Biblio VT
ST. JAMES'S, LONDRES
Jacqueline tivera esperanças de que um curto passeio sozinha lhe acalmasse os nervos. Foi um erro. Devia ter apanhado um táxi directamente para a porta de Yusef, porque agora sentia vontade de dar meia-volta e dizer a Shamron e a Gabriel para irem para o inferno. Tinha apenas alguns segundos para se controlar. Compreendeu que não estava habituada ao medo, pelo menos ao tipo de medo que fazia com que fosse quase impossível respirar. Tinha sentido um medo como este uma única vez na vida - na noite do raide em Tunes -, mas nessa noite Gabriel estivera ao seu lado. Agora estava sozinha. Pensou nos avós e no medo que deviam ter sentido quando estavam à espera de morrer em Sobibor. Se eles conseguiram enfrentar a morte às mãos dos Nazis, eu consigo enfrentar isto, pensou.
Mas havia mais outra coisa que estava a sentir; amor. Um amor intenso, insuportável, intolerável. Um amor perfeito. Um amor que sobrevivera doze anos a relações sem significado com outros homens. Foi a promessa de Gabriel que, finalmente, a empurrou para a porta de Yusef. Pensou numa coisa que Shamron lhe dissera na noite em que a recrutara: "Tens de acreditar no que estás a fazer." Ob, sim , pensou ela. Eu acredito completamente naquilo que estou a fazer agora.
Carregou na campainha do apartamento de Yusef. Um momento de espera. Nada. Voltou a carregar, esperou, olhou para o relógio. Ele tinha-lhe dito para vir às nove horas. Estava tão nervosa com a possibilidade de chegar atrasada que tinha conseguido chegar
cinco minutos adiantada. Então o que é que devo fazer, Gabriel? Ficar? Dar uma volta ao quarteirão? Se se fosse embora era capaz de nunca mais voltar. Acendeu um cigarro, bateu com os pés no chão para combater o frio, esperou.
Uns momentos depois, uma carrinha Ford parou com uma travagem funda na rua à frente dela. A porta lateral deslizou para o lado e Yusef saltou para o asfalto molhado. Encaminhou-se para ela, as mãos enfiadas nas algibeiras do casaco de cabedal, a cabeça a abanar de um lado para o outro.
- Há quanto tempo é que estás à espera?
- Não sei. Três minutos, cinco minutos. Onde raio é que te meteste?
- Disse-te para vires às nove. Não disse cinco minutos antes das nove. Disse nove.
- E daí? Cheguei uns minutos mais cedo. Qual é o grande problema?
- As regras mudaram.
Lembrou-se do que Gabriel lhe tinha dito: "Não tens motivo nenhum para teres medo. Se eles pressionarem, pressiona também."
- Ouve, as regras não mudaram até eu dizer que mudaram. Ainda não decidi se vou. Isto é uma loucura, Yusef. Não me dizes para onde vou. Não me dizes quando é que volto. Amo-te, Yusef. Quero ajudar-te. Mas tens de te pôr no meu lugar.
Os modos dele suavizaram-se imediatamente.
- Desculpa, Dominique. Estou um pouco tenso. Tudo tem de correr bem. Não queria descarregar em cima de ti. Entra. Vamos conversar. Mas não temos muito tempo.
Gabriel nunca tinha visto a carrinha Ford antes. Apontou a matrícula enquanto ela desaparecia na escuridão. Shamron foi juntar-se-lhe à janela. Juntos viram Yusef e Jacqueline desaparecer no interior da entrada do prédio. Instantes depois, as luzes acenderam-se no apartamento de Yusef. Gabriel conseguia ouvir duas vozes. Yusef, calmo e tranquilizador; Jacqueline, nervosa, stressada. Shamron fez uma cama improvisada na ponta do sofá e observou a cena do outro lado da rua como se estivesse a ser projectada num ecrã.
Gabriel fechou os olhos e escutou. Eles estavam a perseguir-se um ao outro, dando voltas à sala como pugilistas. Gabriel não tinha de o ver. Conseguia perceber pela forma como o nível áudio subia de cada vez que um deles passava pelo telefone.
- O que é, Yusef? Drogas? Uma bomba? Diz-me, meu filho-da-mãe!
A representação dela era tão convincente que Gabriel receou que Yusef mudasse de ideias. Shamron parecia estar a gozar o espectáculo. Quando, finalmente, Jacqueline concordou em ir, levantou os olhos para Gabriel.
- Foi maravilhoso. Um toque perfeito. Bem-feito. Bravo. Cinco minutos mais tarde, Gabriel viu-os entrar para a parte de
trás de um Vauxhall azul-escuro. Segundos depois do Vauxhall se afastar, passou um carro por baixo da janela de Gabriel: os vigias de Shamron. Agora não havia mais nada para fazer a não ser esperar. Para passar o tempo, rebobinou a cassete e voltou a ouvir a conversa deles. "Diz-me qualquer coisa", dissera Jacqueline. "Quando isto acabar, voltarei a ver-te?" Gabriel parou a fita e perguntou a si mesmo se ela estava a falar com Yusef ou com ele.
A Cromwell Road à meia-noite: o corredor desolador que ligava o Centro de Londres aos subúrbios ocidentais nunca tinha parecido tão belo a Jacqueline. Os sombrios hotéis eduardianos, com os seus letreiros de néon a anunciar vagas, pareciam-lhe encantadores. Observou os padrões em mudança das luzes dos semáforos reflectidos no pavimento molhado e viu uma obra de arte urbanística. Abriu a janela uns centímetros e cheirou o ar: vapores a diesel, humidade, comida frita barata a ser cozinhada algures. Londres à noite. Espectacular.
Tinham mudado de carro, um Toyota cinzento com o pára-brisas rachado substituiu o Vauxhall azul. O Vauxhall tinha sido guiado por um rapaz bem-parecido com o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo. Agora, sentado ao volante, ia um homem mais velho - pelo menos quarenta anos, calculou ela - com uma cara estreita e olhos pretos nervosos. Guiava devagar.
Yusef murmurou-lhe umas palavras em árabe.
Jacqueline disse:
- Fala francês ou inglês ou então nada.
- Somos palestinianos - disse Yusef. - O árabe é a nossa língua.
- Estou-me nas tintas! Eu não falo árabe. Não consigo perceber o que é que estão a dizer e isso faz-me sentir desconfortável, por isso, faz o favor de falar a merda do inglês, ou arranjas outra pessoa.
- Só lhe estava a dizer para ir um bocadinho mais devagar. Na realidade, Yusef, o que estavas a dizer-lhe era para se certificar que
não estávamos a ser seguidos, mas não nos vamos agarrar a pormenores.
Em cima do banco e no meio deles estava uma mala pequena. Yusef tinha-a levado a casa e ajudara-a a fazer a mala.
- Não vai haver tempo para esperar pela bagagem - dissera-Ilhe ele. - Se precisares de mais roupa, dar-te-ão dinheiro para comprares mais roupa.
Tinha-a observado cuidadosamente enquanto ela fazia a mala, investigando cada um dos artigos que metia nela.
- Como é que me hei-de vestir? - perguntara ela, sarcasticamente. - Clima quente ou frio? Vamos para a Noruega ou para a Nova Zelândia? Suécia ou Suazilândia? Qual é o código? Formal ou informal?
Acendeu um cigarro. Yusef puxou também de um e estendeu a mão para o isqueiro de Jacqueline. Ela entregou-lho e observou-o enquanto ele acendia o cigarro. Ele ia devolvê-lo quando qualquer coisa o fez parar e inspeccionar o isqueiro com mais atenção.
Jacqueline sentiu-se como se se tivesse esquecido de como é que se respirava.
- É muito bonito - disse ele e virou-o para ler a inscrição. Para a Dominique, com carinho e memórias afectuosas." Onde é que arranjaste este isqueiro? - Tenho-o há séculos. - Responde à minha pergunta.
- Foi uma prenda de um homem. Um homem que não me mandou embora com um completo estranho.
- Deve ter sido muito simpático, este homem. Porque é que nunca tinha visto isto?
- Não viste uma data de coisas. Isso não quer dizer nada.
- Devo ter ciúmes?
- Olha para a data, idiota.
- "Junho mil novecentos e noventa e cinco" - recitou ele. Este homem ainda faz parte da tua vida?
- Se fizesse, não estaria contigo.
- Quando foi a última vez que o viste?
-Junho, mil novecentos e noventa e cinco, com carinho e memórias afectuosas.
- Deve ter sido muito importante para ti. Senão, não terias conservado o isqueiro dele.
- Não é o isqueiro dele, é o meu isqueiro. E conservo-o porque é um bom isqueiro.
Pensou: O Gabriel tinha razão. Ele desconfia de qualquer coisa. vou morrer. Ele vai matar-me esta noite.
Olhou pela janela e perguntou para consigo se a Cromwell Road numa noite chuvosa de Inverno iria ser a sua última imagem do mundo. Devia ter escrito uma carta à mãe e tê-la depositado num cofre-forte. Gostaria de saber como é que Shamron lhe iria dar a notícia. Iria explicar-lhe que ela estava a trabalhar para o Departamento? Ou iriam arranjar uma história qualquer para disfarçar? Ela iria ter de saber pelos jornais? Jacqueline Delacroix, a estudante de Marselha que atingiu os píncaros dos modelos europeus antes de um declínio vertiginoso, morre em circunstâncias misteriosas... Perguntou a si mesma se os jornalistas, que tinha tratado com tanto desprezo quando estava viva, se iriam levantar em massa e criticá-la violentamente depois de morta. Pelo menos, Rémy iria dizer coisas simpáticas. Tinham tido uma relação bastante cordial. Talvez até mesmo o Gilles - Não, espera. Lembra-te da festa em Milão, a discussão por causa da coca. Céus!, Gilles ia fazê-la em fanicos.
Yusef entregou-lhe o isqueiro. Meteu-o na carteira. O silêncio era terrível. Queria fazer com que ele continuasse a falar; por qualquer razão, a conversa fazia com que se sentisse segura, mesmo que fosse tudo mentiras.
- Nunca respondeste à minha pergunta - disse ela.
- Qual pergunta? Tens feito tantas esta noite.
- Quando isto acabar, voltarei a ver-te?
- Isso depende apenas de ti.
- E continuas a não responder à minha pergunta. o
- Respondo sempre às tuas perguntas.
- Respondes? Se me tivesses contado a verdade ao princípio, duvido que me fosse meter num avião com um completo estranho amanhã de manhã.
- Tinha de te esconder algumas coisas. E quanto a ti, Dominique? Foste completamente honesta comigo? Contaste-me tudo sobre ti?
- Tudo o que é importante.
- Isso é uma resposta muito conveniente. Usa-la muito eficazmente quando queres evitar falar mais.
- E também acontece que é verdade. Responde à minha pergunta. Voltarei a ver-te? - Espero bem que sim.
- És tão aldrabão, Yusef.
- E tu estás muito cansada. Fecha os olhos. Descansa. Ela encostou a cabeça à janela.
- Para onde é que vamos?
- Para um sítio seguro.
- Sim, já me disseste isso, mas que tal dizeres-me onde? - Logo vês quando lá chegarmos.
- Porque é que precisamos de um sítio seguro? Qual é o problema com o teu apartamento? Qual é o problema com o meu apartamento?
- Este sítio pertence a um amigo meu. Fica perto de Heathrow.
- O teu amigo vai lá estar?
- Não. - Vais passar lá a noite?
- Claro. E de manhã vou contigo no avião até Paris.
- E depois disso?
- Depois disso, tu vais estar na companhia do nosso funcionario
palestiniano e a tua viagem irá começar. Quem me dera estar no teu lugar. Seria uma honra tão grande estar com este homem nesta viagem. Não fazes ideia da sorte que tens, Dominique.
- E como é que ele se chama, esse grande homem? Talvez o conheça.
- Duvido que o conheças, mas continuo a não te poder dizer o nome dele. Vais tratá-lo só pelo seu nome de disfarce.
- Que é?
- Lucien. Lucien Daveau.
- Lucien - disse ela baixinho. - Sempre gostei do nome Lucien. Para onde é que vamos, Yusef?
- Fecha os olhos. Já não falta muito.
Shamron atendeu o telefone no seu posto de escuta antes que ele tocasse segunda vez. Ouviu sem falar e depois pousou gentilmente o auscultador como se tivesse acabado de ser informado da morte de um velho adversário.
- Parece que se instalaram para passar a noite - disse ele.
- Onde?
- Numa casa de habitação social em Hounslow, perto do aeroporto.
- E a equipa?
- A postos, bem escondidos. Vão passar a noite com ela.
- Sentir-me-ia melhor se estivesse lá.
- Espera-te um dia muito comprido amanhã. Sugiro que durmas umas horas.
Mas Gabriel entrou no quarto e voltou momentos depois, com o casaco vestido e uma mochila de náilon ao ombro.
- Onde é que vais? - perguntou Shamron.
- Tenho de tratar de um assunto pessoal.
- Onde é que vais? Quando é que voltas?
Mas Gabriel saiu sem dizer uma única palavra e desceu as escadas para a rua. Ao passar à frente do prédio, pensou que via Shamron a espreitá-lo por uma ranhura das persianas. E quando se aproximou de Edgware Road, teve a sensação desconfortável de que Shamron também tinha um dos homens da sua equipa a vigiá-lo.
HOUNSLOW, INGLATERRA
O Toyota largou-os e afastou-se velozmente. Um parque de estacionamento banhado pela luz amarela de lâmpadas de sódio, uma colónia de enormes apartamentos de habitação social, de tijolo vermelho, que parecia um complexo industrial arruinado pelos tempos duros. Jacqueline ofereceu-se para transportar a sua própria mala, mas Yusef nem quis ouvir. Agarrou-lhe na mão e guiou-a pelo parque de estacionamento, depois por um relvado juncado de latas de cerveja esborrachadas e bocados de brinquedos partidos. Uma camioneta vermelha sem as rodas da frente. Um bebé nu sem cabeça. Uma pistola de plástico. A pistola do Gabriel, pensou Jacqueline, lembrando-se da noite nas colinas da Provença, quando ele testara a habilidade dela para disparar. Parecia que tinha sido há muito tempo. Há uma vida. Um gato silvou-lhes das sombras. Jacqueline agarrou o cotovelo de Yusef e quase soltou um grito. Um cão começou a ladrar e o gato fugiu a correr pelo passeio e desapareceu por baixo de uma vedação.
- Isto é lindo, Yusef. Porque é que não me disseste que tinhas uma casa no campo?
- Por favor, não fales até estarmos lá dentro.
Levou-a para o vão de umas escadas. Folhas mortas e jornais velhos nos cantos, paredes de um verde-lima, candeeiros de luzes amarelas lá em cima. A colisão das cores dava-lhes um ar agoniado. Treparam dois lances de escada, depois passaram uma porta e percorreram um corredor comprido. Foram recebidos por uma cacofonia
de sons desarmoniosos. Uma criança a gritar pela mãe; um casal a discutir num inglês com pronúncia das Caraíbas. Um rádio cheio de estática a transmitir aos berros uma peça da BBC, The Real Thing, de tom Stoppard. Yusef parou à frente de uma porta com o número 22 colado por baixo do óculo. Abriu a porta com uma chave, levou-a para dentro e acendeu um pequeno candeeiro com abajur de papel.
A sala estava vazia, com excepção de uma poltrona e uma televisão. O fio serpenteava pelo chão de linóleo como uma serpente morta num jardim. Através de uma porta meio aberta ela conseguiu ver um quarto com um colchão no chão. Através de outra porta, uma cozinha pequena, um saco com mercearias em cima da bancada. Apesar da ausência de mobília, o apartamento estava impecavelmente limpo e cheirava a ambientador de limão.
Jacqueline abriu a janela, o ar frio entrou. Por baixo da janela havia uma vedação e depois da vedação um campo de futebol. Meia dúzia de homens novos, com fatos de treino de cores vivas e gorros de lã, davam pontapés numa bola à luz dos faróis de um carro estacionado ao lado da linha lateral. As sombras compridas jogavam nas paredes de tijolo por baixo da janela de Jacqueline. Ao longe, conseguiu ouvir o barulho abafado da auto-estrada. Um comboio vazio sacudia-se ruidosamente por uma passagem elevada. Um avião a jacto rugiu por cima da cabeça dela.
- Gosto do que o teu amigo fez com o apartamento, Yusef, mas não é o meu estilo. Porque é que não vamos para um dos hotéis no aeroporto? Um sítio com serviço de quartos e um bar decente?
Yusef estava na cozinha a desempacotar o saco das mercearias.
- Se tens fome, posso arranjar-te qualquer coisa. Há pão, queijo, ovos, uma garrafa de vinho e café e leite para amanhã de manhã.
Jacqueline entrou na cozinha. Mal havia espaço para os dois no espaço exíguo.
- Não sejas tão prosaico. Mas isto é um buraco merdoso. Porque é que está vazio?
- O meu amigo acabou de conseguir este sítio. Ainda não teve oportunidade de mudar as coisas para cá. Tem estado a viver com os pais.
- Ele deve estar muito feliz, mas continuo a não perceber por que razão é que temos de ficar aqui esta noite.
- Já te disse, Dominique. Viemos para aqui por razões de segurança.
- Segurança por causa de quem? Segurança por causa de quê?
- Se calhar, nunca ouviste falar do serviço de segurança britânico, mais conhecido por MI5. Eles acham que têm obrigação de se infiltrar nas comunidades de exilados e dissidentes. Vigiam pessoas como nós.
- Como nós?
- Como eu. E depois há os gajos de Telavive.
- Agora é que me baralhaste, Yusef. Quem são os gajos de Telavive?
Yusef levantou a cabeça e olhou incredulamente para ela.
- Quem são os gajos de Telavive? Os serviços secretos assassinos mais impiedosos do mundo. Um bando de assassinos contratados é capaz de ser uma descrição mais apropriada.
- E porque é que os Israelitas haviam de ser uma ameaça aqui, na Grã-Bretanha?
- Os Israelitas estão em todos os sítios onde nós estamos. As fronteiras nacionais não os incomodam.
Yusef despejou o saco e usou-o para forrar o caixote de lixo.
- Tens fome? - perguntou.
- Não, só estou extremamente cansada. É tarde.
- Vai para a cama. Eu tenho de tratar de uns assuntos.
- Não me vais deixar aqui sozinha, pois não?
Ele mostrou o telemóvel. -
- Só tenho de fazer umas chamadas. Jacqueline rodeou-lhe a cintura com os braços. Yusef puxou-lhe
a testa até aos seus lábios e beijou-a suavemente.
- Gostava tanto que não me obrigasses a fazer isto.
- É só por uns dias. E quando voltares, podemos ficar juntos.
- Quem me dera conseguir acreditar em ti, mas já não sei em que acreditar.
Ele voltou a beijá-la, depois pôs-lhe um dedo debaixo do queixo e levantou-lhe a cara para a poder olhar nos olhos.
- Não o diria se não fosse verdade. Vai para a cama. Tenta dormir.
Ela entrou no quarto. Não se deu ao trabalho de acender a luz; seria menos deprimente se só tivesse uma vaga ideia daquilo que a rodeava. Baixou-se, agarrou numa mão-cheia da roupa da cama e cheirou. Acabada de vir da lavandaria. Mesmo assim, decidiu ficar vestida. Deitou-se e pousou cuidadosamente a cabeça na almofada, de forma a que esta não lhe tocasse em nenhuma parte do pescoço ou da cara. Deixou-se ficar calçada. Fumou um último cigarro para disfarçar o cheiro intenso do desinfectante. Pensou em Gabriel, na escola de dança em Valbonne. Escutou os aviões e os comboios e as pancadas sonoras de um pé numa bola de cabedal no campo de futebol. Observou as sombras dos atletas aos saltos, a dançar na parede como marionetas.
Depois ouviu Yusef a falar num murmúrio ao telemóvel. Não conseguia perceber bem o que ele estava a dizer. Não se importou. Na verdade, o seu último pensamento antes de cair num sono febril foi que Yusef, o seu amante palestiniano, provavelmente não teria muito tempo de vida.
Isherwood abriu uns centímetros a porta da sua casa em Onslow Gardens e olhou malevolamente para Gabriel por cima da corrente de segurança.
- Fazes alguma ideia de que horas são? - Tirou a corrente.
- Entra antes que apanhemos os dois uma pneumonia.
Isherwood estava de pijama, chinelos de couro e roupão de seda. Levou Gabriel para a sala e depois desapareceu na cozinha. Voltou passados uns momentos com uma cafeteira de café e duas canecas.
- Espero que tomes o café solo, porque o leite no frigorífico foi comprado durante o governo da Thatcher.
- Sem nada, está óptimo.
- Então, Gabriel, meu amor. O que é que te traz por cá às fez uma pausa para olhar para o relógio e fez uma careta - Credo! As três menos um quarto da manhã?
- Vais perder a Dominique.
- Calculei isso quando o Ari Shamron me entrou pela galeria
como uma nuvem venenosa. Para onde é que ela vai? Líbano? Líbia? Irão? A propósito, qual era o seu nome verdadeiro? Gabriel limitou-se a beber o café sem dizer nada.
- Na verdade, odeio vê-la ir-se embora. Um anjo, essa. E não era uma secretária nada má, mal percebeu as coisas.
- Não vai voltar.
- Nunca voltam. Tenho um jeitão para afastar as mulheres. Sempre tive.
- Ouvi dizer que estavas nas negociações finais com o Oliver Dimbledy para lhe venderes a galeria.
- Não se negoceia verdadeiramente quando se está atado aos carris do comboio, Gabriel. Rebaixa-se. Suplica-se.
- Não o faças.
- Como é que te atreves a sentar-te aí e a dizer-me como é que hei-de tratar dos meus assuntos? Não estaria metido nesta trapalhada se não fosse por causa de ti e do teu amigo Herr tíeller.
- A operação é capaz de acabar mais cedo do que esperávamos.
- E?
- E eu posso voltar a trabalhar no Vecellio.
- É impossível que consigas acabá-lo a tempo de me salvares o pescoço. Agora estou oficialmente insolvente, e é por isso que estou a negociar com o Oliver Dimbleby.
- O Dimbleby é um asco. Vai dar cabo da galeria.
- Francamente, Gabriel, estou demasiado cansado para querer saber disso. Preciso de qualquer coisa mais forte do que café. E tu?
Gabriel abanou a cabeça. Isherwood arrastou os chinelos até ao aparador e deitou dois dedos de gim num cálice.
- O que é que está dentro do saco?
- Uma apólice de seguro. - Um seguro contra quê?
- A possibilidade de eu não conseguir acabar o trabalho no Vecellio a tempo.. Gabriel estendeu-lhe o saco.
Abre.
Isherwood pousou a bebida e abriu o fecho do saco.
- Meu Deus, Gabriel! Quanto é?
- Cem mil.
- Não posso ficar com o teu dinheiro.
- Não é meu. É do Shamron, através do Benjamin Stone.
- Do Benjamin Stone?
- Em toda a sua glória.
- Que raio é que andas a fazer com cem mil libras do dinheiro do Benjamin Stone?
- Limita-te a ficar com ele e não faças mais perguntas. Se é mesmo do Benjamin Stone, acho que vou ficar. Isherwood ergueu o copo de gim.
- A tua, Gabriel. Peço desculpa por todas as coisas infames que pensei de ti durante estas últimas semanas.
- Mereci-as. Nunca devia ter-te abandonado.
- Está tudo perdoado.
Isherwood olhou fixamente para a bebida durante um bom bocado.
- Então, onde é que ela está? Foi-se embora para sempre?
- A operação está a entrar na fase final.
- Não puseste aquela pobre rapariga em perigo, pois não?
- Espero que não.
- Também eu, para o bem dela e o teu.
- De que é que estás a falar?
- Sabes, eu ando neste maldito negócio há quase quarenta anos e, durante todo esse tempo, nunca me conseguiram vender uma falsificação. O Dimbleby já queimou os dedos. Até o grande Giles Pittaway conseguiu comprar uma ou duas falsificações no seu tempo. Mas eu não. Tenho o dom, estás a ver? Posso ser um péssimo negociante, mas consigo sempre distinguir uma fraude de um produto genuíno.
- Onde é que queres chegar com isto?
- Ela é um produto genuíno. É ouro. Podes nunca mais ter outra oportunidade como esta. Agarra-a bem porque, se não o fizeres, será o maior erro da tua vida.
PARTE III RESTAURAÇÃO
Antes da Catástrofe, Daoud al-Hourani vivia na Galileia Superior. Era um muktar e o homem mais rico da aldeia. Tinha gado- várias cabeças de gado vacum, muitas cabras e um grande rebanho de ovelhas -, assim como uma mata de limoeiros, laranjeiras e oliveiras. Quando era altura de apanhar a fruta, ele e os outros anciãos da aldeia organizavam uma colheita comunal. A família vivia numa casa caiada de branco com chão de tijoleira fresca e tapetes e almofadas de boa qualidade. A mulher deu-lhe cinco filhas, mas apenas um filho, Mahmoud.
Daoud al-Hourani mantinha boas relações com os judeus que se tinham instalado na terra ao pé da aldeia. Quando o poço dos judeus ficou inquinado, recrutou homens da aldeia para os ajudar a escavar um novo. Quando vários árabes da aldeia adoeceram com malária, os judeus da colónia vieram drenar um pântano ali próximo. Daoud al-Hourani aprendeu a falar hebraico. Quando uma das filhas se apaixonou por um judeu da colónia, autorizou-os
a casar.
