcer seus lábios. – Tem um novo sistema de bondes, o que chamaríamos de metrô leve na América. Muito impressionante – declara ele e observa, de trás da cortina de renda, os sobrinhos entrarem na casa.

– Que bom... olha, lamento te incomodar, mas preciso saber quando voltará.

– Em breve.

Martin solta um suspiro exasperado com as poucas informações dadas pelo cliente.

– Ainda temos algumas pontas soltas para amarrar. Sinceramente preciso que você volte para cá o mais tardar na semana que vem.

– Eu mesmo estou amarrando umas pontas soltas – diz Franco, passando ao sotaque transatlântico, enquanto olha para fora e vê andar pela calçada Greg, que o cumprimenta com um aceno. – Como vão as coisas do seu lado?

– Infelizmente, Rod Stewart não poderá ir. Acho que está em turnê.

– Que pena. – Franco reflete, pensando na música “Young Turks” de Rod Stewart e como traz à mente Anton Miller, enquanto sai do quarto e volta à sala de estar. Ele imagina Miller como um cara atarracado, parrudo e sarcástico, talvez com um andar de pistoleiro de pernas arqueadas, como o de Nelly.

– Mas Nicole quer um busto do Tom, com uma mutilação muito específica, estritamente confidencial. – Martin parece descontraído. – E o pessoal da Aniston quer saber quando o da Angelina estará pronto.

– Nem uma notícia do Axl Rose, do Guns N’ Roses? – pergunta Franco ao chegar à sala da frente. Ele dá uma piscadela para George, que Elspeth registra com desânimo ao ver o filho retribuindo com a alegria estampada nos olhos.

– Não tive notícias do pessoal de Axl... vou correr atrás deles.

– Beleza. Não consigo me ver aqui por muito mais tempo, no máximo alguns dias – diz, olhando a cara amarrada de Elspeth. Talvez esteja na hora de dar o fora para um hotel. De dizer a Elspeth: boa sorte pra você, se encontrar um bom abrigo pra se esconder do caos e da dor provocados pelo mundo. Mas não finja que isso não acontece com os outros. E não se iluda que não vai acontecer com você. Só não está na hora. Os meninos estão sentados diante da televisão. Greg se acomodou no sofá com um livro que está lendo, sobre mulheres que foram sequestradas pelos cartéis mexicanos das drogas. A voz suave de Martin ao telefone, tentando situar exatamente o que significa alguns dias. – Significa alguns dias – acrescenta ele enfaticamente. – Eu ligo pra você se houver alguma alteração.

– Tudo bem. – O tom de Martin cai a uma concessão cautelosa. – Muito obrigado, Jim.

– Ótimo, tchau, Martin.

Franco encerra a ligação e está se preparando para a irmã descarregar, feliz pela presença de Greg e dos meninos. Isto quer dizer que qualquer ataque será limitado a apartes afiados. E então há uma explosão tremenda, porque a janela da frente afunda, voam cacos de vidro por toda a sala. Um caco voa para o braço de George, tirando sangue, que se derrama no carpete. Greg larga o livro e Elspeth grita.

Tudo isso é tragado por um berro vindo de fora:

– VOCÊ ESTÁ MORTO, BEGBIE!!

Franco corre à porta, ciente da perna que o atrasa, como se ela estivesse presa em melaço. Quando ele arranca, não consegue senti-la, mas ela reduz a sua aceleração. O merda do Renton. Idiota do caralho.

Ele vai para o pequeno jardim e vê três jovens na rua. Um, ele reconhece vagamente do funeral. Pulando a mureta e correndo para o grupo, ele sabe por seus gestos-padrão de “pode vir” que eles não pretendem lutar. Esta é outra armação, e o jogo logo entra em sua visão periférica, do lado direito, na forma de dois homens que saem de um carro.

Não são os jovens que ele espera: parecem ter mais de trinta anos, do tipo leão de chácara cascudo. Ignorando os mais novos, ele vai lentamente até eles. Um dos homens, muito musculoso numa camiseta azul, mas de pernas finas, grita:

– Miller quer ver você!

Tem muita coisa aí que não está batendo para Frank Begbie. É importante manter a respiração estável, mesmo enquanto ele imagina friamente lacerações profundas na cara dos homens.

– Ah, é? Miller? – Franco ri. – Quer dizer Tyrone!

Os dois homens se entreolham. Não tinham previsto isso.

– É o máximo que Tyrone pode fazer hoje em dia? – Ele os olha de cima a baixo com desdém, imaginando o golpe com o pé que destruirá a rótula da perna fina do homem, deixando-o esparramado e indefeso na calçada. – Dois fantoches que devem cuidar da entrada de matinês? Pelo visto, ele está mal aparelhado! – grita ele.

– Não sabemos de Tyrone nenhum – Pernas Finas protesta debilmente.

– Então vocês vão me levar para esse Miller?

Os dois leões de chácara trocam olhares como se percebessem que aquela não é mais uma ideia tão boa. O Pernas Finas está particularmente nervoso, um olho tem tiques visíveis.

– É... você vem com a gente...

Frank Begbie abre um sorriso.

– E o que acontece se eu não for?

– O recado que a gente tem pra dar é que você vai se meter em problemas se não for...

– Bom, eu tenho um recadinho pro seu chefe: ele é a merda de um filho da puta careca e gordo. Parece Anton Miller? – Franco avança enquanto sirenes cortam o ar. – Salvos pelo gongo. Vocês, é claro – ele zomba e os dois homens recuam e entram no carro, arrancando apressadamente.

Franco procura pelos três jovens a seu redor. Não o surpreende que tenham fugido.

O principal policial, um veterano que Franco reconhece como um babaca de carreira que nunca tiraria a farda e provavelmente nunca entenderia inteiramente por quê, toma os depoimentos de Elspeth e Greg. Depois interroga Franco, que não diz nada além de que estava ao telefone quando um tijolo entrou pela janela e ele saiu para investigar.

Quando ele termina, o policial velho fixa nele um sorriso insultuoso.

– Eu sei o que você realmente é, você pode enganar a eles...

Franco gesticula para ele com desdém com um golpe de mão para trás, imitando a expressão e o tom do policial.

– Ah, é mesmo? Sabe de uma coisa, todo mundo me dá o mesmo sermão: a polícia, a família, amigos, repórteres, bandidos. E o estranho nisso é que todos acham que são abençoados com este discernimento único quando fazem esta mesma observação. – Ele vê que as feições do policial ficam frouxas. – Isto pode significar duas coisas: ou eles devem estar certos, ou são uns simplórios de merda.

A cara do policial veterano volta a se inflamar com uma careta de desafio.

– Ah, sim, é mesmo? E o que você acha disso?

– Acho que um não exclui necessariamente o outro.

O policial o olha com menosprezo. Franco sabe que ele se sente ludibriado. Eles correram para Murrayfield na expectativa de proteger suburbanos e são enganados, dando com um ninho de Begbies infestando o lugar. Eles não ficam muito tempo por ali.

Foi compreensível que Elspeth tenha chamado a polícia, nas circunstâncias. Entretanto, como Elspeth é uma Begbie do Leith, Franco é apanhado no contrapé pelo profundo senso de traição que sente arder. Até parece que George foi decapitado, pelo estardalhaço que eles estão fazendo. Ele olha o sobrinho emburrado com o curativo, abrindo um sorriso.

– Já tive um corte pior fazendo a barba – declara ele de imediato, percebendo pela expressão de Elspeth que esta foi a aposta errada.

– NÓS FOMOS ATACADOS, VIOLADOS EM NOSSA PRÓPRIA CASA, POR SUA CAUSA, E VOCÊ TEM A CORAGEM DE ME SAIR COM SUAS IRREVERÊNCIAS!

– Eram só uns garotos. Se eles quisessem pegar pesado...

– Não, estes são só uns garotos. – E ela aponta para Thomas e George. – Saia daqui! VÁ EMBORA DA NOSSA CASA!

– Eu mesmo ia sugerir ir embora – Franco concorda. – Não quero que vocês sejam apanhados nisso.

– É meio tarde pra isso, droga!

– Meu bem... – Greg murmura, passando o braço pelos ombros da esposa.

Franco pega o telefone Tesco no bolso e liga para Larry.

– Vou resolver uma coisa agora. – Ele assente para eles enquanto sai pelas janelas francesas e vai ao jardim. Larry não vai ficar satisfeito, como aconteceu com o furgão, mas ele fez o convite e tem um quarto de hóspedes.

Depois de alguns toques, Larry atende.

– É claro, Franco, qualquer coisa para um velho amigo – cantarola na linha. – Pegue suas coisas e vou te buscar num minuto.

Franco sente o cheiro dominador da falsidade, mas expressa gratidão e volta para dentro.

– Tudo certo – diz ele. – Larry vem me buscar.

– Lamento que chegue a esse ponto, Frank – diz Greg em voz baixa, com tristeza. – Foi bom ter você aqui. Mas os meninos...

– Eu entendo perfeitamente – responde Franco. Parece inadequado, mas é o máximo que ele pode fazer. Ele vai ao quarto e reúne seus pertences. Telefona para Melanie pelo celular Tesco. Nada. Talvez ele precise colocar mais crédito no telefone. Não quer perguntar a Elspeth se pode usar o telefone dela. Vai esperar até chegar à casa de Larry.

Larry cumpre com sua palavra, chegando em meia hora. O vidraceiro de emergência de jeito nervoso e olhos agitados já está consertando a janela, e sua presença obriga a uma civilidade tensa.

Elspeth, que evitou Larry meticulosamente no funeral, ruboriza um pouco na presença dele ao acompanhar Frank para fora. Na adolescência, ela nutriu uma paixão arrasadora pelo amigo do irmão e certa vez, bêbada, deu em cima dele. Larry abre para ela um sorriso de crocodilo, indicando que se lembra muito bem da ocasião.

– Elspeth... já faz muito tempo, garota – diz ele, enquanto Franco coloca sua mala vermelha na traseira do furgão branco. – Bonita casa. – Ele avalia a casa, com as mãos nos quadris. – Bem a sua cara.

Olhando dele para o furgão, Elspeth replica:

– Bonito furgão. Bem a sua cara.

Larry abre seu sorriso touché mais agradecido.

Greg se juntou a eles do lado de fora e de certo modo ainda se desculpa com Franco.

– Eu lamento sinceramente que tenhamos de nos separar assim. Boa sorte.

Mas que merda esse babaca quer de mim? Franco assente rigidamente para ele, reconhecendo suas palavras. Entretanto, quando se vira para a irmã maligna, uma palavra pouco característica escapa dele.

– Desculpe...

A singularidade, para não falar da evidente natureza sincera do pedido de desculpas, parece abalar os dois. Eles se olham em uma estase vazia.

– Muito bem! Pronto para a ação? – Larry sorri, rompendo o silêncio.

Franco fica aliviado ao entrar no furgão de Larry e não olha para trás quando ele arranca para a rua.

Não demora muito e o inspetor-detetive Ally Notman chega à casa de Elspeth para investigar. De imediato fica claro para ela que ele não está preocupado com a janela, é evidente que recebeu dos colegas a informação de que Frank estava hospedado na casa.

– Ele não está mais aqui – Elspeth informa a ele. Ela está cheia da polícia e não o convida a entrar.

Notman fica na escada da frente, olhando a força formidável de braços cruzados na soleira.

– Você disse que seu irmão saiu com Larry Wylie?

– Frank é que foi atacado! – A lealdade de Elspeth a choca e confunde ao mesmo tempo.

– Sabe de uma coisa, posso acreditar nisso – diz Notman. – Quando o mocinho é o psicopata de nosso antigo bairro, a cidade tem sérios problemas.

– Com licença – responde Elspeth com uma autoridade pomposa, agora adotando o papel que estranhamente aceitou cumprir –, mas você não conhece meu irmão. Ele se esforçou muito para transformar sua vida e ter sucesso, mas algumas pessoas não querem deixar!

Greg mal acredita no que ouve.

– Seu irmão – começa Notman – foi uma ferida aberta nesta cidade...

– Saia já daqui! – Elspeth o interrompe, seu rosto está contorcido de fúria a tal ponto que Notman recua da entrada. – O meu sobrinho foi assassinado e o que vocês fizeram a respeito disso? Nada! Vá embora. – Ela aponta a viatura estacionada na rua.

– Escute – Notman adota um tom sensato –, eu não quero...

– Vocês têm todo aquele negócio de DNA – Elspeth sibila, olhando-o de cima a baixo com desprezo. – Então devem ter uma equipe de perícia para coletar as informações e cruzar com seus registros!

– É isso mesmo – fala Greg, que tinha se materializado junto do ombro da mulher. – Não estamos pedindo nada de extraordinário, inspetor.

– Quando ouço alguém do público usar o termo DNA, eu me contorço por dentro. – Notman meneia a cabeça para eles, desdenhoso. – Todo mundo que assistiu a um CSI: Miami agora é especialista no trabalho policial. Não é assim que...

– Então, como é? – Elspeth empina o queixo, enquanto Bill e Stella Maitland, os vizinhos do lado, aparecem e ficam por ali, dando apoio. – O que você está dizendo é que não vai nos contar quem esteve lá pelas evidências físicas, ou quem vocês levaram para interrogatório, se é que existe alguém, ou se vocês encontraram a faca ou a arma do crime. Que vocês não fizeram nada! Bom, nosso Frank vai descobrir quem fez isso!

– Seria um grande erro da parte dele – diz Notman, virando-se e dirigindo-se ao carro.

Greg engole em seco e diz à mulher:

– Frank teria orgulho de você.

Foi um erro dizer isso. Quando é absorvido, Elspeth cai em um pranto furioso e frustrado, sendo reconfortada por Stella, que avança e a leva para dentro de casa.


24
A PARCEIRA DE DANÇA 3

Melanie ficou surpresa ao ver Martin, agente de Jim que tinha vindo de Los Angeles de carro, na noite de véspera. Ele estava desesperado para entrar em contato com o marido incomunicável dela. Ela lhe deu o número do Reino Unido, com um aviso sobre dificuldades de transmissão inerentes, citando suas próprias tentativas infrutíferas de falar com Jim.

– Às vezes funciona – disse-lhe Melanie, tomando café.

– Vim também por outro motivo – confessou Martin. – Tive a visita de um policial, um detetive do Departamento de Polícia de Santa Barbara chamado Harry Pallister – disse ele, sem se interromper com a reação dela. – Ele me falou que investiga uma queixa que você deu de dois sujeitos que a assediaram na praia. Perguntou sobre Jim. Não gostei do tom. Então o contestei e perguntei se Jim era suspeito de alguma coisa. Ele disse que não. Depois seguiu o caminho dele. Algo nisso tudo não me cheira muito bem. Daí achei que você devia saber.

Melanie expressou sua gratidão a Martin, contando a ele o máximo que sentia poder, isto é, quase tudo que ela sabia. Ele apreciou sua franqueza, oferecendo qualquer ajuda que pudesse, depois saiu, de volta a Los Angeles.

Ela, assim, está esperando outra visita de Harry, mas, quando acontece, ainda provoca um desconforto verdadeiro. Melanie tinha acabado de afivelar Grace e Eve no carro quando ele chega. Melanie sabe que as filhas notaram seu comportamento distraído e meio nervoso. O tempo para prepará-las foi bem maior do que o habitual. As meninas estiveram fazendo birra, e Eve mordeu o dedo de Grace. Isso não é aceitável, mas a filha mais velha está decidida a se reafirmar. Elas tinham se aquietado quando Harry parou o carro com aquela expressão de sofrimento dele. Ele está do lado de fora do carro e pergunta a ela:

– Mel... lamento incomodar você, só estava me perguntando se você se lembrou de mais alguma coisa a respeito daqueles caras.

E então Melanie se afasta do alcance das meninas para longe da entrada de carros e sobe na varanda, obrigando-o a acompanhá-la.

– Nada de que eu já não tenha falado – diz ela rigidamente. A notícia que Martin deu na noite anterior a deixou tensa. Ela não falava direito com Frank há alguns dias; as diferenças de horário e o horrível telefone que ele comprou complicavam a comunicação. Agora a presença de Harry feito uma craca, com o mesmo tom insinuante, revirando velharias. Ali, na varanda da casa dela, e já de manhã tão cedo.

– Quando voltou, tem certeza de que Jim estava com você?

– E onde mais ele estaria? – responde Melanie bruscamente. Harry tem as pálpebras caídas, ainda focaliza, mas como se lhe custasse muito esforço mental. Seu hálito tem certo bafo. Álcool. Por um segundo, ela pensa em confrontá-lo a respeito da visita que ele fez ao agente de Jim em Los Angeles, mas decide pelo contrário. É preferível que ele continue alheio ao fato de que ela sabe de sua linha de investigação. Ela se lembra do mantra de Jim, ou Frank, relacionado aos policiais: Mande todos se foder.

Harry concorda lentamente com a cabeça, recuando um passo cauteloso, como quem entende que passou dos limites. Ele era antes de tudo um policial e não falou no carro incendiado. Jim tinha razão; não se pode confiar num policial fazendo a social com as pessoas, assim como um alcoólatra não pode ficar perto de um armário cheio de bebidas. Ele sempre teria de abri-lo para ver o que contém. Agora parece que ele já abriu. Que tipo de policial fede a álcool a essa hora da manhã? E, em um nível psicológico profundo (que agora começa a se manifestar abertamente), Melanie sabe que Harry quer substituir Jim, o que significa tirar Jim do caminho, em primeiro lugar. Melanie percebe que tomou uma decisão naquele momento: Harry não pode ter a oportunidade de destruir esta família.

O policial deu início a um jogo de silêncio que ela não tem vontade nenhuma de fazer.

– Preciso levar as meninas – declara ela. Melanie agora sabe que não vai levá-las à escola e ao jardim de infância, mas não vai contar isso a Harry.

– Claro... porém, Melanie, sabe que pode me telefonar – diz Harry com seriedade. As palavras dele são meio arrastadas e ela vê, à luz do sol, o inchaço em volta dos olhos e nas faces dele. – Extraoficialmente. Como amigo.

– Tudo bem – ela assente.

– Você tem amigos, Melanie. Pessoas que se importam com você... lembre-se disso. – As palavras de Harry deixam escapar seu desespero.

– Agradeço por sua preocupação, Harry – diz ela alegremente, quase rindo de tensão nervosa. A incongruência disso arde nela, e Melanie sabe que ele não se deixou enganar nem por um segundo. Mas ela não fica por ali; vai para o carro e sobe ao volante. Ele vai precisar fazer o mesmo, ou bloquear sua passagem na saída. O que quer que Jim tenha feito, foi por ela e pelas meninas. Ele sempre disse que a proteção delas era a única coisa em que ele acreditava. Mas foi bem além disso. Ela sabe que também ele, em um nível muito profundo, acredita na vingança.

Melanie fica aliviada ao ver Harry, depois de olhar demoradamente o carro, virar-se e entrar no próprio veículo.

– O que esse homem queria, mamãe? – pergunta Grace.

– Nada, querida – diz Melanie, satisfeita ao ouvir o motor de Harry dar a partida e ver o carro dele arrancar. – Agora eu tenho uma grande surpresa – anuncia no mesmo tom falsamente animado que usou com Harry. – Vocês vão passar uns dias na casa da vovó!

As meninas enxergam que há algo por trás disso, assim como do policial embriagado.

– Por quê? – pergunta Grace.

– Preciso ir à Escócia para ver o papai. Ele está muito triste porque um amigo dele está muito doente – explica ela, ligando o carro e entrando na rua.

– O papai! Vai trazer ele pra cá? – pergunta Eve.

– É claro que vou! Papai disse que tem muitos presentes da Escócia para duas garotinhas especiais. Ele precisa de minha ajuda para carregar.

Grace não se deixa convencer.

– Papai está bem?

– É claro que ele está.

– As pessoas são boas com ele na Escócia? – pergunta Eve, de cenho franzido.

– Sim, elas são!

Melanie vê, pelo retrovisor, a cara amarrada de Eve. O rosto dela, tão parecido com o do pai, diz: É melhor que eles sejam bons com o meu pai, senão... Ela telefona novamente para Jim, mas ainda não consegue nada. Em seguida, manda uma mensagem de texto suplicante. Quando chega com as meninas na casa da mãe, Melanie diz a Jane Francis que precisa que ela cuide das netas por alguns dias. Explica que realmente tem de ir ao funeral (embora já tenha acontecido) para dar apoio a Jim. Jane ama as meninas e fica feliz com isso, reagindo apenas com uma pergunta pouco interessada. Depois Melanie vai pegar um avião para Londres no Aeroporto Internacional de Los Angeles.

Quando toma conhecimento de que conseguiu um lugar na lista de espera, Melanie relaxa, sentindo-se no controle. Porém, isto logo se transforma em um desespero impotente quando ela se senta na classe econômica apertada com um gordo espremido a sua esquerda e uma mulher pálida de rosto tenso à direita, e duas crianças muito pequenas que gritam e choram na frente dela. Melanie terá onze horas disso até Londres. Ela fecha os olhos, tenta apagar tudo. Pensa em quando conheceu Jim, na prisão. O retrato que ele pintou, O Parceiro de Dança. O quanto eles percorreram desde então e como foi ideia dele que se matriculassem juntos no clube de salsa.


25
O APARTAMENTO

Franco reflete que, ao contrário da opinião de Elspeth a respeito do furgão, o apartamento em Marchmont não é muito a cara de Larry. Desta vez fica parado para ver o imóvel grande, luminoso, de dois andares, com janelas de sacada; seu piso de madeira calafetado e lixado e a mobília de bom gosto sugerem que o velho amigo não se envolveu no projeto de decoração.

