Ouviu-se a voz cansada da Mãe (como não havia essa voz de tão freqüentemente exprimir fadiga sob o peso de contrariedades e impaciências acumuladas durante anos e anos?) a ralhar:
- Nunca mais aprendem, estas meninas! Cada vez mais deixam tudo por todos os lados, como se aqui em casa não houvesse lugares para as coisas! - e no meio do quarto dos armários, Teresa Mafalda Abegorim abanava a cabeça, descoroçoada. E logo, com essa complacência sacrificada que segundo ela ninguém agradecia, essa complacência sacrificada fomentadora de más disposições contínuas, principiou a separar, para arrumar, as saias, as blusas, os cintos, as meias, as combinações, as cuecas. É que até as cuecas acabadas de tirar das gavetas se empilhavam abandonadas como se fosse muito importante que a sua cor viesse a condizer com a fita para os cabelos. Enfim!
Foi no meio daquela balbúrdia incrível que a Mirita (chamava-se Casimira e não podia dizer-se que o nome, tradicional na família Abegorim, nome que há mais de um século passava de geração em geração dando a cada uma delas uma tia Casimira, fosse um primor de bom gosto. ) surgiu à porta, o roupão aberto sobre a mini-camisa, - "menina tem pudor! ", costumava recomendar o Pai, - a inquirir:
- A Mãe sabe da pinça?
Dona Teresa olhou-a, pasmada, num vago gesto para a desordem que a rodeava.
- Oh, filha ? . Pelo amor de Deus! A Mirita justificou-se.
- A Mãe podia ter estado a arranjar as sobrancelhas!
- Eu?. Isso? . Bem precisava!. Mas as meninas quase não me dão tempo para tratar de mim!.
A pequena escapou-se sem dar azo a mais queixumes. E pouco depois ouviu-se a voz fresca indagar longe, certamente à porta do quarto de banho.
- Lili, onde é que pôs a pinça? Velada pela distância, soou a resposta.
- Por aí. em qualquer sítio! Talvez a Sofia a visse.
A Sofia era o sabe-tudo da casa. A Sofia, misto de cozinheira, criada de quartos, costureira de emergência e anjo zelador das meninas que conhecera todas de bibe, todas na escola primária, embora umas a saírem dela e outras a entrarem A Sofia, sempre a vigiá-las, a ampará-las, a valer-lhes.
Sofia empresta-me dez tostõezinhos para rebuçados.
Sofia, deita esta carta no correio mas não digas à Mamã.
Sofia, vem ripar-me o cabelo.
Sofia, arranja-me umas meias que rebentei as últimas que tinha.
Sofia, se me fizesses um bolo para a merenda, que vem cá uma amiga minha. Mas faz de conta que foi idéia tua quando a Mamã chegar, que assim só ralha contigo por causa da despesa.
Querida Sofia para todas as urgências e necessidades de quatro meninas que nunca mais aprendiam a ser responsáveis e a passar sem ela - pelo menos a Sofia estava disto plenamente convencida.
E, percebendo que a Mirita perguntava lá dentro, na cozinha "Sofia, viste a pinça?" Dona Teresa Mafalda suspirou num comentário irreverente:
- Sempre a mania de que a Sofia é o Santo Antônio cá da casa!
A Sofia, porém e não obstante as suas forças quase mágicas, - só para uso das meninas, evidentemente! - não vira a pinça e respondeu à Mirita com uma hipótese.
- Talvez a Ritinha lhe tivesse pegado!
- Mas a Rita saiu, como é que eu posso descobrir onde a teria deixado?
- Então espere pela hora do almoço que a sua irmã, em chegando, logo lhe diz onde foi que a pôs ou largou.
- Se ainda se lembrar! E faz-me tanta falta! Estou com umas sobrancelhas indecentes - e protestou, zangadíssima: - Hei-de arranjar uma pinça só para mim!
A Sofia riu-se.
- Deve ser certo! Nem que as meninas sejam capazes de ter alguma coisa só para si. Andam sempre a bulir com o que é das outras! Nunca vi em lado nenhum um inferno destes. Ai, que meninas!
A verdade é que a boa da Sofia não conhecera nunca outras meninas - para se permitir comparações. Entrara para casa dos Abegorins quando estava a Rita Isabel (a Ritinha) para nascer; acompanhara todas as andanças da família do jovem juiz pelas terras da província; chegara a desistir de um bom casamento, em Chaves, afim de não se separar das crianças, por isso já se vê que.
- Mana, creio que anda à procura disto?
Rosarinho, com os seus longos e maravilhosos cabelos loiros e o seu ar de menina que ainda não acabou de crescer, no limiar da cozinha apresentava nas pontas dos dedos, com a atitude cerimoniosa que sempre usava para com as irmãs, um objecto minúsculo. - é isto - a pinça!
A Mirita aceitou-a com avidez.
- Onde é que a menina a achou?
- Não a achei. Tinha-a eu.
Passados cinco segundos, a Mirita concretizou a surpresa em palavras:
- Tinha-la para quê ?
- Para arranjar as sobrancelhas. Todos os dias tiro uns pelitos que estão desalinhados. A mana não acha que as minhas sobrancelhas são grossas de mais?
Mirita ficou arregalada, a observá-la. Pois quê?. Já a miúda se preocupava com o desenho das sobrancelhas? Razão tinha o Pai em afirmar que o mundo estava roto!.
Ia dizer qualquer coisa que exprobasse à irmã a inconveniência de tais preocupações mas. mas o seu olhar, de súbito, cruzou-se com o da Sofia que a mirava sorrindo maliciosamente. E então, do passado, do fundo do seu pensamento, veio a imagem de uma Mirita a que ela não quereria chamar burlesca. embora reconhecesse que o era! Uma Mirita aí com treze anos que certo dia, para ir mais bonita ao cinema, rivalizando com os saltos altos da Lili, não descobrira nada melhor do que rapar completamente as sobrancelhas com a máquina de barbear do Pai traçando depois, a tinta da China, uns riscos vergonhosos. Claro que o Pai - não era para graças, o Dr. Abegorim! - não a deixara sair de casa e ela expiara duramente o pecado da vaidade, privada do cinema e sujeita a suportar dias a fio a troça das colegas do Liceu que riam a bandeiras despregadas daquela cara "careca". E as Professoras - excepto a de moral! também não haviam podido conter o riso. A de moral, a simpática e generosa Dona Maria Vitória, depois de a fitar durante largo tempo, entre surpreendida e incrédula, chamara-a no fim da aula e, em particular, dissera-lhe umas coisas. umas coisas que ela, agora mesmo, no instante em que ia repreender a irmã, ouvia como se estivessem dentro dela a soar gravadas em qualquer ponto obscuro da sua consciência. Mas não vinha nada a propósito repeti-las, num longo discurso contra os excessos da vaidade, contra os ridículos em que as pessoas caem, contra o facto indiscutível de poder uma rapariga transformar-se em caricatura de si própria quando exagera os seus anseios de bem parecer e transforma as qualidades naturais de forma a. Bom, um discurso perfeitamente inútil diante da Rosarinho que afinal de contas não tinha nada a torná-la diferente dos outros dias. Se ela tocara nas sobrancelhas fora de um modo tão discreto que nada se notava.
Então, abafando um suspiro, pinça na mão, Mirita abandonou a cozinha onde a Sofia recomeçara descascando batatas para a sopa e foi para o quarto. Rosarinho seguiu-a tão tranqüila como se nada de extraordinário se tivesse passado. E com efeito, não se passara coisa alguma.
Entre os armários, sempre resmungando contra tudo o que pesava sobre ela - obrigações e mais obrigações! - Dona Teresa Mafalda continuava na faina de arrumar o que as filhas desarrumavam.
Agora, do quarto de banho enchendo a casa, vinha a voz um tanto esganiçada da Lili trauteando uma canção em voga, uma canção cheia de palavras de amor.
E, ouvindo-a, a Rosarinho, que estava a calçar-se, perguntou à irmã:
- Então que tal, o baile de ontem?
E a Mirita, a depilar conscientemente as sobrancelhas para sempre finas:
- Uma chatice. Não me diverti nada.
- porquê?
- Porque eram tudo pares de namorados e de noivos e quando assim acontece já se sabe, as que vão sozinhas morrem de pasmo.
- Ah!. - e com intenção que a outra não vislumbrou, à primeira: -E a Lili?
- A Lili o quê?
- A Lili. há-de ter gostado, não?
- Porque é que a Lili há-de ter gostado?.
Após breve silêncio, com inesperada gravidade, os grandes olhos de um azul carregado (todas as pequenas Abegorins possuíam lindos olhos) erguidos para a irmã numa espécie de inquietação, a Rosarinho proferiu:
- Nesse caso, não pegou?
- Não pegou o quê?
- O namoro com o tal Júlio? . Ela andava tão interessada!
Mirita, guardando a pinça na caixa das pinturas, em cima da cómoda-papeleira, volveu:
- O Júlio não apareceu.
Pouco depois, enquanto a irmã se vestia, a Rosarinho tornou a falar.
- É pena! Ele tinha bom ar. Ar de rapaz sério e trabalhador.
Mirita não lhe respondeu. E a lourinha:
- Gostava que a nossa irmã acertasse de vez. Já fez vinte e quatro anos, está quase velha.
- Velha?
- Velha, pois!
- Só tem mais quatro anos do que eu!
- E a mana é muito nova, não? Vai a caminho dos vinte e um!
Mirita, com a camisola às riscas nas mãos, ficou imóvel, olhando a irmãzita em crescente preocupação. Uma idéia, que já não era a primeira vez que se lhe impunha, sobressaltava-a com a força de um problema a que ela não sabia dar solução.
As raparigas - e os rapazes também com menos de vinte anos consideram velhos quantos houverem ultrapassado a casa dos quarenta. Mas os com mais de quarenta não parecem nada sentir-se velhos, nem o aparentam, e estão sempre prontos a achar ainda muito novos os com mais de cinqüenta. Quem teria razão? Os menores de vinte ou os maiores de quarenta?
Visto o caso à luz radiosa da sua idade, era indiferente pensar que a Lili, com vinte e quatro anos, estava a ficar velha. Mas observado o mesmo caso à claridade dos quarenta, já adoçada por longos dias gastos, devia saber tão bem considerar muito novos os de cinqüenta.
Claro que ela, se pensasse que o Pai era ainda muito novo, se acharia atrozmente ridícula. Mas. estaria na razão?
Eis o tal problema insolúvel!
Entretanto a Rosarinho recomeçara a falar e comentava:
- Acho que a Lili namora demais. Se formos a contá-los pelos dedos, desconfio que nem os dos pés somados aos das mãos chegam. Por tudo e por nada, acaba. Por tudo e por nada, arranja outro. Eu, se fosse rapaz, não gostava de me casar com uma rapariga que já tivesse dito amo-te a vinte antes de mim!
Neste momento Mirita como que despertou da meditação a que se entregara para reagir, com inesperada energia.
- Rosarinho, que é que a menina sabe de namoros para estar a dar a sua opinião? Veja se se lembra de que não tem idade para falar nesses assuntos.
Maria do Rosário pareceu indecisa, por instantes quase a desertar do diálogo, quase a recuar perante a chamada à ordem. Mas, de repente, os olhos brilharam-lhe mais e qualquer coisa - talvez uma reflexão perfeitamente apoiada - emergiu-lhe da alma, chegou-lhe aos lábios e a pequena não a dominou. Ela, a mais doce, a mais submissa, a mais calada, insurgiu-se. E atirando para trás num gesto de desafio os longos cabelos que a emolduravam a oiro, ripostou:
- Oiça, Mirita. Em primeiro lugar estou a fazer-me eco do que ainda há dias a nossa professora de moral disse lá no Liceu. Em segundo lugar a mana, quando tinha a minha idade, não só discutia estes assumtos como já andava toda embeiçada com o Zé Chaves atrás de si. Eu era muito miúda ainda mas recordo-me perfeitamente das fitas cá em casa e da sua teimosia, que aliás ainda dura embora ninguém saiba para quê.
- Maria do Rosário ? .
- Estou a dizer alguma mentira?
Mirita ficou engasgada. Voltou-lhe as costas, saiu do quarto.
No corredor cruzou-se com a Lili que vinha finalmente a sair do quarto de banho, e logo lhe notou o ar comprometido.
- Que é que foi? - quis saber a mais velha, em tom baixo. - Passou-se alguma coisa com a Mãe?
- Não. Foi a miúda.
- Que fez ela?
- Está a sair da casca. Lili sorriu.
- É natural. Os pintos têm de abandonar os ovos.
- Pois. a Lili acha graça porque não a ouviu. Fique sabendo que lhe dizia respeito, a si!
- A mim? A mim como e porquê?
- A nossa mana não gosta que mude de namoros como muda de penteados! - e contente por haver desfechado aquela setazinha envenenada (no fundo há muito que desejava dispará-la mas não se atrevia porque a Lili não era boa de assoar) desapareceu ao fundo do corredor antes que a irmã reagisse.
Mas normalmente a Lili (Leonor Augusta desde o registo, Lili desde que se crismara ao principiar a falar) nunca reagia frente à Rosarinho.
Nove anos mais velha, dedicava à mais nova uma ternura de tal modo indulgente que no trato com ela se modificava sem esforço, sem dar por isso, quase. Ela, autoritária, vaidosa, frívola, o seu pedacinho azeda, tornava-se mansa, singela, atilada e compreensiva junto de Maria do Rosário. Ela, que tantas e tantas vezes jogara à pancada com a Mirita e com a Rita, nunca levantara a mão para a pequenina que, aliás, a estremecia. Ela, sempre indignada com as demais irmãs que se lhe seguiam quando alguma bulia nos seus objectos de uso pessoal, estava permanentemente disposta a pôr quanto possuía à disposição da que, de resto, nem nunca mexia em nada nem nunca pedia nada.
Por isso mesmo, querendo atingi-la, Mirita acertara em cheio.
Lili não podia zangar-se. Mas sofria, porque nada a magoaria tanto como uma tal observação feita pela menina que todos consideravam "o bebê" do lar.
E ali parada no corredor, de testa contraída em expressão que lhe roubava frescura, Lili sentia uma dorzinha no coração, uma dorzinha que a mortificava.
Tendo ouvido a rápida troca de palavras entre as duas raparigas e dando fé do afastamento de Mirita sem se aperceber do da Lili, Dona Teresa Mafalda, intrigada, surgiu à porta do quarto dos armários onde ainda não conseguira impor a ordem necessária. E vendo ali a filha, imóvel, de roupão, desabafou:
- Que pena!
Os olhos acinzentados da Lili ergueram-se da passadeira para os da Mãe, imensamente parecidos com os dela.
- O que é que é pena, Mãe?
- Que não queira tornar-se útil em casa!
Podia muito bem vir ajudar-me a arrumar os armários.
E a Lili, logo agressiva:
- Chame a Mirita, Mãe. Talvez o trabalho a torne menos peçonhenta.
- Oh, Leonor Augusta! ?.
Com a censura expressa no entono, Lili caiu em si e rectificou imediatamente a dureza da atitude.
- Desculpe, Mãe. A Mãe vai sair, hoje ?
- Hoje, não! Será mais um dia passado neste agradável convívio!.
Taque!. No fim de contas, de que servia ser amável? Por mais triste que fosse verificá-lo, não adiantava coisa alguma.
- Vou-me vestir, Mãe, e já venho para o que for preciso.
Dona Teresa Mafalda voltou para o interior do quarto dos armários, certíssima de que a Lili nunca mais apareceria. Era o costume. Um inferno para que deitasse a mão a qualquer serviço. Só mandada. Ou melhor - só mandadas!. Empurravam tudo umas para as outras. E todas carregavam na Sofia. Como carregariam nela própria, se não tivesse a força de se libertar. Sim, se não arrancasse os pulsos às algemas, seria hoje uma infeliz, uma sacrificada. Bem, infeliz, não era. Sacrificada, bastante. Mas esquecia-o sempre que possível e nisso arranjava forças para continuar. De resto Dona Teresa Mafalda esquecia muitas coisas vezes demais. Nas suas reflexões amargas esquecia, por exemplo, que se tornava injusta ao englobar a filha mais nova naquela acusação contra todas. A Maria do Rosário nunca fugia ao trabalho e gostava de ajudar. Mal despachava as aulas e os estudos - naturalmente à frente de tudo! - oferecia-se com gentileza "para quanto fosse preciso".
Lá estava ela agora mesmo, ajoelhada no chão, com as gavetas da cómoda-papeleira escancaradas, a enrolar cuidadosamente um monte de meias para dentro de uma atiradas de qualquer maneira,
Lili ficou de pé, encostada ao tampo da cômoda, observando a irmãzinha, esperando nem sabia o quê, mas esperando. Ela, indiferente aos comentários alheios, altiva e senhora do seu nariz, estava ali ansiosa por esclarecer com a irmã o motivo da acusação que lhe fora participada. Queria mesmo provocar o assunto e não sabia como! Rosarinho era tão doce, tão melindrosa, tão completamente pura! Para que se abalançasse a um comentário desagradável, algo devia ter acontecido. Algo devia até ter ouvido.
Primeiro notando-a, depois vendo-a, Rosarinho inquiriu:
- A mana não se veste ? Não vai para o pé da Mãe, como prometeu?
Sempre atenta, sempre alerta, ela, a que parecia não dar fé de nada.
- Já vou, Rosário. - e depois, enchendo-se de coragem: - Rosário, é verdade a menina ter dito à Mirita que eu mudava de namoros como mudo de penteados?
A garota encarou-a, observou os caracóis de confecção recente e, tão cândida como segura, ripostou:
- Não foi bem assim que eu disse.
- Então?
- O que eu disse, mais ou menos, foi isto "gostava que a Lili acertasse de vez, porque acho que ela namora demais. Se se contarem os namoros dela pelos dedos, nem os dos pés somados com os das mãos chegam. -e deteve-se.
- Mais nada ?
- Sim, mais alguma coisa. "Se eu fosse rapaz não gostava de me casar com uma rapariga que já tivesse dito amo-te a vinte antes de mim." Foi assim, tal e qual. Porque é assim que eu penso. - e ficou imóvel, com um par de meias suspenso nas mãos, a olhar a irmã.
Lili afastou-se da cômoda, avançou até à janela e, porque ficou de costas voltadas, a Rosarinho não pôde ver que ela tinha os olhos cheios de lágrimas. Depois, sem se virar, a rapariga disse num tom raivoso com que tentava mascarar os verdadeiros sentimentos:
- Oiça, Rosário. e procure não ser cruel. A única verdade é que eu não tenho tido sorte!
E de súbito abriu-se, deixando de suportar. Abriu-se como nunca se abria para ninguém. Era como se apenas aquela menina ainda pequena fosse capaz de a entender e de, entendendo-a, a respeitar mais e cada vez mais.
Voltou-se, aproximou-se dela, sentou-se no chão ao seu lado, tirou-lhe as meias das mãos que prendeu nas suas, estreitando-as muito.
- Rosarinho, acredite-me!. Não tenho tido sorte nenhuma] Se eu tivesse tido sorte, e fosse amada, e compreendida, não seria a incrédula que hoje sou, a insatisfeita, a céptica. A menina não sabe, e oxalá não o saiba nunca! quanto custa namorar a sério!
- Mas é obrigatório namorar, Lili?
- Sem namorar não se casa!
- Não é por namorar que se casa! Casa-se quando se gosta!
- Ah. e gostar? .
- A mana não acredita que se goste ?
- Acredito. Acredito, sim! Mas.
- Mas o quê ?
- Gostar nem sempre resolve os problemas, principalmente quando se começa a gostar sem esperanças, sem retribuição. - e calou-se, com o olhar perdido no vago, tão longe de súbito de quanto a rodeava que a Rosarinho, sem saber como rebater aquela afirmativa, achou mais prudente ficar por ali. De resto, nas suas teorias simplistas, ela acreditava que acabava de fazer qualquer coisa pela sua querida Lili que no fundo não era nada a rapariga feliz e estouvada - feliz por estouvada e estouvada por feliz - que os outros supunham.
Talvez, depois daquela breve conversa, a Lili reconsiderasse e viesse a pensar melhor.
Ergueu-se, continuou a pôr as gavetas em ordem. De quando em quando mirava de esguelha a irmã que permanecia sentada no chão, tão absorta como se houvesse esquecido tudo o que a cercava, tudo o que ouvira. Ou estaria apenas a traçar a si própria uma nova conduta?
Leonor Augusta não estava a tomar quaisquer decisões. Leonor Augusta não estava a encarar o futuro que a aguardava mas sim o que já constituía passado. Leonor Augusta revia com amargura algo que vinha de bastante longe no tempo. Sim, devia ter então a idade actual da Rosarinho. Palpitara-lhe o coração pela primeira vez no prólogo de um romancinho de amor que não encontraria aceitação por parte da vida. Tudo, aliás, se passara dentro dela, no seu íntimo, desenrolando-se na sua imaginação puerilmente limitada a horizontes tão pequenos como a sua experiência.
Ele morava no mesmo prédio. No segundo andar, precisamente. Era alto, esbelto, com uns grandes olhos cor de azeitonas de Elvas, uma madeixa clara sempre a cair-lhe para a testa. Já lá morava, quando elas haviam alugado o 4. ? andar. Encontravam-se muitas vezes no elevador, a caminho das aulas, de regresso das aulas. Sorriam um para o outro. Diziam bom-dia ou boa-tarde. E ela, Lili, apaixonara-se. Não tardara em saber pela Sofia, que às vezes conversava com as colegas, que se chamava Pedro, que era o filho mais velho de um distinto médico (tinha dois irmãos, uma menina aí da idade da Rosarinho e um petiz dos seus quatro anos, ao tempo), que era um rapazinho inteligentíssimo, cheio de qualidades. Mas. mas um garotinho, ao pé dela! com menos cerca de quatro anos!. Debalde ela, muito mulherzinha, tentara pensar que a diferença de idades não impedia um amor recíproco, um casamento feliz, passando em revista casos conhecidos. A tia Celeste (que vivia na América do Norte) por exemplo, desposara um homem mais novo dez anos. E a Dona Carmen Atouguia, amiga íntima da Mãe, vivia ditosa com um marido que fizera os trinta anos quando ela completava os quarenta e oito. Ora entre ela e o Pedro não havia uma distância tão grande. Nem nada que se parecesse!
Logo. por que não?
E a subir e a descer com ele no elevador e a dar-lhe os bons-dias e as boas-tardes, viu-o crescer, viu-o passar a usar calças compridas, viu-o começar a ter barba. E o Pedro - o Pêu segundo a linguagem da Rosarinho nesse tempo - nunca praticamente lhe dissera senão bom-dia e boa-tarde.
Ao completar os dezoito anos, tornada adulta, a Lili percebeu que aquele amor romântico ia acabar como um lume de gás quando se fecha a torneira do combustível. Deixou de gostar do Pedro guardando no fundo das suas saudades de menina a recordação do que seria para sempre, com certeza, um dos mais lindos sonhos da sua existência. Não podia querer-lhe mal. com um íntimo sorriso de troça por si própria, compreendendo o ridículo das suas ilusões e das suas esperanças, conservou por ele uma certa ternura. Mas não conseguiu nunca eximir-se a pensar que era rapariga para não ter gostado de mais ninguém se houvesse sido correspondida. Aliás. que garantias de entendimento, de compreensão, como base para um futuro em conjunto ?
Entendimento? Compreensão? Não os achava em ninguém, não os conseguia. Sempre alguma coisa a afastava, a detinha, a desinteressava ou magoava. E, no entanto, era-lhe fácil atrair as atenções de qualquer rapaz. Não que fosse bonita. Lili tinha a plena consciência do que valia e do que não valia. Não era bonita, mas gira, gira ao máximo!
Elegante, airosa, sempre arranjada exactamente como se usava. e engraçada na maneira de falar, um tudo-nada picante. mas. Mas demasiadamente senhora de si, do que pretendia e queria, nada disposta nem a suportar cabotinos nem audaciosos sempre à espera do que não deviam, sempre aptos a confundirem modernismo com descaramento. E ela não fora educada para divertir ninguém, muito embora a considerassem uma namoradeira. Do que lhe cabia a culpa.
A verdade, porém, a sua verdade, conservava-se-lhe intacta na alma, pura e luminosa. Não a mostrava nunca. E deixava que a confundissem com a Alicinha, que essa sim, essa era uma autêntica desmiolada, provocante, inconsciente, desatinada a contar às amigas as conquistas que ia coleccionando só pelo capricho de dizer "mais um". Ela, não. Ela só não tinha sorte! Não tinha sorte e até a irmãzinha adorada imaginava que.
Rosarinho estava agora pronta, os lindos cabelos escovados, satisfeita porque deixava o quarto em ordem. E a Lili continuava imóvel, sentada no chão, sem dar fé de nada. Completamente distraída do incidente que provocara aquela descida ao fundo dos seus pensamentos.
Entretanto a Mirita reaparecera, vestira-se e depois de deitar uma olhadela surpreendida à mais velha, saíra do quarto sem dar palavra.
De súbito, ouviu-se abrir a porta da rua.
E a voz cheia, grave do Pai, soou:
- Boa-tarde! Pode-se almoçar ?
Dona Teresa Mafalda abandonou acto contínuo o quarto dos armários, admiradíssima.
- Mas que horas são, Álvaro? Trocaram ali no corredor o beijo de sempre, o beijo amigo de há vinte e cinco anos.
- Quase uma hora. E às duas e meia tenho de estar no tribunal.
- Meu Deus. E eu por arranjar!
- Vai vestir-te num instante, anda lá.
- o Dr. Álvaro Abegorim detestava ver de roupão as mulheres, considerando o trajo intimo como um desmazelo quando usado uma hora depois de se haver abandonado o quarto de dormir.
Em direcção à cozinha, Dona Teresa Mafalda perguntou, alto:
- Sofia, o almoço está pronto?
- Só falta enxugar o arroz, minha Senhora. É um instante.
A Mirita saiu da saleta de trabalho, a cumprimentar o Pai.
Depois de receber na mão o beijo à antiga, esse beijo tradicional que ele aprendera a dar com a avó materna, grande dama escudada em esmeros de lhaneza conservadora (beijo que as meninas, excepto a Rosarinho, classificavam de atrozmente caricato mas não se atreviam a negar, que o Pai não era para graças nem para aceitar a modificação de princípios considerados sagrados) e de o retribuir beijando-lhe a testa, o Dr. Juiz perguntou:
- Está tudo em ordem? A mesa, posta?
- Não sei, Pai.
- Vá ver.
Ela foi, enquanto o Pai se dirigia para o quarto de banho, a lavar as mãos. Voltou de seguida.
- A mesa ainda não está posta.
- Então por que espera ? Desembarace-se, vá!
Ela recuou, num protesto.
- Mas hoje não é o meu dia, Pai!
- Como?
- Hoje não é o meu dia! Quem está de serviço é a Rita.
- Pois diga à Rita que se despache. Não posso perder tempo.
- Mas. mas a Rita saiu e ainda não veio, Pai!
- Não veio? hora do almoço?
Mau!. Lá enrugava o Dr. Abegorim a testa altíssima. - alta de natureza e ainda ampliada por meia calva central, discreta, que contribuía bastante para o seu ar simultaneamente distinto e severo.
E a Mirita, sem reparar no sinal da Mãe, que lhe aconselhava discrição, ripostou:
- É natural que se demore, Pai. Ia ao cabeleireiro.
- Ao cabeleireiro? Outra vez? Mas. não foi no sábado que lhes dei dinheiro para isso, a todas?
- Sim, Pai. Ela só queria pentear-se.
- Pentear-se para quê, se me faz o favor?.
- Por causa da festa de logo à tarde.
O Dr. Abegorim olhou a filha e depois a mulher com uma expressão que se ia tornando cada vez mais carregada.
E aconteceu que precisamente naquele instante surgiu a Lili tal como permanecera durante a manhã inteira. De roupão e desgrenhada! E foi ela que, inocente, fez abrir a válvula de escape por onde o Pai deixaria libertar o excesso de indignação que o abrasava. .)
- Masque falta de decoro vem a ser esta? As meninas não sabem cumprir os seus deveres? Que espécie de família é a minha, afinal? Uma filha não faz nada senão alindar-se. Outra julga que a vida é uma paródia constante. E esta agora anda num desmazelo sabendo que eu detesto chegar a casa e encontrar quem quer que seja em semelhante figura!.
Dona Teresa Mafalda tentou chamar a si a atenção do marido, permitindo que as filhas, a quem ela podia ralhar quando quisesse mas a quem detestava que alguém ralhasse, fosse muito embora esse alguém o próprio Pai, se escapassem sem mais problemas.
- Tu sabes, Álvaro, elas dormiram até tarde e eu pus-me aí a arrumar umas coisas e esqueci-me das horas.
Falhou, o golpe de defesa. O marido, que devia estar naturalmente predisposto a mal-disposto - aliás no censuradíssimo Carnaval era costume o Dr. Abegorim ficar intratável, ele, cujas impiedosas noções de rectidão e lisura cada vez mais se incompatibilizavam com hábitos nocivos e desregrados que, segundo a sua opinião, apenas contribuíam para desmoralizar uma juventude em perigo, - em vez de acalmar, explodiu.
- Claro, claro!. Tu levas tudo ao exagero, fazes tudo ao contrário do que deves!. Ou não lhes ligas nenhuma ou advogas os seus caprichos idiotas! Tu é que as educas mal, sempre educaste, deixando-as tornarem-se umas inúteis!. O que eu quero é saber que contas darás à sociedade por não teres sabido fazer das tuas filhas quatro mulheres aptas a cumprirem as suas obrigações!. Ora vê lá!
Dona Teresa Mafalda não via nada. Eclipsara-se! Reapareceria daí a instantes vestida, impecável, tão serena - ou desdenhosa - como se nada houvesse escutado de muito desagradável.
Então o Dr. Juiz, diante só da filha mais velha, concluiu:
- Andam positivamente a troçar de mim! Lili nunca se encolhia nem humildava perante as iras breves, mas violentas, do Pai, essas iras em que o homem íntegro e geralmente considerado deixava exteriorizar mágoas, desesperos e cansaço recalcados durante uma vida. Pelo contrário! Acontecia, sempre que as coisas não corriam bem, que ela se erguia como um dique fortíssimo onde a cólera de Álvaro Abegorim acabava por ficar detida. De resto, as explosões graves só se davam quando no seu coração se avolumava até ao excessivo a noção de "coisa injusta". Talvez, no fundo, o caracter de Leonor Augusta fosse muito semelhante ao do Pai. Assim, disse:
- O Pai sabe perfeitamente que é tão respeitado aqui como em toda a parte. Respeitado como merece! E por isso mesmo não acho nada bem que esteja, tão zangado só porque a Rita se atrasou e não chegou a casa a tempo de pôr a mesa.
Os olhos escuros do Dr. Juiz tornaram-se graves e atentos, fixando os da primogênita. A recta percepção do bem e do mal que existia dentro dele determinou uma pergunta imediata.
- Acaso não considera a sua irmã em falta?
- Considero, sim, Pai.
- Parece-lhe que sou responsável por essa falta?
- Não, Pai.
- Então porque motivo a menina e as suas irmãs não trataram de agir, salvaguardando os meus direitos -evitando que a falta da Rita fizesse incidir as suas conseqüências sobre a harmonia do lar?
Leonor Augusta baixou o rosto, desconcertada. Diante do quesito directo, firme e esclarecido, não havia senão que responder com a verdade integral.
Era, de resto, buscando sempre a verdade integral, que Álvaro Abegorim adquirira a justíssima fama de probo e infalível de que gozava.
- Desculpe, meu Pai. Perdi a noção das horas, apenas.
Já ao lado dela se perfilava a galante figurinha de Maria do Rosário, serviçal e risonha.
- Eu vou pôr a mesa num instante, Pai. Não se aborreça mais!
Mas o Pai ainda não desanuviara e rebateu a intervenção.
- E se a menina, antes de se oferecer como voluntária, me cumprimentasse?
- Oh, Paizinho, desculpe!. -e repetiu o cerimonial efectuado pela Mirita. Beijo na mão do Pai. Testa oferecida ao beijo paterno.
Então Lili aproximou-se e dobrou o joelho, como fazia em garotinha.
- A sua bênção, Pai.
Não se usava. Mas era belo!
E depois de beijar as duas filhas, a expressão do Dr. Abegorim tornou-se outra, tão afectuosa como pacificada.
- Nós duas arranjamos tudo num instante! - assegurou a mais velha.
- Pois sim. Mas chamem a Mirita. Ela não gostará de sentir-se excluída do vosso movimento de solidariedade.
As duas irmãs não perfilhavam aquela opinião - a Mirita era tão pouco amiga de trabalhar! - mas não retorquiram fosse o que fosse e correram para a sala de jantar, a Lili depois de ter ido enfiar um vestido. De tal maneira se desembaraçaram que, quando o Pai surgiu à porta, - mãos lavadas, cabelos penteados e fato escovado, - a Lili acabava de colocar os talheres, a Rosarinho cortava o pão e a Mirita, convocada e sem ousar novos protestos, aparecia trazendo o jarro da água e a garrafa do vinho. Logo atrás dela chegou a Mãe, com os primeiros pratos da sopa.
- Sentem-se, as meninas. A Sofia já aí vem com os outros.
E quando a Sofia entrou, três pratos em equilíbrio (a Rosarinho nunca percebera como era aquilo possível e no dia em que, miúda audaciosa, decidira tentar a habilidade, fora um estrago sem remédio, com sopa por todos os lados e os pratos feitos em cacos!), retiniu estridente e repenicada a campainha da porta.
- É a Rita! - disse a Rosarinho, aliviada.
- Vou já abrir. - avisou a Sofia.
O Dr. Abegorim nada comentou. Nem pareceu notar o olhar da mulher que procurava captar o dele a fim de convencê-lo - sabia-se! - de que fora precipitado na condenação da filha "vês que afinal foi um atraso de nada?. " Mergulhara as pupilas na sopa e comia devagar, como habitualmente.
As meninas, arriscando uma troca de sinais compreensivos, comiam também.
Ouviu-se o elevador parar, e logo a voz da Rita, excitadíssima.
- Um inferno! Nunca mais me despachavam! Irra!.
A Sofia voltou à sala de jantar. Como as sopas ainda iam em meio, retirou-se.
E apareceu a Rita.
Vinha linda, com os cabelos compridos (não tanto como os da Rosário, claro, nem com eles tinham nada de semelhante, pois os da mais nova eram loiros e sedosos e os dela pretos e revoltos) caprichosamente penteados em caracóis presos na nuca com uma fita de veludo.
Beijou a Mãe, beijou o Pai (mão e testa) dirigiu um rápido olá às irmãs e agarrando sôfrega num pedaço de pão a declarar "estou morta de fome" sentou-se no lugar dela.
O Pai parou de comer e fitou-a, a direito.
As irmãs, reparando na atitude, encolheram-se. A borrasca fora atrasada, não impedida.
Dona Teresa Mafalda, notando o mesmo que as filhas, ainda pigarreou, tentando despertar a atenção da sua terceira. Debalde!
Rita acabava de reclamar, alto e bom som:
- Sofia, traz-me a sopa, depressa!
E o Dr. Abegorim, sem erguer a voz, mas com uma entonação que não enganava ninguém:
- Que vem a ser isso, Rita ?
- O quê, Pai?
- Pergunto o que está a fazer, apenas.
- Eu?. - e sem perceber, ainda. - Acho que nada!
- Terei acaso alucinações ?
- Como?
- A menina não pediu a sopa ?
- Ah. pois pedi!
- Então?
A Sofia acabava de surgir com o prato da sopa, mas o chefe da família embargou-lhe o avanço.
- Leva a sopa! Não ouves ? Leva-a!
A criada deu meia volta sem arriscar a mínima insistência. Conhecia bem de mais o amo.
Rita ficara com um pedaço de pão entalado na garganta, a engasgá-la. Depois de tossir, balbuciou:
- Não posso comer, Pai? Por ter chegado uns minutos atrasada?
- Não é isso o que a menina deve depreender da minha atitude! Pode comer, sem dúvida, mas só depois de cumprir a sua obrigação.
- A minha obriga. ?
- Sim. Acaso não era hoje o seu dia de serviço, à mesa? As suas irmãs puseram-na por si. Agora a minha filha vai servir-nos o almoço e só depois come.
Rita tinha a sua pontinha de mau gênio. E o mau gênio dela estava naquele momento exacerbado pela fome e pelo sono (dormira apenas cinco horas a fim de poder ir ao cabeleireiro antes do almoço e ficar com a tarde livre para a festarola dada por uma colega). Tão exacerbado que se descontrolou.
E foi agressivamente que respondeu ao Pai:
- E se em vez de nos obrigarem a trabalhos servis o Pai e a Mãe arranjassem outra criada?
Ai se ela pudesse engolir a frase infeliz!. Mal a pronunciara e já as lágrimas lhe corriam pela cara, num arrependimento tão sincero como inútil.
A Mãe e as irmãs entreolharam-se, à espera de alguma coisa grave. Sabiam todas que, fosse embora uma das melhores pessoas deste mundo (ou talvez por isso mesmo?) o Dr. Álvaro Abegorim nunca transigia com o que se lhe afigurasse atentado contra normas de conduta a respeitar e a impor. Assim, e sob certos aspectos, agia com as meninas-mulheres como se elas não tivessem mais de doze anos. Era tão rígido e implacável na disciplina a manter como fora incapaz, desde sempre, de qualquer violência física. E tudo porque, homem de sãs qualidades e rectos princípios, temia ver as filhas saírem do caminho direito por onde as guiava e único pelo qual podiam seguir.
Decorreram instantes de silêncio, após a má-criação da rapariguinha. Por fim, parecendo, calmíssimo, o Pai falou.
- Oiça, Rita. Da organização da nossa casa, não creio termos contas a prestar-lhe. Mas da sua conduta, a sua Mãe e eu somos os responsáveis e ajuizadores. Portanto a menina vai não só servir o almoço segundo lho ordenei mas também sofrer as conseqüências da atitude que assumiu. Sei que a sua ida ao cabeleireiro, com certeza autorizada por sua Mãe, significa um projecto de diversão para hoje. Pois bem, não sairá!
- Pai? . -e era um apelo vindo do fundo do coração, o que soava.
- Não sairá!
O olhar cinzento de Dona Teresa Mafalda todo reprovava, todo discordava.
Para que havia o marido de ser tão severo? Para depois às tantas da noite ficar horas acordado a perguntar a si próprio se teria procedido com Justiça!
Na verdade ela era a única testemunha do que chegava a ser drama na consciência de Álvaro Abegorim - intransigente por culpa do receio que o dominava de fraquejar em casa, vindo a permitir o que lá fora não admitiria nunca!.
Porque.
Porque uma coisa é pensar e outra sentir!.
O Juiz recomeçara a comer a sopa, como se nada mais lhe interessasse naquela ocasião.
Rita levantara-se e saíra da sala. Ouviram-se os soluços dela, na cozinha.
Sofia devia estar a dizer-lhe qualquer coisa para a qual não obtinha resposta. Pouco depois a rapariguinha voltava a aparecer, agora trazendo atado à cintura, com um grande laço atrás, um aventalinho cor-de-rosa com entremeios brancos. As lágrimas não paravam de lhe descer pelas faces carmezins.
Retirou os pratos da sopa. Desapareceu. Surgiu logo a seguir com a terrina das ervilhas (ervilhas guizadas com ovos escalfados) numa das mãos e na outra a travessa do arroz branco, em equilíbrio.
Serviu a Mãe, que por sua vez serviu o Pai, como de costume. Depois foi à Lili. E a Lili, antes de tocar na comida, disse-lhe com o ar que normalmente só utilizava para a Rosarinho:
- Escute, Ritinha. Em acabando de almoçar vou telefonar ao Júlio a avisá-lo de que não posso ir com ele à "matinée", como tínhamos combinado. Fico em casa a fazer-lhe companhia.
Maria do Rosário olhou a irmã mais velha com uma expressão de alegria intensa - por redobrada. Pela atitude e pela revelação. Ah, o Júlio! Visto isso, ainda não desaparecera do horizonte!.
Já Mirita aderia ao movimento de solidariedade e, enchendo o prato de ervilhas (não havia nada de que ela mais gostasse) afirmava:
- Eu precisava de ir à Baixa trocar a camisola que me deu a tia Casimira, mas fica para amanhã ou depois e também não saio de casa!
E a Rosarinho:
- Então, se nenhuma sai, podemos divertir-nos a jogar.
Não havia nada que consolasse a Rita da perda da festa com a qual tanto sonhara. Mas a bonita atitude das irmãs não podia deixá-la indiferente. Então, debruçando-se para a Rosarinho, depôs-lhe nos cabelos um beijo que se destinava a todas, ao mesmo tempo que uma lágrima tombava nas ervilhas da mais nova.
O Dr. Álvaro Abegorim não precisava de esperar pela insónia matinal para mais uma vez perguntar a si próprio (de resto conscientissimamente) onde principiaria e acabaria a injustiça dos homens justos, sobretudo quando se sentem cansados demais.
A tarde ia passando chocha, desconsolada, por maior boa-vontade que as quatro irmãs, unidas e solidárias, tivessem em amenizá-la - e nunca tal acontecia nos dias normais em que tudo corria pelo melhor e elas não se ensaiavam nada para brigar e desconversar.
Sofia, condoída daquela segunda-feira de Carnaval tão profundamente estúpida, tão diferente das do seu tempo, decidira preparar um lanchinho especial-croques-messieurs, ou seja, sanduíches de queijo e fiambre cheias de manteiga e fritas no interior de um aparelhómetro apropriado, e o bolo de chocolate que a Rita mais apreciava.
Dona Teresa Mafalda, posta finalmente a casa em ordem, sentara-se a fazer uma paciência com cartas, uma dessas eternas paciências que dir-se-ia nunca terem solução e deixam os que estão a ver pasmados da imensa quantidade de paciência que absorvem, chegando a parecer impossível como não gastam toda a que existe no mundo.
As meninas, de roda de outra mesa, armada ao pé da janela, soltando suspiros entretinham-se num jogo pateta, com pequenas marcas coloridas que se perseguiam umas às outras incessantemente e à custa de dados, os quais sempre que tiravam altas pontuações faziam as mais adiantadas recuar em vez de avançar. um presente da tia Casimira para a Rosarinho da penúltima vez que fora ao estrangeiro.
Às quatro horas o telefone tocou, para a Lili. Era o Júlio, que debalde a esperara ao pé do cinema combinado - a Lili já não o apanhara em casa, quando tentara falar-lhe, e mal podia agora acreditar na explicação verdadeira que a rapariga lhe dava.
- Ficou amuado? -quis saber a Mirita.
- Não creio. Ele é um bom rapaz, simples e compreensivo.
Às cinco e meia soou de novo a campainha insistente do telefone, para a Rita. Era a amiga que vinha saber se ela se esquecera da festa. Não, não esquecera!. E de novo a chorar a Rita lá informou a outra da sua triste sorte.