Depois veio a guerra, e depois a Catástrofe. O clã Hourani, juntamente com a maioria dos árabes da Galileia Superior, fugiu, atravessou a fronteira para o Líbano e instalou-se num campo de refugiados ao pé de Sídon. O campo em si estava organizado de forma muito semelhante ao das aldeias da Galileia Superior, e Daoud al-Hourani conservou o seu estatuto de ancião e homem respeitado, embora a sua terra tivesse sido confiscada e os animais perdidos. A sua grande casa caiada de branco foi substituída por uma tenda acanhada, que era um braseiro no calor do Verão e gelada e porosa durante as chuvas geladas do Inverno. A noite, os homens sentavam-se fora das tendas e contavam
histórias da Palestina. Daoud al-Hourani garantiu ao seu povo que o exílio iria ser apenas temporário - que os exércitos árabes se iriam juntar e lançar os judeus para o mar.
Mas os exércitos árabes não se juntaram e não tentaram lançar os judeus para o mar. No campo em Sídon, as tendas transformaram-se em farrapos rasgados e foram apenas substituídas por cabanas toscas, com esgotos a céu aberto. Lentamente, à medida que os anos iam passando, Daoud al-Hourani ia perdendo influência sobre os aldeões. Tinha-lhes dito para serem pacientes, mas a paciência deles não fora recompensada. De facto, a terrível situação dos Palestinianos parecia apenas piorar.
Durante estes primeiros anos horríveis no campo, só houve uma notícia alegre. A mulher de Daoud al-Hourani ficou grávida, embora tivesse chegado à idade em que a maioria das mulheres já não pode ter filhos. Na Primavera desse ano, exactamente cinco anos depois do clã Honram ter fugido da sua casa na Galileia Superior, ela deu à luz um filho na enfermaria do acampamento. Daoud al-Hourani deu ao rapaz o nome de Taríq.
Os ramos do clã de al-Hourani estavam espalhados pela diáspora. Uns estavam do outro lado da fronteira na Síria, outros em campos de refugiados na Jordânia. Alguns, incluindo o irmão de Daoud al-Hourani, tinham conseguido chegar ao Cairo. Poucos anos depois do nascimento de Tariq, o irmão de Daoud al-Hourani morreu. Ele quis ir ao funeral do irmão, por isso viajou até Beirute e conseguiu os vistos e autorizações necessários para fazer a viagem. Como era palstiniano, não tinha passaporte. No dia seguinte apanhou um avião para o Cairo, mas foi mandado para trás no aeroporto por um funcionário da alfândega que declarou que os seus papéis não estavam em ordem. Regressou a Beirute, mas um funcionário da imigração recusou-lhe autorização para voltar a entrar no Líbano. Foi fechado numa sala de detenção no aeroporto, sem comida nem água.
Algumas horas depois, um cão foi levado para a sala. Tinha chegado sem ser acompanhado num voo de Londres, e, tal como Daoud al-Hourani, os seus papéis tinham sido contestados pelos funcionários libaneses da imigração. Mas uma hora mais tarde, um oficial superior da alfândega apareceu e levou o cão. Tinha sido concedida uma autorização especial ao animal para entrar no país.
Finalmente, uma semana depois, Daoud al-Hourani foi autorizado a sair do aeroporto e a voltar para o campo de refugiados em Sídon. Nessa noite, quando os homens se sentaram à volta das fogueiras, ele chamou os filhos para junto de si e contou-lhes a sua penosa experiência.
- Pedi ao nosso povo para ser paciente. Prometi-lhes que os Árabes viriam em nosso socorro, mas aqui estamos nós, muitos anos depois, e ainda continuamos nos campos. Os Árabes tratam-nos pior do que os judeus. Os Árabes tratam-nos pior do que aos cães. O tempo para a paciência acabou. Chegou a altura de lutar.
Tariq era demasiado novo para combater; ainda era um rapaz. Mas Mahmoud tinha agora quase vinte anos, e estava pronto para pegar em armas contra os judeus. Nessa noite juntou-se aos fedayeen. Foi a última vez que Tariq o viu vivo.
AEROPORTO CHARLES DE GAULE, PARIS
Yusef enfiou a mão na de Jacqueline e guiou-a através do terminal cheio de gente. Ela estava exausta. Tinha dormido pessimamente e pouco antes da madrugada acordara com um pesadelo em que Gabriel assassinava Yusef enquanto este estava a fazer amor com ela. Tinha os ouvidos a zumbir e havia um tremeluzir na periferia da sua visão, como lâmpadas de flash a explodirem numa auto-estrada. Atravessaram o átrio dos passageiros em trânsito, passaram um controlo de segurança e entraram no terminal das partidas. Yusef largou-lhe a mão, deu-lhe um beijo na cara e chegou os lábios ao ouvido dela. Quando falou, lembrou-lhe a forma como Gabriel lhe tinha falado na noite anterior, na galeria - suavemente, como se lhe estivesse a contar um conto de embalar.
- Vais esperar naquele café. Vais pedir um café e ler o jornal que enfiei na bolsa de fora da tua mala. Não podes sair do café por motivo nenhum. Ele irá ter contigo, a não ser que ache que há algum problema. Se não aparecer dentro de uma hora...
- Meto-me no primeiro avião para Londres e não tento contactar-te quando chegar - disse Jacqueline, acabando a frase dele.
- Lembro-me de tudo o que me disseste.
Outro beijo, desta vez na outra face.
- Tens memória de espião, Dominique.
- Para dizer a verdade, o que tenho é a memória da minha mãe.
- Não te esqueças, não tens nada a temer deste homem e
nada a temer das autoridades. Não estás a fazer nada de mal. Ele é um homem bom. Acho que vais gostar da companhia dele. Faz uma boa viagem, voltarei a ver-te quando voltares.
Deu-lhe um beijo na testa e deu-lhe um leve empurrão na direcção do café, como se ela fosse um barco de brincar à deriva num lago. Ela deu uns passos e depois voltou-se para olhá-lo pela última vez, mas ele já se tinha misturado no meio da multidão.
Era um pequeno restaurante de aeroporto, umas quantas mesas de ferro forjado espalhadas até ao terminal para dar a ideia de um café parisiense. Jacqueline sentou-se e pediu ao empregado um café au lait. De repente, sentiu-se muito consciente do seu aspecto e teve uma vontade absurda de causar boa impressão. Vestia unsjeans pretos e uma camisola de caxemira cor de cinza. Não estava maquilhada e não tinha feito nada ao cabelo, excepto puxá-lo para trás. Quando o empregado lhe trouxe o café com leite, Jacqueline ergueu a colher e mirou a imagem distorcida dos olhos. Estavam orlados de vermelho e inflamados.
Mexeu o açúcar do café e olhou em redor. Numa mesa atrás dela, um jovem casal americano estava a discutir baixinho. Na mesa a seguir, dois homens de negócios alemães estudavam um gráfico de desempenho no ecrã de um computador portátil.
De repente, Jacqueline lembrou-se de que devia estar a ler um jornal. Tirou o Times que Yusef tinha deixado na mala e abriu-o. Um guardanapo de papel da British Airways caiu em cima da mesa. Jacqueline agarrou nele e virou-o. Havia uma nota na parte de trás, escrita com a letra caótica de Yusef: vou sentir a tua falta. com amor e recordações afectuosas, Yusef.
Amachucou-o e pousou-o ao lado da chávena de café. Parece um bilhete de despedida. Agarrou no jornal e folheou a primeira secção. Parou para dar uma vista de olhos às notícias do Médio Oriente:
PRESIDENTE DOS EUA APLAUDE ACORDO PROVISÓRIO CONSEGUIDO ENTRE ISRAEL E os PALESTINIANOS... CERIMÓNIA DA ASSINATURA NA PRÓXIMA SEMANA NAS NAÇÕES UNIDAS. Molhou a ponta do dedo e virou outra página.
Avisos de embarques ressoavam do sistema de comunicação. Jacqueline tinha uma dor de cabeça terrível. Meteu a mão na
carteira, tirou um frasco de aspirinas e engoliu duas com o café. Procurou Gabriel com os olhos. Nada. Raios te partam, onde raio é que estás, Gabriel Allon? Diz-me que não me deixaste aqui sozinha com eles... Pousou cuidadosamente a chávena no pires e voltou a meter o frasco das aspirinas na carteira.
Estava prestes a continuar com a leitura quando uma mulher espantosamente atraente com cabelo preto lustroso e grandes olhos castanhos se postou junto da mesa.
- Importa-se que lhe faça companhia? - perguntou a mulher em francês.
- Na verdade, estou à espera de uma pessoa.
- Está à espera de Lucien Daveau. Sou amiga do Lucien. Puxou uma cadeira e sentou-se. - O Lucien pediu-me para a vir buscar e acompanhá-la ao avião.
- Disseram-me que o Lucien viria encontrar-se aqui comigo.
- Compreendo, mas houve uma pequena alteração nos planos. - Sorriu radiosa e sedutoramente. - Não há razão para ter medo. O Lucien pediu-me para tomar bem conta de si.
Jacqueline não tinha a menor ideia do que havia de fazer. Eles tinham violado os termos do acordo. Ela tinha todo o direito de se levantar e de se ir embora, pondo um ponto final no assunto. Mas e depois? Tariq iria escapar e continuar a sua campanha de terror. Morreriam mais judeus inocentes. O processo de paz seria posto em perigo. E Gabriel iria continuar a culpar-se pelo que acontecera a Leah e ao filho em Viena.
- Não gosto disto, mas vou fazê-lo.
- Óptimo, porque acabaram de chamar para o nosso voo. Jacqueline levantou-se, agarrou na mala e saiu do café atrás da mulher.
- O nosso voo? - perguntou.
- Exactamente. vou consigo durante a primeira parte da sua viagem. O Lucien virá ter consigo mais tarde.
- Para onde vamos?
- Não tardará a saber.
- Uma vez que vamos viajar juntas, acha que me poderia dizer o seu nome?
A rapariga voltou a sorrir.
- Se acha que tem de me chamar alguma coisa, pode tratar-me por Leila.
Gabriel estava numa loja duty-free, a uns trinta metros de distância, fingindo que estava a escolher águas-de-colónia, enquanto observava Jacqueline no café. Shamron estava a bordo do avião privado de Benjamin Stone. A única coisa de que precisavam era de Tariq.
De repente, Gabriel apercebeu-se de que estava excitado com a perspectiva de, finalmente, ver Tariq. As fotografias no dossiê de Shamron não serviam para nada - demasiado antigas, com demasiado grão. Três delas eram apenas presumivelmente de Tariq. A verdade é que ninguém no Departamento conhecia o seu aspecto físico. Gabriel estava prestes a ter uma boa imagem dele em vários anos. Era alto ou baixo? Era bonito ou vulgar? Pareceria um assassino impiedoso? Claro que não, pensou Gabriel. Vai ser uma pessoa que se funde naturalmente com os que o rodeiam.
Vai ser parecido comigo. Depois pensou: Ou eu é que sou parecido com ele?
Quando a atraente rapariga de cabelo cor asa de corvo se sentou à mesa de Jacqueline, por uns instantes pensou que era apenas um daqueles terríveis acidentes que, por vezes, provocam o pânico nas operações - a rapariga precisa de um lugar, a rapariga parte do princípio de que Jacqueline está sozinha, a rapariga ocupa a cadeira vazia. Depois percebeu que fazia tudo parte do jogo de Tariq. Ele sobrevivera todos estes anos por ser imprevisível. Fazia planos e mudava de planos constantemente - contava histórias diferentes aos diferentes membros da sua própria organização. Nunca deixava que a mão esquerda soubesse o que a direita estava a fazer.
As duas mulheres levantaram-se e começaram a andar. Gabriel esperou uns instantes, depois seguiu atrás delas, a uma distância segura. Sentia-se descorçoado. O jogo ainda mal tinha começado e Tariq já o suplantara. Questionou-se se estaria preparado para lutar contra um homem como Tariq. Estivera demasiado tempo fora do jogo. Se calhar, as suas reacções tinham-se tornado mais lentas,
os instintos de sobrevivência enfraquecidos. Pensou na noite em que tinha posto as escutas no apartamento de Yusef, como quase fora apanhado porque se desconcentrara uns segundos.
Voltou a sentir o ímpeto agoniante da adrenalina. Por um breve instante, pensou em correr e arrancá-la dali. Forçou-se a acalmar e a pensar com clareza. Ela ia apenas apanhar um avião. Estaria em segurança enquanto estivesse no ar, e Shamron ia ter uma equipa à espera no outro lado. Tariq tinha ganho o primeiro assalto, mas Gabriel decidiu deixar que o jogo continuasse.
A rapariga levou Jacqueline para uma área cercada de vidro. Gabriel observou-as enquanto passavam pelo último posto de controlo e entregavam os bilhetes ao empregado na porta de embarque. Depois seguiram para a manga de embarque e desapareceram. Gabriel olhou para o monitor uma última vez para se certificar que tinha visto bem: Air France voo 382, destino Montreal.
Alguns momentos depois da descolagem, Shamron desligou o telefone no gabinete do avião a jacto privado de Benjamin Stone e juntou-se a Gabriel no salão luxuosamente decorado.
- Acabei de informar Otava da situação.
- Quem é que está agora em Otava?
- O teu velho amigo Zvi Yadin. Neste momento, ele vai a caminho de Montreal com uma pequena equipa. Vão esperar pelo avião e pôr a Jacqueline e a sua nova amiga sob vigilância.
- Porquê Montreal?
- Não leste os jornais?
- Lamento, Ari, mas tenho estado um bocadinho ocupado. Na mesa ao lado da cadeira de Shamron estava um monte de
jornais, muito bem dispostos de forma a que os cabeçalhos ficassem visíveis. Agarrou no jornal de cima e atirou-o para o colo de Gabriel.
- Vai haver uma cerimónia para a assinatura nas Nações Unidas daqui a três dias. Toda a gente vai lá estar. O presidente americano, o primeiro-ministro, Arafat e os seus delegados. Ao que parece, o Tariq vai tentar dar cabo da festa.
Gabriel deitou um olhar de relance ao jornal e atirou-o outra vez para cima da mesa.
- Montreal é um ponto estratégico natural para um homem como o Tariq. Ele fala francês fluentemente e tem possibilidade de arranjar passaportes falsos. Vai de avião até Montreal como francês e entra no Quebeque sem visto. Mal chegue ao Canadá, está quase em casa. Há dezenas de milhares de árabes a viver em Montreal. Tem uma grande quantidade de sítios para se esconder. A segurança ao longo da fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos é fraca ou mesmo não existente. Nalgumas estradas não há sequer postos fronteiriços. Em Montreal, ele pode trocar de passaporte, americano ou canadiano, e entrar de carro com toda a facilidade nos Estados Unidos. Ou, se se estiver a sentir aventureiro, pode atravessar a fronteira a pé.
- O Tariq nunca me deu a ideia de ser um homem dado a desportos ao ar livre.
- Ele fará tudo o que for necessário para chegar ao seu alvo. E se isso implicar caminhar dezasseis quilómetros pelo meio da neve, ele caminhará pelo meio da neve.
- Não me agrada que eles tenham mudado as regras em Paris
- disse Gabriel. - Não gosto que o Yusef tenha mentido à Jacqueline sobre a forma como isto ia correr.
- A única coisa que isso quer dizer é que, por razões de segurança, o Tariq acha necessário enganar a sua própria gente. Isso é um procedimento normal para um homem como ele. Arafat fê-lo durante anos. É por essa razão que ele ainda está vivo. Os seus inimigos dentro do movimento palestiniano não conseguiram chegar até ele.
- E vocês também não.
- Bem-visto.
A porta que ligava o salão ao gabinete abriu-se e Stone entrou. Shamron disse:
- Há uma cabina de luxo na parte de trás do avião. Vai dormir. Estás com um aspecto horrível.
Gabriel levantou-se sem dizer uma palavra e abandonou o salão. Stone instalou o seu corpo de mamute numa cadeira e agarrou numa mão-cheia de nozes do Brasil.
- Ele tem paixão - disse enquanto enfiava um par de nozes na boca. - Um assassino com consciência. Gosto disso. O resto do mundo ainda vai gostar mais.
- Benjamin, que raio é que estás a dizer?
- Ele é a minha galinha dos ovos de ouro. Não estás a percebei, Ari? Ele é a maneira como vocês me vão pagar as dívidas que têm para comigo. Todas elas, riscadas num único e simples pagamento.
- Não me tinha apercebido de que tinhas um livro de contabilidade. Pensava que nos ajudavas porque acreditavas em nós. Julgava que nos ajudavas porque querias ajudar a proteger o Estado.
- Deixa-me acabar, Ari. Ouve-me. Não quero o vosso dinheiro. Quero-o a ele. Quero que me deixem contar a história dele. Entrego-a ao meu melhor jornalista. Deixem-me publicar a história do israelita que restaura quadros dos velhos mestres de dia e mata palestinianos à noite.
- Enlouqueceste?
- Pelo contrário, Ari. Estou a falar muito a sério. vou transformá-la numa série. vou vender os direitos para fazerem um filme à Hollywood. Dêem-me o exclusivo desta caça ao homem. A perspectiva pelo lado de dentro. Ela irá enviar uma mensagem às minhas tropas de que ainda temos o que é preciso para abanar a Fleet Street. E , isto é a parte melhor, Ari, e irá enviar um sinal forte aos meus fmanciadores na City de que ainda sou uma força que deve ser tida em conta.
Shamron fez uma cena elaborada a acender o cigarro. Estudou Stone através de uma nuvem de fumo, assentindo devagarinho com a cabeça enquanto meditava na gravidade da sua proposta. Stone era um homem a afogar-se e, a não ser que Shamron fizesse alguma coisa para se libertar dele, iria levá-los a ambos para o fundo.
Gabriel tentou dormir, mas sem resultado. Cada vez que fechava os olhos, apareciam-lhe imagens do caso na cabeça. Instintivamente, via-as como reproduções imóveis capturadas a tinta de óleo numa tela. Shamron no Lizard, a convencê-lo a voltar para o serviço. Jacqueline a fazer amor com Yusef. Leah na sua estufa-prisão
em Surrey. Yusef a encontrar-se com o seu contacto no Hyde Park... Não te preocupes, Yusef. A tua namorada não te vai dizer que não.
Depois pensou na cena que tinha acabado de presenciar no Charles de Gaulle. O trabalho de restauro tinha ensinado a Gabriel uma lição valiosa. Às vezes, o que aparece à superfície é muito diferente daquilo que está a acontecer por baixo. Três anos antes, tinha sido contratado para restaurar um Van Dyck, uma peça que o artista pintara para uma capela particular em Génova, representando a Assumção de Maria. Quando Gabriel fez a sua primeira análise da superfície do quadro, pareceu-lhe ver qualquer coisa por baixo do rosto da Virgem. com o passar do tempo, as tintas de cores claras que Van Dyck utilizara para representar a pele tinham desbotado, e parecia que estava a começar a aparecer uma imagem por baixo. Gabriel fez um exame rigoroso do quadro, usando raios X para ver o que é que estava a acontecer sob a superfície. Descobriu uma obra completamente acabada, um retrato de uma mulher bastante carnuda, envergando um vestido comprido branco. O filme a preto e branco dos raio X fazia-a parecer um espectro. Mesmo assim, Gabriel reconheceu a qualidade cintilante das sedas de Van Dyck e as mãos expressivas que caracterizavam os quadros que ele produziu quando estava a viver em Itália. Mais tarde, soube que a obra tinha sido encomendada por um aristocrata genovês cuja mulher tinha odiado tanto o quadro que se recusara a aceitá-lo. Quando Van Dyck recebeu a encomenda do quadro para a capela, limitou-se a cobrir o quadro antigo com tinta branca e voltara a usar a mesma tela. Na altura em que a tela chegou às mãos de Gabriel, mais de três séculos e meio depois, a mulher do aristocrata genovês tinha-se vingado do artista ao assomar à superfície do seu quadro.
Voltou a fechar os olhos e desta vez adormeceu num sono inquieto. A última imagem que viu, antes de se deixar escorregar para a inconsciência, foi Jacqueline e a mulher sentadas no café do aeroporto, numa representação impressionista de uma rua. E, de pé, ao fundo, estava a figura fantasmagórica e translúcida de Tariq a chamar Gabriel com uma mão delicada à Van Dyck.
PARIS
Yusef apanhou um táxi do aeroporto para o centro da cidade. Durante duas horas percorreu Paris de um lado para o outro - de metro, de táxi e a pé. Quando teve a certeza de que estava sozinho, foi a pé até a um apartamento no Décimo Sexto Arrondissement, bastante perto do Bois de Boulogne. À entrada do prédio, havia um telefone e ao lado do telefone, uma lista dos moradores. Yusef carregou no botão para o 4B, que tinha o nome Guzman escrito a azul desbotado. Quando a porta se abriu, entrou rapidamente, atravessou o átrio e subiu no elevador até ao quarto andar. Bateu à porta. Esta foi instantaneamente aberta por um homem robusto com olhos azuis metalizados e cabelo louro-arruivado. Puxou Yusef para dentro e fechou a porta sem fazer barulho.
Era o princípio da noite em Telavive quando Mordecai saiu do seu gabinete na suíte para executivos no último andar e se encaminhou pelo corredor até às Operações. Quando entrou na sala, um par de funcionários de olhos pretos de Lev olharam-no com desprezo por cima dos seus terminais de computador.
- Ele ainda está cá?
Um dos funcionários apontou para o gabinete de Lev com a ponta de um lápis roído. Mordecai deu meia-volta e desceu o corredor. Sentia-se um estranho numa aldeia cercada. As pessoas de fora não eram bem-vindas ao reino de Lev, mesmo que essa pessoa fosse o segundo dos funcionários com o posto mais elevado do serviço.
Foi encontrar Lev sentado no seu gabinete soturno, dobrado para a frente, os cotovelos apoiados na secretária, as mãos compridas fechadas e dobradas pela última articulação a pressionar-lhe as têmporas. com a cabeça careca, os olhos protuberantes e os dedos como tentáculos, parecia-se muito com um louva-a-deus. Quando Mordecai se aproximou, viu que não era nem um dossiê nem um relatório que estava a prender a atenção de Lev, mas um grande volume sobre os escaravelhos da bacia do Amazonas. Lev fechou o livro e empurrou-o para o lado.
- Está a passar-se alguma coisa no Canadá de que eu deva ter conhecimento? - perguntou Mordecai.
- De que é que estás a falar?
- Estava a rever as contas das despesas da secção de Otava e reparei numa pequeníssima discrepância nos pagamentos para os funcionários de apoio. Achei que pouparia uns minutos se tratasse do assunto por telefone em vez de por cabo. É mesmo uma coisa insignificante. Pensei que eu e o Zvi podíamos resolver o assunto num minuto ou dois.
Lev tamborilou impacientemente com os dedos na secretária.
- O que é que isso tem a ver com as Operações?
- Não consegui encontrar o Zvi. Na verdade, não consegui encontrar ninguém. Parece que toda a tua secção das Operações de Otava desapareceu.
- O que é que queres dizer com desapareceu?
- Quero dizer que não se encontram em sítio nenhum. Desaparecidos sem explicação.
- com quem é que falaste?
- Uma rapariga da sala de códigos.
- O que é que ela disse?
- Que o Zvi e todos os seus operacionais se puseram a andar a grande velocidade há umas horas atrás.
- Onde é que está o velho?
- Algures, na Europa.
- Ele acabou de regressar da Europa. Onde é que foi desta vez? Mordecai franziu o cenho.
Julgas que o velho me diz alguma coisa? O sacana do velho
é tão sigiloso que eu acho que metade do tempo nem ele próprio sabe para onde vai.
Descubram-no - disse Lev.
MONTREAL
Leila alugou um carro no aeroporto. Conduziu a grande velocidade por uma via rápida aérea. À direita tinham um rio gelado; à esquerda o nevoeiro gelado pairava por cima de um imenso estaleiro ferroviário como o fumo de uma batalha. As luzes da baixa de Montreal flutuavam à frente delas, obscurecidas por um véu de nuvens baixas e neve que caía. Leila guiava como se conhecesse o caminho.
- Já cá estiveste? - perguntou Leila.
Era a primeira vez que dirigia a palavra a Jacqueline desde o café no Charles de Gaulle, em Paris.
- Não, nunca. E tu?
- Não.
Jacqueline cruzou os braços no peito e tremeu de frio. O aquecimento estava ligado no máximo, mas mesmo assim estava tanto frio no carro que ela conseguia ver a sua própria respiração.
- Não tenho roupa para este frio - disse.
- O Lucien compra-te tudo o que precisares.
Bem, então, lucien ia encontrar-se com ela aqui, em Montreal. Jacqueline soprou para as mãos.
- Está demasiado frio para fazer compras.
- Todas as melhores boutiques em Montreal são debaixo do chão. Nunca terás de pôr um pé lá fora.
- Julgava que me tinhas dito que nunca cá tinhas estado.
- E não estive.
Jacqueline encostou a cabeça à janela e fechou os olhos por uns breves instantes. Tinham vindo em business, Leila sentada do outro lado da coxia, uma fila atrás. Uma hora antes de aterrarem, Leila tinha ido à casa de banho. Ao voltar para o lugar, entregara uma nota a Jacqueline: Passa a imigração e a alfândega sozinha e vai ter comigo ao balcão da Hert.
Leila saiu da via rápida e virou para o Boulevard René Lévesque. O vento uivava através dos desfiladeiros dos arranha-céus de escritórios e hotéis. Os passeios, cobertos de neve, pareciam ter sido despovoados. Percorreu uns quarteirões e parou à frente de um grande hotel. Um porteiro aproximou-se a correr e abriu a porta de Jacqueline.
- Bem-vindas ao Queen Elizabeth. Vão registar-se?
- Sim - respondeu Leila. - Nós podemos tratar da nossa bagagem, obrigada.