– Belo barraco – observa Franco, olhando várias fotos emolduradas que conferem um toque familiar à casa. Todas são retratos do mesmo menino, que vão de um bebê até uns sete anos de idade. O menino tem o sorriso malicioso de Larry, sem a maldade implícita que Franco supõe se desenvolver com o tempo. Ou talvez não. É evidente que houve alguma edição criteriosa, eliminando qualquer vestígio da mãe nas fotografias. Esta relação não terminou bem, ele avalia.

– Sim, é mesmo. – Larry pega o console de um game de computador e liga a grande TV de tela plana à qual está conectado.

– Parece que os negócios vão bem – diz Franco.

Larry vira-se de frente para ele, olha brevemente como se pensasse em mentir, depois parece concluir que a verdade é mais divertida.

– Ganhei um milhão e meio de libras na loteria. – Ele sorri e, pela primeira vez, pelo sorriso eletrizante, Franco percebe que os dentes de Larry foram recapeados. – Nunca pensei que contaria a algum babaca, mas tem alguns que sabem. Achei que você ia gostar. Muitos dizem “por que você?” e passam a falar de todas as coisas que eu devo ter feito.

Franco reage com um dar de ombros indiferente.

– A gente arruma o que consegue, não o que merece.

– Achei que você entenderia dessa forma. – E Larry mostra aqueles dentes brancos e grandes, incongruentes em sua compleição fraca e magrela. – Ainda vendo ecstasy aqui e ali, mas coloquei a maior parte da grana em um fundo de aplicação para o homenzinho. – Ele olha as fotos no aparador e na parede.

– Beleza – diz Franco. – Ainda vê a mãe do garoto?

Larry se vira de frente para ele.

– Aquela puta? Ela queria voltar quando soube do prêmio da loteria. Mandei à merda! Disse que ela não devia dar ouvidos às fofocas de merda sobre eu ter dinheiro, nem nada que eu tivesse, o homenzinho receberia a parte dele quando ficasse mais velho. Ela que vá se foder – ele zomba, seu sorriso se alarga. – Disse que se ela me incomodar de algum jeito vai ter revide. Expliquei que tem coisa dela mais nova no pedaço. – E ele aponta o móvel abaixo da TV, cheio de estojos de DVD, um solitário nome de mulher em cada lombada. – Fiz meus próprios vídeos pornô – ele diz, radiante –, como aquele escroto do Terry!

– Terry é um astro hoje em dia – diz Franco –, mas isso parece meio duvidoso.

– É – concorda Larry, mas rapidamente volta a se envolver no game, só interrompendo quando o telefone toca no bolso do casaco. Ele o retira e vai para a cozinha. – Alô... sim...

Franco pouco ouve a voz baixa de Larry enquanto olha as imagens na televisão. Ele nunca viu nada de atraente nesses games. Lembra-se de um eco de violência do passado, colando a cara de um sujeito no vidro de uma máquina Asteroids em um pub da Rose Street. Isso já faz algum tempo. Tenta se lembrar de por que agiu assim, mas nada lhe vem à cabeça. Ele pega o console, enquanto a cena muda para PONTUAÇÕES MAIS ALTAS.

SFB 1338
LARRY 685
FF 593
Apesar do esforço de Larry para conseguir o recorde, ele está bem atrás do melhor atirador. SFB deve ser Sean Francis Begbie.

Franco vai ao armário abaixo da TV, olha a série de DVDs caseiros. Correndo os olhos pelos nomes das mulheres nas lombadas, ele pega aquele que tem a etiqueta “Frances”, retirando o disco e colocando na abertura hidráulica do aparelho. A imagem do jogo é substituída por uma ação mais humana.

É mal filmado, a câmera em uma só posição, mostrando dois corpos em uma tomada aberta, uma sequência não editada de Larry comendo Frances Flanagan. Ao acelerar a velocidade da ação, Franco percebe que Frances parece estar drogada. Ele distingue isso pelo jeito como a garota é colocada obedientemente em diferentes posições por Larry e amarrada com bandagem e uma mordaça com bola, depois tem certos implementos inseridos nela. Mais uma vez, ele avança, parando quando vê Larry agachado atrás dela, as lesões visíveis no peito dele. Franco acha difícil ficar indiferente à natureza abominável daquilo; não consegue deixar de pensar nas próprias filhas. Haveria a possibilidade de elas ficarem como Frances, tornando-se vítimas de homens como Larry? Ele engole a bile e desliga o aparelho, retira o disco e o recoloca no estojo. Ele não teria se incomodado se Larry aparecesse e o visse assistindo a isso, mas talvez seja melhor que ele não saiba.

E então Larry volta à sala, registrando brevemente a presença de Franco na TV, os dois homens sentados no sofá. Larry pega o console novamente.

– Minha velha – diz ele.

– Como está ela? – pergunta Franco, sabendo que ele está mentindo.

– Ainda me enchendo; então é o mesmo de sempre – diz Larry, voltando ao game. – Você vai pegar o escroto do Anton, Franco – anuncia ele, enquanto atira em um robô que se aproxima. – Um leproso nunca muda. É ele que você procura.

Franco não está pensando em Anton, mas na mãe, Val, ou melhor, em seu funeral, a última ocasião em que ele esteve na Escócia. Ela era uma boa mulher, reflete ele, mas os filhos e o marido eram todos Begbie, que não deram a ela nada além de diferentes versões do inferno. Ele se recorda de que quando Elspeth telefonou para informar a morte da mãe, ele quis chorar, mas não conseguiu, e que esse desejo estranhamente era mais para os olhos de Melanie, que tinha apertado a mão dele durante o telefonema. Às vezes é difícil se adaptar às pessoas, reflete ele, olhando para Larry.

– Vou sair.

Larry o olha, depois aponta os DVDs.

– Aí estão as garotas que estive comendo. Aquela Frances e tal. Pode se arranjar com qualquer uma delas, se você quiser.

– Sou casado – diz Franco.

– Isso nunca te impediu!

– Antes eu não era casado.

– Era como se fosse!

– Isso foi antes. – E ele sai do apartamento com o sorriso irônico de Larry enterrado em sua psique.

Franco anda pelas ruas cinzentas, vê gente indo do trabalho para casa, ou entrando em pubs, teatros e cinemas. O vento fica cortante e assomam nuvens ameaçadoras. Ele se sente isolado, excluído pela cidade e logo se entedia. Onde se pode ir na Escócia à noite se você não quer uma bebida? Ele não quer confessar, mas já sente falta de bater papo com os sobrinhos e Greg e, sim, até com Elspeth.

Ele telefona para Melanie do celular Tesco e consegue a ligação, mas cai direto na caixa postal. Ele devia mandar uma mensagem de texto, ou um e-mail, mas detesta esse método de comunicação mais do que qualquer outro. Graças a sua dislexia, mesmo agora é um processo laborioso, repleto de frustrações inerentes. E ele sente o magnetismo implacável do pub e do álcool, puxando-o como nunca quando ele estava de volta aos Estados Unidos. Para quem pode telefonar quando experimenta esta atração?


26
A PARCEIRA DE DANÇA 4

O Santa Barbara Dance Center ficava no centro da cidade, na esquina da De La Vina com a West Canon Perdido. Jim e Melanie Francis se matricularam juntos para uma sessão de introdução à salsa. Para surpresa deles, a mulher que encontraram era conhecida. Ela estava com o casal que dançou na boate naquela noite memorável; eles logo concordaram que Sula Romario era a pessoa mais sexy que conheceram na vida. A equatoriana atlética de cachos escuros exuberantes tinha uma voz rouca e grave que arrancava camadas de sua pele, enquanto os luminosos olhos cor de ébano enterravam-se em sua alma. Sula olhou os dois de cima a baixo, andando em volta deles naquele pequeno salão de dança, antes de sua boca de lábios vermelhos escuros e cheios declarar, “Está bem. Agora vamos dançar”, e ela primeiro ensinou a Jim, depois a Melanie, os passos básicos numa contagem até 8; pé esquerdo para a frente, pé direito para trás. Depois deixou que eles tentassem juntos.

Jim nunca foi de dançar, mas os passos não eram diferentes daqueles do boxe e ele aprendeu rapidamente. Melanie adorava dançar e logo eles aumentaram o ritmo e se deslocaram suavemente pelo piso de madeira encerado do estúdio, para aprovação de Sula Romario. Eles dominaram com tanta tranquilidade o giro para a direita e o passo da passagem da dama que Sula decidiu colocá-los imediatamente na turma.

– Você dança bem – disse ela a Melanie, depois se virou para Jim. – Mas você... você tem fogo na alma!

– Ah, é mesmo? – Jim sorriu.

E então as luzes se acendem, porém Melanie continua de olhos fechados, tenta se obrigar a voltar ao caldeirão satisfatório de memória e sonho. Não está dando certo; a cara de Jim desaparece sob o brilho que arde por suas pálpebras e ela pisca, desperta, observando que felizmente deixou passar o café da manhã. Os restos de um croissant são visíveis na frente do gordo.

Ao desembarcar no Terminal 5 do Heathrow, ela vai ao restaurante Plane Food, pede ovos e verifica o telefone. Há uma ligação de um número de Santa Barbara que ela não reconhece e um recado na caixa postal. Ela toca a mensagem, e seu sangue gela.

“Eu ando bebendo. Talvez eu até tenha um problema.” A voz de Harry é maculada pela amargura. “Então, agora talvez eu fique interessante o suficiente para você reconhecer que eu existo, caralho. Já não seria alguma coisa? Gente como você... mulheres como você... vocês não sabem de nada. Nada!”

Melanie sente o barulho do garfo que tem na mão batendo involuntariamente no prato. Ela quer apagar a mensagem, apagar aqueles tons estúpidos e desdenhosos. Mas não apaga, toca novamente, fortalecida pelo fato de que ele se comprometeu. Telefona a Jim, mas ainda não vem nada além de um estranho tom que não tem significado nenhum para ela. Ao embarcar no voo de conexão para Edimburgo, Melanie só tem uma vaga ideia de onde fica a casa de Elspeth, esteve lá com Jim vários anos atrás antes do nascimento de Grace.

Pousando em seu destino, seu pescoço e a coluna doloridos depois de tanto viajar, ela se vê quase alucinando pela combinação de jet lag, cansaço e a estranha euforia de voltar. Jamais planejara ir a Edimburgo a trabalho, foi um programa de intercâmbio por um ano entre o serviço penitenciário escocês e o sistema correcional da Califórnia. Mas Melanie aceitou. Sim, a cidade é tão fria e cinzenta quanto a de suas lembranças, mas também é de uma beleza de tirar o fôlego. Sentada no táxi, ouvindo a tagarelice do motorista, ela se lembra por que adorou o lugar; a vista majestosa, o ar fresco, mas sobretudo a atitude despretensiosa, militante e quase paradoxalmente dramática dos moradores.

Ela precisa encontrar Frank e xinga a si mesma por não ter o número de Elspeth, nem das ex dele. As mães dos filhos dele. Ainda deixa Melanie desconcertada que existam outras mulheres com quem ele teve filhos, em vista do jeito forte, caloroso, gentil e exclusivo que ele usa com ela e as meninas. Nos encontros dos dois na penitenciária, ela tomou conhecimento de que antes ele levara uma vida diferente e mais desesperada; isto foi racional e emocionalmente absorvido por ela. Porém, a parte mais difícil é reconhecer a existência daqueles que partilharam essa vida e ter de lidar com essas pessoas.

Registrando-se no pequeno hotel conhecido na Dalkeith Road, Melanie não pediu especificamente pelo quarto 8, mas é colocada nele. Ela se deita na cama e reconhece que foi este o cenário da primeira vez que eles ficaram juntos como amantes, e as lembranças voltam numa enxurrada. Era para este quarto que ela e Jim iam toda segunda-feira, quando ele tinha um dia fora da prisão no projeto de Treinamento para a Liberdade.

– Eu poderia foder com você como um desembestado – disse ele. – Mas na verdade quero que você me mostre como se faz amor.

– É um prazer fazer isso – respondeu Melanie –, desde que você concorde que a gente foda como desembestados depois.

O acordo foi selado e cumprido. Foi muito fácil, porque Jim não podia foder como um desembestado. Ele estava perdido, impotente em tudo, exceto na mente, inútil entre pessoas reais, como muitos homens que cumpriram sentenças longas de prisão ou eram espectadores compulsivos de pornografia. Melanie teve paciência e, nas mãos dela, a sexualidade dele foi cuidadosamente restaurada. Parecia a ela que ele ficou entusiasmado, até aliviado, de poder começar do zero.

Mas agora ela está ali, sozinha. Onde o encontraria? Tinha de ser no Leith. Os antigos bares. Com riscos ardendo por trás das retinas, ela decide: não voltarei sem ele.

Mas não podia fazer nada sem um bom período de sono.


27
O CASAL

Opub fica em uma rua secundária e estreita no South Side, perto do Holyrood Park. Escapou da lenta gentrificação do bairro, ainda conseguia parecer enfumaçado, embora nem um cigarro fosse aceso ali desde a proibição, muitos anos atrás. Franco de imediato pensa nos pulmões de June enquanto vai ao balcão de madeira surrada e pede uma bebida.

Virando-se para olhar os assentos, ele vê John Dick sentado no canto, esperando por ele. Dick tem à frente um caneco de Guinness, mas nota com aprovação o copo de suco de laranja que Franco leva à mesa.

– Pelo que vejo, ainda não bebe.

– Prefiro viver – diz Franco, arriando no assento acolchoado ao lado do carcereiro da prisão.

– Você virou um sujeito decente!

Um casal sentado de frente para eles, perto do alvo de dardos e de uma jukebox com uma placa de COM DEFEITO, tem uma discussão acalorada.

– Você sabe como! – a mulher, de estrutura atarracada, cabelo preto cacheado e o rosto espremido, desafia.

– Graças a você – diz Franco a John, olhando o casal de relance.

– Graças a você – John aponta para ele –, com a inteligência e a coragem para ver que o contrário não daria em nada e se refazendo. – Ele toma um gole da cerveja. Depois sua voz, em retaliação, fica baixa. – Agora você vai jogar tudo isso fora por aquele lixo do crime.

– É o que você acha? – Franco ouve o desafio inundar a voz, sabendo que seu mentor na prisão vai perceber o vazio disto tanto quanto ele.

– Frank, pensei que tomar decisões ruins na vida fosse um hábito que você tivesse abandonado. – A língua de John dispara para remover a espuma do lábio superior. – Agora você está voltando à sarjeta com um pulha como Anton Miller.

Sentindo-se como quem regride a um adolescente amuado, Franco decide que é hora de recuperar o controle.

– Nunca vi o garoto – explica ele com paciência. – Não o reconheceria se ele entrasse aqui agora.

– Mas esteve fazendo perguntas sobre ele. E eu soube que ele quer ver você. – John fixa nele um olhar de coruja. – Por que está fazendo isso?

– Fazendo o quê?

– Ainda está aqui. Sean já se foi – diz John com frieza. – Não há nada para você aqui. Nada além de Miller e outros problemas. – Ele olha rapidamente o casal estridente. Sabe que eles estão no radar de Frank Begbie. – Volte para Melanie e as meninas, Frank. Agora sua vida é esta.

Franco respira fundo e olha intensamente para John.

– Não sei com quem você esteve falando – protesta ele calmamente –, mas a realidade é que não fiz uma só pergunta a respeito de Miller. São os outros que ficam jogando seu nome aqui e ali, dizendo que ele estava envolvido com Sean.

Eles são incomodados por um grito do outro lado do bar.

– PORQUE VOCÊ É BURRA! VOCÊ SEMPRE FOI BURRA PRA CARALHO! – grita o homem para a mulher, que parece encolher em si mesma, depois fervilha em uma fúria silenciosa.

– Se esteve ou não, esta batalha não é sua. – John Dick sacode suavemente o pulso de Frank Begbie para desviar a atenção dele do casal. – Ele vai exterminar você, Frank. Você é só um obstáculo. Ele tem sangue-frio, não existe ego nenhum ali, apenas o cérebro de um inseto com superpoderes. Será uma bala na cabeça disparada de um carro de passagem, você nem mesmo vai ver.

– Levante mais o meu moral – diz Franco, olhando o suco de laranja na mesa. Ele não tem a intenção de tomar essa merda, como não tem de beber álcool. Escócia? Ali nunca se viu um suco de laranja de verdade.

– TRAIDOR!!!

Mais uma vez eles são distraídos pela briga do casal. A mulher se levantou.

– VOCÊ É UM TRAIDOR DE MERDA, JIM MULGREW! UM MENTIROSO DUAS CARAS DE MERDA! – Ela se vira e apela ao restante do bar, inclusive a Franco e John.

O homem, Jim Mulgrew, a dispensa com um gesto da sua mão.

– Tá bom, como quiser!

Frank Begbie vira a cara. Ele conhece o tipo. Imbecis, que querem sugar o mundo para sua órbita patética e tediosa. Os bêbados sempre são dramáticos. Olha pra mim. Estou sofrendo. Sinta a minha dor.

Eu, hein. Vão se foder.

E agora John Dick, uma pessoa que ele respeita muito (e tais indivíduos são raros), está lhe passando um sermão.

– A única pessoa que está prejudicando agora é você mesmo. E Melanie e as crianças, são elas a verdadeira guerra que você deve travar.

– E quem falou em guerra? – Franco então percebe que ele falou, no funeral. – Só quero saber o que aconteceu com meu filho.

– Guerra é o que faz Anton Miller, Frank. – John solta um longo suspiro. – Fique fora dessa.

– Um bom conselho.

– Mas?

– Não tem mas. É um bom conselho e pronto – declara Franco enfaticamente. – John, todos os babacas me encheram a cabeça, falando Anton isso, Anton aquilo. Ele matou seu garoto, toda essa merda. Não me interessa. – Ele meneia a cabeça e olha rapidamente a briga do casal. A mulher claramente se afastou do homem, mas ainda está sentada à mesma mesa. Ele se vê desejando a ela: Vai embora, caralho.

– Lembra-se do garoto que roubou aquele dinheiro seu, em Londres? Aquele velho amigo de que você costumava me falar? – pergunta John Dick. – Que você ficou tão irritado quando o viu anos atrás que disparou pela rua, consumido de fúria, que nem mesmo notou o carro que vinha e ia te arrebentar?

Renton.

– Mark Renton. Como eu poderia esquecer? O sujeito que eu matei, Craig Liddel, o Seeker, como chamavam, nós tínhamos uma longa vendeta e quem começou fui eu. Fiquei obcecado pelo cara, só porque ele era um parceiro de Renton. Achei que ele sabia onde estava Renton – Franco ri com azedume –, que os dois estariam rindo de mim. Na realidade, Renton tinha tudo a ver com gente como Seeker, ele o conheceu na reabilitação, e às vezes vendeu drogas pra ele. Só me envolvi com o Seeker graças a minha obsessão por pegar Renton. Não tinha sentido. Agora ele morreu e eu perdi oito anos de minha vida. Por nada – ele lamenta.

– E o que você acha desse Renton agora?

Frank Begbie parece pensar nisso, rola o lábio inferior por cima do superior.

– Consigo enxergar do ponto de vista dele. Ver que ele tinha de dar o fora – reconhece Frank, de testa franzida. – É estranho, mas provavelmente ele foi o único amigo de verdade que já tive.

John Dick passa o dedo pela borda do copo.

– Você entende o que te custou sua obsessão por pegá-lo? Algo que agora não significa nada para você? Sua obsessão por todas essas pessoas?

Agora Franco fica irritado com a impertinência de John. Porque ele o desafia constantemente, como fazia na prisão, fala com ele como ninguém jamais fez. Porque eu vejo o que você é, certa vez John disse a ele. Isto o enfureceu, foi um desafio e por fim ajudou muito Frank Begbie. Porque ele sabia que John via além do que ele estava disposto a mostrar ao mundo. Mas as coisas mudaram. Agora talvez John Dick tenha se tornado só outra pessoa nesta cidade que ele precisa evitar.

– É claro que entendo – declara Franco. – Se você fica obcecado por fracassados e se associa com eles, acaba se tornando um deles. Este é o sentido de tudo, reconhecer isto. Minha vida desperdiçada naquelas vinganças inúteis; Cha Morrison, os Sutherland, Donnelly, Seeker... Não vou colocar esse Anton na lista.

John parece satisfeito com a resposta, e seu estado de espírito fica mais brincalhão.

– E então, o que vai fazer se ele entrar aqui agora, o Renton, aquele velho camarada que te roubou?

– Sei lá, porra, talvez pagar uma bebida pra ele e dizer que me deve uma grana com juros de vinte anos. – Ele ri.

John agora ri com ele.

– Eu vi você se reprogramar dolorosamente, com todos aqueles livros que você leu. E eu sei quanta luta isso representou, com a dislexia. – E seu mentor o olha com uma admiração patente. Isto sempre fazia Franco se sentir uma criança, ansioso por fazer melhor. Não se sentia assim desde que seu velho vô Jock passou a se interessar por ele. Teria sido bom ter tido alguém como John naquela época em vez de Jock e seus parceiros. Talvez ele tivesse opções diferentes. – Não jogue tudo isso fora. Não volte para o buraco negro, Frank.

Frank Begbie pensa no assunto.

– Às vezes eu me pergunto se algum dia realmente saí, John.

John está prestes a protestar quando o homem chamado Jim Mulgrew levanta-se e dá um soco na cara da parceira. Ela solta um grito e se senta com a cabeça nas mãos. Isto atrai um ofegar e troças por parte dos outros bebedores. Frank Begbie continua imóvel, olhando Jim Mulgrew, que se senta, indignado, na cadeira. O barman se aproxima do agressor.