Ninguém ouviu o que a interlocutora disse, mas não devia ser nada de agradável para o Pai Abegorim, porque já a Rita lhe respondia:
- Não, não, enganas-te, o meu Pai teve razão. Eu não devia atrasar-me, realmente! Conheço-o bem, sei como reage, por isso nem que viesse por pentear estava em casa a horas para evitar aborrecimentos. E depois, ainda por cima fui refilona.
Aparecendo finalmente com o tabuleiro da merenda, tão bem arranjado como se houvesse visitas em casa (as coisas boas não só para os de fora, ora essa!) a Sofia suavizou o clima familiar.
Todas manifestaram a sua satisfação ante as guloseimas.
Depois, enquanto as meninas principiavam a comer e, finalmente, a tagarelar, as mais velhas embaladas pelas recordações das horas divertidas do baile da véspera, o que não tardaria em aliviar o ambiente, a Sofia foi espreitar à janela num gesto repetido de ano a ano, com os mesmos comentários e os mesmos lamentos.
- Isto agora nem é Carnaval nem é nada! No meu tempo, ah! . No meu tempo é que sim!
As meninas sabiam de cor e salteado o tema habitual dessa narrativa da Sofia, mas sentia-se nela, permanentemente vivido, um tal desejo de evocar, de se banhar nas coisas desaparecidas, que havia sempre uma que, generosa e até interessada - pois não faltava pitoresco às descrições da velha criada! - lhe rogava:
- Conta! Conta como era! Solicitou-o a Mirita, desta vez.
E a Sofia lá principiou, de olhar voltado para as imagens que se desdobravam dentro dela em ritmo sincopado de filme muito antigo:
- Logo pela manhãzinha cedo começavam a ouvir-se cantigas e músicas pelas ruas adiante, umas bem tocadas outras mal tocadas, já se vê. As janelas enchiam-se de gente, a assistir às cegadas.
- Chamavam-se cegadas, esses grupos? inquiriu a Rosarinho, como se o ignorasse.
- Chamavam, sim, querida. Eles vinham todos mascarados, com caraças, algumas mais engraçadas!. Ponta abaixo, ponta acima, enrolados em serpentinas, alguns homens vestidos de mulheres, algumas mulheres vestidas de homens. E dançavam no meio das ruas e atiravam saquitos cheios de serradura e de feijão uns aos outros e prós andares mais baixos.
A Rita atalhou:
- Deviam fazer lembrar as escolas de samba e os cordões que há no Brasil, pelo Carnaval!
E a Sofia:
- Ai, lá isso como é no Brasil, não sei! Nunca vi!
- Viste, sim!
- Eu?
- Pois! No ano passado, num documentário da televisão.
Ela recordou-se.
- Ah, é verdade, tenho a modos que uma idéia. -e logo, depreciando no alheio em favor do próprio, ("quem dera que em tudo os portugueses fossem como a Sofia" pensou a Lili) acrescentou: -Mas cá, dantes, era muito mais engraçado! Pra falar com franqueza-franquezinha não percebo porque é que haviam de ter acabado com as cegadas! Não faziam mal a ninguém e divertiam toda a gente, principalmente os pobres, os que não tinham dinheiro prós teatros e prós cinematógrafos, umas vezes sem receberem nada em troca, outras por uns míseros tostões que os mais abonados lhes atiravam.
Da sua mesa ao fundo da sala, interrompendo a paciência (- que paciência! -) Dona Teresa Mafalda, que não lanchava por causa da linha, interveio:
- Dizia-se que se escondiam malfeitores e gatunos sob aquelas máscaras.
- Ó minha Senhora, vejam que razão!. Como se não andassem por aí malfeitores e gatunos disfarçados de pessoas de bem!. E a gente não percebe que eles estão mascarados e vai no engano!
Era irrespondível.
A Lili disse então, com a boca cheia de bolo:
- O Pai explicou-me, há tempos, que as tais cegadas acabaram porque de ano para ano as licenças que lhes exigiam se iam tornando mais caras. Parece que foi isso o que as matou!
- E talvez tenha sido, pois porque não? Essa gente que manda tem a mania das licenças! Qualquer dia até precisamos de pedir autorização - pedir e pagar! - pra respirarmos o ar que Deus Nosso Senhor nos deu de graça!
Havia coisas que não cabiam na mente da Sofia e o horror às licenças era nela intuitivo, vinha-lhe do fundo das suas origens. De cada vez que ia à Câmara por causa da licença do cão - um basset adorado pelas meninas, que morrera no ano anterior - e ao correio pagar as taxas da Emissora Nacional e da Televisão, ficava fula "pouca vergonha, isto de a gente pedir aos outros autorização pra ter na sua casa aquilo que quer! Onde é que se viu tal coisa? "
Debalde o Sr. Dr. Juiz lhe explicava que as pessoas, em toda a parte, devem pagar, e pagam, impostos, licenças etc. a fim de contribuírem, graças à manutenção dos seus prazeres (pois um cão, um rádio, um televisor, não serão regalias?) com uma verba que auxilie as despesas de ordem geral que permitem o embelezamento da terra em si, embelezamento obtido pela mão de obra aplicada em melhoramentos constantes e no desenvolvimento da dualidade dos serviços fornecidos ao público. A Emissora e a Televisão, por exemplo, custavam muito caras. Lógico se tornava, portanto, que todos os que delas beneficiam as ajudassem!. Além de que todo o dinheiro amontoado, como em mealheiro, representando individualmente uma ninharia, facultava o acréscimo de trabalhos gerais, indo assim ajudar a ganhar a vida a um número muito maior de criaturas!
E fossem muito embora irrefutáveis aquelas razões, a Sofia não se dava por vencida e concluía, invariavelmente "será tudo o que o Sr. Dr. quiser, mas, cá na minha, cada um na sua casa é rei e não tem de dar contas do que faz a ninguém! "
E lá estava ela agora, obstinada como sempre, a declarar às meninas, que riam:
- Eu acho que em vez de os obrigarem a pagar até lhes deviam dar dinheiro, dinheiro pra eles entreterem a gente! Era uma alegria, por essa cidade fora!. Eu só não gostava dos chéchés. -e como nenhuma das ouvintes a interrompesse, deu-se ao cuidado de explicar, provavelmente pela quinquagésima vez: - Os chéchés eram uns homenzões muito mal amanhados, com uns chapéus enormes e umas bigodaças façanhudas. Corriam atrás das pessoas uns com bengalões, outros com facalhões, facalhões a fingir, daqueles dos teatros. Havia crianças que choravam com medo. Eu lá medo não era comigo. mas gostar deles também não gostava, como já disse.
- Ó Sofia, que idade tinhas tu nessa altura, para te lembrares tão bem de tudo?
- Sei lá, Ritinha!. - (até sabia. ) - P'ra ai dez anos, onze, nove.
E a Lili:
- Que idade tens agora; Sofia ?
- Ai, menina, vou a caminho dos sessenta. Estou velha!
Era verdade. A Sofia estava a ficar velha, com os seus cinqüenta e muitos, gorda, pesada, a cara balofa sulcada de rugas e uns olhos bons como poucos havia, olhos de pessoa que vê a vida de um lado em que tudo se aceita e compreende e ama. Mas o mais espantoso de tudo é que ela, Lili, conhecia gente com cinqüenta e muitíssimos que era nova e bonita como se tivesse cristalizado antes dos quarenta.
A Sara Francelim e a Dona Carolina Pestana, ambas amigas da Mãe, quem suporia nelas dobrado o cabo tormentoso dos cinqüenta? E a Dona Carmen Atouguia, com a elegância dos seus quarenta e oito tão frescos? Havia quem garantisse que se sujeitara a uma operação de estética, mas não devia ser verdade. Se fosse, di-lo-ia com a mesma naturalidade com que confessava tratar-se todos os anos num Instituto de Beleza competente e honesto. E a tia Casimira?. A tia Casimira ia nos quarenta e cinco, parecia trinta e cinco e essa nunca entrara em nenhum Instituto! E mesmo a Mãe? A Mãe, cuja vida não fora nunca nem fácil nem regalada, alguém lhe daria mais de quarenta? Pois estava quase nos quarenta e oito, o dobro da idade dela, Lili. (tinha de convencer as pessoas a deixarem de lhe chamar Lili, um diminutivo tão ridículo como Fifi e Mimi, nomes que já não servem nem para gatos. )
A cortar-lhe o fio dos pensamentos, soou de novo a voz agradável da Sofia, continuando a evocar:
- E o corso na Avenida da Liberdade?. Ai minhas queridinhas, que bonito tudo aquilo era!. Ainda me lembro de ver os trens (trens dos que passeiam em Sintra e agora nos Estoris,
porque é moda, e até se vendem no ferro-velho!) pra cima e pra baixo, pra baixo e pra cima, todos abertos e enfeitados com flores e fitas coloridas. E uns cavalos a trotarem, garbosos e divertidos!. E meninas, e Senhoras e Senhores, janotíssimos, a atirarem sacos e pacotes de papelinhos. E os mais ricos lançavam bombons!.
- O meu avô contava que no tempo dele, no Chiado, jogavam com ovos podres!.
Um espanto! Uma surpresa!
Não tinham ouvido o elevador, não tinham ouvido a porta da rua, e era o Pai!. O Pai que entrara sem ninguém se aperceber, o Pai que vinha com um ar diverso do que trazia ao almoço, o Pai desanuviado, ou às voltas com uma dorzinha chamada remorso.
Ou não?
As pequenas levantaram-se e, espontaneamente, passaram dos beijos rituais ao abraço nascido na alma.
Logo a seguir, o Dr. Abegorim teve um gesto largo.
- Continuem à vontade, continuem! Estavam tão entretidas que nem deram pela minha chegada.
A Mirita explicou:
- Era a Sofia a contar-nos coisas do velho Carnaval.
- Ah, eu sei, eu sei. Pois se até meti a minha colherada a recordar os ovos podres!
A Sofia riu-se.
- O Sr. Dr. já não se lembra das cegadas e dos chéchés. pois não? O Sr. Dr. é bastante mais novo do que eu.
- Ainda me lembro, sim, Sofia. E do corso da Avenida, perfeitamente, não só com trens mas com os primeiros descapotáveis, enormes, de grandes faróis. carros do tempo em que apenas as pessoas realmente ricas se podiam dar ao luxo de possuir automóvel.
- Os tais a que hoje se dá o nome de Donas Elviras, não é, Pai? - quis saber a Rita, demonstrando assim que as pazes estavam completamente feitas.
- Tal qual! A esses e aos demais da época deles. Porque os havia não só descapotáveis como hermèticamente fechados, muito altos.
- E andavam todos, no tal corso?
- Só os abertos, visto os fechados não permitirem a brincadeira que tudo enchia.
- Devia ser divertido!
- Era divertido. E bonito, com as crianças mascaradas.
- As crianças e os adultos, Sr. Dr. que os adultos também se fantasiavam!
- É certo, Sofia. Mas a nota principal da animação e da graça impunham-na os pequeninos. A Avenida da Liberdade, e as ruas limítrofes, enchiam-se de bulício, de um ar de festa sincero! Desfilavam bandas de música constantemente.
- Era uma reinação pela cidade inteira, não era, Sr. Dr. ?
- Era, sim, Sofia. Parecia que as pessoas não se envergonhavam de estarem alegres à frente umas das outras.
Então, como sempre a demonstrar a sua tendência para aprofundar os assuntos, a Rosarinho perguntou:
- O Pai era contra essa maneira de as pessoas se distraírem, ou não?
O Dr. Juiz, percebendo o alcance da frase, encarou-a.
- Eu só sou contra aquilo que julgo errado ou nocivo, filha.
- E isso não era nocivo?
- Parece-me que não. Pois que mal pode existir no facto de se andar na rua à luz do sol.
- quando não se andava à chuva, Sr. Dr. .
Riram todos, com a interrupção que cortara a resposta um tanto difícil. Já a Mirita indagava:
- Ó Pai, não costumavam molhar as pessoas com água?
- com água suja e mal-cheirosa ? - acrescentou a Rita.
- Bom, no meu tempo de menino, a água usava-se muito.
- Ainda hoje há uns engraçadinhos que se entretêm a molhar as pessoas. - afirmou a Lili.
- Sim, mas nada que se compare, não digo com o meu tempo, mas com o tempo dos meus avós! - e sorriu, à evocação. - Era no fim do século xix. tão longe que vai!. Ouvi tantas vezes contar. Até os reis se divertiam, no Chiado, a brincar o Carnaval. E davam-se grandes bailes, e espectáculos sensacionais nos teatros de S. Carlos e de S. Luís. Coisas que ficaram para trás, irremediavelmente! - e suspirou, sentando-se.
- Outras surgiram, nãoé verdade, Pai? tornou a Rosarinho, como se quisesse consolá-lo. - Nesse tempo não havia cinema, não havia futebol, nem telefonia, nem televisão.
- Era uma pasmaceira, não era, Pai ? inquiriu a Mirita, que não concebia a vida sem televisão, sem cinema e, principalmente, sem telefonia. (andava sempre com o seu pequeno transistor atrás. ).
O Pai não pôde responder-lhe, porque Dona Teresa Mafalda, tendo finalmente conseguido levar a cabo a paciência - que paciência - se fez ouvir, aliviada:
- A propósito, a menina bem podia ter-se lembrado de ligar o aparelho. Hoje é capaz de haver programas engraçados!
- Eu vou buscar o meu lingrinhas! - lingrinhas era o nome familiar do minúsculo aparelho que a tia Casimira da sua mais recente viagem trouxera como presente à Mirita.
- Vá, vá! - e a arrumar finalmente as suas cartas. - Não queres uma xícara de chá, Álvaro?
- Já é tarde. mas posso querer.
Lili, Rita e Rosarinho precipitaram-se. E como num coro de jograis perfeitamente ensaiado, declararam:
- Eu sirvo o Pai! Amorosas!
Mas a Sofia, adiantara-se.
- As meninas deixem-se estar, que eu trato disso. Faço um chá novo, que esse não tem graça, e uma torradinha como o Sr. Dr. gosta.
- Não quero comer nada, Sofia. Só o chá, por favor. - e recostado na sua cadeira favorita, duas almofadas aconchegando-lhe os rins, ficou-se a contemplar com indisfarçável expressão de bem-estar a família reunida - a família completa, porque a Mirita regressara trazendo o lingrinhas a tocar uma música estridente ao ritmo da qual várias vozes masculinas berravam palavras que talvez fossem inglesas.
- Ó filha, isso é uma coisa medonha!
- É música de dança, Pai!
- De dança?. Ah, pois. - e sorriu: - Às vezes não me lembro de que a moda agora é outra. No meu tempo. ai, no meu tempo!. Que diferença!
- No nosso tempo! -rectificou Dona Teresa Mafalda, desarmando as mesas de jogo.
Lili pensou, sem dizer nada, que já deixara de achar ridículo que os Pais evocassem o tempo deles (como se o tempo de todos não fosse o tempo de cada um!), pois também ela às vezes sentia vontade de aludir ao "tempo dela" quando, por exemplo, falava com a Rosarinho acerca do Liceu.
Mirita, que não queria desagradar ao Pai, procurou outro posto, diligentemente. Mas. Nuns era a saturação com anúncios iguais aos de sempre. Noutros, confusamente, arengava-se. Noutros. a música se não era a mesma parecia.
- Desligue o lingrinhas, desligue! - pediu o Dr. Abegorim. - Pelo menos por agora. - e confessou: - É tão bom estar aqui, em paz, depois de um aborrecimento como o que tive logo pela manhã!
Ah, um aborrecimento! ? . Por isso a má disposição com que entrara, à hora do almoço! E o caso da Rita. apenas o escape para o que antes sofrera.
Isto o compreenderam, de relance, as quatro meninas, num impulso único, sentindo-se felizes por agora haverem recebido o Pai tão espontaneamente acolhedoras, sem sombra de ressentimento!
Dona Teresa Mafalda, calada, olhando o marido e esperando que ele continuasse a falar, raciocinava "por que não diria ele logo que vinha aborrecido, em vez de descarregar sobre a pobre da Rita?. Teria sido bem mais fácil!. Mas isso sim! As mulheres é que pagam tudo e começaram cedo!. Ai os homens! "
Felizmente o suspiro que soltou não lhe revelava os pensamentos amargos, pensamentos em que se comprazia tantas vezes, ou não se sentisse ela a mais cansada, a mais sobrecarregada, a tornada mais impaciente.
Já Álvaro Abegorim, rodeado pela atenção das filhas e bebendo o chá que a Sofia acabava de trazer, principiava a contar:
- Imaginem a situação em que me encontrei hoje, de repente. Quando estava no meu gabinete a estudar um processo que tenho de julgar daqui a dias, o contínuo apareceu-me a dizer que um sujeito pedia que o recebesse urgentemente. Mandei entrar. Surgiu-me um homem mais ou menos da minha idade, bem vestido. e tão expressivamente angustiado que me impressionou. E embora não fosse fácil naqueles traços de pessoa cansada e magoada descobrir um rapaz que eu perdera de vista há mais de trinta anos, reconheci-o. Era o Tito Branco! O Tito Branco, um colega dos tempos do Liceu! Tínhamos andado juntos no Camões, do 1. ? ao 7. ? ano! Abraçámo-nos. Ele dizia, emocionadíssimo, nunca haver admitido a idéia de que eu me lembrasse dele! Pois lembrava perfeitamente e sentia-me feliz de o ver ali, feliz do que me parecia um belo reencontro. Desenhava-se até dentro de mim o projecto de telefonar para casa a avisar que não almoçava, disposto a ir cavaquear com o meu amigo em qualquer sítio onde nos dessem de comer. Mas, de súbito e enquanto ele se sentava com um ar constrangido - verifiquei-o depois - que nada tinha de normal, aquele apelido BRANCO relampejou-me no cérebro. Senti-me tremer dos pés à cabeça. Qualquer coisa se rasgava a toda a altura, deixando-me ver o outro lado, esse onde estava o mistério. Debrucei-me para o processo que tinha na minha frente, folheei-o à procura. Lá estava "Ivo Paiva Sanches Branco". Encarei outra vez o meu antigo colega, sem me atrever a deduzir fosse o que fosse. Então, interpretando o meu gesto o Tito é inteligentíssimo! - ele disse-me, num tom de voz que nunca mais esquecerei "Sim. ladrão. mas meu filho!"
Pairou um silêncio.
Rita, lentamente, limpou duas lágrimas. Havia coisas bem mais graves do que perder uma festa em casa de alguém!
O Pai recomeçou a falar.
- Rapidamente, o Tito sintetizou a sua história, a história dos trinta e tal anos durante os quais nada soubemos um do outro. Quando concluíra o liceu, o Pai dele, que era notário, fora transferido da vila onde exercia a sua profissão, no Ribatejo, para o Porto. Aí o meu condiscípulo se formou em Engenharia, desposando logo a seguir uma rapariga muito rica, de Braga. Porque não quisera de forma alguma que alguém supusesse que ele a escolhera por interesse, ( arranjara uma colocação, aliás excelente, na Companhia dos Caminhos de Ferro de Moçambique, e para lá partira. E por lá ficou, numa situação de prestígio. Não se tornou nem milionário, nem rico, sequer. Mas era um homem respeitadíssimo e de um crédito ilimitado. Do seu casamento, aliás feliz, nasceu um filho único, o Ivo. Até ao 5. ? ano do Liceu, em Lourenço Marques, o moço deu óptima conta de si. bom estudante, bom filho, bom rapaz. Depois do 5. ano, as coisas principiaram a correr menos bem, cada vez menos bem, e por fim mal e de mal a pior. Não estudava, vadiava, bebia, perdia-se com companhias que só pensavam na pândega. Foi então que o Tito tomou a decisão, crente de agir pelo melhor, de mandar o filho para a metrópole, recomendado a uns primos de certo nível, residentes em Coimbra. O rapaz não encarreirou! E um dia escreveu ao Pai a dizer que não queria continuar a estudar, que estava farto de livros e preferia empregar-se. Na tentativa de, pela experiência, o levar ao convencimento de que ele, com as suas aspirações a uma vida larga e tendo apenas o 5. ano do Liceu, pouco podia conseguir, o Tito anuiu e, utilizando préstimos de amigos e dos tais primos que desolados confirmavam a má cabeça do jovem, já então com dezassete anos feitos, obteve para ele uma colocação num Banco. Modesta. Como escriturário. Aconteceu porém que um dos administradores conhecia perfeitamente o Tito Branco e decidiu chamar a si a protecção do rapaz, o qual se viu a ocupar um lugar de bastante responsabilidade de um dia para o outro.
As pequenas mal ousavam respirar, suspensas, E o Dr. Juiz, depois de acabar de beber o chá - que entretanto arrefecera prosseguiu:
- Assim o Ivo Branco se tornou no caixa mais novo da poderosa organização. E durante cerca de dois anos não houve nada a dizer da conduta dele. Transformara-se, o nosso
homem! O Pai, em Moçambique, rejubilava com as notícias. O filho era agora um empregado cumpridor e zeloso. Saía muito à noite, é certo, e às vezes andava na estúrdia até às tantas. Mas isso, enfim, desculpava-se. As verduras da idade merecem benevolência quando não se tornam excessivas. Depois, um dia, o Ivo, tendo convencido o Pai a emancipá-lo a fim de tirar a carta de condução muito útil, alegava, para guiar os carros dos amigos, - apareceu com um automóvel, dele, comprado em prestações suaves - explicava com verdade. A seguir começou a andar chiquíssimo. Tudo o que usava era do melhor. Bons fatos, boas camisas, gravatas maravilhosas. Saiu do quarto alugado onde residia desde que viera de Coimbra para Lisboa e arranjou casa própria - um apartamento mobilado. Fornecia umas vagas explicações de lhe haverem saído "uns cobres" na lotaria. Até podia ser! Quem se atreveria a desconfiar? Só os mal-intencionados. Pois!. E, de repente, a explosão! Deitaram-lhe a mão na fronteira, quando ia a passar com um passaporte falso. Um desfalque de 700 contos!. Apenas!
Houve uma pausa. Nenhuma das meninas falou; nenhuma sabia o que dizer. Dona Teresa Mafalda suspirou.
E o Dr. Álvaro Abegorim prosseguiu: -Como um perito, lesara o Banco, cobrindo de ridículo o administrador que nele confiara e que se prontificou a repor do seu bolso a quantia desviada (veio a provar-se que o Ivo estoirara todo o dinheiro, excepto duas centenas de contos com que se preparava para fugir) desde que o rapaz fosse devidamente castigado. Claro que vai ser castigado! – e após um novo silêncio cheio de dolorosas reflexões, concluiu: - Eis o caso que tenho de julgar dentro de dias contra as lágrimas do homem envergonhado que hoje de manhã acabou por se ajoelhar aos meus pés, repetindo "não passa de um ladrão. mas é meu filho!" - e encarou, primeiro a Rita, depois as outras filhas. Em seguida perguntou-lhes: Não podia vir almoçar bem disposto, pois não? Os olhos delas, de comum acordo, responderam-lhe com sinceridade total:
- Não!
E o Juiz, num gesto largo de homem que mostra a sua mágoa, acrescentou:
- Por estas e outras tanto receio o transviamento dos novos, dos que muitas vezes são arrastados para caminhos podres só porque o seu caracter é frágil e se deixa moldar como a cera. Eu não acredito na maldade congênita, mas acredito na maldade existente e adquirida - conheço-a! - e sei que na adolescência os maus princípios e as más tendências encontram o melhor terreno para se desenvolverem. para se desenvolverem quais ervas ruins em campo fértil que, devidamente tratado, podia dar sementeiras privilegiadas! Quando nós, Pais conscientes, deixamos de controlar a existência dos filhos, sentimos medo. Medo autêntico, medo com bases!
Então, num impulso, a Rita abeirou-se do Pai, rodeou-lhe a cabeça com os braços e murmurou, beijando-lhe os cabelos.
- Pai. não tenha medo de mim! Peço-lhe!
- Eu não tenho medo de si, nem de nenhuma. Tenho medo do mundo em que as meninas são chamadas a viver.
Leonor Augusta adiantou-se por seu turno, afagou a testa do Dr. Abegorim e, com ternura, assegurou:
- Não deve recear nada, meu Pai. Nem toda a gente é de cera mole por dentro.
- Sim. mas há cera mole dentro de toda a gente!
Foi nesse instante que o telefone retiniu. A Rosarinho atendeu.
- É para si. - disse à irmã mais velha.
- Quem ?
- Pela voz, parece a Alicinha. Era a Alicinha.
A Lili mais ouvia do que falava, o auscultador muito apertado de encontro ao ouvido esquerdo enquanto no rosto surgia uma expressão mista de interesse e desalento.
- Não sei. não sei, já se vai ver, espera aí. - e sem tapar o bocal, explicou, na direcção do Pai: - A Alicinha está a organizar uma brincadeira para a noite. Não tinha onde ir e os Pais deram-lhe autorização. É pouca gente e até pede que se leve qualquer coisa para comer, assim tipo assalto.
A Sofia, que entrara para retirar o serviço da merenda, quase esquecido por completo, declarou:
- Eu faço-lhes num instante uns pãezinhos com recheio e um bolo de laranja!
E foi a Sofia, com aquela espontânea decisão, que resolveu pelo Dr. Álvaro Abegorim, o qual, sem disfarçar um sorriso, acenou com a cabeça um sinal afirmativo que palavras inesperadas corroboraram:
- Está bem, vão. E levem a Maria do Rosário.
Dona Teresa Mafalda ficou satisfeita e sorriu ao marido e às filhas. Deixá-las divertir, coitadas .
As meninas mais novas abraçaram-se, aos saltos. Rosarinho louca de entusiasmo.
E a Lilí, esboçando um passo de dança, respondeu à amiga:
- Os meus Pais deixam-nos ir! A todas quatro, sim. Levamos uns pãezinhos com recheio feitos pela Sofia que são uma delícia!
A Sofia, que não ouvira a frase inteira, apanhando no ar a palavra delícia, rectificou:
- O bolo de laranja é que se chama Delícia, menina! O bolo é que se chama "Delícia de laranja! ".
Riram todos, enquanto a Lili continuava a falar com a Alicinha.
- Mascaradas? Olha que talvez não valha a pena!. Se somos poucos não tem graça. Rapazes?. Ó menina, mas onde vamos nós arranjar rapazes a esta hora? O Zé Chaves? A Mirita não o vê há uma porção de dias! Ele é como o vento, aparece e desaparece. Posso dizer ao Júlio, quando ele me telefonar, logo.
Ouvindo pela segunda vez naquele dia falar no "Júlio", o Dr. Juiz principiou a enrugar a testa, mas a mulher fez-lhe um gesto significativo, a pedir-lhe que não interferisse. E não houve objecções.
Quando a Lili desligou, a combinação estava concluída e ela informou as irmãs:
- Temos de lá estar às nove e meia, para acabarmos à meia-noite, visto que depois dessa hora não se pode fazer barulho sem tirar licença na Câmara.
- Sempre a mesma coisa! - refilou a Sofia.
- Pra uma pessoa dar uma festinha em casa, naquilo que é seu, tem de pedir autorização aos outros!
Dona Teresa Mafalda tentou explicar-lhe de novo que não podia deixar de ser assim pois se não existissem restrições seria o cabo dos trabalhos, com toda a gente a incomodar a vizinhança até altas horas.
- É preciso ordem, Sofia! É preciso ordem, percebes ?
Bonita frase!.
preciso ordem!
Mas no quarto dos armários que a Mãe passara a manhã a arrumar, não tardou em reinar a maior das desordens, com as quatro irmãs a tentarem escolher o vestido para a noite, a variarem de toilettes, numa troca-baldroca onde quase só a Rosarinho conseguia saber o que lhe pertencia. E isto porque, segundo as conveniências das outras, ali em casa se vivia em regimen de compartícipação.
Para improvisação, não estava nada mal.
A paciência do casal Fontemora, Pais daquela filha única, pálida e loira, muito loira e fria (a Mirita quando olhava a Alicinha é que se lembrava sempre dos versos de Soares de Passos que escolhera para dizer numa festa do Liceu dedicada às várias escolas poéticas do século xix) não tinha limites.
Adoravam-na. Viviam embalados no sonho de lhe oferecerem a felicidade como se pudessem pagá-la como pagavam tudo o que ela queria, desde os brincos de fantasia aos vestidos em super-profusão e aos caros passeios para os quais sempre levava a amiga na ocasião predilecta e transformada em donzela de companhia sujeita a birras e a caprichos.
Assim, quando após o almoço daquela segunda-feira de Carnaval, a Alicinha - Maria Alice de Mendonça Peres Fontemora - sempre branca e loira, realmente loira e com um aspecto de branco mármore que sugeria a idéia de frialdade, num longo bocejo dissera aos Pais "que estava muito chatiada" (talvez o termo não ficasse bem na boca de uma criatura tão branca e loira, mas a verdade é que a Alicinha não falava de acordo com o seu aspecto digno de uma linguagem ultra-romântica) os pobres dos senhores haviam ficado deveras preocupados.
Oh não, não pela forma como a pequena se expressava! Eles nunca viam nela nada que não estivesse certo e não fosse belo e perfeito, até a linguagem um pedaço feia que o chatiado nem feio chega a ser, tão significativo o termo em todas as bocas se torna do factor aborrecimento. E as expressões ordinárias da aparentemente tão doce criatura faziam-nos sorrir como se de gracejos pueris se tratassem. O seu desagrado, consequentemente, resultava apenas do queixume ouvido, um queixume a que a rapariguinha, ao acrescentar-lhe um feiíssimo "merda pra tudo isto" dava desmedido volume.
E fora então que o Sr. Eng. Fontemora, um homem educadíssimo, e a esposa, Dona Maria do Espírito Santo, uma senhora tão janota como pouco esperta (a Lili é que afirmava nunca ter conhecido ninguém com tanta dificuldade em entender o que se lhe dizia) depois de trocarem impressões entre si haviam sugerido: - Mas arranja qualquer coisa para te distraíres, filhinha!
- Vê lá o que te apetece, querida!
- Nós podíamos de facto ter combinado algo para hoje.
- Mas não nos lembrámos e tu também não falaste nisso!.
Rendida ao facto, a Alicinha decidira remediar o que fora esquecimento colectivo.
E a sua primeira idéia incidira numa ida ao cinema. Compraria um camarote ou uma sórie de primeiros balcões e levaria algumas amigas.
Debalde ligara para os cinemas frequentáveis e aconselháveis. Todos esgotados.
O Eng. Fontemora ainda tentara, numa agência revendedora onde costumavam arranjar-lhe lugares à última hora, vencer o obstáculo. Sem resultado!
Só depois surgira a idéia do bailarico. E o bailarico entrara em organização.
Enquanto na cozinha as duas serviçais se afadigavam para confeccionarem parte da ceia que Dona Maria do Espírito Santo queria bem servida e farta - e não contava muito com a cooperação solicitada pela Alicinha aos amigos, - o Engenheiro e sua mulher retiravam das salas da frente o máximo de móveis pequenos, que guardavam no quarto das arrumações, a meio da casa, e os tapetes e "bibelots" preciosos que podiam sofrer dano.
A Alicinha ocupava-se em preparar os discos, entretendo-se a ouvi-los a fim de os seleccionar, encadeando os mais gritados e mais barulhentos pois quanto mais barulhentos e mais gritados melhor, na opinião dela. Dir-se-ia que a branca e loira Alicinha herdara a elegância do Pai e as obtusões da Mãe. Pena!. Porque ela teria ficado muito melhor servida se o destino houvesse permitido que ela recebesse como dotes de raiz a formosura da Mãe e a inteligência do Pai. Caprichos da natureza, como quase todos os caprichos nada compensadores nem benéficos.
E lá estava ela, no meio da sala já quase desguarnecida, ao som dos guinchos estridentes de um conjunto instrumental especializado em batuques (ou não seriam batuques?) dando aos braços, às pernas e à cabeça com tanta veemência que se temia ver aquela frágil pessoa branca e loira desconjuntar-se toda.
O Pai, em dada altura, suado do esforço dispendido para carregar as poltronas, observou-lhe:
- Alicinha!. Olha que logo à noite sentes-te cansada e depois não te apetece dançar!.
Qual cansada! .
Ei-la agora, a desmentir a suposição, ali diante do par, um rapazinho esquálido de barba e bigode negros a taparem as hipóteses de se saber se seria bonito ou feio, no mesmo meneio violento, sacode que sacode.
bom, não se sacudia só ela! Sacudiam-se todos, encantados e joviais, a tornar a festa num êxito.
Aindâeram bastantes. Uns quarenta, se não mais, com predomínio do elemento feminino. Mas como dançavam isolados, cada qual para si e sem se perceber ao certo quem tinham por parceiros, e estavam algumas raparigas de calças e uns tantos rapazes de cabelos pelos ombros (uns tantos é exagerado, só havia dois, os irmãos gêmeos Melecas que haviam passado o Verão anterior em Inglaterra a aperfeiçoar o seu inglês e a aprender as últimas imposições da moda) não se percebia o excedente do número de raparigas. De resto não podia ser maior a confusão na maneira como se apresentavam vestidos, uns e outros. Se não estavam mascarados, pareciam-no!
Havia saias tão curtas que a um gesto mais veemente deixavam ver as cuecas. O Zé Chaves, que aparecera inesperadamente, depois de por acaso ter telefonado à Mirita que logo aproveitara para lhe pedir que a acompanhasse à festa, dissera, perdido de riso, que uma das dançarinas mais entusiastas, a Zulmirinha Cândido, trazia as calcinhas bastante rotas.
Uma rapariga, aluna de Belas-Artes, ostentava flores de papel coladas nas pernas e na cara. Uma outra, descoberta pela Alicinha não se sabia onde - e por sinal bem engraçada - andava delirante dentro de um vestido que parecia feito de farrapitos de todas as cores e qualidades, ou seja, das amostrinhas que se dão nas lojas. (mais tarde veio a saber-se que era mesmo!).
Os rapazes trajavam quase exclusivamente blue jeans e camisolões até aos joelhos. Havia uns três de calções curtos, camisas soltas e flores nos cabelos.
No meio daquela confusão, as filhas do Dr. Álvaro Abegorim (e os pares das mais velhas) marcavam. Ou deviam marcar!
Estavam impecáveis.
E dançavam. E divertiam-se.
A própria Rosarinho, no seu vestido de crepe de lã azul claro (um vestido herdado da Rita que o recebera da Mirita) com os longos cabelos a enfeitá-la como se fossem um manto de oiro, andava eufórica, a marcar o seu compassozinho sem exagero, diante de um dos gêmeos que a contemplava não se sabia se encantado com ela se invejoso do comprimento da formosa cabeleira.
A Lili deixara de dançar, há um bom pedaço. Ela, que em tempos chegara a ser uma das mais fervorosas adeptas dos ritmos alucinantes, desinteressara-se um tanto. Explicava que principiara a sentir a cabeça desengonçada. Seria a verdade. ? Garantido, um facto: depois de ter ido a um certo filme que aconselhara os Pais a não permitir que as irmãs vissem, afirmando ser nocivo ao máximo muito embora estivesse classificado para doze anos pouco dançava aquelas músicas bárbaras. E quando o fazia era com uma discrição que levaria os outros a duvidar da sua competência de bailarina se pouco tempo antes a não houvessem admirado num dar-que-dar transbordante de incontrolável entusiasmo.
Mirita, a Lili dissera, num desabafo que justificava a sua mudança de conduta:
- Sabes? Se continuasse, sentir-me-ia ou selvagem ou atrasada mental.
E agora, sentado ao lado dela, olhando-a com o embevecimento das pessoas atraídas pelo que não têm a mínima esperança de que venha a pertencer-lhes, o Júlio ouviu-a murmurar:
- Apetecia-me aprender o minuete!. Ele sorriu.
O Júlio Matinha era um rapaz de estatura regular, magro, de rosto comprido e um ar de eterno convalescente. Modesto, inteligentíssimo, andava no primeiro ano de Direito, com notas sempre extraordinárias.
E ao suspiro da Lili -que a frase saíra num suspiro! - volveu:
- Romântica, Leonor Augusta?
- Pré-romântica. Ou clássica, visto que os meus ideais em matéria de dança remontam ao século xvii.
- Se fosses menos exigente e te contentasses em recuar até ao século xix, eu candidatava-me a dançar contigo a valsa.
- Oh, uma valsa? . Agradava-me bastante! - e com um trejeito de desalento: Mas achas que a Alicinha terá alguma no seu repertório ?
- Não sei.
- Vamos perguntar-lhe, queres ?
- Será um escândalo.
- Pois provoquemos o escândalo!
- Atreves-te a pedir-lhe? Lili riu.
- Não, porque ela não me atendia.
- Então?
- Vou procurar! E foi!
Debalde vasculhou, passando disco por disco, entre as várias dezenas que se amontoavam ao lado do pick-up. Enfim, no fundo do armário onde se guardavam, descobriu um long-play com. tangos! Heroicamente, levantou o braço do aparelho e pôs o disco a girar.
Durante o pequeno intervalo existente, os dançarinos, julgando apenas finda a remessa pouco antes colocada pela Alicinha, esperavam nos seus lugares a seqüência, num vago oscilar de cabeças que prenunciava a continuidade da sua dedicação exaltada aos ritmos agressivos.
Depois, quando soaram os primeiros compassos da música lenta, cadenciada e persuasiva, houve muitos que reagiram, protestando.
- Eh. que porcaria vem a ser essa?
Um, mais culto, dos que sabiam distinguir a valsa do paso-doble e o paso-doble do samba, disse:
- Oh, não! Tangos, não! Já não se usam! Não se usariam e nenhum os saberia dançar.
- a Alicinha, persistente, tentava movimentar-se ao compasso dolente - mas, no meio da sala, elegantes, deleitados, a Lili e o Júlio desenhavam o tango com razoável perícia. E os outros foram formando roda. Tentavam rir deles, troçá-los, mas uma espécie de magia obrigava-os a calarem-se e a continuarem a olhá-los, sentindo-se um tanto despeitados por não serem capazes de evolucionar como eles.
E quando um dos gêmeos declarou, alto e bom som, que aquilo se tornava ridículo, não houve muitos que intimamente concordassem com ele.
E porque o disco era realmente longo, cansados de só verem os assistentes puseram-se a conversar, discutindo filmes e astro da tela, por assim dizer único tema acerca do qual sabiam pronunciar-se, de acordo, evidentemente, com o que liam nas revistas baratas de informação de cinema quase sempre apoiadas nos mais recentes escândalos e nas medidas físicas das vedetas em foco.
É claro que nem todos os presentes falavam do mesmo assunto. Havia excepções, excepções que, sendo-o ali, felizmente não passavam de representantes de uma elite jovem, magnificamente dotada para de facto VIVER. As pequenas Abegorim, o Júlio, o Zé Chaves.
O Zé Chaves, muito embora fosse quase um enigma.
Bonito rapaz, loiro, de olhos azuis, alto e esbelto. Andava no 3. ano de Econômicas e Financeiras e destinava-se à Diplomacia. Dizia-se que o avô, homem de grande influência, conseguira para ele a promessa de um posto do qual facilmente ascenderia aos melhores lugares da carreira. "
E o namoro dele com a Mirita conservava-se -; uma coisa estranha e complicada. Tão complicada e estranha que a própria Mirita se reconhecia incapaz de dizer se realmente gostava ou não muito dele. Não que fosse fácil negar-lhe o coração. Visto por certos ângulos, o Zé Chaves possuía todos os predicados para ser adorado. Belo, atraente, simpático, com um futuro prometedor, e rico.
A pequena conhecera-o quando tinha apenas catorze anos. Ele vivia perto do Liceu - era
já um rapaz crescido, a caminho dos 18 anos, e um dia apanhara do chão os livros e os cadernos da Mirita, teimosa em não usar pasta, quando ela, escorregando numa folha de couve, se estatelara e vira quanto levava debaixo de um braço espalhar-se cada coisa para seu lado, no meio do coro das gargalhadas pouco generosas mas inevitáveis das colegas. Tudo principiara no caricato e no caricato se desenvolvera e mantinha.
Nos primeiros dois anos, o Zé Chaves aparecia-lhe aí uma vez por semana e nunca em dia certo, acompanhando-a desde a porta do Liceu até à esquina da rua. Falava dos estudos dele, do tempo, da rádio, da televisão, da beleza feminina, das ciências, das artes, do desporto e até da política, geralmente com um tema único em cada encontro, um tema que se diria pré-escolhido. Como se pretendesse deslumbrá-la ou ensaiar forças. A contestar a hipótese de querer analisar as capacidades intelectuais dela, o facto de nunca a interrogar e de quase nunca a deixar falar. No entanto, marcando interesse indiscutível, um permanente aconselhá-la a estudar, a cultivar-se o mais possível e, principalmente, a aprender línguas.
Não tardou que no Liceu, entre amigas e conhecidas, se espalhasse a convicção de que a Mirita namorava o Zé Chaves.
A verdade é que a Mirita não namorava coisa nenhuma.
Depois, tempos decorridos, singelamente, naturalmente, ela contou-lhe que ia ter em casa uma festazinha. Era o dia dos seus dezassete anos - já se conheciam portanto há bastante, naquela convivência pequenina mas regular que só as férias cortavam (ele passava-as repartidas sempre entre o norte do país, onde viviam uns parentes com Quinta de brasão, e o estrangeiro que os avós desejavam que ele conhecesse como norma educativa) pois durante elas nunca o rapaz dava quaisquer notícias.
Ouvindo-a referir-se à festazinha, ele perguntara:
- E não me convidas?
A Mirita ficou embaraçada. Não tinha grande coragem de levar a casa um moço inteiramente desconhecido da família, tanto mais que o Pai não era para graças. Mas convidou.
E sucedeu que o Zé Chaves, com o seu encanto pessoal e passado um primeiro período de difícil habituação à sua presença, acabou por agradar ao próprio Juiz Abegorim que ao conhecê-lo melhor acabou por considerá-lo "fora de série", expoente de um gênero de educação quase por completo desaparecido do panorama moderno.
A partir desse momento o Zé Chaves deixou de ir esperar a Mirita à saída do Liceu. Passou, com a mesma regular irregularidade, a bater à porta daquele 4. andar normalmente cheio de alegria - que uma casa onde há quatro raparigas forçosamente transborda de animação! Trazia sempre ou uma flor para a Sr. Dona Teresa Mafalda, ou uns rebuçados para as meninas, ou um livro para o Dr. Álvaro Abegorim. E às vezes uma lembrançazita para a Sofia (quase sempre um lencinho) que o adorava e aos lencinhos que ele lhe ia dando enxugava lágrimas de enternecimento a gabá-lo e a afirmar que "rapaz assim não havia outro".
E tàcitamente a família inteira passou a considerá-lo noivo da Mirita. Ela própria o aceitava como tal. E no entanto nunca ele lhe dissera uma única palavra de amor ou fizera qualquer alusão a um casamento possível. Mas acontecia que se ela, Mirita, tomava qualquer decisão ou realizava algo sem lho participar, ele olhava a direito os olhos verdes que toda a gente afirmava serem lindíssimos, dizendo baixo mas com entonação que não permitia dúvidas acerca do poder que ele julgava ter sobre ela "não gosto que faças isso, Mirita. Eu existo, tens portanto de contar comigo antes de todas as iniciativas".