O porteiro deu-lhe um recibo do carro e sentou-se ao volante. Leila conduziu Jacqueline para o átrio enorme e ruidoso. Estava cheio de turistas japoneses. Jacqueline perguntou a si mesma que raio é que os traria a Montreal no pino do Inverno. Leila mudou deliberadamente o saco da mão esquerda para a direita. Jacqueline obrigou-se a olhar para outro lado. Fora treinada na arte da comunicação impessoal; reconhecia um bom exemplo de linguagem corporal quando o via. O próximo acto estava prestes a começar.
Tariq observou-as do bar do hotel. A sua aparência tinha mudado desde Lisboa. Calças cinzento-escuras de lã, camisola creme, blazer italiano. Estava impecavelmente barbeado e trazia uns óculos pequenos de aros dourados e lentes brancas. Acrescentara uns toques de cinzento ao cabelo.
Tinha visto a fotografia da mulher chamada Dominique Bonard, mas mesmo assim ficou estupefacto com ela. Admirou-se como é que Shamron e Gabriel Allon conseguiam justificar pôr uma mulher daquelas num perigo tão grande.
Olhou em redor do átrio do hotel. Sabia que estavam lá, algures, escondidos entre os turistas e os homens de negócios e os empregados do hotel: os vigias de Shamron. Tariq tinha esticado os seus
recursos ao trazer a mulher de Londres para Paris e depois para Montreal. Mas, com toda a certeza, eles tinham-se reagrupado e colocado os seus homens no sítio certo. Sabia que no instante em que se aproximasse da mulher, revelar-se-ia imediatamente aos seus inimigos pela primeira vez.
Descobriu que estava ansioso por o fazer. Finalmente, depois de todos estes anos na sombra, estava prestes a entrar na luz. Queria gritar: Aqui estou eu. Vejam, sou um homem como vocês, de carne e osso, não sou um monstro. Não tinha vergonha do trabalho de toda a sua vida. Pelo contrário. Estava orgulhoso. Perguntou a si mesmo se Allon poderia dizer a mesma coisa.
Tariq sabia que tinha uma enorme vantagem em relação a Allon. Sabia que estava prestes a morrer. A sua vida acabara. Tinha sobrevivido no gume da faca do perigo para no fim ser traído, não pelos seus inimigos, mas pelo seu próprio corpo. Iria usar o conhecimento da sua morte iminente como uma arma, a mais poderosa que alguma vez possuíra.
Tariq levantou-se, alisou a frente do casaco e atravessou o átrio.
Subiram no elevador até ao décimo quarto andar, seguiram por um corredor silencioso e pararam no quarto 1417. Ele abriu a porta com um cartão electrónico e depois enfiou o cartão no bolso. Quando Jacqueline entrou no quarto, os ensinamentos e exercícios de memória de Shamron entraram em acção: suíte pequena, quarto e sala separados. Uma mesinha de apoio com um tabuleiro do serviço de quartos com uma salada meio comida. Uma mala de roupa no chão, aberta, ainda por desfazer.
Ele estendeu a mão:
- Lucien Daveau.
- Dominique Bonard.
Ele sorriu: caloroso, confiante.
- Os meus sócios disseram-me que eras uma mulher muito bonita, mas receio que a descrição deles não te tenha feito justiça.
Os modos e o discurso dele eram muito franceses. Se ela não soubesse que era palestiniano, tê-lo-ia considerado um parisiense rico.
- Não és o que eu esperava - disse ela, honestamente.
- Oh, a sério? O que é que esperavas? Já a estava a testar - conseguia senti-lo.
- O Yusef disse que eras um intelectual. Imagino que estava à espera de uma pessoa de cabelo comprido, jeans azuis e uma camisola com buracos.
- Alguém com um ar mais professoral?
- Sim, é exactamente essa palavra. - Conseguiu sorrir. Não tens um ar terrivelmente professoral.
- Isso é porque não sou professor.
- Perguntar-te-ia o que és, mas o Yusef disse-me para não fazer demasiadas perguntas, por isso, suponho que só podemos ter conversas simpáticas, mas banais.
-Já há muito tempo que não tenho conversas simpáticas, mas banais, com uma mulher bonita. Acho que vou gostar imenso destes próximos dias.
- Estás há muito tempo em Montreal?
- Acabaste de me fazer uma pergunta, Dominique.
- Desculpa, só...
- Não é preciso pedir desculpa. Estava apenas a brincar. Cheguei esta manhã. Como vês, ainda não tive possibilidade de desfazer a mala.
Ela passou da sala para o quarto.
- Não te preocupes. Tenciono dormir no sofá esta noite disse ele.
- Pensava que tínhamos que passar por amantes.
- E vamos passar.
- E se o pessoal do hotel repara que dormiste no sofá?
- São capazes de partir do princípio que tivemos uma zanga. Ou podem partir do princípio que estive a trabalhar até tarde e que, como não te quis incomodar, adormeci no sofá.
- Pois podem.
- O Yusef disse que eras inteligente, mas esqueceu-se de dizer que também possuis uma mente conspirativa.
A conversa já estava a correr há tempo suficiente. Jacqueline estava orgulhosa pelo facto de ser ela quem estava a orientar a conversa
e não ele. Dava-lhe a sensação de que, pelo menos, estava a controlar uma coisa.
- Importas-te que fume?
- De maneira nenhuma.
Ela colocou um cigarro entre os lábios e acendeu o isqueiro que Shamron lhe dera. Quase conseguiu imaginar as ondas de rádio a voarem lá para fora, à procura de um receptor.
- Não trouxe roupa para este tipo de clima. A Leila disse-me que me irias levar às compras, para arranjar qualquer coisa mais quente.
- Terei todo o prazer nisso. Peço desculpa pela maneira como tivemos que te manter na ignorância em relação ao sítio para onde ias. Garanto-te que era muito necessário.
- Compreendo. - Uma pausa. - Acho.
- Responde-me a uma pergunta, Dominique. Porque é que concordaste em vir nesta missão comigo? Acreditas no que estamos a fazer? Ou estás a fazê-lo simplesmente por amor?
A coincidência da pergunta dele era quase demasiado vulgar para pensar nela. Voltou a meter calmamente o isqueiro na carteira e disse:
- Estou a fazer isto porque acredito no amor. Acreditas no amor?
- Acredito no direito do meu povo ter uma pátria escolhida por ele. Nunca tive o luxo do amor.
- Lamento...
Esteve quase a tratá-lo por Lucien, mas, por qualquer razão, parou.
- Não queres dizer o meu nome, Dominique? Porque é que não me queres tratar por Lucien?
- Porque sei que não é o teu nome verdadeiro.
- Como é que sabes isso?
- O Yusef disse-me.
- Sabes qual é o meu nome verdadeiro?
- Não, o Yusef recusou-se a dizer-me.
- Yusef é um bom homem.
- Gosto muito dele.
- Dominique é o teu nome verdadeiro? Foi apanhada desprevenida.
- De que é que estás a falar?
- É uma pergunta simples, realmente. Quero saber se o teu nome é mesmo Dominique.- Já viste o meu passaporte.
- Os passaportes podem ser falsificados com toda a facilidade.
- Talvez para pessoas como vocês! - retorquiu ela, desabridamente. - Ouve, Lucien, ou lá como é que é a porra do teu nome, não gosto da tua pergunta. Está a fazer-me sentir desconfortável.
Ele sentou-se e esfregou as têmporas.
- Desculpa, tens razão. Por favor, aceita as minhas desculpas. A política do Médio Oriente tem a tendência para fazer com que uma pessoa fique paranóica passado algum tempo. Espero que me desculpes.
- Preciso de verificar o meu atendedor de chamadas em Londres.
- Claro. - Estendeu a mão e carregou no altifalante do telefone. - Diz-me o número que eu marco-o.
Ela recitou o número e os dedos dele marcaram-no no teclado. Segundos depois, ouviu o telefone tocar - o gemido a dois tempos de um telefone britânico - seguido pelo som da sua própria voz na fita da gravação. Imaginou um técnico, sentado a uma consola de computador em Telavive, a ler as palavras Hotel Queen Elizabeth, Montreal, Quarto 1417. Estendeu a mão para o auscultador, mas ele tapou-o com a mão e olhou para ela.
- Gostaria de ouvir, se não te importares. A paranóia está outra vez a invadir-me.
Jacqueline tinha três mensagens. A primeira era de uma mulher que se identificou como a mãe de Dominique. A segunda era de Julien Isherwood - não sabia onde tinha arrumado um ficheiro e perguntava-lhe se não se importaria de lhe dar uma apitadela para o ajudar a localizá-lo. A terceira era de um homem que não se identificou. Ela reconheceu imediatamente a voz de Gabriel. Só queria que soubesses que estou apensar em ti. Se precisares de alguma coisa, estou aqui à tua disposição. Até breve, espero. Adeus.
- Já podes desligar.
Ele carregou no botão do microfone e cortou a ligação.
- Esse não parecia nada o Yusef.
- Não era o Yusef. Era um homem que conheci antes dele.
- Parece-me que este homem ainda gosta de ti.
- Não, ele nunca gostou realmente de mim.
- Mas para mim é óbvio que gostaste dele. Se calhar, ainda gostas.
- Estou apaixonada pelo Yusef.
- Ah, pois, esqueci-me. - Levantou-se abruptamente. - Vamos às compras.
MONTREAL
Yadin encontrou-se com Gabriel e Shamron no aeroporto e levou-os de carro até Montreal. Tinha cabelo escuro, curto e encaracolado, uma barba bastante desgrenhada e o corpo de um jogador de ráguebi. Como era grande, as pessoas tinham a tendência para julgarem que era estúpido, coisa que ele não era. Gabriel passara algum tempo com ele na Academia. Tinham-nos juntado para o curso de combate físico, apesar da enorme diferença de tamanhos. No último dia, Yadin partira duas costelas a Gabriel. Gabriel ripostara com uma cotovelada no queixo de Yadin que lhe deslocou o maxilar. Mais tarde, quando estavam a ser tratados na enfermaria, Yadin confessara que tinha sido Shamron que o mandara fazer aquilo - queria testar a capacidade de Gabriel para aguentar a dor. Gabriel desejara ter partido o maxilar de Shamron em vez do de Yadin.
- Dizem que vão estar trinta abaixo de zero esta noite - disse Yadin enquanto carregava no pedal ao longo da via rápida em direcção à baixa da cidade. - Trouxe-vos umas parcas e umas luvas. E trouxe isto para ti, Gabriel.
Entregou a Gabriel um estojo de combate em aço inoxidável. Lá dentro, estava uma Beretta, calibre 22. Gabriel afagou o cano e a coronha de nogueira. A arma estava fria. Fechou a tampa e colocou o estojo debaixo do assento.
- Obrigado por nos pores a par do boletim meteorológico, Yadin - disse Shamron. - Mas onde raio é que pára ajacqueline?
Yadin pô-los rapidamente ao corrente da situação. O voo tinha chegado vinte minutos atrasado e eles tinham-nas apanhado depois de elas terem passado a imigração e a alfândega. A rapariga alugara um carro da Hertz e seguido para a baixa, para o Hotel Queen Elizabeth. Entregara Jacqueline a um homem: quarentão, bem-vestido, com ar decente. Tinham subido para o quarto. Yadin tinha um sayan no pessoal do hotel: um concierge sénior. Este informara que o sujeito em questão se tinha registado no hotel umas horas antes com o nome de Lucien Daveau. Quarto 1417.
- Fotografias? - perguntou Shamron esperançosamente.
- Nem pensar, chefe. Impossível, dadas as circunstâncias.
- Era o Tariq?
- Podia ser. É difícil dizer.
- O que é que aconteceu à rapariga?
- Depois da entrega, saiu do hotel. Foi apanhada por outro carro à saída, no Boulevard René Lévesque. Não a tentei seguir. Achei que não podíamos dispensar pessoal.
- Quantas pessoas tens?
- Três homens experimentados e aquela rapariga nova que me mandou da Academia.
- Como é que estão distribuídos?
- Dois membros da equipa estão no átrio do hotel a fingir que andam às compras. Os outros dois estão no exterior, no carro.
Gabriel perguntou:
- O nosso amigo da recepção pode meter-nos no quarto?
- Claro.
- Quero pôr uma escuta no telefone.
- Não há problema. Trouxe um kit de Otava. Podemos arranjar outro quarto no hotel e montar um posto de escuta. Mas vai prender um membro da equipa.
- Ter acesso ao telefone dele vale bem um membro da tua equipa.
- vou usar a rapariga nova.
- Não, podemos precisar da rapariga para trabalho de rua. Yadin olhou para Shamron.
- E agora vamos aos problemas, chefe.
- Que problemas?
- O Lev.
- O que é que se passa com o Lev?
- Enquanto estava à espera que chegassem, contactei com a secção.
- O Mordecai telefonou por uma questão rotineira qualquer depois de nós termos ido embora. É óbvio que ele informou o Lev de que a secção tinha desaparecido toda, pois o Lev mandou um telegrama do Centro de Operações, cerca de meia hora mais tarde, a querer saber que porra é que se estava a passar.
- O que é que disseram ao Lev? - perguntou Shamron, desalentado.
- Deixei à nossa secretária uma história para disfarçar. Ela disse ao Lev que tínhamos recebido uma informação de um amigo nos serviços canadianos de que era possível que um membro da Jihad Islâmica estivesse a viver na cidade de Quebeque e que nós tínhamos ido a correr para a CQ para verificarmos se era verdade. O Lev manda outra mensagem de imediato: com autorização de quem? Favor mandar nome do activista da Jiahd. Etc, etc. Está a ver o filme, não está, chefe?
Shamron praguejou baixinho.
- Manda-lhe uma mensagem quando chegares a casa. Diz-lhe que foi falso alarme.
- Ouça, chefe, nós já andamos nisto há muito tempo. Mas o senhor vai voltar a reformar-se, e o Lev é bem capaz de ficar a dirigir isto. Ele pode tornar-me a vida num inferno. Ele gosta desse género de coisas. É um sacana.
- Deixa-me tratar do Lev. Tu só estás a fazer o que eu te mandei.
- Estou só a cumprir ordens... Certo, chefe?
O telemóvel de Yadin tocou baixinho. Ele abriu-o com um piparote e levou-o à orelha.
- Sim? Fez Uma pausa.
- Quem?'
Outra pausa.
- Onde?
Outra pausa, ligeiramente maior.
- Fica em cima deles. Mas não te esqueças com quem é que estás a lidar. Mantém uma distância segura.
Cortou a ligação e atirou o telemóvel para o tabliê.
- O que foi? - perguntou Shamron.
- Ele está a mover-se.
- E a Jacqueline?
- Estão juntos.
- Onde?
- Parece que andam às compras.
- Arranja-me uma fotografia, Zvi. Preciso de ter a certeza de que é ele.
Há duas Montreals. Há a Montreal da superfície: no Inverno, transforma-se numa tundra coberta de neve. Os ventos do Árctico rugem por entre os arranha-céus e patrulham as vielas tortuosas da Cidade Velha junto do rio. E há a Montreal subterrânea: um labirinto de cintilantes lojas, cafés, bares, mercados e lojas de roupas de designers que serpenteiam por baixo da maior parte da baixa da cidade, tornando possível viajar durante vários quarteirões sem nunca se pôr um pé no exterior.
Um local adequado para acabar tudo, pensou Jacqueline; dois mundos, duas camadas, duas realidades. Eu sou Jacqueline Delacroix, a modelo. Sou Dominique Eonard, a secretária da Fine Arts de Ishenvood, em Londres. Sou Sarah Halévy, a rapariga judia de Marselha, a agente do Departamento. Tinha mais camadas do que Montreal.
Caminhava ao lado dele. Ele pousara ao de leve a mão no ombro dela e estava a usá-la para a guiar pelo meio das multidões de pessoas que andavam a fazer compras ao cair da noite. Jacqueline estudava o caleidoscópio de caras que passavam por ela: rapazes e raparigas franceses, árabes, africanos, judeus - a manta de retalhos étnicos que é Montreal. Se não fosse a forte pronúncia francesa, teria sido capaz de se esquecer que tinha saído de Paris
Ele estava a ver se era seguido - Jacqueline conseguia percebê-lo. Parando à frente de montras, mudando abruptamente de
direcção, inventando desculpas para tornar a voltar para trás. Ela esperava que a equipa de Shamron fosse boa. Se não fosse, Tariq iria dar por eles.
Percorreram as lojas mais exclusivas por baixo da Rue St. Catherine. Numa escolheu um casaco comprido forrado. Noutra um chapéu de pele. Numa terceira, dois pares de calças de ganga e vários pares de roupa interior comprida. Finalmente, numa loja especializada em artigos para o ar livre, escolheu um par de botas forradas. Ele nunca a largou. Quando ela entrou num gabinete de provas para experimentar as calças, ficou à porta a sorrir simpaticamente para a vendedora. Pagou tudo com um cartão de crédito no nome de Lucien Daveau.
Quando acabaram, voltaram para o hotel. Ela pensou: De que é que eles estão à espera? Façam-no agora. Abatam-no. Mas eles não o podiam fazer ali - não na Montreal subterrânea. Toda a rede de centros comerciais podia ser selada em poucos minutos. Gabriel e o resto da equipa ficariam encurralados lá dentro. Seriam presos e interrogados. A polícia iria estabelecer uma relação com o Departamento e toda aquela história iria rebentar na cara de Shamron.
Ele sugeriu tomarem um café antes do jantar e por isso pararam num bar de café expresso a curta distância do hotel. Jacqueline passou os olhos por um guia turístico enquanto ele bebericava a bebida. A dado momento, tirou um frasco de remédio do bolso e engoliu dois comprimidos. Cinco minutos depois - ela sabia o tempo exacto porque tinha estado a jogar os jogos de atenção de Shamron durante toda a excursão - um indivíduo, com um fato cinzento de homem de negócios, sentou-se na mesa ao lado. Pousou a pasta no chão: pele preta, material mole, fecho dourado com segredo. O homem ficou durante uns minutos, depois levantou-se e foi-se embora deixando a pasta. Quando Tariq acabou de beber o seu café, pegou descontraidamente na pasta, juntamente com os embrulhos de Jacqueline.
Duas Montreal, duas realidades, pensou Jacqueline enquanto se encaminhavam para o hotel. Numa realidade, tinham acabado de ir
fazer compras. Na outra, Tariq tinha passado uma hora a verificar se estava a ser seguido, e Tariq tinha tomado posse da sua arma.
Gabriel apareceu no balcão da recepção e pediu que o informassem de um bom restaurante. O recepcionista chamava-se Jean
- pequeno e bem-arranjado, com um bigode fino e um sorriso gelado de um hoteleiro bem-sucedido. Gabriel falou-lhe num francês rápido. O recepcionista respondeu-lhe na mesma língua. Falou a Gabriel de um excelente bistro de estilo parisiense chamado Alexandre; depois entregou-lhe um mapa turístico dobrado e disse-lhe a morada. Gabriel enfiou o mapa no bolso de dentro do casaco, agradeceu ao recepcionista e afastou-se. Mas em vez de se dirigir para a porta de entrada, atravessou o átrio, entrou num elevador e subiu até ao décimo quarto andar.
Percorreu o corredor rapidamente. Na mão direita, levava um saco de compras de plástico de uma das boutiques e dentro do saco estava um telefone do hotel, embrulhado em papel. Quando se aproximava da porta, tirou o mapa do bolso do peito e desdobrou-o. Lá dentro estava um cartão-chave para a porta de Tariq. Pendurado no puxador estava um letreiro "Não Incomodar". Gabriel meteu e tirou o cartão na ranhura da porta, entrou no quarto e fechou a porta silenciosamente.
Para posto de comando, Yadin ocupara uma suíte no Sheraton, a uns quarteirões de distância do Queen Elizabeth no Boulevard René Lévesque. Quando Gabriel entrou na suíte, Shamron estava lá, acompanhado por Yadin e uma rapariga de cabelo preto que Yadin apresentou como Deborah. Gabriel achou que ela lhe lembrava muito Leah, muito mais do que teria gostado naquele momento. Um grande mapa das ruas de Montreal estava aberto em cima da cama. Shamron tinha empurrado os óculos para a testa e esfregava a cana do nariz enquanto passeava de um lado para o outro. Gabriel serviu-se de uma chávena de café e apertou-a com força para aquecer as mãos.
Yadin disse:
- Já voltaram para o quarto. A escuta está a apanhar a conversa na perfeição. bom trabalho, Gabriel.
- O que é que estão a dizer?
- Conversa de circunstância, na maior parte do tempo. Mais tarde, mando um homem recolher as cassetes. Se houver alguma coisa urgente, o rapaz no quarto telefona.
- Onde é que foram enquanto estiveram fora?
- Andaram às compras durante a maior parte do tempo, mas achamos que o Tariq deve ter uma arma.
Gabriel baixou a chávena e ergueu os olhos atentamente.
- A Deborah estava a segui-los naquela altura - disse Yadin.
- Viu tudo.
Deborah descreveu rapidamente a cena no café. Falou em inglês com pronúncia americana.
- Como é que a Jacqueline se está a aguentar?
- Pareceu-me que bem. Um bocadinho cansada, mas bem.
O telefone tocou. Yadin agarrou-o antes que pudesse tocar uma segunda vez. Escutou durante uns momentos sem falar e depois pousou o auscultador e olhou para Shamron.
- Acabou de marcar uma mesa para um restaurante na Rue St.-Denis.
- Como é a zona?
- Cafés, lojas, bares, discotecas, esse tipo de coisas - respondeu Yadin. - Muito movimento. Muito boémio.
- É o tipo de sítio onde se pode montar uma operação de vigilância?
- Perfeitamente.
- O tipo de sítio onde um kidon se pode aproximar muito de um alvo?
- Sem problemas.
- E quanto a trajectos de fuga? - perguntou Gabriel.
- Teríamos vários - respondeu Yadin. - Poderias dirigir-te para norte, para Outremont ou para Mont-Royal, ou seguir para sul, direito aos expressos. O resto da equipa poderia desaparecer na Cidade Velha.
Alguém bateu suavemente à porta. Yadin murmurou umas palavras
através da porta fechada e depois abriu-a. Um homem com cara de rapazinho, cabelo louro e olhos azuis, entrou na sala.
- Tenho-os num vídeo. Shamron disse:
- Vamos vê-lo.
O jovem ligou a câmara portátil ao aparelho de televisão e passou a fita: Jacqueline e o homem chamado Lucien Daveau deslocavam-se pelo centro comercial subterrâneo. Tinha sido filmado de uma balaustrada num nível acima.
Shamron sorriu.
- É ele. Não há qualquer dúvida.
- Como é que podes ter tanta certeza a partir deste ângulo? perguntou Gabriel.
- Olha para ele. Olha para as fotografias. É o mesmo homem.
- Tens a certeza?
- Sim, tenho a certeza. - Shamron desligou a televisão. Qual é o teu problema, Gabriel?
- O que não quero é matar o homem errado.
- É o Tariq. Acredita em mim. - Shamron olhou para o mapa das ruas de Montreal. - Zvi, mostra-me a rua St.-Denis. Quero acabar a coisa esta noite e voltar para casa.
MONTREAL
Saíram do quarto do hotel às oito horas, desceram de elevador até ao átrio de entrada. A hora de ponta dos registos da noite já tinha acabado. Um casal japonês estava a ser fotografado por um estranho. Tariq parou, deu meia-volta e bateu teatralmente nos bolsos como se estivesse à procura de qualquer coisa importante. Quando a sessão de fotografia acabou, recomeçou a andar. Do bar do hotel ouviu-se um clamor: americanos a verem um jogo de futebol na televisão. Desceram uma escada rolante para a Montreal subterrânea e depois percorreram uma pequena distância até a uma estação do metropolitano. Ele fez questão de a manter sempre à sua direita. Ela lembrou-se que ele era canhoto - obviamente não queria que ela estivesse em posição de lhe poder agarrar o braço se fosse sacar da arma. Tentou recordar-se de qual era o tipo de arma que ele preferia. Uma Makarov; era isso; Tariq gostava da Makarov.
Ele deslocava-se pela estação como se conhecesse o caminho. Entraram num comboio e seguiram para leste para a rue St.-Denis. Quando saíram para o exterior, para o bulevard cheio de gente, o frio intenso quase a fez ficar sem respiração.
Pode acontecer num sítio tranquilo, compktamente fora da vista, ou pode acontecer no meio de uma rua movimentada...
Manteve os olhos baixos e resistiu ao impulso de olhar para ele.
Podes ver-me a vir, ou talvez não. Se de facto me vires, não deves olhar
para mim. Não deves hesitar ou chamar-me. Não deves fazer nenhum barulho...
- Há algum problema? Ele falou sem olhar para ela.
- Estou só a morrer de frio.
- O restaurante não é longe.
Passaram por uma enfiada de bares. O som áspero de uma banda de bines saía de uma taberna numa cave. Uma loja de discos usados. Um restaurante vegetariano. Um salão de tatuagens. Um bando de rapazes skinheads passou por eles. Um deles disse qualquer coisa grosseira ajacqueline. Tariq olhou-o friamente; o rapaz fechou a boca e afastou-se.
Chegaram ao restaurante. Ficava numa velha casa vitoriana, ligeiramente retirada da rua. Ele conduziu-a pelas escadas acima. O maítre ajudou-os a despir os casacos e acompanhou-os até ao andar de cima, para uma mesa junto à janela. Tariq sentou-se virado para fora. Ela conseguia ver como os olhos dele escrutinavam a rua lá em baixo. Quando o empregado apareceu, Jacqueline pediu um copo de Bordeaux.
- Monsieur Daveau?
- Água mineral, se faz favor - disse ele. - Lamento, mas esta noite tenho uma leve dor de cabeça.