– Muito bem, você, dê o fora daqui!

– Estou indo – diz Mulgrew, levantando-se para sair do bar.

A mulher passa a mão no queixo. Não foi um soco tão forte, mas vai inchar. Há algo horrível nos olhos dela, junto com o medo e a dor, uma espécie de justificação satisfeita.

– Ele vai voltar. – Ela se dirige aos bebedores reunidos.

– Não, pra cá ele não vem, e nem você – anuncia o barman. – Espere alguns minutos pra ele se afastar dessa rua, depois você sai daqui também.

– Não fiz nada, o que foi que eu fiz?

– A propósito, hora de partir – diz Frank Begbie a John Dick, percebendo que antes ele teria se envolvido neste incidente, em detrimento de todos. Ele se lembra de certa ocasião em que uma discussão familiar agressiva acontecia em um bar no Leith. Ele se aproximou e passou o braço pelo ombro de cada parte, puxando os dois para ele, em um gesto de conciliação. Depois bateu a cabeça nos dois, um depois do outro.

– Tudo bem, Frank, me desculpe pela insistência. – John Dick estende a mão. – Sei que você vai passar por um período difícil.

Frank Begbie aperta a mão dele.

– Se você não desse a mínima, não teria dito nada. Mas não se preocupe, John, estou num bom lugar. – E ele dá um tapinha na cabeça e pisca para seu mentor. É importante dizer as coisas certas, expressar o sentimento correto. Um primeiro-ministro pode proteger na calada pedófilos ricos usando a lei de sigilo oficial desde que tenha declarado publicamente que não deixaria pedra sobre pedra para levar essa gente à Justiça. Era expressar o contrário da ação que lhe dava esta permissão. Em geral as pessoas queriam acreditar que você foi sincero; as consequências de pensar o contrário eram desagradáveis demais para ser consideradas.

– Um lugar melhor do que esses desperdícios de espaço. – John aponta para a mulher e a cadeira vazia de Jim Mulgrew.

Franco olha atravessado para ela, agora resmungando baixinho injustiças sentidas.

– Eles deviam aprender salsa – ele diz a John –, todo aquele estilo de vida, isso os impediria de voar um no pescoço do outro.

E Frank Begbie sente-se profundamente satisfeito consigo mesmo ao se despedir de John Dick, quase saltando do bar para o furgão. E então, enquanto o abre, sente algo duro pressionando com força sua têmpora. Sabe que é o cano de uma arma.

– Não se mexa ou vou explodir sua cabeça – diz calmamente uma voz. Em seguida a mão se estende ao bolso de seu casaco, retirando o telefone Tesco e, ao mesmo tempo, colocam nele um capuz. Enquanto este ato apaga a luz do mundo, ele respira fundo, enche os pulmões, como um suspiro ao contrário.

Ele não consegue enxergar nada além de alguns pés e paralelepípedos ao ser empurrado para a traseira de um veículo. Pelo estribo e pelo tamanho, parece um SUV grande. Depois ele sente o cinto de segurança passado confortavelmente por ele, como ele faria com Grace e Eve. Nem um só vislumbre dos rostos de qualquer dos homens que o apanharam, só a consciência de que estão um de cada lado dele no banco traseiro enquanto o veículo arranca e acelera.


28
O ENTREGADOR 4

Era o dia depois do incidente com Johnnie quando os vi de novo. Eu ia a pé da escola pra casa e olhei pela janela do Marksman Bar na Duke Street. Eles estavam ali, através de uma névoa de fumaça azul de cigarro, sentados, bebendo, cheios de ânimo. Era aquela euforia que sempre vinha de quem se gaba por provocar sofrimento em algum rival. Eu a senti em outros, enquanto passava a sentir em mim mesmo: aquele impulso arrogante e exibicionista em que você se sente invencível e se regozija do próprio poder.

O vô Jock me viu ao olhar por cima do caneco de cerveja, seus olhos maliciosos fixos nos meus. Eu sabia que ele havia apanhado algo neles. Ele sorriu e fiquei com medo.

O corpo de Johnnie foi encontrado dois dias depois. Um segurança viu um bando grande demais de gaivotas pela doca seca, brigando, gritando, atraídas pelo cadáver. Os ratos também estiveram ocupados, e assim a identificação demorou algum tempo, ou foi o que disse um pessoal do lugar. Vários babacas provavelmente se deliciaram ao imaginar a carinha bonita de Johnnie devorada por carniceiros. Aquela cara sorridente que teria pairado acima de muitas esposas e namoradas enquanto elas gemiam de prazer embaixo dele.

Saiu no Evening News e no Scotland Today. Quando o vô Jock apareceu com Carmie e Lozy pro carteado, perguntei a eles sobre isso. Jock deduziu que eu sabia mais do que estava admitindo.

– Aquele lixo podre já foi tarde – disse ele baixinho, sem tirar os olhos da mão de cartas.

– Pensei que Johnnie era seu amigo!

Houve silêncio em torno da mesa. E então meu pai me olhou com uma carranca cruel de bêbado.

– Fecha o bico, filho. Estou te falando... – Sua voz era arrastada. – Guarda as coisas que você sabe!

Mas agora ele era o babaca que sabia. Meu avô levantou a cabeça e deu uma piscadela pra mim.

– Não... tá tudo bem – disse ele a meu pai e ele se levantou, gesticulando pra que eu o acompanhasse até o corredor. Atravessamos a cozinha e fomos pro quintal pavimentado, onde estavam as lixeiras. Fazia frio. Ele dava a impressão de não sentir. Acendeu um cigarro, me deu outro.

– Lembra daquele cachorro que seu pai levou pra casa, tempos atrás?

Eu me lembrava de Viking, o pastor alemão que meu pai levou do abrigo pra casa certa vez, quando estava bêbado. Um bom cachorro, mas mordia todo mundo e tivemos de sacrificar.

– Lembro.

– Você adorava aquele cachorro, lembra? Mas ele te mordeu. Um cachorro não pode evitar. Ele te ama, mas um dia vai te trair.

Concordei com a cabeça. Viking enterrou os dentes em meu tornozelo sem motivo nenhum. Estávamos correndo no Pilrig Park, ele se virou pra nós e me mordeu. Deve ter ficado excitado demais e não conseguiu se controlar.

– Não foi culpa do cachorro. – Ele tirou um bom trago e soprou a fumaça no ar frio. – Era só a natureza dele. As pessoas também são assim, garoto. São suas amigas... – e então ele arreganhou os dentes pra mim – até que não são. Entende isso, amigo?

– Sim – respondi.

– Muito bem. Vamos voltar pro calor. – E apagamos os cigarros e voltamos pra sala da frente, ele pro seu jogo de cartas.

Mas naquela noite fiz algo que nunca havia feito e jurei que jamais voltaria a fazer. Fui à cabine telefônica e liguei pros canas.


29
O JOVEM SENHOR DA GUERRA

Por um lado, o silêncio durante o percurso de carro o agrada. Por outro, é preocupante, indica que ele está sujeito a uma severidade fria e a profissionalismo. Os babacas do Power não têm disciplina para guardar um silêncio tão grande. No mínimo, teriam sido levados a zombar de seu celular comprado na Tesco. Ele calcula três homens, um no volante, dois na traseira com ele. Mas, em vez de tentar entender aonde vai, ele se concentra na respiração, lentamente, através do capuz quente em seu rosto, e deixa que os pensamentos vaguem para longe das intervenções indesejadas do avô, para a mulher e as filhas. Se estiver acabado, ele vai sair de cena pensando nelas.

Debaixo daquele capuz escuro, ele levanta Eve bem alto nas dunas de areia, depois estende para Grace ver um caranguejo agressivo que mexe as patas. Ela ri, dançando na frente do bicho, deliciada. Depois Melanie está em seus braços, eles dançam salsa na sala, para fascínio das meninas. Ele quer mostrar às filhas que é isto o que homens de verdade fazem com as namoradas – que este êxtase, esta beleza e esta diversão elas podem esperar do amor. Ele respira com regularidade, está em paz. As paradas constantes nos sinais lhe dizem que ainda está na cidade, mas pode ser que o estejam levando a qualquer lugar. E então, de súbito, ele sente sacolejos conhecidos de paralelepípedos abaixo do SUV, conhece a sequência deles. A isto se segue o ronco de uma grade.

Eles estão nas docas do Leith.

Eles param o carro e o ajudam a sair. Seguram-no com firmeza, mas não com uma agressividade exagerada. Quando o capuz é retirado e ele pisca para a luz mortiça, um moreno, de cabelo curto e olhos duros, no início dos vinte anos, entra em foco, de frente para ele. O homem está bem-vestido, não na moda casual ou de gângster, mas como um jovem profissional liberal. Seu rosto é limpo e imaculado, tirando uma cicatriz fina acima do lábio superior. Franco pensa em quem provocou aquela cicatriz. Será que ele se foi para sempre ou quem sabe anda por outra cidade, impunemente?

– Você deve ser Anton.

O jovem assente. Há outros dois homens com Anton, quase o flanqueiam, talvez um passo atrás. Nas roupas e no porte, parecem versões mais baratas e inferiores. Frank Begbie de imediato fica menos impressionado. Agora ele interpreta o silêncio deles como deferência a um líder disciplinado, e não uma competência inerente.

– Um pequeno conselho – diz Franco com indiferença –, vá fazer exames. Na clínica de DST.

O rosto de Anton Miller ainda está impassível, embora uma sobrancelha tenha se erguido ligeiramente. Seus capangas ficam eriçados, o mais parrudo deles avança um passo.

– Como é que é? – diz ele, com os punhos fechados.

– A tal garota Flanagan – diz Frank Begbie, ignorando inteiramente os outros homens, sem jamais tirar os olhos de Anton Miller. – Uma boa xota, mas trepou demais. Larry já andou por lá e ele não era de usar camisinha. Duvido que isso tenha mudado.

Anton Miller assente devagar com apreciação contida. É como se Frank Begbie tivesse sido aprovado em um teste ou talvez em dois: do discernimento e da garrafa.

– Não trouxe você até aqui pra discutir minha saúde. Quero te olhar nos olhos e dizer uma coisa com franqueza.

– Acho que sei o que é – diz Franco –, que você não tem nada a ver com a morte de Sean. Bom, eu mesmo imaginei isso.

Anton ergue as duas sobrancelhas.

– Ah, sim, e como chegou a essa conclusão?

– Imbecis demais cantando a mesma partitura. Orquestrada por um escroto que sempre faz esse tipo de coisa. Que vem fazendo isso há um tempão.

– Power – Anton escarnece.

Ele nota o capanga mais atarracado, aquele que avançou um passo, trocar um olhar com o outro cara; mais magro, de nariz aquilino.

– A regra de ouro: se o escroto gordo diz açúcar, eu penso merda. – Franco abre um meio sorriso. – Não foram muitas as regras que me serviram. Queria ter me lembrado mais dessa.

Anton sorri, permitindo que Franco sinta o carisma frio do homem mais novo. Que tipo de educação ele recebeu não tem importância nenhuma: é evidente que tem uma inteligência formidável. E então um brilho focalizado aparece em seus olhos.

– Você não parece tão perturbado prum homem que perdeu o filho há pouco tempo.

– Nunca fui próximo dele. – Franco dá de ombros. – Não tem sentido mentir sobre isso, nem fingir um draminha de merda pra agradar os outros. É claro que quero saber o que aconteceu, mas é só isso. – Ele olha em volta, observando os guindastes e, mais além, as unidades da fábrica, o cassino recém-construído. – Não tenho investimento emocional neste lugar. Além disso, os tempos mudaram. – Franco assente para Anton e seus homens com um meio sorriso. – Aqui, estou fora do meu elemento.

– Franco Begbie, fora do seu elemento. – Anton parece brincar com essa tirada. – Tem certa reputação nesta cidade.

– Talvez antigamente. Mas gente como vocês é sempre melhor do que eu; gente como você e Power. Nunca estive nessa classe. Era só um marginal. Um marginal bom, mas só isso. – E ele pensa na declaração de Davie “Tyrone” Power. – Eu nunca tive o gosto empreendedor de vocês.

Um leve sorriso que podia ser uma reação à lisonja brinca nos lábios de Anton, mas os olhos cinza de lápide continuam glaciais.

– Soube que você se deu bem. É artista, na Califórnia.

– Nada mau – admite Franco –, mas é tudo exagero e moda. Eles compram minhas coisas porque está em voga. Então faço toneladas disso e ganho enquanto puder. Um dia, em breve, vão perder o interesse. Até lá, aproveito o sol enquanto brilha.

– Você é um homem inteligente.

Frank Begbie nega com a cabeça.

– Passei tempo demais na cadeia pra ser chamado disso.

Anton olha para os seus parceiros, depois de volta a Begbie.

– Vamos dar uma volta, só nós dois.

Franco concorda com a cabeça, pensando, aconteça o que acontecer, um contra um é uma probabilidade melhor do que um contra três. Eles andam juntos pela beira da antiga doca, afastando-se para o cais e o molhe. O vento é frio e cortante quando eles param, recostando-se em uma grade, olhando as águas profundas e opacas do estuário do Forth. Frank Begbie pensa no oceano Pacífico perto de sua casa, todos aqueles tons de azul. O que ele está fazendo ali, com todos esses tons de cinza? Será que Anton quer uma briga justa ou pretende atirar nele e empurrar seu corpo no mar?

Ou talvez ele só queira conversar. Certos tipos de sucesso podem levar ao isolamento e deixar as pessoas solitárias.

– Ganhei dinheiro. Mas está no exterior. No banco. – Anton olha fixamente o horizonte, mas com intensidade, como se visse alguma coisa lá.

– Foi o que eu soube – disse Franco. – E não vou mentir que não estou impressionado. Até gente como Power, ele precisa de vinte anos pra ter o senso que você tem agora.

Anton se vira para ele com um olhar impaciente, quase malicioso.

– Sabe como é fácil ir à Suíça e abrir uma conta de pessoa jurídica num banco? Ou mesmo nas ilhas Cayman? Você embarca na porra de um avião, entra num banco com seu passaporte e um saco cheio de dinheiro. Diz que quer abrir uma conta de empresa. Só isso. É mais difícil abrir uma no RBS ou no Clydesdale.

Begbie continua impassível.

– O que quero dizer é que essa gente de conjunto habitacional é avessa a entrar na merda de um avião que não vá pra Amsterdã, Ibiza, a Tailândia ou algum jogo de futebol. Algum lugar aonde eles dizem que podem ir. Eles preferem enfiar o dinheiro debaixo do colchão.

– Confio em meu banco na Califórnia – declara Frank Begbie. – É claro que eles roubam, mas o dinheiro não vai pra lugar nenhum.

De súbito, Anton olha para Franco de um jeito diferente, como se pensasse que talvez ele estivesse sendo enganado.

– Você acorda com o sol toda manhã, uma mulher bonita, filhas, olhando pro mar. Sem nenhuma preocupação, sem cautela. Isso ainda está alguns anos adiante de mim.

Franco tenta se manter inexpressivo, mas sente a dúvida rastejar para sua expressão.

Isso não passa despercebido a Anton, que reage com um sorriso que brevemente o faz parecer juvenil, mas um tanto mais perigoso.

– Ah, sim, tem razão em ficar cético. Papo furado, todo idiota diz isso, mas eu virei um alvo. O valor está escrito, preto no branco. Estou quase lá. Então, eu vou. Não sei para onde, mas um lugar quente e ensolarado.

Franco pensa nele mesmo nesta idade, comparativamente um reles primitivo. É muito estranho que um homem tão jovem possa ter uma conversão dessas. Mas o quanto ele realmente considerou?

– O que vai fazer quando chegar lá? – pergunta ele.

Franco vê, pelo leve estreitamento dos olhos dele, que esta pergunta afetou Anton.

– Essa é a parte em que ainda preciso pensar – admite ele, virando-se para o mar. – Mas sei o que não vou fazer. Meu velho trabalhou muito na vida. Ele era soldador. Depois isso acabou, os estaleiros fecharam. Então ele trabalhou um pouco no exterior. Depois voltou, pegou um emprego nos furgões de detecção de televisores que medem a audiência. Olha só, ele era muito careta, não fez merda nenhuma de errado a vida toda. – Anton se vira novamente para Frank Begbie. – Imbecil de merda.

– Acho que não conheço o cara – responde Franco, inexpressivo.

– Pode acreditar – Anton escarnece. – Você precisa botar fogo no mundo. – E seus olhos de súbito se inflamam, como quem ilustra a ideia. – E veja o seu Sean, sempre gostei daquele garoto. Ele era legal, muito divertido. E não sei o que os putos andam dizendo, ele nunca me roubou na vida.

– Isso é bom – diz Franco –, poder confiar nas pessoas.

– Mas ele era um doidão. – Anton meneia a cabeça. – As drogas dominaram o cara. Drogas que eu vendia, que ele vendia. Eu costumava dizer a ele: venda drogas e fique rico. Tome drogas e você se fode. Pra mim, esta sempre foi a regra simples e definitiva. Sean devia ter entendido isso. Ele não era burro. Até se drogar.

– Nunca o conheci assim tão bem. Ou eu estava na prisão, ou amarrado com outra garota quando ele estava crescendo. Mas soube que era viciado em drogas. Isso é uma decepção pra mim. – Franco arqueia a sobrancelha. – Essa gente sempre decepciona.

A voz de Frank Begbie baixa a um tom ameaçador, mas Anton agora parece perdido nos próprios pensamentos sombrios.

– O meu velho; comprei pra ele e minha mãe uma casa num lugar bonitão em Barnton, longe do conjunto. Levei os dois até lá de carro. Uma grande surpresa. Mostrei a eles um condomínio com muro e portão, jardins com paisagismo, tudo, e entreguei a eles as chaves. Ele me disse que não se importava, recusou-se até a desligar o motor. Minha mãe arregalou os olhos, a casa de seus sonhos, e aquele imbecil nem mesmo saiu da merda do carro pra olhar. E também não deixou que ela saísse. Disse que não queria nada que fosse pago com dinheiro desgraçado. Foi o que ele disse: dinheiro desgraçado. Dá pra acreditar nessa porra?

Franco fica em silêncio, olha o mar. A luz diminui. Está ficando muito frio.

– Às vezes é difícil entender as pessoas – declara ele, depois olha para Anton. – Quem você acha que matou Sean?

Anton encara friamente os olhos dele.

– O mais fácil de dizer seria Power ou alguém da turma dele. Só que seria uma mentira. A verdade é que não tenho a menor ideia. Mas, se você descobrir, conte pra mim. É como eu digo: Sean tinha seus defeitos, mas eu gostava dele.

– Não o bastante pra ir ao funeral.

– Não havia muito que eu pudesse fazer por alguém depois de morto. – Anton dá levemente de ombros. – Acha que metade dos filhos da puta que estiveram lá, aqueles fantasmas de merda, realmente queria prestar seus respeitos a Sean? Se eu aparecesse, teria criado clima, com Power e alguns outros. Mostrei o meu respeito mantendo-me longe dali.

Franco pensa nisso e em seu confronto com Cha Morrison.

– É bem verdade.

– Sabe de uma coisa... temos algo em comum. – Uma leve tristeza penetra na voz de Anton. – Sean não era o filho que você queria. Meu velho não era o pai que eu queria.

– Agora nós dois somos velhos demais pro incômodo da papelada de adoção.

Anton dá uma gargalhada.

– É bom conhecer alguém que não tem medo de mim.

– Como sabe que não estou só fingindo?

– Eu sei – diz Anton. – E também sei que você não tem nada contra mim.

Franco sorri com essa.

– E se eu tivesse?

– Ah, a essa altura você estaria morto, e sua mulher e as filhas – Anton diz a ele e estende o celular Tesco. Há uma mensagem de texto de Melanie exibida na tela luminosa verde-amarelada.

Telefone assim que receber esta mensagem. É urgente. Te amo. Bjs

– Devia telefonar – diz Anton Miller impassível e entrega o aparelho. Ao pegá-lo, Franco Begbie tenta ver se o homem mais novo está puxando o ar para dentro. Não consegue discernir nada.


30
A PARCEIRA DE DANÇA 5

As aulas de salsa no Santa Barbara Dance Center eram movimentadas e todos os participantes eram casais. Melanie viu os dois gays no grupo e registrou Jim olhando atentamente o par muito exuberante. Depois ele examinou os outros casais e, notando que estavam todos despreocupados, aparentemente perdeu o interesse por eles. No fim da sessão, Melanie foi conversar com os homens, Ralph e Juan, descobrindo que ambos também trabalhavam na Universidade de Santa Barbara. O quarteto decidiu sair para uma bebida no wine bar do outro lado da rua.

Isso se tornou um hábito, com frequência incluindo Sula e outros integrantes da turma. Jim era um dos poucos presentes que nunca tomava bebida alcoólica. As noites não eram tumultuadas; provavelmente só houve uma ocasião em que todos ficaram muito embriagados e Jim os observou, divertindo-se, um tanto desligado.

Melanie acordou duas vezes. Primeiro, pouco antes das duas da manhã; depois, logo após às cinco, mas nessas ocasiões conseguiu se enterrar de novo no domínio do sono. Quando volta à consciência outra vez, fica horrorizada porque são quase dez horas e ela se sente mais exausta do que nunca. Entretanto, obriga-se a se levantar e tomar um banho, vestindo-se enquanto rola ao fundo um desconhecido programa da televisão britânica. Para o café da manhã, ela localiza uma cafeteria na South Clerk Street, aliviada ao descobrir que os pratos são mais do que aceitáveis para seu paladar californiano. Dois cafés espressos a ajudam a começar o dia.