E assim a Mirita se habituou a pautar os seus hábitos pela vontade dele, sem que houvesse de qualquer forma preenchido o seu terno coração. Não porque não fosse capaz de o amar. Mas tinha medo!
Aliás tinha medo de muita coisa!. Já por duas vezes, durante a passagem daqueles seis anos, dois rapazes a haviam cortejado e ambos, sem dúvida alguma, o mais a sério possível. Um deles, justamente o mais simpático, era filho de um colega do Pai. O Zé Chaves notara a assiduidade dele, o seu encantamento junto de Mirita, e dissera à rapariga "não gosto desse tipo que aí vem. " - e tornara-se não só mais freqüente nas visitas mas também mais afectuoso.
Quando o moço estava presente (e com o segundo procedera da mesma forma) sentava-se ao lado dela, pegava-lhe nas mãos e falava-lhe bem ao ouvido durante largo tempo.
Então, sentindo o caminho vedado, ambos os pretendentes desistiram. E o Zé Chaves voltara à conduta normal, transitoriamente perturbada.
As três irmãs de Mirita, que também não percebiam lá muito bem o que se passava, costumavam dizer-lhe, pasmadas com a imensa paciência dela "eu, se fosse a ti, corria com ele. Ainda um dia aparece casado com outra e tu ficas para tia".
E aquilo era a base do medo da rapariga. Medo já terror. Terror de um nome.
A dinastia das tias!
As tias Casimiras, as Casimiras fatidicamente tias que se repetiam de geração em geração.
A tia Casimira, irmã do Pai, contava as histórias renovadas de 30 em 30 anos, desde os meados do século xix, desde que a primeira Casimira conhecida (Casimira Bastos de Menezes Abegorim) tivera um caso de amor muito semelhante ao do narrado no romance Amor de Perdição pelo grande Camilo. O Pai dessa Casimira, um longínquo tio-avô Abegorim façanhudo e tirânico, impedira-a de desposar o jovem boticário da vila próxima, estudante em Coimbra até à morte do Pai que o deixara sem recursos, ou antes, tendo como único recurso a botica para angariar o sustento dele, da Mãe e de dois irmãos ainda pequenos. Um rapaz digno do apreço de qualquer pessoa de bem. O soberbo Abegorim, que de aristocrata acima de tudo tinha a prosápia, interditou-lhe a mão da Casimira. O jovem apaixonado ia falar-lhe altas horas da noite, saltando o muro da cerca. O Pai ferrabraz soube do desacato, fez-lhe uma espera e deu-lhe uma sova. O enamorado Romeu de nova espécie não renunciou nem ao amor nem à vingança. E quando voltou a dizer palavras lindas à sua fiel Casimira levava no bolso do casacão uma pistola carregada. Quando, dias depois, um criado pago especialmente para espia o apanhou, o moço desesperado deu-lhe um tiro, mandou-o para o outro mundo contar ao diabo as peripécias deste. Resultado - cadeia e costa de África.
Casimira que, ao contrário das heroínas da época, nada tinha de débil, não morreu nem de desgosto nem de tuberculose. O Pai meteu-a num convento como cumpria, sob uma maldição sem barreiras "não casarás nunca! ". E deixou-a lá ficar, embora ela se recusasse obstinadamente a pronunciar quaisquer votos. Gastava os dias a bordar e a aprender doces, tornando-se lambareira e gorda.
Quando o Pai morreu ela completara há muito os quarenta anos - quarenta anos no tempo em que as mulheres envelheciam terrivelmente cedo.
Os irmãos mais novos estavam casados, com filhos. A mais velha fazia-lhes jeito em casa. Foram buscá-la, dividindo-lhe o ano em períodos de quatro meses, quatro meses em cada lar, a ensinar as sobrinhas a bordar e a confeccionar excelentes gulodices. Tornou-se assim na querida e indispensável tia Casimira. Honrando-a, uma nova sobrinha chamou-se Casimira. E como se a maldição "não casarás nunca" passasse de nome em nome, aquela Casimirinha que nada tinha a ver com a outra, não casou. Não casou nenhuma das Casimiras que em honra da "querida e indispensável tia Casimira" nascera para se chamar Casimira.
E a pobre Mirita, que sonhava com o seu marido, com os seus filhos, tremia dos pés à cabeça, num pavor natural. E, receosa de ver o Zé Chaves desaparecer, se tomasse atitudes que lhe desagradassem, nem definia a situação nem corria com ele.
- Mas tu ama-lo ? - perguntara-lhe certa vez a Rita.
Não soubera responder. Estava habituada a ele; era amiga dele. Mas seria aquilo o amor? A verdade é que não temia perdê-lo, muito embora reconhecesse as qualidades que ninguém podia negar-lhe. Receava, sim, ficar para tia.
Naquela noite, o Zé Chaves inicialmente muito solícito, acabara por mais uma vez se desinteressar um tanto dela, divertindo-se com uma esgrouviada ruiva, de calças, que pelo ar devia ser rapariguinha de namoro fácil e fácil dispersão.
Observando-o, Mirita só sofria por metade. Nunca a magoava o medo de ser trocada por outra (talvez por senti-lo tão pouco seu) mas sempre o de ficar só.
Sentara-se num canto, perto da janela, encolhida na poltrona que para ali fora empurrada. Uma sensação de infelicidade escolhia-a para alvo no meio da alegria geral. Era o isolamento!
Mas, de súbito, Mirita percebeu que afinal estava acompanhada. A seu lado, instalado em cima de uma almofada (havia imensas, espalhadas no chão, a proporcionar melhor comodidade que as empeçantes cadeiras) achava-se um rapaz de cuja existência ela até aí não dera fé, moreno, de cabelos encaracolados sobre uma testa larga, rosto redondo e uns olhos grandes, castanhos, uns olhos de expressão inquieta e ao mesmo tempo curiosa. Não devia ser alto. E também não era magro. Nem bonito. Mas havia nele um ar Bom, um ar de pessoa consciente.
E quando Mirita o encarou, ele, que sem dúvida a contemplava havia já algum tempo, sorriu-lhe. E, o mais naturalmente possível, perguntou-lhe:
- Não tem estado muito divertida, pois não? com a mesma naturalidade, abanando a
cabeça, a pequena confessou:
- Não.
- Percebi logo. E foi por isso que vim para junto de si. É aborrecido estar-se só numa noite em que todos procuram andar aos pares.
- Você também está só?
- Inteiramente.
- Então por que veio ?
- Sou primo da Maria Alice e ela convidou-me.
- Primo da Alicinha? Mas nunca o vi!
- Conhece-a há muito tempo?
- Muito. Somos vizinhas e amigas desde pequenas. Bom, a intimidade é principalmente com a minha irmã mais velha, mas damo-nos todas.
- Ela nunca lhe falou de mim?
- Quem é você ?
- O Antônio Fontemora.
- O alentejano?
- Pelos vistos, a Maria Alice sempre revelou a minha existência distante.
Mirita abriu mais os olhos, para o ver bem. Ele sorriu:
- Pareço-lhe um bicho raro?
- Não, não é isso. - e, ligeiramente encavacada, não sabia explicar o seu ar de espanto.
Antônio Fontemora insistiu:
- Diga. Diga! A minha prima, que de resto mal me conhece, dado que só em Outubro vim estudar para Lisboa, descreve-me com umas cores muito carregadas, não? Gosta de me tornar caricato.
- Não, não!. Ela, a única coisa que nos contou, um dia, é que você era poeta.
- Parece-lhe alguma coisa do outro mundo ser-se poeta?
- Pelo menos não se é poeta quando se quer.
- Mas toda a gente pode fazer versos! Então entre nós, portugueses, não há nada mais vulgar e acessível. Na nossa época, principalmente, cada vez mais vulgar e acessível. Basta alinhar palavras e garantir que são versos. Os que não se atrevem, receosos de uma incompreensão que os faça parecer menos intelectualmente desenvolvidos, a declarar que não é verdade, que aquilo não é poesia, que aquelas drogas não passam de um chorrilho de disparates, facilitam o seu aparecimento. Há muitos, por aí, a dizerem pedra, cavalo, sarnice, zabumba, esqusofreudianamentemente, só porque os deixam. Não acha?
Mirita ria, agora, achando deliciosa aquela forma nova de conversação, inesperada e fácil. Ora ali estava um rapaz que não se limitava a falar, também pedia um parecer, uma opinião.
Interessadíssima no que se apresentava como uma novidade, uma descoberta, ousou indagar:
- Então você não é poeta como esses tais?
- Se fosse poeta como. como esses tais, não era poeta! - e após uma pausa. - Gosta de versos?
Mirita teve a coragem de ser sincera.
- Conforme. No Liceu nem sempre apreciava os versos que me obrigavam a ler.
- Quais os poetas que conhece ?
- Soares de Passos (branca e loira, muito loira e fria. ) Cesário Verde, Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Afonso Lopes Vieira, Sá de Miranda, Camões. e outros. Os que vêm nas selectas!
- Nunca lê livros de versos, completos? Gorando, a sentir-se em falta, redarguiu:
- Não.
- E gostava de ler?
- Os mesmos poetas, outra vez?
- Possivelmente o que você estudou desses poetas - alguns deles grandes poetas! - não chegou para lhe dar uma idéia exacta do que eles são, do que eles pensaram ou não pensaram, do que eles vibrando comunicaram. Se quiser. - e bruscamente: - Como é que você se chama?
- Casimira. Mas toda a gente me trata por Mirita.
- Pois se quiser, Mirita, encarrego-me da sua educação poética.
- Como ?
- Empresto-lhe Antônio Nobre, Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Miguel Torga e José Régio, para começar.
E ela, sorrindo:
- Há obras de todos, lá em casa. O meu Pai tem uma estante só com poetas.
- E você resistiu-lhes? - depois, suavizando a censura: - Pois é, certos estudos obrigatórios anulam o nosso desejo de aprofundar o conhecimento das obras em si. A coisa forçada faz com que tudo nos pareça árido, insuportável. Normalmente desinteressamo-nos de andar para diante assim que nos livramos do que nos foi imposto. Eu sei. Ia esbarrando nos Lusíadas por causa disso. Um dia (eu era peco na compreensão das orações!) a minha Professora de português obrigou-me a dividir o canto quinto inteirinho. Fiquei a considerar o Poema abominável, apesar de todos os argumentos e demonstrações em contrário. No ano passado aventurei-me a uma nova leitura, tentando vencer corajosamente a minha repugnância. Descobri maravilhas sem conta!.
Mirita estava decididamente presa ao assunto, no limiar de um mundo novo, tivesse muito embora esse mundo raízes mergulhadas num bem velho e sempre repetido. Tudo o que ouvia agora talvez o tivesse já escutado, dito pelo Pai, por um amigo do Pai, por qualquer uma das pessoas inteligentes e cultas que lhe freqüentavam a casa, talvez até pelo próprio Zé Chaves. Mas na boca daquele rapaz assumia outro valor, outra importância.
E então aventurou-se a interrogá-lo:
- Oiça. Antônio. O Fernando Pessoa é realmente muito bom?
Os grandes olhos castanhos resplandeceram:
- Muito bom? Màgicamente extraordinário!
- Eu. eu, bem, não percebo nada de poesia, mas quando li aquela coisa. como é que se chama? -(e tentava recordar-se dos versos) -O leme. D. João II. do outro lado do mar.
- O Mostrengo, quer você dizer. Refere-se a um dos poemas que constituem a Mensagem.
- É isso!
- Não, Mirita, não creio que na Mensagem Fernando Pessoa atinja o seu máximo. Há que lê-lo nas poesias onde alcança um clima espantoso de altura, tão acima do comum que todos os que pretendem imitá-lo apenas conseguem mostrar as suas dimensões de pigmeus. É preciso ler toda a poesia de Fernando Pessoa, incluindo os heterónimos.
- O que são os heterónimos?
- Você nunca ouviu falar? Nunca estudou? Não posso acreditar!
- Eu estudei, claro. mas não aprendi grande coisa. Passei com 10 a literatura. E como sempre tenho vergonha de manifestar a minha ignorância, continuo ignorante visto que nada pergunto. -e agora não se acanhava de mostrar o seu desconhecimento do que a ele parecia tão importante.
Então Antônio Fontemora começou a explicar:
- Bom, os heterónimos são na verdade desdobramentos das personalidades de um criador. Dentro de Fernando Pessoa havia ilimitadas possibilidades para expressar idéias e sentimentos, os quais eram entre si tão diversos que, separados uns dos outros, constituíam gêneros à parte. E então ele escalonou-os, dividiu-os e definiu-os, assinando-os com nomes imaginados.
- Isto é. desdobrou-se noutros poetas?
- Exactamente. Ele sozinho tornou-se vários poetas.
- Percebo, percebo!
- Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, cada um com seu estilo, sua maneira, emergindo da alma de um único verdadeiro.
Mirita entusiasmava-se.
- Mas é maravilhoso!
- Sim, maravilhoso!
Ela ficou por instantes calada, a mirar os dançarinos. Na verdade não os via. Não via ninguém. Pensava.
E, de súbito, olhou de frente para Antônio Fontemora e desfechou numa observação tudo o que lhe enchia o espírito.
- Antônio, não sei porquê. mas parece-me que você não é um rapaz moderno!
- Não sei o que pretende você dizer ao certo com o vocábulo moderno.
- Dá-me a idéia, por exemplo, de que gostou mais de ver há bocadinho a minha irmã a dançar o tango do que gosta de ver estes pares todos a fazerem piruetas.
Antônio sorriu.
- Oiça, Mirita, não se habitue a considerar as pessoas modernas porque as vê obedecer cegamente a um estilo ocasional que toma o nome de moda e lança determinado ritmo como impõe certo comprimento de saia ou corte de cabelo. Não! As pessoas que seguem essas forças passageiras são as mais comodistas, as que não estão dispostas a perder tempo raciocinando, discutindo a oportunidade, a conveniência, o gosto ou a beleza das coisas. Quem só faz o que vê fazer, quem só usa o que os outros usam, quem só quer parecer o que os outros parecem, não tem iniciativa própria, nem opinião sua, nem coragem suficiente para se mostrar como é. Realmente modernas são as pessoas que, de século a século, apreendem de tudo o belo e o Bom, e impõem a sua forma de ser, e hasteiam a sua personalidade como um direito natural. Modernas são as pessoas inteligentes que não temem em qualquer ocasião afirmar "isto é ridículo" ou "isto é sensacional"! São as que repudiam o mau, denunciam o caricato e aceitam a novidade gloriosa que traz consigo a evolução real e o factor progresso. As pessoas modernas não têm o mínimo receio de condenar o que a tal moda dita, porque estão equilibradas dentro de todas as modas. As pessoas modernas, e nisso considero-me moderníssimo'. não temem afirmar que apreciam o tango só porque uma falange de desmiolados garante que o tango não se usa. Não lhe parece?
Mirita quereria responder, aprofundar o assunto, discuti-lo, continuar a ouvi-lo, e falar visto que a interrogavam. Tinha a impressão de que se lhe abrira na frente uma porta pela qual lhe era lícito passar para um mundo muito mais bonito do que aquele em que até aí vivera. Mas já uma forte e branca mão descia para o ombro dela, enquanto uma voz segura exigia:
- Vamos dançar, Mirita.
Ele!
Lá vinha ele à procura dela, no momento menos indicado!
Sentiu ímpetos de lhe responder "não quero dançar". mas não só percebeu que era inútil, porque o Zé Chaves se sentaria imediatamente ao lado dela, a vigiar o diálogo que iria desagradar-lhe, como o doce momento durante o qual ouvira um rapaz diferente dos outros havia terminado. E depois existia também, no fundo de si própria, aquele medo horrível, horrível. Se ele se fosse e não voltasse?. E ela ficasse sem ninguém que a quisesse, logo. para tia?
Ah, o pavor atávico da solidão!. Passiva, de lábios a tremer, ergueu-se.
Antônio Fontemora, muito sério, não esboçara qualquer gesto.
Mirita deu dois passos em frente. mas algo a não deixava avançar. Como se um elástico a retivesse. Muito embora dando de si, o elástico prendia-a.
Então parou, voltou-se para trás. O Zé Chaves puxava-a, mas ela não o seguia. Olhava os olhos castanhos do moço poeta. E disse-Lhe, num impulso de coragem:
- Sabe? Gostava de ler os seus versos!. O Zé Chaves franzira a testa, num misto de incompreensão e de surpresa.
E o rapaz moreno, de ar apagado e nada bonito, respondeu:
- Pois sim, Mirita. Eu depois peço o número do seu telefone à minha prima e falo consigo, para combinarmos a maneira de lhe emprestar a minha papelada.
Com rudeza, o Zé Chaves deu-lhe um esticão.
- Vamos!
Ela não resistiu mais. Foi.
Mas não percebeu bem porque é que ele, no meio daquele bailado exótico, infernal, cada qual procurando desenvolver mais actividade que o parceiro, a enlaçou como há pouco no tango o Júlio fizera à Lili. Nem se preocupou em compreendê-lo! De resto o Zé Chaves, como de costume, falava, falava sempre. Mas ela não o ouvia. Olhava para Antônio Fontemora.
E Antônio Fontemora, de cabeça baixa, escrevia.
Tinham ido todos para a sala de jantar, onde uma ceia explêndida os esperava.
A Sr. Dona Maria do Espírito Santo, ao fim da tarde duvidosa ainda da fartura da improvisação, recorrera à carteira do marido, essa carteira sempre bem provida e aberta aos seus desejos e, com um telefonema para a pastelaria de que normalmente se fornecia, obtivera em pouco mais de duas horas um avantajadíssimo suplemento.
E a mesa, bem posta, como era timbre da casa, oferecia à gula da juventude os mais diversos e saborosos acepipes.
Comia-se vorazmente. E bebia-se, desde o vinho branco gelado ao cup, geralmente preferido pelas meninas.
As irmãs Abegorim estavam dispersas pela sala.
Mirita como que dominada pelo Zé Chaves. Lili entretidíssima com o Júlio que tomara a seu cargo obsequiá-la com as melhores coisas que descobria. A Ritinha conversava com outra rapariga. Rosarinho aturava um dos gêmeos barbudos que nunca mais deixara de cantar louvores a quanto havia - e não havia-em Inglaterra (a pequena viria depois a confessar que ficara enjoada da Inglaterra para o resto da vida).
Os donos da casa, veladamente, iam seguindo a evolução do serviço e da compostura dos presentes. Não havia nada de extraordinário a anotar. Só uma das mocitas de mini-saia (precisamente a que a trazia mais curta, mais rente ao que se tornava ainda necessário tapar em derradeira concessão ao pudor - pobre pudor, tão ultrajado!. -) é que de vez em quando tomava uns ares dengosos junto do rapaz que a não largava. Mas enfim, não ia ao ponto de atrair sanções. De resto ninguém lhe ligava de forma a sentir-se incomodado com a conduta inconveniente. Comer era bem melhor do que disfrutar cenas de meninas impróprias.
E a animação, os risos, a alegria, estavam no auge quando a Alicinha, que há instantes saíra da sala de jantar, reapareceu, mais branca do que nunca, para ir direita à Lili que se achava do outro lado, ao pé da marquise. Chegou ao pé dela, puxou-lhe pela mão.
- Preciso de te falar. - declarou com um ar tão alterado que a Lili abriu uns olhos desmesurados, a pensar que sucedera alguma desgraça.
- Que foi ?
- Vem comigo. - e rebocou-a para fora da sala, pelo meio dos que se afastavam para as deixar passar.
Vendo que a amiga se dirigia para o quarto de banho, a Lili julgou perceber:
- Estás mal disposta ?
- Não, que idéia! O que estou é. assustada!
E enfiou pelo aposento privado sem acender a luz, dizendo-lhe com ar imperioso, ao mesmo tempo que apontava a janela:
- Espreita!
A Lili, assarapantada, pôs um joelho sobre a tampa preta da sanita (sabia a cor pelas anteriores visitas, durante as quais sempre admirara a luxuosa combinação do negro com os mármores azuis). E depois de posto o joelho na tampa, soergueu a ponta da cortina de plástico branco e azul (cores sabidas pela mesma razão) e olhou para fora.
A janela dava para o saguão, o saguão que dividia em rectângulo aqueles prédios contíguos e para o qual abriam três divisões de cada lado - o quarto de banho, a sala de estar e uma janela do corredor (ambos os edifícios pertenciam ao mesmo senhorio, haviam sido feitos pelo mesmo arquitecto e em tudo eram idênticos).
Contemplando pois o saguão, a Lili pasmava. Não via nada senão a noite! A noite escura como breu. E não pôde repelir um mau pensamento. A Alicinha devia ter um copo de cup a mais. Desconfiada, voltou-se para trás, comentando:
- O melhor é ires deitar-te um bocadinho que isso passa-te.
A outra percebeu-a à légua e deixou escapar a tal palavra muito feia - merda - acrescentando logo a seguir:
- Não sejas idiota! Estou tão bebida como tu! -e enfiando um pé no bidê, espreitando ela própria o negrume, soltou uma exclamação de triunfo.
- Claro! Lá está!
- Mas está o quê?
- Luz!
- Luz? Que luz?
- Ó rapariga, luz em casa dos Macedos!
- Heim?. -e como se fosse a enfiar-se pela vidraça, a Lili tornou a olhar para fora, desta vez para ver. E viu! Viu que pelas frinchas da janela da sala do segundo andar vizinho se escoava um delgado fio de claridade.
Temendo ser vítima de alguma alucinação, esfregou os olhos, tornou a afirmar-se na observação. Não havia dúvidas! Lá estava o inequívoco sinal de casa habitada!
Então, atarantada, recuando para o meio do quarto de banho, a Lili balbuciou:
- Mas não há lá ninguém!
- Por isso mesmo é que eu estou toda a tremer! - confessou a Alicinha.
- Então. que é que tu pensas?
- Ó filha, eu cá só posso pensar uma coisa! São ladrões!
Não havia que duvidar da sanidade mental da Alicinha Fontemora.
Naquela noite de Carnaval, em que uns dormiam pacatamente e outros se divertiam até às tantas, alguém se propusera fazer uma limpeza no lar desabitado, a coberto da hora ideal.
- É preciso tomar providências! - sugeriu a Lili.
- E como?. Que é que te parece?
- Espera. Se vamos dizer lá dentro, há para aí um borborinho dos diabos e o ladrão.
- ou os ladrões!
- Pois. ou os ladrões. escapam-se!
- Por isso é que te fui buscar, só a ti. Para não dar o alarme.
- Espera. O melhor talvez seja eu telefonar ao meu Pai!
- Se calhar está a dormir!
- Não creio. Fica muitas vezes a ler até tarde! E de resto, como Juiz, sabe logo o que será melhor fazer-se.
Aquela do Juiz saber qual a forma ideal de agir para apanhar um ladrão (ou os ladrões) com a boca na botija, tornava-se irrespondível. E a Alicinha, sem qualquer sugestão mais a propósito, logo anuiu:
- Anda então.
Encaminharam-se rapidamente para o quarto dos Pais dela, onde o telefone fora colocado.
A Lili ligou para casa.
Foi o próprio Dr. Abegorim quem atendeu e sem demora, confirmando que de facto se encontrava a pé, como a filha supusera.
- Está?.
- Sou eu, Pai.
- Que há, Lili?
- Luz em casa dos Macedos!
Tal como ela pouco antes, o Pai exclamou:
- Heim?
- Luz em casa dos Macedos, Pai! - repetiu, logo acrescentando: - É com certeza algum ladrão.
O Dr. Álvaro Abegorim não era de forma alguma nem romanesco nem fácil de impressionar. Mas a hipótese não se lhe afigurou tresloucada. Ou não soubesse ele por demais o que ia por esse mundo fora! No entanto, prudentemente, resistiu:
- Tens a certeza de ver luz?
- Tenho, sim, Pai! Foi a Alicinha quem deu por isso.
- Porquê ?
- Não sei. - e perguntou à amiga: - Como é que deste pela luz?
- Apeteceu-me espreitar pela janela, sei lá!.
A Lili volveu, junto ao bocal do auscultador:
- Ela espreitou por acaso, Pai. Viu a luz e foi chamar-me. E eu também já a vi.
- Vá tornar a ver, filha. Olhe que pode ter sido uma ilusão.
- Uma ilusão ?
- Ou quem quer que seja o visitante, se o houve, ter-se já retirado!
- Está bem, Pai. vou outra vez ao quarto de banho, verificar.
O quarto de banho achava-se ocupado. A Lili voltou para trás, a correr, e foi espreitar à janela da saleta. Como era paralela à do andar do lado, não se via nada. Tornou para o quarto de banho. Estava a porta a abrir-se e o Antônio Fontemora a sair. Pareceu um pouco comprometido - como se ir ao quarto de banho fosse alguma coisa menos normal! - e ao mesmo tempo divertido ao notar a forma como a rapariga entrou por ali dentro. Não fechando ela a porta, estranhou. Mas antes de ter tempo de pensar o que quer que fosse já a Lili voltava a sair, disparada, e desaparecia.
O rapaz voltou para a sala de jantar, renunciando filosòficamente a encontrar qualquer interpretação para o facto.
De novo ao telefone, Lili confirmava, excitadíssima:
- Está tudo na mesma, Pai! Há luz em casa deles!
Percebeu que o Pai ficara preocupado, tão preocupado que não disse nada aí durante meio
minuto. Ela, ansiosa e assustada, tanto como a Alicinha, que a não desfitava, inquiriu:
- Então, Pai?
- Chame aí o Sr. Engenheiro num instante. A Alicinha, que ouvia o que o Juiz dizia, abalou a procurar o Pai que não percebia qual a razão porque à meia-noite e meia-hora daquela segunda-feira de Carnaval era tão urgente que ele fosse ao telefone. Quando atendeu e ouviu o que o Dr. Abegorim lhe explicou, mudou de expressão. Mas quis ele próprio certificar-se da verdade. Dirigiu-se ao quarto de banho. A porta estava fechada. Então lembrou-se da janela do corredor, ao fundo. Para lá se encaminhou a toda a pressa.
E não havia dúvidas. Distinguia-se perfeitamente o delgado fio de luz a coar-se pelas frinchas de uma janela do andar da família Macedo.
Voltou ao telefone, alterado:
- É preciso tomar providências, Sr. Dr. Juiz.
- Também acho, Sr. Engenheiro.
- Avisamos a polícia?
- Para entretanto o ratoneiro, ou os ratoneiros, se escapulirem?
- Então qual, o seu parecer?
- Que diz, se lhes fizermos um cerco?
- Como um cerco?
- O senhor tem aí a casa cheia de rapazes. Escolha dois dos mais destemidos, um para o acompanhar a si, outro para me acompanhar a mim. Eu vou pela escada principal, o Sr. Engenheiro sobe pela de serviço.
- Percebo, percebo!.
- O fulano, ou os fulanos, tentam escapar-se mas encontram a retirada cortada, porque o Sr. Engenheiro estará do lado de trás.
- Claro, claro!.
- Há ainda duas hipóteses a considerar.
- Quais?
- Pode, ou podem, tentar fugir pelas janelas.
- Saltando de um segundo andar? Pouco viável. Mas obsta-se a essa tentativa, visto dispormos de gente, colocando uns poucos de rapazes na rua e no quintal, nas traseiras.
- Acho bem. Mas resta outro perigo.
- Diga, diga!
- O malandrim, ou os malandrins, talvez estejam armados.
- É certo!
- E se há alguma desgraça a lamentar? notava-se a inquietação do Dr. Juiz: - O Sr. Engenheiro possui alguma arma em casa?
- Um velho bacamarte do tempo do meu trisavô.
- Isso não serve para nada!
- Posso levar um dos meus bengalões! - o Eng. Fontemora fazia colecção de bengalas.
- Isso, isso! E distribua as outras pelos rapazes. Pelo menos de uma sova o patife (ou os patifes) não se livra. De resto, para o manter em respeito, eu levo o meu revólver.
E foi delineado o ataque à casa assaltada.
Mal as duas raparigas, apoiadas pelo Eng. Fontemora, conseguiram o silêncio necessário para se fazerem ouvir, explicando atabalhoadamente os factos (e ainda mais atabalhoadamente porque falavam os três ao mesmo tempo), foi um borborinho dos diabos!
Uma emoção nova, diferente, galvanizava-os a todos. Era verdadeiramente assombroso um tal acontecimento numa noite de Carnaval! Alguém o sugeriu e logo vozes lançaram uma nova desconfiança. Aquilo era capaz de ser partida.
Foi preciso o Pai da Alicinha explicar tudo de novo com a garantia da sua palavra de honra, para voltarem a acreditar. E mesmo assim os dois gêmeos não resistiram a ir espreitar ao quarto de banho (estava de resto esclarecida para o Antônio Fontemora aquela entrada e saída da Lili que tanto o intrigara).
E então as raparigas, excitadíssimas, aderiram à iniciativa, ou melhor, exigiram comparticipar dela! Recusavam-se a ficar em casa, declarando que não eram nem medrosas nem assustadiças.
Mas a Sr. Dona Maria do Espírito Santo não se importava de ser medrosa e assustadiça. Pelo contrário! Tremia e tremia por todos e aconselhava a que, em vez de se meterem em trabalhos, chamassem a polícia.
Já entretanto o marido distribuía por uns poucos de rapazes as suas famosas bengalas.
O telefone tocou.
Era o Sr. Dr. Juiz a perguntar se estavam a postos - estavam a postos! - e a esclarecer que a mulher e a criada se encontravam à janela desde o primeiro instante do alerta e não tinham visto sair ninguém do prédio. Havia pois a certeza de irem apanhar o assaltante (ou os assaltantes) com a boca na botija.
De parte a parte foi recomendado o maior silêncio.
O Dr. Álvaro Abegorim ia num instante abrir-lhes a porta da rua e chamar o porteiro, para que fizesse o mesmo à das traseiras. De pantufas e pelas escadas, claro. Nada de elevadores a funcionar!
Poucos instantes decorridos havia um verdadeiro ajuntamento à entrada do prédio. E por mais que os dois responsáveis aconselhassem, em surdina, silêncio, havia um permanente fervilhar de risos e de cochiches. Sob o espanto do Sr. João porteiro, que não acreditava no que lhe afirmavam - um ladrão em casa da família Macedo, podia lá ser! - formaram-se os dois grupos.
O Eng. ? Fontemora dirigiu-se para a rectaguarda do edifício. com ele seguiam a Rita, a Mirita, o Zé Chaves, o Antônio Fontemora, e mais uns poucos.
Pela escada da frente subiram o Sr. Dr. Juiz, com a Alicinha que não quisera separar-se da Lili e a Lili não quisera deixar o Pai, a Rosarinho, os gêmeos das barbas, o Júlio e os restantes voluntários.
O plano consistia em tocar à porta uma vez e esperar. Repetir o toque. Depois, pelo lado de trás, a campainha retiniria também. E o ladrão - ou os ladrões - percebendo-se completamente cercado, ou se entregava ou.
E prever as reacções de um gatuno?
Soou a primeira campainhada.
Os corações de todos palpitavam com força. Um arrepiozinho enervante percorria-lhes as espinhas. Já não falavam nem riam.
E quando o Dr. Abegorim se preparava para repetir o toque, uma voz masculina, bem timbrada, perguntou do interior, com verdadeiro espanto:
- Quem é?
Encostaram-se uns aos outros, num gesto instintivo de defesa.
Absolutamente imprevisto que um ratoneiro, por mais categoria que tivesse, perguntasse "quem é?" como se fosse o dono da casa.
E o Sr. Dr. Juiz, calmíssimo:
- Gente de paz!
Acendeu-se a luz da escada (a que possuía interruptor dentro de casa). E logo se percebeu o abrir do ralo. O Sr. Dr. Juiz era, no enquadramento, a pessoa que se divisava do interior, tapando o grupo assarapantado.
E ouviu-se então a mesma voz comentar, enquanto a chave rodava na fechadura e o trinco cedia:
- Olha o Sr. Dr. Juiz! . Cada vez mais incrível!
A Rosarinho mal teve tempo de pensar que o Pai era decididamente muito conhecido entre os larápios.
A porta acabava de escancarar-se enquanto o grupo recuava meio passo, na expectativa da revelação. Na moldura iluminada surgiu o vulto alto e galante que naquele momento o Dr. Abegorim já sabia que ia ver.
O Pedro Ferreira de Macedo!
Foram segundos difíceis para todos, porquanto já a Lili e a Alicinha e o Júlio e os gêmeos exclamavam, reconhecendo-o:
- O Pedro!.
Por instantes o Dr. Álvaro Abegorim sentiu descer sobre si um ridículo tremendo debaixo do olhar espantadíssimo do rapaz, tanto mais espantado quanto já pelo lado de trás retinia outra campainha - a da porta de serviço.
Ninguém falava.
E o Pedro, com o seu ar de grande Senhor encarando o vizinho - o vizinho que conhecia de pequeno e sabia ser uma pessoa do maior respeito - disse por fim:
- Se não fosse a presença do Sr. Dr. Abegorim eu acreditava tratar-se de uma brincadeira de mau gosto. visto que não posso permitir que "assaltem" a casa de meus Pais!
- e encarando o Juiz: - A presença de V. Exa, porém, assegura-me que houve uma razão especial para isto.
Acabava de soar a deixa que permitiria ao Dr. Abegorim explicar os acontecimentos. Ergueu a mão direita, para iniciar a sua tirada, mas como a campainha das traseiras vibrasse de novo, ele ordenou:
- Vá alguém avisar dos factos o Sr. Eng. ? Fontemora, por favor.
Ninguém se mexeu. Ninguém queria arredar pé.
Então o porteiro, alheio a problemas que ultrapassavam a sua modesta compreensão de pessoa simples, declarou que ia ele.
O Pedro afastou-se para dar passagem a quem desejasse entrar, dirigindo um sorridente convite ao Dr. Álvaro Abegorim:
- Sr. Dr. Juiz, tenha a bondade. Palpita-me que sei o que sucedeu, o que pensaram. com certeza que vou ter não só de pedir-lhes desculpa do incômodo como de agradecer-lhes a extraordinária iniciativa de virem defender a minha casa. Passem todos!
- Não! - volveu o Dr. Abegorim, reconhecendo que o rapaz dera aos factos a sua exacta interpretação. - Todos não! São muitos!
A Alicinha adiantou-se, menos branca e fria do que o habitual.
- Estávamos em festa, na minha casa! E o Pedro:
- Eu sei! Bem ouvi.
A maioria dos presentes apinhados no patamar, gorada a descoberta e a prisão do salteador (ou salteadores) desinteressara-se do assunto, uma vez que as razões que haviam levado o jovem dono da casa a buscar a solidão, fossem elas quais fossem, não podiam competir com mais uma hora de ceia na residência da Alicinha. E desandaram em tumulto, rindo e comentando o incidente.
Ficaram apenas, dispostos a entrar no lar dos Macedos, o Dr. Juiz com três das suas filhas (a Rita voltara para o bailarico) a Alicinha, o Antônio Fontemora, o Zé Chaves, o Eng. Fontemora, (entretanto chegado com os seus companheiros e ciente do que se passava), e o Júlio Matinha. Estes transpuseram a porta franqueada e acompanharam o Pedro até à sala de visitas, cujas luzes ele se apressou em acender.
E ao alarido de momentos antes sucedeu o silêncio. A pouco e pouco todos emudeceram.
Não, não era uma sensação de tristeza a que descia sobre o pequeno grupo, pelo menos dessa tristeza que sufoca as pessoas quando os corações se apertam ante o espanto de um grave acontecimento, mas sim uma como que leve nuvem, e provinha dos olhos do jovem dono da casa, imóvel, extático no meio do aposento.
Dir-se-ia que a alma do Pedro não estava ali. Dir-se-ia que a realidade do Pedro se afastara para bem longe do que o rodeava. Perdida no passado? No futuro? Ou apenas num presente a desenrolar-se muito longe dele? Era. como se estivesse rodeado de vazio.
Mas, de súbito, o rapaz viu que havia bastante gente à sua volta e que não podia continuar como até então. E sob os olhares que se concentravam nele, uns incomprensivos, outros apenas admirados, um sorriso nasceu na sua boca bem desenhada. Voltado para o Dr. Juiz, disse, confirmando a suposição pouco antes formulada:
- Viram luzes e imaginaram que estava aqui algum ladrão. Acudiram e agradeço-lhes muito! Agradeço-lhes até a dobrar. Talvez fizessem melhor do que possam ainda supor. Vieram libertar-me de uma terrível hora de angústia, uma hora de angústia a que não pude eximir-me, por mais ridícula que seja considerada por alguns. O Pedro Ferreira de Macedo, um homem feito, um aluno da Faculdade de Medicina, com crises de sentimentalismo, qual menina romântica de outras épocas. pois segundo determinados critérios modernos sentimentos rotulados como piegas não devem sobreviver. Mas.
Todos mudaram de posição naquele mas, procurando ficar da maneira mais confortável. Os que estavam de pé encostaram-se ou às paredes ou aos móveis.
E o Pedro prosseguiu:
- Mas os factos são os factos e os sentimentos os sentimentos. Li há tempos, não me lembro onde, que mude o que mudar à superfície deste planeta não muda a estrutura íntima da criatura. Eu senti-o hoje, como tantas outras vezes, aliás, dominando-me, arrancando-me talvez a uma conduta mais razoável. Pois que procurava eu nesta casa fechada? A presença dos que se encontram longe. como se me pudessem acolher em qualquer um dos cantos onde me habituei a vê-los desde sempre. Certamente o Sr. Dr. Juiz sabe. pois estas coisas, num prédio como o nosso, não se ignoram.
Uma vozinha clara interrompeu-o:
- Sabemos lindamente. A Sofia era muito amiga da Laura e da Arminda!
O Pedro sorriu à miúda que falara - uma miúda de longos cabelos louros - confirmando o que até aí ignorara por completo (não eram assuntos que chegassem ao seu conhecimento, aqueles) com um "ah, pois!" E logo continuou, sem mais ligar à informação:
- Os meus Pais partiram para Luanda, com caracter permanente, nos fins de Novembro passado. com eles seguiram os meus três irmãos. Fiquei instalado em casa de um amigo de infância, um amigo que na realidade é para mim como um irmão, também. O amigo mais íntimo, o companhieiro e colega, o futuro cunhado.
A miúda loura tornou a abrir a boca. mas não disse nada. Como podia ela atrever-se, notando o Olhar repreensivo do Pai a adivinhar-lhe a vontade de estabelecer diálogo, de aproveitar o ensejo para falar da Ana, da Ana aluna do seu Liceu, mais adiantada um ano do que ela e de quem toda a gente desde há tanto falava, apontando-a como um exemplo, como um modelo dos que nunca se esquecem?
Ana Maria Ferreira de Macedo!.
Roendo as unhas, nervosamente, e ouvindo o Pedro, a Rosarinho lembrava-se da figura esbelta e atraente dessa que nunca dera por ela. Ou antes, uma vez, no elevador, pusera-lhe um dedo na ponta do nariz como se premisse o botão de uma campainha e declarara "não se me dava ser tão bonita como tu. "
E o Pedro ia dizendo:
- Em casa dele nada me falta, é evidente, nem sequer a presença de uns segundos Pais que me cumulam de atenções superiores muitas vezes às que dedicam ao filho. É possível que esta mesma atitude me avive a noção de que não sou. filho deles. Aliás não queria sê-lo. Nunca ambicionei outros Pais que não os meus. Creio que, embora nenhuns filhos devam desejar ter outros Pais, nem haja sequer razões para os desejar, os meus são os Pais mais desejáveis deste mundo.
Todos agora ali sabiam que o Pedro não estava a falar para eles. O Pedro esquecera-se dos que o ouviam. O Pedro voltara a isolar-se no seu mundo, as pessoas eram móveis e ele prendia-se ao que lhe interessava, ao que para ele constituía a necessidade de se encontrar a sós com o que mais amava.
E a Rosarinho, evocando as palavras nesse dia distante ouvidas à irmã do Pedro, viu-se reflectida no grande espelho de cristal de Veneza colocado por cima da cômoda. E vendo-se, perguntava à sua própria imagem porque fora que a Ana a achara "tão bonita".
E, de súbito, soou a voz cristalina da mais nova das Abegorins, pronunciando com a maior naturalidade:
- Sou uma garota tão sem graça!.
Foi um choque eléctrico na àbstracção geral.
O Pedro estremeceu e abriu os olhos da alma que cerrara, recomeçando a notar que havia gente à volta dele. Os outros riram-se e agitaram-se. Mas ninguém perguntou à Rosarinho porque chegara ela a tão inesperada conclusão, sentindo-se no dever de a proclamar alto e bom som.
De resto as atenções foram logo todas captadas pelo Pedro que, voltando à realidade, achava necessário concluir as suas explicações:
- A verdade é que hoje, no fim do jantar, como o Paulo fosse agarrar-se aos livros e eu me sentisse exausto pelo peso de tanta saudade, vim até aqui. Creio que os meus amigos imaginaram que eu buscava distracções talvez muito de acordo com a quadra e com a nossa idade. Eu apenas buscava. isto. Entrei, percorri as divisões, uma a uma, recordando tanta coisa, e os ausentes que eu desesperadamente, infantilmente, procurava encontrar. A seguir fechei-me na sala de estar, onde os meus irmãos e eu tantas vezes estudámos juntos, e entreguei-me ao passado. Aos poucos principiámos a ficar menos isolados, a casa e eu. Porque a casa me tinha a mim. Porque eu tinha a casa. E depois. depois retiniu a campainha da porta e aconteceu solidariedade, aconteceu simpatia. Aconteceu humanidade!
- deteve-se aqui, envolvendo-os a todos num olhar comovido. E concluiu: - Muito obrigado! Agora só lhes peço que não continuem a perturbar a sua noite de Carnaval, tão alegre, com as minhas melancolias!
A Alicinha avançou para ele, mas não para se despedir.
- Vem connosco, Pedro! O Pedro sorriu-lhe.
- Agradecido, mas não!
- Fazia-te bem libertares-te dessa tristeza.
- Não sinto a mínima disposição de fugir-Lhe. De resto, o que de melhor podia suceder para confortar a minha solidão, sucedeu. Foi esta prova de interesse acudindo para evitar que alguém molestasse a casa de meus Pais!
Estava tudo dito, parecia. O Eng. ? Fontemora adiantou-se para ele, a apertar-lhe a mão.
- Meu jovem amigo, quando quiser, a minha casa está ao seu dispor!
Principiaram todos a sair, depois dos adeuses finais.
Ficaram por fim, e apenas, o Dr. Juiz com as três filhas, o Júlio e o Zé Chaves, numa troca banal de palavras a anteceder a separação.
E depois, o Júlio diante do Pedro. E o Pedro a olhar para o Júlio, de testa franzida denotando um esforço da memória sobressaltada por algo inesperado. Percebendo-o, o outro indagou:
- Lembra-se de mim, Pedro? E o Pedro, sincero:
- Creio que o conheço, mas não sei de onde, confesso!
O rapaz sorriu:
- Passaram realmente uns anos desde a última vez em que estivemos juntos. E nem pode imaginar o gosto que tenho voltando a vê-lo, ou melhor, voltando a falar-lhe. Porque de quando em quando avisto-o. O Pedro é que não me reconhece. Estou muito diferente do que era!