O restaurante italiano ficava para norte, a meio quarteirão de distância, no lado oposto da rue St.-Denis. Para lá chegarem, Gabriel e Deborah tiveram de descer um pequeno lance de escadas com os degraus gelados. As mesas ao pé da janela estavam todas ocupadas, mas eles estavam sentados suficientemente perto para que Gabriel conseguisse ver o cabelo preto comprido na janela do outro lado da rua. Shamron e Zvi Yadin estavam lá fora numa carrinha alugada. Na extremidade sul do quarteirão, mais perto do limite da Cidade Velha, encontrava-se um dos homens de Yadin, sentado ao volante de um carro de fuga. Outro homem esperava num carro, um quarteirão para ocidente na rue Sanguinet. Tariq estava cercado.
Gabriel pediu vinho, mas não bebeu nada. Pediu uma salada e uma tigela de pasta, mas o cheiro da comida causou-lhe náuseas.
A rapariga estava bem treinada na doutrina do Departamento. Estava a ajudá-lo. Namoriscou com o criado. Conversou com um casal na mesa ao lado. Devorou a comida dela e parte da de Gabriel. Ibeu-lhe a mão. Mais uma vez, Gabriel encontrou semelhanças desconfortáveis com Leah. O perfume. Os reflexos dourados nos olhos quase pretos. A forma como as mãos compridas flutuavam quando ela falava. Gabriel olhava pela janela para o pavimento da rue St.-Denis, mas, mentalmente, estava outra vez em Viena, sentado com Leah e Dani na trattoria do Bairro Judeu.
Estava a suar. Sentia água fria a escorrer-lhe pelo sulco no meio das costas, o suor a escorrer-lhe pelas costelas. A Beretta estava no bolso da frente da parca, a parca pendurada nas costas da cadeira, para que Gabriel conseguisse sentir o peso reconfortante da arma encostada à anca. A rapariga estava a falar:
- Talvez devêssemos sair daqui - dizia ela. - As Caraíbas, St. Bart, um sítio qualquer quente com boa comida e bom vinho.
Gabriel estava a ouvi-la só com parte do cérebro - assentia nas ocasiões certas e até conseguia dizer umas palavras de vez em quando -, mas durante a maior parte do tempo estava a visualizar como iria matar Tariq. Não tinha qualquer prazer com estes pensamentos. Envolvia-se neles não por raiva ou por um desejo de infligir castigo, mas da mesma maneira como podia congeminar uma manobra enviesada através de uma extensão particularmente difícil de água e vento; ou a forma como iria corrigir uma mancha nua numa tela com quinhentos anos.
Visualizou o que iria acontecer depois de Tariq ser abatido. Deborah tomaria conta de si própria. Gabriel era responsável por Jacqueline. Agarrá-la-ia e afastar-se-iam do corpo o mais depressa possível. Um dos homens de Yadin apanhá-los-ia na rue St.-Denis num carro alugado, um Ford verde, e seguiriam para o aeroporto. Trocariam de carro no caminho. No aeroporto dirigir-se-iam directamente para o terminal privado e embarcariam no jacto de Benjamin Stone. Se as coisas corressem de acordo com o plano, estaria de volta a Israel na tarde seguinte.
Se não corressem...
Gabriel afastou a imagem do fracasso da mente.
Nesse preciso instante, o telemóvel tocou baixinho. Levou-o ao ouvido, escutou sem falar. Cortou a ligação, entregou o telemóvel à rapariga, levantou-se, vestiu o casaco. A Beretta bateu-lhe contra a anca. Enfiou a mão no bolso da parca e agarrou na arma pelo punho.
Já tinha pago a conta antes, para não causar uma cena quando chegasse a hora de se irem embora. A rapariga seguiu à frente enquanto atravessavam o restaurante. Gabriel estava a arder. Lá fora, escorregou e quase caiu ao subir as escadas. A rapariga agarrou-o pelo braço e segurou-o. Quando chegaram ao passeio, não havia sinais de Tariq e Jacqueline. Gabriel virou-se de frente para a rapariga. Deu-lhe um beijo na cara e depois encostou a boca à orelha dela.
- Diz-me quando os vires.
Enterrou a cara no pescoço da rapariga. O cabelo dela cobria-lhe a cara. Cheirava chocantemente a Leah. Agarrou-a com a mão esquerda. A direita continuava dentro do bolso, envolvendo o punho da Beretta.
Ensaiou a cena uma última vez. Representou-a na mente como se fosse uma aula na Academia. Dá meia-volta, dirige-te directamente para ele. Não hesites, nem pares. Aproxima-te, puxa da arma com a mão direita, começa a disparar. Não penses nos transeuntes, pensa apenas no alvo. Transforma-te no terrorista. Deixa de ser o terrorista só quando ele estiver morto. O carregador suplente está no bolso esquerdo se precisares dele. Não te deixes apanhar. És um príncipe. És mais valioso do que todas as outras pessoas. Faz seja o que for para evitares a captura. Se um polícia te confrontar, mata o polícia. Não tens autorização para te deixares capturar em circunstância nenhuma.
- Estão ali.
Ela deu-lhe um leve encontrão para separar os corpos. Gabriel voltou-se e começou a at ravessar a rua, desviando os olhos de Tariq apenas o tempo suficiente para se assegurar que não se estava a atravessar à frente de um carro. A mão estava a humedecer a arma.
Não conseguia ouvir nada senão a sua própria respiração e o silvo do sangue a correr velozmente no interior dos ouvidos. Jacqueline olhou para cima. Os olhos cruzaram-se por uma fracção de segundo; depois ela desviou o olhar abruptamente. Tariq agarrou-a pelo cotovelo.
Quando Gabriel tirou a Beretta do bolso, um carro dobrou a curva e avançou velozmente na sua direcção. Não teve outro remédio senão sair rapidamente do caminho. Então, o carro parou com uma derrapagem, com Gabriel de um lado e Tariq e Jacqueline do outro.
A porta de trás do lado de Tariq abriu-se. Ele empurrou Jacqueline para a frente e obrigou-a a entrar no carro. A carteira dela escorregou-lhe do ombro e caiu na rua. Tariq sorriu ferozmente para Gabriel e subiu para o assento de trás, ao lado de Jacqueline.
O carro partiu a toda a velocidade. Gabriel atravessou a rua e apanhou a carteira de Jacqueline. Depois voltou para o restaurante e foi buscar a rapariga. Percorreram a rue St.-Denis. Gabriel abriu a carteira de Jacqueline e vasculhou o seu conteúdo. Lá dentro estavam a bolsa do dinheiro, o passaporte, alguns artigos de maquilhagem e o isqueiro de ouro que Shamron lhe tinha dado na galeria de arte.
- Devias ter disparado, Gabriel!
- Não tinha nada para que disparar!
- Podias ter disparado por cima do tejadilho daquele carro!
- Tretas!
- Podias ter disparado, mas hesitaste!
- Hesitei porque se tivesse falhado esse tiro por cima do tejadilho do carro, a bala teria ido parar ao restaurante do outro lado da rua e podias acabar com um espectador inocente morto nas mãos.
- Nunca costumavas considerar a possibilidade de falhares.
A carrinha acelerou afastando-se do passeio. Gabriel estava sentado no chão na parte de trás da carrinha, a rapariga à frente dele, os joelhos encostados ao queixo, a olhá-lo intensamente. Gabriel fechou os olhos e tentou pensar com calma. Era um desastre total.
Jacqueline desaparecera. Não tinha passaporte, não tinha identificação e, o mais importante de tudo, não tinha o sinalizador. Eles tinham tido uma importante vantagem sobre Tariq: a capacidade de saberem sempre onde ela estava. Agora essa vantagem desaparecera.
Imaginou a sequência dos acontecimentos: Tariq e Jacqueline a saírem do restaurante; o carro a aparecer de nenhures; Tariq a empurrar Jacqueline para o banco de trás; o sorriso feroz de Tariq.
Gabriel fechou os olhos e viu a imagem fantasmagórica de Tariq a chamá-lo com uma mão à Van Dyck. Ele soube sempre, pensou Gabriel. Sabia que era eu que me estava a dirigir para ele na rue St-Denis. Ele levou-me para lá.
Shamron estava outra vez a falar.
- A tua primeira responsabilidade era para com a Jacqueline. Não era para uma pessoa qualquer num bistro atrás dela. Devias ter disparado, fossem quais fossem as consequências!
- Mesmo que o tivesse conseguido atingir, a Jacqueline teria ido à mesma. Ela estava no carro, o motor estava a trabalhar. Eles iam levá-la, e não havia nada que eu pudesse ter feito para o impedir.
- Devias ter disparado contra o carro. Podíamos ter conseguido encurralá-los naquela rua.
- É isso que querias? Uma luta armada no meio de Montreal? Um tiroteio? Terias tido outra Lillelhammer nas mãos. Outra Ama.
Outro desastre para o Departamento.
Shamron voltou-se para trás e deitou um olhar furioso a Gabriel, depois voltou-se outra vez para a frente.
- E agora, Ari? - perguntou Gabriel.
- Encontramo-los.
- Como?
- Fazemos uma boa ideia para onde eles vão.
- Não conseguimos descobrir o Tariq nos Estados Unidos sozinhos.
- O que é que estás a sugerir, Gabriel?
- Precisamos de avisar os Americanos de que provavelmente ele está a dirigir-se para lá. Também temos de dizer aos Canadianos. Talvez eles possam impedir que ele a leve para o outro lado da fronteira. Se tivermos sorte, eles são capazes de os parar antes de chegarem à fronteira.
- Dizer aos Americanos e aos Canadianos? Dizer-lhes o quê, exactamente? Dizer-lhes que tencionávamos assassinar um palestiniano em solo canadiano? Dizer-lhes que fizemos borrada e que agora gostaríamos que eles limpassem a porcaria? Não me parece que isso caísse muito bem em Otava ou em Washington.
- Então o que é que fazemos? Deixamo-nos ficar sentados?
- Não, vamos para a América e apertamos a segurança em volta do primeiro-ministro. O Tariq não veio até tão longe para nada. Vai acabar por ter de fazer a sua jogada.
- E se o alvo dele não for o primeiro-ministro?
- A segurança do primeiro-ministro é a minha única preocupação neste momento.
- Tenho a certeza de que ajacqueline ficaria satisfeita por ouvir isso.
- Tu sabes o que é que eu quero dizer, Gabriel. Não jogues com as palavras comigo.
- Esqueceste-te de uma coisa, Ari. Ela já não tem passaporte.
- Gabriel levantou a carteira de Jacqueline. - Está aqui. Como é que a vão fazer passar a fronteira sem passaporte?
- É óbvio que o Tariq tem outras soluções.
- Ou talvez não tencione levá-la para o outro lado da fronteira. Talvez a vá matar primeiro.
- É por isso que devias ter disparado, Gabriel.
SABREVOIS, QUEBEQUE
Jacqueline tinha tentado seguir os letreiros das estradas. Estrada
40 através de Montreal. Estrada 10 para o outro lado do rio. Estrada 35 para o campo. Agora esta: Estrada 133, uma estrada provincial de duas faixas que se estendia pelo planalto do Sul do Quebeque. Era estranho como a Montreal cosmopolita tinha dado tão rapidamente lugar a este vasto espaço vazio. Uma Lua frágil flutuava por cima do horizonte, rodeada por um halo de gelo. A neve, soprada pelo vento, redemoinhava pelo asfalto como uma tempestade de areia. De vez em quando, um objecto flutuava vindo da escuridão. Um silo de cereais sobressaindo da camada de neve. Uma casa numa quinta fracamente iluminada. Um armazém de produtos agrícolas às escuras. À frente, viu luzes de néon. Quando se aproximaram, conseguiu ver que as luzes desenhavam os contornos de uma mulher com seios volumosos: um bar de striptease no meio de nenhures. Perguntou a si mesma onde é que arranjariam as raparigas. Talvez gostassem de ver as irmãs e as amigas a dançarem com os peitos nus. Desolação, pensou. Foi por causa disto que a palavra foi criada.
Após uma hora de viagem, estavam já a poucos quilómetros da fronteira com os Estados Unidos. Ela pensou: Como é que ele me vai passar para o outro lado se o meu passaporte e o resto das minhas coisas estão caídos na rue St-Denis em Montreal?
O meu passaporte e o isqueiro com o sinalizador...
Acontecera tudo tão depressa! Depois de ter dado conta da presença de Gabriel, desviara os olhos e preparara-se para o que
pensava que iria acontecer. O carro aparecera de repente e ele tinha-a empurrado lá para dentro tão violentamente que a carteira lhe caíra da mão. Enquanto o carro se afastava velozmente, ela gritou-lhe para voltar para trás e deixá-la ir buscar a carteira, mas ele ignorou-a e disse ao motorista para andar mais depressa. Foi nessa altura que Jacqueline se apercebeu de que a mulher que ela conhecia como Leila é que ia a guiar. Uns quarteirões mais à frente, trocaram de carro. O condutor era o mesmo homem que tinha deixado a pasta para Tariq no café do subterrâneo. Desta vez percorreram vários quarteirões até à zona de Montreal conhecida por Outremont. Aí voltaram a trocar de carro pela última vez. Agora, Tariq ia a conduzir.
Ele estava a suar. Jacqueline conseguia ver o brilho na pele no clarão verde-lima das luzes do painel de instrumentos. A cara estava mortalmente pálida, tinha círculos escuros por baixo dos olhos e a mão direita tremia.
- Importas-te de me explicar o que é que aconteceu lá atrás, em Montreal?
- Foi apenas uma precaução de segurança de rotina.
- Chamas àquilo rotina? Se era assim tão rotineiro, porque é que não me deixaste voltar para trás para apanhar a carteira?
- De tempos a tempos dou por mim a ser vigiado pelos serviços secretos israelitas e os seus amigos no Ocidente. Também estou a ser monitorizado pelos meus inimigos no interior do movimento palestiniano. Os meus instintos disseram-me que alguém nos estava a vigiar em Montreal.
- Essa charada custou-me a carteira e todas as coisas que lá estavam dentro.
- Não te preocupes, Dominique. Eu substituo as tuas coisas.
- Há coisas que não podem ser substituídas.
- Como o teu isqueiro de ouro?
Jacqueline sentiu uma facada de dor nó abdómen. Lembrou-se de Yusef a brincar com o isqueiro quando iam a caminho do apartamento em Hounslow. Céus, ele sabe. Mudou de assunto.
- Na verdade, estava era a pensar no meu passaporte.
- O teu passaporte também pode ser substituído. Levo-te ao
consulado francês em Montreal. Dizes-lhes que o perdeste ou que o roubaram e eles fazem-te um novo.
Não, vão descobrir que era falso e vou acabar numa prisão do Canadá.
- Porque é que essas pessoas te estão a vigiar?
- Porque querem saber para onde é que eu vou e com quem
me encontro.
- Porquê?
- Porque não querem que eu tenha êxito.
- O que é que estás a tentar fazer para eles estarem tão preocupados?
- Estou apenas a tentar levar um pouco de justiça ao chamado processo de paz. Não quero que o meu povo aceite uma fatiazinha da nossa terra ancestral só porque, agora, os Americanos e uma mão-cheia de israelitas estão dispostos a deixarem-nos ficar com ela. Oferecem-nos as migalhas que caem da mesa deles. Não quero migalhas, Dominique. Quero o pão todo.
- Metade de um pão é melhor do que nada.
- Discordo respeitosamente.
Um letreiro da auto-estrada flutuou do meio da neve que rodopiava. A fronteira estava a cinco quilómetros.
- Para onde é que me vais levar?
- Para o outro lado.
- E como é que tencionas fazer-me atravessar a fronteira sem passaporte?
- Nós fizemos outros preparativos.
- Outros preparativos? Que tipo de preparativos?
- Tenho outro passaporte para ti. Um passaporte canadiano.
- Como é que conseguiste arranjar um passaporte canadiano? Outro letreiro: a fronteira estava agora a três quilómetros.
- Não é teu, claro.
- Espera aí! O Yusef prometeu-me que não me irias pedir para fazer nada de ilegal.
- Não vais fazer nada de ilegal. É uma fronteira aberta e o passaporte é perfeitamente válido.
- Pode ser válido, mas não é meu!
- Não interessa que não seja teu. Ninguém te vai interrogar.
- Não vou entrar nos Estados Unidos com um passaporte falso! Pára o carro! Quero sair!
- Se te deixasse aqui morrias gelada antes de conseguires chegar a um lugar seguro.
- Então deixa-me num sítio qualquer! Deixa-me é sair desta história!
- Dominique, foi por causa disto que te trouxemos de Londres: para me ajudares a passar esta fronteira.
- Mentiste-me! Tu e o Yusef!
- Sim, achámos que era necessário enganar-te um bocadinho.
- Um bocadinho?!
- Mas agora, nada disso interessa. O que interessa é que eu preciso de atravessar a fronteira e preciso da tua ajuda.
A fronteira estava agora a cerca de quilómetro e meio. Ela conseguia ver as fortes luzes brancas do posto. Pensou no que deveria fazer. Imaginou que lhe poderia dizer simplesmente que não. E o que é que ele faria então? Daria meia-volta, matá-la-ia, atiraria o corpo para a neve e atravessaria a fronteira sozinho. Pensou em enganá-lo: dizendo sim e alertando o funcionário no posto. Mas Tariq limitar-se-ia a matá-la e ao guarda da fronteira. Haveria uma investigação, o papel do Departamento no assunto viria a lume. Seria um fiasco embaraçoso para Ari Shamron. Só tinha uma opção. Continuar com o jogo durante mais um tempo e arranjar uma maneira de alertar Gabriel.
- Deixa-me ver o passaporte. Entregou-lho.
Abriu-o e olhou para o nome: Hélène Sarrault. Depois olhou para a fotografia: Leila. A parecença era vaga mas convincente.
- Vais fazê-lo? Jacqueline disse:
- Continua a guiar.
Entrou na praça do posto fronteiriço e travou. Um guarda da fronteira saiu da cabina e disse:
- Boa noite. Para onde é que vai esta noite?
- Burlington - disse Tariq.
- Negócios ou prazer?
- A minha irmã está doente.
- Lamento saber isso. Quanto tempo é que tencionam ficar?
- Um dia, no máximo dois.
- Passaportes, se fazem favor.
Tariq entregou-lhos. O guarda abriu-os e examinou as fotografias e os nomes. Depois espreitou para dentro do carro e olhou-lhes para as caras.
Fechou os passaportes e devolveu-os.
- Tenham uma boa estadia. E guie com cuidado. O boletim meteorológico diz que vem aí uma grande tempestade mais para o fim da noite.
Tariq agarrou nos passaportes, meteu a primeira e atravessou lentamente a fronteira, entrando em Vermont. Meteu os passaportes no bolso e, uns momentos depois, quando já estavam longe da fronteira, puxou de uma Makarov e encostou o cano na parte lateral da cabeça dela.
WASHINGTON, DC.
Yasser Arafat estava sentado à secretária na suíte presidencial no Madison Hotel, a desbravar uma pilha de papéis, ouvindo o trânsito nocturno a silvar ao longo do pavimento molhado da Fifth Avenue. Fez uma pausa por uns instantes, enfiou uma tâmara tunisina na boca e depois engoliu umas colheradas de iogurte. Era muito cuidadoso com a sua dieta, não bebia nem consumia álcool e nunca bebia café. Isso tinha-o ajudado a sobreviver a um estilo de vida revolucionário exigente que poderia ter destruído qualquer outro homem.
Como não estava à espera de mais visitas nessa noite, trocara o uniforme por um fato de treino azul. A cabeça careca estava descoberta e, como de costume, tinha uma barba de vários dias na cara empapuçada. Tinha postos os óculos para ler que lhe aumentavam os olhos parecidos com os de um sapo. O grosso lábio inferior esticava-se para fora, dando-lhe o ar de uma criança à beira das lágrimas.
Possuía uma memória quase fotográfica para caras e materiais escritos, o que lhe permitia trabalhar rapidamente a pilha de documentos, parando de quando em quando para escrever umas notas nas margens de memorandos ou assinar o seu nome. Tinha agora a seu cargo a Faixa de Gaza e uma grande porção da margem ocidental, um desenvolvimento que teria parecido impossível poucos anos antes. A sua Autoridade Palestiniana era responsável pelos detalhes mundanos da administração corrente, como a recolha do lixo
e as escolas. Era uma diferença tremenda em relação aos velhos tempos, quando fora o guerrilheiro mais famoso do mundo.
Pôs de lado o que ainda lhe faltava fazer e abriu um documento encadernado numa capa de pele. Era uma cópia do acordo provisório que ia assinar no dia seguinte nas Nações Unidas, em Nova Iorque. O acordo era, no entanto, outro passo em frente para a realização da obra da sua vida: a criação de um Estado palestiniano. Era muito menos do que ele tinha querido quando iniciara este caminho - nessa altura sonhara com a destruição de Israel -, mas era o melhor que iria conseguir. Havia alguns no interior do movimento que desejavam que ele falhasse, alguns até lhe desejavam a morte. Os que rejeitavam, os sonhadores. Se lhes fizessem a vontade, os Palestinianos estariam condenados para sempre aos campos de refugiados da diáspora.
Um assessor bateu à porta. Arafat levantou os olhos quando ele entrou.
- Desculpa incomodar-te, Abu Amar, mas o presidente está ao telefone.
Arafat sorriu. Isto também teria sido impossível apenas há uns anos.
- O que é que ele quer a estas horas da noite?
- Diz que a mulher não está na cidade e que está aborrecido. Quer saber se estarias disposto a ir à Casa Branca para lhe fazeres companhia.
- Agora?
- Sim, agora.
- Para fazer o quê?
O assessor encolheu os ombros.
- Conversar, calculo eu.
- Diz-lhe que estarei lá dentro de dez minutos.
Arafat levantou-se, despiu o fato de treino e enfiou o seu uniforme de caqui habitual e o tradicional lenço palestiniano. Usava o kaffyeh preto e branco dos camponeses com a parte da frente a formar um bico para simbolizar o mapa da Palestina. O assessor voltou a aparecer com um sobretudo que pôs nos ombros de Arafat. Saíram juntos para o corredor e foram imediatamente rodeados
por um grupo de seguranças. Alguns faziam parte da sua guarda pessoal, os restantes eram dos Serviços de Segurança Diplomáticos dos Estados Unidos. Desceram o corredor, Arafat no centro do grupo, e entraram num elevador privado, que os levou até à garagem. Aí, Arafat enfiou-se na parte de trás de uma limusina. Um momento depois, a sua caravana seguia velozmente pela Fifth Avenue em direcção ao sul e à Casa Branca.
Arafat olhou para fora da janela. Um pouco como nos velhos tempos, esta corrida a altas horas da noite através de ruas molhadas
- como aquelas ocasiões em que ele nunca passava duas noites seguidas na mesma cama. Às vezes até chegava a mudar de residência a meio da noite, quando os seus instintos bem afinados pressentiam que havia perigo. Evitava os sítios públicos - nunca comia em restaurantes, nunca ia ao cinema ou ao teatro. A pele ficou cheia de manchas por falta de sol. As suas capacidades de sobrevivência tinham frustrado centenas de tentativas para o matar da parte dos Israelitas e dos seus inimigos no interior do movimento. Outros não tinham tido tanta sorte. Pensou no seu velho amigo e segundo no comando, Abu Jihad. Ele tinha dirigido os esforços de guerra nos territórios ocupados e ajudado a organizar a intifada. E, por causa disso, os Israelitas tinham-no assassinado na sua villa em Tunes. Arafat sabia que sem Abu Jihad nunca estaria onde estava agora: a atravessar Washington para um encontro secreto com o presidente americano. Era uma pena que o seu velho amigo não estivesse ali para assistir.
A caravana passou a barricada na Pennsylvania Avenue e entrou nos jardins da Casa Branca. Momentos depois, o carro de Arafat parou sob o abrigo do Pórtico Norte.
O guarda, um marine, avançou e abriu a porta.
- Boa noite, senhor Arafat. Por aqui, se faz favor.
O presidente James Beckwith estava à espera na sala de visitas da residência na Mansão Executiva. Parecia que tinha acabado de sair do convés do seu barco à vela. Vestia um par de calças de caqui muito amarrotadas e uma camisola grossa de decote redondo.
Era um homem alto, com o cabelo prateado e modos delicados. O rosto permanentemente bronzeado projectava juventude e exuberância, apesar de ter quase setenta anos de idade.
Sentaram-se em frente da lareira, Beckwith a beber um copo de uísque, Arafat a bebericar chá adoçado com mel. Quando Beckwith estivera no Senado, tinha sido um dos mais fervorosos aliados dos Israelitas e chefiara a oposição ao reconhecimento da OLP - de facto, tinha-se referido com regularidade a Arafat e à OLP como "terroristas sedentos de sangue". Agora, os dois homens eram aliados muito chegados na procura da paz para o Médio Oriente. Arafat precisava de Beckwith para pressionar os Israelitas a fazer concessões na mesa das negociações. Beckwith precisava de Arafat para manter os radicais e os fundamentalistas na linha, a fim de que as negociações pudessem continuar.
Passada uma hora, Beckwith abordou os assassinatos do embaixador Eliyahu e de David Morgenthau.
- O meu director da CIA diz-me que, provavelmente, o seu velho amigo Tariq esteve por trás dos dois atentados, mas não têm provas.
Arafat sorriu.
- Nunca duvidei nem por um momento que fosse o Tariq. Mas se a sua CIA julga que vai arranjar provas disso, receio que estejam tristemente enganados. O Tariq não trabalha assim.
- Se ele continua a matar judeus, vai fazer com que seja mais difícil continuarmos a avançar para um acordo definitivo.
- Desculpe a minha franqueza, senhor Presidente, mas o Tariq só é um factor se o senhor e os Israelitas deixarem que ele seja um factor. Ele não age em meu nome. Não opera a partir do território controlado pela Autoridade Palestiniana. Não fala para aqueles palestinianos que querem a paz.