Há outra mensagem de Harry, agora sóbrio e contrito. “Melanie, é Harry, Harry Pallister. Vejo pelo meu identificador de chamadas que liguei para você ontem. Só consigo me lembrar vagamente. Eu estava muito bêbado e peço desculpas. Tive problemas com a depressão e tirei licença médica para me tratar, e entrei para o AA. Por favor, perdoe-me. É Harry Pallister”, ele repete. “Até breve.”

– Vá se foder você e seu papo furado – diz Melanie para o telefone.

Como o pacote de dados de seu celular se prova desastrosamente caro, ela localiza uma lan house, onde encontra o endereço de Elspeth a partir de um antigo e-mail. Data do funeral da mãe de Jim, a que ela não pôde comparecer porque Grace tinha apenas semanas de idade. Ela localiza o endereço no Google Maps e parte para a zona oeste da cidade. Edimburgo ficou súbita e imprevisivelmente muito quente e ela logo se sente vestida demais com a blusa de moletom, e a amarra na cintura.

Lembrando-se de sua única visita anterior à cunhada, Melanie prevê uma recepção hostil. Foi em um Natal, acabou em desastre, durante o qual Elspeth e o irmão de Jim... não, o irmão de Frank ficou bêbado e fez uma cena horrível. Isso pesa muito em sua mente enquanto ela desce do bonde e se aproxima da casa.

Agora ela fica surpresa ao ser tratada com muito calor humano. Elspeth está chorosa, explica que a casa foi atacada por bandidos que procuravam por Frank, e George sofreu um corte na mão. Melanie reprime o pânico crescente quando a cunhada conta a história. Elspeth conclui dizendo que todos concordaram que seria melhor se Frank se mudasse e ele foi se hospedar com um velho amigo, Larry.

Melanie não se lembra de ter ouvido o nome de Larry, talvez de passagem, mas Frank costuma ser reticente ao falar dos antigos parceiros. Ao contrário de muitos dos homens perigosos que ela conheceu, ele não tem a tendência de falar do passado. Ela tomou isto como um sinal de que ele o deixou para trás. Agora sente uma insinuação mais sombria.

Elspeth não sabe o endereço de Larry e elas tentam o telefone britânico de Frank novamente, mas cai direto na caixa postal.

– É assim o tempo todo.

A família tenta convencer Melanie a se hospedar com eles em Murrayfield, mas ela declina. Elspeth insiste em que ela pelo menos faça uma refeição com eles. Melanie concorda, feliz, e conversa com os meninos. George e Thomas estão fascinados por ela, acometidos de uma paixão infrutífera pela exótica tia americana que eles se lembram de ter conhecido alguns anos antes.

– Você teve um bebê, depois outro – diz Thomas.

– Tive!

– Quando eu ficar mais velho, vou pegar um avião e visitar você e o tio Frank e conhecer as meninas – George se adianta.

– E seria muito legal. Como está a sua mão?

Ele sacode uma luva de curativo.

– Fiquei com medo, mas acho que foi só com a janela sendo quebrada e todo aquele vidro voando. Já tive um corte mais feio fazendo a barba.

Enquanto Melanie ri, Elspeth puxa o fôlego, desanimada, e olha para Greg.

Mais tarde, quando Melanie se levanta e anuncia a intenção de sair para procurar Frank, Elspeth a puxa de lado. Melanie acredita que a cunhada tentará dissuadi-la de tomar este curso de ação, mas, em vez disso, ela roga:

– Leve-o pra Califórnia quando o encontrar. Esta cidade não é mais lugar pra ele. Não importa o que penso dele, é evidente que ele fica muito melhor com você lá do que ficou conosco por aqui. Agora posso ver isso.

Melanie se lembra das conversas sinistras de Harry e reza para que Elspeth tenha razão. Ela vai embora, sem saber que de imediato é seguida na rua por um homem que esteve vigiando a casa de Elspeth na esperança de que outra pessoa voltasse lá.

Pegando um táxi para a Leith Walk, Melanie desce em Pilrig, passando a um chuvisco refrescante. O tempo virou de novo. Seu plano envolve fazer uma ronda pelos pubs, mostrando aos frequentadores de cada bar a foto de Frank no telefone até o encontrar. E ela reza para que, quando conseguir, ele esteja bem, talvez meio bêbado, depois de uma recaída, divertindo-se com uns velhos amigos.

Ela consegue apenas dar uma volta infrutífera quando, ao andar pela Walk, vira-se e vê uma limusine encostando no meio-fio a seu lado.


31
O AMIGO

Mais uma vez, o sol saiu em Edimburgo. Abre-te sésamo. A cidade muda, de imediato brilha de otimismo. A picardia está no ar. Garotos se pavoneiam e meninas desfilam, com pouca roupa e trocando meios sorrisos diabólicos. Franco fica feliz por ter optado por não trazer um casaco e exibe uma camiseta cinza vintage com um urso andando e CALIFORNIA REPUBLIC estampado abaixo dele. E agora ele e Larry rodam de carro pela cidade, conversam sobre antigos conhecidos e dos velhos tempos. Franco tem a sacola no colo, contém objetos que pegou emprestado com o amigo, para a qual se desviam os olhos do motorista.

– Pensei que você fosse um homem casado, acima de tudo – ele o censura, com um riso obsceno.

– Eu me pergunto o quanto realmente mudamos – responde Franco com secura. Ele lembra que Anton e seus amigos o deixaram nas docas na noite da véspera. Quando eles foram embora, a raiva levou a melhor sobre ele, e Franco, numa catarse, esmagou com o calcanhar a fonte de sua infelicidade, o celular Tesco, chutando os destroços para o rio Forth. Agora ele quer pedir emprestado o telefone de Larry, a fim de ligar para Melanie.

Mas ainda não.

– Bom, você não mudou nada. – Larry aponta para a sacola com um gesto de cabeça, formando rugas em volta dos olhos. – E aí, fez compras pra quem, seu cretino filho da puta?

– Não sou de me gabar nesse assunto de mulher.

– Deve ser aquela Frances! Um sexo selvagem, você goza pra caralho... é só dar umas vodcas pra ela e você mete à vontade! Aposto que já deu uma espiada na minha fita – diz Larry, olhando da rua para Franco.

– Você me inspirou, Larry – Franco sorri –, mas não é ela, estou atrás de uma jogada maior.

Larry ri, satisfeito por renovar o vínculo com o velho amigo. Franco passou fora o dia todo da véspera e só voltou muito tarde. Larry tentou xeretar seu paradeiro, mas, como sempre, não recebeu nenhuma informação. Assim, ele se contenta com conversas banais.

– Ah, os velhos tempos... bons tempos, Franco.

Mas Franco está meneando a cabeça. Não, ele não quer usar o telefone de Larry para ligar a Melanie, até porque a essa altura não agrada a ele a ideia do número dela armazenado ali.

– Foram mesmo, mas sabe, Larry? Não tenho nostalgia nenhuma – diz ele, lembrando-se de fragmentos de violência, bonomia e sexo abastecidos por álcool. Depois os longos períodos entre uma coisa e outra, preso em uma cela. A saída. Um recomeço. Uma nova garota. Grandes planos. Decisões tomadas.

E depois outra provocação besta. Outro incidente.

O mesmo padrão deprimente que devorou sua juventude. Todos os odores, as zombarias e o riso vazio de outros homens parecidos com ele, veteranos do sistema penitenciário. Em geral desafiadores, mas essencialmente derrotados; sitiados pela verdade terrível de que eles nunca souberam se afastar daqueles lugares tristes e opressivos.

E então, o mentor. O tratamento da dislexia. A corda de segurança. Os livros; aquelas janelas para mundos alternativos.

E por fim a incorporação física daqueles mundos. A arteterapeuta.

A verdadeira parceira de dança.

– Talvez a gente deva dar uma passada no Leith – diz Franco. – Pelos velhos tempos.

A cara de Larry se abre em um sorriso.

– Ajustando os controles pro porto do Leith – ele cantarola, trocando de pista em Waterloo Place, ultrapassando um SUV para levá-los em disparada pela Leith Walk.

– Vá direto pra Constitution Street – sugere Franco. – Vamos dar uma voltinha pelas docas.

– Há séculos não ando por lá – diz Larry, mas pouco tempo depois ele encosta na frente dos portões do estaleiro.

– Passe com o carro – Franco o instiga –, provavelmente vai sacudir um pouco.

– Por mim, tudo bem, tranquilo – diz Larry em dúvida, depois aponta uma placa: PROIBIDA A ENTRADA DE VEÍCULOS NÃO AUTORIZADOS.

Os olhos de Franco se estreitam. Sua voz baixa quase ao ponto em que se aproxima daquele arrastar intenso, mas arrepiante, que Larry conhece muito bem: pode ser reconhecido agora, depois de sua ausência.

– Desde quando precisamos da autorização de algum babaca pra ir a algum lugar do Leith?

Larry abre um sorriso malicioso de cumplicidade, feliz por ver Franco voltar a sua antiga personalidade. Ele dirige o furgão pelo calçamento de pedra, passa pela grade e, seguindo instruções de Franco, estaciona perto de um antigo anexo de tijolos aparentes. Está deserto: nenhum segurança por perto. Franco olha em volta; como é estranho vê-lo direito à luz fria do dia. Eles saem do furgão, vão à beira da doca seca. Franco olha.

– Já te contei a história do meu avô Jock e de Johnnie Bonitão Tweed?

– Não.

Franco ainda olha para baixo. É uma longa distância até o fundo, não era o poço do inferno que lhe pareceu quando criança, mas ainda é muito. O afundamento nas paredes esfareladas ganhou ímpeto; há mais pedras espalhadas no fundo da doca, apesar de alguns contrafortes tortos de madeira do outro lado, tentando servir de escora. Sua cabeça gira um pouco. Ele recua e se vira para o amigo.

– Éramos grandes amigos, não é, Larry?

– É, mas ainda somos, Franco. – Larry fala com malícia, porém com uma preocupação cautelosa.

– Grandes amigos, mas não amigos – reflete Franco numa fria monotonia. – Amigos de certo modo, mas no fundo desprezando um ao outro.

Larry o olha duramente com agressividade, brevemente atônito. Parece prestes a protestar, mas algo se reconfigura intimamente e, em vez disso, abre um sorriso.

– Então é disso que se trata?

– Você sempre soube me enganar – continua Franco, olhando os guindastes, enquanto gaivotas batem as asas e gritam ao longe, provavelmente para o lixo na ponta, depois das paredes de ferro corrugado a leste dos estaleiros. À esquerda dele, o sol desce pelo rio cinza-prateado, um vermelho flamejante, como que posicionado para queimar Fife do mapa. – Sabe como instigar problemas. Fazer as bolas de neve pra eu atirar. Provavelmente passei muito tempo na prisão por sua causa – declara ele, sem animosidade. – Meus verdadeiros amigos, gente como Rents, Tommy, Sick Boy, Spud e tal, eles sempre foram contra você.

– Uns viciados de merda! E quanto a mim? – Larry escarnece, aponta uma cicatriz acima do olho e uma marca de queimadura na face. – Quem fez isso? Quem me atormentava, e a todos os outros idiotas, e fez da nossa vida um inferno? O santo Francis James Begbie! Ah, seus amigos, Renton, Sick Boy, Spud e tal, onde eles estão agora, caralho?

Os lábios de Franco se comprimem e a testa se ergue. É uma boa pergunta.

Mas Larry já avançou muito. Agora vai sair tudo.

– Bom, não estão com você! Não com a porra do maluco!

– O roto falando do esfarrapado, Larry. Veja só você, desde os tempos da escola...

– Nunca na sua turma, amigo – rebate Larry. – Nem os seus amigos tavam seguros! Todo babaca passava longe de você – e Larry bate o dedo no próprio crânio –, porque você é um psicótico de merda. – Ele sorri, aproximando-se de Frank Begbie, projetando o queixo como quem convida a um golpe. – Agora olhe só pra você! A porra de um fresco! Nem mesmo vai atrás daquele puto do Miller!

Respire lentamente... puxe pelo nariz, solte pela boca...

– Sei que você esteve com Tyrone, você e Nelly, os velhos garotos do Leith, tentando armar pra cima de mim – diz Franco num tom relaxado. – Tentando botar a culpa de tudo naquele garoto, o Anton Miller.

– É – Larry solta, seu olhar arde fixo e desafiador em Franco, os olhos parecem aprontar alguma num canto da mente. – E isso agora não importa, porque não vou durar muito, com o ecstasy e essa porra toda. Mas tem uma coisa que quero que você saiba!

– Ah, é? O quê?

– Eu é que apaguei o seu Sean, caralho! – Larry se balança nos calcanhares, quase inebriado pela declaração, ele a saboreia profundamente e seu olhar devora Frank Begbie em busca de uma reação.

Franco apenas assente, como se Larry tivesse confessado afanar um tíquete de estacionamento.

Larry o olha perplexo, sua expressão arria para a decepção esmagadora.

– Não me ouviu? Eu matei aquela bichinha babaca, e sabe do que mais? Porque ele me derrotou naquela merda idiota de game! Não só por isso, mas porque ele não conseguia calar a porra da boca por causa disso, porque me venceu! Não parava de bancar o cuzão. Babaca cheio de merda. Mas ele não era você, Franco. Ele era só uma bichinha metida a esperta e um drogado. Eu voltei naquela noite pro apartamento e meti a faca no escroto. Aquela Frances tava lá, chapada até os ossos. Mas sabe o verdadeiro motivo pra eu ter acabado com ele? Pra revidar, por sua causa! Por toda a merda que engoli de você durante anos!

Franco parece refletir.

– Mas imagino que a vida seja assim mesmo.

– É só isso que vai dizer?! – Larry torce a boca com um nojo de fofoqueiro. – E você não vai fazer nada? Perdeu o jeito, tá certo! Você não pegaria o escrotinho do Anton, por mais que tenha tentado te levar a ele...

– Você sempre foi um filho da puta falso – reconhece Frank Begbie. – Frances falou, me colocou em contato com Arbie. Ele me disse que você estava passando a perna em Sean e Anton. Sei que Sean estava vendendo pra ele. Você estava nessa. Tava cobrando?

– É isso mesmo! A suja da Frances vai fazer o que eu mandar. – Larry joga a cabeça para trás, expõe os dentes brilhantemente recapeados. – Outra coisa que o filho da puta do Anton não pode controlar, o grande gângster superastro! O imbecil! Sabe do que mais? Ainda tem um pauzinho ridículo, foi o que ela disse! É, aquele babaca é o próximo na minha lista – declara ele, batendo o punho no próprio peito. – Acha que agora tenho medo de você ou dele? – Larry arregaça o moletom e expõe as lesões no tronco. – Vai fazer alguma coisa comigo? Pode fazer, não estou nem aí! Com as pessoas que eu amo? Acho que você é passional demais pra machucar crianças – revela Larry, virando-se em um floreio, como quem se dirige a uma plateia invisível, porém simpática.

Lentamente, Franco faz que sim com a cabeça.

– Nisso você tem razão. Mas o problema é que não é comigo que você precisa se preocupar. – Ele olha para a toca.

A pesada porta de madeira se abre com um rangido com a saída de Anton Miller.

– E aí, Larry.

Larry olha de esguelha para Franco, desesperado.

– Não me deixa com ele! Ele vai matar o garoto!

– Isso já foi resolvido – diz Anton.

– Não, é mentira sua, porra... – Larry arqueja.

– O caso é que você nunca vai ter certeza, de um jeito ou de outro. – Anton saca uma faca de cozinha. Na outra mão, tem um soco inglês. Ele retira a jaqueta de couro verde, estica sobre o capô do furgão branco de Larry. Depois Anton se espreguiça, flexiona os músculos, firmes numa camiseta preta, como quem se prepara para malhar. – Alguém me informou que você estaria aqui.

– Não... – Larry arqueja.

– Parece uma ferramenta pra entalhar, e não pra enterrar – observa Franco, olhando a faca. – Pode levar algum tempo.

– Pode apostar – diz Anton, mais uma vez olhando Franco nos olhos, ainda respirando tranquilamente. – Vão encontrar esse babaca estrebuchando em pedacinhos bem pequenos. – Ele olha fixamente para Larry. – E acho que Frances só tentava fazer você se sentir um pouquinho melhor consigo mesmo. Mas agora não importa quem tem o pau maior. Garanto que será o meu quando acabarmos. – E ele brande a faca.

Larry arqueja, os olhos desvairados rolam, procurando uma saída ou uma possível arma. Em dois segundos, algo morre neles e Larry se recosta na parede de tijolos da toca, como se deixasse que ela o escorasse. Anton coloca a faca no cinto, depois dispara à frente, desferindo uma saraivada impressionante de socos e chutes na figura indefesa de Larry. Aos olhos de Franco, os golpes são dados com a velocidade e precisão de alguém que foi treinado como lutador: talvez ele tenha feito boxe amador ou tenha várias faixas de caratê. Larry cambaleia para trás e arria no chão. Em seguida, enquanto Anton pega a faca e se prepara para retalhar a figura encolhida, Franco avança um passo e fala.

– Por mais que eu queira te ver em ação contra esse palhaço, é melhor levar lá pra trás. – Ele aponta a velha toca de tijolos. – Os seguranças ainda andam de vez em quando por aqui.

– Bem pensado... – Anton pega pelos cabelos a figura alquebrada e lamurienta de Larry e o coloca de pé num puxão, e anda a passos pesados para a toca. Há um foco cruel nos olhos do jovem, movimentos executados rigidamente, porém repletos de um ar de cerimônia. Franco pode ver Anton daqui a dez anos como um homem de família, morando em um subúrbio elegante, tendo a mesma expressão ao trinchar o peru de Natal da família.

Franco fecha a grande porta de madeira depois da passagem dos dois para que os gritos de Larry sejam abafados na eventualidade muito improvável de alguém passar por ali.


32
O ENTREGADOR 5

As coisas ficaram ruins pro meu avô e seus amigos à medida que ganhava ímpeto a investigação sobre a morte de Johnnie. Eles ficaram surpresos com a persistência da polícia; era como se tivessem um informante de dentro. Pareceu levar uma eternidade, mas por fim todos foram presos pela morte de Johnnie. Pressionados, eles culparam um ao outro. Aconteceu uma discussão acalorada, não no Marksman, mas no pub Bowler’s Rest, um lugar sossegado e entocado na Mitchell Street, fora de vista. Provavelmente eles foram lá obter suas histórias diretamente dos canas, mas discutiram e partiram pro corpo a corpo. Naquele dia, Carmie deu uma surra feia em Lozy e acho que Jock tirou proveito da briga deles, ele e Lozy decidindo que o grandalhão levaria a culpa por usar a pedra na cabeça de Johnnie.

Carmie e Lozy estavam sentados em lados opostos do Marksman Bar. Houve uma disputa e supostamente eles nunca mais trocaram uma palavra nem falaram com o vô Jock, mas isto pode ser papo-furado. As pessoas precisam de mitos, se agarram desesperadamente a eles pra dar significado a suas vidas vazias. Mas o que nenhum babaca pode contestar foi que a amizade estreita entre eles estava sob a tensão do assédio persistente da polícia. O Marksman é um bar muito pequeno e havia muitos outros pubs perto dali onde eles podiam beber. Suponho que nenhum dos dois quisesse ceder.

Orgulho.

E assim, quando saíram os indiciamentos, só Carmie foi acusado do assassinato de Johnnie. Não me lembro dos detalhes do caso, mas eles se acusaram mutuamente no tribunal de empurrar por acidente Johnnie nas docas depois de discutirem embriagados por dinheiro no jogo de cartas. Jock e Lozy foram condenados por comportamento imprudente e por não relatarem o crime nem prestarem socorro a Johnnie. Os trâmites no tribunal ficaram descontrolados, dissolvendo-se em uma briga aos gritos. Foi nessa época que a Scotsman Publications cobriu toda satisfeita a violência da classe trabalhadora na cidade, em suas colunas sobre processos judiciais. Agora eles têm a política de ignorá-la pra não assustar a classe média dos subúrbios ou os turistas. Mas o julgamento foi uma confusão. Todos receberam sentenças de prisão. Não foram longas no caso de Jock e Lozy, mas ainda assim eles eram velhos pra ir pra penitenciária. De certo modo, foi pior pros dois, porque depois de libertados eles foram considerados a escória e relegados ao ostracismo: não informaram que um amigo estava morrendo e provavelmente deduraram outro parceiro. Essas coisas jamais podem ser perdoadas.

O velho Jock sofreu um derrame na prisão e foi libertado antes. Mas sua segunda mulher mais nova, uma vagabunda sórdida que nos pediram pra tratar como “tia Maureen” em vez de “vovó” ou “vó”, trocou-o por um cara mais novo. Lozy cumpriu sua pena, mas Carmie, que foi quem realmente pagou o pato, acabou morrendo na cadeia.

Fui ver Jock algumas vezes, no abrigo de Gordon Court, onde ele viveu seus últimos anos. Seu rosto estava contorcido no mesmo sorriso torto que, graças ao derrame, agora era permanente – inepto, e ainda por cima babando. Não lhe restou amigo nenhum. Era como se agora, com ele vulnerável, as pessoas reconhecessem abertamente o saco de merda que ele era. Lozy e ele, apesar de tramarem a traição a Carmie, ou talvez graças a este fato, nunca voltaram a se falar.

Da última vez que o visitei em Gordon Court, eu sabia que ele estava nas últimas. Apesar das atenções da equipe que prestava cuidados, o lugar estava uma pocilga. Ele cheirava a urina e me deu nojo. Foi então que decidi contar toda a história ao filho da puta.