Diferente estaria. mas a maneira de falar, de olhar, afiguravam-se ao Pedro familiares. Não precisou, porém, de cansar-se para chegar a qualquer conclusão. O Júlio, com o seu ar de boa pessoa, elucidou-o.
- Sou o Júlio, o filho da Sr. Januária!. A memória do Pedro funcionou imediatamente.
- Júlio! O Júlio Matinha!
E abraçaram-se.
Era um golpe de teatro. O Pedro e o Júlio conheciam-se!
- Ó homem, mas tu estás completamente modificado! - constatava o Pedro.
E o Júlio.
- Ó Pedro, eu não podia ficar eternamente aquele trinca-espinhas que você conheceu, amarelo e enfezado! Se não medrasse, como usa dizer a minha Mãe, mais valia que morresse.
- Ih, que tolice! Mas vistas bem as coisas, melhor foi que medrasses, realmente!
Todos riram.
O Dr. Abegorim, de testa franzida, avisou as filhas de que deviam retirar-se.
- Talvez os dois amigos desejem ficar a conversar. Pelo menos têm lembranças em comum.
O Júlio olhou para a Lili, indeciso.
- Não sei. O Pedro é capaz de querer ir-se embora.
- Oh, não! Oh, não, pelo contrário! Gostava bastante que ficasses um pedaço comigo.
O Júlio continuava hesitante. Compreendendo o motivo, a Lili manifestou diplomaticamente a sua opinião.
- Eu já não volto para casa da Alicinha. Estou cansada, acho que vou para cima.
A Rosarinho, que bocejava sem discrição alguma, pendurou-se ao braço do Pai, o que significava que aderia ao movimento de regresso ao lar.
A Mirita, essa balançava entre o cansaço e o desejo de continuar na festa. O Pai decidiu por ela, ordenando:
- Vá a menina buscar a sua irmã e apresentar aos Srs. Fontemora os cumprimentos de despedida, em nome destas.
O Zé Chaves fez cara de amuado. E a rapariga, notando-o, recordou de súbito uma coisa divertida. O Antônio Fontemora prometera emprestar-lhe versos dele para ela ler. e o namorado, noivo, ou lá o que o Zé lhe era, não havia de gostar nada embora não pudesse impedi-lo. Boa partida! E, rindo, apressou-se a obedecer ao Pai.
Uns após outros, saíram os retardatários. Agora, sós, no andar dos Macedos, o Júlio e o Pedro.
E o Pedro sorria, encarando esse que inesperadamente se transformara, passando de um banal desconhecido a alguém que muito lhe dizia. Muito!.
Vinham-lhe à idéia tantas, tantas coisas, tantas imagens, tantos dias passados. E amigos. E condiscípulos. Como se tudo e todos chegassem coados através daquele rapaz ligado à sua infância!
Era o Francisco e a sua solidão no colégio, persuadido de que ninguém gostava dele. O Filipe (o Filipão!) com a mania de brincar às guerras até àquele dia em que.
E o desastre sofrido pelo Paulo.
Se ele não se dominasse, o tempo desses tempos instalar-se-ia ali, como se fora de novo real. Mas, repentinamente, o Pedro libertou-se das visões de saudade com o pensamento de que estava a portar-se muito mal como dono da casa. O Júlio devia sentir-se deslocado, ou a mais, o que ainda era pior. Então diligenciou ser amável, com sinceridade, aliás.
- Queres tomar alguma coisa? Que eu ignoro o que possa ter ficado ali no bar, mas vou ver.
- Não, Pedro, não vá! Só quero conversar consigo.
- Por que é que não me tratas por tu? O outro fitou-o com uma expressão onde havia algo que não se encontra facilmente - um respeito extremo entre rapazes da mesma época e do mesmo meio. Do mesmo meio?.
- Eu não sou do seu meio, bem o sabe! Dantes tratava-o por menino Pedro.
- Essa coisa dos meios tornou-se num absurdo, Júlio. Preciso é que as pessoas valham por si próprias e tenham caracter, inteligência, valor. Os meios são feitos pela estrutura pessoal das criaturas, não pelos berços onde nasceram, há muito que o penso. Pode sair nobre o filho do vilão e vilão o filho do nobre!
Estavam agora sentados frente a frente. O Pedro falava devagar e baixo. E baixo e devagar o Júlio lhe retorquiu, suspirando:
- Bem gostava de me convencer disso! Mas tenho tantas dúvidas, tantas! Pergunto constantemente a mim próprio o que estará certo, o que será razoável.
O Pedro atalhou:
- Aí está um assunto de que falaremos bastante, para te ajudar a estabilizar dentro da exacta noção do que és e do que vales. Mas, para isso, devo primeiro saber exactamente o que fazes e o que vales, an?.
O Júlio acendeu um cigarro, depois de estender o maço ao Pedro, que recusou. E disse:
- O Pedro lembra-se.
- Lembras-te, Pedro. - rectificou o Pedro, categórico.
Júlio cedeu.
- Lembras-te, Pedro, de um dia, há longos anos, a minha Mãe te deter no caminho do colégio para, depois de te dar a notícia de que eu sempre ia ao exame da 4, a classe, te pedir que me emprestasses os livros que já não te fossem necessários?
O Pedro tentava recordar a cena distante, a cena tão diluída no tempo que sem aquela ajuda não lhe seria fácil reconstituí-la.
- Ora deixa cá ver!. -proferiu. - Parece-me que a tua Mãe até me ofereceu duas laranjas. ? .
- Laranjas que não aceitaste, mandando-as para mim, nessa altura enfezado que eu sei lá!. E depois a sr.a Dona Rosa Maria arranjou-me os livros.
- É certo!. -e dos factos evocados o Pedro lembrava-se agora nitidamente.
Mais tarde perdera de vista o garoto magro e esquálido cuja Mãe afirmava que havia de ser um doutor.
Um doutor? . Pois acaso. ? E deveras interessado perguntou:
- Estudas, claro?
- Estou no primeiro ano de Direito.
- Bravo!
- E como a minha Mãe, que continua a vender fruta (presentemente num mercado, onde tomou de trespasse um lugar) não ganha o bastante para me sustentar e vestir e calçar de acordo com a maneira porque devo apresentar-me, no mínimo dos mínimos, arranjei um emprego das seis da tarde à meia-noite.
- Um emprego, onde?
- A sorte bafejou-me, sabes ? Como sou bastante bom aluno (fiz uns trabalhos que interessaram os Professores) um dos meus mestres convidou-me para trabalhar no escritório dele.
- Mas isso é óptimo!
- É! Porque, na realidade, dá-me um treino, uma prática e uma desenvoltura capazes de se me tornarem utilíssimos.
- E ganhas bem?
- Dois mil e duzentos escudos mensais.
- Um começo!.
- E um estímulo! com efeito, tenho uma certa fé em que o Dr. Matos e Almeida venha mais tarde a puxar por mim, a dar-me a mão.
- Eis-te portanto a caminho de uma bela carreira e, com certeza, da felicidade!.
- Isso? . -na expressão do Júlio havia incredulidade, desalento, e ambos os sentimentos eram tão em desacordo com as realidades acontecidas a quem parecia destinado por nascimento a nada ter, que o Pedro, de testa subitamente franzida, ficou na espectativa. Havia qualquer coisa a obscurecer as legítimas esperanças do Júlio. Deveria interrogá-lo, provocando um desabafo, ou esperar que ele falasse espontaneamente ?
O Júlio não parecia disposto a explicar o que quer que fosse. E o Pedro, pressentindo que o rapaz carecia de apoio moral, talvez a suportar uma dessas horas em que a criatura se sente perdida e acima de tudo aguarda uma indicação que a oriente a fim de continuar o seu caminho, decidiu-se a indagar, assim abrindo o sinal:
- Porque é que pareces tão descrente em relação ao teu futuro?
- Não estou descrente no meu futuro.
- Então é na tua felicidade que não acreditas?
- Sim, Pedro.
- E porquê?
O outro hesitou um pouco, ainda. E depois começou a falar e um cunho de amarga franqueza tornava densas de sentido todas as suas palavras.
- Não sei, na verdade, Pedro, se a minha pobre Mãe agiria da melhor maneira ao querer que eu subisse, na escala social, acima da sua condição. Se eu ficasse com uma modesta instrução de base, visto de facto desde miúdo mostrar decidida inclinação para o estudo, mover-me-ia hoje na sua esfera simples, perfeitamente aclimatado. Teria arranjado um emprego modesto onde estava certíssimo que eu fosse filho de uma vendedeira de rua. Ninguém estranharia, ninguém sorriria, ninguém desprezaria.
O Pedro não se conteve e interrompeu-o.
- Mas quem sorri de ti, quem te despreza, Júlio?
- Quem, Pedro? Para começar, a maioria dos meus colegas! Tudo muito bem comigo até um dado momento. Enquanto não sabem quem sou, ou não sabiam. Depois dá-se a descoberta. Eu próprio lhes mostro as minhas raízes quando principiam a convidar-me para os acompanhar, a quererem estudar comigo. Levo-os à minha casita térrea, pobremente arranjada, numa encosta do Castelo. Já lá viveram os meus avós, que vendiam peixe. Aristocracia do mercado barato! No dia seguinte, os meus convidados fazem os possíveis por não me ver.
- E tu sentes um gosto mórbido, um prazer doentio, em provocar essas atitudes?
Sem responder directamente, o Júlio disse:
- Não devo nunca perder de vista a minha verdadeira situação.
- Porquê?
- Sou um indivíduo em desequilíbrio. Se na subida olho para baixo, sinto vertigens.
- E resolveste deleitar-te com essas mesmas vertigens?
- Tento habituar-me a elas, para não perder altura quando me sinto detido ou empurrado para trás. - e noutro tom: - Ora diz-me, Pedro, não achas que vale mais cada um ficar onde tem os seus pontos de apoio em vez de desenraizar de tal maneira que acabe por não estar nem certo nem bem em parte alguma? Entre os que, por nascimento, são da minha igualha, acho-me deslocado. Já não me adapto às suas maneiras simplórias, às suas conversas limitadas, aos seus desejos triviais. De resto também eles se não mostram diante de mim tais quais são. Uns acanham-se, fazendo cerimônia; outros ridicularizam-se, querendo fazer figura. Quanto aos demais. sucede com eles o que já te expliquei. Por isso sou um homem em desequilíbrio. - e encarava o Pedro, fixamente, à espera da reacção.
- Agora aceito um cigarro dos teus. - e só depois de ter o cigarro meio consumido, o Pedro comentou: - É possível que sintas tudo isso que dizes.
- Sinto!
- Pois não duvido! Mas sentes porque não depositas suficiente confiança em ti. Nem deixas que a tua consciência te certifique de que os homens nascem com direitos iguais.
- Direitos ao sol, à água, à alimentação.
- A tudo!
- Mas existe uma selecção!
- Existe. Feita pela natureza e não pelos preconceitos de cada um. Estabelecida por leis naturais e não criada pelas convicções das pessoas. Ora diz-me: já algum dia viste duas criaturas rigorosamente iguais uma à outra?
- Rigorosamente. talvez não! Mas quase iguais. sim! Olha, por exemplo, os Melecas, que andavam no teu colégio e que estavam hoje em casa do Eng. ? Fontemora e vieram connosco. Não os reconheceste porque agora usam barbas e.
Aquilo podia derivar numa fuga ao assunto. O Pedro não o consentiu.
- Muito bem. quase iguais, afirmas. De facto, quase iguais, os gêmeos e os sósias. Apenas quase iguais e poucos, pouquíssimos. Isto mostra que a própria natureza cria uma diversidade espantosa, fornecendo gente bonita e gente feia. tal como fornece gente inteligente e gente estúpida. Na escola, logo a princípio, há os que aprendem bem e os que aprendem mal. Os que gostam de estudar e os que detestam. Tal como existem os leais e os mentirosos, os honestos e os ladrões. apagou o cigarro e só depois continuou: - Lá nas aulas de Anatomia, farto de dissecar o corpo humano, não consigo encontrar igualdade! Os indivíduos têm todos os mesmos órgãos, é certo, mas entre eles, neles, sempre se verificam pequenas diferenças. Os corações variam no tamanho. Os cérebros, na aparência e no tamanho também. Os fígados. Os pulmões. Os baços. Os intestinos. Tudo! Por isso afirmo - a selecção baseia-se na verdade de cada um, nas suas possibilidades intrínsecas, não nas heranças recebidas!
- Para ti, Pedro! Para o comum das pessoas é diferente, asseguro-te. Mesmo que eu venha a colocar o DR. à frente do meu nome e seja o Sr. Dr. Júlio Matinha, talvez assistente da Faculdade, talvez uma fera na barra a defender os que precisarem de justiça, muita gente me considerará sempre como o filho da Sr. Januária que vendia fruta na rua.
- E depois? Só resta que honres sempre essa designação, porque lamentável seria chamares-te conde ou visconde ou usares um nome nobilitado pelo mérito alheio e não saberes senão gozar a vida defraudando um patrimônio que necessita do esforço de todos ou envergonhando-o com atitudes repreensíveis. Ora vejamos, Júlio, não sabes como nasceu a aristocracia? - e vendo que o Júlio encolhia os ombros, sem grande alento. - Primeiro nos campos da honra, onde o homem era chamado a mostrar quanto valia. Mais tarde. Bom, mais tarde apareceram títulos nobiliárquicos à venda. Ora tu estás precisamente a conquistar o teu DR no campo da honra, não vais adquiri-lo a troco de nenhuma negociata.
O Júlio continuava silencioso. No olhar fixo, profundo, divisava-se-lhe um desejo intenso de acreditar. Mas habituara-se a sofrer com a sua posição.
O Pedro levantou-se, dirigiu-se para o outro lado da sala, onde estava um bonito armário estilo Luís xv. Deu a volta à chave, abriu-o, mirou indeciso as garrafas alinhadas, deixadas em ordem pela mão cuidadosa da Rosinha-Mãe (era assim que ele e os irmãos e até alguns amigos tratavam Rosa Maria Ferreira de Macedo). Porto, Madeira, alguns licores, cognacs. E whisky. O Pai dissera que não valia a pena levar bebidas. "Angola é Portugal, Rosinha, não te esqueças. Lá, como cá, existe tudo o que for preciso! "
O Pedro escolheu uma garrafa de NapoleãO ciente de que era das melhores marcas.
Aquela havia feito parte de um presente valioso - recordava-se! - recebido no penúltimo Natal (o último, para ele, não tinha história). Abriu a garrafa (o saca-rolhas, de bronze, estava na gaveta do centro, no lugar de sempre). Depois procurou os copos, na parte inferior do armário. Para os tirar precisou de afastar uma porção de caixas, todas arrumadas em jeito de coisas que não podem desaparecer. Pô-las na mesita do centro. Retirou os copos e voltou a colocar tudo nos seus lugares, sem dar fé de que uma das caixas mais pequenas escorregara para o chão, o barulho amortecido pela macieza da alcatifa que Rosa Maria não levantara (não quisera deixar a casa com um horrível ar de abandonada, preferindo, ao sair a porta para aquela ausência que ia ser longa, olhar para trás e vê-la pronta a recebê-los a todos de novo, logo casa não morta mas apenas adormecida - e não receara que as coisas se lhe estragassem visto a sogra ficar encarregada da conservação do lar).
E a caixita, que entretanto se abrira, lá ficou, encostada a um dos pés do armário, mansa e discreta como todas as caixas decentes.
O Pedro, ao pé do Júlio, servia-o agora generosamente do "cognac" precioso. A si próprio, deitou pouco.
Ao reparar na diferença, o Júlio sorriu:
- Queres engrossar-me?
- Não. Quero animar-te.
- É difícil, Pedro.
- Mereço-te confiança ?
- Pois não hás-de merecer? - e via-se que estava a adaptar-se ao tratamento íntimo.
- Então responde-me com sinceridade. Há alguma razão especial para estares tão dominado por essa idéia de não poderes vir a ser feliz? Ou seja - existe realmente algum estorvo para que a ventura que desejas - sim, porque tu desejas uma determinada ventura! - se te afigure inviável?
Os lábios delgados do futuro advogado tremeram. Pareceu tomado de um desejo súbito de recuar, talvez de fugir.
O Pedro esperou. Porque ou o rapaz conseguia vencer o acanhamento que o dominava, ou tornava-se impossível fazer o que quer que fosse por ele.
O Júlio triunfou da relutância que lhe prendia as palavras dentro da alma.
- Gosto de uma rapariga e não julgo realizável o nosso casamento.
- Porquê? Ela não gosta de ti?
- A sério, ainda não me atrevi a perguntar-lho, embora me pareça que não lhe sou indiferente.
- Convives com ela ?
- De certo modo.
- Que queres tu dizer com esse "de certo modo" ?
- Há dias em que não resisto à tentação de vê-la, de falar-lhe. Depois invento mil pretextos e desapareço. para voltar arrependido, pois pressinto-lhe a mágoa quando deserto.
O Pedro estava longe de qualquer suspeita quanto à direcção do culto do amigo.
- A que espécie de gente pertence ela ? O Júlio deveria ficar lívido. Mas como já bebera quase todo o "cognac", tornou-se escarlate.
- A muito boa gente, Pedro. Bem vês, se fosse da minha igualha, não havia problemas.
A susceptibilidade do futuro advogado evidenciava-se tremenda. O Pedro ferira-a, sem querer, sem pensar. Reconhecendo-o, ele que nem de perto nem de longe pretendera imprimir qualquer intuito menosprezador ao quesito, tomou num relance a única atitude capaz de limar as arestas surgidas.
- Enganas-te, Júlio. - redarguiu calmíssimo, enfrentando a dificuldade, certo de que rodeá-la seria contraproducente. - Porque tu não podias, ao dirigires-te para a vida que vais iniciar, para a família que vais fundar numa escala social superior, escolher uma rapariga que por educação e instrução não viesse a ser uma companheira para as tuas novas dimensões.
O Júlio encarava-o, suspenso, e apesar da quantidade de cognac ingerido reconhecendo que o Pedro estava a dizer o que pensava e não tivera a menor intenção de ofendê-lo. Não havia dúvidas. Ele era um disparatado, um cretino, sempre a falhar na interpretação que dava às atitudes e às palavras alheias.
Sim, devia ser ele o errado. Era com certeza ele o errado!
A frase inconveniente do Pedro ia apresentar a sua outra face e revelar-se benéfica.
Ah, as estranhas linhas tortas com que Deus escreve direito!
E então, refeito do que sentira, o Júlio Matinha foi todo franqueza.
- Pedro, a rapariga de quem eu gosto esteve há pouco nesta casa.
- A Alicinha aqui do lado? Não me digas!.
- Não, não é a Alicinha. É uma das filhas do Juiz Abegorim.
- Qual delas?
- A mais velha.
- A Lili? sentira, o Júlio.
- A Leonor Augusta, sim. - e sorriu. Eu raramente a trato por Lili, que acho um diminutivo caricato.
O Pedro ficou silencioso, a recordar, como tantas vezes nessa noite já acontecera, perdido no tempo passado.
A Lili do 4. ? andar!.
O seu primeiro sonho de rapazito a acordar para a vida. Que ternura!
Nunca ousara levantar os olhos para ela. A Lili era mais velha do que ele, numa idade em que quatro ou cinco anos de diferença mais tarde insignificantes! - são um escolho intransponível quando a favor da rapariga. A pequena, essa fitava-o sempre muito. E o Pedro pensava que era a fazer troça, a zombar dos seus calções curtos, da sua madeixa caída para a testa (a madeixa que de resto teimava na atitude rebelde. ). Um dia, como presente de exame, ele pedira um fato de calças compridas. Calças compridas, para parecer um homensinho. Houvera assombro entre os Pais. e houvera o fato ambicionado e uma lição inesquecível com a qual o Dr. Rui Manuel de Macedo lhe ensinara que os homens não são homens só porque um dia resolvem tapar "a vergonha das suas pernas nuas de criança". Nunca, como nesse dia memorável, o Pedro se sentira tão atrapalhado, tão ridículo. E a verdade é que arrumara ao mesmo tempo as calças compridas e a ambição da Lili. Sim! Num gesto único tinham-se-lhe desvanecido as prosápias e o primeiro amor. Nunca mais ligara às olhadelas da filha mais velha do Sr. Dr. Juiz. Adquirira a noção de ser ainda um garoto em vez de se sentir arremedo de homem nas suas aspirações pela menina crescida e passara a sorrir com simpatia a uma garotinha de cabelos loiros que às vezes descia no elevador ao mesmo tempo que a Lili, a caminho da escola primária - a garotinha afinal de contas apenas um ano mais nova do que a irmã dele, a Ana Maria. Quando, mais tarde, tentando perceber se a Lili troçava dele ou não ousou encará-la resolutamente, ela já deixara de contemplá-lo com a expressão que o rapazinho nunca soubera entender. Tinham ambos começado finalmente a estar certos!. Perante o silêncio que se eternizava, o Júlio, sucumbido, interpretando-o a seu modo, perguntou:
- Achas impossível, não é verdade?
- De maneira alguma!
- Então porque é que ficaste tanto tempo sem me responder?
O Pedro não podia revelar até onde fora o seu pensamento, naquele galgar de dias rumo ao passado. Não que o facto recordado tivesse qualquer mal, mas enfim, não vinha nada a propósito nem auxiliava em coisa alguma o pobre do Júlio. E encontrou para o seu ar concentrado uma explicação plausível, e até verídica, senão em relação ao que estivera a ocupar-lhe o espírito pelo menos no que se ligava com a situação actual.
- O teu caso tem grandes semelhanças com um outro com que deparei há meses. - e indagou. - Conheces o Domingos ?
O Júlio não se lembrava de haver conhecido o Domingos.
Então o Pedro contou:
- O Domingos é presentemente o feitor, o encarregado da nossa Quinta na serra da Estrela. Já lá vivia quando a comprámos. Era nesse tempo um garoto solitário, tristonho, de convivência difícil. Órfão de Pai e Mãe. meu Pai ajudou-o a tornar-se um homem. Não quis estudar. Só gosta da terra, é um trabalhador infatigável e extraordinário. O meu Pai, se realmente vier a assentar arraiais em Angola, deve mesmo vir a vender-lhe a Quinta.
O Júlio abria uns olhos desmedidos para o Pedro. Não, não estava a alcançar a finalidade da exposição. A que propósito viria tudo aquilo? Que tinham a ver as excelentes qualidades e o futuro do tal Domingos com o problema dele, Júlio?
O Pedro estava, porém, a chegar ao ponto de ligação.
- Pois o Domingos, no Verão passado, enamorou-se de uma colega da minha irmã, uma rapariga inteligentíssima, - a aluna mais classificada do Liceu, vê só! -bonita e filha única de um casal de posição, como tu dizes.
- Como é!.
- Todas as posições são de posição, desde que ocupadas com mérito e honra! - e prosseguiu: - Ainda por cima a moça é endinheirada, o que então nenhum de nós sabia! Ora sucedeu que a Marta (é Marta que ela se chama) lhe correspondeu inteiramente. E todos nós, os que assistíamos, trememos nos alicerces, com medo, principalmente, do que pudesse vir a acontecer ao Domingos, pois conhecemos perfeitamente a sua maneira de ser. Ora. eis o resultado - quando a Marta contou aos Pais o que se passava, estes limitaram-se a aconselhar-lhe a prudência que sempre deve acompanhar qualquer namoro e a voltar ao assunto um pouco mais tarde, quando se sentisse inteiramente segura dos seus sentimentos e, portanto, da sua escolha.
- Quer isso dizer que não levantaram objecções pelo facto de ele ser inferior à filha?
- Naturalmente não o consideraram inferior. Bem vês, Júlio, até os reis passaram a admitir o casamento dos filhos com os antigamente chamados plebeus. -e, sorrindo, acrescentou: - Naturalmente estamos a voltar ao maravilhoso dos tempos em que os príncipes desposavam humildes pastorinhas.
O Júlio queria acreditar. Mas qualquer coisa o impedia, muito embora não fosse, nem de perto nem de longe, um tipo reservado como o Domingos. E volveu:
- Não sei. não sei! Mas parece-me que os Pais da Leonor Augusta não vão ser assim tão fáceis de persuadir.
- Isso é uma coisa que por enquanto não deve interessar-te demasiado. Tens de ver se gostas dela e se ela gosta de ti, mas a sério! Dá tempo ao tempo. E depois, quando ambos estiverem seguros do que representam um para o outro, expõe o caso a quem de direito e luta por ela com todas as tuas forças, se for preciso lutar.
O Júlio suspirou.
- Imagina o que será desafiar um homem de quem posso vir de certo modo a depender na minha carreira! Não quero por inimigo o Juiz Abegorim!
- Escuta, Júlio. Em primeiro lugar o Juiz Abegorim é uma pessoa recta. Sempre o ouvi citar como tal. O meu Pai admira-o muito. E depois. queres que te diga? Não és tu que tens de enfrentar o Dr. Abegorim. É a. - (e não foi capaz de dizer Lili) - é a Leonor Augusta quem há-de agüentar firme a oposição do Pai, se essa oposição vier realmente a existir.
O Júlio não respondeu. E fosse pelo cansaço do raciocínio a que se entregava, ou porque o cognac exercia a sua influência, abriu a boca num largo bocejo. Passava, de resto, das três da manhã.
Os dois rapazes levantaram-se e prepararam-se para sair. O Pedro bem abafado no seu quente sobretudo de pele de camelo. O Júlio tremendo num arrepio, a explicar à porta da rua:
- Deixei a gabardina em casa do Eng. Fontemora!
Olharam as janelas do andar da Alicinha. Tudo às escuras. Aliás, há bastante tempo que os rumores da festa se tinham extinguido.
Lado a lado, os amigos reencontrados foram caminhando no silêncio da noite, até encontrarem transporte, um táxi.
Quando o Pedro meteu a chave na fechadura da porta da casa do Paulo, o Dr. Ataíde Lemos, acordando, levantou a cabeça para ver as horas no relógio luminoso da mesa de cabeceira. E como a mulher, notando-lhe o movimento, perguntasse baixinho "que foi? - o advogado volveu:
- O Pedro! Só agora!. Nunca entrou tão tarde!
E Dona Mariana, aconchegando-se melhor na roupa, pronta a mergulhar de novo no sono, comentou apenas:
- Que é que tu queres? Está na idade das estroinices.
E o Pedro, tão inocente! Na verdade muito pode enganar-se quem julga pelas aparências!.
A Mirita tinha lágrimas nos olhos. E procurava, num desespero, argumentar:
- Mas não vê que eu não posso vestir-me todos os dias da mesma maneira? Ando sempre com aquele maldito "saia e casaco" amarelo que já não posso nem ver! Não admira que o Zé se aborreça de acompanhar com uma rapariga que usa farda!.
A Rita, que estava sentada ao pé da janela, a pintar conscienciosamente as unhas, ergueu um olhar desaprovador para a irmã que se queixava:
- Mas oiça lá, ó tola, um rapaz gosta de uma rapariga por ela ou pelos vestidos que ela traz?
A Mirita podia responder à Rita com toda a calma, e com toda a verdade, alegando que o Zé Chaves era um rapaz muito janota e apreciador da elegância, o que requeria que ela lhe agradasse sob todos os aspectos. Muito mal disposta, porém, com qualquer coisa dentro de si alterado (sentia as mãos frias e húmidas!) preferiu ser agressiva. Ou antes - deixou-se ser agressiva.
- Se estivesse calada era bem melhor, an? Não há ninguém que mais chateie a Lili a pedir-lhe coisas emprestadas. Até os sapatos, que eu não calço!
- Porque não lhe servem! Tem uma patana e disso ninguém é culpado! De resto nunca peço à Lili que me empreste os sapatos novos.
- Ai não! Ainda na semana passada, quando foi aos anos da Teresa Fonseca!
- Mas isso era um dia especial!
- Também hoje é um dia especial! Há mais de três meses que o Zé não me convidava para ir ao cinema.
- Deve estar algum burro para morrer.
- Estará, não se importe!
- O que eu admiro é a sua pachorra de aturar esse vai-vem.
- Admire à vontade. Quem o namora sou eu, não é a menina!
- Felizmente. Não gosto de manequins.
- Então arranje um Pigmalião. Peça à Televisão o do filme! Como foi exibido há pouco tempo, numa noite de cinema, deve estar armazenado!
- E depois?
- Fúfia!.
A discussão azedava-se.
Aquelas duas pegavam-se constantemente (fossem muito embora e no fim de contas as mais unidas) e quase sempre por ninharias.
Mas a Rita não esteve para continuar o despique e limitou-se a deitar a língua de fora à irmã que por sua vez arrematou, furiosa:
- De qualquer forma, esse não é o assunto em causa! O facto é que eu gostava de hoje me apresentar muito bem.
A Lili, que imperturbável escutara a zaragata, redarguiu-lhe então:
- Pois sim, minha querida, mas não lhe empresto o meu casaco verde. Tire daí o sentido.
- Pudera! É uma egoísta! Sempre foi egoísta!.
- Oh, Mirita!. Egoísta porque não quero que ande a estragar-me o casaco? Estreei-o no dia de Ano Novo, ainda só saí com ele três vezes.
- Mais uma razão para eu o levar! Não está visto!
Lili abanou a cabeça.
- Não, não e não! De resto, esta coisa das emprestadelas tem de acabar. Cada uma veste o que lhe pertence e pronto!
A Rita, sentindo de repente que se continuasse aliada da Lili também seria prejudicada, principiou a mudar de idéias e apressou-se em manifestar uma ligeira discordância face a tanto rigor.
- Oh, Lili, assim também não!. Uma vez por outra dá jeito!.
- Pois dará jeito mas vai terminar. E deixa de haver abusos, pegas e reclamações! Por isso fiquem desde já as duas a saber que daqui em diante terei as minhas coisas fechadas na gaveta, fechadas à chave!
- O casaco também ? - troçou a Mirita.
- O casaco não. mas como não se atreve a vesti-lo sem licença. -e notando nos olhos da irmã um lampejo de ironia, talvez prenuncio de total inobservância das suas ordens, logo de fraude em perspectiva, acrescentou resoluta, a mostrar que lhe adivinhara os pensamentos mais ocultos: - Aliás, escusa de estar a pensar ver-me pelas costas para ir buscá-lo ao armário, porque eu também vou sair e levo-o vestido!
Ruíam todas as esperanças da Mirita. E as lágrimas que lhe brilhavam nos olhos desde o princípio da cena, caíram mesmo.
Foi nesse instante que soou a campainha da porta de entrada.
Com um arremesso dirigido à mais velha, a Mirita abandonou o quarto para ir ver quem era - coubera-lhe naquele dia estar de piquete à porta e ao telefone, enquanto, na escala do serviço familiar, a mesa tocara à Lili e as camas à Rita. A Rosarinho estivera de folga. Sim, que havia sempre uma que folgava, uma que de três em três dias não tinha obrigações domésticas.
Quando a Mirita saiu, a Rita perguntou:
- Quem será?
A outra encolheu os ombros:
- Sei lá! Não adivinho! Se adivinhasse comprava esta semana um bilhete inteiro para apanhar a taluda!
A Rita troçou-a.
- Comprava? com quê?
- Contraía um empréstimo no Banco.
O Banco era a Sofia, a Sofia que praticamente não gastava um tostão com ela própria e amealhava os seus ordenados para os pôr à disposição das suas meninas.
O Banco de financiamento mantinha-se por um sistema muito curioso. Havia um livrinho com capa de oleado dividido em quatro partes. Encimando cada uma dessas partes, o nome de uma das quatro irmãs. E por baixo, a passar de página para página, verbas, verbas, verbas. Verbas ridículas, pequeninas, com as suas razões de ser muito bem explicadas pela caligrafia escolarmente certinha da Sofia.
1$50 - para um ramo de violetas oferecido à Mãe.
5$00 - um táxi por se ter levantado tarde demais para a primeira aula do liceu.
25$00 - para um cabeleireiro sem ordem do Sr. Dr. Juiz.
2$00 - ganchos para o cabelo.
100$00 - para o presente de Natal da Mãe, um Pyrcx que a senhora desejava muito.
15$00 - para poder convidar uma amiga a ir ao cinema.
Etc. etc. etc.
Todas juntas, as parcelas ínfimas somavam muitos centos de escudos.
"Nós pagamos!" - asseguravam as meninas. A Sofia limitava-se a sorrir, contente porque se sentia imprescindível.
As pessoas gostam que façam delas não seres de préstimos mecânicos, mas almas comparticipantes. Por isso a Sofia ia inscrevendo no livrinho de capa de oleado as verbas que lhes entregava e cujo reembolso não esperava. E daí. talvez esperasse, mas apenas em expressões de afecto.
Do interior da casa vinha agora um coro de gargalhadas que despertou a atenção da Lili e da Rita. Sobre os risos, ouvia-se uma voz bem conhecida, uma voz que sempre trazia no seu timbre sonoro e alegre o sinal de todas as coisas boas da terra. A voz da tia Casimira!
As duas irmãs precipitaram-se para a porta, passaram-na lado a lado e, correndo, foram desembocar na sala de visitas.
A tia Casimira, sentada no sofá, muito corada, ria incessantemente, tanto como a cunhada, a Mirita e a Sofia, por qualquer razão também presente.
Dona Teresa Mafalda fez-se por fim ouvir, limpando as lágrimas que chorara, exausta de riso.
- Isto só a ti, Mira. só a ti!. Estas coisas não acontecem a mais ninguém!
A Lili e a Rita calcularam logo o motivo da hilaridade. Mais uma das famosas distracções em que a tia era exímia.
Ah, a querida tia Casimira e as suas incríveis histórias, tão espantosas que muitas vezes delas se duvidaria se não se assistisse ao seu desenrolar! A que acabava de suceder, por exemplo, e a própria tia lhes contava agora a elas.
- Pois imaginem só que eu cheguei cá acima muito, muito cansada. e preocupadíssima com o destino do elevador do prédio, que eu não vi em sítio nenhum!
- Entraste a perguntar para onde tinham levado o elevador!. - esclareceu a cunhada.
Redobraram as gargalhadas. E a Lili:
- Ó tia. então para onde é que o elevador podia ter ido, assim sem mais nem menos?
- Ora essa, menina, para consertar, por exemplo!. - e tornando-se séria. - Mas fiquem sabendo que na realidade o elevador não está lá!.
A gravidade do comunicado fez transbordar o ataque de riso.
A Sofia apertava as mãos na barriga, clamando que não podia mais. Mirita deixara-se cair num sofá e torcia-se toda:
- Ó tia, se calhar roubaram-no!
- É uma hipótese a considerar. Os gatunos andam desenfreados!
Ai aquela idéia de um ladrão a sair do prédio com o elevador debaixo do braço.
A Lili conseguiu por fim acalmar um pouco, pelo menos o suficiente para inquirir:
- Ó tia, mas porque é que chegou a essa conclusão?
- Eu te digo. Entrei a porta da rua, subi os degraus do átrio. Carreguei no botão, esperei, o elevador não desceu. Lembrei-me então de que devia ter a porta aberta cá em cima, o que sucede muitas vezes, e meti-me ao caminho. Subi as escadas, claro! E o elevador não se encontra em andar nenhum!
Interferiu a Mirita:
- E não estaria muito sossegadinho no sítio dele ?
- Como?
- A tia experimentou abrir as portas ?
- Para quê, se eu não as via?.
- Isso de a tia não as ver não quer dizer nada!
- Pois, vocês nunca acreditam no que eu afirmo!. Aposto que vão garantir, sem verificar o facto que eu registei, que se trata apenas de mais uma distracção minha!
Então a Mirita, muito gentil, (tão gentil como maliciosa) ofereceu-se:
- Para a tia ficar descansada e nós podermos avisar a polícia do furto. eu vou espreitar.
E foi, enquanto a tia tirava o casaco e se instalava, disposta a passar a tarde a tagarelar e a fazer renda - as famosas rendas com que ia presenteando as sobrinhas todas (havia na família mais duas raparigas, filha cada uma delas de irmãos seus - e de Álvaro Abegorim, portanto! - ambos residentes no estrangeiro, há anos, a tia Celeste na América do Norte, o tio Eduardo no Brasil).
Voltou a Mirita daí a nada, com um ar compenetradíssimo, a participar:
- Tia, assustou-se e cansou-se sem motivo. O elevador não desceu quando a tia carregou no botão porque se encontrava no lugar que lhe compete, lá em baixo, sossegadíssimo. com as portas escancaradas!
Tornaram os risos a esfusear só de pensarem que o elevador pudesse estar aos pulos. (às vezes até pulava mesmo!) A tia, claro, já sabia como fora e nem se desorientou nem se melindrou. Riu com gosto. Conformava-se sempre com os seus alheamentos das coisas reais.
Querida, querida tia. tão boa e tão generosa! Generosa, sim! É que a tia Casimira era a pessoa rica da família - realmente muito rica! Herdara a fortuna dos padrinhos, uns velhos fidalgos alentejanos falecidos sem descendência. Duas herdades imensas, confiadas a feitores com qualidades à moda antiga, que em cereais e cortiça proporcionavam à tia imensas possibilidades materiais. Acontecera, porém, que Casimira Abegorim nascera caracterizada por gostos simples e aspirações limitadas. Era uma mulher para a qual o pouco estava certo. Nunca tivera exigências. Nem as tinha. Sorria, quando lhe aconselhavam um mais largo aproveitamento do tanto que possuía. Não se importava com elegâncias. Talvez porque vivera até aos 35 anos modesta e sem ambições (fora aos 35 anos que lhe caíra do céu aquela fortuna). Ou porque era alheia a essa tendência tão feminina que às vezes, levada a extremos, se torna caricata e perigosa. Ou porque se preocupava mais com a verdade íntima do que com a aparência. Não que não vestisse bem. Até vestia - mas com discrição! Como único adorno usava pérolas, sempre pérolas. E o seu luxo consistia num carro Bom, um belo carro que o Sr. José, o motorista que a servia há muitos anos, guiava com inalterável prudência. Quanto ao mais. um prazer imenso de dar. Dar o que lhe pediam e o que não pediam. Ninguém o sabia melhor do que as quatro irmãs Abegorim. Mas por isso mesmo havia em casa uma lei formal: nenhuma das meninas possuía autorização para lhe solicitar o que quer que fosse. Ia pedir-se à Sofia cem escudos. Mas não se dizia à tia Casimira que se precisava de cinco.
No entanto a tia Casimira parecia dotada por um sexto sentido - e esse sentido levava-a a tentar decifrar os rostinhos fechados onde tantas vezes a zanga se misturava com a tristeza. Como naquela tarde. É que, depois de cessar o riso, Lili e Rita retiradas da sala, mais a Sofia, Dona Teresa Mafalda a pedir escusa por um momento a fim de acabar de passar a ferro a toga do marido (cuidado que a ninguém confiava) a Mirita se sentara ao pé da mesa de centro, com uma revista aberta na frente, a revista que a tia trouxera porque sabia que as pequenas gostavam imenso de a coleccionar, mas de olhar perdido na distância, no vazio, tão evidentemente afastado das imagens e das palavras que não podiam subsistir quaisquer dúvidas. Algo a apoquentava!
E a tia decidiu tirar o caso a limpo.
- Que é que tu tens, Mirita?
- Eu, tia?. Nada! Não tenho nada!. - e ficou imóvel. Mas, pouco depois, suspirou.
A tia Casimira insistiu: - Mirita, porque é que não me contas o que está a afligir-te, an? - Porque não, tia. - e sorriu um sorriso esforçado, doloroso. Pouco depois, sentindo pesar sobre si aquela atenção perscrutadora, acrescentou: - Tia querida, não continue a olhar assim para mim, não? Eu não digo o que tenho e a tia não consegue perceber!.
Naquele instante ouviu-se o telefone a tocar. E logo a seguir apareceu a Rita, com o aparelho na mão, a avisar a irmã.
- É para si. O Zé.
Mirita levantou-se, foi atender sem pressa, sem sombra de entusiasmo:
E a tia Casimira franziu a testa, escutando o que ela dizia.
- Não, não posso ir! Desculpa, mas não me dá jeito sair agora. De resto preciso muito de estudar, não peguei num livro em todos estes dias. Fica para outra ocasião, deixa lá! - e depois de mais umas tantas negativas, desligou e dirigiu-se para a janela, a cuja vidraça se apoiou, aparentemente olhando a rua. Na realidade, chorava.
A tia Casimira esboçou uma careta de perplexidade. Tudo aquilo se lhe afigurava muito estranho. A Mirita não querendo sair com o namorado? Não devia tratar-se de um arrufo dela, porque se fosse arrufo não estava agora a chorar. Tratava-se, sim, de uma renúncia e renúncia dolorosa. Mas porquê? Qual a razão?
Perdia-se em cogitações, enquanto fazia lidar afanosamente a agulha de croché, quando a Lili reapareceu. Oh, uma Lili elegantíssima, com o casaco verde que lhe dera no Natal, (fora um dos presentes) golinha de vison acariciando-lhe o rosto.
- Estás linda, minha querida! - exclamou, quando a sobrinha se debruçou para ela, a beijá-la, em despedida.
E a pequena, radiosa:
- A tia ainda não me tinha visto com o casaco, pois não?
- Não.
No momento em que soou a palavra casaco, a Mirita desviou-se da janela, voltou-se, e a tia Casimira apanhou o lampejo do seu olhar cheio de sombras.
Claro que nem sequer se tornava preciso ter as faculdades de presciência da tia para descortinar o que magoara a Mirita. Bastava conhecer os usos da casa, saber as trocas que as irmãs entre si faziam de vestidos, sapatos e adereços - só a Rosarinho estava fora do jogo habitual porque nem o que era dela servia às irmãs nem o que era das irmãs lhe servia a ela. Assim, e sem a Mirita dizer uma única palavra, a tia percebeu tudo.
A rapariga fora convidada pelo Zé Chaves talvez para um cinema. Quisera levar o casaco novo da Lili, mas esta não anuíra e a Mirita preferia ficar em casa a ir contrariada e talvez com razões. O Zé Chaves era de uma exigência incrível em relação à apresentação feminina e a tia Casimira já o ouvira muitas vezes perguntar à namorada "não podes pôr outro vestido?. Nem calçar outros sapatos?. Porque é que não foste ao cabeleireiro?. " (era por isto que a Mirita requeria mais vezes do que as outras o direito de arranjar a cabeça. )
A tia preocupava-se ante o problema. Já muitas vezes perguntara a si própria se todas as hesitações e relutâncias do Zé Chaves não se apoiariam na constatação de não haver naquela casa mais largos proventos, capazes de satisfazerem os seus gostos. E no entanto ele devia gostar verdadeiramente da pequena, visto que não se ia embora, que não desistia, fosse como fosse.
A Lili saíra já.
Então a tia Casimira embrulhou cuidadosamente, no pano antigo de cambraia, a renda, o novelo de linha, a agulha, e disse:
- Anda cá, filha.
Mirita aproximou-se, mas ficou de pé, aguardando. E a tia:
- Põe-te mais baixinha! Faz-me doer o pescoço estar de cabeça levantada a olhar para ti.