- Tudo verdade, mas não há nada que o senhor possa fazer para o dissuadir?
- Ao Tariq? - Arafat abanou a cabeça lentamente. - Nós éramos amigos íntimos noutros tempos. Ele era um dos meus melhores agentes dos serviços secretos. Mas abandonou-me por causa da minha decisão de renunciar ao terrorismo e começar com as negociações de paz. Não nos falamos há anos.
- Talvez ele agora o oiça.
- Receio que o Tariq não ouça outra voz senão a sua. É um homem perseguido por demónios.
- Todos nós o somos, especialmente quando se chega à minha idade.
- E a minha - disse Arafat. - Mas receio que o Tariq seja perseguido por um tipo diferente de demónios. Está a ver, ele é um homem novo que está a morrer e quer acertar as contas antes de partir.
Beckwith ergueu as sobrancelhas, surpreendido:
- A morrer?
- Segundo as minhas fontes, ele tem um tumor cerebral grave.
- Os Israelitas sabem disso?
- Sim - disse Arafat. - Fui eu próprio que lhes disse.
- A quem?
- Ao chefe dos serviços secretos deles, o Ari Shamron.
- Espanta-me que o chefe dos serviços secretos tenha negligenciado partilhar esta informação com a CIA.
Arafat riu-se.
- Calculo que nunca tenha conhecido o Shamron. Ele é matreiro e um guerreiro da velha escola. O Shamron tem o hábito de nunca deixar que a mão esquerda saiba o que a direita está a fazer. Sabe qual é o lema do serviço secreto israelita?
- Lamento, mas não.
- "Por meio do engano, farás a guerra". O Ari Shamron vive segundo essas palavras.
- Acha que o Shamron pode estar a fazer um jogo qualquer?
- Tudo é possível quando se trata do Shamron. Está a ver, há pessoas nos serviços secretos israelitas que querem o Tariq morto, sejam quais forem os custos. Mas há outros, lamento dizê-lo, que gostariam que ele fosse bem-sucedido.
- Em qual das categorias está o Shamron? Arafat franziu o sobrolho.
- Quem me dera saber.
Pouco antes da meia-noite, o presidente acompanhou Arafat até ao carro que o esperava. Faziam um par muito pouco harmonioso,
o presidente alto e aristocrático e o pequeno revolucionário nas suas vestes verde-azeitona e o kaffiyeh esvoaçante. Beckwith disse:
- Sei que amanhã vai à recepção em casa do Douglas Cannon depois da cerimónia da assinatura. Eu e o Douglas somos bons amigos.
- Eu e ele também somos amigos. Ele viu a justeza da causa palestiniana muito antes da maioria dos políticos americanos. Foi preciso uma grande coragem, tendo em conta o facto de ser um senador de Nova Iorque, onde o lobby judeu é tão forte.
- O Douglas sempre defendeu as suas ideias sem se preocupar com as consequências políticas. É isso que o distingue da maioria dos políticos desta maldita cidade. Por favor, dê-lhe os meus afectuosos cumprimentos quando o vir.
- Fá-lo-ei com certeza.
Trocaram um aperto de mão formal por baixo do Pórtico Norte; depois, Arafat voltou-se e encaminhou-se para a limusina.
- E faça-me outro favor, senhor Arafat.
O palestiniano deu meia-volta e ergueu uma sobrancelha.
- Qual?
- Tenha cuidado consigo.
- Sempre - disse Arafat.
Depois entrou para a parte de trás do carro e foi-se embora.
BURLINGTON, VERMONT
- O teu nome não é Dominique Bonard e não trabalhas para uma galeria de arte em Londres. Trabalhas para os serviços secretos israelitas. E saímos de Montreal da forma que saímos porque o teu amigo Gabriel Allon me vinha matar.
A boca de Jacqueline ficou seca. Teve a sensação de que a garganta se lhe ia fechar. Lembrou-se do que Gabriel lhe dissera em Londres: Dominique Bonard não tem nada a recear deste homem. Se ele pressionar, pressiona tu também.
- De que raio é que estás a falar? Não conheço ninguém chamado Gabriel Allon! Pára a porra do carro! Para onde é que pensas que me levas, porra? O que é que te deu?
Ele bateu-lhe no lado da cabeça com a arma: um golpe curto e brutal que lhe fez vir as lágrimas aos olhos instantaneamente. Levantou a mão, apalpou o couro cabeludo, encontrou sangue.
- Filho-da-mãe! Ele ignorou-a.
- O teu nome não é Dominique Bonard e não trabalhas para uma galeria de arte em Londres. Trabalhas para o Ari Shamron. És uma agente israelita. Estás a trabalhar com o Gabriel Allon. Era o Gabriel Allon que vinha a atravessar a rua na nossa direcção em Montreal. Vinha matar-me.
- Quem me dera que te calasses com esta merda! Não sei do que é que estás a falar! Não conheço ninguém chamado Gabriel e não conheço ninguém chamado Ari Shamron!
Ele bateu-lhe outra vez, um golpe que pareceu vir do nada. Acertou exactamente no mesmo sítio. A dor foi tão intensa que, apesar de todos os seus esforços, começou a chorar.
- Estou a dizer-te a verdade!
Outra pancada: mais forte.
- Chamo-me Dominique Bonard! Trabalho para...
Outra pancada: ainda mais forte. Sentia-se a perder os sentidos.
- Filho-da-mãe - disse ela a chorar. Carregou com os dedos na ferida. - Para onde é que me estás a levar?
Mais uma vez, ele ignorou-a. Se estava a tentar dar com ela em doida, estava a resultar. Quando ele falou, havia um toque de piedade na sua voz, como se tivesse pena dela. Jacqueline sabia o que é que ele estava a tentar fazer. Estava a tentar quebrar a resistência que lhe restava, fazê-la acreditar que tinha sido traída e que estava completamente sozinha.
- Foste para Tunes com o Gabriel Allon e passaste por amante dele enquanto ele planeava o assassinato de Abu Jihad.
- Nunca estive em Tunes em toda a minha vida, quanto mais com alguém chamado Gabriel Allon!
Ele levantou a arma para a voltar a agredir, mas desta vez ela viu o golpe a vir e levantou as mãos num gesto de defesa.
- Por favor! - gritou. - Não me tornes a bater!
Ele baixou a arma. Até parecia não ter estômago para aquilo.
- Ele envelheceu desde a última vez que o vi. Acho que tem esse direito, tendo em conta tudo aquilo por que tem passado.
Jacqueline sentiu a vontade de resistir a desmoronar-se. A realidade do que era trabalhar para os serviços secretos atingiu-a. Antes, tinha sido uma aventura, uma coisa que fazia para sentir que era mais do que uma cara e um corpo bonitos. Mas isto era a verdadeira natureza da guerra secreta de Ari Shamron. Era suja e violenta e agora estava apanhada nela. Tinha de pensar numa forma de conseguir controlar a situação. Talvez conseguisse descobrir os planos dele. Talvez conseguisse arranjar maneira de avisar Gabriel e Shamron. Talvez consiga descobrir uma maneira de sobreviver.
- Eles vão vir atrás de ti - disse ela. - Provavelmente, metade
da polícia do Canadá e dos Estados Unidos já está à nossa procura neste momento. Nunca irás conseguir chegar a Nova Iorque.
- Na verdade, duvido que haja mais alguém à nossa procura, excepto os teus amigos Gabriel Allon e Shamron. Desconfio que não podem pedir ajuda aos Canadianos, porque, provavelmente, os Canadianos e os Americanos não sabem que eles estão aqui. Se descobrirem agora, isso pode ser muito embaraçoso para o teu serviço.
Meteu a mão no bolso e entregou-lhe um lenço para a cabeça.
- A propósito, nós soubemos que estavas a trabalhar para o Departamento mal entraste na vida do Yusef.
- Como?
- Queres mesmo saber?
- Quero.
- Está bem, mas primeiro tens de me responder a umas perguntas. És mesmo francesa?
Então, pensou ela, ele não sabe tudo,
- Sim, sou francesa - respondeu.
- Também és judia?
- Sim.
- Dominique Bonard é o teu nome verdadeiro?
- Não.
- Qual é o teu nome verdadeiro?
Ela pensou: Qual é o meu nome verdadeiro? Sou mesmo Jacqueline Delacroix? Não, isso foi apenas um nome que o Mareei Lambert deu a uma rapariga bonita de Marselha. Se vou morrer, vou morrer com o nome com que nasci.
- Chamo-me Sarah - respondeu ela. - Sarah Halévy.
- Que nome tão bonito. Bem, Sarah Halévy, acho que tens o direito de saber como é que acabaste metida num sarilho como este.
Olhou para ela para ver a sua reacção, mas ela devolveu-lhe o olhar com uma hostilidade gelada.
- A propósito, se quiseres podes tratar-me por Tariq.
Ele falou durante uma hora sem parar. Era evidente que estava a divertir-se. Afinal de contas, tinha conseguido bater os serviços
secretos mais temidos do mundo. Contou-lhe como tinha sabido que tinham voltado a ir buscar Gabriel para o Departamento para o descobrir. Contou-lhe do alerta de segurança que tinham emitido para todos os operacionais no terreno. Contou-lhe como Yusef tinha informado imediatamente o seu controlador do contacto com uma francesa atraente.
- Dissemos ao Yusef para continuar a ver-te enquanto verificávamos a tua história em Paris. Descobrimos uma falha, uma falha mínima, mas mesmo assim, uma falha. Tirámos-te fotografias em Londres e comparámo-las com as fotografias de uma mulher que trabalhara com o Gabriel Allon em Tunes. Dissemos ao Yusef para aprofundar a relação com esta Dominique Bonard. Dissemos-lhe para criar uma ligação emocional com ela: um laço de confiança.
Ela pensou nas longas conversas que tinham tido. Nas prelecções dele sobre o sofrimento do povo palestiniano. Na confissão dele sobre as cicatrizes nas costas e a noite terrível em Shatila. Tinha estado sempre convencida de que estava a controlar o jogo que era ela que enganava e manipulava - quando, na realidade, era o Yusef.
- Quando achámos que a vossa relação tinha progredido até esse ponto, dissemos ao Yusef para te pedir um favor muito especial: Estarias disposta a acompanhar um dignitário palestiniano numa missão secreta importante? Apresentaste argumentos contrários muito convincentes, mas acabaste por dizer que sim, claro, porque não és a Dominique Bonard, uma secretária numa galeria de arte de Londres, mas a Sarah Halévy, uma agente dos serviços secretos israelitas. O Ari Shamron e o Gabriel Allon partiram do princípio, e correctamente, que esse dignitário era eu, visto que tenho o hábito de usar mulheres insuspeitas nas minhas operações. Colocaram-te nesta situação extremamente perigosa porque me queriam apanhar. Mas agora vou virar o jogo contra eles. vou usar-te para trazer o Allon até mim.
- Deixa-o - disse ela. - Ele já sofreu o suficiente por tua causa.
- O Allon sofreu? O Gabriel Allon assassinou o meu irmão.
O sofrimento dele não é nada comparado com o sofrimento que infligiu à minha família.
- O teu irmão era um terrorista! O teu irmão merecia morrer!
- O meu irmão lutava pelo seu povo. Não merecia ser morto a tiro como um cão quando estava deitado na cama.
- Foi há muito tempo. Agora já acabou. Fica comigo em vez do Gabriel.
- Isso é muito nobre da tua parte, Sarah, mas o teu amigo Gabriel não vai perder outra mulher para mim sem lutar. Fecha os olhos e descansa um bocado. Ainda temos que andar muito esta noite.
Estava quase a amanhecer quando Tariq cruzou velozmente a Whitestone Bridge e entrou em Queens. O trânsito começou a tornar-se mais intenso quando passou pelo Aeroporto La Guardiã. A este, o céu tinha-se tornado cinzento-claro com a aproximação da aurora. Ligou o rádio, ouviu as notícias sobre o trânsito, depois baixou o som e concentrou-se na condução. Minutos depois, o rio East apareceu. Jacqueline conseguia ver os primeiros raios de sol reflectidos nos arranha-céus de Manhattan.
Tariq saiu da via rápida e seguiu pelas ruas de Brooklyn. Agora que havia luz, ela conseguia vê-lo claramente pela primeira vez desde a tarde anterior. A noite longa tinha deixado as suas marcas. Estava pálido, os olhos ensanguentados e cansados. Guiava com a mão direita, a esquerda estava no colo, a apertar a Makarov.
Jacqueline olhou para os letreiros das ruas: Coney Island Avenue. O bairro tinha-se tornado marcadamente médio-oriental e asiático. Mercados paquistaneses coloridos com bancas de fruta espalhavam-se pelos passeios. Restaurantes árabes e libaneses. Companhias do Médio-Oriente. Uma loja de tapetes e azulejos. Uma mesquita, com uma fachada de mármore falso, verde e branco, erguida no exterior de tijolo de um antigo armazém.
Tariq virou para uma calma rua residencial chamada Parkville Avenue e conduziu vagarosamente durante um quarteirão, parando à frente de um edifício quadrado de tijolo com três andares, na esquina da East Eight Street. No rés-do-chão havia uma delicatessen
com as janelas e a porta tapadas com pranchas de madeira. Desligou o motor e deu duas buzinadelas curtas. Uma luz cintilou por breves instantes no apartamento do segundo andar.
- Espera que eu dê a volta ao carro - disse ele, calmamente.
- Não abras a porta. Se abrires a porta, mato-te. Quando saírmos do carro, entra imediatamente e sobe as escadas. Se fizeres qualquer barulho, se tentares fugir, mato-te. Estás a compreender?
Ela assentiu com a cabeça. Ele enfiou a Makarov na parte da frente do casaco e saiu do carro, depois deu a volta por trás do carro, abriu a porta e puxou-a pela mão. Fechou a porta e atravessaram rapidamente a rua. A porta do rés-do-chão estava entreaberta. Entraram e atravessaram um pequeno átrio cheio de prospectos espalhados pelo chão. O esqueleto de uma bicicleta ferrugenta e sem pneus estava encostada à ombreira descascada da porta.
Tariq subiu as escadas, ainda a agarrar-lhe a mão; a pele estava quente e húmida. A escada cheirava a caril e a terebintina. Uma porta abriu-se, e uma cara apareceu por breves instantes na escuridão, um homem de barba, com um roupão branco. Olhou para Tariq e voltou a enfiar-se no apartamento, fechando a porta silenciosamente. Chegaram a uma porta marcada 2A. Tariq bateu duas vezes, devagarinho.
Leila abriu a porta e puxou Jacqueline para dentro.
CIDADE DE NOVA IORQUE
Uma hora depois, Ari Shamron chegou à missão diplomática israelita nas Nações Unidas, no cruzamento da Second Avenue com a Forty-third Street. Passou por entre um grupo de manifestantes, a cabeça levemente inclinada, e entrou. Um membro dos serviços de segurança da missão estava à espera dele no átrio e acompanhou-o até à sala segura. O primeiro-ministro encontrava-se lá, rodeado por um trio de assessores que pareciam estar nervosos, tamborilando com os dedos no tampo da mesa. Shamron sentou-se e olhou para o chefe do pessoal do primeiro-ministro.
- Dá-me uma cópia da agenda dele e saiam.
Quando os assessores saíram um a um da sala, o primeiro-ministro perguntou:
- O que é que aconteceu em Montreal?
Shamron fez-lhe um relatório pormenorizado. Quando acabou, o primeiro-ministro fechou os olhos e apertou a cana do nariz com os dedos.
- Tirei-te da reforma para restaurares a reputação do Departamento, Ari, não para criares mais outro desastre! Tens algum motivo para pensares que os Canadianos sabiam da nossa presença em Montreal?
- Não, senhor primeiro-ministro.
- Achas que a rapariga ainda está viva?
- É difícil de dizer, mas a situação parece bastante sombria.
As mulheres que se cruzaram com o Tariq no passado não se saíram muito bem.
- A imprensa vai ter um dia de festa com isto. Já estou a ver os cabeçalhos: Bela Modelo Francesa Agente Secreta de Israel! Porra, Ari!
- Não há nenhuma maneira de ela poder ser formalmente ligada ao Departamento.
- Alguém vai descobrir a história, Ari. Há sempre alguém que o faz.
- Se o fizerem, usaremos os nossos amigos, como o Benjamin Stone, para a desacreditar. Posso garantir-lhe um desmentido total de todos os aspectos desta história.
- Não quero um desmentido! Tu prometeste-me a cabeça do Tariq numa bandeja sem borradas nem impressões digitais! Continuo a querer a cabeça do Tariq numa bandeja e quero a Jacqueline Delacroix viva.
- Queremos a mesma coisa, senhor primeiro-ministro. Mas neste momento a sua segurança é a nossa primeira prioridade.
Shamron agarrou na agenda e começou a ler.
- Depois da cerimónia nas Nações Unidas, segue para o distrito financeiro para um encontro com investidores, seguindo-se uma aparição na Bolsa de Nova Iorque. A seguir, vai para o Waldorf para um almoço oferecido pelos Amigos do Sião. - Shamron levantou os olhos por um breve instante. - E isto é a primeira parte do dia. Depois do almoço vai a Brooklyn visitar um centro da comunidade judaica e falar sobre o processo de paz. Depois volta a Manhattan para uma série de beberetes e recepções.
Shamron baixou o papel e olhou para o primeiro-ministro.
- Isto é um pesadelo de segurança. Quero que o Allon seja destacado para a sua escolta pessoal durante todo o dia.
- Porquê o Allon?
- Porque ele viu bem o Tariq em Montreal. Se o Tariq andar por aí, o Gabriel identifica-o.
- Diz-lhe para vestir um fato.
- Não me parece que ele tenha um.
- Arranja-lhe um.
Era um apartamento minúsculo: uma sala escassamente mobilada, uma cozinha com um fogão de dois bicos e um lava-louça de porcelana rachada; um quarto com uma cama individual, uma casa de banho que cheirava a humidade. As janelas estavam tapadas com cobertores grossos que não deixavam passar luz nenhuma. Tariq abriu a porta do armário. Lá dentro estava uma mala grande com os lados reforçados. Levou a mala para a sala, pousou-a no chão e abriu-a. Calças pretas de tecido de gabardina, muito bem engomadas e dobradas, casaco de cerimónia branco, camisa branca e um laço. No compartimento com fecho de correr, uma carteira. Tariq abriu-a e estudou o conteúdo: uma carta de condução de Nova Iorque com o nome de Emilio Gonzalez, um cartão Visa, um cartão de um clube vídeo, um conjunto de recibos variados, um cartão de identificação para prender na roupa. Kemel tinha feito bom trabalho.
Tariq olhou para a fotografia. Emilio Gonzalez era um homem que estava a ficar careca e com o cabelo e o bigode grisalhos. As bochechas eram mais cheias do que as de Tariq; nada que umas quantas bolas de algodão não resolvessem. Tirou a roupa da mala e pendurou-a com todo o cuidado nas costas de uma cadeira. Depois tirou o último artigo da mala - um pequeno estojo de toilette de cabedal, e foi para a casa de banho.
Colocou o estojo no lavatório e pôs a fotografia de Emilio Gonzalez de pé na prateleira por baixo do espelho. Tariq olhou para o seu reflexo no espelho. Mal reconheceu a sua própria cara: círculos escuros e fundos por baixo dos olhos, faces cavadas, lábios exangues. Parte daquilo era falta de sono - não se conseguia lembrar da última vez em que dormira -, mas a doença era responsável pela maior parte. O tumor estava a persegui-lo: dormência nas extremidades, zumbidos nos ouvidos, dores de cabeça insuportáveis, cansaço. Não tinha muito mais tempo de vida. Havia chegado a este ponto, a este momento na História, com pouco tempo a perder.
Abriu o estojo, tirou uma tesoura e uma navalha e começou a cortar o cabelo. Levou quase uma hora a fazer o trabalho.
A transformação era notável. com o cabelo prateado, o bigode e as faces mais cheias, estava espantosamente parecido com o homem na fotografia. Mas Tariq sabia que as subtilezas da sua representação eram tão importantes como a parecença. Se se comportasse como Emílio Gonzalez, nenhum guarda da segurança nem nenhum polícia o iria interrogar. Se actuasse como um terrorista numa missão suicida, morreria numa prisão americana.
Foi para a sala, despiu-se e vestiu a farda de criado. Depois voltou para a casa de banho para um último olhar ao espelho. Penteou o cabelo ralo para cima da sua careca recente e sentiu-se vagamente deprimido. Morrer numa terra estranha, com o nome de outro homem e a cara de outro homem. Supunha que era a conclusão lógica para a vida que levara. Agora só havia uma coisa a fazer, garantir que a sua vida não tinha sido desperdiçada numa causa perdida.
Dirigiu-se para o quarto.
Quando entrou, Leila levantou-se, a cara assustada, e ergueu
a arma.
- Sou eu - disse ele baixinho em árabe. - Pousa a arma antes que ela dispare e firas alguém.
Leila fez o que ele lhe disse e depois abanou a cabeça maravilhada.
- É espantoso. Nunca te teria reconhecido.
- A ideia é exactamente essa.
- É evidente que desperdiçaste a tua verdadeira vocação. Devias ter sido actor.
- Bem, está tudo a postos. Agora, a única coisa de que precisamos é do Gabriel Allon.
Tariq olhou para Jacqueline. Esta estava deitada na cama pequena, com os braços e as pernas abertos, os pulsos e os tornozelos presos com quatro algemas, a boca tapada com adesivo grosso.
- Achei interessante que minutos depois de teres chegado ao quarto do hotel em Montreal tivesses ido ouvir as mensagens telefónicas do teu apartamento em Londres. Quando trabalhava para a OLP, descobrimos que os Israelitas tinham a capacidade de apanharem virtualmente todos os telefones do mundo e encaminhá-los directamente para o seu quartel-general em Telavive por uma linha
segura. Obviamente, foi o que fizeram com o teu telefone em Londres; quando marcaste o número, deves ter informado o quartel-general de que estavas no Hotel Queen Elizabeth em Montreal.
Tariq sentou-se na borda da cama e afastou suavemente o cabelo da cara de Jaqueline. Ela fechou os olhos e tentou afastar-se do seu toque.
- vou usar esse aparelho mais uma vez para enganar o Ari Shamron e o Gabriel Allon. A Leila não é nada má como actriz. Quando eu estiver pronto a avançar contra o meu alvo, ela vai telefonar para o teu número de Londres e fazer-se passar por ti. Vai dizer ao quartel-general onde eu estou e aquilo que estou prestes a fazer. O quartel-general vai informar o Shamron, e o Shamron vai mandar imediatamente o Gabriel Allon para o local. Como é óbvio, eu saberei que o Allon está a chegar. Por isso, terei uma vantagem importante.
Agarrou na Makarov, enfiou o cano debaixo do queixo dela.
- Se fores boa rapariga, se te portares bem, deixar-te-emos viver. Mal a Leila faça esse telefonema, terá de sair daqui. Ela é que vai decidir se o Ari Shamron vai encontrar um corpo morto algemado a esta cama. Estás a compreender-me?
Jacqueline olhou para ele com uma insolência fria. Ele pressionou o cano da arma contra a carne mole da garganta dela até ela gemer através da mordaça.
- Estás a compreender? Ela assentiu com a cabeça.
Tariq levantou-se, enfiou a Makarov no cós das calças. Depois foi para a sala, vestiu um sobretudo, calçou umas luvas, e saiu.
Uma tarde fria e clara, o Sol a brilhar intensamente. Tariq pôs uns óculos escuros e levantou a gola do sobretudo. Dirigiu-se para a Coney Island Avenue e passou por uma enfiada de lojas até encontrar um merceeiro especializado em produtos do Médio-Oriente. Entrou na loja pequena, acompanhado pelo retinir de um sino na porta, e foi imediatamente invadido pelos cheiros do seu país. Café e especiarias, cordeiro assado, mel e tabaco.
Um adolescente estava atrás do balcão. Vestia uma camisola dos Yankees e estava a falar muito depressa, num árabe com pronúncia marroquina, num telefone sem fios.
- Tâmaras - disse Tariq em inglês. - Estou à procura de tâmaras secas.
O rapaz fez uma pausa na conversa.
- Na fila de trás à esquerda.
Tariq fez o caminho pelo meio dos corredores estreitos até chegar ao fundo da loja. As tâmaras estavam na prateleira de cima. Quando Tariq se esticou para lhes chegar, sentiu a Makarov a espetar-se no fundo das costas. Tirou as tâmaras e olhou para o rótulo: Tunísia. Perfeito.
Pagou e saiu. Da Coney Island Avenue, seguiu para leste, pelas ruas residenciais mais calmas, passando por pequenos prédios de apartamentos e vivendas de tijolo minúsculas, até chegar à paragem do metropolitano na Newkirk Avenue. Comprou um bilhete e desceu as escadas para o pequeno e exposto cais. Dois minutos depois entrou no comboio para Manhattan.
Gabriel estava a começar a acreditar que nunca iria encontrar Tariq. Naquele momento estava a subir velozmente a Park Avenue, no banco da frente de uma pequena carrinha, rodeado pelo resto da escolta do primeiro-ministro. Gabriel vestia um fato cinzento que pedira emprestado a um dos outros seguranças. O casaco era demasiado grande, as calças demasiado curtas. Sentia-se um idiota chapado - uma pessoa que chega a um restaurante sem a roupa adequada e tem de pedir um casaco emprestado. Não interessava; tinha coisas mais importantes com que se preocupar.