– Lembra quando você soube que Johnnie teve a cabeça esmagada? Vocês todos ficaram se culpando; você, Carmie e Lozy. Mas vocês sempre se perguntaram quem foi que realmente deu cabo dele, quem esmigalhou a cabeça dele.

A reação dele foi de pasmo. Jock não conseguia falar, mas parecia prestes a ter outro forte derrame. Seu rosto ficou vermelho enquanto ele ofegava, lutando pra puxar o ar.

– Fui eu – eu disse enquanto me colocava acima dele. Na época eu tinha uns dezoito anos e nem acreditava que um dia tive medo daquele legume velho. – É, eu acabei com ele. Baixei uma pedra grande na cabeça dele. É claro que foi um sinal de alerta pros canas. Eles consideraram assassinato e não o suicídio de outro estivador com dívidas que virou sucata. Então, eles investigaram. É claro que eu chamei os canas, contei que foram vocês – expliquei, enquanto o vô Jock ficava puto comigo. O medo e o ódio estampados nos olhos daquele velho sarnento filho da puta! – É, foi bem feito pra vocês! Foi quando vocês se voltaram um contra o outro; foi engraçado de ver. – Eu ri daquele fracote ofegante. – Então, fui eu. Eu fodi com vocês, enterrei vocês todos!

Por quê? Eu via que ele perguntava com os olhos, com cada fibra de seu ser.

– Johnnie me pediu – eu disse a ele – e eu sempre gostei de verdade do Johnnie. Todo aquele trabalho que fiz pra vocês era pra Johnnie que eu fazia, na base da amizade. Nenhum outro babaca dava a mínima. Esse foi um motivo. O outro foi que eu ri pra caralho!

O velho segurou o andador e se impeliu com ele. Tentou vir pra cima de mim! Foi ridículo! Meti o pé no andador e o vi se estabacar no chão.

– Cai fora, seu fantoche velho de merda! – Eu ri dele. Por algum motivo quis ir depois à lanchonete Methuen’s na Junction Street, fui comer uma torta de carne.

Duas semanas depois, ele estava morto. Fui ao funeral. Não pretendia ir, porque acabei na cadeia depois de uma briga no centro da cidade, na noite anterior. Quando voltei pra casa, eu só queria me entocar um pouco. Mas o velho e minha mãe, e até Joe, todos fizeram um estardalhaço. Então fui com eles. Nem Lozy estava presente, e quase nenhum outro puto apareceu por lá. A porra de uma perda de tempo. O caso é que ele sempre foi muito odiado.


33
A TOCA

Enquanto pega a jaqueta verde de Anton no capô do furgão e pendura na maçaneta da porta da toca, Franco ouve os gritos de Larry, estridentes em sua prisão de tijolos. Anton está em silêncio, mas a lâmina certamente fala por ele. Franco fica tentado a abrir a pesada porta de madeira para apreciar melhor o estilo do homem mais novo. Contudo, os lamentos de Larry implicam que Anton não consegue ouvir Frank Begbie entrando no furgão e dando a ré contra a porta, deixando um buraco de uns 10 centímetros.

Imerso em seus deveres bárbaros, Anton só registra um acontecimento imprevisto quando ouve líquido se derramando no piso de concreto. Ele se vira e vê o gargalo de um galão de gasolina enfiado pelo buraco, despejando o conteúdo dentro da toca. Está ensopando seus tênis e chegou aos jeans da figura deplorável e encharcada de sangue arriada no canto, que só vagamente pode ser reconhecida como Lawrence Thomas Wylie.

– Mas que merda é essa? – Frank Begbie de súbito ouve Anton gritar de dentro da toca e bater sem parar a porta na traseira do furgão. – FRANCO! QUE MERDA É ESSA? Então você... você vai chamar os canas, trazer os caras pra cá. – Anton fala ofegante, quase esperançoso. No pânico, ele mete um braço e parte do rosto pelo buraco na porta, o que simplesmente dá a Franco a oportunidade de molhar com gasolina. Ele recua para a toca, cuspindo e suplicando. – MAS O QUÊ?! POR QUE ISSO?!

– Eu tenho cara de babaca que chama os canas? – diz Frank Begbie, fazendo uma careta para uma lembrança ao abrir a porta da frente do furgão, estender o braço para a traseira, colocar o galão de gasolina vazio ali e pegar outro cheio. Ele ouve a porta pesada bater no veículo em um ritmo que o lembra do sexo. Saindo do carro, ele declara: – Agora você feriu meus sentimentos. – Enquanto derrama mais gasolina dentro da toca.

Anton, mais uma vez no espaço na porta, nem mesmo recua, apenas deixa que a gasolina o encharque.

– O que é isso...? Pensei que nós éramos... eu pensei que nós... eu te falei que nunca toquei em Sean!

– E eu já te disse, sei que você não teve nada a ver com a morte de Sean – diz Franco. Ele ouve resmungos baixos e alguém arquejando, vindo de dentro. Alguma reza penitente; deve ser Larry. – Gostei de você ter machucado esse escroto. Então agradeço por isso.

– Isso não é jeito de agradecer – diz Anton, sufocado. – Mas como? Para quê? – ele pede, tentando conter o pânico na voz.

– Bom, você falou na morte da minha mulher e das meninas. – Franco se afasta um passo da porta. – Eu sou meio afeiçoado a elas, sabe como é? Foi uma coisa horrível de se dizer. Fiquei decepcionado. Achei que a essa altura você teria entendido que não deve ameaçar certas pessoas, é contraproducente. Este foi o primeiro motivo...

A cara de Anton se espremia no espaço da porta entreaberta.

– EU NÃO FALEI SÉRIO!!!

– Sem essa, parceiro. – Franco mostra certo desânimo. – Não perca a dignidade.

– Escute aqui – as feições de Anton Miller se contorcem em uma careta –, meu pessoal vai te caçar, você e a sua família! Eles sabem que vim encontrar você!

– Não me impressionei muito com esses camaradas, parceiro; um pouquinho acima dos imbecis de Power, mas não acho que eles consigam atravessar a rua sem você. Vou me arriscar aqui. – Ele agita o celular de Anton na cara dele.

– Olha...

– O segundo motivo – Franco olha a lista de chamadas no celular de Anton – é que eles todos acham que você matou Sean. Você entende como isso parece ruim pra mim. – Ele dá de ombros para a cara ensopada e infeliz no buraco. – Então, deixar você viver não é uma alternativa, de jeito nenhum. Trabalhei muito por essa reputação, parceiro. É um cálice envenenado, mas me custou muito – explica Franco numa resignação quase sombria, ouvindo os gemidos altos de Larry assobiando da toca.

– EU NUNCA... NUNCA... FRANCO... – Anton agora parece um garotinho, o cabelo colado no crânio pela gasolina. O medo eliminou a sabedoria de seu rosto.

– E tem outro motivo que, a bem da verdade, é bem ridículo, mas lá vai: é divertido pra caralho. – Ele sorri, sentindo o telefone de Anton zumbir no bolso. Os capangas podem chegar logo. – Nunca na vida matei um filho da puta pelo fogo. Você mesmo me deu essa ideia quando falou aquele lance de botar fogo no mundo – explica Franco, afastando-se para agir, derramando mais gasolina para dentro.

Anton se afasta, depois corre para a abertura novamente, mete a cara para fora. Sua respiração é entrecortada.

– EU TENHO DINHEIRO!! VOU CUIDAR BEM DE VOCÊ!! JURO POR DEUS!!

Frank Begbie fecha o punho e desfere um cruzado de direita na cara ensopada de gasolina que grita emoldurada na porta.

A cabeça de Anton volta para dentro da toca. Reaparece brevemente, perde sangue pelo nariz, enquanto ele grita de novo:

– QUALQUER COISA! O QUE VOCÊ QUER?!

– Tenho o que quero bem aqui, parceiro. Pra você queimar – revela Franco, abertamente, acendendo um feixe de fósforos e jogando para dentro. Quase de imediato ouve um silvo, o fogo se espalha e suga o ar na casa pequena, depois há um forte clarão e um manto de chamas explode pelo buraco da porta, obrigando-o a voltar ao carro às pressas. Franco imagina que ainda pode ouvir os gemidos baixos de Larry, mas, se for assim, logo são tragados pelos gritos estridentes e urgentes de Anton. Com o coração pesado, ele empurra a jaqueta de couro verde do jovem gângster pelo buraco. Era uma bela peça de roupa e talvez caísse bem nele.

Franco olha o celular de Anton. Algumas chamadas perdidas e mensagens de texto, sendo a de maior destaque a de RYAN. Ele avalia que este deve ser o parceiro mais atarracado e mais determinado. Ele examina as mensagens, nas quais Anton é muito prolífico, tentando decifrar as muitas instruções mínimas e codificadas. Luta com as teclas e caracteres, os gritos do jovem enfraquecem em sua cabeça, mas consegue digitar a Ryan: Tudo bem. Te vejo minha casa 30 min.

E então ele avança com o furgão e sai do carro, abrindo a porta da toca. Para seu assombro, a figura em chamas de Anton ataca, uma bola de fogo, correndo diretamente para ele. Franco calcula que a essa altura o jovem talvez não sinta nada e esta suspeita é confirmada quando ele simplesmente dá um passo de lado para deixar que a figura em chamas cambaleie até a beira da doca seca e caia ali.

Percebendo que o anoitecer está próximo, Franco olha para baixo e vê a forma escura e contorcida de Anton. Não se mexe, mas ainda queima. De repente pensando nos desenhos animados do Coiote e do Bip-Bip da Warner Brothers, ele acha graça, mas é só um fiapo trêmulo. Depois volta à toca, abre a porta de madeira que está queimada por dentro. O cheiro é quase insuportável; a gordura densa e solidificada pende no ar, um odor suíno com um toque de enxofre. As paredes internas da casa de tijolos estão cobertas de fuligem, seu conteúdo reduzido a ruínas e cinzas. O fogo sugou todo o oxigênio pelos tijolos de ventilação, facilitando uma explosão. E então ele vê os restos mortais de Larry, seu rosto lacerado e ensanguentado, mas, tirando isso, estranhamente intacto, pousado no que parece uma pilha de roupas escurecidas. Ele olha nos olhos vagos do velho amigo, que encaram o nada, mas aqueles dentes refeitos ainda brilham, brancos, e Franco resmunga, babaca de merda, saindo dali, agradecido pelo ar.

Com o sol deslizando atrás dos armazéns do outro lado do cais e anunciando o frio no ar, Franco pega a chave do furgão. Cautelosamente, desce à doca pelos degraus embutidos. Cada passo da lenta descida provoca uma pontada de dor na perna ruim. Ao sentir o pé da perna saudável bater no chão, ele atravessa o deque tomado de entulho até o que foi Anton e coloca a chave no bolso da calça jeans ainda intacta do corpo queimado e escurecido. Pega o telefone e digita lenta e laboriosamente:

Você vai morrer por foder comigo, seu bandido, poço de banha.

E ele a envia ao número de que se lembra de cor, depois coloca o aparelho no bolso, junto com a chave.

Frank Begbie se vira e olha na luz mais fraca aquelas barras de ferro atemorizantes metidas nas paredes de pedra da doca seca, algumas com filigranas de ferrugem corrosiva, iluminadas pela fraca luz do poste aceso no alto. Sua perna dói muito e a subida o ameaça; não será fácil.

Colocando a perna saudável no primeiro degrau, ele segue em frente. As mãos estão viscosas e escorregadias de suor e a perna grita de dor, sobe enquanto a escuridão insinua seu regime, dando lugar à luz enfermiça do poste refletido, sem se atrever a olhar para baixo, só olha para o alto, que nunca parece mais próximo. Ele se concentra principalmente nas barras de ferro. A certa altura, imagina que a sola do sapato vai escorregar ou talvez ele quebre uma barra gasta e corroída, com todo o seu peso arrancando-o da fraca pegada que tem nelas, fazendo-o bater no chão da doca seca, despedaçado e preso ali. Lá embaixo, ele só esperaria pela morte ou pela prisão, tendo um corpo incendiado como companhia e outro no alto, na toca.

E, então, enfim ele segura o último degrau. Enquanto puxa o ar, de súbito sente uma dor na mão estendida e esmagada. Olha para cima e vê que uma bota a tritura. Depois um jato pressurizado de líquido explode constante em sua cara. O aroma pungente enche as narinas. Frank Begbie olha a figura que urina nele e entende que seu tempo acabou.


34
A PARCEIRA DE DANÇA 6

Era uma noite de verão úmida. A direção do vento tinha mudado, a brisa acolhedora do Pacífico substituída pelo ar quente do deserto que descia a Sierra Nevada. O quintal era iluminado por refletores e Melanie conectou o iPhone no sistema de som instalado quando mandaram fazer a estação de som na casa. Um ritmo de salsa saía do alto-falante externo, acima de onde Jim estava reclinado, no móvel de couro confortável, no grande deque de madeira nos fundos da casa, dando para o quintal. Melanie insistia em que ele se levantasse e dançasse com ela, enquanto Juan e Ralph se mexiam suavemente com o ritmo.

No início, Jim relutou, protestando que não tinha uma bebida, olhando as garrafas de vinho vazias na mesa. Era mais fácil abrir mão do álcool do que ele pensava. Dois drinques eram inúteis; ele ficava meio tonto, depois se sentia um tanto acabado e cansado. Ele sempre dizia que era preciso uma tonelada de bebida e quando você tem uma tonelada perde o controle e sua perda de controle tinha consequências negativas para ele e para os outros. Então, por que ter esse trabalho? Mas olhando os três alegremente iluminados, brincando, ele teve uma leve melancolia, lamentou como algumas pessoas dominavam a arte de saber parar. Melanie sentiu a inveja que Jim tinha deles; ao mesmo tempo reconhecendo uma habilidade que ele jamais ia adquirir.

Enfim sucumbindo ao puxão no braço insistente da esposa, Jim se levantou justo quando Ralph começava a cair, de olhos esbugalhados ao se agarrar no braço dele, incapaz de interromper a queda no deque. Parecia uma pantomima, e Melanie não entendeu, mas a expressão de pavor de Juan foi clara o suficiente para desfazer qualquer ideia de uma brincadeira de mau gosto que Ralph de vez em quando fazia. Enquanto Ralph jazia e se contorcia no deque, o marido gritava, nem ele nem Melanie sabendo como agir. E então Jim sacou o celular e o jogou para a esposa.

– Ligue pra Emergência, peça uma ambulância imediatamente, diga que é um ataque cardíaco, dê o endereço a eles – disse ele, agachando-se ao lado de Ralph.

Agora Ralph tinha mergulhado na inconsciência e parecia que não respirava. Enquanto falava com o atendente, Melanie ouviu os gritos angustiados de Juan: uma mistura de inglês e um espanhol que ela raras vezes ouvia de sua boca. Melanie ficou pasma que o marido parecesse saber exatamente o que fazer.

Jim tinha concluído que Ralph devia estar em parada cardíaca. Então não tinha sentido desperdiçar um tempo valioso procurando pela pulsação. Em vez disso, de imediato começou a ressuscitação cardiopulmonar, colocando a palma da mão no peito de Ralph, pouco acima da parte inferior do osso esterno, e começou a bombear, fazendo pressão com o uso da outra mão.

– Ele está morrendo! – gritou Juan.

– De jeito nenhum: o babaca só morre quando eu disser pra ele morrer – vociferou Jim com tanta violência que Melanie e Juan se olharam, brevemente aturdidos. Ele agora tinha os cotovelos fixos ao lado do corpo e jogava o peso corporal no peito de Ralph. – Um, dois, três...

Depois de fazer pressão trinta vezes, ele abriu a boca de Ralph, virou sua cabeça para trás, levantou o queixo e gritou para Melanie:

– Feche as narinas dele!

Melanie abaixou-se a seu lado e obedeceu. Jim respirou fundo e colou a boca na de Ralph.

Ao soprar para dentro de Ralph, o peito do amigo doente se ergueu. Ele começou outra rodada de pressão no esterno.

– Um, dois, três... anda, Ralph, garoto, anda logo, porra!

– Ah, meu Deus – gritou Juan –, onde eles estão! – Melanie apertou sua mão com a que tinha livre.

E então Jim estava de volta a Ralph, à boca de um homem que, em suas próprias palavras, tinha “pagado mil boquetes”, e Melanie se lembrou desta declaração escandalosa e embriagada ao olhar nos olhos não de Jim, mas de Frank Begbie, o marginal, que parecia estar se perguntando: o que estou fazendo, por que estou aqui...?

E então houve uma convulsão, quase uma miniexplosão interna, quando Ralph voltou a respirar, no início superficialmente, depois de forma mais regular. Melanie sentiu a pulsação no pescoço dele.

– Ele voltou! Ele voltou!

Juan fez o sinal da cruz e resmungou sem parar: “Obrigado, obrigado... oh, obrigado...”

Ralph ainda estava inconsciente. Então Jim o virou delicadamente de lado para a posição de recuperação. Muco e vômito escorreram de sua boca para o deque. Jim pediu a Melanie para pegar um lençol e ela voltou com um e cobriu o convidado sofrido. Grace tinha acordado com a gritaria e, alarmada com todo o tumulto, apareceu ali, e Jim calmamente explicou à filha que o tio Ralph tinha adoecido, mas que ia ficar bem, levando-a de volta para a cama.

Quando Jim voltou, Ralph tinha recuperado a consciência, mas estava desnorteado. Melanie dizia que ele teve um ataque, mas Juan estava ali e havia uma ambulância a caminho. Quando ela chegou, Jim disse que ficaria com as meninas, se Melanie quisesse ir na ambulância e cuidar de Juan, que obviamente também estava em choque.

Ralph foi levado imediatamente para o centro cardiovascular do Hospital Cottage, perto dali. Respirava confortavelmente quando Melanie e Juan subiram para vê-lo, cerca de quarenta minutos depois.

No dia seguinte, ela e Jim foram visitá-lo no hospital. Ralph sorriu para o marido dela.

– Ei, Jim, Juan e Mel me contaram que você beija bem pra caramba. Que pena eu ter perdido isso.

– Sorte sua que o beijo deu certo – disse Jim, inexpressivo. – Não sabe o que eu ia fazer depois.

Em seguida, ele e Melanie foram de carro a Goleta Point olhar o mar, onde ele explicou sobre o curso de primeiros socorros do Telford College, aonde o mandaram anos atrás. Tinha relação com um emprego que seu agente de condicional havia arrumado em uma fábrica de caixas. Era um emprego de merda e ele só fez o curso porque significava oito segundas-feiras no colégio em vez da monotonia da linha de montagem.

– Devo graças à merda do sistema penitenciário escocês. – Ele riu.

Ralph tinha sofrido um infarto grave devido a um defeito congênito não detectado, mas que podia ser corrigido por um procedimento. Jim certamente salvou a vida dele, e o prognóstico de longo prazo depois da cirurgia era bom.

– Logo ele poderá voltar a dançar salsa. – Melanie sorriu.

– Que bom pra ele – disse Jim, pegando um grande caranguejo que ficou preso em uma poça. Ele o colocou na areia, observou-o andar de lado para o mar.

– No que você estava pensando quando prestou os primeiros socorros a Ralph, salvando a vida dele? – perguntou Melanie.

– Eu estava pensando com uma voz do Leith na minha cabeça: então é isso que a porra da salsa faz com a gente!

O riso dos dois ecoou na praia e subiu até o alto do penhasco.

A música que toca na limusine não é salsa, mas um rock suave e melódico. Uma balada sentimental chamada “I’d Love You to Want Me” e Melanie não conseguia lembrar quem era o artista. O homem parrudo sentado ao lado dela, dirigindo o carro, parece conhecer a letra, ele acompanha baixinho. David “Tyrone” Power tinha se apresentado como amigo do marido dela. Disse a Melanie que estava preocupado com Frank e que um conhecido mútuo havia passado na casa de Elspeth. Eles não encontraram Melanie, mas souberam que ela pretendia ir até o Leith procurar por ele, como ele próprio decidira fazer. “Estive procurando pela Walk e a Junction Street.”

Power explica que colocou os rapazes na busca e a convida a ir à casa dele. Diz a ela que há uma boa possibilidade de Frank ir para lá, porque ele lhe deu um jogo de chaves. Melanie concorda, porque conhece Power de fama, sabe que ele e Frank tinham um passado. Na ausência de qualquer outra pessoa, em quem ela pode se fiar?

O volume da música diminui e entra outra, “When You’re in Love with a Beautiful Woman”. Mais uma vez, o nome do cantor escapa a Melanie, embora David Power outra vez acompanhe a música com entusiasmo. Melanie pergunta se ele sabe onde mora Larry Wylie.

– Infelizmente, não. Mas é uma dupla gey pitoresca... – Tyrone sorri. – Gey é uma antiga palavra escocesa, significa “muito”. Frank costuma usar essa palavra com você?

– Não.

Tyrone parece decepcionado, mas reprime isso.

– Bom, o que quero dizer é que se eles saíram juntos pra beber, não podemos descartar a possibilidade de terem se metido em alguma confusão.

Melanie cerra os dentes, balançando a cabeça com vigor.

– Frank parou de beber álcool anos atrás.

– Parabéns pra ele. Mas ele está sob muito estresse e anda com alguns da velha turma... bom, nunca se sabe. Ele topou com Nelly outro dia, um velho amigo, que me garantiu – David Power sorri para ela – que o papo de Frank ainda é muito afiado.