Claro que não passava de um ardil. O que a tia Casimira queria era mergulhar as suas pupilas penetrantes bem fundo nas da sobrinha. E depois de consegui-lo, o dedo indicador estendido a segurar-lhe o queixo, perguntou:
- Vamos lá a saber: tu gostas realmente do Zé Chaves?
E ela, com os lábios trêmulos:
- Não sei, tia. Umas vezes julgo que sim, outras sinto-me até ridícula. Parece-me que há coisas erradas entre nós e talvez eu não deva agir de acordo com as idéias dele. Mas... -e calou-se.
E a tia, obrigando-a a encarar de frente quanto fosse autêntico:
- Diz tudo!
- Tia Mira. se estou destinada a ser mulher dele, devo regular as minhas acções pela sua maneira de pensar, não acha? - e como a tia apenas continuasse a fixá-la, conseguiu prosseguir: - Ele adora que eu ande muito chique. Revê-se em mim, com vaidade, quando lhe apareço mais janota. Acho que tem outro interesse. que gosta de me mostrar, percebe? Quando os outros olham para mim, ele agarra-me no braço com um ar triunfante, assim como se dissesse "pois, é muito bonita, muito elegante, muito vistosa, mas escusam de ter ilusões porque vai ser a minha mulher. Cobicem-na à vontade. pertence-me! ". - e duas grandes lágrimas correram pelas faces lisas e redondas como as de uma antiga boneca de porcelana.
A tia Casimira largou-lhe o queixito.
- Pois... compreendo! De resto, sabia perfeitamente que era assim. Mas... deixas-me perguntar-te uma coisa?
- Pergunte, tia!
- Será para ti muito agradável ter um marido desse gênero?
As lágrimas de Mirita, esforçadamente contidas dentro dela, soltaram-se todas juntas, num longo soluço. E a tia, afagando-lhe os cabelos:
- Eu sei, querida, eu sei que tens medo como eu tive, como o tiveram todas as Casimiras da nossa família, de vir a ser uma solteirona. embora ser-se sólteirona possua os seus encantos e as suas compensações! Mas medita nesta interrogação que te dirijo - queres de facto casar-te com um rapaz que ama a tua parte de fora? Que irás fazer, no meio de tudo isso, da tua sensibilidade, das tuas reacções mais profundas?
Mirita não pôde responder. O telefone recomeçara a tocar momentos antes. E a tia ordenou-lhe:
- Atende, filha! É capaz de ser ele outra vez.
Não era ele, mas alguém que, ao ser identificado, obrigou a Mirita a ficar vermelha como uma papoila.
Observando-a, a tia sentia-se intrigada. O seu sexto sentido tentava apreender motivos, enquanto escutava. O quê? Agora um Antônio de permeio? Quem seria ele? Quem seria esse a quem nunca ouvira a mais pequena referência e que assim fizera mudar por completo a expressão da sobrinha?
Já a Mirita dizia, ao bocal do telefone:
- Um momento, que vou perguntar à minha Mãe! - e poisando o auscultador, saiu da sala a correr e a correr voltou para de novo falar ao interlocutor desconhecido. - Pode vir, sim. A que horas?. Aí por volta das sete, serve?.
- devia servir, porque já ela se despedia, nitidamente interessada. - Então até logo. Tenho muito gosto, acredite! - e desligou, ficando por momentos imóvel, abstracta, a mão abandonada sobre o telefone, como se estivesse quase a fazer-lhe festas.
A tia pigarreou, tentando chamar-lhe a atenção. A pequena não ligou. Sorria, vagamente.
Que estaria ela a pensar?
Então a tia Casimira decidiu provocar a reacção da Mirita, a fim de colher elementos que lhe permitissem um diagnóstico precoce - o precoce diagnóstico habitual que sempre a levava a tomar a dianteira nos planos e nos projectos das sobrinhas.
- Mirita, - ordenou, peremptória, - vai arranjar-te! - Ainda é muito cedo, tia! Pouco passa das quatro horas.
- Eu não estou a dizer-te que te arranjes para as sete horas, querida, mas sim a pedir-te que te prepares para saires comigo.
- Para sair com a tia ?
- Claro!. Quero fazer umas compras.
- Compras ?
- Vi ontem, numa boutique, um casaco vermelho que deve ficar-te às mil maravilhas. Vamos até lá?
Mas a doce e tímida Mirita, com um estranho sorriso a pairar-lhe na boca, avançou até junto da tia, poisou-lhe as mãos nos ombros, debruçou-se um pouco - o bastante para a beijar na testa longamente, enternecidamente! e depois, endireitando-se, proferiu:
- Muito obrigada, minha querida tia, muito obrigada. Mas, por enquanto, não vale a pena. Quem sabe? Talvez, no fim de contas, eu seja capaz de encontrar quem goste de mim pelo que sou do lado de dentro.
Depois, aparentemente muito tranqüila, foi buscar um pequeno livro na sala ao lado e, com ele aberto, sentou-se na cadeirinha baixa, ao pé da janela, a ler.
A tia Casimira desmanchou o pacote de cambraia antiga. E, recomeçando a sua maravilhosa renda, aceitou a curiosidade que vinha até ela, forçando-a a desejar a chegada das sete horas da tarde.
Dona Teresa Mafalda achara simpático o rapaz de aspecto banal que dir-se-ia algo intimidado ao entrar na sala e ao cumprimentar aquele grupo feminino onde uma única presença contava para ele, ao que parecia. Achara-o simpático e curioso. Não beijara as mãos às Senhoras mas apertara-as com um vigor de franqueza íntima, de lisura patente não só no gesto de saudação mas também no olhar que mirava de frente, embora sem a mínima afoiteza ou até à-vontade. Sentia-se apenas que estava ali um rapaz que, depois de se adaptar, mostraria ser feito de virtudes moldadas numa peça única. Virtudes talvez inesperadas. - pelo menos era esta a impressão da tia Casimira ao ouvir o comentário da cunhada "simpático e curioso", enquanto o observava, sentado do outro lado da sala diante da Mirita.
Ele depusera-lhe nas mãos um caderno de folhas amareladas que a rapariga observava mas não lia. Ou melhor - devia estar a seguir com os olhos as frases nele inscritas, ouvindo outras que ele murmurava.
A Rosarinho, que entrara havia instantes, fora espreitar, um bocadinho indiscretamente, o que a irmã tinha nas mãos, e depois de ver e ouvir o que desejava saber, viera segredar à Mãe e à tia.
- São versos!
A tia Casimira abriu a boca, num alegre pasmo.
- Não me digas que vamos ter um poeta entre nós!
A garota riu-se.
- Sabe-se lá!.
E ficaram entretidas cada qual no seu trabalho. Sim, que a Rosarinho tinha o seu. Acabados os estudos necessários para o dia seguinte, costumava sentar-se a fazer uma renda lindíssima que a tia andava a ensinar-Lhe. E tinha tanto jeito que, segundo a tia, destoava na família, pois os talentos requintadamente femininos dos lavores delicados costumavam ser apanágio exclusivo das Casimiras e ali em casa, naquela geração, só a mais nova para eles se afigurava bem dotada (as outras até os detestavam!). O facto já levara a Rosarinho a comentar, rindo:
- Se calhar desta vez a solteirona vai mudar de nome!
E não havia problemas para ela! Talvez por ser nova demais. Mas quantas, com a sua idade, tinham preocupações que, a não as catalogarem num grupo de excepção, mais valeria deixar adormentadas.
Agora a Mirita e o Antônio Fontemora, que pouco antes se haviam levantado, estavam no escritório do Dr. Juiz, junto das estantes de livros.
Procuravam poetas. Liam versos.
Pelo meio, ele ia falando, dissertando e, logicamente, perguntando. Tentava perceber como seria a Mirita, por dentro. -ela sabia isso perfeitamente e fazia imensos esforços para revelar o que pensava, com franqueza e simplicidade. Mas, de súbito, a pequena compreendeu que tinha dificuldade em fazê-lo, tanto se desabituara de expressar as suas idéias na procura de as acertar pelos gostos do Zé Chaves. E mal isto reconhecera. o Zé Chaves a entrar na sala!
De facto, a campainha da porta soara momentos antes, mas a Mirita nem sequer a ouvira. E que ouvisse! Era aquela a hora normal de a Lili regressar a casa, quando saía à tardinha.
Porque havia de ser o Zé Chaves, porquê?
E o Zé, depois de cumprimentar as duas Senhoras, e a Rita, e a Rosarinho, ficou de pé, junto à porta que separava a sala do escritório a observar, com um olhar incrível de espanto e de raiva, ora a Mirita ora o Antônio Fontemora. Sardònicamente, com uma voz de tal maneira estrangulada na garganta que se tornava irreconhecível, comentou por fim:
- Estão muito entretidos, ao que parece! E o Antônio, singelo, sereno, mas com uma entonação de força profundamente enraizada:
- Estamos, sim. A Mirita acaba de descobrir um mundo novo, o mundo da poesia!.
- Ah, a menina virou intelectual ?
A menina não registou nenhum choque ao notar o ataque. Encarou-o, sorriu e volveu:
- Ainda não virei.
O que o Zé Chaves teria deduzido da réplica não devia ser para ele nem agradável nem tranqüilizante. Pelo contrário. Aquela frase de nada, breve e cândida, dir-se-ia carregada de secretas ameaças.
Então voltou-lhes as costas e foi sentar-se a fumar numa das poltronas ao canto da sala, no sítio onde lhe parecia poder ficar mais isolado.
A Rosarinho, que sem parar de manusear a agulha observara todo o manejo, murmurou para a tia:
- Ficou fulo!
Diante dos poetas, o Antônio continuava a conversar com a Mirita, em voz baixa. Mas agora não se referia aos criadores de beleza, não lhes apontava as diferenças naturais que determinam as origens das escolas - escolas todas elas aparecidas sempre que alguém encontra uma forma nova de expressar em linguagem artística aquilo que sente e naturais porque se natural se torna que as pessoas não tenham iguais a cor dos olhos e o feitio dos narizes, como exigir-lhes que digam maravilhas, versejando, pintando, compondo, etc. etc. por um padrão único?. Era nisto que ele falava quando aparecera o Zé Chaves. Indicava-lhe frases de Antônio Nobre e explicava-lhe que ele não seguira modas, criara formas, uma forma, uma maneira, e por isso valia tanto! Fora um Diferente, cantando a beleza, a emotividade, o esplendor afectivo, celebrando-os e transmitindo-os, conseguindo ser Ele, com os seus versos magistrais e o seu olhar negro de homem cedo ligado ao carro da morte. Quem o imitara ou imitasse não passava, não passaria nunca, de um escravo da alheia grandeza. De Fernando Pessoa, outro genial criador, se podia dizer o mesmo que de Antônio Nobre. E os criadores são para se respeitarem e não para se copiarem. Quantos pretenderem proliferar à sua sombra não passarão de cogumelos venenosos. Claro que há discípulos, claro que se aprende com alguém a seguir uma linha directiva. Mas depois de conhecido o alfabeto e as regras de gramática, os nomes das notas musicais e as combinações das cores das tintas, cada um tem de procurar e achar dentro de si o que vai comunicar da sua riqueza interior, sem estar a repetir o que outros disseram e fizeram quais ecos destimbrados e pálidos.
Fora esta inteligente exposição do Antônio Fontemora, que a fazia sondando as reacções de Mirita, por vezes até a sorrir da ignorância de uma estudante universitária (aliás ignorância isenta de quaisquer laivos de estupidez!) que a aparição do Zé Chaves cortara. E agora, vendo-o lá longe com um ar embezerrado, o rapaz, abandonada a sua dissertação cultural, limitava-se a perguntar, com várias frases que todas queriam dizer o mesmo:
- Mirita, importuno? Seja sincera!
Ela abanou por fim a cabeça, encarando-o, resoluta. E ele:
- Não?
- Não!
- Mas a atitude dele.
- Ele não tem que tomar atitudes. Eu sim, posso tomá-las. - e cheia de coragem para enfim revelar o que se lhe formava no pensamento: - Estou a gostar muito de conversar consigo. Sabia da existência de rapazes para os quais a inteligência e a sensibilidade femininas são muito importantes, mas não conhecia nenhum.
O Antônio semi-cerrou os olhos, talvez deliciado com semelhante apreciação. Logo porém voltou a abri-los bem abertos e perguntou:
- Devo deduzir, por essas palavras, que você tem tido pouca convivência com rapazes?
- Tenho tido a convivência normal permitida pela companhia de alguns amigos e de conhecimentos acidentais em festas nas casas de algumas colegas com quem nos damos.
- E dessa convivência não lhe ficou nenhuma recordação agradável?
Mirita encolheu os ombros.
- Não, nem por isso! Alguns são divertidos, fazem-nos rir a contar histórias, interessam-nos falando de filmes que nós não vimos, de férias em sítios onde nunca pensámos ir, ou de namoriscos que tiveram eles ou os amigos. e pouco mais!
O Antônio, com as pupilas bem mergulhadas nas dela, indagou então:
- Ali o Zé Chaves pertence a esse grupo que, de resto, constitui uma minoria?
Mirita não deu qualquer resposta. Não teve tempo de reflectir para poder realmente dizer o que pensava, porque já a Lili irrompia pela casa, aparentando um ar surprendentemente feliz!
Como se destacava essa felicidade e em quê? Mas até na forma de andar! Os cabelos dançavam-lhe sobre o casaco; o casaco dançava-lhe sobre o corpo; o corpo dançava-lhe sobre os pés. E no olhar dançava-lhe a alma!
Beijou a Mãe, a tia, a Rosarinho e a Rita, a rir. A rir foi beijar a Mirita e cumprimentar o Antônio Fontemora, sem manifestar a menor admiração pela presença dele. A rir observou o aspecto carrancudo do Zé Chaves, que mal levantou o rabo da cadeira para lhe falar. E numa risada lhe desfechou um comentário:
- Homem, estás com um ar de caçador que foi à caça e gastou a cartucheira sem trazer nem sequer um coelho, quanto mais uma lebre!.
O Zé Chaves, como que picado por uma vespa, levantou-se e redarguiu, furioso:
- Talvez me tivessem roubado a cartucheira!
- Ou a caça! - ripostou a Lili, que de súbito percebera que a sua frase tivera um alcance que ela não pretendera dar-lhe.
O Antônio Fontemora, que entretanto começara a despedir-se, primeiro das duas Senhoras, depois das duas irmãs mais novas, chegara diante do Zé Chaves, que lhe voltou as costas desabridamente.
Por instantes a Lili, e a Mirita que o seguira de perto, recearam que o Antônio dissesse algo que viesse a provocar qualquer incidente desagradável. Na verdade ele podia fazê-lo, de tal maneira se tornava agressiva a atitude do Zé que naquele instante despira com assombrosa rapidez a imensa capa da sua tão gabada boa-educação. Mas o rapaz não abriu a boca. Não abriu a boca naquele momento exacto. Porque, ao chegar à porta, perguntou à Mirita, baixo sem dúvida mas não tanto que ao escutá-lo o Zé não crispasse violentamente os punhos e a tia Casimira não parasse de fazer renda, erguendo os olhos para os três protagonistas da cena (porque era uma autêntica cena!) enquanto a Rosarinho sentia uma irreprimível vontade de rir, idêntica à que transbordava da Lili:
- Posso telefonar-lhe amanhã, Mirita, ou há qualquer inconveniente?
E a Mirita, corajosíssima:
- Não há inconveniente algum, Antônio. Telefone quando quiser. - e foi acompanhá-lo à porta da rua.
Voltou pouco depois, com expressão de pessoa muito admirada com tudo e com todos. Até consigo própria.
Foi ao escritório e voltou, trazendo o caderno de folhas amarelas, manuscrito, que o Antônio lhe deixara entregue, e sentou-se no seu poiso favorito, junto da janela, evidentemente disposta a começar a ler. Já o Zé Chaves, junto dela, com um ar que não lhe assentava nada bem pois estabelecia vivo contraste com a sua fleuma habitual, observava:
- Pelos vistos, devo estar a mais. Mirita nem sequer lhe respondeu. E ele:
- Se estou realmente a mais, posso ir-me embora para não voltar.
Uma pausa.
Dona Teresa Mafalda, que a tudo assistira com extrema serenidade, conservava os olhos fixos nele sem demonstrar as suas impressões. A Lili, que estava a conversar com a Rosarinho, engasgou-se, como se as palavras se lhe enrolassem na boca. A tia Casimira também não exteriorizou qualquer sentimento. Dir-se-ia que não notara o que quer que fosse de anormal. Mas se alguém se lembrasse de a observar atentamente talvez desse fé de um leve sorriso irônico a entreabrir-lhe os lábios.
Perante o silêncio da Mirita, o Zé Chaves, cada vez mais descontrolado, esquecido não só da sua elegância mas também da mais elementar correcção, prosseguiu entre-dentes mas num tom perfeitamente audível:
- Estás muito segura de ti! Não te importas nada que eu desapareça, é?. Talvez por causa desse poeta das dúzias que principiou a arrastar-te a asa. Se queres, deixo o lugar vago. mas depois não andes atrás de mim a carpir, que eu não volto!
E então aconteceu que a Mirita, após a pausa necessária para coordenar idéias e conseguir expressar com exactidão o que pensava e sentia, levantou a cabeça e, fitando-o muito séria, - seriíssima! - indagou:
- E a saber, Zé. que espécie de lugar ocupas tu?
O rapaz abriu a boca mas não emitiu um único som. E a Mirita, cada vez mais senhora da situação:
- Creio que não pagaste bilhete nem de entrada nem de saída. E sucede que tens entrado e saído muitas vezes, quando te apetece, demorando-te ao meu lado ou longe de mim o tempo que queres. e eu nem nunca mandei que te retirasses nem nunca implorei que voltasses. Não há portanto qualquer atitude da minha parte que te faça recear que eu venha a ser capaz de andar atrás de ti!. Entendidos?
Uma reacção geral entre a família. Cada qual manifestando-a à sua maneira.
A Lili deu um passo na direcção da irmã. Impossível saber se o movimento obedecera à intenção de a mandar calar ou, pelo contrário, de a incitar a prosseguir. Nos seus olhos só havia espanto! A Rosarinho e a Rita riam a bandeiras despregadas. Dona Teresa Mafalda estendera a mão num gesto que impunha silêncio à filha, uma imposição tardia visto que ela falara de jacto e parecia pronta a continuar. A tia Casimira, por seu turno, agarrara no braço da cunhada, baixando-lho e impedindo qualquer nova interferência. No seu ar, uma expressão triunfante, como se a sua alma que para sempre ficara menina aplaudisse com toda a força a atitude justa da rapariguinha que enfim punha no seu lugar aquele simpático pretensioso.
A cena não se alongaria. O Zé Chaves parecia sufocado.
Muito direito, afastara-se da Mirita e despedia-se agora, formalíssimo, das cinco assistentes. Tinha o rosto crispado e os olhos velados, como se os tapasse um véu que ninguém ousaria supor feito de lágrimas contidas. E abandonou a sala sem que Mirita esboçasse o mais pequeno gesto para o reter, o mais pequeno gesto de pesar ou temor.
Só depois de bater a porta da rua os sentimentos íntimos de Dona Teresa Mafalda em relação a tudo aquilo se concretizaram numa censura veemente.
- Mirita. mas que maneiras vêm a ser essas para com o seu noivo?
E então a que estava a aprender a dizer o que pensava e não o que aos outros convinha, encarou a Mãe destemidamente e redarguiu:
- Meu noivo como e porquê, se faz favor? A quem foi afinal que ele me pediu em casamento? A quem disse que desejava casar comigo? A mim, não! À Mãe e ao Pai. acho que também não!
E a tia Casimira, a sorrir com naturalidade, mas - sentia-se! - a apoiar a atitude corajosa da sobrinha:
- A mim, palavra que também não!.
- Mas estava implícito! - defendeu Dona Teresa Mafalda. - Era um assunto que não necessitava de palavras para ser julgado como resolvido! A não ser assim. que podia ele pretender desta casa, frequentando-a tão assiduamente ?
Mirita: - Talvez fazer-me passar a mocidade agarrada a uma esperança que ele tem todo o direito de dizer que não procurou inspirar! De resto, Mãe, a reacção do Zé, hoje, foi a primeira em que na verdade demonstrou um real interesse por mim.
Com vivacidade, a Lili atalhou:
- A primeira não, Mirita! Sou testemunha de que sempre que algum rapaz se aproxima de ti ele procede de maneira idêntica!
- Mas nunca com palavras de compromisso! - asseverou a pequena, veemente.
Dona Teresa Mafalda, para quem certos preconceitos tinham a força da razão, não aceitou as justificações.
- De qualquer modo e até prova em contrário, o José (- que importância o caso estava a assumir para a Mãe! -) - é considerado aqui em casa como seu noivo e enquanto assim for não admitirei que a menina se porte como há pouco. Ouve?
Mirita, porém, não aceitou a imposição. E saiu-lhe pela boca fora uma afirmativa espantosa, em que a defesa de si própria e das suas convicções recém-nascidas tomavam o lugar de uma reivindicação inalienável.
- Será como diz, Mãe, e é natural que nas suas frases se oiça a voz da prudência e do bom-senso. Mas contra tudo e todos, à frente de tudo e de todos, colocarei daqui em diante a noção de que só eu posso e devo dispor da minha vida, sem me dobrar aos interesses de quem quer que seja!
Dona Teresa Mafalda ia com certeza dar-lhe uma resposta pouco agradável e talvez se desencadeasse uma daquelas cenas familiares, graças a Deus raras, mas que de vez em quando perturbavam a paz e a harmonia domésticas, antepondo em conflito a essência do caracter de cada um. Inevitáveis choques de personalidades, de maneiras de pensar, de sentir, de reagir.
A tia Casimira ergueu-se para intervir, pronta a deter a cunhada no meio de um caminho que não levava a parte alguma e para mais partia de uma conclusão extemporânea. Mas não foi preciso dizer nada, porque já a Lili soltara um aviso que todos os perigos iminentes suspendia:
- Vem aí o Pai!
Com efeito, ouvia-se abrir a porta de entrada.
Dona Teresa Mafalda retraiu-se, obedecendo a tácita regra do lar, mantida com grande e sincero esforço desde sempre - evitar tanto quanto possível que os pequenos e quotidianos aborrecimentos familiares alterassem o chefe quando este chegava a casa com o mais legítimo direito de usufruir em paz e sossego o ambiente ao qual cabia a responsabilidade de torná-lo feliz. Bem bastava que no decorrer da convivência normal surgissem incidentes perturbadores da ordem!
Era graças a esta técnica, louvável sob muitos aspectos, que o Dr. Álvaro Abegorim não só quase nunca tinha de resolver quaisquer problemas caseiros como também os ignorava. A maioria deles raramente chegava ao seu conhecimento. Acontecia, neste desbobinar de cautelas, que o Juiz olhava em seu derredor como se metido dentro de uma bonita redoma cor-de-rosa. Apareciam-lhe os fatos poetizados na cor e desfigurados na forma. Porque, na essência, em todas as famílias se vivem determinadas horas difíceis e nem tudo
são doçuras mesmo quando a felicidade possui um trono erguido no centro do lar.
Não há sistemas sem vantagens e desvantagens. E aquele não fugia à regra, evidentemente. Do que resultava por vezes o Dr. Abegorim não caber em si de pasmo ante a inesperada revelação de algo menos certo que não deixava de existir só por ele o desconhecer e de súbito se levantava na sua frente com a força das realidades contra as quais nada há a fazer. No entanto, com o mesmo carinho, toda a família se aplicava em manter a orgânica estabelecida. E assim naquele momento a incipiente discussão cessou por completo e o Pai, ao receber o cumprimento das filhas nada notou de anormal a não ser o excessivo rubor das faces de Mirita. Tateou-as e, sentindo-as escaldantes - bem longe de supor o motivo logo se inquietou:
- Terá febre, a menina? Está tão quente! E a Mirita:
- Não, Pai! Há-de ser por causa do calorífero. Sentei-me ao pé dele!
E o Dr. Álvaro Abegorim, o Juiz sereno e consciente, observador e arguto, não reparou que o calorífero não estava aceso.
O jantar ia decorrendo segundo os ritos normais.
Comia-se, conversava-se, de vez em quando as meninas divergiam entre si de qualquer coisa que uma dizia. Tudo habitual.
A Sofia dispensara a Mirita do serviço que lhe competia e andava de roda da mesa, atenta às necessidades da refeição, com a compostura que nessas ocasiões assumia. Em dado momento, o Dr. Abegorim, enquanto barrava conscienciosamente com manteiga e mostarda uma fatia de pão (toda a família gostava daquilo e as meninas olhavam o Pai cobiçosas, sem se atreverem a imitá-lo por causa da linha) concentrou sobre si o interesse geral com uma declaração inesperada.
- Sabem vocês com quem estive hoje a trocar umas impressões acerca do nosso vizinho do segundo andar?
Ninguém adivinhava com quem teria sido. Mas os vizinhos do segundo andar eram figuras que atraíam toda a gente.
A tia Casimira perguntou:
- Qual vizinho do segundo andar? O médico?
- O futuro médico! - elucidou-a o irmão.
- O filho do Dr. Macedo.
E a tia Casimira:
- Aqui há semanas, numa pastelaria da Baixa, vi o rapaz. Por tal sinal que me chamou a atenção por ser o mais bonito do grupo onde estava! Primeiro olhei para ele sem saber ao certo quem era, só porque o achei fora de série. Depois lembrei-me e.
A Rita meteu a sua colherada, interrompendo-a maliciosamente.
- Olha a tia lembrar! . .
- Pois lembrei, menina. Reconheci o Pedro. porque é Pedro que ele se chama, não é?
- É! - responderam-lhe as sobrinhas mais novas, em coro.
A tia parecia disposta a alargar-se nas suas apreciações acerca do Pedro, mas a Rosarinho não lho permitiu.
- Ó tiazinha, deixe o Pai falar! Ia contar qualquer coisa.
E perante o silêncio estabelecido, discretamente pontuado pelos toques dos talheres nos pratos (que boas estavam as empadas de rim!) o Dr. Abegorim continuou:
- Pois estive a conversar acerca do Pedro Ferreira de Macedo com o Ataíde Lemos. - e notando o trejeito de ignorância familiar acerca da identidade rotulada por aquele nome bem sonante, esclareceu: - O Ataíde Lemos é um rapaz advogado que eu muito estimo e admiro. Um rapaz da minha idade, claro!. Talvez uns cinco ou seis anos mais novo do que eu. Recordo-me perfeitamente de que ele entrou para a Faculdade quando eu estava a formar-me. Nunca o perdi de vista, nem mesmo nos primeiros anos da carreira, quando eu andava pela província, de um lado para o outro.
- Sempre com a casa às costas, como o caracol! -sentenciou a Sofia, que estava a dar muita atenção a tudo (ou não fosse ela amiga da Arminda e da Laura, as criadas dos Macedos) e sem que ninguém lhe levasse a mal a intromissão, nem mesmo o Dr. Juiz, que prosseguia como se ela não houvesse aberto a boca:
- O Ataíde Lemos nunca saiu de Lisboa e principiou corajosamente a exercer a sua profissão, conseguindo atingir uma situação notável no foro, e isto sem abdicar dos mais rigorosos princípios de honestidade. Actualmente goza, senão da estima geral (os impossíveis não se alcançam, sabe-se!) pelo menos do respeito e do temor de toda a gente. É um daqueles homens que inspiram total confiança! Todos nós sabemos, quando se prepara para falar, que temos o dever de acreditar no que ele garantir, porque nunca afirma nada de que não esteja absolutamente seguro, porque nunca defende coisa alguma que não considere justa. A propósito, ele é que vai defender o Ivo Branco, o filho daquele meu antigo condiscípulo cuja história lhes contei há poucos dias, não sei se se recordam.
A tia Casimira não podia recordar-se porque não sabia do que se tratava. Não ouvira a narrativa do irmão e pretendia ser elucidada. A cunhada e as sobrinhas não iam dar tempo ao Dr. Abegorim para a satisfazer, recapitulando os pormenores do drama que tanto o magoara. De resto, a suster aquela razoável curiosidade, já a Mirita prometia "eu depois digo-lhe o que foi, tia, " - e isto enquanto Dona Teresa Mafalda comentava, admirada:
- Há aí uma coisa que não estou a entender, Álvaro!
- O que é ?
- Como aceita um advogado desse gênero defender a causa de um culpado?
- Reconhecendo a necessidade de tentar salvá-lo.
- com que argumentos ?
- Apenas utilizando a verdade nua e crua. Ninguém compreendeu a resposta. Ou antes
- o sentido da resposta! Porque, naquele caso, parecia que a verdade nua e crua não poderia ser senão uma confissão de culpa e logo a implacável condenação do réu. Álvaro Abegorim iria demonstrar o contrário ao grupo feminino que atento esperava as suas explicações.
- com a verdade nua e crua o Ataíde Lemos tentará atrair sobre o rapaz a indulgência dos juizes. com a verdade nua e crua provará as causas que o perderam e encontrará a justificação que, se não merecer um perdão total, talvez impossível, alcançará pelo menos benevolência que induza o criminoso a desejar uma breve reabilitação. Porque se na actualidade existe uma adolescência em falta e uma juventude em erro confesso, a origem dos males vem das transigências e dos comodismos ignóbeis dos seus maiores. Para se pouparem a conflitos ocasionais, para simplificarem a existência comum e resguardarem os seus próprios direitos a uma vida sem peias, os responsáveis deixam muitas vezes os moços ao Deus dará, permitindo que todos os micróbios se desenvolvam nos espíritos em formação. A maioria dos adultos age, na fase evolutiva dos filhos, como os maus camponeses que, depois de semearem a terra, querendo fugir a cansaços e dores nos rins, consentem que as ervas daninhas lhes invadam os campos. Quando chega a hora da colheita, as sementes
venenosas misturam-se com os grãos puros. e tudo vai ser farinha e dar pão que fará mal a muita gente. Repito, Teresa Mafalda, que a verdadeira culpa das culpas dos jovens cabe aos Pais e aos Educadores que autorizam, que transigem, que facilitam.
Leonor Augusta não se conteve e interrompeu o Pai com uma pergunta cheia de reflexão:
- Mas, Pai, ajuizando assim, que faz da liberdade individual?
O Pai encarou-a.
- Que faço, Lili? Respeito-a, naturalmente.
- Perdão. o Pai referiu-se a autorização, a transigência, a consentimento. portanto limita a independência da criatura fechando-a em barreiras capazes de a atrofiarem!
- Não, minha filha, não! Não limito nem fecho, porque o direito de cada um pensar e actuar começa no momento exacto em que termina a obra de formação do ser humano.
- E como sabem os Pais e os Educadores que a obra acabou?
- Exactamente como os pássaros um belo dia descobrem que os seus miúdos podem voar e orientar-se e tornar-se livres sem carecer para nada da vigilância dos Pais. até porque estão por sua vez aptos a transmitir vida e a espalhar novos ensinamentos!
Houve silêncio durante alguns momentos.
Rosarinho via, na sua imaginação, um bando de passarinhos a erguer-se alto no céu, a desferir vôo para longe, para muito longe, para tão longe que nunca mais descobriria onde fora o seu ninho. Ela não gostaria nada de ser um desses passarinhos. Nem de ir-se embora. Nem de perder de vista os Pais, as irmãs.
A idéia, só a idéia, tornava-se-lhe de tal forma insuportável, que sentia os olhos cheios de lágrimas. Felizmente que já a tia Casimira cortava o fio que lhe ligava as idéias às palavras escutadas, interpelando o irmão.
- Escuta, Álvaro. Não creio que principiasses a falar do teu amigo não sei quê para chegares a uma dissertação filosófica. nem para recordares o caso do tal rapaz que ele vai defender.
O Juiz sorriu:
- Pois não! Desviei-me do assunto.
Mas a Rita tinha qualquer coisa a indagar, qualquer coisa que mais uma vez ia demonstrar o seu notável poder de observação. E afoitou-se:
- O Pai dá-me licença que eu o interrogue?
- Certamente!
- Gostava de saber o seguinte - como é que o Dr. Ataíde Lemos pode encontrar atenuantes no caso do filho do seu amigo Tito Branco? O Pai não o considera integralmente culpado?
Era uma pergunta tremenda! A rapariguinha antecipava-se a tudo e queria descobrir o que ele. Juiz, ainda ignorava. Ele, Juiz
- às voltas com o estudo do processo doloroso, olhando-o noite após noite cheio de dúvidas e de perplexidades, sem chegar a uma conclusão. Uma conclusão? . Poderia encontrar perdão para o rapaz nas culpas inexistentes de um Pai crédulo e demasiadamente generoso? Ou sem remissão iria incriminar um filho que atraiç oara a confiança e o altruísmo de um Pai que por ele sacrificara tudo - incluindo o legítimo direito de usufruir a sua companhia? Houvera da parte do Pai benevolência excessiva ou apenas inconsciência? Teria, em relação aos interesses reais do filho, procedido da melhor forma ? Ao deixá-lo partir entregue a si próprio, estaria absolutamente seguro de que ele já podia aguentar-se nas débeis asas? E se o acreditara sem provas, não facilitara a queda do rapaz? Ou, pelo contrário, certificara-se da sua suficiente preparação e o filho caíra no abismo por defeito próprio?
Mastigando devagarinho, quase esquecido de que tinha comida na boca, o Dr. Álvaro Abegorim mergulhava naquela onda de preocupação que sempre o envolvia nas grandes ocasiões em que a ordem, para ele, era julgar, julgar com imparcialidade, julgar com isenção, julgar com a certeza de ter consigo a razão total e de estar de acordo com os direitos da sociedade e do indivíduo que só dispõe de uma vida para viver.
À volta da mesa, reinava a expectativa. Ninguém ousava quebrar a meditação do Juiz.
Mas a Rita, imóvel, garfo abandonado no prato, cansou-se de esperar e decidiu arrancar o Pai àquela distracção que ameaçava eternizar-se, deixando em suspenso os assuntos que lhes haviam despertado interesse.
- Então, Pai? Não me responde?
- Ah, pois. pois! - e engolindo precipitadamente o que mal mastigara, o Dr. Abegorim voltou a falar, com grande alívio da família. E, muito sinceramente, confessou: Neste instante, filha, ainda não sei nada! De resto cumpre-me não ser precipitado e aguardar um debate que possa ajudar-me a entrever a realidade, agora perdida na nebulosa de precedentes e incidentes ainda por explicar. Não me assiste uma visão redonda do problema e não devo deixar-me arrastar por impressões pessoais.
- Mas o processo não é suficientemente elucidativo?
- O processo, Rita, é feito de papéis. E eu, para ser justo, preciso de factos vivos e de sentimentos!
Irrespondível, a frase!
Rita suspirou. Sabia que o Pai não ia dizer mais nada acerca do caso. Aliás todas sabiam que a partir daquele momento o Juiz viveria numa tensão de nervos que freqüentemente o isolaria dentro do seu mundo íntimo. Era o que sempre acontecia quando tinha algo de transcendente a magoá-lo, exigindo-lhe CERTEZAS ao comandar um destino. Um período que o tornava alheio ao que o rodeava, que o impermeabilizava de forma a nem sempre prestar atenção a quaisquer outras coisas que porventura o solicitassem.
A Lili pensou que se ia tornar para ela muito difícil ter com o Pai a conversa que não queria adiar - nem devia.
Mas já a tia Casimira, sempre obstinada (traço forte do caracter dos Abegorins), decidira voltar ao que inicialmente parecia tema dominante na conversação e fora desviado pela Rita para variações sem importância de maior - no seu entender. Assim, atacou a fundo:
- Sabes, Álvaro, que continuo à espera de que te dignes revelar o que foi que o tal teu amigo advogado te contou acerca do nosso vizinho do segundo andar?
A Mirita gracejou:
- A tia parece muito interessada no Pedro!. É por ele ser bonito ?
- Talvez! Sempre achei que as pessoas não têm o direito de ser feias!
- Oh, tia!. Coitadinhas das desfavorecidas da natureza!
E a tia:
- Eu não me referi a fealdade física!. Falei em fealdade sem especificar. e sabe-se que pode haver fealdade física com beleza espiritual e vice-versa! Mas, por acaso, acontece que o jovem Macedo tem ar de ser bonito por dentro, o que o torna ainda mais bonito por fora.
- E é! - corroborou o Dr. Abegorim, a quem a divertida explicação da irmã conseguira desanuviar um tanto obrigando-o a afastar-se do tremendo problema cuja resolução ia depender dele.
Dona Teresa Mafalda interveio então, a apoiar a cunhada, certa de que na verdade o marido obedecera a um desígnio especial quando abordara o assunto.
- Foi o teu amigo advogado quem assim te convenceu da beleza total do Pedro?
- O que me convenceu foi o que lhe ouvi acerca da constituição de uma família alicerçada nas mais sólidas bases que se possam imaginar e desejar! O lar dos Macedos é efectivamente um lar como deve ser, como todos deviam ser.
- À antiga ? - indagou a Mirita num tom que não permitia saber se ela o dizia a sério ou a gracejar.
- Não há lares nem à antiga nem à moderna, minha filha. Há lares que em quaisquer épocas estiveram e estão certos, tal como existem outros que estiveram e estão errados. Tudo depende dos caracteres das pessoas que os constituem. Ora sucede que os Pais Macedo são pessoas de sólida formação moral, com a noção exacta da importância dos elos que tecem o bloco familiar dentro do qual os seus filhos são preparados de modo a tornarem-se mais tarde em colunas de apoio de idéias e de sentimentos, incapazes portanto de se incorporarem num descalabro que, a acentuar-se, a não ser detido, levará as criaturas a um aviltamento capaz de as reduzir à triste condição de animais sem outras manifestações afectivas que não as determinadas pelos instintos primitivos.
Dona Teresa Mafalda sentia-se vivamente interessada, tanto mais que as palavras do marido lhe lembravam alguns factos antes ocorridos e desvirtuadores das excepcionais virtudes agora reconhecidas ao jovem vizinho.
- Escuta, Álvaro. Esse Pedro, aqui há uns tempos, não andou bastante fora da linha de conduta que tu enalteces?
- Andou. E foi precisamente por causa disso que o Ataíde Lemos me falou dele, elogiando-o em todos os tons.
- Não percebo!
- Já vais perceber. O rapaz, com as suas extraordinárias faculdades, era no fundo e apenas um ingênuo. Temos, para o admitir, de recordar que ele, equilibradíssimo, viveu isolado até ao sétimo ano do Liceu.
- Isolado? Isolado, como? Então não freqüentava um Colégio?
- Um óptimo Colégio, por sinal! - acrescentou a tia Casimira, muito dentro do assunto.
E o Dr. Juiz:
- E isso que quer dizer?
- Ora essa ? Conviveu com outros rapazes.
- Enganas-te, Teresa Mafalda. Até ao 7. ? ano, o Pedro de Macedo viveu limitadíssimo, num meio restrito, lidando apenas com um escol.
- Um escol, Álvaro? Não quererás persuadir-me de que num Colégio, mesmo Bom, não há de tudo!.
- Há, mas numa percentagem mínima em favor dos indesejáveis por esta ou por aquela razão, não adianta especificar, visto que todos se encontram debaixo de uma vigilância que impede a evolução de ocorrências perniciosas. Bem vês que é fácil, num Colégio, principalmente num bom Colégio, os Professores detectarem o mínimo foco de infecção, eliminando-o! Por isso o Pedro cresceu num ambiente se não puro, pelo menos purificado. Nesse meio os bons são simplesmente bons. e os menos bons apontados a dedo enquanto os melhores servem de exemplos, como o nosso vizinho e o seu maior amigo, justamente o filho do Ataíde Lemos, hoje noivo da pequena Macedo.
Foi a Rosarinho quem o interrompeu, cortando-lhe a fluente e comunicante explicação com uma pergunta:
- A Ana Maria casará breve?
Logo a Rita, que estava a ouvir o Pai com a maior atenção, a repreendeu:
- Cale-se, Maria do Rosário.
- Porquê? Faz algum mal querer saber?
- E a Mirita:
- Interessa-lhe muito, a situação da Ana Maria ?
- Interessa, pois!
- Nem que a conhecesse muito bem!
Os lindos olhos da Rosarinho ergueram-se para a irmã numa expressão irritada de que ninguém os julgaria capazes:
- Conheço a Ana Maria muito bem, a mana sabe-o perfeitamente! Ela só tem um ano a mais do que eu e também só andava um ano mais adiantada, no Liceu! Foi para mim que ela no ano passado fez aquela palestra.
- Olha para si! - troçou a Rita, impiedosa.
E a Rosarinho:
- Oiça, Rita. Eu não fazia parte integrante do 5. ano?
- Fazia.
- Não era para o 5. ano que a Ana falava ?
- E depois ?
- Depois. falava para mim, quer a menina queira quer não! - e acrescentou, positiva:
- Foi a partir daí que eu fiquei com a maior consideração por ela!
- Retribuída?
A mais nova não lhe respondeu. Agora, os olhos lindos enchiam-se de lágrimas.
A tia Casimira interveio, a acabar com a incipiente discórdia:
- E se as meninas em vez de discutirem como patetas deixassem o Pai continuar?
O Dr. Abegorim, que franzira a testa enquanto descascava uma banana (já estavam na sobremesa!) observou:
- A minha família parece que prefere ouvir-se a si própria do que ouvir-me a mim.
Pumba! Um silêncio geral! Momentos decorridos, já a Sofia trazia o doce (um delicioso bolo de ananaz que os
levava a todos a pecar por gula) Dona Teresa Mafalda, docemente, indagou:
- E então, Álvaro? O que há mais com o Pedro de Macedo?
O marido passeou o olhar pelas filhas mais novas, que haviam recomeçado a comer muito compostas.
- Bem. - proferiu. E a seguir, poisando a colher, gesto a demonstrar que não ficara ressentido: -Pois, como eu ia dizendo, o Pedro e o Paulo, amigos íntimos, chefes espirituais nos seus cursos, alunos brilhantes, sensibilidades excepcionais, viveram de certo modo protegidos e defendidos do exacto conhecimento da vida. Reparem - sucedeu com eles o inverso do que se passou com o filho do desgraçado Tito Branco. O Pedro e o Paulo nunca se acharam à mercê dos embates do mundo. Nem mesmo quando saíram de Portugal, porque os Pais os rodearam dos maiores cuidados e os rapazes foram à guarda de um extraordinário Colégio na Alemanha onde os envolveram as mais perfeitas normas de educação E assim concluído o 7. ano, os dois de chofre se sentiram estranhos num mundo diferente, onde se encontravam lado a lado e sem defesas alheias o bom e o mau, o conveniente e o condenável, o são e o putrefacto. Na essência e por mais que isto nos possa preocupar, sob determinados aspectos, evidentemente, as Faculdades são Escolas livres onde o primeiro contacto de rapazes-homens que antes se não conheciam, idos de todos os sítios e de todos os meios, toma, mercê das circunstâncias, o jeito particular de cada um, dando força ao inédito e ao ignorado. Correntes oriundas dos mais diversos sectores cruzam-se, chocam-se e formam remoínho.