Até ali, o dia correra sem problemas. O primeiro-ministro tinha tomado café com um grupo de poderosos investidores bancários para discutirem as oportunidades de negócio em Israel. Depois fizera uma visita ao andar da Bolsa de Valores de Nova Iorque. Gabriel tinha estado sempre ao seu lado. Não deixara nada ao acaso. Fixara atentamente todas as caras - os banqueiros, os porteiros, as pessoas na rua - à procura de Tariq. Lembrava-se da cara de Tariq na rue St.-Denis em Montreal: o sorriso trocista enquanto empurrava Jacqueline para dentro do carro e se ia embora.
Perguntou a si próprio se ela ainda estaria viva. Pensou na enfiada de mulheres mortas que Tariq deixara na sua esteira: a americana em Paris, a prostituta em Amesterdão, a rapariga da loja em Viena.
Pediu um telemóvel emprestado a um dos outros agentes de segurança e ligou para Shamron na missão diplomática. Shamron não ouvira nada. Gabriel cortou a ligação e praguejou baixinho. Estava a começar a perder a esperança. Parecia que Tariq os tinha vencido mais uma vez.
A caravana entrou na garagem do estacionamento do Hotel Waldorf-Astoria. O primeiro-ministro desceu da limusina e apertou umas quantas mãos antes de ser escoltado até ao grande salão de baile. Gabriel ia uns passos atrás dele. Quando o primeiro-ministro entrou no salão, um milhar de pessoas levantou-se e começou a aplaudir. O primeiro-ministro avançou para o pódio, resplandecendo na recepção calorosa. Gabriel circulou lentamente pelo salão à procura de Tariq.
Tariq saiu do metro na estação da Broadway-Lafayette Street e apanhou o comboio número 5. Desembarcou na estação da East Eighty-sixth Street e foi a pé desde a Lexington Avenue até à Fifth Avenue, apreciando os antigos e magníficos prédios de apartamentos de pedra castanha. Depois percorreu dois quarteirões até à Eighty-eighth Street. Parou em frente de um prédio virado para o parque. Uma carrinha da Elite Catering estava estacionada em segunda fila na Eighty-eighth Street; criados de casaco branco transportavam caixas de comida e bebidas pela porta de serviço. Olhou para o relógio. Já não faltava muito. Atravessou a Fifth Avenue, sentou-se num banco ao sol e esperou.
Jacqueline fechou os olhos, tentou pensar. Tariq ia utilizar os recursos e a tecnologia do Departamento para atrair Gabriel para uma armadilha. Imaginou-o no seu novo disfarce; mesmo ela mal o reconhecera e tinham estado juntos todos os minutos das últimas
dezoito horas. Ia ser difícil, senão mesmo impossível, que Gabriel o visse. Tariq tinha razão: ele ia ter as vantagens todas. Gabriel nunca o veria aproximar-se.
A rapariga entrou no quarto, uma caneca de chá nas mãos, a arma enfiada na frente dos jeans. Passeou vagarosamente de um lado para o outro, a olhar para Jacqueline, enquanto bebia o chá. Depois sentou-se na borda da cama.
- Diz-me uma coisa, Dominique. Fizeste amor com o Tariq enquanto estavam em Montreal?
Jacqueline olhou para a rapariga, interrogando-se sobre que possível relevância aquela pergunta poderia ter naquele momento. A rapariga levantou a ponta da blusa de Jacqueline, deixando a barriga nua, e deitou-lhe o chá a escaldar na pele.
A mordaça abafou o grito de Jacqueline. A rapariga soprou, ternamente, para cima da pele queimada e tapou-a com a blusa de Jacqueline. Até a sensação do algodão leve em cima da pele fazia doer. Fechou os olhos e sentiu lágrimas escaldantes a escorrerem-lhe pelas faces.
Leila disse:
- Vamos experimentar outra vez. Fizeste amor com o Tariq? Jacqueline abanou a cabeça, com os olhos ainda fechados.
- Que pena para ti - disse ela. - Ouvi dizer que ele é um amante maravilhoso. A rapariga em Paris contou-me tudo com pormenores muito explícitos. De certa forma, acho que ela teve sorte por o Tariq ter acabado por a matar. Nenhum outro homem iria fazer amor com ela da maneira que ele fez. A vida amorosa dela iria ser uma série de desilusões.
Jacqueline compreendeu que nunca iria pôr um pé fora daquele quarto viva. Leila era uma psicopata que não tencionava deixá-la viver. De facto, provavelmente, até teria prazer com a morte dela. Não, pensou, se ia morrer, iria morrer segundo os seus termos. Morreria a tentar salvar a vida de Gabriel.
Mas como?
Tinha de imaginar uma maneira de fugir. Para fazer isso tinha de convencer Leila a deixá-la sair da cama.
Através da mordaça, Jacqueline conseguiu murmurar:
- Preciso de ir à casa de banho.
- O que é que disseste?
Jacqueline repetiu as palavras com mais veemência.
- Se precisas de ir, vai - disse Leila.
- Por favor - disse Jacqueline.
Leila pousou a caneca vazia no chão e tirou a arma do cós das calças.
- Lembra-te, nós não precisamos de ti para nada. Se tentares fugir, dou-te um tiro nessa tua linda cara. Estás a perceber?
Jacqueline assentiu com a cabeça.
Leila abriu as algemas, começando pelas mãos de Jacqueline e acabando com os pés.
- Levanta-te! - ordenou Leila. - Devagar. E caminha, devagar, para a casa de banho, com as mãos atrás da cabeça.
Jacqueline fez o que lhe mandavam. Entrou na casa de banho, voltou-se e ia fechar a porta. Leila pôs a mão na porta e apontou a arma à cara de Jacqueline.
- O que é que julgas que estás a fazer?
- Por favor - disse Jacqueline.
Leila olhou em volta. A casa de banho não tinha janelas, não havia outra maneira de sair sem ser pela porta.
- Bate na porta quando acabares, Dominiqm. Fica lá dentro até eu dizer que podes sair.
Jacqueline baixou as calças e sentou-se na sanita. E agora? Para ter qualquer hipótese de fugir, precisava de uma arma qualquer. Talvez conseguisse agredi-la com a tampa da sanita. Não, demasiado grande, demasiado pesada. Olhou em volta da casa de banho: um frasco de champô, um sabonete, uma lata de creme de barbear, uma gilete descartável, uma lima de unhas.
Uma lima de unhas.
Estava na prateleira por cima do lavatório, por baixo do espelho: uma lima de metal, com uma ponta arredondada e a outra afiada. Jacqueline lembrou-se do curso de autodefesa que fizera na Academia. O instrumento mais simples podia ser transformado numa arma letal se o atacante a enfiasse no lugar certo: os olhos, os ouvidos, a garganta. Cuidadosamente, pegou na lima de unhas
e agarrou-a na horizontal, fechando a mão de forma a que uns dois centímetros e meio da lâmina saíssem da mão.
Mas serei mesmo capaz defazer isto?
Jacqueline pensou no que Tariq iria fazer a Gabriel. Pensou no que Leila lhe iria fazer a si. Levantou a blusa e olhou para a pele queimada do abdómen.
Levantou-se e bateu à porta.
- Abre a porta devagar e sai com as mãos atrás da cabeça. Jacqueline escondeu a lima de unhas na palma da mão direita,
abriu a porta e pôs as mãos atrás da cabeça. A seguir, saiu para a sala de estar. Leila estava lá, a apontar a arma ao peito de Jacqueline.
- Volta para o quarto - disse, gesticulando com a arma. Jacqueline voltou-se e foi para o quarto, Leila a segui-la a um
passo de distância, a arma nas mãos esticadas. Jacqueline parou à borda da cama.
Leila disse:
- Deita-te e prende a algema ao pulso direito. Jacqueline hesitou.
Leila gritou:
- Faz isso!
Jacqueline rodopiou. Ao virar-se, usou o polegar para pôr a lâmina da lima de fora. Leila foi apanhada completamente desprevenida. Em vez de disparar, levantou as mãos por instinto. Jacqueline estava a fazer pontaria para o canal auditivo, mas Leila mexeu-se o suficiente para que a ponta da lima lhe rasgasse a pele da maçã do rosto.
Era uma ferida profunda e o sangue começou a esguichar de imediato. Leila gritou de dor, a arma a cair-lhe das mãos.
Jacqueline resistiu ao impulso natural de tentar agarrar a arma e obrigou-se a esfaquear a rapariga outra vez. Puxou o braço para trás e atirou-o num arco amplo. Desta vez, a lâmina atingiu Leila de lado, no pescoço.
Sangue quente jorrou para a mão de Jacqueline.
Largou a lima. Estava espetada no pescoço de Leila. Leila olhou para Jacqueline, o olhar uma mistura peculiar de dor, pavor e completa surpresa, as mãos a agarrar o objecto de metal no pescoço.
Jacqueline baixou-se e pegou na arma caída.
Leila arrancou a lima do pescoço e lançou-se contra Jacqueline, com uma raiva assassina nos olhos.
Jacqueline levantou a arma e disparou, acertando-lhe no coração.
NOVA IORQUE
Tariq levantou-se e atravessou a Fifth Avenue. Foi até à entrada de serviço do prédio de apartamentos e pegou numa caixa de champanhe que estava mesmo na entrada. Um homem com um avental e cabelo preto muito oleoso olhou para cima.
- Que raio é que pensas que estás a fazer?
Tariq encolheu os ombros, continuando a segurar a caixa de champanhe.
- O meu nome é Emílio Gonzalez.
-E? - Disseram-me para vir até aqui. Trabalho para a Elite Catering.
- Então, como é que não te conheço?
- Este é o meu primeiro trabalho para eles. Recebi uma chamada esta manhã. O tipo disse-me para me pôr a mexer para aqui imediatamente; festa grande, precisava de ajuda extra. Por isso aqui estou.
- bom, uma festa grande e dava-me jeito um par de mãos extra. Uma pessoa importante também. Uma data de segurança dos diabos lá em cima.
- Então?
- Então, do que é que estás à espera, porra? Leva isso para cima e põe-te depressa cá em baixo.
- Sim, senhor.
No pequeno apartamento, o tiro soou como um disparo de canhão. com certeza que alguém o ouvira. Jacqueline tinha de sair dali depressa. Mas devia fazer uma coisa primeiro. Tinha de avisar Gabriel do plano de Tariq.
Passou por cima do corpo de Leila, agarrou no auscultador e marcou o número de Londres. Quando ouviu a gravação da sua própria voz, marcou mais três números. Deu-se uma série de cliques, seguida de um zumbido, depois a voz de uma mulher nova.
- Sim.
- Preciso de Ari Shamron, prioridade um. É uma emergência.
- Palavra-passe?
- J eriço. Por favor, despache-se!
- Aguarde, por favor.
A calma na voz da mulher era exasperante. Deu-se uma outra série de cliques e zumbidos, mas desta vez era a voz de Shamron na linha.
- Jacqueline? És mesmo tu? Onde é que estás?
- Não tenho a certeza. Algures em Brooklyn.
- Espera. vou pedir a tua morada exacta à sede.
- Não me deixes sozinha!
- Não deixo. Estou mesmo aqui. Ela começou a chorar.
- O que é que aconteceu?
- O Tariq anda algures por aí! Está disfarçado de empregado. Está com um aspecto totalmente diferente de Montreal. Vai utilizar a linha segura para atrair o Gabriel para uma armadilha, mas matei a Leila com uma lima para as unhas e a arma dela.
Apercebeu-se de que provavelmente soava como uma histérica.
- A rapariga está aí agora?
- Sim, mesmo ao meu lado, no chão. Oh, Ari, é horrível.
- Tens de sair daí. Diz-me só uma coisa: sabes para onde é que o Tariq vai?
- Não.
Foi então que ouviu passos pesados na escadaria.
Merda!
Sussurrou:
- Vem aí alguém!
- Sai daí!
- Só há uma saída. Ouviu baterem à porta: duas pancadas decididas que pareceram
ter abanado o apartamento inteiro.
- Ari, não sei o que fazer.
- Não faças barulho e espera.
Mais três pancadas, ainda mais fortes. Mais nenhum passo. Quem quer que estivesse ali fora, ainda não se tinha ido embora.
Não estava preparada para o som seguinte: um baque violento, seguido do ranger de madeira a lascar. O barulho foi tão forte que Jacqueline esperou ver várias pessoas a entrar pela sala dentro, mas era apenas um homem - o homem que tinha aparecido na entrada naquela manhã, quando Tariq a trouxera ao prédio.
Segurava um bastão de basebol nos punhos cerrados.
Jacqueline deixou cair o auscultador. O homem olhou para o corpo de Leila, a seguir para Jacqueline. Depois levantou o bastão e começou a correr na sua direcção. Jacqueline apontou a arma e disparou dois tiros. O primeiro atingiu-o bem no cimo do ombro, fazendo-o rodopiar. O segundo rasgou-lhe o centro das costas, cortando-lhe a espinal-medula. Avançou e disparou mais dois tiros.
A sala estava cheia do fumo da pistola e do cheiro da pólvora, as paredes e o chão salpicados de sangue. Jacqueline ajoelhou-se e pegou no telefone.
- Ari?
- Graças a Deus que és tu. Ouve bem, Jacqueline. Tens de sair daí já.
- Não me digas, Ari! Para onde é que vou?
- Ao que parece, estás na esquina da Parkville Avenue com East Eighth Street, em Brooklyn.
- Isso não me diz nada.
- Sai do prédio e vai até a Parkville Avenue. Vira à esquerda em Parkville e vai até Coney Island Avenue. Em Coney Island Avenue, vira à direita. Não atravesses Coney Island. Fica desse lado da rua. Continua a andar. Alguém te irá buscar.
- Quem?
- Faz mas é o que digo e sai já daí! A linha ficou muda.
Deixou cair o auscultador no chão e pegou no casaco, que estava caído no chão junto à cama. Vestiu o casaco, enfiou a arma no bolso da frente e saiu depressa. Seguiu as instruções de Shamron e, um momento depois, estava a passar em frente das fachadas das lojas de Coney Island Avenue.
A um quilómetro e meio de distância, no auditório de um centro da comunidade judaica em Ocean Avenue, Gabriel estava parado a poucos metros do primeiro-ministro, enquanto este lia a história de Masada a um grupo de crianças da escola. Um outro membro do serviço de segurança do primeiro-ministro bateu ao de leve no ombro de Gabriel e sussurrou:
- Tens uma chamada. Parece urgente.
Gabriel entrou no átrio. Um outro guarda-costas entregou-lhe um telemóvel.
- Sim?
Shamron disse:
- Ela está viva.
- O quê? Onde é que ela está?
- A caminho daí, em Coney Island Avenue. Está a andar no lado oeste da rua. Está sozinha. Vai buscá-la. Deixo que ela te conte o resto.
Gabriel cortou a ligação e olhou para cima.
- Preciso de um carro! Já!
Dois minutos mais tarde, Gabriel estava a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Coney Island Avenue, os olhos a sondar os peões nos passeios, à procura de algum sinal de Jacqueline. Shamron dissera que estaria do lado oeste da rua, mas Gabriel olhou para ambos os lados, não fosse o caso de ela ter ficado confundida ou assustada por outra coisa qualquer. Leu as tabuletas das ruas que passavam: Avenue L, Avenue K, Avenue J...
Porra! Onde diabos está ela?
Descobriu-a na intersecção da Coney Island com a Avenue H. O cabelo estava desgrenhado, a cara inchada. Tinha a expressão de uma presa. Ainda assim, estava serena e tranquila. Gabriel conseguia ver-lhe os olhos a perscrutar, para trás e para a frente.
Fez depressa uma inversão de marcha, encostou à berma do passeio e esticou-se pelo banco da frente para abrir a porta do lado do passageiro. Por reflexo, ela afastou-se uns passos para trás e enfiou a mão no bolso. Depois viu quem era e a serenidade desfez-se.
- Gabriel - murmurou. - Graças a Deus.
- Entra - disse ele, calmamente. Gabriel enfiou-se no trânsito, acelerando rapidamente. Após uns quantos quarteirões, ela disse:
- Encosta.
Gabriel virou numa rua lateral e estacionou, o motor a trabalhar.
- Estás bem, Jacqueline? O que é que aconteceu? Conta-me tudo.
Começou a chorar, primeiro suavemente; depois, todo o corpo começou a agitar-se com soluços violentos. Gabriel puxou-a para si e apertou-a bem.
- Acabou - disse ele, suavemente. - Acabou tudo.
- Por favor, nunca mais me deixes, Gabriel. Fica comigo, Gabriel. Por favor, fica comigo.
NOVA IORQUE
Tariq circulou pelas magníficas salas com vista para o Central Park, enquanto os convidados lhe depositavam despreocupadamente coisas na bandeja oval: copos vazios, pratos com restos de comida, guardanapos amarrotados, beatas. Olhou de relance para o relógio. Leila já teria feito a chamada por esta altura. Allon estava provavelmente a caminho. Terminaria em breve.
Atravessou a biblioteca. Um par de portas envidraçadas dava para a varanda. Apesar do frio, uma mão-cheia de convidados estava lá fora a apreciar a vista. Quando Tariq entrou na varanda, o apito de sirenes longínquas encheu o ar. Andou até à balaustrada e olhou para a Fifth Avenue: uma caravana, acompanhada de escolta policial e batedores.
O convidado de honra estava prestes a chegar.
Mas onde diabo está o Allon?
- Desculpe? Olá?
Tariq olhou para cima. Uma mulher com casaco de peles estava a acenar-lhe. Tinha ficado tão absorvido pela visão da caravana a aproximar-se que se esquecera que estava a passar por empregado.
A mulher ergueu um copo meio vazio de vinho tinto.
- Pode levar isto, por favor?
- com certeza, minha senhora.
Tariq atravessou a varanda e parou ao lado da mulher, que agora estava a falar com um amigo. Sem olhar, esticou-se e tentou
colocar o copo na bandeja de Tariq, mas o copo baloiçou na pequena base e caiu, salpicando vinho tinto por cima do casaco branco de Tariq.
- Oh, céus - disse a mulher. - Peço imensa desculpa. Depois voltou-se como se nada se tivesse passado e retomou
a conversa.
Tariq levou a bandeja de volta para a cozinha.
- Que merda é que te aconteceu?
Era o homem do avental e do cabelo preto oleoso: Rodney, o chefe.
- Uma mulher entornou-me vinho em cima.
Tariq colocou a bandeja cheia no balcão ao lado do lava-loiça. Exactamente nessa altura, ouviu uma salva de palmas ressoar pelo apartamento. O convidado de honra tinha entrado na sala. Tariq pegou numa bandeja vazia e começou a sair da cozinha.
Rodney perguntou:
- Onde é que pensas que vais?
- Outra vez lá para fora, para fazer o meu trabalho.
- com um aspecto desses é que não vais. Estás encarregue da cozinha agora. Vai para ali e ajuda com a louça.
- Posso limpar o casaco.
- É vinho tinto, amigo. O casaco está estragado.
- Mas...
- Vai mas é para ali e começa a tratar daquela louça.
Douglas Cannon disse:
- Presidente Arafat, é tão bom voltar a vê-lo. Arafat sorriu.
- Digo o mesmo, Senador. Ou devo dizer Embaixador Cannon agora?
- Douglas serve perfeitamente.
Cannon pegou na mão pequena de Arafat com as suas patas de urso e apertou-a vigorosamente. Cannon era um homem alto, com ombros largos e uma juba grisalha e desgrenhada. A cintura tinha engrossado com a idade, mas a pança estava bem escondida por um impecável blazer azul feito por medida. A revista The New Yorker
chamara-o, em tempos, um Péricks dos tempos modernos - um erudito e filantropo brilhante que subiu do mundo da vida académica até se tornar num dos mais poderosos democratas do Senado. Dois anos antes, tinha sido chamado a regressar da reforma para servir como embaixador americano na corte de St. James's em Londres. No entanto, o seu período como embaixador fora interrompido quando ficou gravemente ferido num ataque terrorista. Agora não dava quaisquer sinais disso, enquanto pegava na mão de Arafat e o impelia para a festa.
- Fiquei tão desolado com o atentado à sua vida, Douglas. É bom vê-lo de novo tão em forma. Recebeu as flores que a Suhla e eu lhe enviámos?
- Sim, sem dúvida. Eram as mais bonitas no quarto do hospital. Muito obrigado. Mas chega de falarmos de mim. Venha, por aqui. Há aqui uma série de pessoas interessadas em conhecê-lo.
- Não duvido - disse Arafat, a sorrir. - Indique o caminho.
Gabriel acelerou pela Brooklyn Bridge em direcção a Manhattan. Jacqueline tinha-se recomposto e estava a fazer-lhe um relato minucioso das últimas quarenta e oito horas, a começar pela noite no apartamento de habitação social perto de Heathrow, terminando com a sequência horrenda dos acontecimentos em Brooklyn. Gabriel obrigou-se a ouvir desapaixonadamente, a pôr momentaneamente de lado a raiva em relação ao que Tariq lhe tinha feito, a fim de poder procurar pistas para as intenções dele.
Um pormenor chamou-lhe a atenção. Porque sentiu Tariq necessidade de trazer Gabriel até si, pondo Leila a fazer-se passar por Jacqueline através da ligação telefónica segura?
A resposta era, decerto, bastante simples: porque não acreditava que Gabriel fosse estar no local onde pretendia atacar. Mas porque não? Se tinha vindo a Nova Iorque para assassinar o primeiro-ministro de Israel, o grande fazedor da paz, então iria certamente partir do princípio de que Gabriel estaria ao lado do primeiro-ministro. Afinal de contas, Gabriel tinha acabado de ver Tariq em Montreal.
Gabriel pensou no quadro de Van Dyck: uma cena religiosa
à superfície, uma mulher bastante feia por baixo. Um quadro, duas realidades. Toda a operação havia sido como aquele quadro, e Tariq tinha-o batido a cada passo.
Porra, Gabriel. Não tenhas medo de confiar nos teus instintos!
Pegou no telemóvel e marcou o número de Shamron na missão diplomática. Quando Shamron apareceu na linha, Gabriel perguntou laconicamente:
- Onde é que está o Arafat?
Escutou por um momento e depois disse:
- Merda! Acho que o Tariq está disfarçado de empregado. Diz ao pessoal de Arafat que estou a ir para aí.
Cortou a ligação e olhou para Jacqueline.
- Ainda tens a arma da rapariga?
Ela acenou com a cabeça.
- Ainda tem alguma coisa? Jacqueline abriu o carregador e contou as munições que sobravam.
- Cinco - respondeu.
Gabriel virou para norte, em direcção a FDR Drive, e pisou a fundo no acelerador.
Tariq foi até à entrada da cozinha e espreitou pelo corredor para a festa. Lâmpadas de flash disparavam enquanto os convidados posavam para fotografias com Arafat. Tariq abanou a cabeça. Há dez anos atrás, estas mesmas pessoas tinham descartado Arafat como sendo um terrorista impiedoso. Agora estavam a tratá-lo como uma estrela de rock com um kaffijeh.
Tariq procurou Allon pela sala. Alguma coisa devia ter corrido mal. Talvez Leila não tivesse conseguido estabelecer uma ligação telefónica. Talvez Allon estivesse a fazer um jogo qualquer. Qualquer que fosse o caso, Tariq sabia que não podia esperar muito para agir. Conhecia Arafat melhor do que ninguém. O velho era dado a alterações de planos à última hora. Fora assim que tinha sobrevivido todos estes anos. Podia abandonar a festa a qualquer momento e Tariq iria perder a oportunidade de o matar.
Tinha querido matá-los aos dois ao mesmo tempo - Allon
e Arafat, um último acto de vingança -, mas parecia que isso não iria acontecer. Quando matasse Arafat, os guarda-costas iriam cair-Jhe em cima. Iria resistir e não lhes deixaria outra alternativa senão matá-lo. Qualquer coisa é melhor do que deixar o tumor matar-me. Allon iria perder tudo aquilo e, por isso, a sua vida iria ser poupada. Arafat, o cobarde traidor, não iria ter tanta sorte. Rodney bateu ao de leve no ombro de Tariq.
- Começa a lavar a louça, meu amigo, ou esta vai ser a última festa em que vais trabalhar.
Rodney afastou-se. Tariq foi até à despensa e acendeu a luz. Esticou-se até à prateleira de cima e tirou o saco de tâmaras tunisinas que tinha aí escondido uma hora antes. Levou as tâmaras para a cozinha e dispô-las numa travessa de porcelana branca. A seguir, começou a abrir caminho pela multidão.
Arafat estava parado no centro da sala de visitas principal, rodeado por meia dúzia de assessores e homens da segurança e uma multidão a desejar-lhe felicidades. O embaixador Cannon estava ao seu lado. Tariq avançou, a coronha da Makarov a fazer-lhe força na carne do abdómen. Arafat estava agora a três metros de distância, mas havia cinco pessoas entre ele e Tariq, incluindo um guarda-costas. Arafat era tão pequeno que Tariq mal o conseguia ver através da multidão - só o preto e branco do kajfyeh aos quadrados. Se sacasse agora da Makarov, de certeza que um dos guarda-costas iria percebê-lo e abrir fogo. Tariq tinha de se aproximar mais, antes de sacar da arma e fazer desenrolar o estratagema das tâmaras.
Mas agora Tariq tinha outro problema. A multidão à volta de Arafat estava tão apertada que não se conseguia aproximar mais. Parado exactamente à sua frente estava um homem alto com um fato cinzento-escuro. Quando Tariq lhe bateu ao de leve no ombro, o homem voltou-se por breves instantes e, ao reparar na travessa e no casaco branco de Tariq, disse:
- Não, obrigado.
- São para o Presidente Arafat - disse Tariq, e o homem afastou-se com relutância.