Melanie pensa nisso por todo o trajeto até a casa de Power, uma grande casa de arenito vermelho que na verdade tem de ser classificada como uma mansão. Se ela a acha impressionante por fora, quando entra, a seus olhos tudo é riqueza com uma completa falta de gosto. A casa lembra um hotel de Las Vegas; é como se Power tivesse ido uma vez a Paris e Veneza, depois dissesse a um decorador: faça igual. Ele parece apenas desejar o mais caro de tudo, com pouca consideração para a composição estilística dos objetos.

Agora ele tenta mostrar a Melanie as pinturas que adornam as paredes.

– Tem interesse por pré-rafaelitas?

– No momento, meu único interesse é Frank, sr. Power.

– Claro, claro – enfatiza Power. – E me chame de David. Estive tentando ajudá-lo, Melanie... se importa se eu chamar você de Melanie?

– Não, claro que não. Onde acha que ele pode estar?

– Provavelmente num dos lugares que frequentava antigamente – declara Power, conduzindo Melanie para se sentar no sofá, enquanto ele desaba na poltrona de frente para ela. – Basicamente aonde íamos, Leith Walk, Junction Street, Duke Street, Easter Road, talvez Abbeyhill. Mas meu pessoal tá lá fora procurando por ele e vai encontrá-lo! – exclama Power, confiante. – Com sorte, ele está a caminho daqui. O telefone dele cai na caixa postal, mas ele não tem o hábito de deixar ligado.

Melanie concorda com a cabeça. Ele conhece bem Frank.

– Estive tentando ajudá-lo, Melanie. – De súbito, Power abre as mãos, num apelo. – Esta cidade mudou muito desde os tempos dele e agora existem alguns personagens suspeitos por aqui.

– Acho que talvez sempre existiram – replica Melanie, olhando nos olhos dele, com a voz baixa e firme.

– Bom argumento. – Tyrone sorri. – Mas não se pode bater na porta errada e não esperar que desperte uma reação, e Frank, bom, não me leve a mal, ele é um cara esforçado, já se passou muito tempo, mas ele pode ser um pouquinho obstinado.

Melanie pouco pode dizer para contestar essa alegação.

– Você falou em personagens suspeitos... esse Larry...

– Ah, Larry Wylie era uma figura desagradável naquela época, mas agora é inofensivo. Bem doente, pelo que soube. Mas estou pensando especificamente num jovem chamado Anton Miller. Não posso provar ainda – Tyrone bate o punho na palma da mão –, mas tenho quase certeza de que o jovem Sean estava roubando dele... dinheiro de drogas... e assim Miller fez dele um exemplo. Sean tinha aquele negócio de “eu sou filho de Frank Begbie. Então sou intocável”... uma presunção infeliz da juventude... então acredito que Anton Miller quis passar uma mensagem.

– E Frank...

– Bom, compreensivelmente – Tyrone acrescenta –, acho que é muito provável que Frank tenha ido atrás de Miller procurar algumas respostas.

– Frank está mudado... – diz Melanie, sentindo a convicção escapar de sua voz. – Ele não faria nada que...

Tyrone fixa nela um olhar intenso.

– Por mais que ele ame você e suas filhas, o filho dele foi assassinado. – Ele vira a cabeça de lado lentamente. – Isto pode deixar qualquer um maluco. – E ele encara a firme onda de pânico nos olhos dela no momento em que Melanie começa a compreender. – Sei que eles não eram próximos, mas ainda assim era o primogênito dele.

– Ah, meu Deus, precisamos chamar a p... – Enquanto a palavra polícia se forma em seus lábios, Melanie pensa em Harry e de imediato se interrompe.

– Não acho que a polícia seja de grande ajuda. – Tyrone dá de ombros. – Eles não... bom, digamos apenas que temos certa fama nesta cidade, Frank e eu, e eles nunca tiveram uma disposição particularmente boa com relação a nós.

Melanie franze o cenho, cerrando os dentes.

– Eu só quero encontrá-lo e levá-lo para casa.

– É claro que quer. E, como eu disse, estamos procurando por ele. Vamos encontrá-lo, a não ser... – O tom de Tyrone é grave e sério. – Bom, precisamos admitir a possibilidade de que Miller tenha chegado lá primeiro.

– Não posso ficar sentada aqui. – Melanie bufa de nervosismo. – Estou doente de preocupação.

– Bom, volte pro seu hotel, se quiser, eu telefono assim que tiver alguma novidade. Garanto que serei o primeiro a saber – diz ele, num tom presunçoso e seguro – e você será a próxima, segundos depois.

– Neste caso, gostaria de ficar um pouco mais.

– Perfeitamente. – Uma mensagem de texto zumbe no telefone de Tyrone. – Com licença. – Ele se levanta e atravessa a sala, é visível que não reconhece o número. Ela vê que sua nuca fica vermelha.

– Era Frank?

– Não, só coisas de família – diz Tyrone, virando-se e colocando o telefone no bolso. Ele vai ao bar de mármore e enche uma taça de vinho tinto, oferecendo a Melanie que, embora tentada, declina. – Sabe de uma coisa, pensei que Frank tinha se dado bem no mundo da arte, mas vejo que na realidade ele tirou a sorte grande por ter uma jovem tão incrivelmente inteligente e bonita ao lado dele.

O sorriso dele a faz desejar ter ido para o hotel.


35
A MIJADA

Michael, seu filho, está de pé acima dele com o pênis para fora urinando na sua cara. E Franco está exausto, pronto para soltar os degraus e cair ao lado do corpo ainda fumegante de Anton. Ele mal consegue mexer a cabeça; sente o jato estagnado bater no crânio enquanto a urina parece cobrir o pescoço e os ombros. É como se um banho quente pudesse ser um portal insidioso para o inferno.

– Michael... que merda é essa...

– Cala a boca, seu velho fedido – Michael escarnece, sacode o pau lentamente e o coloca para dentro da calça. Franco então percebe onde viu aquele sorriso torto e malicioso. A juventude do filho encobriu o fato de que o garoto é uma duplicata do vô Jock. Nesse momento, Franco está inteiramente convencido de que acabou, mas Michael se curva para a frente e estende o braço. – Dá a porra da sua mão aqui.

Só o que Frank Begbie pode fazer é levantar o braço. Sua vida está literalmente nas mãos de Michael e ele fica surpreso quando o filho segura sua luva, ajudando a puxá-lo para terra firme. Ele se coloca de pé, recurvado, com as mãos nos quadris, luta para botar ar nos pulmões. A perna ruim está tão dolorida que parece fraturada.

– Por que... por que você mijou em mim... depois me salvou?

– Mijei em você porque você é um velho escroto. Eu te salvei porque é a porra do meu pai – diz Michael – ... e... porque você acabou com esses filhos da puta. – Ele aponta para o anexo, depois a doca, atrás de Franco.

– Bom, obrigado pelo segundo – diz Frank Begbie, recuperando o fôlego. Ele tenta esticar a perna dolorida enquanto olha a camiseta, escura de urina, o urso californiano encharcado no peito.

– Então, você vai embora. – Michael dá o tom de uma declaração. – Fico feliz em levar o crédito por Anton e Larry. Talvez você me deva essa.

O olhar desapaixonado de Franco parece permitir isto. Michael pode insinuar o que quiser. Seria útil levantar a bola dele.

– Pelo menos descobri quem matou Sean, era o que queria. – Ele aponta para a toca.

Michael dá uma gargalhada, nega com a cabeça.

– Larry te disse que foi ele? Não acreditou nessa merda, né?

Franco percebe naquele momento que não acreditou. Ele estremece. O sol baixou e a urina molhada gela em seu corpo.

Seu segundo filho olha para Frank Begbie como se ele fosse um tolo. E por que não, pensa Franco, ele é que está exausto, com uma perna manca e fedendo a mijo.

– Ele só queria implicar com você. Nem sabia do que tava falando, só queria te confundir. – Michael fecha a cara. Depois suas feições se abrem em um sorriso frio. – Não, eu matei o viado filho da puta irritante.

Franco sente que uma força de fúria cresce por ele, mas parece deixar seu corpo, disparando ao espaço, deixando-o vazio, quase amorfo. Ele olha para Michael, percebe que lhe faltam as palavras. Tenta forçar uma frase para fora.

– O que... você o que... seu próprio irmão?

O riso pernicioso de Michael soa em seus ouvidos.

– Sabia o quanto era constrangedor ter aquele escroto andando com viados o tempo todo? – ele o desafia. – Sabia?

Franco fica em silêncio. Pode sentir a dimensão ardente do rancor do filho, mas desta vez não consegue acompanhar. Ele está esgotado. Acabado. Ele se concentra na respiração.

– Ele costumava sair com aquela garota, a tal de Frances. Vi você falando com ela no funeral. – Michael de certo modo o acusa. – É, ela ia atrás dele como um cachorrinho. A piranha dava praquele escroto velho e sujo do Larry, e Anton trepava com ela também. Todo mundo, menos eu – resmunga Michael, sem tentar disfarçar a inveja cheia de autopiedade. – E eu cuidava dela, porra! Eu a afastei de todos aqueles drogados estúpidos, todos os velhos pervertidos que a tratavam como merda, eles têm fotos dela nos telefones pagando um boquete neles em troca da merda das drogas!

Franco continua concentrado na respiração. Entra pelo nariz, onde, a cada respiração, ele sente o cheiro da urina do filho na camiseta e no cabelo, solta o ar pela boca. Suas panturrilhas e os braços ainda ardem da escalada, mas a perna sossegou um pouco.

– Quando ele ia se mudar praquele lugar em Gorgie, Arbie me pediu pra levar as chaves pra ele. Então pensei, o viado escroto vai ter drogas e grana de Miller por lá. Então fiz uma cópia da chave do apartamento no St. James’s Centre. Quando fui na antiga casa dele na Trafalgar Street, aquela Frances estava lá. Não podia nem olhar, mas ela vivia andando com uma bicha que nem trepava com ela. O que acha disso? – Michael desafia o pai.

Franco fica em silêncio.

– E aí, tipo uma semana depois, eu pensei em ir ao apartamento em Gorgie e ver se tinha alguma coisa que valesse levar. Talvez umas doses ou grana, procurando o que aquele viadinho pode ter deixado ali, das merdas dele com Anton. – O sorriso de Michael lampeja de um prazer maléfico. – Bati na porta, achei que não tinha ninguém, mas, quando entrei, ele estava desmaiado na poltrona. Aquela Frances estava lá com ele, os dois chapados. Tentei acordá-la, mas ela tava fodida. Aquele babaca, o meu irmão, aquela bicha de merda que é filho seu – afirma Michael –, ele meio que volta a si. Começa a implicar comigo, sacaneando com aquela merda de boca de espertinho dele, como sempre fazia, com aquela boca de viado chupador de pau, que não se cala nunca. Ele olha pra Frances, totalmente apagada, e fala, agora é a sua chance, e ri de mim! Na minha cara! Aquela porra de bicha doente!

Franco se sente frágil e evanescente. É como se tudo tivesse sido arrancado dele, menos uma náusea difusa que se espalha por ele como cicuta.

– Foi assim que ele foi...

Michael grita na cara dele:

– NÃO VEM COM ESSA MERDA! VOCÊ ME ENSINOU ISSO! VOCÊ! Você disse que eles eram todos uns pervertidos doentes que passavam doença!

E Franco se lembra de sair com os meninos em um dia quente de verão. Eles foram a pé a um cinema multiplex e viram dois jovens de mãos dadas a uma mesa na calçada de um dos bares na Top of the Walk. Na época, aquilo o enojou: homens fazendo aquilo, à plena vista de seus filhos pequenos. O ódio o queima. Ele havia recebido pacotes de pornografia gay explícita de um rival anônimo que o atormentou durante sua passagem pela prisão. Isto deflagrou insinuações e ele teve de lidar com elas. Ele considerava os homossexuais pervertidos e pedófilos, e gritou com eles, vertendo sua bile estrondosa e demencial na rua, em plena luz do dia. Os homens, apavorados, rapidamente procuraram refúgio no bar. Ele lembra que os meninos também ficaram assustados, ou melhor, Michael ficou.

Por quê? Por que ele fez isso? Por que ficou tão deturpado de veneno? Por que estranhos importavam tanto pra ele? Agora, na Califórnia, ele e Melanie tinham conhecidos e vizinhos gays, e havia Ralph e Juan, que se tornaram amigos íntimos. Eles apareciam para jantar, contar piadas, conversar, dançar, brincar com as meninas, paquerar jocosamente ele e Melanie; não era problema nenhum. Era absurdo. Era loucura que ele precisasse desse tipo de coisa na época, um absurdo que agora não significa nada, só para se enfurecer com alguma coisa que tivesse algo de diferente.

– Bom, isso não foi certo... – Franco sente suas palavras saírem estúpidas da boca. Tem consciência de estar ensopado, fedendo a urina, e que precisa ir para casa. Califórnia. Melanie.

– Eu achava certo tudo que você fazia! – Michael rosna, os olhos de repente se arregalam enquanto outra lembrança pipoca em sua cabeça. – Lembra do que mais você me disse? Quando o filho da puta me cortou com aquele arame no queixo?

Mais uma vez, Franco vê o avô no rosto do filho, vê a vingança macabra e espectral do velho, ali nas docas. De fato, sob a luz fraca do poste, Michael parece uma força incorpórea e Frank Begbie cai num silêncio pasmo.

– Você me disse pra arrebentar o sacana, meter um tijolo na cabeça dele, como você fez com o bêbado do tio Joe. Mas eu não fiz isso. – Michael ri, saboreando a angústia passiva do pai. – Eu bati no puto com um taco de beisebol. Meti a cara dele pra dentro na porrada. Isso tirou o cara do meu pé, pode apostar. – Ele solta um riso seco e sem humor.

Franco se lembra dessa ocasião, a discussão com o menino assustado. Sim, Michael era originalmente o garotinho doce, enquanto Sean era o terror. Sean atormentava o irmão mais novo do mesmo jeito que Joe fazia com ele, e Franco foi motivado a dar o tradicional conselho dos Begbie. Mas agora Michael levou esta retaliação a um novo patamar. Francis Begbie puxa o ar para os pulmões, olha sua criação.

– E onde isso nos deixa?

– Bom, você vai voltar pra merda de onde veio – Michael rosna. – Se eu te encontrar aqui de novo, está morto. A madrasta também. Eu teria cortado sua garganta e trepado com a porra da sua mulher depois do funeral se você não tivesse matado os dois escrotos, especialmente Anton. Mas facilita a vida pra mim. Então, cai fora. – Michael gesticula com o polegar por cima do ombro. – Se um dia eu te encontrar aqui de novo – repete ele.

– Por mim, tudo bem – diz Franco, percebendo que o pior que pode fazer a Michael é simplesmente deixá-lo com o fardo de ser ele mesmo sem a reabilitação. Ele vai provocar sofrimento, depois ou morrerá, ou passará a maior parte da vida na cadeia. Um verdadeiro peixinho filho de peixe e isto, ele admite, em grande parte é culpa do pai. Mas seria bom se ele levasse este tormento às pessoas certas. Ou à pessoa.

Ele vai ao furgão de Larry. Michael o olha com uma agressividade bruta, avança um passo, mas vê que Franco só está pegando uma sacola.

– Tudo bem. Vou embora. – Francis Begbie assente para o filho. Depois para e fala. – Eu sabia que não fui um bom pai pra você... mas não podia deixar Morrison dizer aquelas coisas.

Michael fica de queixo caído.

– Do que você está falando? Aquele escroto bêbado te disse o que no funeral?

– Foi principalmente sobre Sean. Que ele era um viado... e que você era igual.

– Como é?!

– O que falamos um sobre o outro não tem nenhuma importância. Mas eu não podia deixar que ele dissesse aquelas coisas sobre você. – Franco meneia a cabeça. – Uma família é isso. Podem não ter nada a ver um com o outro, podem até se odiar, mas ninguém mais pode falar mal de você.

– EU NÃO SOU BICHA, CARALHO! – Michael grita, depois arqueja. – Esse bebum do Morrison... ele falou o quê?

– Que você era um fresco como Sean, um viado chupa-rola, nas exatas palavras dele – diz Franco calmamente ao filho incandescente. – Que você ia levar o mesmo tratamento que ele teve. – E ele encara Michael, que parece quase implodir de cólera. – Mas deixe esse cara por minha conta. Isso é entre mim e ele. Sempre foi. Vou dar um jeito nele.

– VAI PORRA NENHUMA! – Michael berra, depois baixa a voz a um silvo de serpente. – Ele é meu! Estou te falando! E, se você se meter, vai levar o seu também – ele se irrita. – AGORA SAI DA MINHA FRENTE, CARALHO!

Então Franco, levando a sacola, assente, vira-se e afasta-se mancando da doca seca, da toca e do furgão de Larry. No portão, para e olha em volta, vendo a silhueta de seu segundo filho, parado, as mãos junto do corpo, abaixo do poste.

Está mesmo na hora de ir embora, talvez só precise cuidar de uma coisa – ele reflete, enquanto atravessa os portões do estaleiro, a perna novamente se fortalecendo com o fluxo de sangue engendrado pelo movimento. Ele segue para a área de The Shore pelo Water of Leith até a Constitution Street e sobe a Leith Walk. O conhecido percurso começa a se impor quando Franco toma consciência de estar sendo seguido por um carro. Ele se vira e vê uma limusine preta. Ela avança lentamente para o meio-fio à frente dele. Para. Deve ser Tyrone. Ele se prepara para a violência e ela provavelmente será seu último ato, ali, no Leith. Agora a respiração não o ajudaria. Agora Jim Francis não o ajudaria. A pulsação de Frank Begbie se acelera e uma névoa vermelha inunda o cérebro. Deixando a sacola cair na calçada, ele abre as mãos e se curva para trás, grita para o veículo:

– PODE VIR, BANDO DE BABACAS!!

A porta da limusine se abre e Melanie sai.


36
O ARTISTA NA RESIDÊNCIA

Inchando de emoção ao vê-la, Frank Begbie tem dificuldades para não abraçar a esposa que se aproxima.

– Melanie – diz ele num arquejo, mas depois levanta as mãos, adverte: – Não toque em mim, amor... – O pânico no gesto e a emanação de urina estagnada que ataca suas narinas bloqueiam o instinto de Melanie de abraçá-lo e ela fica petrificada. – ... Estou coberto de xixi...

– Que isso, Jim! – Melanie torce os olhos e o nariz e até dá um passo para trás, enquanto sua voz sobe várias oitavas. – O que aconteceu?

Ele se esforça para reprimir a irritação que o devora. Mas que porra ela tá fazendo aqui?

– É uma longa história... – ele protesta, os olhos se estreitando ao verem David “Tyrone” Power saindo do carro.

A cara de Power, meio iluminada pelo poste de rua, tem uma expressão de desdém paternal. Ele volta ao veículo, retirando um pacote de lenços umedecidos. Coloca no capô da limusine na frente de Frank Begbie.

– Faça o que puder.

Begbie assente e limpa as mãos, o rosto e o cabelo. Sente-se limpo o bastante para beijar a mulher e apertar sua mão.

– Entrei numa briguinha com um imbecil qualquer no banheiro de um pub e nós dois caímos na latrina cheia. – Ele solta uma gargalhada vazia. Depois pergunta a Melanie, enquanto olha para Power: – Está tudo bem com você?

– Tudo ótimo – diz ela com uma calma tranquilizadora, entendendo a reticência dele de conversar sobre isso na companhia presente. – E você?

– Estou bem. Meio perturbado... com o que aconteceu com Sean. Voltando pra cá, isso me afetou pela primeira vez – diz ele e agora não está mentindo.

Melanie toca o braço de Frank, hesitante. Eles entram na limusine pela porta traseira. Power dá a partida e ela olha o domo volumoso e as costas largas do homem na frente deles. Embora ele a tenha feito se reencontrar com o marido, Melanie ainda é incapaz de entender por que ele a enche de repugnância.

– Estivemos procurando em toda parte, não foi, Melanie? – cantarola Power, dissimulado, como que para ajudá-la em sua missão, colocando música. Enquanto a limusine avança por uma Leith Walk vazia e escura, o ar se enche de “California Dreaming”, dos Mamas and the Papas. – Esta é pra mamãe e o papai da Califórnia na traseira que estarão sonhando em voltar pra casa e suas meninas. – Ele se vira, mostra os dentes recapeados. – Três e cinco anos, foi o que Melanie disse, hein, Frank?

– Sim – concorda cautelosamente Begbie. – E como foi que vocês dois se conheceram?

– Eu estava procurando por você – começa Melanie, rapidamente se interrompendo, o olhar de Frank Begbie de novo indica que esta história será mais bem contada quando estiverem a sós.

– Assim como eu – continua Power por ela. – Uma jovem americana procurando por você nas espeluncas do Leith; bom, isso nunca ficaria fora do meu radar por muito tempo. Então juntamos nossos recursos. – Ele ri, os ombros robustos se sacodem.

Frank e Melanie ficam de mãos dadas em um silêncio tenso. Apesar de ter se esforçado ao máximo com os lenços umedecidos, o calor na limusine levanta um cheiro desagradável dele, com a urina de Michael secando no cabelo e na camiseta com a bandeira da Califórnia, com urso e tudo. Power torce o nariz de desgosto algumas vezes, mas só rompe o silêncio para falar com lirismo das ruas vazias.

– Queria que fosse assim o tempo todo. Seria um prazer dirigir.

Eles chegam à entrada da mansão de arenito vermelho, o cascalho estala debaixo das rodas. Quando entram na casa, Power anuncia:

– Vou preparar um bule de chá de camomila pra mim e pra Melanie. Frank, não me leve a mal, não quero parecer grosseiro, você está fedendo pra caramba. – E passa a Begbie um robe de seda. – Sugiro que vá ao porão e coloque suas roupas na máquina de lavar e na secadora. Tem um chuveiro lá embaixo.