Coube à Lili, desta feita, cortar a palavra ao Pai com uma observação justíssima que não conseguiu abafar:
- Mas, Pai, nos Liceus e nas grandes Escolas onde a vigilância pode considerar-se reduzida, acontece o mesmo! Não me parece que a Universidade seja mais perigosa!
- Não lhe parece mas é! - ripostou o Juiz.
- Porquê?
- Nos Liceus e nas Escolas andam crianças e adolescentes, seres em desenvolvimento, portanto susceptíveis de aprenderem o que devem e de se moldarem a noções que, devidamente incutidas, dispõem de um belo terreno para germinar. Nas Faculdades e nos centros de especialização equivalentes, andam jovens formados por dentro de acordo com o que neles vicejou, com idéias que principiam a definir-se e a estabilizar-se, visto que se abeiram a passos largos da fase da vida em que lhes compete a eles próprios começarem a exercer a sua influência. Acaba a idade receptiva e principia a idade executiva e aí as direcções se chocam e uma juventude se agrega ou desagrega, se une ou se combate, impondo a sua acção catalizadora de acordo com a formação anteriormente conseguida. Os bons e os maus actuam então livremente, claro que os mais fortes aliciando ou eliminando os mais fracos.
- De onde se deduzirá que o Pedro Ferreira de Macedo não é dos mais fortes?
A pergunta, um tanto zombeteira, partira da tia Casimira, o que surpreendeu o irmão, que a fitou sem lhe perceber o alcance.
- O quê?
- Sim, se foi na Faculdade que ele principiou a asnear, é porque deixou tudo o que nele havia de bom amolecer perante a acção nociva de outros rapazes! Portanto. não pertence à categoria dos fortes, como eu supunha!
O juiz sorriu:
- A influência que o perturbou foi uma influência feminina, entendes? O Pedro, exactamente por que sempre andou bastante fora das cruas realidades do mundo (o que prova que todas as coisas, até as melhores, podem ter o seu lado mau!) viu-se subjugado por uma pequena revolucionária que a Mãe, compadecida da triste situação em que ela se achava, havia albergado.
E a Rosarinho, peremptória:
- Era a Arabela, eu sei!
Desta vez a Rita não achou estranha a evocação exacta, pois também ela se recordava nitidamente da loira nórdica que tanto dera que falar no Liceu. De resto, quantas vezes se tinham encontrado no elevador do prédio, chegando a conversar em amena camaradagem! E, lembrando-o, pontuou a afirmação da irmãzita com um comentário impiedoso:
- Ui, que menina, essa Arabela! Um monstrozinho com ar de Anjo!
E o Pai:
- Pois foi esse monstrozinho, como a Rita diz, quem marcou a cera mole da alma inexperiente do Pedro, arrastando-o para uma situação extremamente perigosa mas da qual ele por completo se redimiu, saindo da provação mais digno e, se possível, mais perfeito.
- Como os Santos que reagem às tentações do demônio! - concluiu a Rosarinho.
O Dr. Abegorim, achando graça à tirada da filha mais nova, piscou-lhe um olho, anuindo:
- Sim, é mais ou menos isso! E foi precisamente sobre essa espécie de redenção que o Ataíde Lemos esteve a dissertar longamente, citando o Pedro de Macedo como um caso ímpar. Achei curioso e até invulgar um reparo dele, a tal propósito. É que em dado momento disse "o meu Paulo não é, de forma alguma, um tipo banal e possui qualidades de que muito me orgulho. Mas considero o Pedro mais completo, porque já foi temperado no cadinho dos sofrimentos morais e físicos em que as almas se depuram".
- Nesse caso, o teu amigo conhece na perfeição o assunto que tanto afligiu os nossos vizinhos?
- Oh, sim, Teresa Mafalda, o melhor possível!
- E, na opinião dele, o Pedro tornou-se credor de confiança?
- De confiança total! Quando lhe descrevi a ocorrência de segunda-feira passada, o Ataíde Lemos, depois de rir, como não podia deixar de ser, assegurou-me que no facto via apenas a confirmação do que já sabia ser uma realidade pois, por mais que lhe façam, por mais que se multipliquem em carinhos e atenções, o Pedro sente atrozmente a falta da família.
- Podemos então considerá-lo como um desenraizado"? - inquiriu a tia Casimira.
- Tal qual, Mira!
E foi então que Dona Teresa Mafalda sugeriu:
- Ó Álvaro, e se nós. ? - depois hesitou, como se uma súbita reserva enchesse de vírgulas e reticências o pensamento que a assaltara. Mas o olhar do marido, captando o dela, com qualquer coisa a fulgurar-lhe na expressão que traduzia misteriosa presciência do que ia ouvir (ou não houvesse entre ambos uma já tão longa existência percorrida lado a lado!) incitou-a a concluir:
- Talvez pudéssemos ajudar o Dr. Ataíde Lemos a adoçar no Pedro essa sensação de vazio. contribuindo de certo modo para o compensar da ausência da família, da falta do lar. Que dizes, Álvaro?
- Eu?.
- Sim? Vês numa atitude simpática da nossa parte algo que se afigure inconveniente?
- Bem, inconveniente. não!
- As nossas quatro filhas certamente gostariam de amenizar, com a sua companhia, a falta que a irmã lhe faz.
O Dr. Abegorim sorriu.
- E tu a falta que lhe faz a Mãe!
- A falta que uma Mãe faz não encontra lenitivo fácil.
- No caso do Pedro, creio que também lhe custa muito o afastamento da irmã. Havia entre os dois não só uma profunda amizade mas também uma estreita convivência. Aliás eles viveram sempre muito unidos. e isso é que justifica a acção saudosista do rapaz, vindo como que à procura do que viveu entre as paredes da casa cheia de recordações.
Num tom enigmático - tom usado quando não estava disposta a revelar a extensão dos seus juízos - a tia Casimira pronunciou:
- Nunca há ninguém capaz de substituir ninguém.
- O quê, tia? - perguntaram as quatro meninas ao mesmo tempo.
- Quero eu dizer que as pessoas se seguem umas às outras mas nunca são o que as outras eram.
- Ligeiramente confuso! - comentou o irmão.
- Não, se quiseres raciocinar! -e porque era a pessoa que menos considerava Álvaro Abegorim e por conseqüência a que mais irreverentemente lhe falava, no usufruto de um direito adquirido em criança, acrescentou: De vez em quando sofres cada ataque de preguiça mental!
O Juiz desfechou uma risada que acabou de desanuviar o ambiente e a ele próprio fez bem, uma risada que encheu os olhos de Leonor Augusta, sem dúvida alguma a mais calada durante o jantar, de um fulgor repentino, um fulgor que era como que a luz de uma esperança íntima a despertar, timidamente, sim, mas de qualquer maneira a despertar! E enquanto essa luz parecia tornar-se iluminação para um caminho escuro, o Dr. Abegorim respondia à irmã taco a taco, como nos tempos antigos:
- Pois tens muita razão, Mira! E fazendo um esforço, vencido o passageiro ataque de preguiça mental, com a minha inteligência capto o sentido do que não foste capaz de explicar senão por meias palavras. - e enquanto a Rosarinho e a Rita explodiam em risos, continuou: - Julgo que pretendias dizer o seguinte- na vida de cada um os afectos são como os anos no tempo. Sucedem-se e preenchem-nos, mas nunca tomam o lugar uns dos outros. Todos têm o seu mérito e às vezes um valor idêntico, mas nada que pertença a um cabe dentro dos limites em que o outro se encerra. O que mais importa, para a criatura, pode ir-se modificando, alternando até, mas não apaga a idéia do que terminou, nem que venha porventura a tornar-se mais importante do que o precedente.
- Aí te enganas, Álvaro!
- Eu? Porquê?
- Porque não há nada mais importante! As coisas têm apenas a importância que o momento lhes confere! Hoje, o mais importante para ti é o teu lar. Há trinta anos, o mais importante era o nosso lar, o lar dos nossos Pais. Daqui a uns anos, a importância deste lar, hoje para as tuas filhas o mais importante, ficou no tempo decorrido já, porque então para elas haverá a importância do lar delas.
- E se mudássemos de assunto? -e a vozinha que o pedia expressava a angústia de uma sensibilidade fustigada por imagens difíceis de aceitar, por mais reais que se afigurassem na sua antecipação.
E o Pai, encarando-a:
- Não vejo em que o assunto incomode, Maria do Rosário! De resto não gosto de deixar conversas em meio, a menina bem o sabe! Conversas por acabar dão-me sempre a noção de que se perdeu tempo inutilmente. e o tempo não é bem que se esbanje!
Era verdade. Nunca o Dr. Álvaro Abegorim falava por falar. Havia sempre motivos para ele se ocupar fosse do que fosse. E, confusas, as meninas entreolharam-se.
A luz apagou-se nas pupilas de Leonor Augusta.
Rosarinho não acabou de comer o doce.
Sofia retirou os pratinhos e serviu o café. E Rita aventurou-se, tentando encontrar uma ponte entre as duas disposições do Pai:
- Pai. quer que eu telefone ao Pedro a dizer-lhe que venha visitar-nos quando o desejar ?
O Juiz ficou como que a pensar, durante segundos. Depois, dando forma à resolução já suficientemente alicerçada dentro dele - percebia-se - declarou: - com efeito, entendo que devemos pôr o nosso lar à disposição desse rapaz que merece a nossa estima. Mas a quem cumpre telefonar-lhe é à mais velha. O convite, feito por ela, adquire outra consistência. Assim, a Leonor Augusta ligará para casa do Dr. Ataíde Lemos dizendo da minha parte - e frisou, da minha parte! ao Pedro de Macedo que temos muito gosto, a Mãe e eu, em o receber para almoçar num dia próximo.
E Dona Teresa Mafalda, que o marido consultara numa rápida troca de olhares: -Pode ser no domingo!
- Pois seja no domingo!
A Lili não se manifestou, mostrando concordância ou discordância. Evidentemente que executaria a ordem, mas no seu olhar mais cinzento do que o habitual, perpassou uma expressão que ninguém notou, até porque ela teve o cuidado de velá-la com um rápido abaixamento de pálpebras. Nessa expressão houvera o reflexo de algo ao mesmo tempo divertido e emocionado. Como a vida é caprichosa nas suas variantes, tantas e tão inesperadas! Ei-la investida do encargo de convidar para a casa dos Pais, a sua casa, esse que, nas lonjuras dos dias idos, ficara ligado às suas primeiras aspirações amorosas de adolescente.
Ter o Pedro ali sentado à mesa - sonho da menina a concretizar-se depois de desfeito.
Ia ser engraçado!
E tão distante estava a quimera. e tão perto a realidade!
A refeição acabara.
O Pai levantara-se e, depois da breve oração de graças, tradicional, recebia o beijo agradecido das filhas. Só faltava ela, Lili.
E o Pai, admirado com o atraso, fitava-a.
Então a rapariga, notando que principiava a entrar em falta, ergueu-se e abeirou-se do Dr. Abegorim, de rosto erguido e lábios entreabertos. Mas em vez do beijo, escapou-se-lhe da alma a imperiosa verdade até aí contida.
- Pai. preciso de falar consigo!
O olhar do Juiz mergulhou no dela, a tentar compreender. E reparando na sombra que o toldava, inquiriu:
- Agora ?
- Sim, se faz favor.
- Bem. venha!
E a Lili, seguindo-o para o escritório desde sempre o lugar onde os assuntos importantes se decidiam - fazia um esforço enorme para não permitir que a sua verdade, assustada, voltasse a isolar-se-lhe no coração.
Agora, sentado na vasta poltrona de couro, a cigarrilha entre os dedos (uma cigarrilha, ou um charuto, depois das refeições, eram o único vício do Dr. Abegorim) olhando tranqüilamente para a filha, o chefe do lar esperava. A perspectiva da conversa não o impressionava. Não lhe passava pela cabeça que a Lili pudesse querer algo deveras importante.
A Lili para ele nunca fora problema, nem lhe dera problemas. Pessoalmente a julgara sempre equilibrada, razoável - que se lembrasse precisara de ralhar-lhe a sério uma única vez. Devia ter ela então os seus doze anos. Recordava-se bem! Um dia, na inocência de uma audácia repetida, fora à gavetinha das "pinturas" da Mãe e à hora de sair de casa para a matinée a que ia levá-la a tia Casimira - era um domingo! - aparecera tão bem maquilhada como se acabasse de sair de algum instituto de beleza. dos manhosos! Quando ele, Pai, erguera os olhos do jornal que lia atentamente, nem acreditara no que via, assim de relance. Claro que os resultados de haver desejado parecer o que não seria nunca, felizmente, foram catastróficos. Primeiro duas estaladas, num movimento que o Dr. Juiz não pudera suster. E depois, enquanto lágrimas em catadupas escangalhavam a cara pintalgada, caiada e rabiscada, manchando-a do preto do rimmel que lhe havia transformado as pestanas em pauzinhos, uma descompostura em discurso de antologia e o castigo que ninguém conseguira levantar - a proibição de sair naquela tarde. Castigo que desabara também sobre a tia Casimira, visto a boa senhora se recusar terminantemente a ir ver o filme sozinha, primeiro na esperança inconfessada de com a sua resistência demover o irmão, depois porque, destruída a esperança, se fizera demasiado tarde para chegar ao fim do primeiro intervalo.
Nunca mais a Lili desafiara a cólera do Pai e quando tivera idade para começar a pintar-se, fizera-o com tamanha discrição que o austero Dr. Álvaro Abegorim não deparara com motivos de protesto.
Fiado nestas razões e lembranças demonstrativas do bom-senso da filha mais velha, o Juiz esperava sossegadamente que ela falasse. E a rapariga, sentada diante do Pai, na grande almofada colorida que viera de casa dos avós Câmara (Câmara, um dos apelidos de solteira da Mãe) onde constituíra valiosa oferta vinda de longe - um autêntico presente das Arábias! - não abria a boca. Parecia estar à procura de palavras para começar.
Pobre Lili! O que ela buscava dentro de si, desesperadamente, não eram palavras, mas sim a coragem de pronunciar as que lhe enchiam o coração e o cérebro. Isso, porém, não o adivinhou o Dr. Abegorim, que principiava a admirar-se com a reserva dela.
- Então, Lili? Que temos?
Lili encheu o peito de ar, apertou as mãos uma na outra sobre os joelhos erguidos e disse, tão rouca que o Pai não percebeu nada.
- Pai. estou a pensar em casar-me.
- An?
Ela tossiu e pigarreou, para se livrar da opressão que lhe estrangulava os sons, baralhando-os, e repetiu, agora com total clareza:
- Estou a pensar em casar-me, Pai.
O Dr. Abegorim, que continuava a chupar regaladamente a sua cigarrilha, abriu a boca tão de chofre sob o violento espanto que a cigarrilha lhe caiu em cima de uma das pernas provocando uma série de sacudidelas nas calças a evitar que o lume causasse quaisquer estragos. Depois, lábios já cerrados, o Juiz apagou a cigarrilha, cautelosamente, no cinzeiro, em cima da mesinha ao lado. Recostou-se, respirou fundo e, de pupilas cravadas nas de Lili, que agüentavam o encontro, proferiu:
- Talvez a primeira coisa das muitas que preciso de saber seja - com quem?
A Lili não era parva. Mas parecia-o, ao responder atarantada:
- com um rapaz, Pai!
- Claro que havia de ser com um rapaz. É costume, não?
Ela procurou justificar a réplica disparatada.
- Eu. eu, bem, eu queria dizer que não era com um homem.
O Dr. Abegorim franziu a testa.
- A menina está a brincar comigo?
Ela reconhecera já, no mais íntimo do seu ser, que principiara muito mal a série imensa de assuntos importantes que tinha para expor. E procurando, num esforço sincero, aquietar o ritmo do bater do coração, para que o sangue não continuasse a afluir-lhe tão rapidamente ao cérebro, deixando-a explicar-se com frieza, logo com clareza, volveu:
- Desculpe-me, Pai. Pretendia apenas que entendesse, desde já, que o meu futuro marido ainda não está bem instalado na vida nem é uma pessoa respeitável.
E o Juiz, numa voz cortante:
- Ah. não é uma pessoa respeitável? . Bela recomendação, não haja dúvida!
Foi a conta! Lágrimas em fio soltaram-se dos olhos da Lili, decididamente a afundar-se num mar de explicações que tudo complicavam em vez de tudo esclarecerem. E coisas tão simples, afinal!
O Pai, de resto, sabia o que ela pretendia dizer. E depois de a ver chorar durante segundos, tentando debalde estancar o pranto no lenço que ele próprio lhe dera ao verificar que a pequena não tinha nenhum, o Juiz decidiu-se a mostrar-lhe o que divisara no que ela fora incapaz de traduzir:
- A menina deseja com certeza tornar-me sabedor de que o indivíduo que a pretende é um jovem no princípio de uma carreira e não alguém com um futuro definido. Espero que seja isto. -e fitando-a, na testa uma profunda ruga: -Sim, porque não ouso crer que o sujeito que anda atrás de si seja um garotelho a meio de um curso qualquer.
Totalmente infeliz, a rapariga balbuciou:
- O Júlio está no primeiro ano de Direito, é mais novo do que eu, Pai.
O Dr. Abegorim ergueu-se num impulso que o atirava para fora da sua comodidade como as palavras da filha para fora da sua paz de espírito.
- com que então. no princípio de um curso? E mais novo do que a menina? É isto?.
Ouvi bem ? - e como ela nada redarguisse, porque não podia, perturbadíssima com o caminho que o caso estava a levar, o Juiz prosseguiu, cheio de um susto que nem ele revelava nem a filha o julgaria capaz de experimentar: Vamos lá por partes, LEONOR AUGUSTA. Em primeiro lugar quem vem a ser esse. como e que ele se chama?
- Júlio. - tartamudeou Leonor Augusta, integralmente restituida à responsabilidade do seu muito digno nome de baptismo.
- Júlio quê ?
- Júlio Matinha.
Um fulgor de cólera inundou os olhos do Pai.
- Mais nada ?
- Mais nada.
- Matinha. Deseja então ser a Sr.a Matinha?
- Os apelidos não contam, meu Pai! São os homens que dignificam os apelidos e não os apelidos que dignificam os homens!
O Pai dir-se-ia que nem sequer a escutara, porque repetia, martelando as sílabas com infinito desespero (ou um secreto desespero).
- Leonor Augusta da Câmara de Sousa Medeiros Passos Abegorim. Matinha!. Muito bem!. Mas, para que pense em casar, esse tal senhor Matinha, no início de um curso de Direito, deve ser um rapaz muito rico, talvez já herdado. portanto um indivíduo cuja estrutura material se encontra organizada graças a proventos chorudos?
Ela, ainda sentada na almofada da casa dos Câmaras, sentia-se minúscula diante do Pai, imponente na sua estatura e na manifestação de descontentamento, tão grandes ambas. Então, para não ceder àquela atroz sensação de insignificância, levantou-se. Era como se procurasse ficar mais próxima do peito a que desejaria encostar a cabeça à espera de auxílio e de compreensão. Afinal, onde estava o mal do que ela pretendia?
E conseguiu desembargar a voz das lágrimas ainda não todas choradas - tantas dentro dela! - para volver com uma coragem encontrada nem ela saberia explicar onde:
- Pai, o Júlio é um rapaz pobre e filho de gente muito humilde. A Mãe dele vende fruta num mercado. Enviuvou novíssima e educou este filho único no meio das maiores dificuldades.
O Dr. Abegorim não abriu a boca.
Leonor Augusta (o momento era demasiadamente importante para que Lili, nome de mimo, nome de infância, pudesse ajustar-se à primeira manifestação real da sua consciência de mulher) sabia que o Pai flutuava entre duas sensações igualmente fortes - a do pasmo e a da revolta. É que ele não sabia ainda quem era o Júlio! E então diligenciou explicá-lo o mais depressa possível, ao mesmo tempo que implorava:
- Pai, não tire conclusões precipitadas do que me ouviu! O facto de ele ser um rapaz modesto não significa que eu pretenda descer na escala dos valores sociais dentro dos quais nasci e fui criada. O Júlio Matinha é um rapaz dotado por uma inteligência excepcional. Lutou contra toda a espécie de adversidades a fim de triunfar dele próprio, visto que foi uma criança doente. Chegou ao ponto de merecer que os Professores, conhecendo-o, lhe dessem lições de graça, só pelo prazer de o ensinar.
Teve até uma série de bolsas de estudo e espera...
O Pai ergueu a mão, numa ordem imperiosa. E ripostou-lhe, com uma expressão que se abateu qual pedra de gelo, a queimá-lo, sobre o coração da rapariga (quem não sabe que o gelo queima?. - Basta, Leonor Augusta! Nunca imaginei que uma filha minha achasse bem viver de esmolas!
- Pai, isso não é justo!
O Dr. Abegorim tremeu como se houvesse sido empurrado por uma força desmedida. Depois, lentamente, afastou-se.
Leonor Augusta julgou que o Pai ia abrir a porta e sair. ou abrir a porta e mandá-la sair a ela, num largo gesto camiliano. Não aconteceu, porém, nem uma coisa nem outra. O Pai passou pela frente da porta e continuou, até à janela, a cujo parapeito se apoiou, imóvel. E a filha, pávida, reparou que a figura aprumada perdera aquela elegância que a tornava de uma rara distinção. Então a pequena recomeçou a chorar, no desgosto próprio e no desgosto imenso de estar a dar um desgosto ao Pai que adorava. Mas não era justo - insistia em bradar uma força oculta dentro dela. Não era justo! Aquilo não era justo!
Um silêncio pesado envolveu-os. De longe, do interior do lar, veio-lhes o som de uma gargalhada da Rosarinho - a alegria em figura de gente! Depois, gritando, passou na rua uma ambulância. E o alarmante sinal de dor despertou-os a ambos, como a advertir o Pai e a filha de que a discordância de opiniões não era nenhuma desgraça!
O homem recto e imparcial, embora magoado na sua vontade e nos seus ideais, ia querer ser justo.
Voltou-se, devagar, e com voz cansada, sem sair do vão da janela, indagou:
- E pensa casar-se. quando, Leonor Augusta ?
- Oh, meu Pai, não por enquanto, não por enquanto! - as palavras enrolavam-se em soluços. - Ainda vai levar muito tempo, alguns anos, com certeza!
- Então. porque se apressou em vir participar-mo?
- Porque aceitei o Júlio com absoluta consciência, doravante estarei muito ocupada com ele. e não queria que o Pai o ignorasse! Nunca achei que o Pai precisasse de conhecer as minhas inclinações passageiras, sem futuro nem continuidade. Mas no dia em que uma se torna séria e definitiva, entendo que o meu Pai - os meus Pais! - devem ficar inteirados dos meus desígnios.
O Dr. Abegorim, bem dentro de si, admirava a lisura da filha mais velha. Mas ao mesmo tempo a idéia de que essa era precisamente a que ia tornar-se nora da mulher da fruta, incitava-o à revolta.
Deu dois passos em frente:
- Como sabe que a sua actual inclinação É definitiva?
- Sei, Pai, porque o Júlio é um rapaz excepcional, dotado por qualidades de caracter e de inteligência que me prendem muito mais do que a cor dos seus olhos! - e enxugando a cara ao lenço do Pai, que ainda não largara, tentou corajosamente sorrir: - O Pai sabe quem o conhece muito bem e o ajudou bastante, em criança? O Pedro Ferreira de Macedo.
Uma frase certa, outra errada. Tudo o que se referisse a ajudas fazia cócegas na sensibilidade do Dr. Abegorim. O nome do Pedro possuía um encanto especial, um sortilégio a que, embora inconscientemente, o Pai de quatro filhas não podia ficar indiferente.
Houve uma nova pausa.
E foi nesse instante que a cena recebeu um impulso a conduzi-la noutra direcção, ou melhor - numa direcção com horizontes mais largos.
- Quem é? - perguntou o Juiz.
- Sou eu, Paizinho. Posso?
- Entre.
A porta descerrou-se e por ela passou a cabeça loira da Rosarinho cujos olhos enormes miravam com estranheza o Pai e a irmã.
- Que temos, Maria do Rosário?
A pequena esticou o lábio inferior, num trejeito de indecisão, mas logo se afoitou.
- É só para dizer à Lili que já não precisa de telefonar ao Pedro.
- Porquê?
- Porque ele acaba de falar cá para casa. Queria agradecer ao Pai aquilo de há dias! Foi a Mãe que atendeu. e aproveitou para o convidar. Ele aceitou e pronto! Ficou assente. Vem almoçar no domingo.
- Mais nada?
- Mais nada.
- Ficamos cientes. Pode retirar-se!
- Sim, Paizinho.
A cabeça loira recuou, desapareceu, a porta fechou-se. Rosarinho iria contar às irmãs, entretidas na saleta a ver televisão, que o Pai e a Lili estavam com "cara de caso. " No entanto a cara de caso de Leonor Augusta expressara de súbito um certo alívio, uma espécie de confiança nova. O Pedro ia estar presente em breve. O Pai podia interrogá-lo acerca do Júlio.
Talvez o Dr. Abegorim pensasse o mesmo. Lentamente, a respirar como se tentasse livrar-se de uma opressão que lhe doía nos pulmões - a angústia não o deixava encher-se do ar de que necessitava - ele voltou a sentar-se. E na sua bela voz clara e forte, de inflexões convincentes, pôs-se a falar.
- Leonor Augusta, nunca foi intenção minha interferir nos destinos escolhidos pelas minhas filhas, de antemão resolvido a aceitá-los como testemunhos da vontade de Deus. Muitas vezes pensei que um dia teria de vê-las, uma após outra, abandonar esta casa que foi o seu ninho para por sua vez irem fundar novas famílias. Como todos os Pais normais, imaginei, divaguei e desejei, para cada uma delas, se mais não fosse, pelo menos uma existência idêntica à que eu próprio pude proporcionar a minha mulher. Quando fui buscar Teresa Mafalda a casa dos Pais eu estava formado, tinha uma colocação e oferecia-lhe, não riquezas, mas um nome honrado por gerações e uma situação estável. É assim, apoiado nas bases em que estruturei a minha vida, que eu compreendo o casamento. Sei que, na actualidade, se modificaram muitos pontos de vista e se alteraram os conceitos sociais. Aliás os pontos de vista e os conceitos sociais normalmente evoluem de modo a apresentar modificações profundas de cinqüenta em cinqüenta anos. E contudo ninguém desconhece que de séculos a séculos todas as coisas e todas as idéias se repetem e se encontram, assumindo o ar de espantosas novidades. Há cento e tal anos era normal os Pais obrigarem as filhas e até os filhos! - a desposarem não aqueles que lhes interessavam mas os que interessavam. Aconteceram desgraças inenarráveis. Muitas donzelas foram sacrificadas a homens da idade dos seus Pais, que elas não podiam amar; muitas outras, resistindo, acabaram fechadas em conventos sem o minimo direito à própria vida. Sobreveio o contraste. Hoje raparigas e rapazes casam a seu gosto, de qualquer maneira, sem se importarem com os seus maiores, quase sempre obedecendo a impulsos absurdos, se não inconscientes. Os Pais não intervêm. Não podem nem querem fazê-lo. E então assistem, numa atitude que tanto se afigura cômoda como egoísta. ou até cobarde! Sucede porém que eu sou um Pai nascido e criado segundo moldes positivos que me marcaram e fiquei a meio das duas formas de agir. Não concordo nem com a conduta antiga nem com a moderna. Por isso me reconheço incapaz de exigir. e também incapaz de abstrair. Quer casar antes de tempo, Leonor? Muito bem, case. Mas dê-me o direito, a mim, seu Pai, antes de me desinteressar do seu futuro, de inquirir, num último cuidado legal - em que bases tenciona arranjar a vida para a qual se encaminha?
Leonor Augusta sentara-se outra vez na almofada - a bela almofada dos Câmara! aos pés do Pai. Apoiou as mãos trêmulas nos joelhos do Dr. Abegorim e, primeiro baixinho, depois, aos poucos, com voz mais forte, mais segura, principiou a explicar-se.
- Pai. repito-lhe que não tenciono casar por enquanto. Nem eu nem o Júlio somos desassizados, acredite! Desejamos construir o nosso lar com calma, sem precipitações que só nos prejudicariam. Não há pressa porque há sensatez. Ele tem de acabar o curso e só depois, bastante depois, mesmo, principiará a ganhar para poder manter casa. muito embora todos os meses procure guardar alguma coisa do ordenado que o Dr. Matos e Almeida lhe paga. - e parecendo-lhe notar que os olhos frios do Pai expressavam, numa surpresa, algum interesse: - Sim, Pai. O Júlio estuda e trabalha num escritório de um advogado que gosta imenso dele, reconhece-lhe as qualidades e promete-lhe protegê-lo, assim como outros Professores. É que, na Faculdade, ele é já considerado uma cabeça notável. Seja porém como for, por ora tudo são esperanças, sonhos. Temos de aguardar concretizações. e aguardá-las-emos serenamente. Se falei ao Pai agora, como já expliquei, é porque não quero andar se não por caminhos permitidos!
O Juiz suspirou. Não tinha mais nada a dizer, reconhecia-o. Todas as censuras se esboroavam, por falta de apoio. A filha achava-se fora dos ideais dele, Pai, mas completamente dentro das suas mais rigorosas exigências de rectidão.
- Bem, Leonor Augusta, proceda então como lhe aprouver. - e, dando o assunto por terminado, ia erguer-se. Mas as mãos da rapariga, fincadas nos seus joelhos, retiveram-no.
- Pai.
- Ainda há mais?
- Sim, Pai.
- Fale. Assim como assim. -e recostou-se, como se se sentisse muito cansado (estava muito cansado).
- Pai. queria ainda expor-lhe outro problema.
Um aceno de cabeça confirmou a permissão de continuar.
- Como todas as raparigas que tencionam casar. preciso de tratar do meu enxoval. E um enxoval hoje em dia sai muito caro. porque tudo está muito caro! Sem querer de modo algum magoá-lo, meu Pai, peço-lhe que me autorize a começar a fazê-lo.
O Dr. Juiz não a entendia. Parecia-lhe que as frases da rapariga se tornavam desconexas, sem qualquer ligação entre elas, ilógicas! E Leonor Augusta divisou na expressão do Pai os pensamentos que o afloravam. Então acrescentou, apressadamente:
- Eu sei que não está a compreender-me. É natural que eu tenha começado a expor o assunto ao inverso do que devia para que logo de início se afigurasse certo. No entanto o Pai não tardará em reconhecer que apenas pretendi, para atingir o fim em vista, preparar a sua sensibilidade que conheço muito bem. Talvez, no fundo, eu seja bastante parecida consigo. -e a franqueza era tamanha que o Dr. Abegorim não podia deixar de a acolher com agrado. - Por isso me permito prosseguir de acordo com a orientação inicial. e assim, meu Pai, volto a dizer que um enxoval custa caríssimo, o que aconselha a que se não trate de afogadilho.
O Pai interrompeu-a.
- Pronto, pronto, escusa de acrescentar o que quer que seja. Percebi-a perfeitamente. Entenda-se portanto com a sua Mãe.
E ela:
- Não, Pai.
- Não?. Então?
- Não quero que o Pai me pague o enxoval!
- e notando que o Pai mordiscava agora o lábio inferior, o que era nele um grande sinal de inquietação, prosseguiu: - O Pai tem mais três raparigas em casa, capazes de lhe darem muitas alegrias escolhendo genros a seu gosto e portanto inteiramente merecedoras de que faça tudo por elas. O Pai vai precisar de lhes oferecer os enxovais. e o Pai não é rico. Toda a gente sabe que os Juizes não ganham como os administradores dos bancos. Toda a gente sabe que o Pai, expoente de honestidade e isenção moral, vive com dificuldades que só a sua coragem e o seu espírito de sacrifício conseguem superar. E repare, Paizinho- (que doçura neste diminutivo tão raramente usado por ela!) -que nas minhas palavras não há o menor queixume, pelo contrário. A sua pobreza é o nosso brasão, do qual nos orgulhamos todas! Temos sido sempre felizes. mas não ignoramos o travo amargo de certas privações, o que se torna muito importante quando há atitudes a definir e decisões a tomar.
O olhar de Álvaro Abegorim, naquele instante apenas homem e chefe de família, era um luzeiro molhado de compreensão e apreço totais. Não havia nada a contestar em tudo quanto acabava de ouvir.
E Leonor Augusta aproximava-se do objectivo com tanta inteligência visado.
- Atendendo ao que acabo de referir. desejava que o Pai me autorizasse a empregar-me.
Instantaneamente, a expressão do Juiz alterou-se e nela nem vestígios da compreensão anterior. Dos lábios cerrados escapou-se-lhe um não absoluto, tão categórico como se com ele pretendesse desfazer o maior dos absurdos. Leonor Augusta, porém, em nada sentiu perturbar-se a calma que sobre ela descera. Pelo contrário!. E pelo contrário porque sabia que o pior dos obstáculos estava franqueado. A partir daquele momento havia apenas que saber utilizar como arma no desbaste das convicções do Pai uma acerada e oportuna lógica. E tal como se o Dr. Abegorim não houvesse pronunciado aquele Não, a rapariga continuou:
- É claro que não penso num emprego qualquer! Conheço perfeitamente a maneira de ser do Pai e da Mãe, maneira de ser com a qual a minha se liga por completo. Não gostariam de me saber exposta à curiosidade alheia, embora reconheçam que trabalhar não é vergonha! A era da mulher cheia de regalias, senhora da sua casa sem mais deveres que o de olhar pelos arranjos domésticos, acabou. E na verdade não existem quaisquer razões que impeçam uma rapariga válida e instruída de aproveitar o seu tempo sadiamente. É mais útil para nós e para os outros que contribuamos para a melhoria da situação da colectividade do que andemos a passear como micróbios à espera de se instalarem em terreno propício.
O Juiz Abegorim não pôde evitar que os seus lábios cerrados se entreabrissem num sorriso. E ela, observando-o na imensa atenção prestada às reacções do Pai, afoitou-se ainda mais:
- Penso que poderei arranjar um bom emprego, com o qual o Pai e a Mãe estarão de acordo. Falaram-me numa importantíssima Empresa de Navegação que precisa de uma secretária para a Direcção. Trata-se de um lugar com responsabilidades para o qual exigem uma rapariga com credenciais de família, de princípios e de conduta aliadas a uma razoável cultura. Julgo-me capaz de satisfazer estas pretensões!
As pupilas do Pai e as dela encontraram-se. Fitando assim a filha, o chefe do lar sentia-se vencido e não havia nele, pelo facto, a menor sombra de vexame ou desagrado. É certo que o orgulho desejava aconselhá-lo a achar tudo aquilo muito mal. Mas a sua recta consciência impunha-se e obrigava-o a reconhecer a inteligência, a galhardia e o "saber viver" com que Leonor Augusta chegara até onde pretendera.
E não atendeu o orgulho. E quis ser sincero e dizer exactamente o que pensava, aproximando-se de súbito do coração da rapariga:
- Tem tudo tratado, não? E ela, de igual para igual:
- Ainda não, Pai. Mas vou ser recebida amanhã ao meio-dia.
Álvaro Abegorim suspirou: - Manhosa como um bom advogado! Leonor pôs-se de pé, inclinou-se para o Pai, beijou-o na testa.
E ele, com ternura:
- Quanto pensa ir ganhar?
- Não sei, Pai. Como não sei se ficarei, evidentemente! No entanto, dado que falo quatro línguas e sou sua filha. devo ter boas hipóteses. Parece que pagam bem.
O Pai ergueu a mão direita, fez-lhe uma festa no queixo.
- Espero que me mantenhas ao corrente de tudo o que se passar.
Eis a rara familiaridade sempre apetecida, a boa disposição sem rodeios nem entraves! Ela acolheu-a na sua alegria pura:
- Era o que eu mais pedia a Deus que acontecesse, Paizinho! Não deixo de ser a sua filha só porque vou iniciar uma nova etapa da minha vida.
O Pai levantou-se, consultando o relógio.
- São 11 menos 10, Lili. - voltava a soar o diminutivo que parecia torná-la pequena e dependente. - Preciso ainda de estudar uns documentos. Creio que por hoje temos os nossos assuntos arrumados.
Lili, pequena e dependente, não se mexeu. Almejava dizer ainda qualquer coisa, qualquer coisa que subia das pontas dos pés às pontinhas dos cabelos. Por ser tamanha, horrivelmente custosa de se deixar moldar passando pela garganta seca rumo à liberdade do som.
Já o Pai estava junto da porta do escritório. Já o Pai colocava a mão no fecho da porta. Já o Pai dava a volta ao puxador.
E aquela coisa desmedida que a enchia das pontas dos pés às pontinhas dos cabelos, soltando-se de onde não cabia, vibrou no ar com uma força de explosão.
- Pai. dá-me licença que lhe apresente o Júlio?
O Pai acabou de abrir a porta. Deu mais um passo em frente.
Leonor Augusta supôs que ele ia retirar-se sem lhe responder. Mas tal não aconteceu.
O Dr. Abegorim voltou-se para ela, devagar, e ripostou-lhe de uma maneira estranha, como se a palavra tão curta tomasse uma amplitude desmesurada, decomposta em três letras que se diria soarem independentes umas das outras:
- N. Ã. O!.
E foi-se embora.
Leonor Augusta sentou-se na poltrona onde o Pai estivera pouco antes. Baixou o rosto, baixou-o até quase apoiar o queixo nos joelhos.
Era, toda ela, naquela posição, dobrada sobre si própria, como que um imenso ponto de interrogação.
Até quando aquele N. Ã. O. contra o qual nada havia a fazer?
Porque a verdade é que há muitas formas de dizer Não. E ela nunca ouvira nenhum NÃO tão completamente
NÃO.
- Eh, pá, tu não te arranjas?
O Pedro até estremeceu, tão longe estava de si próprio naquele momento.
Descera ao fundo das idéias amontoadas no livro que tinha em cima da escrevaninha e cujas páginas - uns centos delas! - o absorviam desde pela manhã.
Levantara-se pouco passava das sete e meia, tomara o pequeno almoço a correr e mergulhara no emaranhado mais confuso que existe na espantosa complicação da máquina humana - o cérebro.
Veias, artérias, nervos. Nervos, artérias, veias. Circunvolações e mais circunvolações. Os centros motores. Complexos, complexos, complexos. E nomes, nomes, nomes. E os meandros confusos e espantosos onde se escondem o pensamento, a cultura, a ciência, o gênio
- quanto forma a racionalidade da criatura. Sim, esse estudo tão difícil como apaixonante havia feito com que ele se esquecesse de tudo e muito principalmente de que os minutos passavam e com eles as horas. Tão completamente deixara de pensar, todo ele condensado em compreensão e memória, que ficou a olhar para o Paulo, sem entender a pergunta. E o Paulo, percebendo a reacção, porque conhecia o poder de concentração do Pedro, ria, divertido.
A resposta ao que dissera veio num quesito banal:
- O que é que tu queres ?
- Eu não quero nada. Só perguntei se não te arranjavas. - e o Paulo, elegantíssimo no seu fato de "saia e casaco", como ele dizia (calças beges e casaco de um tecido castanho e branco mais ou menos axadrezado), ajeitava a gravata diante do espelho, ao fundo do quarto.
O Pedro, molemente, passou a mão fina, de dedos esguios, pelos cabelos desgrenhados, atirando para trás a madeixa de sempre, aquela madeixa (antigo caracol) que desde menino lhe caía para a testa a dar-lhe um ar ternurento que muito contribuía para que na Faculdade as raparigas o achassem uma "brasa" e perdessem um poucochinho a cabeça por ele. Depois espreguiçou-se, explicando:
- Só tenho nomes diante dos olhos. queria ver se os metia dentro dos miolos.
O Paulo, que estudara o assunto na véspera, indagou:
- Tens interesse por isso ?
- Tenho. E tu?
- Não é das coisas de que mais gosto.
- Mas chegas lá?
- Chego!
O Paulo era tão bom aluno como o Pedro, evidentemente, mas acontecia que nos assuntos médicos que estudavam a par os seus interesses principiavam a subdividir-se, prenuncio de gostos definidos que iriam conduzir cada um deles para determinada especialidade.
Apontando com o indicador estendido a gravura impressa a vermelho, azul, branco e roxo que sobressaía agreste na página que estava a ler, o Pedro rogou:
- Então vê se me destrinças aqui neste cantinho a ligação que pode existir entre.
O Paulo interrompeu-o, rindo:
- Agora? A estas horas? - Que horas são ?
- Uma menos cinco.
- Temos tempo. Os teus Pais não almoçam antes da uma e meia e eu ponho-me pronto em dez minutos.
O Paulo já estava ao lado dele, mas não para destrinçar o que quer que fosse no tal cantinho.
- Pedro. que dia da semana é hoje? O Pedro tentou situar-se.
- Domingo, creio.
- Pois é domingo, justamente. E. tu não aceitaste nenhum compromisso para este domingo?
- Eu?
- Ó homem, ai que o estudo do cérebro está a afectar o funcionamento do teu. Então não foste convidado para almoçar em casa do Juiz Abegorim?
O Pedro pôs-se de pé com tanta violência, impulsionado pelo espanto, que a cadeira tombava se o Paulo não lhe deitasse uma mão providencial.
- Ó pá, que estopada! Nunca mais me lembrei disso! E é que são horas e mais que horas!
- Se eu não te valia, an? Mas tive a noção de que estavas esquecido e por isso te alertei!
- Fizeste bem, pá!. E acho que me marcaram o almoço para a uma hora. Que fiasco!.
- Tu pões-te pronto em dez minutos. - ironizou o outro. - Não foi o que disseste ?
- E é verdade! O pior é a falta do meu carro! Os tipos nunca mais mo arranjam.
- Ao domingo é fácil apanhar um táxi. Chegas lá num instante, se te despachares.
- Pois!
E com aquele veemente pois, saiu do quarto, um riso aberto a iluminar-lhe o rosto, todo ele jovem no azul claro do seu pijama às riscas.
Paulo, que ficara num gesto vago a limpar as unhas com o canivete de bolso, ouviu-o assobiar no quarto de banho uma canção em voga, como sempre sucedia enquanto tomava duche. Suspirou. É que aquele som tão familiar trazia-lhe ondas de recordações, recordações feitas de saudades. E numa necessidade imensa de as mitigar, voltou-se para a estante, alta até ao tecto, cheia de prateleiras e vãos onde os livros de medicina faziam boa companhia às obras literárias. Cientistas, romancistas e poetas uniam-se expressando cultura e, pelo meio deles, como nota graciosa ou pueril, pequenos objectos marcavam a presença de um outro gênero de artistas. Dispersas, em bonitas molduras de couro, fotografias várias, retendo nas suas expressões momentos impossíveis de esquecer, falavam de ternura e de afecto.
E o Paulo pôs-se a contemplá-las, uma por uma.
Naquela, um rapazito dos seus doze ou treze anos, sentado no chão, ria entre dois cachorrinhos com capas de flores. O Rumané!. O Rumané no dia do baptizado da Rosinha- Filha, quando se lembrara de enfeitar o Mião e o Tião, os cãezitos oferecidos pelo Sr. Padre Joaquim.
Na outra, um pouco maior, um grupo. O Pedro, a Cristina, o Domingos, a Marta, um dos filhos do farmacêutico de Penarim (como é que ele se chamava?) e a Ana. A Ana!.