A seguir, Tariq viu-se confrontado com uma mulher. Uma vez
mais, bateu ao de leve no ombro da mulher, esperou que se afastasse, e aproximou-se mais um metro do alvo. Mas agora estava ao lado de um dos assessores de Arafat. Estava prestes a bater ao de leve no ombro do homem quando ouviu um telemóvel a chilrear. O assessor enfiou a mão no bolso do peito do casaco e levou rapidamente o telefone ao ouvido. Ouviu atentamente por um momento, depois enfiou o telemóvel no bolso, inclinou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Arafat. Arafat voltou-se depois para Cannon e disse:
- Receio que tenha um assunto urgente para tratar.
Tariq pensou: Porra, mas o homem tem a sorte do Diabo!
Arafat disse:
- Preciso de ter uma conversa ao telefone, em privado.
- Penso que vai achar o meu escritório do seu agrado. Por favor, venha já por aqui.
Arafat desembaraçou-se da multidão e, juntamente com Cannon e o grupo de assessores, deslocou-se por um corredor, em direcção aos fundos do apartamento. Um momento depois, desapareceram para dentro de uma sala. Um dos guarda-costas de Arafat assumiu imediatamente um posto em frente à porta. Cannon e os assessores apareceram passado um momento e voltaram a juntar-se à festa.
Tariq sabia que tinha de atacar agora ou iria perder a oportunidade. Cortou caminho pela sala de estar apinhada e atravessou o corredor, parando à frente do guarda-costas. Tariq conseguiu perceber que era um membro da unidade de segurança privada de Arafat, um homem que saberia não haver nada de que o líder palestiniano gostasse mais do que de uma boa tâmara tunisina.
- Um dos assessores do Sr. Arafat pediu-me para lhe trazer isto.
O guarda olhou para a travessa de tâmaras, depois para Tariq.
Tariq pensou: Podemos fazer isto de uma de duas maneiras. Podes deixar-me passar tranquilamente ou posso sacar da arma e dar-te um tiro na cara e a seguir entrar.
O guarda roubou uma das tâmaras e enfiou-a na boca. A seguir, abriu a porta e disse:
- Deixe a travessa e volte a sair imediatamente. Tariq acenou com a cabeça e entrou no escritório.
Gabriel estacionou a minicarrinha em segunda fila na Eighty-eighth Street. Saiu, ignorando os gritos de um polícia de giro, e correu para a entrada do prédio na Fifth Avenue, Jacqueline umas passadas atrás. Quando entraram no átrio, três pessoas esperavam-nos: um membro da unidade de segurança privada de Arafat, um agente americano do Serviço de Segurança Diplomático e um polícia de Nova Iorque.
Um porteiro estava a segurar um dos elevadores. Carregou no botão para o décimo sétimo andar no momento em que se amontoaram na cabina.
O agente do SSD disse:
- Espero bem que tenha razão em relação a isto, meu amigo. Gabriel tirou a Beretta para fora, enfiou a primeira munição na
câmara e voltou a enfiá-la debaixo do casaco. O porteiro exclamou:
- Jesus Cristo!
Era um escritório pequeno: uma secretária antiga cinzelada com incrustações de cabedal, embutidos no tecto alto, decorado com frisos, estantes repletas de volumes de história e biografias, uma fogueira de lenha a crepitar lentamente numa lareira de mármore. Arafat estava ao telefone, a ouvir atentamente. Depois murmurou umas quantas palavras em árabe, pousou o auscultador e olhou para Tariq. Quando viu a travessa de tâmaras, a cara irrompeu num sorriso caloroso e infantil.
Tariq disse em árabe:
- Que a paz esteja consigo, Presidente Arafat. Um dos seus assessores pediu-me para lhe trazer isto.
- Tâmaras! Que maravilha.
Tirou uma, examinou-a brevemente e trincou-a.
- Esta tâmara é da Tunísia, tenho a certeza.
- Creio que tem razão, Presidente Arafat.
- Falas árabe com um sotaque palestiniano.
- Isso é porque sou da Palestina.
- De que parte da Palestina?
- A minha família vivia na Galileia Superior antes de al-Nakba. Cresci nos campos de refugiados do Líbano.
Tariq pousou a travessa das tâmaras em cima da mesa e desabotoou o casaco para poder chegar à Makarov. Arafat inclinou ligeiramente a cabeça e tocou no lábio inferior.
- Não estás bem, meu irmão?
- Só estou um pouco cansado. Tenho andado a trabalhar muito ultimamente.
- Sei qual é o aspecto do cansaço, meu irmão. Vi o que a falta de sono me fez ao longo dos anos. Vi o que fez aos homens à minha volta. Mas não sofres só de cansaço. Estás doente, meu irmão. Consigo percebê-lo. Tenho um instinto muito poderoso para estas coisas.
- Tem razão, Presidente Arafat. Não me tenho sentido bem nestes últimos tempos.
- Qual é a natureza da tua doença, meu irmão?
- Por favor, Presidente Arafat, o senhor está demasiado ocupado, e é demasiado importante, para se preocupar com os problemas de um homem comum como eu.
- É aí que te enganas, meu irmão. Sempre pensei em mim como o pai de todo o povo palestiniano. Quando alguém do meu povo sofre, eu sofro.
- A sua preocupação tem enorme importância para mim, Presidente Arafat.
- É um tumor, não é, meu irmão? Sofres de algum tipo de cancro?
Tariq não disse nada. Arafat alterou abruptamente o rumo da conversa.
- Diz-me uma coisa, meu amigo. Qual dos meus assessores te pediu para me trazeres essas tâmaras?
Tariq pensou: Então, os instintos de sobrevivência dele continuam tão fortes como sempre. Pensou numa noite em Tunes há muito tempo atrás. Uma reunião interminável, uma sessão tipicamente de Arafat, a começar à meia-noite e a prolongar-se até de madrugada. A certa
altura, chegara uma encomenda, dirigida ao próprio Arafat, de um diplomata iraquiano em Ama. Ficara pousada na sua secretária durante algum tempo, por abrir, até que, finalmente, Arafat se levantou e disse: "Está uma bomba nessa encomenda, Tariq! Consigo cheirá-la! Livra-te dela!"
Tariq afastara a encomenda e entregara-a a um engenheiro da Fatah para a examinar. O velho tivera razão. Os Israelitas tinham conseguido colocar uma bomba numa reunião de funcionários superiores da OLP. Se Arafat tivesse aberto a encomenda, toda a chefia de topo teria sido liquidada.
Tariq disse:
- Não me disse o nome. Disse-me apenas para trazer as tâmaras.
Arafat esticou-se e tirou mais uma tâmara da travessa de Tariq.
- É estranho, mas pareces-me muito familiar. Já nos encontrámos antes?
- Infelizmente, não.
- Tens a certeza disso? É que nunca esqueço uma cara.
- Tenho a certeza, Presidente Arafat.
- Lembras-me um antigo camarada; um homem que serviu ao meu lado durante os bons tempos e os maus.
- Receio ser apenas um trabalhador.
- Devo a minha vida a esse homem. Protegeu-me dos meus inimigos. Salvou-me a vida mais vezes do que me apetece recordar.
Arafat levantou a cara em direcção ao tecto e fechou os olhos por um momento.
- Lembro-me de uma noite em particular. Tinha sido chamado a Damasco para uma reunião com o irmão do presidente Assad. Este meu amigo implorou-me para não ir. Foi nos velhos tempos, quando o Assad e a sua polícia secreta me queriam morto. A reunião correu bem, mas quando estávamos prestes a embarcar na caravana para a viagem de regresso a Beirute, este amigo meu diz-me que não é seguro. Estás a ver, tinha sido informado de que os Sírios pretendiam fazer uma emboscada à caravana e assassinar-me. Enviámos a caravana como isco e esse homem conseguiu esconder-me
em Damasco, mesmo debaixo do nariz dos Sírios. Mais tarde, nessa noite, recebemos notícias de que forças especiais sírias tinham atacado a caravana à saída de Damasco e que vários dos meus homens tinham sido mortos. Foi uma noite muito triste, mas continuava vivo, graças a esse homem.
- Uma história muito interessante, Presidente Arafat.
- Permites-me o prazer de contar mais uma?
- Provavelmente devia ir-me embora - respondeu Tariq, à procura da Makarov.
- Por favor, não vai demorar muito. Tariq hesitou e disse:
- É claro, Presidente Arafat. Adoraria ouvir a história.
- Senta-te, meu amigo. Deves estar cansado.
- Não seria apropriado.
- Como queiras - respondeu Arafat. - Foi durante o cerco a Beirute. Os Israelitas estavam a tentar eliminar a OLP de uma vez por todas. Também me queriam morto. Onde quer que fosse, caíam bombas e foguetes israelitas. Era como se soubessem sempre onde eu estava. Então esse meu amigo começa a investigar. Descobre que os serviços secretos israelitas tinham recrutado vários espiões entre o meu pessoal. Descobre que os Israelitas deram aos espiões sinalizadores de rádio, para saberem onde estou sempre. Prende os espiões e convence-os a confessar os crimes. Quer enviar uma mensagem a outros potenciais espiões de que este tipo de traição não será tolerada. Pede-me que assine sentenças de morte para os espiões poderem ser executados.
- E fê-lo?
- Não o fiz. Disse a esse homem que, se executasse os traidores, estaria a fazer dos irmãos e primos inimigos. Disse a esse homem que seriam castigados de uma maneira diferente: seriam excluídos da revolução. Banidos. Exilados. Para mim, isto seria um castigo pior do que a morte. Mas disse-lhe uma outra coisa. Disse-lhe que, independentemente da gravidade dos seus crimes, nós, os Palestinianos, não nos podemos andar a matar uns aos outros. Tal como as coisas são, já temos demasiados inimigos.
- E como é que esse homem reagiu?
- Zangou-se comigo. Disse-me que era um parvo. Era o único dos meus funcionários superiores que tinha a coragem de me falar dessa maneira. Tinha o coração de um leão, esse homem.
Arafat parou e depois disse.
- Já não o vejo há muitos anos. Ouvi dizer que está muito doente. Ouvi dizer que já não tem muito tempo de vida.
- Lamento ouvir isso.
- Quando tivermos o nosso próprio Estado, vou recompensá-lo por todas as grandes coisas que fez pelo movimento. Quando tivermos o nosso próprio Estado, e as nossas próprias escolas, as crianças da Palestina vão aprender sobre os seus feitos heróicos. Nas aldeias, vão contar histórias acerca deste homem à volta das fogueiras, à noite. Vai ser um grande herói do povo palestiniano.
Arafat baixou a voz.
- Mas não se agora fizer alguma coisa parva. Então vai ser recordado apenas como mais um fanático.
Arafat olhou fixamente para os olhos de Tariq e disse calmamente:
- Se tens de fazer esta coisa, meu irmão, então fá-la e despacha-te. Se não tens estômago para isso, então sugiro que te vás embora daqui, e rápido, e encontres alguma maneira de acabares a tua vida com dignidade.
Arafat levantou ligeiramente o queixo. Tariq olhou para baixo, sorriu ligeiramente e abotoou o casaco devagar.
- Creio que me confundiu com outro homem. Que a paz esteja consigo, meu irmão.
Tariq voltou-se e abandonou o escritório. Arafat olhou para o guarda-costas e disse:
- Entra para aqui e fecha a porta, meu idiota.
A seguir, soltou um longo suspiro e tentou acalmar as mãos que tremiam.
Entraram no apartamento, Gabriel ejacqueline lado alado, rodeados pelo grupo dos homens da segurança. O aparecimento repentino de cinco pessoas muito agitadas trouxe uma onda de sobressalto pelos convidados, e a festa ficou imediatamente em
silêncio. Gabriel tinha a mão dentro do casaco, os dedos à volta da coronha da Beretta. Olhou rapidamente à volta da sala; havia no mínimo uma meia dúzia de empregados de casaco branco a circular pela multidão. Olhou para Jacqueline. Ela abanou a cabeça.
Douglas Cannon juntou-se ao grupo enquanto passavam do hall da entrada para a grande sala de estar com vista para a Fifth Avenue e para o parque. Três empregados estavam a circular pelos convidados, a distribuir aperitivos e copos de champanhe. Dois dos empregados eram mulheres. Jacqueline olhou para o homem.
- Não é ele.
Nesse momento, reparou num homem de casaco branco a desaparecer para dentro da cozinha. Vira-o apenas por um instante, mas tinha a certeza.
- Gabriel! Ele está ali!
Gabriel olhou para Cannon.
- Onde é que está o Arafat?
- No meu escritório a usar o telefone.
- Onde é o escritório?
- No fim daquele corredor!
Gabriel abriu caminho pelos convidados e correu pelo corredor. Quando irrompeu pela porta, viu-se confrontado por um guarda-costas a apontar-lhe uma pistola directamente ao peito. Arafat estava sentado calmamente à secretária.
- Receio que ele já tenha vindo e ido - disse Arafat. - Ainda estou aqui, no entanto, mas não graças a vocês.
Gabriel voltou-se e saiu do escritório a correr.
Tariq atravessou a cozinha depressa. Havia uma porta dos fundos, que dava para umas escadas de serviço. Saiu pela porta e fechou-a depressa. Estavam várias caixas de champanhe no patamar. Empurrou as caixas contra a porta. Não eram bastante pesadas para a bloquear por completo, apenas suficientemente pesadas para atrasar quem quer que estivesse a tentar passar, o que era a sua intenção. Desceu até ao patamar seguinte, sacou da Makarov e esperou.
Gabriel irrompeu pela cozinha, a Beretta em punho, no momento em que a porta dos fundos se estava a fechar. Fez um sprint pela cozinha e tentou abri-la. A maçaneta rodou, mas a porta em si não
se mexeu.
Jacqueline entrou na cozinha a correr.
Gabriel deu um passo atrás e a seguir atirou o ombro contra a porta. Abriu-se uns quantos centímetros e, do outro lado, conseguiu ouvir um baque forte, seguido do som de vidro a estilhaçar-se.
Voltou a empurrar a porta. Desta vez deu de si, embora ainda houvesse alguma resistência.
Empurrou de novo, e a porta abriu-se por completo. Gabriel entrou no patamar e olhou para baixo.
Tariq estava parado no patamar de baixo, os pés afastados, a Makarov nas mãos esticadas.
Gabriel viu os clarões do cano da pistola na luz fraca e sentiu a primeira bala a rasgar-lhe o peito. Pensou como era apropriado que terminasse assim. Tinha morto o seu primeiro homem na escadaria de um prédio de apartamentos e agora ia morrer da mesma maneira. Havia uma qualidade circular nisso, como um bom trecho de música. Pôs-se a pensar se Tariq o tinha planeado deste modo, desde o início.
Conseguia ouvir Tariq a correr pelas escadas abaixo. Depois viu o rosto de Jacqueline a inclinar-se sobre si - o rosto lindo de Jacqueline. Em seguida, o rosto dela transformou-se em água, apenas para ser substituído pelo rosto da mulher do Van Dyck perdido. E depois desmaiou.
Enquanto Gabriel perdia os sentidos, Jacqueline gritava:
- Chamem uma ambulância!
A seguir, levantou-se e começou a correr pelas escadas abaixo. Por cima de si, ouviu um dos homens da segurança gritar:
- Alto! Ignorou-o.
Conseguia ouvir o bater dos pés de Tariq a ecoar pela escadaria acima, na sua direcção. Enfiou a mão no bolso e tirou a arma que
tinha trazido do apartamento em Brooklyn. Pensou: Já fiz isto duas vezes hoje. Posso fazê-lo outra vez.
Correu. As escadas pareciam não ter fim. Tentou lembrar-se em que andar era o apartamento. Dezassete - sim, era isso; tinha a certeza. Passou por uma porta que dizia oitavo andar.
Pensou: Continua, Jacqueline. Não abrandes. Ele está doente. Está a morrer. Podes apanhá-lo. Mexe-te!
Pensou em Gabriel, a vida a esvair-se-lhe no patamar acima dela. Obrigou-se a correr ainda mais depressa. Lançou-se pelas escadas tão depressa que os pés sentiram dificuldades em permanecer debaixo do corpo. Imaginou que, alcançando Tariq e matando-o, talvez salvasse a vida a Gabriel.
Pensou no dia em que Gabriel a tinha vindo buscar, lembrou-se do passeio de bicicleta que tinha dado pelas encostas à volta de Valbonne, o fogo nas coxas quando se obrigara a estabelecer um novo recorde.
Faz isso outra vez!
Chegou ao fundo da escadaria. Havia uma porta de incêndio de metal e estava a fechar-se devagar.
Tariq estava mesmo à frente dela!
Escancarou a porta e atravessou-a num sprint. À sua frente, estendia-se um corredor com cerca de quinze metros, com outra porta na outra extremidade. A meio do corredor, estava Tariq.
Estava claramente exausto. O ritmo estava a começar a diminuir, as passadas curtas e descoordenadas. Voltou-se e olhou por cima do ombro, a cara uma máscara de dor devido à corrida pelas escadas abaixo. Jacqueline ergueu a arma e disparou dois tiros em rápida sucessão. O primeiro pareceu passar-lhe inofensivamente por cima da cabeça, mas o segundo atingiu-o bem no alto do ombro esquerdo, deitando-o ao chão. Enquanto caía no chão, a arma fugiu-lhe da mão e deslizou pelo corredor até bater na porta, ao fundo. Jacqueline avançou e disparou repetidamente, uma e outra vez, até a arma não ter mais balas e ter a certeza absoluta de que Tariq al-Hourani estava morto.
Nessa altura, a porta ao fundo do corredor abriu-se. Apontou
a arma ao homem que a atravessava, mas era apenas Ari Shamron. Este avançou, fê-la largar a arma e enfiou-a no bolso do casaco.
- Onde é que está o Gabriel?
- Lá em cima.
- É grave?
- Acho que sim.
- Leva-me até ele.
Jacqueline olhou para o corpo de Tariq.
- Então e ele?
- Que fique aí estendido - respondeu Shamron - Que os cães lhe lambam o sangue. Leva-me ao Gabriel. Quero ver o Gabriel.
JERUSALÉM: MARÇO
Gabriel acordou. Olhou para o mostrador luminoso do relógio, fechou os olhos: cinco e um quarto. Deixou-se ficar ali deitado, a tentar calcular quanto tempo tinha dormido. A tentar recordar-se de quando se tinha levantado do sofá e arrastado até à cama quanto tempo depois disso demorara até ter deslizado para a inconsciência? Tinha realmente dormido? A cabeça estivera tão desperta com sonhos que parecia não ter dormido.
Deixou-se ficar deitado sem se mexer, à espera para ver se o sono o levava outra vez, mas não adiantava. Depois vieram os sons: o chamamento de um muezim, a pairar pelo vale Hinnom, vindo de Silwan. Um sino de igreja a soar no Bairro Arménio. Os fiéis tinham acordado. Os infiéis e os psicologicamente perturbados não tinham outra hipótese senão juntarem-se a eles.
Apalpou o peito com as pontas dos dedos, a testar se havia dor. Não era tão má como ontem. Cada dia era um pouco melhor. Saiu da cama com cuidado, entrou na cozinha, preparou café, fez umas torradas. Era um prisioneiro e, como qualquer prisioneiro, confortava-se com o ritual da rotina.
A sua cela não era em nada uma cela, mas sim um agradável apartamento seguro com vista para Zion Gate: chão de mosaicos frescos, tapetes brancos, mobília branca. Lembrava a Gabriel um hospital, o que em grande medida era. Vestiu uma camisola, um
blusão cinzento de algodão com uma gola lassa, e levou o pequeno-almoço, passando as portas envidraçadas, para a mesa pequena na varanda.
Enquanto esperava pelo nascer do dia, examinou os cheiros particulares que, combinados, criavam a fragrância única de Jerusalém: salva e jasmim, mel e café, couro e tabaco, cipreste e eucalipto. Então chegou a madrugada. Na falta do trabalho de restauro, Jerusalém ao nascer do Sol transformara-se na arte de Gabriel. As últimas estrelas derreteram-se, o Sol espreitou pelo espinhaço da montanha que separava Jerusalém do deserto da margem ocidental. A primeira luz escorreu pela encosta cor de argila do monte das Oliveiras, depois desencadeou um fogo dourado na Cúpula do Rochedo. A seguir, os raios caíram sobre a Igreja da Assunção, tornando escarlate a fachada da igreja virada para este e deixando o resto embrenhado na sombra.
Gabriel terminou o pequeno-almoço, levou a louça para a cozinha, lavou-a meticulosamente no lava-loiça e colocou-a no escorredor para secar. E agora? Em algumas manhãs, ficava em casa e lia. Ultimamente, tinha começado a fazer caminhadas, um pouco mais longe de cada vez. Ontem, subira até ao cume do monte Scopus. Descobriu que o ajudava a pensar, a tentar encontrar um sentido no meio dos destroços do caso.
Tomou um duche, vestiu-se e desceu. Quando saiu do prédio de apartamentos e entrou na rua, ouviu uma série de sons: um aparte roufenho, a porta de um carro a fechar-se, um motor a ligar-se. Os vigilantes de Shamron. Gabriel ignorou-os, apertou o fecho do casaco para se proteger do frio matinal e começou a andar.
Atravessou Khativat Yerushalayim, entrou na Cidade Velha pela Porta de Jafa. Vagueou pelos mercados movimentados de El Bazaar: montes de grãos-de-bico e de lentilhas, pilhas de pão sem fermento, sacos a transbordar de especiarias aromáticas e grãos de café torrados, rapazes na venda ambulante de bugigangas e cafeteiras de prata. Um rapaz árabe enfiou uma estátua de Jesus em madeira de oliveira na mão de Gabriel e pediu um preço exorbitante. Tinha os olhos castanhos penetrantes de Tariq. Gabriel devolveu a estátua ao rapaz e, num árabe perfeito, disse-lhe que era muito.
Uma vez livre do mercado barulhento, passeou-se pelas vielas
sossegadas e sinuosas, dirigindo-se gradualmente para este, a caminho do monte do Templo. O ar ia aquecendo devagar. Era quase Primavera. Lá em cima, estava um céu azul-celeste sem nuvens, mas o Sol ainda estava demasiado baixo para penetrar no labirinto da Cidade Velha. Gabriel flutuou por entre as sombras, um céptico no meio dos crentes neste lugar onde a devoção e o ódio colidiam. Calculou que, como todos os outros, estivesse à procura de respostas. Respostas diferentes, mas ainda assim respostas.
Vagueou durante muito tempo, a pensar. Seguiu pelas ruelas escuras e frescas, para onde quer que o conduzissem. As vezes, deparava-se com um portão fechado ou com um muro impenetrável de pedra herodiana. Às vezes, chegava a um pátio banhado pela luz do Sol. Por um instante, as coisas pareciam-lhe claras. Depois seguia por mais uma viela sinuosa, as sombras cercavam-no e apercebia-se de que ainda não estava nada mais perto da verdade.
Chegou a uma viela que dava para a Via Dolorosa. Uns metros à sua frente, um raio de luz caiu sobre as pedras do caminho. Ficou a observar enquanto dois homens, um hasside com um shtreimel preto e um árabe com um kajfyeh branco esvoaçante, se aproximaram um do outro. Passaram um pelo outro sem olhar, sem um aceno ou uma olhadela de relance, e cada um seguiu o seu caminho. Gabriel foi até Beit ha-Bad e saiu da Cidade Velha pela Porta de Damasco.
Shamron chamou Gabriel a Tiberíades nessa noite, para jantar. Comeram no terraço, por baixo de um par de aquecedores a gás sibilantes. Gabriel não queria estar ali, mas desempenhou o papel do convidado cortês - ouviu as histórias do velho, contou algumas.
- O Lev pediu-me a sua demissão hoje. Disse que já não podia trabalhar mais numa organização em que o director de Operações não está ao corrente de uma grande operação.
- Tem a sua razão. Aceitaste-a?
- Não tive escolha. Shamron sorriu.
- A posição do pobrezinho do Lev tornara-se insustentável. Tínhamos esmagado a serpente. Tínhamos decapitado a organização
do Tariq e reunido os seus soldados rasos. E, no entanto, o Lev estava completamente a leste de tudo. Expliquei-lhe as minhas razões para ter executado a operação como o fiz. Disse-lhe que o primeiro-ministro precisava de poder negar tudo por completo e, infelizmente, isso implicava enganar o meu próprio adjunto. O Lev não se apaziguou.
- E o resto dos teus filhos problemáticos?
- Vão-se embora em breve. Shamron pousou o garfo e levantou os olhos, na direcção de Gabriel.
- Vai haver várias vagas na suíte executiva no Boulevard do Rei Saul. Posso tentar-te a voltar? Como é que te soa chefe de Operações?
- Não estou interessado. Para além disso, nunca fui muito um homem da sede.
- Também não me parecia, mas nunca me perdoaria se não tentasse.
- Então e os Americanos? Conseguiste voltar a ficar nas boas graças deles?
- Devagar mas de certeza. Parecem ter aceitado a nossa versão da história: que tínhamos infiltrado um agente na organização do Tariq e que o agente fora revelado. Que não tivemos outra escolha que não fosse tomar as medidas apropriadas para salvaguardar a vida do agente. Continuam furiosos por não os termos posto a par da situação mais cedo.
- Isso é bastante compreensível, tendo em conta a maneira como acabou. O que é que lhes disseste?
- Disse-lhes que não fazíamos ideia de que o Tariq estivesse em Nova Iorque até a Jacqueline se ter libertado e nos alertar.
- E acreditaram nisso?
- Até eu agora acredito.
- O meu nome veio à baila alguma vez?
- De tempos a tempos. O Adrian Cárter gostaria de se atirar a ti mais uma vez.
- Oh, Deus.
- Não te preocupes. Não o vou deixar falar contigo outra vez.