Frank Begbie não tem nenhuma inclinação em deixar Melanie fora de vista. Mas ela insiste que ele vá, e se Power pretendia machucá-la, raciocina ele, teve muitas oportunidades para tanto mais cedo. Ele concorda com a cabeça e desce a escada. Ao sair, ouve David “Tyrone” Power exaltar pomposamente as virtudes de Murdo Mathieson Tait.

O porão é um espaço imenso e desconexo. Grande parte dele é aberta, com a exceção do banheiro e da lavanderia, que ficam em um corredor de ligação unido a uma academia considerável nos fundos da casa, com uma grande oficina na frente. Frank Begbie tira a roupa, embola o jeans, a camiseta e as meias na máquina de lavar, tudo menos a cueca, despeja detergente com aroma de lima e liga a máquina. Depois vai para o banho, abre as torneiras e lava o filho do cabelo. Pensa em Michael enquanto se esfrega com o gel esfoliante de pêssego de Power. Ter testemunhado a fúria animal e brutal do filho foi como ver um filme em 3D dele próprio, mais novo. A história se repetiu. O mantra “não faça as coisas que eu fiz” era enfadonho e repulsivo. O melhor jeito de garantir que seus filhos não se tornem babacas quando adultos é não ser um babaca você mesmo – ou não deixar que eles vejam que você é assim. Isto é mais fácil como um artista sóbrio de Santa Barbara do que como um presidiário alcoólatra do Leith.

Frank Begbie sai do banho e se enxuga, veste a cueca e o robe de seda de Tyrone. Fica tão grotesco nele que Frank ri. Depois ele se vira para olhar o resto do enorme porão.

A academia confirma que Tyrone evidentemente malha à moda dos leões de chácara, transformando uma ingestão maciça de calorias não só em gordura, mas em uma quantidade ridícula de músculos no peito, nos ombros e no braço. A figura falstaffiana era um famoso lutador de rua em seus tempos e supostamente ainda desfruta da ocasional explosão de insultos, mas em geral deixa o trabalho verdadeiramente sujo para terceiros contratados.

É a oficina, porém, que mostra o lado mais sombrio de Power. A maior parte é tomada por duas bancadas repletas de toda sorte de ferramentas elétricas e manuais. Franco nunca pensou que David “Tyrone” Power fosse um entusiasta do faça-você-mesmo. Os alicates, chaves de fenda, mas sobretudo as copiosas facas – inclusive um jogo de arremesso em uma caixa – obriga Franco à decisão de tirar Melanie dali o quanto antes.

Frank fica aliviado ao voltar a ela, apesar dos quarenta minutos que faltam para o ciclo da máquina de lavar. Ele sobe a escada, sentindo-se absurdamente constrangido no quimono de seda grande demais, perguntando-se se teria sido ideia de Tyrone o tempo todo: deixá-lo vulnerável. Ao se aproximar de Melanie e David Power, ele ouve os dois conversando sobre pintores mortos. Depois, agradecido, abraça a mulher, desta vez sem nenhum fedor tóxico, tragando o cheiro familiar de Melanie, entretanto consciente dos olhos irônicos e gananciosos de Power. Afastando-se, ele a olha nos olhos.

– Escute, tenho umas coisas pra acertar com Davie – ele adverte –, você deve ir pro hotel e fazer as malas. Encontrarei você lá assim que minhas roupas estiverem secas.

– De jeito nenhum. Não vou deixar você de novo!

– Eu sinceramente devo um pedido de desculpas a meu velho amigo. – Frank implora, entrevendo Tyrone inchar de legitimidade. – Vá e faça as malas. Ligue pra sua mãe. Veja como estão Grace e Eve.

Melanie amolece. Vê a hora no telefone.

– Você vai ficar bem?

– Bem – Frank Begbie ri –, se eu não estiver no hotel em noventa minutos, desta vez você tem minha permissão expressa pra chamar a polícia.

David “Tyrone” Power parece magoado, reage com um beicinho azedo.

Isso não passa despercebido a Begbie.

– Escute – ele apela a Melanie –, quero colocar a vida em dia um pouco com meu velho amigo e, como eu disse, devo minhas desculpas a ele. Fui meio grosseiro da última vez que desfrutei de sua hospitalidade – admite Franco, virando-se para Tyrone. – Como é aquela antiga expressão, Davie? É melhor desfrutar de minha hospitalidade, porque você não vai querer desfrutar de minha hospitalização.

Enquanto Power sorri, Melanie olha os dois com desprezo. Jim quase nunca fala assim, mas, sempre que o faz, o frio se fecha em volta dela. Ela se afasta alguns centímetros dele. De Frank, como é chamado aqui.

– Sabe de uma coisa, acho que vou e deixarei vocês dois com suas merdas de gângster.

– Desculpe, amor. – Franco ergue as sobrancelhas e sua boca fica rígida de exasperação. – Posso usar seu telefone?

Melanie bate o aparelho sem a menor cerimônia na mão dele e volta para o sofá, olhando as pinturas nas paredes. Franco liga para Terry, requisitando seus serviços. Enquanto Tyrone começa a falar de uma das composições de Murdo Mathieson Tait, Frank Begbie senta-se em silêncio até um telefonema que chega 15 minutos depois. É seguido por um táxi encostando do lado de fora. Melanie se levanta para ir embora.

– Estarei com você em breve – Franco insiste.

– Tudo bem – diz ela, saindo. Pela janela, Franco vê sua partida, vê que ela entra no táxi de Terry.

– Ela não ficou satisfeita – observa Tyrone.

– Ela vai mudar de ideia. – Franco se vira para ele. – Estou mais preocupado com o motorista do táxi que ela pegou!

– Ah, sim?

– Lembra do Terry Lawson?

– O comerciante de buça, parceiro do Billy Birrell?

– É.

Tyrone sorri brevemente, depois Franco vê que sua expressão endurece.

– Precisamos ter uma conversa, porra! Uma conversa que devíamos ter dias atrás! – grita ele, apontando o espaço vago no sofá de frente para ele.

Frank Begbie levanta os braços em um gesto de rendição e se senta.

– Eu estava descontrolado na última visita – diz ele, meneando a cabeça com tristeza. – Toda aquela história do Sean... isso me afetou mais do que eu pensava... e o problema com Nelly. Como ele está?

– Ainda no hospital – diz Tyrone. – Você atingiu o fígado dele. Foi por muito pouco, mas ele vai sobreviver.

Franco deixa a preocupação sair de seus braços e pernas enrijecidos.

– Então, decidi fazer as pazes cuidando do seu probleminha – observa ele, vendo o rosto de Tyrone se abrir como o nascer do sol em uma manhã fria.

Depois a testa carregada de Power se franze, lembrando brevemente a Franco de Chang, o shar-pei chinês do seu vizinho em Santa Barbara.

– O que está dizendo, Frank?

– Anton não existe mais – revela Francis Begbie com um floreio de menosprezo, desfrutando da intensa absorção desta informação por parte de Power. – Sim, o coitado do Larry foi um dano colateral, mas, bom... – Ele sorri e dá de ombros minimamente.

– Você acabou com ele? O Miller? Ele morreu? Tá de sacanagem!

– Seus rapazes deviam dar um passeio discreto nas docas. A velha doca seca, perto das fábricas abandonadas. Anton está lá e Larry na casa anexa de tijolos aparentes. O furgão ainda deve estar estacionado ali também.

– Como foi que você... o que houve?

– Digamos que eles brincaram com fogo e saíram queimados.

Tyrone dá início a uma enxurrada de ansiosas mensagens de texto enquanto Franco delineia a história, omitindo apenas os detalhes sobre Michael. É bem capaz de que o filho e o ex-chefe entrem um na órbita do outro sem a ajuda dele. Enquanto ouve, Tyrone não consegue conter o sorriso de euforia que se abre.

– Bom trabalho, Franco, meu filho! Eu sabia que você ia mudar de ideia!

– Quando pensei bem, percebi que só pode ter sido ele. – Franco mente com tranquilidade. – Escute, fui meio grosseiro com aquele último drinque que você ofereceu – admite –, mas talvez eu deva tomar um agora, já que a patroa foi embora. Californianos. – Ele revira os olhos. – Afinal, é meio uma comemoração pra mim. – Ele se levanta e vai ao bar de mármore. – Se importa?

– De forma alguma, você mereceu, vou nessa também! Ultimamente você age na encolha, Franco. – Tyrone assente com malícia. – Eu te subestimei. E quanto a Melanie... bom trabalho. – Ele sorri. Depois, enquanto vê Begbie servir o uísque em copos reluzentes de cristal, a voz de Tyrone assume um tom irritadiço. – Foi aí que eu errei, procurando as mulheres mais burras, que ou não têm nada pra dar, ou só ficam falando de roupas e família. Sempre pensei que era o que queria, mas, quando elas não têm nada de importante pra dizer, a vida fica cansativa.

– Melanie gostou das pinturas? – pergunta Begbie, recolocando a tampa da garrafa de puro malte e baixando-a delicadamente no mármore matizado. – Ela entende muito mais desse tipo de coisa do que eu.

– Ah, sim. – Tyrone olha com orgulho as paredes. – Certamente ela tem um ótimo conhecimento da obra de Murdo Mathieson Tait, fiquei impressionado. É, você se deu muito bem, Franco.

Francis Begbie abre um sorriso radiante para David Power.

– Sabe de uma coisa, você me analisou bem, Davie, isso de que eu não mudei realmente. Eu costumava pensar que tinha medo de que alguém tentasse fazer alguma maldade com Mel e as meninas. Depois percebi que era uma mentira. – Franco lhe passa o uísque. – O que na verdade me dava medo era que ninguém tentasse, porque eu estava desesperado pra que alguém fizesse. Veja bem, ainda curto a adrenalina, mas agora preciso de uma boa desculpa pra começar. Como a família – diz ele, voltando ao sofá e colocando o próprio copo na mesa de centro, depois indo pegar um dos charutos de David Power na caixa no bar, agitando-o para o ex-chefe. – Algum problema?

– Claro que não – Tyrone fala baixo, acalenta o uísque com prazer. – Acenda dois.

– É, na América, chamam isso de TEI: transtorno explosivo intermitente. Nem toda a análise transacional, treinamento de afirmação pessoal, administração da raiva, terapia cognitiva e até a arte reprimiram meu impulso pra violência. – Ele espeta o charuto na miniguilhotina e o decapita. Depois o acende e expele uma nuvem de fumaça azul.

Ele passa o charuto a David Power, que se levanta e vai a um pequeno painel branco na parede, pressionando alguns botões com sinais sonoros.

– É melhor desligar esses detectores de fumaça – explica ele, enquanto Frank Begbie acompanha sua linha de visão até um disco no teto que pisca uma luz verde. Power volta a sentar-se no sofá, bebe o scotch com gosto, e Begbie acende um segundo charuto para si.

“Só reprimiu o TEI e fez com que eu precisasse desse motivo válido pra me envolver”, continua ele. “Só os familiares valem isso, até aqueles de quem você nem gosta tanto.”

– Sem dúvida – concorda Tyrone.

– Engraçado como um primeiro-ministro pode condenar toda uma geração de crianças a um futuro de pobreza, ou dar a ordem de exterminar mulheres e crianças iraquianas em uma falsa guerra, e os babacas são descritos como grandes homens da história. – Begbie reflete. Depois ele ri. – Gente como você ou eu, nós só nos desfazemos de uns merdas que não fazem falta a ninguém, só umas pragas pra comunidade deles, e somos os grandes vilões!

Tyrone fica pensativo.

– Às vezes eu penso que devia entrar pra política. Da cidade. A porra da Câmara de Vereadores. Também é assim, onde você mora, na Califórnia?

– Não me entenda mal – Begbie assente –, não sou assistente social, todo escroto que matei foi pra minha própria satisfação. Isso só prova o que eu disse.

– Slaìnte. – Tyrone ergue o copo enquanto Begbie o observa tomar a bebida, um gole, dois, três.

Slaìnte, Frank Begbie brinda, deixando o uísque fazer cócegas na boca. É horrível. Ele percebe que na realidade jamais gostou do sabor do álcool, só de seus efeitos. Depois ele sorri na frente do gordo, observando-o resvalar na incredulidade, depois a apoplexia, enquanto o charuto de Franco de novo é largado no copo com um chiado baixo.

– Mas que porra... – A fúria inunda Tyrone e ele tenta se levantar, decidido a fazer Frank Begbie em pedacinhos com as próprias mãos.

Mas não consegue. Em vez disso, cai atravessado no sofá. Olha para Francis Begbie, tenta falar, mas não sai nenhuma palavra e só escorre baba do canto da boca, enquanto a escuridão o domina.

Quando David “Tyrone” Power desperta, o movimento continua fora de seu alcance. Desta vez, ao contrário dos efeitos do Rohypnol de Larry, suas limitações são externas; ele sente os pulsos presos às costas e sabe que o metal que os escava deve ser de algemas resistentes da polícia. Pior ainda, ele não consegue falar, mal consegue respirar, tem uma mordaça com bola metida na boca. Para sua perplexidade, percebe que está preso, de costas achatadas na mesa de jantar.

Franco está de pé acima dele, vestido com as roupas recém-lavadas. Ele retira a mordaça, outro objeto expropriado de Larry, usado para as gravações de sexo feitas com Frances Flanagan e provavelmente outras garotas. Isto permite a um Tyrone suado dizer, com uma frieza de inseto: “Agora você passou da porra dos limites!”

– Sem dúvida, uns limites foram ultrapassados – Frank Begbie assente, concordando. – Mas seria bom ter um pouquinho de apreço.

– Que merda você quer?

– Não está sendo gentil. – Begbie finge consternação. – Colocar você nessa mesa foi um trabalho pra três homens. Mereço a merda de uma medalha. Preguei seu paletó e a calça nela. – Ele abre um sorriso radiante, mostrando uma pistola de pregos, recolhida no porão de Tyrone, e seu prisioneiro sente a extensão de suas amarras e consegue ver as cabeças de metal marteladas através da roupa. Mas o movimento da própria cabeça é mínimo porque há duas facas cravadas na mesa, uma de cada lado do pescoço, as lâminas afiadas viradas para sua carne.

E então Tyrone vê que Begbie tem algo na palma da mão. Está preso por um fio a um dos lustres no teto. Begbie o mantém suspenso na frente do rosto de David Power: uma pequena barra de chumbo de 2,5 quilos, trazida do porão.

– É pequeno, mas tudo é uma questão de velocidade. Veja só, eu o modifiquei um pouco. – Franco lhe mostra a parte mais larga, onde o peso parece ter sido soldado a lascas afiadas de lâminas de barbear. Ele deixa que fique pendurado a uns três centímetros da cara de Power. O mero negror do ferro batido e suas lâminas reluzentes fascinam e apavoram o gângster cativo. – Esse é o barato de ser artista, você fica... criativo.

– Mas que merda você está...

Tyrone é silenciado por um soco bem colocado no queixo, entre as duas facas.

– Shhh... – Frank Begbie põe um dedo na boca. – Velocidade, tá vendo? O poder vem da velocidade. Não mexa essa cabeça – ele instrui e se afasta de Tyrone, levando com ele o peso com as lâminas. Atravessando parte da sala, ele roda o dispositivo na haste rosqueada, depois se vira com um sorriso malicioso, levantando 45 graus antes de abrir a palma da mão para soltá-lo.

Tyrone grita “FRRAAAAANK” enquanto a barra dispara na direção dele. Ele tenta mexer a cabeça, mas as lâminas das facas cortam seu pescoço, tirando sangue. O peso de ferro giratório bate em sua face com um baque surdo, rasgando a carne da bochecha. “QUE MERDA VOCÊ ESTÁ...”, Tyrone grita, depois nota que Begbie, em vez de se preparar para soltar mais uma vez a barra, a está desprendendo. Uma centelha de esperança no peito enquanto ele imagina brevemente que a horrenda provação agora acabou, que Begbie se fez entender.

Mas enquanto retira o chumbo, deixando que ele caia com estrondo no piso de tábua corrida, Begbie prende outra coisa no fio; um formão, com peso aumentado no cabo por parafusos pesados que amarrou ali com fita isolante.

– Este é diferente – explica ele.

Um grito agudo de pavor sai de David Power.

– Espere... – diz ele.

Frank Begbie o olha novamente, estala os dedos num reconhecimento animado.

– Eu estava esperando essa merda de palavra! Lembra que costumávamos dizer isso quando falávamos da coleta das dívidas? Quando a gente pegava pesado, eles diziam espere. Lembra que a gente ria pra caralho disso? Mas não está rindo agora, amigo. – Begbie sorri com malícia, a preleção irônica provocando um tremor pelos ossos de Power, enquanto ele se afasta, e de súbito se vira e levanta o formão de novo a 45 graus, como a posição preparada que um apanhador de beisebol americano adotaria para ameaçar um adversário que tenta roubar uma base. Contudo, ele simplesmente o solta e o vê voar para o alvo.

Tyrone consegue virar a cabeça para a lâmina do lado direito e ela queima seu pescoço, abrindo um ferimento fundo. Enquanto isso, o formão erra por pouco seu olho, entrando na face abaixo do osso molar, penetrando na carne uns três centímetros e perfurando rapidamente. O sangue verte das duas feridas e ele grita, em pânico, “FRAAANKK!!”

– É este o meu nome – admite Begbie com um riso seco. Jim tem uma ótima vida, ele reflete, mas às vezes Frank se diverte muito mais.

Tyrone luta com a dor agonizante no rosto, tenta encher os pulmões de ar.

– O quê... que merda você quer?

– Isto – diz Begbie com frieza. – Não quero dinheiro. Não quero favores. Quero isto: você na mesa, eu com essas facas. – E ele pega uma das telas de Murdo Mathieson Tait, um pequeno estudo, na parede. – Me fale desta pintura.

– O quê...?

– Fale dela.

– Ah, não fode... – Power começa, mas grita de pavor: – NÃO – quando a lâmina de Begbie corta a tela. Ele retalha a pintura e joga os restos rasgados embaixo da mesa.

Depois pega outro quadro na parede.

– Consegue se lembrar melhor deste aqui?

Tyrone focaliza, tenta conter uma nova onda crescente de pavor. Esta coleção de arte: este é seu verdadeiro legado. Ele olha para o quadro, depois para Franco.

– É um Murdo... um Murdo Mathieson Tait de início de carreira – diz ele, o formão que se crava na face distorce cada palavra com a dor –, ele tinha acabado de se formar em arte em Glasgow... depois foi pra Itália... a Toscana... Úmbria...

– Meus parabéns pra ele, porra.

– O que não entendo – Power suplica – é por quê? Eu ajudei você! No funeral, com o Morrison!

– Ele não é porra nenhuma. Você tentou me colocar contra Anton. Mas fiz o que você queria, porque me servia bem. Agora é isto que me serve bem – declara Frank Begbie. – Está vendo, na verdade eu jamais gostei tanto assim de você.

A fúria rodopia por Tyrone como uma maré peçonhenta, dominada pelo medo gradual e a dor nauseante.

– Eu te aceitei, caralho! Te dei trabalho quando você era só um palhaço desmiolado.

– Você trouxe minha mulher pra cá. Isto foi um erro, trazê-la pra dentro disso.

– Eu a ajudei! Nunca toquei nela!

– Não importa se você a ajudou ou não. – Begbie segura o quadro à distância de um braço, estreitando os olhos. Algo em seu gesto reacende o pressentimento de Tyrone. – Quando você a trouxe aqui, trouxe pra dentro disso. Isto eu não vou admitir.

– Eu tentei ajudá-la a te encontrar! A mulher tava aflita! Eu a tratei direito, Frank – ele implora.

Para seu alívio, Begbie baixa o quadro e o coloca embaixo da mesa.

– Vê a pior coisa da vida? Quando você é acusado de algo que não fez. Você fez isso com o coitado do Anton. Fez isso comigo.

– O queee... eu nunca – Power balbucia com o sangue escorrendo do pescoço e do rosto na mesa abaixo dele, formando uma poça escura e pegajosa na superfície encerada do mogno. Agora ele parece diminuído pelo terror: regride, percebe Begbie, à criança gorda que foi vítima de bullying, antes de se tornar ele mesmo um dos agressores.

– Você disse que eu decepei a mão de alguém, daquele puto do Seeker. Foi só a merda de um dedo – ele informa, ofendido. – E você armou pra nós, com aquele trabalho em Newcastle. Você sabia que ia sair porrada.

O cérebro superaquecido de Power apreende, febril, a oportunidade de corrigir o equívoco de Begbie a respeito deste caso antigo.

– Eu o quê... foi Donny Laing que organizou isso...

– Mas ele não está aqui e ninguém sabe o que aconteceu com ele. – Begbie desprega as mãos de Power, segurando a direita e pressionando a palma na mesa.

– Você entendeu errado! – grita Power, esforçando-se para ter alavancagem, mas, antes que o grandalhão possa fechar o punho, Begbie arranca uma das facas ao lado de sua cabeça e a desce nas costas da mão, prendendo-o na madeira.

David Power não sente dor na mão, só uma tempestade de cacos de vidro soprando pelo peito. Ele tenta reagir, balançando para Frank Begbie com a outra mão, mas sua mobilidade é limitada pelos rebites que o prendem.

Begbie pegou um cutelo enorme e o brande acima da cabeça de Tyrone.

– NÃO... FRANK... POR FAVOR...