Baixinho, pronunciou o nome que era um mundo, pois nele cabia quanto amava e desejava e sonhava desde sempre e para sempre:
- Ana Maria!. - e estendeu as mãos para o lindo rosto que lhe sorria noutro retrato, um rosto quase em tamanho natural, um rosto que parecia querer libertar-se do vidro e tomar forma, e relevo, e cor. -Ana Maria! -repetiu.
Era difícil suportar a separação. A Ana fazia falta! A Ana, com o seu encanto, a sua doçura, o seu espírito de compreensão. e os seus lindos olhos tão sinceros que nunca traduziam se não o que lhe enchia a alma puríssima!
Que bom seria naquele instante poder sair de casa e correr para junto dela, como tantas vezes acontecera! Mas havia entre eles o mar, o mar profundo. E deveres a cumprir, separadamente, um de cada lado do Oceano, ambos a terem de agüentar com perseverança e coragem inabaláveis. Perseverança e coragem que não esmoreciam. mas nada podiam contra a dor da distância. Nem coragem nem perseverança são capazes de evitar que as pessoas tenham momentos durante os quais se sentem submergir pela falta do contacto das mãos que são o ponto de apoio e a recompensa por elas próprias mais ambicionadas, delas próprias mais precisas.
Pegou na moldura e, devagarinho, aproximou-a dos lábios. Não tocou no vidro, porém. Conhecia - e odiava! - a desoladora sensação provocada pelo toque gélido.
E a testa fria da Ana, ali encaixilhada, era qualquer coisa de tão horrível a sugerir pensamentos tais, que a ausência se volveria insuportável!
Poisou a fotografia e, encostado à escrevaninha, ficou-se a contemplá-la, tão completamente absorvido pela imagem ideal que nem ouviu o Pedro entrar. E o amigo, olhando-o compreensivo, disse, a arrancá-lo daquele não estar ali que nada resolvia com a vibração do que mais podia auxiliá-lo agora:
- Eh, Paulo! Lembra-te de que já passaram três meses!
E o Paulo, sem se mover:
- Faltam anos!
- Quem sabe? Pode ser que em breve se mitiguem as saudades.
Era a esperança. A esperança tenaz a que ambos davam guarida sem ao certo saberem até onde deviam alimentá-la e justificar a sua presença entre eles.
Irem passar o Verão a Luanda. Seria possível?
De vez en quando há sonhos que se realizam. Mesmo quando parecem inviáveis.
Um dia eles tinham tido um que se soltara de determinados prospectos coloridos para a realidade que se estreita ao coração. A estadia no Reichvater, o grande Colégio de Verão, na Alemanha, onde lhes fora dado viver umas férias inesquecíveis. E, na altura, o desejo de ir não estava tão defendido por razões da alma, como o actual. Portanto, porque não havia de acontecer?
A acabar de apertar o cinto das calças, tão esbelto e bem lançado que dava gosto olhá-lo, o Pedro continuou:
- Talvez se dê um jeito e uma saltada até lá. an?
O outro suspirou:
- Era bom mas não quero embalar-me em ilusões.
- Também não me parece tão difícil como isso!.
E o Paulo:
- Pois é por isso mesmo. As coisas que se afiguram mais fáceis são às vezes as mais irrealizáveis.
O Pedro sorriu:
- Estás muito céptico!
- Não. Estou muito crescido!
Desta vez, olhando para aquele de facto imenso rapaz com 1m e 89 de altura, magro que fazia impressão (o Dr. Ataíde Lemos costumava dizer que o filho parecia um espinafre enquanto a Mãe afirmava que ele viria a ser um homenzarrão, forte que nem um carro de assalto, assim que principiasse a alargar), o Pedro soltou uma gargalhada - a gargalhada típica dos Macedos, aberta e clara.
- Posso saber qual a ligação entre o crescimento e o cepticismo?
- com certeza. Ei-la - a palavra crescido, no sentido em que a apliquei, significa que já sei dominar os meus impulsos, os meus entusiasmos e os meus anseios com o freio do bom-senso.
- Oh, Paulo!. Mas em que é que o bom-senso desaconselha a nossa ida a Angola no próximo Verão?
- Em relação a ti, talvez nem desaconselhe. És um homem ainda sem planos, pelo menos definidos.
- E em relação a ti?
- Em relação a mim, as coisas modificam-se por completo.
- Essa agora ? - e todo ele era interrogação.
- Bem vês, eu quero casar assim que terminar o curso. Para me casar, como ainda não estarei a ganhar - e mesmo que principie a ganhar rapidamente! - preciso de dinheiro. Tenho de estar habilitado a manter a minha casa e para isso necessito de bases. Sei que, felizmente, o meu Pai é um homem com posses suficientes para agarrar aí em cem ou duzentos contos e mos oferecer assim "toma lá para o teu ninho. " Eu, porém, gostava de ganhá-las, entendes? Por isso, se o meu Pai no fim das aulas me disser "toma lá vinte contos para as tuas férias", eu devo gastar um e guardar o resto a fim de que, agindo de forma idêntica durante os anos que faltam para alcançar o meu objectivo, eu possa reunir uma importância que depois me levaria bastante tempo a conseguir juntar. Percebes?
O Pedro percebera, claro. Mas abanava a cabeça, em total discordância.
- Tu desculpa. mas estás a raciocinar com uma sensatez serôdia.
- Serôdia? .
- Pois, serôdia! Sensatez de velho-relho egoísta e solitário que só atende às suas razões, aos seus direitos, às suas verdades, tão seguro de se achar sempre certo que até dá náuseas aos que se erguem de braços levantados para arrojadamente se abraçarem à vida.
O Paulo pasmava ante a violência da réplica.
- Mas porquê ?
- Porque só pensas em ti!. Então a minha irmã não conta? O desgosto dela, se lá não fores, não é mais importante do que o teu orgulho de quereres tornar-te independente antes do tempo?
O Paulo não respondeu logo. Ficou de lábios estendidos, num jeito de hesitação. Era um viajante metido num caminho que lhe parecia o único possível e perante o qual de súbito surgia um outro que se afigurava muito mais digno de ser seguido, por mais belo, mas que ele não sabia se não estaria cheio de armadilhas. Depois, encolhendo os ombros, sem ocultar a sua perturbação, volveu:
- Hei-de pensar melhor no assunto!
- Fazes bem.
E o Paulo, contente de livrar-se da análise do problema diante do amigo, apressou-se em mudar de conversa.
- Pedro, aviso-te de que os teus dez minutos se transformaram em vinte e cinco. e tu aí! Vais chegar escandalosamente atrasado.
- A culpa foi tua, que me distraíste!
- Vê lá se não se pode falar contigo sem que a tua reputação fique manchada!
Olhavam um para o outro como em pequenos, com uma vontade louca de brincar sem pensarem em mais nada.
Conheciam-se desde que haviam principiado a tomar consciência de si próprios. Unia-os uma amizade sólida, vinda dos bancos do Colégio, (nenhum deles andara no Liceu), uma amizade que se desenvolvera como os seus corpos. Para trás, no tempo, existia um mundo de recordações a ligar os seus dias de rapazinhos. Agora, porém, já não eram rapazinhos, mas rapagões. e as pessoas crescidas são, muito mais do que as pequenas, escravas do que tem de ser feito. E o Pedro tinha de fazer aquilo - ir-se embora!
Atrapalhado com as horas, puxou uma gravata, ao acaso, sem a olhar sequer. Foi o Paulo quem lhe valeu:
- Eh, criatura. vê lá a gravata que tiraste!. Imagina! As pintas azuis e brancas. com um fato cor de canela! Bárbaro!
O Pedro viu-se ao espelho.
- Ora, deixa lá! Não perco o casamento.
- Isso.
E largaram os dois a rir à gargalhada e pelo mesmo motivo. É que de súbito ambos tinham visionado (acontecia freqüentemente haver entre ambos verdadeiras transmissões de pensamento) as quatro meninas que esperavam o Pedro para almoçar.
E o Paulo, sempre a rir, conseguiu por fim dizer, enquanto o Pedro punha outra gravata (deveras bonita, às riscas castanhas e azuis)
- Vê lá, vê lá se te deixas caçar!.
E então sucedeu que o Pedro ficou sério, com uma expressão grave no olhar cheio de luz:
- Não, Paulo. Não acredito que haja qualquer intenção reservada, por mínima que seja, neste convite!.
- Ó pá, nem eu, evidentemente! Sei pelo meu Pai que o Dr. Álvaro Abegorim é um dos homens mais honestos e melhores que vivem à superfície da terra. Tenho a certeza de que te convidou apenas para tentar amenizar, dentro das suas possibilidades, a tua solidão que muito deve tê-lo impressionado naquela tua
romagem ao lar se não desfeito. pelo menos fechado! E tudo por simpatia e bondade. Mas.
- Mas?
- De qualquer maneira, há quatro raparigas nessa casa. O teu coração pode prender-se.
- O meu coração está muito sólido e não fez mal algum, por isso não teme castigo. De resto, para tua tranqüilidade, aviso-te de que as duas filhas mais velhas do Dr. Abegorim namoram e a terceira não é o meu tipo.
- E a mais nova?
- A mais nova?. Oh, Paulo. mas a mais nova não passa de uma miúda!.
O Dr. Abegorim, que estivera a olhar para o relógio numa impaciência crescente e uma ruga de descontentamento cada vez mais funda na testa, desde que se sentara à mesa (40 minutos depois da hora normal e prevista) a pouco e pouco desanuviara e ia-se animando até uma boa disposição acima do comum. Justificada.
O Pedro Ferreira de Macedo era um conversador brilhante. Culto para além do vulgar na idade dele, com interesses espirituais que abarcavam variadíssimos sectores dos conhecimentos humanos, fluente e comunicativo, revelando a cada passo inteligência e caracter e tendo como interlocutor o Juiz Abegorim, capaz de o entender e estimular, não tivera a mínima dificuldade em captar as atenções gerais.
No começo, a ligação entre o homem maduro e o homem verde - o homem a caminho do fim e o homem no início do caminho estabeleceu-se mercê de um diálogo sobre os espinhos inerentes a cada profissão, e tudo a partir do afastamento que a vida impusera à família Macedo. A propósito, o Dr. Álvaro Abegorim citava as agruras do seu cargo, as dificuldades encontradas para o exercer de forma equilibrada e digna. E o Pedro referia os sacrifícios impostos à classe médica, principalmente quando esta sabe quanto deve a si própria.
O rapaz falava por conhecimento directo dos factos, pela observação da existência do Pai. E o encontro das idéias de ambos era empolgante e a todos atraía.
Durante a sopa (caldo verde) e o prato de peixe (garoupa assada no forno, muito simples e muito boa) só eles conversaram. O elemento feminino ouvia. Depois, os assuntos derivaram para temas menos especializados, passando a abordar a música, a literatura, o cinema, e então falaram as senhoras e as meninas, todas tendo que dizer, todas se fazendo ouvir. Todas menos a Rosarinho que, muito calma e conscienciosa, não abria a boca senão para a encher com o que pusera no prato (e ela não sofria de falta de apetite. ).
Quando se ocuparam de cinema, o Pedro evocou o seu amigo Fernando Vasco (Jacques Bertrand), que fora para França e se tornara num galã cheio de futuro. As pequenas mais velhas já haviam ido ver dois filmes com ele, e a Rita, sem dúvida a mais exuberante, extasiava-se ao saber que estivera tão perto do jovem actor.
- com certeza que se cruzaram muitas vezes lá em baixo, à porta. - disse o Pedro.
Elas lembravam-se perfeitamente do Paulo, claro. Mas do Fernando Vasco não estavam certas, por mais incrível que se afigurasse.
A tia Casimira (que também viera almoçar), em dado momento recordou-se:
- Não seria um rapaz loiro que usava sempre óculos escuros?
- É esse mesmo! Tinha a mania de ocultar os olhos por detrás de lentes quase negras! - e sorriu, explicando: - Era no tempo em que se sentia perdido na vida e sem confiança nele e no mundo.
Dona Teresa Mafalda interferiu perguntando:
- E perdeu o costume ?
- Perdeu, claro! Agora tem prazer em encarar os outros sem nada que modifique a luz e a cor e em que os outros o olhem sem dúvidas. - e isto explicado, o Pedro, que sempre rico e de idéias partia do princípio que não interessava aos que o cercavam ouvir falar pormenorizadamente dos hábitos de desconhecidos, abordou a permanência deles num Colégio da Alemanha, anos atrás. E assim, narrando com entusiasmo histórias acontecidas e empolgantes, voltou ao capítulo música preenchendo-o com as mais elogiosas referências a um amigo - compositor e pianista extraordinário!
- que estava para vir tocar a Lisboa e ele aconselhava a família Abegorim a não deixar de ouvir.
O Dr. Juiz não acreditava muito nos músicos modernos. Na sua opinião não passavam de uns fabricantes de ruídos que não diziam nada a ninguém. Ao piano, uns fenômenos de dedos sem alma! Chegava a afligi-lo aquela fulgurância de execução de que parecia completamente alheada a verdadeira arte essa força maravilhosa que transmite beleza e emoção, estabelecendo elos impalpáveis e fortíssimos entre as criaturas mais distanciadas entre si, tanto em tempo de vida como em tempo de morte.
- É como a poesia! - dizia Álvaro Abegorim, que da música derivara para a pintura e da pintura para a sublimação da palavra feita cadência. - Certos poetas de hoje - Pelo menos no conceito deles, que no meu são tudo menos o que se aceitou como tal desde que os homens começaram a escrever versos!. Já reparou, Pedro? Dizem coisas e constróem frases que nos chocam e magoam que nem pedradas! Sente-se, mesmo usando a maior boa vontade, que lhes falta tudo o que na verdade constitui Poesia, modelando-a, impondo-a! Eu bem sei que a Poesia, como as demais artes, é força viva em permanente evolução e mutação. E por isso mesmo inevitavelmente encerra o agradável e o desagradável, o belo e o feio, o magro e o gordo.
Dona Teresa Mafalda riu alegremente:
- Oh, Álvaro, nunca pensei que a poesia pudesse ser magra e gorda!.
- Pois pode, minha querida. E as fases são sucessivas e definem-se em épocas. Por exemplo, o gongorismo deve ser considerado não uma época de poesia gorda, mas de poesia obesa.
As gargalhadas reboaram. A Rita riu tanto que, por ter a boca cheia de água (começara a beber e não parara a tempo) borrifou a mesa e os vizinhos e ficou engasgada, a tossir. A hilaridade cresceu ainda mais e ficou a envolver um comentário da Lili:
- Ó Pai, estou a ver a poesia do século xvii, tão gorda como a D. Ester do primeiro andar (ainda ontem tive de a empurrar com toda a força para ela entrar no elevador, que fica sempre entalada pelo rabo) com um manto azul a rojar o chão e uma coroa de loiros sobre os caracóis.
A imagem, claro, não podia ser mais engraçada.
Quando por fim serenaram, o Dr. Abegorim continuou a sua dissertação:
- Pois voltando a essa poesia. concordamos em que transbordava de banhas, toda redonda, a estalar pelas costuras de tão cheia de frases e imagens, pisando o chão das metáforas com um passo tão lento que dir-se-ia nunca mais chegar ao fim. Mas agora sobreveio o contraste. A poesia tornou-se tão magra, tão esgalgada, que nos desagrada como um esqueleto. Não tem nada que se aproveite.
E a Mirita, acalorada:
- Ó Pai, mas olhe que ainda há poetas: -Poetas!
E o Dr. Juiz, crente de que ela se referia a nomes de antemão acreditados:
- Talvez os últimos abencerragens, que a maioria, buscando a originalidade, assemelha-se aos tais esqueletos.
- O Pai não acredita que haja excepções ?
- Excepções ? Queres tu dizer, indivíduos que tentam copiar Antônio Nobre, Guerra Junqueiro, Cesário Verde, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Virgínia Vitorino.
- Que tentam copiá-los, não! Que tentam continuá-los!
Comendo agora um delicioso pudim de ovos, - receita antiga, das Casimiras - estavam todos com a boca muito doce e aceitavam com agrado a sugestão da Mirita, admitindo a hipótese. Só o Dr. Abegorim, embora repetindo o pudim, contestou:
- Não conheço nenhum à altura.
- Pois conheço eu, Pai!
O Pai teve vontade de lhe volver que ela era demasiado pouco entendida na matéria para ousar pronunciar-se de forma assim categórica. Viu-a, porém, com um ar tão seguro, que desejou a origem daquela opinião. De resto não precisou de pedir explicações, porque já a pequena continuava:
- Conheço um rapaz da nossa idade que é um poeta extraordinário! - e como notasse um certo ar trocista nas expressões das irmãs, que sabiam lindamente a quem ela se referia, acrescentou: - Pelo menos, eu acho.
Ripostou-lhe a Rita, impiedosa:
- Lá isso, a menina pode achar e não ser! E no meio dos sorrisos gerais, ela disse:
- Mas eu tenho lá dentro versos dele e mostro-os! Já agora também gostava de ouvir a opinião dos outros!
Dona Teresa Mafalda levantara-se, dando o exemplo logo seguido pela família.
As meninas foram dar aos Pais e à tia o agradecido beijo de "bom proveito" (uso tradicional cujas origens desconheciam mas todas respeitavam). O Dr. Juiz rezou a sua breve oração de graças.
E passaram à sala de estar, a tomar o café, o Pedro recusando a aguardente velha que o Dr. Abegorim por força queria que ele bebesse e o cigarro modesto por causa da sua úlcera ainda tão recente (fora no Verão passado e estivera bem mal!). O Dr. Abegorim acendeu a sua cigarrilha, acomodando-se.
A Mirita, que mal entrara saíra, reaparecia trazendo um caderno de folhas amareladas tipo colegial. O caderno que lhe fora confiado pelo Antônio Fontemora.
A Lili, discretamente, instalara-se numa das poltronas mais recuadas, com o jornal nas mãos, como se fosse ler. Talvez pensasse, apenas, ela, tão assoberbada por preocupações.
Sob o olhar ansioso da Mirita, o Dr. Juiz, com o Pedro ao lado, pôs-se a folhear o caderno ingênuo. E ambos iam lendo. A princípio vagos, desinteressados. Depois, a pouco e pouco, surpreendidos.
E de súbito o Pedro, com a sua voz bem timbrada, rica de inflexões, começou a ler alto.
Era bastante belo o que todos ouviam agora.
Não quero o mundo vil que se amesquinha num vestido fatal de grande gala, perdendo a vida ao pretender ganhá-la, vendo no oiro o que a pobreza tinha.
Ah, rasga as tuas vestes de rainha e tinge de outra cor a tua sala bordada a branco e a matiz de opala, mas simples como um manto de andorinha.
Dêem-me um mundo que se afogue em rosas, mas rosas brancas, pétalas mimosas como asas de anjo donde abalam penas.
E no sono das minhas horas tristes, vem de mansinho, conta-me que existes e poisa em mim as tuas mãos pequenas!
As duas raparigas mais novas, sem dar fé de que a sua atitude podia tornar-se reparada por excessivamente descontraída, sentaram-se no chão, aos pés da Mãe e da tia que também prestavam atenção, encantadas. A voz do Pedro desfolhava pérolas.
Eu hoje acordei com as ânsias agudas de ter numa jarra de todas as cores os lírios, os cravos, as rosas carnudas que choram orvalho nos olhos das flores.
Mas vi correr sangue nas veias dos lírios e as rosas carnudas e sanguinolentas choravam poentes, bebiam martírios na água negrinha das valas cinzentas.
Os cravos, então, nos craveiros cativos, heróis de uma nova tomada de Diu, são fortes, valentes, risonhos, altivos, viçosos. -mas roxos, roxinhos de frio!.
E não colhi rosas! E não colhi lírios! E os cravos ficaram no mesmo jardim. Inutilidade de tantos martírios! Doía-lhes neles. Doía-me em mim!
Durante cerca de dez minutos, o Pedro foi lendo versos, com calor, com emoção.
Havia admiração nos olhos de todos. Havia entusiasmo no aplauso do Dr. Abegorim.
- Mas é um poeta de raça! Faz-se! Faz-se! .
O Pedro estava na última folha do caderno e dizia:
Ser um poeta de voz sumida não é preciso grande invenção! Basta ter asas na fronte erguida, e em vez de água, beber a vida, pôr todo o mundo no coração!.
Mas água não! Não bebas água como o teu corpo sempre te pede! Faz um poema da tua mágoa. Se bebes água, beberás água. Se bebes vida, matas a sede.
Depois, com tinta de linda cor, cinzela imagens que a gente entenda, traça num verso multicolor toda a miséria, todo o amor - cabelos soltos, tranças de renda!.
Se és pobrezinho, não tenhas medo, que a tua tinta não to consinta. Não desesperes. Ainda é cedo! Toma coragem. Golpeia um dedo e do teu sangue farás a tinta!
- Não há dúvida! Faz-se! Faz-se! - repetiu o Juiz. - É capaz de vir realmente a escrever com o sangue, com a alma, para dizer coisas! É assim mesmo "cinzela imagens que a gente entenda"! Não há arte onde não há comunicabilidade! Simulem, finjam, se não chegam ao coração não chegam a lado nenhum! Esse pelo menos tem estofo!
A Mirita estava radiante.
- Vê que eu tinha razão, Pai ? A tia Casimira observou:
- Engraçado! Olha-se para ele e vê-se apenas um rapaz vulgar. talvez até mais do que vulgar, assim baixote e de cabelos encaracolados. Ao pé do Zé Chaves, por exemplo, fica insignificante. ( - a Mirita estremecera dos pés à cabeça mas ninguém o notou -). Contudo, se depois se repara no olhar dele, tem-se a impressão de que há naquelas pupilas um fogo que chega para nos aquecer a todos!
O Dr. Abegorim encarou a irmã, estranhando o que ouvia:
- Ó Casimira, mas de onde é que tu o conheces, para falares assim?
- De cá de casa, de quando veio trazer os versos à Mirita.
- Aahh. . . E afinal, como é que ele se chama ?
- Antônio Fontemora.
- Pertence à família do nosso vizinho Engenheiro?
- É sobrinho dele!
- O Pai gostava de o conhecer?
- Não desgostava.
Por detrás das páginas abertas do jornal, Leonor Augusta dominou um gesto de revolta. Pois, ao poeta, o Pai aceitava-o. Ao Júlio, recusara-se a recebê-lo!
Estaria a ser justo, o Justo Juiz?
Distraíu-a a ela da amargura (porque hão-de as pessoas, mesmo as melhores, tantas vezes fazer coisas mal feitas?) e aos outros do entusiasmo suscitado pelos versos, o toque do telefone.
Rosarinho, que não entrara nas conversas e se mantivera compostíssima a ouvir como cumpre a uma menina pequena bem educada, levantou-se, foi ao escritório atender e logo voltou a participar à Mirita:
- É o Zé Chaves.
A irmã abriu a boca, prestes a soltar um "manda-o à fava. " Mas, duplamente admirada (curioso era o telefonema após a cena de há dias e o silêncio que ele desde aí mantivera, embezerrado e com muitíssima razão - vá lá! - e curioso era o desagrado que ela experimentava) lá se dirigiu a saber o que lhe quereria o ex-senhor das suas preocupações - que pensamentos não seria expressão muito adequada.
A conversa, com a saída dela, bifurcou-se. O Pai respondeu a uma qualquer frase da Rita; Dona Teresa Mafalda discutia com a cunhada um problema familiar. E o Pedro ficou sozinho. E, pela primeira vez desde que entrara em casa dos Abegorins, em situação de estar completamente entregue a si próprio. E então olhou para a que também parecia agora ter-se isolado. Isolado mas não alheado.
Porque ela erguera-se, afastara-se e parara como que retida pela força de um íman.
Realmente, encostada à cômoda sobre a qual havia objectos belos e de valor, de braços cruzados, os longos cabelos descendo-lhe em volta dos ombros em manto doirado, Rosarinho contemplava-o, um sorriso doce a adejar-lhe nos lábios, um sorriso que continha uma pergunta, uma pergunta que se concretizou no instante em que os belos olhos do Pedro (cor de azeitonas de Elvas) encontraram os dela. Pela primeira vez.
E que pergunta!
- Tens recebido notícias da Ana Maria ?
O Pedro reparou naquele instante que a rapariguinha não era afinal tão miúda como isso. Devia ter mais ou menos a idade da irmã dele, pelo que não se explicava lá muito bem que as outras raparigas a tratassem como se ela fosse um bebê. E tratariam? Ou parecera-lhe que a tratavam?. Gostaria de chegar a uma conclusão, pois não se lembrava da mais nova das Abegorins senão como uma catraia tímida, talvez mesmo um pedacito encolhida. Os grandes olhos de um azul carregado - olhos extraordinariamente bonitos, sombreados por uma dupla cortina de pestanas loiras desmentiam porém qualquer das interpretações. A dona daqueles olhos não era nem tímida nem encolhida. Pelo contrário, devia ser franca e resoluta. Tão franca e resoluta que, notando que ele a encarava como se a não tivesse escutado, já repetia a pergunta, explicadíssima:
- Eu gostava de saber se tens tido notícias da Ana Maria!
O Pedro, então, aproximou-se dela, respondeu-lhe bem de perto, a certificar-se do tom daqueles olhos nada vulgares:
- Há mais de uma semana que não recebo carta da minha irmã.
E Rosarinho, agüentando a análise:
- Tornou-se preguiçosa para escrever. ou escreve tanto que não lhe sobra tempo para se ocupar da correspondência?
- Talvez nem uma coisa nem outra. A Ana escreve sempre com regularidade. O atraso deve ser dos correios.
- Pois eu gostava de saber dela!
- Foste colega da minha irmã?
- Não.
- Mas davas-te com ela?
- Dar, dar. também não. Mas admiro-a muito.
- Porquê ?
- Adorei ouvir a palestra dela, no ano passado. Fui uma daquelas para quem a Ana falou.
- Nesse caso, andavas no 5º ano?
- Fiz o 5. ano. Agora estou no 6. e ficava assim esclarecido que ela passara.
- Então que idade tens?
- Fiz agora 16 anos.
- Estás adiantada!
- Estou certa, apenas.
- Gostas de estudar?
- Muito.
- Que curso tencionas seguir. se é que já escolheste?
- Freqüento a alínea F, que dá para várias coisas, como sabes. Mas não sei ao certo o que virei a ser.
- Médica ?
- Oh, não! Admiro imenso a profissão médica, mas não me julgo dotada para a carreira. Talvez me fique pelas físico-químicas.
- e riu. - Gosto de fazer experiências com líquidos e quantos produtos possam dar resultados desconhecidos. Desde pequena! - e a evidenciar cada vez mais um normalíssimo poder de convivência (que longe estava a ficar a imagem da miúdatímida ou encolhida), contou - Imagina que uma vez, tinha aí os meus 8 anos, decidi ser cobaia de mim mesma e, para conhecer as sensações da morte
- Da morte ?
- Sim, da morte! Pois, como eu ia dizendo, disposta a conhecer essas sensações...
- Brrr!. Que desagradável!
- . escondi-me debaixo da mesa da sala de jantar a comer as cabeças dos fósforos de uma caixa cheiínha que rapinei à Sofia. - e elucidou-o, temendo confusões: - A Sofia é a nossa criada. Conhece-me desde que a Mãe ficou à espera de mim.
O Pedro soltou uma risada - risada que fez com que todos os circunstantes naturalmente se apercebessem do muito que ele e a Rosarinho estavam entretidos-, divertido com a elucidativa declaração e com a história em si:
- Então e depois ?
- Depois de ter mastigado as pontas vermelhas muitíssimo bem mastigadas, deitei-me no chão, de olhos fechados, à espera.
- Esperaste muito, não?
- Esperei bastante!
- Sem resultados ?
- Lógico! A dose não era suficiente. E entretanto houve também a intervenção da minha Mãe que precisou de ir à sala de jantar e ficou espantadíssima ao ver-me naquela posição. Assustada, claro, obrigou-me a abandonar o meu poiso e como eu, um tanto agoniada, confessasse tragicamente os meus desígnios, tratou-me da saúde.
- Como?
- Da maneira mais indicada! Deu-me a única tareia de que me lembro! - e atirando para trás, num gesto peculiar, os longos cabelos, a mostrar os contornos da carinha perfeitíssima - Sabes com que é que a Mãe me chegou?. com o batedor dos tapetes, tau, tau, tau. com as sacudidelas e a choradeira que se lhe seguiu vomitei o almoço e as cabecitas dos fósforos! Nem sequer precisei de ir ao Hospital, como a Sofia aconselhava doida de aflição. Ficou o assunto arrumado!.
- E tu sem saberes distinguir os sinais precursores da morte!
- Evidentemente!
- E curada da mania das experiências?.
- Isso é que não.
- Ah, não?
- Certa vez, uns tempos depois do meu envenenamento frustrado, piquei um dedo e pus-me a espremê-lo para dentro de um copo.
- Para quê ?
- Para escrever com sangue!
- Que horror! E escreveste?
- Escrevi o meu nome! - e explicou: Senti-me igual ao herói de um romance de aventuras que estava prisioneiro e mandava à sua amada cartas escritas com o próprio sangue! Lindo, não achas?
- O que eu acho é que é preciso muito cuidado com as leituras na idade em que se passa de criança a adolescente.
- Lá isso, em qualquer idade! Os livros podem fazer tanto bem como mal. - e sem transição: - E o livro da tua irmã, Pedro?
O Pedro, assim apanhado de chofre, não soube logo a que livro se referia a pequena. Pensou em qualquer um que a Ana andasse a ler, no Liceu.
- Qual livro?
- O livro que ela estava a escrever. Constou-me que ia ser publicado. Não sabes disso?
Se o Pedro sabia!.
- Ah, o diário da Ana!.
- Como é que se chama?
- Parece que "Sou uma rapariga do Liceu".
- É um título bem giro! Apetece-nos logo a todas saber se cabemos dentro dele como protagonistas! - e insistiu: - Mas sai ou não sai?
- Sai! Talvez na Feira do Livro.
- Na próxima ?
- Sim, na próxima. O editor interessou-se imenso pela obra.
- Tu já o leste, pois leste ?
- Li.
- E gostas dele ?
- Gosto! - e com certa surpresa. - Mas olha lá, quem foi que te falou no livro da minha irmã?
- A mim, ninguém. Ouvi falar dele. Cristina Benedites.
- Tu conheces a Cristina ?
- Mais ou menos. A Cristina, e a Inês, e a Marta.
- Mas como?
- Oh, Pedro? . Eu julgava que tu eras um rapaz inteligente! - e troçando-o sem a mínima cerimônia: - Então eu não ando no Liceu da Ana? E a Ana não estava só um ano mais adiantada do que eu? E a Cristina e a Marta e a Inês não eram colegas e amigas da Ana?
- Pronto, pronto! Percebo! De repente, não me lembrei. e como nunca nenhuma delas falou em ti.
- A que propósito haviam de falar? Nunca me atrevi a dirigir-lhes a palavra! Sigo-as de longe, admiro-as, desejava aproximar-me, ser amiga delas, mas sinto-me tão garota, tão insignificante. (-e o Pedro, subitamente, reviu a miúda tímida ou encolhida, -). Elas são as grandes. e eu vivo pelos cantinhos, encostada às paredes, a observá-las para tentar ao menos parecer-me com elas.
E o Pedro, que revira a miúda tímida ou encolhida, não alcançou a profundidade dos sonhos ocultos naquelas expressões infantis. E, num surto de ironia (sem reparar que já fora flagelado por ela), comentou:
- Quer isso dizer que são as tuas vedetas?
- As minhas vedetas? - estranhou Maria do Rosário.
- Sim, os teus modelos! com qual delas ambicionas assemelhar-te?
E a Rosarinho, cujos olhos fuzilaram num lampejo de indignação:
- Estás a troçar de mim ? É pena, porque eu julgava-te um rapaz às direitas, capaz de entender o que não me parece ser mal nenhum, antes pelo contrário! Mas já agora ouves - não pretendo imitar nenhuma delas fisicamente, mas sim moralmente! Toda a gente se refere à tua irmã e às amigas como sendo as melhores do Liceu, as mais bem formadas, as mais atinadas. É sob esse aspecto que eu quero tornar-me semelhante a elas, compreendes? Por isso tento saber como agem, de que falam, que atitudes tomam, etc. Desejo identificar-me com elas!
- Copiando aparências? - retorquiu-lhe o Pedro, agora muito sério.
- Talvez realmente não precise de mais, visto que por dentro sei o que sou. - e encarou-o com altivez. - Aluna de quadro de honra!
E o Pedro, repelindo a supremacia:
- Para atitudes convenientemente exteriorizadoras, creio que não precisas de imitar a Ana e as outras. Tens as tuas irmãs!
Rosarinho abanou a cabeça e baixou a voz.
- As minhas irmãs são muito boas raparigas, normais em tudo, felizmente. Tão normais que não preciso delas como exemplos.
Ele não ocultou o espanto ao escutar semelhante afirmação. E a pequena, notando-o, explicou:
- Vê se alcanças o que quero dizer, Pedro! Aqui em casa, sob muitos aspectos e sem ser para me gabar, sou a melhor de todas. A mais estudiosa, a mais trabalhadora, a mais fácil de levar. Mas não me faltam defeitos, defeitos que devo corrigir. E para isso olho as que são, não minhas iguais, mas superiores a mim! É que. - e sorriu de novo, desanuviada. - Tenho muitos ideais. Quero ser culta, útil. e colocar-me numa situação digna de apreço. Gosto que me admirem. - e quase num sussurro, concluiu: - Acho que sou ambiciosa, Pedro.
Proferiu Pedro com uma tal inflexão que o Pedro tremeu por dentro.
E agora não estava diante dele uma garota loira e azul. Surgira da garota loira e azul uma encantadora rapariga crescida, azul e loira, que respondia a um qualquer anseio que existia na alma dele, conquanto ainda fosse incapaz de o concretizar em palavras. Um anseio cuja análise o iria ocupar nessa noite até muito tarde. Um anseio que o retinha ali, junto à cômoda preciosa, encarando a rapariga loira e azul tão surpreendido como inquieto.
Porque ela continuava a falar e ele não percebia nada do que ouvia, tentou afastar de si a visão absorvente. Passou a mão pelos olhos, num gesto vago. Mas a garota azul e loira não voltava. A ocupar o lugar dela, a preenchê-lo, a rapariga crescida loira e azul que respondia ao tal anseio desconhecido.
E veio de súbito o ambiente reapossar-se de ambos. É que a Lili, por cima do jornal, do fundo da sala, notara o movimento dele, interpretara-o e apressara-se em intervir, repreendendo a irmã:
- Rosarinho, não esteja a maçar o Pedro!
- e para o rapaz, trazido para a realidade: - Desculpa, sim, Pedro?. É uma garota amimada e julga que toda a gente acha graça às tropelias que ela adora contar. A culpa é nossa, que estamos sempre prontos a dar-lhe ouvidos!
Rosarinho encarou a irmã com um trejeito que expressava um grande desconsolo por assim se ver diminuída e criticada-ela!. E, como sempre que algo a envergonhava, em atitude de menina pequena - sim, aquilo era realmente de menina pequena! - agarrou com as duas mãos nos cabelos e puxou-os de modo a com eles tapar a cara, ficando a espreitar pelo meio da cortina doirada. E agora safiras luziam pelo meio de fios de oiro.
Era tão bonito!. Ou antes - era tão bonita!.
E o Pedro, com um ar maravilhado que Leonor Augusta não soube interpretar, redarguiu-lhe:
- Não, Lili, a Rosarinho não me maça nada. É uma delícia encontrar uma rapariga que nos conta histórias da sua infância em vez de falar de filmes e de cançonetistas de voga transitória. ou de assuntos inconvenientes! Escutando-a, fica-se com a certeza de que também podemos dizer-lhe coisas infinitamente pueris que ela achará importantíssimas.
No entanto, e apesar da frase, ergueu o braço e viu as horas no relógio de pulso. Então Leonor Augusta julgou entender a verdade, elo entre a atitude e as palavras, contraditórias. Sim, palavras gentis mas atitude escusa.
Podia calar a observação que ia magoar a irmã. Ela estava, porém, tão dorida por tanta coisa. Evidentemente que nem isto lhe servia de desculpa para uma má acção (ou acção menos boa) nem ela era rapariga para agir de forma premeditada em semelhante caso. Acontece porém que o coração tem razões que a razão não entende- (frase de um poeta lida algures).
E assim, impelida por uma estranha força íntima que a obrigava a ferir, ela comentou:
- Pois estarás deveras entretido, Pedro, mas vais olhando para o relógio, o que significa que estás morto por te safares.
Acto contínuo, Rosarinho voltou costas, balbuciou um "desculpa, Pedro" e deu um passo a afastar-se. Foi detida, porém, pela mão do Pedro, que lhe agarrou num braço. E sem a largar e sem falar, o Pedro mirava fixamente a Lili, a pobre Lili que mal pronunciara a frase mordera os lábios, constatando o erro absurdo que acabava de cometer. E agora, no espírito da rapariga, embaraçada e arrependida, acendia-se uma luzita mínima mas penetrante que lhe mostrava o que talvez fosse um espanto mas não havia quaisquer razões para não admitir:
Por fim, o Pedro disse:
- Lili, eu não estou morto por me safar. Enganaste-te ao julgá-lo. Vi as horas somente porque preciso de ir estudar. Tenho um exame esta semana e a matéria por dominar. São cinco e meia. A minha folga, por hoje, terminou. - e sorria, ao proferir aquelas palavras. Mas sentia-se que a expressão "a minha folga" traduzia uma realidade - ele gastara o tempo de descanso que a si próprio oferecera nesse dia. Nada mais! Sempre cumpridor, o Pedro continuava a pôr os seus deveres à frente de tudo. Mesmo do que lhe dava prazer. E. sim, sim! Ele gostara de estar ali!
Quando o afirmou a Dona Teresa Mafalda e ao Dr. Abegorim, revelava o que sentia com absoluta sinceridade. Deixava atrás dele, aliás, o mesmo agrado que levava.
Mas Rosarinho parecia infeliz. Era nova e inexperiente demais para adivinhar o que se passava no coração do Pedro. O Pedro que apertava a mãozita dela, perguntando-lhe baixo, num tom quente que nada tinha a ver com a frase:
- Queres que te telefone assim que receber carta da Ana?
Rosarinho retraíu-se.
- Deixa lá, não te maces por minha causa. Não mereço que percas tempo comigo.
E ele, como se a resposta houvesse sido completamente diversa, olhando-a bem a direito:
- Estou convencido de que vou adorar contar-te coisas lá da Quinta. e coisas da minha infância. vou conversar contigo com a certeza antecipada de que não te há-de aborrecer ouvir-me.
Quatro dias depois, em casa dos Abegorins tudo parecia no ritmo normal, no ritmo de sempre.
O Dr. Juiz saía de manhã para o tribunal, entrava para almoçar, fumava a sua cigarrilha, voltava a sair a caminho das suas obrigações regressando definitivamente cerca das sete horas da tarde para se fechar no escritório até ao jantar, muitas vezes apenas em interrupção de estudos que só terminavam pela noite adiante.
Dona Teresa Mafalda passava as manhãs ocupada nos afazeres domésticos. Entre as oito da manhã e o meio-dia, ajudava a Sofia a arrumar a casa, a passar a ferro, a preparar as refeições. Só não deitava a mão aos serviços que no dia competiam às filhas. Depois do almoço, a aplicação das suas tardes variava. Ora as gastava saindo para em casa das suas maiores amigas - a condessa de Ribatorpes. a Sara Francelim e a Carolina Pestana - se entreter no jogo da sua predilecção-quase-paixão, o bridge, ora recebendo-as a elas e a mais umas tantas conhecidas, ora pondo em ordem coisas que se atrasavam. Isto complicando a vida de uma forma que levava o Dr. Juiz a protestar:
- Vocês, as mulheres, inventam afazeres! Inventam de certeza!
Não inventam afazeres as mulheres no exercício das açambarcadoras exigências de um lar normal, muito embora estas possam ser menosprezadas e incompreendidas pelo elemento masculino.
- A lida da casa nunca está feita! - repetia D. Teresa Mafalda, numa explicação lamentosa e verdadeira. - Nunca está feita!
De facto, a lida da casa nunca está feita. Pois.
Roupa que se suja, roupa que se lava, roupa que se estende, roupa que se passa, roupa que se arruma, roupa que se veste, roupa que se despe, roupa que se suja, roupa que se lava, roupa que se estende, roupa que se passa, roupa que se arruma, roupa que se veste, roupa que se despe, roupa que se suja, roupa que se lava, roupa que se estende, roupa que se passa, roupa que se arruma, roupa que se veste, roupa que se despe, roupa que se suja, roupa que. que. que.
Dias após dias. Semanas após semanas. Meses que são anos e anos. Sempre!
Loiça que se utiliza, loiça que se lava, loiça que se limpa, loiça que se guarda, loiça que se quebra, loiça que se compra, loiça que se utiliza, loiça que se lava, loiça que se limpa, loiça que se guarda, loiça que se quebra, loiça que se compra, loiça que se utiliza, loiça que se lava, loiça que se limpa, loiça que se guarda, loiça que se quebra, loiça que se compra, loiça que se utiliza, loiça que. que. que.
Dias após dias. Semanas após semanas. Meses que são anos e anos. Sempre!
Comida que se come, comida que se digere, comida que leva dinheiro, comida que se pensa, comida que se procura, comida que se faz, comida que se come, comida que se digere, comida que leva dinheiro, comida que se pensa, comida que se procura, comida que se faz, comida que se come, comida que se digere, comida que leva dinheiro, comida que se pensa, comida que se procura, comida que se faz, comida que se come, comida que. que. que.
Dias após dias. Semanas após semanas. Meses que são anos e anos. Sempre!
Vida que leva dinheiro, dinheiro que se ganha, dinheiro que custa a ganhar, dinheiro que se gasta, dinheiro que não chega, dinheiro que é preciso poupar. Dinheiro para a roupa, para a loiça, para a comida. Dinheiro para a VIDA.
Dias após dias. Semanas após semanas. Meses que são anos e anos. Sempre!
Ninguém se apercebe do que custa, do que cansa, o repetido esforço que em Sempre torna os dias que formam as semanas e as semanas que geram os anos. Ninguém dá por ele. Porque as roupas nos seus lugares, as loiças nas mesas bem postas, as refeições saborosas que a família come reunida formam um todo tão lógico, tão natural, tão simples. Tão simples, tão natural, tão lógico, que a família reunida não se apercebe de quanto chegam a tornar-se exaustivas as coisas que se repetem dias após dias, semanas após semanas, meses após meses. até constituírem Sempre!
Dona Teresa Mafalda costumava dizer que ninguém avalia o peso da lida diária de uma casa, essa lida sobre a qual repousa todo o bem-estar da família, senão quando tem de o suportar nos braços. E no ritmo normal da existência dos Abegorins, as meninas, que não precisavam de o agüentar, continuavam sem se aperceberem de quanto ele esgotava e de quanto realmente podiam auxiliar a Mãe. Contentes e despreocupadas, gastavam os seus dias segundo os hábitos adquiridos. Davam a ajudazinha estipulada. Mas depois não pensavam mais no caso. E, estouvadamente, desarrumavam, deixavam tudo por todos os lados. Sempre cheias de pressa, a entrar e a sair. A sair.