Antes de deixarem Gabriel sair dos Estados Unidos, fora obrigado a aguentar oito horas de interrogatório: CIA, FBI, a polícia da cidade de Nova Iorque. Shamron estivera ao seu lado, como um bom advogado de defesa num depoimento - a fazer objecções, a jogar à defesa, a lançar obstáculos a cada passo. No fim, tudo descambara numa troca de berros. Um relato completo da operação contra Tariq, com base em fontes de serviços secretos ocidentais e do Médio Oriente anónimas, surgiu no The Ne" York Times dois dias depois. O nome de Gabriel foi publicado. O de Jacqueline também.
- Estou convencido de que foi o Cárter que divulgou tudo ao Times.
Gabriel detectou uma pincelada de admiração na voz do velho. Também ele já tinha utilizado a imprensa para estripar um inimigo, uma ou duas vezes ao longo dos anos.
- Acho que ele tinha razão para estar zangado comigo. Menti-lhe na cara acerca do nosso conhecimento em relação ao envolvimento do Tariq em Paris.
- O Lev também deve ter falado.
- É claro que sim. O Cárter está fora do meu alcance. O Levezinho vai pagar bem.
Shamron afastou o prato uns centímetros, apoiou os cotovelos curtos na mesa e tapou a boca com o punho.
- Pelo menos, a nossa reputação de um serviço de acção corajoso foi restaurada. Afinal de contas, eliminámos mesmo o Tariq no meio de Manhattan e salvámos a vida do Arafat.
- Não graças a mim.
- Do que é que estás a falar?
- O Tariq quase me matou. E podia ter matado o Arafat se não se tivesse acobardado no último minuto. Porque é que o deixou viver?
- O Arafat tem estado muito calado em relação ao que se passou naquele escritório. Obviamente, disse algo que fez com que Tariq mudasse de ideias.
- Algum sinal do Yusef? Shamron abanou a cabeça.
- Vamos continuar a procurá-lo, é claro, mas duvido que
o voltemos a encontrar. Já deve estar bem enfiado nas montanhas do Afeganistão por esta altura.
- E o Benjamin Stone?
- A relaxar nas Caraíbas, a bordo do seu iate. Shamron mudou de rumo abruptamente.
- Fui visitar a Jacqueline hoje.
- Como é que ela está?
- Porque é que não lhe perguntas tu mesmo? Quer ver-te.
- Tenho de voltar para Jerusalém.
- Porquê, Gabriel? Para poderes perder mais tempo a deambular pela Cidade Velha com os malucos? Vai ver a rapariga. Passa algum tempo com ela. Quem sabe? Até te podes divertir.
- Quando é que me vou poder ir embora?
- Na minha opinião profissional, nunca será seguro para ti saíres de Israel.
- Quero ir para casa.
- Esta é a tua casa, Gabriel!
Mas Gabriel limitou-se a abanar a cabeça devagar.
- O que é que eu te fiz, Gabriel? Porque é que odeias tanto o teu povo e o teu país?
- Não odeio ninguém. Só não tenho paz nenhuma aqui.
- Então queres voltar a correr para a Europa? Voltar para os teus quadros? Faz-me um favor. Sai de Jerusalém por uns dias. Pega num carro e viaja por este teu país. Volta a conhecê-lo. Pode ser que gostes do que vires.
- Não me apetece fazer isso. Prefiro ficar em Jerusalém até me libertares.
- Vai-te lixar, Gabriel!
Shamron bateu com o punho na mesa, fazendo a louça chocalhar.
- Passaste os últimos anos da tua vida a arranjar tudo e todos menos a ti mesmo. Restauras quadros e barcos à vela velhos. Restauraste o Departamento. Restauraste a Jacqueline e o Julian Isherwood. Até conseguiste restaurar o Tariq, de uma forma estranha, asseguraste-te de que o enterrávamos na Galileia Superior. Mas agora
é altura de te restaurares a ti mesmo. Sai daquele apartamento. Vive a vida, antes que acordes um dia e descubras que és um velho. Como eu.
- Então e os teus vigilantes?
- Coloquei-os lá para o teu próprio bem.
- Livra-te deles. Shamron esticou o queixo.
- Está bem, estás por tua conta.
Enquanto Gabriel voltava de carro para Jerusalém nessa noite, pensou em como as coisas tinham corrido tão bem ao velho. Lev e os outros tinham-se ido embora, Tariq estava morto e a reputação do Departamento tinha sido restaurada. Nada mau para umas semanas de trabalho, Ari. Mesmo nada mau.
Primeiro, Gabriel foi para sul, descendo pelas escarpas e crateras áridas do Negev, até Eilat e ao mar Vermelho. Passou um dia a apanhar sol na praia, mas depressa se sentiu impaciente e partiu em direcção ao norte, apanhando a via rápida pelo Negev Ocidental acima, até Beersheba, e depois a faixa negra da auto-estrada através do deserto da Judeia e da margem ocidental.
Algo fê-lo escalar o extenuante Caminho da Serpente pelo lado este de Masada e vaguear pelas ruínas da antiga fortaleza. Evitou o piroso turístico do mar Morto, passou uma tarde a deambular pelos mercados árabes de Hebron e Jenin. Desejou poder ver a cara de Shamron, a observá-lo enquanto regateava com os comerciantes, com os seus kajfyehs brancos, debaixo do olhar firme de veteranos de olhos escuros da intifada.
Atravessou o vale Jezreel de carro e parou depois dos portões da colónia rural, logo à saída de Afula, na estrada para Nazaré, onde vivera em criança. Pensou em entrar. Para fazer o quê? Para ver o quê? Os pais tinham morado há muito e, se por algum milagre, acabasse por encontrar alguém que conhecesse, podia apenas mentir.
Continuou a guiar, continuou a seguir para norte. Flores selvagens ardiam nas encostas enquanto se dirigia para a Galileia. Guiou à volta das margens do lago. A seguir, até à cidade antiga de Safed,
na montanha. A seguir, até aos montes Golã. Estacionou junto à estrada, ao pé de um pastor druso a cuidar do rebanho, ficou a ver o pôr do Sol no Dedo da Galileia. Pela primeira vez em muitos anos, sentiu algo parecido com contentamento. Algo parecido com paz.
Voltou para o carro, desceu os Golã, até a um kibut à saída de Qiryat Shemona. Era uma noite de sexta-feira. Foi até à sala de jantar, para uma refeição shabbat, sentou-se com um grupo de adultos do kibut: lavradores com as caras queimadas pelo sol e as mãos calejadas. Ignoraram-no durante algum tempo. Depois, um deles, um homem mais velho, perguntou-lhe o nome e de onde era. Disse-lhes que se chamava Gabriel. Que era do vale Jezreel mas que tinha estado fora durante muito tempo.
De manhã, atravessou as férteis terras planas da planície costeira e guiou para sul, ao longo do Mediterrâneo - atravessando Acra, Haifa, Cesareia e Netanya -, até finalmente dar por si na praia de Herzliya.
Ela estava encostada à balaustrada, os braços cruzados, a olhar para o mar ao pôr do Sol, o vento a empurrar-lhe madeixas do cabelo para cima da cara. Tinha vestida uma blusa branca larga e usava os óculos escuros de uma mulher que andava escondida.
Gabriel esperou que ela reparasse nele. Acabou por o fazer. Tinha sido treinada por Ari Shamron, e nenhum aluno do grande Shamron deixaria alguma vez de reparar num homem parado por baixo do seu terraço. Quando por fim o viu, um sorriso irrompeu, depois apagou-se. Levantou a mão, o aceno relutante de alguém que tinha sido queimado pelo fogo secreto. Gabriel baixou a cabeça e começou a andar.
Beberam vinho branco gelado no terraço e fizeram conversa de circunstância, evitando a operação ou Shamron ou as feridas de Gabriel. Gabriel contou-lhe a viagem. Jacqueline disse que gostaria de ter ido. Depois pediu desculpa por ter dito algo assim - não tinha o direito.
- Então porque é que vieste cá depois de todas estas semanas, Gabriel? Nunca fazes nada sem uma razão.
Queria ouvi-la uma vez mais: a versão de Tariq da história. Da
maneira como ele lha tinha contado naquela noite, durante a viagem de carro desde a fronteira para Nova Iorque. Olhou para o mar enquanto ela falava, observando o vento a atirar a areia de um lado para o outro, o luar nas ondas, mas estava a ouvir intensamente. Quando ela terminou, continuava a não conseguir encaixar as últimas peças. Era como um quadro inacabado ou uma série de notas musicais sem resolução. Ela convidou-o a ficar para jantar. Mentiu e respondeu-lhe que tinha assuntos urgentes em Jerusalém.
- O Ari disse-me que te queres ir embora. Quais são os teus planos?
- Tenho um homem chamado Vecellio à minha espera em Londres.
- Tens a certeza de que é seguro voltar?
- Não vou ter problemas. Então e tu?
- A minha história foi escarrapachada pelos jornais e ecrãs de televisão de todo o mundo. Nunca vou ser capaz de voltar à minha vida antiga. Não tenho outra escolha que não seja ficar aqui.
- Peço desculpa por te ter envolvido neste assunto, Jacqueline. Espero que me possas perdoar.
- Perdoar-te? Não, Gabriel, exactamente o contrário, na verdade. Agradeço-te. Tive exactamente o que queria.
Um segundo de hesitação.
- bom, quase tudo.
Levou-o lá abaixo, até a praia. Beijou-a suavemente na boca, tocou-lhe no cabelo. A seguir, voltou-se e encaminhou-se para o carro. Parou uma vez para olhá-la por cima do ombro, mas ela já tinha desaparecido.
Estava com fome, por isso, em vez de ir direito a Jerusalém, parou em Telavive para jantar. Estacionou na Rua Balfour, foi a pé até Sheinkin, deambulou por cafés na moda e lojas avant-garde, a pensar na rue St.-Denis em Montreal. Tinha a sensação de que estava a ser seguido. Nada de específico, apenas o vislumbre de uma cara familiar demasiadas vezes - uma cor, um chapéu.
Comprou um jornal num quiosque, sentou-se num restaurante com pequenas mesas redondas que se espalhavam até ao passeio.
Pediu umzfaafe e cerveja, depois abriu o jornal e leu o artigo principal da primeira página: Benjamin Stone, o editor e empresário rebelde, está desaparecido e receia-se que se tenha afogado ao largo de St. Martin, nas Caraíbas. As autoridades acreditam que Stone tenha caído do seu iate de luxo algures durante a noite.
Gabriel fechou o jornal.
- Como é que está o Renjamin Stone?
- A relaxar nas Caraíbas, a bordo do seu iate.
Quando chegou a comida, dobrou o jornal e deixou-o cair na cadeira vaga. Olhou para cima e reparou num homem lá fora, no passeio: elegante, bem-parecido, cabelos pretos encaracolados, rapariga israelita loira pelo braço. Gabriel pousou o garfo, olhou fixa e directamente para ele, lançando às urtigas toda a discrição e as artes do ofício.
Não havia dúvida, qualquer dúvida: Yusef al-Tawfiki.
Gabriel deixou dinheiro em cima da mesa e saiu. Durante trinta minutos, seguiu-o. Ao longo de Sheinkin, depois de Allenby, depois até à Marginal. Uma cara pode enganar, mas, por vezes, o andar de um homem é tão singular como as impressões digitais. Gabriel seguira Yusef durante semanas em Londres. O seu andar estava gravado na memória de Gabriel. O fluir das ancas. A linha das costas. O modo como parecia estar sempre nas pontas dos pés, preparado para atacar de súbito.
Gabriel tentou lembrar-se se ele era canhoto ou dextro. Imaginou-o parado à janela, apenas em cuecas, um relógio prateado grosso no pulso esquerdo. E dextro. Se tivesse sido treinado pelo Departamento, usaria a arma na anca esquerda.
Gabriel aumentou o ritmo, apertando a distância entre eles, e puxou da Beretta. Apertou o cano da arma contra a parte debaixo das costas de Yusef e a seguir, num movimento rápido, enfiou a mão por baixo do casaco dele e sacou-lhe a arma do coldre na anca.
Yusef começou a virar-se.
Gabriel enfiou-lhe a arma ainda com mais força nas costas.
- Não te voltes a mexer, ou deixo-te um buraco na espinha. E continua a andar.
Gabriel falou em hebraico. Yusef deixou-se ficar muito quieto.
- Diz à tua namorada para ir dar uma volta.
Yusef fez um gesto com a cabeça para a rapariga; ela afastou-se rapidamente.
- Anda - disse Gabriel.
- Para onde?
- Até à praia.
Atravessaram a Marginal, Yusef à frente, Gabriel atrás, a arma a fazer força no rim de Yusef. Desceram um lance de escadas e caminharam pela praia até as luzes da Marginal se tornarem indistintas.
- Quem és tu?
- Vai-te foder! Quem é que pensas que és, a agarrar-me assim?
- Tens sorte em não te ter matado. Pelo que sei, és um membro da organização do Tariq. Podes ter vindo a Israel para colocar uma bomba ou rebentar com um mercado. Ainda te posso matar, a não ser que me digas quem és.
- Não tens o direito de falar assim comigo!
- Quem é que te infiltrou?
- Quem é que achas? - O Shamron?
- Muito bem. Toda a gente sempre disse que eras esperto.
- Porquê?
- Queres saber porquê, fala com o Shamron. Só fiz o que me mandaram. Mas deixa-me dizer-te uma coisa. Se alguma vez te voltares a aproximar de mim, mato-te. Não me importa quem tenhas sido.
Estendeu a mão, a palma para cima. Gabriel deu-lhe a arma. Voltou a enfiá-la no coldre. A seguir, voltou-se e caminhou pela praia escurecida, em direcção às luzes brilhantes da Marginal.
Os relâmpagos faiscavam sobre as encostas da Galileia Superior, enquanto Gabriel conduzia ao longo da margem do lago, em direcção à villa de Shamron. Rami estava à espera junto ao portão.
Quando Gabriel baixou a janela, Rami espetou a cabeça para dentro e deu uma vista de olhos rápida pelo interior.
- Ele está no terraço. Estaciona aqui. Vai a pé até à casa. Rami estendeu a mão.
- Não acreditas mesmo que eu fosse capaz de dar um tiro no sacana?
- Dá-me mas é a merda da arma, Allon, ou não podes ir até à casa.
Gabriel entregou a Beretta e subiu a entrada. Relâmpagos explodiram sobre as encostas, iluminando as nuvens que rodopiavam, o vento a provocar ondas encrespadas na superfície do lago. Os gritos das aves aquáticas enchiam o ar. Olhou para cima, em direcção ao terraço, e viu Shamron, iluminado pelos candeeiros a gás que rodopiavam.
Quando Gabriel chegou ao terraço, encontrou Shamron na mesma posição, mas em vez de estar a olhar para baixo, para a entrada, o olhar estava fixado na tempestade por cima das montanhas. Foi então que os relâmpagos pararam e o vento morreu. O lago ficou em silêncio e os pássaros pararam de gritar. Não havia um som. Apenas o sibilar dos candeeiros a gás de Shamron, a arder intensamente.
Sim, começou Shamron, havia um verdadeiro Yusef al-Tawfiki, mas estava morto - assassinado em Shatila, na noite do massacre falangista, juntamente com o resto da família. Um dos agentes de Shamron entrou na casa após a matança e roubou os documentos da família. Os al-Tawfiki não tinham mais parentes no Líbano. Apenas um tio em Londres - um tio, do lado da mãe, que nunca tinha visto o sobrinho pequeno. Uns dias mais tarde, aparece um rapaz num hospital de Beirute Oeste. Gravemente ferido, sem identificação. Os médicos perguntam-lhe o nome. Diz-lhes que se chama Yusef al-Tawfiki.
- Como é que ele ficou com a ferida nas costas? - quis saber Gabriel.
- Foi lá posta por um médico ligado ao Departamento. O rapaz foi tratado no hospital em Beirute Ocidental e a ONU começou
à procura deste tio misterioso em Londres. Demoraram uma semana a descobri-lo. Contaram-lhe o que tinha acontecido ao rapaz. O tio tomou providências para o trazer para Inglaterra.
Era uma criança, pensou Gabriel: treze, talvez catorze anos. Onde é que Shamron o tinha descoberto? Como é que o tinha treinado? Era demasiado monstruoso para pensar.
Shamron estalou os dedos poderosos tão alto que Rami, parado na entrada à porta da casa de guarda, olhou para cima de repente.
- E é assim que temos um agente no campo do inimigo, um rapaz cuja vida foi despedaçada por uma brutalidade inimaginável. Um rapaz com fogo no peito, que detesta os Israelitas. Um rapaz que, um dia, se tornará um combatente e se irá vingar das pessoas que lhe chacinaram a família.
- Notável - disse Gabriel.
- Quando já tinha idade suficiente, o Yusef começou a andar com a facção radical palestiniana de Londres. Atraiu a atenção de um caça-talentos para a organização do Tariq. Examinaram-no. Limpo, ou assim pensavam. Puseram-no a trabalhar na secção dos serviços secretos e do planeamento. O Departamento tinha agora um agente dentro de uma das organizações terroristas mais perigosas da terra. Era tão valioso, que o material dele tinha a lista de distribuição mais curta da história do Departamento: uma pessoa, eu.
Shamron sentou-se e gesticulou na direcção da cadeira vazia. Gabriel continuou em pé.
- Há uns meses atrás, o Yusef enviou-nos um relatório fascinante. Havia um rumor a varrer a organização: o Tariq tinha um tumor cerebral. O Tariq estava a morrer. A luta pela sucessão tinha começado. Os coronéis do Tariq estavam a competir pela posição. E uma outra coisa: o Tariq não fazia tenções de partir em silêncio. Pretendia armar um pequeno inferno na terra antes de ir a flutuar a caminho do Paraíso. Matar um embaixador ou dois. Bombardear uns quantos escritórios de companhias aéreas. Talvez abater um jacto comercial.
- Então vens ter comigo depois de Paris. Contas-me esta história triste de que o Departamento já não consegue disparar a direito.
Que o Departamento não conseguia encontrar o Departamento sem um mapa. Como um parvo, concordo. E, ao mesmo tempo, sussurras ao ouvido do Tariq que estou de volta e à procura dele. E o jogo começou.
- A organização dele era rigidamente compartimentada. Mesmo com um homem lá dentro, sabia que ele ia ser difícil de abater. Tinha de o ajudar a cometer um erro. Pensei que se lhe acenasse com o Gabriel Allon, podia fazê-lo zangar-se. Pensei que o podia fazer atacar, expor-se só o tempo suficiente para lhe espetar uma faca no coração.
- Então envias-me atrás do Yusef, o teu próprio agente. Dizes-me que é vulnerável à aproximação de uma mulher. Vinha no seu ficheiro. Vigio-o durante dois dias, está com duas mulheres diferentes. Também eram do Departamento?
- Eram miúdas do Yusef. O Yusef nunca teve grande dificuldade em arranjar mulheres sozinho.
- Peço à Jacqueline para me ajudar. Supostamente, é um trabalho rápido. Mas o Yusef acaba por se interessar por ela. O Yusef quer continuar a vê-la. Digo-te para a tirares da operação. Mas obrigas-me a mantê-la.
Shamron cruzou os braços, contraiu o maxilar. Claramente, queria ver quanto é que Gabriel tinha descoberto sozinho.
- O Yusef diz à sua gente que acha que está a ser vigiado. Também lhes fala de uma rapariga francesa com quem tem andado. Diz-lhes que acha que pode ser uma agente israelita. O Tariq entra em êxtase. O Tariq tem estado à espera disto. Diz ao Yusef para recrutar a rapariga sob falsos pretextos, para uma missão. Sabem que a Jacqueline vai morder o isco, pois sabem que ela é do Departamento.
- Bravo, Gabriel.
- Ela sabia?
- A Jacqueline?
- Sim, a Jacqueline! Sabia a verdade?
- É claro que não. Está apaixonada por ti. Nunca ia concordar em enganar-te.
- Porque é que não me disseste simplesmente a verdade?
- Diz-me uma coisa, Gabriel. Se tivesse ido até à Cornualha e pedido para saíres da reforma e servires de isco para o Tariq, por acaso tê-lo-ias feito? É claro que não.
- Então puseste a minha vida em risco. E a da Jacqueline!
- Peço desculpa pelo que aconteceu em Nova Iorque. Foi muito mais longe do que tinha alguma vez previsto.
- Mas ele já estava a morrer. Porque é que não deixaste simplesmente que o tumor matasse o Tariq?
- Porque a sua organização ia continuar sem ele. Ia ficar muito mais perigosa e imprevisível do que antes. E porque a minha organização estava em ruínas. O Departamento precisava de um golpe para restaurar a confiança do governo e do povo de Israel.
- Então, e se o governo e o povo descobrissem exactamente como conseguiste sacar este grande golpe?
- O primeiro-ministro sabe de tudo.
- E o povo?
- Não te ponhas com ideias de ir a correr para os jornais.
- Porquê? Porque posso acabar como o Benjamin Stone? Shamron não disse nada.
Gabriel abanou a cabeça.
- Eras mesmo capaz de o fazer, não eras? Também me matavas se me metesse no teu caminho. E ainda te interrogas porque é que não consegues dormir à noite.
- Alguém tem de fazer estas coisas, Gabriel! Se não for eu, quem? Se os nossos inimigos pensarem que o Departamento está fraco, então os nossos inimigos vão testar-nos. Talvez matassem uns quantos judeus sempre que lhes apetecesse. Os Sírios talvez irrompessem outra vez por aquelas encostas e nos tentassem expulsar para o mar. Um outro Hitler talvez ficasse com a ideia de que podia exterminar o meu povo enquanto o mundo assistia sem fazer nada. Posso envergonhar-te de vez em quando. Posso utilizar métodos que achas repugnantes, mas, secretamente, estás contente que eu esteja aqui. Ajuda-te a dormir à noite.
- Porquê? - perguntou Gabriel. - Porquê mentires-me depois
destes anos todos? Porque não dizeres as coisas como elas são? Porquê dedicares-te a um engano tão elaborado? Shamron conseguiu fazer um sorriso fraco.
- Já alguma vez te falei da noite em que raptámos o Eichmann?
- Já ouvi essa história uma centena de vezes.
- Mas nunca a história toda.
Shamron fechou os olhos e estremeceu ligeiramente, como se a lembrança fosse dolorosa.
- Sabíamos que o sacana apanhava sempre o mesmo autocarro para casa todas as noites. Tudo o que tínhamos de fazer era agarrá-lo quando saísse. Já o tínhamos praticado uma centena de vezes. Durante os exercícios, fui capaz de executar o agarranço em doze segundos. Mas naquela noite, ao sair do carro, tropecei. O Eichman quase que nos fugiu porque eu tropecei. Sabes porque é que tropecei, Gabriel? Tropecei porque me tinha esquecido de apertar os atacadores. Apanhei-o, é claro. Mas aprendi uma lição valiosa naquela noite. Não deixes absolutamente nada ao acaso.
- Então não foi nenhum acidente o Yusef passar pela minha mesa hoje à noite em Telavive? - perguntou Gabriel. - Enviaste-o lá para que eu o visse. Querias que soubesse a verdade.
Shamron inclinou a cabeça uma fracção de centímetro. Realmente.
Eram quatro horas da manhã quando Gabriel regressou ao apartamento em Jerusalém. Em cima da mesa estava um envelope grande do Departamento. Lá dentro, três envelopes mais pequenos: um continha um bilhete de avião para o voo da manhã para Londres, outro continha três passaportes de nacionalidades diferentes e um terceiro estava cheio de dólares americanos e de libras esterlinas. Gabriel colocou os envelopes mais pequenos no maior e levou-o até ao quarto, onde arrumou os pertences que faltavam na mochila. O voo era só dali a cinco horas. Pensou em dormir, sabia que não conseguiria. Pensou em guiar até Herzliya. jacqueline. Nada daquilo tinha sido verdadeiro. Só Jacqueline. Foi até à cozinha e fez café. Depois foi até à varanda e esperou pela madrugada.
EPÍLOGO
PORT NAVAS, CORNUALHA
Algo fez Peel acordar. Colocou-se de lado, agarrou na lanterna que estava na mesa-de-cabeceira e apontou-a para o relógio: 3.15 da manhã. Apagou a luz e deixou-se ficar acordado na escuridão, a ouvir o vento a gemer nas bordas do telhado e a mãe e Derek a discutirem baixinho no quarto ao lado.
Só conseguia ouvir pedaços da conversa, por isso fechou os olhos, lembrando-se de algo sobre os cegos ouvirem melhor do que quem vê.
- Estou a ter dificuldades com a nova peça - dizia Derek. Parece que não consigo entrar no primeiro acto... difícil com uma criança em casa... voltar para Londres para estar com o pai... tempo juntos a sós... amantes de novo...
Estava prestes a tapar os ouvidos com a almofada quando ouviu um som lá fora no cais: um carro pequeno, a chocalhar como um carro de bois com uma roda partida. Sentou-se, afastou os cobertores, pôs os pés no chão de madeira frio. Levou a lanterna até à janela e olhou lá para fora: uma única luz traseira vermelha, a pairar pelo cais, na direcção do viveiro de ostras.
O carro sumiu-se por entre as árvores, depois apareceu um momento mais tarde, só que agora Peel estava a olhar directamente para os faróis. Era um MG e estava a parar em frente ao chalé do velho capataz. Peel levantou a lanterna, apontou-a ao carro e apagou e acendeu a luz duas vezes. Os faróis do MG piscaram em resposta. A seguir, o motor parou e os faróis apagaram-se.
Peel voltou para a cama e puxou os cobertores até ao queixo. Derek e a mãe continuavam a discutir, mas não se importou muito. O estranho tinha voltado a Port Navas. Peel fechou os olhos e não tardou a adormecer.
Daniel Silva
O melhor da literatura para todos os gostos e idades