Ele o faz descer no pulso de Power e o decepa; o coto voa para cima, agora desligado da mão presa na mesa, e uma tira escarlate de sangue espirra pelo teto. Begbie consegue se jogar para trás e evitar sua trajetória. Coloca-se de frente para David Power, que então sente a perna direita erguida e o sapato e a meia retirados.

– Pare... – Power geme, infeliz, e vira a cabeça do pulso e da mão desconectada, sente o rosto se torcer em uma poça do próprio sangue quente e molhado, seu cheiro metálico denso nas narinas.

– Por que eu pararia? Porque é errado machucar outro ser humano? Você não acreditava nisso. Porque você tem dinheiro? Mais um motivo.

– Frank... éramos amigos... – Tyrone se debate tristemente nas amarras. Seus olhos rolam para trás, mostrando o branco espasmódico com sua malha de veias. – Que merda está fazendo...? – Ele ouve a própria voz reduzida a um flautim histérico, os olhos agora fechados, ele tenta bloquear tudo.

Franco o ignora, pega um isqueiro e acende a chama contra uma tela na parede acima de um aparador de nogueira. Ele se recorda de Tyrone dizendo que é a melhor obra de Murdo Mathieson Tait, Bosque Acima de Garvoch Bay. – Tinta a óleo, provavelmente feita de materiais muito combustíveis – ele especula. – Sim, aposto que esse garoto vai pegar rápido, vai virar um monturo gordo e solidificado logo, logo. – E ele olha com malícia para Tyrone. – Em particular porque encharquei de gasolina o merdinha e todos os outros desta sala.

Tyrone é compelido a abrir as pálpebras e olhar, percebendo que várias telas foram retiradas das paredes.

– Não! Faça o que quiser comigo... – ele ofega, o peito convulso, com soluços num refluxo ácido – mas não as telas... não essas obras... elas têm de ser desfrutadas pelas gerações futuras! Você é uma artista – ele suplica –, sem dúvida deve entender isso!

– Não – os olhos de Franco são pedras coloridas –, a diversão está em fazer a obra. Você não liga pro que acontece depois que está feita, já está pensando na próxima.

– SEU MERDA...

Davie Power não consegue terminar a frase porque Frank Begbie recoloca a mordaça de bola e vê o rosto ensanguentado de seu antigo chefe ficar mais vermelho e inchado. O coto ainda sangra; derrama um claret grosso na mesa, que se acumula e pinga constantemente na tábua corrida encerada.

– Respire com calma... pelo nariz – aconselha ele. – Talvez tenha metido pó demais nas fuças, amigo. De todo modo, o ar vai ficar meio rarefeito em breve. Lembra do Jogo da Ratoeira? Aquele pra crianças? Joguei há pouco tempo, bolei tudo aqui. Não pode ser complicado demais, tem limitações do tempo, é verdade, mas não é um esforço pequeno, nas circunstâncias – explica Franco alegremente, aproximando-se e arrancando um dos pregos que prendem a perna de Power, levantando-o e metendo embaixo de uma banqueta que ele coloca na mesa, enquanto aperta a corda em volta de seu pé. – Fique parado – instrui Franco, dando a volta, aparecendo atrás de Tyrone. – Você não consegue ver, mas tem uma corda presa no seu dedão. Se você se mexer... – Tyrone, com o vômito bilioso subindo das entranhas, batendo na mordaça e voltando em um rastro de fogo, acompanha o olhar de Franco a uma série de ganchos aparafusados na parede. A corda parece passar por todos eles. A outra extremidade está amarrada a uma vela acesa, assentada em um prato de gasolina. Está colocada no aparador, exatamente abaixo do Bosque Acima de Garvoch Bay. – Não se mexa.

Mas isto é impossível: a perna de David Power está apoiada desconfortavelmente em um ângulo de 45 graus. Ele precisa manter o pé inconvenientemente torto para deixar a banqueta no lugar. Mas ele sente que o pé desliza, é puxado pelo ângulo da perna, a dor e a rigidez crescem exponencialmente. Não pode mantê-lo ali. Power se contorce e flexiona a parte superior do corpo suscetível contra as amarras, vislumbrando apavorado o pulso gotejando e a mão pregada, embora estejam parcialmente ocultos de sua visão pelo cabo do formão que se projeta do rosto. Ele solta um gemido – um som infeliz e abafado, em algum lugar entre uma súplica e um palavrão – para as costas cada vez mais distantes de Frank Begbie, que coloca um CD de Chinese Democracy no caro sistema de som de Power. O CD berra a toda.

– Um presentinho. – Ele sorri. – Não diga que não sou bonzinho com você!

E então Frank Begbie retira a mordaça, para alívio de David Power, mas este tem vida curta porque ela é substituída por uma faca larga e comprida que mergulha na boca de Davie Power, ouvindo-se a quebra de dentes. Power guincha: um gemido agudo e concentrado que a Begbie parece sair principalmente pelo nariz.

– Trabalhar com argila, que grande merda – diz Franco. – Isso vai doer, mas fique aqui comigo, amigo – ele adverte, puxando a faca para cima, cortando o rosto de Power como se fosse papel, enquanto a outra mão empurra e torce o formão incrustado. – Eis o grand finale – acrescenta ele, no tom de um anfitrião prestes a oferecer uma sobremesa de qualidade ao convidado.

Não sai mais nenhum som do gordo, mas Frank Begbie vê que os olhos dele estão fechados com força. Ele olha o pé descalço de Power, ele ainda não se mexeu, continua apoiado na banqueta.

– Muito bem, Davie – diz Franco com enérgica sinceridade. – Não sei se te serve de muito consolo, mas você cresceu na minha estima, amigo. E eu menti sobre não gostar de você: na verdade, eu nunca tive nada tanto assim contra você – admite ele.

Frank Begbie vira-se e sai justo quando o exausto, mutilado e transtornado Davie Power sente a banqueta escorregar embaixo da perna. E se passam alguns segundos dolorosos de expectativa temerosa antes de o patrono das artes ver, através de uma cortina do próprio sangue, a vela cair e O Bosque Acima de Garvoch Bay explodir em chamas com o rock em volume alto enchendo o ar.

Do lado de fora, Franco observa calmamente pela janela, com a respiração estável, as chamas lamberem as pinturas de Tyrone, o fogo ganhar potência, espalhando-se pela sala. Vê o ex-chefe e se lembra daquele velho escritório na George Street, e o cofre que Power enchia das coletas dos caça-níqueis. Como seus olhos giravam na cabeça enquanto ele fazia os depósitos, como um esquilo inchado que guarda furtivamente nozes para o inverno. Agora ele observa o gordo suado que faz uma careta tensa contra as amarras, as chamas saltando à sua volta na pira da mesa de mogno, as pinturas desaparecidas empilhadas embaixo dela. E então os olhos de Power palpitam e giram na cabeça. A língua é cuspida da cara como uma lesma cansada que escapa de uma rachadura na parede. Quando o fogo enfim encobre o que resta do corpo de Power, é hora de Frank Begbie sair pelo acesso e andar na rua silenciosa, escurecida e arborizada.

Caminhando nas sombras, com a perna criando resistência, Begbie desfruta do cheiro das flores de macieira no ar que complementam estranhamente o aroma sintético de lima do detergente de Tyrone, ainda emanado das roupas.

Só depois de ter andado até a Dalkeith Road, cerca de dez minutos depois, é que Franco ouve a sirene dos bombeiros, com toda probabilidade seguindo para a mansão de arenito vermelho de David “Tyrone” Power.

Ele decide ir para o hotel a pé, onde encontra Melanie esperando por ele na recepção. Está escuro lá dentro, com exceção de uma luz verde pastel e acolhedora que vem de uma luminária em uma escrivaninha. O recepcionista noturno gorducho sai do escuro para lançar a ele um olhar fixo, acusador e demorado.

Terry, que esteve à toa no táxi, leva os dois ao aeroporto. Franco pede que faça o trajeto pelo centro da cidade, e não pela via expressa. Distraído da tagarelice constante do taxista, mas consciente de que a maior parte da conversa é dirigida a Melanie, Franco olha a cidade no escuro e o castelo iluminado, percebendo, sem sentimento algum, que esta pode ser a última vez que os verá. É claro que havia a probabilidade de sua exposição ali, mas, apesar das promessas que fez a John Dick, talvez ele tenha de alegar doença.

Os dois estão muito cansados de ficarem acordados a noite toda, mas felizes por se anteciparem ao trânsito matinal.

– Talvez vocês recebam uma visitinha em breve. – Terry fala com malícia quando os deixa no aeroporto. – Me ofereceram um trabalhinho no Vale de San Fernando. – Ele ri, apertando a mão de Franco e dando uma piscadela para Melanie.

A essa hora da manhã, o aeroporto está deserto, a não ser por dois voos lotados, sem nada aberto senão uma loja da rede Costa Coffee. Ele leu que era uma das empresas que emitiram alertas nefastos do que aconteceria se o partido mais irredutivelmente pró-austeridade tivesse perdido as eleições. Ele ouve o bater surdo e deslizante de xícaras e pires em mesas envernizadas, a cabeça latejando de empolgação e cansaço, como se estivesse de ressaca. Um voo noturno lotado de viajantes esgotados e de aparência desesperada os leva a Londres, com pouco mais de uma hora de escala para eles embarcarem na conexão para Los Angeles.


37
O AEROPORTO

Aincongruência das roupas finas com o desalinho, a cara vermelha e um andar trôpego indicam o arquétipo do bêbado amador de aeroporto: o viajante nervoso que não consegue entrar em um avião se não estiver de porre. Ele volta, desequilibrado, a seu assento, do fundo do voo da British Airways de Londres para Los Angeles, segurando as pequenas garrafas de vinho tinto que pegou com uma comissária de bordo solidária que conhece seu gênero. Enquanto abre freneticamente uma garrafa a caminho de seu lugar, a tampa escorrega por entre os dedos e cai no chão. Rola para debaixo de uma poltrona. Então ele prossegue, arrotando, tentando conter um refluxo repentino, e cambaleia bem para um passageiro sentado junto do corredor: Frank Begbie. O claret da garrafa é derramado na camiseta branca de Begbie como uma ferida aberta.

– Ah, meu Deus, me desculpe...

Franco olha a sujeira, depois o bêbado.

– Pedir desculpas não vai fazer minha...

Ele sente Melanie apertar seu pulso e puxa o ar enquanto sorri primeiro para ela, depois para o bêbado apavorado.

– Não se preocupe. Acidentes acontecem.

– Eu peço mil desculpas – repete o bêbado.

– Não se preocupe, amigo – insiste Franco quando outra comissária de bordo se materializa, já ajudando o homem a se sentar em seu lugar.

– Eu não ia encostar o dedo no cara – diz Frank a Melanie.

Ela o olha, em dúvida.

– Então, você está controlado?

– Claro que sim – declara ele. Os olhos dela se arregalam, indicam que esta resposta não é suficiente. – Olha, como eu disse, o mais importante somos nós e as crianças. Nunca vou comprometer isso.

A voz de Melanie, quando sai, é baixa de incredulidade.

– Eu te amo, Frank, amo de verdade. Mas você vive em um universo moral paralelo para nós. É um universo onde tudo que você faz é justificado de um jeito ou de outro.

– Sim – ele concorda com a cabeça daquele jeito sincero e desconcertante dele –, e quero sair dele. Estou me esforçando muito pra sair. Todo dia. Por nós. Se você ainda acha que pode haver um nós.

Melanie sabe a resposta e não é inequívoca. Nas prisões da Escócia e da Califórnia, ela viu todas aquelas mulheres dignas de pena que apoiavam seus homens degradados e jurou que jamais seria uma delas. Mas é preciso colocar os filhos em primeiro lugar e, um desafio maior, é preciso admitir que, quando você se compromete com alguém, faça isso porque, em algum nível, é o que se exige de você. E em vez de procurar as origens psicológicas de suas próprias necessidades para um exame pessoal, Melanie Francis aceitou isto. Os fatos crescem no escuro. Mas ainda existem coisas que ela precisa saber. E dizer.

Assim, ela conta sua história. A história da traição a ele com o telefonema para a polícia, a intervenção perturbadora de Harry Pallister e o morto, Marcello Santiago. Só por um momento muito breve detecta um lampejo de raiva nos olhos dele, quando ela menciona os telefonemas perturbados de Harry. Depois passa.

– Eu errei – admite Melanie. – Não foi a melhor atitude a tomar. Me desculpe.

– Está tudo bem. – Ele aperta a mão dela. – Sei que fez isso pelo melhor dos motivos. Você estava certa, devíamos ter procurado a polícia logo. Eu e meus absurdos de presidiário – ele tenta admoestar os dois –, eu me sinto mal por você ter de encarar sozinha o pulha desse Harry.

Mas Melanie não procura a absolvição dele. Tem preocupações maiores.

– Aqueles homens na praia. Você os machucou?

Respire, respire, respire... Franco olha a esposa, tem o lábio virado para baixo.

– Como eu disse a você, estraguei o carro deles. Eu teria adorado que os dois estivessem dentro dele, mas não estavam. Então eu saí de lá, porque teria sido insensato ficar no local, por muitos motivos. Eu sabia que aqueles caras não estariam longe, mas não confiava em mim mesmo pra ir atrás deles. Se eles não me matassem, eu teria feito picadinho dos dois. Eles teriam sido encontrados esmagados naquela praia e os estudantes teriam gravado com seus telefones e colocado no YouTube.

Com enorme alívio, Melanie respira fundo o ar seco e reciclado da cabine. Frank não pode ser incomodado porque conseguiu controlar seus impulsos mais sombrios. Santiago foi encontrado encalhado na plataforma de petróleo; Coover ainda estava desaparecido: Melanie não tinha dúvida da capacidade do marido de ser violento com aqueles homens. Porém, era muita premeditação dispor dos corpos desta maneira. Simplesmente estava fora da alçada dele.

– Eu precisava perguntar. Harry fez todo tipo de inferências.

Francis Begbie faz um carinho em seu braço.

– Os canas são iguais em toda parte, só querem fechar o caso. – Ele abre um sorriso triste. – Eu não me preocuparia com ele, com sua mentalidade e qualificações. Parece que ele ficou obcecado por você e se fez de palhaço. Eu até o entendo. – Ele ergue uma sobrancelha.

A lisonja banalizante não cai bem em Melanie. Ela mantém o olhar fixo nele. O marido está controlado e parece sincero, mas ela não consegue se livrar da sensação sombria de que ele fez algo terrível.

Ele vê a terrível preocupação nos olhos dela.

– Olha, não quero machucar ninguém, bom ou mau – enfatiza Franco. – Só quero que a gente tenha a nossa vida. Tenho a exposição próxima...

– Foda-se a sua exposição – Melanie rebate de tal modo que ele quase se retrai. – Para concluir: preciso saber, antes de qualquer outra coisa, que eu, as meninas, meus amigos e minha família não só estamos protegidos por você, mas também a salvo de você. Porque, se você não consegue me olhar nos olhos e garantir realmente isso, então acabou para nós.

Frank Begbie não raciocina. Nem mesmo respira. Deixa que seus instintos ajam, porque parte dele sabe que, se não puder ser sincero ali por aqueles que ama, ele terá de ir embora.

– É claro que vocês estão. Eu morreria antes de machucar qualquer um de vocês, trataria a mim mesmo exatamente como qualquer um que tentasse machucar vocês.

Ele vê uma lágrima escorrer no rosto de Melanie. Mas sua respiração continua controlada, enquanto ele sente a grande força da esposa e é alimentado por ela, como sempre foi. Na ausência dela, ele se deixou enfraquecer novamente, foi atraído para antigas rixas. Mas isto serviu a um fim. E então a mão de Melanie vai ao rosto dele. Ele sente uma umidade quente na face, o que o deixa perplexo.

– Então, não estou morando com um monstro. – Ela sorri com um ânimo nos olhos e beija seu rosto molhado.

– Não. – Franco volta a respirar. – Um ser humano. Bem fodido, mas que tenta ser melhor.

Melanie meneia a cabeça e olha fundo nos olhos dele.

– Bom, talvez você tenha de se esforçar muito mais.

Seu tom de voz faz com que ele se sinta um pit bull resgatado, um animal de estimação muito amado, mas perigoso para a família. E, ele percebe, é exatamente o que ele é, e precisa conquistar o direito de ser mais.

– Por você e pelas meninas, eu vou. Farei tudo que for necessário.

– Devo ser tão louca quanto você, mas acredito em você – diz ela, e eles se abraçam.

Quando se separam, ele olha com gravidade para Melanie, devolvendo a ansiedade a seu corpo.

– Tem uma coisa que preciso te dizer.

Melanie Francis mal consegue respirar. Sente os ombros arriarem. Ele fez alguma coisa horrível. Eu sabia.

– Sei quem matou Sean.

– David Power me contou. Foi aquele jovem, Anton.

– Não foi ele. Power tentou me colocar contra Anton.

– Desta vez você precisa procurar a polícia!

– Não posso.

– Você prometeu que faria isso! Por que você não pode...

Ele segura as mãos dela. Baixa o tom de voz.

– Foi Michael – ele conta a ela. – Meu outro filho. Ele matou o irmão mais velho. – E ela fica sentada num pavor silencioso, ansiosa, enquanto ele lhe conta a história. – Então, não posso procurar a polícia.

– Não. Claro que não – ela concorda, sentindo o cansaço desgastá-la pelas bordas.

E ele explica por que acredita que Michael fez isso e que jamais poderá absolver a si mesmo, devido a toda sua contribuição para a má educação do filho. Melanie escuta com paciência, até que ele termina. Depois se encosta junto dele e, emocionalmente esgotada, quase de imediato cai em um sono profundo e satisfeito no ombro dele.

Frank enxuga o rosto com a manga, abre o laptop, coloca os fones de ouvido e deixa que Mahler inunde seu cérebro, relaxando-o. Sente a respiração se regularizar prazerosamente, lenta e tranquila.

Um... dois... três... quem... somos... nós...

Seus pensamentos vagam para um reino que fica entre o sonho e a memória. Um menino no fundo daquela antiga doca com Johnnie Tweed arrebentado olhando para ele, enquanto o jovem Francis James Begbie segura a pedra, pronto para executar a libertação. Qual foi mesmo a palavra que Johnnie murmurou? Pode ter sido “espere”, mas ele não tinha certeza.

O que ele tinha certeza era que esta foi a última palavra de Johnnie.

Somos a juventude louca do Leith...

Uma turbulência. Os olhos de Melanie se abrem e ela aperta a mão dele enquanto o avião se sacode um pouco e encontra uma atmosfera mais tranquila.

Agora Frank Begbie está satisfeito, na expectativa do sol, enquanto Chinese Democracy, que ele não se lembra de ter colocado, toca logo depois de Mahler.

A comissária de bordo se aproxima e lhes oferece uma seleção de bebidas.

– Só água pra mim – diz ele. Depois olha para Melanie, que sai de seu sono, e lhe dá um beijo no rosto. – É tão bom estar com você. Sabe o que eu realmente queria agora?

– O quê?

– Você, eu e as meninas andando na praia. Precisamos levar as duas a Devereux Slough pra ver a vida marinha e todas as espécies de aves. Aquelas andorinhas logo estarão fazendo os ninhos.

– Estou louca para dançar salsa de novo. – Melanie sorri, seu tom baixa enigmaticamente.

O rosto de Franco se vinca em um sorriso. Sucumbindo a um incômodo na bexiga, ele se levanta e vai à frente do avião. À espera na copa, assente para uma mulher de meia-idade que deixa vago o toalete apertado. Ela vira a cara, finge que o cumprimento não aconteceu. Enquanto Frank Begbie urina sem estabilidade, considera a natureza da etiqueta de um banheiro unissex em pleno voo. Será que ele deveria ter ignorado a mulher, poupando-a do constrangimento óbvio? Uma vida na cadeia pouco ensina sobre o protocolo fora dela. Ele ia conversar sobre isso com Melanie.

Ele se sente tão bem se afastando de Edimburgo e de todas as suas associações negativas. Nunca mais viverá aquele absurdo. Quando chegar a exposição, ele admite para si mesmo que provavelmente irá, mas só à inauguração, para ver John e possivelmente Elspeth e a família dela, depois vai dar fora de Dodge. Ele sacode, fecha o zíper, lava as mãos e examina a mancha de vinho tinto na camiseta. Tem a forma aproximada da Irlanda. Ele considera a possibilidade de atacar a tarefa, mas é preciso mais do que apenas água e ele sente que qualquer esforço será infrutífero. Além disso, agora ele acha a mancha divertida.

Quando sai, a primeira coisa que vê é o homem que derramou o vinho, olhando temeroso para ele. Porém, o olhar de Frances Begbie não se demora nele, e sim no passageiro sentado ao lado, a sua esquerda, que ele reconhece de imediato, apesar dos óculos e do cabelo mais ralo. O velho cara de Fort parece ter envelhecido bem: veste uma camisa azul-clara, aberta no colarinho, com calça azul-marinho, e lê uma revista chamada DJ. Frank Begbie paira acima do viajante nervoso e bêbado, depois se curva sobre ele enquanto o outro homem, percebendo uma presença furtiva, baixa a revista e levanta a cabeça, os olhos se arregalando no choque do reconhecimento: encarando o garoto disléxico por quem ele recebeu aquele castigo, anos atrás, tudo na solidariedade da amizade adolescente. Frank Begbie simplesmente mantém a respiração lenta e regular – entra ar pelo nariz, sai pela boca – enquanto fala, com um sorriso:

– Olá, meu velho amigo. Já faz um tempão que não te vejo.

 

 

                                                    Irvine Welsh         

 

 

 

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