A Mirita a caminho da Faculdade de Letras (História).
A Rita a caminho do Instituto de Línguas.
A Rosarinho a caminho do Liceu.
A Lili a caminho das aulas de dactilografia e estenografia.
Tudo idêntico ao que desde há bastante passara a ser normal. E no entanto, se alguém, conhecendo a fundo aquela gente, sobre ela erguesse uma lupa investigadora, descobriria pequenas coisas que lhe chamariam a atenção, pequenas coisas indicando alterações talvez ainda mal perceptíveis. mas alterações.
Álvaro Abegorim andava com uma ruga a mais na testa, uma ruga que nem os carinhos da filha mais nova, sempre toda meiguice, desfaziam. Mas a verdade é que entre as muitas rugas da testa ampla, prolongada pela incipiente calvície, não se dava por aquela.
Mirita não largava os livros, mas só lia poetas, o que não podia considerar-se normal numa rapariga até aí tão pouco dada a lirismos. E de súbito passara a sair da Faculdade acompanhada, acompanhada por um tipo que atraía os olhares de todas as colegas
- e não colegas! -, um fulano giríssimo que falava, falava, falava como se tentasse vencer qualquer barreira especial, barreira que não se deixava transpor visto que ele acabava sempre por se despedir dela com um ar desesperado na paragem do autocarro. E ainda havia algo mais. Em casa atendia o telefone longamente.
Também a Rita perdia horas ao telefone, rindo maliciosa. Era a mais alegre de todas, cheia de dificuldades em aceitar como sérias determinadas palavras que estava começando a ouvir.
E também a Lili atendia freqüentemente o telefone. Mas a Lili não ria. A Lili andava com um ar preocupado que a fazia parecer mais velha. E depois das seis da tarde, mal soava a campainha do telefone, corria para ser a primeira a responder à chamada, como se nenhuma pudesse haver que não fosse para ela.
Rosarinho, cujo olhar conservava a inalterável serenidade de um lago em tempo de calmaria, era a única que não atendia o telefone, ou antes, a única para quem o telefone não tocava.
Ou tocava raramente.
Trrummm. Trrrummm. Trrrummm!
E Dona Teresa Mafalda queixou-se:
- Lá está aquele outra vez! Não pára! e pensava que se acabara o sossego desde que cessara a algazarra das suas filhas crianças.
Eram 18 e 25.
A Lili saiu do quarto de banho a correr, os cabelos cheios de sabão.
- Eu atendo! - e pouco depois. - Rosarinho, é para si!
- Para mim?
A Mãe, que nessa tarde ficara em casa ocupada na faina das arrumações - que sina! -, olhou pela porta aberta da saleta a filha mais nova ajuizadamente sentada a estudar. Matemática. Viu-a erguer a cabeça com ar intrigado.
- Quem é, mana? -O Pedro.
- O Pedro? .
E agora, o azul escuro dos seus olhos irradiava para toda ela uma auréola de cor diferente. Verde! Do tom do agrado com que tudo costumava enfrentar passara ao da esperança que algo confundia.
E repetiu:
- O Pedro. para mim?
Então soltou uma risada que lhe restituiu aos olhos o azul. O agrado voltava a reapossar-se da esperança, dominando-a. ou tornando-se concretizado graças a ela.
A Mãe não pôde deixar de suspirar ao vê-la erguer-se e com tanta precipitação que o livro e o caderno saltaram da mesa para uma cadeira e da cadeira para o chão.
Longe, a pequena falava.
Falava com o Pedro.
Naquela casa tudo parecia singrar ao ritmo normal, ao ritmo de sempre. Mas Teresa Mafalda Abegorim (de solteira Câmara e Sousa de Medeiros) sabia que profundas alterações começavam a desenhar-se, ameaçando perturbá-lo. As coisas não são na maior parte das vezes como se apresentam à vista. Nem a própria terra.
A terra, verdejante e calma, cheia de flores em plena Primavera, não deixa adivinhar nada que seja diferente do que mostra. Mas o fogo e a água revolvem-se-lhe no fundo, tão no fundo que ninguém se lembra delas senão quando explodem por crateras ou fendas. Claro que a sua extravasão não significa obrigatoriamente catástrofe. Porque se o fogo pode tornar-se cataclismo, a água pode tornar-se benesse. Ou cataclismo a água e benesse o fogo.
Diante das suas filhas crescidas, flores a caminho de serem frutos, porque não havia Teresa Mafalda da Câmara e Sousa de Medeiros Abegorim de acreditar que a água brotando das fontes pudesse torná-las mais belas e mais viçosas? Mas. porque não admitir também que o irromper do fogo nos corações juvenis viesse a lançar sobre o dela - e sobre o do marido! - as inevitáveis cinzas da saudade e da solidão?
Se a cunhada, a Casimira (a tia Casimira!) a ouvisse pronunciar aquelas palavras que denunciavam um toque de neurastenia - custa muito deixar de ser nova e é necessário uma boa dose de estoicismo para encarar todos os fins!
- dir-lhe-ia, compenetrada, que em qualquer idade se recomeça, pois em qualquer idade se descobrem coisas novas para viver. Mas a verdade é que Teresa Mafalda ainda se não adaptara à idéia dessas coisas novas que iam chegar. Agarrara-se talvez demais ao hábito das suas filhas pequenas, das suas filhas em casa na noite, das suas filhas ao alcance de ternuras e de ralhos, das suas filhas do seu lar e de mais nada e de mais ninguém. Agora, porém, as suas filhas começavam a ser de tanto de fora e para tanta outra gente!. Haveria maridos, depois filhos.
Como com ela própria! Também deixara Pai e Mãe para um Marido, para quatro filhas.
Este era um pensamento que teria sido frase na boca da tia Casimira que, embora solteira - ou por ser solteira? - encarava certos problemas não sob o seu aspecto sentimental mas sim lógico. Um pensamento que feito frase a levaria a tentar vencer a lógica com o sentimento, conquanto certa de que as idéias seriam refutadas com factos.
E, visionando a cena, achou-se a reagir. Reagira já quando reapareceu a filha mais nova, alegre como um pardalito.
Rosarinho postou-se diante dela, a comunicar:
- Era o Pedro de Macedo, Mãe! E a Mãe:
- Bem ouvi a sua irmã dizer-lho!
- Sabe o que ele queria?
- Não.
- Dar-me notícias da Ana Maria.
- Ah!
- Receberam carta dela, ele e o Paulo. A Mãe sabe quem é o Paulo, pois sabe?
A Mãe sorriu:
- Claro que sei. Imagine!
E a pequena.
- Pois!. Ê esse mesmo, o noivo da Ana.
O coração de Dona Teresa Mafalda ficou mais pequeno, retraído. Abanou-se ao de leve, sentindo uma lufada de calor percorrê-la. Agora não lhe agradava a referência que algum tempo antes a deixara indiferente.
- Noiva, uma rapariguita tão nova! Que disparate!
- Sabe, Mãe. noiva, neste caso, não significa que já esteja oficialmente pedida. Só quer dizer que a Ana há-de vir a ser mulher do Paulo porque tem estado a crescer para ele. Conhecem-se desde sempre! -e riu, embora as palavras o não justificassem. - Parece-me que ainda me lembro de ver o Paulo de calções! Encontramo-nos no elevador e à porta da rua tantas vezes! O Pedro e ele são amigos para aí. nem sei!. Talvez uns dez anos!. A Mãe esperava que ela lhe transmitisse notícias da antiga vizinha do segundo andar, aliviando-a da pressão causada pelo inesperado telefonema. Mas a pequena como que lhe fugia, "tiras de recordações.
- É engraçado como a gente fixa certas coisas! Conservo deles todos uma imagem tão nítida dentro da minha cabeça! - e puxou uma cadeira e sentou-se ao pé da Mãe, a contar: Foi há imenso tempo! Devia eu ter nessa altura os meus nove anos. Certa manhã - era um domingo! - acordei cedíssimo e ouvi o elevador e pouco depois conversas na rua com risos à mistura e a voz do Rumané (o miúdo lá de baixo, que é mais moço do que eu!) e deu-me a curiosidade de saber o que se passava. Saltei da cama e fui à janela, espreitar. Estavam eles todos a arrumar coisas e mais coisas no porta-bagagens. E a figura do Pedro, com uma data de sacos nas mãos, de calções curtos e aquela madeixa caída para a testa, ficou-me de tal modo gravada na mente que há ocasiões em que me parece estar a vê-lo!
E Dona Teresa Mafalda, muito séria:
- Tem graça!. Ia jurar que aludiu ao Paulo, quando evocou essa cena. Creio que era o Paulo que a menina revia de calções. Enganei-me, talvez.
Rosarinho abriu a boca, ficou escarlate. De facto. ela referira-se ao Paulo! Mas depois. Depois a imagem do Pedro viera soberana, afastando a outra, eliminando-a totalmente. Por instantes ficou sem saber como rectificar a frase, o descaminho, a sobreposição. Podia arranjar um subterfúgio, era fácil. Fácil mas falso. Porque nesse tal dia tão distante no passado mas tão presente nela, o Paulo não fazia parte do grupo, pelo menos à hora em que da janela os avistara. O Paulo cruzara-se com ela freqüentemente na rua, na entrada do prédio, sim. No elevador chegara a brincar com ela puxando-lhe uma das tranças (ainda às vezes entrançava os longos cabelos) como se fora a corda de um sino.
Talão - talão - talão.
A verdade, porém, é que falara no Paulo e vira o Pedro. Também se lembrava lindamente dele porque. e porque.
Então, com um trejeito de ombros, decidiu-se pela sinceridade e disse exactamente o que pensava:
- É que também me lembro dele e como acabei de lhe falar a imagem acudiu-me assim! - e fitando a Mãe com evidente e súbita ansiedade: - Não tem mal, pois não, Mãe?
- Não, filha. - e com inesperada doçura, Dona Teresa Mafalda desviou o assunto. - Poderíamos voltar agora ao ponto de partida. A menina ia com certeza dizer-me quais as notícias que o Paulo e ele receberam da irmã. ?
- Ah, pois. era isso mesmo!
- Foram boas, essas notícias? Sentem-se felizes? Já adaptados? A Ana Maria não estranha? - simpàticamente, a Mãe ajudava a filha a extravazar o que se via bem estar a inundá-la.
Há pessoas que mesmo transbordantes preferem calar-se, guardar tudo dentro delas. Outras precisam de expandir-se, de comunicar, de repartir a sua alegria. As primeiras são as avarentas. As segundas, as generosas. Rosarinho era uma generosa. E as palavras soltaram-se em torrente.
- Imagine, Mãe, que a Ana Maria escreveu ao irmão uma carta de dez páginas em letra miudinha de um lado e do outro! O Pedro disse-me que levou mais de uma hora a lê-la. E quer saber? Vai guardar a carta muito bem guardada porque, se ela continuar assim, daqui a uns meses tem um novo livro pronto, em forma epistolar, já se vê! A Ana descreve imensas coisas da vida de lá, dos costumes, do tempo. É tão engraçado poder-se viver como se fosse sempre Verão! O Inverno só se conhece por - e o Inverno lá é ao contrário de cá, calha nos meses do nosso estio.
- Eu sei, filha. Não sou tão ignorante como isso!
- Ah, pois, pois!. -e riu.
- Mas continue, continuü.
- Ora ? . Para quê ? A Mãe também sabe! é certo. O Inverno, lá, conhece-se pelas
chuvas torrenciais e pelas trovoadas, medonhas embora de curta duração!
- Não valia a pena eu dizer, vê?
- Mas vale a pena dizer-me como é que a Ana se tem sentido no seu novo meio.
- Muito bem! De resto, por enquanto, só apanhou bom tempo. - e de novo embalada: Ela conta que às vezes quando vai para as aulas tem tanto calor que só lhe apetece mandriar e ir para a praia.
- . para uma das maravilhosas praias que por lá existem, com água mais quente que as do nosso Algarve.
- Que as de algumas praias do nosso Algarve! - rectificou a pequena. - Não me esqueço do nosso espanto no ano passado, quando fomos de férias. Em Monte Gordo, a água era quente. Na Rocha, morna. E em Albufeira tão fria como no Estoril!
- Pois lá são todas quentes!
Mãe e filha, instaladas entre os armários, conversavam, amenamente. Dona Teresa Mafalda esquecia as suas apreensões de há pouco, abria em boa disposição.
E Rosarinho prosseguia:
- Depois em Luanda há imensas festas! E como o Dr. Macedo tem aquela posição importantíssima, os convites chovem, claro. Mas ela só vai a uma ou outra e a Rosinha-Mãe também.
- Quem? -exclamou Dona Teresa Mafalda.
- A Rosinha-Mãe! - e lendo estranheza na expressão, comentou, divertida: - Ai, até que enfim a Mãe não sabe qualquer coisa!. Que nisto eu acho espantoso que a Sofia, tão amiga das criadas lá de baixo, nunca lho tenha dito!
- Ó Rosarinho, a Sofia não é de coscuvilhices, felizmente! Imagine ela a contar e eu a ouvir.
Riram as duas. E a pequena explicou por fim:
- Pois os filhos da S'Dona Rosa Maria tratam a Mãe por Rosinha-Mãe. Os filhos e os amigos íntimos! E às vezes até o marido, a brincar, já se vê! E o mais engraçado de tudo é que agora, à pequenina Maria Rosa, que é afilhada do Pedro chamam-lhe a Rosinha-Filha! Não acha uma delícia, Mãe?
- Acho. e acho um espanto que a menina esteja tão bem informada!
Mas Rosarinho, que na forma como a Mãe lhe falava via que não havia qualquer problema, pelo contrário, não se atrapalhou com o reparo. E quis saber apenas se a Mãe gostava ou não do nome que a encantava:
- Ora diga, Mãe. não soa maravilhosamente, Rosínha-Mãe. -e repetiu, coando as sílabas por uma ternura que as fazia realçar: Rosinha-Mãe! Que bonito! Não é?
- Não há dúvida. É bonito e harmonioso. Liga, Rosinha com Mãe! - e de súbito acrescentou - Curioso! Teresinha-Mãe não dava nada!
- Como?
- Se alguém se lembrasse de me chamar Teresinha-Mãe. seria absolutamente ridículo! Não lhe parece?
E a Rosarinho, reflectindo:
- De facto Teresinha-Mãe não resulta! Que esquisito! - e concluiu, desistindo de encontrar justificação para o acto: - São coisas!
- Pois. são coisas! E a propósito de coisas. não há mais nada para me contar?
- A respeito de quê, Mãe ?
- Ora de que há-de ser? Da Ana! Ou já disse tudo?
- Ah, não, ainda não!
E Dona Teresa Mafalda. com intenção oculta:
- Calculei, pelo tempo que se demorou ao telefone.
A pequena não entendeu o alcance da frase. E procurou encadear o ponto onde se detivera com o mais a descrever:
- Ora eu ia, se não estou em erro, na altura das festas. ? - e o seu olhar cheio de candura fixava-se no da Mãe.
E Dona Teresa Mafalda, outra vez a sorrir-Lhe (naquele instante apetecia-lhe até dar-lhe um beijo, mas não o fez por não achar razoável a atitude):
- Não está em erro. Pode continuar.
- Pois as festas são constantes mas elas vão a poucas. A Rosinha-Mãe não aprecia uma vida mundana, é sabido.
- E a filha tem pena ?
- Não! A Ana precisa de estudar e de escrever!
- De escrever?
- Principiou a colaborar numa revista literária de lá, com uns contos. E depois também lhe custa andar a divertir-se tendo o Paulo longe.
- É natural!
- Sou da mesma opinião! - e acrescentou, peremptória: - Uma rapariga comprometida não deve deixar-se cortejar por outros rapazes.
Dona Teresa Mafalda contestou:
- Não é bem isso, filha.
- Então?
- A esse respeito, há duas observações a fazer. E a primeira é esta - o facto de uma rapariga ir a uma festa não obriga a que seja cortejada.
- Pois não, Mãe!. Mas veja a Rita! Desde as festas do Carnaval a quantidade de rapazes que lhe telefonam!
Dona Teresa Mafalda sorriu e a Rosarinho, perfeitamente à vontade, continuou:
- Claro que uma rapariga, qualquer rapariga, pode não atender os rapazes que lhe telefonam. Mas evitar que o façam. como? .
- e quase sem transição, deveras interessada:
- E a segunda observação qual vem a ser, Mãe?
- Eu lhe digo, Maria do Rosário. O que em geral a rapariga que pensa em casar não sente é gosto em ir a festas sem aquele que ama! E creio, sinceramente, que a Ana Maria se aborrece nelas e as evita por não ter o Paulo a acompanhá-la.
- É possível. - admitiu a pequena. E depois: - Deve ser isso mesmo!
E a Mãe:
- A Ana fala do Dr. Macedo e do novo Hospital ?
- Fala, pois! Diz que vai ser inaugurado muito breve. Está pronto e parece que se trata de uma obra monumental, dispondo de instalações modelares. O Pedro está ansioso por acabar o curso e ir para o pé do Pai.
- Em que ano anda ele?
- No segundo, Mãe.
- E o Paulo, também?
- Também.
- Qual deles é mais velho?
- O Pedro, mas só uns mesitos. - e explicou - O Pedro fez vinte anos em Novembro e o Paulo vai fazê-los daqui a pouco.
- E continuam ambos bons alunos ?
- Bons, Mãe? Formidáveis!
Dona Teresa Mafalda mudou de assunto:
- E a pequenina?
- A Rosinha-Filha?. Tem quase um ano.
- Sim, deve ser isso. Recordo-me perfeitamente de ver a S'Dona Rosa Maria bastante volumosa por esta altura.
E a Rosarinho, sem ligar ao comentário:
- Diz que está lindinha, lindinha, lindinha! Palra muito, dá atenção a tudo e, segundo a Ana conta, a pessoa a quem faz mais festas é ao irmão, ao Rumané, que a adora. O Pedro prometeu-me que assim que receber fotografias mas mostra e eu peço-lhas emprestadas para a Mãe ver, está bem?
Dona Teresa Mafalda não teve tempo de dizer se estava bem ou não. O telefone tocara pouco antes e Lili correra a atendê-lo. Não chamara ninguém, logo fora para ela.
Não se demorara. E por isso mesmo impedira que a Mãe respondesse à irmãzita. Entrou pelo quarto dos armários aos pulos, a bater palmas, agarrou-se à Rosarinho, com ela cingida ao peito deu uma série de reviravoltas e por fim, imobilizando-se, caiu de joelhos e abraçou-se à Mãe, primeiro a rir, depois a chorar. E por fim soou a explicação de tão insólita conduta:
- Mãe, acabam de telefonar-me da Empresa. - e gaguejava, ante o espanto de Dona Teresa Mafalda e de Maria do Rosário. Sim, da Empresa de Navegação. do escritório do Director. Fui admitida! Fui admitida! vou ganhar dinheiro, Mãe! Ouve? vou ganhar dinheiro!
Ganhar dinheiro não podia deixar de ser uma coisa importante e séria. A Mãe sabia. E tinha a noção do que se passava por uma conversa com o marido. Mas contra a importância e a seriedade incontestáveis do acto de ganhar dinheiro havia uma objecção também séria e também importante. E foi essa objecção que determinou a réplica imediata e desconsolada de Dona Teresa Mafalda.
- Pois irá ganhar dinheiro, Leonor Augusta. mas vai com certeza trabalhar. não?
E a rapariga, anelante:
- Toda a gente trabalha, Mãe! Porque hei-de continuar inactiva como se vivesse de rendimentos ?
E a Mãe, obstinada:
- Vai passar dias, semanas, anos, fechada numa casa.
- Toda a gente vive fechada, Mãe. e numa casa não é mal nenhum!. Há quem exista entre muros de preconceitos. e isso sim, isso parece-me horrível!. Esses nunca têm fins de semana!. Agora eu vou tê-los! Os sábados e os domingos serão dias livres, dias Meus, dias aos quais me sentirei com o mais sagrado dos direitos! - e já não chorava, já não gaguejava, ria, transbordante de júbilo, de confiança na vida. E aquilo, o que ela dissera, o que ela mostrava nos seus olhos cinzentos que a alegria tornava claros e transparentes como cristal, era tão comunicativo, que até a Rosarinho se entusiasmou:
- É isso mesmo, mana! A gente, depois de cumprir o que sabe ser um dever, até saboreia melhor as folgas! É como comer chocolate após uma dieta de peixe cozido.
E toda a gente riu. Porque toda a gente -: incluindo a Sofia - acorrera ao ouvir os gritos e os pulos da Lili.
Agora, envolvida pela atenção familiar, a Lili explicava com relativa precisão quais viriam a ser as suas funções no emprego.
- Bom, o lugar, como eu contei ao Pai, é de secretária da Direcção. Tenho de atender o telefone, de marcar e desmarcar audiências, de tomar contacto com os assuntos no início, antes que passem a interessar à Empresa, e de redigir e escrever à máquina a correspondência mais ou menos secreta em francês e inglês. e se eu soubesse bem alemão o meu ordenado quase que duplicava!
Disse a Rita, aprovadora:
- Sendo assim, vale a pena aprender!
- Claro que vale! - e continuou, com um ar significativo de que ia dispor-se mesmo a estudar o necessário para singrar rapidamente:
- Entro a ganhar cinco contos por mês. As outras secretárias que lá estão ganham oito contos e quinhentos mensais!
- Cinco contos é obra! - apreciou a Rita.
- Mas oito contos e quinhentos é uma obra muito mais imponente!.
- Naturalmente as duas senhoras estão há muitos anos na casa e são idosas.
- Que idéia. Mãe?. Têm pouco mais de trinta anos! Uma delas é uma rapariga "muito bem", casada com um advogado que está a principiar a ter nome, um Dr. qualquer coisa Barcozelo. E a outra, também casada, é filha de um médico.
A Mãe interrompeu-a.
- São então duas, as secretárias da Direcção?
- Eram duas, mas o trabalho excedia as possibilidades de ambas, no factor tempo, e por isso resolveram admitir outra. neste caso, eu!
- e lançando de novo os braços em redor da Mãe. - É Bom, não é, Mãe, ir ter assim todos os meses dinheiro meu, ganho por mim? . Dinheiro para me vestir, para me calçar, para começar o meu enxoval!.
A Rosarinho estendeu-lhe a mão direita, num gesto cômico:
- Ó mana, passa a dar-me uma semanada? Cinco escudos para rebuçados? Dá?
- Se os quiser, trate de os ganhar!
- De que maneira ?
- Lavando-me as meias! - e como essa era uma das coisas triviais e necessárias que ela mais detestava fazer, acrescentou: -Se aceita o encargo, até lhe pago dez escudos por semana!
E a Rosarinho, com um trejeito de amuo:
- Não, muito obrigada. Trata-se de um gênero de trabalho de que não gosto.
- Então atendendo à sua pouca idade, permito-lhe que me indique a ocupação para a qual se acha competente. An? Que trabalho deseja a menina fazer?
Rosarinho fingiu pensar. E depois, gravemente:
- Escovo-lhe os cabelos todas as noites! Um coro de gargalhadas. E, rindo sempre, Leonor Augusta anuiu:
- Combinado!
Em tumulto, debandaram as quatro. Sofia, contente de as ver contentes, regressou à cozinha, a ultimar o jantar. E Dona Teresa Mafalda lembrou-se de que ainda não acabara os seus afazeres.
Levantou-se, foi à marquise buscar a um cesto roupa para lavar. Camisas e lenços do marido. Coisas de que tratava no lavatório do quarto de banho. Coisas que.
Soltou-se-lhe do peito um fundo suspiro. Uma frase da Rosarinho ecoava dentro dela "um gênero de trabalho de que não gosto. " Também ela, um dia, há longos anos, pronunciara aquelas mesmas palavras a propósito de umas calças de homem que a Mãe, dias antes do casamento, a aconselhara a passar a ferro, para aprender. É um gênero de trabalho de que não gosto.
E agora era sempre ela quem se ocupava dos fatos, da toga, de tudo quanto pertencia ao marido.
Como as raparigas tornadas mulheres casadas perdem o direito de não fazerem aquilo de que não gostavam!.
Foi dois dias depois.
A Lili andava transbordada de felicidade.
Na véspera trouxera um retrato que o Júlio lhe dera, acabado de tirar, um retrato onde ele ficara bastante bem, o olhar profundo e tristonho a mirar de frente com uma expressão tão reflectida que Dona Teresa Mafalda não pudera deixar de o achar simpático. E não obstante as grandes prevenções que o marido lhe incutira no espírito, e espírito de antemão predisposto ao desenvolvimento de preconceitos, concedera a autorização solicitada por Leonor Augusta.
- A Mãe dá-me licença que o ponha no meu quarto? - pedira ela.
- Pois sim!
E agora, pela primeira vez havia entre elas a fotografia de um rapaz. Mirita e Rita olhavam com um ar de respeito aquela presença que marcava o início de uma grande modificação na sua existência, na existência das quatro.
Avizinhava-se, anunciava-se, essa separação a que o casamento inevitavelmente as conduziria.
Até àquele momento tudo estava diluído no porvir, pertencia ao grupo dos possíveis que ninguém sabe se chegarão a sê-lo. O retrato do Júlio, porém, ali colocado, era como que um sinal, um toque a rebate que significava "fim de uma vida, principio de outra. "
Fim da vida de meninas, principio da vida de mulheres.
E nessa manhã, depois de elas haverem saído para as suas ocupações, Dona Teresa Mafalda entrou no quarto das filhas para uma qualquer arrumação. E, de súbito, foi atraída pelo retrato masculino, em cima da mesinha, entre os beliches onde há tantos anos elas dormiam, as mais velhas nos de baixo, as mais novas nos de cima. Ficou parada diante dele, a olhá-lo. A olhá-lo e a pensar:
- Qualquer dia sai a primeira. Depois vão as outras. O Álvaro e eu ficaremos como nos primeiros tempos de casados, sós. Sós?. Não! Ficaremos com os anos passados em comum, com as preocupações das filhas ausentes do lar, com a saudade dos tempos idos, com a esperança dos netos que os Pais nos confiarão de vez em quando para nos adoçar algumas horas de solidão. ou para lhes facilitar a existência durante algum tempo!.
Depois reagiu. e sorriu. Ela não tivera Pais a quem confiar as filhas pequenas. A princípio longe deles, a andar de terra em terra. Depois ficando sem eles extemporâneamente. Valera-lhe a cunhada, sempre que precisava de tempo livre. Sim, sempre que precisava de tempo livre, um telefonema e lá vinha a tia Casimira olhar pelo ranchinho. estragando-o com mimos!
Agora as meninas já não necessitavam que tomassem conta delas. As meninas tinham de saber tomar conta de si próprias! E depois, de tomar conta de outras meninas, ou meninos. E ela serviria para as faltas!
Suspirou.
Üh, não! Oh, não! Se lhe perguntassem se preferia ficar sempre com as filhas ao pé, celibatárias, sem lar, sem maridos e sem filhos, responderia energicamente "oh, não! Pode lá viver-se sem algo de tão querido como um bom companheiro, como um rancho de pequenas criaturas adoráveis!. " Logo, como desejar que as suas filhas murchassem áridas, áridas como a cunhada? .
Áridas como a tia Casimira.
Que a tia Casimira não se sentia infeliz! Não se sentia infeliz, é certo. mas às vezes nos seus olhos doces havia um tom baço, neutro. Faltava-lhe qualquer coisa, qualquer coisa que os fizesse irradiar comunicabilidade, alegria retribuída, alegria recebida na vida que prolonga a própria vida.
E lembrando-se da tia Casimira, Dona Teresa Mafalda pensou na Mirita. A Mirita que estava a desinteressar-se do Zé Chaves - o que a ela, Mãe, não agradava nada.
Há muito que o aceitara como pessoa destinada a fazer parte da família. Sob diversos aspectos, gostava dele. E habituara-se a vê-lo ali em casa. Era pelo menos um rapaz bem educado e amável, conversador brilhante, cuja companhia, faltando, deixava um vazio!
A Mirita não estava a proceder bem. A Mirita, com o seu nome predestinado.
Naquele instante, soou a campainha da porta da rua.
Dona Teresa Mafalda sobressaltou-se.
Quem seria? O Marido, já?
Um reflexo duplamente errado. Nem o Dr. Juiz tocava a não ser que se esquecesse das chaves, nem eram sequer horas de ele chegar. E a propósito, quantas horas seriam? Olhou para o pulso. Mais uma vez parado, o relógio. Bom, parado porque ela se esquecia de lhe dar corda. Em cima da mesinha, ao lado da fotografia do pretendente da Lili, o despertador esclareceu-a - eram 11 e 22 minutos. Cedo, ainda. E, maquinalmente, as suas pupilas atentas do mostrador amarelo com algarismos pretos passaram outra vez para o rosto sereno e grave dentro da moldura que imitava cabedal. E reflectiu "por que hão-de os Pais ser tantas vezes contrariados na estrutura dos seus desejos?. Ali estava a evidência. Um genro que não agradava, preferido; um genro que agradava, posto de parte. Ai, ai!. " E a voz da Sofia, no limiar do quarto:
- Minha Senhora ?
- Que é?
- Está ali o menino Zé Chaves que desejava falar à Senhora.
Dona Teresa Mafalda estranhou. Depois, num sorriso íntimo:
- Falai no mau.
O Zé Chaves não era mau. Era. - vou já, Sofia.
Chegou-se ao espelho alto, ao fundo, a dar um jeito nos cabelos. Não gostava nunca de parecer descuidada. As mulheres não têm o direito de parecer (e de ser) descuidadas. Podem ser simples, isso é outra coisa. Mas descuidadas, não!
Embora ainda sem maquilhagem, estava cuidada, podia aparecer.
E apareceu.
O rapaz achava-se no meio da saleta, em pé, com um aspecto tão contristado e ao mesmo tempo tão confuso - tudo nele invulgar! - que Dona Teresa Mafalda franziu as sobrancelhas, preocupada. Não acreditava que ele estivesse assim só por causa da Mirita! Havia com certeza outro motivo.
Estendeu-lhe a mão, que ele beijou; convidou-o a sentar-se.
Ficaram frente a frente, calados. Dona Teresa Mafalda esperava.
Se o Zé Chaves ali viera, evidentemente queria qualquer coisa. Falar ou pedir. Aquela visita não cabia de certeza nos moldes da cortesia. Tinha de trazer rótulo. Ele, porém, não abria a boca e perdia o olhar pelos móveis da sala, como se lhe interessasse imenso fixá-los nos mínimos pormenores. Tudo falta de coragem.
A Senhora teve a percepção de que, se não fora o temor de se tornar ridículo, o rapaz se levantaria para abalar dali sem revelar o motivo que o trouxera decerto após muitas horas de hesitação. A decisão tomada devia estar agora a assustá-lo.
Então Dona Teresa Mafalda apiedou-se dele e decidiu ajudá-lo, oferecendo-lhe pelo menos um ponto de partida, um apoio que lhe desse coragem para avançar.
- Então, Zé, que temos ?
Os olhos do Zé, num agradecimento, cessaram de andar errantes e fixaram-se nos da Mãe de Mirita. E ele, o forte, o irônico, o convencido, tinha os lábios a tremer e a voz embargada, ao dizer palavras que se sentiam sinceras:
- Peço muita desculpa de me apresentar assim. e talvez seja asneira. mas não pude deixar de vir. Para cúmulo não sei nem o que desejo nem o que espero. -deteve-se, esboçou um gesto como se fosse levantar-se: -Talvez no fim de contas seja melhor que eu me retire. e desapareça para sempre.
- Que disparate! - volveu Dona Teresa Mafalda. - Se o teu coração te obrigou a vir procurar-me é porque tens confiança em mim.
- Toda! A Sr. D. Teresa Mafalda foi sempre a única pessoa que eu gostava que fosse minha sogra!
Dona Teresa Mafalda sorriu, comentando:
- Talvez seja a primeira vez que um rapaz escolhe uma rapariga não porque ela lhe agrada mas sim porque a sogra lhe convém. Algum dia disseste isso à Mirita?
O Zé Chaves estava tão perturbado que não compreendeu a doce ironia da frase.
- Eu nunca disse nada à Mirita. Sou um idiota, um cretino! Andei aqui anos a fazer-me de forte, convencido de que o meu orgulho masculino sairia diminuído se me limitasse a ser um namorado afectuoso, banal por isso mesmo e.
Dona Teresa Mafalda ia tentando raciocinar, extrair conclusões do que ouvia - e ele falava agora precipitadamente, como se receasse não ser capaz de chegar ao fim do que tencionava ou queria revelar. Ou não tencionava nem queria, mas achava que devia. Ou precisava de!
- Meteu-se-me na cabeça que a Mirita me adorava. Tinha decidido casar com ela, não sabia quando. Possivelmente no dia em que me sentisse farto da minha liberdade, da minha vida de rapaz, de fazer o que muito bem me apetece. E nunca duvidei de que ela me esperaria confiadamente, pacientemente. Também não lhe dizia nada que a obrigasse a admitir qualquer outra hipótese. Mas fui incapaz de lhe oferecer, ao menos, o anel de prometida.
Percebia claramente que nesta casa todos gostavam de mim, que todos me aceitavam. logo sentia-me seguro e entendia que nada mais era preciso. Parece-me que procedi mal muitas vezes sem dar por isso. Compreendo até que a Mirita sofresse. Às vezes creio que o pressenti. mas isso dava-me uma espécie de satisfação íntima. Eu era o sultão idolatrado pela escrava! Nunca me preocupei com o que ela pudesse pensar. Só me importava comigo próprio. E agora. agora. -calou-se, baixou os olhos, crispando as mãos. Depois, simplesmente, pediu: - Dá-me licença que fume, S'Dona Teresa Mafalda ?
- Fuma.
Ele acendeu o cigarro com aqueles gestos requintados que o tornavam encantador (fascinante, segundo algumas raparigas). E como não acrescentasse mais nada, a Mãe de Mirita perguntou, pegando na palavra em que ele ficara suspenso.
- E agora ?
- Agora ? Agora a Mirita desinteressou-se de mim.
- Tens a certeza?
- Sou obrigado a tê-la. Apareceu esse poeta das dúzias. (-e não reparou no sorriso irônico da interlocutora -) a dizer-lhe não sei o quê.
- Talvez as palavras que nunca te ouviu!
- É possível. - e reagindo: - Mas também certas palavras não significam nada! São bonitas. e só bonitas!
- Olha que também não, Zé! Por detrás de palavras bonitas podem existir bonitos sentimentos. Pelo menos os sentimentos não possuem outra forma de se revelar senão em
palavras. e quanto mais bonitas, melhor! Ou não será a palavra um dom exclusivo da criatura humana? An?
- Lá ser. é.
- Então, se é, não te parece que deve aproveitar-se, utilizar-se?
Ele não queria dar-se por vencido.
- Ela podia adivinhá-lo!
- Como?
- Na minha forma de lidar com ela. Na. na minha constância!
Dona Teresa Mafalda tornara-se muito séria.
- Um momento, meu filho. Essa tua afirmativa rebate-se de duas maneiras. - e reparando nos olhos dele (que olhos tão assustados num rapaz tão forte!) permeáveis ao que ela dizia, ao que ela pensava, explicou: - A Mirita não tinha que adivinhar, Zé! Em primeiro lugar porque a pretensão de ler na tua conduta seria vaidade e atrevimento. Em segundo lugar porque a tua constância foi uma coisa que nunca se verificou! Ou não tens a noção dos dias em que ficavas de telefonar e não telefonavas, das vezes em que ficavas de vir e não aparecias, das semanas em que a tua fantasia e o teu gosto pela liberdade te conservavam arredado da Mirita?
- Mas eu voltava sempre! - argumentou ele, com um ar tão lamentoso que Dona Teresa Mafalda sentiu vontade de o acariciar como se ele tivesse dez anos e estivesse arrependido de uma série de asneiras.
- Sim, voltavas. Todos nós sabíamos que em ti a decisão era segura. Mas nós possuímos uma experiência e uma concepção da vida que nos ajudam a ser tolerantes e compreensivos. Agora a Mirita, irrequieta e impaciente como
é normal naquela idade. cansou-se, Zé! Percebes? Ela cansou-se!
Então o Zé Chaves, muito pálido, atreveu-se a formular a pergunta que encerrava a sua inquietação máxima.
- Parece-lhe que sem remédio?
- Isso não sei. Confesso que não sei. Por que é que não lhe falas como acabas de falar-me ?
- Falta-me a coragem.
- Falta-te a coragem?
E ele, com o avesso da alma inteiramente à mostra, sentimental dentro de uma inconsciência que nunca chegara a ser maldade, tímido dentro de uma soberba que reduzira Mirita a não ter nem vontade nem opiniões, balbuciou:
- Sinto-me caricato no meio de tudo isto. E ao mesmo tempo desorientado, como alguém que perde a bússola no interior de uma floresta. A situação é de tal forma inesperada. e intrincada!. No princípio julguei que a Mirita agia numa espécie de desforço. agora não sei!
- Deixa que te faça uma observação, Zé. Tu disseste que julgaste. não foi?
- No princípio!
- Valha-te Deus, rapaz!. Mas só tens de continuar a julgar. porque afinal tudo está no princípio!.
- Acha?
- Acho.
- Sabe que. ?
- Que, o quê ?
- Que ele, o tal Antônio Fontemora, a acompanha quase todos os dias até à Faculdade?
- Não. Fico a saber. Isso e outra coisa.
- Que coisa?
- Que também tu vais à Faculdade diariamente.
- Porquê?
- Que ingenuidade! Se não fosses. não vias o outro.
Ele mordeu os lábios.
- Sim. Espero-a dentro do meu carro. vejo-a entrar. Depois ele vai-se embora, eu espero por ela. ofereço-me para a trazer a casa. Nunca aceita. Prefere o autocarro.
- Zé.
- S'Dona Teresa Mafalda?
- Zé, estás a proceder totalmente ao contrário do que deves. Não percebes que te ridicularizas, que te dás em espectáculo?
Ele não agüentou mais o desalento. Escondeu o rosto nas mãos.
Dona Teresa Mafalda abanou a cabeça, verdadeiramente impressionada.
- Gostas então profundamente dela?
- Tanto que por isso decidi pedir-lhe. A Senhora não o deixou continuar:
- Não me peças nada. Não se pedem coisas a quem não pode fazê-las. Ou vês-me obrigando a minha filha a aceitar-te para marido? Não mando no coração de nenhuma delas, Zé!
- Só desejava que lhe falasse de mim.
- Já falei! - os olhos dele, muito abertos, expressavam uma ansiedade imensa - Disse-Lhe o que se me afigurou razoável.
- E?
- E. nada! Mas dou-te um conselho, uma vez que me procuraste com tanta confiança. Procura tu a Mirita e explica-te lealmente. Talvez. talvez o Antônio Fontemora não seja para ela se não a concretização de sonhos que tu atraiçoaste. Por isso também só tu podes recuperar a sua fé e reapossares-te das suas esperanças, sobrepondo-te a quanto o Antônio Fontemora começou a dar-lhe em ternura e em poesia - e faço-te notar que a poesia muito embora seja importante não é tudo!. Mas se te calas e desistes, o outro estabiliza a sua posição e então o que não passaria de uma surpresa enraizar-se-à num sentimento.
- E se ela deixou de gostar de mim?
- Se ela deixou de gostar de ti. deverás reconhecer que tens as culpas todas e tentar perdoar-te a ti mesmo, para depois não pensares mais na Mirita a não ser com a ternura que se fica para sempre a consagrar às ilusões da juventude.
Dona Teresa Mafalda estava cheia de pena dele. Mas ao mesmo tempo admitindo que por detrás daquela dor existisse muito de magoado no convencimento diminuído, dada aquela forma de ser onde uma noção de superioridade abafara o dom de saber amar os outros por eles, pelo que neles há de Bom, pelo que neles merece tudo quanto seja possível conceder-lhes.
No escritório, o relógio antigo, de caixa alta - relíquia familiar herdada dos Passos badalou as 12 h.
Percebendo que já ali não estava a fazer nada, o rapaz levantou-se. Dona Teresa Mafalda teve vontade de lhe perguntar "queres almoçar connosco?" mas lembrou-se de que ele merecera o castigo e também de que a sua atitude, de comiseração franca, se transformaria num acto de má política. E então ergueu-se para o acompanhar à porta.
O telefone tocara momentos antes. Quando o Zé e Dona Teresa Mafalda transpunham a porta da sala, surgiu a Sofia:
- Minha Senhora, era o Sr. Dr. a avisar que não vem almoçar.
- Está bem, Sofia. - e estendeu a mão ao rapaz, que a levou aos lábios, respeitosamente.
Nesse momento ouviu-se o elevador, em andamento desde há segundos, parar.
E quando a porta da rua se abriu para o Zé Chaves, surgiu no seu enquadramento a figura gentilíssima de Mirita, uma Mirita que sem rir nem falar parecia transbordar alegria, uma Mirita cujos grandes olhos verdes se abriam desmedidamente, num pasmo sem disfarces.
Encarando o moço, desenhou-se-lhe nos lábios uma indagação "o que é que tu vieste cá fazer?. " mas nenhum som se ouviu.
Deu um beijo à Mãe, depois soltou na direcção dele um olá nitidamente esforçado, seguiu avante. e desapareceu.
O Zé Chaves sentiu-se perdido e não o ocultou. Aquele rapaz enorme, belo, rico, semelhou um garoto desamparado! Instintivamente, deitou a mão ao braço de Dona Teresa Mafalda e apertou-o, ao mesmo tempo que mordia os lábios com desespero. Então a Senhora não resistiu ao gesto que o coração lhe ditava. Deixou de pensar no que ele sempre aparentara para só ver o que estava sendo agora. Ergueu as mãos, prendeu-lhe o rosto que puxou para ela até conseguir beijá-lo na testa encharcada em suor, e aconselhou-o:
- Vai-te embora, filho. Por agora não há nada a fazer. Mas olha que perder uma namorada não é caso para desesperos! Tenta reagir!
Mesmo que o assunto fique como está, acabarás por conformar-te.
E ele, numa explosão:
- Sou um animal! Um burro. e não posso livrar-me de mim!
Sem mais nada, dirigiu-se para o elevador cujas portas correu. Antes de entrar, voltou-se.
- S'Dona Teresa Mafalda. muito obrigado pelo beijo que me deu. Nunca o esquecerei!
E o elevador afundou-se.
Quando cerrou o batente, Dona Teresa Mafalda avistou Mirita, imóvel ao fundo do corredor, junto ao quarto do qual, visivelmente, acabava de sair. Dirigiu-se para ela. Quando estava a um passo de distância, a pequena recuou e exclamou com vivacidade - uma vivacidade onde havia susto:
- Não vai falar mais nele, não, Mãe?
- Porquê ?
- Porque gosto de outro!
Então, com doçura, a Mãe estendeu a mão esquerda, segurou-lhe o queixo redondo, mergulhou o olhar na claridade do da filha:
- E gostarás?.
Odette de Saint Maurice
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